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Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Bacharelado em Serviço Social

Roberta Maria Silveira Nassar

Individualismo e Depressão
Produtos da Modernidade

Curitiba
2021
Tema

Esse trabalho visa realizar uma análise conceitual da modernidade em


seu aspecto de gênese do espírito individualista e relacionar tais investigações ao
processo de formação de uma sociedade que, atualmente, vê a depressão
ocupando o segundo lugar do ranking de doenças que mais causam ônus à
saúde no mundo e que, até 2030, irá predominar como a doença mais comum a
níveis globais, segundo dados de 2009 da Organização Mundial de Saúde.
A perspectiva fisiológica a respeito da depressão não é o objetivo deste
estudo, o enfoque está na mudança ocorrida na cognição da existência humana
inerente ao contraditório contexto socioeconômico do capitalismo e na ascensão
do neoliberalismo. O alicerce da metodologia é a subjetivação da realidade social
que leva, consequentemente, à valorização dos conceitos de estratificação e
desigualdade social, reprodução do modo de vida centralizado no consumo
exacerbado e a lógica do mercado no atual sistema. Uma prova cabal da
influência direta da globalização na condição depressiva dos indivíduos está nos
dados informativos sobre índices de pessoas acometidas em cada nação. Tais
informações podem levar a assunções errôneas se não levado em consideração
o fato de que países desenvolvidos, ocupando o topo, possuem mais programas
governamentais de saúde mental e, por isso, mais eficiência no registo de casos;
países em desenvolvimento e menos desenvolvidos quase não se encontram
entre os primeiros da lista, o que não significa que suas populações não tenham
depressão, mas indicam potencial subnotificação e, portanto, menos acesso à
tratamento.
A investigação parte do individualismo por ter sido esse modo de relação
do ser humano com seus pares e com o mundo exterior uma das principais
consequências, nesses âmbitos, do processo que começa a se desenrolar em
meados do século XIV e se estabelece no século XVII. O Renascimento suscita o
arraigamento social da filosofia antropocêntrica, em que o se entende universo
através da relação que a humanidade estabelece com ele; o conceito se atualiza
e ganha força nos séculos seguintes, passando, por essenciais transformações
que, como esse trabalho pretende elucidar, colocam-se, simultânea e
contraditoriamente, como condição e maldição do indivíduo.
Justificativa

O tema abordado é de essencial importância para a área do Serviço Social


ao passo que o Projeto Profissional do Serviço Social Brasileiro, que engloba as
dimensões da competência profissional, sendo elas, teórico-metodológica,
ético-política e técnico-operativa, exigem, por parte do assistente social, a
compreensão da realidade social em sua totalidade e todas as suas
especificidades que refletem em todo e qualquer âmbito da vida dos indivíduos.
Sendo a produção intelectual acadêmica e as práticas profissionais partes
de um movimento mútuo de influência e transformação, é de ampla relevância
que se estude conjunturas na busca constante de construir, desconstruir e
reconstruir a instrumentalidade da mediação da profissão com a sociedade,
acompanhando seus desdobramentos históricos e entendendo como a evolução
da modernidade afetou o cerne do indivíduo.
Outra implicação do estudo na área do Serviço Social se apresenta no
próprio objeto de intervenção da profissão, sua matéria-prima: a questão social e
suas expressões que se qualificam, também, como produtos da modernidade,
mais especificamente do capitalismo industrial, agravadas com a ascensão do
neoliberalismo no final da década de 1980. Se o Serviço Social surge como
resposta de enfrentamento a problemas que descendem, assim como o
individualismo e, consequentemente, a depressão, da modernização da
sociedade, estudos investigativos acerca das consequências colaterais desse
processo são partes imprescindíveis do conteúdo teórico na formação do
assistente social; entender o funcionamento completo do sistema e suas formas
de dominação dos indivíduos que o compõem são as únicas maneiras possíveis
de intervir na realidade social.
Fundamentação Teórica

