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MODERNIDADE LÍQUIDA E O SISTEMA EDUCACIONAL:

ANALIZANDO O PROCESSO DE FORMAÇÃO E REPRODUÇÃO DE


CIDADÃOS REDUNDANTES
PINHEIRO, Thiago Vinicius Toledo – FURG
thiagovinicius.tp@gmail.com

MARTINS, Everton Martins – FURG


everton_35391@hotmail.com.br

Eixo Temático: Cultura, Currículo e Saberes.


Agência Financiadora: Universidade Federal do Rio Grande

Resumo

O presente trabalho se apresenta na perspectiva de realizar um breve mapeamento do


entrelaçamento entre a Modernidade Líquida e o sistema educacional posto, e de que forma
ambos repercutem no processo de formação de cidadãos. Compreende-se que a discussão é de
vital importância para que se tenha noção de como a educação, ferramenta primordial na
emancipação do sujeito, mantida a atual estrutura medieval da instituição, torna-se um aparato
perverso reprodutor de segregação social. Para atingir o escopo proposto, partiu-se de uma
pesquisa bibliográfica sobre a temática e, posteriormente, realizou-se uma avaliação
qualitativa dos pontos pertinentes. De tal forma, utilizaram-se obras de pensadores do calibre
deBauman (2000; 2005;2007), Foucault (2010), Martins (2010), Marshall (1967), Veiga-Neto
(2007) e Giddens (2002). Posteriormente as análises propostas, observou-se que a sociedade
líquida, pautada por valores como a lógica de consumo e a cultura do lixo, acaba por
influenciar diretamente no processo de formação dos cidadãos. Além disso, percebe-se a
escola, em sua atual formatação, enquanto um resquício das instituições medievais, atuando
de forma a meramente neutralizar os indivíduos “perigosos” e incutir-lhes valores
previamente estabelecidos. De tal maneira, ao invés de ser uma ferramenta emancipatória, o
sistema educacional acaba por formar e reproduzir cidadãos redundantes, estes, meramente
utilizados pela sociedade de consumo. A estes, são ensinados atividades meramente
funcionais para que sirvam enquanto mão-de-obra para as funções mais degradantes. Chega-
se ao entendimento, então, de uma perversão do sistema educacional, bem distante da lógica
utópica da formação de cidadãos plenos.

Palavras-chave: Modernidade Líquida, Educação, cidadania, redundância.

Introdução

Desde a Revolução Francesa, considerada o marco da Era Moderna, muitas


transformações já ocorreram, desde concepções de como o homem se enxerga em relação ao
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mundo, chegando até mesmo à maneira como ele convive com outros sujeitos. Não há dúvida,
que instituições que antes eram tidas como basilares e imutáveis como Estado e família, a
muito perderam o seu caráter permanente. Aquele, passando por modelos antagônicos, como
do modelo neoliberal até o Estado de bem-estar-social. Este, por sua vez, hodiernamente não
apresenta a submissão de todos os integrantes à figura paterna. Não só isso, o próprio
entendimento do instituto casamento vem sofrendo alterações, como pode ser vislumbrado
com o reconhecimento do ordenamento jurídico de relações estáveis homo afetivas.
Contudo, apesar dessa gama de mudanças e alterações, devido ao aumento de
complexidade do contexto social, um dos sistemas que mais vem enfrentando dificuldades em
acompanhar o ritmo de tais mudanças é o sistema educacional. Basilar na formação e
desenvolvimento de futuros cidadãos, o sistema educacional cada vez mais passa a ser
vislumbrado como um sistema decadente, senão falho, para preparar e orientar os sujeitos que
terão de conviver em uma modernidade líquida (Bauman, 2000) como a contemporânea.
Para discorrer sobre a temática e atingir a finalidade proposta – aqui entendido como
averiguar inter-relação entre a modernidade líquida com o sistema educacional posto e a
formação de cidadãos redundantes – será realidade uma pesquisa bibliográfica em relação à
temática pertinente. Posteriormente a coleta dos dados, será realizada uma abordagem
qualitativa de tais perspectivas. A priori, serão delineados contornos das principais
características da Modernidade líquida, com as colaborações de Bauman (2000; 2005; 2007)
e Giddens (2002), primordiais a um correto entendimento do trabalho. Em um segundo
momento, será feita a análise do sistema educacional, valendo-se primordialmente dos
entendimentos de Martins (2010) para efetuar tal análise. Por último, tentar-se-á demonstrar a
relação entre o sistema educacional e a cidadania redundante.

