Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Juventude e
Precariedade
Projeto Editorial Praxis
www.canal6.com.br/praxis
Trabalho
Juventude e
Precariedade Brasil e Portugal
2ª edição 2012
Bauru, SP
Copyright do Autor, 2009
ISBN 978-85-7917-010-2
Conselho Editorial
Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP
Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL
Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP
Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO
Prof. Dr. Jorge Machado – USP
Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE
ISBN 978-85-7917-202-1
CDD: XXX
5 Apresentação
Elísio Estanque e Giovanni Alves
11 Capítulo 1
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil - Elementos da
condição de proletária no século XXI
Giovanni Alves
33 Capítulo 2
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
Elísio Estanque e Hermes Augusto Costa
65 Capítulo 3
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas:
dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
Adalberto Cardoso
99 Capitulo 4
O futuro é mesmo incerto?
A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
Pablo Almada
123 Capítulo 5
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação”
Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
José Soeiro
159 Capítulo 6
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem
adulto-flexível no ABC Paulista
Renan Araújo
Capítulo 7
Futuros operários: As transformações das estratégias de reprodução
social e das modalidades de estilização do operariado em uma
comunidade industrializada portuguesa
Bruno Monteiro
Apresentação
A
s mudanças em curso no sistema produtivo e os respectivos processos de
«ajustamento», ou «reformas estruturais» que ocorrem no capitalismo
global, têm como objetivo principal a precarização geral das relações de
trabalho, seja no que respeita aos custos salariais, seja no plano contratual, ou ain-
da em um sentido mais genérico, no que toca aos direitos, à segurança e à dignida-
de do trabalhador assalariado. Com a entrada no século XXI temos vindo a assistir
à reemergência (embora com novas roupagens) do mercantilismo selvagem que foi
motivo de tantas lutas sociais e contra o qual se ergueu o movimento operário e o
sindicalismo desde o século XIX.
Vivemos um período delicado da história do capitalismo mundial, uma crise
que evidencia traços estruturais e está a dar lugar a uma sucessão de medidas de
austeridade na União Europeia, que parecem querer instalar-se por longos anos.
Trata-se de uma verdadeira ofensiva do capital sobre o mundo do trabalho orga-
nizado e os direitos sociais de trabalhadores e trabalhadoras. É bem real a ameaça
de vermos ruir todo o edifício de conquistas civilizacionais que, desde o século
XVIII, afirmaram-se na Europa e onde a atividade profissional se impôs como
principal fonte de status, de dignidade e de coesão social. O atual ataque ao mundo
laboral representa, portanto, um perigoso retrocesso.
Por exemplo, as medidas de austeridade neoliberal que têm vindo a ser adotadas
nos países capitalistas do sul da Europa Ocidental (Grécia, Itália, Espanha e Portugal)
estão a traduzir-se em uma sucessão inaudita de cortes nos salários, nos investimen-
tos e nos benefícios sociais, o que, lado a lado com o aumento de impostos, a restru-
turação do sector público, os programas de mobilidade e de reformas compulsivas
(ou falsamente voluntárias), o disparar das taxas de desemprego (em especial nas ca-
madas mais jovens, onde o mesmo já ultrapassa os 30 por cento) e a generalização
da precariedade, com a consequente facilitação geral dos despedimentos, constituem
um conjunto de aspetos que, no curto ou no médio prazo, podem precipitar-nos para
um cenário socialmente deplorável e politicamente perigoso.
A actual tendência de precarização das relações de trabalho, de dissociação
entre condições profissionais e vínculos laborais, está de facto a por em causa os
velhos critérios e formas de diálogo, os valores de solidariedade e, no fundo, o
modelo de contrato social inspirado pela filosofia iluminista e consolidado desde
APRESENTAÇÃO
o pós-guerra. Não é demais sublinhar que, nos últimos vinte anos, as transforma-
ções ocorridas no mercado de trabalho fustigaram de forma dramática os direitos
e a qualidade do emprego. O moledo produtivo do capitalismo fordista-keynesia-
no, que até aos anos oitenta do século passado pôde sustentar uma “classe média”
que parecia em expansão, sofreu, entretanto, convulsões profundas que abalaram
abruptamente as suas expectativas mais risonhas.
Na última década, nos países capitalistas centrais, com destaque para a União
Europeia, os postos de trabalho em regime de contratos permanentes diminuíram ao
mesmo ritmo em que aumentaram os contratos a termo certo. Aliás, o crescimento
das situações precárias – ou o que outrora se designava como situações “atípicas” no
campo do emprego – têm evoluído para uma profunda alteração do velho padrão de
estabilidade, obedecendo hoje a uma multiplicação de situações e de percursos profis-
sionais, bem como no plano subjectivo e das vivências, quer do emprego, quer do de-
semprego, em uma reconfiguração permanente, que justifica novos questionamentos
sobre essas novas formas de prestação de trabalho de natureza flexível.
Por exemplo, em Portugal, os valores do emprego precário (se somarmos os
contratos a termo, os recibos verdes, os trabalhadores temporários e o trabalho a
tempo parcial) aproximam-se já dos 28 a 30% do emprego. Este tipo de contrato
aumentou progressivamente e em todas as faixas etárias, sendo a referida geração
(hoje popularizada pelo nome de Geração à Rasca”)1 a que mais sofre com isso, o
que acontece, de resto, em muitos países europeus, como por exemplo a Espanha,
a Alemanha, a Suécia e a França onde, tal como em Portugal, mais de 50 por cento
dos trabalhadores desta geração já se encontram em situação precária. O desempre-
go de jovens récem-graduados (ou licenciados, em Portugal) tem vindo a agravar-se
nos últimos anos, atingido os 55 mil casos (em 2010), embora se saiba – e convém
realçá-lo – que os licenciados auferem salários mais elevados e permanecem menos
tempo em situação de desemprego ou de trabalho precário. Em todo o caso, quer o
desemprego quer os contratos não permanentes atinjam especialmente o segmento
mais jovem. E isso aconteceu de forma drástica, estando 37,6 por cento dos traba-
lhadores com idades entre 15 e 34 anos em situação laboral de contratos a prazo.
Considerando apenas o segmento etário dos 15 aos 24 anos, essa percentagem já se
aproximava em 2010 dos 50 por cento (INE, 2007, Inquérito ao Emprego).
1 Que, diga-se, passou a ser conhecida desde o passado dia 12 de março de 2011
como a “Geração à Rasca”, devido à enorme manifestação convocada por um
grupo de jovens sem situação precária, através do Facebook, e que, segundo vá-
rios analistas, terá marcado um momento de viragem nas modalidades de acção
colectiva e afirmado um novo fenómeno no cenário político nacional.
8
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil Elementos da condição proletária no século XXI
Giovanni Alves
Elísio Estanque
9
CAPITULO 1
Giovanni Alves
N
osso objetivo neste ensaio é expor os elementos da nova precariedade sa-
larial, que emerge no Brasil na década de 2000, e sua dinâmica sociome-
tabólica. Iremos apresentar as características territoriais dos novos locais
de trabalho, reestruturados e organizados a partir da lógica do trabalho flexível.
Este novo metabolismo social do trabalho, que atinge, em sua maioria, os jovens
trabalhadores, caracteriza-se não apenas pela precarização das relações de traba-
lho, mas também do homem-que-trabalha, no sentido de degradação da saúde dos
trabalhadores e trabalhadoras.
A nova precariedade salarial, que constitui a condição de proletariedade no sé-
culo XX, é compartilhada, tanto pelos proletários estáveis e com garantias, quanto
pela massa flutuante de trabalhadores instáveis, que alguns autores denominam
“precariado”, camada social da classe que cresceu nas últimas décadas por conta
das políticas de flexibilização das relações de trabalho.
O precariado é constituído, hoje, por jovens empregados e desempregados
do novo mundo do trabalho, recém-graduados e com alto nível de escolaridade,
mas que não conseguem inserir-se em relações laborais estáveis (por exemplo, eles
compõem a maioria dos trabalhadores pobres que crescem na Europa). Uma de
suas características candentes é a invisibilidade social, tendo em vista que estão
incorporados em formas atípicas e instáveis de contratação, que disfarçam as re-
lações empregatícias. Além disso, não possuem representação sindical, o que os
coloca à margem da camada estável do proletariado organizado.
É importante salientar que o precariado não constitui uma classe social, mas
sim, uma camada social do proletariado, constituida pelo contingente do prole-
tariado, isto é, a grande massa destituída de propriedade, que está desempregada
ou inserida em relações de trabalho instáveis (trabalho temporário, a termo). A
inserção laboral do precariado expõe a dissolução da relação de emprego que ca-
racterizou a cidadania salarial, construída no pós-guerra sob o Estado de Bem-
CAPÍTULO 1
12
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
pouco expressivas na época, elas aumentaram nas últimas décadas nos locais de
trabalho reestruturados das grandes empresas. Portanto, em termos relativos e ab-
solutos, cresceu a presença de trabalhadores assalariados precários “formalizados”
nos locais de trabalho reestruturados (Guimarães, Hirata e Sugita, 2010; Druck e
Franco, 2007).
Na década de 2000, os traços de precariedade laboral, no interior do núcleo
formal do mercado de trabalho no Brasil, alargaram-se em termos relativos e ab-
solutos, embora tenham reduzido, ao mesmo tempo, a informalidade laboral por
conta do crescimento do emprego com carteira assinada.
O crescimento das modalidades de contratação atípicas no Brasil na década de
2000 aponta para aquilo que Robert Castel denominou de corrosão da condição
salarial (Castel, 1995). É claro que as contratações atípicas possuem, em termos
quantitativos, pouca expressividade no conjunto do mercado de trabalho formal
no Brasil, que expandiu na década de 2000 por meio do crescimento dos con-
tratos por tempo indeterminado. Entretanto, a precariedade do emprego tende a
ser ocultada, por um lado, pelo alto índice de rotatividade da força de trabalho,
tendo em vista as demissões imotivadas; e por outro, pela invisibilidade estatística
de determinados espectros da precariedade contratual no interior do mundo do
trabalho (por exemplo, as estatísticas sociais que não conseguem expor as relações
de emprego disfarçadas, tais como a contratação como Pessoa Jurídica (PJ), por
cooperativas de contratação de trabalho, estágios, “autônomos”, trabalho em do-
micílio, teletrabalho, etc).
Entretanto, a nova precariedade salarial no Brasil implica não apenas a pre-
cariedade do emprego – com a presença de modalidades atípicas de contratação
salarial – mas também, a precariedade do trabalho no sentido da “precarização do
homem-que-trabalha” (Alves, Vizzaccaro-Amaral e Mota, 2011). Nesse caso, tra-
ta-se do desgaste mental do trabalho dominado, que atinge tanto contingentes de
trabalhadores e trabalhadoras “estáveis”, com emprego por tempo indeterminado
e, portanto, cobertos pela legislação trabalhista; quanto contingentes de trabalha-
dores e trabalhadoras assalariados “precários” no interior do mercado formal de
trabalho (Seligmann-Silva, 1994).
Na literatura sociológica europeia tem-se discutido muito a precariedade no
emprego caracterizada pelos “bad jobs” ou “poor jobs”, situação laboral que se
opõe ao contrato de trabalho tradicional que assegura um trabalho a tempo in-
tegral, com duração indeterminada e com proteção social. Trata-se, deste modo,
do trabalho precário (ou emprego precário) propriamente dito, que se caracteriza
pela insegurança no emprego, perdas de benefícios sociais, salários baixos e des-
continuidade nos tempos de trabalho. Como observa Sá, “o trabalho precário se
13
CAPÍTULO 1
14
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
15
CAPÍTULO 1
16
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
17
CAPÍTULO 1
Quadro 1
Morfologia social do novo (e precário) mundo do trabalho
(década de 2000)
Complexo de máquinas informacionais
A rede digital permeando trabalho, cotidiano e consumo (geração Y)
Novos métodos de gestão e organização do trabalho
(espírito do toyotismo e “captura” da subjetividade da força de trabalho)
Coletivos geracionais híbridos do trabalho reestruturado
Planos de Demissão Voluntária e downsizing
Novas relações flexíveis de trabalho
novas formas de contratação, remuneração salarial e jornada de trabalho
Podemos expor, como traços significativos das novas relações de trabalho fle-
xível, que compõem a condição salarial que se impõe sobre os novos operários e
empregados contratados na década de 2000, os seguintes elementos:
1. Remuneração flexível (PLR)
2. Jornada de trabalho flexível (banco de horas)
3. Contrato de trabalho flexível (contrato por tempo determinado/tempo
parcial, terceirização, etc).
18
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
como não será devido pagamento das horas aumentadas. Segundo as empresas,
este sistema evita demissões nos períodos de baixa produção, além do pagamento
da extraordinariedade das horas excedidas em períodos de alta produção. A com-
pensação deve ocorrer no prazo do acordo, que poderá ocorrer dentro de um ano.
O banco de horas foi regulamentado pela Lei nº 9.601/98 que alterou o parágrafo
2º, acrescentou o parágrafo 3º no artigo 59. da CLT (Consolidação das Leis do Tra-
balho) e o Decreto nº 2.490/98 e Medida Provisória 2.164-41 de 24/08/2001 – DOU
(Diário Oficial da União), de 27/08/2001.
A flexibilização da jornada de trabalho por meio do banco de horas colocou o
operário ou empregado como “homem inteiro”, à disposição da dinâmica laboral
do capital. Como observam Capela, Neto e Marques, “o empregador pode sobre-
-explorar sua força de trabalho nos momentos de alta produção, sem remunerar o
trabalhador, compensando com folgas as horas trabalhadas em excesso, nos mo-
mentos de baixa produção.” (Capelas, Neto e Marques, 2010). Deste modo, o tem-
po de vida é colonizado, mais ainda, pelo tempo de trabalho.
19
CAPÍTULO 1
1 Contrato de trabalho por prazo determinado é forma de contratação realizada mediante acor-
do ou convenção coletiva de trabalho, através da qual as partes firmam antecipadamente a
data de início e término do pacto laboral. Tem como fundamento legal a Lei nº 9.601, de 21 de
janeiro de 1998, regulamentada pelo Decreto nº 2.490, de 04 de fevereiro de 1998. O contrato
pode ser prorrogado inúmeras vezes, desde que a soma de todos os prazos não ultrapasse a dois
anos, sem que ele se torne por prazo indeterminado. A adoção do contrato de trabalho por
tempo/prazo determinado tem algumas condicionalidades, como o número de trabalhadores
assim contratados deve ser inferior a 50% da média mensal dos que foram admitidos no esta-
belecimento por tempo indeterminado, nos últimos seis meses anteriores à publicação da lei
(22.01.98). A lei deverá gerar, obrigatoriamente, aumento de postos de trabalho.
2 Contrato de trabalho em regime de tempo parcial (“part-time job contract” ou “part-time job
agreement”, como é conhecido na Europa) aquele cuja duração não exceda a vinte e cinco ho-
ras semanais. Tem como fundamento legal a Medida Provisória 2.164-41 de 24/08/2001-DOU
27/08/2001, que acrescentou o artigo 58-A na CLT. No caso dos contratos novos, basta sim-
plesmente contratar, com salário proporcional à sua jornada, em relação aos empregados que
cumprem, na mesma função, tempo integral. No caso dos contratos já existentes, para os atuais
empregados, a adoção do regime de tempo parcial será feita mediante opção manifestada pe-
rante a empresa, na forma prevista em instrumento decorrente de negociação coletiva.
20
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
a contratação da força de trabalho. Krein observa que tais formas atípicas de con-
tratação podem ser classificadas em cinco grupos:
1. As formas clássicas e históricas do caso brasileiro são aquelas modalidades
de contratações atípicas destinadas à substituição eventual ou provisória de
trabalho e as contratações de trabalho sazonais (o contrato de safra, o contra-
to temporário via agência de emprego e contrato por projeto ou por tarefa).
2. As formas introduzidas a partir de 1990, no bojo de uma concepção de
“estimular” a contratação por meio de uma redução de custos e da am-
pliação das facilidades de despedir (contrato temporário, o do primeiro
emprego e o parcial).
3. Contratos atípicos, visando facilitar a inserção de grupos com maior vulne-
rabilidade no mercado de trabalho (“contrato aprendiz”, do primeiro empre-
go para jovens e contratos de trabalho aos portadores de deficiência física).
4. Contratos de trabalho destinados a prevenir possíveis passivos trabalhis-
tas no futuro, tais como o trabalho voluntário.
5. As modalidades de contratações atípicas de servidores públicos não-efeti-
vos, demissíveis, e os contratados por tempo determinado.
3 Na União Europeia, em 2010, cerca de 14,4% dos trabalhadores assalariados possuía víncu-
los de trabalho precário. Entretanto, Espanha, Polônia e Portugal estavam acima da média
21
CAPÍTULO 1
europeia, com valores do índice de precariedade laboral acima de 20% (Matos, Domingos e
Kumar, 2011; Standing, 2011).
4 Contrato de trabalho temporário é uma forma de contratação que se apresenta como alterna-
tiva econômica, para as empresas que venham a necessitar de mão de obra para complemen-
tar o trabalho de seus funcionários, em situações excepcionais de serviço, a fim de atender
a uma necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente (traba-
lhador efetivo), como, por exemplo, cobertura de férias, licença maternidade, licença saú-
de, etc. Atende também acréscimo extraordinário de serviço, como “picos de venda” ou de
“produção”, tarefas especiais não-regulares, lançamentos de produtos, campanhas promo-
cionais, etc. Este tipo de contratação possibilita redução do trabalho administrativo, rápida
adaptação às alterações do mercado e maior flexibilidade na mobilização e desmobilização
da força de trabalho necessária. O contrato de trabalho temporário (prestação de serviço
temporária) é firmado entre uma empresa de trabalho temporário e a empresa tomadora
dos serviços. Logo, a empresa tomadora dos serviços não mantém vínculo de emprego com
o trabalhador temporário, isto porque, o contrato de trabalho é celebrado entre a empresa
de trabalho temporário e o trabalhador. O fundamento legal do trabalho temporário é a Lei
6.019 de 03 de janeiro de 1974. Decreto nº 73.841. Pela lei, o trabalhador temporário não
pode ganhar menos do que o trabalhador efetivo que ele está substituindo. Não há limite de
contratações, desde que sejam atendidas as exigências descritas acima, de 13 de março de
1974.Instrução Normativa nº 3 de 22/04/2.004. A contratação de mão de obra temporária se
dá através das empresas de trabalho temporário, que deverão estar devidamente registradas
no Departamento de Mão de Obra do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, tendo
como principal responsabilidade, remunerar e assistir seus trabalhadores temporários no
que tange aos direitos estabelecidos em lei.
22
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
23
CAPÍTULO 1
sem que metade tenha atingido três meses. Quase 80% dos desligamentos tiveram
menos de dois anos duração.
Apesar do fluxo de despedidos e contratados na década de 2000 ter se alterado
para melhor nas grandes empresas reestruturadas da indústria e serviços finan-
ceiros, em pólos dinâmicos da economia brasileira, em comparação, por exemplo,
com a década de 1990, a taxa de rotatividade do trabalho no Brasil ainda é elevada.
Ao mesmo tempo, observou-se, nos locais de trabalho reestruturados das grandes
empresas, o crescimento relativo de operários e empregados vinculados a modali-
dades de contratação atípicas não visíveis na estatística da RAIS. Como observam
os pesquisadores do CESIT, “o não crescimento da contratação temporária não
eliminou a possibilidade de ampliação de outras formas de contratação que não
são captadas pela RAIS, a terceirização, a contratação como Pessoa Jurídica, o tra-
balho estágio, as cooperativas de mão de obra”.
Na década de 2000, observamos no Brasil o crescimento do setor de serviços
que, de certo modo, oculta o crescimento da nova precariedade salarial, expres-
sa, no crescimento de modalidades de trabalho precário que disfarçam o vínculo
empregatício, como a contratação como Pessoa Jurídica (PJ), e principalmente no
crescimento da terceirização, que aumentou em termos absolutos, apesar de ter
diminuído em termos relativos na década de 2000, comparando-se com a déca-
da anterior (na década de 2000, a terceirização mudou de perfil, abrangendo não
apenas a atividade-meio, mas também a atividade-fim, atingindo, deste modo, o
núcleo central da organização empresarial).
As modalidades de contratação atípicas ou os modos de trabalho precário que
disfarçam relações de emprego assalariado são invisíveis nas estatísticas sociais.
Elas representam a fragilização dos vínculos empregatícios de longa duração, um
dos traços do emprego padrão que o capitalismo global flexibilizou, no bojo da
nova precariedade salarial. Portanto, a aparente dinâmica do crescimento de con-
tratos de emprego por tempo indeterminado e a formalização do mercado do tra-
balho, na década de 2000, tendem a ocultar a intermitência e redundância salarial
no Brasil.
Deste modo, a nova precariedade salarial é caracterizada pela constituição de
um trabalhador coletivo ou complexo vivo do trabalho social mais complexifica-
do, fragmentado e heterogeneizado. Como observou Antunes: “Complexificou-
-se, fragmentou-se e heterogeneizou-se ainda mais a classe-que-vive-do-trabalho.
Pode-se constatar, portanto, de um lado, um efetivo processo de intelectualização
do trabalho manual. De outro, e em sentido radicalmente inverso, uma desquali-
ficação e mesmo subproletarização intensificadas, presentes no trabalho precário,
informal, temporário, parcial, subcontratado, etc. Se é possível dizer que a primei-
24
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
25
CAPÍTULO 1
26
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
vação humano-genérica do sujeito humano. Por exemplo, em estudo feito por pes-
quisadores britânicos, observou-se que trabalhar demais não aumenta só o cansaço,
mas também o risco de desenvolver depressão (Virtanen M, Stansfeld S.A, Fuhrer R,
Ferrie J.E, Kivimäki M, 2012). Nas últimas décadas, o trabalhar demais disseminou-
-se com o capitalismo flexível. Na medida em que os novos métodos de gestão do tra-
balho flexível provocam o envolvimento estimulado de operários e empregados em
longas jornadas de trabalho (overtime worked), em sua maioria, trabalho estranhado,
opera-se efetivamente a “captura” da subjetividade do trabalho vivo pelo capital, e
constitui-se o que denominamos de fenômeno da “vida reduzida” com implicações
sociometabólicas - crise da vida pessoal, crise da sociabilidade e crise de autoreferên-
cia (Alves, Vizzaccaro-Amaral e Mota, 2011).
Em seu livro, Richard Sennet contrasta o trabalho fordista, burocrático, rotini-
zado e com uso disciplinado do tempo, com o trabalho flexível, incerto e inconstan-
te com relação aos laços de emprego e moradia. O que ele denomina de “corrosão
do caráter” ocorreu na medida em que o trabalho capitalista incorporou a incerteza
e inconstância do trabalho flexível. Entretanto, ao invés de abolir a rotina do tra-
balho, o trabalho flexível constituiu uma nova rotinização laboral que repõe, sob o
patamar da experiência salarial desterritorializada, as clivagens sociais do trabalho
capitalista de cariz estranhado, ou seja, (1) o trabalho insatisfatório, esvaziado de
conteúdo; (2) a remuneração salarial insuficiente para responder às expectativas
de satisfação dos carecimentos sociais; e (3) o despotismo laboral de cariz autor-
reflexivo (ao invés da chefia autocrática da linha de montagem acoplada à esteira
mecânica do trabalho fordista-taylorista, temos o despotismo auto-reflexivo nos
locais de trabalho, com o trabalho toyotista instaurando equipes de trabalho, onde
trabalhadores e trabalhadoras tornam-se “patrões de si mesmo”) (Antunes, 1999).
Portanto, o trabalho flexível capitalista alterou o sentido da experiência sala-
rial, na medida em que transtornou as duas dimensões essenciais do ser genérico
do homem como sujeito humano: (1) a dimensão territorial dos vínculos trabalho-
-vida e (2) a dimensão dos laços afetivos com o outro e laços de autorreferência
(o território intangível do self). Ao mesmo tempo, a nova experiência salarial do
trabalho flexível se constituiu nas condições da sociedade burguesa, sob a domi-
nância plena do fetichismo da mercadoria (Marx, 1985).
27
CAPÍTULO 1
28
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
Referências bibliográficas
ALVES, Giovanni. (1995). “Nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do
trabalho–o Brasil nos anos noventa”. In: TEIXEIRA, F.J.S. e
(2000) O Novo (e Precário) Mundo do Trabalho: Reestruturação produtiva e crise do sindica-
lismo. São Paulo: Boitempo Editorial.
BERNARDO, Márcia Hespanhol (2009) Trabalho Duro, Discurso Flexivel – Uma análise das
contradições do toyotismo a partir das vivências de trabalhadores. São Paulo: Expressão Po-
pular.
BECK, Ulrich (2000) Um nuevo mundo feliz – La precariedad del trabajo em La era de la glo-
balización. Barcelona: Paidós.
BIHR, Alain (1998) Da grande noite à alternativa – O movimento operário europeu em crise,
São Paulo: Editora Boitempo.
BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Éve (2009) O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Mar-
tins Fontes.
CAPELAS, Estela; NETO, Miguel Huertas e MARQUES, Rosa Maria (2010). “Relações de
Trabalho e Flexibilização” In MARQUES, Rosa Maria e FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen
(Org.) O Brasil sob a nova ordem – A economia brasileira contemporânea: Uma análise dos
governos Collor a Lula. São Paulo: Editora Saraiva.
29
CAPÍTULO 1
CARDOSO, Adalberto (2000). Trabalhar, verbo transitivo: destinos profissionais dos deserda-
dos da indústria automobilística, Rio de Janeiro: Editora FGV.
CARDOSO, Ana Claudia Moreira (2009) Tempos de trabalho, Tempos de Não Trabalho – Dis-
putas em torno da jornada do trabalhador. São Paulo: Annablume.
CASTEL, Robert (1995). As metamorfoses da questão social – Uma crônica do salário, Editora
Vozes: Rio de Janeiro.
CHAHAD, José Paulo Zeetano (2001). Trabalho flexível e modalidades especiais de contrato
de trabalho: evidências empíricas no caso brasileiro. São Paulo: MTE/FIPE.
CHAHAD, José Paulo Zeetano e CACCIAMALI, Maria Cristina (Org.) (2003) Mercado de
Trabalho no Brasil – novas práticas trabalhistas, negociações coletivas e direitos fundamentais
no trabalho (2003). São Paulo: LTr.
DRUCK, Graça e FRANCO, Tania (Org.) A Perda da razão Social do Trabalho – terceirização
e precarização. São Paulo: Boitempo.
GUIMARÃES, Nadya; HIRATA, Helena; SUGITA, Kurumi (coord.). (Org.) (2010). Trabalho
flexível, empregos precários? Uma comparação Brasil, França e Japão. São Paulo: EDUSP
IPEADATA – www.ipea.gov.br
LEITE, M. ARAUJO, A.M.C.. (Org.) (2009). O trabalho reconfigurado. 1ª ed. São Paulo: Anna-
blume
LIMA, Jacob Carlos (Org.) (2007) Ligações Perigosas – Trabalho flexível e Trabalho Associado.
São Paulo: Annablume.
30
Juventude e nova precariedade salarial no Brasil: elementos da condição proletária no século XXI
PAUGAM, Serge (2003) A desqualificação social-ensaio sobre a nova pobreza. Porto, Porto Edi-
tora.
PASTORE, José (1994) Flexibilização dos Mercados de Trabalho e Contratação Coletiva, São
Paulo: LTr.
POCHMANN, Marcio (2008) O emprego no desenvolvimento da nação. São Paulo: Editora Boi-
tempo.
SOUZA, N. A. (2007) Economia brasileira contemporânea de Getúlio a Lula. São Paulo: Atlas.
ROSS, Andrew (2009) Nice work If you can get it – Life aind labour in Precarious Times. New
York/London: New York University Press.
31
CAPÍTULO 1
TAPSCOTT, Don (1999). Geração Digital – A crescente e irreversível ascensão da geração Net.
São Paulo, Makron.
32
CAPITULO 2
Trabalho, precariedade e
movimentos sociolaborais1
Elísio Estanque e Hermes Augusto Costa
1. Introdução
A
s relações de trabalho e os movimentos sociais são hoje, porventura como
nunca, dois campos de estudos decisivos da sociologia contemporânea.
Apesar de serem temas que podem ser tratados autonomamente, em con-
texto de intensificação das medidas de austeridade, faz, porém, todo o sentido
pensar neles de modo articulado. É, de resto, difícil falar em crise global do capi-
talismo, em crise do emprego, em crise dos modelos de negociação coletiva, etc,
sem falar nas estratégias de resposta das cidadãs, dos cidadãos e da sociedade, das
“velhas” organizações sindicais ou das “novas” organizações, movimentos e redes
sociais, que estão a emergir um pouco por todo o mundo, em luta pelo direito ao
emprego e a um futuro digno, ao mesmo tempo que promovem novas agendas e
repertórios políticos mais ou menos radicais. Como se sabe, o atual panorama de
profunda crise económica, que, desde há várias décadas, tem vindo a atingir em
especial a Europa e o seu welfare state, está a ter impactos devastadores no campo
do emprego e das políticas sociais. Na sua origem está o modelo neoliberal e os
efeitos de um mercantilismo desregulado e global que, além de questionar o “mo-
delo social europeu”, empurra amplos setores da força de trabalho – com destaque
para as camadas mais jovens, qualificadas e também para o setor feminino – para
o emprego precário e para o desemprego de longa duração.
O presente texto situa-se neste campo e procura discutir algumas das princi-
pais transformações sociais que vêm ocorrendo no mundo laboral, tentando per-
ceber que tipo de respostas e desafios podem ser pensados a partir da experiência
dos movimentos sociolaborais do período mais recente. Assim, a primeira parte
1 O presente texto foi publicado em Portugal, no livro coordenado por Sara Falcão Casaca
(Org.) (2012), Mudanças Laborais e Relações de Género: novos vetores de (des)igualdade. Lis-
boa/Coimbra: Almedina, tendo igualmente sido publicado em língua inglesa em “Labour
relations and social movements in the 21st century”, in Erasga, Denis (Ed.) (2012), Sociological
Landscapes: Theories, Realities and Trends (ISBN 979-953-307-511-1). Rijeka/Croacia: IN-
TECH/ Open Acess Publishing.
