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Marxismo-leninismo: identidade ou

práxis?
5 de outubro de 2017

Por André Brandão*


O potencial e as limitações históricas da inserção do marxismo-
leninismo na juventude brasileira

Nos últimos tempos, vem ocorrendo uma maior difusão do marxismo-


leninismo no seio da juventude brasileira. Este processo é
determinado por múltiplos fatores, principalmente por um aspecto
objetivo e dois subjetivos: o aprofundamento da crise econômica
brasileira – reflexo da crise sistêmica da ordem do capital – que
recrudesce a dinâmica da luta de classes e expõe o caráter burguês do
nosso estado e de seus operadores políticos; o declínio da hegemonia
das forças políticas conciliadoras, cujo projeto até então bem
sucedido perpassava por uma gestão do capitalismo brasileiro
apassivando os setores sociais subalternos; e a crescente ação
política dos organismos de classe proletários, que vem pouco a pouco
reconstruindo revolucionariamente as lutas populares no país.
Os comunistas sabem da importância deste novo elemento para a
mudança de rumos da luta de classes no país. Aprendemos com o
velho Marx que ‘’a arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica
da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material,
mas a teoria também se torna força material quando se apodera das
massas’’[i]. Contudo, para que esse atual movimento de inserção do
marxismo-leninismo na juventude brasileira possa se converter de
fato em força material, ele precisa superar as limitações
condicionadas por nosso tempo histórico.

Vivemos num estágio de desenvolvimento específico da ordem


burguesa: o capitalismo tardio, também conhecido como
neoliberalismo ou acumulação flexível. Este estágio é marcado por
circunstâncias sócio-históricas que modificam profundamente a vida
humana: a mundialização do capitalismo, que atingiu praticamente
todas as fronteiras; o desenvolvimento de tecnologias que mudam a
nossa relação com o tempo e o espaço tempo (computadores,
internet, celulares, satélites, aviões comerciais…); o avanço da
mercantilização do conhecimento e de outros espaços da vida social;
a financeirização da economia (que elege o crescimento do capital
fictício como rota de fuga para a auto-expansão do capital); a
reestruturação produtiva, que dividiu e precarizou a força de trabalho
(vide o fenômeno da terceirização), etc.

Este novo momento da ordem do capital exige a formação de uma


lógica cultural própria, que possa ser a ‘’expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas
como ideias’’[ii]. A pós-modernidade[iii] seria a lógica cultural
desenvolvida para exercer esta funcionalidade, como meio de integrar
acriticamente os indivíduos sociais de hoje aos atuais imperativos
mercantis e produtivos, promovendo uma forma de consciência que
tende ao autocentrismo, ao relativismo, ao fragmentarismo, à
inconstância, etc.

Nós, sujeitos forjados nesse tempo histórico, por mais que


critiquemos a pós-modernidade, seus desastrosos impactos e as
linhas teóricas decadentes que a legitimam, ainda apresentaremos
sequelas deixadas pela nossa educação, assim como vez ou outra
reproduzimos elementos das opressões estruturais que tanto
combatemos, as quais só podem ser totalmente sepultadas com a
derrubada das suas sustentações materiais.

Sobre a possibilidade de uma ‘identidade revolucionária’’

Reproduzindo a lógica cultural pós-moderna, muitas pessoas têm


recorrido à teoria revolucionária do proletariado como resposta
individual aos impactos da crise de identidade contemporânea. É
neste sentido que diversas vezes o marxismo-leninismo tem
aparecido erroneamente para a juventude: simplesmente como uma
identidade, uma espécie de nova tribo social para se participar. Trata-
se de uma absorção mercantil, justamente daquela construção
teórica que tem como objetivo a superação do modo de produção
capitalista.

Tem se tornado comum a adoção de uma identidade ‘’soviética’’, ou


‘’revolucionária’’, como forma de demonstrar alguma radicalidade
política. Vemos mais e mais pessoas cultuando acriticamente
personalidades históricas e símbolos da luta comunista como se
fossem figuras religiosas dignas de devoção. No fundo, não há erro em
fazer alusão a nada disso, em certa medida – inclusive, é correto um
comunista agitar símbolos históricos da luta proletária, reconhecer a
importância e as contribuições de grandes figuras comunistas, ou
reivindicar e defender o legado das experiências socialistas, que
foram tão difamados pela historiografia e a mídia burguesa.

Condenável é o momento em que essas expressões se exacerbam e o


modo como essas ideias e símbolos são agitados adquirem um
caráter fetichista, afastando diversas pessoas da luta comunista
devido aos seus comportamentos autocentrados. Não é coincidência
que normalmente são estes indivíduos que atacam com tanta
agressividade os “pobres de direita’’, como se a consciência de classe
caísse do céu e não houvesse ideologia dominante formando a todos
nós.

