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Dolores Sanches Wünsch e Jussara Mendes

Organizadoras

Labirintos do Labor
A Saúde do Trabalho Sob Fogo Cruzado
ApApresentação Giovanni Alves

Volume

2
Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:12
Labirintos do Labor

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:12


Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:12
Organização
Dolores Sanches Wunsch e Jussara Mendes volume

2
Labirintos do Labor
A SAÚDE DO TRABALHO
SOB FOGO CRUZADO
Apresentação
Giovanni Alves

Autores
Luiz Alberto Vargas • Stephanie Dutra Rodrigues
Valdete Souto Severo • Fábio Cannas
Adriano Marinho • Carmem Regina Giongo
Bruno Chapadeiro Ribeiro
Paulo Roberto Wunsch • Karine Vanessa Perez
Daniela Trevisan Monteiro • Eduardo Souza Passini
Leonardo Soares Trentin • Andreia Mendes dos Santos
Paulo Antonio Barros Oliveira •Tatiana Reidel
Edvânia Angela de Souza • Tuane Vieira Devit
Anderson da Silva Fagundes
Silvana Brazeiro Conti • Gildo Alicante • Elisiane Wolf de Fraga
Maria Dulcineia Martins Batista • Evelyn Carneiro
Francynne Minuscoli Gonçalves

Projeto editorial

2022

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Projeto editorial Praxis é a editora da RET
(Rede de Estudos do Trabalho)
(www.estudosdotrabalho.net)

Copyright© Projeto editorial Praxis, 2022

Coordenador-geral: Prof. Dr. Giovanni Alves (UNESP)

Conselho editorial
Dr. André Luiz Vizzaccaro-Amaral (UEL)
Dr. Edilson Graciolli (UFU)
Dr. Francsico Luiz Corsi (UNESP)
Dr. Giovanni Alves (UNESP)
Dr. José Meneleu Neto (UECE)
Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP)
Dr. Renan Araújo (UNESPAR)

Capa: Giovanni Alves

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Sumário
Apresentação
Giovanni Alves........................................................................15
Prefácio
Dolores Sanches Wunsch e Jussara Mendes.............................19
SEÇÃO 01- PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E REFORMA
TRABALHISTA NO BRASIL NEOLIBERAL

1. O trabalho a tempo parcial e o trabalho intermitente na


reforma trabalhista
Luiz Alberto Vargas ...............................................................25
2. Medida Provisória 936: A pandemia como argumento
para aprofundar a necropolítica no Brasil
Stephanie Dutra Rodrigues e Valdete Souto Severo................50
3. Relações sociais de trabalho entre motoristas e a empresa
Uber
Fábio Cannas.........................................................................81
4. Trabalho sob o fundamento dos direitos humanos
Adriano Marinho e Jussara Mendes......................................111
SEÇÃO 02 - PANDEMIA E OS AGRAVOS NA SAÚDE DO
TRABALHO

5. Condições e vivências de trabalho de professores (as)


brasileiros (as) no contexto da pandemia covid-19
Carmem Regina Giongo; Bruno Chapadeiro Ribeiro; Paulo
Roberto Wunsch e Karine Vanessa Perez..............................145
6. Pandemia e saúde mental: um estudo com profissionais da
saúde que atuaram no combate à covid-19
Daniela Trevisan Monteiro; Eduardo Souza Passini; Leonardo
Soares Trentin; Andreia Mendes dos Santos; Paulo Antonio
Barros Oliveira......................................................................159

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SEÇÃO 03 - SERVIÇO PÚBLICO, POLÍTICAS SOCIAIS E
SAÚDE DO TRABALHO

7. Trabalho e saúde das(os) Assistentes Sociais diante do


desmonte da Seguridade Social
Tatiana Reidel; Dolores Sanches Wunsch; Jussara Mendes;
Edvânia Angela de Souza; Tuane Vieira Devit; Anderson da
Silva Fagundes......................................................................181
8. O racismo como processo de desumanização e as trabalha-
doras negras no serviço público
Silvana Brazeiro Conti e Dolores Sanches Wunsch..............215
9. Massificação da Educação Básica, intensificação do
trabalho docente e saúde mental do professor moçambicano
Gildo Alicante e Jussara Mendes..........................................243
10. Trabalho e trabalhador precarizados: INSS digital, as
transformações no serviço previdenciário brasileiro e sua
repercussão na saúde do trabalhador
Elisiane Wolf de Fraga; Maria Dulcineia Martins Batista......269
SEÇÃO 04 - PREVIDÊNCIA SOCIAL E SAÚDE DO TRABALHO

11. (In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional:


Uma análise através do conceito ampliado do processo saúde-
doença
Evelyn Carneiro e Dolores Sanches Wunsch.......................293
12. Superando o estigma do “encostado”: A realidade do tra-
balhador frente a incapacidade laboral
Francynne Minuscoli Gonçalves ..........................................320

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Um labirinto é constituído por um conjunto de percursos intrincados criados
com a intenção de desorientar quem os percorre. Na mitologia grega, o labi-
rinto de Creta teria sido construído por Dédalo (arquiteto cujo nome tornou-se,
depois, também sinônimo de labirinto) para alojar o Minotauro, monstro
metade homem, metade touro, a quem eram oferecidos regularmente jovens
que devorava. Segundo a lenda, Teseu conseguiu derrotá-lo e encontrar o cami-
nho de volta do labirinto graças ao fio de um novelo, dado por Ariadne, que
foi desenrolando ao longo do percurso. A figura mitológica do labirinto nos
ajuda a refletir sobre os desafios postos pelas mudanças do mundo do capital
no século XXI que atingem diretamente o trabalho vivo. Os labirintos do labor
representam as novas de formas de ser do mundo do trabalho e da nova preca-
riedade salarial que, caso não sejam analisadas numa perspectiva crítico-dialética
e histórico-materialista, podem desorientar irremediavelmente analistas sociais
teoricamente desprevenidos. Tal como o Minotauro, o capital enquanto modo
de produção e sistema de poder e ideologia que reproduz a ordem dominante do
Lucro, pode nos desorientar e devorar nossa capacidade de análise crítica, sacrifi-
cando-nos no altar da Conformação Social. O preço epistemológico da cegueira
critico-analítica é renegar o compromisso ético-político da busca da verdade
científica em prol da emancipação social do trabalho.. Como o fio de Ariadne, a
crítica social pode contribuir – pelo menos no plano intelectual-mental – para
que possamos encontrar o caminho de volta e sair do labirinto do capital.

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Sobre os Autores

Dolores Sanches Wünsch


Assistente Social, doutora em Serviço Social (PUCRS) e Professora
do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFGRS); Vice- Coordenadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Saúde e Trabalho (NEST/UFRGS). E-mail: dolores.
sanches@ufrgs.br

Jussara Mendes
Doutora em Serviço Social pela PUC-SP, com pós-doutorado em
Serviço Social pela Universität Kassel, Alemanha. Docente creden-
ciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Política Social e
Serviço Social e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e
Institucional, ambos da UFRGS. Coordenadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Saúde e Trabalho (NEST/UFRGS). Contato: jussara-
maria.mendes@gmail.com

Luiz Alberto Vargas


Desembargador do Trabalho do Tribunal Regional da Quarta Região,
Mestre em Direitos Humanos pela Uniritter, Doutor em Ciências
Jurídicas e Políticas pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha).
Email: lvargas@trt4.jus.br

Stephanie Dutra Rodrigues


Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
servidora pública estadual do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul. e-mail;speaknique@gmail.com

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Valdete Souto Severo
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, Pós-Doutora em
Ciências Políticas pela UFRGS/RS. Professora de Direito do Trabalho
na UFRGS/RS. Juíza do Trabalho. email: valdete.severo@gmail.com

Fábio Cannas
Graduado em Ciências Sociais e Serviço Social. Mestre em Políticas
Sociais e Serviço Social (UFRGS), Doutorando em Psicologia Social
e Institucional (UFRGS)– frcannas@gmail.com

Adriano Ruschel Marinho


Doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, com está-
gio de doutorado em Pessoa e Sociedade no Mundo Contemporâneo
pela Universidade Autônoma de Barcelona na Espanha (bolsa CAPES).
Mestre em Educação Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em
Saúde e Trabalho (NEST/UFRGS). Contato: armarinho@hotmail.com

Carmem Regina Giongo


Psicológa, Mestre em Psicologia (Unisinos), Doutora em Psicologia
Social e Institucional pela UFRGS. É pesquisadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho (NEST) da UFRGS, docente
da graduação e do Mestrado em Psicologia da Universidade Feevale.
(Feevale/UFRGS) – carmemgiongo@feevale.br

Bruno Chapadeiro Ribeiro


Psicólogo, mestre em Ciências Sociais (Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho, doutor em Educação pela Universidade
Estadual de Campinas (2018) Professor adjunto da Universidade
Federal Fluminense (UFF) – brunochapadeiro@id.uff.br

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:13


Paulo Roberto Wunsch
Paulo Roberto Wunsch, Professor de Sociologia, Mestre e Doutor
em Serviço Social (PUCRS) Professor de Ensino Básico Técnico e
Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Bento Gonçalves (RS), email
paulo.wunsch@bento.ifrs.edu.br

Karine Vanessa Perez


Karine Vanessa Perez, Psicologa, Doutora e Mestre em Psicologia
Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Docente da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)-
karinevanessaperez@gmail.com

Daniela Trevisan Monteiro


Psicóloga. Doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
Mestra em Psicologia, ênfase em saúde (UFSM). Pesquisadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho (NEST/UFRGS).
email daniela.trevisan.monteiro@gmail.com

Eduardo Souza Passini


Acadêmico de Psicologia na Universidade Feevale e de Ciências Sociais
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de
Iniciação Científica. email: passini.du@gmail.com

Leonardo Soares Trentin


Psicólogo. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graduado em
Psicologia\UFSM. Email: leonardo_trentin@outlook.com

Andreia Mendes dos Santos


Psicóloga, Docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação
em Educação e Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia

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Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e mail:
andreiam72@gmail.com

Paulo Antonio Barros Oliveira


Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) nas
Graduações de Medicina e de Engenharia, Professor do Pós-graduação
em Saúde Coletiva e Pós-graduação em Políticas Social e Serviço
Social . Auditor Fiscal do trabalho aposentado. email: oliveira.paulo-
antonio@gmail.com

Tatiana Reidel
Assistente Social, doutora em Serviço Social (PUCRS) e Professora
do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFGRS); Líder do grupo de Estudo, Pesquisa e
Extensão GEPETFESS/UFRGS sobre Trabalho, Formação e Ética
Profissional em Serviço Social. Bolsista Produtividade 2 do CNPq.
E-mail: tatyreidel@gmail.com

Edvânia Ângela de Souza


Assistente Social. Professora do Departamento de Serviço Social da
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), UNESP-Franca.
Profa. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
e Políticas Sociais - PPGSSPS - Mestrado Acadêmico da UNIFESP-
Baixada Santista. E-mail: edvaniaangela@hotmail.com

Tuane Vieira Devit


Assistente Social, Especialista em Adulto Crítico (HCPA/UFRGS),
Mestre em Política Social e Serviço Social (PPGPSSS/UFRGS).
Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI/UFRGS).
E-mail: tuane.devit@gmail.com

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:32:13


Anderson da Silva Fagundes
Assistente Social, Especialista em Saúde da Criança (HCPA/UFRGS).
Mestre em Política Social e Serviço Social (PPGPSSS/UFRGS).
Membro do Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão sobre Trabalho,
Formação e Ética Profissional em Serviço Social (GEPETFESS/
UFRGS). E-mail: anderson.fagundes@outlook.com

Silvana Brazeiro Conti


Mestra em Política Social e Serviço Social (PPGPSSS/UFRGS), sindi-
calista e Vice-presidenta da CTB. Professora aposentada da Rede
Municipal de Ensino de Porto Alegre, email: silvanabrazeiroconti65@
gmail.com

Gildo Aliante
Graduado em Planificação, Administração e Gestão da Educação pela
Universidade Pedagógica em Moçambique, mestrado em Psicologia
Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Doutorando do PPGPSI (UFRGS). Integrante do
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho – NEST/UFRGS
e do Grupo de Pesquisa em Saúde e Trabalho – GEST/Universidade
Rovuma. Email: aliantegildo@yahoo.com.br

Elisiane Wolf de Fraga


Estudante do nono semestre de Serviço Social na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. email: elisianewolf@hotmail.com.

Maria Dulcineia Martins Batista


Assistente social e mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Email: dulcybatysta@hotmail.com.

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Evelyn Carneiro
Assistente Social. Servidora Pública Federal, trabalhadora no INSS no
cargo de Analista do Seguro Social com Formação em Serviço Social.
Mestre em Política Social e Serviço Social (UFRGS). Integrante do
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho (NEST/UFRGS).
E-mail: evelyncarneiro9@gmail.com.

Francynne Minuscoli Gonçalves


Assistente Social, Mestranda em Política Social e Serviço Social –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS – E-mail:
frangfbpa@gmail.com

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Apresentação

O labor adoecido e a nova era do capital

Giovanni Alves1

O
livro “Labirintos do labor: A saúde do trabalho sob fogo
cruzado”, volume 2 da série de livros publicada pelo
Projeto editorial Praxis (com Apresentação de Giovanni
Alves), e com organização das Professoras Dra. Dolores Sanches
Wunsch (UFRS) e Dra. Jussara Mendes (UFRS), reúne artigos de
pesquisadores de Iniciação Científica e pós-graduação (mestrado,
doutorado e pós-doutorado) que contribuem para delinear temáticas
importantes para desvendarmos os grandes desafios da saúde do
trabalhador e da trabalhadora no Brasil nas condições históricas da
crise estrutural do capital.
O volume 2 de “Labirintos do labor” abrange temas fundamen-
tais organizados em quatro seções: (1) Precarização do trabalho
e Reforma Trabalhista no Brasil neoliberal; (2) Pandemia e os

1
É professor livre-docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP, campus
de Marília/SP). É pós-doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da
Universidade de Coimbra (Portugal); e pela Universidade Complutense de
Madri (UCM). É pesquisador do CNPq; e autor de “Trabalho e subjetivi-
dade” (Boitempo editorial, 2011); “Dimensões da precarização do trabalho:
Ensaios de sociologiua do trabalho” (Projeto editorial Praxis, 2013); e “Gestão
de Metas e Serviço Público” (Projeto editorial Praxis, 2022), dentre outros
livros e artigos na área de trabalho, sindicalismo, reestruturação produtiva,
precarização do trabalho e saúde do trabalhador.

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Apresentação • 17

agravos na saúde do trabalho; (3) Trabalho e saúde das(os) assis-


tentes sociais diante do desmonte da Seguridade Social; e (4)
Previdência social e saúde do trabalho. Este livro tem uma grande
amplitude crítica na área da saúde do trabalho fazendo um impor-
tante mapeamento de problemáticas que devem se tornar cada vez
mais candentes na medida em que se aprofunda a crise estrutural
do capital. É um livro de pesquisadores e pesquisadoras do mundo
do trabalho que representa um esforço incansável de esclarecer as
múltiplas dimensões do labor adoecido na nova etapa da longa
crise estrutural do capital que deve percorrer o século XXI. O tema
da “saúde do trabalho” não é um tema entre outros, mas sim, o
tema fundamental do nosso tempo histórico. Ele diz respeito à
preservação (ou não) da capacidade física e espiritual da força de
trabalho em dar resposta à nova ofensiva do capital global que tem
como objetivo, destruir o trabalho vivo e recompor sua total domi-
nação no século XXI. É importante que as discussões sobre saúde
pública se politizem numa perspectiva crítica, deixando ser meros
objetos de especialidade da psicologia, psiquiatria e medicina do
trabalho. Politizar o tema da saúde pública significa aborda-la na
perspectiva da classe social que vive do trabalho, evitando os viéses
neopositivistas e identitaristas que permeiam a visão pós-moder-
nista de mundo. É tratar a saúde publica como elemento da crítica
da economia política e do Estado politico neoliberal do capital.
No começo da década de 2020, a barbárie social se elevou para
um patamar superior. Com a “nova normalidade” do sistema global
do capital pandêmico, a necropolítica do Estado capitalista tem
a finalidade explícita de destruir a força de trabalho obsoletizada
face a Quarta Revolução Industrial. Automatização, robotização
e plataformização do trabalho desvalorizaram efetivamente numa
proporção inédita, o trabalho vivo. Enfim, não nos iludamos: ao
capital não interessa mais (minimamente) a saúde pública, princi-
palmente num país como o Brasil, de formação escravista-colonial

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18 • Labirintos do labor

onde o escravo enquanto mercadoria (capital fixo) era consumido


de forma destrutiva, sendo considerado “coisa” de curta vida útil
para a superexploração do capital. A nossa classe dominante tem
no seu DNA, o traço da necropolítica. Por isso, o tema da saúde
do trabalho precisa ser politizado. Isto é, não pode ficar apenas
a cargo de especialistas de plantão, mas deve tornar-se tema de
discussão de todos aqueles e aquelas que fazem a crítica do capital
a partir do mundo do trabalho. O “inimigo público número 1” da
saúde do trabalho é o Estado neoliberal (Estado ampliado, socie-
dadee politica neoliberal e sociedade civil neoliberal). É preciso
entende-lo e combate-lo – no pensamento e na atividade da prática
social e política sob pena da ruína irremediável do Brasil – tal como
temos presenciado em mais de trinta anos de neoliberalismo no
Brasil (1990-2022). A luta deve ser politica e sindical, mas acima
de tudo, ideológico-cultural, inclusive na academia, onde prolife-
ram epistemologias “neoliberais” (pós-modernistas, neopositivistas
e identitaristas). Contra a manipulação e a “captura” da subjetivi-
dade pelo capital global liberal-atlanticista, o pensamento crítico
radical, materialista, histórico e dialético.
Diante da “nova normalidade” do capital a partir da pandemia
de 2020, presenciamos a catástrofe de civilização, isto é, mudan-
ças históricas radicais que promoveram a “virada de expectativas”
[kata-] “para baixo” [-strophein] do desenvolvimento humano. Este
é o significado do nome “catástrofe”. Devemos ter consciencia de
quye vivemos em tempos catastróficos. Nada mais será como antes.
Desde 2016 no Brasil, periferia neocolonizada do capitalismo
ocidental liberal, temos a convergência sinistra de Golpe de Estado
(neoliberal, em 2016); eleição do neofascista Jair Bolsonaro (2018)
e a pandemia do novocoronavírus (2020) no cenário dramático
de aprofundamento das contradições sociometabólicas do capi-
tal (colapso ecológico) e contradições fundamentais do modo
de produção capitalista no século XXI (incluso as contradições

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Apresentação • 19

geopolíticas globais decorrentes da decadência do Império global


dos EUA e sua incapacidade em lidar da emergência do novo pólo
de expansão do capital na Ásia (China) e Eurásia (Rússia).É no
interior desta “totalidade concreta” em movimento que devemos
situar a discussão da saúde pública do trabalho no Brasil.
A questão da “saúde do trabalho” não é apenas uma problemá-
tica brasileira, mas sim um conjunto de problemas de dimensões
globais. Ela se entrelaça com novas problemáticas postas pela evolu-
ção destrutiva do capital: o poder alavancado da manipulação da
subjetividade humana, o colapso ecológico com o aquecimento
global e a ameaça de novos patógenos infecciosos. Tais forças de
destruição do trabalho vivo devem percorrer o século XXI. Não se
trata de mudanças de conjuntura, mas a “nova normalidade estru-
tural” do capital.
A crise do capitalismo terminal coloca para nós pesquisadores e
pesquisadoras, a necessidade de expor de forma crítica a natureza
candente do mal-estar no trabalho, não apenas no que diz respeito
à saúde física, mas também à saúde mental, envolvendo as mais
diversas categorias sociais do mundo do trabalho. É o que pode-
mos fazer enquanto intelectuais públicos comprometidos com a
mudança social, indo além do academicismo e do particularismo
identitarista, educando os educadores e organizadores da classe
para a luta social e política pela emancipação humana.

(15.10.2022)

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Prefácio
“Meu caminho é de pedra, como posso sonhar?
(...) Já não sonho, hoje faço, com meu braço o meu viver”
Travessia, Milton Nascimento / Fernando Brant

C
omo podemos sonhar frente ao embate entre os parâmetros
estruturais do capital, com sua lógica irreversível e
incontestável. Se coloca assim, segundo (Mészáros, 2006),
a necessidade de romper com essa lógica para a criação de uma
alternativa diferente, mediante a natureza irreformável do capital
como totalidade reguladora sistêmica, com a clareza de que as
possíveis soluções devem atingir o patamar de mudança essencial,
abarcando a totalidade das práticas.
Como podemos sonhar diante de tantas contradições que absor-
vem, capturam a subjetividade do trabalhador, que passa a sobreviver
em condições desumanizantes de corrosão, perversão, inversão do
homem como ser social. Para Giovanni Alves (2011, p. 42)

(…) a “captura” da subjetividade é uma operação, na qual não ocorre


a captura de fato. Uma operação de produção de consentimento entre
ação e pensamento e ação na qual não é exigido o consentimento do
trabalhador, uma ação que não se desenvolve de modo perene, sem
resistências e lutas cotidianas. 

Como conceber estes trabalhadores desvinculados de suas


relações sociais? Conhecer essa realidade oferece um panorama
de como se constrói o processo de conhecimento para que se
tenha uma melhor compreensão acerca das patologias que afetam
explosivamente o mundo do trabalho. Apresenta um desenho de
diversas abordagens metodológicas que permite melhor desvendar as

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Apresentação • 21

complexas conexões que afetam de modo tão expressivo a saúde


da classe trabalhadora. Suas invisibilidades, acidentes, suicídios,
assédios, etc., são apresentados de modo abrangente e denso.
Demonstram que eles não são fenômenos exclusivos do presente,
mas são elementos constitutivos do capitalismo em seu movi-
mento destrutivo.
Saúde e trabalho, que são categorias estruturantes na vida dos
trabalhadores e trabalhadoras, contraditoriamente, vem sofrendo
um desmoronamento, diante da ofensiva capitalista que além de
impor uma nova sociabilidade à sua identidade enquanto classe
social, atinge profundamente sua saúde, seus modos de viver e
morrer.
 É desses Labirintos, vivenciado no contexto singular dos traba-
lhadores, bem como, no contexto societário, que nos instiga a
pesquisar e produzir conhecimentos, na tentativa de contribuir
para que seja encontrada uma saída deste labirinto.
Assim, participar deste livro “Labirintos do Labor volume 02”
é uma honra para o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e
Trabalho (NEST/UFRGS)! Resulta de um convite do Prof. Dr.
Giovanni Alves, a quem agradecemos pelo convite e oportunidade
de organizar um livro que aborda “A Saúde do Trabalho sob fogo
cruzado”. São laços que deixam marcas nas entrelinhas dos arti-
gos, pois de longa data, o mestre Giovanni vem acompanhando e
contribuindo com nossas produções. Esse livro, escrito por muitas
mãos vai revelando contundentemente, os ataques ao trabalho
realizado por braços e mentes de trabalhadores e trabalhadoras, e
como diz a epígrafe desse prefácio, lhe rouba sonhos, mas também
sua saúde e cada vez mais capturam suas mentes.
O livro reúne produções de diversos pesquisadores que demons-
tram em seus estudos os caminhos de pedra dos trabalhadores
e trabalhadoras numa travessia sob “fogo cruzado”. São orien-
tandos, colegas e parceiros que atuam no (NEST), vinculado à

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22 • Labirintos do labor

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trata-se


de temáticas desafiantes que compõem o dia a dia desse grupo de
pesquisadores.
A ciência sobrevive sem apoio governamental. Apoiando-se na
articulação intergrupos através do reconhecimento, que muito nos
honra e da solidariedade em tempos de crise. Fazendo uma analogia
com a música Travessia, de Milton Nascimento, a ciência percorre
os territórios, e, aqui, soltamos a voz do conhecimento, através dos
capítulos que compõem esta construção, trilhamos os caminhos
de pedras em prol dos trabalhadores e trabalhadoras. Sonhamos,
com novos modos de trabalho. Sigamos, fazendo dos nossos
braços e mentes nossa luta. E resistimos, pois é esse nosso viver.

Porto Alegre, inverno de 2022

Jussara Mendes e Dolores Sanches Wunsch

Referencias
Clotenir Damasceno Rabelo. A educação para além do capital. São Paulo:
Boitempo Editorial, Resenha Editorial, 2006 (Mundo do Trabalho). 
André L. Vizzacaro-Amaral, Daniel Pestana Mota, Giovanni Alves(org.)
Trabalho e saúde: a precarização do trabalho e a saúde do trabalhador. -
São Paulo: LTr, 2011.

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:13


Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:13
Seção 1
Precarização do Trabalho
e Reforma Trabalhista no
Brasil Neoliberal

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:13


Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:13
O trabalho a tempo parcial e o trabalho
intermitente na Reforma Trabalhista

Luiz Alberto Vargas


1

F
oi Adam Smith – e não Marx - quem primeiro afirmou
que o trabalho é a base de toda riqueza. Um conceito
que foi aprofundado por Marx por meio de sua teoria do
mais-valor. Assim, passamos a compreender que o lucro do empre-
sário vem precisamente do mais-valor, ou seja, da diferença entre
o valor que é criado pelo trabalhador no tempo necessário para
produzir uma mercadoria e o valor do salário que lhe é pago pelo
empresário nesse tempo despendido. Assim, o trabalhador recebe
apenas uma parte do valor que gera durante o tempo que traba-
lha, sendo o valor excedente (mais-valor) destinado a remunerar,
basicamente, os custos produtivos, os juros do capital empregado
e, também, o lucro do empresário. Sendo o lucro o objetivo prin-
cipal no sistema capitalista, para a manutenção do sistema passa
a ser decisivo um constante incremento das taxas de mais-valor
através do aumento da exploração do trabalhador, sob a anódina
denominação de “elevação dos ganhos de produtividade”.1 Esta é
a base do sistema capitalista.2
Desde sempre, a preocupação central da classe empresarial
sempre foi a de aumentar a taxa de produtividade e essa também
sempre foi a base de suas reivindicações aos poderes público3 para
que se implementassem políticas que favorecessem a “flexibilidade

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26 • Labirintos do labor

laboral”4, sempre a pretexto de criação/manutenção de empregos5


e de garantia de sobrevivência financeira das empresas.
De outra parte, a principal reivindicação das classes trabalhado-
ras sempre foi a da liberdade sindical que, associada às liberdades
políticas, constituem um ambiente propício para que utilizem
seus instrumentos de pressão sobre a classe dominante visando
modificar suas condições de vida e trabalho em prol de patamares
mais elevados de igualdade e de dignidade. A greve e a negociação
coletiva são as formas usuais pelas quais os trabalhadores anseiam
ampliar sua participação na repartição do mais-valor, compreen-
dendo que isso implica na diminuição relativa de exploração do
trabalho e, assim, na diminuição do lucro empresarial.
O embate entre interesses diametralmente opostos, como pode
ser o confronto entre o capital e o trabalho em um ambiente demo-
crático, não se torna necessariamente perigoso para a paz social,
nem leva à desorganização da economia. O Estado é chamado para
administrar o conflito, estabelecendo as regras do jogo, identifi-
cando os atores e criando um ambiente propicio para a negociação
coletiva, onde desejavelmente se obterá um acordo que comporá, de
forma sempre limitada e precária, o interesse antagônico das partes.
De um ponto de vista teórico, tal acordo representará um “pacto
de trégua” em torno de uma divisão do mais-valor que expresse
o poder político dos atores sociais envolvidos naquele momento.
Para os trabalhadores, os benefícios advindos da trégua, em geral,
se materializarão em um incremento de seus ganhos salariais. Já os
empregadores serão beneficiados pelo próprio de trégua, em que se
confirma seu poder social de gestão da atividade econômica; por
obterem dos trabalhadores concessões que lhe facultaram promo-
ver alterações no processo produtivo que resultarão em maiores
lucros; por poderem, em geral, retirar, em parte e na totalidade,
dos ganhos de produtividade as concessões limitadas que fizeram.
Tradicionalmente pensou-se nas demandas empresariais
de flexibilidade como propostas de melhorias produtivas que

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 27

promoveriam o interesse geral, não apenas dos interesses dos


empresários, mas também dos trabalhadores e da sociedade
em geral. E, assim, tais flexibilizações não seriam sinônimo de
precarização, mas de novos arranjos produtivos que propiciariam
intensificação da produção e, aceita a divisão dos benefícios do
aumento da produtividade entre os parceiros sociais, poderiam
ser entendidas como não-necessariamente prejudiciais aos traba-
lhadores e, até mesmo, de melhoria das condições de trabalho.
A flexibilidade, em sua concepção original tal como foi apresen-
tada na Europa, consistia basicamente em permitir ao empresário
alterações unilaterais (mesmo que substanciais) nos contratos de
trabalho em troca de uma estabilização dos vínculos de emprego
e de maior produtividade. Tais alterações permitiriam uma gestão
mais eficiente do trabalho que beneficiaria, na sua maior parte,
o lucro empresarial, mas também os salários dos trabalhadores6.
Assim, se justificaria o aumento da taxa de exploração do traba-
lhador (e o aumento do mais-valor) por meio do incremento da
produtividade que, sob um ponto de vista estritamente do custo
empresarial, constituiria como um barateamento da mão-de-o-
bra; mas que, indiretamente, também poderia resultar em um
aumento dos ganhos individuais dos trabalhadores.
Ao longo dos anos, com a consolidação de políticas descarada-
mente destinadas unicamente à redução do custo da mão-de-obra
- especialmente adotadas em países periféricos (como o Brasil) -,
essas justificativas perderam força e, assim, não mais a “flexibi-
lidade”, mas a própria necessidade de garantir lucratividade ao
empresário (e, assim, sobrevivência da “galinha dos ovos de ouro”7)
foi erigida como determinante para medidas drásticas que, em
realidade, nada mais fizeram do que aumentar significativamente
a taxa de exploração do trabalho.
O Estado, anteriormente tão criticado por intervir nas rela-
ções de trabalho, era chamado para uma intervenção ainda
mais amplamente; mas, agora, na forma de uma política de

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:13


28 • Labirintos do labor

“não-intervenção”8 que tomava a forma de uma ação desregulató-


ria9 que, simultaneamente, promovia a revogação de disposições
protetivas do trabalho e entorpecia o poder dos sindicatos nas
negociações coletivas.
O Brasil, como sempre com algum retardo em relação a outros
países10, passa atualmente por uma nova onda desregulatória, tendo
como principal marco normativo a Reforma Trabalhista de 2017
(Lei n. 13.467/2017), que, entre tantos dispositivos francamente
precarizados, introduziu alterou substancialmente a regulação do
tempo de trabalho.
Passando ao largo do modelo institucional que prevê a
Constituição brasileira, em que os conflitos entre o capital e o
trabalho são, preferencialmente, direcionados para a via de uma
negociação coletiva incentivada e sustentada pelo Estado, não assis-
timos empenho do poder público brasileiro (Governo, Parlamento,
Judiciário) em incentivar o diálogo social entre os atores sociais.
Ao contrário, alardeiam-se os benefícios da “livre negociação”, ao
mesmo tempo que se desconstroem as bases institucionais que
justamente permitiriam que alguma negociação razoavelmente
equilibrada acontecesse.
Quando reformas são promovidas, como na recente Reforma
Trabalhista, tem-se buscado soluções sem a participação dos atores
sociais e, em geral, copiadas de experiências de outros países sem
maiores questionamento quanto à sua compatibilidade com a
realidade nacional.
São inúmeros os exemplos de retrocesso social contidos na
Reforma Trabalhista, mas uma das mais graves está justamente na
regulamentação do tempo de trabalho.
Por muito tempo convivemos com uma ineficaz e pouco
lembrada regulação do trabalho a tempo parcial11 no Brasil que,
agora, volta à debate por conta de atualização normativa12 e, também,
da introdução de outra figura jurídica ainda mais precarizante: o
trabalho intermitente.13

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 29

Mais uma vez, deixou-se de contar com a participação dos


sindicatos dos trabalhadores na formulação da lei, algo que seria
bastante relevante quando supostamente se pretendia construir
um marco normativo estável para a contratação a tempo parcial
que desse segurança jurídica às partes

A regulação do tempo de trabalho no Brasil

Antes de tudo, oportuno lembrar que, historicamente, a luta


pela redução do tempo de trabalho - ou, dizendo-se de outra forma,
o tempo que o trabalhador permanece à disposição do empresá-
rio – sempre foi o palco da luta pela distribuição do mais-valor e,
desde as primeiras lutas salariais operárias14, tornando-se a pauta
permanente dos trabalhadores de todo o mundo.
No direito do trabalho, tornou-se também a medida da
prestação de trabalho para fins de cálculo da retribuição devida
ao trabalhador. Nem poderia ser diferente, pois, no processo
produtivo, é justamente através do tempo de trabalho despen-
dido pelo trabalhador que o capitalista se apropria do mais-valor
que resulta no lucro que remunera o capital. De muito supe-
rada a ideia de que o empregado “vendia” a força de trabalho,
porque indissociável a pessoa do trabalhador da energia neces-
sária para a realização do trabalho. Assim, o salário é, em geral,
medido pelo número de horas de trabalho prestadas pelo traba-
lhador. Mesmo quando a contratação ocorre por peça produzida
(por tarefa) ou por obra (por empreitada), os cálculos são feitos
também com base no tempo estimado para produção da peça
ou da obra, de forma que a medida de cálculo da retribuição
devida continua sendo o tempo de trabalho. Em todas essas situ-
ações, a unidade da prestação (medida ou estimada) é o tempo
de trabalho contado em horas, dias, meses e anos e representa
o valor social do trabalho humano despendido. Já na hipotética
situação de compra da energia humana empregada na produção,

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:13


30 • Labirintos do labor

calcula-se em jaules (medida de energia despendida no traba-


lho) e importa na desumanização do trabalhador, que passa a ser
tratado como se uma máquina ou um animal de tração fosse. Por
isso, na prestação de trabalho humano, não se discrimina o traba-
lho “efetivo” ou “útil” para fins de remuneração, pois isso seria
levar ao extremo da desumanidade a mercantilização do trabalho.
A Constituição brasileira, em seu artigo 7º, XIII15 decidida-
mente elege o tempo de trabalho como critério de medição da
prestação de trabalho. Mais: define a limitação da duração da
jornada como direito fundamental trabalhista16.
Essa forma de medição está contida em toda a legislação traba-
lhista, especialmente na CLT, onde estão elencadas as normas
limitadoras de duração de jornada nos módulos diário e semanal;
as formas de compensação de jornada; a diferenciação do trabalho
diurno do noturno; o direito ao repouso semanal remunerado e
às férias; a preferência do descanso em domingos e em feriados; a
previsão do trabalho em turnos de revezamento, etc.
A peça-chave na definição da medição do tempo de trabalho
está na delimitação de quando o empregado está trabalhando para
o empregador. A CLT apresenta o conceito de “tempo à dispo-
sição do empregador” no seu artigo 4º17 que, em absoluto, pode
ser assimilado como “tempo efetivo”, entendido esse como traba-
lho ininterrupto ou trabalho útil para o empregador. A regra geral
é a de, durante a rotina diária de atividades normais do empre-
gado, este está sob o comando do empregador e, portanto, à sua
plena disposição.
Assim, as pausas que ocorrerem durante o expediente laboral
são tidas como incidentes corriqueiros que não alteram a regra geral
de disponibilidade e, assim, integram ao cômputo da jornada de
trabalho e devem ser remuneradas pelo empregador. Exceção são
os intervalos obrigatórios, normalmente decorrentes de normas
de higiene e segurança do trabalho18, não são computados na
jornada diária. São, em geral, intervalos de curta duração em que,

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 31

ao contrário da presunção de disponibilidade, há uma expressa


proibição de que o empregado fique à disposição do emprega-
dor e, até mesmo, que preferencialmente se afaste do ambiente
laboral19. Porque não são remunerados, tais intervalos são em
número limitado e, se o empregador conceder outros além dos
obrigatórios previstos em lei, estes serão considerados como
tempo à disposição do empregador e computarão na jornada
de trabalho diária.
Por outro lado, bem compreendido o conceito de “tempo à
disposição do empregador” contido no art. 4º da CLT sistemati-
camente com o art. 6º20, foge-se da simplificação de se considerar
o tempo de trabalho retribuído somente aquele prestado dentro
do estabelecimento empresarial. Assim, também o trabalho pres-
tado em domicílio ou à distância, desde com horário que possa ser
controlado pelo empregador, considera-se também como à dispo-
sição do empregador.
Dessa forma, mesmo o horário prestado externamente ao
ambiente empresarial também é tido como integrante da jornada
do trabalhador, exceto em situações em que a atividade externa for
incompatível com a fixação de horário de trabalho (art. 62, I). Por
isso, cada vez mais a jurisprudência tem entendido, com base na
previsão do art. 6º, parágrafo único da CLT21, que esse controle
pode ser feito também por meios telemáticos22. Na medida que
o controle sobre os horários de prestação de trabalho pelo empre-
gado pode ser tanto presencial ou remoto, tal dispositivo parece
fazer cada vez mais sentido em um mundo em que o ambiente
empresarial se expande, cada vez mais, para fora de suas instala-
ções físicas, criando-se um ambiente virtual em que o controle
empresarial sobre o trabalhador é cada vez mais intenso e invasivo.
Acompanhando uma realidade em que o trabalho invade,
cada vez mais, o espaço privado do indivíduo trabalhador, atin-
gindo mesmo sua residência na forma de “home office”, observa-se
um tendência expansiva do conceito de “tempo à disposição do

Livro 1.indb 7 24/10/2022 09:32:13


32 • Labirintos do labor

empregador”, admitindo-se que, quando o trabalho for realizado


no ambiente doméstico todo o tempo deva ser remunerado se o
controle horário pelo empregador for possível23; ou, pelo menos, que
se garanta o período de descanso como de completo afastamento
do trabalho, garantindo-se que o trabalhador, em determinados
períodos do dia e da noite, ao menos, não seja perturbado (direito
à desconexão)24.
Essa extensão do conceito de “tempo à disposição do empre-
gador” já se observava, de algum tempo, em relação a situações
de sobreaviso (art. 224 parágrafo 3º da CLT) e de prontidão (art.
224 parágrafo 2º da CLT) para o pessoal ferroviário. No caso do
sobreaviso, o empregado permanece, de plantão, em própria casa,
aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço e lhe
são pagas as horas de sobreaviso na base de 1/3 do valor da hora
normal. No caso da prontidão, o empregado permanece pendente
da passagem dos trens na estrada de ferro e lhe são pagas as horas
de prontidão na base de 2/3 do valor da hora normal.
Da mesma forma, em relação ao tempo despendido pelo empre-
gado no trajeto de sua residência para a empresa, ida e volta
(“jornada in itinere”)25, ainda que se registrar que, também nesse
ponto, há um claro retrocesso a partir da modificação do artigo
56 parágrafo 2º da CLT pela Reforma Trabalhista26.

O trabalho a tempo parcial no Brasil e sua comparação com


o modelo espanhol

Conforme a Organização Internacional do Trabalho, o trabalho


a tempo parcial é aquele efetuado de maneira regular e voluntária
durante um período da jornada diária ou semanal sensivelmente
mais curto do que o normal (OIT, 1963).
Aqui se encontram as três características principais do trabalho
a tempo parcial: a jornada reduzida, o caráter voluntário em sua
origem e a regularidade da redução da jornada.

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 33

Como um dos principais objetivos, visa-se distinguir conceitu-


almente o trabalho parcial dos trabalhos ocasionais ou sazonais (não
regulares) ou temporários, intermitentes ou descontínuos. Assim,
apartam-se os contratos de trabalho a tempo parcial daquelas moda-
lidades contratuais precarizadoras, em que não são reconhecidos
tradicionais direitos dos trabalhadores assegurados aos trabalha-
dores a tempo completo. Da mesma forma, busca-se esquivar dos
riscos da segregação desse tipo de trabalho naturalmente menos
remunerado às piores ocupações e aos setores menos remunerados.
Lastreada por uma bem-sucedida experiência de trabalho parcial
em outros países27, foi editada no Brasil a Medida Provisória n.
1.709/1998, que, entre outras alterações na CLT, criou a possi-
bilidade de contratação do trabalho a tempo parcial, desde que
a prestação de trabalho não ultrapasse 25 horas semanais, com
remuneração proporcional aos trabalhadores a tempo completo e
sendo proibida a prestação de horas extras28.
Claramente a intenção do legislador brasileiro foi aproximar
esse novo contrato dos chamados “contratos de meio período”,
em que o trabalhado ocorreria quatro ou cinco horas por semana,
mediante o pagamento da metade do salário pago para os traba-
lhadores a tempo completo. Esse tipo de contrato sempre existiu,
porém, era desvantajoso para o empresário quando se tratava de
trabalhadores de menor remuneração, para os quais se assegurava o
pagamento do salário-mínimo.29 A nova lei, assim, abria as portas
para a contratação de uma imensa massa de trabalhadores pouco
qualificados que, pressionados pelo desemprego, estariam dispos-
tos a aceitar trabalhos a tempo parcial mediante o pagamento de
salários inferiores ao mínimo legal.30
Tal alteração não foi precedida de suficiente debate, nem foi
fruto de um diálogo social, tal como aconteceu na Espanha, na
mesma época, quando regulação semelhante31 foi saudada com
entusiasmo por empregados e empregadores como uma legisla-
ção equilibrada, que ajudaria a combater o desemprego crônico,

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34 • Labirintos do labor

em especial de setores mais vulneráveis, como o das mulheres


e dos jovens.
Acreditava-se, à época, na criação de muitos empregos e, mesmo,
abria-se a possibilidade de transformação dos empregos a tempo
completo em contratos a tempo parcial, mesmo com redução
salarial, desde que com anuência do empregado e mediante auto-
rização do sindicato mediante negociação coletiva.
A expectativa de ampla adoção no país do trabalho a tempo
parcial não se realizou, sendo relativamente pequena a percenta-
gem de trabalhadores ocupados em tempo parcial, especialmente
entre os formalizados.32 De mesma forma, houve um desinteresse
generalizado dos empregadores, que entenderam que não existia
uma base jurídica segura para esse tipo de contratação.
Contribui para esse relativo fracasso o pouco desenvolvimento
do instituto jurídico do tempo parcial em nosso ordenamento jurí-
dico que, praticamente, é apresentado, sem maiores critérios ou
definições, em apenas três artigos da CLT (art. 58-A, 59 e 130-A)
e sem algumas importantes cautelas que não passaram desaperce-
bidas pelo legislador espanhol.
Assim, por exemplo, na legislação espanhola houve a preocu-
pação de explicitamente não diferenciar o trabalho a tempo parcial
do modelo tradicional do contrato a tempo completo, não se justi-
ficando qualquer redução de direitos que não decorram direta e
proporcionalmente do tempo reduzido de trabalho.
Assim, o modelo espanhol insere o trabalho a tempo parcial
claramente nas modalidades de contratação a tempo indefinido,
não se justificando a contratação por prazo determinado em traba-
lhos fixos e periódicos dentro do volume normal de atividade da
empresa33. Opera o princípio da igualdade de tratamento com os
empregados da mesma empresa a tempo completo.34
Uma delimitação mais precisa da extensão da jornada também
foi importante na conceituação do contrato a tempo parcial no caso
espanhol. Assim, a contratação por tempo parcial é possível quando

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 35

o número de horas por dia, semana, mês ou ano for inferior a 77%
da jornada a tempo completo prevista em convênio coletivo ou
na lei35. Tal definição é relevante, pois, em caso contrário, poder-
-se-ia estar autorizando, por acordo individual, reduções ilegais de
jornada e salário; bem como vulnerando por via oblíqua patamares
salariais acordados em negociações coletivas. No mesmo sentido,
a lei espanhola proíbe a prestação de jornada extraordinária, mas
permite a contratação das chamadas “horas complementares” até
o limite de 15% (por acordo) ou 30% (por convênio coletivo) das
horas normais contratadas, sendo que, em qualquer caso, não se
poderá exceder o limite legal de 77% da jornada normal de tempo
completo. Estas poderão ser exigidas pelo empregador mediante
um aviso prévio de sete dias. Há, também, um limite temporal,
de forma que se evitem uma distribuição demasiadamente irregu-
lar das horas complementares durante o ano.
Relevante, também, observar a existência de uma cuidadosa
regulação para que as horas complementares habitualmente contra-
tadas se incorporem paulatinamente ao contrato original como
horas normais, de modo que, ao final de determinado tempo, o
empregado poderá requerer ao empregador a modificação de sua
jornada ordinária (art. 12.1 “i”).
Além disso, coerente com o objetivo primário de incentivo ao
trabalho parcial para coletivos com maiores dificuldades de acesso
ao mercado de trabalho (jovens, mulheres e idosos), criaram-se
subsídios a essa contratação, através de isenções parciais das contri-
buições previdenciárias incidentes36.
Por fim, e talvez o mais relevante nesta comparação com o Brasil,
a Espanha claramente diferenciou o trabalho a tempo parcial de
outras formas flexíveis de contratação, em que há uma disponibili-
zação absoluta ao empresário na distribuição das horas contratadas,
sem qualquer limite mínimo ou restrição temporal, sem que o
empregado possa saber quando terá que prestar os serviços.37

Livro 1.indb 11 24/10/2022 09:32:13


36 • Labirintos do labor

No Brasil, ao contrário, o escasso interesse do legislador brasi-


leiro em propiciar uma base sólida para a contratação a tempo
parcial, especialmente no que diz respeito à sua diferenciação de
outras modalidades contratuais explicam o caráter pouco atra-
tivo desse contrato para trabalhadores e empresários, bem como
a difícil tarefa da doutrina e jurisprudência para sua harmoniza-
ção com o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que
diz respeito com os princípios do direito do trabalho e as normas
constitucionais.
As modificações ocorridas por conta da Reforma Trabalhista em
nada contribuem para o aperfeiçoamento do instituto do trabalho
a tempo parcial no Brasil. Pelo contrário, ao prever o pagamento
de horas extras; ao não garantir a equiparação de direitos entre
trabalhadores a tempo parcial e trabalho a tempo completo; e, prin-
cipalmente, ao nada dispor sobre a consolidação do tempo parcial,
a nova regulamentação afasta, ainda mais, o modelo brasileiro do
padrão internacional.

O trabalho a tempo intermitente na Reforma Trabalhista


de 2017

O chamado “trabalho intermitente” é um conceito ainda nebu-


loso, que pretende configurar uma contratação para uma prestação
de trabalho de conteúdo indeterminado e que procura justificar a
existência de uma situação de “disponibilidade relativa” do empre-
gado, na contramão da tendência expansiva do conceito de “tempo
à disposição do empregador”. Diz o artigo 443 da CLT, tal como
foi redigido pela Lei n. 13.467/2017:

O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou


expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado
ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.
(...)

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 37

§ 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual


a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocor-
rendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de
inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independente-
mente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto
para os aeronautas, regidos por legislação própria.

Já o novel artigo 452-A da CLT prevê:

O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito


e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não
pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele
devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a
mesma função em contrato intermitente ou não.
§ 1 O empregador convocará, por qualquer meio de comunicação
eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada,
com, pelo menos, três dias corridos de antecedência.
§ 2 Recebida a convocação, o empregado terá o prazo de um dia útil
para responder ao chamado, presumindo-se, no silêncio, a recusa.
§ 3 A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do
contrato de trabalho intermitente.
§ 4 Aceita a oferta para o comparecimento ao trabalho, a parte que
descumprir, sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de
trinta dias, multa de 50% (cinquenta por cento) da remuneração
que seria devida, permitida a compensação em igual prazo.
§ 5 O período de inatividade não será considerado tempo à dispo-
sição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a
outros contratantes.
§ 6 Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado
receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas:
I - remuneração;
II - férias proporcionais com acréscimo de um terço;

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38 • Labirintos do labor

III - décimo terceiro salário proporcional;


IV - repouso semanal remunerado; e
V - adicionais legais.
 § 7 O recibo de pagamento deverá conter a discriminação dos
valores pagos relativos a cada uma das parcelas referidas no §
6o deste artigo.
§ 8 O empregador efetuará o recolhimento da contribuição previ-
denciária e o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço,
na forma da lei, com base nos valores pagos no período mensal
e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas
obrigações.
§ 9 A cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir,
nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual
não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo
empregador.

A primeira dificuldade decorre, justamente, da equivocada


ideia de que o trabalho intermitente possa ser uma nova moda-
lidade contratual, como se a intermitência não fosse apenas um
aspecto anômalo da prestação laboral38 – não configurando uma
tipologia contratual própria.
Por outro lado, não faz muito sentido a peremptória afirma-
ção reformista sobre as possibilidades de uma aplicabilidade de
uma regulação “de natureza intermitente” a todos os contratos de
trabalho, determinados ou indeterminados”, pois o que se esta-
ria a fazer seria a pura e simples negação do conceito de “tempo
à disposição do empregador”. De fato, a alternância de perío-
dos de prestação (efetiva) de trabalho e de inatividade (pausas
dentro do período de disponibilidade) é inerente a toda atividade
laboral e, se existirem situações concretas em que a remunera-
ção integral do tempo à disposição pelo empregador mostra-se
demasiadamente onerosa, estas deveriam ser claramente defini-
das pelo legislador.

Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 39

Por outro lado, por uma imprecisão técnica que torna prati-
camente impossível a aplicabilidade da norma em questão, o
reformador não definiu como seriam tais “períodos de alternância
entre prestação de trabalho e inatividade”. Por evidência, o trata-
mento haveria de ser bem distinto conforme fosse a duração de
tal intermitência, conforme ocorresse em períodos temporais mais
ou menos longos (dias, semanas ou meses).
Quando se fala em cômputo de tempo para fins de pagamento
de horas trabalhadas, cogita-se de dias e semanas: aqui se pensa,
precipuamente, no pagamento do tempo trabalhado, mais concre-
tamente, no pagamento de horas extras.
Coisa muito distinta é falar em cômputo de tempo para os
fins de determinação da natureza do contrato de trabalho (se por
prazo determinado ou prazo indeterminado) e cogita-se de meses
e anos: aqui se pensa, precipuamente, nos efeitos do rompimento
do contrato de trabalho, mais concretamente, nos efeitos da extin-
ção do contrato de trabalho.
O contrato de prestação descontínua, assim entendido aquele
que ocorre em diferentes ciclos de tempo, não se confunde com
o trabalho intermitente.
Na Espanha, existe a figura contratual chamada “contrato fijo-
-descontínuo”39, modalidade ainda não existente em nosso país e,
por sua complexidade, tampouco se pode dizer tenha sido inau-
gurado no ordenamento jurídico brasileiro por conta da alteração
do artigo 452-A da CLT. Esta peculiar modalidade de contrato
de trabalho somente se aplica a contratos por tempo indefinido,
em se realizam atividade cíclicas em que os períodos de paralisa-
ção ocorrem por questões de temporada laboral40. O contrato de
trabalho não se rompe (não há despedida), mas fica em suspenso
até o chamamento do trabalhador pelo empresário – que, normal-
mente, ocorre no próximo ciclo de trabalho (temporada). Trata-se
de um contrato com recíprocas vantagens para empregado e empre-
gador. O empregado tem um compromisso de oferta de emprego

Livro 1.indb 15 24/10/2022 09:32:13


40 • Labirintos do labor

no próximo ciclo temporal; o empregador tem a possibilidade de


contar a possiblidade de recontratar um trabalhador já experimen-
tado no futuro. Nessa modalidade contratual, não se cogita de um
regime especial de jornada diária, nem do ponto de vista da limita-
ção de horas trabalhadas, nem da distribuição da jornada contratada.
O “modelo contratual fixo-descontínuo brasileiro”, curiosa-
mente denominado “intermitente” - tal como foi redigido no art.
452-A-, nada esclarece quanto aos efeitos do rompimento contra-
tual; qual o prazo mínimo/máximo de duração que esse contrato
por ter; em que hipóteses o empregado está dispensado de atender
ao chamamento do empregador; em que hipóteses o empregador
está obrigado a cumprir a promessa de chamamento; o que ocorre
quando houver alterações das condições de trabalho( por exem-
plo: alteração de salário), etc.
Seguramente, sem uma regulamentação detalhada que escla-
reça tantas omissões e lacunas contidas no texto legal, impossível
a contratação sob essa modalidade contratual.
Pior ainda quando se pretende visualizar a aplicabilidade do
confuso artigo 452-A à duração da jornada diária.41
Por outro lado, o trabalho a tempo parcial não se confunde
com o trabalho diário intermitente.
O trabalho a tempo parcial é uma modalidade contratual de
trabalho com redução especial de jornada. Já o trabalho intermitente
não pode ser considerado um tipo especial de contrato de trabalho.
Na verdade, é apenas uma forma anômala de prestação de trabalho.
Em tal conceito de “situação de intermitência”, pretende-se que
um típico empregado subordinado, em típica situação de dispo-
nibilidade para trabalhar, tenha sua remuneração condicionada à
efetividade de seu trabalho, assim como esta for considerada, por
critérios fixados arbitrariamente pelo empregador42. Nesse sentido,
há uma completa incompatibilidade entre o trabalho intermi-
tente e os princípios do direito do trabalho.

Livro 1.indb 16 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 41

Rompe-se o sinalagma típico da relação de emprego, onde


o empregador “compra” o tempo do trabalhador (nos contratos
horários) ou os frutos de seu labor (nos contratos por produção) –
e não sua energia produtiva, como anteriormente já se mencionou.
Pode-se também dizer que, na contratação de trabalho inter-
mitente, há uma excessiva “flexibilidade interna”, ou seja, uma
permissão para o que o empregador tenha excepcional disponi-
bilidade na distribuição do horário de trabalho do empregado
contratado, somente se responsabilizando por pagar o tempo
efetivo laborado, deixando sem retribuição todos os períodos em
que o trabalhador também fica à sua disposição. Precisamente
por conta desse enorme desequilíbrio entre as prestações, que
sujeita uma das partes ao puro arbítrio da outra (muitas vezes,
denominados como “contratos leoninos” ou “contratos de cláu-
sula potestativa”), tal contratação fere a boa-fé objetiva e deve ser
reputada como nula (artigo 122 do Código Civil).43
O trabalho intermitente contraria dois princípios basilares,
que sempre caracterizaram o direito do trabalho, tornando-o
virtualmente impossível de seu enquadramento como um traba-
lho decente44, tal como preconiza a OIT:

- todo tempo de trabalho prestado ao empregador deve ser pago:


consequência da própria sinalagmaticidade do contrato de trabalho,
expressão do secular princípio do “pacta sunt servanda” no direito
do trabalho, sendo a onerosidade é uma características da relação
de emprego;

- o empregador tem o dever de ocupação efetiva do trabalhador,


ou seja, deve ser dada a oportunidade de exercer efetivamente e
sem quaisquer dificuldades ou obstáculos a atividade contratada,
impedindo-se o empregador de obstar injustificadamente à presta-
ção efetiva do trabalho45.

Livro 1.indb 17 24/10/2022 09:32:13


42 • Labirintos do labor

Além disso, a prestação intermitente do trabalho potencialmente


viola, também, o princípio de suficiência, já que, ao não garantir a
jornada, não garante que o salário seja suficiente para a subsistên-
cia do trabalhador e de sua família46. Observe-se que não se prevê
qualquer retribuição pelo período de inatividade, nem qualquer
obrigação do empregador em reciprocidade ao compromisso do
empregado de responder ao chamado a trabalhar.
Nesse sentido, importante o voto do Ministro Edson Fachin,
no julgamento da ADIN 5826, em que justamente se discute a
constitucionalidade do trabalho intermitente, tal como está plas-
mado no artigo 443 da CLT:

Sem a garantia de que vai ser convocado, o trabalhador, apesar de


formalmente contratado, continua sem as reais condições de gozar
dos direitos que dependem da prestação de serviços e remunera-
ção decorrente, sem os quais não há condições imprescindíveis para
uma vida digna.47

Assim, os trabalhadores intermitentes são gravemente preju-


dicados no que tange à percepção de férias e 13º salários, bem
como no recolhimento do FGTS, contribuições previdenciárias
e seguro-desemprego48.

A título de conclusão

Na prática, tanto na nova regulação do trabalho parcial como a


introdução no ordenamento jurídico nacional do trabalho intermi-
tente, o que se faz não é sequer formatar mais um contrato flexível
de trabalho – o que se faz é uma desconstrução do sistema prote-
tivo de limitação do tempo de trabalho, criando desequilíbrios
estruturais na relação de trabalho, parecendo mesmo preten-
der dar cobertura legal a contrários precários, cuja proximidade
conceitual no direito comparado, não é de qualquer fórmula de

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 43

contrato especial de trabalho; mas sim, aos chamados “contratos-


-lixo” (junk contracts), veemente censurados pela OIT, onde se
autoriza ao empregador a utilização máxima do tempo de traba-
lho do trabalhador com um mínimo de retribuição.

Notas
1
Uma das definições possíveis de produtividade é a razão entre a quan-
tidade de produtos obtidos em um processo produtivo e o tempo
despendido para produzi-los.
2
A teoria do mais-valor foi formulada por Marx e Engels em sua clás-
sica obra “O Capital”.
3
A necessidade de flexibilizar o mercado de trabalho aparece como
uma constante praticamente universal nas recomendações de política
econômica formulada por organismos internacionais e nas políticas de
emprego desenhadas na maioria dos governos dos países industrializa-
dos (Malo de Molina, citado em Flórez Saborido, 1994, p. 39).
4
A flexibilidade laboral foi proposta, a partir dos anos 70, como uma
resposta ao esgotamento do padrão de crescimento fordista, que permi-
tia a interação de aumentos gerais de salário com a elevação decorrente
principalmente de economias de produção de grande escala (Baltar;
Proni, 1995, p. 2).
5
A “falácia do emprego” trabalha com uma regra geral abstrata (e,
assim, resistente a demonstrações práticas) que toda redução do preço
da mão-de-obra estimula à criação de empregos.
6
Ainda que, ao menos teoricamente, há um razoável consenso de que
os chamados “ganhos de produtividade” deveriam retribuir também os
trabalhadores, preferencialmente na forma de ganhos reais dos salários.
7
“Galinha dos ovos de ouro”, assim entendida a empresa como a “causa
mágica” da criação do valor, escamoteando, através da prestidigitação
da teoria econômica, o real valor do trabalho.
8
“O Estado intervém fortemente para não intervir. O Estado está sendo
desconectado tanto do capital como do trabalho nacionais, perdendo a
sua capacidade de garantir por si mesmo os ajustes institucionais para
a reprodução e uma acumulação estáveis (Souza Santos, 1998, p. 87).