CAPÍTULO 2
34
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
35
CAPÍTULO 2
2 Para uma análise deste fenómeno que, em Portugal, rondará as 900.000 pessoas, cf. AAVV
(2009).
3 Estima-se que em Portugal o peso da economia informal represente cerca de ¼ do PIB
português. Como assinalam Dornelas et al. (2011: 16), o peso do trabalho não declarado
apresenta sobretudo motivações mais económicas do que sociais e atinge tanto mais as di-
ferentes categorias quanto mais distantes estas se encontram do emprego típico e protegido.
Além disso, integra uma parte (16%) não remunerada do trabalho realizado no setor formal
da economia formal.
4 Para uma análise mais desenvolvida de tais teses, cf. Toni (2003).
36
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
de em fixar os laços sociais (Claus Offe; Jeremy Rifkin; Ulrich Beck; Dominique
Méda). O trabalho tornou-se um bem cada vez mais escasso, mas isso não só não
lhe retirou importância como realçou o seu papel enquanto fator de afirmação de
dignidade de direitos humanos. Mesmo considerando as virtualidades da socieda-
de informacional (Manuel Castells), a já referida fragmentação e volatilidade dos
processos e formas de trabalho e o carácter “pós-industrial” das sociedades oci-
dentais, importa sublinhar, acompanhando instituições como a OIT (Organiza-
ção Internacional do Trabalho), que “o trabalho não é uma mercadoria” e que não
há alternativa à civilização do trabalho, ainda que as suas formas se revelem cada
vez mais instáveis e multifacetadas. É indubitável que o trabalho assalariado se
tornou palco do individualismo negativo, de precariedade e vem perdendo consis-
tência, estabilidade e até dignidade. Mas como muitos académicos têm chamado
a atenção, o trabalho permanece no centro dos combates sociais e da luta política
atual. Importa por isso redescobrir e reforçar o seu papel enquanto cimento da
sociedade, isto é, como espaço decisivo na defesa da coesão social e do exercício
da cidadania, revitalizando os mecanismos de diálogo e os consensos por meio de
um novo contrato social que consolide a democracia (Castel, 1998; Santos, 1998;
Ferreira, 2009 e 2012)5.
No caso particular das mulheres, apesar de possuírem um elevado peso no
mercado de trabalho português e da sua presença ser maioritária entre a popu-
lação empregada que completou o ensino secundário e superior, continuam a ser
vítimas de segregação no campo profissional, o que se comprova pela sua menor
presença nas categorias profissionais mais qualificadas. Considerando as percenta-
gens segundo o sexo por referência ao respetivo peso entre os/as trabalhadores/as
com níveis de educação mais elevados, verifica-se que enquanto 71,6% dos homens
nessa condição pertencem àquelas categorias (quadros médios e superiores), apenas
54,6% das mulheres encontravam-se em posições idênticas em 2005 (Rosa, 2008).
Quando se cruza a variável sexo com os salários e os tempos de trabalho, cons-
tatamos que o aumento da representatividade feminina no mercado de trabalho,
por comparação com o sexo masculino, ainda é sinónimo de desigualdade em
termos de proveitos do trabalho6. Como assinalam Rosa e Chitas (2010: 70), apoia-
dos na base de dados PORDATA7, conserva-se uma diferença de ganhos médios
5 Nos termos de tal contrato: i) o trabalho deve ser democraticamente partilhado (o reforço
de labour standards é crucial a este respeito); ii) o seu polimorfismo deve ser reconhecido
(é preciso um patamar mínimo de inclusão para as formas atípicas de trabalho); iii) e o
movimento sindical deve ser reinventado (quer atuando em diferentes escalas e não apenas
na local/nacional, quer funcionando como alternativa civilizacional).
6 Para uma análise mais aprofundada, veja-se Ferreira (2010).
7 www.pordata.pt
37
CAPÍTULO 2
entre homens e mulheres, com vantagem para o sexo masculino, ainda que essa
vantagem esteja a diminuir ao longo dos anos. Em 1985, enquanto um homem ga-
nhava, em média, 186 euros, a mulher ficava pelos 136 euros (mais 37% para eles).
Atualmente, essa diferença é de 28% a menos, para elas. A diferença de ganhos
médios entre homens e mulheres – vantajosa para os homens – que trabalham por
conta de outrem é, assim, a regra, qualquer que seja o nível de qualificação e para
praticamente todos os setores de atividade (em 2008, as exceções são os setores
da “construção” e dos “transportes e armazenagem”, onde os ganhos médios das
mulheres são superiores aos dos homens).
Ao mesmo tempo, é interessante notar o ritmo de feminização em categorias
particulares da classe média (ao contrário do setor operário e dos assalariados
agrícolas), sendo isso muito evidente em diversas profissões, mas mais acentua-
do no caso dos/as empregados/as executantes, funcionários/as administrativos/as,
professores/as, enfermagem, serviço social, etc, a ilustrar como as questões de gé-
nero (ou de desigualdade sexual) são indissociáveis dos processos de estruturação
e de segmentação geral do mercado de trabalho (Grusky, 2008; Crompton, 2009).
Os/as jovens e as mulheres são, na verdade, segmentos sociais onde as diferen-
ças de oportunidades continuam a ser flagrantes, sendo portanto categorias atra-
vés das quais as novas desigualdades têm vindo a consolidar-se, o que é manifesto
em indicadores como os índices de desemprego, de precariedade, as diferenças en-
tre os níveis salariais e as oportunidades de emprego. Segundo relatórios recentes
do Observatório das Desigualdades do ISCTE/IUL, entre os/as trabalhadores/as
com o ensino básico, a discrepância salarial entre os sexos é de 13,5% (em benefício
dos homens), evoluindo para 26,5% nos que possuem o ensino secundário com-
pleto e aumentando para 27,2% na camada da força de trabalho com frequência do
ensino superior. E é também nestes setores que a diferença salarial entre homens
e mulheres mais se agrava (Carvalho, 2011; veja-se também Ferreira, 2010). Isto
evidencia bem como os processos de mudança, apesar das importantes conquistas
que trazem consigo no plano das qualificações escolares e competências sociopro-
fissionais, são, em geral, indutores de novas dinâmicas de desigualdade, que pare-
cem obedecer a uma permanente readaptação, mas ao mesmo tempo são dotadas
de grande capacidade de resiliência.
38
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
anos, em especial na Europa. É claro que os sistemas de relações laborais (as con-
dições de trabalho, a legislação laboral, a contratação coletiva, etc.) não são uni-
formes entre os países da UE, mas em diversos países são identificáveis tendências
de degradação que atingem com maior intensidade os segmentos mais pobres e
vulneráveis, em particular os jovens e as mulheres.
Por exemplo, no campo dos rendimentos do trabalho, os cortes entre os/as
funcionários/as públicos/as das economias mais fragilizadas (Grécia, Irlanda e
Portugal são alguns dos exemplos mais referidos no quadro da UE), associados
a todo um pacote de medidas de liberalização e “ajustamento” em benefício do
capital (e contra o trabalho) constituem um enorme recuo no campo dos direitos
sociais. No ano de 2011 (o mesmo sucedendo em 2012), no que concerne ao caso
português, importa mencionar os cortes salariais na função pública (até 10%) –
por sinal com a anuência controversa do Tribunal Constitucional (Costa, 2012)
–, a perda de metade do subsídio de Natal em 2011 e a retirada (inscrita no orça-
mento de Estado de 2012) dos 12º e 13º meses (a totalidade dos subsídios de férias
e de Natal) que haviam sido produto de conquistas de mais de 30 anos. Ora, estas
severas medidas de austeridade incidem sobre os/as trabalhadores/as do Estado e
sobre os/as pensionistas, produzindo implicações na vida de cerca de 3 milhões de
pessoas, em uma demonstração clara do retrocesso em curso na relação salarial,
sem esquecer que os impactos no setor privado constituem uma forte probabilida-
de. Parece evidente que se trata de um “ataque” direto ao campo laboral, uma des-
valorização dos custos do trabalho que se estende do próprio salário à segurança,
à dignidade profissional e à vida familiar da força de trabalho assalariada no seu
conjunto (Reis, 2009: 11).
Em contexto de crise económica, a importância do salário mínimo será, por
isso, ainda maior. É elementar ter em conta que o salário mínimo, além de uma
importante fonte de justiça social, pode também constituir-se como um apoio pe-
cuniário indispensável à sobrevivência de muitas famílias. Para as pessoas traba-
lhadoras, o risco de pobreza em Portugal é de 12% (sendo 2/3 do risco de pobreza
total), enquanto que na Europa é de 8% (sendo aqui também metade do risco de
pobreza total), o que é um indicador de que, em Portugal, os salários são baixos
para fazer face a situações de pobreza (Dornelas et al., 2011: 18; Caleiras, 2011). Tal
como os salários, os contratos a prazo apontam igualmente o caminho da precari-
zação. De novo tendo em conta a realidade laboral portuguesa, entre 1999 e 2007,
verificou-se um aumento da probabilidade de novos contratos serem celebrados a
termo e mantidos nessa situação durante mais tempo. Pela dinâmica de entrada
na vida ativa, este fenómeno afeta particularmente os/as trabalhadores/as jovens,
mas tem-se estendido a todas as idades. Além disso, no setor dos serviços a flexi-
bilização tem sido bem evidenciada através do recurso aos contratos a prazo, pos-
39
CAPÍTULO 2
sibilitando uma elevada rotação de emprego8. Ora, “esta excessiva rotação reduz
os incentivos ao investimento em educação e formação por parte das empresas e
dos/as trabalhadores/as, e acentua a polarização do mercado de trabalho, afetando
negativamente a acumulação de capital humano da economia” (Reis, 2009: 12). No
seu conjunto, em 2010, os contratos a prazo abrangem 23,2% dos/as assalariados/
as, em especial jovens com níveis de escolarização elevados.
Na última década, os postos de trabalho em regime de contratos permanentes
diminuíram ao mesmo ritmo em que aumentaram os contratos a prazo. Os valo-
res do emprego precário (se somarmos os contratos a termo, os recibos verdes, os/
as trabalhadores/as temporários/as e o trabalho a tempo parcial) já se situam nos
cerca de 40% do emprego total. Este tipo de contrato cresceu progressivamente e
em todas as faixas etárias, sendo a geração dos jovens entre os 15 e os 24 anos (hoje
popularizada pelo nome de Geração à Rasca)9 a que mais sofre com isso, o que
acontece, de resto, em muitos outros países europeus (Estanque, 2012). Segundo
fontes oficiais, em 2010 havia 37,6% dos trabalhadores e das trabalhadoras, com
idades entre os 15 e 34 anos, em situação laboral de contratos a prazo, ao passo que
se considerarmos apenas o segmento etário dos 15 aos 24 anos, essa percentagem
já se aproximava dos 50% (INE, 2010; Carmo, 2010). Mas o problema do desem-
prego é hoje mais incontornável do que nunca. Segundo a OIT (ILO, 2011: 12), em
2010 o desemprego à escala global (apesar de alguma recuperação após a crise do
subprime em 2008) permaneceu em níveis muito elevados, situando-se na casa
dos 205 milhões, havendo mais 27,5 milhões de pessoas desempregadas em 2010
do que em 2007. Segundo estimativas do EUROSTAT, só na UE-27, em agosto de
2011, 22.785 milhões de homens e mulheres estavam desempregados/as (sendo de
15.739 milhões o número de pessoas desempregadas nos países da “zona euro”).
Em Portugal, o desemprego passou de 524.674 (10,1%), em dezembro de 2009, para
546.926 (11%), em dezembro de 2010. Nesta data (dezembro de 2010), a taxa de
desemprego na zona euro era de 10% e na UE-27 era de 9,6% (EUROSTAT, 2012a).
Em agosto de 2011, a percentagem de desempregados/as em Portugal situava-se
nos 12,3%, sendo na média da zona euro de 10%, e em dezembro desse ano atin-
giu os 13,6% (EUROSTAT, 2012b). As estatísticas mais recentes revelam ainda um
agravamento da taxa de desemprego, atingindo a barreira dos 15% e sendo agora
8 Mário Centeno, em entrevista ao Jornal Público, 7/02/2011. Ver ainda Centeno e Novo (2008:
146).
9 Desde o dia 12 de março de 2011 que esta camada de precários/as se autoidentifica como a
“Geração à Rasca”, devido à enorme manifestação (que reuniu 300.000 pessoas) convoca-
da por um grupo de jovens, através do Facebook, e que, segundo vários/as analistas, terá
marcado um momento de viragem nas modalidades de ação coletiva e afirmado um novo
fenómeno no cenário político nacional.
40
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
o terceiro valor mais elevado dos países da OCDE (a seguir à Espanha e à Grécia)
(OCDE, 2012).
Mas os números do desemprego obrigam-nos a colocar a ênfase quer na sua
duração, quer nos escalões etários, sendo os jovens (e mais qualificados) particu-
larmente afetados. Na verdade, parece notória uma tendência para o aumento do
desemprego, sobretudo ao nível do desemprego de longa duração10, o que não pode
desligar-se, como referimos anteriormente, da excessiva percentagem de emprego
precário em Portugal, que se caracteriza pela insegurança e pelas baixas remune-
rações. Além disso, no seio das empresas são evidentes baixos níveis de adaptabi-
lidade do emprego e do tempo de trabalho, o que vem potenciar despedimentos,
facilitar a contratação precária e dificultar a conciliação entre vida profissional e
familiar (Dornelas, 2009: 128-129).
No final de 2010, registava-se em Portugal o maior volume de desemprego jo-
vem de sempre, registando a camada etária entre os 15 e os 24 anos cerca do dobro
da média nacional (22%). De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE),
das 609.400 pessoas desempregadas no 3º trimestre de 2010, 285.400 eram jovens
com menos de 34 anos. E aqui certamente podemos incorporar o desemprego de
licenciados/as: se em 2000 o número de desempregados/as licenciados/as era de
83.000, em 2010 ele atingia os 190.000, ou seja, o problema tem vindo a agravar-
-se nos últimos anos, atingindo os 55 mil casos nesse ano, embora se saiba que
os licenciados auferem salários mais elevados e permanecem menos tempo sem
emprego ou em situação de trabalho precário. Entretanto, no primeiro trimestre
de 2011, a taxa de desemprego dos jovens (dos 15 aos 24 anos) foi de 27,8%; em
novembro de 2011, situava-se nos 30,7%, e no primeiro trimestre de 2012 atingiu
os 35,4% (EUROSTAT, 2012b; INE, 2012).
Acresce que a pressão generalizada para a flexibilização das relações laborais
– com incidência nos planos contratual, salarial ou das condições de trabalho –
tem sido sempre acompanhada de uma intensificação das formas de segregação
segundo o sexo. Se os/as trabalhadores/as em geral encontram-se em situação cada
vez mais vulnerável, as mulheres em particular são e sempre foram discrimina-
das, do campo laboral ao espaço doméstico, passando pela esfera pública e política
em geral. Por outras palavras, as tendências de fragmentação, desvalorização e
precarização do trabalho não deixam de transportar, e muitas vezes intensificar,
poderosos “mecanismos de segregação sexual associados à crescente flexibilização
da relação laboral” (Casaca, 2010: 285).
41
CAPÍTULO 2
42
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
43
CAPÍTULO 2
11 Coordenado por António Costa Pinto, Pedro Magalhães, Luís de Sousa e Ekaterina Gorbu-
nova, e cujos primeiros resultados foram divulgados no jornal Público de 19/01/2012.
44
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
força essas tendências no plano das atitudes, ao revelar que apenas 56% dos portugueses
e das portuguesas consideram que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de
governo” e que uma parte, reduzida mas significativa, de cidadãs/aos (15%) partilha a
ideia de que “nalgumas circunstâncias um governo autoritário é preferível a um sistema
democrático” (um valor que, cerca de dez anos antes, estaria nos 7%, segundo um dos
autores do estudo). Segundo a mesma investigação, a grande maioria das pessoas inqui-
ridas concorda com a afirmação de que “os políticos preocupam-se apenas com os seus
próprios interesses” (78% de concordância) e outras no mesmo sentido. Além disso, as
principais preocupações dos portugueses e das portuguesas vão, como seria de esperar,
para os problemas do desemprego (37%) e da pobreza e exclusão social (16%).
As grandes transformações que vêm ocorrendo nas últimas décadas no do-
mínio da economia têm evoluído no sentido de travar ou inverter o velho modelo
social europeu, que no passado foi considerado irreversível e exemplo a seguir em
outros continentes. Uma das razões pela qual o ponto a que chegámos é tão pre-
ocupante, prende-se com o facto de, uma vez mais, a esfera laboral e o acesso ao
emprego voltaram a estar no centro da controvérsia e do conflito social. Nos úl-
timos cinquenta anos, não só as economias e sistemas de emprego do Ocidente se
terciarizaram, como os modos padronizados e estáveis de exercício profissional se
desmantelaram ou estão em vias disso, como atrás vimos. Pode-se dizer que com
a estagnação do trabalho industrial e a consolidação do fordismo (no setor privado
e no público), o velho conflito laboral se “despolitizou” e aos poucos se tornou um
elemento “gerível” na estrita esfera produtiva. Em um certo sentido, assistiu-se a
um processo de institucionalização, em que o diálogo e a negociação substituíram
a velha luta operária e sindical, enfraquecendo a dinâmica de “movimento” dos
sindicatos. Ao longo de todo este tempo, o sindicalismo burocratizou-se em larga
medida, tornou-se mais “macio” e “dócil”, à medida que as suas bases de apoio
foram se reconvertendo do velho operariado para as novas classes médias “de ser-
viço” (Goldthorpe).
É nesse sentido que podemos afirmar que, durante décadas, a ação sindical se
“despolitizou” para dar lugar à “concertação social” e ao espírito corporativista.
Convém, entretanto, não esquecer que esse processo revelou que o sindicalismo,
além de reproduzir a burocracia e o corporativismo dos setores mais estáveis do
emprego, reproduziu do mesmo modo a prática patriarcal de segregação do acesso
das mulheres às posições de liderança das suas estruturas, apesar de alguma evo-
lução positiva verificada nos países da UE. No que diz respeito ao campo sindical,
as mulheres aumentaram a sua representação na última década, passando de 18,8%
(em 2004) para 22,7% (em 2009) a percentagem que ocupou posições nas direções
dos sindicatos, um peso, apesar de tudo, muito superior ao que se verifica no cam-
po do associativismo empresarial, onde a presença do sexo feminino evoluiu de
45
CAPÍTULO 2
uma representação de 7,7% (em 2004) para 11,7% (em 2009) nos órgãos dirigentes
das associações empresariais (EC, 2010). Por outro lado, importa ainda ter presente
a importância do trabalho doméstico, da prestação de serviços de substituição –
trabalho não pago –, cujo peso percentual no PIB (53%) é, segundo um relatório
recente da OCDE (OECD, 2011) - Society at a Glance -, o mais elevado dos países da
referida organização, ajudando a colocar o nosso país como um dos quatro países
da OCDE onde se trabalha mais horas, sendo que o trabalho não remunerado é
sobretudo realizado pela mulher. Significa isto, portanto, que quanto maior for a
ilegalidade e a informalidade, maior é, em regra geral, o volume de trabalho atribu-
ído à mão de obra feminina. Para além disso, como sabemos, as zonas de atividade
onde opera a economia paralela são essenciais para assegurar a acumulação e o
crescimento económico, bem como para conferir sustentabilidade aos segmentos
mais estáveis e protegidos onde ainda subsistem alguns direitos laborais, ou seja,
são parte integrante dos metabolismos do capital (Antunes, 1999, 2006).
O modelo social e de relações laborais português encontra-se hoje em uma
encruzilhada, em um momento em que acabámos de assistir à assinatura de um
Acordo de Concertação, fortemente condicionado pelo atual quadro de crise e
austeridade (aliás só possível ao abrigo do Memorando da Troika). Um acordo
que dividiu o país e o sindicalismo português e que, no conjunto de medidas nele
enunciadas (muitas delas genéricas e consensuais, mas outras muito concretas e
violentas), nota-se uma clara opção pelo modelo neoliberal. Basta lembrar a ênfase
na “flexibilidade” de horários, no “ajustamento” (por baixo) dos custos salariais,
na supressão de dias de férias e na facilitação geral dos despedimentos. Neste do-
mínio, não é apenas o campo sindical, mas a classe média e a sociedade, no seu
conjunto, que têm agora de gerir enormes sacrifícios e restrições por um período
à vista sem fim. Encontramo-nos em um ponto de viragem, de mudança de para-
digma no terreno económico e laboral (e mesmo na esfera política), mas ninguém
pode antever qual será o desfecho. Nem as vozes entusiastas do mercantilismo
mais liberal podem provar que “a sociedade vai absorver” – mais ou menos pa-
cificamente – essa ruptura no modelo de relações de trabalho e entrar em um
novo ciclo de retoma. Nem os críticos da agenda neoliberal estão seguros quanto à
capacidade de resposta da sociedade e dos movimentos sociais em travar a agenda
neoliberal hoje dominante em Portugal e na Europa.
Se, como vimos, a situação sociolaboral se degrada cada vez mais, pode-se
dizer que estão reunidas as condições para que o descontentamento dê lugar à
46
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
47
CAPÍTULO 2
48
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
49
CAPÍTULO 2
direitos sociais que o capitalismo selvagem, ontem como hoje, nunca quis reco-
nhecer. Porém, se o movimento operário foi um movimento de uma classe, outras
dinâmicas e formas de ação coletiva tiveram lugar, sobretudo a partir da segunda
metade do século XX, tendo como protagonistas outros segmentos e classes so-
ciais. Enquanto o sindicalismo esteve historicamente vinculado ao operariado, os
novos movimentos sociais (NMS) dos anos sessenta podem mais facilmente ser
conotados com a classe média, embora sem esquecer que a noção de “classe média”
– além de dizer respeito a uma realidade contraditória e heterogénea – sempre foi
extremamente controversa (Estanque, 2003, 2012).
Em Portugal, o sindicalismo de serviços ganhou maior protagonismo a partir
dos anos oitenta do século passado. Foi nesse contexto que o papel da mulher na
esfera sindical em Portugal também se reforçou, uma vez que o crescimento da
classe média assalariada decorreu, em larga medida, à sombra do crescimento do
Estado social (Estanque, 2012), no qual se destacam os setores tradicionalmente
considerados “femininos”, ou seja, os setores da saúde e da educação, sobretudo,
que são aqueles onde a mulher portuguesa tem maior presença. Tal aparente “fe-
minização” só é pela quantidade, não pelo poder simbólico de cada um dos sexos
na atividade sindical. À semelhança do que acontece também em setores indus-
triais onde as mulheres têm forte presença (o têxtil, vestuário e calçado é um caso
exemplar), na maioria dos casos elas mantêm-se arredadas das direções sindicais,
dos lugares de chefia ou de direção das empresas. Aliás, é bom que se diga que,
ainda hoje, na universidade, o lugar das jovens estudantes permanece em um pla-
no subalterno, seja na participação ativa nas atividades associativas da AAC (As-
sociação Académica de Coimbra) ou dos núcleos de faculdade, seja nas posições
ocupadas em cargos secundários e em obediência aos tradicionais “clichés” que as
empurram para os pelouros das “relações públicas” ou da “pedagogia” (Estanque
e Bebiano, 2007).
50
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
efeito de contágio entre realidades que, embora muito distintas, estão expostas
aos mesmos auditórios globais. Além disso, a predominância de segmentos sociais
jovens, familiarizados com os novos meios informáticos de comunicação e que
florescem nos ambientes urbanos escolarizados, tendem a oferecer-se como um
terreno fértil para a estruturação de contraculturas, alimentadas por ingredientes
simbólicos e geracionais comuns a sociedades e continentes muito distintos. As
próprias concentrações nas praças sob a ameaça repressiva do poder favorecem
a consolidação de narrativas e identidades de rebeldia em rutura com a ordem
política vigente.
Os protestos recentes pareceram denunciar uma nova praxis política que de-
riva não só dos fatores estruturais e socioeconómicos mais amplos, mas também
dos ambientes das periferias urbanas onde crescem quer a exclusão e a delinquên-
cia, quer a rebeldia social e a dissidência política. É, pois, na dimensão humana e
afetiva, nas inúmeras vivências pessoais e experiências partilhadas – de conflito e
de comunhão com “o/a outro/a” – que florescem os ingredientes constitutivos de
mal-estar, mas ao mesmo tempo de sentido lúdico, tendentes a revelar a incapa-
cidade da sociedade de oferecer acolhimento e segurança aos grupos subalternos,
sendo essas necessidades resultado da incessante busca de partilha, de descoberta
e de reconhecimento enquanto atmosferas conviviais procuradas por milhares de
jovens em milhares de praças, como por exemplo na praça Tahrir no Cairo ao
longo do ano de 2011 (Coelho, 2011). Segmentos particulares, minorias étnicas,
culturas periféricas desrespeitadas, jovens que resistem a uma integração asséti-
ca, a uma ordem por vezes vazia de humanidade, constituem uma diversidade de
insatisfações que os empurra para a vivência da rua ocupada. Ainda que por pe-
ríodos curtos, tais contextos instituem-se como espacialidades de emancipação e
de encontro capazes de potenciar a mudança na sociedade. Jovens e menos jovens
vivem estas “experiências coletivas de conflito”, como se fossem constituídas por
ingredientes de uma violência difusa, com os seus intervenientes reduzidos a cír-
culos sociais de frágil implicação prática no mundo, impedidos de se autogovernar
a partir do seu interior “pela falta de uma ‘socialização’ na ‘estrutura de oportuni-
dades’ que foi criada” (Gadea, 2011: 94).
Quando no dia 19 de dezembro de 2010 o jovem tunisino Mohamed Bouazizi
se imolou pelo fogo em frente ao município da sua cidade (Sidi Bouzid), em revolta
contra a humilhação desferida pelas autoridades, que confiscaram os legumes e
produtos que decidiu comercializar na sua carreta (sem possuir licença), ninguém
imaginaria o poder de contágio dessa faísca. Ela desencadeou uma rebelião que
rapidamente se alastrou a diversos países e, em menos de um ano, já derrubou um
conjunto de governos e, em alguns casos, deu lugar a revoluções e conflitos violen-
tos. Com níveis de desigualdade social e de desemprego significativos (apesar dos
51
CAPÍTULO 2
índices de pobreza serem muito variados), aqueles países são ainda caracterizados
por uma população extremamente jovem (mais de metade abaixo dos 25 anos) e
com uma escolaridade elevada.
Contrariando um conjunto de estereótipos instalados desde o 11 de setembro
de 2001 (sobre a “guerra de civilizações” e o fundamentalismo islâmico) e pondo a
nu a chacota sobre a “rua árabe” – onde segundo muitos círculos do Ocidente ape-
nas era imaginável que se gritassem slogans fundamentalistas e antiocidentais –,
as multidões indignadas desses países conduziram, com a ajuda das comunicações
cibernéticas, ao desmoronamento de ditaduras. “No espaço de algumas semanas,
o mito da passividade dos povos árabes e da sua inaptidão para a democracia voou
em estilhaços pelos ares” (Gresh, 2011: 9). A Primavera Árabe mereceu uma enor-
me visibilidade global em blogues, jornais, televisões e redes sociais, apanhando
toda a gente de surpresa, tanto mais que os objetivos desta onda de protestos eram,
antes de mais, o derrube de tiranias e governos corruptos instalados no poder
desde há décadas. Em uma palavra, a juventude líbia, egípcia e tantos/as outros/as
lutaram por democracia e justiça social, mas quer a dimensão, quer a força polí-
tica desses acontecimentos, surpreenderam as opiniões públicas ocidentais ainda
perplexas. A aparente simpatia e vontade de assimilação dos valores políticos do
Ocidente, em um momento em que as democracias ocidentais e o projeto europeu
davam sinais de esgotamento e de perversão, não podiam deixar de parecer algo
anacrónico. Com efeito, o contágio dos valores democráticos, o desejo de liber-
dade nos países árabes ocorreu precisamente em um momento em que a Europa
mergulhava em uma terrível crise económica e financeira, colocando em causa a
solidez das democracias e ameaçando pôr fim ao welfare state que tanto poder de
atração exerceu sobre os povos do mundo.
A rapidez com que a informação se propaga e a visibilidade das imagens dos
acontecimentos em tempo real exponenciam o efeito mimético. Mas o rastilho só
pega fogo quando contém suficiente pólvora e o material inflamável está presente.
As causas sociais que subjazem às revoluções árabes não são obviamente as mes-
mas do descontentamento no mundo ocidental. No primeiro caso, a democracia
política não existia e, no segundo, a mesma deixou-se perverter e revelou-se inca-
paz de se conjugar com democracia económica. A defesa da coesão social, antes
assegurada pelo Estado social, está à beira do esgotamento. Convém todavia não
esquecer que a Europa é um puzzle de peças extremamente desiguais e que não
conseguem encaixar umas nas outras. Nas democracias mais tardias dos países
do sul da Europa (Portugal, Espanha ou Grécia), as experiências históricas de au-
toritarismo de Estado deixaram marcas profundas, pois a pulsão autoritária e o
centralismo do poder político continuaram vivos até tarde (mesmo após a queda
das respetivas ditaduras).
52
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
53
CAPÍTULO 2
8. Indignados e acampadas
54
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
55
CAPÍTULO 2
9. Conclusão
56
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
57
CAPÍTULO 2
Referências bibliográficas
AAVV (2009), Dois anos a FERVEr: Retratos da Luta, Balanço da Precariedade. Porto:
Afrontamento.
ALVAREZ, Sonia; Dagnino, Evelina; Escobar, Arturo (2000) Cultura Política nos Movi-
mentos Sociais Latino-Americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG.
ANTUNES, Ricardo (org.) (2006), Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo:
Boitempo,
BOLTANSKI, Luc e Chiapello, Ève (2001), Le Nouvelle Esprit du Capitalisme. Paris: Galli-
mard.
CALEIRAS, Jorge (2011), Para Além dos Números – As Consequências Pessoais do Desem-
prego. Trajectórias de Empobrecimento, Experiências Políticas (PhD in Sociology). Coim-
bra: Faculdade de Economia.
