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Andrea Antico Soares

Organizadora

O Futuro do Trabalho
no Século XXI
Anais do XIII Seminário do Trabalho
Rede de Estudos do Trabalho - 2022

Volume 2

2023
Projeto editorial Praxis é a editora da RET
(Rede de Estudos do Trabalho - (www.estudosdotrabalho.net)

Copyright© Projeto editorial Praxis, 2023

Editor-Chefe: Giovanni Alves

Conselho editorial
Dr. André Luiz Vizzaccaro-Amaral (UEL)
Dr. Bruno Chapadeiro Ribeiro (UFF)
Dr. José Roberto Heloani (UNICAMP)
Dr. Francisco Luiz Corsi (UNESP)
Dr. Giovanni Alves (UNESP)
Dr. José Meneleu Neto (UECE)
Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP)
Dr. Renan Araújo (UNESPAR)
Dra. Dolores Sanchez Wunsch (UFRS)
Dr. Matheus Fernandes de Castro (UNESP)
Sumário

1. Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx


Fernando Frota Dillenburg....................................................................7
2. Plataformização, desigualdade e precarização do trabalho:
perspectivas das políticas públicas no Brasil contemporâneo
Eduardo Mohana Silva Ferreira
Enaire de Maria Sousa da Silva
Railson Marques Garcez...................................................................................31
3. Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo: Terreno fértil
e perverso para a prática sistêmica do Assédio Moral no Trabalho
Andrea Antico Soares.......................................................................................45
4. Trabalho plataformizado e controle por algoritmos: reflexões
sobre o modus operandi das empresas-aplicativo e o aviltamento do
trabalhador-parceiro
Railson Marques Garcez..................................................................................69
5. Universidade operacional e precarização do trabalho docente
no contexto dos professores substitutos da universidade estadual
do Ceará
Ana Larisse Santos Barbosa
Mariana Aguiar Sousa......................................................................................87
6. Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado na Era do
Capital Financeiro
Selma Barbosa..................................................................................................101
7. A denúncia ao presidente Bolsonaro pelo descaso diante da
pandemia por meio da charge de Carlos Latuff na imprensa popular
alternativa
Rozinaldo Antonio Miani...............................................................................119
8. Associativismo e sindicalismo: Contribuições para a pesquisa
histórico-educacional
Lucilene Schunck C. Pisaneschi
Evaldo Piolli
Carlos Bauer....................................................................................................145
9. Reflexões (im)pertinentes sobre as condições e relações de trabalho
de assistentes sociais gaúchos/as a partir da reestruturação produtiva
Tatiana Reidel
Laís D. Corrêa
Andreia Pedroso
Jéssica Teles
Mariana Atti....................................................................................................163
10. Desigualdade de gênero no trabalho: Perspectivas nacionais e
internacionais
Júlia Soares Vieira
Andrea Antico Soares.....................................................................................191
11. Tempo de Travessia: Embates à distopia do presente para o alcance
de uma efetiva Justiça Climática
Marcio Pochmann
Thaisy Perotto Fernandes..............................................................................215
12. Qualidade de vida dos estudantes do curso de graduação em
Direito da Universidade Federal de Uberlândia: Um Projeto de
Pesquisa
Fabiane Santana Previtali
João Pedro Ribeiro Carrijo............................................................................243
13. O segredo do grão: relações sociais e flexibilização do trabalho no
capitalismo contemporâneo
Márcia Vanessa Malcher dos Santos............................................................255
14. Trabalho e subordinação nas plataformas digitais
Edilson Spalaor
Andrea Antico Soares ....................................................................................283
15. Autonomia e competência profissional em contexto de traba-
lho precário
Leni Maria Pereira Silva
Luciney Sebastião da Silva...............................................................................309
Os fundamentos das crises cíclicas do
capital segundo Marx

1 FERNANDO FROTA DILLENBURG1

1. Introdução

A
lguns economistas burgueses costumam atribuir
uma causa particular a cada nova crise do capital. A
crise iniciada em 2020, por exemplo, tem sido cha-
mada de crise do coronavírus. Mas será que é correto atri-
buir a causa desta crise econômica à pandemia? Embora seja
inegável que a crise sanitária tenha provocado uma queda na
produção mundial, teria sido somente ela que cumpriu esse
papel? Tudo indica que não. Quando, em dezembro de 2019,
o coronavírus apareceu pela primeira vez em Wuhan, na
China, já se manifestavam, há mais de um ano, sinais claros
de problemas na economia global. Um desses sintomas era
o índice extremamente baixo de desemprego nos Estados
Unidos, que atingia, em novembro de 2098, a cifra de 3,5%,
ou seja, algo próximo do pleno emprego. Mas, afinal, por que
o alto nível de emprego seria um sintoma de problemas para
a economia? Nesse artigo, veremos que, por paradoxal que
pareça, o capital não suporta uma economia muito aquecida,
com elevada demanda por força de trabalho. Para desvelar
1
Professor Doutor do Departamento de Economia e Relações
Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: ffrotadillenburg@gmail.com
8 O Futuro do trabalho no século XXI

este aparente paradoxo Marx nos faz percorrer um longo


caminho através dos três livros d’O capital, num movimento
que inicia pelas formas mais abstratas e ilusórias da crise e
se desenvolve por meio de suas manifestações cada vez mais
determinadas. Nesse artigo nos propomos a acompanhar
esse movimento.

2. A crise se manifestando abstratamente

As primeiras formas de manifestação das crises expostas


no capítulo III do Livro I de O capital aparecem, generica-
mente, como uma “crise comercial ou de produção a que se
dá o nome de crise monetária”, (Marx, 1983a, p. 116) resultante
da anarquia do mercado, da “falta de qualquer regra” (Marx,
1983a, p. 92), ou ainda da ausência de um planejamento social
capaz de equilibrar produção e consumo. A crise se revela
nesse capítulo ainda como uma crise de superprodução, um
momento no qual muitas mercadorias não encontram com-
pradores. Nessa interrupção das compras, diz Marx (1983a, p.
95), “não é a mercadoria que é depenada, mas sim o possui-
dor dela”. Aqueles produtores mais frágeis financeiramente
enfrentarão a bancarrota de suas empresas, diante de seus
estoques abarrotados.
Ao chegarmos ao capítulo IV, os três capítulos anteriores
que compõem a Seção I são retratados como a instância da
circulação, uma instância idílica, enganosa, “o verdadeiro
éden dos direitos naturais do homem” (Marx, 1983a, p. 145)
uma instância ilusória da qual os economistas vulgares
extraem suas concepções. Por essa razão, nesta Seção II o
leitor é convidado por Marx (1983a, p. 144) a abandonar “essa
esfera ruidosa, existente na superfície e acessível a todos os
olhos, [e ingressar no] local oculto da produção”. Ao entrar
para a esfera fundamental da produção muita coisa se altera.
A crise deixa de ser exposta superficialmente, como uma
imagem “acessível a todos os olhos” (Marx, 1983a, p. 144),
baseada no aumento dos estoques não vendáveis ou, o que
é o mesmo, numa aparente superprodução de mercadorias.
Sigamos Marx rumo à instância da produção.
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 9

Figura 1
Prolongamento da jornada de trabalho para aumentar a mais-valia

3. As crises vão ganhando novas determinações

Se até aqui foram desveladas as determinações mais super-


ficiais das crises, a partir do capítulo V, primeiro capítulo da
seção III ou da instância da produção, será iniciado um longo
percurso até o final do Livro III, um caminho de desvelamento
dos fundamentos das crises, desvelamento de determinações
cada vez mais profundas.
Enquanto na seção I do Livro I composta pelos três pri-
meiros capítulos as crises do capital eram expostas como uma
insuficiente realização do valor de troca das mercadorias ou,
em outras palavras, uma dificuldade na venda das mercado-
rias, a partir da seção III que aqui se inicia, ao ingressar na
instância da produção, o problema se revela como uma con-
tradição ligada à divisão do valor da mercadoria entre a classe
trabalhadora e a classe capitalista. Nas seções III a VI do Livro I,
compostas pelos capítulos V a XX, é exposta a luta entre estas
duas classes em torno da divisão do valor produzido.
Diversas são as formas que a classe capitalista dispõe para
aumentar sua participação na divisão do valor. Uma delas é
o prolongamento da jornada de trabalho (Marx, 1983a, p. 189),
como expresso na seta da figura 1, que indica o aumento do
retângulo para o lado direito.
Para prolongar a jornada de trabalho o capital pode utilizar,
por exemplo, os três turnos de trabalho diário, aproveitando
as 24 horas do dia, assim como pode utilizar os sete dias da
semana. Além do prolongamento da jornada de trabalho, os
capitalistas podem aumentar a mais-valia através da redução
do valor da mercadoria força de trabalho (Marx, 1983a, p. 251)
10 O Futuro do trabalho no século XXI

Figura 2
Redução do valor da força de trabalho ou pagamento da força de
trabalho abaixo de seu valor almejados pela classe capitalista para
aumentar a mais-valia

ou ainda do pagamento abaixo de seu valor (Marx, 1983b, p.


204) conforme exposto na figura a seguir por meio da seta que
desloca a linha interna para a esquerda.
A mais-valia pode ainda ser aumentada pela elevação da
intensidade do trabalho, o que Marx (1983a, p. 270) chama
de “diminuição dos poros mortos da jornada de trabalho”. Os
poros mortos são momentos nos quais não se produz valor
devido à dispersão do trabalhador durante a jornada de traba-
lho. A redução dos poros mortos é expressa na próxima figura
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 11

através do aumento da densidade no interior do retângulo que


representa a jornada de trabalho.
Estas formas (prolongamento da jornada de trabalho, redu-
ção do valor da força de trabalho ou o pagamento da força de
trabalho abaixo de seu valor, ou ainda o aumento da inten-
sidade do trabalho) são algumas das maneiras de aumentar
a mais-valia. Elas tendem a ocorrer simultaneamente. No
entanto, não ocorrem sem luta, pois, se a classe capitalista
tem o direito de superexplorar os trabalhadores assalariados
(Marx, 1983a, p. 160), estes não deixam de ter o direito de se
defender da superexploração ou, nas palavras de Marx (1983a,
p. 189), da utilização desmesurada da sua mercadoria força
de trabalho. E “entre direitos iguais”, observa Marx (1983a, p.
190), o que “decide é a força”. Os trabalhadores passam, então,
a organizar greves, motins e revoltas para se defender da ânsia
do capital por massas cada vez maiores de mais-valia. As
greves exigem a construção de organismos internos aos locais
de trabalho, como comitês de greve (Marx, 1983a, p. 189). A
correlação de forças entre as classes em luta definirá o grau de
exploração da força de trabalho. Se os trabalhadores tiverem
mais força aumentarão a parte do valor que ficará com eles
na forma de salário. Caso os capitalistas tenham mais força
conseguirão aumentar a proporção da apropriação privada do
valor produzido pelos trabalhadores na forma de mais-valia,
(Marx, 1983a, 162) conforme exposto na figura a seguir.
Como se vê, enquanto a expectativa dos trabalhadores
é o aumento dos salários, além da redução da jornada e da
12 O Futuro do trabalho no século XXI

intensidade do trabalho, a intenção dos capitalistas é exata-


mente a contrária. As contradições centrais entre as classes no
capitalismo estão representadas nestes retângulos expostos
anteriormente. São contradições que determinam a magni-
tude do salário e da mais-valia, contradições que determinam
a quantidade de alimento tanto dos trabalhadores quanto do
capital. Enquanto o salário garante o alimento do trabalhador,
a mais-valia é o alimento do capital. Não por acaso, a maior
parte do Livro I é dedicada a expor a luta entre as duas classes
em torno da divisão do valor produzido pelos trabalhadores
assalariados, luta esta expressa na figura 4 acima.
No entanto, aqui no Livro I a divisão do valor produzido
durante a jornada de trabalho ainda não é colocada como o
fundamento mais profundo da crise do capital. Isso será feito,
conforme veremos, somente no Livro III, do qual trataremos
a seguir.

4. Queda tendencial da taxa de lucro: determinações


cada vez mais profundas das crises

Na Seção II do Livro III d’O capital Marx expõe a tendência à


queda da taxa de lucro como um sinal da tendência do capital a
entrar em crise. Vejamos, então, antes de tudo, como se mede a
taxa de lucro. Toda taxa é uma relação entre duas quantidades.
A taxa de lucro não é diferente. Ela é a relação entre a massa

Tabela 1
Exemplo da queda da taxa de lucro mediante a elevação da massa
de lucro
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 13

de mais-valia (ou massa de lucro) e o capital total aplicado na


produção. Utilizemos um exemplo exposto por Marx (1983d,
p. 167), com pequena modificação.
O que chama atenção na tabela 1 é que, apesar da massa
de lucro ter aumentado de 2 para 4 entre o ano 1 e o ano 2,
a taxa de lucro diminuiu de 33,33% para 22,22% no mesmo
período. Ou seja, massa de lucro e taxa de lucro podem apre-
sentar movimentos contraditórios. Enquanto uma aumenta, a
outra pode diminuir. A taxa de lucro diminuiu porque a massa
de lucro aumentou menos do que o capital total. Enquanto a
massa de lucro cresceu 100% (de 2 para 4) o capital total cres-
ceu 300% (de 6 para 18). Verificando a fórmula da taxa de lucro
fica mais fácil compreender essa contradição:

Se o capital total, que está no denominador da fórmula,


crescer mais do que a massa de lucro, que está no numerador,
o resultado, que é a taxa de lucro, diminuirá, mesmo que o
numerador (massa de lucro) cresça. Em consequência, nesse
momento do movimento cíclico do capital os capitalistas ainda
estão conseguindo se apropriar de massas crescentes de lucro,
apesar da taxa de lucro estar diminuindo, conforme expresso
no gráfico 1, a seguir.
14 O Futuro do trabalho no século XXI

Cabe agora desvelar porque, segundo Marx, o capital total


tende a crescer mais do que a massa de lucro. Ocorre que
enquanto a massa de lucro está crescendo, os capitalistas
tendem a investir em suas empresas e, ao investirem, adqui-
rem máquinas cada vez mais sofisticadas, máquinas mais
produtivas e, consequentemente, de maior valor. Na tabela a
seguir, o capital constante, que corresponde ao capital inves-
tido em meios de produção, cresceu 375% (de 4 para 15) do ano
1 para o ano 2, enquanto o capital variável, o capital investido
em força de trabalho, cresceu apenas 50% (de 2 para 3) (vide
Tabela 2 abaixo).
Embora os capitalistas, na busca pelo aumento da massa
de lucro, tenham contratado um número maior de trabalha-
dores, o que está expresso no aumento do capital variável de
2 para 3, o dispêndio em salários cresceu numa proporção
menor do que o valor gasto em meios de produção (capi-
tal constante, investido em novas máquinas, novos prédios,
maior quantidade de matérias-primas). Em outras palavras,
ao acumular de 6 para 18, o capital se concentrou em meios
de produção, fenômeno denominado por Marx (1983b, p. 187)
de aumento da composição orgânica do capital. Calcula-se a
composição orgânica da seguinte maneira:

Tabela 2
Composição do capital total, com a variação de seus elementos
(capital constante e capital variável)
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 15

No nosso exemplo ficaria assim:

O aumento da composição orgânica de 2c : 1v no ano 1


para 5c : 1v no ano 2 expressa que no ano 2 cada trabalhador
passou a manusear um valor em meios de produção 2,5 vezes
maior do que no ano anterior. Por contraditório que possa
parecer, apesar dos trabalhadores estarem em maior número
no ano 2 em relação ao ano 1, eles passaram a ser substitu-
ídos pelas máquinas, uma vez que, do valor total do capital,
parcela proporcionalmente menor passou a ser destinada à
compra da força de trabalho e maior aos meios de produção.
Marx observa que a concentração do capital em meios
de produção tende sempre a acompanhar a acumulação do
capital (Marx, 1983b, 196), conforme expresso no exemplo a
seguir abaixo.
16 O Futuro do trabalho no século XXI

Neste exemplo, a acumulação de capital corresponde ao


acréscimo de 20 de capital entre a 1ª rotação e a 2ª rotação (de
100 para 120 de dinheiro investido no início de cada rotação).
Já a concentração em meios de produção corresponde ao acrés-
cimo da proporção de 50% para 64% em meios de produção (de
50 na 1ª rotação para 65 na 2ª rotação), frente ao decréscimo
de 50% para 46% em força de trabalho (50 para 55).
Mas, afinal, o que estimula os capitalistas a substituir tra-
balhadores por máquinas mais sofisticadas? Segundo Marx,
isso é motivado por diversas razões. Umas delas é o impulso
a produzir mercadorias de menor valor a fim de vencer a con-
corrência com os outros capitalistas. Outra razão, tão impor-
tante quanto a primeira, é a de quebrar a resistência da classe
trabalhadora, amortecer seu ímpeto de luta, como diz Marx
(1983b, p. 51): a maquinaria “se torna a arma mais poderosa
para reprimir as periódicas revoltas operárias, greves, etc.,
contra a autocracia do capital”. Substituir os trabalhadores
por máquinas é uma tentativa dos capitalistas de diminuir
aquele elemento do processo de trabalho que os incomoda,
que se rebela, aquele elemento que pode fazer greve.
Apesar de os trabalhadores assalariados serem o único
elemento do processo de trabalho que reivindica, que se rebela,
eles são, contraditoriamente, os únicos que produzem o tão
almejado lucro dos capitalistas (Marx, 1983a, p. 166). Para tentar
se livrar desse elemento incômodo, os capitalistas diminuem
a proporção da força de trabalho em relação aos meios de pro-
dução, e dão, com isso, por assim dizer, “um tiro no próprio pé”,
pois diminuem desse modo a proporção do único elemento
que produz seu lucro. Ao atuar dessa maneira, os capitalistas
agem inconscientemente contra seu próprio interesse, contra
o objetivo de se apropriar de massas de lucro cada vez maiores.
É como se o capital, sendo o sujeito do processo de sua pró-
pria valorização, obrigasse seus personagens, os capitalistas,
a diminuírem o seu plantel de galinhas de ovos de ouro. 1

1
Essa analogia irônica é feita por Marx quando se refere ao capital
como se esse fosse um sujeito automático conforme imaginam os eco-
nomistas vulgares, como se o capital não dependesse dos trabalhadores
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 17

Assim, ao promover o desenvolvimento tecnológico, o que


no capitalismo corresponde a substituir os trabalhadores
por máquinas ou, o que é o mesmo, diminuir a proporção
da força de trabalho em relação aos meios de produção, os
capitalistas provocam, involuntariamente, a diminuição da
proporção da mais-valia em relação ao capital total, pro-
vocando a queda da taxa de lucro e conduzindo o capital ao
abismo das crises. Aqui fica claro que os capitalistas, consi-
derados individualmente, não têm o controle sobre o capital.
Fica claro que, mesmo que os capitalistas percebessem que
ao concentrar seu capital em meios de produção estariam
contribuindo para diminuir a taxa de lucro, mesmo assim
eles não poderiam deixar de agir desse modo. Mesmo que
algum ou alguns deles decidissem não diminuir a proporção
do valor da força de trabalho em relação aos meios de pro-
dução em suas empresas, estariam impedindo, com isso, a
diminuição do valor de suas mercadorias, tendendo, assim,
a perder na concorrência para os outros capitalistas. Nesse
sentido afirma Marx:

Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e


do proprietário fundiário com cores róseas. Mas aqui
só se trata de pessoas à medida que são personificações
de categorias econômicas, portadoras de determinadas
relações de classe e interesses. Menos do que qualquer
outro, o meu ponto de vista [...] pode tornar o indivíduo
responsável por relações das quais ele é, socialmente,
uma criatura, por mais que ele queira colocar-se sub-
jetivamente acima delas. (Marx, 1983a, p. 13)

Os capitalistas, apesar de se beneficiarem com a acumu-


lação do capital e a concentração em meios de produção, não
têm controle sobre esse processo de valorização do valor,

assalariados para se apropriar de lucro. Assim diz Marx: o capital, ao


se autovalorizar, “recebeu a qualidade oculta de gerar valor porque é
valor. Ele pare filhotes vivos ou ao menos põe ovos de ouro”. (Marx,
1983a, 130)
18 O Futuro do trabalho no século XXI

sendo também, assim como os proletários, dominados por


ele.
Vimos que a tendência à queda da taxa de lucro provém
da concentração do capital em meios de produção, reduzindo,
dessa maneira, a proporção do único elemento que produz
mais-valia: a força de trabalho. Mas, segundo Marx (1983d, p.
177), a maior dificuldade não está em explicar por que a taxa
de lucro tende a cair. A maior dificuldade está em “explicar
por que essa queda não é maior ou mais rápida”. O que acon-
tece é que, se há, por um lado, fenômenos que conduzem à
queda da taxa de lucro, há, por outro lado, fenômenos que
contrariam essa queda. Uma delas é a elevação do grau de
exploração do trabalho, artifício utilizado permanentemente
pelo capital, como já vimos anteriormente.2
Não basta, no entanto, explorar ao máximo um número
limitado de trabalhadores. Para aumentar a massa de lucro
é necessário explorar ao máximo um grande número de tra-
balhadores. Por essa razão, impulsionados em aumentar a
massa de lucro, os capitalistas investem em suas empresas e
contratam uma quantidade maior de trabalhadores. Vejamos,
então, as contradições em torno disso.

5. As contradições em torno do aumento


da demanda por força de trabalho

Assim como ocorre com o preço de qualquer mercadoria,


o preço da força de trabalho oscila em torno de seu valor,
sempre influenciado pela lei da oferta e procura. Por essa
razão, o aumento da demanda da força de trabalho provoca
o aumento de seu preço, ou seja, o aumento dos salários. Os
capitalistas não têm controle sobre isso, pois a relação entre

2 Das seis contratendências à queda da taxa de lucro expostas por Marx,


três delas tratam da elevação do grau de exploração do trabalho, que já
é a primeira delas. A segunda é a compressão do salário abaixo de seu
valor, e a terceira é a superpopulação relativa, ou seja, a pressão feita
pelos desempregados na redução dos salários dos trabalhadores em-
pregados. A respeito das contratendências, ver capítulo XIV do Livro III.
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 19

a oferta e a demanda ocorre na instância da circulação, onde


reina a incontrolável anarquia da concorrência. Isso significa,
em outras palavras, que não há como estabelecer um acordo
entre os capitalistas para diminuir a demanda da força de
trabalho. Ao buscar o aumento da massa de lucro, todos os
capitalistas tendem a aumentar suas empresas e contratar,
consequentemente, um número maior de trabalhadores. Se
no interior de suas empresas, ou seja, na esfera da produção,
os capitalistas reinam absolutos, podendo aumentar a jor-
nada e intensificar o trabalho a seu bel-prazer, na esfera da
circulação é diferente. Os capitalistas não têm controle sobre
o mercado. A elevada acumulação de capital, isto é, o aumento
generalizado do investimento dos capitalistas provoca em
determinados momentos o aumento da demanda por força
de trabalho numa proporção superior à oferta dessa merca-
doria, o que provoca a diminuição do exército industrial de
reserva, ou, o que é o mesmo, a diminuição do número de
desempregados, proporcionando, assim, as condições para
uma temporária recuperação dos salários (Marx, 1983d, p.
190 e 193), até então degradados devido ao excesso de oferta
da mercadoria força de trabalho existente anteriormente.
Como se vê, ao aumentar a demanda pela força de trabalho,
o capital é obrigado a se submeter a uma lei que, em outros
momentos do movimento cíclico, lhe beneficiou, mas que,
nesse momento, volta-se contra ele, a lei da oferta e procura.
Com a momentânea elevação do nível de emprego, o poder
de compra dos trabalhadores é parcialmente recuperado.
Vimos, então, que o aumento da demanda por força de
trabalho é provocado pela busca dos capitalistas por massas
crescentes de lucro. Utilizam, assim, as 24 horas do dia, os
sete dias da semana, intensificam ao máximo o trabalho.
Vimos também que, ao elevar a demanda por força de traba-
lho, os capitalistas criam, involuntariamente, as condições
para a elevação dos salários. Aqui surge a contradição central
para os capitalistas: a elevação dos salários faz com que o
movimento ascendente da massa de lucro seja momentane-
amente interrompido (Marx, 1983d, p. 40), conforme se pode
observar na figura 5, a seguir:
20 O Futuro do trabalho no século XXI

O início da queda da massa de lucro representa um


momento chave no movimento cíclico do capital, pois é o
sinal decisivo de que a expansão do processo de autovalori-
zação do valor encontrou uma barreira momentaneamente
intransponível. Como o objetivo do capital é se apropriar de
massas sempre crescentes de lucro, no momento em que esse
crescimento se torna impossível o capital tende a entrar em
crise. Isso não significa que o capital deixe de se apropriar de
lucro. O lucro continua existindo. O que acontece é a momen-
tânea queda da massa de lucro. Para o capital isso é algo insu-
portável. Ao invés de continuar crescendo, a massa de lucro
entra em estagnação e inicia a queda, conforme gráfico 2.
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 21

Chegamos a um momento importantíssimo da determina-


ção das crises do capital. Segundo Marx, as crises ocorrem no
ponto mais alto da curva da massa de lucro. As crises são conse-
quência da incapacidade do capital suportar a interrupção do
crescimento e o início da queda da massa de lucro. O curioso
é que a queda da massa de lucro é causada pela melhoria das
condições de vida dos trabalhadores assalariados, melhoria
esta provocada pela redução do desemprego e pela recupe-
ração, mesmo que parcial, do poder de compra dos salários.
Os fundamentos da crise do capital mostram que o capital
não suporta sequer uma pequena recuperação das condições de
vida dos trabalhadores. Quando isso acontece, o capital entra
em crise. Os fundamentos da crise do capital expõem aber-
tamente que a classe trabalhadora não tem nada a esperar do
capitalismo. Assim se esclarece o aparente paradoxo lançado
na introdução deste artigo: O capital não consegue conviver
com o aumento do emprego e com o consequente crescimento
do consumo da classe trabalhadora. É justamente o contrário.
O capital entra em crise quando a classe trabalhadora começa
a aumentar o seu consumo, por ter o poder de compra dos salá-
rios momentaneamente recuperado. O capital entra em crise
porque a recuperação dos salário contraria o aumento da massa
de lucro, objetivo principal ou finalidade última do capital.
Ao observar o gráfico 2 percebe-se que o momento da
crise se dá quando a massa de lucro deixa de crescer e começa
a diminuir. A taxa de lucro já vinha diminuindo sem que isso
determinasse o momento da crise. Não é possível, portanto,
identificar o momento da crise do capital analisando apenas
o movimento da queda da taxa de lucro. A queda da taxa de
lucro é uma manifestação ainda abstrata da crise, incapaz de
desvelar seus fundamentos mais profundos. A queda taxa de
lucro indica apenas uma tendência do capital a entrar em crise.
O momento da crise do capital só pode ser identificado atra-
vés do movimento da massa de lucro. A crise ocorre quando
este movimento da massa de lucro deixa de crescer e inicia o
descenso. Fica claro, portanto, que o movimento da massa de
lucro é mais concreto, mais rico em determinações do que o
movimento da taxa de lucro.
22 O Futuro do trabalho no século XXI

Mas, afinal, o que faz com que a massa de lucro comece a


cair e conduza o capital à crise? Segundo Marx (1983d, p. 189),
este momento decorre daquilo que ele chama de pletora do
capital. Vejamos, então, o que isto significa.

6. A pletora do capital: a determinação


do momento da crise

Nas ciências médicas a pletora é considerada o aumento do


volume de sangue no organismo que provoca inchaço vascular.
Já nas ciências biológicas a pletora corresponde à produção
anormal e excessiva de seiva, que provoca produção anormal
e excessiva de folhas. Nesse mesmo sentido, Marx considera
que na economia a pletora do capital é o excesso de produção
do próprio capital, que provoca a utilização excessiva de trabalha-
dores e de meios de produção. Como vimos, a elevada utilização
de trabalhadores tende a aumentar momentaneamente os
salários e conduzir à redução da massa de lucro, desde que
a extensão da jornada e a intensidade do trabalho já tenham
atingido o seu limite. Caso a jornada e a intensidade do traba-
lho não tenham atingido o seu limite, os capitalistas podem
compensar o aumento dos salários, elevando a jornada e a
intensidade do trabalho, e adiar, assim, o momento da crise,
ao aumentar o grau de exploração do trabalho. Mas ao atingir
o limite do grau de exploração do trabalho, o capital se encontra
num momento decisivo do ciclo, se encontra diante da redução
do seu alimento, o lucro. Por isso nesse momento o capital
entra em crise, o momento no qual o capital não consegue
evitar a diminuição de seu alimento, não consegue evitar a
queda da massa de lucro.
A crise do capital representa, então, uma espécie de meca-
nismo capaz de solucionar o problema da paralisia e queda da
massa de lucro. Como age este mecanismo da crise? Age criando
as condições para a diminuição da demanda por força de tra-
balho e a consequente diminuição dos salários, o que possibi-
lita o aumento da massa de lucro. Os capitalistas fazem isso
paralisando a acumulação de capital, ou, como diz Marx (1983d,
p. 190), tornando “o capital adicional = 0”. Ao perceber que a
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 23

massa de lucro parou de crescer, os capitalistas deixam de


investir no crescimento de suas empresas, transferindo os
seus investimentos para esferas improdutivas, aquelas que
não geram mais-valia. Uma destas esferas é a do capital por-
tador de juros. Mas o chamado investimento especulativo
também possui os seus limites. 3 Diante desses limites, o fun-
damental para o capital é recuperar o mais rápido possível
o movimento ascendente da massa de lucro na instância da
produção, o que ele consegue transferindo a sua crise aos tra-
balhadores assalariados, conforme veremos a seguir.

7. A superação da crise do capital

Se o capital entra em crise devido à excessiva demanda por


força de trabalho que, como vimos, provoca a elevação dos
salários e a redução da massa de lucro, para superar a crise é
necessário inverter este movimento, isto é, o capital precisa
demitir utilização de parte dos trabalhadores a fim de reduzir
os salários e, com isso, aumentar a massa de lucro, conforme
demonstrado na figura 64:
Figura 6
Elevação da massa de lucro decorrente da redução dos salários,
mantidas constantes as demais circunstâncias 4

Nesse processo de superação da crise do capital, as empre-


sas mais débeis tendem a entrar em falência, deixando de

3
A análise dos limites do investimento no chamado capital portador de
juros foge ao escopo desse artigo.
4
As “demais circunstâncias” são a extensão da jornada de trabalho e a
intensidade do trabalho no interior dessa jornada.
24 O Futuro do trabalho no século XXI

existir ou sendo incorporadas pelas empresas economica-


mente mais fortes. Costuma-se tratar desse momento de
demissões em massa e falência de empresas como se fosse a
eclosão da crise na sociedade: “o Brasil está em crise! Temos
que tirar o país da crise!”, gritam em uníssono os defensores
do capital. O primeiro equívoco dessa abordagem é que a crise
não é da sociedade ou do país. A crise é do capital. O segundo
equívoco desses que Marx (1983a, p. 145) chama de livre-cam-
bistas vulgaris é não perceber que isso que eles denominam
“momento da crise” é o momento no qual o capital já está supe-
rando a sua crise e transferindo-a aos trabalhadores assala-
riados. Ao demitir em massa e reduzir os salários o capital
consegue repor novamente a massa e da taxa de lucro em sen-
tido ascendente, resolvendo, desse modo, o seu problema. O
capital só consegue aumentar novamente a produção do seu
alimento, o lucro, diminuindo o alimento disponível na mesa
da classe trabalhadora, através das demissões em massa e do
rebaixamento dos salários que as acompanha.
No gráfico 3, a seguir, a crise do capital está representada
no ponto mais elevado da curva de massa de lucro, enquanto
a transferência da crise do capital à classe trabalhadora se
expressa no ponto mais baixo dessa curva, quando o capi-
tal consegue tornar novamente ascendente o movimento da
massa de lucro. Nesse momento mais baixo o desemprego
voltou a ser elevado e os salários reduzidos, em níveis condi-
zentes com as necessidades da autovalorização do valor.
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 25

A questão que se coloca é como, então, os trabalhadores


assalariados, enquanto proprietários da força de trabalho,
podem impedir que o capital transfira a sua crise para eles.
Como podem eles se defender da miséria e da carestia de vida
provocadas pela superação da crise do capital?

8. A autodefesa dos trabalhadores

Se para superar as suas crises o capital precisa provocar


demissões em massa e reduzir os salários, a maneira que os
trabalhadores assalariados têm para se defender das consequ-
ências da crise do capital é reivindicar a conservação dos seus
empregos e dos seus salários. Estas duas reivindicações apa-
recem como algo meramente defensivo para os trabalhadores
assalariados, elas aparecem para eles como reivindicações
conservadoras. Ao defender estas duas reivindicações, os tra-
balhadores não estão, aparentemente, atacando o capitalismo,
mas apenas defendendo a conservação de suas condições de
vida atuais. Eles estão somente reivindicando seu direito ao
trabalho e a conservação de suas condições de vida. Estas duas
reivindicações não exigem dos trabalhadores uma consciência
socialista, revolucionária, anticapitalista. No entanto, mesmo
sem saber, ao defender a mera conservação de seus empregos e
de seus salários nos momentos de crise do capital, os trabalha-
dores assalariados estão exigindo algo que o capital é incapaz
de atender nesses momentos de crise, pois, como vimos, não
há como o capital superar a sua crise e recuperar o movimento
ascendente da massa de lucro, o que lhe é imprescindível, sem
demitir em massa os trabalhadores e reduzir os seus salários.
Por isso, essas duas reivindicações juntas, a conservação dos
empregos e dos salários atuais, levantadas nos momentos de
crise do capital, criam um impasse insolúvel entre as classes,
o que tende a estimular greves e, nos casos mais drásticos,
greves com ocupações de fábricas. Como se vê, a mera defesa
da conservação de seus empregos e de seus salários, quando
levantada nos momentos de crise do capital, gera profundas
contradições entre as classes, contradições que podem levar
a classe trabalhadora a entrar em luta.
26 O Futuro do trabalho no século XXI

No entanto, o que temos visto nas recorrentes crises do


capital não é essa tendência à luta. Ao invés de levantar essas
duas reivindicações juntas, as organizações que dirigem os
trabalhadores assalariados, mesmo aquelas de inspiração
marxista, todas, sem exceção, têm aceitado as demissões e
a redução dos salários impostas pelas empresas, assinando
acordos que transferem o ônus da crise do capital aos traba-
lhadores assalariados. Marx, ao contrário, nos mostra que
as crises do capital são momentos especiais, momentos nos
quais as contradições de classes em torno da manutenção
dos empregos e dos salários se colocam de maneira aberta.
É provável que essa seja uma das razões que fazia Marx e
Engels se entusiasmarem a cada nova crise do capital.5
Marx expõe, assim, finalmente, depois de longo percurso,
no capítulo XV do Livro III d’O capital, as formas mais con-
cretas de manifestação das crises do capital, as formas mais
ricas em determinação. As crises do capital representam a
explosão das contradições entre as classes, contradições em
torno da extensão da jornada, da intensidade do trabalho
e da magnitude dos salários, que já apareciam no Livro I
como contradições centrais do modo de produção capitalista,
como contradições que conduzem, como diz Marx (1983a, p.
236), a “uma guerra civil de longa duração, mais ou menos
oculta, entre a classe capitalista e a classe trabalhadora”. Nos
momentos de crise do capital, esta guerra civil entre as clas-
ses pode se tornar aberta, escancarada. Para isso, é preciso
que as direções da classe trabalhadora deem vazão às contra-
dições da realidade, as contradições em torno da magnitude
dos salários, assim como da extensão e da intensidade da
jornada de trabalho, contradições estas que já estão postas de
maneira imanente pelo próprio movimento cíclico do capital.

5
Quando, no final de 1857 uma crise abalou a Inglaterra e o resto da
Europa, Marx escreveu a Engels: “Desde 1849, nunca me senti tão bem
quanto agora”. Engels respondeu com o mesmo entusiasmo: “A crise
produz em mim o mesmo bem-estar físico que um banho de mar”. (apud
Konder, 1999, p. 87)
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 27

9. Considerações finais

Sabemos que Marx utilizou a dialética como método, con-


forme ele próprio admitiu no posfácio à Segunda Edição d’O
capital. Em seus mais de dois mil anos de existência, desde os
gregos até Marx, a tradição dialética sempre travou uma luta
feroz contra a lógica da não-contradição, a chamada “lógica
formal”, aquela lógica que considera a gênese, a origem, o fun-
damento, ou o Ser dos fenômenos como algo puro, não-contra-
ditório. Com base nessa lógica formal os economistas vulgares
defendem que cada crise do capital teria um fundamento par-
ticular e distinto e sem qualquer relação com as demais crises,
cada crise permaneceria isolada em seu puro Ser, sozinha em
sua suposta particularidade. Esses economistas perdem-se,
assim, nas causalidades particulares, se distanciam dos funda-
mentos mais profundos das crises. Parte dos marxistas segue
essa perspectiva da mono ou da multicausalidade das crises. 6
Marx parece se afastar dessas concepções. Ao invés da
noção de causa, Marx trabalha com a noção dialética de deter-
minações, desde o nível mais abstrato ou indeterminado até
o nível mais concreto ou determinado. Nessa perspectiva, a
superprodução de mercadorias é a forma mais indeterminada,
acessível a todos os olhos, bastando perceber os estoques das
empresas lotados de mercadorias para identificar a crise se
manifestando, fazendo crer que as crises seriam determinadas
por uma insuficiente demanda de mercadorias, o que, como
vimos, não expressa os fundamentos das crises, mas apenas
sua forma de manifestação mais superficial. Não por acaso,
após anos de trabalho, depois de ter conseguido elaborar a
dialética expositiva do Livro I de O capital, Marx localizou as
formas comerciais das crises no início da obra, no capítulo III,

6
Segundo Benoit : Antunes (2016, p. 21), Rudolf Hilferding e Mikhail
Tugán-Baranovski defendiam que as crises do capital se originavam
da desproporção entre os Departamentos I e II exposta na Seção III
do Livro II de O capital, enquanto Ernest Mandel considerava que as
crises eram decorrentes de várias causas. Todos permaneceram presos
à noção de causalidade.
28 O Futuro do trabalho no século XXI

começando, assim, pelas formas mais abstratas para depois


superá-las pelas formas mais concretas.
Para desvelar o movimento de queda da taxa de lucro é
necessária uma análise mais cuidadosa, exigindo certa coleta
de informações de mais difícil acesso do que os estoques das
mercadorias nas empresas. Ou seja, há na noção de taxa de
lucro um grau de determinação mais profundo do que a sim-
ples observação dos estoques. Apesar disso, vimos que o movi-
mento decrescente da taxa de lucro ainda carece de maior
determinação, pois, através dele não é possível determinar o
momento preciso em que a crise ocorre.
Esta determinação somente é possível ao encontrar o
momento em que movimento da massa de lucro paralisa o
seu crescimento e inicia a queda. Desse modo, o movimento
da massa de lucro é o mais determinante em relação à mani-
festação das crises do capital, aquele que define o momento
no qual elas ocorrem. Observando os estoques abarrotados
ou o movimento de queda da taxa de lucro não há como saber
quando a massa de lucro deixará de subir e iniciará o des-
censo, ou seja, não há como saber quando a crise do capital
será detonada.
Como se vê, ao invés de revelar o conteúdo mais profundo,
as formas de manifestação o ocultam. O conteúdo mais pro-
fundo das crises, o movimento da massa de lucro, permanece
oculto atrás das formas de manifestação mais aparentes da
crise, como a movimento da taxa de lucro, a superprodução
de mercadorias, a concentração do capital em meios de pro-
dução, etc.. No entanto, apesar destas formas de manifestação
das crises não representarem o seu fundamento, elas fazem
parte do fenômeno das crises, participam dele, mas sempre de
maneira a dissimular o seu fundamento, de maneira a ocul-
tar as contradições entre as classes em torno da magnitude
mais-valia e da massa de lucro dela decorrente produzida
pelos trabalhadores assalariados. Os estoques abarrotados e
a queda da taxa de lucro revelam a tendência do capital à crise,
mas ocultam o que está por trás das crises: a luta de classes em
torno do valor produzido pela classe trabalhadora assalariada.
O fundamento mais profundo das crises do capital é, portanto,
Os fundamentos das crises cíclicas do capital segundo Marx 29

a luta de classes, somente perceptível quando se acompanha


o modo de exposição dialético d’O capital de Marx.
Por isso, se é um equívoco desprezar totalmente estas
formas de manifestação aparentes da crise e buscar em cada
crise uma nova “causa”, não deixa de ser um equívoco colocar
estas formas de manifestação das crises no mesmo nível de
sua determinação mais profunda, como se todas estas formas
estivessem misturadas, embaralhadas, sem qualquer distin-
ção, conforme fazem diversos marxistas. Esta postura signi-
ficaria renunciar a uma análise concreta, permanecendo num
nível abstrato da análise, mostrando-se incapaz de identificar
os diferentes níveis de determinações entre elas. O método
dialético consiste justamente em buscar, encontrar e desve-
lar os diferentes níveis de determinação, superar o universal
abstrato, para alcançar o concreto, a síntese de múltiplas deter-
minações, (Marx, 1989, 21) que, no caso das crises, é a luta de
classes em torno da apropriação da mais-valia produzida pela
classe trabalhadora assalariada durante a jornada de trabalho.

Referências

BENOIT, Hector : ANTUNES, Jadir. (2016) O problema da crise capitalista


em O capital de Marx. Jundiaí: Paco EditorKONDER, Leandro. (1999) Marx.
São Paulo: Paz e Terra, 1999.
MARX, Karl. (1983a) O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril
Cultural, vol. I, tomo 1.
MARX, Karl. (1983b) O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril
Cultural, vol. I, tomo 2.
MARX, Karl. (1983c) O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril
Cultural, vol. II.
MARX, Karl. (1983d) O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril
Cultural, vol. III, tomo 1.
MARX, Karl. (1989) Elementos fundamentales para la crítica de la economia
política (Grundrisse) 1857-1858. México: Siglo veintiuno editores, vol. 1.
Plataformização, desiguldade e
precarização do trabalho: perspectivas das
políticas públicas no Brasil contemporâneo

2
EDUARDO MOHANA SILVA FERREIRA1
ENAIRE DE MARIA SOUSA DA SILVA2
RAILSON MARQUES GARCEZ3

1. Introdução

S
egundo dados divulgados no relatório “El papel de
las plataformas digitales en la transformación del
mundo del trabajo” pela Organização Internacional
do Trabalho (OIT), desde 2010 o número de plataformas
digitais que facilitam o trabalho ou contratam diretamente
trabalhadores para prestar serviços (de táxi e de entrega,
principalmente) quintuplicou em todo o mundo (ILO, 2021).
No Brasil, estima-se, de acordo com dados divulgados na
carta de conjuntura nº53 do mercado de trabalho publicada
pelo IPEA, que até 1,4 milhões de trabalhadores poderiam
estar inseridos na chamada “gig economy”, quantidade essa
que representa cerca de 31% do total de 4,4 milhões de traba-
lhadores inseridos no setor de transporte (de pessoas e mer-
cadorias), armazenagem e correio, geralmente os aplicativos.

1
Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico (UFMA) – eduardo-
mohana@hotmail.com
2
Doutoranda em Política Social (UNB) – sousaenaire@gmail.com
3
Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico (UFMA) – railsongarcez.
uema@gmail.com
32 O Futuro do trabalho no século XXI

É por considerar esse cenário e as transformações, já ini-


ciadas, no contexto da plataformização do trabalho que se
busca refletir neste trabalho a seguinte questão: Como a pre-
carização e as desigualdades decorrentes da plataformização
do trabalho no século XXI tem ensejado políticas públicas e
legislações protetivas para evitar ou minimizar a degradação
das condições de vida dos trabalhadores?
A hipótese como ponto de partida para o desenvolvimento
deste trabalho, baseia-se na consideração de que a expansão
da plataformização é chancelada pelo papel do Estado que
reforça os efeitos perversos e destrutivos do trabalho desen-
volvido nas plataformas digitais, porém não se observa o
desenvolvimento de políticas públicas ou legislação protetiva
concretas de combate à estrutura e forma de atuação das
empresas-aplicativos.
Assim sendo, o objetivo deste trabalho consiste em ana-
lisar o cenário da plataformização e o contexto de formu-
lação e implementação de políticas públicas de mitigação
dos efeitos de desigualdade e precarização do trabalhador
no Brasil. Para isso, é imprescindível compreender o que é
a plataformização digital do trabalho e suas características.
Buscou-se também verificar o cenário de precarização do
trabalho em plataformas digitais e discutir sobre a criação
e implementação de políticas públicas de combate à degra-
dação dos direitos.
Para alcançar estes objetivos, fez-se uso do recurso meto-
dológico teórico-bibliográfico, com abordagem exploratória
e qualitativa, a partir de pesquisas em bases de dados aca-
dêmicas e institucionais para problematizar e responder à
questão do tema em estudo. Dividido em quatro partes, sendo
a primeira delas esta introdução, o artigo traz no segundo
capítulo um levantamento bibliográfico sobre a plataformi-
zação do trabalho a fim de compreender essa principal ideia-
-força; no capítulo três, busca-se compreender a precarização
e a desigualdade na dinâmica do trabalho plataformizado
no Brasil; e, por fim, no último capítulo, são apresentadas
as considerações finais com vistas a posicionar a hipótese
suscitada nesse estudo.
Plataformização, desiguldade e precarização do trabalho 33

2. Plataformização do trabalho

A sedução provocada pelo discurso, libertador e emanci-


pador, das plataformas digitais de trabalho, enseja uma nova
onda de debates sobre o papel e seus impactos na geração de
empregos decentes, principalmente para os jovens. O pro-
cesso de plataformização do trabalho e seus efeitos sistêmicos
no mundo laborativo, marcado pela informalidade, flexibili-
zação, banimento dos apps, superexploração, autoexploração,
subjetivação, autogerenciamento mediado por algoritmos,
etc., tem delineado um cenário de maior precarização do tra-
balhador que é visto como “empreendedor de si mesmo”, e
“parceiro” dos apps.
Nesta perspectiva o capitalismo de plataforma, inicial-
mente ancorado no ideário e no manto áureo da Economia
do Compartilhamento, ascende na contemporaneidade como
uma nova onda, dentro da etapa da ciberindústria deste século,
na qual as corporações globais buscam autovalorização sem
compromisso humano-societal (Slee, 2017; Abílio, 2020;
Antunes, 2020).
A chamada escravidão moderna na era digital, ou seja, o
trabalhado plataformizado e suas nuances, fruto dessa nova
onda, associa-se diretamente com o processo de reorganização
produtiva e do trabalho, estes, indiscutivelmente e intensa-
mente ligados ao desenvolvimento tecnológico. No entanto,
longe de ser uma novidade, esse modus operandi do capita-
lismo, agora em uma fase neoliberal, tem apenas evidenciado
um processo, em curso, de deterioração das relações de traba-
lho, porém iniciado há décadas que envolvem transformações
na forma de organizar, controlar, gerenciar o trabalho e que
justificam os modos de ser e aparecer do capital (Antunes,
2019; Abílio, 2017; 2020; Grohmann, 2020).
Nesse sentido, a uberização em espectro mais amplo, um
dos modos de ser do trabalho que avança em razão das plata-
formas digitais, expandiu-se pelo desenvolvimento das TIC’s,
bem como ampliou os processos de precarização do prole-
tariado digital em amplitude global. Destaca-se que o termo
ganhou conotação universal e, em muitos casos, associado
34 O Futuro do trabalho no século XXI

à uma dimensão precária do trabalho desenvolvido pelos


trabalhadores “parceiros” nas plataformas.
O ponto central desse processo de plataformização ou
uberização do trabalho, consiste em reduzir o trabalhador,
enquanto fator de produção, exatamente na medida que as
empresas-aplicativo e o capital necessitam. Ao considerar
essa perspectiva, o trabalhador das plataformas, transforma-
-se em um trabalhador just-in-time, uma espécie de gerente
subordinado que assume os riscos e custos da sua própria
atividade. A uberização é um processo amplo de transforma-
ções do trabalho e que não se restringe aos meios técnicos
materializados nas plataformas digitais de trabalho (Abílio,
2020b; Filgueiras; Antunes, 2020; Abílio, 2021).
Destarte, a exploração do trabalhador dentro das mais
distintas modalidades de trabalho no capitalismo informa-
cional-digital-financeiro encontra-se ancorada em disposi-
tivos que intensificam e ampliam o movimento de proleta-
rização virtual, o cybertariado, e a precarização estrutural
do trabalho nessa fase do capitalismo mais neoliberal. O
fenômeno da uberização, face mais evidente da plataformi-
zação, apoia-se em um tripé básico com aspectos centrais
ao atual estágio de desenvolvimento capitalista: mobilidade
urbana, legislação digital e o desemprego estrutural. A pla-
taformização do trabalho, de maneira mais ampla, ascende
nesse século como um dos elementos da teia resultante da
imbricação entre a financeirização e datificação do capital.
(Antunes, 2019; Huws, 2017; Moraes; Oliveira; Accorsi, 2019;
Grohmann, 2020).
A uberização, assume a forma de um amplo processo de
informalização da força de trabalho que, por sua vez, mostra-
-se complexa e com elevado poder para redefinir as relações
de trabalho no capitalismo contemporâneo a partir da regu-
lação e papel ativo do Estado em generalizar os retrocessos
como a transferência dos riscos e custos ao trabalhador. As
plataformas, percebidas como um horizonte de libertação
das amarras do trabalho formal para muitos trabalhadores,
na verdade, têm trazido novos e complexos desafios e debates
ao mundo do trabalho, pois inauguraram novo movimento
Plataformização, desiguldade e precarização do trabalho 35

de rebelião global contra as investidas do capital em sua fase


informacional-digital-financeira (Abílio, 2020; Festi, 2020).
De acordo com dados da Organização Internacional do
Trabalho alguns fatores contribuíram para a popularidade
das plataformas, como horários de trabalho flexíveis; liber-
dade para a escolha de tarefas, e a possibilidade de escolher
trabalhar a qualquer hora em qualquer lugar. Os trabalha-
dores plataformizados buscam nas plataformas uma renda
adicional ou aderem a elas pela falta de outras oportunidades
de emprego no mercado formal, por exemplo (Ilo, 2021).
Cabe destacar que esses novos negócios ou novas formas
de organização do trabalho, representados pelas platafor-
mas digitais de trabalho, estão associadas ao progresso e uso
das TIC’s, e utilizam a narrativa do capital para escamotear
a natureza do serviço, mascarar e negar o que realmente
significam. Além disso, pela forma como se apresentam,
as plataformas, constituem formas estratégicas utilizadas
pelo capitalismo para contratar e gerir o trabalho, porém, na
verdade, mascarando o assalariamento das relações estabe-
lecidas entre a plataforma online e o entregador/motorista
(Filgueiras; Antunes, 2020; Grohmann, 2020).
Sob a face de um movimento dialético, há um processo
de experimentação pelas forças do capital para controlar
e gerenciar o trabalho por meio das plataformas que com-
binam capitalismo rentista, extração contínua de dados e
gestão neoliberal. As plataformas representam atualmente
novos centros de acumulação de capital e o trabalho platafor-
mizado a principal dimensão-chave do capitalismo de pla-
taforma financeirizado (Grohmann, 2021; Van Doorn, 2021).
Nesse sentido, a exploração do trabalhador dentro das
mais distintas modalidades de trabalho no capitalismo infor-
macional-digital-financeiro encontra-se ancorada em dispo-
sitivos que intensificam e ampliam o movimento de proleta-
rização virtual, o cybertariado, e a precarização estrutural
do trabalho nessa fase neoliberal do capitalismo. A plata-
formização do trabalho, de maneira mais ampla, ascende
nesse século como um dos elementos da teia resultante da
imbricação entre a financeirização e datificação do capital.
36 O Futuro do trabalho no século XXI

(Antunes, 2019; Huws, 2017; Moraes; Oliveira; Accorsi, 2019;


Grohmann, 2020).

3. Precarização e desigualdade nas


plataformas digitais de trabalho

Na dinâmica das plataformas digitais de trabalho, ao aces-


sar o aplicativo e ficarem online, os trabalhadores estão se
sujeitando a uma autoridade que organiza os pedidos e as
demandas dos consumidores, determina quais, onde e como
as tarefas devem ser executadas, o valor que será pago, além de
controlar, direta ou indiretamente, a execução do trabalho e a
performance do trabalhador. Ou seja, a plataforma monitora
e avalia de forma minuciosa o comportamento dos trabalha-
dores, remunerando-o pela produtividade e não pelo tempo
de trabalho (Gandini, 2018; Gonsales, 2020).
As plataformas ou aplicativos, consideradas para muitos
trabalhadores um horizonte de libertação das amarras do
trabalho formal, na verdade, tem trazido novos e complexos
desafios e debates ao mundo do trabalho, pois inauguraram
novo movimento de rebelião global contra as investidas do
capital em sua fase informacional-digital-financeira. Essas
plataformas, dos mais variados tipos, são a concretização de
um processo contínuo de acumulação e extração de valor a
partir dos dados e da intermediação dos algoritmos (Abílio,
2020; Festi, 2020; Grohmann, 2020).
É a partir dessa concretude que as plataformas podem se
apresentar legalmente como empresas de tecnologia e não
como empresas de transporte ou entregas. Essa condição tem
ensejado intenso debate sobre subordinação, vínculo empre-
gatício e regulamentação das empresas-aplicativos trazendo
à tona temas como desigualdade, controle e a atualização
da precarização do trabalho no capitalismo contemporâneo
(Schinestsck, 2020; Abílio, 2020b).
A plataformização do trabalho no capitalismo contemporâ-
neo, assume a forma de um amplo processo de informalização
da força de trabalho que, por sua vez, mostra-se complexa e
com elevado poder para redefinir as relações de trabalho, a
Plataformização, desiguldade e precarização do trabalho 37

partir da regulação e papel ativo do Estado em generalizar os


retrocessos como a transferência dos riscos e custos ao traba-
lhador. Dito de outro modo, na perspectiva da uberização, o
que há é a redução do trabalhador a força de trabalho sempre
subordinado ao controle e definições da empresa-aplicativo.
A disseminação das plataformas nos últimos anos, trouxe
um novo adeus à classe trabalhadora e o que há de pior: a
isenção de responsabilidades das empresas-aplicativos que
negam a natureza assalariada, bem como o caráter laboral
da relação (Abílio, 2020; 2021; Filgueiras, 2021).
De acordo com Kalleberg (2018), o trabalho precário pode
ser entendido a partir de algumas dimensões-chave como a
insegurança e incerteza, a baixa remuneração e benefícios
sociais, transferências de riscos e governo para os trabalha-
dores e desregulamentação trabalhista ou falta de proteção
legal. Já para Guy Standing (2020) o trabalho precário não
está associado somente aos trabalhadores pobres ou empre-
gados dentro de um regime de incerteza. Para ele, a caracte-
rização do trabalho precário está associada também à falta
de controle sobre o próprio trabalho ou emprego.
Sem sombra de dúvidas, essas dimensões são perceptí-
veis no trabalho plataformizado que já nasceu socialmente
desprotegido e vulnerável ao despotismo das empresas-apli-
cativo que normalizam e ampliam um autogerenciamento
em novos patamares. Esse autogerenciamento, narrativa do
novo mundo do trabalho que cultua o empreendedorismo,
inaugura a autoexploração, ou seja, um novo processo de
metamorfose da exploração e maus-tratos ao trabalhador
decorrentes da ascensão do ultraliberalismo (Abílio, 2021;
Cavalcanti, 2021).
No capitalismo de plataforma, as empresas da gig eco-
nomy utilizam práticas inovadoras de controle do trabalho e
dos trabalhadores centradas em tecnologia e em orientações
normativas. A operação dos serviços dessas plataformas se
dá pela transferência de custos aos trabalhadores, associados
aos equipamentos (carros, motos, patinetes, etc.) e opera-
ções de capital, tornando-os mais sobrantes, supérfluos e
expostos a maiores riscos sob a batuta dos algoritmos que
38 O Futuro do trabalho no século XXI

determinam o trabalho a ser executado (Gandini, 2018; Ilo,


2021, Antunes, 2020).
As plataformas têm representado uma ameaça ao trabalho
decente, um conceito formalizado pela OIT em 1999 e ancorado
em equidade, segurança, liberdade e dignidade humana como
condições fundamentais para a redução das desigualdades
sociais e superação da pobreza (Ilo, 2019). Assim, o trabalhador
usado em sua exata medida (Abílio, 2020), transforma-se um
apêndice da tecnoestrutura das plataformas submetendo-se
à pretéritas formas de exploração que remetem à protoforma
do capitalismo (Antunes, 2020).
Dados coletados e divulgados pela Aliança Bike em 2019,
mostram que jovens de 18 a 22 anos e em situação de desem-
prego (59%) trabalham mais de 8 horas/dia para garantir uma
renda mínima para sobrevivência. A pesquisa revelou ainda
que esses jovens bikeboys trabalham, em média, de 9 a 10
horas/dia, fazem 9 entregas/dia e conseguem ganhar algo em
torno de R$ 992,0/mês; utilizam, em sua maioria (83%), a sua
própria bicicleta; e também assumem todos os custos da ati-
vidade como consertos as bicicletas (27%), compra de mochila
térmica (67%), compra de smartphone (30%) e troca de plano
de Internet (59%) (Aliança Bike, 2019).
De acordo com dados divulgados no Relatório
- “Levantamento sobre o Trabalho dos Entregadores por
Aplicativos no Brasil”, produto do projeto Caminhos do
Trabalho: Tendências, Dinâmicas e Interfaces, do local ao
global – desenvolvido pelo NEC/Núcleo de Estudos conjun-
turais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), os trabalha-
dores das plataformas, tanto aqueles que as utilizam como
ocupação principal, quanto aqueles que as utilizam como ocu-
pação complementar, trabalham em média 55 horas semanais.
Realizada com mais de 100 trabalhadores de plataformas digi-
tais em todas as regiões do país, a pesquisa identificou que
quando se trata de ocupação principal as jornadas são bem
mais extensas – motociclistas (66,9 horas/semana) e Bikeboys
(59,2 horas/semana). Cabe ressaltar ainda que 90% deles tra-
balham 5, 6 ou todos os dias da semana e recebem menos de
1 salário mínimo, em média (Nec, 2020).
Plataformização, desiguldade e precarização do trabalho 39

Insegurança e insatisfação são sentimentos perceptíveis


nos trabalhadores da Uber, segundo pesquisa realizada com
motoristas da cidade do Rio de Janeiro, que consideram a plata-
forma um subterfúgio para a satisfação das necessidades. Além
disso, a pesquisa identificou, a partir de dimensões estabeleci-
das como “trabalho sem vínculo empregatício”, “intensificação
do trabalho”, “precarização”, insegurança no trabalho”, “captura
de subjetividade” e “desemprego”, que os motoristas entendem
que existe no desenvolvimento desse trabalho na plataforma
um excesso de trabalho que se evidencia nas muitas horas tra-
balhadas (para garantir ganhos maiores) e por conseguinte,
um processo de precarização assemelhado, para alguns, ao
trabalho escravo (André; Da Silva; Nascimento, 2019).
A precarização do trabalho dos parceiros das plataformas
de delivery e transporte pode ser visualizada não só pelas
disparidades envolvendo renda, mas, principalmente, pela
jornada de trabalho dos trabalhadores, conforme visto ante-
riormente. Assim como também podem ser levadas em con-
sideração clivagens de gênero, raça, território como aspectos
fundamentais para a análise de oportunidades e desigualdades
geradas pelas plataformas (Grohmann, 2020; Van Doorn, 2021).
Ainda nessa seara, de acordo com o relatório do “Fairwork
Brasil 2021: por trabalho decente na economia de plataformas”,
as plataformas digitais de trabalho ofertam condições injustas
de trabalho e não garantem proteções mínimas aos parceiros,
sendo consideradas promotoras de trabalho informal, tem-
porário, mal remunerado e precário. No país, de acordo com
o relatório Fairwork, há uma atualização e intensificação da
informalidade histórica antes mesmo do surgimento e disse-
minação das plataformas digitais de trabalho (Fairwork, 2022).
É possível reconhecer, portanto, processos de degradação
do trabalho na uberização desses trabalhadores que se evi-
denciam principalmente no rebaixamento do valor da força
de trabalho extensão e intensificação do tempo de trabalho,
e na transferência de custos e riscos (Praun; Antunes, 2020;
Abílio, 2020c). Assim como, percebe-se, evidentemente, que
essa ofensiva ao trabalho se trata de uma resposta articu-
lada do capital à crise atual, configurando-se como uma nova
40 O Futuro do trabalho no século XXI

estratégia hegemônica globalizada e travestida de “novidade”


que amplia desigualdades e o desemprego.
Tal novidade para o mundo do trabalho nada mais significa
que a legitimação de políticas públicas e práticas que endos-
sam o processo de destruição de direitos e das condições de
trabalho as quais estão sujeitas o trabalhador de plataforma
ao excluí-lo da legislação protetora do trabalho. Uma situação
“nova” que é resultado das brechas que o próprio Estado abre ao
ceder aos arranjos e premissas corporativas, mesmo sabendo
que fere os direitos e coloca em xeque as condições da força
de trabalho (Cavalcanti, 2021; Filgueiras, 2021; Antunes, 2021).
Essa “nova” condição, narrativa do capital, para combater
o anacronismo e o colapso do mercado de trabalho, mostra-se
predatória ao flexibilizar e atacar direitos fundamentais dos
trabalhadores (Filgueiras, 2021). No entanto, essas narrativas
conseguem se reproduzir por conta do contexto legal e da
ausência de legislação específica que trate da regulação das
relações de trabalho nas plataformas digitais, apesar de haver
projetos de lei em tramitação no Congresso Brasileiro e de Lei
aprovada no ápice da pandemia da covid-19 cujos dispositivos
atem-se restritivamente aos cuidados de proteção em relação
à pandemia (Fairwork, 2022).

4. Considerações finais

Refletir sobre os rumos do trabalho no século XXI com


todas as suas dinâmicas e os desdobramentos sistêmicos
decorrentes da inovação tecnológica, evidenciados e propa-
gados pelas plataformas digitais de trabalho, tem se tornado
indispensável por conta do iminente processo de degradação
e precarização do trabalhador nessa fase digital-financeira
do capitalismo. Promover reflexões acerca da expansão do
trabalho digital e, principalmente, das plataformas ou mais
comumente conhecidas como “apps”, faz-se necessário uma
vez que muitas discussões em torno desse tema emergiram,
tanto em amplitude local, quanto global, em razão do cres-
cente e acelerado fenômeno da uberização do trabalho no
capitalismo contemporâneo.
Plataformização, desiguldade e precarização do trabalho 41

Mais importante, destarte, é elaborar e implantar políticas


públicas ou instrumentos legais de proteção ao trabalhador
que possam salvaguardá-lo das imposições despóticas e auto-
ritárias das plataformas digitais. No Brasil, o assunto ainda
é polêmico e o poder judiciário ainda não é unânime quanto
ao reconhecimento da subordinação e do vínculo emprega-
tício entre plataforma e trabalhador, apesar dos dispositivos
legais previstos na Consolidação das Leis do Trabalho versa-
rem sobre os mecanismos de controle, supervisão e comando
que habilitam os trabalhadores a serem reconhecidos como
empregados.
Assim sendo, este trabalho concorre para o seu objetivo que
é refletir sobre o modo de organizar o trabalho no capitalismo
contemporâneo a partir de uma análise da plataformização
e seus efeitos geradores de desigualdade e precarização em
uma força de trabalho já marcada por traços precários de pre-
cariedade que antecedem o surgimento desse modelo plata-
formizado. Faz-se necessário, portanto, repensar a forma de
gerenciar o trabalho desenvolvido nos aplicativos, bem como
regular e definir políticas públicas que garantam condições
mínimas e o trabalho decente nas plataformas.

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44 O Futuro do trabalho no século XXI

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Precarização do Trabalho no Brasil
Contemporâneo: Terreno fértil e perverso
para a prática sistêmica do Assédio Moral
no Trabalho

3 ANDREA ANTICO SOARES 1.

1. Introdução

O
presente estudo busca promover reflexões a res-
peito da conjuntura existente entre Precarização
do Trabalho no Brasil Contemporâneo a qual pode
se caracterizar como terreno fértil e perverso para o agra-
vamento da prática de Assédio Moral Sistêmico.
Analisado como sofrimento no ambiente de trabalho, o
assédio moral sistêmico é fenômeno que nasce no bojo da glo-
balização econômica e das políticas neoliberais, sobretudo no
Brasil contemporâneo marcado pelo desmonte dos direitos
trabalhistas e pelo crescimento das formas de precarização
do trabalho.
Para tanto, é necessário que se ganhe cada vez mais uma
visão global do fenômeno e suas implicações na sociedade,
pois trata-se de um problema social que degrada o ambiente
profissional e traz danos à subjetividade do trabalhador, ao
trabalho vivo, à saúde e a sua dignidade, gerando consequ-
ências nefastas que se reverberam para a sociedade.

1
Mestre pelo Centro Universitário Eurípides de Marília/UNIVEM e
Professora do Centro Universitário Eurípides de Marília/UNIVEM
46 O Futuro do trabalho no século XXI

A amplitude pública dos interesses envolvidos nessa rela-


ção vem chamando atenção de órgãos internacionais, a exem-
plo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que em 2019 concentrou
esforços para colocar em pauta as discussões sobre violên-
cia e assédio moral no trabalho, por meio da Convenção 190,
tecendo-se considerações sobre a importância de sua ratifi-
cação pelo Brasil.
Dessa forma, o estudo em que se embasa o artigo, num
primeiro momento, vislumbra levantar reflexões acerca da
lógica do sistema capitalista e seus efeitos nas relações de tra-
balho brasileiras, pois têm –se o assédio moral é fenômeno
sistemático que nasce no bojo da globalização econômica e
das políticas neoliberais.
Pelo método hipotético dedutivo e pela pesquisa bibliográ-
fica, documental e legislativa, busca-se dar visibilidade social
ao assédio moral sistêmico, conceituar, levantar dados e carac-
terizar o fenômeno para melhor compreender suas extensões
enquanto um problema social, sobretudo para, num segundo
momento, analisar, dentro de uma perspectiva social, como
o fenômeno assédio moral impacta e agrava a precarização
do trabalho no Brasil contemporâneo, de forma a demons-
trar caminhos para enfrentamento dos desafios propostos,
sobretudo no desenvolvimento de pesquisas cientificas que
aumentem a visibilidade social e o enfrentamento do tema.

1. Lógica capitalista e seus efeitos nas relações


de trabalho no Brasil contemporâneo

Os desmandos da lógica do capitalismo violentam qualquer


perspectiva da dimensão do conceito de trabalho digno, o que
desequilibra todo metabolismo social, pois o trabalho integra
a pessoa em sociedade, na medida em que dignifica, estabe-
lece modos de viver, hábitos, deveres e direitos. É, também,
no trabalho, que o ser humano pode encontrar sentido para
a vida; sentido esse que se altera quando há desqualificação e
degradação profissional. Não é qualquer ofício, portanto, que
torna o trabalho elemento que dignifica o ser humano.
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 47

Nas lições de Delgado1, o sentido do valor do trabalho reve-


la-se pelo sujeito trabalhador e pelo momento histórico viven-
ciado, de forma que a valorização refere-se ao sujeito enquanto
trabalhador. O trabalho é visto como elemento que concretiza
a identidade social do ser humano, possibilitando-lhe auto-
conhecimento e plena socialização. “É da essência humana”.
A identidade social do ser humano somente será assegu-
rada se o seu labor for digno. A explicação deve ser compreen-
dida por meio da contradição permanente que se desenvolve
na sociedade civil: ao mesmo tempo em que o trabalho possi-
bilita a construção da identidade social do ser humano, pode
também destruir sua existência, caso não existam condições
mínimas para o seu exercício2
Antunes3 assevera que é por meio do trabalho que o homem
se emancipa, cria autonomia e se identifica. No entanto, a
lógica de acumulação capitalista inverte as posições entre tra-
balho e capital, tornando o homem escravo da acumulação de
riqueza. O que era uma finalidade central do ser social con-
verte-se em meio de subsistência e não primeira necessidade
de realização humana
A atual formatação precarizada do trabalho gera uma pro-
funda desorganização e insegurança no planejamento da vida
da pessoa que trabalha, trazendo inúmeras consequências
para o ser social e suas aspirações do corpo e do espirito.
Esse cenário decorre como elemento da organização do
capitalismo global manipulatório. No cenário brasileiro, esse
mecanismo sociometabólico se apresenta marcado por um sis-
tema capitalista dependente e precariza o trabalho e o homem
que trabalha.
Alves (2011) explica que a expressão “homem que trabalha”,
utilizada por Lukács salienta “a cisão histórico ontológica que

1
DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São
Paulo: LTr, 2006, p. 111-112.
2
Ibidem, p. 237
3
ANTUNES, Ricardo. Adeus Ao Trabalho? – Ensaio sobre as Metamorfoses
e a Centralidade do Mundo do Trabalho, Editora Cortez, São Paulo. 1995,
p. 232-233.
48 O Futuro do trabalho no século XXI

constitui as individualidades pessoais de classe”. No capita-


lismo, o trabalhador assalariado é força de trabalho como
mercadoria e um ser humano-genérico (o autor denomina
como trabalho vivo, na medida em que o homem, na pers-
pectiva ontológica, é um animal que se fez homem através
do trabalho). Para o Autor, a precarização do trabalho sob
o capitalismo global, não seria apenas “a precarização da
mera força de trabalho como mercadoria; mas seria também,
“precarização do homem que trabalha”, no sentido de desefe-
tivação do homem como ser genérico”, gerando novos modos
de sua (des)constituição.
A incerteza e a instabilidade das novas modalidades de
contratação salarial e a vigência da remuneração flexível alte-
ram a troca metabólica entre o homem e os outros homens (a
dimensão da sociabilidade); e entre o homem e si-próprio (a
dimensão da auto-referência pessoal). Deste modo, a preca-
rização do trabalho e a precarização do homem que trabalho
implicam a abertura de uma tríplice crise da subjetividade
humana: a crise da vida pessoal, a crise de sociabilidade e a
crise de auto-referência pessoal. (Alves, 2011)
O trabalho flexível imposto pelo novo e precário mundo
do trabalho impacta a cotidianidade do homem-que-trabalha
gerando alterações do metabolismo social do trabalho nas
condições do capitalismo flexível:

Ao lado do novo arcabouço tecnológico de cariz infor-


macional, tanto nas instâncias do consumo quanto
da produção, temos a presença nos locais de traba-
lho reestruturados, de novos métodos de gestão e
organização da produção visando adaptar homens
e mulheres às novas rotinas do trabalho. Sob o novo
capitalismo vive-se a “era da gestão das pessoas”. Sob
o espírito do toyotismo, o discurso da organização
do trabalho incorpora um novo léxico: trabalhado-
res assalariados, operários ou empregados tornam-
-se “colaboradores”. Deve-se esvaziar o discurso do
conflito ou luta de classes. Exige-se dos jovens “cola-
boradores” atitudes proativas e propositivas capazes
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 49

de torna-los membros da equipe de trabalho que visa


cumprir metas. A ideia de gestão de pessoas implica
disseminar valores, sonhos, expectativas e aspira-
ções que emulem o trabalho flexível. Não se trata ape-
nas de administrar recursos humanos, mas sim, de
manipular talentos humanos, no sentido de cultivar
o envolvimento de cada um com os ideais (e ideias) da
empresa. A nova empresa capitalista busca portanto,
homens idealistas, no sentido mediano da palavra. Por
isso, a ânsia pela juventude que trabalha, tendo em
vista que os jovens operários e empregados têm uma
plasticidade adequada às novas habilidades emocio-
nais (e comportamentais) do novo mundo do trabalho
(Alves, 2011, p. 6).

