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COORDENADORES:

Gisela Maria Bester


Hermes Augusto Costa
Gloriete Marques Alves Hilário

ENSAIOS DE DIREITO E DE SOCIOLOGIA


A PARTIR DO BRASIL E DE PORTUGAL:
MOVIMENTOS, DIREITOS E INSTITUIÇÕES

1ª Edição - Curitiba - 2015

Instituto Memória Editora


CENTRO DE ESTUDOS DA CONTEMPORANEIDADE
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Instituto Memória Editora & Projetos Culturais


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CEP 80.530-280 – Curitiba/PR.
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REVISORES: Gisela Maria Bester e Luiz Henrique Ribeiro Vieira


NORMATIZAÇÃO ABNT: Gisela Maria Bester
ARTE DE CAPA: Eliseu Venturi

ISBN: 978 – 85 – 5523 – 022 – 6

BESTER, G.M.
COSTA, H.A.
HILÁRIO, G.M.A.

Ensaios de Direito e de Sociologia a Partir do Brasil e de Portugal:


Movimentos, Direitos e Instituições. Gisela Maria Bester, Hermes Augusto Costa,
Gloriete Marques Alves Hilário (Coordenadoras). 1ª edição. Curitiba: Instituto
Memória Editora. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2015

548 p.

1. Direito brasileiro 2. Direito português 3. Ciências Sociais


4. Ensaios I. Título.

CDD: 340 + 300


ENSAIOS DE DIREITO E DE SOCIOLOGIA
A PARTIR DO BRASIL E DE PORTUGAL:
MOVIMENTOS, DIREITOS E INSTITUIÇÕES

AUTORES COLABORADORES:

Andreia Santos Iris Catarina Dias Teixeira


Beatriz Caitana da Silva Isabel Ferreira
Carina Jordão João Vitor Martins Lemes
Claudia Mazzei Nogueira José Manuel Mendes
Claudino Cristovão Ferreira Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
Cristina Sá Valentim Maria de Fátima Ferreira Queiróz
Daniela Mesquita Leutchuk de Maurício Dias dos Santos
Cademartori Nuno Porto
Dora Fonseca Pablo Almada
Elisete Sileny Jacinto de Almeida Paula Cristina Cabral
Eliseu Raphael Venturi Pedro Araújo
Fábio Luiz Tezini Crocco Sergio Urquhart Cademartori
Fernanda Forte de Carvalho Sílvia Ferreira
Giovanni Alves Sonya Maria Pires Brandão
Gisela Maria Bester Tiago Anderson Brutti
Gloriete Marques Alves Hilário
Hermes Augusto Costa
APRESENTAÇÃO

A obra que agora vê a luz do dia recolhe contributos inéditos


gizados a partir de duas ciências sociais – o Direito e a Sociologia –
cujas fronteiras disciplinares há séculos se encontram definidas, mas
que neste volume se complementam de forma harmoniosa sem se
confundirem. Na verdade, como é sabido, o Direito e a Sociologia são
duas ciências centradas em conteúdos que potenciam diálogos de
várias ordens, desde logo validando registos formais, normativos e
institucionais, mas igualmente cedendo espaço às dinâmicas da
sociedade, aos comportamentos dos seus atores e protagonistas. O
desafio que esta obra se coloca é precisamente o de recuperar
dinâmicas e olhares dos dois campos (e, por sinal, não
exclusivamente deles), tendo como pano de fundo um conjunto de
termos de referência que em nosso entender estão presentes na
maioria dos artigos, a saber, os movimentos, os direitos e as
instituições. É em torno destes termos que este livro coletivo se
estrutura.
Na estruturação da obra procuramos, pois, por nossa
iniciativa, arrumar os vários capítulos segundo aqueles termos de
referência. No entanto, queremos advertir o leitor de que, ao falarmos
de movimentos, de direitos e de instituições, não podemos pressupor
que se trata de uma arrumação fechada, desde logo porque vários
dos contributos acolhem no seu seio expressões de movimentos,
registros de direitos e mapeamentos de instituições, tudo de forma
conjugada. Em boa verdade, não raras vezes os movimentos, os
direitos e as instituições se complementam e se articulam de forma
inevitável. Em primeiro lugar, os movimentos apontam em si mesmos,
para dinâmicas da sociedade. E essas dinâmicas tendem a apontar
para o progresso, para uma melhoria de condições, para direitos (de
um grupo ou de uma sociedade inteira) pelos quais importa lutar e/ou
salvaguardar. Aliás, não é incomum que os movimentos sejam postos
em marcha num quadro de legitimidade, ainda que tal signifique,
vi Movimentos, Direitos e Instituições

muitas vezes também, o desafiar de instituições que supostamente


deveriam garantir direitos. Assim se compreende, em segundo lugar,
que é difícil falar em direitos sem falar em movimentos que
historicamente por eles lutaram para os afirmar e que hoje por eles
lutam, em muitos casos, para evitar a sua negação. Além disso,
poderíamos afirmar que não há direitos sem instituições nos quais
eles se sedimentem, que os reconheçam, os regulem ou os afirmem.
Em terceiro lugar, as instituições, enquanto sistemas organizados de
padrões sociais incorporam comportamentos sancionados e
padronizam expectativas. E ao fazerem-no criam condições para uma
melhor definição dos direitos (e dos deveres) e fornecem o “tom” para
que os movimentos regulem as suas ações e reações em função
disso.
Nesse sentido, e reafirmando que se trata de uma proposta
de arrumação nossa, enquanto organizadores e coordenadores,
encontramos neste livro, no campo que poderíamos designar de
movimentos, estudos sobre o precariado, a legitimação de
atividades de trabalho, a requalificação ambiental, a gestão dos
territórios, entre outros. Por outro lado, os estudos que abordam
temas como as transformações do mundo do trabalho em contexto de
austeridade, o trabalho infantil, a violência conjugal etc., podem
situar-se no campo dos direitos (do trabalho, das mulheres, das
crianças etc.) que ora se pretendem afirmar, ora são postos em
causa. Por fim, sobre as instituições encontramos textos que vão
desde um recorte das políticas de instituições sindicais, ao ensino do
direito (enquanto instituição), ao reconhecimento judicial da
maternidade/paternidade, ao significado coercitivo do direito, à
relevância de certas matérias no ordenamento constitucional, ao
enquadramento profissional de certas atividades etc. Uma vez que,
como acima assinalamos, movimentos, direitos e instituições, se
complementam e se articulam, neste livro a ordem pela qual são
apresentados é, pois, indiferente face ao significado que lhes
queremos atribuir.
Além do perfil interdisciplinar da obra, já bem enfatizado
pelos cruzamentos inter-temáticos que decorrem do seu subtítulo,
queremos ainda realçar dois outros aspectos: por um lado, a
cooperação interinstitucional e internacional que está subjacente ao
estudo, ao envolver contributos de investigadores/docentes de
várias instituições de ensino superior, tanto de Portugal quanto do
Brasil, como a Universidade de Coimbra (notadamente via Centro de
Estudos Sociais-CES e Faculdade de Economia-FEUC), a
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: vii

Universidade Federal do Tocantins (UFT), o Centro Universitário


Curitiba (UNICURITIBA), a Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), a Universidade Católica Portuguesa do Porto (UCP), a
Universidade Fernando Pessoa (UFP), o Instituto CRIAP, o Instituto
Superior de Ciências de Saúde do Norte (ISCS-N), a Universidade de
Cruz Alta (UNICRUZ), a Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP, Campi Capital e Baixada Santista), a Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, Campus de
Marília), a University of British Columbia (Canadá), o Centro
Universitário La Salle (UNILASALLE, Campus de Canoas/Brasil), a
Universidade Estadual de Goiás (UEG), a Universidade Federal de
Goiás (UFG), a Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP/PR),
a Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER), a
Faculdade de Jussara (FAJ), a Faculdade Integrada de Goiás (FIG), a
Faculdade Arctempos, assim como das Instituições Central Única dos
Trabalhadores (CUT-Brasil), Núcleo de Estudos sobre Políticas
Sociais, Trabalho e Desigualdades (POSTRADE-Portugal), Advocacia
da União (AGU-Brasil), Centro em Rede de Investigação em
Antropologia (CRIA-Portugal) e Grupo Autônomo de Investigação em
Estudos Pós-Coloniais (GAIEPC-Portugal).
Por outro lado, e este é o segundo aspecto a ser ressaltado,
sendo em parte em decorrência do ponto anterior, exalta-se o
envolvimento de estudantes inscritos em Programas de
Doutoramento do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, e também de outras Faculdades da mesma Universidade
portuguesa, cujos programas de doutoramentos não estão agregados
ao CES (como alguns cursos de Doutorado em Direito e em
Sociologia), tendo-se somado também ao grupo de coautores uma
mestranda da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Tal
envolvimento, que vai alternando com os contributos de
pesquisadores mais seniores, ou que, por vezes, se apoia em textos
de coautoria com eles, permite assim também complementar
sinergias entre curricula mais consolidados e trajetos profissionais
mais jovens que progressivamente se afirmam. Em qualquer dos
casos, os conteúdos dos textos são de responsabilidade dos seus
autores, notadamente quanto à fidelidade às suas fontes de pesquisa.
Tanto quanto possível, procuramos deixar a grafia da língua
portuguesa conforme ainda praticada em ambos os Países, eis que
assim nos vieram os textos nos seus originais.
viii Movimentos, Direitos e Instituições

Também não podemos deixar de agradecer, primeiramente


aos 31 coautores, que nos brindaram com 22 textos inéditos e de
interesse atual; igualmente ao Prof. Dr. Ruy Braga, docente da
Universidade de São Paulo, que em seu Prefácio a esta obra
consigna as lições de um grande especialista da Sociologia,
ressaltando uma das facetas dos movimentos sociais atuais, qual
seja, aquela ligada aos direitos humanos fundamentais sociais,
notadamente os trabalhistas e os sindicais. Nossas homenagens a
esse grande autor e investigador, atualmente dedicado às linhas de
pesquisa “Classes, Conflito e Movimentos Sociais” e “Teoria
Sociológica”, e aos temas específicos “Sociologia do Trabalho” e
“Teoria Crítica”. Ao duplamente coautor Eliseu Raphael Venturi, autor
também da capa desta obra, tendo cedido uma de suas pinturas para
adorná-la, a título gratuito, registramos nossa especial gratidão. Sua
tela, intitulada Emílio, é a própria ideia de movimento, do incessante
movimento que permeia direitos e instituições na
contemporaneidade. Em seu nome homenageamos aos demais
autores e autoras desta obra coletiva. Ainda, ao Bacharel em Direito
pela Universidade Federal do Tocantins e Advogado Luiz Henrique
Ribeiro Vieira, cujo talento de revisor científico-metodológico aflorou
em forma de cuidado e de competência nesta sua primeira
experiência, ao oferecer-se para ajudar sua ex-professora – Gisela
Bester – nesta tarefa que soma na garantia do rigor científico aos
textos da coletânea, ficam igualmente consignados os nossos
agradecimentos, notadamente pela sua imensa generosidade.
Finalmente, convidamos a todos a uma viva, intensa e
profícua leitura!

Coimbra-PORTUGAL e Palmas/TO-BRASIL, maio de 2015.

Os Coordenadores
Gisela Maria Bester
Hermes Augusto Costa
Gloriete Marques Alves Hilário
PREFÁCIO

As transformações do mundo do trabalho ensejadas pelo


processo de globalização capitalista não apenas alteraram
profundamente a morfologia da classe trabalhadora como também
desafiaram as formas de abordá-la em termos científicos. Tanto nos
países de capitalismo avançado quanto nas economias semiperiféricas,
a desconstrução dos grupos de trabalhadores fordistas e a emergência
de coletivos mais jovens, mais femininizados, mais escolarizados e
mais concentrados no setor de serviços têm exigido dos cientistas
sociais esforços mais ou menos permanentes tanto de atualização
metodológica quanto de reconstrução teórica. Aos desafios
politicamente emergentes para os sindicatos somam-se os desafios
metodologicamente emergentes para os sociólogos.
Em grande medida, a Sociologia do Trabalho tem
respondido a esta nova realidade por meio de uma ampliação do
escopo das pesquisas de campo na direção de estudos comparativos
entre diferentes realidades nacionais. Trata-se de um desdobramento
particularmente estimulante para a revitalização das técnicas
etnográficas reflexivas e para os estudos de caso contextualizados.
Por outro lado, o declínio de certos grupos de trabalhadores
industriais associado ao advento de novas configurações trabalhistas
nacionais, além do fortalecimento do movimento sindical em escala
transnacional, tem uma revalorização das técnicas historiográficas de
análise da formação classista e de transformação das dinâmicas da
ação coletiva.
Além das tradicionais relações entre sociologia e história do
trabalho, novas coalizões interdisciplinares foram surgindo tendo por
base necessidades impostas pela regência do próprio objeto. Neste
sentido, a interface com o Direito tem sido uma das mais frutíferas.
Afinal, como pensar o trabalho na contemporâneidade sem
compreendermos que os movimentos, os direitos e as instituições
estão permanentemente se complementando e se rearticulando
x Movimentos, Direitos e Instituições

de maneiras não apenas inevitáveis como, por vezes,


surpreendentes. Sem mencionar que à desconstrução do mundo do
trabalho fordista dos anos 1980 e 1990, combinada com a derrocada
do socialismo burocrático de Estado, seguiu-se uma avassaladora
onda de supressão dos direitos sociais e trabalhistas que impôs aos
trabalhadores uma correlação social de forças totalmente adversa.
Em perspectiva comparativa entre Brasil e Portugal, os
diferentes estudos que compõem esta bela coletânea de
investigações levadas adiante pelo Centro de Estudos Sociais
(CES) da Universidade de Coimbra – que congrega, neste
momento, 12 diferentes Programas de Doutoramento – e por várias
Instituições de Ensino Superior brasileiras, com seus Programas de
Pós-Graduação stricto sensu (Mestrados e Doutorados)
reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), Fundação do Ministério da Educação –
dialogam com estas questões emergentes do trabalho por meio de
uma mirada crítica sobre as formas da ação coletiva e suas relações
com a dinâmica dos direitos pelos quais importa lutar ou defender.
Trata-se de um ponto de partida perfeitamente afinado com a
evolução mais recente dos estudos do trabalho. Afinal, desde
meados da década de 1990 estes estudos têm buscado explorar as
múltiplas relações existentes entre o aprofundamento do processo
de globalização capitalista e o advento de um mercado de trabalho
em escala global que, grosso modo, formou-se por meio da
desregulamentação dos mercados nacionais associada ao
alongamento transnacional das cadeias produtivas. Acompanhando
o aprofundamento deste processo, muitos analistas apontaram
sistematicamente para um enfraquecimento do sindicalismo fordista
apoiado na fração adulta, branca, masculina e nacional da classe
trabalhadora dos países de capitalismo avançado.
A mudança da estrutura industrial dos países do Norte
global para os países do Sul global (especialmente, a China) somada
ao debilitamento da segurança sócio-ocupacional e jurídica
promovido tanto pela retração dos direitos trabalhistas quanto pelo
declínio do apoio de governos liderados por partidos social-
democratas teriam decretado o advento de toda uma era de declínio
do poder sindical em escala global traduzido em queda nas taxas de
sindicalização, na perda de influência política em escala nacional e,
consequentemente, no recuo das dinâmicas dos direitos sociais e
trabalhistas.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: xi

Deslocando o foco das estratégias sindicais balizadas


exclusivamente pelo Estado-nação para as mudanças na ação
coletiva das forças sociais do trabalho tendo em vista processos
emergentes de solidariedade transnacional, os estudos emergentes
do trabalho global concentraram-se na análise da globalização
contra-hegemônica, nas coalizões entre o sindicalismo e os novos
movimentos sociais em escala transnacional, nas forças sociais
alternativas, tais como os trabalhadores informais e os trabalhadores
precarizados, nas estratégias transnacionais do movimento sindical
fordista e na relação entre mobilizações sociais e dinâmicas dos
direitos trabalhistas em diferentes contextos nacionais.
De uma maneira geral, tais estudos compartilham uma
perspectiva mais ou menos comum segundo a qual a velha regulação
fordista não é mais hegemônica e a nova regulação pós-fordista (des-
)construída pela globalização capitalista é, em essência, despótica,
isto é, refratária ao poder sindical. Daí a ênfase nos novos
parâmetros da organização do trabalho e nos novos repertórios de
ação coletiva capazes de esboçar um movimento de resistência à
privatização, à mercantilização e à liberalização do trabalho.
No entanto, e este é um traço marcante destes novos
estudos do trabalho, ao contrário do que ocorreu logo após o sucesso
das manifestações contra o encontro da Organização Mundial do
Comércio (OMC) em Seattle, em 30 de novembro de 1999, quando
alguns estudiosos do trabalho passaram a destacar a arena global,
em detrimento do contexto nacional, como prioritária para apreender
a renovação das dinâmicas da ação coletiva do trabalho, os novos
estudos do trabalho enfatizam a centralidade da relação entre os
contextos global e nacional a fim de compreender as questões
emergentes do trabalho na globalização.
Mesmo reconhecendo que as condições gerais criadas por
este processo a partir dos anos 1980 continuam centrais para a
compreensão das dinâmicas do mundo do trabalho, estes novos
estudos compreendem que a arquitetura geral da solidariedade do
trabalho global depende de como as estratégias nacionais são
mutuamente combinadas. Neste sentido, o foco destes estudos recaiu
sobre as conexões reais - e potenciais - entre diferentes movimentos
de trabalhadores nacionais. E, para tanto, tais estudos desenvolveram
uma ênfase comparativa entre múltiplos contextos nacionais a fim de
explorar a relação desigual e combinada existente entre os ritmos da
(re-)organização das classes trabalhadoras nacionais na globalização
capitalista.
xii Movimentos, Direitos e Instituições

Neste sentido, o aprofundamento da mercantilização do


trabalho, isto é, a transformação da força de trabalho em uma
mercadoria despojada de direitos sociais, joga um papel-chave na
interpretação do atual ciclo de mobilizações das forças sociais do
trabalho. De fato, a mercantilização do trabalho tem se mostrado
tanto uma fonte de precarização da condição proletária como de
estímulo ao surgimento de contramovimentos sociais em escala
nacional e transnacional mobilizados pela dinâmica da defesa e
ampliação dos direitos sociais. E uma agenda de estudos do trabalho
global parece estar se consolidando em torno das relações entre os
avanços da mercantilização do trabalho em escala global e as
diferentes respostas em termos de automobilização dos
trabalhadores.
Na verdade, é possível identificar um decidido investimento
destes estudos na análise dos novos repertórios mobilizados pelas
forças sociais do trabalho no sentido de enfrentar o avanço
transnacional da descontrução das formas tradicionais de
solidariedade fordista e do enfraquecimento do poder sindical. Daí a
importância dos estudos enfeixados neste livro que destacam as
relações entre os movimentos, os direitos e as instituições do
trabalho global. Apoiando-se nestas preocupações, alguns analistas
têm buscado adiantar respostas por meio da análise da recente
experiência da classe trabalhadora brasileira com um foco
investigativo que incide sobre as mudanças estruturais da economia
globalizada. O relativo declínio econômico do Norte global, em
especial, dos Estados Unidos, somado aos ataques aos direitos
sociais e trabalhistas tem estimulado o aparecimento de novas
estratégias transnacionais no movimento sindical e reconfigurado a
relação entre os movimentos e os direitos.
A ascensão econômica e política do Sul global, por sua vez,
teria levado o movimento dos trabalhadores em alguns países como o
Brasil, por exemplo, a alargar suas orientações estratégicas,
ultrapassando as fronteiras nacionais. Além disso, a globalização de
empresas capitalistas baseadas no país acrescentou incentivos
outrora semeados pela longa predominância das corporações
transnacionais, fazendo com que o movimento sindical brasileiro se
tornasse ainda mais aberto às conexões com outros movimentos
sindicais nacionais.
Uma abordagem do movimento dos trabalhadores na
contemporaneidade focada exclusivamente no nível global será
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: xiii

sempre parcial e enganadora. O mesmo pode ser dito a respeito


daqueles que não atribuem importância à escala global na
reconfiguração das forças sociais do trabalho. Ou seja, o potencial
para sinergias positivas criadas pelas diferenças nacionais merece
nossa atenção. Além disso, ao investigarmos a multiplicidade de
caminhos por meio dos quais os movimentos sociais e sindicais
podem se conectar uns com os outros, poderemos incrementar as
teorias sobre a evolução da contestação das forças sociais do
trabalho ao capital globalizado.
Em suma, este livro parte do Brasil como caso exemplar das
dinâmicas emergentes das grandes economias do Sul global e de
Portugal como caso paradigmático das dinâmicas regressivas dos
movimentos trabalhistas do sul da Europa. Assim, os autores buscam
compreender em que medida o avanço da crise econômica
internacional nestes países estimulou a formação de
contramovimentos à mercantilização do trabalho apoiados em novas
interfaces construídas entre os movimentos, os direitos e as
instituições que estruturam o mundo do trabalho. Trata-se de uma
tarefa, a um só tempo, sociologicamente fascinante e politicamente
urgente.

Coimbra, Portugal, 16 de fevereiro de 2015.

Ruy Braga
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (UNICAMP), Professor
Livre Docente do Departamento de Sociologia – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
SUMÁRIO

SEÇÃO 1 – DIREITOS
21
AUSTERIDADE E IDEOLOGIA:
A INSTRUMENTALIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO

Andreia Santos

45
A “MODERNIZAÇÃO” DO SETOR PORTUÁRIO NO BRASIL:
PRECARIZAÇÃO E DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Claudia Mazzei Nogueira


Maria de Fátima Ferreira Queiróz

66
O TRABALHO AINDA É UM DIREITO? IMPACTOS DA AUSTERIDADE
NAS RELAÇÕES LABORAIS EM PORTUGAL

Hermes Augusto Costa

88
A MÁXIMA PROTEÇÃO DO DIREITO SOCIAL INTERNACIONAL À SAÚDE:
DO BRASIL A PORTUGAL, UM EXEMPLO DE APLICAÇÃO DO
CONSTITUCIONALISMO EM VÁRIOS NÍVEIS

Iris Catarina Dias Teixeira

111
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA VIOLÊNCIA CONJUGAL E A RESPOSTA DA
JUSTIÇA

Paula Cristina Cabral


Movimentos, Direitos e Instituições

137
UMA EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:
UM OLHAR SOBRE O MUNDO DO TRABALHO INFANTIL

Sonya Maria Pires Brandão

SEÇÃO 2 – MOVIMENTOS
163
JORNADAS (IN)VISÍVEIS: DEPOIS DA MORTE DO ANJO DA CASA

Carina Jordão

185
O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DO ENSINO DO DIREITO PRODUZIDO PELA
CONEXÃO COM A LITERATURA: NAS PEGADAS DE WARAT E CORTAZAR

Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori


Sergio Urquhart Cademartori

208
HORIZONTES INTERTEMPORAIS DO HUMANISMO JURÍDICO:
UM EXERCÍCIO HERMENÊUTICO AO TRANSHUMANISMO E AO PÓS-
HUMANISMO

Eliseu Raphael Venturi

226
O MOVIMENTO SOCIAL DO PRECARIADO, CARÊNCIA DE FUTURIDADE
E NECROSE DO CAPITALISMO DE BEM-ESTAR SOCIAL EM PORTUGAL

Giovanni Alves
Dora Fonseca

251
COSMOVISÃO HUMANISTA NA CONSTITUTIVIDADE DO HOMO JURIDICUS
CONTEMPORÂNEO: ELEMENTOS DE UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA
HUMANIZANTE

Gisela Maria Bester


Eliseu Raphael Venturi
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal:

282
OS DESAFIOS DA GOVERNAÇÃO URBANA: A PARTICIPAÇÃO
DOS CIDADÃOS NA GESTÃO DOS TERRITÓRIOS

Isabel Ferreira
Claudino Ferreira

312
ESTADO, TERRITÓRIO E PROTESTOS: REQUALIFICAÇÃO AMBIENTAL
E MOVIMENTOS LOCAIS

José Manuel Mendes


Pedro Araújo

336
O NOVO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO
E OS NOVOS SUJEITOS DE DIREITO

Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega


João Vitor Martins Lemes

354
O RESGATE DA ONTOLOGIA: OS LIMITES DA “TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA”
E A NECESSIDADE DE RETOMADA DA ONTOLOGIA SOCIAL
Pablo Almada

SEÇÃO 3 – INSTITUIÇÕES
385
TECNOLOGIAS SOCIAIS NO MODELO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA EM
PORTUGAL: A EMERGÊNCIA DAS INCUBADORAS SOCIAIS

Beatriz Caitana da Silva


Sílvia Ferreira

408
A CADUCIDADE DO DIREITO DE AGIR NAS AÇÕES DE RECONHECIMENTO
JUDICIAL DA MATERNIDADE E/OU PATERNIDADE NO DIREITO PORTUGUÊS

Elisete Sileny Jacinto de Almeida


Movimentos, Direitos e Instituições

433
REFLEXÕES SOBRE A ATIVIDADE MUSICAL EM PORTUGAL: O
ENQUADRAMENTO PROFISSIONAL, A GESTÃO DA PROPRIEDADE
INTELECTUAL E O MERCADO DE TRABALHO

Fábio Luiz Tezini Crocco

456
OS DILEMAS DA CUT NO INÍCIO DO SÉCULO XXI:
RUMO A UMA NOVA INSTITUCIONALIZAÇÃO SINDICAL?

Fernanda Forte de Carvalho

473
O DIREITO COMO NORMA COERCITIVA EM MICHEL FOUCAULT

Gloriete Marques Alves Hilário


Maurício Dias dos Santos

498
“A TERRA RICA”. COLONIALIDADE E PROPAGANDA NO
CINEMA COLONIAL PORTUGUÊS EM ANGOLA

Nuno Porto
Cristina Sá Valentim

527
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA POLÍTICA E DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS

Tiago Anderson Brutti


Seção 1 – Direitos
CAPÍTULO 1

AUSTERIDADE E IDEOLOGIA:
A INSTRUMENTALIZAÇÃO DO DIREITO
DO TRABALHO

1
Andreia Santos

RESUMO
Neste artigo pretende-se ilustrar o modo como a instrumentalização
do Direito do Trabalho se constitui num claro exemplo de uma opção
sociopolítica do económico e financeiro sobre o social,
transformando-o em objecto sociológico privilegiado quanto à
observação da adequação das práticas sociais à lógica neoliberal. O
que está em causa é a concepção de um tipo de sociedade ou ordem
social que assente sobre orientações neoliberais afastam cada vez
mais a realidade económica e financeira da realidade social. A
austeridadeforjada sobre os princípios neoliberais, como momento
específico, traduz-se numa demonstração como o financeiro utiliza o
político para restabelecer uma ordem social na qual a insegurança, a
incerteza e as desigualdades vigoram e, simultaneamente, como
estes elementos são secundários se forem em benefício do bom
funcionamento dos mercados. No caso português, a nova legislação
laboral como produto da austeridade, traduz-se nesta regulação
sociopolítica fazendo dos mercados financeiros os protagonistas mais
importantes das sociedades democráticas.

1
Investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais (CES) e doutoranda do
Programa de Doutoramento em Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e
Sindicalismo, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(FEUC/CES). E-mail: <andreiasant1@hotmail.com>.
22 Movimentos, Direitos e Instituições

Palavras-chave: austeridade; Direito do Trabalho; ideologia; lógica


neoliberal; mercados financeiros.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. IDEOLOGIA E AUSTERIDADE: UM CONTINUUM
NEOLIBERAL; 2. PERCURSO DO DIREITO DO TRABALHO EM
PORTUGAL; 3. IDEOLOGIA E DIREITO DO TRABALHO: O
EXEMPLO DO DESPEDIMENTO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A expressão “direito vivo” (EHRLICH, 1986 [1929]) continua


a ser inspiradora para análise sociológica da relação entre direito-
trabalho-sociedade. Este tríptico analítico constitui o chão em que o
Direito assume um forte potencial heurístico do funcionamento do
político, assumindo-se, por isso, num elemento central na construção
de teorias gerais das sociedades e de suas transformações
(COMMAILLE, 2013, p. 930; SANTOS, 2009).
Tendo presente esta perspectiva, neste artigo toma-se
como contexto a sociedade portuguesa e parte-se da hipótese de que
o Direito do Trabalho sendo fruto da correlação de forças
económicas, políticas e sociais, torna-se num instrumento
fundamental que expressa uma ideologia política e a coloca
efetivamente em prática. Os processos e as dinâmicas políticas e
económicas e a forma como transformam a esfera sociolaboral e a
própria identidade do Direito do Trabalho reflectem claramente uma
opção neoliberal. As reformas laborais seguem as linhas comuns que
se impuseram a partir dos anos 1970 e que depositaram sobre o
Direito do Trabalho o espelho de uma nova ordem social assente nos
ideais do individualismo, da responsabilização individual, da
competitividade e da flexibilidade. Ao tornar prioridade o bem-estar
dos mercados sobre o bem-estar dos indivíduos, a regulação
sociopolítica revela como a esfera social foi moldada por objectivos
que relegam os direitos sociais e económicos e que através de
orientações políticas fazem valer ideais como a competitividade e
crescimento económico, sem tal significar uma melhoria nas
condições de vida dos indivíduos.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 23

Deste modo, privilegia-se aqui a articulação entre o que é a


ideologia neoliberal, a forma como a mesma instrumentaliza o Direito
do Trabalho determinando uma certa ordem social, e como tal se
pode observar tomando como exemplo o austeridade momentum na
sociedade portuguesa. Em primeiro lugar, parte-se do conceito de
ideologia e como a partir do mesmo se estabelece uma continuidade
entre neoliberalismo e austeridade. Em segundo lugar, contextualiza-
se esta discussão no espaço português, evidenciando a evolução do
Direito do Trabalho e como este é particularmente influenciado pelo
contexto sociopolítico, destacando a introdução da nova legislação
laboral. E, por último, analisando uma questão específica relativa aos
critérios de despedimento, demonstra-se a lógica que subjaz à
implementação da nova legislação laboral: a desvalorização do social
face às prioridades económicas e financeiras

1. IDEOLOGIA E AUSTERIDADE: UM CONTINUUM


NEOLIBERAL
Ao utilizar-se o conceito de ideologia torna-se necessário
esclarecer o carácter do seu uso, ou seja, é importante realçar que a
noção de ideologia é produto da sua própria história e o seu carácter
controverso pauta-se pelo contexto do seu uso. John Thompson, autor
que estrutura uma análise da teoria da ideologia, sublinha que o
conceito advém dos chamados “ideólogos” da pós-revolução francesa
adquirindo, desde logo, um carácter negativo dado estes serem
conotados ao estado de desgraça em que se encontrava o país. É este
mesmo sentido mais negativo do conceito que foi preservado por Marx
e Engels, associando o conceito de ideologia a um produto de
consciência da classe dominante estabelecido nas condições materiais
da vida social (THOMPSON, 1984, p. 1). A partir desta concepção de
“falsa consciência”, o termo ideologia foi apropriado por sociólogos,
antropólogos, analistas políticos, estando presente no corpo de
conceitos das ciências sociais, carregando, na sua maioria, o seu
sentido negativo (THOMPSON, 1984, p. 2). Porém, é igualmente
pertinente não esquecer que a introdução do termo por Destutt de
Tracy no final do século XVIII representava uma visão do mundo e um
pensamento filosófico amplo onde se incluíam as várias esferas da vida
social como a cultura e a ciência, funcionando como um conceito
intermediário entre os indivíduos e o mundo (apud BUNNIN; YU, 2004).
Nesta perspectiva, pode definir-se como uma “ciência das ideias” que
permite perceber o modo como se pensa, se fala e se age (DIJK, 1998,
p.1). Trata-se de utilizar o sentido mais positivo de ideologia que
24 Movimentos, Direitos e Instituições

justifica a produção de um quadro interpretativo constituinte de um tipo


de sociedade, dando um significado à vida dos indivíduos e, por isso,
afirmando-se como próprio produto da acção humana. (CAMARGO,
2013, p. 28). Portanto, a noção de ideologia, no sentido que aqui se
pretende dar, não é um conceito unitário e monolítico, sendo pelo
contrário algo multifacetado, complexo, caracterizado por contradições
e ambiguidades, não sendo livre de influências culturais e variações no
curso da História. As ideologias são, pois, instáveis, situadas e
influenciadas por contextos historicamente relevantes. (BILLIG, 1988).
Assim, a relação entre Direito e sociedade surge como
reveladora da importância da noção de ideologia na forma como um
conjunto de crenças que contribuem para justificar e sustentar uma
ordem social, legitimando os modos de ação e as disposições
coerentes com elas (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Tomando a
ideologia como uma construção teórica que permite caracterizar uma
configuração política e correspondentes práticas sociais (HALPIN,
2006), o Direito do Trabalho como indicador sociológico constitui-se
numa peça elementar que traduz opções políticas e ideológicas que
seletivamente são impostas através de normas jurídicas na esfera
laboral. (BRITTO, 2012).
A partir das transformações da década de 1970, momento
a partir do qual os mercados e o ímpeto da flexibilização como ideal
neoliberal começaram a tomar conta da regulação política e
económica das sociedades, as transformações das relações laborais
e da evolução do carácter do Direito do Trabalho denotam claramente
as influências sociais, políticas e económicas tanto ao nível global,
como particularmente ao nível europeu, que permitem clarificar a sua
crescente tendência neoliberal.
A crise económica despoletada pelos choques petrolíferos
de 1973 e 1979 que travou o ritmo de crescimento nos países
industrializados deu argumentos aos que viam no Estado Social e nas
protecções sociais e laborais, obstáculos ao livre fluxo financeiro.
Assistiu-se, portanto, a uma mudança no papel do Estado, tanto na
economia como nas relações laborais. Na Europa, o ano de 1989 foi
marcado pela queda do Muro de Berlim e simbolizou a união entre
capitalismo e democracia, sendo um novo começo no mercado
económico globalizado. Abraçando a flexibilidade como combate ao
elevado desemprego, a tendência a partir de 1990 vai de encontro a
um progressivo relaxamento dos pré-requisitos legais e dos pilares
mais significativos contra o uso incorreto do contrato atípico. A
habilidade das empresas em competir num mercado global assentou
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 25

na “ativação dos desempregados” através da formação, da eficiência


na colocação e no desenvolvimento das suas capacidades, lema das
denominadas Terceiras Vias que viriam a propor ao neoliberalismo
uma hipótese de conciliação com a social-democracia. (HEPPLE;
VENIAZIANI, 2009, p. 31-128).
Em boa verdade, tratou-se de uma política de
enfraquecimento das garantias de proteção laboral, assistindo-se, ao
mesmo tempo, à “restauração” do consentimento individual como
mecanismo de sobreposição ao poder dos sindicatos. A excessiva
flexibilidade possibilitando modificações unilaterais do tempo de
trabalho, ou seja, a possibilidade de fragmentar a continuidade
temporal da actividade e a continuidade jurídica da sua obrigação
expôs o trabalhador ao risco de evitar qualquer protecção laboral e
social. (SUPIOT, 2005). Como resultado, o grande aumento da
precariedade laboral (VICENTE, 2008; ROGOWSKI ED., 2008;
REBELO, 2004) significou igualmente a desvalorização do trabalho e
dos direitos de cidadania associados ao mesmo.
O reflexo social da flexibilidade laboral (não, embora, sem
excepções) conjuntamente com a retracção do Estado Social e com
a prioridade dos mercados sobre os cidadãos, deu origem a
consequências socioeconómicas graves, porém, obscurecidas pela
crise financeira de 2008, que manteve a opção de continuar sobre
os princípios neoliberais. É por isso, que alguns autores evidenciam
que no período de crise o que se manteve de modo quase intacto foi
a ideologia neoliberal. Quer isto dizer, que há o reconhecimento de
uma crise financeira, mas não um questionamento mais profundo
que conduziria a uma crise ideológica (RUTHERFORD; DAVISON,
2012, p. 7). Pode mesmo afirmar-se que o obscurecimento das
questões ideológicas, momentaneamente estabelecidas pela crise
financeira, não aconteceu por acaso, foi sim um resultado político,
dado que nas últimas trinta décadas uma das marcas da hegemonia
neoliberal é a forma como o económico foi retirado da contestação
político-ideológica (MASSEY, 2012, p. 99-100). O modo como o
sector financeiro domina a Economia, através da sua natureza
aparentemente imaterial, leve e não incorporada, sustenta o seu
carácter facilitador da troca pura, do fluxo global e do individualismo
no processo de produção. A ênfase na flexibilidade, na
diferenciação e no movimento ao invés do estático – características
de um quadro capitalista – tornou-se fértil para que os fundamentos
ideológicos da finança especulativa pudessem florescer e apoderar-
se da esfera sociopolítica (MASSEY, 2012, p. 100). Em última
26 Movimentos, Direitos e Instituições

análise cria uma dinâmica de poder marcadamente desequilibrada


entre o mercado e o Estado de um lado, e a sociedade civil do
outro, colocando a “cidadania em perigo”. (SOMERS, 2008, p. 2). A
ideologia neoliberal toma de assalto a cidadania democrática
através da narrativa pública de colocar o económico sobre o social,
demonstrando (como fez no período de crise do Estado-
Providência) as falhas de um governo orientado para políticas
sociais (SOMERS, 2008, p. 37-40) e assim, justificar a expansão do
mercado às diversas esferas da sociedade, seja política, cultural,
social ou civil, as quais outrora foram isoladas do seu poder
2
(SOMERS, 2008, p. 3 ). Daí que a esfera laboral simbolize
igualmente uma ordem social construída à luz do neoliberalismo,
veja-se: ao invés de um indivíduo como cidadão e detentor de uma
moral baseada no reconhecimento humano, tem-se agora um
indivíduo como medido de capital humano cujo valor está
condicionado ao seu valor no mercado; de uma sociedade civil
como espaço ontológico de identidade individual, está-se perante a
“morte do social” 3 e seu colapso num auxiliar de mercado na forma
de capital social; de um Estado de Direito Democrático, valorizam-
se as “leis” dos mercados; da governação baseada na assunção dos
riscos sociais, instituiu-se a “responsabilidade pessoal” pelos riscos
inevitáveis do capitalismo moderno. (SOMERS, 2008, p. 91).
Neste sentido, austeridade configura-se, antes de mais, não
como um “mal necessário” mas sim como um produto ideológico
(MASSEY, 2012, p. 100) na senda de resgatar e manter os princípios
neoliberais. Esta constatação é visível no seguimento da crise de 20084
, que na Europa teve como consequência imediata o retorno aos
lugares comuns das reformas sociais e laborais dos períodos
anteriores, expressas nas recomendações do Fundo Monetário

2
A este mecanismo de imposição de uma narrativa neoliberal sem dar lugar a
qualquer outro entendimento alternativo da realidade, a autora dá o nome de
“narrativas de conversão”. (SOMERS, 2008, p. 2-3).
3
A este propósito consultar Alain Touraine em Depois da Crise (2010), onde o
autor, acerca da crise que se desenvolveu a partir de 2008, perspectiva “o fim do
social”, expressão que significa a separação entre o sistema económico, sobre o
qual já ninguém pode pretender exercer um controlo real, e a vida cultural e
política, que põe em jogo os princípios de liberdade e de justiça mais do que as
relações de força. (2010, p. 126-127).
4
O ano de 2008 marca simbolicamente o início da crise financeira e a estruturação
de um novo período nas relações laborais e, por conseguinte, no Direito do
Trabalho. A falência do grupo Lehman Brothers, o quarto maior banco de negócios
dos Estados Unidos, simboliza o colapso do sistema financeiro mundial, dando
origem a uma crise generalizada, atingindo, por isso, também, a Europa.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 27

Internacional (FMI), do Banco Mundial, e nas orientações de resposta à


crise plasmadas na revisão da estratégia de Lisboa com o EU20205,
substituto da Estratégia de Lisboa. A redução dos custos salariais, a
contenção na despesa pública com a proteção social e a insistência na
adaptabilidade como fator de competitividade, evidencia que no
domínio social os direitos laborais e os mecanismos de proteção
continuam a ser perspetivados na lógica herdada do período pré-crise.
Por esta mesma razão, Alain Supiot afirma que a crise foi apenas um
sintoma de um problema muito mais profundo, em última análise, uma
crise no Direito e nas instituições. (SUPIOT, 2010, p. 151).
É neste período marcado pela recuperação dos défices
financeiros dos países em crise, nomeadamente a Irlanda, seguida da
Grécia e depois Portugal, os mesmos que pedem ajuda financeira ao
FMI, que surge o conceito de austeridade. Mark Blyth, autor de
Austerity: the histories of a dangerous idea (2013) define austeridade
como:

uma forma voluntária de deflação na qual a economia se ajusta através


da redução dos salários, preços e nas despesas públicas de modo a
restaurar a competitividade, a qual é (supostamente) pretendida ao
cortar nas despesas do estado, na dívida e nos deficits. Ao fazê-lo, crê-
se que se está a inspirar “confiança para os negócios” dado que o
governo não estará a “gritar” pelo investimento dos mercados
absorvendo todo o capital disponível através da emissão da dívida,
nem aumentando a mesma. (BLYTH, 2013, p. 2).

De um modo geral, as respostas políticas produziram


regimes de austeridade caracterizados por medidas como cortes no
Estado Social, reduções das pensões, congelamento do salário
mínimo e nos aumentos salariais, e despedimentos no sector público.
Deste modo, a austeridade vem no auxílio ao neoliberalismo, sendo
mesmo apontada como um conceito que mascara a verdadeira raiz
da crise, dado que transforma uma crise financeira com origem nas
dívidas dos bancos em dívidas dos Estados, no sentido de salvar o
sistema financeiro da ruína (BLYTH, 2013). Trata-se uma pretensão
política de atribuir a culpa aos Estados de modo a que aqueles que
provocaram o fracasso não tenham que pagar por ele, pelo que a
austeridade não é somente o preço de salvar os bancos, é o preço
que os bancos pretendem que outras pessoas paguem por eles
(BLYTH, 2013, p. 7). Assim, face às políticas de austeridade, o
consenso é que os Estados vão continuar a precisar de

5
Para maiores explicações a respeito, conferir em: <http://ec.europa.eu/eu2020/>.
28 Movimentos, Direitos e Instituições

financiamento, logo os mercados financeiros vão mantê-los sob


vigilância, mesmo depois de alguma estabilização.
O grande desafio assenta na constatação clara de que o
estado de austeridade introduz na teoria democrática um outro
elemento fundamental no seu funcionamento: para além das
pessoas, existem também agora os mercados e as suas demandas
específicas quanto às políticas públicas (SCHAFER; STREECK,
2013, p. 19). Assim, segundo este modo de acção, os governantes
votam a favor dos pacotes de austeridade, as populações votam
contra, tornando visível a tensão estrutural entre um projecto europeu
apresentado e gerido de cima pelas elites políticas e económicas e a
resistência de baixo, que são, portanto, os cidadãos (BECK, 2013, p.
21). No fundo, a grande questão que se encontra na raiz da
austeridade é “a desconexão entre o mundo económico e financeiro e
o mundo social, evidenciando que os conselhos dos economistas que
dominam o debate baseiam-se num ‘analfabetismo’ político-social”.
(MUNCHAU apud BECK, 2013, p. 28).
Como diz Claus Offe, está-se num momento singular no
qual está ausente uma teoria de justificação normativa da realidade
actual, em que os recursos económicos determinam as tomadas de
decisão nos processos políticos, enquanto os donos dos próprios
recursos e os resultados distributivos do mercado, não são
suficientemente constrangidos por direitos sociais e intervenções
políticas. Pelo contrário, estes últimos são colocados à disposição
dos “imperativos económicos” (OFFE, 2013, p. 212).
Não surpreendeu, por isso, que instituições internacionais
como o Fundo Internacional Monetário (FMI) e a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) tenham apelado
para o enfraquecimento da legislação laboral mais protetora e para a
descentralização da negociação coletiva, de modo a facilitar a
implementação de um mercado de trabalho mais flexível,
principalmente, quanto ao salário (SERRANO et al., 2011, p. xxiii;
OECD, 2011; 2012; VERDUGO et al., 2012). Na Europa, treze dos
dezassete Países da chamada Zona Euro tomaram, novamente, a
flexibilidade como principal motor nas reformas do mercado de
trabalho, muitas vezes na ótica de facilitar os despedimentos (ILO,
2012, p. 13), corroborando que tanto em Portugal, como noutros
países em dificuldades financeiras, o objetivo centrou-se na
flexibilidade e na redução dos custos associados ao trabalho
(TAJGMAN et al., 2011; CLAUWAERT; SCHOMANN, 2012; ILO,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 29

2012). Aliás, sobre o impacto da crise nas relações laborais na


Europa, a grande conclusão que se retira é a de que as reformas
laborais ao nível nacional tendem a desregular a legislação laboral já
flexibilizada, representando na maioria dos casos um retrocesso
quanto à protecção dos trabalhadores. (CLAUWAERT; SCHÖMANN,
2012, p. 16).
Veja-se então, a situação específica de Portugal neste
cenário geral.

2. PERCURSO DO DIREITO DO TRABALHO EM


PORTUGAL

Ao traçar-se o percurso do Direito do Trabalho português


após o 25 de Abril, e tendo em consideração as tendências globais
que acima se assinalaram, é importante realçar a influência do
contexto sociopolítico histórico de Portugal. O processo de transição
democrático marcado por vários factores externos como o choque
petrolífero e crise económica, a redução da capacidade hegemónica
americana e soviética nos seus próprios espaços dando origem à
opção terceiro-mundista e o fortalecimento político da então CEE
(Comunidade Económico Europeia) foram determinantes na sua
estruturação económica, política e social (NUNES, 2003, p. 115).
Este é um ponto importante, dado que evidencia a descoincidência
entre as tendências globais e a situação específica de Portugal,
influenciando significativamente o modo como se desenvolveu a
esfera sociolaboral. A problemática da law in books e law in action foi
notória na área do Direito do Trabalho, a qual ficou marcada por uma
descoincidência articulada entre as relações de produção capitalista e
as relações de reprodução social, ou seja, das relações entre o
capital e o trabalho na esfera da produção em confronto com as
relações sociais que presidem aos modelos e às práticas dominantes
de consumo (SANTOS, 1992, p. 109). Deste modo, o facto da
estabilidade e segurança do emprego associadas à relação salarial
fordista terem chegado tarde, quando ao mesmo tempo esta
começava a ser colocada em causa nos países capitalistas
desenvolvidos, foi decisivo na forma como Portugal se integrou,
posteriormente, no movimento mundial de heterogeneização nos
modos de utilização da força de trabalho. Produzida fora do contexto
social abrangente e desligada de um capitalismo desenvolvido que
lhe servisse de suporte económico, a regulação de trabalho ficou, por
isso, à mercê das alterações das condições políticas (SANTOS, 1992,
30 Movimentos, Direitos e Instituições

p. 175-176). É este desfasamento que se vai repercutir na evolução


da legislação laboral, e que de uma forma ou de outra, se assume
aqui, se faz sentir até aos dias de hoje.
Seguindo a ótica da produção do Direito, a qual é
reveladora das constelações de actores e das relações de fora que
estruturam uma sociedade permitindo uma reflexão mais geral sobre
a própria situação social de um País (GUIBENTIF, 2007, p. 134;
6
140) , numa breve periodização segue-se a análise de Maria do
Rosário Palma Ramalho na qual podem identificar-se quatro grandes
momentos na transformação do Direito do Trabalho em Portugal. A
autora distingue quatro grandes fases: a fase da consolidação
correspondente à 1ª República; a fase da publicização
correspondente à época do corporativismo; a fase subsequente à
alteração jurídico-constitucional de Abril de 1974; e depois a fase
correspondente à integração de Portugal nas Comunidades
Europeias a partir de 1985 (RAMALHO, 2009, p. 80).
De modo muito sucinto, e tomando como ponto de partida
esta última fase, se a circunscreve-se entre 1985-1995, corresponde
à tomada de posse do primeiro governo de Cavaco Silva, terminando
em 1995 no momento da sua derrota eleitoral. Tal como refere Maria
do Rosário Ramalho, um pouco antes da entrada de Portugal nas
Comunidades Europeias em 1986, o Direito do Trabalho entrou numa
fase marcada por três traços: a estabilidade dos regimes jurídicos da
área regulativa coletiva; a preocupação do reforço da proteção dos
trabalhadores em certas matérias; e algumas medidas de
abrandamento da tendência garantística anterior no regime do

6
Para além desta finalidade, segundo Pierre Guibentif, a produção do Direito,
mostra, ainda, um momento no processo de formação de novas normas nas
sociedades tornando pertinente averiguar quais as representações das diversas
categorias sociais face às questões às quais as novas normas dizem respeito;
pode contribuir para a reconstituição empírica do fenómeno da positividade do
Direito, no sentido de verificar como se conseguiu efectivar novas normas pelo
meio de procedimentos jurídicos; e, no próprio campo da Sociologia do Direito, a
análise da produção de uma lei pode proporcionar informações pertinentes para
melhor perceber como mais tarde uma lei é posta em prática (GUIBENTIF, 2007, p.
134). Neste tipo de investigação podem identificar-se quatro passos de trabalho
distintos de trabalho: análise do texto legal; análise do processo no aparelho de
produção do Direito; análise do processo societal e abordagem documental; e por
último, a realização de entrevistas. Pode, depois, na interpretação global de um
processo de produção do Direito aplicar-se um modelo interpretativo da realidade.
Constituindo-se numa análise bastante complexa, sobre a qual aqui apenas se
apontam os elementos principais, de um modo geral, a sua análise pode revelar
muito das representações que se tem de um assunto em determinada altura, numa
determinada sociedade. (GUIBENTIF, 2007, p. 134-140).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 31

contrato de trabalho (RAMALHO, 2009, p. 88). Certo é que


beneficiando de um conjunto de fatores exógenos favoráveis como a
descida das taxas de juro, do preço do petróleo e da baixa do dólar
que permitiu a internacionalização de algumas das empresas e
grupos económicos nacionais, a adesão à Comunidade Europeia deu
origem ao nível legal a uma clara liberalização e flexibilização, reflexo
de uma política económica, ela própria liberalizante (CORREIA, 2003,
p. 32). A integração europeia exigiu um esforço de harmonização de
políticas monetárias e fiscais, bem como de segurança e defesa, o
que conduziu a profundas transformações na organização e na
cultura política das administrações públicas nacionais, e que em
Portugal se reflectiu em reformas económicas (fiscal e financeira), em
mudanças nas relações laborais e nas revisões constitucionais
(pactuadas com o Partido Socialista) no sentido de abrir caminho às
privatizações e ao Tratado de Maastricht. (NUNES, 2003, p. 116).
A partir de 1995 até 2002, com o fim do governo de Cavaco
Silva de pendor neoliberal, seguiu-se o governo socialista liderado por
António Guterres, caracterizado, desde logo, pela implementação de
uma estratégia na qual os projetos de reforma passaram a necessitar
de um certo consenso entre os parceiros sociais (CORREIA, 2003, p.
33). Em termos gerais, podendo assumir-se que se tratou de uma
fase marcadamente mais social e menos economicista, o Direito do
Trabalho nacional demonstrou preocupação no reforço da tutela dos
trabalhadores em alguns aspetos. Mesmo quanto às tendências de
flexibilização, em paralelo foram criadas medidas de rigidificação do
regime laboral noutras matérias (como a contratação a termo e a
cessação do contrato). (RAMALHO, 2009, p. 92).
Foi, portanto, a partir de 2002 na sequência das legislativas
que deram a vitória a Durão Barroso, que a conseguinte reforma
legislativa no sistema juslaboral iria operar no Direito do Trabalho a
sua fase de maior transformação com a publicação do Código do
Trabalho em 2003. O novo governo adoptou como estratégia
governamental o rigor nas despesas públicas, os cortes orçamentais
e a redução do défice externo. Neste sentido, o Código do Trabalho
de 2003 teve como motor fundamental a adaptação do Direito do
Trabalho à economia moderna e às novas formas de organização das
empresas, em busca do aumento da produtividade e da
competitividade. (RAMALHO, 2009, p. 99). Em termos de relações
laborais, a negociação sobre a aprovação do novo Código do
Trabalho (2003) obteve a reprovação unânime por parte de todos os
32 Movimentos, Direitos e Instituições

parceiros sociais, particularmente das confederações sindicais.


(CORREIA, 2003, p. 34).
No ano de 2005, com a dissolução da Assembleia da
República, que colmatou com a vitória de José Sócrates assumindo a
liderança do governo, deram-se, novamente, alterações,
desencadeando, simultaneamente, uma revisão do Código de 2003.
Esta mesma revisão foi resultado de um trabalho promovido pelo
Governo que se saldou em dois estudos essenciais: o Livro Verde
sobre as Relações Laborais de 2006, que procurou fazer o
diagnóstico da aplicação prática dos regimes do Código de 2003; e o
Livro Branco das Relações Laborais de 2007, elaborado por uma
comissão e que apresentou diversas propostas de revisão do Código.
(RAMALHO, 2009, p. 109). Muito sucintamente, do Livro Verde das
Relações laborais (2006), subjaz a ideia de aumentar a
competitividade através da adaptabilidade das empresas,
flexibilizando, por isso, a legislação laboral.
Neste sentido, e embora seja formalmente apresentado
como uma revisão do Código de Trabalho de 2003, o conjunto de
normas aprovadas pela Lei N. 7/2009 de 12 de Fevereiro,
corresponde substancialmente a um novo código do Trabalho,
sobretudo, por algumas opções sistemáticas que fez, reveladoras de
uma nova orientação na organização das relações laborais.
(RAMALHO, 2009, p. 109). Com o Código de Trabalho de 2009, de
um modo geral, despedir torna-se mais fácil, há uma maior
flexibilidade quanto aos horários de trabalho, e mesmo do exercício
de funções do trabalhador, e a negociação coletiva sai enfraquecida.
É já com estes sintomas, que com a crise financeira
declarada em 2008, o ambiente político, económico e social sofre
novas transformações, em particular, devido ao peso de novos atores
no panorama nacional. O intenso debate político e económico de
onde resultam as mudanças na esfera sociolaboral dá corpo a um
novo paradigma de regulação política, económica e social – a
austeridade. O contexto socioeconómico ficou marcado por debates e
tensões políticas que tiveram subjacentes à criação dos Programas
de Estabilidade e Crescimento (PEC’s), e posterior implementação
dos Memorandos da Troika (e sucessivas atualizações), às agendas
políticas e debates no parlamento etc.
Com a demissão de José Sócrates e com a tomada do
governo pelo actual primeiro-ministro Pedro Passos Coelho em
Junho, no seguimento da implementação do Memorando de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 33

Entendimento aprovado pelo PSD e pelo CDS-PP, Portugal passou a


integrar oficialmente a lista dos países que pediram o resgate
financeiro. É importante realçar a forma não democrática como o
memorando foi aprovado, uma vez que ao contrário do que sucedeu
com os resgates financeiros da Grécia e da Irlanda, em Portugal foi
subscrito entre o governo português e os credores internacionais,
nomeadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE) – a designada
troika – não sendo sequer debatido e aprovado no Parlamento
Português. (CLAUWAERT; SCHOMANN, 2012, p. 14).
O impacto desta conjuntura sobre as relações laborais deu
origem a um Direito que segue os padrões do atual capitalismo
financeiro como um modelo forçoso de organização das relações,
não apenas económicas, mas em geral das relações humanas
(HESPANHA apud FERREIRA, 2012, p. 75). Este cenário, sob a
designada “sociedade de austeridade” reflecte uma forma de
produção do poder e do Direito, tendo por fonte a combinação
estratégica entre atores governamentais e atores não
governamentais com o objetivo de implementar, ou mesmo
institucionalizar, o modelo de austeridade utilitarista. Trata-se de
uma reconfiguração do poder dos eleitos e dos não eleitos7, assente
na combinação entre o poder do governo e o poder da Troika, tendo
por base a legitimidade do estado de exceção 8 (FERREIRA, 2012,
p. 67). O diagnóstico de António Casimiro Ferreira é bastante
pertinente, dado que é entre as imposições da Troika, mas, também,
as imposições de uma agenda política de feição neoliberal que as
medidas são implementadas. Assim, na esfera laboral assiste-se a
uma rutura paradigmática com os pressupostos do Direito do
Trabalho, eliminando o conflito enquanto elemento dinâmico das
relações laborais e a proteção do trabalhador enquanto condição de
liberdade. (FERREIRA, 2012, p. 76).

7
A este propósito, nas democracias modernas, como evidencia a análise de Frank
Vibert (2007, p. 1), os organismos não eleitos tomam muitas das decisões que
afectam a vida das pessoas, solucionando conflitos de interesses fracturantes da
sociedade, resolvendo disputas sobre a alocação de recursos, efectuando,
inclusivamente, julgamentos éticos relativos a áreas políticas e culturalmente
sensíveis da sociedade. O mundo dos não eleitos é muito variado, inclui
organizações financeiras internacionais, bancos centrais, agências de rating,
agências de regulação etc.
8
A propósito do conceito de estado de excepção consultar Giorgio Agamben (2010),
autor que elabora uma releitura do conceito a partir dos trabalhos de Carl Schmitt e
de Walter Benjamin.
34 Movimentos, Direitos e Instituições

Como resultado deste contexto, no dia 1 de Agosto de 2012


entra em vigor a terceira alteração ao Código do Trabalho de 2009,
operada pela Lei n. 23/2012 de 25 de Junho. Entre as medidas que
entraram em vigor com esta Lei contam-se: o banco de horas, que
permite às empresas poupar nas horas extraordinárias, solicitando ao
trabalhador que aumente o período efectivo de trabalho diário quando
necessário, o que pode ser compensado com horas livres ou com um
pagamento em dinheiro (de valor inferior às horas extraordinárias);
corte para metade no valor pago pelas horas extraordinárias, a
compensação por horas extraordinárias vai diminuir, passando a ser
de 25% na primeira hora de dia útil (contra os atuais 50%), 37,5% nas
seguintes (contra os atuais 70%) e de 50% em dia de descanso
semanal ou em feriado (contra os atuais 100%); o trabalho
extraordinário deixa de dar direito a descanso compensatório, pois o
Governo elimina tal descanso que estava associado às horas
extraordinárias (e que correspondia a 25% do tempo de trabalho
prestado). Esta norma é imperativa sobre contratos individuais e
convenções colectivas durante dois anos. Depois, a compensação
que estiver definida nestes contratos cai para metade, a não ser que
as ditas normas tenham, entretanto sido alteradas; redução de quatro
feriados, o de Corpo de Deus (feriado móvel), o 5 de Outubro, o 1 de
Novembro e o 1 de Dezembro (esta medida só se aplica em 2013);
encerramento das empresas nos casos de “pontes”, quer isto dizer
que as empresas poderão encerrar nos dias de ponte por decisão do
empregador e descontar os dias nas férias. Em caso de possibilidade
de ocorrência de pontes (encerramento da empresa total ou parcial);
eliminação da majoração entre 1 e 3 dias de férias, ou seja, na maior
parte dos casos, os portugueses deixarão de usufruir dos 25 dias de
férias anuais e passam a gozar apenas 22; folgas, o pagamento de
horas extraordinárias prevista em contratos coletivos de trabalho ou
outros mecanismos deixa de se realizado; facilitação dos
despedimentos e indemnizações mais baratas para as empresas,
contam-se 20 dias por cada ano de trabalho e a remuneração que
serve de base ao cálculo não pode superar 20 salários mínimos; ao
que acresce quanto ao despedimento o facto de o empregador poder
avançar com despedimentos por extinção do posto de trabalho,
sendo igualmente possível avançar para o despedimento por
inadaptação sem que ocorram mudanças no posto de trabalho, pelo
que passa a ser aplicado quando haja uma modificação substancial
da prestação de trabalho que se traduza, por exemplo, na “redução
continuada de produtividade ou de qualidade”. Já no caso dos cargos
de “complexidade técnica” ou de direção, este despedimento poderá
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 35

passar a ter lugar pelo mero incumprimento de objetivos; e ainda,


quanto à redução do período normal de trabalho, foi introduzido um
conjunto de alterações que agilizam e facilitam o recurso à redução
do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho
por motivo de crise empresarial (lay-off).
Posto isto, o processo de individualização das relações
laborais, o enfraquecimento da negociação colectiva e a
desburocratização dos processos laborais que facilitam o
despedimento contribuem para afirmação de um carácter cada vez
menos “protegido” e descoletivizado das relações laborais, sendo a
nova legislação laboral o seu reflexo. Num artigo onde analisa a
reforma da legislação laboral, João Leal Amado refere que o Direito
do Trabalho
está cada vez menos centrado no trabalho e na pessoa de quem o presta
e cada vez mais na empresa e nos custos que esta tem de suportar […].
Um dia revogamos esse arcaísmo ideológico por um genuíno e puro
Código do Mercado Laboral, um corpo normativo que regule, em moldes
de suma eficiência, o processo de aquisição, utilização e disposição da
mercadoria força de trabalho […] esquecendo, porém, que esta é uma
mercadoria “fictícia” indissociável da pessoa do seu detentor. (AMADO,
2012, p. 308-209, grifos do autor).

Contudo, no âmbito do pedido de fiscalização sucessiva


apresentado ao Tribunal Constitucional sobre estas mesmas alterações
foram chumbadas algumas das normas previstas relacionadas com a
extinção do posto de trabalho, com o despedimento por inadaptação e
com a sobreposição da lei em relação aos contratos coletivos no que
respeita ao descanso compensatório e à majoração das férias9. Destas
alterações, destacando a questão do despedimento, o governo veio
propor cinco critérios para o despedimento por extinção do posto de
trabalho. A partir de uma breve exposição destes critérios, denota-se o
carácter neoliberal que em nome da competitividade e produtividade se
alheia das consequências socioeconómicas na vida dos indivíduos.

3. IDEOLOGIA E DIREITO DO TRABALHO: O


EXEMPLO DO DESPEDIMENTO
Seguindo as linhas de flexibilização neoliberal, o mundo do
trabalho no cenário de crise e austeridade tornou ainda mais visível a

9
Para maiores informações a respeito veja-se: Tribunal Constitucional. Acórdão n.
602/2013 (retificado pelo Acórdão n. 635/2013). Disponível em: <http://www.tribunal
constitucional.pt/tc/acordaos/20130602.html>. Acesso em: 30 out. 2013.
36 Movimentos, Direitos e Instituições

desregulação na esfera laboral e a perda de direitos associados ao


trabalho. Em Portugal a legislação laboral foi de encontro às
necessidades de competitividade e crescimento económico
preconizadas pela troika, encontrando grande concordância com o
governo. Facto corroborado em Fevereiro de 2012 quando o primeiro-
ministro na discussão política da sessão legislativa vincou a sua
identificação com a linha do memorando, considerando que o
programa eleitoral apresentado pelo PSD no verão de 2011 e o
Programa do Governo não têm uma diferença muito grande com
aquilo que veio a ser o acordo celebrado com a Troika, concluindo
que: “Há algum grau de identificação importante entre a opinião da
União Europeia e do Fundo Monetário Internacional e a nossa
convicção do que é preciso fazer”. (JORNAL I, 2012, on line).
Mais recentemente, no rescaldo da 10ª avaliação da troika a
Portugal, a subdiretora-geral do FMI e presidente em exercício do
conselho, voltou a frisar que “as reformas estruturais são a chave
para elevar o potencial de crescimento da economia portuguesa e
ainda é preciso aumentar a concorrência no mercado de produtos e a
flexibilidade no mercado de trabalho” (FERREIRA, 2014, on line),
perspectiva que encontra grande aceitação por parte da CIP
(Confederação Empresarial Portuguesa), que não somente
concordou com o FMI, como para além de mais flexibilidade laboral,
defende também uma redução dos salários e a alteração da
legislação quanto aos contratos colectivos de trabalho e dos custos
de trabalho extraordinário. (FERREIRA, 2014, on line). Em termos
gerais, há um entendimento consensual que para as empresas
subsistirem, a flexibilidade - principalmente salarial - é imprescindível.
Os ideais neoliberais persistem e lideram as máximas que regulam os
mercados de trabalho.
Neste sentido, e em consenso com uma ideologia
neoliberal, a terceira alteração ao Código do Trabalho de 2009,
operada pela Lei 23/12 de 25 de Junho, tem consequências diretas
para os trabalhadores. Jorge Leite evidencia o empobrecimento
material de redução dos rendimentos obtidos com a mesma
quantidade e qualidade do trabalho dependente, como também o
sentido de desconsideração da pessoa do trabalhador objetivado
[…] numa série crescente de disposições urdidas pelo legislador para
um conjunto de melindrosas situações de maior exposição das suas
fragilidades, parecendo abandonado pela lei à “cobiça do adversário”
de ocasião precisamente quando mais necessidade teria de protecção
[…] com as cláusulas que alguns civilistas designariam como
“amordaçantes ou opressivas”. (LEITE, 2013, p. 6).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 37

Pegando no exemplo sobre o despedimento, o governo no


seguimento do já referido chumbo por parte do Tribunal
Constitucional, aprovou uma proposta de lei que procede a alterações
ao Código do Trabalho no que diz respeito à cessação do contrato
por extinção do posto de trabalho ou por inadaptação, sem, no
entanto, obter acordo entre os parceiros sociais. A Proposta de Lei n.
207/XII propõe alterações aos critérios para o despedimento por
extinção de posto de trabalho pela seguinte ordem de critérios:

a) Pior avaliação de desempenho, com parâmetros previamente


conhecidos pelo trabalhador; b) Menores habilitações académicas e
profissionais; c) Maior onerosidade pela manutenção do vínculo laboral
do trabalhador para a empresa; d) Menor experiência na função; e)
Menor antiguidade na empresa.

A este propósito, Glória Rebelo (2014) evidencia que a


decisão merece uma reflexão pelas suas consequências não somente
no plano jurídico como também social. Com os novos critérios de
“prioridade” do governo, o critério da avaliação de desempenho deixa
em aberto a definição de um sistema de avaliação de desempenho
transparente, deixando a sua determinaçãoao empregador, o que pode
dar origem a “propício a abusos e iniquidades”, como refere Fausto
Leite (2014). Este último, no que refere ao critério das habilitações,
afirma ainda que “além de arbitrário, será mais um factor de
discriminação dos trabalhadores mais antigos que, por razões
económicas, foram obrigados a iniciar a sua actividade laboral em
detrimento da escolaridade” (LEITE, 2014, on line). Numa perspectiva
semelhante, Glória Rebelo diz ser necessário aferir

[…] se se privilegiam mais as habilitações académicas ou as


profissionais, uma vez que pode o trabalhador possuir relevante
experiência profissional e menos habilitações académicas do que outro
trabalhador mais jovem mas muito menos experiente, interessando,
pois, que estes critérios principais não sejam conceitos indeterminados
e vagos (deixando a sua escolha na disponibilidade do empregador).
[…]. (REBELO, 2014, on line).

No que diz respeito ao critério da onerosidade do vínculo


laboral do trabalhador, a autora acrescenta que não ficando o
empregador obrigado a seguir prioritariamente os critérios de
antiguidade “estima-se que muitas empresas optem por fazer cessar
contratos de trabalho com os trabalhadores mais antigos e mais bem
remunerados [...], e por contratar trabalhadores jovens, mas
remunerando-os com salários muito mais baixos”. (REBELO, 2014,
38 Movimentos, Direitos e Instituições

on line). Em suma, o que fica patente é a liberdade concedida ao


empregador na determinação dos despedimentos segundo a
conveniência da empresa e a vulnerabilização dos trabalhadores
mais velhos no mercado de trabalho. Pode afirmar-se que há uma
opção deliberada em dar mais liberdade às empresas e menos
alternativas aos trabalhadores. Contudo, o que fica obscurecido na
imposição destas medidas é o impacto social das mesmas.
Novamente, o económico e financeiro sobrepõe-se ao social
demarcando a lógica neoliberal. O Direito do Trabalho perde, assim,
progressivamente, o seu carácter protector face às exigências
económicas e políticas que se impõem, reflectindo ele próprio as
opções sociopolíticas que se afirmam em tempo de austeridade.
É neste curso flexibilizante dos direitos laborais que se
deixa adivinhar os seus impactos negativos sobre os trabalhadores,
como a insegurança, a vulnerabilidade e o medo. Na esfera laboral,
um estudo da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde
Ocupacional (APPSO) alertou para as situações de stress e de
esgotamento e o seu aumento exponencial entre 2008 e 2013, com
83% dos trabalhadores que participaram no inquérito a dizer-se
esgotados e 78% a admitir que tencione deixar o emprego no espaço
de cinco anos. Quer isto dizer que em média, oito em cada dez
portugueses estão exaustos e querem mudar de emprego. A fadiga
associada à sobrecarga e consequente perda de recompensas é uma
das explicações dadas (JORNAL PÚBLICO, 2014). Só no último ano,
os trabalhadores perderam, em média, 2,3% do salário efectivo e
deram à empresa uma semana e meia de trabalho a mais, sem
qualquer retribuição adicional. Pelo seu turno, as empresas viram os
seus rendimentos aumentar entre os 2100 e os 2500 milhões de
euros, por via da redução dos custos com os trabalhadores e do
aumento dos dias de produção. Estes dados foram apurados pelo
relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas, no qual é
analisado o balanço das alterações ao Código do Trabalho , cujo
resultado, de uma forma geral, é “uma promoção do trabalho
suplementar, desincentivadora da criação de emprego, e uma
degradação da conciliação do trabalho com a vida familiar, única
forma de promover a prazo uma natalidade sustentável e uma
estabilidade da Segurança Social”, como diz Hermes Costa na
sequência da apresentação do relatório. (MARTINS, 2013).
Por estas razões, segundo a organização não
governamental (ONG) Oxfam num relatório intutilado A cautionary
tale: the true cost of austerity and inequality in Europe (2013),
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 39

Portugal está indicado como um dos países mais desiguais do mundo


se a política de austeridade prosseguir. A organização entende que o
modelo europeu “está directamente colocado em questão por
políticas de austeridade mal concebidas” e se for mantida pelos
dirigentes políticos, há o risco de 25 milhões de europeus caírem
numa situação de pobreza até 2025, para além dos 120 milhões que
viviam na pobreza em 2011, incluindo pessoas com emprego (LUSA,
2013). Especificamente quanto à realidade nacional, segundo dados
recentes do INE através do Inquérito às Condições de Vida e
Rendimento (EU-SILC) realizado em 2013 sobre rendimentos do ano
anterior, indica que 18,7% das pessoas estavam em risco de pobreza
em 2012, mais 0,8% do que em 2011 (17,9%). (INE, 2014).
As alterações à legislação laboral comprovam que a
austeridade parece legitimar a pobreza, as desigualdades sociais e a
precariedade, sem que isso importe face ao resgate do sistema
financeiro. Afinal, o importante é que “a vida das pessoas não está
melhor mas o país está muito melhor” (JN LIVE, 2014, on line). Esta
afirmação do líder da bancada do PSD deixa claro quais as
prioridades em tempo de crise, e não são as pessoas.

CONCLUSÃO

Neste artigo pretendeu-se evidenciar três questões


essenciais. A primeira é a de que o neoliberalismo impõe uma
realidade que há muito vem moldando a esfera sociopolítica no
sentido de manter o equilíbrio dos mercados. O que acontece, agora,
é que o seu aprofundamento veio tornar clara a dissociação entre a
esfera económica e financeira e a esfera social, dando protagonismo
à esfera política como mensageira da prioridade de valores que é
necessário honrarem. A mediação através das agendas políticas veio
“alavancar” a ideologia neoliberal na regulação da esfera social,
política e económica.
A segunda é a de que o trabalho e a sua regulação
transpõem para a sociedade a leitura de uma sociedade em que os
direitos sociais e laborais estão ao serviço dos mercados, na qual o
paradigma da austeridade é um claro exemplo da legitimação desta
perspectiva. A actuação através da instrumentalização do Direito do
Trabalho é o meio mais efectivo de colocar em curso reformas
estruturais que desvalorizam os impactos socioeconómicos sobre a
40 Movimentos, Direitos e Instituições

sociedade e os indivíduos. Acresce, ainda, a entrada de novos


actores na regulação sociopolítica, os quais definem objetivos ao
nível europeu e globalaplicando-os, sem distinção, aos países em
crise. A geopolítica da austeridade forma, assim, um sólido pilar
quanto à difusão dos ideais neoliberais.
Por último, está-se perante uma concepção de sociedade
que dissocia o trabalho da pessoa que o realiza, tornando-o,
efectivamente, uma mercadoria. A inversão da máxima da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) traduz uma ordem social
que reordena os valores e princípios de uma sociedade justa e
decente, colocando em primeiro lugar o equilíbrio e o bom
funcionamento dos mercados. Os ideais normativos da justiça e
equidade desvanecem perante uma realidade económica que acirra
as desigualdades sociais em nome dos mercados financeiros.
De um modo geral, o que está em jogo é o modo ardil como a
ideologia neoliberal através da esfera laboral e da sua regulação, isto é,
através do Direito do Trabalho e a par com as agendas políticas, altera
a prioridade dos valores democráticos e da justiça social face à
pertinência que os mercados financeiros agora assumem. O grande
desafio imposto por esta realidade social é que ela interpela
directamente os pilares democráticos. Por esta razão, o trabalho e os
seus direitos devem ser recuperados pelo seu conteúdo ético e moral
na afirmação da dignidade humana, trazendo para o centro da
discussão, não as dívidas públicas, mas sim o bem-estar social.

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CAPÍTULO 2

A “MODERNIZAÇÃO” DO SETOR PORTUÁRIO


NO BRASIL: PRECARIZAÇÃO E DIVISÃO
SEXUAL DO TRABALHO

10
Claudia Mazzei Nogueira
11
Maria de Fátima Ferreira Queiróz

RESUMO

O objetivo deste texto é indicar alguns elementos introdutórios sobre


o atual processo de “Modernização” do setor portuário, mais
especificamente do Porto de Santos, localizado na cidade de Santos,
no Estado de São Paulo (Brasil), oferecendo também traços
preliminares sobre a divisão sexual do trabalho assalariado,
prioritariamente em relação ao trabalho feminino.
Palavras-chave: Brasil; divisão sexual do trabalho; modernização
portuária; precarização do trabalho; trabalho portuário.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. O PORTO DE SANTOS: UM HISTÓRICO


RECENTE E SUAS MUDANÇAS; 1.1. ALGUNS ELEMENTOS
SOBRE A LEI DA MODERNIZAÇÃO DOS PORTOS EM 2013; 1.2. A
PRIVATIZAÇÃO NO PORTO E AS RELAÇÕES DE TRABALHO; 2. A

10
Professora Doutora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-Campus
Baixada Santista). Professora Associada do Curso de Serviço Social e do Programa
de Pós-graduação em Ciências da Saúde. É também coordenadora do Núcleo de
Estudos sobre Trabalho e Gênero (NETeG). E-mail: <mazzeinogueira@uol.com.br>.
11
Professora Doutora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-Campus
Baixada Santista). Professora do Eixo Trabalho em Saúde, membro do Departamento
de Políticas Públicas e Saúde Coletiva. E-mail: <fatima.queiroz@unifesp.br>.
46 Movimentos, Direitos e Instituições

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E O PORTO DE SANTOS;


CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O setor portuário no Brasil abrange 8,5 mil quilômetros de


costa que podem ser navegadas com segurança, movimentando
cerca de 700 milhões de toneladas por ano, compreendendo as mais
variadas mercadorias, sendo o maior setor gerador das exportações,
responsável por mais de 90% dessa atividade. Este tipo de transporte
denominado aquaviário é um dos que apresenta menor custo de
condução de mercadorias no Brasil, perde somente para o segmento
aéreo e dutoviário, de acordo com estudos desenvolvidos pela
Coppead (Instituto de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). (BRASIL, Secretaria de Portos da
Presidência da República, 2014, on line).
Por ser esse setor extremamente importante para a
economia brasileira, em 2004, o então presidente Lula criou a
“Agenda dos Portos” que radiografou, na lógica do capital, os
gargalos do sistema e as alternatívas viáveis para superá-los. A partir
desse mapeamento, aumentou o interesse do governo em acelerar o
projeto da “Modernização dos Portos”, o que resultou em 2013 na
aprovação pelo Congresso Nacional da Medida Provisória n. 595/12,
e na sanção e promulgação da presidente Dilma Rousseff, da Lei n.
12.815, de 5 de junho de 2013. (VALENTE, 2014, on line).
Cabe destacar que em 2012, o sistema portuário brasileiro
se constituía da seguinte forma: 34 portos públicos, entre marítimos e
fluviais. Desse total, 16 estão concedidos à administração dos
governos estaduais e municipais, os outros marítimos (18) são
administrados diretamente pelas Companhias Docas (que totalizam o
número de sete companhias12). Há, ainda, 42 terminais de uso

12
São elas: Companhia Docas do Pará (CDP) - Portos de Belém, Santarém e Vila
do Conde; Companhia Docas do Ceará (CDC) – Porto de Fortaleza; Companhia
Docas do Rio Grande do Norte (Codern) – Portos de Natal e Maceió, além do
Terminal Salineiro de Areia Branca; Companhia Docas do Estado da Bahia
(Codeba) - Portos de Salvador, Ilhéus e Aratu; Companhia Docas do Espírito
Santo (Codesa) - Portos de Vitória e Barra do Riacho; Companhia Docas do Rio
de Janeiro (CDRJ) - Portos do Rio de Janeiro, Niterói, Angra dos Reis e Itaguaí e
Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) – Porto de Santos. Para
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 47

privativo e mais 3 complexos portuários que operam sob concessão


do capital privado. (BRASIL, Secretaria de Portos da Presidência da
República, 2014, on line).

1. O PORTO DE SANTOS: UM HISTÓRICO RECENTE E


SUAS MUDANÇAS

Em 8 de novembro de 1980, a então Companhia Docas de


Santos, com o fim da sua concessão, teve sua administração
assumida pela Companhia Docas do Estado de São Paulo
(Codesp)13. (PORTO DE SANTOS, 2014a, on line).
Diéguez, ao descrever a situação dos trabalhadores pós-
período de concessão do porto de Santos à Cia Docas, apresenta
que:

Os portuários dividem-se em diversas categorias, conforme o tipo de


trabalho exercido, mas, primeiramente, dividem-se em: trabalhadores
da Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP) e
trabalhadores avulsos. Estes não possuem vínculo empregatício,
obtendo-o apenas quando se credenciam a alguma agência marítima
ou operadora portuária, trabalhando somente em navios administrados
pela agência. Entre os ‘avulsos’, temos os estivadores, os conferentes
de carga e descarga, os consertadores de carga e descarga, os vigias
portuários e os trabalhadores de bloco. Entre os trabalhadores da
Codesp temos os conferentes de capatazia, os empregados na
Administração Portuária, os operadores de guindastes e empilhadeiras,
os operários portuários, a guarda portuária, os arrumadores, os

miores informações, veja-se: <http://www.portosdobrasil.gov.br/sistema-portuario-


nacional>.
13
Companhias Docas é uma sociedade de economia mista, que tem como acionista
majoritário o Governo Federal e, portanto, estão diretamente vinculadas à
Secretaria de Portos – SEP (Secretaria de Portos da Presidência da República -
SEP/PR), “responsável pela formulação de políticas e pela execução de medidas,
programas e projetos de apoio ao desenvolvimento da infraestrutura dos portos
marítimos. Compete ainda à SEP/PR a participação no planejamento estratégico e
a aprovação dos planos de outorgas”, como também “a formulação de políticas e
diretrizes para o fomento do setor, além da execução de medidas, programas e
projetos de apoio ao desenvolvimento da infraestrutura portuária, com
investimentos orçamentários e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)”.
Ela “foi criada por meio da Medida Provisória n. 369/07. Após aprovação pelo
Congresso Nacional, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, em
setembro daquele mesmo ano, a Lei 11.518, que consolidou o funcionamento da
SEP e o novo modelo de gestão do setor portuário com a revogação das leis,
decretos-lei e dispositivos legais diversos”). Para maiores informações veja-se:
<http://www.portosdobrasil.gov.br/sistema-portuario-nacional>.
48 Movimentos, Direitos e Instituições

condutores da Marinha Mercante, entre outros. Os avulsos diferem dos


trabalhadores das docas por sua alocação na estrutura de trabalho
portuário. Os primeiros são encarregados do trabalho em bordo,
responsáveis pelo embarque e desembarque das cargas, arrumação
das mesmas nos porões, conferências das cargas que entram e saem
dos navios, conserto de cargas no interior dos navios, etc. Os
trabalhadores das Docas localizam-se no cais, em terra firme. A eles
cabe deslocar as cargas dos armazéns as zonas de embarque, assim
como o processo inverso; conferir as cargas que saem dos armazéns e
as que chegam aos mesmos; operar empilhadeiras levando cargas dos
armazéns ao cais e vice-versa; operar guindastescolocando as cargas
dentro dos navios para serem arrumadas pelos estivadores etc. [...].
(2007, p. 12).

Em agosto de 1981, após intensificar investimentos na


melhoria do setor, segundo a lógica da Codesp, ela inaugura o
Terminal de Contêineres (Tecon). “Em outubro de 1982 começavam a
chegar ao porto os 24 guindastes de grande porte adquiridos na
Alemanha, marcando o efetivo reaparelhamento do porto.
Posteriormente, em 1º setembro 1989, era inaugurado o Museu do
Porto de Santos e, ainda naquele ano, era concluída” a “ampliação do
Terminal de Granéis Líquidos da Alemoa”, integrando mais dois
pontos de atracação. Em “maio de 1985, foi a vez de a Cutrale
inaugurar o seu terminal, com 286 metros de cais acostável”, para
viabilizar as “operações de sucos cítricos a granel e polpa cítrica
(farelo de laranja)”. Em 1986 inaugurou-se o terminal da Cargill
Agrícola, “para operar no embarque de soja em grão e farelo de soja”.
(PORTO DE SANTOS, 2014a, on line).
Até março de 1990 a Codesp era uma sociedade de
economia mista e estava sob o controle da Empresa de Portos do
Brasil S.A. (PORTOBRÁS). Com a extinção da PORTOBRÁS do
sistema portuário, a Codesp passou então a ser submetida e
regulada pelo Ministério dos Transportes e, mais à frente pela
Secretaria de Portos (SEP), órgão vinculado diretamente à
Presidência da República. A CODESP mantem-se como economia
mista com capital majoritário pertencente à União. (PORTO DE
SANTOS, 2014a, on line).
Em 25 de fevereiro de 1993 é promulgada a Lei dos Portos
(8.630/93)14 e em 1997 a Codesp “deixa de exercer atividades de

14
A Lei 8.630/93 dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos
organizados e das instalações portuárias. Entre os avanços mais significativos
introduzidos está a criação dos Conselhos de Autoridade Portuária (CAP), a
extinção do monopólio das Administrações Portuárias nos serviços de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 49

operação de cargas, assumindo o papel de administradora e


autoridade portuária de Santos”. A força de trabalho “operacional da
empresa é transferida para o Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO)
instituído pela Lei dos Portos”, bem como o Conselho de Autoridade
Portuária (CAP). (PORTO DE SANTOS, 2014a, on line).
A Lei dos Portos, também conhecida como a “Lei da
Modernização dos Portos” ou ainda como a “Lei da Privatização dos
Portos”, tinha de fato como objetivo central, acompanhar o projeto
neoliberal, bem como a reestruturação produtiva, fortemente
presentes nesse momento, a privatização dos portos. A lei 8.630
configura-se em um marco do novo modelo neoliberal para o setor
portuário. De acordo com Pérez e Moreno, em estudo sobre a política
de privatização do porto de Boaventura (Colômbia),

[...] los supuestos básicos del modelo económico


neoliberal es la flexibilización del mercado laboral para
reducir los costos de producción y generar empleo. La
evidencia empírica ha demostrado que este supuesto de
la teoría económica no se cumple y, por el contrario, lo
que ha ocurrido es um incremento del desempleo
estructural, informal y en general el deterioro de las
condiciones laborales de lostrabajadores [...]. (2008, p.
180).

Os trabalhadores portuários sofrem com a transformação


“moderna” em sua organização do trabalho e nova configuração de
pertencimento ao trabalho se estrutura, por exemplo, é definido pela
Lei 8.630 que os trabalhadores doqueiros (antes vinculados à
Codesp) passam a se enquadrar no regime de trabalho avulso e
regidos pelo OGMO. A Lei também define quem são os trabalhadores
considerados avulsos: estivadores, trabalhadores de capatazia
(antigos doqueiros), conferentes de carga, consertadores de carga,
trabalhadores do bloco e vigilantes de embarcações (antigos vigias
portuários). A perda que atinge os trabalhadores refere-se

movimentação de cargas nos cais públicos, com a criação da figura do operador


portuário, a descentralização da gestão do subsetor, o estímulo à concorrência
intra e entre portos e a quebra do monopólio dos sindicatos de trabalhadores
portuários avulsos no fornecimento e escalação da mão-de-obra para as operações
portuárias, que passam para uma nova entidade, o Órgão Gestor de Mão-de-Obra
(OGMO), formado por operadores portuários, com participação minoritária dos
trabalhadores. (GEIPOT, 2001).
50 Movimentos, Direitos e Instituições

principalmente a sua forma de organização no trabalho e o domínio


do trabalho pelos trabalhadores (representado pelas suas entidades
sindicais de classe), conformando a proposta neoliberal que trata da
desestabilização da organização da classe trabalhadora.
Cabe lembrar aqui que o termo modernização tem um claro
sentido empresarial capitalista, estando inserido no contexto da
reestruturação produtiva que atingiu e continua atingindo os portos
em escala mundial dada a enorme pressão das transnacionais pela
agilização dos serviços portuários, contando com a introdução do
contêiner na aceleração de embarque e desembarque de cargas, o
que por certo vem acarretando profundas alterações nas relações de
trabalho nesse setor. Machin e Guimarães (2013), citando Green
(2000), concordam que a nova tecnologia de contêinerização destruiu
muitas tarefas tradicionais que anteriormente eram realizadas no
porto e reduziu o controle dos trabalhadores sobre o processo de
trabalho.
Ainda, conforme Diéguez,

Ao falarmos em modernização portuária a primeira ligação que


fazemos é com a privatização. Superficialmente o processo de
modernização é pensado como abertura dos portos ao mercado,
concedendo à iniciativa privada a exploração de terminais e operação
de serviços portuários. A reforma portuária, porém, vai além da
privatização. Ela abrange a concessão de terminais as empresas
privadas, permitindo a operação de cargas próprias e de terceiros;
investimentos tecnológicos; transformações na gestão da mão-de-obra;
administração do porto pela iniciativa privada ou pela gestão pública,
conforme o regime adotado no país. Segundo a ITF (International
transportsworker’s Federation) a reforma portuária é baseada em 6
15
conceitos: liberação, desregulamentação, privatização, competência ,

15
Segundo Burkhalter (1999, p. 57), “La participación de los operadores privados de
lasterminales marítimas em los puertos estatales tiene por objeto,
fundamentalmente, crear una base para la competencia, a fin de reducir los costos,
mejorar la calidad de los bienes y servicios, y alentar las inversiones del sector
privado en maquinarias, inmuebles e instalaciones. La competencia permite lograr
esos objetivos, pues obliga a los inversionistas a correr riesgos comerciales y
enfrentar la posibilidad de incurrir em perdidas financieras y el riesgo de quiebra. La
función de lacompetencia es transformar un entorno carente de dinamismo y
estancado, que protege a los grupos dominantes. Para que ello ocurra es preciso
que todo el ámbito portuario se sienta impulsado a innovar, aumentar la
productividad y reducir los costos com el propósito de mejorar su propia situación y,
al mismo tiempo, la de los clientes.”
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 51

16
globalização e modernização . Os dois primeiros vão ao encontro da
idéia de abertura dos portos à economia de mercado. Além disso, a
desregulamentação conjuga-se com a privatização no sentido de retirar
funções onerosas da mão do Estado, criando novos regulamentos. A
estes se juntam o conceito de competência (diminuir custos e aumentar
a produtividade) e modernização, que alia a necessidade de inovação
tecnológica a investimentos privados. A globalização seria a geradora
de todo esse processo. (2007, p. 16).

Foi caminhando nesta direção que, no mês de abril de 2012,


“o governo finaliza um pacote para encarar um dos grandes gargalos
da infraestrutura do país: modernizar e alavancar investimentos no
setor portuário”. Segundo Daniel Rittner (2012, p. A3), “sem qualquer
aprimoramento relevante, os portos aumentaram em 67% a
movimentação total de cargas nos últimos dez anos”. O porto de
Santos, por exemplo, movimentou 60.077.073 toneladas em 2003,
passando a movimentar 114.077.884 toneladas em 2013,
apresentando, portanto um aumento de 54.000.811 toneladas em 10
anos, ou seja, 90%. (CODESP, 2004 e 2013).
As medidas tomadas “apontam para três direções: leilão de
novos portos públicos, licitação de 98 terminais existentes e
renegociação dos contratos de delegação de 16 portos da União
(administrados por governos estaduais e municipais)”. (RITTNER,
2012, p. A3).
Em 7 de dezembro de 2012 é proposta a Medida Provisória
n. 595/12 pelo governo federal, que tem seus trâmites rapidamente
aprovados no primeiro semestre de 2013, auferindo caráter urgente
com o cumprimento ás proposições do neoliberalismo nacional e
internacional.

1.1 Alguns Elementos Sobre a Lei da Modernização


dos Portos em 2013

A Medida Provisória n. 595/12, aprovada no Congresso


Nacional, foi sancionada e promulgada pela presidente da República
Dilma Rousseff, na Lei n. 12.815, de 5 de junho de 2013. De acordo
com a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados-Brasilia-
2013, na redação da MP, o art. 62 revoga todo o texto das Leis n.

16
International transports worker’s Federation. Mejorar las respuestas sindicales a la
reforma portuaria. Obtido no site da ITF (www.itfglobal.org), em 30 de setembro de
2005.
52 Movimentos, Direitos e Instituições

8.630/93 (Lei dos Portos) e n. 11.610/07 (Programa de Dragagem


Portuária e Hidroviária), além de vários dispositivos das Leis n.
11.314/06; 11.518/07 e 10.233/01, por versarem sobre assunto
modificado pela Medida Provisória. Essa nova realidade tem como
objetivo, segundo a lógica do mercado, incentivar e viabilizar a
concessão de portos organizados à iniciativa privada, facilitando,
entre outras coisas, o aumento da capacidade logística do Brasil, bem
como substituir a “ineficiência” das Companhias Docas (que não
serão extintas) por uma lógica de gestão privada empresarial que
tem em seu perfil a agilidade, eficiência e acima de tudo flexibilidade.
Para esta pesquisa, um ponto importante e polêmico a ser
destacado é a alteração na contratação dos trabalhadores portuários
avulsos ligados aos Órgãos Gestores de Mão de Obra, os OGMOS. A
MP 595, no art. 40, faculta aos titulares de portos sujeitos ao regime
de autorização a contratação de trabalhadores por prazo
indeterminado, bem como faculta a fixação de contrato, convenção ou
acordo coletivo com os sindicatos representativos das categorias
econômicas preponderantes.
Segundo Paulo Pereira da Silva (o Paulinho da Força
Sindical),

[...] a MP dos Portos é um Titanic brasileiro. A medida irá destruir nosso


sistema portuário, precarizar as condições de trabalho nos portos e
ampliar o processo de privatização de um setor estratégico,
beneficiando grandes empresários e resultando em enormes prejuízos
para o país. (SILVA, 2014, on line).

E complementa,

Um dos mecanismos mais perversos da MP impacta diretamente no


trabalho portuário e prejudica os trabalhadores, já que portos privados
não serão obrigados a contratar os trabalhadores inscritos no OGMO
(Órgão Gestor de Mão de Obra), o que vai resultar em perdas de
direitos, desemprego e prejuízos para as cidades portuárias. (SILVA,
2014, on line).

Já, segundo Eraldo Franzese, advogado do SINDAPORT


(Sindicato dos Trabalhadores Administrativos em Capatazia, nos
Terminais Privativos e Retroportuários e na Administração em Geral
dos Serviços Portuários do Estado de São Paulo), e do Sindogeesp
(Sindicato dos Operadores em Aparelhos Guindastescos,
Empilhadeiras, Máquinas e Equipamentos Transportadores de Carga
dos Portos e Terminais Marítimos e Fluviais do Estado de São Paulo),
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 53

“a Lei dos Portos (12.815/13), sancionada no último dia 5 de junho,


equilibrou sobre alguns aspectos as relações de trabalho no setor”. E
complementa, “com o reconhecimento do trabalho portuário como
atividade diferenciada, a legislação dá um passo à frente para
proteção do trabalhador e barra a precarização das condições de
trabalho dentro e fora do porto organizado”. (FRANZESE, 2013, on
line).
Fica claro que há duas interpretações, de certa forma
antagônicas, de se perceber as implicações aos trabalhadores e
trabalhadoras, frente à aprovação da Medida Provisória 595/12,
sancionada e promulgada na Lei n. 12.815, de 5 de junho de 2013.
Essas duas formas distintas de perceber a nova Lei de
Modernização dos Portos, suscita, entre outras coisas, a necessidade
de compreender junto aos próprios trabalhadores e, no caso desta
pesquisa, junto às trabalhadoras do setor portuário, como elas
percebem a nova legislação, ou seja, se de fato essas alterações
implicarão na intensificação da precarização das relações de trabalho
já existentes ou se, ao contrário, aumenta a proteção das
trabalhadoras e consequentemente diminui a precarização da sua
força de trabalho. Neste caminho também contempla a compreensão
de como a MP interfere/transforma os diferentes tipos de trabalho,
considerando a diversidade de trabalho nos portos, e a inserção das
trabalhadoras e trabalhadores no porto de Santos.
No entanto, pode-se arriscar antecipando que este processo
de modernização dos portos está ocorrendo em um cenário global, no
qual se pode exemplificar com o caso português. Segundo a
historiadora Raquel Varela em Agosto de 2012, o Governo português
aprovou “o novo código laboral onde, além de diminuir drasticamente
o valor das reformas antecipadas, facilita os despedimentos baixando
muito o nível das indenizações”. Com isso, no último trimestre de
2012, os trabalhadores portuários anunciaram uma greve “contra a
nova lei dos Portos, que permitia a flexibilização laboral”. A mídia
portuguesa, por sua vez, referia-se a esses trabalhadores portuários
como trabalhadores privilegiados, que contemplavam entre outras
regalias um salário de 5.000 euros. Essa greve se encerra no final de
Dezembro deste mesmo ano, sem alcançar nenhum resultado
positivo. Com o insucesso da greve a lei foi aprovada em Dezembro
de 2012 e começa a vigorar em janeiro de 2013, sendo que no final
deste mesmo mês, 18 trabalhadores eventuais (contratados a prazo)
já foram demitidos. (VARELA, 2013, on line).
54 Movimentos, Direitos e Instituições

Ainda segundo Varela, em meados de março de 2013, “os


trabalhadores receberam a denúncia do Contrato Coletivo de
Trabalho – uma carta de 3 páginas, dirigida ao sindicato, onde se
informa que são denunciados todos os acordos e protocolos
adicionais, [...]” terminando com um “Sem outro assunto de momento
apresentamos os nossos melhores cumprimentos”. Junto a essa carta
seguiu também “uma proposta para as novas relações laborais: fim
do limite à contratação de eventuais, fim das categorias mais
qualificadas de trabalhadores, aumento do horário de trabalho e uma
redução do salário base de 1700 euros para 550 euros”. (VARELA,
2013, on line).
Esse exemplo português, pelo o que já estamos
presenciando, nos indica que existe uma grande possibilidade de que
a “modernização” dos portos no Brasil seguirá pelo mesmo caminho.

1.2 A Privatização no Porto e as Relações de


Trabalho

Outro elemento importante a ser indicadoé a forma como


ocorre a privatização dos espaços do porto. Segundo Santos, “o
Programa de Privatizações dos Serviços Portuários”, se dá através do
arrendamento das “áreas e instalações portuárias para empresas
privadas” (2009, p. 42-43), mantendo o governo como a autoridade
portuária, sendo que as Companhias Docas, como a Codesp, passam
a exercer somente a função de administradoras e não mais de
operadoras do porto. Essa nova realidade implica diretamente na
necessidade de redução do número de força de trabalho, através dos
programas de demissão voluntária ou, fazendo com que os
trabalhadores do porto convertam-se a trabalhadores avulsos,
vinculados ao Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO).
Burkhalter, ao analisar essa realidade dos portuários, afirma
que,

Los gobiernos adoptaron las medidas de protección mencionadas para


estabilizar artificialmente la demanda de trabajadores y el nivel de sus
ingresos. Sin embargo, las tecnologías que economizan mano de obra,
las políticas de crecimiento impulsado por las exportaciones y la
participación privada han acelerado la tendencia inversa, que exige que
las mercancías se movilicen de manera más productiva y más barata,
utilizando un número reducido de trabajadores. Por ejemplo, la
introducción de las políticas orientadas hacia las exportaciones
demostró que la demanda de los servicios de los estibadores depende
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 55

de la demanda y competitividad de los bienes que manipulan, y los


gobiernos ya no pueden eludir la realidade permitiendo que las
actividades de los trabajadores no respondan a los mecanismos del
mercado (CEPAL, 1996). Optar entre la aplicación de criterios políticos
o la acción de las fuerzas del mercado para determinar la demanda de
servicios de los estibadores equivale a rechazar o aceptar el libre juego
de los mecanismos del mercado. (1999, p.73).

E acrescenta,

La mayoría de los puertos de los países em desarrollo realizan


atividades de capacitación en el empleo utilizando métodos que suelen
describirse, peyorativamente, con frases como: ´siga, mire, imite´ o ´el
cérebro mejor que se lo quite´. Tampoco hay sistemas bien
desarrollados para la capacitación de aprendices ni se hace mayor
hincapié em la capacitación multifuncional. Estos métodos se han
heredado de la época en que se hacía un uso intensivo de la mano de
obra, cuando las tareas portuarias se consideraban una fuente de
trabajo temporario y los requisitos de competencia técnica eran
mínimos . Hoy los operadores privados de las terminales marítimas
manejan equipos sofisticados y necesitan del discernimiento y la
capacidad de los trabajadores para hacerlos compreender como la
calificación y la necesidad de una mayor productividad mejora la
competitividade [...]. (BURKHALTER, 1999, p. 114).

Dessa forma, algumas das características do trabalhador(a)


no toyotismo, consequência da reestruturação produtiva, também se
fazem presentes neste espaço de trabalho. Entre elas, a exigência de
uma maior qualificação e escolaridade, além da multifuncionalidade
que deve estar presente no perfil do trabalhador, uma vez que eles
devem “atuar a bordo e em terra, tanto no trabalho braçal quanto
operando equipamentos, exercendo tanto atividades de estiva,
quanto as atividades de capatazia, além de conferência de carga,
conserto de carga, vigilância de embarcações e bloco”. (SANTOS,
2009, p. 44). Com esses “pré-requisitos” os trabalhadores podem ser
deslocados para realizar qualquer serviço, dependendo das
necessidades e interesses dos responsáveis pelo porto. Vale
ressaltar que a exigência de multifuncionalidade no trabalho foi
introduzida pela Lei 8.630. Queiróz e Machin apresentam uma
abordagem reflexiva sobre a questão da multifuncionalidade nos
portos,

[...] a lei 8.630 estabelece que a prestação de serviços por


trabalhadores portuários deve buscar, progressivamente, a
multifuncionalidade do trabalho, visando adequá-lo aos modernos
processos de manipulação de cargas e aumentar sua produtividade,
com um prazo de 5 anos para que seja atingida esta meta. Prevê-se
56 Movimentos, Direitos e Instituições

que a multifuncionalidade atinja todas as atividades de cada categoria


avulsa, e que seja estabelecida pelos contratos, convenções e acordos
coletivos. Esta redação deixa pouco claro o que é exatamente a
multifuncionalidade: a capacidade de atuar profissionalmente tanto a
bordo como em terra? A capacidade de operar equipamentos diversos?
Um trabalhador capacitado a atuar em qualquer uma das seis
categorias de avulsos? Tampouco fica claro como as convenções e
acordos coletivos podem estimular tal modificação do perfil profissional
e compatibilizar as diferenças de rendimento entre as diferentes
categorias. (2015, no prelo).

Essas características descritas acima, além de serem


vinculadas à nova forma de produção flexível (presentes no
Toyotismo e no que Harvey denominou acumulação flexível), também
sugerem características do trabalho feminino, conforme Nogueira
afirma, ao se referir à forma como “o capital incorpora o trabalho
feminino, cujas características, como a polivalência e a multiatividade,
são decorrentes das suas atividades no espaço reprodutivo, o que as
torna mais apropriadas às novas formas de exploração pelo capital
produtivo”. (2004, p. 119).
Com isso, descortinar a realidade da divisão sexual do
trabalho no setor Portuário, poderá dar algumas respostas referentes
à existência ou não da intensificação da precarização das relações de
trabalho, dimensionando as diferenças e igualdades no que tange à
relação de gênero.
Após obterem-se os dados referentes à atual situação das
relações de trabalho, bem como sobre a saúde das trabalhadoras
nesta pesquisa, talvez possa-se afirmar se as condições de trabalho
afetam a categoria portuária em geral, atingindo mais intensamente a
mulher que trabalha neste setor.
O trabalho portuário vem se transformando não só na
introdução de modernas tecnologias e maior domínio das relações de
trabalho por parte do capital neoliberal, mas também na introdução de
mulheres nas atividades portuárias. O porto com característica
marcadamente de trabalhadores do sexo masculino, de trabalho
pesado e uso da força física, tem nova condição a vivenciar: as
mulheres trabalhadoras portuárias no cais e no navio. De acordo com
Diéguez,

[...] A relação trabalho e gênero é antiga nos locais de trabalho, tanto


como objetivo de estudos das Ciências Sociais. Entretanto, pouca
ligação havia sobre essa questão para o problema do trabalho
portuário essencialmente masculino, onde a ideia da dominação
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 57

masculina e da submissão feminina prevalecia e desta forma, a força


física torna-se elemento vital na constituição do trabalho portuário.
(2014, on line).

Ainda segundo Diéguez (2014, p. 1, on line), a


conteinerização (introdução do contêiner como embalagem das
mercadorias transportadas) traz a necessidade de se repensar o
trabalho portuário estritamente como masculino, visto que o manuseio
da carga não requer mais, exclusivamente, a força física, visto o uso
de maquinário moderno, como porteineres e transteineres, que utiliza
o conhecimento tecnológico para carga e descarga dos contêineres
nos navios. Desta forma, tanto homens como mulheres estão aptos a
serem trabalhadores portuários, pois o que consistia como principal
elemento da reivindicação da masculinidade para o trabalho portuário
vem se tornando obsoleto.

2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E O PORTO DE


SANTOS

Discorrer sobre a divisão sexual do trabalho na atualidade


continua sendo muito mais do que constatar a presença das
diferenças entre homem e mulher na sociedade. Em grande medida,
é articular uma análise do real com uma reflexão sobre o processo,
ou seja, o conjunto de elementos existentes nas especificidades de
gênero que são apreendidos pela sociedade capitalista como fim de
controlar a hierarquização do modo de produção e reprodução do
capital.
Conforme Lobo, “a divisão sexual do trabalho é também
uma construção social e histórica. Se é certo que o capitalismo utiliza
uma estratégia de ‘dividir para reinar’, a configuração dessas divisões
é construída socialmente através das relações de classe, de raça, de
gênero e das práticas sociais”. (2011, p. 170). É fato que o
capitalismo não criou deliberadamente a subordinação das mulheres,
mas a forma como ele apreende a hierarquização patriarcal presente
no espaço da reprodução possibilita, em grande medida, a
desvalorização da força de trabalho feminina, tanto em relação aos
seus salários, quanto aos postos de trabalho. Ou seja, “a divisão
sexual do trabalho produz e reproduz a assimetria entre práticas
femininas e masculinas, constrói e reconstrói mecanismos de
sujeição e disciplinamento das mulheres, produz e reproduz a
subordinação de gênero a dominação”. (LOBO, 2011, p. 173-174).
58 Movimentos, Direitos e Instituições

De fato, a intersecção do trabalho com a reprodução, na


conformação capitalista, serve ao capital, não somente pela
exploração da força de trabalho feminina no espaço produtivo, mas
também porque as atividades desenvolvidas pelas mulheres na
esfera doméstica garantem, entre outras coisas, a manutenção de
“trabalhadores/as” para o mundo do trabalho assalariado, bem como
a reprodução de futuros trabalhadores/as que acabam por se
constituir enquanto força de trabalho disponível para o capital.
(LOBO, 2011, p. 181).
17
A ideia de que a desigual divisão sócio-sexual do trabalho
que é responsável pela articulação do espaço da produção com o
espaço da reprodução, permite afirmar que o movimento entre as
relações capitalistas de trabalho e a força de trabalho feminina seja
sexualizado e essa sexualização tem como tendência a intensificação
da precarização do trabalho da mulher.
Retornando a Lobo,

As pesquisas sobre a divisão sexual, social e internacional do trabalho


mostram que as modalidades de subordinação das mulheres nas suas
experiências de trabalho são múltiplas, mas, cujo ponto comum é
justamente a persistência da subordinação. As práticas sociais,
familiares, culturais e de trabalho das mulheres são simultaneamente
aproveitadas nas relações de trabalho propriamente capitalistas ou
não, formais ou informais. Ao mesmo tempo, essas práticas são
constantemente reformuladas pelas mulheres, como estratégias de
sobrevivência, mas também como estratégias de resistência à
dominação e à subordinação. (2011, p. 173).

De fato, para compreender-se a importância do estudo


sobre a divisão sexual do trabalho nos diversos campos laborais,
tem-se que continuar a superar o tratamento limitado que, em grande
medida, muitos intelectuais o fazem, ou seja, se limitam a inserir
sufixos femininos nas profissões, sem levar em conta toda a
especificidade de gênero presente. (LOBO, 2011, p. 151). Portanto,
para avançar-se na análise da divisão sexual do trabalho, deve-se
seguir pesquisando o seu mecanismo de funcionamento nos vários
segmentos profissionais existentes para apreender-se as múltiplas
determinações que a envolve.

17
Sobre esse tema, para maior aprofundamento, sugere-se ver também os livros de:
NOGUEIRA, 2004 e 2011; HIRATA, 2002; KERGOAT, 2000 e 2009; BARRÈRE-
MAURISSON, 1999, todos referenciados ao final deste Capítulo, nas Referências.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 59

Desta forma, pode-se afirmar, frente aos elementos que se


começaram a identificar na presente pesquisa, que este segmento
laboral das trabalhadoras portuárias também sofreu transformações
na divisão sexual do trabalho decorrentes das metamorfoses geradas
pela automação no processo de trabalho. Isto, porque, segundo
Diéguez, “a presença da mulher nos portos já é uma realidade”.
(2014, on line). Por exemplo, no Porto de Santos já existem mulheres
trabalhando no cais e “em portos estrangeiros, como na Alemanha,
elas já operam” até mesmo o maquinário de grande porte. Ou seja, a
inserção da força de trabalho feminina neste segmento é de fato uma
realidade. (DIÉGUEZ, 2014, on line).
Em 2006 a Intersindical da Orla Portuária do ES publica
notícia com o título “Batom nos Portos Capixabas” relatando que há
tempos as mulheres estão mostrando que podem concorrer com os
homens em muitas funções e, agora, elas estão mostrando que o
Porto não é “o clube do Bolinha”. Foi isso que aconteceu na última
contratação do OGMO/ES, em abril e maio de 2006. Infomam ainda
que segundo o Departamento de Cadastros e Registros do
OGMO/ES, hoje, no Sistema Portuário, são 19 Trabalhadoras, dentre
essas, cinco são filiadas à Estiva. A conquista do serviço ajuda as
novas TPAs a mostrarem que são capazes e que o trabalho portuário
depende de jeito e não apenas de força. (INTERSINDICAL DA ORLA
PORTUÁRIA DO ES, 2014, on line).
Em uma iniciativa mais recente o Porto de Itapoá (Estado
Santa Catarina) dá início ao programa “Mulheres Portuárias”. Ele tem
por objetivo capacitar 50 mulheres moradoras de Itapoá na atividade
portuária, especificamente nas áreas de Documentação e Gate e
Operação de Equipamentos. O Porto recebeu mais de 500 currículos
em seu período de pré-seleção, e no caso das operadoras de
equipamentos selecionadas, estas passaram por uma série de
treinamentos técnicos e testes de habilitação.
O programa é inédito no Brasil. Dentre os vários terminais
que operam no país, a predominância de trabalhadores do sexo
masculino é ampla em todos os locais. Atualmente, o Porto Itapoá
conta com 15,7% de mulheres no seu quadro de 485 profissionais.
Com essa iniciativa, o Porto Itapoá quer ampliar a participação de
trabalhadoras para 20% do total de funcionários, buscando somar
ainda mais qualidade em suas operações. (PORTO DE ITAPOÁ,
2014, on line).
60 Movimentos, Direitos e Instituições

Investigações18 anteriores têm mostrado uma crescente


diferenciação de gênero nos segmentos estudados, principalmente
quando se analisam as relações existentes entre classe e divisão
sexual do trabalho, indicando, entre outras coisas, que a feminização
do trabalho (como parece estar ocorrendo no setor portuário, embora
ainda lentamente), em grande medida, acentua a intensificação da
exploração da totalidade dos trabalhadores, mas, com mais
voracidade na exploração da força de trabalho feminina. Considera-
se que o trabalho feminino agrega qualidade na operação, no caso
portuário, conforme referência do Porto de Itapoá, mas não se
aprofunda o custo e esforço intensificado exigido das mulheres para
que se produza de acordo com a qualidade planejada.
Segundo o Relatório Anual do Porto de Santos de 2012,
vem aumentando, a cada ano, a quantidade de trabalhadoras
inseridas neste segmento. A quantidade de mulheres, que em 2007
representava 7% do quadro de pessoal, em 2011 (início de nossa
pesquisa) passou para 11,6% e em 2012, já se encontra na casa dos
13,2%, indicando que em 5 anos quase dobrou o número da força de
trabalho feminina. Já a quantidade de trabalhadores do gênero
masculino diminui neste mesmo período. A quantidade de homens,
que em 2007 era de 93%, em 2011 baixou para 88,4% e em 2012 cai
ainda mais atingindo 86,8% de um total de 1466 trabalhadores(as).
(PORTO DE SANTOS, 2014b, on line).
Em uma pesquisa realizada por Oliveira, tendo como campo
o Porto de Santos, pode-se contabilizar mulheres em diversos
espaços laborais. Segundo a pesquisadora:

[...] no Tecondi – Terminais de Contêineres da Margem Direita, há 9


mulheres trabalhando em áreas operacionais: 01 técnica de segurança
do trabalho; 02 conferentes de armazém; 04 controladoras de gate; 01
conferente de costado e 01 operadora de máquina pequeno porte.
(2012, p. 39).

E continua, afirmando que a presença feminina “no Grupo


Rodrimar [...] é pequena, pois conta com apenas 01 operadora de
máquina pequeno porte”, já na “ELOG conta com 02 operadoras de

18
Em pesquisas anteriores destas autoras, estudou-se a feminização no mundo do
trabalho em geral, depois analisaram-se as condições e a divisão sexual do
trabalho das trabalhadoras do setor do telemarketing e posteriormente investigou-
se sobre a divisão sexual do trabalho nas pequenas aviculturas familiares
vinculadas ao sistema de integração e, agora, está-se propondo a pesquisar a
divisão sexual do trabalho das mulheres inseridas no setor portuário.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 61

máquina pequeno porte e 01 operadora de gate e a Libra Terminais


com 01 ajudante operacional; 01 controladora de gate; 02 monitoras
de CCO – Centro de Controle Operacional”.
Em outro terminal, a Santos Brasil (maior terminal portuário
da América Latina), segundo a autora, vem empregando “cerca de
100 mulheres distribuídas nas funções de: conferentes de costado,
operadoras de máquina de pequeno e grande porte, motoristas de
caminhão, conferente de armazém e operadora de RTG (guindaste
sobre rodas)”.
Ou seja, o que se está presenciando é de fato um aumento
da inserção da força de trabalho feminina no setor portuário, que
cabe lembrar, sempre foi um espaço que empregava
majoritariamente trabalhadores. Embora essa realidade ainda se
mantenha, as estatísticas veem indicando que a ampliação gradual
deste segmento para a ocupação das mulheres trabalhadoras é
efetiva.
Outra questão a ser destacada no trabalho feminino
portuário aponta que, como em qualquer outra profissão que
historicamente tem a característica de ser composta majoritariamente
por força de trabalho masculina, distingue-se o preconceito em
relação às mulheres portuárias.
No que tange esta questão Agnes Barbeito de Vasconcellos
(presidente da Associação Brasileira de Terminais e Recintos
Alfandegados - ABTRA) do setor portuário, em entrevista ao site
Porto Gente (2009), ao se referir ao Porto de Santos, afirmou que o
preconceito ainda se encontra presente, embora venha diminuindo.

Ainda é um pouco sim, já foi bem mais no passado. Acho que é porque
é uma atividade muito complexa e específica, as pessoas não
conhecem muito os detalhes do mundo portuário porque os atores são
as empresas e não o grande público. Além disso, especialmente no
Brasil, o porto era algo que imperava o jeitinho, onde havia o cheiro da
corrupção. Envolvia trabalhos em que exigia a força física e pelo lado
das relações humanas, a enfermidade. Daí o lado romântico das
canções que falavam dos marinheiros que iam e vinham. E as
mulheres incluídas nas histórias certamente que não seriam executivas
de carreira, etc. (BARBEITO, 2009, on line).

E segue,

Acho que a resposta é a mesma para todas as áreas em que a mulher


atua. O mundo ainda está aprendendo a considerar a mulher como um
62 Movimentos, Direitos e Instituições

ser humano plenamente capaz. Basta lembrar que fazem exatos 100
anos que as mulheres celebraram - no dia 28 de fevereiro em Nova
Iorque - o primeiro dia da mulher, em que comemoravam sua
organização incipiente para lutar por melhores condições de trabalho.
Hoje existem mulheres fazendo de tudo. Penso que a mulher leva uma
vantagem quando consegue administrar melhor sua vaidade e aí é
mais rápida em reconsiderar seus erros, levantar a poeira e dar a volta
por cima. No mundo portuário não existem muitas mulheres, então a
competição se faz sentir de forma diferente. Alguns homens, no
primeiro momento, ficam esperando a primeira ´bola fora´ que você vai
dar. Depois, observam a reação dos demais, e optam por tratar você
com a mesma deferência dos parceiros. [...]. E aí todo o grupo acaba
se acostumando, e você passa a ser tratada como uma igual”.
(BARBEITO, 2009, on line).

CONCLUSÃO

Com essa realidade, descortinar a situação da divisão


sócio-sexual do trabalho no setor Portuário é importante,
considerando a construção histórica do trabalho portuário sustentado
pela força de trabalho masculina. Visualiza-se a possibilidade de
identificar a existência ou não de uma intensificação da precarização
da força de trabalho feminina, suas igualdades e diferenças dos
salários no que tange às relações de gênero, como também aos
adoecimentos determinados pela execução do trabalho portuário. E,
para tanto, compreender os processos e mudanças no sentido da
“modernização” dos portos, seus significados em relação à
privatização dessa atividade econômica e suas consequências em
relação ao trabalho feminino e à sua precarização é fundamental.
Outro ponto importante, no que diz respeito à inserção da
força de trabalho feminina no setor portuário, é em relação ao
comando. Em algumas posições a mulher terá vários trabalhadores
do sexo masculino sob o seu comando. Trabalhadores estes
amparados pela construção social da relação de gênero e neste
contexto a relação de “mando feminino” pode ser dificultada na
atuação da mulher no sistema portuário. Por exemplo, Agnes
Barbeito em continuidade de sua entrevista declarou que já foi
colocada várias vezes à prova. “A pergunta parada no ar era se eu
era ou não capaz de argumentar bem, se resistia a muita pressão,
decepção”. Além de que “uma vez ouvi alguém me apresentando em
determinada ocasião, e esta pessoa dizia, ‘é ela é a presidente, não
entende nada, mas é a presidente [...]”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 63

Dessa forma pode-se afirmar inicialmente que, igualmente a


outros segmentos no mundo do trabalho, a divisão sócio-sexual do
trabalho no setor portuário, tem se apresentado sem uma “igualdade
substantiva”, expressão esta utilizada por Mészáros, prioritariamente
no âmbito dos direitos. Além de que ainda permanece o preconceito
em relação ao trabalho feminino naqueles espaços onde
majoritariamente foram (e talvez ainda sejam) ocupados por homens.
Aponta-se, ainda, que estudos desenvolvidos nos portos,
em especifico o porto de Santos, e no caso que se descreveu neste
artigo, o trabalho da mulher no porto, contribuem com o
conhecimento do processo de modernização portuária, com a análise
da intensificação e da precarização do trabalho, e com o
fortalecimento das políticas sociais e de saúde das trabalhadoras nos
portos.

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CAPÍTULO 3

O TRABALHO AINDA É UM DIREITO?


IMPACTOS DA AUSTERIDADE NAS
RELAÇÕES LABORAIS EM PORTUGAL

19
Hermes Augusto Costa

RESUMO
Neste texto analisam-se as principais transformações decorrentes
das medidas de austeridade que, quer por ação da troika (Banco
Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão
Europeia), quer do governo português, têm vindo a fragilizar o “fator
trabalho” nos últimos anos. Depois de um breve enquadramento
inicial sobre a relação entre trabalho e direitos (recuperando
contributos da Sociologia e do Direito), o texto analisa o impacto das
medidas de austeridade nas relações laborais, destaca algumas
questões controversas e processos de reação sindical e social.
Argumenta-se, assim, que o trabalho é um direito humano cuja
centralidade importa preservar. Nesse sentido, todos os contributos
gerados quer no plano dos movimentos, quer no plano das
instituições para lhe devolver a dignidade a que tem direito e a que
cada cidadão/ã tem direito são cruciais.

19
Sociólogo. Doutor em Sociologia. Docente da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (FEUC), Co-coordenador do Programa de Doutoramento
em “Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo”, lecionado no
âmbito da parceria FEUC-Centro de Estudos Sociais (CES). Investigador do CES,
tendo sido co-coordenador do Núcleo de Estudos do Trabalho e Sindicalismo entre
2002 e 2010, e do Núcleo de Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades
(POSTRADE) entre 2011 e 2014. E-mail: <hermes@fe.uc.pt>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 67

Palavras-chave: austeridade; direitos; Portugal; relações laborais;


trabalho.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. TRABALHO E DIREITOS; 2. UMA AUSTERIDADE
GERADORA DE RETROCESSO E DE CONTROVÉRSIA SOCIAL; 3.
DA REAÇÃO DOS ATORES SINDICAIS E SOCIAIS…; 4. ... AO
CONTRAPODER DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O título deste artigo parece provocatório. Desde logo não só


para o leitor, como para o seu autor. Na verdade, admito que esteja
distante das convicções profissionais e políticas de uma maioria de
cientistas sociais (estudiosos do mundo do trabalho ou não,
defensores das teses da “centralidade do trabalho” ou não) uma
predisposição para situar deliberadamente o “trabalho” fora de uma
esfera de direitos (e naturalmente de deveres que lhe são inerentes)
tendentes a valorizar a integração socioprofissional e cidadã e
capazes de contribuir para o progresso humano. Nesse sentido, a
frase que dá título ao artigo só poderia ser apresentada de modo
assertivo e não interrogativo. Sucede, porém, que poucos serão os
portugueses que nos últimos anos não se terão colocado a si
mesmos aquela questão, ante o inexorável sentimento de perda que,
ao atingir diretamente o trabalho (as suas formas e modalidades), os
atingiu diretamente a eles, cidadãos e cidadãs, nas suas vidas
pessoais.
Com efeito, o sistema de relações laborais português, do
qual o “trabalho” faz parte enquanto categoria sociológica-chave
(mesmo que estruturalmente numa condição subalterna), foi
atravessado pelo turbilhão da crise. Em consequência desta, em maio
de 2011, com a assinatura do Memorando de Entendimento sobre as
Condicionalidades da Política Económica (MECPE)20 entre o então
governo socialista e a troika composta pelo Banco Central Europeu
(BCE), a Comissão Europeia (CE) e o Fundo Monetário Internacional
(FMI), o país viu-se vergado tanto a imposições externas por parte

20
Para maiores informações sobre este tema, vide: <http://infoeuropa.eurocid.
pt/registo/000046765/>.
68 Movimentos, Direitos e Instituições

daquelas agências, quanto a imposições internas por parte da


coligação governamental de centro-direita que passou a governar
Portugal desde junho de 2011.
Em especial na última meia dúzia de anos, a União
Europeia (UE) foi atravessada por grandes perturbações em
resultado da crise das dívidas soberanas (com particulares reflexos
na zona euro), perturbações essas que provocaram sérios danos no
campo laboral. É certo que a Comissão Europeia promoveu um
discurso assente no modelo social europeu, bem como na relação
entre competitividade e coesão social. A Estratégia de Lisboa
baseou-se, aliás, num compromisso da UE com um tipo de
capitalismo europeu, preocupado com o reforço do papel dos
mercados e do crescimento económico, mas ao mesmo tempo um
capitalismo de compromisso com objetivos de pleno emprego e
reforço da coesão social e promovendo a participação das
organizações sindicais e patronais nesse processo (KEUNE;
JEPSEN, 2007, p. 11-12). Por outro lado, uma década depois, ao
avançar com a “agenda 2020” 21 e lançando as bases para a saída da
crise, a Comissão Europeia projetou uma economia social de
mercado assente num triplo padrão de crescimento: inteligente,
sustentável e inclusivo.
No entanto, como este autor já assinalou noutros lugares
(COSTA, 2012a; 2012b), essa estratégia contempla medidas de
retrocesso no modelo social europeu: aumento dos impostos
indiretos; enfraquecimento do carácter progressivo dos impostos;
incentivo ao aumento dos horários de trabalho; elevação da idade da
reforma; pressão para a privatização dos sistemas de pensões;
enfraquecimento da legislação que protege o emprego; redução dos
apoios diretos ao desemprego; liberalização do sector público, etc.
(EUROPEAN COMISSION, 2011a). E, aliás, são medidas que, como
a própria Comissão Europeia reconheceu, têm tido uma
implementação aquém do esperado, pois são escassos de
progressos no crescimento do emprego, é notório o crescimento do
desemprego de longa duração e de baixas qualificações
(EUROPEAN COMISSION, 2011b, anexo III, p. 2-4). O que, no fundo,
deixa a pairar no ar a ideia de que “com as tendências atuais, a meta
da Estratégia Europa 2020 não será cumprida” (EUROPEAN
COMISSION, 2011c, p. 28). Por sua vez, a Cimeira Europeia de 8 e 9

21
Para maiores informações sobre este tema, vide: <http://ec.europa.eu/europe2020/
index_en.htm>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 69

de Dezembro de 2011 trouxe mais desencanto, pois na sequência


dela entrou em vigor a 13 de dezembro o pacote legislativo six pack,
como o propósito de “assegurar a disciplina fiscal, ajudando a
estabilizar a economia da UE e evitar uma nova crise na UE”.
(EUROPEAN COMISSION, 2011b, p. 2).
É preciso fazer notar, porém, que para a periferia da zona
euro (Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda) esse fiscal compact – que
obriga os países para manter seus déficits orçamentais abaixo de 3%
do PIB e a dívida pública abaixo de 60% do PIB – não incorpora uma
verdadeira estratégia de crescimento e retoma dos empregos
(CONNOLLY, 2012). Consequentemente, o objetivo dos cortes e
congelamentos salariais, as reduções nos gastos sociais, a contração
do emprego como forma de baixar a despesa pública tem implicações
nos custos do trabalho. Na verdade, “se os custos laborais são
reduzidos no setor público, o efeito tende a propagar-se ao resto da
economia”. (LAPAVITZAS et al., 2010, p. 39).
Daí que este artigo proponha uma breve incursão sobre o
trabalho enquanto direito que hoje está a ser questionado para,
depois, se centrar em medidas associadas a políticas de austeridade
que estão a ser indutoras de retrocesso social. Finalmente,
enunciam-se alguns momentos de reação sindical e social à
austeridade e realça-se o papel “travão” do Tribunal Constitucional.

1. TRABALHO E DIREITOS

A noção de trabalho22 acolhe diferentes tipos de


significados, desde logo porque pressupõe várias cadeias de
relações: com a natureza, com a produção (de bens e mercadorias
para consumo), com os serviços (prestação de serviços entre
pessoas), com a ideia de transação (troca de bens materiais), com a
noção de criação (o trabalho é invenção e descoberta), com
espaços/instituições (organizações) etc. (FREIRE, 1997). Subjacente
a esta proposta analítica, pode-se certamente identificar a conceção
do trabalho como um direito em sentido amplo, ainda que o valor do
trabalho e as atitudes que se tenham para com ele possam ser objeto

22
Para João Freire (1997, p. 27), trata-se de “atividade deliberadamente concebida
pelo Homem, consistindo na produção de um bem material, na prestação de um
serviço ou no exercício de uma função, com vista à obtenção de resultados que
possuam simultaneamente utilidade social e valor económico, através de dois tipos
de mediações necessárias, uma técnica e outra organizacional”.
70 Movimentos, Direitos e Instituições

de múltiplas análises e abordagens consoante os momentos na


história e consoante um processo de institucionalização e
formalização de instituições de representação coletiva (com os
sindicatos) capazes de pugnar pelos interesses de quem trabalha.
De um ponto de vista socio-histórico, e parafraseando João
Maria Mendes (2008, p. 118-119), dir-se-á que pelo menos quatro
entendimentos atravessaram o trabalho: por um lado, um elemento
punitivo (consagrado na figura de Adão e toda a sua progenitura,
que são condenados a trabalhar); por outro lado, a ideia trabalho
como reversão salvífica (observada a partir do Antigo Regime/entre
o Renascimento e as Revoluções Liberais, o que corresponde à
Idade Moderna e, mais tarde, a partir do século XIX, à associação
entre socialismo e movimento operário, em resultado da qual o
trabalho passou a ser visto como o “Messias do mundo moderno”);
em terceiro lugar, um elemento da relação com a natureza (pela
criação das máquinas o homem seria progressivamente um dia dono
da natureza, ainda que historicamente esta relação entre trabalho e
tecnologia, como forma de controlar a natureza, deambulou entre o
lado “bom” (Dr. Jekyll) e lado “mau” (Mr. Hyde), com ainda recorda J.
M. Mendes; por fim, o trabalho contemporâneo, dos dias de hoje,
muito associado às novas formas de polivalência e fragmentação, às
novas modalidades de emprego, ao fenómeno do desemprego, etc.
Afinal, depois de um trajeto de ascensão no plano social, o trabalho
contemporâneo é confrontado com sinais de decadência que
parecem hoje acentuados em contexto de crise económica e
austeridade social.
De igual modo, no plano jurídico, a construção de um
“Direito do Trabalho” remonta a todo o processo de transformação
social ditado pela Revolução Industrial, em resultado da massificação
da produção, da migração da população rural para os centros
urbanos industrializados e, consequentemente, da busca de trabalho
num contexto de ausência de poder de negociação/reivindicação face
ao patrão. Nesse sentido, as leis do trabalho visaram mesmo “regular
o trabalho de crianças e mulheres, datando de 1802, em Inglaterra e
de 1891, em Portugal, seguindo-se um período de certa
uniformização dos regimes laborais nos vários países europeus”
(DIONÍSIO, 2004, p.1).
Ainda no campo dos progressos nos direitos do trabalho no
plano internacional (sobretudo europeu) a conquista das 8 horas de
trabalho diárias/48 h semanais, a criação da Organização
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 71

Internacional do Trabalho (em 1919), com as convenções que lhe


ficaram associadas, “desempenharam e continuam a desempenhar
um importantíssimo papel de uniformização e de regulação das
relações sociolaborais à escala mundial”. (DIONÍSIO, 2004, p. 2). Por
outro lado, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial consagrou-
se a “idade de ouro” assente na edificação de normas de cidadania
laboral no local de trabalho e no desenvolvimento de políticas
macroeconómicas favoráveis ao pleno emprego. (ROSS; MARTIN,
1999, p. 7). O Estado-Providência e o pleno emprego configuraram-
se como mecanismos redistributivos cujas metas garantiram amplos
consensos. Foi nesse contexto que o neocorporativismo se afirmou
como disposição institucional de relações consensuais entre o
governo e os interesses organizados (REGINI, 1995, p. 8) e o
fordismo se confirmou como modelo de relação salarial dominante.
No entanto, esta visão de prosperidade foi-se diluindo,
sobretudo após a crise petrolífera de 1973, que evidenciou a
vulnerabilidade do referido modelo e em geral das economias
europeias. Uma dupla transformação afetou a ação dos sindicatos: por
um lado, as decisões mais importantes para os interesses sindicais
deslocaram-se das arenas nacionais “para cima” (para níveis
transnacionais) e “para baixo” (para níveis subnacionais). Em ambos os
níveis, porém, os sindicatos revelaram-se consideravelmente mais
fracos do que no nível nacional; por outro lado, as decisões
macroeconómicas passaram a ser progressivamente produzidas no
quadro de negociações intergovernamentais e dos mercados globais,
patamares que superaram claramente a capacidade de ação das
estruturas sindicais. Além disso, decisões sobre salários e condições
de trabalho passaram a depender menos de acordos coletivos e mais
das empresas, espaços onde a influência sindical se revelou dispersa e
frágil. (ROSS; MARTIN, 1999, p. 8). O declínio da referida “idade de
ouro” significou, portanto, uma progressiva degradação das condições
de trabalho, colocando novas exigências sobre os orçamentos de
Estado, em especial para fazer face ao aumento do desemprego que ia
constantemente agravando a crise fiscal do Estado. (COSTA, 2008, p.
23-25; ESTANQUE; COSTA, 2013, p. 176).
A partir dos anos 80 do século XX o novo léxico político da
era pós-fordista acabaria por ser marcada pela globalização,
insegurança, descentralização ou flexibilidade. (COSTA, 2008, p. 29-
37). Em geral, realidades pouco auspiciosas para o mundo do
trabalho abriram caminho a uma nova morfologia que
72 Movimentos, Direitos e Instituições

[...] compreende não só o operariado herdeiro da era taylorista e


fordista, em relativo processo de encolhimento especialmente nos
países do Norte (mas que seguem um movimento contrário em vários
países do Sul, como China e Índia), mas incorpora também os novos
proletários precarizados do mundo. (ANTUNES, 2013, p. 9).

2. UMA AUSTERIDADE GERADORA DE


RETROCESSO E DE CONTROVÉRSIA SOCIAL

Se a era pós-fordista e os seus “conceitos-satélite”, por si


só, já indicavam o caminho da degradação para o mundo do trabalho,
a austeridade reforçou os sinais de fraqueza sobre o mercado de
trabalho. Desde logo, ao trazer consigo uma marca de retrocesso
social, evidenciou a fragilidade de certos indicadores do mercado de
trabalho e acentuou assimetrias na relação capital-trabalho (LEITE et
al., 2014).
Essa marca de austeridade resultante do MECPE e das
políticas governamentais, a qual, entretanto seria convertida em lei
(com as alterações à legislação laboral introduzidas pela Lei
23/2012), pode testemunhar-se pelas seguintes medidas:
- Desde janeiro de 2011 (e inscrito na Lei do Orçamento de
Estado para 2011), cortes salariais entre 3,5% e 10% aplicados aos
trabalhadores da administração pública, incluindo os do setor
empresarial do Estado, com salários superiores a 1.500€. Estes
cortes mantiveram-se em 2012 e 2013, ao passo que no Orçamento
de Estado para 2014 estipularam-se cortes entre os 675€ e os 2.000€
brutos de rendimento mensal, ainda que esta proposta tenha sido
recusada pelo Tribunal Constitucional;
- O corte de 50% (sobretaxa extraordinária em sede de
imposto sobre rendimentos singulares/IRS) nos subsídios de Natal
em 2011;
- A supressão de subsídios de férias e Natal em 2012 e
2013 para os funcionários públicos e pensionistas (com subsídios
acima de 600€ e a partir de rendimentos brutos de 1.100€);
- A eliminação das promoções e progressões na carreira da
Função Pública;
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 73

- Um forte aumento da carga fiscal, sobretudo sobre


consumidores e assalariados, ampliando o fosso de rendimentos
entre capital e trabalho;
- Para os contratos de trabalho celebrados após 1.11.2011,
foi determinada a redução das compensações por despedimento por
causas objetivas e outros casos de fim de contrato de 30 para 20 dias
por cada ano de serviço, até um máximo de 12 salários (Lei n.
53/2011, artigo 366º-A), mas com extensão progressiva à
generalidade dos contratos. Entretanto, para 2014 foi estipulado um
corte das indemnizações por despedimento, segundo dois escalões:
um, reduzindo as indemnizações de 20 para 18 dias de salário, nos
três primeiros anos e afetando sobretudo os contratados a prazo; e
um outro, mais direcionado para os novos trabalhadores com
contratos permanentes, que terão uma indemnização calculada com
base em 12 dias de salário por cada ano de serviço;
- Os despedimentos por inadaptação e extinção do posto de
trabalho passaram a ser mais fáceis. Em 13.02.2014 foi aprovada
uma lei que regula o despedimento por extinção do posto de trabalho,
assente em “cinco critérios objetivos e densificados que devem ser
respeitados com ordem hierárquica”: a “avaliação do desempenho” do
trabalhador, seguido das “menores habilitações académicas”, do
custo da “manutenção do vínculo laboral”, ou seja, no que às
remunerações mais elevadas diz respeito, da “menor experiência
profissional” e, por último, da “menor antiguidade” na empresa;
- Redução de 3 dias de férias, supressão de 4 feriados (dois
católicos e dois não católicos), liberalização do “banco de horas” (os
empregadores passam a dispor de um banco de horas individual e
grupal de 150 horas anuais a negociar individualmente com o
trabalhador) e fim do descanso complementar por trabalho
extraordinário;
- A desvalorização do papel dos sindicatos na contratação
coletiva. Na segunda atualização do MECPE (dezembro de 2011)
foram feitas pequenas alterações à primeira atualização do MECPE
(setembro de 2011). Assim (em especial no ponto 4.7 iii), podia ler-se
que o governo deveria “definir critérios claros a serem seguidos no
sentido da extensão dos acordos coletivos […]. A representatividade
das organizações negociadoras será avaliada na base de indicadores
quantitativos” [note-se que na versão anterior do MECPE falava-se
também em critérios qualitativos e não apenas quantitativos]: “Com
esse objetivo, o governo dará os passos necessários para recolher
74 Movimentos, Direitos e Instituições

dados sobre a representatividade dos parceiros sociais” (note-se que


anteriormente a essa responsabilidade era da competência do
Instituto Nacional de Estatística);
Deste leque de medidas emergiram algumas questões
controversas que importa aqui retomar e que se prendem com a
degradação dos salários, o aumento dos tempos de trabalho e a
flexibilidade do mercado de trabalho.
(i) A desvalorização progressiva dos salários. Ao longo
da última década, sobretudo na administração pública, os salários
têm vindo a perder poder de compra. Mas foram também penalizados
os salários mais baixos cuja importância em contexto de crise
económica é enorme. E salário mínimo nacional não tem sofrido
alterações, não obstante ser estruturas sindicais e patronais estarem
mais ou menos de acordo quanto à importância da sua atualização.
Porém, na segunda atualização do MECPE (dezembro de 2011, no
ponto 4.7.i) podia ler-se que “qualquer aumento no salário mínimo
apenas terá lugar se justificado por desenvolvimentos económicos e
do mercado de trabalho e acordado no quadro de uma revisão do
programa”.
A desvalorização dos salários permanece, na verdade, na
ordem do dia23, tendo estado bem presente nas leis dos Orçamentos
de Estado dos últimos anos, assim como sucedeu no OE para 2014.
De resto, como assinalou em outubro de 2013 o Banco de Portugal,
com base em estatísticas da Segurança Social, entre 2011 e 2012,
mais de 39% dos trabalhadores que conseguiram manter o emprego
sofreram uma redução salarial. Essa redução foi na ordem dos 23%.
A juntar a este facto, os portugueses que mudaram de emprego
durante este período viram também os rendimentos cair cerca de
11%. Por outro lado ainda, de entre os “trabalhadores que
mantiveram o mesmo empregador e cuja remuneração permaneceu
constante em 2012, cerca de 18,6% recebem o salário mínimo”.
(BANCO DE PORTUGAL, 2013, p. 37).
Por fim, o exercício de quantificação elaborado por Leite et
al. (2014), permitiu ir mais longe no cálculo das perdas salarias
associadas ao trabalho suplementar. Com efeito, a partir do valor da
remuneração base média registada em outubro de 2012, verifica-se
que a redução para metade da retribuição por trabalho suplementar e

23
Para uma análise recente da relação entre a evolução dos salários e a
competitividade da economia portuguesa ver a obra de: ALMEIDA; CALDAS, 2014.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 75

por trabalho em feriado resultou num corte médio da retribuição total


do trabalhador de 2,3% em 2013. Só a redução do pagamento por
trabalho suplementar para o conjunto dos trabalhadores que declarou
realizá-lo correspondeu a um corte de 17% do valor dessa parcela do
rendimento e a redução do pagamento por trabalho em feriado
correspondeu a um corte de 75% dessa parcela do rendimento do
trabalhador.
(ii) O aumento dos tempos de trabalho. Quando foi
aprovada no Parlamento português em maio de 2012 e promulgada
pelo Presidente da República em junho de 2012, a terceira revisão do
código laboral introduziu como principal novidade a possibilidade de
aumento do período normal de trabalho diário em duas horas, fruto da
criação de bancos de horas individuais, o que veio perturbar a
conciliação entre trabalho e vida familiar e diminuir o direito ao
descanso (REBELO, 2012). Na prática, o aumento do tempo de
trabalho sem contrapartidas remuneratórias - e, consequentemente, o
embaratecimento do trabalho - foi conseguido através dos cortes de
dias de férias e feriados, dos bancos de horas individuais e do fim do
descanso por trabalho suplementar.
Se olharmos para a duração média do tempo de trabalho
para lá do lado formal da economia, somos confrontados com mais
retrocessos nos tempos de trabalho. Um estudo da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) indicou que,
de entre 26 dos 34 países da OCDE, Portugal é o país onde mais
horas se trabalham por dia, mais precisamente 8,71 horas por dia
(em média 520 minutos por dia). Sendo a média na OCDE de 8 horas
(480 minutos por dia), apenas os mexicanos (9,9 horas/dia) e os
japoneses (9 horas/dia) trabalham mais do que os portugueses. O
estudo da OCDE, além de evidenciar a diferençaentre o que se
produz e o tempo que se trabalha - que explica o défice de inovação
e organização do tecido empresarial português – torna também
visível o lado informal (invisível) do mercado laboral, que se estima
ser responsável por cerca de 25% do PIB português24. Mais de
metade desse grupo (53%) corresponderia a atividades não
remuneradas, com destaque para trabalhos domésticos como
limpeza, cozinha, jardinagem e cuidados de crianças (OECD, 2011).