Observando o contexto atual: mapeando a Modernidade Líquida

Muitos dos grandes nomes da história - como Júlio César, Gengis Khan, Constantino,
Alexandre Magno, entre outros - desejavam ter o controle do mundo em suas mãos.
Hodiernamente, tal ambição está ao alcance de todos, de certa forma. Basta ter um
computador de mão e uma conexão à internet e pronto: é possível visitar países e culturas,
comunicar-se com outras pessoas, entre vários outros aspectos sem sair do conforto de casa.
Isso tudo possível graças ao processo de globalização e ao desenvolvimento técnico da
humanidade (dos mais diversos setores, mas principalmente, o tecnológico).
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Os reflexos nas relações intersociais no contexto social são observáveis após dois
grandes momentos: Pós Segunda Grande Guerra, com a fomentação da atividade individual, e
pós-crise do petróleo de 73, com as mudanças vislumbradas na derrocada do Estado – de-
bem –estar- social. Esses dois eventos tiveram grande influência na criação do paradigma
atual, sendo a mesma entendida como a Modernidade Líquida (2000), preconizada por
Zygmunt Bauman, que será o foco da análise a partir do presente momento.
O período pós- II Guerra (expansão do ideário American Way of Life, tendo como
principio primordial o conceito de self-made man)1e pós-crise do petróleo (com o
desmantelamento do Welfare State) foram paradigmáticas para o desenvolvimento da
indústria e do processo de globalização que constitui a sociedade hodierna. Ocorrem
profundas mudanças nos setores que dirigem a sociedade, transformando o sistema
econômico, energético, político, social, enfim, todos os setores que estão intrinsecamente
ligados em um contexto social. Há um notório desenvolvimento das tecnologias, permitindo o
deslocamento não só de informações, mas também de bens e pessoas em uma velocidade
antes inimaginável.
Através desse processo, as formas de pensar se propagam muito mais rapidamente,
transformando as formas de ver e pensar o mundo. Como aponta MUZIO apud GIDDENS
(2002) A partir de então, todo o pensamento que quer ganhar uma valoração de “verdade”,
deve partir da prisma de que esse pensamento é voltado para o âmbito global. É criada no
subconsciente dos indivíduos, uma imagem idealizada desse globo e que, é somente seguindo
as diretrizes desse “globo”, é que ele pode estar inserido socialmente e ser considerado um
“cidadão”.
Tal perspectiva tem um impacto avassalador na vida do indivíduo, uma vez que a
realidade com a qual ele tem contato, toda ação que ele venha a tomar, deve estar de acordo
com tais diretrizes, senão corre o risco de ser marginalizado e, consequentemente,
desaparecer, perdendo não só o “status” de cidadão, mas o próprio status de ser humano.
Ser aceito na modernidade resume simplesmente em ser um consumidor, uma vez que
a única medida que se reconhecesse por sucesso é uma medida quantitativa; o valor do
homem passa a ser aquele que seu capital pode expressar. A imagem aceita é a do consumidor

1
- Por conceito de self-made man compreende-se o fomento da atividade individual frente aos problemas
insurgidos do contexto social. Toda e qualquer desventura ou adversidade seria superada unicamente pela
dedicação e trabalho individual. Nota-se que essa orientação está diretamente associada à concepção do
liberalismo, que, no período pós- II Guerra, ganha maior destaque enquanto sistema dominante.
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desenfreado. Para ser assim considerado, ele deve estar atento ao novo, a aquilo que é in. Não
somente isso: toda a ação coletiva é desencorajada, o self-made man (o homem que constrói
seu próprio sucesso) nunca esteve tão em voga como atualmente. Renovar-se e estar em
constante renovação é o pressuposto primordial da sociedade líquida. Conforme notamos
pelas palavras de Bauman “O desejo de se fazer diferente do que se é, de se refazer, e de
continuar refazendo. A condição moderna é estar em movimento. A opção é modernizar-se ou
perecer” (2005, p.34).
Nota-se uma mudança até mesmo das conotações nas relações interpessoais. Como é
apontado por Bauman (2007) as relações entre as pessoas pode ser resumida ao que “se tem a
ganhar com ela”. Seja por uma simples satisfação sexual ou para outros fins, não se leva mais
em consideração o que o outro possa a vir a sentir, o que importa é a satisfação que esse laço
pode proporcionar. Uma fez satisfeita essa necessidade, desfaz-se o laço. Bauman (2007),
mais uma vez vai precisamente de encontro a tal pensamento, cunhando uma expressão
paradigmática para as relações interpessoais: são as chamadas relações de bolso.
Como observado por Bauman (2005), a cultura atual pode ser considerada como
cultura do lixo, na qual a produção do refugo é regra e, além disso, uma necessidade. Para
existir o consumidor, ideário do sujeito socialmente aceito, deve existir uma figura
antagônica, o excluído, o “exemplo que não deve ser seguido”. Ademais, valores como
confiança, justiça equânime, enfim, qualquer forma de comprometimento duradouro é
desencorajado e desestimulado e, também, associado à figura do refugo. No seguinte trecho, é
demonstrado em síntese o comportamento ideal (segundo a lógica do consumidor) a ser
seguido