Na moderna organização do trabalho, a inserção no mer-


cado se dá por meio da competitividade, mediante a obten-
ção de resultados com baixo custo, o que, nas palavras de
Alkimin (2010, p. 34) retrata uma política neoliberal que
passou a exigir do empregado uma grande carga de tensão no
ambiente de trabalho, fruto da precariedade nas condições
de trabalho e pior, das incertezas salariais e da insegurança
quanto à manutenção do emprego.
José Roberto Montes Heloani (2004) em seu “ensaio sobre
a expropriação da dignidade no trabalho” ressalta a ideia
de paradoxo, a conciliação de dois sujeitos historicamente
desiguais, capital e trabalho:

Por meio de discursos de cooperação e de trabalho


em equipe, consultores organizacionais acabam por
perpetuar elementos antagônicos: a necessidade da
cooperação em equipe e a competição pela aquisição
e manutenção de um posto de trabalho. Essa hiper-
competitividade não seria em si mesma uma forma de
violência? Uma guerra, como bem coloca Christophe
Dejours em A banalização da injustiça social, onde
o fundamental não é o equipamento militar, mas o
desenvolvimento da competitividade; em que o fim
50 O Futuro do trabalho no século XXI

pode justificar os meios, mediante um atropelamento


da ética, da própria dignidade humana. (Heloani, 2004)

Giovanni Alves (2011) ensina que as novas relações fle-


xíveis de trabalho promovem mudanças significativas no
metabolismo social do trabalho, sobretudo porque, alteram
a relação “tempo de vida/tempo de trabalho” e alteram os
“espectros da sociabilidade e auto referência pessoal”, ele-
mentos compositivos essenciais do processo de formação do
sujeito humano-genérico.
Antunes (2009, p. 232-233), com base nos manuscritos
econômicos-filosóficos de Marx explica que o trabalha-
dor decaiu a uma mercadoria, tornou-se um ser estranho e
um meio da existência individual, de forma que aquilo que
deveria ser fonte de humanidade acaba por se converter em
desrealização do ser social, alienação e estranhamento dos
homens e mulheres que trabalham. Trata-se de um pro-
cesso de alienação do trabalho que não se efetiva apenas
no resultado de “perda do objeto”, “do produto do trabalho”,
mas também do próprio ato de produção, resultado da ati-
vidade produtiva já alienada”. Para o autor, no capitalismo,
o trabalhador não se satisfaz no labor, mas se degrada; não
se reconhece, se desumaniza no trabalho, de forma que o
trabalho passa a ser estranhado. “O ser social torna-se um
“ser estranho frente a ele mesmo: o homem estranha-se em
relação ao próprio homem, tornando-se estranho em relação
ao gênero humano, como também nos mostrou Marx”.
Alves (2011), ao tratar da nova morfologia social do traba-
lho decorrente do capitalismo global, identifica traços cru-
ciais que constituem um processo de conformação do sujeito
humano que trabalha, caracterizado pela quebra dos cole-
tivos de trabalho, pela captura da subjetividade do homem
que trabalha e pela redução do trabalho vivo à força de tra-
balho como mercadoria. Essa “captura” da subjetividade do
trabalhador assalariado e reduz o trabalho vivo à força de
trabalho como mercadoria.
Alves (2014, p. 112-114) em sua obra Trabalho e
Neodesenvolvimentismo: Choque de capitalismo e nova degradação
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 51

do trabalho no Brasil explica que a precarização do homem-que–


trabalha se caracteriza pela proliferação de adoecimentos
laborais que representam a “situação-limite da precarização”,
enfatizando o desequilíbrio sociometabólico na sua forma
extrema. Muitas vezes, mesmo que o sujeito que trabalha não
manifeste sintomas diagnosticado de adoecimento laboral,
não quer dizer que ele esteja saudável:

Na verdade, saúde não significa ausência de doença,


mas sim, equilíbrio sociometabólico das individuali-
dades pessoais. Ao locais de trabalho reestruturados
imersos na nova precariedade salarial caracterizam-
-se por serem LOCI de desequilíbrio socimetabólico
do homem-que-trabalha. Trata-se de ambientes de
trabalho adoecidos com alto grau de precarização do
homem-que-trabalha, havendo, portanto, nesses casos,
alta probabilidade de manifestação de doenças do tra-
balho naqueles ambientes de trabalho reestruturados.
(Alves, 2014, p.112)

Com relação temática “trabalho e subjetividade”, Alves


(2011), ensina que a base produtiva do toyotismo combina
ampliação do maquinário “técnico-científico-informacional”
com intensa exploração do trabalho, além do aumento da
informalidade e a perda de direitos, e é capaz de se apropriar
do intelecto do trabalho. O Autor faz emergir novos conceitos
e críticas relacionados a um sistema de controle do metabo-
lismo social, que articula em si e para si, de modo contraditório,
mente e corpo do homem que trabalha.
O emprego passou a ter uma profunda intermitência, pois
os trabalhadores já não possuem mais a vida organizada em
uma narrativa de estabilidade e desenvolvimento. De pouco
a pouco, o trabalho, que antes era visto como instrumento de
emancipação do ser humano.
Os desmandos da lógica do capitalismo violentam qualquer
perspectiva da dimensão do conceito de trabalho digno, o que
desequilibra todo metabolismo social, pois o trabalho integra a
pessoa em sociedade, e na medida em que dignifica, estabelece
52 O Futuro do trabalho no século XXI

modos de viver, hábitos, deveres e direitos. É, também, no


trabalho, que o ser humano pode encontrar sentido para a
vida; sentido esse que se altera quando há desqualificação e
degradação profissional. Não é qualquer ofício, portanto, que
torna o trabalho elemento que dignifica o ser humano.
Nas lições de Delgado (2006, p. 111-112), o sentido do
valor do trabalho revela-se pelo sujeito trabalhador e pelo
momento histórico vivenciado, de forma que a valoriza-
ção refere-se ao sujeito enquanto trabalhador. O trabalho é
visto como elemento que concretiza a identidade social do
ser humano, possibilitando-lhe autoconhecimento e plena
socialização. “É da essência humana”.
A identidade social do ser humano somente será assegu-
rada se o seu labor for digno. A explicação deve ser compreen-
dida por meio da contradição permanente que se desenvolve
na sociedade civil: ao mesmo tempo em que o trabalho possi-
bilita a construção da identidade social do ser humano, pode
também destruir sua existência, caso não existam condições
mínimas para o seu exercício (Delgado, 2006, p. 237).
É por meio do trabalho que o homem se emancipa, cria
autonomia e se identifica. No entanto, a lógica de acumulação
capitalista inverte as posições entre trabalho e capital, tor-
nando o homem escravo da acumulação de riqueza:

Mas, se por um lado, podemos considerar o trabalho


como um momento fundante da vida humana, ponto
de partida no processo de humanização, por outro
lado, a sociedade capitalista o transformou em traba-
lho assalariado, alienado, fetichizado. O que era uma
finalidade central do ser social converte-se em meio de
subsistência. A força de trabalho torna-se uma merca-
doria, ainda que especial, cuja finalidade é criar é criar
novas mercadorias e valorizar o capital. Converte-se
em meio e não primeira necessidade de realização
humana. (Antunes, 2009, p. 232-233).

A atual formatação precarizada do trabalho atual gera uma


profunda desorganização e insegurança no planejamento da
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 53

vida da pessoa que trabalha, trazendo inúmeras consequên-


cias para o ser social e suas aspirações do corpo e do espirito.
Esse cenário decorre como elemento da organização do
capitalismo global manipulatório e, lamentavelmente, há um
profundo negacionismo estatal, que certamente se agrava a
cada dia em razão do arranjo jurídico- político –econônimo,
e sobretudo ideológico vivido no Brasil contemporâneo agra-
vado pelas graves consequências já percebidas pela reforma
Trabalhista de 2017.
Souto Maior4 alerta que a reforma Trabalhista de 2017 pro-
duziu os efeitos desejados pela ordem neoliberalista, dentre
eles, o aumento dos lucros de empresas de capital aberto e de
bancos aumento do desemprego e elevação da informalidade,
redução, na ordem de 34%, do acesso do trabalhador à Justiça
do Trabalho, aumento do sofrimento no trabalho e piora gene-
ralizada das condições de trabalho, inclusive com aumento do
número de acidentes do trabalho, diminuição dos direitos e
ganhos normativos com redução da média salarial. O efeito
concreto, do ponto de vista social, foi a considerável elevação
da quantidade de brasileiros conduzidos à pobreza extrema,
chegando-se ao número de 54,8 milhões de pessoas com renda
domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 por mês.
Atualmente, segundo o “IBGE” a taxa de desemprego no
Brasil é “12,6%”, calculada com base no 3º trimestre 2021.5
Todos esses fatores atuam diretamente na moderna orga-
nização do trabalho, acirrando a inserção e manutenção no
mercado de trabalho por meio da competitividade, mediante
a obtenção de resultados com baixo custo, o que, nas palavras
de Alkimin6 retrata uma política neoliberal que passou a exigir

4
SOUTO MAIOR. Jorge Luis. A “reforma” trabalhista gerou os feitos
pretendidos. Blog da Boitempo. 2019. Disponível em: https://www.jorge-
soutomaior.com/blog/a-reforma-trabalhista-gerou-os-efeitos-pretendidos.
Acesso em 11 de julho de 2020.
5
IBGE. Painel de indicadores. Desemprego. https://www.ibge.gov.br/
indicadores#desemprego. Acesso em 14/01/2022.
6
ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio moral na relação de trabalho. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2010, p. 34.
54 O Futuro do trabalho no século XXI

do empregado uma grande carga de tensão no ambiente de tra-


balho, fruto da precariedade nas condições de trabalho e pior,
das incertezas salariais e da insegurança quanto à manutenção
do emprego.
Giovanni Alves7 alerta que as novas relações flexíveis de
trabalho promovem mudanças significativas no metabolismo
social do trabalho, sobretudo porque, alteram a relação “tempo
de vida/tempo de trabalho” e alteram os “espectros da socia-
bilidade e auto referência pessoal”, elementos compositivos
essenciais do processo de formação do sujeito humano-genérico.
Ferreira8 reforça a hipótese estudada no sentido de afirmar
que as crises financeiras ocorridas recentemente só fizeram
agravar o cenário no qual o terror psicológico surge no tra-
balho, com degradação cada vez maior das condições físicas e
emocionais de trabalho.
De todo exposto, têm-se que o panorama da mundialização
do capitalismo manipulatório somado ao cenário brasileiro
de desmonte sistemático e ideológico da valorização do tra-
balho humano digno (apesar de constitucionalmente figurar
como uma das bases do Estado Democrático de Direito – o que
é uma irracionalidade) têm imprimido uma lógica perversa de
degradação do trabalho, do homem que trabalha e do trabalho
vivo, criando um terreno fértil para o agravamento da prática
sistemática do Assédio Moral no Trabalho.

3. O Assédio Moral Sistêmico no Mundo do Trabalho

O assédio moral no trabalho é fenômeno que degrada o


ambiente profissional e traz danos à saúde e à dignidade
do trabalhador. As consequências dessa prática sistemática

7
ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório - O
novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha.
In–Revista da RET Rede de Estudos do Trabalho. Ano V Número 8 – 2011.
Disponível em http: file:///C:/Users/Andrea%20Antico/Desktop/4_8%20
Artigo%20ALVES.pdf. Acesso em 30/09/2020.
8
FERREIRA, Hádassa Dolores Bonilha. Assédio moral nas relações de
trabalho. 2ª ed. Campinas: Russel Editores, 2010, p. 36.
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 55

e perversa reverberam em toda sociedade, se caracterizando


como sério problema social a ser enfrentado.
Alves (2015), cientista social, traz uma visão mais abran-
gente e social no sentido de que o assédio moral que permeia o
mundo do trabalho e a totalidade social. Em concordância com
muitos estudiosos da temática, o Autor explica que a violência é
“deveras sutil, envolvente e silenciosa”. Todavia, com sua visão
sociológica, acrescenta que como “captura” da subjetividade ela
é uma escolha moral do sujeito que trabalha, assediado pelos
valores-fetiches do capital. Por ser livre, o sujeito que traba-
lha na ordem burguesa, escolhe moralmente ser escravo, “é
o sujeito que colabora “voluntariamente” numa expressão de
consentimento espúrio, agenciado pelo medo e operado pelo
“inconsciente estendido”.
Alves (2015), a partir das discussões acerca dos mecanismos
psicológicos que operam a “captura” da subjetividade ensina
que o assédio moral, a violência implícita oculta-se como vio-
lência propriamente dita, assumindo ideologicamente um cará-
ter de consentimento perverso (auto alienação do homem que
trabalha).

No assédio moral, a própria pessoa escolhe sua desefe-


tivação humano-genérica (o tema da “servidão voluntá-
ria”, de La Boetie, que emergiu na época da “acumulação
primitiva” do capital é reposto, deste modo, nas con-
dições históricas do capitalismo global, que repõem a
acumulação por espoliação, como diria David Harvey)
(Alves, 2015)

Ainda no plano da Sociologia do Trabalho, Alves (2015) sus-


tenta a noção de que o assédio moral representa uma mani-
pulação reflexiva, significando que a “ação ideológica sobre o
Outro-como-próximo, visando convence-lo e induzi-lo a cola-
borar, aceitar e assumir os valores do capital”, de forma que
nas condições do capitalismo manipulatório o assédio moral
tornou-se o próprio metabolismo social.
Este é o caráter da violência do capital, que na dimensão
jurídico-institucional, pode ser contestada como ilicitude
56 O Futuro do trabalho no século XXI

na medida em que forem elaboradas provas materiais que


comprovem o nexo primordial entre, por exemplo, o discurso
da gestão – que permeia a vida cotidiana e os locais do tra-
balho reestruturados – e a degradação da pessoa humana
que trabalha, manifestada pelas pressões cotidianas – sutis,
envolvente e silenciosa – pelo cumprimento de metas abu-
sivas, no dia-a-dia do labor alienado – pressões verticais
e horizontais que, pouco a pouco, conduz personalidades
humanas mais sensíveis, à depressão e adoecimentos labo-
rais como expressão das múltiplas formas de desefetivação
humano-genérica. (Alves, 2015)
Na era do capitalismo global manipula-se reflexivamente.
O capital como processo de desenvolvimento civilizatório,
expande e reduz, ao mesmo tempo, as possibilidades de
desenvolvimento humano. Esta é a “contradição viva” que
cria subjetividades complexas e, ao mesmo tempo, as reduz
no plano das relações humanas instrumentalizadas. Por
isso, o assédio moral é sintoma do processo sistemático – é
um traço da crise de civilização intrínseca à própria lógica
do capital global. Enfim, vivemos na civilização do assédio
moral. (Alves, 2015).
Alves (2015) explica que o assédio moral como fenômeno
social diz respeito a um sistema social e a um processo de
subjetivação. Com maior precisão conceitual, o autor fala
“em assédio moral sistêmico”, que se confunde com a pró-
pria vigência da ideologia dominante do capital, numa
espécie de “eufemismo” para o poder da ideologia do capital.
“Constitui-se hoje um processo de subjetivação baseado no
assédio moral com suas características perversas e manipu-
latórias dos sujeitos humanos.”
A lógica da gestão toyotista é a lógica do assédio moral.
É nesse novo campo de exploração do homem que traba-
lha, que constitui-se o terreno fértil para o assédio moral. O
homem-que-trabalha torna-se implicado efetivamente, em
sua dimensão moral (ou espiritual) com a lógica do capital, de
forma que a proliferação do assédio moral no trabalho e na
vida cotidiana diz respeito a mudanças estruturais na forma
de produção do capital. (Alves, 2015).
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 57

É como personalidades humanas complexas, que nós


dizemos hoje “não” à violência sutil do capital que assume a
forma de manipulação reflexiva. De certo modo, a luta contra
o “assédio moral” é quase como a vingança do filosofo Kant,
que em sua ética da razão prática, condenava qualquer um
que utilizasse o outro como meio para fins egoístas. Como
perversidade, o “assédio moral” representa a prática ideo-
lógica sistêmica de dispor o outro – de modo instrumental
– como sujeito perverso da barbárie social do capital. Com o
assédio moral ocorre a instrumentalização do outro para as
finalidades alienadas – particularistas e ensimesmadas – das
“personas” do capital. (Alves, 2015)
Deste modo, o assédio moral possui um traço de intencio-
nalidade sistêmica na medida em que é frequente e repetido e
não meramente casual. Na medida em que possui um caráter
sistêmico, ele diz respeito à própria lógica organizacional (e
social) da exploração da força de trabalho e do trabalho vivo.
A degradação da personalidade humana torna-se um meio
para a satisfação de personas do capital que visam com isso,
obviamente, não apenas satisfazer idiossincrasias de chefias
(ou colegas de trabalho) perversas, mas cumprir objetivos de
gestão do negócio. O assédio moral torna-se horizontal – entre
colegas de trabalho – porque tornou-se efetivamente assédio
moral sistêmico, ideologia dominante do sociometabolismo
do capital. (Alves, 2015)
Alves (2015) ensina que é de fundamental importância e
urgência tratar do nexo essencial entre assédio moral e capi-
talismo necrófilo, pois o capitalismo global baseia-se numa
dinâmica sociometabólica que não contribui para o desenvol-
vimento. Ao revés, representa aquilo que apresenta-se como o
próprio resultado do assédio moral: a diminuição, humilhação,
vexame, constrangimento, desqualificação e demolição psí-
quica do homem que trabalha. É que ocorre com o metabo-
lismo social do desemprego e precariedade do trabalho que
tem se disseminado nos últimos “trinta anos” perversos de
capitalismo global. O conceito candente de “assédio moral”
sinaliza que vivemos hoje no tempo histórico do perverso –
perversidade que “flerta com a morte.”
58 O Futuro do trabalho no século XXI

Na era do perverso, onde o “apagão ético” se contrasta com


a proliferação do assédio moral, vivemos formas supremas
de irracionalidades sociais. Em pleno século XXI, personali-
dades humanas complexas são dilaceradas pelas candentes
contradições sociais ou “nós contraditórios” do capital. O
desvelamento do sentido ontológico do “assédio moral” é
apenas a “ponta do iceberg” da barbárie social que caracte-
riza a ordem sociometabólica do capital global. (Alves, 2015)
A partir desta perspectiva, Heloani9 afirma que “o assédio
moral é um processo complexo, devemos evitar conceitos
simplistas, inaptos ou inadequados”. Assevera que em um
sistema em que a “racionalidade instrumental” se sobrepõe
à “racionalidade comunicativa”, o que gera uma distorção
comunicacional, a violência torna-se uma resposta a um
sistema desumano e não pode ser considerada um mero
mecanismo individual. Em outras palavras, nesse processo
a violência passa a ser uma perversão da perversão, ou seja,
uma armadilha motivada pela crueldade do sistema. A vio-
lência reflete, tal como uma imagem no espelho, as formas
de poder constituídas socialmente.

4. O Problema Social do Assédio Moral


no Mundo do Trabalho

O assédio moral no trabalho é fenômeno que degrada o


ambiente profissional e traz danos à saúde e à dignidade do
trabalhador. As consequências dessa prática sistemática e
perversa reverberam em toda sociedade, se caracterizando
como sério problema social a ser enfrentado.
O assédio moral no trabalho se caracteriza por qualquer
tipo de atitude hostil, individual ou coletiva, dirigida contra
o trabalhador por seu superior hierárquico (ou cliente do

9
HELOANI. José Roberto. Assédio Moral – Um ensaio dobre a expro-
priação da dignidade no trabalho. In RAE- eletrônica, v. 3, n. 1, Art. 10,
jan./jun 2004. Disponível em: http://www.rae.com.br/eletronica/index.
cfm?FuseAction=Artigo&ID=1915&Secao=PENSATA&Volume=3&Nu-
mero=1&Ano=2004. Acesso em 24/09/2020.
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 59

qual dependa economicamente), por colega do mesmo nível,


subalterno ou por terceiro relacionado com a empregadora,
que provoque uma degradação da atmosfera de trabalho,
capaz de ofender a sua dignidade ou de causar-lhe danos
físicos ou psicológicos, bem como de induzi-lo à prática de
atitudes contrárias à própria ética, que possam excluí-lo ou
prejudicá-lo no progresso de sua carreira. São considerados
relevantes ao conceito de assédio moral no trabalho os atos
ou comportamentos, que, por sua gravidade ou repetição
continuada, sejam hábeis a desestruturar o laborista.10
Nas lições de Ferreira11, o assédio moral no trabalho é pro-
cesso de exposição do trabalhador em condições humilhan-
tes e degradantes e a um tratamento hostilizado no ambiente
laboral, debilitando a saúde física e mental, configurando-se
como uma guerra de nervos, a qual conduz a vítima ao cha-
mado assassinato psíquico. A relevância do estudo reside,
portanto, na constatação de que o assédio moral vem sendo
identificado como fenômeno destruidor do trabalho vivo.
Não se morre diretamente de todas essas agressões, mas
se perde uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a cada
noite, mais exausto, humilhado e deprimido, sendo difícil
uma recuperação.12
Neste contexto, tem-se, ainda, e se apresenta no cenário
brasileiro marcado por um sistema capitalista dependente
e que promove constante desmonte de direitos trabalhistas
e múltiplas formas de precarização do trabalho, agravado
pela reforma Reforma Trabalhista havida em 2017.
Conclui-se, a priori que vislumbra-se a preocupação das
diversas áreas do conhecimento com a efetiva tutela dos inte-
resses envolvidos nessa relação, considerando que as con-
sequências do assédio moral ultrapassam a esfera privada,
refletindo em toda a sociedade.

10
PRATA, Marcelo Rodrigues. Anatomia do assédio moral no trabalho: uma
abordagem transdisciplinar. São Paulo: LTr, 2008. p.57.
11
FERREIRA, op. cit., p. 42.
12
HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no coti-
diano. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, p. 66.
60 O Futuro do trabalho no século XXI

A amplitude pública dos interesses envolvidos nessa rela-


ção vem chamando a atenção de órgãos internacionais, a exem-
plo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização
Internacional do Trabalho (OIT).
Realizada em junho de 2019, a Conferência Geral da OIT
aprovou por meio da Convenção 19013 e da Recomendação
20614, diretrizes normativas relativas ao combate da violên-
cia e do assédio no trabalho, evidenciando mundialmente a
necessidade de implantação de ações para o enfrentamento
da temática.
O instrumento traz o conceito de assédio moral no trabalho
em seu artigo primeiro como sendo:

Um conjunto de comportamentos e práticas inaceitá-


veis, ou ameaças de tais comportamentos e práticas,
que se manifestam apenas uma vez ou repetidamente,
que objetivam causar, causam ou são suscetíveis de
causar danos físicos, psicológicos, sexuais ou econô-
micos, incluída a violência e o assédio em razão de
gênero.15

A Convenção traz inovações importantes para o tema em


estudo, a começar pelo fato de cuidar das expressões “violência
e assédio” de forma conjugada, englobando diversas espécies,
como “violência sexual, assédio sexual, violência doméstica,
violência física, violência psicológica, assédio moral, violência
estrutural, assédio organizacional, assédio virtual (cyberbullying),

13
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conferência
Internacional do Trabalho. Comitê de definição de padrões: violência e
assédio no mundo do trabalho, 2019 (nº 190). Disponível em: https://
www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---relconf/documents/
meetingdocument/wcms_711570.pdf. Acesso em: 28/11/2020.
14
Idem. R206-Recomendação (n º 206) sobre violência e assédio, 2019
Recomendação sobre a eliminação da violência e do assédio no mundo
do trabalho. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/pu-
blic/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/documents/genericdocument/
wcms_729461.pdf. Acesso em: 28/11/2020.
15
Tradução não oficial
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 61

violência de gênero e assédio em razão de gênero”16. O texto


inova ao utilizar apropriadamente o termo “mundo do traba-
lho”, bem como considera que a violência e o assédio podem ser
configurados com uma única ocorrência, possibilitando um
maior alcance de sua aplicabilidade e do reconhecimento da
sua incidência. De forma acertada, confere tratamento espe-
cial à violência e ao assédio em razão de gênero, bem como ao
assédio virtual, reconhecendo a ocorrência da violência e do
assédio no âmbito das comunicações relacionadas ao trabalho
por meio de tecnologias de informação e comunicação.
Em março de 2020, Argentina, Finlândia, Espanha e
Uruguai manifestaram formalmente o compromisso de rati-
ficar e obter aprovação de seus respectivos Congressos, fato
que gera expectativas mundiais, pois a Convenção entrará em
vigor 12 meses após a ratificação por dois Estados-membros. A
Recomendação, que não é juridicamente vinculante, fornece
orientações sobre como a Convenção deve ser aplicada.17
As proteções constantes da Convenção nº 190 não são
meras previsões, desconectadas da atuação prática dos países
ou sujeitas ao arbítrio de governos e de contratantes. O Brasil
aprovou a referida Convenção Internacional, porém se abs-
teve na votação relativa à Recomendação nº 206, texto que
traz maior especificação para a sua aplicação, votando a favor,
ainda, da adoção de Resolução sobre o tema. Todavia, se rati-
ficada no Brasil, o instrumento poderá auxiliar na elaboração
do processo legislativo, de medidas preventivas, bem como dar
suporte nos julgamentos realizados pela Justiça do Trabalho.
Por hora, sabe-se que há uma escassez normativa sobre o
tema no Brasil, fazendo-se necessário o desenvolvimento de

16
SOARES. C. M. P. G. d.; PAMPLONA FILHO. R. CONVENÇÃO 190 DA
OIT: violência e assédio no mundo do trabalho. pdf In Academia Brasileira
de Direito do Trabalho. 2019, p. 8. Disponível em http://www.andt.org.
br/f/Conven%C3%A7%C3%A3o%20190%20da%20OIT.04.09.2019%20
-%20Rodolfo.pdf. Acesso em 25/11/2020.
17
OIT saúda os compromissos de ratificação da Convenção sobre violên-
cia e assédio, 2019. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/noticias/
WCMS_737676/lang--pt/index.htm. Acesso em 27/11/2020.
62 O Futuro do trabalho no século XXI

pesquisas científicas que venham corroborar a construção


de medidas a fim de coibir essa prática no contexto brasileiro.
Ferreira18 sustenta que se deve buscar, na psicologia e na
sociologia, os elementos básicos para se traçar um conceito
jurídico adequado.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem se dedicado
ao estudo e à pesquisa do assunto e, em 2004, publicou um
documento denominado “Aumentar a conscientização sobre
o assédio psicológico no trabalho”19, dentre quatro outros da
série intitulada “Proteção à Saúde dos Trabalhadores’, per-
tencentes ao “Programa Global de Saúde Ocupacional Para
Todos”. Consta da referida publicação que a violência psico-
lógica está muito propagada mundialmente. No Brasil, 39,5%
das pessoas responderam que haviam passado por expe-
riências de abuso verbal. Igualmente, 32,2%, na Bulgária;
52%, na África do Sul, com 60,1%, no setor público; 47,7%, na
Tailândia; 51%, em um complexo centro de saúde e 27,4%, em
um hospital; 40,9%, no Líbano, e 67%, na Austrália.
Percebe-se, portanto, que o assédio psicológico no tra-
balho não é um problema exclusivo de determinados países,
mas um fenômeno generalizado que tem consequências
multifacetárias, inclusive problemas públicos de saúde
ocupacional.
A gravidade das consequências sobre a saúde depende da
duração do assédio, da intensidade da agressão e da vulnera-
bilidade da vítima. Observa-se que em 36% dos casos, o assé-
dio é seguido da saída da vítima agredida; em 20% dos casos,
ocorre a despedida por falha; em 9% dos casos, a demissão é
negociada; em 7% dos casos, ocorre o pedido de demissão; e,
em 1% dos casos, a pessoa é colocada em pré-aposentadoria.

18
FERREIRA, Hádassa Dolores Bonilha. Assédio moral nas relações de
trabalho. 2ª ed. Campinas: Russel Editores, 2010, p. 42.
19
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Aumentar a conscien-
tização sobre o assédio psicológico no trabalho. Série Proteção da saúde
do trabalhador. n. 04. Genebra, 2004, p. 8. Disponível em: http://www.
who.int/occupational_health/publications/en/pwh4sp.pdf. Acesso em:
18 jun. 2010.
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 63

Ao somar estes números aos 30% de pessoas acometidas por


doenças de longa duração, inválidas ou desempregadas por
incapacidade médica, chega-se a um total de 66% de casos de
pessoas excluídas do mundo do trabalho, ainda que de forma
temporária. São números que justificam a adoção de medidas
preventivas.20 Hirigoyen21 ressalta que, no caso do assédio
moral se prolongar no tempo, ele pode solidificar, fazendo
com que a pessoa apresente apatia, tristeza, complexo de culpa,
obsessão e até desinteresse por seus próprios valores. Segundo
os critérios de classificação internacional das doenças mentais,
69% das respostas acusaram um estado depressivo severo
que justificou acompanhamento médico, por significar sério
risco de suicídio.
Sob o aspecto psicológico, o maltrato no trabalho gera uma
espiral de efeitos a nível psicológico, como pesadelos, dores
abdominais, diarreia, vômitos, dores de cabeça, perda de ape-
tite, solidão, sensação de incapacidade para a manutenção de
relacionamentos interpessoais, levando a destruição de laços
familiares e de amizade.
Em 1º de janeiro de 2022, a Síndrome de Burnout foi ofi-
cializada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como
uma síndrome crônica. Enquanto um “fenômeno ligado ao
trabalho”, a OMS incluiu o Burnout na nova Classificação
Internacional de Doenças (CID-11). A Síndrome de Burnout
se caracteriza em um distúrbio emocional resultado de uma
rotina de trabalho desgastante. Ela também é conhecida como
síndrome do esgotamento profissional.
Entre os sintomas, além da exaustão, constam dores de
cabeça frequentes, alterações no apetite, problemas gastroin-
testinais, dificuldades para dormir e para se concentrar, além
de sentimentos de fracasso e incompetência. A doença é decor-
rente de um ambiente de trabalho tão hostil e opressor que
vai além das condições psicológicas que uma pessoa possa
suportar. Essa é uma síndrome conceituada como resultante

20
HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio
moral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 119-120.
21
Ibidem, p. 160.
64 O Futuro do trabalho no século XXI

do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado


com sucesso e que pode acarreta sentimentos de exaustão e ou
esgotamento de energia; aumento do distanciamento mental
do próprio trabalho, e ou sentimentos de negativismo ou
cinismo relacionados ao próprio trabalho e, assim, redução
da eficácia profissional.22
Nos casos mais graves, a violência do assédio moral marca
a vítima para sempre, podendo levar a perda da própria vida
e sujeitá-la a profundas e irreversíveis alterações da persona-
lidade, com o rompimento de laços afetivos e relacionamen-
tos sociais.23 “Vários relatos verídicos confirmam que, quase
sempre, o assédio moral acarreta a desestruturação familiar
da vítima. Não são raros os processos de assédio moral que
culminam com o término dos casamentos daqueles que foram
suas vítimas.”24 No mesmo sentido, as consequências na saúde
da vítima ocasionam o estresse pós-traumático, pois o evento
violento marca profundamente o psíquico da vítima, gerando
um estado depressivo que gera alienação e total solidão, ou
então, estados de agressividade e de ira.25
De todo o exposto, busca-se apontar que a prática do assé-
dio moral no trabalho degrada o ambiente profissional e traz
danos à subjetividade do trabalhador, ao trabalho vivo, à
saúde e a sua dignidade, gerando consequências nefastas que
se reverberam para a sociedade.
As consequências reverberam provocando repercussões
em toda sociedade, sobre a qual recaem os custos com a sobre-
carga dos sistemas de saúde e, em última instância, os custos
com os afastamentos previdenciários por incapacidade, tem-
porários e definitivos, bem como os decorrentes das pensões

22
OMS. Organização Mundial da Saúde. Disponível em https://www.who.
int/news/item/28-05-2019-burn-out-an-occupational-phenomenon-in-
ternational-classification-of-diseases. Acesso em 07 de janeiro de 2022.
23
LIMA FILHO, Francisco das Chagas. O assédio moral nas relações laborais
e a tutela da dignidade humana do trabalhador. São Paulo: LTr, 2009, p.
101-103.
24
FERREIRA, op. cit. p. 77.
25
Ibidem, p. 80.
Precarização do Trabalho no Brasil Contemporâneo 65

por morte pagas aos dependentes das vítimas que perdem a


vida. Tal fato, em se tratando da situação econômica de um país,
transforma-se em bilhões. “Ocorre, assim, uma sobrecarga
dos sistemas de saúde e previdenciário, já tão aturdidos pelas
dificuldades que lhes são próprias.”26

5. Considerações finais

Em conformidade com o problema apresentado, o presente


trabalho buscou promover reflexões a respeito da conjuntura
Capitalismo, Trabalho e Precarização do Trabalho no Brasil
Contemporâneo enquanto terreno fértil e perverso para o
agravamento da prática de assédio moral.
Procurou-se analisar as possíveis perspectivas de agra-
vamento da prática do assédio moral no trabalho no Brasil
Contemporâneo que se caracteriza pelo desmonte dos direitos
trabalhistas e do agravamento das formas de precarização.
Identificou-se a necessidade de se ter uma visão global do
fenômeno e suas implicações na sociedade, pois trata-se de
uma prática que degrada o ambiente profissional e traz danos
à subjetividade do trabalhador, ao trabalho vivo, à saúde e a
sua dignidade, gerando consequências nefastas que se rever-
beram para a sociedade.
Conforme demonstrado, a Convenção 190 da OIT de 2019
objetiva promover avanços acerca do combate, delineando
contornos acerca do conceito, ampliando o seu âmbito de apli-
cação e abrangência, de modo que suas disposições são pilares
na adoção de medidas para o enfrentamento do assédio moral
no trabalho.
Buscou-se com o estudo dar visibilidade social ao assédio
moral, demonstrando a necessidade de se levantar pesqui-
sas a fim de conceituar, levantar dados e caracterizar o fenô-
meno para melhor compreender suas extensões enquanto
um problema social, sobretudo para aprofundar o debate
dentro de uma perspectiva social, de como o fenômeno assédio
moral impacta e agrava a precarização do trabalho no Brasil

26
Ibidem, p. 75
66 O Futuro do trabalho no século XXI

contemporâneo, de forma a demonstrar os desafios neces-


sários para a formulação de mecanismos de enfrentamento,
combate e punição a esta prática perversa.

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.
Trabalho plataformizado e controle por
algoritmos: Reflexões sobre o modus
operandi das empresas-aplicativo e o
aviltamento do trabalhador-parceiro

4 RAILSON MARQUES GARCEZ1

1. Introdução

N
o século XXI, principalmente nessa segunda década,
tem ocorrido muitas transformações na forma de
organizar e também na natureza das relações de
trabalho, sobretudo, pela incorporação massiva de TDIC’s,
(Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação), AI
(Inteligência Artificial) e automação que aludem aos pressu-
postos da chamada Indústria 4.0 (Filgueiras; Antunes, 2020).
As plataformas de trabalho digitais se tornaram uma parte
vital da vida contemporânea e criaram oportunidades nunca
antes vistas para empresas, sociedade e, sobretudo no discurso
neoliberal, para os trabalhadores que agora podem ser mais
livres e donos de si. Isso tudo, só se tornou realidade pelas
inovações, ocorridas em escala global, que permitiram que
as plataformas digitais de trabalho se tornassem uma nova
forma de fazer negócios e de organizar o trabalho (Ilo, 2021b).
No entanto, além de organizar o trabalho, as plataformas
digitais de trabalho também tem exercido enorme controle no
que diz respeito à coleta e tratamento de dados que chegam
e que são gerados por elas. Enquanto um laboratório da luta

1
Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico (UFMA) – railsongarcez.
uema@gmail.com
70 O Futuro do trabalho no século XXI

de classes (Grohamann, 2021), as plataformas, dentro do


movimento dialético e histórico da relação capital-trabalho,
apresenta-se como novos mecanismos ou ferramentas que
operam a favor das forças do capital imprimindo uma lógica
de produção, circulação e conhecimento (Jurno, 2021). Nesse
sentido, em um processo amplo de transformações no mundo
do trabalho, a gestão algorítmica para vigiar, controlar e, em
muitos casos, punir, o trabalhador-parceiro, tem sido um pilar
estrutural importante destas plataformas para a determina-
ção das regras do trabalho (Abílio, 2021).
O que representa, então, o controle algorítmico no trabalho
plataformizado e como isso impacta nas condições dos traba-
lhadores-parceiros? É por conta das diversas transformações
pelas quais o mundo do trabalho passa e pela ascensão do
capitalismo de plataforma e, consequentemente, do trabalho
plataformizado, que se pretende refletir neste trabalho sobre
o modus operandi das empresas-aplicativos e os rebatimentos
quanto ao gerenciamento e controle algorítmico dos trabalha-
dores-parceiros nas plataformas digitais. Acredita-se que o
gerenciamento e controle algorítmico empregado nas plata-
formas digitais de trabalho gera sujeição, exploração, degra-
dação e a falta sensação de autogerenciamento e liberdade, um
ideário empregatício dos sonhos que as plataformas utilizam
para atrair e subverter os trabalhadores-parceiros.
Buscou-se como ponto de partida, dentro do estado da arte
atual do tema em pesquisa, compreender o que é a plataformi-
zação do trabalho e suas dimensões essenciais para que assim
se pudesse examinar de forma mais apropriada esse fenômeno
de tipo novo no capitalismo contemporâneo. Da mesma forma,
procurou-se verificar o arquétipo das plataformas digitais de
trabalho a partir do entendimento do gerenciamento e con-
trole algorítmico, a verdadeira caixa-preta da engrenagem
nefasta das plataformas.
Fez-se uso de recurso metodológico teórico-bibliográfico,
com abordagem exploratória e qualitativa, a partir de pes-
quisas em bases de dados acadêmicas e institucionais para
problematizar e responder à questão do tema em estudo que
está dividido em quatro partes, sendo a primeira delas esta
Trabalho plataformizado e controle por algoritmos 71

introdução. O artigo traz em sua sequência capítulos de levan-


tamento bibliográfico sobre a plataformização do trabalho e
controle por algoritmos, segundo e terceiro capítulos, res-
pectivamente, e por fim, as considerações finais com vistas à
ratificar a hipótese levantada nesse estudo.

2. Plataformização do trabalho

Por plataformas digitais a OCDE (Organização para a


Cooperação e Desenvolvimento Econômico) entende que elas
são entidades online que fornecem serviços e produtos digi-
tais. Os serviços digitais facilitam as interações entre dois
ou mais conjuntos de usuários (empresas ou indivíduos), de
forma interdependente, por meio da Internet. As empresas ou
os indivíduos podem intercambiar mão de obra, bens (e-com-
merce) e até software (Oecd, 2019).
De forma complementar, a União Europeia (EU) entende
que existem diferentes tipos de plataformas de negócios e
que o trabalho de plataforma, um trabalho não-padrão, faz
parte de uma economia de plataforma mais ampla, na qual
indivíduos podem acessar serviços, expertises e know-how
através de uma plataforma online e em troca de pagamento.
As tecnologias digitais, nesse sentido, funcionam como inter-
mediárias entres os trabalhadores de plataforma e as empre-
sas. Esse tipo de trabalho também é conhecido como gig work
(Europe Union, 2020).
Conforme o relatório da ILO (International Labour
Organization) World Employment and Social Outlook 2021: The
role of digital labour platforms in transforming the world of work
publicado em fevereiro de 2021, desde 2010 o número de
plataformas (tanto as que facilitam o trabalho online como as
que recrutam os trabalhadores para serviços de táxi e entre-
gas), quintuplicou em todo o mundo. Em 2010 eram apenas
50 plataformas de delivery no mundo, em 2020 existiam
383 demonstrando um crescimento exponencial da ordem
de 650% (Ilo, 2021b).
Esse crescimento vertiginoso das plataformas digitais de
trabalho, na última década, principalmente das plataformas
72 O Futuro do trabalho no século XXI

baseadas em localização pode ser justificado pela recessão


econômica de 2008-2009 que estimulou o desenvolvimento
de plataformas online e fez aumentar o número de platafor-
mas de serviços de entregas usando tecnologias. Representou
uma forma de realizar esses serviços a um preço competitivo
e das empresas oferecem oportunidades de trabalho, basta
observar o crescimento entre 2012 e 2018 (Ilo, 2021b).
A plataformização do trabalho, termo mais amplo e hete-
rogêneo do que o mais conhecido e proferido em todo mundo
que é a uberização, encontra terreno para se expandir e se
consolidar como alternativa de trabalho para muito indiví-
duos, mesmo nos países mais ricos. Pois configura-se como
uma tendência, mas sobretudo, como uma imbricação de três
elementos fundamentais: a financeirização, a datificação e a
racionalidade neoliberal (Grohmann, 2020a; 2020b).
Dentro da lógica da financeirização do capital, as pla-
taformas digitais tem crescido em todo mundo, em grande,
parte pelo volumoso financiamento, principalmente, de
capitais de risco. Dentre os setores que mais recebem esse
tipo de financiamento, está o setor de táxi, no qual estão
concentradas poucas empresas que foram capacitadas para
operar e expandir apesar das perdas financeiras (Ilo, 2021b).
Considerando o caráter altamente financeirizado desse
tipo de modelo de negócio, as plataformas de trabalho digi-
tais são formalizadas por relações de propriedade e gover-
nadas por termos presentes no acordo de usuário. Nessa
perspectiva, um mecanismo fundamental das plataformas
é a datificação (captura e circulação dos dados), a seleção e
a customização ou personalização de conteúdos, a partir da
vigilância e do controle (Grohmann, 2020a).
Funcionando como infraestruturas digitais de interação
entre dois ou mais grupos as plataformas digitais, dentro
do capitalismo de plataforma, encontram sua vantagem de
competição alicerçada nos dados. A centralidade dos dados
é a essência para todos esses negócios plataformizados, são
os dados que impulsionam o crescimento dessas empresas,
além da contribuição do efeito de rede para sustentar o cres-
cimento (Srnicek, 2017).
74 O Futuro do trabalho no século XXI

A datificação e o efeito de rede, são duas das sete carac-


terísticas distintivas dos negócios de plataformas que a Ilo
(2021) considera como constituintes das plataformas de tra-
balho digitais, conforme pode-se observar no quadro abaixo:
Entende-se, portanto, que as plataformas de trabalho digi-
tais se mantêm e se expandem porque conseguem conduzir
eficazmente uma operação considerando todos esses pontos
fundamentais. De maneira sintética, a Ilo (2021, p.73), consi-
dera três pilares essenciais que constituem o DNA estratégico
das plataformas e que representam a sua lógica de opera-
ção: i) a gestão algorítmica dos processos e desempenhos do
trabalho; ii) a prestação do serviço sem investimentos em
equipamentos de capital (eliminação os custos operacionais)
e; iii) a criação de um mercado duplo e altamente segmen-
tado: poucos empregados internos (diretamente empregados
pela plataforma) e muitos “empregados” externos (força de
trabalho terceirizada/ “parceira”).
Mecanismos de controle e gestão do trabalho tem sido
pontos nevrálgicos no debate sobre as plataformas de tra-
balho digital, uma vez que o discurso das plataformas, em
muitos casos, não corresponde com a realidade do trabalho.
As plataformas da gig economy são exemplos das nuances do
capital que utiliza práticas inovadoras de controle sobre os
trabalhadores e seu trabalho, centradas na tecnologia (apli-
cativos) e orientadas de forma normativa. Nesse modelo de
operação, as empresas de plataformas de trabalho digitais
conseguem prestar os serviços, obter e aumentar receitas
pela via da transferência de riscos e custos relacionados
com equipamentos e operações de capital (Gandini, 2018;
Ilo, 2021b).
O relatório da Ilo (2021, p.77), com base em análises dos
termos dos contratos de serviços, informações nos websites
das plataformas e em entrevistas com 16 empresas, tanto de
plataformas online baseadas na web, quanto em localização,
mostra que o sucesso comercial dessas empresas está base-
ado em quatro elementos-chave: i) o modelo de receita (taxas
de comissão e planos de assinatura); ii) o recrutamento e cor-
respondência de trabalhadores com clientes; iii) os processos
Trabalho plataformizado e controle por algoritmos 75

de trabalho e gestão de desempenho e; iv) as regras de gover-


nança da plataforma.
Esses quatro elementos combinados tornam o modelo de
plataforma bastante disruptivo e serve de estratégia para o
modelo de plataformas de trabalho digitais para outros negó-
cios. Com modelos mais ágeis e enxutos, as plataformas conse-
guem organizar e ofertar trabalho de uma forma diferente das
empresas tradicionais. É a chamada disrupção, um processo
de inovação na gestão quase obrigatória para sobreviver nos
moldes atuais de competitividade baseada em tecnologias de
informação e comunicação. Utilizando esse tipo de arquitetura
de operação e de uma lógica disruptiva, é que as plataformas
(os apps) conseguem se propagar rapidamente pelo mundo.
Contudo, apesar da onda de benefícios que envolvem maior
produtividade, maior concorrência e novos produtos e ser-
viços, as plataformas tem sacudido muitas bases dos negó-
cios tradicionais e representado sérias ameaças ao trabalho
decente e à concorrência justa. Elas têm trazido muitas opor-
tunidades, mas também muitos desafios às empresas.
É necessário perceber os rebatimentos não apenas para
a estrutura dos negócios que são vistos como inovadores ou
disruptores, mas sobretudo, para a organização e controle do
trabalho que ganha novos contornos e debates, com a prolife-
ração cada vez mais maior daquelas. São novos paradigmas
advindos com a evolução e disseminação das plataformas
digitais de trabalho.
Ancoradas nas tecnologias digitais de informação e comu-
nicação e na Internet, as plataformas digitais de negócios e
de trabalho representam uma miríade de atividades que
podem ser realizadas tanto presencial como eletronicamente.
Contudo, o léxico e a retórica empresarial escamoteiam sua
natureza com o intuito de mascarar e negar o que efetivamente
tem contribuído para o sucesso desses formatos “appficados”
(Antunes; Figlueiras, 2020).
As TIC’s têm se configurado como um elemento central
não só pela criação, mas também pelo crescimento e expansão
da plataformização e appficação, dentre tantos mecanismos
de acumulação do capital, criado pelo capitalismo financeiro.
76 O Futuro do trabalho no século XXI

A maior penetração delas nos negócios tem dado origem a


empresas mais flexíveis, liofilizadas e digitais, trazendo, a
partir desse processo tecnológico-organizacional-informa-
cional e financeiro, um impacto profundo sobre a força de
trabalho, tornando-a sobrante, supérflua e exposta a mais
riscos (Antunes, 2020).

3. O controle por algorítmico e o aviltamento


do trabalhador-parceiro

Destacado como um grande desafio e também como um


dos ingredientes fundamentais de sucesso do modelo de pla-
taforma digital de trabalho, a gestão baseada em dados (dati-
ficação) e em algoritmos tem representado um grande desafio
para empresas, trabalhadores e legisladores do trabalho, uma
vez que, a dinâmica do trabalho (organização e controle) tem
sofrido muitas transformações com a ampliação do uso de
algoritmos para alocar e remunerar os trabalhadores das
plataformas.
Na percepção de Ludmila Costhek Abílio (2020), a uberi-
zação do trabalho pelas plataformas digitais (apps mediado-
res), reduz o trabalhador “parceiro” a trabalhador autônomo,
mas que está subordinado aos termos e condições de traba-
lho impostas pelas plataformas. Isso acontece via, sobretudo,
gerenciamento algorítmico do trabalho, um dos elementos
fundamentais e decisivos para o modelo, aparentemente, exi-
toso das plataformas digitais de trabalho.
Os algoritmos representam, dentro do contexto das pla-
taformas, a forma de controlar o trabalho dos “parceiros”,
em uma clara e evidente intenção de mensurar os resultados
desse trabalho. Em qualquer tipo de negócio, seja ele online
ou offline, faz parte do processo de gerenciamento efetivo o
monitoramento das ações, principalmente da mão-de-obra
quanto ao uso dos recursos e a sua própria força de traba-
lho e, no caso específico das plataformas, do tempo. Afinal,
o trabalho como ação criadora essencial do ser humano, não
prescinde do tempo, nem da malha das horas e na sociedade
capitalista constitui a essência do valor (Dal Rosso, 2017).
Trabalho plataformizado e controle por algoritmos 77

A mensuração do trabalho, obsessão de Taylor para garan-


tir a eficiência operacional à época da vigência do taylorismo-
-fordismo, sempre foi uma questão e preocupação central no
regime fabril, representando, nesse sentido, parte essencial
da gestão do processo de trabalho. Vigilância, supervisão,
coordenação, eliminação de movimentos desnecessários e
toda forma de controle, busca restringir ou eliminar a inter-
ferência do trabalhador no processo produtivo. A metáfora
do panóptico, modelo arquitetônico de uma prisão na qual
apenas um observador vigiava todos os prisioneiros a partir
de um ponto central, ilustra muito bem as novas dinâmicas
de supervisão dentro das plataformas digitais de trabalho,
uma vez que tais plataformas precisam extrair o máximo de
cada “parceiro” pelas regras desenvolvidas e impostas pelos
algoritmos (Woodcock, 2020).
Os algoritmos funcionam como qualquer processo de
racionalização de uma atividade, pois são uma sequência de
instruções que informam ao dispositivo (computador ou apli-
cativo) o que fazer dentro de um conjunto de etapas prévia
e precisamente definidas para a realização de uma tarefa
(Gonsales, 2020). A gestão algorítmica do trabalho nas pla-
taformas, indica que a responsabilidade de atribuir tarefas
e tomar decisões está sob a batuta de um algoritmo e com
limitação de decisões humanas. Todo esse sistema de geren-
ciamento algorítmico é aprimorado através de algoritmos de
autoaprendizagem baseado em dados (Ilo, 2021b).

Atualmente, o gerenciamento algorítmico eleva a novos


patamares a possibilidade de incorporar como elemento
central da gestão a ausência de regras formalmente
definidas do trabalho; a informalização é cada vez mais
profundamente administrável. Ao mesmo tempo que se
apresenta legalmente como uma mediadora, a empresa
detém o poder de estabeleceras regras do jogo da dis-
tribuição do trabalho e determinação de seu valor. O
gerenciamento também mira na intensificação e exten-
são do tempo de trabalho, regulando soberanamente
oferta e procura, por meio de regras permanentemente
78 O Futuro do trabalho no século XXI

cambiantes que se retroalimentam da atividade da mul-


tidão (Abílio, 2020b, p.119, grifo nosso).

Como estruturas baseadas em softwares e hardwares,


as plataformas de negócios e de trabalho digitais, são con-
tinuamente alimentadas por dados, o que permite organi-
zar e automatizar o processo de trabalho pela lógica dos
algoritmos. Entretanto, a forma de utilizar os algoritmos
busca, sobretudo, alocar o trabalho e determinar seu valor
de acordo com a dinâmica que seja mais vantajosa para a
empresa mediadora, ou seja, a plataforma, o aplicativo.
A intensificação e extensão do tempo trabalho, são obje-
tivos claro da operação em plataforma, conforme a autora
supracitada. Nesse sentido, o que a plataforma busca, a partir
da lógica dos seus algoritmos, é impedir que os trabalhadores
parceiros se desconectem antes de atingir suas metas. Há
uma manipulação psicológica para atingir determinados
resultados e também, no caso da Uber, a empresa utiliza
mecanismos psicológicos de persuasão para melhorar sua
operação a partir da adoção de técnicas de videogame (gami-
ficação) como forma de manter os motoristas nos trilhos
(Slee, 2017).
A lógica das plataformas de trabalho digitais e do processo
de gerenciamento do trabalho é comprar o tempo das pessoas
e fazer o uso efetivo desse tempo e dessa força de trabalho
autônoma (Woodcock, 2020). Usando a Uber como exemplo,
Franco e Ferraz (2019, p.854) entendem que a maquinaria da
empresa (software) é utilizada tanto para aumentar o mais-
-valor absoluto (a partir da expansão da jornada de trabalho),
quanto para aumentar o mais-valor relativo (o número de
motoristas faz baixar o preço da força de trabalho), o que
reduz, por conseguinte, a remuneração dos trabalhadores
da plataforma.
Por conta disso, percebe-se que, no trabalho uberizado,
as plataformas atuam como meio de produção necessário e
suficiente de forma a garantir a subsunção do trabalhador
à tarefa, à atividade (Franco; Ferraz, 2019). Utilizadas como
“pontos de produção” de base digital, as plataformas utilizam
Trabalho plataformizado e controle por algoritmos 79

táticas como o feedback, o ranqueamento e os sistemas de


classificação para manter o controle sobre o processo de
trabalho. São mecanismos utilizados para centralizar na
plataforma, a partir da determinação dos cálculos dos algo-
ritmos, a dinâmica do trabalho (Gandini, 2018).
O trabalho mais vigiado nas e pelas plataformas digitais,
é condição sui generis para a dataficação funcionar conforme
a racionalidade neoliberal. Atuando como um mecanismo de
gestão e controle do trabalho, a gestão algorítmica do traba-
lho, possui quatro aspectos essenciais: i) gerenciamento de
dados e metadados em plataformas globais; ii) impacto nos
trabalhadores e legislações locais; iii) gamificação do tra-
balho; iv) intensificação da percepção de maior autonomia/
independência no trabalho (Grohmann, 2020).
Dentre tantos aspectos essenciais, a gestão algorítmica,
é necessária, portanto, para organizar coletivamente os tra-
balhadores, a partir da coleta, armazenamento e análise dos
dados de milhares ou até milhões de trabalhadores em todo
o mundo. Sem sombras de dúvidas, o propósito é coordenar
para racionalizar de maneira mais efetiva a prestação do
serviço e obter maiores ganhos pela maior produtividade
do trabalhador. Algoritmo e mensuração são indispensáveis
para supervisionar, controlar, motivar e disciplinar os tra-
balhadores (Amorim; Moda, 2020; Woodcock, 2020).
Obedecendo à lógica neoliberal e os parâmetros da finan-
ceirização-datificação global, o trabalho nas plataformas
digitais tem sido reconhecido como um símbolo de explora-
ção no século XXI (Grohmann, 2020; Abílio, 2020). O traba-
lhador não toma qualquer tipo de decisão, a não ser aceitar
ou não a tarefa e ainda assim, sujeito à risco de banimento
da plataforma.
Nesse sentido, embora os trabalhadores sejam chamados
de empreendedores ou empreiteiros independentes, estes,
frequentemente não gozam de autonomia ou liberdade para
organizar o trabalho. A gestão algorítmica surge, então, como
uma forma de alocar e gerenciar o trabalho, assim como
também supervisionar e recompensar os trabalhadores (Ilo,
2021b).
80 O Futuro do trabalho no século XXI

Com base no relatório da Ilo (2021) sobre o papel das pla-


taformas de trabalho digitais na transformação do mundo
do trabalho, entende-se que a gestão algorítmica do trabalho
é baseada em quatro dimensões fundamentais, conforme o
Quadro acima.
Com base na lógica algorítmica de gestão do trabalho, com-
preende-se que há uma automatização dos controles sobre os
trabalhadores nas plataformas que alocam, monitoram, ava-
liam e recompensam ou remuneram tais trabalhadores. Um
mecanismo, contudo, pouco transparente sobre como os
cálculos são realizados.
Trabalho plataformizado e controle por algoritmos 81

Muitas plataformas utilizam mecanismos de jogo e pro-


moções para engajar os trabalhadores e incentivar a aumentar
seus rendimentos, a partir de horários especiais, localizações,
tipos de clientes, etc. No entanto, isso pode forçar a uma inten-
sificação do trabalho autoinduzida, ou seja, como o pagamento
está condicionado à produção, isso incentiva o entregador a se
arriscar mais a cada turno. O que ocorre é um dessensibiliza-
ção do perigo que começa a ser negligenciado na tentativa de
fazer os rendimentos serem suficientes para a sobrevivência.
O benefício, nesse caso, é diretamente proporcional aos riscos
da atividade e tudo deliberadamente calculado pelos algorit-
mos (Cant, 2021).
De acordo com Carelli (2017, p.143), “a precificação, como
forma de organização do trabalho por comandos, dirige o tra-
balho sem que os trabalhadores, na maior parte das vezes,
percebam”, além disso, as premiações, incentivos e a tática da
garantia de preço mínimo por hora ajudam a empresa-aplica-
tivo a controlar e manter seus parceiros ativos.
O controle por algoritmos e a mensuração para que eles
sejam eficazes, faz parte de uma longa história de gestão do
trabalho, um processo que envolve, imprescindivelmente,
tentativas de exercer poder, controle, supervisão, motivação
e disciplina total aos trabalhadores. A coleta de dados que
acontece em tempo real, permite que as plataformas façam
triagens, acompanhem e monitorem o que está acontecendo.
Quando o trabalhador se conecta ele já está sendo vigiado e
direcionado pelas decisões dos algoritmos, situação esta que
tem implicações significativas para os trabalhadores e que
podem determinar o acesso ou não às plataformas, e, portanto,
ao trabalho (Woodcock, 2020; Ilo, 2021b).
O capitalismo de plataforma, múltiplo e diverso, utiliza
a datificação da sociedade como artifício para coletar dados
e gerar informações. Apesar do uso de dados não ser uma
novidade para a promoção de negócios, a evolução tecnoló-
gica tornou o registro de dados uma atividade além de mais
rápida, mais barata e em grande quantidade. O uso de dados,
portanto, tornou-se central e determinante para o sucesso dos
negócios, principalmente das plataformas de trabalho digitais,
82 O Futuro do trabalho no século XXI

uma vez que estas possuem a vantagem dos dados em relação


aos negócios tradicionais (Grohmann, 2020; Kalil, 2020).
Diante de tais realidades, o trabalho em plataformas tem
simbolizado um laboratório que abriga os experimentos e
anseios do capital, bem como os movimentos representativos
da luta de classes contra as investidas neoliberais que obrigam
os trabalhadores a gerirem sua própria sobrevivência diante
de todas as vulnerabilidades e riscos. Além disso, o que tem se
percebido com a atuação das plataformas de trabalho digitais
é a redução do trabalhador a um trabalhador just-in-time ou
um autogerente subordinado que assume os riscos e custos
da sua própria produção e que é utilizado na exata medida da
necessidade do mercado. Nesta era do capitalismo de plata-
forma, percebe-se a ampliação de formas pretéritas de explo-
ração do trabalho que remetem à protoforma do capitalismo
(Grohmann, 2020a; 2021; Abílio, 2020; Antunes, 2020).

4. Considerações Finais

A popularidade das plataformas digitais de trabalho


demonstra a força das empresas-aplicativos em atrair tra-
balhadores que buscam horários flexíveis, liberdade para
escolher as tarefas a realizar, a hora e o lugar. Comunicações
como “Dirija quando quiser”, “faça seu próprio horário”, “ganhe
dinheiro a qualquer hora, em qualquer lugar”, “gerencie seu
tempo: escolha quando quer fazer entregas, com total liber-
dade para recusar rotas”, “Ganhe dinheiro realizando entregas.
Aceitou, entregou, ganhou!” e tantas outras, remetem a um
trabalho aparentemente cheios de vantagens.
Conforme se percebe, é evidente o uso de palavras ou
expressões que remetem à facilidade, agilidade, rapidez, bem
como à garantia de flexibilidade, renda extra e tranquilidade
para trabalhar quando e onde quiser. Portanto, um discurso,
neoliberal, altamente persuasivo e atraente das empresas-
-aplicativo em relação às ocupações tradicionais ou formais.
Diferentemente do discurso adotado e que reverbera na
sociedade, as plataformas de trabalho digitais, sob o manto
de motes como empreendedorismo, autogerenciamento,
Trabalho plataformizado e controle por algoritmos 83

flexibilidade de horário e até mesmo qualidade de vida, rea-


lizam uma persuasão digna da engenhosidade do capital nessa
fase digital-informacional-financeira. No entanto, a utopia
desenvolvida e vendida pelo capitalismo de plataforma, reve-
la-se bem diferente da realidade sonhada, imaginada ou dese-
jada pelos trabalhadores, uma vez que há um intenso processo
de exploração e precarização do trabalhador de plataforma
que alcançam diferentes dimensões do trabalho como jor-
nada, condições de trabalho, remuneração, riscos, assistência
médica, etc.
A partir de eixos basilares que conferem às plataformas
o reconhecido sucesso, como os algoritmos e a datificação, é
que a engrenagem do capital, sob o discurso da plataformi-
zação, funciona. Utilizando uma força de trabalho sobrante
e que anseia por sobrevivência e liberdade, duas condições
quase antagônicas na era do capitalismo de plataforma, as
plataformas digitais de trabalho ampliam sua atuação de
forma globalizada, do Norte ao Sul global, disseminando
sujeição, desvalorização da força e, reconhecidas investidas
de erosão aos direitos trabalhistas, um modus operandi de
destruição e negação que promove profundo aviltamento dos
trabalhadores-parceiros.

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indústria 4.0. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
.
Universidade operacional e precarização
do trabalho docente no contexto dos
professores substitutos da Universidade
Estadual do Ceará

5 ANA LARISSE SANTOS BARBOSA1


MARIANA AGUIAR SOUSA2

1. Introdução

A Reforma do Estado que se vem operando desde a década


de 1990 modifica, estruturalmente, o serviço público e incide,
em particular, na Educação Superior do país, alterando sua
estrutura organizacional e o seu modus operandi. Esse movi-
mento impôs novas configurações ao trabalho docente que
foi transfigurado visando se adequar à nova estruturação
imposta pela ascensão do neoliberalismo1 em escala mundial.

1
O neoliberalismo surge em decorrência do esgotamento do modelo
de acumulação fordista associado ao acirramento político, econômico
e ideológico no qual se encontrava o mundo durante a Guerra Fria. O
Estado neoliberal aparece, então, como uma alternativa aos processos
que vinham se desenrolando a nível mundial. De acordo com Harvey
(2008) o neoliberalismo se apresenta como uma teoria que fundamenta
as práticas políticas, econômicas e ideológicas em que se propõem as
liberdades individuais e capacidades empreendedoras, caracterizados
pelo permanente direito à propriedade privada, livre mercado e livre
comércio. O Estado neoliberal surge, nesse sentido, como o responsável

1
Assistente Social Residente em Saúde da Família e Comunidade, mestre
em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará. Email: as.larisse-
santos@gmail.com
2
Assistente Social Residente em Saúde da Família e Comunidade. Email:
aguiarmariana.as@gmail.com
88 O Futuro do trabalho no século XXI

No caso brasileiro, a partir da referida década, iniciado com


o Governo de Collor, crescente no governo de Fernando
Henrique Cardoso e se remodelando nos Governos Lula e
Dilma. Desde o segundo mandato de Dilma, a face deste
neoliberalismo, que possuía um viés mais integrador e
conciliador de classes através de incentivos econômicos e
políticas públicas destinadas a população mais pobre, não
consegue mais se sustentar a partir de ameaças de crise eco-
nômica que afetariam o lucro das elites. Todo esse contexto cul-
mina no impeachment de Dilma Rousseff, com isso Michel
Temer é eleito, pois ocupava a condição de vice-presidente
da República na época.
Em 2018, o capitão reformado Jair Bolsonaro é eleito
e toda uma agenda regressiva no que tange aos direitos
da população, que já vinha sendo implementada desde o
governo de Temer, se amplifica. O cenário criado pelo neo-
liberalismo brasileiro refletiu e materializou as recomenda-
ções de organismos internacionais que recaíram fortemente
sobre as universidades. As orientações desses organismos
era de que, principalmente nos países periféricos, os Estados
Nacionais deveriam preocupar-se em garantir a educação de
nível básico (no Brasil, corresponde ao Ensino Fundamental

pela garantia dos mecanismos e práticas adotadas pela teoria neoli-


beral. Assim, o neoliberalismo não apenas fortalece o mercado como
o ambiente de socialização por excelência, disseminando valores indi-
viduais de concorrência e produtividade como forma de eliminação da
pobreza, como também fortalece a ideia de um Estado forte, enquanto
mediador das condições de acumulação de capital e como ente que
administra os conflitos sociais e quebra a resistência dos trabalhadores.
Procura desregulamentar todo o aparato regulativo forjado no período
keynesiano-fordista, além de flexibilizar leis e mercados de trabalho e
desregulamentar barreiras alfandegárias, abrindo, assim, espaços na-
cionais para o trânsito livre das grandes corporações transnacionais e,
fundamentalmente, do capital financeiro. Mas não só, as privatizações
aparecem, também, como características significativas no neoliberalismo,
ao passo em que transferem a regulamentação de bens comuns como
água, luz, saúde, educação, assistência e previdência, para o âmbito do
mercado, transformando o território das políticas públicas e sociais em
ambiente de investimentos e diminuindo o poder regulatório do Estado.
Universidade operacional e precarização do trabalho docente 89

e Ensino Médio), deixando o ensino superior como lócus de


atuação de empresas privadas.
Nessa direção, o trabalho docente é reestruturado com
vistas a responder às novas exigências do sistema de ensino
superior, agora organizado e gerido segundo os parâmetros
empresariais. A atuação profissional precisa se adequar ao
princípio da produtividade, que visa a produção da maior
quantidade de peças ou serviços em menos tempo. Essa ideia
é transportada diretamente da lógica da gerência científica
e aplicada às corporações dentro das universidades, promo-
vendo considerável desvalorização em determinadas áreas
de pesquisas científicas e mitiga a produção de conhecimento
que passam a operar com recursos limitados e com base no
fluxo de resultados, o que leva à hierarquização entre os
cursos e áreas de ensino, bem como à intensa competição
entre docentes.
A pesquisa demonstra que este contexto também se
expressa e atinge o campo e os sujeitos pesquisados: Os
professores(as) substitutos(as)/temporários(as) do Centro de
Estudos Sociais Aplicados (CESA) da Universidade Estadual
do Ceará (UECE). Iniciaremos este estudo com a metodo-
logia, esclarecendo ao leitor como a pesquisa foi realizada.
Seguimos com a análise de teorias e fatos políticos que
tem grande impacto na realidade docente, evidenciando
sua precarização como produto da Reforma do Estado e da
Reforma do Ensino Superior que ocorreram no Brasil no
final da década de 1990. As discussões suscitadas a partir
destas teorias trarão perspectivas para pensarmos a rea-
lidade estudada, cujos os resultados serão apresentados no
terceiro tópico, seguido pelas considerações finais.

2. Metodologia

O escrito, enquanto recorte da pesquisa realizada para fins


de conclusão do curso de graduação em Serviço Social, utili-
zou-se de pesquisas bibliográficas, documentais e entrevis-
tas realizadas através de formulários eletrônicos. Buscou-se
compreender as dimensões da precarização, utilizando-se
90 O Futuro do trabalho no século XXI

dos materiais teóricos de modo a relacioná-los com os dados


coletados nos formulários aplicados aos nossos interlocuto-
res. Objetivamos, assim, adentrar o entendimento de relações
sociais, econômicas e políticas mais amplas que condicionam
e informam as condições de precariedade em que se desen-
volvem as atividades dos/as professores(as) substitutos(as)/
temporários(as) da Universidade Estadual do Ceará.
Optamos em dividir os questionários em seções, às quais
consideram: 1. Perfil socioeconômico dos entrevistados; 2.
Carga horária – ensino, pesquisa e extensão; 3. Estabilidade
e contrato de trabalho. Foi utilizado questionário eletrônico
como metodologia de pesquisa, entendendo-o como técnica
de fácil manuseio, no qual pudemos alcançar maior número de
professores em um curto período de tempo. As entrevistas rea-
lizadas abrangeram profissionais dos cursos de Administração,
Ciências Contábeis e Serviço Social. Foram enviados 28 (vinte e
oito) formulários eletrônicos dos quais obtivemos retorno, em
média, de 35% perfazendo um total de dez professores.
O formulário foi composto por perguntas qualitativas e
quantitativas buscando maior aprofundamento nas questões
que perpassam o trabalho dos professores substitutos/tem-
porários da UECE. A formulação das questões e a pesquisa em
si foram norteados por apreensões teóricas e pela análise do
contexto social e político, descritas no tópico seguinte.

3. Reflexões teóricas

O cenário de Reforma do Estado e, consequentemente, da


reforma universitária, se constrói por meio da reestrutura-
ção da máquina administrativa estatal que passa a operar com
base na divisão em dois núcleos: núcleo burocrático e núcleo de
serviços. Bresser-Pereira (1995, apud Reis e Sguissardi, 2001)
classifica esses núcleos quanto a sua natureza:

O burocrático, pela segurança das decisões tomadas;


o setor de serviços, pela qualidade dos serviços pres-
tados aos cidadãos. No núcleo burocrático, o princípio
administrativo fundamental seria o da efetividade, o
Universidade operacional e precarização do trabalho docente 91

da capacidade de ver obedecidas e implementadas as


decisões tomadas; no setor de serviços, o princípio cor-
respondente seria o da eficiência, ou seja de uma relação
ótima entre qualidade e custo dos serviços colocados à
disposição do público. (p.31)

A Educação Superior, por sua vez, ao incluir-se no núcleo


de serviços, após a reestruturação do aparelho estatal, passa
a admitir parcerias público-privadas (PPP) com livres possi-
blidades de gestão através das Organizações Sociais – setor
amplamente fortalecido na década de 1990 no Brasil. Ademais, o
núcleo de serviços, por não ter a obrigatoriedade de serem geri-
dos exclusivamente pelo Estado, admitem parcerias com a ini-
ciativa privada e descambam à lógica mercantil, tornando sua
administração flexível e eficiente. Não muito distante, pacote de
medidas proposto pelo Governo Federal para as IES, “Future-se”,
não só admite, como impulsiona as parcerias público-privadas
e a autonomia financeira como forma das instituições captarem
recursos para sua manutenção, incentivando, assim, a abertura
das universidades públicas à livre iniciativa privada e lógica
do mercado.
Após a reforma do Estado iniciada sob a batuta de Bresser-
Pereira, no governo de Fernando Henrique Cardoso, con-
centraram-se forças e estímulos em um novo modelo de
Universidade ligado ao mercado e gerido com base em ele-
mentos mercadológicos, definidos por índices de desempe-
nho e resultados e gestão empresarial. Vale reforçar que a
divisão do aparelho estatal por núcleos, segundo as justifi-
cativas apresentadas à época, conferiria à esfera privada a
oferta de serviços públicos não estatais com eficácia, efici-
ência e qualidade, ao passo em que ao Estado caberia esta-
belecer regras, objetivos, métodos de avaliação e indicadores
de eficiência aos serviços ofertados. É a isto que a filósofa
Marilena Chauí (1999, s/p) se refere ao afirmar que “A posição
da universidade no setor de prestação de serviços confere
um sentido bastante determinado à ideia de autonomia uni-
versitária e introduz termos como ‘qualidade universitária’,
‘avaliação universitária’ e ‘flexibilização da universidade’”.
92 O Futuro do trabalho no século XXI

Assim, o Estado estabeleceu metas e indicadores de desem-


penho condicionando a “autonomia universitária” ao geren-
ciamento empresarial que atendesse as necessidades do mer-
cado, transformando o modelo de universidade preconizado
nas leis do país – baseado no tripé ensino, pesquisa e exten-
são2, bem como no ensino técnico-científico e humano – no
modelo que Chauí chamou de “universidade operacional”.
Ainda segundo a autora, reestruturada a partir das normas e
padrões da mercantilização do ensino, as universidades públi-
cas alteraram as formas de contratação de força de trabalho,
substituindo o concurso público por contratos temporários
(docentes) e pela terceirização (técnicos-administrativos). No
mesmo movimento, a reforma da universidade adaptou as
matrizes curriculares às demandas empresariais e separando
ensino e pesquisa, deslocando este último para centros autô-
nomos. Nessa direção, Maués (2005) afirma que se imprimiu
às universidades

uma nova cultura acadêmica que se manifesta por meio


da naturalização da relação conhecimento-mercado,
pela livre adesão, ou não, desse modelo, pela posição
voluntarista e, por último, parte da compreensão que
as universidades são espaços de intensas disputadas,
que tem o mercado como propulsor desse acirramento.”
(Naidorf, 2005 apud Maués, 2005, p.150).

