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Alteridade e Violência na Contemporaneidade

Millien Lacerda Malinowski (Aluna não regular do Mestrado em Psicologia – UEM) –


millienlm@yahoo.com.br
Rafael Bianchi Silva (Docente DPI/UEM e Professor do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia PPI/UEM) - tibx211@yahoo.com.br

Resumo

Com o objetivo de refletir acerca das características da sociedade contemporânea, o


presente texto, utilizando-se da pesquisa bibliográfica, busca atentar-se à relação que o
homem vem construindo com a alteridade. Abordando questões relacionadas à
sociedade do consumo e à lógica de mercado que perpassa a dinâmica da vida na
atualidade, o texto aponta conceitos como os de razão instrumental, fetiche da
mercadoria e des-simbolização do mundo como embasamento para a discussão.
Demarca-se então a ideia de modificação da condição humana, a qual sofre um processo
de reificação, isto é, de transformação de pessoas em objetos. A hipótese sustentada por
algumas teorias é de que os indivíduos são amoldados para a manutenção dessa lógica,
fazendo surgir uma subjetividade homogeneizada e tendente a anular a alteridade. Tal
condição abre espaço para o surgimento das mais variadas formas de violência, desde as
mais sutis até aquelas espetacularizadas. Transformando-se em consumidores-objetos e
ludibriados pela sensação de autonomia, liberdade e felicidade que este modelo
propicia, os indivíduos são conduzidos a se comportarem como potenciais exploradores
do outro. Nessa direção, a pesquisa procura alertar para o papel que a ciência, a
tecnologia e os meios de comunicação vem desempenhando nesse processo. Ao final,
busca-se refletir sobre o papel do psicólogo nesse contexto e a importância da
criticidade no exercício profissional, com uma postura de enfrentamento a essas
tendências apontadas, extrapolando o domínio tecnicista e pragmático para dar lugar ao
sentido ético das nossas atuações.

• Palavras-chave: Contemporaneidade, alteridade, violência.


• Eixo Temático: 3 – Psicologia social, políticas públicas e sociedade
contemporânea
• Tipo de Apresentação: Comunicação oral

Introdução

O presente texto tem como objetivo realizar uma análise, a partir de pesquisa
bibliográfica, sobre as características e contradições da sociedade contemporânea, bem
como atentar-se à relação que o homem vem construindo com a alteridade e os novos
modos de subjetivação daí decorrentes. A partir disso, busca-se refletir se há um modelo
hegemônico de relação que vem sendo construído na atualidade.
Como aponta Silva (2012a), o que se observa na contemporaneidade é a
propagação de um discurso que vincula o bem estar com o fornecimento de uma ampla
variedade de produtos para consumo. Assim, a dinâmica da vida é baseada em relações
(inclusive interpessoais) que são equiparadas aos objetos de consumo, de modo que
“nos transformamos de forma voluntária (o que não significa dizer passiva ou sem
resistência, já que afinal, desejar é construir) também em objeto de consumo que deve
atender a critérios determinados pelo mercado” (p. 59).
Nesse sentido, é importante abordar a conceituação de "sociedade de
consumidores" levantada por Bauman (2008) como aquela que promove, encoraja ou
reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumista,
rejeitando todas as opções societárias alternativas.
Dufour (2003) considera que o capitalismo é “antropofágico” e devora o
homem, adaptando-o enquanto corpo produtivo desde seu surgimento. Atualmente,
porém, ele vai além e busca “reduzir” as mentes, com o pleno desenvolvimento da razão
instrumental (técnica) que parece resultar em um déficit da razão pura (a faculdade de
julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, o que é bom ou mal). A força da ideologia
neoliberal cria um novo estatuto do objeto, no qual os homens se transformam ao se
adaptarem à mercadoria. As trocas comerciais hoje encontram-sedes-simbolizadas e não
valem mais enquanto sustentadas por uma ordem superior (transcendental ou moral),
mas sim pelo seu valor adstrito enquanto mercadorias.

Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de


agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu
estrito valor de mercado. Hoje, pede-se aos homens que se livrem de
todas as sobrecargas simbólicas que garantiam suas trocas. O valor
simbólico é assim desmantelado em proveito do simples e neutro
valor monetário da mercadoria, de modo que nenhuma outra
coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente,
transcendental...), possa constituir um obstáculo à sua livre
circulação. Disso resulta uma des-simbolização do mundo. Os
homens não devem mais se conciliar com os valores simbólicos
transcendentes, eles devem, simplesmente, se submeter ao jogo da
circulação infinita e ampliada da mercadoria (DUFOUR, 2003, p. 2,
grifo nosso).