CARMO, Paulo Sérgio do (2000), Culturas de Rebeldia. A Juventude em Questão. São Pau-
lo: Senac.
58
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
COHEN, Jean L. e Arato, Andrew (1992), Civil Society and Political Theory. Cambridge:
MIT Press.
COSTA, Hermes Augusto (2006), “The old and the new in the new labor internationalism”,
in Santos, Boaventura Sousa (ed.), Another Production is Possible: Beyond the Capitalist
Canon. Londres: Verso, pp: 243-278.
COSTA, Hermes Augusto (2008), Sindicalismo global ou metáfora adiada? Discursos e prá-
ticas transnacionais da CGTP e da CUT. Porto: Afrontamento.
COSTA, Hermes Augusto (2010), “Austeridade europeia, protesto europeu: o valor das ma-
nifestações transnacionais”, Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), setembro, 24.
COSTA, Hermes Augusto (2012), “Cortar a direito por linhas tortas? O caso do acórdão
396/2011 do Tribunal Constitucional”, Ensino Superior, 43.
EC (2010), More Women in Senior Positions – Key to Economic Growth, Luxembourg: Pub-
lications Office of the European Union.
EHRENREICH, Barbara (2000), “Maid to Order. The politics of other women’s work”, in
Harper’s Magazine, April, pp. 59-70.
ERIKSON, Erik e Goldthorpe, John (1993), The Constant Flux. A Study of Class Mobility in
Industrial Societies. Oxford: Clarendon Press.
59
CAPÍTULO 2
ESTANQUE, Elísio (2007), “A questão social e a democracia no início do século XXI: par-
ticipação cívica, desigualdades sociais e sindicalismo”, Finisterra – Revista de Reflexão
Crítica, vol. 55/56/57: 77-99.
ESTANQUE, Elísio (2012), A Classe Média. Ascensão e Declínio. Lisboa: Fundação Fran-
cisco Manuel dos Santos/Relógio d’Água.
ESTANQUE, Elísio e Costa, Hermes (eds.) (2011), O Sindicalismo Português e a Nova Ques-
tão Social: crise ou renovação?, Coimbra: Almedina.
GADEA, Carlos (2011), “As experiências coletivas do conflito”, Revista Crítica de Ciências
Sociais, 92: 75-98.
GRESH, Alain (2011), “O que muda com o despertar árabe”. Dossier 06 “O Despertar do
Mundo Árabe”, Jornal Le Monde Diplomatique – Brasil, ano 1, julho-agosto 2011.
60
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
GRUSKY, David B. (2008), Social Stratification: Class, Race and Gender in Sociological
Perspective. Boulder: Westview Press.
HUWS, Ursula (2003), The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World, New
York: Monthly Review Press.
HYMAN, Richard (1994), “Changing trade union identities and strategies”, in Hyman,
Richard e Ferner, Anthony (eds.), New frontiers in European Industrial Relations. Oxford:
Blackwell, pp: 108-139.
HYMAN, Richard (2004), “An emerging agenda for trade unions?”, in Munck, Ronaldo
(ed.), Labour and Globalisation: Results and Prospects. Liverpool: Liverpool University
Press, pp: 19-33.
ILO (2011), Global Employment Trends 2011: The Challenge of a Jobs Recovery. Geneva:
International Labour Office.
JESSOP, Bob (1994) “Post-Fordism and the State”, in Amin, A. (ed.), Post-Fordism: A Read-
er. Cambridge: Blackwell, 251-279.
KOVÁCS, Ilona (2006), “As novas formas de organização do trabalho e autonomia no tra-
balho”, Sociologia, Problemas e Práticas, 52: 41-63.
LECCARDI, Carmen e Ruspini, Elisabetta (eds.) (2005), A New Youth?, Aldershot: Ashgate.
LIPIETZ, Alain (1992), Towards a New Economic Order. Posfordism, Ecology and Democ-
racy. Cambridge: Polity Press.
POLANYI, Karl (1980), A Grande Transformação: As Origens da Nossa Época. Rio de Ja-
neiro: Campus.
61
CAPÍTULO 2
REIS, José (2009), “Os caminhos estreitos da economia portuguesa: trabalho, produção,
empresas e mercados”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 85: 5-21.
ROSA, Maria João; Chitas, Paulo (2010), Portugal: Os Números. Lisboa: Fundação Francis-
co Manuel dos Santos.
ROSS, George e Martin, Andrew (1999), “European unions face the millennium”, in A.
Martin e G. Ross (eds.), The Brave New World of European Labor: European Trade Unions
at the Millennium. Nova Iorque: Berghahn Books, pp: 1-25.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1995), Toward a New Common Sense: Law, Science and
Politics in the Paradigmatic Transition. Londres: Routledge.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2005), Fórum Social Mundial: Manual de Uso. Porto:
Afrontamento.
SILVA, Rui Brites Correia da (2011), Valores e Felicidade no Século XXI: Um Retrato Socio-
lógico dos Portugueses em Comparação Europeia. Dissertação de Doutoramento. Lisboa:
ISCTE-IUL.
SKIDMORE, Paul e Bound, Kirsten (2008), The Everyday Democracy Index. Londres:
DEMOS.
STANDING, Guy (2009), Work After Globalization. Cheltenham: Edward Elgar Pu-
blishing.
THOMPSON, Edward Palmer (1987), A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra.
TOURAINE, Alain (1985), “An Introduction to the Study of Social Movements”, Social
Research, 52(4): 749-788.
TOURAINE, Alain (2006), “Na fronteira dos movimentos sociais”, Sociedade e Estado,
21(1): 17-28.
62
Trabalho, precariedade e movimentos sociolaborais
WADDINGTON, Jeremy (1995), “UK unions: searching for a new agenda”, Transfer __ Eu-
ropean Review of Labour and Research, 1 (1): 31-43.
WOMACK, James P.; JONES, Dan; ROOS, Daniel (1990), The Machine that Changed the
World, Nova Iorque: Harper Collins.
63
CAPITULO 3
Adalberto Cardoso
1. Introdução
N
os últimos anos, o Brasil parece ter consolidado sua posição de crível eco-
nomia emergente no radar dos mercados mundiais, em razão da combi-
nação pouco ortodoxa de altos níveis de crescimento do Produto Inter-
no Bruto, balança comercial favorável - levando ao acúmulo de grandes reservas
internacionais -, criação de postos de trabalho ao ponto de alguns economistas
qualificarem a situação atual como de “pleno emprego”, programas eficazes de
redução da desigualdade e da pobreza, investimentos públicos em infraestrutura
e políticas sociais; tudo isso secundado pela manutenção da espinha dorsal do pa-
cote macroeconômico neoliberal: austeridade fiscal, metas de inflação, autonomia
do Banco Central, câmbio livre e, muito especialmente, mercado livre de capitais,
que tem garantido fluxo constante da poupança mundial pelo mercado financeiro
nacional, embora ao custo da transferência líquida e desregulada da riqueza aqui
produzida para as mãos de grandes investidores e conglomerados financeiros, da-
qui e d’alhures.
Impossível deixar de reconhecer que as políticas sociais redistributivas e o cres-
cimento econômico tiveram impacto profundo sobre as oportunidades de vida e
trabalho no Brasil, atuais e futuras. A redução da pobreza representa um primeiro
e necessário passo no longo processo de retirada de milhões de pessoas do “reino
da necessidade”, o que pode, ao menos idealmente, abrir caminho para sua efetiva
incorporação à cidadania. A criação de empregos regulados constrói o lastro de
uma inscrição social ainda subordinada, já que o trabalhador continuará sob as
ordens de outro, mas certamente menos instável do que o ambiente revolto dos
mercados informais de trabalho. No mundo em que vivemos, acesso estável à renda
(do trabalho ou das políticas públicas de transferência) amplia sobremaneira os ho-
rizontes de planejamento de indivíduos e famílias, para além das carências básicas
de alimentação, saúde e moradia, com reconhecidos impactos duradouros sobre as
CAPÍTULO 3
66
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
2. Precariedade
2 A literatura sobre isso é vasta. Trabalho pioneiro é Oliveira (1972). Avaliei o tema em
Cardoso (2010).
3 A concentração da propriedade da terra é proverbial no Brasil, e não passou despercebida de
governantes e intelectuais ao longo da história. Em 1933, por exemplo, em discurso proferido na
Bahia (que visitava pela primeira vez) Getúlio Vargas reconheceu-a como um problema social.
Pregava a necessidade de os migrantes que abarrotavam as grandes cidades retorrnarem aos
campos, por meio de políticas públicas de sua fixação como pequenos proprietários, com o
que, aos poucos, “veríamos desaparecer os tratos incultos e latifundiários, substituídos pela
pequena propriedade, de vantagens sobejamente conhecidas, como fator poderoso de fartura e
enriquecimento” (Vargas, 1938: Vol. 2, p. 118). Vargas não usou o termo “reforma agrária”, mas
é disso que ele está falando. Em 1949, em livro clássico sobre coronelismo, Victor Nunes Leal
atribuiu à concentração fundiária um dos principais problemas sociais do País. E a reforma
67
CAPÍTULO 3
alguns poucos bens, baixos níveis de industrialização, altas taxas de migração ru-
ral-urbana, baixo investimento em educação, incapacidade de a economia urbana
gerar empregos suficientes para os migrantes, pobreza relativa do Estado vis-à-vis
às carências sociais em geral, que reduziram o escopo e a abrangência das políticas
de proteção social, dentre outros. A lenta emergência de um mercado de trabalho
urbano regulado, depois de 1930, atraiu massas de migrantes rurais miseráveis e
com altos níveis de analfabetismo (80% ou mais) em busca de melhores condições
de vida, ou do que eu chamei, em outro lugar, de “promessas dos direitos sociais
e trabalhistas” (empregos formais, acesso à previdência social e a serviços de edu-
cação e saúde), que as novas áreas urbanas foram simplesmente incapazes de uni-
versalizar. Como mostro em Cardoso (2010), entre 1940 e meados dos anos 1970,
a proporção de migrantes rurais excedeu em 2,3 vezes o número de empregos for-
mais criados no mundo urbano. Isso gerou uma pressão de oferta sobre o mercado
de trabalho, cujas consequências não foram debeladas até esta data.
Por outras palavras, a combinação de grandes fluxos populacionais e condições
precárias dos mercados de trabalho gerou uma inércia populacional de longo pra-
zo, caracterizada por altos níveis de pobreza, subemprego, informalidade e privação
social e econômica. Ainda em 1981, 48 milhões de pessoas, ou 40% dos brasileiros
estavam abaixo da linha de pobreza (segundo a definição da ONU). Em 1993, a pro-
porção tinha subido para 43% (atingindo 61 milhões de pessoas), baixando um pouco
para 35% em 2001 e para 21% em 2009 (mesmo assim compreendendo 40 milhões de
pessoas)4. Ainda que importante em termos históricos, não é evidente que essa redu-
ção vá prosseguir nos anos por vir, tendo em vista a duradoura turbulência global e
alguns limites estruturais da economia e do mercado de trabalho brasileiros.
3. Economia e trabalho
agrária era item central das “reformas de base” do governo João Goulart. Item, aliás, que
não ficou na história. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é de longe o mais
importante movimento social do país nos últimos vinte e cinco anos.
4 Fonte: IPEADATA (www.ipeadata.gov.br).
5 Dados dos censos demográficos em IBGE (2002).
68
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
13% da PEA em 2010. Ou seja, em termos do emprego, o Brasil nunca foi uma sociedade
industrial. É verdade que os três segmentos da indústria mencionados aqui viram sua
participação no PIB subir de 25% em 1950 para 44% em 1980. Mas essa participação
vem caindo desde então, tendo chegado a 23,5% em 2011 (Tabela 1), abaixo, portanto,
da taxa encontrada em 1950. Seja no emprego, seja na geração da riqueza nacional, a
indústria ocupou lugar subordinado na maior parte da história recente do País.
Tabela 1
PIB por setores econômicos (participação percentual) – Brasil, 1950-2011
Ano Agricultura Indústria(a) Serviços(b)
1950 25,08 24,96 49,61
1960 18,28 33,19 48,69
1970 12,35 38,30 49,78
1980 10,89 44,09 44,46
1990 8,10 38,69 52,66
2000 5,60 27,73 66,67
2010 5,77 26,82 67,41
2011 4,65 23,46 71,89
(a) Inclui ind. de transformação, construção, extrativa mineral e utilidades urbanas; (b)
Inclui intermediação financeira (de 1980 para cá), consumo das famílias e do governo,
e comércio. Fonte: IBGE – Departmento de Contas Nacionais. Para 2011, ver http://
www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2093&id_
pagina=1&titulo=Em-2011,-PIB-cresce-2,7%-e-totaliza-R$-4,143-trilhoes
6 Ver, por exemplo, Castel (1998); Standing (1999); Sennet (1999); Antunes (2006), dentre
muitos outros.
69
CAPÍTULO 3
(ainda assim muito ruins) até meados dos anos 1970, quando a taxa de formaliza-
ção dos empregos atingiu 60% da PEA (Cardoso, 2003; Costa Ribeiro, 2007). Mas
essa taxa se mostrou um teto para as relações formais de trabalho, que caíram a
menos de 50% durante os anos 1980 e a perto de 42% nos anos 1990, apenas para
retornar aos mesmos 50% em anos mais recentes. Vale à pena determo-nos nesses
números, pois essa taxa média de formalização esconde diferenças importantes
segundo a idade e o sexo dos trabalhadores.
O Gráfico 1 mostra a estrutura das probabilidades de mercado para homens
de diferentes grupos etários, de acordo com o tipo de emprego ou posição na ocu-
pação disponível entre 1981 e 2009 no Brasil7. Cada estrato em cada subgráfico
mostra as probabilidades mutantes de posição na ocupação, ano a ano, de um gru-
po etário particular em uma posição na ocupação (ou fora dela) específica. De bai-
xo para cima, em cada gráfico, o primeiro estrato mostra a probabilidade de um
grupo etário estar em um emprego formal (público ou privado). O estrato logo aci-
ma mostra a probabilidade de se estar em uma ocupação assalariada informal (no
setor privado). O terceiro estrato retrata as ocupações informais por conta própria,
o seguinte, as ocupações por conta própria contribuintes para a previdência social.
O quinto estrato é o dos empregadores, seguidos dos ocupados não remunerados,
os desempregados e os que estão fora da PEA. Lendo os dados da esquerda para a
direita, em cada subgráfico, as probabilidades de um grupo etário particular ocu-
par uma dessas posições varia no tempo, e os gráficos retratam as probabilidades
agrupadas globais para todos os homens de 20 a 59 anos de idade.
As probabilidades para cada grupo etário parecem bastante estáveis no tempo,
mas alguns movimentos devem ser salientados. Em 1981, um homem de 20 a 24 anos
de idade tinha uma chance perto de 45% de estar em uma ocupação formal. Em me-
ados dos anos 1980, essa probabilidade subira para perto de 50%,, no que parecia um
processo de estruturação e melhoria do mercado de trabalho. Contudo, depois de
1986 as taxas caíram continuamente até atingir o nadir de 34% em 1999, subindo de
novo para 45% em 2009, a mesma proporção de 1981. Para todos os grupos etários
o movimento é basicamente o mesmo, mas em níveis diferentes de probabilidade:
grupos de 25 a 29 e de 30 a 34 anos começaram o período com probabilidade de em-
prego formal de 50%, que cresceu a 53%, caiu a 42% para subir a pouco mais de 50%
no final do período. O grupo mais velho retratado aqui começou com probabilidade
de 26% em 1981, subiu a 30%, caiu a 22% e voltou a 27% de probabilidade de emprego
7 A fonte é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Foi preciso compatibi-
lizar os bancos de dados, já que, nesses 30 anos, o IBGE mudou várias definições impor-
tantes, como as de População Economicamente Ativa, População Ocupada, Desemprego
e outras. Por questões de espaço analiso apenas as probabilidades dos homens. O quadro,
para as mulheres é bem diferente, e será analisado de passagem mais tarde.
70
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
formal. Isso quer dizer que, depois de três décadas de turbulências econômicas, rees-
truturação, crise e crescimento, qualquer homem com idade entre 20 e 59 anos, em
2009, tinha basicamente as mesmas chances de conseguir um emprego formal do que
seus pares no mesmo grupo etário em 1981. E essas chances estiveram quase sempre
abaixo de 40%, exceto para os homens de 30 a 34 anos.
Como estamos analisando gerações diferentes que entraram no mercado de
trabalho em momentos diferentes do tempo, o que vale reter aqui é que as proba-
bilidades em um determinado momento não são neutras com respeito às proba-
bilidades futuras de cada grupo etário. Sabemos, pela literatura disponível, que
um evento de desemprego tem consequências importantes para as carreiras dos
jovens; a duração do desemprego também é importante, assim como o tipo e a
qualidade dos primeiros empregos conseguidos. Más condições de mercado de
trabalho resultantes de crises econômicas criam efeitos de período que afetam to-
dos os trabalhadores em uma conjuntura histórica dada, mas com consequências
diferentes no tempo segundo as coortes de idade distintas, as diferentes qualifica-
ções, o sexo e outros fatores intervenientes nem sempre mensurados nas pesquisas.
Por exemplo, sabemos que uma proporção apreciável dos trabalhadores qua-
lificados, que perderam seus empregos no cinturão metalúrgico da Região Metro-
politana de São Paulo durante a recessão de 1981-1984, nunca mais retornou a um
emprego formal (Hirata e Humphrey, 1989). Também sabemos que a reestrutura-
ção econômica dos anos 1990 destruiu perto de 1,4 milhão de empregos formais na
indústria brasileira (Sabóia, 2000). Esses empregos não foram recuperados antes
de meados dos anos 2000, de modo que os trabalhadores industriais demitidos já
eram velhos demais para ser “empregáveis”. Na verdade, considerando-se apenas
os demitidos da indústria automobilística em 1989, menos de 50% retornaria a um
emprego formal um dia (Cardoso, 2000: p. 179). Ademais, quanto mais velho o
trabalhador, menor a chance de ele ou ela conseguir outro emprego formal (idem:
p. 184). Logo, devemos sempre considerar efeitos combinados de coorte (grupos
etários) e de período na análise das probabilidades de mercado e seus impactos nos
ciclos de vida dos trabalhadores, sobretudo no caso dos mais jovens e dos mais ve-
lhos. Esse achado deixa claro que não é possível compreender as probabilidades dos
jovens sem fazer referência aos demais grupos etários. Voltarei a isso mais tarde.
Outro movimento geral e importante das probabilidades globais dos homens é o
fato de que as posições assalariadas informais diminuem constantemente ao longo do
ciclo de vida, em favor tanto do emprego formal, quanto de ocupações por conta pró-
pria, não importa o ano. As relações assalariadas informais são importantes posições
de entrada para homens jovens, e perdem importância à medida que eles envelhecem.
As probabilidades eram de 22% ou mais para o grupo etário mais jovem, e de 12% ou
menos para o grupo mais velho retratado aqui, independente do ano no período 1981-
71
CAPÍTULO 3
2009. Por outro lado, para cada grupo etário, as probabilidades de uma ocupação assa-
lariada informal são praticamente constantes no tempo. Por outras palavras, pessoas de
30 a 34 anos em 2009 tinham a mesma probabilidade de seus congêneres de 1999, 1989
ou 1981, variando muito pouco em torno da média de 16,4% (desvio padrão de menos
de 1%). A proporção é praticamente a mesma para o grupo etário de 40 a 49 anos.
Gráfico 1
Tipo de ocupação ou condição de atividade por grupos de idade: homens
de 20 a 59 anos Brasil, 1981-2009
20 a 24 a nos 25 a 29 a nos
100% 100%
Fora da PEA
Fora da PEA
90% 90% Desempregado
Conta própria Não remunerado
Desempregado formal Empregador
80% Não remunerado 80%
Conta própria formal
70% Empregador Conta Própria
70%
Conta Própria
60% 60%
Assalariado informal
50% Assalariado informal 50%
40% 40%
30% 30%
10% 10%
0% 0%
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
30 a 34 a nos 35 a 39 a nos
100% 100%
Fora da PEA Fora da PEA
Não remunerado Desempregado Não remunerado Desempregado
90% 90%
Conta própria formal Empregador Empregador
Conta própria formal
80% 80%
60% 60%
Assalariado informal
50% 50% Assalariado informal
40% 40%
30% 30%
10% 10%
0% 0%
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
40 a 49 a nos 50 a 59 a nos
100% 100%
Fora da PEA
90% Não remunerado Desempregado 90% Fora da PEA
Empregador
80% Conta própria formal 80% Desempregado
Não remunerado
Empregador
70% 70%
Conta própria formal
Conta Própria
60% 60%
Assalariado formal
10% 10%
0% 0%
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Pes qui s a Na ci ona l por Amos tra de Domi cíl i os - PNAD, 1981-2009
72
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
73
CAPÍTULO 3
8 A proposição mais importante nessa direção pode ser encontrada em Neri (2010).
A “nova classe média” é agora um programa de pesquisas na Fundação Getúlio
Vargas (FGV), coordenado por Neri.
74
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
Para analisar esse ponto proponho o Gráfico 2, que mostra dois cenários com-
plementares das posições dos homens no mercado de trabalho. No subgráfico su-
perior, vemos a duração média dos empregos (em meses), de todos os homens de
15 anos ou mais ocupados no Brasil de 1992 a 20099; e no inferior, a duração do
emprego dos ocupados com 40 a 49 anos de idade, segundo posição na ocupação.
Podemos ver, primeiro, que a duração de todas as categorias ocupacionais está
aumentando com o tempo, mas a velocidades diferentes. Trabalhadores por conta
própria (formais ou informais) e empregadores permanecem muito mais tempo
em suas ocupações do que as outras três categorias, e a duração aumentou bastan-
te ao longo do período. Em 1992, a duração média das ocupações variava de 135
(conta própria formais) a 150 meses (empregadores). Em 2009, os tempos médios
de emprego tinham subido para 150 (conta própria informais) a 170 meses (conta
própria formais). Para as outras três categorias, o crescimento foi menor e a níveis
menores de duração: de 75 para 85 meses, no caso de assalariados formais e tra-
balhadores não remunerados; e abaixo de 60 meses para assalariados informais.
Isso é mais uma evidência do caráter relativamente transitório desta última posi-
ção para boa parte da força de trabalho. Quer dizer, também, que ocupações por
conta própria são um repositório de trabalho, que pode ser mobilizado durante
a expansão da demanda por trabalho resultante do crescimento econômico, mas
um repositório com claro excedente de oferta.
De fato, a segunda parte do gráfico mostra importante crescimento no tempo
médio de emprego dos trabalhadores por conta própria de 40 a 49 anos, saindo de
150 meses, em 1992, para 170 em 2009. Comparando esse achado com o Gráfico 1,
acima, no qual parte da probabilidade das ocupações por conta própria foi trans-
ferida para o emprego formal depois de 2003, o crescimento na duração dos conta
própria é o resultado da seleção de posições de maior duração nessa categoria. Em
outras palavras, os que se moveram de posições por conta própria para o assala-
riamento formal eram trabalhadores relativamente neófitos na primeira categoria,
e estavam ali à espera de uma posição formal em uma conjuntura mais favorável.
Isso se expressa, como contrapartida, na redução (ainda que pequena) da duração
média dos empregos formais depois de 2003 (de 120 para 116 meses) nessa faixa de
idade em particular, refletindo a entrada de novos ocupantes nas ocupações que
estão sendo criadas10. Na mesma direção, os trabalhadores mais velhos também
75
CAPÍTULO 3
permanecem mais tempo nas posições assalariadas informais. Nesse caso, tam-
bém parece ter havido um processo de seleção depois de 2003 (isto é, migração dos
ocupados a menos tempo como assalariados informais para outras posições), uma
vez que a duração média das ocupações subiu de sua taxa “histórica” de 80 para
quase 110 meses.
Tomados em conjunto, esses dados parecem estar contando a seguinte histó-
ria: os trabalhadores tendem a ficar menos tempo em empregos “bons”, ou for-
mais, especialmente os do setor privado; e ficam mais tempo nas posições por
conta própria informais. A recuperação econômica posterior a 2003 gerou 11,5
milhões de novos empregos formais até 2009 (incluindo os setores público e pri-
vado11). Essas ocupações foram distribuídas, em sua maioria, para pessoas que
já estavam no mercado de trabalho, ocupadas em posições formais ou informais
previamente existentes. Novos entrantes também conseguiram uma fração des-
sas novas posições, mas o aumento nas taxas de desemprego dos mais jovens (ver
Gráfico 2) sugere que eles teriam se beneficiado menos do que aqueles com maior
experiência no mercado de trabalho. E isso de fato ocorreu, mas apenas em parte.
76
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
Gráfico 2
Tempo de emprego (meses) na ocupação atual, por posição na ocupação.
Brasil: 1992-2009.
2. Homens de 40 a 49 anos
Fonte: PNAD
77
CAPÍTULO 3
Tabela 2
Taxas de crescimento do emprego formal e da população,
segundo sexo e faixas etárias. Brasil, 2002-2009
Sexo e ano Faixas de idade
15 a 19 60
20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 49 50 a 59 Total
anos ou mais
Mulheres Crescimento de 2002 a 2009 (%)
Emprego
8,4 19,0 42,2 36,9 22,4 34,5 83,4 75,7 35,5
formal
PIA -5,6 -3,5 12,9 12,3 5,5 15,8 35,8 29,6 13,0
Homens Crescimento de 2002 a 2009 (%)
Emprego
0,3 21,6 40,5 27,9 18,5 35,0 72,3 44,0 32,0
formal
PIA -5,1 -2,2 16,2 10,6 5,9 17,1 30,0 30,8 12,4
Fonte: PNAD
78
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
12 Uso o termo entre aspas porque, na tabela, agrego homens e mulheres com 30 anos ou mais.
13 A PME é uma pesquisa mensal realizada em seis regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de
Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte), que trabalha com um esquema
amostral de rotação de painéis. Um mesmo domicílio é pesquisado durante quatro meses
seguidos, deixa a amostra, e retorna depois de oito meses para mais quatro meses de pesqui-
sa. Com isso, é possível acompanhar o que aconteceu com seus moradores no intervalo de
um ano, configurando uma pesquisa longitudinal para os que permaneceram nos mesmos
domicílios nesse intervalo de tempo.
14 Ocupações formais: assalariados com carteira; servidores públicos; trabalhadores
por conta própria contribuintes para a previdência social; empregadores. Ocupações
informais: assalariados sem carteira; conta própria não contribuintes; Subocupado:
pessoas que trabalham menos do que a jornada regulamentada e gostariam de mudar de
emprego; Auxil.fam.: auxiliares de família sem remuneração.
79
CAPÍTULO 3
Esses dados revelam aspecto raramente atentado pela literatura nacional: nos-
so mercado de trabalho não é rigidamente segmentado em setores formal e infor-
mal. O assalariamento formal foi e segue sendo momento efêmero nas trajetórias
de vida da imensa maioria dos brasileiros15. Homens e mulheres entram e saem
de relações assalariadas e não assalariadas de trabalho ao longo do curso de suas
vidas e, a partir de certa idade (que raramente ultrapassa os 40 anos), é cada vez
menor a chance de que consigam outro emprego formal, tendo perdido o seu16.
Isso não quer dizer que não conseguirão algum emprego ou ocupação, embora in-
formal, já que do que se trata é obter meios de vida, para o que indivíduos e famí-
lias mobilizam suas possibilidades e qualificações em confronto com os recursos
socialmente disponíveis. Como o seguro desemprego no País é recente (a regula-
mentação data de 1991) e de curta duração, os que perdem um emprego formal e
não têm outra fonte de renda ou o amparo da família precisam (já que premidos
pela necessidade) colocar-se novamente no mercado de trabalho, seja ele formal ou
informal. Com isso, a circulação entre esses “segmentos” é intensa e generalizada,
afetando jovens e “velhos” igualmente. E não se está diante de fenômeno recente,
cuja causa deva ser atribuída à geração de empregos formais. Como mostro em
Cardoso (2010: p. 361), nos anos 1990, quando o País estava destruindo milhões
de ocupações formais, as taxas de migração entre esses “segmentos” eram tão altas
quanto as de hoje.
15 Ver Cardoso (2000), Guimarães (2004 e 2007), Guimarães e Hirata (2006), Guimarães, Car-
doso, Elias e Purcell (2008).
16 Discuto o ponto longamente em Cardoso (2010: cap. 6).
80
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
Tabela 3
Migrações entre posições no mercado de trabalho. Seis regiões metropoli-
tanas, 2010-2011
Posição em 2011
Posição em 2010
Homem Mulher
Em ocupações Em ocupações Em ocupações Em ocupações
15 a 19 anos
formais informais formais informais
Pessoas em ocupações
68,7 11,6 69,8 8,7
formais
Pessoas em ocupações
30,3 41,1 24,7 35,2
informais
Desempregado
desalentado-subocupado- 30,7 18,4 28,7 11,9
auxil.fam.
Doméstico 41,7 8,3 13,3 10,8
PNEA(*) 11,4 9,9 7,7 7,7
Homem Mulher
20 a 24 anos Em ocupações Em ocupações Em ocupações Em ocupações
formais informais formais informais
Pessoas em ocupações
79,2 7,9 74,4 7,8
formais
Pessoas em ocupações
36,8 44,6 30,3 40,9
informais
Desempregado
desalentado-subocupado- 39,5 19,7 28,1 13,9
auxil.fam
Doméstico 22,2 11,1 13,2 8,6
PNEA 22,7 14,1 15,3 10,9
Homem Mulher
25 a 29 anos Em ocupações Em ocupações Em ocupações Em ocupações
formais informais formais informais
Pessoas em ocupações
83,4 8,6 81,5 5,7
formais
Pessoas em ocupações
36,4 51,8 29 48,2
informais
Desempregado
desalentado-subocupado- 40,5 20,1 31,3 15,1
auxil.fam
Doméstico 38,5 15,4 8,5 5,7
PNEA 25,9 14 13,8 9,8
81
CAPÍTULO 3
Homem Mulher
30 anos ou mais Em ocupações Em ocupações Em ocupações Em ocupações
formais informais formais informais
Pessoas em ocupações
84,8 8,5 80,5 7
formais
Pessoas em ocupações
27,5 59,2 19,3 51
informais
Desempregado
desalentado-subocupado- 40,3 24,3 23,3 14,3
auxil.fam
Doméstico 18,9 11,6 6,3 4,6
PNEA 5,9 5,8 3,5 4,6
Fonte: PME 2010-2011
(*) População Não Economicamente Ativa
17 Por exemplo, de acordo com a mesma PNAD de 2009, quatro grupos ocupacionais
respondiam por 75% das ocupações dos homens de 40 a 59 anos que tinham um emprego
informal por conta própria: agricultura (30%), construção civil (25%), vendas (15%) e
condução de veículos (6%). Ocupados por conta própria formais dos mesmos grupos eram
63%. Vendas ocupavam 1/3 das mulheres por conta própria informais, e 30% das formais.