De modo tal, esses pontos recaem sobre o trabalho docente


e lançam sobre ele outra dinâmica que se encontra agora
numa incessante busca por adequação aos novos moldes
operacionais das universidades. Nessa seara, a produção do
conhecimento se vincula diretamente aos princípios merca-
dológicos, com o que ganha terreno o apego à produtividade,
à concorrência e à produção de valores para o mercado.

2
Art. 207 da Constituição Federal “As universidades gozam de autonomia
didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obe-
decerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”
Universidade operacional e precarização do trabalho docente 93

A relação entre qualidade e quantidade se inverte, e essa


passa a operar com vantagem em relação àquela. O “ser” e
“sentir-se” produtivo passa a balizar o trabalho docente e se
manifesta como uma das principais causas do adoecimento
psíquico e mental de professores. É a isto que se refere o profes-
sor Antonio Bosi, parafraseando o estudo de Olgaíses Maués

a competição é naturalizada, tornando-se a regra. A


escassez de recursos para pesquisa (e para o trabalho
docente em geral) também é naturalizada e se trans-
forma em realidade que avaliza a “competência” dos
que conseguem acessar tais recursos. E o resultado
dessa dinâmica traz consequências comuns ao mundo
do trabalho, tais como o estresse, o estado permanente
de cansaço, a depressão e até o suicídio (Maués, 2003,
apud Bosi, 2007, p. 1517.).

Identifica-se que as mudanças ocorridas da década


de 1990 para cá reverberaram vigorosamente no Ensino
Superior no Brasil e, como parte constitutiva dessas insti-
tuições, no trabalho dos professores universitários. Essas
alterações se refletem na precarização do trabalho docente
através de contratos flexíveis e precarizados – como é o caso
de professores substitutos e horistas -, ausência de planos de
carreira, remuneração por produção e baixos salários. Todos
esses elementos recaem diretamente sobre a saúde mental
desses profissionais, alargando essas condições para outras
esferas de sua vida que chegam a ultrapassar o ambiente
universitário.
Dimensões da precarização que, segundo Alves (2014),
não se reduz apenas à questão salarial e/ou a relações de
trabalho e contratos trabalhistas. Além dessas dimensões,
o estudioso da Sociologia do Trabalho afirma que a preca-
rização se materializa de outras maneiras: 1. Precarização
existencial, caracterizada pela vida reduzida derivada do
modelo just-in-time; 2. A precarização do homem-que-tra-
balha decorrente dos adoecimentos laborais também provo-
cados pelo novo modo de vida acima citado.
94 O Futuro do trabalho no século XXI

Nesse contexto, partimos da compreensão de que a preca-


rização do trabalho docente surge como produto da Reforma
do Estado e da Reforma do Ensino Superior que ocorreram
no Brasil no final da década de 1990. Como tal, estão inseri-
das no processo de reestruturação do mundo do trabalho no
século XXI e assumem características similares àquelas das
fábricas e novas empresas reestruturadas. No ambiente aca-
dêmico, essa precarização se expressa através do que Chauí
(1999) chamou de “universidade operacional”, instituições que
passam a operar de maneira correlata aos mecanismos de
mercado, funcionando com base em indicadores de desempe-
nho, gestão empresarial e índices de produtividade que impri-
mem ao trabalho docente uma série de novas determinações
a fim de que se encaixem nesse novo modelo universitário.
Para autora essas ações se materializam no aumento insano de
horas-aula, na diminuição do tempo para mestrados e douto-
rados, na avaliação pela quantidade das publicações, colóquios
e congressos, na multiplicação de comissões e relatórios etc.
(apud Bosi, 2007, p.1512).
Dito isso, parto para a realidade vivenciada por esses pro-
fissionais na categoria de substitutos das IES públicas. Estes
convivem com traços da precarização que não são sentidas
pelos professores (as) efetivos (as), como por exemplo, a falta
de estabilidade decorrentes de formas de contratos flexíveis.
Além disso, são duplamente cobrados no ambiente acadêmico
para assumir um grande número de turmas e disciplinas e
há uma maior dificuldade na dedicação e execução de outras
atividades de extensão e pesquisa, dissociando, assim, o tripé
universitário. Outrossim, o trabalho docente nos últimos vinte
anos passa por um longo processo de precarização que oca-
siona mudança não só no dia a dia laboral desse (a) professor
(a), mas também em sua vida pessoal, em um processo que
Alves (2014) chamou de “vida reduzida”.
Ora, num intenso processo de captura da subjetividade
desse sujeito, temos que as alterações no mundo do trabalho
afetam sobremaneira as relações entre homem e máquina
demandando desse profissional novas funções e habili-
dade no ambiente de trabalho que deem conta desse espaço
Universidade operacional e precarização do trabalho docente 95

reestruturado. Na mesma direção, esse profissional passa a


receber fortes cargas de pressão que afeta diretamente suas
faculdades psíquicas, de modo a comprometer todas as dimen-
sões de sua vida, em um processo apontado como precarização
do homem-que-trabalha (Id 2014), conforme será possível
observar nos resultados descritos no tópico a seguir.

4. Resultados obtidos

As universidades estaduais do Ceará, - a saber, Universidade


Estadual do Ceará (UECE), Universidade Regional do Cariri
(URCA) e Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) - con-
tabilizavam em 2020 um total de 2.143 professores, entre efe-
tivos e substitutos/temporários. A UECE é responsável por
abrigar 51% desse quantitativo, o que nos leva a crer que mais
da metade dos docentes do ensino superior público do Estado
se encontram nessa instituição, locus da pesquisa. O quadro
de professores da Estadual do Ceará, por sua vez, é formado
por efetivos(as) e substitutos(as)/temporários(as), sendo essa
última classe correspondente a 33% do total, ou seja, 1/3 dos(as)
professores da UECE estão sendo contratados e desenvolvendo
suas atividades docentes por vias precárias.
Os dados revelam que a precarização das condições de
trabalho e as jornadas extenuantes vivenciadas por estes pro-
fissionais afetam substancialmente o tempo fora do trabalho,
ou tempo livre, dessa categoria. Considerando os estudos de
Ricardo Antunes (2009) é inconcebível que o trabalho assala-
riado, fetichizado, com jornadas fatigantes condicione a uma
vida plena de sentido e autônoma fora do ambiente de trabalho.
Para o autor “Uma vida desprovida de sentido no trabalho é
incompatível com uma vida cheia de sentido fora do traba-
lho” (p.173). A precariedade salarial conduz à necessidade de
buscar formas alternativas de complementação da renda para
sobrevivência própria, consequentemente um aumento na
quantidade de trabalho. Além disso, os contratos flexíveis e a
incerteza de estabilidade elevam os níveis de estresse e ansie-
dade no ambiente de trabalho e fora. Desse modo, o tempo
livre para o desenvolvimento de uma vida plena de sentido
96 O Futuro do trabalho no século XXI

passa a ser uma extensão do ambiente de trabalho e é por ele


inviabilizado de acontecer.
Os resultados obtidos constatam que 60% dos entrevis-
tados não exercem a docência em nenhuma outra institui-
ção de ensino, no entanto, assumem, em mesma propor-
ção, exercer outras atividades além da docência, apontando
as como prestação de serviço terceirizado à Prefeitura de
Fortaleza em caráter esporádico; Gerente de Orçamentos/
Indústria; Estudante de doutorado; Consultoria; trabalha-
dor (a) Sazonal: consultorias e EAD-UECE e aposentado pelo
INSS. A busca por outras ocupações em sua maioria se dá
pela necessidade desses profissionais de complementar sua
renda mensal, posto que o salário dos substitutos/temporá-
rios, possui valor bem abaixo quando comparado ao quadro
do Magistério Superior, especialmente quando pensamos
nos professores efetivos. As determinações causadas pela
extensiva carga-horária e dupla jornada de trabalho ado-
tada por esses profissionais no espaço acadêmico, ou não, se
constituem como elementos essenciais para compreender as
dimensões da precarização a partir da relação posta entre
tempo livre e tempo de trabalho.
Quando perguntados sobre como enxergavam as condi-
ções laborais frente ao trabalho docente de efetivos, levando
em consideração a carga horária, em sua maioria avaliaram
como superior, absurda e desigual. Em uma das respostas
nos é relatado “Carga horária excessiva, tendo em vista que
o volume de disciplinas ministradas sempre é superior aos
dos docentes efetivos, inviabilizando ou dificultando outras
atividades acadêmicas como produção e pesquisa científica.”
(Resposta 1). Essa situação se agrava com o aumento dos pro-
gramas de pós-graduação que requer, em seu corpo docente,
profissionais com vínculo efetivo, deixando as disciplinas da
graduação, em sua maioria, descobertas. Neste contexto, os
(as) professores (as) substitutos (as)/ temporários (as) tendem
a cobrir muitas disciplinas na graduação. Esse movimento
leva a um aumento na carga horária que destinam ao ensino
em detrimento das outras duas dimensões que completam o
tripé universitário.
Universidade operacional e precarização do trabalho docente 97

Identificamos, ainda, que a maioria desses docentes não


estão inseridos em projetos de pesquisa e, ou, extensão. Os
30% que apontaram positivo para a realização do tripé ensino,
pesquisa e extensão afirmam não contar com nenhum tipo de
financiamento em suas pesquisas e projetos. A ausência dos
mesmos nas referidas atividades remete à precarização da
pessoa ao direcionar o profissional apenas para o desenvolvi-
mento de aulas repetitivas, transfigurando esse docente como
aulistas e com características fabris. Em paralelo, a produção e
publicação de artigos científicos, capítulos de livros, pareceres
e orientações técnicas também são colocadas como cruciais
no dia a dia acadêmico. Todo o contexto evidencia as relações
baseadas na produtividade e na competitividade, que inten-
sificam a sobrecarga psíquica da categoria e causa problemas
de saúde, refletidos em inúmeras variações que atingem suas
vidas pessoais.
Ao mencionar a estabilidade em relação às atividades
laborais dos efetivos, nossos interlocutores afirmaram ser
um processo estressante “estou finalizando o 4º contrato, ou
seja, estou na UECE a quase 8 anos e no segundo semestre
iniciarei o 5º contrato (rumo aos 10 anos) como temporário. E
eu sei que de dois em dois anos, precisarei passar por todo o
estresse de estudar para o concurso e fazer todo o processo
seletivo de novo. (Resposta 3). Outro docente relata ser uma
atividade “extremamente instável” e “emocionalmente des-
gastante” (Resposta 4). Os dados apontam que muitos desses
docentes já participaram de duas ou mais seleções para subs-
titutos/ temporários, o que nos levar a considerar que essa
modalidade de contratação se torna altamente desgastante
para a categoria, tendo em vista que não gera estabilidade
para esse profissional que precisa se submeter ano a ano a
seleções desgastantes.
Essa relação nos leva a considerar a forma como se dá os
contratos de trabalho e a discrepância nas relações de trabalho
entre efetivos e substitutos/ temporários. Quando questiona-
dos sobre, afirmam ser de natureza precária e injusta, com
diversas limitações quanto ao número de atividades, carga
horária extenuante e baixa remuneração, além de não oferecer
98 O Futuro do trabalho no século XXI

nenhuma estabilidade ao professor. Alves (2014) parte da com-


preensão de que a flexibilização nos contratos é uma das prin-
cipais marcas da precarização do trabalho, mas não é a única.
Nesse novo modelo de acumulação flexível os contratos adqui-
rem caráter pontual, abrindo margem para as contratações por
tempo determinado e apenas enquanto se faz necessário. Um
dos entrevistados relata que são “Contratos cada vez mais exclu-
dentes e precarizantes, no sentido das exigências que se fazem
com os professores em termos de carga horária e limitação de
atividades acadêmicas” (Resposta 5).
Olgaíses Maués (2005) afirma que no modelo de univer-
sidade operacional, voltado aos imperativos do mercado e à
lógica produtivista invade as relações de trabalho docente
no qual a vida acadêmica desses profissionais passa a serem
balizados através de, por exemplo, a quantidade de artigos
publicados, orientações, participações em bancas e disciplinas
ministradas, afetando diretamente a saúde física e mental
desse trabalhador que se vê diante de metas a serem cumpri-
das para se manter vivo.

5. Considerações Finais

Por fim, os estudos sobre o modelo operacional de universi-


dade, no qual balizamos as discussões dos dados coletados, nos
levam à compreensão de que o processo de precarização dos(as)
professores(as) substitutos(as)/temporários(as) do CESA-UECE é
parte estruturante de um complexo maior que insere o trabalho
docente no processo de reestruturação do mundo do trabalho
no século XXI. Carrega ainda marcas da flexibilização sentidas
através dos contratos trabalhistas, da precariedade salarial,
dos adoecimentos laborais e da precarização existencial, que
imprimem a essa classe novas características às suas atividades
docente, além da necessidade de novas formas de resistir aos
avanços que vêm a desestruturar o trabalho docente e o Ensino
Superior no Brasil.
Dessa forma, os resultados apurados, longe de serem con-
clusivos, denotam que os profissionais reconhecem e identifi-
cam os elementos de precarização no desenvolvimento de suas
Universidade operacional e precarização do trabalho docente 99

atividades docentes. Essas características e condições laborais,


conforme estudos feitos no percurso da pesquisa, são fruto do
processo de mundialização do capital que se arrasta desde a
década de 1990 no Brasil e que, por sua vez, enseja um modelo
reestruturado e flexível no mundo do trabalho que passa a bali-
zar as atividades docentes nas universidades brasileiras.

6. Referências

ALVESb, Danielle Coelho. Política de Educação Superior no Ceará


e a resistência do movimento docente na Universidade Estadual do
Ceará - Uece. 2018. 179 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.
ALVESb, Danielle Coelho. Expressões do trabalho docente precarizado:
discursos e práticas dos professores substitutos da UECE. 2014. 150
f. TCC (Graduação) - Curso de Serviço Social, Universidade Estadual
do Ceará, Fortaleza, 2014.
ALVES, Giovanni. Dimensões da reestruturação produtiva: Ensaios de
sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis, 2007.
ALVES, Giovanni. Trabalho e Neodesenvolvimentismo: Choque de
capitalismo e nova degradação do trabalho no Brasil. Bauru: Projeto
Editorial Praxis, 2014. 220 p.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação
e negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
BEHRING, Elaine. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado
e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2008.
BRESSER PEREIRA, L. C.. Teoria novo-desenvolvimentista: uma síntese.
Rio de Janeiro, v. 11, n. 19, p. 145-165, jul./dez. 2016.
CHAUÍ, Marilena. A universidade operacional. Folha de São Paulo,
caderno Mais! 9 de maio 1999. Disponível em: <http://www.cacos.ufpr.
br/obras/Marilena_Chaui_Universidade_Operacional.doc>. Acesso em:
02 de março de 2020
MAUÉS, O. C.; SOUZA, M. B. de. Precarização do trabalho do docente
da educação superior e os impactos na formação. Em aberto, Brasília, v.
29, n. 97, p. 73-85, set./dez. 2016.
SINDUECE. ESTUDO mostra que aproximadamente 1/3 dos docentes
das estaduais do Ceará é de professores/as substitutos/as. SINDUECE,
Fortaleza, 24 de julho de 2018. Disponível em: <https://sinduece.org.
br/noticias/estudo-mostra-que-aproximadamente-1-3-dos-docentes-
das-estaduais-do-ceara-e-de-professores-as-substitutos-as/>. Acesso
em: 21 de abril de 2020.
SOUSA, Mariana Aguiar. A contrarreforma do estado brasileiro e suas
implicações no trabalho docente dos (as) professores (as) substitutos
100 O Futuro do trabalho no século XXI

(as)/temporários (as) da UECE. Trabalho de Conclusão de Curso


(Graduação). Centro de Estudos Sociais Aplicados, Universidade
Estadual do Ceará. Fortaleza, 2020
.
Degradação do Trabalho e o Desmonte do
Estado na Era do Capital Financeiro1

6 SELMA BARBOSA2

1. Introdução

C
om a crise dos anos 1970, o sistema taylorista/for-
dista de organização do trabalho que havia se expan-
dido nas economias capitalistas centrais durante as
duas guerras mundiais, começa a entrar em colapso.
A crise do padrão de acumulação taylorista/fordista, que
é reflexo de uma crise estrutural do capital (Antunes, 2009),
faz emergir novas formas de “acumulação flexível” (Harvey,
2014) baseadas no modelo toyotista e sob a hegemonia do capi-
tal financeiro. Marques (2018) sinaliza que a crise do padrão
fordista foi condição necessária para que o capital financeiro
pudesse se expandir. E isso foi possível de ser alcançado por
meio de políticas implementadas pelo então Presidente dos
Estados Unidos Ronald Reagan (mandato de 1981 a 1989) e
pela Primeira-Ministra do Reino Unido Margareth Thatcher
(mandato de 1979 a 1990) que, ao promoverem um processo de
1
Este texto é uma versão revista da minha pesquisa de mestrado
defendida em 2021, sob o título A Saúde do (a) Trabalhador (a) da
Educação Superior em Serviço Social em Tempos de Ofensiva Neoliberal
- Programa de Pós Graduação em Serviço Social da PUC-SP, sob orienta-
ção da Professora Dra.Carola Carbajal Arregui e com financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2
Assistente Social da UFRJ e mestre em Serviço Social pela PUC-SP.
102 O Futuro do trabalho no século XXI

desregulamentação, criaram as bases para que o capital finan-


ceiro, principalmente na sua forma fictícia, pudesse expandir
a níveis nunca vistos antes (Marques, 2018). Esse modelo de
desregulamentação da economia e do Estado, impulsionados
nos moldes das experiências dos Estados Unidos e da Inglaterra
na base do ideário neoliberal1 tornou-se referência para os pro-
cessos de reformas em diversos países no mundo e, especial-
mente, na América Latina. Nas palavras de Antunes (2009, p.
49), “essas transformações, decorrentes da própria concorrên-
cia intercapitalista […] e, por outro lado, da própria necessidade
de controlar as lutas sociais oriundas do trabalho, acabaram
por suscitar a resposta do capital à sua crise estrutural”.
Como resposta à crise, a reorganização do capital e de seu
sistema ideológico e político de dominação (sob os princípios
do neoliberalismo de privatização do Estado e desregulamen-
tação dos direitos do trabalho), deriva num processo de rees-
truturação da produção e do trabalho. Este período caracte-
rizou-se por ofensiva generalizada do capital contra a classe
trabalhadora e contra as condições conquistadas durante o
período keynesiano. O elemento decisivo para a crise do for-
dismo foi o ressurgimento de ações ofensivas ao mundo do
trabalho e o transbordamento da luta de classes.
Essas transformações provocaram a resposta do capital à
sua crise estrutural. Dessa forma, o capital inicia um processo
de reorganização das suas formas de dominação societal, pro-
curando gestar um projeto de recuperação da hegemonia nas
mais diversas esferas da sociabilidade (Antunes, 2009).
Para Antunes (2018), no século XX presenciamos uma era
de degradação do trabalho. A primeira forma de degradação
do trabalho se deu sob o prisma do taylorismo e do fordismo
que embora tenha tido (e ainda tem) um caráter mais despótico
era provido de direitos e regulamentação. Já a segunda forma
de degradação do trabalho típica do toyotismo através de um

1
Cabe lembrar que as ideias neoliberais tiveram como marco a publicação do livro:
O caminho da Servidão de Friedrich Hayek, escrito em 1944. Nesta obra, Hayek
defende a não intervenção do Estado na economia, criando as bases para um novo
tipo de capitalismo livre de regras. Mas as condições políticas e econômicas não eram
favoráveis já que o capitalismo vivia sua fase de ouro. (Anderson, 1995)
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 103

discurso que privilegia uma aparente “participação”, temos a


reificação do trabalho de forma mais interiorizada.
Por meio de mecanismos de envolvimento e de ocultamento
da luta de classes, o empregado é tido como um “colabora-
dor”. Com isso, o(a) trabalhador(a) cada vez mais não se reco-
nhece enquanto classe e, como uma de suas consequências, há
uma crescente desmobilização dos(as) trabalhadores(as) e, ao
mesmo tempo, atinge um dos objetivos do toyotismo que é a
desconstrução dos direitos sociais (Antunes, 2018).
Os novos métodos de gestão do trabalho, inspirados no
toyotismo, aprisionam os(as) trabalhadores(as) às normas e
políticas da empresa através do slogan “vista a camisa” ou “você
é nosso colaborador”. Conforme Antunes (2009) o toyotismo
age em duas direções: na reorganização/precarização dos pro-
cessos de trabalho e no caráter subjetivo desse(a) trabalhador(a)
para que não se reconheça enquanto classe e sim, como cola-
borador(a). Essas transformações trouxeram fortes repercus-
sões no ideário, na subjetividade e nos valores constitutivos da
classe-que-vive-do-trabalho e tais fetichizações e reificações
que permeiam o mundo do trabalho impactam na vida fora do
trabalho. Ou seja, aprofunda-se a dimensão de um trabalho
estranhado e um estranhamento do trabalho na sociabilidade
burguesa, o que nos remete à categoria da alienação.
O toyotismo traz em seu bojo um conjunto de transforma-
ções tais como: flexibilização das relações de trabalho, das bar-
reiras comerciais e uma redefinição da própria relação entre a
iniciativa privada e o Estado, acarretando transformações na
esfera política. Todo esse processo de mudanças só foi possível
de ser efetivado mediante um conjunto de políticas estatais,
dentre elas, o incentivo ao livre mercado, trazendo uma nova
relação entre capital e trabalho. Deste modo, essas mudanças
iniciadas a partir dos anos 1970 e em grande medida ainda
em curso, trouxeram consequências nefastas para a classe
trabalhadora com a fragmentação das relações de trabalho,
contratação precária de trabalhadores(as) sob a forma de ter-
ceirização e intensificação do trabalho que agravam as condi-
ções de saúde dos(as) trabalhadores(as), expressões que se dão
tanto na iniciativa privada como na administração pública.
104 O Futuro do trabalho no século XXI

Esse modelo flexível de desenvolvimento implicou também


na reorganização da geopolítica mundial, na condução de um
capital livre de fronteiras, limitando ainda mais a regulação
do Estado em seus novos padrões de serviços (Harvey, 2014).

Nesse novo estágio de desenvolvimento do capital rede-


finem-se as soberanias nacionais, com a presença de
corporações transnacionais e organizações multilate-
rais - Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial
e o Organização Mundial do Comércio, a ‘santíssima
trindade do capital em geral’ - principais portas vozes
das classes dominantes em escala mundial (Iamamoto,
2008, p. 110).

Essa reconfiguração capitalista com as transformações


introduzidas pela racionalidade neoliberal que teve início a
partir dos anos 1970 provocou alterações profundas na pauta
dos estudos sobre a gestão pública e sobre a própria ação
pública (Dardot; Laval, 2016). A máxima do ajuste fiscal do
Estado, proferida a nível global por diversos organismos inter-
nacionais como o Banco Mundial e o FMI, defendia a redução
dos gastos do Estado e a potencialização de sua “eficiência”
através do mote concorrencial do mercado, exaltando a gestão
empresarial e emitindo diretrizes para que a gestão pública
incorporasse suas práticas. Esse movimento ficou conhecido
como “Nova Gestão Pública” nos países desenvolvidos e rapi-
damente avançou para os países da América Latina (Paula,
2005), preconizando uma redefinição do papel do Estado e a
implantação de mecanismos de gestão oriundos da iniciativa
privada na administração pública.
Assim, este estudo tem como objeto de análise as trans-
formações societárias nas últimas décadas, e ainda em curso,
ressaltando suas implicações nas relações de trabalho e na
saúde de quem trabalha. Neste sentido, objetivamos analisar
de que modo a ofensiva neoliberal do Estado altera as relações
de trabalho. A metodologia adotada foi a revisão bibliográfica
como uma etapa fundamental para a delimitação do problema
por meio de um levantamento do que há de atual sobre o tema,
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 105

identificando pesquisas semelhantes ou complementares que


possam contribuir para o desenvolvimento do conhecimento.

2. Degradação do trabalho na Era


do capital financeiro

Como já apontado, o Estado desempenha um papel impor-


tante na reprodução ampliada do capital, na medida em que
ele é o espaço que reflete a luta de classes e a disputa entre as
diversas frações da classe dominante, pela apropriação do
fundo público. É o Estado quem decide como irá utilizar esse
fundo público e de que forma vai transferir esses rendimentos
para a sociedade. Em outras palavras, vai fornecer serviços
enquanto direito universal ou vai liberar subsídio para ban-
queiros? É isso que reflete a luta de classes no qual o fundo
público é parte dessa disputa.
Um outro fator que contribuiu para a centralidade do
capital financeiro foram os eurodólares que são recursos em
dólares cujos depósitos são efetuados em bancos fora do ter-
ritório dos Estados Unidos, geralmente em bancos europeus.
Não existem notas em eurodólares nem mesmo contrato de
crédito (Marques, 2018). Aliado a isso, a autora cita também
os petrodólares que são grande volume de capital, oriundo do
petróleo. Diante da dificuldade das multinacionais em con-
seguir absorver este grande volume de capital, a estratégia
adotada foi financiar, em forma de empréstimo, os processos
de industrialização tardia dos países da América Latina, oca-
sionando com isso o endividamento desses países.
No Brasil, esse movimento de Reforma do Estado, embora
presente desde a ditadura militar, ganha novos contornos
no início dos anos 1990, no governo de Fernando Collor de
Mello através das mudanças recomendadas pelo “Consenso
de Washington”. Segundo Soares (2003, p. 19):

As políticas de corte neoliberal - consagradas em 1990


pelo economista norte-americano John Williamson
no chamado ‘Consenso de Washington’ caracteri-
zam-se por ‘um conjunto, abrangente, de regras de
106 O Futuro do trabalho no século XXI

condicionalidades aplicadas de forma cada vez mais


padronizada aos diversos países e regiões do mundo,
para obter o apoio político e econômico dos governos
centrais e dos organismos internacionais.

Segundo a autora, as reformas de cunho neoliberal avan-


çam por praticamente todos os países e, além de preconizar
a desregulamentação dos mercados, a privatização do setor
público e a redução do Estado, redefiniram o campo político-
-institucional e as relações sociais. Ou seja, o Estado passou a
ser tratado como empresa e a prestação de serviços públicos
passou a ser orientada pela relação de consumo.
Ainda nos anos 1990, no governo de Fernando Henrique
Cardoso (FHC), as reformas neoliberais ganharam ainda mais
fôlego e, em 1995, com o Ministro Bresser Pereira no então
Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado
(MARE) foi implementado o Plano Diretor da Reforma do Estado.
Neste plano, as atividades estatais foram divididas em dois
segmentos: atividades exclusivas do Estado e atividades não
exclusivas do Estado, abrindo “brechas” para a terceirização,
não somente no Serviço Público Federal, mas na esfera esta-
dual e municipal, tendo em vista que estados e municípios
também deveriam seguir esse novo modelo de gestão (PAULA,
2005). É dentro desta lógica da Reforma do Estado no governo
Fernando Henrique Cardoso que a terceirização e a privati-
zação passam a ocupar um lugar central (DRUCK et al, 2018).
As atividades exclusivas do Estado são formadas pelo Núcleo
estratégico do Estado, composto pela Presidência da República
e pelos ministérios; Agências executivas (fundações públicas
e autarquias) e pelas Agências reguladoras.
Já as atividades não exclusivas do Estado englobam as ati-
vidades consideradas de caráter competitivo e as atividades
de apoio. As atividades consideradas de caráter competitivo
estão no âmbito das políticas de saúde, educação, assistência
social, incluindo também os centros de pesquisa. Estas ativi-
dades seriam oferecidas tanto pela iniciativa privada quanto
pelas organizações sociais. E as atividades consideradas de
apoio são aquelas necessárias ao funcionamento do aparelho
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 107

do Estado tais como: vigilância, limpeza, manutenção, dentre


outras, que passaram a ser submetidas às regras da licitação
e contratadas por terceiros.
Para justificar a contrarreforma do Estado houve todo
um arcabouço teórico com o envolvimento de intelectuais
e de organismo internacionais (como o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial); afinal, era preciso também
que a população apoiasse esse projeto para que assim o governo
pudesse garantir seus interesses.
Para Bresser (1998), a Reforma do Estado busca reduzir o
Estado para que ele se volte para atividades que lhes são espe-
cíficas, com mais governabilidade e governança. Para isso, ele
defende um Estado Social-Liberal que se contrapõe ao Estado
Social-Burocrático. Segundo o autor, este Estado “tornou-se
ineficiente e incapaz de atender com qualidade as demandas
dos cidadãos-clientes[...], tornando necessária sua substituição
por uma administração pública gerencial” (Bresser, 1998, p. 55).
Ou seja, Bresser (1998) faz a crítica ao Estado Social-Burocrático
para defender a importância do mercado na gestão da coisa
pública sob o argumento de que o Estado iria se tornar mais
eficiente e competitivo. Logo, o Estado Social-Liberal privi-
legia a execução dos serviços sociais e científicos através de
organizações públicas não estatais sociais que tornará o mer-
cado de trabalho mais flexível. Note-se uma contradição, já
que Bresser (1998, p. 55) nos coloca que o Estado Social-Liberal
“[...] continuará a proteger os direitos sociais [..]”. No entanto,
trabalho mais “flexível” significa trabalho desprotegido sendo
que a proteção ao trabalho é um dos direitos sociais funda-
mentais como bem colocado no Art. 6º da Constituição Federal
de 1988 (BRASIL, 1998).
Nestes termos, para se chegar ao Estado Social-Liberal, nas
palavras de Bresser (1998), são necessários quatro componen-
tes básicos da Reforma do Estado. O primeiro é a redução do
tamanho do Estado, principalmente em termos de pessoal, por
meio de privatização, terceirização e ‘publicização’. A publi-
cização como um meio de transferir a execução e a respon-
sabilidade dos serviços sociais e científicos do Estado para o
108 O Futuro do trabalho no século XXI

setor não-estatal. Em outras palavras, publicizar significa


privatizar os serviços sociais.
O segundo componente é a limitação da interferência do
Estado, aumentando os mecanismos de controle através do
mercado e transformando o Estado em um promotor da com-
petição internacional do país em detrimento da economia
nacional. Já o terceiro se refere ao aumento da governança
do Estado por meio de ajuste fiscal e reforma administra-
tiva para alcançar a administração pública gerencial, bem
como a separação em atividades exclusivas do Estado e ati-
vidades não exclusivas do Estado. Cabe lembrar que tanto
o Brasil quanto os demais países da América Latina aden-
traram a década de 1990 após passarem por uma profunda
crise gerada nos anos 1980. E tal crise foi utilizada como
justificativa para implementar o ajuste fiscal, pois segundo
Bresser (1998, p. 51) “[...] quando há uma crise importante no
sistema, sua origem deverá ser encontrada ou no mercado,
ou no Estado. Seguindo essa linha argumentativa, o Estado,
ao entrar em crise na década de 1980, passa a ser o respon-
sável pela redução das taxas de crescimento, pelo aumento
da inflação e do desemprego.
A reestruturação do papel do Estado através da tão pro-
clamada “reforma” orientada para o mercado com enxuga-
mento do Estado e como saída para a crise econômica e social,
trouxe rebatimentos nas políticas sociais (BEHRING, 2003).
E para legitimar essa contrarreforma do Estado era impres-
cindível a adesão a esse Projeto. Para isso,

A sociedade, em grande parte, ideologicamente con-


vencida da necessidade de privatizar os setores con-
siderados dispendiosos e pouco eficientes controlados
pelo Estado, reforçava a necessidade de mercantilizar
todos esses setores (saúde, educação, segurança, etc.).
Idealisticamente, acreditavam que a retirada do estado
dos setores sociais iria favorecer um melhor desempe-
nho desses na sociedade (Farias Júnior, 2014, p. 59)
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 109

Neste contexto, a Lei Orgânica de Assistência Social


(LOAS) é completamente ignorada e o discurso que prevalece
é o da Comunidade Solidária2. Ou seja, a assistência social é
ignorada como política pública de Estado e transformada
em ação benevolente, em comunidade de ajuda ao próximo,
com forte participação das organizações da sociedade civil.
Na saúde, a estratégia adotada é diminuir investimento
público no SUS para privilegiar o sistema privado e assim,
fomentar o discurso de que o SUS é ineficaz e que não fun-
ciona. Temos aí a “receita” ideal para a proliferação dos
planos privados de saúde. A política de Educação, em especial
a educação superior, segue o mesmo “embalo” dentro dessa
nova construção da racionalidade do Estado, parafraseando
Dardot e Laval (2016). Assim,

A Educação Superior deverá ser reestruturada para


assumir a sua função de mercado, dentro do processo
de produção do conhecimento acadêmico e científico
e das mudanças necessárias para a alteração nas rela-
ções produtivas e de organização do trabalho exis-
tentes nas instituições públicas de ensino superior
(Tavares, 2011, p. 40).

E com a expansão das universidades privadas o “cida-


dão-cliente” terá mais “oportunidade” de escolha para con-
sumir cada vez mais cursos voltados para o mercado para se
tornar cada vez mais competitivo, atendendo aos atributos
que o mercado exige. Essa lógica é introjetada na esfera da
subjetividade no qual o sujeito é responsabilizado pelo seu
“sucesso” ou pelo seu “fracasso”.
Em 1998, a Emenda Constitucional nº 19 referente à
reforma administrativa viabilizou e legitimou a reforma
gerencial, seguindo as recomendações previstas no Plano

2
Comunidade Solidária foi um programa do g overno federal brasileiro
criado em 1995 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que as-
sinou o Decreto n.º 1.366, de 12 de janeiro de 1995. Foi encerrado em
dezembro de 2002, sendo substituído pelo Programa Fome Zero.
110 O Futuro do trabalho no século XXI

Diretor da Reforma do Estado. Após a Emenda da reforma


administrativa, a terceirização e as organizações sociais tor-
naram-se instrumentos para a contratação dos trabalhado-
res para as atividades não exclusivas do Estado, dando início
ao desmonte do arcabouço legal para o ingresso no serviço
público federal que vigora até os dias atuais.
Essa Emenda Constitucional propõe a reforma do Regime
Jurídico Único (RJU) dos servidores públicos federais, com
o objetivo de adequá-los às novas exigências da dinâmica
administrativa e veio instrumentalizar as mudanças e a
reforma do aparelho do Estado, sustentando a substituição
do ethos burocrático pelo gerencial. Assim, segundo Paula
(2005, p. 125) “a reforma gerencial brasileira foi um desdobra-
mento do ajuste estrutural da economia, que teve início com
a adesão do governo Collor às recomendações do Consenso
de Washington para a crise latino-americana”.
O imperativo é constituir um sujeito eficiente, que pro-
duza sempre mais, alimentando o ideário do indivíduo autos-
suficiente que consegue controlar suas emoções de modo
que não interfira na sua produtividade e na sua alta per-
formance. Essa nova concepção da ação pública leva a ver o
Estado como uma empresa, ou seja, “[...] ‘importar’ as regras
de funcionamento do mercado concorrencial para o setor
público, no sentido mais amplo, até que o exercício do poder
governamental fosse pensado de acordo com a racionalidade
da empresa” (Dardot; Laval, 2016, p. 274-275).
Nas palavras de Musso (2019, p. 28), existe: “[...] uma tran-
sição sistêmica entre enfraquecimento do Estado-nação e
o fortalecimento da corporação apoiada em sua racionali-
dade técnico-econômica e gerencial”. A governança do Estado
adota a governança da empresa por meio de estratégias de
controle e vigilância (Dardot; Laval, 2016). Dardot e Laval
(2016) problematizam, também, o termo “governança” que
se tornou uma palavra-chave da nova ordem neoliberal,
apontando para a sua polissemia já que a categoria política
“governança” tem papel central na difusão da concorrência
generalizada e pouco a pouco vai tomando o lugar da cate-
goria soberania difundida como antiquada e desvalorizada,
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 111

ou seja, não é o declínio do Estado-nação, mas uma mudança


no papel do Estado, que passa a ser visto como empresa a
serviço do mercado (Dardot; Laval, 2016).
Cabe lembrar que no período de 2003 a 2016, sob os gover-
nos Lula e Dilma, denominado por Alves et al (2018) como
o período de reorganização do capital e neodesenvolvimen-
tismo, houve um significativo avanço nos indicadores sociais
e, diante da pressão de movimentos sociais, o desmonte da
CLT que estava em curso desde a década de 1990, foi “freado”.
Por outro lado, e a despeito do aumento da força de trabalho
no mercado formal, a precarização das relações de trabalho
se manteve em função do avanço da terceirização.
Com as eleições de 2014 e com a derrota do candidato do
PSDB, Aécio Neves, o Brasil ficou dividido. Dilma Rousseff
vence as eleições, mas é impedida de permanecer até o final
do seu mandato. A conciliação de classes já não mais inte-
ressava ao grande capital financeiro. Era preciso um Estado
ainda mais mínimo e que legitimasse a retirada dos parcos
direitos conquistados pela classe trabalhadora. Temos aí o
enredo para o Impeachment que ganha mais força com a
parcialidade do juiz Sérgio Moro na Operação Lava-Jato3 .
Como observa Dowbor (2017), a política está mais pautada
nas emoções, temores e esperanças do que na racionalidade.
Neste sentido, em 2018, a vitória, nas urnas, de Bolsonaro
representou o prosseguimento, de forma acelerada, ao des-
monte das Políticas Públicas iniciada com Michel Temer. No
entanto, “uma governança que funcione não se constrói com
ódio” (Dowbor, 2017, p. 11).
Dentro da linha de enxugamento do Estado, na base
de sustentação de uma racionalidade empresarial, em
2018, o Decreto 9.262 extinguiu, ao todo, 60.923 cargos da

3
O termo “Lava Jato”, decorre do uso de uma rede de postos de com-
bustíveis e lava a jato de automóveis para movimentar recursos ilícitos
pertencentes a uma das organizações criminosas inicialmente investi-
gadas que teve seu início em 2014 e continua até os dias atuais. Embora
a investigação tenha avançado para outras organizações criminosas, o
nome inicial se consagrou.
112 O Futuro do trabalho no século XXI

Administração Pública Federal. O ato define que, os cargos


vagos serão imediatamente extintos e os cargos que vierem
a vagar não terão reposição. O que demonstra com esse
Decreto nada mais é do que uma consequência da Emenda
Constitucional n. 95 de 2016, que impôs o congelamento dos
gastos públicos por vinte anos e está associada a um processo
de desmantelamento, na base da precarização, terceirização,
estrangulamento dos serviços públicos, visto que sem repo-
sição de trabalhadores por meio de concursos públicos, sem
o compromisso com continuidade dos serviços prestados4.
A precarização é evidenciada na medida em que cessam ou
diminuem os concursos públicos, fazendo com que as vagas
geradas, seja por aposentadoria, morte, dentre outras, não
sejam preenchidas. Com isso, o trabalhador do serviço público,
para manter a continuidade e a qualidade dos serviços pres-
tados acaba tendo que assumir várias funções, resultando
em sobrecarga de trabalho (Silva, 2011). O Decreto 9.262 de
2018, tem como antecedentes os limites impostos pela Lei de
Responsabilidade Fiscal (n.º 101/2000), que determinou limi-
tações com gastos de pessoal nas esferas federal, estadual e
municipal e a Lei de Terceirização (Lei n.º 13.429/2017) que
permite a terceirização de atividade-fim.
Seligmann-Silva (2011) ressalta que dentro da lógica da
modernização, que atinge também o Serviço Público, muitos
gestores desconsideram as condições de trabalho e até mesmo
a falta de recursos, tais como material de escritório e até
mesmo de limpeza. Isso faz com que muitos servidores, para
garantir a continuidade do serviço prestado, reponha esses
produtos. Isso porque o servidor público é um mediador entre
o Estado e os usuários das políticas na medida que é ele quem
materializa as políticas sociais no cotidiano dos usuários.
Nas palavras de Dowbor, ainda dentro desta linha de enxu-
gamento do Estado, as medidas “[...] travaram os investimentos
do governo em políticas sociais (PEC 554), ao mesmo tempo

4
A Proposta de Emenda Constitucional - PEC 55, que tramitou na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal, foi aprovada em dezembro de 2016 e faz parte da
Constituição Federal como Emenda Constitucional 95.
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 113

em que liberam para gastos com juros” (p. 160). Ou seja, o capi-
tal financeiro redimensiona o papel do Estado e das políticas
sociais, privilegiando o capital improdutivo e uma cultura de
rentabilidade financeira em detrimento do capital que produz
e que tenha utilidade para a sociedade em geral e não apenas
para os banqueiros (Dowbor, 2017, p. 161). Ainda, segundo o
mesmo autor, “as amplas manifestações do movimento Occupy
Wall-Street, duramente reprimidas, não eram contra o governo,
mas contra quem dele se apropriou: os bancos” (Idem).
Com a aprovação da Emenda Constitucional 95, de 2016,
juntamente com a Reforma Trabalhista (Lei n.º 13.467, de 13 de
julho de 2017 que altera a CLT), que legalizou o trabalho pre-
carizado, e a Reforma da Previdência (Emenda Constitucional
n.º 103, de 12 de novembro de 2019), abre-se caminho para uma
total privatização das Políticas Públicas.
Cabe ressaltar que tais reformas já vem acontecendo desde
os anos 1990. A diferença é que depois do golpe5 o desmonte das
Políticas Públicas ocorre de forma mais acentuada. Tal golpe
foi orquestrado pela grande mídia que forjou o discurso da
classe dominante, representante do capital financeiro, como
um discurso hegemônico que foi invadindo mentes e corações.
A Reforma da Previdência, a Medida Provisória da
Liberdade Econômica (MP 881) e a MP do Contrato Verde e
Amarelo (MP 905) demonstram a busca pela corrosão dos
direitos conquistados pelos trabalhadores e pelas trabalha-
doras. O que nos leva à seguinte constatação: Bolsonaro, eleito
como representante de uma elite nacional conservadora e
atrasada, tem como meta a destituição dos direitos dos traba-
lhadores, instalando uma situação de barbárie social.
Com o avanço da pandemia6 sob o governo Bolsonaro e
do seu ministro da Economia (e banqueiro) Paulo Guedes

5
O golpe de 2016 que destituiu a primeira mulher Presidente do Brasil,
Dilma Rousseff, começou a ser gestado com as Manifestações de junho
de 2013’. Pode ter sido pseudolegal, constitucional, institucional..., mas
foi um Golpe de Estado como sinalizou Michael Löwy.
6
Coronavírus-2019 denominada (COVID-19) é uma enfermidade res-
piratória causada pelo vírus SARS-CoV-2 - a Organização Mundial da
114 O Futuro do trabalho no século XXI

aprofunda-se o desmonte do Estado e dos mecanismos de


regulação pública, de forma a criar as condições para a pri-
vatização de empresas públicas. É o interesse público sendo
substituído pelo interesse privado e transformando os bens
públicos em mercadorias (Bava, 2020).
Corroborando com Bava (2020), Druck (2020) também
sinaliza a importância do Estado no enfrentamento à pan-
demia, destacando os(as) servidores(as) públicos como tra-
balhadores indispensáveis para o enfrentamento da crise.
Além disso, Druck (2020) enfatiza que caso seja aprovada a
Reforma Administrativa (Proposta de Emenda à Constituição
– PEC 32) de 2020 iremos retroceder ao coronelismo ao subs-
tituir concursados por indicação de coronéis ou apadrinha-
dos de políticos. Para o Auditor Fiscal do Trabalho e vice-pre-
sidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF), Dão Real, a Reforma
Administrativa é contra a sociedade, mais do que contra os
servidores na medida em que altera a relação entre Estado
e Sociedade. Ou seja,

A Reforma Administrativa constrói uma estrutura


pautada na ideia de Estado mínimo, Estado que atua
de forma residual. Isso fica claríssimo na alteração
proposta no artigo 37 da Constituição, onde lá nos
princípios constitucionais da Administração Pública
é incluído o princípio da subsidiariedade. Esse prin-
cípio significa que o Estado deixa de atuar de forma
prioritária como provedor de bem-estar, e passa a
atuar de forma residual, ou seja, o papel do serviço
público passa a ser residual ao mercado, em relação
ao mercado (Real, 2020).

Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença


causada pelo novo coronavírus constitui uma emergência de saúde
pública de importância internacional – o mais alto nível de alerta da
Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como
uma pandemia.
Degradação do Trabalho e o Desmonte do Estado 115

Deste modo, a Reforma Administrativa de 2020 (Proposta


de Emenda à Constituição – PEC 32), juntamente com a Lei
da Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização, aprovadas
em 2017, e da Reforma da Previdência de 2019, chamadas de
“reformas estruturais” fazem parte da agenda ultraneoliberal
defendida pelo governo e pela “elite do atraso”, que conta com
apoio da maioria do Congresso e da Câmara dos Deputados.

3. Considerações finais

Este estudo teve como objeto de análise as transformações


societárias nas últimas décadas, e ainda em curso, ressal-
tando a prevalência do capital financeiro e suas implicações
nas relações de trabalho.
É dentro dessa lógica do capital onde tudo vira merca-
doria, inclusive a vida, que o/a trabalhador(a), enquanto
sujeito, e tendo apenas a sua força de trabalho para vender
e manter a sua sobrevivência, é que acaba se submetendo a
um trabalho cada vez mais precarizado e intensificado. No
capitalismo, a mercantilização7 é singular ao capital para a
reprodução material da vida e do próprio capital e é por isso,
que essa característica tende a se universalizar. No entanto,
Gouvêa (2020) nos chama atenção de que a mercantilização
é o mais essencial para a vida na sociedade capitalista e o
mais essencial tende a se universalizar, mas nem tudo que
percebemos como universal é também o mais essencial à
existência (Gouvêa, 2020).
Assim, a partir das análises teóricas contidas neste estudo
foi possível identificar que a mundialização do capital, por
meio da precarização e intensificação do trabalho, ocasionou
um retrocesso para a classe-que-vive-do-trabalho.

7
A mercantilização não existiu desde sempre. Ela é um ato histórico e repre-
senta uma determinada relação entre forças produtivas e relações sociais de
produção (Gouvêa, 2020).
116 O Futuro do trabalho no século XXI

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do Pará, Pará, 2014.
A denúncia ao presidente Bolsonaro pelo
descaso diante da pandemia por meio
da charge de Carlos Latuff na imprensa
popular alternativa

7 ROZINALDO ANTONIO MIANI 1

1. Introdução

M
uito provavelmente, nem o mais pessimista dos
seres humanos poderia imaginar que, em pleno
século XXI, a humanidade passaria por uma situ-
ação como essa, que obrigasse as pessoas ao isolamento e ao
confinamento social por tanto tempo em razão do apareci-
mento de um novo vírus. Esse seria, com certeza, um bom
roteiro para um filme de ficção. No entanto, trata-se de uma
realidade muito concreta; vivenciamos uma pandemia que
afetou toda a sociedade mundial por pelo menos dois anos
(2020 e 2021) e que produziu - e ainda produz - drásticas
consequências para a humanidade.
Da mesma forma, é provável que nem mesmo o mais faná-
tico e convicto defensor de ideais conservadores e de práticas
autoritárias pudesse acreditar que, pouco mais de 30 anos
depois de encerrar um ciclo perverso de regime militar e dita-
torial, o Brasil elegeria um presidente que saiu das fileiras
militares, que homenageia torturadores publicamente e que,
por seus discursos e seus atos, manifesta simpatia por valores

1
Graduado em Jornalismo e História. Doutor em História. Pós-doutor
pela ECA/USP. Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
E-mail: rmiani@uel.br
120 O Futuro do trabalho no século XXI

próprios de um regime fascista. Isso, de certo, caberia no


imaginário de apenas uma pequena parcela da sociedade
brasileira. Entretanto, também se trata da mais pura reali-
dade; depois de um golpe de Estado (Fontes, 2016; Löwy, 2016;
Souza, 2016) impulsionado por representantes do Legislativo
e do Judiciário (Boff, 2016; Pereira, 2017) e com o apoio deci-
sivo da mídia burguesa, combinado com a ascensão de um
sentimento antipetista (Silva; Lentz, 2018; Oliveira Filho;
Feitosa; Silva, 2019), o Brasil viveu uma guinada política à
direita que, com alguma surpresa, conduziu Jair Bolsonaro
à Presidência da República, vitorioso nas eleições presiden-
ciais de 2018.
No decurso da história, esses dois fenômenos se encon-
traram e o resultado se mostrou catastrófico. Por um lado,
a pandemia revelou traços ainda mais nefastos de um capi-
talismo devastador que tortura a natureza para obter a
maximização dos lucros para uma burguesia gananciosa e
“homicida”; diante disso, não se pode pensar ingenuamente
que o surgimento e desenvolvimento de um novo vírus seja,
tão somente, decorrência de mera fatalidade. A esse respeito,
David Harvey (2016) apresenta a seguinte reflexão:

O capital modifica as condições ambientais de sua pró-


pria reprodução, mas o faz num contexto de consequên-
cias não intencionais (como as mudanças climáticas) e
contra as forças evolutivas autônomas e independentes
que estão perpetuamente remodelando as condições
ambientais. Deste ponto de vista, não existe um ver-
dadeiro desastre natural. Os vírus mudam o tempo
todo. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação se
torna uma ameaça à vida dependem das ações huma-
nas. (Harvey, 2016, p.15).

Por outro lado, a combinação entre o modo discutível de


lidar com os desafios decorrentes da pandemia e a manifes-
tação de um pensamento retrógrado sobre como enfrentar as
consequências da referida situação por parte do presidente
Bolsonaro só poderia resultar em um “show de horrores” que,
A denúncia por meio da charge ALTernativa 121

por sua vez, não poderia deixar de ser denunciado por parte
da imprensa brasileira e até mesmo pela imprensa interna-
cional (Pereira, 2020; Senra, 2020).
No contexto de produção e disseminação de informações
e análises sobre os desdobramentos da situação da pandemia
no Brasil, a imprensa popular alternativa apresentou uma
perspectiva crítica e contestatória em relação aos posiciona-
mentos e declarações do presidente Bolsonaro e de sua equipe
de governo. De modo combinado com a produção textual ou
ocupando espaços editoriais autônomos, a charge foi uma das
principais estratégias comunicativas utilizadas pela referida
imprensa para promover a denúncia contra os descasos e os
despropósitos cometidos - principalmente, pelo próprio pre-
sidente -, diante da calamidade sanitária e do flagelo social
que acometeram a população brasileira, em especial, em seus
momentos mais agudos.
Nesse sentido, apresentamos como objetivo para este
artigo realizar a análise de algumas charges produzidas por
Carlos Latuff retratando temáticas derivadas de posições ou
declarações polêmicas assumidas pelo presidente Bolsonaro
em relação aos primeiros tempos da pandemia, publicadas
por sites noticiosos pertencentes ao universo da imprensa
popular alternativa. As análises seguirão os procedimentos
metodológicos da análise do discurso chárgico que implica
considerar e desvelar as circunstâncias da conjuntura socio-
política correspondente à historicidade da charge, bem como
identificar as formações discursivas e ideológicas materiali-
zadas por meio das estratégias verbais e visuais - permeadas
de intertextualidade - presentes na referida produção icono-
gráfica (Miani, 2012).
Para cumprir o objetivo aqui proposto, iniciaremos com
uma breve reflexão sobre a conjuntura econômica e sociopo-
lítica brasileira - no contexto da crise sistêmica do capitalismo
- na qual se desenvolveu a pandemia, bem como sobre seus
impactos na respectiva realidade; em seguida, apresentaremos
alguns apontamentos acerca da caracterização da imprensa
popular alternativa e da respectiva cobertura jornalística das
ações do governo Bolsonaro no contexto da pandemia. Por fim,
122 O Futuro do trabalho no século XXI

serão apresentadas e analisadas algumas charges produzidas


pelo chargista Carlos Latuff durante o ano de 2020 e publica-
das nos sites noticiosos Brasil 247 e Brasil de Fato.

2. A pandemia como decorrência e expressão


de uma crise sistêmica do capitalismo

No contexto de uma crise sistêmica do capitalismo, a socie-


dade brasileira vive uma de suas piores crises desde os primei-
ros tempos de sua constituição como nação. Isso porque ela
se configura como crise econômica, social, política, ambiental,
de saúde, enfim, trata-se de um colapso generalizado, resul-
tante da lógica perversa e destrutiva que é própria do sistema
capitalista e que tem nos conduzido à barbárie.
Tomamos como ponto de partida que a crise sistêmica do
capitalismo não se configura como uma “crise atual”, pois
como afirmou István Mészáros (2006, p.15) trata-se de uma
“crise estrutural global do capital” que teria começado há mais
de meio século e que se consolidou com a evolução dos eventos
e acontecimentos do final da década de 1960 e início da década
de 1970 - por exemplo, o bloqueio à China, a crise do dólar, as
revoltas de maio de 1968 na França e seus desdobramentos, a
crise do petróleo, dentre outros episódios. Desde então, essa
crise tem se intensificado e revelado cada vez mais sua face
perversa e desumana (Mészáros, 2009).
Em tempos mais atuais, como intensificação da crise eco-
nômica de âmbito nacional e internacional, ainda estamos
sofrendo os impactos da crise internacional iniciada em 2007 -
com a explosão da bolha habitacional dos Estados Unidos - que
levou inúmeras economias nacionais à bancarrota e, ainda que
tardiamente, chegou com força no Brasil.
Apesar de reconhecermos que o capital está imerso numa
crise sistêmica, não significa que o capitalismo não esteja
oferecendo lucros, benefícios ou vantagens para as diversas
frações da burguesia nacional e internacional. Nesse sentido,
trata-se de uma crise desigual em que as classes trabalhadoras
são exploradas e espoliadas à exaustão enquanto as burgue-
sias seguem regozijando-se dos privilégios que o sistema lhes
A denúncia por meio da charge ALTernativa 123

oferece, como no caso do Brasil onde os banqueiros estão


lucrando como nunca (Konchinski, 2022), os empresários
das grandes corporações estão extorquindo do Estado para
manterem seus níveis de lucratividade (Souza, 2020) e os
latifundiários estão se beneficiando das políticas de governo
em favor do agronegócio e favorecendo ainda mais a concen-
tração de terras (Elias, 2021).
Ou seja, vivemos uma realidade de ampliação dos níveis
de pobreza e de miséria, bem como de desemprego crônico
atingindo a grande massa de trabalhadores brasileiros, con-
trastando com a acumulação desenfreada dos poucos bilio-
nários que vão aumentando suas riquezas e aprofundando as
desigualdades. É a glória para a burguesia nacional e inter-
nacional e a barbárie para as classes trabalhadoras!
Como crise social, o Brasil continua sendo uma das socie-
dades mais desiguais do mundo; além disso, voltou a conviver
com uma retomada vertiginosa da concentração de rendas e
com a ampliação das desigualdades. Desde o governo Temer
(2016-2018), inúmeros direitos sociais foram eliminados e
as políticas sociais do Estado foram minadas - lembremo-
-nos da PEC 241, conhecida como a “PEC do fim do mundo”
(Alves, 2016; Miguel, 2016). Com isso, milhões de brasileiros
retornaram à situação de pobreza ou de extrema pobreza
e o problema da fome voltou com força; nesse contexto, os
indicadores sociais só pioraram e revelam a face cruel de
uma crise social sem precedentes (Folha de S. Paulo, 2021).
Do ponto de vista político, desde o fim da ditadura civil-
-militar (1964-1985), o Brasil vinha trilhando um caminho
de retomada e fortalecimento da democracia e da cidada-
nia. Porém, quando a crise econômica internacional emer-
giu com força em 2007 e atingiu de maneira mais efetiva a
sociedade brasileira durante o primeiro mandato do governo
Dilma Rousseff (2011-2014), a então presidenta não conseguiu
enfrentar a crise econômica em benefício dos interesses dos
grupos capitalistas.
Como desdobramento das contradições do governo Dilma,
a burguesia rompeu o pacto da conciliação de classes e pro-
moveu um golpe de Estado; com o golpe de 2016, a crise
124 O Futuro do trabalho no século XXI

também adquiriu caráter político. A ruptura institucional


impulsionada pelo golpe colocou em xeque a forma clássica
de organização do Estado burguês, por meio da divisão de
poderes. Essa organização se revelou definitivamente com-
prometida - para não dizer falida - até porque o Judiciário e o
Legislativo foram partícipes do golpe e, no Executivo, passou
a funcionar um governo ilegítimo; tudo isso fez esfacelar
a credibilidade nas instituições produzindo uma crise de
legitimidade do Estado (Feitosa, 2015).
Para além do âmbito econômico, social e político, a crise
também é de ordem ambiental. Há tempos temos acompa-
nhado uma expropriação desenfreada dos bens da natureza
por parte da burguesia para torná-los mercadoria. Os capi-
talistas vêm se apropriando de forma privada de terras, flo-
restas, água, biodiversidade, minérios, petróleo, cometendo
crimes ambientais e destruindo tudo o que encontram pela
frente que se apresente como obstáculo - o extermínio dos
povos indígenas e as queimadas incontroláveis nas regiões
de mata brasileira são apenas algumas das consequências
das ações violentas e predatórias cometidas pelos capitalistas
contra a natureza.
No que se refere à pandemia, a crise ambiental foi bastante
determinante. Casemiro dos Reis Júnior (2020) nos oferece
uma excelente reflexão contextualizando o surgimento de
pandemias como “efeito colateral” da devastação ambiental
produzida pela lógica capitalista. Afirma o referido autor:

A extensão das devastações ambientais que o capita-


lismo vem causando ao planeta [...] destrói várias cadeias
alimentares e faz recair sobre a humanidade muitas
doenças infecto contagiosas como a Covid-19. [...] As con-
sequências, para os donos do capital, são meros efeitos
colaterais. A devastação ambiental, que leva a destruição
de cadeias alimentares, limitando a biodiversidade do
planeta, que geram as pandemias capitalistas e colocam
a sobrevivência da humanidade ou a perpetuação da
espécie para os mais ortodoxos em risco, são apenas
efeitos colaterais. (Reis Júnior, 2020, p.164-165).
A denúncia por meio da charge ALTernativa 125

Por fim, apesar de não podermos considerar a crise da


saúde como uma “crise autônoma” - afinal, a questão da saúde
está inserida na dinâmica econômica e social de uma determi-
nada sociedade -, no contexto de uma pandemia essa questão
ganha contornos bastante específicos e justifica analisá-la de
modo independente.
A precarização da saúde no Brasil (realidade extensiva à
maioria dos países do mundo) é marcada pela diminuição
dos investimentos estatais no financiamento do seu sistema
público de saúde (SUS) - decorrente das políticas de austeri-
dade dos governos e da redução nos orçamentos municipais,
estaduais e federal destinados à referida área social - e pela
maximização dos lucros da rede privada de saúde - estimulada
pelas privatizações no setor - que relegam a um segundo plano
a vida e o bem-estar das pessoas.
Nesse contexto, a pandemia se tornou uma realidade ainda
mais grave e perversa. No final do ano de 2020, o Brasil já
contabilizava aproximadamente 195 mil mortes por covid-19.
Considerando que o ano de 2021 foi o mais letal da doença, no
final do referido ano, mais de 22 milhões de pessoas haviam
sido contaminadas pelo novo coronavírus e suas variantes e o
país registrava quase 620 mil mortes desde o início da pande-
mia. As estatísticas mais atuais (outubro de 2022) indicavam
mais de 34,7 milhões de casos confirmados e mais de 687 mil
mortes; isso tudo sem contar que os números, certamente,
não expressam a realidade absoluta, pois a testagem sempre
foi muito limitada e o fenômeno da subnotificação marcou de
modo permanente todo o período da pandemia.
Para além de todas as controvérsias que marcam o governo
Bolsonaro, a insensatez assumida pelo presidente e pelos
representantes do seu governo diante da pandemia agravou
ainda mais a crise da saúde na realidade brasileira. Apenas a
título de exemplificação, Reis Júnior (2020) explicita um desses
agravantes envolvendo os profissionais de saúde durante os
períodos mais tensos e conturbados da pandemia:

A falta de responsabilidade e planejamento do governo


federal já atinge de maneira muito grave os próprios
126 O Futuro do trabalho no século XXI

profissionais de saúde. Sem nenhum treinamento pré-


vio, e também sem poder contar com a quantidade e
a qualidade necessária de Equipamentos de Proteção
Individuais (EPIS) esses profissionais, que estão na
linha de frente do enfrentamento da pandemia, se tor-
nam vítimas fáceis do vírus e desfalcam mais ainda as
já incompletas equipes de saúde envolvidas, gerando
assim um agravamento da desassistência (Reis Júnior,
2020, p.169).

Enfim, a pandemia é uma explicitação das contradições


da ordem capitalista; mais do que isso, é uma expressão da
crise sistêmica do capitalismo e pode ser reconhecida como
uma “pandemia de classe” (Harvey, 2020, p.21). Ao contrário
de ser considerada a responsável por uma crise, ela é decor-
rência da própria crise civilizatória. A esse respeito, afirma
João Claudino Tavares (2020, p.258):

Entretanto, a pandemia mundial do novo coronavírus


não pode ser considerada como a causadora da crise
atual do capital. Ela agrava a crise ainda mais. Não
parece restar dúvida. A crise de superprodução e de
acumulação de capital é muito mais profunda. Ela não
é só produto do movimento cíclico do capital. [...] Ela
escancara o esgotamento da fábula da globalização
neoliberal.

3. A imprensa popular alternativa e a


cobertura sobre a pandemia

Desde o anúncio da descoberta do novo coronavírus; da


confirmação dos primeiros casos de contaminação e morte por
covid-19 - doença causada pelo novo coronavírus - na cidade
de Wuhan, localizada na província de Hubei na China; da dis-
seminação do vírus pelo território chinês, para a Europa e para
o resto do mundo; da declaração da Organização Mundial de
Saúde (OMS) que, em 11 de março de 2020, elevou o estado da
A denúncia por meio da charge ALTernativa 127

contaminação de covid-19 à condição de pandemia; do avanço


desenfreado de contaminações e mortes pela doença em todas
as partes do mundo; do estabelecimento de rigorosas medi-
das sanitárias para conter o avanço da doença; até o desen-
volvimento de vacinas e a implementação de campanhas de
vacinação para combater o vírus ou minimizar os efeitos da
doença, a imprensa brasileira colocou o tema da pandemia no
topo das pautas de suas respectivas coberturas jornalísticas.
Gradualmente, a gravidade da situação colocou em alerta
todos os países do mundo que foram encontrando suas estra-
tégias para controlar o avanço do vírus e para disseminar as
informações necessárias a respeito do conhecimento sobre a
doença, da prevenção para evitar a contaminação e das con-
sequências que a pandemia, inevitavelmente, iria produzir
em cada uma das realidades nacionais.
De modo geral, a totalidade da imprensa brasileira,
seguindo a sua respectiva periodicidade, abordou o tema da
pandemia. Inclusive, quando o assunto era “pandemia”, os
chamados “veículos de comunicação tradicionais” (televisão,
rádio e meios impressos) passaram a receber atenção especial
da audiência (Barbosa Filho, 2020), apesar da abundância de
notícias e mensagens sobre o tema que chegavam pelas redes
sociais ou que circulavam ininterruptamente pela internet.
Em um estudo sobre a cobertura televisiva da pandemia
provocada pelo novo coronavírus, André Barbosa Filho (2020,
p.50) constatou que “os veículos tradicionais, que mantém
grupos jornalísticos profissionais, retomaram a preferência
das audiências, em todo o mundo, que lhes conferiram credi-
bilidade e confiança”. Apesar disso, o referido autor apresenta
a seguinte ponderação:

Porém, a realidade dos conteúdos transmitidos, mostra


que, apesar das emissoras de TV estarem fazendo um
cobertura completa sobre os dados e sobre os cuidados
que o público deve ter com o Coronavírus, a questão
de fundo, o atual sistema político econômico que tem
causado todo este desastre social, não é devidamente
exposto e assim, podemos enxergar os reais motivos
128 O Futuro do trabalho no século XXI

que orientam os editores na cobertura das matérias


sociais, e que podem equivocadamente serem perce-
bidos como coincidentes com o pensamento de um jor-
nalismo progressista e libertador. Mas nem tudo que
reluz e ouro! (Barbosa Filho, 2020, p.52).

Além de a cobertura jornalística realizada pelos “veículos


de comunicação tradicionais” (que preferimos qualificá-los
como “mídia burguesa”) não explicitar as engrenagens e meca-
nismos políticos e econômicos que determinaram em algum
grau o “desastre social” provocado pela pandemia no Brasil
como expressão da crise sistêmica do capitalismo, ainda é
possível inferir que, por hesitação ou mesmo por negligência,
não pautaram devidamente, ou amenizaram, a responsabi-
lização do governo Bolsonaro e, especialmente, do próprio
presidente, por tensionamentos sociais produzidos por suas
decisões políticas ou declarações controversas a respeito do
tema. Até mesmo as polêmicas envolvendo a questão das vaci-
nas (estímulo ao uso da cloroquina e do “kit covid”, atraso
na compra de vacinas, tentativa de compra superfaturada da
vacina indiana Covaxin) não receberam o tratamento crítico
que deveriam ter recebido, considerando a gravidade dos atos
praticados pelo presidente e das consequências que cada uma
dessas questões produziu na realidade da pandemia e na rea-
lidade social de modo geral.
Nesse sentido, consideramos que a imprensa popular alter-
nativa apresenta uma perspectiva mais crítica e comprome-
tida no sentido de compreender a complexidade da situação da
pandemia - pela ótica das classes trabalhadoras, efetivamente,
os setores da população mais afetados e vitimados pelas con-
sequências produzidas pela situação - e da atuação do governo
Bolsonaro nessa conjuntura, oferecendo mais do que dados e
interpretações “burocráticas” sobre a realidade. Por imprensa
popular alternativa compreendemos se tratar da

[...] expressão mais representativa de uma comunicação


notadamente político-ideológica, vinculada aos inte-
resses das classes subalternas, no contexto da luta de
A denúncia por meio da charge ALTernativa 129

classes, numa perspectiva emancipatória, produzida


e/ou impulsionada pelas mais diversas organizações
sócio-políticas engajadas na luta anticapitalista (Miani,
2010, p.299/300).

Sempre considerando os referidos pressupostos políti-


co-ideológicos, a imprensa popular alternativa se realiza na
multiplicidade dos ambientes midiáticos, vinculada ou não a
organizações políticas de natureza contra-hegemônica. Para
a especificidade desde artigo decidimos por analisar a cober-
tura sobre questões e declarações relacionadas ao início da
pandemia e ao longo de seu primeiro ano de ocorrência (2020),
realizada por dois sites noticiosos que contavam com a cola-
boração regular do chargista Carlos Latuff, quais sejam, Brasil
247 e Brasil de Fato.

4. A charge e a retratação da
denúncia contra Bolsonaro

A imprensa popular alternativa foi particularmente con-


tundente na crítica às atitudes e aos discursos do presidente
Bolsonaro em relação à pandemia. A utilização da charge, por
sua natureza lúdica e humorística, se mostrou uma impor-
tante estratégia para oferecer aos leitores uma análise crítica
da realidade brasileira impactada pela pandemia e, princi-
palmente, para apresentar a necessária denúncia contra o
presidente Bolsonaro por seu descaso - e porque não conside-
rar também como irresponsabilidade - ante a grave situação
sanitária que afetava o país.
As charges são uma modalidade do humor gráfico de natu-
reza dissertativa (Miani, 2005) e se constituem como uma
espécie de “editorial gráfico” (Maringoni, 1996). Enquanto
produto comunicativo, as charges são marcadas por sua efe-
meridade, por sua natureza intertextual e por seu potencial
persuasivo. A esse respeito, Rozinaldo Miani afirma:

[...] a charge pretende não somente dissertar sobre


um determinado assunto, mas levar o seu receptor ao
130 O Futuro do trabalho no século XXI

convencimento, objetivando inclusive uma mudança


de consciência e de atitude. A charge se converte, por
influência da instituição que a produz e dissemina,
num verdadeiro discurso de convencimento. (Miani,
2005, p.33).

Quanto às formas de sua presença em um contexto comu-


nicativo, a charge pode aparecer, fundamentalmente, de duas
maneiras: acompanhando um determinado texto verbal ou
com autonomia temática. Segundo Miani (2014), quando as
charges aparecem ocupando espaços autônomos, elas são
denominadas de “charges editoriais”. Sobre suas demais carac-
terísticas, o referido autor afirma:

As charges editoriais aparecem em diversos contex-


tos comunicativos, ora explorando o tema de maior
importância, visibilidade ou polêmica explorado pelo
veículo de comunicação, ora como uma tentativa de
sistematização de uma determinada conjuntura econô-
mica ou sócio-política. [...] Mesmo sabendo que a charge
editorial ocupa um espaço independente, sem acom-
panhamento de texto verbal, compondo ela própria a
informação, não podemos considerá-la absolutamente
autônoma no que se refere à apropriação de seus senti-
dos; este se constitui numa relação de intertextualidade
com os mais diversos textos provenientes do contexto
interno ou externo à edição em que é publicada. (Miani,
2014, p.140-141).