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:13


44 • Labirintos do labor

9
A desregulação pode ser pensada como um processo de re-contratua-
lização naquelas áreas de política de trabalho que cumpria o Estado de
Bem-Estar Social. Logicamente, o regime contratual é mais uma função
da negociação e do poder do mercado do que de um regime protetor
estatutário que, inclui, o direito necessário. Do que se deduz que, por si
mesma, a re-contratualização favorecerá aos que tem esse poder; e discri-
minará aos que não tem (Mückenberger, in Marzal, 1997, p. 152).
10
Enquanto estamos ainda sob os efeitos da Reforma de 2017 no Brasil,
em outros países se assiste justamente serem revisadas as políticas desregu-
latórias que inspiraram a reforma brasileira.
11
Artigo 58-A da CLT introduzida pela Medida Provisória n. 2.164-41
de 2001.
12
Nova redação do artigo 58-A pela Lei 13.467/2017.
13
Artigos 443 e 452-A da CLT.
14
“Eight hours to work; eight hours to play; eight hours to rest; eighi
shilligs a day” era o slogan das primeiras lutas operárias inglesas.
15
“7º, XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias
e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a
redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
16
A Constituição, em seu artigo 1º, elevou a fundamento constitucional
os valores sociais do trabalho, estando os direitos trabalhistas, inclusive
os do artigo 7º, no capítulo II (direitos sociais) contido no Título II, que
tratam dos direitos e garantias fundamentais. A esse respeito, Silvio Jr;
Freitas Filho,
17
Art. 4º - Considera-se como de serviço efetivo o período em que o
empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando
ordens, salvo disposição especial expressamente consignada.
18 Exemplo típico são os intervalos para repouso e alimentação (artigo 71
da CLT).
19
Constituem, dentro da rotina diária do trabalhador, excepcional suspen-
são do cômputo da duração da jornada para fins de pagamento dos salários
(neles, tecnicamente, não há trabalho, nem salário).
20
Art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento
do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a
distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de
emprego.

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 45

21
Art. 6º, parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de
comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação
jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão
do trabalho alheio.
22
A esse respeito, acórdão TST RR 0001420-97.2016.5.12.0041, 7ª T.,
Rel. Min. Vieira de Mello Filho, onde reconheceu-se que meios telemá-
ticos possibilitam o controle e fiscalização da jornada de trabalho externo
e, assim, tornam devido o pagamento de horas extras. No caso, ainda que
não houvesse em acompanhamento “on line” das atividades do empre-
gado, era possível, por meio de sistema GPS ligado à internet, a indicação
plena dos locais e dos horários em que o trabalhador realizava montagens
de móveis nos endereços ordenados.
23
“Horas Extras. Trabalho Em Domicílio. O Eg. TRT consignou que a
prova oral comprovou que o Reclamante recebia telefonemas para resolver
problemas de trabalho em horários de descanso e que tais atendimentos
não eram anotados na jornada de trabalho nem quitados. Súmula nº 126
do TST. Agravo de Instrumento a que se nega provimento” (TST - AIRR
0002063-54.2012.5.15.0092; Oitava Turma; Relª Min. Maria Cristina
Irigoyen Peduzzi; DEJT 20/11/2015; Pág. 3153).
24
“A exigência para que o empregado esteja conectado por meio de smar-
tphone, notebook ou BIP, após a jornada de trabalho ordinário, é o que
caracteriza ofensa ao direito à desconexão. Isso porque não pode ir a locais
distantes, sem sinal telefônico ou internet, ficando privado de sua liber-
dade para usufruir efetivamente do tempo destinado ao descanso (...) O
direito à desconexão certamente ficará comprometido, com a perma-
nente vinculação ao trabalho, se não houver critérios definidos quanto
aos limites diários, os quais ficam atrelados à permanente necessidade do
serviço. Resultaria, enfim, em descumprimento do direito fundamental
e no comprometimento do princípio da máxima efetividade da Carta
Maior” (TST -AIRR 0002058-43.2012.5.02.0464; Sétima Turma; Rel.
Min. Cláudio Mascarenhas Brandão; DEJT 27/10/2017; Pág. 2966)”.
25
Súmula 90, I do TST: “Horas in itinere. Tempo de serviço. “O tempo
despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador,
até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte
público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho”.
26
Parágrafo 2º - “O tempo despendido pelo empregado desde a sua resi-
dência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno,
caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:13


46 • Labirintos do labor

pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser
tempo à disposição do empregador”.
27
Especialmente a Holanda, onde mais de metade dos trabalhadores tem
um emprego a tempo parcial (The Economist, 2015). Estima-se que,
nos países da OCDE, entre os indivíduos ocupados, cerca de 10% dos
homens e 25% das mulheres possuam empregos com jornada em tempo
parcial, a maior parte voluntariamente (p. 35).
28
Art. 58-A, caput, parágrafo 1º e art. 59 parágrafo 4º.
29
O salário-mínimo foi originalmente previsto em lei como a retribui-
ção mínima devida ao trabalhador adulto por dia normal de serviço e que
somente poderia ser reduzido, até de metade, em casos de serviços espe-
cializados (art. 2º, Lei n.185, de 14/1/1936).
30
Parece relevante relembrar aqui que, para a OIT, a voluntariedade é
uma das características essenciais do trabalho a tempo parcial e, portanto,
uma legislação que legitima contratações abaixo do mínimo existencial
previsto em lei dificilmente pode ser enquadrada como suficiente para
assegurar um trabalho digno.
31
Real Decreto-Ley 15/1998.
32
Tanto que, em dados de 2014, o total de trabalhadores em tempo
parcial corresponde a 13,4% dos ocupados (31% entre os sem-carteira e
apenas 5,6% entre os com carteira). In: Reis; Costa, 2016, p. 34.
33
Artigo 12.3, letra “a” do Real Decreto-Ley 15/1998.
34 “
La igualdad de trato y no discriminación de los trabajadores a tempo
parcial em relación com los trabajadores a tempo completo, sin perjuicio
de la aplicación del principio de proporcionalidade cuando resulte adecu-
ado” (Exposição de Motivos do Real Decreto-lei 15/1998.
35
Artigo 12.1, do Real Decreto-Ley 15/1998.
36
Estabeleceram-se bonificações em contratos de tempo indefinido de
trabalhadores menores de 30 anos ou desempregadoas há mais de doze
meses (art. 28, Ley 55/1999).
37
“No hay que confundir “flexibilidade” com “disponibilidad”. La dispo-
nibilidade implica que el volumen de horas pactado se realiza de acuerdo
con las necessidades que em cada momento tenga la empresa, sin que
exista certeza por parte del trabajador previa a la “llamada” del empresá-
rio, de cúando tiene de prestar serviços. La flexibilidade permite distribuir
irregularmente el tempo de trabajo pactado, en virtude de las necessidades

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:13


O trabalho na Reforma Trabalhista • 47

productivas, pero con la expressa determinación contractual de “cúando”


se van a prestar los servicios pactados (Varas García et al, 2000, p. 30).
38
Veja-se que, entre as poucas menções a “intermitência” na CLT, consta
a do artigo 248, relativo ao trabalho marítimo, justamente no sentido de
que a intermitência na prestação do trabalho não configura inatividade
do trabalhador.
39
Artigo 16.1 do “Estatuto de los Trabajadores” (Real Decreto Legislativo
2/2015, de 23 de outubro.
40
Por exemplo, trabalho de temporada, como por exemplo, um cozi-
nheiro de um restaurante praiano que somente funciona no verão.
41
Com alguma imaginação, por certo, já que a expressão “período de
inatividade” contido no parágrafo 5º do artigo 452-A não parece estar a
permitir o trabalho diário simultâneo para mais de um empregador.
42
Essas situações podem ser tão díspares como a de um garçom na sala
lateral de um restaurante, aguardando chamado para trabalhar em horá-
rios de pico; ou a de motorista de caminhão, aguardando no depósito o
descarregamento do caminhão para retornar de viagem.
43
“O conteúdo puramente potestativo do contrato impôs a uma das
partes condição, apenas e tão somente, de mero espectador, em perma-
nente expectativa, enquanto dá ao outro parceiro irrestritos poderes para
decidir como bem lhe aprouvesse. Disposições como essa agridem o bom
senso e, por isso, não encontram guarida em nosso direito positivo. Entre
elas está a chamada cláusula potestativa. É estipulação sem valor, porque
submete a realização do ato ao inteiro arbítrio de uma das partes” STJ, 3ª.
T. Resp 291.631-SP, Rel. Min. Castro Filho, julg. 4/1/2001).
44
É trabalho adequadamente remunerado, exercido em liberdade, equi-
dade e segurança, e capaz de garantir vida digna.
45
Pode-se também afirmar que o dever de ocupação efetiva tem, também,
calço constitucional na valorização do trabalho humano, que é um dos
fundamentos de uma ordem econômica voltada à promoção do pleno
emprego (artigo 170, VIII).
46
Mesmo assim, proliferam os chamados “zero-hour contracts”, que
demandam do trabalhador disponibilidade por um certo número de
horas por semana e/ou mês, sem garantir qualquer contraprestação salarial.
47
Voto disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2021/11/
stf-julgamento-trabalho-intermitente/.

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:13


48 • Labirintos do labor

48
“Trata-se, sim, de extinção de direitos por via reflexa, pois ao parcelar
seu pagamento a cada período trabalhado, o empregado nada teria a rece-
ber no final do ano a título de décimo terceiro salário; muito menos a
título de férias quando estas lhe forem concedidas” (Abed, 2021).

Referências
ABED. “Trabalho intermitente: imprevisível, indefinido e
inconstitucional”, 22/11/2021. Site. Disponível em: http://
abet-trabalho.org.br/trabalho-intermitente-imprevisivel-indefinido-e-
inconstitucional/. Acesso em 5/8/2022.
BALTAR, P. E.; PRONI, M.W. Flexibilidade do trabalho, emprego
e estrutura salarial no Brasil. Cadernos do CESIT, Texto para Discussão nº
15, 1995.
THE ECONOMIST. “Why so many Dutch people work part time”.
12/5/2015. Disponível em: https://www.economist.com/the-economist-
explains/2015/05/11/why-so-many-dutch-people-work-part-time.
Acesso em 12/8/2022.
FLORES SABORIDO, Ignacio. “La contratación laboral como
medida de política de empleo en España - La creciente flexibilidad
en el acceso al empleo”, Madrid: Consejo Económico y Social, 1994.
JÚNIOR, A. B. da S.; FILHO, R. F. A fundamentalidade dos direitos
trabalhistas: uma diretriz constitucional ainda pendente. Revista Digital
Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, p. 40–65, 2017. Disponível
em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/
view/12253. Acesso em: 14 ago. 2022.
MARZAL, “Crisis del estado de bienestar y derecho social”,
Barcelona: Editor J. M. Bosch, 1997.
OECD–ORGANISATION FOR ECONOMICO-OPERATION
AND DEVELOPMENT. “How  good is part-time  work?”
In: OECD (Ed.). Employment Outlook 2010. Paris: OECD Publishing,
2010; p. 211-266.
OIT. Estudio Internacional sobre el empleo a tempo parcial, Revista
Internacional de Trabajo, vol LXVIII, n. 4, out 1963.
SOUZA SANTOS, Boaventura. La globalización del derecho – los
nuevos camiños de la regulación e la emancipación. Bogotá: Editora
Universidad Nacional de Colombia, 1998.

Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:14


O trabalho na Reforma Trabalhista • 49

VARAS GARCÍA et al. “Dossier práctico – Trabajo a tempo parcial”.


Ediciones Francis Lefebvre, 2000.
VARGAS, Luiz A. “La búsqueda del equilíbrio entre flexibilidade y
garantismo en la nueva regulación del contracto a a tempo parcial”.
2000. Disponível em: http://www.lavargas.com.br/ctp.html. Acesso em
12/8/2022.

Livro 1.indb 25 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936: A pandemia
como argumento para aprofundar a
necropolítica no Brasil

2
Stephanie Dutra Rodrigues
Valdete Souto Severo

A
relação social de trabalho, caracterizada pela troca da
força de trabalho por um salário, é central no modelo
de sociedade em que vivemos. Na sociedade capitalista,
na qual as trocas são necessariamente mediadas pelo dinheiro, os
bens indispensáveis à sobrevivência, para grande parte da popula-
ção, só são obtidos por meio do salário, daí decorre a sua crucial
importância.
Isso significa que não trabalhar impede acesso às condições
mais básicas de existência, como alimento, roupa, remédio,
moradia. Os direitos trabalhistas nunca foram levados à sério
no Brasil. Desde as primeiras lutas contra a invasão e a escravi-
zação de pessoas, passando pela aprovação da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT) e inclusive pela Constituição de 1988
que os reconhece como fundamentais, fato é que esses direitos
sempre sofreram investidas violentas. Esse quadro será radi-
calmente potencializado a partir de 2017, com a denominada
“reforma” trabalhista e, em especial para o que aqui interessa, em
2020, em frente à maior crise sanitária mundial.
No final do ano de 2019, foi descoberto um novo tipo de
coronavírus. A doença, que passou a ser chamada de Covid-19,
se alastrou rapidamente e em proporções mundiais, de forma que

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 51

em março de 2020, apenas três meses após o primeiro alerta de


sua letalidade, a Organização Mundial da Saúde (OMS) carac-
terizou como uma pandemia. Em 20 de março de 2020, foi
reconhecido estado de calamidade pública no Brasil. Até julho
de 2022, o novo coronavírus foi responsável por mais de 677
mil mortes no país, mais de 33,6 milhões de pessoas infectadas
e registros de consequências diversas, para a capacidade laboral e
mesmo para a qualidade de vida, em razão dessa contaminação.
Este artigo busca avaliar o cenário causado pela pandemia no
Brasil, no que tange as relações trabalhistas, com especial atenção
para a precarização acentuada dessas relações e ao movimento
de esvaziamento da proteção ao salário no Brasil. Parte-se da
avaliação das medidas adotadas pelo governo, com o pretexto de
enfrentamento à Covid-19, e suas consequências. Busca, ainda,
discutir o fato de que houve uma escolha política pelo abandono
e uma aposta na morte, sob a lógica de que a fragilização impede
a participação política ao tempo em que facilita o alinhamento
com propostas autoritárias de governo.

A importância do emprego e do salário enquanto condição


para a sobrevivência

A relação de trabalho é, em regra, a do trabalho assalariado,


caracterizada pela troca da força de trabalho por salário. A expro-
priação da terra dos camponeses e a introdução do trabalho
assalariado forçado marcou o período de transição do último
estágio do feudalismo, um modelo de organização no qual o
indivíduo dividia-se entre trabalhar para o feudo e para si, para
o capitalismo que vivenciamos1, um sistema econômico em que
o trabalhador vende sua força de trabalho em troca de um salá-
rio, sem o qual não consegue sobreviver.
Quando analisamos o processo histórico que Karl Marx deno-
mina de “acumulação primitiva”, aquele em que “grandes massas

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:14


52 • Labirintos do labor

humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de


subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários
absolutamente livres”2, verificamos que o autor demonstra como
essa transição afetou radicalmente todas as formas de convívio
social e culminou no contexto da chamada Revolução Industrial.
Nesse momento, apesar da oferta de mão-de-obra em abundân-
cia, as condições sociais da população continuavam deprimentes.
O acúmulo de capital e os salários baixíssimos aumentavam a
desigualdade social e continuavam a ocasionar a incapacidade
dos trabalhadores de até mesmo alimentarem-se adequadamente.
A participação do indivíduo no processo de produção de
bens começou a restringir-se, distanciando-se da construção do
produto em decorrência da fragmentação do modo de produ-
ção. O trabalho, então, se torna um objeto que não lhe pertence,
que é apropriado pelo capitalista. Assim, transforma-se a própria
força de trabalho em mercadoria, o que resulta no trabalhador
tendo como único objetivo trabalhar para garantir a sua exis-
tência, tornando-se dependente de seu empregador. Em uma
passagem dos seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, dispõe
Marx sobre o assunto:

O trabalhador se torna, portanto, um servo do seu objeto. Primeiro,


porque ele recebe um objeto do trabalho, isto é, recebe trabalho; e,
segundo, porque recebe meio de subsistência. Portanto, para que
possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo,
como sujeito físico. O auge desta servidão é que somente como
trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas como
sujeito físico ele é trabalhador.3 (grifos originais)

A força de trabalho tornou-se um sacrifício4. O trabalho não


é voluntário, mas forçado, obrigatório; não é a satisfação de uma
carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora
dele5, uma vez que o trabalhador precisa exercer seu trabalho em

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 53

troca de receber dinheiro para o mínimo, qual seja, comer, vestir-


-se e ter uma moradia, para que tenha o básico para sobreviver.6
No Brasil, um país de origem colonial, “as ideias acerca da
função de um Estado capitalista não são criadas na realidade das
transformações econômicas, mas importadas como uma espé-
cie de “pacote” a ser aplicado com vista a naturalizar a lógica
de trocas”. Apesar disso, “o Brasil moderno é construído sob a
perspectiva de ser colônia, fundada na exploração escravagista e
na máxima extração de recursos naturais”7. Portanto, quando
do início da nossa industrialização tardia, a força de trabalho
era assalariada, em grande parte, para os imigrantes europeus,
mas, paralelamente, escrava para a população indígena e para as
pessoas vindas da África8.
Então, sob a égide do sistema capitalista em um país perifé-
rico e atravessado por essa marca inicial de espoliação extrema,
a lógica da exploração do trabalho pelo capital se potencializa
ainda mais, seja exigindo das trabalhadoras e dos trabalhadores
a maximização do tempo de trabalho, seja pela extração de cada
vez mais produtividade, seja, ainda, pela redução dos “custos”
do trabalho.
A discussão que aqui faremos deita olhar em uma regra da
Constituição que, em seu art. 7º, inciso IV, dispõe que o salá-
rio deverá ser capaz de atender às “necessidades vitais básicas”,
não apenas de quem trabalha, mas também “de sua família com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social”. Essa norma, vigente desde 1988,
nunca foi respeitada. Com remunerações baixas e condições de
trabalho precarizadas, as trabalhadoras e os trabalhadores traba-
lham cada vez, mais ganhando cada vez menos.
Em nossa realidade, o trabalho assalariado se evidencia não
somente como condição para a sobrevivência, mas ainda como
forma de tornar viável a própria existência em sociedade, uma
vez que “o trabalho é sempre, em alguma medida, espaço de

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:14


54 • Labirintos do labor

construção da subjetividade e dos laços sociais”9. Assim sendo,


interfere na maneira como quem trabalha se relaciona consigo
mesmo e com os outros. Portanto, apesar de não ser conside-
rado dessa maneira pelo capital, é imperativo que o trabalho,
enquanto atividade vital e emancipadora, seja parte da realiza-
ção social dos indivíduos.
Essa regra, portanto, nada mais faz do que evidenciar a função
que o salário desempenha em uma sociedade capitalista. Precisa
viabilizar a vivência em todas as suas dimensões, sob pena de
essa sociabilidade perder seu próprio sentido. Ora, se nos orga-
nizamos de modo que seja necessário trabalhar para sobreviver
durante praticamente toda a vida a adulta, o mínimo para que
isso se torne racional e razoável, é que o dinheiro pago em troca
do tempo de vida necessariamente colocado à disposição do
empregador seja suficiente para viabilizar uma vida boa.
O salário apresenta-se, então, como elemento central. Fragilizá-lo
não significa apenas extrair ainda mais mais-valor do trabalho.
Implica negar a possibilidade de vida decente. Implica comprome-
ter o próprio sentido da sociabilidade em um modelo capitalista
de sociedade, no qual tudo é mediado pelo dinheiro e a produ-
ção para circulação depende da capacidade de consumo.
É desde essa perspectiva que será analisada a escolha polí-
tica de precarizar ainda mais o salário durante a crise sanitária
da COVID-19.

O esvaziamento da proteção ao salário no brasil: a chegada


da pandemia e a medida provisória 936/2020

No final do ano de 2019, foi descoberto um novo tipo de


coronavírus na China, responsável por causar o que viria a ser
chamado de Covid-1910. Em janeiro de 2020, foi declarado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) que o novo coronavírus
constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 55

Internacional (ESPII)11. Em março de 2020, a OMS caracteri-


zou como uma pandemia o surto de Covid-19. Em face disso,
o Congresso Nacional, em 20 de março de 2020, promulgou o
Decreto Legislativo nº 6, responsável por reconhecer estado de
calamidade pública no país12.
No Brasil, para além das próprias consequências da doença,
sofremos com uma política que negava a letalidade da Covid-19.
Apesar disso, a maioria dos governos estaduais optou por seguir
as diretrizes da OMS e, chancelados pelo Supremo Tribunal
Federal13, implementaram medidas de isolamento social e decre-
taram a paralisação de atividades não-essenciais. Ainda assim, o
novo coronavírus foi responsável por mais de 600 (seiscentas)
mil mortes no país até novembro de 202114, afetando a vida de
milhares de famílias brasileiras das mais variadas formas.
Em decorrência da pandemia, o Governo Federal implementou
diversas medidas, não como forma de enfrentar os efeitos indivi-
duais e sociais do vírus, mas antes as consequências econômicas,
dentre as quais destacamos a Medida Provisória 936. A ideia é
refletir sobre a escolha política de fragilização do salário como
uma aposta na precarização das condições de vida de quem traba-
lha, aprofundando, assim, a possibilidade de alienação política.
A Medida Provisória 936, de 01 de abril de 2020, instituiu o
Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda15.
Os objetivos do Programa eram, segundo seu texto: “preservar
o emprego e a renda”, “garantir a continuidade das atividades
laborais e empresariais” e “reduzir o impacto social decorrente
das consequências do estado de calamidade pública e de emer-
gência de saúde pública”. Para tanto, as técnicas utilizadas pelo
Programa incluíam a possibilidade de redução da jornada de
trabalho e, consequentemente, de salários, além da suspen-
são temporária dos contratos. Como forma de minimizar seus
efeitos, ainda previa o pagamento de um “benefício emergen-
cial de preservação do emprego e da renda”.

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:14


56 • Labirintos do labor

A respeito da redução proporcional de jornada de trabalho e


de salário, dispõe a MP:

Art. 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere


o art. 1º, o empregador poderá acordar a redução proporcional da
jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa
dias, observados os seguintes requisitos:

(...) II - pactuação por acordo individual escrito entre empregador e


empregado, que será encaminhado ao empregado com antecedên-
cia de, no mínimo, dois dias corridos; (grifos próprios)

A Medida Provisória ignora o disposto no art. 7º, inciso


IV, da Carta Magna, segundo o qual é um direito fundamental
das trabalhadoras e dos trabalhadores a “irredutibilidade do salá-
rio, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. Desse
modo, afasta a negociação coletiva, um dos mais relevantes meca-
nismos de gestão de crise consagrados pelo Direito do Trabalho16.
Segundo o art. 11, §4º, da MP 936, os acordos de redução de
jornada e de salário ou de suspensão temporária do contrato de
trabalho que forem celebrados de forma individual “deverão ser
comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral,
no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebra-
ção”. Apesar de prestigiar um pretenso “diálogo” entre as partes
- isto é, entre empregador, empregado e sindicato -, a referida
disposição acaba por não fazer qualquer diferença na vida das
pessoas que terão seus direitos trabalhistas lesados, posto que a
mera comunicação ao sindicato sem previsão de consequências
serve puramente para que o acordo reste formalizado.
A respeito da redução de salários, a CLT já tinha norma17.
Entretanto, a medida legislativa permite reduções em percentuais
muitíssimo superiores a 25%. Conforme expressa o art. 7º, inciso
III, da MP 936, o empregador poderia acordar:

Livro 1.indb 7 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 57

III - redução da jornada de trabalho e de salário, exclusivamente,


nos seguintes percentuais:
a) vinte e cinco por cento;
b) cinquenta por cento; ou
c) setenta por cento.

No tocante à suspensão do contrato de trabalho, indo contra


o expresso na CLT que dispõe em seu art. 476-A que o contrato
de trabalho poderá ser suspenso “mediante previsão em convenção
ou acordo coletivo de trabalho”, estabelece a Medida Provisória:

Art. 8º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o


art. 1º, o empregador poderá acordar a suspensão temporária do
contrato de trabalho de seus empregados, pelo prazo máximo de
sessenta dias, que poderá ser fracionado em até dois períodos de
trinta dias.
§ 1º A suspensão temporária do contrato de trabalho será pactuada por
acordo individual escrito entre empregador e empregado, que será
encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois
dias corridos. (grifos próprios)

É impensável que em qualquer situação a suspensão do


contrato de trabalho – e a consequente suspensão do recebimento
de salário – seja de interesse da empregada ou do empregado.
A possibilidade de impor até 4 (quatro) meses de suspensão
salarial apresenta-se, portanto, como uma medida alinhada
aos interesses do capital. Na relação de troca entre capital
e trabalho, quem detém apenas a própria força de trabalho
como mercadoria para ser “negociada” se encontrará sempre
na situação de dominado, aceitando condições mais precá-
rias em face da possibilidade da perda definitiva do emprego,
“um ato que, longe de ser apenas a denúncia de um contrato,

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:32:14


58 • Labirintos do labor

materializa-se como a (in)viabilização da continuidade da vida


para quem depende do trabalho assalariado para sobreviver”18.
As disposição da MP 936 contrariam, ainda, o art. 468 da CLT
que, tratando de alterações nos contratos individuais de trabalho,
expressa que essas só serão lícitas quando acordadas “por mútuo
consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou
indiretamente, prejuízos ao empregado”. Pois bem, ter o salário
reduzido ou, pior, o contrato suspenso, durante uma crise sani-
tária que chegou a vitimar mais de 4 (quatro) mil pessoas por dia
no Brasil19, não apenas configura um prejuízo para quem vive do
trabalho, mas denuncia uma política agressiva de massacre e de
ataque à dignidade da pessoa humana, um preceito sobre o qual
se consolida a Constituição e o próprio Estado Democrático de
Direito. Ou seja, mesmo diante do discurso constitucional e da
literalidade do texto jurídico, propõe-se a possibilidade de redu-
ção de salário durante a crise sanitária, revelando, portanto, que
o problema não é de ordem jurídica.
Em plena pandemia, um momento no qual os corpos humanos
se encontram em situação de extrema fragilidade e a necessidade
de isolamento social se torna fundamental, o que se deveria discu-
tir é o reforço à proteção dos trabalhadores e trabalhadoras que
precisam garantir sua fonte de subsistência. A preservação do
emprego é de fato essencial para o enfrentamento da crise sani-
tária mundial, entretanto, a medida legislativa utiliza-se dela para
tentar mascarar um claro objetivo de direcionar esforços em prol
da preservação empresarial. Enquanto isso, milhares de famílias
são colocadas em situação de indigência, de endividamento e de
concreta impossibilidade de acesso a remédios ou alimentação
adequada, condições indispensáveis ao enfrentamento da doença20.
O Governo Federal contrariou, inclusive, disposições inter-
nacionais, uma vez que, conforme a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, durante a crise sanitária da Covid-19 deve-
ria ser uma das prioridades dos governos preservar empregos

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 59

e direitos das pessoas trabalhadoras. Conforme dispôs em sua


Resolução 1/2020, ao tratar sobre a pandemia e os direitos huma-
nos nas Américas21, os Estados da região devem “prestar especial
atenção às necessidades e ao impacto diferenciado das medi-
das de direitos humanos em relação aos grupos historicamente
excluídos ou de risco especial, tais como: (...) as pessoas traba-
lhadoras”22. Ainda, destacou que é fundamental:

Proteger os direitos humanos, particularmente os direitos econô-


micos, sociais, culturais e ambientais, das pessoas trabalhadoras
em maior situação de risco pela pandemia e suas consequências. É
importante tomar medidas que garantam renda econômica e meios
de subsistência a todas as pessoas trabalhadoras, de maneira que
tenham igualdade de condições para cumprir as medidas de conten-
ção e proteção durante a pandemia, assim como condições de acesso
à alimentação e outros direitos essenciais.23

Assim, outras medidas mais eficazes poderiam ter sido adota-


das para combater os efeitos econômicos da pandemia e, dessa
forma, preservar os direitos trabalhistas. Entre estas medidas,
destacam-se projetos de transferência de renda aos emprega-
dores, como aqueles adotados em países da Europa e do Reino
Unido. A Alemanha, por exemplo, anunciou, ainda em março
de 2020, um pacote que previa auxílios para autônomos e
pequenas empresas, garantia de empréstimos para companhias
com dívidas e fundos para compra de participações em empre-
sas problemáticas, bem como a complementação dos salários24.
Do mesmo modo, o Reino Unido injetou bilhões em ajuda
direta e subsídios para pequenas empresas25. Além destes, outros
exemplos poderiam ser citados como a Espanha, a Itália e até
mesmo os Estados Unidos26.
O Brasil não adotou as providências cabíveis para prote-
ger direitos sociais durante a pandemia, agravando uma crise

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:14


60 • Labirintos do labor

econômica que já existia. Pelo contrário, as medidas emprega-


das foram pretensamente direcionadas à proteção da economia,
mas não se mostraram eficazes exatamente porque sequer aten-
deram quem realmente produz e faz circular a riqueza. Não
conseguiram, por consequência, frear o aumento exponencial
do desemprego, que bateu recordes durante o primeiro ano da
pandemia, chegando a atingir mais de 13 (treze) milhões de
brasileiros em 202027. Antes, potencializaram os efeitos dele-
térios da crise sanitária.
A resposta do mundo jurídico para o absurdo contido na
MP 936 é a mobilização do próprio sistema de justiça. A Ação
Direta de Inconstitucionalidade 6.363/DF foi proposta pelo
partido Rede Sustentabilidade, em abril de 2020, com o argu-
mento de que a referida medida legislativa viola dispositivos
constitucionais ao permitir redução de jornada e salário, além
da possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, por
intermédio de acordo individual de trabalho.
A petição inicial refere que “a irredutibilidade salarial tem lugar
apenas mediante negociação coletiva e para garantir a manutenção
dos postos de trabalho, e não cabe em nenhuma outra hipótese”.
Ou seja, já parte do pressuposto de que é possível reduzir salário,
sem discutir propriamente o que isso implica, subjetiva e social-
mente, em um momento de crise sanitária aguda.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada com brevi-
dade ímpar, dividiu-se entre três teses, das quais a do Ministro
Alexandre de Moraes, que inaugurou divergência, restou acolhida.
O Ministro Alexandre de Moraes votou no sentido de indefe-
rir integralmente a cautelar, pois entendeu que, em razão do
momento excepcional da crise da Covid-19, lhe parecia “abso-
lutamente constitucional e razoável a possibilidade de acordo
individual escrito entre empregador e empregado, visando a
redução proporcional da jornada de trabalho e de salário”. O
voto foi acompanhado pela maioria dos demais ministros.

Livro 1.indb 11 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 61

Em 6 de julho de 2020, apenas três meses após a criação do


programa, a Medida Provisória (MP) 936 foi convertida na Lei
nº 14.020/20, trazendo modificações apenas quanto aos limites
salariais para realização do acordo individual.
Os três poderes da República, portanto, diante de uma
ordem constitucional literal, permitiram redução de salário
por acordo individual durante a pandemia. E a sociedade, por
sua vez, acolheu a medida. Em junho de 2020, cerca de 40%
das empresas brasileiras haviam reduzido proporcionalmente o
salário e a jornada28. No final de novembro do mesmo ano, esse
número já havia dobrado, aproximando-se de 95% a adesão pelas
empresas29. Apesar disso, a taxa de desemprego não diminuiu.
Segundo divulgado pelo IBGE em seus primeiros resultados
da PNAD da Covid-1930, em maio de 2020 a taxa de deso-
cupação variou entre 10,4% e 11,4%, o que foi considerado
“baixo e estável”31. Um ano depois, em maio de 2021, a mesma
pesquisa demonstrou que a taxa de desocupação de pessoas
com 14 anos ou mais de idade havia aumentado para absurdos
14,7%, o maior nível registrado desde 201232. Portanto, é inegá-
vel que o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e
da Renda não conseguiu, de fato, a manutenção do emprego e
tampouco da renda dos trabalhadores. A conversão da Medida
Provisória 936 na Lei nº 14.020/20 apenas deu continuidade
ao desmanche de direitos trabalhistas e ao movimento de esva-
ziamento de salários, contribuindo para precarizar ainda mais
as relações de trabalho.
A Covid-19 trouxe uma realidade na qual diversos países
precisaram fechar suas fronteiras, até mesmo decretar lockdown,
a fim de conter a propagação do vírus, acarretando impactos na
economia mundial. Consequentemente, as relações de trabalho
e a manutenção de empregos foram diretamente prejudicadas.
No Brasil, em um período no qual a sensação de desamparo se
alia ao medo de uma doença desconhecida e fatal, as “medidas

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62 • Labirintos do labor

para preservar o emprego e a renda” propostas pelo governo,


ao invés de fortalecer a proteção, acabam por aprofundar o
desmanche de seus direitos fundamentais, com base em uma
política claramente inconstitucional33.
Mais importante, porém, do que a ruptura com a ordem
jurídica representada pelo texto da MP 936, está a sua aceitação
pelos demais poderes da República e pela sociedade, gerando
consequências que tornaram ainda mais desafiador o período de
pandemia. Traduz-se, então, como uma política social de precari-
zação da maioria das pessoas, uma verdadeira aposta na alteração
(para pior) das condições materiais.
Segundo Mbembe, há uma brutalidade no capitalismo que
potencializa o terror que, de um modo ou de outro, sempre
esteve presente num mundo profundamente marcado por práti-
cas de “desperdício da vida humana”. As características desse
sistema, que aposta na acumulação e na competição, determi-
nam a naturalização da descartabilidade dos corpos. Esse é o
terror potencializado. A necropolítica é, portanto, essa gestão
social pela qual se “procura abolir a distinção entre os meios e
os fins”, tornando a morte “parte fundamental da vida”, a que
ninguém “se sente obrigado a responder”. Para ele, o motor da
necropolítica é o racismo, enquanto mecanismo de “destruição
organizada, o nome de uma economia sacrificial, cujo funcio-
namento requer que, por um lado, se reduza o valor da vida e,
por outro, se crie o hábito da perda” 34.
Impressiona o quanto essa constatação dialoga com o que
experimentamos no Brasil durante a pandemia. As manifesta-
ções públicas minimizando os efeitos da doença, enquanto covas
coletivas eram abertas para dar conta do número absurdo de
mortes diárias; a negação declarada à compra de vacinas; a comu-
nicação das mortes como números, fixando “médias móveis” e
apresentando gráficos, constituíram ao longo de dois anos uma
verdadeira tecnologia da naturalização do terror. A COVID-19

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Medida Provisória 936 e a necropolítica • 63

era o “inimigo comum” que justificava políticas de precariza-


ção que já estavam na agenda oficial muito antes da pandemia,
enquanto diariamente, por tantos e diferentes meios, negava-se
a fúria da realidade.

As consequências do esvaziamento do direito à irredutibilidade


salarial e à manutenção do emprego

O vírus da Covid-19 vitimou quase 2 (dois) milhões de


pessoas ao redor do mundo, apenas em seu primeiro ano, sendo
mais de 190 (cento e noventa) mil só no Brasil35. Em 2021,
apesar da esperança que a campanha de vacinação em nível
global parecia apresentar, o número de óbitos por Covid-19
não diminuiu: até dezembro do referido ano, mais de 3,5 (três
e meio) milhões de pessoas faleceram em decorrência do vírus36,
sendo mais de 400 (quatrocentas) mil no Brasil37. À vista disso,
se torna indispensável a discussão acerca do que significa,
concretamente, a perda do emprego ou a redução do salário
nesse contexto.
Quando da caracterização do surto da Covid-19 como uma
pandemia, inexistia vacina ou medicamento que pudesse deter
a contaminação. Desse modo, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) recomendou protocolos de higiene e saúde, a fim de
diminuir o número de infectados, bem como medidas de distan-
ciamento social. As diretrizes de distanciamento impuseram
diferentes cenários: o fechamento temporário de estabeleci-
mentos, como foi o caso dos comércios não-essenciais, com a
permanência dos empregados em casa; a diminuição do número
de pessoas no local de trabalho; a alteração compulsória das ativi-
dades presenciais para a modalidade de “home office” e mesmo a
exigência de trabalho excessivo para profissionais indispensáveis
à luta imediata contra a doença, como foi o caso dos profissio-
nais da área da saúde.

Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:32:14


64 • Labirintos do labor

Para as trabalhadoras ou trabalhadores não houve escolha. A


alternativa lhes foi imposta. Então, aliado ao medo de contrair
a doença e à angústia de viver com a possibilidade de conta-
minar um ente próximo, manter o emprego seguiu sendo uma
prioridade. Pior do que contaminar-se ou contaminar pessoas
próximas, era perder a fonte de sustento, através da qual mate-
rializam-se as possibilidades de sobrevivência física.
A gravidade da extinção do vínculo de emprego para quem
depende do trabalho assalariado para sobreviver é gigantesca, pois
implica, no limite, “perder a possibilidade de ser sujeito”38. Não
menos perversa é a diminuição de salários, visto que dentro da
realidade do capital, para a quase totalidade das pessoas os bens
indispensáveis só são obtidos por meio do salário que recebem em
troca da venda de sua força de trabalho. Então, a perspectiva de
perder o emprego se manifesta como um ato de violência direta.
Quando discorre sobre trabalho assalariado e capital, Marx
põe luz ao fato de que o salário “é apenas um nome especial
dado ao preço da força de trabalho, a que se costuma chamar
preço do trabalho; é apenas o nome dado ao preço dessa merca-
doria peculiar que só existe na carne e no sangue do homem”39.
Portanto, a essencialidade do salário vai muito além da garan-
tia da subsistência, uma vez que, para se ter uma vida saudável
e digna, depende-se dele.
A saúde, já compreendida como “um conjunto de condições
individuais e coletivas, influenciado e determinado por fatores
econômicos, políticos, ambientais e socioculturais”40, depende
de morar, se alimentar e vestir com decência, de ter acesso à
medicação, e também de ter um mínimo de previsibilidade e
segurança. Portanto, ser saudável não é apenas não ter doenças
ou enfermidades, mas também fruir bem estar físico e emocional.
A pandemia da Covid-19, por si só, já determinou maior preca-
rização das pessoas que vivem com salários baixos, já que “do
ponto de vista da saúde, as condições desfavoráveis de moradia

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Medida Provisória 936 e a necropolítica • 65

e habitação propiciam a disseminação de doenças respiratórias,


infecciosas e parasitárias”41.
Não são poucas as pesquisas que demonstram a relação entre
condições de habitação e os mais diversos tipos de doenças.
Apenas a título exemplificativo, podemos citar o caso da tuber-
culose: segundo um estudo do IBGE, em 2020 o número novo
casos de tuberculose entre a população negra e parda era de 60%,
em contraste com os apenas 30% entre a população branca42.
Quando em comparação ao ano de 2010, o número de novos
casos entre negros e pardos aumentou em quase 10%, enquanto
entre brancos essa porcentagem foi de diminuição. Nessa mesma
década, a quantidade de domicílios ocupados em aglomerados
subnormais43 quase dobrou, passando de 3,2 milhões para 5,1
milhão44. A conexão entre o aumento de domicílios em condi-
ções precárias e o eventual aumento de casos de tuberculose entre
a população negra, portanto, está intrinsecamente conectada.
Além disso, importa destacar que o estudo acima citado, a
respeito de aglomerados subnormais, foi publicado a fim de
fornecer informações para o enfrentamento da pandemia. Sobre
a conexão entre os aglomerados e o coronavírus:

Nos Aglomerados Subnormais, residem, em geral, populações com


condições socioeconômicas, de saneamento e de moradia mais
precárias. Como agravante, muitos Aglomerados Subnormais
possuem uma densidade de edificações extremamente elevada, o
que dificulta o isolamento social e pode facilitar a disseminação do
COVID-19. (grifos originais)

Isso sem mencionar a necessidade de deslocamento ao traba-


lho, geralmente em transporte público, e a falta de recursos
para a compra de máscaras de proteção adequadas e álcool gel.
Até mesmo o simples ato de lavar as mãos ou tomar banho ao
chegar em casa, uma das medidas de proteção indicadas, pode

Livro 1.indb 16 24/10/2022 09:32:14


66 • Labirintos do labor

ser impensável para quem sequer tem acesso à água encanada e


saneamento básico. Essas pessoas, que antes do advento da pande-
mia já viviam um cenário de vulnerabilidade, veem sua situação
levada ao extremo da marginalização, com possibilidades cada
vez menores de garantir a proteção de si e de seus familiares.
Nesse contexto, a criação de um programa que permite a redu-
ção de salário e a suspensão do contrato de trabalho, durante
a maior crise sanitária do último século, é manifestamente um
projeto de necropolítica. Ainda segundo Mbembe, ao analisar
as experiências coloniais na modernidade tardia, como o caso
do apartheid na África do Sul e da ocupação contemporânea da
Palestina, “a soberania é a capacidade de definir quem importa
e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é”45.
Portanto, necropolítica

(...) pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em


grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver
e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os
limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a sobe-
rania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a
implantação e manifestação de poder. (grifo próprio)

Não é a pandemia da Covid-19 que inaugura no Brasil a lógica


da necropolítica. A “justificação da morte em nomes dos riscos à
economia e à segurança” como “fundamento ético”46 do Estado
é algo estrutural no Brasil. Tem direta relação com os quase 400
anos de escravização institucionalizada e se reflete na forma como
o Estado trata parte do seu povo, notadamente pessoas pobres,
periféricas e não-brancas. A pandemia apenas agrava essa situa-
ção, em razão não de sua realidade sanitária, mas especialmente
pelas escolhas políticas adotadas diante da crise.
A Medida Provisória 936, responsável pela criação do Programa
Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, é talvez

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Medida Provisória 936 e a necropolítica • 67

o exemplo mais emblemático da necropolítica. Ou seja, de uma


ação do governo para fragilizar as condições de vida da popu-
lação, em um momento no qual já estão todos fragilizados pelo
adoecimento e morte de um absurdo número de pessoas. O
próprio nome já constitui uma espécie de engano deliberado. O
Programa Emergencial “de Manutenção do Emprego e da Renda”
reduz renda e não impede a perda do emprego. Foi criado com
objetivo, dentre outros, de “reduzir o impacto social decorrente
das consequências do estado de calamidade pública e de emergên-
cia de saúde pública”. O que promove, porém, é uma redução de
consumo no país, como resultado direto das possibilidades trazi-
das pelo Programa, quais sejam, a de redução de salários e a de
suspensão temporária de contratos de trabalho. Em ambos os
casos, há diminuição no ganho mensal, afetando diretamente o
poder de compra e de consumo por parte das trabalhadoras e dos
trabalhadores.
O final de 2019 registrou uma média de 11,9 milhões de
pessoas desempregadas no país47. Em março de 2021, em parte
como resultado das medidas adotadas pelo governo, esse número
já era de 14,9 milhões, o que totalizou um aumento de 3 milhões
no contingente de desempregados apenas durante o primeiro ano
de pandemia48. Isso porque, dentre outros motivos, a maioria das
empresas que aderiu às medidas de redução de salário ainda assim
despediu, até mesmo aquelas que apoiaram o lançamento do mani-
festo “Não demita” do início da pandemia49.
Nas sociedades capitalistas, o consumo é o que movimenta a
economia: quanto mais renda, mais as pessoas consomem e, conse-
quentemente, há maior circulação de dinheiro. O número de
pessoas assalariadas é, então, fundamental para o crescimento da
economia de um país. Desse modo, torna-se evidente que a opção
política de permitir a redução de salários e a suspensão de contra-
tos vai na contramão do que era seu objetivo, isto é, o de garantir
a “manutenção do emprego e da renda”. Isso porque para assegurar

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:14


68 • Labirintos do labor

a manutenção do emprego e da renda, bem como a movimenta-


ção do consumo e da economia, diversas outras medidas seriam
mais indicadas, como a transferência de renda aos empregadores,
distribuição de auxílios para pequenas empresas e complementa-
ção adequada de renda aos empregados. A adoção dessas medidas
poderia ter, inclusive, agido de forma a prevenir o avanço do vírus,
posto que incentivaria o cumprimento do distanciamento social
e diminuiria a necessidade de saídas para trabalhar ou até mesmo
procurar emprego50.
O ponto aqui é que sequer se trata de uma política de fragiliza-
ção dos laços sociais, de modo a viabilizar alternativas autoritárias
de poder. Trata-se de uma gestão para a morte que estrutura desde
sempre o Estado brasileiro, mas que se desvela simbólica e violenta-
mente no momento de maior instabilidade social e emocional que
vivemos nos últimos temos. Uma gestão na qual “o desejo é pela
eliminação sistemática daqueles corpos que poluem a pureza de uma
nação imaginada”, que é “branca, racional, cristã, heterossexual”51.
O autoritarismo (ou fascismo, como demonstram alguns auto-
res ) apresenta-se não como resultado da fragilização desses laços,
52

mas como a política que nos conduz à naturalização da morte, em


uma gestão que recalca a ideia de que não há espaço para os corpos
que não correspondem a esse padrão idealizado.
A possibilidade de que se discuta e chancele politicamente redu-
ção de salário em plena pandemia (e aqui pouco importa se por
meio de acordo individual ou coletivo) explicita algo que, embora
esteja presente em nossa história desde o genocídio dos povos origi-
nários, ganha novos contornos, porque revela a superficialidade e
a fragilidade de toda a teoria e prática dos direitos humanos, toda
a retórica da civilidade democrática supostamente conquistada ao
longo dos últimos séculos.
Retornamos de onde nunca saímos: de um Estado que não
apenas deixa morrer53, mas constrói mecanismos de destruição
sistemática dos corpos. Um Estado que escolhe matar. Algo que,

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 69

no limite, compromete a ideia mesma de sociedade em que apos-


tamos ao nos acomodarmos às exigências da vida numa realidade
capitalista. É claro que o acolhimento social, sem espanto ou indig-
nação, de regras como aquelas da MP 936, também evidencia o
comprometimento da subjetividade de quem sofre os efeitos da
necropolítica, e que acaba por assimilar como naturais (e repro-
duzir) escolhas arbitrárias que promovem sofrimento.

Conclusão

Não se discute a essencialidade do salário para a vida de


quem trabalha, uma vez que é apenas através do dinheiro, em
uma realidade capitalista, que é possível atender às necessida-
des vitais. Também não se questiona o fato de que construímos
uma ordem jurídica que garante salário como direito funda-
mental. Nada disso, porém, foi suficiente para impedir que em
plena pandemia se discutisse, aprovasse, transformasse em lei
e utilizasse em larga escala uma regra que retira as condições
materiais de subsistência justamente no momento de maior
fragilidade, medo e necessidade de amparo.
A chegada da Covid-19, uma doença desconhecida e, por
vezes, fatal, alterou profundamente a estrutura de vida das
pessoas, o seu cotidiano, o seu trabalho e o seu modo de vida
como um todo e causou transtornos na economia e, em especial,
no mundo do trabalho. Fez com que estabelecimentos fossem
fechados temporariamente, principalmente no ramo comercial,
a fim de garantir o distanciamento social e, dessa forma, dimi-
nuir a disseminação do vírus. Nesse cenário trágico, em lugar
de proteger a vida, o governo brasileiro optou por implementar
uma medida para “não deixar a economia parar”. O legislativo
imediatamente a transformou em lei e o Judiciário declarou sua
constitucionalidade. Muitas empresas a utilizaram e, ainda assim,
despediram. Trata-se de Medida Provisória 936, responsável por

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:32:14


70 • Labirintos do labor

instituir o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego


e da Renda, aqui eleita como exemplo emblemático de uma
política de morte.
A perda do emprego ou a redução de salários durante a pande-
mia significa concretamente colocar em risco a sobrevivência.
Há relação intrínseca entre continuar trabalhando e arriscar-
-se a contrair o vírus, já que apenas uma parcela privilegiada
da população teve acesso ao home-office, podendo trabalhar
de seus lares, o que já implica medo, instabilidade emocional e,
pois, consequências psíquicas. A maioria das pessoas que traba-
lham utiliza transporte coletivo para ter acesso aos seus locais
de trabalho, que, por sua vez, tendem a ser ambientes de gran-
des aglomerações, tanto o meio de transporte como o local da
prestação de serviços. A realidade opressora que já se expressa
na troca entre capital e trabalho como condição para sobrevi-
vência, ganha, pois, uma potência destrutiva com a pandemia.
A pandemia escancarou as desigualdades sociais, revelando
o quanto a precariedade material representa maior exposição à
letalidade do vírus, o que se dá sobretudo entre a parcela pobre
e não-branca do povo brasileiro. A essa potência destruidora
somou-se outra, representada por uma política que escolheu
expor ainda mais esses corpos, promovendo um verdadeiro
genocídio. O Brasil é responsável por mais de 11% dos casos
de morte por COVID-19 no mundo, segundo a Fiocruz.
Compreender o que simbolicamente representa essa necro-
política é o primeiro passo para mudanças estruturais que
retirem o Brasil do moto-contínuo de produção de miséria,
exclusão e sofrimento social. É importante, inclusive, enten-
der nossa participação nessa anestesia diante de um sistema
que atinge tal nível de perversidade. Essa é tarefa para outros
escritos. Aqui, deixamos nossa compreensão de que medidas
como a MP 936 expõem uma lógica genocida que permeia a
constituição do que somos como sociedade, tornando urgente

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 71

alterações estruturais que engendrem uma outra sociabilidade,


fundada na vida (e não na morte) como valor essencial.

Notas
1
Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.
São Paulo: Editora Elefante, 2017. p. 125.
2
Marx, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 787.
3
Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri.
Boitempo Editorial, 2008. p. 81-82.
4
Marx, Karl. Obras Escolhidas de Marx e Engels: trabalho assalariado e capi-
tal. Trad. do alemão. Editorial Avante, 1982. p. 151.
5
Marx, Karl. Op. Cit. 2008. p. 83.
6
Marx, Karl. Obras Escolhidas de Marx e Engels: trabalho assalariado e capi-
tal. Trad. do alemão. Editorial Avante, 1982. p. 150.
7
Severo, Valdete Souto. Elementos para o uso transgressor do direito do traba-
lho. São Paulo: LTR, 2016, p. 70.
8
Caetano, Vanessa de Oliveira. O negociado sobre o legislado: uma via
para a modernização ou para a precarização do trabalho? Disponível em:
https://www.hseditora.com.br/acervo/doutrina/view/265 . Acesso em: 26
jan. 2022.
9
Severo, Valdete Souto. Op. Cit, 2016. p. 53.
10
Organização Pan-Americana Da Saúde (OPAS). Histórico da pandemia
de COVID-19. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19/histo-
rico-da-pandemia-covid-19 . Acesso em: 30 nov. 2021.
11
Segundo o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), uma Emergência
de Saúde Pública de Importância Internacional é “um evento extraordi-
nário que, nos termos do presente Regulamento, é determinado como: (i)
constituindo um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à
propagação internacional de doença e (ii) potencialmente exigindo uma
resposta internacional coordenada;” (p. 14-15). Disponível em: https://
www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/paf/regulamento-sanitario-internacio-
nal/arquivos/7181json-file-1 . Acesso em: 30 nov. 2021.
12
Congresso Nacional. Decreto Legislativo nº 6. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm . Acesso em
30 nov. 2021.

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:14


72 • Labirintos do labor

13
Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar uma ação do
PDT (Partido Democrático Trabalhista) contra medida provisória editada
pelo presidente Jair Bolsonaro, que visava concentrar no governo federal
o poder de editar normas sobre temas relacionados à pandemia, decidiu
que estados e municípios têm poder para definir regras sobre isolamento.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/15/maio-
ria-do-supremo-vota-a-favor-de-que-estados-e-municipios-editem-nor-
mas-sobre-isolamento.ghtml . Acesso em: 01 dez. 2021.
14
Informação disponível em: https://covid.saude.gov.br/ . Acesso em:
30 nov. 2021.
15
Brasil. Medida Provisória 936, de 01 de abril de 2020. Institui o
Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe
sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado
de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20
de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº
13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá outras providências. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/
mpv936.htm . Acesso em: 30 nov. 2021.
16
Dorneles, Leandro do Amaral Dorneles de; Jahn, Vitor Kaiser.
Pandemia de Covid-19: assistematicidade da negociação individual
como política de gerenciamento da crise. Rev. TST, São Paulo, v. 86, n.
2, abr/jun 2020, p. 141-157.
17
Art. 503 - É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente
comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa,
proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto,
ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer
caso, o salário mínimo da região.
18
Severo, Valdete Souto. A perda do emprego no Brasil: notas para uma
teoria crítica e para uma prática transformadora. Porto Alegre: Sulina,
2021, p. 9.
19
Óbitos de COVID-19 por data de notificação. Informação disponível
em: https://covid.saude.gov.br/ . Acesso em: 02 dez. 2021.
20
Ibidem, p. 152.
21
Comisión Interamericana De Derechos Humanos (CIDH). Pandemia y
derechos humano em las Américas: Resolución 1/2020. Disponível em:
https://oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf . Acesso
em: 01 dez. 2021.

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 73
22
Comisión Interamericana De Derechos Humanos (CIDH). Pandemia y dere-
chos humano em las Américas: Resolución 1/2020. Tradução própria, do
original: “prestar especial atención a las necesidades y al impacto diferenciado
de dichas medidas en los derechos humanos de los grupos históricamente
excluidos o en especial riesgo, tales como: (...) personas trabajadoras” (p. 7).
Disponível em: https://oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf
. Acesso em: 01 dez. 2021.
23
Comisión Interamericana De Derechos Humanos (CIDH). Pandemia
y derechos humano em las Américas: Resolución 1/2020. Tradução
própria, do original: “Proteger los derechos humanos, y particularmente
los DESCA, de las personas trabajadoras en mayor situación de riesgo
por la pandemia y sus consecuencias. Es importante tomar medidas que
velen por asegurar ingresos económicos y medios de subsistencia de todas
las personas trabajadoras, de manera que tengan igualdad de condiciones
para cumplir las medidas de contención y protección durante la pande-
mia, así como condiciones de acceso a la alimentación y otros derechos
esenciales.” (p. 10). Disponível em: https://oas.org/es/cidh/decisiones/
pdf/Resolucion-1-20-es.pdf . Acesso em: 01 dez. 2021.
24
Importa ressaltar que a Alemanha mantém uma estrita política fiscal
que prevê orçamentos equilibrados, portanto as medidas adotadas foram
excepcionais. Como a Alemanha enfrenta o impacto econômico da
pandemia. Made for Minds, 2020. Disponível em: https://www.dw.com/
pt-br/como-a-alemanha-est%C3%A1-enfrentando-o-impacto-econ%-
C3%B4mico-da-pandemia/a-52893429 . Acesso em: 14 fev. 2022.
25
Barría, Cecília. Coronavírus: o que as grandes economias do mundo
estão fazendo para evitar falências e a falta de dinheiro. BBC News Brasil,
2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacio-
nal-51983863 . Acesso em: 14 fev. 2022.
26
Veja medidas políticas e econômicas de países em resposta à pande-
mia. Agência Brasil, 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.
com.br/internacional/noticia/2020-03/veja-medidas-politicas-e-eco-
nomicas-de-paises-em-resposta-pandemia . Acesso em: 14 fev. 2022.
27
Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios), “a taxa
média anual de desemprego no Brasil foi de 13,5% em 2020, a maior já regis-
trada desde o início da série histórica em 2012”. Desemprego bate recorde
no Brasil em 2020 e atinge 13,4 milhões de pessoas. UOL Economia, 2021.
Disponível em: https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/
redacao/2021/02/26/desemprego---pnad-continua---dezembro-2020.
htm?cmpid=copiaecola . Acesso em: 02 dez. 2021.

Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:14


74 • Labirintos do labor

28
Quase 40% das empresas brasileiras reduziram salários e jornadas de
trabalho. Jornal Edição do Brasil, 2020. Disponível em: http://edicaodo-
brasil.com.br/2020/06/19/quase-40-das-empresas-brasileiras-reduziram-
-salarios-e-jornadas-de-trabalho/ . Acesso em: 21 fev. 2022.
29
Quase 95% das empresas no Brasil adotaram redução salarial para contornar
crise. CNN Brasil, 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/busi-
ness/quase-95-das-empresas-no-brasil-adotaram-reducao-salarial-para-
-contornar-crise/ . Acesso em: 21 fev. 2022.
30
PNAD-Covid é a versão da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua do IBGE que pretende monitorar as transforma-
ções ocorridas no mercado de trabalho brasileiro durante a pandemia da
Covid-19.
31
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Carta de conjuntura:
PNAD Covid. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/
stories/PDFs/cc47_nt_pnad.pdf . Acesso em: 21 fev. 2022.
32
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD Contínua.
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/
9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.
html?edicao=31251&t=destaques . Acesso em: 21 fev. 2022.
33
Severo, Valdete Souto. A perda do emprego no Brasil: notas para uma
teoria crítica e para uma prática transformadora. Porto Alegre: Sulina, 2021,
p. 151.
34
Mbembe, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona Editores,
2017, pp. 59-65.
35
El País Brasil. “Em 2020, 1,8 milhão de vidas levadas pela covid-19. Em
2021, a esperança da vacina”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
sociedad/2020-12-31/em-2020-18-milhao-de-vidas-levadas-pela-covid-
-19-em-2021-a-esperanca-da-vacina.html . Acesso em: 08 mar. 2022.
36
Mundo teve 198 milhões de casos de covid-19 em 2021. Poder 360,
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mundo-teve-198-milhoes-de-casos-de-covid-19-em-2021-dw/ . Acesso
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37
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UOL Notícias, 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ulti-
mas-noticias/redacao/2022/01/17/dia-mais-letal-da-pandemia-no-pais-te-
ve-mais-mortes-que-dezembro-de-2021.htm . Acesso em: 09 mar. 2022.
38
Severo, Valdete Souto. A perda do emprego no Brasil: notas para uma teoria
crítica e para uma prática transformadora. Porto Alegre: Sulina, 2021, p. 19.
39
Marx, Karl. Obras escolhidas de Marx e Engels. Trabalho assalariado e
capital. Traduzido do alemão. Editorial Avante, 1982.