O autor expõe que essa transformação nas relações de troca conduz a uma
mutação antropológica, em que a própria condição humana se modifica quando as
garantias simbólicas das trocas entre os homens são liquidadas. O sujeito humano, por
sua vez, fica atrelado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da
circulação da mercadoria.
Também Debord (1997) aborda a questão explicando que a dominação da
mercadoria sobre a economia ocorreu primeiramente de um modo oculto, pois a própria
economia, como base material da vida social, era despercebida e incompreendida.
Apenas com a revolução industrial, a divisão fabril do trabalho e a produção em massa
para o mercado mundial, a mercadoria surge para ocupar a vida social. O autor aponta
que “não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada
além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha,
extensa e intensivamente, sua ditadura” (p. 30).
Ao pensar a contemporaneidade como a “Era da avareza”, Mariotti (2001)
aborda a ideia de valor-coisa, a qual se destacou com o advento da Era Industrial, que
era alicerçada pelo primado do produto concreto – a mercadoria tangível. Isso conduziu
a uma atitude reificante, que incluiu a redução das pessoas a coisas:

Uma das manifestações dessa procura do concreto é o modo como


transformamos as pessoas em objetos, o que permite o seu
confinamento e controle. Uma vez convertidos em coisas, os
indivíduos podem ser concentrados, acumulados e, quando isso for
conveniente, descartados (MARIOTTI, 2001, p. 2).

Para o autor, esse modelo fez com que o individualismo se sobrepusesse às


relações e a maximização do auto-interesse ficasse atrelada à racionalidade,
apresentando a avareza como comportamento racional, o que gera uma competição
predatória, socialmente disseminada. Nesse universo, as leis relacionadas ao mundo
material se tornam mais dinâmicas que as regras culturais ou as normas de conduta que
regem a convivência entre as pessoas, as quais são essencialmente relacionadas à ética.
Estas, então, passam a ocupar cada vez mais um lugar secundário na sociedade de
consumo.
À medida que o outro deixa de importar e não precisa ser levado em conta, à
medida que a presença do outro se constitui em um desafio tecnológico, reduzindo-o à
condição de fator calculável e manipulável que visa a um fim – efeito da razão
instrumental -, o contexto de “estar com os outros” não gera por si mesma nenhuma
problemática moral, a menos que esta seja decorrente de pressões externas ao indivíduo
(BAUMAN, 1998).
Conforme apontam Caniato e Rodrigues (2012), a cultura que propaga a lei do
mercado se impõe de modo totalitário e se insere em todos os aspectos da vida do
indivíduo. Teóricos da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, denominaram
esse fenômeno como indústria cultural, o qual tem promovido a interiorização da
dominação pelo capital e tem forjado subjetividades homogeneizadas e acríticas.
A indústria cultural subordina a cultura à lógica da mercadoria em um momento
de mercantilização da produção simbólica da humanidade, contribuindo para a
coisificação dos indivíduos. Nesse contexto, a mercadoria perde o caráter de produção
humana e passa a valer por si mesma, resultando no chamado fetiche da mercadoria e
promovendo a generalização das leis de mercado para o âmbito das relações humanas.
Assim, pois, ocorre a anulação do humano nos mais variados contextos. A fetichização
da mercadoria é impulsionada também pela ciência, pelos aparatos técnicos, pelos
meios de comunicação. Estes, passam a apresentar a mercadoria como portadora da
felicidade. Assim, os indivíduos são adaptados para a sustentação do sistema
econômico. A indústria cultural favorece a racionalidade técnica, inclinando-se à
massificação, padronização e aparente passividade dos sujeitos (Caniato e Rodrigues,
2012).
As autoras defendem que a indústria cultural atua não só no nível da
consciência, mas também inconscientemente, seduzindo o indivíduo e deixando-o “à
mercê de manipulações identificatórias e de seus impulsos destrutivos inconscientes” (p.
236). Com a subordinação do humano aos ditames econômico-sociais, a lógica da
mercadoria é interiorizada por meio de processos identificatórios, introduzindo-o num
coletivo de subjetividades homogêneas, com a tendência de anular a alteridade e tratar
os outros como coisa. Deste modo, as autoras apontam que os indivíduos acabam sendo
cúmplices na manutenção das atuais formas de violência social, destacando os
mecanismos inconscientes presentes nesse fenômeno.
A partir desses dados, abre-se espaço para a discussão acerca da relação que o
indivíduo vem construindo com o outro na atualidade, constituindo uma nova
modalidade de laço social, se é que se pode denominar “laço”, vez que mostra-se muito
mais segregador do que vincular. Afetado pelo sentido de reificação do humano, o
espaço social propicia a abertura para o surgimento e/ou intensificação das mais
variadas formas de violência.