Mais importante do que isso, uma maior proporção dessa força de trabalho em processo de
envelhecimento fica cada vez mais tempo nessas posições piores, que por isso mesmo não
podem ser tratadas como pontos de passagem para trabalhadores à espera de um destino
melhor. Elas são o destino da grande maioria deles e delas.
82
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
18 A taxa de participação quer dizer a proporção de mulheres nessa faixa etária que estava
ocupada ou procurando emprego.
83
CAPÍTULO 3
Gráfico 3
Probabilidades de inserção ocupacional de mulheres com 25 a 29 anos.
Brasil, 1981-2009
Fonte: PNAD
19 O gráfico mostra a razão entre a probabilidade dos homens de determinada faixa etária
ocuparem uma posição assalariada formal, e a probabilidade das mulheres na mesma faixa
ocuparem essas ocupações. As probabilidades foram computadas para ambos os sexos em
conjunto, excluindo-se as posições “Fora da PEA” e “Desempregados”.
84
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
85
CAPÍTULO 3
Gráfico 4
Razões de chances de homens e mulheres ocuparem uma posição assala-
riada formal (% homens/% mulheres), segundo faixas de idade seleciona-
das. Brasil, 1981-2009
Source: PNAD
21 Modelei esses movimentos em Cardoso (2000). Ver também Barros e Mendonça (1997) e
Schweitzer (2008).
86
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
87
CAPÍTULO 3
Gráfico 5
Razão entre a renda horária mediana de homens e mulheres, por grupos de
idade.
Brasil, 1981-2009
Source: PNAD
23 Em um país muito desigual como o Brasil, a renda média expressa melhor a desigualdade
decorrente do fato de que os maiores salários são muito maiores do que os salários mais bai-
xos. Por exemplo, se suprimirmos os 10% mais ricos da distribuição de renda e calcularmos
o índice de Gini, teremos um valor semelhante ao encontrado nos países europeus (em torno
de 0,35). Isso quer dizer que a desigualdade entre nós decorre, sobretudo, das distâncias entre
os muito ricos, que são poucos, e a maioria da população. A renda mediana não capta esse
problema, mas a renda média sim, e a desigualdade entre os sexos caiu também nesse caso.
88
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
89
CAPÍTULO 3
Tabela 4
Duração dos empregos assalariados formais de homens e mulheres, e ida-
de média em cada categoria de duração. Brasil, 1992-2009
Proporções médias (%) Idade média (anos)
Duração dos empregos
Mulheres Homens Mulheres Homens
Menos de um ano 16.4 18.5 28.5 29.5
1 ano a menos de 2 13.7 13.9 29.5 30.1
2 a menos de 3 11.3 11.1 30.9 31.3
3 a menos de 5 14.9 14.9 32.8 32.9
5 a menos de 7 9.9 9.8 35.2 35.1
7 anos ou mais 33.8 31.9 42.2 42.0
100.0 100.0
Fonte: PNAD
26 RAIS quer dizer Relação Anual de Informações Sociais; MIGRA é um acrônimo para mi-
gração; e Vínculo se refere ao evento de emprego. A base é, infelizmente, subutilizada no
Brasil, mas já pude testar sua robustez em vários artigos e livros. Por exemplo, Cardoso
(2000) e Cardoso et al (2004), dentre outros. Agradeço a Emília Veras, Diretora de Informa-
ções do MTE, a geração dos microdados usados nesta análise.
27 Como entre 40% e 52% das ocupações no período foram informais, os dados perdem boa
parte das probabilidades reais de trajetória ocupacional em termos de setores econômicos,
90
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
mas pessoas em pontos diferentes no tempo, serve aos propósitos desta investiga-
ção. Uma vez mais por questões de espaço, para investigar a fluidez do mercado
formal, analisarei as trajetórias de homens de 20 a 23 e de 25 a 29 anos, comparan-
do-as com as de homens de 40 a 49 anos admitidos em dois períodos: 1994-1996
e 2002-2004. As trajetórias do primeiro grupo serão rastreadas de janeiro de 1994
a dezembro de 2001, e as do segundo, de janeiro de 2002 a dezembro de 2009. A
informação está no Gráfico 6, e sua apreensão requer alguns esclarecimentos.
O gráfico descreve duas probabilidades mutuamente exclusivas de três coor-
tes de idade. Em qualquer momento no tempo dos períodos selecionados, cada
coorte de 20 a 23, de 25 a 29 e 40 a 49 anos está ou em um emprego formal (área
mais escura) ou fora dele (área branca). Note-se que, com a PNAD, utilizada nas
seções anteriores, analisamos as distribuições de probabilidade das posições exis-
tentes de mercado, independente das pessoas que as ocupavam no tempo. Aqui,
tal como no caso da PME, o objeto de investigação é a probabilidade do mesmo
grupo de pessoas estar ou não em um emprego formal em momentos diferentes
no tempo. Trata-se, pois, de típico estudo de painel.
Iniciemos pela fila da esquerda do Gráfico 6, isto é, homens admitidos entre
janeiro de 1994 a dezembro de 1996. Se todos os trabalhadores tivessem de fato
envelhecido no emprego formal que obtiveram, como hipotetizado acima, deverí-
amos esperar um crescimento gradual da curva de incorporação no emprego for-
mal a partir de 1994. Além disso, em um cenário hipotético de ausência de efeitos
de período (por exemplo, uma crise econômica ou o crescimento acelerado do em-
prego em parte desses 3 anos), deveríamos esperar a incorporação de um terço do
grupo por ano, até se atingir o pico de 100% em 1996. Mas isso não ocorre. Nas três
coortes investigadas, o primeiro ano (1994) acolhe pouco mais de 27% do grupo.
Em 1995, entram de 15% a 17% e, em 1996, em torno de 20%. Em dezembro deste
ano, final do período de incorporação, apenas 60% daqueles que tiveram algum
emprego formal entre 1994 e 1996 continuavam em seus empregos, movimento,
uma vez mais indiferente à coorte de referência. A reestruturação econômica dos
anos 1990 está claramente expressa no “esvaziamento” da área mais escura a partir
de então. Entre os mais jovens, chega-se à proporção de 47% de ocupados no final
da década, seguida de pequena recuperação até 2001, mas sem jamais atingir 50%.
A história é basicamente a mesma para os jovens de 20 a 29 anos. Os mais velhos,
retratados aqui a título de comparação, “vazam” continuamente até atingir a taxa
de 39% de ocupados.
91
CAPÍTULO 3
No caso dos admitidos entre 2002 e 2004 (coluna direita do gráfico), há uma
importante diferença: o pico de incorporação vai a 65% no caso das duas coortes
mais jovens, e o vazamento desce a 55%, no caso dos jovens de 20 a 23 anos, e a 51%
no caso dos de 25 a 29 anos. Isso quer dizer que o período de entrada no mercado
formal de trabalho (a crise de 1990 ou a recuperação recente) teve um custo de 10
pontos percentuais negativos na probabilidade das primeiras coortes permane-
cerem formalmente empregadas. No caso dos mais velhos, os anos 1990 e 2000
não afetaram em nada as probabilidades agregadas de incorporação e expulsão do
mercado formal. Mas estes não são os achados mais importantes para a discussão
que interessa aqui.
O que realmente chama a atenção é a fluidez da experiência de mercado desses
jovens e “velhos”. Se considerarmos a hipótese de que as pessoas “envelhecem em
seus empregos”, a razão entre a probabilidade esperada de se estar empregado no
final do primeiro período de incorporação (dezembro de 1996) e a efetivamente
encontrada é de 1,65, no caso da coorte de 20 a 23 anos, e de 1,64 no caso das ou-
tras duas coortes. Isto é, trabalhadores tiveram que encarar uma taxa de desconto
perto de 35% em suas presumidas expectativas de sobreviver no emprego obtido
no período. Isso quer dizer, que muitos foram admitidos e demitidos durante os
três primeiros anos. Ou seja, enquanto outros estavam chegando, os primeiros
a entrar já estavam saindo. A consequência é que o número de ocupados nunca
atingiu 100%. E é bom marcar que a distribuição para as mulheres das mesmas
faixas de idade é muito semelhante, com a observação de que sua área cinzenta
“vaza” mais intensamente do que a dos homens, de modo que chega-se a 43% em
2001, no caso das admitidas nos anos 1990, e a 55% em 2009, para as admitidas
entre 2002 e 2004.
Ademais, uma vez demitidos, os trabalhadores jovens não permanecem fora
do mercado formal para o resto da vida, nem por muito tempo. A regra é bem o
contrário. A maioria perde seus empregos, fica fora por um tempo e retorna a uma
posição formal em algum momento. A área cinza “estável” (com seu recorrente
“esvaziamento” em janeiro, quando as empresas demitem parte dos trabalhadores
admitidos para as festas de fim de ano) esconde intensa troca entre os que estão
dentro e os que estão fora de um emprego formal. Tomando-se os admitidos entre
1994 e 1996, os jovens de 20 a 23 anos tiveram 3,6 empregos em média até 2001,
ficando 18,8 meses em média em cada ocupação, perfazendo um total de 52 meses
empregados (de um total de 96 meses possíveis nos oito anos cobertos). Os jovens
de 25 a 29 anos admitidos no mesmo período tiveram 3,6 empregos em média,
com duração de 20,5 meses por vínculo e tempo total empregado de 57 meses.
No caso dos admitidos em 2002-2004, os mais jovens (20 a 23 anos) tiveram 3,6
empregos em média, com duração de 19 meses cada e um total de 48 meses empre-
92
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
gados, enquanto os mais velhos (25 a 29 anos) tiveram 3 empregos, com duração
de 22 meses e permanência total de 51 meses. Essas diferenças refletem a entrada
maciça de jovens no mercado formal depois de 2003, que reduziu os tempos mé-
dios de permanência em cada emprego e o tempo total no setor formal, além de
aumentar o número médio de empregos obtidos.
Gráfico 6
Probabilidade de estar em um emprego formal em dois períodos de tempo.
Homens de 20 a 23 anos e de 25 a 29 anos admitidos entre 1994 e 1996 e
entre 2002 e 2004
100% 100%
90% 90%
80% 80%
Fora do sistema Fora do
70% 70% sistema
60% 60%
50% 50%
40% 40%
30% 30%
Empregado Empregado
20% 20%
10% 10%
0% 0%
jul/96
jul/01
jul/04
jul/09
out/97
out/05
set/95
set/00
set/03
set/08
dez/96
dez/01
dez/04
dez/09
jan/94
jan/99
jan/02
jan/07
fev/96
mar/98
fev/01
fev/04
mar/06
fev/09
jun/94
ago/98
jun/99
jun/02
ago/06
jun/07
nov/94
mai/97
nov/99
nov/02
mai/05
nov/07
abr/95
abr/00
abr/03
abr/08
Homens de 25 a 29 anos
100% 100%
90% 90%
60% 60%
50% 50%
40% 40%
30% 30%
Empregado Empregado
20% 20%
10% 10%
0% 0%
jul/96
jul/01
jul/04
jul/09
out/97
out/05
set/95
set/00
set/03
set/08
dez/96
dez/01
dez/04
dez/09
jan/94
jan/99
jan/02
jan/07
fev/96
mar/98
fev/01
fev/04
mar/06
fev/09
jun/94
ago/98
jun/99
jun/02
ago/06
jun/07
nov/94
mai/97
nov/99
nov/02
mai/05
nov/07
abr/95
abr/00
abr/03
abr/08
Homens de 40 a 49 anos
100% 100%
90% 90%
80% 80%
Fora do Fora do
70% sistema 70% sistema
60% 60%
50% 50%
40% 40%
30% 30%
Empregado Empregado
20% 20%
10% 10%
0% 0%
34335
34455
34578
34700
34820
34943
35065
35186
35309
35431
35551
35674
35796
35916
36039
36161
36281
36404
36526
36647
36770
36892
37012
37135
34335
34455
34578
34700
34820
34943
35065
35186
35309
35431
35551
35674
35796
35916
36039
36161
36281
36404
36526
36647
36770
36892
37012
37135
93
CAPÍTULO 3
8, Conclusão
94
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
sentido, para uma parte importante dos ocupados, o mercado de trabalho se con-
figura como o conjunto desses mecanismos, que são mobilizados em momentos
diferentes das biografias individuais segundo uma lógica que combina estratégias
individuais e oferta de oportunidades, premida, mais das vezes (mas nem sempre)
pela necessidade de sobrevivência.
O problema é que, para uma proporção não desprezível da força de trabalho,
a parcela informal desse mercado não é um ponto de passagem ou espera por me-
lhores posições, mas sim o ponto de chegada de suas histórias ocupacionais. O
País, simplesmente, não criará empregos bons e protegidos para a maioria dessas
pessoas: seja porque elas não têm qualificação suficiente; ou por causa da discrimi-
nação etária em um mercado de trabalho com excesso de oferta, que permite que
as empresas optem pelos trabalhadores mais jovens, dispostos a trocar tempo de
escola por empregos cada vez melhor remunerados; seja em razão da dilapidação
dos corpos de homens e mulheres mais velhos pelas condições precárias e pesadas
de trabalho no curso de vida; seja em razão do padrão de desenvolvimento em cur-
so, hoje dependente de exportações de commodities com pequena contrapartida
nos setores de serviços e que, portanto, continuará gerando maus empregos em
grande quantidade, etc.
O País precisa, por isso, se haver com algo que pode ser denominado “custo
do passado”, denotando dinâmica econômica e demográfica que puniu gerações
de trabalhadores com baixo crescimento, empregos precários, mal remunerados
e sem proteção da legislação trabalhista e previdenciária. O desafio é encontrar
meios de aliviar a privação desses trabalhadores e, ao mesmo tempo, gerar bons
empregos para as novas gerações. O desenvolvimento econômico com inclusão
produtiva pode, no médio prazo, cumprir esta última tarefa. Vimos que os jovens
de 29 anos ou menos abocanharam mais de 30% das novas ocupações geradas
depois de 2003, e sua taxa de desemprego está entre as mais baixas do mundo.
Contudo, as taxas de informalidade entre eles continuam muito altas, superiores
às encontradas entre os mais velhos. E os restantes 70% de empregos formais ge-
rados ficaram com as pessoas de 30 anos ou mais, que já tinham experiência no
mercado de trabalho e trocaram posições informais, fora da PEA ou o desemprego
pelos novos empregos. Essa troca, porém, atingiu proporção diminuta dos ocupa-
dos, de sorte que a taxa de formalização atingiu, em 2009, o mesmo valor de 1981.
É verdade que o assalariamento regulado está em franca expansão no Brasil, mas
a dívida social de décadas de precariedade permanece alta.
Por isso, responder ao primeiro desafio dependerá, de forma crescente e por
algumas décadas ainda, da capacidade redistributiva do Estado brasileiro, que
precisará reconhecer o direito dessas “gerações perdidas” a uma vida digna, em
um ambiente hostil ao exercício desse direito. Esse ambiente ainda é composto
95
CAPÍTULO 3
Bibliografia
ALEMÃO, Ivan; Soares, José L. (2009), Conciliar é “legal”? Uma análise crítica da aplicação da
conciliação na Justiça do Trabalho. Revista Justiça do Trabalho, ano 26, No. 30.
ANTUNES, Ricardo. (2006), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo, Boitempo.
ARAÚJO, Clara; PICANCO, Felícia; SCALON, Celi. (2007), Novas Conciliações e Antigas Ten-
sões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada. São Paulo, EDUSC.
BALTAR, Paulo A.; LEONE, Eugenia T.; MAIA, Alexandre G.; SALAS, Carlos. ; Krein, José Dari;
MORETTO, Amilton; PRONI, Marcelo W.; SANTOS, Anselmo. (2010). Trabalho no governo
Lula: uma reflexão sobre a recente experiência brasileira. Global Labour University working
Papers, v. 9, p. 1-38 (disponível em www.cesit.org/download.php?tipo=publicacoes&codigo=19,
acessado em set/2011).
CARDOSO, Adalberto M. (2000), Trabalhar, verbo transitivo. Destinos profissionais dos deser-
dados da indústria automobilística. Rio de Janeiro: FGV.
CARDOSO, Adalberto M.; Lage, Telma. (2007), As normas e os fatos: desenho e efetividade das
instituições de regulação do mercado de trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: FGV.
CASTEL, Robert. (1998), As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crônica do Salário. Petró-
polis, RJ, Vozes.
COSTA RIBEIRO, Carlos A. (2007), Estrutura de Classe e Mobilidade Social no Brasil. Bauru/
São Paulo, EDUSC/ANPOCS.
96
Juventudes desnorteadas e gerações perdidas: dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro
GUIMARÃES, Nadya A.; Cardoso, Adalberto; Elias, Peter; Purcell, Kate. (orgs.). (2008), Mer-
cado de Trabalho e Oportunidades. Reestruturação Econômica, Mudança Ocupacional e Desi-
gualdade na Inglaterra e no Brasil. Rio de Janeiro, FGV.
GUIMARÃES, Nadya A.; Hirata, Helena. (orgs.). (2006), Desemprego: trajetórias, identidades,
mobilizações. São Paulo, SENAC.
HECKMAN, James; Pagés, Carmen. (2000), The Cost of Job Security Regulation: Evidence
from Latin American Labor Markets. Working Paper No. 430, Inter-American Development
Bank.
NERI, Marcelo C. (2010), A nova classe média: o lado brilhante dos pobres (The new middle
classe: The bright side of the poor). Rio de Janeiro: FGV/CPS.
OLIVEIRA, Francisco. (1972), Economia brasileira: crítica da razão dualista. São Paulo/Petró-
polis; Cebrap/Vozes.
PASTORE, José. (2005), A Modernização das Instituições do Trabalho - Encargos Sociais Refor-
mas Trabalhista e Sindical. São Paulo: LTr.
SABÓIA, João. (2000), Desconcentração industrial no Brasil nos anos 90: um enfoque regional.
Pesquisa e Planejamento Econômico, Vol. 30, No. 1, pp. 69-116.
SCHWEITZER, Sylvie. (2008), “As mulheres e o acesso às profissões superiores. Uma compa-
ração européia, séculos XIX e XX”, in Albertina O. Costa et. al (orgs.), Mercado de trabalho e
gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro, FGV.
STANDING, Guy. (1999), Global labour flexibility: Seeking distributive justice. London, Bla-
ckwell.
97
CAPITULO 4
Pablo Almada1
1. Introdução
E
ste artigo parte de um questionamento bastante pertinente: O futuro para
os jovens – trabalhadores e estudantes em Brasil e Portugal – é, de fato,
incerto? A formulação dessa pergunta tem como base a observação de que,
em ambos os países, nos últimos anos, jovens e estudantes têm se manifestado
contra as crises econômicas e do sistema político, na tentativa de ruptura com as
várias situações de precariedade do trabalho e da própria precariedade que afeta a
vida cotidiana. Por isso, proponho-me aqui a discutir alguns pontos fundamentais
para a construção de um quadro pertinente para essa problemática. Observamos
que a crise do capitalismo tem vindo a afetar diretamente as perspectivas de futu-
ro, bem como tem ampliado quadros de criminalização e uso da força policial para
conter essas manifestações.
Assim, faz sentido retomar algumas das dimensões objetivas e subjetivas do
trabalho, sua relação com as classes sociais, com o Estado, com as mudanças pro-
dutivas, a contestação social e a precariedade. Para isso, como hipótese de partida,
coloco que as mudanças no trabalho em direção à precarização crescente têm vin-
do a fissionar, experienciadas cotidianamente, têm vindo a fraturar o horizonte de
expectativas dos jovens. No mais, essa consideração somente pode ser entendida se
considerarmos que há um grande processo em curso de crise estrutural do capital,
o qual coloca abaixo as perspectivas de conquistas de direitos sociais que foram
dadas anteriormente, amplia o poderio de destruição do capital (representado pe-
las atuais dimensões de sua crise), fechando as possibilidades de ascensão social e
aumentando a perspectiva que o futuro é a precariedade. Porém, ainda que o qua-
dro seja de incerteza, a ofensiva crítica desses movimentos tem vindo a criar pos-
sibilidades de mobilizações e manifestos que, por mais que sejam criminalizados
pelo Estado e pelo capital, são formas de se projetar, concretamente, resistências
que possam ultrapassar essa crise do capital.
O que está envolvido aqui é a correlação inseparável de dois atos que são
em si mutualmente heterogêneos, mas que em sua nova ligação ontológica
compõem o complexo específico de trabalho existente e, como veremos,
formam a fundamentação ontológica da prática do ser social, ou mesmo do
ser social em geral. Estes dois atos heterogêneos que estamos nos referindo
aqui são, de um lado, a mais precisa reflexão possível da realidade em ques-
tão, e, por outro lado, a posição de subjunção de cadeias casuais que são in-
dispensáveis para a realização da posição teológica. (LUKÁCS, 1980, p. 24).
Por isso, para a realização do trabalho pelo homem é necessário não apenas
uma reflexão do homem sobre a realidade, mas também causalidades que impli-
cam nessa realização teleológica e que afirmam que o trabalho está ancorado nes-
2 Recentemente, muitas críticas têm sido feitas sobre o caráter eurocêntrico do marxismo
(BURAWOY, 2000; LANDER, 2007; ESTANQUE e ALDEIA, 2011), referentes à “metateoria”
histórica, ao determinismo e à negação dos sujeitos históricos. Essas críticas foram possíveis
devido ao fracasso do socialismo real, à incapacidade de realização da crítica marxista ao
socialismo, e ao parcial e ideológico sucesso do modelo do Estado Providência. Todavia, é
possível considerar, ainda, que as especificidades da obra teórica de Marx, que se afastam da
perspectiva epistemologizante do marxismo, são, antes de tudo, suas formulações ontológicas
– presentes desde sua juventude à sua obra de maturidade. Assim, o problema está na forma
de compreensão teórica que o marxismo teve durante todo o século XX, em que se formatou
um descompasso entre a epistemologia e a ontologia, priorizando a primeira, que entra em
profunda crise após os anos 1960. Nesse sentido, o trabalho, pedra basilar marxiana, acaba por
ser negado em sua dimensão ontológica, dando margem para as concepções eurocêntricas do
fim do trabalho, ainda que a epistemologia, muitas vezes, aponte para o outro lado.
100
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
sa natureza orgânica e, por isso, sua importância como protoforma do ser social.
Para MARX (2004), o processo de criação humana é compreendido tanto por uma
externalização positivada do ser na coisa (Entaüsserung), como por sua dimensão
negativa, ou seja, a dimensão de que o homem cria algo hostil a si mesmo (Entfre-
mdung), não sendo uma coisa útil e que não irá pertencer àquele que a criou.
Na sociedade capitalista, esse produto resultante do trabalho do trabalhador
irá ser estranhado e apropriado pela classe burguesa, sofrendo aquilo que, mais
tarde, MARX (1984) denominou como subsunção do trabalho ao capital. O traba-
lho irá ser constituinte negativo do capital, através de sua integração na venda da
força de trabalho, transformando o processo de produção em um processo capi-
talista de produção. Por isso, trata-se de uma subordinação do trabalho ao capital,
ou seja, “formas de captura da subjetividade operária pelo capital” (ANTUNES e
ALVES, 2004, p. 344). A passagem de uma subsunção formal para uma subsunção
real é evidente, na medida em que transforma subjetivamente a força de trabalho.
Por isso que, no desenvolvimento histórico do sistema capitalista, a formação de
classes se deu pela produção de valor com base no trabalho e na criação da mer-
cadoria. A diferenciação marxiana, entre valor de uso e valor de troca, ou seja, o
“duplo ponto de vista, da qualidade e o da quantidade”, evidencia a capacidade de
realização do trabalho do trabalhador em uma forma alienada, a mercadoria, cujo
valor de troca se assume como contradictio in adjecto. Portanto, por baixo do valor
de uso e do valor de troca está o produto do trabalho metamorfoseado, a “forma-
-mercadoria”, inseparável do produto do trabalho:
Através dessa “relação social dos produtores com o trabalho global”, formam-
-se relações e processos que enfatizam as relações objetivas com os meios de pro-
dução, estabelecendo antagonismos, conflitos e lutas que modulam a experiência
social em “formas de classe” (MEIKSINS-WOOD, 1983, p. 91). Essas formas de
classe não necessariamente se apresentam como consciência de classe ou forma-
ções visíveis de classe, mas, sim, através dos processos sociais. De acordo com
THOMPSON (2004, p. 10), a classe é um fenômeno histórico, “resultado de ex-
periências comuns”, em que os homens “articulam a identidade de seus interesses
entre si, e contra outros homens cujos interesses se diferem” e se opõem. Nesse
101
CAPÍTULO 4
3 Por isso, em primeiro lugar, a subjetividade de classe não poderia ser pensada como aná-
loga à consciência de classe, no sentido de uma visão da totalidade do processo histórico
(LUKÁCS, 2003), justamente porque criaria uma cisão entre falsa e verdadeira consciência,
pelo ponto de vista da totalidade, sendo praticamente impossível uma definição razoável.
Por outro lado, ao recusar essa perspectiva, a partir da análise da orientação ideológica dos
indivíduos e a partir de opiniões manifestadas pelos indivíduos inseridos numa localiza-
ção de classe, assim como sugerem as linhas neomarxistas (ESTANQUE, 2000; WRIGHT,
1989), enfatiza-se uma disposição a-historicamente construída e estrutural das classes sem
se atentar ao processo de formação e de experiência. Nesse sentido, concordando com E.P.
Thompson e Ellen Wood, entendo que o processo de formação e de experiência de classe é
fundamental para se compreender como novas disposições no âmbito da produção, como o
caso da precariedade, geram novas experiências de classe que são visíveis em conjunto com
o processo de formação de classe.
102
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
capital (MÉSZÁROS, 2002, p. 106). Por isso, o Estado está subordinado ao capital,
já que esse se torna uma estrutura de comando singular, em que as classes sociais
e a estrutura política são deslocadas ao segundo plano na estrutura hierárquica
de controle do capital. O capital é, portanto, “um modelo de controle que se so-
brepõe a tudo o mais, antes mesmo de ser controlado”, ou seja, opera como um
controle sociometabólico, o qual não se constitui apenas como um mecanismo
racionalmente controlado, mas uma forma incontrolável desse controle, de estru-
tura totalizadora (Idem, p. 98). Fundamenta-se, portanto, um processo de sujeição
do homem ao capital, do qual toda a sociedade se sujeita a esse controle estrutural
limitado, fundante dos aspectos de divisão em classes sociais e do controle insti-
tucional do poder político.
Esse modelo de sujeição e controle também se diferencia no interior do pro-
cesso produtivo capitalista, através de diferenças de exploração e apropriação de
mais-valia. A natureza desse controle permite observar o carácter de segurança e
obscuridade na produção da mais-valia, em que a essência do processo de traba-
lho no capitalismo não revelaria essa componente da produção, necessitando de
referências políticas (produção de relações sociais); ideológicas (produção de expe-
riência dessas relações) e econômicas (produção de coisas) para ser compreendida
(Burawoy, 1990). A imbricação dessas três dimensões vem ressaltar um complexo
produtivo composto por várias dimensões, das quais, o Estado assume essa di-
mensão de controle e, consequentemente, sua proteção. Portanto, esse mecanismo
revela que o Estado somente garante a reprodução de certas relações de classe.
Essa mediação do Estado assumiu-se mais claramente no período de edifi-
cação do Welfare State, um novo modelo social que se utiliza do mercado para
a tentativa de consertação da relação capital e trabalho, baseado no acordo entre
sindicatos, patrões e Estado, que elevou os níveis de bem-estar social dos trabalha-
dores e que trouxe, a princípio, garantias de estabilidade de emprego, oportunida-
des na carreira, mas que se desenvolveu através do estímulo ao individualismo e
ao consumismo, dificultando as ações coletivas dos movimentos sindicais: “Pode
dizer-se que o mercado e o Estado se conjugaram com as estruturas sindicais, na
promoção de dispositivos de regulação dos conflitos e na criação de políticas so-
ciais que ajudaram a consolidar o emprego como canal privilegiado de mobilidade
social e fator de prestígio social” (ESTANQUE, 2008, p. 184).
A associação dessa postura do Estado com o mercado crescente implicou em
limitações bastante significativas ao processo laboral. Assumiu-se a lógica da ra-
cionalidade econômica, em oposição ao humanismo da necessidade do movimen-
to operário (GORZ, 2007), sendo o primeiro construído sobre a égide do trabalho,
como fim único em si mesmo e ilimitado, favorecendo o lucro a todo custo, sepa-
rando o trabalho de sua necessidade e valorizado sua eficiência. Por conta da difi-
103
CAPÍTULO 4
104
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
105
CAPÍTULO 4
5 Esse momento do final dos anos 1960, portanto, designa um movimento de duplo caráter:
por um lado, em termos estruturais, a necessidade de mudança do paradigma produtivo
para o aumento da produtividade; por outro lado, quanto aos trabalhadores, as contestações
sociais que permitiram ganhos e avanços do movimento operário europeu, cujo Estado Pro-
vidência parecia ser o resultado, com a garantia de direitos sociais mais amplos e a proposta
de um contrato social que mediasse, juridicamente, a conflitualidade de trabalho e capital.