Livro 1.indb 25 24/10/2022 09:32:14


Medida Provisória 936 e a necropolítica • 75
40
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
Racismo como determinante social de saúde. Brasília, 2011.
41
Lopes, Fernanda. Para além da barreira dos números: desigualdades
raciais e saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, set-out 2005, p. 1597.
42
Dados Epidemiológicos da Tuberculose no Brasil. Secretaria da
Vigilância em Saúde (Ministério da Saúde). Maio, 2021.
43
Segundo conceito do IBGE, os “aglomerados subnormais” são formas
de ocupação irregular para fins de habitação em áreas urbanas, conheci-
dos no Brasil como favelas, comunidades, loteamentos, etc, a depender
das características territoriais de cada região.
44
Aglomerados Subnormais 2019: classificação preliminar e informa-
ções de saúde para o enfrentamento à COVID-19. Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), 2020. Disponível em: https://biblio-
teca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_apresentacao.pdf .
Acesso em: 07 mar. 2022.
45
Mbembe, Achille. Necropolítica. Revista do Programa de Pós-graduação
em Artes Visuais EBA/UFRJ, nº 32, dez-2016, p. 135.
46
Almeida, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte:
Letramento, 2018, p. 96.
47
“Taxa de desemprego cai no país e fecha 2019 em 11,9%”. Agência
Brasil, 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/econo-
mia/noticia/2020-01/taxa-de-desemprego-no-pais-fecha-2019-em-119 .
Acesso em: 12 abr. 2022.
48
PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua. IBGE, 2021. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatis-
ticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domici-
lios-continua-mensal.html?edicao=30786&t=destaques . Acesso em:
12 abr. 2022.
49
“Bancos são condenados por quebrar promessa de não demitir na
pandemia.” JOTA, 2021. Disponível em: https://www.jota.info/tributos-
-e-empresas/trabalho/bancos-sao-condenados-por-quebrar-promessa-de-
-nao-demitir-na-pandemia-04102021 . Acesso em: 20 abr. 2022.
50
BARBOSA, Rogério Jerônimo; PRATES, Ian. Efeitos do desemprego,
do Auxílio Emergencial e do Programa Emergencial de Preservação do
Emprego e da Renda (MP 936) sobre a renda, a pobreza e a desigualdade
durante e depois da pandemia. Disponível em: https://papers.ssrn.com/
sol3/papers.cfm?abstract_id=3630693 . Acesso em: 21 abr. 2022.
51
Bento, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-
nação? Disponível em https://berenicebento.com/2022/05/necro-
biopoder-quem-pode-habitar-o-estado-nacao-2/ . Acesso em: 23 jul. 2022.

Livro 1.indb 26 24/10/2022 09:32:14


76 • Labirintos do labor

52
Safatle, Vladimir, Silva Junior, Nelson da, Dunker, Christian (Orgs).
Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica,
2021.
53
Como observa Foucault em: Foucault, Michel. Em defesa da sociedade.
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Tese (Doutorado)

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-por-quebrar-promessa-de-nao-demitir-na-pandemia-04102021

https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/tres-em-cada-
-quatro-consumidores-vao-manter-reducao-no-consumo-no-pos-pande-
mia/

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_apresentacao.pdf

https://www.dw.com/pt-br/como-a-alemanha-est%C3%A1-enfrentando-o-
-impacto-econ%C3%B4mico-da-pandemia/a-52893429

Livro 1.indb 30 24/10/2022 09:32:14


80 • Labirintos do labor

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cao/2021/02/26/desemprego---pnad-continua---dezembro-2020.htm?cmpi-
d=copiaecola

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-letal-da-pandemia-no-pais-teve-mais-mortes-que-dezembro-de-2021.htm
https://www.poder360.com.br/coronavirus/mundo-teve-198-milhoes-de-ca-
sos-de-covid-19-em-2021-dw/

https://www.cnnbrasil.com.br/business/quase-95-das-empresas-no-brasil-a-
dotaram-reducao-salarial-para-contornar-crise/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-01/taxa-de-desem-
prego-no-pais-fecha-2019-em-119

https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-03/veja-medi-
das-politicas-e-economicas-de-paises-em-resposta-pandemia

http://edicaodobrasil.com.br/2020/06/19/quase-40-das-empresas-brasileiras-
-reduziram-salarios-e-jornadas-de-trabalho/

https://brasil.elpais.com/sociedad/2020-12-31/em-2020-18-milhao-de-vidas-
-levadas-pela-covid-19-em-2021-a-esperanca-da-vacina.html

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-03/total-de-fami-
lias-com-contas-atrasadas-e-o-maior-em-12-anos-diz-cnc

Livro 1.indb 31 24/10/2022 09:32:14


Relações sociais de trabalho entre
motoristas e a empresa uber

Fábio Cannas
3
O
presente artigo buscou identificar as características das
relações sociais de trabalho influenciadas pelo uso de
Tecnologias Digitais entre trabalhadores motoristas e a
empresa Uber. Essas relações podem constituir-se como pilares das
transformações em curso no mundo do trabalho, influenciando
não apenas o setor de transporte de passageiros por aplicativo,
mas diversos outros segmentos a partir do setor de serviços na era
digital. Ao longo da pesquisa identificou-se quatro diferentes situ-
ações que nos possibilitaram caracterizar distintas relações sociais
entre os motoristas e a Uber. Em algumas situações identificamos
formas clássicas de assalariamento, demonstrando que a atividade
da Uber se realiza na esfera da produção. Isso faz o trabalho do
motorista da Uber um trabalho produtivo, pois ele produz um
valor excedente ao valor de sua força de trabalho, excedente que é
apropriado por uma, ou várias empresas capitalistas.

A (des)regulamentação como princípio da Uber

O aparato legal que regulamenta o serviço de transporte indi-


vidual de passageiros por aplicativo no Brasil, não trata de forma
expressa a relação social que se estabelece entre os motoristas e
as empresas. Tanto a legislação federal quanto as regulamenta-
ções municipais apresentam em seus textos definições distintas

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:14


82 • Labirintos do labor

em relação aos motoristas, as empresas e as atividades entre as


chamadas “operadoras” e os motoristas. A variação de nomencla-
tura parece ocorrer de modo orquestrado, para confundir tanto os
legisladores, quanto os órgãos de fiscalização, controle, proteção
e garantia de direitos dos trabalhadores. Quanto maior a proli-
feração de conceitos e terminologias, mais submersas ficam as
grandes companhias tecnológicas em seu habitat da desregula-
mentação, ou de uma regulamentação que atende e protege seus
interesses. Segundo Scholz:

Turbinadas pela velocidade da internet, as relações de trabalho e as


estruturas comerciais, em especial no setor de serviço, mudam com
velocidade, em um vórtice que confunde quem legisla, quem traba-
lha e quem consome. A simplicidade no acesso, que em um primeiro
olhar pode ser entendida como democratização do consumo, se
fundamenta, em muitos casos, em precarização absoluta de condi-
ções de trabalho e desregulamentação total, o que inclui elisão de
impostos e falta de mecanismos mínimos de segurança social. (Scholz,
2017, p. 10).

Para além da desregulamentação como princípio desse setor


de serviços, no seu encalço as relações de trabalho são direta-
mente afetadas. O cenário em que se insere o trabalhador torna-se
precarizado e desprotegido onde, conforme Scholz (2017), “as
plataformas de trabalho virtuais dependem de vidas humanas
exploradas em toda sua cadeia de fornecimento global”. Nesse
sentido, uma exploração que perpassa não apenas o trabalhador
do hardware, mas também os trabalhadores do software.
As relações de trabalho nesse cenário ganham uma fluidez muito
diferente do modelo tradicional do último século, com a segurança
simbólica do chão da fábrica, do convívio com os colegas de traba-
lho, do contrato de trabalho, do limite de jornada, do descanso
semanal, das férias e do trabalho protegido. Plataformas virtuais

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:14


Os motoristas e a empresa uber • 83

oferecem oportunidades de ganhar um dinheiro dito “fácil”, com


a possibilidade de controlar seu próprio horário, sem chefe e aces-
sível em poucos toques no celular. Esse pelo menos é o mantra que
tem seduzido milhões de pessoas, seja pela necessidade de comple-
mentar a renda, seja pala necessidade imposta pelo desemprego.
Em relação a como dirigir para a Uber, a pesquisa na internet
feita no buscador da Google, direciona para a opção1 de endereço
eletrônico com o seguinte enunciado: “dirija com a Uber / seja
seu próprio chefe / conquiste seu sonho”. Após o acesso ao site,
a chamada é “cadastre-se agora”, solicitando informações iniciais
bastante simples como nome, e-mail e celular. Mas, em letras
miúdas na parte inferior da tela, a seguinte mensagem aparece: “ao
continuar, eu concordo com os Termos de Uso da Uber e confirmo
que li a Política de Privacidade”. Ao acessar e usar os serviços o
“motorista parceiro” concorda com os presentes termos e condições,
que estabelecem o relacionamento contratual entre o motorista e
a Uber. Segundo o termo:

A Uber poderá alterar os Termos relativos aos Serviços a qualquer


momento. Aditamentos entrarão em vigor quando a Uber fizer a
postagem da versão atualizada dos Termos neste local ou das condi-
ções atualizadas ou Termos adicionais sobre o respectivo Serviço.
O fato de você continuar a acessar ou usar os Serviços após essa
postagem representa seu consentimento em vincular-se aos Termos
alterados. (Uber, 2022).

A respeito da concordância com o Termo de Uso, buscou-se


explorar alguns aspectos de seu conteúdo. O documento utili-
zado pela Uber está exposto em aproximadamente 10 páginas e
estruturado em sete itens: “1. Relacionamento Contratual; 2. Os
Serviços; 3. O uso dos serviços; 4. Pagamento; 5. Limitação de
responsabilidade; 6. Jurisdição; 7. Outras disposições”. Alguns dos
itens contribuem para explicitar, segundo a Uber, qual relação

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:14


84 • Labirintos do labor

possuem com os motoristas, e outros, nos auxiliam a desvendar se


é possível ou não que algumas relações estejam sendo acobertadas.
No item 1, a Uber diz que o presente documento rege o acesso
dos motoristas, enquanto pessoa física, aos serviços disponibili-
zados pela empresa Uber do Brasil Tecnologia Ltda, no entanto,
fica explícito que existe um relacionamento contratual entre
ambos. A Uber ainda inclui no texto que “Termos adicionais
poderão se aplicar a determinados Serviços”, tais como “condi-
ções para um evento, atividade ou promoção em particular”. Em
suma, a empresa afirma que poderá alterar a qualquer momento
o Termo, e o consentimento do motorista é dado pela continu-
ação da utilização do aplicativo.
Sobre os “serviços” e o “uso dos serviços” mencionados nos
itens 2 e 3 respectivamente, a Uber afirma que são parte de uma
plataforma tecnológica em que “usuários” de um lado, acessam
“motoristas parceiros” de outro, para providenciar ou programar
serviços de transportes. A Uber ainda deixa expresso no texto
direcionado aos motoristas:

Você reconhece que a Uber não é fornecedora de bens, não presta


serviços de transporte ou logística, nem funciona como transporta-
dora, e que todos esses serviços de transporte e logística são prestados
por prestadores terceiros independentes que não são empregados
e nem representantes da Uber, nem de qualquer de suas afiliadas.
(Uber, 2022).

O conteúdo do termo tem o objetivo de deixar claro que a


Uber apenas fornece o serviço de tecnologia para o acesso ao
transporte, nada mais. Com isso, a empresa utiliza o estatuto de
uma “licença” concedida ao “motorista parceiro” para utilização
de seus serviços. Os serviços e todos os direitos são exclusivamente
de propriedade da Uber. Ao motorista cabe apenas a possibili-
dade de uso da plataforma e dos serviços que ela disponibiliza.

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 85

O termo, de modo muito expresso, afirma que “o uso dos servi-


ços não lhe outorga nem lhe confere qualquer direito”. Portanto,
os serviços, segundo a Uber, integram uma plataforma de tecno-
logia que permite aos usuários de aplicativos móveis, fornecidos
como parte dos serviços da Uber, unicamente providenciar e
programar serviços de transporte.
A Uber reforça que para utilizar todos os seus serviços, o moto-
rista deve estar devidamente registrado e manter uma conta pessoal
de usuário de serviços, denominada simplesmente “conta”, para
realizar o transporte de passageiros e outras atividades na plataforma.
O registro de conta exige que o motorista apresente à Uber algu-
mas informações pessoais, como seu nome, endereço, número de
telefone celular e idade, e ao menos uma forma de receber seu paga-
mento, como cartão de crédito ou plataforma digital tipo PayPal.
Ainda sobre os itens relacionados aos “serviços”, a Uber trata
do tema de “conteúdos fornecidos pelos usuários”. Esses conte-
údos são as informações estratégicas utilizadas pela empresa para
orientar seus serviços como perfil dos usuários, corridas reali-
zadas, distâncias percorridas, valores e tempo de duração das
viagens, georreferenciamento, entre outros. No termo de uso, a
Uber diz que essas informações são de propriedade dos moto-
ristas, mas que automaticamente podem ser repassadas à Uber.
E quando isso ocorrer:

Ao fornecer Conteúdo de Usuário(a) para a Uber, você outorga a


Uber e suas afiliadas uma licença em nível mundial, perpétua, irre-
vogável, transferível, isenta de royalties, e com direito a sublicenciar,
usar, copiar, modificar, criar obras derivadas, distribuir, publicar,
exibir, executar em público e, de qualquer outro modo, explorar esse
Conteúdo de Usuário(a) em todos os formatos e canais de distribuição
hoje conhecidos ou desenvolvidos no futuro (inclusive em conexão
com os Serviços e com os negócios da Uber e em sites e Serviços de
terceiros), sem ulterior aviso a você ou seu consentimento, e sem

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:15


86 • Labirintos do labor

necessidade de pagamento a você ou a qualquer outra pessoa ou enti-


dade. (Uber, 2022).

A questão das informações ou “conteúdos de usuários”, como


é denominada pela Uber, parece tema relevante. As expressões
utilizadas no termo como “outorga em nível mundial”, “perpétua”,
“irrevogável”, entre outros, dão conta de que é muito valioso para
a Uber esse tipo de informação. Uma última observação sobre o
Termo de Uso da Uber é que em momento algum ela utiliza a
nomenclatura “motorista” ou mesmo “motorista parceiro”, como
aparece nos anúncios e informativos em seu site. O Termo de Uso
utiliza exclusivamente a denominação “Prestador Terceiro”, como
no seguinte exemplo: “você será responsável pelos custos de repa-
ros a danos ou pela limpeza de veículos de Prestadores Terceiros
resultantes do uso dos serviços através da sua conta”. Portanto, a
empresa utiliza termos como “você”, “veículo” e “Prestador Terceiro”,
mas em momento algum fazendo referência a algum “motorista”.
Sobre a forma de remuneração, no início de sua operação no
Brasil, a Uber remunerava seus motoristas entre 75% e 80% do
valor da corrida, portanto, ficando com percentuais entre 20% e
25% do total. Estes percentuais eram fixos e informados previa-
mente aos motoristas. Em 2018, a empresa passou a adotar uma
nova fórmula que leva em consideração a distância e o tempo
percorrido, com percentuais variáveis. Segundo a Uber, em repor-
tagem do portal IG:

O motorista que fizer uma viagem distante, mas em um curto espaço


de tempo, receberá uma porcentagem menor. Entretanto, se o cola-
borador do app ficar preso no congestionamento por muito tempo,
ele receberá uma parte maior do valor da corrida. Segundo a empresa,
é até possível que a Uber fique somente com 1% do valor, depen-
dendo da corrida. Além disso, a empresa também disse que manterá
a cobrança de preço mínimo das corridas e o “multiplicador de preço

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 87

dinâmico”, responsável por elevar os valores das corridas com a alta


da demanda de passageiros. (IG, 2018).

A adoção de uma base de cálculo sobre elementos variáveis


pode parecer confusa para os motoristas, mas a Uber, em seu
site , diz que “é fácil calcular os seus ganhos, você recebe um
preço base por viagem, somado a um valor por tempo e distân-
cia, além de outros valores como pedágios, preço dinâmico e
promoções”. Somando-se ao fato de que o preço base e os valo-
res por tempo e distância podem variar de cidade para cidade.
Nesse sentido, talvez seja “fácil” para a empresa calcular seus
ganhos, não para os motoristas.
A Uber ainda determina que o preço total pela realização
do serviço deve ser pago imediatamente após a prestação do
serviço e o pagamento será facilitado pela empresa mediante
o método de pagamento indicado na “conta” do motorista.
Posteriormente, a Uber enviará um recibo por e-mail e caso
a forma de pagamento indicada na “conta” tenha expirado, o
motorista deverá concordar que a Uber e, na condição de agente
de cobrança do Prestador Terceiro, usará um modo alternativo
de cobrança na “conta”.
Ainda em seu Termo de Uso, fica expresso que na relação
entre o motorista e a empresa, “a Uber reserva-se o direito de
estabelecer, remover e/ou revisar o preço relativo a todos os servi-
ços ou bens obtidos por meio do uso dos serviços a qualquer
momento, a critério exclusivo da Uber” (Uber, 2022). Portanto,
a definição de um percentual como forma de “pagamento” dos
motoristas a Uber, é, na verdade, um conjunto de incertezas.
Para que tenhamos algum parâmetro de remuneração, embora
eles sejam muito variados, a matéria divulgada pelo portal do
jornal paulista Estadão (Passerini; Barbieri; Rezende, [s.d.]) nos
revela informações de dois motoristas da cidade de São Paulo:

Livro 1.indb 7 24/10/2022 09:32:15


88 • Labirintos do labor

Foi justamente a falta de oportunidades no mercado de trabalho


que fez o engenheiro DA de 26 anos, entrar para a rede de motoris-
tas do Uber. Com o aplicativo, consegue em média R$ 200 por dia,
se dirigir por uma jornada de oito horas. Já são três meses rodando
em São Paulo. “É hoje praticamente toda a minha renda.” DA, que
trabalhou por sete anos como contratado em um escritório como
projetista, vê a atividade como temporária. “Espero muito em breve
voltar para a engenharia”, afirma. “Em último caso, ficaria no Uber
para complementar a renda”. (Passerini; Barbieri; Rezende, [s.d.]).

Em anúncio publicitário veiculado pela Uber na rede social


Facebook a empresa faz a seguinte provocação: “que tal ganhar
até R$ 200,00 por dia sem ter chefe?”, respondendo na sequência:
“Dirija com a Uber”. O valor divulgado pela Uber como alterna-
tiva de ganho para os motoristas coincide com o relato de AC,
mas valores maiores também são identificados na mesma maté-
ria do Estadão:

Acostumado a estar no volante, SM, de 37, viu no aplicativo uma


boa opção quando perdeu o emprego na transportadora em que
trabalhou por seis anos. Ele financiou um carro que atendia aos
padrões do Uber e voltou às ruas. “Começo às 4 horas e vou até as
22 horas, às vezes madrugada adentro.” SM determinou como meta
diária R$ 300, valor que considera suficiente para manter a famí-
lia. Ele vem conseguindo ganhos até superiores ao que tinha antes.
Mas se preocupa com a instabilidade. “Se eu sair do sistema ou ficar
impossibilitado de trabalhar, não tenho segurança”, diz o motorista.
(Passerini; Barbieri; Rezende, [s.d.]).

Embora o valor de R$ 300 de ganhos diários estabelecidos


como meta por SM seja maior que os R$ 200 de DA, é importante
observarmos a jornada de cada um. DA afirma que para receber
os R$ 200 realiza uma jornada de 8 horas diárias. Por sua vez, SM

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Os motoristas e a empresa uber • 89

diz que inicia às 4 horas e encerra às 22 horas, tendo, portanto,


uma jornada de 18 horas diárias (Passerini; Barbieri; Rezende,
[s.d.]). Para uma legislação trabalhista brasileira que estabelece
uma jornada máxima diária de 8 horas, a Uber não vê problema
em seus “motoristas parceiros” mais que dobrarem o legalmente
permitido no país.

Relações Sociais na Perspectiva Marxista

As relações sociais podem ser compreendidas como um conjunto


de interações que os indivíduos estabelecem entre si, ou em
grupos, em determinados contextos históricos. Para Marx as
relações sociais estão diretamente ligadas às forças produtivas.
Apropriando-se de novas forças produtivas, os homens alteram
o seu modo de produção, e alterando o modo de produção, alte-
ram as relações sociais. Para Marx2:

Na produção social da sua própria existência, os homens entram


em relações determinadas, indispensáveis, independentes de sua
vontade; essas relações de produção correspondem a um grau deter-
minado do desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O
conjunto dessas relações constitui a estrutura econômica da socie-
dade, a base real sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política. (Marx, 2008, p. 48).

Nesse sentido, forças produtivas e relações sociais de produção


determinam o modo de acumulação em uma sociedade capi-
talista. Quanto à força produtiva, temos de um lado os meios
de produção e, de outro, a força de trabalho. Quanto às rela-
ções sociais, temos, de um lado os proprietários dos meios de
produção, e, de outro, trabalhadores livres, que nada possuem
além de sua força de trabalho. O trabalhador vende ao possuidor

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:15


90 • Labirintos do labor

dos meios de produção sua força de trabalho e por ela recebe um


valor denominado salário.
Para uma melhor compreensão da origem do trabalho assa-
lariado, relacionou-se com o conceito apresentado por Marx
(2017) de acumulação primitiva, ou seja, o processo histórico de
acumulação anterior à acumulação capitalista. Segundo o autor
(2017), dois polos básicos são necessários para a constituição do
processo de produção capitalista. Um deles é o proprietário dos
recursos de subsistência, do dinheiro e dos meios de produção,
com a incumbência de garantir a ampliação do seu capital com
a compra e posterior utilização da força de trabalho. O outro
polo dessa relação constitui-se no trabalhador livre, que possui
apenas sua força de trabalho para venda no mercado. Marx (2017)
afirma que o sistema capitalista pressupõe uma dissociação entre
os trabalhadores e a propriedade dos meios de produção.

O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo


que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho,
um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistên-
cia e os de produção e converte em assalariado os produtores diretos.
A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que
dissocia o trabalho dos meios de produção. (Marx, 2017, p. 836).

No período descrito por Marx (2017), o trabalhador neces-


sitava apresentar-se livre, em um duplo sentido, da condição de
servo feudal ou escravo e também das relações sociais estabeleci-
das nas corporações com seus mestres e oficiais. Segundo o autor
“um dos aspectos desse movimento histórico que transformou os
produtores em assalariados é a libertação da servidão e da coer-
ção corporativa”. (Marx, 2017, p. 837). Contudo, não se trata
apenas de “libertação”, mas de uma condição de expropriação e
de privação de meios de produção e das garantias das antigas rela-
ções sociais, de forma súbita e violenta. Desta forma, resta-lhes

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 91

apenas a possibilidade de venda de sua força de trabalho, ou seja,


a realização de um trabalho assalariado. Resta a indagação: que
tipo de liberdade é essa? De acordo com Marx:

Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa


encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercado-
rias, livre no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de
sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro
lado, não tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre
de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.
(Marx, 2017, p. 287).

Partindo da definição do autor sobre os elementos consti-


tuintes das forças produtivas, das relações sociais de produção
capitalista e do trabalho assalariado, serão analisadas as relações
sociais identificadas entre a Uber e seus motoristas. Quatro situ-
ações serão apresentadas para análise: 1ª) a primeira forma de
relação identificada configura-se na constituição de uma frota
de veículos por uma pessoa intermediando a relação entre diver-
sos motoristas e a Uber, em que é possível o registro de diversos
veículos em uma só conta, aqui caracterizado como empresário
prestador de serviço da Uber; 2ª) a segunda, o veículo utilizado
é alugado de uma empresa pelo próprio motorista da Uber, que
não é o proprietário do bem; 3ª) a terceira delas possui uma estru-
tura em que o motorista da Uber é o proprietário do veículo que
utiliza para realização do trabalho; 4º) a quarta situação o moto-
rista é proprietário do carro e também frotista.
A primeira forma de relação – 1ª Frotista Uber - identificada,
configura-se na constituição de uma frota de veículos por uma
pessoa intermediária entre diversos motoristas e a Uber. Isso se
torna viável por que a empresa, em seu sistema, autoriza que
mais de um motorista esteja cadastrado para um mesmo carro.
Sendo que o contrário também é possível, registrando diversos

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92 • Labirintos do labor

veículos em uma só conta. Situação que pode ser caracterizada


como empresário prestador de serviço da Uber.
Em reportagem das jornalistas Juliana Diógenes e Clarissa
Thomé (2016) publicada pelo jornal Estadão com a manchete:
“Contistas da Uber formam minifrotas, cobram diárias e exigem
parte de lucros”, é possível identificar o funcionamento desse
modelo. Segundo a matéria:

Pessoas cadastrados no aplicativo estão criando “minifrotas”, sublo-


cando veículos, fixando metas de rendimento semanal e cobrando
lucros. Na Uber, um só contista pode cadastrar quantos carros quiser,
o que permite, a formação de frota sem limite de veículos. Em sites de
classificados, há anúncios de contratação de motoristas que cobram
entre R$ 500 e R$ 700 por semana. Proprietários esperam também
que o interessado já esteja habilitado na Uber – outros dispensam
essa exigência. Não há regras nem sequer um padrão de modelo de
negócios, uma vez que cada proprietário de carro, que se torna um
“empregador”, decide sobre gerenciamento de lucros e despesas com
seus parceiros. (Diógenes; Thomé, 2016).

Nas cidades onde esta situação é mais recorrente, principal-


mente nas capitais o que se observa é a migração dos frotistas de
taxis para o modelo de frotas da Uber. Segundo reportagem do
portal do jornal Estadão, “o que antes era apontado como bene-
fício, que seriam os motoristas de frota de táxi migrarem para a
Uber com objetivo de adquirirem seu próprio veículo, inverteu
de situação” (Diógenes; Thomé, 2016). Sem o limite de carro por
motorista, os empresários de frota estão migrando para a Uber,
deixando os motoristas nas mesmas condições de interdependên-
cia dos donos dos carros, sustentado pela teoria marxista em que
há uma interdependência do trabalhador (motorista do Uber) e
do capitalista (dono do carro).

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 93

Em outra reportagem de Júlia Senna Carvalho (2016) publi-


cada pelo portal Medium com o título: “Dono de frota de Uber
fatura R$ 10 mil por semana” é possível observar o modelo de
negócio gerido pelo proprietário da frota. Segundo o portal:

Trabalham na respectiva frota um total de 10 motoristas em 5 veícu-


los, divididos em dois turnos de 12 horas em cada carro e, segundo
ele, cada automóvel representa um faturamento líquido de R$ 2
mil semanais. A relação profissional com os motoristas é através de
contrato de prestação de serviços, “não cobro diárias pelos carros,
mas pago comissão sobre o total feito na semana por cada um deles”,
detalha o proprietário da frota, sem comentar o percentual da comis-
são. (Carvalho, 2016).

O processo de seleção dos motoristas, segundo o frotista, foi


realizado através das redes sociais e também em uma plataforma
criada pela própria Uber para aproximar investidores e motoris-
tas. Nesse sentido, podemos observar que existe um incentivo por
parte da empresa para este tipo de modelo de negócio. Sendo que
não há limite numérico para contratação de profissionais e nem de
cadastramento de automóveis. Ainda de acordo com a reportagem:

No empreendimento do frotista da Uber, cada condutor possui


cadastro individual diretamente junto ao aplicativo. “Uma vez conta-
tados e admitidos por mim, a Uber coloca os cadastros dos mesmos
abaixo do meu e assim passo a ter o controle gerencial de todos.
Então, recebo todo o dinheiro e repasso o que é de direito a cada
um semanalmente”, detalha. “A administração é facilitada através
do aplicativo da própria Uber, pois o mesmo fornece todas as ferra-
mentas para gestão em tempo real”, acrescenta. Ele também revelou
que os gastos com itens indispensáveis exigidos pela empresa conti-
nuam sendo de sua responsabilidade. (Carvalho, 2016).

Livro 1.indb 13 24/10/2022 09:32:15


94 • Labirintos do labor

Os elementos apresentados pelo modelo de negócio de compo-


sição de frota para atividade com a Uber apontaram para uma
relação social na qual, de um lado encontram-se a Uber e o
“frotista”, na condição de proprietários dos meios de produção, e,
de outro, os motoristas – trabalhadores que dispõem unicamente
de sua força de trabalho. Embora a Uber não disponibilize infor-
mações sobre a possibilidade de formação de frota para prestação
de serviço através de sua plataforma, os relatos são de que existe
uma infraestrutura de suporte para essas situações específicas.
Evidenciam-se nessa situação dois polos distintos constituido-
res dessa relação social, de certa forma caracterizando o motorista
em uma condição de assalariamento e o frotista, de empregador.
Contudo, se o contrato se estabelece entre frotista e motorista, a
Uber, enquanto uma das proprietárias dos meios de produção,
assume uma responsabilidade compartilhada com os frotistas.
Essa primeira situação pode ser caracterizada como a que mais
se aproxima de uma relação clássica entre capitalista e proletá-
rio. Afirmamos que mais se aproxima porque, segundo o site da
própria Uber3, “ao dirigir com a Uber, seu celular é uma das prin-
cipais ferramentas. Motoristas parceiros tem acesso à descontos
exclusivos na compra de aparelhos novos e na assinatura de planos”,
portanto, o trabalhador ainda utiliza o seu próprio telefone celular.
Na segunda forma de relação social – 2ª Motorista com Veículo
Alugado – identificou-se nos inúmeros comerciais publicitários da
Uber o estímulo que a empresa oferece para que motoristas não
deixem de dirigir por não possuírem veículo próprio. Em seu site,
a Uber (2018d) apresenta uma solução: “Confira como alugar um
carro para se tornar um motorista parceiro do Uber”. Em seguida a
empresa oferece o passo a passo com todos os detalhes e perguntas
frequentes sobre os processos de locação de veículos. No portal da
Uber o seguinte enunciado “acolhe” os motoristas:

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Os motoristas e a empresa uber • 95

Você quer ser um motorista parceiro da Uber, mas não tem nenhum
carro disponível? Achou que isso seria um problema? A Uber te dá a
solução. Neste artigo, explicamos como alugar um carro com desconto
para Uber. É possível ser um motorista parceiro da Uber alugando
um carro em uma locadora. E aqui vão as dicas de como alugar um
carro para dirigir com Uber e alguns detalhes que vão ser funda-
mentais para deixar esse processo mais fácil e rápido. (Uber, 2018d).

Após o enunciado citado, é apresentada uma lista de vanta-


gens que, segundo a Uber, poderia beneficiar os motoristas que
optarem pela locação de veículos. Em um dos tópicos dessa lista
chama atenção a afirmação da empresa de que “uma das vanta-
gens mais importantes é que os motoristas parceiros podem
alugar carro usando o cartão de crédito de outra pessoa. Mas,
lembre-se: é necessário levar o titular do cartão no momento
do pagamento” (Uber, 2018d). O que se percebe é que de fato
a Uber está disposta a oferecer todas as condições possíveis para
engajar o maior número de motoristas aos seus serviços, mesmo
que para isso, seja com o cartão de crédito de outra pessoa.
A legislação da cidade de Campinas, em São Paulo, apresenta
expressamente em seu texto a possibilidade dos motoristas de
aplicativos utilizarem veículos locados. Em seu Art. 5º a Lei
estabelece os requisitos para os veículos serem utilizados pelos
motoristas, sendo a maioria das exigências idênticas às das demais
legislações, com exceção do inciso II. Sua redação é a seguinte:
“pertencer à pessoa física autorizada, ou ser objeto de arrenda-
mento mercantil, ou comodato, ou locação realizada por esta”
(Prefeitura De Campinas, 2017). Sobre o custeio com veículo
alugado, buscou-se em grupos de motoristas de aplicativos no
Facebook4 e identificou-se a descrição de diferentes contratos
de locação. Um dos relatos publicados tem o seguinte texto:

Livro 1.indb 15 24/10/2022 09:32:15


96 • Labirintos do labor

Alugo um Mobi por 1398,00 mês. Que ainda é muito mais econô-
mico que meu antigo carro. Economia de combustível de uns R$
20 a $ 25 dia. E além de não pagar nada além do aluguel só piloto
carro novo, tenho a mobilidade de devolver o carro sem perdas, não
fico sem trabalhar quando carro esta em manutenção, se o carro
incômoda é só trocar, neste valor de aluguel posso optar por: Mobi,
Sandeiro, Uno ou Onix e o lucro x gasto e muito mais fácil de fazer
e ver. Penso que aluguel e melhor que financiar, principalmente se
a prestação for superior a da simulação de 750,00 mês. Deixo este
pequeno estudo para tirarem conclusão e principalmente o compa-
rar com a realidade de cada um. Se quiserem dar feedback, fiquem
a vontade. (Facebook, 2019)5.

Uma matéria das jornalistas Juliana Diógenes e Clarissa Thomé


(2016), divulgada pelo portal do Estadão, traz o depoimento de
um motorista da Uber que trabalha nessa condição. Seu relato
denota um grau de satisfação com os resultados financeiros
obtidos até o momento, mas deixa claro qual sua percepção em
relação à preocupação da Uber referente à propriedade ou não
do veículo. Conforme a matéria:

O motorista JP, de 39 anos dirige um carro alugado pelo qual paga


R$ 2,4 mil por mês. “A Uber não se importa se você aluga o carro
ou se o carro é seu. Eles dão o aplicativo, o suporte.” Animado com
R$ 180 a R$ 300 que ganha por dia, na semana passada também
publicou um anúncio em um site: “Assumo financiamento do seu
veículo”. (Diógenes; Thomé, 2016).

Portanto, a utilização de um veículo alugado configura-se em


uma segunda situação identificada nas relações sociais estabeleci-
das entre a Uber e seus motoristas. A partir da possibilidade de
locação de um veículo pelo motorista para que a atividade seja

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Os motoristas e a empresa uber • 97

realizada, ele encontra-se em uma condição distinta da analisada


anteriormente na primeira situação.
Nessa segunda situação, os motoristas não são proprietários dos
veículos, portanto, não possuem meios de produção. Sua atua-
ção na relação social estabelecida com a Uber é de venda de força
de trabalho, pois os meios de produção aqui presentes perten-
cem a empresas, seja ela a Uber, seja a locadora de automóveis.
No entanto, essa segunda situação é considerada híbrida, pois,
apesar do trabalhador não ser proprietário de um dos meios
de produção como na primeira situação, é ele quem assume a
responsabilidade pelo aluguel do veículo, o que não existe na
relação clássica entre proletário e burguês. Ele não é, portanto,
um proletário no sentido estrito da palavra. Além de assumir o
aluguel do veículo, o trabalhador utiliza um meio de produção
de sua propriedade para viabilizar o processo de trabalho: o seu
aparelho de telefone celular. É evidente que o valor relativo do
telefone celular em relação ao valor total dos meios de produ-
ção aplicados no processo é extremamente pequeno. Mas o mais
importante é que o trabalhador não seria capaz de garantir a sua
sobrevivência somente utilizando seu celular e um carro alugado.
Se ele não tiver acesso à Uber ou a alguma concorrente, faltará
ao trabalhador um meio de produção essencial. Isso o torna o
proletário, ainda que não um proletário clássico, pois, além da
sua força de trabalho, ele participa com algum ou alguns dos
meios de produção.
Aqui, de fato, surge a figura do parceiro, papel atribuído pela
Uber equivocadamente ao trabalhador. O verdadeiro parceiro da
Uber é outra empresa capitalista que viabiliza a exploração da
força de trabalho do motorista, pela Uber: a locadora de automó-
veis. Esta, no entanto, não é a empresa que explora diretamente
o motorista. Ela explora os seus trabalhadores que viabilizam o
aluguel do carro. Ela se torna parceira da Uber ao proporcionar

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98 • Labirintos do labor

um meio de produção indispensável ao processo de trabalho de


transporte de passageiros.
Na terceira situação de relação social – 3ª Motorista Proprietário
do Veículo – o principal aspecto observado no trabalho de presta-
ção de serviço de transporte de passageiros por plataformas online
diz respeito a estrutura em que o motorista da Uber é o proprie-
tário do veículo que utiliza para realização do trabalho. Muitos
motoristas adquirem veículos que atendem aos padrões exigidos
pela Uber, para poder dirigir para a empresa. Nesse caso, o moto-
rista passa a ser proprietário do bem que utiliza para trabalhar.
Em relação ao custeio com veículos próprios dos motoris-
tas, para buscarmos informações, explorou-se alguns dos diversos
grupos criados entre eles no Facebook6. Dessa forma, sem identi-
ficar o participante do grupo de motoristas da Uber identificou-se
o seguinte levantamento de custos7:

Gasto com carro por ano: IPVA - $ 1.300; Seguro ano: $ 1.600;
Cálculo de manutenção de um carro que roda em média 5.000
km mês: Óleo e filtros 8 trocas ano: $ 1.200; Filtro de ar e filtro de
combustível - $ 600; 1 jogo de pneus a cada 40.000km - $ 1.300;
Rolamento, bucha e articulação da rodas - $ 350; Alinhamento e
balanceamento 2x ano: $ 400; Pastilha e velas 2x ano: $ 600; Correia
dentada - $ 350; Bateria - $ 200; - Embreagem e amortecedores, cabo
de vela, Correia do alternador, disco de freio, lâmpadas: $ 600. Total
da despesa $ 7.600 ano – o que daria $ 633 mês (Facebook, 2019)8.

Importante observar que o detalhamento apresentado pelo


motorista não leva em conta o fato de um veículo próprio sofrer
depreciação, ou mesmo uma margem para gastos eventuais para
pequenos reparos. Se incluirmos o cálculo da depreciação conforme
a fórmula apresentada no portal Instacarro (2018) a despesa mensal
ficaria da seguinte forma:

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 99

Se você pagou R$ 40 mil no seu modelo zero quilômetro em 2016,


para você calcular a desvalorização tem que dividir este valor por 5,
referente aos anos que são considerados como vida útil do veículo.
Portanto, cada ano seu carro perde R$ 8 mil pela desvalorização.
Para o cálculo da desvalorização mensal é só dividir este valor por 12.
Então, seu veículo desvalorizou R$ 667 por mês. (Instacarro, 2018).

Com isso, a despesa fixa mensal chegaria à casa dos R$ 1.300,


sem levar em consideração os gastos com combustível, que serão
variados dependendo das distâncias percorridas por cada moto-
rista no período. Os debates nas redes sociais, em especial, nos
grupos de motoristas, são bastante acalorados, assim como, nas
demais redes sociais. Portanto, existem contestações sobre valo-
res e fórmulas apresentadas, mas de modo geral os números são
próximos uns dos outros.
Outro elemento identificado em documentos virtuais da Uber
(2022) diz respeito à necessidade dos motoristas possuírem obri-
gatoriamente condições de acesso à telefonia móvel e aparelhos
tecnológicos que possibilitem utilizar o aplicativo da Uber. Segundo
a empresa:

Você é responsável por obter o acesso à rede de dados necessário


para usar os Serviços. As taxas e encargos de sua rede de dados e
mensagens poderão se aplicar se você acessar ou usar os Serviços
de um dispositivo sem fio e você será responsável por essas taxas
e encargos. Você é responsável por adquirir e atualizar os equipa-
mentos e dispositivos necessários para acessar e usar os Serviços e
Aplicativos e quaisquer de suas atualizações. (Uber, 2022).

Essa é uma situação que no Brasil e em outros países desenvol-


vidos parece naturalizada, pois, conforme dados do IBGE (2022),
existe no país uma quantidade de número de telefones móveis supe-
rior ao número de habitantes. No entanto, a adesão ao pacote de

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:15


100 • Labirintos do labor

dados móveis das operadoras de telefonia e a aquisição de smar-


tphones implicam em investimentos e despesas mensais que ficam
a cargo dos motoristas, assim como todas as demais despesas opera-
cionais dos veículos. Portanto, um elemento que também precisa
ser levado em consideração no momento de identificar quais são
os meios de produção necessários para realização do trabalho é de
quem é sua propriedade.
Nesse sentido, a Uber em seus anúncios publicitários9 deixa
bastante expressa essa possibilidade: “Tem um carro? Transforme-o
em uma máquina de fazer dinheiro. Tem muita coisa acontecendo
na cidade e a Uber facilita muito para você aproveitar e ganhar
dinheiro. E mais, você já tem tudo o que precisa para começar”.
Ao passo que a Uber oferece oportunidades sedutoras aos moto-
ristas, também afirma que:

A Uber não emprega nenhum motorista e não é dona de nenhum


carro. Nós oferecemos uma plataforma tecnológica para que moto-
ristas parceiros aumentem seus rendimentos e para que usuários
encontrem motoristas confiáveis e desfrutem de viagens confor-
táveis. A Uber não é uma empresa de transporte. A Uber é uma
empresa de tecnologia. Nós desenvolvemos um aplicativo que
conecta motoristas parceiros a usuários que desejam se movimen-
tar pelas cidades. (Uber, 2022).

O que necessita-se desvendar é a afirmação da empresa proprietá-


ria da tecnologia que diz não empregar nenhum motorista, portanto,
que relação social é essa que se estabelece? Se por um lado a Uber
é proprietária dos meios de produção, sem os quais o motorista
não teria condições de se conectar ao usuário, por outro, o moto-
rista também é possuidor de meios de produção, no caso, o veículo.
De certa forma, essa é uma situação complexa de análise diante
do cenário apresentado. Para uma relação de trabalho assalariado,
conforme a teoria marxista, de um lado precisa haver o proprietário

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Os motoristas e a empresa uber • 101

dos meios de produção, e, de outro, o trabalhador livre, disposto


a vender sua força de trabalho. Na situação apresentada, temos a
Uber como proprietária de meios de produção – tecnologia desen-
volvida para conectar motoristas e usuários. Mas os motoristas
também são proprietários de meios de produção – veículos para
realizar a atividade de transporte. Portanto, não é surpresa alguma
que exista o motorista do Uber que seja ao mesmo tempo prole-
tário e proprietário de parte dos meios de produção.
Na quarta situação de relação social – 4ª Motorista e Frotista
Uber simultaneamente – é possível identificar segundo reportagem
divulgada pelo portal de notícias Olhar Digital (2016) intitulada
“Motoristas da Uber no Brasil estão criando frotas e terceirizando
serviços”. Segundo a matéria:

Os donos dos carros cobram entre R$ 500 e R$ 700 por semana pelo
aluguel. Os motoristas proprietários das frotas fazem testes de uma
semana com o interessado, com o objetivo de verificar se ele é rentá-
vel. Na maior parte dos casos, multas, combustível e problemas no
carro ficam por conta do “terceirizado”. “Não estipulo metas, mas eles
têm conta para pagar e precisam tirar pelo menos R$ 3 mil por mês
para conseguir algum lucro. Se antes trabalhavam dez horas, passa-
ram a trabalhar 14 horas porque precisam, por necessidade”, conta
um motorista da Uber de 56 anos, dono de uma minifrota com três
carros e três condutores em São Paulo. (Olhar Digital, 2016).

O serviço de transporte nesse modelo permite que um moto-


rista cadastre quantos carros quiser em seu perfil. Além disso,
como não há qualquer relação formal de trabalho, a empresa
não controla o vínculo entre proprietários de veículos e quem os
aluga. Essa quarta situação caracteriza-se por uma simultaneidade
entre a atividade de motorista proprietário do veículo e empre-
sário intermediário da Uber.

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102 • Labirintos do labor

Com isso, o motorista que é proprietário do carro monta


uma frota própria para explorar o trabalho alheio. Ele é trabalha-
dor e capitalista ao mesmo tempo, assalariado híbrido da Uber
e, ao mesmo tempo, parceiro da Uber na exploração de outros
trabalhadores.

Trabalho produtivo e improdutivo no setor de serviços de


transporte

Nosso objetivo ao resgatar as categorias de trabalho produtivo


e improdutivo a partir de Marx, está justamente em provocar
reflexões acerca das novas configurações do setor de serviços e
suas relações sociais. A indústria dos transportes já no século XIX
foi objeto de análise da teoria marxista devido à sua especifici-
dade na relação entre produção e circulação. Hoje, no século XXI,
mais uma vez, o segmento de serviços de transporte, somado ao
caráter disruptivo das inovações em Tecnologia da Informação
e Comunicação, contribui como objeto de estudo das mais dife-
rentes áreas do conhecimento.
No que diz respeito às questões relacionadas às possíveis dife-
rentes configurações das relações sociais dos motoristas com a
Uber, sendo estes caracterizados como proletários ou trabalhado-
res assalariados, podemos suscitar o debate se o trabalho realizado
por esses profissionais configura-se como trabalho produtivo ou
improdutivo. Para Marx (2017, p. 586), “a produção capitalista
não é apenas produção de mercadoria, ela é essencialmente produ-
ção de mais-valia”. Na relação de triangulação que se configura
entre o usuário, o motorista e a empresa proprietária da tecno-
logia, precisaremos identificar se existe a produção de mais-valia
e quem se apropria dela, mesmo que o trabalho realizado pelo
motorista não esteja inserido na esfera da produção material, mas
no chamado setor de serviços, como afirma Marx:

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 103

Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capi-


talista ou serve à autovalorização do capital. Um mestre-escola é um
trabalhador produtivo quando trabalha não só para desenvolver a
cabeça das crianças, mas também para enriquecer o dono da escola.
Que este invista seu capital em uma fábrica de ensinar, em vez de
numa de fazer salsicha, em nada modifica a situação. O conceito
de trabalho produtivo não compreende apenas uma relação entre
atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas
também uma relação de produção especificamente social, de origem
histórica, que faz do trabalhador o instrumento direto de criar mais-
-valia. (Marx, 2017, p. 586).

Nesse sentido, tanto na situação em que o motorista aluga o


veículo para trabalhar, quanto na situação em que é contratado
por um frotista para intermediar sua relação de trabalho com a
Uber, os motoristas podem caracterizar-se como trabalhadores
produtivos. Embora o serviço por eles realizado seja imaterial,
ou seja, o produto de seu trabalho é transportar pessoas de um
lugar para outro, sendo esse seu efeito útil, como resultado cria
mais-valia, tanto para Uber, quanto para o frotista. Portanto, o
trabalhador aqui, é sim um instrumento de criação de mais-va-
lia. Segundo Marx:

O que a indústria dos transportes vende é o próprio deslocamento


de lugar. O efeito útil obtido é indissoluvelmente vinculado ao
processo de transporte, isto é, ao processo de produção da indús-
tria dos transportes. Homens e mercadorias viajam em um meio
de transporte, e sua viagem, seu movimento espacial, é justamente
o processo de produção efetuado. O efeito útil só pode ser consu-
mido durante o processo de produção; ele não existe como uma
coisa útil diferente desse processo, como algo que só funciona como
artigo comercial, só circula como mercadoria depois de ter sido
produzido. (Marx, Livro II, 2014, p. 134).

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:15


104 • Labirintos do labor

Para o autor, o valor de troca do que é produzido na indústria


dos transportes também é definido pelos elementos de produção
consumidos no processo, ou seja, os meios de produção e a força
de trabalho, “acrescido do mais-valor criado pelo mais-trabalho
dos trabalhadores ocupados na indústria dos transportes”. Dessa
forma, caracteriza-se como um processo de produção dentro da
circulação, especificamente tratando-se da indústria dos trans-
portes. Marx ainda afirma:

A circulação, isto é, o curso efetivo das mercadorias no espaço, dilui-


-se no transporte da mercadoria. A indústria do transporte constitui,
por um lado, um ramo independente de produção, e por conseguinte,
uma esfera especial de investimento do capital produtivo. Por outro
lado, ele se distingue pelo fato de aparecer como continuação de
um processo de produção dentro do processo de circulação e para o
processo de circulação. (Marx, Livro II, 2014, p. 231).

O autor considera a indústria dos transportes um ramo autô-


nomo da produção, conferindo-lhe uma característica peculiar de
possibilidade de ser, mesmo que na esfera imaterial dos serviços,
um trabalho produtivo (Marx, Livro II, 2014). Aqui ainda há uma
certa distância entre o setor de transporte do qual Marx está se
referindo com o setor de transporte de passageiros, característica
da Uber, uma vez que Marx (Livro II, 2014) fala da “continua-
ção de um processo de produção”, referindo-se a circulação de
uma mercadoria que foi produzida, ou seja, ao processo de trans-
porte de mercadorias indispensável a sua venda. No caso da Uber,
as pessoas que são transportadas não são mercadorias produzidas.
Essa diferença fica esclarecida conforme a afirmação de Marx:

Há, no entanto, ramos autônomos da indústria em que o produto


do processo de produção não é um objeto novo, uma mercado-
ria. Dentre esses ramos, o único economicamente importante é a

Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 105

indústria das comunicações, seja do transporte (de mercadorias ou


pessoas), seja da mera transferência de informações, cartas, telegra-
mas, etc. (Marx, Livro II, 2014, p. 133).

A diferença da análise de Marx para a situação da Uber que existia


há pouco deixa de existir. Mas trata aqui da indústria das comu-
nicações e cita como um dos exemplos o telegrama. Assim como
o telegrama é uma forma rápida de se enviar a mensagem escrita,
fonada ou via Internet, a plataforma Uber se baseia no envio de
mensagens via internet. Tanto um telegrama quanto uma mensa-
gem enviada pela Uber ao motorista e ao usuário não são, como diz
Marx (Livro II, 2014), “um objeto novo, uma mercadoria”. A Uber
utiliza “a transferência de informações” para transportar pessoas, ou
seja, seria, segundo Marx (Livro II, 2014), uma empresa típica da
“indústria de comunicações”. Se os Correios fossem uma empresa
privada, que diferença haveria, do ponto de vista do capital ou, o
que é o mesmo, do ponto de vista do processo de valorização do
valor, entre um carteiro que transporta informações e um motorista
de Uber que transporta pessoas? Segundo Marx (Livro II, 2014),
nenhuma diferença haveria entre esses dois processos, a não ser
aquilo que é transportado, ou seja, uma diferença em relação ao
valor de uso. Do ponto de vista do valor, ambos, carteiro e moto-
rista da Uber, produzem mais-valia para uma empresa capitalista.
O motorista, mesmo que proprietário do veículo coloca-se em
uma condição de assalariamento, fruto do desenvolvimento do
setor de serviços e gerador de trabalho produtivo e, por conse-
guinte, mais-valia. Em especial, na indústria dos transportes, há
um processo de produção em seu movimento, mesmo que sem
um produto material como resultado. Conforme Marx:

O valor de uso das coisas só se realiza em seu consumo, o qual pode


exigir seu deslocamento espacial e, portanto, o processo adicional de
produção da indústria dos transportes. Assim, o capital produtivo

Livro 1.indb 25 24/10/2022 09:32:15


106 • Labirintos do labor

investido nessa indústria (de transportes) adiciona valor aos produ-


tos transportados, em parte por meio da transferência de valor dos
meios de transporte, em parte por meio do acréscimo de valor
gerado pelo trabalho de transporte. Esta última adição de valor se
decompõe, como em toda a produção capitalista, em reposição de
salário e mais-valor. (Marx, Livro II, 2014, p. 229).

Quanto ao elemento de reposição de salário mencionado por


Marx ao final da citação, identificamos uma correlação dessa
natureza entre os motoristas e a Uber. Quando o usuário acessa
o serviço de transporte por intermédio da plataforma, ele realiza,
na maioria das vezes, o pagamento pelo sistema de crédito atra-
vés de cartão. Esse pagamento é feito diretamente para a empresa
proprietária da tecnologia, no caso a Uber, que semanalmente
repassa aos motoristas os valores recebidos, apropriando-se de uma
parcela. Mesmo que o pagamento seja feito em dinheiro pelo usuá-
rio ao motorista, a Uber recalcula os valores recebidos via sistema
de crédito e mantem as mesmas proporções dos valores pagos e
retidos aos motoristas. Nesse sentido, nada muda se o pagamento
é feito em dinheiro ou no cartão de crédito. Ainda sobre a carac-
terização da relação social entre a Uber e seus motoristas, mesmo
que considerando apenas uma das relações possíveis, Antunes faz
a seguinte afirmação:

A Uber é outro exemplo mais que emblemático, trabalhadoras e


trabalhadores com seus automóveis, isto é, com seus instrumentos
de trabalho, arcam com suas despesas de seguridade, com os gastos
de manutenção do veículo, de alimentação, limpeza, etc... enquanto
o “aplicativo” – na verdade, uma empresa privada global de assa-
lariamento disfarçado sob a forma de trabalho desregulamentado
– apropria-se do mais-valor gerado pelo serviço dos motoristas, sem
preocupações com deveres trabalhistas historicamente conquista-
dos pela classe trabalhadora. (Antunes, 2018, p. 35).

Livro 1.indb 26 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 107

Como se vê, segundo Antunes (2018), o motorista da Uber


caracteriza-se como trabalhador assalariado, mesmo com todos os
esforços da empresa de ocultamento da relação social. O signifi-
cado de “motorista parceiro” utilizado pela empresa traduz-se em
uma relação de mão única em direção a Uber, onde nessa triangu-
lação entre empresa, motoristas e usuários, a Uber é uma empresa
capitalista que explora o trabalho excedente de seus motoristas,
tornando-os trabalhadores assalariados produtivos.

Considerações finais

Por fim, é possível afirmar que as Tecnologias Digitais desen-


volvidas ao longo das últimas décadas, em especial, as plataformas
digitais utilizadas para transporte de passageiros por empresas
como a Uber, estão transformando radicalmente as relações sociais
de trabalho. A tecnologia desenvolvida pela Uber propicia outro
tipo de negócio, outro tipo de subordinação do trabalho ao capi-
tal. Uma subordinação com autonomia dos agentes individuais,
os trabalhadores motoristas, o que não quer dizer que não haja
exploração.
Este estudo identificou 4 diferentes situações de relações
sociais entre a Uber e os motoristas, situações em que o moto-
rista da Uber é ao mesmo tempo proletário e proprietário de
parte dos meios de produção. Situações híbridas, em que o traba-
lhador não é proprietário de um dos meios de produção, mas
assume a responsabilidade pelo aluguel do veículo, o que não
existe na relação clássica entre proletário e burguês. Situações
que se aproximam da relação clássica entre capitalista e proletá-
rio, e condições em que o motorista é trabalhador e capitalista ao
mesmo tempo, assalariado híbrido da Uber e, também, parceiro
da Uber na exploração de outros trabalhadores.
Em algumas situações identificamos formas clássicas de assa-
lariamento, demonstrando que a atividade da Uber se realiza na

Livro 1.indb 27 24/10/2022 09:32:15


108 • Labirintos do labor

esfera da produção, como na indústria de transporte de pessoas.


Isso faz o trabalho do motorista da Uber um trabalho produ-
tivo, pois ele produz um valor excedente ao valor de sua força de
trabalho, excedente que é apropriado por uma, ou várias empre-
sas capitalistas

Notas
1
Disponível em: https://www.google.com/search?q=como+diri-
gir+com+a+Uber&oq=como+dirigir+com+a+Uber&aqs=chro-
me..69i57j0l5.5196j1j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acesso: 25
julho 2022.
2
Prefácio à Contribuição para a crítica da economia política, “Prefácio
de 1859”.
3
Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/drive/rewards/. Acesso
em: 25 julho 2022.
4
Disponível em: https://www.facebook.com/groups/1251834444868309/
permalink/2316231458428597/. Acesso em: 10 maio 2019.
5
Idem.
6
Segundo a rede social publicações em páginas ou grupos públicos são
considerados espaços públicos. Qualquer pessoa que puder ver a página
ou o grupo poderá ver sua publicação ou seu comentário. Em geral, quan-
do você publica ou comenta em uma página ou um grupo público, uma
história pode ser publicada no Feed de Notícias e em outros locais dentro
ou fora do Facebook.
7
Disponívelem:https://www.facebook.com/groups/1251834444868309/
permalink/2316231458428597/. Acesso em: 10 maio 2019.
8
Idem.
9
Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/blog/como-funciona-a-
-uber-para-os-motoristas-parceiros/. Acesso em: 10 maio 2019.

Referências
ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de
serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
CARVALO, Júlia Senna. Dono de frota de Uber fatura R$ 10 mil por
semana. Medium, 28 jun. 2016. Disponível em: https://medium.com/

Livro 1.indb 28 24/10/2022 09:32:15


Os motoristas e a empresa uber • 109

fio-dameada/propriet%C3%A1rio-de-frota-de-ve%C3%ADculos-na-uber-
fatura-r-10-milpor-semana-48cb285a4d92. Acesso em: 25 julho 2022.
DIÓGENES, Juliana; THOMÉ, Clarissa. Motoristas da Uber for-
mam minifrotas, cobram diárias e exigem parte de lucros. Estadão, São
Paulo, 08 maio 2016. Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com.
br/noticias/geral,motoristas-da-uberformam-minifrotas--cobram-dia-
rias-e-exigem-parte-de-lucros,10000049779. Acesso em: 07 jan. 2019.
IG. Motorista da Uber agora receberá de acordo com o tempo e a
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munerado-para-transporteindividual-de-passageiros-oferecido-e-solicitado-ex-
clusivamente-por-aplicativossitios-ou-plat. Acesso em: 25 julho 2022.

Livro 1.indb 29 24/10/2022 09:32:15


110 • Labirintos do labor

SCHOLZ, Treber. Cooperativismo de Plataforma. São Paulo: Editora Ele-


fante, 2017.
UBER. Termos Gerais de Uso. [s.d.]. Disponível em: https:// https://
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UBER. Fatos e Dados sobre a Uber. 01 maio 2019. Disponível em: ht-
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em: 25 julho 2022.

Livro 1.indb 30 24/10/2022 09:32:15


O trabalho sob o fundamento dos
direitos humanos

4
Adriano Ruschel Marinho
Jussara Maria Rosa Mendes

D
ireitos humanos é uma expressão sujeita a sofrer certo grau
de polissemia. À primeira vista, custa imaginar quem não
seja capaz de lhe conferir um sentido trivial, alusivo às
declarações da Revolução Francesa e da Organização das Nações
Unidas, tal como se aprende nas aulas de história geral. Para além
de seu significado clássico, a expressão também pode comportar
outras conotações, a depender da consciência de classe de quem a
usa. Em tese, quanto mais perto da penúria, maior a necessidade
de apelar ao sistema de direitos humanos para satisfazer deman-
das ou para proteger-se contra riscos, a ponto de reconhecer seu
valor. Sobretudo quando se recebe atendimento de serviços que
não o confundem com caridade ou troca de favores, assumindo-
-se como prestação estatal. Por sua vez, quanto mais distante da
miséria, menor a ocasião de recorrer ao sistema. Afinal, pode-
-se comprar educação, crédito e liberdade no “livre mercado” e
basta contratar um professor particular, um gestor financeiro e
um bom advogado. Não raro, para quem se inclui nesse perfil,
direitos humanos não passam de ajuda a “bandido sem caráter”,
à custa de impostos que sobrecarregam o “cidadão de bem”. O
juízo sensacionalista contra os direitos humanos, ao explorar o viés
autoritário do senso comum, torna-se útil à dominação da elite, a
quem serve de arma ideológica na linha de produção e reprodu-
ção da desigualdade (Soares, 1998: 39-40).