A questão agora é a indefinição (e com muita frequência o irrealismo) dos fins – que
se desvanecem e dissolvem mais depressa que o tempo necessário para atingi-los,
são indeterminados, não-confiáveis e comumente vistos como indignos de
compromisso e dedicação eternos (BAUMAN, 2005, p.25).

Em suma, observamos na modernidade líquida a insurgência da indefinição e o


modelo da lógica de consumo enquanto pensamentos dominantes. A cultura do lixo torna-se
uma consequência intrínseca aos ideários propostos. O surgimento do sujeito refugo, então,
seria inevitável? Mas e o processo educacional, supostamente ferramenta emancipadora do
sujeito? Qual seu papel e sua estruturação nessa sociedade líquida? É exatamente visando
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responder essas questões, que serão abordados alguns pontos merecem destaque acerca pape
da educação no contexto atual.

Sobre a estruturação do processo educacional

Inserido nesse contexto, temos o sistema educacional, pretensamente responsável pela


inserção do sujeito no nesse contexto social caleidoscópico. O discurso atual é de que a
educação tem como escopo “preparar” o sujeito para enfrentar a realidade, que nesse sentido,
é formar, meramente, o sujeito para o mercado de trabalho. O conhecimento passado é
valorado segundo a “utilidade” do mesmo para as atividades a serem desenvolvidas (no caso,
trabalha-se com a noção de representatividade do conhecimento adquirido, inserindo em um
sentido meramente funcionalista do mesmo).
De tal modo, observa-se um paradoxo intrínseco a esse sistema educacional: ao
mesmo tempo em que tem como objetivo a “formatação do sujeito frente às pré-modelagens
do sistema econômico” (VEIGA-NETO, 2007), ao mesmo tempo, apresentação conformidade
com estruturações mediáveis na constituição do sistema. Foucault (2010), analisando a
estruturação do sistema prisional, observa certas características na estruturação do mesmo. O
conceito de panoptismo, desenvolvido por Foucault (2010), configura o sistema penal como
um sistema de sequestro, mantendo não somente o corpo, mas a mente do aprisionada. A
ideia de uma constante vigilância faria com que o sujeito adquirisse, inerentemente, o
comportamento desejável segundo os parâmetros postos.
A estruturação educacional, em termos, pode ser considera análoga ao do sistema
observado por Foucault (2010) no meio prisional. A disposição das classes, da posição do
professor em sala de aula, dentre outros aspectos, são pensados na forma de dinamizar o
processo de “transmissão de conhecimento”. O poder-saber, como observa Veiga-Neto
(2007), é e está em conformidade com a disposição da sala, demonstrando que o professor
seria o único apto, o centro não só das atenções, mas posto como o único que deteria o
discernimento necessário para repassar, de forma satisfatória, as informações ao sujeito alvo
do processo educativo.
Essa, de forma generalizada, é o retrato do sistema educacional, analogamente, na qual
o professor ocupa o centro desse universo, vislumbrado através das relações poder-saber. Os
alunos, sob constante vigilância (aqui, claramente sob a perspectiva do panoptismo), teriam
de reproduzir o discurso socialmente aceito, dependendo do crivo subjetivo do educador se
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são realmente “aptos” para efetivarem, no contexto social, o “conhecimento funcionalista”