24
Estima-se que, em Portugal, o peso da economia informal (clandestina) represente
cerca de ¼ do PIB português. Como assinalam Dornelas et al. (2011, p. 16), o peso
do trabalho não declarado apresenta, sobretudo, motivações mais económicas do
que sociais e atinge tanto mais as diferentes categorias quanto mais distantes
estas se encontram do emprego típico e protegido.
76 Movimentos, Direitos e Instituições

Em outubro de 2013, a consumação do retrocesso nos


tempos de trabalho foi testemunhada pela Lei n. 68/2013, que
aumentou o período normal de trabalho dos trabalhadores em
funções públicas de 35 horas para 40 horas semanais. Ao colocar
Portugal no quadro dos países onde se trabalham mais horas por
semana, esta lei (neste caso com o aval do Tribunal Constitucional)
afigura-se como muito questionável do ponto de vista da sua eficácia
no aumento da produtividade. Como atestava um estudo da Direcção-
Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), publicado
em janeiro de 2013, trabalhar mais está longe de significar ser mais
produtivo: “Não existe uma relação consistente entre o número de
horas trabalhadas e a produtividade”. E “ainda que Portugal tenha um
número médio de horas trabalhadas por semana, tanto no emprego
total como no emprego a tempo inteiro (39,1 e 42,3 respetivamente),
superior ao da Alemanha (35,6 e 42), o seu índice de produtividade é
pouco mais de metade do alemão”. (ASENCIO et al., 2013, p. 57).
Como afirmei noutro lugar (COSTA, 2012c, p. 170), não
surpreende que o discurso político veja no aumento da produtividade
a solução para vencer a crise, alcançar a competitividade e o
crescimento económico. A questão está, porém, em saber se é
possível vencer a crise sem dotar o “elemento humano” dos fatores
de produção (i.e., as pessoas que de facto trabalham) de condições
de motivação (retribuições justas, condições de vida dignas, boas
relações com colegas e chefias, auto-estima/bem-estar no trabalho,
etc.) que levem a acreditar que a produtividade, uma vez alcançada,
será sinónimo de recompensa. A produtividade não pode ser vista
apenas de modo diretivo, de cima para baixo, ditada pelos
imperativos da política e da economia, mas deve atender sobretudo
às expectativas das pessoas que, de baixo para cima, executam os
mais variados tipos de atividades, mais ou menos qualificadas, de
maior ou menor esforço intelectual.
(iii) Flexibilização do mercado de trabalho. Desde a
elaboração do Livro Verde sobre as Relações Laborais (2006), tem
vindo a ser identificada em Portugal a existência de uma rigidez
formal da legislação laboral. É frequente mencionar-se a dificuldade
em despedir trabalhadores com contratos sem termo (DORNELAS et
al., 2006, p. 186), e o elevado grau de proteção de que gozam os
empregos com contrato permanente, apontado como característica
do modelo de emprego dos países do Sul da Europa.
(KARAMESSINI, 2007, p. 24). Por sua vez, tal excesso de proteção
produziria impacto, segundo alguns, na taxa de criação de empregos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 77

(CENTENO; NOVO, 2008), ao condicionar os investimentos em


educação, quer por parte dos detentores desses empregos, sem
estímulo à sua permanente reconversão, quer por parte dos jovens
candidatos a esses postos de trabalho, bloqueados no acesso ao
emprego.
Por outro lado, e mesmo já tendo sido corrigida essa
25
suposta rigidez da legislação laboral , foi igualmente reconhecido
que o mais relevante não seria a legislação em si mesma, mas o uso
que dela é feito e as consequências da sua aplicação. Seja porque,
na realidade, a norma legal pode não ser aplicada, como se verifica
nas formas atípicas de emprego e de emprego oculto (DORNELAS et
al., 2006, p. 186-187; COSTA, 2009, p. 131); seja pelos distintos
níveis de litigância, pelos vários obstáculos ao respeito da lei e até
pela progressiva alteração na interpretação das leis por parte dos
tribunais de trabalho, num sentido cada vez mais consonante com a
visão dos empregadores. (LEITE et al., 2014).
A redução das indeminizações por despedimento ou a
facilitação dos despedimentos por inadaptação e extinção do posto
de trabalho foram das mudanças mais salientes do MECPE para
flexibilizar o mercado laboral. Mas seguir esse caminho implicará
sempre “analisar primeiro que normas carecem efetivamente de
alteração, ponderando que efeitos produzirão essas mesmas
alterações” (GOMES, 2012, p. 41). Ou seja, recuperando as palavras
de ex-ministro do trabalho sueco “mudar a lei não diminui o
desemprego. Poderá mudar é a sua distribuição. Os empregadores
dizem que tem de ser mais fácil despedir. Mas […] o que tem de ser
mais fácil é contratar e não despedir”26.

3. DA REAÇÃO DOS ATORES SINDICAIS E SOCIAIS…

Perante a austeridade, associações de empregadores e de


trabalhadores não reagiram de modo convergente. Os
empregadores mostraram-se mais predispostos a aceitar a
austeridade porque verem nela uma oportunidade para, por

25
Assinale-se, por exemplo, que a revisão do código laboral em fevereiro de 2009 já
previra a compensação dessa suposta rigidez, nomeadamente em matérias como
adaptabilidade de horários, banco de horas, horários concentrados, ou processos
de despedimento.
26
Conforme disse o Ex-ministro do trabalho sueco, em entrevista ao Jornal Público,
no dia 11 de dezembro de 2011.
78 Movimentos, Direitos e Instituições

exemplo, reduzir os custos associados à prestação do trabalho


facilitar os despedimentos: “Se eu tenho na empresa um trabalhador
que repetidamente não tem a mesma performance que os outros
têm, dou-lhe formação. Mas se ele insiste, alguma coisa se passa.
Agora, passa a ser possível despedir nestes casos, antes havia
mais dificuldade”, afirmava António Saraiva, presidente da
Confederação da Indústria Portuguesa. (SARAIVA, 2012, grifo do
autor). Por seu lado, os dirigentes da Confederação do Comércio
Português (CCP, 2012, on line) congratularam-se com a redução do
número de feriados, férias e pontes, com a introdução dos bancos
de horas (que permite elevadas concentrações de trabalho em
momentos que a atividade comercial exige), ou ainda com a
redução do pagamento das horas extraordinárias, e com a
possibilidade de os desempregados poderem acumular até metade
do subsídio do desemprego com um salário caso aceitem um
emprego. Por sua vez, os dirigentes da Confederação dos
Agricultores de Portugal (CAP, 2012, on line) realçaram igualmente
o papel do banco de horas (que pode ir até 50 horas semanais de
trabalho e 150 anuais), como forma de responder aos períodos de
sazonalidade da atividade agrícola, ou ainda a redução do
pagamento do trabalho suplementar em 50%.
Da parte sindical, foi sobretudo notório o inconformismo da
Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP):

A CGTP tem argumentado contra os termos e objetivos do


memorando, realçando a necessidade de uma imediata renegociação
da dívida, os seus juros e prazos, de modo a evitar a recessão futura e
a aumentar o risco de desemprego e pobreza. A UGT tem sido mais
cautelosa sobre os requisitos do memorando. Ela enfatiza a
importância de se respeitarem os compromissos com a UE e o FMI, de
modo a ser possível renegociar a extensão do prazo e juros. (CAMPOS
LIMA, 2011, p. 2).

Mas um aspeto que não deve deixar de ser enfatizado


prende-se com o facto de a austeridade ter permitido, no seio do
campo sindical, a criação de unidade na ação entre a CGTP e a
União Geral de Trabalhadores (UGT). Isso sucedeu, por exemplo,
com a realização de três greves gerais conjuntamente convocadas
pela CGTP e pela UGT, por sinal duas organizações guiadas por
orientações ideológicas conflituantes, a primeira mais próxima de
uma orientação comunista, e a segunda de orientação
socialista/social-democrata. Tal sucedeu com as greves gerais de
24.11.2010 (contra os anunciados cortes entre 3,5% e 10%, a partir
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 79

de janeiro de 2011, dos salários dos funcionários públicos com


rendimentos acima de 1.500 euros), de 24.11.2011 (contra os cortes
dos subsídios de férias e natal aos funcionários públicos em 2012,
assim como da sobretaxa de 50% em sede de IRS do subsídio de
Natal) e em 27.06.2013 (em resultado dos cortes previstos no
Documento de Estratégia Orçamental e, portanto, das medidas
associadas à reforma do Estado: reforma aos 66 anos; aumento do
horário na função pública das 35 para 40 horas; redução de férias;
aumento das contribuições para o sistema de proteção social dos
trabalhadores em funções públicas, a designada ADSE; redução de
30.000 funcionários públicos, regime de mobilidade especial, etc.).
Ainda assim, noutros momentos, a tensão entre centrais sindicais
veio à tona, confirmando uma tendência para, após a realização de
greves gerais, algumas organizações ativarem “estratégias mistas de
“boxe e dança” e assinarem pactos sociais. (CAMPOS LIMA;
27
ARTILES, 2011, p. 390) .
Os sinais de reação sindical à austeridade não podem, pois,
ser desconsiderados. Na verdade, além das cinco greves gerais
ocorridas em Portugal entre novembro de 2010 e junho de 2013,
também no período de 2010-2012 ocorreram 12 greves gerais da
Administração Pública (STOLEROFF, 2013, p. 318), 4 das quais
coincidiram com as greves gerais propriamente ditas, mas também
diversos conflitos em categorias profissionais específicas, como é o
caso dos médicos, enfermeiros e professores. E neste cenário
destaca-se sobretudo o contingente de funcionários públicos,
ultrapassando nalguns anos o número de trabalhadores em greve da
totalidade dos setores privados de atividade económica. (COSTA;
DIAS; SOEIRO, 2014).
Em todo o caso, porventura com maior visibilidade e
alcance do que as manifestações sindicais e/ou as greves
convocadas pelas estruturas sindicais, devem mencionar-se
algumas manifestações geradas no seio da sociedade civil, as quais

27
Só em 2012 isso ocorreu por duas vezes: com a greve geral de 22.03.2012,
convocada pela CGTP em resposta à assinatura do acordo de concertação social
(intitulado Compromisso para o crescimento e emprego) celebrado entre o
governo, as confederações patronais e a UGT em 18.01.2012; e com a greve geral
de 14.11.2012, por sinal uma greve sindical ibérica promovida pela Confederação
Europeia de Sindicatos (CES), e que em Portugal, apesar de convocada apenas
pela CGTP, envolveu a CES e mais 30 sindicatos da UGT. No caso português,
registe-se ainda que esta greve geral surgiu como reação à proposta de Orçamento
de Estado para 2013, que implicou um brutal aumento da carga fiscal.
80 Movimentos, Direitos e Instituições

permitiram projetar uma onda de insatisfação popular situada para


além dos interesses meramente sindicais, ainda que o tema da
precariedade (que a austeridade reforçou) e, portanto, as
preocupações relacionadas com o mundo do trabalho, tenham
estado presentes em todas elas. Por um lado, tendo recebido um
forte impulso da geração à rasca, o 12 de março de 2011
correspondeu a uma manifestação de massas (estima-se que tenha
reunido só em Lisboa mais de 300.000 pessoas) na qual
convergiram jovens afetados pelos empregos precários, gerações
mais velhas empobrecidas ou milhares de cidadãos de distintas
tendências político-partidárias descontentes com a então ainda
governação José Sócrates. Por outro lado, na sequência de
proposta do governo de Passos Coelho de alterar a taxa social
única TSU28, o 15 de setembro de 2012 ficou marcado pela
manifestação veemente de 1 milhão de pessoas na maioria das
cidades portuguesas, levando o governo a recuar e a retirar a
referida proposta. Por outro lado ainda, uma outra manifestação
realizada a 2 de março de 2013 seria convocada pelo movimento
Que se lixe a Troika, apresentando-se declaradamente contra a
reforma do Estado e os anunciados cortes de 4 mil milhões de euros
nas funções sociais do Estado.
Ainda que não se centrem apenas no mundo do trabalho,
estas manifestações – convocadas por estruturas não institucionais,
por redes de cidadãos e, em grande medida, com o recurso a formas
de ativismo geradas a partir de redes sociais – realçam as múltiplas
recomposições que assolam o mundo do trabalho num sentido
crescentemente precarizante. E note-se que um dos elementos mais
fortes associados ao ciclo de protesto prende-se como o que parece
representar um regresso ao materialismo (ESTANQUE; COSTA;
SOEIRO, 2013, p. 33), particularmente relacionado com o trabalho e
o emprego, por sinal os tópicos principais que têm motivado o poder
de indignação das pessoas e o desenvolvimento de formas de ação
coletiva.

28
O projeto era reduzir os encargos patronais para a Segurança Social de 23,75 para
18%, por contrapartida da subida dos encargos dos trabalhadores de 11 para 18%,
visando um acréscimo de rendimentos das empresas, com um efeito neutro no
défice orçamental por não ser necessário aumentar as taxas de imposto sobre
valor acrescentado (IVA). Ou seja, seriam os trabalhadores a pagar o ac réscimo
dos excedentes das empresas, sem penalizar os restantes contribuintes.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 81

4 ...AO CONTRAPODER DO TRIBUNAL


CONSTITUCIONAL29

Além das reações sindicais e sociais e, portanto, do papel


dos movimentos (mais ou menos institucionalizados) em ação, o
Tribunal Constitucional (TC) parece ter sido o travão mais efetivo às
políticas de austeridade. É verdade que o TC tem caucionado, desde
2011, os cortes salariais aplicados aos funcionários públicos,
sustentando (nos termos do Acórdão 396/2011) que os mesmos têm
um período de vigência apenas anual, que “quem recebe por verbas
públicas não está em posição de igualdade com os restantes
cidadãos” por estar vinculado “à prossecução do interesse público” ou
ainda de que não há na Constituição da República Portuguesa
qualquer regra que estabeleça uma garantia de irredutibilidade dos
salários. (COSTA, 2012a, p. 231).
Foi dito anteriormente que, além dos cortes salariais, a
supressão de subsídios de férias e Natal para os funcionários
públicos e pensionistas (com subsídios acima de 600€ e a partir de
rendimentos brutos de 1.100€) revelou-se muito penalizadora para
aqueles cidadãos. Porém, quer em 2012, quer em 2013, o Tribunal
Constitucional veio a considerar inconstitucionais as normas dos
respetivos Orçamentos de Estado relativas a essa matéria. Se a
decisão do TC de julho de 2012 “aceitou” validá-la para esse ano civil
(ou seja, suspendeu os seus efeitos sobre os pagamentos relativos
ao ano de 2012), atendendo ao momento do ano em que foi proferida
e ao timing da execução orçamental, já em abril de 2013 o TC já
tornou imperativa a sua aplicação imediata. Ou seja, fez com que o
governo tivesse de devolver os subsídios ainda que a brutal carga
fiscal incluída no OE 2013 tenha, por si só, tornado praticamente
invisível a “liquidez” dos referidos subsídios.
Mas assinale-se ainda que a decisão do TC de declarar a
inconstitucionalidade, com efeitos retroativos, de quatro normas do
Orçamento do Estado para 2013 – cortes dos subsídios de férias aos
funcionários públicos, assim como a reformados e pensionistas e aos
contratos de docência e investigação, além das contribuições nos
subsídios de desemprego e doença –, cujo impacto nas contas
públicas pode ascender a 1.300 milhões de euros, constitui um travão

29
Para uma análise do papel do Tribunal Constitucional num cenário de tensão entre
um “Estado de Direito e um Estado de Exceção”, cf. FERREIRA; PUREZA (2013).
82 Movimentos, Direitos e Instituições

nas investigas do governo. Na verdade, o TC considerou que o que


estava a ser proposto pelo governo comportava uma violação do
princípio da igualdade e do princípio da justa repartição dos encargos
públicos.
Por outro lado, em dezembro de 2013, o TC chumbou a
proposta governamental de convergência de pensões. Para o TC, o
regime de convergência da Caixa Geral de Aposentações e da
Segurança Social criaria um “imposto” de 10% sobre as pensões e
poria em causa o princípio da proteção de confiança conjugado com o
princípio da proporcionalidade.
Por fim, até ao momento em que este texto está sendo
finalizado, pode dar-se ainda conta a decisão do Tribunal
Constitucional (Acórdão n. 413/2014) divulgada a 30 de maio de
2014, a qual veio considerar inconstitucional a norma referente aos
cortes salariais entre 2,5 % e 12 % dos funcionários públicos
(conforme assinalado anteriormente).

CONCLUSÃO

Tanto do ponto de vista social como jurídico o trabalho não


deixou de ser um direito. Porém, do ponto de vista político, i.e., das
orientações governamentais assentes em políticas de austeridade, o
trabalho foi objeto de desvalorização e precarização. O que se
testemunha pelos efeitos causados nas relações laborais: a perda de
autonomia dos parceiros sociais, sobretudo dos sindicatos, que veem
a sua posição ainda mais subalternizada; uma maior tensão nas
relações entre os próprios atores das relações laborais (inclusive
dentro do campo sindical); um reforço das assimetrias no mercado de
trabalho, designadamente entre classes de rendimentos elevados e
classes de rendimentos baixos, ou na relação entre setor público e
setor privado; uma forte diminuição do poder de compra das famílias;
um maior empobrecimento do setor produtivo; a não redução do
défice de competitividade das empresas; menor controlo por parte da
Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), uma vez que as
empresas deixam de ser obrigadas a enviar à ACT o mapa do horário
de trabalho ou o acordo de isenção de horário etc. (FERNANDES,
2012; REBELO, 2012; GOMES, 2012; COSTA, 2012b; 2013; LEITE
et al., 2014).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 83

E basta recordar alguns indicadores para constatar que


assim é no caso português. Por um lado, a presença dos contratos a
prazo aumentou, assim com aumentou a presença das formas de
emprego atípico/precário – que representam cerca de 30% do
emprego total, com incidência particular entre o grupo etário dos 15
aos 34 anos, onde atinge valores próximos dos 50% (ESTANQUE;
COSTA, 2012) – e que, por sinal, primam pela instabilidade e pela
baixa remuneração.
Por outro lado, os números do desemprego mantêm-se em
níveis elevados. Quando em março de 2011, nas vésperas de
Portugal fazer o seu pedido de resgate financeiro, a percentagem de
desempregados no país se situava nos 11,1%, (sendo na média da
zona euro de 9,9% e a da UE/27 de 9,5%), logo aí se estimava que,
no ano seguinte, o desemprego poderia chegar aos 13%. Porém, o
tempo tristemente se encarregaria de comprovar que se tratava de
uma estimativa por defeito, como o demonstraram os 17,4% de
desempregados registados em junho de 2013 (sendo 12,1% na zona
euro e 10,9% na EU/27). Ainda que em dezembro de 2013 se tenha
registado uma descida para os 15,4% (sendo 12% na zona euro e
10,9% na UE/28) (Eurostat, 2014), ela não pode ser dissociada do
crescente êxodo de pessoas em idade ativa do país e do aumento
dos desencorajados, isto é, daqueles que deixaram ativamente de
procurar emprego (COSTA; DIAS; SOEIRO, 2014). Aliás, o cenário
internacional confirma-se muito sombrio, como dá conta a OIT no seu
Global Employment Trends 2014, ao assinalar que a ténue
recuperação da crise não se traduziu na criação de empregos, pois
em 2013 o desemprego mundial afetou 202 milhões de pessoas.
A ideia que transparece para a opinião pública em Portugal
é a de que uma visão de “cima para baixo” (produto das decisões de
governantes e da imposição de credores internacionais) é a de
desvalorizar o trabalho através da redução dos seus custos. Porém,
numa altura em que se questionam direitos que outrora se
conquistaram em resultados de lutas intensas dos trabalhadores e
das suas estruturas, os tempos não devem ser de baixar os braços,
mas sim de continuar a afirmar a dignidade do trabalho. (SILVA,
2007).
Numa palavra, direitos, movimentos e instituições parecem,
assim, estar na rota do mundo do trabalho. Por um lado, e em
primeiro lugar, os direitos, no sentido em que o reclamar de formas
de trabalho dignas é uma condição fundamental para uma verdadeira
84 Movimentos, Direitos e Instituições

emancipação do trabalho humano, até porque só dessa forma se


podem retomar o caminho do aumento da produtividade da
economia. Por outro lado, os movimentos (formas de ação coletiva)
não podem deixar de estar na ordem do dia, porque são uma
condição sine qua non para uma pôr em marcha a reação social
contra a austeridade. E instituições, como os sindicatos ou outras
estruturas de representação laboral ou não laboral, assim com
pesojurídico-político, como o Tribunal Constitucional que, no caso
português, parecem ter o bom senso necessário para não tolerar toda
a austeridade e fazer recuar o governo sempre que este a leva
demasiado a peito.

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CAPÍTULO 4

A MÁXIMA PROTEÇÃO DO DIREITO SOCIAL


INTERNACIONAL À SAÚDE:
DO BRASIL A PORTUGAL, UM EXEMPLO DE
APLICAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO EM
VÁRIOS NÍVEIS 30

31
Iris Catarina Dias Teixeira

RESUMO

O trabalho pretende investigar, a partir dos diversos níveis de


proteção jurídica (constitucionalismo multilevel), díspares entre si, o
grau de garantia de avanço e de implementação do direito social à
saúde, tomando por base os acordos internacionais (multilaterais)
como elo protetivo desse direito entre diversos Países, tais como
Brasil e Portugal, para aferir que a tutela diversificada e em vários

30
Adaptação do relatório da disciplina de Direito Constitucional, referente ao primeiro
ciclo do Mestrado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da
Universidade clássica de Lisboa, ano letivo 2012-2013.
31
Advogada da União desde 2005, lotada e em exercício na Procuradoria Regional
da União da Paraíba, em João Pessoa/PB. Mestranda em Direito Constitucional
pela Faculdade de Direito da Universidade clássica de Lisboa. Especialista em
Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do
Norte, em convênio com a Universidade Potiguar. Graduada em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Responsável pela Escola da
Advocacia-Geral da União no Estado da Paraíba. E-mail: <iriscatarina@
hotmail.com>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 89

níveis garante um nível mínimo de implementação eficaz do direito


social à saúde, pelos Estados internacionais.
Palavras-chave: Direito Social; implementação; máxima eficácia;
níveis de proteção; saúde.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E


CULTURAIS COMO ESPÉCIE DE DIREITOS HUMANOS; 1.1. DA
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E FASES
POSTERIORES DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL; 1.2. DIREITOS
ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS COMO ESPÉCIE DO
GÊNERO DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS; 2.
CONSTITUCIONALISMO MULTINÍVEL; 2.1. CONSIDERAÇÕES
GERAIS; 2.2. REGIME DE RECEPÇÃO (TRANSPOSIÇÃO); 3. DO
DIREITO SOCIAL À SAÚDE; 3.1. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL
DO DIREITO À SAÚDE; 3.2. A PROTEÇÃO REGIONAL DO DIREITO
À SAÚDE: A CONVENÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS
HUMANOS; 3.3. A PROTEÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE NO
BRASIL: CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ESPECIFICIDADE
BRASILEIRA QUANTO AO CONSTITUCIONALISMO MULTINÍVEL;
CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo proceder ao exame da


regulamentação normativa do Direito Internacional de Proteção à
Saúde, com reflexos tanto no Brasil como em Portugal, diante do
processo de globalização econômica e do constitucionalismo
multilevel, da nova ordem jurídico-comunitária entre Estados e entre
estes e as Organizações supranacionais.
Isso garantirá, desde já, a preconcepção de que tanto o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
como cártula maior desses direitos, como a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 consideram o direito social à
saúde um direito humano fundamental. Assim, o estudo ficará
centrado sobre a fixação dos limites e grau de implementação
progressiva do direito internacional à saúde, a partir do intercâmbio
entre as diferentes dimensões protetivas, mediante a aceitação da
90 Movimentos, Direitos e Instituições

cláusula de transposição, tão assente em matéria de Direitos


Humanos.
Portanto, estar-se-á em busca de um modo de verificar a
compatibilidade e suficiência do sistema constitucional brasileiro para
a proteção do direito social à saúde, bem como, em termos de
constitucionalismo multilevel, a máxima efetividade ao direito
fundamental à saúde, notadamente a partir dos precedentes firmados
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto, a partir da
adoção da teoria dualista moderada e sua repercussão para o
constitucionalismo multinível.

1 DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS


COMO ESPÉCIE DE DIREITOS HUMANOS
1.1 Da Declaração Universal dos Direitos Humanos e
Fases Posteriores de Proteção Internacional

Tanto para Portugal e para o Brasil, o cenário dos Pós


Grandes Guerras Mundiais revela-se particularmente essencial para a
plena compreensão sobre o que significou para a Humanidade a
necessidade de promover a celebração e adoção de mecanismos e
instrumentos internacionais que tutelassem os direitos humanos
como direitos fundamentais do Homem, diante das atrocidades e das
violações cometidas naqueles períodos. Constatou-se, naquele
momento, sobretudo, que o âmbito de proteção – ou estímulo ao
exercício – não se deveria limitar a fronteiras geográficas, ou seja,
não deveria ser restringida a segurança interna exclusiva de um País,
a nível local, pois a repercussão na paz e estabilidade comprometidas
em uma localidade poderia afetar a das demais Nações. (GUEDES,
2006, p. 559-595)32.
Nesse contexto, foram criados órgãos internacionais que
promovessem a paz entre os Países, bem como foram celebrados
Pactos que consagrassem os valores universais do Homem e do

32
Este autor (p. 560) salienta que, “de tudo isto nasceu de um lado, o que de modo
genérico passou a ser designado como Direito Humanitário; e, do outro, a ideia de
criar organizações internacionais (por vocação aspirando à supra-estadualidade)
destinadas a retirar aos Estados e a tomar nas suas mãos o direito (entendido
como faculdade discricionária, decorrente da própria noção de soberania) de
recorrer à guerra mesmo sem ser nos limites da legítima defesa”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 91

Cidadão, dentre eles, o direito social à saúde, objetivando a


estabilidade mundial.
Em 1945, finda a Segunda Guerra mundial e criada a
Organização das Nações Unidas (ONU), foi editada a Carta dos
Direitos Humanos, estimulando a crescente importância da
diplomacia multilateral e o surgimento da doutrina do jus cogens,
como “um conjunto de normas imperativas de direito internacional
que se sobrepõem ao jus tractuum dos Estados” (RIBEIRO, 2005, p.
577-600). Insere-se, nesse contexto, a determinação quanto à
promoção da “solução de problemas internacionais econômicos,
sociais e culturais, de saúde e conexos”, prevista no art. 55, alínea
“b”, do referido instrumento.
A seguir, em 10 de dezembro 1948, a assinatura da
33
Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe previsões, além
da proteção de direitos individuais e políticos, a de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de modo progressivo, firmando-os
como direitos autônomos, na primeira fase da Proteção Internacional
dos Direitos Humanos (MARTINS, 2012, p.100-110). Contudo, e,
como não poderia deixar de ser em razão de ser uma declaração, os
direitos ali consagrados foram previstos de modo genérico, o que
gerou a necessidade de elaboração de pactos mais detalhados, os
quais garantissem a força jurídica vinculatória dos Estados de modo a
34
viabilizar a sua plena observância .
Nesse contexto é que, marcando a segunda fase de
proteção, são propostos os pactos internacionais de direitos
humanos, subdivididos em dois acordos, sufragados no decorrer da
XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas: a) o de Direitos
Civis e Políticos, celebrado em 16 de dezembro de 1966, e b) o de
Direitos Econômicos e Sociais (PDESC), acordado em 19 de
dezembro de 1966. Desse, o último é o que nos interessa35.

33
Após quase noventa reuniões, a Declaração Universal obteve a aprovação
unânime de 48 Estados, com apenas 8 abstenções (Bielorússia, Tchecoslováquia,
Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e Iugoslávia) e 2
ausências, totalizando os 58 Estados-membros da ONU, à época.
34
Isto porque os Estados ocidentais priorizavam os direitos civis e políticos, enquanto
aos socialistas interessavam os econômicos e sociais e os Estados surgidos com o
processo de descolonização destacavam a autodeterminação, a preservação dos
recursos naturais e questões relacionadas com o desenvolvimento. (CARRIÓN,
2002, p. 517-522).
35
O Congresso Nacional brasileiro aprovou o texto do referido diploma internacional
por meio do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991, teve sua
92 Movimentos, Direitos e Instituições

1.2 Direitos Econômicos, Sociais e Culturais como


Espécie do Gênero Direitos Humanos e Fundamentais

Esse ponto terá especial relevo ao adentrar-se sobre o


exame acerca da recepção dos Tratados na Ordem Jurídica
Brasileira, cuja problemática de enquadramento de determinado
direito como espécie de Direitos Humanos foi destacada no Voto do
Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal, de
modo a evidenciar que, além do fato de “a confluência de valores
supremos protegidos nos âmbitos interno e internacional em matéria
de direitos humanos não resolve o problema”, a “sempre possível
ampliação inadequada dos sentidos possíveis da expressão ‘direitos
humanos’ poderia abrir uma via perigosa para uma produção
normativa alheia ao controle de sua compatibilidade com a ordem
constitucional interna”, acarretando “risco de normatizações
camufladas” permanente36.
Sob a perspectiva da congruência das expressões Direitos
Humanos e Fundamentais, aqueles inicialmente foram associados
como aqueles positivados nas Constituições estatais, a exemplo do
uso do termo a partir da Constituição alemã (“La Grundgesetz de
Borunn”) de 1949. (PÉREZ LUÑO, 2003, p. 30-31).
De fato, parte da doutrina entende que a expressão Direitos
Humanos seria exclusivamente de linguagem de direito internacional,
como aqueles presentes nas declarações e tratados, ao contrário dos
Direitos Fundamentais, de direito interno, tal como o defendido por
André Carvalho Ramos (2001, p. 120), Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p.
35-36), ou, ainda seriam os Direitos Fundamentais enquadráveis
dentro dos Direitos Humanos, os quais não poderiam ser “profanados
em circunstância alguma, diferentemente dos direitos humanos que
em situações excepcionais o Estado pode suspender”. (LEDESMA,
1996, p. 24). Assim, a diferenciação estaria, em essência, no plano
de proteção em que se encontram tutelados.
Nesse mesmo sentido, na doutrina portuguesa, pode-se
citar Joaquim José Gomes Canotilho, o qual entende o seguinte:

Carta de Adesão ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, depositada


em 24 de janeiro de 1992 e ingressou no ordenamento jurídico brasileiro por meio
do Decreto 592, de 6 de julho de 1992. No mesmo ano, o Brasil ratificou a
Convenção Americana de Direitos Humanos.
36
Conforme o Recurso Extraordinário n. 466.343-1-SP.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 93

[…] expressões direitos do homem e direitos fundamentais são


frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e
significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do
homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos;
direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-
institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os
direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o
seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos
fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem
jurídica concreta. […]. (2013, p. 259).

Para outra parcela, parte-se do pressuposto que a


expressão Direitos Humanos, apesar de usualmente utilizada no
âmbito do direito internacional, equivaleria, para o direito interno, a
Direitos Fundamentais, e, como tais, subdivididos em Direitos Civis e
Políticos, e Direitos Sociais. Essa é a posição adotada por Dalmo de
Abreu Dalari (2013, p. 2-3), José Afonso da Silva (1999, p. 180) e por
Fábio Konder Comparato (2005).
Por fim, Jorge Miranda defende a imprecisão técnica em se
propor a indistinção das denominações entre ambas as expressões,
justificando seu posicionamento por triplo motivo: a) os direitos
fundamentais cuidam de direitos “assentes na ordem jurídica, e não
de direitos derivados da natureza do homem”, portanto, a ordem
jurídica deve ser sempre através de normas positivas; b) os direitos
fundamentais não podem ser desprendidos da organização
econômica, social e cultural e da organização política, e, c) os direitos
fundamentais previstos nas Constituições do Século XX não se
reduzem a “direitos impostos pela Ordem Natural”. Afirma, por fim,
que, no plano internacional, é muito mais usual a expressão “Direitos
do Homem”, tal como é normatizada, inclusive, pela CRP (art. 7º, n.
1). (MIRANDA, 2000, p. 52-54).
Assim expostas as considerações, filia-se, neste artigo, à
segunda corrente, a qual entende que não há distinção entre Direitos
Humanos e Direitos Fundamentais, neles incluídos os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Primeiramente, sob uma perspectiva
dogmático-positiva reducionista, observa-se das normas
internacionais protetivas dos Direitos Humanos a sua estreita
correspondência com o rol dos Direitos Fundamentais, quer sejam os
Direitos Civis e Políticos, quer sejam os Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais.
E assim é que se nota como exemplo bem nítido, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujos bens tutelados,
dentre outros, podem ser citados os direitos à “alimentação,
94 Movimentos, Direitos e Instituições

vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais


indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle” (art. XXV), direitos esses
inequivocamente sociais (BAPTISTA, 2004, p. 388-397). Ora, trata-se
de verdadeira identidade das espécies de direitos, o que não poderia
conduzir a outro entendimento senão o de encarar o gênero, como
sinônimos.
A distinção, a nosso entender, com base, por exemplo, nos
níveis de proteção (local, regional, internacional, supranacional),
somente tende a enfraquecer a carga protetiva – força normativa –
que necessariamente deve ser garantida aos Direitos Humanos
Fundamentais, dificultando a concretização da proteção desses
direitos. Assim, não se constata qualquer escopo teleológico em
tentar proceder a distinções desnecessárias que mais confundem que
ajudam o aplicador das normas de Direitos Humanos – e beneficiário
também, em quaisquer dos seus níveis de tutela jurídica.
De fato, o princípio da universalidade dos direitos – tido
como norteador da proteção internacional dos direitos humanos –
está contido tanto na Declaração dos Direitos do Homem, no Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e
todos esses instrumentos internacionais dispõem sobre os Direitos
Fundamentais.
Por fim, ratificando este posicionamento, verifica-se que
esta é a acepção adotada pelo Supremo Tribunal Federal, ao
determinar que “os direitos humanos são direitos fundamentais com
37
primazia na Constituição” e será esta a linha ora examinada.

2. CONSTITUCIONALISMO MULTINÍVEL
2.1 Considerações Gerais

O enfoque da regulamentação do Direito social à Saúde sob


uma perspectiva

37
Explica-se que as fontes para esta afirmação são: Recursos Extraordinários n.
349703 e n. 466343 e o Habeas Corpus n. 87585, revogando-se o Enunciado n.
619 da Súmula de jurisprudência do STF, segundo o qual "a prisão do depositário
judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo,
independentemente da propositura de ação de depósito”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 95

do constitucionalismo multinível ou multilevel revela-se


particularmente pertinente diante do caráter transnacional dos
Direitos Humanos Fundamentais Sociais, cujas tutelas não se limitam
à determinada fronteira geográfica entre Países. Está englobado,
sobretudo, em razão da fórmula de uma governança global como
uma maneira de efetivar a proteção dos bens públicos de todos os
Povos. (CARRIÓN, 2002, p. 517-522).
O reconhecimento de um âmbito de proteção em vários
níveis tende a garantir maior justiciabilidade do Direito à Proteção à
Saúde, uma vez que situa o indivíduo, como membro de uma
comunidade global, local, intercontinental, regional, nacional, e,
portanto, com a garantia dos mais elevados níveis de qualidade de
saúde possível. (MOREIRA, 2011, p. 493-515).
De fato, é comum observar-se que a proteção do Direito à
Saúde seja tutelada em diversas dimensões jurídicas, com idênticos
ou concorrentes patamares normativos. Trata-se, assim, do que se
denomina por constitucionalismo multilevel (PERNICE, 2012, p. 9-16),
em que “a governança revê a maneira em que certas competências
são transformadas do modelo do Estado Nacional para o nível do
Supranacionalismo” (IVAN; CUGLESAN, 2009, p. 49)38, envolvendo,
portanto, o núcleo de proteção em, no mínimo, três níveis: central,
regional e local.
Nessa senda, cabe registrar que, em caso de conflito entre
os diversos níveis do constitucionalismo, Poiares Maduro entende
pela existência de princípios norteadores para a resolução dessas
contendas, intitulando-os como princípios do direito contrapontual, e,
dentre eles, o princípio do pluralismo normativo, que acarreta que os
ordenamentos jurídicos deveriam ser adequados à autoridade
normativa central. (MADURO, 2006, p. 15-16 e 35-40).
Em outra via, Flávia Piovesan examina o assunto sobre a
perspectiva de um “controle da convencionalidade” e o “diálogo entre
as jurisdições”, formando um paradigma39, in verbis:

38
O texto, ora traduzido livremente, traz o seguinte apontamento: “Multi-level
governance reveals the way in which certain competences are transfered from the
national state ‘portfolio’ to the supranational level, and to the sub-national, public a
private authorities.”
39
É claro que aqui não se está em questão o aspecto negativo que eventualmente
essa interrelação entre diversas ordens jurídicas possa acarretar, que seria tal
como sustentado por Jorge Barcelar Gouveia, como um “instrumento de domínio,
impondo uma determinada visão do mundo e da vida, sem espaço para os direitos
96 Movimentos, Direitos e Instituições

[…] no qual aos parâmetros constitucionais somam-se os parâmetros


convencionais, na composição de um trapézio aberto ao diálogo, aos
empréstimos e à interdisciplinariedade, a resignificar o fenômeno
jurídico sob a inspiração do humanrights approach. […]. (PIOVESAN,
2012, p. 68).

Feitas tais considerações, no que se refere ao campo do


Direito Social Internacional à Proteção à Saúde, o art. 12 do Pacto
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prevê como obrigação
para o Estado signatário o dever de promover e proteger o Direito à
Saúde no nível mais elevado possível (grifo nosso), o que pode ser
melhor compreendido e tutelado sob uma perspectiva protetiva de
sistema multinível.
Contudo, a questão central a ser posta em evidência
baseia-se na indagação da existência ou não de um
constitucionalismo multilevel a ser observado no âmbito do Direito à
Saúde, podendo-se aferir, desde já, nas seguintes dimensões de
proteção: (i) a do direito internacional dos direitos humanos (que, a
partir da EC 45/2004, cria a possibilidade de haver normas com
eficácia de emendas constitucionais), (ii) a das normas
constitucionais, aqui em dois âmbitos protetivos, a saber, as
disposições constantes da Constituição Federal de 1988 e a das
Constituições Estaduais, e (iii) a do ordenamento interno, nela
inseridas as Leis Orgânicas Municipais.
De qualquer sorte, é válida, por ora, a afirmação de que não
existe “desenvolvimento econômico com retrocesso ou estagnação
do bem-estar social” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2007, p. 465-466). E o
pensamento em torno do constitucionalismo multilevel a ser
observado no âmbito do Direito à Saúde não pode ser dissociado do
exame dos aspectos econômico e social como mecanismo de maior
grau de eficácia protetiva do direito fundamental da Saúde.

2.2 Regime de Recepção (Transposição)

Traçadas essas linhas, importa verificar a forma como os


Pactos internacionais ou regionais são recepcionados dentro da
Ordem Jurídica interna de cada País, a fim de se verificar o grau de
integração e efetividade conferida pelo Estado para a adoção das
regras oriundas do direito comunitário.

fundamentais que possam espelhar as autonomias e peculiaridades de certos


povos e culturas”. (GOUVEIA, 2003, p. 71).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 97

Será por meio do exame da denominada cláusula de


incorporação (de recepção) que será viabilizada a análise das
exigências jurídicas contidas no Texto Constitucional de um Estado a
indicarem a importância atribuída ao direito internacional dentro da
ordem normativa local.
Abstraindo-se das denominações, o critério de distinção
será o menor ou maior grau de complexidade da recepção das
normas oriundas do direito internacional comunitário dentro da ordem
jurídica interna, podendo se verificar de modos (i) pleno, que, sem
depender do conteúdo, ingressa sem exigência de processo
legislativo formal de validação de aplicabilidade imediata; (ii) semi
pleno, que engloba parte do sistema anterior a depender do conteúdo
da norma internacional, ou, para outras, exige processo formal –
legislativo ou não - de adoção interna das regras, chamado de
transformação, e; (iii) automático, que será o caso de as normas de
Direito Internacional são directamente aplicáveis na ordem jurídica
interna dos Estados, ou seja, impõem-se sem que os órgãos
estaduais tenham sequer que proceder à sua publicação.
Trata-se, em verdade, sobre o exercício de controle da
convencionalidade, tal como o defendido por Flávia Piovesan, do
entrosamento maior ou menor entre os sistemas jurídicos
internacional e interno. (2012, p. 93).
É de se registrar que a tendência mundial é adoção desta
última, a saber, a cláusula de recepção automática, reconhecendo-se
a primazia do direito internacional sobre o direito interno, tendo por
fundamento o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, de 1969, o qual prevê que “uma parte não pode invocar as
disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de
um tratado”.
De fato, isso ocorre porque a unidade de ambos os
ordenamentos jurídicos (interno e internacional) revela-se na plena
compatibilidade entre Constituição do Estado com as normas
internacionais, evitando-se possíveis conflitos existentes.
Um exemplo de cláusula de recepção automática das
normas de direito internacional ao direito interno é a contida no art. 8º,
números 1e 3 da Constituição da República Portuguesa, ao
preverem, respectivamente, que as “normas e os princípios de Direito
Internacional geral ou comum fazem parte integrante do Direito
português”, e que as “normas emanadas dos órgãos competentes
das Organizações Internacionais de que Portugal seja parte vigoram
98 Movimentos, Direitos e Instituições

diretamente na ordem interna desde que tal se encontre


expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos”.
Por seu turno, a Constituição da República do Brasil adota o
sistema semipleno (misto), uma vez que acopla regimes
diferenciados de recepção dos tratados internacionais pela ordem
interna a depender da matéria disposta no pacto, subdividindo-os em
tratados internacionais comuns, gerais e que versam sobre direitos
humanos.
De fato, isso é o que depreende do art. 5º, §§ 1º e 2º da
Carta Magna do Brasil, diante, primeiro, da presença de cláusula
aberta – de feição expansiva – de recepção dos ajustes
internacionais que disponham sobre direitos fundamentais e que não
estejam expressos na Constituição Federal. Assim, o art. 5º, § 1º
determina que as normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais detém aplicação imediata, o que conduziria a vigência
do sistema automático de recepção dos tratados internacionais.
Doutra banda, quanto aos demais tratados internacionais,
aplica-se a sistemática de incorporação legislativa, na medida em que
se tem exigido a intermediação de um ato normativo para tornar o
tratado obrigatório na ordem interna, o que seria a adoção, nesse
particular, do sistema semipleno de recepção dos ajustes
internacionais.

3 DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE


3.1 A Proteção Internacional do Direito à Saúde

Os principais instrumentos de proteção a nível universal


(ONU), mundial ou intercontinental: a) a Declaração Universal de
Direitos Humanos, b) Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, de 1992, e o Comentário Geral n. 14 sobre o
Direito à Saúde, adicionando-se o Comentário Geral n. 3, do Comitê
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que trata da
natureza das obrigações (UN doc. E-1991-23); c) Protocolo Adicional
em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988),
aderido à Convenção Americana; c) Convenções de Genebra I, II, III
e IV de 12 de agosto de 1949, bem como em seu Protocolo Adicional;
d) Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais/Protocolo de San Salvador (1996); e, e) Declaração de
Viena.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 99

Quanto ao primeiro deles e mais importante no que se


refere à proteção global do Direito Social à Saúde, o Pacto dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, outrora já mencionado,
prevê, em seu art. 2º, o comprometimento de todos os signatários a
adotarem “medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e
cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e
técnico, até o máximo de recursos disponíveis, que visem a
assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o
pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto
incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”.
Nesta previsão, vem entendendo a doutrina nacional e
internacional pela proibição do retrocesso nos investimentos na área
social, muito embora o que se observa é a oscilação de investimentos
a depender dos interesses dos governantes e de crises econômicas.
Por seu turno, no item 2 do mesmo art. 2º, considerado de
aplicabilidade imediata, é enunciado o princípio da não discriminação,
pelo qual o Direito à Saúde deve ser garantido a todas as pessoas,
independente de diferença de qualquer espécie.
Nesse mínimo de aplicação imediata, a doutrina costuma
diferenciar um de outro, de acordo com o grau de eficácia, efetividade
do direito. Quer dizer, se com relação aos primeiros os Estados se
comprometem – numa perspectiva programática – a
progressivamente e de acordo com os meios disponíveis promoverem
medidas para o pleno exercício do Direito à Saúde, quanto ao
segundo, assim como foi conferido aos Direitos Políticos e Civis, a
sua aplicabilidade é imediata.
Feitas essas considerações de ordem estrutural, importa
destacar os dispositivos no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, que protegem, em âmbito global, o Direito Social à Saúde.
Sobre o dever de proteção desse Direito, no que tange aos
deveres dos Estados para implementação do Pacto, dispõem os seus arts.
2º e 4º, o caráter progressivo das medidas a serem adotadas, inclusive as
legislativas, até o máximo de recursos disponíveis, e a sujeição das
limitações do direito exclusivamente àquelas previstas em lei40.

40
Tal previsão é repetida no Protocolo Adicional de São Salvador, em seu art. 5º
(Alcance das restrições e limitações), com o seguinte texto: “Os Estados Partes só
poderão estabelecer restrições e limitações ao gozo e exercício dos direitos
estabelecidos neste Protocolo mediante leis promulgadas com o objetivo de
100 Movimentos, Direitos e Instituições

Sobre o significado da palavra “progressivo”, são envolvidos


dois tipos de obrigações possíveis: a) obrigações de meio (art. 2º, I do
Pacto – são todos os meios apropriados, incluindo em particular as
medidas legislativas; também são incluídas nessa previsão a
disponibilização de recursos judiciais em relação a direitos justiciáveis;
e, de imediato, garantir o exercício de direitos sem qualquer
discriminação); b) obrigações de resultado (que seria a própria
concepção de progressividade em si).
Acoplada a essa ideia, encontra-se o disposto no art. 12 do
referido ajuste que aborda o assunto sobre o enfoque do “melhor
estado de saúde física e mental possível de atingir”.
Na acepção de empreender todos os esforços para utilizar
todos os seus recursos ao seu dispor a fim de satisfazer o direito à
saúde, um bom exemplo de medida adotada pelo Brasil foi a aprovação
da Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000, que fixou
o limite mínimo de gastos, por Ente Federativo, com ações na área de
saúde, sendo o art. 198, § 2º, da Constituição Federal de 1988, sido
regulamentado pela Lei Complementar Federal n. 141, de 2012, para
dispor sobre “os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços
públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de
transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e
controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo”.
Deste modo, em âmbito de proteção internacional, o Direito
à Saúde encontra previsões expressas quanto à sua necessária
eficácia, não sendo válido afirmar que estariam a tratar unicamente
de normas programáticas para os Estados-Partes, mas sim cuidam
de um verdadeiro dever assumido quanto à progressividade das
medidas a serem implementadas no âmbito de cada País com vistas
à plena e igualitária fruição do Direito à Saúde.

3.2 A Proteção Regional do Direito à Saúde: a


Convenção Interamericana dos Direitos Humanos

Juntamente com a concepção de uma proteção global dos


Direitos Humanos, por volta do ano de 1945, surge a necessidade de
serem criados organismos regionais de tutela dos Direitos Humanos

preservar o bem-estar geral dentro de uma sociedade democrática, na medida em


que não contrariem o propósito e razão dos mesmos”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 101

Fundamentais, beneficiados com a particularidade de serem mais


consentâneos com a cultura de um mesmo Povo, o que facilita o
sistema de proteção.
De fato, é reconhecido expressamente que “os direitos
essenciais do homem não derivam do fato de a pessoa ser nacional
de determinado Estado, baseando-se antes nos tributos da
personalidade humana”.
Assim, em 30 de abril de 1948, é fundada a Organização
dos Estados Americanos (OEA), em Bogotá, cuja Carta constitutiva
possui alguns dispositivos que tratam sobre direitos humanos, e,
notadamente, no Direito à Saúde, no art. 45, item “b”. Por meio dessa
Organização, foi adotada a Convenção Americana dos Direitos e
Deveres dos Homens, com entrada em vigor em 18 de julho de 1978
e hoje possui 25 Estados que a integram, dentre eles, o Brasil.
No direito à proteção à saúde, o mais importante
instrumento no âmbito do sistema interamericano é o Protocolo de
San Salvador, como Protocolo Adicional à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (adotado em São Salvador em 17 de novembro de 1988,
com entrada em vigor em 16 de novembro de 1999), ratificado pelo
Brasil por meio do Decreto n. 3.321, de 30 de dezembro de 1999.
Este Protocolo conta atualmente com a ratificação por 13 Estados.
Assim, no continente americano (Américas do Norte, Sul e
Central), foi criada a Corte Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos, seguida, em 1948, da adoção
da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), como parte
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tendo como parte
integrante a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem,
fazendo a divisão entre Direitos civis e políticos em oposição aos
econômicos, sociais e culturais41.
Já no art. 11 da Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem é igualmente protegido, regionalmente, o Direito
Social à Saúde, de modo que “Toda pessoa tem direito a que sua
saúde seja resguardada por medidas sanitárias e sociais relativas à
alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos correspondentes

41
É importante registrar que, em 1959, foi criada a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, como entidade autônoma da OEA; contudo, em 1969, com a
revisão da Carta de Bogotá, através do Protocolo de Buenos Aires, viria a se tornar
num dos principais órgãos da OEA.
102 Movimentos, Direitos e Instituições

ao nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade”.


Igualmente aqui, por oportuno, cabe mencionar que o mesmo Pacto
assegura, em seu art. 24, o direito de “apresentar petições
respeitosas a qualquer autoridade competente, quer por motivo de
interesse geral, quer de interesse particular, assim como o de obter
uma solução rápida”.
A seguir, em 1969, foi assinado o Pacto de São José da
Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), fruto
de uma Conferência da OEA realizada em Costa Rica, somente
entrando em vigor em 1978, e, no Brasil, somente sendo incorporado
ao direito interno em 1992. É bom lembrar que a Comissão já estava
em funcionamento desde 1959, em função da adoção da Resolução
de Santiago. Atualmente, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos está sediada em Washington, EUA, na sede da
Organização dos Estados Americanos, e conta com 24 (vinte e
quatro) Estados Partes.
Destarte, a Assembleia Geral da OEA adotou, em 1998, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São
Salvador)42, o qual tem por finalidade desenvolver compromisso geral
dos Estados-partes de adotarem providências, tanto no âmbito
interno como mediante cooperação internacional, a fim de conseguir
progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das
normas econômicas, sociais e culturais, constante da Carta da
Organização dos Estados Americanos.
De fato, a Comissão exerce duplo papel no Sistema
Interamericano, a saber, “recebe as petições individuais, relatando a
violação a algum dos artigos da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos”; “além de elaborar relatórios diversos sobre a situação dos
direitos humanos nos países signatários” (LIMA JÚNIOR, 2009, p. 65-
66), contudo não detém competência para proferir decisões, mas tão
somente expedir recomendações ao Estado a fim de fazer retornar o
status quo ante.
No que toca especificamente ao Direito à Saúde, o art. 26
da Convenção determina que os:

42
Ingresso no Ordenamento Jurídico brasileiro por meio do Decreto n. 3.321, de 30
de dezembro de 1999.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 103

[...] Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no


âmbito interno como mediante cooperação internacional,
especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir
progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das
normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura,
constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos,
reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos
disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados
[...]. (grifos nossos).

Em exemplo clássico, e desenvolvendo a ideia de núcleo


intangível contida no art. 30, o Tribunal Interamericano de Direitos
Humanos analisou, em determinado caso, o

conceito de ‘leis’ constante do art. 30, fazendo-o por meio de um


parecer consultivo no qual considerou que o significado dessa palavra
‘no contexto de um sistema de proteção dos direitos humanos não
pode ser dissociado da natureza e origem desse sistema’, e que ‘se
baseia de facto na afirmação da existência de certos atributos
invioláveis do individuo que não podem ser legitimamente restringidos
43
através do exercício do poder governamental’ .

Para serem lícitas as restrições, portanto, devem atender a


três princípios de acordo com a Corte Interamericana de Direitos
Humanos: a) princípio da legalidade (princípio da reserva legal), b)
princípio da sociedade democrática (necessidades legítimas da
sociedade e instituições democráticas), e c) princípio da necessidade,
proporcionalidade (ingerência mínima, somente para o fim de garantir
a efetividade de uma sociedade democrática). Tais princípios de
regras restritivas também estão previstos na Convenção Europeia
dos Direitos do Homem e seus Protocolos n.s 1, 4, 6 e 7.
Por outro lado, o mecanismo de aplicação, no caso do
Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, centra-se na apresentação de relatórios períodos sobre
medidas de implementação progressiva dos direitos.
Para possibilitar a justiciabilidade dos direitos sociais, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos tem ampliado a
concepção do direito à vida (art. 4º da Convenção), pois passou a
considerar que ele inclui uma dimensão positiva, que garante “o
direito a criar e a desenvolver um projeto de vida” (PIOVESAN, 2012,
p. 323). A Corte passou a reconhecer, além de uma dimensão vertical
do direito à vida, uma dimensão horizontal, esta a englobar “a tutela à

43
Conforme o Parecer OC n. 6-86, de 9 de maio de 1986.
104 Movimentos, Direitos e Instituições

saúde, educação, moradia, trabalho, prestações de seguridade social


e até mesmo meio ambiente equilibrado” (RAMOS, 2012, p. 311).
Percebe-se que a Corte tem decidido de modo a proteger, via direitos
civis, os direitos sociais. (PIOVESAN, 2012, p. 323).
Especificamente ao tratar da saúde, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos julgou o caso XIMENES LOPES v. Brasil. O
caso envolveu um cidadão chamado Damião Ximenes, 30 anos,
portador de sintomas de esquizofrenia, que foi torturado e morto em
1999, enquanto estava internado em clínica filiada ao SUS, na Casa
de Repouso Guararapes, no Ceará. Neste, o Brasil foi condenado a
adotar diversas medidas, quanto ao seu Sistema de Saúde Mental,
isto porque, diferente dos sistemas de controle dos direitos civis e
políticos, o sistema de controle dos direitos econômicos, sociais e
culturais é muito mais modesto (art. 42 da Carta Americana dos
Direitos Humanos), limitando os poderes da Comissão a tão somente
velar para que os Estados promovam estes direitos, apesar de, como
dito, ter sido reforçado por meio do Protocolo de São Salvador.

3.3 A Proteção do Direito Social à Saúde no Brasil:


Constituição Federal e Especificidade Brasileira
Quanto ao Constitucionalismo Multinível

Diferente do PDSEC, a Constituição Federal de 1988 não


traz em seu texto a previsão quanto à progressividade de consecução
do direito à Saúde (art. 196), o que não a impede de ter o dever de
assim o fazer, diante do Brasil ser signatário do referido Pacto
internacional.
Assim, da análise da legislação em vigor, é forçoso concluir
que não há omissão da República Federativa do Brasil quanto à
regulamentação do procedimento de acesso ao serviço público de
saúde, muitas vezes ocorrendo, em especial no âmbito do Poder
Judiciário do Brasil, confusão quanto a quem cabe o dever de prestar
determinado serviço ou fornecer determinado produto na área de
saúde.
De fato, no Federalismo brasileiro, há algumas
especificidades que merecem destaques. O Brasil é um dos poucos
modelos federativos que incluem os Municípios como membros
permanentes da Federação, com autonomias legislativa e tributária
(arts. 29 e 30 da Constituição Federal do Brasil), bem como permite a
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 105

criação de novos Estados e Municípios, nos moldes


constitucionalmente previstos.
Outros aspectos relevantes são as superioridades jurídicas,
financeira, política e econômica da União sobre os demais Entes
Federativos, verificada, sobretudo, pela divisão de competências e
44
conflito de leis (arts. 20 a 25 da Constituição Federal do Brasil).
Assim, a organização dos Estados Federados no Brasil
envolve áreas atributivas distintas, a saber: a) uma seara política-
administrativa, que confere a cada ente o dever constitucional –
competência – de desenvolver ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde, assegurando o bem estar geral, mantendo os
serviços básicos de saúde no tratamento de enfermidades; b) uma
área voltada para o exercício do poder de polícia, por meio de uma
tutela negativa de garantia de respeito entre cidadãos da saúde
coletiva ou individual; e c) uma área organizativa, com vistas a apoiar
a organização de entidades que proporcionem a proteção ao direito à
saúde.
Como se vê, delicada é a linha distintiva entre as atribuições
dos entes Federados do Brasil, que devem se harmonizar de modo a
integrar um conjunto de atividades que viabilize a distribuição das
competências administrativas e das atividades legislativas, sem que
uma invada o campo da outra e perturbe o funcionamento dos
serviços.
De fato, visando à eficiência da tutela do Direito à Saúde, os
setores públicos dos entes federativos envolvidos com a tutela desse
direito devem estar voltados para um planejamento organizado e
articulado com o Governo central e alinhado com as diretrizes da
Política Nacional de Saúde, embora sob o comando único de cada
esfera de governo.
Assim postas às questões, é de se verificar que, com base
no permissivo constitucional contido no art. 23, II da Carta Maior,
conferem-se aos Estados e Municípios (e Distrito Federal) a
competência para, no âmbito, respectivamente, das Constituições

44
Nesse particular, é que o Federalismo brasileiro se distingue do Federalismo
americano, tendo em vista que, apesar de os Estados Federados americanos
terem que “respeitar a Constituição do Estado Federal, assim como não contender
com a forma republicana de Governo” (CARVALHO, 2008, p. 192), no federalismo
estadunidense, o poder local de cada Ente Federado é mais equilibrado e
fortemente vivenciado em seu aspecto de autonomia política, jurídica e econômica.
106 Movimentos, Direitos e Instituições

Estaduais e nas Leis Orgânicas, disporem sobre os serviços de


saúde de sua respectiva competência. Por óbvio, diante do sistema
hierarquizado do Federalismo brasileiro e da supremacia da
Constituição Federal, essas disposições não podem ser contrárias
aos dispositivos da Carta Magna.
Portanto, é de se notar que todas as Constituições dos
Estados que integram a República Federativa do Brasil trazem
previsões que tutelam e garantem o direito à saúde a nível local,
remetendo a leis infraconstitucionais regularem os serviços da
competência federativa, notando-se, o mais das vezes, que, pelo
princípio do paralelismo das formas, reproduzem o texto da
Constituição Federal de 1988.
Também sob o viés da proteção local, no que tange ao nível
normativo, verifica-se que, dentro do Federalismo brasileiro, há tutela
jurídica do direito à saúde, bem como repartição de competências
quanto à viabilidade administrativa da repartição de competência dos
Entes Federados para a sua efetivação.

CONCLUSÕES

O cenário de proteção dos direitos humanos fundamentais e


sociais – assim já defendido como devem ser denominados – assume
maior dimensão no cenário do Pós Guerras mundiais, em que os
Estados percebem que a proteção restritamente local é insuficiente
para a plena e eficaz garantia de tutela geral de um ambiente que
viabilizasse o respeito aos Direitos Humanos, nele incluído o Direito
Internacional de Proteção à Saúde.
De fato, as diversas nomenclaturas que se pretenda conferir
aos direitos fundamentais, a pretexto de ser feita distinção quanto à
dimensão de proteção, findará gerando o efeito contrário ao
objetivado, enfraquecendo o conteúdo do direito tutelado, que, a rigor
e na prática, é o mesmo, tal como ocorre com o Direito à Saúde.
Nessa realidade, o constitucionalismo multilevel – ou
multinível – aparece como importante instrumento de interação e
intercâmbio das dimensões protetivas de garantia máxima do Direito
à Saúde, sob a perspectiva da progressividade da tutela, tal como
expressamente previsto no art. 12 do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PDESC). A mutualidade não deixa,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 107

ademais, de ser confirmada pelo art. 4º da Constituição Federal, que


estimula a integração política, econômica e social do Brasil, sem
deixar de considerar, sobretudo, as limitações financeiras e
orçamentárias de cada Estado.
A recepção pelo direito local (interno) do mencionado Pacto
vem conduzindo ao entendimento da doutrina e jurisprudência
brasileiras de que estaria, em pleno vigor, o princípio da proibição do
retrocesso, a teor da expansão progressiva – e nunca regressiva – do
direito à saúde, por exemplo. Aceitando ou não a extensão de tal
entendimento, o certo é que, neste caso, o constitucionalismo
multilevel conduz a uma maior esfera de proteção do direito social à
saúde.
Por sua vez, oportunamente, é bom relembrar que o
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos entende
que, em caso de conflito, a prioridade de resolução deverá ser
conferida ao direito interno, com o quê se concorda dentro da ótica do
atual estágio de direito comunitário americano.
Sem prejuízo, o que verifica é que a concepção de uma
proteção em vários níveis tende a garantir maior justiticiabilidade do
direito de proteção à saúde, uma vez que situa o indivíduo como
membro de uma sociedade global, local, internacional e regional.
No que toca à proteção local, a recepção do PDESC por
meio do Decreto n. 591, de 1992, veio a acelerar a concepção da
jurisprudência nacional a efetivamente implementar a ideia da norma
de direitos humanos mais favorável a ser aplicada, multiplicando,
internamente, a doutrina da vedação ao retrocesso quanto às
medidas positivas de defesa dos direitos sociais, dentre ele, o direito
à saúde. Ademais, como foi visto, o modelo federalista adotado pelo
Brasil, ainda que confira superioridade jurídica à União na divisão de
competência, contribui para a fixação delimitada de competências
entre os entes federados quanto ao dever de prestar o direito à
saúde, da básica à mais avançada, muito embora não venham sendo
observadas divisões previstas na Lei n. 8080, de 1990, no âmbito,
sobretudo, da jurisprudência nacional, que vem conferindo
responsabilidade solidária a todos os entes.
De fato, o que se verifica atualmente é que, mais do que em
qualquer outro momento histórico, a formatação de políticas públicas
para a implementação do direito à saúde está no centro das
discussões política e econômica nacional e internacional. Isso tem
108 Movimentos, Direitos e Instituições

conduzido a uma compreensão de que há a necessidade de


instalação de um procedimento democrático e institucionalizado, em
cada País, para tornar, progressivamente, o direito à saúde um direito
cujo exercício seja o mais eficaz e de qualidade possível, acessível a
todos os cidadãos. E isto só será possível com um esforço conjugado
de várias dimensões protetivas – constitucionalismo multilevel – e de
fiscalização, que imponham sanções aos Estados que não observem
os preceitos mínimos de desenvolvimento dos direitos sociais.

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CAPÍTULO 5

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA
VIOLÊNCIA CONJUGAL E A RESPOSTA DA
JUSTIÇA

45
Paula Cristina Cabral

RESUMO
O objecto central deste estudo consiste em conhecer as
representações sociais da violência conjugal e a resposta do actual
sistema jurídico ao fenómeno, de profissionais das áreas do Direito
(juízes, magistrados do MP e advogados), da saúde (psicólogos e
psiquiatras) e da educação (professores e outros licenciados ligados
ao ensino). Para tal foi administrado um questionário:
“Representações da Violência Conjugal e Resposta do Sistema
Jurídico” (Cabral; Quintas 2010) e uma Escala de Crenças da
Violência Conjugal (Machado, 2006) a um conjunto de 90
participantes de ambos os sexos. Os resultados evidenciam uma
similitude, quanto às representações sociais, dos diferentes
profissionais que, de um modo diferencial, estão implicados na
resposta e prevenção, face ao fenómeno violência conjugal.
Constata-se uma divergência nas percepções quanto à eficácia do
45
Doutoranda em Direito, Justiça e Cidadania no séc XXI na Universidade Coimbra.
Doutoranda em Educacion Y Psicología en la linea de investigacion Psicología
Comunitaria, Jurídicia y de La Salud, na Universidade Oviedo, em Astúrias, Espanha.
Mestre em Psicologia Forense e da Transgressão pelo ISCS-N (Instituto Superior
Ciências Saúde do Norte). Pós-Graduada em Direito, Justiça e Cidadania no séc. XXI,
(FEUC/FDUC/CES da Universidade de Coimbra). Licenciada em Direito pela UCP–
Porto (Universidade Católica Portuguesa do Porto). Possui Formação Superior em
Solicitadoria pela Câmara dos Solicitadores do Centro Regional–Norte (Solicitadora).
Docente do ensino superior, Jurista e Juiza Social no Tribunal Família e Menores do
Porto. E-mail: <pcris.cabral@gmail.com>.
112 Movimentos, Direitos e Instituições

sistema jurídico. Na condenação do agressor de violência conjugal,


unanimemente, os diferentes profissionais percepcionam que os
objectivos do sistema jurídico visam à prevenção e reintegração.
Quanto a programas de tratamento para agressores, verifica-se que
os consideram muito importantes, mas pouco eficazes. No que
respeita ao sistema de justiça criminal, verifica-se uma percepção
unânime, como sendo um sistema não adequado. Relativamente aos
mitos e crenças legitimadoras da violência conjugal, verifica-se uma
tendência para uma discordância moderada.
Palavras-chave: profissionais do Direito; programas agressores;
representações sociais; resposta justiça; saúde e educação; violência
conjugal.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS; 1.1.


REPRESENTAÇÕES SOCIAIS; 1.2. A TEORIA DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS; 2. VIOLÊNCIA CONJUGAL; 2.1.
FENÓMENO VIOLÊNCIA CONJUGAL; 2.2. CONCEITO DE
VIOLÊNCIA CONJUGAL; 3. RESPOSTA DA JUSTIÇA; 4. O CRIME
DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE; 5. PROGRAMAS DE
TRATAMENTO PARA AGRESSORES; 6. O ESTUDO DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA VIOLÊNCIA CONJUGAL E AS
CRENÇAS QUANTO À RESPOSTA DA JUSTIÇA; CONCUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A violência conjugal encontra-se na ordem do dia, sendo


porém uma temática universal com tradições milenares, que vem
correndo todos os tempos e cenários históricos, com variações nem
sempre sensíveis e presença constante nos diversos espaços
geosociais, objecto de particular atenção de políticos, juristas,
sociólogos, psicólogos e toda a espécie de curiosos, sobretudo se
ligados a grupos de pressão com intervenção social. Trata-se não de
um problema novo, mas de um complexo problema social, que o devir
comunitário e a crescente consciência colectiva sobre a dimensão e
efectividade dos direitos vem impondo. Assim, tem trazido a “palco”
novas interrogações, emergentes dos choques e contradições que
vão surgindo, ao nível das representações sociais, das tradições e da
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 113

cultura a muitos títulos dominantes na sociedade. A psicologia social


aborda as representações sociais no âmbito do seu campo, do seu
objecto de estudo (a relação indivíduo-sociedade) e, de um interesse
pela cognição, embora não situado no paradigma clássico da
psicologia. Por um lado, reflecte como os indivíduos, os grupos, os
sujeitos sociais, constroem o seu conhecimento a partir da sua
inscrição social e cultural; por outro lado, reflecte como a sociedade
se dá a conhecer e o modo como constrói esse conhecimento com os
indivíduos, isto é, como interagem sujeitos e sociedade para construir
a realidade. A representação social é um corpus organizado de
conhecimentos e uma das actividades psíquicas graças às quais os
homens tornam a realidade física e social inteligível, inserem-se num
grupo ou numa relação quotidiana de trocas, conjugam o poder da
sua imaginação. (MOSCOVICI, 1961).
Na Sociologia, a expressão “representações sociais” tem o
significado de um saber não técnico, partilhado socialmente, que se
orienta para a gestão da relação do indivíduo com a realidade ou o
mundo.
Diferentemente dos filósofos Aristóteles, Platão, Kant, Marx,
que tentaram definir quais as normas que devem governar as
sociedades, os psicólogos sociais têm estudado o que as pessoas
pensam estar certo ou errado, ser justo ou injusto e compreender
como as pessoas justificam esses julgamentos (TYLER; SMITH,
1998). Logo, é muito importante conhecer o que o homem comum
pensa sobre a justiça, visto a investigação ter vindo a mostrar que as
pessoas agem e reagem em função do que pensam que é justo.
Actualmente crê-se ser credível, afirmar que, no que respeita
especificamente às representações sociais da violência conjugal e da
resposta do sistema jurídico, continua a verificar-se uma lacuna, já
que são muito poucos os trabalhos de índole científica publicados a
este respeito. A relevância do presente estudo prende-se, por um
lado, com a análise das representações sociais da violência conjugal
de profissionais que, de um modo diferencial, lidam com o fenómeno
violência na sua prevenção e resposta, nomeadamente do Direito, da
Saúde e Educação, por outro lado, com a forma como é
percepcionada por estes a resposta da justiça àquele fenómeno.
114 Movimentos, Direitos e Instituições

1. AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

1.1 Representações Sociais

As representações sociais são o conjunto de explicações,


crenças e ideias que nos permitem evocar um dado acontecimento,
pessoa ou objecto. Resultam da interacção social, sendo, portanto,
comuns a um determinado grupo de sujeitos. O conceito de
representação social enfatiza a correlação da ação face à actividade
cognitiva, ao mesmo tempo em que associa a cognição à produção
de sentido e à construção da realidade social. (VALA, 1986). Não
existe sem o sujeito que as constrói e o objecto – o que é apreendido
e representado. Trata-se de uma noção em constante transformação,
que integra novos elementos que a estruturam. As modificações nas
representações reflectem, por um lado, o funcionamento dos sujeitos
e, por outro, a forma como estes interagem e a posição que ocupam
na sociedade. (DOISE, 1984).
As representações sociais da Justiça46 são um modo de
transmitir ou de formular uma síntese compreensiva das percepções
externas sobre a justiça (GASPAR, 2010). Na expressão
“representações sociais” são contidas a “compreensão
simultaneamente estática e dinâmica da justiça” – “justiça observada”,
por um lado, mas também “justiça recriada”. (RODRIGUES, 1995, p. 4).
Segundo Rodrigues (1995), a justiça “é um ponto
privilegiado de observação da ordem e da desordem [...]; tacteia a
intimidade da pessoa e encerra os acontecimentos reproduzindo o
real num único tempo e espaço dramáticos”. Mas também a justiça
“dá a cada pessoa a oportunidade de ser figurante”; “expõe e
amplifica os factos, diminuindo a distância de observação”; “envolve
numa mesma acção a vida, o conhecimento e o poder” e “funciona
entre as margens estreitas da razão e do arbítrio”. (RODRIGUES,
1995, p. 16).

46
O tema das representações sociais da justiça, progressivamente, tomou lugar da
maior parte dos outros temas nas preocupações dos criminólogos, dos magistrados
e, depois dos psicólogos (DEBUYST, 1986).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 115

1.2 A Teoria das Representações Sociais

O conceito “representações sociais” é inicialmente proposto


por Moscovici (1981, 1984) e posteriormente desenvolvido por vários
autores (DOISE, 1984, 1989; FARR, 1994; JODELET, 1989).
Segundo a definição clássica de Jodelet, as representações sociais
são modalidades de conhecimento prático orientado para a
comunicação e para a compreensão do contexto social em que se
vive. São formas de conhecimento que se manifestam como
elementos cognitivos – imagens, conceitos, categorias, teorias – mas
que não se reduzem a componentes cognitivos. Favorecem a
construção de uma realidade comum que possibilita a comunicação,
já que são socialmente elaboradas e compartilhadas.
Moscovici (1989) concebe as representações sociais como
um conjunto de conceitos, afirmações e explicações originárias da
vida quotidiana no curso da comunicação inter-individual. Este
conceito de representação social vem contrariar o carácter
homogéneo, da representação colectiva, proposta por Durkheim, que
considerava que a mesma representação seria partilhada por toda a
sociedade. Para Moscovici (1988), as representações sociais
partilhadas por uma maioria de sujeitos de uma sociedade, com
carácter uniforme e coercivo, assumem uma natureza hegemónica,
prevalecendo em todas as práticas simbólicas e considerando as
relações mantidas entre os membros do grupo. E, para complementar
estas representações hegemónicas, Moscovici (1988), desenvolveu
igualmente os conceitos de representações emancipadas
(características de um determinado grupo, por exemplo, o da área da
saúde ou da justiça) e representações polémicas (é o caso das
representações partilhadas por determinados grupos, em redor das
quais suscitam muitas questões, discussões ou dúvidas nos mais
diversos sentidos). As representações sociais estabelecem uma
ligação entre o mundo individual e o mundo social, numa sociedade
em constante mudança.
Segundo Doise (1990, 1993), um dos principais factores
determinantes na formação das representações sociais é a posição
ou inserção social dos indivíduos e grupos. Baseado neste
entrelaçamento entre as dinâmicas relacionais e as representativas,
define as representações sociais como princípios geradores de
tomadas de posição ligados às inserções específicas num conjunto
de relações sociais, e que “organizam os processos simbólicos
intervenientes nessas relações”.
116 Movimentos, Direitos e Instituições

Para Moscovici existem dois processos das representações


47
sociais: a objectivação e a ancoragem. Na objectivação as ideias
abstractas transformam-se em imagens concretas, através do
reagrupamento de ideias e imagens focadas no mesmo assunto. A
ancoragem48 prende-se com a assimilação das imagens criadas pela
objectivação, sendo que estas novas imagens se juntam às
anteriores, nascendo assim novos conceitos.

2. VIOLÊNCIA CONJUGAL

2.1 Fenómeno Violência Conjugal

A violência conjugal reflecte-se de diversas formas no


quotidiano das sociedades, sendo alheia à situação económica e
política dos países e ao posicionamento sócio-económico e cultural
das vítimas e dos agressores. Tal fenómeno social reveste uma
natureza multifactorial, colocando em palco, sempre com argumentos
próximos, actores de todas as condições e estatutos,
independentemente das sucessivas matrizes políticas. É um
problema social dos dias atuais que exige uma intervenção
ponderada e eficaz, quando precedida de um estudo sério e
objectivo, ancorado nos contributos dos diversos ramos do saber.
Sendo a violência conjugal um problema de sempre,
transformando-se num problema social, um fenómeno complexo e
composto por diversos factores, sejam eles sociais, culturais,
psicológicos, económicos, que só recentemente e sob pressão da
comunicação social, despertou a atenção da comunidade científica.
Trata-se, pois, de um problema que, embora tenha sempre existido,

47
A objectivação diz respeito à forma como se organizam os elementos constituintes
da representação e ao percurso através do qual tais elementos adquirem
materialidade, isto é, se tornam expressões de uma realidade vista como natural.
48
A ancoragem é o processo que precede a objectivação e, situa-se na sua
sequência. Enquanto tal, a ancoragem refere-se ao facto de qualquer tratamento
da informação exigir pontos de referência: é a partir das experiências e dos
esquemas já estabelecidos que o objecto da representação é pensado. A
ancoragem enquanto processo que segue a objectivação, refere-se à função social
das representações, nomeadamente permite compreender a forma como os
elementos representados contribuem para exprimir e constituir as relações sociais
(MOSCOVICI, 1961). A ancoragem serve à instrumentalização do saber
conferindo-lhe um valor funcional para a interpretação e a gestão do ambiente
(JODELET, 1989).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 117

hoje é mais debatido e denunciado, o que certamente contribui para o


aumento da sua visibilidade49, o que não significa que se verifique um
aumento real do problema, antes constituir-se apenas como reflexo
de uma maior sensibilidade face ao mesmo (FATELA, 1989) e
intolerância social face aos comportamentos violentos, bem como
50
com a criação de organizações não governamentais , que através
das suas estratégias de apoio e intervenção têm vindo a conferir
alguma visibilidade à violência no contexto das relações conjugais.
Além dos factores mencionados, outros foram
determinantes para maior visibilidade do fenómeno, tais como as
mudanças da lei (em Portugal, somente em 1976, com a entrada em
vigor da nova Constituição, se estabelece a igualdade entre homens
e mulheres em todos os domínios e, só em 1978 desaparece a figura
51
do “chefe de família” , sendo apenas no código Penal de 1982, de
acordo com o seu artigo 153º, que passam a ser crime os maus tratos
entre cônjuges o que, na lei penal em vigor se encontra plasmado no
artigo 152º.

2.2. Conceito de Violência Conjugal

A violência conjugal é um fenómeno de natureza complexa,


tornando-se, por isso, de difícil abordagem. A complexidade
manifesta-se a vários níveis, que começa pela própria definição de
violência, que variam segundo as épocas e os autores.
Várias soluções têm sido encontradas para a definição de
“violência conjugal”, tais como: definição dos maus tratos como “um

49
A partir da década de 1990, em Portugal, verifica-se um número crescente de
trabalhos de investigação sobre tal tipo de violência, sobre a sua prevalência e
dimensão (LOURENÇO; LISBOA; PAIS, 1997), e, uma compreensão mais
qualitativa do fenómeno (SILVA, 1995; PAIS, 1999; MATOS, 2000; MACHADO;
MATOS, 2001).
50
Destacam-se a Associação de Apoio à Vítima (APAV), criada a 25 de Junho de
1990 na sequência das crescentes solicitações de mulheres alvo de violência pelos
maridos; a CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género), criada depois
dos anos 1990, com uma nova filosofia e com melhores possibilidades de
intervenção, em meios, estrutura, competências etc. (PORTUGAL, CIG, 2015, on
line).
51
Durante toda a vigência do Código Seabra, a mulher encontrava-se sujeita a um
estatuto jurídico de subordinação ao marido (que exercia o poder marital) e que se
espelhava, nomeadamente, em normas como a do artigo 1674º do Código Civil: “O
marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e
decidir em todos os aspectos da vida conjugal em comum […]”.
118 Movimentos, Direitos e Instituições

síndroma complexo de violência” (PARKER; SCHUMACHER, 1997


apud ALEXANDER, 1993, p. 238); o seu entendimento como “um
problema médico” (ROUNSAVILLE; WEISSMAN, 1978 apud
ALEXANDER, 1993, p. 240).
O conceito de violência conjugal distingue-se de conceitos
52
mais abrangentes como os de “violência doméstica” ou “maus tratos
familiares”, em que podem ser afectados outros elementos da família
ou que coabitem como casal, e foca-se na dinâmica deste. Envolve
também a noção que tais actos podem ocorrer numa fase pré-
matrimonial ou de vida em conjunto, durante esse período ou mesmo
após esse período, quando o matrimónio ou a união de facto se
encontra em vias de extinção.
A violência conjugal constitui uma parte do conjunto de
maus tratos associados à definição de violência doméstica. A
definição de maus tratos mereceu maior destaque dentro da temática
da violência doméstica a partir da década de 60, muito por influência
dos movimentos feministas53.
De acordo com Manita (2005), o conceito de violência
doméstica surge como um dos casos particulares no domínio mais
alargado da violência sobre as mulheres, conceito no qual outros
fenómenos que vitimam as mulheres estão compreendidos. A um outro
nível, e segundo Matos (2003), o conceito de violência doméstica
reflecte uma situação em que todos os membros de uma habitação têm
a mesma probabilidade de ser vítimas ou perpetradores, enquanto a
noção de maus tratos se refere somente às vítimas.
No entendimento do IV Plano Nacional Contra a Violência
Doméstica54, a violência conjugal abrange todos os actos de violência
física, psicológica e sexual, perpetrados contra pessoas,

52
O conceito de violência doméstica, proposto, pela comissão de Peritos para o
acompanhamento da Execução do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica
(2000), define-a como “qualquer conduta ou omissão que inflija, reiteradamente,
sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou
indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio) a
qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico ou que, não habitando,
seja cônjuge ou companheiro ou ex-cônjuge, bem como ascendentes ou
descendentes”. Cf. www.pgr.pt.
53
Os movimentos feministas contribuiram para a denúncia da violência doméstica,
tendo promovido uma maior consciencialização sobre a extensão da vitimação das
mulheres a nível social e, especificamente, na família.
54
RCM n. 100/2010, de 17 de Dezembro, DR n. 243, 1ª série.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 119

“independentemente do sexo e da idade, cuja vitimação ocorra em


consonância com o conteúdo do artigo 152º Código Penal”55.

3. RESPOSTA DA JUSTIÇA

Todo o Direito assenta numa matriz sócio-cultural,


compreendendo crenças e representações sociais. O Direito integra-
se numa esfera ampla, que se reconduz ao sistema cultural e é, em
simultâneo, uma parcela do universo e o próprio universo: a parte e o
todo. Assim, o Direito é o saber normativo dos comportamentos, a
realidade disciplinar, e aqui reside a sua natureza fragmentária.
O Direito é por via de identificação cultural e de assimilação
dos valores culturais e sociais a que procede ao universo, ou seja, o
segmento que o Direito é interfere com a vida, dela retirando
fundamentos para a fabricação legislativa e para a aplicação
jurídica. (POIARES, 1999).
Hoff (1990) defende que a interrupção das situações de
violência está vinculada à existência de respostas da sociedade, tanto
a nível da proteção das vítimas como da penalização dos agressores,
e não às capacidades que cada vítima apresenta. A falta de
estruturas legais e outras de prevenção, de apoio e de defesa, leva a
que as vítimas pensem que nada mais há a fazer, senão ficarem à
mercê dos agressores: o fatalismo conformista instala-se e
generaliza-se devido à cumplicidade silenciosa da comunidade.
A função do Direito Penal, que se retira dos fins que a
Constituição assinala ao Estado de direito democrático é a prevenção
da criminalidade e a garantia das pessoas contra os eventuais
abusos de poder. Funções que se hão-de realizar com respeito dos
princípios democráticos. (SILVA, 2010). Tal significa que o Estado se
deverá reger pelo princípio da intervenção mínima, utilizando a lei
penal e as reacções penais apenas quando tal se revele estritamente
necessário e a utilização de outras medidas ou sistemas se revelem
manifestamente insuficientes para a resolução dos litígios e para a

55
No caso do n.1 do artigo 152º CP, encontram-se devidamente identificadas as
vítimas dos maus tratos: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos
físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas
sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo
com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos
cônjuges, ainda que sem habitação; […]”.
120 Movimentos, Direitos e Instituições

prossecução das finalidades de política criminal de prevenção geral e


especial. (DIAS, 1993).
Com a Lei n. 7/2000, de 27 de Maio, o legislador, após
grandes hesitações, com o artigo n. 152, “Maus-tratos e infracção de
regras de segurança”, vem definir, como crime público, a violência
contra o cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas
às dos cônjuges. As penas aplicáveis não se restringem à pena de
prisão. Nos casos de maus-tratos físicos ou psíquicos infligidos ao
cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos
cônjuges, poder-se-á ver aplicada “a pena acessória de proibição de
contacto com a vítima”.
A pena de prisão aplicável é agravada se os actos forem
praticados “[…], no domicílio comum ou no domicílio da vítima”. No
que concerne ao universo das penas acessórias específicas prevê-
se, quanto ao condenado, a “proibição de contacto com a vítima”,
podendo “incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho
desta”56 (que pode passar a incluir o local de trabalho da vítima e a
fiscalizar-se o cumprimento da mesma através de meios técnicos),
“obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da
violência doméstica” (intervenção de cariz educacional e
ressocializador). No domínio das medidas judiciais foi criada uma
decisão especial específica, denominada “ordem de proteção”, para
os casos em que haja indícios sérios de risco para a vítima,
constituindo uma intervenção rápida e completa dirigida à protecção
da vítima, integrando medidas penais, relativas ao agressor:
privativas da liberdade, ordem de afastamento, proibição de
comunicação, proibição de voltar à residência da vítima, apreensão
de armas e outros objectos perigosos.
O crime de maus tratos é estabelecido na alínea a) do artigo
3º dessa lei, como crime de prevenção prioritária, tendo em conta a
dignidade do bem jurídico tutelado e a necessidade de proteger as
potenciais vítimas, através de programas de segurança comunitária e
planos de policiamento, desenvolvidos por forças de segurança,

56
A Lei n. 61/91 de 13 de Agosto, prevê, no seu artigo 16º n. 1 a medida de coacção
de afastamento da residência. O decretamento da pena acessória de afastamento
da residência da vítima ocorre geralmente, quando, no curso do processo penal, o
arguido já foi sujeito à medida de coacção de idêntico conteúdo (Cfr. artigo 200º
CPP). Tem sido aplicado pelos tribunais, sobretudo nos casos em que os maus
tratos hajam assumido maior gravidade O não cumprimento desta pena acessória
só acarretará para o agressor a possibilidade de vir a responder em novo processo
penal, pelo crime de proibições ou interdições (Cfr. artigo 353 CP).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 121

assegurada a sua elaboração e aplicação através dos membros do


Governo, responsáveis pelas áreas da administração interna e da
57
justiça .
Nos termos da alínea a) do artigo 4º da mesma lei, os maus
tratos são considerados crime de investigação prioritária, tendo em
conta a sua gravidade e a necessidade de evitar a sua prática futura
ou o seu prosseguimento. É igualmente prioritária a elaboração de
planos de reinserção social dos agentes condenados pela prática do
crime de maus tratos a cônjuges, ordenados aos serviços
responsáveis pela execução da pena, a requerimento do Ministério
Público ao Juiz, sempre que necessários para promover a sua
58
reintegração responsável na sociedade .

4. O CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE

Em 2007, com a revisão do Código Penal, a violência


doméstica é definida e autonomizada no artigo 152º, incidindo sobre
os actos de “maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos
corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais” infligidas de
forma reiterada ou não.
A medida concreta da pena a aplicar deve ser fixada em
função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como
todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime,
deponham a favor contra o agente.
Enquadrar a violência conjugal na realidade sócio-cultural
actual implica considerar condutas violentas perpetradas pelo cônjuge
agressor que podem configurar diversos ilícitos penais (em concurso
efectivo ou aparente) como as injúrias, ameaças, coacção, ofensas à
integridade física, coacção sexual maus tratos. Em casos extremos, a
violência conjugal pode traduzir-se em homicídio.
Assim, entende-se a natureza do bem jurídico protegido,
como sendo a saúde, enquanto manifestação da pessoa humana e
da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis,

57
Vide n.s 1 e 2 do artigo 7º da Lei 38/2009 de 20 de Julho (Diário da República, 1ª,
série – N. 138 – 20 de Julho de 2009).
58
Vide artigos n.s 14 n. 1 e 2; 15 alínea a); 17 e 21 da Lei 38/2009 de 20 de Julho
(Diário da República, 1ª, série – N. 138 – 20 de Julho de 2009).
122 Movimentos, Direitos e Instituições

degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange


a tutela da saúde física, psíquica, emocional e moral.
Além da natureza pública do crime de maus tratos a
cônjuges, a Lei n. 7/2000, introduz outros dois aspectos relevantes: a
criação da figura da suspensão provisória do processo, a pedido da
vítima e, a possibilidade de ser decretada para o cônjuge agressora
pena acessória de proibição de contacto com a vítima. A suspensão
provisória do processo, estando em causa o crime de maus tratos a
cônjuge, vem permitir à vítima, que por sua iniciativa, a possa
requerer, contudo é exigível que o agressor (arguido) não tenha já
beneficiado de tal instituto, em consequência da prática do referido
crime.
Com efeito, o instituto da suspensão provisória do processo,
constitui um espaço privilegiado de mediação e de justiça
restaurativa, com vista à reparação e ao empowerment da vítima,
sendo provavelmente o melhor programa de intervenção
ressocializadora com agressores de violência conjugal59 (no sentido
em que faz com que o Ministério Público recorra com maior
frequência ao referido instituto, fazendo-o depender de rigorosas
medidas de acompanhamento social e psicológico do agressor,
passando inclusive, pelo tratamento, quando se justifique).

5. PROGRAMAS DE TRATAMENTO PARA


AGRESSORES
A intervenção psicológica e psicossocial em agressores
reveste-se de algumas particularidades que devem ser tomadas em
conta na implementação de qualquer programa: 1) é uma intervenção
que se realiza com indivíduos que cometeram crimes; 2) um dos
maiores desafios nestas intervenções é a motivação para o
tratamento, para a mudança dos agressores, que na sua maioria é
baixa (MANITA, 2002, 2004, 2005b); 3) a aceitação (ou a procura) de
um programa de intervenção “pode ocultar motivações e interesses
que não propriamente os de alterar o comportamento violento,
sabendo-se dos riscos de manipulação de que os profissionais desta
área são objecto”. (MANITA, 2008, p. 5). Duas implicações imediatas
59
Pelo menos é o único com difusão em todo o território nacional, dependendo o seu
grau de eficácia e sucesso, especialmente, da concreta articulação do Ministério
Público, com os serviços locais do Instituto de Direcção Geral de Reinserção e com
outros parceiros formais ou informais.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 123

surgem, pelo facto de se lidar com sujeitos que cometeram crimes: o


envolvimento com o sistema de justiça e a necessidade de
articulação da intervenção psicológica com a intervenção judicial.
(MANITA, 2008).
O problema do agressor não deve ser descurado, pois que
ele é fonte do problema da violência conjugal e, como tal, uma
resposta eficaz a esta questão terá que forçosamente passar por ele,
procurando atempadamente, identificar factores de risco, avaliando
junto do agressor, mas também com o contributo da vítima. Este
último aspecto deve ser realçado porquanto se sabe que, atendendo
à natureza anti-social de muitos agressores, eles tendem
naturalmente a ocultar informação ou a distorcê-la. Evitar a
revitimação passa por obstar a que a violência ocorra, através da
intervenção directa, junto do agressor, no sentido de lhe incutir novos
padrões de comportamento e, mais do que isso, uma nova forma de
encarar a relação conjugal. Em Portugal, o IV PNCVD (2011-2013),
no seu capítulo III, explicita entre outras áreas estratégicas de
intervenção, a área de estratégica de intervenção 3, com o intuito de
prevenir a reincidência: a intervenção com agressores. Uma área de
intervenção que integra seis medidas com a pretensão de reduzir ou
eliminar o risco de revitimação/reincidência no crime violência
doméstica, com o objectivo de proteger as vítimas actuais e ou
prevenir a vitimação em futuras relações. A constatação de que é
insuficiente trabalhar apenas com as vítimas, de que a intervenção
junto dos agressores contribui para a alteração de estereótipos e das
crenças socialmente enraizadas, leva à crescente tendência para a
implementação de programas de prevenção da reincidência em
agressores, com a necessidade de trabalhar mais directamente a
questão da atribuição da responsabilidade ao agressor. (IV PNCVD,
RCM n. 100/200).
Se existe hoje uma consciência alargada sobre a
necessidade de denunciar as situações de violência conjugal/familiar
e de apoiar as vítimas de violência, é necessário compreender que,
dada a natureza deste fenómeno e as características psicossociais
dos agressores, uma das formas de proteger as vítimas e de prevenir
futuras vitimações é, precisamente, favorecer a mudança nos
agressores no sentido de um comportamento relacional, actual ou
futuro, não violento.
Esta intervenção deverá ser feita no contexto de
abordagens integradas e integradoras, articulando a intervenção em
agressores com a intervenção em vítimas e inseridas, sempre que
124 Movimentos, Direitos e Instituições

possível, nos planos nacionais de luta contra a violência, à


semelhança do que acontecem noutros países.
Os programas para agressores mais frequentemente
utilizados são: os psicoeducacionais (designados também, por alguns
autores, programas socioeducativos); e, os modelos
psicoterapêuticos. Entre os diferentes modelos e estratégias
psicoterapêuticas, a intervenção cognitivo-comportamental continua a
ser referenciada por alguns autores como a mais eficaz na redução
das taxas de reincidência, os cognitivistas, os sistémicos e, mais
recentemente, os modelos centrados nas soluções, de raiz narrativa e
construtivista. (LEE, SEBOLD; UKEN, 2003). Esta abordagem tem
como objectivo, essencialmente, permitir ao agressor o
reconhecimento de padrões disfuncionais, em termos cognitivos e
comportamentais. Segundo Gonçalves (2004), esse tipo de
intervenção junto desses agentes deverá organizar-se,
fundamentalmente, em torno da punição, do tratamento e do controlo.
A maioria dos programas de intervenção existentes
actualmente, inspira-se no modelo pioneiro do Projecto de Duluth –
Duluth Domestic Abuse Intervention Project (DAIP), da Universidade
de Dulyth, no Minnesota (MANITA, 2005a). Um dos objectivos
centrais deste modelo é coordenar diversas instituições que, de um
modo diferencial, lidam com os casos de agressores de violência
conjugal, cuja maior preocupação se centra garantir a segurança da
vítima (MANITA, 2008). O agressor é entendido, no contexto do
DAIP, como um sujeito que foi submetido a modelos e padrões de
socialização que lhe incutiram um sentimento de superioridade de
género e que lhe ensinaram diversas formas de dominação, o que
tais factos não acalentam a que cada agressor seja responsabilizado
pelos seus aços pessoais, assuma as suas causas e consequências,
e se responsabilize activamente por transformá-los (PAYAMAR,
2000; PENCE PAYAMAR, RITMEESTER; SHEPARD, 1993).

6. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA


VIOLÊNCIA CONJUGAL E AS CRENÇAS QUANTO À
RESPOSTA DA JUSTIÇA

Um dos principais objectivos deste estudo foi comparar as


representações sociais da violência conjugal de três grupos sociais
diferentes. Partindo do princípio que as representações sociais
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 125

podem ser definidas como “imagens que condensam um conjunto de


significados” (JODELET, 1984; MOSCOVICI, 1988), é precisamente
sobre estes significados, ou seja, sobre aquilo que os inquiridos
consideram ser o fenómeno violência conjugal, designadamente a
percepção das suas causas, das características dos seus
intervenientes (agressor/vítima) e as crenças associadas ao
fenómeno. Tentou-se ainda compreender de que modo as
representações sociais da violência conjugal, do que é ou não julgado
como violento, variam com o modo como percepcionaram a resposta
do sistema jurídico.
Em primeiro lugar, é importante salientar que, no geral, os
resultados deste estudo mostram que os profissionais inquiridos
tendem a expressar as suas percepções de forma similar, com
carácter uniforme e coercivo de natureza hegemónicas.
(MOSCOVICI, 1988).
No geral, as diferentes tomadas de posição, dos diferentes
grupos, consideram haver uma maior visibilidade, maior sensibilidade
e menor tolerância face ao fenómeno violência conjugal. Percepções
que vão ao encontro de diversas acções desenvolvidas, tais como a
mudança da lei, mudanças de posição e no papel da mulher,
verificando-se em Portugal a partir da década de 1990, com um
número crescente de trabalhos de investigação sobre esta temática,
quer sobre a sua prevalência e dimensão (LOURENÇO, LISBOA;
PAIS, 1997), dando-lhe assim como refere Fatela (1989) um reflexo
de uma maior visibilidade e intolerância face aos comportamentos
violentos, bem como com as estratégias de apoio e de intervenção
das organizações não governamentais. Relativamente aos estratos
sociais em que se desenrola a violência conjugal, os indivíduos dos
diferentes grupos, percepcionaram que o fenómeno atinge várias
famílias de diferentes estratos sociais, coexistindo na experiência de
muitas famílias, o que, entre outros investigadores nesta área, refere
Machado (2009); Gonçalves (2003), em consonância com tal
diversidade, entende que a violência não atinge só os lares de
estratos sociais mais baixos, contrariando o expectável. Tais
percepções vão ao encontro dos motivos já referenciados, na revisão
bibliográfica deste estudo.
A conduta violência conjugal foi percepcionada, de forma
homogénea, como devendo ser um comportamento ilícito. A posição
dos sujeitos face à violência conjugal como crime vai ao encontro dos
normativos da mais diversa legislação vigente.
126 Movimentos, Direitos e Instituições

A posição face ao crime de violência conjugal, dos


diferentes grupos, assentou na percepção de que os principais
intervenientes agressores são homens e as intervenientes vítimas
são mulheres. Os homens são tendencialmente, mais legitimadores
da violência, quer na amostra aqui estudada, quer na população em
geral. (MACHADO, 2005). As evidências estatísticas demonstram
apesar de homens e mulheres poderem ser responsáveis por actos
violentos, existir uma maior incidência de violência sobre as
mulheres, sendo a maioria dos agressores homens e a maioria das
vítimas mulheres, as quais possuem um maior risco de vitimação no
seio do casal. (MANITA, 2005). Pese embora se considere uma outra
perspectiva defendida pelos sociólogos da família (family violence
researchers) que tende a encarar a violência como um recurso que
pode ser utilizado tanto por homens como por mulheres. (ARCHER,
2000). Para a sociologia da família, a questão da violência entre
cônjuges é estudada como uma realidade com duas faces: a da
60
violência masculina e a da violência feminina .
Ao analisar as causas percepcionadas da violência
conjugal, as relações interpessoais e as patologias são as causas
que os diferentes grupos percepcionaram como as que mais a
justificam, o que é sustentado, em parte, pela posição de Antunes
(2003) os aponta como factores que contribuem para tal tipo de
violência a violência na família de origem e o consequente
funcionamento familiar agressivo, a ausência de práticas adequadas,
a falta de competências de resolução de problemas, os défices
comportamentais e, comportamentos aditivos, designadamente o
consumo regular de álcool e de drogas, e a desconsideração da
importância da autoestima, do estatuto da relação, das experiências
relacionais e da comunicação interpessoal, bem como sentimento
poder/domínio. Em menor escala de aceitação, surgiram as causas
sócio-cultural, isolamento e o problema económico, contrariamente à
posição do mesmo autor. Sendo que, quanto à causa isolamento, os
profissionais da Saúde deram-lhe maior relevância em relação aos
profissionais do Direito.
Quanto à análise da percepção das características do perfil
do agressor, globalmente as causas de natureza individual e
interpessoal são as mais bem aceites, com maior relevo, as

60
Foca-se a atenção sobre a dinâmica da unidade familiar e/ou conjugal e recorre-se
a noções como “relações violentas”, “violência no casal” ou “abuso mútuo” em
detrimento das expressões “abuso da mulher” ou “mulher violentada”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 127

características de desordens da personalidade, seguidas da


sintomatologia e dependências. Deste modo, verifica-se que
prevalecem as atribuições de natureza interna, subestimando factores
de natureza externa. A esta tendência para relevar os factores
individuais em detrimento dos contextuais, deram os psicólogos
sociais o nome de erro fundamental de atribuição (ROSS; NISBETT,
1991). Por outro lado, não percepcionaram, como características do
perfil do agressor, os recursos cognitivos. De ressalvar, porém, que
se verificou que o grupo da Saúde, tendencialmente, realçou as
desordens da personalidade, como característica do perfil do
agressor, em contraposição com o grupo do Direito.
Comparativamente com este estudo, uma investigação qualitativa
desenvolvida com médicos (CRUZ et al., 2007) revelou que aqueles
tendiam a privilegiar as explicações intra-individuais para o abuso,
como o abuso de álcool e outras drogas, as situações de
psicopatologia (e.g. depressão) ou traços de personalidade (e.g.
agressividade).
De um modo propositado, as mesmas características
apresentadas para percepcionar o perfil do agressor foram
apresentadas para percepcionar o perfil da vítima. Os diferentes
grupos, tal como nas características do perfil do agressor,
destacaram o intraindividual, como sendo o privilegiado nas
representações, numa escala moderada de aceitação, as
dependências de substâncias, as dependências e sintomatologias
como características que revelam o perfil da vítima. De acordo com
Miller (1990) o abuso do álcool por parte das mulheres conduz a uma
predisposição a situações de violência conjugal. Alguns estudos
procuram isolar o perfil da vítima a partir do diagnóstico de
personalidade dependente no que se refere à vítima que “tolera” uma
relação abusiva. (HARWAY, 1993). Contudo, não se verificaram
diferenças relevantes na posição dos diferentes grupos.
Como objectivo, relativamente ao sistema de crenças sobre
a violência da conjugalidade, é de salientar que, no geral, os
resultados evidenciam que os profissionais inquiridos tendem a
expressar discordância nas crenças legitimadoras da violência
conjugal. Todos os grupos obtiveram valores baixos em todos os
factores e na escala em geral, indicando uma posição de não
aceitação da violência conjugal enquanto fenómeno legítimável.
Dados recentes apontam para uma concordância com estes
resultados que mostram a ocorrência de grandes progressos na
forma de encarar e enfrentar este tipo de problema, que é cada
128 Movimentos, Direitos e Instituições

vez mais considerado um crime grave que não pode ser ignorado
(BERRY, 2000; GOVER, BRANK; MACDONALD, 2007; STRAUS,
KANTOR; MOORE, 1997).
Tinha-se a expectativa que os participantes do grupo do
Direito, tal como concluiu Busch e colaboradores (apud MATOS;
CLÁUDIO, 2010), expressassem tendencialmente níveis de
legitimação da violência. O que, embora se tivesse obtido valores
mais elevados do que os restantes profissionais num dos factores
(Legitimação e banalização da pequena violência) e na escala em
geral, não se verificou resultados suficientemente claros para serem
significativos.
Existem outras evidências de que as crenças de tolerância
face aos maus tratos conjugais podem interferir junto daqueles que
actuam formalmente na violência conjugal. Ptacek (1988) expõe um
conjunto de exemplos, a partir de uma análise de textos escritos, por
profissionais que intervêm de um modo directo com agressores
conjugais (e.g. psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais), que
consideram a “perda de controlo e a provocação da parceira”
(PTACEK, 1988, p. 150) como comportamentos que explicam a
ocorrência da violência.
Os resultados obtidos neste estudo vão ao encontro de
investigações desenvolvidas, em Portugal, por (MACHADO, 2004,
2009; CARVALHO, 2010; MATOS; CLÁUDIO, 2010), com amostras
em cônjuges não abusadores; em profissionais da saúde (médico e
enfermeiros), professores; e, da amostra total do estudo de (MATOS;
CLÁUDIO, 2010), com destaque aos agentes de segurança pública,
militares da guarda nacional republicana e juízes. Verifica-se que os
dados obtidos neste estudo encontram-se mais próximos do estudo
efectuado com os dois estudos que englobam também profissionais
de diferentes classes que estão mais directamente implicados na
resposta e prevenção face ao fenómeno violência conjugal.
Sendo a análise da resposta do sistema jurídico face à
violência conjugal um outro objectivo do presente estudo, verificou-se
uma homogeneidade nas percepções dos diferentes grupos, quanto
ao facto da actual legislação sobre o crime violência conjugal.
Verificou-se uma posição de divergência quanto a percepcionarem
como um mecanismo eficaz na prevenção do mesmo, assente quase
numa divisão matemática de meio por meio do total da amostra.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 129

Quanto aos objectivos do sistema jurídico na condenação


dos agressores, os profissionais apresentaram níveis de aceitação
quanto à prevenção e à retribuição.
Relativamente aos programas de tratamento para
agressores de violência conjugal, no âmbito da justiça, os
profissionais dos diferentes grupos, revelaram percepcionar a
importância dos mesmos. Mas verificou-se uma grande divergência
de resposta pela amostra (com valores obtidos num posição média da
escala), quanto à sua adequação à realidade, ao seu
desenvolvimento e à sua eficácia.
No que respeita ao funcionamento do sistema de justiça
criminal, a amostra percepcionou como não sendo um sistema
adequado, visto considerar ser um sistema ineficaz, no sentido em
que não evita a reincidência. É no mesmo sentido que a amostra
percepciona o intercâmbio entre as instituições da justiça, face à
reabilitação e reinserção do agente delituoso, assim como a
(ausência de) celeridade dos procedimentos correccionais
adequados.
Na apreciação de casos concretos, como estratégia de
confirmar a hierarquia de opções de sancionamento do acto de
violência conjugal (maus tratos), verificou-se a severidade da punição
dos actos, diferenciada em função de uma conduta apresentada
(confissão de manter um caso extraconjugal) de, num dos casos, pelo
cônjuge vítima (mulher). Todas as sanções foram as opções mais
privilegiadas para o caso em que não apresentava a referida conduta,
surgindo em primeiro a frequência obrigatória em programas
específicos de prevenção de violência conjugal, seguido das penas
acessórias de proibição de contacto com a vítima, afastamento da
residência ou do local de trabalho, fiscalização por meios técnicos de
controlo à distância e pena de prisão. Exceptua-se a possibilidade de
tratamento em alternativa à aplicação de uma sanção, que foi mais
bem aceite para o caso onde se inseriu a conduta praticada pela
vítima.
Retribuir, dissuadir a actividade do agente e impedir a
repetição do acto criminoso foram as opções privilegiadas para o
caso onde não existe a indicação da conduta praticada pelo cônjuge
vítima. Exceptua-se a retribuição proporcional, que foi mais bem
aceite para o caso com a indicação da conduta supracitada.
130 Movimentos, Direitos e Instituições

Ao analisar-se as correlações das causas da Violência


Conjugal, das características do Perfil do Agressor e das
características do Perfil da Vítima com os objectivos do Sistema
Jurídico e com a existência de Programas de Tratamento para
agressores, verificou-se que relativamente às causas da violência
conjugal, as patologias correlacionam-se, positivamente, com a
prevenção (dissuasão e tratamento) e as relações interpessoais
correlacionam-se com a reintegração como objectivo a atingir pelo
sistema jurídico face ao crime violência conjugal.
No que diz respeito às características do Perfil do Agressor,
desordens da personalidade, verificou-se uma correlação negativa
com a existência de Programas de Tratamento para Agressores e
uma correlação positiva entre a sintomatologia e dependências e a
retribuição. E, no que toca às características do perfil da vítima, as
dependências correlacionam-se, positivamente, com o objectivo do
sistema jurídico, a reintegração.

CONCLUSÃO

As representações, através do seu processo de produção –


a subjectividade dos actores sociais, os códigos históricos e culturais
dos contextos – reenviando o sujeito para as suas pertenças sociais,
distinguem os diversos grupos sociais.
O alcance deste estudo em analisar as representações
sociais face ao fenómeno violência conjugal e as percepções da
resposta da justiça ao mesmo, não focalizado num só grupo, mas em
três grandes áreas de profissionais que lidam com a violência
conjugal em contextos sociais diferentes – Direito, Saúde e Educação
– torna possível perceber que este fenómeno tem vindo aumentar,
suscitando uma maior sensibilidade e, por sua vez, uma menor
tolerância.
Neste sentido, a intervenção junto do sistema,
proporcionando a descoberta de novas formas de organização e de
funcionamento, parece ser a mais adequada, sem que a mesma retire
ao agressor a sua responsabilidade social e legal.
A representação social prevalecente neste estudo é a de
que a violência conjugal é um comportamento que deve ser
considerado crime; o principal agressor é o homem; atinge famílias de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 131

vários estratos sociais; as suas causas justificativas assentam nas


relações interpessoais e patologias (desordens da personalidade),
prevalecendo atribuições causais de natureza individual e
interpessoal, e subestimando factores de natureza externa.
Perspectiva idêntica é percepcionada para as características do perfil
da vítima, revelando um enviesamento de atribuição causal (factores
individuais em detrimento dos contextuais).
Ao nível das crenças da violência conjugal, não são
percepcionadas de um modo significativo, como justificativas e
legitimadoras de tal conduta, em contraposição a estudos já
existentes, tais como em mulheres vítimas de violência conjugal, em
cônjuges abusadores, em polícias da Região Norte do País. Em face
de tais resultados, poder-se-á concluir que apesar de se caminhar no
sentido de uma mudança atitudinal, importa fazer esforços
consideráveis no sentido de erradicar as crenças sobre este
problema, a formar melhor e de modo continuado os profissionais de
ajuda e prevenção, de modo a estarem mais sensíveis às
consequências dos maus tratos; a criação de manuais de boas
práticas que proporcionem orientações e consolidem acordos
institucionais de forma a encontrarem-se medidas que urge adoptar.
A Justiça é chamada a pronunciar-se a uma ordem de
interesses e conflitos, o que lhe confere uma maior visibilidade e
responsabilidade, amplificada pela cobertura dos media. Esta
visibilidade é o seu maior desafio. Quando as normas do
ordenamento jurídico não são cumpridas, colocam-se as questões da
justiça retributiva e é preciso decidir se alguém deve ser punido pela
quebra das normas, que tipo de punição deve ser atribuída e quão
severa deva ser essa punição. Nesta vertente, num leque de
objectivos do sistema jurídico, na condenação do agressor de
violência conjugal, analisa-se uma percepção, no sentido de que os
objectivos assentam na prevenção e retribuição. Conclui-se, que
baseado numa justiça retributiva, no sentido que procura uma
proporcionalidade entre a pena atribuída e a gravidade da infracção,
os diferentes profissionais consideram que o sistema jurídico não
consegue de modo eficaz diminuir a ocorrência de crimes, nem
assegurar a reabilitação dos ofensores. Mas, que através de uma
justiça preventiva que procura, em vez de apenas a punição do
ofensor, consideram como objectivos a sua reabilitação, reeducação,
ressocialização, reintegração, diminuição do crime, assim como evitar
a reincidência. Percepcionam ainda, como objectivo da justiça, a
possibilidade de tratamento dos agressores, depreendendo-se que,
132 Movimentos, Direitos e Instituições

dada a importância que lhes é conotada, será necessário apostar na


prevenção do fenómeno violência conjugal.
A sociedade muda muito rapidamente. Não se pretende
uma justiça que mude todos os dias, mas também não se quer uma
justiça que seja que fique privada na sua actuação, nos seus
conceitos e princípios e que perca eficácia e sentido. Pretende-se
uma justiça actualizada, preparada, que acompanhe a evolução da
vida em sociedade, não obstante saber-se que a sedimentação de
conhecimentos, a consolidação dos conceitos jurídicos e aplicação
das leis precisam de tempo, que por vezes não é compatível com
uma sociedade em constante mudança.
É, assim, reconhecida consensualmente a importância de
um estudo das representações sociais enquanto conjuntos de
cognições partilhadas pelos diferentes grupos desta investigação,
acerca da violência conjugal e da resposta da justiça, do contexto
social em que se inserem, constituindo um sistema de interpretação
que confere coerência, através da incorporação e objectivação na
própria sociedade.

REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 6

UMA EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:


UM OLHAR SOBRE O MUNDO DO
TRABALHO INFANTIL

61
Sonya Maria Pires Brandão

RESUMO

Neste ensaio dá-se conta de uma experiência profissional no âmbito


da problemática do trabalho infantil, com suas vertentes no campo
jurídico, político e social. Procedeu-se a análise das mutações nos
processos de exploração no mundo das crianças, escrutinando o
modo como o trabalho infantil se insere como valor social abstrato e
certos padrões culturais que contribuem para reforçar a exploração
do trabalho. São contextualizadas as políticas públicas com suas
estratégias de mudança desde que emergiram na formação do
estado brasileiro à alteração consagrada na Constituição Federal de
1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente no contexto de várias
mobilizações sociais, que levaram à aceitação e a uma sentida
compreensão de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos,
intensificando-se as políticas públicas de combate ao trabalho infantil
apoiadas na opinião publica. Como fenômeno empírico as ações
desenvolvidas foram analisadas em Teresina, no período de 1996 a
2003, nos programas: Projeto de Ação Integrada da Prefeitura

61
Auditora Fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego brasileiro aposentada.
Advogada. Mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra e Doutoranda em
Relações do Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo na mesma instituição.
Coautora do livro “Temas de Discriminação e Inclusão” (Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014), publicado na área do Direito. E-mail: <sonyampb4@hotmail.com>.
138 Movimentos, Direitos e Instituições

Municipal e o Programa de Combate ao Trabalho Infantil envolvendo


a Administração Publica e Organizações não Governamentais. A
opção por este microcosmo da realidade social permitiu uma análise
concreta da aplicabilidade dos Direitos Humanos e a força da
presença estatal em ações concretas. O artigo comporta
essencialmente um resumo da abordagem técnica, dos riscos sociais
e físicos a que crianças e adolescentes estavam submetidos,
priorizando as olarias e o depósito de lixo como fontes de
informações sobre o trabalho de crianças e adolescentes tomando
como fonte principal a tese de Mestrado da autora deste capítulo.
Palavras-Chave: Direitos da Criança; inclusão social; PETI:
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; trabalho Infantil.

INTRODUÇÃO

O pensamento de que a “lei resolva” ainda é bastante


firmado no inconsciente coletivo brasileiro apresentando uma cultura
enraizada de que a promoção dos Direitos Humanos tem que ser
garantida pela instância pública amparados nos mecanismos legais e
tendo como agente principal o governo em todas as suas esferas.
Seria, pois os meios necessários para a garantia dos direitos da
pessoa humana e não como um valor real da sociedade brasileira.
A minha vivência profissional no serviço de fiscalização
acrescentou muitos conhecimentos das relações do trabalho no
Brasil, principalmente como mediadora estatal nas negociações
coletivas, nas resoluções de conflitos individuais e coletivos e na área
de ação social e fiscalizadora no combate ao trabalho infantil no
sertão do Piauí. A princípio as ações de erradicadiçao desta mancha
social foram centralizadas em Teresina, onde os índices sociais são
críticos e o processo de exclusão social é uma constante, envolvendo
o mesmo grupo social, na maior parte, os migrantes da zona rural em
busca da utopia maior, as “melhorias” na vida.
O trabalho infantil no Brasil, ao longo da sua história, nunca
foi representado como um fenômeno negativo; revestia-se de várias
formas e ideias perpetuando-se em forma de raízes profundas sem
discussões da sociedade brasileira durante séculos. Frases tais como
“é natural o pai ensinar o trabalho para o filho”, ou “é melhor a criança
trabalhar do que ficar na rua exposta ao crime e aos maus costumes”,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 139

e ainda, “trabalhar educa o caráter da criança”, ou na economia “é


bom a criança ajudar a família”, traduzem o conceito fortemente
infundido de que “trabalho é solução para a criança”. Como a
composição da sociedade brasileira é bastante heterogênea, foi muito
difícil apresentar esta mudança de pensamento como uma doença
que consumia os jovens e os afastava da escola.
Por muito tempo, até ao no final dos anos 1980 e meados
dos anos 1990, muitos empregadores entendiam como uma espécie
de favor à criança e família, a oferta de “emprego”. A alegativa de que
estava oferecendo uma oportunidade de “aprender um ofício”, de
“ganhar uns trocados” ou de “aproveitar o tempo em algo útil” era a
máxima usada como justificativa para utilizar a mão de obra infantil.
Não viam nada de mal em aceitar ou explorar uma criança numa
fábrica, numa oficina, numa pedreira, no corte da cana-de-açúcar,
numa salina ensacando sal, nas olarias, no processo de catação de
lixos orgânicos e não orgânicos.
O próprio governo federal em convênio com os Estados e
municípios, nos meados dos anos 1980 e até o início dos anos 1990,
mantinha programas sociais onde a criança oriunda da classe mais
pobre prestava serviço em estacionamento de veículos, ensacando
mercadorias em supermercados e outras atividades comerciais. O
“beneficiado”, assim denominado o participante do programa, não tinha
seus direitos trabalhistas reconhecidos, mas às empresas
“beneficiadoras” eram assegurados os incentivos fiscais. O programa
tinha o título bizarro de “O Bom Menino”. Empregava meninas também,
nas mesmas condições, sem direito inclusive a seguro saúde.
Pelos meados de 1993, começou a ser visto criticamente
esta prestação de serviço, quando os Tribunais do Trabalho foram,
aos poucos, acatando como vínculo empregatício os contratos dos
meninos e meninas, não considerando a tese de que o programa
servia para treinamento da mão de obra. As atividades desenvolvidas
não preenchiam as exigências para uma formação profissional e nem
traziam desenvolvimento social para estes meninos e meninas; como
agravante nenhuma escola profissionalizante participava do processo
de desenvolvimento destas crianças.
Em 1996 o Ministério do Trabalho iniciou o processo de
tomada de consciência da realidade, pois à época até mesmo os
sindicatos omitiam de sua agenda de reivindicação a questão das
crianças trabalhadoras. Um verdadeiro tabu para os atores sociais
brasileiros. Sabe-se que a grande motivação para a imutabilidade do
140 Movimentos, Direitos e Instituições

trabalho infantil é o estado de pobreza da família que induz ao labor a


todos os seus membros em busca de uma renda diminuta que acaba
por não ajudar e sim atrapalhar a própria família, uma vez que, ao
sacrificar o desenvolvimento, através da escola, torna-se um fator
determinante na fixação das condições de pobreza permanente.
Como futuro a criança tem uma exclusão real, no mercado de
trabalho, no mundo da exigência da competência técnica e científica.
Seja pelas necessidades das famílias submetidas à
pobreza, pela divisão do trabalho manual e intelectual ou ainda pelo
suposto caráter pedagógico ou educativo e até mesmo, pelos valores
sociais atribuídos ao trabalho, pode ser dito que exploração do
trabalho infantil faz parte da história brasileira, estar no seu contexto
social.
Na realização deste capítulo tomaram-se por base os
estudos das políticas públicas que lançaram estratégias de
mudanças, bem como a aplicabilidade e até inaplicabilidade dessas
iniciativas. Nesse sentido tentou-se responder as questões: De onde
vêm estes pequenos trabalhadores? Quais são os fatores que
interferem no processo? Quais as atividades econômicas envolvidas
no sistema? Quais os efeitos do trabalho precoce na formação física,
psíquica e social, desta criança? Como agem os atores sociais da
sociedade brasileira no combate ao trabalho infantil? Quais os
resultados dos programas governamentais: Projeto de Ação
Integrada, o PETI, e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
nas Olarias e no “lixão” de Teresina?
A base empírica do estudo é constituída pelas iniciativas
desenvolvidas em Teresina, no período de 1996 a 2003, objetivando
examinar o tratamento da questão do trabalho infantil, sob a égide do
novo padrão de organização das políticas sociais. Como foi visto, ao
princípio, as ações de enfrentamento dessa problemática tenderam a
reproduzir as características do padrão anterior, mesmo levando-se
em conta a sua complexidade e o legado histórico das políticas
sociais brasileiras é difícil admitir-se que houve uma mudança
profunda na cultura que fomenta o trabalho infantil.
O enquadramento teórico passa pelos fatores que
contribuíram para a formação social e econômica da população
brasileira bem como os seus efeitos e consequências no processo de
exclusão vivenciado por este segmento da população, usando a
revisão da literatura sobre a caracterização do trabalho infantil como
um fenômeno social. O registro do mundo do trabalho destas crianças
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 141

e adolescentes no decorrer dos tempos compõe o enquadramento


teórico traduzido pela experiência profissional desenvolvida.
Uma retrospectiva das ações governamentais tem que ser
revelada assim como as “mãos” que esconderam estas crianças e
adolescentes dos olhos da sociedade brasileira de uma forma muito
especial, somado aos dados estatísticos fornecidos pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Assim pode-se aceitar a
máxima de que a sociedade brasileira pensava, aceitava e validava
com o pensamento de que a criança em situação de risco social
deveria trabalhar. A história das leis, regulamentos, resoluções que
compuseram o ordenamento jurídico desde o tempo do Brasil colônia
a 1988, ano da promulgação da Constituição Federal também a seu
tempo será observada.
Um relato da experiência profissional vivenciada como
Auditora Fiscal do Trabalho vem acompanhada com a apresentação
dos riscos à saúde e os riscos sociais a que estão sujeitos estes
meninos e meninas no trabalho. Registra-se como modelo a ser
seguido a criação de um fórum que reúna todas as organizações
governamentais e não governamentais. Portanto, tem uma
fundamentação muito forte nos dados encontrados pela fiscalização
do trabalho, com as devidas avaliações técnicas, pela Procuradoria
do Trabalho, na feitura dos Ajustes de Condutas com as partes
envolvidas e com a tomada de consciência da realidade exposta aos
setores responsáveis pelas ações de defesa destes meninos e
meninas encontrados em situação de risco social. Também é relatada
uma estratégia de mudança proposta pelo governo federal através de
um programa especial.
As propostas estão fincadas na experiência profissional
desenvolvida na área das relações do trabalho representando a
Administração Pública do Brasil. As análises começam aqui. Para
encontrar as respostas foi necessário olhar, sentir e pesquisar nos
relatórios, diagnósticos, planos de ações, inquéritos e processos
administrativos. Atas das reuniões do Fórum Estadual de Combate ao
trabalho Infantil serviram de subsídios para relatar os fatos
vivenciados.
142 Movimentos, Direitos e Instituições

1. UM POUCO DA HISTÓRIA BRASILEIRA

O conhecimento da história brasileira ajuda a entender a


realidade, principalmente o fenômeno do trabalho infantil e o da
desigualdade social, cujas raízes levam ao Brasil colônia, na divisão
econômica e administrativa em Capitanias hereditárias. As elites do
Brasil colonial conservaram o entendimento econômico-financeiro da
valorização da terra e do uso da mercadoria maior – a pessoa
humana. A renda oriunda da monocultura se centralizava nas mãos
dos senhores sem permitir o acesso de novas propostas do
capitalismo - o sistema de produção e consumo.

Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo no Rio de


Janeiro do início do século XIX, 4% eram crianças. Destas apenas 1/3
sobreviviam até os 10 anos. A partir dos quatro anos, muitas delas já
trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se dos seus
genitores era coisa comum. Aos doze anos o valor de mercado dessas
crianças já tinha sido dobrado. E por que? Pois considerava-se que seu
adestramento estava concluído e nas listas dos inventários já
apareciam com sua designação estabelecida: Chico ´roça´, João
´pastor´, Ana ´mucama´, transformadas em pequenas e precoces
máquinas de trabalho. (PRIORE, 2008, p. 12).

A escravidão atravessou quase quatro séculos, e somada


ao extermínio dos povos indígenas, marcou profundamente a
estrutura social brasileira. O trabalho infantil tem sua entrada no
território com esta prática da falta de respeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana e as praticas dos trabalhos forçados
já exercidos nas embarcações portuguesas pelos “Grumetes”. Eram
os meninos de origem pobre que contratados para as viagens até as
colônias, tinham seus soldos recebidos pelos seus pais, em Portugal,
muitos nem aqui abarcavam, morriam na travessia.
Com a abolição da escravatura e a Independência do Brasil,
em 1822, nada mudou na situação de extrema pobreza de grande
parte da população brasileira. Os escravos e seus filhos, embora
legalmente libertos, continuaram presos aos “coronéis” e sujeitos ao
seu domínio, principalmente na região do Nordeste brasileiro,
qualificando assim a outra servidão. As modalidades de distribuição
da terra, a economia ancorada no latifúndio, na monocultura e no
escravizo, gerou um processo de exclusão fundamentado na privação
do acesso à propriedade por parte dos índios e dos negros e
respectivos descendentes. Como herança colonial firmou-se também
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 143

a força da política do comércio exterior, mesmo em prejuízo das


necessidades da população nacional.
O Brasil rural marcou fortemente a formação economica do
Brasil. As crianças pobres tinham o destino certo a cumprir, cortar
cana, apanhar café ou outra atividade que o mercado determinasse.
Empurradas para fora da escola por falta de uma política estatal,
acentuou-se a miséria deste contingente.

Escrever uma história do menino da sua vida - dos seus brinquedos,


dos seus vícios brasileiros, desde os tempos coloniais até hoje. Já
comecei a tomar notas na biblioteca de Oliveira Lima (anotava ele) nos
cronistas coloniais, nos viajantes, nas cartas dos jesuítas. Sobre
meninos de engenho, meninos do interior, da cidade. Os órfãos dos
colégios jesuítas. Os alunos dos padres. Os meninos mestiços. De
crias de casa grande. De afilhados de senhores de engenhos, de
vigários, de homens ricos, educados como se fossem seus filhos por
esses senhores. É um grande assunto. E creio que só por uma história
deste tipo - sociológica, psicológica, antropológica e não cronológica -
será possível chegar-se à uma ideia sobre a personalidade do
brasileiro. É o menino que revela o homem. (PRIORE, 2008, p. 11-12).

O trabalho infantil industrial foi mais sentido quando as


fábricas de tecidos começaram o processo de industrialização no
Brasil. Apesar de ser recente com seu início do século XX, o setor
industrial alcançou uma grande diversificação e a autotransformação,
principalmente nas regiões sul e sudeste.

1.1 O Trabalho Infantil como fenômeno social

Define-se a exploração do trabalho infantil no Brasil como


qualquer atividade profissional desenvolvida por crianças e
adolescentes menores de 16 anos, visando ou não uma
contraprestação econômica ou financeira. A alegativa da sua
sobrevivência, não perde a característica de exploração. Exceção
dada aos maiores de 14 anos e menores de 16 anos, estudantes de
escolas profissionalizantes, na condição de aprendiz (cursos
técnicos). Aos maiores de 16 anos, é permitido o trabalho dentro das
exigências legais, prevista na legislação do trabalho.
Conhecer a realidade do trabalho infantil é tomar ciência
das condições desumanas do dia-a-dia destes meninos e meninas.
Eliane Montenegro (2006, p. 63-65) cita a UNICEF nos estudos
publicados em 1997 e revela o trabalho infantil como um fenômeno
social presente no mundo e justifica a sua exploração no Brasil aos
144 Movimentos, Direitos e Instituições

fatores econômicos e financeiros atrelados à distribuição injusta da


renda nacional, a extrema pobreza de muitas famílias e as condições
das escolas publicas onde os filhos e filhas destas famílias
conseguem ter acesso. Lima afirma:

No novo milênio, os diferentes graus de exploração se reproduzem e


são criadas novas formas de subtrair da força de trabalho de adultos e
crianças valorizando ganhos e lucros em detrimento de valores éticos e
humanitários. Nesse sentido, o trabalho de crianças e adolescentes
constitui um aspecto particular da exploração no mundo
contemporâneo. (2001, p. 65).

Mas é bom colocar em discussões algumas determinantes


destacadas pela literatura sobre este tema, lnclusive as mudanças
ocorridas no perfil das cidades brasileiras. Teresina, a cidade objeto
deste estudo, é um modelo típico, pela sua posição geográfica.
Segundo o IBGE, Teresina desempenha o papel interessante de
“capital do meio norte brasileiro” e se apresenta como a única capital
do Nordeste que se localiza no interior. A sua posição geopolítica é
muito estratégica, e serve como ponto de ligação entre o Norte e o
Nordeste, criando assim laços sociais e políticos a nível nacional.
O papel econômico e cultural desta cidade alcança bem
mais que seus habitantes residentes e influencia diretamente uma
região com mais de cinco milhões de pessoas carentes ou não,
principalmente na prestação de serviços públicos, o que nem sempre
é reconhecido pela administração pública federal quando da
realização dos cálculos na distribuição de verbas publicas. O
comércio é também uma atividade recorrente desta população pelo
que se justifica, em parte, a migração constante. A cidade tem este
fluxo de migrantes temporários ou não.
A formação dos bairros periféricos vem apresentando
novas feições e questionamentos sobre o modo de vida urbano e
nomeadamente uma sensível decadência das cidades. Convive-se de
um lado com o crescimento verticalizado das edificações e
condomínios diferenciados dos ricos e do outro lado com os
conjuntos habitacionais dos pobres em locais distantes e periféricos.
Como se pode observar e sentir, os pobres se tornam vulneráveis
pelas ações de muitos outros agentes sociais. Na sua interação social
sofrem pela não aceitação da sociedade da sua condição de pobres
em si, o que dificulta a sua inclusão. Formula-se então a pergunta:
quem seriam então estes meninos e meninas explorados?
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 145

São em sua maioria os sobreviventes da zona rural do


sertão nordestino. Vivem de uma forma muito primitiva. As janelas de
suas casas não conseguem mostrar o mundo, o olhar esbarra na
abertura da frecha que se apresenta muito pequena e estreita. Olhar
além deste mundo requer uma imaginação que somente os livros
poderiam ensinar a ver. E a escola? Atravessam léguas de
plantações para lá chegarem e nem sequer o mínimo de conforto lhes
é oferecido. Trabalham desde pequenos numa economia de
subsistência em âmbito familiar ou para exploradores outros. Retratos
falados desta realidade:

Criança descascando a mandioca

Moradia com sua única janela para o mundo


146 Movimentos, Direitos e Instituições

Trabalho a céu aberto

Fonte: OIT/MTE/UNICEF. Criança fazendo seus deveres escolares

A agricultura no Brasil é realizada em grande escala


ocupando uma grande extensão de terra e com todos os recursos
tecnológicos. Um mundo verde onde o ser humano foi substituído
pela máquina. Com a agroindústria sempre em expansão, os
trabalhadores rurais são enxotados de seus mundos, obrigando-os a
fugirem para as cidades em busca de acolhimento, em outras
palavras, correm atrás de um processo de inclusão social mais justo.
Assim no Brasil aproximadamente 82%, da sua população compõe o
cenário urbano, segundo o IBGE, ostentando uma desigualdade
social estarrecedora. Estes meninos e meninas do mundo do trabalho
urbano descendem destes migrantes, sempre fugindo, ora do eterno
fenômeno da seca ora da falta de política voltada para a fixação dos
seus pais e mães na terra. Somado a todos estes fatores sofrem dos
efeitos dos interesses econômicos e financeiros das políticas públicas
que trazem no seu bojo o processo de agravamento das
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 147

desigualdades regionais do Brasil garantindo assim a sobrevivência


deste fenomeno social muito triste e aviltante.
Existem varias formas de qualificar os miseráveis do mundo:
o desempregado, o jovem da periferia, o sem teto, o sem terra, o
migrante, o imigrante e outras multiplicidades de situações. É bom
chamar a atenção para o emprego da palavra exclusão já que coloca
vestes e ao mesmo tempo representa a realidade social. Também o
“desenraizamento” apresenta-se como o fenômeno fundamental da
exclusão, somado à falta de acesso ao patrimônio e ao trabalho
regulado. Em verdade, os pais e mães destas crianças, ao recorrer
ao processo do êxodo rural, em busca do emprego, sofrem rupturas
muito profundas com suas raízes sem estudos que os levem a aplicar
habilidades profissionais no mercado de trabalho urbano. Uma nova
sociedade intensiva do conhecimento surge aberta para a
produtividade com um efeito muito forte de exclusão social, e ao
substituir a mão-de-obra com muita rapidez por máquinas, afasta as
pessoas de todos os setores da economia.
As mulheres migrantes da zona rural sofrem, mais ainda,
desta realidade do mercado de trabalho e da falta de instrução e
preparo para a “cidade grande”. As suas pequenas aptidões se
restringem às actividades domésticas sem muito conhecimento da
realidade e dos costumes das cidades. A discriminação ainda é mais
forte. Assim, nesta área recomeça uma nova lida, tendo que
manusear electrodomésticos nunca imaginados, matérias-primas
nunca vistas. É mesmo como dar um giro numa máquina do tempo.
Conforme um estudo realizado pelo o IPEA e a OIT, o Brasil
precisa cuidar melhor das famílias, pensamento este amparado na
análise desta pesquisa, onde se constata a falta de estudos de 22
milhões de jovens na America Latina, a maternidade precoce e a falta
de política de amparo à mulher mãe e trabalhadora como bem diz
Constanzi. (2009, p. 22-23).
Para enfatizar, Virgínia Ferreira amplia o pensamento:
A abordagem das questões das desigualdades sociais e sexuais deve,
portanto, ser realizada no quadro de uma análise das relações sociais,
enquanto constituintes de lógicas que atravessam todos os campos do
social e conferem uma dimensão sistêmica a um conjunto de elementos
articulados entre si. Estas lógicas instituem grupos que se opõem
antagônicos e hierarquizadamente. Teoricamente, as relações entre os
grupos assim constituídos são antagônicas. Mas na sua
operacionalização na realidade não é linear nem automática. As relações
sociais de sexo, como as de classes, ou de etnia, são relações sociais
fundamentadas, no sentido em que estruturam a sociedade e a
148 Movimentos, Direitos e Instituições

atravessam e estão presentes em todos os seus domínios. (DAUNE-


RICHARR; DEVREUX, 1990, p. 12, apud FERREIRA 2004, p. 305).