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:15


112 • Labirintos do labor

Desigualdade e luta de classes

Para entender essa ampla circulação de estereótipos sem lastro


empírico, vale levar em conta a presença incipiente, algo recente
e ainda restrita, da educação em direitos humanos junto à rede
de ensino fundamental no Brasil, com diretrizes curriculares só
aprovadas pelo Ministério da Educação em 2012, sem dispor de
conteúdos em disciplina própria, senão dentro de outra maté-
ria ou sob abordagem interdisciplinar. É possível dimensionar a
extensão do problema quando se considera o papel que a cons-
cientização dos direitos humanos cumpre no suporte à reflexão
crítica sobre as causas e consequências da profunda desigualdade
nacional, contribuindo para o esforço de municiar seu requerido
enfrentamento (Brasil, 2011: 3-6, 12, 17-18; 2013: 26, 42-43, 52,
56, 70-71; Silva; Eugenio, 2019: 82-84, 86-87, 89-91).
Não faltam motivos de censura à desigualdade extrema, cujo
impacto restritivo sobre a efetivação de direitos básicos é larga-
mente identificado como entrave ao desenvolvimento econômico
e social, além de risco à estabilidade democrática, razão pela qual
serve de mote à promoção de políticas públicas (Castro, 2018: 213;
Dowbor, 2018b: 333-334, 343; Fagnani, 2018a: 15, 19-20; 2018b:
21-23; Fernandes, 2018: 362-363; Morgan, 2018: 121-122, 126-127).
Sob condições desiguais, perde-se de vista o valor dos direitos
humanos como requisito crucial à experiência da cidadania com
dignidade (Soares, 2007: 335-340).
Além de causar danos ao Estado de direito, a desigualdade
chama atenção especial por seus efeitos sobre as relações de poder.
Quanto maior a discrepância entre ricos e pobres, brancos e negros,
homens e mulheres, patrões e empregados, maior o desequilíbrio
de forças e a ameaça de desumanização que o acúmulo despro-
porcional de privilégios impõe a quem se vê em posição de menor
prestígio. Tal como atesta a contínua concentração do governo
nas mãos do grande empresariado que, sob a tutela da cartilha

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:15


O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 113

neoliberal, só faz despojar o trabalhador de garantias proteti-


vas históricas, relegando-o ao ostracismo da informalidade e do
precariado, sem reação da opinião pública em condições de opor
resistência eficaz. Em pé de desigualdade e à revelia dos direitos,
renovam-se os votos de exclusão social e controle disciplinar com
ar de banalização e fascismo (Foucault, 1999b: 183-184; Santos,
B., 1999: 27-30; 2018a: 362-370; 2018b: 317-326).
Expõe-se assim o antagonismo das partes em jogo. De um
lado, a consciência dos prejuízos impostos pela desigualdade ao
exercício dos direitos, dando ensejo a numerosas iniciativas de
superação, inclusive mediante proposições de tributação progres-
siva com base em preceitos constitucionalizados (Fagnani; Rossi,
2018: 157-158; Fagnani; Vaz; Castro; Moreira, 2018: 207-208;
Oliveira, 2018: 81; Piketty, 2014: 560, 598-599, 612, 640). Já de
outro lado, o descaso com os problemas decorrentes do impiedoso
desequilíbrio no acesso aos direitos, dando lugar à indiferença
ou, inclusive, no limite, ao desdém com a condição das vítimas.
Visão animada, vale dizer, seja pela rejeição a investimentos distri-
butivos sem plena sujeição às leis de mercado, seja pela adesão ao
ideário meritocrático que prega as distinções na conta do esforço
individual, cabendo a cada um cuidar da própria vida (Passos;
Silveira, 2018: 711; Piketty, 2014: 529-530, 535-537, 605-606).
Desse antagonismo, surge a consideração da desigualdade
como resultado de escolhas políticas (Morgan, 2018: 130-131).
Portanto, cumpre compreender as relações entre política e direi-
tos humanos em sociedades muito desiguais. Já sugeriam Marx
e Engels que os sistemas político e jurídico não passam de um
simples verniz de superestrutura ideológica a serviço da estru-
tura econômica que dá as cartas em última instância, criando
a própria consciência da realidade à imagem e semelhança das
condições produzidas e reproduzidas na divisão social do traba-
lho em benefício da classe empresarial (Marx, 1859/2008: 46-49;
Marx; Engels, [1932]/2007: 47-48, 93-94). É possível estender essa

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:15


114 • Labirintos do labor

linha de argumentação em dois sentidos aparentemente contrários,


mas efetivamente complementares. Em via descendente, trata-se
das condições relativas à hierarquia dos níveis de poder decisório
com base na separação entre trabalho manual e intelectual, cujo
fundamento político se combina com a doutrina jurídica para
representá-las sob a forma de uma racionalidade técnica, útil e
necessária à expansão econômica, à geração de empregos e à oferta
de bens e serviços de ponta, da qual se espera extrair a realização
última do bem comum “inclusive quanto ao efetivo exercício
dos direitos humanos”, sob a égide do contrato social (Santos, B.,
2018a: 355-357). Em via ascendente, por sua vez, trata-se das condi-
ções intrínsecas à profunda assimetria de poder que caracteriza o
cotidiano das relações de produção, sem compromisso com dispo-
sitivos constitucionais de combate à desigualdade, como o valor do
salário mínimo, o que dá motivos ao trabalhador para descrer da
aplicação das leis contra o juízo arbitrário do patrão e das demais
autoridades instituídas, por extensão, e até para desconfiar da sua
própria capacidade de rebater o discurso extraoficial “contrário
à Constituição” de que é preciso abrir mão de direitos para criar
empregos, refletindo sua exposição às práticas elitistas de captura
da subjetividade através da manipulação estratégica do desem-
prego e seus fantasmas (Alves, 2007: 125-128).
Pode-se traduzir o referido antagonismo como luta de classes,
atribuindo-lhe o papel de motor da história à luz do materialismo
dialético, a ponto de torná-la não só o eixo de análise das transfor-
mações políticas, sociais e econômicas do passado, mas também a
chave de desenvolvimento da vocação revolucionária para impe-
lir as contradições do presente em direção à síntese de um novo
futuro (Engels, 1883/1998a: 74; 1888/1998b: 77-78; Marx; Engels,
1848/1998: 40-41, 49-50).
Transpondo-se o quadro da luta de classes a contextos de desi-
gualdades, característicos de regiões periféricas do capitalismo,
principalmente em nações com disparidades históricas como o

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O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 115

Brasil, é possível observar que o sistema de direitos humanos


serve de combustível ao antagonismo em consideração, pois
consiste em fonte de legitimação à exploração do trabalho assa-
lariado pela classe empresarial, de um lado, assim como tantas
vezes compõe, em sentido inverso, inúmeras pautas de contesta-
ção política da classe trabalhadora contra privilégios econômicos
que escancaram o contraste social ostensivo e persistente entre
luxo e escassez, acesso e interdição, domínio e privação (Santos,
S., 2009: 30-34). Já no quarto final do século XX e avançando
em seus efeitos pelo século XXI adentro, vê-se que o cenário
internacional muda de figura com o advento da reestruturação
produtiva, a ascensão do neoliberalismo, a queda do bloco comu-
nista e a consolidação da era digital, à medida que a emergente
elite financeira e tecnocrática não mais se sente comprometida
com as clássicas bandeiras da democracia e dos direitos huma-
nos, seja como expressão de valores civilizatórios inalienáveis ou
como estratagema de contenção ao risco subversivo da luta de
classes, apoiando a difusão renovada de ideologias conservadoras,
reacionárias e fascistas, não só fora dos muros, mas no próprio
seio do capitalismo (Branco, 2012: 19-20; Chomsky, 2002c: 51-52;
2002d: 10-13, 23-24; McChesney, 2002: 4-6; Nunes, 2013b: 21-26).
A imposição da narrativa elitista é favorecida pela erosão da
capacidade de mobilização da classe trabalhadora em decorrên-
cia das novas relações de trabalho que já não seguem o modelo
dos grandes contingentes arregimentados em parques fabris rela-
tivamente estáveis e associativos, senão que apelam a vínculos
laborais cada vez mais precários, fragmentários, intermitentes e
competitivos (Alves, 1999: 79-82, 137-138; 2007: 88-89; Antunes,
2008: 6-9). O próprio apego do movimento sindical a ferramen-
tas de análise conjuntural e estratégica que aludem ao padrão
industrial típico da produção cumulativa de bens duráveis tem
sua parcela de contribuição com o desgaste da resistência coletiva
em consequência das novas condições de volatilização do capital

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116 • Labirintos do labor

financeiro, reengenharia gerencial e flexibilização normativa, as


quais dão base tanto à desenfreada propagação da reestruturação
produtiva como ao crescente efeito de tolerância à injustiça social
(Dejours, 2006: 37-42).
Resumem-se assim alguns pontos críticos na questão dos direi-
tos humanos: significação variável conforme as condições de
vida, presença de pouco impacto no currículo pedagógico, eficá-
cia contida em contextos de desigualdade, sujeição ao prestígio
de segmentos identitários hegemônicos, motivo de disputa entre
detratores e defensores, componente superestrutural da luta de clas-
ses, legitimação da exploração do trabalho, pauta progressista de
contestações políticas, expressão de valores civilizatórios, recurso
ideológico contra riscos subversivos, alvo de ataques por forças
conservadoras e pretexto de intolerância à justiça social.

Relações de produção e poder

Longe de esgotar o debate sobre o assunto, atenta-se para a


multiplicidade de aspectos contraditórios que marcam a inclu-
são dos direitos humanos na arena do conflito de interesses que
opõem capital e trabalho. Desses interesses, talvez o mais expres-
sivo se refira ao sentido do trabalho, percebido como fonte de
dignidade, sustento e realização para o trabalhador, já que pouco
possui além da própria força de trabalho, em contraste com as
conotações que lhe atribui o capitalista, detentor dos principais
meios de produção, para quem o trabalho alheio tende a assi-
milar-se ao caráter de fator produtivo, bem econômico, recurso
humano, insumo de mão de obra, isto é, item oneroso no balanço
de receitas e despesas, largamente sujeito ao estatuto de merca-
doria. Sob o viés competitivo do mercado, não à toa, impõe-se
a contradição do trabalho junto às relações de produção, com os
empregados em luta para valorizar salários e condições, enquanto
os patrões investem na desoneração da folha de pagamento e

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:15


O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 117

na desregulamentação de obrigações trabalhistas. Quanto mais


pender a balança somente para interesses empresariais, maior
será o peso da precarização nas costas da classe trabalhadora, com
crescente interdição de seu acesso aos direitos humanos (Alves,
2007: 112-115; Antunes, 2006d: 125-126; 2009: 47-51; Mendes;
Wünsch, 2009: 242-244). Eis a realidade desigual e contraditória
da globalização, comandada por critérios mercadológicos, sob
o fetiche da ideologia neoliberal, com apelo cada vez mais forte
ao extremismo conservador que investe no patrulhamento de
condutas e costumes para fomentar a resignação, desviar aten-
ções e debelar resistências (Amaral, 2016: 78-82).
Sob novas tecnologias e antigas desigualdades, vale proble-
matizar os direitos humanos à luz da profunda contradição
entre capital e trabalho, tal como se reflete na distinção de senti-
dos atribuídos ao próprio trabalho pelos antagonistas da luta
de classes. Distinção essa que nada mais faz do que exprimir
a oposição de objetivos entre capitalistas e trabalhadores: uns
atrás de lucro e riqueza, outros em busca de sustento e realiza-
ção. É possível encontrar quem imagine ambos com interesse no
mesmo fim, tratando lucro e riqueza como fontes de sustento
e realização. Tamanha sintonia, porém, não resiste à correlação
estritamente negativa entre lucro e salário, na qual é de se presu-
mir que um avance à medida que o outro retroceda. Portanto,
o reajuste salarial tende a contrair a taxa de lucros, enquanto o
arrocho alavanca a rentabilidade. O antagonismo é inerente ao
confronto de sentidos que condicionam o proveito de cada um
no processo produtivo. Visto que a concorrência representa a
própria lógica de operação do mercado, cabe indicar a oposição
de classe que divide patrões e empregados como manifestação
viva da irreconciliável contradição entre capital e trabalho. Desse
modo, considerando a desigualdade de condições e o desequilíbrio
de poder que configuram as relações entre ambos, com os meios
de produção concentrados de um lado e escassos do outro, vale

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118 • Labirintos do labor

assumir a posição de classe do trabalhador como ponto crítico


na problematização dos direitos humanos (Marx, 1867/1996a:
288-293, 347-349; 1898/1996b: 112-115).
Não se pretende aqui reduzir a problemática dos direitos
humanos à contradição entre capital e trabalho, apesar de sua
ascendência na história da cidadania social, dada a difusão de toda
uma gama de exclusões e preconceitos irredutíveis ao aspecto de
classe, evocando marcadores da diferença de complexa intersec-
cionalidade, tais como raça e etnia, gênero e sexualidade, idade e
geração, crença e religião, origem e nacionalidade, entre outros
que compõem as modernas lutas por reconhecimento (Fraser,
2002, p. 7-10; Schwarz, 2008, p. 81-82; 2014, p. 35-39, 48-56).
Sob tal ressalva, justifica-se a escolha pelo enfoque das conexões
entre direitos, trabalho e luta de classes, à medida que se abra
para a ótica das relações de poder, dando peso ao termo final que
comporta a noção de “economia política” (ao inverso de Marx),
do que resulta a aproximação com referências de Foucault sobre
controle, disciplina, discurso, ética, governamentalidade, norma,
resistência, saber e sujeito, entre outras (Revel, 2005, p. 29-30,
35-40, 45-46, 54-55, 65-69, 74-79, 84-85).
A referida escolha se deve à tese de que a análise do poder não
se resume a analogias compatíveis com as propriedades fetichistas
da mercadoria, ainda que se sujeite o trabalho às suas condições
no âmbito das relações de produção, tendo em vista a natureza
do poder como jogo estratégico insuscetível de apropriação, isto
é, como algo que se pratica bem mais do que se possui (Foucault,
1999b: 26-27; 2005: 19-21). Ante o foco estratégico do poder, no
qual cada parte procura dirigir a conduta alheia, torna-se possí-
vel observar o antagonismo de classe pelo prisma do discurso,
assumido enquanto arma de luta e troféu em disputa por forças
rivais (Foucault, 1981: 12-14; 1996: 9-10; 2008a: 118-119, 136-137).
Sob esse prisma, o emprego discursivo dos direitos humanos nos
seus mais diferentes sentidos, em todas as trincheiras do embate

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O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 119

ideológico, quer como tema de tratados internacionais, princí-


pios constitucionais, grades curriculares, pautas reivindicatórias
ou palavras de ordem, quer como objeto de omissões, relativiza-
ções, difamações, distorções, retratações, elucidações ou exaltações
na crítica jornalística, na agenda parlamentar, nas redes sociais
e nas campanhas eleitorais, entre outras arenas de formação da
opinião pública, tudo isso exemplifica a importância atribuída ao
nível superestrutural das elaborações políticas, jurídicas, educati-
vas e culturais em face das condições econômicas, evidenciando
os estreitos elos entre a base produtiva e a cobertura reprodutiva
da pirâmide social (Santos, B., 2018c: 211-216; 2018d: 385-389).
O controle de tais elos pela elite dominante justifica o empenho
em seu desvelamento teórico para melhor enfrentá-la (Engels,
[1887]/1996: 151-154).
À vista dessas considerações, entende-se cabível, para a proble-
matização dos direitos humanos em nações de extrema desigualdade
social, profundo antagonismo de classe e forte disputa ideológica
“tal como o Brasil”, orientá-la metodologicamente para o discurso
do trabalho em colisão com as narrativas do mercado econômico
e do poder político. Trata-se de divisar o trabalho não só enquanto
fator de produção para os patrões e fonte de subsistência para
os trabalhadores, tal como propagam os arautos do emprego de
matriz neoliberal, senão como princípio organizador do desen-
volvimento sustentável que objetiva, por fim, o imediato alcance
da qualidade de vida com dignidade e justiça social. Abdicar de
princípios e fins políticos para dar robustez a meios econômicos
significa encarcerar o direito ao trabalho no calabouço da precari-
zação (Branco, 1998: 316-317; 2012: 9-12; 2014: 262-263).

Artifícios da doutrina neoliberal

Não seria prudente situar o trabalho diante do poder político e


do mercado econômico sem atentar para a reviravolta provocada

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:15


120 • Labirintos do labor

pela crítica neoliberal sobre as bases ideológicas do capitalismo


em seu ataque ao Estado de bem-estar vigente no eixo do mundo
desenvolvido logo após a Segunda Guerra Mundial. Não por
acaso, um período chamado de “Trinta Anos Gloriosos” em
virtude da sólida aliança entre crescimento industrial, consumo
de massa, pleno emprego e proteção social. Uma época de regu-
lação política do interesse econômico sob tributação progressiva
“sem paralelo no Brasil”, renegada pela escassez de recursos para
investir depois de longa crise de estagflação. Engana-se quem
concebe o neoliberalismo como simples resgate da velha razão
liberal que deu subsídio teórico à acumulação capitalista. Entre
tantas distinções devidas ao tempo histórico de cada formula-
ção, é de se considerar o sentido da liberdade que responde pelo
batismo de ambas. Do foco no livre comércio contra a inter-
venção estatal, bandeira clássica do liberalismo, o lastro desliza
para a defesa da livre concorrência o máximo possível, afastan-
do-se o governo tanto do jogo como da fixação de suas regras, as
quais lhe resta apenas garantir, à medida que penetra a competi-
ção econômica cada vez mais fundo no tecido social. Eis como
se chega à doutrina neoliberal do Estado mínimo com vistas à
supremacia da empresa privada em quase todos os setores da
sociedade. Não se trata mais de assegurar a troca de mercado-
rias por efeito do livre comércio, mas sim de promover a disputa
do mercado consumidor através da livre concorrência. O livre
mercado que outrora se buscava tão somente defender, hoje se
entende necessário modelar e constituir (Foucault, 2008b: 157-165,
199-204, 266-285).
Como espelho subjetivo desse deslocamento, vê-se que a livre
escolha para comprar e vender cede lugar à livre iniciativa para
empreender. O que entra em jogo é outro fenômeno. Entre prote-
ger e produzir, a liberdade no mercado de trabalho se transforma.
No mercado que se protege, o trabalhador vende sua força de
trabalho, convertendo-se em contradição viva: mercadoria para o

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:15


O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 121

patrão, mas sujeito de direitos para o Estado. No mercado que se


produz, o trabalhador vira empresário de si mesmo, proprietário
do capital humano preso ao seu corpo, passando a arcar sozinho
com os custos e riscos dessa condição (Foucault, 2008b: 302-312).
Importa salientar o ímpeto do capitalismo em embaralhar os
postulados parlamentares do poder político com os emblemas
liberais do mercado econômico, realinhando-os sob o artifício de
um mercado político a serviço do poder econômico, cujo empe-
nho em direcionar os holofotes ao triunfo do individualismo serve
sobretudo para ofuscar o cerceamento à participação popular em
instâncias deliberativas. No repertório retórico da democracia
liberal, as regras de ouro do poder político e do mercado econô-
mico correspondem, respectivamente, à livre decisão do eleitor
por ocasião do voto secreto que demarca a experiência do sufrágio
universal e à livre vontade entre partes que pactuam cláusulas de
prestação e contraprestação em termos contratuais de vantagens
recíprocas. Já na modalidade artificial de um mercado político
sob tutela do poder econômico, o que prevalece é a livre decisão
reduzida ao endosso protocolar de candidaturas comprometidas
com quem financia suas campanhas, além da livre vontade deca-
ída em mera adesão dos mais frágeis às condições dos mais fortes
(Chomsky, 2002a: 71-72; 2002b: 30-37; 2002c: 53-55; Moraes,
2001: 16-22; Santos, B., 2005: 11-18).
Do liberalismo ao neoliberalismo, a meta é idêntica: acele-
rar o ciclo metabólico do capital à custa do trabalho (Antunes,
2006a: 177-186). A estratégia, por sua vez, comporta rupturas:
já não se requer do Estado que deixe a “mão invisível” livre para
agir, tão somente, mas também que torne competitivo o próprio
regime jurídico dos direitos sociais, a ponto de admitir a desi-
gualdade como premissa necessária à eficácia das leis de mercado
(Foucault, 2008b: 179-199). A julgar pelo impacto perverso dessas
leis, o juízo de sua alegada liberdade soa caricatural, prestando-se
a legitimar um sistema arbitrário que aprofunda a precarização

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122 • Labirintos do labor

dos trabalhadores explorados e a segregação das populações desfa-


vorecidas. Sob esse viés, descortina-se a face excludente de um
conluio político e econômico de vocação corporativa, à feição
da elite rentista e do capital globalizado, sem autêntico interesse
pela regulamentação infraconstitucional dos direitos básicos e do
controle público (Chomsky, 2002a: 80-84; 2002c: 58-65; Santos,
B., 2018a: 370-375).
É típico do neoliberalismo propagandear as liberdades de
competir, consumir e investir praticamente sem restrições. No
entanto, para além das aparências, quando se confronta a publi-
cidade com a realidade, o que chama atenção é o gozo seletivo de
seus benefícios, diretamente proporcional à posição ocupada na
pirâmide social, reproduzindo a lógica da luta de classes: quanto
mais se oferece de liberdades ao arbítrio capitalista, menos sobra
para dar dignidade ao trabalhador. Dada a presença hegemônica
da democracia liberal nos países do autoproclamado “mundo
livre”, para quem exerce autoridade no mais alto nível da riqueza
produtiva, financeira e patrimonial “inacessível a quem vive
do trabalho”, maior é o cabresto econômico capaz de impor às
instâncias políticas internas. Para além das fronteiras nacionais,
o mesmo processo ganha amplitude com a hierarquização do
comando em prol de acionistas majoritários dos conglomerados
mundiais. Assim, o desnível entre o limitado potencial de resis-
tência do proletariado e a concentração de recursos nas mãos da
alta burguesia parece intransponível (Georges, 2017: 11-13, 21-24,
30-33, 69-71; Harvey, 2008: 39-47, 171-178).
Uma porção considerável desses recursos vem sendo alocada
na produção de consenso em torno de um discurso repleto de
apelo conservador a formadores de massa crítica e opinião pública,
com base em teses caras ao cume da pirâmide, tais como a legí-
tima defesa do direito de propriedade, cujo efeito tende a envolver
o que se puser ao alcance do dinheiro, inclusive apoio político,
proteção jurídica e força de trabalho. Eis a senha para converter a

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O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 123

abrangente liberdade de deixar fazer (laissez faire) na prerrogativa


de explorar o trabalhador, submeter a concorrência e interferir
em assuntos de governo, tirando inteira vantagem do consenti-
mento involuntário de quem se encontra vulnerável à tirania do
capital (Chomsky, 2002b: 25-29; Dowbor, 2018a: 120-125; Harvey,
2008: 49-54, 58-64, 71-73). Prerrogativa essa que se cristaliza com
a financeirização em larga escala, à medida que a intermediação
bancária se difunde pelo cotidiano, seja na taxação de qualquer
operação de crédito e débito ou na contratação de empréstimos
a juros compostos, seja na corretagem das crescentes opções de
aplicação especulativa ou na rolagem de títulos da dívida pública,
resultando na generalização dos meios de extração da mais-valia
em favor da acumulação estéril. Na pregação fartamente reverbe-
rada pela voz do mercado, o receituário é invariável: austeridade
nas políticas sociais (menos saúde, educação e direitos trabalhis-
tas para o povo) e liberação dos fluxos de capitais (mais garantias,
dividendos e isenções fiscais para o rentismo). Uma economia
sob medida para 1% da população (Dowbor, 2018a: 126-145,
163-167, 174-185; Hardoon, 2017: 17-30; Hardoon; Ayele; Fuentes-
Nieva, 2016: 18-31).

Coerções de imposição jurídica

Sob mercados políticos sensíveis aos humores de um poder


econômico ditado por interesses financeiros livres de taxas adua-
neiras, a problematização dos direitos humanos no trabalho muda
de tom e escala. Exposto a efeitos globais de precarização, com
degradação das condições de saúde e segurança, intensificação
das exigências de produtividade, achatamento do poder aqui-
sitivo e desmanche das garantias fincadas no tripé da legislação
laboral, da previdência social e da estrutura sindical, o trabalhador
se torna mais refém de vínculos que desagregam sua identidade
de classe e sua resistência coletiva, fortalecendo o adestramento de

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124 • Labirintos do labor

seu corpo e a cooptação de sua mente para o papel de colabora-


dor fiel e comprometido (Antunes; Praun, 2015: 416-423; Mendes;
Wünsch; Oliveira, 2014: 124-126). Modernizam-se as rotinas de
disciplina coercitiva e controle vigilante que promovem, desde
a aurora do liberalismo, a sujeição do proletariado aos propósi-
tos de multiplicar sua energia útil e esvaziar seu risco subversivo
para prover o máximo retorno sobre o capital investido (Foucault,
1999b: 179-184; 2006: 88-91).
Não é de espantar que a formalização das relações trabalhistas
volte a se inspirar em modelos prévios à consolidação dos direitos
sociais e econômicos no século XX, ocultando a exploração sob o
manto de normas codificadas a título de liberdade civil, igualdade
contratual e propriedade privada, à imagem e semelhança de um
mercado movido pela lei da oferta e da procura entre partes indivi-
dualmente constituídas, sem legítima intervenção de representação
classista ou tutela estatal (Alves, 2003: 194-196, 265-270, 307-311;
Antunes, 2018: 323-326). Assim se insere o contrato empregatício
como exemplo típico de um discurso jurídico que consagra a equiva-
lência de obrigações contraídas de livre e espontânea vontade pelos
próprios signatários, de direito, à mesma medida que dissimula
seu papel de chancelar a dominação imposta justamente à pessoa
física do subordinado, de fato. Ao subalterno, pois, incumbe o
dever de obediência durante a jornada, sob pena de sanções cabíveis
por descumprimento das normas vigentes, com base em registros,
exames, sindicâncias e tantas técnicas de avaliação de condutas e
desempenhos, cuja aplicação para fins corretivos e produtivos se
faz a critério exclusivo da chefia ou do patrão (Foucault, 2005:
28-32, 41-46; 2002: 114-122).
Submete-se o trabalhador às humilhações da subserviência
não só porque a necessidade de sobreviver restringe sua margem
de manobra, mas, sobretudo, por conta dessa intrincada rede de
coações normativas e legais que se encarregam de baixar sua guarda.
Em primeiro plano, conjugam-se os fantasmas do desemprego

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O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 125

e da demissão sumária para mantê-lo na linha, mesmo compro-


metendo-lhe a saúde e a integridade. Nos bastidores, reina o
alarido da competitividade e da racionalização econômica que
avivam o clima de medo, necessário para assegurar a cumpli-
cidade operacional e gerencial com estratégias sistemáticas de
desrespeito aos princípios éticos da dignidade profissional, por
iniciativa explícita ou velada da cúpula montada na cadeia de
comando. A todo instante, paira no ar o eco imaginário e subli-
minar da voz de prisão para conter cada arroubo temperamental
ou rebelião organizada contra a ordem ditada de cima a baixo
(Dejours, 2006: 19-25, 73-81, 90-94; Silveira, 2020: 35-38, 43-45).
Norma e lei se combinam para otimizar o ajuste da mão de
obra às exigências da organização de tempos, espaços, modos,
meios, ritmos e rigores prescritos pela administração, sob critérios
que tendem a priorizar a eficiência dos equipamentos instalados
em busca da produtividade visada, recrutando conhecimentos
científicos e procedimentos gerenciais que incidem sobre o ser
humano como objeto sujeito a condicionamentos e modela-
gens. A quem quer que ouse ultrapassar os limites da civilidade,
reserva-se um amplo enquadramento em escala progressiva de
infrações criminais que, nos mais elevados níveis de gravidade,
costuma condenar à privação da liberdade. Eis aqui a função
simbólica exercida pelo sistema penitenciário para a legitima-
ção, ao revés, da governamentalidade inerente às tradições do
liberalismo e do neoliberalismo. Nessa arte específica de gover-
nar a população, se a vida política e econômica passa a gravitar
em torno da liberdade, ao menos em princípio, não é de estra-
nhar que sua supressão adquira o estatuto de punição exemplar.
Tampouco surpreende que a hegemonia do cárcere como destino
da execução penal se tenha instaurado no intervalo histórico
entre a Primeira e a Segunda Revolução Industrial. Quando o
Estado assume a gestão da liberdade como eixo principal de sua
prática governamental, obriga-se a impor rigor exacerbado na

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126 • Labirintos do labor

segurança pública. O dilema reside na distribuição dos pesos e


medidas da liberdade e da segurança no balanço geral das crises
e contradições que configuram as relações entre capital e traba-
lho. Quanto mais se percebe essa distribuição em desequilíbrio,
mais se abrem campos de luta franca ou latente para quem sente
o próprio corpo preso a usos que não lhe pertencem (exploração)
e costumes que não lhe dão valor (segregação). O que implica
em defrontar-se com domínios de poder e saber que negam sua
vez e calam sua voz (Foucault, 1999a: 132-136; 2002: 123-126;
2008b: 86-95).

Elitização da liberdade positiva

Sabe-se o quanto suscita de paixões o tema da liberdade no


tocante aos seus sentidos para a teoria política. Não sem motivo,
integra o seleto grupo de conceitos essencialmente contestados,
suscetíveis de interpretações divergentes que disputam o título de
melhor ponto de vista para a leitura do passado e a formulação do
futuro (Silva, 2011: 1-5). Parte do debate trata da distinção entre
dois modos de lidar com a liberdade na experiência liberal: a nega-
tiva que professa a soberania pessoal contra intromissões na vida
privada e a positiva que advoga a autonomia de ação em prol de
interesses superiores na esfera pública (Silva, 2015: 195-202).
A versão negativa se ajusta à linha do Estado mínimo, gerido
com as bênçãos do alto comando financeiro e tecnocrático de
perfil neoliberal, cujo modo de operar prescinde da democracia,
podendo descartá-la em troca de qualquer regime político que
imponha, sob formas jurídicas e judiciais específicas, a regulação
das relações humanas em contrapartida à desregulamentação dos
mercados de bens, serviços e trabalho (Barata, 2007: 56-60, 80-84).
No caso da versão positiva, não há como dissociá-la do chamado
à gestão coletiva entre pares e à tomada de decisões conjuntas
em nome do bem comum, filiando-se à práxis democrática por

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O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 127

meios tanto participativos quanto representativos, sem desmere-


cer nem privilegiar a proteção do espaço voltado à satisfação das
demandas particulares de consumo e reprodução (Bosch, 2013:
78-79, 84-87; Kretle; Araujo, 2020: 206-212).
Com o mercado político do seu lado, empenha-se o grande capi-
tal em reservar para si as revelações da liberdade positiva, cabendo
a quem trabalha conformar-se com seu reflexo em negativo. Na
maturidade da era neoliberal, como herança nada admirável de sua
obra, expande-se o abismo entre exploradores e explorados, com
controle decisório restrito a quem pode pagar seu acesso ao clube
do ócio criativo. Do lado oposto, oprimido pela crescente escassez
de tempo, decai o subalterno ao limiar da desproteção prescrita no
modelo de negócios por aplicativo (Pochmann, 2020: 57-63). Em
decorrência, impera a sensação de perda total nas contas da justiça
social, com abundante liberdade para excitar as elites e segurança
ostensiva para vigiar as massas. Exime-se o Estado de enfrentar a
desigualdade e efetivar o bem-estar sob pretexto de que compete a
cada um responder pelo mérito do próprio sucesso ou pela culpa
do próprio fracasso. Para quem lota as periferias da riqueza, resta
ostentar o lema da livre escolha em sinal de adesão à carreira de
consumidor. Nada como a retórica da liberdade para dar lastro ao
domínio de classe (Harvey, 2008: 15-19, 197-202; Nunes, 2013a:
18-21; Nunes, 2013b: 5-11).

Considerações Finais: subjetividades em contradição

Quanto mais pende a balança da liberdade para um só lado


em detrimento do outro, maior o desequilíbrio no relaciona-
mento entre ambos. Para quem se submete ao arbítrio capitalista
no trabalho e na política, onde poderá sentir-se à vontade, com
orgulho e altivez, senão no retiro da vida privada? Instala-se a
dominação, portanto, quando a reciprocidade de parte a parte
no uso das liberdades se percebe residual, com a voz de comando

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128 • Labirintos do labor

marchando sempre na mesma direção para obter respostas úteis


e sem contestações. Nesse quadro, configuram-se diferentes
subjetividades a partir do lugar designado a cada um, sob rela-
ções de produção em que o subordinado se constitui como
sujeito disposto a cumprir ordens, à medida que lhe são emiti-
das por quem diante dele se apresenta investido de autoridade
para assim proceder. À luz da luta de classes, com a domina-
ção tomando conta do ambiente socioeconômico, onde elites
e massas formam seus respectivos hábitos de mandar e obede-
cer, talvez só a privacidade permaneça disponível ao proletariado
como lugar e ocasião de se reconhecer com maior gozo de auto-
nomia (Foucault, 2004a: 274-277).
Tais são as condições atuais do trabalho alienado. Já não há
como esperar por um porto seguro no horizonte do neoliberalismo.
Meio século de hegemonia histórica dá provas disso à exaustão. É
um sistema fadado ao fascismo social, com liberação do cassino
financeiro, cooptação do mercado político e desmonte da legis-
lação laboral, dentro do qual se exaltam as liberdades civis para
acobertar o ataque aos direitos sociais. Com a liberdade reclusa
em via negativa para o consumo das massas, abrem-se às elites
novas frentes de exploração em linhas de produção e distribuição
por obra da privatização e do Estado mínimo. Dominação, preca-
rização e segregação são seus meios. Submissão, vulnerabilidade
e resignação são seus fins (Santos, B., 2018e: 653-660). Assim se
forjam as subjetividades do empregador e do empregado sob a
grade de valores do capitalismo, a serviço do mais forte para melhor
se servir do mais frágil, com farto emprego de medidas discipli-
nares e controladoras, padrões de normalização das condutas e
competências, procedimentos de governamentalidade estatística
e algorítmica, fórmulas retóricas de legitimação e persuasão, entre
outros modos de regulação coercitiva. Práticas e discursos se ajustam
para compor tecnologias de saber e poder que sujeitam o traba-
lhador a se enquadrar na função de força produtiva, programável

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O trabalho sob o fundamento dos direitos humanos• 129

e rentável, à mercê do patrão. Tecnologias essas que se sofisticam


com a previsível difusão do teletrabalho e da prestação de servi-
ços por plataformas virtuais, impondo novos fluxos de vinculação
e monitoramento, sem restrições de espaço e tempo, mediante
automação e inteligência artificial, sob a égide da norma digital
(Tirado Serrano; López Gómez, 2004: 139-147).
Ao proletariado, sufocado pelo acúmulo de forças concretas
e simbólicas que colonizam sua subjetividade, caberia indagar o
quanto ainda logra opor de objeção aos assédios do poder esta-
belecido. No cenário da luta de classes, porém, caso se queiram
respostas especialmente reveladoras, é lícito proceder à “inver-
são do ônus da prova”, interrogando o patronato sobre o quanto
ainda requer de reforço aos trunfos de que já dispõe para ditar
sua vontade. Afinal, são nos focos de maior resistência que o
opressor se obriga a exibir suas manobras “em plena luz do dia”,
expondo ao público seus interesses prioritários, recursos materiais
e institucionais, linhas de defesa, considerações racionalizadas
em termos de custo e benefício, entre outras operações. Trata-se,
pois, de rastrear as bases dessas lutas até onde permitam eluci-
dar as estratégias envolvidas na mobilização das técnicas e vias
de dominação, exploração e sujeição (Foucault, 1995: 234-236,
245-247). A identificação dos sentidos do trabalho que aguçam o
antagonismo de classe pode oferecer ao proletariado um campo
aberto não só à análise de tais estratégias, mas, sobretudo, ao
exercício ético e crítico da resistência ao papel subalterno que
lhe é fixado por atos normativos e jurídicos (Foucault, 2004a:
269-273, 284-287).

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Seção 2
Pandemia e os Agravos na
Saúde do Trabalho

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Livro 1.indb 34 24/10/2022 09:32:16
Condições e vivências de trabalho de
professores(as) brasileiros(as) no contexto
da pandemia da covid-19

Carmem Regina Giongo

5
Bruno Chapadeiro Ribeiro
Paulo Roberto Wunsch
Karine Vanessa Perez

A
Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de
2020, em razão da rápida propagação do novo vírus
SARS-Cov-2, classificou a situação como de pandemia
mundial. Em pouco tempo, passou-se a vivenciar um colapso sani-
tário com a superlotação de leitos de internação hospitalar e de
Unidades de Terapia Intensiva (UTI) Covid-19, falta de insumos
e de equipes médicas. Diante disso, inicialmente foram adotados
protocolos de biossegurança, como: uso de máscaras; lavagem de
mãos e emprego do álcool etílico para assepsia; distanciamento e
isolamento social. Ao mesmo tempo, a crise sanitária global desa-
fiou a ciência a produzir um imunizante seguro e eficaz na forma
de vacina para tornar as pessoas imunes ou resistentes à doença
infecciosa da Covid-19. A resposta desse esforço ocorreu alguns
meses após o início da pandemia com o surgimento de vacinas,
as quais, entretanto, tiveram sua distribuição efetuada de forma
desigual. Conforme a OMS, de todos os imunizantes aplicados
até 26 de julho de 2022, por exemplo, a União Europeia vacinou
75,49 % da população com alguma dose ou está com o protocolo
completo, enquanto na África apenas 26,33% estavam nessa situ-
ação (Our Word In Data, 2022).

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:16


146 • Labirintos do labor

Em relação ao contexto brasileiro, houve resistência à adoção


de protocolos de biossegurança e aquisição de vacinas em razão da
posição do Governo Federal de minimização dos efeitos da pande-
mia (Basilio, 2020). No Brasil, o início da vacinação ocorreu em
17 de janeiro de 2021, ou seja, quase um ano após o primeiro caso
confirmado de Covid-19, que foi em 26 de fevereiro de 2020. As
primeiras vacinas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA) para uso emergencial foram as da biofarmacêu-
tica Sinovac, cuja transferência de tecnologia ao Instituto Butantan
possibilitou a produção da Coronavac no Brasil, e da Covishield,
das fabricantes AstraZeneca/Oxford em parceria com a Fundação
Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) (Senado Federal, 2021).
Os impactos psicossociais gerados e agravados pela pandemia
por Covid-19 já foram evidenciados pela literatura recentemente
produzida (Bridi, 2020; Carlos et al., 2020; David et al., 2021) e
seguem demandando intervenções e políticas públicas nos dife-
rentes campos sociais, políticos, econômicos e, principalmente,
de saúde pública. O universo do trabalho também sofreu trans-
formações importantes e toda a classe trabalhadora foi atingida.
No campo da educação os calendários letivos foram suspen-
sos demandando novas formas de pensar o direito à educação.
Em maio de 2020, o Conselho Nacional de Educação autori-
zou a “reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de
cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento
da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-
19” (Conselho Nacional De Educação, 2020). A partir do parecer,
medidas foram implantadas em território nacional, formalizando
orientações sobre o trabalho remoto, formas de avaliação e proces-
sos de ensino-aprendizagem.
As instituições de ensino privadas passaram a implantar atividades
remotas como estratégias de ensino, processo que, gradativamente,
também foi adotado em instituições públicas (Pereira; Santos;
Manenti, 2020). Esta transição gerou uma sobrecarga de trabalho

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:16


Trabalho de professores e pandemia da Covid-19 • 147

aos professores que rapidamente precisaram de adaptar as dife-


rentes ferramentas necessárias para a manutenção do ensino.
Com a suspensão das atividades de ensino presencial houveram
transformações importantes no trabalho dos docentes, tais como:
a necessidade de uso de TICs nas atividades de ensino, a alteração
de materiais didáticos pedagógicos diante das aulas não presen-
ciais, a organização dos conteúdos das disciplinas em plataformas
digitais, realização de aulas virtuais, gravação de aulas em vídeos,
elaboração de materiais pedagógicos a serem distribuídos aos pais
ou enviados por e-mail, criação de grupos em redes sociais para
comunicação, entre outras estratégias. Tais mudanças não dizem
respeito à modalidade educacional de cursos superiores a distância
(EAD) previsto no Art. 80 da Lei 9.394/96, em que estudantes e
docentes realizam atividades educativas em espaço físico e tempos
diversos. Assim como, aqui não se está referindo, ao que preceitua
a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) “a prestação de servi-
ços preponderantemente fora das dependências do empregador,
com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação
que, por sua natureza, não se constituam com o trabalho externo”
(Brasil, 2017). Portanto, trata-se de uma nova maneira de organi-
zar os processos educacionais e o trabalho neste meio.
Estudos recentes mostraram que aspectos como a necessidade
de aprender e manusear ferramentas tecnológicas na modalidade
de ensino à distância, de procurar novas formas de estímulo aos
estudantes, de desenvolver outros modos de vinculação (Pereira;
Santos; Manenti, 2020), além de vivenciar a sobrecarga gerada
pelo acúmulo de tarefas incluindo as atividades domésticas e
de cuidado com a família (Gonzalez et al., 2020), pela ausên-
cia de condições de trabalho como computadores, internet e
mobiliário adequado colocaram os docentes em um estado de
extrema vulnerabilidade.
Cabe destacar que no Brasil existem cerca de 47,8 milhões de
estudantes do ensino infantil até o ensino médio, já no ensino

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:16


148 • Labirintos do labor

superior são 8,6 milhões de alunos matriculados. Este público é


atendido por 2,6 milhões de professores (Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2020). Neste
contexto, é oportuno lembrar sobre as dificuldades de acesso à inter-
net que vem da desigualdade socioeconômica conforme apontado
pela pesquisa TIC Educação 2020, realizada pelo Centro Regional
de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação.
Essa pesquisa evidenciou o abismo digital vivenciado no Brasil:
mais de 8 milhões de estudantes matriculados nas redes municipais
e estaduais de educação básica estão em escolas sem acesso à banda
larga, tecnologia essencial para o ensino virtual. Por sua vez, no
ensino médio, uma em cada quatro escolas nem mesmo possuem
internet para ensino e aprendizagem. Ainda, aproximadamente 6
milhões de estudantes de todos os níveis de ensino não têm acesso
à internet em casa. Em suma, a crise sanitária evidenciou a imensa
desigualdade digital, por exemplo, entre ensino público e privado,
uma vez que 88% das escolas privadas realizaram aulas à distân-
cia por meio de videoconferência, enquanto nas escolas públicas
o acesso a esse recurso foi de 59%. Em relação aos docentes, 89%
não possuía experiência anterior em ensino remoto e a maioria
não recebeu formação para usar tecnologia digital (Cetic, 2021).
No campo da educação as condições impostas pela pandemia
agravaram o quadro de precarização do trabalho já em curso no
Brasil. O trabalho docente é reconhecido há vários anos, pela lite-
ratura nacional e internacional, como uma atividade de risco para
o desenvolvimento de diversas patologias. Além disso, especial-
mente no Brasil, os últimos anos foram marcados por políticas
de desmonte das políticas públicas educacionais, bem como dos
direitos trabalhistas e da seguridade social (Machado; Giongo;
Mendes, 2020; Giongo; Perez; Ribeiro, 2022).
Frente a este cenário foi criado o projeto de pesquisa intitulado
As transformações provocadas pela pandemia do novo coronaví-
rus no trabalho e na saúde mental dos docentes, com o objetivo

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:16


Trabalho de professores e pandemia da Covid-19 • 149

de compreender as mudanças provocadas pela pandemia do novo


coronavírus no trabalho e na saúde mental dos docentes, sendo
coordenado pelos autores deste artigo. A pesquisa ainda está em
desenvolvimento, portanto, serão apresentados neste capítulo resul-
tados preliminares da coleta de dados.

Metodologia

A metodologia deste estudo contou com uma combinação


de técnicas e procedimentos qualitativos e quantitativos, carac-
terizada como mista. A justificativa para esta escolha é a maior
variação de possibilidades para análise dos dados (Creswell, 2007).
A coleta de dados ocorreu entre os meses de junho e outubro de
2021 e contou com a participação de 2.444 professores de dife-
rentes níveis de ensino no Brasil.
Foram aplicados um questionário sociodemográfico, um ques-
tionário que avaliou as condições de trabalho dos docentes, o
inventário Depression Anxiety Stress Scale-21 (DASS-21), que
consiste em um instrumento autoaplicável de 21 itens (Fauzi et
al., 2021) e uma entrevista semiestruturada realizada através da
ferramenta google meet.
A coleta ocorreu na modalidade online, através da ferramenta
google forms. Primeiramente foi realizada uma divulgação do estudo
nas redes sociais, sindicatos da categoria, instituições de ensino e
demais locais parceiros da pesquisa. O público-alvo acessava o link
e, primeiramente, tinha acesso ao Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (TCLE). Apenas após aceitar participar da pesquisa,
o participante tinha acesso ao preenchimento dos instrumentos.
Ao final, os respondentes tiveram a opção de deixar seus conta-
tos para participar da segunda etapa do estudo, que consistiu
em uma entrevista realizada por vídeo. Os participantes desta
segunda etapa foram escolhidos de forma aleatória e previamente
autorizada. As entrevistas foram realizadas pelos integrantes do

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:16


150 • Labirintos do labor

grupo de pesquisa, foram gravadas e, posteriormente, transcri-


tas na íntegra.
A técnica utilizada para a análise dos dados qualitativos foi
a análise temática, que consiste em delimitar os núcleos de
sentido que integram o processo de comunicação, nos quais
a presença ou a frequência com que aparecem signifique algo
visado para o objeto analítico (Minayo, 2014). Do ponto de
vista operacional, essa análise desdobra-se em três etapas prin-
cipais, quais sejam: a) pré-análise; b) exploração do material;
c) tratamento e interpretação dos dados (Minayo, 2014). Os
dados obtidos por meio do questionário foram submetidos a
uma análise estatística no Pacote Estatístico para as Ciências
Sociais (SPSS), versão 16.0.
Cabe destacar que os dados ainda estão em processo de análise
e que serão apresentados neste capítulo apenas materiais parciais.
A pesquisa realizada está de acordo com as Diretrizes e Normas
Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos
(Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016) do Conselho Nacional de
Saúde (CNS), e com as Normas do Conselho Federal de Psicologia
(Resolução CFP Nº 016/2000, de 22 de dezembro de 2000).

Análise e discussão dos resultados

Neste capítulo serão apresentados dados preliminares do


estudo realizado, privilegiando-se as informações coletadas no
questionário sociodemográfico, no instrumento que avaliou
as condições de trabalho dos entrevistados e nas entrevistas
realizadas por meio de plataforma virtual. Visando facilitar a
compreensão e análise do material, os resultados foram divididos
em dois eixos principais: a) Caracterização dos participantes; e,
b) Vivências e condições de trabalho dos docentes.

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:16


Trabalho de professores e pandemia da Covid-19 • 151

Caracterização dos participantes

Os participantes da pesquisa tinham idade média de 42,6 anos,


sendo que 73,1% eram mulheres, 26,4% eram homens e 0,8%
eram homens ou mulheres trans. Quanto à raça, 81,5% se autode-
clararam brancos, 17,4% pretos ou pardos, 1,1% amarelo e 0,3%
indígena. Dentre os respondentes, 67,7% trabalhavam em apenas
uma instituição e 32,6% atuavam em mais de um local. Sobre
a escolaridade, 36,5% tinham especialização, 21,4% mestrado,
19,5% doutorado, 19,1% ensino superior completo, 3% ensino
superior incompleto e 0,5% ensino médio completo. Os estados
com maior número de respondentes foram o Rio Grande do Sul
(56,5%), seguido de São Paulo (18,8%) e Minas Gerais (5,6%).
Cabe destacar que os dados apontam para a existência de uma
divisão sociossexual e étnica do trabalho. Conforme o Censo
Escolar 2020, 81% dos docentes de escolas regulares, técnicas
e EJA, são mulheres. Contudo, a presença de mulheres dimi-
nui à medida que avança o nível das etapas de ensino. Mulheres
correspondem a 96% dos professores da educação infantil. No
ensino fundamental I e II, elas representam, respectivamente,
88% e 67% dos docentes. No ensino médio, o percentual dimi-
nuiu para 58% e, nas instituições de ensino superior, a maioria
dos docentes são homens (Inep, 2021).
No período de coleta de dados, 40,4% dos participantes decla-
raram que estavam atuando na modalidade de teletrabalho, 37,8%
estavam com as atividades parcialmente presenciais e parcialmente
remotas e 20% estavam trabalhando normalmente no modo presen-
cial. Os demais estavam desempregados, aposentados ou afastados
por motivo de doença (1,8%). Quanto ao tempo de atuação como
professores, a maioria trabalhava entre 10 e 20 anos (32%) ou há
mais de 20 anos (29,9%). Os professores estavam com o principal
vínculo de trabalho na educação básica (67,9%), no ensino supe-
rior (18,6%) e nos institutos federais (10%).

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152 • Labirintos do labor

Vivências e condições de trabalho docente

Com relação às transformações laborais demandadas pela situa-


ção da pandemia, os professores disseram que estavam trabalhando
mais (88,8%), fazendo menos intervalos (70,3%), cuidando menos
da postura (78,1%), interagindo menos com os colegas (81,4%),
realizando mais atividades fora do horário de trabalho (81%), reali-
zando mais atividades domésticas (62,9%) e cumprindo metas e
prazos do mesmo modo ou até mais (85,1%). Este cenário aponta
para uma sobrecarga laboral, afinal, os prazos e metas se mantive-
ram os mesmos daqueles exigidos antes da pandemia e as demandas
emocionais e de trabalho aumentaram substancialmente.
A mudança abrupta no processo de trabalho dos docentes em
geral demandou treinamento para o uso das tecnologias digitais,
aliado aos eventuais problemas de conectividade para realização de
encontros virtuais, gravação de aulas, uso de plataforma para dispo-
nibilizar os conteúdos e receber trabalhos, bem como atividades
de cunho administrativo. Todas essas transformações ocorreram
em meio à autocobrança para dar conta desse novo processo e
a pressão de parte da sociedade para o retorno das aulas presen-
ciais. Como resultado, observou-se uma sobrecarga física e mental,
proporcionando um sofrimento prolongado. Conforme a exposi-
ção de uma docente: muita pressão psicológica para dar conta das
demandas de gravação de aulas, sem ter nenhum tipo de subsídios,
suporte técnico para fazer as aulas. Fora as planilhas e planilhas e
planilhas criadas para dar conta do trabalho da orientação peda-
gógica (Participante 1).
Cabe salientar que a pandemia da Covid-19 e suas mutações
genéticas provocaram um ambiente de incertezas quanto à duração,
quanto ao medo de contrair o vírus ou ao medo de que alguém da
família, amigos e colegas de trabalho adoecessem. Segundo o relato
de uma docente: várias pessoas tiveram Covid-19, duas professo-
ras de forma grave e uma delas veio a óbito (Participante 2).

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Trabalho de professores e pandemia da Covid-19 • 153

Tabela 01
Apoio fornecido pela instituição para aquisição de equipamentos
Equipamentos de Trabalho Recebeu Apoio Não recebeu apoio
Internet Banda Larga 13,8% 86,2%
Computador 32,3% 67,8%
Fone de ouvido e microfone 11,1% 88,9%
Mobiliário 8,9% 91,1%
Telefone para uso profissional 5,1% 94,9%

Os participantes ainda confirmaram possuíam equipamen-


tos de proteção individual (máscaras, luvas) (76,7%) e que suas
atividades foram alteradas durante a pandemia (78,9%). Com rela-
ção ao apoio institucional, os docentes afirmaram que receberam
suporte sindical (43%) e que possuíam um canal de comunica-
ção ou de apoio dos estabelecimentos escolares (53,3%). Chama
a atenção o alto percentual de professoras que tiveram reduções
salariais sem redução da carga horária de trabalho (26,25%) e de
professores que tiveram prejuízos nos benefícios oferecidos pela
instituição (43,9%). Uma professora relatou durante a entrevista
que não teve redução salarial durante a crise pandêmica, mas que
sua remuneração ficou estagnada nos últimos três anos, dimi-
nuindo o poder aquisitivo: então a gente vê o que é a diferença de
poder aquisitivo, se o salário deixou de aumentar, há três anos, e
todas outras coisas continuam aumentando, então nesse sentido
a gente perde (Participante 1).
A pesquisa mostrou também que a maioria dos participantes
não recebeu apoio institucional para a aquisição ou melhoria dos
equipamentos necessários para a realização do trabalho remoto,
como pode ser observado na tabela 01 acima.
Além disso, muitos participantes abordaram a sobrecarga de
trabalho gerada pelo acúmulo de atividades, horas extras, neces-
sidade constante de aprendizado de novas ferramentas, realização
de tarefas domésticas, cuidado com os filhos, indissociabilidade

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154 • Labirintos do labor

entre vida dentro e fora de trabalho e necessidade de cumprir


novas metas e atingir resultados, mantendo a qualidade espe-
rada para as aulas presenciais. Este processo pode ser observado
nas falas de algumas entrevistadas: mesmo fazendo meu cantinho
para o home office [...] ainda foi complicado pois não tinha escola
e eu tive que dar conta das atividades escolares da minha filha,
meu esposo também trabalhou no home office então foi a parte
mais difícil, criar essa divisão (Participante 3); fomos obrigados a
disponibilizar outras formas de contato algo mais imediato como
o messenger do Facebook ou o WhatsApp e aí os alunos passa-
ram a nos acionar a qualquer momento (Participante 2). Ademais,
63,8% dos professores declararam ter dificuldades para lidar com
o vínculo, aprendizagem dos alunos, interação e processo avalia-
tivo durante a pandemia.
Estes dados corroboram pesquisas similares realizadas com
professores no Brasil e apontam para a falta de condições mínimas
de trabalho aos docentes (Oliveira, 2020), aumentando os riscos
de danos à saúde destes trabalhawdores e trabalhadoras. Ademais,
a apropriação e o uso dessas ferramentas tecnológicas tiveram
impactos no aumento excessivo da carga horária de docentes e de
cobranças com relação ao seu desempenho, resultando em sinto-
matologias de ansiedade, de fadiga e exaustão (Dantas Vieira;
Arruda; Hashizume, 2021).
Referente aos impactos psicossociais do trabalho, os profes-
sores afirmaram estar dormindo menos (59,7%), comendo mais
(59,8%), sentindo-se cansados (86,35), oferecendo mais suporte
às pessoas (50,6%), sentindo-se mais tristes (71,5%), com mais
dificuldades para planejar o futuro (70,8%), com menos ideias
novas para projetos (47,7%) e mais preocupados (84,9%). Além
disso, 83,4% dos participantes estavam se sentindo mais ansiosos
e 35,2% afirmaram que no contexto da pandemia, para lidar com
a rotina de trabalho, passaram a tomar alguma medicação.

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:16


Trabalho de professores e pandemia da Covid-19 • 155

No que se refere aos sentimentos relacionados ao trabalho, pala-


vras como angustiado, triste, desmotivado, preocupado, perdido,
cansado, exausto, oprimido e sem esperança se destacaram entre as
respostas. Um dado bastante preocupante é que 42,1% dos parti-
cipantes relataram que, diante das vivências de sofrimento mental
relacionado ao trabalho, passaram a repensar a escolha profissio-
nal e a atuação no campo da educação. Uma professora comentou:
as demandas pessoais aumentaram muito e estou mentalmente
abalada. Não queria deixar de trabalhar, mas queria outro ritmo.
Estou fortemente inclinada a pedir uma avaliação psiquiátrica
(Participante 6).
Frente a estes sentimentos e impactos psicossociais relata-
dos, surgiram diversas sugestões de intervenções que poderiam
ser implantadas visando a construção de melhorias no traba-
lho. Todas as participantes registraram ideias de ações, dentre as
quais destacaram-se: implantação de canais de escuta; grupos de
apoio e trocas sobre aulas remotas; redução das metas e prazos;
mais encontros virtuais com os colegas; flexibilização dos prazos
e metas organizacionais.

Considerações finais

Apesar de preliminares e ainda em processo de análise, os


resultados da pesquisa apresentada neste capítulo descortinam o
intenso processo de precarização do trabalho vivenciado pelos (as)
professores (as) brasileiros (as), nos diferentes níveis de ensino. Se
já acompanhávamos o desmonte da educação nos últimos anos,
pautado nos cortes dos investimentos públicos, na estagnação sala-
rial e na precarização das condições gerais de trabalho dos docentes
- a pandemia por Covid-19 intensificou este processo, gerando
danos sem precedentes à saúde física e mental dos professores.
Como autores deste texto e como professores de instituições
de ensino superior, nos sentimos representados pelos relatos

Livro 1.indb 11 24/10/2022 09:32:16


156 • Labirintos do labor

dos participantes da pesquisa e pelos dados gerados neste estudo.


Sabemos que o sofrimento proveniente da desvalorização do traba-
lho docente e da precarização da educação, muitas vezes, imobiliza
e gera desesperança. No entanto, é apenas através do fortalecimento
dos coletivos que podemos encontrar caminhos de enfrentamento
e de resistência. Aproveitamos este espaço privilegiado de fala
para convidá-los a resistir e a dar visibilidade ao nosso contexto
de trabalho através da pesquisa, da educação e dos vínculos que
construímos em sala de aula.