6 A partir dos anos 1960, é bem patente a influência que a ideologia capitalista exerce no que
diz respeito às formas de gestão e de organização do trabalho adotadas e, “naturalmente”,
consideradas corretas. A gestão das empresas passa a ser orientada por princípios de racio-
nalidade, o que implicou o deslocamento da responsabilidade do processo de gestão dos
donos das empresas (que passam a acionistas) para quadros especializados de gestores e
106
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
107
CAPÍTULO 4
força de trabalho, mas são desprovidos dos meios de produção. Isso leva a ampliar
a concepção de classe trabalhadora hoje, através de suas fragmentações, heteroge-
neidades e complexidades. Caracteristicamente, esse momento – era de neolibera-
lismo muito mais do que de globalização - teve uma forte presença da componente
ideológica do toyotismo – diferentemente daquele presente nas décadas anteriores,
caracterizou o modelo japonês de produção – atingindo profundamente a subje-
tividade do trabalhador (ALVES, 2002). Diferentemente das contrapartidas sala-
riais e institucionais que o toyotismo oferecia no passado, sua nova configuração
centrou-se nas contrapartidas do mercado e criou um novo consentimento do tra-
balhador assalariado, através de uma captura da subjetividade daquele, fomentan-
do o lado subjetivo da crescente precariedade do trabalho:
108
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
8 Por outro lado, a percepção sobre a juventude veio a se alterar ao longo dos anos. Se as
expectativas depositadas apontavam para a renovação dos sujeitos sociais, o crescimento
do consumo e a exploração crescente do trabalho imprimiram também uma capacidade de
tornar o jovem como produto, marca e tendência de consumo, alterando profundamente
o significado historicamente construído da juventude. Da ideia de rebeldia característica,
contestatária e contracultural, o que se pode entender hoje sobre juventude permeia muito
mais a aproximação com a ideia de passividade da juventude, youth cultures becomes a big
businness, ressaltando os consumos de certos estratos etários da sociedade (ROCHE et al.,
1997), produzindo formas de comportamento social e a ressiginificação de hábitos dentro
da esfera de consumo, o que pode significar, para àqueles setores que foram considerados
politicamente ativos no passado, o crescimento da indiferença, do cotidiano autocentrado,
como tem vindo a acontecer com os manifestos estudantis (ESTANQUE e NUNES, 2003;
ESTANQUE e BEBIANO, 2007; ESTANQUE, 2009).
9 Boaventura de Sousa SANTOS (2006), em A Gramática do Tempo, entende que a governa-
ção é um novo paradigma de regulação social que substitui o paradigma do conflito social
e do papel privilegiado do Estado, sendo que a base da regulação torna-se o poder de co-
mando e de coerção. Para o autor, a governação é o paradigma de matriz regulatória do
neoliberalismo (capitalismo de laissez-faire), implementando uma governabilidade e uma
política de direitos com direitos que agravam a crise de legitimidade do Estado.
109
CAPÍTULO 4
10 Mark Edelman BOREN (2001), em Students Resistence: A history of the unruly subject, de-
marca uma periodização dos movimentos estudantis e juvenis nos anos 1960, através da
resistência e da radicalização que esses movimentos adquirem durante esse período, como
efeitos de questões estruturais mais amplas da sociedade, que tanto podem ser ligadas à pró-
pria universidade, como a questões políticas mais amplas. Nesse período, Boren aponta que
a resistência estudantil se deu nos seguintes países: Coreia do Sul, Japão, China, Indonésia,
Índia, França, Alemanha, Holanda, Checoslováquia, Turquia, África do Sul, Congo, Argé-
lia, Estados Unidos, República Dominicana, Venezuela, Equador, Colômbia, Brasil. Já para
o “ano dos estudantes”, com manifestos compreendidos entre 1968 e 1969, o autor aponta
manifestações nos seguintes países: França, Irlanda, Inglaterra, Alemanha, Itália, Polônia,
Iugoslávia, Etiópia, Senegal, Rodésia, Congo, Paquistão; e, em um segundo momento, Japão,
México e Estados Unidos.
110
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
11 Mészáros sublinha que dentro das três dimensões que evidenciam a crise estrutural do capi-
tal se desenvolveram alguns importantes eventos, nas décadas seguintes, que se mantiveram
dentro das mesmas características em relação ao capitalismo. Para a relação dos países ca-
pitalistas metropolitanos e os subdesenvolvidos: o fim do regime colonial de Moçambique e
Angola; a desintegração do governo de Somoza e a Frente Sandinista na Nicarágua; a luta de
libertação de El Salvador; a erupção das contradições estruturais nas forças industriais da
América Latina (Brasil, Argentina e México). Para a crise dos países capitalistas avançados:
a crise da dominação econômica dos EUA, a erupção nas “grandes contradições” no interior
da Comunidade Econômica Europeia; o desemprego estrutural, o fracasso do welfare state,
do neocolonialismo e do neocapitalismo. Finalmente, quanto à crise do socialismo real: o
colapso da Revolução Chinesa; o conflito armado entre China, Vietnã e Camboja; a ocupa-
ção soviética no Afeganistão, a crise econômica na Polônia.
111
CAPÍTULO 4
Isso significa que, por traz do conceito de geração - assim como empregado
naquele momento -, havia uma necessidade de garantia de perpetuação do capi-
talismo e de sua ideologia, apontando para possibilidade de que esses conflitos
fossem contornados, principalmente por meio do Estado de Bem Estar Social e
do apaziguamento da contradição entre capital e trabalho. Aqui então se coloca o
problema das possibilidades reais e do horizonte de expectativas possíveis para a
questão dos jovens. Se por um lado a teoria sociológica não conseguiu visualizar
rupturas geracionais evidentes - podendo-as considerar apenas em torno da rela-
ção direta entre o ativismo passado e a indiferença presente -, essa relação não foi
articulada com os conflitos geracionais que foram gerados pelo próprio capital. Na
atualidade, o horizonte de expectativas também foi reduzido devido a um estrei-
tamento da “geração útil” e sua oposição à “geração indesejada”: “o grupo etário
da “geração útil” está encolhendo para uma faixa entre 25 e 50 anos, opondo-se
objetivamente às “gerações indesejadas”, condenadas pelo capital à inatividade
obrigada e à perda da sua humanidade” (p.802).
Essa relação dialética tem vindo a ganhar cada vez mais espaço, sobretudo
naqueles países regulados pelo Estado Providência, em que a ideologia da ordem
112
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
Por isso, há uma relação direta entre o descarte de jovens e velhos para o
trabalho e a precariedade, o que faz com que as possibilidades de planejamen-
to do futuro sejam arruinadas, se comparadas com as perspectivas das gerações
anteriores. Os movimentos que surgem nos últimos anos, em especial na Europa
Ocidental, mediante a crise estrutural do capital12, são justamente aqueles que
evidenciam essa questão mais claramente. No entanto, as várias situações de pre-
cariedade laboral, como no Brasil, também afirmam a mesma questão, ainda que
ela não se coloque como mais evidente para a mobilização social. É de se consi-
derar, portanto, que atualmente, os movimentos sociais que partem dessas cau-
sas compõem não apenas a “linha de frente” de exploração do capitalismo, mas
113
CAPÍTULO 4
114
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
“faca metodológica”13; da universidade em que não cria espaço para o diálogo com
a comunidade, ou que, quando burocratizadas em excesso, levam à “mistificação”
de sua atuação social; da universidade que vê seus estudantes como receptores de
serviço, e, seu corpo de funcionários e professores como colaboradores; da mar-
ginalização do estudante, de suas práticas políticas e culturais e de sua visão de
mundo; da universidade que prioriza a competição entre estudantes; da precariza-
ção dos vínculos de estudantes, professores, pesquisadores e funcionários, através
de contratos a prazo, baixos salários, excesso de funções, redução dos direitos, de
bolsas de estudo insuficientes e de baixa remuneração; da universidade que pre-
cariza suas estruturas conscientemente; da universidade repressora, seja por meio
de sua burocracia administrativa (que persegue os estudantes através de excessivas
cobranças de ordem formal), seja por meio da repressão por meio de perseguição
política e policial, gerando a universidade cuja única política é a polícia. Assim,
interessa dizer que o resultado social desse processo evidenciou o surgimento de
“novas profissões”, de formação universitária, operando uma segmentação ainda
maior do mercado de trabalho – juntamente à logica da própria estruturação his-
tórica do trabalho, por bem dizer, a divisão entre trabalho material e imaterial que
Marx já falara outrora.
Esse processo possui várias similitudes entre Europa e América Latina, em
especial, entre Portugal e Brasil. Para tanto, e como já foi mostrado aqui, é ne-
cessário, primeiramente, afastar o argumento de que, enquanto um país está em
uma profunda crise, o outro está vivenciando um momento propício ao desen-
volvimento econômico acelerado, pois trata-se de uma crise estrutural do capital.
Assim, podemos entender que, os aspectos que até agora foram aqui tratados -
trabalho, precariedade, democracia, contestação social, juventude, educação – se
convergem, atualmente, em exemplos de acontecimentos nos dois países que tra-
zem profundas incertezas sobre o futuro.
5. O futuro é incerto?
13 Sobre esse aspecto, MÉSZÁROS (2004) expõe seus principais pontos na Parte II, Ciência,
Ideologia e Metodologia, em O Poder da Ideologia.
115
CAPÍTULO 4
tado fosse uma reconstrução desse passado histórico recente, ainda que ele possa
estar presente em nossa memória, ou cujas informações mais elementares podem
ser encontradas nos arquivos recentes de jornais quando acessados pelos sites de
busca – mas, refiro-me diretamente aos movimentos estudantis da Universidade
de São Paulo e suas mobilizações recentes de 2007 a 2011; e dos movimentos de
Indignados e “Geração à Rasca” que também se mobilizaram nos últimos quatro
anos em Portugal e na Europa. No entanto, seria ilusório se pensar que no âmbito
dos discursos dos movimentos há características similares – fato que poderia ser
muito mais perceptível se fizéssemos uma comparação sistemática entre os mo-
vimentos estudantis de Brasil e Argentina ou Chile, ou, entre os movimentos de
indignados em Portugal e Espanha, ou Grécia.
No entanto, entendo que se essa aproximação é sim cabível e só pode ser pos-
sível se observarmos a relação entre o espaço de experiências e o horizonte de ex-
pectativas (KOSELLECK, 2006)14. Ou seja, no presente caso, quero aqui enfatizar:
(i) como as experiências vividas através de acontecimentos recentes trouxeram à
tona novos questionamentos sobre a crise estrutural do capital, sobre a precarie-
dade, sobre a universidade e a educação; e (ii) como que as expectativas presentes
trazem concretamente novas formas de resistência e de ofensiva, que oscilam em
um quadro de esperanças positivas, surpresas e desilusões. Por isso, atribuirei uma
metáfora aos dois conceitos, na tentativa de poder contemplar essa discussão: o es-
paço de experiências pode ser entendido como a mobilização do dia a dia, ou seja,
como o momento em que um movimento social distribui panfletos, confecciona
cartazes, faz suas reuniões e debate com seus membros, etc, em síntese, quando faz
a construção da luta cotidiana. O horizonte de expectativas seria, portanto, aquele
momento em que, feita a luta cotidiana, é organizada uma manifestação nas ruas,
saindo de um lugar e chegando em outro, provavelmente um prédio do poder pú-
bico, em que, no caminho, o movimento irá mostrar suas palavras de ordem, suas
críticas ao que tem vindo a acontecer e/ou os desejos de melhorias. Observemos
então isso nos movimentos acima referidos.
14 KOSELLECK (2006, 308-310) entende que “experiência e expectativa são duas categorias
adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futu-
ro. São adequadas também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em
seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político”. Isso quer di-
zer, que o encontro dos dois conceitos se dá, não apenas na “execução concreta da história”,
mas também, através das “determinações formais que permitem que o nosso conhecimento
histórico decifre essa execução”. Finalmente, o autor entende experiência como o “passado
atual, daquele no qual os acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados”; e,
expectativa, como algo que “se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não,
para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo
e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade
fazem parte da expectativa e a constituem”.
116
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
117
CAPÍTULO 4
dade laboral para ser pensada em sinônimo mais amplo) como privação do futuro;
ou, a resistência e a construção de uma ofensiva que se inicie no dia dia e que possa
reverter esse quadro para horizontes mais positivos e otimistas.
Já em Portugal, nos últimos anos têm tido destaque as greves gerais organi-
zadas pelas centrais sindicais, as manifestações do movimento estudantil e, mais
recentemente, as manifestações com novas plataformas de movimentos, como a
dos Indignados e a 15O. Sobre elas, podemos compreender sua capacidade de re-
sistência à crise atualmente vigente e o ensaio de novas perspectivas políticas e
econômicas, sobretudo, alertando às questões da precarização e da precariedade
do trabalho, da redução dos direitos do trabalhador, da massificação do ensino e
da recusa da democracia formal vigente. Dentre várias mobilizações, a manifesta-
ção da “Geração à Rasca”, ocorrida em 12 de março de 2011 foi a mais significativa.
Não apenas porque contou com mais de 200.000 pessoas nas ruas em todo o país
naquele dia, mas porque ela é uma nítida expressão de resistência à crise social que
assola o país, e o sul da Europa de forma mais geral – reflexo também das outras
manifestações que estão a ocorrer na Europa, como na Grécia, na Espanha (como
o caso da “Democracia Real Ya” e das “Acampadas”). Trata-se de um registro úni-
co na história de um país que se silenciou após o 25 de abril e a entrada para a
União Europeia, incorporando desde o traço ideológico da ética salazarista do
“bom português”, como também os “sonhos” provenientes da concertação entre
capital e trabalho, por parte do Estado Providência. Se algo mais pode ser dito
desse momento, é que tratou-se de um movimento não apenas de jovens, mas um
movimento que encadeou a preocupação dos jovens com a da maioria dos portu-
gueses. Convocada por estudantes e utilizando as novas tecnologias do Facebook,
a “Geração à Rasca” superou as expectativas dos próprios “organizadores”. E, por
assim dizer, não foi organizada, mas, sim, auto-organizada. Trouxe para os media
e para setores conservadores, ou ditos de esquerda, uma nova possibilidade de go-
vernabilidade nacional: uma governabilidade que leve em conta os mais diversos
setores da sociedade e suas demandas. Assim, incentivou o debate político, criou
novas dimensões do espaço público e traduziu as inquietações mais subjetivas: a
dos jovens, por não conseguir emprego ou por serem precários; a dos pais desses
jovens, por um lado, por saber que a condição inquietante da manutenção da-
queles na “casa dos pais”, apenas revela que a sociedade portuguesa não deseja as
alterações que vêm a ser encaminhadas para o mundo laboral; por outro lado, por
saberem que as medidas de austeridade econômica afetarão, em muito, toda a dis-
posição da sociedade portuguesa, reduzindo salários, aumentando o desemprego.
Anunciando uma profunda crise econômica nos países do sul da Europa,
anuncia-se também uma profunda crise de expectativas para os jovens de hoje e
para as futuras gerações. Não que essa seja designada pelas ideologias de “fim do
118
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
Bibliografia
ALMADA, Pablo. Resistência, Ocupação e Criminalização: O movimento estudantil nas greves
nas universidades paulistas em 2007. Dissertação de Mestrado. Coimbra: FEUC, 2009.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999.
BOREN, Mark Edelman. Students Resistance: A history of unruly subject. London: Routledge,
2001.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: Critica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
BURAWOY, Michael. Politics of production: Factory Regimes under Capitalism and Socialism.
London: Verso, 1990.
119
CAPÍTULO 4
CASTEL, Robert. “Die Wiederkehr der sozialen Unsicherheit”. In: Castel, Robert; Dorre,
Klaus. Prekaritat, Absteig, Ausgrenzung: Die soziale Frage am Begginn des 21. Jahrhunderts.
Frankfurt-Main. Campus, 2009.
CHAVEL, Louis. Le destin des générations: Structure sociale et cohortes en France au XXe
siècle. Paris: PUF, 1998.
; Aldeia, João. “Os «sujeitos que nunca foram históricos» - Uma crítica
do marxismo eurocêntrico. In: Revista eletrônica INTERthesis - UFSC, Março, 2011.
HARVEY, David. The condition of postmodernity: an inquiry into the origins of cultural
change. Oxford: Basil Blackwell, 1989
HOBSBAWM, Eric. Age of Extremes: The short twentieth century: 1914-1991. London: Abacus,
1995.
KOSELLECK, Reinhard. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2006.
LUKÁCS, Georg. The ontology of Social Being – 3. Labour. London: Merlin Press, 1980.
120
O futuro é mesmo incerto? A precariedade e os jovens em Brasil e Portugal
MACHADO PAIS, José. Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.
MARX, Karl. Capítulo VI, Inédito de O Capital: resultados do processo de produção imediata.
São Paulo: Moraes, 1984.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
ROCHE, Jeremy; TRUCKER, Stanley; THOMSON, Rachel; FLYNN, Ronny (Ed.). Youth in
Society: Contemporany theory, policy and practice. London – Thousand Oaks – New Delhi:
SAGE Publications, 1997.
STEPHENS, Julie. Anti Disciplinary Protest: Sixties Radicalism and Postmodernism. Cambrid-
ge: Cambridge University Press, 1998.
121
CAPITULO 5
O
“manifestante” foi a personalidade do ano de 2011, escolhido pela revista
Time. Que uma personagem anónima, um ator coletivo, seja escolhido
como a pessoa mais influente do mundo não é certamente comum em
uma publicação deste género. A verdade é que 2011 assistiu, desde a Primavera
Árabe ao movimento dos Indignados, do Occupy Wall Street aos protestos da Ge-
ração à Rasca em Portugal ou contra a austeridade na Grécia, a fenómenos de
mobilização social significativos, que trouxeram para a rua contingentes sociais
nem sempre frequentes nas formas tradicionais de ação e mobilização políticas.
Alguns destes movimentos parecem assumir um caráter fundacional: criam
uma cultura e uma marca identitária importante na trajetória de envolvimento
dos seus protagonistas. Além disso, e muito em função da comunicação em rede
e da difusão na internet, este conjunto de resistências produziu certo sentido de
“comunidade imaginada global” entre movimentos de diversas partes do mundo,
através da qual as diferentes experiências se contaminam, inspiram e estimulam.
Sendo certo que em qualquer um destes casos estamos a falar de fenómenos
com motivações, características, protagonistas e modalidades de ação muito di-
versificadas, podemos encontrar alguns elementos comuns: uma forte compo-
nente juvenil e escolarizada, em que a juventude surge como catalisador de lutas
sociais mais amplas; formas de identificação suficientemente gerais para poderem
ser, aparentemente, quase consensuais (os “99%”, os “indignados”, as “gerações à
rasca”); um discurso centrado na denúncia do sistema económico e na captura das
instituições e agentes políticos pelo poder financeiro; a exigência de “mais” ou de
uma “verdadeira” democracia; certa recusa da delegação, remetendo à expressão
das reivindicações e à legitimidade, tendencialmente, para a escala do indivíduo;
uma abertura à experimentação militante, mais do que a formulação programá-
CAPÍTULO 5
tica ou do que uma “razão estratégica” muito definida; o contraste entre a radica-
lidade dos modos de envolvimento e a fragilidade do discurso de uma parte dos
protagonistas; a produção de novas referências plásticas e estéticas e a disputa em
torno dos símbolos hegemónicos; a ocupação transgressiva do espaço público; o
uso intensivo das redes sociais; a importância da cultura audiovisual e das novas
tecnologias de informação e comunicação, aplicando-se à mobilização colectiva a
lógica do open source e da comunicação não unidireccional.
A última grande vaga de mobilizações globais aconteceu sensivelmente há
uma década, com o boicote à reunião da Organização Mundial do Comércio, em
Seattle, em 1999, e com o movimento das contracimeiras, dos Fóruns Sociais e das
manifestações contra a guerra no Iraque, nos anos posteriores. Nessa altura, emer-
giu um “novo internacionalismo global”, que fazia da crítica ao neoliberalismo e
à globalização capitalista um “não” comum a partir do qual se juntavam vários
“sins”, isto é, ideias diferentes sobre os “outros mundos possíveis”. Esse movimento
de movimentos pôs em contacto e articulação diferentes atores sociais, culturas
de intervenção e sujeitos políticos diversos: ecologistas, sindicalistas, estudantes,
indígenas, feministas, camponeses... Dessa experiência ficaram redes, encontros
e campanhas comuns. Mas seria preciso esperar até 2011, para ver ressurgir com
força um movimento à escala internacional com capacidade de ocupar as ruas e a
agenda política.
As mobilizações de 2011 acontecem no marco da maior crise capitalista das
últimas décadas e partem, na maior parte dos casos, da indignação em relação à
injustiça social, aos efeitos sociais da “ditadura dos mercados” e à cumplicidade
de governos e instituições relativamente ao processo de empobrecimento em cur-
so. Em muitos casos, representaram o fim do monopólio dos partidos, dos sin-
dicatos e dos movimentos organizados na mobilização social. Mas se puderam
constituir-se enquanto íman de vários ativismos, isso significa que articulam, não
sem tensões, novos e velhos protagonistas, militância organizada e militância não
organizada. Seria impossível perceber estas mobilizações, nomeadamente no caso
português, sem ter em conta o papel dos movimentos de jovens trabalhadores pre-
cários e o caminho por eles aberto. Além disso, para compreendê-las, devemos
fazer referência não apenas à crise recente, mas também a um processo mais longo
de precarização e de mudança na condição juvenil. O crescimento do desemprego,
o processo galopante de informalização, descontratualização e descoletivização
das relações laborais, o crescente hiato entre expectativas e realidade, agravados
pela vertigem austeritária, geram um sentimento de ressentimento e frustração
que encontrou nestas mobilizações uma forma de expressão coletiva.
Neste ensaio, tentaremos caracterizar o pano de fundo sobre o qual se desen-
volvem estes fenómenos, procurando a sua explicação na crise financeira e nas po-
124
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
líticas de austeridade ao nível europeu, mas também em processos mais longos re-
lacionados com as transformações no capitalismo, com a desidentificação com as
formas de representação e com a desafeição pelas instituições democráticas exis-
tentes. Por outro lado, fazemos um esforço de síntese das principais tendências que
explicam a condição juvenil em Portugal, na sua relação com o trabalho e com um
cotidiano marcado pela precariedade. A partir daí, refletimos sobre o surgimento
dos movimentos de trabalhadores precários neste país e sobre as modalidades de
ação coletiva que eles têm posto em marcha. Por último, a partir de um trabalho
em curso sobre a vaga de mobilizações em 2011, e tomando como referências o
caso português, mas também o exemplo espanhol e o exemplo norteamericano,
enunciamos algumas das linhas do debate estratégico que tem tido lugar no seio
destas mobilizações, identificando, de forma parcial e provisória, tensões e pers-
pectivas em conflito sobre o seu significado e os caminhos que devem seguir.
125
CAPÍTULO 5
126
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
127
CAPÍTULO 5
128
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
Como é evidente, cada praça, cada cidade e cada país tem a sua história pró-
pria e as suas peculiaridades. Não pretendemos, neste ensaio, fazer nenhuma te-
oria geral acerca destes movimentos. Pretendemos identificar algumas das suas
causas e pensar, sem idealizações nem autocomplacências, alguns dos dilemas que
os atravessam. De acordo com Carlos Taibo (2011), que se refere à experiência do
estado espanhol, é possível distinguir “duas almas do movimento”, com visões por
vezes conflituais. A primeira seria constituída pelos “movimentos sociais alterna-
tivos”, com uma intervenção mais antiga, mas que de certo modo foi semeando
o terreno. A segunda, pelos “jovens indignados”, a massa dos quinheutoseuristas
que, sem tradição nem organização política anterior, constituíram a novidade
destas mobilizações, assumindo-se, em muitos casos, como os intérpretes de um
descontentamento geral. Mas o que caracteriza hoje a condição destes jovens que
encheram ruas e praças? Isso explica esta onda de indignação?
1 Vd. www.deolinda.com.pt/site.php
2 Disponível em www.youtube.com/watch?v=f8lo82tXbWU&feature=player_embedded
129
CAPÍTULO 5
130
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
131
CAPÍTULO 5
3 Os números foram apresentados por Marcelino Pena Costa, presidente da Associação Por-
tuguesa das Empresas do Sector Privado de Emprego (APESPE), ao jornal SOL na sua edição
de 18 de fevereiro de 2011, e indicam que em 2010 haveria 400 mil trabalhadores temporá-
rios. O aumento face a 2009 é de mais 300 mil trabalhadores, referentes a ETT’s legais
132
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
Se fizermos uma visita pelos sítios eletrónicos das Empresas de Trabalho Tem-
porário a operar em Portugal, verificamos como a questão da redução de custos
(para quem contrata) com o fator trabalho é uma das vantagens claramente enun-
ciadas por estas empresas. No sítio web da Multitempo4, por exemplo, explica-se
que o trabalho temporário oferece às empresas “as seguintes vantagens”: “ganhar
tempo e reduzir custos de seleção e recrutamento”, “reduzir custos na gestão e admi-
nistração do pessoal”, “assegurar o ritmo de trabalho e a continuidade da produção
da empresa” e “reduzir o absentismo e remunerar apenas o trabalho realizado”. Pre-
sume-se que a proteção social ou os direitos laborais são uma parte dessa remu-
neração do trabalho não realizado que se pretende suprimir. Na página online da
Randstadt, explica-se que a sua metodologia Inhouse “tem provas dadas em mais
de 40 países desde 1995 e visa uma investigação contínua, para minimizar o custo
com o trabalho e todos os seus custos indirectos associados”5. A empresa Atlanco6,
apresenta como “vantagens do trabalho temporário para as empresas utilizadoras”,
entre outras, a “transformação de custos fixos em custos variáveis” e a “redução de
riscos contratuais – profissional certo, no sítio certo, durante o tempo certo”.
O exemplo do trabalho temporário, uma das formas de emprego precário em
maior expansão, é apenas um entre outros. Modalidades contratuais como o part-
-time ou o falso trabalho autónomo traduzem-se, em muitos casos, em uma com-
pressão do nível de remuneração, que o coloca abaixo do salário mínimo nacional
e em recompensas salariais inferiores à média praticada para as mesmas inserções
ocupacionais com contratação regular. A multiplicação de baixos salários, de si-
tuações de estágios não remunerados e de formas de precariedade assistida pelo
Estado, entre formação e trabalho, permitem que se fale efetivamente em uma
“geração low cost” (Chauvel, 2008). Em Portugal, ela combina salários baixos – em
2011, mais de metade dos jovens empregados auferia um salário entre os 450 e os
600 euros, e mais de 2/3 dos jovens recebia menos de 750 euros (CIES/CGTP-IN,
2011: 9) – com escassa proteção social. Quando a canção dos Deolinda refere uma
“geração sem remuneração”, é provavelmente disto que fala. De facto, em Portu-
gal, cerca de 20% dos jovens vivem em risco de pobreza.
4 Cf. em www.multitempo.pt/QuemSomos/Solucoes.aspx
5 Cf em www.randstad.pt/pt-PT/Companies/Solutions/inhouseServices.aspx
6 Cf. em www.atlanco.pt/Clientes/TrabalhoTemporario.aspx
133
CAPÍTULO 5
Para uma parte significativa dos jovens, em épocas anteriores, a transição para
a vida adulta fazia-se de uma forma linear, tendo como marcadores fundamentais
o emprego e a constituição de família. Para aqueles que podiam aceder a níveis
maiores de qualificação, a educação era entendida como uma etapa anterior à in-
serção no mundo do trabalho que garantia a ocupação de posições de relativa esta-
bilidade e remuneração. Hoje verificamos o estilhaçar dessa lógica de linearidade
e a sua substituição por permanentes “voos de borboleta” e movimentos de “iô-iô”
(para recorrer às expressões de Machado Pais), em que períodos de formação e
períodos de trabalho se alternam, em que se multiplicam percursos marcados pela
pluratividade e pela acumulação e fragmentação de estatutos, em que a correspon-
dência entre a formação adquirida e o emprego obtido deixa de ser evidente. A fase
de transição não só é múltipla, como se prolonga através da extensão de uma nova
fase de vida, a pós-adolescência.
Em Portugal, a inserção laboral dos jovens é longa, penosa e complexa. Inser-
ção profissional difícil, trabalho desqualificado apesar da subida das habilitações,
falta de correspondência entre qualificações e habilitações, precariedade e baixos
salários, eis o que a define. De acordo com um estudo realizado em 2011, os jovens
têm de esperar em média 20,4 meses desde que terminam a escolaridade até terem
o primeiro trabalho, com uma duração de pelo menos três meses7. (CIES e CGTP-
-IN, 2011: 7-10). O tempo de inserção para um emprego permanente é, em média,
de 10 anos desde a saída da escola.
Apesar de ter uma correspondência com os dados, a força da canção dos De-
olinda não estará tanto, provavelmente, no facto de identificar as dificuldades do
acesso ao trabalho, mas mais no modo como exprimiu as consequências dessa
precariedade laboral em termos de existência e de projeto de vida. Isto é, a forma
como deu voz a uma “geração casinha dos pais” que “está sempre a adiar” os seus
projetos. Na verdade, a inserção subalterna no mercado laboral compromete a au-
tonomia e exige disposições marcadas pela necessidade de adaptação permanente
e por um “novo contrato psicológico”, baseado em compromissos de curto prazo
(Lewis et al., 2002), que limita fortemente a emergência de preocupações coletivas
e de planos para além de um curto horizonte temporal.
7 No caso dos jovens com menos qualificações, esse período de espera alonga-se até aos 26
meses; no caso dos jovens licenciados, ele reduz-se aos 9,6 meses (CIES/CGTP, 2011).
134
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
135
CAPÍTULO 5
136
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
2011: 14). Uma das explicações para o desemprego dos jovens licenciados relacio-
na-se com o efeito combinado de um mercado de trabalho com poucos empregos
qualificados, do estancamento das admissões na Administração Pública (tradicio-
nalmente, o maior empregador de pessoas com ensino superior) e dificuldades as-
sociadas a algumas áreas de formação em particular (nomeadamente nas ciências
empresariais e humanidades).
137
CAPÍTULO 5
138
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
139
CAPÍTULO 5
Nas mobilizações de 2011, muitos jovens, alguns dos quais nunca conheceram
se não a crise e despertaram agora para a participação e o protesto, juntaram-se
em uma mesma dinâmica de contestação com ativistas de organizações políticas,
de movimentos sociais e de coletivos que se vêm formando nos últimos anos em
torno de questões como o combate à precariedade laboral, a defesa da democracia
participativa e a luta contra as discriminações.