O Esvaecimento da Alteridade e o Espaço para a Violência


Para a psicanálise, a relação com o outro é fundamental, pois por este fomos
criados, moldados, acariciados. Nessa perspectiva, o homem é nostálgico e não é
qualquer objeto que pode ocupar e substituir o lugar do outro primordial. Se a
contemporaneidade está marcada por essa nova forma de laço social, pela deficiência na
relação com o outro, pode-se pensar que estaria contido aí também o mal-estar da
cultura (MENDLOWICZ, 2014).
Nesse sentido, vale mencionar as considerações de Lacan (1974) quanto ao
discurso do capitalista. Lima (2002) afirma que a função do discurso do capitalista é
produzir desde objetos, até valores e crenças que se situem no lugar do desejo humano.
Com uma ilusão de liberdade, os indivíduos tendem a perder sua condição de sujeitos
autônomos e viram consumidores-objetos. A operação capitalista faz o objeto agir
amarrando o sujeito. Os objetos são produzidos pela ciência, ou melhor dizendo, pela
tecno-ciência, a serviço da ideologia do mercado.
Conforme afirma Quinet (2002), o discurso capitalista não promove o laço social
entre os seres humanos, pois propõe ao sujeito a relação com um gadget, um objeto de
consumo curto e rápido, estimulando a ilusão de completude não mais com a
constituição de um par, mas com um parceiro conectável e desconectável ao alcance da
mão. Assim, a sociedade se nutre pela fabricação da falta de gozo e produz sujeitos
insaciáveis em sua demanda de consumo, promovendo uma nova economia libidinal.
Por outro lado, ao colocar a mais-valia no lugar da causa do desejo, essa sociedade
transforma cada sujeito num explorador em potencial de seu semelhante para dele obter
um lucro de um sobre-trabalho não contabilizado. O lugar da mais-valia coincide,
portanto, com o dos objetos de gozo – gozo prometido e não alcançável por estrutura.

Sua política é a liberal, do neo-liberalismo, do cada um por si e um


contra todos, já que o sol não brilha para todos. O Discurso do
Capitalista não é regulador, ele é segregador. A única via de tratar
as diferenças em nossa sociedade científica capitalista é a segregação
determinada pelo mercado: os que tem ou não acesso aos produtos
da ciência. Trata-se, portanto, de um Discurso que não forma
propriamente laço social mas segrega: daí a proliferação dos sem:
terra, teto, emprego, comida, etc. Os que estão with o discurso
capitalista são out: os without. Quem é com está sem, sua lógica
obriga (QUINET, 2002, p. 8).

Voltolini (2007) afirma que a mudança das relações entre o sujeito e o objeto
neste novo discurso, no qual o objeto parece predominar sobre o sujeito, trata-se de uma
operação discursiva que consiste em “reduzir o desejo à necessidade”, tentando fazer
equivaler o homem e o animal. “O ápice de sua operação é valer-se o melhor possível
desta característica propriamente humana da desnaturação, do desapego à necessidade,
para “criar” uma necessidade que apareça como vital para o sujeito” (p. 126).
Em paralelo a essas considerações da psicanálise, pode-se ampliar a análise para
os registros sociológicos e políticos, em que nota-se o solipsismo e a perda da alteridade
da subjetividade atual pela quebra da mediação no espaço social. Ao serem minimizadas
as capacidades de criar mediações no mundo, os sujeitos ficam amesquinhados e as
relações se restringem cada vez mais aos registros pragmático e funcional, perdendo
então a sua dimensão simbólica. O que se observa atualmente é o retorno da barbárie em
pleno apogeu da civilização técnico-científica e da sociedade pós-industrial. Neste
momento, “o vazio da subjetividade atual é o correlato do mundo que perdeu o
sentido”(BIRMAN, 2003, p. 6).
Nessa direção, abre-se espaço para a violência nas relações, desde as formas
mais sutis até aquelas espetacularizadas. Como apontado por Souza (2005), a violência
invade todos os espaços e torna-se espetáculo, transformando-se numa forma de ser e
numa forma de domínio. A violência é estetizada e os conflitos são banalizados, são
intensificados o isolamento e o individualismo. Para a autora, a violência é alimentada,
dentre outros fatores, pela falta de dispositivos que favoreçam o laço social e pelo
evitamento da alteridade, manifestando-se também como ”violência branca”, que se
apresenta nos mecanismos de controle social.
O que a violência revela, em sua especificidade, é a existência de um
excesso que se manifesta em todos os espaços, é uma impossibilidade
de contenção ou derivação dessa força, de um agir que desconsidera a
existência do outro e seu compromisso ético com a cultura. E o que é
mais inquietante, mas absolutamente necessário reconhecer: a
disposição para a violência está em todos nós (SOUZA, 2005).