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Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:32:16


Pandemia e saúde mental: um estudo com
profissionais da saúde que atuaram no
combate à covid-19

Daniela Trevisan Monteiro

6
Eduardo Souza Passini
Leonardo Soares Trentin
Andreia Mendes dos Santos
Paulo Antonio Barros Oliveira

O
presente artigo insere-se nos debates acerca da pandemia
ocasionada pelo coronavírus. Nesse âmbito, contemplou-
-se a saúde mental de profissionais da saúde que atuaram
no combate à COVID-19. A pandemia e as ações para contê-la
impactou a saúde mental, por isso, é importante demandar um
olhar diferenciado aos profissionais que desempenharam as funções
assistenciais nesse contexto.
O ano de 2020 será marcado na história da humanidade pelo
início da pandemia da COVID-19, uma das maiores e mais
graves emergência mundial de ordem social, sanitária, cultural e
econômica, embora já tenham havido outras epidemias infeccio-
sas e muito contagiosas, como a peste negra (1347-1351), cólera
(1817-1824), tuberculose (1850- 1950), varíola (1896-1980),
gripe espanhola, tifo (1918-1922), febre amarela e sarampo (até
1963), malária (até 1980) e a AIDS (desde 1981) (Nascimento
et al., 2018). A COVID-19 ocasiona dificuldades respiratórias e
infecção respiratória aguda, sendo responsável pelo aumento de

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:16


160 • Labirintos do labor

atendimento em saúde, elevação do número de hospitalizações


e mortes, afastamento dos trabalhadores da saúde por contami-
nação e o sofrimento mental daqueles que atuam na linha de
frente no combate à doença.
Caracterizada pela rápida proliferação, a pandemia de COVID-
19 provocou importantes transformações no campo da saúde
pública internacional, implicando drásticas medidas de biosse-
gurança, tanto para controle, quanto para prevenção da doença
(Gallasch et al., 2020). Observa-se que, mundialmente, as primei-
ras mortes notificadas por COVID-19 foram de trabalhadores
contaminados durante suas atividades laborais, sendo que, no
Brasil, uma das primeiras vítimas foi uma empregada doméstica
(Leme, 2020). Diante disso, o distanciamento social foi adotado
como estratégia em diversos países afetados, gerando impactos
econômicos, sociais, educacionais, culturais, entre outros. Dentre
essas mudanças, destacam-se as quarentenas, medidas de higiene,
restrições de viagens, suspensão de eventos e fechamento de insta-
lações e fronteiras (Souto, 2020).
Entre os protagonistas das medidas emergenciais, diante
desse cenário promovido pela pandemia de COVID-19, desta-
cam-se os profissionais da saúde que atuaram na linha de frente.
Trabalhadores que, por sua vez, ocuparam um espaço crucial na
garantia de vida das populações, tendo em vista que a emergência
sanitária exigiu dos serviços de saúde rápidas ações às demandas
impostas (Helioterio et al., 2020). Tal situação resultou na rees-
truturação imediata dos serviços de saúde, com a finalidade de
gerenciar efetivamente recursos materiais e humanos, recursos
financeiros, insumos e tecnologias, considerando a complexidade
crescente dos casos e o avanço da pandemia, bem como manter,
ao mesmo tempo, condições de trabalho para proteger e garantir
a segurança dos profissionais (Organização Pan-Americana De
Saúde, 2020).

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:16


Pandemia e saúde mental • 161

No Brasil, contudo, os profissionais da saúde têm enfrentado


condições laborais desfavoráveis, evidenciadas através da falta e
precariedade de equipamentos de proteção adequados, dificuldade
no acesso aos testes de COVID-19, longas jornadas de trabalho,
alta demanda nos serviços de saúde, necessidade de atualiza-
ção rápida para o cuidado em saúde no contexto pandêmico e a
falta de treinamento e capacitações específicas, tal como a tensão
e o medo de serem infectados e de lidar com o adoecimento e
morte de colegas (Figueiredo; Barros-Cordeiro; Name, 2020;
Vedovato et al., 2021). Tais modificações nos processos de traba-
lho traz consigo diferentes condições de saúde dos trabalhadores,
os tornando mais vulneráveis no próprio ambiente de trabalho.
A saúde mental dos profissionais da saúde, por conseguinte,
pode sofrer impactos expressivos, tendo em vista que esses traba-
lhadores ficam expostos a diferentes riscos ocupacionais, como
a própria exposição ao patógeno, mas também a sobrecarga
de trabalho, esgotamento profissional, sofrimento psicológico,
estigmatização e violência física e psicológica (World Health
Organization, 2021). Assim, alguns estudos referem que os
profissionais da área da saúde têm apresentado manifestações
de sofrimento psíquico, tais como ansiedade, depressão, estresse
pós-traumático, pensamentos suicidas e distúrbios do sono
(Vizheh et al., 2020; Giorgi et al., 2020; De Kock et al., 2021).
Frente ao panorama apresentado, diversos são os impactos
provocados pela pandemia aos profissionais da saúde, tanto
no âmbito da organização e condições de trabalho, quanto na
saúde desses trabalhadores. Diante desses efeitos, reunir dados
e indicadores de saúde mental faz-se necessário para compreen-
der os aspectos psicológicos desses profissionais em tempos de
crise sanitária, bem como pensar em possíveis formas de inter-
venção. À vista disso, objetivou-se compreender os prejuízos à
saúde mental de profissionais da saúde que atuaram no combate
à pandemia de COVID-19.

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:17


162 • Labirintos do labor

É diante desse cenário, que se insere a discussão desenvol-


vida neste artigo. Este artigo faz parte de uma pesquisa maior de
pós-doutoramento, intitulada “O enfrentamento dos profissio-
nais da saúde na pandemia imposta pela COVID-19 no Brasil:
trabalho e saúde mental”, tal pesquisa teve como objetivo geral
“investigar os fatores que interferem na assistência em saúde, nas
tomadas de decisões referentes ao tratamento e cuidado e nas
novas configurações da morte de pacientes diagnosticados com a
COVID-19 e analisar os impactos psicológicos e mudanças ocor-
ridas aos profissionais da saúde frente às novas configurações em
suas vidas pessoais, profissionais e na organização do seu traba-
lho, decorrentes do enfrentamento da pandemia ocasionada pela
COVID-19”.
Foi realizado, neste estudo, uma pesquisa de metodologia
mista de levantamento e análise de dados. Essa investigação
teve como amostra 153 profissionais da saúde que atuaram no
enfrentamento da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus,
em hospitais públicos, privados e na rede básica de saúde. Foram
incluídos, assim, os profissionais que atuaram na linha de frente
no enfrentamento da pandemia, atendendo pacientes diagnos-
ticados com COVID-19. Foram excluídos os profissionais que
não realizaram o acompanhamento sistemático aos pacientes.
Como instrumentos de coleta de dados, os participantes da
pesquisa responderam um questionário semiestruturado auto-
aplicável por meio de divulgação nas redes sociais através de link
eletrônico com o endereço da pesquisa. O questionário conti-
nha questões abertas e fechadas, referentes à estrutura hospitalar,
recursos humanos e organização do trabalho na assistência em
saúde e as especificidades da pandemia provocada pela COVID-
19. Além disso, junto ao questionário foi incluída a Depression,
Anxiety and Stress Scale - Short Form (DASS-21). Esta escala
é um instrumento único para avaliar os principais sintomas de
depressão, ansiedade e estresse que possibilita a avaliação dos

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:17


Pandemia e saúde mental • 163

estados emocionais separadamente, eliminando o uso de diferen-


tes instrumentos para avaliar esses fatores (Vignola; Tucci, 2014).
O questionário ficou disponível para respostas no período entre
maio e outubro de 2021. Para a caracterização da amostra foi
realizada uma análise descritiva dos dados dos participantes com
as variáveis categóricas apresentadas em forma percentual. Para
a análise dos dados qualitativos, foi utilizada a técnica da análise
de conteúdo, de Bardin (2011).
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (número de aprovação: 4.664.040). Os entrevis-
tados tiveram participação voluntária, sem coerção institucional
ou psicológica, e instruída com Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido. Por fim, foi garantido que a identidade pessoal
dos participantes permanecerá no anonimato, sendo os mesmos
identificados pela profissão junto do número correspondente a
ordem de resposta no questionário.
O artigo aqui apresentado está organizado da seguinte forma:
na primeira parte - Caracterização dos participantes - apresenta-
-se dados referentes aos participantes, como idade, raça, profissão,
formação, entre outros. O desenvolvimento do texto traz duas
partes sobre a temática: Indicadores de ansiedade, depressão e
estresse entre os profissionais da saúde; Sentimentos e vivências
durante a pandemia. Na primeira, apresenta-se os indicadores
de ansiedade, estresse e depressão encontrados através da auto
aplicação da Escala DASS-21, corroborando com outros achados
da literatura referente à saúde mental dos profissionais da saúde,
como depressão e Síndrome de Burnout. Na segunda parte do
desenvolvimento foram trazidas algumas vivências dos profissio-
nais durante o trabalho e os sentimentos suscitados nesse contexto.
Nesta parte, foram apresentadas algumas falas dos profissionais
para exemplificar e contemplar tais questões. Por fim, apresenta-
-se as considerações finais com os principais achados e reflexões

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:17


164 • Labirintos do labor

sobre as condições de trabalho e possíveis formas de intervenção


na saúde mental dos profissionais da saúde. Assim, este artigo
percorre sobre os aspectos da saúde mental dos profissionais no
contexto da pandemia de COVID-19.

Caracterização dos participantes

O presente estudo foi realizado com 153 profissionais da saúde,


de hospitais públicos e privados e unidades de saúde, nas diferentes
unidades federativas do país, sendo o Rio Grande do Sul o estado
com maior número de respondentes (51%). Em relação à profissão
dos participantes, o maior número de respondentes foram enfer-
meiros, técnicos ou auxiliares de enfermagem (48,4%). A idade
prevalente foi entre 30 e 50 anos (64,7%), sendo a maioria do
sexo feminino (75,8%). Dos participantes, 108 (70,6%) trabalha-
vam em hospital público e 69 (44,8%) trabalhavam em hospital
de grande porte. Os demais dados são apresentados na Tabela 1.

Indicadores de ansiedade, depressão e estresse entre os


profissionais da saúde

Em relação aos resultados da Escala DASS-21, nos indicadores


de ansiedade, 49 (32%) respondentes obtiveram o índice “extrema-
mente severo” e 28 (18,3%) obtiveram o índice “severo”. Estes dois
piores índices correspondem a 50,3% da amostra, evidenciando
alto índice de ansiedade entre os profissionais. Nos indicadores
de depressão, 47 (30,7%) dos respondentes obtiveram os índi-
ces “extremamente severo” e “severo”, indicando grande prejuízo
à saúde mental dos profissionais. Já nos indicadores de estresse,
tais índices representaram 19,6% da amostra. Como demons-
trado na Tabela 2.
Além disso, se somados os índices “leve”, “moderado”, “severo” e
“extremamente severo” os resultados encontrados são: 77,1% para

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Pandemia e saúde mental • 165

Tabela 1 - Caracterização dos participantes


Idade n %
Até 30 anos 34 22,2%
Entre 30 - 50 anos 99 64,7%
Mais de 30 anos 20 13,1%
Sexo n %
Masculino 37 24,2%
Feminino 116 75,8%
Raça/etnia n %
Branca 115 75,2%
Negra 12 7,8%
Outras 26 17%
Profissão n %
Enfermeiro/Auxiliar e Técnico Enfer-
magem 74 48,4%
Médico 23 15%
Equipe Multidisciplinar 56 36,6%
Formação complementar n %
Sim 132 86,3%
Não 21 13,7%
Rede n %
Pública 108 70,6%
Privada 45 29,4%

Fonte: Autores (2022).

ansiedade; 52,5% para depressão; e 50,3% para estresse; demons-


trando prejuízos à saúde mental dos profissionais da saúde durante
os atendimentos na linha de frente no enfrentamento contra a
COVID-19. Tem-se assim, que a grande maioria dos trabalhadores
investigados apresentou algum grau de ansiedade, depressão ou
estresse.
De forma semelhante a estes achados, uma pesquisa realizada
com profissionais de enfermagem durante o período pandêmico

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166 • Labirintos do labor

Tabela 2 - Indicadores de ansiedade, depressão e estresse


Ansiedade no %
Normal 35 22,9%
Leve 8 5,2%
Moderada 33 21,6%
Severa 28 18,3%
Extremamente Severa 49 32,0%
Depressão no %
Normal 42 27,5%
Leve 26 17,0%
Moderada 38 24,8%
Severa 19 12,4%
Extremamente Severa 28 18,3%
Estresse n %
Normal 76 49,7%
Leve 26 17,0%
Moderado 21 13,7%
Severo 10 6,5%
Extremamente Severo 20 13,1%
Fonte: Autores (2022).

evidenciou que 39,6% e 38% apresentaram sintomas moderada-


mente severos ou severos de ansiedade e depressão, respectivamente
(Santos et al., 2021). Em relação ao estresse, uma outra pesquisa
realizada com trabalhadores atuantes em unidades de saúde na
pandemia mostrou que 47,7% apresentaram sintomas de estresse
(Silva-Costa; Griep; Rotenberg, 2022), corroborando os resulta-
dos do presente estudo.
Ademais, um estudo realizado com profissionais da saúde
demarcou a vulnerabilidade ao sofrimento emocional no contexto
de atendimento à COVID-19. Foram evidenciados sintomas
sugestivos de alto nível da Síndrome de Burnout e de quadro

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:32:17


Pandemia e saúde mental • 167

depressivo clinicamente significativo (Moser et al., 2021). Os


autores ainda sugerem que os profissionais da saúde necessitam
ter a saúde mental regularmente monitorada, principalmente no
que se refere aos escores de depressão, ansiedade, esgotamento
e risco de suicídio.
A síndrome de Burnout é caracterizada como uma resposta
prolongada a estressores interpessoais crônicos no trabalho, cujos
efeitos podem ser a exaustão emocional, despersonalização e baixa
realização pessoal. Em função disso, torna-se imprescindível o
acompanhamento psicoterápico e farmacológico, bem como inter-
venções individuais e coletivas – com os profissionais de saúde - e
organizacionais – no ambiente estressor – tendo como objetivo a
redução dos níveis de estresse no trabalho (Perniciotti et al., 2020).
Em comparação com os índices de saúde mental obtidos pela
população em geral durante a pandemia, pesquisas conduzidas
com o mesmo instrumento psicométrico - DASS-21 - indica-
ram valores de estresse, depressão e ansiedade mais baixos que os
obtidos neste estudo, apesar de também constatarem uma maior
prevalência na subescala de ansiedade (Verma; Mishra, 2020;
Riaz; Abid; Bano, 2021). Essa distinção também é evidenciada
por outro estudo que avaliou diferentes profissões por meio da
escala DASS-21 e inferiu que os profissionais da saúde estavam
mais vulneráveis a esses agravos psicológicos (Du et al., 2020).
Frente a esses indicadores, depreende-se que a as transfor-
mações no âmbito do trabalho, bem como nas formas de viver
e de adoecer dos trabalhadores, provocadas pela emergência da
pandemia de COVID-19 impactou diretamente a saúde mental
dos profissionais da saúde que estavam no centro dos esforços no
combate à doença. Dessa maneira, é importante destacar que os
processos de saúde-doença não são exclusivos ao trabalhador-indi-
víduo, mas sustentam-se em fatores sociais, culturais, econômicos,
entre outros, ao qual o mesmo se insere (Buss; Pellegrini Filho,
2007). A identidade do trabalhador, portanto, encontra sua

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168 • Labirintos do labor

constituição a partir da organização social e do trabalho, sendo


necessário, para compreender as consequências do trabalho na
vida desses profissionais, analisar sua conjuntura social, econô-
mica e cultural (Mendes, 2003).
Entende-se, por fim, que os profissionais da saúde, ao esta-
rem diretamente envolvidos no combate à pandemia, também
estão intimamente implicados nos cuidados aos pacientes diag-
nosticados com COVID-19. No entanto, pouco se discute sobre
as condições e organização do trabalho e sua relação com a saúde
mental desses trabalhadores, dando ênfase à protocolos de medi-
das de biossegurança, como de uso de equipamentos de proteção,
ou tão somente dados estatísticos sobre agravos à saúde mental,
desconsiderando suas vivências e narrativas, de forma qualitativa.
Nesse sentido, faz-se necessário avançar na discussão acerca da
percepção desses profissionais frente ao contexto experienciado
neste período pandêmico.

Sentimentos e vivências durante a pandemia

Corroborando os achados da Escala DASS-21, os profissionais


da saúde também responderam outras questões que revelaram
algumas dificuldades, no período da coleta, em relação ao traba-
lho na linha de frente. Ao questionar se os participantes sentiram
algum efeito físico ou psicológico diante da nova demanda de
pacientes com COVID-19, 136 (88,9%) profissionais da saúde
afirmaram já ter sentido esses efeitos. Os sintomas mais frequen-
tes foram: aumento do estresse (113 respostas, 81,9%); sensação
de cansaço (113 respostas, 81,9%); insônia (69 respostas, 50%);
e dores de cabeça frequentes (57 respostas, 41,3%).
O cotidiano dos profissionais da saúde é permeado por um
conjunto de angústias e obstáculos, podendo atuar tanto como
fonte de saúde, quanto de adoecimento. Se, por um lado, há
a possibilidade de aliviar a dor e o sofrimento e salvar vidas,

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:17


Pandemia e saúde mental • 169

considerando o trabalho como fonte de prazer e favorecendo o


equilíbrio psíquico, por outro lado, constantemente esses profis-
sionais se deparam com sofrimentos, medos, conflitos, tensões,
mortes, entre outros fatores próprios do ambiente hospitalar,
que podem resultar no sofrimento psíquico (Martins; Robazzi;
Bobroff, 2010). No entanto, essas dificuldades frequentemente
identificadas no trabalho em saúde, acentuaram-se durante a
pandemia (Helioterio et al., 2020). É nesse contexto de emergên-
cia sanitária que, com a precariedade das condições e organização
do trabalho, o sofrimento emerge.
Quando perguntado a esses profissionais qual foi o pior
momento ou situação vivenciado durante o trabalho na pande-
mia, os relatos versaram sobre: “a segunda onda” (Médica/o, 129);
“alto número de mortes diárias e mortes rápidas” (Fisoterapeuta,
76); “perder colegas de trabalho” (Auxiliar ou Técnica/o de
Enfermagem, 13); “comunicar a morte a um familiar de um
paciente jovem” (Enfermeira/o, 65); “momento de escassez de
recursos” (Psicóloga/o, 5); “a intubação de pacientes na UTI, a
rotatividade de pacientes com COVID que vinham sempre a
falecer e meu psicológico que foi acabando ao ver todo dia essa
rotina” (Auxiliar ou Técnica/o de Enfermagem, 2); “participar
de grupo de apoio a decisões difíceis sobre alocação de recur-
sos e definição de pacientes com prioridade para leito de CTI”
(Assistente Social, 3); “ter receio do contágio e medo de transmitir
para alguém” (Psicóloga/o, 24); “momento de stress no início da
pandemia, onde tudo era novidade, e no mês 04/21, no terceiro
pico da pandemia, onde falta leitos, EPIs, oxigênio e profissionais
para suprir a demanda de pacientes” (Enfermeira/o, 17); entre
outras respostas tão significativas quanto estas. É importante
ainda ressaltar que 113 (73,9%) dos profissionais da saúde que
participaram do estudo perderam algum familiar, colega ou amigo
com o diagnóstico de COVID-19, no momento da pesquisa.

Livro 1.indb 11 24/10/2022 09:32:17


170 • Labirintos do labor

Estes profissionais são formados para curar e salvar vidas, e a


prática entra em conflito, muitas vezes, com essa premissa. A morte
expressa a falibilidade da ciência médica e, consequentemente, a
impotência de salvar todas as vidas. A certeza da finitude não
encontra espaço no ambiente hospitalar, o que produz sofrimento
aos trabalhadores. Soma-se a esses fatores a situação pandêmica
trazida pelo novo coronavírus, desmascarando a necessidade de
se trabalhar a morte no contexto hospitalar e o sofrimento dos
profissionais, tendo em vista que suprimir os sentimentos que
podem emergir nessas situações, frequentemente associadas a
mortes prematuras e dilemas éticos, não permite ao trabalhador
enfrentar e elaborar esse cotidiano de maneira mais eficaz. Além
disso, o distanciamento no contexto de cuidado gera atendimen-
tos técnicos, voltados às questões biológicas da doença, excluindo
outras dimensões e inviabilizando um atendimento humanizado.
Nesse sentido, ao final do questionário foi perguntado se os
participantes gostariam de fazer algum comentário sobre seus
sentimentos ou vivências durante o período de pandemia. Entre
as respostas relacionadas à saúde mental dos profissionais, é possí-
vel citar: “Foi o pior momento da minha vida profissional de 25
anos na enfermagem, a sensação de impotência era muito grande,
além do luto diário das pessoas ao redor, amigos, familiares e cole-
gas de trabalho” (Enfermeira/o, 108); “Cheguei a ir ao médico com
vários sintomas de ansiedade, constatado pela médica. Encaminhou
para o psicólogo” (Enfermeira/o, 153); “Eu sou Ouvidora de um
hospital de alta complexidade e vivi junto com a equipe de assis-
tência, pacientes e familiares a angústia de algo totalmente novo e
que mata. A insegurança e incerteza, além do aumento de trabalho
foi extremamente angustiante e desgastante” (Ouvidora/o, 78);
Foi muito complicado lidar com toda esta situação. Nos últimos
meses pedi afastamento do trabalho. Estou trabalhando em sistema
de plantões de forma autônoma. Estou tomando ansiolíticos e
fazendo acompanhamento com o médico de família na UBS. Nas

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:32:17


Pandemia e saúde mental • 171

últimas semanas tenho sentido fortes dores no peito, taquicardia,


apnéia. Sensação de cansaço mesmo sem esforço. (Cuidadora/o
de idosos, 75)
Sempre fui uma pessoa calma que soube lidar com as situações
na UTI, mas com a pandemia vi que me afetou psicologicamente
e me fez ter mais preocupação de como os funcionários estavam
lidando com tudo. Essa é uma angústia muito grande que tenho
porque apesar do serviço disponibilizar o atendimento psicoló-
gico, não dá pra todos passarem, tem aqueles também que não
vão no atendimento por diversos motivos. O clima diário é de
pressão, de liberar leito para internar, a inexperiência de alguns
me deixa angustiada porque não conseguimos preparar a pessoa
para o ambiente, ela tem que aprender na pressão e cada um tem
seu tempo de aprendizado, isso faz com que aumente o número
de erros. (Enfermeira/o, 60)
Diante de tais relatos, torna-se nítido que, apesar do traba-
lho intenso ser parte do cotidiano dos profissionais da saúde no
ambiente hospitalar, a pandemia ultrapassou a capacidade de assis-
tência dos mesmos, em razão do aumento exponencial da demanda
e da alta complexidade do paciente com COVID-19. Dessa forma,
fez-se crucial a criação de unidades de UTI para dar suporte aos
pacientes, visto que estas dispõem de tecnologias e equipamen-
tos avançados que monitoram constantemente pacientes críticos
(Marques et al., 2021). No entanto, em virtude da ausência de
conhecimento científico sobre o comportamento do vírus e da
evolução da doença e, por conseguinte, sobre sua forma de manejo
e tratamento adequado, principalmente no início da pandemia,
houveram constantes mudanças na estrutura física, fluxos e proto-
colos institucionais, o que acarretou impactos nos processos de
trabalho e ainda, suscitou incertezas e apreensões nos profissionais
da saúde quanto a execução da assistência (Chamboredon; Roman;
Colson, 2020; Rodrigues; Silva, 2020).

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172 • Labirintos do labor

Somado a isso, a diminuição do quadro de profissionais


da saúde, já que alguns desses pertenciam aos grupos de risco,
ocasionou uma sobrecarga de trabalho e de funções para os
mesmos, bem como exaustão física e emocional. Sendo que
houve profissionais que solicitaram afastamento ou até mesmo
pediram demissão da instituição onde trabalhavam por motivos
psicológicos (Reis et al., 2020). À vista disso, Santos, Almendra
e Ribeiro (2020), ressaltaram que tal conjuntura provocou
uma desordem subjetiva dos profissionais da saúde, desenca-
deando uma experiência de desamparo e impotência diante do
contexto pandêmico.
Os profissionais da saúde apresentaram desconforto no
decurso do seu trabalho e essa impotência profissional demons-
tra o desamparo e incerteza destes. Com isso, evidencia-se a
importância da saúde mental desses trabalhadores. O traba-
lhador não chega ao seu local de trabalho como uma máquina
nova; para além de profissional da saúde, há um sujeito. Ele
possui uma história pessoal que se revela através da qualidade
de suas aspirações, desejos, motivações e necessidades psicológi-
cas que fazem parte dessa sua história. Isso atribui a cada sujeito,
características singulares (Dejours, 1994). Assim, o trabalhador
deve ser percebido em sua integralidade, pois sua experiência
não pode estar desvinculada de seu trabalho (Mendes, 2003).
Tem-se, então, que a realidade do trabalho deve ser compre-
endida não apenas como técnica, através de dados objetivos e
instrumentais, mas igualmente pelo seu aspecto social, relações
de cooperação e compreensão, e por sua subjetividade. Tal reali-
dade abrange mobilização, investimento pessoal, singularidade,
cognição, imaginação e criatividade, fatores indispensáveis na
efetivação do trabalho (Oliveira, 2009). Dessa forma, o processo
saúde-doença não pode ser analisado excluindo-se o contexto
em que ele acontece; assim como não se pode dele excluir o
sujeito que sofre.

Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:32:17


Pandemia e saúde mental • 173

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo compreender os prejuízos à


saúde mental de profissionais da saúde que atuaram no combate
à pandemia de COVID-19. Para tanto, foram trazidos os indi-
cadores de ansiedade, depressão e estresse entre os profissionais
da saúde; como também relatos sobre os sentimentos e vivên-
cias durante a pandemia. Buscou-se refletir sobre a saúde mental
daqueles que estavam atuando no cuidado ao paciente diag-
nosticado com COVID-19.
No início da pandemia, inúmeras incertezas sobre a doença
e o tratamento, somado com a alta demanda e a falta de insu-
mos, dificultaram o trabalho dos profissionais. Além disso,
lockdown, isolamento e distanciamento de amigos e familiares,
e as numerosas perdas, acarretaram impactos na saúde mental
de todos, incluindo, como tratado neste artigo, os profissionais
da saúde. Haja vista o número de participantes que obtiveram
os mais altos índices (extremamente severo e severo) nos indi-
cadores de ansiedade (50,3%); depressão (30,7%); e estresse
(19,6%), tem-se, ainda, que a grande maioria dos trabalhado-
res investigados apresentou algum grau de ansiedade, depressão
ou estresse, demonstrando prejuízos à saúde mental dos profis-
sionais da saúde durante os atendimentos na linha de frente no
enfrentamento contra a COVID-19.
Os relatos dos profissionais também evidenciaram que a
pandemia trouxe prejuízos à saúde mental. 88,9% dos parti-
cipantes afirmaram já ter sentido efeitos físicos ou psicológicos
devido à pandemia. Dá-se destaque ao aumento do estresse (113
respostas, 81,9%) e sensação de cansaço (113 respostas, 81,9%).
Os sentimentos e vivências decorrentes da pandemia apresenta-
dos nos exemplos no decorrer do artigo, deixaram claro que os

Livro 1.indb 15 24/10/2022 09:32:17


174 • Labirintos do labor

profissionais tiveram seu trabalho e vida pessoal afetados nega-


tivamente por essa situação.
Os achados desta investigação corroboram com outras pesqui-
sas publicadas. Tendo ciência que a saúde mental dos profissionais
da saúde está fragilizada frente ao contexto pandêmico, torna-se
necessário intervir em busca do melhor bem-estar destas pessoas.
Tais medidas podem incluir a melhoria das condições de traba-
lho, como diminuir a defasagem de profissionais contratados nos
hospitais para alcançar a demanda; disponibilidade de recursos e
treinamentos, bem como assistência psicológica no próprio local
de trabalho. Porém, não basta prover assistência se o profissio-
nal não possui tempo de buscá-la no seu turno de trabalho. Para
tanto, é preciso estar atento às reais necessidades dos profissio-
nais, oferecendo um tempo de descanso e de assistência; como
também realizar busca ativa nas unidades de atendimento àque-
les que demonstram interesse em receber apoio psicossocial.
A saúde mental precisa ser valorada entre aqueles que provêm o
cuidado do outro. O trabalho deve ser meio estruturante, essencial
na constituição do sujeito, não devendo ser meio de esgotamento
físico e mental. Por isso, para que se tenha qualidade no cuidado
prestado, além de condições adequadas de trabalho, é preciso ter
um olhar atento à saúde mental, provendo acolhimento e apoio
psicossocial àqueles que necessitam através de intervenções indi-
viduais e coletivas com os profissionais de saúde, e organizacionais
no ambiente estressor.

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Pandemia e saúde mental • 179

Seção 3
Serviço Público, Políticas
Sociais e Saúde do
Trabalho

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Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:17
Trabalho e Saúde das(os) Assistentes Sociais
diante do desmonte da Seguridade Social

Tatiana Reidel
Dolores Sanches Wünsch

7
Jussara Maria Rosa Mendes
Edvânia Ângela de Souza
Tuane Vieira Devit
Anderson da Silva Fagundes

N
este artigo, objetivamos compartilhar a sistematização
realizada de modo solidário e coletivo que se estabe-
leceu por meio da articulação de grupos e núcleos de
pesquisa, a partir de uma pesquisa nacional que possibilitou
articulação interinstitucional. O mesmo aborda e problema-
tiza um conjunto de questões relacionadas com a realidade que
permeia o trabalho e saúde das/os assistentes sociais, traba-
lhadoras/es das políticas que compõem a seguridade social
brasileira, ou seja, nas políticas de Saúde, Assistência Social e
Previdência Social. Evidencia-se a realidade de desmonte das
políticas públicas e precarização do trabalho, que se particula-
riza após 2016, com o golpe jurídico-parlamentar-midiático e
o processo de contrarreformas. Este processo tem como direção
a retirada de direitos, cortes de recursos públicos para as políti-
cas sociais e consequente sucateamento dos serviços, atingindo
profundamente as condições de trabalho das/os trabalhadoras/
es dessas políticas.

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182 • Labirintos do labor

Em face ao exposto neste contexto conjuntural, a investigação


integra uma pesquisa em nível nacional intitulada: “Processo de
trabalho e saúde das/os assistentes sociais que atuam nos serviços
de Seguridade Social no Brasil”1. Apresenta-se parte deste estudo2
que teve como objetivo identificar o contexto do trabalho e os
impactos na saúde das/os assistentes sociais, a partir do recorte da
região sul do Brasil, abarcando os estados do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná.
Para a análise das determinações sobre o trabalho, na contem-
poraneidade, quando trata-se do trabalho da/o assistente social, é
imprescindível reconhecer o papel do Estado na sua direção e condu-
ção nas políticas sociais, identificando os processos e condições de
trabalho profissionais.
O atual quadro da crise capitalista e as estratégias do capital
sobre o trabalho, está atravessado pelas alterações que atingem as
alterações do papel do Estado e as condições e relações de trabalho
nas distintas políticas sociais o que exige, dentre outras questões,
uma reconfiguração no campo das políticas públicas, como media-
ções que se constituem para o enfrentamento da questão social.
Compreende-se que o Serviço Social se constitui como uma
profissão historicamente determinada, partícipe dos processos de
trabalho, sobretudo a partir da consolidação da ordem monopó-
lica do capital. Deste modo, as/os assistentes sociais ao se inserirem
historicamente na divisão social e técnica do trabalho, como uma
especialização do trabalho coletivo, se afirmam como trabalhadoras/
es assalariados e vivenciam um processo de saúde-doença perme-
ado por determinantes e condicionantes que incidem nas formas
de adoecimento da classe trabalhadora. Para Seligmann (2011) a
desestruturação do trabalho passou a ser uma fonte acionadora de
pressões sociais e mentais causadoras de adoecimento.
Os dados da pesquisa evidenciam os impactos no traba-
lho e saúde das(os) assistentes sociais diante do desmonte das
políticas de seguridade social. Demonstra-se, que a Emenda

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 183

Constitucional nº 95 (EC 95) de dezembro de 20163, a qual


congela os gastos públicos na área social, como a política de
saúde, por 20 anos, impõe sérias consequências para as políticas
sociais, por exemplo, a Política de Saúde, que já enfrentava, antes
mesmo da EC, nº 95, o histórico subfinanciamento e as diver-
sas tentativas e modelos de privatização da política de saúde, em
consequência, resulta no sucateamento do setor, agravado pelo
avanço do conservadorismo e aprofundamento do neoliberalismo.
Observa-se que as contrarreformas da política de previdência
social se agravaram com a aprovação da PEC 103 de 20194, repre-
sentando o mais duro golpe nos direitos previdenciários. Ademais,
ganham novos retrocessos acompanhados dos processos de rees-
truturação dos serviços prestados diretamente pelas Agências da
Previdência Social, que estão sendo transpostos, ao menos desde
2017, para a esfera digital, afastando os indivíduos das Agências e
do acesso aos direitos, Souza (2021; 2022). Além das constantes
e sucessivas tentativas de desmonte do Serviço Social previden-
ciário no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Com a ascensão do neoliberalismo, o Estado fortalece sua
relação com o mercado, abandonando instrumentos de controle
político, restringindo a alocação dos recursos públicos, dimi-
nuindo suas funções e reforçando as ações de natureza privada.
Em meio a isso, a Política de Assistência Social que se cons-
tituiu como direito a partir da Constituição Federal de 1988,
integrando o tripé da Seguridade Social, sofre profundas mudan-
ças estruturais nas relações sociais e políticas, demarcando a
minimização do Estado na proteção social. Em que pese que
o aumento expressivo da categoria profissional, inserida na
política de assistência social, a partir da instauração do SUAS
no Brasil, vem ocorrendo, no contexto atual, uma ampliação
e crescente precarização do trabalho profissional nessa política.
Tal processo é decorrente do desmonte da política pública e do
papel das gestões municipais e estaduais, que se valem, cada vez

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:17


184 • Labirintos do labor

mais, das parcerias público-privadas para o repasse dos serviços


públicos para a gestão privada, embora sob as modalidades de
organizações colocadas como “sem fins lucrativos”.
Nesta direção, a política social é orientada pelos princípios
da focalização (voltada para setores de extrema pobreza), pela
descentralização (instituem-se formas de gestão locais) e pela
privatização. E, ainda, sua efetivação é permeada pelo princípio
da menor elegibilidade (ligado a mecanismos de seletividade)
e pela incerteza do não direito.
A presença das Organizações Sociais (OS), Organizações
da Sociedade Civil (OSC), entre outras inúmeras formata-
ções presentes em todas as áreas da gestão pública, têm fortes
impactos para as políticas sociais, especialmente, na área da
assistência social, onde o assistencialismo e o não reconheci-
mento do direito sempre foram recorrentes. Tal reconfiguração
comparece também na precarização dos vínculos trabalhistas
como indicado pelas/os participantes da pesquisa.
Assim sendo, ao discutir sobre as políticas sociais e os seus
desdobramentos se faz necessário considerar as refrações do
desmonte, a desestruturação dos serviços e o papel da gestão
dessas políticas nos processos de trabalho que se inserem (as)
os Assistentes Sociais, e que impactam sobre a sua saúde, serão
evidenciados na sequência deste artigo. Para tal, será apresen-
tada como se manifesta e se particulariza essa realidade, em
cada política da Seguridade social, dando destaque e visibili-
dade às falas das respondentes. As falas serão identificadas tendo
como referência a letra “S” para respondentes que trabalhavam
na Política de Saúde, a letra “P” para a Previdência Social, e
letra “A” para as/os respondentes que trabalhavam na política
de Assistência social, seguido do número que caracteriza a/o
respondente.

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 185

Política de Saúde: impactos da precarização e do desfinan-


ciamento estrutural

O Serviço Social se constitui como uma categoria de profunda


importância para a construção, execução e defesa da Política de
Saúde brasileira, desde os tempos do Movimento de Reforma
Sanitária Brasileiro (MRSB) até os dias atuais. O trabalho da/o
assistente social na Política de Saúde é permeado por diversas
complexidades, advindas das demandas apresentadas no cotidiano.
Em tempos de desmonte e sucateamento das políticas públicas
e do acirramento do conservadorismo e do neoliberalismo, tais
complexidades são ainda mais profundas, impactando diretamente
no processo de trabalho, sofrendo transformações constantes.
Como exemplos destas transformações, destaca-se a Emenda
Constitucional nº 95 (EC95), de dezembro de 2016 (Brasil, 2016),
já referida em linhas precedentes, a qual congela os gastos públicos
na área social, como a política de saúde, por 20 anos. Assim como
a Lei nº 13.429 (Brasil, 2017a) e a Lei nº 13.467 (Brasil, 2017b),
que permitiram a terceirização irrestrita do trabalho e da produ-
ção e promoveram mudanças importantes na Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), respectivamente. Tais medidas se tradu-
zem em condições de trabalho precárias e vínculos flexibilizados,
além do sucateamento do SUS e impacto direto nas condições
de saúde da população, resultando em demandas complexas para
a/o assistente social.
Com relação ao trabalho das/os Assistentes Sociais na saúde,
Lourenço et. al. (2019: 156) afirmam que tais trabalhadoras/es:

podem enfrentar profundo desgaste biopsíquico ante a precari-


zação dos serviços e o contato constante com demandas sensíveis
que traduzem histórias de vida de crianças, adolescentes, mulheres,
idosos e pessoas com deficiência, imersos em contextos de desem-
prego, subemprego, violências, doenças, drogadição etc. que exigem

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186 • Labirintos do labor

dos(as) profissionais respostas capazes de encontrar possíveis alter-


nativas de ação, que garantam não apenas o direito às políticas
sociais, mas o enfrentamento daqueles problemas.

É também fundamental trazer à tona a crise política e ofensiva


ideológica vivenciada a partir do golpe de 2016 e recrudescida
atualmente, em face ao Governo Bolsonaro. O avanço do conserva-
dorismo, em todos os níveis de gestão (união, estados e municípios)
interfere na gestão da política pública e na forma de organização
dos serviços de saúde territoriais, rompendo construções históricas
no campo da saúde e sofrendo forte tensão quanto à privatização e
precarização. É também inegável a tendência, principalmente em
pequenos municípios, de tornar a saúde uma política de governo
e não de Estado, muitas vezes usada como mecanismo político-
-partidário para o ganho de votos com a população, na troca de
direitos que são oferecidos como “favores” ou “ajuda” da gestão.
Em convergência a este contexto, os interesses políticos na
gestão de uma política pública, como a Saúde, foram evidencia-
dos nas falas das/os participantes. O cotidiano das instituições e
do atendimento realizado pela/o assistente social às/aos usuárias/
os é impactado e influenciado pela hierarquização da gestão, que
muitas vezes é ocupada por um cargo comissionado, o qual repre-
senta vieses políticos e ideológicos, acaba por exercer um controle
e limitar a ação da/o assistente social no local de trabalho, ou
ainda estipular ações que não condizem com o projeto ético polí-
tico da profissão.
A situação pode ser mais bem elucidada pela fala da participante
S01, a qual discorreu que: “(...) procuram tentar nos “calar” quando
nos posicionamos tecnicamente e eticamente diante de algumas situa-
ções que vão ao contrário dos seus interesses”. Ainda, de acordo com
esta situação, a(o) participante S02 concluiu que as dificuldades
encontradas são: “a mudança de gerências e os interesses políticos”.

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 187

A participante S03 ressaltou que: “corre-se o risco de trocar de


gestor e, nesse sentido, tudo é possível”, indicando que a rotatividade
implica na descontinuidade dos planejamentos e do processo de
trabalho, e, ainda, na incerteza do futuro das ações. Tal questão
também apareceu na fala da participante S01, quando relatou
sobre “a indicação de um gestor imediato que não tem conheci-
mento especializado na área e se dedica diariamente à politicagem
dentro da instituição”. Destarte, foram recorrentes as falas rela-
cionadas sobre o impacto da rotatividade da gestão na atuação
da/o Assistente Social, muitas vezes por conta da visão conser-
vadora, em uma lógica biomédica de cuidado, sem compreensão
da importância do trabalho multidisciplinar e da atuação do
Serviço Social na Saúde, apenas interessada nos interesses polí-
ticos a qual representa.
Com relação ao clientelismo político, Paim e Teixeira (2007:
1823), em artigo referente aos problemas e desafios da configuração
institucional do SUS, o apresentam como nó crítico, relativo ao
desenho (estrutura organizacional) e ao processo de gestão do SUS.
Aprofundando, os autores referem como problema estrutural a:

Falta de gestão profissionalizada, ou seja, persistência de marcado


“amadorismo” na gestão do sistema em todos os níveis, tanto pela
escassez de quadros qualificados ao exercício das múltiplas e comple-
xas tarefas relacionadas com a condução, planejamento, programação,
auditoria, controle e avaliação, regulação e gestão de recursos e servi-
ços, quanto pelo fato da persistência de clientelismo político na
indicação dos ocupantes dos cargos e funções de direção em todos
os níveis do sistema (Paim e Teixeira, 2007: 1823).

Reitera-se o histórico uso da máquina pública para atender aos


interesses privados de políticos e respectivos gestores indicados, os
quais, em geral, estão distantes do conceito de política pública e
totalmente alheios à política de saúde pública construída a partir

Livro 1.indb 7 24/10/2022 09:32:17


188 • Labirintos do labor

do MRSB. Assim, o SUS apesar de se configurar como um enorme


avanço para a garantia do direito universal à saúde, enfrenta muitos
desafios que vão da falta ou do insuficiente financiamento até a
gestão marcada pelo clientelismo político e patrimonialismo.
Ainda sobre o processo de gestão e a materialidade das determi-
nações político-institucionais sobre o trabalho das/os assistentes
sociais na área da saúde, Moraes (2020: 153) apontou que no
cotidiano se materializam questões relacionadas às interferências
político-partidárias sobre o trabalho profissional, recorrentes
em pequenos municípios, como manobras na conquista de
votos. Aliado a isso, ocorre ainda a burocratização das ativida-
des e a incompetência dos gestores das políticas municipais de
saúde, constituindo a realidade do trabalho de forma ampliada
na sociedade do capital.
Como estratégia de superação, é destacado pelo autor que o
enfrentamento político às interferências externas deve ser alimen-
tado por uma análise crítica da política de atuação, da instituição
de trabalho, das particularidades de cada território, da rede socio-
assistencial, de interferências político-partidárias, dentre outros
fatores capazes de sustentar a capacidade argumentativa das/os
assistentes sociais. Este processo contribui para a construção de
alianças no interior dos serviços de saúde em que estes/as profis-
sionais atuam (Moraes, 2020: 153-154).
No âmbito da gestão da política pública, o subfinanciamento
da Saúde, já existente há mais de três décadas, o desfinan-
ciamento e a precarização de outras políticas relacionadas à
seguridade social, principalmente impulsionados a partir da
EC 95, resultam na falta de recursos na rede de atendimento e
suporte dos/as usuários/as, afetando diretamente sua condição
de lidar com o adoecimento, frequentemente intensificando este
processo, afetando, ainda, a condição de prevenção e promo-
ção de saúde (Santos; Funcia, 2019). Assim, também interfere
na capacidade de intersetorialidade e integralidade da rede,

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 189

dificultando e limitando o trabalho da/o assistente social, que


não consegue construir estratégias eficazes de suporte aos/às
pessoas atendidas; como relatado:

A principal questão que dificulta o trabalho está na insuficiência


das políticas de assistência social, previdência, habitação e emprego
e renda. (...) Toda essa conjuntura de pobreza contribui bastante
para o adoecimento mental, sem contar que são atravessadas por
outras complexidades (S04).

Outros pontos relatados pelas/os participantes nesse aspecto


é a extinção de serviços e programas da saúde, como o caso do
Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), processo inten-
sificado a partir da Nota Técnica nº3/2020 (Brasil, 2020), do
Ministério da Saúde5, em conjunto com as formas de privatiza-
ção dos serviços de saúde. Estas questões interferem na qualidade
dos serviços e na garantia de direitos das/os trabalhadoras/es da
referida política, gerando diferentes tipos de vínculos existentes
em um local de trabalho, fragmentando a unidade e podendo
conter trabalhadores/as celetistas, estatutários e terceirizados,
recebendo salários diferentes, em cargas horárias diversas para
cumprir a mesma função.
Além do impacto da precarização e do sucateamento das polí-
ticas públicas, em especial, as que compõem a seguridade social,
o campo da saúde sofre historicamente e de forma constante com
as transformações societárias, principalmente pela tensão contida
entre a existência de um sistema público de saúde universal e a
pressão para o avanço das medidas de privatização/mercantiliza-
ção da saúde. Tais tensões se refletem na rotina de trabalho das/
dos assistentes sociais, seja nas demandas e situações apresentadas
no cotidiano, seja nas condições e relações de trabalho, permeadas
pelo sucateamento do sistema público e pelo avanço do setor
privado, da terceirização e da precarização do trabalho.

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:17


190 • Labirintos do labor

Estas transformações podem se relacionar aos direitos traba-


lhistas, à falta de estrutura, ao adoecimento por conta do trabalho,
equipes insuficientes, à sobrecarga de trabalho e a desvalorização
da/o trabalhador/a, e interferem na qualidade dos serviços presta-
dos, afetando as/os trabalhadoras/es dos serviços de saúde e as/os
usuários/as. É o que refere a participante a seguir:

A equipe multidisciplinar (...) não recebe a insalubridade. Não possuo


sala individual de atendimento, tendo que revezar computador e sala
para atendimento dos pacientes e família. Tudo isso causa estresse,
irritabilidade, desesperança e desmotivação (S05).

Observa-se que a ausência de infraestrutura básica para o desen-


volvimento do trabalho incorre em desgaste físico e emocional,
haja vista as constantes trocas de salas, o sentimento de não perten-
cimento, de não reconhecimento e, ao final, a desesperança e a
desmotivação.
O desempenho e o planejamento também são diretamente
atingidos nesse sentido, gerando um sentimento de frustração por
não conseguir dar conta das demandas apresentadas no cotidiano,
conforme o relato a seguir:

Cada vez maior volume de trabalho, gerando sobrecarga e dificul-


tando que o trabalho possa ser realizado com qualidade. Redução
dos recursos utilizados e estrutura. Precarização dos diversos servi-
ços da rede e desmonte de direitos que afetam diretamente meu
trabalho. Cada vez menos valorização do trabalhador. Devido ao
excesso de trabalho, não consigo realizar um planejamento do meu
trabalho (S06).

O sentimento de desvalorização profissional comparece de forma


recorrente nos depoimentos, sintomático da precarização do traba-
lho e do desmonte das políticas sociais públicas. Estes fatores têm

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 191

ligação essencial com a percepção sobre o trabalho em si e as


relações interpessoais no ambiente de trabalho. Por conta do
caráter crítico contido no projeto ético político da profissão e
pela construção sócio-histórica do Serviço Social, são comuns
os entraves relacionados aos objetivos da atuação da/o assis-
tente social, os quais nem sempre são compreendidos em sua
totalidade, podendo haver relações hierárquicas que interferem
na atuação ético política, como ilustrado:

O Serviço Social traz para o serviço uma desacomodação das rela-


ções hierárquicas de poder. (...) Isto gera sempre um embate para
a construção e inserção em processos de trabalho que sejam fide-
dignos ao projeto ético-político do Serviço Social (S07).

Houve também críticas relatadas sobre a atuação da própria


equipe de Serviço Social, sugerindo que o trabalho pouco analí-
tico e “tarefeiro” das/os colegas acaba por impactar o processo de
trabalho individual, conforme a fala:

A falta de valorização, a não garantia da qualificação em reuniões


e/ou outros espaços com a falta de referenciais teóricos nos emba-
samentos para sair da queixa, bem como a falta crítica analítica
propositiva, dificultando assim o processo evolutivo e ético político
do fazer profissional (S08).

Nesse sentido, as/os participantes também relataram, com


recorrência, dificuldades nas relações, tanto entre colegas assis-
tentes sociais, quanto com colegas da equipe multiprofissional,
no que se refere à percepção do cuidado e a conduta ética no
atendimento da população. Além disso, também foram presentes
relatos de dificuldades nas relações com a chefia/supervisão
imediata, conforme o relato:

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192 • Labirintos do labor

Falta de apoio da chefia imediata (também assistente social), buro-


cratização, pouco apoio na formação como trabalho é executado,
já centrada na tarefa e já instituída, do que no estabelecimento de
novas propostas (S09).

Estas problemáticas, referentes à identidade da/o assistente social,


foram destacadas por Salazar (2020: 6) ao analisar a unidade teoria/
prática do Serviço Social Brasileiro. Segundo a autora:

A busca por respostas imediatas às expressões da questão social,


seguindo aos critérios estritos que conformam as políticas sociais
do Estado neoliberal, tem rondado o perfil de assistentes sociais
demandados pelas instituições contratantes. Muitas vezes se requer
um perfil profissional muito mais dócil e habilitado a responder às
demandas institucionais de forma imediata, fragmentada, e desco-
nectada da análise crítica das relações sociais que conformam as
expressões da questão social, assim como as próprias condições e
relações de trabalho da/o assistente social. (...) Tais mudanças se
contrapõem à produção crítica que o Serviço Social consolidou
nos últimos anos (Salazar. 2020: 6).

Assim, cabe destacar que as experiências relatadas não estão


descoladas das análises e reflexões que permeiam a categoria,
trazendo em questão a realidade conjuntural e histórica do
Serviço Social brasileiro, bem como a situação da Política de
Saúde, permeada por problemas estruturais e complexos, apro-
fundados pelo contexto do conservadorismo e do neoliberalismo
atual. Tal realidade apresentada pelas/os participantes da pesquisa
se reproduz diariamente no dia a dia dos/as assistentes sociais
que atuam na área da saúde e não existe saída fácil para tais situ-
ações, senão a luta e resistência coletiva.

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Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 193

Política dePrevidência Social: as contrarreformas e as


ofensivas ao Serviço Social

Os retrocessos no âmbito da proteção social, vêm sendo


marcados pelas contrarreformas da política de previdência
social brasileira. As medidas caracterizam-se no plano políti-
co-institucional, desestruturando serviços junto às Agências da
previdência Social, e distanciando o acesso da população atra-
vés das plataformas digitais e de teleatendimento.
No processo de contrarreforma da Previdência Social, “verifi-
ca-se que está em curso a destruição dos direitos previdenciários
e do sistema de Seguridade Social, através de diferentes mecanis-
mos que retiram ou subtraem os recursos da seguridade social”
(Wünsch; Carneiro; Fernandes; Flôres, 2021: 166). Ainda, como
parte desse projeto de retirada de direitos, tem-se a reforma
trabalhista, ocorrida em 20176 que amplia a exploração e a
precarização do trabalho e consequentemente interfere direta-
mente na condição de vínculo formal do trabalho e respectivas
garantias previdenciárias.
Os processos de trabalho que se inserem os Assistentes Sociais
nas Agência da Previdência Social são atravessados pelas medidas
político-institucionais das contrarreformas. Assim as condições
e meios de trabalho e os direitos dos usuários são afetados dire-
tamente. A financeirização da política de previdência social e seu
modelo de gestão foram criticamente apontados pelas participantes
do estudo. A participante P22, referiu que o processo de contrar-
reforma da política de Previdência Social em curso se dá pelo:

desmonte de direitos que vem ocorrendo com o estado mínimo atra-


vés de cortes, (...) enquanto a Dívida Pública que consome mais da
metade do orçamento da União com pagamento de juros e amorti-
zações não é auditada (P22).

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194 • Labirintos do labor

Já a participante P21 fez referência às contrarreformas cons-


titucionais apontando que: “a Constituição Federal vem sendo
sistematicamente e reiteradamente rasgada, está perdendo seus fundamen-
tos e a Seguridade Social destroçada, portanto desconstitucionalizada”.
No processo de destruição e desmonte da política pública de
previdência social e retirada de direitos ocorreu a imposição de
“novas regras de exclusão e seletividade, reformas institucionais
foram realizadas e medidas que excluem ainda mais os traba-
lhadores da previdência social foram ditadas ao INSS (Oliveira,
Wünsch e Mendes (2021: 161) num claro movimento de restri-
ção de acesso e perda de direitos.
Para as Assistentes Sociais, conforme demonstrado nas falas
a seguir, mostram que o modelo gerencialista do INSS estabe-
lece relações de trabalho cada vez mais hierarquizadas, baseadas
em produtivismo e metas dos servidores: “Estrutura da instituição
fechada, muito burocrática, tem colocado cada vez mais obstáculos
ao acesso do direito pelo usuário” (P15); “O INSS Digital mudou
a maneira de acesso aos benefícios da Previdência Social e o atendi-
mento e os processos de trabalho no INSS” (P24).
Como apontado, além do modelo gerencialista, tem-se os atra-
vessamentos institucionais sobre o trabalho realizado pelas(os)
Assistentes Sociais. Essa ingerência se dá fundamentalmente, pelo
não reconhecimento do trabalho profissional. As/Os Assistentes
Sociais, participantes da pesquisa, apontaram que além desse
não reconhecimento do trabalho e, muitas vezes, completo
desconhecimento do mesmo, a instituição vem investindo no
enfraquecimento do Serviço Social e da reabilitação profissio-
nal enquanto serviços previdenciários. São diversos ataques ao
Serviço Social previdenciários, como bem apontou a participante
P22: está “no esvaziamento das ações do Serviço Social, falta de
direção da divisão do Serviço Social em Brasília, exoneração das
representantes técnicas nas Superintendências Regionais, ameaça
de extinção do Serviço Social Previdenciário.

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Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 195

Para a participante P06 há “o enfraquecimento do Serviço


Social enquanto serviço previdenciário, causando incerteza e
medo”. Nesse mesmo sentido, outros relatos corroboram: “O
principal no momento é a insegurança em relação às atividades
do Serviço Social e o esvaziamento do mesmo” (P07); evidência
que ocorre “ameaças veladas e implícitas, com relação à perma-
nência do assistente social na Previdência Social” (P10); e as
“ameaças de extinção do Serviço Social na instituição” (P18) são
constantes. Essa realidade, constitui-se, segundo as/os respon-
dentes, em um processo de desvalorização do Serviço Social,
causando desesperança.
As(os) participantes também apontaram que vivenciam
processos de violência institucional, que se expressa no “desvio
de função e descaracterização da profissão, com consequente perda
da autonomia profissional e distanciamento do projeto ético polí-
tico da profissão” (P21). Bem como, são apontados, ainda, que
a perda de autonomia produz instabilidade e descontinuidade
das ações profissionais.
Outro aspecto no âmbito da gestão está na “falta de enten-
dimento da instituição de que as atividades externas fazem parte
do nosso trabalho e não como forma de controle e verificação das
informações dos usuários” (P02). Essa ação também apareceu na
fala da P16: “Para fazer meu trabalho externo tive que impô-
-lo à instituição, e preciso defendê-lo sempre pra chefia de
Benefícios, que questiona tudo, o tempo todo, e tende a desva-
lorizá-lo o tempo todo, para outros servidores”.
Souza e Anunciação (2020: 230) apontaram elementos que
corroboram com a ingerência institucional no trabalho profissio-
nal, tais como: determinar o tempo de atendimento aos usuários;
inviabilizar as atividades de socialização de informações coletivas,
que para as autoras que se trata de um processo fundado na restri-
ção de autonomia profissional.

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196 • Labirintos do labor

Com as medidas adotadas e referidas ao longo das falas das/


os respondentes o direcionamento do trabalho profissional e
seu papel institucional confrontam-se com as medidas retró-
gradas da política de previdência social, que reafirma, cada vez
mais, uma lógica financeira e não de direito social.
O conjunto de apontamentos das/os respondentes, demons-
tram quão fortemente os processos e condições de trabalho, são
resultantes da forma gerencialista da instituição. As participan-
tes do estudo apontaram a exigência de metas e o aumento da
sobrecarga de trabalho: “cobrança por batimento de metas” (P01);
são vários fatores, tais como as “metas institucionais atreladas a
gratificação e manutenção do salário atual, cobranças excessivas e
padronização do tempo de atendimento” (P05). A participante
considerou, também, que há um número excessivo de atendi-
mentos em detrimento à qualidade dos atendimentos.
Tendo em vista que papel do assistente social na política de
previdência social pauta-se na defesa dos direitos da popula-
ção usuária, um dos aspectos apontados pelas/os respondentes
refere-se aos mecanismos de restrição de direitos e de acesso
aos direitos pelos trabalhadores/segurados, na instituição, como
demonstrado:

Restringindo acesso aos direitos, especificamente a revisão de


benefícios de longa duração-BILDS, que aumenta a demanda do
Serviço Social e desprotege uma população que está a muitos anos
sem vender sua força de trabalho e que se vê obrigada a retornar ao
mercado de trabalho, mesmo incapacitado, restringindo o acesso
e aumentando a judicialização dos direitos (P03).

O cenário nacional que passa a previdência social, para o


participante P13, traz muitas incertezas, tanto em relação aos
direitos dos segurados/cidadão, quanto ao servidor. Bem como,
ressaltado por P19 que “O empobrecimento da população brasileira

Livro 1.indb 16 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 197

somado à burocratização do acesso aos benefícios socioassisten-


ciais tem tornado o trabalho profissional um espaço desanimador,
quase frustrante”.
O impacto sobre a Saúde das(os) Assistentes Sociais, também se
manifestaram nas entrevistas através de sentimentos de desânimo,
frustração, falta de reconhecimento do trabalho, sentimento de
injustiça e crises de ansiedade, como demonstra a fala:

A falta de entendimento do papel profissional por demais servi-


dores etc., são fatos que interferem diretamente na saúde, na
motivação, na organização do trabalho, no planejamento e no
desempenho das atividades correlatas à profissão. A permanência
na instituição se dá em detrimento do salário (P01).

Já o participante P16 evidenciou que teve problemas de saúde,


declarando que: “busco cuidar da minha saúde para enfrentar
crises de ansiedade”. A participante P17 fez um relato impactante
sobre a sua saúde decorrente do seu trabalho, como se observa:

Sinto-me sozinha, sem forças para lutar...às vezes penso que a luta
não vale a pena...tenho dentro de mim profundo sentimento de
injustiça que me deixa doente.... porque lutar aqui dentro do INSS,
nós sempre lutamos, pois, todo dia era uma coisa nova, agora a
luta é lá fora.

Os processos de contrareformas, o modelo gerencialista expres-


sos pelas Assistentes Sociais da Previdência Social evidenciam
o quanto o direcionamento ético-político como prerrogativa
profissional na relação com a população usuária para a garantia
de seus direitos vem sendo atingido pelo contexto político e ideo-
lógico, particularizado, pós golpe de 2016.