Por sua vez, a produção chárgica de Carlos Latuff é par-


ticularmente significativa quando se trata de colocar essa
estratégia comunicativa em favor das lutas sociais contra-
-hegemônicas. O referido chargista tem produzido, predomi-
nantemente, para os movimentos sociais (sindical ou popular)
ou para sites noticiosos (nacionais ou internacionais) que se
identifiquem com o campo político da esquerda. Suas charges
abordam temáticas referentes à conjuntura política nacional e
internacional, com destaque para a defesa da causa palestina,
A denúncia por meio da charge ALTernativa 131

contra as violências policiais e em apoio às lutas em defesa


dos interesses e dos direitos das classes trabalhadoras. No
contexto da imprensa popular alternativa, materializada por
meio de sites noticiosos, Latuff tem produzido regularmente,
dentre outros, para o Brasil 247 e o Brasil de Fato.
No caso do Brasil 247 - que se autointitula “um dos maiores
sites de notícias do Brasil”, produzindo “jornalismo indepen-
dente, progressista e para todos, 24 horas por dia, 7 dias por
semana” 1 - Carlos Latuff é integrante da equipe editorial do
site, produzindo uma charge editorial semanalmente. Por sua
vez, no Brasil de Fato - um site de notícias que também possui
uma radioagência e vários periódicos impressos regionais,
configurando uma rede de comunicação popular sob o lema
“uma visão popular do Brasil e do mundo” 2 -, Latuff também
publica uma charge editorial por semana. Vale ressaltar que,
posteriormente, Latuff republica todas as suas charges em sua
página no Facebook 3.
Partindo para as análises, selecionamos algumas charges
de Latuff que exploraram, particularmente, as declarações de
Bolsonaro sobre considerar a pandemia, no seu início, como
uma “gripezinha”, um “resfriadinho” e que, ainda, teria pro-
duzido uma “histeria” desnecessária. O outro tema presente
nas charges, e que será aqui analisado por meio do discurso
chárgico, é referente ao número de mortes ocorridas em decor-
rência da covid-19, também restringido ao primeiro ano de
ocorrência da pandemia.
Ainda no início da pandemia, uma das primeiras ações/
reações de Jair Bolsonaro foi tentar minimizar a seriedade
da situação e a gravidade da doença. Por seu perfil político
autoritário, indiferente à situação dos grupos sociais mais
vulneráveis e raivoso em relação às “minorias”, e ainda, talvez,
apostando que a pandemia pudesse ser controlada com maior
facilidade, Bolsonaro quis aparecer para a sociedade brasileira

1
Disponível em: https://www.brasil247.com/.
2
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/.
3
Disponível em: https://www.facebook.com/realcarloslatuff/timeline.
132 O Futuro do trabalho no século XXI

como alguém que não se influenciava pela mídia4 e que, na


contramão do que a maioria dos outros governantes fazia, ele
defendia a manutenção de certa normalidade 5, apesar de toda
a situação que já se anunciava.
No furor de tentar convencer a população de que não
havia com o que se preocupar - pois, supostamente, se tra-
tava de algo passageiro e que não seria uma situação tão grave
como se fazia parecer - suas declarações, além de ofensivas
e desrespeitosas - principalmente, com quem já sofria com a
doença -, demonstravam uma ignorância em relação ao que já
se conhecia e se disseminava sobre a situação e também uma
desqualificação pueril e abjeta em relação aos conhecimentos
e orientações de autoridades sanitárias e cientistas que, desde
o início, se mobilizavam de forma séria e responsável no con-
trole e combate à pandemia.
Nesse sentido, a primeira declaração de Bolsonaro mini-
mizando a gravidade da doença no Brasil foi durante sua
participação em um evento em Miami (EUA), no dia 09 de
março de 2020, quando disse que a imprensa estaria exage-
rando em relação à situação, afirmando que “no meu entender,
está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus”. No
entanto, desse mesmo evento, resultou a contaminação de
várias autoridades da cúpula do governo federal que fez parte
da comitiva do presidente. Em outra declaração pública nessa
mesma direção, feita no dia 17 de março, Bolsonaro afirmou
que “esse vírus trouxe uma certa histeria”. Reafirmando seu
descaso, menosprezo e displicência (Sakamoto, 2020) diante
da gravidade da chegada e da expansão da nova doença,

4
Frases de Bolsonaro: “Muito do que tem ali é muito mais fantasia, a
questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia prega”
(10/03/2020); “Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses
governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”
(22/03/2020).
5
Frases de Bolsonaro: “Muitos pegarão isso independente dos cuidados
que tomem. Devemos respeitar, tomar as medidas sanitárias cabíveis,
mas não podemos entrar numa neurose, como se fosse o fim do mun-
do” (15/03/2020); “Tá com medinho de pegar vírus? Tá de brincadeira!”
(01/04/2020).
A denúncia por meio da charge ALTernativa 133

Bolsonaro foi ainda mais desrespeitoso quando, em 20 de


março, afirmou que “depois da facada, não vai ser uma gri-
pezinha que vai me derrubar, não”. E, por fim, em um pro-
nunciamento realizado alguns dias depois, no dia 24 de março,
criticando a determinação do fechamento de escolas e comér-
cio, Bolsonaro afirmou que, por ter histórico de atleta, não
precisaria se preocupar caso fosse contaminado pelo vírus,
pois “nada sentiria ou seria acometido, quando muito, de uma
gripezinha ou resfriadinho”.
No decorrer desses episódios, Carlos Latuff produziu três
charges retratando essas declarações, duas publicadas no
site Brasil 247 e uma publicada no site Brasil de Fato. A pri-
meira dessas charges foi publicada no dia 17 de março de 2020
no Brasil 247 e teve como título “A ‘histeria’ do coronavírus”
(figura 1).

Na imagem, vemos Bolsonaro numa atitude determinada


levando o Brasil (mapa) em direção ao “monstro” da covid-19,
que é apresentado como uma caveira (representando a morte)
e com pontos vermelhos que fazem a associação à represen-
tação icônica do novo coronavírus. Enquanto o Brasil grita
por “socorro!”, Bolsonaro reafirma que “esse negócio de
134 O Futuro do trabalho no século XXI

coronavírus é histeria, taoquei?” (expressão que denuncia seu


vício de linguagem e que foi bastante explorada para produzir
efeitos de humor) e recebe a ajuda de um “apoiador bolsona-
rista”, identificado pela utilização da bandeira do Brasil como
capa e por se referir ao presidente como “mito”.
Além da explícita relação do título da charge com as decla-
rações de Bolsonaro, Latuff publicou uma legenda na pos-
tagem dessa charge em sua página no Facebook que refor-
çava sua denúncia contra a irresponsabilidade de Bolsonaro:
“Enquanto a Itália conta seus cidadãos mortos pelo coronavírus,
Bolsonaro e seus seguidores estúpidos ignoram a pandemia
e colocam o #Brasil e seu povo a mercê de um vírus mortal”.
A segunda charge sobre esse tema, também veiculada no
Brasil 247, foi publicada no dia 25 de março de 2020 com o
título “Só uma gripezinha...” (figura 2).

Nesta charge, novamente esteve presente a representa-


ção simbólica da caveira (como expressão da morte), só que
desta vez para conformar o rosto do próprio Bolsonaro e
também para indicar os mortos no Brasil que estavam sendo
A denúncia por meio da charge ALTernativa 135

enterrados num buraco que apresentava o formato do mapa do


nosso país. Bolsonaro aparece gargalhando diante da situação
e insistindo que era “...só uma gripezinha...”. No detalhe, o pre-
sidente Bolsonaro está usando uma faixa presidencial com um
“brasão” da covid-19. Da mesma forma, Latuff também insere
uma legenda na republicação dessa charge em seu Facebook
que sentencia que Jair Bolsonaro é “o vírus mais mortal que
o #Brasil já contraiu”.
Por fim, sobre essas declarações de Bolsonaro, Latuff
também produziu uma charge, desta vez publicada no site
Brasil de Fato, denunciando o menosprezo do presidente
diante da pandemia. O título da charge (“A ‘gripezinha’ de
Bolsonaro”) também ironizava suas declarações e foi publicada
no dia 27 de março de 2020 (figura 3).

Na imagem vemos a figura de Bolsonaro com uma expres-


são raivosa e esbravejando com ódio (representado pelo
recurso do contorno irregular do balão de fala e pelo formato
visual das letras das palavras), ao mesmo tempo em que expele
de sua boca caixões que, mais uma vez, representam as mortes
ocorridas em decorrência da covid-19. O detalhe das cores
nesta charge também é significativo, pois dá ênfase ao seu
136 O Futuro do trabalho no século XXI

olhar furioso e destaca os caixões, ressaltando ainda mais


a realidade lúgubre da pandemia. Conforme comentário do
chargista que acompanha essa charge no Facebook do artista,
a atitude e as declarações de Bolsonaro devem ser conside-
radas como a “maior ameaça a saúde pública que o #Brasil
já enfrentou em décadas! Sua recusa estúpida em aceitar a
gravidade da pandemia do coronavírus vai custar a vida de
muitos brasileiros”.
Outro tema presente nas charges de Carlos Latuff, mate-
rializando a denúncia contra o presidente Bolsonaro por seu
descaso diante da pandemia, foi o número de mortes pela
doença provocada pelo novo coronavírus. Em alguns momen-
tos, explorando determinadas realidades intertextuais, Latuff
retratou a situação das mortes por covid-19 fazendo críticas
ao presidente por sua responsabilização diante da referida
situação, mas também por suas declarações ou ações que ins-
piraram o argumento da charge.
Nesse sentido, a charge publicada no Brasil 247 em 02 de
junho de 2020 6, quando o Brasil atingia 31,3 mil mortes, fazia
referência a essa triste realidade (figura 4). Porém, mais do que
isso, essa marca fez lembrar uma declaração estapafúrdia de
Bolsonaro quando de sua participação no programa “Câmara
Aberta” em 1999, ainda como deputado federal, quando afir-
mou que o Brasil só mudaria quando se partisse para uma
guerra civil “fazendo o trabalho que o regime militar não fez:
matando uns 30 mil”. Explorando o recurso da intertextu-
alidade, Latuff intitulou a charge com a afirmativa de que
“Bolsonaro conseguiu o que queria afinal”. E, por sua vez, utili-
zando de humor e ironia, apresentou o diálogo entre a “figura
da morte” dizendo que “já batemos sua meta de 30.000 mortos,
e agora?” ao que tem como resposta de Bolsonaro que “vamos

6
Nessa mesma data (02/06/2020), Bolsonaro fez a seguinte declaração:
“Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Outras
duas declarações de Bolsonaro sobre a situação das mortes que reper-
cutiu muito mal na sociedade brasileira foi quando afirmou: “Eu não sou
coveiro” (20/04/2020); e também quando disse: “E daí? Lamento. Quer
que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (28/04/2020).
A denúncia por meio da charge ALTernativa 137

dobrar a meta!”, numa explícita denúncia ao descaso e irres-


ponsabilidade do presidente em relação à referida questão.

Também explorando o recurso da intertextualidade - e da


interdiscursividade - em relação a esse tema, Latuff produziu
outra charge para retratar o (triste) momento em que o Brasil
se aproximava da marca de 100 mil mortos (figura 5). A charge
foi publicada no Brasil de Fato no dia 31 de julho de 2020 e a
triste marca foi alcançada alguns dias depois, em 08 de agosto.
Como recurso intertextual, o chargista explorou o fato de o
governo Bolsonaro ter anunciado que, em breve, iria fazer o
lançamento de uma nova nota para circulação na sociedade
brasileira, com valor de 200 reais.
Sob o título “Quanto vale?”, Latuff cria uma charge cuja
imagem é uma réplica caricata da nota de 100 reais, com a
figura de Bolsonaro ao centro e explorando nos detalhes várias
questões referentes à tragédia social das mortes por covid-19
no Brasil. Podemos identificar caixões, caveiras e a representa-
ção icônica do novo coronavírus atrás da cabeça de Bolsonaro,
além de colocar no lugar do valor da nota a indicação das 100
mil mortes e inserir a expressão “República de bananas do
Brasil”. Todos esses detalhes expressam a crítica contundente
à forma trágica como Bolsonaro vinha conduzindo os desafios
que a pandemia impunha à sociedade brasileira, associado a
138 O Futuro do trabalho no século XXI

uma crítica ao fato de o governo Bolsonaro estar mais preo-


cupado e empenhado com o lançamento de uma nova nota do
que em desenvolver políticas efetivas de controle da pandemia
e de contenção das mortes pela doença no país.

Por fim, como forma de sistematizar a crítica e a denún-


cia ao descaso de Bolsonaro em relação às suas ações, com-
portamentos e declarações referentes à pandemia (durante o
ano de 2020), apresentamos a última charge aqui analisada
que se constitui como uma espécie de síntese geral. Trata-se
de uma charge publicada no dia 08 de junho de 2020 no site
Brasil 247 e que é portadora de uma contundência visual e de
uma expressividade simbólica que justifica sua escolha para
representar a conclusão de nossas análises (figura 6).
A imagem impactante (porque repugnante) de Bolsonaro se
aproximando de uma caveira, representando a covid-19, na imi-
nência de lhe dar um beijo, sob o título “Ódio ao povo, amor ao
vírus”, nos oferece uma boa síntese do que significou a conduta
do presidente em relação à pandemia. A busca pelo beijo, como
manifestação de “amor ao vírus”, pode ser compreendida no
contexto da charge como a sua própria antítese, materializando
um “ódio ao povo”, na medida em que um governante manifesta
um comportamento insensato, displicente, negligente e até
irresponsável em relação aos seus governados, menosprezando
A denúncia por meio da charge ALTernativa 139

e agindo com desrespeito em relação ao sofrimento e às dores


de quem enfrentou a doença ou teve que conviver com casos
de mortes entre familiares e amigos.

Enfim, as charges aqui analisadas representam apenas


um pequeno retrato da produção chárgica de Carlos Latuff
publicada no contexto da imprensa popular alternativa e que
explicitou a denúncia em relação ao descaso de Bolsonaro e
de todo o seu governo em relação ao início da pandemia e aos
seus impactos no cotidiano da realidade brasileira, particu-
larmente, durante o ano de 2020.

5. Considerações finais

A responsabilidade e o compromisso político no enfren-


tamento à pandemia por parte da imprensa brasileira deve-
riam ser mais do que apenas manter a sociedade informada
sobre dados estatísticos e informações de utilidade pública;
deveria ser, concomitantemente - e, talvez, prioritariamente
- de denunciar os descasos e desmandos de qualquer indiví-
duo, coletivo ou instituição que não agisse decisivamente no
sentido de combater a pandemia e todas as suas consequên-
cias. Nesse sentido, a imprensa popular alternativa procurou
cumprir com o seu compromisso e, para tanto, utilizou de
140 O Futuro do trabalho no século XXI

maneira importante a charge como uma de suas estratégias


comunicativas.
Nesse artigo, considerando suas limitações, apresentamos
e analisamos apenas algumas charges produzidas por Carlos
Latuff durante o ano de 2020, publicadas em sites noticiosos
da imprensa popular alternativa, que explicitaram de modo
contundente as atitudes irresponsáveis de Bolsonaro diante da
pandemia, promovendo uma denúncia vigorosa contra seus
desmandos e arbitrariedades.
Ao proceder a uma análise do discurso chárgico, verifica-
mos que o chargista priorizou o uso da caricatura de Bolsonaro
em suas charges como o principal recurso visual para pos-
sibilitar uma associação imediata do leitor com o contexto
específico de crítica ao presidente. Além disso, Latuff explorou
em suas charges as ideias, frases ou argumentos explicitados
por Bolsonaro em seus atos ou em suas declarações públi-
cas, como recurso discursivo intertextual, para explicitar as
controvérsias e para revelar e denunciar os desmandos e as
irresponsabilidades cometidas pelo presidente em relação à
sua postura diante da pandemia.
A produção chárgica de Carlos Latuff, bem como de outros
chargistas atuantes na imprensa popular alternativa, durante
todo o tempo em que vivemos sob a realidade de uma pan-
demia, merece continuar sendo analisada para poder nos
oferecer uma compreensão desses tempos sombrios de pan-
demia e, mais do que isso, de crise sistêmica do capitalismo,
temperada com ludicidade e humor, mas sem omissões ou
tangenciamentos.

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2020.
Associativismo e sindicalismo:
Contribuições para a pesquisa
histórico-educacional.

8 LUCILENE SCHUNCK C. PISANESCHI1


EVALDO PIOLLI2
CARLOS BAUER3

1. Introdução

A
partir de alguns apontamentos e reflexões, obje-
tivamos contribuir com a construção da pesquisa
no campo da história do associativismo e do sin-
dicalismo brasileiro no âmbito educacional. Inicialmente
tecemos considerações pertinentes à relevância social, polí-
tica e acadêmica desta temática, e sua importância para esti-
mulo ao diálogo colaborativo com as entidades classistas que
atuam nessa esfera da sociedade civil.
Em seguida, tendo como pano de fundo a caracterização
e as implicações das transformações que se têm operado na
contemporaneidade no mundo do capital trazemos um con-
junto de preocupações relacionadas com as discussões dos
processos de periodização dos estudos históricos educacionais
atinentes aos organismos de intervenção coletiva construídos
pelos trabalhadores em educação localizando, alguns marcos
temporais de sua praxis social e política.

1
Lucilene Schunck C. Pisaneschi – Doutora em Educação. E-mail: lupi-
saneschi@yahoo.com.br. FE-Unicamp
2
Doutor em Educação. E-mail epiolli@yahoo.com.br. FE-Unicamp
3
Doutor em História Econômica. E-mail carlosbauer1960@yahoo.com.br.
PPGE- Uninove
146 O Futuro do trabalho no século XXI

Finalmente, discutiremos os postulados teóricos e metodo-


lógicos que podem contribuir com a consolidação e o avanço
crítico dos estudos sobre a história do associativismo e do
sindicalismo dos trabalhadores da educação.

2. Nunca é demais lembrar: a necessidade


dos mecanismos organizativos de luta

As origens dos movimentos associativistas e sindicais


educacionais têm raízes muito remotas e se encontram rela-
cionadas com as formas pelas quais se produzem e se esta-
belecem as relações de subsunção daqueles que vivem do
próprio trabalho na sociedade capitalista.
No Brasil, do ponto de vista histórico educacional, a
emergência destes movimentos pode ser demarcada desde
a segunda metade do século XIX, com uma série de registros
de acontecimentos, lançamentos de manifestos públicos e
com as inúmeras tentativas daqueles que atuavam no uni-
verso educacional de estabelecer mecanismos organizativos
e perpetrar ações de resistência ao dinamismo de exploração
da produção, da reprodução, do controle e da distribuição
da riqueza que os atingia diretamente no mundo do capital.
No interior da sociedade burguesa, via de regra, a afirma-
ção e a consagração dos direitos sociais mais elementares da
classe trabalhadora pressupõem a criação de associações e a
consolidação de entidades de caráter mutualistas, coletivis-
tas e sindicais capazes de impulsionar ações coletivas e na
organização de movimentos de contestação e de resistências,
de greves e de mobilizações que favoreçam a efetivação das
suas reivindicações políticas, econômicas e sociais.
Nunca é demais lembrar que vivemos num país no qual
a consolidação e o avanço da democracia estão sempre ame-
açados, trazendo com isso enormes dificuldades para o for-
talecimento dos sindicatos e das associações classistas como
interlocutores legítimos dos trabalhadores com o Estado,
com o patronato e na assunção dos desafios políticos e das
responsabilidades da sociedade civil que são próprios da
sociedade burguesa.
Associativismo e sindicalismo 147

As tentativas cada vez mais ofensivas de controle da força


de trabalho por parte da classe dominante são permanentes e
envolvem, além de truculentos métodos estatais policialescos
e repressivos, a cooptação política, ideológica e social das enti-
dades e com isso, contribuem para o incentivo de processos
de burocratização de muitos organismos de representação
coletiva dos trabalhadores.
Porém, por mais duros, ardilosos e constantes que sejam
esses ataques, no que se refere ao associativismo e ao sindi-
calismo educacional, temos assistido significativos resulta-
dos nas taxas de sindicalização, na realização de mobiliza-
ções, greves, questionamentos políticos, na defesa da escola
pública e na contestação social da forma pela qual os donos
do capital procuram impor a transformação da educação
numa reles mercadoria.
A vigência histórica do capitalismo, com a sua força ideo-
lógica e os seus mecanismos engenhosos de estruturação das
relações econômicas, financeiras, políticas, culturais e sociais,
assentadas na exploração, na subordinação do trabalho e no
controle privado da riqueza socialmente produzida, exige dos
trabalhadores tenacidade, ousadia, capacidade organizativa,
disposição de luta e resistência.

3. Movimento docente e entidades sindicais:


entre ataques e resistências

A permanência do modo de produção capitalista como


forma predominante na organização das atividades pro-
dutivas, econômicas, financeiras, políticas e socioculturais
das sociedades ocidentais, com sua incessante efetivação
de mecanismos de dominação, exploração e coisificação
humana traz consigo a exigência da ação radical e a premente
necessidade da organização coletiva daqueles que vivem do
próprio trabalho no mundo do capital.
No caso daqueles que atuam e vendem sua força de traba-
lho na esfera educacional foram colocados grandes desafios,
não apenas na maneira de pensar sua própria condição social,
como também, nas formas de impulsionar sua organização
148 O Futuro do trabalho no século XXI

e na capacidade de mobilização na defesa dos seus interesses


intrinsecamente relacionados com o ordenamento de uma
sociedade de classes.
Em muitos países com a crescente presença e massificação
da escola, por exemplo, os professores deixaram de se organi-
zar de forma mutualista ou em círculos culturais, literários e
pedagógicos e que, diante das novas formas de organização do
trabalho educativo, passaram a assumir características muito
parecidas com aquelas que haviam sido experimentadas pelos
pioneiros dos movimentos trabalhistas no bojo da chamada
“Segunda Revolução Industrial”.
As entidades culturais ou mesmo mutualistas até então
construídas pelos professores se mostravam incapazes de
representar plenamente o crescente número de profissionais
que o avanço acelerado da urbanização e da crescente presença
das instituições educacionais operava no cotidiano social.
Entre os anos de 1850 e 1945, dependendo do país, essas
entidades gremiais se tornaram ineficientes na capacidade
de representar plenamente os interesses dos professores que
vendiam sua força de trabalho para as instituições estatais,
confessionais e privadas, ampliando cada vez mais o setor
educacional, entendido como serviço ou mercadoria. Esse
processo de mercantilização do ensino trouxe o enfraqueci-
mento e o quase total desaparecimento das antigas entidades
gremiais, culturais, de estudos e de ajuda mutua, mas, estimu-
lou o aparecimento de organizações de caráter sindical entre
os professores pelo mundo afora!
Em um primeiro momento, esse novo sindicalismo, orga-
nizado em torno dos ramos das atividades educacionais, teve
um âmbito local, contribuindo para o fortalecimento da orga-
nização e dos movimentos dos trabalhadores nacionais, par-
ticipando das campanhas civilistas, sufragistas, feministas,
no combate ao racismo, à xenofobia, ao belicismo, atuando
também, na erradicação do analfabetismo, no acesso à edu-
cação, na defesa dos direitos humanos, e na consagração dos
direitos sociais ao conjunto da classe trabalhadora.
Muitos dos seus ativistas, (que se somaram às fileiras de
partidos políticos de vocação socialista, trabalhistas, da social
Associativismo e sindicalismo 149

democracia e comunistas), procuraram impulsionar a organi-


zação docente internacional e, com a ampliação da presença e
da importância das relações escolarizadas no interior da vida
urbana, seus movimentos e jornadas reivindicativas passaram
a ter considerável visibilidade social.
No chamado período entre guerras, com a eclosão das
crises econômicas estadunidenses e o desmoronamento de
algumas das mais importantes democracias liberais europeias,
a presença dos movimentos docentes foi muita sentida, se
envolvendo diretamente no combate ao avanço das premis-
sas totalitárias representadas pelo nazismo e pelo fascismo,
mas também, na organização política e socialista dos traba-
lhadores em busca de formas alternativas de sociedade e de
superação do capitalismo.
No que diz respeito ao ordenamento político, econômico
e social registrado nos países centrais do capitalismo ficou
expressa a importância dos movimentos docentes e de suas
entidades sindicais no processo de construção e do desenvol-
vimento do chamado Estado de Bem Estar Social.
Tal participação se deu não apenas com a organização de
campanhas em defesa de melhorias salarias e melhores con-
dições de trabalho e valorização da educação no seio da socie-
dade, mas também, de engajamento no combate à pobreza e
às injustiças e às desigualdades sociais, assim como de soli-
dariedade com os povos submetidos ao colonialismo, à defesa
do pacifismo e dos direitos humanos.
A década de 1970 assistiu ao avanço acelerado de uma pro-
funda crise econômica, à urdidura de transformações tecnoló-
gicas, a intensas e significativas mudanças na estrutura produ-
tiva, ao avanço ideológico do liberalismo e do individualismo
burguês, ao questionamento da intervenção do Estado, à supre-
macia do poder financeiro transnacional, com enormes reper-
cussões nos países centrais do capitalismo, assim como, em
sua periferia e no continente asiático, especialmente, na China.
Com a instalação desta etapa de caráter regressivo e neoli-
beral do capitalismo ocidental, os efeitos daqueles que vivem
do próprio trabalho foram extremamente desfavoráveis, com
altas taxas de desemprego, instalação da insegurança social,
150 O Futuro do trabalho no século XXI

perpetração de ataques orquestrados e sistemáticos aos ser-


viços públicos e a simultânea defesa dos processos de privati-
zação da saúde, da educação, dos transportes, da previdência,
entre outros.
Desta forma, o que se viu foi o aumento das desigualdades
sociais e a efetivação de um conjunto de ataques políticos e
ideológicos às entidades corporativas, políticas e sindicais dos
trabalhadores com o intuito de aniquilá-las ou, pelo menos, de
desmoralizá-las e enfraquecer os seus movimentos de resis-
tência e capacidade de mobilização social.
Na órbita geral do capitalismo, do ponto de vista político,
econômico e sociocultural, ao mundo do trabalho imergiu
em uma dinâmica cada vez mais fetichizada cujas principais
marcas são a exploração, a dominação e a precarização.

4. Precarização do mundo do trabalho educacional

Na sociedade capitalista o trabalho precário, ou seja, a


sujeição daquele que trabalha a toda sorte de agruras e a
ausência de direitos básicos, como é o caso dos salários justos
e condições dignas de vida e de trabalho não é algo pouco
usual.
Pelo contrário, ao longo da história desse modo de pro-
dução, se registram inúmeros casos de levantes de trabalha-
dores, em jornadas grevistas e mesmo em enfrentamentos
cruentos, contra o aparato repressivo patronal ou estatal,
motivados pela necessidade de se lutar pelas condições bási-
cas da existência.
São embates motivados por reivindicações que estão
associadas às necessidades de remuneração de salários míni-
mos, redução de jornadas de trabalho, liberdade de imprensa,
organização política e sindical, denúncias contra a opressão
e tantos outros direitos que poderíamos facilmente caracte-
rizar como sendo fundamentais e inalienáveis da condição
humana no mundo moderno e contemporâneo.
Porém, essa época histórica, no dizer de Ricardo Antunes
(2000, p. 119-120), trouxe a transformação do trabalho vivo
em subtrabalho sendo, com isso
Associativismo e sindicalismo 151

[...] bastante evidente a redução do trabalho vivo e a


ampliação do trabalho morto. Mas, exatamente porque
o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo
de criação de valores, ele deve aumentar a utilização e
a produtividade do trabalho de modo a intensificar as
formas de extração do subtrabalho em tempo cada vez
mais reduzido.

Esse período da história também acarretou num processo


de intensa proletarização da vida social e a classe trabalhadora
“hoje inclui a totalidade daqueles que vendem a sua força de
trabalho [...]. Ela não se restringe, portanto, ao trabalho manual
direto, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totali-
dade do trabalho coletivo assalariado” (Antunes, 2000, p. 102).
No que diz respeito aos que fazem parte do mundo do tra-
balho na esfera educativa não temos uma exceção. Pelo con-
trário, no mundo do capital, desde a mais remota hora nos
deparamos com episódios políticos, manifestações sociais,
mobilizações sindicais e um sem número de denúncias públi-
cas com o intuito de trazer à tona as mazelas e os infortúnios
a que estão submetidos os trabalhadores da educação. De tal
sorte que já não causa espanto para ninguém que esses tra-
balhadores se lancem cada vez mais em ações jacobinas e de
duro enfrentamento contra os seus algozes.
Registram-se assim ocupações de prédios públicos,
tomam-se avenidas e rodovias, são realizados acampamen-
tos em praças, greves de fome e os dias de paralisação de seus
movimentos não se contam mais em unidades, mas, sim, em
dezenas. Contudo, mesmo obtendo algumas conquistas par-
ciais importantes – frutos de intensas lutas – podemos obser-
var nos últimos anos uma brutal ofensiva da precarização do
trabalho e mesmo na degradação social desses personagens.
Tais cenas, de interminável infortúnio, são motivadas pelo
avanço de novas políticas públicas e privadas que caminham
no sentido de transformar cada vez mais a educação numa
mercadoria, numa espécie de commodities característica da
atual etapa do capitalismo especulativo e financeiro, destruin-
do-a como um direito social e humano.
152 O Futuro do trabalho no século XXI

Esse momento histórico é extremamente propício à mani-


festação da falsa-consciência e da alienação dos que vivem do
seu próprio trabalho, que não apenas não conseguem deixar
de ter roubadas suas intermináveis horas de trabalho, mas
também perdem a dimensão de sua importância política e
social. Uma das principais características do capitalismo é a
transformação dos seres humanos em mercadorias e, prin-
cipalmente, em máquinas geradoras de riquezas a serem
expropriadas pela classe dominante.
Para isso, busca ao máximo fragmentar um importante
atributo do ser social: o trabalho. Separa-se o “pensar o tra-
balho” da tarefa em si, separa-se os homens entre os pensam
e os que o fazem, entre os que mandam e os que obedecem.
Esse processo intitulado de alienação do trabalho é inerente
ao modo de produção capitalista.
Por sua vez, na análise de Karl Marx (1984, p. 105), a pro-
dução capitalista não é apenas fabricação de mercadorias, é
essencialmente produção de mais-valia. O trabalhador não
efetiva seu labor para si, mas para o capital. Pouco adianta
apenas produzir, senão houver a mais-valia. Apenas é pro-
dutivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista
ou serve à autovalorização do capital.
O trabalho produtivo escreve esse autor seminal

[...] no sentido da produção capitalista é o trabalho


assalariado que, na troca pela parte variável do capital
(a parte do capital despendida por salário), além de
reproduzir essa parte do capital (ou valor da própria
força de trabalho), ainda produz mais-valia para o
capitalista. (Marx, 1980, p. 132)

A partir dessa percepção, podemos entender como pro-


dutivo todo o trabalho que produz mais-valia, da mesma
forma que determinada atividade que se troque por capital
para produzir mais-valia é trabalho produtivo, inclusive as
artes, os processos educativos, a fruição amorosa e outras
atividades que são fundamentais em nosso processo de
humanização
Associativismo e sindicalismo 153

Uma cantora que canta como um pássaro é uma traba-


lhadora improdutiva. Na medida em que vende o seu
canto é uma assalariada ou uma comerciante.Porém, a
mesma cantora contratada por um empresário que a
põe a cantar para ganhar dinheiro, é uma trabalhadora
produtiva, pois produz diretamente capital. Um mes-
tre escola que é contratado com outros para valorizar,
mediante o seu trabalho, o dinheiro do empresário da
instituição que trafica conhecimento é um trabalhador
produtivo. (Marx, 1985, p. 115)

O homem se transforma em um ser autômato, desprovido


de sua capacidade de compreender seu papel e, não obstante,
dele se apropriar e reconhecer o valor de seu trabalho na cons-
trução da inteireza da vida social. Nas sociedades modernas
e contemporâneas, a alienação do trabalho torna-se a base
fundamental da dominação e da exploração de uma classe
sobre a outra na sociedade moderna e contemporânea.
O capitalismo se desenvolveu de forma desigual e combi-
nada, estabelecendo relações díspares e até mesmo antagônicas
entre os países centrais e periféricos desse sistema mundial,
no qual a própria alienação se inseriu no mundo do trabalho
de formas diversificadas ao longo da sua conturbada história.
Essas transformações são mais profundas e dilacerantes
na produção industrial dos primórdios do século XIX, mais
irreverentes no mundo especulativo financeiro do século XX,
mais dissimuladas e escapistas com as transformações cientí-
ficas e tecnológicas exaltadas no século XXI. Mas todas estão
associadas ao estabelecimento de relações sociais de classes e a
forma como as condições de trabalho se firmam e se articulam
e, com o Estado ocupando um papel determinante no masca-
ramento da realidade e das contradições sociais se legitimam
e se desenvolvem no seio da sociedade burguesa.
Em meio às metamorfoses do capital, no qual se busca
novas formas de produção e exploração de mais-valia e acu-
mulo de riquezas – garantindo assim a produção e reprodu-
ção do status quo –, o ideal capitalista tem transformando
tudo em mercadoria. A educação, ao lado da saúde e outras
154 O Futuro do trabalho no século XXI

áreas de grande interesse e necessidade social, não escapa-


ram dessa dinâmica.
Seja por meio de sua mercantilização descarada (a proli-
feração das escolas particulares e o fetiche por tal produto),
seja por meio da transformação da educação pública em um
instrumento de formatação de uma força de trabalho de custos
baixos, porém extremamente produtiva.
É, no calor da hora desse processo, que percebemos o
fenômeno da alienação do trabalho no profissional docente.
E, pelo menos, desde os últimos anos do século XX, acompa-
nhamos uma forte ofensiva da alienação do trabalho também
no ambiente escolar.
O professor, antes visto como o agente principal do pro-
cesso de ensino-aprendizagem – ao lado do estudante –, vê
seu papel social diminuir diante das novas lógicas de mercado,
paulatinamente, inseridas no ambiente escolar.
A busca desenfreada pela produção de uma mercadoria,
(neste caso, o estudante simplesmente entendido como futura
mão de obra), de forma mais rápida, mais barata e mais produ-
tiva (e também mais submissa) faz com que o professor passe
por um verdadeiro processo de alienação.
Sob a desculpa que se estaria em busca de um processo
de qualidade, medido em números e dados estatísticos, seu
trabalho sofre uma brutal intervenção; o docente é obrigado,
por meio de diversos mecanismos, a abrir mão da elabora-
ção autônoma de suas aulas, e adotar conteúdos e normas
prontas, construídas por sujeitos externos ao ambiente no
qual se dá a educação.
Em outros termos, o professor torna-se um simples cum-
pridor de tarefas, um perfeito autômato; uma máquina que
tem como papel apenas apertar mais um parafuso em uma
cadeia produtiva.
Esse quadro assim esboçado nos remete necessariamente
a necessidade de superação das visões simplistas, idílicas e
ideológicas do papel desempenhado pelos trabalhadores da
educação e do seu reconhecimento social. Afinal de contas,
por que se tornou senso comum o discurso da valorização
da educação e seus sujeitos, particularmente os professores
Associativismo e sindicalismo 155

na esfera pública, sendo que na realidade observamos exata-


mente o oposto?
Respostas a indagações como essa têm motivado e impul-
sionado os pesquisadores a estudarem o associativismo e o
sindicalismo dos trabalhadores em educação. E o fazem não
apenas como um fator de resistência e portadores das rei-
vindicações de cunho econômico e corporativas, mas como
um interlocutor e um sujeito coletivo privilegiado na busca
da superação histórica das condições materiais de existência
daqueles que habitam o mundo do trabalho na educação.

5. A crise do socialismo real

As raízes interpretativas da chamada crise do socialismo


real podem ser buscadas, sinteticamente, em diversificados
episódios históricos: a defesa da democracia operária e o ques-
tionamento que Rosa de Luxemburgo fez aos revolucioná-
rios liderados por Lenin em 1918, diante dos acontecimentos
que culminaram com a vitória política dos bolcheviques e
a edificação histórica da Revolução Russa; o significado da
organização da chamada Oposição de Esquerda em 1926; os
esforços de Leon Trotsky que culminaram com a fundação da
IV Internacional, seu papel na análise do trágico significado da
Guerra Civil Espanhola e no que se refere ao questionamento
político do stalinismo; a eclosão e desdobramentos da Segunda
Guerra Mundial, a bancarrota do nazi-fascismo europeu; a
crescente importância política, econômica e militar mundial
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e sua
presença nas revoluções e guerras de libertação nacional, cul-
minando do ponto de vista mais emblemático ou simbólico,
com a queda do muro de Berlim em 1989.
Esses episódios históricos transformaram gradativamente
a URSS numa espécie de farol dos povos que guiava a atua-
ção do conjunto da militância de características reformistas,
socialistas e revolucionárias em toda e qualquer frente de luta
política em que os trabalhadores estivessem presentes.
No universo do associativismo e sindicalismo dos traba-
lhadores em educação, essa situação foi muito acentuada, pois
156 O Futuro do trabalho no século XXI

grande parte de seus quadros militantes e dirigentes tiveram


o seu processo de formação política e atuação social pautados
nos reflexos dessa breve história do século XX e seus desdo-
bramentos nos primórdios do XXI.

6. O Partido dos Trabalhadores e a burocratização


dos aparatos políticos e sindicais

O Partido dos Trabalhadores (PT) trouxe desde as suas ori-


gens uma série de expectativas e perspectivas políticas que
pudessem aglutinar a ação daqueles que estavam (e que ainda
estão) comprometidos com a obtenção de melhores condições
de vida para a maioria da população brasileira.
Um elemento importante desse processo foi a capacidade
que esse partido teve de aglutinar setores inteiros da militân-
cia dos movimentos sociais e populares, políticos e sindicais
que eclodiram por todo o território nacional.
Não houve movimento de trabalhadores ou da juventude
que deixou de contar com a influência do PT. Na esfera do asso-
ciativismo e do sindicalismo dos trabalhadores em educação
isso não é menos verdadeiro.
Desde os meados da década de 1980 a presença dos mili-
tantes petistas tornou-se um componente muito visível, ou
mesmo que obrigatório na impulsão das ações associativistas
e sindicais presentes no mundo do trabalho.
Com a consolidação política e partidária do PT, verificou-
-se também a partir de então uma série de vitorias eleitorais,
fazendo com que esse partido não apenas tivesse um papel
objetivo e predominante nos movimentos sociais, políticos e
sindicais, mas também, ocupasse cada vez mais espaços nas
instituições do regime democrático-burguês, tomando assim
cadeiras nos legislativos federais, estaduais, municipais e os
cargos executivos em todas as esferas do Estado, com a eleição
de prefeitos, governadores e presidente da República, dentro
da estratégia política de ocupação do Estado para as possíveis
futuras reformas que a sociedade tanto precisa.
Contudo, a partir dessa perspectiva, verificou-se a necessi-
dade estratégica da construção de alianças com determinados
Associativismo e sindicalismo 157

setores ditos progressistas por elementos pragmáticos do PT,


para a conquista do espaço público estatal. A nosso ver, isso
prejudicou o projeto de lutas e contestações necessárias ao
presente, deixando para o futuro o pleito das reformas radicais
que poderiam ser colocadas em pauta na atualidade, pois as
ditas alianças necessárias ao imperativo da governabilidade
impediram quaisquer tipos de avanços das demandas sociais
construídas e reivindicadas pela classe trabalhadora ao longo
de sua história.
Essa impressionante presença no aparato do Estado exigiu
do partido uma capacidade de cooptação dos quadros, em uma
escala pouquíssimas vezes registradas na história do país.
Em suma, a cultura questionadora que havia sido desenvol-
vida ao longo da década de 1980, cujo objetivo maior era rejei-
tar o establishment, a organização e o comportamento político
tradicional, foi sendo dissipado e suprimido pelo pragmatismo
do calendário eleitoral, sofrendo mutações ideológicas, que
substituíram a luta pelo socialismo e a conquista do governo
dos trabalhadores, pela governança e pelos compromissos
ditos republicanos.
O PT envelheceu rapidamente e a partir do início do século
XXI muito do espírito rebelde e contestador que havia caracte-
rizado o comportamento dos seus militantes em tempos idos
não existia mais em suas fileiras e frentes de atuação, exceto de
forma residuais na trajetória de algumas de suas tendências e
filiados que se recusaram a aceitar a rendição aos dogmas da
democracia burguesa e as formas de usufruírem do amplo e
crescente aparelhamento estatal realizado pelo partido.
Dentro disso, devido à enorme capacidade do movimento
sindical de trabalhadores em educação – particularmente
entre os docentes – tanto do ensino básico quanto o superior
em formar quadros, e a necessidade de ocupar as instancias
do Estado, fez com que observássemos os processos de desmo-
bilização e aderência às políticas de gestão ditas democráticas
populares desenvolvidas (ou que se buscavam programar)
sobre a batuta desse partido.
Devemos lembrar que o Partido dos Trabalhadores é cons-
tituído por diversas tendências que se localizam no universo
158 O Futuro do trabalho no século XXI

partidário em diferentes posturas, de acordo com o projeto e


táticas que utilizam nas frentes de luta em atuam. Apesar de,
publicamente elas se fecharem entorno de uma única política,
em seu interior há uma viva discussão de ideias, propostas
e comportamentos políticos expressos em seus dirigentes e
parlamentares que se proclamam em posições distintas, e
muitas vezes antagônicas.
Na atual etapa do capitalismo existe um impressionante
contraste entre as condições de vida da população mundial,
em sua maioria, quase sempre condenada a experimentar as
agruras da fome e da miséria, tanto material, quanto intelec-
tual e espiritual. Enquanto isso, alguns poucos privilegiados
usufruem plenamente do desenvolvimento econômico, cul-
tural e tecnológico das forças produtivas que foi possível até
aqui alcançar graças ao conjunto do esforço social.
Esse quadro de crescente concentração de renda e poder
mostra que estamos diante de formidáveis desafios políticos
e organizativos nos itinerários que poderão levar à superação
dessa calamitosa realidade para milhões de seres humanos
no mundo inteiro e que coloquem, na ordem do dia, novas
formas de se viver em sociedade, pautadas num programa de
transição para o socialismo, imbuído de justiça, solidariedade
e partilha equânime da riqueza socialmente produzida.
Essa é uma tarefa de grande magnitude, mas exequível, na
atual etapa da luta de classes, e os desafios necessários a sua
execução se colocam diante de todos nós que não suportamos
como sendo um fatalismo que quaisquer representantes da
humanidade estejam à margem dos processos de participa-
ção política, econômica, cultural, educacional e do acesso a
riqueza material socialmente produzida, embora saibamos
que os instrumentos políticos nacionais e internacionais para
contribuir com a viabilização deste projeto de sociedade estão
longe de serem alcançados.
Sumariamente, esses são apenas alguns dos elementos
das crises e das possibilidades históricas que julgamos serem
importantes de serem considerados como fatores que moti-
vam aqueles que estão preocupados em estudar os trabalha-
dores em educação, ou melhor, compreender o papel, tanto das
Associativismo e sindicalismo 159

suas entidades nacionais e internacionais, como também das


suas associações e dos seus sindicatos de base, fragmentados
e espalhados por todo o Brasil e diferentes regiões do mundo!

7. Considerações finais

Alguns pesquisadores iniciantes ou mesmo mais expe-


rientes na pesquisa acadêmica nacional e estrangeira que se
interessam por temáticas inerentes ao universo do associati-
vismo e sindicalismo dos trabalhadores em educação foram
ou continuam atuantes nas fileiras das entidades estudadas
e suas congêneres.
Essa problemática não é nova e remonta às origens dos
programas de pós-graduação em diferentes áreas, como é o
caso da sociologia, da política, da história, da antropologia,
da educação, entre outras. Se por um lado as pesquisas na
área vêm se intensificando, numérica e substancialmente,
por outro, estamos longe do ideal.
Como vimos, ao longo dessas linhas, vários são os fatores
que estão associados à ampliação dos estudos nesse campo e
entre eles podem ser lembradas as motivações e preocupa-
ções acadêmicas e políticas que estão associadas ao processo
histórico e social que vem sendo caracterizado de precari-
zação do trabalho na educação, ou ainda a proletarização do
professor e demais sujeitos coletivos do mundo do trabalho
educacional. Essa proposição tem funcionado como eixo
norteador seguido por muitos estudiosos preocupados em
compreender as causas e os efeitos desse processo.
Outro aspecto importante diz respeito à crise do cha-
mado socialismo real; seus efeitos sobre os ativistas sindi-
cais e políticos que procuraram compreender esse fenômeno,
também, no âmbito da pesquisa e do debate acadêmico e
isso em uma época histórica emblematicamente marcada
pelos episódios da Queda do Muro de Berlin e do desmonte
do Estado soviético.
Houve ainda o esgotamento do chamado novo sindi-
calismo, do qual, inclusive, os movimentos, a capacidade
organizativa e de mobilização social dos trabalhadores em
160 O Futuro do trabalho no século XXI

educação foram muito importantes e contribuíram de forma


decisiva na constituição no Brasil, nos primórdios da década
de 1980, da sua principal expressão sindical contemporânea:
a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Simultaneamente, e isso não podemos esquecer, nesses
tumultuados anos dos fins da década de 1970 e início dos
anos 1980 do século XX, muitos desses militantes postularam,
defenderam e assumiram papéis fundamentais na urdidura
e construção do Partido dos Trabalhadores (PT).
Com isso o partido se consolidou e, paulatina e irresisti-
velmente, seus militantes ocuparam os mais diversificados
espaços institucionalizados no Estado brasileiro, elegendo
vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores
e presidentes da República, além de povoarem esses recin-
tos com um número incalculável de assessores, ministros
e secretários que passaram a atuar em todas as esferas dos
poderes legislativos e executivos do país.
O PT, em pouco mais de uma década, não apenas cooptou
e arrastou para as fileiras do partido e dos aparatos esta-
tais, contingentes inimagináveis de ativistas sociais, como
também, no exercício das administrações reprimiu e endure-
ceu nas negociações com os representantes dos movimentos
sociais, que salvo raras exceções, consideravam esses gover-
nos como sendo “seus”.
O agravamento dessas contradições trouxe enormes
questionamentos e a formulação de algumas importantes
perguntas para aqueles pesquisadores que conheciam bem
de perto essa preocupante realidade e chamavam os gover-
nos petistas de democráticos e populares.
Houve também aqueles que evitaram o processo de buro-
cratização nas máquinas partidárias ou sindicais e procura-
ram a vida acadêmica como uma espécie de fuga do trabalho
esgotante que se opera na educação básica e a possibilidade
de inserção no ensino superior capaz de oferecer salários e
condições de trabalho mais satisfatórias e capazes de digni-
ficar o seu labor. Para o propósito desses escritos, essa última
questão não nos parece adequado discuti-la apressadamente,
sendo necessário retomá-la em outra oportunidade.
Associativismo e sindicalismo 161

Enfim, esses foram alguns dos aspectos que trouxeram


essas inquietações e considerações para o estimulo dos estu-
dos e o esforço de se realizar a compreensão crítica do papel
histórico, político e social do associativismo e sindicalismo
dos trabalhadores em educação.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaios sobre a afirmação e


a negação do trabalho. 6. ed. São Paulo: Boitempo, 2000.
MARX, Karl. O Capital: Capítulo VI (inédito): resultados do processo de
produção imediata. São Paulo: Moraes, 1985.
______. O Capital: crítica da economia política. Vol. I, Tomo 2 (Col. Os
Economistas). São Paulo: Abril Cultural, 1984.
______. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico.
Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

Obras de apoio

ANTUNES, R. A corrosão do trabalho e a precarização estrutural. In:


Navarro L, Lourenço EAS, organizadoras. O avesso do trabalho III: saúde
do trabalhador e questões contemporâneas. 1. ed. São Paulo: Outras
Expressões; 2013. p. 21-28.
Reflexões (im)pertinentes sobre as
condições e relações de trabalho de
Assistentes Sociais gaúchos/as a partir da
Reestruturação Produtiva

9
TATIANA REIDEL1
LAÍS D. CORRÊA2
ANDREIA PEDROSO3
JÉSSICA TELES4
MARIANA ATTI5

1
Assistente social, doutora em Serviço Social (PUCRS) e professora
do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS); líder do grupo de estudo, pesquisa e extensão
GEPETFESS/UFRGS, sobre Trabalho, Formação e Ética Profissional em
Serviço Social. Bolsista produtividade 2 do CNPq. E-mail: tatyreidel@
gmail.com
2
Assistente social, graduada em Serviço Social pela Universidade de
Caxias do Sul (UCS), mestra em Política Social e Serviço Social pela
UFRGS; doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
bolsista do CNPq. E-mail:duarte.lais@hotmail.com
3
Assistente social, graduada em Serviço Social pela Universidade do Vale
do Rio do Sinos (UNISINOS). Servidora pública no Instituto Federal do
Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Viamão. Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social (UFRGS), O presen-
te trabalho foi realizado com apoio do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). E-mail: pedroso.an-
dreia@gmail.com
4
Assistente social, graduada em Serviço Social pela Faculdade
Anhanguera de Caxias do Sul, mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Política Social e Serviço Social (UFRGS), . E-mail: jessica_s_teles@
hotmail.com
5
Assistente social, graduada em Serviço Social pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social (UFRGS), E-mail: cos-
taleitemariana@gmail.com
164 O Futuro do trabalho no século XXI

1. Introdução

E
sta produção é oriunda da pesquisa interinstitucional
denominada “Perfil, Formação e Trabalho Profissional
de Assistentes Social no estado do Rio Grande do Sul”
(REIDEL et al., 2018), realizada a partir de 2019 com a articula-
ção de pesquisadores/as vinculados/as aos cursos de Serviço
Social e aos programas de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e ao
Conselho Regional de Serviço Social (CRESS) 10ª Região. A
pesquisa objetivou investigar como se configura o perfil, a
formação e o trabalho de assistentes sociais no Rio Grande do
Sul (RS) com vistas a delinear desafios e estratégias profissio-
nais para atuação das entidades da categoria e de unidades de
ensino, além de contribuir no fortalecimento da hegemonia
do projeto ético-político profissional.
Parte dessas questões emergiram dos estudos reali-
zados e pesquisas empreendidas nos grupos de pesquisa
liderados pelas pesquisadoras que, em diálogo permanente
com o CRESS-RS, perceberam a emergente necessidade de
empreender uma pesquisa interinstitucional que articulasse
esforços acadêmicos e profissionais num escopo capaz de
apreender, no âmbito estadual, a realidade da formação e do
trabalho de assistentes sociais na atual conjuntura brasileira.
Nessa direção, a pesquisa ancorou-se numa abordagem crí-
tica e totalizante do Serviço Social, na sua inscrição na realidade
brasileira e regional, buscando desvendar tendências postas
no movimento da sociedade. Ou seja, como destaca Iamamoto
(2015, p. 203-204), o Serviço Social só adquire “[...] sentido e inte-
ligibilidade na história da qual é parte e expressão [...]”, quando
a história é “[...] socialmente determinada por circunstâncias
sociais objetivas [...]”, também é “[...] produto da atividade dos
sujeitos que a constroem coletivamente, em condições sociais
dadas”. Reconhece-se, assim, a importância de apreender a
realidade de um dos territórios onde se conforma a profissão,
considerando as particularidades e os determinantes históri-
cos que contribuíram na sua conformação; ao mesmo tempo,
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 165

incorporamos elementos que se referem às manifestações da


questão social no contexto estadual e as respectivas formas
para o seu enfrentamento por parte do coletivo profissional,
do Estado e da sociedade em geral.
Trata-se de um contexto no qual há um contingente de
assistentes sociais quase maior numericamente do que
aquele formado ao longo de toda a trajetória histórica bra-
sileira do Serviço Social, tendo em vista que, atualmente, o
Brasil é o segundo país com o maior número de assistentes
sociais. Conforme dados do Conselho Federal de Serviço
Social, foram contabilizados mais de 200 mil profissionais
com registro nos 27 Conselhos Regionais (CRESS) exis-
tentes em cada estado e no Distrito Federal, ficando atrás
apenas dos Estados Unidos da América. No estado do RS,
no CRESS-RS, no período da pesquisa, pouco mais de 8 mil
assistentes sociais estavam com registro ativo.
O aumento do número desses/as profissionais disponíveis
no mercado de trabalho, em busca de espaços sócio-ocupa-
cionais, foi possibilitado tanto pelos incentivos dos gover-
nos progressistas para ingresso no ensino superior quanto
pela própria expansão da oferta de cursos na modalidade
de ensino à distância (EAD) (Corrêa et al., 2021). Essa dinâ-
mica, contraditoriamente, contribui para a manutenção do
exército industrial de reserva1, mecanismo indispensável ao
modo de produção capitalista e explicitado na Teoria Geral
da Acumulação Capitalista, incidindo diretamente na maior
exploração dos/as trabalhadores/as ocupados e no rebaixa-
mento dos seus salários.
Concomitantemente a esse processo, a classe trabalhadora
tem vivenciado as transformações no mundo do trabalho no

1
“O exército industrial de reserva funciona como regulador do nível geral
de salários, impedindo que se eleve acima do valor da força de trabalho
ou, se possível e de preferência, situando-o abaixo desse valor. Outra
função do exército industrial de reserva consiste em colocar à disposição
do capital a mão-de-obra suplementar de que carece nos momentos de
brusca expansão produtiva, por motivo de abertura de novos mercados,
de ingresso na fase de auge do ciclo econômico etc.” (Marx, 1996, p. 41).
166 O Futuro do trabalho no século XXI

contexto de reestruturação produtiva, pela lógica da Indústria


4.0 e a partir da expansão do uso das tecnologias de informação
e comunicação (TICs), acompanhadas de uma enorme regres-
são dos direitos sociais, sobretudo os trabalhistas, ao mesmo
tempo em que se ampliam as desigualdades. Exemplo disso foi
a legalização da terceirização e a aprovação da contrarreforma
trabalhista em 2017.
Nessa perspectiva, e partindo do pressuposto de que o
Serviço Social se constitui em uma especialização do traba-
lho coletivo, dentro da divisão social e técnica do trabalho,
partícipe do processo de (re)produção das relações sociais
(Iamamoto, 2015), sendo o/a assistente social um/a “[...] traba-
lhador(a) assalariado(a), submetido(a) aos dilemas e constran-
gimentos comuns a todos(as) trabalhadores(as) assalariados(as)”
(Corrêa; Reidel, 2021, p.137-138), faz-se necessário compreender
como as transformações já referidas incidem na profissão.
Considera-se, portanto, fundamental a identificação e a
análise do perfil profissional e das condições e relações de
trabalho de assistentes sociais a partir das transformações dos
espaços sócio-ocupacionais. Dito isso, este capítulo objetiva
apresentar elementos sobre a configuração das relações e con-
dições de trabalho de assistentes sociais no território gaúcho
frente aos impactos da reestruturação produtiva, em um con-
texto de ofensiva neoliberal, que incidem na constituição de
novas morfologias do trabalho, especialmente a partir da 4ª
Revolução Industrial, que traz consigo a intensificação do uso
das TICs, trazendo novas tendências e desafios para a profissão.
Para tanto, esta produção evidenciará parte dos achados
e análises da pesquisa interinstitucional já apresentada no
que tange ao perfil de assistentes sociais, bem como analisará
como essas características se expressam no trabalho profis-
sional. Trata-se de uma pesquisa de caráter misto, ancorada
no método materialista histórico-dialético, aprovada pre-
viamente no Comitê de Pesquisa e de Ética2 da UFRGS, cujos
dados foram coletados via questionário, enviado de forma

2
Projeto aprovado pelo CEP do Instituto de Psicologia/UFRGS (CAAE:
05366918.1.0000.5334).
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 167

online juntamente com o Termo de Consentimento Livre e


Esclarecido (TCLE) para todos os/as 8.503 profissionais que se
encontravam ativos/as no ano de 2019 no Conselho Regional.
Destes, 2.930 assistentes sociais responderam à pesquisa.
A plataforma utilizada, Survey Monkey, permitiu a análise
de variáveis de tipo inferencial, e foi realizado tratamento
estatístico simples para os dados, além de, na sequência, ser
realizada análise de conteúdo. Também realizaram-se oito
grupos focais, sendo quatro realizados nas seccionais do
CRESS 10ª Região com sede nas cidades de Caxias do Sul
e de Pelotas, com profissionais ativos/as do Conselho; três
realizados na cidade de Porto Alegre, capital do estado do
RS e município sede do Conselho, com representantes dos
38 núcleos de base do CRESS (NUCRESS) que representam e
se localizam em diferentes regiões do estado; e um realizado
com assistentes sociais pertencentes ao NUCRESS da região
do Vale do Taquari. Os dados coletados nos respectivos grupos
foram transcritos e igualmente analisados por meio da aná-
lise de conteúdo (Bardin, 2011) para o tratamento dos dados.
Nesta produção, considerando a extensão do banco de
dados constituído, se dará ênfase para o aprofundamento
sobre a relação entre o trabalho, tecnologia e reestruturação
produtiva com a configuração do perfil, condições e relações
de trabalho dos/as participantes desta pesquisa.
Este capítulo inicialmente evidenciará o perfil de assisten-
tes sociais que participaram deste estudo, problematizando
o recorte de gênero e raça, com ênfase para as relações que
são estabelecidas no contingente de profissionais assistentes
sociais, à partir da visão crítica dos pilares que sustentam a
formação sócio-histórica da sociedade pela perspectiva da
luta de classes, considerando as marcas patriarcais, racistas
e de exploração que passam a balizar as condições e relações
de trabalho de assistentes sociais gaúchos/as. Na sequência,
serão desenvolvidas análises sobre as condições e relações
de trabalho de assistentes sociais gaúchos/as a partir da
reestruturação produtiva e, com ela, da intensificação das
estratégias de exploração da classe trabalhadora, dentre elas
168 O Futuro do trabalho no século XXI

a crescente incorporação das tecnologias de informação e


comunicação nos processos de trabalho.

2. Mulheres trabalhadoras: perfil da profissão


de assistente social no Rio Grande do Sul

Os resultados da pesquisa evidenciam um perfil de pro-


fissionais do gênero feminino (93,79%), brancos/as (82,77%),
com maior concentração na faixa etária entre 30 e 39 anos
(35,6%), sendo que 12,9% estão na faixa dos 20 aos 29 anos,
contabilizando, assim, 48,5% dos profissionais participantes.
Trata-se de profissionais casados/as (37,90%), praticantes de
alguma religião (63,22%) – dentre as quais se destaca o catoli-
cismo, com 43,93% dos/as participantes. Assim, identifica-se
que o perfil majoritariamente feminino e branco da profissão
se constitui como marca desde seu surgimento (Iamamoto;
Carvalho, 2010), expressando desigualdades de gênero no
mercado de trabalho, como a desigualdade salarial. Ainda,
identificou-se que a maior faixa salarial da categoria está com-
preendida entre 3 e 4 mil reais (20,10%), seguida pela faixa
de 2 a 3 mil reais (19,53%). Dos/as profissionais participantes,
88 (4,60%) não recebem salário algum, e 56 (2,92%) recebem
menos de um salário-mínimo.
Percebe-se, diante do exposto, um forte marcador de
gênero (Cisne, 2004). Para melhor compreender as condições e
relações de trabalho de assistentes sociais gaúchos/as que são
estabelecidas a partir das transformações em curso dos pro-
cessos de reestruturação produtiva – e ao analisar os dados da
pesquisa considerando as marcas sócio-históricas de gênero,
raça e classe como constituintes do perfil profissional –, é
necessário realizar um resgate histórico sobre essa categoria
na sociedade de classes. O patriarcado é um pilar fundamental
para a dominação de uma parcela da população, e é utilizado
para a manutenção de um sistema de exploração central para
a manutenção do capitalismo. Essa vinculação entre capital e
a opressão da mulher é tão relevante que a primeira relação
de propriedade privada foi entre os homens e suas esposas
(Engels, 2009), pois eles precisavam saber quem eram seus
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 169

filhos biológicos para fins de passagem de herança. Assim,


o gênero feminino foi transformado em uma posse, relação
de opressão que, mesmo com diversas transformações, se
mantém na atualidade.
Outro pilar importante para a manutenção do sistema
capitalista, através, novamente, da exploração acentuada de
parte de sua população, são as relações hierarquizadas de raça.
No Brasil, país historicamente vinculado ao colonialismo e à
escravização de indígenas e negros, a herança da discrimi-
nação e exploração racial é muito evidente (Devulsky, 2021).
Sabe-se que a população não branca vive, em sua maioria, nas
periferias, em situação de miserabilidade. Mesmo que essa
sociedade viva sob o mito da “democracia racial” (Almeida,
2015), percebe- se que a realidade dessa população no país é
de vivência das expressões mais dramáticas da questão social,
como as diversas expressões da violência e desigualdade.
O capital se apoia nas relações hierarquizadas de raça e de
gênero, visando aumentar ao máximo seu potencial de extra-
ção da mais-valia através da superexploração dos sujeitos dis-
criminados, como no caso das mulheres e das pessoas pretas.
Analisando esses elementos em conjunto, classe, gênero e raça,
é possível compreender que não é ao acaso que as mulheres
pretas ocupam as profissões mais precárias e desvalorizadas
dessa sociedade, pois “[...] por meio das apropriações advindas
das relações de raça e sexo, o capitalismo amplia o contin-
gente humano disponível para os mais baixos salários” (Cisne,
2015, p. 70). Assim, é preciso compreender a articulação entre
gênero, raça e classe como parte da mesma realidade, como
um “nó” (Saffioti, 2015).
Essa lógica das relações hierarquizadas entre os sujei-
tos na sociedade capitalista é observada nos mais diversos
espaços, como no mundo do trabalho assalariado. Ainda que
a entrada da mulher nesse espaço tenha representado, por
um lado, avanços importantes para o movimento feminista,
no sentido de permitir às mulheres ocupar espaços além do
doméstico e ter uma pequena autonomia financeira, por outro,
significou a intensificação da precarização na vida dessas
trabalhadoras (Cisne, 2004). Elas, além do trabalho doméstico
170 O Futuro do trabalho no século XXI

não remunerado, precisavam realizar trabalho fora de casa


para garantir sua própria subsistência, bem como de suas
famílias. Além disso, a entrada de mulheres no trabalho assa-
lariado foi parte de uma estratégia do capital para baratear o
custo da força de trabalho, utilizando-se da suposta docilidade
feminina, que melhor aceitaria diversas formas de precariza-
ção (Cisne, 2014).
Com a investigação, foi possível evidenciar a carga horá-
ria semanal de trabalho das assistentes sociais participantes,
sendo que 1.038 profissionais que responderam à questão
referente a esse tema realizam mais de 30 horas semanais
de trabalho; destas, 50,6% com jornadas que variam entre 31
e 50 horas semanais, portanto a maioria dos/as profissionais
pesquisados/as.
Esse dado permite indagar sobre dificuldades de concreti-
zação do direito à jornada de 30 horas que se instituiu desde
2010, considerada como uma importante conquista da cate-
goria, alcançada por meio da Lei nº 12.317 (Brasil, 2010), que,
conforme evidenciado, não vem sendo implementada.

A entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho


está relacionada às “novas” estratégias do capital de acumu-
lação flexível e desmonte dos direitos trabalhistas, aprovei-
tando-se de uma suposta maior submissão das mulheres a
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 171

condições de trabalho precárias. A exemplo disso, temos os


baixos salários, ambientes insalubres, assédios constantes,
bem como a diferenciação negativa de ditas qualidades “femi-
ninas”, como delicadeza, cuidado e agilidade, para marcar
certos trabalhos como “femininos” ou “masculinos”, “fáceis”
ou “difíceis”, usando-se, assim, de justificativas biológicas
para a divisão sexual do trabalho e havendo “[...] a apropria-
ção pelos homens das funções com maior valor social adi-
cionado” (Hirata; Kergoat, 2007, p. 599).
Ou seja, a divisão sexual do trabalho é um conceito que
compreende a divisão e naturalização de determinadas
tarefas para cada sexo. Além disso, reforça que não se trata
apenas de uma divisão, mas sim de uma hierarquização do
considerado masculino em detrimento do feminino, em que
o segundo é desvalorizado e precarizado, sendo “[...] base
das assimetrias e hierarquias contidas nessa divisão” (Cisne,
2015, p. 89). Assim, profissões historicamente femininas, por
serem relacionadas a características supostamente naturais
das mulheres, são mais mal remuneradas, têm piores condi-
ções de trabalho e menos prestígio dentro de nossa sociedade.
Nessa lógica, as mulheres são responsáveis, dentro das famí-
lias, pelas tarefas domésticas e de reprodução da força de traba-
lho – as quais são invisibilizadas, mas essenciais à manutenção
da apropriação capitalista – e também pelas de âmbito laboral
(Hirata; Kergoat, 2007). O Serviço Social, profissão predomi-
nantemente feminina, encontra-se dentro dessa problemática,
visto que é composta majoritariamente por mulheres que acu-
mulam essa dupla ou até tripla jornada de trabalho.
O surgimento da profissão de Serviço Social não é uma
mera evolução da caridade, como erroneamente se acredita
dentro do senso comum e como se tem como marca exógena
à profissão até os tempos atuais. Tratou-se da organização,
fundamentalmente pela força de trabalho feminina, de uma
resposta estatal vinculada à Igreja Católica ao surgimento
de tensões advindas da luta de classes, das organizações e
revoltas proletárias contra sua exploração frente à importân-
cia que essa classe percebe ter na organização da sociedade
capitalista (Iamamoto, 2011).
172 O Futuro do trabalho no século XXI

Essa organização de um controle para as demandas


da classe trabalhadora não foi acidentalmente feminina.
Tratava-se de se utilizar dos atributos tidos como naturais às
mulheres, como o cuidado, a delicadeza, a disposição à mater-
nidade e às questões da infância, para atuar junto às tensões
que surgiam na época, principalmente a partir das chefes
de famílias operárias (Closs et al., 2021). Ou seja, o Serviço
Social surge, como diversas outras profissões, da concepção
de ampliação do trabalho reprodutivo, na intenção de “ensinar”
as mulheres trabalhadoras, culpabilizadas pela miséria de
suas famílias, sobre os afazeres domésticos, como o cuidado
com os filhos, a higiene, a organização do lar, entre outras, na
intenção de resgatar os valores burgueses que eram enfren-
tados pelas revoltas e reivindicações.
Com os achados desta pesquisa, evidencia-se que as tra-
balhadoras assistentes sociais estão vinculadas predominan-
temente à Política de Assistência Social (51,23%), seguida pela
Política de Saúde, que absorve 24,86 % dos/as participantes,
por outras políticas (20,52%) e, por último, pela Política da
Previdência Social (3,39%), conforme demonstrado na Tabela 2.

Com o estudo realizado, percebe-se que a profissão de


assistente social, majoritariamente feminina (Cisne, 2004),
segue em uma posição de subalternidade que, entre outros
fatores, se deve à posição desvalorizada que as mulheres
ocupam dentro da sociedade capitalista. Como expressão
dessa hierarquização entre os sexos, temos a desigualdade
salarial. Em nível nacional, no ano de 2019, a média salarial
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 173

geral foi de R$ 2.308, e as mulheres receberam R$ 1.985 (Barros,


2020), coadunando com a realidade salarial de assistentes
sociais, conforme exposto. Vale ressaltar que, nesse mesmo
ano, a faixa nacional de salário recebido por mulheres foi
28,7% menor que o salário dos homens. A média nacional para
profissionais com ensino superior foi de R$ 5.108, enquanto
70,44% das profissionais participantes dessa pesquisa recebe-
ram menos que esse valor. Essa desigualdade fica ainda mais
acentuada considerando a questão racial, visto que pessoas
pretas receberam 27,5% menos que a média nacional.
Além disso, a predominância da vinculação com o catoli-
cismo também deve ser considerada, pois a origem do Serviço
Social se dá no seio do bloco católico no Brasil, vinculada à
classe dominante, ao conservadorismo e às práticas de cari-
dade, características particulares da profissão também no RS.
Contudo, é importante refletir acerca da porcentagem relativa
aos profissionais espíritas (21,53%) e evangélicos (13,12%), uma
vez que a primeira vertente possui características vinculadas
à caridade, e a segunda corresponde ao avanço do neopente-
costalismo no país desde os anos 1980 (Mariano, 1996), com
fortes influências no campo cultural conservador e no político
conservador. Não se pretende generalizar as vinculações reli-
giosas, pois se compreende a contradição e disputas ideológi-
cas que as perpassam. Entretanto, é pertinente pontuar que
características dessas vertentes coexistem na sociedade e se
refletem na profissão, uma vez inscrita no Brasil. Nesse sen-
tido, destaca-se o movimento de avanço do conservadorismo
e a satanização do marxismo na sociedade, que se expressam
na profissão por meio de vertentes como o “Serviço Social
Clínico” e o “Serviço Social Libertário”.
Reflete-se, nesse sentido, sobre a incidência desses movi-
mentos que negam os fundamentos teórico-metodológicos
críticos da profissão no Brasil, na apreensão da questão social
e de suas expressões como objeto de trabalho, bem como na
apreensão da própria categoria trabalho e condição de traba-
lhador/a assalariado/a, uma vez que “[...] o atual quadro sócio-
-histórico não se reduz a um pano de fundo para que se possa,
depois, discutir o trabalho profissional” (Iamamoto, 2015, p. 19).
174 O Futuro do trabalho no século XXI

Portanto, é imprescindível entender o movimento da realidade


em sua concretude e em sua totalidade histórica, em contra-
posição ao endogenismo, observando que marcas de origem
da profissão subsistem, redefinidas na atualidade, conferindo
traços peculiares ao exercício profissional (Iamamoto, 2015).
Isso porque, conforme adverte Netto (2015), trata-se de um
processo muito complexo, em que rompimentos se entrecru-
zam e se superpõem a continuidades e reiterações.