Aprofundando na análise da relação do humano com a alteridade, Birman (2003)


pontua que o mal-estar contemporâneo se caracteriza principalmente como dor e não
como sofrimento, classificando a dor como uma experiência em que a subjetividade se
fecha sobre si própria; e o sofrimento como uma experiência essencialmente alteritária,
em que o outro está sempre presente. Diferentemente do sofrimento, em que a
subjetividade reconhece que não é auto-suficiente, na dor não existe lugar para o outro
ao vivenciar o mal-estar, é uma experiência solipsista, que restringe o indivíduo a si
mesmo, não revelando qualquer dimensão de alteridade, não se abrindo para o outro,
fazendo a subjetividade contemporânea se revelar como essencialmente narcísica.
Conforme apontado por Silva (2012b), neste contexto de fragilidade vincular,
nota-se a necessidade de desenvolver a capacidade de tomar os encontros como espaços
de enfrentamento de uma lógica homogeneizante, a qual dificulta o exercício da
alteridade e das trocas decorrentes da relação com o outro. Isso potencializaria novas
configurações vinculares capazes de oferecer modos de reconhecimento como sujeito a
partir da inclusão e participação de outros, minimizando os efeitos nocivos de nosso
modelo societário.
Nessa direção, pode-se tomar como análise as relações interpessoais e formas de
coexistência na contemporaneidade. Bauman (1995) descreve três espécies de
convivência: o existir-ao lado, existir-com e existir-para. Na primeira, os contatos
humanos tendem a ser fragmentários e episódicos. Na segunda, os outros são objetos de
atenção, pensamento e decisão, sendo consideradas as condições de dependência mútua
que precedem a interação. Contudo, adquirem uma relevância meramente circunstancial
e o “si-próprio” de cada um tende a não se implicar mais do que o requerido por aquele
evento circunstancial. Já o existir-para pressupõe uma forma de coexistência completa e
contínua, rompendo contundentemente com a separação intrínseca da condição do
existir-com, na qual cada contato não passa de um desvio. É um salto do isolamento
para a unidade, ainda que não para a fusão, pois possibilita a preservação da alteridade e
da identidade.

O existir-para é um compromisso que se assume de salvaguardar e


defender a essência única do Outro, e esta atitude de preservação
assumida pelo si-próprio como sua tarefa e responsabilidade torna-o
efetivamente único, no sentido de insubstituível. [...] O existir-para
não tem muita coisa que o recomende perante o tribunal da Razão. [...]
O existir-para é o escândalo da Razão. [...] A Razão chama
sentimento, emoção, sensação, paixão a este seu contrário clamoroso e
ameaçador, a este “atravessar e ser atravessado”, a esta súbita abertura
ao Outro – a esta explosão não planejada de não-indiferença, a esta
brusca proximidade da distância (BAUMAN, 1995, p. 63,64).

O mesmo autor (2008) alerta que o mercado de consumo tomou da burocracia


sólido-moderna a tarefa de extrair o "veneno" do "ser para" da carga impulsionadora do
"ser com", formando:

[...] um estratagema para tornar acessível a seres humanos


endemicamente morais uma vida autocentrada, auto-referencial e
egoísta - embora cortando, neutralizando ou silenciando aquela
assustadora "responsabilidade pelo Outro" que nasce cada vez que a
face desse Outro aparece; uma responsabilidade de fato inseparável do
convívio humano (p. 68).