O início dessa pesquisa traz consigo um paradoxo: apesar da visão


durkheimiana ser, essencialmente, funcionalista, seus juízos e conceitos são fios
condutores importantes no processo de entendimento histórico do individualismo
e, não obstante, da depressão como uma de suas consequências: em O Suicídio
(2000), ao usar dados para analisar objetivamente as motivações que levavam
pessoas a tirarem a própria vida e, assim, fundamentar sua categorização dos
tipos de suicídio, o autor entende o ato como desdobramento da relação entre
indivíduo e sociedade. Ainda pode-se salientar que seus conceitos de
solidariedade mecânica e orgânica, abordados em Da Divisão do Trabalho Social
(2010), correspondem, respectivamente, a sociedades tradicionais e modernas e
falam sobre laços sociais que, outrora, visavam fazer com que o sujeito estivesse
protegido e que houvesse coesão na sua relação com sociedade como um todo,
mais tarde, a modernidade secciona o trabalho e os sujeitos passam a depender
uns dos outros, tendo o elo do vínculo social baseado na diferença e não mais na
consonância.
Os produtos da modernidade que encabeçam o presente trabalho são,
também, atores na teoria de Weber (2001), ao passo que o autor coloca a
racionalização social e o desencantamento do mundo como causadores do
sentimento de perda de sentido da vida. A vocação de Lutero é situada por
Weber na gênese do espírito capitalista, que sintetiza a ideia de esforço individual
para se destacar e conquistar mais do que os demais, sendo assim, digno de
salvação, em oposição àqueles fadados à danação. (WEBER, 2001)
Considerando-se, de acordo com Nardi (2003, p. 40) a transição de uma
sociedade “na qual a regulação é basicamente política, para uma sociedade
individualista, cuja relação entre os homens é mediada pelas coisas e na
qual a regulação é basicamente econômica”, se tem a revelação da ruptura
que modifica, no que é pertinente ao presente estudo, a maneira com que o
indivíduo passa a subjetivar suas frustrações. Se na sociedade feudal a posição
social era estática, na modernidade passa a ser não apenas passível de
mobilidade, mas, também, atribuída inteiramente à responsabilidade e
mérito individual, além de, principalmente, conferir valor à existência das
pessoas. E quando não se alcança a almejada ascensão de classe e
consequentemente, o pertencimento, como aponta Weber (2000) a um estamento
(honras, prestígio social e estilo de vida distinguido daquele das massas), ou pior,
quando há descensão social, sendo as ambições do então consenso de
humanidade frustradas, que valor passa a ter a vida deste falho indivíduo?
Em Vida para Consumo (2007), de Zygmunt Bauman, em que o autor
qualifica o consumo como centro da organização social e alicerce para o
desenvolvimento das identidades dos indivíduos, considera que tais acabam por
atribuir a si próprios características que os tornam também vendáveis; eles
mesmos mercadorias através da comodificação. Nas palavras de Beck e Cunha
(2016, p.1):

"’Comodificação' refere-se ao fenômeno contemporâneo


em que muitos bens, serviços, ideias e também pessoas -
outrora considerados não comerciais - passam a ser
transformados em mercadorias vendáveis. Na comodificação,
“tudo passa a ter um preço”, representando a centralidade
que o consumo - em detrimento da produção - ocupa na vida
cotidiana.”

Dessa forma, fica aqui solidificada a inseparabilidade da existência


humana e da individualização, ao passo que um produto, para que seja vendável
e justifique a escolha da sua compra em detrimento de outro, deve possuir
características “únicas”. É necessário para a lógica capitalista neo-liberal que
assim aconteça. Em O mal-estar da pós-modernidade (1997), Bauman discorre
sobre a obtenção da liberdade do capital às custas de todas as outras: sob a
demanda de escolher entre a vasta gama de caminhos e possibilidades, os seres
“livres” competem entre si. A probabilidade do êxito em tal tarefa é proporcional à
condição de consumo do indivíduo, sendo “a liberdade de escolha [...] de longe,
na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação.
Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na
hierarquia social pós-moderna.” (p.118).
Ainda sobre a transmutação das mobilizações históricas para o
exacerbamento individualista, Anthony Elliott (2018) comenta sobre a cultura da
tecnologia, impulsionada pela revolução industrial e, cada vez mais aquecida e
aprimorada no século e décadas que se seguem: por ser rápida, abre um novo
modelo de construção de si ‒ no mundo de contratos de curta duração,
incontáveis achatamentos por entregas precisas na cadeia de produção e a
flexibilização do mercado de trabalho com as carreiras múltiplas, a habilidade de
transformação é fundamental. O autor australiano atualiza conceitos pontuando
de que forma o neoliberalismo transforma aquilo que valida ou desvalida o
indivíduo, atribuindo à crença em ser flexível e moldável e à incessante
reformulação a significação de que as pessoas não serão mais julgadas pelo que
fizerem ou alcançarem; mas sim por quão flexíveis serão. A corrida nessa busca
gera o medo de ser descartável agregando à era do individualismo neoliberal.
Gabriel Peters (2021, p. 79), em consonância com o pensamento de Elliott,
explica:
Na medida em que os contextos sociais de experiência
se transformam tão radical e abruptamente, os indivíduos não
mais podem se fiar nem nas lições do passado nem em
previsões estáveis quanto ao futuro. Um indivíduo orientado
para o mundo de maneira radicalmente situacional pressupõe
que cada contexto atual de experiência será discrepante dos
anteriores, bem como destinado a ser deixado para trás pelos
seus sucessores. Uma vez que a orientação em relação ao
cenário social se torna altamente flexível e aberta a
transformações aceleradas, o mesmo se dá, por conseguinte,
na relação do indivíduo consigo mesmo: os seus papéis
sociais e atribuições profissionais, o seu status de
relacionamento e local de residência, as suas aspirações e
competências.