3. As condições e relações de trabalho


de assistentes sociais gaúchos/as a
partir da reestruturação produtiva

As mudanças estruturais orientadas pelo sistema capi-


talista, no advento da expansão das formas de exploração
da força de trabalho, têm incorporado, sem medidas, o uso
das tecnologias de informação e comunicação (TICs), que
constituem um elemento central devido ao novo e profundo
salto tecnológico no mundo produtivo, com características
da automação e robotização, com a instauração de novas
formas de controle digital do capital sobre os trabalhadores,
alterações na cadeia de valor e ampliação do trabalho morto
a partir das inovações em estratégias de flexibilização do
trabalho, tornando-o cada vez mais supérfluo e sobrante
(Antunes, 2020).
As TICs emergem com a proposta de aumentar o tempo
livre do trabalhador. No entanto, contraditoriamente, inten-
sifica-se o paradoxo do aumento do exército de reserva,
aumentando também o tempo disponível para o trabalho
dos trabalhadores ocupados, em uma lógica em que as tec-
nologias do trabalho atravessam o espaço doméstico dos/
as trabalhadores, afetando prioritariamente as mulheres,
sem que se perceba o aumento do tempo de disposição das
atividades laborais e das inúmeras jornadas estabelecidas
(Rizzotti; Nalesco, 2022).
A Indústria 4.0 é compreendida como um fenômeno
que vem alterando significativamente as forças produtivas,
com amplitude global, em que trabalhadores/as de todos
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 175

os setores produtivo e de serviços passam a ter suas ações


reformuladas a partir da intensificação da precarização da
força de trabalho, tendo em vista as constantes desregula-
mentações e as precárias condições de trabalho (Antunes,
2020). As TICs se constituem como elementos centrais da
Indústria 4.0 e impactam diretamente os processos e rela-
ções de trabalho, bem como a autonomia e a relativa autono-
mia de trabalhadores nos seus espaços sócio-ocupacionais. A
Indústria 4.0 – definida pela produção inteligente, internet
das coisas, inteligência artificial, computação em nuvem,
algoritmos, onde tudo se interliga – possibilita, portanto,
por meio do uso das TICs, o aumento dos mecanismos de
controle do capital sobre os trabalhadores por meio de sua
relação com as inovações tecnológicas.
Concomitante à incorporação das TICs ao trabalho, acom-
panhou-se, em nível global, a implementação do neolibera-
lismo3, visto como uma solução e um projeto de dominação
de classe, em um momento de crise capitalista. O neolibe-
ralismo visa amplificar a extração de mais-valia, estabele-
cendo barreiras para a resistência de trabalhadores. Assim,
mediante a combinação de coerção e consenso, foram sendo
instituídas mudanças, tais como medidas privatizantes e
liberalizantes, a saber: o aumento da exploração da força
de trabalho, o tratamento segmentado das expressões da
questão social e a privatização das formas de enfrentamento
dadas à questão social, inviabilizando as construções coleti-
vas e fragmentando as análises da realidade (Brettas, 2020).
Ocorre, assim, um processo contraditório nesse con-
texto informatizado do trabalho no mundo maquinal digital,

3
O engendramento do neoliberalismo, no âmbito mundial e, em dado
momento, no Brasil, ocorre dentro das chamadas Revoluções Industriais.
Em 1970 (período da Terceira Revolução Industrial), acontece a disse-
minação da implementação do neoliberalismo no Chile, em um primeiro
momento, com o golpe de estado do General Pinochet, em defesa da
liberdade do mercado, mas sem o acompanhamento dos direitos e/ou
liberdades civis e políticas, o que, consequentemente, leva à concentra-
ção da riqueza nas mãos da burguesia. Essa experiência se replicou nos
Estados Unidos e na Inglaterra com o nome de democracia burguesa.
176 O Futuro do trabalho no século XXI

reconhecido, segundo Antunes (2018, p. 136), “[...] pela informa-


lização do trabalho (trabalhadores sem direitos), presente na
ampliação dos terceirizados/subcontratados, flexibilizados,
trabalhadores em tempo parcial, teletrabalhadores, potenciali-
zando exponencialmente o universo do trabalho precarizado”.
Nesse ínterim, o processo produtivo também sofreu
mudanças em sua constituição. A flexibilização produtiva, as
desregulamentações, as formas novas de gerir o capital, o cres-
cimento da terceirização da mão de obra e da informalidade,
colocam o Brasil em um novo momento do capitalismo. Os
processos produtivos da acumulação flexível combinada com
elementos do taylorismo e do fordismo, ainda presentes em
muitos ramos produtivos, indicam que o fordismo à brasileira
já incorporava novos processos produtivos, principalmente
aqueles provenientes da experiência toyotista. Esses proces-
sos de transformação dos padrões produtivos e tecnológicos,
combinados com os níveis de exploração da força de trabalho,
constituem a nova face do capitalismo neoliberal no Brasil,
resultando em novas formas, mais perversas, de exploração
da força de trabalho (Antunes, 2018).
É nesse contexto, inegavelmente adverso, que o traba-
lho de assistentes sociais também passa por reformulações,
tendo em vista que a conjuntura, com foco privilegiado na
questão social, não é apenas um pano de fundo do exercício
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 177

profissional, pois é constitutiva do trabalho e do Serviço


Social, não devendo, portanto, ser apreendida como exterior
à profissão (Iamamoto, 2015).
Buscando desvendar as particularidades da realidade da
profissão, a Tabela 3 apresenta os dados da pesquisa sobre
a natureza das instituições onde os/as assistentes sociais
participantes da pesquisa trabalham, assim como apresenta
também a realidade de trabalho autônomo, voluntário e outros.
Embora em contexto de desmonte das políticas públicas
sociais e de mudanças estruturais no universo do mundo do
trabalho, destaca-se que os espaços ocupacionais que con-
centram o maior número de vagas para o trabalho de assis-
tentes sociais, conforme evidenciado na Tabela 3, consistem
fundamentalmente no âmbito das políticas sociais públicas,
visto que dos/as 1.915 assistentes sociais que responderam
sobre o seu tipo de vínculo, 66, 33% (1.251) trabalham no setor
público municipal, estadual ou federal.
Cabe destacar ainda que esses espaços ocupacionais no
âmbito da execução de políticas sociais públicas também
têm passado por profundas reformulações relacionadas à
reestruturação produtiva, por meio da adoção do uso das
tecnologias, incidindo, por sua vez, no trabalho das assis-
tentes sociais. São mudanças que impactam as especifici-
dades do trabalho profissional, em expansão após o início
da pandemia de covid-19, com a introdução de ferramentas
tecnológicas “[...] que apontam para o binômio de diminuição
de custo e mais produção e impactam na organização e na
gestão do trabalho” (Rizzotti; Nalesso, 2022, p. 94).
No âmbito das políticas públicas, também se evidencia
essa relação entre os seres humanos e as máquinas na esfera
do trabalho, em “[...] uma nova relação dialética, tanto na
divisão do trabalho intelectual e braçal como na organiza-
ção e divisão sociotécnica no âmbito da organização social”
(Rizzotti; Nalesso, 2022, p. 103), que é expressa no cotidiano
de trabalho das assistentes sociais a partir do aceleramento
informacional e comunicacional, mas também mediante
as estruturas digitais estabelecidas para o atendimento da
população nos programas de transferência de renda, que
178 O Futuro do trabalho no século XXI

privilegiam os mecanismos digitais (Auxílio Emergencial,


Auxílio Brasil, Cadastro Único via aplicativo), entre outras
alterações no universo educacional, submetido à lógica mer-
cadológica, com ensino mediado também pelas plataformas
digitais.
Nessa medida, a incorporação das TICs tem alterado os
processos de trabalho em que se inserem os/as assistentes
sociais, impactando diretamente as condições e relações de
trabalho desses/as profissionais, bem como impactando as
exigências do mercado, que passa a requerer um novo perfil
de profissional, atento/a às mudanças tecnológicas e capaci-
tado/a para operacionalizar esses sistemas na rapidez e na
lógica ultraneoliberal, condições essas que têm redesenhado
as políticas públicas na atualidade e têm aumentado a lógica
competitiva entre a categoria.
Além da inserção majoritária nas políticas sociais públicas,
os/as assistentes sociais também exercem seu trabalho em
organizações não governamentais sem fins lucrativos, orga-
nizações da sociedade civil, fundações, organizações sociais,
assim como na modalidade de trabalhadores/as autônomos/
as, voluntários/as, entre outros, representando todo esse gru-
pamento um contingente de 21,47% dos/as respondentes (411
assistentes sociais). Apesar de tais inserções apresentarem as
mesmas características do trabalho nas políticas públicas, a
relação de trabalho estabelecida ocorre de forma ainda mais
precarizada devido às formas de contratação, que priorizam os
vínculos de trabalho de contratos temporários, terceirizados,
intermitentes, com ausência de seguranças sociais previden-
ciárias e direitos sociais trabalhistas, os quais também vêm
sendo incorporados pelo serviço público.
A partir dessa realidade, identifica-se que, dos/as 1.915
assistentes sociais que responderam sobre seu tipo de vín-
culo, 19,11% (366) definem-se como em contratos temporários,
autônomas, prestadoras de serviço, terceirizadas e trabalha-
doras intermitentes. Essas formas de contratação são mar-
cadas pela lógica do trabalho uberizado, que é caracterizado
como um novo modelo de gestão e controle do trabalho, que
privilegia a contratação de serviços sem vínculo empregatício
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 179

e, consequentemente, sem dispor de garantias previdenciárias


por parte do empregador, reforçando essa lógica de contratos
temporários e relações instáveis (LIMA, 2022), ou até mesmo
assumindo uma perspectiva ilusória de autogestão do traba-
lho, pela lógica do empreendedorismo.
Essa instabilidade dos contratos de trabalho, favorecida
pelos processos de uberização, relaciona-se diretamente à
precarização do trabalho não somente no que se refere à insta-
bilidade das relações trabalhistas, mas também pelos proces-
sos que são estabelecidos. Conforme indicado por Lima (2022),
essas formas de contratação passam também a gerar meca-
nismos que intensificam as pressões sobre os trabalhadores
a partir da execução exaustiva do trabalho, com exigências de
eficiência e agilidade relacionadas à tecnologia digital, ambas
características que são acompanhadas pela desvalorização
salarial, já vivenciada estruturalmente pelas mulheres, acen-
tuando ainda mais a precarização de suas vidas.
Posto isso, torna-se evidente o quanto a reestruturação
produtiva também se manifesta na particularidade da profis-
são. Entretanto, questiona-se quanto aos impactos da trans-
formação tecnológica no trabalho de assistentes sociais e na
relação desse/a profissional com os/as usuários/as que atende,
mesmo que seja indispensável a incorporação de novas tec-
nologias. Nessa perspectiva, em um contexto de acirramento
da questão social e retração do Estado, acompanha-se, conco-
mitantemente, o crescimento de demandas direcionadas aos/
às assistentes sociais. Contudo, o atendimento mediado pelas
TICs afasta o/a profissional do trabalho direto com a população,
tornando o acompanhamento sistemático e o estabelecimento
de relações continuadas algo difícil, além dos desafios éticos e
técnicos postos ao exercício profissional. Trata-se, portanto, de
um movimento insidioso que, aos poucos, vai transformando
a natureza da profissão, requerendo, contraditoriamente, em
um momento de afastamento, união e organização para resis-
tir (Raichelis, 2011).
Vale lembrar que a incorporação das TICSs foi fortemente
expandida no contexto da pandemia da covid-19, tornando
necessárias adequações na esfera produtiva e fazendo com
180 O Futuro do trabalho no século XXI

que trabalhadores/as tivessem que se adaptar rapidamente,


trazendo novas possibilidades e novos desafios para a classe
trabalhadora e, consequentemente, ao exercício profissional
dos/as assistentes sociais.
Desta feita, requisita-se transformações também no âmbito
da formação profissional no que se refere ao uso das tecnologias,
“[...] no sentido de se construir competências e novas habilidades
para o mundo cibernético da informação tecnificada, tendo a
direção democrática no seu uso” (Rizzotti; Nalesco, 2022, p. 105),
ao mesmo tempo em que se deve considerar o acesso restrito
(dadas as desigualdades sociais do país) da classe trabalhadora
às tecnologias da informação.
Conforme já explicitado neste capítulo, e diante do aumento
do exército industrial de reserva e da precarização dos vín-
culos contratuais de trabalho, isentos de qualquer proteção
social, os/as trabalhadores/as ocupados/as têm seus salários
cada vez mais rebaixados. Ao passo que é sabido da desigual-
dade salarial, dada a divisão sexual do trabalho, acompanha-
-se a ampliação da quantidade de vínculos empregatícios e
funções enquanto alternativa da classe trabalhadora, e, nesta,
das mulheres trabalhadoras, para a sua sobrevivência e de
suas famílias. Em relação a esse aspecto, no âmbito do Serviço
Social, do total de 1.915 (100%) participantes, 212 (11%) disseram
ter dois empregos, seguidos/as de 12 (0,63%) com três vínculos
e seis (0,31%) com quatro.
Infere-se que esse acúmulo de vínculos empregatícios de
assistentes sociais pode estar relacionado à fragilidade dos vín-
culos contratuais, principalmente os que se referem ao trabalho
terceirizado. Isso porque, conforme informações levantadas
por pesquisas por todo o país (Antunes, 2018), nos últimos vinte
anos, a precarização do trabalho está diretamente ligada à ter-
ceirização da mão de obra de forma central. Os trabalhadores
terceirizados ganham menos, trabalham mais, têm mais ins-
tabilidade e menos direitos e são os que mais se acidentam e
morrem durante a realização do trabalho, indicando que tais
características decorrem das condições precárias de trabalho,
incluindo a falta de medidas preventivas de acidentes, jorna-
das longas, transferências dos maiores riscos aos empregados
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 181

terceirizados, ausência de qualificações adequadas para o tra-


balho a ser realizado, bem como o descumprimento de normas
reguladoras de prevenção, como a falta de equipamento de pro-
teção individual (EPI) entre outras situações. Ou seja, essa é uma
forma de gestão discriminatória, que destrata os trabalhadores
que já estão numa situação de menor proteção trabalhista. A
terceirização também contribui para a perda da identidade cole-
tiva dos trabalhadores, acirrando a alienação e reduzindo ainda
mais o valor do trabalho humano. Ela cobre com um “manto de
invisibilidade” os trabalhadores nela enquadrados, como faci-
litadora do descumprimento da legislação trabalhista e como
forma ideal para o empresariado não ter limites (regulados pelo
Estado) no uso da força de trabalho e da sua exploração como
mercadoria (Antunes, 2018).
A mesma lógica que estimula a contínua inovação na
arena da tecnologia e dos novos produtos financeiros, atinge
a força de trabalho de forma ímpia, transformando os tra-
balhadores em obsoletos e descartáveis, que precisam ser
substituídos por outros mais modernos, ou seja, flexíveis. “É
o tempo de novos (des)empregados, de homens empregáveis
no curto prazo, através das (novas) e precárias formas de con-
trato” (Druck, 2011, p. 43). Trata-se, portanto, da precarização
do trabalho como elemento central da atual dinâmica da
evolução capitalista, ou seja, a precarização é também uma
estratégia de dominação (Druck, 2011). Assim, reflete-se que,
haja vista a existência de vínculos já precarizados no âmbito
do Serviço Social, há uma tendência de sua ampliação na
categoria, tanto na esfera pública quanto na privada.
Mediante a força e consentimento, o capital viabiliza seus
ganhos. A força se refere à imposição das condições precárias
de trabalho. Diante da ameaça constante de desemprego, o
pensamento gerado é: qualquer emprego é melhor do que
nenhum. Se cria uma concorrência entre os próprios tra-
balhadores, o que garante a submissão e subordinação ao
capital quase absoluta, pois a percepção é de que essa é a
única forma existente de sobrevivência para os trabalha-
dores (Druck, 2011). Atualmente, vive-se um novo nível de
precarização, denominado de existencial, que “[...] não se
182 O Futuro do trabalho no século XXI

reduz ao estresse ideológico provocado pela precarização do


homem como ser humano-genérico, mas diz respeito também
à degradação das condições de existência” (Alves, 2013, p. 243).
Com isso, a alienação se reconfigura de uma forma mais
interiorizada e sombria, em que o trabalhador, agora deno-
minado de colaborador ou consultor, se obriga a envolver-se
com os objetivos do capital. Atualmente, a educação requerida
pelo capital tem como características a agilidade, a flexibi-
lidade e ainda deve ser sucinta, por isso as grandes corpo-
rações criaram as universidades corporativas, para fabricar
trabalhadores/as com seus valores empresariais já incutidos
(Antunes; Pinto, 2018).

Hoje, enquanto se acompanha a expansão dos cursos fle-


xíveis, identifica-se no ensino superior uma nova pragmática
da educação do capital, uma formação que focaliza o desenvol-
vimento de habilidades e competências estritamente para as
exigências do mercado. A lógica da educação como mercadoria
se oferta com o menor custo possível enquanto se prolifera o
ensino à distância “[...] sob métodos ‘tutoriais’, atingindo não
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 183

apenas a formação técnica de caráter esporádico e profissio-


nalizante, mas cursos de graduação, inclusive licenciaturas,
e de pós-graduação nas mais diversas áreas” (Antunes; Pinto,
2018, p. irreg.).
Ressalta-se que a precarização do trabalho no Brasil não é
algo novo; no entanto, a partir dos anos 1990, ela assume uma
nova conformação e manifestações que atingem inclusive o
trabalho de assistentes sociais, que é, por sua vez, a “[...] expres-
são de um movimento que articula conhecimentos e luta por
espaços no mercado de trabalho; competências e atribuições
privativas que têm reconhecimento legal nos seus estatutos
normativos e reguladores” (Raichelis, 2011, p. 429), e os traba-
lhadores que exercem a profissão se sujeitam aos enquadra-
mentos institucionais, mas também se organizam e se mobili-
zam enquanto trabalhadores, repensando sua intervenção no
campo do trabalho profissional.
Na pesquisa realizada, os principais desafios e dificulda-
des encontradas pelas trabalhadoras, assistentes sociais do
RS, estão sistematizados na Tabela 4 (ao lado).
A partir dos dados evidenciados na Tabela 4 quanto aos
desafios e dificuldades para o exercício profissional no espaço
sócio-ocupacional, destaca-se a importância de a precarização
social do trabalho ser compreendida como “[...] um processo
multidimensional que altera a vida dentro e fora do trabalho”
(Franco; Druck; Seligmann-Silva, 2010, p. 231), expressan-
do-se de diferentes formas. Por tratar-se de um fenômeno
multidimensional, abrange diferentes aspectos, tais como: a
vulnerabilidade e as desigualdades das formas de inserção
ocupacional; a intensificação do trabalho e a terceirização,
ampliando o ritmo e as jornadas de trabalho, as metas inal-
cançáveis, a polivalência; a insegurança e a saúde no trabalho;
a perda das identidades individual e coletiva; a fragilização da
organização dos/as trabalhadores/as (Druck, 2011).
Nesses processos tensos, são constituídos os projetos pro-
fissionais e, no caso do Serviço Social, o projeto ético-político
profissional entra em constante tensão com a condição de tra-
balhador assalariado (Raichelis, 2011). Por esse motivo, dentre
tantas outras questões que surgem com a reformulação do
184 O Futuro do trabalho no século XXI

trabalho permeado pelas tecnologias, é que se torna impres-


cindível compreender a relação entre as mudanças no mundo
do trabalho, via avanços tecnológicos, e a saúde mental de tra-
balhadores. Sob a perspectiva do “[...] materialismo histórico,
apreende-se a categoria do trabalho como condição universal
da existência humana, resultante do dispêndio de energias físi-
cas, mentais e espirituais que expressam a relação inexorável
entre a saúde do trabalhador e seu trabalho” (Lima, 2022, p. 154).
As condições de trabalho estão também relacionadas às
capacidades e aos conhecimentos dos meios de operaciona-
lizar os saberes nos espaços institucionais em que se está
inserido (Mendes; Wunsch; Reidel, 2019), lógica que reforça
a importância de desmistificação das formas de apropriação
do capital sobre o trabalho intelectual da classe trabalhadora,
muito presentes nas formas de alienação do trabalho de ser-
vidores públicos e executores de políticas sociais, como os
assistentes sociais.
As novas tecnologias de informação, em sua contraditó-
ria relação de avanço tecnológico, também elevam os níveis
de exploração e de controle do trabalhador em todas as suas
dimensões (Lima, 2022). No âmbito do serviço público não é
diferente; considerando que o Estado é o empregador desses
trabalhadores, se faz necessário situar o momento histórico,
mas também o papel do Estado nessas relações entre capital
e trabalho, que na atualidade são expressas via desmonte das
políticas sociais, conservadorismo e desmonte de direitos his-
toricamente construídos, questões que impactam diretamente
as condições de trabalho desses trabalhadores.

4. Considerações finais

Diante de um cenário de intensas reformulações resultan-


tes dos processos de flexibilização do mercado de trabalho, os
desdobramentos que fazem parte desse novo modelo de rees-
truturação produtiva – expressos pelo desemprego estrutural,
pelo aumento de serviços autônomos, dos subempregos, con-
tratos temporários, entre outros vínculos que são reconfigura-
dos, com novas demandas impostas à classe trabalhadora, em
as condições e relações de trabalho de assistentes sociais 185

especial às mulheres, mediante a crescente incorporação das


tecnologias nos processos de trabalho – possuem incidência
direta no trabalho dos/as assistentes sociais.
Nesse sentido, e considerando a constatação, por meio deste
estudo, de que o perfil de identificação permanece majoritaria-
mente feminino e branco, com repercussões que atravessam as
particularidades de gênero, raça e classe na profissão, reflete-
-se sobre as desigualdades decorrentes dessas determinações
estruturais, tais como a desigualdade salarial entre homens e
mulheres, e entre mulheres negras/indígenas em relação às
mulheres brancas. Ao mesmo tempo, essas desigualdades se
atrelam à precarização dos vínculos empregatícios, cada vez
mais isentos de proteção social e trabalhista dados os rebati-
mentos da reestruturação produtiva na profissão.
Assim, com a contrarreforma trabalhista de 2017 e a auto-
rização da terceirização nesse mesmo ano, e dada a insufici-
ência de condições de sobrevivência com apenas um vínculo
de trabalho, evidencia-se assistentes sociais com acúmulo
de vínculos, bem como aqueles terceirizados e intermitentes.
Os dados ainda revelam o racismo estrutural, na medida
em que se evidencia o acesso ao ensino superior para mulheres
brancas, bem como também reafirma a exploração da força
de trabalho feminina nos espaços de trabalho em condições
precárias, com subcontratações e com as ampliações de jor-
nadas de trabalho acrescidas ao trabalho invisível, que é pre-
dominantemente desenvolvido por esse público.
Considerando que há uma lacuna no que tange estudos
sobre o perfil profissional, conclui-se destacando que os dados
do perfilamento contribuem para a compreensão da particula-
ridade da profissão no RS, e destaca-se também a relevância do
processo investigativo e deste estudo, que permitirá o avanço
de análises sobre a ampliação da diversificação e pluralidade
desse perfil para projeções de estratégias que façam resistên-
cia aos desafios postos na sociedade e reafirmem a direção
social assumida pelo projeto ético-político profissional.
Além desses elementos, buscou-se analisar a incorporação
das TICs no trabalho profissional, intensificada com a pande-
mia da covid-19, dando indícios de um novo perfil profissional.
186 O Futuro do trabalho no século XXI

As mudanças no perfil dos profissionais do Serviço Social se


intensificam na medida em que a nova dinâmica no mundo
do trabalho é reformulada, dado que alerta para novas requi-
sições, desafios e resistências que são expressos nos espaços
sócio-ocupacionais.
Em um momento de plena expansão das tecnologias, as
contradições na relação entre trabalho e capital são sutis, e
essas mudanças são incorporadas estrategicamente, como se
tivessem a intenção de aumentar o tempo livre dos/as traba-
lhadores/as, com mecanismos que apresentam contribuições
tecnológicas que visam acelerar os processos produtivos, mas
que passam, contraditoriamente, a aumentar as formas de con-
trole e de exploração da classe trabalhadora. Desse modo, o
capitalismo contemporâneo em fase de reestruturação pro-
dutiva modifica as condições de trabalho e, consequentemente,
o perfil das profissionais, tornando necessários estudos que
possam contribuir para identificar as expressões situadas
nessas contradições, em especial pela crescente incorporação
das TICs nos espaços sócio-ocupacionais onde os/as assisten-
tes sociais estão inseridos/as, reafirmando a necessidades de
reflexão crítica sobre as formas de reprodução da vida social e
material frente aos intensos processos de exploração da classe
trabalhadora.

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Desigualdade de gênero no trabalho:
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10 JÚLIA SOARES VIEIRA2


ANDREA ANTICO SOARES3

Introdução

É
fato que ainda existe uma imensa desigualdade
quanto ao gênero, tanto no Brasil quanto no mundo
todo. No mercado de trabalho, isso não é diferente.
Ainda existem graves diferenças salariais entre homens e
mulheres, assim como diferenças estruturais em diversos
cargos e ramos.
Levando em consideração que a desigualdade entre
homens e mulheres é um problema que, ao longo da história,
sempre foi presente e que ainda ocorre na atualidade, se faz
necessário um debate sobre a incidência das desigualdades
no ambiente de trabalho, acreditando-se que a sociedade
patriarcal em que vivemos tem total relação com os proble-
mas que serão apresentados neste trabalho.

1
Trabalho de Conclusão de Curso em Direito apresentado ao Centro
Universitário Eurípides de Marília, para obtenção do grau de bacharel
em Direito.
2
Aluna do Curso de Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília,
São Paulo.
3
Orientadora e Professora Ms. do Curso de Direito da Centro Universitário
Eurípides de Marília, São Paulo.
192 O Futuro do trabalho no século XXI

Este trabalho tem por objetivo mostrar que as desigual-


dades entre homens e mulheres no ambiente de trabalho
ainda estão muito presentes na sociedade contemporânea,
e, desta forma, serão feitas análises de pesquisas realizadas
tanto no Brasil quanto em âmbito global, assim como um
estudo voltado especificamente para a área do Direito, bus-
cando avaliar o nível de sua contribuição em tais situações
no ambiente de trabalho.
Assim, reflexões sobre as desigualdades salariais, o baixo
número de mulheres em posições de lideranças, a violência
no mundo trabalho, bem como práticas que podem ser toma-
das com o objetivo de diminuição dessas desigualdades serão
os temas aqui retratados.
Como objetivos específicos da presente pesquisa, temos a
análise de pesquisas feitas pelo IBGE, OIT, ONU, entre outras
organizações; verificar como o Direito Trabalhista contribui
para as relações entre homens e mulheres no ambiente labo-
ral; demonstrar como ainda é um problema recorrente e que
necessita ser debatido.
A metodologia utilizada será a dedutiva, onde o ponto de
partida serão premissas gerais para se chegar a premissas
específicas, analisando e relacionando-as, buscando chegar
a uma conclusão. Serão utilizados como fontes de pesquisa
artigos, pesquisas científicas, dados, leis e palestras a fim de
embasar o presente trabalho.

Desigualdade de gênero no trabalho: mundialmente

A mulher está presente no ambiente de trabalho há muitas


décadas, sendo que sua participação começou a crescer prin-
cipalmente na época da Revolução Industrial.
Esta participação se deu como mão de obra barata e
também na época das grandes guerras, pois precisavam
tomar as rédeas em fábricas e comércios ao substituírem os
homens que iam para a guerra (Oliveira, 2019, p. 18).
A esse respeito, destacam Fonseca et. al. (2014, p. 1171)
a respeito da subordinação da mulher ao poder masculino
naquela época, e, ainda:
Desigualdade de gênero no trabalho 193

Historicamente, a mulher ficou subordinada ao poder


masculino, tendo basicamente a função de procriação,
de manutenção do lar e de educação dos filhos, numa
época em que o valor era a força física. Com o passar
do tempo, porém, foram sendo criados e produzidos
instrumentos que dispensaram a necessidade da força
física. No entanto, mesmo com a inserção das mulhe-
res no mercado de trabalho, essas desigualdades entre
os sexos foram acentuadas. As mulheres permane-
ceram numa posição de inferioridade em relação aos
homens, fato este que é comum atualmente quando
ainda se verifica que elas não se encontram numa
mesma posição no mercado, pois continuam a per-
ceber remuneração bem menor que a dos homens.
(Fonseca et. al., 2014, p. 1171)

Então, é possível constatar que não é de hoje que existem


diferenças salariais, preconceitos e discriminação com relação
às mulheres, o que se dá também no ambiente de trabalho.
Contudo, com todas as transformações legislativas e
morais que a sociedade passou nos últimos tempos, não é
mais aceito que pessoas em iguais condições de trabalho,
mesma função e local de trabalho, bem como ao mesmo
tempo na empresa, recebam tratamentos e salários diferentes.
Não são apenas as diferenças salariais percebidas em todo
o mundo que evidenciam as desigualdades ainda existentes
no mundo moderno. O número de mulheres em posição de
liderança é consideravelmente menor quando comparado ao
número de homens. Do ano de 1901 até 2022, dos mais de
900 receptores do Prêmio Nobel, apenas 58 foram mulheres
(Vereckey, 2022).
Em palestra feita em 2013 para o TEDxEuston,
Chimamanda Ngozi Adichie, feminista e escritora nigeriana,
além de mostrar exemplos sobre as mais diferentes discrimi-
nações sofridas por ela e por outras mulheres diariamente,
ela também diz que a maior parte das posições de poder e
prestígio são ocupadas por homens, conforme:
194 O Futuro do trabalho no século XXI

Existe um número um pouco maior de mulheres do que


homens ao redor do mundo, cerca de 52% da popula-
ção mundial é feminina. Porém, a maioria das posi-
ções de poder e prestígio são ocupadas por homens. A
ganhadora queniana do Prêmio Nobel da Paz, Wangari
Maathai, bem colocou quando disse: “Quanto mais alto
você for, menor será o número de mulheres”4 (Adichie,
2013; tradução da autora)

E, apesar de ter sido uma palestra realizada em 2013, esta se


mantém muito atual, pois as estatísticas continuam mudando
muito lentamente. No relatório internacional realizado pela
empresa Grant Thornton5: “Women in Business 2020: Do plano de
ação à prática”, vemos que em 2011 a proporção de mulheres e
homens em cargos de liderança globalmente era de 20% para as
mulheres e 80% para os homens, e em 2020 o número aumen-
tou pouco, sendo 29% e 71%, respectivamente. Já na América
Latina, a proporção em cargos de liderança representa 33%
para as mulheres.
Nem todos os dados que foram apresentados no relatório
são negativos. É possível ver que a proporção de empresas
de médio porte com pelo menos uma mulher em cargo de
liderança globalmente em 2015 era de 68% e esse número foi
para 87% em 2020.
Entretanto, apesar deste último dado apresentar uma melho-
ria, os outros continuam mostrando grandes disparidades,

4
There’s slightly more women than men in the world, about 52% of the world’s
population is female. But most of the positions of power and prestige are
occupied by men. The late Kenyan Nobel Peace Laureate, Wangari Maathai,
put it simply and well when she said: “The higher you go, the fewer women
there are.”
5
A Grant Thornton é uma das maiores empresas globais de audito-
ria, consultoria e tributos. Nossa escala global, combinada com sólidos
conhecimentos de mercados locais, permite auxiliarmos organizações
dinâmicas a liberarem seu potencial de crescimento, oferecendo reco-
mendações significativas, voltadas ao futuro. (Sobre nós, site da Grant
Thornton)
Desigualdade de gênero no trabalho 195

deste modo nos resta ainda uma dúvida: por que o número
de mulheres em cargos de liderança é tão baixo?
Não existe uma única resposta para essa pergunta, e
dentre tantas respostas possíveis para tal pergunta, Sheryl
Sandberg6, em sua palestra dada ao TED em 2010, ressalta
que, em uma casa em que o homem e a mulher trabalham em
período integral e têm uma criança, a mulher faz duas vezes
mais o trabalho doméstico do que o homem e a mulher gasta
três vezes mais tempo cuidando da criança do que o homem.
Neste sentido, quando é necessário que alguém fique
em casa cuidando da criança, a mãe acaba escolhendo essa
última alternativa. Sendo assim, estabelecer a importância
de se dividir as tarefas da casa se torna apenas um dos fato-
res essenciais para manter as mulheres no ambiente laboral.

1.2. Organização Internacional do Trabalho - OIT

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também


tem seu papel na luta para promover melhores condições de
trabalho. Um dos objetivos da OIT é promover oportunida-
des para ambos os gêneros para que possam obter trabalho
decente e produtivo em condições de liberdade, equidade,
segurança e dignidade humana (OIT).
Ademais, além de suas principais metas, a OIT também
criou um Plano de Ação voltado para a igualdade gênero em
1999 que deveriam ser implementados por todos da OIT, os
principais elementos estabelecidos foram:

(...) fortalecer os arranjos institucionais; introduzir


mecanismos de responsabilização e monitoramento;

6
Sheryl Sandberg é uma executiva, ativista e autora norte-americana,
mais conhecida como COO (Chief Operating Officer) do Facebook e fun-
dadora da Leanin.org, uma organização sem fins lucrativos cujo objeti-
vo é “oferecer a mulheres apoio e inspiração para ajudá-las a alcançar
seus objetivos”. Sandberg foi a primeira mulher a servir o conselho do
Facebook, além de ser vice-presidente de vendas e operações on-line
do Google. (Biografia retirada do Canal Tech)
196 O Futuro do trabalho no século XXI

alocar recursos adequados para a integração de gênero;


melhorar e aumentar a competência dos funcionários
em matéria de género; e melhorar o equilíbrio entre
mulheres e homens entre os funcionários de todos os
níveis7 (fonte, tradução da autora)

Além disso, é possível citar como exemplo o Centro


Internacional de Treinamento (International Training Centre)8
que dentre os diversos cursos e treinamentos presenciais,
também faz parte da Organização Internacional do Trabalho
e tem como um de seus principais objetivos promover um
ambiente de trabalho sem discriminação de gênero.
Nesse diapasão:

O Centro de Turim defende e visa promover locais de


trabalho iguais, inclusivos e que respeitem as diferenças.
Todos os trabalhadores devem se sentir à vontade para
serem eles mesmos no trabalho. A não discriminação é
um direito humano básico com consequências sociais e
econômicas. A igualdade fomenta oportunidades, apro-
veita o talento humano e aumenta a coesão social. As
atividades de treinamento do Centro buscam eliminar
a discriminação baseada em gênero, raça, etnia, condi-
ção indígena, deficiência e HIV/AIDS. Fornecendo con-
selhos, ferramentas, orientação e assistência técnica.
A igualdade de gênero é um motor político para todos
os resultados das políticas da OIT. A OIT implementa

7
strengthen institutional arrangements; introduce accountability and moni-
toring mechanisms; allocate adequate resources for gender mainstreaming;
improve and increase staff’s competence on gender; and improve the balance
between women and men among staff at all levels. In addition to the ILO-
wide policy and action plan, all five ILO regional offices have developed policy
statements and strategies.
8
O Centro Internacional de Treinamento está na vanguarda do aprendiza-
do e treinamento desde 1964. Como parte da Organização Internacional
do Trabalho, dedica-se a alcançar o trabalho decente enquanto explora
as fronteiras do futuro do trabalho. (INTERNATIONAL TRAINING CENTRE ,
tradução da autora)
Desigualdade de gênero no trabalho 197

e analisa intervenções para garantir que as mulheres


se beneficiem igualmente dos esforços de desenvolvi-
mento.9 (International Training Centre, tradução da autora).

Entretanto, como ocorre na maior parte das regiões do


mundo, umas das dificuldades da OIT no estabelecimento de
seus padrões foi o trabalho das mulheres e a luta feminista
pela inclusão das mulheres e sua representação justa, pois
havia muitas perspectivas diferentes de como deveria ser o
papel da mulher no ambiente de trabalho até mesmo entre
elas, ou seja, enquanto tínhamos visões mais conservadoras de
que a mulher deveria cuidar apenas dos afazeres domésticos
também possuíamos mulheres que defendiam a necessidade
de medidas e legislações protetivas voltadas especificamente
para as trabalhadoras bem como outras que acreditavam que
para ocorrer a completa igualdade entre os gêneros, as leis
deveriam continuar genéricas (Maul, 2019, p. 60).
Assim, por mais que a OIT não tenha o poder de intervir nos
Estados e implementar medidas obrigatórias a serem cumpri-
das, é importante que tanto o Brasil quanto outros países do
mundo possam se basear nos dados disponibilizados, nos pro-
gramas fornecidos e nas orientações divulgadas pela organiza-
ção visando aprimorar cada vez mais o ambiente de trabalho.
Se faz pertinente, também, discorrer a respeito da violên-
cia que se encontra presente no meio ambiente de trabalho e
como as estatísticas demonstram que esta pode ser constatada

9
Gender equality is a cross-cutting policy driver for all ILO policy outco-
mes. The ILO implements and analyses interventions to ensure that women
benefit equally from development efforts. The Turin Centre advocates for
and aims to foster workplaces that are equal, inclusive, and respectful of
difference All workers should feel comfortable to be themselves at work. Non-
discrimination is a basic human right with social and economic consequences.
Equality fosters opportunity, harnesses human talent, and boosts social
cohesion. The Centre’s training activities seek to eliminate discrimination
based on gender, race, ethnicity, indigenous status, disability, and HIV/AIDS.
They provide advice, tools, guidance, and technical assistance. (International
Training Centre, acesso em 16/06/2022)
198 O Futuro do trabalho no século XXI

frequentemente em diversos setores, o que será tratado no


próximo tópico.

1.3. A Violência no trabalho

É fato que qualquer pessoa pode ser vítima, bem como


cometer atos de violência e de assédio no mundo do trabalho
(OIT, 2018, p. 18). Tanto homens quanto mulheres podem sofrer,
bem como podem perpetuar a violência que trará consequ-
ências físicas e/ou psicológicas para aqueles que se tornam
vítimas desses atos.
Neste sentido, é destacado pela Organização Internacional
do Trabalho (2018, p. 28) que:

A violência física e o assédio podem deixar cicatrizes


físicas evidentes, mas deixam também cicatrizes emo-
cionais que requerem reabilitação e aconselhamento de
especialistas. A violência e o assédio nos planos psico-
lógico e sexual podem produzir efeitos tais como ansie-
dade, depressão, cefaleias, transtornos do sono, o que
tem repercussões negativas no desempenho laboral
(Caponecchia e Wyatt, 2011; Cihon e Castagnera, 2011,
pág. 177). (OIT, 2018, p. 28)

Há de se falar também nas consequências para as empre-


sas e economias que ocorrem diretamente em decorrência
da violência e do assédio ocorridos no mundo do trabalho,
incluindo o absentismo, diminuição no volume de negócios,
custo dos litígios, pagamento de indenizações assim como
redução da produtividade e impacto público que pode preju-
dicar a imagem da empresa envolvida. (OIT, 2018, p. 30)
Além de afetar as empresas, o relatório da OIT: “Acabar com
a violência e o assédio contra mulheres e homens no mundo
do trabalho” também demonstra que:

Estima-se que, em 2007, as empresas e outras entida-


des do Reino Unido perderam“ 33,5 milhões de dias de
trabalho devido ao absentismo provocado por atos de
Desigualdade de gênero no trabalho 199

bullying, que cerca de 200.000 trabalhadores deixa-


ram os seus empregos e que se perdeu um total equiva-
lente a 100 milhões de dias de produtividade, também
como resultado do bullying”, o que resultou num custo
estimado de cerca de 13.750 milhões de libras ester-
linas (Giga et al., 2008, pág. 3). Na Austrália, o custo
anual estimado originado por atos de bullying para
os empregadores e para a economia em geral situa-se
entre 6.000 e 36.000 milhões de dólares australianos
(Comissão de Produtividade do Governo da Austrália,
2010, p. 279). (OIT, 2018, p. 30)

As estatísticas também revelam que não são apenas supe-


riores hierárquicos ou chefias diretas que estão a frente no
porcentual de assédio sexual, representando 17% das pes-
soas consultadas na pesquisa realizada pelo Congresso de
Sindicatos Britânicos, segundo relatório da OIT, enquanto
54% das pessoas indicaram que seus perpetradores eram
colegas de trabalho mostrando que muitas vezes a violência
está muito mais perto do que imaginamos (OIT, 2018, p. 18)

2. Desigualdade de gênero no trabalho: Brasil

Após alguns demonstrativos mundiais da perpetuação


das desigualdades salariais, desigualdades hierárquicas e
violências ocorridas no ambiente de trabalho onde, em sua
grande maioria, a vítima é a mulher, esse tópico terá como
objetivo mostrar qual o papel do Brasil e da legislação nacio-
nal no combate dessas injustiças.

2.1. Gênero, trabalho e violência

Conforme dados fornecidos pelo IBGE em pesquisas feitas


em 2018, as desigualdades salariais entre homens e mulhe-
res, por mais que tenham diminuído, continuam existentes,
por exemplo, a pesquisa aponta que as mulheres recebem
apenas 79,5% do valor do rendimento médio total recebido
pelos homens, tendo pouco avanço com relação aos dados de
200 O Futuro do trabalho no século XXI

2012, que apresentavam um percentual de 76,6%. Já o Correio


Braziliense, em 2015, postou uma matéria dizendo que dados
globais indicam que as mulheres ganham cerca de 77% do
valor que os homens recebem (Correio Braziliense, 2015).
Essas diferenças se tornam cada vez mais gritantes quando
pensamos que, no mesmo ano informado, o percentual de
trabalhadores no Brasil com pelo menos o Ensino Médio
Completo e Ensino Superior nas idades de 25 a 49 anos era
de 22% entre as mulheres ocupadas e apenas 18,4% entre os
homens ocupados. Ou seja, apesar de haver um maior número
de mulheres com escolaridade mais alta, ainda não é possível
observar uma igualdade salarial para ambos os sexos.
E no ambiente trabalhista não temos apenas problemas
de desigualdade salarial e hierarquização, o assédio sexual e
o assédio moral também estão muito presentes.
Em uma notícia publicada no site do Tribunal Regional
do Trabalho da 13ª Região mostra que, somente no ano de
2021, ou seja, em plena pandemia do Covid-19, foram rela-
tados “mais de 52 mil casos relacionados a assédio moral e
mais de três mil relativos a assédio sexual em todo o país”,
dados que não devem passar despercebidos pois demons-
tram a grande violência existente no mundo trabalho sofridas
tanto por mulheres quanto por homens, mesmo que a taxa
de desemprego e o número de pessoas trabalhando remota-
mente tenham aumentado.
Assim, diante de tais dados, o TRT da 13ª Região iniciou
uma campanha com diversas palestras e debates que visavam
combater tais práticas por meio de conscientização das pessoas
e instrução às pessoas para que, caso se vejam em alguma situ-
ação que configure tais abusos, saibam como agir e proceder.
A OIT também discorre sobre o assunto, explicando o
conceito de violência no ambiente de trabalho de acordo
com a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as
Mulheres, conforme:

De acordo com a Declaração sobre a Eliminação


da Violência contra as Mulheres, proclamada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas de 1993, constitui
Desigualdade de gênero no trabalho 201

violência sobre as mulheres «todo o ato de violência


baseado no género do qual resulte dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico para as mulheres» e inclui
entre esses atos «a violência física, sexual e psicológica
perpetrada dentro da comunidade em geral, incluindo
a violação, o abuso sexual, o assédio e a intimidação
sexuais no local de trabalho”. (OIT, 2018, p. 11)

Portanto, é importante mencionar o papel dos resquícios


de uma sociedade predominantemente patriarcal e sexista,
que entendia que a mulher era naturalmente destinada ao
trabalho doméstico e ao cuidado e criação dos filhos, bem
como submetida ao patriarca que detinha total poder sobre
o destino de sua família. Neste sentido:

Se, na Roma antiga, o patriarca detinha poder de vida e


morte sobre sua esposa e seus filhos, hoje tal poder não
mais existe, no plano de jure. Entretanto, homens con-
tinuam matando suas parceiras, às vezes com requin-
tes de crueldade, esquartejando-as, ateando-lhes fogo,
nelas atirando e as deixando tetraplégicas etc. O jul-
gamento destes criminosos sofre, é óbvio, a influência
do sexismo reinante na sociedade, que determina o
levantamento de falsas acusações – devassa é a mais
comum – contra a assassinada. A vítima é transfor-
mada rapidamente em ré, procedimento este que con-
segue, muitas vezes, absolver o verdadeiro réu. (Saffioti,
2011, p. 45-46)

Além disso, como bem explicado por Heleieth Saffioti, o


julgamento de pessoas que cometem abusos, tanto físicos
quanto morais, é fortemente influenciado pela sociedade que
não raramente procura buscar motivos para tais violências e
se volta contra a vítima, geralmente mulher, tentando colocá-
-la como a instigadora, a manipuladora, a “devassa” na busca
de uma explicação para as ações violentas e, por fim, trans-
formando a vítima em ré, perdendo totalmente o foco real
de tais ações.
202 O Futuro do trabalho no século XXI

À vista disso, é possível observar que tanto as discrimi-


nações e as violências são constantes ao longo da história da
humanidade, situações que em uma sociedade contemporânea
não deveriam mais existir, portanto, não menos importante é
o papel do Poder Legislativo e do Poder Judiciário para enfren-
tar tais situações e punir aqueles que as cometem.

2.2. A Constituição Federal do Brasil e a


Consolidação das Leis Trabalhistas

A divisão sexual do trabalho é um dos tópicos apresentados


no trabalho publicado na revista Direito em Debate, intitu-
lado de Os Direitos da Mulher no Mercado de Trabalho: da
Discriminação de Gênero à Luta Pela Igualdade, mostrando
como o sistema patriarcal influenciou que essa divisão gerasse
atribuições de atividades aos homens e mulheres com base
em seu sexo biológico, e que hoje em dia isso ainda ocorre,
como com a nomeação de funções tidas como exclusivamente
femininas, sendo em sua maioria atividades domésticas, e
atribuindo aos homens atividades definidas como produtivas.

(...) Em tempos modernos e após tantas lutas para ingres-


sar e se manterem no mercado de trabalho, as mulheres
ainda sofrem inúmeros preconceitos, seja pela mais
pura e injustificável discriminação, seja pela notória
e inconsistente preferência que muitos empregadores
possuem de contratar homens, diante da variedade de
normas de proteção que existem visando à proteção do
trabalho da mulher. Salienta-se que estas normas são
imprescindíveis, além de serem um reflexo da socie-
dade patriarcal, haja vista a cultura do machismo ser
inerente no meio social, representam uma conquista
do trabalho feminino, pois visam à inserção deste
corpo social no âmbito trabalhista. O fim das normas
de proteção do labor feminino representaria, além de
um contrassenso, um retrocesso, posto que a grande
maioria das mulheres seria obrigada a permanecer
dentro de seus lares, objetivando a sua manutenção,
Desigualdade de gênero no trabalho 203

não conseguindo nem ao menos ingressar no mercado


de trabalho. (...) (Siqueira, Samparo, 2017, p. 301)

Nesse sentido, vemos que as normas de proteção visando


a proteção do trabalho da mulher são usadas como justifica-
tivas para o maior número de contratação de homens do que
mulheres, entretanto essas normas são de extrema importân-
cia, além de representarem algumas das conquistas femininas
ao longo dos anos que lutaram para obter um lugar no mundo
do trabalho e na sociedade.
Neste diapasão, além do direito à licença à gestante, sem
prejuízo do emprego e do salário (art. 7º da CF, XVIII) e a pro-
teção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos
específicos (art. 7º da CF, XX), temos também um artigo muito
importante para o nosso tema tratado que é “Art. 7º CF: XXX
- proibição de diferença de salários, de exercício de funções
e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou
estado civil;”.
Além disso, não podemos deixar de mencionar a
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que, assim como a
Constituição, trouxe e reforçou diversos direitos importantes
para as trabalhadoras. Dentre eles, o artigo 461 que reforça a
ideia de igualdade salarial sem distinção de sexo trazida pelo
artigo 7º, CF, XXX.

(...) a CLT, como principal fonte do direito do trabalho bra-


sileiro, estabeleceu alguns requisitos no artigo 461 para
que o empregado cuja produtividade (quantidade) e
perfeição técnica (qualidade) fossem idênticas a de seu
paradigma (modelo) e mediante o preenchimento de
alguns requisitos obrigatórios, pudesse buscar judi-
cialmente a equiparação salarial, mediante a consta-
tação de injusta desvantagem salarial. (Krawczun e
col., 2020, p. 556)

O artigo 461 é apenas um dos artigos da CLT que busca dar


iguais oportunidades aos homens e mulheres no ambiente
de trabalho, dentre eles o artigo 373-A também é muito
204 O Futuro do trabalho no século XXI

importante pois elenca as vedações ao empregador para que


não ocorra a discriminação em relação ao gênero, como por
exemplo, “recusar o emprego, a promoção ou motivar a dis-
pensa do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar
ou estado de gravidez” (Artigo 373-A, II da CLT).
O Capítulo III da Consolidação das Leis Trabalhistas é espe-
cificamente voltado à proteção do trabalho da mulher, trazendo
artigos que estabelecem o adicional do trabalho noturno (art.
381); aplicação de novos métodos de trabalho ou emprego de
medidas de ordem preventiva nos casos de serviços considera-
dos perigosos ou insalubres (art. 388); proibição de justa causa
motivada pelo fato da mulher contrair matrimônio ou encon-
trar-se em estado de gravidez (art. 391); direito à licença-ma-
ternidade em caso de gravidez (art. 392) ou adoção (art. 392-A)
sem prejuízo ao salário ou à estabilidade no emprego; dentre
tantos outros.
É possível destacar que o ordenamento jurídico tem se
modificado muito ao longo dos anos e que os entendimentos
de igualdade de gênero ainda são muito recentes. Ana Cristina
Magalhães (2013, p. 58;62), em sua dissertação de mestrado
muito bem explica essa questão, trazendo dados desde 1824 e
mostrando que muitas das alterações nas leis e constituições
realizadas ao longo da história não viam a necessidade da igual-
dade de gênero, e focavam apenas em assuntos relacionados à
maternidade e aspectos biológicos da mulher, sem se preocupar
tanto com os problemas de desigualdade que ocorriam.
A mulher pode até escolher não seguir por determinado
caminho, mas o ordenamento jurídico deve propiciar, e o Poder
Judiciário assegurar, que as oportunidades lhe sejam conferidas
e que estes caminhos lhe sejam abertos (Magalhães, 2013, p. 155)
Assim, por mais que as questões de igualdade de gênero no
ambiente do trabalho tenham sido cada vez mais observadas,
debatidas e tenhamos tantas leis que buscam a proteção e o
fim das desigualdades e violências, o mesmo não é visto na
realidade social.

(...) atualmente, mesmo após as diversas conquistas


legislativas na área dos direitos das mulheres no Brasil
Desigualdade de gênero no trabalho 205

e no mundo, existe uma grande dificuldade de aplicação


desses direitos devido às concepções, visões e valores da
sociedade. Ou seja, a questão cultural serve como um
desafio na implementação dos direitos das mulheres. (...)
Isso representa que um dos maiores problemas para o
gênero feminino atualmente não são, necessariamente, a
falta de direitos, mas o cumprimento efetivo dos direitos
já existentes (Tavassi et. al., 2021).

Então, apesar da proteção constitucional e das leis ordiná-


rias serem bem claras, ainda temos tantas diferenças salariais,
discriminações, trabalhos considerados predominantemente
masculinos/femininos, e por que quanto mais alto o cargo,
menor o número de mulheres? Talvez, uma das possíveis
explicações seja justamente a dada pela publicação “Os desa-
fios de implementação dos direitos das mulheres”, ou seja, as
concepções, visões e valores da nossa sociedade.

3. Perspectivas nacionais e
internacional: Comparativo

O problema da desigualdade de gênero no ambiente de tra-


balho é uma questão existente não apenas em nosso país, mas
é algo perceptível em todo o mundo de diferentes maneiras. É
verdade que os países desenvolvidos muitas vezes apresentam
porcentagens menores no quesito desigualdade, contudo não
deixam de refletir o que já acontece na maior parte dos países.
A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU, da
qual o Brasil faz parte, inclui a igualdade de gênero e o empode-
ramento de mulheres e meninas como um de seus objetivos e
metas, reforçando a ideia da importância e dos impactos positi-
vos que o fim das desigualdades e discriminações trariam para
a sociedade como um todo.

3.1. Estatísticas

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou


uma notícia no dia Internacional da Mulher em 2018 falando
206 O Futuro do trabalho no século XXI

que “Mulheres ainda são menos propensas a atuar no mer-


cado de trabalho do que os homens na maior parte do mundo,
diz OIT”, conforme dados do relatório Perspectivas Sociais e de
Emprego no Mundo: Tendências para Mulheres 2018 feito pela OIT:

De acordo com o relatório Perspectivas Sociais e de


Emprego no Mundo: Tendências para Mulheres 2018:
A taxa global de participação das mulheres na força
de trabalho – de 48,5% em 2018 – ainda é 26,5 pontos
percentuais menor que a taxa dos homens. Além disso,
a taxa de desemprego global das mulheres em 2018 – de
6% – é aproximadamente 0,8 pontos percentuais maior
do que a taxa dos homens. No total, isso significa que,
para cada dez homens empregados, apenas seis mulhe-
res estão empregadas (OIT, 2018, tradução da autora).

Diante desses dados vemos que ainda há desigualdades


que precisam ser debatidas, e que há um impacto não só no
Brasil, mas também em todo o mundo, afetando especial-
mente as mulheres, assim como a sociedade como um todo.
Dentre os impactos, podemos citar dois mencionados em
uma publicação realizada pelo Instituto Ethos10, sendo eles:
melhora na economia, conforme pesquisa realizada pela
Organização Internacional do Trabalho, se o objetivo do G20
de reduzir em 25% a taxa de participação das mulheres no
mercado de trabalho fosse alcançado, isso adicionaria US
$5,8 trilhões à economia global.
Também ocorreria impacto positivo no bem-estar das
mulheres, pois, muitas têm vontade de trabalhar em empre-
gos remunerados, porém muitas vezes não possuem os recur-
sos ou oportunidades para tal conquista.

10
O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social é uma OSCIP
(Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) cuja missão é
mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerirem seus negócios de
forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de
uma sociedade justa e sustentável (Instituto Ethos, 2017).
Desigualdade de gênero no trabalho 207

Na publicação realizada pela Organização Internacional do


Trabalho: The future of diversity (2021), é possível verificar que
há uma grande diferença entre homens e mulheres também
em áreas com altos grau de exigência, apesar do número de
pessoas que concluem o ensino superior, a porcentagem femi-
nina ainda é maior:

Globalmente, dos que concluem o ensino superior, a


maioria (53,3%) são mulheres. No entanto, em campos
de estudo com alto grau de exigência, incluindo disci-
plinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática
(termo STEM, do inglês), os homens continuam a domi-
nar. Embora em alguns países as mulheres estejam no
mesmo nível dos homens nessas disciplinas, a pro-
porção global de mulheres entre o total de graduados
nas matérias mencionadas de nível superior é de 37,8%.
Embora as mulheres estejam elevando suas qualifica-
ções, quase metade (47,9%) das empresas pesquisadas
descobriram a retenção de mulheres qualificadas em
seus negócios é difícil, e outras evidências mostram
que a promoção é um desafio. Quanto mais alto o cargo
em uma empresa, menor a proporção de mulheres (OIT,
p. 28, tradução da autora).11

A explicação para a dificuldade da retenção e promoção


de mulheres qualificadas nos negócios voltados a gestão
analisados se dá pela limitação das funções ocupadas por
mulheres, que geralmente são: recursos humanos, finanças

11
Globally, of those completing tertiary education the majority (53.3 per cent)
are women. However, in highly demanded fields of study, including science,
technology, engineering and mathematics (STEM) disciplines, men continue
to dominate. While in a few countries women are on par with men in these
disciplines, the global share of women among total tertiary STEM graduates
averages 37.8 per cent. Although women are raising their qualifications,
nearly half (47.9 per cent) of the enterprises surveyed found the retention
of skilled women in their business difficult, and further evidence shows that
promotion is a challenge. The more senior the position in a company, the
smaller the share of women. (ILO, p. 28)
208 O Futuro do trabalho no século XXI

e administração e vendas e marketing, sendo áreas que geral-


mente requerem menos estratégia e possuem menos influ-
ência nas áreas de direção de uma corporativa, o que impede
que as pessoas que trabalham nessa área, em sua maioria
mulheres, sejam consideradas para cargos em posições mais
elevadas e com maior poder de mudança.

3.2. Programas para diminuição das desigualdades

A necessidade do debate, seja nas escolas, em casa, no tra-


balho e na roda entre amigos, torna-se cada vez mais evidente
quanto, em pleno Século XXI, a mulher ainda é tratada como
objeto, não sendo considerada como ser humano digno de
respeito.
Hoje, muitas destas questões estão totalmente ligadas a
aspectos históricos e sociais de nossa sociedade que estão
enraizados e que, aos poucos, com as medidas certas, será
possível a mudança do atual cenário. Neste sentido:

(...) as causas das discriminações sofridas pelas


mulheres estão fortemente ligadas a cultura e histó-
rico social, sendo não suficiente os dispositivos legais
para combater essas injustiças. Portanto, é necessário
que haja uma compreensão coletiva pautada no res-
peito e na educação (Barros, 2022, p. 21)

A matéria realizada pelo Instituto Ethos, anteriormente


citada, também menciona algumas soluções trazidas pelo
próprio relatório da OIT, conforme:

O relatório recomenda medidas abrangentes para


melhorar a igualdade das condições de trabalho e
reformular os papéis de gênero, incluindo: promover a
igualdade de remuneração por trabalho de igual valor;
abordar as causas profundas da segregação ocupa-
cional e setorial; reconhecer, reduzir e redistribuir as
tarefas de cuidado não remuneradas; e transformar as
instituições para prevenir e eliminar a discriminação,
Desigualdade de gênero no trabalho 209

a violência e o assédio contra mulheres e homens no


mundo do trabalho (Ethos, 2017).

Então, além da importância da promoção da igualdade


de gênero no ambiente de trabalho pelo governo, seja pelo
Poder Legislativo seja pelo Poder Judiciário, e pelas empre-
sas, ao darem oportunidade, salários iguais a cargos iguais
e promoverem um espaço de confiança, a responsabilidade
também está no restante da sociedade como um todo.
Neste sentido, o portal Believe Earth publicou uma matéria
discorrendo sobre as 10 ações do dia a dia que promovem
a igualdade de gênero, ações essas que todos podem exer-
cer facilmente seja no dia a dia ou no ambiente de trabalho,
são elas: dividir o trabalho doméstico e o cuidado com os
filhos; ficar atento aos sinais de violência doméstica; apoiar
as mães e envolver os pais; não engajar e repreender atitudes
machistas e racistas; eleger, apoiar, financiar e dar espaço;
não supor, ouvir. Já as ações que podem ser exercidas no
ambiente de trabalho são: contratar diversidade; pagar e
exigir o mesmo salário para cargos iguais; tolerância zero
para atos de assédio sexual e racismo; realizar ou solicitar
treinamentos antirracismo e antipreconceito.
Desta forma, o portal Believe Earth traz diversos exemplos
de como é possível diminuir a desigualdade de gênero por
meio de ações que são exercidas diariamente.
No Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho, juntamente
com o Conselho Superior da Justiça do Trabalho, criou o
Programa Trabalho Seguro, seu foco principal é a prevenção
de acidentes de trabalhos, desta forma, também possui fun-
damental papel no debate da violência sofrida no mundo do
trabalho ao promover debates, entrevistas e palestras sobre
o assunto. Em 02 de novembro de 2018, por exemplo, um dos
temas do Programa Trabalho Seguro para o biênio 2018-2020 foi
“Violência no trabalho - enfrentamento e superação”, oca-
sião em que ocorreu uma entrevista com a ministra Delaíde
Miranda Arantes sobre o assunto.
Assim, é possível concluir que, além da importância do
debate, também se faz necessário o estímulo à implantação
210 O Futuro do trabalho no século XXI

de programas dentro das empresas que ajudem a combater


a desigualdade de gênero.

4. Considerações Finais

O presente trabalho buscou discorrer a respeito de questões


pertinentes à desigualdade de gênero no ambiente de traba-
lho, seja no contexto nacional, seja no contexto internacional,
e comparando ambos.
Para tanto, foram analisadas publicações da Organização
Internacional do Trabalho, artigos da Constituição Federal, arti-
gos da Consolidação das Leis Trabalhistas, bem como, publicações,
palestras e livros.
Com o objetivo de enfatizar a necessidade de discussões
sobre o assunto, foram trazidos dados do IBGE, da OIT e do
TST para que fique cada vez mais claro que ainda temos muito
caminho a percorrer para ao menos diminuirmos as dispari-
dades entre homens e mulheres no mundo do trabalho, seja no
Brasil, seja internacionalmente.
Ademais, cabe ressaltar que o presente artigo não buscou
sanar as diversas questões que envolvem as desigualdades de
gênero no ambiente de trabalho, e muito menos na sociedade
como um todo.
Desta forma, verifica-se a importância do constante
debate das questões pinceladas nesta pesquisa científica,
para que seja possível cada vez mais diminuir essas desi-
gualdades injustificadas.

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Tempo de Travessia: Embates à distopia
do presente para o alcance de uma efetiva
Justiça Climática1

11 MARCIO POCHMANN2
THAISY PEROTTO FERNANDES3

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que


já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos que nos
levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não
ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre,
à margem de nós mesmos.
Fernando Pessoa

Introdução

A
par das múltiplas crises que se abatem sobre a huma-
nidade, é perceptível a existência de múltiplos fatores
que convergem para o recrudescer dessas problemá-
ticas e tornam mais complexas as soluções possíveis. Esse
artigo objetiva apresentar em linhas gerais a teoria sistêmica,

1
Trabalho apresentado no XIII Seminário do Trabalho – O Futuro do
Trabalho no Século XXI, no eixo temático n. 2 (Trabalho e crise ecológica).
2
Doutor em Economia. Professor de Economia da UNICAMP
(Universidade Estadual de Campinas) e da UFABC (Universidade Federal
do ABC). Endereço eletrônico: mrcpochmann@gmail.com. ORCID n.
0000-0002-3940-1536.
3
Mestre em Relações de Trabalho pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do RS (UNIJUÍ). Bolsista CAPES. Professora da Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Endereço eletrô-
nico: tperotto@gmail.com. ORCID n. 0000-0001-8887-9651.
216 O Futuro do trabalho no século XXI

e o quanto essas múltiplas crises da sociedade planetária


precisam, para encontrar saída, de alternativas em mesma
perspectiva. Também oportuniza breve reflexão sobre a uti-
lização massiva dos recursos naturais, sobretudo a partir da
Primeira Revolução Industrial, apresentando em sequência
as correlações com as dimensões macroestruturais do capi-
talismo contemporâneo que ora coincidem, ora colidem com
os desejos individuais humanos.
Nesse sentido, e buscando descortinar um cenário de apa-
rente distopia, a pesquisa mira horizontes possíveis, focados
no necessário resgate às noções de interdependência humana
com o entorno, em caminho à reconciliação com a “teia da vida”.
Nesse propósito, ao citar alguns efeitos drásticos da mudança
climática, fica perceptível o quanto os direitos humanos estão
ameaçados. E nessa diretriz, o trabalho segue as linhas da
esperança de que a tragédia que se anuncia concretamente
em estatísticas e acontecimentos diversos, em todos os recan-
tos do planeta, possa ser revertida pelas mesmas mentes que
a propagam, sobretudo se alicerçadas em uma imperativa
mudança de percepção por parte dos membros da comunidade
humana em torno do respeito à biodiversidade e da compre-
ensão de sua pertença a uma mesma ecosfera.
Nesse sentido, a pesquisa segue a esteira do que a irlandesa
Mary Robinson, ex-Presidente da Irlanda e atuante nas ques-
tões de desigualdade e mais recentemente focada no estudo das
flutuações climáticas tanto adverte - o que estamos vivendo
é apenas um trailer de um longo filme que já começamos a
assistir. O cenário nos obriga a ter uma visão humanizada da
crise sistêmica, por ser carregada de injustiça, “afinal, aqueles
que menos impactam o ambiente são os que mais sofrem — os
mais vulnerabilizados, as populações ribeirinhas, os quilom-
bolas, as mulheres e as crianças”. (Robinson, 2021, p. 16).
Essas premissas vão ao encontro do que o ativista indígena
brasileiro Ailton Krenak tanto tem sinalizado – do quanto
os seres humanos esqueceram de se comportar como bons
hóspedes e a “pisar leve” em nosso planeta, como outras cria-
turas fazem. Em suas provocações ao nosso egoísmo humano,
sinaliza que, imersos nessa realidade nefasta de consumismo,
Tempo de Travessia 217

nos “desconectamos do organismo vivo da Terra” (2021, p. 18). A


pesquisa encerra em perspectiva oposta – se trilharmos essa
reconexão ecológica, no sentido de uma positiva convergên-
cia evolutiva, haveremos de somar as forças necessárias para
irromper os vieses de destruição, e trazer luz no caminho da
instituição de uma efetiva justiça climática – para todos.

1. O todo que nos conforma: Revisitando


teorias e compreendendo intersecções

A maioria de nós, e em especial nossas grandes instituições


sociais, concordam com os conceitos de uma visão de mundo obsoleta,
uma percepção da realidade inadequada para lidarmos com nosso
mundo superpovoado e globalmente interligado. Há soluções para
os principais problemas de nosso tempo, algumas delas até mesmo
simples. Mas requerem uma mudança radical em nossas percepções,
no nosso pensamento e nos nossos valores
Fritjof Capra, in “A teia da Vida”

A sétima arte nos salva em muitos momentos da existên-


cia, e muito nos ensina também, tanto quanto a ciência, as
experiências vividas ou a leitura de um bom livro. No recente
Documentário Fio da Meada, de Silvio Tendler, a fala inicial do
escritor argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz,
deixa isso evidente. Em suas palavras, a sabedoria “[...] não
está naquele que lê mais livros; a sabedoria está naquele que
compreende o sentido profundo da vida”. Salienta ainda que
“nós” somos integrantes – não somos os donos da natureza:
“somos uma pequena parte de toda a grande biodiversidade
da mãe Terra, da mãe Natureza4, dos rios, dos mares... Mas

4
“A palavra ‘natureza’ é emprestada do francês antigo nature; e é derivada
da palavra latina natura que quer dizer, “qualidades essenciais, disposição
inata” e, nos tempos antigos, significava literalmente ‘nascimento’. Na
filosofia antiga, natura é usado principalmente como sendo a tradução
latina da palavra grega physis, que originalmente se relacionava com as
características intrínsecas que as plantas, animais e outras características
do mundo desenvolvem por conta própria.” ALVES, Giovanni. O trabalho
218 O Futuro do trabalho no século XXI

nesta civilização que vivemos esquecemos de tudo isso – é


como se a mãe Terra seja algo que se possa destruir, que se
possa comercializar...”
Alinhando-se a essa forma de pensamento surge a visão
“holística”, denominada também de “complexa” e “sistêmica”
por autores de distintos ramos do saber. Essa perspectiva é
trazida no filme O Ponto de Mutação, dirigido por Bernt Capra,
baseado no livro de mesmo nome, escrito por Fritjof Capra.
Nele, a cientista Sônia, decepcionada com o desvirtuamento
dos frutos de longos anos de árdua pesquisa científica na área
médica, que culminaram para uso militar, dialoga com um
Senador (Jack) e um poeta (Thomas), e expõe de forma dialógica
o que se conclama hoje como uma “crise de percepção”, ou seja,
a imperativa necessidade de superação do modo cartesiano de
ver, interagir e se posicionar no mundo.
É notório um novo olhar e um repensar sobre a trajetória
até aqui traçada nesse suposto processo civilizatório. Nesse
sentido, parece mais que oportuno superar o olhar fragmen-
tado sobre os seres em sua constituição isolada e em seus vín-
culos, por denotar-se insuficiente para responder às deman-
das que se interpõem na realidade e nas múltiplas facetas
emanadas na convivência terrestre. Parte-se da constatação de
que “todos somos um”, e, sobretudo, pertencentes a um “lugar
comum”, a nossa “Terra-Pátria”, como definem Kern e Morin,
ao descrever a humanidade como uma entidade “planetária e
biosférica” (2005, p. 63). Nessa linha de pensamento, salientam
os autores o quanto se faz urgente revisitar a percepção do pro-
tagonismo humano, de modo a serem necessárias “tomadas
de consciência”, advindas de diversos horizontes.
Nessa linha de pensamento, se torna capital tomar cons-
ciência da unidade/diversidade da biosfera (que os autores
chamam de consciência ecológica); a tomada de consciência do
nosso dasein, o fato de “estar aí” sem saber por que; a tomada
de consciência da era planetária e, sobretudo, da perdição no
devir de nossas vidas – e de toda vida no planeta. A grande

envelhecido – as contradições metabólicas do capital no século XXI. São


Paulo: Práxis, 2021.
Tempo de Travessia 219

confluência, segundo eles, é no sentido na complementaridade


de todas elas, sobretudo na tomada de consciência urgente de
“nosso destino terrestre” (Kern e Morin, 2005, p. 175).
Nessa linha expositiva, faz-se oportuno reproduzir trecho
de um diálogo profícuo colhido do filme supracitado de Capra,
que denota a proposição de um novo modo de ver as coisas, a
auxiliar a superação dessa forma tradicional de percepção que
ainda coopta boa parte da humanidade, em vários ramos do
conhecimento:

Acho que enquanto continuar a ver as coisas nessa


velha ótica patriarcal, cartesiana, newtoniana, vocês
deixarão de ver o mundo como ele realmente é. Vocês,
eu, todos nós precisamos de uma nova visão do mundo,
e de uma ciência mais abrangente para nos apoiar. Há
uma teoria surgindo agora que coloca todas as ideias
ecológicas de que falamos numa estrutura cientí-
fica coesa e coerente. Nós a chamamos de Teoria dos
Sistemas, dos Sistemas Vivos. Todos os seres vivos, bem
como os sistemas sociais e os ecossistemas. [...] Isto é
ciência, mas de um tipo novo. Em vez de picotar as
coisas, ela olha para os sistemas vivos como um todo.
(Capra, Bernt. Mindwalk, tradução nossa).

No filme, a cientista, quando indagada pelo Senador a res-


peito de como estudar um organismo vivo - por exemplo, uma
árvore -, responde a ele que um cartesiano olharia para ela
e a dissecaria, “mas aí ele jamais entenderia a natureza da
árvore.” Por outro lado, um pensador de sistemas “veria as
trocas sazonais entre a árvore e a terra, entre a terra e o céu.
Ele veria o ciclo anual que é como uma gigantesca respiração
que a Terra realiza com suas florestas, dando-nos o oxigênio.
0 sopro da vida, ligando a Terra ao céu e nós ao Universo.”

Um pensador de sistemas veria a vida da árvore


somente em relação à vida de toda floresta. Ele veria
a árvore como o habitat de pássaros, o lar de insetos. Já
se vocês, políticos, tentarem entender a árvore como
220 O Futuro do trabalho no século XXI

algo isolado, ficariam intrigados com os milhões de


frutos que produz na vida, pois só uma ou duas árvores
resultarão deles. Mas se vocês virem a árvore como um
membro de um sistema vivo maior, tal abundância de
frutos fará sentido, pois centenas de animais e aves
sobreviverão graças a eles. (Capra, Bernt. Mindwalk,
tradução nossa).

Nessa perspectiva evidencia-se um elemento fundamental


- a interdependência. A árvore, por exemplo, é um ser vivo - mas
que não sobrevive sozinha. Para tirar água do solo, explica a
cientista, “ela precisa dos fungos que crescem na raiz. O fungo
precisa da raiz e a raiz do fungo. Se um morrer, o outro morre
também. Há milhões de relações como estas no mundo, cada
uma envolvendo uma interdependência.” Seguindo esse enca-
deamento lógico, a obra da sétima arte retrata bem o quanto
a teoria dos sistemas5 reconhece esta teia de relações como a
essência de todas as coisas vivas. Nesse sentido, “[...] só um
desinformado chamaria tal noção de ingênua ou romântica,
porque a dependência comum a todos nós é um fato científico.
Uma teia de relações [...] é a própria teia da vida.” (Capra, Bernt.
Mindwalk, tradução nossa).
Pela leitura das obras de alguns sistêmicos, fica nítido o
quanto não é mais frutífero olhar em separado para os proble-
mas globais e tentar compreendê-los [e resolvê-los] de forma
isolada, fragmentada. Seguindo essa corrente, a cientista
afirma que, não obstante ser possível consertar uma peça,
ela irá quebrar “[...] de novo em um segundo, porque se ignorou
o que se conecta a ela.” Em suas palavras, é imperioso mudar

5
A teoria dos sistemas realmente traz mais elementos e respostas às
múltiplas conexões que conformam a humanidade no planeta Terra. Ao
delinear sua adesão à esta teoria, a cientista Sonia traz um caso exempli-
ficativo conectado à realidade brasileira: “O Brasil, por exemplo. Vocês
sabiam que lá eles destroem a Floresta Amazônica à razão de um campo
de futebol por segundo? [...] Põem fogo na floresta! E o desmatamento
é uma das causas principais do efeito estufa na atmosfera. Enquanto
isto, nós gastamos na corrida armamentista!” (Capra, Bernt. Mindwalk.
Tradução nossa).
Tempo de Travessia 221

tudo de uma vez, simultaneamente – desde os “[...] ideais, as


instituições, os valores.” Seguindo esse pensamento, salienta
Bernt Capra ainda que todas essas novas tecnologias,

[...] comunicações e banco de dados causam mais pro-


blemas do que os resolvem. A medicina, por exemplo,
avançou espantosamente em tecnologia, mas o seu
custo subiu igualmente. Tornou-se medicina para ricos.
E a saúde pública não melhorou muito, embora pudesse
melhorar se apenas mudássemos nossos hábitos ali-
mentares. Em vez disso, especialistas pensam em cora-
ções artificiais. Se nossa agricultura nos alimentasse
melhor, em vez de desmatar a Amazônia para criar
gado que tem carne vermelha e é uma das principais
causas dos enfartes, talvez não gastássemos tanto
dinheiro com corações artificiais. E por aí vai. São só
alguns exemplos de conexões. (Capra, Bernt. Mindwalk,
tradução nossa).