No que diz respeito ao 15M espanhol, Carlos Taibo (2011: 19-44) identifica vários
fatores desta mobilização. O exemplo da Primavera Árabe, com o seu poder simbóli-
co, a reabilitação da palavra democracia e a demonstração de que era possível ganhar,
mesmo em condições adversas. Os acontecimentos em Portugal e na Grécia (contra a
austeridade) ou, em outro contexto, na Islândia. A crise geral instalada, com corrup-
ção, rotativismo político, benefício para a banca e o setor financeiro, cortes sociais,
desemprego, degradação das condições de vida e empobrecimento da classe média.
A situação nas universidades e o crescente recurso ao endividamento. O trabalho de
anos de movimentos sociais alternativos, nos quais se inclui a galáxia de movimentos
anticapitalistas e libertários (feministas, ecologistas, centros sociais ocupados, sindi-
catos alternativos, etc), mas também as experiências como a da plataforma Nunca
Mais na Galiza (contra o desastre do petroleiro Prestige), os movimentos contra Bo-
lonha no ensino superior, os movimentos contra os despejos e pelo direito à habitação
ou o movimento Juventud Sin Futuro, que convocou para Madrid a primeira mani-
festação da “geração dada como perdida pelas elites políticas e económicas”, antes do
15M, a 7 de abril de 2011 (cf. AAVV, 2011).
Em Portugal, a explosão de 2011 também não pode ser analisada sem determos
a nossa atenção – ainda que brevemente – nos movimentos que desde há alguns anos
vêm intervindo em torno destas causas e que, neste ciclo de protesto, foram uma com-
ponente importante das mobilizações. Vale a pena uma breve referência à sua história.
140
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
8 Cf. em http://www.premiosprecariedade.net/
9 http://www.premiosprecariedade.net/autsp/
141
CAPÍTULO 5
10 Cf. em www.antesdadividatemosdireitos.org
142
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
143
CAPÍTULO 5
11 Michael Moore interveio no Left Forum, decorrido entre 16 e 18 de março de 2012 em Nova
Iorque, onde apresentou este ponto de vista.
144
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
145
CAPÍTULO 5
146
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
e, em particular, contra o governo de então, liderado por José Sócrates. Isso pode
explicar a facilidade com que, quando perceberam que a dinâmica da manifesta-
ção era imparável, setores liberais (que incluíram o Presidente da República ou a
JSD) se tenham tentado associar ao protesto, mesmo que, do ponto de vista da eco-
nomia e do trabalho, não tivessem nenhuma identificação com os termos do ma-
nifesto. Em uma análise das folhas entregues pelos manifestantes no Parlamento
(cada pessoa foi convidada pelos organizadores a levar uma folha consigo, onde
escrevesse um problema e uma solução), verifica-se que 57% das folhas reclama-
vam contra a precariedade, as questões do emprego, do desemprego e os salários,
enquanto 28% dirigiam as suas criticas à corrupção e ao sistema político12.
Apesar do manifesto espanhol ser amplo e articular a crítica ao bipartidarismo,
com a defesa dos direitos sociais e económicos, a verdade é que, do ponto de vista
mediático, parece ter sido dado particular destaque a um manifesto, da autoria de
um dos grupos de trabalhos da Porta do Sol – o da “política de curto prazo” – cujas
exigências foram resumidas em quatro pontos: reforma do sistema eleitoral, luta
contra a corrupção, melhorias em termos da divisão e independência dos poderes e
controlo sobre os responsáveis políticos. Em termos de palavras de ordem, contudo,
o 15M teve uma presença forte de slogans não apenas contra os dois partidos do po-
der (“pésoe, pépe la misma mierda es!”), mas também contra banqueiros, empresá-
rios e até sindicatos maioritários, considerados cúmplices de algumas das reformas
laborais em curso (“donde estan, no se ven, comisiones e ugeté”).
No caso do Occupy, o alvo principal foi Wall Street, como símbolo do sistema
financeiro dominante e do modo como sequestrou o conjunto dos direitos sociais
e o governo. O facto do manifesto enumerar aquilo que “eles” fizeram permitiu
também que, na presente fase, o movimento se tenha multiplicado em iniciativas
sobre cada uma das instâncias onde essa desigualdade se produz, sejam empresas
que promovem o desemprego, bancos que despejam pessoas das suas casas, uni-
versidades que endividam estudantes, empresas que impedem genéricos ou censu-
ram conteúdos, ou o complexo industrial-militar (Butler, 2012: 11).
No dia 17 de março de 2012 fez seis meses que o movimento Occupy nasceu em
Zucotti Park. Nesse fim de semana, voltou-se à praça, desocupada desde novembro.
Festejou-se, debateu-se, cantou-se. Mas as regras tinham mudado: na praça, que é
propriedade privada, foi afixada uma placa de metal a dizer que é expressamen-
12 Cf. em http://12mporto.files.wordpress.com/2011/03/temas.png.
147
CAPÍTULO 5
148
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
A questão passa, cremos, por saber como conceber uma intervenção no campo
político que não seja domesticada, que vá para além da celebração da comunhão e
que não caia na armadilha daquilo a que Daniel Bensaïd (2010) chamava de “ilusão
social”. Tal como a “ilusão política” – criticada por Marx – consistia em considerar
que os direitos civis bastavam para conseguir a emancipação da humanidade, essa
“ilusão social” corresponde à ideia da autossuficiência dos movimentos, fazendo o
“eclipse da razão estratégica”, dissolvendo o político no social e evitando a discus-
são sobre as diferentes escolhas estratégicas que estão em jogo.
149
CAPÍTULO 5
talismo? Que novo tipo de liderança?”. Na verdade, o debate passa pelo confronto
ou pela complementaridade entre a luta nas suas diversas formas (social, política,
sindical, institucional...) e as estratégias mais apologistas do exílio, da fuga, da
distância face ao aparelho de Estado que recusa, de facto, o seu afrontamento. E
por saber se essas estratégias de exílio, ao mesmo tempo que podem multiplicar
energias transformadoras, não conduzem também, paradoxalmente, ao isolamen-
to, à celebração da impotência e da derrota por antecipação e, até, a uma forma de
desistência.
Uma das críticas que mais se fizeram a estes movimentos foi a de “não terem
reivindicações”. Uma breve consideração dos manifestos, resoluções aprovadas e
iniciativas subsequentes bastaria para contradizer esta ideia. Mas é verdade que o
próprio movimento é atravessado por respostas diferentes a este problema.
Uma resposta possível consiste, basicamente, na assunção de que a inexistên-
cia de uma lista de reivindicações não é defeito, mas é feitio do movimento. Judith
Revel, por exemplo, considera que o problema é a ordem do discurso político mo-
derno que, ao ser formada por manifestos, contratos e programas, cataloga ime-
diatamente como “pré-político” ou “infrapolítico” aqueles que não se exprimirem
nesses termos13. Judith Butler (2012), por seu lado, considera que o movimento
Occupy nunca poderia ser compreendido através de uma “lista de reivindicações”,
uma vez que “uma lista não explica como é que essas reivindicações estão ligadas
umas às outras”, e que a grande questão que o movimento coloca é o crescimento
das desigualdades sociais e económicas que atravessam todas as reivindicações
específicas. Mais ainda, insiste que as várias lutas do movimento (contra o poderio
do sistema financeiro, o endividamento dos estudantes, o direito à habitação...)
não podem ser separadas umas das outras. Ao dirigir-se ao sistema económico
enquanto estrutura, essa opção evita assim, para Butler, que se possam cooptar
reivindicações ou fazer “pequenos ajustamentos” ao sistema que se contesta. Por
outro lado, não formular essa lista parte também do não reconhecimento da legi-
timidade por parte das autoridades a que tal lista se poderia dirigir – nomeada-
mente as que garantem que as instituições, para as quais qualquer transformação
sistémica não é negociável, têm o monopólio da política (Butler, 2012: 9-11).
13 O argumento foi apresentado em uma conferência em Lisboa sobre “a política das palavras”,
emum seminário organizado pela Unipop em janeiro de 2012.
150
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
Para Taibo (2011), o debate espanhol sobre a questão das reivindicações e das
propostas pode ser caracterizado em três linhas. A primeira, dos jovens indig-
nados, inclinaria-se para a elaboração de propostas concretas e parciais dirigidas
ao Estado e às instituições. A segunda, mais apoiada pelos movimentos alterna-
tivos e pelas correntes libertárias, defenderia essencialmente a criação de espaços
de autonomia à margem do sistema, sem se dirigir ou reconhecer as autoridades
existentes como legítimas. A terceira posição, de compromisso, seria entender a
elaboração de propostas pelo movimento como dirigidas não tanto às autoridades,
mas aos cidadãos, isto é, ao debate e à construção do próprio movimento a partir
de um programa.
Em uma complexa combinação destas várias posições, têm saído destes mo-
vimentos reivindicações e agendas. No caso espanhol, as propostas “cidadanistas”
sobre o sistema eleitoral fazem caminho, ao mesmo passo que a criação de espaços
de autonomia se descentraliza. No caso norteamericano, o movimento atraves-
sa uma fase de disseminação e multiplicação, enraizando-se mais localmente e
sendo referência para campanhas que envolvem movimento estudantil, sindical e
popular, sobre a questão do endividamento dos jovens, da habitação ou da taxação
do capital financeiro. No caso português, um conjunto de movimentos lançou a
Iniciativa Legislativa de Cidadãos – a Lei contra a Precariedade – que envolveu
milhares de assinaturas em torno de uma proposta concreta que, ao mesmo tem-
po, põe em causa a lógica profunda dos processos de precarização, que são o traço
do capitalismo e da política da austeridade no campo laboral.
151
CAPÍTULO 5
festos, subversão dos símbolos dos antagonistas dos movimentos, ataque às sedes
virtuais das instituições que se contestam (através do hacking dos seus sítios web),
bloqueios de determinadas vias de comunicação (no ciberespaço). O exemplo dos
Adbusters ou da rede Anonymous são eloquentes a este respeito.
Algumas correntes olham para a net como utopia neolibertária e paradigma
de uma nova forma de organização dos próprios movimentos. Ela seria uma con-
cretização do conceito de rizoma avançado por Deleuze e Guattari, em uma mo-
bilização que não anseia ter propriamente um centro ou programa, mas múltiplos
nós e experiências de organização social alternativa. Negri e Hardt utilizam a aná-
lise da lógica de rede das novas tecnologias para rejeitar as formas de organização
centralizadas e defender que as resistências da multidão pós-fordista se articulam
em rede para desagregar a autoridade em relações de colaboração (Negri e Hardt,
2005: 93). Harry Cleaver (1999) propõe, em alternativa à metáfora da rede (que
pressupõe a existência de nós, isto é, de organizações) ou do rizoma (que tem um
lugar a partir do qual vai crescendo), a metáfora da água, cuja fluidez é mais apro-
priada para descrever este tipo de luta, que está à superfície e nas profundezas,
ora corre mais depressa ora mais devagar, ora mais quente ora mais fria, que por
vezes até congela e cristaliza, mas para voltar logo depois ao estado líquido e fluir
sempre, impossível de controlar ou fixar.
É verdade que a net e as redes sociais foram o espaço e o dispositivo a partir
do qual estas mobilizações tiveram origem, seja no caso espanhol, português ou
norteamericano. É igualmente certo que a sua estrutura transformou o ambiente
e os processos de tomada de decisão, as formas de pensar (marcadas pela lógica
hipertextual) e de comunicar (o tipo de mensagem, os seus formatos e suportes),
mas não anulou distorções nem relações de poder. Não é demais lembrar, contra
alguma euforia e algum determinismo tecnológico, que a causa das revoluções
árabes ou das praças europeias da indignação não foram o Facebook e o Twitter,
mas o desemprego, o poder autoritário e a falta de futuro. A articulação tensa entre
o mundo online e offline é uma constante nestes movimentos. Onde devem as pes-
soas encontrar-se, na net ou na praça? E onde se tomam decisões? Qual o espaço
mais representativo e aberto? A combinação do tempo lento de uma assembleia
geral em uma praça e o tempo rápido da comunicação online, ou entre as dife-
rentes legitimidades de cada espaço nem sempre é fácil. Por último, a questão das
desigualdades no acesso e utilização também é problemática, nomeadamente em
países como Portugal. O debate sobre o efeito de exclusão que a internet também
induz (do ponto de vista geracional, de classe e de cultura), amplificando proces-
sos de discriminação, está longe de se considerar resolvido.
152
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
Um dos debates estratégicos mais importantes passa por saber que tipos de con-
vergências existem ou podem desenvolver-se entre estas novas dinâmicas de mobili-
zação e as organizações e movimentos, sejam os sindicatos, seja o que se convencio-
nou designar, a partir das décadas de 1960/70, de “novos movimentos sociais”.
Algumas análises sociológicas tendem a salientar aquilo que distingue, em
termos de características e protagonistas, os “velhos”, os “novos” e os “novíssimos”
movimentos. Contudo, é interessante problematizar estas tipologias. Os “novíssi-
mos” movimentos combinam elementos de uns e de outros e têm a particularida-
de de terem trazido de novo as questões materiais, do trabalho e do emprego, para
o centro da agenda e das preocupações. No caso norteamericano, por exemplo,
apesar de os sindicatos estarem fora dos circuitos ativados pelos Anonymous e pe-
los Adbusters, foram dos primeiros a marcar presença no Occupy e até a finan-
ciar o movimento (o que levou a que alguns manifestantes classificassem o seu
contributo como “presents more than presence”). As semelhanças entre o Occupy
Wall Street e as ocupações em Wisconsin, impulsionadas por organizações sindi-
cais, ou as assembleias gerais do New York Against Budget Cuts, mostram como
entre os precursores destes novíssimos movimentos encontram-se organizações
e campanhas mais “antigas”. Entre setembro e outubro de 2011, Occupy e movi-
mento sindical convergiram através de marchas (27 de setembro, 5 de outubro)
que juntaram os ocupantes de Wall Street com a Associação de Pilotos, o sindicato
dos transportes de Nova Iorque ou o sindicato das enfermeiras, que prestou apoio
médico nas praças. Em Oakland, houve até uma greve geral de um dia contra a
agressão de um dos ativistas do Occupy (Dyer-Witheford: 2012).
Em Portugal, muitos dos principais dinamizadores da Geração à Rasca
(M12M, Precários Inflexíveis e outros) participaram em ações com a CGTP e ape-
laram à presença dos “jovens indignados” na greve geral de novembro de 2011. O
apelo por parte desses movimentos para que houvesse manifestações no dia da
greve foi, aliás, um fator de condicionamento da central sindical, que acabou por
decidir, pela primeira vez, que as greves gerais teriam de ter uma expressão de
rua para além dos piquetes. Defendendo uma convergência destes diferentes seto-
res, Alex Callinicos ou Nick Dyer-Witheford realçam a necessidade de combinar a
ocupação do espaço público com a ocupação do espaço de produção e do tempo da
acumulação, “the squares and the strikes” – sendo a greve, para utilizar a expres-
são de Paul Virilo, essa “barricada no tempo”. Em defesa da convergência, que será
sempre tensa e difícil, vale a pena lembrar também que entre “velhos”, “novos” e
153
CAPÍTULO 5
Bibliografia
AAVV, Juventud Sin Futuro. Barcelona: Icaria.
ALVES, Nuno de Almeida; Cantante, Frederico; Baptista, Inês; Carmo, Renato Miguel (2011),
Jovens em Transições Precárias. Trabalho, quotidiano e futuro. Lisboa: Editora Mundos Sociais.
ALVAREZ, Klaudia; GALLEGO, Pablo; GÁNDARA, Fabio; RIVAS, Oscar (2011), Nosotros, los
indignados. Barcelona: Destino.
154
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
BECK, Ulrich (1992), Risk Society: Towards a New Modernity. London: Sage Publications.
BENTO, Vítor (2009), Perceber a Crise para Encontrar o Caminho, Lisboa: Bnomics.
BOLTANSKY, Luc; CHIAPELLO, Ève (1999), Le Nouvel Esprit du Capitalisme. Paris: Galli-
mard.
BUTTLER, Judith (2011), “Bodies in Public”, in Occupy. Scenes from Occupied America. New
York: Verso.
BUTLER, Judith (2012), “So, what are the demans? And where do they go from here?”, in Tidal.
Occupy Theory, Occupy Strategy. Issue 2. Março de 2012.
CASTEL, Robert (2009), La Montée des Incertitudes. Travail, protections, statu de l’individu.
Paris: Seuil.
CHAUVEL, Louis (2008), “L’horizon obscurci des jeunes générations”, in Stéphane Beaud, Jo-
seph Confavreux e Jade Lindgaard (dir.), La France Invisible, Paris, La Découverte.
CLEAVER, Harry (1999), “Computer-linked Social Movements and the Global Threat to Capi-
talism”. Paper apresentado no seminário “Computers, Networks and the Prospects for Euro-
pean and World Security,” Rovereto (Trento), Italy, August 13. Disponível em https://webspace.
utexas.edu/hcleaver/www/polnet.html
DAGNAUD, Monique (2011), Generation Y. Lês jeunes ET lês réseaux sociaux, de La dérision à
La subversion. Paris: Presses de Sciences Po.
DIAS, Hugo (2009), “Eppur si muove: Trabalho e Sindicalismo no Século XXI”. In Revista Ví-
rus, nº 5, Janeiro/Fevereiro de 2009.
ESTANQUE, Elísio (2012), A Classe Média: ascensão e declínio. Lisboa: FFMS/Relógio d’Água
Editores.
155
CAPÍTULO 5
EUROSTAT (2010), “51 million young EU adults lived with their parent(s) in 2008”, Statistics
in foucs 50/2010, disponível em www.epp.eurostat.ec.europa.eu [consultado em 14 de Janeiro
de 2012]
GUERREIRO, Maria das Dores; ABRANTES, Pedro (2007), Transições Incertas. Os jovens Pe-
rante o Trabalho e a Família. Lisboa: CITE.
HARDT, Michael e NEGRI, António (2005), Multidão. Guerra e Democracia na Era do Impé-
rio. Porto: Campo das Letras.
IEFP (2011), “Análise dos Principais Indicadores do Sector do Trabalho Temporário – ano
2010”. IEFP: Novembro de 2011
KOVÁCS, Ilona (org.) (2005), Flexibilidade de Emprego: riscos e oportunidades. Oeiras: Celta
Editora.
KRUGMAN, Paul (2011), “The Austerity Delusion”, in New York Times, 24.03.2011.
LEITE, António Nogueira (2010), Uma Tragédia Portuguesa – Toda a Verdade sobre o Estado da
Nossa Economia. E uma Saída Possível, Lisboa: Lua de Papel.
OIT (2011), Global “Employement Trends for Youth update”, disponível em www.ilo.org [con-
sultado em 29 de Janeiro de 2012]
PINTO, António Costa; MAGALHÃES, Pedro; SOUSA, Luís (2012), “Principais resultados do
estudo do Barómetro da Qualidade da Democracia do Instituto de Ciências Sociais da Univer-
sidade de Lisboa, com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Fun-
dação Calouste Gulbenkian”. Disponível em http://www.atam.pt/index2.php?option=com_
docman&task=doc_view&gid=1017&Itemid=42
PINTO, José Madureira (2005), “Precarização e relações de sentido no espaço social do traba-
lho”, comunicação no Encontro Científico Internacional Trabalho, Emprego e Precariedade
Laboral. In www.maydayporto.blogspot.com
SANTOS, Boaventura de Sousa (2011), Portugal. Ensaio contra a autoflagelação, Coimbra: Al-
medina.
SEVILLA, Carlos; FERNADEZ, Joseba; URBÁN, Miguel (2012), ¡Ocupemos el mundo!, Ma-
drid: Antrazyt.
STIGLITZ (2010) , “Austerity cutbacks are an economic ‘disaster”, The Telegraph, 08.09.2010
156
“Perdi o emprego, encontrei uma ocupação” Juventude, precariedade, indignação e o novo ciclo de protesto global
ZIZEK, Slavoj (2011), “Don’t fall in Love by yourselves”, in Occupy. Scenes from Occupied Ame-
rica. New York: Verso.
157
CAPITULO 6
Renan Araújo1
N
o Brasil, as transformações no sentido da “superação/conservação” da
anterior estrutura fabril taylorista-fordista a partir da década de 1990,
particularmente da montadora de ônibus e caminhões situada na cidade
de São Bernardo do Campo - objeto de nosso doutoramento e aqui tomada como
referência para a elaboração deste artigo - se por um lado, forjaram um operário
de novo perfil, o metalúrgico jovem-adulto flexível, por outro, mantiveram intac-
tos diferentes aspectos organizativos e produtivos relativos à anterior organização
científica do trabalho.
Visto assim, temos que a emergência desse novo segmento operário relaciona-
-se às novas estratégias de gerenciamento assentada no binômio coerção/consenti-
mento, essência dos novos cânones de gestão de pessoas introduzidas restritamen-
te pelo trabalho flexível nos anos 80, estratégia disseminada no Brasil ao longo das
duas últimas décadas.
No caso da empresa em tela, a introdução de novas tecnologias seguiu uma
dinâmica seletiva e as células de produção não romperam, mas apenas deram novo
formato (em “U”) à linha de montagem anteriormente encontrada. A semiauto-
nomia das células de produção, a exigência em relação à qualificação profissional,
a relação entre pessoal do chão de fábrica e a direção, conformaram-se enquan-
to processos sociais impregnados de manipulações da subjetividade operária. A
2 Sobre essa temática temos que “[...] não é uma questão do que este ou aquele proletário, ou
mesmo o proletariado todo, no momento, considere como sua meta. É uma questão do que
o proletariado é, e o que, de acordo com este ser, ele historicamente será forçado a fazer. Sua
meta e sua ação histórica são previstas irrevogável e claramente em sua própria situação de
vida, como também em toda organização da sociedade burguesa. [...] a consciência pode ser
colocada a serviço da vida alienada, da mesma forma que pode visualizar a suplantação da
alienação” (Mészáros, 1993: 75-79).
160
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
Com base nas reflexões desenvolvidas por Agnes Heller (1989), a cotidiani-
dade é insuprimível, é parte constituinte e insubstituível da dimensão da história
humana. Ao mesmo tempo, é no âmbito da vida cotidiana que o imediatismo con-
verte o “útil” em “verdadeiro”, os critérios adotados na definição das prioridades
em nosso dia a dia são determinados pela sua praticidade, por sua funcionalidade
capaz de mobilizar os homens premidos pelas “escolhas objetivas”, dito de outra
forma, pelas contingências inerentes à cotidianidade.
Sob o domínio das relações sociais correspondentes às formas de sociabilidade
à época do capital, não só sua atividade vital (o trabalho) vê-se convertida em fardo
conforme indicou Karl Marx (2004), mas a própria “satisfação” de suas necessida-
des calcadas em ações imediatas e fetichizadas, por fim, desnudam que a “obje-
tivação” estranhada é negadora do humano-genérico, pois suas ações cotidianas
161
CAPÍTULO 6
“A vida cotidiana é a vida de todo homem [...] é a vida do homem por intei-
ro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de
sua individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se “em funciona-
mento” todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas
habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. O
fato de que todas suas habilidades se coloquem em funcionamento deter-
mina, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe,
em toda sua intensidade. O homem da cotidianidade é atuante e fluidor,
ativo e receptivo, mas não tem nem tempo nem possibilidade de se absolver
inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguçá-los em
toda sua intensidade (Heller, 1989:17-18).
162
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
3 Gilberto Franca (2007), tomando como referência o valor 100, demonstra que nas indústrias
automobilísticas temos as seguintes faixas salariais: SBC/SCS (100), S.J.C (96.8), Curitiba
(73.1), Sumaré (55.6), Caxias do Sul (53.8), Indaiatuba (53.0), Betim, (48.6), S.J. dos Pinhais
(47.7), Resende/P.Real (4.,0), Juiz de Fora (41.8), S. Carlos (41.4), Gravataí (41.1), Camaçari
(30.4), Sete lagoas (22.8), (Franca, 2007:109-110).
163
CAPÍTULO 6
164
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
“Todas as férias que eu tirei quando eu estava na faculdade, foi pra estudar
pra faculdade porque eu precisava de tempo pra estudar, eu precisava pas-
sar de qualquer jeito [...] precisava do dinheiro das férias pra cobrir minhas
dívidas, isso daí é uma coisa normal. Quem trabalha na empresa e estuda,
é difícil pagar uma faculdade de mil reais por mês... somando aos gastos
que você tem com livros, condução, alimentação... eu diria pra você que
tem muitos lá (na empresa) nessa situação e que estão endividados hoje”
(grifo nosso).
“A sociabilidade capitalista que despontou no Brasil nos anos 1990 vem de-
mandando uma educação capaz de conformar o “novo homem” de acordo
com os pressupostos técnicos, psicológicos, emocionais, morais e éticos-
-políticos da flexibilização do trabalho” (Falleiros, 2005: 211).
165
CAPÍTULO 6
Técnico administrativo
Especializados 6.740 30,90% do total 23,55% do total
3.061
Operadores
Qualificados 10.660 48,88% do total 70,60% do total
9.175
Semi qualificado
10,08% do total ___________ -------------------
2.199
2,74%
Aprendizes 599 Aprendizes 312 2,40% do total
do total
Fonte: Relatório Social da empresa, entre os anos 1989 e 2004. Quadro nosso.
*Com o processo de reestruturação das empresas do grupo, concomitantemente
ao processo de enxugamento de pessoal, ocorreram mudanças nas nomenclaturas
que definem o nível de qualificação profissional.
Com base nos dados apresentados no quadro acima, é possível apreender que os
níveis definidores do grau de qualificação profissional da empresa reestruturada guar-
dam íntima relação com a emergência da nova composição operária, identificada atra-
vés das novas nomenclaturas. Ao analisar a qualificação profissional dos seis diferentes
níveis arrolados em 1989, temos que, em 2004, esses níveis haviam sido reduzidos a
quatro somente: executivos, técnicos administrativos, operadores e aprendizes.
Na verdade, temos que para além de meras designações profissionais, as novas no-
menclaturas não só indicam uma relativa superação do velho padrão de organização
vertical taylorista/fordista, mas o movimento incessante da empresa que, no decorrer
do processo de reestruturação, perseguiu sistematicamente alguns objetivos considera-
dos estratégicos, conforme definição do seu “Projeto Fábrica 2000” 4, a saber:
166
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
167
CAPÍTULO 6
168
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
169
CAPÍTULO 6
170
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
Sugestivo o conteúdo da fala acima, pois se verifica que na fábrica - tal qual te-
mos afirmado – a tônica do processo de mudanças procurou conjugar a formação
das células de produção à aquisição seletiva de novas máquinas e equipamentos.
Nesse caso, subordinando os aspectos tecnológicos das mudanças e compa-
tibilizando-os com o uso mais intenso da força de trabalho, a empresa fez des-
sa estratégia uma prática que possibilitou reestruturar-se, reduzindo sempre que
possível os custos da inovação, pois não priorizou investimentos em capital fixo.
É interessante observar que as mudanças propriamente ditas estiveram centradas
nos aspectos relativos à inovação organizacional, através da introdução seletiva
das células de produção, do TPM, dos 5s e dos kaizens5.
171
CAPÍTULO 6
imprescindível à aplicação dos princípios e fundamentos expressos pelos 5s, pois, cuidam
da organização das manufaturas celulares com o mesmo zelo com que cuidam de suas casas.
Além do que, sua presença contribuiu para que não se perca tempo em conversas e “deva-
neios” típicos dos lugares que contam somente com a presença masculina. Cabe notar tam-
bém que a aplicação desses princípios, no seu conjunto, na sua forma combinada, promove
uma verdadeira mobilização operária, cujo engajamento se converte em um processo que,
assentado na cooperação, resulta em maiores ganhos de produtividade, ou seja, trata-se de
um processo bastante favorável à lógica reestruturante do capital.
6 Nome dado às paralisações-relâmpagos (tentativa de sabotagem) ocorridas em 1996-97. Or-
ganizadas pela Comissão de Fábrica, essas ocorriam em setores onde a empresa planejava
e desenvolvia, sem consulta, a formação de grupos de trabalho, manufatura celular ou kai-
zens. Nessa operação, a representação sindical procurava pressionar no sentido de garantir
algum tipo de influência sobre processos já previamente definidos. A partir do segundo
semestre de 1998 a empresa aceitou negociar.
172
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
“Durante os períodos das aulas eu não tinha tempo pra nada, quando eu
estava na faculdade eu não tinha tempo pra nada [...] Quando eu fazia fa-
culdade não tinha tempo pra muita coisa, eu saia da empresa... jantava ali
na empresa mesmo, tomava um banho já ia direto pra faculdade. Eu che-
gava na faculdade em torno de seis e vinte... chegava uma hora antes, pre-
parava algum relatório que tinha que entregar... tinha muito relatório pra
entregar... muita lição, estudava alguma coisa. As aulas começavam às sete
e dez, ia até vinte duas e quarenta. Quando chegava em casa eu preparava
algumas coisas pro dia seguinte... a faculdade foi muito corrida. Era neste
horário de segunda a sexta. Aos sábados de manhã, da sete e vinte até meio
dia e quarenta. Sábado eu tinha aula de manhã, depois ia direto pro curso
de inglês [...] Eu gostava de fazer cursos de matemática aplicada, então era
domingo de manhã das sete e meia ate duas horas e meia, três horas da tar-
de... tinha aula de oito horas... tinha que levar marmita (risos....), [...] Isso
foi de 1998 até o ano passado (2006) [grifo nosso]”.
173
CAPÍTULO 6
“Sempre dormi pouco, sempre dormi no máximo seis horas por noite. Eu
organizo o tempo pela empresa, quando saio da empresa... fico das oito da
manhã até cinco da tarde, venho pra casa [...] Durante o período das aulas
eu não tinha tempo pra nada, quando eu estava na faculdade eu não tinha
tempo pra nada” (Relato feito por Jorge).