que adquirem nos bancos escolares, ou seja, a educação, que a prioristicamente deveria servir
como construção de um cidadão pleno, que serviria como uma ferramenta emancipatória, na
realidade, trabalha no sentido de formar reprodutores das concepções postas. Como podemos
notar em um rápido vislumbre, a estruturação do sistema educacional posto é muito
semelhante ao adotado pelo sistema penitenciário, no qual a um sequestro do indivíduo, na
tentativa de que esse represente e reproduza os valores que são pré-estipulados pelo meio
social.
Contudo, como colocado por Bauman (2000; 2005) os sujeitos, atualmente, estão
inseridos em realidade na qual o “tudo que é sólido se desfez no ar”. Estando imersos em
uma realidade onde a troca instantânea de informações é uma realidade, na qual todo e
qualquer indivíduo tem acesso as mais variadas fontes de informação e, não bastante isso,
também é possível uma publicização (também instantânea) das compreensões pessoais. Como
toda a ferramenta, a World Wide Web (Rede Mundial de Computadores, vulgo Internet), ela
representa uma benção ou uma maldição, dependendo da forma de sua utilização.
O documentário “Para o dia nascer Feliz”, sob a direção de João Jardim, nos traz o
relato da realidade educacional brasileira. Do citado documentário, que traz várias discussões
interessantes acerca da educação brasileira, o ponto mais pertinente à análise presente, é o
depoimento dos próprios professores da rede pública de ensino. Esses, que representam o
“centro do universo” do sistema educacional anteriormente tido como absoluto, agora tem que
carregar em seus ombros, assim como Atlas na mitologia, o peso de um sistema defasado e
ultrapassado.
As dificuldades apontadas ao longo do documentário pelos professores são as mais
variadas. Contudo, improvável seria discutir todos os assuntos sobre a temática. De tal forma,
foram escolhidos aqueles que se tornam mais pertinentes ao escopo do trabalho, sendo eles a
representação do professor frente aos alunos, a estrutura e o amparo dados aos professores
pelo Estado e pela sociedade.
Como é observado em um dos relatado proferidos pelos professores na película, a
imagem atual do professor frente à turma de alunos é “a de um inimigo a ser vencido”. O
professor não detém mais a imagem daquele “que transmite o conhecimento”. Meramente, é
aquele a quem os alunos devem “atuar” durante o período das aulas, tendo em vista que as
informações, anteriormente proveniente somente dos discentes, agora podem ser obtidas das
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mais variadas formas com o uso da internet. Além disso, o professor, ao adentrar em sala de
aula, depara-se com uma realidade muito distante daquelas tematizadas na realidade
acadêmica. De tal forma, ele, o professor, além de ensinar, deve apoiar, incentivar, solucionar
problemas familiares dos seus alunos, isso sem comentar a questão da inserção dos deficientes
no ensino público, que necessitam de tratamento diferenciado, ao qual os professores são
minimamente preparados (se o são).
Não bastante a dura realidade, temos o descaso do aparato estatal e reconhecimento
social referente à função do professor. Mal remunerados, pouco estimados, desrespeitados,
mal preparados, entre outros fatores, configura a função de educador no Brasil como vocação.
Apesar dos recentes esforços em uma fomentação das licenciaturas no contexto nacional, os
problemas de seguir uma carreira como professor são pouco estimulantes a jovens que estão
por escolher suas futuras carreiras. Aqueles que a escolhem, devem enfrentar uma espécie de
“sanção social e familiar”. Aquela, por entender que discentes são aqueles que não capacidade
intelectual para realizar outra atividade e esta, por compreender que “ser professor não traz
nenhuma recompensa financeira”, ou seja, em uma linguagem direta, “ser professor não dá
dinheiro”.
A estrutura oferecida também fica a desejar, sendo difícil a utilização de recursos
tecnológicos que estimulem a participação dos alunos. Aliás, talvez esse seja um dos quesitos
mais precários quando se analisa escolas no interior do país. Salas individualizadas, água
encanada e luz elétrica são luxos permitidos apenas a escolas de centros urbanos. De todos
esses aspectos, conclui-se a falta de interesse em mudar a estruturação medieval do sistema
educacional. Mas por quê? Simples, visto que a escola segue os ditames do modelo posto, e
atua diretamente na formação/ reprodução de cidadãos redundantes, perspectiva que será, a
partir de agora, o foco da análise.

A relação entre o processo educacional e a formação de cidadãos redundantes.