O pobre tem que ser polivalente, tem que se dispor a fazer


qualquer serviço ou tarefa, em outros termos, são os famosos
“biscates” que o fazem sobreviver nas cidades. Uma regra do
sertanejo define bem este fenomeno: “o pobre tem que entender de
acasalamento de muriçoca (mosquito) à construção de navios”. Assim
as mulheres também aprendem a ser “sabidas”. Percebe-se que a
carência de estudos e de formação profissional para enfrentar o
mercado de trabalho são fatores determinantes no acesso ao
emprego e nas quebras de sonhos. A ausência do conhecimento para
trabalhar na zona urbana faz com que se sintam também
inferiorizados.
O conflito entre trabalho e escola tem desdobramentos
imediatos por causa do impacto do trabalho precoce sobre a evasão
escolar e, no longo prazo, sobre a escolaridade obtida. A implicação
mais sentida é uma melhoria profunda da qualidade de ensino no
Brasil com uma estratégia de mudanças É importante salientar que a
Constituição Federal determina no seu artigo 5º a igualdade entre
todos, brasileiros e estrangeiros residentes no país, tendo como
pressuposto a ideia do respeito à diversidade. Significando a
igualdade na diferença, é necessário que se aprecie as
especificidades de cada grupo social. O reconhecimento da diferença
é instrumento fundamental para o alcance da igualdade e para a
consequente aproximação dos indicadores sociais de cada um dos
grupos. O IBGE em 2004 detectou que a média de anos de
escolarização da população nordestina era de 5,5 anos, contra 7,5
anos no Sudeste.
Portanto são necessárias ações que possibilitem a
permanência dos estudantes na escola, uma vez que a
“universalização do acesso não significa a universalização da
permanência”. Os dados do IBGE/PNAD (2006) constatam que o
mercado de trabalho, no setor primário, é o que mais emprega estes
meninos e meninas. O setor primário concentra um percentual de
53% na atividade agrícola e emprega também as crianças de 5 a 9
ano. Apenas 16% estão no comércio e serviços. Constata-se que a
exclusão dos pais ou mães do mercado de trabalho formal acarreta
também outras inclusões. Os estudiosos têm tentado alertar para a
realidade do quotidiano destas famílias, num dia a dia que corrói
qualquer expectativa de mudança. A mobilidade social se transforma
em algo impossivel.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 149

Para além da questão financeira ou mesmo de


sobrevivência, devem ser incluídos como fatores que participam
deste processo de exploração os padrões culturais que serviram de
estrutura da sociedade brasileira que têm uma visão muito positiva do
trabalho, como modelo de educação das classes pobres sendo visto
como espaço de socialização e até mesmo como local de protecção
contra os malefícios das ruas e do ócio. A verdade é que em algumas
atividades estas crianças produzem mais do que um empregado
adulto, dadas as especificidades das tarefas. Como exemplo citam-se
no ensacamento do sal, nas salinas do Piauí e do Ceará, na apanha
da castanha do caju, do caranguejo, da laranja, do algodão e demais
laborações onde a pouca estatura e o baixo peso, e a obediência
irrestrita são condicionantes para um melhor desempenho das
tarefas.
Antónia Jesuíta Lima, em 2003, ao retratar a realidade dos
pobres de Teresina, faz referência ao depoimento de Josias um
migrante que confessou as diversas mudanças de emprego e que
como solução de sobrevivência buscava o mercado livre denominado
de Troca-Troca. O nome define as ações desenvolvidas neste local.
De um modo simplista começa assim, quem tem uma geladeira e
quer trocar por uma bicicleta vai lá e exerce a função de vendedor ou
no caso do Josias utiliza esta forma de trabalho intermediário. É uma
modalidade primitiva que tem sobrevivido através dos tempos, foi alvo
de estudos e serviu de referencias na época da implantação dos
planos econômicos no Brasil como modelo de sobrevivência num
país sem moeda.

Eu sempre fui um mágico, a minha vida é ser um mágico, trabalhar


sem um tostão no bolso, só com a cabeça, só com a inteligência. Eu ia
pro o Troca-Troca e não tinha um botão pra vender, eu conseguia
dinheiro pra comer, eu conseguia dinheiro prá vestir, dinheiro pra tudo,
só com a cara e coragem, eu vendia tudo que era dos outros, vendia
bicicletas dos outros, vendia móvel velho do outro, vendia tudo, dali é
que eu tirava a minha comissão, eu não tinha um tostão. “Eu me
achava o máximo”. Sem capital, Josias vendia, como se vê,
mercadorias de terceiros, em troca de comissão, e assim sustentou
seus filhos, embora consciente de que carregava um estigma de
“sabido”, o que, na linguagem corriqueira, significa “trapaceiro”,
emblema conferido às pessoas que labutam no Troca-Troca. (LIMA,
2003, p. 279).

A luta pela sobrevivência encosta, para os lados, todos os


ideários dos Direitos Humanos. A força dos valores sociais, das suas
representações e expectativas, decide como força de trabalho estes
150 Movimentos, Direitos e Instituições

meninos e meninas. O trabalho precoce é, pois, um passivo social,


com múltiplas formas.

2. RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

O significado social da criança no Brasil restringia-se a um


agente de mudanças apenas uma espécie de instrumento de um
futuro melhor para a nação brasileira somado ao espírito de defender
do mal, de defesa da ordem e da paz social, conceitos pensados e
absorvidos pela sociedade. Portanto as crianças brasileiras passaram
por diversas “mãos” onde lhes foram incidindo valores sociais.

a) Nas mãos dos Jesuítas, missão de evangelizar e ensinar uma nova


cultura às crianças dos povos indígenas e aos negros escravos. b) Nas
mãos dos Senhores: com a lei do ventre livre, em 1871, as crianças até
os 14 anos, permaneciam com seus senhores, e estes poderiam exigir
uma compensação pelos gastos desprendidos neste período através
do trabalho gratuito até os 21 anos, ou solicitar uma indenização ao
Estado. c) ´Nas mãos das Câmaras Municipais e da Santa Casa de
Misericórdia´: As crianças geralmente nascidas fora da relação do
casamento ou muito pobres eram colocadas numa grande roda em
frente às Casas de Misericórdia expostos a todas as intempéries e à
espera dos interessados pela adoção ou dos que praticavam a
filantropia na época. Muitas morriam de desnutrição pelo abandono. d)
‘As mãos dos asilos’: Instituição que acolhia crianças e adolescentes
oriundos de famílias muito pobres, os órfãos, os abandonados, mesmo
aqueles que a família não podia controlar e que ameaçavam a
sociedade. Nestas instituições era bastante definida na área de
educação a questão de género. Para os meninos era oferecido cursos
voltados ao trabalho na indústria e para as meninas cursos na área
doméstica. A questão de género estava oficializada mais uma vez. O
trabalho era o valor maior na prevenção ou mesmo no
reenquadramento do jovem. Devido à estigmatização deste contingente
a inserção social se tornava quase impossível. Posteriormente tiveram
novas denominações: escola de preservação, premonitória, Industrial
ou de reforma, educandário, Instituto (Idem). e) ‘Nas mãos dos
Higienistas e dos Filantropos’: Quando foram introduzidas as questões
do meio ambiente para se atingir uma melhora da higiene dos locais
onde as crianças estavam refugiadas. f) ‘Nas mãos dos Tribunais:
Reformatórios e Casas de Correção’: A internação passava pela ordem
judicial após uma análise da assistência social institucional tendo em
vista o aumento dos crimes envolvendo os meninos e meninas. g) ‘Nas
mãos da Polícia: Defesa Nacional’: A polícia era responsável pela
apreensão dos menores de ruas que eram reconhecidos como
indesejáveis à sociedade. h) ‘Nas mãos dos Patrões’: Os
empregadores exploravam a mão de obra infantil com apoio da
sociedade arrazoados pelo lema maior: retirar das ruas. i) As crianças
também andaram: ‘Nas Mãos da família’, ‘nas Mãos do Estado:
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 151

Clientelismo’, ´Nas Mãos das Forças Armadas: Segurança Nacional’,


‘Nas Mãos dos Juízes de Menores: o Menor em Situação Irregular´.
(PILOTTI; RIZZINI, 1995, p. 14-19).

Esta citação expressa muito bem o pensamento da


sociedade brasileira no decorrer das implementações das políticas
públicas para as crianças do Brasil. Uma temática ainda não
conhecida pela sociedade que se via envolvida com as questões do
“menor abandonado”, dos “meninos e meninas de rua” ou em
“situação de rua”.
É interessante apreciar a legislação brasileira, pois desde
1891, pelo Decreto 1313, tentava-se impor um limite à exploração do
trabalho infantil, garantindo-se jornada de trabalho de 7 horas diárias
ao trabalho das meninas com idade compreendida entre os 12 a 15
anos e para os meninos com idade compreendida entre 12 e 14 anos.
Acima destes limites aos meninos entre 14 e 15 anos a jornada de
trabalho estava limitada a 9 horas diárias.
Já nos idos de 1924, na Declaração de Genebra, encontra-
se a primeira referência internacional do direito das crianças. Em
1927, foi elaborado o primeiro Código de Menores da América Latina,
tendo sido definido a idade mínima de ingresso no mercado de
trabalho aos 12 anos e a proibição do trabalho noturno a menores de
18 anos. E pelos idos de 1943, no Brasil, foram consolidadas através
da CLT normas que trouxeram limite de idade de12 anos para o
ingresso no trabalho, uma proibição do trabalho noturno, insalubre e
periculoso e mais a de prorrogar a jornada de trabalho, admitindo-se
apenas em caso de força maior.
Em 1948, quando da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e no Pacto
Internacional de Direitos Econômico, Sociais e Culturais, assegurou-
se a implementação e o reconhecimento do direito das crianças e dos
adolescentes nos países Membros, consubstanciada em 1989, na
Declaração dos Direitos da Criança, também da ONU, assinado pelo
Brasil em 26 de Janeiro de 1990 e aprovada pelo DL n. 28, de 14 de
Setembro de 1990.
Uma nova ordem através da OIT foi empregada aos países
subscritores: a limitação da idade mínima de 14 anos para o ingresso
ao trabalho, firmada na Convenção de número 138 de 1973, no seu
artigo 1º: O Brasil ratificou esta Convenção somente em 1999, com
vigência a partir de 26/06/2002. Foi aposta a idade limite de 16 anos
152 Movimentos, Direitos e Instituições

para o trabalho, mas entre os 14 e os 16 anos são permitidos como


frequentadores de cursos profissionalizantes. (A título de curiosidade
a idade limite à época era de 14 anos e na condição de estagiário de
curso profissionalizante de 12 anos a 14 anos.). E em 1999 a OIT
veio convencionar entre seus pares a erradicação das piores formas
de trabalho infantil em regime de urgência através da Convenção
182/1999, no seu artigo 2º, a partir do qual se redefiniu que se deve
entender pela palavra criança como qualquer pessoa menor do que
18 anos de idade.
Esta nova definição veio possibilitar a interpretação da
Convenção e a sua aplicabilidade, acrescentando também um dado
muito importante: tipificar como crime o recrutamento ao trabalho em
condições de escravidão ou quando revestido do caráter de trabalho
forçado. Saliente-se que o direito positivo brasileiro passou a abrigar
as normas das convenções internacionais, após a aprovação do
Congresso Nacional, incorporando ao seu ordenamento jurídico,
como uma lei ordinária. Em 1988 incluiu-se a criança como sujeito de
direitos e introduziu-se no seu novo ordenamento jurídico a
participação ativa da sociedade civil nas decisões que envolvam o
seu desenvolvimento. Como “sujeito de direito”, foram acrescidos os
direitos fundamentais às liberdades de opinião, de expressão, de
associação e mais o direito ao voto aos maiores de 16 anos, ficando
garantida a capacidade de ter responsabilidades, mas esta
capacidade é relativa, como pessoa em desenvolvimento, cabendo a
obrigação de resguardar estes direitos: à Família, à Sociedade, e ao
Estado. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069
de 1990, veio regulamentar a aplicabilidade dos preceitos
constitucionais e trouxe uma novidade, as mudanças de conteúdo, de
método e de forma de gestão dos direitos das crianças e
adolescentes, mais sócio-jurídica, deixando a defesa assistencialista
e introduzindo propostas de cunho socioeducativo e emancipatório.
Além das garantias legais, iniciou-se um processo de
criação das estruturas para defesa e proteção das crianças e
adolescentes no País, nomeadamente os Conselhos Tutelares e os
Conselhos de Direitos, nos âmbitos nacional, estadual e municipal.
Trata-se de órgãos não jurisdicionais, que representam os interesses
individuais e coletivos perante as estruturas sociais e jurídicas. Veja-
se o art. 86, do ECA. Os Conselhos assim constituídos paritariamente
Governo e Sociedade Civil agem como órgãos deliberativos e
controladores das ações pertinentes, em todos os níveis de governo.
A Ordem dos Advogados tem assento permanente. O Estatuto está
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 153

fundamentado nos princípios da descentralização político-


administrativa e pela participação de organizações da sociedade.
Amplia as competências do Município e da comunidade e reduz as
responsabilidades da União e dos Estados. À primeira deve caber,
exclusivamente, a emissão de normas gerais e a coordenação geral
da política. Destaca-se o CONANDA, órgão colegiado deliberativo de
composição paritária e função controladora destas políticas públicas.
Uma resolução interministerial trouxe em seu bojo um plano
de ação para erradicar o trabalho infantil no Brasil. Em cada
Ministério, foram instituídas as comissões compostas por profissionais
multidisciplinares, responsáveis pelo desenvolvimento das ações do
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Nesse sentido,
o Ministério do Trabalho criou, no âmbito estadual, os Núcleos de
Erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalho do
Adolescente, posteriormente os GECTIPA (Grupo de Erradicação do
Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalhador Adolescente), com o
objetivo de identificar no próprio local, todas as atividades
econômicas que utilizam o trabalho infantil como fator produtivo.
Nas ações do Ministério do Trabalho foram realizadas
parcerias e uma nova ideia de reunir atores sociais com papéis
relevantes a cumprir no combate ao trabalho infantil foi abraçada. Os
empregadores com sua capacidade de mobilizar recursos para a
promoção de campanhas de conscientização junto à população. Os
trabalhadores com a capacidade especial de comunicação ficariam
responsáveis pela difusão do combate ao trabalho infantil utilizando o
processo de negociação coletiva como meio de firmar normas entre
as partes para combate ao trabalho infantil. As organizações não
governamentais com sua extraordinária capacidade de conhecer e
incidir sobre a realidade imediata das crianças, e de aglutinar a
sociedade civil organizada. A OIT e a UNICEF no seu papel
institucional. O Ministério da Justiça através do CONANDA participou
ativamente na constituição dos Conselhos Tutelares e dos Direitos da
Criança e do Adolescente.
Não foram fáceis os primeiros contatos com as pessoas
exploradas. É um procedimento muito lento e muito delicado, sendo
quase impossível envolver um descrente no processo de mudança. A
princípio nem paravam para ouvir. Seus familiares olhavam e
voltavam à mesma atividade, já que o tempo custa dinheiro. Já
estavam habituados às “conversas” ou promessas sem soluções.
Tudo foi feito para apresentar as razões de “nossas” presenças
154 Movimentos, Direitos e Instituições

naquele lugar e como seria importante a participação direta no


processo de intervenção estatal. Muitas vezes voltava-se de “mão
vazias”, as ações eram de convencimento da proposta. Às vezes
depois de um breve tempo, uma ou outra criança se aproximava e
observava, demonstrando pelo olhar de crítica, que mais curiosos
estavam trazendo promessas de mudanças. Sentia-se uma sensação
muito estranha, sendo necessário um treinamento especial para
aquela atividade tão delicada! Mas a realidade tinha pressa e uma
certeza: não era justo ignorar aquele Brasil! Outros parceiros foram
convidados a participar. O processo de tomada de consciência foi
realizado de porta em porta, buscando um retrato da vida real destes
excluídos. A fiscalização do trabalho elaborou um diagnóstico em que
constavam as atividades econômicas exploradoras. A título de
curiosidade, quando nos aproximávamos a maior parte dos meninos
e meninas fugiam dos locais de trabalho, e nós, os fiscais,
esperávamos pelos seus retornos, calmamente, conversando com os
curiosos sobre as novas metas.
Um perfil socioeconomico das crianças e dos adolescentes
foi o primeiro passo depois foi realizada uma análise das principais
consequências da inserção precoce em atividade de risco. A análise
faz parte do acervo do Fórum Estadual de Combate ao Trabalho
Infantil do Piauí, bem como filmes, fotos e depoimentos que
registraram o momento. A grande maioria das pesquisas aborda o
trabalho infantil como um fenômeno social homogêneo, sem analisar
o contexto regional e cultural, a questão de gênero, a jornada de
trabalho, as atividades peculiares da região bem como a educação e
a situação de pobreza e da família. O dia a dia destas pessoas.
Além disso, os diversos fatores envolvidos com a
exploração do trabalho infantil precisam ser verificados de forma
diferenciada. Os estudos realizados fixam-se no lado da oferta do
trabalho infantil, mas é preciso analisar também o lado da demanda,
entender as razões pelas quais as crianças são contratadas; os
efeitos desta contratação na estrutura e no lucro das empresas; as
alterações decorrentes nos salários; e nível de emprego do
trabalhador adulto. Tudo isso é pontual. O baixo nível educacional
dos pais traz uma falta de expectativas de mudanças. O diagnóstico
que foi discutido com as Assembleias Legislativas, as ONGs,
especialmente a Arquidiocese, Governos estaduais e municipais,
Juízes, Procuradores, Promotores de Justiça, Empresários e
Sindicatos representativos da cadeia econômica exploradora. Nasceu
então o Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Infantil do Piauí,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 155

espaço para os estudos, discussão da problemática, e da busca das


soluções.
2.1 Lixão no KM 07 zona sul de Teresina

Realizar uma observação técnica dentro das piores formas


de trabalho infantil e suas consequências foi a ação principal,
desejando mostrar como estas crianças executam suas tarefas e a
grande cadeia econômica envolvida no processo. Retrato fiel da
nossa sociedade: “Ó mundo tão desigual [...], de um lado este
carnaval, do outro a fome total”62. O olhar ainda não consegue
atravessar as fronteiras da miséria e demandar o desenvolvimento de
uma sociedade mais justa. Não consegue transcender ao espaço
geográfico e nem a exclusão imposta pela ação economica.

Atividade Econômica Captadores do lixo


Tarefas Pelos atravessadores, contaminação por
microrganismos, exposição às intempéries (sol,
chuva, calor, frio) lesões físicas por esforço
repetitivo. O contingente dividia com ratos, urubus,
moscas, baratas e mosquitos o espaço de trabalho,
expondo-se ao fogo, objetos cortantes e
contaminados, muitas vezes oriundos do lixo
hospitalar.
Dano social Absenteísmo escolar pelo trabalho
executado no mesmo horário e por doenças
contraídas, tais como diarreia, febre tifóide,
tuberculose, leptospirose, doença da pele, a Dengue
e outras mazelas oriundas de locais contaminados.
Doenças contraídas a maior partem na ingestão de
alimentos contaminados e pela jornada de trabalho
irregular. Autoestima muito baixa, sofrendo de
isolamento social dos bairros vizinhos, criando
verdadeiros guetos. Não podiam frequentar a escola
do bairro vizinho, eram proibidos de atravessar a
estrada que os separavam. A única escola da vila,
somente recebia alunos até à 5ª serie do ensino
fundamental.
Situação Encontrada A fiscalização do trabalho constatou a
presença de crianças e adolescentes no local
insalubre e deletério. Na ocasião 83 crianças foram
entrevistadas. Um fervilhar de pessoas disputando
matéria-prima, que depois, de separadas eram

62
Trecho da letra da música “A Novidade” (composta pelo artista brasileiro Gilberto Gil).
156 Movimentos, Direitos e Instituições

pesadas e pago um valor ínfimo. Os profissionais da


Prefeitura Municipal de Teresina constataram 285
crianças que viviam da coleta de material inorgânico
que alimentava a cadeia econômica de reciclagem.
As sedes das empresas compradoras da matéria-
prima retirada ficavam no Estado do Pará e
Pernambuco. Foram Fiscalizadas e posteriormente
assinaram acordo para não comprarem produtos
onde a mão de obra infantil tenha sido utilizada.
Relato O primeiro contacto aconteceu no
depósito de lixo hoje aterro sanitário. Que realidade!
Ocorreu como se fosse uma jornada cheia de
descobertas, um encontro com recém-nascidos,
crianças pequenas, adolescentes, mães e pais,
avós, todos misturados naquele mundo sujo e
indigno. Trabalhavam separando e juntando
matéria-prima reciclável, atendendo aos
atravessadores que aguardavam o resultado do
trabalho. Uma cena marcou este encontro, dois
homens sentados em cima de uma montanha de
lixo, numas cadeiras altas, fiscalizando o trabalho
daqueles seres humanos. Eram os compradores da
matéria-prima recolhida. Os materiais são
separados, pesados e vendidos para os
atravessadores e tem seus preços previamente
fixados. “Latinhas” de alumínio na época valia um
quarto de dólar, o quilo, fios de cobre limpos sem
cascas, vale duas vezes mais, as embalagens de
plásticos valem dez vezes menos e assim por
diante. Se tiver algum problema com os
atravessadores ninguém mais compra sua matéria-
prima. O material de plástico e de ferro e alumínio
vão para indústrias pequenas e os papéis e papelão
vão para o Recife e para Belém, a indústria compra
quase tudo.
Fonte: BRASIL. MTE. Relatorio de fiscalização MTE/PI, 1997/1998.

Com esta realidade nasceu uma vila, ao lado do depósito de


lixo. Quase todos os seus habitantes viviam direta ou indiretamente
do “lixão.” Era como uma extensão do grande depósito, nas áreas
externas e no interior das casas estabelecia o grande armazém da
matéria-prima recolhida. Fazia parte do mobiliário familiar, ninguém
achava estranho. Os motoristas que transportavam alimentos
estragados, até mesmo em processo de decomposição, ou com sua
validade vencida para o consumo, quando adentravam à vila
alertavam as crianças com suas buzinas e a criançada descia o
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 157

morro em busca de alimentos. A doença era incapacitante para o dia


seguinte na sala de aula e com isso iniciava-se o processo de
afastamento da escola.
Uma ação diferenciada dos empregados da Prefeitura de
Teresina e a participação direta da escola foi o ponto marcante. Com
a permissão concedida e consentida, a ação foi iniciada tentando
transmitir conhecimentos específicos e envolver os professores, os
pais, as crianças e os jovens na erradicação do trabalho infantil. O
convite para a tomada de consciência da realidade e da
transformação que a vila iria sofrer foi feito de porta a porta pela
Fiscalização do Trabalho. Com muita dificuldade uma bolsa de
estudos foi atribuída para cada menino que desistisse do trabalho e
retornasse à escola. Teresina foi uma das primeiras cidades a
introduzir este benefício. A princípio com recursos próprios e a escola
recebeu uma grande modificação, inclusive passou a oferecer o
ensino fundamental completo. Foram criados turnos especiais de
estudos visando a um melhor aproveitamento escolar destes meninos
e meninas.

CONCLUSÃO

Foi demonstrado neste espaço que o trabalho infantil é um


fenomeno oriundo da história da atividade produtiva, e é pertinente à
ordem economica brasileira, tendo como matriz a concentração de
rendas e a geração de miséria. A forma de como a sociedade
brasileira está organizada e como elabora a divisão dos bens
coletivos é fator determinante. É um fenomeno multiforme. Como
produtor de miséria, este modelo sempre contribui diretamente para
que as crianças e as famílias excluídas do processo de riqueza do
País busquem alternativas de sobrevivências indignas e de uma
forma cruel cria-se um verdadeiro gueto dentro de cada microrregião
brasileira.
Como um mergulho, a fiscalização do trabalho no Piauí
tomou conhecimento do mundo das crianças excluídas e de suas
famílias, realidade sentida e retratada na companhia das palavras ou
pelas lentes de uma máquina fotográfica. Muitas vezes os olhos
destas crianças embaçaram estas lentes. Olhos que se tornam
desiguais pela excludência através da pertença a um segmento
estigmatizado socialmente. Uma sobrevivência em condições de
grandes contrastes, sem expectativas de modificação através do
158 Movimentos, Direitos e Instituições

trabalho formal, numa economia frágil e num mercado de trabalho


exigente quanto à escolarização e à formação profissional. É verdade
que muito foi feito, mas ainda falta e muito para mudar-se o processo
de exclusão dentro de outro processo de exclusão regional brasileira.
Convém envolver novamente todos os segmentos da Sociedade Civil,
num processo educacional ao nível dos direitos, da criação e da
emancipação, alertando para a permanência das cadeias econômicas
que ainda exploram o trabalho infantil e dando conhecimento ao
grande público das ações.
A difícil polemica que impõe o trabalho infantil, contém
urgências e valores sociais fortemente implicados, precisa ser
compreendida. É uma mácula social permitida. Assim, não seriam
programas meramente assistencialistas que viriam resolver esta
mácula social. É nas práticas sociais que a Justiça e o Direito se
qualificam, o trabalho Infantil é o campo de conflito.
Ao terminar estas páginas apresento-me como brasileira,
nordestina e sertaneja, nascida num País com muitos países dentro e
profundamente dividido entre culturas e contrastes sociais. E foi a
vontade de ser uma contadora de histórias que me fez capaz de ler e
de escrever e poder contar os fatos que acontecem neste grande
processo de desenvolvimento do ser humano.

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160 Movimentos, Direitos e Instituições
SEÇÃO 2 – MOVIMENTOS
CAPÍTULO 7

JORNADAS (IN)VISÍVEIS: DEPOIS DA MORTE


DO ANJO DA CASA

63
Carina Jordão

RESUMO
Partindo de um conjunto diversificado de dados estatísticos
recolhidos junto de entidades como a Comissão Europeia e o
Eurostat, este estudo tem como objetivo averiguar a evolução das
(des)igualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho
português e analisar especificamente a situação laboral das mulheres
portuguesas no período 2006-2012. Os resultados evidenciam uma
tendência de redução na maioria dos gaps de desigualdade, o que
denuncia, efetivamente, um aumento progressivo da igualdade entre
mulheres e homens na esfera profissional. Contudo – ao contrário do
que seria expectável e desejável – essa redução da desigualdade
ocorre em concomitância com um agravamento generalizado da
situação laboral das mulheres. Perante esta situação, e recorrendo às
metáforas iconográficas de Virginia Woolf, que em 1931 se viu
compelida a matar uma figura fantasmagórica que a atormentava (o
Anjo da Casa), damos conta, ao longo do artigo, das transformações
laborais que na contemporaneidade parecem concorrer para o
reaparecimento desse espectro.

63
Doutoranda do Programa de Doutoramento em Relações de Trabalho,
Desigualdades Sociais e Sindicalismo, pela Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (FEUC/CES). Bolseira de investigação da Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, IP (FCT)-(SFRH/BD/91548/2012). E-mail: <crmjordao@
gmail.com>.
164 Movimentos, Direitos e Instituições

Palavras-chave: (des)igualdade; emprego; género; trabalho.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. (DES)IGUALDADES ENTRE MULHERES E


HOMENS NO MERCADO DE TRABALHO: CONCEITO E MEDIÇÃO;
2. CARACTERIZAÇÃO DA SITUAÇÃO PORTUGUESA EM MATÉRIA
DE (DES)IGUALDADE LABORAL NO PERÍODO 2006-2012; 3.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Mais de oitenta anos depois de Virginia Woolf ter escrito


64
“Killing the angel in the house” , a (des)igualdade entre mulheres e
65
homens continua a ser uma temática complexa e plena de
atualidade, fortemente presente na investigação em ciências sociais e
na agenda política, quer nacional quer internacional. Entidades como
a Organização Internacional do Trabalho, o Banco Mundial ou as
Nações Unidas consideram que, além de ser um princípio e direito
fundamental, a igualdade entre mulheres e homens é uma forma de
economia inteligente, capaz de contribuir para o aumento do bem-
estar da população, da produtividade, da competitividade, do
crescimento e do progresso dos países (ver, por exemplo, BANCO
MUNDIAL, 2006, 2011).
A União Europeia (EU), que tem procurado integrar a
dimensão de género nas diferentes políticas e ações comunitárias
(gender mainstreaming)66, defende que uma maior igualdade é
condição necessária para a concretização dos objetivos comunitários
em matéria não só de crescimento, mas também de emprego e de

64
“Killing the angel in the house” é o título original de um discurso lido por Virginia
Woolf a 21 de Janeiro de 1931 para a National Society for Womens Service e que,
postumamente, foi publicado com o título The Death of the Moth, em 1942
(WOOLF, 2008).
65
A (des)igualdade entre homens e mulheres pode, ao longo deste trabalho, surgir
sob a designação de (des)igualdade de “género”.
66
O Gender Mainstreaming é, no fundo, o princípio instituído pela EU, em 1996,
segundo o qual a igualdade entre homens e mulheres deve ser sistematicamente
tomada em consideração no conjunto das políticas e ações comunitárias, logo a
partir da respetiva conceção e de forma ativa e visível (COM (96) 67).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 165

coesão social67. E em Portugal – que faz parte da UE desde 1986 –


multiplicam-se as leis e promovem-se inúmeras iniciativas que visam
à sensibilização da população e das empresas para a importância
desta temática. Nas economias desenvolvidas, mais do que nunca, à
letra da lei, as mulheres são tão livres quanto os homens, usufruindo
de iguais direitos e oportunidades e, em termos profissionais, nada
impede uma mulher de aceder ao mercado de trabalho ou de
escolher livremente a sua profissão. As conquistas alcançadas no
feminino, e não raras vezes disseminadas nos meios de comunicação
social, funcionam como uma bandeira que parece dar mote à ideia de
que atualmente se vivencia uma mudança paradigmática, assente
numa efetiva redução das desigualdades e na melhoria significativa e
generalizada da situação das mulheres em todos os domínios da
vida, especialmente na esfera profissional. Contudo, apesar dos
esforços desenvolvidos e das conquistas que, paulatinamente, se vão
fazendo sentir, continua a ser amplamente reconhecida a existência
de fortes clivagens, geralmente em desfavor das mulheres. Este
discurso, não raras vezes confuso e algo contraditório, espelha uma
realidade onde os progressos se revelam lentos e difíceis não só no
campo social e político, mas também na esfera económica, onde
persistem grandes desequilíbrios em desfavor da mulher,
nomeadamente em matéria de emprego (como mostram vários
indicadores estatísticos relacionados, por exemplo, com os salários,
com o trabalho a tempo parcial ou o acesso a cargos de chefia e
liderança).
Em Portugal, onde se atravessa um grave período de crise,
esta situação é particularmente relevante dado que, a par de uma
notória degradação das condições de trabalho da generalidade da
classe trabalhadora, as mulheres vêm-se sobrecarregadas com uma
vida profissional cada vez mais exigente e extenuante e uma vida
pessoal em que a realização das tarefas domésticas e o cuidado dos
filhos se mantêm geralmente a seu cargo68.

67
Para maiores informações a este respeito, vide: <http://ec.europa.eu>.
68
Nos últimos anos assistiu-se não só a um aumento inverosímil da taxa de
desemprego, mas também ao aumento da duração da jornada de trabalho, à
supressão de feriados, à redução de salários etc. Além disso, períodos de crise,
como o que se vive atualmente em Portugal, tendem a agravar as disparidades
género e as políticas de austeridade são especialmente penalizadoras para as
mulheres, como reconhecido pela secretária-geral adjunta do Conselho da Europa,
Gabriella Battaini Dragoni, e pela comissária europeia para a Justiça da UE,
Viviane Reding.
166 Movimentos, Direitos e Instituições

Assim, neste cenário complexo, marcado por avanços e


recuos e bafejado de contrastes e paradoxos, analisar as
(des)igualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho
das economias ditas desenvolvidas, como a portuguesa, não é uma
tarefa fácil, mas é, sem dúvida, um empreendimento necessário e
urgente.
Partindo de uma estratégia de investigação baseada
essencialmente na análise quantitativa de um conjunto de indicadores
estatísticos – recolhidos junto de fontes fidedignas como o Eurostat e
a Comissão Europeia e que podem ser tidos como representativos da
(des)igualdade laboral – propõe-se averiguar a evolução das
(des)igualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho
69
português e analisar especificamente a situação laboral das
mulheres portuguesas no período 2006-2012, recorrendo
pontualmente às metáforas iconográficas de Virginia Woolf.
Deste modo, constituem objetivos deste artigo: 1)
compreender, através de uma análise temporal, a evolução das
desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho
português e fazer o balanço dos progressos registados no período em
análise; 2) perceber se períodos de crise tendem ou não a agravar a
situação das mulheres no mercado de trabalho.
O trabalho encontra-se estruturado da seguinte forma: na
secção 1, partindo do ensaio de Virginia Woolf, apresenta-se uma
breve reflexão teórica em torno do conceito e da medição das
(des)igualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho.
Depois, na parte 2, apresentam-se os dados e caracteriza-se a
situação portuguesa em matéria de (des)igualdade laboral no período
2006-2012. Nesta fase procurar-se-á averiguar se os progressos
registados se traduzem efetivamente a) num balanço positivo em
termos de redução das desigualdades laborais e b) numa melhoria da
situação das mulheres no mercado de trabalho. Finalmente, na
secção 3, discutir-se-ão os resultados, as suas hipotéticas
implicações e as principais limitações deste estudo, apresentando
algumas sugestões de pesquisa a desenvolver no futuro.

69
No âmbito desta análise, o conceito “emprego” e as expressões “trabalho formal” e
“trabalho pago” devem ser entendidas como sinónimos de mercado de trabalho.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 167

1. (DES)IGUALDADES ENTRE MULHERES E HOMENS


NO MERCADO DE TRABALHO: CONCEITO E
MEDIÇÃO

Em 1931, ao ser convidada para discursar sobre as suas


experiências profissionais e o trabalho das mulheres para a National
Society for Womens Service, Virginia Woolf, satirizando o ideal de
feminilidade retratado num poema de Coventry Patmore70, descreveu
o Anjo da Casa como uma figura fantasmagórica, que a assombrava
e que ela se via compelida a matar:

[...] descobri que se fosse escrever livros, teria de travar uma batalha
com um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando vim a
conhecê-la melhor, eu comecei a chamá-la como a heroína de um
famoso poema, ´The Angel in the House´ (O Anjo da Casa) [...]. Ela era
intensamente sensível. Era imensamente encantadora. Era
profundamente dedicada. Ela dominava todas as difíceis artes da vida
familiar. Sacrificava-se diariamente. Se era galinha, ela ficava com a
pata; se havia uma corrente de ar, ficava ela nesse lugar – resumindo,
ela era tão condescendente que nunca tinha uma ideia ou um desejo
próprio – em vez disso preferia concordar sempre com as ideias e os
desejos dos outros [...]. E quando vim a escrever, encontrei-me com ela
logo nas primeiras palavras. A sombra das suas asas caiu sobre a
página; eu ouvi no quarto o roçar das suas saias [...]. Ela deslizou por
trás de mim e sussurrou [...] ‘Sê bondosa, sê terna, elogia, ilude, usa
todas as artes e truques do teu sexo. Nunca deixes ninguém supor que
tu tens vontade própria. Antes e acima de tudo, sê pura´. Era como se
ela guiasse a minha caneta [...]. Eu voltei-me contra ela e agarrei-a
pelo pescoço. Fiz o possível para matá-la. A minha alegação, se fosse
levada a julgamento, seria a de que agi em legítima defesa. Se eu não
a tivesse matado, ela ter-me-ia matado [...]. (WOOLF, 2008, p. 42-44).

Refletindo as dificuldades com que se defrontava no


exercício da sua atividade profissional – e que, apesar de tudo,
considerava “a mais livre de todas as profissões para mulheres” – a
escritora alargou o seu constrangimento a todas as mulheres que, no
seio de uma sociedade patriarcal, procuram exercer uma profissão 71.

70
O poema, publicado em 1854, intitulava-se The Angel in the House e, no fundo, era
uma homenagem à mulher vitoriana que dedicava toda a sua vida ao esposo, aos
afazeres domésticos e ao cuidado dos filhos. O poema está disponível, na íntegra,
em: <http://www.victorianweb.org/authors/patmore/angel/9.html>.
71
Para clarificar e melhorar o entendimento deste conceito, é usual proceder à sua
análise em diferentes subdimensões, nas quais uma divisão equilibrada entre
homens e mulheres pressupõe a existência de igualdade de género na sociedade.
168 Movimentos, Direitos e Instituições

Nesta perspetiva, a autora afirma que mesmo quando o caminho está


livre, quando não há nada que impeça uma mulher de ser médica,
advogada ou funcionária pública, há muitos fantasmas e obstáculos
avolumando-se no seu caminho. (WOOLF, 2008, p. 51).
Para Virginia Woolf, o Anjo da Casa é provavelmente o
maior desses fantasmas e, ao descrevê-lo como “intensamente
sensível”, “imensamente encantadora” e “profundamente dedicada”, a
autora consubstancia aquilo que se pode denominar como a metáfora
iconográfica da mulher que atinge a excelência no desempenho das
tarefas domésticas, abdicando dos seus desejos e das suas ideias e
sacrificando-se em prol de todos os que a rodeiam. Além disso, ao
afirmar que a sua própria morte teria ocorrido caso não tivesse
antecipado a morte do espetro, a autora remete para a eterna
dificuldade de conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional.
Esta dicotomia, fazendo jus à tradicional divisão do trabalho, chega
aos dias atuais como responsável por grande parte das decisões
femininas que, a braços com os constrangimentos e as tensões daí
decorrentes, se vêm obrigadas a relegar para um plano secundário a
sua carreira profissional – o que, aliás, Anne-Marie Slaughter72 bem
exemplifica num interessante artigo que escreveu para a revista The
Atlantic, intitulado “Porque as mulheres ainda não podem ter tudo”73.
Nesse controverso texto, Slaughter apresenta algumas propostas
concretas para melhorar a situação das mulheres trabalhadoras e
expõe as tensões provocadas pela conciliação da maternidade com a
vida profissional que, em 2012, a levaram a abandonar o cargo que
ocupava para ir para casa.
As preocupações com a igualdade entre mulheres e
homens – entendida como uma distribuição justa e equilibrada dos
recursos entre homens e mulheres em que ambos têm iguais
oportunidades não só para realizar o seu potencial individual mas
também para contribuir para a economia e desenvolvimento social do
seu país, e ainda para beneficiar igualmente da sua participação na

O mercado de trabalho é uma dessas subdimensões e é sobre ela que incide esta
análise. (REGO, 2010, p. 59).
72
Anne-Marie Slaughter foi a primeira mulher a dirigir o planeamento político do
Departamento de Estado dos Estados Unidos (em inglês: director of policy planning
for the U.S. State Department).
73
Tradução livre da autora. O título original é Why women still can´t have it all. O
artigo encontra-se disponível em: <http://www.theatlantic.com/magazine/archive/
2012/07/why-women-still-cant-have-it-all/309020/>. Acesso em: 3 mar. 2014.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 169

sociedade74 – surge como um fenómeno complexo que tem


atravessado várias gerações. E o exemplo de Anne-Marie Slaughter
tem a força necessária para teletransportar a todos ao longínquo ano
de 1920 quando Woolf, num conjunto de pequenas cartas reunidas
num texto intitulado “O estatuto intelectual da mulher”, defende que a
inexpressividade das mulheres em algumas profissões decorre da
existência de “alguma restrição externa às suas capacidades” – como
a falta de acesso à educação, a liberdade de experimentar ou razões
familiares que exigiam a sua presença em casa 75 – e não da sua
inferioridade intelectual, como defendiam na época alguns dos seus
opositores. (WOOLF, 2008).
Ao longo das últimas décadas, as mulheres não só
conquistaram o acesso à educação como apresentam atualmente
mais êxito nos percursos escolares e constituem a maioria dos
diplomados do ensino superior na generalidade dos países da União
Europeia. De acordo com o Eurostat, em Portugal, por exemplo, em
2012 havia mais mulheres licenciadas do que homens (30,1% contra
24,3%)76. No mesmo ano, em relação aos doutoramentos, verificava-
se novamente uma vantagem para o lado feminino: de acordo com o
site Pordata, 1196 portuguesas tornaram-se doutoras, contra 1013
homens. Perante estes dados, pode-se concluir que o acesso à
educação, uma das “restrições” de que falava Woolf, está
aparentemente ultrapassada. Todavia, os progressos em termos
educacionais parecem não se repercutir como esperado no mercado
de trabalho, onde continuam a perpetuarem-se desequilíbrios de
status, de poder e de dinheiro, geralmente em desfavor das mulheres.
E nem mesmo o reconhecimento geral e aparentemente consensual
dos benefícios decorrentes da promoção da igualdade entre homens
77
e mulheres no meio empresarial parece suficiente para alterar esta

74
Conforme maiores explicações em: <http://www.ausaid.gov.au/keyaid/gender.cfm>.
Acesso em: 1 mar. 2010.
75
A legislação, as crenças culturais ou práticas discriminatórias são outros exemplos
de restrições externas que se poderiam referir (ver, por exemplo, ISLAM, 2012).
76
Este indicador faz parte da Estratégia Europa 2020 – o objetivo é aumentar para
40% a população entre os 30 e os 34 anos com o ensino superior completo ou
equivalente até 2020 (Eurostat, code t2020_41).
77
É com relativa facilidade que se pode elencar uma lista de vantagens geralmente
associadas à promoção da igualdade entre homens e mulheres no mercado de
trabalho: 1) reconhece-se que a igualdade é vital para a criação de empregos de
qualidade e que integrar uma perspetiva de igualdade de género pode ajudar as
empresas a recrutar e manter os melhores empregados; 2) a igualdade facilita a
criação de um ambiente de trabalho positivo que permite ganhar a confiança dos
empregados o que, por conseguinte 3) permite tirar o melhor partido dos recursos
170 Movimentos, Direitos e Instituições

situação – é caso para perguntar se, percorridos mais de 90 anos,


não continuam as restantes “restrições externas” apontadas por
Woolf a justificar tais desequilíbrios.
Por outro lado, acredita-se que a problemática das
(des)igualdades laborais torna-se particularmente inquietante na
atualidade porque o mercado de trabalho ocupa um espaço fulcral no
sistema distributivo e é precisamente aí que ocorre o maior processo
de estratificação socioeconómica das sociedades modernas (KORPI,
2000). Ao mesmo tempo, o emprego, enquanto conjunto de
benefícios sociais continua a desempenhar um papel central na
definição do lugar do indivíduo na sociedade e importa enormemente
para o bem-estar humano (KRUGMAN, 2012). Logo – sendo o
mercado de trabalho um dos lugares onde se enformam, em grande
parte, as relações de poder – excluir, dificultar ou impedir o acesso
das mulheres à totalidade desses “espaços” é inaceitável e, muito
provavelmente, uma forma (in)direta e sub-reptícia de restringir os
seus direitos e a sua liberdade enquanto seres humanos.
Pelo exposto, pode-se afirmar que a (des)igualdade no
mercado de trabalho permanece uma temática relevante, plena de
atualidade e também muito complexa. De qualquer modo, no âmbito
deste estudo, a igualdade deve ser entendida como uma distribuição
equilibrada entre mulheres e homens no que respeita aos principais
indicadores relacionados com o mundo laboral e, nesse sentido, é
composta por múltiplas (des)igualdades, variadas e heterogéneas,
cuja apreensão a partir de indicadores estatísticos não é um exercício
fácil (porque além de não haver um procedimento padrão para a sua
medição, este é um assunto que não é unanime nem está
completamente investigado). De qualquer modo, analisando a
composição de alguns dos principais índices de “género” criados e
usados por vários organismos internacionais, conclui-se que a taxa
de participação feminina no mercado de trabalho é um dos
indicadores mais usados (ver, por exemplo, JORDÃO, 2013).
Contudo, face à especificidade da presente análise, este indicador é
manifestamente insuficiente para analisar as desigualdades no

humanos e, consequentemente, melhorar a produtividade e a competitividade da


empresa. Mas as vantagens da igualdade na esfera laboral não se esgotam aqui e
a melhoria da imagem pública da organização, a criação de um valor acionista mais
elevado e uma base de clientes mais ampla e mais satisfeita são também aspetos
dignos de referência (adaptado de <http://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=686
&langId=pt> e de <http://www.businessandgender.eu/pt/a-accao/beneficios-para-
as-empresas>).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 171

mercado laboral português. Como mostra Shafiqul Islam (2012), o


aumento da taxa de participação das mulheres no mercado de
trabalho pode não coincidir com uma efetiva eliminação das
disparidades de género, pelo que o excesso de atenção que muitos
estudiosos têm dedicado a este indicador leva a descurar um
conjunto de outros indicadores, provavelmente não menos
importantes, passíveis de afetar, de forma positiva ou negativa, a vida
das mulheres empregadas.
De facto, as desigualdades entre homens e mulheres no
mercado de trabalho são uma parcela da realidade complexa e difícil
de observar de forma simples e direta e só o recurso a um conjunto
de indicadores diversificados pode tornar a sua medição mais
objetiva, facilitando posteriormente a descrição e análise deste
78
fenómeno . Opta-se, por conseguinte, por utilizar um vasto número
de indicadores que se consideram suscetíveis de facultar uma visão
global das (des)igualdades entre mulheres e homens no mercado de
trabalho português: usam-se indicadores relacionados com a
participação no mercado de trabalho e com o nível salarial mas
também com o empoderamento, com o trabalho a tempo parcial, o
nível de desemprego e ainda com a duração da vida de trabalho (ver
quadro 1).

Quadro 1 – Indicadores de (des)igualdade entre mulheres e homens


no mercado de trabalho

Indicadores Fonte dos dados


- Taxa de emprego em FTE (% Comissão Europeia (2014)
população dos 15 aos 64 anos)

- Emprego em part-time (% do Comissão Europeia (2014)


emprego total)

- Taxa de desemprego (% da força Comissão Europeia (2014)


de trabalho com 15 ou mais anos)

78
No entender desta autora, a análise das desigualdades a partir de uma leitura
isolada e estática dos dados constitui-se geralmente como um exercício parcelar e
incompleto que, ao invés de tornar mais compreensível a realidade, pode desvirtuá-
la e dificultar ou impedir a descrição global, objetiva e rigorosa do fenómeno das
desigualdades laborais (e pode também condicionar o seu combate efetivo).
172 Movimentos, Direitos e Instituições

- Taxa de desemprego de longa Comissão Europeia (2014)


duração (% da força de trabalho)

- Empoderamento (%) Comissão Europeia

- Gap salarial (não ajustado) Eurostat

Eurostat
- Duração da vida de trabalho (anos)

2. CARACTERIZAÇÃO DA SITUAÇÃO PORTUGUESA


EM MATÉRIA DE (DES)IGUALDADE LABORAL NO
PERÍODO 2006-2012

Como se viu na secção anterior, ao longo das últimas


décadas – e à semelhança do que aconteceu na generalidade dos
países da EU-28 – as mulheres portuguesas não só conquistaram o
acesso à educação como apresentam atualmente mais êxito nos
percursos escolares e constituem a maioria dos diplomados do
ensino superior. Simultaneamente, a sociedade sofreu mudanças
consideráveis, entre as quais a feminização e a terciarização do
emprego, que originaram uma profunda recomposição
socioprofissional do mercado de trabalho79. Mas, como também já se
teve oportunidade de referir, os ganhos obtidos em termos
educacionais parecem não se repercutir como esperado no mercado
de trabalho e, quando em comparação com os homens, há ainda
diversos indicadores onde as mulheres tendem a permanecer em
situação de desvantagem – como se verá de seguida.
Em Portugal as mulheres continuam a participar menos do
que os homens no trabalho formal e, além disso, tendem a trabalhar
menos horas. Assim, e considerando que o “tempo inteiro é uma
unidade mais precisa para medição da participação no emprego”
(EIGE, 2013, p. 57)80 optámos por trazer para esta análise um

79
Ver, por exemplo, <http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt>, acesso em
27 Dez. 2013.
80
Tradução livre da autora. No original: “Full-time equivalence is a more precise unit
to measure participation in employment”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 173

indicador que permite medir as taxas de participação ajustadas pelo


tempo de trabalho: a ‘taxa de emprego em FTE’81. Mas não podemos
descurar que, apesar de desempenharem um papel central na
atividade económica portuguesa, a participação das mulheres no
mercado de trabalho tem ocorrido num cenário de crescente
fragilização da relação laboral e que, de acordo com Sara Falcão
Casaca, “estão frequentemente privadas de condições de emprego e
de trabalho dignas, de segurança económica e da estabilidade
necessária ao controlo das suas vidas” (CASACA, 2012, p. 2). Logo,
é inevitável a incorporação na análise de outros indicadores que
permitam traçar um quadro geral das desigualdades laborais e da
evolução da situação da mulher no mercado de trabalho ao longo dos
últimos anos. Vejam-se alguns desses indicadores.
O trabalho a tempo parcial (ou emprego em part-time)
“afigura-se, em muitas situações, como a única alternativa que
possibilita à população feminina a articulação entre a atividade
profissional e as responsabilidades domésticas e familiares”.
(CASACA, 2012, p. 42). Mas em Portugal esta modalidade de
trabalho, tendencialmente marcada por baixos salários e empregos
pouco qualificados e precários, dificulta a independência económica
da mulher, contribuindo desse modo para a “reprodução do modelo
tradicional (assimétrico) das relações de género” (CASACA, 2012, p.
42). É, por essa razão, um dos indicadores selecionados para
análise.
Por ser um dos maiores flagelos sociais da atualidade, a
“taxa de desemprego” é incorporada no estudo. Todavia, inclui-se
também a “taxa de desemprego de longa duração” por entender-se
que este indicador pode ser, no atual contexto de crise, mais
representativo da vulnerabilidade laboral a que estão sujeitos os
trabalhadores e as trabalhadoras.
As desigualdades salariais, geralmente em desfavor das
mulheres e a baixa representatividade feminina em cargos de chefia e
liderança constituem-se igualmente como uma preocupação
incontornável em matéria de igualdade entre homens e mulheres na
esfera laboral pelo que, como seria de esperar, são também objeto de
análise neste estudo. Para medir estes dois constrangimentos
sociais, fortemente enraizados na sociedade portuguesa usaram-se
respetivamente o “gap salarial” e o “empoderamento” – este último é

81
FTE significa “full-time equivalent”.
174 Movimentos, Direitos e Instituições

medido pelas percentagens de homens e de mulheres que fazem


parte dos órgãos de decisão das vinte maiores empresas nacionais
que fazem parte do PSI-20 (ou seja: presidente, diretores não
executivos, executivos seniores e representantes dos trabalhadores,
quando existam)82.
Finalmente, e considerando que as mudanças decorrentes
da tendência de prolongamento da vida laboral (fomentada, aliás, por
83
instâncias como o FMI) , aliada ao atual contexto de austeridade, à
retração do estado social e à tendência de envelhecimento
populacional, podem não só agravar as assimetrias existentes como
constituir-se como um novo vetor de desigualdade entre mulheres e
homens, opta-se por englobar no estudo um indicador relacionado
84
com o “tempo de vida de trabalho” .
Deste modo, e partindo dos indicadores estatísticos
apresentados – alguns dos mais referenciados e discutidos na
literatura – começa-se por caracterizar a evolução das
(des)igualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho
português, no período 2006-2012. A primeira parte da análise,
baseada nos dados disponibilizados pelo Eurostat e pela Comissão
Europeia (como se pode ver no quadro 1), consiste no cálculo das
diferenças entre os valores registados para os homens e os valores
registados para as mulheres em cada um dos indicadores. A medição
das desigualdades é, portanto, feita em termos de gap e os
resultados, que são apresentados na Tabela 1, representam

82
Estes dados, disponibilizados pela Comissão Europeia, estão disponíveis em:
<http://ec.europa.eu/>.
83
Num relatório publicado a 13 de março de 2014, intitulado “Fiscal Policy and
Income Inequality”, o Fundo Monetário Internacional (FMI) reitera a necessidade
de, entre outros aspetos, aumentar a idade da reforma para alcançar uma melhor
distribuição dos rendimentos nas economias desenvolvidas (disponível em:
<https://www.imf.org/external/np/speeches/2014/031314.htm>, acesso em 27 de
Mar. 2014).
84
Este indicador é também utilizado no GEI. O GEI é um Índice de Igualdade de
Género (GEI) desenvolvido pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género
(EIGE). É uma medida desenhada especificamente para aferir as desigualdades de
género nos 27 países da União Europeia e é também o primeiro índice que permite
que eles sejam comparados tendo em conta exclusivamente o nível de
(des)igualdade registada no mercado de trabalho. No entanto, entre outros
aspetos, o GEI não permite perceber nem o impacto da crise nas (des)igualdades
laborais nem a situação concreta das mulheres trabalhadoras (EIGE, 2013).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 175

situações de desvantagem da mulher em relação ao homem85. Neste


sentido, sempre que, comparativamente ao homem, a mulher estava
em situação de vantagem, foi atribuído à variável o valor 0. Por
conseguinte, quanto mais elevado é o valor do hiato maior é o nível
de desigualdade registado no indicador.

Tabela 1 – Gaps de desigualdade laboral em desfavor das mulheres


G G G G
Ano GAP 1 GAP 2 GAP 3 GAP 4 GAP 5 GAP 6 GAP 7
Taxa de Emprego Taxa de Taxa de Empoderamento Gap Duração
emprego em part- desemprego desemprego salarial da vida
em FTE time de longa de
duração trabalho

2006 15,00 8,40 1,40 0,50 86,00 8,40 4,90

2007 15,10 8,90 2,00 0,90 94,00 8,50 4,50

2008 15,10 9,80 1,30 0,50 94,00 9,20 4,50

2009 12,40 8,90 0,00 0,60 92,00 10,00 4,00

2010 11,40 7,30 40 0,40 90,00 12,80 3,50

2011 9,90 5,60 50 0,30 88,00 12,50 4,20

2012 8,00 4,70 0,00 0,00 86,00 15,70 3,70

Pela tabela 1 percebe-se que de 2006 para 2012 parece


haver, de facto, uma tendência de redução das desigualdades: o gap
na participação no mercado de trabalho, medido em equivalentes de
tempo inteiro (FTE), reduziu quase 50% no período em análise; o gap
no trabalho a tempo parcial também reduziu significativamente e
percebe-se igualmente uma ligeira melhoria no gap relativo à duração
de vida de trabalho. Em relação ao desemprego as mulheres estão,
em 2012, em situação de vantagem comparativamente aos homens
e, por isso, o valor do gap nos dois indicadores é nulo. A única
exceção nesta trajetória progressista parece ser a questão salarial,
85
Por simplificação, em relação ao GAP 7 (duração da vida de trabalho), nesta fase
da análise considera-se que uma maior duração da vida de trabalho é a situação
ideal e, nesta perspetiva, as mulheres encontram-se em desvantagem.
176 Movimentos, Direitos e Instituições

onde se regista um claro aumento do hiato entre os valores referentes


aos homens e os valores referentes às mulheres. Relativamente ao
empoderamento, a situação de desigualdade mantem-se quase
inalterada no período em análise.
Para simplificar a análise e para se visualizar mais
facilmente os progressos registados, fez-se uma média simples de
todos os indicadores apresentados para cada ano – atribuindo-lhes
igual importância e considerando, por isso, que todos devem ser
tomados em conta quando se fala de (des)igualdade no mercado de
trabalho. Veja-se o resultado, apresentado no gráfico 1.

Gráfico 1 – Evolução das desigualdades entre mulheres e homens no


mercado de trabalho português (média simples dos valores dos 7
gaps)

A diversidade de indicadores usados permite avaliar, de


modo relativamente robusto, o percurso que, em matéria de
(des)igualdade laboral, Portugal tem vindo a trilhar ao longo dos
últimos anos e os resultados apresentados no gráfico mostram uma
redução significativa das desigualdades entre mulheres e homens no
período em análise. Verifica-se que o maior nível de desigualdade se
registou em 2008 – ano em que deflagrou a crise económica e
financeira – mas, a partir daí, é notório o decréscimo da desigualdade
(quando considerada a média simples dos 7 indicadores
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 177

apresentados na tabela 1). Contudo – e além das limitações


decorrentes da utilização de uma média simples neste tipo de estudo
– esta análise, por si só, não permite perceber se os progressos
registados decorrem da melhoria da situação das mulheres no
mercado de trabalho ou se é apenas o reflexo inusitado do
agravamento das condições de trabalho dos homens.
É preciso, portanto, retomar os dados originais,
desagregados por sexo, e comparar, indicador a indicador, a sua
evolução temporal. Tendo em conta os objetivos do estudo, a análise
centar-se-á exclusivamente nos dados referentes ao sexo feminino –
e que se apresentam na tabela 2.

Tabela 2 – Evolução da situação laboral das mulheres, no período


2006-2012, em Portugal
Duração Taxa de
Ano Taxa de Emprego
da vida Taxa de Taxa de desemprego GAP
emprego em part- Empoderamento
de emprego desemprego de longa salarial
em FTE time
trabalho duração
2006 34,30 58,70 62,00 15,80 9,30 4,60 7,00 8,40

2007 34,70 58,30 61,90 16,90 10,00 4,70 3,00 8,50

2008 34,80 58,80 62,50 17,20 9,20 4,30 3,00 9,20

2009 34,80 58,30 61,60 16,40 10,50 5,00 4,00 10,00

2010 35,10 57,90 61,10 15,50 12,20 6,50 5,00 12,80

2011 34,70 56,20 60,40 16,30 13,20 6,40 6,00 12,50

2012 35,00 54,30 58,70 16,80 15,80 7,70 7,00 15,70

Apesar de Portugal apresentar uma taxa de participação


feminina no mercado de trabalho das mais elevadas da UE-28, os
dados apresentados na tabela espelham um decréscimo bastante
significativo neste indicador, especialmente a partir de 2008 (e essa
tendência verifica-se quer na taxa de emprego quer na taxa de
emprego em FTE).
A evolução do trabalho a tempo parcial é marcada por
algumas oscilações. Em 2009 e 2010, por exemplo, ocorre uma
redução, mas, considerando o período 2006-2012, percebe-se
claramente um aumento da percentagem de mulheres que
recorreram a esta modalidade de trabalho.
178 Movimentos, Direitos e Instituições

Em relação à taxa de desemprego e ao desemprego de


longa duração, os dados espelham um claro agravamento da
situação das mulheres no período em análise e, a partir de 2008,
regista-se um aumento progressivo quer nos níveis de desemprego
quer nos níveis de desemprego de longa duração. Sobre o
empoderamento, percebe-se uma estagnação da situação das
mulheres, o que indicia que a representatividade feminina em cargos
de liderança e chefia tende a permanecer particularmente baixa (ao
longo de todo o período em análise a percentagem de mulheres a
ocupar estes cargos não ultrapassa os 7%).
Os dados apresentados denunciam ainda um agravamento
considerável da desigualdade salarial. Este indicador, medido em
termos de gap, mostra que as mulheres continuam a receber menos
do que os homens e que há inclusive uma tendência de agravamento
desta situação (só de 2010 para 2011 é que se verifica um ligeiro
decréscimo no gap).
Finalmente, em relação ao tempo de trabalho, percebe-se
que em 2012 as mulheres trabalhavam em média 35 anos quando,
em 2006, esse valor se situava nos 34,3 anos. Regista-se, portanto,
uma tendência de prolongamento da vida laboral das mulheres.
Resumindo, uma simples observação dos dados estatísticos
apresentados na tabela 2 permite verificar que, entre 2006 e 2012, a
situação das mulheres no mercado de trabalho – ao contrário do que
provavelmente seria expectável – piorou significativamente na
generalidade dos indicadores analisados: reduziu a participação no
mercado de trabalho em FTE (seguindo, aliás, a tendência registada
na taxa de emprego); aumentou o trabalho a tempo parcial; aumentou
o desemprego e o desemprego de longa duração; as diferenças
salariais também aumentaram; o nível de empoderamento manteve-
se num nível irrisoriamente baixo e o tempo de vida de trabalho das
mulheres também aumentou.

3. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


Os resultados apresentados na secção anterior mostram
que a tendência de redução das desigualdades entre homens e
mulheres no mercado de trabalho não tem sido acompanhada pela
melhoria da situação das mulheres trabalhadoras, muito pelo
contrário. Teve-se oportunidade de desnudar um conjunto de
constrangimentos económicos e sociais em desfavor das mulheres,
que parecem estar fortemente enraizados na esfera profissional. De
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 179

facto, os dados denunciam que o período 2006-2012 foi marcado por


um agravamento geral das condições de trabalho das mulheres. Além
de verem reduzida a sua participação no mercado de trabalho, estão
cada vez mais sujeitas ao trabalho a tempo parcial, ao desemprego e
ao desemprego de longa duração. Ao mesmo tempo, vêm-se
confrontadas não só com a persistência das desigualdades salariais,
86
mas também com o chamado “teto de vidro” que, apesar de todas
as iniciativas legislativas e de todos os esforços que têm vindo sido
desenvolvidos, tendem a reproduzir-se e a perpetuar-se na sociedade
87
portuguesa .
Uma outra questão interessante prende-se com a tendência
88
de prolongamento da vida laboral das mulheres que, por si só ou
provavelmente noutro contexto, poderia acarretar alguns benefícios,
especialmente quando da determinação dos valores da reforma. No
entanto, quando analisado em concomitância com os restantes
indicadores, e considerando o atual cenário socioeconómico
português, é-se levado a concluir que este aumento no tempo de vida
de trabalho pode efetivamente constituir-se como um novo fator de
tensão para muitas mulheres que – fruto da estrutura social
nitidamente patriarcal em que vivem – se veêm obrigadas a
desdobrar-se entre o exercício da sua profissão e as
responsabilidades familiares. E tais responsabilidades, entre outras
tarefas, englobam geralmente a prestação de cuidados aos
dependentes: idosos/pais, filhos e, não raras vezes, netos.
Nesta linha de raciocínio conclui-se que, apesar do balanço
positivo em matéria de igualdade entre homens e mulheres na esfera
laboral (onde as discrepâncias, medidas em termos de gap, se têm

86
O teto de vidro é, no fundo, uma barreira que impede as mulheres de ocupar os
lugares cimeiros das organizações.
87
A título de exemplo, e considerando o reconhecimento da tendência de
agravamento das disparidades salariais entre mulheres e homens em períodos de
crise, pode-se apontar uma iniciativa do Governo português que, com o intuito de
promover uma efetiva igualdade de “género” e “contrariar a tendência histórica de
desigualdade salarial penalizadora para as mulheres”, publicou uma resolução no
dia 7 de Março, em Diário da República (Resolução do Conselho de Ministros n.
18/2014). De acordo com este documento, as empresas do Estado devem
promover, de três em três anos, a elaboração de um relatório sobre as
remunerações pagas a mulheres e homens, tendo em vista "o diagnóstico e a
prevenção de diferenças injustificadas". No mesmo documento é ainda
recomendada "uma análise quantitativa e qualitativa" das diferenças salariais de
gênero às empresas privadas com mais de 25 trabalhadores.
88
Saliente-se que, em Portugal, a idade legal de reforma está atualmente fixada de
igual forma para mulheres e homens.
180 Movimentos, Direitos e Instituições

vindo a esbater), está-se na verdade perante um grave retrocesso em


matéria laboral, com um agravamento bastante acentuado das
condições de trabalho para as mulheres portuguesas. E, dado o atual
contexto de retração do estado social e de austeridade que atinge o
país, arrisca-se a que a mulher perfeita descrita noutros tempos por
Coventry Patmore esteja a ceder o lugar não a uma mulher livre de
fantasmas – como sonhava Woolf – mas a uma supermulher (quiçá o
Anjo da Casa da Contemporaneidade) que se vê obrigada a conciliar
as tarefas do lar com uma vida profissional cada vez mais precária,
esgotante, erigida e pautada por padrões predominantemente
masculinos. Mas esta supermulher, que emerge no meio deste
panorama penoso, será certamente bastante diferente da
supermulher que a generalidade do público já conhece e que tem
vindo a ser esculpida nas mensagens recentemente veiculadas por
alguns media. A este propósito, Sara Falcão Casaca refere:

[...] Assim sucede com o mito da supermulher – essa imagem de uma


mulher qualificada, competente, flexível, cumpridora de tarefas
múltiplas, apostada no exercício do poder político e/ou empresarial, de
notável inteligência social, extraordinária na gestão da vida privada e
pública, irradiando realização profissional e pessoal [...]. (CASACA,
2014, on line).

De facto, apesar de se reconhecer a persistência de


algumas clivagens – nomeadamente em matéria salarial89 ou no
acesso a cargos de chefia90 – várias peças jornalísticas tendem a
exaltar as conquistas femininas, reforçando a ideia de que as
desigualdades laborais se vão dissipando ao longo do tempo, como
consequência natural do mérito, da determinação, do empenho e das
competências das mulheres. Ao mesmo tempo, os depoimentos que
expõem sacrifícios diversos e elevados custos pessoais acabam
geralmente por se diluir numa oratória que idolatra as mulheres
profissionalmente bem-sucedidas, capazes de articular com mestria
quase sobre-humana as tarefas e exigências familiares com os
afazeres profissionais91.

89
Ver, por exemplo: <http://www.publico.pt/sociedade/noticia/mulheres-europeias-
trabalham-mais-59-dias-para-ganharem-o-mesmo-que-os-homens-1626584>.
Acesso em: 28 mar. 2014.
90
Ver, por exemplo: <http://www.publico.pt/sociedade/noticia/dia-internacional-da-
mulher-assinalado-entre-desigualdades-e-alguns-progressos-1627427>. Acesso
em: 28 mar. 2014.
91
No entender da autora deste trabalho, esta é uma questão deveras importante
porque a disseminação de mitos e de informações parcelares e pouco rigorosas
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 181

Sem descurar, em momento algum, a complexidade desta


temática, os resultados que ora se apresentam abrem espaço para
um debate mais esclarecido e expõem a necessidade de questionar
todo um discurso que – abrilhantado pela exaltação dos benefícios
económicos e sociais que surgem geralmente associados a uma
participação mais equilibrada de homens e mulheres no mercado de
trabalho – parece estar transformado numa retórica velha e gasta,
incapaz de incutir nas práticas empresariais e familiares as
transformações e dinâmicas necessárias para uma igualdade de
“género” edificada sobre uma melhoria efetiva das condições de vida
e de trabalho das mulheres. Por outro lado, ressalta desta análise a
urgência de refletir se as políticas de igualdade que vêm sendo
adotadas servem eficazmente os interesses e a luta das mulheres
trabalhadoras ou se, pelo contrário, a tornam ainda mais difícil. Esta
questão remete inevitavelmente para a necessidade de repensar o
papel do Estado (e da União Europeia) na modernização das
relações de género e reconsiderar a adequabilidade e a
implementação das medidas e iniciativas que visam estimular uma
divisão equitativa do trabalho (pago e não pago) entre mulheres e
homens.
De qualquer modo, para melhor compreender esta temática,
seria interessante confrontar os níveis de (des)igualdade laboral com
alguns indicadores de desenvolvimento (como o rendimento, a
educação e a saúde) porque, apesar do discurso sobre igualdade de
género poder significar coisas muito diferentes em diferentes
contextos, nas economias desenvolvidas, além de uma questão
social, esta é também, claramente, uma questão económica. Por
outro lado, alargar este estudo a outros países ou analisar também a
situação dos homens trabalhadores poderia ajudar a melhorar o
entendimento sobre as questões acima levantadas. Estes são, aliás,
alguns dos objetivos de pesquisa a desenvolver no futuro.
Antes de finalizar, uma breve nota para sublinhar que, face
aos resultados obtidos, procurar enquadrar e perceber a problemática
das desigualdades entre homens e mulheres no âmbito do sistema
capitalista neoliberal é tão importante como refleti-las enquanto
resultado do sistema patriarcal em que se vive. Em matéria laboral, a
luta pela igualdade de “género” parece ser, cada vez mais, uma luta
dos sexos (e não entre os sexos) e, nesta perspetiva, não pode

pode condicionar as opiniões das massas e, desse modo, comprometer ações,


estudos, lutas etc.
182 Movimentos, Direitos e Instituições

deixar de ser incorporada na totalidade das relações sociais e


procurar envolver todos os sujeitos afetados por aquilo que se pode
designar como “a ofensiva do capital”. (SANTOS; OLIVEIRA, 2010).

CONCLUSÃO

As (des)igualdades entre homens e mulheres no mercado


de trabalho são uma problemática complexa, suscetível de diferentes
entendimentos e passível de diferentes abordagens. Mas é
igualmente uma temática apaixonante e acredita-se que esta
investigação abre espaço para um debate mais esclarecido entre
todos os que se preocupam com as questões laborais e com as
questões de “género”.
Partindo de um conjunto de indicadores estatísticos
relacionados com a participação no mercado de trabalho, com o
empoderamento, com o trabalho a tempo parcial, com os salários,
com o desemprego e com o tempo de vida de trabalho, efetuámos
uma análise temporal que permitiu compreender a evolução das
desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho
português, entre 2006 e 2012. Ao englobar-se na análise vários
indicadores de desigualdade, olhou-se esta problemática de uma
forma diferente, mais global e, por essa razão, talvez mais próxima da
realidade e do quotidiano das mulheres trabalhadoras e dos homens
trabalhadores.
Numa primeira fase, os resultados demonstraram que, no
período em análise, ocorreu uma redução significativa das
desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho
português. Contudo, numa segunda fase, teve-se oportunidade de
comprovar, para o mesmo período, um agravamento generalizado da
sua situação laboral das mulheres: a participação feminina no
mercado de trabalho diminuiu e, ao mesmo tempo, assistiu-se a um
aumento do trabalho a tempo parcial, do desemprego, do
desemprego de longa duração, das diferenças salariais e do tempo
de vida de trabalho (e o nível de empoderamento manteve-se
irrisoriamente baixo).
Resumindo, este artigo mostra que a diminuição das
desigualdades laborais entre mulheres e homens não determinou
nem foi acompanhada por uma melhoria da situação das mulheres no
mercado de trabalho português. Julga-se, portanto, ter clarificado as
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 183

questões com que se abriu a análise. Mas estas conclusões são tão
inquietantes que fazem reaparecer no imaginário desta autora a
figura fantasmagórica que Woolf, em 1931, se viu forçada a matar: o
Anjo da Casa. Renascido sob a forma de uma supermulher, este
Anjo da Contemporaneidade é agora encantadoramente capaz de
conciliar as tarefas do lar com uma vida profissional precária,
esgotante, erigida e pautada por padrões predominantemente
masculinos.

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WOOLF, Virginia. O estatuto intelectual da mulher seguido de profissões
para mulheres. Lisboa: Padrões Culturais, 2008.
CAPÍTULO 8

O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DO ENSINO


DO DIREITO PRODUZIDO PELA CONEXÃO
COM A LITERATURA: NAS PEGADAS DE
WARAT E CORTAZAR 92

93
Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori
Sergio Urquhart Cademartori94

Cortázar [...] morreu [...] ficando desde agora, só Cortázar nos outros.
Daqui em diante, unicamente de nós dependerá que seu modo de
iluminar tudo o que olhava, descobrindo o que nós não víamos, ou
víamos dentro de lugares-comuns, não se perca como um lugar
literário. (Warat).

RESUMO
O ensaio analisa o movimento de renovação do ensino do Direito
promovido a partir dos anos 80 do século passado pela literatura. O
objeto são as apropriações do jurista latino-americano, Luís Alberto
Warat, da obra de Júlio Cortázar - “Histórias de Cronópios e de

92
Este ensaio tem como ponto de partida a participação de um dos autores,
juntamente com os professores Lenio Streck e Daniel Conte, no programa de TV
“Direito e Literatura” de número 117, dedicado à obra “História de Cronopios e de
Famas”. Disponível em: <http:www.unisinos.br/direitoeliteratura/>.
93
Mestre e Doutora/em/Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professora do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em Direito da
Unilasalle (Canoas–RS). E-mail: <daniela.cademartori@unilasalle.edu.br>.
94
Mestre e Doutor em Direito pela UFSC. Professor do Programa de Pós-Graduação
e da Graduação em Direito da Unilasalle (Canoas–RS). E-mail: <scademartori@
unilasalle.edu.br>.
186 Movimentos, Direitos e Instituições

Famas” - em meados da década de 80 do século passado. As


contribuições de Cortázar possibilitaram a Warat o desenvolvimento
das ideias de “senso comum teórico dos juristas” e a da democracia
como espaço de conflito, bem como a de um Direito cuja função
primordial deva ser a de garantir, além dos direitos fundamentais, a
própria existência dos conflitos.
Palavras-chave: Democracia; Direito e Literatura; Júlio Cortázar;
Luís Alberto Warat; Senso Comum Teórico dos Juristas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. A ESCRITA DE CORTÁZAR COMO MÉTODO: OS
FRAGMENTOS DE “HISTÓRIAS DE CRONÓPIOS E DE FAMAS”;
1.1. CRONÓPIOS, FAMAS E ESPERANÇAS; 2. DA ESCRITA DE
CORTÁZAR À DEMOCRACIA: O ITINERÁRIO DE WARAT; 2.1. O
MÉTODO E O SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS; 3.
DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO; 3.1. A
CONEXÃO ENTRE DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS;
4. A PROPÓSITO DE CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Observa-se, nos últimos anos, uma extraordinária expansão


dos estudos envolvendo o Direito e sua conexão com a Literatura e
com isso, verifica-se um significativo aumento da produção
acadêmica e bibliográfica sobre a temática e a própria renovação do
ensino do Direito. Os estudos abrangem desde manifestações do
jurídico em obras literárias, até a busca da compreensão de como
teorias literárias podem auxiliar o entendimento do campo jurídico.
Esse movimento de renovação do conhecimento jurídico baseia-se
em que o Direito, como qualquer experiência humana, pode ser
narrado, e a narrativa literária proporciona uma grande contribuição
no debate sobre inúmeros temas, tais como os fundamentos da
justiça e da democracia, sobre o tempo e os rituais do Direito etc.
Muitas obras podem ser relidas em uma perspectiva transdisciplinar
com vistas a possibilitar uma abordagem mais ampla do jurídico.95

95
Martha Nussbaum refere-se à mudança benéfica na compreensão político-jurídica
possibilitada pelos aportes da literatura: “Con frecuencia en la vida política actual
nos sentimos incapaces de ver al prójimo como plenamente humano, como algo
más que ‘sueños o puntos minúsculos’. Esa falta de compasión vá también con
frecuencia acompañada por una confianza excessiva en los métodos técnicos para
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 187

Este ensaio pretende homenagear os cem anos de Júlio


Cortázar (1914-1984), bem como o professor e jurista latino-
americano Luís Alberto Warat (1942-2010). Com isso em mente,
pretende retomar a então inovadora produção teórica deste último,
desenvolvida junto ao ensino do Direito, no calor da década de
oitenta do século passado, por ocasião dos finais das ditaduras
militares no Brasil e na Argentina. É assim que, as palavras
emocionadas do professor no dia da morte de Júlio Cortázar, servem
hoje para introduzir o trabalho, que pretende, a partir de Cortázar e
passando por Warat, chegar à ideia de democracia como espaço de
conflito e de um Direito cuja função primordial deva sera de garantir,
além dos direitos fundamentais, a própria existência dos conflitos.
Trata-se de um ensaio transdisciplinar, na medida em que,
ao iniciar pela literatura, transita pelo Direito e pela Sociologia e
termina por refletir sobre a Filosofia Política96.
A primeira parte, com ênfase na literatura de Cortázar,
abordará a obra “História de cronópios e de famas” e as
possibilidades da escrita tão típica deste autor, baseada em
fragmentos, servir de “método” para a abordagem de Luís Alberto
Warat. Na sequência, pretende-se demonstrar que a desconstrução
do discurso jurídico waratiana irá desembocar, no conceito de “senso
comum teórico dos juristas” e nos seus aportes sobre a democracia
como espaço de conflito. Finalizando, para consolidar esta
perspectiva da democracia são acrescentadas as perspectivas de
autores da filosofia política bem como da sociologia e da filosofia do
direito, Claude Lefort, Alain Touraine e Luigi Ferrajoli.

modelar la conducta humana, sobre todo los que derivan del utilitarismo
económico. Tales modelos pueden ser muy valiosos en su lugar, pero suelen
resultar insuficientes como guía para las relaciones políticas entre los ciudadanos.
Sin la participación de la imaginación literária, afirmaba Whitman, ‘las cosas son
grotescas, excéntricas, infructuosas’ [...]. Nace de la convicción, que comparto con
Whitman, de que la narrativa y la imaginación literária no solo no se oponen a la
argumentación racional, sino que pueden aportarle ingredientes esenciales”
(NUSSBAUM, Martha. Justicia Poética: la imaginación literária y la vida pública.
Barcelona: Andrés Bello, 1997, p. 15, apud FACHIN; CORREA, 2010, p. 380).
96
Como se verá, a realização de Luis Alberto Warat consiste em trabalhar com aquilo
que em outro lugar, Marilena Chauí a propósito da obra de Claude Lefort chama de
“enigma da obra”. No caso, Cortázar, lido por Warat propicia uma compreensão de
que uma obra de pensamento é aquela que “ao pensar, dá a pensar”, enfatizando-
se assim a diferença entre escrita e leitura que em vez de fechar o pensar sobre si
mesmo o abre. (CHAUÍ, 1983, p. 13).
188 Movimentos, Direitos e Instituições

1. A ESCRITA DE CORTÁZAR COMO MÉTODO: OS


FRAGMENTOS DE “HISTÓRIAS DE CRONÓPIOS E DE
FAMAS”

O livro de Júlio Cortázar “Histórias de cronópios e de


famas”, publicado pela primeira vez em 1962, tem como cenário,
além das praças e ruas de Buenos Aires, lugares como um malecón
que avança sobre o mar e a noite no fim da zona costeira de Amalfi, e
é composto por uma coletânea variada de fragmentos, fantasias,
improvisações e anotações incomuns. Sua escrita reflete um “humor
melancólico”, irônico, politizado, respira poesia, denunciando um
mundo em que o sentido do humano se perdeu pelos hábitos ou
práticas repetidas, como na percepção dos movimentos
97
automatizados que se faz quando se sobe uma escada . Outras
vezes são fragmentos desconcertantes com uma pitada de
ingenuidade calculada, trabalhando com os diferentes sentidos e
contextos em que as palavras são enunciadas, como quando ele
menciona os jornais já lidos:

Um senhor pega um bonde após comprar o jornal e pô-lo debaixo do


braço. Meia hora depois, desce com o mesmo jornal debaixo do
mesmo braço. Mas já não é o mesmo jornal, agora um monte de folhas
impressas que o senhor abandona num banco da praça. (CORTÁZAR,
2011, p. 45).

Ao mesmo tempo, Cortázar luta contra a tendência de só se


praticar coisas úteis. É possível perceber o anti-utilitarismo98 de

97
“As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se
particularmente incômodas. [...] Para subir uma escada começa-se por levantar
aquela parte do corpo situada em baixo à direita, quase sempre envolvida em
couro ou camurça e salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau”.
(CORTÁZAR, 2011, p. 14-15).
98
“O anti-utilitarismo, ou a libertação do homem de sua existência utilitária, é um dos
objetivos do Surrealismo, movimento de difícil definição cujos criadores são
unânimes em afirmar que se iniciou com um movimento de ideias que pretendeu
estender-se a outros campos do pensamento e da atividade humana. Pretendia
produzir uma arte que, segundo o movimento, estava sendo destruída pelo
racionalismo. Para tanto, humor, sonho e a contra lógica são recursos a serem
utilizados, enfatizando o papel do inconsciente na atividade criativa. Segundo os
surrealistas, a arte deve se libertar das exigências da lógica e da razão e ir além da
experiência cotidiana, buscando expressar o mundo dos sonhos e do
inconsciente”.(FORTINI, 1962, p. 32). No início de seu “Manifesto”, André Breton
diz “L’homme, ce rêveur définitif, de jour en jour plus mécontent de son sort, fait
avec peine le tour des objects dont Il a été amené à faire usage, et que lui a livres
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 189

Cortázar no fragmento “Simulacros” em que a família99 se une em


torno do objetivo de descobrir sempre novidades dentre as coisas
inúteis, sem importância, “em um país em que as coisas são feitas
por educação ou fanfarronada”. Na ocasião, o objetivo é a construção
de um patíbulo. Depois de escolher o local - o jardim da frente -,
conseguir madeiras, ferros, pregos, discutir a qualidade dos
instrumentos de suplício, começa a construção. Com tanta azáfama,
acabam por despertar a curiosidade dos vizinhos, sendo interpelados
pela polícia. A terceira irmã consegue facilmente convencer o policial
de que a família construía dentro de sua propriedade e que se tratava
de uma obra que só o uso lhe conferiria um caráter
100
“anticonstitucional” . (CORTÁZAR, 2011, p. 18-21).
Seu texto revela uma escrita altamente comprometida
politicamente com o seu tempo histórico. Ele critica o autoritarismo
latino-americano, os ditadores, e mesmo a sociedade de consumo101.

sa non chalance, ou son effort presque toujours, car Il a consenti à travailler, tout au
moins Il n’a pás repugne à jour sa chance”. (BRETON, 1972, p. 11).
99
No livro, Cortázar constrói uma família, moradora da rua Humboldt em Buenos
Aires, como personagem de vários de seus fragmentos. A família se reúne para
realizar tarefas coletivas com extremo bom humor, sendo que as referências aos
seus integrantes são feitas de acordo com o parentesco com o narrador: minhas
irmãs menores, as tias mais velhas, meu pai etc.
100
A escrita de Cortázar também brinca para denunciar. No fragmento
“Comportamento nos Velórios”, a família comparece em grupo a velórios, não
porque tenha que ir, e sim como uma reação aos comportamentos hipócritas que
ocorrem por ocasião da morte de alguém. A prima mais velha é encarregada de
investigar a natureza do luto: se for um luto verdadeiro, a família fica em casa e faz
companhia de longe. Todavia, se existir alguma suspeita de que “foram armadas as
bases de uma encenação” a família toda comparece e acaba por tomar conta do
velório, chorando mais que os familiares e comandando todos os rituais da morte.
(CORTÁZAR, 2011, p. 34-35).
101
No fragmento “Fim do mundo sem fim”, Cortázar imagina um futuro em que
existirão poucos leitores e muitos escribas, o que fará com que o mundo seja
inundado de livros. A solução que o Presidente da República encontra - de modo
surrealista e de certa forma capaz de até antecipar preocupações ecológicas nos
leitores -, é lançar ao mar o excedente dos livros, conforme se pode observar a
seguir: “O Presidente da República telefona para os presidentes das repúblicas e
propõe inteligentemente jogar no mar o excedente de livros, o que se faz ao
mesmo tempo em todas as costas do mundo. Assim os escribas siberianos veem
seus impressos jogados no oceano glacial e os escribas indonésios etc. Isso
permite aos escribas aumentarem sua produção, porque volta a haver espaço na
terra para armazenar livros. Não pensam que o mar tem fundo, e que no fundo do
mar começam a amontoarem-se os impressos, primeiro em forma de pasta [...]”.
(CORTÁZAR, 2011, p. 50).
190 Movimentos, Direitos e Instituições

Para além do conteúdo, a própria escrita destes pequenos


textos conhecidos como fragmentos pode ser vista como uma
102
técnica. Como afirma Julio Silva , todo escritor guarda textos soltos,
e no caso de Cortázar eles às vezes são a base de uma história que
se desprende depois.

Creo que el trabajo con Cortázar fue un encuentro, una necesidad y


una diversión haciendo algo con una Idea precisa; esos pequeños
textos son muy importantes porque a veces son la base de una historia
que se despliega después; como un pintor que primero hace un croquis
y después lo despliega en un cuadro. Todo escritor guarda textos
sueltos [...]. Esos textos constituyen la base de esos libros. Es como
poner un huevo en una incubadora, y luego sale un pollito, la gallina, el
gallo o lo que sea, pero ya estaba en incubación; el hecho de
imprimirlo, el texto pasa de la incubadora al ojo del lector que lo recrea.
Yo creo que un lector sin pistas no es un lector, toma las cosas
digeridas pero sin buscar, hay que dar una llave y con esa llave tratar
103
de encontrar .

Conforme se verá a seguir, os fragmentos serão um


instrumento que será percebido e utilizado por Luís Alberto Warat na
produção de algumas obras, tais como “A ciência jurídica e seus dois
maridos”.

1.1 Cronópios, Famas e Esperanças

Warat percebe a intenção provocativa de Cortázar na


classificação dos tipos em cronópios, famas e esperanças - tidos
como “estados de alma”- fazendo sua esta classificação e
acrescentando detalhes muitas vezes jurídicos. Sobre a natureza dos
cronópios, veja-se o que diz Warat:

Provavelmente sejam os sobreviventes, fragmentos esparsos de


alguma horda angelical de antepassados do homem que conseguiram
perdurar nos corpos de alguns vírus para tomar, às vezes o sangue de
alguns homens, despertando-os para a vida. Esboços de um sonho de
loucura. (WARAT, 1985, p. 50).

102
Artista, pintor, gráfico e coautor junto com Cortázar de “aventuras literárias y
livrescas” tais como “Último Round” e “La Vuelta al dia en ochenta mundos”.
103
SILVA, Julio; LUNA CHAVES, Marisol. Papeles, trazos y testimonios. Revista de la
Universidad de Mexico. Disponível em: <http:www.revistadelauniversidad.unam.
mx>. Acesso em: 29 abr. 2013.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 191

Os cronópios são “homens” sensíveis, empenhados em


redescobrir o sentido da vida, com estranha poesia, humor
104
adstringente, pluriformes e pluricromáticos .
Já os famas, são seres prudentes, acomodados,
acinzentados, incapazes de se afastar da semiologia dominante.
Diferentemente dos cronópios, os famas sabem tudo da vida prática,
suas recordações são embalsamadas, seu presente é igual ao seu
105
passado .
Quando Warat afirma que os famas são advogados, ele
deixa uma primeira “pista” da utilização que pretende dar à
classificação de Cortázar: aproveitar o tema para fazer os seus
106
leitores, oriundos do mundo jurídico, refletir sobre a sua prática .
Retornando a Cortázar, cabe lembrar que os famas até podem
concordar com os cronópios em que a lei é injusta, mas eles não irão
desobedecê-la, conforme pode ser visto no fragmento “Cole o selo no
ângulo superior direito do envelope” do livro de Cortázar. Impossível
não reconhecer o aspecto fama da sociedade pós-ditatura militar sul
americana quando Warat comenta:

104
“A forma dos cronópios é a loucura. Eles cantam como as cigarras, indiferentes aos
semio-suicidas coletivos do cotidiano e, quando cantam, esquecem tudo, até a
conta dos dias. Os cronópios levam as significações impressas sobre o corpo,
pensam que as leis poderiam perder terreno às exceções, acasos e
improbabilidades. [...] Um cronópio possuído de uma imensa alegria por ver o sol é
capaz e apertar o tubo de pasta de dentes desde a janela de seu banheiro,
convertendo a rua num mar cor de rosa. Os cronópios entendem que, apelando
aos preconceitos, nunca se pode estar no novo. Dono de um discurso desligado,
vale-se dele para não ser militante de nada e nem de coisa alguma. Nem sequer é
soldado de sua loucura. [...]. Se algum cronópio tomasse o poder, perdê-lo-ia
instantaneamente. Os vizinhos sempre se queixam dos cronópios. [...] Os
cronópios não são generosos por princípio: eles não olham para quem sofre, estão
mais ocupados em seguir a baba do diabo.” (WARAT, 1985, p. 50).
105
“Quando um cronópio enche a rua de sua casa com pasta de dentes, o fama
organiza uma reunião de vizinhos para ir protestar de forma regular e oficial. Os
famas não se apuram em mudar o mundo, e deixam que o mundo os dissolva.
Quando uma desigualdade social os toca, gritam com força: que vergonha, filhos
de uma má mãe, e vão para seu clube achando-se muito bem, e pensando na
maneira como se comprometeram socialmente. Sua profissão predileta é de serem
advogados”. (WARAT, 1985, p. 50).
106
Logo após, Warat, em tom brincalhão, irá fazer referência a um grupo de alunos e
interlocutores brasileiros que o acompanham na década de oitenta na cidade de
Santa Cruz do Sul (RS). “O fama, como diz o meu amigo Lênio Streck, tem o
cotidiano agendado. Se perde sua agenda, perde parte de sua vida. Quando os
famas tomam o poder militarizam o cotidiano”. (WARAT, 1985, p. 85).
192 Movimentos, Direitos e Instituições

Estou escrevendo em plena praia Bristol, um lugar onde a classe média


argentina se simula descansando em meio de barracas cativas, mesas
de truco e pôquer, visitas a barracas de outros [...] – sem ver o mar –
programadas com um mês de antecipação. [...]. É uma conversa sem
assunto que vai passando de geração a geração, este ano
apresentando como variação, para dissimular o tédio, um papo furado
e até insultante sobre os desaparecidos. Enfim, uma maneira
farmacêutica de relacionar-se com o mar. (WARAT, 1985, p. 24).

Por sua vez, as esperanças, como o próprio significado do


107
termo indica, são como uma promessa que não se cumpre . Não há
negociações, é o que afirma Cortázar: não há saídas. É preciso
buscar a saída e não ficar esperando a salvação:

Esperanças: As esperanças sedentárias deixam-se viajar pelas coisas


e pelos homens, e são como as estátuas. É preciso ir vê-las, porque
ela não vem até nós. [...]. As esperanças vivem graças ao espírito
cartesiano, não suportam as ingerências, detestam os famas sem
admitir que elas, quando fazem seus raciocínios analíticos, os copiam.
[...] Quando uma esperança leciona em uma universidade, não
conhece seus alunos e por isso os trata bem, no final não lhe importam
nada. Quando as esperanças tomam o poder, falam em democracia.
(WARAT, 1985, p. 51).

Já para Ernst Bloch, o sentimento designado pela palavra


esperança envolve o resíduo de uma “fome originária”, característica
do momento de indiferenciação entre sujeito e objeto. Quando sujeito
e objeto estão separados, é ela que anima o sujeito em seu desejo de
reunir-se com o objeto, apontando sempre para o futuro, sendo o
constante “ainda não” (apud FERRATER MORA, 2004, p. 1095). Esta
concepção de esperança está ligada ao materialismo dialético,
fundada na realidade e orientada para um futuro ideal e utópico.

Por la esperanza se va haciendo posible que el sujeto se objetivice y el


objeto se subjetivice y que, como Marx indicaba, la historia se
naturalice y la Naturaleza se historice. […] La esperanza, como la
libertad, se va creando y haciendo a sí misma, sin completarse jamás
en un puro ‘objeto’ indiferenciado. (FERRATER MORA, 2004, p. 1095).

107
No primeiro fragmento da obra, Cortázar menciona o sentimento da esperança:
“Não pense que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de
dá-los? Virá somente o que você tem preparado e resolvido, o triste reflexo de sua
esperança, esse macaco que se coça em cima de uma mesa e treme de frio.
Quebre a cabeça do macaco, corra do centro em direção à parede e abra caminho.
Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar de cima nesta casa, com outras
pessoas”. (CORTÁZAR, 2011, p. 6).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 193

Esta situação é demonstrada no fragmento de “Histórias de


cronópios e de famas” em que Cortázar menciona a “fé” das
esperanças na ciência (“Sua fé nas ciências”). Uma esperança que
acreditava nos tipos fisionômicos decide fazer a classificação
definitiva destes tipos com respeito à característica do nariz achatado.
Com o passar do tempo ele acaba por perceber que os tipos se
subdividem ainda mais, nariz achatado bigodudo, do tipo lutador de
boxe, e do tipo contínuo de ministério. Ao final acaba por descobrir –
de modo a salientar a própria ingenuidade dos esperanças/cientistas
– que a única coisa que os portadores dos tipos fisionômicos tinham
em comum era o propósito de continuarem bebendo à sua custa.
É possível perceber a partir do uso e da compreensão
waratiana da classificação de Cortázar, o futuro desenvolvimento de
108
sua obra em direção ao surrealismo .

2. DA ESCRITA DE CORTÁZAR À DEMOCRACIA: O


ITINERÁRIO DE WARAT

Warat se pergunta: será que os juristas conseguirão


proteger à liberdade das ideias mais do que à propriedade? E
responde: caso se tenha em mente o saber vulgar ou o senso comum
teórico dos juristas, a resposta provavelmente será não. Somente a
crítica do discurso jurídico que considera a relação entre direito e
democracia, capaz de garantir a pluralidade no discurso jurídico,
poderá oferecer uma solução de sentido ao problema. Assim, a
democracia é vista como forma de governo ou forma de convivência
na e da sociedade atual, em condições de assegurar a legitimidade
do sistema, o direito e a própria obediência.
A leitura de Cortázar gerou em Warat o que ele confessou
como sendo “a liberdade de usurpar sem culpa” e de fazer o autor
“estalar o sentido precário de um romance sobre o imaginário”. A
partir de então, seu ponto de partida para criticar o discurso jurídico
será o da linguagem, a percepção de que a sociedade
contemporânea caracteriza-se pelo consumo de “significados
castrados”. Trata-se de uma cultura em que o que há de mais vital
não é a falta, e sim o excesso. “Os homens estão tão repletos de

108
Nos anos seguintes Warat lançou “O Manifesto do Surrealismo Jurídico” (São
Paulo: Acadêmica, 1988).
194 Movimentos, Direitos e Instituições

estereótipos, de prêt-à-parler [...] que não há espaço dentro deles


para a criatividade”. (WARAT, 1985, p. 15 e 17).
Existe uma semiologia dominante que apelando para a
linguagem acaba por determinar modelos de desejos em que

[...] gozar é igual a possuir. Por meio destes modelos o homem não só
aceita a hierarquia, como também aprende a amá-la. Todos somos
proprietários burgueses de nossos desejos. [...] devemos recuperar a
significação desejante, pré-significativa. (WARAT, 1985, p. 30).

Neste ponto, Warat afirma categoricamente: reconhecer a


existência do conflito na sociedade é duro, é difícil, não leva a uma
visão idílica do futuro. A caminhada é cheia de incertezas, só que não
109
existe opção, eis que o final feliz é uma mentira. (1985, p. 27) .
Suas análises sobre a democracia – nas pegadas de Lefort
110
– vão além da mera “representação na esfera da governabilidade.”
Se o cerne da questão democrática reside na obtenção do controle
social e coletivo da prática política, é preciso ampliar: “a participação
deve ser situada no bairro, na Escola, na Igreja e no lazer; enfim, na
vida cotidiana. Dessa forma é que se pode combinar
representatividade com democracia de base.” (WARAT, 1985, p. 38 e
106).

109
O mesmo é percebido no texto de Cortázar que ao comentar o encontro de dois
amigos, conta: “Um senhor encontra um amigo e o cumprimenta, estendendo-lhe a
mão e inclinando um pouco a cabeça. Isto é, pensa que o cumprimenta, mas o
cumprimento já foi inventado e este bom homem não faz mais do que repeti-lo. [...]
Quando os sapatos apertam, é bom sinal. Alguma coisa muda aí, alguma coisa que
nos mostra, que surdamente nos põe, nos suscita. Por isso é que os monstros são
populares e os jornais se extasiam com os bezerros bicéfalos. Que oportunidade,
que esboço de grande salto para outra coisa! López vem chegando. - Como vai,
López? - Como vai, cara? E é assim como eles acham que estão se
cumprimentando”. (CORTÁZAR, 2011, p. 54).
110
O autor também tece críticas ao saber oficial acadêmico, fazendo sugestões,
conforme se pode perceber no seguinte trecho: “Na Universidade convivi com
muitos adeptos de uma prática de rotulação filosófica impiedosa; aqueles filósofos,
os que estavam fora da ortodoxia teórica que reconheciam como boa eram, por
este motivo, classificados como vulgares e desclassificados academicamente por
simples. Mas é preciso ver que quando estamos em busca de uma sociedade
aberta, à procura de linguagens democráticas, devemos tentar preservar-nos dos
modos de produção das distinções sociais. Por certo, cultivando as ambiguidades,
torna-se bastante improvável classificar hierarquicamente os homens. Na vida
universitária resulta bastante recomendável a extinção das práticas de classificação
hierarquizantes. Elas oferecem a segurança de princípios absolutos de
inteligibilidade, mas cancelam os riscos da decifração. Sem este risco, o
pensamento fica autoritário”. (WARAT, 1985, p. 105).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 195

2.1 O Método e o Senso Comum Teórico dos Juristas

Como se vê, Warat se apropria do texto de Cortázar a fim


de pensar o direito e a democracia. A apropriação envolve a
percepção de que por meio da literatura de Cortázar é possível
apreender as realidades através de enigmas, “como para poder
transmutar em loucas as razões, para poder sobreviver socialmente a
tantos monstros que, nobre, militar e sensatamente nos governam.”
Desse modo este jurista latino-americano recorre ao ficcionista por
reconhecer que esta é uma leitura inspiradora, são textos que
“transpiram por todos seus poros, uma vitalidade ardentemente
exposta e comprometida”. E reconhece que ao lado de Barthes,
Cortázar é o autor mais anonimamente citado em seus trabalhos.
(WARAT, 1985, p. 52-53).
Não é que Cortázar fale diretamente sobre o direito – o que
não descarta uma possível percepção indireta deste objeto em seu
texto –, o que se salienta aqui é a sua utilização instrumental no
sentido de auxiliar a desconstrução do discurso jurídico, de mostrar
as frustrações e os recalques das ditas “verdades científicas”.
Se na esfera do conhecimento, da investigação ou de
qualquer raciocínio, método significa a trajetória, as atitudes que são
adotadas com vistas a um fim determinado, é possível então afirmar
que no caso de Warat, a escrita de Cortázar faz parte de uma
“estratégia de investigação”111.
Como o discurso jurídico tem como meta fazer crer que
existe menos autoritarismo, ele acaba por tentar esconder que
participa da chamada “cultura detergente”, isto é, uma cultura que
pretende apresentar o mundo “sem sujeiras”, fazendo com que os
homens fiquem plenos de estereótipos ou de significados castrados.
E os textos literários de Cortázar acabam por revelar-se como uma
estratégia para a desconstrução deste discurso 112.

111
Além do recurso a obras literárias, Warat utilizou-se também de outros recursos,
tais como o conceito de “carnavalização”. A propósito da carnavalização do ensino
do direito, o autor afirma “A carnavalização da sala de aula atrai, seduz como um
lugar de transgressão; é um ‘jardim suspenso’ no irreal mundo da universidade que
abre uma brecha, para que se sintam queridos em seus impulsos vitais aqueles
que nele se instalam”. (WARAT, 1985, p. 114).
112
“Como os jogos infantis, a linguagem de Cortázar não é brincadeira, aparece como
procedimento que tem a ver com a convicção de quebrar a obrigação moral de
viver segundo as convenções estabelecidas. Assim é que Cortázar penetra na
196 Movimentos, Direitos e Instituições

É uma investigação que, assim como confessado por


Bobbio, faz uma aproximação ao seu objeto girando ao seu redor,
“com uma manobra que na linguagem militar receberia o nome de
ataque pelos flancos”. (BOBBIO, 2000b, p. 307-308). Na marcha de
aproximação de Warat, cronópios e famas são partes dos
instrumentos usados para desconstruir o cotidiano dos discursos
jurídicos.
O problema a ser enfrentado residia em como lidar com as
verdades escritas com maiúsculas, os sentidos “congelados” do
direito. Neste sentido, a “iluminação” propiciada pela leitura – e
mesmo a adaptação – de Cortázar ao mundo dos discursos jurídicos,
era capaz de tornar evidentes estas situações para, em um momento
113
posterior, possibilitar a desconstrução .
É a preocupação de contar com um conceito operacional
que sirva para designar a dimensão ideológica das “ditas verdades
jurídicas” e de denunciar a impossibilidade de eliminar este campo da
verdade em si - que mobiliza o autor a cunhar o neologismo “senso
comum teórico dos juristas”. Conforme ele próprio esclarece, a
aceitação desta categoria depende de aceitar-se uma outra ideia
anterior, a de que aquilo que filósofos e cientistas chamam de real é
“um complexo, um fluxo de significações, uma rede de signos, um
grande tecido de escrituras intercaladas infinitamente.” Assim, no
pensamento ocidental o termo realidade é empregado para designar
“o traçado polifônico das versões interpretativas”. (WARAT, 1994, p.
13- 14 e p. 17-18).
O “senso comum teórico dos juristas” compreende “as
condições implícitas de produção, circulação e consumo das
verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do
Direito”. No seu cotidiano, ao realizar atividades teóricas, práticas e

literatura, jogando com todas as possibilidades da linguagem. [...] Não se termina


nunca de saber se um cronópio, quando ensina, constrói ou destrói. Provavelmente
construa para destruir ou destrua para construir. Talvez a destruição seja o dobro
da construção [...] as verdades jurídicas precisam estar sempre atraídas pelo caos,
desafiando a tentação suicida da linguagem. Sempre vale mais um suic ida que um
zumbi. [...] A vida renasce nas artes”. (WARAT, 1985, p. 44 e 46-7).
113
“[...] Cortázar fala de nossos imobilismos, dos engarrafamentos de nossa vida, de
como nossas ilusões, nossos costumes, nossos lugares-comuns que nos
paralisam, nos deixam atolados enquanto dura a vida. Por que não pensar então
também em como as leis, como as verdades que escrevemos com ‘maiúscula’ [...]
com o sentido adquirido da ordem e o uso juridicista da palavra democracia,
imobiliza-nos e deixa-nos politicamente atolados”. (WARAT, 1985, p. 53).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 197

acadêmicas, os juristas são influenciados “por uma constelação de


representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de
censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas” que
acabam por anonimamente governar suas decisões e enunciações.
(WARAT, 1994, p. 13).
Tais significações são também um instrumento de poder, eis
que

Aceitando-se que o Direito é uma técnica de controle social não


podemos deixar de reconhecer que seu poder só pode se manter
estabelecendo-se certos hábitos de significação. Existe, portanto um
saber acumulado – difusamente presente nas redes dos sistemas
institucionais – que é condição necessária para o exercício do controle
jurídico da sociedade. Com isto, estamos ressaltando as dimensões
políticas dos sistemas de enunciação. (WARAT, 1994, p. 15).

Um sistema autoritário produz versões do mundo capazes


de abstrair as pessoas da história porque necessita “solidificar
artificialmente as relações sociais” através da centralização das
produções de sentido que enfatizam o Estado por meio de
sublimações semiológicas.
Em suma, a ênfase é dada nos costumes intelectuais tidos
como “verdades de princípios”, que escondem a esfera política da
investigação sobre as verdades ou um conjunto de opiniões
comungadas e manifestadas como “ilusão epistêmica”.

A epistemologia do Direito não passa de uma ‘doxa’ politicamente


privilegiada. Dito de outra forma, detrás das regras do método, dos
instrumentos lógicos, existe uma mentalidade difusa (onde se mesclam
representações ideologias, sociais e funcionais) que constitui a vigilância
epistemológica pela Servidão do Estado. (WARAT, 1994, p. 16).

É possível então afirmar que isto ocorre em razão da


dificuldade em separar nas funções sociais da ciência jurídica as
razões teóricas de justificação. E neste nível a verdade está
relacionada sempre com processos persuasivos. São as opiniões do
senso comum que conferem confiabilidade às conclusões das
argumentações.
Além disso, o senso comum teórico dos juristas atua de
modo a questionar a literatura epistemológica padrão das ciências
jurídicas. São opiniões aceitas como “imaculadas” sob o invólucro de
questões de método que insistem na necessidade de que seja feita a
198 Movimentos, Direitos e Instituições

distinção entre ciência e ideologia, mantendo a distinção clássica


entre “doxa” e “episteme”. (WARAT, 1994, p. 16).

3. DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO

É assim que, na caminhada teórica de Warat, envolvendo a


desconstrução do discurso jurídico, pode-se perceber que o conceito
de democracia ocupa um lugar central.
Marilena Chauí, comentando a “invenção democrática” de
Lefort, lembra que a democracia situa-se entre duas formas históricas
do político: o Antigo Regime e o Estado totalitário. No primeiro, “o
político devora o social como um órgão do corpo régio; poder, lei e
saber, personificados pela unidade corpórea, são identificados e
indiferenciados.” No segundo, também o social e o político estão
unidos de modo indiferenciado, revelados pelas metáforas orgânicas
do Gulag, através do partido-Estado, cujas células passam a
constituir o social e “cuja cabeça, Guia Supremo, recoloca o novo
nome do UM: o Egocrata”. (CHAUÍ, 1983, p. 11).
Nesta perspectiva é que a invenção da democracia
representa a instituição do político como uma novidade: a instituição
do social através da “desincorporação” ou perda da eficácia simbólica
e pragmática da unidade. Ela é um acontecimento extraordinário e
“uma revolução que corre pelos séculos”. A democracia irá instituir a
alteridade na espessura do social através do reconhecimento da
divisão social e da diferenciação do social e do político, apresentando
a capacidade de questionar-se a si mesma enquanto poder e contra-
poder sociais. Ela institui, pela primeira vez, a ideia dos Direitos,
diferenciando Poder, Lei e Saber, “que ficam expostos aos conflitos
das classes, dos grupos e dos indivíduos e, assim, impedidos de se
petrificarem”. Logo, “A Democracia é invenção porque, longe de ser a
mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos
direitos, a subversão contínua do estabelecido, a reinstituição
permanente do social e do político”. (CHAUÍ, 1983, p. 11).
O significado e a dimensão do totalitarismo para a
compreensão da política e da democracia contemporânea revela-se
fundamental a partir da perspectiva de Lefort: “Penso que não se dará
um único passo no conhecimento da vida política de nosso tempo
sem nos interrogarmos sobre o totalitarismo.” E para o seu
aprofundamento é decisiva a compreensão das contradições da
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 199

democracia, em especial os fantasmas da revolução e do reformismo.


(LEFORT, 1983, p. 19).
Já para Olgária Matos (2013, on line), a compreensão de
democracia de Lefort parte da constatação de que em política não
existem soluções definitivas. Em seu funcionamento a política produz
a democracia, bem como “o exercício de direitos e a criação de novos
direitos, sempre no sentido de que privilégios e carências não podem
se universalizar”. A “democracia selvagem”, mais do que evocar a
experiência originária do povo, evoca todas as forças sociais
presentes, enfatizando o elemento de indeterminação do presente:
ele é o espaço de liberdade radical, de criação política. A percepção
lefortiana de democracia – justamente porque salienta o aspecto de
convivência social e de resolução de conflitos – indica que a
democracia está sempre em busca de sua própria definição,
afirmando a legitimidade do conflito. Assim como Kelsen114, o filósofo
francês deixa evidente que a democracia “não necessita da ideia de
líder” e acrescenta: “a política democrática não necessita [...] de guia,
de partido consciência de classe, porque a invenção democrática não
depende nem das virtudes, nem dos vícios dos governantes, mas da
qualidade de suas instituições”. (MATOS, 2013, on line).
No mesmo sentido, a compreensão de democracia de Alain
Touraine parte da constatação de que na definição de democracia,
são mais importantes os inimigos que ela combate do que os
princípios que defende. Um conceito que perceba a democracia como
um sistema de mediações entre Estado e atores sociais – que admita
a influência mútua – pode ser responsável pelo seu fortalecimento.
“Nossas liberdades democráticas degradam-se porque deixaram de
tratar dos problemas sociais agudos”. É preciso combater o
pensamento liberal, que privilegia uma definição política da
democracia, e que ao observar a sociedade, nega a existência de
conflitos estruturais entre interesses opostos. Ao contrário, o
pensamento liberal vê a sociedade

[...] como uma espécie de maratona: no centro, um pelotão que corre


cada vez mais depressa; na frente, algumas estrelas que atraem a
atenção do público; atrás, aqueles que, mal alimentados e mal
equipados, vítimas de distensões musculares ou crises cardíacas,
estão excluídos da corrida. (TOURAINE, 1996, p. 25).

114
Sobre isto tudo ver KELSEN, Hans (1987, p. 63-127), e CADEMARTORI, Daniela
Mesquita Leutchuk de (2006, p. 120-131).
200 Movimentos, Direitos e Instituições

A teoria democrática liberal, enquanto “gestão racional da


sociedade”, reduz a gravidade dos problemas, acabando por colocar
a própria Democracia em perigo.
E as posições da esquerda, compreendida enquanto forças
políticas que fazem apelo ao povo, continuam a ser democráticas? A
esta questão Touraine responde negativamente. A evolução histórica
da ideia de democracia na esquerda mostra que ela muitas vezes
acabou por ser destruída, em seu próprio nome ou em nome da
classe operária. Este tema provocou divisões profundas e até mesmo
violentas no debate da esquerda europeia e latino-americana.
Durante muito tempo e em muitos países, essa palavra foi
condenada. Falou-se em democracia burguesa ou formal e os
partidos comunistas lutaram em favor da ditadura do proletariado,
enquanto as guerrilhas na América Latina ou África recusavam a
ação de massa e concentravam sua ação, não na mobilização
popular nem tampouco na criação de um partido de vanguarda de
inspiração leninista, mas no ataque direto do Estado considerado
como o elo mais frágil da dominação imperialista. As guerrilhas
urbanas europeias, à maneira italiana ou alemã, adotaram as
mesmas análises e procuraram causar terror aos dirigentes no
sentido de enfraquecê-los e permitir assim a libertação de uma
hipotética vontade revolucionária das massas. (TOURAINE, 1996, p.
90-91).
Todas estas situações mostram que assim como “o
caminho” da democracia esteve afastado das ditaduras, ele também
esteve afastado da via revolucionária. Todas as vezes que o “apelo
ao povo” quer ele tenha sido feito pela esquerda, quer pela direita,
passou a colocar o Estado numa posição superior à dos atores
sociais e de suas relações (conflitivas ou mesmo negociadas), deixou
de ser democrático. Para fazer esta mudança de planos, os regimes
autoritários sempre invocaram “a falta de maturidade de suas
sociedades ou as ameaças exteriores e interiores que pesavam sobre
elas”. (TOURAINE, 1996, p. 254 e 92).
A democracia se apoia na ideia de conflito social, mas é
incompatível com a crítica radical de toda a sociedade – não só com
o multiculturalismo extremo, mas também com o foquismo – que, em
nome de uma teoria extrema da dependência, rejeitava toda ação de
massa e apenas acreditava na violência dirigida contra um Estado
pseudonacional, agente do imperialismo. (TOURAINE, 1996, p. 94-
95).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 201

Lembrando o conceito de Lefort de democracia, Warat


reconhece que é o “uso juridicista da palavra democracia” que
imobiliza, que deixa a todos “politicamente atolados”. Se para Cortázar
a democracia precisa ser uma vivência, Warat acrescenta que o
primeiro gesto em uma prática democrática, é o reconhecimento da
existência do conflito na sociedade. É preciso assegurar a procura do
confronto e não a solução. A partir daí, chega-se à constatação de que
não existe democracia sem a marginalidade e de que “A democracia
precisa do confronto com as leis do submundo para que não vire uma
montagem de relações ocas, um punhado de liberdades de papel”.
(WARAT, 1985, p. 26 e 30).
A democracia só existe pela combinação de princípios
diversificados e, em parte, opostos, pelo fato de que ela não é o sol
que ilumina toda a sociedade, mas uma mediação entre o Estado e a
sociedade civil. Se se inclina demasiadamente para um lado, vai
reforçá-lo de forma perigosa em detrimento do outro. (TOURAINE,
1996, p. 103-104).
Os constitucionalistas e juristas conseguem compreender
melhor do que os “fundadores” da filosofia política que busca o
“espírito” da democracia, que ela é, em primeiro lugar, um conjunto
de garantias de procedimentos instituidoras de relações entre o poder
legítimo e a pluralidade dos atores sociais.

3.1 A Conexão Entre Democracia e Direitos


Fundamentais

As denúncias dos excessos da democracia liberal levaram a


propostas como a de democracia constitucional, analisada aqui a
partir dos aportes de Luigi Ferrajoli. Em questão, a garantia jurídica
de um espaço para que os conflitos possam acontecer através dos
direitos115. A propósito da conexão entre democracia e direitos
fundamentais, Luigi Ferrajoli parte do pressuposto de que hoje o
debate se divide entre os que defendem a democracia majoritária
(setores da direita e da esquerda) e os que defendem a democracia
115
Esta necessidade foi evidenciada por Alain Touraine quando acrescentou que a
democracia deve combinar três mecanismos institucionais básicos: associar
direitos fundamentais à definição da cidadania propiciada pelos instrumentos
constitucionais; respeitar os direitos fundamentais com a representação dos
interesses, objeto dos códigos jurídicos; e a fusionar a representação com a
cidadania, função exercida pelas eleições parlamentares livres. (TOURAINE, 1996,
p. 103).
202 Movimentos, Direitos e Instituições

constitucional. Para os defensores da democracia majoritária ou


plebiscitária a democracia é a onipotência da maioria, isto é, há uma
rejeição do sistema de mediações e limites que são a substância da
democracia constitucional. (FERRAJOLI, 2008, p. 25).
Ocorre que historicamente a democracia liberal levou a
excessos: excesso da liberdade de mercado e da onipotência da
maioria. Isso determina, a partir do final da II Guerra, a necessidade
de superação deste modelo através da democracia constitucional. A
essência desta nova abordagem, isto é, do constitucionalismo e do
garantismo, reside em um conjunto de limites que as Constituições
estabelecem a todos os poderes, como instância defensora de uma
compreensão da democracia

[…] como sistema frágil y complejo de separación y equilibrio entre


poderes, de límites de forma y de sustancia a su ejercicio, de garantías
de los derechos fundamentales, de técnicas de control y de reparación
contra sus violaciones. Un sistema en el cual la regla de la mayoría y la
del mercado valen solamente para aquello que podemos llamar esfera
de lo discrecional, circunscrita y condicionada por la esfera de lo que
está limitado, constituida justamente por los derechos fundamentales
de todos: los derechos de libertad, que ninguna mayoría puede violar, y
los derechos sociales – derecho a la salud, a la educación, a la
seguridad social y a la subsistencia – que toda mayoría está obligada a
satisfacer. Es ésta la sustancia de la democracia constitucional […].
(FERRAJOLI , 2008, p. 27).

A democracia constitucional é uma consequência da


mudança de paradigma que envolve o papel do Direito, produzida nos
últimos cinquenta anos. Uma mudança da qual ainda não se
conseguiu tomar consciência: com suas formas e técnicas de
garantias ainda não elaboradas e asseguradas. Sobre esse ponto
Ferrajoli faz uma afirmação enfática: a verdadeira invenção deste
século reside no caráter rígido da Constituição, ou melhor, na
garantia desta rigidez. Trata-se do reconhecimento de que as
Constituições são normas supraordenadas à legislação ordinária
através da previsão, por um lado, de procedimentos especiais para a
sua reforma e, por outro lado, da instituição do controle de
constitucionalidade das leis por parte dos tribunais constitucionais.
Com isso, todos os poderes sujeitam-se ao direito, inclusive o
Legislativo. É assim que o princípio da soberania se dilui na presença
de Constituições em que não existem sujeitos soberanos. Deixa de
existir a soberania interna, visto que todos os poderes públicos –
inclusive o Legislativo e a chamada soberania popular – estão
sujeitos à Constituição. Também não existe mais a soberania externa,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 203

visto que os Estados se submetem a um novo ordenamento


internacional nascido com a Carta das Nações Unidas e com a
proibição da guerra e a obrigação do respeito aos direitos
fundamentais estabelecida pela mesma. Com a rigidez constitucional,
a legalidade muda de natureza: passa a ser disciplinada e
condicionada por vínculos jurídicos, não só formais como também
substanciais. Neste ponto, Ferrajoli afirma que o direito acaba
positivado não só em seu “ser”, também em seu “dever ser”. Este
novo direito – acima do direito – pode ser chamado de modelo
“paradigma garantista” em oposição ao paleopositivista. A
Constituição neste novo paradigma não é outra coisa que a
estipulação das normas que são direitos fundamentais, isto é, dos
direitos elaborados na tradição jusnaturalista - na origem do Estado
moderno - como inatos ou naturais, convertidos, na medida em que
incorporados aos contratos sociais escritos que são as modernas
Constituições. (FERRAJOLI, 2008, p. 30).
Esta mudança revolucionária no paradigma do direito
envolve uma série de mudanças. Altera-se natureza da democracia
de formal para substancial. Muda a relação entre a política e o direito,
já que a política se converte em instrumento de atuação do direito,
submetida aos limites impostos pelos princípios constitucionais. E
finalmente, muda a relação entre política e mercado: a esfera do
decidível fica limitada rigidamente pelos direitos fundamentais.
(FERRAJOLI, 2008, p. 31-32).
Em uma sociedade de massas, o simples apelo à
participação política do cidadão pode acarretar muito mais do que a
ampliação das liberdades de cada um, pode levar à exclusão do
estrangeiro, além da obsessão pela homogeneidade tornar-se um
fator de exclusão.

4. A PROPÓSITO DE CONCLUSÕES

Um dos desenvolvimentos teóricos mais interessantes do


jurista latino-americano Luís Alberto Warat, se dá a partir da
aproximação com a literatura e em específico com a obra de Júlio
Cortázar (“Histórias de cronópios e de famas”). Seu objetivo é pensar
e fazer os seus leitores pensarem criticamente sobre um discurso
jurídico pleno de verdades absolutas. Se os fragmentos de Cortázar
deveriam funcionar como uma “chave” para que o leitor “se
204 Movimentos, Direitos e Instituições

buscasse”, pode-se constatar que o que o jurista encontrou levou-o a


uma crítica do discurso jurídico que passou pela elaboração do
conceito – hoje, patrimônio da ciência jurídica – de “senso comum
teórico dos juristas”. Neste sentido, é impossível abstrair o fato de
que esta construção teórica tem na democracia - como espaço de
conflitos - e no direito - como garantidor dos conflitos - o seu núcleo.
Embora tenha sido a utilização da classificação de Cortázar
entre cronópios, famas e esperanças, o que mais tenha sido
reconhecido como apropriação waratiana, o fato é que o tema não se
esgota aí. Da leitura conjunta das duas obras é possível perceber que
Cortázar é um autor decisivo para outras construções teóricas de
Warat. Será a vitalidade exposta e o comprometimento do autor de
“Histórias de cronópios e de famas” que encantará o jurista fazendo
com que ele construa, a partir destas leituras, uma compreensão
especial do discurso jurídico.
Como este discurso insere-se em uma cultura, Luis Alberto
Warat, deixa evidente a consequência que o ocultamento promovido
pela especificidade do discurso jurídico em um contexto que ele
chama, de “cultura detergente”, provoca: o autoritarismo. Em seu
cotidiano os operadores do direito são influenciados por esta cultura
através de representações, pré-conceitos, e mesmo imagens, que
acabam por governar suas enunciações, isto é, pelo que ele
conceitua como “senso comum teórico dos juristas”. As implicações
do “senso comum teórico dos juristas” vão muito além da esfera
jurídica, visto que estas significações são também um instrumento de
poder. Partindo da premissa de que o direito é uma técnica de
controle social visto está que este poder irá acabar por se manter
estabelecendo certos “hábitos de significação”. A acumulação deste
saber, presente de modo difuso nas instituições, é a condição
necessária para o exercício do controle jurídico na sociedade.
De outro lado, as teorizações waratianas sobre o senso
comum teórico dos juristas atuarão questionando a literatura
epistemológica padrão das ciências jurídicas, as opiniões aceitas sem
questionamento, que insistem na distinção entre ciência e ideologia
ou entre “doxa” e “episteme”.
Preocupado com a proteção da liberdade das ideias pelo
direito, Warat percebe que caso se tenha em mente o “senso comum
teórico dos juristas”, ela provavelmente não irá se concretizar. É a
crítica do discurso jurídico, conectando direito e democracia, que
pode propiciar reflexões de sentido sobre o problema. E a linguagem
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 205

ocupa um papel-chave neste processo, visto que a dominação inicia


interditando a linguagem inesperada.
No auge da década de oitenta na América do Sul, quando o
subcontinente recém despertava de décadas de ditaduras, Warat
pretendia uma democracia que fosse além da compreensão liberal,
além da mera representação política: falava em democracia como
controle coletivo da prática política e na importância da participação
da marginalidade neste processo, para não virar uma montagem de
“relações ocas”.
Assim, a compreensão de democracia de Warat aproxima-
se da invenção democrática de Claude Lefort. Se a democracia situa-
se entre o Antigo Regime e o Estado totalitário, seu significado de
invenção está em permanentemente criar direitos novos, reinstituindo
o social e o político, evocando com isto todas as forças sociais.
Refletir sobre ela em sociedades de massa como as atuais – que
politizam através do convencimento ideológico, doutrinando a partir
de fórmulas prontas – é vital, eis que se está sempre frente à
possibilidade de que ela seja substituída por uma ditadura.
De outro lado, este ensaio acrescentou aos aportes sobre a
democracia e a atual compreensão de democracias constitucionais
desenvolvidos por Luigi Ferrajoli. Os excessos da democracia liberal
– denunciados amplamente por Lefort, Touraine e Warat – levaram à
necessidade de superar este modelo. A “democracia constitucional”
tem pretensões de, aliando à democracia um conjunto de limites
estabelecidos pelas Constituições a todos os poderes, garantir
juridicamente as possibilidades de que os confrontos que não tem voz
na sociedade possam dar-se. Esta nova compreensão da
democracia, para além da democracia liberal, é fruto de uma
mudança de paradigma envolvendo o papel do direito, mesmo que
ainda não se tenha uma total consciência da grandeza da mudança,
diz Ferrajoli. A sujeição de todos os poderes ao direito, incluindo-se o
próprio Legislativo só pode ser assegurada através do caráter rígido
da Constituição, esta grande invenção do século XX.
Finalizando, acrescenta-se a necessidade de uma cultura
democrática, isto é de uma concepção do ser humano que se
constitua em um obstáculo ao poder absoluto, capaz de desejar e
criar permanentemente as condições institucionais garantidoras da
liberdade pessoal. Em outro lugar, Bobbio havia dito que o remédio
para os problemas da democracia consiste sempre em mais
democracia. Aqui, para finalizar acrescentam-se as
206 Movimentos, Direitos e Instituições

“contraindicações” de Warat: não se enganem, reconhecer que


existem outras vozes não levará de modo alguma a uma visão idílica
do futuro, todavia, qualquer outra perspectiva diferente desta é
mentirosa, eis que o “final feliz não existe”.

REFERÊNCIAS

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D. B. Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000b. p. 306-319.
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_______. Introdução Geral ao Direito. Interpretação da lei. Temas para
uma reformulação. Porto Alegre: SAFE, 1994. V. I.
CAPÍTULO 9

HORIZONTES INTERTEMPORAIS DO
HUMANISMO JURÍDICO: UM EXERCÍCIO
HERMENÊUTICO AO TRANSHUMANISMO E
AO PÓS-HUMANISMO

Eliseu Raphael Venturi116

Nasce um mundo da frase pronunciada


Onde tudo acontece tal e qual;
Na palavra a palavra está empenhada:
À fala, não ao falante, dá-se o aval.
(W. A. AUDEN, “Words”, 1956).

RESUMO
O tema central deste artigo consiste no humanismo jurídico, tomado
como cosmovisão ínsita ao Direito, este entendido tanto como
expressão de um ordenamento global vigente quanto em sua
dimensão epistêmica, que é relevante para qualquer conhecimento
ou apreensão da realidade tornada objeto. Neste sentido, o problema
de base apresentado é essencialmente da ordem hermenêutica

116
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e
Licenciado em Artes Visuais pela FAP (Faculdade de Artes do Paraná).
Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná
(ESMAFE/PR) e Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Professor de Teoria Geral do Direito na Fundação de
Estudos Sociais do Paraná (FESP/PR). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos
da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado. E-mail: <eliseurventuri@
gmail.com>. Link para currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/783806598344373>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 209

(Gadamer), portanto, respectivo aos modos de se compreender a


realidade social e suas questões, tendo por mote o entendimento
jurídico-humanista (Wolkmer), que é temporalmente elastecido, ou
seja, abrange tanto o passado quanto propulsiona o futuro. O objetivo
geral, deste modo, consiste em debater horizontes intertemporais do
humanismo jurídico lançando o problema no orbe das relações
passado-presente-futuro que, no humanismo jurídico, podem ser
compreendidas nas operações de harmonização e contemporização
das projeções da tradição e do horizonte de expectativas e de
sentido, apreendidos pela inteligência de compreensão. Sem
problematizar a noção filosófica de temporalidade, antes, adotando
um referencial no sentido da teoria hermenêutica, o problema do
artigo gravita na investigação das interfaces (Carneiro) intertemporais
envolvidas no exercício hermenêutico e que, na contemporaneidade,
tem sido desafiada com os cenários trans e pós-humanos
(Romandini), cada vez mais emergentes, demandando uma maior
plasticidade de valores jurídicos clássicos, onerando o intérprete em
seus exercícios hermenêuticos.
Palavras-chave: cosmovisão humanista; hermenêutica jurídica;
humanismo jurídico; pós-humanismo.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. O HUMANISMO JURÍDICO E SUAS PROJEÇÕES;
2. O TRANSHUMANISMO, O PÓS-HUMANISMO E OS HORIZONTES
INTERTEMPORAIS DO HUMANISMO JURÍDICO; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O Direito contemporâneo, tanto em sua natureza própria


quanto em seu contexto de existência social, assim como em sua
expressão positiva e também epistêmica, apresenta-se profundamente
marcado por uma elevada complexidade ontológico-fenomênica, na
medida em que seus sentidos são constantemente desafiados e sua
autoridade reiteradamente questionada.
Pode-se afirmar, assim, que o Direito representa uma
intrincada técnica social que comporta corpos de conhecimentos,
crenças e enunciados de teor semântico em planos antropológicos,
210 Movimentos, Direitos e Instituições

axiológicos, epistêmicos e teleológicos, agrupados, sobretudo, sob o


seu diferencial maior, o da normatividade.
A hermenêutica, neste cenário, permite o tracejamento de
diversos vínculos práticos na manifestação social do Direito: pontua o
intérprete em um contexto que lhe antecede e no qual se insere como
produtor de sentido; localiza o intérprete em um vetor temporal-
espacial histórico, com estabelecimento do momento específico de
enunciação e, sobretudo, de compreensão; permite ao intérprete
verificar relações e transitar reciprocamente nos sentidos entre as
partes e o todo.
Neste contexto, o problema deste artigo se situa no âmbito da
reflexão hermenêutica, recaindo sobre a questão do horizonte
intertemporal aberto pelo tema do humanismo jurídico, sendo, portanto,
o sentido final visado, a relação entre passado-presente-futuro que, na
teoria hermenêutica, se expressa, pode-se afirmar de um modo
reduzido, por meio de vínculos tradição-intérprete-horizonte.
Tal encaminhamento se deve à característica de o
humanismo, como grande aporte filosófico, se tornar mais complexo
com os fenômenos do transhumanismo (melhoramento humano) e
pós-humanismo (tônica da tecnologia avançada), cuja análise não
pode prescindir da referida integração por interfaces (pontos de
contato e harmonização de conhecimentos), sob pena de sacrifício de
saberes essenciais envolvidos na problemática.
Deste modo, o humanismo jurídico tem seus horizontes
abertos pelos horizontes do transhumanismo e do pós-humanismo, o
que impõe, como técnica interpretativa, o manejo intertemporal tanto
da tradição quanto dos horizontes de sentido visíveis do problema.
Na redação do artigo empregou-se a sistemática
metodológica de raciocínio preponderantemente dialético, com
elementos dedutivos dos sentidos teórico-filosóficos envolvidos e
estudo reflexivo do escopo bibliográfico e análise teórica como
técnicas de pesquisa utilizadas.
Por fim, destaque-se o papel subjacente da categoria da
“interface”, veiculada na intenção simultânea de reflexão dos objetos
visados (humanismo, transhumanismo e pós-humanismo abordados
de modo amplo), segundo recomendação metodológica da jurista
paranaense Maria Francisca Carneiro. (2013, p. 31).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 211

1. O HUMANISMO JURÍDICO E SUAS PROJEÇÕES

O humanismo jurídico consiste em um dos temas da


Filosofia do Direito contemporânea e um de seus sentidos pode
representar um corpo de ideias, entendimentos e modos de
compreender a realidade e que inspiram as ordens política e jurídica,
o que assume, positivamente, a forma de proteção e promoção da
dignidade humana e dos direitos subjetivos em geral.
Seu sentido hermenêutico, portanto, é precipuamente o de
um corpo de tradições jurídicas assentadas em uma cultura jurídica
ocidental, cujos elementos se debatem neste ponto, de modo a, no
ponto seguinte, estabelecer o horizonte de sentido aberto pelas
propostas transhumanistas e pós-humanistas, os quais, na proposta
crítica e problemática deste artigo, são encarados em seus potenciais
tanto opressores quanto emancipadores.
O Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, neste contexto, apresentam-se como ramos jurídicos
essenciais para se depreender o sentido do humanismo jurídico atual,
seja por força de uma “categoria constitucional do humanismo”
(BRITTO, 2007), seja pela identificação de fenômenos como a
“humanização do Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
(TRINDADE, 2006).
Um direito de proteção, assim, emerge enquanto
cosmovisão do Direito, o que se apresenta como elemento
hermenêutico fundamental, considerando-se as projeções da pré-
compreensão e do horizonte de sentido no processo de construção e
de compreensão linguagem-realidade.
Tanto assim que, conforme compreende o jurista francês
Alain Supiot (2007, p. 144) o Direito poderia ser compreendido como
técnica de humanização nas técnicas, de modo que a técnica
normativa, dogmática e interpretativa do Direito cumpriria a função de
proteger as pessoas das naturalizações dos procedimentos técnicos,
tornados impessoais e distantes de um senso mais íntimo de
humanidade, cuidado e limitações e necessidades da vulnerabilidade
e da condição humana. Uma figura do ser humano, assim, para o
autor, depreensível da Declaração Universal de 1948 asseguraria um
referencial antropológico-jurídico mínimo de tutela.
Assim contextualizado inicialmente o humanismo, destaca-
se que tal ideário firma pontos de preocupação sem se reduzir ao
212 Movimentos, Direitos e Instituições

antropocentrismo, eis que a ética animal e o cuidado com o meio


ambiente ecologicamente equilibrado também integram a
cosmovisão, como corrobora o amplo espectro de proteção ética e
jurídica estatuída tanto pelos direitos fundamentais quanto pelos
humanos.
O transhumanismo e o pós-humanismo, tomados em sua
generalidade de afirmação do aprimoramento humano, assim como
da ênfase nas altas tecnologias como constituintes do corpo humano
e do corpo social, abrem projeções imensas à hermenêutica jurídica,
o que, neste artigo breve, é abordado pela tônica mais indicativa do
que propriamente de exaustão do tema, até porque suas vicissitudes
são espraiadas e os subtemas complexos.
Ao considerar-se a linha de continuidade humanismo-
transhumanismo-pós-humanismo, destacam-se alguns entendimentos
acerca do humanismo jurídico, conforme compreensão do jurista
brasileiro Antonio Carlos Wolkmer (2005), expoente na pesquisa e
fomento do tema, cuja referência adota-se na construção deste artigo,
indicativa, também, do enfrentamento coerente dos horizontes do
transhumanismo e do pós-humanismo, pois

é deveras relevante, em tempos de globalização e de pós-


modernidade, recuperar e destacar uma reflexão filosófica sobre a
presença de valores fundantes do humanismo na tradição jurídica
ocidental. Trata-se de repensar o significado e a força inspiradora do
humanismo, que, tendo em conta a realidade complexa do homem –
essência e existência –, possibilite por meio de seus valores, como
pluralismo, tolerância, liberdade e igualdade, o despertar de uma
compreensão filosófica das experiências históricas de legalidade,
expressão viva da ‘condição humana, da natureza do homem e de sua
dignidade’. Tal justificativa não tem a intenção de estabelecer uma
proposta geral e definitiva do humanismo jurídico, mas oferecer alguns
elementos que permitam emancipar os atuais conhecimentos e práticas
do Direito positivado contemporâneo, profundamente afetado pelas
diversas crises axiológicas da modernidade, pelos niilismos fetichistas
e desumanizadores da cultura oficializada e pelos formalismos tecno-
normativistas negadores ou indiferentes à justiça concreta, ao
pluralismo democrático e aos direitos fundamentais. Assim, a
aproximação filosófica do humanismo ao Direito permite transcender os
limites históricos das múltiplas formas opressoras e abstratas de
legalidade, reordenando-as crítica e culturalmente para instrumentalizar
o diálogo emancipador entre regras de convivência institucional e as
exigências humanas de dignidade, justiça e liberdade. (2005, p. IX,
grifo do autor).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 213

Veja-se que o aporte de Wolkmer planifica problemas


envolvidos no caso do humanismo jurídico, por um lado, pela
afirmação dos valores democráticos e, por outro, pela crítica de
situações nefastas ao humanismo (crises axiológicas, niilismos
fetichistas e desumanizadores, formalismos tecno-normativistas).
Assim, para Wolkmer, a humanização do Direito é contígua
à reflexão sobre o humanismo jurídico, em uma operação intelectiva
que, a partir dos padrões da condição humana, redimensiona-se em
termos de legitimidade e significado, bem como se amplia em um
constructo teleológico e axiológico, de sorte que o Direito seja
compreendido “[...] como fenômeno essencialmente humano, [que]
existe como materialização instrumental, sob forma de expressão,
meio e fim a serviço do homem”. (2010, p. X).
Vê-se, portanto, que em jogo, inclusive, é posta a própria
natureza filosófica do Direito, o que reverbera diretamente em sua
própria conceituação e, por conseguinte, no modo como os agentes
sociais entendem sua missão e sua prática.
A ênfase da questão do humanismo, assim, caminha de
modo conjunto ao desenvolvimento tecnocientífico de determinada
sociedade, de modo que o pensamento transhumano e pós-humano,
na linhagem das altas tecnologias e da biotecnologia, ainda que a
abordagem, por exemplo, literária, se dê em peso nas distopias,
pode, em alguma medida, significar continuidade, e não apenas
ruptura do pensamento do humanismo.
Humanismo e Direito e, portanto, humanismo jurídico,
transhumanismo e pós-humanismo, possuem fortes liames, que
sustentam a proposta deste artigo e, mais do que isso, permitem
tracejar as hipóteses aqui lançadas.

O diálogo e interação entre o humanismo e o Direito – agora na


configuração do chamado humanismo jurídico – são claramente
estabelecidos pela força hermenêutica do conhecimento filosófico. Na
verdade, trata-se de trazer e privilegiar, aqui, a filosofia do Direito que,
como reflexão crítica e substancial, ocupa-se tanto dos fundamentos
últimos da realidade humana quanto a busca incessante por um Direito
justo. (WOLKMER, 2005, p. XI, grifo do autor).