O indivíduo em sintonia com os atuais valores capitalistas é ágil


como o avanço tecnológico que o cerca, hábil no lido com as pessoas e bem
sucedido na criação de conexão interpessoal, capaz de criar, para si, uma rede
que confere a ele relevância, sempre se adaptando às novas imposições da
reprodução do capital. Não obstante, a depressão é comumente descrita por seus
acometidos como uma sensação de não pertencimento, falta de conexão com
outros indivíduos e grupos sociais. (PETERS, 2021, p. 77).
Assim como os gadgets tornam-se, rapidamente, obsoletos, também as
pessoas incapazes de apressarem-se no ritmo das mudanças sociais acabam
sendo “passadas para trás”. Atribuindo materialidade a todos esses
apontamentos, o fato é que, tanto as necessidades fisiológicas, quanto a
organização do tempo devem sempre estar em consonância com as demandas
do mercado de trabalho. O indivíduo que não se adapta ao toque do despertador,
aos prazos anotados no calendário e não encontra alívio nos conteúdos de
autoajuda, está fadado ao descompasso com a vida, explica Peters (2021, p. 79).
Inúmeros recursos são empregados nessa incessante busca pela personificação
da eficiência perfeita, mas talvez o mais drástico, já que visa uma adequação das
próprias necessidades fisiológicas que implicam um dos aspectos do que é a
humanidade, são os neuro farmacológicos: buscam contornar necessidades
básicas como o sono, a fome e emoções e sentimentos naturais diante das
vivências cotidianas como a fadiga, o sofrimento, a ansiedade etc. Para
Rosa (2013 apud Peters, 2021), aqueles que não se “flexibilizam” mesmo
perante tais aparelhos auxiliares de adequação, sofrem as consequências do
que ele chama de “irrupção de estagnação” do indivíduo que se choca com o
ritmo acelerado do mundo hoje que, por meio de redes sociais, propaga com
mais efeito do que nunca a capacidade que alguns têm de assimilar com maestria
as determinações que conferem validade à existência. Essas vidas,
potencialmente, mais “bem vividas”, intensificam no “estagnado” a ideia de não
pertencimento e inutilidade perante a vida “lá fora”.
Ehrenberg (2009), contribui para a compreensão da depressão como
refração da estratificação e da desigualdade social ao apontar que, em
oposição ao indivíduo neurótico de Freud, o indivíduo pós-neurótico é
acolhedor com seus próprios desejos e intenta satisfazê-los. Assim, o
abismo que separa o que poderia vir a acontecer - lugares a se viajar, pessoas a
se conhecer, idiomas a se aprender - as experiências que constroem objetiva e
subjetivamente o indivíduo e são sujeitas à condição de riqueza ou pobreza, têm
grande importância na configuração psicológica que determina a interação desse
com o mundo. Plataformas como instagram fazem com que essas discrepâncias
nas vivências possam ser globalmente divulgadas sem restrição temporal,
quantitativa ou qualitativa, da mesma forma que o cultivo de sentimento de
inferioridade e baixa autoestima é disseminado entre a maioria pertencente às
classes subalternas.
Peters (2021) reforça que se trata justamente de um senso, já que a
depressão não é advinda de uma percepção alterada do conteúdo da realidade
experienciada em si, mas de uma atmosfera que encobre a relação da pessoa
com o mundo ao redor. O autor faz referência ao livro A Redoma de Vidro (1963),
de Sylvia Plath, em que a autora faz uso de metáforas para externalizar seu
sofrimento perante a existência e as relações sociais que, para ela, são
frustradas. Sobre tal sentimento, véu da desconexão abordado por Plath (1963) a
respeito das imposições sociais, Peters relaciona que “não surpreende, nesse
sentido, que tais vivências sejam resistentes à expressão linguística, forçando os
indivíduos afligidos a uma linguagem tateante.” (PETERS, 2021, p. 77).
Para, através de um olhar banhado de inigualável sensibilidade, trazer à luz o que
é depressão, Ehrenberg escreve:
“A depressão é o trilho de segurança da pessoa sem um
mapa. E não é apenas fonte de dor; é o contraponto ao
emprego de energia do indivíduo. As ideias de projeto,
motivação e comunicação dominam as normas de nossa
cultura. São as senhas do nosso tempo. A depressão é uma
patologia do tempo (a pessoa deprimida não tem futuro)[...]
Inibida, impulsiva ou compulsiva, ela tem problemas para se
comunicar consigo mesma e com os outros. Sem projeto,
motivação ou comunicação, a pessoa deprimida está em
exata oposição às nossas normas sociais.
Não devemos nos surpreender com a forma como os
termos relacionados à depressão explodiram na linguagem
cotidiana, e não apenas na psiquiatria: responsabilidade pode
ser assumida, mas suas patologias devem ser tratadas.
O ser humano defeituoso e o compulsivo são as duas
faces deste novo Janus.” (EHRENBERG, 2010, p. 233,
tradução nossa).
Considerações finais