Nota-se também que esse processo ganha diferenciados contornos ao ser


vinculado às emoções. Para Bauman (2008), o consumismo atrela a noção de felicidade
não tanto à satisfação de necessidades, mas a um volume e intensidade de desejos
sempre crescentes, o que implica em uso imediato e rápida substituição dos objetos
destinados a satisfazê-la, inaugurando uma era de "obsolescência embutida" dos
produtos disponíveis no mercado. Outro ponto abordado pelo autor diz respeito ao valor
supremo da sociedade de consumidores, que consiste em "uma vida feliz". Trata-se de
um modelo de sociedade que promete felicidade instantânea, imediata e perpétua, sendo
intolerante a qualquer espécie de infelicidade.
Direcionando a discussão para a necessidade de resistência ante essas novas
configurações, Caniato e Rodrigues (2012) apontam que a “cultura da crítica” e a
transformação das atuais condições de existência somente poderá ocorrer quando os
indivíduos assumirem a condição de construtores da cultura, entendendo que a
sociedade e os bens produzidos por ele são “coisa sua”. Apenas deste modo as
transformações serão criativas, humanizadas e humanizantes.
Quanto a essa questão, Ramos (2000) considera a importância do discurso social
na constituição de novas maneiras de pensar e sentir, sem, contudo, pensar o sujeito
exclusivamente como efeito de um discurso. Para a autora, algo sempre irrompe
contrariando este condicionamento cultural.
Assim, Bauman (1998) apresenta a questão, formulada por Hannah Arendt, da
“responsabilidade moral de resistir à socialização”. Socialização, neste sentido, diz
respeito à manipulação da capacidade moral – e não sua produção. Essa capacidade
moral manipulada implica certos princípios que se tornarão objeto passivo de
processamento social, mas abrange também “a capacidade de resistir, escapar e
sobreviver a esse processamento, de forma que no fim do dia a autoridade e a
responsabilidade pelas opções morais repousa onde repousava no início: na pessoa
humana” (p. 207).
Dufour (2003, p.5) conclui que é necessária a resistência em relação ao
ultraliberalismo e ao perigo de tudo entrar no mundo da mercadoria, inclusive os
mecanismos de subjetivação: “a hora é de resistência, de todas as formas de resistência
que defendem a cultura – em sua diversidade – e a civilização – em suas conquistas”.
Considerando todo o exposto, observa-se que o cenário atual é inóspito para o
surgimento de formas de coexistência que transcendam a relação homem-mercadoria.
Contudo, este trabalho procurou assinalar a possibilidade de insurgência ao que está
posto, com formas de resistência e enfrentamento, podendo inaugurar relações pautadas
na humanização e na responsabilidade pelo outro.

Considerações Finais
Por meio do levantamento bibliográfico, utilizando autores que debatem a
contemporaneidade, pôde-se observar o quanto a relação homem-mercadoria, hoje tão
presente em vínculos estabelecidos nos mais variados âmbitos, apresenta significativas
implicações na relação com a alteridade.
Disso, pode-se deduzir que não é possível tomar em análise o sujeito e suas
relações de modo dissociado de seu contexto social e histórico. Qualquer prática
profissional do psicólogo deve estar associada à apreciação de tais condições. Nesse
sentido, levando em consideração todo o exposto neste trabalho, pode-se pensar na
necessidade de que o psicólogo tome a direção da “contramão”, advertido quanto à
lógica da mercadoria presente nas relações e também quanto ao engodo da autonomia e
da liberdade pretensamente contidas nas ideologias contemporâneas, sob o risco de,
submetendo-se ao que está posto, destituir os sujeitos do que é humano.
Tal direção pode até mesmo consistir em posições de “transgressão”, haja vista a
sociedade atual em que os indivíduos se veem cada vez mais seduzidos pelo discurso
científico, e este, atraído pela racionalidade técnica, vem se fazendo baluarte para a
legitimação de práticas pautadas na relação homem-mercadoria. Assim, cair na
assimilação e análise acrítica do contexto, faz com que haja o predomínio da referida
razão instrumental, que apresenta a tendência de esvaziar as práticas de seu sentido
ético. É nesse aspecto que precisamos dimensionar como as teorias/abordagens que
elegemos para balizar nossa atuação se posicionam diante da iminência destes novos
modos de subjetivação na contemporaneidade e, para além disso, repensar a nossa
própria capacidade de se relacionar com a questão da alteridade.

Referências Bibliográficas

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