Elementos de raiz do Direito, assim, são vinculados, em um


grande plano de valores humanos, formação filosófica do justo, do
legítimo e do válido, normas de conduta humana, estruturado em
214 Movimentos, Direitos e Instituições

torno de um projeto do ser humano na sociedade, em interação com


o sistema jurídico que lhe confere significação.
Desta maneira, conforme entendimento de Wolkmer (2005,
p. XI), a filosofia jurídica humanista necessita apegar-se aos
princípios fundamentais do humanismo em sentido amplo, de modo
que se adotam premissas tais como o reconhecimento absoluto da
dignidade humana, a condição moral e o imperativo de respeito por
todo ser humano, a afirmação de valores e horizontes como a justiça,
a liberdade, a prevalência dos direitos humanos e direitos
fundamentais, a promoção do bem-comum, da igualdade e da
segurança individual e coletiva. Tais elementos, assim, formariam o
ideário filosófico do humanismo na cultura jusfilosófica ocidental.
Wolkmer (2005, p. XII) reconhece a expressão do
humanismo, assim, em diversas periodizações do conhecimento
jurídico ocidental, verificando desde a antiguidade clássica, passando
pelo contexto medieval, modernidade e contemporaneidade,
acompanhando o trânsito do referido ideário humanista.
Sem se adentrar nos meandros profundos de cada um dos
períodos e sua complexidade de ideias e autores, é de se destacar
elementos como a educação para a vida pública, a afirmação do
indivíduo e sua dignidade inerente, que não pode ser sobrepujada por
pretensões da coletividade, assim como o entendimento secular e
racional enquanto elementos do humanismo jurídico.
Do histórico de Wolkmer, destaca-se, no interesse mais
imediato do enfrentamento sugestivo do transhumanismo e do pós-
humanismo o contexto dos séculos XIX e XX, que foram
problematizados ante os impactos tecno-industriais e o
desenvolvimento do pensamento científico em seus efeitos sobre
entendimentos humanistas, sobretudo, pelo contraste proporcionado
pela filosofia positivista que, para o Wolkmer, afirmaria “[...]
reducionismos tecnicistas, ambiguidades do relativismo empiristas e
dos estéreis negativismos niilistas” (2005, p. XIV), de modo que:

[...] o próprio oficialismo pensante e impositivo do século, na


representação de correntes como o neopositivismo (e suas derivações)
e o estruturalismo, proclama a morte do homem o fim da história,
ensejando a contra-reação humanista por meio das vertentes da
fenomenologia, do existencialismo, do marxismo, do espiritualismo e do
culturalismo pós-metafísico. (2005, p. XIV).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 215

Assim, reforça o autor o argumento crítico do humanismo


jurídico, o qual se posiciona, ainda segundo o mesmo autor, por meio
das “[...] reações culturais às tendências pragmáticas, analíticas e
desumanizadoras [as quais] são sentidas também no campo do
pensamento jurídico contemporâneo” (WOLKMER, 2005, p. XIV), o
que se afirmaria por meio da reconstrução de noções como o Direito
justo, preocupações com o resgate dos sentidos da justiça, da
liberdade, dos meios de desobediência civil legítima, moralidade
crítica e legitimação política dos direitos.
Assim, da análise mais detida do pensamento de Wolkmer,
pode-se perceber a relevância da cosmovisão humanista para se
pensar o Direito e sua hermenêutica, o que concorre, positivamente,
para o implemento tanto do Direito Constitucional quanto do Direito
Internacional dos Direitos Humanos enquanto fundamentos
hermenêuticos essenciais, o que só se reforça por meio dos novos
desafios impostos tanto pelas propostas transhumanistas quanto
pelas configurações do pós-humano, o que impõe aos juristas e
operadores do Direito novas dimensões e entendimentos dos
fundamentos mais caros do pensamento jurídico, em especial, as
noções de dignidade, de direitos subjetivos, de liberdade e de
igualdade.

2. O TRANSHUMANISMO, O PÓS-HUMANISMO E OS
HORIZONTES INTERTEMPORAIS DO HUMANISMO
JURÍDICO

Tal como visto no ponto precedente, com fundamento na


análise e compreensão de Antonio Carlos Wolkmer, o humanismo
jurídico pode ser visto como fundamentação de ideário filosófico da
cultura jurídica ocidental, donde se pode deduzir, com segurança, que
represente a tradição a qual os intérpretes necessitam se vincular em
seus exercícios hermenêuticos, conforme prescreve a teoria
heideggeriana e gadameriana.
Neste sentido, conforme o problema deste artigo, pode-se
entender que o transhumanismo e o pós-humanismo representem um
horizonte de sentidos e expectativas e a ser fundido nesta tradição,
como modo de se contemporizar e harmonizar eventuais conflitos,
sem sacrificar a tradição nem os novos horizontes, ao mesmo tempo
216 Movimentos, Direitos e Instituições

em que se possa de algum modo, limitar as ameaças de tais novas


propostas.
Os horizontes intertemporais do humanismo jurídico, assim,
podem servir para uma cognição e valoração dos fenômenos do
transhumanismo e do pós-humanismo, em seus potenciais tanto
afirmativos de direitos quanto deletérios, os quais demandam controle
e crítica.
Tal como visto na análise de Wolkmer, a relação entre
tecnologização e humanização é profunda e com elementos de
tensão, desde as baixas até as altas tecnologias – pense-se, por
exemplo, nas relações entre os paradigmas da cultura oral, escrita,
das massas, das mídias e cibernéticas, conforme Santaella (2003),
emergindo as artes do pós-humano como modelo extremado da
relação corpo-máquina-tecnologia avançada.
De um modo amplo, o transhumanismo comporta uma
concepção fundamental de utilização de altas tecnologias para o
aprimoramento humano, tanto no aspecto mental quanto físico,
visando à superação da finitude e mortalidade, assim como do
sofrimento, da dor, da limitação, da incapacidade e dos limites
intensos impostos pela condição humana; a exaltação destas
propostas leva, por exemplo, a “corpos pós-orgânicos” (SIBILIA,
2001), donde emergem as figuras do andróide e do ciborgue, por
exemplo.
O aprimoramento humano, assim, leva a diversos debates,
dentre os quais, o mais problemático, é o da eugenia, conforme
clássico debate sobre o futuro da natureza humana havido, nos anos
1990, entre Sloterdijk, seguido de Habermas e Fukuyama.
De qualquer sorte, a exaltação das técnicas do
transhumanismo concorreria com uma ordem de coisas pós-humana
– veja-se, por exemplo, a estrutura de propostas de um modelo
transhumano em ELLIOT (2003), projeto online, ou os estudos da
designer estadunidense Natasha Vita-More.
É de se destacar o entendimento do filósofo francês Francis
Wolff:

De fato, igualmente proféticos, porém mais tecnocientíficos [do que os


pós-humanistas], os trans-humanistas, em sua maioria americana,
louvam as virtudes conjugadas da engenharia genética, das
nanotecnologias, da robótica e da realidade virtual, e nelas veem a
esperança da superação dos limites vinculados à evolução biológica.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 217

Seus defensores apregoam o anunciado esboroamento da fronteira


homem/máquina, a qual provoca, em compensação, muitas angústias:
pode o homem ser reduzido à máquina, pode ser substituído por
máquinas, pode ser progressivamente mecanizado? E, principalmente,
está a espécie Homo sapiens em via de extinção e deverá (e em que
sentido da palavra ‘dever’?) ser substituída por uma nova espécie, algo
como uma fusão de humanidade natural e tecnologia? Um ‘pós-
humano’ será, com efeito, uma espécie de ‘humano’ cujas funções
vitais, sensoriais, intelectuais não mais serão exercidas por simples e
rudimentares órgãos naturais. (2012, p. 267).

O pós-humanismo, assim, enquanto continuidade ou


contexto maior das práticas transhumanistas, teria ampliado o caráter
da ênfase no elemento biotecnológico, perfazendo um cenário cultural
mais amplo de passagem do humano, nos moldes clássicos e
literários do humanismo de Heidegger, por exemplo, assim como
mesmo do humanismo renascentista de similar tradição (conforme se
pode depreender em FELICE; PIREDD, 2010, p.100, tais
humanismos, renascentista e moderno, são similares se confrontados
com o cenário pós-humano, que se diferencia cabalmente).
Conforme síntese de Francis Wolff acerca do pós-
humanismo na filosofia:

O ‘pós-humano’ assume várias formas: na Filosofia, ele tomou a forma


provocativa e ambígua que lhe deu Peter Sloterdijk em suas Regras
para o parque humano. Tratava-se, sob as aparências de um
comentário crítico, da Carta sobre o humanismo, de Heidegger, que
prolongava a sua linha condutora de mostrar a exaustão do humanismo
literário vindo da Grécia e revivificado no Renascimento, e de levantar
a questão de uma nova forma de ‘produção do homem’, logo de
criação, de domesticação ou de adestramento do homem pelo homem,
‘produzido’ outrora pela educação literária, é agora ‘produzido’ por sua
própria Técnica, na distância que ele mesmo institui em relação ao seu
meio ambiente natural. Mas buscava o filósofo austríaco promover
assim uma espécie de super-homem nietzschiano por meio das
técnicas, ou mesmo fazer a apologia, em termos julgados por Jürgen
Habermas eugenistas e ‘fascistizantes’, desse adestramento
biotecnológico do homem pelo homem? Ou, ao contrário, procurava ele
constatar o seu inevitável advento, ou até denunciar os seus perigos?
Eram esses os termos do que foi chamado, no fim do século XX, o
‘caso Sloterdjik’. Mas as especulações e controvérsias filosóficas foram
logo superadas pelos verdadeiros programas meio ficcionais, meios
científicos dos ‘trans-humanistas’. (2012, p. 267).

O caso enfocado por Wolff, de Heidegger, em “Cartas sobre


o humanismo” quando, em sua discussão, enfocou o papel da
literatura-linguagem na formação e constituição do ser humano – o
218 Movimentos, Direitos e Instituições

que viria a ser contestado e polemizado, em 1999, pelo filósofo


alemão Peter Sloterdijk em “Regras para o parque humano” –, em
que, sob compreensão fortemente vinculada à biopolítica e a
zoopolítica, enfoca a formação do humano por meio da domesticação
e da antropotécnica (BRUSEKE, 2011, p. 163), debate ao qual se
integram os pensamentos de Habermas e de Fukuyama sobre o
futuro da natureza humana ante as biotécnicas. Os problemas e
dilemas éticos advindos do caso são exemplares para se pensar o
problema do humanismo e do pós-humanismo.
Embora a temática seja precípua no campo do pós-
humanismo, e não do humanismo propriamente dito, é importante
indicá-la, em razão de muitos pensadores compreenderem o pós-
humanismo como uma continuidade temática do humanismo,
inclusive obtemperada pelo transhumanismo, e não uma ruptura.
Conforme o filósofo inglês Nick Bostrom, a questão passaria
por identificar os “valores transhumanistas”, tal como o esforço para
superar as limitações da condição humana, o tempo finito de vida, a
capacidade intelectual, as funcionalidades do corpo, as modalidades
sensoriais, as faculdades e sensibilidades especiais, o humor, a
energia e o autocontrole; ao mesmo tempo, propõe o autor a
reformulação de um conceito de dignidade, desta vez também uma
“dignidade pós-humana”. (BOSTROM, 2012, on line).
Como o objetivo deste artigo não é a depuração conceitual,
mas sim a problematização do horizonte que as formas abrem, não
se deterá tanto à individualização dos conceitos, mas sim ao
pensamento a ambos subjacente, qual seja, o da inserção das altas
tecnologias como meios de humanização e os sentidos possíveis
desta prática social em confronto aos preceitos jurídicos,
basicamente, oriundos de uma visão de mundo humanista.
Desta situação, decorrem variados paradoxos e dilemas,
posto que valores sociais e jurídicos são colocados em rota de
conflito, demandando uma pacificação legal ou jurisdicional que, em
algum momento do desdobramento das situações deverá incidir para
prestar algum tipo de estabilização.
Na medida em que as tecnologias prometem libertar os
homens dos trabalhos penosos e da finitude e fragilidade existenciais
(veja-se toda a discussão em torno das implicações da condição
humana em ARENDT, 2010), tem-se o risco de, ao mesmo tempo,
acarretar a extinção da humanidade por meio do mesmo
desenvolvimento tecnocientífico.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 219

Os valores humanistas são, talvez, tão ameaçados quando pretendem


estender-se para além dos limites da humanidade, que quando se
pretendem reservados a uma parte dos homens. O naturalismo
antiessencialista cai no absurdo ao se pretender anti-hierárquico, e a
ideia de igualdade se esvazia de sentido quando não está vinculada a
uma vontade de justiça ou a um ideal jurídico ou político. O
igualitarismo pode até tornar-se uma ideologia particularmente
perniciosa porque, ao contrário do trans-humanismo tecnicista, que tem
a delicadeza de se enfarpelar com os trajes tradicionais do demônio,
ele se insinua em nossos conceitos e em nossas crenças revestido da
obsessão do Bem [...]. (WOLFF, 2012, p. 293).

O horizonte do transhumanismo e do pós-humanismo,


assim, se inserem discussão acerca da formação humana, da
humanização e dos processos sociais de construção destas
categorias (RÜDIGER, 2008, p. 50). Vistos ora sob pensamento de
ruptura, ora de continuidade, é importante pontuar as relações tal
como o faz o filósofo argentino Fabián Ludueña Romandini:

[...] el tan proclamado fin del humanismo y el anuncio de la llegada del


post-humanismo resultan, en el fondo, um gran equívoco. Como hemos
visto, todo el movimiento transhumanista está ampliamente basado en
un principio antrópico hostil a la animalitas constitutiva del viviente que
somos. Los trans-humanistas buscan, en realidad, fabricar por primera
vez un humano libre de su animalidad sustancial, incluso si esto implica
definir lo humano como um simple patrón de información. Desde esta
perspectiva, entonces, el llamado post-humanismo es, en realidad, la
forma más sutil y el último avatar del humanismo y, con toda propiedad,
debería hablarse, más bien, de un movimiento post-animalista. Así, no
existe verdaderamente ningún ‘fin del hombre’ en el post-humanismo,
sino sólo um ‘fin del animal’ y un primordial nacimiento de lo humano.
(LUDUEÑA ROMANDINI, 2010, p. 214, grifos do autor).

O vínculo é afirmado, assim, pelo mesmo filósofo:

[...] todo el proyecto de buena parte de los post-humanistas descansa,


paradójicamente, en presupuestos estrictamente humanistas, dado que
cuando advenga el momento –que continuamente se predice más
cercano- en que las máquinas desarrolen uma conciencia propia,
entonces, ésta será enteramente modelada según el patrón humano
que le dio origen. (2010, p. 222, grifo do autor).

O transhumanismo e o pós-humanismo também


apresentam pontos problemáticos e especialmente sensíveis ao
ponto de vista humanista, no caso, debate-se em específico o
humanismo jurídico veiculado pelos direitos de personalidade, os
direitos fundamentais e os direitos humanos. Conforme descreve o
sociólogo Frederic Vandenberghe:
220 Movimentos, Direitos e Instituições

Invertendo os dogmas clássicos do humanismo, os pós-humanistas


não somente afirmam que são os objetos que fazem os humanos
(como quando nós dizemos que é ‘o hábito que faz o monge’), como
também eles insistem que as tecnologias seguem suas próprias leis
(tecno-lógicas) e têm um espírito próprio, que elas têm conseqüências
não-intencionais e inesperadas, tanto felizes quanto perversas, que
ninguém – nem indivíduo, nem sociedade, nem política – pode
controlar. Como a linguagem em Saussure, a tecnologia forma um
sistema auto-evolutivo autônomo que não pode ser controlado por
aqueles que a usam. Onde os humanistas entram em pânico e vêem
somente um signo de desumanização, alienação e reificação, os pós-
humanistas vêem somente um processo normal ‘humano, inumano,
demasiado humano’ de humanização através da exteriorização,
reificação e alienação. (VANDENBERGHE, 2010, p. 221, grifos
nossos).

Assim, exalta-se o debate Heidegger-Sloterdijk acerca da


humanização dos seres humanos hominizados/animalizados,
chegando-se ao modo de formação do humano a partir de redes
tecnológicas, antropotécnicas e biotecnológicas, revelando-se mais
um dos pontos de tensão:

O pós-humanismo contemporâneo edifica [builds further] sobre a teoria


da humanização através d a exteriorização de órgãos dentro de um
aparelho tecnológico integrado, mas enquanto ele a mantém como uma
descrição acurada do tornar-se outro que humano – ‘tecnogênese
como heterogênese’ –, ele a despoja de suas assunções essencialistas
e implicações normativas. Embora a noção de exteriorização soe
vagamente similar à noção de Entäusserung [externalização] de Hegel
e Marx, a sua reapropriação pós-humanista é altamente seletiva. A
idéia ‘expressivista’ de que poderia haver algo ‘dentro’ dos humanos
que eles exteriorizam em e através de sua práxis, e que esta práxis é
precisamente o que os distingue dos animais, é rejeitada. O interior não
existiu antes de sua exteriorização; o interior emerge ao mesmo tempo
que o exterior e é constituído por ele. Ambos são co-originais e
emergem ao mesmo tempo. A essência do humano é ter nenhuma
essência. Dado que os humanos têm nenhuma essência, eles não
podem expressar seu ‘ser genérico’ (Gattungswesen) em seu trabalho
e, como resultado, eles não podem mais ser alienados dele. Na medida
em que o pós-humanismo aceita a teoria da ‘exteriorização dos órgãos’
enquanto recusa interpretar sua reversão dialética em termos de
desumanização, ele pode ser descrito como uma teoria da alienação
sem alienação – ‘Entfremdung para ser compreendido pelos filósofos’,
como uma vez disse Marx atacando a bela alma dos literatos alemães.
(VANDENBERGHE, 2010, p. 219).
Deste modo, conforme visto neste ponto, o transhumanismo
de passagem e o pós-humanismo de chegada confrontam-se em
pontos nevrálgicos com ideais e propostas do humanismo, ao
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 221

exemplo da formação do homem pela cultura-literatura e a mudança


desta humanização a partir das antropotécnicas, muitas vezes
produtoras de alienação e reificação humanas, ao compasso de se
alinharem com preceitos deste, por exemplo, na questão de redução
de sofrimento humano, ênfase no prolongamento de qualidade de
vida e bem-estar das pessoas.
Os horizontes intertemporais, assim, emergem na relação
entre as formas conceituais, se modo que humanismo,
transhumanismo e pós-humanismo, assim, podem expressar, assim,
dimensões de um mesmo humanismo jurídico, projetado em uma
longa duração, objeto da Filosofia do Direito e campo apropriado para
a formação de pontos de vista aptos a sustentarem debates jurídicos
decisivos aos rumos de todas estas propostas envolvidas.

CONCLUSÃO

A proposta deste artigo, abordando-se uma continuidade


hermenêutica do humanismo com o transhumanismo e o pós-
humanismo, foi a de demonstrar, de modo sucinto, os vínculos e
potenciais entre os problemas envolvidos com tais preocupações
éticas e jurídicas.
Considerando o papel do Direito em um contexto de filosofia
da tecnologia, tem-se a afirmação de uma cosmovisão própria que,
marcada pela normatividade, visa a proteger e promover valores em
torno da tutela humana individual e coletiva.
A técnica jurídica, assim, que é hermenêutica, vincula
trânsitos hermenêuticos tanto intertemporais, por meio da
coordenação da tradição (humanismo jurídico) com o horizonte de
sentido e expectativas (transhumanismo e pós-humanismo), o que se
vincula pelo exercício interpretativo e argumentativo, assim como
raciocínio analítico dos problemas confrontados com uma deontologia
aberta e igualmente hermenêutica, vinculando-se dimensões
antropológicas, epistemológicas e teleológicas, informadas pelo
Direito Constitucional e pelo Internacional dos Direitos Humanos.
O horizonte intertemporal da tradição (passado), do
intérprete (presente) e do horizonte (futuro), fundidos no trabalho
hermenêutico, apresenta-se, assim, como ferramenta de cognição e
compreensão do problema do humanismo jurídico, elastecido pelas
222 Movimentos, Direitos e Instituições

dimensões do transhumanismo e do pós-humanismo, com seus


novos potenciais e desafios à hermenêutica jurídica, que manejará
proibições, permissões e faculdades respectivas ao aprimoramento
humano e suas influências sobre os mais caros princípios jurídicos de
liberdade e igualdade, o que só se poderá solver pelo esforço
filosófico.
O humanismo jurídico filosófico, assim, ao formar a tradição
da cultura jurídica jusfilosófica ocidental, apresenta importantes
projeções na contemporaneidade, fornecendo o substrato para a
continuidade do enfrentamento dos novos problemas emergentes,
incluindo os socioambientais, incluídos no horizonte pós-humano.
Por tais indicativos, verifica-se que o humanismo jurídico
apresenta relevância filosófica à construção do Direito, em especial,
no tocante à produção de soluções jurídicas em conformidade a uma
visão de mundo juridicamente estabelecida.
As profissões jurídicas, por trabalharem diretamente com o
Direito, sua moralidade crítica e normatividade, têm por matéria
básica justamente a progressiva formação desta visão de mundo
conforme o Direito, de sorte que, no âmbito das ciências e de suas
técnicas, o olhar do profissional das carreiras jurídicas é o olhar
problematizador acerca dos complexos limites e exigências da
humanização, o que se intensifica com as propostas do
transhumanismo e pós-humanismo.
A mundividência humanista, pelo núcleo no ser humano,
sem se reduzir meramente a antropocentrista, ressalte-se (o qual
seria limitada, até porque desconsideraria os preceitos de direito
ambiental), se qualifica pela exigência axiológica, consolidada pelas
formas e atos jurídicos, e que induz a um olhar sensível à
complexidade da condição humana, ante a qual constantemente se
deve decidir e agir.
A visão de mundo humanista, assim, no contexto jurídico,
apresenta-se imprescindível ao raciocínio jurídico, compreendida nas
esteiras de uma tutela humana total e incondicional obtida por meio
do implemento das categorias de direitos da personalidade, direitos
fundamentais e direitos humanos, dos quais todos são titulares, assim
como dos microssistemas protetivos e de princípios sempre presentes
como o da dignidade da pessoa humana e da regra de interpretação
pro homine, todos inspirados pela pretensão de atingimento de um
bem-estar social e individual e assentados nos princípios republicano
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 223

e democrático, bem como instrumentalizados que devem ser via


diversos atos e processos públicos e privados.
O fundamental para se tratar de humanismo, é,
necessariamente, a plena e absoluta vedação a alguns elementos
completamente rechaçados de antemão por qualquer proposta
humanista, verdadeiro filtro interditório pelo qual não se admitem
certas práticas, que gravitam em torno dos seguintes componentes:
discriminações de qualquer tipo, racismos e sexismos, cultura do ódio
e da intolerância, violência em seus mais variados graus, sadismo,
tortura, tratamentos cruéis, degradantes e ultrajantes da dignidade,
negação da vida, arbitrariedade de qualquer poder, dominação,
opressão, abandono, miséria, pobreza, fome, terrorismo; tais
qualificativos são completamente combatidos por qualquer apreço
humanista da realidade.
Portanto, o problema do humanismo jurídico, pensado nos
horizontes de um transhumanismo e pós-humanismo apresenta-se
justamente nos limites da interdição e da promoção de condutas,
valores e resultados, sob uma racionalidade hermenêutica, posto que
considere os horizontes de sentido, a tradição e os círculos
hermenêuticos como pressupostos de interpretação dos textos e da
realidade.
Ao mesmo tempo em que as biotécnicas podem representar
o aperfeiçoamento e a extensão da qualidade de vida, pode
determinar controle de massas e ruptura plena de qualquer
possibilidade de isonomia social.
Assim, neste contexto de possibilidades ambíguas,
produção de paradoxos, de dilemas e das demais dificuldades e
inflexões jurídicas trazidas pelas técnicas, biotécnicas e
antropotécnicas, resta aos trânsitos intertemporais, então somente
feitos pelos intérpretes (falantes), a verificação, contemporização e
harmonização axiológicos, a partir do referencial da tradição do
humanismo jurídico, grande “fala do Direito” a qual, nos termos do
conselho dado pelo poeta em epígrafe, deve-se dar o aval.
224 Movimentos, Direitos e Instituições

REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 10

O MOVIMENTO SOCIAL DO PRECARIADO,


CARÊNCIA DE FUTURIDADE E NECROSE DO
CAPITALISMO DE BEM-ESTAR SOCIAL EM
PORTUGAL

117
Giovanni Alves
118
Dora Fonseca

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar num primeiro momento,
dimensões da nova precariedade salarial em Portugal, discutindo o
fenômeno do “precariado” como camada social da classe do
proletariado que cresce nas condições históricas do capitalismo
global. Depois, tratar-se-á a percepção de carência de futuridade do
precariado como expressão da temporalidade decapitada do capital.
Finalmente, descrever-se-ão os movimentos sociais do precariado
que se destacam em Portugal.
Palavras-chave: capitalismo; movimentos sociais; precariado;
trabalho.

117
Giovanni Alves é Professor Livre-docente de Sociologia da UNESP, pesquisador do
CNPq e autor de vários livros na área de trabalho e sindicalismo, dentre os quais
“Trabalho e Subjetividade” (Boitempo Editorial, 2011), “Dimensões da Precarização
do Trabalho” (Práxis, 2013) e “Trabalho e Neodesenvolvimentismo” (Praxis, 2014).
E-mail: <giovanni.alves@uol.com.br>.
118
Doutoranda em Sociologia na Faculdade de Economia e no Centro de Estudos
Sociais na Universidade de Coimbra (FEUC/CES), Portugal.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 227

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. A NOVA PRECARIEDADE SALARIAL EM
PORTUGAL, 2. PRECARIADO, CARÊNCIA DE FUTURIDADE E
TEMPORALIDADE DECAPITADA DO CAPITAL; 3. O PRECARIADO
EM PORTUGAL, 4. MOVIMENTOS SOCIAIS DO PRECARIADO
QUE SE DESTACAM EM PORTUGAL HOJE; 4.1. FARTOS D’ESTES
RECIBOS VERDES (FERVE); 4.2. PRECÁRIAS INFLEXÍVEIS (PI);
4.3. PLATAFORMA DOS INTERMITENTES DO ESPETÁCULO E DO
AUDIOVISUAL (PIEA); 4.4. MAYDAY; 4.5. O MAYDAY EM
PORTUGAL; 4.6. QUE SE LIXE A TROIKA; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Com a introdução da moeda única (o Euro) em 2000,


acelerou-se a derrocada do modelo social europeu, principalmente
nos Países da Europa mediterrânea com economias frágeis no
cenário de competitividade interna da União Europeia, como é o caso
de Portugal. A crise financeira de 2008 e o desdobramento da crise
das dívidas soberanas em 2011 cumpriu a função histórica de realizar
por meio da austeridade neoliberal imposta pela troika (FMI, BCE e
Comissão Europeia), a necessária equalização descendente das
taxas de exploração diferencial no plano do mercado mundial,
preservando, deste modo, o projeto da União Europeia como
construção hegemônica da grande burguesia financeira franco-alemã.
(DUMÉNIL; LÉVY, 2011; HARVEY, 2011).
Na década de 2000 cresceu na União Europeia, com
destaque para Portugal, um dos elos mais fraco do “núcleo orgânico”
do capitalismo europeu, o contingente de desempregados e
trabalhadores assalariados precários (em Portugal, o desemprego
atingiu em Fevereiro de 2012, os 15.4%, subindo para 17.8% em
Fevereiro de 2013, o que o coloca entre os quatro Países da zona euro
em que se registaram as taxas mais elevadas de desemprego – os
outros três são a Grécia, Chipre e Espanha). (EUROSTAT, 2015, on
line). Ao mesmo tempo, o arrocho salarial e o corte de regalias sociais
atingiu amplos contingentes da “classe média” assalariada vinculada a
função pública sob ameaça da programática neoliberal. (ESTANQUE,
2011). Portugal segue as tendências expressivas que vêm a ganhar
corpo na maior parte dos Países membros da União Europeia.
228 Movimentos, Direitos e Instituições

Segundo dados do Eurostat, estima-se que, em Abril de 2013, 26.588


milhões de pessoas na Europa dos 27 estavam desempregadas, das
quais 19.375 milhões pertenciam à zona euro. Comparativamente, em
Março do mesmo ano, o número de pessoas desempregadas
aumentou em 104.000 na Europa dos 27 e em 95.00 na zona Euro.
Analisando os dados de Abril de 2012 é possível observar uma
tendência expressiva e preocupante: o desemprego aumentou em 1
673 000 na Europa dos 27 e em 1 644 000 na zona euro.
O aumento do desemprego jovem (pessoas com menos de
25 anos) é outra tendência preocupante. Em Abril de 2013, 5.627 de
pessoas estavam desempregadas na Europa dos 27, das quais 3.624
na zona euro. Comparativamente a Abril de 2012, o desemprego
jovem aumentou em 100 000 na Europa dos 27 e em 188 000 na
zona euro. As taxas de desemprego jovem registadas, em Abril de
2013, para a Europa dos 27 e para a zona euro são, respetivamente,
23.5% e 24.4%. Mais uma vez, Portugal encontra-se entre os quatro
Países em que foram registadas as taxas mais elevadas, com 42.5%
(os restantes Países são a Grécia com 62.5% em Fevereiro de 2013,
a Espanha com 56.4% e a Itália com 40.5%). Note-se que, em
Portugal, a taxa de desemprego jovem registada em 2012 era 37.7%.
A crise social europeia na década de 2000, sob a vigência da
precarização estrutural do trabalho, ampliou o precariado, camada
social da “classe” do proletariado tardio, espectro da nova pobreza
social que expõe homens e mulheres à condição de proletariedade
extrema. (ALVES, 2009; 2013). O precariado representa hoje o
fenomeno universal da massa “destituída de propriedade” nas
condições do capitalismo do século XXI com alto grau desenvolvimento
das forças produtivas. (MARX; ENGELS, 2007).
O objetivo neste ensaio é apresentar a nova precariedade
salarial em Portugal, expondo o País ao precariado como sua
expressão de classe; depois, explicar a percepção de carência de
futuridade do precariado como sendo manifestação radical da
“temporalidade decapitada” do capital; e finalmente, tratar do
movimento social do precariado hoje em Portugal.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 229

1. A NOVA PRECARIEDADE SALARIAL EM


PORTUGAL

A tendência de precarização estrutural do trabalho


manifestou-se de forma intensa e extensa em Portugal na década de
2000. Ela constituiu a nova precariedade salarial caracterizada pelo
falso trabalho independente (os falsos recibos verdes), os contratos a
prazo e o trabalho temporário. Em 2010, Portugal era o terceiro País
da União Europeia com maior índice de precariedade laboral. Cerca
de 23,2% dos trabalhadores assalariados tinham contrato a termo ou
outro tipo de vinculo precário. Portugal encontrava-se atrás apenas
da Espanha e da Polónia (com valores superiores a 25%), mas
bastante acima da média europeia (14,4%). A maior parte dos
vínculos laborais precários – 54,6% - atingiam trabalhadores
assalariados entre os 15 e os 24 anos. (MATOS; DOMINGOS;
KUMAR, 2011).
Deve-se observar que, de 2000 a 2009, caiu em Portugal o
número de trabalhadores do setor privado com idade entre os 15-24
anos, diminuindo progressivamente de 435,367 mil em 2000 para
281,538 mil em 2009. Esta tendência traduziu-se na diminuição do
peso relativo da população desta faixa etária no total da população
trabalhadora: de 16,5% em 2000 para 9,0% em 2009 (por outro lado,
no grupo etário dos 25-34 anos, o número de trabalhadores
aumentou de 830,205 mil para 939,883 mil, mas o peso relativo deste
grupo de trabalhadores passou de 31,4% no primeiro período
considerado para 30,1% em 2009).
Ao mesmo tempo, verificou-se, nesse período, o aumento
de 18% do número de jovens com formação escolar superior (de
16.056 mil para 18.954 mil). A tendência de qualificação da
população jovem é constatável pelo crescimento do peso relativo dos
trabalhadores com ensino superior face ao total da população
trabalhadora de uma determinada faixa etária: em 2000 esse peso
era de 3,9% e 14,0% na faixa etária dos 15-24 e 25-34 anos,
respectivamente; em 2009 esses valores aumentam para 7,3% e
31,0%. Entretanto, a tendência de aumento da qualificação do
trabalhador jovem na década de 2000 ocorreu ao lado do aumento
significativo da precariedade laboral na faixa etária dos 15-24 anos:
os trabalhadores com idade entre os 15-24 anos que tinham, em
2000, contratos a termo representavam 36,8% do total dos
trabalhadores desse grupo etário; em 2009, esse valor aumentou
230 Movimentos, Direitos e Instituições

para os 50,7%. No caso dos trabalhadores com 25-34 anos, esse


aumento foi de mais de 13 pontos percentuais (dos 20,2% para os
33,6%). Esta tendência de precarização dos vínculos laborais pode
também ser lida tendo em conta a evolução do peso relativo dos
contratos sem termo (na faixa etária dos 15-24 passou de 53,4%
119
para 40,8%; no outro grupo etário, dos 70,7% para os 61,9%) .
Deste modo, a camada social do precariado tendeu a ser
constituída por aqueles jovens-adultos altamente escolarizados que
se encontram desempregados ou inseridos em contratos de trabalho
precário. Eles são os “precários” originários da “geração à rasca” que
se contrasta, por exemplo, com a geração mais velha, considerada
“privilegiada” por inserir-se em relações de emprego estável e com
direitos. (PINTO, 2011).

2. PRECARIADO, CARÊNCIA DE FUTURIDADE E


TEMPORALIDADE DECAPITADA DO CAPITAL

Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo, a


não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências pós-
capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o
que diz o livro dos “Genesis” do capital. Esta é a perspectiva
epistemológica (e moral) da economia política tão criticada por Marx.
Na verdade, a presentificação histórica do capitalismo é a versão
clássica (e elegante) da presentificação crônica que entorpece hoje o
precariado sob o capitalismo manipulatório. Como observou o filósofo
Henri Bergson no começo do século XX, “nós praticamente só
percebemos o passado”, com o “presente puro sendo o avanço
invisível do passado consumindo o futuro” (1999, p. 111). O que
significa que o “presente puro” não existe; ele é apenas “o passado
consumindo o futuro”. O que Bergson descreve, sem o saber, é a
ontologia da temporalidade do capital, onde o passado, com sua
inércia amortecedora, domina o presente, eliminando as chances de
uma ordem futura qualitativamente diferente. Para István Mészáros, a
temporalidade do capital é uma “temporalidade decapitada”, isto é,
temporalidade restauradora, “a paralisante temporalidade
restauradora do capital”, tendente a construir um “futuro” como uma
espécie de versão do status quo ante. Deste modo, a temporalidade

119
Dados disponibilizados pelo Observatório das Desigualdades (http://observatorio-
das-desigualdades.cies.iscte.pt).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 231

do capital que hoje se afirma não é uma temporalidade aberta, mas


sim uma temporalidade fechada que não liga o presente a um futuro
de verdade que já se abre à frente. (MÉSZÁROS, 2002, p. 291).
No caso dos “precários”, eles têm a percepção clara da
temporalidade fechada do capital, percepção estranhada de perda do
futuro que os projeta, no plano da contingência, na “presentificação
crônica” do metabolismo social do capital. Ideologicamente, no plano
da sua consciência contingente, incorporam a ideia de presentificação
histórica do capitalismo posta pela consciência liberal. A consciência
liberal só traduz, no plano ideológico, o modo de ser da “paralisante
temporalidade restauradora do capital”.
Nas condições do poder da ideologia e da constituição da
“multidão” do precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a
necessidade radical da luta ideológica que, no mundo social do
trabalho precário, torna-se mais candente, tendo em vista a
exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital
como sociometabolismo estranhado. A “carência de futuridade”
expressa por muitos jovens-adultos “precários” no documentário
“Precários Inflexíveis” (ALVES, 2012, on line), expressa, com vigor,
um elemento de desefetivação do ser genérico do homem, ou seja,
uma das principais características do fenômeno do estranhamento120,
segundo Georg Lukács (2014, p. 577-831). Um jovem trabalhador
precário português de 26 anos observou:

O problema para mim essencial é não conseguir planejar meu futuro.


Não consigo ter noção daqui a três meses que é que eu vou estar a
fazer; daqui a três meses que dinheiro que eu vou ter no banco; quais
são minhas perspectivas de emprego; se posso ou não ter filhos; se
posso ou não morar com alguém. Acho que este é o principal problema
da precariedade, além dos vínculos laborais precários, dos baixos
salários etc; com eles vem sempre esse futuro que nos estão a tirar e
além de todos outros direitos laborais. [...]. E conclui: ser precário é
acordar de manhã e não saber se o dia que nos espera vai ser ainda
pior que o anterior. (ALVES, 2012, on line).

Este depoimento do jovem trabalhador precário português é


um depoimento paradigmático da condição de proletariedade do
precariado em Portugal hoje. Ele expressa o que é comum aos
demais depoimentos de trabalhadores precários exibidos no decorrer

120
O vídeo “Precários Inflexíveis”, de Giovanni Alves (ALVES, 2012, on line) encontra-
se disponível para visualização no canal de vídeos CineTrabalho (www.vimeo.com/
canalcinetrabalho) ou em <https://vimeo.com/42102847>.
232 Movimentos, Direitos e Instituições

do documentário: a ansiedade perante o futuro. Não se trata apenas


de um problema social (vínculos laborais precários, baixos salários,
falta de direitos laborais), mas sim, trata-se de um problema
existencial que corrói a individualidade pessoal de classe. A
precariedade interdita a vida pessoal do sujeito de classe (“se posso
ou não ter filhos” ou “se posso ou não morar com alguém”). É a
alienação/estranhamento na sua dimensão radical.
Para a camada social do precariado, trabalhadores jovens-
adultos altamente escolarizados que não conseguem se inserir na
cidadania salarial construída pelo Estado de bem-estar social, o
principal problema da precariedade é “esse futuro que nos estão a
tirar”. Esta percepção de futuro hipotecado é um traço recorrente no
discurso de indignação de jovens-adultos que construíram sua
individualidade pessoal de classe baseada na perspectiva da carreira
e perspectiva de consumo. Educação, emprego/carreira e
consumo foi a implicação subjetiva da juventude construída pelo
capitalismo europeu de bem-estar social e reproduzida nas últimas
décadas pelo discurso social-democrata.
Na verdade, o capitalismo manipulatório que se constituiu
nos “trinta anos perversos” se baseou na seguinte implicação
paradoxal: por um lado, o discurso de compatilização entre
capitalismo liberal, democracia representativa e Estado de bem-estar
social. Construiu-se, a partir daí, a utopia educacional da juventude,
baseada na idéia do capital humano, onde a alta escolaridade torna-
se o suposto lastro do emprego-padrão por tempo indeterminado, da
perspectiva de carreira profissional e do ethos do consumismo. É o
ideal da “boa vida” no interior da ordem burguesa, onde se renuncia à
utopia da emancipação social pela utopia dos pequenos sonhos
individuais de carreira e consumo. A cultura neoliberal disseminou
nos “trinta anos perversos” do capitalismo global, os valores-fetiche
do individualismo possessivo. Esta perspectiva ideológica do
capitalismo mais desenvolvido envolveu, em sua larga maioria, a
“classe média” assalariada, lastro político dos partidos socialistas e
social-democratas.
Por outro lado, ao lado do discurso ideológico social-
democrata, a partir da década de 1980, ocorreu, sob pressão da
acumulação capitalista predominantemente financeirizada, a corrosão
persistente do Estado-Providência. Desde a década de 1980, no
núcleo orgânico do capitalismo global (EUA e União Europeia),
governos conservadores e neoliberais (e inclusive, governos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 233

socialistas e social-democratas), passaram a adotar políticas de cariz


neoliberal que contribuíram para a corrosão do Estado social.
De modo lento e persistente, ampliou-se a mancha da
precariedade laboral sob a vigência da flexibilidade laboral. Instaurou-
se a era da precarização estrutural do trabalho, com a
disseminação de várias modalidades de trabalho precário ao lado do
desemprego de massa que atinge principalmente a juventude
trabalhadora europeia. Nos “trinta anos perversos” de crises
financeiras persistentes do capitalismo global, aprofundou-se entre a
geração nascida na década de 1980, e que na década de 2000
buscou realizar seu sonho de cidadania salarial, a frustração com as
promessas sociais-democratas. Entretanto, a implicação paradoxal do
capitalismo social-democrata agudizou-se na mesma medida em que
aumentou a capacidade de manipulação ideológica e ilusionismo
político da ordem burguesa hipertardia. Na era de precarização
estrutural do trabalho, as jovens gerações de proletários de “classe
média” que constituem o precariado, vivem sob o fogo cruzado do
capitalismo manipulatório.
No plano da consciência de classe contingente, expõe-se a
carência de futuridade. Torna-se cada vez mais claro, na percepção
da consciência de classe contingente, que o capitalismo global
hipotecou o futuro de jovens-adultos que cumpriram tudo aquilo que a
ordem burguesa receitou para obterem o sucesso, mas não
encontraram um “lugar ao sol”, com a incapacidade do próprio sistema
incluí-los como força de trabalho produtiva. Por exemplo, num dos
depoimentos contidos no documentário “Precários Inflexíveis”, um
jovem de 28 anos reconhece que é “explorado por um sistema pelo
qual eu posso contribuir muito mais do que ele me permite contribuir”.
Eis a confissão da frustração irremediável do jovem precário: o sistema
do capital não lhe permite contribuir na medida em que ele é capaz de
contribuir. É a inversão radical estranhada do ideal da sociedade
socialista cujo lema, de acordo com Karl Marx no “Programa de Gotha”,
seria “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo
suas necessidades.” Na verdade, a carência de futuridade do
precariado é a projeção, no plano da consciência de classe
contingente, da carência radical do comunismo posto hoje, mais do que
nunca, como necessidade histórica civilizacional.
No livro “Para além do capital”, István Meszáros, um dos
críticos radicais da perspectiva ideologia social-democrata, observou
o seguinte:
234 Movimentos, Direitos e Instituições

A inalterável temporalidade histórica do capital é a posteriori e


retrospectiva. Não pode haver futuro num sentido significativo da
expressão, pois o único “futuro” admissível já chegou, na forma dos
parâmetros existentes da ordem estabelecida bem antes de ser
levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito’. (2002, p. 291).

Portanto, sob as condições da crise estrutural do capital,


explicita-se com vigor, um dos traços candentes da ordem burguesa,
particularidade radical do nosso tempo histórico, que se distingue de
outras épocas do capitalismo histórico: a interdição persistente da
futuridade. Quando o sistema do capital não consegue “incluir” em
seus parâmetros socio-reprodutivos, trabalhadores jovens-adultos
altamente escolarizados de acordo com as prescrições e proscrições
da ordem burguesa, “há algo de podre no reino da Dinamarca”. O
espectro do precariado, como o espectro de Hamlet, é expressão do
apodrecimento da ordem burguesa. (ALVES, 2013).

3. O PRECARIADO EM PORTUGAL

Na década de 2000 surgiu em Portugal um conjunto de


organizações sociais do precariado. Podemos destacar entre elas, o
FERVE (Fartos d’Estes Recibos Verdes) e os “Precários Inflexíveis”
(PI). Elas nasceram ao lado dos sindicatos e das centrais sindicais
tradicionais (CGTP e UGT), que representam outras camadas da
classe social do proletariado: os trabalhadores assalariados estáveis,
a maior parte deles trabalhadores públicos. Os trabalhadores
precários ou a camada social do precariado expõem a necrose do
capitalismo do Estado de bem-estar social. No plano ideológico, os
precários reivindicam, no plano da consciência contingente, a
afirmação dos ideais da democracia vinculados às promessas da
civilização fordista-keynesiana.
Os movimentos de trabalhadores precários reclamam, de
uma forma geral, o reconhecimento da centralidade do problema da
precariedade na sociedade contemporânea e procuram impulsionar a
adoção de medidas concretas no âmbito do seu combate. Ao darem
visibilidade ao fenómeno da precariedade laboral suscitaram um
debate e reflexão amplos acerca do carácter central do trabalho nas
experiências individuais e coletivas, e desencobriram a dupla
dimensão que este comporta - a precariedade não se reporta apenas
à questão laboral, é também precariedade da vida -, reforçando ainda
mais a ideia de que se está perante um fenómeno complexo e
extremamente heterogéneo. A luta contra a precariedade não se
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 235

restringe à luta pelo trabalho digno, é também uma luta pelo direito à
vida, ou melhor dizendo, pelo direito a uma vida com qualidade e
dignidade. Portugal não constitui uma exceção a esta tendência e
durante a última década têm vindo a proliferar, em território nacional,
movimentos deste tipo.
A precariedade exprime-se em trajetórias individuais
extremamente diversificadas, evidenciando uma franca expansão que
atinge aleatoriamente os indivíduos e que, simultaneamente, degrada
as condições de vida e limita a capacidade de estes se projetarem no
futuro. A precariedade vem desestabilizar as expectativas de
mobilidade ascendente construídas por uma juventude que assimilou
os padrões de vida dos seus pais e construiu expectativas que, no
entanto, veem defraudadas. As trajetórias de vida precárias assumem
cada vez mais um carácter permanente ao contrário da esperada
transitoriedade que lhes era atribuída enquanto fase de entrada no
mercado de trabalho. Cada vez mais as experiências de precariedade
são encaradas com naturalidade, como se fossem uma fase pela qual
todos têm de passar, e a sua continuidade temporal é um facto
consumado.
Esta realidade encontra grande expressão em Portugal,
onde milhares de jovens - incluindo aqueles que têm um curso
superior - entram no mercado de trabalho em piores condições, tanto
remuneratórias como de segurança no emprego, que a geração
anterior. Os jovens não são os únicos a serem afetados. A
precariedade laboral atinge também aqueles que se situam na faixa
etária dos 35 aos 55 anos e têm menos qualificações, ou que em
dado momento foram afastados do seu emprego de longa data,
sendo menores as probabilidades de encontrarem um emprego
satisfatório. O clima de insatisfação e de contestação gerado por esta
situação cresce de dia para dia e penetra outros estratos da
população, levando ao questionamento da inevitabilidade das
mudanças e à emergência de grupos que se propõem a refrear a
propagação das ideologias neoliberais e a apontar caminhos
alternativos.
O aparecimento dos movimentos de trabalhadores precários
espelha o descontentamento face à rápida degradação das condições
de trabalho imposta pela precariedade laboral e à forma como esta
última se repercute nas experiências e projetos de vida dos indivíduos
e os destitui da sua capacidade controlo; e a descrença perante as
formas de ação tradicionais que demonstram não se adequar aos
236 Movimentos, Direitos e Instituições

novos desafios que se colocam. À medida que a classe trabalhadora


se vai tornando cada vez mais heterogénea é evidente a necessidade
de inovar as formas de luta e de dar novos contornos à ação coletiva.
Estes movimentos procuram articular com outros campos da
sociedade civil e com o poder político. Procuram superar a
individualização crescente das relações de trabalho e, em particular,
o isolamento a que se encontram votados os trabalhadores precários.
No processo de mobilização têm sido fundamentais a
presença de fatores culturais e o apelo a identificações estruturadas
contra a globalização neoliberal e os seus efeitos desreguladores. A
mobilização dos indivíduos está dependente da sua identificação com
os objetivos e formas de ação que diferem das práticas sindicais de
pendor tradicional que, no seu geral, são dirigidas a trabalhadores
abrangidos por um vínculo contratual estável e visam, sobretudo, a
negociação em torno de questões salariais e da melhoria das
condições de trabalho. Estes movimentos visam, portanto, a
preencher o vazio existente no que toca à organização dos
trabalhadores precários. Em termos gerais, veiculam uma crítica à
ação das instituições como os sindicatos, acusando-os de serem
complacentes face à progressiva retirada de direitos anteriormente
conquistados.
Os canais de comunicação que utilizam - contacto
telefónico, sms’s, e-mails, flyers – são meios bastante informais e
flexíveis, e conferem aos seus membros uma maior autonomia,
criatividade e espírito de iniciativa. O domínio que apresentam das
novas tecnologias de informação possibilita a experimentação de
novas formas de mobilização que permitem aceder, acumular e
divulgar informação quase que instantaneamente, chegar a um
número cada vez maior de pessoas, e estender as redes de
mobilização para além dos espaços nacionais.
O cyberactivismo é uma característica central do
funcionamento destes movimentos e é essencial ao sucesso das
ações que empreendem. Estes meios têm sido fundamentais para a
constituição das redes de solidariedade através das quais estes
movimentos operam e se difundem, e lançam as bases para um novo
tipo de militância e de ativismo mais adaptados às exigências
contextuais. O cyberactivismo permite ultrapassar barreiras de
tempo e de espaço, abrindo as portas para uma modalidade de
participação que não seja exclusivamente presencial e,
consequentemente a sua expansão territorial.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 237

Da observação do panorama internacional ressalta a


presença de inúmeros movimentos e organizações de carácter similar
que atuam em rede, o que lhes permite estar em sintonia em termos
temporais, de objetivos e de ações, e assim amplificarem a
ressonância da mobilização levada a cabo. A interação é
estabelecida a nível internacional e, por isso, tem um grande valor
estratégico, conferindo-lhes maior impacto e visibilidade. A
construção de uma rede de solidariedade transnacional por estes
movimentos assume um carácter consistente, de que é exemplo a
atividade da rede EuroMayDay que consegue articular a ação de
inúmeros movimentos em dezenas de cidades europeias com o
intuito de levar a cabo um dia internacional de combate à
precariedade.
As razões para a militância nestes movimentos aproximam-
se bastante da solidariedade com quem é afetado pela realidade da
precariedade e da crença de que o envolvimento contribuirá, de
alguma forma, para o combate efetivo da precariedade e da injustiça
laboral. A motivação é fornecida pelo sentimento de envolvimento em
algo que transcende os interesses particulares, em nome do bem
comum e de um projeto alternativo de sociedade. Os estímulos à
participação são a própria participação, a experiência de militância, o
sentimento de estar a contribuir ativamente para uma causa.
A militância acarreta um grande investimento pessoal em
termos de tempo dedicado e de recursos próprios disponibilizados,
uma vez que estes movimentos não contam com apoios institucionais
de carácter logístico ou monetário. O modo de funcionamento destes
movimentos remete para a referência a um reatar de velhas
solidariedades com novos elementos à mistura. Os movimentos de
trabalhadores precários, através da mobilização que produzem, têm
conseguido construir em torno da precariedade novas identidades
coletivas e militantes.
A emergência destes movimentos em Portugal pode ser
situada em 2006, com a constituição da ABIC (Associação dos
Bolseiros de Investigação Científica) e nos anos subsequentes a
tendência de auto-organização de trabalhadores para os efeitos de
protesto e de reivindicação generaliza-se.
238 Movimentos, Direitos e Instituições

4. MOVIMENTOS SOCIAIS DO PRECARIADO QUE SE


DESTACAM EM PORTUGAL HOJE

4.1 Fartos d’Estes Recibos Verdes (Ferve)

O FERVE foi fundado a 5 de Março de 2007 por Cristina


Andrade e André Soares. Surgiu no Porto, mas a sua ação nunca se
circunscreveu apenas a esta cidade. Define-se como um grupo de
trabalho que tem como objetivo a ação em duas vertentes. A primeira
é a contribuição para a criação de um espaço de partilha e de
denúncia de situações de trabalho que configurem a utilização
indevida de recibos verdes e dessa forma acabar com o isolamento a
que estes trabalhadores se encontram votados; a segunda encontra-
se voltada para a construção de um debate social alargado acerca
desta vertente do trabalho precário de forma a retirá-la da
invisibilidade, inserindo-a no discurso social, político e mediático. Em
traços gerais, este movimento pretende chamar à atenção para e
combater o carácter permanente dos “falsos recibos verdes” que,
originalmente, eram vocacionados para a prestação de serviços
(portanto, ocasionais ou de duração limitada) e dirigidos a
trabalhadores autónomos (que não obedecem a hierarquias,
estabelecem o próprio horário e possuem local de trabalho próprio) e,
em particular, aos profissionais liberais. Consciencializar os
trabalhadores de que se encontram submetidos a uma situação
irregular e estão a ser alvo de “chantagem” com base na grave
situação económica do País é um dos principais objetivos que está na
base das ações empreendidas por este movimento. Pretende unir os
atingidos e outras entidades interessadas numa “plataforma de luta
alargada e unida na defesa dos direitos laborais” contra a passividade
e conivência do Estado com esta situação e a impunidade daqueles
que subvertem as regras do sistema.
Neste momento, em virtude de alterações substanciais no
que concerne ao enquadramento legal e à regulamentação das
relações laborais, o Ferve tem vindo a alargar o seu âmbito,
preocupando-se cada vez mais com questões que ultrapassam o
estrito âmbito do falso trabalho independente e que se prendem com
a acelerada precarização das relações laborais.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 239

4.2 Precárias Inflexíveis (PI)

Os Precários Inflexíveis (PI) surgiram na sequência da


primeira experiência MayDay em Lisboa, em 2007. A sua constituição
serve o objetivo de dar continuidade ao trabalho realizado no âmbito
do MayDay 2007, e como forma de dar resposta ao vazio existente no
que diz respeito a grupos que se propusessem a suscitar a discussão
em torno da precariedade e a empreender ações direcionadas para o
seu combate. Propõem-se a “trilhar” o mesmo caminho que o Ferve
(que os precedeu em escassos meses), optando, no entanto por um
enfoque mais alargado e voltado para as múltiplas faces da
precariedade. Inicialmente atuam preferencialmente na região de
Lisboa, mas atualmente, e dado que se encontram em processo de
formalização da sua constituição como associação, a sua ação e
influência abrangem todo o País.
O blogue do PI (http://www.precariosinflexiveis.org/) foi a
primeira interface do movimento e desempenha um papel central na
dinamização de todas as suas ações. Ficou online em 18 de Julho de
2007 e no primeiro post – o Manifesto Precário121 – definem-se como
“precários no emprego e na vida”, denunciam a presença da
precariedade em todos os sectores – desde o privado à
administração pública -, e a invisibilidade a que se encontram
votados. De acordo com o texto, pretendem “reinventar a luta”, o que
significa que na génese da sua formação está o facto de as formas
tradicionais (referindo-se às estratégias sindicais) carecerem de
adequação ao contexto atual. As palavras de ordem são apelativas -
“Precários sim, mas inflexíveis” – e reveladoras da sua determinação
para combaterem a situação. Estes elementos seguem as tendências
das experiências de auto-organização de trabalhadores que é
possível identificar a nível europeu. A motivação para estas
experiências advém do sentimento de marginalização decorrente das
políticas governamentais que, em nome da modernização e enquanto
medidas para fazer face à grave crise económica, conduzem a uma
crescente precarização do trabalho.
À semelhança do que acontece com o Ferve, as ações
iniciais do PI centram-se quase exclusivamente na divulgação e
denúncia de situações de clara injustiça social e de ilegalidade que

121
É um manifesto de apelo à ação, de forma a quebrar o silêncio sobre a questão e
para que sejam tomadas medidas concretas. É dirigido a todos aqueles que de
alguma forma veem a sua vida ser afetada pela precariedade laboral.
240 Movimentos, Direitos e Instituições

atingem inúmeros trabalhadores. O objetivo é, também, a construção


da identidade de trabalhador precário e a tomada de consciência
destes trabalhadores. O cyberactivismo é uma das faces mais visíveis
tanto dos PI como dos Ferve, e o funcionamento e dinâmica de
ambos apoia-se de forma substancial no blogue. No entanto, a
“dependência” em relação às novas tecnologias de informação é
maior no caso dos segundos. Os PI empreendem com grande
regularidade ações “de rua” e o contacto “cara a cara” é considerado
essencial. As ações públicas levadas a cabo pelo PI têm grande
regularidade. Inicialmente caracterizam-se pela criatividade e pelo
recurso à ironia, mas têm vindo a assumir cada vez mais o carácter
de interpelação direta do poder político. Atualmente, são um dos
grupos mais ativos no que concerne a promoção e debate público da
Iniciativa Legislativa de Cidadãos: a Lei contra a Precariedade. Esta
iniciativa consiste num projeto – lei a ser votado na Assembleia da
República, em que os proponentes apresentam soluções concretas
no que diz respeito aos três principais vetores de precariedade laboral
em Portugal: o falso trabalho independente, os contratos a prazo e o
trabalho temporário.
Os Precários Inflexíveis seguem os princípios da estrutura
em rede e possuem ligações, no plano internacional, com os
seguintes movimentos: Agir Ensemble Contre Le Chômage (França),
Chainworkers (Itália), Comando Precario (Itália), EuroMayDay
Belgium (Bélgica), EuroMayDay (Europa), Génération Précaire
(França), Il Manifesto (Itália), MayDay Sur (Espanha), Precarias a la
Deriva (Espanha) e Telekemados (Espanha).

4.3 Plataforma dos Intermitentes do Espetáculo e do


Audiovisual (PIEA)

A Plataforma dos Intermitentes do Espetáculo e do


Audiovisual (PIEA) surgiu em Novembro de 2006 e reúne as
principais associações e sindicatos do setor. As principais
reivindicações desta plataforma remetem para o reconhecimento da
intermitência inerente ao setor das artes e do espetáculo, permitindo
assim o acesso à proteção no desemprego. Congrega catorze
associações e sindicatos relacionados com as mais diversas
vertentes do espetáculo, que são as seguintes: AIP- Associação de
Imagem Portuguesa, Associação Novo Circo, ARA – Associação de
Assistentes de Realização e Anotação, ATSP – Associação dos
Técnicos de Som Profissional, Encontros do Actor, GDA- Gestão dos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 241

Direitos dos Artistas, Granular - Associação de Música


Contemporânea, Movimento dos Intermitentes do Espetáculo e do
Audiovisual, PLATEIA - Associação de Profissionais das Artes
Cénicas, REDE - Associação de Estruturas para a Dança
Contemporânea, RAMPA, Sindicato dos Músicos, SINTTAV-
Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e
Audiovisual, e STE - Sindicato das Artes do Espetáculo.
A PIEA foi criada no âmbito do lançamento de uma petição
unitária que reivindicava a criação de uma lei que enquadrasse o
Regime Laboral dos Profissionais do Espetáculo e do Audiovisual. Foi
redigida por um grupo heterogéneo de profissionais da área com o
apoio das principais associações e sindicatos do sector, e teve por
meta a recolha de 4000 assinaturas de forma a ser possível a sua
discussão no Parlamento. No essencial reivindicava a criação de uma
lei que enquadrasse devidamente a atividade destes profissionais, e
de um regime específico que regularizasse o trabalho intermitente e
garantisse o acesso aos direitos laborais. Tendo em conta o vazio
legal existente relativamente ao exercício das atividades em questão,
reivindicam um modelo de contrato de trabalho em que estejam
estabelecidos os direitos mínimos e regras diferentes para os
descontos obrigatórios. Consideram que os trabalhadores
intermitentes das artes do espetáculo e audiovisual são penalizados
em relação aos trabalhadores que são abrangidos pela Lei Geral do
Trabalho e não gozam dos mesmos direitos laborais e sociais que
abrangem a generalidade dos trabalhadores, já que são falsamente
considerados trabalhadores independentes quando na verdade
trabalham por conta de outrem.
A Plataforma dos Intermitentes apresentou um conjunto de
princípios e de bases que servem de orientação e enquadramento
para um estatuto profissional dos trabalhadores das artes do
espetáculo e do audiovisual. Esta proposta surgiu na sequência da
iniciativa legislativa apresentada pelo grupo parlamentar do Partido
Comunista Português e do reconhecimento da necessidade de
tratamento legal das condições especiais de exercício profissional
destes trabalhadores.
O estatuto profissional que a plataforma pretende ver
aprovado deverá abranger todos os trabalhadores que exercem
atividades de natureza intermitente, nos domínios das artes do
espetáculo e do audiovisual, bem como os autores de obras
protegidas nos termos do Código do Direito de Autor e dos Direitos
242 Movimentos, Direitos e Instituições

Conexos, desde que exerçam a sua atividade em moldes que


correspondam em termos substanciais a trabalho por conta de
outrem. O novo estatuto prevê alterações de fundo e a devida
regulamentação relativamente ao regime contratual, à certificação
profissional, à organização do tempo de trabalho e ao sistema de
proteção social.
Em traços gerais, a PIEA teve, desde a sua criação, como
objetivo fazer aprovar o mesmo tipo de estatuto que vigora em
França, onde a questão da intermitência se encontra regulamentada
de forma a garantir a segurança no que diz respeito aos direitos e
garantias sociais dos profissionais do sector. Muitos dos membros da
PIEA colaboram com outros movimentos contra a precariedade
laboral, nomeadamente com o MayDay, o que permite a interligação
de objetivos e a colaboração na realização de ações.
As atividades desta plataforma culminaram, em Janeiro
deste ano, na criação do CENA: o sindicato dos músicos, dos
profissionais do espetáculo e do audiovisual.

4.4 MayDay

O MayDay é um dia de ação contra a precariedade laboral


e, tal como o indica o significado da expressão (pedido de socorro, de
ajuda), tem por objetivo chamar a atenção para esta questão e
expressar o descontentamento de todos aqueles que se sentem
afetados pelas proporções que os problemas da precariedade e da
imigração ilegal têm vindo a tomar em território europeu. Celebra-se
no dia 1 de Maio e é promovido na tentativa de atualizar o Dia do
Trabalhador. A expressão MayDay representa, simbolicamente, a
formulação de um pedido internacional de ajuda face aos efeitos da
globalização neoliberal. O protesto é sobretudo dirigido ao poder
político. É promovido por uma rede de grupos feministas, anti-
capitalistas e de ação contra a precariedade laboral. Para além dos
movimentos que se encontram na base do processo, o MayDay
acolhe a participação de todos aqueles que quiserem dar um
contributo, reunindo um conjunto de pessoas bastante heterogéneo.
A criação desta rede transeuropeia encontra-se profundamente
enraizada na ação dos movimentos anti-globalização, e baseia-se na
ideia de que a luta anti-capitalista deve ultrapassar o âmbito restrito
do sindicalismo e da luta pelos direitos dos trabalhadores,
abrangendo outras questões que se prendem com a “mercantilização
da vida”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 243

O MayDay não se restringe à realização de uma parada no


dia 1 de Maio de cada ano. É, simultaneamente, um ponto de
encontro e de partida. Não se trata de um acontecimento por si só,
mas antes de um processo de mobilização contínuo que, de ano para
ano, se expande e diversifica. Este processo, que culmina na
realização da marcha, desenrola-se durante os meses que a
antecedem (normalmente inicia-se em Fevereiro), envolve a
realização de ações de divulgação - debates, demonstrações públicas
criativas, distribuição de flyers, venda de artigos de propaganda para
angariar fundos etc. – e a realização de assembleias de carácter
público em que, em conjunto, são tomadas todas as decisões
relativas às ações e ao curso que o processo de mobilização segue.
O cyberactivismo é, também neste caso, um elemento fundamental
à dinâmica e à forma como se processa a mobilização, já que envolve
milhares de pessoas em diferentes cidades de diversos Países.
A primeira parada MayDay ocorreu em Milão em 2001,
estendeu-se a Barcelona em 2004 e a várias cidades por toda a
Europa em 2005, formando a rede EuroMayDay. Estima-se que o
número de participantes aumentou de 5.000 pessoas em Milão em
2001 para 50.000 em 2003, e 100.000 em 2004 (Milão e Barcelona
juntos). Em 2005, cerca de 200.000 pessoas participaram em
manifestações e ações EuroMayDay, principalmente na Europa
Ocidental. Em 2006, apesar de alguns grupos terem desistido do
processo, o número de cidades participantes cresceu ao ponto das
paradas MayDay envolverem cerca de 300.000 pessoas no conjunto
das vinte cidades Europeias aderentes. Os grupos que fazem parte
da rede EuroMayDay encontram-se disseminados por toda a Europa
e estão presentes nas seguintes cidades: Amesterdão, Barcelona,
Berlim, Bremen, Copenhaga, Den Bosch, Estocolmo, Genebra, Gent,
Gornja Radgona, Hamburgo, Hanau, Helsínquia, L'Aquila, León,
Liége, Lisboa, Londres, Ljubljana, Málaga, Maribor, Marselha, Milão,
Nápoles, Palermo, Porto, Sevilha, Terrassa, Tubingen, Viena e
Zurique. A partir de 2006, a rede estendeu-se para além do território
europeu e passou a marcar presença em Tóquio (a primeira cidade
“extra europeia”), Fuchu, Fukuoka, Quioto, Machida, Sapporo,
Sendai, Toronto e Tsukuba.
A criação do MayDay está profundamente enraizada no
Movimento Anti-Globalização, como indica o facto de ter sido
organizado como resposta ao que estes movimentos consideram ser
a insuficiência do Fórum Social Europeu. As suas acções, na vertente
específica de combate à precariedade, remontam a 2000 e têm como
244 Movimentos, Direitos e Instituições

marco as greves dos trabalhadores part-time da Pizza Hut e do


McDonald’s que ocorreram no Inverno desse ano. Estas mobilizações
deram origem à primeira rede direccionada para o combate à
precariedade em solo europeu – a Stop Précarité. Esta tem ligações
com a AC!, CGT, SUD, CNT, Trotskyites e com outros elementos da
esquerda radical francesa, assumindo um posicionamento de forte
crítica política e social. Apesar de este ser apontado como o marco
do início de ação dos movimentos de combate à precariedade, as
suas raízes podem ser seguidas até o final dos anos 1990, altura em
que começam a ser organizadas as Marchas Europeias contra o
Desemprego, a Precariedade e as Exclusões (Marches européennes
contre le chômage, la précarité et les exclusions). Trata-se de uma
plataforma de associações que fundaram uma rede europeia de
solidariedade que tem como objetivo propor alternativas ao
desemprego, à precariedade e à exclusão social, e pretende
participar ativamente na emergência de uma resistência e de uma
contra-ofensiva aos avanços do neoliberalismo.
A primeira edição do MayDay (Milão, 2001) foi promovida
por redes e grupos anti-globalização que se preparavam para
organizar um evento alternativo ao Fórum Social Europeu de Génova.
Nesse âmbito, empreenderam ações de carácter inovador (com a
utilização de carros alegóricos, música etc.), extremamente criativas e
que incorporavam elementos estéticos apelativos e carregados de
simbolismo. Esta forma inovadora de celebrar o dia 1 de Maio
pretende romper com a representação sindical tradicional.

4.5 O MayDay em Portugal

O MayDay teve a sua primeira edição em Portugal em 2007,


na cidade de Lisboa. A ideia de reproduzir a experiência europeia
surgiu a partir de um grupo de pessoas que de alguma forma se
encontravam envolvidos no ativismo contra a precariedade laboral ou
em outras vertentes (LGBT, movimentos de imigrantes, movimento
estudantil etc.). A ideia foi consolidada ao longo de um processo de
mobilização que se baseou, principalmente, na realização de
assembleias públicas, na distribuição de flyers e outros tipos de
propaganda, e em algumas ações de “rua”. A todo este processo de
mobilização é transversal uma “boa” dose de cyberactivismo, tempo
para o seu desenvolvimento e a heterogeneidade das pessoas
envolvidas. O resultado da mobilização de 2007, embora tenha sido
modesto em comparação as demais cidades europeias, foi bastante
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 245

positivo; e, na sequência da realização de reuniões de balanço


formaram-se os Precários Inflexíveis com o objetivo de dar
continuidade ao trabalho que tinha sido empreendido (aqui é clara a
ideia de “MayDay como ponto de partida”). Vários movimentos de
trabalhadores precários que já existiam em Portugal nessa altura,
como por exemplo os Ferve, participaram de forma ativa no processo
de realização de assembleias e nas ações, e marcaram presença na
marcha.
A organização do MayDay repetiu-se no ano seguinte
(nessa altura já como MayDay Lisboa) e em 2009 a iniciativa
estendeu-se à cidade do Porto. Os Ferve desempenharam um papel
fundamental no processo de criação do MayDay Porto ao
convocarem uma primeira assembleia com o intuito de aferirem
vontades e a viabilidade da reprodução da iniciativa. O número de
pessoas presentes foi suficiente para se concluir sobre a existência
de recetividade à ideia, e foi dado início ao processo de mobilização.
A partir daí sucederam-se ações públicas de divulgação (debates,
acções, festas, distribuição de flyers) e um trabalho intenso de
cyberactivismo. A marcha realizou-se, como previsto, no dia 1 de
Maio; o percurso foi feito de forma independente e no final a marcha
MayDay Porto integrou a marcha da USP (União de Sindicatos do
Porto).
Em finais de Fevereiro de 2010 foi constituído o MayDay
Coimbra. Seguiu os mesmos passos que os outros dois MayDay’s
(assembleias públicas, criação de um blogue, promoção de debates,
divulgação de materiais, distribuição de flyers), mas o processo de
mobilização acabou por revelar-se incipiente dado que não foi alvo de
reprodução nos anos posteriores. Este ano o grupo não se propõs a
organizar a parada em Coimbra, mas procurou mobilizar o maior
número de pessoas para que estas integrassem uma das paradas
MayDay existentes.

4.6 Que se Lixe a Troika

O Que Se Lixe a Troika (QSLT) surge num momento de


grave crise económica, política e social em Portugal. Tem agitado de
forma contundente tanto a sociedade civil como a sociedade política
dos partidos e o governo. A ação desta plataforma de mobilização
responde à imposição da austeridade cega que é patrocinada pela
246 Movimentos, Direitos e Instituições

coligação do governo (a maioria PSD/CDS-PP122) e pela chamada


troika constituída pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia. No seguimento da
eclosão da crise das dívidas soberanas, e como já foi referido
anteriormente, Portugal, à semelhança de outros Países, viu-se
obrigado a proceder a uma série de reformas estruturais, entre as
quais a dita reforma do Estado. Esta corresponde liminarmente à
destruição do Estado Social construído após a revolução do 25 de
Abril de 1974 e é acompanhada pela liquidação de direitos sociais
conquistados, destruição do emprego assalariado, redução das
funções sociais do Estado ao mínimo em matérias de segurança
social, educação e saúde, entre outras coisas, colocando o País e os
seus cidadãos numa situação insustentável de rutura eminente. A
austeridade e o ideário neoliberal foram “injetados” na sociedade
portuguesa como se da única alternativa se tratassem.
Perante este contexto de degradação acelerada das
condições de vida e do futuro, a sociedade não teve alternativa e
mobilizou-se. Já o havia feito em Março de 2011 quando, no dia 12,
várias cidades portuguesas receberam nas suas ruas uma enchente
de indivíduos que protestaram contra a classe política, o governo, as
medidas de contenção orçamental (o PEC IV – Pacto de Estabilidade
e Crescimento), em suma, contra a ausência de uma perspetiva de
futuro. O protesto ficou conhecido como a “Geração À Rasca” e muito
embora tenha abalado o governo em exercício, não produziu
mudanças em termos institucionais. No entanto, o protesto serviu o
propósito de consciencialização de uma enorme camada da
população, serviu de embrião para um ciclo de mobilizações que
termina agora e, de certa forma, foi a primeira pedra na construção de
um novo bloco histórico que fará a oposição à hegemonia neoliberal.
O ano de 2012 e o primeiro semestre de 2013 são o período
em que a contestação subiu de tom e a oposição à imposição de uma
sociedade da austeridade123 ganhou força. Já em 2011, após a
manifestação do 12 de Março, as mobilizações continuaram amiúde,
acompanhando o anúncio e aplicação das medidas plasmadas no
memorando de entendimento assinado pelo governo português e a
troika e que colocou em marcha o programa de assistência
económica ao País. Amplos setores da sociedade civil e o movimento

122
Respetivamente, Partido Social Democrata e Partido do Centro Democrático Social.
123
O conceito sociedade da austeridade é proposto e desenvolvido por António
Casimiro Ferreira, em Ferreira (2012).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 247

sindical mobilizaram-se e a contestação não esmoreceu desde então.


Sucederam-se, desde Março de 2011, três greves gerais (em 24 de
Novembro de 2011, 14 de Novembro de 2012 e 22 de Março de
2013), inúmeras greves setoriais, ações de luta, entre outras. No
entanto, apesar do crescendo de mobilização, a política de
austeridade continuou a sua escalada até níveis insustentáveis.
Em Setembro de 2012, o País entra novamente em ebulição
com o anúncio da subida da Taxa Social Única (TSU) para os
trabalhadores e a sua descida para os patrões. Esta foi também a
altura em que decorria a 5ª avaliação ao programa de ajustamento.
Um conjunto de cidadãos anónimos, a maior parte deles ligados a
ativismos anteriores, reuniu-se na capital portuguesa, Lisboa, e
decidiu, perante o estado de emergência social em que se encontrava
o País, lançar o repto para uma nova manifestação a ter lugar no dia
15 de Setembro. “Que Se Lixe a Troika, queremos as nossas vidas!”
foi como ficou conhecida. A manifestação foi divulgada através do
facebook e demais redes sociais. Automaticamente, indivíduos de
outras cidades do País, envolvidos ou não nas redes de ativismo,
aderiram ao evento e propuseram-se a lançar a manifestação nas
suas cidades. Para além da rápida e eficaz disseminação do evento
através das redes sociais do cyberativismo, o QSLT foi também
ativamente promovido pelos meios de comunicação social –
televisões, rádio, jornais – que na altura assumiam, pelo menos uma
grande parte deles, uma posição muito crítica em relação às medidas
tomadas pelo governo. O QSLT forjou-se em torno das reivindicações
formuladas com clareza (ao contrário do que havia acontecido no 12
de Março de 2011) de demissão do governo, expulsão da troika do
País e eleições antecipadas. Chegou o dia da manifestação e a
população respondeu em massa. A participação ascendeu a largos
milhares, superando as expectativas. Estruturas partidárias e
sindicais não se fizeram representar oficialmente mas os seus
membros participaram a título individual. O consenso em torno da
inevitabilidade da austeridade caiu de uma vez por todas, apesar do
governo ter desvalorizado a expressão de descontentamento nas
ruas.
A mobilização de 15 de Setembro imprimiu um novo impulso
à onda de contestação. Ao ter politizado a contestação da sociedade
civil, o QSLT atraiu para as suas fileiras outros setores sociais que
até à data se tinham mantido de parte e recebeu o apoio, ainda que
muitas das vezes dissimulado, de atores políticos dos partidos da
oposição, de ativistas do movimento sindical e de sindicatos. A
248 Movimentos, Direitos e Instituições

expressão de apoio de pessoas ligadas aos setores intelectual, das


artes e do espetáculo foi de tão representativa que foi marcada uma
nova mobilização, o Que Se Lixe a Troika – Manifestação Cultural,
que aconteceu em 13 de Outubro desse ano e que reuniu, em
algumas cidades do País, artistas que se predispuseram a atuarem
em palcos ao ar livre em nome de uma união popular contra a
austeridade. Sucederam-se outras iniciativas e surgiu no horizonte,
dada a cada vez maior agressividade das medidas impostas às
populações e a rápida degradação do clima político, a convocação de
um novo protesto. Desta vez o mote é “Que Se Lixe a Troika, O Povo
é Quem Mais Ordena!” e transmite uma mensagem clara: amplos
setores da população portuguesa querem que o atual governo se
demita. A mobilização para esta manifestação seguiu os trâmites
habituais: colagens de cartazes, panfletagem e divulgação nas redes
sociais. Para, além disso, foram enviados mails para várias estruturas
do movimento sindical e em particular para a Confederação Geral de
Trabalhadores Portugueses (CGTP, uma das duas centrais sindicais
existentes em Portugal), informando da manifestação, das suas
razões e apelando à participação de todos.
A resposta do movimento sindical não se fez esperar e,
durante o discurso de encerramento da manifestação de 16 de
Fevereiro da CGTP, em Lisboa, o secretário-geral da central sindical,
Arménio Carlos, apelou à participação de todos os que se opõem às
políticas de austeridade na manifestação de 2 de Março. O apelo
surtiu efeito e o movimento sindical, embora não estivesse
identificado, participou amplamente na manifestação. Também vários
partidos políticos o fizeram nos mesmos moldes.
A mobilização foi considerada, pelos seus promotores no
Porto e em Lisboa, um sucesso. Centenas de milhares de pessoas
saíram às ruas para pedirem, mais uma vez, a demissão imediata do
governo e o fim da austeridade. Para este resultado contribuiu em
grande medida a inovação no repertório de estratégias a serem
utilizadas pela plataforma para divulgar a manifestação. Em
124
particular, as “grandoladas “ e as receções a membros do governo
ou outras pessoas, sejam empresários, representantes das
instituições internacionais. As “grandoladas” representam a vontade

124
As “grandoladas” consistem em cantar, a membros do Governo ou a outros
considerados representantes ou promotores das políticas de austeridade e do
ideário neoliberal, a música “Grãndola, Vila Morena” do cantor português de música
de intervenção Zeca Afonso. Esta música é um símbolo da resistência à ditadura
fascista do Estado Novo em Portugal, personificada por Oliveira Salazar.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 249

férrea do povo em opor-se à dominação e são um símbolo da


unidade popular. Durante os meses que precederam o protesto de 2
de Março, vários representantes e membros do governo foram
recebidos nos atos públicos em que participavam com coros de vozes
que entoavam a “Grândola, Vila Morena”, cartazes e palavras de
ordem que exigiam a demissão imediata. Assim se desenrolou um
processo de mobilização cujos efeitos ainda não se fizeram sentir
com toda a amplitude. Até agora, a principal mudança foi, sem
sombra de dúvida, a formação ainda em curso de um novo bloco
histórico que contraria o bloco hegemónico neoliberal. A contestação
à austeridade e ao seu modelo de sociedade não são um exclusivo
de Portugal. A onda de contestação estende-se por toda a Europa, e
mesmo para além dela, sublinhando a unidade em torno de um
objetivo comum. Acima de tudo, foi quebrado o consenso em torno da
hegemonia neoliberal, e, a partir daqui, novas possibilidades se
apresentam.

CONCLUSÃO

O objetivo neste artigo foi apresentar a nova precariedade


salarial em Portugal, expondo, nesse caso, como sua expressão de
classe, a camada social do precariado, considerado por estes
autores, não como uma nova classe social, mas sim, como uma
camada social da classe do proletariado, que se manifesta hoje nas
condições históricas do capitalismo global. Depois, buscou-se tratar
da percepção de carência de futuridade dos jovens-adultos
precários, como sendo manifestação radical da “temporalidade
decapitada” do capital. Na verdade, o capital em sua etapa de crise
estrutural, expós com vigor, seus limites estruturais, provendo a
necrose do capitalismo de bem-estar. Finalmente, buscou-se tratar do
movimento social do precariado hoje em Portugal, descrevendo suas
organizações sociais e manifestações públicas que visam a explorar
as possibilidades de contestação social do modelo neoliberal
hegemonico na União Europeia.

REFERÊNCIAS

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produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
250 Movimentos, Direitos e Instituições

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CAPÍTULO 11

COSMOVISÃO HUMANISTA NA
CONSTITUTIVIDADE DO HOMO JURIDICUS
CONTEMPORÂNEO: ELEMENTOS DE UMA
HERMENÊUTICA JURÍDICA HUMANIZANTE

125
Gisela Maria Bester
Eliseu Raphael Venturi126

125
Professora de Direito Constitucional. Advogada. Mestre (UFSC) e Doutora (UFSC e
Universidad Complutense de Madrid) em Direito. Pós-Doutoranda em Direito
Constitucional e Administrativo do Ambiente, na Universidade de Lisboa, sob a
Supervisão do Professor Doutor Catedrático Vasco Pereira da Silva. Consultora ad
hoc da CAPES/MEC (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior, Fundação do Ministério da Educação do Brasil). Docente Colaboradora
no Programa de Mestrado Acadêmico em Direito Empresarial e Cidadania, do
UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) e Convidada na ESMAT (Escola
Superior da Magistratura Tocantinense). Integrante do Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos, da UFT (Universidade Federal do Tocantins).
Vencedora do Prêmio Instituto Ethos-Valor Econômico de Sustentabilidade, 2008,
Categoria Professores. Professora do Curso de Direito da UFT (2013-2014) e do
Mestrado Acadêmico em Direito, Democracia e Sustentabilidade da IMED
(Faculdade Meridional, 2013-2014). Membro Titular do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça do Brasil (2008-2012). Link
para acesso ao Curriculum Vitae na Plataforma Lattes: <http://lattes.cnpq.br/37186
11665180124>. E-mail: <profagmb@hotmail.com>.
126
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e
Licenciado em Artes Visuais pela FAP (Faculdade de Artes do Paraná).
Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná
(ESMAFE/PR) e Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Professor de Teoria Geral do Direito na Fundação de
Estudos Sociais do Paraná (FESP/PR). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos
da UFPR. Advogado. E-mail: <eliseurventuri@gmail.com>. Link para currículo
Lattes: <http://lattes.cnpq.br/783806598344373>.
252 Movimentos, Direitos e Instituições

RESUMO
Neste artigo parte-se da compreensão do homo juridicus segundo o
jurista francês Alain Supiot: construção dogmática e hermenêutica,
decorrente da pessoa e da personalidade e recuperada, nesta
proposta, em torno da consciência filosófica da realidade dos homens
concretos em suas vidas particulares em coletividade, conforme lições
do filósofo argentino Enrique Dussel. Pressupõem-se no artigo as
preocupações de Supiot por se compreender o Direito como técnica de
humanização das técnicas e em se ter dentre as tarefas da Ciência do
Direito a de se identificar déficits antropológicos das práticas jurídicas.
Abordam-se dimensões coerentes desta mundividência humanista,
imprescindível ao raciocínio jurídico e à afirmação de tutela humana
total e incondicional tecnicamente obtível por meio da efetividade dos
direitos subjetivos, dos microssistemas protetivos e de princípios da
dignidade da pessoa humana e da interpretação pro homine, todos
inspirados pela mesma finalidade de atingimento de um bem-estar
social e individual e assentados nos princípios republicano e
democrático, de interesses público e privado. Sem se exaurirem, são
revistos elementos filosóficos componentes desta cosmovisão:
condição humana, ética do cuidado, antropologia filosófica, alteridade,
subjetividade, vulnerabilidade, reconhecimento, entre outros aportes
cientes da fragilidade da vida humana e da responsabilidade social
partilhada por ela, e que apontam, ainda, ao apreço pelo humano e por
sua proteção enquanto ínsitos ao ordenamento jurídico e indissociável
de suas técnicas hermenêuticas. Enfatiza-se, por fim, a humanização
do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional
Privado, a categoria constitucional do humanismo e o modelo de
Estado humanista, todas ferramentas de construção desta visão de
mundo garantista e tuitiva das pessoas.
Palavras-chave: efetividade constitucional; Estado humanista;
hermenêutica jurídica; homo juridicus; humanismo jurídico; humanização.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. WELTANSCHAUUNG HUMANISTA E O
RACIOCÍNIO JURÍDICO: UM MODUS HERMENÊUTICO PARA A
INTEGRAÇÃO DOS DIREITOS; 2. CONTEÚDOS FILOSÓFICO-
JURÍDICOS E ALGUNS DE SEUS HORIZONTES: ELEMENTOS DA
WELTANSCHAUUNG HUMANISTA COMO CONDICIONANTES DA
APREENSÃO E VALORAÇÃO DO REAL; 2.1 O HOMO JURIDICUS
DE ALAIN SUPIOT: O PROBLEMA DA ANTROPOLOGIA COMO
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 253

FUNDAMENTO DA JURIDICIDADE E A DOGMÁTICA JURÍDICA


CONSTITUTIVA DO HOMEM; 2.2 DOS HOMENS CONCRETOS EM
SUA VIDA PARTICULAR E COLETIVA CONFORME ENRIQUE
DUSSEL; 2.3 A CONDIÇÃO HUMANA COMO CONTEXTO DO
PROBLEMA DO HOMEM; 2.4 ÉTICA DO CUIDADO COMO
COMPLEMENTO DA ÉTICA DA JUSTIÇA ANTE A
VULNERABILIDADE ESSENCIAL DO HUMANO; 2.5
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA ENQUANTO REFLEXÃO
ABSTRATA SOBRE O SER HUMANO E SEUS PROBLEMAS; 2.6
ALTERIDADE COMO MEIO DE ACESSO AO OUTRO E
IMPRESCINDÍVEL APORTE DE COMUNICAÇÃO HUMANA E
EXERCÍCIO ÉTICO; 2.7 SUBJETIVIDADE ENQUANTO CENTRO DA
PESSOA E SEU VALOR JURÍDICO; 2.8 A VULNERABILIDADE
INERENTE À CONDIÇÃO HUMANA; 2.9 RESPEITO E
RECONHECIMENTO COMO CONCORRENTES DA ALTERIDADE;
2.10 HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL, DIREITOS
HUMANOS E A REGRA DE INTERPRETAÇÃO PRO HOMINE; 2.11
CATEGORIA CONSTITUCIONAL DO HUMANISMO: O SISTEMA
CONSTITUCIONAL COMO AFIRMAÇÃO POSITIVA DOS
PRECEITOS HUMANISTAS; 2.12 MODELO DO ESTADO
HUMANISTA: RACIONALIDADE JURÍDICA E DIÁLOGO DAS
FONTES NA INTEGRAÇÃO DOS SIGNIFICADOS JURÍDICO-
TUITIVOS; 2.13 O GARANTISMO E SUA FUNÇÃO NA TUTELA,
EFETIVIDADE, CONCREÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DO SISTEMA
JURÍDICO HUMANISTA; 2.14 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E
AS CATEGORIAS DE DIREITOS: DIREITOS HUMANOS, DIREITOS
FUNDAMENTAIS E DIREITOS DA PERSONALIDADE; 2.15 A
VIRTUDE DEMOCRÁTICA DA TOLERÂNCIA; 2.16 PENSAMENTO
DEMOCRÁTICO E REPUBLICANO; CONSIDERAÇÕES FINAIS;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Na proposta deste artigo objetiva-se debater, filosoficamente,


as possibilidades de uma cosmovisão, ou mundividência, no conceito
alemão Weltanschauung, instância epistêmica distinta da ideologia e
do paradigma, a partir da vigência de direitos subjetivos e demais
princípios no ordenamento jurídico brasileiro, acompanhado das
normas internacionais, na contemporaneidade.
254 Movimentos, Direitos e Instituições

Com isto, pretende-se argumentar que as profissões


jurídicas, por trabalharem com o Direito, têm por matéria básica
justamente a progressiva formação desta mundividência, de sorte
que, no âmbito das ciências e suas técnicas, o olhar do profissional
das carreiras jurídicas é o olhar problematizador acerca dos
complexos limites e exigências da humanização.
Esta cosmovisão, pelo núcleo no ser humano, sem ser
antropocentrista, ressalte-se (o qual seria reducionista, até porque
desconsideraria preceitos de Direito Ambiental), se qualifica como
humanista pela vigência axiológica, consolidada pelas formas e atos
jurídicos, e que induz a um olhar sensível à complexidade da
condição humana, ante a qual constantemente se deve decidir e agir.
Nesta linha de problema, vale-se decisivamente do mote
teorético do jurista francês Alain Supiot, que analisa o homo juridicus
enquanto definição do ser humano para o Direito, ou seja, a partir dos
conceitos por este estabelecidos, nominando e qualificando os
elementos da vida social, e com a finalidade de orientar as relações
sociais a determinadas finalidades individuais e coletivas.
Neste orbe, o ser humano assume uma feição dogmática
primeira, em que se reúnem as figuras do sujeito, do indivíduo e da
pessoa, revestidos pela noção de personalidade. Em suma: o Direito
diz o que são os seres humanos e lhes delimita a tutela; com isso,
firma um sentido de vida, sem ditar um padrão de vida, destaque-se.
Desta forma, fixa o Direito uma Weltanschauung: oferece
um sentido à narrativa humana, bem como uma explicação, uma
orientação coletiva, e propõe meios de soluções dos problemas da
vida, dando-se tudo de forma abstrata, nos moldes de uma
antropologia filosófica, sem pretensões de encerrar uma fórmula da
natureza humana, e que se distingue de uma antropologia cultural
justamente na medida de um certo desapego casuístico, para ênfase
na abstração e retorno ao concreto.
A partir deste centro de juridicidade, com a força normativa
da definição do humano, obtêm-se elementos para se cogitar do
problema da vida concreta dos homens concretos em comunidade
(conforme noções da ética da libertação de Enrique Dussel). Assim,
tem-se um jogo abstrato-concreto para apreciação e valoração da
vida (afirmada e negada, conforme Ludwig).
Baseia-se a proposta, igualmente, nas preocupações de
Supiot, por se compreender o Direito como técnica de humanização
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 255

das técnicas e, ainda, em se ter uma das tarefas da Ciência do Direito


como a de se identificar déficits antropológicos das teorias jurídicas, o
que é uma avaliação típica da Filosofia do Direito, enquanto olhar
reflexivo-crítico que se debruça sobre o objeto jurídico do
conhecimento.
Abordam-se, nesse contexto, algumas dimensões
propositivas de uma possível mundividência nominável como
humanista (visão de mundo, ou Weltanschauung, distinta de uma
ideologia ou paradigma), imprescindível do raciocínio jurídico,
compreendida nas esteiras de uma tutela humana total e
incondicional obtida por meio do implemento das categorias de
direitos da personalidade, direitos fundamentais e direitos humanos,
dos quais todos são titulares, assim como dos microssistemas
protetivos e de princípios sempre presentes como o da dignidade da
pessoa humana e da regra de interpretação pro homine, todos
inspirados pela pretensão de atingimento de um bem-estar social e
individual e assentados nos princípios republicano e democrático,
bem como instrumentalizados que devem ser via diversos atos e
processos públicos e privados.
As reflexões deste artigo, portanto, centram-se em orbe
filosófico, sem quaisquer técnicas sociológicas de campo. Assim,
está-se mais preocupado em refletir sobre as profissões jurídicas em
sua deontologia, potencialmente informativa de uma prática, do que
em detectar elementos concretos acerca de como pensam e agem os
intérpretes profissionais do Direito.

1. WELTANSCHAUUNG HUMANISTA E O RACIOCÍNIO


JURÍDICO: UM MODUS HERMENÊUTICO PARA A
INTEGRAÇÃO DOS DIREITOS

A noção de mundividência ou cosmovisão pode ser


rapidamente distinta da ideia de ideologia e, ainda, da ideia de
paradigma, embora haja conceitos compartilhados. De um modo
geral, a proposta de separação se deve para implicar uma posição
própria à cosmovisão, que não se reduz aos limites nem da ideologia,
nem do paradigma, que não comportariam, por suas funções
filosóficas e críticas, o que se pretende apontar como um
posicionamento cognoscente e valorativo mais amplo.
256 Movimentos, Direitos e Instituições

Em relação à ideologia, pode-se ponderar a proximidade


com o sentido por extensão, qual seja, aquele que tem por ideologia
um corpo de convicções de um indivíduo ou grupo.
Ocorre que outro sentido forte da ideologia é o conferido
pela teoria marxista, que a pontua também como conjunto de ideias,
disseminadas nos âmbitos do conhecimento e instituições humanos,
e que se estrutura a partir de uma negação fundamental, qual seja a
da origem material dos interesses e necessidades ínsitos às relações
de produção, de sorte que esta negatividade apenas reforça os
interesses dominantes. Nesta acepção, ter-se-ia o contraste de
legitimação do poder econômico das classes dominantes, formando
uma ideologia burguesa, e os ideais de interesses revolucionários da
classe dominada (ideologia proletária ou socialista) emergindo a
ideologia como este complexo de informações em trânsito social,
influenciando o destino de relações concretas.
Em vista disso, deve-se controverter a redução de um
humanismo jurídico a uma ideologia nos termos acima, simplesmente
porque os direitos fundamentais e humanos, cujo teor, em peso,
auxilia na formação deste humanismo, não podem ser reduzidos a
discurso ideológico. Ora, a titularidade de tais direitos é de uma
totalidade incondicional de sujeitos, completude esta que o discurso
ideológico, ao contrário, cinde e subordina (dominantes e
dominados); e mais: onde o discurso ideológico pretende estruturar
e manter o status quo, a cosmovisão humanista afirma os objetivos
constitucionais de ordem social e econômica, os quais, mais uma vez,
se destinam à sociedade e à comunidade de um modo indistinto no
plano da titularidade e também medido pelas diferenças e
contrastado pelas desigualdades em sua função promocional de
isonomia.
Poder-se-ia objetar que justamente a pretensão de
universalidade representa marca ideológica, contudo, tal raciocínio
reduziria a visão sistêmica dos objetivos e pretensões do
ordenamento encarado em toda a sua inter-relação, com todos os
seus destinatários. A postura de compreensão do humanismo em
sentido amplo enquanto ideologia reduziria o campo de atuação
política, redundando em soluções incompatíveis com os preceitos
fundantes.
Em relação ao paradigma, pode-se verificar que o
humanismo não se enquadraria nesta classificação porque, em
sentido estrito, não se encerra em um modelo explicativo-propositivo.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 257

Conforme a definição mais utilizada, proposta por Kuhn,


verifica-se que alguns pontos se comunicam com a ideia de
humanismo, mas há distinções cabais que não permitem a
classificação. Não se pode afirmar, ao menos nos termos propostos
neste trabalho, que o humanismo, tal qual posto, se apresenta como
um modelo identificável em algum período de tempo e que orienta o
desenvolvimento de pesquisas científicas em determinado rumo. Ou
seja: não se vislumbra no humanismo a conformação de um corpo de
sentidos partilhado por uma comunidade científica em determinado
momento segundo os padrões e pretensões de construção do
conhecimento científico – ao exemplo do paradigma para Thomas
Kuhn (2007, p. 70-71).
Como visto, portanto, ao menos neste estudo, não se
entenderá o humanismo nem como ideologia, posto que se
compreendida esta posição reduziria ou mesmo aniquilaria a
incidência e a efetividade dos direitos humanos (e não apenas deles)
em qualquer situação (eis que a ideologia macularia tais direitos com
a marca da dominação, negando titularidades e representando de
antemão uma violação antecipada de qualquer direito imaginável), ao
mesmo tempo em que não se entende o humanismo enquanto
paradigma, posto que assim se reduziria sua incidência a um campo
científico datado e suscetível de superação.
Por isso, poder-se-ia afirmar que as preocupações do
humanismo jurídico são de ordem filosófica (conhecimento valorativo,
racional, sistemático, não verificável, infalível – porque não se
submete à observação – e exato), razão pela qual se alinha com uma
Weltanschauung.
Ao mesmo tempo, se afirma que o humanismo incide
diretamente na prática jurídica, como postura informativa de manejo
de valores e princípios jurídicos, os quais são estruturados no bojo do
Direito positivo e da Ciência do Direito, e que mesclam na atividade
da argumentação, da interpretação e do raciocínio jurídico prático.
Assim, a cosmovisão se estrutura como espaço que
transcende a mera imagem do mundo e integra uma organização que
revela uma série de crenças individuais e coletivas, e que acumulam
a compreensão de estruturas como o sentido da vida, o modo de
organização das coisas, a finalidade de determinadas práticas, e
assim por diante, compondo um modo de entender e de se posicionar
a respeito dos assuntos inevitáveis e emergentes tanto da existência
quanto da convivência. Por esta natureza específica não se pode
258 Movimentos, Direitos e Instituições

identificar com as formas da ideologia e do paradigma, por


representar um corpo de conhecimentos distintos, com outras
funções, objetivos e forma de estruturação.
Assim, é a partir desta noção complexa de cosmovisão que
se pretende defender neste artigo a compreensão de que o Direito,
enquanto ciência hermenêutica e axiológica, valorativa das condutas
sociais e reguladora do comportamento humano, assim como
coordenadora do sentido coletivo e promotora da dogmática
fundamental do humano (homo juridicus), assenta-se em uma
cosmovisão humanista, daí a Weltanschauung humanista que atua na
constitutividade dos preceitos básicos dos ordenamentos jurídicos,
reforçados pela mentalidade democrática imprescindível à sua
conformação.
É a partir deste posicionamento que se apontam nas demais
partes deste artigo que se seguem, alguns aportes teoréticos que
podem compor esta afirmada cosmovisão humanista.

2. CONTEÚDOS FILOSÓFICO-JURÍDICOS E ALGUNS


DE SEUS HORIZONTES: ELEMENTOS DA
WELTANSCHAUUNG HUMANISTA COMO
CONDICIONANTES DA APREENSÃO E VALORAÇÃO
DO REAL

Conforme foi acima delimitado, o humanismo jurídico não


consiste, na postura adotada neste estudo, nem em ideologia, nem
em paradigma, mas antes compõe uma visão própria do jurídico,
porque é deste orbe do conhecimento humano que se podem extrair
seus fundamentos. Não se reduz ao Direito porque este mesmo dá
aberturas a outras áreas da reflexão humana, como a Ética, a
Medicina e a Filosofia não jurídica, de modo que outro pressuposto
deste estudo é que uma cosmovisão se depreende de múltiplas
fontes e tipos de conhecimento, que podem ser filosófico, artístico,
científico, do senso comum, religioso, jurídicos propriamente, e assim
por diante.
Fundamental, para se tratar de humanismo, é
necessariamente a plena e absoluta vedação a alguns elementos
completamente rechaçados de antemão por qualquer proposta
humanista, verdadeiro filtro interditório pelo qual não se admitem
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 259

certas práticas, que gravitam em torno dos seguintes componentes


(na esteira do artigo XXX da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que veda qualquer movimento tendente a destruir os
direitos que anteriormente enunciou em seu corpo): discriminações
de qualquer tipo, racismos e sexismos, cultura do ódio e da
intolerância, violência em seus mais variados graus, sadismo, tortura,
tratamentos cruéis, degradantes e ultrajantes da dignidade, negação
da vida, arbitrariedade de qualquer poder, dominação, opressão,
abandono, miséria, pobreza, fome, terrorismo. Tais (des)qualificativos
são completamente combatidos por qualquer apreço humanista da
realidade.
Assim, uma visão de mundo humanista é imprescindível ao
raciocínio jurídico, desde que compreendida nas esteiras de uma
tutela humana total e incondicional obtida por meio do implemento
das categorias de direitos da personalidade, direitos fundamentais e
direitos humanos, dos quais todos são titulares, assim como dos
microssistemas protetivos e de princípios sempre presentes como o
da dignidade da pessoa humana e da regra de interpretação pro
homine, todos inspirados pela pretensão de atingimento de um bem-
estar social e individual e assentados nos princípios republicano e
democrático, bem como instrumentalizados que devem ser, pela via
de diversos atos e processos públicos e privados.
Feito tal corte que aponta o reverso da questão e indica
suas pretensões, passa-se a abordar rapidamente algumas posturas
filosóficas, sem qualquer pretensão de exaurir as possibilidades, e
que vistas de modo agrupado e coordenado na valoração e
conhecimento das situações de convivência e conflito, podem se
agrupar em uma cosmovisão dita humanista.

2.1 O Homo Juridicus de Alain Supiot: o Problema da


Antropologia como Fundamento da Juridicidade e a
Dogmática Jurídica Constitutiva do Homem

Alain Supiot (2007, p. X), contemporâneo jurista francês,


abordou a função antropológica de interdição e significação da vida
coletiva e individual proposta pelo direito em termos de uma
dogmática fundamental, contrabalanceada por técnicas de
interpretação, que ajustam os preceitos dogmáticos ao mundo das
relações sociais e suas demandas.
260 Movimentos, Direitos e Instituições

A qualidade de técnica do direito e sua relação com a


verdade, contudo, não se assentam na noção de revelação divina ou
de descoberta científica, ficando o direito em ambiente distinto: o de
indicação das crenças fundamentais de uma sociedade,
acompanhada da interposição, nas relações sociais, de sentidos da
convivência e do destino individual. Com isso, revela-se que o Direito,
enquanto prática se apresenta de modo distinto dos problemas
científicos, mostrando-se como movimento hermenêutico.
Nesta linha de compreensão do fenômeno jurídico, o autor
enfatiza como as funções sociais do direito consistem justamente na
formação de consensos ético-jurídicos insculpidos nas noções de
pessoa, personalidade, direitos, e assim por diante, de modo que o
direito informa tanto as balizas interpretativas (institutos, noções
primeiras, que não são dados naturais, mas construções dogmáticas)
quando fornece o espaço próprio para interpretação, de modo que
indica meios e materiais de construção do sentido coletivo.
Neste sentido, o Direito realiza uma construção antropológica
de base, instituindo o homo juridicus, o perfil humano traçado pelo
Direito.

O indivíduo, o sujeito, a pessoa: esses três pilares da constituição


ocidental do ser humano têm em comum uma profunda ambivalência.
O indivíduo é ao mesmo tempo o único e semelhante; o sujeito é ao
mesmo tempo o soberano e o sujeitado; a pessoa é ao mesmo tempo
carne e espírito. Há nisso categorias de pensamento que permitem
apreender em sua unidade lógica os dados aparentemente
contraditórios da experiência humana e conciliar o universo dos
sentidos com a nossa exigência de sentido. Imaginar o Homem como
um indivíduo único e indivisível, a um só tempo igual e irredutivelmente
diferente de todos os outros, é um ato de fé que escapa,
evidentemente, a qualquer ciência experimental. E dá-se o mesmo com
nossas noções de subjetividade (que engloba heteronomia e
autonomia) e de personalidade (que engloba corpo e espírito). Essa
montagem antropológica não pode ser fundamentada na ciência, uma
vez que a própria ciência resulta dessa montagem quando postula que
o Homem é um sujeito cognoscente capaz de observar a si mesmo
como objeto de conhecimento. Nossa fé nessa concepção do Homem
não é um caso privado, como a fé religiosa hoje, mas uma crença
compartilhada por todos. Ela supõe a existência de uma Referência
última que simbolize e garanta o que a Declaração de Independência
dos Estados unidos chama de ‘verdades evidentes por si sós’ e
confere-lhes um valor dogmático. (SUPIOT, 2007, p. 34).

Não por acaso o autor dedica tanto estudo à Declaração


Universal de Direitos Humanos e à sua interpretação potencializadora
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 261

dos preceitos internos, de sorte a se afastar posicionamentos


universais de categorias de pensamento e pretensões de imposição
(vedação de interpretação fundamentalista).
Assim, um entendimento fundamental em Supiot, e que se
aproveita na verificação de um humanismo jurídico, é o de se
compreender o Direito como técnica de humanização das técnicas e,
ainda, em se ter uma das tarefas da Ciência do Direito como a de se
identificar déficits antropológicos das teorias jurídicas (tais como a
análise econômica do direito, o utilitarismo, entre outras), de modo a
se restabelecer o sentido da dogmática primeira da pessoa nos
ordenamentos jurídicos.

2.2 Dos Homens Concretos em sua Vida Particular e


Coletiva Conforme Enrique Dussel

Os horizontes de uma Antropologia Filosófica, conforme


adiante indicado na composição da proposta deste artigo,
necessariamente devem ser contrabalanceados com a consciência
latente do objeto próprio de que se está tratando, qual seja, o dos
homens concretos em sua vida única. As abstrações desta
antropologia, em busca da resposta do problema do homem, não
podem negar a realidade em profusão que se desdobra na realidade
social da vida coletiva.
Esta consciência do concreto demanda uma fundamentação
ética anterior, cujo um dos pressupostos seja justamente esta
disposição a, no final das contas, recair toda a apreciação sobre os
horizontes reais das vidas humanas específicas, inseridas nas
contexturas dos sistemas sociais, éticos, jurídicos, políticos, enfim,
sob os efeitos das mais diferentes forças e resultados da vida coletiva
e natural.
A ética da libertação de Enrique Dussel (2002, p. 573) é um
importante instrumento de filosofia neste sentido. Conforme
interpretação proposta por Ludwig (2006, p. 188) é a partir da
verificação das negações práticas que se podem afirmar em
contrapartida os direitos, negando-se a situação de negação dos
direitos suportada pelos diferentes grupos.
Tal fundamentação filosófica é essencial para a
interpretação dos direitos nos casos concretos. Toda a principiologia
jurídica indica a trama aberta do Direito em relação ao real,
262 Movimentos, Direitos e Instituições

permitindo ao intérprete a construção legítima de interpretações e


argumentações em torno dos fatos. Referido trabalho não prossegue
sem um fundamento filosófico que embase o raciocínio e indique os
problemas práticos a serem resolvidos.
Por isso, para a efetiva construção e efetividade dos direitos
humanos, dos direitos de personalidade e dos direitos fundamentais,
sejam direitos individuais ou coletivos, sociais ou políticos, ou, ainda,
direitos e interesses coletivo-difusos ou individuais homogêneos, em
seus diferentes arranjos, é imprescindível o aporte da realidade que
se porte, em um primeiro momento, diante do enfrentamento das
vítimas não intencionais e inevitáveis dos sistemas éticos, o que, no
final das contas, redunda na posição de titulares de direitos privados
do regular exercício deles.
No sistema constitucional, as instituições democráticas, os
poderes constituídos e as funções essenciais à justiça não podem se
furtar de suas competências para a plena realização tanto dos
fundamentos quanto, sobretudo, dos objetivos constitucionais. No
entanto, sem a identificação concreta das necessidades não se pode
realizar tais funções com a adequação normativa esperada.

2.3 A Condição Humana como Contexto do


Problema do Homem

As reflexões filosóficas sobre a condição humana,


intensificadas após o cenário de barbáries da Segunda Guerra
Mundial, no trabalho de autores como Ortega y Gasset, Primo Levi
(“É Isso um Homem?”), Alexander Soljenítsin (“Arquipélago Gulag”) –
estes dois, ao relatarem a experiência de campos de concentração e
de trabalhos forçados, demonstram a influencia externa dos sistemas
políticos sobre as vidas individuais e sua aniquilação – e Hannah
Arendt (2000, p. 2), levantam uma série de problemas da existência
humana e que não podem passar ao largo de uma filosofia jurídica
comprometida com a complexidade da vida humana, sua expressão
na convivência coletiva e suas necessidades de justiça e de cuidado
como meio de manutenção e afirmação desta vida própria.
O problema filosófico da condição humana, assim, indica,
conforme entendimento de Hannah Arendt, que os homens se
encontram condicionados por elementos circundantes, a partir dos
quais produzem suas vidas por meio da ação, do labor e do trabalho.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 263

Assim, o mundo, no qual se pode verificar a vida ativa,


resulta de produções diversas das atividades humanas, em uma
relação recíproca de determinação, vindo o que foi criado a implicar
seus criadores. Os homens vêm ao mundo e se encontram
abarcados em diferentes condições, ao compasso de, no curso de
suas vidas, criarem outras tantas, exercendo sua força condicionante
e submetendo-se a outras forças condicionadoras, em um processo
constante de recriação do natural e do social.
A condição humana, deste modo, apresenta-se como um
espaço de influxo e integração constante, ao qual se agregam
progressivamente as diferentes experiências de vida, ressignificando-
se as dinâmicas da vida ativa, alinhando-se com a objetividade do
mundo, conferindo-se o sentido recíproco.
Se a busca por uma natureza humana aponta, nos termos
de uma antropologia filosófica, a tentativa de estabelecer a essência
do humano (racional, linguístico, político etc.) e suas características
universais – um esforço, como é consabido, frustrado, mas nem por
isso desprovido de sentidos encontrados na busca, que pode auxiliar
o esclarecimento da alteridade, por exemplo –, a relação da condição
humana aponta para a verificação contextual e relacional do ser
humano consigo, com o mundo e com as outras pessoas, resultando
em distinta soma de fatores diversos envolvidos na conformação de
uma vida em concreto e particular.
Um importante critério de distinção seria o exemplo da
migração da humanidade para outro planeta: com isso, as noções de
trabalho, ação, verdade, o sentido da existência humana, enfim, tais
conceitos seriam alterados em todos os seus elementos condicionais:
o meio ambiente seria outro, a forma de existência e conjugação de
esforços, a estrutura de interesses e necessidades, ou seja, tratar-se-
ia de condição humana distinta, mas com humanos em contexto
diferente, daí a distinção entre condição e natureza humana. Por isso
a discussão sobre a condição humana indica ao contexto, enquanto a
da natureza humana, mesmo com sua provisoriedade, indica para o
objeto visado, o ser humano enquanto ser.
Deste modo, a condição humana congloba tanto condições
naturalmente fixadas quanto outras socialmente construídas e, ainda,
se considera o espaço do indivíduo de mudar e manejar novas
condições em sua vida. Esse complexo de condições, que não
determinam (em sentido de determinismo) as vidas, mas que são
importantes para se conhecê-las, permite identificar cenários de
condição humana em que as vidas humanas se desenvolvam.
264 Movimentos, Direitos e Instituições

De um modo mais amplo, a condição humana também


retrata as inevitabilidades e dramas do existir do ser humano,
marcado pelo interregno natalidade-mortalidade, infância,
adolescência e velhice, vulnerabilidade do corpo, o ser lançado no
mundo, a diversidade cultural, e assim por diante.
Assim, referir-se à condição humana insere o ser humano
em um espaço de desenvolvimento de sua personalidade, por isso a
consciência deste elemento filosófico é importante para se construir o
sentido dos direitos. Estes poderão ter funções criativas, corretivas ou
de manutenção das vidas, justamente porque a condição humana
apontará necessidades a serem atendidas e sensibilizará para a
apreciação das vidas concretas, com suas dificuldades e potenciais a
serem identificados e trabalhados por meio das intervenções
jurídicas.
O humanismo jurídico, deste modo, depende da noção de
condição humana para compreender o ser humano em seu contexto
de vida, verificando as suscetibilidades e limitações do ser humano,
assim como as fontes de vida, de interesses e de necessidades
oriundos das diferentes conformações que uma vida concreta pode
assumir.

2.4 Ética do Cuidado como Complemento da Ética da


Justiça ante a Vulnerabilidade Essencial do Humano

A ética do cuidado consiste em um contraponto à ética da


justiça e seu contexto próprio de discussão é, por um lado, o da
enfermagem e da medicina, campos em que o embate com a
fragilidade da vida é direto e constante, e, por outro lado, o da
educação, em que se pergunta sobre a formação moral dos
indivíduos, o que repercute diretamente nas preocupações jurídicas,
de um esteio moral para noções de obrigações, responsabilidade e
demais de interesse ao Direito. (BAIER, 2012, on line; BARBOSA,
2010; BOFF, 2003; GILLIGAN, 1982; NODDINGS, 1984; MAIA,
2009)127.

127
Os autores agrupados neste ponto têm em comum os esforços empreendidos na
realização da ética do cuidado, ora mais vinculados aos debates propriamente do
feminismo, como no caso de Anette Baier (que se contrapõe no campo político a
John Rawls), Nel Noddings (educação) e Carol Gilligan, no contexto norte-
americano, ora procurando abstrair o cuidado como característica humana no trato
com outros humanos e com o meio ambiente, ao exemplo dos brasileiros Leonardo
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 265

Atualmente, a Filosofia do Direito e demais debates jurídicos


em outras searas não prescindem, ao menos, da busca de um
horizonte do sentido de justiça na contemporaneidade, que é
complexa e agrega muitas camadas de discussão, desde refinados
posicionamentos sociológicos até teorias jurídicas sofisticadas, do
espaço da hermenêutica e da argumentação.
Todavia, o trabalho jurídico de preocupação exclusiva com a
fixação de modalidades, possibilidades e variantes do conceito de
justiça, tanto em tempo quanto em espaço, não é suficiente para
abarcar a trama de direitos e princípios do ordenamento, nem
tampouco suas pretensões de efetividade.
Muitos preceitos jurídicos trabalham com lógica distinta,
impondo um posicionamento de tutela e cuidado, que não são
exclusivos aportes da ética da justiça, mas sim da ética do cuidado. O
próprio tema dos direitos humanos constantemente alinha, em seus
documentos, a promoção e a proteção dos direitos aos mais básicos
sentidos da justiça.
Portanto, no âmbito do humanismo jurídico há de se
verificar um entrelaçamento entre as éticas da justiça e do cuidado.
A ética do cuidado pontua importantes distinções, a partir de
diferenciações de modo de apreciação do mundo segundo padrões
dos gêneros masculino e feminino. Sem adentrar ao campo dos
debates do feminismo, pode-se sintetizar tais aportes, tendo em vista
a integralização destes pontos de vista, enfocando-se assim mais sua
conjugação do que sua oposição.
A ética da justiça tem por opositor a opressão, enquanto
que a ética do cuidado o abandono. A preocupação primordial no
processo comunicativo, segundo os preceitos da ética do cuidado, é a
compreensão, enquanto na justiça, a concordância, e, ainda,
sucessivamente, são valores em cada uma das éticas: o vínculo e a

Boff, Vanderlei Barbosa e Marisa Maia. Apesar dos diferentes campos de


afirmação de suas teorias, os autores apresentam em comum preocupações de
base acerca da natureza racional e livre do ser humano, e os imperativos lógicos
decorrentes das exigências desta condição, assim como acerca dos fins últimos do
agir humano, o que lhes imprime um fundamento ético. Neste contexto, os autores,
sob diferentes explicações, buscam contrapontos ao encerramento das pessoas
em seus individualismos egoísticos, cegos à alteridade e à sensibilidade diante do
outro, cuja existência determina a sua existência, de sorte a buscar em tais
fundamentos éticos possibilidades de legitimação da vida política, social e mesmo
jurídico-institucional.
266 Movimentos, Direitos e Instituições

igualdade, a emoção e a razão, o altruísmo e o egoísmo, a prática e a


teoria. Evidentemente que tal posicionamento opositor é reducionista,
mas os contrastes criados pela teoria auxiliam a verificar uma
tentativa de modelo hermenêutico jurídico mais aberto, em que tais
questões não apareceriam problematizadas, do que decorreria um
plexo de questões não contempladas.
Por tais motivos, a ética do cuidado é importante elemento
integrador de uma cosmovisão humanista da realidade jurídica, eis
que auxilia a integração de problemas de ordem moral, coaduna-se
com a centralidade da pessoa humana e sua dignidade e direitos, ao
compasso de fomentar potenciais interpretativos e valorativos do
direito. Mais uma vez, trata-se de posicionamento filosófico e postura
de entendimento das coisas e relações, razão pela qual se assenta
na formação de uma cosmovisão humanista.

2.5 Antropologia Filosófica Enquanto Reflexão


Abstrata Sobre o Ser Humano e seus Problemas

A Antropologia Filosófica é um campo do conhecimento


filosófico cuja preocupação é responder à pergunta: quem é o
homem? Conforme sintetizado por Mondin (1983, p. 9). As
investigações desta Antropologia geralmente congregam diversos
pensadores de tempos e espaços diferentes, abarcando variadas
tradições do pensamento na procura de definições e dimensões da
existência humana, em especial no tocante ao que se poderia
delimitar como uma natureza humana, mais especificamente, quais
seriam os elementos distintivos do ser humano em relação aos outros
seres, e mais, conforme consagrado por Max Scheler, qual seria o
lugar do homem no cosmos.
Os debates da Antropologia Filosófica, conforme se
delimitou no item 2 deste ponto, tratando do aporte de Dussel (2002,
p. 573) e de Ludwig (2006, p. 188) acerca da vida concreta dos
homens em sociedade, se situam em campos profundamente
abstratos, razão pela qual até se podem agrupar as dimensões do
humano em tipos, tal qual realiza Mondin, e mesmo Supiot ao tratar
do homo juridicus. Assim, pode-se pensar em um homo loquens, o
homem da linguagem e comunicação, ou em um homo ludens, o
homem da dimensão lúdica, ou ainda o homo politicus, e assim por
diante, em diferentes expressões do ser humano.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 267

As abstrações da Antropologia Filosófica não haverão de


ser tomadas de modo definitivo e sem considerações com a dinâmica
e necessidades do real. Ao exemplo das categorias de direitos, serve
para apontar grandes cenários de possibilidades, fornecendo
elementos linguísticos e compreensivos para se pensar a realidade
humana e seus elementos componentes e condicionantes. Pode-se
dizer que a antropologia filosófica recai sobre aquele objeto do
contexto dado pela condição humana, indicando elementos de uma
natureza humana, ou, ainda, componentes das diferentes naturezas
humanas e suas expressões, auxiliando a fixar valores em quadros
culturais e conjunturais.
A Antropologia Filosófica – e suas preocupações –, pois, é
um fundamental elemento que integra uma cosmovisão humanista,
justamente porque tem por objeto a reflexão sobre o ser humano e
suas faces e expressões culturais, permitindo assim robustecer a
compreensão e, sobretudo, a construção dos direitos em casos
práticos, a partir do cabedal jurídico disponível nos orbes de direitos
subjetivos e demais princípios vigentes na contemporaneidade
jurídica.

2.6 Alteridade como Meio de Acesso ao Outro e


Imprescindível Aporte de Comunicação Humana e
Exercício Ético

Na linha do que se expôs acima e no cenário de


preocupações filosóficas que integram a proposta de uma
Weltanschauung humanista, é de se destacar o papel da alteridade
na formação desta cosmovisão indicada.
Pode-se afirmar que sem o mínimo senso de alteridade
sequer haveria a noção de direitos, eis que o vínculo mínimo ao outro
estabelece o espaço do respeito e o reconhecimento da atributividade
de posições jurídicas e fáticas insuperáveis.
A alteridade, consagrada pelo pensamento de Buber (1987,
p. 133; 2001, p. 118; 2011, p. 60) e Lévinas (1988, p. 77-79; 2009, p.
100; 2010, p. 297), sobretudo, fixa a ética como filosofia primeira, de
modo que antes mesmo das preocupações ontológicas haveria o
reconhecimento inicial do outro que se apresenta a mim, me define e,
com isso, determina o modo de existência do humano em suas
fundações primeiras, o que impõe uma responsabilidade infinita
diante do outro amplamente considerado e existencialmente amplo.
268 Movimentos, Direitos e Instituições

A alteridade também pode ser vista como uma chave


cognitiva para acessar o imenso repertório de variantes e práticas
culturais, assim como ferramenta mental de visualização das
diferenças e estipulação de diálogos. Além disso, o senso de
alteridade, na percepção de Lévinas, é o que fornece a abertura ao
rosto do outro, expressão de sua humanidade, vulnerabilidade e
condição humana enquanto enfrentamento e manifestação, enquanto
consolidação de uma identidade e de uma subjetividade reunidos em
um sujeito único e inatacável, porque a vedação do homicídio e
outros ataques é plena.
Deste modo, a alteridade abre os espaços da
intersubjetividade, fixando pontes e estabelecendo comunicação
entre os sujeitos, o que reforça o senso de humanidade, que é ínsito
ao humanismo, e estimula o reconhecimento de titularidades e
exercícios de direitos subjetivos, uma das maiores preocupações
jurídicas em termos de efetividade.
A alteridade, portanto, é o elemento filosófico da
Weltanschauung humanista que permite o ponto de parada ante o
outro, o afastamento à redutibilidade do mesmo, e que franqueia a
construção de diálogos e contemporizações sem as quais não se
pode pensar em uma legítima juridicidade construída a partir dos
preceitos mais caros das categorias de direitos e demais princípios de
direito.

2.7 Subjetividade Enquanto Centro da Pessoa e seu


Valor Jurídico

A subjetividade permite um núcleo de reflexão e avaliação


das formas e instâncias do pensamento, sentimentos e ações sobre o
conhecimento do Direito e do Direito sobre a sociedade. A
subjetividade entendida como um centro de atividade reflexiva é tema
essencialmente filosófico e é esta abordagem que permite o diálogo
da Filosofia com os problemas jurídicos.
Os sentidos históricos da subjetividade, sem prejuízo das
contemporâneas preocupações em torno da questão, permitem
visualizar um complexo cenário da interioridade dos sujeitos, das
narrativas integrantes de suas personalidades e posições sociais,
assim como das variações de suas expressividades sociais. Com
isso, o Direito também é, em sua cosmovisão humanista,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 269

sensibilizado para a variação de modos de vida humana e implicado


pelas tutelas necessárias.
O panorama fornecido por Atkins (2005, p. 4), assim como
Clewell (2007, p. 123) e Hall (2004, p. 134), revela o desdobramento
histórico da noção de subjetividade, desde um assento moderno,
essencialmente epistemológico, em que a subjetividade marca um
modo de produção do conhecimento com centro no sujeito, até a
noção pós-moderna, de cunho sociológico, que verifica na
subjetividade um centro integrador de narrativas e experiências de
vida, que forjam uma identidade compartilhada a partir de elementos
comunicados.
No contexto das preocupações humanistas, o conceito de
subjetividade é útil para ser agregado nas demandas de igualdade e
dignidade, posto que revela os diferentes modos de ser dos seres
humanos, em suas condições e a partir de sua natureza, sempre
agregando diferentes arranjos culturais de práticas e convivências,
apontando então para as conformações individuais que consolidam
diferentes aportes significativos.
A subjetividade é essencial para compreender relações de
gêneros diversas, condições culturais e pessoais dos destinatários
dos direitos, assim como, novamente, sensibiliza para a riqueza do
humano e sua necessidade de regulamentação e proteção ante
abusos de diferentes tipos.
Assim a subjetividade, por ser próxima dos direitos de
personalidade, aponta para um núcleo intimo de proteção das
expressões humanas, constituindo verdadeiro valor jurídico a ser
tutelado e fomentado, e no contexto humanista é mais um elemento
que favorece o enfrentamento do extenso, complexo e inegável
problema do ser humano.

2.8 A Vulnerabilidade Inerente à Condição Humana

A vulnerabilidade se aproxima ao debate da condição


humana e pode ser compreendido como uma das dimensões da
própria natureza humana. Relaciona-se com a corporalidade, finitude
e mortalidade do ser humano, e também se vincula aos debates do
meio ambiente em todos os seus conceitos constitucionais.
Além disso, também se constitui como categoria jurídica
propriamente dita, especialmente utilizada no Direito do Consumidor,
270 Movimentos, Direitos e Instituições

conforme Marques (2012, p. 25) aponta o vulnerável e o


hipervulnerável, e do Trabalho, distinguindo-se da hipossuficiência
(critério mais específico que intensifica a necessidade de proteção do
indivíduo), mas a ela se somando no reclame por maior atenção e
tutela, além de regime jurídico diferenciado.
A vulnerabilidade é um indicativo amplo que abarca se
considerada a partir da condição humana, todos os sujeitos e, ainda,
indica a importância dos direitos como forma de se proteger de tal
exposição.
O direito à vida como direito ao corpo, morada primeira, e o
direito à moradia, são exemplos de escudos jurídicos que aproveitam
aos sujeitos para manutenção e desenvolvimento de suas vidas. Em
diferentes momentos o Direito regulamenta a vulnerabilidade, nos
casos de diminuição da voluntariedade, redução da espontaneidade,
da autonomia e capacidade, assim como da autodeterminação.
Ao mesmo tempo, as situações de suscetibilidade,
fragilidade, desigualdade, assim como os laços de solidariedade,
todos constitucionalmente privilegiados pelos fundamentos e
objetivos constitucionais, fundamentam a consciência da fragilidade
da vida do ser humano, e, ainda, de toda a estrutura ambiental,
indicando à responsabilidade compartilhada, fundamentada pelo
senso de alteridade.

2.9 Respeito e Reconhecimento como Concorrentes


da Alteridade

Conforme já foi visto nos pontos precedentes, a


necessidade de respeito e de reconhecimento é condição de
incidência dos direitos, inclusive expressamente uma postura
recomendada na exposição de motivos de diversos diplomas de
direitos humanos, uma vez que, sem suas noções, interligadas que
são aos demais conceitos trabalhados nos pontos anteriores, não se
pode alcançar a esfera cognitiva necessária para a construção dos
direitos, sem o que, por sua vez, nem sequer se pode pensar em sua
efetividade.
Segundo Dillon (2010, on line) o respeito é considerado um
valor pessoal, sociológico, politico, moral e jurídico, com relevância
nas discussões filosóficas diversas, uma vez que as complexas
relações estabelecidas entre os seres humanos, assim como destes
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 271

com outros seres e o meio ambiente, demanda o posicionamento


interditório e de recuo trazido pelo respeito, incluindo-se no conceito a
dimensão de reconhecimento e estima, por isso da proximidade das
discussões.
O respeito e o reconhecimento, assim, conjugados com as
demais capacidades filosóficas acima dispostas, assim como as
técnicas a seguir debatidas, abrem o espaço necessário à valoração
e à compreensão dos diversos sentidos da vida envolvidos em
qualquer dinâmica da convivência, posto que o vínculo de
reconhecimento essencial é o dos preceitos jurídicos que
estabelecem direitos e que, a partir da dogmática fundamental de
constitutividade do homo juridicus indica a posição do ser humano na
ordem das coisas.
Desta maneira, o respeito e o reconhecimento indicam
movimentos mentais de valoração (especialmente ético-jurídicas) de
objetos e, ao mesmo tempo, verificação de valores intrínsecos a este
mesmo objeto, de modo que a cognição pode se realizar de dois
modos, portanto, pela via da valoração intrínseca e extrínseca. Trata-
se de conferir o status devido e levar em consideração as posições
iniciais assumidas pelos sujeitos, assim como suas identidades e
subjetividades, cujo significado prévio é dado pelo Direito.
O efeito jurídico mais imediato de toda a postura acima
indicada é justamente o assento inarredável da dignidade da pessoa
humana, que aponta para esta posição inicial e insuperável que
juridicamente determina a consideração, o respeito e o
reconhecimento sobre todas as pessoas, a despeito, inclusive, de
suas condutas, o que reverbera em especial no campo do Direito e
Processo Penais, tanto que se nomina o garantismo como uma das
dimensões do humanismo jurídico atual e sua cosmovisão.
A assunção da dignidade e dos direitos subjetivos, portanto,
determinam um espaço inicial bem delimitado de respeito e
reconhecimento, por todas as vias: dos agentes públicos aos
cidadãos, dos cidadãos entre si, enfim, entre todas as pessoas
envolvidas nas dinâmicas de convivência, abarcando-se inclusive
cuidadosos aportes sobre todos os seres vivos, espécies,
ecossistemas, assim como culturas e comunidades tradicionais.
272 Movimentos, Direitos e Instituições

2.10 Humanização do Direito Internacional, Direitos


Humanos e a Regra de Interpretação Pro Homine

A humanização do Direito Internacional consiste na


constatação, por Trindade (2006, p. IX), do papel assumido por este
Direito enquanto expressão de um direito comum a toda a
humanidade, exaltando o homem, indivíduo concreto, expressão do
ser humano, enquanto centro de toda a preocupação jurídica e dos
esforços da atuação pública e privada na produção da vida coletiva.
A partir deste centro de preocupação jurídica,
normativamente construído e filosoficamente inspirado, é que se
buscariam as respostas aos problemas contemporâneos do meio
ambiente, da miséria e da pobreza, do terrorismo, enfim, questões
relativas aos direitos humanos e cuja cognição não pode se limitar,
por exemplo, apenas à racionalidade econômica e de mercado.
A superação das teorias realistas estatocêntricas (impondo
a racionalidade da humanidade sobre a racionalidade estatal) do
Direito Internacional, revelada por meio da exposição de motivos dos
diplomas de direitos humanos, quando tratam da consciência jurídica
universal e da humanidade, indica a imperatividade dos direitos e a
busca constante de qualidade de vida universalizada, em um sistema
de interpretação que não se priva de avaliar a utilizar os valores deste
mesmo Direito Internacional.
O reconhecimento do ser humano como sujeito do Direito
Internacional, sua capacidade jurídica e a limitação aos poderes
estatais advindo desta posição do homem são historicamente
demonstrados e avaliados por Trindade. (2001, p. 13-25). Os
Estados, assim, relativizando-se o dogma da soberania estatal,
submetem-se aos preceitos do próprio Direito Internacional.
O caráter de jus cogens do Direito Internacional, assim,
informa o cenário interestatal, preceituando valores e princípios,
assim como regras, verdadeiramente normatizando a atividade
estatal em uma nova ordem internacional, dedicada à vedação do uso
da força e da guerra, ao compasso de se promover a manutenção da
paz, da segurança mundial e do atendimento dos direitos e liberdades
fundamentais, reafirmando ideais de justiça.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos, somado ao
Humanitário e ao dos Refugiados, representa a marca de novos
ideais e significações da dignidade humana, indicando que os
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 273

contextos vividos demandam novas e precisas interpretações. A


jurisprudência dos Tribunais Internacionais, sem prejuízo dos
avanços materiais dos direitos humanos, aponta a crescente
efetividade da prestação jurisdicional neste orbe do direito prático.
O direito comum da humanidade e a supremacia deste
modo cognitivo e valorativo em relação à racionalidade
estatocêntrica, portanto, revelam que a centralidade do ser humano e
seu protagonismo também no Direito Internacional impõem a
interpretação finalística de construção do bem comum e
desenvolvimento das personalidades individuais sem óbices políticos
e arbitrários.
A regra de interpretação pro homine pode ser destacada
neste contexto como elemento fundamental de concretização e
efetividade dos direitos, uma vez que sua expressa recomendação é
a de que se realize a interpretação de modo a maximizar o regime
jurídico protetivo do indivíduo, agregando-lhe o máximo de garantias
e proteção de direitos em determinado caso concreto sob apreço.
Este referido movimento de humanização de um ramo do
Direito revela a importante presença do pensamento humanista
enquanto afirmação do ser humano, conforme linha de pensamento
que se tem desenvolvido neste artigo. Por isso, o ponto de vista de
Trindade, assim como do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
de modo mais abrangente, constituem aportes imprescindíveis para
se delinear elementos do humanismo jurídico contemporâneo
enquanto cosmovisão jurídica, igualmente.

2.11 Categoria Constitucional do Humanismo: o


Sistema Constitucional como Afirmação Positiva dos
Preceitos Humanistas

A interpretação de Carlos Ayres Britto (2007, p. 19-23),


buscando os fundamentos filosóficos do texto constitucional, aponta
ao humanismo como verdadeira categoria constitucional, ou seja, um
posicionamento filosófico positivado e tornado de inconteste
juridicidade a partir do texto constitucional.
A partir da polissemia do humanismo, que indica tanto uma
filosofia quanto um campo de conhecimentos valorizados (estudos
clássicos), fixa-se o sentido de reverência e cultivo da humanidade
entendida em sua totalidade. Localizando no centro o ser humano,
274 Movimentos, Direitos e Instituições

declina as funções da organização social, vetorizada no sentido da


dignidade inata de seus integrantes, afirmando assim alguns
preceitos constitucionais convergentes: igualdade de oportunidades e
fomento público de acesso político, econômico e educacional; acesso
aos serviços públicos e seguridade social; pluralismo político e
vedação de discriminações de qualquer sorte.
O sistema constitucional, assim, é humanista porque declina
suas regras em torno da dignidade e tem por base a sua defesa e
promoção, aproximando humanismo e democracia, por força do
sufrágio universal e secreto, possibilidade de audiências públicas e
outras interfaces interativas proporcionadas pela Constituição. O
humanismo, assim entendido, assume vocação política, afirmando os
objetivos da República e seus fundamentos.
O aporte constitucional do humanismo, detalhado por Britto,
demonstra a importância do Direito Constitucional, sua interpretação
e seus instrumentos hermenêuticos, para a formação da cosmovisão
humanista que se pretende defender neste artigo, demonstrando
como a integração dos princípios e dos direitos jurídicos soma-se em
uma apreensão e valoração geral da realidade.

2.12 Modelo do Estado Humanista: Racionalidade


Jurídica e Diálogo das Fontes na Integração dos
Significados Jurídico-Tuitivos

A percepção de um modelo de Estado Humanista tem sido


defendida por Gomes e Mazzuoli (2010, p. 195) a partir da
preponderância do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
enfatizando assim tanto a Constituição Federal quanto os Tratados e a
legislação ordinária, indicando um caminho de interpretação do plano
material, inclusive, fortalecido pela teoria do diálogo das fontes: as
referências se retroalimentam e se complementam. A regra de
interpretação pro homine, igualmente, reforça o sistema, determinando
a aplicação no caso concreto da interpretação global que mais amplie o
gozo de direito, liberdade ou garantia.
Para os autores, o Estado Constitucional e Humanista de
Direito consiste na mais recente evolução do sistema jurídico,
possuindo como fontes normativas as leis, os códigos, a Constituição,
a jurisprudência interna, os tratados internacionais, a jurisprudência
internacional e o direito universal, que possui valor supraconstitucional.
A densificação histórica de cada uma destas fontes representou um
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 275

momento de conformação estatal: absolutista, legalista, constitucional,


constitucional e internacional, e, por fim, o estado constitucional e
humanista, perfazendo uma macrogarantia ante o exercício do poder,
que deve atender aos direitos para se expressar legitimamente.
O arranjo de Estado, Direito e Justiça representa a primeira
garantia do indivíduo, limitando-se o exercício do poder político e
determinando ponto de equilíbrio e contemporização dos interesses
públicos, coletivos e individuais. Por isso, pela proposta de integração e
diálogo de fontes, ampliando à cognição dos casos a incidência dos
direitos humanos de modo inconteste, ressalta-se a pertinência do
modelo de Estado Humanista na conformação de uma cosmovisão
humanista, que determina uma racionalidade pública e um modo
próprio de convivência e desenvolvimento da vida individual e coletiva.

2.13 O Garantismo e sua Função na Tutela,


Efetividade, Concreção e Concretização do Sistema
Jurídico Humanista

A garantia dos direitos é vital pressuposto de sua efetividade.


A contribuição de Ferrajoli (2006, p. 20) é relevante para verificar-se
que a interpretação do Direito como estrutura social garantista
representa mais do que um entendimento dos âmbitos da ciência do
Direito Penal, permitindo compreender um modelo de teoria geral do
direito e de crítica política. A contribuição do garantismo, portanto, é a
de reforçar o corpo de direitos com as respectivas garantias, compondo
uma harmonia de ordens formal e material.
Por isso, o garantismo também integra uma cosmovisão
humanista na medida em que traz o aporte jurídico de reforço da
efetividade e compromisso com a integração hermenêutica dos
direitos, fornecendo mais uma das dimensões da tutela jurídica da
pessoa humana, o que representa a afirmação de uma racionalidade
humanista.

2.14 Dignidade da Pessoa Humana e as Categorias de


Direitos: Direitos Humanos, Direitos Fundamentais e
Direitos da Personalidade
A dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional
da República Federativa do Brasil, é conceito essencial para a
problemática humanista, justamente porque assente nas projeções da
276 Movimentos, Direitos e Instituições

pessoa humana enquanto expressão social cuja dignidade obsta


condutas ante a si e impõe prestações, de modo abrangente e em
relação a todos os indivíduos, sem restrições, posto tratar-se de
dignidade inerente e ôntica, oriunda do ser-ser-humano. (SARLET,
2001, p. 10).
As diversas categorias de direitos permitem estabelecer
algumas das crenças fundamentais de uma sociedade e que devem
ser promovidas e protegidas por meio do Direito. Sem adentrar aos
seus conteúdos e definição doutrinária, bem como em suas diferenças
e pontos de contato, destaca-se o papel das categorias de direitos
subjetivos, sejam os de personalidade, sejam os fundamentais, sejam
os humanos, como conteúdo dos fundamentos de enfrentamento das
vidas individuais em sociedade, ou seja, parâmetros de identificação
das pretensões e fomento do ordenamento jurídico em relação às
pessoas. (SOUSA, 1995, p. 15; SZANIAWSKI, 2005, p. 559;
TRINDADE, 1997, p. 20; SARLET, 2007, p. 5).
Assim, apenas faz-se referência aos direitos de
personalidade, direitos fundamentais e direitos humanos enquanto
grandes categorias e pensados em suas projeções individuais e
coletivas, para reforçar que uma compreensão humanista
necessariamente fará referência à titularidade destes direitos como
meio próprio de afirmar a proteção humana a partir do Direito.