Analisamos até agora, alguns aspectos da Modernidade Líquida (BAUMAN, 2000) e


do sistema educacional. Agora, cabem estabelecer os entrelaçamentos entre os dois
entendimentos e os reflexos desses na formação de cidadãos. O processo educacional,
teoricamente falando, é compreendido como uma “ferramenta emancipatória” do sujeito, que
permitiria com que esse tomasse noção dos seus direitos e, a partir de então, atua-se de forma
a contribuir com o meio social.
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Contudo, como vislumbramos ao longo da nossa análise, devido ao contexto atual e as


características do sistema educacional, o que ocorre faticamente é bem diverso do que estipula
a compreensão teórica. Como já anteriormente trabalhado, o sujeito, mesmo antes de iniciar
sua caminhada educacional, primeiramente absorve os valores sociais. Esses,
contemporaneamente, correspondem a valores hedonistas, a compreensão de que a atividade
individual é a única válida, a relatividade e fugacidade dos laços interpessoais.
Bauman (2000; 2005) e Giddens (2002) trabalham exatamente nessa compreensão. Na
sociedade líquida, guiada pela cultura do lixo e pela lógica de acampamento, afastam o
sujeito de uma participação consciente no contexto social. De tal forma, o processo
educacional, que teria como pressuposto a formação de um cidadão, além de suas
dificuldades estruturas, encontra pouca receptividade em sujeito que estão preocupados
apenas com interesses pessoais. Marshall (1967), através da noção do primeiro passo
elucidador2e Martins (2010), contribuem no sentido de demonstrar que o processo educativo
é um pressuposto de uma cidadania.
Marshall (1967) compreende a cidadania como um status a vir ser adquirido pelo
sujeito, sendo a mesma dividida em três aspectos: civil, político e social. Carvalho (2008),
realiza uma interessante análise do conceito no contexto brasileiro, vislumbrando uma
hierarquização entre os cidadãos, compreendendo esses o conceito de cidadão3, estadania4 e
não-cidadão5. Martins (2010), valendo-se das contribuições dos dois pensadores e inova,
criando o conceito de cidadania plena6. Esse conceito, como demonstra Martins (2010) em

2
- Por primeiro passo elucidador, compreende-se o direito de todo o sujeito adquirir uma formação inicial de
qualidade. Com essa formação, o sujeito teria noção dos seus direitos (principalmente, a compreensão dos
direitos individuais). A partir de então, caberia ao sujeito, decidir por si quais seriam os conhecimentos que
deveriam ser desenvolvidos e quais estariam direcionados aos seus interesses.
3
- A perspectiva que se tem em mente quando se utiliza esse conceito de cidadão é o conceito de Carvalho
(2008), que vislumbra uma camada de cidadãos (pertencentes as classes assalariadas, ou seja, média) que até
compreendem os seus direitos frente ao poder estatal, contudo, não dispõem dos meios para efetivar os mesmos.
4
- Por conceito de estadania, entende-se quando o Estado não cumpre seu papel enquanto garantidor da
igualdade, sendo assim concedidos alguns privilégios a uma parcela da população. Os direitos civis, políticos e
sociais são utilizados como mera moeda de troca pela elite nacional. Dessa forma, os sujeitos não são vistos
como cidadãos, mas sim como uma clientela do Estado.
5
- O conceito de não-cidadão pode ser definido da seguinte forma: “indivíduos que não alcançaram em nenhum
aspecto o status de cidadania, podendo ser denominados de não-cidadãos, pois não tem acesso a nenhum dos
direitos básicos, ou seja, os direitos civis [...], direitos políticos [...], e os direitos sociais [...]” (MARTINS, 2010,
P.30).
6
- A definição de cidadania plena, segundo o próprio historiador, seria a “contemplação dos três direitos
expostos por Marshall (1967), que é possível a constituição de uma cidadania plena, na busca de uma plenitude
como objetivada no ideal grego, buscando a felicidade individual e coletiva” (MARTINS, 2010, P.30).
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seu magistério, deveria ser o objetivo precípuo do processo educativo, uma vez que representa
a efetivação dos três aspectos de Marshall.
Partindo-se das contribuições desses pensadores e, analisando a sociedade hodierna,
compreendemos a insurgência de um novo conceito – a ideia do cidadão redundante. Para
explicar tal conceito, primeiramente, parte-se da noção de Bauman de redundância. Como
podemos notar no seguinte trecho