Livro 1.indb 17 24/10/2022 09:32:17


198 • Labirintos do labor

Política de Assistência Social: papel da gestão e desmonte


da política pública

O reconhecimento da política de assistência social enquanto


direito se deu a partir da Constituição Federal de 1988 e, por meio
do Art. 194, compõe o tripé da Seguridade Social. Tal processo
ocorreu em meio a ascensão do neoliberalismo, que ocasionou
mudanças estruturais nas relações sociais e políticas, demarcando
a minimização do Estado, privatização de empresas estatais e de
todos os setores da economia nacional, bem como a defesa dos prin-
cípios econômicos do capitalismo, dando ênfase para globalização
e ocasionando um profundo impacto sobre a classe trabalhadora.
Destaca-se que, em meio ao contexto desafiador que se apre-
sentava na década de 1990, construiu-se a Lei Orgânica de
Assistência Social (LOAS/1993) como uma referência na contri-
buição para o avanço dos processos de reforma da política de
assistência social no Brasil, sem, no entanto, produzir grandes
mudanças no modelo de oferta de serviços. Em 2004 se conso-
lidou a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que
avançou ainda mais com a implementação do Sistema Único de
Assistência Social (NOB-SUAS/2005). Acompanha-se, a partir
dos anos 2000, uma considerável expansão de recursos e de cober-
tura de benefícios e serviços socioassistenciais. No âmbito dos
recursos humanos, foi com a orientação da Norma Operacional
Básica de Recursos Humanos (NOB-RH/2006) que se estabe-
leceu a/o assistente social como um(a) das(os) profissionais que
obrigatoriamente irá compor as equipes de referência nas ações
da proteção social básica, proteção social especial, e, preferen-
cialmente, nas funções de gestão do SUAS.
Ademais, houve um aumento expressivo da vinculação de
assistentes sociais na assistência social a partir da instauração
do SUAS no Brasil, o que ampliou as possibilidades de traba-
lho profissional nos novos espaços ocupacionais, exercendo seu

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 199

trabalho nos diferentes níveis de gestão e nos distintos municí-


pios do país. Ressalta-se:

A inserção da Assistência Social na Seguridade Social aponta para seu


caráter de Política de Proteção Social articulada a outras políticas do
campo social voltadas à garantia de direitos e de condições dignas de
vida. Desse modo, a Assistência Social se configura como possibili-
dade de reconhecimento público da legitimidade das demandas de
seus usuários espaço de seu protagonismo e exige que as provisões
assistenciais sejam prioritariamente pensadas no âmbito das garantias
de cidadania sob vigilância do Estado, cabendo a este a universali-
zação da cobertura e garantia de direitos e de acesso para serviços,
programas e projetos sob sua responsabilidade (Yazbek, 2008: 87).

A perspectiva do SUAS requer a apreensão de uma nova forma


de gestão, que tem por diretriz o fortalecimento dos processos
democráticos, ampliação e universalização ao acesso dos servi-
ços relacionados aos direitos socioassistenciais. A gestão deve
ter centralidade nos processos de trabalho, mediante a impor-
tância da gerência estratégica dos recursos das políticas sociais,
bem como seus serviços, programas e projetos. Todavia, obser-
va-se que a maioria das(os) trabalhadoras(es) que participaram
deste estudo conceberam as gestões de seus espaços sócio-ocu-
pacionais como sendo limitadoras, ou seja, exercendo a função
de forma centralizada, hierárquica e punitiva, como mencio-
nado: “Estamos sujeitos a uma gestão um tanto centralizadora e
controladora, que usa punição aos que considera contrários. Tem
sido desestimulante, além de desgastante” (A03).
Contraditoriamente ao que se evidencia nesse relato, no
SUAS a gestão se destaca, especialmente, no que refere a sua
efetiva implementação, na intencionalidade de possibilitar um
sistema que promova protagonismo, potencialize autonomia e

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:17


200 • Labirintos do labor

garanta direitos sociais, constituindo-se em um modelo de gestão


descentralizada e participativa.
Tem-se visualizado a incidência de marcadores neoconserva-
dores nos processos de hierarquização da gestão pública, que vão
sendo incorporados nos modelos de gestão e atravessam os proces-
sos de trabalho, revelando, sobretudo, a falta de conhecimento
e o desrespeito ao legado histórico de construção das políticas
sociais, impactando nos processos de trabalho e evidenciando a
falta de conhecimento sobre a política social, com “baixa quali-
dade técnica e conhecimento da PNAS/SUAS por parte do gestor
municipal da assistência social” (A04). Além da falta de apro-
priação da política de assistência social por parte dos gestores,
observa-se que ocorrem rodízios permanentes tanto no âmbito
da gestão e coordenação como no quadro de trabalhadores(as),
conforme mencionaram as(os) trabalhadoras(es): “Troca frequente
de gestor, falta de apoio.” (A33); “Avalio que a troca de gestão e do
número de trabalhadores que desconhecem o trabalho e suas norma-
tivas impactam de maneira negativa no processo de trabalho” (A09).
Este processo descontínuo que se estabelece no trabalho inter-
fere na possibilidade de universalização de direitos. Do mesmo
modo, destacam-se níveis de descomprometimento dos gesto-
res, autoritarismo e centralização da tomada de decisões e que
impulsionam relações cada vez mais nebulosas dentro dos servi-
ços, conforme identificado no relato da(o) assistente social: “(...)
limitações estruturais da sociedade e das políticas sociais dificultam as
ações profissionais, além da dificuldade de relacionamento com gesto-
res que são autoritários, centralizadores e/ou conservadores” (A45).
Pode-se identificar tentativas de “ajustamento” de trabalhado-
ras(es) e perseguição política, e que, em alguns casos, se associa
diretamente à figura da gestão, conforme relatado: “vivenciamos
a perseguição política pelos prefeitos” (A24). A forma como vem
sendo constituída a relação com a gestão representa uma dificul-
dade encontrada no cotidiano do trabalho: “A dificuldade maior

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:32:17


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 201

é a coordenação imediata reconhecer a importância do trabalho e


valorizar o que é realizado.” (A39).
A falta de condições de trabalho e os desafios vivenciados coti-
dianamente são evidenciados pela(o) assistente social quando se
refere sobre a necessidade de realização:

(...) a qualquer custo projetos claramente de cunho pessoal e muitas


vezes político partidário; falta de ética; relações profissionais basea-
das em amizades em detrimento das condições técnicas profissionais,
dentre outras (A43).

No estudo ficou evidenciado que a valorização da gestão


pública, com viés político-partidário em detrimento do perfil
técnico, vem conformando um desafio cotidiano para e no traba-
lho, que redefinem as formas de enfrentamentos e resistências na
gestão do trabalho. Além disso, o atravessamento político-parti-
dário compromete diretamente qualidade do serviço prestado,
como relata a assistente social:

(...) devido a questões políticas partidárias do município e seus


munícipes, há interferência no processo do trabalho do assistente
social, sendo que este não pode ser realizado de acordo com suas
normativas. Também há a implementação de forma diferenciada
e até incorreta do SUAS e seus programas no município (A25).

A falta de condições concretas de trabalho afeta diretamente


a saúde das/dos trabalhadoras/es. Ademais, entende-se que:
As condições de trabalho constituem parte dos meios de
trabalho, sendo que na maioria das vezes o que está posto
no trabalho realizado por esses servidores vai de encontro às
suas capacidades e aos seus conhecimentos sobre os meios de
operacionalizar as políticas sociais. Em outras palavras, a exis-
tência de condições de precariedade nos espaços institucionais

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:17


202 • Labirintos do labor

confronta-se com os saberes dos trabalhadores. (Mendes; Wünsch;


Reidel, 2019: 163).
A limitação das estruturas dos serviços e a escassez de recur-
sos também aparecem como sendo promotoras do adoecimento
dos trabalhadores, conforme foi possível identificar na fala da(o)
assistente social:

Falta RH, falta recurso financeiro, falta estrutura. Ao mesmo passo


em que se percebe o aumento do número de usuários que trazem
consigo demandas cada vez mais complexas, estes fatores são asso-
ciados aos sentimentos de insegurança, desmonte, não pagamento
dos benefícios estabelecidos (AS10).

As novas formas de gestão do trabalho expressam caracterís-


ticas da reestruturação produtiva, objetivando “adequar a razão
pública à lógica privada, introduzindo o efeito disciplinador de
concorrência em todos os níveis para aliviar os custos e maxi-
mizar os resultados” (Dardot e Laval, 2016: 274 apud Raichelis,
2018: 55). Tal processo desencadeia a subversão de “fundamen-
tos modernos da democracia, isto é, o reconhecimento de direitos
sociais ligados ao status de cidadão” (Dardot e Laval, 2016: 274
apud Raichelis, 2018: 55).
Ainda, conforme Boschetti e Behring (2021: 81) “o que se
vislumbra é um processo acelerado e ampliado de assistencializa-
ção/assistencialismo voltado para o pauperismo absoluto, o que
difere imensamente do direito à assistência social.”, o que pode
ser percebido a partir da fala:

A falta de investimento e a precarização das políticas públicas é perce-


bida concretamente no cotidiano de trabalho, por meio da diminuição
drástica de benefícios assistenciais eventuais, como vales transpor-
tes e cestas básicas (A21).

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:18


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 203

Todavia, em razão do desmonte das políticas e da precari-


zação do trabalho, se tem o aumento exponencial de pessoas
vivendo abaixo da linha da pobreza, em condições subuma-
nas, o aumento do contingente de pessoas desempregadas ou
no subemprego (com baixo salário e jornadas mais longas), e o
aumento do quadro de insegurança alimentar e da fome, os quais
vem intensificando processos de violência, afetando majorita-
riamente grupos cujos marcadores de raça, gênero e diversidade
se fazem presentes, caracterizando, assim, um contexto perpas-
sado por inúmeras violações de direitos humanos e que acabam
sendo estimulados, entre outros, pelo contexto de corte de gastos,
limitação de recursos humanos, condições e relações de traba-
lho precarizadas.
As informações referentes aos meios de trabalho oportunizam
a reflexão sobre os impactos no trabalho e saúde das(os) trabalha-
doras(es), potencializados mediante a falta de recursos humanos
e iniciativas descontínuas de formação permanente e continu-
ada que se mostram distantes das reais necessidades, como é
possível identificar na fala da assistente social A15: “Falta de RH,
sobrecarregando a equipe que está. Falta de capacitações, constru-
ções coletivas e tempo para se investir nisso, no dia a dia, visando
a qualificação do atendimento ao usuário”. Assim, no âmbito do
trabalho profissional, as/os assistentes sociais experienciam rela-
ções de trabalho frágeis e precárias, possuem sua autonomia
profissional cerceada e vivenciam dilemas da alienação no e do
trabalho, evidenciando outra dimensão “dessa realidade que são
as relações de trabalho, seja nas formas de contratação, na carga
de trabalho e nas exigências de metas ou também nas relações
de hierarquia e poder” (Mendes; Wünsch; Reidel, 2019: 163).
É mister destacar que as(os) trabalhadoras(es) da política
de assistência social evidenciaram como brutais em seu coti-
diano de trabalho:

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:18


204 • Labirintos do labor

(...) questões de reforma trabalhista, conjuntura atual política e


econômica; não garantia dos direitos trabalhistas, condições da
estrutura física do trabalho. Falta de serviços e políticas públicas
aos usuários que são atendidos, acompanhados (A20).

As contrarreformas, bem como o desmonte das políticas


públicas e desestruturação dos serviços impedem a elaboração de
alternativas para qualificação dos atendimentos técnicos, assim
como de construções coletivas de resistência, em conjunto com
a classe trabalhadora, sendo possível perceber no relato:

Vejo que o trabalho de muitas lutas, estão se perdendo, sinto como


se os colegas estivessem cansados de lutar, me parece que nada se
resolve, muita burocracia, nenhum resultado e falta de compro-
metimento, as lutas estão em vão (A16).

Nesse sentido, a educação continuada torna-se uma possi-


bilidade de fortalecimento frente aos desafios, uma perspectiva
estratégica conforme menciona:

Em 2019 iniciei estudos no mestrado que é onde tem me forta-


lecido para o exercício profissional, ainda que estejam presentes
as mais adversas situações. Adensar a análise da atual conjuntura,
as minhas reais possibilidades de trabalho e o meu compromisso
com o PEP é o que tem clarificado as mudanças na minha prática
profissional (A32).

Constata-se a falta de perspectiva em relação às estratégias


emancipatórias, sendo que alguns fatores podem dificultar a
participação nos espaços de discussão, defesa e deliberação das
políticas sociais. Tais fatores são conformados pela frágil inser-
ção de trabalhadores nestes espaços; condições e vínculos de
trabalho precários e instáveis; predominância de uma concepção

Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:18


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 205

institucionalista, cuja centralidade se dá nas prescrições normati-


vas contrapostas aos processos que possuem como centralidade
a luta pelos direitos sociais (Silveira, 2017: 498).
Assim, percebe-se que as(os) participantes do estudo sentem
limitações impostas pela PNAS, as quais ainda possuem traços
de uma política antidemocrática e verticalizada, não garanti-
dora de direitos de modo que os/as trabalhadores/as se veem
impotentes frente às limitações, adoecendo cada vez mais ou “se
acomodando” frente a tal realidade.
Ademais, constata-se que a estrutura das equipes prevista na
PNAS se mostra insuficiente diante do cenário atual, impossibi-
litando, inclusive, as atividades preconizadas pela Política, pois:
[...] a precarização e insuficiente estrutura dos espaços físicos não
favorece a execução de atividades preconizadas pela política, como
grupos, oficinas e outras atividades coletivas” (A21). Outro ponto
que se sobressai nas condições de trabalho é o aumento das horas
trabalhadas devido à alta demanda de trabalho, fazendo com que
as(os) trabalhadoras(es) trabalhem maior tempo, sem direito a
pagamento de horas extras, restando, apenas, o banco de horas:
“[...] é perceptível que mesmo que o contrato seja de 20 horas, exerço
mais que este horário, só que sem remuneração.” (A41).
No interior das políticas sociais a realidade é complexa e contra-
ditória e, segundo as informações obtidas na pesquisa, as(os)
assistentes sociais percebem que as suas competências profissio-
nais também são questionadas e constantemente postas em xeque:

[...] o município é pequeno, todos se conhecem, quando emito um


parecer social para benefício eventual (alimentação), por exemplo,
todos se sentem aptos a “julgar” minha posição por conhecerem o
histórico do usuário” Já teve julgamento até sobre o formato do docu-
mento, querendo me dizer o que deveria constar, isso por parte de
pessoas que nem fazem parte da secretaria de assistência social. Essa
é uma situação que já me causou muita raiva, porque meu olhar

Livro 1.indb 25 24/10/2022 09:32:18


206 • Labirintos do labor

técnico é diferenciado, até nota de esclarecimento já elaborei e entre-


guei para o prefeito” (A47).

Soma-se ao cerceamento da autonomia profissional, a insta-


bilidade no trabalho e o medo do desemprego, uma vez que “a
entrada e a permanência no mercado de trabalho são progressi-
vamente modificadas, com formas mais precárias e destituídas de
medidas protetivas, estando presentes a terceirização, a informalidade,
a flexibilização nas relações de trabalho” (Camargo, 2021: 492).
A intensificação do trabalho e os “novos” modelos de gestão
também assola o cotidiano de trabalho e impactam na saúde. Foram
frequentes os relatos que dimensionaram a pressão institucional,
o volume excessivo de trabalho e a falta de recursos para a garan-
tia do desenvolvimento do trabalho: “[...] Pressão por atender a
metas, volume excessivo de trabalho, exigência por acompanhamento
de qualidade, todavia devido à grande demanda por atendimento não
possibilita a qualidade nos serviços prestados” (A30). Deste modo,

se aprofundam a precarização das condições em que este trabalho


se realiza, considerando o estatuto de trabalhador assalariado do
assistente social, subordinado a processos de alienação, restrição
de sua autonomia técnica e intensificação do trabalho a que estão
sujeitos os trabalhadores assalariados em seu conjunto (Raichelis,
2010: 751).

Um dos desafios mais mencionados pelas assistentes sociais


participantes da pesquisa, se refere à “insegurança do momento
atual com o corte de recursos” (A23), “falta de recursos, especialmente,
federais têm impactado sobremaneira nas possibilidades de atuação
profissional” (A38).
E, neste sentido, mencionaram a igual necessidade de melho-
res condições de trabalho para as(os) trabalhadoras(es) da política
de assistência social, por meio de “seus planos de carreira, plano

Livro 1.indb 26 24/10/2022 09:32:18


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 207

de saúde e diretores qualificados e não só políticos” (A33). Para


a assistente social A21:

A falta de perspectiva em relação à construção de estratégias real-


mente efetivas e emancipatórias, que de modo geral esbarram na
falta de recursos, assim como nos limites impostos pela gestão da
política, que nos últimos anos não têm sido democrática e hori-
zontal, sendo contrária à lógica de garantia de direitos, contribui
significativamente para que os trabalhadores se sintam impotentes
e se tornem, muitas vezes adoecidos ou acomodados.

Entretanto, compreende-se que a análise acerca do trabalho


profissional na assistência social precisa, necessariamente, ser
analisada no contexto das demais políticas sociais que sofrem os
impactos da política econômica, que subordina a política social
e interfere nas condições e relações de trabalho destas(es) traba-
lhadoras(es), bem como na qualidade dos serviços prestados à
população. Neste sentido, o relato da assistente social A35 trouxe
um elemento importante, que se refere à interconexão entre as
políticas que compõem o tripé da seguridade social:

A mudança no INSS tem nos afetado muito na assistência social,


bem como os cortes/sucateamento da saúde. Hiperinfla a assistên-
cia social e não têm como darmos conta com meros benefícios(...)
insuficientes para amenizar a Questão Social (A35).

A assistência social, assim como as demais políticas públi-


cas, estão situadas nos marcos da sociabilidade capitalista, ou
seja, possuem uma relação precária e contraditória, tendo como
efeito a amenização das desigualdades provocados em decorrên-
cia da relação antagônica entre capital e trabalho, assegurando a
reprodução da força de trabalho para os fins lucrativos do capi-
tal sob a tutela do Estado. Ademais, entende-se que as mesmas

Livro 1.indb 27 24/10/2022 09:32:18


208 • Labirintos do labor

se situam num contexto de maior debilidade acentuado com os


ajustes fiscais vivenciados e as contrarreformas que colocam em
xeque os direitos sociais, afetando as/os trabalhadoras(es) assala-
riadas(os) destas políticas por meio de condições precárias que se
estabelecem nas relações trabalhistas. Acredita-se que, mesmo em
meio a esta realidade desafiadora, o trabalho profissional pode:

(...) produzir resultados concretos em diversas esferas: nas condições


materiais, sociais, políticas e culturais da vida de seus usuários; em
seu acesso e usufruto de políticas sociais, programas, serviços, recur-
sos e bens; em seus comportamentos e valores; em seu modo de viver
de pensar; em suas formas de luta e organização; e em suas práticas
políticas de resistência. (Yazbek, 2018: 49).

O trabalho de assistentes sociais está situado nas relações sociais,


incidindo nos modos e meios de vida da classe trabalhadora,
fomentando a reflexão e construção de estratégias de resistências
frente a agudização das expressões da questão social. Assim, torna-
-se imprescindível que a análise do real apreenda a essência dos
fenômenos sociais, bem como as suas formas de materialização da
vida da classe trabalhadora e que a conduta profissional supere o
pragmatismo, contribuindo, assim para o alargamento das possi-
bilidades de emancipação política e humana, e para a construção
de uma nova ordem societária.

Considerações finais

Nessa pesquisa, empreendeu-se amplo esforço para coletar


dados acerca da relação trabalho e saúde, bem como das condições
de trabalho de assistentes sociais da Seguridade Social, com foco
para a região sul do país. A análise à luz da Teoria Social Crítica
e da tradição assumida pelo Serviço Social brasileiro reconcei-
tuado considera as particularidades das políticas de assistência

Livro 1.indb 28 24/10/2022 09:32:18


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 209

social, previdência social e de saúde, mas se mantendo firmes


ao conceito e estrutura de proteção social erguida a partir da
Constituição Federal de 1988 e consequente sistema Seguridade
Social brasileiro.
Verifica-se que os depoimentos coletados e ora analisados
representam a intensificação dos processos de corrosão dos direi-
tos sociais e do trabalho que atingem diretamente o trabalho de
assistentes sociais, mas trata-se de uma condição peremptória
do trabalho assalariado em tempos de agudização da acumu-
lação capitalista flexível, neoliberal, informatizada e informal
assumindo maior grau de exploração do trabalho, com intensi-
ficação dos requisitos das atividades funcionais e extensão das
jornadas laborais, com salários incertos e a introdução de novos
mecanismos de gestão, que se valem, via de regra, da pressão
para o alcance de resultados, não raras vezes, perpetram práti-
cas de assédio moral.
A análise evidencia que, embora os dados advenham de sujei-
tos(as) individuais, particularmente da área do Serviço Social e
inseridos(as) em políticas da Seguridade Social, é preciso compre-
ender a partir de contextos mais amplos, estendendo-se para o(a)
sujeito(a) enquanto classe, classe trabalhadora, para assim, compre-
ender o processo de trabalho e as relações subjacentes que têm
aprofundado a exploração do trabalho com amplas repercussões
para a subjetividade, inibindo a criatividade, gerando desgastes e
desmotivações, além de estresse e adoecimentos laborais.
Importa salientar que a pesquisa se refere ao Setor Público,
onde historicamente as condições de trabalho tinham maior status
de reconhecimento profissional, estabilidade e de segurança social,
com garantias previdenciárias e trabalhistas. Porém, o avanço
das medidas de Ajuste Fiscal e de aprofundamento do neolibe-
ralismo, como amplamente abordado neste texto, tem afetado
negativamente os processos de trabalho, inserindo diversidade
das formas contratuais em espaços de trabalho, colocando em

Livro 1.indb 29 24/10/2022 09:32:18


210 • Labirintos do labor

evidência formas mais rebaixadas quanto às garantias trabalhis-


tas, a terceirização, os contratos por tempo limitado, incidindo
assim, na rotatividade das equipes e nas maiores dificuldades
da sua organização política. Expande-se para o Setor Público a
precarização típica e integrante da dinâmica capitalista.
Assistentes sociais, enquanto parte da classe trabalhadora,
enfrentam nos seus ambientes de trabalho os sentimentos típicos
da falta de reconhecimento dos seus direitos trabalhistas, viven-
ciados na ausência de autonomia na condução do seu trabalho,
falta de reconhecimento profissional, distanciamento das garan-
tias devidas e nulas possibilidades de progressão na carreira e
de educação permanente. Este quadro incide em alterações da
relação saúde-doença, como expressando durante as entrevis-
tas os sentimentos de desmotivação, estresse, desânimo, fadiga
e problemas emocionais. Em outras palavras, desdobra-se em
apatia e distanciamento da luta e do necessário engajamento
ético-político em defesa dos direitos e da efetivação do projeto
ético-político da profissão.
Diante disso, é importante que novas pesquisas sigam sendo
realizadas para trazer à tona as nuances críticas das condições
de trabalho de assistentes sociais e, com isso, possíveis respostas
traçadas coletivamente pela profissão em articulação com a classe
trabalhadora.

‘Notas
1
O projeto de pesquisa está sob a coordenação nacional da Profa. Ed-
vânia Ângela de Souza da Unesp-Franca e conta com a participação de
pesquisadores (as) de três universidades públicas, quais sejam: Faculdade
de Ciências Humanas e Sociais (Unesp-Franca), Universidade Federal do
Pará (UFPA) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A
coleta de dados da região sul ocorreu de 2017 a 2019.
2
Como ressalva, destaca-se que esse estudo está contextualizado anterior
ao período que inicia a pandemia por Covid-19, portanto não inclui as
determinações sobre os processos de trabalhos e saúde dos assistentes So-

Livro 1.indb 30 24/10/2022 09:32:18


Assistentes sociais e o desmonte da Seguridade Social • 211

ciais ocorridas a partir de março de 2020.


3
Trata-se da Emenda Constitucional de 15 de dezembro de 2016 que
altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o
Novo Regime Fiscal.
4
Refere-se a Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019
que altera o sistema de previdência social e estabelece regras (Brasil, 2019).
5
A Nota Técnica nº 3/2020 revogou os serviços do Núcleo Ampliado
de Saúde da Família (NASF), criando um modelo de financiamento de
custeio da Atenção Primária à Saúde (APS), instituído pelo programa
“Previne Brasil”. De acordo com a nota, “a composição de equipes multi-
profissionais deixa de estar vinculada às tipologias de equipes NASF. Com
essa desvinculação, o gestor municipal passa a ter autonomia para compor
suas equipes multiprofissionais, definindo os profissionais, a carga horária
e os arranjos de equipe”.
6
Lei Nº 13.467, 13 de julho de 2017, que altera a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT).

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et al. (Orgs.). Serviço Social e seus fundamentos: conhecimento e crítica.
Campinas: Papel Social, 2018.

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O racismo como processo de
desumanização e as trabalhadoras
negras no serviço público

Silvana Brazeiro Conti


Dolores Sanches Wunsch 8
A carne mais barata do mercado é a carne negra1

E
ste artigo tem como tema o racismo estrutural como um
processo de desumanização trazendo a realidade das mulheres
negras. Aborda-se sobre a inserção das trabalhadoras negras
no serviço público municipal de Porto Alegre pós 1990 do século
XX, apontando o contexto do racismo estrutural e suas formas de
enfrentamento, nos espaços de trabalho.
Busca-se, também, evidenciar as expressões do racismo nas
suas trajetórias e histórias de vida e trabalho, e destacar alternati-
vas de resistência e luta destas trabalhadoras negras. Aponta-se a
histórica desigualdade das mulheres negras trabalhadoras na socie-
dade capitalista/racista e o acirramento desta pós golpe de 2016,
evidenciando que o racismo estrutural se particulariza no trabalho,
na realidade e vivência das mulheres negras servidoras públicas.
A trabalhadora negra é a que recebe mais baixa remuneração,
comparada a outros grupos no país, e predomina nas atividades
cujas condições de trabalho são inferiores. Há, portanto, uma
hierarquização de poderes, corpos, existências, em que podemos
observar uma banalização da vida atrelada a um processo de desu-
manização das relações sociais e de trabalho. Em decorrência disso,
afirmamos que na arena de disputa de poder e das correlações

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216 • Labirintos do labor

de força, como dito por Elza Soares, “a carne mais barata do


mercado é a carne negra”.
Trata-se de uma realidade que foi sendo produzida socialmente
e que se propõe a garantir interesses postos na sociedade, sobretudo
em virtude da existência de uma dinâmica que requer a obtenção
de lucros crescentes no interior do modo de produção capitalista.
E, muito embora o racismo anteceda o capitalismo, é por
ele apropriado e se torna para ele um elemento basilar e essen-
cial à sua vigência. Não obstante a isso, convém mencionar que
a história do racismo moderno se entrelaça com a história das
crises estruturais do capitalismo.
A necessidade de alteração dos parâmetros de intervenção
estatal a fim de retomar a estabilidade econômica e política – e
aqui entenda-se estabilidade como o funcionamento regular do
processo de valorização capitalista – sempre resultou em formas
renovadas de violência e estratégia de subjugação da população
negra (Almeida, 2018).
Para a população negra são atribuídos, na sua maioria, os cargos
mais destituídos de prestígio. Também são aqueles com menor
proteção trabalhista e menor cobertura na garantia de direitos.
Em pleno século XXI, o racismo e a discriminação racial
ainda estão presentes na sociedade e nas relações de trabalho. No
âmbito do trabalho no serviço público, a partir da Constituição
de 1988, desaparece o conceito de funcionário público. Passa-se
a adotar a designação ampla de servidores(as) públicos (Brasil,
2020, Seção II, art. 39). A prestação do serviço público é das mais
importantes atividades de uma comunidade, de uma sociedade
ou de uma nação. Nenhum país, Estado ou município funciona
sem seu quadro de servidores(as) públicos, responsáveis pelos
diversos serviços colocados à disposição dos cidadãos e cidadãs,
que têm o direito de acesso universal com qualidade.
Segundo as disposições constitucionais em vigor, servido-
res(as) públicos são todos(as) aqueles(as) que mantêm vínculo

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 217

de trabalho profissional com os órgãos e entidades governamen-


tais, integrados em cargos ou empregos de qualquer delas: União,
Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias,
fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Trata-se de designação genérica e abrangente introduzida
pela Carta de 1988. Até a promulgação da Constituição Federal
hoje em vigor, prevalecia a denominação de funcionário público
para identificação dos(as) titulares de cargos na administração
direta, considerando-os(as) equiparados(as) aos(às) ocupantes de
cargos nas autarquias, aos quais se estendia o regime estatutário.
A Constituição Federal, em seu art. 37, estabelece que: “A
administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, mora-
lidade, publicidade e eficiência” (Brasil, 1988). Esses princípios
carregam consigo alto grau de imperatividade, o que denota seu
caráter normativo.
O Artigo 5º da Constituição Federal (CF) de 1988 conta com
78 incisos. São esses que determinam quais são nossos direitos
fundamentais, como a igualdade de gênero, a liberdade de mani-
festação do pensamento e a liberdade de locomoção, cujo objetivo
é assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os(as) cida-
dãos e cidadãs de nosso País.
No decorrer dos anos, as formas de manifestação das práti-
cas racistas foram ganhando novos contornos de acordo com as
exigências e as normas postas em sociedade, o que tende a enco-
brir o racismo, como se ao negá-lo ele porventura deixasse de
existir. Quando, na verdade, sabe-se que ele apenas vai adquirindo
novas expressões e meios de se justificar, a exemplo do discurso
da meritocracia, a qual está respaldada na responsabilização do
indivíduo pela sua sobrevivência e pela dos seus familiares.
Neste artigo, ao abordar o tema do racismo sofrido por traba-
lhadoras negras no serviço público municipal de Porto Alegre2,

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218 • Labirintos do labor

utilizou-se a técnica da história oral e escutou as histórias e trajetó-


rias no contexto do racismo estrutural, que afetaram diretamente as
mulheres negras, com questões relacionadas à classe, ao gênero e à
raça. Foram entrevistadas seis mulheres negras servidoras públicas
de Porto Alegre, militantes da luta antirracista e constatou-se que
todas as servidoras negras pesquisadas sofreram e sofrem racismo
em seus locais de trabalho de diversas maneiras. Também se utili-
zou de uma pesquisa documental para análise do contingente de
servidores(as) públicos(as) negros(as) na Prefeitura de Porto Alegre
onde, constatou-se que do total de servidores(as) públicos de Porto
Alegre, 6,11% são servidoras negras. E dentre as servidoras mulhe-
res, 10,29% são negras.
Para o desenvolvimento do presente artigo, faz-se inicialmente
apontamentos sobre trabalho, classe e gênero no estado capitalista
e após são apresentados dados sobre os servidores(as) negras do
município de Porto Alegre. Na sequência as narrativas das traba-
lhadoras Negras no serviço público de Porto Alegre evidenciando
os fios e tramas do racismo estrutural.

Trabalho, classe e gênero no estado capitalista

Os(as) negros(as) são a maioria entre os(as) desempregados(as)


no país, segundo a constatação da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), em 2020, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística.3
O Estado Brasileiro a muito tempo está distante de cumprir
as determinações da carta magna, e principalmente pós 2016 e
no contexto da pandemia as desigualdades sociais estão escancara-
das, vivemos em meio à esta crise sanitária, política, institucional
e civilizatória, em que o acirramento da luta de classes se apre-
senta na fase mais aguda da crise estrutural do capitalismo, tendo
a barbárie, o racismo estrutural e a violência institucional como
regra na organização do Estado. Existe um abismo social entre

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 219

homens e mulheres, entre brancos e negros e as mulheres negras


e não negras que se expressa no mercado de trabalho.
Antes da Covid-19, mulheres desempenhavam três vezes
mais trabalhos não remunerados do que os homens; com o isola-
mento, a estimativa é que este número triplicou. Importante
destacar que, segundo a médica Jurema Werneck4, as(os) profis-
sionais da saúde que estiveram e ainda estão na linha de frente
de maneira incansável na pandemia. E afirmar que são as mulhe-
res 85% das enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem no
Brasil que estão salvando vidas. 45,6% dos médicos no país são
mulheres, o equivalente a 223,6 mil mulheres5.
As mulheres, e de forma mais cruel as mulheres negras, são
quem mais sofre na pele toda situação tenebrosa que vivemos,
além da tripla jornada de trabalho, sofrem múltiplas violências,
tanto no âmbito privado, quanto nos espaços públicos.
Em outubro de 2020 havia 7,1 milhões de mulheres em busca
de trabalho no Brasil, sendo que 4,4 milhões delas eram negras.
Apesar de que as mulheres representam 53% da população econo-
micamente ativa brasileira, elas seguem sendo sub-representadas
entre os ocupados (43%), super-representadas entre os desocu-
pados (51%) e fora da força de trabalho (64%), segundo dados
2020 da Pnad Contínua.6

As mulheres são a maioria entre as pessoas que realizam tarefas


não remuneradas e estão fora da força de trabalho (64%), o que
significa que não trabalham nem buscam emprego. Segundo dados
do IBGE (2020), 93% das mulheres brasileiras realizam trabalhos
não remunerados, em tarefas domésticas, de cuidado, voluntariado
ou produção para consumo próprio, diante de 82% dos homens.

O impacto que essas atividades não remuneradas têm na rotina


das mulheres foi mais um aspecto de destaque da pesquisa “Sem
Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada
em abril/maio de 20207, ao mostrar que metade das mulheres

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brasileiras passou a cuidar de alguém. O estudo revelou que para


61% das entrevistadas a responsabilidade com o trabalho domés-
tico e de cuidado dificultou a realização do trabalho remunerado
durante o primeiro período de isolamento social. Além disso,
cerca de 4% das mulheres afirmaram ter ficado inviável a dedi-
cação às tarefas pelas quais recebiam remuneração.
O trabalho como categoria que funda o ser social está presente
em qualquer sociedade, porém, o que vai alterar não é a base onto-
lógica dele, mas a forma que se configura em cada sociedade ao
longo da história. O trabalho em Marx (1985), apresenta uma
dúplice determinação: é trabalho útil concreto, destinado a atender
as necessidades humanas e trabalho abstrato, inerente à sociedade
capitalista, em que predomina o valor de troca, destinado à acumu-
lação e reprodução de capital.
Historicamente, as mudanças na base material e organizacio-
nal dos processos de produção requisitaram também mudanças
no papel do Estado, visando regular as relações sociais e garan-
tir a legitimação do capital. Claro que isso se deu a partir do
momento em que a luta da classe trabalhadora por melhores
condições de vida e de trabalho colocou em evidência a dimen-
são política da questão social, ao requisitar do Estado medidas
de proteção social conformadas através dos direitos sociais.
Os contextos da sociedade capitalista que vivemos vão impri-
mir ao Estado diversas funções e características distintas, por
vezes ampliando e suprimindo suas intervenções. O Estado passa
a intervir e garantir as condições estruturais de reprodução do
capital através de setores básicos (ainda considerados não rentá-
veis), do oferecimento de subsídios às empresas em crise e de
financiamentos de serviços públicos.
O Estado é um fenômeno especificamente capitalista, garan-
tidor, de um lado, das trocas de mercadorias; por outro lado, da
exploração da força de trabalho na condição assalariada. Um
terceiro, essencial para as relações capital e trabalho. De modo

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 221

que o Estado não surge com a conotação negativa de repressão,


mas sim afirmativa de constituição social, ainda que necessária
seja a repressão para a harmonização das forças inerentes à circu-
lação mercantil e produtiva.
Sob a égide do neoliberalismo, as estratégias do grande capital
não se limitaram às reformas de natureza econômica. As restrições
sociopolíticas abarcaram, na mesma proporção, a reforma do apare-
lho estatal e sua relação com a sociedade.
O termo reforma, historicamente, vinculado às lutas das classes
subalternas e à perspectiva de ampliação de direitos, foi capitane-
ado pela ideologia neoliberal para justificar o combate à presença
e às dimensões democráticas do Estado. Tal processo de contrar-
reformas (Behring, 2003) tem como objetivo central reduzir e
eliminar os direitos conquistados historicamente pela classe traba-
lhadora, principalmente em países como o Brasil.
A contrarreforma pode ser entendida como um conjunto de
alterações regressivas de direitos, dentre eles os relacionados ao
trabalho. As contrarreformas, em geral, alteram os marcos legais
– rebaixados – já alcançados em determinado momento pela luta
de classe em um dado país (Behring, 2003). Neste contexto de
contrarreforma, de rompimento e solapamento dos direitos sociais
em nome de uma inserção forçada na ordem financeira interna-
cional, se faz necessária uma sociedade civil atuante e capaz de
propor um projeto alternativo de mudança compatível com os
princípios da justiça social.
Assim, se a inserção no mundo do trabalho já não garante a
universalidade do acesso às políticas de proteção social a todos os(as)
trabalhadores(as) assalariados(as), com o processo de contrarreforma
do Estado empreendido nos últimos anos a conjuntura só piorou.
No que tange a questão de gênero, as mulheres negras Segundo
Werneck (2010, p. 76)
as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são
resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de

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demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das


condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental euro-
cêntrica ao longo dos séculos de escravização, expropriação colonial
e da modernidade racializada e racista em que vivemos.

As desigualdades sociais entre mulheres e homens negros e não


negros(as) se aprofundam cada vez mais. Os dados são nítidos no
que tange a dura realidade da população negra no Brasil. A fome,
o desemprego, a insegurança alimentar, a violência têm cara, cor
e gênero em nosso país.
Tal realidade se evidencia no contexto das trabalhadoras
negras do serviço público de Porto Alegre/RS, assim como se
poderá observar na sequência o quanto ainda é baixa a inserção
de homens e mulheres negras, no âmbito do trabalho em órgãos
do serviço público.

Servidores(as) públicos(as) negros(as) na prefeitura de Porto


Alegre: o que os dados apontam e confirmam

Destaca-se, inicialmente, que ocorreu uma diminuição signi-


ficativa de servidores(as) públicos(as) em Porto Alegre no último
período dos dois prefeitos da cidade, ou seja, de 2015-2019 e de
2020 até o período atual de 2022. Demonstram que as últimas
gestões da cidade não investiram em políticas públicas, crimi-
nalizaram e perseguiram os(as) servidores(as) que fazem todas as
políticas públicas funcionarem em de Porto Alegre. Um esforço
hercúleo para que sejam de qualidade e de acesso universal.
Fica nítido que o projeto da cidade é de diminuição do Estado,
precarização dos serviços públicos e não ter como prioridade os
concursos públicos, já que o interesse dos gestores é a privatiza-
ção de Porto Alegre. Para fins de demonstrar essa realidade, serão
apresentados dados dos(as) Servidores(as) Públicos de Porto
Alegre que foram requeridos, junto ao órgão de classe dos(as)

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 223

servidores(as), bem como, através de pedido de informação junto


a Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SEMAP/
POA), bem como através de solicitação junto ao Sindicato dos
Municipários de Porto Alegre (SIMPA) os quais foram organi-
zados através de análise do Dieese (2021), e através do Portal da
Transparência do Municipio .
Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS),
a distribuição de servidores em Porto Alegre, por gênero, era de
59,1% mulheres e de 40,9% de homens em 2019. (Dieese, 2021)
Os(as) servidores(as) municipais(as) tiveram uma queda de
pelo menos 20% no número entre 2015-2021, na administra-
ção direta e uma queda de 30% no número de servidores(as)
municipais no âmbito das autarquias no município no mesmo
ano. (Dieese, 2021)
Diante desta realidade têm-se algumas conclusões possíveis e
caminhos para explicar estes dados tão significativos sobre o descaso
dos gestores com as políticas públicas e com os(as) servidores(as)
públicos(as). Dentre elas, a queda abrupta do número de servi-
dores(as) ativos significa uma possível diminuição da capacidade
do município em ofertar serviços públicos.
Outras possíveis explicações para a queda é que ela pode ter
ocorrido por falta de concursos, situação ocasionada por alguma
política dos governos do período, que pode ser por conta de diversas
razões, as quais, para serem analisadas, demandam mais informa-
ções e dados sobre a realidade de cada um dos órgãos e autarquias.
É possível analisar o quanto essa queda tem impactado não
somente os serviços prestados, mas também o quanto isso sobre-
carrega os(as) servidores(as) que continuam trabalhando. Em
suma, de qualquer forma, é preocupante a queda no número de
servidores(as) municipais no período analisado 2015-2021, pois
é uma quantidade muito grande de pessoas não mais lotadas em
cargos públicos, o que pode ter diversas consequências, tal como,
a diminuição da qualidade dos serviços prestados.

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224 • Labirintos do labor

Ao analisar o Indicador “Negros(as) empregados(as) no governo


do município”, isto é, de elevação do número de negros(as) em
quadros do serviço público municipal, fica nítido a pode se obser-
var a ascensão deste grupo ao longo dos anos desde pelo menos
2006, pois entre 2006-2012 observou-se contínuo aumento de
negros(as) empregados(as) em cargos públicos na cidade de Porto
Alegre, devido à luta do movimento negro pelas cotas raciais no
serviço público. Mesmo assim, entrou em queda no ano de 2013
com ligeira diminuição do número de negros(as) em cargos públi-
cos, realidade que perdura até a atualidade.
Assim, em relação ao número de servidoras e servidores, e
o quesito raça/cor, de acordo com os dados obtidos através do
Pedido de Informação 184/20 ao executivo municipal8, o municí-
pio possuía, em 2021, um total de 15.771 servidores e servidoras,
sendo 2.835 servidores(as) negros. Sendo que no que se refere ao
quesito gênero, 9361 eram servidoras mulheres, das quais 964
são negras. Isso representa que do total de servidores(as) públicos
de Porto Alegre, 6,11% são servidoras negras. E dentre as servi-
doras mulheres, 10,29% são negras. Ainda segundo os dados, a
cidade de Porto Alegre possui 9,8% de servidoras negras ou pardas
em relação ao total de servidores, e 15,44% de suas mulheres no
grupo de mulheres negras (pretas e pardas), em relação ao total
das servidoras mulheres.
Segundo dados quantitativos de servidores(as) por sexo e raça
nos órgãos da Administração pública direta e indireta, cuja fonte
é a Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SMAP),
o maior contingente de servidoras, no ano de 2021, se dá na
Secretaria municipal de educação (SMED). São 5.685 servido-
res(as) no total, sendo 4.794 mulheres e 891 homens. Entre as
mulheres, 572 negras e 335 pardas, 5 indígenas, 7 amarelas e 709
delas não informaram.
Logo a seguir, vem a Secretaria Municipal de Saúde (SMS)
com um total de servidores(as) de 3.776, sendo 2.496 mulheres

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 225

e 1.280 homens. Sendo no quesito raça/cor 209 mulheres negras,


151 pardas, 4 indígenas, 6 amarelas e 43 mulheres não informaram.
E em terceiro lugar aparece a Fundação de Assistência Social e
Cidadania (FASC), com o total de 471 servidores(as), sendo 294
mulheres e 123 homens. Já no quesito raça/cor, são 26 mulheres
negras, 14 pardas, e 1 indígena, 2 amarelas e 25 não informaram.
O número de servidoras negras e pardas representa 13% do total
dos(as) servidores(as) das secretarias que estão vinculadas às entre-
vistadas que participaram do estudo, ou seja, são apenas 1307
mulheres negras ou pardas, do total de 9932 servidores(as). Bem
como, representam 17,2% do total de 7584 servidoras mulhe-
res destas secretarias/órgão, evidenciando e reafirmando, assim,
em relação à totalidade da análise realizada,, a baixa presença das
mulheres negras no serviço público de Porto Alegre.

Trabalhadoras Negras no serviço público de Porto Alegre:


fios e tramas do racismo estrutural

Apresenta-se neste momento do artigo, mais de perto, o que


denominamos de racismo como um processo de desumaniza-
ção, evidenciando os fios e tramas do racismo estrutural. Este
se apresenta num contínuo processo sócio-histórico, através das
histórias vividas e contadas por trabalhadoras negras do serviço
público municipal de Porto Alegre. Foram entrevistadas seis
mulheres negras servidoras públicas de Porto Alegre, militantes
da luta antirracista. Sendo duas servidoras da área da educação,
duas da saúde e duas da área da assistência social.
As entrevistadas serão apresentadas, nesse artigo, como
Margaridas africanas9, numa referência e associação às mulhe-
res negras históricas, incluindo as suas histórias e lutas com as
mulheres negras da atualidade, que seguem lutando e sofrendo
racismo ao longo do tempo. Ou seja, compreendendo que as
mulheres negras se conectam através de suas histórias e lutas ao

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226 • Labirintos do labor

longo de suas vidas pelos caminhos da ancestralidade, memória,


histórias contadas, sofridas, superadas, enfim, entendendo os
nexos das individualidades e da coletividade entre elas.
Desta forma as participantes do estudo foram renomeadas de
Margaridas africanas e conectadas num movimento simbólico de
circularidade, ancestralidade, através da oralidade que fazem parte
dos valores civilizatórios afro-brasileiros. Cada entrevistada rece-
beu um codinome de uma mulher negra que se destacou nas lutas
pelo fim do racismo. São de diversos lugares, profissões, tempos
históricos, e sem dúvidas, trazem grandes contribuições para a
atualidade. Sendo elas: Lélia Gonzales, Rainha Nzinga, Elza Soares,
Bell Hooks, Rosa Parks, Princesa Aqualtune. Assim, as vozes e a
história de cada uma das mulheres negras entrevistadas, conec-
tam-se entre si e com as histórias de milhares de mulheres negras
que vivem e resistem ao racismo há séculos.
Apresenta-se, a seguir, as principais manifestações de racismo
que as trabalhadoras negras apontam terem vivenciado no exercí-
cio do serviço público municipal de Porto Alegre. Sua inserção e
trajetória como trabalhadoras Negras no serviço público munici-
pal de Porto Alegre se dá após 1990. Busca-se apontar o contexto
do racismo estrutural e suas formas de enfrentamento nos espaços
de trabalho, os quais vinculam-se à Secretaria de Saúde, Educação
e Fundação de Assistência Social.
Inicia-se com Lélia Gonzales e Rosa Parks, que são trabalhado-
ras da política de Assistência Social. Logo a seguir, Rainha Nzinga
e Elza Soares, da Saúde. Por fim, Bell Hooks e Princesa Aqualtune,
da Educação.

Lélia Gonzalez

“Vou contar aqui uma das nossas experiências em um grupo de


jovens, para a gente ver como o racismo está institucionalizado, éramos
4 mulheres, 4 profissionais, podíamos ser técnicas, psicólogas, assistentes

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 227

sociais, mas uma foi chamada de mãe de santo porque estava com um
turbante e era negra. Aí uma colega perguntou: será que isso é racismo?
Eu respondi que é uma das expressões do racismo. Não que o menino
que me chamou de mãe de santo fosse racista, mas este estereótipo está
cravado na sociedade e se expressa fortemente na mídia, nos livros
didáticos, revistas, enfim, uma das expressões do racismo estrutural.
Desde que eu estou na Assistência Social, eu já passei por alguns
lugares. Eu entrei como técnica no município, e trabalhei nas (...)
Tempos depois, a minha colega que estava como coordenadora pediu
para sair, era um lugar muito difícil, muito difícil, as Ilhas é um dos
lugares de menor desenvolvimento humano, e a miséria e a pobreza
são implacáveis, é o território de Porto Alegre com a menor renda.
Eu nunca fui cogitada para postos de chefia, porque eu também
sempre fui da luta dos(as) trabalhadores(as) e daí a gente fica estig-
matizada. As questões raciais e institucionais não estão colocadas de
forma alguma, essa pauta tão importante não faz parte do dia a dia do
local em que trabalhamos, e sendo assim, fica muito difícil trabalhar
sofrendo racismo, e construirmos alternativas coletivas para superá-lo.”

Rosa Parks

Fiz concurso da Prefeitura em 2011, foi homologado em 2012,


como já tinha a política de cotas, eu me inscrevi pelas cotas. Então
as primeiras cotistas foram chamadas logo no início, 2012 já foram
sendo chamadas, eu teria sido chamada na classificação geral, porque
chamaram bastante colegas naquele período, desse concurso, pra FASC
e como eu já tinha conhecimento da política de assistência eu queria
mais era trabalhar como servidora.
E daí eu início no serviço público em 2014, sendo que sou chamada
para trabalhar no CREAS e me identifico, porque a maioria dos colegas,
trabalhadores ali são negros, a coordenadora na época, uma mulher
negra. E aí foi o lugar que eu fui super acolhida, no sentido de poder
ter mais pares técnicos, profissionais e eu fiquei bem ali naquele espaço.

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228 • Labirintos do labor

Começo a acompanhar as famílias, uma coisa que eu sempre gostei


de fazer e eu já conhecia o território, foi uma facilidade para mim,
porque eu fui criada aqui no (...), então conhecia já a (...), conhecia
ou (...), conhecia o bairro (...), conhecia o (...), como um todo, e aí
fui conhecendo mais ainda. E com a saída da coordenadora, quando
assume como direção técnica, a outra colega vai para a sede da FASC
para ser coordenadora da Proteção Social Especial. Aí então eu sou
convidada para assumir a coordenação do CREAS.
Então o serviço hoje, o CREAS tem um reconhecimento na comu-
nidade, todos na comunidade conhecem esse serviço, porque a gente
começou a fazer ações na comunidade para o serviço ter visibilidade
e para as necessidades que as comunidades tinham com relação a
alguma situação. E com a minha chegada ali no CREAS também,
a gente fez vários trabalhos voltados para a questão racial, seja com
os trabalhadores, com os usuários do serviço, nas comunidades que a
gente atendeu, a gente discutia direto sobre as questões do racismo.”
Ao longo da exposição, as duas servidoras públicas da polí-
tica da assistência social revelam que sofreram racismo no local
de trabalho, tanto pelos(as) usuários(as) da política, quanto por
colegas e chefias. Também fica nítido que não existe, por parte da
administração pública, nenhum esforço de oferecer formação para
servidores(as) sobre as questões raciais, nem tão pouco espaços
de diálogo e debates sobre o tema. As iniciativas que desenvol-
vem nos seus locais de trabalho são construídas por elas mesmas,
por terem envolvimento na luta antirracista, e nas parcerias com
colegas, mas não são sistemáticas e nem planejadas, pela falta de
envolvimento da gestão.
Apontam também que nos locais onde existem mais colegas
negros(as), o acolhimento acontece com maior qualidade, e as rela-
ções com as comunidades que trabalham faze toda a diferença, já
que os equipamentos da política da assistência social têm como
usuários(as) as pessoas que vivem em alto nível de vulnerabili-
dade social, e, portanto, em sua maioria negros e negras.

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 229

Destacam que serem trabalhadoras negras envolvidas com a


comunidade que trabalham, e terem envolvimento com a luta
antirracista, tornam elas referências positivas para as pessoas que
são usuárias da assistência social e influenciam nas relações sociais
das comunidades que atuam.
No que tange a ocupação de cargos de chefia, ainda são exceção,
tanto em relação às chefias dos equipamentos, quanto na repre-
sentação em espaços de poder nos programas e serviços da FASC.
Também constatamos que as servidoras públicas negras terem
envolvimento com a luta antirracista para além do seu trabalho, as
fortalece e qualifica, para enfrentarem o racismo estrutural que é
cotidiano e acontece dentro e fora dos seus espaços profissionais.
Portanto, os fios e as tramas do racismo estrutural estão colo-
cados para as trabalhadoras negras da assistência social de Porto
Alegre, e a gestão pública necessita ter políticas públicas de acolhi-
mento, formação e ações antirracistas, além das cotas raciais para
os concursos públicos.
Agora passaremos para as falas da Rainha Nzinga e Elza Soares,
que são trabalhadoras da Saúde.

Rainha Nzinga

“Nas décadas de 70, 80, 90 no hospital (...), os cargos de chefia,


como é até hoje, eram só de enfermeiras brancas, principalmente do
interior, de origem italiana, de origem alemã, elas chegavam até falar
outra língua, e minha mãe brigou muito com isso, porque ela dizia:
‘se vocês tão falando em outra língua é porque estão falando mal da
gente’. As auxiliares de enfermagem, as instrumentadoras, as aten-
dentes eram e continuam sendo a grande maioria de mulheres negras.
Quando entrei no serviço público foi em 1999. Na verdade, eu fui
uma das primeiras equipes de Programa da Saúde da Família (PSF)
que teve em Porto Alegre, foi no final do governo do Tarso, que implan-
taram algumas unidades, com um novo olhar, da Saúde da Família.

Livro 1.indb 15 24/10/2022 09:32:18


230 • Labirintos do labor

Eu trabalhei praticamente 17 anos na Atenção Básica e vi que


precisava mudar de ares. Em 2013, me inscrevi para a seleção da (...),
e estou lá no núcleo de (...), até hoje.
Gosto bastante dali estou trabalhando diretamente com a campa-
nha (...), contra a Covid, e dentro do setor ninguém pôde fazer home
office e a gente está trabalhando direto, a gente não teve pausa, não
teve afastamento, não teve nada.
E dentro do serviço público obviamente eu passei por situações de
racismo, eu tive uma chefe durante 14 anos, ela veio da rede privada
e chegou achando que ia ter a gente o tratamento que tinha antes.
Queria mandar, e uma vez ela chegou e disse assim: ‘Ah, eu deixo
vocês fazerem greve!’ Eu ri , sempre fui muito debochada e eu respondi:
‘Como assim tu deixas? Isso não te compete, a gente está lutando por
melhores condições de trabalho para todo mundo aqui, independente
da hierarquia, e não significa que tu sejas a nossa dona’. Dentro do
grupo tinham outros colegas negros e a gente percebia nitidamente a
diferenciação de tratamento, tudo assim meio velado, muito sutil, mas
eu via que tinha alguma coisa errada, e aí fazíamos o enfrentamento
e ela recuava, mas foi assim durante muitos anos. Ela conseguiu que
uma colega saísse do serviço, ela conseguiu fazer a transferência, ela
tentou fazer comigo, mas não conseguiu.
No setor onde trabalhei por muito tempo, existe a ala branca e a
ala negra e isso é bem evidente, até os estagiários que chegam começam
a perceber a diferença do assédio, vamos dizer assim. A gente muitas
vezes não participa das decisões, não recebe as informações em tempo
real, as coisas são discutidas à nossa revelia.
Nunca tive uma chefia negra, nunca, nem no hospital, nem no
serviço público. E eu conheço todas as unidades de saúde de Porto Alegre.
Agora com o IMESF, com as terceirizadas temos algumas enfermeiras
negras em cargo de chefia, mas assim de supervisão, não de coorde-
nação, não em um cargo mais alto, isso é muito difícil.”

Livro 1.indb 16 24/10/2022 09:32:18


Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 231

Elza Soares

“Fiz dois concursos. Aí parece que foi uma diferença assim de poucos
meses do Estado e para a Prefeitura me chamar, mas como a Prefeitura
pagava melhor e ainda paga melhor do que o Estado, eu fui para a
Prefeitura, como farmacêutica (...).
Passados alguns anos, eu comecei a auxiliar a chefia do setor que
trabalhava, quando ele saiu, entrou uma outra como coordenadora e
eu comecei a auxiliar de alguma forma já que ela não podia estar em
todos os horários, pois ela dava aula em uma universidade.
E daí o pessoal começou a se desgostar um pouco do trabalho dela
e me convidaram para assumir o lugar de chefia, e eu disse, ‘não, ela
que é’, e coisa e tal, e chegou um momento que o pessoal fez uma
reunião, entrou em contato com a coordenação de (...), da Secretaria
de Saúde, falaram que não queriam mais a coordenadora, queriam
que eu assumisse.
Aí fizeram uma reunião, saímos num acordo e eu assumi a gerên-
cia do (...), de Porto Alegre e fiquei lá por cinco anos. Tinha também
a questão que passei por várias situações constrangedoras e racistas em
função de ter um sobrenome de um (...), famoso, e esta família deste
sobrenome ter fazendas pelo interior, enfim... As pessoas chegavam e
perguntavam quem era a gerente, e mesmo eu estando na sala, sempre
se dirigiam às colegas brancas e loiras.
Na maioria das vezes eu estava sentada na minha mesa, mesa da
gerente, e mesmo assim não se dirigiam para mim. Passei por muitas
situações assim, depois as pessoas se desculpavam, mas como é difícil
identificar uma mulher negra numa situação de poder.
E ao mesmo tempo as pessoas da Secretaria começaram a me conhe-
cer, esse lado mais militante, em função que também cruzou com o
período que eu ingressei na Associação Negra de Cultura e comecei
a coordenar o Sarau Sopapo Poético. Então, todas as atividades da
Secretaria que tinham a ver com a população negra ou algo parecido,

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232 • Labirintos do labor

me chamavam para fazer a abertura, através da poesia, e da minha


escrita.
Então consegui juntar militância e profissão, com a escrita e a decla-
mação de poemas. Foi um período muito interessante, mas ao mesmo
tempo também, dentro do laboratório de análises clínicas do (...), ou
também da triagem neonatal, eu era a única negra. Então tu olhas e
perguntas cadê os teus pares? O pessoal começou a entrar através das
cotas, mas não em cargos de chefia.”
As entrevistadas servidoras públicas negras da saúde apontam
que existe uma diferenciação de cargos na área que atuam, e que são
em maioria mulheres, e nesta política é onde se concentram mais
trabalhadoras negras. Segundo os dados da PMPA (2020): 2.496
trabalhadoras, dentre estas, 209 negras, 151 pardas e 4 indígenas.
A diferenciação entre as trabalhadoras da saúde se dá em relação
aos cargos e salários, já que a maioria das enfermeiras são brancas,
têm cargo de chefia e recebem os salários mais altos. Já as auxilia-
res de enfermagem, instrumentadoras e atendentes são, em sua
maioria, negras e recebem os menores salários.
As trabalhadoras da saúde são as que estiveram na linha de
frente na pandemia do COVID 19, sem isolamento social, por
muitas vezes sem equipamentos adequados, portanto, as que mais
sofreram no período da pandemia, e não receberam nenhum
apoio da gestão pública. Apontam que já sofreram racismo e
assédio moral da chefia onde trabalharam, e observam a diferen-
ciação de tratamento aos colegas negros e não negros. Uma das
questões cruéis do racismo é criar estigmas, rótulos, preconcei-
tos em relação aos comportamentos das trabalhadoras negras. Ser
chamada de “preta raivosa”, expressa o quanto o racismo estrutural
está impregnado nas instituições públicas e em toda a sociedade.
Em relação a cargos de chefia, uma delas nunca teve uma
chefia negra, e a outra foi alçada à coordenação para substituir a
chefia do local onde trabalhava. Esta passagem é muito signifi-
cativa, pois mesmo ocupando um espaço de poder, de gerência,

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 233

ou seja, de chefia, Elza Soares seguiu sofrendo racismo estrutural


diariamente, tendo seu sobrenome confundido com mulheres que
“deveriam” ser brancas e loiras, pois tem o mesmo sobrenome de
uma “família de fazendeiros”. Desta forma, a chaga do racismo
segue implacável, já que mesmo ocupando a mesa e o cargo da
gerência do laboratório central de Porto Alegre, muitas pessoas
que entravam não se dirigiam à gerência, tornando-a invisível, já
que o racismo estrutural é sobre isso, não está dado na sociedade
que mulheres negras ocupem espaços de poder.Queremos desta-
car a importância das servidoras públicas negras terem, além do
espaço profissional, a possibilidade de serem militantes da luta
pela igualdade racial, e assim construírem alternativas concretas
para transformar luto em luta, exclusão em potência, conheci-
mento em poder de transformação.
Agora, passaremos para as entrevistadas Bell Hooks e Princesa
Aqualtune, que são da área da Educação.