174
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
Mas o drama de Jorge não termina aqui, desse contexto é que deriva um modo
de vida muito peculiar, cujas múltiplas vivências e situações repercutem na esfera
da sua vida particular: vida em família, lazer, amizade, vida afetiva. É nosso depo-
ente quem novamente relatou:
“Depois que eu me formei eu passei a dar mais valor pra esse tempo. Então
uma coisa que eu não tinha antes e passei a ter é convívio familiar, é ficar
um pouco mais com meus pais”.
175
CAPÍTULO 6
“Desde menina sempre fui criada perto dos meus pais. De repente não os
via mais [...] minha mãe também trabalha [...] não conseguia mais falar
com eles [...] às vezes na escolinha do Senai eu ficava chorando [...] sentia a
falta deles, depois isso passou [...] na fábrica a gente amadurece mais cedo”.
176
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
“Lazer eu não tive... uma vez ou outra, quase nunca ia ao cinema com as
amigas...eu não tive rotina de lazer, nos finais de semana eu estudei... vez ou
outra eu vejo alguém [...] Durante um tempo eu senti bastante falta, mas eu
fui me adaptando... eu vi que era a escolha que eu tinha feito [grifo nosso]
[...] não é que eu não tinha lazer. Eu podia fechar os meus livros e ir pro meu
lazer, mas eu tinha trabalhos pra entregar, eu tinha textos pra ler [...] eu não
conseguia largar minhas coisas pra ir jogar bola, ir à festa, ir na balada... sa-
bendo que na segunda o professor ia discutir o texto tal e eu não tinha lido,
ou que tinha que entregar um trabalho e eu não tinha feito. Então eu foquei
no meu trabalho e.... eu cheguei a um ponto de me acostumar com isso”.
177
CAPÍTULO 6
“Eu conhecia ela durante um tempão, namorei com ela [...] mas o namoro
terminou aos vinte e três anos [...] Nessa época a gente se via uma vez por
semana ou duas [...] quando tinha tempo eu ia buscar ela no trabalho dela
[...] às vezes eu saia a noite da faculdade ia buscar ela, levava ela pra casa [...]
era atribulado sim, mas a gente sempre dava um jeito de se ver [...] o meu
trabalho e meu estudo nunca foram um empecilho para o meu relacio-
namento, meu namoro com ela [grifo nosso]. Acho que quando as pessoas
querem se ver elas se veem simplesmente. Mesmo quando eu tenho que
estudar para uma prova, de repente ela aparece aqui do meu lado, eu estudo
aqui, ela tá aqui, mas não me atrapalha não. A gente dá um jeito, é isso que
eu quero dizer... a gente dá um jeito”.
Ensina-nos a Igreja Católica que todos aqueles que morrem na graça e na ami-
zade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenha garantida
a sua salvação eterna, passam, após sua morte, pela purificação a fim de obterem a
santidade necessária para entrarem na alegria do Céu. Eis aqui o sentido do pur-
178
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
179
CAPÍTULO 6
Do relato acima, podemos apreender ainda que, mesmo obtendo maior tem-
po de estudos/qualificação profissional, tal qual demonstramos anteriormente, a
competição entre os operários, potencializada pela dinâmica da fábrica reestru-
turada ao receber o jovem-adulto flexível formado na escolinha Senai, termina
por impor “dores” típicas que nos remetem a aspectos da anterior organização de
trabalho taylorista/fordista.
A esse respeito, instigantes são as observações de Dejours quando assinala que,
180
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
“A gente tem que frisar bem, inicialmente eu não acho que as pessoas usem
qualquer tipo de droga para poder trabalhar, para aguentar o trabalho. Elas
começam usando algum tipo de substância química pra poder relaxar...ele
precisa de alguma coisa que o desligue do trabalho...o trabalho é uma presen-
ça tão intensa na vida do cara, ele ocupa tanto espaço na vida que se você qui-
ser algum momento de sossego, de paz, de diversão, você precisa esquecer o
trabalho... qualquer coisa vale pra você esquecer o trabalho [...] não vai dar pra
você fazer nada se não esquecer todas as obrigações... porque se você estiver
lúcido pra pensar no quanto de coisas que tinha pra fazer e não fez, que vão se
acumular com as coisas que você não vai conseguir fazer também na próxima
semana, você nem dorme... ou então você vai começar a pensar: “vou voltar
pra fábrica, trabalhar sábado e domingo porque.....não dá [...] O problema é
um só, toda substância relaxante tem uma ”meia-vida” longa. Por exemplo,
o cara que sai às 23h30 da faculdade e fuma um ou dois baseados, toma uma
cerveja pra consegui dormir, a tendência dele é ele dormir até às 10h da ma-
nhã, mas ele precisa acordar às 4h... 4h30 ou 5h, então o que acontece é que
ele começa usar alguma coisa que “ligue” ele logo cedo [...] você precisa tomar
alguma coisa que seja estimulante, ai você começa com guaraná em pó, mas
guaraná em pó não dá conta, aí você começa a partir para uma coisa que seja
um pouco melhor [...] o que é natural hoje em dia; as anfetaminas, as sintéticas
principalmente [...] dá uma “turbinada” com esse produto químico. Às vezes
você toma algum estimulante normal, desses produzidos comercialmente, re-
médios que são antidepressivos, tem a capacidade de te estimular um pouco,
e, no limite você... dependendo do seu poder aquisitivo, usa cocaína... que é
o que muita gente cheira para trabalhar. Tanto isso é verdade que nós temos
fábricas hoje no ABC... claro que nós somos contra esse tipo de coisa... mas
que já tem programas de repressão ao uso de drogas, principalmente o uso
de cocaína e maconha. Elas (as empresas) fazem testes aleatórios garantindo
que pelo menos quatro vezes por ano todo mundo seja testado e se for detec-
tado qualquer sinal de uso de qualquer droga (cocaína, maconha ou mesmo
de bebida alcoólica) ele é incluído em um programa de acompanhamento e
monitoramento, chamado entre aspas de “Programa Social de Prevenção de
Dependência Química”, mas que na verdade é um tormento porque a partir
do momento em que o cara (o trabalhador) passou a perder a produção ela (a
empresa) tem toda uma justificativa; “o cara é um dependente químico invete-
rado, embora a fábrica tenha feito tudo... não consegue resolver, então tem que
ser demitido”. [...] uns dez anos... eu acho que uns dez anos... pelo que a gente
tem lido, quer dizer, quando você começa a entrar nessa, é claro que existem
181
CAPÍTULO 6
casos e casos, mas a média seria em torno de dez anos o tempo que a pessoa
leva pra começar a aprofundar a dependência, nesse período ele ganha pro-
dutividade, depois disso se estabiliza por volta de uns quatro, cinco anos....e
começa a cair, por volta de dez anos ele acaba estando com problemas sérios
de conseguir responder àquilo que a fábrica tá querendo dele, isso é o caso do
alcoolismo [...] Hoje o álcool é o mais consumido por um motivo: ele é mais
barato e é legal... já temos um significativo número de pessoas em qualquer
área e em qualquer atividade.... quer dizer, tanto horistas, peão do chão de fá-
brica como mensalista” (depoimento coletado por nós em fevereiro de 2008).
7 Na letra da música intitulada “Vida”, Chico Buarque de Holanda sugere que a vida cotidiana
traz em si um peso descomunal, que colocado sobre os ombros dos indivíduos, obriga-os
a recriar/desejar/projetar, no seu imaginário, momentos de “fuga” em face do pesado fardo
em que se transformou o cotidiano: “Vida minha vida, olha só o que eu fiz. Deixei a fatia
mais doce da vida, na mesa dos homens de vida vazia, mas sei que fui feliz [...] Luz, quero
luz sei que além das cortinas são palcos azuis, e infinitas cortinas com palcos atrás. Arranca,
vida estufa, veia e pulsa, pulsa, pulsa, pulsa, pulsa mais. Mais, quero mais, nem que todos
182
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
Nota-se, pois, que quando analisamos o modo de vida, o teor social contido na
vida “ just-in-time”, vemos que o cotidiano do jovem-adulto flexível é marcado por
um processo de perdas e sofrimentos irreparáveis. Ao olharmos o conjunto, nota-
mos que parte dessas perdas corresponde a determinados momentos específicos
da vida de uma pessoa. As descobertas relacionadas à fase da vivência adolescente-
-juvenil é um típico exemplo: “na fábrica a gente amadurece mais cedo”, conforme
nos relatou Tereza.
Por outro lado, considerando a qualificação profissional e a escolaridade do
jovem-adulto flexível e sua maior “propensão”, “disponibilidade” de adesão às prá-
ticas que buscam o consentimento, o jovem operário tem a preferência da empresa
no instante em que é preciso decidir quem se manterá empregado. Tal processo
induz à luta “insana”, porém explicável - cortar custos -, de “todos contra todos”;
é o momento do “salve-se quem puder”. A fábrica entra em transe, o momento
da catarse se aproxima, acirram-se as disputas entre operários antigos e jovens. É
preciso decidir friamente quem fica e quem sai.
Com isso temos que, se o comportamento dos jovens-adultos flexíveis é de-
finido em função da sua postura “individualista”, suas atitudes refletem aspectos
das condições gerais do presente marcado pelas metamorfoses do proletariado
contemporâneo. Dessa forma, o próprio acirramento do processo de disputas de
“todos contra todos” revela os sentidos e as particularidades das ações dos indiví-
duos ou grupos, que agem premidos pela dimensão objetiva imposta pelo cotidia-
no alienado:
os barcos recolham ao cais. Que os faróis da costeira me lancem sinais. Arranca, vida estufa,
vela me leva, leva longe, longe, leva mais. Vida minha vida, olha só o que eu fiz....”. Na música
“Revanche”, composta e interpretada por Lobão, lemos: “Eu sei que já faz muito tempo que a
gente volta aos princípios, Tentando acertar o passo usando mil artifícios, mas sempre alguém
tenta um salto, e a gente é que paga por isso. Fugimos pras grandes cidades, bichos do mato
em busca do mito, De uma nova sociedade, escravos de um novo rito, Mas se tudo deu er-
rado, quem é que vai pagar por isso? Quem é que vai pagar por isso? Quem é que vai pagar por
isso? Quem é que vai pagar por isso?, Eu não quero mais nenhuma chance, eu não quero mais
revanche, Eu não quero mais nenhuma chance, eu não quero mais ...[...] O café, um cigarro,
um trago, tudo isso não é vício, São companheiros da solidão, mas isso só foi no início, Hoje
em dia somos todos escravos, e quem é que vai pagar por isso? Quem é que vai pagar por isso?
Quem é que vai pagar por isso? Quem é que vai pagar por isso?”.
183
CAPÍTULO 6
184
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
operários antigos, ou por vezes de “conselheiro” dos mais novos. Esse emblemático
operário nos relatou que:
Será que podemos indicar algumas razões que consigam jogar um pouco de
luz sobre esse conflituoso processo relacional entre os novos e os antigos operários
no chão de fábrica? David, nosso depoente, sugere:
“Eu acho assim... o antigo ele começa olhar para trás e vê as mudanças. Na ver-
dade, a época dele era a época do chicote, vamos dizer assim. Então ele começa
a olhar as conquistas que eles tiveram, as lutas que eles passaram, a repressão
que eles sofreram, ele fica desiludido porque as pessoas não os respeitam pelo
que eles fizeram. Então eles passam por um sofrimento interno” .
“Um homem com sua dor é muito mais elegante, caminha assim de lado,
como se, chegando atrasado, andasse mais adiante. Carrega o peso da dor,
como se portasse medalhas, uma coroa um milhão de dólares ou coisa que o
valha. Ópios, edens, analgésicos, não me toquem nessa dor, ela é tudo que me
sobra, sofrer vai ser a minha última obra”.
Por outro lado, o poema “Lápide” poderia ser interpretado como sendo o gesto,
a atitude pragmática imposta pelo cotidiano ao operário jovem-adulto flexível, que,
conhecedor “do purgatório”, encontra-se em luta aberta para ocupar um lugar, ou
alterar para melhor sua posição no interior da fábrica. Para ele, as coisas também
185
CAPÍTULO 6
não são tão fáceis, uma vez que é obrigado a conviver dolorosamente com o proces-
so de desligamento dos antigos. Muitos deles vivenciam essa experiência dentro da
sua própria casa, pois são netos, filhos ou sobrinhos dos antigos operários.
Mais ainda, seu ingresso no Senai se deve, antes de tudo, ao grau de paren-
tesco que o liga à velha-guarda operária. É como se, inconscientemente, de forma
sub-reptícia, seus pensamentos fossem atormentados por uma verdade inconteste,
qual seja: “sem eles (os antigos) eu nem sequer estaria aqui”. Mas não tem jeito: a
cotidianidade exige, antes de tudo, a adoção de posturas objetivas, e o operário
mais novo tem que lutar para assegurar uma vaga, um “pedacinho de céu”. Pre-
mido pelas circunstâncias, ele tem que tomar uma atitude. Suas defesas desabam,
abrem-se os flancos e o capital sorrateiramente faz valer a máxima pragmática, se-
gundo a qual é preciso “eliminar excessos” (eis aqui o revival da descartabilidade).
Sob o impacto de tais circunstâncias, o jovem operário, movido por sentimentos
confusos, porém pragmáticos, rende-se.
Em uma espécie de desabafo/desespero, é como se declamasse: “podem ficar
com a realidade, esse baixo astral, em que tudo entra pelo cano, eu quero viver de
verdade, eu fico com o cinema americano”. Portador de aptidões profissionais e
atitudes condizentes com as exigências do mercado de trabalho - particularmente
no caso da empresa flexível aqui estudada -, de modo geral, beneficia-se dessa sua
disputa em relação aos antigos, o “capital necessita de sangue novo”.
Ao mesmo tempo - conforme demonstramos -, a condição salarial/material
conquistada após sua efetivação e as reais possibilidades de mobilidade social, nos
limites da sua reprodução enquanto força de trabalho, constitui para essa parcela
da classe operária uma trajetória de “sucesso” disseminada na fábrica da seguinte
maneira, segundo Brandão, jovem operário e ativista sindical; “[...] filho, ó, você
tem que estudar [...] você tem que fazer isso...você tem futuro aqui dentro”.
Por fim, temos que a “sugestão” paterna citada acima, não só explicita o ho-
mem cindido em face do cotidiano alienante/estranhado, mas desvela os vetores
que, compondo nossa sociabilidade contemporânea, retroalimentam o sistema
baseado na exploração da força de trabalho. Talvez seja por essa mesma razão
que a canções interpretadas por Chico Buarque e Lobão, ainda que compostas há
mais duas décadas, mantenham sua vitalidade; “deixei a fatia mais doce da vida,
na mesa dos homens de vida vazia”, eis a cotidianidade estranhada poeticamente,
denunciada por Chico, brecha para que Lobão sarcasticamente indagasse; “mas
quem é que vai pagar por isso?”.
186
Apontamentos sobre o trabalho e a emergência do metalúrgico jovem adulto-flexível no ABC Paulista
Referências bibliográficas
ARAÚJO. Renan B. O modo de vida just - in - time do novo perfil metalúrgico jovem-adulto
flexível do ABC: antigos dilemas, novas contradições e possibilidades. Tese Doutorado - Uni-
versidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras: Araraquara, 2009.
COMIN, Alvaro. De volta para o futuro: política e reestruturação industrial do complexo auto-
mobilístico brasileiro. São Paulo: Annablume: Fapesp, 1998.
FRANCA, Gilberto Cunha. O trabalho no espaço da fábrica. São Paulo: Expressão Popular,
2007.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder.
3oed. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1989.
LEITE, M. P. O futuro do trabalho: Novas tecnologias e subjetividade operária. São Paulo: Scrit-
ta,1994.
MARX, Karl. Crítica da Economia Política, livro 1. V.I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1968.
MÉSZÁROS, Istvám. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boi-
tempo, 2002.
187
CAPÍTULO 6
NETTO, José Paulo. Capitalismo e reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1981.
TOMIZAKI, Kimi A. Ser metalúrgico no ABC: transmissão e herança da cultura operária entre
duas gerações de trabalhadores. Campinas: Arte Escrita, 2007.
188
CAPITULO 7
Bruno Monteiro1
E
ste artigo pretende conhecer os efeitos que o processo de recomposição do
modo de geração do operariado, realizado ao longo das três últimas décadas,
trouxe para os “novos” operários em uma comunidade industrializada do no-
roeste português. Por muito que ainda permaneçam aquém dos níveis de referência
nacionais, os trajectos escolares entretanto prologados contribuem não apenas para
retardar o acesso à fábrica, que é um lugar fundamental para a transmissão, aqui-
sição e confirmação das formas de valor dos “velhos” operários, como ainda para
denegar ao trabalho fabril o estatuto de destino plausível e aceitável, na medida em
que, ao inculcarem sistematicamente os valores culturais oficiais, disseminam aspi-
rações e expectativas que contrastam flagrantemente com as experiências prováveis
associadas ao trabalho fabril. Por seu turno, os processos de precarização social do
operariado, provocados nomeadamente pela transformação dos regimes de domi-
nação gestionária nos locais de trabalho e pela fragilização económica do quotidiano
familiar (como o desemprego ou o endividamento), multiplicam a probabilidade de
ocorrência de uma delegação frustrada da condição operária, pois tornam renitentes
os seus detentores actuais tanto quanto os seus supostos herdeiros. Nestas circunstân-
cias, o surgimento de inéditas modalidades de estilização da vida associadas ao con-
sumo conspícuo (“o dinheiro”) acaba por confirmar a intensidade da deterioração
da grandeza operária localmente enraizada, e por traduzir os sentimentos de (auto-)
aversão e (auto)negação em relação às ocupações fabris e às maneiras de ser operárias.
Realizadas em versões populares dos paradigmas da “juventude” generalizados pelas
instâncias culturais dominantes, estas modalidades de estilização da vida tendem,
190
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
ções feitas da “carreira” oficinal pelos “novos”. Por causa disso, em larga medida,
passou a ser feita uma subalternização da “experiência ao banco” em relação à for-
mação profissional formal e aos empregos “limpos” disponíveis na indústria do
mobiliário (“vendedor”, “comercial”, “empregado de escritório”). Depois, estamos
perante alterações nos projectos concebíveis e acessíveis pelos operários, em que as
orientações dirigidas aos tradicionais postos de distinção local (“ser artista”, “ser
encarregado”, “ser patrão de mim próprio”) sofrem a concorrência das alternativas
(“sonhos”, “ambições”) mais vantajosas prometidas por “fugir ao pó” ou “fora do
serrim”. Realmente, para tirar sociologicamente todas as consequências do reco-
nhecimento da arbitrariedade das divisões etárias, é preciso, para além de admitir
que as separações entre “novos” e “velhos” constituem, tal como as tentativas de
impor, em cada qual, uma definição absoluta da sua unidade social e dos seus in-
teresses comuns, uma parada em disputa entre os especialistas ou instituições que
reivindicam a autoridade de classificação do mundo social, compreender que “os
conflitos de geração opõem não classes de idade separadas por propriedades de
natureza, mas hábitos produzidos segundo modos de geração diferentes, quer dizer,
por condições de existência que, impondo definições diferentes do impossível, do
possível, do provável e do certo, dão a experimentar a uns como naturais ou razoá-
veis práticas ou aspirações, que os outros sentem ser impensáveis ou escandalosas,
e inversamente” (Bourdieu, 2002: 166). Um modo de geração consiste nas condi-
ções sociais de formação das disposições que são contemporaneamente vigentes em
uma determinada localização territorialmente circunscrita (vd. Monteiro, 2011).
A eficácia da força de chamamento da herança operária depende da existência
de herdeiros aptos e propensos a reconhecerem como plausível, como pertinente
ou, inclusive, como necessário esse apelo, manifestando-o como “vontade”, “pai-
xão” ou “motivação” em trabalhar. As possibilidades de gerar a disponibilidade e
a inclinação a “aprender a arte” e acolhê-la, dessa feita, como destino digno de ser
realizado, é, tal como disse, afectada pela intermediação cultural e temporal reali-
zada pela escola: esta adia a entrada no mercado de emprego; reforma as esperan-
ças subjectivas, inocula os arbitrários culturais oficiais; suscita inéditas aspirações
pessoais; e proporciona distintas práticas conviviais e distintivas nos estilos de vida
juvenis. Ademais, ainda pela reestruturação em curso na economia local e da or-
ganização social e técnica do trabalho nas empresas locais, é o que, entre outras
consequências, desmantelou ou encerrou certas “carreiras” do ofício (“entalhado-
res”); programou os dispositivos de controlo da produção no interior das empresas
para obter uma intensificação do esforço produtivo; introduziu inéditas formas de
precariedade económica (desemprego persistente, contratos precários, etc); e levou
a uma diminuição relativa e absoluta das remunerações auferidas pelo trabalho fa-
bril. Paredes, o concelho a que pertence a comunidade industrializada onde realizei
191
CAPÍTULO 7
o meu trabalho etnográfico entre 2007 e 2008, está dotado de um sector industrial
fortemente concentrado em segmentos, com recurso intensivo a mão de obra, em
especial no sector do mobiliário, pautado por um tecido empresarial fragmentado
e perecível, e com uma forte matriz familiar e tradicional2. Da combinação entre
as transformações económicas, culturais e políticas que afectaram globalmente o
espaço social local, nomeadamente no que contribuíram para depauperar e fragi-
lizar em termos objectivos os ocupantes dos posicionamentos operários, surgiram
salientes efeitos nos processos de formação quotidiana do operariado, repercu-
tindo-se subjectivamente - conforme a localização física e social mais precisa de
cada operário - essas formas de precarização económica e subalternidade cultural
contemporâneas. A lógica de cooptação fabril é enervada pela metamorfose nas
estratégias parentais e familiares operárias, que retêm os constrangimentos econó-
micos ligados ao desemprego, à redução dos salários e à flexibilização laboral e que,
portanto, tendem a reorientar os investimentos e as esperanças – sempre prudentes
– de promoção social. Além do mais, o operariado local parece não poder contar
com a potência de outrora, com a existência de um domínio local que reservava a
eficácia de formas de valor autóctones (vd. Monteiro, 2012).
O que torna estrénua e dilemática a delegação e a aquisição da condição ope-
rária é que, actualmente, são os operários que hesitam em onerar os sucessores
2 De acordo com o estudo sobre a Indústria do Mobiliário, elaborado em 2005 pelo Gabinete de
Estudos da Associação Empresarial de Portugal, em 2001, a indústria do mobiliário representava
45,4 por cento do total de activos do sector secundário do concelho de Paredes (e 27,3 por cento
da população activa geral). O complexo industrial associado a este sector é pautado pela predomi-
nância de empresas de micro e pequena dimensão (cada unidade de produção emprega, em mé-
dia, sete trabalhadores), de cariz familiar, com forte limitações no acesso a capitais e na produtivi-
dade, e marcado pelas baixas remunerações e qualificações do pessoal empregado. Em Paredes, o
tecido empresarial encontra-se fragmentado (1166 empresas, 258 das quais em Rebordosa), com
uma média de oito trabalhadores por empresa (851 empresas têm 10 ou menos trabalhadores).
São, principalmente, empresas de reduzidas dimensões (747 têm menos de 1000m² de área cober-
ta). Tendo em atenção as características organizacionais, este parece constituir um conjunto elás-
tico e instável de empresas. Das 1166 empresas, 436 delas foram criadas entre 1995 e 2005, apesar
deste ter sido um período de mutações marcado pelo encerramento de um número considerável
de unidades de produção e por redução do pessoal empregado. Ademais, parece que a iniciativa
empresarial se confunde frequentemente com um projecto individual de promoção ao estatuto
de patrão: 745 empresas têm um único proprietário, e 893 do total de empresas tem o mesmo pro-
prietário que à data de criação. Além disto, do total de 8439 trabalhadores contabilizados em 1053
empresas (113 não forneceram dados), temos 827 trabalhadores dos serviços administrativos. A
quarta classe é o nível de escolaridade dominante em 543 empresas e a 6.ª classe em 414, enquanto
o 9º ano é-o apenas em 67. Trabalhadores com o ensino superior são apenas 127, concentrados
em 69 empresas. O salário mínimo domina as tabelas salariais em 745 empresas. Devemos notar
a existência amplamente difundida de vínculos associados a protocolos informais entre patrões e
funcionários, próprios do paternalismo tradicional, ao lado de outras formas modernas de flexi-
bilização das remunerações, como os contratos a prazo ou os recibos verdes.
192
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
3 Ouvindo Toni, 32 anos, marceneiro a trabalhar desde os 10, que é pai de dois rapazes com 8 e 10
anos, percebemos como vem sendo interiorizada esta situação de crise dos processos de repro-
dução social entre o operariado. «Acho que há muito pouca gente a querer ir agora para a arte,
acho que está a ficar muito pouca gente a querer seguir a arte de marceneiro. À uma, por isto
virar conforme virou, a parte de móveis [refere-se à «crise»], e à outra o pessoal acho que não
está motivado para isso, hoje não temos pessoal a preparar-se para ser marceneiro. O pessoal
hoje quer ganhar dinheiro e não quer trabalhar, antes procuram ser empregado do escritório ou
motoristas ou ajudantes disto ou ajudantes daquilo. (…) Aos dezasseis anos uma pessoa que vai
aprender a arte já vai um bocadico tarde, estás a perceber? Aos dezasseis anos já vai um bocado
tarde e eu cada vez vejo menos pessoal a procurar isso, e antes mesmo os pais arrastavam por
um filho [para] que fosse aprender a arte, antes via-se muito isso e agora não se vê. Levavam os
filhos para a beira para aprender, para se quisesse seguir a arte. E agora não se vê isso, agora é
assim, o filho quer ir trabalhar vai, não quer ir trabalhar não vai. Muitas das vezes os pais já nem
querem que os filhos sigam a carreira deles, que eles estão a estudar, querem que eles estudem
para a frente que sejam, ó pá, que sejam outra coisa, não ser marceneiros ou isso, e eu acho que
hoje já não se vê tanto isso. Hoje o pessoal já não se está a interessar muito neste ramo. Já não
se está a interessar muito no ramo de marcenaria, quem diz para marceneiro, para maquinista,
trabalhar em móveis. Hoje já não se vê muita gente à procura disso, hoje o pessoal quer é ter um
emprego, não quer um trabalho, percebeste? (…) [Pergunto-lhe porque é que os pais não levam
mais os filhos para a arte] Porque querem que eles sigam outra coisa… Acho que os móveis não
tem futuro para os filhos, penso que seja esse o medo. Eu gostava de dar um futuro melhor que
o meu [aos meus filhos]. Eu já tinha falado que gostava de dar um… não digo que não gosta-se
que eles fossem para marceneiros, mas é assim se eles tiverem capacidade de ser empregado do
escritório, de seguir outra coisa qualquer que não seja apanhar pó, ó pá, por mim tudo bem,
como eu penso assim os outros pais também pensam, não é?”
4 “A saturação do mercado interno, potenciada pela quase paralisação da construção civil, o
grande motor do mobiliário, está a lançar o caos no sector. As quedas no volume de ven-
das, ao nível do mercado interno, atingem já os 50%. Números preocupantes, se se tiver em
conta que apenas 10% das empresas têm capacidade exportadora”. Diário de Notícias, Mil
empresas de mobiliário abrem falência em cada ano - Crise na construção e China consti-
tuem as principais ameaças ao sector, suplemento negócios, 23 de maio de 2005. Desde 1994,
desapareceram 30 a 40 por cento das empresas e cerca de 50 por cento da mão de obra do
sector, embora Fernando Rolim, então presidente da Associação das Indústrias de Madeira e
de Mobiliário de Portugal, considere “«ainda não se ter alcançado um grau de concentração
suficiente»”. Segundo ele, o desaparecimento das empresas menos capazes e mal posiciona-
193
CAPÍTULO 7
local, que passa a estar acompanhado de infortúnios e frustrações vividos por pais
e filhos, velhos e novos, artistas e aprendizes, conforme o ponto de vista particular
que cada qual tem de um fenómeno que só aparentemente é comum.
De acordo com a noção de modo de geração territorializado, uma etnogra-
fia da contemporaneidade procura reconstituir teoricamente o circuito de lugares
pertinentes de socialização que, geograficamente dispersos, estão socialmente in-
terligados entre eles pelo contributo unificado que realizam para a formação quo-
tidiana da classe operária local (Monteiro, 2011). Para tentar restituir a experiência
vivida da classe social entre os jovens operários, optei por uma permanência pro-
longada em uma comunidade industrializada do noroeste português, Rebordosa,
que permitisse conhecer as práticas tal como surgem situadas e incarnadas. Em
2007, através de um trabalho de observação participante em uma fábrica de mo-
biliário, onde trabalhei como operador de máquina durante 14 semanas, procurei
restituir a espessura quotidiana de um local de trabalho. No ano seguinte, para
suprir o meu plano de pesquisa sobre as sociabilidades operárias, passei o período
de seis meses, durante o qual residi em uma habitação local, a tentar compreender,
sobre o terreno, as lógicas dos lugares de condensação relacional do operariado,
por exemplo participando das idas aos cafés, aos ginásios ou aos centros de empre-
go; fazendo parte – como jogador – de uma equipa de futebol amador; ou acompa-
nhando as vivências habituais de algumas famílias operárias. Ao longo destes dois
anos, conduzi entrevistas aprofundadas a cerca de quatro dezenas de operários
locais, sobretudo homens, em uma duração entre uma e cinco horas cada.
das no mercado, embora «nem sempre pacífico» foi favorável ao sector”. Jornal de Notícias,
Madeiras: sector solicita novo estudo sobre competitividade portuguesa, 25 de junho de 2008.
5 Segundo o Recenseamento Geral da População referente ao ano de 2001, apenas 10 por cento
da população de Paredes tinha concluído o ensino secundário e 6,3 por cento o ensino su-
perior, comparados com os 16,5 e os 13,3 por cento registados para esses mesmos escalões
académicos a nível nacional. Por outro lado, nesse mesmo ano, a taxa de saída antecipada
atingiu os 51,6 por cento e a taxa de abandono esteve acima dos 6,4 por cento, enquanto no
País as cifras eram praticamente menos de metade (26,5 e 2,8 por cento, respectivamente).