2.15 A Virtude Democrática da Tolerância

A virtude da tolerância, valor democrático, também pode ser


destacada no contexto de uma cosmovisão humanista, especialmente
porque favorece à convivência e estimula a proteção e a afirmação
dos direitos. Isso porque a ideia de tolerância envolve questões sobre
alteridade, assimetria e respeito, assim como visa à apreciação de
projetos existenciais incomparáveis e aos quais se assegure o
reconhecimento da dignidade e da diversidade, apontando para
valores partilhados como limites do tolerável e revelando a busca por
integridade de valores na sociedade. (WALZER, 1999, p. 37;
ZANGHI, 2003, on line).
A tolerância é uma essencial virtude para manutenção das
sociedades democráticas e para a formação e a prática da cidadania,
envolvendo uma relação de alteridade e, assim, permitindo o acesso
ao outro, chegando-se ao respeito. A consciência de que cada ser
humano possui um projeto existencial único fomenta a consciência da
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 277

diversidade e encontra na democracia o espaço próprio para


afirmação destas diferenças e reconhecimento do outro.
A tolerância, ainda, indica limites da diversidade, de modo a
se precisar um mínimo de características humanas exaltáveis, e outro
reprovável e que deve ser evitado pelas pessoas, abstendo-se, ainda,
neste labor, o procedimento de traçar projetos hegemônicos de vida.
A partir destas premissas da tolerância é que se pode projetá-la nos
cenários democráticos e permitir consensos comunicativos e painéis
de debate que ajustem as necessidades e projetos humanos
envolvidos, indicando um sistema íntegro de valores sociais e,
especialmente a partir dos direitos humanos, também jurídicos.
Portanto, é por sua coligação às noções de alteridade,
respeito e reconhecimento que a tolerância ingressa como mais um
médium humanista, capaz de veicular a cosmovisão que se defende
nesta proposta.

2.16 Pensamento Democrático e Republicano

Conforme foi visto, para Britto (2007, p. 5) o próprio


humanismo, em certo momento e compreensão, identifica-se com a
democracia, por toda a rede de atendimento de direitos
constitucionais afirmados e realizados pelo direito em todas as suas
estruturas de poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Todo o
sistema constitucional, posto em movimento, representa uma moção
humanista porque vinculada aos direitos e a concretização destes por
meio do trabalho das instituições democráticas.
Bignotto (2000, p. 62) também demonstra como o
humanismo cívico influenciou a formação do pensamento republicano
e de seus valores, justamente pela vida ativa política representar-se,
na esfera pública, o máxime de manifestação da axiologia mais cara
à humanidade. A ideia de bem público que fundamenta o regime
coaduna-se com a pretensão popular democrática, tendo ambas por
mote a fundação humana das leis e da sociedade, a necessidade de
valores informativos e a limitação de poderes. A prática da liberdade,
assim, se assenta em uma conformação institucional favorável e
especificamente pensada para tanto.
O pensamento republicano, assim, não apenas se opõe à
monarquia como forma de governo, mas também expressa valores
republicanos, e aí sua relevância à cosmovisão humanista, assim
como à democracia, em que a noção de soberania popular reafirma o
278 Movimentos, Direitos e Instituições

compromisso público com o atendimento dos direitos e interesses


legítimos individuais e coletivos.
Deste modo, é ínsito ao pensamento republicano e
democrático o fator originário humano, sendo o papel do homem
central em sua gênese: o homem da cidade, o homem da
comunidade, o homem do povo, mas sempre o ser humano como
fundamento e finalidade, o que implica considerar os dilemas da
condição humana, a dignidade humana e o atendimento e tutela de
necessidades como fins da vida política e coletiva, assim como razão
de ser do Estado e da comunidade política.

CONCLUSÃO

A proposta deste artigo foi a de flexionar as possibilidades


de uma cosmovisão humanista a partir de elementos do ordenamento
jurídico brasileiro, considerando-se as fundações filosóficas para
tanto tecidas. Assim, realizaram-se aportes sem adentrar a
especificidades do ordenamento (por exemplo, diplomas tuitivos do
consumidor, trabalhador, criança, idoso etc.), realizando-se a leitura
com remissões mais amplas, eis que a preocupação central consistiu
em, em breve medida, catalogar algumas dimensões da visão
humanista da realidade social e da convivência.
Enfocaram-se, sem pretensões de exaurir as possibilidades,
alguns posicionamentos teóricos, vistos sem a finalidade de sintetizar
suas bases, mas já assumindo seus sentidos para expressar sua
adequação tanto aos outros elementos explorados quanto,
principalmente, ao cerne do problema, qual seja, a substância da
cosmovisão humanista, jurídica.
A partir do entendimento da definição de dogmática jurídica
do ser humano, expressa pelo termo homo juridicus, construíram-se
algumas relações centradas no jogo abstrato e concreto, por meio
tanto da Antropologia Filosófica e do paradigma da vida concreta dos
indivíduos em sociedade, quanto por meio de conceitos de
ancoragem e movimento, por exemplo, a subjetividade, a condição
humana, movidos pelas relações da alteridade, do respeito e o
reconhecimento.
Assim, objetivou-se contribuir com o debate filosófico
jurídico em prol do enfrentamento da complexidade dos problemas
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 279

contemporâneos a partir de uma cosmovisão própria que, por integrar


diferentes dimensões do pensamento jurídico e filosófico, pode servir
de instrumento para se integrar na apreciação dos casos concretos e
nas resoluções e valorações de relações da convivência.

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CAPÍTULO 12

OS DESAFIOS DA GOVERNAÇÃO URBANA: A


PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS NA GESTÃO
DOS TERRITÓRIOS

128
Isabel Ferreira
129
Claudino Ferreira
RESUMO

A governação e gestão urbana enfrentam uma série de dilemas que


têm estado na origem de movimentos crescentes em torno de
modelos democráticos mais participados. Refletindo sobre os
problemas que vêm suscitando de forma mais ampla o
questionamento e a reinvenção das democracias representativas, o
artigo discute os modelos de governação contemporânea das

128
Isabel Ferreira tem exercido funções na área do planeamento, ordenamento do
território e cultura numa Câmara Municipal desde 2001. Licenciada em Geografia.
Mestre em Ordenamento do território e planeamento ambiental. Atualmente dedica-
se ao doutoramento em Sociologia - cidades e culturas urbanas, no Centro de
Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, com o
apoio de bolsas de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian e do International
Council for Canadian Studies. Áreas de interesse: Cidades e culturas urbanas;
participação pública; governação urbana; inovação social; políticas culturais e
políticas de sustentabilidade. E-mail: <i.alexandra.reis@gmail.com>.
129
Doutor em Sociologia (FEUC-2006). Professor Auxiliar da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra e Investigador do Centro de Estudos Sociais. Co-
Coordenador do Doutoramento em "Cidades e Culturas Urbanas". Director da
Revista Crítica de Ciências Sociais. Áreas de interesse: Cidades e culturas
urbanas; Práticas e políticas culturais; Intervenção cultural nas cidades; Turismo,
lazer e estilos de vida. É autor de várias publicações sobre essas áreas, em torno
das quais tem desenvolvido investigação. E-mail: <claudef@fe.uc.pt>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 283

cidades. Procura problematizar algumas das suas dimensões


essenciais, nomeadamente as relações de poder e o reforço da
participação social, cívica e política dos cidadãos e os seus efeitos no
desenvolvimento urbano e nas vivências democráticas. Analisando o
modo como a participação dos cidadãos vem sendo integrada nos
modelos de governação, dá-se conta das potencialidades e das
limitações das formas de envolvimento dos cidadãos. Sondam-se as
motivações e as forças motoras das práticas de envolvimento público
em duas cidades, uma canadiana e uma portuguesa. Cascais e
Kingston são cidades onde é possível observar, no contexto dos
respetivos países, práticas democráticas avançadas. A partir delas, é
possível retratar os principais traços da governação urbana em cada
país. Procura-se refletir sobre os efeitos das práticas participativas na
governação urbana e nas vivências democráticas das duas cidades e
tendo por referência os valores da democracia representativa e da
democracia participativa.
Palavras-chave: cidadania; democracia; desenvolvimento urbano;
governação; participação.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. GOVERNAÇÃO URBANA; 1.1. ANATOMIA DA


ADMINISTRAÇÃO LOCAL; 2. VALORES E MODELOS DA
DEMOCRACIA REPRESENTATIVA; 3. A PROMESSA DOS
MODELOS DE GOVERNAÇÃO PARTICIPATIVOS; 4. ILUSTRANDO:
PRÁTICAS PARTICIPATIVAS EM AÇÃO; 4.1. CASCAIS, CAPITAL
DA CIDADANIA E DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA; 4.2.
KINGSTON, A CIDADE MAIS SUSTENTÁVEL DO CANADÁ; 4.3.
DISCUTINDO SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O modelo de governação e a forma como é conduzido são


aspetos particularmente críticos para a implementação de políticas
públicas, constituindo uma importante problemática dos estudos
urbanos. A governação urbana, que pressupõe o planeamento, a
regulação e a gestão de várias dimensões da vida urbana, enfrenta
uma série de dilemas em torno do grau e da qualidade da
democraticidade que promove. Reportando-se privilegiadamente a
284 Movimentos, Direitos e Instituições

contextos de maior proximidade, como são os das pequenas e


médias cidades. O texto discute as possibilidades de maior
transparência e imputação de responsabilidade às decisões públicas,
ponderando as condições que podem permitir uma democracia mais
participada e aberta por meio de mecanismos deliberativos e
participativos, maior prontidão na reação das estruturas governativas
aos problemas das pessoas, das suas necessidades e expectativas e
maior justiça distributiva.
O enfoque da discussão centra-se na ideia de que, para lá
das condições materiais e imateriais que servem de recursos ao
desenvolvimento urbano, uma cidade mais justa requer uma
governação que integre ativamente os cidadãos na condução dos
seus destinos e da sua gestão. O reconhecimento da cidadania como
um pressuposto das liberdades individuais e dos direitos
democráticos é hoje relativamente consensual, como demonstram os
discursos políticos e técnicos nas suas mais diversas manifestações
de intenções.
Contudo, persiste um enorme hiato entre os discursos e a
prática. O movimento de cidades que encetam iniciativas e projetos
para promover formas de cidadania e de envolvimento público ativo
tem tido condições, dinâmicas e resultados muito diversos. Na
verdade, o desenvolvimento urbano permanece essencialmente
indexado às dinâmicas de distribuição do capital, que obedecem a
uma lógica nem sempre muito sensível à cidadania e à equidade
social. Tomando como referência as potencialidades do
desenvolvimento local, e apesar das esperanças depositadas no
aumento da autonomia local, os modelos de governação atualmente
dominantes mantêm-se fortemente hierarquizados e burocratizados,
revelando enormes limitações no que diz respeito à inclusão dos
cidadãos nas tomadas de decisões relativas à vida pública.
A temática da participação ativa surge hoje no centro das
teorias de planeamento das cidades e dos modelos políticos
democráticos. (SANTOS, 2003). Contudo, a literatura especializada vem
mostrando vários tipos de dificuldades, que limitam o alcance dessas
práticas. Apesar dos termos participação, envolvimento e implicação
aparecerem repetidamente na retórica política e técnica, a prática revela
escassas iniciativas, que são muitas vezes fragilizadas pela reduzida
mobilização e associação cívica, pela débil capacidade institucional de
operacionalizar metodologias de participação ou, no caso específico
português, por uma cultura política fortemente centralizadora. (GUERRA,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 285

2006). Para além disso, levantam-se interrogações acerca do grau em


que os participantes, nos processos participativos, são capazes de atuar
de acordo com interesses gerais e não particulares, da partilha desigual
das responsabilidades de decisão, dos riscos de manipulação e
hegemonização dos processos pelos grupos mais poderosos
económica, social e simbolicamente (BOOHER, 2008; GUERRA, 2006;
DIVAY et al., 2002; MARTINS, 2000).
Este conjunto de interrogações aponta para uma reflexão
em torno do modo como a questão da participação dos cidadãos vem
sendo integrada aos modelos de governação e às políticas de
desenvolvimento urbano. Essa reflexão deve procurar sondar
simultaneamente o modo como os modelos de governação se
articulam com os interesses, expectativas e condições de vida das
populações. A necessidade de desenvolver a abordagem teórica e
analítica destas questões no contexto das pequenas e médias
cidades é particularmente premente em Portugal, onde é ainda muito
escassa a produção de conhecimento sistemático a este respeito.
Partindo de uma análise global sobre a forma como se
estrutura atualmente a governação urbana, a discussão aqui
apresentada percorre dimensões fundamentais do problema, como as
estratégias governativas e de gestão técnica das cidades, as relações
de poder, a cidadania e o desenvolvimento urbano. A discussão é
ilustrada com recurso a resultados de uma pesquisa em curso, que
analisa comparativamente duas cidades médias: Cascais (Área
Metropolitana de Lisboa, Portugal) e Kingston (Província de Ontário,
Canadá). Conduzida desde 2013, essa pesquisa procura justamente
explorar as questões enunciadas a partir do confronto de duas
cidades, que revelam experiências que se aproximam nalguns
aspetos e se distanciam noutros. Trabalha, para isso, com informação
resultante de uma estratégia de análise de teor predominantemente
qualitativo, apoiada na análise documental, na observação direta e na
realização de entrevistas com pessoas diretamente envolvidas em
processos de gestão urbana de cariz participativo. O confronto de
duas cidades e, por via delas, entre duas culturas políticas e
administrativas distintas (a canadiana e a portuguesa), permite uma
problematização mais consistente e esclarecedora do modo como,
em Portugal, a questão da participação dos cidadãos na governação
urbana vem sendo atualizada.
286 Movimentos, Direitos e Instituições

1. GOVERNAÇÃO URBANA

O nível local vem afirmando-se como a escala privilegiada


de renovação da ação pública, enquadrada nos processos de
descentralização que se difundem pela Europa e pela América do
Norte, ainda que um pouco incipientes em Portugal. É o nível onde,
em consequência da maior proximidade entre decisores e cidadãos,
as políticas melhor podem promover a sustentabilidade social e
responder a desafios de integração que são globais ou comuns a
grande parte das aglomerações urbanas mundiais, esperando-se
mesmo que as comunidades de sucesso sejam as que forem
capazes de reinventar a cidadania local. (POLÈSE; STREN, 2000).
Apesar de pouco extensa, a bibliografia especializada
sugere um quadro interrogativo em torno dos contextos de
proximidade que justificam um questionamento sobre se estes
favorecem ou não uma maior transparência e imputação de
responsabilidades, maior prontidão na reação da classe dirigente aos
problemas das pessoas e das suas necessidades de identificação
territorial e se podem ou não promover uma democracia mais
participada e aberta à sociedade civil. (FRANCISCO, 2007a).
O descontentamento geral com as políticas públicas,
assente numa crescente consciencialização de que as políticas
dominantes, para lá das diferenças partidárias, não combatem efetiva
e eficazmente as causas das desigualdades, expandem-se às
políticas urbanas que, também elas, revelam enormes limitações na
promoção de uma cidadania plena e da garantia de condições
generalizadas de qualidade de vida. Na verdade, enormes parcelas
das liberdades e das necessidades individuais dos cidadãos estão
fortemente comprometidas pelas opções políticas da governação
urbana. Essas políticas sofrem frequentemente de défices de
transparência e avaliação, aspeto que se reflete na desconfiança que,
de forma especialmente evidente no atual contexto de crise, os
cidadãos manifestam face às formas furtivas de construção e
condução das políticas, em todos os níveis de governação. E a crise
econômica significa, para a governação urbana, tão só que, às
antigas e persistentes desigualdades, se vêm juntar carências que
comprometem fatores básicos das liberdades e dos direitos sociais,
como o acesso à habitação, à saúde, à cultura e à educação.
A morfologia das cidades revela o contraste entre o sucesso
material e o insucesso social das sociedades urbanas. Os estudos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 287

sobre desigualdade sugerem que a saúde e a felicidade das pessoas


são mais afetadas pelas diferenças de rendimento dentro da própria
sociedade do que pelas diferenças de rendimento existentes entre
sociedades. (WILKINSON; PICKETT, 2010). É sintomático que em
algumas cidades a diferença da esperança média de vida entre zonas
ricas e zonas mais pobres possa atingir os 17 anos. (MARMOT, 2010).
A governação urbana precisa, por isso, redirecionar o seu
foco, quase sempre muito centrado na competitividade e no sucesso
económico da cidade, incidindo mais decididamente nos fatores críticos
que orientam a tomada de decisão, nomeadamente naqueles que
condicionam os efeitos das decisões sobre a distribuição da riqueza, a
liberdade e os direitos democráticos. Como afirma Amartya Sen:

O problema da desigualdade é, de facto, ampliado se deslocarmos a


atenção da desigualdade de rendimentos para a desigualdade na
distribuição das liberdades concretas e das potencialidades. Isto pode
dever-se principalmente à possibilidade de alguma ‘acumulação’ de,
por um lado, desigualdade de rendimento com, por outro lado,
vantagem desigual na conversão de rendimentos em potencialidades.
(2003, p. 133).

As cidades e as políticas urbanas podem ter um papel


determinante nessa conversão de rendimentos em potencialidades,
dependendo do foco onde se colocam a energia e o investimento. A
pesquisa nesta área evidenciou os efeitos de um urbanismo
preferencialmente voltado para consumidores externos e a atração de
investidores, que potencia os fenómenos de enobrecimento urbano,
fragmentando a cidade e a sociedade. A mobilização social e as
consequentes respostas políticas poderão tornar possível a
reapropriação da cidade pelos cidadãos. Trata-se dos direitos de
cidadania que se materializam em direitos à cidade, ao lugar, a
permanecer onde se elegeu viver, ao espaço público, a um ambiente
que transmita segurança, à mobilidade, à centralidade, à identidade
sociocultural específica, à participação deliberante e ao controlo
social da gestão urbana. (BORJA, 2010).
A complexidade da governação urbana convida, portanto, a
uma reflexão mais detalhada sobre as dinâmicas que estruturam o
funcionamento da administração local e as possibilidades,
decorrentes de lógicas da democracia representativa e da
democracia participativa, de representação e participação dos
interesses individuais e coletivos nas práticas de governação urbana.
288 Movimentos, Direitos e Instituições

1.1 Anatomia da Administração Local

Em Portugal, as formas de organização autárquica das


comunidades locais remontam pelo menos à época medieval, mas só
no âmbito da Constituição da República Portuguesa de 1976 as
autarquias locais passaram a ser dotadas de órgãos eleitos e a
governar e gerir sem a intervenção direta do Estado Central.
Contudo, nem a ligação com o Estado Central se autonomizou
verdadeiramente, nem as práticas locais revelaram evoluções
democráticas significativas ao nível dos modelos de governação.
As transferências de competências para os municípios têm
vindo a aumentar, mas o Estado Central mantém grande parte da
gestão e distribuição de recursos. Mantém-se por isso, também, uma
atuação negociada entre Poder Central e Poder Local para além do
enquadramento normativo, jurídico e financeiro que os delimita
formalmente, propiciando a continuidade de formas tradicionais de
clientelismo, como a proliferação do papel dos notáveis, a
personalização do poder, as fidelidades pessoais e o uso pessoal dos
recursos (RUIVO, 1991). As práticas revelam que, em todos os níveis
da espiral do Poder Local, predomina uma cultura institucional
altamente personalizada, em que os processos de decisão são pouco
abertos e flexíveis, aspetos que se reproduzem em cada nível da
hierarquia governativa.
A agenda política dos executivos locais ocupa o topo da
espiral, sendo as prioridades, muitas vezes, decididas junto do topo
da hierarquia partidária. Os executivos alimentam uma proximidade
(controladora) aos corpos dirigentes, sustentada no modelo de
nomeações por confiança política por meio de comissões de serviço
de três anos. Os dirigentes são ainda absorvidos por crescentes
processos burocráticos, e escasseia a disponibilidade e autonomia
para a focagem nas questões urbanas e nos problemas dos
cidadãos. A cultura hierárquica chega ao fim da linha mediante
processos que alimentam o esvaziamento das competências dos
corpos técnicos, ciclicamente preteridos ou preferidos, ao ritmo das
mudanças políticas em cada ciclo eleitoral e do recurso a serviços
externos.
O papel dos técnicos pode estar, formal e juridicamente,
circunscrito à fundamentação de decisões já tomadas, contendo a
sua capacidade de intervenção num nível que favorece a
monopolização do conhecimento e da informação pelos decisores.
Isto tem como consequência a fragilidade, para o serviço público, das
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 289

competências técnicas disponíveis. Este confinamento do papel dos


técnicos, por sua vez, parece exacerbar a necessidade de afirmar a
relevância dos conhecimentos técnicos e não deixa muito espaço
para práticas mais dialogantes com os cidadãos. Isso dificulta, por um
lado, uma visão mais ampla e complexa do território e dos seus
problemas e, por outro lado, o desenvolvimento de soluções e
políticas mais próximas das necessidades e ambições dos cidadãos.
Acresce que, mesmo dispondo de valências técnicas
adequadas, os executivos optam muitas vezes por recorrer a serviços
externos, por questões de confiança profissional e política ou pela
necessidade de recurso a consultorias de alto nível de
especialização. Estes processos reduzem o campo de ação dos
técnicos, confinando-os, sobretudo, ao papel de transferir o seu
conhecimento aprofundado sobre os territórios. Ainda que as
propostas resultantes destas consultorias sejam importantes, criativas
e inovadoras, o serviço público é penalizado porque se perde a
oportunidade de aprendizagem, pelos técnicos, do saber-fazer.
Embora sejam muitas vezes eles quem tem de implementar as
propostas, fazem-nas em condições pouco adequadas à necessidade
de zelar pelo interesse público das opções tomadas. Questionam-se
assim os efeitos que esta lógica dos processos de tomada de decisão
tem na democratização da esfera de ação dos municípios, bem como
na tão proclamada eficiência e modernização dos serviços públicos.
Este quadro de atuação interna dos municípios não permite
uma estabilidade organizacional suficiente para que, do lado dos
quadros técnicos, se possa passar do nível da gestão administrativa
interna para o desenvolvimento de uma cultura de autonomia técnica
e de cidadania organizacional; nem para que, do lado dos executivos
municipais, se possa passar de um nível de governação assente em
práticas de decisões herméticas, que não cumprem critérios de
transparência, prestação de contas e avaliação (accountability), para
um nível de governação que se abra ao diálogo e à participação.
O funcionamento da administração local em Portugal ainda
assenta-se num modelo fortemente burocrático, onde,
predominantemente, a comunicação assume um carácter formal e
visa, sobretudo, dar a conhecer as decisões tomadas, num sistema
de valores associados à democracia representativa. Interessa
analisar com mais atenção a influência dos valores que a democracia
representativa aporta à governação urbana contemporânea e a forma
como se materializam nos modelos e práticas de gestão urbana.
290 Movimentos, Direitos e Instituições

2. VALORES E MODELOS DA DEMOCRACIA


REPRESENTATIVA

Do ponto de vista prático, nos modos de governação


suportados politicamente pelos princípios da democracia
representativa, os cidadãos são entendidos essencialmente como
objetos de um modelo de governação orientado por práticas e
discursos tecnocráticos. É-lhes atribuído um papel de participação
direta no processo de decisão muito escasso e frágil, restando-lhes,
no essencial, controlar o seu governo por meio da escolha entre elites
que competem entre si nas eleições. Os argumentos a favor desta
democracia elitista são que tende a ser mais esclarecida e eficaz,
evita interferências pouco informadas nas políticas públicas,
apresenta boas condições para a prestação de contas e são claros e
identificáveis os agentes principais. (HANBERGER, 2006).
No entanto, e apesar de discursivamente se procurar
difundir “sistemas de imagens sobre a simplicidade da sua
organização e actuação” (RUIVO, 1991, p. 193), as práticas sugerem
alguma perversidade, tomando a forma do Estado Labiríntico que
sobrepõe aos interesses coletivos os interesses individuais e
organizados e à regulação vertical e formal uma regulação cruzada e
informal. (RUIVO, 1991, p. 193)
A comunicação entre cidadãos, eleitos e corpos técnicos
das câmaras municipais concretiza-se predominantemente mediante,
por um lado, os meios de comunicação social locais, que
acompanham os momentos e eventos públicos dos executivos, e, por
outro lado, pelas interações diretas com a administração local e pelos
meios de divulgação e discussão, legalmente previstos, de
resoluções.
Sobre a comunicação social, a massa crítica existente na
maior parte das cidades por esta via não permite mais do que
explorar diferendos políticos que animam as dinâmicas partidárias
locais. Não resulta daqui uma matriz consistente de informação que
permita dar a conhecer, e colocar em verdadeiro debate, intenções,
ações e efeitos das políticas urbanas.
No contexto das interações diretas dos cidadãos com a
administração local, esta última tende a reproduzir os modos de
atuações verticais já referidos, alimentando a impermeabilidade
formal do processo de tomada de decisão e favorecendo formas de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 291

permeabilidade informal. No âmbito dos meios de divulgação e


discussão legalmente previstos, nomeadamente por meio das
reuniões públicas, discussões públicas, assembleias municipais,
editais ou publicações em Diário da República, a informação
veiculada é muito limitada, não permitindo uma descodificação de
intenções e opções. São grandes por isso as dificuldades para
interpretar e descortinar as dinâmicas e intenções em presença.
Mesmo para os próprios atores políticos, o acompanhamento das
políticas e das decisões estratégicas e de gestão por intermédio
daqueles meios é uma tarefa intrincada. A ordem de trabalhos
proposta pelos executivos é comunicada, por um lado, num prazo que
não permite, na maior parte dos casos, a análise refletida sobre os
assuntos. Por outro lado, essa comunicação é feita num formato de
proposta praticamente fechada, que torna invisíveis os fundamentos e
desenvolvimentos dos processos. Assim, as práticas governativas,
mais do que evitar impactos desinformados na formulação de
políticas públicas, a que se propõe o modelo representativo,
promovem uma desinformação técnica e politica sobre os
fundamentos das políticas públicas.
Existem ainda alguns mecanismos que permitem a
participação direta dos cidadãos nas deliberações municipais, como
os referendos locais ou o direito de petição. Contudo, na maior parte
dos casos, as informações fornecidas numa fase adiantada dos
processos e com elevados níveis de compromissos que as
deliberações apenas vão formalizar, tornam qualquer iniciativa
extemporânea.
Assim, a transparência das políticas urbanas depende
grandemente da vontade e do grau de comunicação dos executivos.
Os políticos da oposição, muitas vezes com experiência de
governação e detentores das chaves de interpretação que facilitam a
leitura das intenções e efeitos das decisões dos executivos, estão,
por sua vez, muito condicionados pelas suas próprias agendas
políticas e partidárias, sendo difícil perceber quando estão a informar
e alertar os cidadãos ou apenas a travar combates políticos pela
necessidade de visibilidade política e partidária na comunicação
social.
Na base das interações da triangulação entre corpos
técnicos, decisores políticos e cidadãos existe uma cultura
organizacional hierárquica que não promove, em cada um daqueles
elementos, individualmente, institucionalmente ou em parceria, uma
292 Movimentos, Direitos e Instituições

governação centrada nos direitos individuais de participação na


gestão das dimensões urbanas fundamentais (sociais, ambientais ou
económicas). As práticas de governação local cerceiam as
possibilidades de controlo social e de participação cívica nas políticas
públicas e comprometem o acompanhamento real das decisões
políticas pelos cidadãos.
O quadro político em que se desenvolve a ideia de
governação em Portugal é assim confinado por “práticas e
representações de longa data, que determinam as suas
possibilidades”. (FRANCISCO, 2007a, p. 12). Para além da própria
cultura municipal, fechada e fortemente hierarquizada, a governação
local centra-se no poder personalizado do Presidente da Câmara, que
assenta em “relações individualizadas na sua rede de informantes”
(FRANCISCO, 2007a, p. 15), assim como na “concentração e
autocentração do poder” (FRANCISCO, 2007a, p. 15) e em “redes
informais, pessoais e partidárias que lhes permitem de forma mais
expedita navegar por entre os vários níveis de democracia, de forma
a obter os recursos que necessitam para os seus projetos locais”
(BAPTISTA, 2008, p. 142). Esta dinâmica tem como consequência “a
distanciação das elites autárquicas face à estrutura social e aos
chamados parceiros sociais” (FRANCISCO, 2007a, p.15).
Neste cenário de acentuada tradição de favoritismo e
elitismo, que cultiva o alargamento das redes de relações e a sua
perpetuação, a maior democratização dos processos políticos,
assentes em valores e modelos representativos ou quaisquer outros,
parece o desafio que se coloca ao Poder Local.

3. A PROMESSA DOS MODELOS PARTICIPATIVOS DE


GOVERNAÇÃO

A par do funcionamento vertical descrito, vão também


surgindo novos modelos de governação que dão corpo a modos de
organização “mais horizontais, cooperantes e consensuais (sobretudo
entre o público e o privado), onde a noção de ‘rede’ é fundamental”
(FRANCISCO, 2007a, p. 6), substituindo práticas hierárquicas de
governo e o monopólio dos atores governamentais nos processos de
decisão pública. Esses modelos trazem consigo a promessa de
representação de todos os interesses, não apenas dos dominantes,
passando por novas formas coletivas de associativismo e de relações
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 293

interinstitucionais, e entre instituições e cidadãos, e por uma nova


prática de responsabilização dos atores.
Entendida desta forma, esta ideia de governação urbana
traduz uma nova forma de governar e um novo posicionamento dos
atores:

A governança distingue-se das formas tradicionais de governação


através da inclusão de atores, não só do setor público, mas também do
setor privado e do voluntariado. Os atores são envolvidos através de
parcerias e outras formas de redes que são mais ou menos autónomas
em relação ao Estado. Os parceiros estão dispostos a envolver-se
porque pensam que irão maximizar os seus benefícios, tanto individual
como coletivamente. (ANDERSEN; KEMPEN, 2001, p. 7).

Os atores adquirem neste modelo programático um estatuto


de parceiros, integrando redes que vão proliferando – umas de forma
mais permanente, como os conselhos municipais de educação ou as
redes sociais; outras que se vão constituindo em projetos de
cooperação temporários, para responder a critérios de elegibilidade
de financiamentos públicos.
Este estatuto almejado para os cidadãos remete para a
problemática mais ampla acerca do seu papel na governação urbana.
É uma problemática que tem estado no centro da discussão mais
genérica sobre a reformulação dos modelos políticos e de
governação vigentes. Os regimes democráticos representativos, na
sua conceção hegemónica e liberal do pós-guerra, estão em declínio
ou transformação (SANTOS, 2003) e são crescentes as evidências
de desilusão pública com as instituições democráticas, de declínio de
confiança nos políticos (SAINT-MARTIN, 2006) e de um desligamento
entre cidadãos e responsáveis pelas tomadas de decisão (SMITH,
2009; CABRAL et al., 2008).
Neste quadro, vem-se também adensando o debate em
torno de caminhos alternativos, que se materializa quer em novos
conceitos de democracia (“participativa”, “contrademocracia”,
“deliberativa”, “e-democracia”), quer em novos instrumentos de
participação (orçamentos participativos, assembleias de cidadãos,
legislação direta). Aumenta o interesse nas formas de democracia
que aprofundam a participação ativa dos cidadãos nas tomadas de
decisão, no planeamento e na regulação da vida urbana (ASCHER,
2010; BOOHER, 2008; BORJA, 2003; GUERRA, 2006; HEALEY,
2008; SAINT-MARTIN, 2006; SANTOS, 2003; SMITH, 2009).
294 Movimentos, Direitos e Instituições

No entanto, os valores e modelos próprios destes novos


processos de governação tornam menos nítidas as linhas de
responsabilidade política, podendo ter efeitos igualmente perversos
para o exercício pleno da democracia. O aumento do número de
agentes e de redes pode ser usado para complexificar a governação
perante os cidadãos, diluindo as oportunidades para identificar
responsabilidades e colocando em risco a accountability – uma
definição central da própria democracia (JALALI; SILVA, 2009). As
redes refletem em geral o peso das elites locais, moldáveis a diversos
interesses, a ponto de comportarem riscos para a cidadania e a
democracia, promovendo mais facilmente a criação de comunidades
de intervenção, dificultando a sua legibilidade e diluindo a
responsabilidade (FRANCISCO, 2007b).
Em Portugal, os défices de accountability são
frequentemente atribuídos a um envolvimento insuficiente dos
cidadãos na política. Contudo, Jalali e Silva (2009) não concordam
com esta interpretação: se cidadãos distantes obrigam a menos
accountability por parte dos governantes, também menos
accountability conduz a um afastamento dos cidadãos, “na medida
em que a sua voz não é tida em conta nos processos políticos”.
(JALALI; SILVA; 2009, p. 305). É necessário, portanto, que a
mudança seja feita essencialmente pelo lado da oferta. Por parte dos
governantes, a motivação para esta mudança não é muito elevada,
pois menor participação reduz a exigência de accountability e,
consequentemente, aumenta a sua liberdade de ação. Acresce ainda
que os momentos de participação pública, consagrados na legislação,
são muitas vezes “episódios de defesa de interesses próprios, e não
da coletividade, contestação desinformada ou pura e simples
manipulação política, por parte dos adversários locais” (BAPTISTA,
2008, p. 144). Por parte dos dirigentes técnicos e políticos, a
condução das atuações em rede ou em parcerias é muitas vezes
parcial, mais facilmente se associando às elites administrativas,
económicas e profissionais do que às populações visadas pelas
medidas a serem implementadas. (FRANCISCO, 2007a).
A passagem mais tardia para o regime democrático em
Portugal, quando comparado com outros países da Europa, explica
em parte a incipiência dos processos de constituição de modelos de
governação urbana menos centralizadas, menos centradas nos
executivos municipais e nas suas redes de relações pessoais e
partidárias, que alimentam relações de clientelismo. (FRANCISCO,
2007b).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 295

Nessa dinâmica de governação, simultaneamente próxima


da realidade quotidiana dos cidadãos e distante pelos níveis de
recato em que se produz a gestão urbana, são vários os entraves à
integração de práticas de cidadania mais participativa. Desde logo, a
dificuldade de todas as partes, políticos, técnicos e cidadãos, em
funcionar num registo mais aberto e dialogante reforça a resistência
em contrariar um registo relacional em que as relações pessoais se
confundem com as relações institucionais e, consequentemente, os
interesses públicos se confundem com interesses pessoais. A
opacidade da governação e o fechamento em que se produzem as
decisões alimenta este registo, na medida em que é um fator de
desconfiança que legitima a crença nas relações pessoais como o
melhor e mais célere meio, às vezes o único, para se atingir os fins,
independentemente do tipo de interesses em causa. São estes
fatores que determinam a perpetuação de uma cultura institucional
que exigirá de todas as partes tolerância às dificuldades inerentes a
qualquer transição cultural, pessoal ou organizacional e perseverança
na busca de modelos mais democráticos e que promovam uma
distribuição mais equitativa dos recursos disponíveis.
Não obstante as tendências que se estão referindo como
dominantes, o que se observa é que práticas tradicionais decorrentes
de modelos representativos coexistem com práticas modernas
decorrentes de modelos participativos, revelando um processo em
curso de amadurecimento de complexificação da própria democracia.
No capítulo seguinte, procura-se ilustrar essa coexistência a
partir da discussão comparada de projetos de envolvimento público
em duas cidades de dois países distintos: no caso português, o
Orçamento Participativo de Cascais, e no caso canadiano, o Centro
de Sustentabilidade de Kingston. Sendo a situação portuguesa o foco
privilegiado, para melhor compreendê-la e problematizá-la recorre-se
a um raciocínio comparativo com uma cidade canadiana, que
mobiliza, portanto um contexto e uma cultura política contrastantes,
onde as questões da governação participada estão manifestamente
mais amadurecidas.

4. ILUSTRANDO: PRÁTICAS PARTICIPATIVAS EM


AÇÃO
Nas cidades de Kingston e Cascais é possível observar, no
contexto dos respetivos países, práticas democráticas avançadas,
296 Movimentos, Direitos e Instituições

ocupando, as metodologias participativas, uma posição de destaque


no modelo de governação perseguido nas duas cidades.
Kingston enquadra-se num contexto com longas e extensas
experiências de comunicação, consulta e mobilização públicas para
as tomadas de decisões em todos os níveis de governação (EL
KALACHE, 2005; SEYMOAR, 2007). Na verdade, em muitas cidades
canadianas o debate situa-se já em torno da necessidade de
avaliação dos impactos das diferentes iniciativas de envolvimento
público. Em Portugal, pelo contrário, na ausência de uma tradição
longa neste domínio, as questões essenciais passam hoje ainda pela
pertinência e os modos de implantação de modelos de governação
capazes de incorporar a participação ativa dos cidadãos nos
processos decisórios.
Procura-se, nas próximas páginas, refletir sobre os efeitos
das práticas participativas na governação urbana e nas vivências
democráticas das duas cidades, conferindo particular atenção ao
caso de Cascais e utilizando a experiência de Kingston como base
para um confronto que permita, mediante raciocínio comparativo,
sondar de forma mais sustentada o caso português.

4.1 Cascais, Capital da Cidadania e da Democracia


Participativa

Em Cascais, a Agenda 21 Local130 iniciou-se com sessões


de participação pública em 2007. O seu sucesso levou à criação de
um grupo de trabalho que tem vindo a dinamizar vários projetos com
participação pública. Também o plano estratégico do Município,
“Elevar Cascais”, elege a cidadania como um dos seus cinco eixos.
Desde 2011, está a ser implementado o Orçamento Participativo,
iniciativa que levou o Observatório Internacional de Democracia
Participativa a distinguir Cascais em 2013 como Capital da Cidadania
e Democracia Participativa.
O Orçamento Participativo de Cascais (OPC), cuja
implementação começou a ser discutida em 2008, é conduzido pelo
mesmo grupo de trabalhoda Agenda 21, com o objetivo de promover

130
A Agenda 21 Local é um programa para o desenvolvimento sustentável assinado
na Conferência do Rio das Nações Unidas, em 1992. No seu Capítulo 28 atribui ao
poder local a responsabilidade de trabalhar em parceria com os vários atores da
comunidade para a elaboração e a implementação de um Plano de Ação para a
sustentabilidade. Visa à criação de estratégias participadas de sustentabilidade.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 297

a articulação com outros projetos de participação e outros serviços da


Autarquia. Em 2012 foi criada, no organigrama do Município, a
Divisão de Cidadania, refletindo assim a importância que a Câmara
Municipal pretende dar ao diálogo com os cidadãos.
O OPC surge como uma oportunidade para projetos e
necessidades que existem na comunidade e que ainda não tinham
encontrado uma forma de financiamento. É também uma forma de
colocar na agenda as mais imediatas necessidades da população
que, embora muitas vezes correspondam a competências da Câmara
Municipal, não têm ainda financiamento agendado (arranjos de
passeios, recuperação de espaços públicos, segurança em trajetos
pedonais e de bicicleta, iluminação).
A condução do processo é feita maioritariamente pelos
técnicos, que contam com celeridade na validação de decisões pelo
Executivo. Se o cidadão quiser, pode acompanhar e fazer parte de
quase todas as decisões, desde a validação técnica até à
inauguração da obra, revelando a disponibilidade da equipa gestora
do OPC para dialogar e codecidir em quase todas as etapas do
processo.
Dos benefícios identificados pelos atores entrevistados em
Cascais, no âmbito da pesquisa em curso, sobressaem os ganhos
políticos pela simpatia generalizada que o processo desencadeia, a
qual a comunicação social veicula como inovadora. São igualmente
benefícios importantes os ganhos mútuos em compreensão e
proximidade entre técnicos e cidadãos e os ganhos de
aprofundamento das vivências democráticas.
A esses benefícios, acrescem desafios e contradições do
processo, que interessa discutir, refletindo sobre o modo como
limitam o alcance da participação.
Desde logo, importa ter em atenção que, entre os interesses
que são trazidos para o processo do OP, nem todos coincidem com
interesses coletivos.
Da parte dos cidadãos, o leque de interesses varia entre
questões práticas que os cidadãos precisam resolver para facilitar a
sua vida no dia a dia, passando por causas com que se identificam
pessoalmente, até ganhos em notoriedade. Os cidadãos implicam-se
com diferentes intensidades e motivações e, nesse quadro, nem
sempre são claras, nas suas ações, as fronteiras entre o interesse
público e os interesses individuais ou setoriais. Por vezes envolvem-
298 Movimentos, Direitos e Instituições

se em projetos coletivos por meio de iniciativas de participação


suportados numa liderança forte e conduzem à afirmação de projetos
que podem representar motivações de cariz essencialmente pessoal
e que são deficitariamente convertidas em causas coletivas. Outras
vezes encontram motivações que, sendo de natureza eminentemente
coletiva, são processadas como pessoais, por via do protagonismo
das lideranças. Esta diversidade de motivações e formas de atuação
sugere um processo que se constrói numa interação complexa entre
interesses coletivos e interesses particulares, que estão a concurso
em cada etapa do processo participativo.
Do lado do Executivo, encontramos uma expressão
manifesta do interesse em ampliar as práticas participativas,
reconhecendo em simultâneo os desafios da sua operacionalização
para todas as partes envolvidas, que estão ainda a encontrar o seu
posicionamento:

[…] falta aqui uma cultura de alguma tolerância, porque quando o


cidadão, muitas das vezes, tenta vir a isso, é por reação a algo que não
concorda. E a partir do momento que não concorda e com os níveis de
confiança que temos tão baixos na sociedade, passa imediatamente
para desconfiança. E às vezes aí, até cria logo aí uma primeira
barreira, porque muitas das vezes é de tal forma agressivo que o
próprio técnico e o político também não sentem vontade de dar
sequência. (Entrevista a membro do Executivo da Câmara Municipal de
131
Cascais ).

A interação parte de um contexto de alguma desconfiança


mútua, típica de um processo em curso na forma de encarar a
governação urbana. Essa desconfiança é testada ao ritmo de
avanços e recuos, que fazem, ainda assim, expandir o diálogo sobre
a gestão urbana.
O interesse do Executivo na ampliação das práticas
democráticas é indissociável de outros interesses, percecionados por
técnicos e cidadãos. Os ganhos de notoriedade crescentes ao longo
das três edições do OPC são um importante contributo para as
exigentes agendas políticas e partidárias, que têm no topo das
prioridades a (re)eleição, partidária e municipal. O processo é muito
mediatizado, quer através dos meios de comunicação social, que dão
ampla cobertura ao processo, quer por meio da divulgação e

131
Relembre-se que isto não é uma referência bibliográfica, mas sim, como se
explicou atrás, material resultante de entrevistas originais, realizadas no quadro da
investigação empírica que suporta o artigo.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 299

mediatização do OPC, que é promovida pela sua equipa. Essa


mediatização tem como objetivo a divulgação do processo e a
angariação de participantes, mas oferece, simultaneamente, muito
protagonismo ao Executivo. Este está presente nos momentos altos
de projeção pública do processo, chamando a si a legitimidade
política que viabiliza o processo participativo. Mas, nesse mesmo
passo, a procura de mediatismo político não deixa de, em alguma
medida, reproduzir as práticas mais convencionais de campanha
eleitoral. São exemplos a festa de anúncio dos projetos vencedores,
que reproduzem o estilo de festa partidária do candidato que vence
as eleições, ou as inaugurações das obras públicas decorrentes dos
projetos propostos em sede do OPC.
Porventura, as agendas partidárias e políticas condicionam
processos mais focados na descentralização da decisão sobre a
afetação dos recursos. Na verdade, 1,5% (conforme entrevista a
técnico da Câmara Municipal de Cascais) do orçamento municipal
parece um valor bastante contido para tão ampla ambição, correndo o
risco de colocarem os proponentes numa dinâmica com mais traços
de concurso de prémios do que de processo de decisão partilhado.
Um processo mais debatido exigiria também dar aos eleitores opções
de escolha informadas por referência às diversas necessidades e
múltiplos interesses coexistentes na cidade. Assim, uma margem
orçamental mais alargada e um maior debate em torno dos projetos a
concurso, do ponto de vista dos efeitos no desenvolvimento do
território, ampliaria o escopo do processo. Encontra-se aqui, pois,
uma relevante limitação à amplitude e eficácia do processo
participativo.
Por outro lado, os estratos da população que mais poderiam
se beneficiar de uma distribuição mais equitativa dos recursos estão
muitas vezes ausentes. Não detendo, de forma também equitativa, os
códigos de comunicação necessários a um processo de natureza
muito competitiva, dão corpo à acumulação de fatores de exclusão
expressos por Amartya Sen (2003): às desigualdades no rendimento
juntam-se as desigualdades socioculturais na conversão de
rendimentos em potencialidades.
Não sendo fácil quebrar esse ciclo, refém das lógicas das
economias urbanas globais, o poder político parece ainda assim ter
ao seu alcance a possibilidade de expandir a intensidade democrática
do processo, quer por meio do valor afeto ao OPC quer por meio do
reforço de atenção e atuação sobre os cidadãos que ficam à margem
300 Movimentos, Direitos e Instituições

do processo. Esta expansão requer um esforço que, por exigência


dos valores democráticos aos quais devem acomodar-se o poder de
decisão e os recursos, parece caber em primeira mão ao poder
político. No entanto, as pressões a que este está sujeito, identificadas
pelos técnicos, parecem desafiar as suas melhores intenções: “um
homem que se encontre no poder está pressionado; está pressionado
pelos partidos, está pressionado pelos outros partidos, está
pressionado pelo seu próprio partido, pelo aparelho que o elege, por
milhares de outras coisas”. (Entrevista a técnico da Câmara Municipal
de Cascais).
A pressão de uma campanha eleitoral pode originar
episódios em que a agenda política se sobrepõe a qualquer outra. Foi
o que aconteceu em 2013, ano de eleições autárquicas, quando o
aparelho partidário da campanha do Executivo no poder não resistiu a
convidar os proponentes de projetos vencedores a apoiar o
candidato. Por um lado o OPC permite aos políticos ampliar as redes
de contactos junto aos cidadãos, aproximando-os das necessidades e
ambições que vão expressando. Por outro lado também convida a
utilizações partidárias dos cidadãos-eleitores. Surgem ainda
rivalidades entre políticos e cidadãos, quando cidadãos
mediaticamente mais ativos ganham muita notoriedade. Estas
rivalidades geram um ambiente de competição semelhante à que se
encontra na competição partidária, agudizando as tendências de
desconfiança e afastamento das políticas públicas.
Quando os cidadãos proponentes se predispõem a
envolver-se ao longo das várias fases de cada edição, podem
capacitar-se para projetos em parceria com a Câmara Municipal,
melhorando competências pessoais e profissionais num contexto de
projeto público. Podem também criar redes de contactos com outros
cidadãos, com os técnicos e com o Executivo e conhecer os trâmites
processuais dos projetos públicos. Desta forma aumentam a sua
compreensão sobre o funcionamento da administração pública local
em geral e da administração da sua cidade em particular, ampliando
as possibilidades de terem um papel ativo no espaço público e um
olhar crítico sobre as políticas públicas.
A construção de relações de confiança com os técnicos é
reconhecida e apreciada pelas duas partes. Os entrevistados
descrevem uma interação colaborativa que desconstrói os
preconceitos em torno da ineficiência e desinteresse dos funcionários
públicos: “o preconceito sobre o funcionário público, que trabalha das
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 301

9 às 5 e que não quer saber, que desliga o telefone se já passou um


minuto; e com eles foi exatamente o contrário”. (Entrevista a cidadão
de Cascais).
Surgem episódios de regozijo de técnicos que se identificam
com propostas dos cidadãos e que veem avançar, por esta via,
propostas que aguardavam há muito aprovação política. No entanto,
a generalidade dos serviços municipais tem dificuldade em integrar os
projetos propostos pelos cidadãos. Os entrevistados descrevem
interações colaborativas com a equipa do OPC, mas também
interações divergentes com outros técnicos/serviços da Câmara.
Estes mantêm a argumentação técnica como necessária e como mais
relevante para as decisões sobre os projetos do que as opiniões e
visões dos cidadãos enquanto mentores dos projetos.

4.2 Kingston, a Cidade Mais Sustentável do Canadá

Em 2006, o município de Kingston encetou um Plano


Estratégico Comunitário que, motivado por financiamento federal, foi
convertido num Plano Comunitário Integrado de Sustentabilidade.
Este Plano posiciona-se como um esquema de alinhamento integrado
das ações comunitárias e municipais. Contou com o aconselhamento
e acompanhamento do Comitê de Gestão Focus Kingston, constituído
por dois vereadores e seis cidadãos (nomeados como voluntários por
candidatura em concurso público). Foi desenvolvido com base num
envolvimento extensivo de cidadãos, representantes de cidadãos,
organizações comunitárias e empresariais e decisores dos setores
público, privado e académico, culminando com a adoção da
ambiciosa visão “Kingston – a Cidade mais sustentável do Canadá”.
Após a aprovação do primeiro plano, todos os envolvidos se
afastaram, esperando que o Município fizesse todo o trabalho. A
partir desta experiência, o Município decidiu promover a criação dum
organismo independente, com o objetivo de criar maior capacitação e
autonomia na comunidade para implementar as ações do Plano,
assim descrito por um entrevistado:

Queríamos ter na comunidade maior capacidade para fazer trabalho,


para fazer progressos. Para isso precisávamos de uma organização
autónoma em relação à administração da cidade. Era claro para toda
a gente que fazer todas essas coisas em benefício da
sustentabilidade não era uma tarefa apenas da responsabilidade da
administração da cidade, era também da responsabilidade das
diferentes organizações que assinaram o Plano. Cada uma tinha um
302 Movimentos, Direitos e Instituições

papel a desempenhar. (Entrevista a técnico da Câmara Municipal de


132
Kingston, tradução livre) .

Surgiu assim o Centro de Sustentabilidade de Kingston


(CSK), com o objetivo de promover a sustentabilidade na cidade de
um modo mais flexível, menos burocrático e menos centrado no
Município. Constitui-se como uma organização sem fins lucrativos,
que por enquanto se financia por intermédio de um Acordo de
Serviços com o Município, mas que tem como objetivo autonomizar-
se completamente.
O Centro posiciona-se como uma rede crescente de
parceiros individuais e comunitários comprometidos com a
sustentabilidade. Dispõe de uma plataforma online que providencia
um inventário dinâmico das ações que os parceiros comunitários,
voluntariamente, inscrevem e implementam enquanto parte integrante
do seu modo de funcionamento ou do seu plano de negócios. Em
Março de 2014, a plataforma anuncia 99 parceiros e 506 ações. Cada
ação está integrada num ou mais temas dos quatro pilares da
sustentabilidade. As ligações e integração entre estes temas são
anunciadas como fundamentais para tornar Kingston mais
sustentável.
Assim, o CSK tem dado os primeiros passos num modelo
que não tem precedentes e se vem afirmando junto da comunidade:

[…] Isto é um processo. Ainda confunde muitas pessoas, porque não


temos uma história de fazer as coisas desta maneira. Então as
pessoas dizem: ‘Oh, não é a administração da cidade?’. E nós
dizemos: ‘Não, não é a administração da cidade, é uma organização
133
sem fins lucrativos, um organismo autónomo’. (Entrevista a membro
do Executivo da Câmara Municipal de Kingston, tradução livre).

O Centro conseguiu trazer vários parceiros para um espaço


de colaboração permanente, sendo este aspeto por si só socialmente

132
No original: “We wanted a greater capacity within the community to do more work,
make more progress, then we needed an organization that was separated from the
City organization. It was as clear as it could be to everybody that it wasn’t just the
City’s job to do all these good things in sustainability, but all these different
organizations that sign on the Plan, each have a roll.” (Entrevista a técnico da
Câmara Municipal de Kingston).
133
No original: “[…] It’s a process, it stills confuses a lot of people because we have no
history of doing things this way, so people always say ‘oh, it’s not the City?’ and we
say ‘no, it’s not the City, it’s a non-profit organizations, separated board of directors’
[…]”. (Entrevista a membro do Executivo da Câmara Municipal de Kingston).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 303

inovador, na medida em que se trata de uma extensa rede de


colaboração voluntária para a sustentabilidade.
Os projetos de sustentabilidade são difíceis de implementar,
implicam em uma disponibilidade individual e organizacional para a
mudança e os seus resultados são de difícil quantificação. A cidade
de Kingston, reconhecendo que não pode evoluir sozinha nas
questões da sustentabilidade, está a tentar delegar a coordenação
desse processo à comunidade, por meio da rede de parceiros do
projeto. Esta estratégia inovadora alivia, por um lado, a pressão sobre
a estrutura municipal quanto às suas responsabilidades relativamente
a políticas de sustentabilidade. Por outro lado, revela um esforço
empenhado de mobilizar a sociedade civil para um desafio que só
pode ser conseguido com a participação de muitos indivíduos e
organizações. Será um enorme desafio para o Centro manter essa
energia e a mobilização da comunidade, assim como conseguir a
desejada autonomia, financeira e organizacional.
Outros desafios se vão colocando às práticas democráticas
na governação da cidade, revelando que, embora se trate de uma
realidade já muito amadurecida, também pode recuar até limites que
são mais comuns na realidade portuguesa. Os conselhos municipais,
estruturas comuns na realidade da governação urbana canadiana,
estão em reestruturação com base em argumentos financeiros e de
eficácia do aconselhamento produzido. Se uns apoiam esta visão,
achando que “não se pode gastar tudo em compromissos com a
população” (Entrevista a cidadão da Câmara Municipal de Kingston,
tradução livre)134, outros intuem um fechamento do processo de
decisão para introduzir, sem o escrutínio dos conselhos municipais,
políticas que não estão alinhadas com as políticas aprovadas no
mandato anterior. Ainda assim, os cidadãos vão se adaptando e,
eventualmente, mesmo que menos ativamente envolvidos por
encolhimento dos espaços de participação, não perdem o interesse:
“Há uma tensão a respeito do modo como a cidade está a avançar;
mas, mesmo com tensões, há uma espécie de história nesta
sequência de discussões, há um envolvimento contínuo”. (Entrevista
a cidadão de Kingston, tradução livre)135.
Os municípios canadianos oferecem mais espaço para
discutir as decisões, ainda que não necessariamente para tomar
134
No original: “you can’t spend all committing”.
135
No original: “There’s a tension on how the City is moving forward, but even with the
tensions, there’s a sort of history in this sequence of discussions, an ongoing
engagement”.
304 Movimentos, Direitos e Instituições

parte nas decisões. Parece também haver maior diversidade social


dos participantes canadianos. Ainda assim, existem grupos excluídos,
como as comunidades indígenas, que não se mostram interessadas
em participar, e grupos condicionados (mulheres, deficientes), para
além das mesmas condicionantes socioculturais que se encontram
em Portugal.
O nível de envolvimento público é decidido caso a caso,
sendo fatores para a decisão os custos e o tempo necessário, o tipo
de projeto, o nível de compromissos já assumidos (ainda que
informalmente) pelo Município e a vontade política e técnica. Embora
haja muitos casos de processos em que a tomada de decisão se
sustenta nos resultados da discussão pública, a vinculação é ainda
bastante variável e permeável aos ciclos eleitorais.

4.3 Discutindo Semelhanças e Diferenças

Embora nos dois casos a promoção da participação pública


nas decisões esteja no centro das preocupações dos respetivos
modelos de governação urbana, é possível identificar entre eles
diferenças que, a título exemplar, revelam traços distintos das
práticas governativas prevalecentes nos dois países: Portugal e
Canadá.
Na governação urbana canadiana existem muitos projetos
com envolvimento público. A participação está implícita nos
processos de decisão, ainda que com níveis de envolvimento
deliberadamente diversos. Existe um código de comunicação e
atuação para a participação muito difundida e dominada por vários
cidadãos. É reconhecido um valor social à participação voluntária e
integrar funções nos conselhos municipais é, também, uma forma de
conseguir notoriedade.
Em Portugal o envolvimento público está ainda numa fase
de afirmação, sendo menos frequentes as iniciativas e geralmente
menos intensas. Ainda assim, existem cidades que integram
conselhos municipais e práticas participativas na sua governação.
A forma como são eleitos os governos locais estabelece
uma diferença importante entre as duas realidades. No Canadá, os
candidatos, embora possam ser apoiados por partidos, são
obrigatoriamente independentes. O poder local canadiano é
distribuído por vereadores que são eleitos por “secções” do território
(o Executivo de Kingston é constituído pelo Presidente e 12
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 305

vereadores que representam as 12 secções territoriais do concelho).


Em Portugal, os candidatos integram listas quase sempre eleitas
pelas direções locais dos partidos. E a organização dos Executivos é
feita mediante pelouros “temáticos” (o Executivo de Cascais é
constituído pelo Presidente e 5 vereadores com pelouros temáticos e
administrativos delegados pelo Presidente).
A organização canadiana oferece mais visibilidade aos
interesses que os vereadores defendem e às populações afetadas
pelas suas decisões. A presença secundária de partidos na
governação local parece tornar mais transparente o processo eletivo
e intensificar a relação entre eleitores e eleitos. Os vereadores são
muito acessíveis aos seus eleitores, respondendo muitas vezes
diretamente as mensagens que os cidadãos lhes dirigem. Por meio
delas, os cidadãos encaminham vários tipos de solicitações que
dizem respeito à localidade pela qual foram eleitos (substituindo aqui
a figura do presidente de junta de freguesia, inexistente no Canadá,
com ganhos evidentes para a proximidade dos vereadores aos seus
eleitores). Os vereadores são cidadãos conhecidos das respetivas
secções residenciais. Mesmo sendo claro o seu estatuto de políticos,
com toda a carga de desconfiança associada à respetiva classe, o
fato de não estarem localmente vinculados a um partido oferece-lhes
um espaço de relação com os cidadãos, menos contaminado e mais
comprometido com as necessidades e expectativas dos cidadãos.
Referem-se a essas secções geralmente como my community. Por
sua vez, os cidadãos podem também avaliar melhor a forma como as
decisões, que os seus vereadores (my councillior) apoiam ou
propõem em sede do Conselho da Cidade, os afetam diretamente ou
ao território onde residem.
São também relevantes, para efeitos de transparência da
governação local, as diferenças a respeito da separação entre
funções técnicas e funções políticas. Em Portugal, os funcionários
podem pertencer a estruturas partidárias locais, podem concorrer às
eleições e podem pertencer aos Executivos. No entanto, gera-se um
ambiente que, embora possa ser interessante do ponto de vista da
prioridade dada aos direitos políticos do cidadão, agrava a opacidade
e complexidade de relações e aumenta os conflitos de interesses. No
Canadá, há uma total separação entre estrutura política e estrutura
técnica, sendo esta separação eticamente valorizada pela
generalidade dos atores. Os funcionários não podem ter funções
políticas em nível local, nem apoiar campanhas. As estruturas
técnicas têm uma visibilidade e avaliação públicas maiores na
306 Movimentos, Direitos e Instituições

governação canadiana e parecem gozar de maior autonomia. A


estrutura dirigente parece também menos permeável a cargos de
origem ou influência política, sendo os dirigentes quase sempre
técnicos com muitos anos de carreira e longevidade, associada à sua
perícia. Há maior delegação de competências na estrutura técnica,
por exemplo, delegação da gestão financeira, não estando os
serviços sempre dependentes da assinatura dos políticos para
avançar com as adjudicações necessárias ao funcionamento dos
projetos.
Mas na governação urbana das duas cidades também
encontramos semelhanças, que as aproximam num processo que é
mais cíclico do que contínuo e, mesmo que com maturidades
diferentes, revela pontos comuns no que diz respeito a avanços e
recuos nas vivências democráticas.
As práticas democráticas e participativas canadianas podem
recuar, pontualmente, até limites bem conhecidos na realidade
portuguesa: o fechamento da esfera de decisão, o recuo ou
congelamento de projetos em consequência dos ciclos eleitorais, o
recuo na influência e dimensão do envolvimento público com recurso
a argumentos de ordem financeira ou de especialidade técnica dos
assuntos e outros que colhem uma simpatia suficiente para fazer
avançar os ímpetos de refreamento do espaço de intervenção do
cidadão.
Também nos dois contextos, o político, para ser eleito, tem
de manter alianças políticas fortes, das quais fica sempre de alguma
forma cativo. As questões partidárias e políticas continuam a ocupar
um espaço central nas relações de poder que estruturam a
governação urbana. Esta é a visão que dirigentes, cidadãos e
técnicos partilham nas duas cidades, dando-se conta de que ocupam
muitas vezes um espaço marginal no processo de decisão. No nível
de decisão interno, embora com maior flexibilidade no caso
português, os Executivos têm o poder de decidir como posicionar
dirigentes, técnicos e cidadãos na esfera do processo de decisão.
Qualquer projeto que inclua ou não a participação pública, está mais
dependente do alinhamento com a agenda política do que de
qualquer outro fator. Em teoria, este alinhamento seria importante,
não fossem os altos níveis de condicionamento provocados pelos
ciclos eleitorais e as alianças políticas (e partidárias no caso
português). Estes condicionamentos fragilizam os processos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 307

participativos, porque os projetos em que se enquadram estão


sujeitos às flutuações dos ciclos políticos.
Em ambos os casos, existem técnicos apoiantes de práticas
participativas que conseguem operacionalizar metodologias
colaborativas com os cidadãos. No entanto, para alguns é difícil
aceitar que não são os únicos defensores do interesse público ou que
os cidadãos tenham um papel ativo nessa defesa. Mesmo que com
intensidades diferentes, o envolvimento público está mais estabilizado
na administração local canadiana.
Entre notoriedades e invisibilidades, entre avanços e recuos
no aprofundamento das práticas democráticas, representativas ou
participativas, os processos de envolvimento público podem aumentar
a perceção dos cidadãos sobre o funcionamento da administração
pública local em geral e a compreensão sobre a complexidade da
gestão urbana. Podem também ampliar a perceção de técnicos e
políticos sobre os intrincados e subjetivos interesses dos cidadãos e
expandir a gama de visões a considerar nos processos de decisão.
Para as vivências democráticas, os processos participativos
enriquecem porventura o espaço público e a discussão política sobre
a governação urbana e, mesmo que reforçando os riscos de
invisibilidade dos estratos sociais ausentes, dilatam o campo de
questionamento e pressão sobre as decisões.

CONCLUSÃO

As formas de controle jurídico, institucional e social da


governação urbana são suscetíveis de ajustamentos e adaptações na
sua aplicação prática. (RUIVO, 1991). Grande parte das decisões que
influenciam o investimento e o desenvolvimento das cidades são
opções estratégicas cujos efeitos nas (des)igualdades urbanas estão
fora da esfera da legalidade e da normatividade. As margens de
discricionariedade na tomada de decisão são muito amplas e estão
formal e culturalmente confinadas à esfera política, e quando muito à
tecnocrática, dispondo os restantes intervenientes – os cidadãos – de
uma capacidade de intervenção muito limitada. Essa limitação é
prática, mas também política e cívica, condicionando um exercício
pleno e ativo da cidadania.
As relações de poder na cidade balizam a forma como se
exerce a cidadania, ora não a promovendo ora condicionando-a em
308 Movimentos, Direitos e Instituições

processos de decisão pouco transparentes e parcamente


fundamentados publicamente. Esta impermeabilidade da governação
urbana, ou permeabilidade seletiva e dirigida, condiciona a leitura das
políticas públicas.
A opacidade da governação urbana e as desigualdades que
pode gerar sugerem que o papel dos cidadãos pode ser fundamental
para o questionamento dos processos de tomada de decisão,
particularmente em contextos de proximidade como os das pequenas
e médias cidades. Atendendo ao potencial de intervenção nas
políticas públicas de âmbito local, o reforço de fiscalização e
intervenção por outros intervenientes, atores locais e cidadãos,
parece um caminho difícil de trilhar, dada a debilidade de códigos de
conduta para a participação. No entanto, esse reforço é essencial
para forçar os limites institucionalizados da esfera de decisão e
aumentar os níveis de democraticidade da governação urbana.
Os governos municipais precisam rever o modelo de gestão
do seu próprio poder, afirmar os interesses da sua comunidade acima
das diferenças partidárias ou ideológicas e defender os seus
interesses específicos junto dos governos nacionais. Representando
as redes de cidades, os governos locais podem atuar como atores
coletivos dinâmicos na economia global. (BORJA; CASTELLS, 1997).
Em Portugal, este desafio é fragilizado por uma maturidade
democrática local ainda pouco fortalecida e é ainda enorme a
dificuldade de, uma vez no poder, partilhar a tomada de decisão.
Em ambas as cidades analisadas neste texto, mesmo que
com níveis de estabilidade e intensidades diferentes, encontramos
práticas democráticas tendentes ao aprofundamento das condições
de participação mais direta e ativa dos cidadãos na governação.
Todas as partes envolvidas se mostram empenhadas em aprofundar
uma governação mais dialogada, articulando atores, interesses e
ambições diversas. Parece, no entanto, que os processos são feitos
por avanços e recuos, numa dinâmica cíclica que, à luz dos valores
democráticos, representativos ou participativos, precisa ser afinada.
Alargar o acesso ao voto, ampliar os domínios de controlo
democrático ou investir na autenticidade, por meio de uma expansão
profunda e informada do controlo democrático são dimensões
imprescindíveis na medida em que “[…] todas as noções de
democracia dependem da existência de um número de participantes
no cenário político, um domínio para o controlo democrático e um
certo grau para a autenticidade.” (DRYZEK, apud HANBERGER,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 309

2006, p. 21). As práticas democráticas, mesmo suscetíveis de


produzir a exclusão de certos grupos sociais ou casos que não são
previsíveis, podem também tornar a governação urbana mais
suscetível de rever as suas decisões, colocando-as em causa.

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CAPÍTULO 13

ESTADO, TERRITÓRIO E PROTESTOS:


REQUALIFICAÇÃO AMBIENTAL E
MOVIMENTOS LOCAIS

136
José Manuel Mendes
137
Pedro Araújo
RESUMO

Tomando como ponto de entrada os inesperados protestos que


emergiram na sequência da requalificação ambiental da área mineira
da Urgeiriça, procura-se neste artigo salientar, por um lado, a
configuração que, em Portugal, assume a relação entre o Estado, o
território e a população quando mediadas pela “redescoberta” da
nuclearidade do urânio e, por outro, o papel da ciência nas
controvérsias públicas e na esfera pública. Argumenta-se que a
controvérsia emergiu somente após o encerramento da companhia
mineira e permaneceu confinada ao local e a grupos circunstanciais.
As reivindicações basearam-se em emoções – sofrimento, morte,

136
Doutor em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(FEUC), onde exerce as funções de Professor Auxiliar com Agregação. É
Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES), onde tem trabalhado nas áreas
das desigualdades, mobilidade social, movimentos sociais e ação coletiva e, mais
recentemente, nas questões relacionadas com o risco e a vulnerabilidade social. E -
mail: <jomendes@fe.uc.pt>.
137
Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) – Laboratório Associado e
membro do Núcleo de Estudos sobre Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades
(POSTRADE). É Doutor em Sociologia pela Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (FEUC). Os seus interesses de investigação centram-se
em questões relacionadas com os desastres, o risco e a cidadania. E-mail:
<paraujo@ces.uc.pt>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 313

ressentimento – e em corpos que se tornaram visíveis na esfera


pública porque hiperbolizaram a sua condição de vítimas e de
contaminados. A posição de Portugal na semiperiferia nuclear, como
um mero produtor de matéria-prima no mercado global do urânio,
permitiu o confinamento da controvérsia, a proeminência das
narrativas oficiais e a hegemonia dos peritos oficiais. Os
acontecimentos e os protestos locais não resultaram numa
reestruturação sociotécnica, desenrolando-se a lógica e o mercado
da reabilitação ambiental sem grandes contratempos. Em Portugal,
as vítimas ao tornarem-se visíveis procuraram desviar o Estado de
um posicionamento meramente técnico para uma tomada de posição
moral e ética. As questões de cidadania permaneceram invisíveis no
que concerne à nuclearidade, aventadas somente nos interstícios da
política e das performações sociotécnicas e das suas inerentes
materialidades, simbolismos e práticas.
Palavras-chave: controvérsias; mineração de urânio; nuclearidade;
Portugal; protesto.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. O CAMBIANTE SIGNIFICADO DO URÂNIO NA


URGEIRIÇA; 2. CORPORALIZAÇÃO DA NUCLEARIDADE E
DESERTOS SEM MEMÓRIA; 2.1. O ESTUDO EPIDEMIOLÓGICO;
2.2. DIREITOS SOCIAIS E LABORAIS: ENTRE A JUSTIÇA E O
RESSENTIMENTO; 3. ENCERRAMENTO POLÍTICO E
CONFINAMENTO DA CONTESTAÇÃO; CONCLUSÂO:
NUCLEARIDADE E CIDADANIA EM PORTUGAL; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Qualquer tentativa de abordar a história do nuclear em


Portugal ficaria sempre incompleta caso não incluísse as histórias do
urânio. As histórias do urânio e as histórias do nuclear entrelaçam-se,
a segunda, porém, ofuscando a primeira, extravasando, como refere
Gabrielle Hecht (2012), as escalas do tempo e do espaço. As
histórias do urânio, pelo contrário, são inevitavelmente cativas de um
314 Movimentos, Direitos e Instituições

tempo, de um espaço e da ciência.138 De facto, a exposição ao urânio


e aos produtos do seu decaimento não é imediatamente acessível
aos sentidos e integra o grupo dos riscos tecnológicos para a
apreensão dos quais a ciência se constitui como um mediador
incontornável. (PERRETI-WATEL, 2007, p. 76). Apenas a ciência
dispõe das técnicas e dos instrumentos de medição essenciais para
lhes conferir existência ou, por outras palavras, para atestar a
nuclearidade do urânio. E, porém, estará a ciência universal na
garantia dessa nuclearidade?
Para Hecht (2006, 2012), a nuclearidade da exploração de
urânio é uma categoria tecno-política continuamente contestada,
dependendo os parâmetros da sua definição da história e da
geografia, da ciência e da tecnologia, dos corpos e das políticas, dos
Estados e dos mercados. O “nuclear” – insiste G. Hecht – é o
resultado técnico-político de processos históricos:

[…] A política molda-lhe as tecnologias, mas as suas tecnologias


também lhe moldam as políticas. A realidade material assume, aí, uma
extrema importância, […] [mas], como demonstram inúmeros estudos
na área da ciência e da tecnologia, as realidades materiais emergem
de redes complexas em que o social e o técnico se interligam de uma
forma inextricável. […] No domínio da exposição ocupacional, por
exemplo, os instrumentos, as relações laborais, as disciplinas
científicas, as controvérsias entre especialistas, e o saber leigo
combinam-se por forma a criar aquilo a que Michelle Murphy (2006)
chama ‘regimes de percetibilidade’, quer dizer, conjugações de fatores
sociais e técnicos que tornam visíveis certos riscos e efeitos para a
saúde, tornando outros invisíveis. […] A questão científica (e, ao que
parece, também presentista e deslocalizada) da causalidade […] é
portanto também, e sempre, uma questão histórica e geográfica. […].
(2012, p. 78).

138
A mineração de urânio constitui a primeira etapa do chamado ciclo do combustível
nuclear que descreve todas as operações relacionadas com a obtenção e
preparação do combustível, o seu uso num reator e o manuseamento do
combustível usado. Historicamente, é possível recortar três grandes períodos,
variáveis de país para país, associados à exploração de urânio. Em meados do
século 20, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, inicia-se a primeira corrida
ao urânio para fins militares que irá durar até finais dos anos 60. De meados dos
anos 60 a meados dos anos 70, a preocupação crescente com as reservas de
petróleo e a afirmação do nuclear como alternativa energética, conduzem a um
aumento do preço do urânio, então em depressão, e a uma segunda corrida ao
urânio. Finalmente, o terceiro período do urânio, que se inicia em meados dos
anos 70 e se prolonga pelos dias de hoje, corresponde a uma crescente
consciência ambiental relativamente aos impactos da exploração de urânio.
(INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY, 2014, on line).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 315

Neste capítulo procurar-se-á contar a história do urânio na


Urgeiriça, território que teve a contingência de possuir este minério,
de este ter sido explorado e de, a dado momento, ter cessado a sua
exploração, abrindo caminho a uma nova ordem de preocupações.
Na Urgeiriça a aventura do urânio teve origem num acaso e
ficou marcada por três períodos: o pico da indústria do urânio; a crise
dessa indústria; e a emergência da questão ambiental.
A redescoberta da nuclearidade nesse território ocorreu de
forma particular. Mineiros e trabalhadores lutaram para expandir o
âmbito restrito da intervenção ambiental, de forma a incorporar os
direitos sociais e laborais. No final, o processo de normalização
decorreu sem mudanças significativas ou reconfiguração dos direitos
de cidadania. A Urgeiriça foi abordada pelo Estado como um desafio
técnico, no contexto da posição semiperiférica de Portugal no mercado
global do urânio, com a presença de vítimas que não conduziram,
porém, a qualquer mudança relevante em nível da regulação.
A Urgeiriça é, indubitavelmente, a zona mineira onde a
exploração de urânio mais se desenvolveu e adquiriu dimensão
nacional e internacional. Uma história do urânio que culmina, no final
do século XX, num reconhecimento tardio do passivo ambiental
gerado pela exploração desse minério. Na esteira de Brunet (2004),
denominamos esse período por tempo incerto da radioatividade e
de redescoberta da nuclearidade. Encerrada a atividade, o urânio e
a sua exploração desprendem-se definitivamente do contexto de
familiaridade no qual se encontravam e passam a ser fonte de
incerteza. Incerteza relativamente ao seu controle político-
administrativo no passado e à sua gestão no futuro. Incerteza
relativamente ao património negativo que legaram aos territórios e às
gerações vindouras. Incerteza relativamente aos efeitos nos
trabalhadores e nas populações locais. É este o tempo durante o qual
ficam reunidas as condições para que, em Portugal, o dever
assumido por sucessivos governos de proceder à requalificação
ambiental dos antigos sítios minérios encontre na Urgeiriça
resistência na voz dos trabalhadores.

1. O CAMBIANTE SIGNIFICADO DO URÂNIO NA


URGEIRIÇA
A história do urânio na Urgeiriça terá começado em 1907,
com a descoberta dos primeiros jazigos urano-radíferos (Romão et
316 Movimentos, Direitos e Instituições

al., 2000, p. 103), iniciando-se a aventura do urânio na Urgeiriça em


1913. (Veiga, 2006, p. 257). Na história do urânio em Portugal, a
Urgeiriça assume uma importância crucial. Era na Urgeiriça que se
concentravam a gestão, a direção técnica, a generalidade dos
quadros técnicos, as instalações administrativas e de manutenção, e
os equipamentos industriais de tratamento que recebiam todo o
minério oriundo do seu universo mineiro.
Para a Urgeiriça propõem-se, na esteira de Brunet (2004),
três temporalidades: o tempo tateante do urânio (1913-1962), o
tempo áureo do urânio (1962-1990), e o tempo incerto da
radioatividade (1990-2008). Temporalidades, estas, que não
encontram uma correspondência direta com a cronologia da
exploração e tratamento de urânio na Urgeiriça, assentando a sua
formulação na ausência inicial e na emergência tardia da questão
ambiental139.
Em grandes linhas, a primeira temporalidade corresponde
ao arranque da aventura do urânio e estende-se à interrupção da
atividade privada no sector da exploração de minérios de urânio, com
os bens, concessões e direitos da Companhia Portuguesa de Radium
a serem transferidos para o Estado, que passará a exercer essa
atividade em regime de monopólio. É este o tempo da Companhia
Portuguesa de Radium, tempo que, apesar de tateante em relação ao
significado do urânio, corresponde a um período de crescimento local
das infraestruturas industriais e sociais140. O urânio constitui, nesse
período um bem para aqueles que o exploram e para os
trabalhadores que neste alicerçam as suas vidas. Localmente, os
benefícios da exploração, à exceção da Urgeiriça, são quase nulos,
situação que, aliás, se manterá independentemente da temporalidade
considerada.

139
De 1913 a 2001, a exploração e tratamento de rádio e, posteriormente, de urânio
serão da responsabilidade: da Henry Burnay & Cª. (1913-1931); da Companhia
Portuguesa de Radium, Lda. (1932-1962); da Junta de Energia Nuclear (1962-
1977); da Empresa Nacional de Urânio, EP. (1977-1990); e, finalmente, da
Empresa Nacional de Urânio, S.A. (1990-2001).
140
No complexo mineiro nasceu uma comunidade dentro da comunidade, um lugar,
como muitos dos seus habitantes insistem ainda hoje em chamar-lhe, distinto de
Canas de Senhorim. Os efeitos desta distinção não se diluíram completamente
depois da cessação da atividade do complexo industrial da Urgeiriça e são
importantes para compreender o modo como, à medida que a questão dos
trabalhadores da Empresa Nacional de Urânio ganha em dimensão mediática, vai
perdendo em apoio local.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 317

A questão ambiental não se coloca durante o tempo


tateante do urânio, tal como acontece no período seguinte: o tempo
áureo do urânio. Na transição entre um período e o outro encontra-se
um elo fundamental: a Junta de Energia Nuclear. Criada em 1954
pelo Decreto-Lei n. 39 580, de 29 de março, a Junta de Energia
Nuclear (JEN) inicia, então, uma ampla campanha de prospeção
nacional de urânio que resulta na descoberta de aproximadamente
141
100 jazigos uraníferos . A JEN assume a responsabilidade pelo
complexo industrial da Urgeiriça até 1977, altura em que é substituída
pela Empresa Nacional de Urânio (EP). Será, de facto, a partir da
instalação da Junta de Energia Nuclear (JEN) que o urânio, do ponto
de vista político como do ponto de vista de uma elite emergente de
técnicos, engenheiros, cientistas e académicos, ganhará relevo nas
aspirações de Portugal tanto a nível nacional como internacional.
(Taveira, 2005).
Finalmente, o tempo incerto da radioatividade (1990-2008)
corresponde ao último fôlego da exploração de urânio e à afirmação
da questão ambiental. Em 1990, quando a Empresa Nacional de
Urânio S.A. assume a gestão do complexo industrial da Urgeiriça, o
tempo é de crise e de reestruturação. Depois de ensaiadas
infrutiferamente diversas estratégias de diversificação da atividade
(pedreiras, rochas ornamentais etc.), em Março de 2001 é decidido
em Assembleia Geral o início do processo de dissolução e entrada
em liquidação da empresa, processo este que coincide com a
aprovação do Decreto-Lei n. 198-A/2001 que sustenta a recuperação
ambiental de áreas sujeitas à atividade mineira.
A avaliação dos impactos ambientais da atividade mineira
em Portugal encontra, porém, antecedentes que remontam a meados
da década de 1990, com a realização de diversos estudos de
diagnóstico, que permitiram estabelecer uma hierarquização das
situações e selecionar os casos mais prementes para a realização de
obras de reabilitação e/ou requalificação ambiental. (Batista et al.,
2004; Costa, 2000; Romão et al., 2000; Oliveira et al., 1999, 2002).
Em 1999, os Ministérios da Economia e do Ambiente
estabelecem um protocolo de cooperação para a recuperação

141
É importante ter em consideração que, no início dos anos 1930, os ingleses
adquirem a totalidade da Companhia Portuguesa de Radium, inicialmente formada
por capitais luso-britânicos. Esta situação manter-se-á até ao início dos anos 1960
com a Companhia Portuguesa de Radium a pôr fim à sua atividade, revertendo,
então, todos os seus bens em favor do Estado português.
318 Movimentos, Direitos e Instituições

ambiental e a implementação de medidas legislativas,


organizacionais e financeiras para o sector mineiro. O protocolo
resultou num acordo de cooperação entre a Direcção Geral do
Ambiente, o Instituto Geológico Mineiro e a Empresa de
Desenvolvimento Mineiro – holding que representa os interesses do
Estado no sector mineiro –, com o objetivo de desenvolver um
programa de recuperação das minas abandonadas e de estabelecer
um enquadramento normativo para a implementação desse
programa. (Batista et al., 2004). Desse enquadramento destaca-se o
Decreto-Lei n. 198-A/2001, de 6 de julho de 2001. O Decreto-Lei n.
198-A/2001 representa um marco importante na medida em que
fornece um sólido fundamento jurídico à missão da qual a Empresa
de Desenvolvimento Mineiro foi incumbida pelo Estado: a
recuperação ambiental de antigas áreas mineiras degradadas, com
vista à sua reabilitação e valorização económica. Isto permite à EDM,
por um lado, posicionar-se numa esfera relativamente à qual todo o
resto – tudo o que escapa à sua missão – pode ser classificado como
lhe sendo estranho e, por outro, assumir posições de força
relativamente a determinados aspetos, como por exemplo, a
exigência de Estudos de Impacto Ambiental, que entravam o
cumprimento dessa missão142.

2. CORPORALIZAÇÃO DA NUCLEARIDADE E
DESERTOS SEM MEMÓRIA

Das muitas histórias do urânio que haveria a contar,


interessa uma história em particular que se desenrola no tempo
contestado do urânio. Momento em que a exploração e tratamento
de urânio cessam e se torna premente a necessidade de atender ao
passivo ambiental gerado pela atividade mineira em Portugal.
Momento em que o Estado assume, enquanto dever fundamental, a
responsabilidade pela reposição do equilíbrio ambiental de áreas
sujeitas à atividade mineira. Momento em que é redescoberta a
nuclearidade do urânio.

142
O exclusivo do exercício da atividade de recuperação ambiental das áreas mineiras
degradadas foi, então, adjudicado, em regime de concessão, à EXMIN (Companhia
de Indústria e Serviços Mineiros e Ambientais, S.A.). Em 30 de Setembro de 2005
a EXMIN foi integrada na Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM), dando
origem à nova EDM que passa a deter a concessão desta atividade.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 319

Assumida pelo Estado a requalificação ambiental das


antigas minas uraníferas, o significado do trabalho no complexo
industrial da Urgeiriça adquire uma nova roupagem, pelo facto de se
tornarem visíveis – e, mais importante, mobilizável porque
certificadas pela Ciência – as consequências da exploração de
urânio para o território e para os trabalhadores. A emergência da
questão ambiental, por via da qual aparece um estudo
epidemiológico, impulsiona a emergência dos corpos contaminados
por via de uma redescoberta nuclearidade. Corpos que procuram,
nesse sentido, igualar o território em importância, fazer valer igual
direito à contaminação, igual direito à reparação, igual direito à
compensação. No entanto, e é neste ponto que o terreno revela toda
a sua complexidade, a exposição ocupacional às radiações, as
doenças oncológicas e a morte, não constituem a principal motivação
para os protestos dos Antigos Trabalhadores da Empresa Nacional
de Urânio. É esta a história que se contará aqui.
Parte de uma história complexa, a história do urânio da
Urgeiriça desenvolve-se ela própria num local complexo. Está-se aqui
longe das chamadas comunidades terapêuticas ou altruístas, nas
quais impera o consenso, a solidariedade e a empatia, sustentadas
pela definição coletiva e partilhada de uma dada situação. (ERIKSON,
1976). No Urgeiriça, encontra-se, outrossim, perante uma
comunidade volátil (GUNTER; KROLL-SMITH, 2006), sendo essa
volatilidade definida pela presença local de diversos atores coletivos
portadores de agendas e interesses que, apesar de se cruzarem em
alguns momentos, permanecem, no essencial, inconciliáveis. Neste
espaço agonístico complexo, diversos atores levarão a cabo ações de
protesto e atos públicos visando ora aos efeitos associados à
atividade de exploração e tratamento de urânio no território (a
questão ambiental) ora a questões tangenciais à requalificação
ambiental (por exemplo, a restauração do Concelho de Canas de
Senhorim)143. (MENDES; ARAÚJO, 2010).

143
As minas da Urgeiriça situam-se na freguesia de Canas de Senhorim. Nesta
freguesia surgiu, após o 25 de Abril de 1974, com o fim da ditadura em Portugal, o
Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim (MRCCS), com o
propósito de reivindicar a elevação a Concelho desta localidade. Momento
marcante no seu percurso foram os acontecimentos de Agosto de 1982, que
conduziram à criação de um código postal próprio após dias de confrontação com
as forças de segurança. Após 1997, o Movimento iniciou um conjunto de ações
radicais, entre boicotes eleitorais, invasões de cerimónias e monumentos públicos,
com forte projeção mediática e em confronto direto com as autoridades locais e
nacionais. No âmbito destas acções, a venda de urânio à Alemanha e a
320 Movimentos, Direitos e Instituições

Este artigo cingir-se-á aos protestos originados pelo


processo de requalificação ambiental e pela dissolução da Empresa
Nacional de Urânio (ENU), dando, deste modo, particular ênfase à
Associação Ambiente em Zonas Uraníferas (AZU) e aos Antigos
Trabalhadores da ENU. E isso porque será na sequência do estudo
epidemiológico, reivindicado pela AZU como uma vitória sua, que os
Antigos Trabalhadores encontrarão fundamento para reivindicar uma
responsabilização outra por parte do Estado, uma responsabilização
moral que deve ser acompanhada de uma reparação ou
compensação material.
Enquanto a AZU procura intervir diretamente no processo
de requalificação ambiental, encontrando nesta o seu grande cavalo
de batalha, os Antigos Trabalhadores da ENU levantam questões
que ultrapassam as fronteiras tecno-políticas do programa de
requalificação ambiental144 e procuram escapar ao colete-de-forças
criado pela retórica do interesse público nacional subjacente ao
programa e extensível à sua territorialização nas minas da Urgeiriça.
Ao efeito de redução da problemática das consequências da
exploração de minérios radioativos e da sua remediação introduzido
pelo programa, os Antigos Trabalhadores procurarão opor um efeito
de ampliação da problemática, no âmbito do qual passarão a ter
cabimento os direitos laborais e sociais e para a qual a doença e a

contestação de que foi alvo por parte do Movimento para a Restauração do


Concelho de Canas de Senhorim constituiu praticamente o único momento de
aproximação entre a luta dos trabalhadores e do MRCCS, que não se voltaria a
verificar. Para uma análise detalhada da lógica deste movimento social local e do
episódio da venda de urânio em 2004, conferir MENDES, 2003 e 2005.
144
Criada por ex-trabalhadores da Empresa Nacional de Urânio (ENU) e alguns
notáveis locais, em 2002, a Associação Ambiente em Zonas Uraníferas (AZU)
apela ao cumprimento da Resolução n. 34/2001, de 29 de Março, que
recomendava ao Governo medidas para resolver o problema da radioatividade nos
resíduos e nas minas de urânio abandonadas nos distritos de Coimbra, Guarda e
Viseu, nomeadamente adotando soluções concretas no perímetro das minas da
Urgeiriça. De entre as recomendações ao XIV Governo Constitucional, chefiado por
António Guterres, destacam-se duas que irão marcar a agenda das reivindicações
dos atores locais: submeter as comunidades locais nos três distritos a vigilância
epidemiológica ativa para garantir uma minimização de riscos, tendo em conta a
radioatividade e a poluição química (ponto 6); e contribuir para assegurar uma
correta situação social dos atuais trabalhadores da ENU, que deverão ser apoiados
social e profissionalmente, em qualquer quadro futuro (ponto 8). A Resolução da
Assembleia da República n. 34/2001 fornecerá a base na qual a AZU sustentará as
suas reivindicações. No entanto, embora inicialmente associados à AZU, os
trabalhadores da ENU irão, progressivamente, abandonar a associação pelo facto
de esta, mais vocacionada para as questões ambientais, não dar prioridade às
questões sociais e laborais.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 321

morte funcionarão como importantes alavancas de mobilização e de


sensibilização visando políticos mais do que políticas. Inicialmente
concebido com o intuito de tranquilizar a população de Canas de
Senhorim relativamente aos riscos efetivos que representa o legado
da exploração de urânio, ou seja, relativamente à nuclearidade do
território, o estudo epidemiológico terá um efeito inesperado de
corporalização da nuclearidade e de fundação da reivindicação de
direitos sociais e laborais por parte dos trabalhadores da ENU numa
base nova: a dos corpos contaminados. (MENDES; ARAÚJO, 2012).

2.1 O Estudo Epidemiológico


O estudo epidemiológico, denominado MinUrar, toma à letra
a Resolução n. 34/2001, de 29 de Março, e, “face à impossibilidade de
estudar os eventuais efeitos associados a todas as minas de urânio”
(INSA, 2005, p. 3), centra-se exclusivamente na comunidade local de
Canas de Senhorim. O pioneirismo do MinUrar reside, inclusivamente,
em abordar os efeitos aos quais as populações que vivem próximas
das minas de urânio estão sujeitas e os efeitos que as escombreiras de
minas de urânio e as lagunas com águas residuais ácidas ricas em
metais pesados exercem sobre a saúde dessas populações, já que,
relativamente aos trabalhadores, estes efeitos parecem sobejamente
estabelecidos e incontestáveis. Apesar de o estudo MinUrar não
estabelecer de forma inequívoca uma relação causal entre a
exploração de urânio e a incidência aumentada de neoplasias malignas
para a população de Canas de Senhorim, assume um papel
preponderante no modelar da luta porvir dos Antigos Trabalhadores da
ENU, para quem essa relação, apesar do estudo não lhes ser dirigido,
passa a ser incontestável e, no âmbito da sua estratégia de ação, um
suporte fundamental à enfatização da nuclearidade da atividade
mineira e, consequentemente, dos seus efeitos.
Por impulso do encerramento do complexo industrial da
Urgeiriça e por reforço do estudo epidemiológico, modifica-se a
aceitabilidade do risco por parte dos trabalhadores (BARTHE, 2006;
GONÇALVES, 2007a) do Complexo Mineiro da Urgeiriça, o que
engendra uma nova definição da situação e confere aos
trabalhadores um valor moral às suas reivindicações, sustentado na
sua qualidade de vítimas legítimas. A volatilidade da comunidade
torna-se aqui inteligível na medida em que os efeitos para a saúde,
ou mesmo ambientais, não aparecem como uma certeza
unanimemente partilhada pela comunidade ou mesmo pelos próprios
322 Movimentos, Direitos e Instituições

trabalhadores. Essa situação não se verifica relativamente aos


direitos sociais e laborais dos trabalhadores da ENU que granjeiam
maior simpatia, sem que, todavia, essa se transforme numa
mobilização ampla em nível local.
Das incertezas do MinUrar – apanágio dos estudos
epidemiológicos (KROLL-SMITH et al., 2000, p. 10) – o que os Antigos
Trabalhadores irão pois reter, para melhor hiperbolizar ou enfatizar é a
certeza de uma relação entre trabalho na ENU e neoplasias malignas,
abrindo desta forma caminho à entrada de outras questões
relativamente às quais o Estado terá de assumir responsabilidade se
não pela força da Lei, então por uma questão moral.

2.2 Direitos Sociais e Laborais: entre a Justiça e o


Ressentimento

Para os Antigos Trabalhadores da ENU, na sequência do


encerramento da atividade do complexo industrial da Urgeiriça e,
mais expressivamente, após o estudo epidemiológico, a relação
causa-efeito entre trabalho na ENU e riscos para a saúde passa a ser
incontestável e, no âmbito da sua estratégia de ação, um suporte
fundamental à enfatização da ameaça do urânio. Encontrando na
dramatização dos efeitos para a saúde e na morte fortes aliados na
produção de um efeito mediático, os Antigos Trabalhadores da ENU
visam alargar o âmbito da responsabilidade e de responsabilização
do e pelo Estado. Este, por sua vez, procura confinar-se à questão
ambiental. A comunicação social desempenha, como se referiu, uma
importante função amplificadora, não do risco para a saúde pública
em si (SANDMAN, 1994), mas da imagem dos trabalhadores
contaminados, do drama, o fundamento ético e moral na base do
qual os trabalhadores reclamam o alargamento da responsabilidade e
responsabilização do e pelo Estado.
É fundamental, neste ponto, uma chamada de atenção
relativamente ao coletivo dos trabalhadores da ENU. Estes não
formam um coletivo nem uno nem unido em torno de uma causa
comum, configurando antes um coletivo confinado. Na origem dessa
fragmentação encontra-se a promulgação do Decreto-Lei n. 28/2005.
Em 2001, no início do processo de dissolução e liquidação
da ENU, mantinham-se em atividade cerca de 40 trabalhadores, entre
os quais, Albertina Guimas, porta-voz dos Atuais e Antigos
Trabalhadores da ENU, que irão sustentar as suas reivindicações na
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 323

Resolução da Assembleia da República n. 34/2001. Recorde-se que


esta recomendava ao Governo o melhor aproveitamento do know-
how e do equipamento especializado existente na Empresa Nacional
de Urânio e que contribuísse para assegurar uma correta situação
social dos atuais trabalhadores da ENU, que deverão ser apoiados
social e profissionalmente, em qualquer quadro futuro. Aos olhos dos
Atuais e Antigos Trabalhadores da ENU, isto equivale às promessas,
por um lado, da integração dos trabalhadores da ENU nos trabalhos
de requalificação ambiental e, por outro, da equiparação dos
trabalhadores a trabalhadores do interior ou da lavra subterrânea das
minas para efeitos de acesso à pensão de invalidez e de velhice.
Na sequência de diversas ações de protesto e após um
inegável contributo do Movimento para a Restauração do Concelho
145
de Canas de Senhorim , o Governo responde com a aprovação em
Conselho de Ministros, no dia 15 de dezembro de 2004, do Decreto-
Lei n. 28/2005, que concedia a equiparação de fundo de mina aos
trabalhadores que, à data da dissolução da ENU, mantinham um
vínculo profissional com a empresa, ou seja, cerca de 40
trabalhadores. A partir deste momento, a referência aos Atuais e
Antigos Trabalhadores da ENU deixa de fazer sentido, restringindo-
se, agora, o coletivo, aos Antigos Trabalhadores da ENU. Na
liderança dos protestos dos ex-trabalhadores verificam-se igualmente

145
É, de facto, necessário ter em consideração um momento marcante da luta
protagonizada pelo Movimento para a Restauração do Concelho de Canas de
Senhorim (MRCCS) de aproximação entre a luta dos trabalhadores e do MRCCS
que não se voltará a verificar: a venda de urânio à Alemanha. No dia 16 de
Novembro de 2004, dia do primeiro carregamento de urânio, centenas de pessoas
concentram-se junto às instalações da ENU para impedir a sua saída com destino
à Alemanha. Este representava, de facto, um momento ideal para forçar a
reapreciação da questão da restauração do concelho, objetivo último do
Movimento. Após negociações, o Ministro do Ambiente, Luís Nobre Guedes, acede
receber em Lisboa o líder do Movimento, Luís Pinheiro, e, ao final da tarde, os
representantes do Movimento na localidade recebe do líder a informação de que
um acordo teria sido atingido e que os protestos podiam ser interrompidos.
(MENDES, 2005, p. 176). O primeiro carregamento acaba, assim, por sair. Na base
desse acordo estaria o compromisso do governante para avançar com a
requalificação ambiental e de atender aos problemas dos trabalhadores da ENU.
Na localidade as reações são de tristeza e indignação. “Para muitas pessoas o
peso político do Ministro do Ambiente era mínimo e a requalificação ambiental um
objetivo secundário. Com os camiões parecia ir uma parte da luta, e era
questionada uma memória coletiva composta ao longo dos anos por múltiplos
episódios de confronto e desafio em relação às autoridades locais e nacionais. Nas
palavras de uma mulher: ‘Vamos ficar sem moeda de troca. Queremos ser
concelho ou a requalificação?’”. (MENDES, 2005, p. 177).
324 Movimentos, Direitos e Instituições

alterações, cedendo Albertina Guimas o lugar ao, até então porta-voz


da AZU, António Minhoto.
Implodido o coletivo por via da diferenciação estratégica dos
trabalhadores originada pelo Decreto-Lei 28/2005, o conflito cessa de
opor exclusivamente os trabalhadores ao Estado e passa a opor
igualmente os trabalhadores entre si. Os Antigos Trabalhadores da
ENU, não abrangidos pelo Decreto-Lei, para verem garantidos os
seus direitos, terão que encontrar outras bases de sustentação para
as suas reivindicações: a nuclearidade, a injustiça e o ressentimento.
É este o momento em que os efeitos para a saúde e a morte
adquirem um novo potencial de mobilização e, principalmente, de
sensibilização. É como vítimas legítimas que os trabalhadores
contaminados se passam a apresentar, encontrando na morte um
meio para a afirmação da sua causa.146
Na ação dos Antigos Trabalhadores da ENU, o que aparece
como o elemento mais saliente é o recurso à enfatização dos efeitos
para a saúde associados ao trabalho no complexo industrial da
Urgeiriça com o objetivo de estender as medidas de reparação
propostas pelo Estado a outros domínios que se situam
necessariamente fora do âmbito da requalificação ambiental, mas que
são conexas à atividade da ENU no território. Reivindicando a
exposição ocupacional à radioatividade como inacessível aos
trabalhadores à época da atividade do complexo e que só
presentemente se começa a manifestar, os Antigos Trabalhadores da
ENU visam alargar o âmbito da responsabilidade e de
responsabilização do e pelo Estado147. Tal como foi reconhecido ao

146
A entrada em cena das viúvas dos ex-trabalhadores da ENU, por via das
indemnizações aos familiares dos trabalhadores da ENU falecidos vítimas de
doenças oncológicas, representa uma extensão natural do enquadramento de
injustiça acima definido. As viúvas revelam-se incapazes de transformar a sua dor
numa força política autónoma e aparecem associadas aos Antigos Trabalhadores.
Tal como acontece em relação a estes, também as viúvas não formam um coletivo
aglutinador de todas as viúvas de ex-trabalhadores. Estas partilham a condição de
viúva, mas, acima de tudo, a necessidade de obter uma reparação financeira que
complemente uma reduzida pensão de viuvez. De acordo com as viúvas
entrevistadas aquelas que não participam têm uma fonte de subsistência que lhes
permite não andar nisto. Participar não é um luxo, sendo antes um imperativo de
sobrevivência. Mesmo se conscientes dos ataques que sofrem localmente, que o
povo lhes morde nas costas, vão e irão sempre.
147
Na sequência da eleição de José Sócrates para o cargo de Primeiro-Ministro, em
Março de 2005, os ex-trabalhadores da ENU decidem em plenário quais as
exigências a apresentar ao novo governo. Dessas exigências passarão a constar
os exames médicos aos ex-trabalhadores da ENU. No entanto, apenas nos finais
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 325

território, os trabalhadores reclamam-se igualmente como


contaminados. Ao contrário do que acontece em França, com a
ampliação da incerteza e a desterritorialização da nuclearidade, na
Urgeiriça a corporalização da nuclearidade funciona como um factor
de reforço da sua territorialização que impede que esta extravase
fronteiras espaciais (dos antigos sítios mineiros para o conjunto do
território) e temporais (do passado para as gerações futuras).
O processo de requalificação ambiental serve, nesta
medida, de amplificador para a reivindicação de questões que não
têm os efeitos para a saúde como principal factor aglutinador, mas
sim a injustiça e o ressentimento originados pelo Decreto-Lei n.
28/2005. Os Antigos Trabalhadores investem fortemente numa
interpretação alinhada e comprometida (NUNES, 2007) do estudo
epidemiológico que visa: confirmar a veracidade da constatação
popular de uma maior incidência de neoplasias entre os
trabalhadores da ENU e legitimar as reivindicações de direitos não
inscritos na proposta de reparação para o território apresentada pelo
Estado, ou seja, a requalificação ambiental. São as consequências
aqui e agora que os Antigos Trabalhadores da ENU procuram
acentuar para reclamar uma reparação que deve ser dada
igualmente, aqui e agora.

3. ENCERRAMENTO POLÍTICO E CONFINAMENTO DA


CONTESTAÇÃO
A 14 de Abril de 2008, são inauguradas as obras de
requalificação da Barragem Velha. Acontecimento importante na
medida em que proporciona, aos Antigos Trabalhadores da ENU, um

de 2006 e meados de 2007 esta questão terá desenvolvimentos significativos,


abandonando, posteriormente, a lista das reivindicações dos Antigos
Trabalhadores da ENU. Esta reivindicação adquire particular visibilidade, primeiro,
com a divulgação do relatório final do MinUrar (Fevereiro 2007) e, segundo, com o
falecimento de um trabalhador da ENU que leva os Antigos Trabalhadores a
anunciar a intenção de avançar com uma queixa contra o Estado, caso esse não
crie condições para a realização de exames médicos periódicos aos ex-
trabalhadores da ENU. Em Maio de 2007, o Ministro da Saúde, Correia de
Campos, anuncia a intenção de criar um programa de acompanhamento da
população de Canas de Senhorim e, ainda nesse mês, assina um despacho
solicitando à Direcção-Geral de Saúde que, através da Administração Regional de
Saúde do Centro, apresente um Programa de Intervenção em Saúde.
Finalmente, em Junho 2007, o Governo aprova o Programa de Intervenção em
Saúde dos ex-Trabalhadores das Minas da Urgeiriça, que visa a identificação
precoce de qualquer alteração no seu estado de saúde.
326 Movimentos, Direitos e Instituições

importante palco mediático para as suas reivindicações e, à Empresa


de Desenvolvimento Mineiro (EDM), uma oportunidade para tornar
público o desfecho bem-sucedido de um processo moroso,
atravessado por diversos protestos e polémicas, mas exemplar na
sua execução técnica.
A sessão de inauguração tem lugar no histórico Hotel da
Urgeiriça. Cá fora, os ex-trabalhadores da ENU manifestam-se. No
fim de semana que precede a inauguração, houvera falecido um
trabalhador e outro encontrava-se hospitalizado. Alguns ex-
trabalhadores envergam camisolas pretas, como forma de luto, com
148
três dizeres diferentes: “A dívida do Estado está por pagar” ;
“Justiça e direitos iguais para todos”; “Urânio continua a matar”.
Outros seguram faixas: “Fomos vítimas de exposição à
radioatividade. O Estado português é culpado”.
A manifestação é encabeçada por António Minhoto, na
qualidade de porta-voz dos Antigos Trabalhadores da ENU, e será ele
que, quando a comitiva que se encontrava no hotel se dirige ao local
onde se encontra a mesa comemorativa da inauguração, interpelará
os representantes das entidades oficiais. Nessa sequência, o
Secretário de Estado Adjunto da Indústria e da Inovação, António
Castro Guerra, natural de Viseu, convidará António Minhoto a
acompanhar a comitiva e, no momento de descerrar a mesa
comemorativa, pedirá para que seja acrescentado o nome da
Presidente da Câmara Municipal de Nelas e a frase: “Em homenagem
aos ex-mineiros já falecidos”.
António Minhoto dirige-se, então, aos ex-trabalhadores
dizendo que a requalificação foi uma vitória dos trabalhadores149. A

148
Esta frase pertence ao deputado do PS eleito pelo círculo eleitoral de Viseu, Miguel
Ginestal, e foi proferida num plenário de trabalhadores realizado na Urgeiriça no dia
08 de Abril de 2005. Durante o plenário é entregue ao deputado um documento
expondo preocupações de natureza ambiental, socio laboral e de saúde pública
(Assinantes: António Minhoto, Luís Marques Pinto e um terceiro nome ilegível).
Com base nesse documento os deputados do Grupo Parlamentar do PS eleitos
pelo círculo de Viseu (José Junqueiro, Cláudia Couto Vieira, Manuel Maria Carrilho
e Miguel Ginestal) irão requerer aos ministérios da Saúde (Requerimento 197-
AC/X1, 04.05.2005); do Trabalho e da Solidariedade Social (Requerimento 196-
AC/X1, 04.05.2005); da Economia e Inovação (Requerimento 195-AC/X1,
04.05.2005); e do Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento
Regional (Requerimento 194-AC/X1, 04.05.2005), uma análise cuidada e a adoção
de medidas adequadas às preocupações expostas.
149
Esta afirmação é muito mal acolhida pelos representantes do MRCCS e por alguns
populares presentes no local.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 327

requalificação ambiental, na opinião dos autores deste trabalho, não


foi uma vitória dos trabalhadores. Nem, na verdade, esta foi e
continua a ser a sua batalha. E, no entanto, por meio deste acto
simbólico, deste acto de reconciliação – cujo alcance talvez não tenha
sido imediatamente inteligível aos intervenientes –, as fronteiras do
Programa de Recuperação Ambiental das Áreas Mineiras
Degradadas atenuam-se para tornar os ex-trabalhadores
participantes improváveis de um objetivo que nunca foi o deles.
Finalizada a requalificação da Escombreira da Barragem Velha ficam
soterrados, confinados e controlados os rejeitados da mina da
Urgeiriça e os seus efeitos nefastos. Soterramento, confinamento e
controlo que se estende aos mineiros falecidos e aos seus efeitos
mobilizadores, pondo, desta forma, fim, ao seu purgatório político.
(KEARL, 1989, p. 300). Fazer dos mineiros memória é iniciar a sua
entrada no esquecimento150. E toda a ação dos Antigos
Trabalhadores se opõe a esse movimento, porque assenta
precisamente na emergência dos mineiros contaminados e falecidos.
Para os Antigos Trabalhadores da ENU, a morte reforça a
responsabilidade do Estado, por um lado, pelos falecimentos em si e,
por outro, pela perpetuação de uma questão cuja resolução depende
apenas da sua vontade, apenas de uma decisão política. O recurso
aos mortos é uma expressão de resistência à fatalidade. Morrer em
vão, de uma morte não natural, é o que está em causa. Não é como
memória que os trabalhadores se posicionam, mas sim como vítimas.
O espaço na mesa comemorativa no qual deveria ter sido
acrescentada a simbólica homenagem aos mineiros falecidos
continua, ainda hoje, em branco. Uma omissão significativa.
Requalificada a Urgeiriça num deserto sem memória, viúvas e
Antigos Trabalhadores lutam efetivamente para que os corpos não
fiquem, também eles, desapossados de memória.
Uma luta que revela o trabalho inacabado dos mortos.

150
No mesmo espírito, a intenção do presidente da EDM, Delfim de Carvalho, de criar
na Urgeiriça um Centro de Conhecimento de Radiações (Radianatura – Radiação,
Vida, Ambiente) para contribuir com a preservação da memória mineira, o apoio ao
ensino, a divulgação científica e o turismo e que visa, primeiro, reforçar a garantia
de segurança oferecida pela requalificação da Barragem Velha e, segundo,
transformar em bem aquilo que os ex-trabalhadores se esforçam em estabelecer
como mal: a nuclearidade do urânio. Um memorial ao futuro destinado a apagar o
passado.
328 Movimentos, Direitos e Instituições

As reivindicações dos trabalhadores haviam, de facto,


chegado à Assembleia da República (AR) uma primeira vez em
151
Março de 2008, por iniciativa de três partidos políticos . O debate
parlamentar irá centrar-se, por parte dos proponentes dos projetos de
lei, por um lado, na relação entre o trabalho nas minas de urânio e o
risco de desenvolvimento de neoplasias malignas e,
consequentemente, nos inegáveis falecimentos dos ex-trabalhadores
da ENU. Por outro, no âmbito da aplicação do regime especial de
acesso às pensões de invalidez e velhice a introduzir pelos diplomas
propostos e na definição do período de tempo de trabalho nas minas
a considerar para que os trabalhadores possam ser abrangidos pelas
alterações. Nenhum dos projetos de lei será, então, aprovado pela
AR, sendo todos eles rejeitados pelos votos contra do Partido
Socialista (PS).
Os trabalhadores regressam à AR numa conjuntura mais
favorável, na medida em que o principal opositor, o PS, já não detinha
a maioria absoluta, e veem aprovada a Lei n. 10/2010, de 14 de
junho, que altera ao Decreto-lei 28/2005 e alarga o seu âmbito aos
trabalhadores que tenham exercido funções ou atividades de apoio
nas áreas mineiras e anexos mineiros ou em obras ou imóveis afetos
à exploração pela Empresa Nacional de Urânio S.A. à data da sua
dissolução ou, no caso de cessação de contrato anterior à dissolução,
que tenham aí trabalhado por período não inferior a quatro anos, e
estabelece a obrigatoriedade de acompanhamento médico a estes
trabalhadores.152
A questão do período mínimo de trabalho na ENU para ser
abrangido pela Lei é fundamental. Como salienta um consultor da
EDM entrevistado pelo autores e que solicitou o anonimato:

[…] Abranger toda a gente era excessivo. Não fazia sentido equiparar a
fundo de mina alguém que trabalhou 15 dias na ENU. Isso seria admitir
que o conhecimento científico não tem valor. […]. (Ex-director do
Departamento de Geologia da ENU e actualmente consultor da EDM).

E, porém, foi precisamente isto que aconteceu. Nunca a luta


se sustentou na ciência, mas sim na emoção. A apropriação dos
resultados do MinUrar mostra bem como a argumentação dos

151
Trata-se dos projetos de lei 412/X e 464/X, apresentados pelo BE; 2) 443/X,
apresentado pelo PCP; e 3) 468/X, apresentado pelo PSD.
152
De fora fica a questão das indemnizações das viúvas, que fora uma parte
importante na mediatização do conflito.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 329

trabalhadores ladeia a argumentação científica, recebendo dela ecos


que são transformados em gritos, mostra bem que, ao contrário da
opção pela litigação, há uma opção pela mediatização da
corporalização da nuclearidade e pelo recurso à sensibilização dos
políticos.

CONCLUSÃO:
NUCLEARIDADE E CIDADANIA EM PORTUGAL

As controvérsias são pontos privilegiados para a avaliação


do papel da ciência na configuração das políticas públicas e no
fechamento ou não dos debates públicos sobre temas não
consensuais. Como refere D. Nelkin (1995), o escrutínio da ciência
pode constituir uma etapa na avaliação da relação dos cidadãos e do
público em geral com a ciência ou, como sugere B. Latour (2004;
2005), ser uma forma de exploração das oportunidades para a
construção de novas ferramentas que facilitem a constituição e a
presença de novos públicos e de novas formas de cidadania153.
Constituindo o estudo das controvérsias uma área
específica de investigação nos estudos da ciência e da tecnologia,
comportando uma vasta literatura e vários estudos de referência,
interessa neste caso dialogar com os trabalhos que, como refere
Mukerji (2007a, p. 787), dão menos relevo à análise dos processos
sociais que determinam o que é a ciência legítima e se centram mais
no estudo da importância da ciência na esfera pública. Nesta linha
específica de investigação cabe referir as análises de A. Kinchy, D.
Kleinman e R. Autry (2008), que acentuam o papel diferenciado das
instituições estatais na resistência ao discurso e às práticas da
indústria da biotecnologia. Segundo os autores, esta indústria procura
diminuir o impacto da participação dos cidadãos e suas organizações
representativas (aquilo a que os autores chamam de regulação social
da ciência) pela regulação por meio do cientismo e de análises
estritas de avaliação de risco. Também B. Wynne (2006) procede a
uma análise crítica da participação dos cidadãos na configuração das
políticas públicas e analisa as causas do falhanço das instituições
153
O fechamento dos debates e das polémicas e a produção de consensos revelam
também, nas suas temporalidades, os factores externos à ciência que condicionam
e estruturam os campos científicos.
330 Movimentos, Direitos e Instituições

científicas e estatais em colocar as suas culturas institucionais


relacionadas com a ciência e a política numa perspetiva dialógica.
Finalmente, de especial importância para os estudos de caso que se
apresenta neste Capítulo são as propostas de C. Mukerji (2007b;
2009) sobre o papel do Estado na definição de políticas que,
mobilizando a ciência e a técnica, sejam outorgantes de
responsabilidade pelos mais fracos e pelo bem comum.
Os campos do nuclear e da nuclearidade apresentam-se
como aqueles onde as controvérsias e os debates no espaço público
adquirem um carácter mais extremado e, em certos contextos,
agonístico. É interessante verificar que D. Nelkin, uma das autoras
pioneiras nos estudos das controvérsias científicas e técnicas (1979),
tenha precisamente começado por publicar um pequeno estudo sobre
o papel dos cientistas e dos técnicos na produção de informação no
processo de instalação de uma central de energia nuclear junto do
lago Cauyga. (NELKIN, 1971). O papel da ciência foi então abordado
tanto na perspetiva da empresa como do grupo de cidadãos contra a
instalação, constituído na sua maioria por cientistas da Universidade
de Cornell, localizada bastante próxima da futura central nuclear.
No caso dos Estados Unidos, como bem demonstrou J.
Masco (2006) a partir do estudo aprofundado do projeto Manhattan,
estamos perante um estado de emergência nuclear que marca todo o
debate sobre a utilização, a aceitação, a contestação ou a rejeição do
uso do nuclear para fins civis ou militares. O projeto Manhattan é uma
experiência total, que mobilizou os recursos totais do Estado-nação e
cujo sucesso transformou os conceitos de natureza, segurança,
poder, cidadania e de vivência quotidiana. (MASCO, 2006, p. 335).
O argumento aqui é o de que a nuclearidade assume
contornos distintos em diferentes contextos nacionais. Em França, F.
Zonabend (1993) mostrou de forma magistral como as populações de
várias localidades em La Hague (Baixa-Normandia, França) convivem
com o nuclear, e, tal como se viu para a região Limousin, como este
se insere num projeto de Estado-nação que aspira à independência
energética, subsumindo os riscos e exacerbando a capacidade
técnica de controlo e de regulação de uma fonte de energia tão
perigosa. Na sua abordagem, Zonabend rompeu com os estudos
tradicionais sobre as estruturas sociais e a perceção do risco e tentou
apreender o efeito da convivência com o nuclear por meio dos ditos e
dos não ditos, das narrativas e dos silêncios, de paisagens e
territórios marcados, mas quase invisíveis. Afastando-se das
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 331

propostas culturalistas e funcionalistas, Zonabend mostrou, a partir


das materialidades e das vivências, como a energia nuclear dos
discursos oficiais e mediáticos assumiu um carácter quase sagrado,
entre o inerte e o animado, o humano e o não humano, detetando-se
uma ansiedade ou um desconforto somente nos silêncios ou nos
interstícios das histórias de invulnerabilidade que circulam na esfera
154
pública (1993, p. 126) .
O estudo de caso da Urgeiriça situou-se a montante no
processo da nuclearidade, ou seja, na produção primária do urânio
empobrecido, e na temporalidade tardia da reconversão e
recuperação ambiental das minas e da redescoberta do nuclear e seu
impacto local nos imaginários, nos territórios e nos corpos.
A análise do modo como a população e o Estado abordaram
os efeitos no ambiente e na saúde dos riscos nucleares da atividade
de exploração do urânio permitiu identificar as dinâmicas da
controvérsia e dos protestos na Urgeiriça.
Em Portugal, a controvérsia emergiu somente após o
encerramento da companhia mineira e permaneceu confinada a um
espaço local e a grupos circunstanciais, incapazes de mobilizar
peritos independentes ou movimentos sociais não locais. As
reivindicações basearam-se não em argumentos técnicos, mas sim
no sofrimento, na morte, no ressentimento e em corpos que se
tornaram momentaneamente visíveis na esfera pública porque
hiperbolizaram a sua condição de vítimas e a sua condição de
contaminados.
A posição de Portugal na semiperiferia nuclear, como um
mero produtor de matéria-prima no mercado global do urânio,
permitiu o confinamento da controvérsia, a proeminência das
narrativas oficiais e a hegemonia dos peritos oficiais. Os
acontecimentos e os protestos locais não resultaram numa
reestruturação sociotécnica, desenrolando-se a lógica e o mercado
da reabilitação ambiental sem grandes contratempos. Em Portugal,
as vítimas ao tornarem-se visíveis procuraram desviar o Estado de
um posicionamento meramente técnico para uma tomada de posição
moral e ética.

154
Para uma análise excelente sobre as controvérsias em torno do armazenamento
dos resíduos nucleares em França, e de como estes se tornaram problemas
políticos, conferir BARTHE, 2006.
332 Movimentos, Direitos e Instituições

A controvérsia resultou, assim, na normalização dos


processos sociais relacionados com a exploração do urânio e a
nuclearidade. Argumenta-se que as questões de cidadania
permaneceram invisíveis no que concerne à nuclearidade, aventadas
somente nos interstícios da política e das performações sociotécnicas
e das suas inerentes materialidades, simbolismos e práticas. Na
Urgeiriça testemunhou-se a plena presença e a coerção do Estado, o
funcionamento integral do mercado e a biopolítica do regime de
regulação do urânio. Na Urgeiriça testemunhou-se o paroxismo da
invisibilidade de corpos hiperbólicos e do sofrimento pessoal e
coletivo.
Se a emergência da Urgeiriça como território nuclear está
bem documentada, as memórias pessoais e coletivas que se
recompõem e são incluídas nas novas narrativas não produzem
novos sujeitos políticos, novas e alternativas formas de se estar no
território, de pertencer, com plenos direitos e preparados para o
futuro. A dignidade da morte permaneceu despercebida na Urgeiriça,
enquanto o valor da vida e da cidadania plena permanecem um
desafio neste território.

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CAPÍTULO 14

O NOVO CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO E OS
NOVOS SUJEITOS DE DIREITO

155
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
156
João Vitor Martins Lemes

RESUMO
O direito moderno firmou e consolidou uma concepção de sujeito-
pessoa, construída no decurso da história, cujas principais
características foram idealizadas na modernidade, fundante da noção
de indivíduo. Marca da Revolução Francesa, esse é o suporte do
modelo capitalista instalado – individualista – e que oferece o eixo
central das questões jurídicas, invadindo os séculos XIX e XX. Na
contramão desse processo, o novo constitucionalismo democrático
latino-americano, na tentativa de superar esse paradigma, inovou na
perspectiva das titularidades jurídicas: apresentou novos sujeitos de
direitos e exigiu o reexame da teoria do direito e da teoria
constitucional para acolher essas novas subjetividades e conferir
eficácia aos direitos atribuídos a elas. Nesse sentido, este trabalho

155
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Bolsista de Produtividade do CNPq. Professora Titular do Programa de Pós-
Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (PPGA-UFG).
Representante, no centro-oeste, da Rede para o Novo Constitucionalismo
Democrático. E-mail: <mcvidotte@uol.com.br>.
156
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da
Universidade Federal de Goiás (PPGA-UFG). Pesquisador do Observatório
Fundiário Goiano (UFG). Coordenador do Curso de Direito da Faculdade de
Jussara. E-mail: <martins.joaovitor@yahoo.com.br>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 337

tem como objetivo analisar – a partir desse novo modelo


constitucional, sobretudo com base nos documentos fundantes para
as novas teorias e para o estudo do novo constitucionalismo que se
associa a ativismos em favor da implantação de modelos mais
participativos (a Constituição do Brasil, seguida pelas da Colômbia,
da Bolívia, da Venezuela e do Equador) – os novos sujeitos de direito
e a maneira através da qual os Estados se organizam para, por meio
do reconhecimento e da participação, garantir efetividade aos direitos
atribuídos a eles.
Palavras-chave: Novo Constitucionalismo Democrático Latino-
Americano; Novos Sujeitos de Direito; Sujeitos Coletivos;
Titularidades Jurídicas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. A INVENÇÃO DO INDIVÍDUO MODERNO –
PESSOA SUJEITO DE DIREITO; 2. AS PROPOSTAS DE MUDANÇA
CONSTITUCIONAL E A FUNÇÃO DO SUJEITO CAPAZ; 3. OS
SUJEITOS NO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-
AMERICANO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O novo constitucionalismo democrático latino-americano


inovou na perspectiva das titularidades jurídicas. Apresentou novos
sujeitos de direitos e exigiu o reexame da teoria do direito e da teoria
constitucional para acolher essas novas subjetividades e conferir
eficácia aos direitos atribuídos a elas, mas tratar dos sujeitos de
direito na América Latina é muito mais do que apontar titularidades e
revisar teorias para considerar os novos sujeitos incluídos nos
constitucionalismos contemporâneos.
É relevante, nesse momento, refletir sobre as origens dessa
mudança. É ponderar sobre a razão do surgimento de novos sujeitos
de direito incidindo sobre a existência de “não sujeitos de direito” ou
de pessoas que não se incluem na categoria de sujeito de direito, no
modelo do direito moderno ou do constitucionalismo moderno. Ou
pior, é constatar que se precisa de novas titularidades porque há
existências que só passam a ser incluídas nessa categoria (sujeito de
direito) no momento em que o Direito lhes imputa uma punição pelo
antidireito, pelo crime. Só são sujeitos no Direito quando lhes é
338 Movimentos, Direitos e Instituições

reconhecida a qualidade de criminosos. Essa é, a título de exemplo, a


situação dos camponeses e das camponesas criminalizados quando
se envolvem nos conflitos no campo.
Tratar dos sujeitos de direito na América Latina e no
Constitucionalismo Democrático Latino-Americano exige refletir sobre
a construção histórica da noção de sujeito de direito, suas
implicações, sobretudo o excluir de pessoas da sujeição à dimensão
de justiça. Pensar o respeito aos sujeitos de direito vislumbrando a
distribuição de justiça coletiva e social há de ser muito além da
perspectiva moderna do direito como atributo do sujeito e do conceito
de sujeito de direito originário do pensamento liberal.
As propostas democráticas contemporâneas mais
avançadas têm por fundamentos o multiculturalismo e a pluralidade
de povos, nações e direitos, mas isso exige, para a sua
concretização, muito mais do que as epistemologias nortenhas têm a
oferecer. Mais do que as propostas teóricas que pretendem realizar
os direitos no plano do homem indivíduo – modelo contemporâneo de
distribuição de justiça fundado e servindo ao liberalismo econômico.
Para haver direitos, há que se depreciar como quer
Benjamin (1996), a humanidade no plano individual para que ela
apareça no plano coletivo, para que no plano do direito o estranho
não seja não presente e, portanto, excluído do acesso à justiça. O
direito há de abandonar a fórmula – direito atributo de sujeito contra
todos, na sua existência contra os demais – para impor-se como ideia
de direito enquanto manifestação do justo social, a que todos –
sujeitos e não sujeitos – tenham acesso, não apenas os lembrados
ou reconhecidos pela ordem vigente.
Reafirma-se a proposta de Dussel (2007), segundo a qual a
América Latina deve reconhecer-se como continente gerador de
novos pensamentos, para fundar suas propostas respeitantes a todas
as existências sujeitas aos direitos.
Nesse sentido, objetivando estabelecer um caráter linear e
coeso às reflexões aqui propostas o texto está estruturado em três
partes: a primeira parte, A invenção do indivíduo moderno – pessoa
sujeito de direito, tratará do individuo da modernidade, enquanto
sujeito de Direito marcadamente caracterizado pela noção
individualista, do sujeito masculino, branco, constituidor de família, na
perspectiva homogeneizadora da sociedade. Na segunda parte,
intitulada As propostas de mudança constitucional e a função do
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 339

sujeito capaz, vislumbra-se estabelecer o giro do pensamento latino-


americano no tratamento dos sujeitos de direitos, fazendo emergir
novos sujeitos e novos direitos. Por fim, a última parte, Os sujeitos no
Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano, elencará
como esse movimento constitucional latino-americano vem inovando
na percepção de novos sujeitos de direitos antes não reconhecidos
pela ordem vigente, por reproduzir um padrão epistemológico e
sociológico europeu, sem considerar as diferenças dos contextos
locais.
O desafio teórico-reflexivo está lançado. Boa leitura!

1. A INVENÇÃO DO INDIVÍDUO MODERNO – PESSOA


SUJEITO DE DIREITO

O direito moderno inventa e se serve da concepção de


sujeito-pessoa, construída no decurso da história, cujas principais
características foram idealizadas na modernidade, fundante da noção
de indivíduo. Esse é o suporte do modelo capitalista instalado –
individualista – e que oferece o eixo central das questões jurídicas,
invadindo os séculos XIX e XX.
Essa é a marca da Revolução Francesa – a modernidade
individual. Com a consagração dos princípios da igualdade, da
liberdade e da fraternidade, o sujeito-pessoa-indivíduo torna-se uma
preocupação efetiva do direito. A teoria do direito é convocada a
conceber o sujeito de direito para suportar a ideologia e a ordem
estabelecida no Estado nascente. E o faz pelo binômio
universo/indivíduo.
A generalização e a universalização de normas para todos
os sujeitos impõem a necessidade de configurar um sujeito
subsumível ao indivíduo – igual a todos. Significa a igualdade para
seres iguais, para um grupo homogêneo de pessoas que têm por
referência uma mesma cultura.
A ideia de liberdade delineia um modelo de sujeito capaz da
autodeterminação, e capaz de ser sujeito da conhecida autonomia
privada. Autonomia para eleger suas relações jurídicas. O sujeito que
há de deliberar por si, com competências para se servir do contrato
para dispor de sua esfera de interesses.
340 Movimentos, Direitos e Instituições

A ideia de fraternidade consagra o individualismo e afasta a


responsabilidade comunitária. Exige um sujeito indivíduo que se põe
na relação com outro indivíduo, ou ainda como terceiro, também
indivíduo.
Assim se consagra o sujeito de direito, o super-homem
ultra-individual liberal cujos fundamentos filosóficos e teóricos são
deflagrados no seio do liberalismo. Antes do liberalismo, não
predominava no mundo ocidental uma mentalidade suficientemente
antropocêntrica que autorizasse identificar a pessoa sujeito de direito
no centro de interesses do direito.
Isso mudou efetivamente com os primados da Revolução
Francesa. Na perspectiva jusfilosófica, reconhece-se que a escola de
direito natural contribuiu significativamente para a construção do
conceito sujeito de direito identificado com a pessoa. A racionalidade
jusnaturalista ao afirmar que há direitos inatos ao homem, firma a
noção de direito individual e centraliza o sujeito nas especulações do
direito. Nesse contexto o sujeito de direito passa a ser identificado
como pessoa.
No modelo anterior, mais comunitário, essa noção de sujeito
de direito individual, afastado de pertencimentos é incompatível.
Originário de uma sociedade estamental, que assim se reconhece
inclusive juridicamente, o homem identificado pelo seu status,
caracterizado por condicionantes sociais e políticas que o
determinam, se vê um sujeito, mas não exatamente um indivíduo-
livre, autônomo. Não se enxerga como elemento central de um
sistema. É apenas um sujeito que se configura pelas suas condições
de existência. E nessas condições fica definida a capacidade de cada
sujeito, conforme a ordem que se encontra, mas a noção de
capacidade também mudará na modernidade para se tornar o
aspecto central da jurisdição, na era dos códigos.
O mundo moderno com seus consectários, entre os quais a
Revolução Francesa, traz a unificação do sujeito de direito que na
qualidade de indivíduo ocupa o centro da questão jurídica. O sujeito
pessoa livre. E aí, que a noção de personalidade avança em
autonomia. O direito jusnatural, individualista, fortalece a formação
deste conceito, inaugurando um período marcado pela subjetivação
dos direitos e para o reforço dos direitos individuais face ao Estado.
“O espírito burguês manifesta-se através de um individualismo
anticorporativo que postula o cidadão como célula autônoma da
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 341

humanidade, como centro de imputação de direitos subjetivos”.


(MARQUES, 2010, p. 101).
Assim se revela um novo sujeito de direito. Esse sujeito que
vai figurar também no constitucionalismo moderno, com seus
ocultamentos, promotor de injustiças que terão de ser resgatadas
pelo novo constitucionalismo democrático latino-americano. Nesse
contexto, em que o homem passa à condição de sujeito de direito
dotado de personalidade que se pretende igual para todos os
cidadãos e de capacidade jurídica, que, longe dos estamentos por
razões históricas, passa a ser a medida da personalidade. O homem-
pessoa é o sujeito de direito dos códigos. O homem-modelo dotado
de personalidade, com variações de capacidades, como ocorre com
as mulheres, os menores, os analfabetos, os povos tradicionais.
Estes últimos não são do interesse do direito. São excepcionalidades.
O sujeito de direito é indivíduo das riquezas na perspectiva
mercadológica. É quem interessa ao capitalismo florescente – o
homem adulto, capaz de estabelecer relações econômicas privadas:
“O sujeito jurídico pressuposto é o homem adulto proprietário”.
(MARQUES, 2010, p. 104).
O homem dotado de personalidade dimensionada pela
capacidade de produzir e circular riquezas é o sujeito de direito que
vai ser o fim último da normatividade. O homem dotado de
capacidade econômica plena e de autodeterminação, numa
perspectiva liberal.

2. AS PROPOSTAS DE MUDANÇA CONSTITUCIONAL


E A FUNÇÃO DO SUJEITO CAPAZ

A América Latina buscando em muitas territorialidades a


reorganização política, muitas de cunho popular, instaura a revisão
dos modelos democráticos, numa proposta experimental a que se
tem denominado Novo Constitucionalismo Democrático Latino-
americano. Em países latino-americanos, nas três últimas décadas
foram promulgadas constituições mais democráticas, e num modelo
analítico, permeado de direitos e sujeitos. Elas são os documentos
fundantes para as novas teorias e para o estudo do novo
constitucionalismo que se associa a ativismos em favor da
implantação de modelos mais participativos. Isso se dá a partir da
Constituição do Brasil, seguida por Colômbia, Bolívia, Venezuela,
342 Movimentos, Direitos e Instituições

Equador, entre outras. Elas são a base para a elaboração teórica e


diferentes práticas políticas.
A origem colonial determina o devir da América Latina,
fazendo-a dependente dos modelos hegemônicos do hemisfério
norte. Assim, nesses países as estruturas social, econômica e
política, forjadas num modelo capitalista, liberal e positivista, anterior
à declaração de independência formal, são mantidas até a atualidade,
reforçando a dominação cultural, política e social. Isso se repete no
plano epistemológico. Há dominação teórica cultural colonial e isso é
claro no pensamento jurídico e nas suas referências jusfilosóficas.
O direito nacional dos países latino-americanos e a
prestação da tutela jurisdicional consequente dele reproduzem
modelo europeu, até hoje, sem considerar as diferenças dos
contextos locais.
Nos países latino-americanos, o ideário constitucional
moderno europeu serviu apenas para consagrar privilégios a elites,
não logrando sequer a universalização dos direitos e o princípio da
soberania, suas principais bandeiras. Isso se agrava no limiar do
século XXI, com a sujeição ao neoliberalismo, que fortaleceu as
mazelas sociais ao buscar reduzir o caráter protetivo do Estado,
revogar direitos sociais e impor medidas econômicas que não
atendiam ao interesse dos povos locais, repetindo o modelo de
absorção cultural colonialista, de incorporar, no âmbito interno, as
mudanças ocorridas na Europa e nos Estados Unidos da América.
Isso dizimou culturas e destruiu a natureza, em muitos locais.
Numa perspectiva teórica, percebe-se uma cisão entre o
pensar constitucional e a prática política, o que dificulta uma
percepção da América Latina. Vários autores, entre os quais
Boaventura de Sousa Santos (2009), entendem que isso ocorre, em
primeiro lugar, porque a teoria política foi desenvolvida no norte
global, com a pretensão de modelo teórico universal, aplicável a
todas as sociedades. Seus conceitos muitas vezes são incompatíveis
com nossas sociedades latino-americanas. Em segundo lugar,
considera-se que a transformação social proposta pela teoria política
tem uma perspectiva nortenha, distante das grandes práticas
transformadoras dos últimos trinta anos, vindas do Sul e
marginalizadas pelos teóricos tradicionais. Por fim, destaca-se o
caráter monocultural da teoria política, de base eurocêntrica, de difícil
adaptação a culturas e religiões não ocidentais, como as culturas
indígenas.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 343

Pondera-se, outrossim, a resultante da ignorância do caráter


colonialista pela teoria política e pelas ciências sociais, que tomaram
a independência formal dos países da América Latina, como material,
de natureza efetivamente emancipatória. A Antropologia e a
Sociologia jurídicas relegaram à história as questões referentes ao
colonialismo social ou colonialismo interno. (SANTOS, 2007, p. 12-
13).
Há um claro desacordo entre a realidade e a proposta
política. Esse desajustamento, os conflitos ocasionados desse
distanciamento com a realidade e a organização de setores populares
em torno de partidos políticos mais populares alimentou um novo
constitucionalismo, refundando um direito intencionalmente articulado
a um projeto político, procurando identificar-se com a realidade social
específica da América Latina rumo a um direito democrático,
autêntico, que promova a justiça social, com soluções para problemas
sociais e ambientais.
O Constitucionalismo Democrático Latino-Americano propõe
mudanças complexas na atividade jurisdicional e no mundo jurídico, a
partir de uma transformação democrática efetiva. Isso importa
revisitar a Teoria do Direito, os sistemas e as institucionalidades da
entrega da prestação jurisdicional. Para isso, é mister observar os
processos pelos quais se dá jurisdição e instituir meios de
observação que visem desde a construção teórica do Direito até os
modos de recrutamento e formação dos sujeitos da jurisdição.
A proposta de reflexão sobre os primados do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano, na justiça constitucional latino-
americana, exige uma abordagem multifacetada, pluridimensional,
com um enfrentamento do modelo teórico-filosófico de fundo
consentâneo com essa realidade experimental inovadora. E isso tem
um significado importante para a categoria sujeito de direito-sujeito
capaz, que tem funções específicas nos diversos modelos
constitucionais vindouros.
Às noções de Direito moderno e de sujeito capaz
corresponde (ou pode se afirmar que se constrói) um
constitucionalismo moderno, num modelo que pode ser pensado em
três dimensões, uma primeira teórico-doutrinária, uma segunda como
movimento político e finalmente uma proposta de construção
normativa. Nessa perspectiva, o essencial para o constitucionalismo é
resolver como o poder se organiza. O problema fundamental do
Direito Constitucional moderno é garantir o controle do poder ao
344 Movimentos, Direitos e Instituições

poder, para conferir liberdade política aos cidadãos e o gozo de seus


direitos fundamentais. O fim último é salvaguardar no Estado de
Direito e dentro de seus limites a soberania popular e o princípio
democrático; a noção de sujeito de direito serve a esse propósito.
Esse modelo constitucionalista, em essência, firma o
princípio da limitação do poder do governante “tendo por limites e fim
a garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização
político-social de uma comunidade”. (CANOTILHO, 2003, p. 51). Tem
fins garantísticos numa perspectiva liberal, e essa base axiológica
aparece na sua perspectiva teórica. Enquanto proposta humanitária,
falha porque enquanto movimento político não enfrenta o plano das
responsabilidades dos sujeitos para além do sujeito capaz da
perspectiva do liberalismo, consolidando os esquecimentos do direito.
Numa perspectiva dos Direitos Humanos, a essência desse
modelo constitucionalista pode ser vista na fundação e legitimação do
poder e na constitucionalização das liberdades podendo nele serem
identificados, segundo Canotilho (2003), três modelos – historicista,
individualista e estadualista. A cada um deles corresponde a
contribuição, a construção dos modelos dos constitucionalismos
inglês, francês e estadunidense, respectivamente.
O modelo historicista do constitucionalismo inglês fixa-se na
garantia de direitos adquiridos - da liberdade e da segurança - numa
perspectiva subjetivista da liberdade-propriedade em que a liberdade
é entendida subjetiva e pessoal para todos os ingleses (indivíduos,
mas nem sempre iguais) e determina a segurança da pessoa e dos
bens-propriedade.
O constitucionalismo revolucionário francês consagra o
individualismo. Haurido num contexto de rompimento com o Ancien
Régime, que não ocorre no modelo inglês que preserva uma ordem
estamental, funda a ordem nos direitos individuais, direitos de
homens inventados como sujeitos capazes naturalmente livres e
iguais em direitos, que legitimam e fundam o poder político, o
inventam e reinventam, dando a si próprios uma lei fundamental, de
uma ordem por esses indivíduos gerais e iguais querida, conformada
por acordo entre eles. Trata-se de um contrato social assente nas
vontades individuais e documentado em uma constituição escrita que
garanta direitos e conforme o poder político estabelecido, juntamente
com a constituição, por um “poder constituinte” – originário autônomo
e independente – pertencente à nação e criador da lei superior, ou
seja, a Constituição.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 345

O denominado modelo estadualista do constitucionalismo


estadunidense fixou-se na limitação normativa do governo e do
parlamento por meio de uma lei escrita superior que condensa os
princípios fundamentais da comunidade e os direitos dos particulares.
Situação controlada pelo Poder Judiciário. A Lei é elaborada por meio
de tomadas de decisão pelo povo em “momentos constitucionais” no
exercício do poder constituinte. O poder judicial tem o status de
defensor da Constituição e de guardião dos direitos e liberdades.
(CANOTILHO, 2003, p. 55-60). Os sujeitos aqui também são os
capazes na perspectiva liberal.
Observa-se que os princípios do Estado Liberal, marcado
pela ordem de mercado, subjugou a ideia comunitarista. O
constitucionalismo moderno se consolidou com uma “teoria normativa
da política” distanciada da prática política, ou pior, consolidada numa
prática de negação de direitos, que utiliza a linguagem de forma
hegemônica e extinguindo a pluriversidade.
O constitucionalismo moderno e sua linguagem (TULLY,
1997, p. 63-82) buscam eliminar a diversidade cultural, alisar o tecido
social pela homogeneidade e pela uniformidade cultural. Isso se dá
pelo afastamento dos fatores culturais, o que permite identificar
soberania e comunidade ou “imaginar” grupos de pessoas
culturalmente homogêneos. Dá-se ainda pela crença na uniformidade
e pela centralização das estruturas políticas o que permite acreditar
na igualdade entre cidadãos. Firma-se na convicção de que as
culturas são uniformes e que o desenvolvimento econômico é
determinante da superioridade cultural, estabelecendo, com isto, um
padrão único europeu de avaliação das culturas.
Esse constitucionalismo, ao reconhecer costumes e
tradições o faz de forma vesga e parcial, dissimulando a firme ideia
subjacente de que as instituições, tradições e ideias modernas são
superiores às demais. No uso de sua linguagem difunde a crença de
que o modelo Europeu moderno apresenta um conjunto indispensável
e insuperável de instituições políticas e jurídicas, únicas capazes de
representar a soberania popular. Todos os Estados, portanto, hão de
estar imprescindivelmente fundados na separação de esferas
públicas e privada, no império da lei, separação de poderes e
liberdades individuais e, a cada Estado corresponde uma nação cujos
momentos fundacionais são as Constituições, que constituem a
condição prévia para a vida política democrática, imutáveis.
346 Movimentos, Direitos e Instituições

Os novos sujeitos de direito da ou na América Latina


aparecem a partir dos conflitos originários dessa prática de
ocultamentos das diversidades, da pluriversidade, juntamente com as
propostas de novos direitos concatenados com o projeto político
visando a corrigir erros da modernidade, abordando a realidade social
específica da América Latina, de forma a se concretizar um modelo
democrático, autêntico. Um constitucionalismo para garantir direitos
para os não sujeitos do direito e do constitucionalismo liberal.