Bell Hooks

“Em 2001 eu fui chamada na Prefeitura, mas aí eu tinha minha


filha que nasceu com um problema de saúde que a gente só veio a
descobrir depois, trabalhei em duas escolas e precisei me afastar por
questões da saúde da minha filha. Em 2008 eu volto para a rede
municipal de novo, e vou para duas escolas da Restinga.
Concorri ao cargo de direção em uma das escolas, e foi muito
interessante, porque apareceram colegas dizendo que não iam votar
em chapa preta, para ter uma ideia do nível da coisa, colegas que
tomavam café e passavam o tempo todo comigo. Porque a chapa
era eu como mulher negra, meu colega que era o vice, que era negro
também, e a outra vice que era negra de pele clara. A comunidade
votou em nós em peso, em peso mesmo, a comunidade abraçou a
nossa candidatura e a comunidade se sentiu fortalecida e foi uma
coisa que me fortaleceu muito também, ouvir de mães negras algumas

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234 • Labirintos do labor

falas dizendo o quanto elas estavam felizes por terem uma mulher
negra concorrendo para a direção da escola, e isso foi muito importante
na época. Eu fiquei literalmente empoderada, vendo e percebendo o
quanto faz a diferença.
A (...), é uma cidade negra, e essa questão do pertencimento negro
era muito forte. E à medida que o nosso projeto também foi amadu-
recendo, os alunos foram se empoderando e foram se dando conta,
‘não, esse espaço aqui, esse território é nosso, a gente tem uma profes-
sora negra, a gente tem um professor, enfim, pessoas que temos que
olhar de uma forma diferente’ e eles falavam isso, eles diziam assim
e eles falavam abertamente, ‘ah sora, a senhora é negra, legal, então
a gente vai olhar mais pela senhora do que pela outra professora’.
E isso foi bem um processo educativo sabe, educativo assim dos
alunos se reconhecerem, e reconhecerem o seu poder, de serem maio-
ria ali e terem direito de fala e de buscar o seu espaço. Então eu acho
que a experiência da escola em termos de educação antirracista para
mim foi das melhores e a que mais deu resultado, pela semente que
se tornou árvore, que hoje tem galhos e sabe que a coisa cresceu e o
pessoal que seguiu lá, continuou, botou no currículo da escola e eu
me sinto assim sempre muito lisonjeada.
E aí dessa caminhada toda, eu sempre digo que o meu trabalho
antirracista e de educação mesmo, de historiadora, ele vem nessa coisa
da formiguinha, um dia largando a semente, e dando o exemplo.”

Princesa Aqualtune

“Me formei na UFRGS, na Pedagogia, e vamos fazer o concurso,


primeiro concurso com cotas da Prefeitura de Porto Alegre, fizemos
um grupo de mulheres negras para estudar para o concurso.
Então estudamos horrores para esse concurso e entramos no primeiro
concurso e eu em 1º lugar, na verdade, tirei 1º lugar em geral, tirei
a nota mais alta, na época eu tirei 85,75, foi a nota da prova mais
alta. Só que eu passei pra 7º lugar, porque nós todas aquelas mulheres

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 235

negras, estavam saindo da faculdade, nós já, mesmo eu com 35 anos,


nós não tínhamos nenhum título, nenhuma de nós tinha título
nenhum, e pessoas brancas, passaram na nossa frente.
Aí eu me lembro, eu sempre me lembro, meu pai disse, ‘viu o que
que é o privilégio branco, porque mesmo tu sendo a melhor, tu vais
ficar pra trás, porque por isso é as cotas, não é porque tu é menos
inteligente, mas é porque a gente tá atrasado, porque nós somos
os últimos a entrar na universidade e eles já tão faz 500 anos na
universidade, já tão fazendo pós-doutorado, já tão não sei o que e
nós estamos engatinhando, e não tem como a gente competir’.
Logo a seguir, tivemos as cotas questionadas pelo Tribunal de
Contas do Estado (TCE), que questionou as cotas dizendo que era
inconstitucional, que fere a igualdade, a igualdade para todos(as)
e não sei o que, aquela coisa né. Nós começamos um movimento,
essas primeiras 10 cotistas que ingressaram, nós fomos até o TCE,
daí fizemos todo aquele debate com o Tribunal de Contas, fizemos
todo um movimento, que foi na época apoiado pela SMED, pela
coordenação da SMED, até pela Prefeitura, que o prefeito era o (...),
porque era a Prefeitura que estava sendo acionada, que não pode-
ria ter feito aquele concurso com cotas, e com muita mobilização e
luta acabamos por ter nosso direito mantido e as cotas permanece-
ram nos concursos públicos na Prefeitura de Porto Alegre.
Desde o período do concurso pelas cotas, estabelecemos relações e
hoje temos um grupo grande de educação antirracista, temos os cole-
tivos de educação antirracista na rede municipal de ensino de Porto
Alegre e tem outras pessoas de outros lugares, de outras cidades que
trabalham com educação antirracista.
Então nesse meio tempo, eu também fui eleita para o Sindicato
além disso, ainda tenho uma militância partidária. Então eu tenho
essa militância política no Sindicato, no partido, e tem essa rela-
ção e essa identidade com o pessoal da educação antirracista. Essa
minha militância me levou no ano passado a ser candidata a vere-
adora no coletivo de quatro mulheres negras, professoras, servidoras

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236 • Labirintos do labor

públicas, que tem relação com a educação antirracista, educação e as


relações étnico-raciais.
Então o processo de racismo, ele é constante, cotidiano, diariamente,
toda hora, em todo lugar, e ele faz tu acabar não tendo certeza se tu
é capaz, daqui a pouco tu até acha que não é, tu fica com dúvida,
tu vê que com tanta dificuldade, tu te cobra tanto, porque a questão
do racismo também é uma coisa que vem de fora, também é aquela
inadequação que esse contexto te faz sentir, então esse outro acolhi-
mento também te ajuda a tu também elaborar as coisas.
Eu acho que de perspectiva, eu espero que em 2022 a gente mude
o rumo dessa história, nos cortaram, destruíram muito, nós pratica-
mente temos que começar algumas coisas de novo. Mas eu acho que
a gente constituiu aqui, pelo menos aqui em Porto Alegre, aqui na
rede municipal de Porto Alegre, um grupo que se identifica na ques-
tão antirracista e é um grupo de certa forma coeso, que tem uma
identidade, eu acho que isso que se construiu e é uma coisa muito
legal, eu acredito que pode se manter para a frente, ter continuidade.”
Concluímos, de acordo com as falas das entrevistadas, que
por mais que a luta por uma educação antirracista tenha avan-
çado, com todo o esforço dos movimentos negros, ainda temos
um longo caminho a percorrer. Elas destacam que mesmo com
a promulgação das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, que
inclui nos currículos em todos os níveis e modalidades de ensino
a história e a cultura Africana e dos povos indígenas, infelizmente
essas leis tão importantes e necessárias não foram implementa-
das como política pública de Estado, portanto, não estão na vida
das crianças, jovens e adultos estudantes.
Nos governos populares no Brasil (2003/2016), houve inicia-
tivas importantes, como formações, prêmios, investimentos em
cursos e materiais didático-pedagógicos, mas com o fim do governo
Lula e Dilma, todas estas iniciativas não se sustentaram enquanto
políticas públicas, e passaram a ser iniciativas individuais ou de
coletivos de professoras(es). Este fato não é isolado e não se dá por

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Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 237

acaso. Negar a história e a cultura Africana faz parte de um projeto


político que se consolida nas bases do capitalismo, do racismo
estrutural e do fim do Estado Democrático de Direito.
Destacamos a experiência de Bell Hooks quando concorreu ao
cargo de direção da escola que trabalhava. As eleições das direções
das escolas da RME se dão através de eleições conduzidas pelos
conselhos escolares que tem representação de professores, alunos,
famílias e funcionários.
O racismo, mesmo que “cordial” e velado, acaba se apresentando
quando alguns colegas afirmam que não votarão em uma “chapa
preta’’. Estes(as) colegas sempre mantiveram uma relação “respei-
tosa”, mas diante da possibilidade de terem uma chefia imediata
negra e mulher, acabam deixando escancarado o seu racismo.
Nesta mesma situação eleitoral, a comunidade, que é de um
bairro periférico eminentemente negro da cidade, se manifestou e
deu grande apoio a uma chapa tão representativa para eles. Desta
forma, o acolhimento se deu através da forte identidade das profes-
soras e professores negros(as) com aquele território.
Já a princesa Aqualtune apresenta na sua história de vida e
profissional um forte entrelaçamento com a militância antirra-
cista, desde a juventude no movimento estudantil, no movimento
sindical, no partido político que milita e na universidade, sendo
uma das primeiras a entrar pelas cotas e participar do movimento
das cotistas quando o TCE fez o questionamento sobre a validade
destas. Destacamos que esta luta pela permanência das cotas nos
concursos públicos em Porto Alegre alavancou a construção de
dezenas de grupos de professoras(es) que lutam, resistem e traba-
lham com a educação antirracista nas escolas da RME.
As(os) professoras(es) da RME utilizam a educação antirracista
como uma ferramenta de transformação social. Entrelaçam suas
dores, resistência e luta na perspectiva de mudança da realidade,
na busca de soluções construídas de forma coletiva, potente e
transformadora.

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238 • Labirintos do labor

No Brasil, o Programa de Combate ao Racismo Institucional


(PCRI)10, implementado em 2005, definiu o racismo institucio-
nal como “o fracasso das instituições e organizações em prover um
serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor,
cultura, origem racial ou étnica’’. Ele se manifesta em normas, práti-
cas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do
trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude
que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância”.
Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas
de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvan-
tagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais
instituições e organizações (CRI, 2006, p. 22). Mais recente-
mente, Jurema Werneck definiu o racismo institucional como
“um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades
do racismo, fazendo com que os primeiros inexistem ou existam
de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência dos
grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordina-
ção deste último” (p. 11-12).
Seu impacto na vida da população negra no Brasil pode ser
percebido tanto na sua relação direta com os serviços e as insti-
tuições que deveriam garantir seus direitos fundamentais, quanto
no cotidiano de suas vidas.11

Considerações finais

Os fios e as tramas do racismo estrutural fazem parte da vida


e da história das servidoras públicas negras de Porto Alegre, nas
mais variadas formas, lugares, épocas, e elas vêm se encontrando
e se conectando. As Margaridas Africanas, botam portas abaixo,
abrem janelas, gritam, sorriem, se organizam em aliança com
seus pares e com quem defende e faz a luta antirracista, a educa-
ção antirracista no chão da escola, nos postos de saúde, hospitais,
na militância, nos sindicatos, na academia, nos partidos políticos,

Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:18


Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 239

de forma individual e coletiva, enfim, sempre acumulando forças


para virar o jogo, para sobreviver, para superar, para existir e resis-
tir as mazelas profundas do racismo estrutural.
As servidoras públicas negras apontam a necessidade de trazer
a discussão do racismo institucional, estas afirmam sofrer diaria-
mente em seus locais de trabalho esta forma de racismo que Stokely
Carmichael e Charles Hamilton, ativistas integrantes do grupo
Panteras Negras, em 1967, denunciaram como uma manifesta-
ção do racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas
instituições12. Para os autores, “trata-se da falha coletiva de uma
organização em prover um serviço apropriado e profissional às
pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”.
As narrativas das trabalhadoras negras do serviço público muni-
cipal de Porto Alegre fundamentalmente, dão visibilidade à atuação
profissional das servidoras públicas e suas formas de envolvimento
e contribuições na luta antirracista.
Conclui-se que as lutas sociais vividas pelas trabalhadoras negras
servidoras do município, especialmente no que diz respeito às
formas de organização e resistência contra o racismo estrutural e
o racismo institucional no serviço público municipal, fortalecem a
resistência como um aspecto central para a luta pela emancipação
humana, sendo esta permanente e num processo histórico contí-
nuo, e no leito da luta.

‘Notas
1
Fragmento da música “A carne mais barata do mercado é a carne negra”,
cantada por Elza Soares, composta por: Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson
Capellette
2
Este tema é parte da Dissertação de Mestrado intitulada “Margaridas
Africanas: Trabalhadoras negras do serviço público municipal de Porto
Alegre, fios e tramas do racismo estrutural” defendida pela primeira autora,
sob a orientação da segunda autora, junto ao PPGPSSS/UFRGS)

Livro 1.indb 25 24/10/2022 09:32:18


240 • Labirintos do labor

3
Instituto Brasileiro De Geografia e Estatística – IBGE. Pesquisa Nacio-
nal por amostra de domicílios. IBGE, 2022. Disponível em: https://www.
ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-
-de-domicilios-continua-mensal. Acesso em: 15.02.2022.
4
Oliveira, Semayat S. Jurema Werneck: ‘O racismo faz com que pesso-
as negras adoeçam mais. 2020. Disponível em: https://nosmulheresdaperiferia.
com.br/jurema-werneck-o-racismo-faz-com-que-pessoas-negras-adoecam-mais.
Acesso em: 28 fev. 2022.
5
Dados disponibilizados pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen),
relativos a 2020.
6
Instituto Brasileiro De Geografia E Estatística – IBGE. Pesquisa Nacio-
nal por amostra de domicílios. IBGE, 2022. Disponível em: https://www.
ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-
-de-domicilios-continua-mensal. Acesso em: 4 nov. 2020.
7
Sempreviva Organização Feminista – SOF. Sem parar: o trabalho e a
vida das mulheres na pandemia. SOF, 2020. Disponível em: https://mu-
lheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesqui-
sa_SemParar.pdf. Acesso em: 4 nov. 2020.
8
Documento solicitado à PMPA sobre quesito raça/cor servidores(as) pú-
blicos municipais.
9
Essa denominação alude a uma exposição fotográfica (2004/2016), que
foi organizada por essa autora, que se chamou “Margaridas Africanas”.
Na exposição, mulheres militantes sociais foram fotografadas e renomea-
das com nomes de mulheres negras que contribuíram significativamente
na construção da luta contra o racismo, vencendo os obstáculos do seu
tempo. Acompanhou a amostra fotográfica uma breve história de cada
mulher negra representada.
10
Projeto de uma parceria que contou com: SEPPIR, Ministério Públi-
co Federal, Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana de Saúde
(OPAS), e o Departamento Britânico para o Desenvolvimento Interna-
cional e Redução da Pobreza, Programa das Nações Unidas para o Desen-
volvimento, tendo como foco principal a saúde (CRI, 2006).
11
Werneck, Jurema. Racismo Institucional, uma abordagem conceitual.
Geledés - Instituto da Mulher Negra, 2013.
12
RACISMO INSTITUCIONAL. Entenda o que é racismo institucional.
Racismo Institucional, 2015. Disponível em: https://racismoinstitucional.
geledes.org.br/o-que-e-racismo-institucional/. Acesso em: 3 abr. 2022.

Livro 1.indb 26 24/10/2022 09:32:18


Racismo e trabalhadoras negras no serviço público • 241

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WERNECK, Jurema. Racismo Institucional, uma abordagem conceitual.
Geledés - Instituto da Mulher Negra, 2013.

Livro 1.indb 28 24/10/2022 09:32:18


Massificação da Educação Básica,
intensificação do trabalho docente e
saúde mental do professor moçambicano

Gildo Aliante
Jussara Maria Rosa Mendes 9

A
nível global a educação «formal» é reconhecida como um
direito fundamental a que crianças, adolescentes, jovens
e adultos devem ter acesso. Neste sentido, vários países
incluem a educação no plano das políticas públicas. E para fazer
face a isso, os países contam com órgãos específicos responsáveis
pela gestão dos sistemas nacionais da educação que variam em
função da organização político-administrativa de cada país. No
caso participar de Moçambique, desde em 1975, o ano da procla-
mação da independência, a educação passou a compor a lista das
prioridades de Governo do país, uma vez que este país herdara do
colonialismo português um sistema educacional com uma ideolo-
gia discriminatória e excludente que beneficiava a poucas nativos.
Desse modo, em fevereiro de 1976 foi fundado pela primeira vez na
história de Moçambique independente, o Ministério da Educação
e Cultura (Castiano; Ngoenha, 2013).
Dentro dos esforços envidados pelo Governo moçambicano no
sentido criar um sistema educacional voltado às necessidades do
país independente, garantir o acesso e oferta da educação aos cida-
dãos nativos que por muito tempo lhes foi negado este direito, em
1893 foi aprovada a primeira lei do Sistema Nacional da Educação,
que é a lei nº 4/83 de 23 de março.

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:19


244 • Labirintos do labor

Cabe sinalizar que ao longo dos 47 anos de independência


nacional, o sistema nacional de educação vem sofrendo profun-
das reformas tanto no quadro legislativo como nos currículos.
A título de exemplo, em 1992, foi revogada a lei nº 4/83 de 4
de março pela lei nº 6/92 de 6 de maio e por sua vez esta foi
substituída pela lei nº 18/2018 de 28 de dezembro. Do lado
curricular, em 2004 iniciou o processo implementação do novo
currículo em todas escolas do ensino primário em Moçambique
e 2006 abarca o ensino secundário e técnico-profissional.
No caso do ensino primário, foram introduzidas novas discipli-
nas, como Educação Moral e Cívica, Inglês, Ofícios, além de junção
das disciplinas de Geografia e História para Ciências Sociais e permi-
tir a inclusão de 20% no currículo de conteúdos locais (Instituto
Nacional de Desenvolvimento da Educação, 2003; 2015; 2020).
Igualmente, no mesmo ano de 2004 (re)começou o processo de
massificação do ensino primário com introdução da política ensino
gratuito da 1ª a 7ª classe, e reforço do fornecimento do material
e livro escolar de forma gratuita para alunos deste nível de ensino.
Em função da atual do SNE (lei nº 18/2018 de 28 de dezembro),
o ensino gratuito abrange até a 9ª classe a partir do ano de 2020
em todas as escolas públicas do país.
Na verdade são visíveis os efeitos da política de massificação
do ensino primário no que diz respeito ao aumento do número
de ingressos, expansão da rede escolar, o aumento de número
de professores, equidade de gênero (Ministério da Educação e
Desenvolvimento Humano, 2020). Paradoxalmente, pode se
afirmar que a universalização da educação básica vigente no país
apresenta repercussões sobre a qualidade de aprendizagem dos
alunos (Mário; Monjane; Santos, 2020; Unicef, 2019; Zucula,
2021), formação de professores e do trabalho docente, pois o
professor é a figura que garante a gestão do processo educativo e
das reformas educativas e curriculares em curso em Moçambique
(Ministério da Educação, 2003; Sapato, 2017).

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:19


Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 245

Contudo, postula-se que as reformas curriculares e a universaliza-


ção da educação básica ocasionaram uma intensificação do trabalho
docente que se caracteriza pelo aumento de disciplinas e conteú-
dos a serem lecionados, maior tamanho de alunos nas turmas que
poderia de 60 a 100 alunos, ênfase na polivalência e monodocência.
Obviamente, estas situações geram um maior ritmo, velocidade e
maiores cobranças no ambiente laboral, exigindo que os trabalha-
dores sejam cada vez mais polivalentes e versáteis, características
típicas da intensificação do trabalho. (Dal Rosso, 2008). Ainda,
Dal Rosso (2008) descreve que a relação de polivalência atribui-se
ao aumento da quantidade de trabalho executado, ocupando seu
tempo de tal forma que se torna impossível de usufruir de peque-
nos intervalos de descanso, ou seja, exige-se do trabalhador maior
empenho, a consumir maiores concentrações de energia pessoal,
cognitiva, física e mental, o que acarretar em prejuízos da saúde
física e mental dos professores.
Com base no exposto, que nos propusemos a escrever este artigo
com objetivo de examinar as repercussões da política de massifi-
cação da educação básica no trabalho docente e na saúde mental
dos professores. Esta reflexão parte pressuposto de que o alcance
da universalização da educação básica pública de qualidade para
todos passa necessariamente pela provisão e/ou melhoria das condi-
ções do processo de ensino-aprendizagem, do trabalho docente, de
vida e da saúde «mental» dos professores.
Além dessa introdução, este artigo contempla uma seção de
desenvolvimento, de considerações finais e referências. Na seção
de desenvolvimento, descreve-se um breve percurso histórico da
educação pública no período pós-independência, indicando as
reformas educativas operadas no sistema nacional da educação,
analisando as condições efetivas da operacionalização da política
de universalização da educação básica em Moçambique em termos
de progressos e desafios. Finalmente, examinam-se as repercussões
das reformas educativas no trabalho docente e saúde mental do

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:19


246 • Labirintos do labor

professor do ensino básico. Encerra-se com as considerações e a


lista de referências.

O sistema nacional da educação em moçambique: análise do


percurso hisótiro a partir das reformas legislativas e educativas

Moçambique é um país localizado na zona sul de África,


concretamente na região austral alcançou a sua independência a
25 de junho de 1975. Aquando da conquista da independência
nacional, o país herdou de Portugal um sistema político-econô-
mico baseado na descriminação racial onde a maioria dos nativos
negros não tinham direito e acesso aos serviços sociais, como é o
caso da educação (Castiano; Ngoenha, 2013; Mário, Manjone;
Santos, 2020; Zimbico, 2019).
No setor da educação, o país possuía um sistema educativo
precário, caracterizado por altos níveis de analfabetismo esti-
mado em 93%, uma rede escolar reduzida, falta de funcionários
e professores qualificados e desigualdades regionais e de gênero
marcantes. Desse modo, a expansão do acesso aos serviços educa-
tivos tornou-se numa das principais prioridades do país após a
independência nacional (AfroMAP; Open Society Initiative for
Southern Africa, 2012; Castiano; Ngoenha, 2013; Luís, 2005;
Zimbico; Cossa, 2018).
Ao se alcançar a independência nacional, os governantes
moçambicanos adotaram o socialismo, com princípios univer-
sais de Marxismo-Leninismo. Assim, o Estado passou a ser único
responsável pela provisão de serviços sociais e públicos aos seus
cidadãos. Uma das medidas tomadas pelo governo vigente na
altura foi de nacionalizar a economia, a terra, os serviços sociais,
as indústrias etc. Dentro desse quadro de decisões, o Governo
de Moçambique independente decidiu nacionalizar a educação
e expandir a rede escolar, com o objetivo de aumentar o acesso
para a maioria da população (Luís, 2005; Mário; Monjane; Santos,

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Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 247

2020; Zimbico; Cossa, 2018) e em 1976 funda o Ministério da


Educação e Cultura (Castiano; Nguenha, 2013).
No prosseguimento das reformas institucionais, em 1983, a
Assembleia Popular aprova a lei 4/83 de 23 de março, a lei do
Sistema Nacional da Educação (SNE) e define os princípios funda-
mentais da sua aplicação. Segundo o artigo 8 desta lei, o SNE
era estruturada pelos seguintes subsistemas de ensino: subsistema
de educação geral, subsistema da educação de adultos, subsis-
tema de educação técnico-profissional, subsistema de formação
de professores e subsistema de ensino superior. Igualmente, o
SNE estava estruturado em quatro níveis de ensino: primário,
secundário, médio e superior.
Essas reformas possibilitaram o início do processo de demo-
cratização da educação, fazendo com que maior número de
moçambicanos, independentemente de origem social, cor, raça,
religião, pudesse frequentar a escola, contribuindo para a progres-
siva eliminação da segregação e estratificação social (Luís, 2005;
Zimbico; Cossa, 2018). Segundo Castiano e Ngoenha (2013),
Luís (2005), outra medida tomada foi a reformulação dos currí-
culos e dos programas de ensino de todos os níveis e graus de
ensino, excetuando o ensino superior.
A revisão dos currículos tinha o plano de fundo, adequá-los
a nova realidade sociopolítica do país (Luís, 2005; Castiano;
Ngoenha, 2013). Desse modo, foram eliminados conteúdos
coloniais, com ênfase nas disciplinas de História e Geografia,
apresentados novos programas para estas disciplinas, sendo usado
como ponto de referência os programas ministrados nas escolas
das “zonas libertadas”. O ensino religioso, ligado à igreja cató-
lica, por sinal o único ministrado nas escolas, foi abolido. Isso se
deve não só ao caráter laico do novo Estado moçambicano, mas,
sobretudo, essa foi a forma encontrada para acabar com os privi-
légios da religião católica, instituição essa que no passado sempre

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248 • Labirintos do labor

esteve atrelada ao regime colonial português. E foi introduzida


pela primeira vez a disciplina de Educação Política.
A nacionalização do ensino e as reformas curriculares
efetivamente permitiram o acesso à escola de muitos alunos
moçambicanos, como demonstram os dados estatísticos do
Ministério da Educação nos anos subsequentes da independên-
cia nacional. Entretanto, a década de 1980, em Moçambique à
semelhança de outros países em desenvolvimento foi marcada
pela crise generalizada de endividamento, que resultou em uma
crise econômica que assolou o país.
Assim, a crise económica, a seca que assolaram Moçambique
em 1983, a pressão interna movida pela guerra civil (Mechisso,
2020), aliado ao colapso político e económico da União Soviética
e dos seus países socialistas (Harber, 2006), obrigaram o país,
em 1984, a recorrer à ajuda do Banco Mundial e do Fundo
Monetário Internacional, organismos que impuseram algumas
condições para disponibilizar apoio financeiro, como o aban-
dono do sistema socialista de economia planificada e a adoção
do capitalismo. (Harber, 2006; Luís, 2005; Manhique; Zimbico,
2021; Mechisso, 2020; Zimbico; Cossa; 2018).
Em consequência disso e a fim de assegurar um emprés-
timo das instituições financeiras, como o Banco Mundial - BM
e Fundo Monetário Internacional - FMI, o país foi obrigado a
adotar um plano de reajustamento estrutural, baseado nos prin-
cípios da economia capitalista, tais como uma diminuição do
papel do Estado, maior ênfase na iniciativa privada e no mercado
livre, incluindo a privatização de indústrias estatais, e o governo
tinha que proceder cortês nos impostos e nas despesas públicas,
em pontos como bem-estar social e educação (Harber, 2006).
Obviamente, a adesão de Moçambique ao BM e FMI impli-
cou uma mudança drástica do papel do Estado, antes visto como
único provedor dos serviços sociais e públicos, devido à uma
série de condições para concessão de empréstimos, interferindo

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:19


Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 249

diretamente na formulação de políticas públicas internas e da


legislação (Luís, 2005). No âmbito do ajustamento estrutural,
em 1987, introduz-se o Programa de Reabilitação Econômica –
PRE, que posteriormente incluiu a componente social, passando
a chamar-se por Plano de Reabilitação Econômia e Social – PRES
(Luís, 2005; Mechisso, 2020; Zimbico; Cossa, 2018).
No quadro legislativo, em 1990 foi aprovada a segunda
Constituição da República, considerada a primeira Constituição
democrática e multipartidária.
No âmbito educacional, em 1992, revoga-se a lei nº 4/83 de
23 de março e seu lugar aprova-se a lei nº 6/92 de 6 de maio.
Uma das inovações dessa lei foi a permissão de entidades priva-
das, comunitária, cooperativas e filantrópicas a participarem do
processo educativo. Além disso, o SNE estrutura-se em ensino
pré-primário, escolar e extra-escolar. (Moçambique, 1992). O
ensino pré-primário destina-se às crianças com idade abaixo
de 6 anos. O ensino escola escolar compreende o ensino geral,
técnico-profissional e superior. Ainda o ensino escolar contem-
pla modalidades de ensino especial tais como: ensino especial,
vocacional, de adultos, à distância e formação de professores.
(Moçambique, 1992).
Emergem novos atores políticos e as políticas públicas come-
çam a receber influência externa, de organismos internacionais.
As políticas de educação em Moçambique são (re) construídas
sob ditames dos compromissos mundiais de educação, como, por
exemplo, a Declaração de Jomtien (Tailândia) e Dakar (Senegal),
além das orientações de documentos expedidos pelos organis-
mos internacionais, tais como o Banco Mundial, a UNESCO e a
OCDE (Mechisso, 2020).
Embora o período 1987 a 1992 foi de reajustamento social,
político e econômico, no âmbito educacional caracterizou-se
por uma crise geral no sistema educacional em Moçambique.
(Castiano; Ngoenha, 2013). Estes autores usam o termo crise

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250 • Labirintos do labor

geral no sistema educacional para se referirem da incapacidade


do Estado de assegurar o acesso à todas as crianças e à educação
básica e um mínimo de qualidade àquelas crianças que estão na
escola. No mesmo período, cresceu o número de crianças sem
possibilidade de irem à escola, a qualidade de ensino torna-se
péssima. A compra do material didático básico, particularmente os
livros escolares, torna-se mais difícil para as camadas mais pobres.
A crise geral no sistema educacional pode estar associada ao
alastramento do conflito armado que eclodira dois anos após a
independência durante o qual cerca de 68% da rede de escolas
primárias foi destruída ou permaneceu inoperante. Como conse-
quência de 16 anos de instabilidade e destruição provocadas
pela guerra, o setor da educação retrocedeu significativamente
em relação aos ganhos alcançados nos primeiros anos do perí-
odo pós-independência (Abrahamsson; Nilsson 1995; Mário;
Manjone; Santos, 2020; Mechisso, 2020).
Ainda no quadro das reformas educacionais, em 1995 apro-
va-se a Política Nacional da Educação através de Resolução nº
8/95 de 22 de agosto, visando assegurar o acesso à educação a
um número cada vez maior de utentes e de melhorar a quali-
dade de serviços prestados em todos os níveis e tipos de ensino.
Ademais, com esta política pretende-se garantir o acesso da educa-
ção à população e fornecer uma educação com uma qualidade
aceitável, isto é, uma educação com conteúdo apropriado e um
processo de ensino-aprendizagem que promova a evolução conti-
nua de conhecimentos, habilidades, atitude e valores, de modo
a satisfazer os anseios da sociedade. (Moçambique, 1995). A
massificação da educação referida nesta política só começa a se
materializar a partir de 2004, como se descreve posteriormente.
Com vista a garantir a oferta de educação de qualidade acei-
tável e a massificação da educação básica instituída na Política
Nacional da Educação e dar conta ao cumprimento das metas da
Educação para Todos e dos Objetivos do Desenvolvimento do

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Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 251

Milênio, no ano de 2004, o Governo de Moçambique iniciou


com um processo de reformas da educação em todos os níveis
de ensino. A partir deste ano, no ensino primário introduz-se de
modo gradativo o novo currículo do ensino primário em todos
as escolas do país, aboliu-se o pagamento de taxas de matrículas
da 1ª a 7ª classe. Além disso, o Governo de Moçambique tem
vindo a adoptar várias outras estratégias, tais como: construção
acelerada de escolas, descentralização da gestão dos fundos para
as escolas, formação e capacitação dos professores, distribui-
ção gratuita do livro escolar, supervisão pedagógica, monitoria
e avaliação do desempenho (Chicava; Machama, 2020). Desde
então, o norte do setor da educação tem sido o aumento da oferta,
visando assegurar que todas as crianças em idade escolar tenham
acesso e permaneçam na escola até à conclusão do ensino primá-
rio completo (Mário; Monjane; Santos, 2020).
Já no ensino secundário, também implementam-se reformas
curriculares que inclui a introdução de novas disciplinas como
Tecnologias de Informação e Comunicação, Psicopedagogia,
Agropecuária, Empreendedorismo. No subsistema de formação
de professores, eliminam-se os modelos de formação de profes-
sores 7+3 anos, 10+2 anos e introduz o modelo de 10+1 ano.
Mais tarde, concretamente em 2012 e 2019, implementam-se
os modelos de formação de professores 10+3 anos em fase expe-
rimental e 12+3 anos, respectivamente.
Contudo, a imersão histórico-legal aqui apresentada nos
permite sinalizar que no período de vigência do modelo de
desenvolvimento socialista em Moçambique, a educação era
vista como instrumento principal da criação do Homem Novo,
homem liberto de toda carga ideológica e política de formação
colonial e dos valores negativos da formação tradicional capaz
de assimilar e utilizar a ciência e técnica ao serviço da Revolução,
e reforça o papel dirigente da classe operária e aliança operário-
-camponesa. (Moçambique, 1983). Assim, dá-se maior destaque

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:19


252 • Labirintos do labor

no desempenho coletivo, ao currículo vocacional (especialmente


na agricultura) e à ideologia política aberta da educação, ou seja,
o novo cidadão socialista (Harber, 2006).
Posteriormente, com adesão ao regime capitalista em detrimento
do abandono do socialista, e em cumprimento das imposições do
BM e FMI, aliadas às reformas em curso, a educação passou ser
considerada sucessivamente como um instrumento chave para
a melhoria das condições de vida e para a redução da pobreza
(Ministério da Educação e Cultura, 2006), e encarada como um
direito humano e um instrumento chave para a consolidação da paz,
da unidade nacional e para o desenvolvimento econômico, social
e político do país através da formação de cidadãos com elevada
auto-estima e espírito patriótico (Ministério da Educação, 2013,
Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, 2020).

Da massificacação da educação básica à intensificação do


trabalho docente em Moçambique

Neste século XXI, cresce cada vez mais o interesse pela


atividade educativa e formativa humana, em todos os seus
componentes tanto para agências internacionais (exemplo: BM,
FMI, OCDE, UNESCO e UNICEF), como para às nações, sobre-
tudo aquelas chamadas “em desenvolvimento”, como é o caso
de Moçambique. Esta (re)valorização da educação formal é justi-
ficada, possivelmente, por esta ser vista como um dos motores
principais do desenvolvimento social e econômico e respon-
sável pela formação da mão-de-obra para o sistema capitalista.
Dito em outras palavras:
Com as grandes transformações tecnológicas, econômicas, políticas
e culturais e com o desenvolvimento e afirmação do sistema capi-
talista na sociedade contemporânea, e com a consequente divisão
de classes trabalhadoras, aumentou a necessidade de profissões
para sustentar o desenvolvimento do capital. Assim, uma classe

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Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 253

trabalhadora eficiente e eficaz passou a ser o produto mais esperado


do sistema educativo. (Laita, 2016).
Diante dessa necessidade de alimentar o sistema capitalista com
a mão de obra, a garantia da oferta e acesso universal à educação
“de qualidade” passou a constituir um imperativo e uma impor-
tante missão dos países do mundo inteiro, incluindo Moçambique.
Desse modo, sob a égide das agências internacionais de desenvol-
vimento, o país tem vindo desde na década de 1990 até então, a
operar um conjunto de reformas no seio da política educativa
(exemplo: revisão do quadro legal dos sistema de educação, de currí-
culos e de modelos de formação de professores) com a finalidade
de adequá-la às orientações e desejos desses órgãos internacionais.
No entanto, muitas dessas reformas estão viradas para o aumento
das taxas de cobertura escolar (Birchler; Michaelowa 2016).
Em Moçambique, embora a política de massificação da educa-
ção básica seja postulada na Política Nacional da Educação
aprovada em 1995, a sua materialização começou em 2004, ano
em que se inicia o processo de implementação do novo currí-
culo em todas as escolas do ensino primário e do ensino primário
gratuito caracterizado pela isenção de pagamento das taxas de
matrículas para as setes classes (1ª a 7ª classe) deste nível em todas
as escolas da rede pública Do ponto de vista do INDE (2015:5),
a introdução do novo currículo do ensino básico objetivava:
Tornar o ensino mais relevante, no sentido de responder às diferentes
demandas socioculturais, econômicas e políticas, formar cidadãos
capazes de contribuir para a melhoria da sua vida, da vida da sua
família, da sua comunidade e do país, dentro do espírito da pre-
servação da unidade nacional, manutenção da paz e estabilidade
nacional, aprofundamento da democracia e respeito pelos direitos
humanos, bem como da preservação da cultura moçambicana.
Desta reforma, destacam-se as seguintes inovações: a intro-
dução de ciclos de aprendizagem; o ensino básico integrado; o
currículo local; a distribuição de professores para cada classe

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254 • Labirintos do labor

do ensino primário do segundo grau; a progressão por ciclos


de aprendizagem, a introdução de línguas moçambicanas e das
disciplinas de educação moral e cívica, inglês, ofícios, educação
musical e línguas nacionais (Instituto de Desenvolvimento da
Educação, 2003, 2015, 2020).
Evidentemente, a revisão curricular no ensino básico e a
estratégia de isenção de taxas de matrículas até 9ª classe a partir
de 2020, trouxeram progressos notáveis no que diz respeito ao
aumento de ingressos, acesso ao ensino, expansão da rede esco-
lar, aumento de professores e equilíbrio de gênero tanto para
alunos como para professores deste nível de ensino. Por exem-
plo, em 2018, no ensino primário do primeiro grau – EP1 (1ª
a 5ª classe), 48% dos alunos eram raparigas, sendo a proporção
ligeiramente mais baixa (46,8%) no ensino primário do segundo
grau - EP2 (6ª e 7ª classe). A nível da docência, registrou-se uma
taxa de 51% de professoras no EP1, em 2018 (Ministério da
Educação e Desenvolvimento Humano, 2020). Na ótica deste
órgão, houve, igualmente, uma melhoria na aprendizagem de
jovens e adultos com um aproveitamento de cerca de 67%, na
disciplina de literacia e 70% na de numeracia (Ministério da
Educação e Desenvolvimento Humano, 2020).
Apesar dos progressos alcançados no setor da educação no perí-
odo em alusão, persistem ainda grandes desafios como: a expansão
do sistema educativo de qualidade em todos os níveis, com parti-
cular a formação e colocação de formadores e professores para a
eficaz implementação curricular, incluindo a nível da modalidade
de Ensino Bilingue; a produção e distribuição de materiais didáti-
cos; o controle dos níveis de absentismo de professores e diretores
de escola, que revelam impacto negativo na aprendizagem dos
alunos; as elevadas taxas de desistência e reprovação, com atenção
especial às disparidades geográficas, a nível da participação e taxas
de conclusão no ensino secundário do 1º ciclo – ES1; a necessi-
dade de mais professores e mais salas de aulas para o ES1, tendo

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:32:19


Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 255

em conta o alargamento da escolaridade obrigatória para nove clas-


ses, e a respectiva possibilidade de se utilizarem as escolas primárias
para o ensino secundário básico e; o fortalecimento da capacidade
administrativa e institucional para melhorar a gestão do SNE e
responder aos desafios da descentralização (Chicava; Machama,
2020; Mário; Monjane; Santos, 2020; Ministério da Educacao e
Desenvolvimento Humano, 2020; Unesco, 2019).
Além disso, verifica-se que em Moçambique, a política de
universalização da escolaridade básica é efetivada num contexto
de recursos financeiros limitados, o que dificulta a provisão de
recursos humanos e materiais, de infraestruturas escolares em quan-
tidade de qualidade (Ministério da Educação e Desenvolvimento
Humano, 2020; UNESCO, 2019). Neste sentido, além da insu-
ficiência/falta de financiamento, de infraestruturas escolares e de
meios pedagógicos, nota-se um aumento exponencial de efetivos
escolares, o que gera a superlotação das turmas. Essas situações
traduziram-se, frequentemente, numa profunda degradação da
qualidade de aprendizagem dos alunos (Chicava; Machama, 2020;
Delors et al., 1998; Mário; Monjane; Santos, 2020), das condi-
ções de trabalho e de vida dos professores o que, possivelmente,
acarreta consequências tanto para a prática docente como a saúde
mental destes profissionais, como examina a secão subsequente.
É óbvio que com um número tão elevado de reais e poten-
ciais utentes, associado à gratuidade do ensino, distribuição
do livro escolar gratuito em ambos ciclos do ensino primário
e permanente ampliação da rede escolar, não deixaria de exer-
cer uma enorme pressão sobre os serviços prestados pelo setor
da educação (Mário; Monjane; Santos, 2020). Assim, do lado
da qualidade de aprendizagem dos alunos, o impressionante
aumento das taxas de escolarização não tem sido acompanhado
por uma correspondente melhoria da qualidade da aprendiza-
gem, havendo, em relação a este aspecto, sinais preocupantes
de um retrocesso considerável (Mário; Monjane; Santos, 2020;

Livro 1.indb 13 24/10/2022 09:32:19


256 • Labirintos do labor

Zucula, 2021). Estes resultados demonstram ao que Hossain e


Hickey (2019) denominam por «crise de aprendizagem» ou «esco-
larização sem aprendizagem», para descrever situações em que
os Governos conseguem assegurar que uma boa parte da popu-
lação tenha acesso à educação, sem que a qualidade da mesma
registe algum tipo de melhoria.
A crise de aprendizagem» ou «escolarização sem aprendizagem»
é influenciada por uma multiplicidade de fatores e causas tanto
do âmbito escolar, como político e social, apontadas por Chicava
e Machama (2020), Ministério da Educação e Desenvolvimento
Humano (2020) e Mário, Monjane e Santos (2020), nomea-
damente: deficiente alocação do tempo para tarefas de ensino
e aprendizagem; turmas superlotadas e rácios alunos/profes-
sor muito elevados; deficiente preparação, alocação e controle
do trabalho dos professores; carências em materiais de ensino;
fraco envolvimento e participação dos pais e da comunidade na
gestão das escolas; fragilidades no apoio externo à educação. A
esses fatores somam-se a perceção de pouca relevância das maté-
rias lecionadas, absentismo e desmotivação dos professores e dos
alunos.
Da descrição feita e com base nas experiências vividas por
outros países como é o caso do Brasil, pode se afirmar que o
processo de massificação de ensino básico e as reformas curricu-
lares e das políticas educacionais que Moçambique vive desde
2004, tem resultado na incorporação de novos setores sociais
aos sistemas escolares em um cenário marcado pela contenção
de gastos e restrição de recursos, e possui efeitos diretos sobre
as condições de trabalho e a remuneração dos docentes, o que
pode estar pondo em risco a qualidade da educação. Ademais,
pressupõe-se que as reformas curriculares e a universalização da
educação básica vêm ocasionando um processo de intensificação
do trabalho docente que pode acarretar consequências sobre a
saúde mental dos professores.

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Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 257

A intensificação do trabalho pode decorrer do crescimento da


produção sem alterações do efetivo, ou da diminuição do efetivo
sem haver mudança na produção (Assunção; Oliveira, 2009). Na
mesma direção Reis e Cecílio (2014), referem-se que a inten-
sificação é todo processo que resulta em um maior dispêndio
de capacidades físicas, cognitivas e emocionais do trabalhador,
objetivando um aumento de resultados quantitativos e qualita-
tivos que favorecem ou permitem um aumento da mais-valia e
da “exploração do trabalho
Neste sentido, observa-se que a intensificação do trabalho
docente do ensino básico se caracteriza pelo aumento de disci-
plinas para cada classe, do elevado número de alunos em cada
turma, ênfase na monodocência e polivalência para todo ensino
primário, lecionação de novas disciplinas.
Em relação ao número de disciplinas, é possível verificar um
aumento exponencial de número de disciplinas e matérias previs-
tas em cada programa de ensino. Por exemplo, os professores
da 1ª e 2ª classe passaram a lecionar de três para oito na 1a e 2a
classe, de quatro para oito na 3a classe e de cinco para nove na
4ª e 5ª classe, respectivamente. No ensino primário do segundo
grau (EP2) (6ª e 7ª classe), o número de professores de sete para
cada classe foi reduzido de sete para três ou quatro. Estas situ-
ações revelam um aumento qualitativo e quantitativo da carga
horária do professor (Aliante et al., 2021).
Igualmente, a massificação do ensino por não se acompanhado
efetivamente por contratação de professores e construção de salas,
registra-se um rácio professor/alunos ainda muito elevado, ou seja,
gera um contexto de salas superlotadas. Por exemplo, em 2018,
o rácio médio alunos/professor no ensino primário completo
(EP1+EP2) rondava 55,27, contra 64,2 nas classes iniciais (EP1),
sendo mais elevado nas províncias da Zambézia, Nampula e Cabo
Delgado (acima de 70 alunos–professor). Contudo, cerca de
23% dos professores do EP1 ainda lecionam 2 turmas. Este fato,

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258 • Labirintos do labor

conjugado com a escassez de tempo para as tarefas de aprendiza-


gem dentro e fora da sala de aula, permite perceber quão limitada
é a capacidade dos professores de atenderem às necessidades de
aprendizagem de todos os alunos nos domínios da leitura, escrita
e cálculo, em particular dos alunos com necessidades educativas
especiais (Mário; Monjane; Santos, 2020; UNESCO, 2019).
Igualmente, importa referir que o ensino primário do primário
grau é lecionado por um professor por cada turma, uma prática
que alastrou para 6ª classe a partir de 2020. No EP2, no inicio
da implementação do novo currículo o INDE (2003) orientava
que as turmas do 1º grau (1º e 2º ciclos) do Ensino Básico seriam
lecionadas por um professor cada e as do 2º grau (3º ciclo), por
três ou quatro professores. Cada professor do 2º grau leccio-
nará três a quatro disciplinas curriculares, podendo ser ou não
da mesma área, conforme a sua especialização ou inclinação. A
redução do número de docentes por turma no EP2, de sete, para
três, tem, como pano de fundo, a organização do currículo em
áreas disciplinares. A presente opção tem em vista uma rápida
expansão da rede do EP2, a nível nacional, visto que o sistema de
três professores para o EP2 se afigura menos dispendioso. Como
se observa, isso demonstra claramente a aplicação de princípios
maior eficiência e gerencialistas na educação pública que carac-
teriza pelo lógica de produzir mais com menos recursos.
Ainda segundo a mesma entidade, aos professores bivalentes,
em exercício, ser-lhes-ão ministrados cursos de capacitação para
poderem lecionar mais uma ou duas disciplinas, de acordo com
a sua preferência e em função das necessidades da escola. Essas
orientações evidenciam que durante a implementação do novo
currículo, ao professor seria lhe exigido a desempenhar funções
num ambiente de polivalência e de constante necessidade de adap-
tação (Inde, 2003). Este cenário revela que os docentes assumem
novas funções e responsabilidades, a fim de responder às exigên-
cias dos órgãos do sistema, bem como da comunidade, advindas

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Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 259

das reformas educacionais. Contudo, corroborando o pressu-


posto de Reis e Cecílio (2014), de que o trabalho intensificado
pode ocasionar cansaço físico e mental, alterações emocionais
é oportuno a seguir examinar as repercussões da intensificação
do trabalho docente na saúde mental do professor no contexto
da universalização da educação básica em Moçambique.

Da intensificação do trabalho docente e à degradação da


mental dos professores do ensino básico em Moçambique

Na seção anterior concluiu-se que o processo de universalização


da educação básica e reformas curriculares em curso estão gerando
a precarização e intensificação o trabalho docente, que caracteriza
por um lado pela deterioração das condições de trabalho (exem-
plo: falta de materiais, infraestruturas escolares, fraca aprendizagem,
superlotação das turmas) e, por outro, pelo aumento de responsa-
bilidades, exigências e ampliação da carga do trabalho docente, o
que repercute diretamente na saúde física e mental dos professo-
res. Desse modo, nesta seção busca-se problematizar as articulações
entre as dimensões do fenômeno de intensificação e precarização
do trabalho e a saúde mental dos professores.
Inicialmente, cabe sinalizar que além das condições do processo
de ensino-aprendizagem anteriormente mencionadas, outros
elementos são avaliados como fatores psicossociais relacionados
ao trabalho que determinam ou condicionam no sofrimento e
adoecimento físico e mental no /pelo trabalho de professores
em Moçambique. A revisão de literatura sobre saúde mental do
professor em Moçambique realizada por Aliante, Mendes e Abacar
(2020), evidenciou que a degradação da saúde mental de profes-
sores é eminentemente influenciada pelos fatores do ambiente
escolar, tais como: baixos salários e remunerações; escassez ou
precários recursos materiais e físicos; limitado desenvolvimento
na carreira; sobrecarga de trabalho e dificuldades de aprendizagem

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260 • Labirintos do labor

dos alunos. Com base nestes resultados, estes autores concluíram


que os fatores organizacionais são determinantes no sofrimento
e adoecimento mental de professores investigados.
Posteriormente, outras pesquisas desenvolvidas com amos-
tra de professores moçambicanos da educação básica (exemplo:
Aliante; Abacar; Pereira; 2020; Aliante; Mendes, 2021; Abacar;
Aliante; Nahia, 2020; Ministério da Educação e Desenvolvimento
Humano, 2017) obtiveram resultados similares aos da revisão de
literatura indicada. Por exemplo, Aliante, Abacar e Pereira (2020),
constaram que limitadas oportunidades de desenvolvimento e
crescimento profissional (mudança de carreira, progressões e promo-
ções); longas distâncias percorridas de casa-trabalho e vice-versa;
baixos salários e remunerações; falta de recursos materiais e didá-
ticos como principais aspectos associados ao sofrimento psíquico
dos professores pesquisados.
Por sua vez, Abacar, Aliante e Nanhia (2020) agrupam os estres-
sores ocupacionais três categorias: fatores de trabalho (precárias
condições de trabalho, salários baixos, falta de desenvolvimento
profissional, políticas de educação e sobrecarga de trabalho); fatores
do aluno (maior quantidade de alunos por turma, comportamento
dos alunos e fraca aprendizagem dos mesmos); e fatores extra-
-escolares (deficiente participação dos pais e/ou encarregados de
educação). Recentemente, Aliante e Mendes (2021), observaram
que desvalorização social do professor, mau relacionamento inter-
pessoal entre gestores e professores, baixos salários e remunerações,
precárias condições do trabalho, limitadas oportunidades de desen-
volvimento na carreira, falta de apoio profissional e social, grande
quantidade de alunos nas turmas, falta de benefícios sociais e difi-
culdades de conciliar as atividades da casa e do trabalho, foram
os principais fatores de psicossociais riscos à saúde mental dos
professores investigados.
Estes resultados apresentados levam-nos a corroborar com
a idade de Mendes, Wünsch e Reidel (2019), segunda a qual

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:19


Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 261

geralmente as atividades laborais exercidas na esfera pública [...] são


realizadas em grande parte em ambientes de trabalho com estru-
turas físicas e materiais precários além de condições de trabalho
insuficientes para tal, o que acarreta prejuízos à saúde dos profis-
sionais. Na mesma direção Facci, Urt e Barros (2018), explicam
que as mudanças nas políticas educacionais aliadas aos diversos
estressores ocupacionais e de novas formas de organização do traba-
lho e gestão de pessoal que ocorrem no ambiente das organizações
educacionais interferem na vida e saúde dos professores, ocasio-
nado agravos de saúde nestes profissionais, que resultam em taxas
altas de adoecimentos e afastamento no trabalho.
Certamente, múltiplos agravos à saúde mental se manifestam
na vida dos professores e das professoras do ensino básico da rede
pública em Moçambique (Aliante; Mendes; Abacar, 2020). Neste
âmbito, Abacar, Roazzi e Buneo (2017), constataram que o cansaço,
o desânimo, o mal-estar, a tensão, a frustração, a dor de cabeça,
a impaciência e a irritabilidade ou o desinteresse foram os prin-
cipais problemas que o trabalho ocasionava aos professores. Na
mesma direção, Aliante, Mendes e Abacar (2021) investigando a
saúde menta de professores moçambicanos do ensino básico veri-
ficaram a ocorrência de problemas de saúde física (por exemplo:
dor de cabeça, de voz, cansaço) e psíquico (exemplo: tensão, stress,
desânimo), comportamentais (consumo de álcool e isolamento).
Para além dessas consequências, os professores têm revelado senti-
mentos e manifestações de esgotamento profissional. Ilustrando,
Aliante et al. (2021), evidenciou que 13,3% dos 263 participantes
apresentaram baixos níveis em ilusão pelo trabalho; 16,3% altos
níveis em desgaste psíquico; 13,3% em indolência e 25,9% altos
níveis de culpa. Da análise geral, 24,0% apresentou níveis altos de
burnout (perfil 1) e 11,0% níveis severos da síndrome (perfil 2).
Uma vez que se reconhece que a contribuição dos professo-
res é crucial no processo educativo e materialização da política
da universalização da educação básica urge a necessidade de serem

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:19


262 • Labirintos do labor

implementadas de forma efetiva as medidas indicadas no Relatório


para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI (Delors et al., 1998), tais como: melhorar a forma-
ção, a qualidade, o estatuto social, a motivação dos professores;
garantir a provisão e oferta de condições de trabalho tanto físi-
cas e como materiais satisfatórias; promover uma remuneração
compatível com o custo de vida e comparável à das outras cate-
gorias de emprego que exigem um nível de formação equivalente;
conceder de incentivos especiais aos professores que trabalham em
zonas afastadas ou pouco convidativas. Assim, pressupõe-se que a
implementação dessas ações aumentará a valorização da profissão
docente, a motivação e satisfação dos professores e, por conseguinte,
contribuir na redução do absentismos e níveis de sofrimento e/ou
adoecimento mental destes profissionais.
Outrossim, é fundamental a saúde mental dos professores nas
políticas públicas do país, já que a saúde mental dos professores
também importa (Aliante; Mendes, 2022), bem como a literatura
tem evidenciado que uma degradada condição de saúde degradado
de saúde mental do professor tem implicações diretas negativas
sobre a aprendizagem dos alunos e o relacionamento interpessoal
e convivência com alunos.

Considerações finais

Neste artigo reflete-se em torno da política de massificação


da educação básica e as reformas educativas e sua repercussão no
trabalho docente e na saúde mental dos professores. Da imersão
feita sinaliza-se que o Estado moçambicano vem implementando
uma série de reformas desde o quadro legislativo à revisão curri-
cular em todos os níveis e subsistemas de ensino. Essas reformas
são acentuadas desde o ano de 2004, que começa efetivamente a

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:32:19


Educaçãoi básica, trabalho docente e saúde mental • 263

implementação da política de universalização da educação básica


e do novo currículo no ensino primário.
Ficou evidente que as reformas educacionais em curso impac-
tam fortemente na formação de professores, qualidade da educação,
no trabalho docente e, por conseguinte, na vida, estatuto social
e saúde mental dos professores, que caracteriza por uma contí-
nua fraca aprendizagem dos alunos e degradação das condições
de ensino. Verificou-se que as reformas em curso ocasionam uma
precarização e intensificação do trabalho docente que se traduz na
deterioração das condições de trabalho e aumento da qualitativa
e quantitativa da carga horária respectivamente.
A precarização e intensificação do trabalho repercutem na
prática docente, na vida e saúde mental dos professores, caracte-
rizada pela insatisfação profissional e aparecimento de um quadro
de sofrimento mental sob forma de stress, depressão e burnout,
com consequências drásticas no bem-estar dos professores. Diante
do quadro do sofrimento mental evidenciado com base nos estu-
dos indicados, é necessário e urgente a implementação de políticas
voltadas à saúde do professor, focadas na melhoria da condição de
trabalho, do estatuto social, de vida e da saúde destes profissionais.
Tal necessidade surge na sequência, de um lado, constatar-se que
as reformas das políticas educativas não incluem a saúde mental
do professor em sua pauta e, por outro lado, perceber-se que não
haverá melhoria de qualidade de educação sem levar em conta a
saúde mental da figura do professor.
Finalmente, enfatiza-se a continuidade de desenvolvimento
de mais pesquisas sobre os fenômenos de intensificação e precari-
zação do trabalho docente, o sofrimento/adoecimento mental dos
professores e demais profissionais da educação, pois os resultados
a serem alcançados servirão de indicadores e base para legitimar
o desenho de políticas pública de saúde dos profissionais da
educação.

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:19


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268 • Labirintos do labor

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ABATIRÁ – Revista de Ciências Humanas e Linguagem, Eunápolis, v.2,
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Livro 1.indb 26 24/10/2022 09:32:19


Trabalho e trabalhador precarizados:
INSS Digital, as Transformações no
Serviço Previdenciário Brasileiro e sua
Repercussão na Saúde do Trabalhador

Elisiane Wolf de Fraga


Maria Dulcineia Martins Batista 10

D
ebates relacionados às modificações do trabalho na socie-
dade contemporânea e o impacto dessas na saúde das e
dos trabalhadores são cada vez mais urgentes quando colo-
ca-se em perspectiva a relação direta que o tema tem em nossas
vidas. E quando fala-se nessa relação direta, não usam-se quaisquer
figuras de linguagem como forma de mascaramento ou provisão
de uma realidade aumentada, mas é a verdade nua e crua que já
mostrava seus sinais em outros momentos do capitalismo, mas
que, com a iminência de sua etapa superior, disposta na forma
do imperialismo, ganha maior relevo na vida das classes trabalha-
doras brasileira e mundial. Isso porque, se antes o capitalismo já
se apoderava de nosso cotidiano (através das nossas jornadas de
trabalho e pela centralidade que o trabalho ocupa em nossas vidas),
com o imperialismo, as constantes reestruturações produtivas do
Capital ganham dimensão que ultrapassa as jornadas de traba-
lho. A exemplo disso, e entre outros elementos de alterações do
mundo do trabalho, está a inserção das Tecnologias de Informação

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:19


270 • Labirintos do labor

e Comunicação (TICs) nos processos laborais. Fazendo uso destas


ferramentas, o trabalho, sem convites ou pedidos de autorização,
adentra em nossas casas e em nossa intimidade, mudando drasti-
camente não apenas nosso modo de trabalhar, mas, sobretudo, de
viver. A ausência da separação do tempo de trabalho e fora dele se
confundem e se entrelaçam num processo sorrateiro de precarização.
Assim como as crises no modo de produção capitalista, a cons-
tante necessidade do Capital de se reinventar e garantir novas formas
para concretizar sua reprodução no lucro e na extração de mais-
-valia é cíclica e periódica. Como trazem Marx e Engels (2008),

A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os


instrumentos de produção, portanto as relações de produção, e por
conseguinte todas as relações sociais. A conservação inalterada dos
antigos modos de produção era a primeira condição de existência
de todas as classes industriais anteriores. A transformação contínua
da produção, o abalo incessante de todo o sistema social, a insegu-
rança e o movimento permanentes distinguem a época burguesa de
todas as demais. [...] Com a rápida melhora dos instrumentos de
produção e das comunicações, a burguesia logra integrar na civili-
zação até os povos “mais bárbaros”1. (Marx e Engels, 2008, p. 13
e 15, grifos nossos)

Essa condição que a classe burguesa tem de constantemente


reinventar-se não é uma característica nova, como observado
com fragmentos do Manifesto Comunista, de 1848. Estas alte-
rações nas relações sociais de produção que alteram o mercado
de trabalho no âmbito do setor industrial, de semelhante forma
modificam a maneira de reprodução dos serviços, não restringin-
do-se apenas ao setor privado, mas adentrando no setor público,
de modo a aplicar métricas e modalidades de ação e intervenção
que são compatíveis com a lógica do mercado e não com o que
relaciona-se aos interesses públicos e, portanto, às demandas da

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:19


Trabalho e trabalhador precarizados • 271

população. No entanto, é importante ter em perspectiva a noção


de que qualquer movimento que se dê de alterações nas condi-
ções materiais e imateriais tem relação direta com o contexto da
luta de classes e não nasce ou desaparece descolado desse conflito
que configura-se como o motor da História.
Nos marcos atuais do capitalismo, o período que compreende
as décadas de 1960 e 1970 é permeado por um grande processo
de reestruturação produtiva que altera significativamente as condi-
ções materiais de produção, firmando os primeiros passos na lógica
da acumulação flexível, além de alterar, também, conteúdos e
percepções2 da realidade na vida em sociedade. Isso vem do seio
de um intenso acirramento da luta de classes que nessa época é
protagonizado pela Guerra Fria. Essas alterações são reflexo da
disparada pelo maior domínio das forças produtivas materiais;
não à toa, esse momento histórico é marcado pela corrida espa-
cial e pelo avanço da tecnologia pelo campo representante do
Capital e pelo campo do que seria o representante do Trabalho
que, à época, referiam-se, mais diretamente, a Estados Unidos
e União Soviética.
O importante de se atentar com relação à reestruturação produ-
tiva é que o viver, o adoecer e o morrer do trabalhador devem ser
compreendidos dentro de suas condições sociais de vida, algumas
das quais compartilhadas com o conjunto da população, e em
sua particularidade na sua relação com o processo de trabalho”
(Dias, 1994). A partir disso, trataremos nos pontos seguintes sobre
como esse movimento estrutural e, dialeticamente, também supe-
restrutural gera rebatimentos na esfera do serviço público, com
particular ênfase no âmbito federal, pois a aparência inovadora
destes fenômenos esconde um grande processo arcaico perme-
ado de precarização e de sucateamento que incide diretamente
na saúde das e dos trabalhadores públicos federais, mas também
no conjunto da classe trabalhadora que é atendida e que depende
desses serviços. Tratar da saúde do trabalhador público tem sido

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272 • Labirintos do labor

o grande desafio dos pesquisadores do tema, dada a pouca trans-


parência sobre o mapa situacional, no que envolve informações
sobre a saúde desses trabalhadores.