Em termos gerais, o mal-estar que se estabelece desde o início desse


complexo movimento de reformulação da modernidade com foco nas
consequências individualistas acarreta em indivíduos deprimidos. A ideia de
ordem, como trazida por Bauman (1998, p. 14), serve para designar a cada
elemento um lugar ao qual não pertence naturalmente, de forma que o que é puro
e o que é sujo se distingue pelo local em que se insere, ou seja, a demanda
trazida pela pós-modernidade dita quais as posições pertinentes aos elementos
da vida. Insere-se nessa lógica, por exemplo, a relação do Estado e a moral
aplicada às drogas: as recreativas são negativamente associadas, enquanto
aquelas que podem auxiliar no encaixe do indivíduo aos formatos da sociedade
estão no âmbito da pureza, de acordo com a classificação do sociólogo polonês.
Não se faz aqui uma crítica aos neuro farmacológicos no sentido de que
deveriam ser abolidos, afinal, a realidade objetiva é a que abriga todos os
indivíduos, e nela se faz imprescindível a atuação dos profissionais que tratam de
sofrimentos mentais. É o que sumariza Enrenberg com sua passagem
“responsabilidade pode ser assumida, mas suas patologias devem ser tratadas.”
(2010, p. 233, tradução nossa).
Numa sociedade rígida e fadada à manutenção do capital, que submete a
maioria a uma minoria possuidora de todo poder em todas as esferas da vida
(inclusive, necessariamente, na filosofia de vida de seus dominados), fica claro já
nas primeiras etapas do entendimento de que se é um ser social, a importância
da posse de habilidades necessárias à superação do outro, à conquista do
primeiro lugar na competição. A pessoa deprimida é conhecedora dessa
exigência de adequação e dinamicidade em relação a forma de vida imposta pelo
sistema, mas, justamente por não se enxergar apta a viver sob tais diretrizes, não
é apta a participar da sociedade. A competição coloca os indivíduos, movidos
pelo desejo do lugar mais alto do pódio, na corrida por uma vida mais desumana
que a do seu adversário.
Referências

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. 1º edição. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1998.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em


mercadoria. 1º edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

BECK, Ceres Grehs. CUNHA, Luis Henrique Hermínio. As múltiplas faces da


comodificação e a constituição da crítica acerca das práticas de consumo
contemporâneas. Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 1, pp. 136-147,
jan/abril, 2017.

DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. 4ª edição. São Paulo: WMF


Martins Fontes, 2010.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. ‎1ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2000.

EHRENBERG, Alain. The weariness of the self: diagnosing the history of


depression in the contemporary age. 1ª edição. Montreal: McGill-Queen’s University
Press, 2010.

ELLIOTT, A. A teoria do novo individualismo. Sociedade e Estado, [S. l.], v. 33, n.


02, p. 465–486, 2018. DOI: 10.1590/s0102-699220183302009. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/19929. Acesso em: 27 set.
2021.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. 1ª edição. São


Paulo: Martin Claret, 2001.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. 4ª edição. Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 2000.

PETERS, G. O novo espírito da depressão: Imperativos de autorrealização e seus


colapsos na modernidade tardia. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 21, n. 1,
p. 71-83, 4 maio 2021.

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