3. OS SUJEITOS NO CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO

A consolidação de uma nova democracia na América Latina


vem caminhando num processo constitucionalista que se pretende
em desenvolvimento e experimentação, notadamente no que diz
respeito às suas propostas e soluções humanitárias. Os sujeitos de
direito, nesses modelos ainda continuam num intenso processo de
demanda por inclusão e emancipação. Ainda há fatores que carecem
ser superados e que determinam hegemonias.
Esses processos democráticos são marcados por fases que
se identificam conforme a maior ou menor participação popular, pelo
caráter inclusivo e emancipador. Nas três fases identificadas pela
doutrina, desse movimento, podem ser apreendidas tentativas de
reconhecimento, inclusão, emancipação das vidas que se submetem
à Justiça. Na primeira fase, em que foram promulgadas as
Constituições do Brasil (1988) e da Colômbia (1991), predomina o
caráter socializante e reconhecedor de direitos coletivos e plurais.
Inaugura-se a pretensão ao comunitarismo.
O segundo ciclo, representado pela Constituição da
Venezuela (1999), se caracteriza por um constitucionalismo
participativo e pluralista, fortalecendo a pretensão à mudança em
direção ao coletivo.
Por fim, o terceiro ciclo desse novo constitucionalismo é
representado pelas Constituições do Equador (2008) e da Bolívia
(2009). Nessas, pretende-se um constitucionalismo plurinacional
comunitário, identificado com um modelo não universal e único de
Estado de Direito, reconhecedor da coexistência de experiências de
sociedades interculturais (sejam indígenas, comunais, urbanas, e
camponesas) e com práticas de pluralismo igualitário jurisdicional, de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 347

forma a conviverem instâncias legais diversas em igual hierarquia –


jurisdição ordinária estatal e jurisdição indígena/camponesa. Essas
mudanças políticas e constitucionais e os processos sociais de luta
que as engendram materializam novos atores sociais, realidades
plurais e práticas desafiadoras, reconhecem a diversidade cultural e
culturas minoritárias, com especial ênfase do protagonismo dos
povos indígenas. Daí que Wolkmer denomine esse constitucionalismo
de Constitucionalismo Pluralista Intercultural (andino ou indígena).
(WOLKMER, 2010, p. 153-154).
Essas constituições, efetivamente mudam o paradigma
constitucionalista e isso incide diretamente na perspectiva dos direitos
das pessoas para além dos sujeitos de direito, sujeito capaz do
liberalismo econômico e do constitucionalismo universalizante e
generalizante moderno, escapando às falácias da inclusão dos
direitos humanos, segundo os primados da igualdade, da liberdade e
da fraternidade, ideários da Revolução Francesa. Foge, outrossim, do
modelo liberdade-propriedade do ideário inglês, porque reconhece
(ou tenta propor novas formas de apropriação) e do enquadramento
do modelo constitucional estadunidense.
As três constituições últimas têm características comuns,
fundadas no poder popular, no processo constituinte e na proposta de
libertar-se do sistema moderno. Nessa proposta são respeitadas as
diferenças históricas e as questões nacionais próprias. Trata-se de
formação de novos modelos.
Os constitucionalistas Roberto Viciano Pastor e Rubén
Martínez Dalmau apontam as principais características do novo
constitucionalismo democrático latino-americano. Dentre essas,
destacam-se os instrumentos para restabelecer a relação entre
soberania popular e governo (mecanismos de legitimidade e controle
sobre o poder constituído mediante novas formas de participação
vinculantes). A representação permanece, mas a ação direta do povo
limita a posição tradicional dos partidos políticos, ainda que estes
também se mantenham numa lógica de absorção do Estado pelo
coletivo, de forma a reconstruir a unidade entre Estado e sociedade
na decisão política. (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010,
p. 34-35).
Esses autores colocam em grande destaque a profusa
Carta de Direitos das Novas Constituições, que perdem em
generalidades, afastando-se do modelo genérico-abstrato, para
preocupar-se em dar visibilidade a grupos e com isso os novos
348 Movimentos, Direitos e Instituições

sujeitos de direito surgem. Há, nessas Constituições a negação da


exclusiva individualização, da generalidade e da universalização por
meio da identificação de direitos de grupos discriminados. Grupos
frágeis são visibilizados como beneficiários dos direitos: mulheres,
crianças e jovens, deficientes, idosos.
Os Direitos Sociais, e, portanto os sujeitos coletivos,
adquirem outro status porque os documentos internacionais de
Direitos Humanos são recepcionados constitucionalmente. Numa
perspectiva própria, cada uma das Constituições procura oferecer
maior proteção às pessoas, tanto nos aspectos materiais quanto
instrumentais, procurando a integração de esquecidos e ocultados.
Exemplar, a Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia
desafiou a teoria do Estado ao inventar-se Estado plurinacional,
contestando o primado do constitucionalismo liberal de que a um
Estado corresponde uma nação. Reconhece-se numa multiplicidade
de nações dentro do mesmo Estado que se consolida no
reconhecimento da autonomia indígena inclusive jurisdicional. Cria
um sistema de jurisdição indígena paritária com a jurisdição ordinária,
para tutelar amplos direitos aos povos indígenas, com representação
em um Tribunal Constitucional Plurinacional que reafirma a jurisdição
indígena. (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p. 35-37).
Igualmente exemplar, a Constituição do Equador,
constitucionaliza noções de buen vivir (“Sumak Kawsay”, em língua
Quíchua) e pachamama. No primeiro se integram dimensões da
dignidade humana, incluindo-se o direito à alimentação, à água, ao
ambiente, à comunicação e informação, ao respeito à identidade
cultural, à educação, ao habitat adequado e à moradia segura, à
saúde, ao trabalho, à seguridade social.
Outro aspecto de destaque é a ideia de refundação do
Estado. Rompe-se com o modelo tradicional ao negar a clássica
identidade com uma única nação, imaginada, mas ao refundá-lo
reconhecem-se as várias nações que o compõe. O novo Estado é
plurinacional e intercultural, respeitante dos povos, nações e
territorialidades específicas. Por isso, a cosmogonia dos povos
originários aparece nessas Constituições pelo uso de imagens e
línguas originárias. Isso se dá notadamente nas Constituições do
Equador e da Bolívia, em que se reconhecem a cultura indígena
como depositária de saberes, conhecimentos, valores,
espiritualidades que hão de ser respeitados e preservados. Essas
nações nos Estados refundados têm seu autogoverno, justiça própria
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 349

com princípios próprios, cultura e muitos direitos, que são abrigados


por constituições extensas e complexas em que a América Latina se
reconhece capaz de uma epistemologia própria. Um continente
fundante de novos pensamentos, de novas respostas aos direitos das
pessoas e das comunidades, direitos humanos.
Pretende um plano teórico sem pretensões exclusivamente
científicas, que autorize um direito experimental, aberto a mudanças e
ao incerto, cuja racionalidade não é técnica, mas emancipatória,
projetiva, descobridora de culturas silenciadas e de juridicidades
ocultadas. Em busca da transcendência, esse direito desafia o que
está estabelecido, crendo na mudança. Para os sujeitos de direito, e
para os esquecidos pelo apagamento dos rastros direito, o novo
direito se opõe contra o estatismo caracterizador do direito moderno.
Por meio do pluralismo jurídico reconhecem-se e legitimam-se
juridicidades não estatais, eficazes socialmente e prontas para
integrar a dinâmica das comunidades, regendo suas relações. Direito
contrário ao liberalismo econômico, em favor de modelos baseados
na economia solidária e comunitária. O novo Direito, ao optar pelo
conhecimento dos povos no conhecimento da sociedade, busca uma
racionalidade jurídica que viabilize o pluralismo jurídico, encontra uma
nova ética.
A ética do sujeito, nesse modelo, é comunitária. E a
comunidade e o poder local impõem-se com fundamentos nessa
prática oposta à eticidade do capitalismo, fundada no princípio do
Estado moderno. Essas comunidades são consideradas em suas
mais características especificidades, contrariando a racionalidade
colonialista que caracterizou a formação da América Latina e a
dominação de seu Direito. Contra a colonialidade, afloram a pós-
colonialidade, a anti-colonialidade, enquanto processos
emancipatórios, negados pelo Direito moderno, que pretensamente
científico e, portanto, despolitizado e técnico, esconde sua face
hegemônica e opressora.
A teoria política moderna é ideologicamente a marca da
opressão na América Latina. A teoria democrática do direito moderno
mascarou, por séculos, o caráter excludente de direitos e ocultante de
sujeitos e tal fato se revelou especialmente sobressalente em nosso
continente, pobre e diverso. Contra esse modelo cruel e desumano, o
novo constitucionalismo latino-americano pretende um caráter
inovador que se consubstancia na participação popular, na
elaboração e legitimação do Direito e das instituições que o compõem
350 Movimentos, Direitos e Instituições

e o garantem. Assim, mais do que técnica de controle do poder


constituído, especialmente do poder executivo e do poder legislativo –
o que veio historicamente acompanhado do controle da soberania
popular, ou seja, do controle do poder de insurgência popular – esse
novo Constitucionalismo funda e legitima o poder político ao
promover a participação popular, materializa o fundamento do poder
no povo, garantindo mecanismos de exercício do poder popular e de
garantia de atendimento de necessidades desse povo que necessita
participar e que para tanto necessidade ter as condições concretas
para o exercício democrático.
Contra o modelo de soberania parlamentar (rule of law),
emerge o modelo de soberania popular, que subordina as
deliberações das assembleias constituintes ao referendo popular.
Contra o modelo de poder constituinte formal, raramente convocado,
o novo modelo tornar o poder constituinte originário o protagonista do
processo democrático, fazendo com que a legitimidade, e a própria
normatividade da constituição e das leis, da ordem jurídica, portanto,
dependa da regular, oportuna, necessária e periódica atuação desse
poder. Contra o sentido negativo de Constituição, enquanto controle
formal do poder constituído, a constituição passa a ter sentido
positivo, ao representar um projeto a ser realizado, como
consequência da repolitização do direito e do impedimento de que o
poder constituído usurpe o poder constituinte e inverte a relação
segundo a qual é o povo que cria a norma. Portanto, contra um
modelo de democracia meramente representativa, o modelo que
surge conjuga democracia representativa com democracia semidireta
e direta, destacando-se a força que os referendos passam a ter.

CONCLUSÃO

O Novo Constitucionalismo Latino-Americano propõe a


radicalização da democracia e assenta suas bases numa
epistemologia do sul, numa teoria política elaborada no sul global.
Baseia-se numa teoria política de transformação negadora das
metáforas da universalidade e da individualidade. Propõe o
pluriversalismo. Acolhe a realidade pluricultural, plurinacional,
pluriétnica e denuncia a falsa identidade entre Estado, povo e nação
que sustentou o constitucionalismo moderno e monocultural opressor.
Assim, contra o monismo jurídico-estatal faz florescer o pluralismo
jurídico-constitucional, reconhecedor de constitucionalismos antigos e
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 351

silenciados nas comunidades originárias, fazendo brotar novos


sujeitos ou antigos sujeitos calados, ocultados, esquecidos. No plano
dos Direitos Humanos denuncia a pobreza, a dependência
econômica, a destruição ambiental e os privilégios promovidos pelos
direitos formulados em torno dos direitos de liberdade e de
propriedade. Afirmam-se os direitos da natureza, os direitos coletivos,
sociais, étnicos, e uma igualdade material verdadeiramente complexa
e inclusiva do reconhecimento das diferenças.
Desta forma, acabam reconhecidos, mais além do sujeito
individual de direito antropocêntrico moderno, novos sujeitos de
direito, sujeitos plurais, incluindo a natureza (biocentrismo). Esse
reconhecimento amplo de direito acaba por exigir a
constitucionalização dos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos, que deixam de se subordinar ao direito interno para com
ele estabelecer coordenação, com vistas à garantia dos direitos
concretizantes do buen vivir. Rompe-se com o mito de que o sistema
jurídico necessita ser unificado e uniforme. Promove uma possível
unidade sem a uniformidade redutora da realidade. Desmitifica a
propalada segurança jurídica. Por fim, contra um direito que
objetivava a sua continuidade, emerge um direito calcado na ruptura.
O Novo Constitucionalismo Latino-Americano surge como
resposta e como esperança dos sujeitos e não sujeitos, na
construção de um novo modelo de reconhecimentos e participação.
Como movimento de diversas dimensões, devolve ao Direito uma
nova teoria normativa da política, fundamentadora de um novo Direito
Constitucional, que ataca a segregação e a ausência de participação
de pessoas e comunidades na constituição dos direitos e na dicção
dos rumos do Estado.

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CAPÍTULO 15

O RESGATE DA ONTOLOGIA: OS LIMITES DA


“TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA” E A
NECESSIDADE DE RETOMADA DA
ONTOLOGIA SOCIAL

157
Pablo Almada

RESUMO
O debate epistemológico nas Ciências Sociais tem apresentado
grande vitalidade na composição de determinados objetos de
pesquisa e das formas analíticas mais recentes. Parte da importância
adquirida desse debate tem a ver com a publicação das obras do
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, desde 1989.
Essas obras se fundamentam na noção de que as Ciências Sociais,
evitando cair nos dogmatismos anteriores, deveriam seguir por um
caminho de “transição paradigmática”, o qual permitiria uma viragem
à pós-modernidade – e, mais a frente, aos estudos pós-coloniais. O
argumento que fundamenta essas considerações é o de que seria
necessário um enfoque no sujeito, nas subjetividades e,
principalmente, um deslocamento do ponto de vista das ciências ao
Sul. Porém, tais considerações não se fazem unívocas quando
inserimos uma problemática que tem sido tema de debate nas
ciências sociais brasileiras, a partir das noções de centralidade do

157
Graduado em Ciências Sociais (Sociologia), pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP, 2007). Mestre em Sociologia: Relações de Trabalho,
Desigualdades Sociais e Sindicalismo (2009); Doutor em Democracia no Século
XXI, pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC, 2015).
E-mail: <pabloera@gmail.com>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 355

trabalho: a ontologia do ser social, resgatada através dos estudos do


filósofo marxista Georg Lukács. Portanto, o objetivo aqui é o de
compreender os embates entre essas duas perspectivas, na medida
em que seu cerne está ligado às considerações da ciência pós-
moderna sobre o marxismo e, especialmente, à prerrogativa
ontológica da centralidade do trabalho. De forma mais ampla, o
entendimento sobre tal impasse caminha por rever as “matrizes” da
epistemologia das ciências sociais, de forma a inserir o debate
ontológico em seu interior.
Palavras-Chave: Ciência Pós-Moderna; Epistemologia das Ciências
Sociais; Marxismo; Ontologia do Ser Social, Teoria do Conhecimento.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. A COMPREENSÃO DOS FUNDAMENTOS DAS
CIÊNCIAS SOCIAIS; 2. A “TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA” PARA A
CIÊNCIA PÓS-MODERNA; 3. O CONFLITO DA PÓS-
MODERNIDADE COM O MARXISMO; 4. SUBJETIVIDADE E
ALTERNATIVA ONTOLÓGICA; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos tem se


debruçado sobre uma importante, senão singular, contribuição para a
análise epistemológica e paradigmática das Ciências Sociais158.
Desde o final da década de 1980, com a publicação das obras Um
Discurso sobre as Ciências (1987) e Introdução a uma Ciência
Pós-Moderna (1989) o debate sobre os rumos tomados pelas
Ciências Sociais – em um momento de incertezas, perplexidades e
quebras de alternativas – tem sido bastante explorados, debatendo

158
O título do presente artigo, bem como a exposição aqui elaborada dialoga
diretamente com dois artigos: “O Resgate da Epistemologia”, de João Arriscado
Nunes (2008), o qual apresenta os pontos fundamentais da teoria sociológica de
Boaventura de Sousa Santos; e “De como não ler Marx ou o Marx de Sousa
Santos”, de José Paulo Netto (2004), o qual aponta críticas e problemas internos
ao pensamento epistemológico de Boaventura de Sousa Santos. A perspectiva de
escolha de diálogo entre esses textos – que aqui não será feita diretamente – tenta,
por conseguinte, trazer uma contribuição para a revisão de pontos “dados como
certos”, mas que numa análise mais minuciosa resulta em sérios problemas para a
teoria sociológica. Na visão do autor deste artigo, o resgate da ontologia do ser
social, assim como o fez Lukács (2012b) é o ponto de partida fundamental ness a
questão.
356 Movimentos, Direitos e Instituições

com as tradições positivistas, pragmáticas, estruturalistas e pós-


estruturalistas. Seu ponto de partida é paradigmático e, por assim
dizer, histórico: a constatação de que, embora tenham sido
fundamentadas pelo positivismo, as Ciências Sociais atuais devem
abandonar tal ponto de partida, já que ele teria sido comprometido,
em sua quase totalidade, por conta de transformações sociais que
conduziram a impasses científicos praticamente irresolutos, entre
eles, a noção de que a objetividade não poderia ser sustentada
perante o emergir de problemas sociais cada vez mais concernentes
aos sujeitos sociais, suas subjetividades e demandas culturais e,
principalmente pós-materiais.
A continuidade desse argumento se encontra em outra de
suas obras, o livro Pela Mão de Alice: o Social e o político na Pós-
Modernidade, publicado em 1994 e com ampla divulgação no Brasil
a partir do ano seguinte. O conjunto de artigos ali presentes procura
refletir sobre três temáticas substanciais, a saber: as referências
teóricas, com ênfase no marxismo; a crise do paradigma social da
Modernidade; e as perspectivas ou caminhos a serem trilhados pela
sociedade portuguesa perante tal crise. O conjunto dos argumentos
analisados então se centrará na primeira parte desse livro, já que é
nela que se encontram os fundamentos teóricos e epistemológicos
que permitem entender que o marxismo, enquanto paradigma, deve
ser “profundamente revisto senão mesmo abandonado”. (SANTOS,
1994, p. 12).
Não obstante, o conjunto dos argumentos críticos ao
marxismo apresentado por Santos considera-no como totalizado pelo
chamado “marxismo oficial”, propagado pelos teóricos da URSS, e
que continha o problema do positivismo e do revisionismo, difundido
especialmente pela IIª Internacional. Por outro lado, já desde o início
de sua obra, no clássico estudo História e Consciência de Classe
(1923 [2012a]), o filósofo húngaro Georg Lukács argumentava uma
necessidade de pensar o marxismo para além do espectro “oficial”
que havia desenhado Marx como um descobridor de “leis naturais”.
Seu mérito se delineia a partir da constatação de que o método de
Marx, entendido aqui como um conflito entre objetividade e
subjetividade, apontaria uma tendência para a totalidade, ou seja,
nunca seria de fato uma totalidade per-si constituída. A radicalidade
dessa construção não apenas envolve uma crítica ao “marxismo
oficial”, mas também às prerrogativas epistemológicas de que Marx
não poderia se colocar lado a lado ao positivismo de Durkheim, nem
ao subjetivismo de Weber. Em sua obra de maturidade, a Ontologia
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 357

do Ser Social, Lukács (2012b) refere diretamente que a ênfase na


subjetividade encontrada deliberadamente nas teorias neopositivistas
se daria na continuidade do idealismo subjetivista do pensamento
burguês, cujo desenvolvimento contemporâneo está plenamente
disposto nas teorias pós-modernas.
Ao desconsiderar tais críticas, pode-se compreender que
Santos caminhe por um entendimento restrito das ciências sociais
delimitado aos círculos científicos, através das discussões sobre os
paradigmas, como em Thomas Kuhn; trazendo, para um segundo
plano, o processo histórico-social que possibilitou tais transformações
científicas.
Nesse sentido, faz-se imprescindível observar o embate
entre os paradigmas epistemológicos e a necessidade de retomar a
ontologia, tal como proposta por Lukács, em um caminho que implica
o não abandono da compreensão dos processos históricos e da
relação dialética entre objetividade e subjetividade. Para Lukács,
evidentemente, sua ontologia tem como fundamento o trabalho como
protoforma do ser social, o que significa considerar dialeticamente
as relações entre o capital e o trabalho, sendo que o segundo não
poderia ser abandonado, correndo-se o risco de uma fratura no
entendimento das lutas e conflitos sociais contemporâneos, que
poderiam então aparecer desconectados de uma interrelação mais
ampla com o sistema capitalista e com a lógica do capital.
Dito isso, a questão central norteadora desse artigo pode
ser assim inferida na forma de problema da pesquisa: quais os limites
que as premissas epistemologizantes e pós-modernizantes
apresentam quando desconsideram a ontologia social?
Por meio desse questionamento, a retomada da ontologia,
nos moldes lukacsianos, se faz necessária para a revitalização das
Ciências Sociais, na forma proposta no desenvolvimento do presente
artigo.

1. A COMPREENSÃO DOS FUNDAMENTOS DAS


CIÊNCIAS SOCIAIS

As formulações iniciais das Ciências Sociais, no Século XIX,


se basearam amplamente nas propostas cognitivas provenientes das
Ciências da Natureza, constituindo o positivismo como primeira
358 Movimentos, Direitos e Instituições

abordagem dessa ciência emergente e paradigmática. (SANTOS,


1987; 1989; LÖWY, 2000).
Sob a égide do positivismo, as Ciências Sociais se
consolidaram no interior de um “modelo global de racionalidade
científica” (SANTOS, 1987, p. 22), fundamentando-se numa divisão
entre Ciência e senso comum. Tal modelo pressupunha a
especificidade da ciência em contraposição ao senso comum ou às
humanidades, estabelecendo-se, assim, “princípios epistemológicos”
e “regras metodológicas” que pudessem delinear a observação
sistemática e rigorosa dos fenômenos naturais e a experimentação,
quantificar os resultados, reduzir a complexidade da realidade e
deduzir a formulação de leis provenientes da causalidade dos
fenômenos empíricos. (SANTOS, 1987, p. 10-17). Estabelecida no
interior de uma forma pré-paradigmática, as Ciências Sociais não
desfrutariam de um consenso interno que pudesse estabelecer
clarividência em suas regras e preceitos. Por isso, estaria dividida
entre dois modelos: o primeiro, um modelo positivista clássico, como
o apresentado por Durkheim, acerca da observação objetiva e
objetivada da realidade social; o segundo, um modelo que procuraria
estabelecer métodos próprios e de cunho subjetivo para as Ciências
Sociais, assim como evidente em Weber.
A teoria do conhecimento do primeiro modelo foi postulada
através de, pelo menos, três características que podem designar
mediante seu uso completo ou parcial na pesquisa social, a chamada
dimensão positivista (LÖWY, 2000, p. 17-18), caracterizada, em
suma, por: (i) a regência de leis naturais independentes da vontade e
da ação humana; (ii) a assimilação epistêmica da sociedade pela
natureza, implicando uma aproximação dos métodos empregados; e,
(iii) à limitação da observação e da explicação causal dos fatos, de
forma objetiva e livre de julgamentos de valor.
No entanto, esse modelo foi, ao longo dos anos, bastante
recusado, isto por sua capacidade redutora de encontrar na realidade
apenas as “leis sociais”; ou pela incapacidade de transpor os limites
entre Ciências Sociais e Ciências da Natureza; ou ainda, por clarificar a
insuficiência paradigmática da Ciência Moderna. (SANTOS, 1987, p. 23).
Mesmo assim, esse modelo positivista clássico foi
assimilado por grande parte da pesquisa social, caminhando no
sentido de uma comprovação empírica exata dos fenômenos sociais
ou, mesmo, por idealizar que as pré-noções poderiam ser afastadas
sistematicamente. Evidentemente, neste contexto, Durkheim
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 359

acreditava que a objetividade deveria neutralizar os princípios


subjetivos, ou seja, as visões de mundo, mas que,
concomitantemente, deveriam expurgar as contradições do
conhecimento social, evidenciando-se uma linearidade do progresso
humano – formulações já contidas em Saint-Simon – no que se refere
à necessidade de construção de uma ciência neutra, de acordo com
os princípios do Iluminismo. (LÖWY, 2000; CALLINICOS, 2011).
Não se poderia esquecer, também, que o positivismo
clássico se afirma enquanto um instrumento ideológico que concretiza
o desenvolvimento da racionalidade subjacente aos
desenvolvimentos do capitalismo industrial do Século XIX, fato que,
pelo menos para Durkheim, transparece como lei natural do
desenvolvimento social e da realização da burguesia ascendente, não
podendo ser mudado pela vontade dos indivíduos.
Ao contrário do paradigma objetivista, Max Weber era
descrente dessa formulação, vendo a Ciência subjetivamente,
admitindo, portanto, que fosse composta pelas visões de mundo dos
indivíduos e pela ausência dos julgamentos de valor, a chamada
“neutralidade axiológica”. (WEBER, 1986). Proveniente do
racionalismo historicista, que aparentemente negaria o positivismo e
a base objetiva das ciências naturais, a concepção teórica de Weber
compartilha com a teoria positivista os termos de sua neutralidade
axiológica, combinando o historicismo e o positivismo em uma base
de valores culturais, nacionais e religiosos, inclusive muitas vezes
distintos. (LÖWY, 2000).
Deste modo, o fundamento weberiano de ciência considera-
a um procedimento racional, dividindo-a em disciplinas como garantia
de sua especificidade e definindo o sentido de ética para o cientista,
enquanto caminho para a verdade. (WEBER, 2004).
Porém, tais distinções por si não impediriam que se
delineasse uma aproximação à objetividade, através de leis e fatores
hipotéticos para o estudo, a exposição dos fatores históricos e da
significação deles, juntamente com o desenvolvimento dos fatos e a
avaliação das possibilidades de futuro. Dito de outra maneira, Weber
compreende as singularidades históricas e sociais dos fatores
culturais com conceitos menos complexos, que permitissem tanto a
compreensão dos fenômenos individuais como o afastamento das
noções de leis, que limitariam os fatos históricos e culturais. No
entanto, deve-se chamar atenção para o fato de que Weber centra
sua perspectiva na compreensão exclusiva dos fenômenos culturais
360 Movimentos, Direitos e Instituições

dos quais preveriam as visões de mundo. Nessa perspectiva, seriam,


então, os valores que determinariam: (i) a escolha do objeto de
conhecimento; (ii) a direção da investigação empírica; (iii) a seleção
da importância ou não do que deve ser apresentado; (iv) o uso de
certos conceitos e suas relações; e, finalmente, (v) os problemas e
questões a serem utilizados na pesquisa social.
Não obstante, a pesquisa social poderia levar em
consideração os critérios subjetivos na relação com os valores,
atuando-se assim em direção contrária à abordagem positivista,
assumindo-se, pois, uma neutralidade axiológica, ou seja, a
ausência de julgamentos de valor nas respostas científicas, da qual
não se poderia nem deduzir os fatos a partir dos valores, nem deduzir
159
os valores a partir dos fatos .
O conhecimento objetivo, ou científico-cultural, estaria preso
a premissas subjetivas “pelo fato de apenas se ocupar daqueles
elementos da realidade que apresentem alguma relação [...] com os
acontecimentos a que conferimos uma significação cultural”.
(WEBER, 1986, p. 98). Isso significaria, pois, afirmar que a
significação cultural pretendida é seria o resultado de uma
objetivação, ou seja, de uma neutralidade axiológica que se
estabeleceria a partir dos valores subjetivos, ou seja, de que “[...]
apenas as ideias de valor que dominam o investigador e uma época
podem determinar o objeto de estudo e os limites desse estudo”.
(WEBER, 1986, p. 100).
As Ciências Sociais, nesse sentido, partiriam de valorações
que determinariam a investigação, mas cujos resultados seriam
respostas Wert-frei, ou seja, um tipo de resposta “[...] submetida a
regras objetivas e universais, a um tipo de conhecimento de validade
absoluta”, pois, mesmo que os valores “forja[ra]m nossos
instrumentos conceituais [...] a forma de utilizá-los no estudo científico
da causalidade é regida por normas gerais”. (LÖWY, 2000, p. 37).
Isso se daria porque haveria uma separação dos pressupostos
utilizados para a investigação dos resultados alcançados, objetivos e
aceitáveis universalmente. Ou seja, através da metodologia da
neutralidade axiológica, mesmo com o ponto de partida subjetivo, o
resultado poderia ser compartilhado em sua generalidade.

159
De acordo com LÖWY (2000, p. 33-37), em Weber se misturariam as relações de
valores (Wertbeziehung) com a ausência do julgamento de valores (Wertfreiheit),
sendo as primeiras de tendência historicista, do relativismo histórico de Dilthey e,
as segundas, de orientação positivista.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 361

Diante disso, é imperativo destacar que os meios para


elaborar passagem estariam dispostos pelos tipos ideais, um
caminho para a formulação de hipóteses, o que se sintetiza no
procedimento:

[...] acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante


o encadeamento de grandes quantidades de fenômenos isoladamente
dados, difusos e discretos [...] e que se ordenam segundo os pontos de
vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro
homogêneo de pensamento. (WEBER, 1986, p. 106).

Os tipos ideais, desta forma, conduziriam a ciência em seu


caminho empírico, procurando apreender “[...] os indivíduos históricos
ou os seus diversos elementos em conceitos genéticos [...]”, o que
resulta, finalmente, no estabelecimento da “[...] plena pureza
conceitual”. (WEBER, 1986, p. 109).
O fato, cumpre destacar, é que a concepção dos “tipos
ideiais” em muito foi aceita pelos cientistas, como uma garantia
metodológica que se contrapunha ao positivismo objetivista – muito
bem delineada no “chavão” acadêmico que a Ciência objetiva seria
uma falácia. A sustentação metodológica seria, portanto, o fator que
conduziria um sentido positivo para a pesquisa social, transitar da
subjetividade para a objetividade, conforme se demonstra no ponto a
seguir, em que se aborda tal transição no contexto da ciência pós-
moderna.

2. A “TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA” PARA A


CIÊNCIA PÓS-MODERNA

Ao tracejado no cenário descrito no item anterior, deve-se


acrescentar que o referido modelo científico positivista entraria em
crise por causa de avanços propiciados pela própria Ciência, mas,
também, por descobertas referentes às ciências naturais. (SANTOS,
1987; 2000).
Tal mudança levaria ao desafio de superação do paradigma
da Ciência Moderna em crise, pois, através dele, estaria emergindo
um novo paradigma160, tanto científico como social, interligado e

160
Inicialmente, SANTOS (1989, 2006) compreende que seria insuficiente denominar
a fase de transição epistemológica pelo termo “pós-moderno”. Porém, nesse termo
estaria contida a constatação que nessa transição seria possível novos futuros
362 Movimentos, Direitos e Instituições

complementado na dupla ruptura epistemológica, seja de


aproximação da ciência com o senso comum, seja de criação de um
novo senso comum científico.
O diálogo intenso entre a epistemologia (G. Bachelard), o
neopositivismo (T. Kuhn) e o pragmatismo (J. Dewey e R. Rorty),
proporia, então, uma revisão paradigmática sobre a ciência moderna
e a construção de um paradigma alternativo fundamentado na
epistemologia. (SANTOS, 1989). O ponto de partida desse paradigma
seria a desdogmatização da ciência,161 já que a ciência moderna
estaria num momento de crise (de degenerescência, consequência
de um momento anterior, a crise de crescimento) que incentivaria a
reflexão epistemológica.
A Ciência Pós-Moderna buscaria, então, essa
desdogmatização, construindo-se uma hermenêutica crítica da
epistemologia, ou seja, uma revisão de problemas – como a
epistemologia como falsidade, ilusão e problemas nas relações de
causa – que teria como sentido o aumento da comunicação entre
grupos sociais.
A proposta hermenêutica funcionaria, portanto, como uma
“pedagogia de construção de uma epistemologia pragmática”
(SANTOS, 1989, p. 29) e, através dela, se poderiam resgatar as
relações – inicialmente separadas – entre ciência e senso comum,
efetivando atitude hermenêutica, a partir da qual se operaria um
discurso que aproxima o distante, através do diálogo no sentido de
uma comunicação com os outros saberes do mundo, possibilitando-
se superar dicotomias presentes na ciência.

alternativos seriam construídos, no sentido de transpassar as promessas


construídas e, logo após destruídas, pela modernidade (SANTOS, 2000). Essa
formulação que, inicialmente, procuraria refletir sobre a Ciência Moderna, acaba
por se destrinchar no chamado paradigma social de um conhecimento prudente
para uma vida decente (SANTOS, 2000; 2004) para encontrar sua forma plena sob
a denominação de “pós-colonialismo”, estabelecendo, como principal artifício
metodológico as epistemologias do sul (SANTOS, 2006).
161
Segundo Santos (1989), três correntes filosóficas caminharam para a
desdogmatização da ciência, ou seja, a separação da filosofia da epistemologia e
estabelecimento de centralidade da epistemologia: a primeira estipularia que a
teoria científica teria sentido filosófica, desenvolvida pelo Positivismo Lógico
(Círculo de Viena e Karl Popper); a segunda, demarcada pelos avanços na
reflexividade, desenvolvida numa crise de degenerescência (E. Mach, Poincaré,
Fayerabend, entre outros); a terceira, composta pelo desenvolvimento dos
fundamentos últimos da ciência (Heidegger) e viragem para sua prática e
composição de virtudes morais e políticas (como pelo pragmatista J. Dewey).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 363

A continuidade dessa ruptura epistemológica pode ser


compreendida na transformação e no surgimento de novas questões a
serem enfrentadas pelos paradigmas sociais, políticos e culturais da
realidade social. Pode-se elencar, com relação aos problemas sociais
emergentes e sobre suas mudanças sociais fundantes das relações
paradigmáticas, a crise do Estado Providência na Europa e o
desenvolvimento de um capitalismo neoliberal, a preocupação com a
participação política de novos movimentos sociais e uma teoria
defasada da realidade, o que levaria a enfatizar os problemas de matriz
econômica, a crise do Estado-Nação, a ênfase no indivíduo e no
individualismo crescente, o consenso democrático, a emergência de
identidades e quebra de fronteiras, além de uma crise no marxismo
enquanto paradigma epistemológico. (SANTOS, 1995, p. 25).
Além disso, a globalização, considerando-se iniciada nos
anos 1990, ofereceria novos desafios para se pensar o global: não
como um conjunto de fatores separados, mas através de fenômenos
econômicos, políticos, sociais e culturais com interligações bastante
complexas, bem como abordada sob dois sentidos, um hegemônico e
um contra-hegemônico. (SANTOS, 2001).
O fundamento dessas acepções de um paradigma social se
assenta na perspectiva de que a Modernidade foi construída
anteriormente ao capitalismo ter se tornado o modo de produção
dominante das sociedades. (SANTOS, 2000, p. 47). Logo, a
construção da Modernidade esteve pautada em dois pilares, o da
regulação e o da emancipação. O primeiro estabeleceria o princípio
do Estado como uma obrigação política verticalizada entre cidadãos
e Estado; o princípio do Mercado, como uma obrigação política
horizontal, individualista e antagônica entre os parceiros; e o princípio
da Comunidade, uma obrigação também horizontal, solidária, entre
os membros das comunidades e associações. O segundo, se
remeteria à três lógicas de racionalidade, definidas por Weber, a
saber, a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura;
a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e tecnologia; e a
racionalidade moral-prática da ética e do direito. (SANTOS, 2000,
p. 47-48).
Ao longo do desenvolvimento da Modernidade o
desdobramento desses dois pilares (regulação e emancipação)
deveria se dar de forma harmoniosa e estabelecendo a “[...] completa
racionalização da vida cotidiana e individual”. (SANTOS, 2000, p. 48).
Porém, no que tange à compreensão do problema da emancipação
364 Movimentos, Direitos e Instituições

social, referidas concepções enfatizam que esta havia se tornado


regulação e que, por isso, as alternativas dispostas anteriormente
perderiam sua validade, ou mesmo, deveriam ser vistas enquanto
reais alternativas.
No entanto, por conta dessas transformações, novos temas
transversais e novas capacidades analíticas deveriam ser exploradas
na pesquisa social. (SANTOS, 2006). A ênfase no Direito, por
exemplo, conjugaria tanto a noção de que o Direito moderno estaria
em crise, como a de que sua crise da regulação permitira que se
estimasse em que medida o Direito poderia ser emancipatório, na
medida em que se estabeleceriam práticas cosmopolitas do Direito
em contraposição ao fascismo social emergente. (SANTOS, 2003).
A centralidade das racionalidades, descrita anteriormente,
configura um problema de longa data. Ao se considerar que a
perspectiva emancipatória se funda nos pilares das racionalidades
definidas por Weber, deve-se também levar em consideração que seu
modelo de ciência positivista, o da neutralidade axiológica, depuraria
todo e qualquer desvio para compor, objetivamente, essas
racionalidades. A dicotomia entre regulação e emancipação
configurar-se-ia apenas como artífice de uma modernidade cultural, já
afastando, previamente, o capitalismo de seu escopo.
Todavia, sabe-se que essa subsunção do capitalismo à
modernidade é algo complicado, pois a categoria modernidade
revelaria uma tendência ideológica de “esquecer a dimensão sócio-
histórica, a serviço dos interesses dominantes da ordem
estabelecida” e isso faria com que

as especificidades socioeconômicas [fossem] ofuscadas ou deixadas


em segundo plano, para que a formação histórica descrita [...] possa
adquirir um caráter paradoxalmente atemporal em direção fossemao
futuro, por causa de sua contraposição [...] ao passado mais ou menos
distante. (MÉSZÁROS, 2004, p. 70).

Ou seja, ao se considerar a modernidade previamente ao


capitalismo, se estaria trabalhando com a noção a-histórica de que
haveria um movimento de autorrealização – das promessas
cumpridas e das não cumpridas – que, por oposição, se
configurariam como um avanço positivo perante os desdobramentos
do mundo tradicional, culpabilizando à dimensão abstrata pelo
sucesso ou fracasso, independentemente das relações concretas e
materiais, já bastante evidenciadas por Marx. Esse talvez seja o
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 365

principal ponto de articulação existente entre as teorias da


Modernidade e o ocultamento das relações capitalistas em seu
interior, fato que se contenta no próprio desenvolvimento de uma
“transição paradigmática” das Ciências, com o sentido de tornar o
capitalismo apenas uma cultura, tão necessária ao desenvolvimento
da Modernidade quando de sua transição. Além disso, poderia se
apontar que a “transição” se apresenta de forma transcendental, ou,
ainda, que partiria de uma relação de “crescimento” e
“degenerescência” intrínsecos ao campo científico, sem se levar em
consideração as dimensões sociais existentes para a derrocada da
ciência positivista.
Um balaço mais crítico da “transição” paradigmática
apresentada anteriormente – e ainda insuficiente – deve levar em
consideração os seguintes aspectos: (i) a proposta hermenêutica
centraliza-se na linguagem e, mais, na linguagem científica, um
imperativo categórico que tem como objetivo estabelecer a ciência
como uma força produtiva – senão a força produtiva que ganharia
destaque nessa transição; (ii) o desenvolvimento dos dois “pilares”,
emancipação e regulação, não pode ser considerado harmonioso,
apenas numa perspectiva a-histórica, livrando-lhes de qualquer
dialética; (iii) em muito, há um paradoxo quase irresoluto entre a
confiança na Ciência Moderna, enquanto promessa emancipatória da
Modernidade, e a sua real capacidade de emancipar, tendo em vista
sua vinculação, cada vez menos inegável, como os meios e
instrumentos dominantes do capitalismo.
Um outro questionamento, na mesma linha acima exposta,
que cabe aqui, seria referente ao “objeto” de estudo da tese contida
nas premissas tratadas neste artigo: as racionalidades weberianas
estiveram em voga em meados do Século XX, quando uma ampla
gama de movimentos contestatórios – entre eles o movimento
estudantil – se apresentou questionando o modus operandi das
sociedades ocidentais, o imperialismo sobre os países da periferia, as
viragens do capitalismo monopolista e seus modos de produção etc.?
Com os modelos de emancipação colonizados pela regulação – no
mesmo sentido habermasiano da colonização do mundo da vida pelo
sistema – a proposta emergente cumpriria apenas com os objetivos
de regulação.
Com essa brevíssima revisão é possível afirmar que,
marcada pelo diálogo com o positivismo, com o neopositivismo e com
uma relação paradoxal com a chamada pós-modernidade, a transição
366 Movimentos, Direitos e Instituições

paradigmática trouxe tanto um enfoque na Ciência como nas novas


práticas sociais. Essa perspectiva, centralizada na epistemologia,
aparentemente ofereceu argumentos para novos questionamentos
sociais, constatados através de uma mudança de época. Entretanto,
mesmo refutando sua relação a ambiguidade com a pós-
modernidade, as formulações concernentes à pesquisa social
impulsionadas pela “transição paradigmática” se inserem no conjunto
de formulações denominadas de “agenda pós-moderna” e que partem
da constatação que não haveria soluções dentro da Modernidade
para os problemas criados por ela própria. (MEIKSIN-WOOD, 1996,
p. 119).
Diante disso, um caminho epistemológico possível seria o
de analisar mais profundamente os fundamentos ideológicos da
transição paradigmática e, consequentemente, suas relações com a
teoria formulada por Marx.

3. O CONFLITO DA PÓS-MODERNIDADE COM O


MARXISMO

A relação conflituosa entre marxismo e pós-modernidade


parece ser um dos problemas mais significativos da teoria sociológica
atual. Faz-se necessário, portanto, um breve balanço que procure
explorar as relações entre a proposta de transição paradigmática e o
marxismo.
Compreende-se, neste artigo, que tal investigação acabaria
por determinar tanto a análise epistemológica como os princípios
metodológicos da pesquisa social, assim como a própria
compreensão subsequente do problema posto no artigo,
especialmente no que diz respeito à necessidade da compreensão
dos manifestos estudantis no pós-guerra e os resultados disso na
atualidade – uma “continuidade descontinuada” – cujos efeitos mais
proeminentes podem ser sentidos também na teoria social e sua
proposta crítica162.
Um importante questionamento sobre essa relação,
elaborado por Santos (1995, p. 12), procuraria perceber de que

162
Sobre esse debate, entre marxismo e pós-modernidade, as referências principais
estão explícitas em HARVEY (2012), MEIKSIN-WOOD (1996); MÉSZÁROS (2002;
2004).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 367

maneira o marxismo poderia se relacionar com a “transição


paradigmática” para a Ciência Pós-Moderna e, com isso, “[...]
distinguir as áreas ou dimensões em que [o marxismo] continua atual,
e eventualmente mais atual do que nunca, daquelas em que está
desatualizado e deve, por isso, ser profundamente revisto se não
mesmo abandonado”. (SANTOS, 1995, p. 12). O argumento central
utilizado afirma que as formulações teóricas de Marx estariam
interligadas com a Modernidade, sendo ambos, processos
incompletos.
A análise procura, inicialmente, proceder a um balanço do
marxismo em quatro momentos históricos163.
O primeiro momento (anos 1890 a 1920) seria marcado
pela recepção do marxismo nas Ciências Sociais, sua influência no
movimento socialista e, consequentemente, duas cisões: a primeira,
de caráter revisionista e político (Bernstein); a segunda, de caráter
epistemológico (austro-marxistas, neokantianos e o positivismo de
Ernst Mach). Pode-se concluir que houvera uma transformação do
marxismo numa ciência positiva, o que deixaria de lado “seu potencial
revolucionário”, bem como, “as raízes do marxismo eram hegelianas
e faziam dele uma filosofia crítica, uma filosofia da práxis, mais virada
para a construção de uma visão libertadora e emancipadora do
mundo do que para uma análise unilateral e objetiva da sociedade
capitalista”. (SANTOS, 1995, p. 27).
O segundo momento (anos 1930 e 1940) teria sido um
período negativo, marcado pelo capitalismo imperialista, pelo
fascismo e pelo stalinismo, sobrevivendo apenas o austro-marxismo e
da Escola de Frankfurt.
No terceiro momento (anos 1950 e 1960), teria havido um
renascimento do marxismo, seguido por uma profunda crise que o
“desmancharia no ar” – demarcado por alguns fatos: a Revolução
Cubana, o Movimento Estudantil europeu, as (sociais) democracias
europeias, a Revolução Chinesa (que operou uma cisão no
movimento comunista mundial), o pós-colonialismo (que contradisse
Marx em relação à formação de classes das colônias), a Teoria da
Dependência na América Latina, além da Escola de Frankfurt e do
estruturalismo francês. Ademais, considera-se que se tratou de um
período de “solidez do marxismo que de algum modo virou contra ele

163
Uma síntese crítica mais pormenorizada dos pontos a seguir está em NETTO
(2004) e, nesse momento, servirão de guia para a análise doravante empreendida.
368 Movimentos, Direitos e Instituições

próprio e o desfez no ar”, ocasionado pela discrepância entre debates


teóricos e o movimento socialista (sobretudo uma crise da classe
trabalhadora), pela descoberta das “virtualidades dos regimes
democráticos europeus e partidos socialistas que preferiam a gestão
do capitalismo à transformação capitalista”, enfatizando-se profundas
alterações entre o momento que Marx havia proferido sua análise
com o daquele ponto, resultando num abandono à referência ao
marxismo, da qual “as suas teorias só com profundas revisões teriam
alguma utilidade analítica no presente”. (SANTOS, 1995, p. 29-30).
O quarto período (década de 1980) seria o momento em
que “a solidez e a radicalidade do capitalismo” desfizeram o
marxismo “com grande facilidade e para sempre”, na medida em que
inúmeros fatores políticos transformaram o marxismo em um
“anacronismo”, quais sejam tais elementos: (i) a ascensão dos
partidos conservadores na Europa e Estados Unidos; (ii) o isolamento
dos partidos comunistas e a descaracterização dos partidos
socialistas; (iii) a transnacionalização da economia e a sujeição dos
países periféricos e semiperiféricos ao capitalismo multinacional, ao
Banco Mundial e ao FMI; (iv) a consagração do neoliberalismo; (v) o
fortalecimento das culturas de massa, do individualismo, o privatismo
e o consumismo e a incapacidade de se pensar uma sociedade
alternativa ao capitalismo; (vi) a queda de alguns regimes políticos
socialistas e o colapso dos regimes comunistas do Leste da Europa,
que resultaram na transformação do marxismo em um anacronismo.
As revisões do marxismo elaboradas nesse período – teoria
regulacionista, análise de classes, neoinstitucionalismo, as
transformações culturais do capitalismo e as avaliações do
movimento comunista – desenvolveram o chamado Neomarxismo,
cujos traços fundamentais seriam o anti-determinismo, o anti-
reducionismo e o processualismo. No entanto, essas revisões não
teriam servido para impedir a desfeita completa do marxismo,
restando saber se essa seria por completa ou não, mas que, de todo
modo, contribuiria para a “perda de validade” do marxismo.
A partir disso, Santos conclui que o marxismo seria
igualmente problemático à Modernidade, e que pouco contribuiria
para a transição paradigmática da Ciência Moderna. O argumento se
fundamenta na seguinte conclusão:

Marx demonstrou uma fé incondicional na ciência moderna e no


progresso e na racionalidade que ela podia gerar. Pensou [...] que o
governo e a evolução da sociedade podiam estar sujeitos a leis tão
rigorosas quanto as que [...] regem a natureza, numa antecipação de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 369

sonho, mais tarde articulado pelo positivismo da ciência unificada.


(SANTOS, 1995, p. 35).

Assim, em suma, aponta o Autor, ainda enquanto


argumentos da referida relação do marxismo e ciência moderna: (i)
haveria um estreito entendimento entre a tradição marxista e o
positivismo (objetivista); (ii) seria possível vincular a ciência crítica do
capitalismo à modernidade, com o argumento de que a “fé” na ciência
apenas possibilitou a Marx perceber as “leis” que regem a natureza;
(iii) caberia, também, estabelecer que a consolidação de um
momento posterior ao capitalismo – socialismo ou comunismo – seria
inevitável para o processo civilizatório da humanidade, do que a
“perda de validade do marxismo” seria inevitável. Essa proposição
pode ser analisada em par com outra, que estipularia que “[...] o erro
de Marx foi pensar que o capitalismo, por via do desenvolvimento
tecnológico das forças produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria
necessária a transição para o socialismo”; em contraposição,
“entregue a si próprio, o capitalismo não transita para mais nada
senão para mais capitalismo”. (SANTOS, 1995, p. 243).
A consequência exata desse panorama seria o de que “a
equação automática entre progresso tecnológico e o progresso social
desradicaliza a proposta emancipatória de Marx e torna-a de fato,
perversamente gêmea da regulação capitalista”. (SANTOS, 1995, p.
243). Tendo em vista essas duas proposições, a conclusão parcial
depreensível dessas considerações é a recomendação de se
abandonar as teorias de Marx, na medida em que elas conteriam um
positivismo lógico, que relaciona linearmente o progresso
tecnológico e o progresso social, logo, a passagem da sociedade
capitalista para o socialismo.
Além disso, seria esse mesmo positivismo que colocaria em
causa algumas das principais dificuldades da “transição
paradigmática pós-moderna”, a qual somente poderia ser feita
através de uma recusa indiscriminada do positivismo e postulando a
atitude hermenêutica como base para a mudança de paradigmas.
Como a ciência marxista em seu todo seria permeada por essa
separação, logo, a teoria de Marx perderia sua validade.
Porém, se a análise de Marx seria positivista, a transição
paradigmática se pautaria na concepção de uma racionalidade
moderna irrealizável e que deveria ser substituída por uma
pluralidade de racionalidades, fato já problematizado pelo primeiro.
Seria nas revelações da razão humana, incompletas, que estaria “o
370 Movimentos, Direitos e Instituições

embrião da contradição”, o que a legaria a tarefa da razão humana


em “[...] encontra[r] a cada passo novos problemas a resolver”, pois a
“cada nova tese que descobre na razão absoluta e que é a negação
da primeira tese torna-se para ela uma síntese, que muito
ingenuamente aceita como solução do problema em causa”. (MARX,
2006, p. 104).
Assim, a transição paradigmática revelaria uma solução
sem tocar nas próprias contradições entre Ciência e sociedade, ou
melhor, ignorando-as com vistas de assumir uma insuficiência da
teoria do conhecimento anterior, com proposta de renovação em
termos de uma nova teoria do conhecimento que tomaria como
secundário o desenvolvimento contraditório das relações históricas,
pois “a ciência produzida pelo movimento histórico, e a ele se
associando com pleno conhecimento de causa, deixa de ser
doutrinaria e torna-se revolucionária”. (MARX, 2006, p. 111).
Evidentemente, Marx não concordaria com a transição paradigmática,
justamente por ser uma composição produzida pela “comunidade
científica”, que se colocaria acima do real movimento histórico, assim
como as várias escolas que sucessivamente surgiram na economia
política do Século XIX.
Um outro ponto que também chama atenção é que, ao
confrontar a transição paradigmática com o marxismo, haveria um
campo em aberto de crítica, do segundo ao primeiro. Como já dito, a
transição paradigmática se fundamenta na “agenda pós-moderna”, ou
seja, em um hibridismo teórico, do qual afirmaria que “[...] todas as
antigas verdades e ideologias perderam a sua relevância [...]” e que,
consequentemente, “[...] parece que o verdadeiro divisor de águas
ocorreu em algum ponto dos anos 60, ou mesmo em 1989, com o
colapso do muro de Berlim”. (MEIKSIN-WOOD, 1996, p. 120).
Operando-se uma rasura na história, “[...] o senso pós-
moderno de novidade de época depende de se ignorar ou negar uma
realidade histórica avassaladora: que todas as rupturas do Século XX
se unificaram num todo histórico particular pela lógica e pelas
contradições do capitalismo” (MEIKSIN-WOOD, 1996, p. 121),
implicando em relacionar não uma novidade histórica completamente
diferente, mas a continuidade da mesma perplexidade já estabelecida
anteriormente.
A agenda pós-moderna, grosso modo, se estabeleceria
com a adição de algumas temáticas novas, como a fragmentação do
poder, opressão, identidade e ênfase no discurso, operando uma
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 371

negação da história pautada no pessimismo político. Sua versão à


esquerda, que englobaria do pós-estruturalismo, o pós-marxismo,
entre outras vertentes pós, enfatizaria as seguintes temáticas:

Ênfase na linguagem, na cultura e no ‘discurso’ (com o argumento de que


a linguagem é tudo o que podemos conhecer sobre o mundo e de que
não temos acesso a nenhuma outra realidade), em detrimento das
preocupações ‘economicistas’ tradicionais da esquerda e das velhas
preocupações da economia política; rejeição do conhecimento
‘totalizante’ e dos valores ‘universalistas’ (incluindo as concepções
ocidentais de ‘racionalidade’, as ideias gerais de igualdade, liberais ou
socialistas, e a concepção marxista da emancipação humana geral), em
benefício da ênfase na ‘diferença’, em identidades particulares diversas
como gênero, raça, etnicidade, sexualidade e em várias opressões e
lutas particulares e separadas; insistência na natureza fluida e
fragmentada do eu humano (o ‘sujeito descentrado’), que toma nossas
identidades de tal modo variáveis, incertas e frágeis, que é difícil ver
como podemos desenvolver o tipo de consciência capaz de formar a
base para a solidariedade e a ação coletivas fundadas numa ‘identidade’
social comum (como a classe), numa experiência e em interesses
comuns - uma exaltação do ‘marginal’ -; e repúdio das ‘grandes
narrativas’, tais como as ideias ocidentais de progresso, incluindo as
teorias marxistas da história. (MEIKSIN-WOOD, 1996, p. 123).

Nesse caso, claramente, a recusa epistemológica do


marxismo, em sua perda de validade, acaba por romper com a
análise da causalidade e da feição totalizante do capitalismo,
procurando estabelecer uma centralidade epistemológica, distinta de
uma crítica ao capitalismo, assumindo uma postura conivente com o
“capitalismo global, segmentado, consumista e imóvel”. (MEIKSIN-
WOOD, 1996, p. 125). Emerge, assim, uma dualidade entre o
discurso pós-moderno, que enfatiza a noção da pluralidade e de
fragmentação, com o marxismo, cuja análise crítica é elaborada sobre
a prática totalizante e totalizável do sistema capitalista.
Outro ponto a se elencar é que, nos anos 1960, o marxismo
encontrou seu vigor com os acontecimentos sociais, dentre eles, as
revoltas e manifestações estudantis, permitindo a análise de como
esses fatos se relacionaram diretamente com a teoria marxista. No
que consistiria, então, o declínio resultante? O método até então
afirmado, centralizado na epistemologia, entende que o marxismo
não se diferenciaria do positivismo que, com uma proposta
desradicalizada, cometeria os mesmos erros das teorias positivistas.
No entanto, a característica positivista se assemelha com a descrição
dogmática que os partidos comunistas impuseram a partir dos anos
1920 na IIª Internacional, ou muito daquilo que se apresentou nas
372 Movimentos, Direitos e Instituições

escolas estruturalistas, principalmente por Louis Althusser e sua


“ruptura epistemológica” também criada a partir de Bachelard.
Contra esse sentido, em muito se trabalhou rumo a uma
desdogmatização do marxismo oficial, de ampliação da noção de
Estado e da formação de classes. Igualmente, deram-se os esforços
no sentido da apresentação de uma crítica contundente ao socialismo
soviético e, provavelmente, dois intelectuais marxistas, à
contracorrente do marxismo oficial, foram responsáveis por isso:
Antônio Gramsci e György Lukács. A revigoração do marxismo,
aparentemente, não poderia ser dada de forma epistemológica, pois
deveria considerar uma relação de todo histórico, com limites mais
alargados e não a negação da história baseado em um pessimismo
político. Um efeito disso seria considerar as resistências sociais
fragmentadas, das quais apenas o enfoque em novos saberes
poderia dar conta da fragmentação, sem que esses saberes fossem
vistos como rivais ou em disputa. Consciente ou inconscientemente,
essas recusas dos princípios do marxismo são, por consequência, um
mote para a recusa ideológica de problemas centrais colocados pela
obra de Marx e por grande parte da tradição marxista.
Nesta esteira, a ausência de uma “análise objetiva da
sociedade capitalista”, como afirmado – mesmo ciente de que os
trabalhos do jovem Marx continham uma teoria da emancipação
consolidada na crítica da economia política de sua maturidade, onde
sua crítica à sociedade capitalista é pormenorizada – parece conter
uma sub-reptícia convicção de que os trânsitos da ciência autônoma
se pautariam na negação das ideologias ou, ainda, num sentido
atribuído ao pragmatismo, de que toda filosofia se constituiria em uma
dogmatização. A seguinte passagem identifica a relação da análise
da sociedade capitalista – e o desenvolvimento das forças produtivas
a seu modo – e a emancipação:

Essas diferentes condições, que apareceram primeiro como condições


da autoatividade e, mais tarde, como entraves a ela, formam ao longo
de todo o desenvolvimento histórico uma sequencia concatenada de
formas de intercâmbio, que se tornou um entrave, é colocada uma
nova forma, que corresponde às forças produtivas mais desenvolvidas
e, com isso, ao avançado modo de autoatividade dos indivíduos; uma
forma que, à son tour, torna-se novamente um entrave e é então
substituída por outra. Dado que essas condições, em cada fase,
correspondem ao desenvolvimento simultâneo das forças produtivas,
suas histórias é ao mesmo tempo a história das forças produtivas em
desenvolvimento e que foram recebidas por cada nova geração e,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 373

desse modo, é a história do desenvolvimento dos próprios indivíduos.


(MARX, 2010, p. 68).

No entanto, deve-se levar em conta que a transição


paradigmática apresentada anteriormente não se fundamenta por
completo na pós-modernidade, justamente por tratar problemas ou
soluções modernas que não se realizaram e causaram, na
atualidade, uma ausência de “soluções modernas”, ou mesmo porque
a noção de pós-modernidade faz uma autorreferência à modernidade
ocidental, ocultando “a violência matricial”: o colonialismo. (SANTOS,
2006, p. 25).
Não obstante o acima visto, ainda, a consolidação de uma
problemática pós-colonial teria o objetivo de solucionar referido
problema, elencando, a partir dos estudos coloniais, as “relações
desiguais entre o Norte e o Sul”, em que predominariam as formas de
violência mantidas pelo colonialismo e suas estruturas de poder e de
saber. Por isso, haveria uma espécie de programa teórico,
fundamentado na “pluralidade de processos coletivos articulados”, na
proposição de “utopias realistas”, na reinvenção da emancipação
social, no otimismo trágico, na pluralidade de éticas a partir de
“baixo”, na auto-reflexividade, sendo direcionado rumo a uma “ação
rebelde” pautada em “subjetividades transgressivas”, na mestiçagem
ou hibridez das relações de poder. (SANTOS, 2006, p. 27).
Mesmo assim, ainda haveria concepções partilhadas com a
pós-modernidade (contemplativa): a crítica ao universalismo e à
unilateralidade da história, das totalidades e das metanarrativas, bem
como, ao seu turno, a centralidade das pluralidades, das
heterogeneidades e das periferias, sendo também marcante uma
epistemologia construtivista, entre outras concepções comuns.
O que ocorre, então, é que, embora haja um avanço para
uma crítica pós-colonial, os mesmos e problemáticos elementos que
fundamentam a “agenda pós” são mantidos, sobretudo, o aquele que
diz respeito à rasura com a história e às análises causais.
Neste sentido, um resultado explícito seria o de negar as
perspectivas anticapitalistas, pois elas se confrontariam com
questões totalizantes e, uma análise centralizada no poder, portanto,
se faria insuficiente. Restaria, ainda, uma questão: seria possível
fazer uma crítica ao capitalismo através de uma vertente pós-colonial
ou pós-moderna de oposição?
374 Movimentos, Direitos e Instituições

Se essas vertentes se centram nas críticas aos modelos de


racionalidade ocidentais, estariam elas submetendo o capitalismo a
164
ser um projeto – mais ou menos exitoso – da modernidade , e que,
porventura, seria inegável afirmar que todo o mundo hoje está
inserido em um sistema capitalista que gera relações de
desigualdade, de poder, de exclusão e de exploração.
Mas, em tempo, tal situação poderia ser vista através de
uma relação histórico-causal que enfatizasse, principalmente, o
modo de ser do capitalismo, ou seja, sua dialética intrínseca. Ainda
que a pós-modernidade de oposição ou pós-colonialismo não se trate
de um modelo “clássico” de pós-modernidade, a contemplativa, os
mesmos problemas se mantêm. E, junto com eles, a recusa do
marxismo enquanto “metanarrativa” da modernidade, fato que serviria
para afastar as prerrogativas stalinistas e positivistas do marxismo do
século XX, mas correria o risco de reduzir e naturalizar o capitalismo
como consequência positiva e positivada da Modernidade.
Desta sorte, ao que tudo indica, a negação anteriormente
vista não parece ser suficiente para introduzir qualquer problema no
interior da teoria de Marx. Há, de certo, uma separação entre o
desenvolvimento dialético da sociedade capitalista e a capacidade de
criação de alternativas emancipatórias, o que, de fato, não confere
com a filosofia marxiana.
Cabe ressaltar, também, a tradição científica da Marx,
contida na metodologia de análise crítica da economia política, que
enuncia o poder crítico de desmistificação da Mercadoria e da
ontologia humana constituída no trabalho, através de uma violenta
crítica ao capitalismo, o que leva o artigo no sentido proposto no item
a seguir.

4. SUBJETIVIDADE E ALTERNATIVA ONTOLÓGICA

Ainda que as considerações sobre a “transição


paradigmática” pareçam, em seu todo, construídas univocamente,

164
A modernidade, no sentido anteriormente abordado, é a modernidade cultural,
assim como Weber (ética protestante) já bem havia definido, um tipo ideal que não
admite contradições, nem mesmo entende o capitalismo enquanto um sistema
totalizador – no Norte e no Sul, no Centro e na Periferia, para os detentores e não
detentores de poder – mas sim, como uma parte epistemológica da cultura
ocidental dotada de um sentido unívoco. Para uma crítica mais aprofundada dessa
questão ver MÉSZÁROS (2011).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 375

seu contraste com a filosofia marxista se coloca como um ponto


fundamental de divergência.
A compreensão do marxismo como paradigma em crise e
como parte dessa crise é proveniente de dois fatores: um científico,
concernente à noção do marxismo enquanto Ciência da História – da
filosofia de Louis Althusser e do Estruturalismo Francês; e outro,
político, por conta dos regimes políticos e autoritários, em várias
partes do mundo, influenciados pelo marxismo e por sua derrocada
ao final dos anos 1980, que o descreditam enquanto teoria política.
Quanto a esses dois aspectos parece ser evidente, pelo
menos numa primeira aproximação, que o Maio de 1968 tenha
colocado em crise o Estruturalismo na França, também efetuando
uma crítica à ordem estabelecida pelos regimes socialistas alinhados
à URSS. Pelo menos essas duas referências são mantidas como
cerne do pensamento marxista na referência anterior por parte da
transição paradigmática. Porém, seria possível afirmarmos que todo o
pensamento de Marx também não tenha sobrevivido a essa prova?
Deve-se, porém, perceber que O Capital em muito foi
interpretado de modo objetivista e determinista para justificar
determinados regimes políticos ou posições reacionárias, mas os
Grundrisse revelavam um enfoque objetivo e subjetivo interligado por
um complexo método dialético, que apontaria para uma prática
política revolucionária. (NEGRI, 2000).
Além disso, grande parte das críticas elaboradas por Marx
revelava o “método geral da orientação apologética do pensamento
burguês” associada à crença no progresso, que desenvolveu na
ciência um ecletismo pautado na negação das contradições da vida,
ou seja, incapaz de perceber as contradições dialéticas do
capitalismo e assentada em um idealismo subjetivista. (LUKÁCS,
2010, p. 55-60).
Não seria obtuso observar que, mesmo rompendo com as
alternativas objetivistas e positivistas, a transição paradigmática e a
“agenda pós” manteriam, em seu sentido mais essencial, o idealismo
subjetivista, refutando a relação dialética entre objetividade e
subjetividade e desarmando a crítica social de sua criticidade.
A ênfase na questão do método em Marx parece ser, de
fato, algo decisivo e, decerto, ignorado, porque nele estaria uma
imbricação de relações sócio-históricas e sua referencia à ontologia.
As análises provenientes do filósofo húngaro György Lukács e de um
376 Movimentos, Direitos e Instituições

de seus seguidores, István Mészaros, trouxeram uma revigoração do


marxismo, fato que já havia começado anteriormente, quando Lukács
(2012a) apontava contundentes críticas ao modelo do marxismo
oficial estalinista e as concepções desviantes do marxismo que
haviam sido implementadas pelos partidos oficiais, ao dogmatismo,
ao anti-historicismo.
Em sua obra de maturidade, a Ontologia do Ser Social,
Lukács desenvolveu o caminho ontológico para a revitalização da
emancipação social do marxismo, se contrapondo radicalmente às
perspectivas epistemológicas que praticamente dominaram a ciência
durante o Século XX, por dentro e por fora do marxismo. A principal
força dessa análise teórica estaria no objetivo de situar de modo
concreto as estruturas e as mudanças estruturais do processo
histórico-ontológico, através do método de Marx. A concepção do
marxismo como ontologia do ser social opõe-se ao historicismo
subjetivista que dissolve as objetivações humanas em sua gênese
social imediata e às versões estruturalistas, que substituem a
dimensão ontológico-social por um epistemologismo formalista e anti-
histórico. (COUTINHO; KONDER, 2008, p. 9).
Desde o início de sua obra, Lukács se confrontou com a
subjetividade de forma a compreender uma pretensão de
objetividade, desenvolvendo, primeiramente uma dialética entre um
postulado moral e as instituições, compreendido na insistente
tentativa de descobrir as relações de mediação que se assentam em
torno das relações imediatas, articulando a totalidade e a
especificidade em uma unidade. (LUKÁCS, 2012a; MÉSZÁROS,
2013). Suas categorias dialéticas centrais, “totalidade” e “mediação”,
encontram-se intimamente interrelacionadas, assim como no método
de Marx, que privilegiaria o “ponto de vista da totalidade” ao invés do
“ponto de vista do indivíduo”, sendo que, o objetivo seria a
compreensão de como as classes sociais representam a totalidade,
cujos problemas não são meramente particulares, mas uma
determinação do todo sobre as partes. Porém, essa totalidade
somente poderia ser compreendida pelo recurso às mediações, pois
“a totalidade social existe por e nessas mediações multiformes, por
meio das quais os complexos específicos [...] se ligam uns aos outros
em um complexo dinâmico geral que se altera e modifica o tempo
todo”. (MÉSZÁROS, 2013, p. 58).
A noção de classes no sistema capitalista seria uma dessas
mediações, que canalizaria em sua ação a realidade social e a
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 377

transformação da realidade. Por conta desse fundamento, caberia


então, ao proletariado, como “sujeito do pensamento da sociedade”, e
à sua consciência de classe, sua ética ou unidade entre teoria e
prática ou ainda “o ponto em que a necessidade econômica de sua
luta emancipadora se transforma dialéticamente em liberdade”, tanto
o reconhecimento de seu posicionamento na sociedade, como o
combate ao capitalismo. (LUKÁCS, 2012a, p. 125-129).
Mas, se nesse aspecto Lukács havia resolvido,
parcialmente, o problema entre objetividade e subjetividade, grosso
modo, a ênfase messiânica no papel histórico dos sujeitos sociais
parece ter sido também uma marca impressa ao marxismo ocidental,
além dos problemas acerca do Sujeito-Objeto idêntico (MÉSZÁROS,
2002), que não poderão aqui ser analisados. No entanto, a própria
autocrítica de Lukács à sua abordagem anteriormente descrita
revelou que a atribuição messiânica da práxis do proletariado não
prescindia de um substrato material. (LUKÁCS, 2012a). A perspectiva
centralizada no trabalho, enquanto protoforma do ser social surgiu
não apenas como alternativa a esse problema, mas, também, como
uma solução que poderia ser colocada ao marxismo como tentativa
de resgate emancipatório.
Para tanto, primeiramente, seria necessário recorrer à a
uma análise crítica da ciência produzida até então, e sua
incapacidade de compreensão e enfrentamento dos problemas do
capitalismo, assim como Lukács (2012b) sugere. Pelo neopositivismo,
corrente dominante da filosofia do século XX, em suas várias formas,
quase sempre se definiu uma prioridade metodológica que se
realizava na manipulação crescente da sociedade pela ciência, bem
como pelo neopositivismo também se compreendeu a práxis em um
sentido imediato, não se orientando para a realidade existente, mas
apenas aperfeiçoando seu método, que em pouco ampliaria os
conhecimentos ontológicos, ao contrário da teoria do conhecimento
de Marx, que se ancoraria nesses fundamentos.
Ao longo dos anos, assim, a associação entre o
conhecimento linguístico e a matematização da ciência acabaram por
trazer um panorama para a ciência “[...] cuja mais profunda tendência
consiste em ignorar [...] tudo aquilo que não pode encontrar
expressão adequada na linguagem da ciência por ela
semanticamente depurada [...]”, resultando na “[...] negação da
totalidade das ciências, de suas inter-relações, da complementação
recíproca de resultados, generalização dos métodos e das conquistas
378 Movimentos, Direitos e Instituições

científicas [sugerindo] um espelhamento adequado da realidade em


si, uma imagem de mundo”. (LUKÁCS, 2012b, p. 51).
A ênfase epistemológica do neopositivismo também se
apresentou no pragmatismo clássico, com estreitas conexões com a
religiosidade moderna, na avaliação das teorias sob a condição de
doutrinas e na teoria da verdade, desvinculadas de quaisquer
relações de mediação. Além disso, a tendência anti-ontológica da
filosofia contemporânea, combinada com a neutralidade das
concepções de mundo, implementando uma filosofia que se exime de
respostas aos problemas reais, combinaram heranças do idealismo
subjetivo, onde a “concretude, que se apresenta como uma
efetividade dada é concebida como produto da subjetividade
cognoscente” (LUKÁCS, 2012b, p. 54), revelando que o “em-si” seria
inalcançável.
O idealismo subjetivista presente nas formulações
contemporâneas da ciência se opõe a tentativa marxista de
explicação da realidade social, por se deter em uma epistemologia
que desconsideraria a ontologia e sua concretude. Assim:

O neopositivismo incorpora especialmente a lógica matemática em sua


‘linguagem’ e amplia em muito o terreno neutro [...] conferindo-lhe uma
aparência de objetividade sem, contudo, romper com o ponto de
partida idealista subjetivo do antigo positivismo – das sensações, dos
elementos. (LUKÁCS, 2012b, p. 55).

Uma regulação linguística da ciência teria como


consequência uma negação das teorias (entendidas como
dogmatismo) e um estreitamento do conceito de práxis. Ao contrário,

Toda práxis está diretamente orientada para a consecução de uma


finalidade concreta determinada. Para tanto, deve ser conhecida a
verdadeira constituição dos objetos que servem de meio para tal
posição de finalidade, pertencendo à dita constituição também as
relações, as possíveis consequências, etc. Por isso, a práxis está
inseparavelmente ligada ao conhecimento; por isso, o trabalho é [...] a
fonte originária, modelo geral, também da atividade teórica humana. Os
mal-entendidos começam somente onde emerge a categoria de
imediaticidade, se então recebe um exame rigoroso ou se é
negligenciada. Todo trabalho é concreto e, por essa razão, orientado
para uma conexão concreta, limitada objetiva. Todo conhecimento que
seja um pressuposto imprescindível de tal trabalho pode [...] ser
inteiramente realizado, mesmo quando está voltado exclusivamente
para observações, relações etc. imediatas, o que pode ter como
consequência [...] o fato de se revelar incompleto ou até mesmo falso,
não correspondente à realidade, sem por isso impedir a efetiva
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 379

consecução da finalidade concretamente posta ou, pelo menos, sem


perturbá-la dentro de certos limites. (LUKÁCS, 2012b, p. 56).

Deste modo, levando em conta a práxis e o conhecimento


obtido através dela, pode-se retomar a ontologia, fissurando o
caminho epistemológico e balizando o método de compreensão da
realidade, percebendo assim, conexões entre teoria e prática, entre a
realidade mediata e a realidade imediata.
A problematização teórica, assim, tem como fundamento a
compreensão da realidade, mas também enfrenta o limite de reduzir
certas determinações e determinidades reais a apenas sínteses de
pensamento. Marx, ao longo de sua obra de juventude se depara com
esse problema ao avaliar criticamente não apenas a filosofia idealista
alemã – de Feuerbach e Hegel – como também a economia política
clássica inglesa. Ao inverter a perspectiva de que as ideias
determinavam o mundo, Marx assentou sua análise nas contradições
da realidade, mas não apenas no sentido de uma compreensão
epistemológica, como também no sentido de uma formulação
ontológica da concretude do ser social, que se funda através do
trabalho. Naturalmente essas formulações, por mais precisas que
fossem, não eram meramente formulações conceituais, mas sim,
“enunciados diretos sobre certo tipo de ser, ou seja, são afirmações
puramente ontológicas”. (LUKÁCS, 2012b, p. 281).
A crítica às compreensões de uma lógica-gnosiológica
provenientes da filosofia kantiana – da qual poderia se dizer que
comete um “ontologicídio”, no sentido de impor a condição
incondicional de incompreensão da coisa-em-si (die sache Selbst) – e
tão presentes em Hegel, implica em considerar que a realidade social
é uma “síntese de múltiplas determinações” (MARX, 2011, p. 54) e
que, por isso, somente poderia ser apreendida em uma “exposição
ontológica do ser social sobre bases materialistas”. (LUKÁCS, 2012b,
p. 285).
Com esse ponto de partida – que, para muitos, pode
parecer absurdo, incompreensível ou “eurocêntrico” – poderia se
verificar que o trabalho não apenas seria uma categoria formulada
idealmente ou conceitualmente, mas, sim, uma forma de o homem
colocar a natureza em movimento, que não deve ser desconsiderada
e separada da incorporação que o ser social faz da natureza.
No entanto, o que deve ser ressaltado, nesse momento, é
que, para a análise pretendida, a concretude deve ser colocada com
380 Movimentos, Direitos e Instituições

algo central. Porém, isso não significa que a pesquisa deva seguir por
um caminho empirista ou descritivo. Ao contrário, seria necessário
fundamentar, compreender e formular conexões dos fatos, seja com a
teoria social, na tentativa de revisão, seja com a atuação prática dos
seres na vida cotidiana.
Sendo assim, a totalidade do ser social, notadamente
através de suas conexões reais, deve ocupar um espaço privilegiado,
ao invés de subordiná-los às percepções empíricas, racionalistas e
epistemológicas, apreendendo-as “[...] em todas as suas intrincadas e
múltiplas relações, no grau máximo de aproximação possível”.
(LUKÁCS, 2012b, p. 297). Do contrário, mesmo com uma visão
alargada de Ciência, se excluiria como a filosofia tem papel
fundamental para capturar “[...] elementos estruturais de complexos
relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas interrelações dinâmicas
dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto
extensivo quanto intensivo”. (LUKÁCS, 2012b , p. 297).
Por isso, o empirismo se faz um tanto fracassado, porque
deixaria de lado essas dinâmicas e, além disso, a fundamentação da
cotidianidade é diferente da experiência vivida, afirmando-se do ser
social em seu cotidiano.

CONCLUSÃO

A partir das análises aqui tecidas, fica claro que, por conta
da estreita vinculação entre transição paradigmática, pensamento
pós-moderno e idealismo subjetivo, a proposta de uma crítica que
parta desses pressupostos acaba por se desradicalizar em sua raiz.
Com isso, abre-se um campo de perspectivas
antidogmáticas e anti-teóricas que se concatenam com o próprio
pensamento a partir do qual se efetiva a crítica.
Por outro lado, foi a partir do pensamento de Marx que se
conseguiu perceber que a própria radicalidade da crítica tem seu
fundamento ontológico, ou seja, parte do próprio homem. As noções
epistemológicas nas Ciências Sociais acabam por desconsiderar
esse ponto fundamental, compreendendo a realidade
equivocadamente, ou seja, a partir de uma teoria do conhecimento
cujo princípio seria apenas o de debater no interior de uma
comunidade científica e, portanto, positivista. Ao contrário, a
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 381

perspectiva ontológica de Lukács relaciona as dimensões do


cotidiano, diferenciando as mediações e as imediações, que passam
ao lado das teorias de cariz epistemológico.
Um avanço significativo para essa questão se dá na
compreensão dos problemas cotidianos, sem antes delegá-los como
um “saber” deslocado de seu tempo e espaço e que, aparentemente,
se faz imune às relações econômico-político-ideológicas – ou as
considera enquanto esferas da vida cotidiana previamente separada.
Mediante tal desafio, ademais, problemas que se
apresentam na cotidianidade somente podem ser compreendidos
objetivamente ao se levar em conta a subjetividade (degradada no
capitalismo, porém potencialmente emancipatória) do trabalho
(alienação e estranhamento), cujas contradições aparecem
materializadas das representações e formas (uma delas, a
mercadoria), mas cuja potencialidade é a transformação social.
É possível que dessa forma, as chamadas “Jornadas de
Julho” de 2013 – especialmente no momento de luta por transporte –
não se pareçam totalmente um conflito social de luta por direitos, mas
uma luta contra vários tipos de alienações mediadas.

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382 Movimentos, Direitos e Instituições

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SEÇÃO 3 – INSTITUIÇÕES
CAPÍTULO 16

TECNOLOGIAS SOCIAIS NO MODELO DE


EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA EM PORTUGAL:
A EMERGÊNCIA DAS INCUBADORAS
SOCIAIS

Beatriz Caitana da Silva165


166
Sílvia Ferreira

RESUMO

Este texto parte do quadro de reflexão da análise sociotécnica


oriunda dos estudos sobre as tecnologias sociais para as
experiências de extensão universitária, nomeadamente as
incubadoras em Portugal. Para tal, centra-se na contextualização das
experiências denominadas de incubadoras sociais e solidárias, que
atuam em duas universidades portuguesas: a Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra e a Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias (Lisboa). Tais iniciativas encontram na

165
Doutoranda em Sociologia e Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (FEUC). Especialista em Movimentos Sociais e Democracia
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é membro do Grupo
de Estudos em Economia Solidária (ECOSOL), do Centro de Estudos Sociais (CES-
UC). E-mail: <smdf@fe.uc.pt>.
166
Doutora em Sociologia pela Universidade de Lancaster, Inglaterra. Professora
auxiliar em Sociologia, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(FEUC). Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) e do Centro de Estudos
Cooperativos e da Economia Social (CECES), da FEUC. E-mail:
<beatriz.silva@student.fe.uc.pt>.
386 Movimentos, Direitos e Instituições

relação Universidade-comunidade e na busca pela reinvenção da


extensão universitária o seu ponto de convergência, mas divergem no
que diz respeito aos métodos de atuação adotados e à sua
institucionalização. Algumas utilizam métodos de transferência de
saberes, outras priorizam formas de coconstrução e aprendizagem
pela prática. As incubadoras sociais e solidárias são tecnologias
sociais e promotoras de dinâmicas sociotécnicas resultantes da
relação e interação de elementos heterogéneos. Essa interação,
produzida nos territórios onde atuam é o que permite ressignificar
quer as tecnologias, quer o campo do conhecimento científico e a sua
aplicação prática.
Palavras-chave: conhecimento; incubadoras; tecnologias sociais;
universidade-comunidade.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: UMA


ABORDAGEM PELAS TECNOLOGIAS; 2. AS TECNOLOGIAS
SOCIAIS NAS UNIVERSIDADES; 2.1. A INCUBAÇÃO SOCIAL
ENQUANTO TECNOLOGIA E INOVAÇÃO SOCIAL; 3. DOIS CASOS
DE INCUBADORAS SOCIAIS EM PORTUGAL; 3.1.
EXPERIMENTAÇÃO; 3.2. GESTÃO E PARTICIPAÇÃO; 3.3.
FATORES DE SUSTENTABILIDADE (DIMENSÃO FINANCEIRA E
INSTITUCIONAL); 3.4. SISTEMATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO;
3.5. CONDIÇÕES DE REPLICABILIDADE; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A passagem de uma sociedade industrial para uma


economia do conhecimento (JESSOP, 2010), fundamentando o “novo
espírito do capitalismo” (BOLTANKSI; CHIAPELLO, 2009), privilegia o
papel fulcral do conhecimento e da ciência na chamada pós-
revolução industrial. Tais transformações impulsionam novos
contornos para o debate sobre ciência e tecnologia e a sociedade, ao
passo que as universidades passaram a adotar novos modelos de
produção e difusão do conhecimento articulados com o
desenvolvimento econômico por meio do progresso científico e
tecnológico. A tecnologia tornou-se motor de alavanca dos centros de
pesquisa e desenvolvimento, como se verifica no surgimento de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 387

expressões como tecnociências, e na centralidade e inter-relação


observadas no surgimento das incubadoras e parques tecnológicos,
assim como no desenvolvimento da política de C&T (ciência e
tecnologia) e nos atuais modelos de organização das pesquisas,
fortemente orientados para processos de inovação.
Refletir sobre o surgimento de incubadoras universitárias
que se assumem como sociais e solidárias exige, ao menos, duas
premissas analíticas: considerar a teoria crítica da tecnologia e teses
que contribuíram para se pensar a tecnologia do ponto de vista das
suas implicações sociais, e conhecer o modo como as universidades
se têm organizado na produção do conhecimento, especialmente
aquele voltado para a economia social e solidária.
Este texto parte do quadro de reflexão da análise
sociotécnica oriunda dos estudos sobre as tecnologias sociais para
discutir a relação entre a universidade e a comunidade. Essa
discussão é ilustrada recorrendo a uma pesquisa exploratória no
quadro de uma investigação-ação em curso, no âmbito de uma tese
de doutoramento, centrando-se na contextualização das experiências
denominadas de incubadoras sociais e solidárias em duas
universidades portuguesas: a Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (FEUC) e a Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias (ULHT) em Lisboa.
Tais iniciativas encontram na relação universidade-
comunidade e na busca pela reinvenção da extensão universitária o
seu ponto de convergência, mas divergem no que diz respeito aos
métodos de ação adotados, às relações institucionais estabelecidas e
à inserção nas universidades onde atuam. O que se pretende aqui é,
de modo exploratório, caracterizar duas experiências de incubação
social a partir de uma proposta de articulação entre os conceitos de
tecnologia social e de inovação social.

1. PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: UMA


ABORDAGEM PELAS TECNOLOGIAS

Uma reflexão mais alargada sobre ciência e tecnologia


transita em dois polos distintos. Um polo que a define como
conhecimento neutro, objetivo, imparcial, independente dos valores
morais, sociais, culturais de quem a produz e da conjuntura social,
política, económica onde se situa. No outro polo, uma corrente que
388 Movimentos, Direitos e Instituições

defende a não neutralidade das ciências, constituída principalmente


pelo campo teórico da crítica às tecnologias e ao papel das ciências,
que reconhece a necessidade de reflexão sobre o quanto as
tecnologias são enviesadas pelos valores de grupos sociais
específicos.
A ideia central é de que a ciência e a tecnologia estão
imbricadas e implicadas em relações sociais como classes sociais,
pluralidade cultural, política e económica. Neste polo, diferentes
correntes dos estudos sobre a ciência (DAGNINO, 2004;
FEENBERG, 2010; LACEY, 2003; NEDER, 2010; OLIVEIRA, 2003)
desenvolvem, desde os anos de 1980, críticas ao uso instrumental da
tecnologia e o modo como se manifestam e operam os fenómenos e
relações sociais no campo do conhecimento tecnológico.
Fruto de uma visão linear sobre a tecnologia, no polo da
neutralidade, encontra-se uma vertente analítica que nasce na
conceção mais tradicional de uma tecnologia baseada numa lógica
racional, instrumental e determinista. Os estudos mais recentes sobre
o tema, sobretudo aqueles oriundos da filosofia e sociologia, dão
conta de uma variedade de teses contestatórias da neutralidade e
ressignificam a movimentação da tecnologia na sociedade, como é o
caso da teoria crítica da tecnologia (FEENBERG, 2010; NEDER,
2010) e as novas abordagens das tecnociências. (DAGNINO, 2002,
2004; LACEY, 2003, 2009).
Nos chamados modo 1 e modo 2 de produção de
conhecimento (GIBBONS et al., 2004; NOWOTNY, GIBBONS, 2003)
as duas orientações epistemológicas coexistem em espaços distintos.
O modo 2 de produção é uma alternativa à exclusividade do modo 1,
correspondente a um contexto de produção e validação governado a
partir da autonomia do sistema científico, circunscrito no interesse de
uma comunidade específica e disciplinar. No modo 2, a produção de
conhecimento emerge num contexto de aplicação, em que as
escolhas realizadas no processo de produção do conhecimento,
assim como sua validação, passam a ser articuladas numa rede
complexa de atores e interesses. (RUBIÃO, 2013). Nesta perspectiva
se enquadra o modelo teórico da triple helix, circunscrito nos
conceitos do conhecimento e da inovação, que pretende promover o
crescimento e a competitividade e novas articulações entre as
instituições de ensino superior, ancoradas na abordagem da
economia baseada no conhecimento. (ETZKOWITZ;
LEYDESDORFF, 2008).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 389

Porém, o enquadramento da triple helix tem sido criticado


por sua estreiteza, por articular apenas Estado, universidades e
centros de investigação e atores econômicos, surgindo propostas
alternativas como a de uma hélice quádrupla. (CARAYANNIS;
CAMPBELL, 2009). Carayannis e Campbell (2012) propõem um
modo 3 de produção do conhecimento, acrescentando os atores da
sociedade civil na esfera pública. Contudo, entende-se que esta
crítica é ainda limitada na medida em que opera dentro de um
imaginário (JESSOP; FAIRCLOUGH; WODAK, 2008) que reduz o
econômico ao mercantil, a política ao Estado e as ciências às
ciências naturais, sendo, por isso, incapaz de incorporar visões mais
amplas da economia, da sociedade e da ciência. (FERREIRA, 2010;
MACLEOD et al., 1996).
A necessidade de se pensar a tecnologia simultaneamente
na sua capacidade de satisfação de necessidades e nos efeitos
gerados, aliada às críticas à sua inserção no modelo científico
tradicional ou mercantil, contribuem, para a relevância de novos
conceitos como o de tecnologia social (TS) ou de inovação social (IS).
Este movimento aqui designado como ressignificação da tecnologia,
surge pelo fato das tecnologias convencionais não darem conta da
dimensão da inclusão social, em parte, por estarem enraizadas
exclusivamente nos modos capitalistas de produção, distribuição,
repartição e consumo. Esta ressignificação encontra suporte na
proeminência atual de movimentos por uma outra economia, como a
economia solidária, assente simultaneamente na sua dimensão
econômica e política. Teoricamente e na prática, afirma-se a
existência de um pluralismo de princípios econômicos (LAVILLE,
2009) e a pluralidade de modelos de relação entre a economia social
e o Estado (FERREIRA, 2009), com ênfase nos princípios da
redistribuição, reciprocidade e solidariedade e nas experiências de
democracia participativa, cogovernação e da decisão coletiva.
Dagnino (2004) refere que o conceito de TS pode ter sido
consolidado por meio das críticas e contribuições incorporadas ao
conceito de Tecnologia Apropriada (TA). Uma das críticas às TAs é
que estas cumprem o papel de mitigar os problemas da pobreza, mas
não são capazes de alterar o status quo dos países pobres
(DAGNINO, 2004). Thomas define tecnologia social como uma forma
de “criar, desenvolver, implementar e administrar tecnologia orientada
a resolver problemas sociais” (2009, p. 27). Já o Instituto de
Tecnologia Social (ITS|Brasil) reforça a dimensão participativa ao
definir as TS como um
390 Movimentos, Direitos e Instituições

[...] conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas


e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela,
que representam soluções para inclusão social e melhoria das
condições de vida. (ITS, 2004, p. 130).

No fundo a gênese do conceito parte de dois caminhos


distintos: um que se debruça sobre as práticas das organizações
sociais (OS), buscando fazer uma releitura da aproximação entre
práticas sociais e teoria; um segundo, preocupado em questionar as
formas como o conhecimento é produzido nos espaços acadêmicos,
incorporando a trajetória de outros conceitos (tecnologias apropriadas
– TAs) para uma forma de operacionalização das TSs pela
adequação sociotécnica.
Tal como a expansão do conceito de TS na América Latina,
a disseminação do conceito de inovação social na Europa procura
definir um campo de produção do conhecimento comprometido com o
desenvolvimento social. A inovação social (IS) centra-se no
desenvolvimento e difusão de inovações destinadas à resolução de
problemas de grupos sociais desfavorecidos. Moulaert, Maccallum e
Hillier definem a inovação social como o processo de encontrar
“soluções possíveis para um conjunto de problemas de exclusão,
privação, alienação, falta de bem-estar; e também ações que
contribuam positivamente para um significativo progresso e
desenvolvimento humano”. (2013, p. 15).
O conceito de inovação social inclui duas dimensões
relacionadas: é um produto e um processo (ANDRÉ; ABREU, 2006;
MOULAERT; MACCALLUM; HILLIER, 2013; MURRAY; CAULIER-
GRICE; MULGAN, 2010). Um processo, na medida em que implica
mudança e alteração nas relações sociais e relações de poder em
nível micro e macro (ANDRÉ; ABREU, 2006). Um produto, por meio
da construção de metodologias, de artefatos e/ou serviços,
especialmente aqueles voltados para o fortalecimento das
capacidades da população, a satisfação das necessidades e o
acesso aos direitos. (ANDRÉ; ABREU, 2006). Ou seja, quer a
inovação social, quer a tecnologia social, marcam a entrada de uma
necessidade explícita, em um campo científico dominado pela ideia
de imparcialidade e neutralidade, e recentram as prioridades sociais
em lugar das prioridades econômicas.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 391

2. AS TECNOLOGIAS SOCIAIS NAS UNIVERSIDADES

Almeida Filho (2008) defende um modelo de universidade


que torne real a noção de comunidades ideais de diálogo. Um
modelo que encontra ressonância no conceito de extensão
universitária, cujo objetivo central é promover uma forma de
coprodução do conhecimento, em que o fluxo de aprendizagem
acontece nos dois sentidos. Trata-se da possibilidade de partilha e
intercâmbio de informações e conhecimentos; de aproximação entre
saberes acadêmicos e populares, entre os campos sociais e o
universo acadêmico. (SANTOS, 2005).
Está-se a assistir a uma pressão cada vez mais intensa para
processos de mercantilização do conhecimento por meio de relações
gradualmente mais íntimas e dependentes entre universidades e o
mercado nas formas emergentes de produção do conhecimento.
(GIBBONS et al., 1994). Com o fenômeno da capitalização do
conhecimento (ETZKOWITZ, 2003, p. 297) a universidade enfraquece
167
sua identidade autônoma, no sentido humboldtiano , para definir-se
especialmente como uma organização neoprofissional social
corporativa, heterônoma e empresarial/competitiva. (SGUISSARDI
et al., 2004). Tais políticas e mudanças institucionais em que as
universidades estão localizadas têm vindo a alterar as perspetivas de
sua missão social. (SANTOS, 2005).
A necessidade de introdução do tema das TSs nos espaços
acadêmicos dá-se fundamentalmente pelo fato das universidades e
centros de pesquisa não estarem suficientemente preparados e
comprometidos com o desenvolvimento de uma tecnologia para a
inclusão social. (DAGNINO, no prelo). Percebe-se tal situação, por
exemplo, nas dificuldades de uma extensão universitária orientada
para as comunidades. Hart et al. (2009) identificam três fatores que
impedem uma cultura de engajamento na comunidade pelas
universidades: a determinação pelos professores de uma agenda de
investigação e conteúdos do currículo assentes em linhas
acadêmicas tradicionais, a estrutura de recompensa que favorece a
publicação científica, e a falta de uma cultura empreendedora. Assim

167
O modelo humboldtiano emerge na história como orientação para a atuação das
universidades europeias enquanto campo de produção de saber puro associado a
uma prática universitária onde a universidade aparece como local de busca da
verdade (pura, autônoma, desinteressada) e local de reorganização do saber
(prático, conjugado, totalizante). (Rubião 2013, p. 65).
392 Movimentos, Direitos e Instituições

como outros fatores determinantes, como o financiamento limitado a


projetos voltados para a relação universidade-comunidade.

2.1 A Incubação Social Enquanto Tecnologia e


Inovação Social.

Na América Latina surge o conceito e método de incubação


social e solidária imbricados em formas de transferência de
conhecimento e tecnologia para organizações da economia social e
solidária e/ou populações em situação de vulnerabilidade. Estas
incubadoras surgem com referência ao modelo de incubação
tecnológico tradicional de empresas, mas se distinguem no que se
refere às metodologias adotadas, público, princípios e objetivos. As
primeiras experiências surgidas no Brasil nos anos 1990 têm suas
raízes no movimento da Ação da Cidadania de Combate à Extrema
Pobreza e, desde logo, assumem como propósito apoiar e assessorar
os empreendimentos econômicos solidários, por meio da oferta de
qualificação e assessoria técnica durante o período de incubação.
(SENAES, 2011).
Desde sua gênese a metodologia de incubação social e
solidária espalhou-se pelo País, quase sempre vinculadas às
universidades públicas ou privadas168. As incubadoras e os
empreendimentos por elas apoiados reconhecem a importância
preeminente de se consolidar uma matriz de produção tecnológica
baseada num modelo sustentável e socialmente justo. (SENAES,
2011)169. Mais recentemente, em 2009170, foram trazidas para
Portugal as primeiras experiências autodesignadas de incubação

168
Ao todo, as duas principais redes de incubadoras, a Rede de ITCPs e a rede
Unitrabalho, reúnem mais de cem iniciativas de incubação em universidades
brasileiras. A rápida expansão da metodologia levou em 1998 à criação em âmbito
governamental o Programa Nacional de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares (PRONINC), voltado para o apoio e fomento às incubadoras de
economia solidária.
169
Setenta e um por cento das incubadoras que participaram na avaliação do
PRONINC (SENAES, 2011) geraram ou usaram algum tipo de tecnologia social,
sendo que a maioria confirma ter trabalhado com metodologias e uma parte
significativa com artefactos produtivos. Dentre as tecnologias sociais citadas pelas
incubadoras no processo e avaliação do PRONINC (SENAES, 2011), compilaram-
se alguns casos de: metodologias de comunicação, formação e design
participativo; metodologias de autogestão e gestão de negócios solidários.
(SENAES, 2011).
170
Esta informação resulta do envolvimento das autoras deste Capítulo nestes
mesmos processos.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 393

social e solidária, mas o seu reconhecimento e desenvolvimento


estão muito distantes da experiência da América Latina.
Para se analisar as experiências portuguesas de incubação,
parte-se do princípio de que elas são simultaneamente alavancas
para o desenvolvimento de TS nas universidades ao constituírem-se
como espaço de promoção e articulação de TSs e, em si mesmas,
experiências de TS. Utiliza-se um conjunto de parâmetros de análise
que resulta da articulação entre o conceito de tecnologia social, mais
vinculado à experiência da América Latina, e o conceito de inovação
171
social, mais presente no continente europeu .
Considera-se que os atributos constitutivos do conceito de
tecnologias sociais e de inovação social assemelham-se no que se
refere aos significados e práticas. As TSs, desde logo, assumem
como finalidade máxima a solução de demandas sociais concretas
identificadas pela população, tal como a inovação procura solucionar
os problemas das comunidades. Nas tecnologias sociais a população
possui um papel central nos processos de tomada de decisão
desenvolvidos em formas democráticas, como estratégias de
mobilização para a participação da população, bem como na
participação, apropriação e aprendizagem (ITS, 2004). Tendo em
conta o ciclo da inovação social (FERREIRA, 2011; MURRAY;
CAULIER-GRICE; MULGAN, 2010), este começa com o impulso,
inspiração e diagnóstico para identificação do problema social e das
suas causalidades, a que se segue o momento em que são
identificadas as soluções existentes e adequadas.
Quer o diagnóstico, quer a solução implicam o envolvimento
de todos os atores, na medida em que se presume que os problemas
sociais não pré-existem, mas são construídos socialmente,
requerendo a mobilização dos afetados na sua coconstrução.
(MURRAY; CAULIER-GRICE; MULGAN, 2010). Também nas TSs
procura-se uma sistemática do processo pelo planejamento,
aplicação e sistematização do conhecimento de forma participativa.
Na IS a fase do protótipo/experimentação é uma etapa em
que as ideias são testadas na prática, frequentemente por tentativa e
erro, e as medidas de sucesso são afinadas; esta etapa é organizada

171
Utilizou-se uma adaptação feita a partir do trabalho de Mapeamento Nacional de
TSs produzidas e/ou utilizadas por ONGs, realizado pelo Instituto de Tecnologia
Social – ITS (2004), e do Ciclo de Inovação Social – The Open Book of Social
Innovation. (MURRAY; CAULIER-GRICE; MULGAN, 2010).
394 Movimentos, Direitos e Instituições

nas TSs com recurso à participação da população e construção de


novos conhecimentos a partir da simbiose gerada (população –
cientistas). No ciclo da IS, a sustentação ou institucionalização é a
fase em que se prevê a sustentabilidade financeira a médio e longo
prazos e a institucionalização (organizacional, políticas públicas etc.)
do resultado da experimentação, assim como na TS a
sustentabilidade deve ancorar-se na sua dimensão econômica, social
e ambiental.
Tanto nas IS como nas TS prevê-se o momento de difusão
ou/e ampliação de escala, pelo que são analisadas as condições de
transferibilidade e ampliação, visando o crescimento e disseminação
da inovação e da tecnologia para outros contextos. Pressupõe-se o
envolvimento e articulação com diferentes elementos, como
movimentos sociais e legislação, de modo que possam gerar a
mudança sistêmica pretendida por meio de novos quadros ou
arquiteturas. Um novo modo de fazer e um novo saber-fazer
emergem. (ITS, 2004; MURRAY; CAULIER-GRICE; MULGAN, 2010).
Interessa assinalar que, quer o conceito de TS, quer o
conceito de IS, partem do princípio de que as práticas sociais e o
saber-fazer dos atores sociais também produzem conhecimentos. Ou
seja, na TS é possível fortalecer o reconhecimento dos
conhecimentos práticos, dos saberes populares derivados das
experiências significativas vivenciadas em comunidade. Isto significa
que estes conhecimentos não devem estar circunscritos apenas ao
âmbito das organizações científicas, mas precisam também envolver
uma multiplicidade de setores e atores, incluindo aqueles que, de
algum modo, podem contribuir para a sua disseminação e
fortalecimento. (ITS, 2004).
Portanto, para a caracterização das experiências
universitárias de incubação, elegem-se os seguintes atributos
empíricos que resultam da construção teórica apresentada
anteriormente: (a) a inserção institucional na universidade; (b) o
propósito da iniciativa e o problema social que a mobiliza; (c) a
experimentação da iniciativa no terreno; (d) o modelo de organização
e tomada de decisão; (e) os fatores de sustentabilidade (dimensão
financeira e institucional); (f) o processo de produção, aplicação e
sistematização do conhecimento; (g) as condições de aprendizagem
e apropriação na relação comunidade-universidade; e (h) as
condições de replicabilidade.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 395

3. DOIS CASOS DE INCUBADORAS SOCIAIS EM


PORTUGAL

Os dois casos estudados em Portugal têm a especificidade


de serem desenvolvidos em processos bottom-up, ou seja, a partir da
iniciativa e mobilização de estudantes sob inspiração das
experiências do Brasil. Diferem nisto da maioria das incubadoras
sociais no Brasil, embutidas nas estruturas universitárias, seja em
parques tecnológicos e/ou departamentos de extensão universitária, e
quase sempre iniciadas e coordenadas por professores.
A ISFEUC – Incubadora Social da Faculdade de Economia
172
na Universidade de Coimbra – surgiu em 2009 como um processo
bottom up da ação dos alunos, a partir da mobilização por parte dos
estudantes e professores envolvidos. Nasceu no âmbito de uma
disciplina de mestrado e desde sua gênese envolveu estudantes de
mestrado e posteriormente de doutoramento173.
A Faculdade de Economia – onde está situada a ISFEUC –
possui como estrutura institucional e formal de atividades de
extensão, a Associação para a Extensão Universitária (APEU-FEUC),
responsável pela organização de ações de formação e elaboração de
estudos, mas que, todavia, não inclui a totalidade das ações no
âmbito da faculdade174, tampouco introduz em seu escopo atividades
especificamente voltadas para o desenvolvimento comunitário e de
organizações sociais e solidárias175. No domínio da economia social
integram a Faculdade de Economia o Centro de Estudos Sociais

172
A Faculdade de Economia integra o conjunto de oito faculdades da Universidade
de Coimbra. Criada em 1972, reúne cursos em quatro áreas distintas: Economia,
Gestão, Relações Internacionais, e Sociologia. A faculdade está organizada em
três ciclos de estudos: o 1º refere-se aos cursos de licenciatura (graduação no
Brasil), o segundo aos cursos de mestrado e o terceiro aos cursos de
doutoramento.
173
Mestrados em Intervenção Social, Inovação e Empreendedorismo e em Sociologia,
Doutoramentos em Gestão e em Sociologia. Para a caracterização da ISFEUC
recorreu-se ao conhecimento das autoras envolvidas no seu processo de criação e
desenvolvimento.
174
Existem ainda na Faculdade duas iniciativas as quais podem ser aproximadas da
perspectiva extensionista, mas são coordenadas e geridas pelos estudantes, que é
o caso da Empresa Júnior – JEEFEUC e da AIESEC (Associação Internacional de
Estudantes em Ciências Económicas e Comerciais).
175
No âmbito da Universidade de Coimbra existe ainda a Divisão de Transferência de
Saber (DTIS), responsável pelas relações universidade-sociedade, atuando na
transferência de conhecimento para o setor comercial e tecnológico.
396 Movimentos, Direitos e Instituições

(CES) e o Centro de Estudos Cooperativos e da Economia Social


(CECES). Entre os projetos orientados para a comunidade
desenvolvidos no CES destaca-se o projeto BIOSENSE.
No caso da Universidade Lusófona176 a extensão
universitária está a cargo da Pró-reitoria de Extensão criada
recentemente nos quadros da universidade. Trata-se de uma
estrutura associada à Reitoria que é responsável pelas ações com a
sociedade e pelo acompanhamento e desenvolvimento da Incubadora
de Economia Solidária e Desenvolvimento Comunitário. Destaca-se
aqui o desenvolvimento de projetos como a Atividade Curricular em
Comunidade (ACC). A experiência de incubação na Universidade
está em atividade desde 2011, mas na qualidade de incubadora
177
desde 2013 .
As atividades pedagógicas de extensão universitária são
desenvolvidas na Universidade Lusófona no âmbito da Atividade
Curricular em Comunidade (ACC), uma metodologia trazida do
Brasil178 e desenvolvida desde 2011 na Universidade. A ACC é uma
disciplina optativa, disponível a todos os estudantes da universidade
que queiram realizar alguma ação prática no âmbito comunitário,
utilizando para tal os conhecimentos explorados em sala de aula.
Em nível da investigação, a Pró-Reitoria é responsável pelo
Centro de Pesquisa e Estudos Sociais (CPES), que dentre outras
atribuições realiza o levantamento de organizações que atuam na
economia social e solidária, na tentativa de produção de
conhecimento com essas entidades. Não obstante, em ambas as
experiências de incubação, a área da investigação e sua relação com
a extensão e com a comunidade parece não ter alcançado o
amadurecimento esperado pelos atores responsáveis por essas
ações.
176
A Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias é uma universidade
privada, localizada em Lisboa, Portugal, e está organizada em diferentes
faculdades e escolas de ensino.
177
Para a caracterização da experiência de incubação da Universidade Lusófona
recorreu-se a entrevista semi-diretiva com o Professor responsável pela sua
implementação e desenvolvimento na Universidade. Agradece-se a colaboração do
responsável e o apoio na elaboração deste ensaio. Importa referir que esta
entrevista foi realizada em maio de 2014.
178
Esta metodologia foi desenvolvida com base na experimentação da metodologia da
ITES/UFBA (Incubadora Tecnológica de Economia Solidária da Universidade
Federal da Bahia), no âmbito de uma dissertação de mestrado. A ULHT recorreu a
um programa de extensão universitária cuja metodologia de incubação prioriza a
incubação de territórios em vez de organizações isoladas entre si.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 397

Quer a incubadora de Coimbra, quer a incubadora de


Lisboa, assumem como público o objetivo das organizações que
atuam na promoção da economia social e/ou da economia solidária.
Enquanto a ISFEUC assume-se como espaço de cooperação com o
setor da economia social, a Incubadora da Universidade Lusófona
incorpora também o conceito e as práticas da economia solidária,
tema este que tem vindo a trabalhar no bairro de Caxias – Lisboa.
Portanto, reconhece-se, nas entidades da economia social e solidária,
um papel fundamental de intermediação entre a universidade e a
população ao criarem as condições para acesso e articulação com a
comunidade local.

3.1 Experimentação

O surgimento das incubadoras e a sua estratégia de


inserção nas universidades diferem na medida em que, enquanto a
ISFEUC surge por iniciativa de estudantes, no âmbito de uma
disciplina, alargando sua existência para além desta, a incubadora da
Lusófona surge por iniciativa de um estudante de outra universidade,
que mais tarde é desafiado a desenvolver o objeto de pesquisa da
sua dissertação de mestrado na Universidade Lusófona na qualidade
de Professor, em parceria com o então Pró-reitor de Extensão. Assim,
ele passa a integrar a universidade enquanto professor responsável
pela disciplina de ACC.
Quando se analisam os fatores que suscitaram a motivação
para a criação das incubadoras, identificam-se ao menos quatro
problemas comuns aos dois casos: a escassez da formalização das
ações que distinguem a universidade como um agente de mudança
social no novo quadro da Universidade; o caráter individual e a falta
de reconhecimento institucional das práticas de envolvimento
comunitário; a pressão para a experimentação prática no percurso
acadêmico dos estudantes; e as fragilidades das organizações que
procuram na universidade um parceiro estratégico e das
universidades em responder às necessidades das organizações.
O percurso de implementação da Incubadora da
Universidade Lusófona incluiu uma fase inicial de definição dos
parâmetros de atuação e modelo de incubação, uma fase posterior de
aprovação desta experiência junto aos órgãos da Universidade,
nomeadamente o concelho de administração, e finalmente, a sua
apresentação aos diretores das diferentes faculdades como forma de
envolver outros cursos e ampliar seu escopo de incidência. Numa
398 Movimentos, Direitos e Instituições

fase seguinte, quatro organizações sociais e solidárias foram


envolvidas para testar as metodologias desenhadas.
Ao fim de dois anos, após avaliação desse percurso, a ACC
é oficialmente institucionalizada como disciplina optativa na
Universidade. Para esta oficialização, foram necessárias mudanças
na Universidade, nomeadamente a inserção da disciplina no curso de
sociologia e a sua aprovação junto ao concelho científico e
pedagógico. A ACC serviu, na fase de teste, como alavanca para a
criação da Incubadora, pois o seu desenvolvimento permitiu
identificar os atores, as metodologias e as condições fundamentais
para a sua implementação.
A ISFEUC, por sua vez, também vivenciou uma fase de
teste em seu percurso. Esta fase corresponde aos primeiros quatro
meses de experimentação da iniciativa em que um grupo de
estudantes de mestrado aplicou a uma associação privada sem fins
lucrativos um plano de negócios para organizações sociais. Esta
adaptação nasce da confluência de fenômenos internos e externos,
salientando-se no âmbito interno a integração dos saberes,
competências e interesses dos membros179, e no âmbito externo, a
adequação às necessidades provenientes da sociedade. O desafio
era construir um modelo de incubação, sustentado no ativismo dos
estudantes, orientado para o fortalecimento das organizações sociais
em Coimbra. Esta metodologia veio a ser implementada num
segundo projeto em que a ISFEUC se envolveu na operacionalização
de uma política pública (INOV-Social), no acompanhamento de
estágios numa organização da economia social.
Do ponto de vista metodológico as incubadoras diferem,
pois enquanto a Incubadora da Universidade Lusófona desenvolve as
suas ações em disciplinas específicas para esta finalidade, a ISFEUC
articula suas ações com disciplinas já existentes no currículo dos
cursos, nomeadamente em duas disciplinas dos cursos de Sociologia
e de Gestão. Gestão e Avaliação de Projetos de Intervenção Social
(apoio à metodologia de aprendizagem pela prática em quatro
edições) e Ética e Responsabilidade Social das Empresas
(viabilização da metodologia de aprendizagem pelo serviço em duas
edições).

179
A primeira fase de constituição da incubadora reunia estudantes de mestrado com
experiências profissionais em diversos tipos de organizações da economia social e
solidária, diferentes formações acadêmicas de base e diferentes nacionalidades.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 399

A Incubadora da Universidade Lusófona apoiou


organizações em Lisboa e região, nos dois primeiros anos de atuação
e desde 2013 vem desenvolvendo um trabalho contínuo com uma
organização social de Caxias (Lisboa, Portugal). A incubadora foi
concebida para a realização de atividades na área da formação em
economia solidária, associativismo e territorialidade, embora algumas
dessas etapas estejam em fase de teste e desenvolvimento.
A incubadora de Lisboa também está organizada para a
realização de diagnóstico participativo na comunidade onde se
pretende atuar com o intuito de identificar as potencialidades e
necessidades, sobretudo na ótica da economia solidária, produção e
consumo local. Desenvolvem-se ações de prestação de serviços de
consultoria permanente por parte dos estudantes e docentes que
compõe as equipes técnicas. Na prática, segundo afirma o
responsável pela iniciativa, as organizações sinalizam as
necessidades e a incubadora busca os recursos – conhecimentos –
necessários para aplicar e contribuir no território.
Nos dois casos desenvolve-se um processo de incubação
que se classifica como curta duração, em que os estudantes
vivenciam e colocam seus conhecimentos ao serviço das
organizações, no âmbito de uma disciplina específica, o que
corresponde ao período de seis meses. A ISFEUC aplicou
metodologias de trabalho como o modelo de Planos de Negócios
Sociais (PNS), adequando mecanismos de gestão concebidos para
empresas e facilitando a relação entre os estudantes e professores
no contexto de práticas pedagógicas de aprendizagem pelo serviço,
permitindo: mobilização e fortalecimento das capacidades das
organizações sociais; aprofundamento e experimentação prática por
parte dos estudantes em contextos reais de aprendizagem; formação
dos estudantes no domínio das organizações da economia social e
da intervenção social.
Se por um lado a Incubadora da Universidade Lusófona
procura articular-se com as organizações para fortalecer diretamente
a comunidade, fomentando a economia solidária e a organização dos
grupos sociais no nível local, por outro a ISFEUC busca fortalecer as
organizações como estratégia de desenvolvimento das comunidades
e contributo indireto à população local.
400 Movimentos, Direitos e Instituições

3.2 Gestão e Participação

As incubadoras, tanto em Coimbra como em Lisboa, tendem


a adotar um modelo de gestão horizontal e simétrico, assegurando a
participação dos membros e o uso de formas democráticas de
tomada de decisão. Elas adotam um modelo de inspiração na
economia social e solidária ao incorporar no seu modelo formas
cogestionárias.
Contudo, a participação da comunidade é um dos desafios
que se coloca. As incubadoras pressupõe a importância de
envolvimento de membros das organizações e das comunidades na
gestão da incubadora, mas até o momento o seu funcionamento está
restrito aos atores acadêmicos. No tocante aos membros da
comunidade, estes acabam por assumir um papel menos ativo do que
as bases conceituais que as inspiram exigem.

3.3 Fatores de Sustentabilidade (Dimensão Financeira


e Institucional)

Ambas as incubadoras se sustentam com uma estrutura


interna frágil, com poucos membros efetivos e estudantes que se
vinculam à incubadora temporariamente. Isso se deve ao fato de as
ações estarem ligadas às disciplinas, o que condiciona a um período
temporal de participação. Mas também diz respeito às condições de
inserção das incubadoras nas Universidades que, em ambos os
casos, não se encontram atualmente formalizadas do ponto de vista
jurídico/institucional, tampouco possuem subsídios de apoio e
incentivos institucionais para a participação de um número maior de
recursos humanos.
As experiências de incubação por vezes não estão
ancoradas em políticas institucionais específicas, como o que
encontramos nos casos estudados. Em ambas as universidades não
existe uma política institucional de extensão orientada para a
economia social e solidária, e sim, a adaptação das condições
existentes para benefício inicial de iniciativas de incubação. A
constituição da Incubadora da Universidade Lusófona ocorreu por
meio da autorização e aprovação pelos órgãos de administração. Ela
faz parte da Pró-reitoria, por isso não está vinculada a nenhum curso,
centro ou faculdade em específico. Todavia, verifica-se um
investimento claro na criação de mecanismos de sustentação da
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 401

incubadora, nomeadamente a contratação de um docente para


desenvolver o processo de experimentação e implementação da
Atividade Curricular em Comunidade (ACC), bem como a criação
desta mesma unidade incorporada no currículo dos cursos da
Faculdade.
Já a ISFEUC surge como uma iniciativa híbrida que, muito
embora emerja pela ação estudantil, é mantida também pelo
envolvimento de professores. Porém, não está formalizada a sua
integração à estrutura da Faculdade, tampouco dispõe de recursos
humanos exclusivos e remunerados, dependendo, por isso, do
voluntariado dos estudantes e professores. A Faculdade tem apoiado
a incubadora em nível logístico, assumindo uma das suas docentes
um papel de mediação entre os membros da ISFEUC e os órgãos da
Faculdade.
Encontra-se também em desenvolvimento um processo de
pedido de reconhecimento no Suplemento ao Diploma para os
estudantes da UC, para base do qual também se constituirá um
Conselho Académico da ISFEUC que incorporará docentes da FEUC.
Este Conselho visa facilitar a articulação das atividades da ISFEUC
com as diferentes unidades curriculares, teses e estágios nos
diferentes níveis de ensino.
Perante a escassez de meios de financiamento, agravada
pela conjuntura atual de crise em todos os setores da sociedade, e a
despeito das recentes orientações ao nível Europeu para uma maior
articulação entre as Universidades e a sociedade 180, é inegável que a
inexistência de um orçamento próprio para a sustentação das
incubadoras sociais se liga também ao modelo de universidade
adotado. De fato, não existindo no atual modelo de estruturação da
universidade uma vinculação específica do seu pessoal docente aos
projetos de extensão para a economia social e solidária, como
acontece nas incubadoras brasileiras, a sustentação destas
estruturas depende da capacidade de angariar financiamento de
projetos por parte de entidades externas.

180
Por exemplo, os programas europeus de apoio à ciência e tecnologia têm vindo
crescentemente a valorizar o desenvolvimento de projetos que impliquem parcerias
entre universidades e centros de investigação, empresas e organizações do
terceiro sector ou da sociedade civil e os cidadãos e articulem a vertente da
investigação e a vertente da inovação tecnológica. Este é o caso do maior
programa atualmente em curso, Horizonte 2020 - EU Framework Programme for
Research and Innovation (http://ec.europa.eu/programmes/horizon2020/en/what-
horizon-2020).
402 Movimentos, Direitos e Instituições

Ainda assim, verifica-se uma diferença entre as duas


Incubadoras no que diz respeito à alocação de um docente a uma
unidade curricular, no caso da Universidade Lusófona, potenciando a
sustentação e desenvolvimento desta Incubadora. Por outro lado, no
caso da ISFEUC, a estratégia de articulação mais próxima com as
diferentes unidades curriculares transporta consigo o potencial de
gerar uma mudança profunda, porque é transversal às práticas
pedagógicas e científicas.
Em suma, a política adotada pela universidade, sobretudo
suas prioridades de ação, define os objetivos com que serão criadas
as incubadoras e condiciona o desenvolvimento delas.

3.4 Sistematização do Conhecimento

Para além da relação e contributos sociais da incubação é


fundamental entendê-la enquanto atividade pedagógica e de
pesquisa. O processo de pesquisa, que pode ser também
investigação-ação, pode estar presente nas incubadoras como
componente do trabalho realizado, ou ainda, na qualidade de objeto
de investigações externas e investigações da própria universidade.
(NUNES, 2009).
A associação da investigação é uma componente
fundamental para o alcance de uma gestão do conhecimento
produzido, sua transformação em TS e sua socialização com a
sociedade. Nos dois casos a sistematização do conhecimento é uma
atividade marginal, praticamente ausente ao longo do seu percurso
de desenvolvimento, o que enfraquece a potencialidade da
incubadora na promoção de tecnologia social no espaço acadêmico.
A única atividade identificada foi a adoção de mecanismos de
avaliação participativa envolvendo todos os atores de ambas as
incubadoras. A participação comunitária nos processos de produção
do conhecimento seria simultaneamente uma forma de aprendizagem
e um princípio do reconhecimento dos saberes não científicos.

3.5 Condições de Replicabilidade

As incubadoras sociais nascem inspiradas nos modelos


tradicionais de incubação tecnológica, portanto já testadas nos
diferentes contextos e disseminadas no Brasil. Em Portugal, as
incubadoras buscam nessas experiências a sua inspiração,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 403

adaptando estes modelos à realidade do país. Até o momento, as


únicas universidades que assumem a criação de uma incubadora são
a Universidade Lusófona (Lisboa) e a Universidade de Coimbra
(Coimbra)181. Embora as parcerias estabelecidas não estejam
formalizadas as incubadoras mantêm uma forte ligação entre si,
sobretudo como estratégia de partilha de aprendizagem e de
sensibilização institucional e pública para o tema, ainda em
consolidação no País.
As incubadoras no Brasil serviram de referência e são
mantidos contatos periódicos com professores e investigadores, com
os quais partilham materiais, recursos e informações. As incubadoras
ainda possuem uma relação estreita com diversas organizações da
economia social, grupos de estudos e outras universidades
interessadas no tema, além de já terem realizado articulações com
organismos estatais e entidades de financiamento e apoio. Fruto
desta articulação em Portugal, as incubadoras realizaram em 2013 o I
Encontro Internacional de Finanças Solidárias: incubação social e
solidária, na cidade de Lisboa.

CONCLUSÃO

As experiências de incubação social e solidária em Portugal


são simultaneamente tecnologias sociais e potenciais espaços de
promoção de dinâmicas sociotécnicas resultantes da relação e
interação de elementos heterogêneos. Essa interação, produzida nos
territórios onde atuam é o que permite ressignificar quer as
tecnologias, quer o campo do conhecimento científico e a sua
aplicação prática.
Não obstante, as incubadoras situam-se num contexto
marcado por inúmeros desafios no que corresponde à sua afirmação
e sustentação nas Universidades. O primeiro deles está na criação de
formas de institucionalização dessas iniciativas de modo a criar as
condições de sustentação a longo prazo. Segundo, na criação de
formas de financiamento que permitam compor um quadro mínimo de
recursos humanos e desenvolvimento de atividades. O terceiro

181
Outras universidades incorporam a questão do social na agenda das suas
incubadoras tecnológicas, como é o caso da Social Spin inserida na estrutura da
Spin Logic da Universidade do Porto, criada para apoiar e assessorar empresas
sociais. (SOCIAL SPIN, 2014).
404 Movimentos, Direitos e Instituições

desafio está numa maior aproximação com a investigação


acadêmica, tendo em conta o que se faz nesta área.
O quarto desafio está no desenvolvimento de formas de
participação efetiva e plena da comunidade num contexto marcado
por uma forte perspetiva de transferência e não de coconstrução
de saberes. O processo de organização do conhecimento – quando
acontece – não introduz efetivamente processos de coconstrução,
que reflete a ausência de um trabalho científico mais sistematizado,
por isso a necessidade de aproximação destas experiências com o
universo da investigação e a participação da comunidade nos
processos de produção e exteriorização dos conhecimentos. Por fim,
outro desafio latente é a interação transversal da incubadora com as
diversas áreas do conhecimento científico, ou seja, a potencialização
para uma cultura de tecnologia social nas universidades depende de
uma interação mais organizada com outras áreas nas ciências
exatas, naturais e sociais.
Numa temática mais vasta, o que se pretende é encontrar
uma reorientação da relação universidade-sociedade, e as
incubadoras, inspiradas nos avanços ocorridos em outros
continentes, são espaços concretos para tal. Essa reorientação
implica a democratização das ciências e a promoção de uma ecologia
de saberes (SANTOS, 2007) e reivindica uma nova forma de se fazer
e pensar a relação sociedade-universidade. Uma mudança no nível
institucional seria capaz de potencializar iniciativas de incubação
social e solidária em Portugal, o que exige uma renovação do modelo
de extensão consolidado. Por outro lado, pela interpelação que fazem
às três missões (ensino, pesquisa e extensão) das Universidades,
estas incubadoras possuem um potencial de mudança institucional de
forma sistêmica.

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CAPÍTULO 17

A CADUCIDADE DO DIREITO DE AGIR NAS


AÇÕES DE RECONHECIMENTO JUDICIAL DA
MATERNIDADE E/OU PATERNIDADE NO
DIREITO PORTUGUÊS

Elisete Sileny Jacinto de Almeida182

RESUMO
É comum ouvir-se falar que houve uma extinção subjetiva ou objetiva
do direito que nasceu de uma relação jurídica, ou seja, o direito não
mais existirá na esfera jurídica da pessoa titular do direito. Ora, as
formas de extinção mais recorrentes são: a prescrição e a
caducidade. Estas figuras não geram nenhum tipo de dúvida quando
emergem de um fato jurídico de origem voluntária; também, em regra,
não surgem grandes dificuldades quando emergem de um fato
jurídico natural. No entanto, poderão trazer algumas incertezas
quando o sujeito titular do direito esteja protegido por um direito
personalíssimo. Um destes direitos personalíssimos prende-se com o
direito do sujeito de investigar e ver reconhecida judicialmente a sua
paternidade e/ou maternidade. Em muitos países a questão já é
matéria pacificada, ditando a imprescritibilidade do direito de agir,

182
Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
(FDUC). Mestre em Ciências Jurídico-Históricas pela FDUC. Especialista em
Direito Internacional Público e Direito do Ambiente pela FDUC. Licenciada em
Direito pela FDUC. E-mail: <elisete.lcdealmeida@gmail.com> e <elisete.jacinto@
bol.com.br>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 409

inclusive post-mortem, do investigado, como é o caso do Brasil; mas


noutros, como a França e Portugal, sob diversas alegações, subsiste
a questão da caducidade do direito de agir. O objetivo neste trabalho
é demonstrar o regime jurídico do reconhecimento judicial da
paternidade e/ou maternidade em Portugal, e os motivos que o levam
a manter um prazo caducário para o direito de agir do filho, bem
como os esforços que têm sido feitos ao longo do tempo para alterar
este posicionamento, com a sua devida fundamentação.
Palavras-chave: caducidade; direitos fundamentais;
imprescritibilidade; relação paterno-filial.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. ESTABELECIMENTO VOLUNTÁRIO DA
MATERNIDADE E DA PATERNIDADE; 2. O ESTABELECIMENTO
JUDICIAL DA MATERNIDADE E DA PATERNIDADE EM
PORTUGAL; 3. BREVES ANTECEDENTES HISTÓRICOS; 4.
FUNDAMENTOS ADOTADOS PARA A PREVALÊNCIA DE UM
PRAZO CADUCÁRIO DO DIREITO DE AGIR DO FILHO; 5.
ACÓRDÃO 23/2006, DE 8 DE FEVEREIRO, DO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL (TC); 6. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO
FILHO INVESTIGANTE; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

No desenrolar do trabalho doutoral desta autora, que versa


sobre filhos de criação e o direito ao reconhecimento judicial da
paternidade e/ou maternidade socioafetiva, deparo-se com o tema do
prazo de caducidade que o filho tem em Portugal para poder agir
judicialmente, no intuito de ver reconhecida a sua historicidade
através da sua origem.
A caducidade de ação em Direito Civil, como dito, não traz
grandes dificuldades, sendo desejável que certos direitos não se
prolonguem eternamente; porém, de todo, torna-se interessante
quando se fala num direito personalíssimo, como o que está em
causa.
Ora, o estabelecimento judicial, previsto em Lei, impõe um
limite, como regra geral do direito de agir, de dez anos após o
investigante completar a maioridade ou ser emancipada, altura em
que a capacidade de agir da pessoa se aperfeiçoa, pois, antes desta
410 Movimentos, Direitos e Instituições

idade a pessoa não pode agir em nome próprio, devendo estar


assistida ou representada, conforme o caso, nos atos da vida civil.
A questão central que se põe é a ponderação da validade
de uma limitação temporal na propositura das ações de investigação
da paternidade e/ou maternidade, uma vez que há direitos
fundamentais personalíssimos, ou seja, estão em causa direitos
absolutos pessoais, e irrenunciáveis a revestir a matéria.
Utilizando o método descritivo, dedicar-se-á inicialmente às
formas de estabelecimento voluntário da maternidade e da
paternidade, que são os meios mais recorrentes de estabelecimento,
ou seja, é a regra. Deste modo estar-se-á em condições de adentrar-
se na matéria sobre as formas de estabelecimento judicial, ou seja, a
averiguação oficiosa e a investigação por parte do filho, que, apesar
de bastante utilizadas, se poderá afirmar, são exceções.
Como é natural num trabalho académico na área do Direito,
principalmente quando se fala sobre Direito Civil, abordar-se-á, de
forma expositiva e evolutiva, a historicidade mais recente sobre o
tema, pois as raízes históricas possibilitam a demonstração das
alterações socioculturais sofridas no tempo por uma determinada
comunidade, que levaram às opções doutrinárias, legislativas e
jurisprudenciais atuais.
Ultrapassada esta fase, em que será demonstrado o direito
existente e a sua história, passar-se-á à análise argumentativa
doutrinária para a manutenção de um prazo limitativo do direito de
agir na busca pelo estabelecimento judicial da paternidade e/ou
maternidade em Portugal, antes e depois da Lei n. 14/2009, de 01 de
abril.
Por fim, como não poderia deixar de ser numa análise em
que envolve direitos personalíssimos, apontar-se-ão os direitos
fundamentais do filho que estejam em causa, que, como antes ficou
dito, são absolutos, pessoais e irrenunciáveis, são indisponíveis,
indivisíveis, ou seja, não pode a pessoa, nem terceiro que o tenha em
sua guarda, negociá-los de forma a dar, vender ou fragmentar.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 411

1. ESTABELECIMENTO VOLUNTÁRIO DA
MATERNIDADE E DA PATERNIDADE

O nascimento é um fato natural que produz efeitos jurídicos


na esfera pessoal do recém-nato-vivo. Ao nascer com vida, a pessoa
passa a ser titular de direitos e deveres, e dentre estes direitos
aponta-se o direito de ver reconhecida judicialmente a sua história
pessoal, inclusive de quem é filho.
Assim, o legislador disponibilizou, de forma bastante
flexível, as formas para o estabelecimento voluntário da maternidade
e da paternidade. De acordo com o artigo (art.) 1803º Código Civil
(CC), qualquer pessoa pode declarar um nascimento, devendo,
sempre que possível, identificar a mãe do registrado. Desta forma,
caso a declaração seja feita antes de a criança completar um ano, a
maternidade fica estabelecida. Caso a declaração seja feita após a
criança completar um ano de idade, nos termos do art. 1805º CC,
pela pessoa que se diz mãe ou através de representante, ficará
estabelecida. Porém, se for um terceiro a fazer a declaração, a
pessoa indicada como mãe deverá ser notificada para a devida
confirmação, e, caso esta negue a maternidade ou não se consiga
notificá-la, a declaração ficará sem efeito. Para além desta
possibilidade, também é possível aceder ao estabelecimento através
de declaração prévia em escritura ou por termo lavrado em juízo ou
ainda em testamento. (OLIVEIRA, 1999, p. 24). Observe que somente
através do Assento de 22 de Junho de 1938 passou a admitir-se que
o filho impugnasse a sua paternidade, pois, até então, somente o pai
registral tinha legitimidade ativa para tanto. (OLIVEIRA, 2003, p. 64-
65) Por último, note-se que o estabelecimento voluntário da
maternidade pode ser impugnado a todo o tempo nos termos do art.
1807º CC.
Quanto à paternidade, no caso de a mãe ser casada, será
estabelecida por presunção. Assim, o pai da criança presume-se ser
o marido da mãe, mas esta será uma presunção iuris tantum. Ou
então, a filiação poderá ser estabelecida através da perfilhação, nos
termos dos arts. 1847º ss CC. A perfilhação pode ser feita, nos
termos do art. 1853º CC, “a) Por declaração prestada perante o
funcionário do registo civil; b) Por testamento; c) Por escritura pública;
d) Por termo lavrado em juízo”. Ambas as formas de estabelecimento
da paternidade – presunção e perfilhação – podem ser impugnadas
judicialmente, nos termos dos arts. 1838º ss e 1859º CC, tendo
412 Movimentos, Direitos e Instituições

sempre em atenção os prazos estabelecidos no art. 1842º CC.


(COELHO; OLIVEIRA, 2006, p. 79-84)183.

2. O ESTABELECIMENTO JUDICIAL DA
MATERNIDADE E DA PATERNIDADE EM PORTUGAL

Tal como se evita a existência de apátridas, também não é


desejável que existam pessoas com a filiação incógnita.
Sendo assim, e caso não se consiga preencher de forma
voluntária as linhas da maternidade e/ou da paternidade, o Código
Civil português confere ao sujeito a possibilidade de reconhecimento
da sua paternidade e/ou maternidade, através da averiguação
oficiosa, um dispositivo administrativo de tentativa de preenchimento
daquelas linhas, nos termos dos artigos 1808º ss e 1864º ss; e, de
acordo com os artigos 1814º e seguintes, por remissão do artigo
1873º, disponibiliza ao filho a possibilidade de utilizar-se da ação de
investigação judicial da maternidade e paternidade, a qual revestirá
um caráter especial, como uma última forma de preencher a linha da
maternidade que esteja em branco ou preenchida de forma irregular.
Ora, o processo de reconhecimento judicial da maternidade
deve ser intentado pelo filho184 durante a sua menoridade, através da
representação ou da assistência, ou até dez anos após atingir a
maioridade ou ser emancipado185, em ação especial para esse efeito,
na qual deverá provar que nasceu da pretensa mãe ou fazer a prova
presuntiva da posse de estado de filho, ou seja, a prova do nome,
trato e fama. No entanto, só é permitido o processo de
reconhecimento judicial à pessoa que não tenha a paternidade e/ou
maternidade estabelecida, ou, havendo, deverá ter sido estabelecida

183
Note-se que a paternidade presumida, nos termos do artigo 1842º/a, só poderá ser
impugnada no prazo de três anos após o marido da mãe tomar conhecimento que
a criança que presumidamente seria sua filha, de facto não é. Este é o
entendimento dos Tribunais portugueses, conforme se pode constatar numa
recente decisão da Relação de Coimbra, pelo Acórdão relativo ao processo
350/08.8TBCDN.C1, de 17 de Janeiro de 2012. Disponível em: <http://www.dgsi.
pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/8bc2c75da321e0ef8025798a0037
b6ab?OpenDocument>. Acesso em: 11 fev. 2014.
184
E se for o caso, ser prosseguida pelo cônjuge ou descendentes, nos termos do art.
1818º CC.
185
De acordo com a redação do Código Civil anterior à Lei n. 14/2009, de 01 de abril,
o prazo era de dois anos após a maioridade.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 413

de forma voluntária, uma vez que a ação de reconhecimento, nestes


casos, depende de uma prévia ação de impugnação; ou seja, este
processo é defeso aos casos em que já haja uma sentença judicial
transitada em julgado a declarar a paternidade e/ou a maternidade.
(CAPELO, 1996, p. 121-126).
Tal como ocorre com o reconhecimento judicial da
maternidade, os artigos 1869º e seguintes vêm tratar do direito de
investigação da paternidade. O artigo 1873º, em remissão ao artigo
1817º, reconhece ao filho o direito de agir até dez anos após a
maioridade ou sua emancipação.