No ensejo de alternativas à superação dessa perspectiva


cartesiana, restrita de enxergar as relações entre todos orga-
nismos vivos da Terra, e tomando ciência da convergência das
múltiplas crises da atualidade, buscando aproximar interpre-
tações e equacionar intersecções possíveis, as próximas laudas
deste ensaio são tecidas.

2. Alguma coisa está fora da ordem:


As origens da desconexão

When you want more than you have you think you need...
And when you think more than you want your thoughts begin to bleed
Ithink Ineedtofinda biggerplacebecausewhenyou have more thanyou think
You need more space
Society, you’re a crazy breed
Hope you’re not lonely without me...
Pearl Jam, in “Society”
222 O Futuro do trabalho no século XXI

Oportuno discorrer em torno de algumas implicações da


atuação humana na Terra, sob o manto da sociologia e da geo-
política, que culminaram em descaminhos e escolhas “pouco
ecológicas”, sobretudo, a partir da Revolução Industrial. Isso
se transmuta em uma humilde tentativa de traçar algum
entendimento sobre o que o fluxo do capital representa, e
alcançar uma compreensão do entrelace de acontecimentos
que desenharam o cenário desigual e obscuro a qual esta-
mos todos expostos. Como sinaliza Krenak (2021, p. 72), até
o começo do século XX, o “mundo do trabalho e da produção
se dava com ferramentas e meios que não tinham a potência
de exaurir os recursos da Terra”. No entanto, essa realidade
mudou.
Nesse sentido, forçoso admitir a louvável capacidade do
capitalismo constantemente criar e recriar espaços e meca-
nismos inovadores para as interações humanas. Na visão do
geógrafo estadunidense David Harvey, ao estudar os fluxos
ensejados por esse modo de produção, o capital seria metafo-
ricamente “o sangue que fui através do corpo político de todas
as sociedades que chamamos de capitalistas, espalhando-se,
às vezes como um filete e outras vezes como uma inundação,
em cada recanto do mundo habitado” (Harvey, 2011, p. 7).
As forças desencadeadas com o advento do capitalismo
remodelaram muitas vezes o mundo desde os primórdios
da primeira Revolução Industrial. E, na esteira do que Marx
certa vez propugnou, em ser tarefa humana não apenas com-
preender o mundo - mas também transformá-lo, torna-se
peremptório admitir o quanto o capitalismo seguiu também
essa diretriz. Entretanto, a maior parte dessas mudanças
significativas se deram, sem que alguém se incomodasse
primeiramente em descobrir como o mundo funcionava
e, tampouco, quais seriam as consequências dessas tantas
mudanças. Em suas palavras, repetidamente, “o imprevisto
e o inesperado aconteceram, deixando para trás a tarefa
intelectual e prática de tentar consertar as consequências
desastradas do que já tinha sido inadvertidamente forjado”.
(Harvey, 2020, p. 356). A saga do capitalismo é cheia de para-
doxos, por mais que a maioria das teorias sociais – a teoria
Tempo de Travessia 223

econômica em particular – não os leve em consideração. Na


visão de Harvey, nessa contradição inerente ao modo de pro-
dução capitalista, há pontos positivos e sobretudo negativos
a se considerar:

Do lado negativo, temos não só as crises econômicas


periódicas e muitas vezes localizadas que pontuam a
evolução do capitalismo, como as guerras mundiais
intercapitalistas e interimperialistas, a degradação
ambiental, a perda de biodiversidade, a espiral da
pobreza entre as populações em crescimento, o neo-
colonialismo, as graves questões da saúde pública, a
abundância de alienações e exclusões sociais e as angús-
tias da insegurança, da violência e dos desejos não rea-
lizados. Do lado positivo, alguns de nós vivemos em
um mundo de elevados padrões de vida material e de
bem-estar, onde as viagens e as comunicações foram
revolucionadas e as barreiras espaciais físicas (embora
não sociais) das interações humanas foram reduzidas,
onde os conhecimentos médicos e biomédicos prolon-
gam a vida de alguns, onde cidades enormes e espetacu-
lares que seguem se multiplicando, foram construídas,
onde o conhecimento prolifera, a esperança é eterna e
tudo parece possível (da autoclonagem à viagem espa-
cial). (Harvey, p. 356, grifo nosso).

Inegavelmente, é este o mundo contraditório em que vive-


mos e que segue seu curso em desacordo com a “natureza
primeira6”, “evoluindo” em ritmo acelerado. Os princípios que

6
Das transformações ensejadas pela atividade humana, Harvey sinaliza
que a longa história de destruição sobre a terra produziu o que às vezes
se denomina “segunda natureza”, que é a “natureza remodelada pela ação
humana”. Em suas palavras, há muito pouco, “[...] ou nada da “primeira na-
tureza”, que existia antes de os seres humanos povoarem a terra. Mesmo
nas regiões mais remotas e nos ambientes mais inóspitos, os traços da
influência humana (a partir de mudanças nos regimes climáticos, vestí-
gios de pesticidas e transformações nas qualidades da atmosfera e da
água) estão presentes. Nos últimos três séculos, marcados pela ascensão
224 O Futuro do trabalho no século XXI

sustentam essa evolução, no entanto, continuam obscuros


– em parte porque nós, seres humanos, “construímos essa
história mais com base em caprichos coletivos – e às vezes
individuais – que em princípios evolutivos dominantes do
tipo dos que Darwin descobriu no campo da evolução natural”
e, na esteira de Harvey, caso queiramos mudar esse contexto,
por meio de intervenções conscientes e pensadas coletiva-
mente, “temos primeiro de compreender (muito melhor do
que compreendemos hoje) o que estamos fazendo com o
mundo e quais são as consequências disso” (Harvey, p. 356).
Na percepção de Giovanni Alves, as mutações do capita-
lismo global no presente século são cruciais para o futuro
da humanidade, tendo em vista que elas “[...] expõem a inca-
pacidade do modo de produção do capital global resolver
os problemas derivados da degradação da Natureza” (Alves,
2021, p. 11). Em suas palavras, a degradação ecológica que
presenciamos no século XXI “por conta do modo de produção
da vida (e da morte) do capital, diz respeito não apenas ao
colapso ambiental denunciados por vários autores (Marques,
2018; Foster, 2020), mas à devastação física e mental das pes-
soas que trabalham7 para ‘ganhar a vida’”. Na visão do autor,
“a degradação da natureza exterior ou a degradação do ser
orgânico (e inorgânico) com o colapso ambiental, representa

do capitalismo, a taxa de propagação e destruição criativa sobre a terra


tem aumentado enormemente” (Harvey, 2011, p. 151, grifos do autor).
7
“O capital é ‘contradição viva’. Ao dizermos contradição, expomos
oposições internas antagônicas ao movimento do capital. O movimento
do capital é movimento de autonegação (Aufhebung). A destruição da
Natureza pelo capital é contradição do capital. Não significa que o capital
é o Mal e a Natureza, o Bem. Isto seria uma contrariedade ou oposição
externa ao próprio ser. Mas não - o capital possui um modo de ser que
se funda por si e em si, como negação de si próprio. A contradição do
capital com a Natureza ou a contradição consigo próprio, é intrinseca ao
ser efetivo do capital como relação social de exploração e produção do
valor. É por meio de suas crises cíclicas (e diante da sua crise estrutural),
que o capital opera um movimento irremediável de desvalorização/des-
cartabilidade do trabalho vivo (Piqueras, 2018; Magaline, 1975)” (Alves,
2021, p. 150).
Tempo de Travessia 225

ao mesmo tempo, a degradação do ser social e das individu-


alidades humanas” (Alves, 2021, p. 92).
Nessa esteira alinham-se de forma similar as considera-
ções de Dowbor acerca das desigualdades sociais e da lógica8
capitalista preponderante. Para o autor, em um sistema “em
que o eixo de motivação se limita ao lucro, sem precisar se
envolver nos impactos ambientais e sociais”, ficará, por certo,
irrestritamente preso “na sua própria lógica” (Dowbor, 2017,
p. 31). E para refletir sobre os descaminhos do nosso tempo,
surge também, dentre múltiplas opções teórico-metodológicas
da produção acadêmica, a imperiosa necessidade de olhar o
legado de alguns clássicos da sociologia econômica, à exemplo
dos escritos deixados pelo estadunidense Thorstein Veblen.
Ao permear suas observações em princípios menos res-
tritivos do que a economia neoclássica, Veblen ampliou o
leque de possibilidades analíticas, seguindo um roteiro aca-
dêmico diferenciado. Um de seus contributos é a fala acerca
da relevância de determinados componentes culturais a con-
dicionar inclusive a macroestrutura social. A partir de suas
visões, é possível afirmar que o modo de vida das classes
ricas assenta-se no consumo ostentatório – e uma vez que
esse padrão de consumo não resulta da busca ao atendimento
das necessidades materiais da existência humana, mas ao
interesse de se diferenciar dos demais. Encontra-se em “A
Teoria da Classe Ociosa” uma possibilidade explicativa para
os padrões da atualidade. Na linha vebleriana, a rivalidade
ostentatória revela o desejo dos ricos de serem reconhecidos
como melhores que os outros – e, por conseguinte, o consumo
ostentatório expressa-se insaciável, gerando necessidades

8
Nesse quadrante, o capitalismo tem tudo a ganhar: “[...] com a extra-
ção máxima de recursos naturais e a externalização de custos, e nada
a ganhar produzindo para quem tem pouca capacidade aquisitiva. A
motivação do lucro a curto prazo age tanto contra a sustentabilidade
como contra o desenvolvimento inclusivo. A deformação é sistêmica. As
regras do jogo precisam mudar. Não se sustenta mais a crença de que se
cada um buscar as suas vantagens individuais o resultado será o melhor
possível” (Dowbor, 2017, p. 31, grifo nosso).
226 O Futuro do trabalho no século XXI

materiais indefinidas e resultando em referência cultural a


ser imitada por parte restante da população.
A par dessa perspectiva, o padrão de consumo dos ricos
tornou cada vez mais grave a crise ambiental no planeta. A
visão de alguns, ao visualizar apenas a contenção do cres-
cimento da demanda material dos pobres como solução, é
no mínimo insatisfatória. O imperativo, nessa lógica contí-
nua de expansão e fomento do consumo sem limites, é trazer
luz ao caminho oposto a essa lógica – propugnando, pois, a
reversão do modelo de vida dos ricos assentado no consumo
ostentatório.
O crescimento da produção permite elevar o nível geral de
riqueza, enquanto requisito básico para melhorar a sorte dos
pobres. No entanto, o aumento da riqueza sem a sua redis-
tribuição justa favorece basicamente ao mais favorecidos
economicamente, impulsionando a prevalência do padrão
de consumo ostentatório. Atualmente, os países ricos repre-
sentam um quinto da população mundial mas detêm mais
de 80% da riqueza global. A perspectiva das nações não ricas
para enfrentar a crise ecológica global não pode ser a mesma
defendida pelos ricos, definitivamente.
Em outra análise mais contemporânea, a par do consumo
em larga escala, fomentado sobretudo a partir da Revolução
Industrial, o sistema passa a contribuir para que a “sociedade
do consumo” se fortalecesse, fazendo com que as grandes
corporações ditassem as regras do mercado. Nesse diapasão,
alguns teóricos difundem a ideia de que nem Deus, o Homem
ou a Natureza estão no epicentro do mundo, mas sim o con-
sumo, a categorizar-se no “consumocentrismo”. Nessa pers-
pectiva, entende-se que “o consumo se coloca no centro de
todas as decisões que envolvem o indivíduo, pois o mesmo
perde sua identidade como ser que participa das decisões
sociais para se transformar (apenas) em consumidor hetero-
nomamente guiado.” (Calgaro; Pereira; Pereira, 2016, p. 267).

Com o consumocentrismo, as questões sociais e


ambientais são postas em segundo plano, visto que
para o consumidor o importante é consumir; para as
Tempo de Travessia 227

grandes corporações o importante é lucrar. Isso faz


com que a natureza e as questões sociais deixem de ser
observadas. Por um lado, que a natureza tenha seus
recursos explorados desmedida e insustentavelmente
e, por outro, que as desigualdades sociais e a pobreza
sejam tidas como algo aceitável na sociedade. (Calgaro;
Pereira; Pereira, 2016, p. 267).

Parte disso implica igualmente o reconhecimento das


resistências à mudança por parte do sistema econômico domi-
nante, que terminam por dar maior curso ao aprofundamento
da crise ecológica atual. Sem a revisão do padrão de cresci-
mento do consumo material global, prossegue a tendência
do desaparecimento da abundância dos recursos naturais e
da elevação das emissões de gases nocivos ao meio ambiente,
provocando o aumento gradativo da temperatura e o aprofun-
damento da crise climática.
Essa intervenção no que podemos denominar de “ambiente
natural” vem de longa data e se dá de variadas maneiras, ense-
jados diretamente pelas mentes e braços humanos. Iniciam
desde o processo primário de domesticação dos animais, mas
também se evidenciam na derrubada de florestas, na drenagem
de pântanos ou na irrigação artificial para áreas cultiváveis.
Também ficam evidentes quando, para fins de abastecimento
ao consumo energético, há represamento de rios; ou preciso
causar a irrupção de montanhas para a passagem de rodovias e
ferrovias; ou ainda pela formatação das paisagens urbanas em
suas variadas maneiras – desde a pulverização de múltiplas
unidades domiciliares nas periferias, construídas muitas vezes
em regiões desaconselháveis, em desrespeitando os “limites”
da natureza dita “primeira”, até a construção de palácios e
mansões à beira mar, impondo, igualmente, um desmando
aos ditames da natureza em sua essência e funcionamento.
Importante salientar que a temática ambiental foi sendo
incorporada à agenda política do desenvolvimento a partir do
segundo pós-guerra, quando se tornaram públicos os primei-
ros estudos tratando dos limites da natureza impostos pelas
contínuas exigências do progresso material. Inicialmente,
228 O Futuro do trabalho no século XXI

houve o reconhecimento, por parte dos países de capitalismo


avançado, de que a reprodução do modo de vida estabelecido
pelo estilo american way of life condenaria no longo prazo a
vida no planeta. A partir da denúncia técnico-científica formu-
lada naquela época, conformou-se certa convergência política
mais ampla em torno da necessária reação ao movimento de
incompatibilidade entre as bases tradicionais do crescimento
econômico e a sustentabilidade ambiental.
Concomitantemente, a emergência de um novo sujeito social
cada vez mais consciente do seu papel a ser materializado pela
difusão de instituições sociais e políticas voltadas para a defesa
do meio ambiente, com alguns “ecos” de Estocolmo surgindo
e espalhando-se aos quatro cantos do planeta. Isso porque
ainda na década de 70 estas questões começaram a surgir no
cenário governamental com o 1972 Limits to Growth Report e a
Conferência de Estocolmo. Essas convenções trataram dos limi-
tes do crescimento da população mundial, da produção agrícola
e da poluição e exaustão dos recursos naturais. Também houve
um consenso de que a crise ambiental estava ligada ao cresci-
mento de tecnologias que conduziam a uma forma de produção
e desenvolvimento questionáveis.
A produção do relatório Brundtland, no ano de 1987, foi
fundamental para aglutinar governos de diferentes países na
perspectiva de minorar os efeitos nefastos do modo de pro-
dução e consumo sobre a natureza, introduzindo o conceito
do desenvolvimento sustentável. A realização de conferências,
compromissos e metas estabelecidas, bem como a organiza-
ção interna dos governos em ministérios e políticas públicas, e
também instituições da sociedade civil, geraram a expectativa
de que o problema ambiental estaria sendo enfrentado de forma
adequada e pontual.
Para além da conferencia de Estocolmo, exatos 20 anos
depois, a Rio-92 trouxe mais envergadura e importância à
temática, engajando mais países preocupados ao debate. O
tema fundamental da conferência foi a conciliação do desen-
volvimento econômico com a proteção ambiental, do qual, os
resultados mais importantes foram a Declaração do Rio sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Agenda 21.
Tempo de Travessia 229

Ao longo das últimas décadas, portanto, uma série de esfor-


ços internacionais, como a Conferência de Kyoto (1997, que
tratou da questão do aquecimento global), a de Johannesburgo
(2002, que retomou o tema do desenvolvimento sustentável)
e a Rio + 20(2012, que avaliou os avanços e retrocessos no
planeta nas duas últimas décadas), todas com a intenção de
refletir e pressionar instituições e governos a alcançarem os
ideais de sustentabilidade, e a estender à humanidade um
caminho e uma esperança palpável no devir, ainda tão per-
meado de incertezas.
Mais recentemente, várias outros encontros entre líderes
mundiais tem sido, direta ou indiretamente, pautados pela
discussão central da sustentabilidade e, especialmente, sobre
a flutuação climática sentida aos quatro cantos do planeta. A
COP (sigla em inglês que significa “Conferência das Partes” -
Conference of the Parties), representa a associação de todos os
países-membros que se reúnem anualmente para avaliar a
situação das mudanças climáticas no planeta. Desde sua pri-
meira edição no ano de 1995, na Alemanha, já frutificaram
acordos pontuais a serem seguidos pelas partes, a exemplo do
“Protocolo de Kyoto”, em 1997, onde estabeleceram-se metas de
reduzir as emissões de gases de efeito estufa até o ano de 2012.
No entanto, muitos não cumpriram o acordo, por omissão ou
por ausência de um entendimento real acerca da gravidade
dos acontecimentos que se seguiram a partir das décadas
seguintes.
Dentre outros documentos e acordos, cite-se o fruto da COP
21, onde firmou-se o “Acordo de Paris”, com a determinação de
limitar o aumento da temperatura média mundial a 1,5 ºC. Já
em sua edição mais recente, ocorrida em novembro de 2022,
no Egito, a COP, em sua 27ª edição, findou com a criação de
um importante documento: o Fundo de Perdas e Danos, com o
objetivo de ajudar financeiramente países mais vulneráveis a
se recuperarem dos efeitos causados por desastres climáticos.
Como fruto desse encontro, formou-se um comitê temporário
que terá o prazo de um ano para definir regras e apresentar
novas soluções na COP-28, que será realizada em Dubai, em
final de 2023.
230 O Futuro do trabalho no século XXI

Ademais, cumpre mencionar que da Agenda 21, já men-


cionada, nasceram os Objetivos do Desenvolvimento do
Milênio, com metas estendidas (e não atendidas, em grande
medida) até o ano de 2015. Uma vez rompido o lapso temporal,
sem os sucessos devidos em nível global, a Organização das
Nações Unidas e grande parte dos países do globo convergi-
ram no lançamento do documento conhecido como Agenda
2030. Com 17 audaciosos Objetivos de Desenvolvimento e 169
metas correlacionadas, esta espécie de “Agenda para o mundo”
também contém, especificamente no ODS n. 13, diretrizes
de ação contra a mudança global do clima. No documento, a
ONU pontua a necessidade urgente de reforçar a resiliência e
a capacidade de adaptação a riscos relacionados ao clima e às
catástrofes naturais em todos os países.
No momento em que se finaliza esse ensaio, os Estados
Unidos passam por dias terrivelmente gélidos, com tempera-
turas na faixa de -30º. O Brasil vivencia climas extremados.
Também depara-se, após pedidos sequenciais de ajuda, com
centenas de indígenas em desnutrição extrema, merecendo
urgentemente não apenas uma visita oficial mas a urgência
de medidas extremas para redirecionar a atividade ilegal do
garimpo para longe das terras demarcadas e pertencentes aos
povos originários. Há quem possa alegar que das almas indí-
genas não nasce prosperidade econômica pujante... mas não
há quem possa negar que a brava tentativa de sobrevivência
desses povos e o auxílio a sua existência digna é diretamente
proporcional à mantença das matas e dos habitats naturais em
sentido mais profícuo. Se o índio não traz progressos financei-
ros, ao menos evita que grande parte da humanidade sucumba
à falta de água e de oxigênio. Ironicamente, vivendo eles na
abundância de matas e da natureza, estão sucumbindo face
às inúmeras drágeas que lançam mercúrio e outros tantos
elementos tóxicos, inundando as águas da Amazônia no caos
e gerando as verminoses, a desnutrição, e a ausência de uma
alimentação saudável num cenário de conivência e descaso
que não pode mais ser aceitável.
Para além disso, esse ensaio encerra-se com a ocorrência
de eventos extremos. Chuvas torrenciais em Santa Catarina
Tempo de Travessia 231

e outros estados, inundando cidades e vitimando pessoas, ao


passo que no RS, a estiagem toma proporções nunca antes
vistas, vitimando o cultivo de peixes e camarões da conhecida
Lagoa dos Peixes, no município de Mostardas, com 90% do
reservatório completamente seco, e vários municípios decre-
tando estado de emergência ou calamidade pública, devido aos
longos períodos sem chuva. Para além da triste imagem dos
animais agonizando sem água e sem oxigênio na lagoa, marca
ainda mais a imagem dos pescadores estarrecidos, sem ter a
quem recorrer, despossuídos de qualquer forma de reação
perante a devastadora ação gerada pela ausência da abençoada
água que cai do céu e é tão necessária a tudo, sobretudo a estes
que tiram seu sustento do pescado.
Nesse mesmo momento, o planeta assiste estarrecido a
ocorrência de sequenciais terremotos na Síria e Turquia, viti-
mando dezenas de milhares de vítimas. O Brasil enviou uma
comitiva de elite, devidamente capacitada para socorrer situ-
ações extremas, a exemplo de Mariana e Brumadinho. Pelas
imagens, o que se vê nas redes sociais e na televisão é um cená-
rio muito similar ao de uma guerra, com o diferencial de que
ainda paira a dúvida, para alguns, se da ação humana decor-
rem esses abalos sísmicos nas placas tectônicas. Alguns dirão
que é a vontade de Deus; outros dirão que Deus está morto;
mas tantos outros já sentem como uma espécie de vingança
da mãe natureza os acontecimentos sequenciais e crescentes
que abalam o planeta nas últimas décadas, para além e aquém
da linha do Equador.
Os diversos registros de problemas decorrentes da escas-
sez dos recursos naturais e dos efeitos nefastos da exploração
ambiental sobre populações residentes parecem indicar que
o mundo está diante de uma batalha jamais vista acerca da
sobrevivência humana no planeta. Diante disso, a transição
ecológica oferece pelo menos dois tipos de possibilidades em
paralelo ao paradigma técnico mecânico-químico. A primeira
possibilidade se refere às regiões e populações localizadas nos
biomas ainda sustentáveis, mas que necessitam de iniciativas
governamentais direcionadas ao desenvolvimento humano,
capaz de permitir a prevalência da natureza ao longo do tempo.
232 O Futuro do trabalho no século XXI

A segunda, às regiões e populações situadas em territórios


completa ou parcialmente comprometidos pelo elevado grau
de internalização do modo de produção e consumo derivado
do paradigma mecânico-químico.
As perspectivas atuais decorrentes dos esforços nos Estados
Unidos, União Europeia, China e outros, apontam, por exem-
plo, para iniciativas de grande mobilização financeira em torno
da temática ambiental. Ao que parece, trata-se de tentativas
de convergir a prevalência do lucro no setor privado para que
se torne regulado e coordenado pelo Estado. Se isso produ-
zirá resultados ativos e positivos, só o tempo mostrará. Mas
é mais que oportuna, também, ter ciência de que é chegada a
hora do humano revisitar o entorno, mas também a si próprio.
Exigir, para além de decisões políticas e externas, uma refle-
xão individual em sentido oposto ao consumismo e à lógica
forjada pelo capitalismo de um desenvolvimento a qualquer
custo, e comear a “desincentivar” os supérfluos, os excessos, as
frivolidades... É nessa direção que refletimos e apresentamos
a parte final deste ensaio.

3. No novo tempo, Apesar dos Castigos: A metamorfose


necessária para evitar uma “tragédia comum”

No novo tempo - apesar dos castigos


Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos
Pra nos socorrer... pra nos socorrer...
No novo tempo - apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta
Pra sobreviver... pra sobreviver...
Ivan Lins e Vitor Martins, in “Novo Tempo”

A maioria das distopias tem alguma conexão com o nosso


mundo, é uma realidade (ou não realidade) advinda das percep-
ções enquanto ser existente e integrante de um círculo social. O
dicionário Houaiss define “distopia” como “qualquer represen-
tação ou descrição de uma organização social caracterizada por
condições de vida insuportáveis”. É, em suma, a representação
de uma realidade imaginada pela ação (ou omissão) humana,
Tempo de Travessia 233

motivada por comportamentos menos aceitáveis ou pela pura


ignorância. São representações simbólicas pautadas muitas
vezes na presença de violência, por muitos vista como em uma
espécie de estupidez coletiva, norteadas pela desesperança em
dias melhores. Em Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley)
e 1984 (George Orwell) temos exemplos do uso literário dessa
perspectiva.
Nesse cenário, envolto em acontecimentos nem sempre feli-
zes e que põem em xeque a ação humana no ambiente terrestre,
surge à memória histórias de ficção científica, tanto da litera-
tura quanto da sétima arte, que, ambientadas num futuro mais
ou menos próximo, usam desses padrões distópicos para trazer
a representação do que a dissociação entre humano e o todo
podem causar. Sobretudo a partir do momento em que uma
parcela é guiada por fins oportunistas, a irrupção com o entorno
torna-se questão de tempo, e o conflito entre interesses indivi-
duais e o bem comum no uso de recursos finitos é deflagrado.
Nessa linha expositiva, cumpre salientar a existência do clás-
sico The tragedy of the common, do ecologista Garret Hardin, que
versa em linhas gerais sobre a possibilidade (nem tão hipotética
nos dias atuais) de os membros de uma determinada sociedade
virem a se comportar em conformidade estritamente alinhada
a seus interesses, em contraponto aos anseios da coletividade,
ou, nas palavras do autor, em detrimento do “bem comum”. Ao
“desimportar-se” com os demais membros e utilizar de dado
recurso “comum” de uma mesma comunidade, de forma des-
medida, pode-se pensar a realidade terrena contemporânea em
perspectiva distópica. E muitos já alardeiam, caso prevaleça a
opção em se seguir nas vias do individualismo e do consumismo,
que se culmine em uma “tragédia comum”.
O conteúdo do ensaio se mostra deveras contemporâneo,
não obstante tenha sido publicado há mais de cinco décadas na
revista Science. Faz múltiplas abordagens as quais foram coop-
tadas e discutidas por diferentes áreas do saber – da Biologia à
Economia; da Antropologia ao Direito, da Psicologia à Filosofia.
Também a Demografia, que é uma área da ciência geográfica
que estuda a dinâmica populacional humana analisou por
diferentes vieses as percepções de Hardin. Distintas correntes
234 O Futuro do trabalho no século XXI

teóricas são passíveis à tese do autor, eis que o ensaio trata de


temas em torno do crescimento das populações humanas, con-
trole de natalidade, da propriedade dos bens, de questões rela-
cionadas à hereditariedade, mas, ao que importa diretamente a
este estudo, são as abordagens em torno do questionamento se
as escolhas individuais levam – ou não – aos melhores resulta-
dos para a sociedade, com a discussão acerca do uso humano aos
bens comuns, onde estão os recursos à subsistência se usados
com “temperança”. Nesse sentido, o autor exemplifica simboli-
camente a tragedy of the common:

Picture a pasture open to all. It is to be expected that each herds-


man will try to keep as many cattle as possible on the commons.
Such an arrangement may work reasonably satisfactorily for
centuries because tribal wars, poaching, and disease keep the
numbers of both man and beast well below the carrying capacity
of the land. Finally, however, comes the day of reckoning, that
is, the day when the long-desired goal of social stability beco-
mes a reality. At this point, the inherent logic of the commons
remorselessly generates tragedy (Hardin, 1968, p. 1244 apud
Herscovici e Vargas, 2017, p. 109).

Uma análise pelas lentes da Economia, feita por Herscovici


e Vargas (2017), salientam que, ainda que Hardin9 admita não
ser uma alternativa “perfeita”, explica que os arranjos sociais
que resultam em responsabilidade “são aqueles que criam um
dispositivo coercitivo de alguma sorte, como a possibilidade

9
Aos casos que envolvem bens comuns em uma determinada coletividade
(componentes ecológicos, recursos naturais, conhecimento comum, entre
outros), Hardin propôs a “apropriação privada destes como uma solução
para evitar o problema dos commons, pois do contrário pode haver es-
gotamento do estoque disponível”. No entanto, importante ressaltar que
a abordagem que fez o autor aqui, exemplificando o uso da terra, das
pastagens e dos animais, toma uma realidade histórica singular – Hardin
analisa a questão dos commons “[...] no contexto do antigo regime inglês,
ainda do século XVIII, explicando o fracasso da propriedade comum da
terra pela ausência de um sistema institucional capaz de preservar o
estoque de bem comum”. (Herscovici e Vargas, 2017, p. 118-119).
Tempo de Travessia 235

de ser multado, por exemplo”. (2017, p. 111). A dita “tempe-


rança” pode resultar da coerção, sem esta última ter uma
conotação necessariamente negativa, pelo fato de nesse caso
“ser recíproca e acordada mutuamente pelas pessoas afeta-
das”. Nesse sentido, mesmo uma solução indesejável (como
o exemplo de pagar uma multa por eventual infração), pode,
segundo o autor, auxiliar as pessoas a se enquadrarem ao
objetivo maior, escapando assim “do problema dos commons”.
Se ainda assim os comportamentos oportunistas persisti-
rem, o autor sugere “a aplicação da legislação correspondente
vigente, com temperança”. (Herscovici e Vargas, 2017, p. 111).
Tomando emprestada a visão “distópica” de Hardin, pode-
-se fazer múltiplas analogias com o cenário global atual.
Desde questões relacionadas à problemática ambiental, a
obra possibilita a reflexão acerca do crescimento popula-
cional, do aumento nos índices de poluição e emissão de
gases de efeito estufa, e de tantos outras questões da vida
em sociedade. Essa perspectiva dos comuns é bem compre-
endida principalmente em ocasiões especiais em que a se tem
de apelar à consciência de um indivíduo paralelamente ao
bem-estar dos demais. E nessa lógica insere-se o repensar do
uso dos recursos planetários, a começar pelos hídricos, com
a reeducação no consumo responsável da água, perpassando
igualmente algo ainda mais básico que representa o descarte
seletivo do lixo e o uso de transportes alternativos e coletivos
a minorar a poluição atmosférica. Implica em começar a agir
em “logísticas e ações globais reversas”, a fim de repensar a
falta de cuidados que tivemos para com a nossa “casa comum”.
A par disso, o ativista boliviano Solon adverte que o momento
atual sinaliza uma crise sistêmica que “só pode ser enfrentada
pela conjunção de múltiplos enfoques e pela construção de
outros”. Em suas palavras, a tentativa de superação dar-se-ia
por vieses múltiplos – por uma resposta ao capitalismo, ao
produtivismo, ao extrativismo, à plutocracia, ao patriarcado e
ao antropocentrismo. Em suas palavras, “esses seis elementos
estão intimamente ligados e se alimentam mutuamente. Pensar
na resolução de um desses fatores, isoladamente, é um dos erros
mais graves que cometemos” (Solon, 2021, p. 167).
236 O Futuro do trabalho no século XXI

Nesse sentido, algumas expressões como “Justiça Climática”,


“Fronteiras Planetárias” e “Limites Operacionais Seguros”
surgem, a fim de difundir, por meio do conhecimento cien-
tífico, algumas balizas sobre um eventual colapso do sistema
terrestre. A esse respeito, surge dos trabalhos de Steffen et al
(2015) e Rockstrom et al (2009) o reconhecimento de nove pro-
cessos10 fundamentais cuja ruptura está a ameaçar a singular
estabilidade do sistema terrestre ao longo dos últimos 11 mil
anos, são eles: as alterações climáticas, a perda de biodiversi-
dade, o empobrecimento da camada de ozônio, a acidificação
dos oceanos, os fluxos biogeoquímicos (os ciclos do nitrogênio
e do fósforo), a alteração do sistema de terras (desflorestamento),
a utilização de água doce, a carga atmosférica de aerossol e a
poluição química. (Fracalanza; Corazza; Maria, 2021, p. 11).
Na obra “Justiça Climática”, Mary Robinson enaltece os múl-
tiplos sinais dados pela Mãe Terra ao longo das últimas décadas,
e do quanto estudos nessa seara não são uma abstração cien-
tífica. Em suas palavras, trata-se de um fenômeno fabricado
pelo ser humano que impacta as pessoas, sobretudo as mais
vulneráveis, em todo o mundo. Em suas constatações, a autora
pontua que enquanto as nações industrializadas continuavam
a construir suas economias com a exploração dos combustí-
veis fósseis, os mais desvalidos ao redor do mundo sofriam
mais com os efeitos da mudança climática: “embora fossem as

10
“Para cada um desses processos, os cientistas se esforçaram em desen-
volver indicadores e realizar mensurações a fim de determinar qual seria
o espaço seguro para operação da humanidade sem que a resiliência do
Sistema Terra fosse ultrapassada – ou seja, a “fronteira” diante da qual
maiores perturbações antrópicas levariam a níveis incertos de alteração.
Infelizmente, já em 2015 quatro dessas fronteiras planetárias haviam
sido ultrapassadas: a taxa de extinção de espécies, o desflorestamento,
a concentração de carbono atmosférico (associado às transformações
climáticas) e os ciclos biogeoquímicos (do nitrogênio e do fósforo).
Multiplicam-se e tornam-se mais frequentes os alertas da comunidade
científica sobre os riscos que essas transformações aceleradas provocam,
em escalas cada vez mais amplas e em progressiva intensidade, com
efeitos irreversíveis sobre a estabilidade das condições do Sistema Terra”
(Fracalanza; Corazza; Maria, 2021, p. 11, grifo nosso).
Tempo de Travessia 237

menos responsáveis pelas emissões causadoras da mudança


climática, essas comunidades eram desproporcionalmente
afetadas devido a sua já vulnerável localização geográfica e
sua dificuldade de adaptação à mudança climática.” (Robinson,
2021, p. 32-33).

Precisamos de uma visão arrojada, comprometendo


cada nação, cada cidade e cada corporação com a neu-
tralidade em carbono até 2050. Precisamos de uma
mudança de mentalidade que permita uma transição
justa para a energia limpa, habilitando-nos a perma-
necer no patamar de 1,5 ºC de aquecimento ou menos,
ao mesmo tempo protegendo os direitos, a dignidade e
os meios de vida dos que forem afetados pela mudança
para uma economia neutra em carbono. Precisamos
estabelecer o preço adequado para o carbono. Cada um
de nós também é responsável pessoalmente. (Robinson, 2021,
p. 308, grifo nosso).

E nessa conjuntura de crises sistêmicas e globais, a reflexão


do sociólogo alemão Klaus Dörre parece igualmente pertinente.
Para o autor, é clara a imperiosa necessidade de transforma-
ção social que questione o crescimento moderno como um fim
econômico em si mesmo, o que não remete, necessariamente,
ao fim do modo de produção capitalista. O que se alinhava no
horizonte, contudo, é que se as elites globais tem condições de
sobreviver às mais densas crises, ainda que sob novos regimes
de expropriação, há questões importantes a serem feitas pela
humanidade nesse interregno, a saber: “qual o preço disso, e se
queremos pagá-lo” (Dörre, 2022, p. 219).

Considerações Finais

No novo tempo - apesar dos perigos


De todos pecados, de todos enganos
Estamos marcados, pra sobreviver, pra sobreviver...
238 O Futuro do trabalho no século XXI

Pra que nossa esperança seja mais que a vingança


Seja sempre um caminho,
Que se deixa de herança.
Ivan Lins e Vitor Martins, in “Novo Tempo”

Nenhuma realidade é alterada sem antes se mudar a


percepção sobre ela. Um dos grandes problema que temos
tido neste novo século é a não compreensão da regra básica
das mudanças. Primeiro, você muda a forma de pensar e
depois a de agir – não o inverso. Se o cenário mudou e as
ações perderam sentido ou eficácia, é preciso entender qual
o grau de visão míope que carregamos que culminou nesse
rompimento com a realidade. Denotado o erro da percepção,
iniciamos o processo de mudança na forma de agir. Parece
simples, mas não é tarefa das mais fáceis.
Retomando o diálogo frutífero do filme de Capra, surge em
dado momento uma pontual indagação por parte do Senador
acerca do papel governamental e institucional nesse con-
texto, ao que recebe uma resposta intrigante e objetiva: “se a
questão política é: ‘Como começar?’ a alternativa é ‘Mudando
nossa maneira de ver o mundo’”. Nas palavras da cientista,
ainda se procura a peça certa para consertar primeiro, e
não se vê que todos os problemas estão contextualizados,
são fragmentos de uma crise maior – uma crise de percepção.
O desvelar da constatação de que somos frutos de inter-
secções e de trocas, necessitando a todo momento de múlti-
plas conexões com o entorno que nos circunda, traz consigo
a indagação do quanto precisamos sedimentar, dentro de nós,
a concepção de um “efetivo mutualismo”. Em sua definição
básica, trata-se de uma relação harmônica interespecífica em
que duas espécies se associam e se beneficiam mutuamente.
Ocorre que os vínculos formatados pelo humano em seu
galgar civilizatório nem sempre levaram em consideração
essa premissa. E se o humano é constituído, ou, com a expres-
são que aqui se quer utilizar, é “conformado” por múltiplas
interações, precisamos, com urgência, “civilizar a civiliza-
ção” levando em conta a cruel verdade de que “nada é mais
difícil de realizar que o desejo de uma civilização melhor”
Tempo de Travessia 239

(Kern e Morin, 2005, p. 110). Se os vínculos forjados pela


humanidade pautaram-se numa dimensão oportunista [e
egoísta] de dominar o entorno, pensando apenas na técnica e
no “desenvolvimento”, muito se deixou pelo caminho - talvez
até mesmo uma parte de nossa humanidade...
Se nossas interlocuções com a biosfera deram-se em um
nível de desconsiderar o bem-estar coletivo e das demais
espécies terrestres, ou de pôr tais questões em plano secun-
dário, é válido afirmar, nas palavras de Krenak, que “preda-
mos” o universo que nos abriga. Na visão do líder indígena,
nós não somos as “[...] únicas pessoas interessantes no mundo,
somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa
humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta
de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que
fazem essa viagem cósmica com a gente”. (Krenak, 2020, p. 30-31).
Como já mencionado, há fatores múltiplos que convergem
para as crises do momento. Em uma conjuntura de franca assi-
metria social e díspares acessos aos bens de consumo, é plausí-
vel a afirmação de Beck de que a discussão sobre a “problemática
da metamorfose da desigualdade é a questão essencial do futuro”
(Beck, 2018, p. 251). Sinaliza ainda Beck uma importante questão,
interseccionada com a problemática da crise planetária: existe
uma síntese de pobreza, vulnerabilidade e ameaças implica-
das na mudança climática. Estamos vivendo num mundo onde
“a desigualdade se tornou social e politicamente explosiva”. A
problemática surge, pois, no contexto dos chamados “desastres
naturais, que são de fato produzidos pelo homem, em contraste
com um horizonte em que a igualdade foi prometida para todos”
(Beck, 2018, p. 252, grifo nosso).
Nesse sentido, é o que igualmente Mary Robinson (2021)
expôs em seu estudo assertivo sobre as mudanças climáti-
cas – que estamos diante de uma situação muito complexa11

11
Em 2018, o IPCC divulgou um histórico relatório, atendendo um pedido
do Acordo de Paris, no qual descortinava perspectivas apavorantes caso
seja ultrapassada no mundo a marca de 2 °C de aquecimento. Se pros-
seguirem no atual nível as emissões de gases do efeito estufa, advertia
o relatório, até 2040, a atmosfera sofrerá aquecimento de até 1,5 °C
240 O Futuro do trabalho no século XXI

que exige que rememos para uma mesma direção. Em suas


palavras, precisamos de mudanças comportamentais em
todos os níveis para fazer a transição para um mundo susten-
tável, com uma economia circular e sem desperdício, soma-
dos à governança, aliando à ciência e, também, trazendo
consigo o nobre sentimento da compaixão. Ressalta ainda
que essa problemática “não trata de uma crise do futuro, mas
de uma crise do agora” (Robinson, 2021, p. 18). Eis, pois, a
maior reflexão que esse singelo estudo quer deixar.
O dever do agora, diante de um mundo em metamorfose e
com gritantes desigualdades, impõe “perceber que percebemos”,
e buscar uma maior autonomia de pensamento e de ação. Temos
um trabalho individual e social de estimular essa mudança
de percepção, e seguir na busca de alternativas sistêmicas ao
contexto planetário, pois isso trará luzes aos obscuros tempos
vividos pela humanidade e a todos os demais seres vivos que
conosco compartilham essa “casa comum”. Na esteira do que
expõe Dörre, “há uma interminável incerteza das previsões a
respeito das complexas interações entre o homem e a natureza”
(Dörre, 2022, p. 219). Eis, pois, chegado o tempo de travessia. E,
a depender das atitudes coletivas em prol de um “bem comum”,
a desviar artificialidades e consumo desmedido, será, talvez,
chegado também o tempo de escolhas – entre os preceitos que
fomentam o desenvolvimento da máquina capitalista e os valo-
res que se encontram na essência virtuosa da humanidade, aos
quais, a priori, deveriam ser inegociáveis e inquestionavelmente
priorizados.

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capital no século XXI. São Paulo: Práxis, 2021.
Beck, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova
realidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. B

acima dos níveis pré-industriais. Nesse padrão de aquecimento, 18% dos


insetos do planeta, 16% das plantas e 8% dos vertebrados perderiam
mais de metade do seu hábitat. Os cientistas alertaram que o mundo
inteiro deveria permanecer em 1,5 °C ou abaixo, o que, segundo eles,
seria “viável se houver vontade política”. (Robinson, 2021, p. 21).
Tempo de Travessia 241

Boff, Leonardo. Civilização Planetária – desafios à sociedade e ao cristianismo.


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Acesso em: 04 out. 2021.
Qualidade de vida dos estudantes do curso
de graduação em Direito da Universidade
Federal de Uberlândia:
Um Projeto de Pesquisa

12 FABIANE SANTANA PREVITALI1


JOÃO PEDRO RIBEIRO CARRIJO2

1. Introdução

V
ivencia-se atualmente, sob as políticas neoliberais
e o avanço tecnológico no bojo da Indústria 4.0
uma nova estrutura do mercado de trabalho, mais
heterogênea e precarizada, marcada pela flexibilização das
relações laborais, concernentes à contratos temporários e
intermitentes, uberizados3 e pejotizados4 em um contexto de
perda de direitos via reformas trabalhistas e de seguridade

1
Professora Doutora do Instituto de Ciências Sociais da UFU (Universidade
Federal de Uberlandia).
2
Acadêmico do curso de graduação em Direito da UFU (Universidade
Federal de Uberlândia)
3
Conforme Horta, Borba e Previtali (2021), o termo faz referência ao
trabalho realizado por demanda mediante plataformas e aplicativos,
inaugurado pela empresa Uber na segunda década do século XXI e que
logo se expandiu por outros setores e ramos de atividade econômica,
sendo caracterizado pela ausência de regulamentação e de direitos
trabalhistas.
4
Conforme Antunes (2018), o termo faz referência à pessoa jurídica
(PJ) que é falsamente apresentada como “trabalho autônomo”, visando
obscurecer relações de assalariamento.
244 O Futuro do trabalho no século XXI

social, impactando significativamente na qualidade de vida


da classe trabalhadora.
O que se observa atualmente no mundo do trabalho ‘’mun-
dializado’’ e, particularmente, no Brasil, especialmente a
partir das reformas trabalhistas (Lei 13.467) é que o fenômeno
da precariedade laboral não está restrito às profissões mais
desqualificadas ou manuais, mas se estendeu às profissões
qualificadas, ao trabalho intelectual, assumindo um caráter
sistêmico e transversal a todos as profissões (Harvey, 2011;
Antunes, 2018; Alberty et al, 2018). Hassard e Morris (2018)
chamam atenção para os segmentos mais jovens e qualificados
da classe trabalhadora, forjados sob as tecnologias digitais,
que viam na educação escolar superior e profissional garantias
de um futuro assegurado, mas agora se encontram à mercê da
instabilidade e da insegurança.
Para Sotelo (2016), os jovens profissionais tendem, por um
lado, a ser mais adaptáveis ao uso das tecnologias digitais
posto que nela são forjados e aprendem a ser flexíveis e intera-
tivos e a buscarem sempre maior qualificação. Por outro lado,
esses jovens são fortemente afetados em sua subjetividade,
podendo desenvolver sentimentos de insegurança, injustiça,
insatisfação, falta de reconhecimento profissional, frustração
e depressão, com uma consciência apenas imediata e super-
ficial quanto aos imperativos estruturais, sociais e culturais,
sob os quais se apoiam a nova (des)regulação do trabalho.
A precarização, elemento constituinte da classe trabalha-
dora desde seu nascimento (Braverman, 1981), adquire, no capi-
talismo da era digital do século XXI, um elemento novo, con-
cernente à instabilidade econômico-psicossocial, com mais e
mais áreas da vida sendo subordinadas às necessidades e às
adversidades do mercado.
Se houve um relativo controle da precariedade do trabalho
sob a produção fordista e o Estado Social vivencia-se hoje,
com as tecnologias digitais e o Estado Gestor a sua explosão
(Previtali; Fagiani, 2015). A promessa de uma organização da
vida com mais tempo-livre conquistado sobre o trabalho assa-
lariado mediante a prevalência do trabalho intelectual (Gorz,
1985; Schaff, 1997) não se cumpriu para a classe trabalhadora.
Qualidade de vida dos estudantes do curso de Direito 245

Para Previtali e Fagiani (2015, p. 66), “o que se tem presenciado


é a formação de um novo modelo produtivo que tem gerado
emprego associado às novas tecnologias, porém, com menores
salários e em piores condições de trabalho”.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a
qualidade de vida é baseada na percepção do indivíduo em
relação a si, no contexto cultural em que está inserido e o con-
junto de crenças sob os quais ele vive e suas metas, expec-
tativas e preocupações (SAUPE et al, 2004). Desse modo, a
qualidade de vida não é um conceito universal, pois depende
da percepção subjetiva do indivíduo em relação à sua vida.
Os pesquisadores têm estudado os fatores impulsiona-
dores do estresse e suas consequências no funcionamento
humano (Lazarus; Lazarus, 1994; Wright; Cropanzano, 2000).
Foi identificado que um estado prolongado de estresse afeta o
bem-estar físico e psicológico da qualidade de vida das pessoas
(Kaplan, 1995; Lipp, 1997).
Diante disso, a OMS desenvolveu um instrumento inter-
nacional para avaliar o construto: WHQOL-100 (questionário
composto por 100 itens) e WHOQOL-bref, que é a sua versão
abreviada. No que tange aos domínios avaliados, são eles:
Domínio Saúde Física, Domínio Psicológico, Domínio Relações
Sociais e Domínio Ambiente. Em relação ao primeiro, são ava-
liados aspectos físicos tais como dor e sono. Sobre o segundo,
são analisados, por exemplo, energia individual e descanso.
No que concerne às relações sociais, os aspectos avaliados são
relações interpessoais, atividade sexual e redes de suporte.
Por fim, a avaliação do ambiente trata de atividades diárias e
capacidade para o trabalho (Minayo et al., 2000).
Na atualidade, a qualidade de vida é foco de interesse para
empresas, trabalhadores liberais e profissionais da área jurí-
dica, contudo existem poucos estudos que tratam do tema
na vida dos estudantes de graduação em Direito; neste caso,
a maioria se refere à realidade americana (Lipp; Tanganelli,
2002). O estresse é presente no cotidiano desses, tal como é
em outras áreas, por exemplo, a medicina (Villanueva; Haivas,
2006). Ainda no que diz respeito ao estudante de Direito,
estudos demonstram taxas elevadas de estresse e depressão
246 O Futuro do trabalho no século XXI

(Benjamin et al., 1986; Dammeyer, Nunez, 1999; Hess, 2002).


Ademais, pesquisas evidenciam que o graduado apresenta
aumento dos sintomas psicológicos (depressão, ansiedade e
paranoia) (Benjamin et al.; 1986; Dammeyer; Nunez, 1999).
De acordo com Eaton et al. (1990), os maiores índices de
depressão estão presentes em advogados; ademais, em outra
pesquisa, foi demonstrado que esses profissionais apresentam
15 vezes mais taxas de ansiedade e depressão em relação ao
resto da população economicamente ativa (Beck et al., 1995).
Essa situação agrava-se conforme avança a precarização das
relações de trabalho, que se encontram cada vez mais individu-
alizadas e invisibilizadas, suprimindo a divisão entre o tempo
de vida dentro e fora do trabalho, que, por sua vez, culmina em
uma ‘’escravidão moderna’’ (Antunes, 2018).
Diante desse cenário, fica claro de que os estudantes do
curso de graduação em Direito sofrem impacto direto em suas
vidas devido à sua escolha acadêmica. Apesar disso, outras pes-
quisas demonstram que os níveis de depressão e estresse são
semelhantes, quando comparados com alunos de outros cursos
(Helmers et al., 1997). Nesse sentido, se faz necessário um estudo
para compreender melhor a qualidade de vida dos estudantes
do curso de graduação em Direito.

2. Justificativa

O mundo do trabalho é foco de interesse para estudiosos


desde as origens da sociologia (Dubar, 2005). Além disso, é evi-
dente que ocorrem metamorfoses ao longo da história no campo
laboral, principalmente nas últimas décadas do século XX, que,
decorrente das necessidades do processo de reestruturação pro-
dutiva do capital para perpetuar-se, o conhecimento técnico-
-científico e a profissionalização passaram a ser cada vez mais
exigidos dos trabalhadores (Braverman, 1974; Kanan, Arruda,
2013). Ainda, em oposição à ideia de que o capitalismo ‘’aboliu’’ o
trabalho, por conta da transição da predominância do trabalho
manual para o intelectual, Antunes (1999) defende que as rela-
ções laborais se tornaram não só fragmentadas, mas, também,
mais precarizadas (Previtali, 2013). No campo do Direito, essas
Qualidade de vida dos estudantes do curso de Direito 247

mudanças refletem-se em maiores índices de problemas psico-


lógicos entre os profissionais da área (Eaton et al, 1990).
Conforme o Art. 3º da RESOLUÇÃO CNE/CES N° 9 (BRASIL,
2004), que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do
Curso de Graduação em Direito, o curso de graduação em Direito
deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral,
humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de
conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação,
interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais,
aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a
capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâ-
mica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da pres-
tação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.
Entretanto, os desafios para se adotar metodologias ino-
vadoras no curso de graduação e Direito ainda são grandes.
A maioria dos estudantes precisa também conciliar o estudo
com o trabalho e, portanto, não dispõe de tempo suficiente
para se prepararem adequadamente para as aulas (Horn,
Schauren Júnior, 2021).
Ainda no campo acadêmico, a literatura demonstra uma
relação entre a percepção do ambiente educacional e a quali-
dade de vida do estudante de graduação em Direito (NETO et al.,
2008), além de demonstrar as consequências dessas variáveis
no desempenho estudantil. Contudo, apesar de ser um tema de
suma-importância, na Universidade Federal de Uberlândia, até
o presente momento, não foram realizados estudos que bus-
quem compreender a percepção dos estudantes dessa institui-
ção em relação ao seu ambiente de aprendizado.
Ademais, como a qualidade de vida é um conceito subjetivo,
particularizado e multidimensional e que, por sua vez, influen-
cia diretamente na atuação profissional (Forno, Finger, 2015),
é importante conhecer o impacto na vida dos estudantes de
graduação em Direito da UFU.
Desse modo, essa pesquisa tem a possibilidade de promover
futuras alterações institucionais que visem melhorias na qua-
lidade de vida e no ambiente acadêmico, além de influenciar
outras unidades de ensino a desenvolverem estudos semelhan-
tes (Till, 2005). O novo do trabalho flexível traz novos desafios
248 O Futuro do trabalho no século XXI

aos jovens profissionais do curso de Direito que tendem à


maior qualificação e a ser mais interativos, porém em um
contexto laboral mais competitivo e individualizado, impac-
tando sua qualidade de vida. Torna-se fundamental com-
preender esse novo tecido produtivo para subsidiar ações e
políticas públicas que possam melhorar a qualidade de vida
desses profissionais.

3. Objetivos

3.1. Objetivo Geral

Compreender e avaliar a qualidade de vida dos estudantes


do curso de graduação em Direito da Universidade Federal
de Uberlândia no período de 2017 à 2022 quando houve a
formação de uma turma do curso sob a vigência da aprovação
da Reforma Trabalhista, Lei 13.467 de 2017.

3.2. Objetivos Específicos

Analisar a qualidade de vida dos estudantes do curso de


graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
Relacionar a qualidade de vida às variáveis sociodemo-
gráficas dos estudantes do curso de graduação em Direito da
Universidade Federal de Uberlândia.
Relacionar a qualidade de vida ao contexto socioeconô-
mico do neoliberalismo e das tecnologias digitais.

4. Metodologia

Trata-se de um estudo observacional, descritivo, trans-


versal de abordagem quantitativa e qualitativa, com análise
de dados sociodemográficos e de qualidade de vida.
O presente estudo deverá ser aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia,
com base na Resolução N.º 466, de 12 de dezembro de 2012,
do Conselho Nacional de Saúde.
Qualidade de vida dos estudantes do curso de Direito 249

4.1. Aspectos Éticos

A pesquisa está pautada em princípios éticos que asse-


gurem a confidencialidade e a privacidade dos sujeitos pes-
quisados, garantindo a proteção da sua imagem, a sua não
estigmatização e a não utilização das informações em pre-
juízo dos sujeitos da pesquisa e/ou da comunidade em que
estão inseridos.

4.1 Riscos e benefícios

O estudo oferecerá risco de identificação dos estudantes


e, em alguns casos, o risco do estudante se sentir constran-
gido. Tais riscos deverão ser prevenidos pela garantia do
sigilo e do anonimato das respostas, bem como pela não
obrigatoriedade de responder qualquer pergunta conside-
rada desconfortável ou constrangedora. Nesta situação, o
estudante poderá entrar em contato com a equipe executora
do estudo, a qual se responsabilizará por encaminhá-lo para
atendimento psicológico, se necessário.
O presente estudo apresenta como benefício a oportu-
nidade de uma melhor compreensão da qualidade de vida
dos estudantes inseridos no curso de graduação em Direito
(matutino e noturno) da Universidade Federal de Uberlândia.

4.2. Critérios de inclusão

São elegíveis para o estudo todos os estudantes maio-


res de 18 (dezoito) anos matriculados no curso de graduação
em Direito (matutino e noturno) da Universidade Federal de
Uberlândia, que iniciaram o curso entre o segundo semestre
de 2017 e o segundo semestre de 2022 (n=930 estudantes).

4.3. Critérios de exclusão

Serão excluídos os estudantes que não concordarem com


a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido
para participação no estudo.
250 O Futuro do trabalho no século XXI

4.4. Caracterização da Amostra

Através de consulta à coordenação do curso de Direito da


UFU, obteve-se o montante de 930 alunos matriculados na data
de 31/01/2022, sendo 449 no período matutino e 481 no noturno.
Portanto, a fim de minimizar a ocorrência de viés de sele-
ção, optou-se por implementar o cálculo de tamanho de amos-
tras para descrição de variáveis qualitativas em populações
finitas, estratificada por período, de acordo com Miot (2011).
O Cálculo da estimativa amostral foi realizado adotando-
-se os parâmetros Margem de Erro (E): 5 pontos percentuais,
Erro do Tipo I (alfa) em 5% e Proporção (p) em 50%, conforme
recomendações do texto de Miot (2011). O resultado da estima-
tiva amostral foi de 422 alunos, sendo 208 no período matu-
tino e 214 no noturno.
Portanto será adotado o esquema de amostragem por con-
veniência, objetivando alcançar 422 alunos respondentes dos
dois questionários (qualidade de vida e socioeconômico), de
modo que minimamente haja a participação de 208 alunos do
período matutino e 214 do período noturno.

4.5. Instrumentos de Coleta de Dados

Para coleta e análise dos dados sociodemográficos será


utilizado um questionário elaborado pelos autores do estudo,
contendo as seguintes variáveis: idade, sexo, cor/raça, turno
matriculado do curso, semestre de ingresso no curso, estado
civil, cidade de origem, instituição onde cursou a educação
básica, ensino fundamental e médio (pública ou privada), ati-
vidade laboral, doenças e atividade de ensino superior.
Será utilizado para avaliação da qualidade de vida dos estu-
dantes a versão em português do WHOQOL-bref (World Health
Organization Quality of Life Questionaire – bref), a versão abre-
viada do WHOQOL-100, desenvolvido no Departamento de
Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil (FLECK, LEAL, LOUZADA
et al., 1999). O WHOQOL-bref apresenta itens agrupados em 4
domínios: Saúde física, Psicológico, Relações Sociais e Ambiente.
Qualidade de vida dos estudantes do curso de Direito 251

As respostas são obtidas em escala Likert de 5 pontos e escores


são transformados em escala de 0 (pior qualidade de vida) a
100 (melhor qualidade de vida).

4.6. Procedimentos

Todos os estudantes matriculados no curso de graduação


em Direito (matutino e noturno) da Universidade Federal de
Uberlândia, que iniciaram o curso entre o segundo semestre
de 2017 e o segundo semestre de 2022, serão convidados a
participarem do estudo. Esse convite será realizado através
de e-mail enviado aos representantes dos diferentes períodos
do curso e à Coordenação do curso, solicitando que seja repas-
sado o convite aos demais estudantes de cada período. Neste
e-mail poderão acessar um link, que por sua vez, irá dire-
cioná-los para um formulário contendo, na primeira página,
o TCLE. Os estudantes que aceitarem participar voluntaria-
mente da pesquisa assinarão o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido e serão direcionados a uma página que conterá
os instrumentos de pesquisa (WHOQOL-bref e questionário
sociodemográfico). O TCLE assinado poderá ser enviado, de
modo automático, em PDF, para o e-mail do respectivo parti-
cipante da pesquisa. As respostas obtidas serão enumeradas
de acordo com a ordem de participação, sem dados de identi-
ficação, a fim de preservar o anonimato dos estudantes.

4.7. Análise de Dados

O diagnóstico de qualidade de vida utilizando o WHOQOL-


BREF será obtido pela análise da pontuação dos domínios e
da pontuação global. A pontuação dos domínios é obtida atra-
vés da média das questões de cada domínio multiplicado por
quatro, obtendo um resultado entre 4-20. (Fleck et al., 2000;
WHOQOL GROUP, 1998)
As variáveis categóricas serão descritas através de frequ-
ência absoluta e percentual, já as variáveis numéricas serão
apresentadas como média e desvio padrão. Na avaliação da
relação entre qualidade de vida e variáveis sociodemográficas
252 O Futuro do trabalho no século XXI

nominais, será implementado o teste χ 2 (qui-quadrado de


Pearson) (Field, 2011). Já em outras situações será calculada a
correlação de Kendall (MIOT, 2018) ou ponto-bisserial (Soares,
2005), na avaliação de variáveis sociodemográficas ordinais
ou dicotômicas, respectivamente.
Em todos os testes desenvolvidos será adotado o nível de
5% de significância. Os dados serão coletados através da plata-
forma Google Forms e tabulados através do software Microsoft
Excel 365 e analisados através do IBM SPSS Statistics v28.0.1.

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O segredo do grão: Relações sociais e
flexibilização do trabalho no capitalismo
contemporâneo

13 MÁRCIA VANESSA MALCHER DOS SANTOS1

1. Introdução

C
om a expansão do neoliberalismo e a consequente crise
do Welfare State a partir do final dos anos 1970 (Antunes,
2009, p.187), a produção do imaginário ganhou cada vez
mais relevância no sistema de organização capitalista. Não
apenas porque passou a responder à necessidade crescente de
gerar consenso diante do acirramento da austeridade e conse-
quente piora das condições de trabalho e de vida, mas também
porque se tornou imprescindível para a engrenagem que faz
funcionar o circuito de produção de valor das mercadorias. O
“capital aprendeu a fabricar discursos: uma marca, uma grife,
um apelo sensual que faz de uma mercadoria ordinária um
amuleto encantado” (Bucci, 2021, p.21).
O “just do it” da marca de vestuário mais valiosa do mundo,
a Nike2, é apenas um exemplo desse tipo de narrativa que
ganhou ainda mais impulso com o domínio das chamadas big
techs, cujos lucros cresceram exponencialmente nos últimos

1
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professo-
ra da Faculdade de Ciências Sociais (FACS) da Universidade Federal do
Pará (UFPA) e pesquisadora associada do Observatório para as Condições
Vida e Trabalho (OCVT/UNL/Portugal).
2
O valor da marca (não da empresa) alcançou os 47 milhões de dólares
em 2019 (Bucci, 2021, p.23)
256 O Futuro do trabalho no século XXI

anos, inclusive durante a pandemia ocasionada pelo vírus Sars-


Cov-23. Especializadas em capturar o olhar, comercializá-lo e
retroalimentar o circuito de sedução e comércio, essas empresas
expressam a força do imaginário para o capital hoje, pois não
apenas criam necessidades de consumo de mercadorias cor-
póreas, mas também porque monetizam o próprio discurso, a
imagem em si. Um exemplo disso também coligado à Nike foi o
lançamento de uma coleção de tênis NFT pela empresa: mode-
los personalizados que custam milhares de dólares e apenas
podem ser “usados” no ambiente virtual (Turbiani, 2022).
Dessa forma, as estratégias de destituição subjetiva, empre-
gadas para legitimar o constrangimento material crescente da
classe-que-vive-do-trabalho, como nomeou Ricardo Antunes
(2009), tornam-se cada vez mais sofisticadas. São muitos os
“anzóis libidinais” que interpelam o desejo, reiterando simulta-
neamente a profunda crença e ilusão de que o mundo desmo-
ronaria se desmoronassem as vitrines e as relações mediadas
pelo dinheiro e pelo capital. A superindústria do imaginário,
enquanto mercadora de signos, cujo negócio é o extrativismo do
olhar, também se tornou o principal terreno de absorção e esti-
mulo do niilismo e da inação predominante. Dado o enfraque-
cimento da religião para fornecer as promessas de Felicidade e
Justiça eternas, como afirma Alfredo Naffah Neto (1997, p.108),
esse posto foi sobretudo assumido pela produção de imagens
idealizadas e fetichizadas da realidade, as quais proliferam-se
ad nauseum nas múltiplas telas, alimentando sentimentos cal-
cados na competição e no ressentimento, dentre outros.
Se Marx falou do processo de reificação por meio do qual
o homem é objetificado enquanto as mercadorias são subje-
tivadas, agora é possível dizer que essa forma de alienação

3
Em 2020, Apple, Amazon, Google, Microsoft e Facebook alcançaram
juntas o valor de mercado de 5 trilhões de dólares liderando o grupo de
conglomerados mais caros do mundo. Em duas décadas, esse grupo, que
era dominado por companhias fabricantes de coisas palpáveis (por ex.,
em 1998 eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola), passou
a ser composto quase que totalmente pelas empresas de tecnologia
(Bucci, 2021, p.20)
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 257

se complicou a tal ponto que imagens passaram a devorar os


homens, como argumentou Norval Baitello Junior (2014). De
acordo com ele, isso acontece à medida que as imagens de
consumo são hiperinflacionadas e, de tão devoradas, passam
a bastar a si mesmas, o que implica na redução do homem a
mero corpo abstrato signo de sucesso, de uma carreira, da
fama. Ao serem descorporificados são, então, devorados, tor-
nando-se eles próprios imagens, as quais, por sua vez, diante
da perda da capacidade de apelo, proliferam-se mais e mais.
Nesse contexto de quase total mercantilização do olhar,
ainda podem as imagens cumprir um papel em favor da eman-
cipação da classe-que-vive-do-trabalho? Como descolonizar o
olhar da escravidão das imagens-mercadoria que legitimam a
tese do capitalismo enquanto fim da história? Ainda é possível
cumprir a tarefa de escapar da estetização da política, contra-
pondo-a à “politização da arte”, como disse Walter Benjamin
(2021)? Essas são questões complexas que, de certo, ultrapas-
sam o objetivo desse artigo, mas foram aqui formuladas para
indicar o quanto a busca em responder a elas é central para
qualquer projeto de superação da exploração capitalista na
contemporaneidade. Sem dúvida, também aos artistas e pro-
dutores culturais críticos, não é uma tarefa fácil burlar todo o
estupor imagético em que vivemos.
Conceber imagens que contribuam para a construção
de uma sociedade baseada na concepção de que a “cultura
é comum, ordinária”, como disse Raymond Williams (2015),
ou que contribua para a humanização da humanidade, como
afirmou Antonio Candido (2011), é tão necessário quanto saber
interpretar as que já nos cercam, identificando e diferindo
o que nelas são “sementes da vida” do que são “sementes da
morte” (Williams, 2001, p.275). Por isso, o exercício de “pensar
o mundo que nos cerca pelo ângulo da produção cultural, que
concretiza os significados e valores de determinada socie-
dade, e os torna visíveis e disponíveis para o esclarecimento
de todos” (Cevasco, 2019, p.82) por meio da crítica, tomando
como horizonte o materialismo histórico-dialético, é funda-
mental para esse processo de “escavação”. Não apenas porque
esclarece as formas através das quais as imagens refratam a
258 O Futuro do trabalho no século XXI

realidade, mas também porque permite extrair delas novos


sentidos, para além dos autoevidentes ou intencionalmente
declarados pelo produtor. Isso é possível por conta da própria
natureza da imagem artística que é, simultaneamente, uma
construção de objetos autônomos (como estrutura e significado),
uma forma de expressão (isto é, manifesta emoções e a visão
do mundo dos indivíduos e dos grupos) e uma forma de conhe-
cimento (inclusive como incorporação difusa e inconsciente),
como explicou Antonio Candido (2011) sobre a literatura.
Assumindo esse ponto de vista que considera o social um
fator de arte (Candido, 2006), propõe-se a análise do filme que
recebeu no Brasil o título de O segredo do grão (2008), do diretor
Abdellatif Kechiche, pois se acredita que esse é um longa-me-
tragem ficcional altamente prolífico para pensar os constran-
gimentos materiais e subjetivos que enredam a classe traba-
lhadora contemporânea desde a sua complexa composição. Por
apresentar uma semelhança temática fundamental com o filme
The full monty, do diretor Peter Cattaneo, intitulado Ou tudo ou
nada (1998) no Brasil e, de acordo com nossa hipótese, por com-
plexificá-la, conferindo a ela maior densidade, faz-se necessário
primeiro apresentar alguns apontamentos em torno do longa
de Cattaneo.

2. Ou tudo ou nada

Ou tudo ou nada narra a história de um grupo de seis traba-


lhadores de Sheffield que se encontram em uma encruzilhada
de vida: após serem demitidos da indústria siderúrgica estão
relegados ao subemprego, sentindo-se inadequados e impoten-
tes. Ao se tornarem operários hifenizados, como chamou Huw
Beynon, ou seja, que apenas conseguem trabalhos de tempo
parcial, por hora, precários, temporários, o grupo sintetiza o
impacto de profundas transformações estruturais ocasionadas
pela passagem do chamado fordismo e industrialismo “fuma-
cento” (‘smoke stack’ industrialism) ao thatcherismo ou antiesta-
tismo, pós-fordismo ou pós-industrialismo (1997, p.10).
À medida que o capitalismo regulado e a cultura assala-
riada do fordismo passaram a ser atacados devido à crise de
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 259

acumulação dos anos 1970 e à reestruturação que a acom-


panhou, “a diversificação de formas de contrato, a redução
dos contratos por tempo determinado e a subcontratação, de
forma tendencial, apontariam para uma retomada do indiví-
duo empreendedor [...] em contraposição à subordinação do
assalariamento” (Lima, 2010, p.168). Soma-se a isso a crise
das ideologias de transformação social de base coletivista
após a queda dos Estados Socialistas do Leste Europeu, o que
também contribuiu para o avanço desse processo capitaneado
pelo modelo neoliberal.
No Reino Unido, essas mudanças, que atingiram todo o
setor industrial, foram particularmente evidentes no setor
carbonífero e siderúrgico, caso das personagens do filme. Por
conta das privatizações, essas indústrias, que eram o centro
da economia estatal, reduziram drasticamente os postos de
trabalho ofertados para apenas 3% do percentual que empre-
gava no pós-guerra. Declínio esse fortemente associado à
implementação de novas tecnologias e à descentralização
da produção em unidades de baixo custo em outros países:

As unidades fabris que vieram e as que permaneceram


abertas tem sido gerenciadas com o propósito de redu-
zir drasticamente seu quadro de empregados. Nos
Estados Unidos esse processo foi chamado de enxu-
gamento (downsizing) ou, ocasionalmente, ajuste da
máquina (righsizing). E foi visto como uma solução para
a intensidade da competição internacional ao remo-
ver a esclerose das industrias dominadas por práticas
de “emprego para toda a vida” e por suporte estatal
(mantido por meio de subsídios e contratos garanti-
dos). A introdução de máquinas (robôs e computado-
res) tem substituído profissões em um tal ritmo que
levou alguns observadores a prever o fim do trabalho
(Beynon, 1997, p.12).

Esse “enxugamento”, então, impeliu os trabalhadores a bus-


carem oportunidades em outros setores, especialmente no de
serviços, que ganhou dinamicidade nos anos 1980. Escritórios,
260 O Futuro do trabalho no século XXI

restaurantes, transportes, supermercados, mercado varejista,


turismo, seguros e bancos ganharam relevância. Em 1995, na
Grã-Bretanha, por exemplo, “1,25 milhões de pessoas estavam
empregadas em hotéis e indústrias de entretenimento, mais
do que o total da força de trabalho de quase todas as indús-
trias ligadas à manufatura tradicional” (Beynon, 1997, p.13).
No filme, é evidente o quanto essa mudança repercutiu na
subjetividade, nas relações de gênero e nas dinâmicas fami-
liares das personagens após os homens, que compunham a
maioria absoluta da mão-de-obra da indústria “fumacenta”,
já não mais ocuparem o centro do sustento material da famí-
lia como antes. De operários-massa, habituados a uma rotina
fragmentada do trabalho, composta por operações simples
e repetitivas, mas que também lhes permitia viver a socia-
bilidade fabril com a forte identidade ocupacional que ela
fornece, viram-se “desnudos” após a perda do emprego, o
qual incorporava direitos sociais vinculados ao contrato de
trabalho e significava segurança e previsão de futuro. Em
decorrência disso, o declínio das condições econômicas das
famílias tornou a inserção das mulheres no mercado de tra-
balho uma necessidade para compensar ou mesmo garantir
a renda familiar.
Na sua grande maioria, essa mão-de-obra foi absorvida
pelo setor de serviços que, por sua vez, apresenta uma iden-
tidade eletiva com as características do trabalho reprodutivo
conferido historicamente às mulheres na divisão sexual do
trabalho. É emblemático, portanto, que a opção apresentada
aos homens desempregados de Ou tudo ou nada, cujo título em
inglês, The full monty, é uma expressão que designa nu fron-
tal, seja realizar um show para as mulheres em uma boate de
streap tease com o apelo de “tirar tudo”. Tornarem-se a atração
principal do show é uma forma de compensação da impo-
tência diante das perdas advindas das novas regras estabe-
lecidas pela flexibilização e pelo espetáculo a ela vinculado,
afinal, os mais variados anzóis libidinais também passam a
ocupar o centro do palco no sistema capitalista atual.
As cenas engraçadas dos ensaios e das tentativas de se tor-
narem dançarinos a despeito da inadequação dos seus corpos
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 261

e da falta de habilidade rítmica das personagens são ironias


bem construídas sobre a dificuldade deles em se adequar
aos “novos tempos”. Enquanto ensaiam, no entanto, também
reforçam os laços de amizade e ajuda mútua como prevenção
para a depressão e dificuldades materiais. Assim preservam,
de maneira cooperativa, algo da sociabilidade operária per-
dida, ainda que, como se argumentará mais adiante na aná-
lise de O segredo do grão, o individual se sobreponha ao cole-
tivo. Sem dúvida, a sugestão desse coletivismo é o principal
quinhão genuíno de utopia que o longa oferece ao espectador.