Ser redundante significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso – quaisquer que
sejam os usos e necessidades responsáveis pelo estabelecimento dos padrões de
utilidade e de indispensabilidade. Os outros não necessitam de você. Podem muito
bem passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão auto evidente
para você existir nem qualquer justifica óbvia para que você reivindique o direito a
existência. Ser declarado redundante significa ter sido dispensado pelo fato de ser
dispensável [...]. “Redundância” compartilha o espaço semântico de “rejeitados”,
“dejetos”, “restos”, “lixo” – com refugo. O destino dos desempregados, do “exército
de reserva de mão-de-obra”, era serem chamados de volta para o serviço ativo. O
destino do refugo é o depósito de dejetos, o monte de lixo (BAUMAN, 2005, p. 20).

Ser redundante, como aponta o pensador, é derivado diretamente da cultura do lixo,


atualmente preponderante. Por princípio, separa-se aquilo que se pressupõe ter utilidade (e,
como frisa o pensador polonês “com seu respectivo prazo de validade”) do considerado
descartável, o inútil. Tal princípio norteia todo o comportamento social hodierno, não
podendo ser diferente com o conceito de cidadania, daí o entendimento da necessidade do
conceito.
Ser um cidadão redundante, tem similaridade com os conceitos de estadania e de não-
cidadão, contudo, não pode ser confundidos com os mesmos. Ter a cidadania caracterizada
por redundância, por si só, já pressupõe a efetivação de um dos aspectos de cidadania (seja o
civil, político ou social), o que já o diferencia do conceito de não-cidadão. Adquirir a
efetivação de tal aspecto da cidadania pode ser fruto da estadania, contudo, ser redundante
tem um caráter de permanência e, pior de tudo, de reprodução do mesmo. Bauman (2005)
categoricamente afirma: “uma vez redundante, sempre redundante”. Aqueles caracterizados
pela estadania, ainda que exíguas, tem chances de lutar pela efetivação dos outros aspectos da
cidadania, aos redundantes, essa chance é tolhida.
A compreensão da necessidade e do caráter de permanência é chave para compreender
o entrelaçamento do sistema educacional com a formação de cidadãos redundantes. O sistema
posto, que fomenta o individualismo e o consumismo, prepara o sujeito apenas para tirar
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proveito das relações de consumo, ou seja, direcionando o sujeito para uma concepção
hedonista de existência (prazeres que seguem a lógica do mercado, ou seja, fugazes). Disso,
para que existam aqueles que se beneficiam, devem existir aqueles que trabalham (nas
sombras e de forma imperceptível) recolhendo os restos, realizando as tarefas mais ingratas. É
exatamente para tais funções, que existem os cidadãos redundantes e é para tal que eles são
formados. Bauman, interessantemente, dá síntese do exposto no seguinte trecho de uma de
suas obras

Os consumidores de uma sociedade de consumo [...] precisam de coletores de lixo, e


muitos, e do tipo que não evitará tocar e manusear o que já foi destinado ao monte
de dejetos – mas os próprios consumidores não se dispõem a fazer o trabalho dos
coletores. Afinal, foram criados para obter prazer com as coisas, e não sofrimento.
Foram educados para se melindrar com o tédio, o trabalho penoso e passatempos
enfadonhos. [...] É nisto que consiste o consumismo – e ele decerto não inclui o
desempenho de tarefas sujas, cansativas, aborrecidas ou apenas desinteressantes,
“sem alegria”. A cada triunfo sucessivo do consumismo, cresce a necessidade de
coletores de lixo, enquanto se reduz a oferta de pessoas dispostas a engrossas suas
fileiras (BAUMAN, 2005, p.76).

Com isso, observa-se a necessidade e também o caráter permanente do mesmo, uma


vez que a figura do redundante deve existir, enquanto mão-de-obra que lide e viva a partir do
lixo produzidos pelos “úteis” ou “socialmente aceitos” na sociedade de consumo. Ser
redundante é única característica permanente em uma realidade fugaz. De tal forma, não há
interesse em mudanças efetivas na estruturação medieval do sistema educacional, como
anteriormente analisada. A escola, ainda, desempenha a função de “neutralizador de sujeitos”,
retomando a concepção de Foucault (2010) e, ainda, abordando exatamente a formação e a
normatização de sujeitos redundantes, Bauman traz uma importante contribuição sobre tal
ponto

(...) e a transformação das escolas mantidas pelo Estado em “instituições de


confinamento”, cuja missão básica não é educar, mas assegurar a “custódia do
controle” – “de fato, parece que o propósito principal dessas escolas é apenas
‘neutralizar’ os jovens considerados indignos e indisciplinados, mantendo-os
trancados durante o dia de modo que, no mínimo, não se envolvam em crimes de
rua” (BAUMAN, 2005, p.103).