Muitos destes indivíduos tratam de se filiar a alguma corrente da


história do movimento proletário, como se estivessem entrando em
alguma igreja neopentecostal, ou a alguma nova tribo urbana.
Inserem-se em debates como o de Stalin x Trotsky, ou Althusser x
Lukács, ou mesmo Hoxha x Mao Tsé-Tung, não porque estão
realmente interessados nas consequências práticas de cada lado
dessas dicotomias, mas sim porque querem assumir a identidade de
alguma dessas posições, fazer parte de um nicho, se sentir
pertencente. Com isso, por vezes vulgarizam debates tão necessários,
negligenciam o estudo concreto das posições antagônicas – ou até
mesmo das próprias posições! – e hostilizam qualquer pessoa que
simpatiza com a outra posição, ou mesmo alguém que ainda não tem
uma posição formada.

Há também o crescimento de certa identidade academicista, que se


dá quando a aproximação do marxismo-leninismo acontece não pela
intenção real de se inserir no movimento revolucionário do
proletariado, mas sim para desenvolver uma espécie de erudição
individual. Tal processo de erudição é almejado por este tipo de
indivíduo para que ele possa ser visto como uma referência
intelectual, alguém que seus pares possam destacar como uma figura
‘’iluminada’’, ‘’genial’’, quase um ‘’messias teórico’’. Com isto, a
pessoa poderia obter prestígio social, acadêmico, ou ambos.

Sobre isto, o camarada Ho Chi Minh uma vez escreveu:

Estudar o marxismo-leninismo é procurar aprender a maneira de


resolver cada problema da existência, a maneira de comportar-se em
todas as situações, em relação aos outros e a si mesmo; é assimilar os
princípios gerais do marxismo-leninismo, para aplicá-los
criativamente às realidades de nosso país. Estudamos para agir.
Nossos estudos teóricos devem ir de par com as atividades práticas.
Certos camaradas aprendem de cor livros inteiros que tratam de
marxismo-leninismo. Pretendem saber esta doutrina melhor que
ninguém. Mas, na prova da prática, ou mostram-se incapazes de criar,
ou ficam embaraçados. Suas palavras e seus atos se contradizem.
Estudam livros de marxismo-leninismo, mas não conseguem adquirir
o espírito marxista-leninista. Estudam para exibir seus conhecimentos
e não para aplicá-los aos problemas da revolução. Isso também é
individualismo[iv].
Ter este tipo de posição frente ao fenômeno do academicismo não
significa incorrer em um desvio praticista. O praticista, que também
pode ser compreendido dentro de uma espécie de identidade, é
aquele que está convencido de que o fator fundamental da luta
política é a prática pela prática, independente da orientação teórica
que a direcionará. Neste caso, o critério de valorização de uma
organização não seria o modo como ela constrói a superação da
exploração do ser humano pelo ser humano, mas sim o total
meramente quantitativo das suas ações políticas, independente do
seu viés.

Sabemos para onde vai esse tipo de perspectiva: são justamente os


decadentes grupos defensores da conciliação de classes aqueles que
mais assumem esse tipo de visão, como forma de sustentar alguma
relevância política para si. Hoje, com o resultado desse tipo de
atuação, perpetuando as opressões, explorações e dominações do
modo de produção capitalista, já temos consciência de que não é este
o caminho da libertação do proletariado e dos setores subalternos do
tecido social. Como diria Lenin, “sem teoria revolucionária, não há
movimento revolucionário’’[v].

Nunca podemos perder de vista o aspecto pedagógico da ação


marxista-leninista. Um comunista não pode ser um impeditivo para a
adesão das massas ao movimento que trará a sua emancipação.
Devemos sempre estabelecer as condições possíveis para que mais e
mais camaradas vejam a importância de se organizar para superar o
mundo burguês. Muitas pessoas se afastam do comunismo por conta
do modo distorcido como o movimento é apresentado: seja por não
se identificarem com a imagem fetichista difundida por alguns, ou por
serem reprimidas pelo discurso academicista, ou por não terem
condições – por trabalharem, por estudarem, por serem mães , etc –
de seguir os imperativos do praticismo.