Figura 1 – O streap tease para as mulheres

Fonte: The full monty [Ou tudo ou nada]. Peter Cattaneo, 1998.

O sucesso do show que encerra o filme, com toda certeza,


demonstra a força dos apelos ideológicos e midiáticos que
legitimam a precarização presente no viver de “bico” ou de
trabalhos intermitentes desprovidos de direitos. Apesar da
emoção gerada pela cena e do seu apoteótico encerramento
com o full monty, não escapa aos mais atentos a sensação de
constrangimento, de falta de dignidade e de potência simu-
lada (e, portanto, irreal) que está ali reverberada. É como se,
no desfecho do filme, os seis amigos afinal se resignassem a
um novo modo de trabalho e de vida, o qual, apesar de lhes
explorar completamente (até a última peça de roupa), oferece
em troca compensações da ordem do imaginário, ao nutrir
a ilusão da livre escolha de “poder ser e fazer o que quiser”
e, com isso, destacar-se, alcançar o sucesso de acordo com
os critérios socialmente dominantes de êxito monetário e/
ou fama.
262 O Futuro do trabalho no século XXI

2. A tainha e o grão

O segredo do grão, longa de Abdellatif Kechiche, lançado em


2008, dez anos depois da estreia do filme de Peter Cattaneo,
também tem como matriz narrativa a mesma mudança estru-
tural que foi tematizada em Ou tudo ou nada nos anos 1990. No
entanto, ao abordar as condições de trabalho e de vida a partir
da comunidade franco-tunisiana, confere à temática maior
densidade, permitindo acessar outras camadas de sentido, mais
complexas. Diferente de Ou tudo ou nada que enfoca o grupo de
seis amigos desempregados, O segredo do grão enfatiza a relação
da personagem central, Slimane Beiji (Habib Boufares), com
suas duas famílias, pois ele, aos 61 anos e recém-divorciado da
ex-esposa, Souad (Bouraouïa Marzouk), com quem teve cinco
filhos, mora em um dos quartos do hotel da namorada, Latifa
(Hatika Karaoui), e de sua filha, Rym (Hafsia Herzi).
Slimane, que trabalha há 35 anos consertando navios no
estaleiro de Sète, uma vila portuária do sul da França, enfrenta
um dilema de vida: a piora das condições de trabalho e a falta
de dinheiro já não possibilitam a ele cumprir o papel de prove-
dor através do qual se construiu como pai e marido. A empresa
na qual trabalha empreende um enxugamento do quadro de
funcionários demitindo os franceses e os mais velhos a fim de
manter apenas a mão-de-obra imigrante, jovem e temporária
que, por conta das condições de vida, é mais suscetível a se
resignar aos baixos salários e aos cortes de direitos. Slimane,
no entanto, experiente e habituado à rotina que o ofício exige,
demonstra seu descontentamento em relação à cobrança pelo
aumento de produtividade feita pelo gerente que, como ele
mesmo diz, não sabe o quanto de trabalho existe em um barco,
ou seja, desconhece a especificidade da atividade e o tempo
necessário para realizá-la.
Nota-se que do modelo taylorista-fordista, baseado na
gerência científica e na negociação individual como forma de
evitar a organização coletiva, a empresa passa pela reestrutu-
ração exigida pelo toyotismo ou pós-fordismo na qual se rompe
“com a rigidez corporativa, individualizando mais o trabalha-
dor, a partir da noção de participação, competitividade, metas
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 263

a serem atingidas, levando a uma fragmentação crescente do


coletivo de trabalhadores, individualizando o ambiente de
trabalho” (Lima, 2010, p.167). No filme, essa passagem fica evi-
dente na cena em que o gerente vai até o estaleiro para exigir
que Slimane siga o cronograma das planilhas e repreende o
genro dele, José (Olivier Loustau), e os demais trabalhado-
res, por paralisarem suas atividades por conta da discussão
dizendo: “E José, isso não é da sua conta. Estou falando com
Slimane. Cuide da sua vida! Você para, todos param por qual-
quer coisa. Isso está me dando nos nervos!”. Em seguida, já no
escritório, responsabiliza Slimane pela diminuição da produ-
tividade e discute seu contrato de maneira individualizada.
Cansado da subordinação à gerência típica do modelo taylo-
rista-fordista que agora é a responsável pelo processo de enxu-
gamento e adequação da empresa aos novos tempos, Slimane
não admite a ameaça de corte – acompanhada do insulto do
gerente que afirma “você se cansa e nos cansa, essa é a verdade”
– e pede demissão. Diferente do genro que, mais jovem e pai de
duas crianças, ainda que discorde, conforma-se às mudanças
atribuídas ao aumento da competitividade no mercado inter-
nacional e à crise enfrentada pela empresa. Ao que tudo indica,
esta última preserva rotinas de trabalho ainda refratárias à
implementação de novas tecnologias e busca compensar as
perdas de lucro na nova configuração do mercado globali-
zado aumentando a produtividade dos funcionários. Não por
acaso, o gerente, cuja idade aparentemente se aproxima da de
Slimane, mostra-se esgotado e precisa de uma bengala para
caminhar, demonstrando o estado do modelo taylorista-for-
dista em seu esforço de adequação.
A demissão, entretanto, não resulta em um acerto de contas
justo. O valor equivale a apenas cerca de 15 dos 35 anos de tra-
balho porque, de acordo com o gerente, a empresa que vendeu
o estaleiro aos atuais proprietários não formalizou o con-
trato de Slimane. A postura, os gestos extremamente contidos,
melancólicos, e as poucas palavras desse último denotam o
seu cansaço e a sua fratura ao longo do filme. A sequência em
que ele compra peixes e leva para a família é reveladora desse
estado de ser. Após comprá-los no porto, ele segue em direção
264 O Futuro do trabalho no século XXI

à casa de Souad que, sem parar o trabalho doméstico, reclama


do seu cheiro e do fato de ele apenas levar peixes e não ajudar a
pagar as contas. Vendo, então, que não há mais espaço no con-
gelador, leva os peixes para a casa da filha mais velha, Karima
(Farida Benkhetache), esposa de José. Também ela demonstra
que o ato não era necessário, ainda que, depois da advertên-
cia do marido, agradeça carinhosamente o pai e estimule as
crianças, que se divertem com os peixes, a fazer o mesmo. De
lá, leva o restante para Latifa e Rym, que trabalham no hotel.
Enquanto a primeira pergunta se ele está bem, a segunda é a
única que recebe os peixes com entusiasmo e sem titubeio.
Nota-se que Slimane, cuja subjetividade foi profundamente
marcada pela identidade laboral e pela construção social do
homem como exclusivamente pertencente ao espaço público,
apenas manifesta zelo e afeto por meio do que traz de fora, do
exterior, isentando-se do universo da reprodução, das deman-
das domésticas, a exemplo do seu silêncio diante dos proble-
mas familiares relacionados ao casamento do filho, Majid (Sami
Zitouni), com Julia (Alice Houri), de origem russa. A nora encon-
tra-se em um estado de constante sofrimento e nervosismo
por conta do comportamento do marido que a trai com outras
mulheres e é um pai ausente.
Há entre as personagens de Slimane e Majid um jogo de
espelhamento contrastante. Embora Majid tenha herdado a
ausência do pai em relação às questões domésticas, ao que
parece, essa ausência é de uma qualidade distinta: vai além
da falta do afeto e do companheirismo cotidiano reclamado
por Souad, pois também implica infidelidade e abandono
parental. É como se a narrativa estabelecesse uma continua-
ção geracional do comportamento patriarcal, mas agravado
pela ruína dos valores-base, indicando uma correspondência
entre condições de trabalho flexíveis - pois Majid é guia turís-
tico e já não viveu o modelo laboral do pai - e relativização
dos valores fundamentalmente vinculados à permanência, os
quais implicam uma medida de tempo qualitativa e prolon-
gada necessária às demandas do cuidado, responsabilização
afetiva e compromisso parental. Essa relação, sem dúvida,
lança questões intrigantes para pensar se e em que medida
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 265

novos comportamentos, sentimentos e valores concernentes


à sociabilidade contemporânea em geral e aos relacionamen-
tos amorosos em particular (inclusive àqueles que buscam se
opor, declaradamente, ao modelo de família patriarcal por
meio de variadas práticas) catalisam, condensam e expres-
sam respostas subjetivas aos novos ritmos e práticas “flexí-
veis” do capital, orientadas pela fugacidade, pela imperma-
nência, por demandas constantes de adaptabilidade e pelo
filobatismo4.
Voltando à sequência de Slimane e dos peixes, é evidente
que em relação à ex-esposa o pouco que ele tem a oferecer
(tanto subjetiva quanto objetivamente) acumula no freezer:
além de já não ser mais necessário porque as necessidades
mudaram, tornou-se um motivo de insatisfação. Diferente
disso, a filha Karima, ainda que tenha acenado um descon-
tentamento em relação aos peixes, recebe com agradecimento
o gesto, cuidando para que os filhos demonstrem ao avô que
gostaram do presente, ou seja, embora reconhecendo as limi-
tações do pai, mantém um bom relacionamento com ele, bus-
cando transmiti-lo aos filhos. Já a reação de Latifa, que não
dá muita atenção aos peixes e se preocupa mais em saber se
ele estava bem explicita que a ela, independente financei-
ramente, apenas interessa o que ele tem a oferecer afetiva-
mente. A única que, de fato, dá atenção e agradece animada
os peixes é Rym, que também pergunta a Slimane sobre a
reação da mãe. A atitude da garota não apenas revela a sua
proximidade com o padrasto, mas também a sua profunda
vontade de que o relacionamento dele com Latifa tenha êxito
e ela seja reconhecida por todos como filha.
Se por um lado, Slimane se sente inútil ao não conseguir
responder às demandas materiais vindas de Souad; por outro,
a despeito das tentativas de mãe e filha em acolhê-lo e fazê-
-lo se sentir em casa no hotel, sente-se deslocado diante da

4
Termo utilizado por Balint (1960/1994 apud Baitello Junior, 2014, p.32)
para descrever a atitude que valoriza a aventura e se arrisca diante do
perigo, marcada pela visão e pela distância, diferente do ocnófilo, que
busca proteção e proximidade física.
266 O Futuro do trabalho no século XXI

independência material de Latifa. Tudo isso reverbera em


tristeza. Não à toa o passarinho que ele cuida deixou de cantar,
como revela a Rym em uma das cenas. Mais do que isso, sen-
te-se profundamente impotente. Impotência que, inclusive,
concretiza-se na sua performance sexual com Latifa, depois
da qual, frustrado, retorna ao seu quarto onde, após ela o
procurar, confessa que não se sente bem: “Até quando vamos
continuar assim?”, pergunta argumentando sobre os outros
inquilinos e dizendo que frequenta o quarto dela mas não
passa de um inquilino. “E daí?”, ela diz, ao que ele responde:
“Você é uma mulher independente, você é jovem, ama a vida,
a liberdade. Eu não tenho feito nada, não tenho deixado nada.
Nem para você e Rym, nem para os meus filhos”. Ela, em tom
de repreensão, pergunta: “Porque você diz isso?”, e depois
recosta o rosto em seu ombro.
Todo o filme assume um ponto de vista não impositivo em
que sobressai a câmera na mão, respeitando os movimentos,
o tempo das personagens e acompanhando a espontanei-
dade dos diálogos, muitas vezes indo de um a outro como
se os seguisse. Embora preserve essa naturalidade muito
próxima da linguagem documental, afasta-se dela à medida
que mantém a câmera, na maior parte do tempo, colada aos
atores. Isso porque a fotografia é predominantemente feita
em closes, big-closes e planos detalhe, aproximando o olhar
das figuras humanas e dos espaços habitados por elas. A
esse respeito, é preciso ressaltar a familiaridade do diretor
Abdellatif Kechiche com o universo filmado, já que também
ele faz parte da comunidade franco-tunisiana. Se de um turno
essa proximidade desfaz as fronteiras, gerando empatia e
reconhecimento; de outro também produz uma sensação
de enclausuramento, reforçando os dilemas da personagem
principal. É através dessa forma de filmar, por exemplo, que o
espectador acompanha o animado preparo do famoso cuscuz
com tainha de Souad e as conversas do almoço de domingo
que reúne a família e os amigos na casa dela; e o movimento
noturno do bar do hotel de Latifa, com música árabe e dança,
enquanto Rym e a mãe trabalham servindo os clientes, entre
os quais está Slimane.
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 267

Pode-se dizer que a encruzilhada de vida na qual ele se


encontra está condensada no título original do filme, La
graine et le mulet, ou O grão e a tainha em português, que, por sua
vez, remete a duas atividades fundamentais para a própria
constituição do gênero humano na história: a agricultura e a
pesca. Acredita-se que esses dois emblemas podem ser inter-
pretados como sínteses de Souad e de Latifa, as quais também
expressam a cisão vivida por Slimane. Enquanto a ex-esposa
sintetiza o modo de trabalho e de vida a que Slimane estava
habituado no modelo taylorista-fordista do qual ele teve de
se divorciar há pouco tempo, a atual namorada expressa as
novas condições do pós-fordismo.
Embora no dia a dia reclame da sobrecarga de trabalho
dizendo que está cercada de egoístas, Souad mantém o con-
trole de toda a rotina da casa, inclusive regulando o tempo
do banho dos filhos. Mas, por outro lado, no domingo, pre-
para o cuscuz com todos em volta auxiliando, o que requer
tempo e amor, como ela mesma diz. Dessa forma, eviden-
cia-se as contradições imanentes ao taylorismo-fordismo:
ao mesmo tempo em que reitera o controle, as cobranças e o
caráter repetitivo, também enfatiza o valor da estabilidade e
da permanência, bem como a sobrevivência, mais ou menos
residual, da identificação com o próprio trabalho. Souad,
portanto, supõe o “grão” presente no título.
De outro modo, a trajetória de vida da atual namorada,
Latifa, que é dona do hotel e gerencia todo o lugar sozinha,
apenas com a ajuda da filha, aponta para a autonomia esti-
mulada pela lógica da flexibilização do trabalho no “tornar-
-se patrão de si mesmo”. Trata-se de um modo laboral e de
vida invariavelmente ligado à incerteza e a uma rotina muito
assemelhada à da pesca, que depende do esforço diário e de
condições que escapam em maior grau do controle do traba-
lhador. Daí a “tainha” do título original. Nesse modelo, cuja
cultura é fortemente marcada por projetos de curto prazo,
pela instabilidade, pela precarização e pelo desapego,

[...] o trabalhador, empresário e patrão de si mesmo tor-


na-se responsável por sua própria reprodução social,
268 O Futuro do trabalho no século XXI

pagando taxas e impostos para ter acesso a serviços


sociais, sejam estatais, sejam privados. Para sobrevi-
ver no mercado, depende ainda da busca de formação
e atualização continua, adaptabilidade às novas tec-
nologias, capacidade de inovar e se mostrar atento às
mudanças, enfim, tornar-se flexível, aberto a novos
desafios. (Lima, 2010, p.171)

Ainda que divorciado do “grão” e começando a namorar a


“tainha”, Slimane sente-se responsável pelos filhos das duas
famílias, pelo legado que ficará às novas gerações. Talvez por
isso tenha buscado uma alternativa que fosse a conciliação do
grão e da tainha: decide investir o dinheiro da indenização
demissional na compra de um barco a fim de reformá-lo e
transformá-lo em um restaurante, o qual servirá, como prato
principal, o cuscuz preparado por Souad. Para isso, conta com
todo o apoio de Rym, que o auxilia na formulação do projeto e
o acompanha no pedido de empréstimo ao banco e no enfren-
tamento de uma grande quantidade de requerimentos buro-
cráticos e autorizações junto à prefeitura e órgãos públicos.
Entretanto, as exigências solicitadas pelas instituições regu-
latórias francesas parecem impossíveis de serem efetivadas,
evidenciando a grande barreira existente, especialmente pela
falta das condições materiais e dos conhecimentos necessá-
rios, para viabilizar uma ideia empreendedora, no sentido
shumpeteriano.
Ao não conseguir cumpri-las e após todos os pedidos e
o empréstimo do banco serem negados, Slimane consegue
uma autorização que permite a ele atracar o barco (que, por
sinal, tem o nome de La Source ou “A fonte”, em português) por
24 horas em um porto secundário de Sète (coincidentemente,
quase em frente ao hotel de Latifa), a fim de promover um
jantar para empresários locais, agentes públicos e a gerente
do banco com o intuito de provar a viabilidade do projeto e
convencê-los a apoiar a ideia. No entanto, a despeito da parti-
cipação de Rym nesse processo, Latifa se mostra contrariada
e magoada tanto por ele não ter decidido assumir com ela
a responsabilidade do negócio do hotel, quanto por ele ter
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 269

pedido auxílio à ex-esposa e aos filhos. Assim, a busca pela


conciliação, na verdade, traz às claras o conflito existente
entre as duas famílias e, por consequência, as contradições.

3. A dança e a corrida

Mais explicitamente do que acontece em Ou tudo ou nada,


ao situar as mulheres e a família no centro do enredo, colo-
cando-as em reflexo com o destino de Slimane, O segredo do
grão ilumina o quanto as transformações pelas quais passou
o mundo do trabalho devido à globalização e ao processo de
flexibilização se deram de modo intricado a toda uma reela-
boração vinculada não só à divisão sexual do trabalho mas
também às relações de gênero que incidem diretamente nas
dinâmicas familiares.
Para além da necessidade econômica frente à escassez
imposta pelo regime neoliberal, o crescimento e a permanente
inserção das mulheres no mercado de trabalho desde os anos
1970 também envolve profundas mudanças culturais e sociais
relacionadas à luta feminina pela equidade de gênero. “A queda
da fecundidade, a expansão da escolaridade e o acesso às uni-
versidades”, por exemplo, “viabilizaram o acesso das mulheres
a novas oportunidades de trabalho” (Bruschini, 2000 apud
Neves, 2013, p.407). No entanto, isso se deu em condições, na
grande maioria dos casos, desiguais, colocando-as em desvan-
tagem no mercado em relação aos homens, pois além de rece-
berem salários mais baixos, também acumularam jornadas
duplas, já que essa inserção não foi acompanhada da transfor-
mação do modelo familiar patriarcal baseado na hierarqui-
zação entre as esferas da produção e reprodução, segundo a
qual o trabalho reprodutivo e o cuidado doméstico são desva-
lorizados e tidos como tarefas exclusivas das mulheres.
Assim, em vez da autonomia esperada, conferiu-se à mão-
-de-obra feminina uma posição secundária no mercado de
trabalho, vantajosa ao capital tanto porque correspondeu a
baixos custos salariais para as empresas quanto porque tornou
as mulheres o “modelo de exploração” ideal a ser generalizado
pelo processo de reestruturação do capital. Embora tenham
270 O Futuro do trabalho no século XXI

passado a ocupar postos bastante heterogêneos, o crescimento


constante da participação feminina no mercado de trabalho
se deu, sobretudo, no setor de serviços e comércio e, quando
inseridas na indústria, como é o caso de Karima em O segredo
do grão, isso aconteceu em funções menos qualificadas e com
menor oportunidade de mobilidade, ainda que se “assista ao
aumento dos capitais econômicos, culturais e sociais de uma
proporção não desprezível de mulheres ativas”, cujos interes-
ses opõem-se aos daquelas que foram atingidas, de maneira
geral, pela precariedade (Hirata; Kergoat, 2007, p.601).
No entanto, devido à continuidade do refluxo da manufa-
tura, o perfil de mão-de-obra feminina majoritária nos servi-
ços começou a mudar à medida que a contratação de homens
também aumentou no setor5. No Brasil, por exemplo, que
emprega desde os anos 1990 cerca de 65% da sua mão-de-obra
geral no setor de serviços, 76% dela era de mulheres e 46% de
homens em 2000, passando para 72,9% de mulheres e 53,5% de
homens em 2010 (Brachi; Figueiredo, 2022, p.2166). É preciso
dizer, como ressalta Beynon (1997, p. 14), que as rotinas dessa
economia voltada para o serviço mantiveram semelhanças
com as da manufatura, a exemplo do processo ‘fabril’ de fun-
cionamento da rede de lanchonetes McDonald’s, mas também
discrepâncias substanciais.
No filme, essas discrepâncias são notáveis, por exemplo,
na cena em que Rym e o padrasto apresentam o projeto à
gerente do banco. Ocasião em que, diante da mudez e retra-
ção de Slimane, Rym, além de assumir a concepção particu-
lar de consumidor que orienta setor6, também é desenvolta,
demonstrando que possui a habilidade de estar em relação
direta com o público, a qual é requerida por muitos empre-

5
“Na indústria hoteleira, por exemplo, a mão-de-obra empregada em
tempo parcial respondia por 26% dos serviços em 1971 (sendo 21%
mulheres e 5% dos homens). Em 1991, as proporções já haviam quase
duplicado: 33% eram das mulheres e 11% dos homens, constituindo
quase a metade dos empregos disponíveis” (Beynon, 1997, p.20).
6
No caso do filme, o barco-restaurante tem como público-alvo a comu-
nidade de origem árabe.
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 271

gos no setor de serviço. Essa cena também evidencia o quanto


a figura do homem provedor, habituado à manufatura, não
consegue responder às novas exigências a que deixa a cargo
da filha já familiarizada com elas por conta do trabalho com
a mãe no hotel.
Na verdade, toda a ideia do barco-restaurante depende
completamente das mulheres para sua efetivação. É a elas
que Slimane pede ajuda e são elas que assumem o controle na
recepção dos convidados, servindo as mesas, preparando as
refeições e organizando a cozinha assim que o lugar é aberto.
Enquanto Rym, olhando pela janela a movimentação da festa,
tenta a todo custo convencer a mãe a ir até lá, depreciando
Souad e defendendo que Latifa deve mostrar a todos que apoia
Slimane, a panela de cuscuz trazida pela filha Olfa (Sabrina
Quazani) e por Majid fica, por engano, no porta malas do carro
deste último, que foge quando vê a amante, mulher do vice-
-prefeito, em uma das mesas. Quando Rym e Latifa finalmente
chegam à festa, aclarando a disputa entre as famílias, veem
os convidados impacientes reclamando da demora do cuscuz
e as filhas de Slimane repetirem desculpas e justificativas à
espera do retorno do pai, que partiu à procura de Souad com
a intenção de pedir a ela que preparasse novamente o grão.
No entanto, ele não a encontra, já que ela saíra para levar
um prato de comida a um morador de rua. E, ao descer do
prédio, percebe que a sua motoneta havia sido furtada por
três garotos iniciando, assim, uma inesperada corrida para
reavê-la enquanto os meninos zombam dele, fazendo-o de
bobo na tentativa de alcançá-los: riem, fazem troça, esperam
que ele se aproxime e novamente aceleram. Enquanto isso,
na festa, vendo o que poderia se tornar um grande fracasso,
Rym decide ir até o hotel, troca de roupa, e inicia uma hipnó-
tica apresentação de dança do ventre para distrair os clien-
tes. A música árabe, tocada pelos amigos e hóspedes do hotel,
confere o ritmo alucinante da dança e se torna a trilha da
corrida de Slimane, à medida que a montagem alterna as ima-
gens do show e da tentativa dele de reaver a motoneta. Logo
após a filha começar a dançar, também Latifa decide ir até o
hotel para preparar sozinha o cuscuz. Desse modo, a pressa, a
272 O Futuro do trabalho no século XXI

angústia e o esforço dessas três personagens – Slimane, Rym


e Latifa – são interligadas até o encerramento, no qual vemos
Latifa carregar a panela com o cuscuz pronto em direção à
cozinha do barco; Rym e os músicos em torno dela manterem
a apresentação completamente exaustos, gotejando suor; e
Slimane, esgotado da corrida, passar mal e cair sozinho na rua.
Toda essa sequência da festa condensa uma série de ele-
mentos significativos muito prolíficos para pensar as trans-
formações citadas anteriormente no mundo do trabalho e suas
consequências. O meio (a motoneta) que permite a Slimane
buscar o grão feito por Souad (mesmo que não faça ideia de
onde Majid está) é roubado. Ou seja, pode-se dizer que o tra-
balhador da manufatura que tinha acesso a alguns direitos
conquistados no contexto do Welfare State e, ainda que preca-
riamente, detinha certo controle da própria atividade (embora
desconhecesse o paradeiro do real sentido do trabalho não
estranhado), teve essas condições subtraídas, usurpadas, pelo
processo de reestruturação pós-fordista. A substituição do
trabalho vivo pelo morto, a privatização crescente, a descen-
tralização da produção em escala global, a crise dos partidos
e dos sindicatos, a precarização e a flexibilização dos regimes
laborais, tudo isso, na verdade, enfraqueceu a capacidade de
auto-organização da classe trabalhadora, subtraindo os meios
necessários para que se continuasse a busca por formas e prá-
ticas verdadeiramente emancipatórias de vida e trabalho.
Não só minou esses meios como engana, ludibria, brinca,
convencendo o trabalhador que, se ele correr, ou seja, se ele
assumir a lógica concorrencial do individualismo, conseguirá
alcançar melhores condições de vida, ainda que tenha de pagar
para ter acesso a direitos que foram privatizados, a exemplo
da saúde e da educação. Em um determinado momento, os
garotos zombam da velocidade da corrida de Slimane dizendo:
“Olha o coitado, parece uma marionete”. Sem dúvida, a alegoria
presente na figura desses três adolescentes enquanto tradução
da ambição perversa e da lógica de funcionamento do capi-
tal em sua forma tardia é bastante precisa: não há qualquer
respeito pelo trabalhador, ainda menos pela mão-de-obra a
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 273

que, por razões sociais e culturais, considera-se secundária, a


exemplo dos idosos, das mulheres e dos imigrantes.
De fato, as elites se assemelham a adolescentes egoístas.
Preocupadas apenas com o próprio prazer e diversão em se
saberem donas dos meios de produção, exploram insaciavel-
mente não apenas homens e mulheres, mas também o planeta,
aprofundando em ritmo acelerado a crise ambiental. Por
conta disso, qualquer horizonte de transformação social que
busque puxar o freio de emergência dessa arriscada “brin-
cadeira” irresponsável com a vida e com o planeta, requer,
urgentemente, uma base de mudança radical assentada no
projeto ecossocialista, para que se promova indissociavelmente
justiça ambiental e social.
A cena que traduz o desencontro de Slimane com Souad é
emblemática de uma importante dimensão a ser considerada
nessa luta pela justiça social. Depois de entregar a comida
ao morador de rua e se despedir dele, a câmera, que filma a
partida de Souad, logo em seguida, movimenta-se em pan,
ou seja, move-se horizontalmente para a direita, mostrando,
assim, os garotos passando na moto e a corrida de Slimane na
direção contrária, em uma rua paralela. Desse modo, embora
as personagens sigam caminhos opostos, o movimento da
câmera as conecta, construindo o sentido de que, a despeito
da tentativa de naturalização7 da “questão social” – e de suas
manifestações, a exemplo da pobreza, da fome, da desnutrição,
da penúria, falta de saneamento básico, da moradia digna e do
acesso à saúde – ela está invariavelmente vinculada às relações
sociais de produção e reprodução. Como disse Octavio Ianni
(1989), “a mesma fábrica do progresso fabrica a questão social”.
Então, diferente do que reforça tanto o discurso conservador
laico quanto o confessional (em diferentes religiões), a cena
permite interpretar que quanto maior a flexibilização e a supe-
rexploração do trabalho, mais grave será a “questão social”.

7
No Serviço Social ela se revela na ideia adotada pela vertente tradicional
de “situação social-problema” que cultua a técnica, o gerenciamento, geral-
mente ignorando a resistência e a luta de classes.
274 O Futuro do trabalho no século XXI

Se considerarmos que a preocupação em dar parte da


comida como uma ação de caridade vem de Souad, isso
também indica que as políticas sociais, implementadas pelo
Estado capitalista, ainda que também tenham sido precariza-
das com a ruína do Welfare State, tiveram de ser minimamente
preservadas no processo de reestruturação do capital, tanto
para manter a mistificação citada em torno da naturalização
da “questão social”, quanto para controlar e amortecer as suas
consequências, especialmente o descontentamento e possíveis
convulsões sociais. O diálogo da cena também pode ser consi-
derado uma metáfora disso, já que, após encontrar o destina-
tário do gesto, Souad comenta: “Onde você se meteu, estava te
procurando por aí”, ao que ele responde: “Eu mudei de lugar”.
“Mudar de lugar”, inclusive, também passou a definir a
ação de milhares de trabalhadores em busca da sobrevivência.
Se, como afirma Ricardo Antunes, “cada vez mais homens e
mulheres encontram menos trabalho estável, esparraman-
do-se pelo mundo em busca de labor e configurando uma
crescente tendência de precarização do trabalho em escala
global” (2009, p. 252), mesmo quando se estabelecem em
um novo país, como é o caso de Slimane, continuam a ser
vistos e tratados como mão-de-obra subalternizada. Na die-
gese, essa reprodução da desigualdade, amparada fortemente
no marcador étnico-cultural e no estigma ao imigrante, está
presente nos comentários dos convidados na festa. Após um
deles afirmar, por exemplo: “Somos civilizados, vamos lhe
dar uma oportunidade”, os demais respondem: “E ele não irá
mais embora” e “ponha um lobo no galinheiro e ele não vai
mais querer sair”. Das muitas especulações, desde conceder
uma autorização em outro lugar da cidade até estratégias de
expulsão do barco-restaurante após a inauguração, todas reve-
lam o consenso de que Slimane não é considerado um “igual”,
o que desmascara a ideologia “empreendedora-meritocrática”
da “igualdade de oportunidades” pois explicita a completa
ausência da igualdade de condições.
Retomando a defesa do “grão” e da “tainha” enquanto repre-
sentações das duas famílias de Slimane e de duas modalidades
de relações sociais de trabalho correspondentes a elas, pode-se
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 275

dizer que o desfecho é um denso compilado de sentidos. Mas


antes de lançar algumas hipóteses, é preciso citar ainda uma
importante cena. Após o almoço de domingo na casa de Souad,
antes de Slimane iniciar a tentativa de concretizar o projeto
do barco-restaurante, os filhos Majid e Riadh (Mohamed
Benabdeslem) levam à ele uma porção do cuscuz com tainha,
a qual é compartilhada com Rym no hotel. Ela come entusias-
ticamente a comida elogiando o sabor enquanto Slimane a
incentiva a provar todos os elementos, o peixe, os legumes.
É evidente o contentamento dele no fato de ela constatar o
quanto o prato é saboroso.
Essa cena pode ser interpretada como o que Slimane deseja
transmitir aos filhos, o melhor do que está sintetizado na figura
de Souad: condições de trabalho que permitam realizar um
labor bem acabado (com amor) no tempo exigido pelo oficio,
que seja elogiado e reconhecido pela sua qualidade e que con-
fira a estabilidade necessária para que se possa saborear a
vida, cuidando da família e da comunidade a que se faz parte,
preservando o encontro, a conversa, a música e a identidade.
É justamente essa a intenção do projeto do restaurante apre-
sentado à gerente do banco. A ideia é que o lugar se torne um
espaço de convivência e encontro da comunidade árabe que
mora em Sète, ainda que aberto ao público em geral.
É notável que Slimane queira que Rym também saboreie
essas condições as quais, em certa medida (de uma tigela quiçá)
também foram experimentadas por ele no passado. E, de fato,
ela demonstra o quanto gosta do prato e elogia Souad, apesar
da rivalidade que nutre em relação à ela. Não surpreende,
então, todo o seu esforço para apoiar Slimane e toda a energia
empreendida na cena final da dança. Entretanto, se Rym aposta
totalmente no projeto do padrasto, Majid, mais preocupado
consigo mesmo, mente para se afastar dali e, com isso, leva
o cuscuz por engano. Assim, contrasta-se essas duas perso-
nagens figurando ações distintas vinculadas a geração que já
adentrou o mundo do trabalho nas condições de flexibilidade:
enquanto Rym acredita no pai ou na utopia a que o prato de
cuscuz simboliza, esforçando-se para concretizar o projeto
junto com ele, Majid não mais consegue antevê-la.
276 O Futuro do trabalho no século XXI

A infrutífera corrida de Slimane e a sua (talvez fatal) queda


ao final demarca o quão infrutífera também é a tentativa
de conquistar melhores condições de trabalho e de vida no
modelo da flexibilização, que rouba até mesmo os poucos
meios que ainda permitiam à classe trabalhadora sonhar e
buscar realizar a utopia do trabalho não reificado. A mensa-
gem é clara: a tentativa de buscar realizar o que ainda era pos-
sível usufruir e ansiar no modelo taylorista-fordista seguindo
as regras estabelecidas pelo modelo pós-fordista está fadada
ao fracasso. Essa conciliação se mostra inviável à medida
que a flexibilização agrava as contradições não resolvidas do
passado e acirra a perda da qualidade dos laços de sociabili-
dade necessários à organização de classe. Assim, ainda que
de modo dilacerante, o filme rompe com a ideologia merito-
crática contida no sentido hegemônico do empreendedorismo
dos novos tempos, evidenciando que, nesses termos, o suor
dispendido tanto pela geração que viu seu mundo desabar
quanto pela que sequer conheceu condições de estabilidade
no trabalho, é em vão.

Figura 2 – A dança de Rym e a corrida de Slimane

Fonte: La graine et le mulet [O segredo do grão]. Abdellatif Kechiche, 2008.

Isso acontece porque nesse sistema de organização social


resta apenas a tentativa desesperada pela sobrevivência, a
qual exige que o trabalhador seja maleável diante das deman-
das exigidas (saiba improvisar, a exemplo da atitude de Rym)
e adeque o ritmo de trabalho ao mercado, trabalhando sob
pressão e em uma rotina ditada pela individualização. É isso
que demonstra o cuscuz feito às pressas por Latifa que, de
certo, não dispendeu o tempo mínimo de uma hora reque-
rido por Souad para preparar o prato e, tendo como base o
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 277

comentário de um dos hóspedes do hotel em uma cena ante-


rior, é “incomível” em termos de sabor. Mesmo o apoio e o
suporte dos músicos no espetáculo, que designa uma ação
coletivista, dada as circunstâncias, não escapa à nova cultura
do capitalismo:

O empreendedor, o trabalhador flexível e mesmo o coo-


perado, tornam-se figuras representativas do “novo”
espírito do capitalismo. Cabe ao trabalhador internali-
zar os novos requisitos impostos pelo mercado. A rea-
lização pessoal e profissional e mesmo sua sobrevivên-
cia pessoal, cada vez mais depende disso. O futuro é
incerto e manter-se no mercado exige grandes inves-
timentos pessoais. A nova racionalidade capitalista
considera o Estado provedor um elemento de atraso
ao desenvolvimento pessoal, pois impediria a busca
permanente pela empregabilidade e, por consequên-
cia, o espírito empreendedor. O individual se sobrepõe ao
coletivo, mesmo quando o discurso é do coletivo. O coletivo
exige uma configuração empreendedora que o sustente. (Lima,
2010, p.189, grifo nosso).

Em O segredo do grão, a tão propalada autonomia do “tra-


balho por conta própria” se revela, portanto, uma ilusão, bem
como a identidade cultural se transforma em uma imagem-
-mercadoria, já que a dança do ventre é o meio através do
qual Rym entretém os convidados. A sedução acentuada na
performance reforça o poder de atração da superindústria do
imaginário e o seu artificio de instrumentalizar expressões
de cultura e identidade de populações historicamente opri-
midas e exploradas, deslocando-as das suas intenções origi-
nárias. Isso porque, muito recorrentemente, alimenta-se de
assimetrias entre o mercado e a ordem social estabelecida,
por meio das quais uma força de mercado não é igualada
por uma autoridade social ou cultural equivalente na ordem
dominante (Williams, 1992, p.222), como acontece hoje, por
exemplo, com a produção cultural específica voltada para a
comunidade LGBTQIA+.
278 O Futuro do trabalho no século XXI

Deslocados os sentidos, essas imagens acabam por se tornar


anzóis libidinais que distraem hipnoticamente a todos à custa
do suor (da corrida) dos trabalhadores, nutrindo a eles mesmos
a ilusão de que podem alcançar o pódio. Ademais, a ligação
existente entre o destino do pai e da filha enfatizada na mon-
tagem revela que embora a geração mais nova seja nativa na
linguagem das novas mídias e tenha maior energia vital para
responder a essa flexibilização regida pelo hiperflacionamento
das imagens, quanto mais ela se esforça unicamente na repro-
dução da própria existência, mais se degradam os valores e as
expectativas ainda preservadas nos anseios da geração mais
velha.
As últimas energias físicas de Slimane, após 35 anos de
trabalho, desvanecem-se na tentativa de se adaptar aos novos
tempos: a queda dele na diegese, sem que se esclareça ao espec-
tador os seus desdobramentos (se a síncope foi fatal ou não),
pode ser interpretada como a indicação da dúvida também
em relação às consequências do anunciado fim do que a sua
geração sintetiza. Perspectiva coerente com o ponto de vista
da câmera ao longo de todo o filme que “segue” o movimento
dos atores, abrindo-se ao imprevisto. Entretanto, por mais
que prevaleça a dúvida, esse encerramento sugere que disso
também dependerá o futuro da geração mais nova.

Considerações finais: de volta ao grão e a tainha

A partir da análise de O segredo do grão, o artigo buscou enfa-


tizar a relevância do filme para pensar a reestruturação do
capital e o seu impacto nas condições de trabalho e de vida
da classe trabalhadora. Acredita-se que o longa é extrema-
mente prolífico para estimular debates e reflexões em torno
da estruturação do capitalismo tardio e das relações sociais
de produção e reprodução na contemporaneidade, pois abarca
uma complexa teia relacionada a diversas transformações, a
exemplo das que se deram nas condições de trabalho, nas rela-
ções sociais de gênero e nas dinâmicas familiares.
Ao construir uma narrativa que traz as mulheres e a famí-
lia para o centro do enredo, diferente de Ou tudo ou nada, outro
Relações sociais e trabalho no capitalismo contemporâneo 279

importante longa em torno da mesma temática, o filme tece o


que consideramos ser uma importante crítica negativa à flexi-
bilização do trabalho, apontando que ela se vale da diversidade
interna da classe trabalhadora e das desigualdades sociais
nela sedimentada para aprofundar a exploração. Essa crítica,
de acordo com a interpretação aqui elaborada, é construída
em torno da alegoria referente ao “grão” e a “tainha” presentes
no título original da película.
Para finalizar, embora as condições de trabalho e de vida
presentes na manufatura, que ainda possibilitava fixação em
um determinado lugar e planejamento futuro, tenham sido
amplamente substituídas pelas da flexibilização, que pro-
movem a individualização e inviabilizam as relações de per-
manência, o longa também permite aferir outra dimensão
interpretativa, a qual, em muito, ajuda-nos a entender a força
dos atuais processos de alienação: os significados conferidos
ao “grão” e a “tainha” no sistema social capitalista, na verdade,
são deturpações de anseios legítimos.
Cala profundamente na “alma do trabalhador”, como cantou
a banda Mundo Livre S/A8, o mesmo genuíno sonho que move
Slimane, a despeito do bloqueio das condições para concre-
tizá-lo. Trata-se do sonho de uma real autonomia, cuja con-
quista requer o controle dos meios de produção, tal como ide-
alizou Marx, que permitirá à classe trabalhadora conquistar e
viver a liberdade e a independência do pescador para planejar
como plantar e colher o fruto do próprio trabalho, no tempo
do agricultor. De certo, é esse o autêntico sentido do “grão” e
da “tainha” sobre o qual, parafraseando alguns versos de
Vladimir Maiakovski9, o capitalismo atirou pó dourado para

8
Na música A bola do Jogo, do álbum Samba Esquema Noise, 1994.
9
Nos versos Kino-Phot sobre o cinema: “Para vocês o cinema é um es-
petáculo/Para mim, é quase uma concepção do mundo/ O cinema é o
veículo do movimento/ O cinema é o renovador da literatura/O cinema é
o destruidor da estética/ O cinema é intrepidez/ O cinema é esportivo/ O
cinema é difusor de ideias/ Mas o cinema está doente. O capitalismo atirou
pó dourado em seus olhos/ Hábeis empresários o conduzem pela mão
nas ruas/ Ganham dinheiro comovendo corações com intrigas chorosas/
Isso precisa acabar”.
280 O Futuro do trabalho no século XXI

que hábeis empresários os conduzissem pelas mãos. Isso, como


também diz os versos, precisa acabar.

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Filmografia

LA GRAINE et le mulet [O segredo do grão]. Direção: Abdellatif Kechiche.


Produção: Claude Berri e Pierre Grunstein. França, 2008. Digital (151
min), son., color.
THE FULL monty [Ou tudo ou nada]. Direção de Peter Cattaneo. Produção:
Uberto Pasolini e Lesley Stewart.. Grã Bretanha, 1998. 91 min, son., color.
Trabalho e subordinação nas plataformas
digitais

14 ANDREA ANTICO SOARES1


EDILSON SPALAOR2

Introdução

I
mpulsionadas pelos avanços das tecnologias da informação
e da comunicação, novas formas de organização do traba-
lho têm surgido nos últimos anos, associadas às chamadas
plataformas digitais. Para definir o fenômeno, acadêmicos têm
utilizado expressões como “plataformização do trabalho”, “capi-
talismo de plataforma”, “uberização”, gig economy, sharing economy,
crowd-based capitalism, on-demand economy, e muitos outros.
Apesar de não designarem os mesmos processos, tais
expressões tentam descrever as profundas alterações que as
plataformas digitais têm operado na circulação de bens e servi-
ços e nas relações de trabalho. São exemplos de trabalho dentro
dessa lógica aplicativos e sites como Uber, 99, Ifood, Loggi, Rappi,
Amazon Mechanical Turk, GetNinjas, entre outros.
“Trabalhe quando quiser”, “não tenha chefe”, “seja um
empreendedor”, são expressões que fazem parte do léxico
das empresas que operam neste modelo. São empresas de
tecnologia, argumentam, e fazem parte da “economia do

1
Professora Ma. do Curso de Direito da Fundação de Ensino Eurípides
Soares da Rocha, Marília, SP;
2
Licenciado em História pela UNESP - Universidade Estadual Paulista.
Graduando do 5º ano de Direito da Fundação de Ensino Eurípides Soares
da Rocha, Marília, São Paulo;
284 O Futuro do trabalho no século XXI

compartilhamento”. Sendo assim, os trabalhadores não pres-


tam serviço para as plataformas; são profissionais autônomos
que utilizam a plataforma como mediadora, não havendo qual-
quer vínculo empregatício.
No entanto, como veremos, pesquisas têm demonstrado
que esses trabalhadores atuam em precárias condições, com
altas jornadas e baixa remuneração. Como não lhes é assegu-
rada a condição de empregados, são desprovidos de quaisquer
garantias e direitos trabalhistas, como salário mínimo, limite
de jornada, descanso semanal remunerado, horas extras, férias,
13º salário, previdência, FGTS, entre outros.
O principal argumento para o não reconhecimento da exis-
tência de vínculo empregatício entre plataformas e trabalha-
dores é de que falta nessa relação o elemento subordinação,
fundamental para a configuração de uma relação de emprego
(art. 3º da CLT).
Diante disso, o problema de pesquisa que se apresenta é
entender como tem sido entendida a subordinação (ou ausên-
cia dela) do trabalho no âmbito das plataformas digitais, tanto
por parte de pesquisas acadêmicas, como por parte da juris-
prudência. Para respondê-la, busca-se inicialmente descrever
as características do trabalho nas plataformas digitais, para
depois analisar o conceito de subordinação e seu desenvolvi-
mento e, por fim, verificar como as pesquisas acadêmicas e a
jurisprudência têm compreendido a presença da subordinação
nesse modelo.
A metodologia é constituída de pesquisa bibliográfica, juris-
prudencial, em fontes documentais, bem como de análise de
pesquisas realizadas na área. A justificativa para o tema está
em sua relevância social, o que impõe a necessidade de um
olhar mais atento para essas novas formas de organização,
que podem indicar a regra do trabalho no futuro.

1. O trabalho nas plataformas digitais

Nada é mais sintomático das modificações que a tecnolo-


gia tem operado no nosso mundo do que a presença, cada
vez mais constante, das plataformas digitais em nossas vidas.
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 285

Elas estão em toda parte. No transporte (Uber, Cabify, 99), no


delivery (Ifood, Rappi), no comércio online de produtos ou ser-
viços (Amazon, Mercado Livre), no mercado de hospedagem
(Airbnb, Couchsurfing), no crowdsourcing (Amazon Mechanical
Turk, Microworkers), no clowdwork (GetNinjas, Freelancer.com), entre
tantos outros.
Para Sundararajan, embora tenha como precursores empre-
sas como eBay e Craigslist (fundadas em 1995), apenas recente-
mente a chamada “economia compartilhada” tomou a forma
que conhecemos, fruto da confluência de fatores como “a mas-
sificação dos smartphones, a ampla disponibilidade de banda
larga e os sistemas de confiança que incluem redes sociais do
mundo real digitalizadas” (Sundararajan, 2018, p. 82).
“Economia compartilhada” (sharing economy) é um dos termos
mais utilizados para descrever a emergência dessas plata-
formas. Traduz uma ideia ventilada por entusiastas de que
o objetivo é aproveitar bens subutilizados e dotá-los de uma
função econômica. O fundador e presidente da Lyft, plataforma
de transporte concorrente da Uber, John Zimmer, explica:

A utilização dos veículos é de cerca de 4%, a ocupação


nesses carros gira em torno de 20%. Portanto, você tem
basicamente um índice de utilização de 1% em algo que
é responsável por 13% do PIB global. Entendi que era
uma excelente oportunidade (Sundararajan, 2018, p.33).

Hoje existem centenas de plataformas digitais operando nos


mais variados setores, reduzindo custos de organização e de
transação, e demonstrando um potencial para se disseminar
em toda a sociedade. Há plataformas que não utilizam inter-
mediação do trabalho humano, como, por exemplo, o AirBnb
(compartilhamento de apartamentos e casas), e o Booking.com
(reserva de hotéis). Outras plataformas se utilizam intensa-
mente de trabalho humano, das quais são exemplos Uber, Ifood,
Amazon Mechanical Turk e GetNinjas.
Não são poucos os estudiosos que têm associado a plata-
formização à precarização e retirada de proteções mínimas ao
trabalhador. Para Carelli (2017), muitas empresas que operam
286 O Futuro do trabalho no século XXI

numa lógica empresarial, com objetivo de lucro e grande aporte


de capital, se aproveitam do modelo de economia comparti-
lhada, associada a valores positivos - como economia susten-
tável, trabalho comunitário e colaborativo, para explorar os
trabalhadores sob a capa de modernidade. Apropriam-se, assim,
dessa forma de organização, sem incorporar seu espírito.
Tom Slee (2015, p.26-27) argumenta que a economia do
compartilhamento foi encarada positivamente no início, como
oportunidade de flexibilidade no trabalho, formação de micro-
empreendedores e desenvolvimento de uma economia sus-
tentável, mas essas promessas não se concretizaram. Para o
autor, a economia do compartilhamento é um movimento pela
desregulação, com o objetivo de estender o livre mercado para
novas áreas das nossas vidas.
Pesquisas têm demonstrado que esses trabalhadores atuam
em precárias condições, com altas jornadas e baixa remu-
neração. Ursula Huws e coautores (2019), por exemplo, em
relatório feito em treze países europeus sobre a platafor-
mização do trabalho, aponta trabalho precário e redução da
autonomia do trabalhador. No Brasil, pesquisa vinculada
à Universidade de Oxford, “Fairwork Brasil 2021”, fornece
evidências de que os trabalhadores por plataformas enfren-
tam condições de trabalho injustas e sofrem sem proteções
(Fairwork, 2022).
Muitas são as tipologias utilizadas para classificar as plata-
formas digitais que envolvem trabalho humano. Para apre-
sentar algumas delas e verificar como o trabalho é realizado,
utilizaremos a tipologia condensada por Rafael Grohmann,
a partir da conceituação proposta pelos autores Antonio
Casilli, Mark Graham e Jamie Woodcock, Florian A. Schmidt
e Trebor Scholz, em três categorias básicas: a) as plataformas
que requerem o trabalhador em uma localização específica;
b) as plataformas de microtrabalho ou crowdwork c) e as pla-
taformas freelance, cloudwork ou macrotrabalho (Grohmann
, 2020, p. 102).
São exemplos de plataformas que requerem o trabalhador
em uma localização específica as de transporte de mercado-
rias e passageiros, como Uber, Ifood, Loggi e Rappi.
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 287

Segundo os dados da PNAD, aproximadamente, 1,5 milhão


de pessoas estavam trabalhando na Gig Economy no setor de
transportes do país em 2021 (sendo 61,2% motoristas de apli-
cativo e taxistas, 20.9% entregadores de mercadoria, 14.4%
mototaxistas, e 3.5% entregadores com outro meio de trans-
porte). A maioria são homens, pretos e pardos, com idades
inferiores a 50 anos. Os dados apontam ainda perda de remu-
neração entre 2016 e 2021.
A empresa Uber Technologies Inc. é a mais conhecida entre as
plataformas, tanto que passou a ser utilizada como metáfora
para esse tipo de trabalho, por meio do termo “uberização”. Foi
fundada em 2010 e se define como uma empresa de tecnologia
que oferece uma plataforma para que motoristas encontrem
pessoas que precisam de viagens. Está presente em 71 países,
mais de 10 mil cidades (mais de 500 no Brasil, mercado em
que entrou em 2014), tem 5 milhões de entregadores (1 milhão
apenas no Brasil) (fatos e dados sobre a Uber, 2020).
Utilizar os serviços da Uber consiste em abrir um aplica-
tivo, indicar o local onde se está e solicitar um veículo. Não é
possível escolher um motorista específico (Guia para usar o
APP da Uber, 2022). O motorista, chamado pela empresa de
“parceiro”, precisa fazer um cadastro no site (onde passará por
checagem), e cadastrar um veículo que cumpra os requisitos. A
empresa afirma que “não existe tempo mínimo diário, sema-
nal ou mensal para que o motorista parceiro use a plataforma,
e que ele tem total flexibilidade para trabalhar como, quando
e onde quiser” (fatos e dados sobre a Uber, 2020).
Em pesquisa realizada em 2016 pela UFRJ, verificou-se que
os motoristas tinham idade concentrada entre 31 a 50 anos,
todos do sexo masculino e 57.7% tinham ao menos curso supe-
rior incompleto. Aferiu-se que 92,5% dos motoristas trabalha-
vam uma quantidade de horas que os colocariam na posição
de trabalhadores em tempo integral3, que 70% ultrapassaram
a duração normal do trabalho de 44 horas semanais, e que 35%
trabalham na plataforma mais de 61 horas semanais, podendo
passar de 90 horas. Constatou-se que 58.5% dos motoristas

3
Art. 58-A da Consolidação das Leis do Trabalho
288 O Futuro do trabalho no século XXI

já tinham carro e 30% adquiriram apenas para trabalhar na


Uber (Carelli, 2017).
No depoimento dos motoristas aparece uma tensão entre
as vantagens (liberdade, autonomia, flexibilidade de horário,
trabalho dinâmico, possibilidade de “ser seu próprio patrão),
e desvantagens (exigência da Uber em relação ao carro, seguro
para passageiro, pesquisa social e de antecedentes, CNH com
anotação de atividade remunerada, diretrizes para o tra-
tamento de clientes, bloqueio por má avaliação, punições
quando há recusa de chamada, falta de canais de diálogo, baixa
tarifa e necessidade de trabalhar muitas horas. Também apa-
rece o caráter viciante da plataforma pois a Uber cria atrativos
para incentivar o motorista a continuar dirigindo. A política
de bonificações é desconhecida pela maior parte dos motoris-
tas, e alguns disseram ter participado de treinamento na sede
da empresa (Carelli, 2017).
No relatório Fairwork Brasil (2020), de um ranking de 0 a
10 para aferir as condições de trabalho na economia de plata-
forma, a Uber atingiu apenas 1. Isso significa que não foi con-
siderada uma plataforma com condições justas de trabalho
em relação à remuneração, contratos, gestão e representação.
Também trabalham nesse modelo os popularmente deno-
minados “entregadores de aplicativo”. Geralmente a bordo
de uma motocicleta, são trabalhadores que passam o dia à
disposição de um aplicativo instalado em seus smartphones,
aguardando por pedidos e recebendo somente pelas entregas
que efetivamente fazem. Nos últimos anos, houve uma explo-
são do número de entregadores de mercadorias via moto, que
passou de 25 mil em 2016 para 322 mil em 2021 (aumento de
1.188%), conforme dados da PNAD Contínua.
As entregas não são apenas realizadas por moto, mas por
outros meios, como bicicleta. Pesquisa realizada pela Aliança
Bike em São Paulo, em 2019, constatou que os bike boys eram
majoritariamente homens, negros, de 18 a 22 anos (75%), com
ensino médio completo. Dos entrevistados, 57% afirmaram
que trabalhavam de segunda a domingo; 75% dos entre-
vistados trabalhavam para os aplicativos pedalando até 12
horas por dia, sendo que 30% pedalam mais de 50 km por dia,
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 289

recebendo a média de R$936,00 por mês (Abílio, 2019, p. 8).


Para mantê-los conectados ao aplicativo por longas jornadas,
as empresas criam bonificações. A Ifood, por exemplo, criou
uma bonificação de R$190,00 para bike-boys que ficassem 12
horas ininterruptas conectados ao aplicativo (Machado, 2019).
Ifood é a empresa líder no setor de delivery no Brasil. Surgiu
sob o nome de Disk Cook em 1997, entrando no meio digital em
2012. Está presente em 908 cidades e até 2020 tinha 170 mil
entregadores atuando no Brasil, dominando de 68% a 86% do
setor. Atua em duas modalidades: “Nuvem”, em que os entre-
gadores são geridos diretamente pela plataforma e não há
predeterminação de turnos e região do trabalho, e “operador
logístico”, em que são supervisionados por uma empresa que
determina os turnos e a região (Fairwork, 2022).
Em seus Termos e Condições (2020), a Ifood afirma que
não é uma empresa de transporte de mercadorias, mas uma
plataforma tecnológica que oferece um ambiente para realizar
entregas usando motos, bicicletas, patinetes, a pé, entre outros.
O motorista instala um aplicativo no celular, onde recebe as
chamadas para as entregas e informações sobre os pontos de
coleta, a distância a ser percorrida e o valor a receber, que é
calculado por um algoritmo. Não pode repassar tais informa-
ções para outro motorista. A empresa afirma que a entrega é
de total responsabilidade dos entregadores, quando, como e
onde quiserem e que eles são independentes e responsáveis
por todos os custos operacionais e tributos para a manutenção
de suas atividades. Afirma que não fiscaliza os entregadores,
mas permite aos clientes e estabelecimentos avaliarem a qua-
lidade da entrega. Podem negar ou desativar definitivamente
o cadastro do entregador, ou torná-lo off-line por um determi-
nado período sem aviso prévio.
Na pesquisa Fairwork (2022), em um ranking de 0 a 10,
Ifood atingiu a nota 2. Assim, não conseguiu comprovar
remuneração e condições de trabalho justas. Quer isso dizer
que ela não paga o salário mínimo após dedução dos custos,
não atenua os riscos nem melhora ativamente as condições
de trabalho, impõe cláusulas abusivas, não fornece o devido
processo para decisões que afetam os trabalhadores, não há
290 O Futuro do trabalho no século XXI

equidade no processo de gestão, nem existe um órgão coletivo


de trabalhadores que é reconhecido como representante da
categoria. Ainda assim, essa foi a maior nota entre as platafor-
mas pesquisadas, empatando com a 99.
Menos conhecidas que os aplicativos de entrega e de trans-
porte são as plataformas de microtrabalho ou crowdwork (cuja
tradução literal significa trabalho de multidão). Incluem-se
nesse modelo plataformas como Amazon Mechanical Turk, PiniOn
e Microworkers. Em geral, essas plataformas se utilizam de micro-
tasks (daí a terminologia de microtrabalho).
Para Anna Ginès I Fabrellas (2016, p. 5-6), o sucesso desse
tipo de plataforma se deve a três fatores: a subdivisão do traba-
lho em microtarefas de curta duração; a terceirização da pres-
tação desses serviços para trabalhadores autônomos (sempre
disponíveis para atender a demanda); e a contratação dos tra-
balhadores no momento exato em que se produz a demanda
(on-demand economy).
A Amazon Mechanical Turk (ou MTurk)4 é o exemplo mais
conhecido de plataforma de crowdwork. Lançado em 2005,
é um serviço da Amazon que “estabelece um mercado online
para a combinação de oferta e demanda de trabalho(...) seu
modo de operação se tornou um parâmetro para as demais
plataformas(…)” (Kalil,2019, p.179). A MTurk se define como
um mercado de crowdsourcing (palavra formada por crowd,
multidão, mais outsourcing, terceirização), que oferece uma
força de trabalho humana em escala, distribuída globalmente,
sob demanda, 24hrs por dia e 7 dias por semana, para empre-
sas que desejam terceirizar seus processos e trabalhos vir-
tualmente. Informa possuir mais de 500.000 trabalhadores
cadastrados (Amazon Mechanical Turk, 2022, tradução nossa).
As empresas clientes (chamadas de requesters), cadastram
tarefas na plataforma, chamadas de “HIT” (human intelligent task,

4
O nome da plataforma se deve a uma máquina criada pelo inventor
húngaro Wolfgang von Kempelen, chamada “o turco”, que supostamente
era capaz de jogar xadrez. Na verdade, era controlada por uma pessoa
escondida dentro da caixa, o que ironicamente demonstra a inteligência
humana escondida dentro da Inteligência artificial.
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 291

ou tarefa de inteligência humana), para serem realizadas de


forma online pelos trabalhadores que se cadastram (chama-
dos de turkers). São tarefas que apesar de muito simples não
podem ser executadas por uma máquina, pois envolvem certo
nível de inteligência humana (Fabrellas, 2016). O preço de
cada tarefa é definido pelos requesters, com o valor mínimo
de US 0,01 (um centavo de dólar). Não há reconhecimento de
qualquer vínculo de emprego entre a Amazon e esses tra-
balhadores. A Amazon afirma que a plataforma é adequada
para trabalhos simples e repetitivos que precisam ser tra-
tados manualmente, e podem incluir qualquer coisa, como
verificação, categorização e desduplicação de dados, mode-
ração de conteúdo, participação de pesquisas, descrição de
imagem, tradução de textos, entre outras. Essas tarefas seriam
tradicionalmente feitas com contratação de força de trabalho
temporária, de maneira demorada, cara e difícil de dimensio-
nar. Com a plataforma, é possível dividi-las, distribuí-las em
microtarefas para trabalhadores pela internet, pagando-os
apenas após aceitar o trabalho realizado. Assim, eficiência,
flexibilidade e redução de custos são as vantagens apontadas
(Amazon Mechanical Turk, 2022, tradução nossa).
Pesquisa de Difallah et al. aponta que 75% dos turkers são
dos Estados Unidos, 16% da Índia e os 9% restantes de outros
países (DIFALLAH, 2018, apud Moreschi, 2022). Segundo pes-
quisa realizada por Kalil (2019,p.185-191), com trabalhadores
brasileiros da Mturk, a maioria eram homens (73%), solteiros
(88,4%), com idade média de 30,1 anos, com elevado grau de
educação formal (71.4% ensino superior, o que se explica, na
visão do autor, pela exigência da língua inglesa). A pesquisa
demonstrou que, ao contrário dos EUA e Índia, os brasileiros
ainda estão em processo de conhecimento da plataforma (65.5%
trabalham há seis meses ou menos).Em decorrência do pouco
tempo na plataforma (média de 10 hrs por semana), os ganhos
são pequenos (76,9% até R$100,00 por semana) e a maioria usa
como complemento de renda (75%). A principal reclamação
dos trabalhadores é de que a Amazon não paga pelas tarefas
em dinheiro, mas em créditos (giftcards) para serem utilizados
em sua loja virtual. Moreschi (2020), aponta que os turkers
292 O Futuro do trabalho no século XXI

usam a estratégia de vender esses giftcards, o que diminui


ainda mais seus ganhos.
Por fim, há as plataformas de macrotrabalho, freelance
ou cloudwork, que envolvem tarefas “desde pintura e passeio
com animais até design e programação” (Grohmann , 2020,
p. 103). São exemplos empresas como GetNinjas, We Do Logos,
Freelancer.com, IPrestador, Fiverr, 99designs.
A GetNinjas, principal plataforma brasileira desse tipo,
surgiu em 2011 e oferece serviços para categorias como: pintor,
pedreiro, professor, designer, profissionais de moda, saúde,
conserto de carros, papai noel, entre outros (Fairwork, 2022).
Conforme seus “Termos de Uso”(GetNinjas, 2022), a plata-
forma se define como uma prestadora de anúncios online, e
afirma não interferir no contato entre contratantes e pres-
tadores de serviço, na negociação ou na efetivação dos negó-
cios. O funcionamento se dá a partir do cadastro no site de
pessoas físicas ou jurídicas, onde é possível tanto solicitar
quanto oferecer um serviço. Os contratantes cadastram as
informações sobre o serviço que pretendem, e a plataforma
oferece aos prestadores, desde que paguem “moedas virtuais”,
dinheiro utilizado na plataforma. Essas moedas, compradas
com dinheiro real, servem para os prestadores acessarem
os serviços. Para os tomadores o serviço é gratuito. Há um
sistema de qualificação, a partir do qual a plataforma pode
excluir o prestador.
Segundo pesquisa conduzida por Bittencourt e Carelli
(2020), a maioria dos trabalhadores têm idade entre 33 e 41 anos,
ensino superior completo, quase todos já foram empregados e
atuavam em serviços como música, fotografia, maquiagem,
consertos em geral. Para 28,6% a plataforma é a única fonte
de renda, 27,3% estavam à procura de um emprego. As recla-
mações dos trabalhadores envolvem o valor das moedas - que
varia muito, a dificuldade de se prevenir quanto consumi-
dores maliciosos - que fazem a oferta e não respondem; a
falta de contraditório antes das desqualificações, e o “leilão
invertido” entre trabalhadores, já que a plataforma dispo-
nibiliza três prestadores para o tomador escolher com qual
quer contratar.
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 293

A plataforma GetNinjas não pontuou no relatório Fairwork


(2022), isso significa que não possui remuneração, condições
de trabalho, contratos, gestão e representação justas. A plata-
forma possui tarifas e horas de trabalho voláteis, o que leva
a alta insegurança de renda para os trabalhadores. Segundo
um dos depoimentos, trabalhar na plataforma “é como um
tiro no escuro; a gente paga para trabalhar sem saber se vai
receber algum retorno”.
Pelo exposto, podemos observar que as plataformas digi-
tais não se resumem aos aplicativos de transporte e entrega,
envolvendo diferentes modalidades de intermediação do
trabalho humano. Essas plataformas têm um grande poten-
cial de se espalhar para os mais diversos setores da socie-
dade. Compreender o modo pelo qual o trabalho é reali-
zado é fundamental para aferir se está presente o elemento
subordinação.

2. Subordinação

Ao longo da história, o trabalho humano passou por diferen-


tes formas de organização, a depender do sistema econômico
hegemônico, dos quais são exemplos a servidão e a escravidão.
No mundo contemporâneo, o trabalho com vínculo de emprego
constitui a mais relevante modalidade de relação trabalhista
(Delgado , 2019, p. 52).
Desse vínculo de emprego é que emanam as proteções e
garantias próprias do Direito do Trabalho. Para caracterizá-lo,
são necessários alguns pressupostos, também chamados de
elementos fático-jurídicos, previstos no art. 3º da Consolidação
das Leis do Trabalho, dentre os quais se destaca a chamada
subordinação. De fato, “o trabalho subordinado é o objeto do
contrato regulado pelo Direito do Trabalho” (Barros, 2016, p. 176).
Subordinação, segundo sua etimologia, deriva do latim
subordinatio, ato de colocar abaixo, formado por sub (abaixo)
mais ordinare (arranjar, colocar em ordem).5 Indica, assim, um

5
Extraído de Origem da Palavra – Site de etimologia. Disponível em: <http://
origemdapalavra.com.br/site/palavras/subordinacao/>. Acesso em 02 fev. 2022 .
294 O Futuro do trabalho no século XXI

estado de sujeição ao poder do outro. No Direito do Trabalho,


a subordinação é compreendida como o principal elemento a
diferenciar o trabalhador empregado do trabalhador autônomo.
Para Vilhena (2005, p. 511), “as raízes dimensionais do Direito do
Trabalho encontraram no trabalho subordinado a sua primeira
e fundamental nutriz (...)”.
O surgimento do conceito remonta ao início do século XX,
momento a partir do qual o Direito do Trabalho se firma como
ramo jurídico autônomo e há a necessidade de definir os con-
tornos próprios da relação de trabalho que determinassem a
incidência das normas trabalhistas.
Ao tratarem do conceito de subordinação, alguns autores
falam em subordinação técnica (dependência técnica do tra-
balhador em relação ao empregador), subordinação econômica
(dependência do trabalho para sobreviver), e subordinação
social (junção dos critérios de dependência técnica e econô-
mica) (Barros, 2016, p. 17). Essas qualificações para o fenômeno
da subordinação acentuam a ideia de dependência. No início
do século XX, o critério da dependência econômica disputou
com o critério da subordinação jurídica a posição de elemento
definidor da relação de emprego (Porto, 2008, p. 66).
Para Alice Monteiro de Barros (2016, p. 176), tais critérios
(subordinação técnica e econômica) são falhos pois são pré-
-jurídicos, e não estão necessariamente presentes na conforma-
ção da subordinação jurídica. A subordinação técnica pode
não estar presente em situações onde o empregado é que detém
o conhecimento técnico necessário para desempenhar a pro-
fissão; e a subordinação econômica, embora quase sempre
presente, não é indispensável, pois a circunstância de um
empregado possuir capacidade econômica-financeira não
excluirá a relação empregatícia.
Maurício Godinho Delgado (2019, p. 351) assinala que a for-
mulação teórica da dependência econômica tem validade socio-
lógica, e como tal, é externa à relação jurídica, sendo incapaz
de explicar o “nexo preciso da assimetria de poder de direção/
subordinação’’. A noção de dependência técnica também é
frágil, na medida em que o empregador “capta a tecnologia por
intermédio de empregados especializados que arregimenta
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 295

- subordinando-os, sem ter a pretensão de absorver, indivi-


dualmente, seus conhecimentos”.
Diante das deficiências apontadas, o critério que se con-
solidou, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, é o da
subordinação jurídica (Barros, 2016, p. 176).
O art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho elabora o
conceito de empregado a partir da noção de prestação de
serviço “sob a dependência” do empregador. É pacífico que
a ideia expressa é a da subordinação (Delgado, 2019, p. 350).
Além disso, o parágrafo único do art. 6º fala expressamente
em “subordinação jurídica”.
A subordinação jurídica pode ser compreendida como “a
situação jurídica derivada do contrato de trabalho, pela qual
o empregado compromete-se a acolher o poder de direção
empresarial no modo de realização de sua prestação de ser-
viços” (Delgado, 2019, p. 349).
Ressalta-se que o modo como o trabalho é realizado é que
denota o caráter de trabalho subordinado. É dizer: a subor-
dinação jurídica atua sob a forma como o trabalho é execu-
tado e não sobre a pessoa do trabalhador. Alice Monteiro de
Barros (2016, p. 178) explica: “a subordinação não incide sobre
a pessoa do empregado, dentro ou fora da empresa, como se
fosse um tutelado ou curatelado, mas sobre a execução de sua
atividade(...) não significa sujeição ou submissão da pessoa do
empregado em relação à pessoa do empregador”.
Em sua formulação original, a subordinação foi identifi-
cada com a presença de um rígido e intenso controle sobre o
trabalho realizado, realçando a submissão do empregado às
ordens daquele que o remunera e a aplicação de sanções disci-
plinares em caso de descumprimento. Isso se explica pela cen-
tralidade do trabalho na grande indústria, contexto no qual
o controle do trabalho se dava em um determinado espaço,
dentro de um determinado tempo, sob ordens diretas, com
pouca ou nenhuma autonomia do trabalhador (Porto, 2008,
p. 48). Essa elaboração do fenômeno da subordinação é hoje
chamada de clássica ou tradicional.
No entanto, esse critério levou a exclusão da incidência do
Direito do Trabalho a diversos profissionais - a exemplo dos
296 O Futuro do trabalho no século XXI

que detinham qualificação e por isso certa autonomia, como


os trabalhadores técnicos e intelectuais. Com o objetivo de
alcançar os trabalhadores desprotegidos, ao longo do século
XX, até final da década de 70, houve uma paulatina amplia-
ção do conceito, em comparação com sua acepção clássica,
aumentando a incidência das normas trabalhistas (Porto,
2008, p. 53).
As transformações socioeconômicas no mundo do traba-
lho, como as inovações tecnológicas, a ampliação do setor
de serviços, a expansão do trabalho técnico, também torna-
ram necessária a revisão do conceito de subordinação clás-
sico, elaborado dentro de uma realidade industrial de rígido
controle do tempo, do espaço e do modo de realização do
trabalho. Nesse contexto, alguns autores passaram a com-
preender como insuficiente o critério tradicional subjetivista
da subordinação, passando a incorporar novas dimensões,
como a chamada “subordinação objetiva” e a “subordinação
estrutural”.
A subordinação objetiva, originalmente formulada no país
pelo jurista Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, compreende que
subordinado é o trabalho exercido dentro dos fins e obje-
tivos do empreendimento do tomador de serviço (Delgado,
2019, p. 352). Segundo a OIT, diversos países têm ampliado a
noção de subordinação e adotado esse conceito, desde países
de common law, como Reino Unidos e Estados Unidos, até
países de civil law, como a Holanda (Porto, 2008, p.79, APUD
OIT. La relación de trabajo. p. 25-6).
No entanto, a jurisprudência não tem admitido a subor-
dinação objetiva como um critério autônomo para definir o
vínculo empregatício, pois a integração na organização empre-
sarial pode se dar em outras formas de trabalho. Por isso, “a
par da participação integrativa do trabalhador na atividade
empresarial, ele deverá estar sujeito ao poder diretivo e dis-
ciplinar conferido ao empregador” (Barros, 2016, p. 178).
No mesmo sentido, expõe Maurício Godinho Delgado (2007,
p. 37), que a subordinação objetiva é “incapaz de diferenciar,
em distintas situações práticas, o real trabalho autônomo e
o labor subordinado, principalmente quando a prestação de
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 297

serviços se realizava fora da planta empresarial, mesmo que


relevante para a dinâmica e fins da empresa”.
Por isso, o autor propõe a noção de subordinação estrutu-
ral, que define como sendo “a subordinação que se manifesta
pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus
serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens
diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de orga-
nização e funcionamento” (Delgado, 2007, p. 37).
A subordinação estrutural compreende como subordi-
nado o trabalho exercido dentro da dinâmica do emprega-
dor, independentemente de se orientar para a atividade fim
do empreendimento. Não se questiona se há ordens diretas
ou se o trabalho se harmoniza com os objetivos do empre-
endimento, “o fundamental é que esteja estruturalmente
vinculado à dinâmica operativa da atividade do tomador de
serviços” (Delgado, 2019, p. 353).
A relação cada vez maior entre trabalho e tecnologia faz
surgir ainda uma nova dimensão: a subordinação algorít-
mica. Sua característica é a utilização de meios computadori-
zados e telemáticos para efetivamente controlar a prestação
laboral. Nesse aspecto, destaca-se a alteração realizada pela
Lei nº 12.551, de 2011, que modificou o art. 6º da CLT, dispondo
no parágrafo único que “Os meios telemáticos e informati-
zados de comando, controle e supervisão se equiparam, para
fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e dire-
tos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Para Delgado (2019, p. 354) esse dispositivo incorporou, ainda
que implicitamente, os conceitos de subordinação objetiva
e estrutural.
Por fim, é necessário dizer que embora a subordinação
seja um elemento central para definir a relação de emprego,
alguns autores vêm apontando suas deficiências em um mundo
marcado pelo uso cada vez maior da tecnologia. Nesse sentido,
Leite (2022, p.477-481) assevera que a preocupação apenas
com o dogma da subordinação tende a diminuir o campo de
atuação do direito do trabalho, sendo necessário, portanto,
que este vá além da relação de emprego, para ocupar-se de
outras formas de trabalho que ganham força no mundo atual,
298 O Futuro do trabalho no século XXI

como o trabalho avulso, o trabalho eventual, o trabalho autô-


nomo e o trabalho precário.