194
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
efeitos da escola não fica totalmente esclarecida por esta constatação estatística. Sob o
aparente fracasso da escolarização fazem-se sentir as operações de desculturação e acul-
turação que a escola promove entre os prováveis herdeiros operários. Embora possa ser
assumida como voluntária, a resolução em “deixar a escola” não previne o surgimento
de sentimentos de “arrependimento”. Pelo confronto com a experiência do trabalho in-
dustrial actualmente realizado (“estar preso”, “trabalhar no duro”, “dar o litro”, “ver-
gar o fio”, “amoxar”, “bicho de sete cabeças”), a escola pode surgir retrospectivamente
como um tempo idílico (“andar na boa vida”, “andar na brincadeira”, “sempre a fazer
asneiras”, “passear os livros”, “quando ia para lá era para estar com os meus amigos
e fumar um cigarrito e nunca ia às aulas”, “era borga mesmo”, “andava na vadiísse”).
Apesar de serem, normalmente, a incompetência, a desafeição, o desajustamento ou a
negligência a fornecer as justificações que explicam o abandono escolar (“era burro”,
“não gostava da escola”, “não queria saber”, “não estudava nada”, “não queria apren-
der”, não me interessava pela escola”). No decurso de uma experiência escolar marcada
pela denegação e pelo fracasso, o trabalho fabril pode, no entanto, chegar a surgir como
fatalidade oportuna6. Para explicar a conveniência e a razoabilidade dessa tomada de
decisão, é relevante a conciliação entre os constrangimentos económicos familiares, que
tornam materialmente insustentável e moralmente perverso “andar sem fazer nada”, e
a vontade de aquisição de uma dignidade social, realizada, no fundamental, através da
posse e dispêndio de “dinheiro”. “Precisava de dinheiro, não me dava na escola. Não
ia andar na escola para nada, sempre é melhor andar a ganhar dinheiro. (…) Foi ter de
fazer alguma coisa da vida mesmo, não podia estar parado, não podia deixar… não es-
tudar e não trabalhar, não podia estar a viver à custa de alguém, não é?, sem fazer nada
e porque… queria ter a minha independência e ser alguém.” Estas palavras de Fábio,
maquinista de 21 anos, a trabalhar desde os 15 em uma fábrica de mobiliário local, ida-
de em que deixou a escola após duas reprovações e sem sequer ter concluído o sexto ano
de escolaridade, tornam saliente que o assalariamento precoce permanece importante
nas estratégias individuais e familiares de reprodução social do operariado do Vale do
Sousa. [Ver excerto de André, abaixo.]
195
CAPÍTULO 7
o que está, eles têm que trabalhar naquilo que aparece para ganhar algum di-
nheiro para se sustentar [pausa]. É um trabalho que eu não desejo a ninguém,
é trabalhar em móveis, isto um dia claro que vai dar muito dinheiro, mas é um
trabalho que não aconselho a ninguém, assim a pessoas novas. Nenhum deles
quer trabalhar nisto, só querem trabalhar em escritórios, assim essas coisas, tra-
balhos limpos mesmo, não se faça quase nada. (…) Lá [na fábrica] uma pessoa
está sempre a olhar para as horas, a ver se o tempo passa rápido, o tempo não
passa… Estou sempre a olhar a ver se chega às cinco e meia para sair lá do traba-
lho, cansado de ouvir as máquinas a trabalhar sempre todo o dia, é muito cansa-
tivo. (…) Ao princípio custou, mas depois, claro, o tempo a passar… Eu fechado
lá dentro e via os meus amigos cá fora na escola andar à boa vida, ter férias assim
de um momento para o outro, eu a trabalhar e eles andavam aqui, cá fora, sem
trabalhar e eu fico lixado e arrependido de ter saído da escola. E depois o resto,
não estou a ver [pára a pensar] Enquanto eles estão a gastar dinheiro e não estão
a ganhar nenhum, eu estou a ganhar e ao mesmo tempo estou a gastar também.
Eles estão a ver se acabam o 9.º ano, outros o 12.º, a ver se arranjam empregos
[pausa] empregos já bons. Mas mesmo assim, alguns mesmo que acabe, o 9.º
ano e o 12.º não conseguem arranjar empregos e acabam depois no mesmo em-
prego que eu. Querem arranjar empregos melhores, trabalhar nos escritórios e
isso, mas depois já não metem empregados e não sei quê, é complicado e depois,
pronto, têm de arranjar emprego em algum sítio para ganhar dinheiro, e só nos
móveis mesmo.”
(André, 19 anos, maquinista wm uma fábrica de mobiliário loca, possui o
8.º ano de escolaridade.)
Sem que isso signifique uma adesão incondicional à tradicional via de aquisição
e demonstração das virtudes masculinas e oficinais (“aprender a arte”), abandonar a
escola para, em seguida, entrar na fábrica, - no que não é, muitas vezes, senão um acto
de antecipação para contornar as penalizações culturais vividas ao longo do percurso
escolar e a incerta rentabilidade futura dos títulos académicos (“sempre não ia a lado
nenhum”, “não vale a pena andar lá, eu vejo os outros e eles acabam por ir para a mi-
nha beira”)7 -, pode ser retrospectivamente reconstruído como uma escolha sensata e
vantajosa, sendo raramente assumido como compulsão ou prejuízo. Filipe, operário
com 18 anos, a trabalhar em uma fábrica de mobiliário local, pode apresentar o tra-
balho, sem nenhum propósito capcioso, em termos próprios ao idioma do sacrifício,
7 “Um canudo, mesmo o canudo superior, não serve de muito hoje em dia, é só ver na televisão”,
afirma um velho operário que teve a família esforçada durante os anos em que a filha cursou
Línguas e Literaturas Modernas, para ela, afinal, permanecer desempregada desde que termi-
nou o curso, tendo agora 30 anos. “Quando ela estudava para professora, pensei “[quando ela]
é professora, vou folgar um bocado as costas quando ela acabar o curso, só que concorre, con-
corre, concorre e vai tudo à frente dela. (…) [A estudar] Gastava muito. Porque ela em vez de
estudar, se estivesse a trabalhar em confecções trazia-me algum ao fim do mês, mas também
não quis, «há-de ter paixão» [pensou ele], foi e pronto, agora está assim”. Embora o descanse
saber que “não deve nada a ninguém”, há uma mistura de decepção e indignação, e que o leva
a suspeitar de favorecimento de “outros” em prejuízo da filha, com a manifesta inutilidade de
“tantos anos de sacrifício”.
196
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
essa união entre acto útil e obrigação ideal, entre abnegação orientada pelo dever e ex-
pectativa de retorno egoísta8. “Se a gente quer ser alguma coisa na vida e se a gente tem
de lutar por aquilo que quer, tem de trabalhar, sem isso não se vai longe na vida. (…)
Se uma pessoa quer dinheiro para as coisas e para o resto da vida, tem que trabalhar,
é um bocadinho de sacrifício mas sei que chega-se ao fim do mês e diz-se assim «olha,
este dinheiro foi ganho com o meu suor, é para mim» sei que trabalhar é importante,
se a gente quer ter dinheiro, é isto, tem que trabalhar nisto. Vou trabalhar sempre que
posso e só se me acontecer alguma coisa que me impossibilite de ir trabalhar, porque
de resto… consiga ou não consiga tirar cursos, ser bombeiro ou não ser [é este o seu
«sonho»], eu sei que tenho que ir trabalhar e quero ir trabalhar.”
O reverso desta escolha do trabalho – a que, porém, é reconhecida toda a sua
carga de dureza e moléstia – é o seu pressuposto aparentemente irrefutável de uma
animadversão pessoal em relação à escola (“não é para gente como nós”). Que
usualmente desliza, mesmo que assumindo as proporções do humor escarninha e
irónico dos operários (“somos uns burros”, “somos grosseirões”, “aqui é só serrim
dentro da cabeça”), para o contentamento com os (pequenos) sucessos (“tenho
mais liberdade”, “sou dono daquilo que é meu”, “já posso gastar”) conseguidos no
seguimento de um fracasso (“é um trabalho em que tem que se puxar, uma pessoa
sua muito”, “não gosto de me ver sujo”, “não queria apanhar pó”).
Estas aparentes resignação e subserviência perante os sucessos e insucessos es-
colares ou laborais não significam, de todo, indiferença, muito menos harmonia
relativamente à ocupação fabril. Pelo contrário, são constantes as demonstrações
de desinteresse, menosprezo ou recusa do ideal de virtuosidade laboral localmente
oferecido (“gosto pela arte”, “ser artista”). “Não vejo jeito”, respondeu-me André,
maquinista de 18 anos, quando lhe perguntei quais as ambições que tinha profis-
sionalmente. Nem em ser um artista? “Um artista como? Um marceneiro… [Parece
pensar na perspectiva de possuir uma «arte»] É assim, eu não sou… não sei montar
todo o tipo de móveis, mas sei montar alguns, nunca se sabe… Ser um artista…
[Subitamente, interrompe as suas próprias cogitações] É assim, neste momento a
minha ideia é mesmo acabar o nono ano [que está a concluir «à noite», no Progra-
ma Novas Oportunidades] e mudar de emprego. Neste momento não tenho esse
pensamento. Não faz parte dos meus planos, tenho outros planos na minha vida
por realizar, mas não sei…” Há uma idealização da transitoriedade da passagem
pela fábrica que funciona como reacção imaginativa perante o desencantamento
sentido em relação ao universo fabril, sem que, contudo, tenha depois seguimento
8 É em termos próximos a estes que, no seu Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício,
Henri Hubert e Marcel Mauss definem o sacrifício, acto em que “o desinteresse se mistura
aí com o interesse” (Mauss, 2002: 225).
197
CAPÍTULO 7
198
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
“Tanto que eu gosto muito de trabalhar mas acho que aquilo não é futuro
para ninguém”.
“É assim, uma pessoa dentro de uma fábrica está muito mais presa, não é?, está
em um ambiente muito mais preso, em um ambiente sob pressão, não tem… e
mesmo a convivência com as pessoas é muito diferente da escola, a gente ali é só
trabalho e… amizade de trabalho, fora daí se calhar já não, não há mais nada, e
na escola não, uma pessoa na escola é diferente, ganha amigos para muito mais
tempo, eu pelo menos vejo assim. É assim, os primeiros meses custou-me bas-
tante. (…) A escola [está a pensar frequentar o ensino nocturno para obter o
12.º ano] é para ver se arranjo melhor emprego porque eu não manter a mi…
não quero perder a minha… anos da minha vida fechada em uma fábrica ou…
não quero perder mais tempo fechada dentro de uma fábrica, porque parece que
não, mas é muita perda de tempo, uma pessoa entra de manhã e fica lá fechada
até à noite, uma pessoa não vê a luz do dia, estou ali a trabalhar, ali… a desgastar
muito o corpo e a cabeça, não é? Mas não nos dá nada, uma pessoa sai para fora
acabou! e eu quero algo mais, não queria só aquilo. Tanto que eu gosto muito
de trabalhar mas acho que aquilo não é futuro para ninguém, acho que não é
futuro, acho que merecia melhor, é apenas isso. Até lá vou continuar na fábrica,
porque não vou ficar em casa sem ganhar, sem receber, não é?, nem pensar, nem
pensar porque… deus me livre! (…) É assim, eu vejo… naquele sector em si, vejo
muito mau porque não acho que aquilo seja… futuro para ninguém, não acho
porque da maneira que isto está é muito complicado arranjar emprego hoje em
dia, está muito complicado, pronto, eu acho aquilo não tem futuro nenhum,
acho eu… É assim, não sei, porque é assim, trabalhar em uma fábrica é um am-
biente muito complicado, foi como eu disse, a gente fica fechada de manhã à noi-
te, não tem… não apanha sol, não apanha ar, não… Pronto, é muito complicado
lá dentro, e depois é assim uma pessoa, o ordenado, salários não somos nada
recompensados, eu acho que aquilo não dá, da maneira que isto está a avançar
se eles não aumentam, nos dão rendimentos, nós não conseguimos fazer nada
na nossa vida. (…) Muitos estão… fazem aquilo porque precisam muito de di-
nheiro, precisam de trabalhar, porque por gosto… acho que ninguém trabalha
assim, de dizer assim: «eu gosto daquilo, é aquilo que eu quero!», não! (…) Uma
pessoa chega a casa tão cansada que não tem tempo para mais nada, não tem
cabeça para mais nada, uma pessoa, às vezes, chega a casa, stressa com a família,
vem stressada daquele ambiente e quem paga é a família. Agora que eu vi que
não dava mesmo, chego a casa, estou fora dos problemas, a fábrica acabou para
mim. Chego à casa é a minha vida, a casa é a minha vida, o trabalho ficou para
trás, esqueci-me, não posso pensar no trabalho em casa, porque senão tenho
que descarregar nos outros, venho super stressada, então chego à casa acabou
o dia de trabalho. Chego à casa, tomo banho, sou outra pessoa. Eu não tomo
nada, porque é assim, sei de pessoas que, pronto, sentem-se cansadas vão logo
a correr, os médicos dão-lhe medicação para descansar, para dormir, não, eu
tento chegar à casa, tomo um banho, pôr-me… pronto, normal, a minha pessoa,
tratar da minha pele porque aquele material deixa-me a pele bastante seca e isso,
na boa, chegar à cama e tentar dormir sem pensar em nada.” (Isabel, 19 anos,
199
CAPÍTULO 7
9 Esta cumplicidade ontológica entre o espaço físico das fábricas concretas e os esquemas de
percepção, acção e intuição incorporados pelos operários explica a familiaridade e a afecti-
vidade com que podem ser vividos os locais de trabalho. “É este espaço feito de barulhos e
de odores, fabricado pela história, progressivamente apropriado colectivamente pelos ope-
rários, que constitui o «cenário» da fábrica. Este ambiente, mesmo detestado, é contudo
constitutivo da memória colectiva do grupo. A mudança do espaço de trabalho é mais do
que uma simples remodelação, ela constitui uma forma de desenraizamento ligada à perda
dos pontos de referência familiares (visuais, corporais) que tinham permitido a apropriação
do lugar de trabalho.” (Béaud e Pialoux, 1999: 73).
200
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
nada”, “não têm responsabilidade nenhuma, são muito acachopados”). É por isso
que estes novos operários surgem frequentemente alheados, teimosos e indiscipli-
nados dentro da fábrica, dando, por isso, a “sensação de estarem mal na própria
pele, de não estarem exactamente no seu lugar”, tal como esses jovens operários
franceses descritos por Michel Pialoux (1996: 14)10.
O desconforto sentido e manifestado na vivência corrente da fábrica será, assim,
evidência de um deslocamento objectivo e subjectivo dos herdeiros operários, no sen-
tido de uma perda de domínio sobre as aptidões e as propensões – em especial, a
competência em ocupar o lugar e a vontade em ocupar o lugar - a herdarem a herança
operária11. Essa repulsão quase física que os jovens operários experimentam em es-
10 Basta ter presente as afirmações de Rodrigo, marceneiro de 36 anos a trabalhar desde os 14,
que é pai de um rapaz com 12 anos, para perceber as antinomias que atravessam as elocuções
operárias sobre a transmissão da herança. Por um lado, censura-se a aversão e renitência
dos “novos” em relação ao ambiente fabril, em parte explicada pela influência desviante da
escola. No entanto, compreendem-se empaticamente essas atitudes de desilusão e o desgosto
em relação ao mundo do trabalho, fortemente erodido em resultado das transformações no
interior e no exterior das empresas, como, por exemplo, o desemprego, a precariedade con-
tratual, o endividamento familiar crónico, a pressão produtivista, a desafiliação nos locais de
trabalho. “Estão lá a estudar, mas não vão lá estudar nada, estão lá só a arranjar problemas,
e prontos, eles lá aprendem muito coisa dessa… e é assim, a gente depois para os ter à nossa
beira, para os meter na linha, para os prender, é complicado que eles estão habituados àquelas
baldas, sempre de telemóveis na mão, e tu mandas fazer qualquer coisa e eles trocem o nariz
e ficam zangados, começam a falar sozinhos e tal [remói umas palavras como se resmun-
gasse], funciona assim, não é?, e a gente para tentar levar essas pessoas tem que levá-las na
brincadeira, falar assim umas graçolas de vez em quando e tal, e eles riem-se e tal e o tempo
passa e eles vão engatando, tem que ser com… depois eles já não ligam ao tempo, percebes?
Vêem que o tempo passa com facilidade e depois habituam-se àquilo e não tem problema
nenhum, o problema é eles conseguirem aguentar o tempo dentro da fábrica, que eles estão
habituados aquela balda, e prende lá, estão na cadeia, eles: «oi, eu estou aqui dentro a fazer o
quê? Mas eu na escola fazia isto tudo e aquilo e não se passava nada”, depois eles chegam ali
e o problema maior é prendê-los, que eles vêm… estão habituados àquela, àquela rebaldaria.
Alguns até nem aprendem, não têm vocação para aquilo, não dão. (…) Penso que os novos
não devem ter motivação para isso agora, eles veem… que é assim, o filho ouve o pai a falar:
«fulano foi despedido, sicrano fez isto ao empregado», ouve assim essas, essas situações, não
é?, e disto estar em crise, fechou a fábrica assim, assim, fechou outra fábrica, mais cem para
o desemprego, o que é que acontece? Eles não, não veem futuro nos móveis, não é? Portanto,
não veem futuro, não veem motivação para, para se agarrar a isso. E é correcto.”
11 Uma investigação acerca da maneira como ”a experiência incorporada das sensações físicas,
incluindo aquelas de bem-estar, doença, e por aí fora, é em parte informada pelo corpo ma-
terial, ele próprio contingente de variáveis evolucionárias, ambientais e individuais” (Lock,
2001: 483). “A incorporação é também constituída pela maneira como o próprio [self] e os
outros representam o corpo, recorrendo a categorias de entendimento e a experiências [que
são] locais. Se a incorporação é para ser entendida socialmente, então a história, a política,
a linguagem e o conhecimento local, incluindo o científico na medida em que está acessível,
devem estar inevitavelmente implicados. Isto significa na prática que, inevitavelmente, o
conhecimento acerca da biologia é informado pelo social e que o social, por seu turno, é
201
CAPÍTULO 7
tado implícito, visceralmente, e que nem sempre exprimem, a não ser confusamente,
em relação à fábrica, ao trabalho fabril e à cultura tradicional de oficina (composta
pela memória oficinal comum e pelo entendimento tácito partilhado do colectivo
operário, que pode, por vezes, abranger os patrões e gerentes das empresas), é factor e
sintoma de uma dupla transformação dos processos de socialização operários, mor-
mente, pela instilação sistemática de um imaginário cultural estranho à ordem local
que as instâncias culturais oficiais e dominantes realizam, e ao mesmo tempo, nas
estratégias de transmissão da identidade social operária, ultimamente desvalorizada
e estigmatizada em termos económicos e simbólicos (“assim não vamos a lado ne-
nhum”, “prende muito um gajo”, “ali não se desenvolve”, “estou ali preso”, “enquanto
não sair dali não posso pensar em nada”, “é aquilo e pouco mais”).
Ao longo do trabalho que realizei como operador de máquina emuma fábrica
de mobiliário, foi possível constatar como o descomprometimento face ao trabalho
oficinal, podia, em certas ocasiões, alcançar a aversão e desprezo pelas práticas e pe-
las personificações da cultura de oficina (“aquele pessoal é muito limitado”, “é uma
bicharada”, “querem lá saber da vida”, “é aquilo e pouco mais”, “não têm ambições”,
“é sempre as mesmas conversas”). Por outro lado, não obstante os percursos escolares
terem sido cedo interrompidos, existe uma maior proficiência e deferência dos jovens
operários em relação aos procedimentos formais introduzidos na fábrica, em especial
aqueles que estão depositados em suportes escritos (“instruções”, “fichas de produ-
ção”, “guias”), bem como em relação às exigências técnicas promovidas pela gerência
(por exemplo, o uso de equipamento de segurança, a instrumentação de máquinas, a
adaptação a novos protocolos e procedimentos produtivos). São estes jovens que aca-
bam por fazer eco, muitas vezes inadvertidamente, em relação ao discurso tecnicista,
meritocrático e individualista das novas políticas de gestão (“formação”, “prémios”,
“aprender coisas novas”, “polivalência”, “mudar para uma equipa mais jovem”), de-
monstrando uma “compreensão” e um “entendimento” das medidas administrativas
que serão depois repreendidos pelos colegas mais “batidos” e mais “sabidos”.
Esta ruptura entre dois modos de geração do operariado local é interiormente
experimentada pelos jovens operários como um divórcio entre a “identidade real”
e a “identidade virtual” (Béaud e Pialoux, 1996: 109). Divórcio que tende, normal-
mente, a torna-se visível em um alheamento em relação à condição operária, tal
como ela surge no horizonte actual e provável (“tou-me a cagar”, “quero lá saber”,
informado pela realidade do material. Por outras palavras, o biológico e o social são copro-
duzidos e dialecticamente reproduzidos, e o sítio primário [primary site] onde este envolvi-
mento toma lugar é o corpo socializado subjectivamente experimentado. O corpo material
não pode permanecer, como acontece frequentes vezes, como uma entidade que é uma caixa
negra e assumida como universal. O material e o social são ambos contingentes – ambos
locais.” (Lock, 2001: 483-484).
202
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
“conforme se vai vendo”, “não sei”), reforçado por uma adesão distanciada, irónica
ou utilitária em relação ao trabalho. Tudo conjugado tende, desde logo, a transtor-
nar a acomodação ao espaço fabril (“eles estão habituados àquelas baldas, sempre
de telemóveis na mão, e tu mandas fazer qualquer coisa e eles trocem o nariz e fi-
cam zangados”), até porque estes novos operários trazem referências extravagantes,
sobretudo nos comportamentos, consumos e adereços pessoais, que perturbam a
rotina e os hábitos dos locais de trabalho (“roupas sem jeito”, “ouvir música estram-
bólica”, “sempre agarrados ao telemóvel”, “onde já se viu beber iogurte na fábrica?”).
Depois, ao estarem em uma situação social que convida a uma relação negligente,
por vezes cínica, com a condição operária, esta é, frequentes vezes vivida e anteci-
pada como insignificante e como desacreditada (“não vê futuro, não vê motivação
para se agarrar a isso”, “sujo, pesado”, “não compensa”, “perda de tempo”).
203
CAPÍTULO 7
204
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
será por acaso uma aspiração capital entre estes jovens), locais de diversão nocturna
relativamente distantes (bares, discotecas, boates), situados, por exemplo, nas cidades
do Porto, Valongo, Paços de Ferreira ou Penafiel.
Estas tentativas de inversão ou, ao menos, de suspensão da dominação são es-
poletadas pela vergonha sentida em aparecer publicamente com os sinais caracte-
rísticos da condição operária (“roupa suja”, “despenteado”, “marcado nas mãos”,
“cansado”, “sem forças”, “enervado”). Tornou-se frequente encontrar operários que
afirmavam procurar, regularmente, provocar uma amnésia voluntária, que suspen-
desse, temporariamente que fosse, os sentimentos de esgotamento, inferioridade e
indisposição (“os médicos dão-lhe medicação para descansar, para dormir”, “quan-
do saio do trabalho, quero que ninguém me chateie, bebo uns canecos e mais nada”,
“era aquela altura de andar aí sempre bêbedo, eu não vou dizer que era para esque-
cer aquela merda [trabalho], mas talvez (…), e era isso, eu chegava revoltado…”).
“Quero ter um carro assim por esta história de um gajo convidar as raparigas
para as levar a algum sítio.”
“Às vezes apetecia-me chocolates e rebuçados não ia comprar tanto. Saía, mas já
não ia… Por exemplo quando recebia a meio do mês, via um jogo para a Plays-
tation e comprava e assim… Agora, meter dois ou três meses, eu poupei, aí quê?
Tinha trinta contos e deu-me para o mês todo, assim para dois meses antes eu
não fazia nada disso. Sabia que também não posso mexer porque também tenho
que juntar dinheiro para comprar um carro e tirar a carta e tenho de por o di-
nheiro à parte, quero ver se abro uma conta, aí sei que ao por o dinheiro que…
não posso ir lá sempre levantar, posso ir levantar, mas sei que não devo ir levan-
tar, enquanto se o tiver aqui em casa, digo «ó, vou pegar em 20 euros e gasto os
20€», e digo «assim tenho aqui mais 20 euros» e vou gastando assim. Se puser no
banco sei que não passa… para levantá-lo é ao calhas mesmo, vou, pego, quero
isto e para levantar dinheiro. Até nem dá muito jeito ir ás Caixas Multibanco.
Costumo poupar todos os meses. Quer dizer… não estou a dizer que vou com-
prar um carro, como um Renault5 nem um Citroën, estou a ver um carro assim
razoável. Não… Acho que não me dou bem, que não fico bem dentro daqueles
carros. Para além de ser assim… Gosto de carros que andam bem, não é daque-
les assim mal parados. E que sejam bonitos, não acho o Citroën e Renault5 um
carro assim atractivo. Como um colega meu que tinha um Renault5 e chegou a
ir lá raparigas e assim para passear e diziam assim «achas que eu quero passear
em um carro destes?» E ele ficou assim mesmo… Com uma cara… [suspiro]
Agora já tem um carro bom. Agora com este que ele tem, ó, já vai [as raparigas].
(…) [Pergunto porque não lhe ligam as raparigas] É mesmo por chegar a casa e
estar assim todo sujo, não andar assim durante o dia, pronto, com roupas novas
e assim. Vejo aí, por exemplo, os meus colegas da escola com roupas novas e eu
[pausa] e eu [suspiro] assim todo coiso! As raparigas, a maior parte delas, não…
por exemplo, passar por elas e… com elas na escola praí que no sétimo ano,
passas por elas assim todo borrado e nem te conhecem, mas se passares por elas
assim todo limpinho e todo ajeitado, elas já… já… Aquelas mais imperialistas e
de nariz mais empinado. Agora, há outras, claro, podes andar assim todo borra-
do e todo sujo que elas dizem «olá!, tudo bem!» E são capazes de cumprimentar
205
CAPÍTULO 7
206
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
dentes. É ainda relevante uma série de pormenores que, longe de estarem reduzidos à
sua estrita relevância fisiológica, estão investidos com uma aura quase mágica, como as
unhas cuidadas ou estragadas; as sobrancelhas alinhavadas ou hirsutas; ou as expres-
sões parasitárias (“épá”, “prontos”) e os desvios fonéticos nas falas (como o assigmatis-
mo). “Neste contexto, o simples facto de aparecer ao olhar do outro já constitui em si
mesmo uma linguagem, na qual o aspecto físico e a roupa são signos e mais das vezes
formam a soma final de toda a comunicação. (…) Na ausência de um diálogo delibera-
damente instituído, o comportamento é percebido como um sistema de signos no qual
o mais pequeno detalhe – gesto, entoação, sorriso - adquire um valor simbólico, de ma-
neira que o discurso é sempre acompanhado por uma harmonia [em sentido musical]
dificilmente perceptível, a qual confere-lhe a sua tonalidade.” (Bourdieu, 2003a: 16). Os
gestos, as poses ou as palavras que parecem mais convencionais são verdadeiros sinais
de reconhecimento e pretensão (basta pensarmos em uma “vénia”, no chapéu que é re-
tirado da cabeça, ou na cedência de um lugar feitas automaticamente em certas alturas);
os olhares, os comentários e os estremeções mais instintivos, portanto mais despidos de
intenções deliberadas e programadas (embora não devamos ignorar tudo o que pode a
teatralidade da “etiqueta” e outros que tais códigos de conduta), são veredictos (“olhou-
-me com aqueles olhos”, “vi logo na cara dele”, “era como se eu não fosse ninguém que
ali estava”, “olhou-me de lado”, “torceu o nariz de nojo”, “pos uma cara de fastio”). Na
tentativa de adquirir uma imagem de si positivamente investida, há, por fim, a tendên-
cia a adoptar padrões de consumo conspícuo, realizando investimentos de eufemização
ou ostentação sobre a aparência pessoal de operários.
207
CAPÍTULO 7
208
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
209
CAPÍTULO 7
210
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
211
CAPÍTULO 7
212
Futuros operários: as transformações das estratégias de reprodução social e das modalidades de estilização do
operariado em uma comunidade industrializada portuguesa
Bibliografia
BÉAUD, Stephane e Pialoux, Michel (1999) – Retour sur la condition ouvriere, Paris, Fayard.
BOURDIEU, Pierre (2002) – Esboço de uma teoria da prática, Oeiras, Celta Editora.
213
CAPÍTULO 7
BOURDIEU, Pierre (2003b) – “Ce terrible repos qui este celui de la mort sociale”, Le Monde
Diplomatique, Junho de 2003, pp.5-6.
COMAROFF, John e Comaroff, Jean (1992) – “Le fou et le migrant”, Actes de la Recherche en
Sciences Sociales, 94, 1, pp.41-58.
FUCHS, Thomas (2003) – “The Phenomenology of Shame, Guilt and the Body in Body Dys-
morphic Disorder and Depression”, Journal of Phenomenological Psychology, 33, 2, pp.2-20.
LOCK, Margaret (2001) – “The tempering of medical anthropology: troubling natural catego-
ries”, Medical Anthropology Quarterly, 15, 4, pp.478-492.
MONTEIRO, Bruno (2011) – “A contestação pelo corpo”, E-Cadernos CES, 10, organizados
por Marta Araújo, Laura Centemeri, Marisa Matias e Ana Cordeiro Santos, pp.11-36.
MOODIE, C. Dunbar (1991) – “Social existence and the practice of personal integrity”, em A.
Spiegel e P. A. McAllister (eds.), Tradition and transition in Southern Africa, Cape City, Trans-
action Publishers.
SCHEFF, Thomas (1991) – “Working class emotions and relationship”, manuscrito, disponível
em linha (www.soc.ucsb.edu/faculty/scheff/22), consultado em 12 de Maio de 2008.
WILLIS, Paul (1978) – “L’ecole des ouvriers”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 25,
pp.3-12.
214
Sobre o livro
Formato 16 x 23 cm
Tipologia Minion Pro (textos)
Serlio LT Std (títulos)
Papel Pólem 80g/m2 (miolo)
Supremo 250g/m2 (capa)
Projeto Gráfico Canal 6 Editora
www.canal6.com.br
Diagramação Marcelo Woelke