3. BREVES ANTECEDENTES HISTÓRICOS


Tomando como ponto de partida o regime adotado pelo
Código Civil de 1867, apesar das limitações impostas para se propor
a ação quanto à paternidade ilegítima, este Código previa, no seu
artigo 133º, que “As acções de investigação de paternidade ou de
maternidade só podem ser intentadas em vida dos pretensos paes,
salvas as seguintes excepções […]”, ou seja, em regra, o filho
ilegítimo teria toda a vida dos pais para propor a ação de
investigação, o que pode ser considerado como tendencialmente
imprescritível.
Na senda do Código Civil de 1867, e logo a seguir à
implantação da República em Portugal, através do Decreto n. 2 de
1910, tinha-se, fazendo uso da conjugação dos artigos 35º, 36º e
37º186, dentre outros dispositivos, um regime, em princípio, bem mais

186
“Artigo 35º A acção de investigação de maternidade é sempre permitida”; “Artigo
36º A acção de investigação de paternidade ou maternidade só não é admitida em
juízo nos casos em que a perfilhação é defesa, ou enquanto não pode produzir
efeitos por virtude da inabilidade do pretenso pai ou mãe, tal como é definida no
artigo 23º, §1º. § único) Neste último caso a acção pode propor-se logo que se
verifique qualquer das circunstâncias previstas no artigo 32º “; e “Artigo 37º A
acção de investigação de paternidade ou maternidade só pode ser intentada em
vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, salvas as
seguintes excepções: 1º) Se os pais falecerem durante a menoridade ou demência
dos filhos, porque, neste caso, têm estes o direito de intentar acção, contanto que o
façam antes que expirem os primeiros quatro anos da sua emancipação ou
maioridade ou do restabelecimento da sua razão; 2º) Se o filho obtiver, depois do
prazo de um ano indicado neste artigo, um documento escrito e assinado pelos
pais, em que estes revelem a sua paternidade; porque, neste caso, pode propor
acção a todo o tempo em que haja alcançado o sobredito documento, se realmente
414 Movimentos, Direitos e Instituições

dilatado do que o atual, uma vez que o filho poderia propor a ação
durante toda a vida do pretenso pai ou da pretensa mãe, ou até um
ano após a morte deles, ou seja, a tendência à imprescritibilidade
permanece.
Não se pode deixar de referir neste espaço a alteração da
perspetiva legislativa que passou a possibilitar, no âmbito da família,
uma busca maior pelos laços biológicos em Portugal. (OLIVEIRA,
2003, p. 64-67). Neste contexto, ainda na constância do CC/1867, a
legitimidade ativa por parte do filho nas ações de impugnação da
paternidade já trazia discordâncias entre os Tribunais da época,
ficando a matéria pacificada pelo Assento de 22 de Junho de 1938, o
qual concedeu que a referida faculdade da legitimidade ativa nas
ações de impugnação pudesse partir do filho; por outro lado, esta
medida veio reconhecer ao filho um papel mais ativo na vida familiar.
(OLIVEIRA, 2003, p. 64-65).
Com a legislação civil sessentista do século passado,
abriram-se novas causas de impugnação da paternidade de filho
nascido na constância do matrimónio. Assim sendo, o modelo em que
o pai é presumidamente o marido da mãe persiste, mas procura-se
determinar com maior exatidão quem é o verdadeiro pai da criança,
ou seja, quem é o pai biológico. Para tanto, nos termos das alíneas c)
e d) do art. 1817º do Código Civil de 1966, o fato de o marido da mãe,
no período gestacional “c) Ter estado separado de facto da mulher
em todo aquele período e ter esta mantido no decurso do mesmo
período convivência marital com outro homem, estabelecida por
comunhão duradoura de leito, mesa e habitação, em condições
análogas às dos cônjuges, fora do domicílio conjugal”, abre a
possibilidade de impugnar a falsa paternidade estabelecida
presuntivamente, bastando fazer provas do mesmo; e quanto à alínea
“d) ter a mulher cometido adultério dentro do período da concepção e
ocultado do marido a gravidez e o nascimento do filho, desde que o
marido prove, por qualquer outra circunstância, que o filho não foi
procriado por ele”, mas observe-se que a “prova”, na época a que
está-se a remeter, não era tão facilitada quanto hoje, e que nessa
época ainda se fazia a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos,
portanto, ter um filho adulterino seria uma mácula social moralmente
reprovável, e, mesmo se ocorresse, tentariam evitar a todo o custo
que fosse revelada. (OLIVEIRA, 2003, p. 66-68).

provar que obteve dentro dos seis meses que precederam a proposição da
demanda; isto sem prejuízo das regras gerais acerca da prescrição dos bens.”
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 415

Já no projeto do Código Civil de 1966, pode-se apreciar no


art. 1854º/1, como regra geral, que “A acção de investigação de
maternidade ou paternidade só pode ser proposta durante a
menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à
sua emancipação ou maioridade”; no entanto, o artigo 1857º prevê que
“A acção de investigação de maternidade ilegítima é sempre admitida”,
e no tocante à investigação da paternidade ilegítima, dispõe o artigo
1859º que: “A acção de investigação de paternidade só pode ser
proposta se a maternidade já estiver legalmente reconhecida ou for
pedido conjuntamente o reconhecimento de uma e outra”. (PROJECTO
187
DE CÓDIGO CIVIL, 1966, p. 556-557) . Esta redação, inclusive a
numeração, foi introduzida na versão definitiva do Código Civil de 1966,
mas não sem o desagrado de Vaz Serra, que compreendia que a ação
de investigação da maternidade deveria ser imprescritível. (SERRA,
[19??], s. n., mimeo). Ora, isto significa que passa-se de um regime de
quase imprescritibilidade para um regime restritivo de direitos dos
filhos. O prefácio do Projecto de Código Civil traz alguns indícios sobre
o espírito do legislador para tal reforma, tal como “sem cair em
excessos perturbadores do bom nome e tranquilidade das pessoas,
procura habilmente determinar a identificação dos pais”. (PROJECTO
DE CÓDIGO CIVIL, 1966, p. XLVIII).
O advento da Constituição de 1976 surtiu reflexos profundos
na legislação civil da época, tendo esta vindo a alterar-se através do
Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de novembro, inclusive renumerando o
CC. Com a nova redação trazida pelos artigos 1817º e 1873º do
Código Civil, o direito de ação do filho continuou limitado ao prazo de
dois anos após atingir a maioridade ou ser emancipado 188. Porém,
além de se alcançar a igualdade entre os filhos legítimos e ilegítimos,
separaram-se os regimes da maternidade e da paternidade e

187
Um exemplo sobre a possibilidade de se recorrer à ação de reconhecimento de
maternidade ilegítima encontra-se no art. 1810º/3, do CC/1966: “necessitando,
porém, o filho de investigar a maternidade como pressuposto da sua filiação
legítima, é aplicável ao caso o disposto sobre o reconhecimento judicial dos filhos
ilegítimos”. Ora, é sempre interessante referenciar a legislação daquela época, em
que “presume-se legítimo o filho nascido ou concebido na constância do
matrimónio da mãe, salvo o disposto nos artigos 1803.º e 1804.º”, nos termos do
art. 1801º/1, do CC/1966; quanto aos filhos ilegítimos, dispõe ao art. 1824º, do
CC/1966, que “São ilegítimos todos os filhos não considerados legítimos nos
termos dos artigos 1801.º e seguintes”.
188
Art. 1817º “1. A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a
menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade
ou emancipação”; e art. 1873º “É aplicável à acção de investigação de paternidade,
com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 1817º a 1819º e 1821º.”
416 Movimentos, Direitos e Instituições

ampliou-se o regime especial para a propositura da ação constante


do inciso 3 e seguintes.
Na versão original do Código Civil de 1966, já se previa, nos
termos do art. 1803º, a possibilidade de declaração, no registo de
nascimento do filho, de um pai diverso do marido, nos casos em que
o nascimento se desse dentro dos primeiros 180 dias posteriores à
celebração do casamento. Já com ares de nova disposição e sob
influência do Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de novembro, o Código
Civil inova ao permitir, através do art. 1832º “1. A mulher casada pode
fazer a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não
é do marido”. Mas a disposição que mais claramente aponta para o
biologismo prende-se com o art. 1796º CC, que relaciona diretamente
a mãe ao fato do nascimento, logo, a mãe será quem deu o parto.
Parafraseando Guilherme de Oliveira:
O n. 1, que respeita ao estabelecimento da maternidade, tem uma
intenção determinada: vincar a total sujeição da lei ao facto biológico da
maternidade, que é reconhecido pura e simplesmente, e retirar à mãe
qualquer possibilidade de impedir a constituição do estado. (1999, p. 7).

Para concluir, é de salientar a possibilidade, em matéria de


adoção plena, do adotado conhecer as suas origens biológicas, uma
vez que “vigora, entre nós, um sistema de autorização judicial
condicionada” (SÁ; SOTTOMAYOR, 2008, p. 156), ou seja, quando
há motivos ponderosos, o indivíduo pode ter acesso ao seu registro
de nascimento. É certo que a OTM (Organização Tutelar de Menores)
prevê no seu art. 173º-B que “o processo de adopção e os
respectivos procedimentos preliminares, incluindo os de natureza
administrativa, têm carácter secreto” (REIS, 2008, p. 289), e isto não
é descurado, mesmo porque, numa adoção, existem vários interesses
em causa. Porém, por outro lado, o filho tem direito à identidade
pessoal, e, portanto, evita-se que o indivíduo conheça os seus pais
biológicos, sem, no entanto se proibir.
Desta forma, com estas disposições e muitas outras que
aqui não foram mencionadas, pode-se dizer que o legislador
português avançou historicamente optando pela busca da verdade
biológica quanto à paternidade e à maternidade, na tentativa de fazer
coincidir a filiação biológica com a filiação jurídica. Mas fica uma
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 417

questão para outra ocasião: ser (pro)genitor(a) corresponde sempre à


realidade de ser pai e mãe?189

4. FUNDAMENTOS ADOTADOS PARA A


PREVALÊNCIA DE UM PRAZO CADUCÁRIO DO
DIREITO DE AGIR DO FILHO
A ideia da caducidade do direito de agir do filho investigante
fundamenta-se praticamente em três linhas: antes de mais, “o
interesse da progenitora em não ver indefinida ou excessivamente
protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade”. Em
segundo, não ter o pretenso progenitor que “contestar a respectiva
acção quando a prova se haja tornado mais aleatória”. Em seguida e
intrinsecamente ligada a ideia anterior, tem-se “um interesse da
mesma ordem por parte dos herdeiros do investigado”, que
provavelmente terão maior dificuldade relativamente à prova;
acompanhando Pires de Lima e Antunes Varela: “por um lado, a
dificuldade e os riscos da prova relativa à matéria da filiação em
acções muito diferidas; por outro, a situação de incerteza e de
ameaça mantida por demasiado tempo sobre o pretenso progenitor e
seus familiares” (LIMA; VARELA, 2011, p. 83; e Projecto de Código
Civil, 1966, p. XLVIII). Por último, “o interesse, sendo o caso, da paz e
harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai”, conforme
indicado pelo Acórdão n. 23/2006 do Tribunal Constitucional (TC),
publicado do diário da República – I Série-A, n. 28, de 8 de fevereiro
de 2006, p. 1032.
Além disso, não se pode deixar de ter em atenção as
justificativas para uma limitação temporal apontadas por Pires de
Lima e Antunes Varela, que foram utilizadas por Gomes da Silva
durante o debate do anteprojecto do CC/1966, e que acabaram por
servir de esteio à posição adotada, tal como, o grave inconveniente
de “converte-se mais num instrumento de caça à herança paterna do
que num meio jurídico de revelação oportuna dos vínculos de
filiação”, mas também teve o intuito de dar utilidade prática a este
possível reconhecimento, pois restringe-se ao “período da vida do

189
Na deixa de Eduardo Sá “Progenitores não são, só por isso, pais […]. Pais
verdadeiros são pais com verdade interior e relacional. Que sabem que uma
família, como Metzer diz, serve para gerar o amor, promover a esperança, conter a
tristeza, e pensar”. (SÁ; SOTTOMAYOR, 2008, p. 246). A questão fica em aberto
para uma futura oportunidade.
418 Movimentos, Direitos e Instituições

filho em que o poder paternal é mais necessário e pode ser mais útil”,
ou seja, a menoridade e até dois anos após a maioridade, sendo
assim, até os 20 anos de idade do investigante. (LIMA; VARELA,
2011, p. 82)190.
É de se referir que a tese da caducidade do direito de agir
do filho não corresponde a uma tendência isolada de Portugal, um
dos exemplos prende-se com a Suíça, que limita o prazo a um ano
após o pretenso investigante completar a maioridade; no entanto,
este direito estabelece uma cláusula geral de salvaguarda, para os
casos em que haja motivos justificáveis para que o atraso seja
desculpável. Na mesma linha, porém mais limitativa, segue a França,
que concede o prazo de dois anos após o nascimento, ou, tal como
Portugal, até dois anos após o investigante atingir a maioridade;
porém, este direito também aceita exceções, ou seja, se o
investigante foi concebido durante a união estável dos pais, “ou se
houve participação do pretenso pai na educação da criança”. (LIMA;
VARELA, 2011, p. 83).
É de se ter em atenção que, mesmo antes do Acórdão
23/2006, de 8 de Fevereiro, esta matéria já não era pacífica, gerando
conflitos de entendimento. Aponta-se, pelo interesse, a
recomendação proferida em sede de consulta ao Provedor de Justiça
no ano de 1999, à época, José Menéres Pimentel, que emitiu a sua
Recomendação nos seguintes termos:

RECOMENDO a alteração da legislação no sentido de,


1. a par da existência de prazo para propositura de acções com fins
patrimoniais, ser consagrada a imprescritibilidade para a propositura
das acções de investigação de paternidade/ maternidade, desde que
os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal;
2. ser modificado o n. 4 do art.º 1817.º, de maneira a nunca excluir a
possibilidade de investigação de paternidade/ maternidade com
fundamento na posse de estado enquanto for vivo o pretenso
progenitor. (PORTUGAL, 2012b, on line).

5. ACÓRDÃO 23/2006, DE 8 DE FEVEREIRO, DO


TRIBUNAL CONSTITUCIONAL(TC)

Com o Acórdão 23/2006, declara-se:

190
Os autores referem-se às alterações impostas pelo Código Civil de 1966, tendo
sido continuadas com a alteração legislativa de 1977.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 419

a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma


constante no n. 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do
artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a
caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois
anos a partir da maioridade do investigante, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 16º, n. 1, 36º, n.1, e 18º, n. 2, da
Constituição da República Portuguesa. (PORTUGAL, 2012a, on line).

Foram utilizados diversos argumentos para sustentar a ideia


de que o prazo de dois anos não era suficiente para satisfazer os
direitos do filho investigante, e dentre eles, destaca-se a atual
possibilidade de se recorrer a testes de Ácido Desoxirribonucleico
(ADN), o que vem afastar o argumento da fragilidade da prova. A
alegação de “caça à herança” também é esbatida, uma vez que com
a ascensão da igualdade abriu-se a oportunidade de melhor formação
e emprego e, portanto, pode-se dizer que “muitas acções que
poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorrer hoje,
provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna não muito
diversos”, conforme o Acórdão n. 23/2006 do TC. (PORTUGAL,
2012a, p. 1032). Também, e na mesma senda, a alegação de um
interesse patrimonial não pode afastar um direito personalíssimo. A
mesma resposta se dá quando se alega interesse na tranquilidade.
Quanto à utilidade do prazo, facilmente se refuta, uma vez que o
dever dos pais para com os filhos não cessa com a maioridade, aliás,
digo que a reciprocidade da relação paterno-filial não cessa com a
maioridade do filho. Quanto à “paz e harmonia da família conjugal
constituída pelo pretenso pai”, antes de mais, esta alegação traz uma
desigualdade de tratamento entre o pretenso pai que seja solteiro e o
pretenso pai que seja casado, trazendo novamente à ribalta a
discriminação dos filhos ilegítimos, o que não é aceitável nos tempos
atuais. (PORTUGAL, 2012a, p. 1033).
Após a publicação do Acórdão 23/2006, várias vezes, nos
diversos Tribunais portugueses, tentou-se fazer uma leitura extensiva
daquele Acórdão, entendendo que o direito de investigar era
imprescritível191, até que a publicação da Lei n. 14/2009, de 01 de
Abril, veio dirimir a questão ao dilatar o período de caducidade do
direito de agir do investigante de dois anos para dez anos.
Desde a publicação desta Lei, todas as vezes que a
questão do prazo de caducidade do direito de agir do filho chega aos
191
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), processo n.
08A474, de 17 de Abril de 2008; e Acórdão do TR de Coimbra, processo n.
1000/06.2TBCNT.C1, de 23 de Junho de 2009.
420 Movimentos, Direitos e Instituições

Tribunais, alega-se que o período temporal concedido naquela Lei é


um prazo proporcional para o investigante agir.192 Mas note-se a
observação trazida por Remédio Marques quanto à aplicação do atual
inciso n. 3 do artigo 1817º. O autor entende que:

é materialmente inconstitucional por violação do princípio da protecção


da confiança (artigo 2º da Constituição) […] violação do direito
fundamental à jurisdição (artigo 20.º, idem), do direito à identidade
pessoal (artigo 26.º/1, ibidem), e do direito de constituir família (artigo
36.º/1, ibidem) […] traduz uma aplicação retroactiva de uma norma
restritiva de direitos fundamentais, em flagrante violação do disposto no
artigo 18.º/3 da Constituição. (MARQUES, 2009, p. 197-235, grifos
nossos).

6. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO FILHO


INVESTIGANTE

Como já aqui foi referenciado, com o advento da


Constituição Portuguesa de 1976 houve um alargamento no âmbito
da proteção à família, o que não pôde deixar de se refletir no Direito
Civil em termos gerais, e na filiação de forma especial, através da
reforma trazida pelo Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de Novembro.
Assim, a Constituição, no seu artigo 26º, n. 1, prevê que “A
todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania,
ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da
intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra
quaisquer formas de discriminação”. Também no seu artigo 36º, n. 4,
vem determinar a proibição da discriminação dos filhos nascidos fora
do casamento; o n. 5 prevê que é da competência dos pais a
educação e manutenção dos seus filhos, sendo este considerado um
dever, mas também um direito; e o n. 6 dispõe sobre a

192
Tem-se como exemplo o Acórdão do Tribunal Constitucional (ACTC) n. 446/2011,
de 11 de Outubro, no qual se entende que “não se afigura desproporcional, não
violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao
estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelo (sic) direitos
fundamentais à identidade pessoal”. No mesmo sentido segue o ACTC n.
545/2011, de 16 de Novembro, onde se decide “não julgar inconstitucional a norma
do artigo 1817, n. 1, do Código Civil, na redacção da Lei n. 14/2009, de 1 de Abril,
na parte em que, aplicando-se ás acções de investigação de paternidade, por força
do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura
da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 421

inseparabilidade dos filhos em relação aos pais, excetuando os casos


em que haja desconsideração pelos direitos fundamentais daqueles e
somente através de decisão judicial.
Ora, apesar das alegações para a manutenção da extinção
do direito de agir do filho nas ações de investigação da maternidade
e/ou da paternidade, nenhum destes argumentos ilide o direito do
filho à persecução da sua identidade pessoal e da sua historicidade,
do desenvolvimento da sua personalidade, da busca pela igualdade,
enfim, do desenvolvimento da sua dignidade como pessoa humana.
Observe que a Constituição da República Portuguesa
(CRP), no seu art. 18º/1, dispõe que: “Os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”; e o n. 2 “A lei
só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos”. Ainda o artigo 70º do CC
traz uma tutela geral da personalidade, onde enumera, de forma não
exaustiva, os direitos a serem protegidos.
Sendo assim, a identidade pessoal é composta por
características que permitem distinguir um ser humano de todos os
outros, mas que concomitantemente permite integrá-lo num
determinado grupo, e assim, nas palavras de Maria José Capelo “A
inserção de um ser humano numa cadeia de relações intersubjectivas
revela-se fundamental para a construção da sua identidade pessoal”.
(1996, p. 11).
Pela exatidão, seguir-se-á no esteio de Capelo de Sousa:

A tutela juscivilística da identidade humana incide desde logo sobre a


configuração somático-psíquica de cada indivíduo, particularmente
sobre a sua imagem física, os seus gestos, a sua voz, a sua escrita e o
seu retrato moral. Mas recai também sobre os termos da inserção
sócio-ambiental de cada homem, maxime, sobre a sua imagem de
vida, a sua história pessoal, o seu decoro, a sua reputação ou bom
nome, o seu crédito, a sua identidade sexual, familiar, racial, linguística,
política, religiosa e cultural. Finalmente, no bem da identidade podem
englobar-se ainda os próprios sinais sociais de identificação humana,
quer principais, como o nome e o pseudónimo querem acessórios,
como a filiação reconhecida, o estado civil, a naturalidade e o domicílio,
que, embora sujeitos a regimes jurídicos específicos, integram, para
certos fins, o conteúdo do bem personalístico da identidade. (2011, p.
246-252).
422 Movimentos, Direitos e Instituições

Quanto à personalidade, pode-se dizer que esta é inerente


ao ser humano (PINTO, 2012, p. 98-99)193, fazendo parte dele a partir
do seu nascimento completo e com vida, e mesmo antes do seu
nascimento há uma esfera de direitos em que é protegida194, afinal, “a
minha-tua história inicia-se com o encontro de duas células. A partir
desse momento, começa a tua-minha história de ser vivo da espécie
humana (ser humano)”. Assim sendo, “à vida humana corresponde
uma pessoa humana, pois pessoa é, nuclearmente, uma vida. Cada
pessoa humana é uma pessoa jurídica, um titular de direito e
deveres, uma sede de valores”. (CAMPOS, 2004, p. 58 e 79). Assim,
com o nascimento surge o direito de personalidade, ou seja,
“personalidade jurídica humana [como] a projecção no Direito da
personalidade humana tout court, e o princípio de que cada pessoa
tem direito, na sua relação com qualquer outra pessoa, a ver
respeitada a sua vida, a sua saúde, a sua integridade física e a sua
dignidade pessoal” (BRONZE, 2002, p. 440), e consequentemente
torna-se necessário obter meios para que se assegure a sua
perfeição, o que se alcança através de garantias do seu
desenvolvimento pleno, merecendo, por isso, a atenção do Estado,
uma vez que, como dito, os seres humanos, ou melhor, as pessoas
não estão sós, antes, vive-se numa comunidade formada por outras
pessoas, e, neste contexto de “imagem de relação com o outro que,
bem simplesmente, criam obrigações”. (FERRY, 2008, p. 94, grifos
nossos).
De acordo com a sua definição jurídica, a personalidade
jurídica é a “aptidão, para ser titular de relações jurídicas”, ou a
“susceptibilidade de direitos e obrigações”; já no aspeto psicológico,
trata-se de uma “organização constituída por todas as características
cognitivas, afetivas, volitivas e físicas de um indivíduo”. (CAMARGO,
2009, p. 270). Mas este direito tem um núcleo de proteção que se
encontra na própria pessoa. Como diz Capelo de Sousa é

193
Observe-se que “os seres humanos não são necessariamente, do ponto de vista
lógico, pessoas em sentido jurídico”, bem como “as pessoas em sentido jurídico
não são necessariamente seres humanos”; no entanto, o Código Civil português,
em seu art. 66º/1, adotou que “Reconhece-se personalidade jurídica a todo o ser
humano a partir do nascimento completo e com vida”, ou seja, dotou todo o ser
humano com a personalidade jurídica, ou ainda, estipula que todo o ser humano é
pessoa em sentido jurídico.
194
Apesar da personalidade só se adquirir com o nascimento completo e com vida,
note-se que o nascituro faz parte de uma categoria especial com uma tutela geral
em que, apesar de estar dependente do nascimento completo e com vida, é-lhe
garantido alguns direitos, v.g., direitos patrimoniais.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 423

o bem da personalidade humana juscivilisticamente tutelado como o


real e o potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou
seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens
integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo,
sócio-ambientalmente integrados. (2011, p. 117).

Diante disso, deve o indivíduo perseguir a integridade da sua


personalidade; ou seja, sempre que veja o seu direito de personalidade
violado poderá buscar, através dos meios judicativos, a
responsabilidade civil do infrator, dentre outras providências, mas
também poderá proteger a sua personalidade física e moral, tendo à
sua disposição meios jurídicos oferecidos pelo Estado para defendê-la.
Dentre as características típicas do direito de personalidade vale
195 196
realçar a oponibilidade erga omnes , a intransmissibilidade , a
197
indisponibilidade (PINTO, 2012, p. 101), a perenidade e
198 199 200
imprescritibilidade , a extrapatrimonialidade e a inderrogabilidade
(SOUSA, 2011, p. 417-418).
Por sua vez, o direito à igualdade incide como uma espécie
de fiel da balança na personalidade físico-moral do sujeito, estando-
lhe intrinsecamente ligado. Por isso, apesar de já saber-se que “cada
homem é um ser em si mesmo e só igual a si mesmo” (SOUSA, 2011,
p. 244), a igualdade dança como uma bailarina nas pontas dos pés

195
É exigível face a qualquer pessoa.
196
Não pode ser transmitido de uma pessoa para outra.
197
Não se extinguem, não são disponíveis á favor de terceiros, e nem o seu titular
pode se obrigar em relação a terceiros quanto ao seu exercício, pois são bens, em
sua maioria, extra commercium, ou seja, é vedada a sua abdicação, apesar de ser
permitida a limitação voluntária que não seja contrária aos princípios de ordem
pública, Neste sentido, pode-se autorizar uma cirurgia onde se recorre à violação
da integridade física, no entanto, seria contra a ordem pública uma autorização
para a eutanásia, por exemplo.
198
São perpétuos, permanecem na esfera do seu titular durante toda a sua vida, mas
vai além, ao passo que mesmo antes de nascer ou após morrer, há uma esfera de
proteção, ou seja, tais poderes são eternos. Por outro lado, estão intrinsecamente
ligados à pessoa titular do direito, sendo o seu exercício efetuado através da ação
ou omissão, levando a que o direito sobre ele não se extinga pela falta de uso.
199
Não é passível de avaliação monetária.
200
Nas palavras de Capelo de Sousa, radica “os direitos de personalidade na pessoa
do respectivo titular, fundamentando-os ab intrinseco e desse modo lhes conferindo
uma certa inderrogabilidade perante a lei”, tais direitos só podem ser restringidos
“’nos casos expressamente previstos na Constituição’, ‘devendo as restrições
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente’, ‘revestir caráter geral e abstrato’, ‘não […] ter carácter
retroactivo e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais’”. (SOUSA, 2011, p. 417-418).
424 Movimentos, Direitos e Instituições

em meio à exclusividade de cada pessoa. Desta forma, quando se


garante a igualdade, tendo em atenção e respeitando a
individualidade de cada pessoa, a personalidade, num sentido estrito,
floresce, possibilitando uma melhor convivência do indivíduo em
sociedade, ou seja, num sentido lato, “a pessoa ser-social”
(CAMPOS, 2004, p. 15); aliás, “a comunidade é condição de
existência, condição empírica e condição ontológica da pessoa”.
(BRONZE, 2002, p. 454).
Todos estes direitos, ditos fundamentais – identidade,
personalidade e igualdade – emergem e desenvolvem-se devido à
dignidade humana, e, ao mesmo tempo, aqueles direitos integram
esta mesma dignidade. De acordo com o seu significado, dignidade
humana é o “valor particular que tem todo o homem como homem,
isto é, como ser racional e livre, como pessoa” (DICIONÁRIO DA
LÍNGUA PORTUGUESA, 1982, p. 476). O princípio da Dignidade
Humana, erigido no art. 1º da CRP, de acordo com Canotilho: “Trata-
se do princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna
da dignitas-hominis (Pico della Mirandola), ou seja, do indivíduo
conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio
projecto espiritual (plastes et fictor)”. (CANOTILHO, 2003, p. 225). Já
I. Kant lembrava: “que tem de reconhecer-se um valor intrínseco e,
portanto, incondicionado – uma dignidade - àquilo que [rectior: a
quem], não tendo preço, não admite, portanto, ser substituído por
algo equivalente”. (apud BRONZE, 2002, p. 449). E em Hegel: “[valer]
a pessoa por ser pessoa, não por ser judia, católica, [islâmica,]
protestante, italiana etc.” (apud BRONZE, 2002, p. 449).

CONCLUSÃO

Em Direito Civil, quando se fala em extinção do direito de


agir, pode-se dizer que, quase automaticamente, é feito um
redirecionamento aos direitos obrigacionais, onde é típico que a
expectativa de alcançar um objetivo perca a força conforme o sujeito
se vá afastando do objeto, levando a uma extinção objetiva de
direitos. Apesar disso, certo é que, embora a caducidade propicie
valores sociais como a certeza e a segurança jurídica, há outros
valores a serem tidos em consideração, como o valor da
personalidade. Quando se fala em relações paterno-filiais, em direito
de investigar e de ver reconhecida uma paternidade e/ou uma
maternidade, e ainda, uma filiação, está-se a falar de direitos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 425

personalíssimos, os quais não podem ser afastados com fundamento


num interesse patrimonial, nem tão pouco colocar a pessoa em
causa, numa situação de inferioridade em relação ao investigado. Isto
seria condenar o filho a ser uma vítima do eterno anonimato familiar.
Também, não se pode deixar cair no esquecimento que o núcleo de
pessoas determinantes para a humanização do ser e com quem se
estabelece os primeiros contatos na vida, reside na família.
Ora, Portugal, a exemplo de outros Países, optou por limitar
o direito de ação do filho investigante, utilizando como argumentos a
certeza, a segurança e a estabilidade jurídica.
No entanto, torna-se necessário ter em atenção que o
perído atual traz um momento histórico em que se pode afirmar que
os filhos, mais do que nunca, passaram a ocupar uma posição
privilegiada no seio da família, ou seja, socioculturalmente e
legislativamente, pode-se afirmar que a perspetiva infantocentrista201
da família vem se intensificando.

201
Note-se que desde a idade moderna a atenção vem se voltando, favoravelmente,
mais às crianças, indo ao encontro do seu desenvolvimento de forma mais
completa. Acompanhando o estudo iconográfico de Philippe Ariès, a casa de
família do início da época moderna albergava num mesmo espaço a família
conjugal ou nuclear, “uma clientela de servidores, amigos e protegidos”, todos
compartilhando o mesmo espaço, completamente isentos de privacidade. Porém,
este quadro com o tempo altera-se, aos poucos a família nuclear reclama um
espaço próprio, longe do olhar alheio. Nas palavras de Ariès: “postulava zonas de
intimidade física e moral que não existiam antes”, em que a vida social já não se
misturava com a vida privada. Ariès indica que “a criança […] deu à família do
século XVII sua principal característica, que a distinguiu das famílias medievais. A
criança tornou-se um elemento indispensável da vida quotidiana e os adultos
passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro”. Também, cabe
apontar que a desigualdade no tratamento entre os filhos de uma mesma família,
no fim do século XVIII, passou a ser mal vista pela sociedade, o princípio da
primogenitura já não era considerado justo. Ora este ânimo pela igualdade veio
alcançar plenitude jurídica com a sua introdução no Code Civil francês e,
consequentemente, em outras codificações civilísticas que o seguiram (ARIÈS,
1981, p. 179-188). Aos poucos a criança deixou de ser vista como mais um “braço
de trabalho”, para começar a ser tida como ser humano, merecedora de proteção
familiar, social e jurídica, enfim, surge como sujeito de direitos. A nível internacional
pode-se dizer que a criança vem assumindo um papel de relevo desde a
Declaração de Genebra de 1924, fruto do Conselho da União Internacional de
Proteção à Infância (Save the Children Internacional Union), até 1959 com a
Declaração Universal dos Direitos da Criança. Sobre os instrumentos internacionais
de proteção à criança, Vide ALBUQUERQUE, Catarina. Direitos da Criança.
Disponível em: <http://www.gddc.pt/actividade-editorial/pdfs-publicacoes/BDDC83
84/8384Dir_Crianca.pdf>, consultado em 26 de Fevereiro de 2014. O
infantocentrismo tem como principal reflexo jurídico inicial o “princípio do superior
426 Movimentos, Direitos e Instituições

Por outro lado, aponta-se a investida clara, que a legislação


portuguesa dos últimos anos tem feito, na busca pela verdade
biológica, afigurando-se como um contrassenso, limitar, em termos
caducários, a possibilidade do filho na busca desta verdade.
Tendo em vista o que ocorre em alguns países vizinhos,
pode-se observar que o regime adotado pela Alemanha e pela Itália,
por exemplo, permite a investigação da maternidade/paternidade sem
estar adstrito a um limite temporal (LIMA; VARELA, 2011, p. 82; e §
202
1600, n do Bürgerliches Gesetzbuch – BGB – Código Civil alemão .
Na mesma linha, tem-se o direito brasileiro que, através do artigo 27

interesse da criança” – “the best interessed of the children”, reconhecendo-se à


criança um valor intrínseco. No entanto, afasta-se das ideias centristas tradicionais,
rejeitando a ideia de “especismo humano”, ou seja, de um ser humano superior ou
melhor do que os outros, no caso em concreto, dentro do grupo familiar. Ora, pode-
se ver reflexos da conceção infantocentrista em normas e interpretações, a
exemplo do esforço do legislador em propiciar à criança uma convivência saudável
com ambos os progenitores e por isso emanando normas como a Lei n. 12.318, de
26 de agosto de 2010, que dispõe sobre a Alienação Parental no Brasil e o esforço
do operador do direito em beneficiar a criança com uma guarda conjunta ou
compartilhada, como se pode ver na recente Lei do Divórcio portuguesa - Lei n.
61/2008 de 31 de Outubro – em que o seu n. 7, do art. 1906º traz que “O tribunal
decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma
relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando
acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto
com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles”.
202
Note-se que na Alemanha, quando a paternidade não esteja estabelecida, nos
termos da conjugação das alíneas d) e e) do § 1600 do seu CC, é imprescritível o
direito de ação; no entanto, havendo paternidade estabelecida, nos termos da
alínea b) do mesmo dispositivo, a impugnação da paternidade registral só poderá
acontecer no prazo de dois anos a contar do momento em que se toma
conhecimento de que a paternidade registral não corresponde à verdadeira
paternidade. Vide Acórdão Tribunal Constituição n. 609/2007 (DR, 07.03.2008),
disponível em: <http://www.inverbis.pt/2007-2011/tribunais/impugnacao-paternida
de-maternidade-presumida.html>, consultado em 8 de Fevereiro de 2014. Por outro
lado, recentemente, em 2008, do dia 21 de Fevereiro, foi aprovada, pelo Bundestag
(Câmara Baixa do Parlamento), uma Lei que coloca em condições de igualdade
tanto os pais como os filhos em matéria de investigação paterno-filial, podendo a
investigação através dos testes genéticos ser realizada independente de haver
uma prévia ação de impugnação. Inclusive, permite que mesmo com um resultado
negativo de laços sanguíneos, opte por permanecer legalmente com os laços
anteriormente estabelecidos, favorecendo, desta forma, os laços sociais e afetivos
constituídos. Vide: <http://www.dw.de/bundestag-facilita-testes-de-paternidade/a-
3143610>. Acesso em: 8 fev. 2014. Quanto ao Direito Italiano, nos termos do art.
270º do Codice Civile: “L'azione per ottenere che sia dichiarata giudizialmente la
paternità o la maternità naturale è imprescrittibile riguardo al figlio.”, quanto à
impugnação de uma paternidade ou maternidade reconhecida, nos termos do art.
263 do Codice Civile, é possível quando esta não corresponda à verdade, podendo
ser intentada por qualquer interessado, sendo esta ação também imprescritível.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 427

do seu Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dita a


imprescritibilidade do direito do filho em requerer o reconhecimento
203
judicial da maternidade e/ou da paternidade .

203
Vide artigo 27 do ECA: “O reconhecimento do estado de filiação é direito
personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais
ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observando o segredo de Justiça.”; e
súmula 149 do Supremo Tribunal Federal (STF): “É imprescritível a ação de
investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. Utiliza-se aqui
um pequeno resumo feito por Paulo Lôbo para descrever a classificação do direito
de investigar do filho: “O direito a investigar a paternidade ou a maternidade é
indisponível. O filho não pode celebrar negócio jurídico com o pai ou a mãe,
sujeitos a investigação, de modo a abrir mão do reconhecimento da filiação, em
troca de vantagens económicas. O negócio é ilícito por ter objeto ilícito, não
produzindo qualquer efeito jurídico. É também imprescritível (art. 27 do ECA e
Sumula 149 do STF), podendo ser proposto a qualquer tempo” (2009, p. 242).
Note-se que a jurisprudência, apoiada pela doutrina, ampliou o âmbito do
reconhecimento da filiação, passando a admitir ações em que os pretensos pais
não sejam os pais biológicos, ou seja, nos casos em que os filhos sejam de
criação. Assim, é possível um filho de criação solicitar o reconhecimento judicial da
filiação socioafetiva, beneficiando da imprescritibilidade do direito de agir que
qualquer outro filho tem e, possibilitando por no polo passivo da petição inicial
aqueles com quem, por terem como pais, possuem o vínculo socioafetivo. A
legislação constitucional brasileira prevê a igualdade dos filhos nascidos dentro e
fora do casamento – art. 227, § 6º: “Os filhos, havidos ou não da relação do
casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. (BRASIL, 2014, on
line). Reproduzindo ipsis verbis o dispositivo constitucional, o Código Civil brasileiro
dispõe em seu artigo 1596 que “Os filhos, havidos ou não da relação de
casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Nicoletti Camillo, em
comentário ao supramencionado artigo, faz uma divisão, para fins apenas
didáticos, entre filiações matrimoniais e não-matrimoniais, isto porque o
reconhecimento judicial da filiação no Brasil tomou contornos que, se não for assim
dividido, torna-se difícil de ensiná-la. Desde logo, em muitos casos os Tribunais
Penais vêm perdoando a “adoção à brasileira” que é a adulteração intencional do
estado civil de uma pessoa, um crime punível de acordo com a lei penal, e os
Tribunais Civis, por sua vez, vêm reconhecendo a relação estabelecida neste tipo
de adoção. Nicoletti Camillo entende que “Por filiação, compreenda-se o vínculo ou
nexo familiar existente entre pais e filhos. Esse vínculo pode ser oriundo de uma
relação sexual, inseminação artificial (homóloga ou heteróloga), fertilização na
proveta, ou ainda, pela socioafetividade, aqui representada pela adoção, “adoção à
brasileira e inseminação heteróloga” (2009, p. 1901-1902). Porém, a perceção da
filiação como social e não sanguínea não é um entendimento recente no Brasil.
João Baptista Villela, em 1979, no artigo “Desbiologização da Paternidade”,
defendia uma relação paterno-filial baseada no amor “não será difícil identificar
uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço que com a
procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na
circunstância de amar e servir (2014, on line). Por fim, colaciona-se a numeração
de duas decisões brasileiras onde demonstra-se a possibilidade jurídica do pedido
de reconhecimento judicial da maternidade e paternidade sociofetiva, são elas:
428 Movimentos, Direitos e Instituições

Mas, mais do que isso, deve-se apontar tal restrição ao


direito de agir do filho, disposta no art. 1817º CC, como
inconstitucional, uma vez que afronta diretamente todas as
conquistas em matéria de filiação que se têm alcançado nos últimos
tempos. Ora, antes de mais, viola o disposto no art. 26º/1 CRP, que
consagra o direito à identidade pessoal, mas mais grave é a violação
ao art. 36º/4 CRP, ao pôr o filho nascido fora do casamento em
posição inferior ao filho nascido dentro do casamento. Para, além
disso, desrespeita o art. 18º/2,3 CRP, ao inobservar os
condicionalismos impostos pela Lei Maior quanto às restrições dos
direitos, liberdades e garantias.
Com longos passos caminha a humanidade. Porém, apesar
dos esforços em reverter o cenário histórico que se herdou, onde a
experiência negativa de discriminações daqueles que se julgavam
serem inferiores, através da sua eliminação física para a seleção da
raça, não se pode deixar de considerar as palavras de Orlando de
Carvalho em referência à personalidade humana:

Continua a haver não somente um défice de concreção e de


sensibilização dos operadores jurídicos e dos responsáveis pela
formação da opinião pública, mas uma utilização tão ditirâmbica e
autossuficiente dessa ideia nas épocas em que por qualquer motivo o
seu uso se torna inevitável (referendos, discussões de leis, etc.) que
dela parecem todos tão seguros que qualquer opinião divergente
ganha foros de uma autêntica heresia. Os próprios manuais
universitários, apesar de defenderem que o homem é mais que sujeito
de direitos, o sujeito do Direito, não tiram daí as lógicas consequências.
(2012, p. 253-254).

Evidentemente, está-se diante de um direito personalíssimo


do filho em ver reconhecida a sua paternidade e/ou maternidade, e
um filho não deixa de ter esta qualidade somente pelo fato de haver
um prazo extintivo do direito de agir a impedi-lo de buscar o seu
reconhecimento como tal. Por isso, deve-se fazer uso da razão –
“medida de toda ordem social” (CARVALHO, 2012, p. 255) – e parar
de proteger a irresponsabilidade de quem deu causa a existência
daquele filho, conferindo-lhe o privilégio de ver afastada a sua
paternidade e/ou maternidade, através de um prazo extintivo do

APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0518.10.006332-1/001, para o caso de pedido de


reconhecimento da maternidade e paternidade socioafetiva post-mortem; e
APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.07.803827-0/001, tendo a primeira apelação corrido
no Tribunal Judicial de Poços de Caldas, em Minas Gerais, e a segunda no
Tribunal Judicial de Belo Horizonte, em Minas Gerais.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 429

direito de agir do filho, como se este fosse o culpado e tivesse que


suportar sozinho todo o ónus do seu existir.
Não se pode terminar este artigo sem antes apontar uma
distinção de interesses que, no entender da autora, deve revestir
qualquer pedido de reconhecimento judicial de paternidade e/ou
maternidade. Trata-se da distinção entre o direito ao conhecimento
das origens genéticas e o direito ao reconhecimento da paternidade e
da maternidade. Se por um lado tem-se o direito de se saber de onde
provém uma determinada pessoa, por outro, tem-se o dever de
respeitar aqueles que têm aquela pessoa durante uma vida toda aos
seus cuidados. Ora, uma questão não deve inviabilizar a outra. Eis
aqui uma situação hipotética que pode levar uma pessoa a protelar
um pedido de reconhecimento da sua paternidade e ou maternidade
para além dos dez anos previstos em Lei, tal como um filho, mesmo
sabendo que o seu pai registal não corresponde à pessoa do seu pai
biológico (por questões éticas, de respeito por aquela pessoa que o
reconheceu e criou como a um filho, e por afeto) não havendo um
prazo extintivo do direito de agir, pode optar por esperar que o seu
pai legal deixe de estar fisicamente entre nós, para depois intentar a
ação (tendo em atenção que, neste caso, o direito à impugnação
deve acompanhar tal imprescritibilidade).
Por último, aponta-se como principal motivador de qualquer
pedido judicial no âmbito do direito da filiação – o afeto. É o afeto o
principal nutriente das relações paterno-filiais, e de forma alguma
deve ser o interesse patrimonial a mover o sistema. No entanto, o
direito patrimonial é matéria vinculada ao direito da maternidade e
paternidade, ou seja, “a investigação da paternidade não se destina a
tutelar apenas um interesse “moral” do investigado, mas também um
seu interesse “patrimonial”, conforme o Acórdão 99/88 do Tribunal
Constitucional, que é natural e justo, apesar de entender-se que o
direito patrimonial sempre deverá ser analisado à luz do caso em
concreto.

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Faculdade de Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. [Nota dos
Revisores: apesar de ser separata do BFD, compõe um livro autônomo, pois
trata-se da Dissertação de Mestrado da Doutora Maria José Capelo, um
verdadeiro livro, com aproximadamente 200 páginas, portanto não há
paginação de destaque como separata].
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CAPÍTULO 18

REFLEXÕES SOBRE A ATIVIDADE MUSICAL


EM PORTUGAL: O ENQUADRAMENTO
PROFISSIONAL, A GESTÃO DA
PROPRIEDADE INTELECTUAL E O MERCADO
DE TRABALHO

204
Fábio Luiz Tezini Crocco

RESUMO

Este artigo propõe reflexões sobre determinadas condições e


contradições da profissão musical em Portugal. A arte e sua
execução são frutos de uma atividade estética determinada, com
capacidade de satisfazer necessidades específicas, mas sua
atividade e seu mercado de trabalho são permeados por dúvidas e
idealizações. Com a finalidade de compreender elementos
importantes das relações laborais que os músicos enfrentam para
produzir sua arte e viver de sua atividade este ensaio sustenta-se na
exposição e análise de questões referentes ao enquadramento legal

204
Graduado em Ciências Sociais, Mestre em Filosofia e Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (UNESP-
Marília). Doutorando visitante do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade
de Coimbra, financiado pelo Programa Institucional de Doutorado Sanduíche
(CAPES–PDSE). Bolsista da CAPES – Proc. n. 1912/13-5. E-mail: <fabiocrocco@
nepomuceno.cefetmg.com.br>.
434 Movimentos, Direitos e Instituições

profissional, aos interesses ligados à gestão da propriedade


intelectual e ao mercado de trabalho.
Palavras-chave: atividade artística; enquadramento laboral; mercado
de trabalho; músicos profissionais; propriedade intelectual.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. PONDERAÇÕES SOBRE O ENQUADRAMENTO


E A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL DOS MÚSICOS; 2.
INTERESSES E CONFLITOS NA GESTÃO DOS DIREITOS
AUTORAIS E DIREITOS CONEXOS; 3. CONDIÇÕES E
CONTRADIÇÕES DO MERCADO DE TRABALHO ARTÍSTICO-
MUSICAL; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

As condições de trabalho dos artistas sempre foram


mistificadas e estiveram encobertas por inúmeras fantasias. Na
Modernidade a valorização da genialidade, da originalidade e do
trabalho livre e individual foi fundamental para estruturar as
idealizações atuais. A imagem romantizada do artista envolveu sua
atividade numa nebulosa indefinição e a aproximou mais do ato
intelectual e contemplativo – isolado no mundo das ideias – do que na
atividade do autor enquanto produtor (BENJAMIM, 1987, p. 120). A
figura do gênio tocado pelo dom divino da criação dificultou a
percepção do artista enquanto trabalhador carente de necessidades
primárias de existência. Sob o olhar idealista, sua ação foi dissociada
da materialidade, e ocultou sua atividade prática e cotidiana. Segundo
a metáfora idealizadora, o autor caminha no Jardim do Éden distante
da matéria corruptora e de cima cria e compõe suas obras.
Na transição para o século XX, com a expansão da
produção em série da obra de arte, a imagem do autor transfigurou-
se, sua atividade não foi mais vista de forma sublime e idílica como
no momento anterior, talvez agora mais como a figura de um anjo
caído obrigado a se adequar à racionalidade calculista do sistema
econômico e social. Essa longa transição processual que se inicia
com a dissolução das relações dos artistas com a corte lega aos
mesmos as liberdades, incertezas e angústias do mercado (ELIAS,
1995, p. 15). No século XIX, a partir da constituição de um mercado
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 435

de bens culturais, o fruto do seu trabalho passa a ser vendido na


205
feira. (BENJAMIN, 1987, p. 30) .
No início do século XX o artista, com o advento da indústria
cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113), torna-se
assalariado, e como prestador de serviço sobrevive da sua renda.
Porém, nesse percurso sua atividade e seu produto tornaram-se
serviço e mercadoria racionalizados no mercado e na indústria
capitalista, suas condições e contradições laborais ainda hoje estão
impregnadas de formas ocultas e difusas de exploração e continuam
envoltas de mistério e dúvidas.
Com a finalidade de contribuir para a compreensão de
determinados aspectos do trabalho artístico esta investigação
procurou inquirir e refletir sobre as relações de trabalho e emprego
dos músicos profissionais em Portugal. Os elementos desta
investigação foram colhidos a partir de inquéritos qualitativos com
determinados representantes dos músicos profissionais de
Portugal206. Seus conteúdos estão apresentados neste ensaio em
debate com outros estudos e pesquisas sobre o tema com a
finalidade de proporcionar sua problematização para uma melhor
reflexão da realidade do país. Tendo consciência da amplitude que
esse tema possui e das diversas formas metodológicas em que ele
poderia ser abordado, este estudo apoiou-se, sobretudo, na análise
de três questões fundamentais: (1) o enquadramento, a
regulamentação legal e os efeitos dessas legislações para a atividade
musical; (2) a gestão dos direitos autorais e conexos e o conflito de
interesses entre os distintos agentes envolvidos em seus processos;

205
Walter Benjamin em seu ensaio “Paris, Capital do Século XIX” relata: "Baudelaire
sabia como se situava, em verdade, o literato: como flâneur ele se dirige à feira;
pensa que é para olhar, mas, na verdade, já é para procurar um comprador. Nessa
fase intermediária, em que ainda tem um mecenas, mas já começa a se familiarizar
com o mercado, ela aparece como bohème”. (1994, p. 30).
206
Inquéritos realizados com os representantes dos músicos de Portugal: Margarida
Barata – Coordenadora do CENA (Inquérito realizado no Porto dia 22 de julho de
2013). Nuno Simões – Coordenador da GDA (Inquérito realizado no Porto dia 18 de
setembro de 2013). Amália Pereira – Coordenadora da GDA (Inquérito realizado no
Porto dia 18 de setembro de 2013). Manuel Vaz Pires da Rocha – Diretor do
Conservatório Musical de Coimbra (Inquérito realizado em Coimbra dia 10 de
setembro de 2013). Paulo Faustino – Coordenador da SPA (Inquérito realizado em
Coimbra dia 15 de outubro de 2013). Tozé Brito – Administrador responsável pela
área musical da SPA (Inquérito realizado em Lisboa dia 29 de outubro de 3013).
Pedro Oliveira – Diretor da GDA (Inquérito realizado em Lisboa dia 29 de outubro
de 2013).
436 Movimentos, Direitos e Instituições

e (3) as condições e contradições práticas que os músicos enfrentam


para realizar sua atividade no mercado de trabalho português.
São pontuais as pesquisas existentes sobre o trabalho
artístico, principalmente pelo fato de o resultado estético da obra e do
desempenho da execução prevalecer sobre o processo de trabalho,
sobre sua elaboração e produção, que na maioria dos casos é
silenciado e desaparece do alcance dos espectadores, especialmente
no campo da música. Por isso é tão importante uma investigação
sobre o trabalho artístico, com a finalidade de desvendar as relações
práticas e legais que os profissionais enfrentam para produzir sua
arte e realizar sua atividade.
A arte e sua execução são frutos de uma atividade estética
determinada com capacidade de satisfazer necessidades específicas,
mas muitas vezes esta atividade desaparece nas relações de
mercado cotidianas, assim como, na maioria dos casos, desaparece
o trabalhador no valor de troca das relações mercantis. Investigar as
condições reais da atividade artística musical permite pensar sobre
este trabalhador como um profissional que procura ser reconhecido
como artista, mas também como alguém que busca possuir
condições mínimas para atuar nesse setor e manter-se com
dignidade.

1. PONDERAÇÕES SOBRE O ENQUADRAMENTO E A


REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL DOS MÚSICOS

A legislação e os códigos específicos que abarcam as


atividades artísticas suscitam análises apropriadas e proveitosas para
a investigação das condições e contradições da profissão musical.
Em Portugal, esse debate perpassa o enquadramento laboral
regulado pelo Regime Laboral dos Profissionais de Espectáculos
(RLPE) e pelo Código Contributivo da Segurança Social dos
Trabalhadores Independentes. Seus conteúdos e proposições
demonstram características inerentes às profissões artísticas no País,
além de possíveis elementos geradores de conflitos intrínsecos às
mesmas.
O período pós 25 de abril foi marcado por processos de
abertura democrática, de diminuição do poder corporativo do Estado
e de aproximação às políticas da Comunidade Econômica Europeia
(CEE). Nas duas décadas posteriores ao processo de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 437

democratização houve discussões sobre a mudança estrutural do


capital e das formas laborais. O Código de Trabalho foi sendo
progressivamente alterado para se adequar às novas formas e
relações de trabalho tendencialmente mais flexíveis e precárias.
Embora nas décadas de 1980 e 1990 tenha havido um movimento
legislativo para adequar as leis trabalhistas às novas exigências
estruturais do capital, as atividades artísticas e culturais continuaram
dependentes do código trabalhista genérico. Sem legislação
trabalhista própria que vislumbrasse as especificidades dos
profissionais artísticos, estes, na maioria dos casos, se mantiveram à
mercê da informalidade e da ausência de um regulamento protetor.
Para enfrentar esses problemas o RLPE foi elaborado a partir da
pressão política dos profissionais do espetáculo e entrou em vigor
somente em 2008.
A regulamentação trabalhista da atividade dos músicos em
Portugal acompanha a legislação dos profissionais das artes do
espetáculo e do audiovisual que desenvolvem atividades artísticas e
técnico-artísticas. Na última década sua regulamentação sofreu
diversas alterações sob o argumento da necessidade de
reestabelecer um regime laboral específico. Tais exigências surgiram
da mobilização dos próprios profissionais, que em 2006 iniciaram
uma manifestação unindo grupos, organizações, associações e
sindicatos de diversos segmentos artísticos e técnico-artísticos
denominados Plataforma dos Intermitentes. No final de 2006 esse
grupo de manifestantes entregou à Assembleia da República um
documento pedindo a criação de um regime de trabalho adequado às
suas especificidades.
Dentre as principais exigências contidas no pedido estavam
a criação de contratos que considerassem as formas temporárias e
intermitentes do setor e, principalmente, a concessão de benefícios
mínimos de segurança social ao profissional, de acordo com as
condições e regularidades de suas atividades. A partir desse
momento abriu-se um novo debate, cuja discussão foi fundamental
para a consolidação de contratos mais flexíveis, assim como a
flexibilização das regras de cessão dos mesmos. Até então, a única
regulamentação efetiva existente referia-se aos direitos autorais e
conexos. Sob essa nova interpretação as relações laborais no setor
do espetáculo dependeriam da boa relação entre profissionais,
empresas e público e, portanto, seriam, por natureza, efêmeras e
fugazes, o que geraria vínculos trabalhistas (mais) transitórios e
frágeis (GOMES, 2009, p. 269). Os principais objetivos desses
438 Movimentos, Direitos e Instituições

argumentos, que, por fim, foram estruturais para a elaboração do


regime laboral atual, visavam diminuir as formalidades e os controles
regimentais para preservar o vínculo contratual formal, embora mais
flexibilizado.
A partir das exigências e discussões foi elaborado um novo
código específico para os profissionais do espetáculo, e,
consequentemente, para os músicos profissionais. Atualmente está
207
em vigor o Regime Laboral dos Profissionais do Espetáculo
discriminado na Lei 4/2008, de 7 de fevereiro, que aprova o regime
208
dos seus contratos de trabalho . A importância do regime de
trabalho específico é destacada por Remedios Roqueta Buj em seu
estudo El Trabajo de los Artistas. Segundo a autora:

[...] o contrato de trabalho dos artistas em espetáculos públicos


apresenta características especiais pela qualidade de pessoas que o
desempenham, pelo tipo de funções que tais pessoas realizam e pelo
quadro e modos em que o trabalho desenvolve. (1995, p. 15).

Apesar de específico cabe ressaltar que o RLPE enquadra


os trabalhadores musicais numa categoria mais abrangente de
atuação que integra a ampla área dos profissionais do espetáculo e
do audiovisual. Esta categoria é formada por todos os profissionais
que atuam performaticamente, tecnicamente e na intermediação do
campo artístico. É importante ressaltar que os criadores, executores e
intérpretes musicais que não atuarem em espetáculos ou em eventos
públicos, conforme a lei prescreve, não podem ser enquadrados
nesse regime laboral. Ou seja, o regime não visa à proteção dos
artistas em geral, mas sim dos profissionais do espetáculo. Neste
sentido Margarida Porto aponta que:

[...] ficam de fora da noção de espetáculo público as atividades que


embora artísticas, não são consideradas de espetáculo por lhes faltar o

207
Passar-se-á a denominar o Regime Laboral dos Profissionais de Espectáculos
pela sigla RLPE.
208
O RLPE foi alterado primeiramente pela Lei 105/2009, de 14 de setembro, que
regula a participação do menor em atividade de natureza cultural, artística e
publicitária e, posteriormente alterado pela Lei 28/2011, de 16 de junho, que aprova
o regime dos contratos de trabalho dos profissionais do espetáculo e estabelece o
regime de segurança social aplicável a eles. Está submetido ao Código de
Trabalho e às suas alterações, pois conforme é declarado no documento dos
profissionais do espetáculo, em tudo que não estiver previsto em suas normas
aplica-se as regras dispostas no Código do Trabalho e na sua respectiva
regulamentação, assim como o regime de segurança social aplicável aos
trabalhadores por conta de outrem.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 439

imediatismo, isto é, a realização/manifestação da actividade perante o


público ou para o público. (2010, p. 82).

Mesmo havendo muitas similaridades trabalhistas na


atividade profissional das diversas artes (música, teatro, cinema etc.)
e da atuação promotora e técnica atrelada a elas, existem também
muitas particularidades em cada um destes segmentos de atuação
artística. Entretanto, as especificidades das relações trabalhistas num
concerto musical, numa apresentação teatral ou num recital poético,
ou mesmo, na produção cultural e preparação técnica do espetáculo,
por exemplo, não estão previstas na legislação que enquadra todos
estes trabalhadores artísticos, mediadores ou técnicos como
profissionais do espetáculo e define suas relações laborais segundo
parâmetros similares. Portando, a tentativa de enquadrar todos esses
profissionais em um conceito único (artista de espetáculo/profissional
de espetáculo) pode incorrer na falta de especificidade e gerar
confusões em sua aplicação (DOLZ LAGO, 1983, p. 122). Esta
postura legal pode gerar sérios problemas ao definir com os mesmos
padrões as relações trabalhistas, os contratos e a seguridade social
dos profissionais das distintas artes, da produção/mediação cultural e
das áreas técnicas (sonorização, iluminação, montagem de palco
etc.). Ao perder as particularidades de cada atuação a lei mostra sua
limitação e ao abdicar das condições práticas específicas de cada
uma dessas profissões a legislação não prevê que no cotidiano
laboral possam surgir conflitos e contradições diferenciadas.
Dentre as principais funções do RLPE estão a
regulamentação dos contratos de trabalho e a segurança social.
Apesar das diferenças entre os contratos laborais intermitentes a
termo resolutivo certo e os contratos intermitentes a termo resolutivo
incerto, pode-se afirmar que ambos estão entre os mais flexíveis da
legislação trabalhista portuguesa. Tais contratos exigem dos
profissionais determinadas capacidades e autonomia de viver
constantemente a incerteza. Ao focar unicamente na normatização de
contratos temporários e intermitentes a legislação dos profissionais
do espetáculo expressa em si mesma as particularidades e as
condições laborais enfrentadas por esta categoria209. A lei tenta
regulamentar e proteger por meio de contratos formais – e flexíveis –

209
Embora realiza-se a crítica às disfunções dos contratos temporários e
intermitentes, para a grande parte dos músicos e representantes musicais o novo
regulamento representou avanço num país em que anteriormente não havia
proteção formal específica.
440 Movimentos, Direitos e Instituições

atividades que historicamente foram legadas às condições informais e


precárias, porém sem incentivar a mudança estrutural destas
relações. E, portanto, a disciplina proposta na lei demonstra-se pouco
eficiente para superar os problemas históricos e recorrentes na
atuação desses profissionais. Os períodos temporários e a
intermitência das atividades permanecem em vigor subentendendo-se
que estas são as condições normais – e em determinados casos as
únicas condições possíveis – do mercado de trabalho desta
categoria, e, portanto, com o aval desta legislação, tais condições
tornam-se naturalizadas.
Além da questão contratual e dos diretos e deveres dos
profissionais do espetáculo e do audiovisual o escopo principal do
RLPE também é formado pelo regime de segurança social aplicado a
estes profissionais. Esta é uma questão importante na vida dos
trabalhadores artísticos, já que é sinônimo de proteção e dignidade.
As condições laborais enfrentadas pelos músicos, pautadas na
flexibilização dos contratos de trabalho e nos seus períodos de
emprego e desemprego, exigem dos sistemas de seguridade social
uma classificação e uma estrutura de proteção diferenciada.
Entretanto tal proteção social está condicionada aos profissionais
contratados segundo os parâmetros do RLPE. Isso se torna
problemático devido ao fato de apenas uma pequena parte dos
profissionais musicais atuarem por meio de tais contratos. A maioria
dos músicos exerce sua profissão de forma autônoma e está
enquadrada como trabalhadores independentes – denominados
vulgarmente de trabalhadores a recibos-verdes.
O trabalho artístico-musical pode ser caracterizado como
trabalho liberal e, assim, os que exercem essa atividade podem
integrar a categoria dos Trabalhadores Independentes regulados
pela Lei n. 110/2009 de 16 de setembro. Diversos são os
profissionais que se enquadram nesta categoria210, sendo incluído o
músico neste regulamento enquanto profissional liberal (incluindo a
atividade de caráter científico, artístico ou técnico) e/ou trabalhador
intelectual (incluindo a atividade de caráter literário, científico ou
artístico). A principal finalidade do enquadramento no regime dos
trabalhadores independentes é ter acesso aos benefícios da

210
Os trabalhadores independentes formam uma categoria diversificada e
heterogênea, pois unem em sua denominação figuras distintas como patrões e
trabalhadores por conta própria. Mais detalhes sobre a heterogeneidade dos
trabalhadores independentes podem ser encontrados nos artigos 133° ao 138°, da
Lei n. 110/2009, de 16 de setembro.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 441

Segurança Social sem necessitar obrigatoriamente possuir um regime


laboral baseado nos contratos de trabalho.
Muitos músicos optam livremente pela atuação
independente por causa da autonomia laboral que ela proporciona e,
também, pela possibilidade de realizar outras atividades
simultaneamente. Entretanto, apesar de aparentemente ser uma
possibilidade de autonomia e liberdade laboral – condições
fundamentais para o trabalho artístico – manter-se enquadrado nesta
categoria depende do pagamento mensal das contribuições, o que
pode ser difícil para os profissionais que não possuem
necessariamente atividades contínuas e regulares. Apesar de parecer
atrativo, o trabalho independente em Portugal encontra-se
intimamente associado à precariedade laboral. Enfrentar este
problema significa inicialmente questionar o discurso ideológico de
que o trabalho independente é uma janela de oportunidades
atrelada à imagem de percursos profissionais de sucesso e de plena
realização do indivíduo. (FONSECA, 2011, p. 4-8).
A crítica a esse discurso romantizado sobre o trabalho
independente é fundamental para a compreensão das condições e
contradições inerentes a esse enquadramento funcional. Os músicos
são apologistas da liberdade, independência e autonomia, porém é
preciso estar atento aos problemas e dificuldades que este
enquadramento pode gerar na prática. Pois, junto ao
empreendedorismo pessoal decorrente do trabalho independente
estão presentes seus riscos, uma vez que os sujeitos enfrentam de
maneira solitária as eventualidades ou insucessos decorrentes de sua
atividade, como por exemplo, lucros reduzidos, criação de dívidas,
inatividade forçada etc., elementos que demonstram maior fragilidade
laboral e social.
Apesar de legalmente significar um avanço para a classe
artística portuguesa, o regulamento dos profissionais do espetáculo
demonstra limitações práticas e a incapacidade, por si só, de sanar
contradições históricas das atividades artísticas e culturais. Portanto,
a regulamentação laboral dos trabalhadores artísticos em Portugal,
circunscrita no Regime Laboral dos Profissionais do Espetáculo,
em torno de atividades temporárias (intermitentes e a termo
resolutivo), e de prestação de serviços, enquadrados como
Trabalhadores Independentes, evidenciam limites e características
alarmantes sobre a atividade dos músicos: o alto grau de flexibilidade,
a insegurança e a instabilidade inerentes à profissão.
442 Movimentos, Direitos e Instituições

2. INTERESSES E CONFLITOS NA GESTÃO DOS


DIREITOS AUTORAIS E DIREITOS CONEXOS

A produção autoral e a execução artística são fundamentais


para a expressão cultural de um país, para a produção de bens e
serviços e campo de atuação de muitos profissionais distribuídos em
inúmeros setores artísticos. Para possibilitar a administração da
propriedade intelectual e assegurar condições razoáveis de
retribuição aos autores, intérpretes ou executantes artísticos foram
consagrados os estatutos legais de direitos de autor e de direitos
conexos. Posteriormente à consolidação das diretrizes legais
surgiram as entidades protetoras dos direitos autorais e conexos
formadas, na maioria dos casos, pelos próprios autores, intérpretes
ou executantes. Em Portugal, o processo de elaboração das leis e de
constituição das entidades desenvolveu-se nos dois últimos séculos e
conjuntamente objetivou organizar e proteger a produção e a
profissão autoral e artística.
Atualmente, em Portugal, os direitos autorais e conexos são
regulados nacionalmente pelo Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo Decreto-Lei n. 63/85, de
14 de março211, que internacionalmente segue a Convenção de Berna
de 1886 e a Convenção Universal de 1952, sendo esta revista em
1971. A existência e funcionamento de associações e organismos de
gestão dos direitos de autor estão previstos na Secção II (Da gestão
do direito de autor) do CDADC nos artigos 72°, 73° e 74°, na qual
afirma que a gestão pode ser realizada diretamente pelo titular ou por
seu intermediário devidamente habilitado. A representação pode ser
simples, o que caracteriza a qualidade de sócio ou o representante
pode inscrever-se como beneficiário dos respectivos serviços. As
entidades criadas com esses fins possuem capacidade judiciária para
intervir civil e criminalmente em defesa dos interesses e direitos
legítimos dos seus representados em matéria de direitos de autor212.
Conforme determina a legislação portuguesa os direitos
autorais e direitos conexos musicais podem ser geridos

211
Essa legislação foi alterada e complementada pelas Leis n.s 45/85, de 17 de
Setembro, e 114/91, de 3 de Setembro, e Decretos-Leis n.s 332/97 e 334/97,
ambos de 27 de Novembro, pela Lei n. 50/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.
24/2006 de 30 de Junho e pela Lei n. 16/2008, de 1 de Abril.
212
Para mais detalhes ver o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos
(CDADC).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 443

individualmente, pelos seus próprios titulares, ou coletivamente, por


meio de entidades especializadas como é o caso da Sociedade
Portuguesa de Autores (SPA), cujo foco é a gestão coletiva dos
direitos autorais e, distintamente, a Gestão dos Direitos dos
Artistas, Intérpretes ou Executantes (GDA), cujo foco é a gestão
coletiva dos direitos conexos. Individual ou coletivamente a gestão
dos direitos autorais e direitos conexos no campo musical envolve a
cooperação e/ou conflito de autores, artistas intérpretes ou
executantes, produtores fonográficos, radiodifusores e entidades
gestoras de direitos.
Em Portugal, a cooperação aparente muitas vezes encobre
os conflitos de interesses entre os distintos agentes atuantes no setor
musical. Por um lado os autores e artistas intérpretes ou executantes
almejam retribuição moral e financeira por suas criações e trabalhos.
Por outro, os produtores fonográficos e radiodifusores procuram
aumentar seus direitos e suas capacidades de intervir no mercado
para alargar sua capacidade de atuação com a finalidade de
multiplicar os ganhos financeiros de seus produtos e modelos de
negócio. Diferentemente, as entidades gestoras de direitos procuram
expandir sua atuação e seu controle com a finalidade de gerir um
montante cada vez maior de direitos e, com isso, arrecadar cada vez
mais comissões financeiras e alargar sua capacidade de fiscalização
e intervenção política.
Embora exista a predominância do discurso cooperativo e
apaziguador entre os distintos agentes musicais, tais interesses são
distintos e conflituosos. Ainda que em determinados momentos –
mais ou menos intensivos – existam interações e intersecções entre
as atuações desses agentes, sua prática regular deflagra a
contradição entre os interesses dos autores e artistas, por um lado, e
os dos produtores fonográficos, radiodifusores e entidades coletivas
de direitos, por outro. Essa contradição se baseia na distinção de
interesses entre profissionais musicais (autores, artistas intérpretes
ou executantes) e intermediários fonográficos (produtores,
radiodifusores, entidades de gestão de direitos, empresas difusoras e
distribuidoras físicas ou virtuais).
Em Portugal a convergência dos interesses dos produtores
fonográficos e das entidades gestoras de direitos pode ser
visualizada na estrutura e na administração de tais entidades. A SPA,
por exemplo, possui medidas restritivas para os autores tornarem-se
colaboradores e possuírem poderes de intervenção na entidade. Dos
444 Movimentos, Direitos e Instituições

24 mil associados apenas 880 são cooperadores, ou seja, apenas


3,6% do total (informação verbal)213. Os requisitos de admissão dos
cooperadores privilegiam aqueles autores que possuem maiores
receitas financeiras por meio dos direitos autorais arrecadados pela
entidade. Isso pode parecer justo para uma entidade que tem como
finalidade a gestão financeira de direitos autorais, porém é preciso
constatar que ao se basearem principalmente em requisitos
quantitativos as regras estatutárias privilegiam os autores e editores
mais comerciais, ou seja, aqueles que são mais veiculados no
mercado e, por isso, possuem receitas maiores. O que significa legar
a eles as orientações e decisões políticas da entidade, portanto, as
decisões de como os direitos autorais devem ser geridos.
As entidades de direitos dependem dos repertórios dos
produtores fonográficos para aumentarem o montante administrado e
comissionado – o que deflagra o grande poder de intervenção dos
produtores/editores nas entidades de gestão de direitos –, já os
produtores fonográficos além de almejarem as retribuições
financeiras oriundas dos direitos de utilização das suas obras
procuram influenciar as decisões dessas entidades com a finalidade
de defender politicamente seus interesses mercadológicos. Essa
correlação de interesses pode ser visualizada na SPA onde as
principais editoras nacionais e multinacionais estão vinculadas como
cooperadoras, dentre elas as multinacionais Universal, EMI e Sony.
Além disso, obrigatoriamente, pelo menos um dos membros da
Direção da SPA é editor musical214. Portanto, além do poder de
negociação e intervenção devido aos seus grandes repertórios, os
editores musicais possuem um papel fundamental na direção da
entidade.
De maneira distinta, mas evidenciando a mesma correlação
de interesses, a prática gerencial coletiva dos direitos conexos em
Portugal depende de sua intermediação com as entidades dos
produtores fonográficos. O licenciamento/cobrança dos direitos
conexos gerados pela comunicação pública de fixações artísticas
musicais e audiovisuais (vídeo musical) é assegurada por uma
entidade específica denominada PassMúsica constituída pela
associação da GDA e pela Gestão Colectiva de Direitos dos
213
José Jorge Letria - Presidente da SPA. Coleta de dados junto ao Workshop
"Cultura e Direitos de Autor: valores económicos e sociais", realizada dia 30 de
outubro/2013, em Coimbra.
214
Para mais detalhes a respeito, recomenda-se ver o próprio Estatuto da Sociedade
Portuguesa de Autores (SPA).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 445

Produtores Fonográficos (AUDIOGEST215) que representa os direitos


conexos dos produtores fonográficos. Portanto, a gestão coletiva dos
direitos conexos dos profissionais musicais por meio da GDA possui
correlação e dependência direta com os interesses dos
editores/produtores fonográficos por meio da PassMúsica que realiza
o licenciamento e a fiscalização das utilizações musicais no País.
Os objetivos das entidades de gestão coletiva de direitos e
dos editores/produtores fonográficos podem ser visualizados no
alinhamento de suas propostas políticas para a manutenção do
modelo de negócio baseado nos direitos autorais e conexos
restritivos. Dentre as principais medidas apoiadas por estes agentes
em Portugal estão: i) o combate à pirataria (física e virtual), ii) a
atualização da Lei da Cópia Privada, iii) a revisão do CDADC, iv) o
aumento do controle, da fiscalização e da criminalização dos usuários
inadimplentes e, por fim, v) o lobby político no sistema legislativo e
judiciário.
Deste modo, as entidades gestoras de direitos e o conjunto
dos editores/produtores fonográficos se posicionam em defesa do
modelo vigente e restritivo da propriedade intelectual. Isso não é
surpresa uma vez que seus pilares existenciais, seus rendimentos
econômicos e a legalidade de sua atuação dependem dele.
Entretanto, o modelo atual da propriedade intelectual baseado na
restrição do acesso às informações, protegidas por direitos autorais e
conexos, está sendo questionado na prática por um novo aparato
técnico de acesso à informação, que ao invés de limitá-la tende para
sua abundância. Se há pouco tempo o acesso às obras e às
prestações artísticas era tecnicamente restrito e estava condicionado
à compra de suportes físicos, agora, por meio da internet, não há
mais a restrição técnica para a reprodução e circulação de
informações. Desta forma, a internet, enquanto uma rede livre,
privada e neutra, promoveu o questionamento e a crise do modelo
vigente da propriedade intelectual.
Entretanto, apesar de as transformações promovidas pelo
mundo digital e virtual na atualidade serem amplamente conhecidas,
as bases dos modelos de gestão da propriedade intelectual
continuam vigorando conforme o padrão físico e analógico. As
alterações destas bases estão sendo discutidas, mas enfrentam

215
A AUDIOGEST é a entidade de Gestão Colectiva de Direitos dos Produtores
Fonográficos e representa os interesses da Associação Fonográfica Independente
(AFI) e a Associação Fonográfica Portuguesa (AFP).
446 Movimentos, Direitos e Instituições

muita pressão e lobby de grandes interesses econômicos e políticos.


Por um lado se têm os grandes conglomerados da produção
216
fonográfica e cinematográfica e junto com eles os interesses dos
representantes e gestores dos direitos autorais e conexos que
defendem o modelo dos direitos autorais e conexos restritivos. Por
outro lado se vê ganhar força econômica e política os interesses de
217
grandes conglomerados de plataformas virtuais que pressupõem
novos modelos de negócio, principalmente baseados no modelo de
fluxo de informações que, contrários à restrição, dependem de uma
quantidade cada vez maior de informações para atrair usuários e
investidores.
Assim como foi um erro supor que o mercado de música em
suporte físico coexistiria pacificamente com a música digital na rede
de computadores, como os editores e produtores dos grandes
conglomerados fonográficos imaginaram no princípio, é um erro supor
a coexistência pacífica do modelo dos direitos autorais e conexos
baseado na restrição ao acesso às informações – com o modelo de
fluxo ou qualquer outro modelo econômico que pressuponha o
acesso e o compartilhamento livre das informações. Embora em
determinados casos possa haver cooperação e coexistência entre
estes modelos de negócio218, na sua essência a forma de valorização
e capitalização econômica dessas empresas é distinta e contraditória
(CROCCO; CRUZ, 2012, p. 188). Portanto, a intensa propagação dos
meios técnicos de reprodução, do acesso e de compartilhamento de
informações digitais leva a refletir sobre a necessidade de mudanças
e adaptações nos códigos de direitos autorais e direitos conexos em
direção a novas formas de valorizar e remunerar os autores e os
artistas, sem, no entanto, depender de barreiras artificiais restritivas
de acesso às informações cada vez mais antiquadas e ineficazes.
Este processo de transição e de conflitos de interesse
evidencia elementos importantes para a compreensão das condições
laborais e produtivas vigentes no setor da música. Dentre eles
podemos referenciar o conflito legislativo e político entre o modelo de

216
Formadas principalmente por empresas como a Walt Disney Inc., NBC Universal,
Time-Warner, CBS, Toshiba, Wal-Mart etc., além das grandes associações de
empresas de entretenimento, como a Record Industry Association of America e a
Motion Pictures Association of America.
217
Empresas como o Google, Facebook, Spotify, Ebay, Wikipedia, Yahoo!, Mozilla etc.
218
Como é o caso dos contratos de disponibilização dos repertórios das editoras
musicais nas plataformas virtuais de música streaming ou nos contratos dos
produtores com plataformas de venda de música on-line.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 447

negócio baseado nos direitos autorais e direitos conexos restritivos –


defendidos pelos editores/produtores fonográficos e pelas entidades
de gestão coletiva de direitos – e o modelo de fluxo de informação
das plataformas virtuais deflagrado nos EUA no final de 2011219.
Nota-se também a proliferação dos modelos de negócio fonográficos
com a facilidade de acesso às tecnologias digitais, a fragmentação da
cadeia produtiva e a autonomia na gestão das carreias. Por fim, nota-
se a proliferação dos intermediários – principalmente no ambiente
virtual – que promove algumas consequências relevantes: a abertura
de novos espaços de difusão e distribuição dos produtos musicais; a
proliferação dos contratos de intermediação e de licenciamentos; a
possibilidade do controle e da gestão individual da propriedade
intelectual em determinadas plataformas virtuais pelos profissionais
musicais; a dificuldade de fiscalização das inúmeras empresas
virtuais que prestam serviços musicais; a necessidade de rever os
códigos de direitos autorais e direitos conexos para se adequarem
aos novos tempos e modelos de negócio, sem, no entanto, deixar de
considerar os interesses distintos e contraditórios inseridos num
campo de força em tensão e em constante conflito.

3. CONDIÇÕES E CONTRADIÇÕES DO MERCADO DE


TRABALHO ARTÍSTICO-MUSICAL
Refletir sobre as condições e contradições da atividade
artística musical significa caminhar por um terreno instável e de difícil
definição. Os objetos e métodos para a sua abordagem são incertos
uma vez que os dados estatísticos geralmente são insuficientes
devido à mutabilidade dos agentes atuantes neste setor e à profunda
flexibilização do mercado de trabalho, das entidades empregadoras e
das condições de trabalho. Falar sobre trabalho artístico implica em
considerar uma atividade marcada pelas dimensões artística/autoral e
prática/laboral que estão diretamente mediadas. Entretanto, as

219
No fim de 2011 e início de 2012, diante das discussões parlamentares sobre a
aprovação dos novos dispositivos da lei de copyright, foi deflagrada nos EUA uma
oposição entre dois modelos de gestão econômica da informação. O Stop Online
Piracy Act (SOPA) e o Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and
Theft of Intellectual Property Act (PIPA) são projetos de lei muito similares que foram
elaborados sob influência das indústrias de entretenimento, principalmente pela
MPAA. Eles propõem medidas de alteração aos direitos autorais e à propriedade
intelectual com a finalidade de atuar de forma mais rígida e enfática contra o
desrespeito dos direitos intelectuais nas redes virtuais, não apenas nos EUA, mas em
todo o mundo, inclusive criminalizando os usuários comuns de música.
448 Movimentos, Direitos e Instituições

próprias dificuldades de abordar e refletir sobre o tema são dados


importantes para tentar investigá-lo. Apesar das dificuldades desse
objeto de investigação, já apontadas por diversos teóricos das
profissões artísticas (CASTEL, 2010; DOLZ LAGO, 1983; GREFFE,
1999; MENGER, 2005), os estudos das condições laborais dos
músicos – e dos artistas em geral – são importantes para
compreender suas especificidades e, além disso, para refletir sobre
as características e contradições da expansão global da flexibilização
e precarização do trabalho.
Em Portugal, podem-se dividir as relações empregatícias dos
músicos em três categorias básicas: a atividade realizada por meio de
contratos de trabalho; a atividade sem contratos baseada na prestação
de serviços; e a atividade autônoma informal/ilegal. Dentre as formas
pautadas em contratos estão o contrato estável de trabalho, o contrato
por tempo indeterminado com regime intermitente e os contratos
temporários. Como se abordou no primeiro item deste artigo, tais
formas contratuais estão presentes na legislação, mas na prática
abarcam uma minoria das atividades em vigor no país, ou seja, uma
pequena quantidade dos profissionais musicais atua por meio desses
contratos de trabalho. A maioria promove sua atividade sem contratos,
enquanto profissionais liberais enquadrados como trabalhadores
independentes. E ainda, parte destes trabalhadores autônomos vive
numa zona de fronteira entre a prestação legal e ilegal de serviços,
entre a formalidade prevista no regime dos trabalhadores
independentes e a informalidade e falta de segurança social.
O crescimento das atividades artísticas realizadas por meio
de prestação de serviços demonstra o movimento de fuga dos
empregadores às exigências do regime de trabalho. Mesmo que na
atualidade existam modelos flexíveis de contrato no atual RLPE, a
opção de empregar trabalhadores independentes, ou seja, sem
contratos de trabalho, significa para os empresários e agentes
culturais a desoneração dos encargos e a desobrigação das
responsabilidades trabalhistas contratuais. O trabalho dos artistas
enquanto trabalhadores independentes beira a informalidade e a falta
de segurança social, uma vez que as atividades artísticas são, na
maioria dos casos, intermitentes e com sazonalidades (in)definidas de
mais e menos trabalho, o que representa instabilidade para o
profissional manter suas contribuições mensais à Segurança Social e,
assim, manter seu regime de proteção. Portanto, se por um lado a
autonomia do músico é fundamental para a elaboração e execução
de sua atividade enquanto artista, por outro lado é incorreto
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 449

abandoná-lo diante das relações negociais desiguais e aos


condicionamentos de um mercado instável. Na maioria dos casos o
trabalhador independente é o elo mais fraco nas negociações laborais
e é obrigado, por força de necessidades urgentes, a aceitar as
condições que lhes são apresentadas. Sem restrições e controles
específicos ao enquadramento dos trabalhadores independentes, o
sistema português consagra a fuga dos contratos de trabalho para as
relações instáveis e inseguras. Esse deslocamento dos contratos
para as atividades de prestação de serviços representa a dissolução
dos direitos e das garantias trabalhistas.
O estudo de Gloria Rebelo, Flexibilidade e precariedade
no trabalho: análise e diagnóstico (2004, p. 57), é conveniente para
analisar como a precariedade se faz presente na atividade artística
musical com ou sem contratos, de maneira legal ou na ilegalidade. A
regulamentação contratual temporária dos profissionais do espetáculo
e o enquadramento laboral independente colocam os músicos
profissionais numa condição que Rebelo denominou de precariedade
legal (2004, p. 45). Pois a precariedade pode estar formalizada na
atividade por conta de outrem – como ocorre nos contratos a
termo certo e incerto e contratos intermitentes – e na prestação
de serviço autônomo (trabalho independente). Estas formas de
atuação são legitimadas por lei por meio de faculdades concedidas
aos empregadores que, por exemplo, lhes dão o direito de substituir
trabalhadores ausentes ou contratar profissionais para a realização
de atividades sazonais conforme suas necessidades particulares e
temporárias. Portanto, são práticas de flexibilização trabalhista
indutoras de precariedade marcadas pelo trabalho subordinado de
duração determinada.
São estas as características legais e práticas inerentes ao
RLPE e que impõem desafios cotidianos aos trabalhadores artísticos.
Neste sentido, ao analisar as condições de flexibilidade e
precariedade laboral dos trabalhadores artísticos percebe-se que elas
são mais profundas e antigas, em relação às condições dos
trabalhadores em geral que passaram a sentir o desmantelamento de
suas seguridades e garantias laborais a partir do último quartel do
século XX. Na atualidade o processo de erosão dos direitos
trabalhistas aproxima os trabalhadores em geral ao que já era
vivenciado pelos trabalhadores artísticos e que nas palavras de
Robert Castel desenha-se como uma “zona híbrida da vida social
entre trabalho e não trabalho, segurança e assistência, integração e
450 Movimentos, Direitos e Instituições

desfiliação, onde faltam condições para construir sua independência


econômica e social”. (2010, p.29).
Por outro lado, conforme aponta Rebelo (2004, p. 45), existe
a precariedade ilegal que também pode ser visualizada como
precariedade tradicional associada à economia informal devido ao
desrespeito às regras de contratação. Os casos mais recorrentes em
Portugal decorrem dos contratos orais, por tarefa, por peça, por dia e
que assumem importância específica para os indivíduos em situação
de pobreza e dificuldade financeira, constituindo formas de
subemprego estrutural (DIOGO, 2007, p. 25), assim como podem ser
caracterizadas pela atuação do falso trabalho independente ou
falso recibo verde.
Os denominados falsos trabalhadores independentes são
aqueles que, devido às condições de sua atividade, deveriam, por lei,
ser enquadrados num contrato de trabalho formal/indeterminado e
obter os direitos nele incluídos. Mas geralmente, por causa dos altos
custos para o empregador, os trabalhadores continuam sendo
obrigados a se enquadrarem como independentes, embora a
condição prática seja de subordinação. Essa relação laboral é
considerada ilegal uma vez que desrespeita os regulamentos
trabalhistas portugueses, pois os trabalhadores independentes são
legalmente autônomos e livres para atuar no local que desejarem e
conforme seus próprios métodos, cabendo aos contratantes apenas
usufruir dos resultados da sua atividade. Embora essa artimanha
laboral tenha se alastrado por diversas atividades, os mais
prejudicados são os profissionais liberais prestadores de serviços, em
situação de vulnerabilidade social, que em situação de risco
(inatividade/desemprego/pobreza) veem-se obrigados a aceitar estas
determinadas condições ilegais.
Ilona Kovács, em seu estudo Emprego Flexível em
Portugal, afirma que na categoria dos trabalhadores independentes
encontram-se:
[...] aqueles que deliberadamente optam por serem independentes, no
sentido literal do termo, e também os chamados falsos independentes
que são forçados a aceitar essa situação num contexto de
precariedade laboral. (2004, p. 40).

Constata ainda que parte desses trabalhadores por conta


própria sem pessoal ao serviço220 não possui independência e,

220
Os trabalhadores independentes (autônomos) podem se dividir em trabalhadores
por conta própria com pessoal ao serviço, quando empregam outros trabalhadores
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 451

portanto, não são autônomos, mas na prática “trabalham por conta de


outrem ganhando menos, vivendo a pressão do risco, sem ou com
fraca protecção sindical, sendo excluídos da aplicação de certas leis
e mais vulneráveis”. (KOVÁCS, 2004, p. 42-43). Kovács procura
ainda desmistificar “a figura pós-fordista do trabalhador independente
quando considera que, na maior parte das vezes, este trabalhador
trabalha a preços e em condições que os assalariados julgam
inaceitáveis”. (2004, p. 42-43).
Diante da insegurança constante de seu ofício os
trabalhadores buscam aproveitar como podem as oportunidades
existentes num mercado de trabalho reduzido e concorrencial.
Perante essas condições laborais são raros os profissionais que
denunciam os abusos dos empregadores (públicos ou privados). Na
maioria dos casos aceitam as oportunidades que lhes são oferecidas
sem questionar por medo de serem marginalizados e, com isso,
sofrerem com a ausência de trabalho.
Nessa direção, as condições do mercado de trabalho
artístico foram abordadas por Pierre-Michel Menger em sua obra
Retrato do Artista enquanto trabalhador, na qual aponta a
atividade free-lance e o emprego intermitente, comuns aos artistas,
formas de hiperflexibilidade laboral, pois se aproxima da perfeição
concorrencial, ou seja, um mercado de trabalho onde é possível
“contratar e despedir consoante as necessidades, sem barreiras nem
à entrada nem à saída, com custo zero na prospecção como no
despedimento”. (2005, p. 102). Do ponto de vista dos empregadores
isso significa usufruir com liberdade da vasta oferta de trabalhadores
artísticos e tirar proveito de sua variedade de competências e talentos
com a finalidade de agregar valor aos seus produtos e serviços, além
de reduzir seus custos. Mas tal hiperflexibilidade provoca
consequências indesejáveis aos profissionais artísticos, como é o
caso da grande concorrência por atividade e o aumento do
desemprego temporário, ou ainda, como descreve Menger, “impõe
aos indivíduos alternâncias de períodos de trabalho, de desemprego
indenizado, de desemprego não indenizado, de procura de emprego,
de gestão de redes de inter-conhecimento, e de multi-actividade
dentro ou fora da esfera artística”. (2005, p. 103).
Portanto, a flexibilidade exigida, o aumento do desemprego
temporário e a falta de seguridade social impõem aos profissionais

para a realização da atividade determinada, e trabalhadores por conta própria sem


pessoal ao serviço quando realizam sozinhos tais atividades.
452 Movimentos, Direitos e Instituições

musicais uma postura proativa dentro e/ou fora do campo artístico-


musical. É comum, por exemplo, o músico atuar como prestador de
serviços com múltiplos empregadores e, ao mesmo tempo, como
professor musical, como promotor cultural, ou mesmo como técnico
na produção musical ou de espetáculos. Também é comum aos
músicos portugueses a sobrevivência por meio de atividades extra-
artísticas e fora do campo musical, e, neste sentido, por meio do
emprego de subsistência alimentam o sonho e a vocação artística.
Como consequência de sua múltipla atuação os músicos
profissionais vivem em contato com diversos empregadores, seja no
setor da produção de música gravada ou na execução ao vivo em
espetáculos. As várias atividades temporárias conferem aos músicos
condições de trabalho, formas de exploração e precariedades
diversificadas. No campo dos direitos autorais e direitos conexos
atrelados à composição e à fixação de prestações artísticas, os
profissionais que almejem ter determinados direitos de sua
titularidade protegidos são obrigados a depender da intermediação
das entidades de gestão coletiva de direitos (SPA e GDA). Há ainda a
dependência de múltiplos agentes produtores, difusores, promotores
e distribuidores fonográficos – agentes/produtores culturais e
empresas físicas ou virtuais – com os quais os músicos firmam
contratos objetivando promover e/ou vender seu trabalho. A
multiplicação dos agentes de intermediação cultural e das
221
plataformas virtuais de música streaming confirma esse
movimento. Consequentemente, a pluriatividade exigida aos
músicos profissionais para suportarem as condições de seu mercado
de trabalho coloca-os em situação de pluridependência e múltipla
exploração em relação aos seus diversos empregadores e
intermediários.

CONCLUSÃO

Com o objetivo de contribuir para a investigação de


determinados elementos da atividade artística e das formas flexíveis
e precárias de trabalho este ensaio procurou refletir sobre as relações
laborais e empregatícias dos músicos profissionais em Portugal.

221
Explica-se que se trata de uma forma de distribuição de dados através da internet,
na qual as informações não são armazenadas pelo usuário em seu próprio
computador. O usuário recebe o "stream", a transmissão dos dados, acessa a
informação, mas não copia o arquivo.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 453

Tendo consciência da amplitude que esse tema possui e das diversas


abordagens metodológicas possíveis, este estudo apoiou-se,
sobretudo, na análise bibliográfica/documental e na fala de
determinados representantes dos músicos profissionais. Como
resultado foram destacados três elementos fundamentais para a
compreensão e problematização das condições e contradições da
atividade musical no país: o enquadramento e a regulamentação
legal, o conflito de interesses na gestão dos direitos autorais e
conexos e as condições e contradições da prática laboral. Portanto,
longe de buscar abarcar todos os elementos que envolvem o trabalho
artístico-musical em Portugal esta investigação procurou, a partir de
suas abordagens e métodos específicos, contribuir para a
compreensão de determinados elementos com a finalidade de auxiliar
a expor e a desmistificar a prática laboral desses profissionais e as
tendências precarizantes da expansão da hiperflexibilização para o
trabalho em geral.
No domínio musical, como foi analisado, a maioria das
relações laborais é caracterizada pela flexibilização do trabalho
independente, free-lance e pela substituição do emprego pelo
trabalho em projetos. Outra característica deste mercado é o trabalho
intermitente, cujo efeito é a descontinuidade e alternância entre
períodos de trabalho e desemprego. A relação entre ausência de
contratos de trabalho, informalidade e falta de proteção/segurança
social desponta como o principal problema enfrentado pelos músicos
portugueses. A substituição dos contratos de trabalho por conta de
outrem por relações de prestação de serviços com trabalhadores
independentes tem sido um ponto nevrálgico de conflito e discussão
entre profissionais do espetáculo e seus representantes. O
crescimento das atividades artísticas realizadas por meio de
prestação de serviços deflagra o movimento de fuga dos
empregadores às exigências do regime de trabalho. Mesmo que na
atualidade existam modelos flexíveis de contrato no atual RLPE, a
opção de empregar trabalhadores independentes significa para os
empresários e agentes culturais a desoneração dos encargos e a
desobrigação das responsabilidades trabalhistas contratuais.
As atividades autorais e performáticas dos músicos
profissionais formam a base estrutural da produção de bens artísticos
e da oferta de serviços culturais. A partir delas se constituem
inúmeros negócios e empreendimentos com interesses colaborativos
e/ou conflituosos. Como foi abordado, o setor dos direitos autorais e
direitos conexos com suas inúmeras entidades e intermediários é
454 Movimentos, Direitos e Instituições

exemplo desse campo de forças entre os interesses de seus diversos


agentes e cuja tendência é o crescimento do modelo de fluxo de
informações em detrimento do modelo de negócio de acesso restritivo
aos bens artísticos e culturais.
Seja no campo da propriedade intelectual ou no mercado de
trabalho os músicos profissionais portugueses veem-se obrigados a
atuar de distintas formas, mantendo-se na dependência de múltiplos
empregadores e intermediários. Suas condições caminham
paralelamente às suas contradições uma vez que a autonomia laboral
e artística é marcada pela incerteza, insegurança e precariedade.

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CAPÍTULO 19

OS DILEMAS DA CUT NO INÍCIO DO SÉCULO


XXI: RUMO A UMA NOVA
INSTITUCIONALIZAÇÃO SINDICAL?

222
Fernanda Forte de Carvalho

RESUMO
O artigo apresenta uma síntese dos resultados da investigação sobre
a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o seu posicionamento
durante a vigência do Governo Lula no período 2003-10. Momento
em que, no espaço da cidadania (SANTOS, 2000), para além da
pauta sindical relacionada às reinvindicações trabalhistas e às ações
de confronto, a CUT passou a priorizar a articulação de uma pauta
em prol do desenvolvimento do país, com uma ampla agenda de
negociação. A ação da CUT, neste período, passou a incorporar
novos atores sociais, em especial, as centrais sindicais. Neste
sentido, objetiva-se apreender os significados desta relação
associativa (WEBER, 2009). O estudo busca averiguar quais foram
às influências deste governo para a possível conformação de uma
nova institucionalização (PANEBIANCO, 2005) da central sindical no
início do século XXI. Sendo assim, identificar-se-ão não só os fatores
que determinaram maior intensidade da ação desenvolvida entre as
centrais sindicais, mas também as perspectivas para uma nova
institucionalização neste período. Os resultados obtidos permitiram

222
Socióloga. Doutora em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra (FEUC), na especialidade de Relações de Trabalho, Desigualdades
Sociais e Sindicalismo. Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho, Sindicalismo e
Sociedade, sediado na Universidade de São Paulo (USP). E-mail: <feforte@
hotmail.com>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 457

concluir que a CUT não experimenta uma fase de forte crescimento e


de aceleração do processo de institucionalização, entretanto, é
considerada uma instituição forte atualmente. As perdas e
recomposições políticas, vivenciadas desde 2003, não conseguiram
desestabilizar o tamanho das delegações nos congressos da CUT,
nem o número de entidades filiadas. Por isso, o período 2003-10 é
marcado por uma fase que se caracteriza como estabilização
institucional. O exercício de um sindicalismo aberto ao exterior, a
partir de uma agenda cidadã, conforme pretendido no discurso da
instituição, é ainda um desafio.
Palavras-chave: Central Única dos Trabalhadores; Espaço da
cidadania; Institucionalização; Sindicato cidadão.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. ASPECTOS DA ESTRUTURA SINDICAL NO
BRASIL E AS PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS DA CUT; 1.1. A AÇÃO
SINDICAL CIDADÃ DA CUT NO INÍCIO DO SÉCULO XXI –
DILEMAS E PERSPECTIVAS; 2. O RECONHECIMENTO JURÍDICO
DAS CENTRAIS SINDICAIS E OS DILEMAS DA CUT; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Em um momento em que a credibilidade das instituições


sindicais e das instituições políticas, em geral, é bastante indagada,
partimos do pressuposto de que a Central Única dos Trabalhadores é
uma instituição forte, organizada em 17 ramos de atividade
econômica223. Opção organizativa adotada por esta central sindical
que, desde a sua origem em 1983, pretendeu realizar um sindicalismo
de caráter independente, classista e de massas, fazendo uma evidente
contraposição ao modelo de sindicalismo organizado por categorias,
conforme normatiza a estrutura sindical oficial do país.
Considerando que a CUT se pauta pelo exercício de um
sindicalismo que pretende a transformação da sociedade brasileira,
verificamos que, vinte anos após a sua criação, no período 2003-

223
Os ramos reconhecidos pela CUT são: Comércio e Serviços; Seguridade Social;
Profissionais Liberais; Vestuário; Educação; Construção e Madeira; Urbanitário;
Alimentação; Financeiro; Metalúrgico; Aposentados; Químico; Rural; Comunicação
e Informação; Administração Pública; Transporte; Municipais.
458 Movimentos, Direitos e Instituições

2010224 durante o Governo Lula esta central sindical procurou


desenvolver uma agenda pelo desenvolvimento em conjunto com as
centrais sindicais do país. Os resultados apresentados neste artigo
abordam os significados da relação associativa (WEBER, 2009) entre
as centrais sindicais, os seus impactos para dentro da CUT, além de
averiguar quais foram às influências deste governo para a possível
conformação de uma nova institucionalização da central sindical no
início do século XXI.
A metodologia da investigação priorizou a análise dos
resultados das pesquisas da CUT sobre o perfil socioeconômico dos
dirigentes sindicais eleitos delegados no 8º, 9º, 10 e 11 Congresso
Nacional da CUT (CONCUT). Além disto, no âmbito nacional
aplicaram-se entrevistas envolvendo os Diretores Nacionais da CUT,
os representantes das centrais sindicais com as quais a CUT vem
estabelecendo uma parceria regular e representante dos movimentos
sociais aglutinados na Coordenação dos Movimentos Sociais.
A seguir apresentam-se alguns aspectos da estrutura
sindical no Brasil e as estratégias desenvolvidas pela CUT no período
2003-2010, com foco na ação sindical cidadã.

1. ASPECTOS DA ESTRUTURA SINDICAL NO BRASIL


E AS PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS DA CUT
O atual cenário de reorganização do campo sindical
nacional no início do século XXI tem levado a Central Única dos
Trabalhadores a exercer um novo papel, centrado principalmente na
sua capacidade de articular a agenda do sindicalismo brasileiro frente
ao poder instituído e à sociedade. Com esta percepção de mudança
em curso e do desafio de ter que exercer uma prática sindical
diferente daquela realizada nos anos de 1980 e 1990, fortemente
marcadas por ações de confronto e de busca por reconhecimento no
campo político nacional. No período 2003-2010, quando o Partido dos
Trabalhadores (PT) se tornou governo, a CUT passou a focar numa
ampla agenda negocial direcionada para o desenvolvimento do país,
com aliados que não foram prioritários em outros períodos, como as
centrais sindicais que possuem reconhecimento formal pelo Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE). Assim, neste artigo objetiva-se
apresentar os principais dilemas para a instituição no início do século

224
Considerando este recorte temporal, analisar-se-á a trajetória da CUT nas gestões
2003-2006, 2006-2009 e 2009-2012.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 459

XXI e averiguar se há emergência de novos processos de


institucionalização. (PANEBIANCO, 2005).
Faz-se importante ressaltar que se entende por
institucionalização “o processo efetivo por meio do qual a organização
incorpora valores e objetivos dos fundadores do partido”.
(PANEBIANCO, 2005, p. 100). De acordo com o autor, no processo
de institucionalização bem sucedido, a organização se torna, ela
própria, objetivo para uma grande parte dos seus filiados e, deste
modo, produz valores coletivos. Essencialmente, são dois os
processos que se desenvolvem simultaneamente, provocando a
institucionalização: “1) O desenvolvimento de interesses para a
manutenção da organização (próprios dos dirigentes nos diversos
níveis da pirâmide organizativa); 2) O desenvolvimento de lealdades
organizativas difusas”. (PANEBIANCO, 2005, p. 101). Ambos os
processos estão relacionados com a formação de um sistema de
incentivos.
A pretensão deste trabalho não é fazer uma avaliação
normativa, preocupada em situar a CUT no campo político do
governo ou no campo político que faz oposição a este. Tendo em
consideração que, numa relação política, o conteúdo do sentido da
relação social pode mudar e “também é possível que esse conteúdo
de sentido seja em parte perene, em parte variável” (WEBER, 2009,
p. 17), busca-se identificar as constelações de interesses, os fatores
que condicionam a ação sindical conjunta entre as centrais sindicais,
os conflitos e os dilemas de ordem institucional interna e externa que
podem ter influenciado a intensidade e o tipo de ação política
estabelecida a partir de 2003, focada numa ampla agenda negocial
no âmbito nacional e dos Estados.
Vale lembrar que no período mais recente, neste início de
século XXI, a inovação no campo político sindical nacional ficou por
conta do reconhecimento jurídico das centrais, a partir da Lei n.
11.648/08. No entanto, a unicidade sindical, as contribuições
compulsórias e o reconhecimento legal outorgado pelo Estado ainda
conformam os pilares da estrutura sindical no Brasil. Em fevereiro de
2014, de acordo com o Sistema Integrado de Relações de Trabalho
(SIRT), onze centrais sindicais disputavam a “corrida” pelo registro
sindical junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, deste total,
atualmente apenas seis possuem o reconhecimento formal são elas:
CUT, Força sindical, União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central
dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nova Central
460 Movimentos, Direitos e Instituições

Sindical de Trabalhadores (NCST) e Central dos Sindicatos


Brasileiros (CSB). As centrais sindicais que tentam alcançar o
percentual de 7% que é a representatividade mínima exigida pelo
aparato burocrático estatal são: Central do Brasil Democrática de
Trabalhadores (CBTD), Central Sindical e Popular (CONLUTAS),
Central Unificada dos Profissionais Servidores Públicos do Brasil,
Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), União Sindical
dos Trabalhadores (UST).
Com a obtenção do reconhecimento legal, a central sindical
225
passa a ter o direito de receber 10% dos recursos do imposto sindical ,
sendo que, a divisão se dá conforme a representatividade de cada
central sindical. Além disto, a central sindical poderá participar de
negociações em espaços de diálogo social que possuam composição
tripartite, nos quais estejam em discussão assuntos de interesse geral
dos trabalhadores. Abaixo, segue a Tabela 1 com o índice de
representatividade das centrais sindicais, no período 2008-2013.
Tabela 1. Índice de Representatividade das Centrais Sindicais no
Brasil (%)
CENTRAL 2008 2009 2010 2011 2012 2013
SINDICAL
CUT 35,84 36,79 38,23 38,32 36,65 35,60
FS 12,33 13,10 13,71 14,12 13,67 13,80
UGT 6,29 7,19 7,19 7,89 11,25 11,20
226
CGTB 5,02 5,02 5,04 7,02 3,82 -
CTB 5,09 6,12 7,55 7,77 9,15 9,20
NCST 6,27 5,47 6,69 7,04 8,09 8,10
Fonte: Elaboração própria com base nas informações da SRT-MTE

Os resultados apontados a seguir não pretendem tirar


conclusões sobre a recomposição do campo político sindical nacional,
mas dar pistas sobre como esta intensa relação social que a CUT
procurou desenvolver com as centrais sindicais reconhecidas pode
ter sido influenciada pela dinâmica que envolve os partidos políticos e
as centrais sindicais. A propósito desta discussão, para Hyman e
Grumbrell-McCormick (2010), a relação entre os partidos e os

225
A divisão do imposto sindical para os trabalhadores é feita da seguinte forma: 5%
para as confederações, 15% para as federações, 60% para os sindicatos e 10%
para a Conta Especial Emprego e Salário.
226
A partir de 2012, a CGTB não atingiu a representatividade mínima de 7%, desde 2011
as disputas internas resultaram em mais pulverização sindical. Atualmente, as principais
lideranças da CGTB dividem-se entre a opção por permanecer na CGTB ou alçar-se
para a construção da CSB, que recentemente obteve o reconhecimento pelo MTE.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 461

sindicatos é complexa e contraditória, mas os quatro fatores que


podem ajudar a explicar esta relação são a ideologia, as
oportunidades estruturais, a capacidade de organização dos atores
políticos e o ambiente político e econômico externo. No caso
brasileiro, ainda que o PT tenha sido constituído antes da CUT, os
atores que criaram as instituições são os mesmos.
No período 2003-2010, quando o PT se tornou governo, a
CUT passou a focar uma ampla agenda de negociações direcionada
para o desenvolvimento, uma experiência muito próxima de um
sindicalismo que busca articular estratégias de negociação versus
contestação (LIMA, 1991; SANTOS, 1995; ROSA, 1998; COSTA,
2011) e que pode ser associada à tipologia do sindicalismo cidadão
(VÉRAS, 2002; NASCIMENTO, 1998). No 8º CONCUT, foi aprovada
uma resolução que defendeu a construção de um movimento sindical
unificado em torno de consensos possíveis, definindo que “as
batalhas dos trabalhadores devem estar em sintonia com a luta mais
geral do governo Lula rumo à reconstrução nacional e por um novo
modelo de desenvolvimento”. (CUT, 2003, p. 43).
Associado às pretensões expressas nas reivindicações
dessa ampla Agenda, se verifica que está posto o desafio de
extrapolar os limites desta relação social fechada (WEBER, 2009)
entre as centrais sindicais. Na verdade, se a busca é por ampliação
dos direitos de cidadania, se afirmar como sindicato cidadão significa
se tornar capaz de construir uma ponte (sob o signo da autonomia e
da cidadania) entre os segmentos que o sindicalismo representa e
aqueles que têm sido designados por excluídos (VÉRAS, 2002). Fato
que pode exigir uma revisão das práticas sindicais tradicionais,
avançando com o exercício de um sindicalismo aberto ao exterior, ou
seja, com práticas que se localizam num modo de abertura de modo
de novos caminhos (SANTOS, 2000) e que pretendem a inclusão de
pessoas e de temas que não constam tradicionalmente na agenda
sindical. Estes são os pressupostos fundamentais para um
sindicalismo que pretende aliar contestação e negociação,
avançando rumo ao exercício do sindicalismo cidadão.

1.1 A Ação Sindical Cidadã da Cut no Início do


Século XXI – Dilemas e Perspectivas
462 Movimentos, Direitos e Instituições

A ação sindical cidadã, que pretende a luta por ampliação


de direitos de cidadania, na década de 2000, teve como reforço a
vigência do Governo Lula, que se mostrou mais sensível às
reivindicações dos representantes dos trabalhadores. Portanto, há
perspectivas de sintonia entre as centrais sindicais e o poder
instituído. Realidade que impulsionou uma relação sindical que, no
âmbito nacional, se expressou a partir da constituição de uma
linguagem homogênea e da aplicação de uma política cuja orientação
do sentido da ação foi marcada pela unidade em torno dos grandes
temas nacionais, como por exemplo, na questão do salário mínimo
nacional. A reivindicação por valorização do salário mínimo não se
restringiu às classes tradicionalmente organizadas pelas centrais
sindicais, mas acabou por atingir uma gama diversificada de
trabalhadores cuja situação de classe, em geral, não é favorável ao
estabelecimento de uma relação associativa, conferindo uma nova
visibilidade a ação das centrais sindicais no plano nacional.
Esta experiência influenciou a relação associativa entre as
centrais sindicais e a realização de um conjunto de ações unificadas,
mas não contribuiu para impulsionar novos processos de
institucionalização da CUT no início do século XXI. Porém, o que se
verifica é a tendência a uma forte dinâmica reorganizativa política de
caráter interno e uma tendência à estabilização institucional.
Analisando especificamente a CUT, o descontentamento com o grau
de autonomia desta central sindical em relação ao governo Lula
também foi decisivo para o início do processo de reorganização
institucional interno, no qual esta instituição a partir de 2003 perdeu
tendências políticas que se orientavam a partir da ação de partidos
políticos como o PSTU e o PSOL. As centrais sindicais tiveram êxito
na luta pela valorização do salário mínimo, na ampliação da
participação institucional e (pode-se acrescentar) na conquista do
próprio reconhecimento jurídico com garantia de financiamento.
Afinal, esta era uma reivindicação expressa na Agenda dos
Trabalhadores pelo Desenvolvimento, ação assumida pelo conjunto
das centrais sindicais, em 2007.
A composição social da CUT é estável com um quadro de
dirigentes liberado para viver da política, pois são trabalhadores
remunerados e, em geral, disponíveis parcialmente ou totalmente
para a atividade sindical. Todavia, os dirigentes sindicais da CUT se
mostraram pouco preparados para lidar com a totalidade da Agenda
dos Trabalhadores Pelo Desenvolvimento. A ação pode ser o
diferencial do novo século nesta instituição, pois insere as
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 463

reivindicações do espaço da produção (SANTOS, 2000) dentro de


uma pauta social mais ampla, buscando exercer um modelo de
sindicalismo aberto ao exterior. Na visão da CUT, a Agenda sintetiza
a luta por um novo modelo de desenvolvimento. Fato que nos faz
pensar que esta estratégia negocial almeja civilizar o capitalismo, a
partir de um conjunto de reivindicações sintetizadas em grandes
diretrizes como “Valorização do trabalho”, “Igualdade, distribuição de
renda e inclusão social”, “Estado democrático com caráter público e
participação ativa da sociedade”. Sendo assim, a CUT pretende lutar
por ampliação dos direitos de cidadania para além do espaço da
produção. Característica presente no modelo originário desta central
sindical e intensificada a partir da década de 1990, tendo como baliza
a inserção do conceito de sindicato cidadão na agenda sindical.
Em contraste ao exposto, verifica-se que a prática sindical
ainda está bastante centrada nas reivindicações das categorias, ou
seja, a questão política que se impõe no cotidiano dos sindicatos é a
luta por cidadania no espaço da produção. Perspectiva que tende a
reduzir o alcance da ação cidadã que a CUT pretendeu desenvolver
em articulação com os movimentos sociais e outros segmentos
sociais não representados pelas centrais sindicais. Além disto, o
reconhecimento legal das centrais sindicais gerou inúmeros impasses
para consecução desta agenda cidadã nos Estados. As entrevistas
aplicadas em todas as regiões do país apontaram que a base sindical
da CUT se mostrou “confusa” e pouco interessada em instituir uma
relação associativa com as centrais sindicais. Ao mesmo tempo, se
constatou a necessidade de ter que administrar um conjunto de lutas
que se dão numa situação de concorrência entre as centrais sindicais
considerando que no cenário de legalização a representatividade
política é aferida pelo número de sindicatos filiados a cada central
sindical.
A busca por articular as centrais sindicais em torno de uma
pauta comum se destacou como uma dinâmica que teve maior peso
no âmbito nacional, situação que demonstra que há um
distanciamento entre a ação política da cúpula da Direção da CUT
Nacional e as Direções das Estaduais da CUT. Além disto, a
ausência de legitimação da pauta sindical nacional nas bases da CUT
pode indicar que, em ramos com forte sindicalização, a prioridade
pode ter sido as reivindicações imediatas das categorias.
Outro limite de caráter político, evidenciado no momento da
aplicação da agenda cidadã que a CUT pretendeu desenvolver está
464 Movimentos, Direitos e Instituições

localizado na articulação política das centrais sindicais nos Estados,


pois, com a permanente disputa e concorrência no campo político
institucional, não se consolidou uma relação associativa entre as
representações das centrais sindicais que permita avançar com a
agenda pelo desenvolvimento nas regiões do país. O quadro de
reconhecimento jurídico com garantia de sustentação financeira
intensificou a concorrência entre as centrais sindicais em todos os
Estados, em alguns casos, a disputa pelos sindicatos é definida em
situações de coação e violência física.
Assim, verifica-se que a CUT exerce um protagonismo no
movimento de articulação das centrais sindicais reconhecidas pelo
MTE, mas esta é uma dinâmica que tem maior peso no âmbito
nacional. Nas representações estaduais da CUT o que ocorre, em
geral, é a articulação de algumas ações pontuais entre as centrais
sindicais. Esta limitação também pode ser verificada na pesquisa
aplicada no 10º CONCUT, em 2009, pois 45,9% dos delegados têm
conhecimento das propostas da CUT para um novo modelo de
desenvolvimento e 51,4% afirmaram desconhecer a formulação,
assim como as propostas da CUT para disputar um novo modelo de
desenvolvimento.
No 10º CONCUT, a pesquisa aplicada informou que, para
os dirigentes sindicais devem prevalecer na agenda de negociação
da CUT, questões como salário, jornada de trabalho, entre outras
pautas, sendo reivindicações que pretendem a luta por uma cidadania
nas questões que dizem respeito ao espaço da produção. Apenas
2,7% dos delegados consideraram fundamental para a CUT tornar o
tema modelo de desenvolvimento econômico e social uma ação
prioritária no período 2009-2012. Portanto, se a CUT quiser avançar
com um sindicalismo de negociação, que se expressa a partir de uma
agenda pelo desenvolvimento precisará superar déficits próprios da
instituição, tais como: capacidade de articulação das pautas da CUT
Nacional ao cotidiano das suas entidades sindicais; formação dos
seus quadros dirigentes; as relações sociais estabelecidas entre as
instituições sindicais e os partidos políticos, interferindo nos avanços
de uma agenda sindical nacional comum, entre outros fatores.
(CARVALHO, 2013).
Considerando estas perspectivas de ação, pensa-se que o
desafio que se impõe para a CUT nesta nova etapa se refere a sua
capacidade em articular pragmaticamente estratégias de contestação
e de participação. (SANTOS, 2004; COSTA, 2011). Portanto, se a
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 465

CUT pretende avançar com a sua proposta de luta por um Estado


democratizado e um novo padrão de desenvolvimento, conforme
expresso nas diversas plataformas que construiu nesta primeira
década do século XXI também terá que enfrentar um dos seus
principais dilemas que está localizado na relação do sindicalismo
CUT versus governo do PT. Em síntese, se trata da questão da
autonomia. É válido lembrar que a ação cidadã apresentou mais
intensidade nos períodos eleitorais. A seguir, apresentam-se os
dilemas da CUT no que tange à questão do reconhecimento jurídico e
os seus impactos para dentro da CUT com foco na agenda cidadã
que esta central sindical buscou desenvolver em articulação com
outros atores sociais.

2. O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS CENTRAIS


SINDICAIS E OS DILEMAS DA CUT

As recomposições políticas que aconteceram no interior da


CUT a partir de 2003 têm associação à relação da CUT com o poder
instituído, além disto, as perspectivas para o reconhecimento legal
das centrais sindicais com sustentação financeira garantida pelo
Estado criaram os pilares para o início da reorganização no campo
sindical nacional neste novo século. No cenário de reorganização
sindical que acontece tanto pela esquerda quanto pela direita,
conforme definiu um dirigente da Conlutas, em entrevista aplicada em
2010, para além do reconhecimento sindical, medidas como as
Portarias 186 e 326, proposições de autoria do Ministério do Trabalho
e Emprego, deram impulso às reconfigurações que acontecem no
campo sindical atualmente.
A CUT passa por um momento de transição, pois com o
reconhecimento jurídico das centrais sindicais e com sustentação
financeira, assegurada a partir do recurso do imposto sindical, se
abrem perspectivas para o surgimento de novos processos de
institucionalização na central sindical. É precisamente nesta questão
que está localizado um dos principais dilemas desta central sindical,
ou seja, a utilização do imposto sindical como parte das receitas da
instituição, ação que se contrapõe ao que historicamente a CUT
sempre defendeu. Para os dirigentes sindicais das diversas regiões
do País, o imposto sindical deve ser utilizado como forma de fazer
luta. Neste caso, as lutas se dão numa situação de concorrência
entre a CUT e o conjunto das centrais sindicais. É o que os dirigentes
466 Movimentos, Direitos e Instituições

costumam designar como disputa de bases. A ação pode ter exercido


influência sobre a não continuidade da Agenda dos Trabalhadores
articulada pelas centrais sindicais nos Estados. Atualmente, embora a
CUT mantenha a sua posição histórica pelo fim do imposto sindical,
opta pelo recebimento do recurso, alegando a necessidade de
compensar a redução da arrecadação e de ampliar os investimentos
nas disputas eleitorais. Além disto, em 2008, a central sindical se
definiu como pouco preparada para extinguir imediatamente o uso
desta fonte financeira.
Ao receber o recurso do imposto sindical se percebe que a
CUT está diante de outro dilema. Se o fortalecimento da estrutura
física não avançar de forma articulada ao pretenso objetivo político de
fundo que é o fim do imposto sindical – com representantes de
categorias profissionais que legitimam a pauta e os princípios da CUT
– se depreende que há o risco desta central potencializar o
desenvolvimento de uma ampla burocracia sindical acomodada a
fortes estruturas com orçamentos ampliados devido ao recebimento
do recurso compulsório. No entanto, é precipitado afirmar que uma
nova institucionalização emergiu na CUT, a partir da aprovação da
Lei n. 11.648/08 e a garantia do imposto sindical. É preciso
considerar que, entre os dirigentes da CUT, nas pesquisas aplicadas
no 8º e no 10 CONCUT, prevaleceu a visão de que “sindicato deve se
sustentar a partir da mensalidade dos associados” e, no 11 CONCUT,
os dirigentes sindicais afirmaram que a “contribuição negocial” deve
ser a principal base de sustentação destas instituições. Além disto,
apenas 2,7% dos Cutistas, no 10 CONCUT, citaram a formalização
das confederações, federações e sindicatos no Ministério do Trabalho
e Emprego como ação prioritária para a CUT desenvolver no período
2009-2012.
Os resultados demonstram que a percepção dos dirigentes
ainda está bastante alinhada aos valores e objetivos da instituição
que permanecem os mesmos desde a sua fundação. Entretanto, se,
por um lado a CUT não efetivou mudanças estatutárias que
imponham ordem contrária aos princípios preconizados desde 1983,
por outro lado, se verifica que a CUT vem ampliando o seu aparato
burocrático institucional, a partir da criação de novas secretarias, de
uma leve ampliação do número de dirigentes que compõem as
direções executivas, e da profissionalização da sua Direção Nacional
que passou de uma representação rotativa para uma representação
fixa, com representantes eleitos pelas Estaduais da CUT e pelos seus
ramos. Em 2009, a Direção Nacional foi composta por 45
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 467

representantes indicados pelas Estaduais da CUT e 45 indicados


pelos ramos da CUT. Porém, com a alteração estatutária aprovada
em 2012, este número passou para 46, totalizando 92 representantes
neste espaço deliberativo.
Na pesquisa aplicada durante o 10 CONCUT, a CUT
perguntou aos seus delegados: no cenário das disputas sindicais
quais as centrais sindicais e/ou projetos sindicais que mais disputam
a representatividade com a CUT, de acordo com o grau de
acirramento da disputa na base? As respostas mais assinaladas
foram: a Conlutas (32,4%), sem resposta (20,7%), a CTB (18,3%), a
Força Sindical (12,4%). Os dados confirmaram que a concorrência
sindical hoje está concentrada entre as organizações que se
reivindicam de esquerda e que foram tendências políticas na CUT.
Além disto, é elevado o número de sem respostas, confirmando o
momento de transição pelo qual a CUT passa frente ao novo cenário
sindical, em que a relação associativa se altera. Se antes a disputa
com os dirigentes sindicais ligados ao Partido Socialista dos
Trabalhadores Unificado (PSTU) e a Corrente Sindical Classista
(CSC)227 era feita por dentro da CUT, hoje a concorrência adquire
novos contornos institucionais e é provável que as tensões fiquem
mais concentradas por dentro da Articulação Sindical que é a
tendência hegemônica na CUT.
Comparando os dados do 11 CONCUT aos dois congressos
anteriores, se notou que há uma tendência à redução do número de
delegados na região sudeste, enquanto que as regiões norte, sul e
centro-oeste seguem com um contínuo e leve incremento no seu
número de participantes. Já a região nordeste se consolidou como a
segunda maior delegação aos congressos da CUT e, sendo assim,
desde 2009, revelou percentuais muito próximos aos da região
sudeste. No entanto, a composição política da Direção Executiva
Nacional, considerando a representação por ramos de atividade
econômica, mostrou que, no período em análise, a região sudeste
continua a deter os cargos de maior poder na hierarquia da

227
Os dirigentes ligados ao PSTU e a CSC sob forte influência do Partido Comunista
do Brasil (PC do B) tiveram representações sindicais dentro da CUT; no entanto, a
partir de 2003, a opção política adotada centrou-se na organização de projetos
sindicais próprios. Assim, a Conlutas agrupa significativo número de dirigentes
ligados ao PSTU e a CTB agrupa majoritariamente dirigentes ligados ao PC do B.
Vale lembrar que, nestas centrais sindicais os agrupamentos políticos também
podem reunir dirigentes sindicais de outros partidos políticos e dirigentes sem
filiação partidária.
468 Movimentos, Direitos e Instituições

instituição, prevalecendo à força política e econômica de São Paulo


sobre as demais regiões do País.
O envelhecimento dos dirigentes foi uma tendência já
apontada por Rodrigues (1997) quando analisou o perfil dos
delegados no 4º CONCUT (1991). Neste sentido, se viu que 57,9%
dos dirigentes se situava na faixa etária de 30 a 39 anos. Na década
de 2000, essa tendência se confirmou e, em virtude disso, nos
congressos da CUT, predominaram os dirigentes situados na faixa
etária de 36 a 44 anos e de 45 a 54 anos. Resultados que
demonstram que participam dos congressos da CUT dirigentes
políticos experientes e com alto grau de escolaridade, estando à
frente do aparato sindical. A maioria exerce cargos de direção,
seguindo a mudança estatutária aprovada no 3º CONCUT em 1988.
A análise dos dados permitiu concluir que há uma
estabilidade na participação dos ramos reconhecidos pela CUT ao
longo dos três últimos congressos. Assim, o ramo da educação se
manteve como o maior número de representantes, seguido pelo rural
e pelo ramo da administração pública. No 11 CONCUT, o ramo
financeiro se igualou à administração pública em número de
participantes e cada um representou 7,24% do total de delegados. A
estabilidade na participação dos ramos demonstra que a CUT é uma
instituição forte. Sob este aspecto, verifica-se que as quedas perdas e
as recomposições políticas, vivenciadas desde 2003, não
conseguiram desestabilizar o tamanho das delegações aos
congressos da CUT. Outro fator que pode ter influenciado a
manutenção do tamanho das delegações é que, neste início de
século XXI, não se realizaram mudanças estatutárias que pudessem
ter influência sobre o critério de escolha dos representantes aos
congressos da CUT.
No período em análise, verifica-se, seja pela composição
das direções, seja pelas disputas que antecedem os congressos da
CUT, que não há uma alternância real de poder. Assim, em situações
de disputa por cargos que envolveram os principais dirigentes
sindicais da Articulação Sindical, o peso do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial
do Estado de São Paulo (Apeoesp) e do Sindicato dos Bancários de
São Paulo foi decisivo, portanto, o poder continua bastante
concentrado em São Paulo e em instituições que, desde a fundação
da CUT, têm um papel preponderante. Esta realidade aponta para um
quadro de estabilização institucional no período 2003-2012. Logo,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 469

mesmo que, na ocasião dos dois últimos congressos nacionais da


CUT, a Articulação Sindical se apresente no espaço público com um
discurso homogêneo e, em geral, com os conflitos já previamente
resolvidos, o fato é que as contínuas disputas sucessórias, não só
para a presidência da instituição, como também em relação aos
demais cargos, revelaram impasses que esta tendência política vai
ter que administrar, caso queira de fato avançar com o seu objetivo
inicial de instituir uma Agenda dos Trabalhadores pelo
Desenvolvimento. (CARVALHO, 2013).
Em 2012, a ação que a CUT conseguiu desenvolver de
forma mais elaborada, no que tange à atualização do seu projeto
político e organizativo foi a Campanha Nacional por Liberdade e
Autonomia Sindical. A ação pode ter influenciado na alteração do
caráter da relação social fechada entre as centrais sindicais em torno
de uma agenda comum, ou seja, em momentos de maior contestação
no que tange ao debate sobre a atual estrutura sindical, a visão da
CUT colidiu com as opiniões das outras centrais sindicais. Vê-se que
a CUT vai buscando se diferenciar das outras centrais sindicais a
partir da luta pela implementação da Convenção 87 da OIT e pelo fim
do imposto sindical. Portanto, posicionando-se de forma contrária à
parte da proposta aprovada pela lei que reconheceu as centrais
sindicais, vê-se que este fato se caracteriza como indício de uma
mudança na estratégia da instituição. Ou seja, se a CUT conseguir
efetivar esta proposta na sua ação social política poderá travar novos
processos de institucionalização que possam se desenvolver a partir
da incorporação do imposto sindical, da utilização do “dinheiro fácil”
que as instituições sindicais recebem, gerando uma acomodação nas
suas reivindicações, portanto uma acomodação institucional ao novo
cenário sindical.
Além disto, a ação pode ter sido motivada pela tentativa de
barrar o cenário de concorrência entre as centrais sindicais, pois,
para a CUT com a conquista da liberdade sindical, a contribuição
financeira deve ser proporcional à representatividade do sindicato,
isto é, ao número de trabalhadores associados. Deste modo,
reforçaria a sua hegemonia no campo sindical nacional, contrapondo-
se à lógica de representatividade numérica exigida pelo MTE. No
entanto, o fato de o plebiscito não ter sido uma prioridade pode
indicar acomodação dos dirigentes da CUT à atual estrutura sindical.
Assim, a CUT, ao reforçar esta posição política contrária ao imposto
sindical e ao pretender retomar a luta pela ratificação da Convenção
87, pode ter realizado uma ação orientada para dentro da instituição,
470 Movimentos, Direitos e Instituições

que corresponde a mais uma tentativa de incorporação dos seus


filiados aos seus valores e objetivos. Portanto, se verifica que a luta
não é somente contra a estrutura oficial, a ação do MTE e do Poder
Judiciário, conforme foi expresso na 13ª Plenária em 2011, mas está
implícito o desafio de superar as contradições internas da ordem do
discurso e da prática sindical da instituição.

CONCLUSÃO

No momento atual, apesar dos dilemas que são gerados em


função da incorporação do imposto sindical e das regras de
representatividade elaboradas pelo aparelho burocrático do Estado,
no cotidiano da ação sindical da CUT ainda não se verifica a
consolidação de um novo projeto político e sindical, que aponta para
novos objetivos e princípios institucionais, conformados em um novo
estatuto. Os dados demonstram que, mesmo com a “corrida” pelo
registro sindical num cenário de reconhecimento das centrais
sindicais, a CUT não passou por um processo de acelerado
crescimento e institucionalização sindical, conforme mostrou
Rodrigues (1997) ao analisar a trajetória da central sindical até 1993.
O crescimento da CUT, no período 2003-2012, ficou em
torno de 13%. Vale lembrar que, entre 1991 e 2001, a CUT teve um
crescimento de 70% passando de 1.668 para 2.834 entidades
filiadas. Além disto, na ocasião da realização do 8º CONCUT (2003) a
taxa média de sindicalização na CUT era de 33%, os dados da
Secretaria Nacional de Organização (SNO-CUT), em janeiro de 2014,
informam que a taxa média de sindicalização permanece em 33%.
Estes resultados apontam para uma tendência a estabilização
institucional. (CARVALHO, 2013).
O fato de a Central Única dos Trabalhadores, em alguns
momentos, ter colocado em questão as atuais regras impostas pela
burocracia estatal e dado como prazo até o 12 CONCUT (2015) para
o debate que almeja reorganizar a sua estrutura organizacional
interna, bem como optar por fazê-lo antes de realizar uma mudança
estatutária, sinaliza para uma resposta sindical ao novo contexto e
não apenas uma acomodação institucional ao atual cenário sindical.
A dificuldade em estabelecer um posicionamento efetivo em direção a
uma ação sindical cidadã tem relação com a capacidade de
superação dos dilemas por dentro da instituição, em específico no
que tange ao projeto político e organizativo. Portanto, é a superação
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 471

destes limites que poderá contribuir para uma nova institucionalização


da CUT no início do século XXI.

REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 20

O DIREITO COMO NORMA COERCITIVA EM


MICHEL FOUCAULT

228
Gloriete Marques Alves Hilário
229
Maurício Dias dos Santos

RESUMO
O principal alvo da crítica foucaultiana são as formas de controle
exercidas nas instituições sociais, formas de sujeição que cerceiam o
indivíduo a uma determinação própria. Por esse sentido há três
modos de determinação do sujeito: um que permite pensá-lo por
práticas de objetivação por meio da Ciência, outro que permite pensá-
lo por práticas discursivas que desempenham papel de produtoras

228
Doutoranda em Sociologia (Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e
Sindicalismo) pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC),
tendo o Centro de Estudos Sociais (CES) como a Instituição de acolhimento de
investigação. Mestre e Especialista na mesma área. Graduada em Direito pela
Universidade Salgado de Oliveira, com intercâmbio no âmbito da graduação em
Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Leciona na Faculdade
de Jussara (FAJ), Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER),
Faculdade Integrada de Goiás (FIG) e Arctempos. É associada ao Núcleo de
Estudos Luso-Brasileiros da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. E-
mail: <glomalves@yahoo.com.br>.
229
Graduado em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione (FACDO). Pós-
graduado (Especialista) em Direito Constitucional pela Faculdade de Ciências
Sociais Aplicadas de Marabá (FACIMAB). Servidor Público Federal no Cargo de
Auditor na Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: <mausedias2@gmail.
com>.
474 Movimentos, Direitos e Instituições

epistêmicas, e o que permite pensá-lo por práticas de subjetivação,


pelas quais o indivíduo pode pensar-se enquanto sujeito. Estudando
o sentido com que o Direito é trabalhado nas obras de Michel
Foucault, dimensionando esse estudo na descrição e análise da
primeira cena do documentário “Justiça” de Maria Augusta Gusmão, e
concluindo a respeito do papel dos novos direitos, buscou-se analisar
a natureza coercitiva do direito nas relações de poder.
Palavras-chave: Direito; Documentário Justiça; Michel Foucault;
Norma Coercitiva; Poder.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. A (DES) CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO; 1.1.
“JUSTIÇA”, UM DOCUMENTÁRIO DE MARIA AUGUSTA GUSMÃO;
1.1.1. DESCRIÇÃO DA PRIMEIRA CENA; 1.2. ANÁLISE DO FILME;
1.2.1. O AMBIENTE DA SALA DE AUDIÊNCIA E A FORMALIZAÇÃO
DOS PERSONAGENS; 1.2.1.1. A FORMALIZAÇÃO DO SUJEITO
POR PRÁTICAS DE OBJETIVAÇÃO; 1.2.1.2. A FORMALIZAÇÃO
DOS SUJEITOS POR PRÁTICAS DISCURSIVAS; 1.2.1.3. A
FORMALIZAÇÃO DOS SUJEITOS POR PRÁTICAS DE
SUBJETIVAÇÃO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O principal objeto da crítica dos estudos de Michel Foucault


reside nas formas de controle exercidas em instituições sociais,
capazes de sujeitar o indivíduo a uma determinação própria. Nesse
sentido, há três modos de determinação do sujeito: um que o permite
pensar por práticas de objetivação por meio da Ciência; outro que o
permite pensar por práticas discursivas que desempenham papel de
produtoras epistêmicas; e, o que o permite pensar por práticas de
subjetivação, pelas quais o indivíduo pode pensar-se enquanto
sujeito.
Nesse contexto, o Direito é estudado como dispositivo de
explicação do poder. Essa questão é colocada de forma
problemática, porquanto não existe uma conceituação precisa sobre o
Direito. Aliás, em nenhum ponto de sua obra Foucault cuida do Direito
como objeto isolado a ser analisado, mas sim correlacionado à
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 475

explicação que as manifestações das relações de poder conferem;


como técnica de sujeição230.
O Direito é uma instrumentalidade do poder, que formaliza
as verdades que se entende sobre as relações de
subordinação/dominação. Como efeito, os indivíduos são rotulados
com um timbre que os caracteriza como um grupo insular no contexto
de uma sociedade determinada. As manifestações desses grupos
produzem um discurso crítico do ponto de vista de suas exclusões
sócio-políticas. Aí, um novo campo de saber surge e nele se
manifesta um novo Direito.
As obras de Foucault apresentam um conteúdo inovador na
evolução do modo como se pensa a sociedade moderna. Por meio de
suas pesquisas, processos disciplinares adotados por instituições
como a escola, o hospício, o hospital e a prisão foram analisados e
neles se identificaram coerções institucionais que moldam as
relações pessoais dos indivíduos a padrões ditos aceitáveis de
comportamento.
No que diz respeito ao Direito, nos dias atuais depara-se ele
com reformulações judiciárias e legislativas constantes. São comuns
nos meios jurídicos entendimentos jurisprudenciais e
posicionamentos doutrinários que sofrem com constantes mutações
que tentam refletir os apelos trazidos pelos espelhos diagramados
nos quadros sociais. A sociedade se vê cada vez mais exigente em
relação a uma atuação mais eficaz das instituições jurídicas frente à
violação de seus Direitos. As pessoas clamam por uma justiça mais
célere, mais atuante, sobretudo em setores marginalizados da
sociedade.
O Estado, em resposta a tais demandas, tenta adequar sua
atuação em uma política macroscópica, que tenta explicar setores
marginalizados da sociedade com preceitos de efeito escalonado nos
quadros sociais. Ou seja, reformulando a economia ou a política em
uma escala superestrutural e prevendo sua incidência e eficácia em
setores mais nivelados da população. Por sua vez, essa ação é
concretizada por espaços institucionalizados que normalizam

230
Neste texto, quando os autores se referirem a Direito, significa conjunto de
parâmetros legais estabelecidos formalmente, direito em sentido normalizador de
condutas; já quando se referirem a direito, o fazem no sentido amplo da palavra,
independente de aparato formalmente pré-constituído.
476 Movimentos, Direitos e Instituições

condutas e aderem a uma organização administrativa hierarquizada,


que delimita partes e padroniza procedimentos.
O objetivo então foi analisar a natureza coercitiva do Direito
nas relações de poder constituídas institucionalmente. Para isso,
estudou-se o sentido que o Direito é trabalhado nas obras de Michel
Foucault. Dimensionou-se esse estudo na descrição de um caso
concreto (primeira cena de um documentário), onde se reverificou
que o sujeito é desconstruído pelo Direito a partir das práticas
jurídicas usualmente utilizadas nos procedimentos judiciários.
Concluiu-se a respeito do papel dos novos Direitos, como sendo fruto
do potencial de enfrentamento dos indivíduos conscientes de si na
ordem estabelecida.
Traz-se a descrição e análise da primeira cena do
documentário, Justiça, de Maria Augusta Gusmão – que revela como
o sistema jurídico concerne ao sujeito uma situação de
desumanização, o diluindo em práticas de reprodução automática.
Como marco teórico, dispõe-se de Foucault e a Crítica do Sujeito,
de Inês Lacerda Araújo, que define o decorrer da produção teórica de
Michel Foucault na crítica de uma história do presente a partir do
sujeito dividido em práticas objetivas, discursivas e subjetivas.
Procurou-se definir, a partir da observação de um relato de
documentário, como o Direito, enquanto dispositivo de dominação,
encontra espaço de legitimação nas relações de poder.

1. A (DES)CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO.

Para Araújo (2000, p. 87), o tema central de Foucault não


são as relações entre poder e saber, mas sim a constituição de uma
história do presente a partir do sujeito dividido em práticas. Em As
Palavras e as Coisas, cuidou de como as práticas discursivas como
a filologia, a economia política e a biologia constituem o homem como
sujeito que fala, produz e é ser vivo. Em a História da Loucura e
Vigiar e Punir abordou práticas disciplinares que objetivam o sujeito,
dividindo-o em loucos e sãos mentalmente, doentes e saudáveis,
criminosos e ordeiros. Nos três volumes de História da sexualidade,
tratou de práticas de subjetivação pelas quais o sujeito pode pensar-
se enquanto sujeito ao assumir sua condição sexual.
Portanto,
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 477

[...] há práticas de objetivação que permitem pensá-lo através da


ciência cujo objeto é o indivíduo normalizável; há práticas discursivas
que desempenham papel de produtoras epistêmicas e há práticas de
subjetivação pelas quais o sujeito pode pensar-se enquanto sujeito [...].
(ARAÚJO, 2000, p. 87).