“Neutralizando” o refugo, exclui-se completamente a possibilidade dele ser reinserido


e aceito no meio social. A escola, de tal forma, encarrega-se pela formação de novos cidadãos
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redundantes, obedecendo à cultura do lixo e a lógica de consumo. De fato, o sistema funciona


com requintes de crueldade: Separa-se o “útil” do “inútil”, cultiva-se o este, para que possa
servir de ferramenta subserviente, passando os “comandos” que o mesmo deverá reproduzir
para ser aceito (e apenas) enquanto mão-de-obra descartável e, se possível, atue de maneia
mais discreta possível, para não “ferir” os olhos da sociedade. Ainda, atua o sistema
educacional (medieval, por natureza) controlando os sujeitos, segregando, através de sua
atuação, uma realidade já desigual. Novamente, Bauman é magistral em sintetizar essa
concepção em suas obras, uma vez que o pensador polonês entende que

(...) As notórias tarefas de “administração de tensão” e “manutenção dos padrões”


que, segundo Talcott Parsons, todo sistema precisa desempenhar a fim de
sobreviver,, hoje se resumem quase totalmente em separar de modo estrito o “refugo
humano” do restante da sociedade, excluí-lo do arcabouço jurídico em que se
conduzem as atividades dos demais e “neutralizá-lo”. O “refugo humano” não pode
mais ser removido para depósitos de lixo e fixado firmemente fora dos limites da
“vida normal” (BAUMAN, 2005, p.107).

A cidadania plena, apontada por Martins (2010) como fim precípuo da educação, é
um ideário distante do cidadão redundante. O conceito preconizado pelo historiador, tendo em
mente a caminhada da presente análise, só é acessível a aqueles que podem pagar por esse
“privilégio”. Sujeitos imersos em uma realidade líquida como a atual e, através da atuação de
um sistema educacional com as características observadas, tornam-se, eles mesmos, a
expressão da redundância. O conhecimento funcionalista adquirido, os valores sócias
repassados, tem em vista a formatação de sujeitos direcionados a atender a compreensão
daquilo que é útil ao sistema posto. Daí entende-se a intrínseca relação entre o sistema
educacional e a formação de cidadãos redundantes.

Considerações Finais

Depois de efetuada toda a averiguação, procurou-se demonstrar, na medida do


possível, a intrínseca relação entre o sistema educacional posto (arcaico) com a formação de
cidadãos redundantes. De tal forma, percebe-se que a o pano de fundo, qual seja a
modernidade líquida apontada por Bauman, é o maestro que rege essa máquina medieval. A
lógica de consumo e a cultura do lixo, intrínsecos a essa realidade caleidoscópica, exigem e
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necessitam da figura do redundante, para que sirva de arrimo a todo o sistema consumista
atual.
O cidadão redundante, produto de uma escola que é mera ferramenta neutralizadora
dos sujeitos e modeladora de sua atuação no contexto social, pode esperar apenas tornar-se
mera ferramenta (descartável) da sociedade líquida. Atuando sempre nas sombras e de forma
mais discreta possível, vislumbram a cidadania, em seu sentido pleno, como um produto que
nunca poderão possuir. O reconhecimento de seus direitos, a tutela e, por fim, a efetivação
dos mesmos, é um produto pelo qual nunca poderão pagar, um produto que nunca poderão
consumir. A eles, cabe trabalhar e viver com os restos, com o lixo.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

_________________. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

_________________. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2010.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

MARSHAL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MARTINS, Everton. Cidadania: O papel da disciplina de História na construção de cidadãos


plenos a partir de um olhar histórico reflexivo. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2010.

MUZIO, Gabriela. A globalização como estágio de perfeição do programa moderno: uma


estratégia possível para sobreviver à ocorrência do processo. In: GIDDENS, Anthony.
Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

Pro dia nascer feliz. Direção de João Jardim. Copacabana Filmes. 2006

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