Precisamos nos afastar desta postura fetichista e autocentrada que


trata o marxismo-leninista como mera identidade. Os comunistas não
podem desenvolver uma identidade específica ideal. O movimento
comunista é o movimento de emancipação da classe trabalhadora.
Tendo isto em mente, deveríamos ter noção de que não pode haver
uma identidade marxista-leninista cristalizada, justamente porque
não existe uma ‘‘identidade proletária’’. A classe trabalhadora não
tem uma forma única de se vestir, de se comportar, de fazer arte, etc.
Aquelas perspectivas opostas a essa só tem um destino a seguir: o
caminho da exotificação da classe operária e das suas lutas.

Só podemos falar indiretamente de uma identidade revolucionária.


De fato, os comunistas devem se mostrar organizados, disciplinados,
solidários, agitar e propagandear as bandeiras do projeto histórico da
classe operária e se portar como combatentes das repercussões
opressivas da sociedade de classes. Mas este tipo de comportamento
não aparece por conta de um ideal identitário revolucionário, mas sim
como decorrência dos princípios estruturantes do marxismo-
leninismo: aqueles que fundamentam a sua práxis.

O marxismo-leninismo como práxis

Para realmente aderir à luta comunista, não basta ter uma postura
individual nova, seja ela identitária ou de consciência. A
transformação radical da realidade não virá pelo pensamento ou por
atos particulares. Nossas ações individuais fechadas em si mesmas
são limitadas não só por serem condicionadas pelas determinações
sociais objetivas que a sociedade que nos forma impõe, mas também
pela própria insuficiência que a nossa ação isolada tem para afetar o
complexo social que nós queremos superar.

A libertação, na nossa perspectiva, é um ato histórico, materialmente


efetivo, que só pode ser desenvolvido na práxis, ou seja, naquele tipo
de ação que é conscientemente transformadora. Há aqui uma
dialética interessante: como vimos no início, a teoria marxista-
leninista só pode se converter em força material se ela se apodera da
classe trabalhadora, se ela se torna arma teórica do sujeito
revolucionário do nosso tempo histórico. Por outro lado, a ação
política das massas só se torna revolucionária se ela for teoricamente
orientada pela ciência revolucionária do proletariado.

Para resolver esta questão, um fator torna-se fundamental: o partido


comunista. É justamente o partido comunista que irá ser o operador
político dessa dialética. Ele é exatamente a classe para si, a união dos
setores mais avançados e conscientes da classe, formando um sujeito
coletivo. Este sujeito coletivo deve assumir o papel de vanguarda
revolucionária do proletariado, necessária para a agitação,
organização, educação e a ação coletiva da classe trabalhadora, para
que ela possa extrair do seu ser a sua vocação histórica.

Nós, comunistas, como componentes desse sujeito coletivo, só


podemos nos inserir na luta pela revolução socialista, pelo
‘’movimento real que supera o atual estado das coisas’’[vi], caso nós
de fato desenvolvamos uma prática revolucionária. E para isso, não
dá para tratar o marxismo-leninismo como mero fetiche mercantil, a
ser usado como identidade. Só aderimos à luta comunista quando
assumimos de maneira real os princípios do marxismo-leninismo na
nossa prática militante. Só agindo com disciplina, sem medo da
crítica e da auto-crítica, estudando profundamente a realidade ao
nosso redor a luz da nossa teoria, reconhecendo a necessidade do
centralismo democrático, elaborando uma linha política acertada, se
vinculando profundamente com as massas, e, por fim, mas não
menos importante, servindo ao povo e ao seu projeto histórico com
toda a firmeza e a fidelidade necessária para tal atividade, é que nós
poderemos de fato lutar pela superação do capitalismo.[vii]

Estudante de filosofia da UFBA e militante da UJC-Brasil

i. Passagem presente na introdução da Crítica da filosofia do direito de


Hegel. Esta introdução é muito importante para compreender o
aprofundamento do materialismo em Marx e o início da sua
descoberta de que o proletariado é sujeito revolucionário de seu
tempo histórico.

ii. Citação d’A ideologia alemã,de Marx e Engels. O capítulo III do tomo
sobre Feuerbach trabalha a dinâmica da ideologia dominante sobre
nós.

iii. Sobre o fenômeno da pós-modernidade, a fonte principal aqui é o


livro As origens da pós-modernidade, de Perry Anderson, rigoroso
compêndio histórico de elementos desse novo momento do
capitalismo.

iv. Trecho do texto Da moralidade revolucionária, de Ho Chi Minh,


importantíssima fonte para o desenvolvimento de uma práxis
marxista-leninista.

v. O livro Que fazer?, de Lenin, em que está presente esta frase, é outra
fonte teórica fundamental para o marxismo-leninismo.

vi. Mais uma vez citando A ideologia alemã

vii. A influência do texto Da moralidade revolucionária é evidente aqui.

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