Nestes três modos de determinação do sujeito, três


domínios de atuação se revelam: o campo do “saber, do poder e da
ética, estabelecem-se em relação ao sujeito sobre as coisas, sobre a
ação dos outros e sobre si”. (ARAÚJO, 2000, p. 88). É perante esses
domínios que cabe compreender como o sujeito se constitui enquanto
saber, enquanto relação de poder e enquanto ser moral de suas
ações, segundo a literatura de Michel Foucault. Dessa forma,
pretende-se evidenciar essa constituição a partir da desconstituição
dos sujeitos envolvidos na trama da primeira cena do documentário
Justiça231.
Entretanto, cumpre mencionar que a noção de sujeito é
histórica, não se o podendo pensar como referente da observação de
modo a inferir uma análise pura, livre de qualquer valor correlato. Ao
232
contrário do que postula o cogito cartesiano, que pensa o homem
como senhor de toda representação do seu pensar, é preciso
entender que aquele que conhece só é capaz de conhecer pela
dispersão de seus atos nas proposições do objeto estudado. Nesse
sentido, a noção de sujeito tem usos diferentes a depender da
epistemologia empregada na análise.
A propósito de uma conversa com Alexandre Fontana,
Foucault aduz sobre um sujeito constituído em suas abordagens
metodológicas:

Queria ver como estes problemas de constituição podiam ser


resolvidos no interior de uma trama histórica, em vez de remetê-los a
um sujeito constituinte. É preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar-
se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta
da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que eu chamaria de
genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição
dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto etc., sem ter que
se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo

231
Documentário dirigido por Maria Augusta Gusmão e que retrata uma série de
audiências criminais nas salas de audiências do Fórum da cidade do Rio de
Janeiro no ano de 2004. O filme foi de insigne importância aos debates que
antecederam a proposta da Emenda Constitucional de número 45, também
conhecida como Reforma do Judiciário no Brasil.
232
O cogito cartesiano enseja-se na premissa penso, logo existo.
478 Movimentos, Direitos e Instituições

de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da


história. (FOUCAULT, 2006, p. 7).

Como aponta Araújo (2000, p. 88), o tema sujeito em


Foucault decorre da crítica às postulações, sobretudo, da
fenomenologia do marxismo que era tendente em sua época. Essa
forma de análise se ateve a fundar uma filosofia que pensa o sujeito a
partir das finitudes do homem, o que o determina; ou seja, de um
sujeito que vive, trabalha e fala, relacionando esses preceitos a uma
história de sua produção, o que ele é, e como se relaciona com seus
semelhantes. Essas analíticas da finitude caíram no que Foucault
denominou de sono antropológico, que, nada mais é do que a
pretensão de tomar o corpo, a história da produção ou as relações
sociais empíricas como responsáveis pelo que o homem é.
Nesse sentido, elas, as analíticas da finitude, se iludem.
Alguém sujeitado a determinados fatores não pode desprender-se
deles de modo a valer o empírico como transcendental. Ao contrário,
o sujeito é fruto de um constructo árduo e conflituoso ao longo do
tempo entre acontecimentos discursivos, epistêmicos e práticos.
As analíticas da finitude tentam tecer a trama de um sujeito livre e
universal, em antropologias dogmáticas que ‘esquecem’ que o ‘homem’
é fruto de uma história recente que já o condena a desaparecer.
Foucault se propõe localizar arqueologicamente os a priori históricos
que tornaram possível um conhecimento sobre o homem. A figura de
conhecimento ‘homem’ só apareceu para o saber quando ciências
sobre ele se constituíram. Ocorre que essas ciências o dissolvem,
mostrando o que e pelo que ele é objetivando, então, na verdade, o
homem enquanto tal não existe. (ARAÚJO, 2000, p. 89).

Esta citação não significa o desaparecimento por completo


dos saberes sobre o homem. No contexto da arqueologia do saber, a
significação desta afirmação é no sentido de que o homem tem
acesso a si por saberes, técnicas de se compreender o que é, não
importando a relação com a cientificidade. Esses saberes são uma
espécie de jogo sobre a verdade, técnicas que são produzidas para
se compreender. Dessa forma, conclui Araújo que:

[...] o homem produz por meio de técnicas de produção, comunica-se


por meio de sistemas simbólicos, governa a si e aos outros por meio de
relações de poder e, finalmente, elabora técnicas para voltar-se para si.
Cada sociedade, em cada época, relaciona estes quatro domínios a
seu modo e cada uma delas vem associada a um certo tipo de
dominação cuja pretensão é conduzir os indivíduos a modificar seu
comportamento. (2000, p. 89).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 479

Nesse contexto, o Direito é estudado como dispositivo de


explicação do poder. Essa questão, segundo esse aspecto, é
colocada de forma problemática, porquanto o Direito não existe em
uma acepção substancial teórica e global. Aliás, em nenhum ponto de
sua obra Foucault cuida do Direito como objeto isolado a ser
analisado, mas sim correlacionado à explicação que as
manifestações das relações de poder conferem; como técnica de
sujeição.
Com efeito, a análise dessa desconstituição relaciona-se às
imagens dos direitos aduzidas no capítulo anterior. Se o decorrer das
obras de Foucault evolui no sentido de um sujeito constituído por
práticas, como se denota da leitura de obras desde a História da
Loucura na Idade Clássica até Vigiar e Punir, há também nelas a
possibilidade de se evidenciar as imagens do direito descritas
anteriormente. Dessa forma, salientar-se-á na análise do filme a
seguir, o Direito como lei, consubstanciado junto aos mecanismos
normalizadores – disciplinares e normativos, e sob o ponto de vista
da possibilidade das resistências, na manifestação de um direito
novo, liberto da soberania e dos mecanismos de normalização.

1.1 “Justiça”, um Documentário de Maria Augusta


Gusmão

Aqui, cuida-se da primeira cena de um documentário


intitulado Justiça, dirigido por Maria Augusta Gusmão e que, em seu
teor, retrata a reflexão de uma série de audiências criminais filmadas
no fórum da comarca do Rio de Janeiro/RJ no ano de 2004.
O ponto primeiro a se pensar é a distribuição dos sujeitos e
dos personagens que encenam a trama judiciária. Deve-se imaginá-
los em sua neutralidade, cada um desempenhando um papel que lhe
é próprio, em um ambiente em que cada qual tem o seu lugar; não
existe um juiz mau, um réu bonzinho ou vice-versa. O que quer se
mostrar é a maneira insípida que incita a questão da culpa que é
alocada em um jogo de coerências e incoerências dos fatos narrados
na denúncia e da possibilidade de o réu tê-los ou não cometidos.
Dessa forma, a questão se resume em discutir a respeito de como as
relações de poder, adstritas ao ambiente jurídico, conferem certas
características que constituem os personagens envolvidos nessa
trama.
480 Movimentos, Direitos e Instituições

1.1.1 Descrição da primeira cena

Ao fundo, em um corredor branco escalonado por várias


portas emadeiradas, um homem negro, magro, de aproximadamente
uns trinta anos, é conduzido em uma cadeira de rodas por um policial.
Ele vem ao encontro do espectador quando, repentinamente, adentra
na primeira sala, a da porta à direita. De pronto, em seguida, ele se
vê envolto em uma sala de audiências sendo interrogado pelo
magistrado que, com autoridade, lhe pergunta:

Você não está obrigado a responder o que eu vou lhe perguntar. Eu lhe
pergunto se essa acusação é verdadeira. É verdadeira?
O homem então responde: não, não senhor.
O juiz refuta: não é verdadeira? Você não praticou esse fato?
Homem: Não...
Juiz: Como é que se deu a sua prisão?
Homem novamente aduz: Oh, vou explicar ao sinhô. Eu tava lá no
carnaval na Cruz do Méia. Aí nisso, saiu uma correria com aqueles
negócio de espuminha. Os PM do terceiro batalhão vieram correndo.
Eu, pra me defender, que eles começaram a dá tiro pro auto lá, eu fui e
entrei na rua. Quando eu entrei na rua, tava vindo já esses três
elementos com vários negócio na mão. Aí, os policial abordaram
pedido pra eles pará. Nisso que eles mandaram eles pará, eles foram
tudo correndo e largaram os objeto tudo assim no chão. E nisso eu
tava passando no momento, que eu ia pedi carona o amigo lá do carro
que transporta jornal, pra poder me tirar dali. Aí, nisso os policial me
abordaram, pegaram e me botaram junto e falaram: rapa! Cadê os zoto
que tava aí? Não, num sei quem é não meu tio. Cadê os zoto que tava
contigo? Num sem quem é não. Aí foi, eles me tiraram da cadeira, me
jogaram no chão, me bateram aqui nas costa, me bateram no rosto e
me levaram pra vinte cinco D.P. Aí chego lá, me fizeram assinar um
montão de papel e falaram: oh rapa! Se tu num fala vai ser pior pra ti,
pro teu caso. Bá! Aí eu: oh, meu tio. Oh, meu dôto, por chefe, eu to
contando a verdade pro sinhô, pow! Olha só com tá meu estado pow!
Que estado eu tenho de ficar arrombando casa. O muro lá que o sinhô
falô, o mura da casa era alto. Aí ele falô: oh, rapá! Isso aí é historia pra
boi dormir, cadê os zoto? Por, num conheço ninguém não meu chefe.
Tanto é que, pow, eu posso...
De maneira abrupta, o juiz interrompe a explicação: Tá bom. O que
você faz da vida? Você trabalha?
O homem: Eu só guardador de carro, eu...
Interrompendo novamente o homem, o juiz dita ao escrevente: Que
não é verdadeira a acusação, ponto e vírgula. Que não praticou o fato
narrado na denúncia...
Novamente o juiz: Que dizer que você foi preso em dia de carnaval?
O homem responde: foi...
O juiz: conhecia os três elementos que estavam correndo?
O homem: não sinhô.
O juiz dita ao escrevente novamente: Que não conhecia os três
elementos que passaram correndo. Você tem advogado?
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 481

O homem: não tenho não senhor.


O juiz: Então vai ser nomeada a defensora pública pra defendê-lo.
O homem: Dôto, dôto meritíssimo. Se eu for retornar lá pra DP, se o
senhô pudesse dá uma autorização pra mim mandar pro hospital.
Porque pow, lá no xadrez lá, são setenta e nove lá no xadrez, tá
entendendo? Pra mim...
O juiz: que você tem? Tá doente?
O homem: não, é que, pra mim dá uma evacuada tem que ficar me
arrastando no chão. Pra mim toma banho, não tenho condições de tá
lá. E lá, eu tenho dificuldade de certas coisas...
O juiz: mas eu só posso te remover se tiver uma recomendação
médica, só se o médico me pedir a tua remoção, porque isso é assunto
médico, não é assunto de juiz. Se o médico disser que você precisa de
atendimento, que precisa ser removido. Você será removido. Fora
disso, não! Entendeu?
O homem: sim sinhô.
O juiz: Você... Você já está assim muito tempo, nessa cadeira? Quando
você foi preso você não estava em cadeira de rodas.
O homem: tava.
O juiz: Você foi preso já em cadeira de rodas!
O homem: Tava. Na cadeira de roda. Eu tô assim desde noventa e
seis. Isso aqui aconteceu comigo porque eu sô hipertenso e por causa
das artéria.
O juiz, surpreendido, refuta: Você foi preso em cadeira de rodas!
O homem confirma: Sim, na cadeira de rodas...
O juiz: A defensora pública vai analisar a tua situação e vai pedir os
direitos que ela acha que você merece...
Ligeiramente a defensora aparece na filmagem, olha para o juiz e em
seguida para o réu e, após, a cena então se encerra. (JUSTIÇA, 2004,
s. p.).

Em geral, o documentário é um relato de várias audiências


criminais gravadas no decurso do segundo semestre de 2013 no
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Demonstra desde as
audiências de instrução, em que cada um dos atores envolvidos na
trama judicial desempenha seu papel – juiz, promotor, defensor e réu,
até os momentos privados de cada um deles, deixando seu papel
profissional de lado diante das obrigações diárias da vida cotidiana.

1.2 Análise do Filme

De maneira negligente a câmera passeia sobre o ambiente.


Não foca uma fala específica, um rosto qualquer, como um close em
uma face maquiada. Ela percorre o caminho da visão do espectador
ao ponto de assemelhar-se a ele naquele determinado instante, como
se fosse transportado para dentro da sala onde a trama acontece e o
envolvesse com todo o acontecido de modo que se é capaz de inferir
a respeito das ideias postas e o cotidiano que o cerca. Diante de toda
482 Movimentos, Direitos e Instituições

essa simplicidade, o espectador não pode livrar-se de seus valores,


que é o que lhe há de mais comumente humano.
Com efeito, o espelho que o filme oferece é comovente e
perturbador. Comovente porque reflete a experiência do cotidiano da
Justiça, que se observa no passar da relação existente entre os
afazeres comuns, do dia a dia, e as normatizações predefinidas pelo
Direito, adstritas ao ambiente jurídico. É perturbador pela incoerência
dessas mesmas ações, do que elas são capazes e a formalização, o
filtro que as perpassam. Nesse sentido, a relação existente entre a
cidadania e a justiça se revela em uma cena trágica porque comove e
perturba.
Observa-se então que é sobre as ações dos homens que o
edifício jurídico moderno é construído e vai sendo remodelado.
Contudo, tais ações são imprevisíveis por natureza, não se podendo
calcular a exata consequência delas. Nesse sentido, justiça é
sinônimo de dúvida, porquanto justiça se caracteriza pela cogitação,
pela reflexão tênue das conclusões dos julgamentos em se equivocar.
Então, se a incitação tensa que antecede o julgamento corresponde
ao esforço de busca pela justiça, ela corresponde ao que de melhor
herda-se da humanidade, naquilo em que esta se associa à busca ao
que se entende como equidade, liberdade, e a outros valores tanto
presados.
Entretanto, o filme oferece um ambiente insípido, que
carece de excitação. Nada ou pouco se percebe a respeito de uma
reflexão em torno do acontecido, do que realmente o sujeito da
cadeira de rodas fora acusado. As perguntas do magistrado são
diretas e formalizadas pelo escrevente que as redige. A promotora
que confeccionou a denúncia nada diz, sua postura é neutra do início
ao fim. A defensora só aparece ao final da cena, em um relance
rápido anunciado pelo juiz que a nomeia e aduz que ela irá analisar a
situação e pedir os direitos que acha que o acusado possui. Tudo é
muito automático, roteirizado ao ponto de não se ver a diversificação
da conduta humana e as circunstâncias de sua possibilidade.
Portanto, há uma espécie de diluição do indivíduo a uma
sujeição formal dos procedimentos judiciários. Os personagens
envolvidos nessa trama são desconstituídos e constituídos
novamente com uma caracterização que é própria dos sistemas de
normalização, tanto disciplinar como os mecanismos agenciados à
biopolítica do Estado.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 483

Vale salientar que, a cena descrita acima possibilita inferir


infinitas formas de abordagens que, por sua vez, constituem-se em
inúmeras análises. Nesse aspecto, o primeiro elemento a se pensar
é o ambiente jurídico, como sua distribuição releva os personagens
participantes da cena. No segundo momento, vê-se como o sujeito,
entendido como o indivíduo sujeitado, é desconstituído segundo as
práticas de objetivação descritas ao longo do desenvolvimento das
abordagens de Foucault.

1.2.1 O ambiente da sala de audiências e a


formalização dos personagens

O ambiente jurídico é o tribunal, uma sala de área


retangular e cantos com angulações de noventa graus. Na cena
acima, tal sala está disposta da seguinte maneira: de trás para frete,
de início temos a mesa e cadeira do magistrado, que se encontram
mais altas e ocupam lugar central entre duas outras mesas e
cadeiras, da direita e da esquerda, ocupadas, respectivamente, pelo
promotor de justiça, membro do Ministério Público, e pelo escrivão,
serventuário da Justiça.
Seguindo, de frente e também abaixo do acento do
magistrado, está disposta uma mesa de comprido em que, ao seu
lado direito, encontra-se a defensora pública e no lado esquerdo, o
acusado. O juiz ocupa o acento central, a promotora de justiça e a
defensora pública estão de frente, muito embora esta última esteja de
lado em relação àquela; por fim, o acusado senta-se em face ao
escrevente.
Esta disposição revela uma distribuição ambiental que
distingue os sujeitos envolvidos na trama da justiça. O juiz é o
representante da força estatal, a personificação da presença desta,
configura a atuação das forças da soberania estatal de modo a
resolver o litígio e concretizar o que se denominar como justo. O
promotor de justiça é o representante da sociedade, cabe a ele a
proteção da comunidade, expelindo e impugnando todo e qualquer
mal do convívio coletivo. O serventuário é a extensão da expressão
da vontade do juiz e, portanto, do Estado. Por fim, o acusado é por
quem o jogo da verdade cairá, o possível condutor da mácula social.
As diferenças no nível de altura nos assentos demonstram o
relevo que cada personagem representa. Segundo como se encontra
posto, o acusado é menos importante que o Estado, representado
484 Movimentos, Direitos e Instituições

pelo juiz. Entretanto, o réu é parte da sociedade que o acusa e,


assim, existe uma consubstanciação de que aquele que é acusado
acusa a si mesmo.
A triangulação paritária dos personagens na trama jurídica
desde logo é posta em cheque, tanto pela mecânica disciplinar
adotada pelo tribunal como pelos mecanismos normalizadores do
Estado. No primeiro caso, esse preceito é evidenciado na arquitetura
que organiza os assentos que elevam sujeitos em relação a outro(s).
No segundo caso, os dispositivos normalizadores estatais salientam
tal questão ao reconhecê-la legislativamente como, por exemplo, por
meio do artigo 18, inciso I, alínea “a” da Lei Complementar n. 75, de
1993, e artigo 41, inciso XI da Lei n. 8.625, de 1993.
A primeira forma legislativa, de 20 de março de 1993, cuida
da organização, atribuições e o estatuto do Ministério Público da
União. No artigo 18, inciso I, alínea “a” diz que “são prerrogativas dos
membros do Ministério Público da União: I – institucionais: a) sentar-
se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares
ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem”.
(BRASIL, 1993a). Ao passo que a segunda norma, a Lei n. 8.625, de
12 de fevereiro de 1993, que instituiu a Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público, dispõe sobre normas gerais para a organização do
Ministério Público dos Estados e dá outras providências. No seu
artigo 41, diz que:

[...] constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, no


exercício de sua função, além de outras previstas na Lei Orgânica: XI –
tomar assento à direita dos Juízes de primeira instância ou do
Presidente do Tribunal, Câmara ou Turma. (BRASIL, 1993b).

Essa disposição evidência a preferência do Estado à


acusação, tomada pelo membro do Ministério Público. Posto que tais
normas anunciam prerrogativas a uma parte em detrimento de outra.
Logicamente há uma relação de forças que se correlaciona à
importância discursiva que cada uma tem no processo. Como se
percebe, é um problema de gestão levado a cabo pelo Estado que
reconhece o parquet, representante da sociedade, como mais
importante do que o acusado, representado pelo advogado.
Esse é o direito normalizado por procedimento de
praticidade, reconhecido pelos mecanismos estatais. Nesse aspecto,
a questão das disposições das cátedras no âmbito do tribunal é
guerreada por aqueles que se sentem prejudicados pelo aforismo
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 485

simbólico que elas representam. O Conselho Federal da Ordem dos


Advogados do Brasil (CFOAB), em ação direita de
inconstitucionalidade – ADI n. 4.768 (BRASIL, 2015b, on line),
reivindica tratamento igualitário no chamado modelo de disposição
de cátedra. A Ordem impugna essa organização, aduzindo que ela
afronta os princípios da isonomia, do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa, expressamente agasalhados pelo
233
art. 5º, caput e incisos I, LIV e LV, da Constituição da República .
(BRASIL, 2012a, on line).
Para a Ordem dos Advogados do Brasil, a matéria é de
insigne importância porquanto influi diretamente no andamento do
processo, uma vez que o poder marca-se por vestes, rituais e
cerimonias. Esse preceito é mais acentuadamente salientado quando
se vê que a desigualdade nas disposições dos assentos é um fato
inserido em lei complementar. Portanto, opõe-se por uma questão de
gestão reconhecida formalmente pelo Estado, não se trata de meras
formulações infundadas, mas a luta de uma classe de indivíduos que,
do seu ponto de vista crítico da lei, reivindica aquilo que acha seu por
direito.
Contesta-se em relação a esse Direito normalizável, que
administra a organização da Justiça, aduzindo quem tem o peso
maior da verdade. Aqueles que significam mais para o sistema são
evidenciados, salientando-os em relação aos outros. Esse é o ritual
da Justiça que marca o acusado contra a sociedade e, ao mesmo
tempo, como parte dela. No filme, essa questão é observada quando
o juiz pergunta diretamente ao réu se ele reconhece como
verdadeiras as acusações descritas na denúncia. Nesse ponto, o
próprio juiz (Estado) sai de cena e delega a função de julgamento
para o réu. Ele, o magistardo, reconhece o sujeito acusado como
parte da sociedade e lhe dá a capacidade de julgar a si mesmo.

233
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes; [...]”.
486 Movimentos, Direitos e Instituições

Entretanto, o réu recusa as acusações contando a história


de como sua prisão fora efetivada. As palavras proferidas são chulas,
seu discurso a todo tempo tenta explicar a impossibilidade da
condição que carrega em relação à descrição da conduta na
denúncia. O juiz não ouve o discurso, que é repassado para
digitalização ao escrevente, de modo filtrado, apenas constando a
negação diante dos fatos, mas não cuidando das circunstâncias que
o ensejaram, como, por exemplo, a impossibilidade física do acusado
quanto ao acontecido. Assim, o indivíduo encontra-se sujeitado
àquele ambiente, que demonstra fortes relações de poder entre os
personagens envolvidos na trama.

1.2.1.1 A formalização do sujeito por práticas de


objetivação

Como foi observado anteriormente, em seus primeiros


escritos Foucault procurou descrever arqueologicamente as ciências
humanas na ordem do saber. Procurou identificar como certos tipos
de saberes sobre o homem foram em determinado lugar e em
determinadas circunstâncias criado, e como foi possível a
constituição de uma ciência com base em tais objetos. Este método
evita que se reporte à história de um sujeito fundador, ao contrário,
ele revela uma história que deve ser interpretada em sua interioridade
transcendental, que produz o sujeito a partir do conhecimento
inventado.

Foucault parte de Nietzsche para mostrar que o sujeito é


historicamente formado juntamente com certos tipos de saber, os
quais, cada um a seu modo, produzem verdade. O conhecimento foi
inventado, segundo Nietzsche, num determinado momento, num
determinado planeta. Mas também a religião, a poesia, o ideal, tudo
proveio de pequenos mecanismos, de puras e obscuras relações de
poder. Não está na cabeça dos homens desde sempre, mas vêm de
um jogo instintivo, de lutas, desejos e de necessidades de dominação
[...]. Vem daí a proposta de Foucault de abordar ‘o problema da
formação de um certo domínio de saber a partir das relações de força e
de relações políticas na sociedade. (ARAÚJO, 2000, p.111).

A adoção de uma postura nietzschiana recusa a perspectiva


marxista, que vê o sujeito influenciado por uma ideologia e precisa
dela liberta-se para assumir sua condição plena diante da história; as
condições político-sociais recobrem a realidade. Entretanto, para
Foucault essas condições não podem ser afastadas, porque a partir
delas se formam os sujeitos do conhecimento. As relações de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 487

verdade, assim, concretizam domínios de conhecimento por meio de


circunstâncias políticas que não são exteriores ao sujeito, mas lhe
são constitutivas.
Nesse sentido, a primeira imagem do Direito que temos é a
relacionada ao que conceitua os estatutos legais, como que eles
definem o sujeito e o reportam para uma posição no ambiente tendo
em vista um saber científico sobre o homem. Trata-se de uma noção
conceitual do que é normal e do que é legal. A definição própria da lei
serve para denotar a particularidade das práticas das normas, dos
mecanismos de normalização em relação aos domínios da lei. Dessa
forma, o Direito é identificado como as estruturas oferecidas pela
legalidade, tais como decretos, regulamentos etc.
No filme, essa imagem é revelada nos regimentos internos
dos tribunais, na lei que fundamenta a organização dos assentos dos
personagens envolvidos na trama judiciária e nos procedimentos de
inquirição do suposto fato criminoso. A confecção dessa legislatura
sempre leva em conta uma série de dispositivos científicos
multidisciplinares. Sociólogos, cientistas políticos, psicólogos,
médicos, além de outros profissionais das diversas áreas divisórias
das ciências montam e remontam a textualização das leis, sua
interpretação e melhor atuação no corpo social. A Ciência do Direito,
segundo esse ponto de vista, seria a manifestação de todo um
aparato científico que, para ganhar razão de atuação, consubstancia
uma amálgama de discursos distintos.

1.2.1.2 A formalização dos sujeitos por práticas


discursivas

No que chamou de genealogia do poder, Foucault traz a


explicitação das condições históricas, sociais, econômicas e
institucionais que possibilitou a emergência desses saberes que se
relacionam às práticas propriamente discursivas (direito
consubstanciado às práticas de normalização). Assim revelou que se
vivencia uma sociedade disciplinar, em que o indivíduo é formado a
partir de sua sujeição aos mecanismos de normalização adotados
nas instituições sociais.
Em Vigiar e Punir (2006), Foucault delineia a evolução das
tecnologias de punição que perfizeram o Direito Penal moderno. Em
suas análises há uma diagramação linear dos rituais de punição
sobre os corpos dos indivíduos. Em um primeiro momento, como
488 Movimentos, Direitos e Instituições

purificação da alma pelo estigma do corpo, o suplício. Em um


segundo momento, marcado por uma ruptura abrupta com a
purificação do corpo pelo estigma da alma do condenado, o rotulando
como delinquente que deve ser isolado do restante da coletividade.
Assim, o autor demonstra como o projeto prisional moderno marca a
passagem da punição corporal à vigilância por meio do
desenvolvimento de mecanismos disciplinares que contextualizam
uma concepção moral de exclusão.
O sistema prisional se sobressaiu em relação a outras
formas de punição porque melhor se adequou aos preceitos da
sociedade disciplinar. O suplício só significou enquanto prova de
força, uma manifestação política do rei. Com o desenvolvimento da
sociedade disciplinar uma nova conotação moral veio a ver o corpo
do condenado com certa humanização, o especificando como ser
humano que trabalha e produz. Com efeito, a sociedade adotou o
encarceramento, pois ele individualiza o corpo do condenado por
meio de um aparato administrativo que delimita partes e adota um
sistema hierárquico que o coloca em constante vigilância.
Essa forma de determinação do indivíduo o caracteriza de
acordo com o seu comportamento. Demonstra qual é a verdade a
respeito do encarcerado, lhe produzindo a figura de delinquente. Por
sua vez, a delinquência é necessária ao sistema político e
econômico, porquanto ela pressiona as ilegalidades e se torna um
excelente exercício de poder em relação aos corpos.

A prisão fabrica os delinquentes, mas os delinquentes são úteis tanto


no domínio econômico como no político. Os delinquentes servem para
alguma coisa. Por exemplo, no proveito que se pode tirar da
exploração do prazer sexual: a instauração, no século XIX, do grande
edifício da prostituição, só foi possível graças aos delinquentes que
permitiram a articulação entre o prazer sexual quotidiano e custoso e a
capitalização. (FOUCAULT, 2006a, p. 132).

Ao exercer o domínio sobre o corpo para, a partir dele,


extrair aproveitamentos como tempo e trabalho, nossa sociedade
tornou-se metodicamente disciplinar. Essa individualização foi
possível por meio do desenvolvimento de mecanismos de
procedimento como, por exemplo, relatos, inquéritos, questionários e
testes que auferem a possibilidade de uma verdade. Esses
dispositivos disciplinares criam uma verdade sobre cada um,
configurando ao indivíduo uma atuação no espaço social. O modo de
produção capitalista encontraria dificuldades de implantação não
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 489

fossem as, que controlam as atividades individuais cotidianas,


operando nos corpos pela organização.
Cabe salientar que esses dispositivos – ralatos, inquéritos,
procedimentos - independem das instituições estatais macroscópicas
como os poderes administrativo, jurídico e legislador. Cuida-se de
uma microfísica do poder, que se encontra dispersa em técnicas de
efetivo manejo das atividades normais do dia a dia em que, pondo-as
em práticas, passa-se a controlar melhor os resultados objetivados.

O enquadramento espacial facilita a locomoção e distribui


funcionalmente as tarefas. Cada indivíduo é uma célula da
organização. Uma multiplicidade amorfa seria mais difícil de controlar
para os fins produtivos, punitivos, militares, pedagógicos, que tecem a
trama da sociedade disciplinar. (ARAÚJO, 2000, p. 114).

Nesse sentido, o indivíduo é fruto desses mecanismos de


normalização. A evolução das técnicas, tal como demonstrado em
Vigiar e Punir, revela como os dispositivos de poder foram se
adequando de acordo com a demanda política de dominação das
pessoas, relegando o poder estatal ou econômico para segundo
plano. O panóptico representa essa evolução com a genial
capacidade arquitetônica de sujeitar e utilizar as forças corporais.
Esse modelo serviu de padrão à construção de escolas, fábricas,
hospitais, asilos, dentre outras instituições modernas (FOUCALUT,
2006a, p. 172). Assim, o sujeito é constituído segundo o que ele
demonstra ser em sua visualização; se normal ou louco, se doente ou
saudável ou, se criminoso ou legalista.
Pode-se inferir daí a segunda imagem do Direito, que é o
Direito tendo como ponto de vista o indivíduo sujeitado pelos
mecanismos de normalização. Estes são desdobrados em dois
sentidos: em um primeiro momento como disciplina e num segundo
como mecanismos reguladores do biopoder. A ideia é acompanhar
essa bifurcação e indicar cada vertente que ela tomou, seja em
relação às disciplinas, como à biopolítica, seja as implicações entre
as práticas e saberes jurídicos e os mecanismos de normalização.
O poder disciplinar é proferido em Foucault como o domínio
dos corpos dos indivíduos, limitando partes, especificando domínios
de saberes e aderindo a um sistema hierarquizado, de pessoas e
procedimentos internos, nas mais variadas instituições. A
consideração dos procedimentos nos locais de efetivação dessa
espécie de poder reporta-se à imagem de um Direito normalizado-
490 Movimentos, Direitos e Instituições

nomalizador, na medida em que é por ele que se efetivam os


procedimentos e regulamentos postos nos interiores das instituições.
Contudo, aponta Fonseca (2002, p. 176) que “a disciplina
dos corpos é apenas uma das faces da normalização que a analítica
do poder em Foucault faz aparecer”. Mudando de perspectiva,
Foucault, a partir de 1976, volta-se para a outra face da
normalização. É o que se vai denominar biopoder, pois se faz na
ação não mais no corpo individual, mas atinge campos grupais de
atuação no exame de mecanismos que agem no domínio geral da
vida e, como se dá essa manipulação geral a partir das artes de
governar. Assim, um segundo desdobramento que se faz em relação
a essa imagem do Direito diz respeito a esse domínio mais amplo da
normalização das pessoas, ou seja, do controle de conduta de
contingentes humanos.
No filme, essa imagem do poder, revelada pelos meios de
organização interior da sala de audiências, é criada por vestes, rituais
e cerimonias. O método de condução do julgamento é agenciado de
acordo com as estruturas legais que estipulam o ambiente. Essa
organização sobrepõe um enunciado em relação a outro, sempre
conferindo um como mais verdadeiro. Os sujeitos envolvidos na
trama são caracterizados pela formalidade. O juiz é o que senta ao
meio, promotor senta ao lado direito, no mesmo plano, e o réu
encontra-se logo abaixo, do lado esquerdo. Por representarem o
Estado e a sociedade respectivamente, os dois primeiros significam
mais do que o último. Assim, o sujeito é objetivado por práticas
epistêmicas, que fazem o acusado menos significativo do que os
demais membros.
A conversa entre o juiz e o acusado é conduzida de acordo
como determina aquele. As perguntas são feitas diretamente pelo
magistrado que ouve as respostas e, em seguida, as dita ao
escrevente. A digitação é feita de forma seca, sem manifestação de
qualquer excitação emotiva, sempre aduzindo a palavra que. A
estilista textual que formaliza a ata de audiência demonstra o filtro
pelo qual passa o discurso do acusado que o adequa a uma forma,
um paradigma, em que somente alguns elementos enunciativos são
colocados. Assim, o acusado é editado num processo que o dilui,
tornado sua voz inaudível.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 491

1.2.1. A formalização dos sujeitos por práticas de


subjetivação
As práticas discursivas que provêm o saber sobre o homem
advêm das ciências humanas. O sujeito constitui-se ao mesmo tempo
pela determinação geral da confissão e pelo papel das cientificidades
que veem no homem seu objeto de estudo. As ciências humanas
produzem o sujeito, objetivando-o a partir da trama entre saber e
poder. Ao lado de saberes como a demografia, a estatística e os
cuidados governamentais com a vida, as relações de poder tomam
novos rumos; conduzindo os seres a pensarem como seres humanos
enquanto espécie.

[...] Biopoder sobre as populações e poder da confissão do que cada


um é, são formadores da verdade do sujeito. O primeiro permitindo a
governabilidade e o segundo que uma verdade sobre o mais íntimo de
cada um, seu ‘si mesmo’, seja extraída [...]. (ARAÚJO, 2000, p. 119).

A ciência diz o que o indivíduo é a partir da análise que ela


o tem de si, do ponto de vista do especialista que a domina. A
disciplina domina os discursos enquadrando-os em espaços
delimitados por partes e organizados em sistema de hierarquia.
Existe um constrangimento do indivíduo a conhecer a si mesmo.
Nesse sentido, os indivíduos pouco ou nada têm a fazer nas lutas de
transformação do mundo social e político.
Entretanto, essa perspectiva é negada, porquanto o sujeito
ao ter consciência de si na ordem estabelecida é capaz de produzir
um discurso crítico do ponto de vista de sua exclusão sócio-política.
Ele então se manifesta contra os sistemas hegemônicos do poder ao
contestar a verdade que o formulou. “Temos aí, uma genealogia do
desejo e do sujeito desejante conduzida pela análise das práticas que
levam o indivíduo a se descobrir e a descobrir no desejo a verdade de
seu ser”. (ARAÚJO, 2000, p. 120).
A charge abaixo alude à incredibilidade do cidadão na
justiça. Entretanto, não se postula em face de uma justiça melhor e
sim pelas instituições que a operam. Essa abordagem se leva a
encontrar a imagem do Direito novo. Cuida-se de uma abordagem
que leva em conta a oposição dos indivíduos aos saberes e práticas
do Direito normalizador (disciplinar). Não se trata de um plano
conceitual entre Direito e norma, e sim a posição de contestação dos
sujeitos em relação à práticas do Direito, uma oposição aos
mecanismos usados para normalizar as condutas.
492 Movimentos, Direitos e Instituições

Ilustração 1– Justiça indecente

234
Fonte: Blog Léo Quintino: política, comunicação e um pouco do muno .

Entretanto, a identificação dessa imagem é possível tendo-


se em consideração duas posturas ou atitudes tomadas por Foucault
em relação a esse Direito novo. Em primeiro, uma expressão
negativa, de desconfiança do filósofo quanto às formas do Direito tal
como conhecido. Em diversos pontos de seus escritos constata-se
essa expressão de desconfiança em que as formas legislativas, as
instâncias de julgamento e aplicação das sanções, são pouco
inventivas, uma vez que se encontram constantemente atreladas ao
princípio de soberania e aos mecanismos da normalização.
O Direito tal como posto, está imbuído com domínio de
saberes e de práticas em que os mecanismos da normalização e a
estrutura formal do Direito formam uma unidade. Então, a postura
negativa de Foucault está em reconhecer uma impossibilidade de
contestação por parte do indivíduo insatisfeito com essa unidade. O
sujeito encontra-se tão submerso nessa relação de poder, que ele é
formado por ela, não podendo se opor a essa situação.

234
Disponível em: <http://www.leoquintino.com.br/index.php/charges-justiça-indecente>.
Acesso em: 15 maio 2015.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 493

Contudo, diante dessa atitude de negação da possibilidade


de inventividade do indivíduo perante o Direito normalizado, não se
tem espaço para a identificação da imagem do Direito novo. Tal
identificação só é possível quando nos voltamos a uma postura
positiva na análise foucaultiana. Ou seja, a admissão pelo filósofo da
possibilidade de as práticas do Direito poderem efetivamente
representar formas de resistência, de oposição aos mecanismos de
normalização.
Para identificar esta imagem de Direito novo, é preciso se
interrogar a respeito dos elementos de resistência. Considerando
seus diversos escritos, a oposição aos mecanismos de normalização
se encontra tendo como referência o problema disposto nas artes de
governar, nas atitudes dos governantes quanto à condução dos
governados e na ação humana frente às coletividades.
Esse problema disposto na rte de governar é encontrado
nos escritos sobre a governamentalidade. Ele se refere às práticas de
governança, entendido como o poder de gestão de pessoas e coisas.
Nesse ponto, como se observa, as relações de poder se ampliam em
campos grupais de atuação, chegando ao corpo geral das nações. A
forma de o governo dos Estados em conduzir as massas, controlar a
conduta dos indivíduos, se esquivando naquilo que ele prestaria em
suas necessidades, pode apresentar insatisfação por parte dos
sujeitos governados.
Nesse ponto, podemos pensar as resistências como os
desagrados da população à maneira de como as coisas estão sendo
conduzidas, como uma forma de recusa à governança, de ser
governado naqueles moldes. Essa atitude germina uma consciência
crítica de percepção aos mecanismos de normalização, que são
vistos como obsoletos e não são mais aceitos.
Assim, a oposição se faz em relação à governança,
manifestando-se contra as formas de governar. Um exemplo bem
nítido são as várias formas de não aceitação de regramentos, não
reconhecimento de governos por grupos minoritários que, em alguns
casos, sustentam posturas de desobediência civil, se negando a
seguir determinações por parte de organismos que as legitimam por
meio de mecanismos de coerção, cujas explicações de suas ações
são pautadas nas questões da soberania estatal, ordem estatal e
progresso populacional.
494 Movimentos, Direitos e Instituições

A atitude crítica a que alude Foucault se revelaria então em


uma postura contrária às formulações da arte de governa. É nessa
tomada de consciência que as resistências nasceriam e se
expressariam na identificação de um Direito novo na analítica
foucaultiana. Essa imagem, no entanto, só poderia ser buscada em
práticas próprias do Direito, em uma postura de oposição dos
indivíduos e de grupos a eles associados, apoiada sobre os
mecanismos de normalização.
A questão do Direito é assinalada na explicação acima com
a ideia de que sua efetivação se daria com uma transformação social
permanente. Desta feita, também decorre a ideia de que os
indivíduos são chamados a participar de um jogo constante e com
regras indefinidas no interior da trama social.
Com efeito, a caracterização da imagem de um Direito novo
remete a um domínio elaborado pelo primado da convivência em
sociedade, da ação dos indivíduos envolvidos no contexto oferecido
pela trama da sociedade. O Direito novo, nestes termos, possui um
ponto de referência que é a conduta do sujeito perante a situação
defrontada. Nela a tomada de consciência se coaduna com o
momento que se infere a pretensão da violação de algo que lhe é
essencial, sobretudo, em sua condição natural. Dessa forma, é a
partir das práticas refletidas dos indivíduos que um novo Direito é
conferido.
No filme essa imagem não é encontrada, mas é possível
inferi-la a partir do contexto oferecido pela lei que defere a disposição
das cátedras no âmbito do tribunal. Ela é guerreada por aqueles que
se sentem prejudicados pelo aforismo simbólico de poder que elas
representam ao andamento do processo, uma vez que, o poder
marca-se por vestes, rituais e cerimonias. Portanto, opõem-se à
questão de gestão reconhecida formalmente pelo Estado. Não se
trata de meras formulações infundadas, mas a luta de um grupo de
indivíduos que, do seu ponto de vista crítico da lei, reivindica aquilo
que acha seu por direito.

CONCLUSÃO

Se o poder está em todos os lugares, mesmo postos às


suas artimanhas, os indivíduos contêm papel determinante na
transformação do mundo em que vivem. Essa ação é possibilitada
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 495

quando se insurgem criticamente contra os sistemas de controle


político-social a eles agenciados. Nesse sentido, as resistências
tomam parte nas relações de poder de modo a reconduzi-las para
novas relações.
Em seus últimos escritos, Foucault reconhece uma
encenação ética e racional que permite adotar no interior de cada
sujeito uma figura crítica em relação à sua condição na ordem social
pré-estabelecida. Um exemplo bastante atual e que se relaciona a
todo esse contexto foi o evidenciado nos trabalhos do Supremo
Tribunal Federal (STF) no julgamento que deferiu a declaração do
reconhecimento da união estável homossexual como entidade
familiar. (BRASIL, 2015a, on line).
Em todos os votos dos ministros restou evidente uma
interpretação sistêmica da Constituição Federal, que em todo o seu
escopo de princípios conspira para a instituição, em um tempo
presente, de uma entidade familiar constituída à base de pessoas do
mesmo sexo.
Durante muito tempo o homossexualismo foi tratado como
uma anomalia perante a sociedade. As pessoas que se constituíam
com essa opção sexual eram taxadas como anormais e o
reconhecimento de um direito homossexual foi, até pouco tempo
atrás, visto com uma questão estranha ao mundo jurídico. As
instituições sociais estatais negavam direitos previdenciários a
companheiros instituídos com pessoas do mesmo sexo. Essa opção
revela um critério de normalização inferido por tais instituições.
Foram pelas manifestações sociais, enfrentamentos a uma
sociedade que se posicionava conservadora enquanto à emergência
de um direito homossexual, que o homossexualismo se tornou uma
realidade social e como tal tinha que ser encarada. Esse cenário
permitiu a construção de um discurso crítico que enunciou a
homossexualidade não mais como uma anormalidade, mas como um
traço da personalidade humana, que deveria ser respeitada por sua
dignidade.
Diante dessas transformações, vê-se aparecer novas
técnicas de poder, que remodelam a relação dos indivíduos com o
Direito, o reconfigurando a novos patamares interpretativos. Assim,
todo gesto de resistência, de manifestação, por menor que seja, atua
nessa grande, complexa e heterodoxa rede de transformações
político-sociais.
496 Movimentos, Direitos e Instituições

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: UFPR,


2000.
BORGES, Clara Maria Roman. O Discurso dos Excluídos: o Encontro de
Dussel e Foucault. Revista da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, a. 35, p. 41-52, 2003. Disponível em:
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ago. 2012.
BRANCO, Guilherme Castelo. Foucault em Três Tempos: a subjetividade na
arqueologia do saber. Revista Mente e Cérebro – Filosofia, São Paulo/SP,
n. 6, p. 7-13, 2007.
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_______. Lei Complementar n° 75, de 1993. Dispõe sobre a organização, as
atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. Diário Oficial [da]
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1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp75.htm>.
Acesso em: 8 ago. 2012b.
_______. Lei n° 8.625 de 12 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 12 de fev. 1993. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/l8625.htm>. Acesso em: 8 ago. 2012c.
_______. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 4277. Ação Direta de
Inconstitucionalidade para o reconhecimento da união estável homoafetiva
como entidade familiar. Relator: Min.Ayres Britto. Brasília, 05 de maio de
2011. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docT
P=AC&docID=628635> Acesso em: 15 maio 2015a.
_______. _______. ADI n. 4768. Ação Direita de Inconstitucionalidade para
reivindicar tratamento igualitário no chamado modelo de disposição de
cátedra. Relator: Min. Cármen Lúcia. Brasília, 27 de abril de 2012. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci
dente=4233888>. Acesso em: 15 maio 2015b.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São
Paulo: Brasiliense, 1998.
EDWALD, François. Foucault: a Norma e o Direito. Tradução de António
Fernando Cascais. Lisboa: Vega, 2000.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 497

FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max
Limonad, 2002.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria
Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
_______. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Cabral de Melo
Machado. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006a.
_______. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de
Melo Machado, Eduardo Jardim Morais. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU, 2005.
_______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2006b.
JUSTIÇA. Direção e produção de Maria Augusta Ramos. Documentário.
Brasil: produção independente, 2004. 1 DVD (100 min). Disponível em: <ht
tps://www.youtube.com/watch?v=75P1KTTTjj0>. Acesso em: 15 maio 2015.
CAPÍTULO 21

“A TERRA RICA”. COLONIALIDADE E


PROPAGANDA NO CINEMA COLONIAL
PORTUGUÊS EM ANGOLA235

Nuno Porto236
237
Cristina Sá Valentim

RESUMO

A Diamang (Companhia de Diamantes de Angola), uma empresa de


exploração de diamantes instalada no nordeste angolano de 1917 a

235
Este artigo corresponde a uma reformulação da comunicação apresentada e
discutida no “Colóquio Internacional Ciência e Conhecimento Colonial”, organizado
pelo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa e pelo Centro de
História do Instituto de Investigação Científica Tropical, ocorrido em Lisboa, na
Fábrica Braço de Prata, 26-29 de novembro de 2013. Agradece-se a todos os
presentes no Colóquio os comentários críticos e que integram esta versão.
236
Doutor em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Coimbra (UC),
tendo realizado a sua investigação doutoral sobre o Museu do Dundo, Diamang,
Angola. Atualmente é Curator for Africa and Latin America no Museum of
Anthropology, e Associate member do Department of Art History, Visual Art &
Theory, na University of British Columbia, Canadá. E-mail: <nuno.porto@ubc.ca>.
237
Licenciada e Mestre em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de
Coimbra (UC). É doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-Colonialismos e
Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
(CES-UC), com o apoio de uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (FCT - Ref. SFRH/BD/85530/2012), cofinanciada pelo
Fundo Social Europeu (FSE) por meio do Programa Operativo Potencial Humano
(POPH) e por fundos nacionais. Realiza pesquisa sobre o “folclore musical nativo”
no contexto colonial da Diamang (1940-1970). E-mail: <cristina.valentim@gmail.com>.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 499

1975, desenvolveu uma prática colonial em articulação – segundo a


sua perspetiva – a uma ação científica e cultural. Paralelamente à
exploração económica das jazidas diamantíferas, a Companhia
protagoniza o que qualifica como “colonialismo científico”,
organizando vários serviços de ação sociocultural e construindo várias
infraestruturas na Lunda. Estando a decorrer a Luta de Libertação em
Angola, a Companhia produz, em 1973, o filme A Terra Rica. Neste
artigo pretende-se analisar gramáticas discursivas de propaganda do
colonialismo português manifestas nesse filme. A análise que se
propõe parte da ideia de que a imagem serve a uma forma de
conhecimento. E que qualquer forma de conhecimento é uma forma
específica de praticar a linguagem, de representar o(s) mundo(s), de
estabelecer hierarquias epistemológicas e ontológicas. Partindo do
visionamento do filme e de pesquisa arquivística no espólio da
Diamang, sugere-se que a designada “ciência colonial” se foi
construindo sobre disjunções entre saberes e pessoas, entre o
“Mesmo” e o “Outro”, entre a “Modernidade” e a “Tradição”, assentando
e alimentando a sua produção em processos de colonialidade. O
cinema de propaganda assume um papel performativo na produção e
circulação de formas de conhecimento, assumindo um lugar de
destaque enquanto modalidade de construção de realidades e
identidades que ultrapassam – no tempo e no espaço – a
circunstancialidade da sua produção.
Palavras-chave: ciência; colonialidade; Diamang; discurso;
propaganda.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1. O FILME: A NARRATIVA; 2. O TRABALHO
INDUSTRIAL E A TÉCNICA OCIDENTAL; 2.1. AS MINAS E OS
DIAMANTES; 2.2. A ESCOLA DE TRABALHO; 3.
CONHECIMENTOS: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO; 3.1.
AS INFRAESTRUTURAS E A CIÊNCIA OCIDENTAL; 3.2. AS
ESCOLAS, A RÁDIO DIAMANG E O PAPEL SOCIAL DA “MULHER”;
4. AS TRADIÇÕES DA LUNDA; 4.1 O MUSEU DO DUNDO;
CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
500 Movimentos, Direitos e Instituições

INTRODUÇÃO

Num contexto de disputa das colónias em África pelas


potências europeias no seguimento da Conferência de Berlim (1884-
1885), o projeto português colonial moderno em África consolida-se,
imaginado como o Terceiro Império Português ou o Império Africano
(ALEXANDRE, 2000) e estruturado na articulação entre: a fragilidade
política e económica da metrópole e o que Valentim Alexandre
designa de mitos – o “mito do Eldorado” e o “mito da Herança
Sagrada”. (ALEXANDRE, 1995, p. 40-41). A “viragem para África”
pode ser interpretada por dois fatores: por um lado pela procura das
riquezas ocultas das terras africanas, recuperando a nação
portuguesa o estatuto de grande potência imperial e, por outro, como
resultado do imperativo histórico em conservar e expandir territórios,
e em “civilizar”. (ALEXANDRE, 1995, p. 40-41). No nordeste
angolano, a presença colonial portuguesa tem início em 1884 com a
expedição à Lunda chefiada pelo explorador/comandante Henrique
Dias de Carvalho, sedimentando-se com a ocupação militar e
administrativa portuguesa de Angola que apenas se efetiva no início
de 1900. (PORTO, 2009, p. 335).
Durante os trabalhos de prospeção mineira da empresa
belga Forminière - Société Internationale Forestière et Minière du
Congo, são descobertos depósitos diamantíferos na bacia
hidrográfica do rio Kasai, no lado de lá da fronteira com o então
Congo Belga. (PORTO, 2009, p. 5) Nesse mesmo ano, em 1912, é
constituída a PEMA (Pesquisas Mineiras de Angola), e passados
cinco anos é fundada a Diamang (Companhia de Diamantes de
Angola), gerida por capitais portugueses, belgas, franceses, ingleses
e norte-americanos e com Sede Social em Lisboa. Em Angola, a
Diamang tem a sua delegação administrativa no centro urbano do
Dundo, no então Distrito da Lunda, onde permanece com a
exclusividade da exploração mineira, de 1917 a 1975. Dessa
presença resultou um espólio que reúne materiais audiovisuais,
documentais e fotográficos que está em arquivo na Universidade de
Coimbra e que se tem vindo a digitalizar e a divulgar on line no
âmbito do projeto www.diamangdigital.net.
Paralelamente aos trabalhos de extração diamantífera, a
Diamang desenvolve o que qualifica como um “colonialismo
científico”, gerindo atividades de cariz assistencial, científico e
cultural: constroi hospitais, laboratórios, escolas, explorações de
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 501

pecuária e agricultura, habitações, estradas, um aeródromo,


barragens, pontes e, em 1936, um museu etnográfico. É a partir do
Museu do Dundo que se fazem recolhas etnográficas de “usos e
costumes” nativos e consequentes estudos arqueológicos,
geológicos, antropológicos, musicológicos, botânicos e zoológicos
que servem, entre outras coisas, para conhecer e divulgar ao mundo
os “Povos e as terras da Lunda”.
A relação que a Companhia tem com a imagem – fotografia
e cinema – advém precisamente dos usos que faz da Ciência e da
Técnica ocidentais na gestão dos espaços e dos tempos da Lunda
colonizada, procurando “[…] inventariar o que era, até então,
inexistente, e para fazer circular os resultados da ‘obra civilizadora’”.
(PORTO, 1999, p. 3-4). Em 1951 é construído o Laboratório de
Fotografia do Museu e é neste espaço que se revelam as fotografias
destinadas ao arquivo documental e fotográfico da Diamang, e às
Publicações Culturais que divulgavam a atividade da Companhia num
circuito internacional.
Era no Laboratório que se procedia também à montagem
dos documentários de índole etnográfica, entretanto filmados junto
das populações. Também era aí que se sonorizam os filmes oriundos
das metrópoles europeias e que se destinam tanto às matinés de
cinema para os “empregados” da Companhia [leia-se comunidade
“branca”] – organizados pela Casa do Pessoal – como para as
sessões de “Cinema para Indígenas”, uma atividade decorrida entre
1951 e 1971. Esta atividade, inicialmente a cargo do Capelão da
Companhia e desde 1955 a cargo da Secção de Propaganda e
Assistência à Mão-de-obra Indígena (SPAMOI), era dirigida aos
trabalhadores e seus familiares [leia-se comunidade “negra”],
exibindo-se inicialmente filmes sonorizados em português e, a partir
de 1956, dobrados para ucokwe, a língua do povo Cokwe – o grupo
étnico maioritário na Lunda. (RCA, 1953, p. 56-58). Os conteúdos
fílmicos eram rigorosamente selecionados238 e exibiam-se por noite
dois a três filmes durante 1h30m. (RAMD, 1955, p. 43). Estas
sessões, também designadas de Cinema Ambulante, visavam ocupar
o “tempo livre” das populações nas aldeias através de
filmes/documentários que, no fundo, se estruturavam em redor de um

238
Destacam-se os seguintes títulos: Porto Cidade Invicta, Fauna Africana, Dom
Quixote [desenhos animados coloridos], Assistência nas Maternidades da
Diamang, Procissão da Nossa Senhora da Conceição, O Chimpanzé
Bombeiro, Ben Hur no fosso dos leões, Os Descobrimentos Henriquinos,
Marchas Populares de Lisboa (NMFM, V.III, NR, n. 193, 1965).
502 Movimentos, Direitos e Instituições

discurso evolucionista onde se destaca a promoção da Companhia


como agente benfeitor de educação, de progresso e de “civilização”,
aspirando controlar possíveis dissidências. (RAMD, 1963, p. 38).
Para fazer face a uma conjuntura internacional de pressões
a favor da descolonização, os Serviços Culturais da Companhia
editam entre 1955 e 1966 doze séries de postais a partir de uma
seleção de fotografias dos “Relatórios Anuais da Direcção Geral”.
Estes postais integram um circuito internacional de divulgação de
todas as atividades da Companhia, desde os Serviços de Saúde às
técnicas de extração e tratamento dos diamantes, e procuram
construir uma imagem institucional favorável a Portugal. (PORTO,
2009, p. 191).
Uma das tentativas em fazer documentários televisivos
sobre Museus e Institutos Culturais em várias zonas de Angola parte
da Rádio Televisão Portuguesa (RTP) e acontece precisamente no
ano de 1961. (NMFL V. II NR, n. 124, 1961). A designada Brigada da
Televisão Portuguesa, composta por José Elyseu, Horácio Caio e
António Silva, desloca-se ao Museu do Dundo a 11 de janeiro de
1961 (MMD V. I ME n. 39, 1961) e parte a 18 de fevereiro do mesmo
ano (NMFL V. II NR n. 125, 1961), 15 dias após o início da Guerra de
Libertação. Mas é em 1962 que a Brigada Cinematográfica da RTP
parte para o Dundo com o objetivo concreto de documentar a “obra
civilizacional” da Diamang, para além do museu (NMFL V. II NR n.
138, 1962), estreando em Lisboa, em abril de 1969, o
filme/documentário de 163 minutos chamado O Romance de
Luachimo. Lunda, Terra de Diamantes. Esta equipa, composta por
Baptista Rosa, Navarro de Andrade e Aquilino Mendes e com um
guião de filmagem elaborado pela Companhia, desloca-se ao Dundo
em três viagens – de 17 a 24 de março, de 7 a 10 de abril e de 29 de
agosto a 3 de Setembro. (RAMD, 1962, p. 29-32). Parte dessas
filmagens vem a integrar outro filme/documentário de 30 minutos que
a Diamang produz em 1973, um ano antes do fim da Guerra de
Libertação, e que se designa A Terra Rica. (PORTO, 2001, p. 88).
Ambos os filmes pretendem divulgar, num quadro
internacional pós-guerra hostil ao projeto colonial, a crucialidade da
ação colonial portuguesa, legitimada sobretudo na importância da
Ciência e da Técnica para o dito “Progresso” destas terras angolanas,
com particular destaque para a “missão civilizadora” fundada no
trabalho e na educação de padrões ocidentais. Mas no filme A Terra
Rica, talvez por ter uma duração mais curta e pelas dificuldades em
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 503

vencer a guerra em curso, a propaganda dessa mensagem é


bastante mais incisiva e evidente. E é precisamente a
contextualização crítica da sua narrativa que se propõe avançar neste
artigo.
Partindo do visionamento do filme e de pesquisa arquivística
no espólio da Diamang, este artigo visa a analisar de que forma a
imagem é uma expressão de conhecimento; e, como tal, explorar
como as imagens não só reproduzem, mas, sobretudo, produzem
identidades e realidades, atuando como ferramentas de poder. Para
tanto, procura-se reorganizar a narrativa do filme em redor de cinco
áreas temáticas interligadas entre si: trabalho, ciência, tecnologia,
educação e tradição. Porque o discurso do filme tem a sua força tanto
nas imagens como nas palavras escolhidas para representar a
Diamang, integra-se alguns fotogramas do filme e excertos da
narração em voz-off que os acompanha. A interpretação que se
propõe parte de um referencial teórico que, apesar de interdisciplinar,
tem a sua base na Antropologia em articulação com os estudos pós-
coloniais.

1 O FILME: A NARRATIVA.
Fotogramas 1 e 2
504 Movimentos, Direitos e Instituições

Fonte: A TERRA RICA. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

A Companhia de Diamantes de Angola foi sempre, desde a sua


fundação, nos primórdios deste século, o mais sólido pilar de ocupação
da Lunda. Importante fator de desenvolvimento no vasto distrito
constitui um polo de progresso socioeconómico de bem-estar e paz.
[…]
Poderemos afirmar até, em verdade, que a atuação da Diamang, não
desperdiçando embora o lucro, se volta para a devida função de
melhorar a vida das terras e das gentes na sua área de influência.
(Narração voz-off, filme A Terra Rica. Filme/Documentário produzido
pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m).

Esses excertos apresentam a Companhia e sintetizam a


mensagem veiculada por todo o texto (palavras e imagens) do filme,
ao mesmo tempo em que a cartografia – um mapa de Angola
(Fotograma 1) e a aproximação à àrea de exploração da Diamang no
então Distrito da Lunda [assinalada a amarelo no fotograma 1]
(Fotograma 2) – localiza a narrativa. Centrado fundamentalmente na
extração de diamantes e nas potencialidades que isso traz tanto para
a colónia como para a metrópole, este discurso diz que por meio do
Progresso e da Modernidade levados pelo colono é possível alcançar
a segurança e a paz. Ao mesmo tempo, e num momento bélico onde
já se esperava difícil a vitória, a narrativa de propaganda expressa a
urgência em não perder o que se construiu. A Companhia é retratada
como o exemplo de uma atitude empreendedora e benfeitora. E é
justamente com essa atitude que o filme termina, mostrando crianças
brancas e negras que brincam no recreio da escola. Essa imagem
faz-se acompanhar da resposta a uma pergunta: “Quem somos nós?
Somos aqueles que, sabendo que estão tirando da terra o melhor que
ela possui, procuram criar nela o que possa substituí-la”. (Narração
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 505

voz-off, filme A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela


Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m).
A importância que a imagem – a fotografia e o filme – pôde
ter tido no seio das políticas coloniais da Diamang, deriva da hipótese
de a imagem poder ser constituída como um “documento de verdade
[…] impermeável a falsificação ou manipulação”. (PORTO, 2009, p.
579). As imagens integram processos performativos nos quais são
constituídas como um meio persuasivo e um argumento político
potencialmente eficaz e, por isso, uma ferramenta de propaganda.
Pode-se analisar este processo explorando a articulação entre os
conceitos de representação, conhecimento e colonialidade.
A forma de produção de significado e da sua partilha faz
parte do processo de representar algo, num determinado tempo e
espaço, e para alguém específico. Por isso, a representação é uma
prática situada e produtora de identidades e de conhecimentos
diferenciados. A eficácia política da autoridade colonial passou em
grande medida pela transformação da cultura do “Outro”, ou seja,
pela manipulação de universos epistemológicos e ontológicos
atuantes no palco colonial e que implicam mecanismos de
diferenciação assentes em regimes de representação. No caso dos
colonialismos europeus, e concretamente na África Subsariana, a
construção e validação dos discursos e das práticas coloniais passou
por uma racionalidade que construiu uma alteridade exótica,
reificando-a à imagem que, para esse efeito, produziu do europeu,
enquanto uma outra realidade externa, um processo chamado
Africanismo na esteira da noção de Orientalismo de Edward Said
(1978).
Neste filme, a mensagem central foi elaborada por meio da
representação do angolano como indígena, isto é, como alguém que
apenas tem Tradição e Cultura e a quem o Progresso e a Técnica
ocidentais podem servir para a sua suposta “evolução”. O Estatuto do
Indigenato de 1926, agilizado nas colónias239 pelo Estado Novo em
1933, é a materialização em um nível jurídico-legal de vários níveis
de hierarquização entre pessoas. Este estatuto propiciou “uma
espécie de apartheid à portuguesa” (BARBEITOS, 1997, p. 314),
gerindo a atribuição da cidadania a partir de critérios culturais e

239
Este quadro legal não entrou em vigor em todas as colónias portuguesas, excluindo
da sua abrangência Cabo Verde, Macau e o Estado da Índia, e só a partir de 1946
é que se aplica nas colónias de São Tomé e Príncipe e de Timor, vindo a ser
abolido oficialmente em 1961. (THOMAZ, 2001, p. 61).
506 Movimentos, Direitos e Instituições

raciais, isto é, negando-a àqueles que não evidenciassem hábitos


europeus e competências verbais ao nível da língua portuguesa,
segregando-os e constituindo-os como sujeitos sem quaisquer
direitos de participação social, na verdade como não-cidadãos.
(CONCEIÇÃO NETO, 1997, p. 347). E apesar de abolido enquanto
estatuto jurídico em 1961, os efeitos sociais e simbólicos dessa lei
estão bastante presentes no filme porque é aí onde assenta o projeto
colonial ainda em curso: o indígena é a antítese da identidade
europeia e, por isso, uma alteridade necessária à própria construção
da situação colonial, integrante da legitimidade e reforço da
modernidade capitalista. Trata-se de um jogo de espelhos, e, portanto
um processo identitário pragmático. Citando Boaventura de Sousa
Santos:

O processo que faz descer o indígena ao estatuto que justifica a sua


colonização é o mesmo que faz subir o português ao estatuto de
colonizador europeu. […] O português branco e o indígena primitivo
surgem, simultaneamente, divididos e unidos por dois poderosos
instrumentos da racionalidade ocidental: o Estado e o racismo.
(SANTOS, 2006, p. 248).

Como refere Valentin Mudimbe, “o Africano [é] […] a chave


que, nas suas imensas diferenças, especifica a identidade do
Mesmo”. (MUDIMBE, 1988, p. 12). Este processo que se identifica
como sendo não tanto de representação da violência, mas mais como
um processo que evidencia a violência da representação, leva ao
conceito de colonialidade.
Numa aceção ampla, a colonialidade pode ser definida
como um exercício de retórica, que produz práticas e conhecimentos
específicos com base num pensamento dicotómico e evolucionista
estruturado em torno de estereotipia. E porque torna naturais as
hierarquias que foram artificialmente construídas, torna-as
verdadeiras, inquestionáveis e permite (na ausência de qualquer
estranheza) relações verticais no exercício do poder. Daí que possa
haver colonialidade sem haver regimes coloniais efetivos.
O conceito de colonialidade tem vindo a ser problematizado
pelos estudos pós-coloniais fundamentalmente a partir do contexto
latino-americano. A colonialidade do poder, tal como Anibal Quijano a
concebe, serviu ao projeto capitalista do sistema-mundo-moderno-
colonial, e a própria construção da modernidade eurocêntrica, pela
naturalização – a partir de um centro hegemónico – de desigualdades.
(QUIJANO, 2000, p. 343). A experiência colonial europeia implicou uma
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 507

desigual distribuição de poder, visível na imposição (e universalização)


de uma classificação racial/étnica/sexual de pessoas que separou,
segregou, hierarquizou e excluiu determinados modos de entender e
praticar o mundo, legitimando formas de exploração/dominação.
(QUIJANO, 2000, p. 368). Nesta configuração de identidades sociais e
geoculturais subjaz um etnocentrismo epistemológico que possibilitou a
par da exploração económica de recursos e da conversão religiosa,
construir a alteridade como margem. (MUDIMBE, 1988, p. 15). Por
meio da imposição de conhecimentos em detrimento de outros
conhecimentos, nega-se a capacidade da produção de outros saberes
a determinados indivíduos e discriminam-se pessoas e sociedades,
expressando tanto a colonialidade do saber/conhecimento (LANDER,
1993) como a colonialidade do ser. (MALDONADO-TORRES, 2008, p.
96; MIGNOLO, 2003, p. 633). Ao mesmo tempo, a “subalternização de
conhecimentos” vai construindo e enaltecendo a racionalidade
moderna ocidental (MIGNOLO, 2000, p. 13) e vai tornando legítimo o
próprio processo de dominação.
Nas próximas secções procura-se isolar áreas da atuação
da Companhia cujo discurso a seguir será interpretado.

2. O TRABALHO INDUSTRIAL E A TÉCNICA


OCIDENTAL

O idioma do trabalho de cariz industrial serviu aos


propósitos civilizatórios do colonialismo português e integrou o que
Bandeira Jerónimo designa por um “imperialismo de benevolência” e
de “inevitabilidade”. (JERÓNIMO, 2010, p. 57, 68, 75). Voltando ao
contexto da Diamang,

O trabalho é, em última instância, o valor moral sob o qual se abriga o


projecto colonial da Companhia. É em torno do trabalho que radicam as
características do novo sujeito social a constituir em confronto com a
essência do indígena. Na cultura colonial o indígena é por essência
indolente e, por consequência, incapaz do compromisso ético,
desprovido de juízo racional, tirânico na administração do poder,
destituído, em suma, de qualquer tipo de arbítrio válido. A cultura
colonial reforma este sujeito constituindo-o com uma agência de
outrem – o colono – que num apertado sistema disciplinar ele deverá
executar, mas que, sendo destituído, não é admissível que questione.
(PORTO, 2009, p. 467).
[…]
E como bem civilizacional de elevado valor, o trabalho situa os povos
da Lunda, enquanto trabalhadores, numa relação de reciprocidade
508 Movimentos, Direitos e Instituições

assimétrica em permanente défice […]. Nesta retórica, o trabalho é


dissociado do seu valor económico para ser formulado como valor
civilizacional por excelência. É a virtude das virtudes, a característica
que distingue, de outros seres, os humanos. (PORTO, 2009, p. 487).

O trabalho forçado, mascarado como “trabalho


contratado”240, teve como denominador comum um “Outro” construído
como um ser incapaz e sem autonomia de ação, a quem se leva o
Progresso e a Civilização.

2.1 As Minas e os Diamantes

Fotogramas 3 e 4

240
O trabalho forçado, ou obrigatório, foi estando sempre salvaguardado na legislação
que sucedeu ao Regulamento do Trabalho Indígena de 1899, mesmo tendo sido
abolido juridicamente em 1928 pelo Código do Trabalho dos Indígenas das
Colónias Portuguesas de África. Nessa legislação, e como assinala Elizabeth Cruz,
“A liberdade de escolha do trabalho por parte dos indígenas, não choca com o
direito que assiste ao governo de ‘fiscalizar e tutelar beneficamente o seu trabalho
em regime de contrato’, pode ler-se no art. 4º do Código. […] O carácter oficial do
recrutamento por parte do estado e de particulares encontra expressão na
existência de licenças de recrutamento, de agências, agentes e auxiliares de
recrutamento […] [de forma a] ‘combater a tendência do indígena para a ociosidade
[…], vencer a irresolução do indígena para o trabalho’”. (CRUZ, 2005, p.155). No
contexto das minas da Diamang, a mão de obra contratada era constituída por
homens indígenas que viviam em aldeias afastadas da área de exploração
mineira, onde eram recrutados sob coação.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 509

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

Os primeiros sete minutos do filme centram-se


fundamentalmente nas potencialidades económicas do diamante.
Interessa mostrar com muito pormenor os trabalhos de exploração
mineira, mas acima de tudo os processos mecanizados de extração
dos diamantes (Fotograma 3) e a expressão quantitativa do lucro que
a imagem dos diamantes pretendia sublinhar (Fotograma 4). O texto
que acompanha as imagens vem no seguimento dessa lógica:

O volume de terra e de cascalho extraído pela Diamang em 1972


3
atingiu o número gigantesco de 19 milhões 710 mil 199 m , quase 50
milhões de toneladas.
[...]
Os diamantes são separados do material denso que os acompanha por
aplicação de técnicas muito evoluídas, utilizando-se os mais variados
processos entre os quais aparelhos especiais de Raios X.
O Homem e a máquina, a máquina e o homem. Simbiose perfeita para
a edificação de um futuro sólido.
Diamantes, riqueza de Angola. […] o seu valor é de maior importância
para as gentes das áreas mineiras e para o país. (Narração voz-off,
filme A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano
de 1973, VHS, 30 m).

Dessa forma é enaltecida a importância da tecnologia


moderna ocidental nos trabalhos mineiros e na construção do futuro
de Angola.
510 Movimentos, Direitos e Instituições

2.2 A Escola de Trabalho.

Fotogramas 5, 6 e 7
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 511

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

O filme retrata não só os trabalhos nas minas mas também


as atividades na Escola de Trabalho, com principal destaque para as
secções de Orientação Profissional (Fotogramas 5 e 6) e de
Orientação Rural (Fotograma 7) da Escola do Indígena criadas em
1947. (PORTO, 2009, p. 206). Era aí, como também na secção de
Orientação Sanitária, que os indígenas obtinham a formação em
trabalhos especializados, podendo, com isso, conseguir um
vencimento superior pela ascensão à categoria de “indígenas
especializados” ou “diferenciados”. (PORTO, 2009, p. 194, 207).
Ensinar as técnicas de manejamento de “engenhos” (máquinas),
formar auxiliares de enfermagem, como também ensinar as técnicas
de cultivo para a produção nas granjas, resultava na construção de
infraestruturas e no abastecimento de toda a população em géneros
alimentares. Como indica o texto voz-off:

Concentram-se no Dundo, e em Andrada, as principais oficinas de


mecânica. Técnicos e operários especializados garantem uma
assistência a todo o complexo material em funcionamento nas zonas
mineiras. […]
Abre-se uma excelente rede de estradas, lançam-se pontes sobre rios
e riachos. Promove-se, numa palavra, adequadas condições de
trabalho, segurança e progresso. […]
Mais de 25 mil agricultores tradicionais recebem vasta assistência
agrária em campanhas de ensinamentos das convenientes técnicas de
cultivo. (Narração voz-off, filme A Terra Rica. Filme/Documentário
produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m).
512 Movimentos, Direitos e Instituições

Por outras palavras, levar o “desenvolvimento” à Lunda por


meio da educação, do trabalho e das vias de comunicação significava
rentabilizar a produção diamantífera.

3. CONHECIMENTOS: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E


EDUCAÇÃO

Fruto de quadros concetuais pertencentes a um referencial


epistemológico e histórico particular, a ciência colonial serviu-se do
indivíduo angolano como objeto de estudo e como sujeito produtor de
um conhecimento entendido como inferior ao conhecimento ocidental,
e onde se concebia a sua vida como dependente dos saberes
levados pelo europeu.
Como se torna claro, a imposição do trabalho industrial não
se pode dissociar da tecnologia e estudos científicos levados e
ensinados pelo europeu, e que ajudaram à recriação de sistemas
classificatórios de diferenciação social. Isto é, estes conhecimentos
ajudaram ao projeto colonial no sentido em que serviram para
legitimar a hierarquização entre diferentes saberes e modos de vida,
naturalizando-a. Trata-se de um saber estratégico, um savoir na
aceção foucaultiana, um conhecimento que visa “conhecer para
colonizar”, e que tem na ciência, na técnica e nos saberes ocidentais
as suas principais ferramentas de ação.

3.1 As Infraestruturas e a Ciência Ocidental

Fotogramas 8 e 9
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 513

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

Em 1947 é criado o Laboratório de Investigações


Biológicas, com destaque para os trabalhos científicos de criação de
peixes em tanques (Fotograma 8), e também da medicina veterinária
e das técnicas de exploração pecuária (Fotograma 9). Da rede de
assistência da saúde, para além dos hospitais construídos, o relevo
centra-se nas campanhas de vacinação nas aldeias (Fotograma 10),
na maternidade (Fotograma 11) e em toda a tecnologia necessária,
quer à eficiência na saúde (Fotogramas 12 e 13) quer na lapidação
de diamantes e que ocorria na metrópole (Fotogramas 14 e 15).
Fotogramas 10 e 11
514 Movimentos, Direitos e Instituições

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

Fotogramas 12 e 13
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 515

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m. UNIVERSIDADE
DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA DIAMANG.

Fotogramas 14 e 15
516 Movimentos, Direitos e Instituições

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

Como é narrado no filme:

Acreditamos nas vantagens do desenvolvimento conjunto dos recursos


naturais, do capital e das pessoas. Estes três elementos participam na
construção de um futuro promissor para Angola.
[…]
Existe no nordeste de Angola uma das mais eficientes coberturas
médico-assistenciais de todo o país. Brigadas percorrem a vasta área
mineira, garantindo aos habitantes das aldeias uma vacinação
eficiente. Como resultado, desapareceram certas doenças endémicas
típicas da região e o combate a outras processa-se a um ritmo notável.
[…]
O médico e o construtor na conjugação de esforços para mais um êxito
na batalha da saúde. Uma cobertura total do território na batalha da
saúde. Sublinhamos. Nos serviços de urgência são usados aviões e
helicópteros para o transporte de sinistrados das aldeias distantes para
os hospitais dos centros urbanos.
Serviços de Saúde. Uma infraestrutura sem par, cujo custo aflorando
anualmente os 70 milhões de escudos, é por nós suportado na sua
totalidade.
[…]
Em Lisboa, e fundada com a comparticipação e impulso da nossa
Companhia, uma importante empresa: a DIALAP. Uma nova indústria –
lapidação de diamantes. […] DIALAP. Técnicas superiores e
sensibilidade artística ao serviço da lapidação do diamante. (Narração
voz-off, filme A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela
Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m).

No filme, para além da relevância em mostrar as máquinas


usadas nas oficinas e no trabalho mineiro, as barragens e as pontes
construídas, e as habitações destinadas aos empregados (comunidade
branca, os “europeus”) e aos trabalhadores (comunidade negra, os
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 517

indígenas), torna-se fundamental familiarizar o espectador com a


ciência produzida sob a alçada da Companhia.

3.2 As Escolas, a Rádio Diamang e o Papel Social da


“Mulher”
No âmbito da Educação, criaram-se escolas, não só de
trabalho especializado – como no caso das Oficinas – mas também
de ensino primário, como a Escola Oficial de Ensino Primária criada
no Dundo em 1936 e destinada às crianças dos empregados da
Companhia e a Escola do Indígena criada em 1942. A partir de 1961,
com a abolição do Estatuto do Indigenato, as turmas passam a
integrar crianças negras e brancas, e é essa realidade que o filme
enaltece. (Fotograma 16)
Fotograma 16

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

A Rádio Diamang, criada pela Companhia em 1944, é aqui


representada como uma tecnologia que é um instrumento quer de
propaganda quer de educação da população (Fotogramas 17 e 18).
Por isso se organiza a “Rádio Escolar”, um programa dedicado à
comunidade estudantil e cuja primeira emissão o filme documenta.
518 Movimentos, Direitos e Instituições

Fotogramas 17 e 18

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

Segue-se o texto que acompanha as imagens:

Rádio Diamang. A Companhia de Diamantes de Angola, atenta ao


desenvolvimento intelectual, cultural e profissional das populações da
sua área, pensou levar a efeito, a par do ensino tradicional, um
programa educativo de acordo com as mais modernas técnicas
audiovisuais de ensino, recorrendo para a sua concretização à Rádio.
[...]
Lançamos para o ar a primeira emissão da Rádio Escolar subordinada
ao tema “Abertura e Considerações Gerais” da autoria do orientador
pedagógico, professor Fernandes Lima:
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 519

“O progresso da educação não pode deixar de se sentir na Companhia


de Diamantes de Angola. Por isso devemos melhorar e multiplicar a
sua ação, descobrindo novas fórmulas de enfrentar a explosão sempre
crescente de alunos que afluem à Escola, que querem escola, que
querem usufruir dos benefícios da educação, qualquer que seja a sua
idade, condição social ou étnica. A Rádio, sendo uma técnica que
abrange um conjunto de novas situações pedagógicas e de difusão de
mensagens, pode ser uma presença renovada e amiga nas salas de
aula, e junto dos professores, apoiando-se, atualizando-os através de
programas”. (Narração voz-off, filme A Terra Rica. Filme/Documentário
produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m).

A assistência social aos trabalhadores e seus familiares no


âmbito da educação expressa também o papel da Companhia na
domesticação de modos de vida, tentando mais uma vez mostrar a
sua missão “civilizacional”. E os papéis sociais de género têm um
lugar importante neste discurso no sentido em que permitem à
Companhia fortalecer a sua política de controlo feita justamente pela
domesticação dos corpos do “Outro”, neste caso da mulher indígena.
(Fotogramas 19 e 20).
Fotogramas 19 e 20
520 Movimentos, Direitos e Instituições

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

No filme, este tipo de assistência é narrado logo a seguir à


atuação da Companhia na área da Saúde, e daí a sequência nas
palavras:

Saudável é também a promoção da mulher. Uma atividade delicada


merecedora da maior atenção. Labores, higiene, puericultura,
cuidados com o ar, tudo contribui para uma sociedade mais feliz. Nas
aulas de formação doméstica, em vários centros urbanos, raparigas
da Lunda tornam-se aptas para o cumprimento da missão de donas
de casa. Aprendizagem de culinária e de bom convívio durante as
refeições. Em todos os cursos, noções de corte, costura e bordados.
Centenas de trabalhos são reunidos anualmente em exposições de
labores que registam grande número de visitantes. (Narração voz-off,
filme A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang,
ano de 1973, VHS, 30 m).

É por meio dessas atividades que a Companhia ensina à


mulher indígena as formas de estar na esfera doméstica e, no fundo,
ensina a desempenhar o seu papel de esposa e dona de casa de
acordo com os padrões ocidentais (e supostamente universais) que
definem a Mulher.

4. AS TRADIÇÕES DA LUNDA

Se se quiser interpretar os usos coloniais das culturas


nativas, desde a narrativa hegemónica do projeto colonial, é
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 521

importante recorrer a Johannes Fabian (2006) para se pensar que o


tempo, assim como a linguagem, é um veículo de significados por
excelência e agente na naturalização de relações assimétricas de
poder, aproximando uns e distanciando outros. Particularmente no
discurso da modernidade ocidental, a alteridade foi entendida sob
premissas evolucionistas e românticas: as sociedades “africanas”
foram “descobertas” pelos ocidentais e teriam de ser “naturalmente”
dominadas, como também iriam inevitavelmente desaparecer.
(FABIAN, 1998, p. 24-26). Estas culturas são assim deslocadas da
contemporaneidade sob o espartilho de classificações oriundas da
antropologia colonial, tais como “cultura primitiva” ou “sociedades
tradicionais” e que simplesmente expressam valores situados numa
época de expansão dos Impérios: a modernidade movida pelos
ideais de progresso tecnológico e económico significaria uma
evolução social e histórica. Os conceitos de “etnia”, “tribo”,
“primitivo”, “selvagem” ou “bom selvagem”, em articulação com
modos de ver a diversidade cultural à época, funcionaram como
ferramentas de preservação da ordem colonial ao conterem o
“Outro” na sua “tradição”, e de legitimação da ocupação por criarem
a necessidade em educar e civilizar. (CLIFFORD, 1988, p. 232).
Concretamente na África Subsariana do fim do século XIX,
as populações nativas foram alvo de um processo de idealização,
seleção e reinvenção segundo o qual foram entendidas como
antigas, “autênticas” e resgatáveis. Essas práticas revelam a
mesma racionalidade que presidira à reinvenção europeia de
tradições nacionais pela salvaguarda do “popular”; particularmente,
a lógica social darwiniana patente no paradigma evolucionista que
pressupunha uma passagem do estádio de selvajaria e cultura (e
tradição) ao de Civilização (e modernidade), no fim do século XIX. A
partir desta perspectiva, que vê a Cultura como a antítese da
Civilização concordou com Robert Young quando diz que “a cultura
foi inventada para a diferença” (YOUNG, 1996, p. 49), e numa lógica
em que simultaneamente se reprimia e produzia a diferença.
(CHAMBERS, 2001, p. 55).
522 Movimentos, Direitos e Instituições

4.1 O Museu do Dundo.

Fotograma 21

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

As culturas da Lunda são alvo de preservação e reinvenção


pelo trabalho etnográfico do Museu do Dundo (Fotograma 21). O
Museu do Dundo é criado em 1936 e pretendia, segundo a Diamang,
preservar as “tradições nativas” face à presença da “modernidade”. As
narrativas sociais, históricas e os vários objetos que caracterizavam os
vários grupos étnicos que habitavam a Lunda, com particular destaque
para o grupo Cokwe, integram o discurso expositivo do Museu como
fazendo parte de culturas “tradicionais”, primitivas, cristalizadas no
tempo e em perigo de extinção. E é com base nesta representação
que, ao mesmo tempo em que se conservam e estudam as culturas
nativas, se legitima e preserva, nacional e internacionalmente, a
presença colonial em Angola. Isto é, a existência de indígenas
“tradicionais” e “tribalizados” significava a necessidade em continuar a
“civilizar” o “Outro”, permitindo ao mesmo tempo contornar ações de
revolta e dissidência na medida em que o Museu era,
simultaneamente, uma forma de manter a população nativa satisfeita
ao fomentar no seu seio tanto um apreço e respeito pelos modos de
vida mais “tradicionais” e “autênticos”, como um sentimento de
reconhecimento no trabalho levado a cabo pelo Museu, culminando na
valorização desse papel. O Museu era, neste sentido, a mais poderosa
– porque silenciosa – ferramenta de ocupação colonial, definido como
“um dos mais valiosos diamantes de Angola”. (Narração voz-off, filme A
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 523

Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de


1973, VHS, 30 m).
No filme são documentadas as Salas de exposição – com
destaque para a Sala de Arte Indígena (Fotograma 22) – onde se
exibem os objetos recolhidos pelo Museu nas campanhas
etnográficas que promoveu (Fotogramas 23 e 24). O som que
acompanha as imagens do Museu contrasta com aquele que tinha
servido até aqui como fundo sonoro, e que era o som das máquinas
(leia-se “modernidade”). Agora estão presentes as vozes e os
instrumentos musicais dos Povos da Lunda por meio das músicas
recolhidas e gravadas no âmbito da Missão de Recolha de Folclore
Musical, organizada pela Companhia nas décadas de 1950 e 1960 e
definida como “uma obra do mais alto valor cultural”. (Narração voz-
off, filme A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang,
ano de 1973, VHS, 30 m).
Fotogramas 22, 23 e 24
524 Movimentos, Direitos e Instituições

Fonte: A Terra Rica. Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA
DIAMANG.

CONCLUSÃO

As imagens e as palavras que o filme selecionou para


retratar experiências coloniais vividas foram aqui interpretadas para
além de simples objetos que refletem realidades específicas. Elas
constituem agentes mobilizadores do real e que, ao (re)criarem
significados e relações, ultrapassam – no tempo e no espaço – a
circunstancialidade da sua produção.
No caso deste filme, representar a ação da Diamang como
agente de “bem-estar”, “segurança”, “progresso” e “desenvolvimento”,
exigiu a reconstrução e a invenção do sujeito para quem esta ação
era destinada. Este sujeito – constituído como ator passivo da ação
benfeitora da Diamang, “primitivo”, “exótico”, “tradicional”,
“subdesenvolvido” – é o objeto de assistência e de apoio. Com efeito,
a diferença entre civilizações é transformada numa relação
dicotómica onde se reconhece a superioridade de quem atua como
agente “do conhecimento” e do “desenvolvimento”, e onde se
estabelece a subalternidade de quem é feito atuar como recetáculo
dessa ação, sem que essa assimetria de poder seja percebida como
a construção política que é, mas antes como a ordem natural das
coisas, que é – nesta ordem das coisas – a ordem colonial.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 525

REFERÊNCIAS

A TERRA RICA. UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ARQUIVO AUDIOVISUAL


DOS SERVIÇOS CULTURAIS DA DIAMANG. A Terra Rica.
Filme/Documentário produzido pela Diamang, ano de 1973, VHS, 30 m.
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CAPÍTULO 22

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA POLÍTICA E


DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS

241
Tiago Anderson Brutti

RESUMO

Teses acerca da política, da forma de governo e dos princípios


republicanos foram examinadas, neste texto, com o objetivo de
explicitar critérios e propósitos das sociedades republicanas e
democráticas do Século XXI. A investigação, de base bibliográfica,
constitui um esforço hermenêutico de revisitar, prioritariamente, a
literatura em torno de textos de Condorcet e de Arendt, os quais,
resguardadas as diferenças contextuais em que escreveram,
compartilham argumentos do imaginário republicano e democrático
instituídos, sobretudo, a partir das revoluções dos Estados Unidos da
América e da França, ao final do Século XVIII. Ela se estrutura da
seguinte maneira: a primeira parte analisa, no essencial, ideias de
Arendt a respeito do sentido e da dignidade da política; a segunda
examina argumentos político-normativos de Condorcet relativos à
configuração de república e de suas instituições. Salienta-se que o
debate acerca da política e da forma de governo são atuais e que
favorecem o exercício livre e crítico da cidadania. Ao contrário do que
241
Doutor em Educação nas Ciências/Filosofia e Mestre em Educação nas
Ciências/Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (UNIJUÍ). Professor, pesquisador e extensionista no Curso de Direito e no
Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
- Mestrado, da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). É Bacharel em Filosofia e
em Direito. E-mail: <tbrutti@unicruz.edu.br>.
528 Movimentos, Direitos e Instituições

ocorre no caso de um despotismo político, a instituição do cidadão


republicano deve assegurar a independência do indivíduo e a
efetividade dos princípios republicanos da igualdade, da liberdade e
do bem-estar comum. Destaca-se que a desigualdade de riquezas
constitui um problema nodal para a efetivação de princípios e direitos
declarados inegociáveis e imprescritíveis. A pesquisa, desse modo
articulada, ateve-se à explicitação de conceitos-chave de Arendt e de
Condorcet com o propósito de pensar elementos e justificativas das
instituições políticas atuais.
Palavras-chave: humanidade; igualdade social; liberdade política;
princípios republicanos.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO; 1. SENTIDO E DIGNIDADE DA POLÍTICA; 2.


IGUALDADE, LIBERDADE E BEM-ESTAR COMUM; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Este estudo explicita teses referenciais de Arendt acerca do


sentido e da dignidade da política, bem como de Condorcet a respeito
da forma de governo, do modo de exercício do poder público e dos
princípios republicanos da igualdade, da liberdade e do bem-estar
comum, com o propósito de evidenciar que argumentos desses
autores se afinam com elementos políticos e educacionais distintivos
das novas repúblicas estabelecidas ao final do Século XVIII. Tais
aspectos permitem, por um lado, destacar o sentido original da
política e a originalidade das instituições republicanas dos Estados
Unidos da América e da França; e, por outro, considerar a relevância
de enunciados de Arendt e de Condorcet no contexto de debates
político-constitucionais contemporâneos. A investigação, desse modo
articulada, ateve-se à explicitação de conceitos-chave inscritos no
edifício teórico e argumentativo dos autores. Ela se estrutura do
seguinte modo: inicialmente, são explicitadas ideias de Arendt a
respeito da política, enquanto que, na segunda parte, são analisados
argumentos político-normativos de Condorcet relativos à configuração
de república e de suas instituições.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 529

1. SENTIDO E DIGNIDADE DA POLÍTICA

Entre as mais extraordinárias contribuições de Aristóteles


(2001) para as ciências e as artes estão suas compreensões da ética
e da política. A palavra ética, para o filósofo, diz respeito ao
comportamento voluntário e moral implicado na preocupação de
valorar a própria atuação individual no mundo. Já a palavra política
expressa as vinculações dos indivíduos com a comunidade da qual
participam. O ato moral, por esse modo de entender, é estruturado
pelos temas da vontade, da escolha e das ações voluntárias. A
excelência moral, com o sentido de virtude, se relaciona tanto com as
emoções, ou seja, com as paixões ou sentimentos, quanto com as
ações, sejam elas voluntárias ou não. Louvam-se ou censuram-se as
emoções e as ações voluntárias, enquanto que as involuntárias
podem merecer perdão e piedade. As ações involuntárias são
aquelas que ocorrem por compulsão ou ignorância. Algo é
compulsório ou forçado quando sua origem é externa ao agente, ou
seja, quando ele não contribui para o ato, mas, ao contrário, é
influenciado por ele. O autor (2001), nesse sentido, entende que há
atos praticados para evitar males maiores, como o que se vê no caso
de um tirano que ordene a alguém um ato vil e esse, tendo pais e
filhos em poder daquele, venha a praticar o ato para salvá-los de
serem mortos. Esses atos trágicos se assemelham aos voluntários
por facultarem a escolha, mas podem ser considerados involuntários,
uma vez que ninguém os escolheria por si mesmos.
Aristóteles (2001) argumenta que o poder de escolher
caracteriza a racionalidade da espécie humana, distinguindo-a das
espécies irracionais que agem segundo seu próprio apetite. O ato de
escolher, embora pareça de todo voluntário, não se reduz a ele, uma
vez que seu conceito é mais extenso, daí que os atos praticados por
impulso podem ser voluntários e, apesar disso, não escolhidos. O
filósofo entende que há possibilidade de escolha quando algo está ao
alcance, podendo ser desejado após uma deliberação. A escolha,
nesse sentido, implica um desejo deliberado. Se o fim é aquilo que é
desejado ou que se tem vontade e o meio aquilo que se delibera e se
escolhe, as ações devem concordar com a escolha e serem
voluntárias. O exercício da virtude diz respeito aos meios e, logo, a
virtude está para a escolha, ou seja, é facultado a todos escolherem
entre a virtude e o vício, entre o agir e o não agir. A felicidade pública
imaginada por Aristóteles está ligada ao exercício das virtudes no
âmbito da pólis. A boa medida para as ações humanas é, na
530 Movimentos, Direitos e Instituições

avaliação do filósofo, o justo-meio ou o meio-termo, ou seja, aquilo


que não desaponta nem por excesso nem por defeito. Essa medida
do meio-termo, no entanto, se modifica historicamente e pode não ser
única para todos os homens.
Arendt (2011) propugna que o sentido original da política é a
liberdade e que isso se deve ao fato da pluralidade dos homens. A
política, nesses termos, é própria das escolhas, ou das experiências
de convivência, e do modo de exercer o poder público na pólis grega.
Em outras palavras, a política, entendida como modo de organizar e
242
de regular o convívio entre os diferentes , teria sido entendida pelos
gregos da pólis como a própria liberdade. A filósofa indica que,
diferentemente do que se propaga na tradição em que prospera o
preconceito moderno segundo o qual a política constitui uma
necessidade imperiosa oriunda da natureza humana, a política só
começa no momento em que cessa o predomínio das necessidades
243
materiais e da força física . Uma vez que o homem depende dos
outros em sua existência, ele encontra vantagens na condição política
de convivência. Mais que isso, para Arendt o homem sente a
importância de haver um provimento da vida relativo a todos, sem o
qual o convívio poderia ser inviabilizado.
A pólis corresponde, conforme Arendt (2011), à cidade que
oferece aos homens mortais e aos seus feitos e palavras passageiras
um lugar duradouro. A pólis é política, desse modo, diferente dos
outros povoamentos, porque foi construída originalmente em torno do
espaço público, em torno da praça do mercado, na qual os livres e
iguais poderiam se encontrar a qualquer hora.

242
A política nada tem a ver, conforme Arendt (2011), com a tarefa ilusória de
construir um mundo tão transparente para a verdade como a criação de Deus. Se
isso fosse assim, deveríamos aceitar que, no sentido do mito judaico-cristão, o
homem, criado à imagem de Deus, recebeu uma capacidade genética para
organizar os outros à imagem da criação divina. A criação do homem por Deus, na
diversidade de todos os homens entre si, está contida na pluralidade. Daí que a
política, no sentido em que é entendida pela autora, organiza, de antemão, as
diversidades de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às
diferenças relativas.
243
A pressão e a violência sempre foram, acentua Arendt (2011), meios para fundar,
proteger e ampliar o espaço político. Trata-se, na opinião da filósofa, de fenômenos
marginais que, não obstante pertencerem ao fenômeno da coisa política, não se
confundem com ela. A liberdade enquanto objetivo final da política estabelece as
fronteiras políticas, contudo o critério do agir dentro do próprio âmbito político não é
mais a liberdade, mas sim a competência e a capacidade de assegurar a vida.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 531

A mais antiga das virtudes políticas é a coragem, de acordo


com a filósofa, sentimento que ainda constitui, em sua opinião, uma
das principais virtudes da política contemporânea, tal como ela vem
sendo tradicionalmente entendida. Isso acontece, segundo Arendt
(2011), porque só se pode chegar ao mundo público – aquele comum
a todos – se o indivíduo se encorajar a ponto de se distanciar da sua
própria existência privada e do contexto familiar com o qual sua vida
normalmente está ligada.
Arendt (2011) reitera que a política trata da convivência entre
os diferentes e da organização dos homens para certas coisas em
comum. Recorda que está, entre os preconceitos mais notáveis, a
interpretação que normalmente se confere à expressão aristotélica
244
zoon politikon . Para a filósofa, o homem não é essencialmente
político e a política não corresponde a uma atividade que brota da
intimidade de cada homem, senão que surge no entre-os-homens,
totalmente fora, portanto, dos homens, estabelecendo-se como
relação. Outro preconceito mencionado por Arendt (2011) está ligado à
concepção monoteísta de Deus, de cuja imagem o homem
supostamente teria sido criado. Depreende-se daí um modelo de
homem: os diferentes homens tornam-se uma repetição mais ou
menos bem-sucedida de Deus. O homem, criado à imagem da solidão
de deus, serve de base, na opinião da filósofa, ao estado de natureza
como uma guerra de todos contra todos245, de Hobbes. Trata-se da
rebelião de cada um contra todos os outros, odiados porque existem
sem sentido e porque apenas expressam de algum modo o único deus.
Arendt (2011) considera essa compreensão incompatível com a
política. O mito ocidental da criação pode implicar a transformação ou a
substituição da política pela história. Por meio da ideia de uma história
mundial, a pluralidade dos homens se dissolve no indivíduo homem,
em seguida também chamado de humanidade.
Contra a possível determinação e distinguibilidade do futuro
está, indica Arendt (2011), o fato de que o mundo se renova a cada

244
A expressão zoon politikon é usada por Aristóteles para descrever a dimensão
social e política dos homens livres que habitavam a pólis. O termo designava uma
determinada configuração organizacional da vida humana. Arendt salienta que a
política, com o sentido original de liberdade, caracteriza o convívio dos homens na
pólis, não se reproduzindo necessariamente em outras formas de convívio humano.
Para a autora, a política, tal como compreendida por Aristóteles, “não é, de maneira
nenhuma, algo natural, e não se encontra, de modo algum, em toda parte onde os
homens convivem”. (ARENDT, 2002, p. 46-47).
245
No original: “state of nature as a war of all against all”. (HOBBES, 2004, p. 110).
532 Movimentos, Direitos e Instituições

dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos recém-


chegados, está sempre se comprometendo com um novo
imprevisível. Apenas quando os recém-nascidos são privados de sua
espontaneidade, de seu direito a começar algo novo, é que o curso
do mundo pode ser previsto de maneira determinística. Para a
filósofa, a liberdade de externar uma opinião é determinante para a
organização da pólis. Esse modo de liberdade é distinto daquele
relativo ao agir humano, do fazer um novo começo, porque não pode
prescindir da presença dos outros e do ser-confrontado com suas
opiniões.
Arendt (2011) argui, ainda, que desde o advento do Estado
Nacional é opinião corrente competir ao governo proteger a liberdade
da sociedade política, internamente ou externamente, com o emprego
da força pública, se assim for entendido necessário. A participação
dos cidadãos no governo só é tida como necessária para a liberdade,
desse modo, porque o Estado, dispondo dos meios de força, precisa
ser controlado pelos governados no exercício dessa força. Com o
estabelecimento de uma esfera do agir político, surge um poder do
qual a liberdade só pode ser protegida se seu exercício for fiscalizado
o tempo todo. O que hoje se entende por governo constitucional, seja
ele monárquico ou republicano, é, de acordo com a filósofa, um
governo essencialmente controlado pelos governados, restringido em
suas competências de poder e em sua aplicação da força. Esse
controle ocorre em nome da liberdade, tanto da sociedade como do
indivíduo. Arendt (2011) avalia que os preconceitos opostos a uma
compreensão teórica daquilo que de fato está em jogo na política
dizem respeito à quase todas as categorias políticas pensadas
habitualmente, mas, sobretudo, à categoria do meio-objetivo,
segundo a qual a coisa política corresponde a um fim situado fora de
si mesmo; à concepção de que o conteúdo da coisa política é a força;
e, ainda, à convicção de que o domínio é o conceito central da teoria
política. Todos esses juízos e preconceitos nascem, na opinião da
autora, de uma desconfiança contra a política, em si não
injustificados.
Perguntar-se, na atualidade, acerca do sentido da política
diz mais respeito à conveniência ou inconveniência dos meios
públicos de força, pondera Arendt (2011). O fato de que a força que
deveria proteger a vida e a liberdade tornou-se tão terrivelmente
poderosa que ameaça não apenas a liberdade, mas a vida como um
todo, justifica essa pergunta. Arendt, em seus textos, recupera a
noção de dignidade da política e os fatos jurídico-normativos
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 533

estabelecidos pelas grandes revoluções do Século XVIII, ou seja,


explicita sua compreensão de política ao mesmo tempo em que
expõe suas ideias a respeito da educação, um instituto, segundo a
autora, essencial para que o mundo dos adultos seja apresentado
responsavelmente às crianças.
Condorcet (2013), por sua parte, vincula os princípios
racionais da igualdade, da liberdade e do bem-estar comum aos
propósitos das instituições políticas. O filósofo aposta na
possibilidade de que a educação republicana favoreça as sociedades
e os governos que se aperfeiçoem, de tal modo que de súdito cada
indivíduo possa vir a ser reconhecido cidadão de sua comunidade, de
sua nação e da humanidade. O que se está querendo é universalizar,
indistintamente, a condição de sujeitos de direitos e de deveres de
cujas expectativas de realização se nutrem as instituições políticas e
educacionais republicanas.

2. IGUALDADE, LIBERDADE E BEM-ESTAR COMUM

Não se deve privar o mais modesto cidadão, seja ele do


gênero, etnia ou religião a que pertença, dos direitos declarados
inegociáveis e imprescritíveis. Com essa convicção, Condorcet (2013)
argumenta que o princípio da igualdade corresponde a um
pressuposto moral, essencial para se estabelecer vínculos razoáveis
entre moral, política e educação. O argumento segundo o qual cabe
ao poder público salvaguardar que os indivíduos possam ser tratados
desigualmente na medida em que se desigualam não soa descabido,
senão que antecipa um tempo imaginário no qual os indivíduos, ao se
desigualarem menos, apesar de nunca se reduzirem ao absurdo de
uma igualdade absoluta246, possam conviver em condições que
considerem reciprocamente dignas.

246
Diversas obras literárias, dentre as quais a célebre Nineteen eighty-four, de Orwell
(1984), apresentam, usando o estilo da redução ao absurdo, estados sociais nos
quais a igualdade caracteriza uma sociedade massiva na qual os indivíduos
permanecem devotados, semiconscientemente, às causas emanadas de um
partido, representando supostamente a totalidade dos interesses ou a vontade
generalizada. Descrevem-se personalidades fantásticas caracterizadas pela
compulsão de domínio e eventualmente pela solidariedade ou crueldade com que
levam a efeito suas iniciativas, sendo capazes de estabelecer em seu proveito uma
ordem forçosamente opressora da individualidade. No caso do livro 1984, é
apresentada uma sociedade meticulosamente monitorada e manipulada para
permitir que o poder central evite a perversão da ordem totalitária estabelec ida. Tão
534 Movimentos, Direitos e Instituições

O sentido da igualdade não se fecha numa abstração. A


igualdade, entendida como sentimento cultivado e critério racional,
vincula-se ao reconhecimento de que o mundo social é tensionado
continuamente pela força de cidadãos que, ao sobreviverem em
condições que não consideram reciprocamente dignas, almejam
conquistar outros recursos e modos de vida mais ajustados aos seus
desejos ou às suas necessidades, sejam elas fictícias ou não.
Necessidades que não dizem respeito somente aos aspectos
econômicos da vida de cada um. A igualdade se relaciona, também,
por essa perspectiva, com o reconhecimento de que a liberdade de
opinião e de iniciativa amplia a efetividade dos direitos daqueles
cidadãos que, por sua condição ou por livre escolha, fazem da
igualdade um propósito e um critério de avaliação do mundo social.
O gozo da igualdade impede que a extrema miséria de uma
parte do povo seja definida como socialmente aceitável ou justa. Mas
a igualdade é criação dos homens, porque na natureza tudo parece
distinto. Como ela não decorre de códigos genéticos, senão que
representa um construto das faculdades que se dispõem de produzir
sentimentos e de raciocinar, a igualdade se vincula à aposta política
republicana do bem-estar comum, se harmonizando, desse modo,
com a exigência da democracia, e negando que se proíba a
pluralidade de interpretações.
O autor indica o enfrentamento das desigualdades
instituídas como propósito principal de um governo que se submeta
aos princípios republicanos; de uma sociedade que faça concorrer as
forças comuns ao bem-estar dos indivíduos, independentemente dos
traços de sua cultura, da cor de sua pele, do gênero sexual a que
pertençam, da opinião que expressem ou da religião que confessem.
Condorcet (1945a) considera que a liberdade de imprensa, longe de
favorecer a intriga, pode contribuir com a dissolução de associações
particularistas, prejudiciais à república, impedindo, com isso, a
consolidação de projetos conduzidos por motivações menos afetas ao
interesse público. As declamações da imprensa não entranhariam
perigo senão quando a severidade das leis as obrigasse a circular na
clandestinidade. O filósofo critica o modo como os ingleses, em sua
época, tratavam a questão da liberdade de imprensa, apontando que

real é essa tragédia que podemos reconhecer traços dessas criações ficcionais nos
mais diversos eventos narrados no percurso da história humana, os quais nos
mostram sucessos e fracassos de iniciativas destinadas a estabelecer uma ordem
social divorciada da liberdade de opinião e de iniciativa, e implacável em suas
práticas de domínio do pensamento.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 535

entre eles ainda subsistiam leis contra essa liberdade sob o pretexto
de um falso patriotismo.
Condorcet (1793) argui que o pacto social tem por objeto o
gozo igual e integral dos direitos que pertencem ao homem. Esse
acordo é fundamentado na garantia mútua desses direitos. Essa
garantia, no entanto, pode não ser aplicável aos indivíduos que
queiram dissolver o pacto social. O filósofo consente que, se um
direito mais precioso for ameaçado, e se, para conservá-lo, for
preciso sacrificar o exercício de outro direito menos importante,
então, desse modo, exigir esse sacrifício não implicaria violar o último
247
direito .
Nenhuma legislação que admita a desigualdade étnica, de
gênero, religiosa e ideológica deveria ser admitida pelas sociedades
civilizadas. Condorcet (2009) equipara a redução do homem à
escravidão ao crime de roubo, porque não seria razoável e admissível
que a alguém fosse reconhecido o direito de dispor de sua própria
liberdade, muito menos o de se apropriar da liberdade dos outros. A
liberdade, declarada um direito natural, não deveria, pois, ser
considerada objeto de negócio. O autor propugna que a liberdade
consiste em poder fazer tudo aquilo que não é contrário aos direitos
dos outros indivíduos248. Logo, o exercício dos direitos encontra seu
limite no estatuto dos direitos assegurados aos demais membros da
sociedade. O homem, dessa maneira, é igualmente livre para
expressar seus pensamentos e opiniões, mas não o é para usar da
força a fim de reprimir as manifestações dos outros.
Ao cobrir os diferentes indivíduos de direitos naturais
constituintes da humanidade e da cidadania, Condorcet (2009)
denunciou que o sequestro de indivíduos nas fronteiras do continente
africano; a submissão deles, assim como de sua descendência, a um
regime de trabalho escravo; e as indiferenças sociais frente aos maus
tratos a que eles eram submetidos, constituíam uma flagrante
injustiça e perversidade, oriunda de hábitos repulsivos herdados do
passado; envergonhavam profundamente o ideário social iluminista; e

247
Esse debate é levado a efeito, sobretudo, no texto Sobre o sentido da palavra
revolucionário (1793).
248
Esse é o conceito de liberdade desenvolvido no artigo segundo do Projeto de
declaração dos direitos naturais, civis e políticos dos homens (1793),
apresentado por Condorcet à Assembleia Nacional nos dias 15 e 16 de fevereiro de
1793, em nome do Comitê de Constituição. Essa proposta de Constituição ficou
conhecida como a Constituição Girondina. Esse projeto foi acrescido ao livro
Condorcet: instituir al ciudadano, de Coutel (2004).
536 Movimentos, Direitos e Instituições

representavam um ultraje frente aos direitos declarados naturais e


aos princípios racionais que os informavam. Para o filósofo (2013),
mais importante que proclamar publicamente direitos e princípios
seria efetivá-los de tal modo que as realidades narradas não mais
apresentassem como característica uma inconciliável dissensão entre
o mundo em que se vivia e o imaginário republicano da igualdade e
da liberdade.
A personagem principal do conto Cartas de um burguês de
Novo Hampshire a um cidadão da Virgínia sobre a inutilidade de
dividir o poder legislativo em vários corpos, escrito por Condorcet
(1945b) em 1787, expõe por meio de correspondências o que julga
favorecer uma justa instituição social, assentada sobre uma
Constituição, cujos princípios se fundam em direitos naturais dos
homens. Tais direitos, anteriores, por assim dizer, às instituições
sociais, recebem o nome de naturais porque, desde o momento em
que um ser sensível é reconhecido, por ser capaz de raciocinar e
adquirir ideias morais, resulta necessariamente que deve gozar
desses direitos, não podendo ser privado deles sem injustiça. Um
desses direitos é o de votar acerca de interesses comuns, seja por si,
seja por representantes livremente eleitos. Um Estado em que parte
dos homens são privados desse direito deixa de ser um Estado livre,
transformando-se em uma aristocracia de maior ou menor amplitude.
Coutel questiona o sentido da palavra igualdade na obra de
Condorcet:

Como conciliar a afirmação: todos os homens são iguais, sobre o plano


político e dos direitos do homem, com a ideia de que os espíritos e talentos
não são semelhantes? Como fazer para que essa diversidade não seja
interpretada de tal modo que hierarquize as pessoas? (2006, p. 2).

Diante dessas questões, o autor argumenta que a igualdade


de instrução preveniria tanto o retorno da desigualdade de acesso
aos saberes como a tentação do igualitarismo que, a partir da
igualdade moral e política dos homens, desprezaria talentos e luzes:

[...] a instrução pública condorcetiana não cede a um entusiasmo


simplificador nem a um obscurantismo igualitarista, pois coloca os
saberes à disposição de todos sem sacrificar a excelência e a
diversidade dos espíritos e dos talentos. (COUTEL, 2006, p. 11).

No texto Réfléxions sur l’esclavage des nègres, de 1781


– Reflexões sobre a escravidão dos negros –, firmado sob o
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 537

pseudônimo Joaquim Schwartz, Condorcet (2009)249 convoca os


cidadãos a perceberem os sofrimentos de milhares de homens e
mulheres equiparados socialmente à condição de animais
domésticos, entregues à escravidão mediante violência. O autor
questiona a validade dos pretextos alegados para encobrir os
motivos, sejam relativos à preguiça, sejam relativos à economia
doméstica ou política, que obliteravam a liberdade dos negros,
capturados violentamente. Entre esses pretextos estava a insinuação
de que a escravidão deveria ser considerada, ao contrário do que
propunham os abolicionistas, um ato de humanidade para com todos
aqueles negros que, já condenados à execução ou prisioneiros de
guerra, inevitavelmente padeceriam diante de seus adversários caso
não fossem comprados pelos europeus. Para Condorcet (2009), essa
desculpa correspondia a uma estupidez interessada, uma vez que os
próprios europeus em muitos casos instigaram conflitos em terras de
propriedade dos povos africanos, motivados pela ganância de
riquezas e poder.
A hipótese de que os negros teriam sido comprados por um
ato de humanidade foi radicalmente deplorada por Condorcet (2009),
para quem o tráfico, a venda e a compra de homens com a finalidade
de escravizá-los constituíam um abominável crime. Ademais, os
senhores de escravos não poderiam, sem para isso incorrer em
contradição, tornar seus o sentimento de humanidade frente aos
casos de maus tratos que alcançavam notabilidade pública. O autor
interroga se por acaso seria justificável que os senhores de escravos
ainda cobrassem em energia de trabalho uma escravidão alegada
como decorrente de atos de humanidade. Mais que isso, interroga se
seria justificável uma propriedade perpétua sobre os negros, inclusive
sobre sua descendência, incluindo o direito de obrigar a trabalhar
indefinidamente.
Quanto à alegação de que seria impossível o crescimento
das colônias europeias sem o emprego da mão de obra dos negros
em regime de escravidão, Condorcet (2009) questiona se esse
interesse de crescimento econômico acaso teria tornado legítima a
escravidão e se poderia ser considerado razoável manter uma fortuna
ao custo da prática de um crime. O tom das reflexões do filósofo se

249
Nota dos Revisores: esse texto, supreendentemente, ainda não foi vertido ao
português. Sua publicação original é de 1781, mas o autor do presente artigo usou
a versão em francês, publicada em 2009, conforme consta nas Referências, ao
final do presente Capítulo.
538 Movimentos, Direitos e Instituições

agrava quando ele associa o fato da aprovação de uma lei que fira os
direitos de todos os homens à autoria de um crime cometido pelos
legisladores que a tivessem aprovado: “Uma lei injusta que viole o
direito dos homens, sejam nacionais, sejam estrangeiros, é um crime
cometido pelo legislador, situação na qual os membros do corpo
legislativo que subscreveram essa lei são todos cúmplices”. (2009, p.
250
70) .
Condorcet (2013) considera que as sociedades políticas,
por dever de justiça, não deveriam ter objetivo maior que o de
preservar indistintamente os direitos daqueles que a integram.
Qualquer lei que violasse direitos humanos ou princípios racionais
deveria ser considerada uma lei injusta ou tirânica. O filósofo
denuncia, igualmente, o fato de que direitos e princípios que
justificavam a igualdade política e de fato entre mulheres e homens
estivessem sendo solenemente violados na medida em que as
mulheres, a metade do gênero humano, eram privadas do direito
inegociável de contribuir na formulação de leis que elas próprias eram
estimuladas pelos indivíduos masculinos a cumprir. Nas Cartas de
um burguês, o remetente lamenta:

Não é na qualidade de seres sensíveis, capazes de raciocinar, com


ideias morais, como os homens recebem seus direitos? As mulheres
devem ter absolutamente os mesmos e, sem embargo, jamais, em
nenhuma Constituição, ainda das chamadas livres, as mulheres
exerceram os direitos de cidadania. (CONDORCET, 1945b, p. 139).

Condorcet denuncia no texto Sobre a admissão das


mulheres ao direito de cidadania (1790), publicado no Jornal da
Sociedade, de 1789, que algumas das violações de direitos e
princípios passaram inadvertidas até mesmo entre filósofos e
legisladores, ainda que a eles competisse estabelecer zelosamente
os direitos comuns dos indivíduos da espécie humana e, dessa
maneira, fundamentar as instituições políticas e educacionais. No que
diz respeito à insinuação de que as mulheres não expressavam
senso político equiparável ao dos homens, Condorcet aponta os
exemplos, como chefes de Estado, de Elizabeth, na Inglaterra, Maria
Teresa, na Áustria, e as Catarinas, na Rússia. Uma simples
comparação entre os governos exercidos pelas mulheres e os

250
Fragmento do original das Reflexões sobre a escravidão dos negros: “Une loi
injuste qui blesse le droit des hommes, soit nationaux, soit étrangers, est un crime
commis par le législateur, où dont ceux des membres du corps législatif quiont
souscrit à cette loi, sont tous complices”.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 539

exercidos pelos homens mostraria que estes não foram mais


eficientes que aquelas no alcance do que se propuseram. De outra
parte, o fato de os homens se julgarem mais esclarecidos do que as
mulheres reforçava a necessidade de que as mulheres fossem
instruídas do mesmo modo e alcance que se instruíam os homens,
isso para que a formação inadequada não fosse usada como
argumento contra o direito das mulheres de participar dos governos.
Somente quando às mulheres fossem assegurados os
mesmos direitos que já haviam alcançado os homens é que a
liberdade e a igualdade poderiam, de fato, ser proclamadas como
estendidas ao gênero humano. O filósofo acentua no Esboço de um
quadro histórico dos progressos do espírito humano:

Entre os progressos do espírito humano mais importantes para a


felicidade geral, devemos contar a destruição integral dos prejuízos que
estabeleceram, entre os dois sexos, uma desigualdade de direitos
funesta àquele mesmo que ela favorece. Então procurar-se-iam
motivos para justificá-la pelas diferenças da organização física dos
sexos, por aquela que se desejaria encontrar na força de sua
inteligência ou em sua sensibilidade moral. Essa desigualdade só teve
por origem o abuso da força, e foi em vão que depois se tentou
desculpá-la por sofismas. (2013, p. 209).

Condorcet (2009) põe em cheque a opinião segundo a qual


era inconveniente, ou mesmo perigoso, reconhecer direitos de
cidadania às mulheres, porque dessa forma os homens se tornariam
amplamente sujeitos à influência delas. Para o filósofo, a influência
que uma mulher venha a exercer sobre os homens na vida pública
provavelmente ainda será menor que a influência que as mulheres já
exercem sobre eles na vida privada, desde sua mais tenra infância,
seja como mães ou esposas.
Na dissertação É conveniente enganar ao povo?
Condorcet (2010) testemunha que em sua época habitualmente se
escolhiam mulheres e crianças como seres que deveriam ser
entregues ao erro. No que respeita às mulheres, o filósofo reitera que,
no seu entendimento, não há mais diferença entre elas e o gênero
masculino que as que correspondessem ao físico próprio de seu
sexo. Desse modo, a ideia de que era preciso submetê-las a erros
dos quais os homens estariam isentos não se sustentava senão por
quem ainda quisesse ser seu tirano.
Como se pode vislumbrar, um sagaz estilo de
argumentação e de narração é cultivado por Condorcet para discutir a
540 Movimentos, Direitos e Instituições

desigualdade de riquezas e de gênero, bem como as diferenças


étnicas e religiosas, intencionando convencer seus leitores da
importância de se efetivarem princípios e direitos declarados
razoáveis, inegociáveis e imprescritíveis. Com efeito, as narrações e
argumentos do filósofo reconhecem que a humanidade fez longas
jornadas antes que direitos declarados naturais pudessem ser
proclamados publicamente. Para o autor, ou nenhum indivíduo da
espécie humana têm direitos ou todos os possuem igualmente.

CONCLUSÃO

As reflexões que articularam este texto retomaram


ponderações apresentadas por Arendt acerca da política e por
Condorcet sobre a república moderna e seus princípios, isso para
evidenciar que as principais teses desses autores a respeito desses
temas merecem ser reavidas atualmente no contexto de debates e
desafios políticos, ou seja, que princípios e direitos estabelecidos,
sobretudo, ao final do Século XVIII, recordados nas circunstâncias
das sociedades republicanas e democráticas atuais, continuam
pertinentes e distantes de se efetivar de modo aceitável251.
Inspiradores do republicanismo democrático, da teoria dos
sentimentos morais, da instituição do cidadão, também são dignos de
destaque os seguintes enunciados-chave de Condorcet, produzidos

251
Garcia pondera que “[...] em tempos de radicais embates e transformações
políticas nas estruturas e justificações da sociabilidade humana não é irrelevante
considerar que, desde o século 18, a recorrência aos termos república e
democracia e a ideia jurídico-normativa de que é obrigação da república garantir a
instrução universal de seus cidadãos não tenham sido objetos de contestação
programática; que divergências significativas se estabeleceram na disparidade de
significações e de formas com que diferentes sociedades conceberam e
ordenaram, desde aí, suas instituições e atividades educacionais” (2009, p. 192).
Todorov, por sua parte, indaga sobre qual base intelectual e moral, com o
enfraquecimento das utopias, queremos construir uma vida comum: “Para nos
comportarmos como seres responsáveis, precisamos de um plano conceitual que
possa fundamentar não somente nossos discursos, o que é fácil, mas também
nossos atos [...]. Durante os três quartos de século que precedem 1789 produziu-
se uma grande reviravolta que, mais do que qualquer outra, é responsável por
nossa presente identidade. Pela primeira vez na História, os seres humanos
decidem tomar nas mãos seu destino e colocar o bem-estar da humanidade como
objetivo principal de seus atos. Esse movimento emana de toda a Europa [é justo
acrescentar: dos Estados Unidos] e não apenas de um país, exprime-se através da
filosofia e da política, das ciências e das artes, do romance e da autobiografia”.
(2008, p. 9-10).
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 541

pelo autor deste artigo a propósito das leituras que vem fazendo há
cerca de 10 anos a respeito: a república, mais que outras formas de
governo, favorecem a instituição de uma sociedade moral e assegura
a pluralidade política; a educação republicana favorece a redução das
causas de dependência econômica e política; a igualdade de
instrução contribui para o aperfeiçoamento das artes, das ciências e
profissões, não somente reduzindo a desigualdade que a situação
econômica estabelece entre os homens, mas, também, instituindo
outro gênero de igualdade mais geral: a do bem-estar. Os cidadãos,
por essa perspectiva, dispõem, potencialmente, de igual capacidade
de se relacionar sob formas que não sejam as do extermínio, da
intolerância, da opressão às diferenças, da dominação de uns sobre
outros e da indiferença.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury.


Brasília: UnB, 2001.
ARENDT, Hannah. O que é política? Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
CONDORCET. Influência de la revolución de América sobre Europa.
Tradução de Tomás Ruiz Ibarlucea. Buenos Aires: Elevación, 1945a.
_______. Cartas de un burgués de Nuevo Hampshire a un ciudadano de
Virginia sobre la inutilidade de dividir el Poder Legislativo entre vários
cuerpos (1787). Tradução de Tomás Ruiz Ibarlucea. Buenos Aires:
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_______. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito
humano. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Campinas: Unicamp,
2013.
_______. Es conveniente engañar al pueblo? Tradução de Javier de
Lucas. Madrid: Diário Público, 2010.
_______. Réflexions sur l’esclavage des nègres. Paris: Flammarion, 2009.
[O texto foi publicado originalmente em 1781]
_______. Riflessioni sulla schiavitú dei negri. Tradução de Sabina
Cassanelli. Napoli: Colonnese, 2003.
_______. Sur l’admission des femmes au droit de cité. Paris: Bibliothèque
nationale de France, 1790. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt
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542 Movimentos, Direitos e Instituições

_______. Sur le sens du mot révolutionnaire. Paris: Bibliothèque nationale


de France, 1793. [Tradução do título: “Sobre o sentido da palavra
revolucionário”] Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k41760t>.
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COUTEL, Charles. Condorcet: instituir al ciudadano. Tradução de María
Elena Ladd. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2004.
_______. La question de l’égalité. Artois, FR: [s.n.], 2006.
GARCIA, Claudio Boeira. Considerações sobre república, democracia e
educação. Contexto & Educação, Ijuí, n. 2, p. 189-204, jul./dez. 2009.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado
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ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
TODOROV, Tzvetan. O espírito das luzes. Tradução de Mônica Cristina
Corrêa. São Paulo: Barcarolla, 2008.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 543

CONSELHO EDITORIAL
(em ordem alfabética)

PROF. DR. CARLOS ROBERTO ANTUNES DOS SANTOS (In Memoriam – Presidente de Honra). Pós-Doutorado em
História da América Latina pela Universidade de Paris III, França. Doutor em História pela Universidade de Paris X -
Nanterre, França, Mestre em História do Brasil pela UFPR - Universidade Federal do Paraná, Professor da UFPR -
Universidade Federal do Paraná. Reitor da UFPR - Universidade Federal do Paraná, (1998/2002). Membro do Conselho
Nacional de Educação (2003/2004) e do Conselho Superior da CAPES (2003/2004).

------
PROFA. DRA. ALICE FÁTIMA MARTINS. Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (2004).
Mestrado em Educação - área de Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico, pela Universidade de
Brasília (1997). Licenciatura em Educação Artística, habilitação em Artes Visuais, pela Universidade de
Brasília (1983). Atualmente é Professor Adjunto II na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal
de Goiás, onde coordena o Curso de Pós-Graduação em Cultura Visual.

PROF. DR. DOMINGO CÉSAR MANUEL IGHINA. Doutorado em Letras Modernas pela Universidade
Nacional de Córdoba (UNC-Argentina). Diretor da Escola de Letras da Faculdade de Filosofia e
Humanidades da Universidade Nacional de Córdoba. Professor da cátedra de Pensamento latino-
americano da Escola de Letras da Universidade Nacional de Córdoba. Membro do Conselho Editorial da
Revista Silabário.

PROF.DR. DEMETRIUS NICHELE MACEI. Pós-Doutorando na Faculdade de Direito do Largo São


Francisco (USP). Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012).
Mestre em Direito Econômico e Social (2004) e Especialista em Direito Empresarial (2000), ambos pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná
(1994). Professor de Direito Tributário na graduação, especialização e mestrado na Faculdade de Direito
Curitiba (UNICURITIBA), Professor Convidado no Curso de Posgrado en Derecho Tributario na
Universidad Austral de Buenos Aires/Argentina e Ex-professor da Faculdade Autônoma de Direito de São
Paulo (2006-2007) e na graduação e especializaçao da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2000-
2006/2011-2013). Ocupou os cargos de diretor juridico da JBS Argentina S/A (2008-2009), Gerente
Jurídico Tributário na JBS S/A (2005-2010) e na Deloitte Auditores Independentes (1999-2003) e ainda,
assessor jurídico na Organizaçao das Cooperativas do Estado do Paraná (OCEPAR). Realizou Curso de
Extensão em Direito Norte-Americano pela Fordham University, em Nova Yorque/EUA (2010). Atualmente
544 Movimentos, Direitos e Instituições

participa do Conselho Fiscal de Companhias listadas na Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) e
ainda do Conselho Temático de Assuntos Tributários da Federação das Indústrias do Paraná (FIEP).

PROF. DR. EDUARDO BIACCHI GOMES. Pós-Doutor em estudos culturais pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, com estudos realizados na Universidade Barcelona, Faculdad de Dret. Doutor em Direito
pela Universidade Federal do Paraná. Professor-pesquisador em Direito da Integração e Direito
Internacional da UniBrasil, Graduação e Pós-Graduação (Especialização e Mestrado). Membro do Grupo
Pátrias, UniBrasil, vinculado ao Cnpq. Professor de Direito Internacional da PUCPR, Consultor do
MERCOSUL para a livre Circulação de Trabalhadores (2005/2006). Foi Editor Chefe da Revista de Direitos
Fundamentais e Democracia, vinculado ao Programa de Mestrado em Direto das Faculdades Integradas
do Brasil, Qualis B1, desde a sua fundação e atualmente exerce as funções de Editor Adjunto.

PROFA. DRA. ELAINE RODRIGUES. Doutorado em História e Sociedade pela Universidade Estadual
Paulista - Júlio de Mesquita Filho (2002). Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá
(1994). Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (1987). Atualmente é professora
Adjunta do departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Estadual de Maringá.

PROF. DR. FERNANDO ARAUJO. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de


Lisboa. Doutor (em 1998) em Ciências Jurídico-Econômicas, Mestre (em 1990) em Ciências Histórico-
Jurídicas, Licenciado em Direito (em 1982). É atualmente docente no Curso de Licenciatura e no Curso de
Mestrado e Doutoramento.

PROF. DR. FERNANDO KNOERR. Doutor, Mestre em Direito do Estado e Bacharel pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). É Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do
Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA, Professor de Direito Administrativo da Escola da
Magistratura do Paraná e da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. Foi Professor da
Universidade Federal do Paraná, Coordenador do Escritório de Prática Jurídica do Curso de Direito e Vice-
Procurador-Geral da mesma Universidade. É Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, do
Instituto Paranaense de Direito Administrativo, do Instituto Catarinense de Estudos Jurídicos, do Instituto
Paranaense de Direito Eleitoral e do Instituto dos Advogados do Paraná. É Professor Benemérito da
Faculdade de Direito UNIFOZ e Patrono Acadêmico do Instituto Brasileiro de Direito Político.

PROFA. DRA. GISELA MARIA BESTER. Professora Universitária de Direito Constitucional. Advogada.
Mestre (UFSC) e Doutora (UFSC e Universidad Complutense de Madrid) em Direito. Pós-Doutoranda em
Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente, na Universidade de Lisboa, sob a Supervisão do
Professor Doutor Catedrático Vasco Pereira da Silva. Consultora ad hoc da CAPES. Docente
Colaboradora no Programa de Mestrado Acadêmico em Direito Empresarial e Cidadania, do
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 545

UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) e Convidada na ESMAT (Escola Superior da Magistratura


Tocantinense). Integrante do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da UFT (Universidade
Federal do Tocantins). Vencedora do Prêmio Instituto Ethos-Valor Econômico de Sustentabilidade, 2008,
Categoria Professores. Professora do Curso de Direito da UFT (2013-2014) e do Programa de Mestrado
em Direito, Democracia e Sustentabilidade da IMED (Faculdade Meridional, Passo Fundo/RS - 2013-
2014). Membro Titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça
do Brasil (2008-2012). Ex-Coordenadora do Mestrado em Direito do UNICURITIBA (2006-2009). Link para
acesso ao Curriculum Vitae na Plataforma Lattes do CNPq: <http://lattes. cnpq.br/3718611665180124>.
E-mail: <profagmb@hotmail.com>.

PROF. DR. GUIDO RODRÍGUEZ ALCALÁ. Doutorado em Filosofia, na Diusburg Universität (1983), com
bolsa da Konrad Adenauer Stiftung. Mestre em Literatura, na Ohio University e The University of New
México, com bolsa de estudos da Fulbright-Hays Scholarship. Graduado em Direito pela Universidade
Católica de Assunção (Paraguai). Autor de numerosos livros de poesia, narrativa e ensaio, tendo já sido
publicado no Brasil a novela Caballero (tchê!, 1994) e o ensaio Ideologia Autoritária (Funag, 2005).

PROFA. DRA. JALUSA PRESTES ABAIDE. Pós-Doutorado na Université de Saint Esprit de Kaslik,
Líbano (2006). Doutora em Direito pela Universidade de Barcelona, Espanha (2000). Mestrado em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990). Graduada em Direito pela Universidade Federal de
Santa Maria (1985). É professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria. Integra o Conselho
Editorial da Revista Brasileira de Direito Ambiental.

PROF. DR. LUC CAPDEVILA. Pós-Doutorado, Professor Titular da Universidade de Rennes 2 (França),
em História Contemporânea e História da América Latina e Diretor do Mestrado de História das Relações
Internacionais. Membro do Conselho Científico da Universidade de Rennes 2 e do Conselho Editorial de
várias revistas científicas (CLIO Histoire, Femmes, Sociétés; Nuevo Mundo Mundos Nuevos; Diálogos;
Takwa). Especialista em História Cultural sobre conflitos sociais contemporâneos, dirige atualmente um
programa de investigação multidisciplinar sobre a Guerra do Chaco.

PROF. DR. LUIZ EDUARDO GUNTHER. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade
Federal do Paraná. Graduado em História pela Universidade Federal do Paraná. Leciona em cursos da
Graduação do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Desembargador Federal do Trabalho no
Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, TRT-PR, Brasil.

PROF. DR. LUIZ FELIPE VIEL MOREIRA. Pós-Doutorado pela Universidade Nacional de Córdoba,
U.N.C., Argentina. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, USP, Brasil. Mestre em
História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Brasil. Professor Associado do
546 Movimentos, Direitos e Instituições

Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de


Maringá, UEM, Brasil, com pesquisas em História da América Latina.

PROF. DR. MATEUS BERTONCINI. Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Programa de
Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Leciona Direito Administrativo e
Processo Administrativo em cursos de graduação e pós-graduação na Faculdade de Direito de Curitiba e
na Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná. É autor de obras e artigos jurídicos. É
líder do grupo de pesquisa Ética, Direitos Fundamentais e Responsabilidade Social. Atualmente, vem
desenvolvendo pesquisa nas áreas de Direitos Fundamentais, Princípios Constitucionais da Ordem
Econômica e Responsabilidade Social Empresarial. Promotor de Justiça no Paraná.

PROF. DR. MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE. Possui mestrado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (1998) e doutorado em Diritto del Lavoro, Sindacale e della
Previdenza Sociale - Università degli Studi di Roma, La Sapienza (2001), revalidado pela UFSC e é Pós-
Doutor na Universitá degli Studi di Roma II, Tor Vergata. É coordenador - Curso de Espec. em Dir. do
Trabalho da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Presidente do INSTITUTO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS (IBCJS). Vice-Presidente do INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO
SOCIAL CESARINO JÚNIOR. Ex-Presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas do Paraná,
Membro de Comissões da Ordem dos Advogados do Brasil - Paraná, Professor Adjunto da Universidade
Federal de Santa Catarina, Membro do Centro de Letras do Paraná, Professor do UNINTER. Diretor do
Departamento de Direito do Trabalho do Instituto dos Advogados do Paraná. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito do Trabalho,
Processo do Trabalho e Direito Internacional.

PROF. DR. OCTAVIO CAMPOS FISCHER. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná
(1993). Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Desde julho de 2013) Mestre em
Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná (1999) Doutor em Direito Tributário pela
Universidade Federal do Paraná (2002). É professor de Direito Tributário do Mestrado, da Especialização
e da Graduação nas Faculdades Integradas do Brasil (Unibrasil). Foi professor colaborador do programa
de mestrado em direito do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF) em 2012 e 2013. Foi Vice-
Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UniBrasil (2010-2011). Foi Conselheiro Titular da 7ª
Câmara do 1º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, atual Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais - Carf (2003-2005). Foi Conselheiro Estadual da OAB/PR. Foi Presidente do Instituto de
Direito Tributário do Paraná/PR até junho de 2013.
Ensaios de Direito e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal: 547

PROF. DR. PAULO ROBERTO CIMÓ QUEIROZ. Doutorado em História Econômica pela Universidade de
São Paulo, USP, Brasil. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
UNESP, Brasil. Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, UFMS, Brasil.

PROF. DR. PAULO OPUSZKA. É Bacharel em Direito (2000) pelo Centro Universitário Curitiba. Mestre
em Direito (2006) e Doutor em Direito (2010) pela Universidade Federal do Paraná. É Professor de Direito
e Processo do Trabalho da Universidade Federal de Santa Maria. É Professor Convidado do Programa de
Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba. Foi Professor de Direito
Econômico na Escola da Magistratura Federal do Paraná. Professor convidado da Especialização em
Direito do Trabalho, Processo e Mercado do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná. É professor
licenciado de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Faculdade Campo Real de Guarapuava/PR.
Superintendente do Instituto Municipal de Administração Pública do Município de Curitiba de 2013-2015

PROF. DR. RENÉ ARIEL DOTTI. Doutor em Direito pela UFPR. Professor titular de Direito Penal da
UFPR. Professor de Direito Processual Penal no curso de pós-graduação da Universidade Federal do
Paraná. Vice-Presidente do Comitê Científico da Associação Internacional de Direito Penal. Presidente
Honorário do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP – Brasil). Presidente da
Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil. Presidente de Honra para o Brasil do Instituto Panamericano de Política Criminal –
IPAN. Membro da Sociedade Mexicana de Criminologia. Co-autor do anteprojeto de reforma da Parte
Geral do Código Penal (Lei n.º 7.209, de 11.07.1984). Co-autor do anteprojeto da Lei de Execução Penal
do Brasil (Lei n.º 7.210, de 11.07.1984). Relator do anteprojeto de nova lei de imprensa (Comissão da
Ordem dos Advogados do Brasil. Publicado no Diário do Congresso Nacional, n.º 103, seção II, de
14.08.1991). Membro da Comissão de Reforma da Parte Especial do Código Penal (Portaria n.º 581, de
10.12.1992, do Ministro da Justiça). Membro da Comissão instituída pela Escola Nacional da Magistratura
para a reforma do Código de Processo Penal. Membro da Comissão instituída pelo Ministro da Justiça
para promover estudos e propor soluções com vista à simplificação da Lei de Execução Penal. Ex-
membro do Conselho Diretor do Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e
Tratamento do Delinquente. Ex-Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Ex-
Magistrado do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Ex-Secretário de Estado da Cultura.

PROF. DR. SERGIO ODILON NADALIN. Possui graduação em História (Licenciatura) pela Universidade
Federal do Paraná (1966), mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná (1975) e doutorado
em História e Geografia das Populações - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1978).
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, membro da
Associação Paranaense de História, da Associação Nacional de História, da Asociación Latinoamericana
de Población, da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, da Societe de Demographie Historique
e da Union Internationale pour Etude Scientifique de la Population. Pesquisador cadastrado no Conselho
548 Movimentos, Direitos e Instituições

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desde 1979 e membro fundador do Centro
de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses (CEDOPE), do Departamento de História da
UFPR; Lidera um grupo de pesquisa junto ao CNPq intitulado “Demografia & História”.

PROF. DR. TEÓFILO MARCELO DE ARÊA LEÃO JÚNIOR. Vice-coordenador do Mestrado (2013),
Professor do Mestrado (2012), Professor da Graduação (1999) e Graduado (1996) no UNIVEM (Centro
Universitário "Eurípides Soares da Rocha" de Marília-SP), mestre pela PUC (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo em 2001) e doutor pela ITE (Instituição Toledo de Ensino de Bauru em 2012).
Advoga desde 1996.

PROFA. DRA. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS KNOERR. Doutora em Direito do Estado e Mestre em
Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP.
Coordenadora e Professora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

PROF. DR. WAGNER MENEZES. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP
- no programa de graduação e pós-graduação em Direito. É Mestre (PUCPR), Doutor (USP), Pós-doutor
(UNIVERSIDADE DE PÁDOVA -ITALIA) e Livre-Docente (USP). Realizou pesquisa e estágio junto ao
Tribunal Internacional Sobre Direito do Mar - Hamburgo, Alemanha - ITLOS (2007). Atualmente é árbitro
do Tribunal do Mercosul (Protocolo de Olivos) - Presidente da ABDI - Academia Brasileira de Direito
internacional; Coordenador do Congresso Brasileiro de Direito Internacional; Membro da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional - Diretor executivo da Sociedade Latino Americana de Direito
Internacional (SLADI). Editor-Chefe do Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (Revista
jurídica fundada em 1915) e dirige junto a Universidade de São Paulo o Núcleo de Estudos em Tribunais
Internacionais - NETI.

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