3. Subordinação nas plataformas digitais

Diversos autores têm reconhecido a presença do trabalho


subordinado nas plataformas digitais. Carelli (2017, p. 200-
203), argumenta que a CLT não fala em estar “sob ordens” ou de
subordinação no sentido clássico da palavra, mas em “direção”
e “dependência”, que podem facilmente ser encontrados no
que chama de “organização do trabalho por programação”. O
autor entende que a Uber realiza essa organização do trabalho
por comandos (ou por objetivos, algoritmos ou por programa-
ção), pois ao mesmo tempo em que concede certa liberdade (de
horário), seu algoritmo comanda os trabalhadores de variadas
maneiras: é ele que distribui o trabalho, que impõe seu preço
e que controla sua execução, por meio de prêmios (para os
dias, lugares e horários em que os motoristas normalmente
prefeririam não trabalhar) e por meio de punições (no caso de
notas baixas dadas pelos usuários, que vigiam se os motoristas
estão cumprindo a programação). Essas notas são destinadas
à Uber pois os clientes não podem escolher um motorista por
sua avaliação, assumindo, pois, nítido caráter de controle da
qualidade do trabalho. Além disso, os clientes não podem ser
fidelizados pelos motoristas, sendo ligados aleatoriamente
por meio da plataforma. Para o autor, os clientes são da Uber
e não dos motoristas, e o negócio da empresa não é o da tec-
nologia, mas o de transporte. O autor demonstra ainda que a
Uber dispensa (descadastra) os motoristas que recusam cor-
ridas, realiza exames psicotécnicos admissionais, convoca
motoristas para explicar suas faltas e dá orientações para o
trabalho, o que denota, além do controle por programação,
formas tradicionais de controle.
Abílio (2019, p. 2), compreende que o fenômeno da uberiza-
ção traz novas formas de controle, gerenciamento e subordi-
nação, que se operam através do ‘gerenciamento algorítmico’
do trabalho. Assim, a empresa-aplicativo é muito mais do que
apenas uma mediadora, embora a subordinação e o controle
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 299

sobre os trabalhadores sejam mais difíceis de reconhecer. Para


a autora, os elementos centrais dessa subordinação estão no
fato da empresa definir o valor do serviço (para o consumidor
e para o trabalhador), e ser a empresa que controla a distri-
buição do trabalho e as regras que definem essa distribuição.
Nessa lógica, o trabalhador fica disponível, mas sua força de
trabalho é utilizada somente quando necessário, de forma
automatizada e controlada, pois ele não tem qualquer possibi-
lidade de negociar ou influenciar na distribuição (cujas regras
desconhece) ou no valor de seu próprio trabalho.
Antunes e Filgueiras (2020, p. 32-33), enumeram 11 medi-
das explícitas utilizadas pelas plataformas e aplicativos para
controlar os trabalhadores: as plataformas determinam quem
pode trabalhar; delimitam o que será feito; definem que tra-
balhador realizará cada serviço e não permitem captação de
clientes; delimitam como as atividades serão realizadas; deter-
minam o prazo; estabelecem unilateralmente o preço; deter-
minam como os trabalhadores devem se comunicar com suas
gerências; pressionam para serem assíduos e não negarem
serviços demandados; pressionam os trabalhadores a ficarem
mais tempo à disposição, através do uso de incentivos; usam
o bloqueio para ameaçar os trabalhadores; usam a dispensa
injustificada como forma de coerção e disciplinamento da
força de trabalho. Diante disso, os autores concluem que a
prometida flexibilidade para o trabalhador (de horário, local
e forma de trabalho), é apenas aparente, pois na prática eles
são obrigados a trabalhar exatamente como a empresa indica.
No que tange ao microtrabalho ou crowdwork, Fabrellas
(2016, p. 6-17), entende que embora os turkers (como são cha-
mados os trabalhadores da plataforma Amazon Mechanical
Turk) tenham liberdade para definir o horário e o volume
de seu trabalho, e trabalhem com ferramentas próprias, a
plataforma intervém ativa e diretamente na relação entre as
empresas clientes e os trabalhadores, indício claro de traba-
lho subordinado. A plataforma estabelece recomendações ou
instruções para o fornecimento do serviço; cria um sistema
de avaliação ou feedback do cliente para controlar a atividade
dos turkers (que filtra os HIT’s a que os turkers tem acesso);
300 O Futuro do trabalho no século XXI

limita as tarefas entre os turkers conforme sua pontuação


prévia pessoal (ponto mais relevante, segunda a autora, pois
demonstra um poder de direção e organização); fixa o sistema
de remuneração e as condições de pagamento (os clientes não
precisam pagar se não estiverem satisfeitos); proíbe a intera-
ção entre turkers e solicitantes fora da plataforma e se reserva
no direito de desconectá-los da plataforma caso não cumpram
suas instruções. Esses elementos indicam que a plataforma
não se limita a ser uma empresa de tecnologia que faz a mera
intermediação entre oferta e demanda, mas afeta a prestação
do serviços que ocorre em seu âmbito, retirando a liberdade
dos turkers para determinar as condições da prestação dos
serviços, e sujeitando-os ao poder de direção, organização e
controle da Mturk.
Kalil (2019, p. 191-193) aponta ainda assimetria de pode-
res existentes entre os trabalhadores e a Mturk. Citando os
autores Sara Constance Kingsley, Mary Gray e Siddharth
Suri, aponta que há concretas evidências das desigualdades
de poderes, no que tange a assimetria de informações (em
que os requerentes das tarefas tem informações sobre os tra-
balhadores mas o contrário não é verdadeiro), concentração
de mercado (10% dos requerentes demanda 90% das tarefas),
estrutura de remuneração (fixado pelo requerente, sem qual-
quer margem para negociação, com possibilidade de rejeição
unilateral do pagamento).
Em relação à GetNinjas, que se enquadra na modalidade
de plataformas de macrotrabalho, Carelli e Bittencourt (2020,
p. 1.289) observam que, diferentemente das plataformas de
transporte de pessoas e mercadorias, ela se comporta como
um marketplace, realizando apenas a interligação entre cliente
e tomador, sem se imiscuir na prestação dos serviços.
As plataformas de transporte e de entregas (Uber, 99,
Rappi, Ifood e Loggi) têm protagonizado os conflitos judiciais
na Justiça do Trabalho. Não foram identificadas pronuncia-
mentos judiciais trabalhistas que envolvesse demanda com
as plataformas Amazon Mechanical Turk e GetNinjas.
A judicialização do tema tem crescido nos últimos anos.
De 2020 para 2021 os processos distribuídos no país saltaram
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 301

179,3% (de 1.716 para 4.793). Segundo esses dados, compilados


pela Data Lawyer Insights, 10.64% foram julgados parcialmente
procedentes, ou acabaram em acordos (7,08%), apenas 1,29%
terminaram em ganho da ação, 17,20% foram improcedentes e
a maior parte está pendente (63.53%). A maioria envolve reco-
nhecimento de vínculo com as empresas 99 e Uber (Mazzotto,
2022).Há pesquisas que apontam para a estratégia das empre-
sas de realizar acordo às vésperas de decisões que lhe seriam
desvantajosas, utilizando técnicas de jurimetria para mani-
pular a jurisprudência (Leme, 2018). Tribunais do trabalho
têm deixado de homologar acordos6 sob esses fundamentos.
O Ministério Público do Trabalho já ajuizou ações civis
públicas contra 12 plataformas em São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Paraná e Ceará. Duas decisões proferidas foram
favoráveis às empresas, mas aguardam julgamento definitivo
(Pombo, 2021).
Há divergência jurisprudencial sobre o tema no Tribunal
Superior do Trabalho. Em 05 de fevereiro de 2020, a 5ª turma
do TST afastou o vínculo entre motorista e a Uber7. Neste pro-
cesso, o Tribunal entendeu que o motorista tem ampla flexi-
bilidade em determinar sua rotina, seus horários e locais de
trabalho e a quantidade de clientes que pretende atender por
dia, o que se revela incompatível com a subordinação. Além
disso, entendeu que o recebimento de 75/80% do valor pago
pelo usuário estabelece uma relação de parceria. Considerou
que a avaliação dos motoristas não implica subordinação,
sendo ferramenta de feedback para os usuários finais quanto
à qualidade da prestação de serviços. Justificou que a Uber
fornece uma alternativa de trabalho e fonte de renda em tempo
de desemprego e frisou que a proteção do trabalhador não
deve se sobrepor a ponto de inviabilizar formas de trabalho
pautadas em critérios menos rígidos que permitem maior
autonomia, mediante livre disposição das partes.

6
Há pelo menos 13 decisões de 6 TRT’s.Ver TRT-15-ROT: 0011710-
15.2019.5.15.0032 2, 11ª Câmara, Data de Publicação: 26/04/2021
7
Processo 1000123.89.2017.5.02.0038.
302 O Futuro do trabalho no século XXI

No entanto, diante da divergência jurisprudencial8 entre


os Tribunais Regionais, o tema chegou novamente ao TST,
que em 06 de abril de 2022, reconheceu o vínculo de emprego
entre um motorista e a Uber9. A fundamentação do Acórdão
da 3ª Turma teceu considerações sobre as novas fórmulas de
contratação desenvolvidas por meio da utilização das pla-
taformas digitais, chamou a atenção para a inexistência de
produção regulatória sobre o tema no país, e reafirmou a
importância do Direito do Trabalho para regular essas rela-
ções e retificar suas distorções. Considerou incontroversa a
prestação de serviço do motorista à Uber, o que dá presunção
relativa para a existência do vínculo empregatício, cabendo à
empresa que operacionaliza a plataforma o ônus de compro-
var o labor autônomo (inciso II do art. 818 da CLT). Rechaçou
a alegação de que a Uber é tão somente uma empresa de tec-
nologia, por considerá-la prestadora de serviço de transporte
de pessoas (princípio da primazia da realidade). Reconheceu
todos os elementos fático-jurídicos da relação empregatícia.
Em relação à subordinação, o TST reconheceu que o moto-
rista é efetivamente controlado pela Uber, pois essa assume
integralmente a direção sobre a atividade econômica e sobre o
modo de realização da prestação de serviço, e detém o poder
disciplinar. A Uber organiza unilateralmente as chamadas
dos passageiros e indica os motoristas para os serviços (o
motorista não tem qualquer autonomia para escolher seus
passageiros ou organizar uma carteira própria de clientes);
A Uber exige a permanência do motorista na plataforma, sob
risco de descredenciamento (sanção disciplinar); avalia a per-
formance do motorista continuamente, por meio de con-
trole telemático e pulverizado através das notas dos clientes,
que servem de parâmetro para o descredenciamento; impõe
intenso controle sobre o trabalho e observância de suas

8
O recurso chegou ao TST por meio de demonstração de divergência
jurisprudencial (art. 896, “a”, da CLT), demonstrada por meio do Processo
nº1000123-89.2017.5.02.0038, bem como violação ao dispositivo de
lei federal (art. 896, “c”, da CLT).
9
Recurso de Revista n° TST-RR-100353-02.2017.5.01.0066.
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 303

diretrizes organizacionais, diariamente; estabelece unila-


teralmente os parâmetros mais essenciais da prestação dos
serviços, como exigência de idade mínima dos automóveis,
definição do preço da corrida e do quilômetro rodado no
âmbito de sua plataforma digital (o motorista não tem qual-
quer liberdade para definir os preços). Sobre o repasse de
70/80% do valor da corrida ao motorista, entendeu que este
se justifica diante das despesas com manutenção do veículo,
gasolina, provedor de internet e celular , que recaem todas
sobre o motorista.
A decisão reconheceu que estão presentes todas as dimen-
sões da subordinação jurídica (clássica, objetiva, estrutural e
algorítmica). A clássica, porque o motorista estava sujeito a
ordens diretas da Uber realizadas por meio remotos e digi-
tais, equiparados ao controle direto nos termos do art. 6º,
parágrafo único, da CLT; a objetiva, pois o trabalho executado
estava estritamente alinhado aos objetivos empresariais; a
estrutural, pois o profissional estava inserido inteiramente
na dinâmica de funcionamento, na cultura jurídica e orga-
nizacional da Uber; e a algorítmica, pois a empresa se uti-
lizava de ferramentas computadorizadas para arregimen-
tar, gerir, supervisionar, avaliar e controlar a mão de obra.
Conclui ainda que o motorista não tinha o mínimo domínio
sobre a organização empresarial, restando incontroversa a
incidência das manifestações fiscalizatória, regulamentar, e
disciplinar do poder empregatício.

Conclusão

A análise do conceito de subordinação, do modo como o


trabalho é realizado nas plataformas digitais, bem como do
posicionamento doutrinário e jurisprudencial acerca do tema
permite-nos chegar a três conclusões essenciais.
A primeira é o profundo contraste que marca o discurso
das plataformas e a realidade dos trabalhadores. Embora apre-
sentem-se como empresas de tecnologia que apenas fazem a
intermediação de uma mão de obra independente, a prática
demonstra que esses trabalhadores seguem rígidas diretrizes
304 O Futuro do trabalho no século XXI

estabelecidas pelas empresas donas das plataformas, que con-


seguem controlar o modo pelo qual o trabalho é realizado
através de sofisticados algoritmos. É o algoritmo que define
o preço, que distribui o trabalho, e que fiscaliza sua execu-
ção através de constantes avaliações, usadas para gratificar e
punir.Conforme visto, o modo como o trabalho é realizado é
que denota o caráter de trabalho subordinado. A subordinação
jurídica atua sob a forma como o trabalho é executado e não
sobre a pessoa do trabalhador.
Não se constata que esses trabalhadores são empreen-
dedores que têm conseguido ver seus “negócios florecerem”.
Na verdade, quase nada sabem do modo de funcionamento
das plataformas, e, embora haja a promessa de liberdade de
horário e de escolha do modo de trabalhar, na prática não
determinam o preço do seu trabalho, não controlam a dis-
tribuição de seu trabalho, estão sempre buscando bater as
metas estipuladas pela plataforma para ganhar prêmios, ser
bem avaliados e evitar punições. É “autônomo” mas não pode
fidelizar “seu” cliente, e não detém o mínimo conhecimento
sobre “seu” negócio. As empresas controlam os requisitos de
quem pode trabalhar e quem deve ser desligado, o modo pelo
qual o trabalho deverá ser executado e precificado. Fica assim
evidente que a prometida flexibilidade de fato existe, mas
apenas para as empresas donas das plataformas.
O argumento das empresas de que pertencem à “econo-
mia do compartilhamento” não se sustenta ao mínimo exame.
Enquanto a economia do compartilhamento nasce como uma
tentativa de aproveitar recursos subutilizados, grande parte
dos motoristas da Uber, por exemplo, compram ou alugam
carros apenas para trabalhar para o aplicativo.
A segunda conclusão é de que as plataformas se organizam
de maneiras muito diversas, com especificidades que envolvem
o lugar e o tipo de trabalho realizado, a maneira de distri-
buí-lo e de precificá-lo. Assim, é incontornável a análise do
trabalho exercido na plataforma para aferir a real existência
da subordinação. Destaca-se que diversas decisões judiciais
têm utilizado como fundamento a “economia do comparti-
lhamento”, englobando na mesma categoria plataformas
Trabalho e subordinação nas plataformas digitais 305

tão distintas quanto “AirBnb” (que sequer utiliza trabalho


humano) e Uber (que utiliza sobretudo trabalho humano). Ao
analisar as plataformas, notamos que o elemento subordina-
ção se destaca em empresas como Uber e Ifood (como já come-
çam a atestar as decisões judiciais), mas pode ser mitigada
em plataformas de crowwork, como Amazon Mechanical Turk.
Em outras, como a plataforma de macrotrabalho GetNinja,
não se nota trabalho subordinado, conquanto não haja con-
dições justas de trabalho, como demonstram as pesquisas
apontadas. Observa-se, assim, uma espécie de gradação do
elemento subordinação, o que pode sugerir a necessidade de
critérios jurídicos intermediários.
A terceira conclusão é a importância do Direito do Trabalho
como instrumento de regulação dessas novas relações, que
tendem a se espalhar para amplos setores da sociedade. Para
concretizar seu objetivo, o Direito do Trabalho deve ser capaz
de lidar com as constantes ressignificações do mundo do tra-
balho, que tomam forma em uma sociedade cada vez mais
fluida, em que as transformações se operam em um ritmo
crescente, estimuladas pelas constantes inovações tecnológi-
cas. Esse importante ramo do direito não pode fechar os olhos
para a realidade do mundo atual, pois sua função é justamente
regular o inerente desequilíbrio das relações trabalhistas.
Destaca-se que a Organização Internacional do Trabalho,
por meio da Recomendação 198, reafirma a necessidade dos
Estados combaterem relações de trabalho disfarçadas. Em
âmbito nacional, a Constituição da República consagra os
valores sociais do trabalho como fundamentos do Estado (art.
1º, IV), e reconhece o trabalho como direito social (art. 6º) , com
todas as suas garantias(art. 7º). Tem o Direito do Trabalho,
assim, como objetivo precípuo, um verdadeiro esforço civili-
zatório a cumprir, não podendo ser suprimido por discursos
pomposos de “inovação” e “disrupção”. A julgar pela quanti-
dade de dados produzidos e armazenados nas plataformas,
nunca foi tão fácil organizar, controlar e mensurar o trabalho.
A mesma tecnologia disruptiva, que cria novas formas de pro-
duzir e organizar a circulação de bens e serviços, ao mesmo
tempo em que ressignifica as relações de trabalho, também
306 O Futuro do trabalho no século XXI

deve ser capaz de fornecer as ferramentas necessárias para


proteger os trabalhadores.

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Autonomia e competência profissional em
contexto de trabalho precário

15 LENI MARIA PEREIRA SILVA1


LUCINEY SEBASTIÃO DA SILVA2

Introdução

[...] o que diferencia as épocas econômicas não é “o que” é


produzido, mas “como”, com que meios de trabalho. Estes
não apenas fornecem uma medida do grau de desenvol-
vimento da força de trabalho, mas também indicam as
condições sociais na quais se trabalha (Marx, 2013, p.257)

P
ropositalmente apropria-se das reflexões de Marx
(2013) para problematizar as condições de trabalho
que são postas para a classe trabalhadora, no século
XXI. Cada vez mais distintas dos tempos em que o esforço e
ação humana eram tidos como meio de trabalho e não como
objeto de trabalho, as novas expropriações são caudatárias de
velho processo de compromisso com a acumulação e domínio
da condição humana.
A objetificação do ser humano representou uma sentença
de passagem da condição humana e emancipadora para a con-
dição servil e alienada, uma vez que com o passar dos tempos
e sob a intensificação da exploração do trabalho suplantou ao

1
Doutora em Ciências Sociais. Professora Curso de Serviço Social
Unimontes. leni_2575@yahoo.com
2
Mestre em Filosofia UFOP. Professor Departamento Filosofia Unimontes.
lucineys43@gmail.com
310 O Futuro do trabalho no século XXI

esquecimento o processo de trabalho em seu momento sim-


ples e abstrato, perdendo sua condição de orientar a finalidade
da ação. Infere-se que o valor de uso estaria atrelado à satisfa-
ção de necessidades humanas e não a outra determinação que
seja estranha à condição do universal do metabolismo entre
homem e natureza.
Entende-se que o homem, por natureza, se constitui no
transcorrer das atividades de trabalho, ou seja, toda a ação
humana que transforma a natureza com vista a suprir as
necessidades é um exercício que permite criar uma socie-
dade essencialmente social, haja vista que isso promove não
o atendimento de demandas de cujo individual, mas coletivas.
Em Marx, a realização do trabalho, atividade que difere os
humanos dos demais seres vivos, se dá pelo enfrentamento da
realidade concreta, e que por meio dele realizam uma prévia
ideação e uma posterior objetivação. Experimento tal que se
dá por via produção dos seus meios de existência e desenvolvi-
mento físico e intelectual. Por meio da produção dos meios de
existência, os homens produzem indiretamente sua própria
vida material (Marx, 2013, p.10).
Projeção e execução, cada vez mais alteradas e inovadas,
definem a capacidade de os indivíduos realizarem uma ati-
vidade com a finalidade previamente eleita. Desse modo, em
Marx o trabalho é um mecanismo produtor dos próprios indi-
víduos e das sociedades, e passa a ser espaço de adoecimento
e sofrimento com o advento das explorações e, nos tempos
atuais, intensificação da exploração pelo capital.
Em Marx, o trabalho, pós revolução industrial, é apreen-
dido para além do seu sentido ontológico (tal como ele mesmo
definiu) dentro de uma dinâmica negativa a partir da inserção
das foças exploratórias do capital. Situação que vai redefinir e
determinar o modo de vida tanto nas condições objetivas de
sobrevivência quanto nas outras esferas da vida que se assen-
tam em aspectos subjetivos, culturais, econômico e sociais do
trabalhador.
Parte-se desse ponto para apreender o processo de saúde
do trabalhador em tempo de precarização do trabalho. A loca-
lização de um trabalho, mesmo em condições formais e de
Autonomia e competência profissional 311

estabilidade funcional, é promotor de adoecimento mental


e físico, e ademais provocativo de sofrimento ético-político.
Com vistas a abordar a temática desta pesquisa que advém
de estudos pós tese de doutorado, que gerou uma agenda de
inquietações acerca do trabalho formal estável precário tem-se
a problematização: a gestão do trabalho moderno sob uso de
tecnologias somado ao desconhecimento da especificidade
do Serviço Social tem ocasionado anulação da autonomia
profissional e comprometendo a competência no exercício
profissional? Diante da indagação há de se pressupor que
autonomia e competência do Serviço Social são distintas das
definidas pelo mercado, de tal modo que é passível de se ter
requisições distintas daquelas que constituem sua especifici-
dade e, ademais, as determinações institucionais acerca dos
procedimentos e negativas de defesas construídas no interior
dos laudos e pareceres sugerem cerceamento de autonomia e
anulação de competência, gerando um sofrimento ético-po-
lítico aos profissionais que, diante das investidas, escolhem
a servidão ou resistem.
O presente trabalho está organizado em três seções, a
saber, a primeira aborda a saúde do trabalhador em tempos de
trabalho precário. Parte-se da compreensão de que a precari-
zação do trabalho é antiga, desde o assalariamento, mas com o
processo de modernização das forças produtivas e incremento
da tecnologia tem-se percebido maior da exploração do tra-
balho, tornando-o cada vez mais precário.
A segunda seção aborda a questão da competência e auto-
nomia no exercício profissional do/a assistente social. Nessa
parte, apreende-se a partir de estudos anteriores que a gestão
do trabalho além de se intensificar na exploração com o
emprego de tecnologias (no judiciário, a chega do Processo
Judicial Eletrônico (PJE) tem sido analisada como fonte gera-
dora de adoecimentos nos servidores) tem criado novas estra-
tégias de controlar a autonomia e competência profissional
de Assistentes Sociais que corroboram para o sofrimento
ético-político.
A terceira e última seção, trata-se da relação sofrimento
ético-político e exercício profissional dos assistentes sociais.
312 O Futuro do trabalho no século XXI

Destaca-se que a apropriação da categoria sofrimento ético-


-político faz parte dos estudos realizados, desde 2006, e que ao
aproximar das reflexões e definição de Sawaia, professora da
PUC-SP, a qual definiu o sofrimento ético-político como uma
“vivência particular das questões sociais dominantes em cada
época histórica [...]. Sofrimento que surge da situação de ser
tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil
da sociedade” (Sawaia, 2009, p. 56).
Pondera-se que o trabalho precário é presente nas mais dis-
tintas profissões e formas de vinculação salarial. É formatado
conforme os metabolismos do capital que antecede a inquieta-
ção da classe trabalhadora em lutas e defesas por melhores con-
dições de trabalho por meio da equiparação salarial, dos planos
de carreira e progressões, uma vez que está no movimento de
moagem das capacidades da classe trabalhadora e de torná-la
indiferente a sua própria condição, ao passo que a torna capaz
ou sujeita a perder o controle do tempo do trabalho sobre a vida
privada e adoecer diante das investidas tecnológicas.

1. Saúde do trabalhador e trabalho precário

Com advento do assalariamento, tem-se um profundo pro-


cesso de precarização do trabalho. Mesmo que em outras civi-
lizações já era possível identificar formas de precarização da
condição de sobrevivência, para o trabalho, essa constatação é
possível a partir do momento que ele é transformado em mer-
cadoria, e passa a ter valor as condições impostas a quais se
dão num contexto de expropriação da força e da subjetividade
humana.
O trabalho em Marx, em seu sentido ontológico, é ação
transformadora, livre e criativa destinada à supressão das
necessidades humanas. Ação que mais traduz a relação do
homem com seu processo de humanização em um conteúdo
estritamente coletivo. O distanciamento dessa concepção traz
a relação de exploração e dependência. Segundo o pensador, o
modo de produção capitalista expande a partir da valorização
que o capital estabelece com o próprio capital, por meio da acu-
mulação de apropriação material e imaterial. Foi no trabalho
Autonomia e competência profissional 313

redefinido pelo capital que a condição de força de trabalho livre


se transmutava, muito sem perceber, em trabalho alienado e
subsumido ao capital.
Um processo degradante que edificou a negação da essência
humana e nega a capacidade teleológica e criativa, conquanto
coloca em destaque a miséria do trabalho e o aviltamento da
condição humana à mera mercadoria, momento em que o tra-
balhador passa a ser máquina (Marx, 2010, p. 29).
Mészáros, a propósito do dito anteriormente, salienta com
um exemplo:

[...] a selvajaria real do sistema continua ininterrupta-


mente não só a expulsar cada vez mais pessoas do pro-
cesso de trabalho como, numa contradição caracterís-
tica, também a estender o tempo de trabalho, sempre
que o capital possa conseguir isso. Para mencionar um
exemplo muito importante, no Japão o governo intro-
duziu recentemente um projeto de lei “para elevar os
limites superiores do dia de trabalho de 9 para 10 horas,
e a semana de trabalho de 48 para 52 horas. (Mészáros,
2007, p.150)

Como já afirmava Marx (2010), quanto mais se trabalha


mais pobre fica. Essa máxima é passível de indicar o quadro
epidemiológico que se tornou o “mundo do trabalho” devido a
sua potência produtora de adoecimento e sofrimento aos tra-
balhadores. Uma verdadeira máquina de moagem de sonhos,
habilidades físicas e intelectuais vão sendo apropriadas pela
monetarização da vida. Para Marx:

O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata


quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do
mundo das coisas aumenta em proporção direta a des-
valorização do mundo dos homens. O trabalho não pro-
duz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao
trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida
em que produz, de fato mercadorias em geral (Marx,
2010, p. 80).
314 O Futuro do trabalho no século XXI

Diante do contexto histórico de avanço da força destru-


tiva do capital, tem-se, a partir das últimas décadas do século
XX, uma agenda de estudos sobre precarização do trabalho
num tempo demarcado pós crise do modelo fordista em que
se acirra o desemprego, a pobreza em detrimento da perda
salarial e acrescimento da terceirização e flexibilização dos
direitos do trabalho (Franco; Druck, 2008).
Segundo as autoras Franco, Druck & Seligmann-Silva (2010):

[...] com a generalizada flexibilização do trabalho nos


países centrais, principalmente pela via da terceiriza-
ção, a nítida linha de separação entre incluídos e excluí-
dos nessas sociedades foi-se tornando mais tênue” (p.
1). Desse modo, a precarização social não atinge ape-
nas aqueles que estão excluídos do mundo de traba-
lho. Trata-se de um “processo multidimensional que
altera a vida dentro e fora do trabalho (Franco; Druck
& Selligmann-Silva, 2010,p.229).

Acrescentam ainda que “a precarização é um processo


multidimensional que altera a vida dentro e fora do trabalho”
(Franco; Druck & Selligmann-Silva, 2010, p. 231). À luz dos
apontamentos das autoras, apreende-se que o processo mul-
tidimensional da precarização atua indistintamente no coti-
diano das profissões. E, estando o trabalhador sob vínculos
estáveis ou não, nada impede de estar exposto a algum tipo
de dimensão da precarização. Em especial, do espraiamento
que extrapola o cotidiano do trabalho, sobretudo invadindo
sua vida privada.
No século XXI, experimenta-se novas manifestações
da precarização e, ao interiorizar no dia a dia, ganha con-
tornos de “precariedade subjetiva” e “precariedade objetiva”.
A primeira ocorre nos processos em que uma dimensão se
assenta na imposição, e em nome da autonomia e da respon-
sabilização, ao trabalhador tem-se uma intensificação dos
ritmos de trabalho.
Linhart (2009), por sua vez, ressalta que a precariedade
dos trabalhadores com empregos estáveis tem características
Autonomia e competência profissional 315

distintas daquela vivenciada por quem está fora do mercado


de trabalho formal. Enquanto estes estão sujeitos à precarie-
dade objetiva, aqueles vivenciam “precariedade subjetiva”, que
a autora define como:

[...] é o sentimento de não dominar seu trabalho e de


precisar permanentemente desenvolver esforços para
se adaptar, para cumprir os objetivos fixados, para não
se arriscar, nem fisicamente, nem moralmente (no
caso de interações com usuários ou clientes). É o senti-
mento de não ter recurso em caso de problemas graves
de trabalho, nem do lado dos superiores hierárquicos
(cada vez mais raros e cada vez menos disponíveis),
nem do lado dos coletivos de trabalho que se esgarça-
ram com a individualização sistemática da gestão dos
assalariados e o estímulo à concorrência entre eles. É,
assim, o sentimento de isolamento e abandono. Tem-se,
assim, frequentemente, o medo, a ansiedade, o senti-
mento de insegurança que é chamado comodamente
de estresse. (Linhart, 2009, p. 2)

Segundo a autora, é possível que a ‘precariedade subje-


tiva’ se assemelhe ao sofrimento que se inscreve cada vez
mais na relação com o trabalho moderno; seria, inclusive,
uma de suas características. E, de tal modo, provocando um
continum e elevado adoecer físico e mental devido à submis-
são a uma precariedade subjetiva. Nessa esteira, o trabalho
moderno marcado por um arrojado processo tecnológico tem
sido vetor na produção de adoecimentos ligados ao ritmo
extenuante de produção e são promotores de situações liga-
das ao “estresse” e “depressão”. Se apresentam com os prin-
cipais problemas do trabalho apontados devido ao excesso
de responsabilidades e o ritmo “insuportável” da produção.
Tais indicativos demarcam a existência de uma precariedade
subjetiva. (Linhart, 2009)
E, diante das características estruturais do capital assen-
tado em crises cíclicas, tem-se a perda da renda, dos postos
de trabalho e uma dimensão objetiva, que se manifesta na
316 O Futuro do trabalho no século XXI

intensificação (e a ampliação) da exploração (e a espoliação) da


força de trabalho. Nota-se o desmonte dos direitos, das forças
coletivas e de resistência sindical-corporativa; o crescimento
do desemprego ganhando expansão estrutural e total, reve-
lando-se a ampliação de um precário mercado de trabalho.
Segundo Sellegman-Silva (2011), a situação do trabalho,
nos tempos atuais, é um conjunto complexo que inclui as
condições físicas, químicas e biológicas do ambiente de tra-
balho. Para autora, para além das questões concretas de como
o trabalho pode ser apreendido, a sua apropriação se dá em
várias formas, tais como: repressão explícita e a dominação
sutil; exploração de sentimentos valores e crenças, medo do
desemprego; humilhações; sentimentos de culpa e gratidão;
a raiva reprimida – o ressentimento; exploração do fatalismo
e da raiva; a manipulação da desinformação (confundir para
explorar). Estes, segundo a autora citada, estão presentes em
espaços de trabalho por ela entrevistados, e sinalizam a dire-
ção do controle da classe trabalhadora.
Em outro momento, em se tratando de adoecimento,
Sellegman-Silva (2011) destaca que este está relacionado à
gestão do trabalho, e que causam um constituição de desgas-
tes mentais ligados ao trabalho, tais como: fadiga somado a
cansaço e irritabilidade; distúrbios do sono; medos (sofrer
acidente, adoecer; transtornos mentais; consumo excessivo
de bebidas; síndrome neuróticas vinculadas ao trabalho3;
distúrbios psicossomáticos; frustração e culpa além dos aci-
dentes de trabalho. Acerca desses processos de adoecimento,
a autora pondera os rebatimentos ao aproximar a caracteri-
zação da culminância do processo psicossocial de vários dos
trabalhadores ao atual conceito de esgotamento profissional
(Selligmann-Silva, 2011, p.298).
Trata-se de dar ressonância nesse processo de asseveração
da condição de pobre do trabalhador. Parte-se dessa assertiva

3
A autora esclarece que adota essa terminologia para designar os qua-
dros clínicos verificados em vários dos estudos de caso realizados e
para contrapor interpretações ortodoxas que possam criar dissensões.
(SELLIGMANN-SILVA, 2011, p.296)
Autonomia e competência profissional 317

em considerar dois aspectos: a perda do controle do tempo e o


comprometimento da saúde do trabalhador. Duas situações
complementares que incidem diretamente num outro aspecto
da vida cotidiana de todo/a aquele que vive do trabalho, o da
venda da sua força de trabalho, indistintamente de profissão ou
grau de escolarização. Trata-se de uma realidade moderna de
adoecimento que advém de um franco processo de sofrimento.
Sobre esse processo existe uma inquietação provocada pela
obra de Karl Polanyi (2000), A Grande Transformação, em que
o escritor provoca ao questionar - “Que “moinho satânico” foi
esse que triturou os homens transformando-os em massa?
Para essa inquirição, pode-se compreender, segundo o mesmo,
que se tratava de “uma máquina... para qual o homem estava
condenado a servir” (Polanyi, 2000, p. 51) e, que por meio da
ausência de regulação e sem proteção social promoveria a
destruição das relações sociais. O autor sinaliza que estaria a
sociedade transformada para a era da lucro e trabalho redu-
zido a um negócio.
Com advento da Revolução Industrial, percebe-se um movi-
mento de inchaço populacional, concentração das periferias
que eram herdeiras das primeiras famílias excluídas do pro-
cesso produtivo e expulsão Moinho Satânico. Na busca pela
sobrevivência, milhares de migrantes e emigrantes tiveram
que ocupar vielas das grandes cidades, formando as periferias,
em busca de garantias para a sobrevivência.
Segundo Polanyi (2000), para além do progresso técnico,
implantação de cidades industriais, mudança no regime de
trabalho, a ferrovia com uso do carvão que empregados de
modo estratégico para a Revolução Industrial, o emprego da
maquinaria contribuiu de forma significativa para o estabe-
lecimento da economia de mercado. Desse modo, na análise
de Polanyi (2000), a maquinaria e sua gestão colaborou para
a ampliação da produtividade quanto ao alcance de uma ren-
tabilidade monetária e propenso domínio capitalista.
A intensificação do trabalho, bem como a entrada da tec-
nologia devem ser apreendidas enquanto novos processos de
exploração da força de trabalho. E as formas da precarização
desencadeiam novas abordagens, a saber:
318 O Futuro do trabalho no século XXI

1) os processos de precarização e a perda de direitos


como decorrência da reestruturação produtiva e apli-
cação dos ajustes neoliberais;
2) que as respostas à crise do fordismo não apenas
foram ineficazes como a aprofundou, já que se desen-
volveram à base da flexibilização do trabalho e da
perda de direitos;
3) o crescimento ou consolidação do trabalho flexível e
precário em todas as sociedades e esferas, espaços ocu-
pacionais e profissões. Há uma clara desestabilização de
profissões e categorias que eram consideradas estáveis,
como, por exemplo, os executivos de empresas;
4) uma relação direta entre precarização e diversas
formas de flexibilização do trabalho e dos direitos:
como modos contemporâneos de dominação do traba-
lho (Druck, 2002). Estes só podem ser compreendidos
como fenômenos indissociáveis;
5) que a precarização do trabalho e a flexibilização dos
direitos são as mudanças mais visíveis de um período
de hegemonia do capital financeiro. (Guerra, 2010,
p.718-719)

Alia-se a esses elementos, apresentados pela autora, a


crescente segmentação do mercado de trabalho, consubs-
tanciada pela diferenciação das condições de trabalho nas
instituições estatais e nas condições da iniciativa privada,
alterando atribuições e papéis. Nota-se que as transformações
do mundo do trabalho provocaram a constituição de um feixe
de carências pelas quais agudizaram a antiga precarização que
se assentava “apenas” na condição salarial e sobrevivência
miserável determinando sua precariedade.
O reconhecimento da entrada da precarização (dada sua
relação iminente com o ataque ao trabalho provocado no último
século) do trabalhador assistente social se dá, em primeiro
momento, no contexto de precarização do trabalho e da vida
advindos de um profundo movimento de desregulamentação
Autonomia e competência profissional 319

dos direitos e inseguranças; e segundo momento, por reco-


nhecer que grande parte dos problemas que advêm da preca-
rização do trabalho da vida do trabalhador de fazerem parte
das contradições inerentes da sociabilidade capitalista, e o
judiciário é acionado pelo indivíduo por este entender que é
papel do judiciário atuar quando o direito é violado.
E essa realidade concreta de violação de direitos é provo-
cadora da saída do Judiciário de um mero expectador, de tal
modo que tem sido esse o quadro do volume de demandas
postas ao Judiciário. A violação de direitos, o empobrecimento
pela perda ou redução da renda advinda do trabalho, os con-
flitos que passam a existir em detrimento de um contexto de
ineficiência das políticas públicas sociais, e que ao mesmo
defronta-se com um judiciário ora com uma visão estigma-
tizante que conduz a pobreza aos processos e julgamentos,
ora com um olhar diferente acerca desta nova realidade.
Um terceiro momento, por entender que a cada estrati-
ficação da classe trabalhadora o público do Serviço Social
tende a aumentar dadas as expressões da “questão social” em
que estão expostos. Quarto momento, reporta-se ao expe-
diente do judiciário, no século XXI, que é recorrido pelo indi-
víduo quando seus direitos estão violados.
Segundo Selligmann-Silva (2011), os desgastes mentais
relacionados ao trabalho dizem respeito tanto às políti-
cas públicas e empresariais como a clínica e a competência
dos profissionais de saúde, do Serviço Social, de modo geral
(Selligmann-Silva, 2011, p.459). Acerca do processo da saúde
do trabalhador é possível considerar que, no campo do judi-
ciário os profissionais /servidores do TJMG, são acometidos
conforme dados coletados em pesquisa documental4.
Das licenças para tratamento de saúde5 contabilizadas
no ano de 2007, chegam a 10.303 licenças com um total de
102.024 dias de ausência ao trabalho por motivo de licença

4
Dados da pesquisa da Tese de Doutorado.
5
As licenças não envolvem licença-maternidade, licença para acompa-
nhar familiar; abono por saída antecipada, entrada tardia que não geram
licença saúde.
320 O Futuro do trabalho no século XXI

saúde. Em 2013, chegam a 17.429 com um total de 149,439


dias não trabalhados.
Em relação às causas de doenças que mais levaram ao afas-
tamento, foram notificados os transtornos mentais e sistema
osteomusculares e tecido conjuntivo que juntos representam
41% das licenças de saúde (respectivamente 23.7% e 17,3%).
No TJMG, o Índice de Gravidade (IG)6 foi de 8,82% a maioria
dos polos de saúde apresentam taxa próxima do TJMG. Os
polos de saúde que mais apresentam elevando índice são:
Juiz Fora, Barbacena, Uberaba.
Os dados revelam que o magistrado (juízes e desembarga-
dores) mais se afastam do trabalho por motivos relacionados a
doenças osteomusculares e a do tecido conjuntivo, e foi a prin-
cipal causa (15,1% dos dias); seguido dos transtornos mentais
(13,2% dos dias); fatores que influenciam no estado de saúde
(13,2% dos dias) doenças do aparelho circulatório (7,7%).
Os cargos com maior Índice de Gravidade que atuam na
primeira instância são: Agente judiciário; Oficial de apoio judi-
cial; Oficial de judiciário; Oficial de Justiça avaliador; Oficial
judiciário; Técnico de apoio judicial; Técnico judiciário
classe-C./Assistente social judicial; /oficial de justiça Oficial;
Comissário da infância e Juventude; Técnico judiciário /médico
perito/psicólogo; Técnico classe - psicólogo judicial.
Dentre estas profissões, a que apresenta maior Índice de
Gravidade tanto na primeira instância quanto na segunda são:
técnico de apoio judicial 28%; técnico judicial/oficial de justiça
59,5%; oficial justiça/oficial judicial 35%; oficial de justiça B 27%.
O número de licenças tem aumentado com o passar dos
anos, especialmente em cargos que os servidores possuem mais
idade. Conjectura-se que tais situações podem advir do longo
tempo exposto a determinadas condições de trabalho e riscos.
Os assistentes sociais na primeira instância ocupam o
sexto lugar e, na segunda instância, o primeiro lugar em maior
Índice de Gravidade. Levando em consideração à população de
profissionais desta área lotada no Judiciário. Segundo Lobato

6
O cálculo é feito: número de dias de ausência por ano dividido pela
população sob o risco (TJMG/relatório-2013)
Autonomia e competência profissional 321

(2015)7, tal situação está muito relacionada ao tipo de serviço e


público que atende os assistentes sociais. Estar na linha de frente
do atendimento das demandas, sendo um número cada vez
mais reduzido de profissionais, envolvidos com situações com-
plexas que envolvem tantos os casos que atuam quanto à pres-
são institucional contribuem para a elevação dos afastamentos.
De um modo geral, os motivos que geram as licenças
de saúde são a convalescência pós-cirúrgica, episódios de
depressão, transtorno ansioso, transtorno depressivo recor-
rente, doralgia, transtorno bipolar, reação ao estresse e trans-
torno adaptativo, lesões no ombro (Relatório do estudo de
absenteísmo, 2013)
O relatório do estudo de absenteísmo por licença saúde
indica que o índice de absenteísmo pode estar ligado ao
volume de trabalho no qual têm sido expostos magistrados
e servidores. Aponta que o estresse ocupacional8 tem cola-
borado com o aumento significativo dos afastamentos por
motivo de tratamento de saúde.
É passível o entendimento de que, em tempos de precariza-
ção estrutural9, as instituições públicas, ao adotarem as pro-

7
Informações coletadas via contato telefônico em Jan/2016.
8
Segundo estudo da OIT (2000), existem quatro fatores desencadeado-
res de estresse ocupacional: 1) controle sobre as responsabilidades; 2)
demanda (exigência) do trabalho; 3) características pessoais, e 4) apoio
social. Segundo Halfeld o estresse no ambiente de trabalho engendra
o seguinte: Para os trabalhadores: diminuição da saúde, diminuição de
renda, aumentam de despesas médicas e aposentadoria precoce. Para
as empresas: aumento de absenteísmo, menor número de horas traba-
lhadas, perda de produtividade e eficiência, prejuízo com equipamentos
estragados, aumento do turnover (rotatividade de pessoal), aumento
de despesas com contratação e formação, processos de indenização,
subutilização de plantas produtivas de custo elevado, possível redução
na escala econômica e marketing negativo (imagem, reputação) (sitio
www.SINJUSMG.gov.mg.br).
9
A Confederação Nacional da Indústria (CNI), em 2012, publicou docu-
mento intitulado “101 propostas de modernização do trabalho” – este
documento apresenta a necessidade da flexibilização dos direitos
para a manutenção do crescimento econômico; defende o desmonte
da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), ao considerá-la ultrapassada
322 O Futuro do trabalho no século XXI

toformas flexíveis, promovem sua manifestação e ao mesmo


são compelidas a darem respostas em matérias que dizem do
seu dever de contribuir para a regulação da vida social, mesmo
que seja por meio de uma ação judicial.
Ademais, como salienta Alves (2007), uma precarização
estrutural que acampa em todos os lugares e profissões se
manifesta também no judiciário tanto da condição de pre-
cariedade (os altos salários não deixam de ser condição de
mercantilização da mão de obra), quanto da precarização dada
às formas de exploração. São estas reflexões que sustentam os
próximos capítulos.

2. Competência e Autonomia no exercício


profissional do/a assistente social

O debate acerca das competências do Serviço Social segue


o curso da inquietação. Necessário manter as investigações na
perspectiva de se debruçar, cada vez mais, acerca dos funda-
mentos do Serviço Social e quanto a sua história e seu con-
junto de rupturas se apresentam como matrizes indispensá-
veis para confrontar a onda (neo)conservadora que se espraia
no processo de formação e que desemboca na intervenção.

para um contexto de capitalismo moderno. Tem como proposta “negocia-


do sobre o legislado”, ou seja, aponta para a liberalização da negociação
entre patrões e empregados sem intermediação do Estado. Cf. CASALI.
E. Confederação Nacional da Industria CNI- 101 propostas para a mo-
dernização do trabalho: Brasil: CNI, 2012. No contexto atual está em
tramitação a PL 4330 – que libera a terceirização para todas as atividades,
aprovado na Câmara dos deputados por 230 a 203 votos, a pós-pressão
e mobilizações da sociedade o projeto está parado no Senado que abriu
para discussão. Para Druck (2015), a terceirização é uma transformação
radical das relações de trabalho, que coloca por terra mais de um século
de lutas e de conquistas de direitos elementares dos trabalhadores brasi-
leiros. O que está em disputa é a legalização, da precarização do trabalho
em todas as dimensões: na proteção social e trabalhista, nos salários, nas
condições de trabalho, na saúde do trabalhador, na organização sindical
e no Direito do Trabalho no País (Druck, G. PL4330: terceirizar para le-
galizar a precarização do trabalho no País. O Estadão – Geral. maio/2015.
Consulta em 23.10.2015.
Autonomia e competência profissional 323

A luz das produções de Iamamoto (2004), a competência


promove a desconstrução dos discursos oficiais institucionais
que sacramentam uma competência de mercado e, cada vez
mais comprometida com a manutenção do status quo com
vista à intensificação da exploração do trabalho e sedimentar
uma identidade subalterna na classe trabalhadora. No entanto,
se torna imprescindível esse debate que se situa na centra-
lidade da relação teoria versus prática. Especialmente, por
dar centralidade à questão teórico-metodológica no campo
da produção de conhecimento acerca do exercício profissional
em instituições que a gestão seus serviços e que em alguns
momentos, adotam direções que convergem e não assumem
as mesmas defesas do Serviço Social. O debate sobre com-
petência contribui para superação do pragmatismo e utilita-
rismo, haja vista, o acúmulo teórico-crítico que as entidades de
representação e o conjunto de profissionais estão construído
no campo das resistências teórico-práticas.
Diante de uma sociedade excludente, em que a mais-va-
lia se manifesta como inclusão perversa, se apreende sobre
sofrimento e sofrimento ético-político a partir das reflexões e
apreensões construídas por Sawaia (2009), em especial no que
a autora defende como uma forma de demarcar a servidão e a
possiblidade de sair dela. É o sofrimento ético-político aquele
atravessado pela classe social, tendo um caráter coletivo e
não aquele gerado por estar submetido ao poder do outro e
ao direito do outro numa perspectiva puramente subjetiva e
particular.
Desse modo, apreende-se que a análise da autonomia pro-
fissional sob a condução do sofrimento ético-político contri-
bui para se pensar que a gestão do trabalho constrói determi-
nações que visão construir uma condição de subalternidade ao
obstaculizar o exercício livre das competências e autonomia.
Tal contexto advém da apreensão da condição de assalariado
do profissional de Serviço Social, dialeticamente, ao mesmo
tempo que insere a/o assistente social na divisão sócio-técnica
do trabalho, e também restringe sua intervenção.
Entende-se que assistente social tem um cariz liberal,
havendo, no campo da representação e defesa, entidades de
324 O Futuro do trabalho no século XXI

fiscalização do exercício profissional. Uma profissão liberal


tem como elemento definidor sua capacidade de definir seus
condicionantes éticos que delinearam tanto o exercício profis-
sional como sua participação na vida social. Outro elemento
que corrobora para essa condição é ter regimentada uma lei
específica. Sobre a autonomia, Iamamoto (2008) problematiza
acerca da sua relativização:

[...] a possibilidade de imprimir uma direção social


ao exercício profissional do assistente social – mol-
dando o seu conteúdo e o modo de operá-lo – decorre
da relativa autonomia de que ele dispõe, resguardada
pela legislação profissional e passível de reclamação
judicial. A efetivação dessa autonomia é dependente
da correlação de forças econômica, política e cultural
em nível societário e se expressa, de forma particular,
nos distintos espaços ocupacionais construídos na rela-
ção com sujeitos sociais determinados: a instituição
estatal [...]; as empresas capitalistas; as organizações
político-sindicais; as organizações privadas não lucra-
tivas e as instâncias públicas de controle democrático.
(Iamamoto, 2008, p. 220).

Entende-se que os instrumentos normativos, como a Lei


8662/93 e o Código de Ética de 1993, objetivam um conjunto de
ações que afiançam e estimulam a autonomia profissional.10
Segundo Simões (2012), a autonomia é considerada direito na
medida em que o profissional é quem deve ter o discernimento
do objeto de sua intervenção (Simões, 2012, p.38).
Para Simões (2012), é possível considerar a existência de
dois contextos diferenciados que colaboram para se compre-
ender a autonomia. O primeiro é aquele que se localiza no

10
O CFESS tem como ação precípua assegurar as competências e atribuições
privativas do assistente social que resultam na defesa de uma atuação autô-
noma e livre de determinações. A Lei 8662/93 que regulamenta a profissão
do assistente social e diversas resoluções emitidas pelo Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS) é o instrumento jurídico de defesa da profissão.
Autonomia e competência profissional 325

dever ser profissional que se dá por via do exercício calcado


nas competências e atribuições privativas previstas na lei,
que conduzidas no cotidiano são capazes de contribuir para
a construção da direção social ao seu exercício, conforme a
valoração ética hegemônica na profissão (Simões, 2012, p. 44).
O segundo se assenta na condição de classe trabalhadora da/o
assistente social. A venda da força de trabalho revela a relativa
autonomia que se situa num contexto antagônico, e que é o
lócus de um exercício compromissado com os interesses da
classe trabalhadora.
Essa espécie de determinismo tem o processo de supera-
ção, nos vindos das décadas de 1980/1990, quando a profissão
dá início a um movimento de produção do conhecimento,
denominado por Netto (2004) de amadurecimento intelec-
tual advindos da criação das pós-graduações e a imersão na
realidade e cotidiano sob o qual está submetido o exercício
profissional.
E, inevitavelmente numa realidade complexa de controle
e intensificação da pobreza e da exploração do trabalho urgia,
segundo Iamamoto (2012), a compreensão de se constituir,
assim uma competência intelectual que pudesse para além
de intervir na realidade, mas estrategicamente decifrá-la.
Ao ponto de construir mediações capazes de confrontar as
determinações e atender os anseios e demandas de uma
classe trabalhadora que o Assistente Social é parte e recurso
de resistência.
Por competência, apropria-se produção de Iamamoto
(2005, 1998, 2012), desse modo entende-se:

Nessa estratégia de ocultamento e dissimulação do


real, o poder aparece como se emanasse de uma racio-
nalidade própria do mundo da burocracia, acoplado a
um discurso neutro da cientificidade. São as exigências
burocráticas e administrativas que têm de ser cumpri-
das, obedecendo a formas de ação pré-traçadas, que
devem ser apenas executadas com eficácia. A compe-
tência é aí personificada no discurso do administrador
burocrata, da autoridade fundada na hierarquia que
326 O Futuro do trabalho no século XXI

dilui o poder sob a aparência de que não é exercido por


ninguém. (Iamamoto, 2009, p.16).

Iamamoto (2009) pondera sobre competência no exer-


cício profissional ao trazer racionalidade ao que deve ser
considerado de específico no Serviço Social. A autora, como
projeção respostas ao leitor, de antemão, decifra o que seria
competência crítica. Desse modo, noutra obra, Iamamoto
(2004) ressalta que para contrapor a horda de uma compe-
tência assentada tecnocrático e conservantista, ou seja, que
se está diante da uma era da competência do “discurso oficial”
em que é possível verificar uma ideologização da competên-
cia, determinada pela burocracia e pela organização, que
não afeta só o Estado, mas atravessa a sociedade civil. Ainda
ressalta:

[...] a competência crítica capaz de desvendar os fun-


damentos conservantistas e tecnocráticos do discurso
da competência burocrática. O discurso competente é
crítico quando vai à raiz e desvenda a trama submersa
dos conhecimentos que explica as estratégias de ação
[...] Com os pontos de vista das classes por meio dos
quais são construídos os discursos: suas bases históri-
cas, a maneira de pensar e interpretar a vida social das
classes (ou segmentos de classe) que apresentam esse
discurso como dotado de universalidade, identificando
novas lacunas e omissões (Iamamoto, 2009, p.16-17)

A competência oficial seria aquela que determina o modus


operandi profissional; aligeira sua autonomia e rastreia sua
liberdade. É uma competência personificada no discurso da
autoridade fundada na hierarquia que dilui o poder sob a apa-
rência de que não exercício por ninguém. E, não se considera
que esse poder tem uma finalidade e emanado numa lógica
institucional. Mas, da forma como ele é diluído na realidade
fica a impressão que ele é onipresente, e tem uma força pró-
pria advindo de uma neutralidade institucional (Iamamoto,
2004, p.183).
Autonomia e competência profissional 327

E a armadilha é não se aperceber dominado e estar diante


de uma atuação que, a cada tempo, a atuação, as demandas e
interesses dos sujeitos/usuários passa a ser subordinada por
meio da aceitabilidade das determinações das organizações.
O debate acerca da competência profissional compõem o
amplo campo de preocupações sobre o Serviço Social, espe-
cialmente, no que concerne compreender o avanço das forças
(neo)conservadoras que se espraiam a cada tempo, se reno-
vando e reinventando no/para o Serviço Social brasileiro.
Uma discussão que ganha centralidade quando se tem como
objeto de intervenção nos diversos espaços sócio-ocupacio-
nais, especialmente por se ter uma previsão legal, conforme
o artigo 4º da Lei 8662/93. Neste artigo é possível verificar
o crescimento no campo propositivo, analítico e qualificará
tanto apreensão da realidade quanto o processo interventivo
a ser construindo com sujeitos/usuários, profissionais, insti-
tuições e outros profissionais.
A competência prevista na lei que regulamenta a profissão
supera a lógica tecnocrática e instaura a dimensão investiga-
tiva, propositiva e interventiva. Sinaliza também a articulação
entre as três dimensões que consubstanciam o exercício pro-
fissional no campo da complementariedade entre dimensão
ético-política, teórico-metodológica e técnico-operativa.

3. Autonomia, competência e o
sofrimento ético-político

Compreende-se que na relação compra e venda da


força de trabalho há uma intenção que se situa no campo da
relação de mercadoria, em que a condição de assalariamento
tem de um lado o que vende a força de trabalho e do outro
aquele que remunera pela atividade desenvolvida. Tal situação
transforma a força de trabalho em mercadoria e, ao comprador
poder sobre como será utilizada (Dal Rosso, 2006, p. 71)
O contexto em que atua o assistente social parte-se do enten-
dimento elaborado por Raichellis (2013) que se trata um exer-
cício que é “tensionado pelas contradições que atravessam as
classes sociais na sociedade do capital e submetido à condição
328 O Futuro do trabalho no século XXI

de trabalhador assalariado (Raichellis, 2013, p.620). Esse esta-


tuto corrobora para possíveis determinações no exercício pro-
fissional para atender os interesses institucionais.
A centralidade que se dá conteúdo expresso nos estudos
sobre sofrimento ético-político é em virtude de se reconhecer
sua importância para a apreensão acerca das determinações
posta ao Assistentes Social diante da morfologia do trabalho.
Desse modo, inquere-se se as novas estratégias adotadas no
interior da gestão do trabalho impactam o processo de traba-
lho do/a Assistente Social ao trazer para o cotidiano da atua-
ção um controle e anulação da sua autonomia e competência?
Destaca-se como já sinalizado no item anterior que auto-
nomia e competência são categorias importantes para se
pensar o exercício profissional e os processos que são cons-
truídos para defesa da profissão, além de se configurarem
indispensáveis no confronto das estratégias institucionais
tanto de redução dos direitos sociais quanto de controle sobre
a classe trabalhadora.
Desse modo, parte-se do pressuposto de que a gestão
do trabalho tem colaborado para um franco movimento de
ataque à autonomia e competência, e nesse embate é possí-
vel compreender uma inserção, cada vez mais presente no
sofrimento ético-político, especialmente, por considerar que
tal realidade tem provocado adoecimento nos profissionais.
Como categoria no Serviço Social, supõe-se entender, ini-
cialmente a dimensão do sofrimento como uma espécie de
pathos11, em que se processam determinações que corrobo-
ram para a inviabilidade de uma “morada” política. Ou seja,
o sofrimento que inviabiliza o exercício da ação que construa
a possibilidade de um existir em prol do bem comum e da
práxis humana, ao passo que o indivíduo que definitivamente
toma posse de sua potência é aquele que se libertou do estágio

11
CF. MARTINS, Francisco. O que é pathos? In.: Rev. Latinoam. Psicop.
Fund., II, 4, 62-80. O pathos seria compreendido como uma disposição
(Stimmung) originária do sujeito que está na base do que é próprio do
humano. Assim, o pathos atravessa toda e qualquer dimensão humana,
permeando todo o universo do ser.
Autonomia e competência profissional 329

de pathos, da dependência de bons ou maus afetos decorridos


das determinações intersubjetivas sociohistóricas.
Sawaia (2009), ao retornar a Spinoza, destaca a relação entre
sofrimento ético-político e autonomia, destacando a dimensão
ética dos afetos, cujo enfrentamento do sofrimento ético-polí-
tico supõe o agir, ao invés de simplesmente reagir e reproduzir,
mas sim tornando-se um sujeito crítico, reflexivo, criativo e
responsável por sua existência, alcançando a potência humana
em sua singularidade na direção da construção sociohistórica,
ética e democrática.
Destaca-se que etimologicamente a palavra autonomia
- auto-nomos - guarda relação com o universo semântico
grego, assim supondo aquele que dita sua própria lei, e neste
espectro, tanto a questão da consciência como o da moral
sinalizam a capacidade individual para autodeterminação
e autogoverno. O tema da autonomia no período moderno
fica marcado pela ideia de autenticidade, e sob influência
do Iluminismo, também mantém relação com o fato de o
indivíduo ter autoridade racional sobre suas próprias ações
e inclinações.
De um modo ou de outro, o problema da autonomia se dá
no plano predominantemente pessoal. Todavia, é importante
ressaltar que sua abordagem na contemporaneidade ético-po-
lítica ou como se pretende neste estudo em tela, o problema da
autonomia supõe considerar a construção de uma sociedade em
processo constante de desenvolvimento tanto nas formas de
autogoverno quanto nas infinitas formas de autotransformação
da própria sociedade. A exemplo desse modelo em questão, fica
indissociável pensar a autonomia sem as ideias de liberdade e
democracia e tudo que nelas se desenham e se encerram.
Quanto a isso, Castoriadis ressalta que: “Se quisermos ser
livres, devemos fazer nosso nomos. Se quisermos ser livres,
ninguém deve poder dizer-nos o que devemos pensar” (1992,
p. 138). Certamente muitos desafios são apresentados na cons-
trução de uma sociedade democrática e institucionalizada
e diante das formas de dominação muitas vezes veladas as
quais empreendem e sugerem tanto a condição de passivi-
dade como a de mera expectativa e/ou obediência voluntária.
330 O Futuro do trabalho no século XXI

Na filosofia Spinozana, apresenta-se uma inigualável con-


tribuição com elementos teóricos fundamentais para possibi-
lidade de construção de um projeto de autonomia calcado no
exame crítico da produção de nossas vontades no que tange ao
seu caráter de potência ou passividade. De tal modo, a servidão
humana é a impotência para refrear os afetos paixões e resulta
dessa distorção entre afeto e a imagem do que se afetou. E por
não fazer a distinção, o indivíduo permanece na servidão e
passividade, tornando-se governado pelo modo como ocorreu
o afeto no campo do existir das atribuições humanas.
Todavia, a passividade mesmo que possa imperar até certo
grau ou momento sobre a potência de agir do corpo e de
pensar da mente, em contrapartida pode crescer a ponto
de conceber a si mesmo e às suas ações adequadamente. O
pensamento filosófico de Spinoza combate tudo aquilo que
nos enfraquece e nos separa da força vital, de nosso conatus e,
ao mesmo, tempo denuncia formas de ilusão da consciência
e determinismos. Em sua teoria dos afetos é possível perce-
ber que cada indivíduo é uma essência singular entrelaçada
a um campo de causas externas que, por sua vez ligado à
sensibilidade com que afeta e é afetado.
Para Spinoza (2009), o afeto é a variação de nossa potência
de agir, de nossa perseverança, de nosso esforço de existir sobre/
no o mundo. Aumento ou diminuição de potência não é, senão,
aumento ou diminuição do conatus, isto é, da capacidade de
ser e agir. O conatus é a variação de esforço, que pode ser
favorecido ou constrangido. Os afetos-ações, decorridos da
alegria, representam uma capacidade mental de pensar e
um aumento de potência. Eles remetem ao esforço de viver
e à autonomia para manutenção da vida e elaboração sub-
jetiva, assim como remetem à liberdade humana suposta
pela consciência dos próprios afetos e domínio de realidade.
Sobre esse ponto, Spinoza esclarece:

[...] o desejo que surge da razão, isto é, o desejo que gera


em nós enquanto agimos, é a própria essência ou natu-
reza do homem, à medida que é concebida como deter-
minada a fazer aquilo que se concebe adequadamente,
Autonomia e competência profissional 331

em virtude apenas da essência do homem. (Spinoza,


2009, p. 196).

Já na passividade, ocorre uma diminuição de potência em


função da dependência de causas externas. Exemplo disso é
a servidão humana, na qual a impotência do servo o impede
de refrear os afetos e paixões, levando-o a se permitir às
paixões, mesmo sabendo que aquilo o faz sofrer.
Para Spinoza (2009), nossa consciência é consciência de
uma imaginação que meu corpo capta e absorve no contato
com outros corpos. Cabe-se aqui entender o percurso de tomada
de decisão e o quanto um projeto existencial sociohistórica
ultrapassa um modelo de vida instituído na medida em que o
desejo é um elemento fundamental na transição de um estado
de passividade para um ativo, o que não impede a possibili-
dade de distração frente à oportunidade de decidir consti-
tuir para si mesmo um modo de vida que fortaleça a própria
potência de existir.
Spinoza (2009), alega que não é um corpo que vai gerar
uma ideia na mente, mas é pela natureza da mente que haverá
a produção de ideias, inclusive as ideias das afecções e, nestes
termos, não haverá processo intelectual voltado a quaisquer
dos âmbitos de produção de conhecimento sem a experiência
dos afetos. De tal modo, toda forma de orientar-se a si mesmo,
desvencilhando-se das determinações e de uma suposta força
da contingência, depende do processo que transforma a fra-
queza, a servidão e a passividade em atividade, a inadequação
do que se imagina em adequação de pensamento.
À luz do pensamento de Spinoza, apresentado anterior-
mente, pode-se dizer que com o corpo afetado, simultanea-
mente afeta-se também a mente, e daí uma das consequências
da relação psicofísica do afeto é que o padecimento corpóreo,
o sofrimento ético-político pode resultar do padecimento
da mente diante das afecções, de tal modo a entender que a
relação de afetação cria uma imagem que a mente imagina e
reproduz como consciência e interpretação da realidade ética.
Segundo Machado (2001), a ética seria um exercício de
resistência à tolerância da indiferença, que nos arranca do
332 O Futuro do trabalho no século XXI

torpor das situações sensório-motoras suportáveis e nos faz


mudar de atitude. Todavia, a autora ressalta ainda sobre esse
tipo de tolerância da indiferença que “pode produzir em nós
uma servidão, um descaso pelo pensar, um mal-estar frente
às posturas críticas [...]”. (Machado, 2001, p. 71-72).
Sawaia (2009) ressalta que o sofrimento possui um poten-
cial ético-político que revela a tonalidade ética da vivência
cotidiana da desigualdade social (Sawaia, 2009, p.102). A base
teórica de seus estudos parte de Spinoza, Agnes Heller e Lev
Vygotsky. Em Spinoza a autora Sawaia encontrou a teoria
dos afetos:

Sua hipótese é a de que a paixão constitui caminho à


compreensão e ao combate da servidão e da tirania,
pela sua positividade, pois ela é base da ética, da sabe-
doria e da ação coletiva democrática, tornando-se nega-
tiva, quando associada a ignorância e à superstição”
(Sawaia, 2009, p. 102)

Percebe-se nas palavras de Sawaia (2009), o que Spinoza,


em seu Tratado Político, atribui ao medo um papel prepon-
derante, fazendo dele a paixão mais eficaz de todas. Quanto à
superstição, por sua vez, não pode se manter sem a esperança,
é o que leva os homens a recorrer a todos os tipos de cultos
por esperarem obter aquilo que desejam ou por temer algum
mal. Para a autora, a apreensão do sofrimento ético-político
permite:

[...] analisar as formas sutis de espoliação humana


por trás da aparência da integração social, e, portanto,
entender a exclusão e a inclusão como as duas faces
modernas de velhos e dramáticos problemas – a desi-
gualdade social, a injustiça e a exploração (Sawaia,
2008, p. 106).

Para Sawaia (2008), existe uma distinção entre sofrimento


social e sofrimento ético-político, uma recorrência que ela
em seus estudos tem percebido. Percebeu a necessidade de
Autonomia e competência profissional 333

esclarecer que sofrimento ético-político está na questão social


e se apresenta como não do campo individual, mas do coletivo.
Para a autora, trata-se da “vivência particular das questões
sociais dominantes em cada época histórica [...] Sofrimento
que surge da situação de ser tratado como inferior, subalterno,
sem valor, apêndice inútil da sociedade” (Sawaia, 2009, p. 56).
A conjugação do ético-político com o sofrimento se assenta no
entendimento de que o sujeito é um todo. Ele mente e corpo e
essa unidade compõem as relações que cada sujeito estabelece
com o mundo que o cerca.

Considerações finais

A autonomia foi, neste estudo, apreendida como compo-


nente do exercício profissional nos diversos espaços sócio-
-ocupacionais, especialmente quando se analisa sua relação
com as determinações institucionais e a condição de assa-
lariado da/o assistente social em que a hierarquização das
relações se manifestam no cotidiano como processos limi-
tantes da autonomia das/os assistentes sociais. Desse modo,
inquere-se se as requisições institucionais tendem a limitar
autonomia profissional promovendo uma perda da liberdade
na intervenção e deflagrando um processo de sofrimento
ético-político.
Considera-se que é no processo de trabalho que se loca-
liza a autonomia e a condição posta pelo assalariamento, e
deve ser apreendida como meio/processo de construção de
mediações e afirmações ético-políticas junto às instituições
que avistam no serviço social uma intervenção descontextu-
alizada dos acúmulos realizados nos últimos anos.
Apreende-se competência como ato de racionalidade,
escolha profissional que traz à projeções que contrapõe a
horda de uma competência assentada tecnocrático e conser-
vantista, ou seja, que se está diante da uma era da compe-
tência do “discurso oficial” em que é possível verificar uma
ideologização da competência, determinada pela burocracia
e pela organização, que não afeta só o Estado, mas atravessa
a sociedade civil. (Iamamoto 2004, p.183)
334 O Futuro do trabalho no século XXI

É preciso considerar a necessidade de se deter em estudos


acerca do Serviço Social e suas “categorias” de modo a apro-
fundar nos acúmulos teóricos realizados nos últimos anos.
Desse modo, ao trazer novas problematizações diante do
dinamismo da realidade e de lógicas que estão no “mundo
do trabalho”, pretendeu-se colaborar na defesa da profissão,
especialmente, no campo das defesas ético-políticas e na luta
contra o conservadorismo.
A realidade do “mundo do trabalho” marcada por uma
nova morfologia em virtude do advento do aparato tecnoló-
gico; de uma gestão do trabalho cada vez mais hierarquizada
e alheia às atribuições privativas da profissão; do acirramento
das expressões da questão social diante de um contexto polí-
tico-econômico ultraconservador se apresentam como ele-
mentos que colaboram, cada vez mais, para a intensificação da
precarização das condições de trabalho tanto dos trabalhado-
res estáveis quanto para aqueles que se inserem no “mundo do
trabalho” por meio da informalidade ou prestação de serviços.
Esse contexto se apresenta como tensionador, especial-
mente quando a condição de assalariado e o ataque à dimensão
de um trabalho consciente e coletivo se apresentam como con-
dições postas que afrontam a autonomia profissional e sinali-
zam o sofrimento ético-político. E conforme discorreu Sawaia
(2009), o sofrimento ético-político constitui uma categoria de
análise da dialética inclusão/exclusão social que de um modo
ou de outro abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma
que recaem sobre a vida e setores da experiência humana de
diferentes formas.
No que se refere à autonomia e aos espaços sócio-ocupa-
cionais, percebe-se a situação dilemática na qual o sistema
capitalista supõe inclusão construindo mecanismos de repro-
dução que sustentam, por um lado, a servidão, a passividade,
a alienação e, por outro lado, desenham sorrateiramente o
modo de intersubjetividade e submissão às suas determina-
ções, mascarando a inclusão em detrimento ideias imaginati-
vas produzidas em meio às relações afetivas provenientes da
servidão e passividade, resultando daí um contexto de exclu-
são engendrado pela desigualdade social.
Autonomia e competência profissional 335

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