Reestruturação produtiva e alterações dos processos de


trabalho na previdência social pública

A reestruturação produtiva atinge o serviço público de uma


forma arrebatadora e isso é perceptível desde as alterações nas
formas de gestão até os processos de trabalho. No caso do
Brasil, a década de 1990 vai ser um importante marco, pois a
Contrarreforma do Estado, trazida por Bresser-Pereira e imple-
mentada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), vai
introduzir, no tocante do serviço público, a lógica privada e
privatista de trabalho e de atendimento, visando, entre outros
elementos, a produtividade. Quando falamos que o produto
esconde o processo ao qual foi criado, mencionamos o que aqui
fora vendido quase como um sonho dourado, mas que, na verdade,
transformou-se em um grande pesadelo para quem trabalha neste
espaço e para quem é usuário dos serviços. Percebe-se que um
plano criado para a realidade de outros países (e que, mesmo
nesses países com melhores condições para sua execução, têm
rebatimentos na saúde da classe trabalhadora internacional), é
implantado em panorama brasileiro, mas sem levar em conta a
realidade social, política e econômica do país.
Os ideais do gerencialismo foram introduzidos na esfera
pública, de maneira que índices de eficiência, eficácia e efetividade
passaram a ser métricas avaliativas não para qualificar os serviços,
mas para tornar-se seu contrário: viraram ferramentas de assédio,
perseguição e validação dos ataques gerados às e aos trabalha-
dores públicos federais. Esse processo, que iniciou-se na década
de 1990 com FHC, ganhou qualidade nos governos seguintes,
inclusive naqueles ditos democráticos e populares. Os períodos

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Trabalho e trabalhador precarizados • 273

Lula e Dilma foram momentos de grande acirramento da luta de


classes e das condições de vida de trabalhadores públicos, pois as
medidas alteraram não apenas os processos de trabalho (a curto,
médio e longo prazos), mas as condições de vida de trabalhado-
res ativos e aposentados, de maneira que passaram a determinar
também o horizonte de suas lutas, assim como as formas de lutar.
Nos períodos Lula e Dilma, pode-se destacar alterações nas
regras de aposentadoria que iniciam sendo executadas na forma
de ataques direcionados especificamente para trabalhadores públi-
cos (como é o caso da contrarreforma da previdência, de 2003);
a tentativa de descaracterizar, precarizando, profissões como a de
assistentes sociais, em que teve chamamento em concurso para o
cargo de “Analista do Seguro Social com Formação em Serviço
Social”, e exigência de registro ativo no Conselho Regional de
Serviço Social (CRESS), mas não atuando diretamente como
assistentes sociais, tendo em vista o ordenamento de ações que
não são competência de assistentes sociais e que, dependendo
da exigência de trabalho, pode culminar em uma ação que, sem
análise crítica, pode infringir o Código de Ética da profissão,
assim como seu projeto ético-político; e também a partir dos
acordos entre Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com
a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban); entre outros.
Quantos aos acordos entre INSS e Febraban (que já indicam a
incidência de avanço do processo de financeirização das políticas),
estes pactos tinham uma proposta formal de “desonerar o INSS”,
mas, na verdade, foram mais uma etapa do processo de ataques
“fatiados”3 característica dos governos Lula e Dilma. À época, a
proposta não era apenas de que os bancos veiculassem o paga-
mento dos benefícios, mas que os terminais bancários atuassem
como uma pequena Agência de Previdência Social (APS) em que
se pudesse fazer solicitações de benefícios, etc, sem trabalhado-
res incluídos na política para auxiliar a população. Tal proposta
foi “fatiada”, pois, no período citado, não teve base material para

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274 • Labirintos do labor

sua execução, contudo, a mesma avançou ao longo dos anos até


chegar em ações de modernizações, com promessas de melho-
rias no sistema previdenciário brasileiro.
É neste cenário que o INSS efetiva o projeto do INSS digital,
implantando o slogan “Meu INSS”. Isso ocorre mediante um
quadro de precarização da autarquia, no que se refere às condi-
ções físicas de muitos locais de trabalho, às relações de trabalho
e também na fragilidade dos serviços prestados à população. A
realidade dos ambientes vem em processo perverso de desmonte
das condições laborais, situação que agride a própria dignidade
dos trabalhadores da instituição. Cabe a seguinte análise dentro
deste panorama: se em formato presencial o INSS já se apresenta
com expressiva debilidade na sua principal função que é viabili-
zar direitos, certamente qualquer serviço que venha ser oferecido
à distância, por meio de plataformas digitais e sem quaisquer
preparações para quem precisa utilizar o serviço, apenas mascara
os problemas presentes e invisibiliza as filas nas portas das agên-
cias, que passaram a ser virtuais e maiores.
O serviço previdenciário passou a ser disponibilizado, já há
algum tempo, de forma instável; quando se fala nos acessos presen-
ciais depara-se com precários computadores, velhos e obsoletos,
disponíveis em APSs como um serviço de “autoatendimento”.
Serviço, este, que não permite que trabalhadores públicos auxi-
liem o segurado, assim como tenta mascarar o fato de que a
autarquia não tem feito concursos, precarizando e dificultando
o acesso da população aos benefícios e aos serviços previdenciá-
rios que acabam sendo impossibilitados por uma série de fatores,
tais como: 1) os índices de analfabetismo oficial, funcional e digi-
tal presentes no Brasil atualmente; 2) a dificuldade de acesso aos
meios digitais e às redes de internet em casa; 3) a opção do segu-
rado por tratar diretamente com pessoas em formato presencial
e domínio técnico sobre a política previdenciária, quando situ-
ado em APS, em vez de utilizar uma ferramenta que não domina

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Trabalho e trabalhador precarizados • 275

ou que não lhe dá as respostas necessárias para seus encaminha-


mentos; entre outros.
Mediante tais constatações, é importante o questionamento
acerca de quais melhorias futuras esta Instituição tende a oferecer
aos trabalhadores segurados, aos seus trabalhadores e à população
em geral. Qual plano será traçado para responder aos milhões de
processos estagnados na tal fila virtual? Todas essas problemati-
zações são elementos não só de análise, mas também podem e
devem ser propulsores de luta e de resistência pela seguridade
social brasileira, que beira ao colapso.
Os governos Temer e Bolsonaro rompem com aquilo que
denominamos anteriormente como sendo o ataque fatiado, mas
implementam, sem grandes preocupações, ataques diretos à classe
trabalhadora de modo geral. Nesse processo, há uma grande leva
de contrarreformas que são historicamente catastróficas no âmbito
dos direitos a trabalhadores e a usuários; dentre elas, podemos
citar a contrarreforma trabalhista e a Emenda Constitucional 95,
que congela gastos públicos por vinte (20) anos. Essas contrarre-
formas somam-se a ações como a tentativa de extinção do Serviço
Social na autarquia e a implementação acelerada do teletrabalho
e da pactuação por metas via programas de gestão.
É importante ressaltar que a política de previdência torna-se,
ao longo do tempo, protagonista de um grande laboratório de
ataques por parte do Estado: um Estado que deve ser garantidor
do acesso aos direitos, mas que, ao mesmo tempo, é um Estado
que cumpre um papel de patrão para os trabalhadores públicos
e que é uma instituição da classe dominante. Em consonância
ao processo de modernização digital, em 2018, o INSS cria e
implementa um programa de gestão do teletrabalho que, em
vez de melhorar as condições físicas de trabalho nas APSs e nas
Gerências Executivas (GEXs), envia as demandas de trabalho e
o ônus de garantia de condições adequadas para execução dos
serviços para o interior da casa dos trabalhadores. Assim, através

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da Instrução Normativa Nº 98, há a disposição do teletraba-


lho no INSS, de maneira que a autarquia define a modalidade
como sendo:

A. a necessidade de renovar a política de gestão de pessoas como


forma de estimular o desenvolvimento das potencialidades do
servidor e o aumento da produtividade, racionalizando os custos
operacionais, sem prejuízo da qualidade da prestação do serviço
ao cidadão;
B. a necessidade de promover a modernização, a melhoria contí-
nua dos processos de trabalho e a cultura orientada a resultados,
com foco no incremento da eficiência e da efetividade dos servi-
ços prestados;
[...]
D. que algumas atividades laborais consomem maior esforço indi-
vidual e não necessitam de inter-relação pessoal para sua execução
[...] (Brasil, 2018, sem página, grifos nossos).

Essa definição, como mencionado anteriormente, está pautada


no processo de reestruturação produtiva associado ao gerencialismo.
A adesão ao programa de gestão que institui o teletrabalho, sempre
se deu de forma voluntária, porém mediante critérios instituídos
na portaria. Também há a designação das chefias diretas para os
trabalhadores que correspondem a determinados perfis. Com a
chegada da pandemia em março de 2020 – processo que ainda
não acabou, mas que, por meio da vacinação, está amenizado –
houve um importante movimento para consolidar ataques em
diversas políticas e, como dito anteriormente, sendo a previdência
um laboratório de ataques, o sistema de teletrabalho na autar-
quia foi acelerado. Contudo, nesse contexto, através da Portaria
422 de 2020, o home-office foi a diretiva necessária para a prote-
ção da vida dos trabalhadores federais, evitando, também, que a

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Trabalho e trabalhador precarizados • 277

circulação de segurados nas APSs, consequentemente, cooperas-


sem para a proliferação do vírus da Covid-19.
Esse marco temporal e essa ação específica são importantes de
ter em perspectiva, pois vão incidir diretamente nos fatores que
relacionam-se ao trinômio saúde-trabalho-doença para traba-
lhadores públicos e às estratégias ardilosas do Capital e de seus
representantes de fazer com que, se politicamente desorganiza-
dos, os próprios trabalhadores legitimem os movimentos que os
atacam. Essa questão da legitimação desse processo escancarado
de precarização, se dá principalmente pela implementação do
teletrabalho ocorrer sem um diálogo entre a gestão institucio-
nal e os operadores da política previdenciária. Assim, não houve
acordo nas relações do trabalho virtual, apenas a implantação de
um formato de trabalho que, possivelmente, é o fator do esgota-
mento físico e mental de muitos trabalhadores, vide a pressão por
produtividade que é exigida, por intermédio das metas abusivas
advindas nessa modalidade, tem sido um forte fator de adoe-
cimento mental dos trabalhadores. Essa ação de legitimação é,
também, reflexo concreto da política de apassivamento da estra-
tégia de luta democrática e popular no Brasil.
A Portaria 422 é uma resposta concreta e dialética à situa-
ção encontrada no momento conjuntural que marca o início da
pandemia: ao mesmo tempo em que pode ser uma vitória dos
trabalhadores no que se refere à não exposição ao vírus em traba-
lho presencial – e quanto a isso, marcam-se resistências por parte
das entidades representativas da categoria a nível regional4 e nacio-
nal (como o ato de oficiar as GEXs para solicitar a suspensão
imediata de expediente em decorrência da Covid-19); a referida
portaria serve também como uma grande armadilha para a vali-
dação de uma precarização irrestrita da política de previdência ao
fazer com que as e os trabalhadores arquem com todos os custos
de implementação desse trabalho (luz, água, alimentação, inter-
net, mobiliário, maquinário), pactuando metas e tendo a vida

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278 • Labirintos do labor

pessoal invadida para além da jornada de trabalho. Embora sendo


como medida necessária para a não infecção de um vírus alta-
mente letal, o programa de gestão do teletrabalho requer análise
sobre os diversos aspectos, pois não deixa de ser um modelo de
exclusão para as e os trabalhadores que não possuem manejo e
o mínimo de conhecimento sobre as tecnologias e uso de equi-
pamentos eletrônicos. Sobre isso,

É certo que uma parcela de “novos trabalhos” será criada entre


aqueles com mais “aptidões”, mais “inteligência”, mais “capacita-
ções” (para recordar o ideário empresarial), amplificando o caráter
de segregação societal existente. Contudo é impossível deixar de
alertar, com todas as letras, que as precarizações, as “subutilizações”,
o subemprego e o desemprego tenderão a aumentar mais celera-
mente. (Antunes, 2020, p. 15).

Embora a colocação do autor refere-se mais diretamente ao


âmbito privado do trabalho, não foge à realidade do mundo
do trabalho no geral. Pois quaisquer que sejam as modificações,
haverá precarização e fragilização das relações de trabalho, isso
tanto nesse campo, quanto no serviço público.
A partir desses fatores, não é à toa que casos de adoeci-
mento cresçam exponencialmente no seio da categoria, uma
vez que o teletrabalho não foi organizado de forma racional, a
fim de ter uma preparação prévia para sua aplicação e efetiva-
ção sem prejudicar os trabalhadores da política previdenciária,
mas também sem prejudicar os usuários dessa política que,
mesmo com o avanço do formato digital, devem ter garantido
o direito ao acesso presencial dos serviços. O teletrabalho, que
se propôs ser igualitário, mostrou, na prática, a diferença de
igualdade e de equidade, pois não abraçou da mesma forma as
trabalhadoras mulheres, as trabalhadoras mães, os trabalhado-
res que já apresentavam algum tipo de adoecimento físico e/ou

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Trabalho e trabalhador precarizados • 279

psíquico, as e os trabalhadores que precisaram cumprir funções


de cuidado para com parentes próximos (principalmente rela-
cionado a comorbidades, deficiências e ao envelhecimento), as
e os trabalhadores que viram-se imersos em dificuldades regio-
nais e territoriais que implicaram num mau acesso à internet,
entre tantos outros. Estes pontos são importantes para obser-
var o movimento de forma crítica e de maneira a tentar propor
alterações que façam sentido à vida de quem trabalha com essas
ferramentas e modalidades.
Tendo como orientação metodológica o materialismo históri-
co-dialético, não podemos fazer uma análise mecânica e dual do
regime de teletrabalho, de maneira que não é coerente “demonizar”
uma modalidade de trabalho que, em determinados casos, pode,
sim, facilitar a vida do trabalhador. A questão é problematizá-la
sob as lentes do método e compreendendo que as TICs, por exem-
plo, são de grande valia à classe trabalhadora (que as produziu)
quando utilizadas de forma racional a essa mesma classe traba-
lhadora. A proposta não é a implementação de uma concepção
ludista de realidade, que vê nas tecnologias e no avanço das forças
produtivas materiais um inimigo a ser combatido; pelo contrário,
a ideia é que se utilize essas ferramentas a favor da classe trabalha-
dora, sem gerar sobrecarga e adoecimentos. Bridi (2021) alerta
que, embora o teletrabalho esteja diretamente ligado ao avanço
das tecnologias de informação e comunicação, não se deve cair
na armadilha de atribuir as condições de realização do teletraba-
lho à tecnologia. A autora ainda destaca: A tecnologia possibilita,
permite, favorece, mas não determina suas condições. As condi-
ções de trabalho, as configurações que assumem em cada país,
dependem do Estado e de como as instituições públicas regu-
lam, fiscalizam e condicionam esse trabalho. (Bridi, 2021, p.178).
Com essa importante análise, torna-se crucial os trabalhadores
se manterem vigilantes a essa forma de trabalhar e às suas condi-
ções, seja em ambientes públicos, seja em ambientes privados,

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280 • Labirintos do labor

dado o descaso do Estado brasileiro, que tem no histórico do país,


permeado pelo colonialismo, um aprofundamento da precariza-
ção do trabalho e uma intensa fragmentação dos direitos da classe
trabalhadora.
Nos modos de produção anteriores ao capitalismo, as crises
sempre se davam pela escassez. No capitalismo, as crises são,
sempre, de superprodução. Isso é concreto quando observa-
mos que o avanço das tecnologias permitiu que os processos de
trabalho fossem reduzidos, podendo gerar o mesmo produto
ou produto maior e mais qualificado, somado a uma qualidade
de vida para o trabalhador. Contudo, na lógica da superprodu-
ção, intensifica-se o ângulo produtivista (conforme observamos
nas normativas e portarias), gerando mais exploração e aumen-
tando o desgaste físico e mental dos trabalhadores (culminando,
inclusive, em casos de Burnout, como falaremos no próximo
tópico), ao mesmo passo em que há, por exemplo, grandes índi-
ces de desemprego e, num ciclo vicioso, de adoecimento em
decorrência da dificuldade de manutenção da vida pela falta
de um trabalho formal e digno. Há, atualmente, no Brasil e
no mundo, trabalhadores suficientes para as funções e deman-
das da sociedade, com uma jornada de trabalho reduzida, sem
a necessidade de adoecimento e sobrecarga, porém o Capital
alimenta-se desse adoecimento e dessa sobrecarga para agir num
viés de dissociação e desmembramento da coletividade.
Nesse sentido, avancemos ao ponto que trata da saúde das e dos
trabalhadores federais em meio às ações do laboratório mantido
pelo Governo Federal no interior do INSS que funciona para
orquestrar medidas que visam o aspecto gerencial e a implanta-
ção de uma lógica uberizada do trabalho que, ao mesmo tempo,
também preparam o horizonte de divisão e fragmentação dos
trabalhadores constituídos enquanto categoria e enquanto classe.

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Trabalho e trabalhador precarizados • 281

A saúde do trabalhador como uma urgência dos tempos atuais

Tendo exposto os fatores que mostram o caminho da cons-


trução e da efetivação da reestruturação produtiva no serviço
público, principalmente em âmbito federal, cabe ressaltar que a
saúde do trabalhador é uma urgência que nasce como forma de
resistência às medidas que buscam cauterizar e restringir direitos,
dentre eles, o direito ao trabalho digno5 e à saúde na sua forma
integral. Quando trazemos esse debate para o campo da política
de previdência, é porque as alterações sistemáticas que surgem
no interior desse conjunto de serviços mexem com as condições
de trabalho, de ser e de viver dos trabalhadores da autarquia.
Desde o período em que temos a implementação do tele-
trabalho e de outras alterações significativas no INSS, como o
fechamento de APSs, fragmentação profissional, fechamento de
Serviços de Qualidade de Vida no Trabalho (SQVT) e aumento
de aposentadorias do quadro técnico, mais trabalhadores têm
adoecido em decorrência do pequeno quadro funcional. As
cobranças por produtividade chamam a atenção para um dos
problemas mais urgentes e atuais do INSS que é a defasagem no
quadro de trabalhadores situação essa que já vem se perdurando
há alguns anos, conforme apontado no Acórdão n° 1.795/2014
- Plenário, de julho de 2014, do Tribunal de Conta da União
(TCU), que já manifestava preocupação com a insuficiência de
trabalhadores nas mais diversas agências de atendimento, para
operacionalizar o reconhecimento de direito aos usuários da
previdência social no país. Conforme apontado recentemente
em documento oficial denominado Parecer n. 00002/2021 da
Advocacia Geral da União (AGU), no ano de 2016 a Instituição
contava com trinta e dois mil, cento e noventa e quatro (32.194)
trabalhadores, e em abril de 2021 o efetivo contava com vinte mil,
trezentos e um (20.301) trabalhadores, portanto, onze mil, oito-
centos e noventa e três (11.893) de decréscimo, correspondente

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282 • Labirintos do labor

a 37% em um período curto de cinco (5) anos, o que torna a


situação mais grave.
É através das pressões por produtividade e pelo cerceamento de
suas vidas – dentro e fora do trabalho – , por parte da gestão que,
muitas vezes, há perseguições políticas para com posicionamen-
tos tomados fora do ambiente de trabalho. Esse intenso processo
materializa-se com a categoria em sucessivos adoecimentos e neces-
sidades constantes de afastamentos. Dados recentes encontrados no
site da Federação dos Sindicatos da Saúde, Trabalho, Previdência
e Assistência Social (FENASPS), com fonte na base de dados do
INSS, fornecidos pelo Sistema Eletrônico do Serviço de Informações
ao Cidadão (e-SIC) em 2020, apontam um alto índice de adoeci-
mentos dos trabalhadores do INSS, conforme apresenta-se:

Quadro 01: Afastamentos de Trabalhadores


no período de 2016 a 2019
Total de Total de % de
Ano Servidores afastamentos afastamentos.
2016 26.069 10.249 39,30%
2017 25.524 10.152 39,80%
2018 24.059 11.349 47,20%
2019 19.774 12.776 64,70%

Sistematização elaborada pela FENASPS/2020.

As informações revelam uma situação, numa amplitude


mais macro, pois aponta uma demonstração das condições de
saúde dos trabalhadores da autarquia em âmbito nacional. Tais
dados constatam que esse cenário é cada vez mais crítico. Já os
dados internos do Sindicato dos Trabalhadores Federais da Saúde,
Trabalho e Previdência no Rio Grande do Sul (SINDISPREV/RS)6,
por meio de sua Secretaria de Saúde do Trabalhador7 dão conta de
que, ao longo dos anos, os casos que necessitam de intervenção são
cada vez mais frequentes, de maneira que o salto que há de 2017

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Trabalho e trabalhador precarizados • 283

a 2018, ano em que há a publicação da normativa que institui


o teletrabalho, é de mais de 100%, passando de cinquenta e seis
(56) atendimentos para chegar até cento e vinte e nove (129) e, no
período de implementação que ainda acontece em 2019, os casos
mais que quintuplicaram, indo até duzentos e oitenta e três (283)
atendimentos. Quando consideramos, então, o período pandê-
mico, esses dados tornam-se ainda mais impactantes, tornando
frequente o alto índice de casos para intervenção por parte da SST,
conforme podemos observar no quadro abaixo.

Quadro 2: Relação de Atendimentos da SST Ano a Ano


Ano Total de Atendimentos
2014 22
2015 36
2016 58
2017 56
2018 129
2019 283
2020 235
2021 276
2022*8 151
Total 1246
Fonte: elaborado por FRAGA, Elisiane Wolf, 2022, para trabalho de
conclusão de curso.

Os relatórios de atendimento demonstram que a maior parte dos


trabalhadores públicos federais atendidos são do INSS e chegam
até sua entidade sindical não apenas num processo preventivo, mas
já quando há algum tipo de violação e iminência de adoecimento.
Muitos, quando buscam a Secretaria de Saúde do Trabalhador
do sindicato, já encontram-se em sofrimento, de maneira que os
processos que envolvem tornar-se enfermo em virtude do trabalho,
assim como o processo de trabalho, estão cada vez mais dinamizados.

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284 • Labirintos do labor

O INSS encontra-se atualmente operando o teletrabalho “a


todo vapor”. O jogo de palavras que utiliza o termo “vapor” se dá
porque, mesmo que se utilizem tecnologias novas para a execu-
ção dos serviços, a lógica de trabalho na autarquia se dá de forma
atualizada, porém muito semelhante, à da revolução industrial
e das máquinas a vapor, que faziam com que os trabalhadores
vertessem doze, quatorze, dezesseis horas de seu dia em labor.
Hoje, para o cumprimento de metas, os trabalhadores do INSS
chegam a fazer essas jornadas de trabalho, ocupando também
seus finais de semana, pois a pactuação de metas incide direta-
mente em suas remunerações.
Nesse viés, destaca-se o fato de que a categoria federal em que
se insere o INSS está desde 2017 sem reajustes salariais, toda-
via, o órgão criou um programa de gestão especial, de “Bônus de
Desempenho Institucional por Análise de Benefícios com Indícios
de Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios
(BMOB)”, com adesão voluntária. Dessa forma, enquanto há traba-
lhadores que não conseguem cumprir as metas pactuadas porque
as atividades têm pontuações distintas e não levam em conside-
ração o tempo de trabalho envolvido para sua efetivação, outros
colegas acabam fazendo tarefas do BMOB e chegam a remunera-
ções extras, em muitos casos, de mais de quinze mil (15.000) reais.
Tais acontecimentos aumentam índices de desigualdade dentro da
própria categoria, assim como precarizam ainda mais os processos
e as condições de trabalho e a consolidação dos direitos previden-
ciários para a população, uma vez que as ações do BMOB, por
serem atividades extras e em atraso, podem ser feitas com menos
atenção e mais agilidade (ainda na esfera do gerencialismo que
aumenta a produtividade, quase que como numa esteira indus-
trial), gerando limitação de benefícios, além de deixar exposta a
contradição no que se refere à remuneração no serviço público e
aumentando indícios quanto às possibilidades de fraudes, etc. Ao
se tratar sobre a qualidade dos serviços prestados pela previdência

Livro 1.indb 16 24/10/2022 09:32:19


Trabalho e trabalhador precarizados • 285

social, recentemente, a Controladoria Geral da União (CGU)


divulgou um relatório de avaliação com parecer no qual analisa a
concessão de benefícios do INSS no período de 2020, por meio
do BMO e aponta que, com a implementação do INSS digi-
tal, o número de requerimentos de benefício e a produtividade
dos servidores aumentaram; mas, em contrapartida, observou-
-se uma piora na qualidade dos serviços prestados à população. É
importante afirmar que, por mais que haja inovação tecnológica,
tornando-o modernizado, a população necessita de uma política
de previdência que funcione e não prejudique o reconhecimento
de direito aos usuários.
Outra questão importante de se levar em consideração é a
grande incidência, na categoria, de trabalhadores que precisam
solicitar licença-saúde por atingirem o limite da estafa mental e
física representada pelo fenômeno da Síndrome de Burnout, que,
inclusive, em 2022 tornou-se doença relacionada ao trabalho.
Os atendimentos realizados na SST se deparam constantemente
com trabalhadores com esgotamento mental, diretamente rela-
cionado à atividade laboral, apresentando extrema exaustão e
repulsão ao ambiente de trabalho. Nesse sentido, há relatos de
trabalhadores que apresentam características de despersonaliza-
ção onde há indiferença frente à própria atividade de trabalho
e mesmo frente às pessoas à sua volta. O Burnout, no interior
do serviço público, é reflexo dessa forma de trabalhar e de viver
em sociedade atualmente. Como um espelho do Brasil que é
considerado o país mais ansioso do mundo e que teve aumento
de diagnósticos de depressão em mais de 40% após a pandemia,
a SST tem acompanhado na categoria cada vez maior incidên-
cia de episódios de ansiedade, de quadros diagnosticados de
depressão e de maior número de tentativas de suicídio.
Estes fatores já demonstram a necessidade de luta pela amplia-
ção e pela consolidação do campo de saúde do trabalhador sendo
efetivado de uma maneira que não seja enviesada pelo prisma

Livro 1.indb 17 24/10/2022 09:32:20


286 • Labirintos do labor

ocupacional de manutenção e reprodução de trabalhadores


produtivos, mas uma saúde do trabalhador que se preocupe em
garantir a saúde dos trabalhadores para além da jornada de traba-
lho, sendo repleta dos sentidos e dos significados que o Capital
tenta, cotidianamente, usurpar da classe trabalhadora. É nessa
perspectiva que nesse capítulo não fazemos uso de termos como
“funcionários”, “servidores” e “colaboradores”, pois cremos que
estes mistificam o que é ser trabalhador e mascaram o processo
de exploração, ao colocar quem trabalha como sendo uma peça
que funciona ou que serve para colaborar com o lucro sangrento
da burguesia.

Algumas considerações e perspectivas relacionadas à saúde


das e dos trabalhadores

As inovações tecnológicas no modelo de gestão da previdência


digital no Rio Grande do Sul não tendem a recuar: muito pelo
contrário, embora tais serviços não sejam condizentes com a reali-
dade da população em termos de conhecimento com plataformas
digitais. Esta situação empurra muitos trabalhadores a buscarem
outros meios de acessar seus direitos, como mediante “atravessa-
dores”, o que se mostra veladamente, uma terceirização de uma
política social pública que deveria ter seu acesso amplamente
viabilizado e não dificultado, dada a real situação mencionada.
A previdência social se apresenta hoje com o trabalho e o traba-
lhador precarizados, sem uma direção de perspectivas melhores,
nem para os seus trabalhadores e muito menos para a população.
Após três (3) anos de implementação do programa de gestão
do teletrabalho, observa-se repercussões profundas no INSS
e também constata-se impactos na saúde dos trabalhadores.
Abordar essa temática na atual conjuntura é essencial, dado o
colapso que a política de previdência social brasileira vem enfren-
tando. A população vivencia um governo que nunca assumiu um

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:20


Trabalho e trabalhador precarizados • 287

compromisso com a classe trabalhadora, haja visto o desmonte


dos direitos sociais - e para além disso - o descaso na condução
irresponsável da crise pandêmica que o país vivenciou.
Nesse cenário, de afogamento de demandas que vivem a política
previdenciária, percebe-se que o INSS está pautado na economia
adquirida com o fechamento de suas agências e na exacerbada
produtividade imposta ao pequeno contingente de trabalhadores
que ainda detém sem se preocupar com os danos em suas saúdes.
Torna-se primordial o trabalho intenso que as entidades sindicais,
enquanto instrumento de transformação social das condições de
trabalho dos trabalhadores, têm assumido frente a esses problemas
da instituição. É necessário que a categoria possa instrumentalizar-se
sobre seus direitos e possibilidades, bem como possa se fortalecer
coletivamente, atentando para uma perspectiva de cuidado e garan-
tia de qualidade de vida no trabalho e fora dele. Cabe, portanto,
enquanto tarefa, que os trabalhadores mantenham-se vigilantes a
essa forma de trabalhar e suas condicionantes, assim como façam
resistência por melhores condições de vida e de acesso geral às polí-
ticas, independentemente de quem assumir a cadeira presidencial,
uma vez que o Estado segue sendo a figura do patrão e, por assim
sê-lo, segue tendo um caráter de classe específico que não corres-
ponde aos nossos interesses, tanto na forma de trabalhar, como na
forma de usufruir dos direitos sociais manifestos na forma de polí-
ticas sociais. Que a luta das e dos trabalhadores públicos federais
possa ser uma luta uníssona com todo o conjunto da classe traba-
lhadora brasileira, de maneira que o trabalho seja visto como um
meio, mas jamais como um fim para a vida.

Notas
1
Grifos das autoras, ressaltando o caráter irônico que Marx e Engels li-
dam com o que a burguesia tratava como sendo “civilizado” ou “bárbaro”.
Lembrando que por sociedade civil, lê-se com seu caráter de classe: socie-
dade civil burguesa.

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:20


288 • Labirintos do labor

2
Quando aqui trazemos as “percepções”, o fazemos da maneira que Marx
e Engels (2008) irão definir como “a forma social determinada de cons-
ciência” que faz com que compreendamos o conflito da luta de classes.
Grosso modo é o conteúdo “ideológico”, que remete-se à “ideologia”.
Ideologia, no sentido marxiano do termo, diz respeito às expressões que
consiste não em um mero conjunto de ideias, mas no conteúdo de do-
minação de uma classe sobre outra que se expressa das mais diversas for-
mas: jurídicas, políticas, religiosas, artísticas, filosóficas, e outras. Para mais,
consultar Marx, Karl. ENGELS, Friederich. A Ideologia alemã. São Paulo:
Martin Claret, 2010; e Iasi, Mauro Luis. Ideologia… quer uma pra viver?
in: Ensaios sobre Consciência e Emancipação. São Paulo: Editora Expressão
Popular, 2011, p. 77 a 78.
3
O uso do termo “fatiado” diz respeito a algo que vem de forma parce-
lada, não completo. Os governos Lula e Dilma (PT) foram expressões
disso quando, em diversos momentos, atacaram brutalmente a classe tra-
balhadora, mas de maneira gradual. Vale lembrar que o texto da Emenda
Constitucional 95 passou por um processo político que envolve o partido,
além do pano de fundo das ações de ajuste fiscal e medidas provisórias
que restringiam direitos aos trabalhadores brasileiros, desde Lula em 2003
até Dilma em 2014 e 2015. Os governos representados pela estratégia
democrática e popular foram os grandes responsáveis pela pavimentação
do caminho trilhado na retirada de direitos, fazendo ataques graduais
que consolidaram o apassivamento da classe trabalhadora na forma de
responder a estas ações. Para mais, ver IASI, Mauro Luis. Democracia de
cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora. Rio de Janeiro: 2013.
Disponível em: <https://pcb.org.br/portal2/4487/democracia-de-coopta-
cao-e-o-apassivamento-da-classe-trabalhadora/> Acesso em: 15 ago. 2022.
4
Tendo em vista o campo de inserção das autoras, o foco se dá no estado
do Rio Grande do Sul.
5
Cabe destacar que sabemos que, nos limites do capitalismo, mesmo que
sejam asseguradas todas as condições de trabalho básicas, esse trabalho
ainda será explorado; dessa forma, quando usamos o termo “digno” não
queremos fazê-lo sem esse recorte, uma vez que não há dignidade concedi-
da ao trabalhador que cotidianamente vê sua força de trabalho explorada
e o produto da riqueza socialmente produzida é privadamente apropria-
da. Contudo, isso não faz com que deixemos de fazer lutas por melhores
condições de sobrevivência e reprodução das lutas para nós e nossa classe.
6
Entidade representativa da categoria de trabalhadores públicos federais
das políticas de saúde, trabalho e previdência social no Rio Grande do Sul.

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:32:20


Trabalho e trabalhador precarizados • 289

7
A Secretaria de Saúde do Trabalhador, que faz parte do Sindicato, conta
com trabalho técnico de uma assistente social e uma psicóloga, e também
com estudantes estagiários de ambas as áreas.
8
Casos considerados até 15 de agosto de 2022.

Referências
ANTUNES, Ricardo L. C. Trabalho Intermitente e Uberização do
Trabalho no Limiar da Indústria 4.0. In: Uberização, Trabalho digital
e Indústria 4.0. ANTUNES, Ricardo L. C. (Orgs). 1. ed. - São Paulo:
Boitempo, 2020. 333p.
Batista, M. D. M. O TELETRABALHO NO INSS E AS REPERCUS-
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de Pesquisa de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Serviço
Social e Serviço Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, 2021.
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BRIDI, Maria Aparecida. Teletrabalho em tempos de pandemia e con-
dições objetivas que desafiam a classe trabalhadora. In: POCHMANN,
Márcio; OLIVEIRA, Dalila A. (Orgs.) A Devastação do trabalho: a
classe do labor na crise da pandemia. 1. ed. Brasília : Gráfica e Edito-
ra Positiva: CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação e Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho
Docente, 2020. 338p.
DIAS, E. C. Aspectos atuais da saúde do trabalhador no Brasil. In:
ROCHA, L. E.; RIGOTTO, R. M.; BUSCHINELLI, J. T. (Orgs.). Isto é
trabalho de gente? Vida, doença e trabalho no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1994.

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:20


290 • Labirintos do labor

FENASPS. Federação dos Sindicatos da Saúde, Trabalho, Previdên-


cia e Assistência Social. Governo Aprofunda as Medidas de Assédio
Moral Institucionalizado e na Redução dos Salários dos (As) Servido-
res(as) via Gdass. 2020. Disponível emhttps://fenasps.org.br/2020/10/24/
governo-aprofunda-as-medidas-de-assedio-moral-institucionalizado-e-na-re-
ducao-dos-salarios-dosas-servidoresas-via-gdass/. Acesso em: 20 de jan. 2021.
MARX, Karl. CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍ-
TICA. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. ENGELS, Friederich. MANIFESTO DO PARTIDO CO-
MUNISTA. São Paulo: Expressão Popular. 2008.

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:20


Seção 4
Previdência Social
e Saúde do Trabalho

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:20


Livro 1.indb 24 24/10/2022 09:32:20
(In)capacidade para o trabalho e reabilitação
profissional: Uma análise através do conceito
ampliado do processo saúde-doença

Evelyn Carneiro
Dolores Sanches Wünsch 11

E
ste artigo aborda os temas relacionados à saúde do trabalha-
dor e da trabalhadora e à (in)capacidade para o trabalho. A
construção teórica está embasada numa perspectiva crítica
e histórica sobre a realidade social dos trabalhadores e trabalha-
doras que vivenciaram o afastamento de suas atividades laborais
e o atendimento pela Reabilitação Profissional (RP) do Instituto
Nacional de Seguro Social (INSS).
A abordagem da temática situa-se na discussão do campo da
saúde do trabalhador e da trabalhadora no modo de produção
capitalista. Apresenta-se uma análise apontando as contradições
da (in)capacidade para o trabalho através do conceito ampliado
do processo saúde-doença e da forma pela qual o tema vem sendo
tratado pelo INSS e, consequentemente, pela política de Previdência
Social através do Programa de Reabilitação Profissional (PRP).
A Reabilitação Profissional é um dos serviços da política de
Previdência Social. Tal serviço se constitui num campo contra-
ditório, pois - ao mesmo tempo em que é compreendido como
direito da classe trabalhadora - cumpre aos interesses do Estado

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:20


294 • Labirintos do labor

no modo de produção capitalista, quando o/a mesmo/a trabalha-


dor/a que estava adoecido/a e incapaz de produzir lucro retorna
ao mercado produtivo e lucrativo para o sistema capitalista após
ser reabilitado/a.
Considerando a historicidade e as contradições presentes
na evolução do modo de produção capitalista e os impactos
à classe trabalhadora de todo o desmonte dos direitos sociais
conquistados, este artigo tem como recorte de análise os traba-
lhadores e as trabalhadoras que possuem relações de trabalho
amparadas pela formalidade e pelos contratos de trabalho e,
portanto, são protegidos pelo Regime Geral de Previdência Social
(RGPS). Todavia, a realidade da classe trabalhadora brasileira
evidencia uma linha tênue entre formalidade e informalidade,
quando - por exemplo - os trabalhadores e trabalhadoras ficam
desprotegidos/as socialmente quando inseridos em processos
de adoecimento e (in)capacidade para o trabalho.
Neste artigo, busca-se apresentar as principais causas de inca-
pacidade/adoecimento e as percepções sobre o significado de
“capacidade e incapacidade” para o trabalho dos trabalhadores
e trabalhadoras que passaram por Programa de Reabilitação
Profissional no INSS. Trata-se de um estudo de abordagem
qualitativa, com uso de dados quantitativos. A metodologia
do estudo desenvolveu-se em dois ciclos, um documental e
outro de campo. A coleta de dados ocorreu entre os meses de
junho e setembro de 2021. O locus de estudo foi a Reabilitação
Profissional executada pelo INSS na Gerência Executiva de
Caxias do Sul, RS, entre os anos de 2015 a 2019.1 A pesquisa
documental ocorreu através de levantamento de dados de todos/
as os/as trabalhadores/as que foram atendidos/as na Gerência
Executiva de Caxias do Sul, RS. Identificou-se que, no período,
houve um total de 2.058 desligamentos da RP, que compuse-
ram o universo do estudo.

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 295

A partir do universo da pesquisa, foram realizadas exclu-


sões dos sujeitos até a obtenção do número de recorte para
a amostra da pesquisa documental e de campo. Portanto, do
total de 2.058 sujeitos, excluiu-se todos os que não obtiveram
desligamento da RP para retorno ao trabalho com emissão de
certificado, restando o número de 630. Dando seguimento,
dos 630, excluiu-se todos os que não estavam vinculados à
Previdência Social na categoria de empregado/a, restando o
número de 473. Destes 473, foram excluídos todos os que não
estavam vinculados à RP devido ao recebimento de auxílio por
incapacidade temporária previdenciário, chegando-se a um
total de 316 trabalhadores/as. Desses 316, foram excluídos 22
que possuíam dados incompletos nos sistemas do INSS e por
fim chegou-se a uma amostra de 294 trabalhadores/as para a
pesquisa documental. Posteriormente, foram sorteados/as 04
participantes para composição da amostra da pesquisa de campo,
sendo 3 homens e 1 mulher. A pesquisa de campo foi realizada
através de entrevista, com uso do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido. Destaca-se que os sujeitos da pesquisa de
campo foram identificados como: Trabalhador 1, Trabalhadora
2, Trabalhador 3 e Trabalhador 4.
No desenvolvimento deste artigo, serão apresentadas questões
relativas ao campo da saúde do trabalhador e da trabalhadora
e sua contribuição para a compreensão ampliada do processo
de saúde-doença. Posteriormente, serão realizadas aproxima-
ções teóricas sobre o conceito de capacidade e de incapacidade
para o trabalho e as principais causas de incapacidade dos traba-
lhadores e trabalhadoras em reabilitação profissional. Com um
dialético movimento de construção do conhecimento a partir
do real, com aporte na teoria social crítica, ao longo do artigo
serão apresentados os dados da pesquisa documental, bem como
da pesquisa de campo.

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:20


296 • Labirintos do labor

O campo da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e


sua contribuição para a compreensão ampliada do processo
de saúde-doença

A proteção à saúde é uma construção histórica. Concomitante


ao processo de industrialização da economia, no Brasil viven-
ciado no início do século XX, o Estado passa a intervir em ações
de proteção e recuperação da saúde como resposta às reivindica-
ções da classe trabalhadora por melhores condições de vida e aos
interesses do capital - num movimento de eterna contradição.
No Brasil, a saúde está configurada como política pública e
universal, sua construção enquanto um sistema único contem-
pla o conceito ampliado de saúde. Assim, numa perspectiva de
reduzir riscos de doenças, além de promover e proteger a vida e
a saúde de todos, entende-se que o conceito ampliado de saúde,
numa perspectiva de totalidade, abrange o acesso aos demais
direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988.
O conceito de saúde-doença enquanto processo social e
histórico considera as determinações sociais do adoecimento,
ultrapassando o conceito unilateral apenas como aspecto bioló-
gico e alcançando sua articulação com os aspectos sociais.
Conforme Mendes e Wünsch (2011, p. 471): “as determinações
sociais do processo de saúde-doença representam as condições
sociais objetivas de vida e de trabalho da população”. Sobre
esse tema, Laurell (1982, p. 12) apresenta que “o caráter simul-
taneamente social e biológico do processo saúde-doença não é
contraditório, porém unicamente assinala que pode ser anali-
sado com metodologia social e biológica, na realidade, como
um processo único.
As relações sociais no capitalismo são atravessadas pela valori-
zação do capital e pela precarização da vida de quem não detém
os meios de produção, constituindo-se numa situação de explo-
ração que contribui para o adoecimento da classe trabalhadora.

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 297

Além disso, a desestruturação de um sistema público de proteção


social de atenção às necessidades dos sujeitos, a precarização das
condições e locais de trabalho e a ausência de emprego com renda
digna a todos são fatores que - quando em conjunto com fatores
biológicos - assumem intercorrências no processo saúde-doença.
Os processos de saúde-doença da classe trabalhadora, na pers-
pectiva da saúde do/a trabalhador/a, devem ser compreendidos
“a partir da dinâmica entre elementos biológicos, processo produ-
tivo, condição socioeconômica e respectivo modo e hábitos de
vida” (Wünsch et al., 2015, p. 215). O campo saúde do traba-
lhador e da trabalhadora tem sua origem e desenvolvimento
determinados por cenários políticos e sociais amplos e comple-
xos, os quais acompanham o desenvolvimento produtivo por
meio dos processos de reestruturação do trabalho.
O reconhecimento do trabalhador e da trabalhadora como
sujeitos, e não como objetos na ação em saúde, é um dos prin-
cipais aspectos que denominam a saúde do/a trabalhador/a
enquanto campo conquistado pela classe trabalhadora. Classe
esta que só possui como alternativa de sobrevivência a venda de
sua força de trabalho para sobreviver.

A denominação saúde do trabalhador carrega em si as contradições


engendradas na relação capital e trabalho e no reconhecimento do
trabalhador como sujeito político. Ela representa o esgotamento
de um modelo hegemônico que atravessou décadas, e por que não
dizer séculos, circunscrito num arcabouço legal e conservador que
reconhecia um risco socialmente aceitável e indenizável à lógica do
capital dos acidentes de trabalho (Mendes; Wünsch, 2011, p. 464).

A saúde do/a trabalhador/a é apreendida como um processo


dinâmico e que envolve a dimensão social, política e econômica
e as contradições presentes na relação capital e trabalho. Para
Mendes e Dias (1991, p. 347): “o objeto da saúde do trabalhador

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:20


298 • Labirintos do labor

pode ser definido como o processo saúde e doença dos grupos


humanos, em sua relação com o trabalho”.
Os processos de trabalho impactam diretamente a relação
saúde-doença e permitem entender os determinantes e condi-
cionantes das formas individuais e coletivas de viver, adoecer e
morrer. Grande parte dessas determinações e condições decorre
direta ou indiretamente da desigualdade socioeconômica e do
acesso aos direitos (Seligmann-Silva, 2011).
A proteção à saúde da classe trabalhadora deve organizar-
-se através da integração de diferentes políticas públicas, de
acordo com as necessidades e, principalmente, da heterogenei-
dade da população atendida pelos serviços, a partir de questões
não apenas de classe, mas também de raça, etnia, gênero, entre
outras. Tal proteção é uma conquista histórica - e recente - no
Estado brasileiro. Partindo de uma análise pós-constituição
democrática, a Constituição Federal de 1988 trouxe, através
de lutas da classe trabalhadora, um conjunto de avanços em
relação à proteção social nesse campo.
A seguridade social, composta pelas políticas de saúde, assis-
tência e previdência, dispõe de políticas de acesso universal
(saúde), de acesso conforme a necessidade (assistência) e de
acesso contributivo (previdência). Sobre a saúde, esta “é direito
de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988, Art.
196). As ações e serviços de saúde compõem um sistema único
descentralizado, de atendimento integral e com participação
de toda a comunidade, e cabe a este sistema “executar as ações
de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde
do trabalhador” (Brasil, 1988, Art. 200, II).
Foi com o SUS que a saúde do trabalhador passou a ser
de responsabilidade do Estado, ou seja, tornou-se um direito.

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:20


Quadro 1 – Benefícios, auxílios e serviços para situações de
incapacidade laboral
Benefícios, auxílios e serviços Situações de incapacidade previstas

Auxílio por Incapacidade Referentes a eventos de incapacidade de


Temporária Previdenciário qualquer natureza e não relacionados a
(auxílio-doença) acidentes/doenças do trabalho

Auxílio por Incapacidade Temporária Referentes a eventos de incapacidade por


Acidentário (auxílio-doença) situações de acidente de trabalho, doença
profissional ou doença do trabalho

Aposentadoria por incapacidade Referentes a eventos de incapacidade


permanente previdenciária permanente de qualquer natureza e não
(aposentadoria por invalidez) relacionados a acidentes/doenças do trabalho

Aposentadoria por incapacidade Referentes a eventos de incapacidade


permanente acidentária permanente por situações de acidente de
(aposentadoria por invalidez) trabalho, doença profissional ou doença do
trabalho

Concedido como indenização após a


consolidação das lesões decorrentes de
Auxílio-Acidente Previdenciário acidente de qualquer natureza, com
sequelas definitivas e implicações na
redução da capacidade para o trabalho que
habitualmente exercia.

Concedido como indenização após a


consolidação das lesões decorrentes de
Auxílio-Acidente
acidente de trabalho, com sequelas definitivas
e implicações na redução da capacidade para
o trabalho que habitualmente exercia.

Serviço destinado a situações de incapacidade


Reabilitação Profissional que exijam readaptação ou troca de função
habitualmente exercida pelo/a trabalhador/a.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Livro 1.indb 7 24/10/2022 09:32:20


300 • Labirintos do labor

Como orientação e direcionamento das ações de atenção à saúde


do/a trabalhador/a, em 2011 foi criada a Política Nacional de
Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST), através do Decreto nº
7.602 (Brasil, 2011) e em 2012 foi instituída a Política Nacional
de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), através
da Portaria nº 1.823 (BrasiL, 2012). Nessas legislações, entende-
-se por atenção à saúde as ações de promoção, prevenção, cura e
reabilitação e vigilância em saúde. Essas legislações são frutos da
construção do SUS e da busca de ações intersetoriais e interminis-
teriais para a consolidação de diretrizes para uma efetiva política
de saúde do trabalhador e da trabalhadora. “Em uma retrospec-
tiva histórica situa-se o movimento de Reforma Sanitária, iniciado
no início da década de 1980, como marco da área e da denomi-
nação “saúde do trabalhador”” (Mendes; Wünsch, 2011, p. 466).
A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
(PNSTT) alinha-se ao conjunto de políticas de saúde no âmbito
do SUS, possui a perspectiva de integração e articulação interse-
torial pautada nos princípios e diretrizes do SUS (Lacaz, 2010)
e considera a transversalidade das ações de saúde do/a traba-
lhador/a e o trabalho (saúde-doença-trabalho) como um dos
determinantes do processo saúde-doença. Além de reconhecer
o trabalho como um dos determinantes do processo saúde-do-
ença, a PNSTT afirma que são sujeitos dessa política:

Todos os trabalhadores, homens e mulheres, independentemente


de sua localização, urbana ou rural, de sua forma de inserção no
mercado de trabalho, formal ou informal, de seu vínculo emprega-
tício, público ou privado, assalariado, autônomo, avulso, temporário,
cooperativados, aprendiz, estagiário, doméstico, aposentado ou desem-
pregado são sujeitos desta Política (BrasiL, 2012, Art. 3).

Na PNSTT há o reconhecimento dos determinantes do


processo de saúde-doença e do conjunto heterogêneo da classe

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:32:20


Tabela 1 – Motivos de afastamento dos/as trabalhadores/as em
Reabilitação Profissional, dentro do grupo das doenças do
sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo
CID-10 Descrição Qte.
M54 Dorsalgia 48
M51 Outros Transtornos de Discos 39
Intervertebrais

M75 Lesões do Ombro 13


M17 Gonartrose (artrose do Joelho) 7
M16 Coxartrose (artrose do Quadril) 6
M19 Outras Artroses 4
M23 Transtornos Internos Dos Joelhos 4
M21 Outras Deformidades Adquiridas Dos 3
Membros

M43 Outras Dorsopatias Deformantes 3


M32 Lúpus Eritematoso Disseminado (sistêmico) 2
M65 Sinovite e Tenossinovite 2
M72 Transtornos Fibroblásticos 2

M06 Outras Artrites Reumatóides 1


M07 Artropatias Psoriásicas e Enteropáticas 1
M08 Artrite Juvenil 1
M25 Outros Transtornos Articulares Não 1
Classificados em Outra Parte

M34 Esclerose Sistêmica 1


M76 Entesopatias Dos Membros Inferiores, 1
excluindo pé

M79 Outros Transtornos Dos Tecidos Moles, Não 1


Classificados em Outra Parte

M84 Transtornos da Continuidade do Osso 1


M87 Osteonecrose 1
M94 Outros Transtornos Das Cartilagens 1
M95 Outras Deformidades Adquiridas do Sistema 1
Osteomuscular e do Tecido Conjuntivo
TOTAL 144
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos resultados da pesquisa documental.

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:20


302 • Labirintos do labor

trabalhadora, independentemente da forma de inserção laboral


(formal ou informal). Assim, numa perspectiva de vigilância,
promoção e assistência à saúde, todos os trabalhadores e traba-
lhadoras devem estar protegidos socialmente pela política de
saúde do/a trabalhador/a, pois esta é do campo da saúde pública
e coletiva. Assim, as ações devem ser intersetoriais buscando a
perspectiva de um atendimento integral.
Já a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho
(PNSST), de natureza intersetorial, traz que esta deve ser
implementada por meio da articulação das ações no campo das
relações de trabalho, produção, consumo, ambiente e saúde, com
a participação voluntária das organizações representativas de
trabalhadores/as e empregadores. A PNSST, portanto, possui a
diretriz da intersetorialidade e elenca as competências das polí-
ticas de Saúde, Trabalho e Previdência Social, numa perspectiva
intersetorial. Em relação à Previdência Social, cabe a esta polí-
tica, por intermédio do INSS, realizar ações de Reabilitação
Profissional e avaliar a incapacidade laborativa para fins de
concessão de benefícios previdenciários (Brasil, 2011, VIII).
Portanto, é competência da Previdência Social realizar ações
de reabilitação profissional e avaliar a incapacidade labora-
tiva para fins de concessão de benefícios previdenciários. Esta
definição limita substancialmente o acesso universal da classe
trabalhadora à política de saúde do trabalhador e da trabalha-
dora, pois a Previdência Social possui caráter contributivo e
securitário e, assim, exclui os milhões de trabalhadores/as inse-
ridos na informalidade do acesso à Reabilitação Profissional e
a benefícios por incapacidade.
No próximo item serão abordados os temas relacionados à
capacidade e à incapacidade para o trabalho, buscando uma refle-
xão teórico-crítica a partir da legislação previdenciária. Sendo
assim, são apresentadas as contradições do modelo de avaliação
da incapacidade realizada pelo INSS.

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 303

Incapacidade para o trabalho e as contradições da política


de Previdência Social

Buscando uma relação histórica com o conceito de saúde


do trabalhador e da trabalhadora, bem como com as contra-
dições oriundas no modo de produção capitalista e na política
de Previdência Social para a efetivação da saúde enquanto um
direito social e universal, com atenção às determinações sociais
do processo de saúde-doença e seus impactos no adoecimento
da classe trabalhadora, este subcapítulo busca refletir sobre a (in)
capacidade para o trabalho.
Os termos capacidade e incapacidade para o trabalho são
utilizados na área de saúde do trabalhador, principalmente na
Previdência Social, para identificar situações de trabalhadores e
trabalhadoras aptos/as ou inaptos/as para determinada função na
estrutura organizacional do trabalho. Na legislação previdenciária,
“a incapacidade laborativa é a impossibilidade de desempenho das
funções específicas de uma atividade ou ocupação, em consequ-
ência de alterações morfopsicofisiológicas, provocadas por doença
ou acidente” (Silva-Junior, 2018a, p. 220).

Na sociedade capitalista, por exemplo, o conceito de doença explí-


cita está centrado na biologia individual, fato que lhe retira o caráter
social. O conceito de doença oculta, quer dizer, que está subjacente
na definição social do que é doença, refere-se à incapacidade de
trabalhar, o que a coloca em relação com a economia e eventual-
mente com a criação da mais-valia e possibilidade de acumulação
capitalista (Laurell, 1982, p. 9).

A proteção social do/a trabalhador/a, que por qualquer


motivo de incapacidade, mesmo que temporária, para exercer
atividades laborais assalariadas, é efetivada através do Regime
Geral de Previdência Social (RGPS), o qual prevê a concessão

Livro 1.indb 11 24/10/2022 09:32:20


304 • Labirintos do labor

de benefícios, auxílios e serviços para situações de incapacidade


laboral, conforme apresentados no Quadro 1 (Brasil, 1999):
A proteção prevista na legislação previdenciária (RGPS) se
restringe ao trabalhador e à trabalhadora contribuinte do RGPS,
devido ao fato dessa política social ter caráter contributivo e só
possibilitar o acesso a benefícios em substituição do salário em
situações de incapacidade para o trabalho aos/às trabalhadores/as
que pagam/contribuem, tanto que a Previdência Social os identi-
fica como segurados e seguradas, aplicando uma lógica de seguro.
Contudo, essa lógica securitária exclui milhões de trabalhadores
e trabalhadoras do acesso a essa política social.
No Brasil, segundo dados da PNAD referentes ao terceiro
trimestre de 2021, entre os 93 milhões de pessoas ocupadas, o
número de trabalhadores/as na informalidade (trabalhadores sem
carteira assinada, pessoas que trabalham por conta própria sem
CNPJ e os que trabalham auxiliando a família) chegava a apro-
ximadamente 42%, ou seja, 39,227 milhões de pessoas (Ibge,
2021). Portanto, contraditoriamente ao disposto na Política
Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT)
- que prevê como sujeitos dessa política toda a classe trabalhadora,
independente do tipo de vínculo laboral, se formal ou informal
- a atenção à saúde do/a trabalhador/a em situações de incapaci-
dade e necessidade de afastamento com garantia de renda pelo
Estado não é aplicada aos trabalhadores informais.
No INSS, o acesso aos benefícios relacionados à incapacidade
laborativa se dá através de avaliação uniprofissional, realizada
pelo Perito Médico Federal, tendo uma avaliação ainda focada
na doença e nas repercussões dessa na estrutura e funciona-
mento do corpo do trabalhador e da trabalhadora, “o modelo
predominante de avaliação é centrado na doença, Classificação
Internacional de Doenças (CID), na incapacidade, e nas reper-
cussões na estrutura e funcionamento do corpo. É a inspeção
médica que conclui se a pessoa portadora de doença ou sequela

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 305

limitante reúne condições para exercer determinada ocupação”


(Carneiro, 2018, p. 221).
Destaca-se que, para fins previdenciários, “a incapacidade é
caracterizada como sendo a impossibilidade de desempenho das
funções específicas de uma atividade ou ocupação, em conse-
quência de alterações morfopsicofisiológicas, provocadas por
doenças ou acidentes” (Silva-Junior, 2018b, p. 168). Para acessar
o benefício por incapacidade temporária (auxílio-doença), o/a
trabalhador/a deve cumprir uma carência de 12 contribuições
à Previdência Social - o que afirma o caráter seletivo e exclu-
dente desta política - em alguns casos, a concessão independe de
carência (Brasil, 1991, Art. 151). Sobre o conceito de incapaci-
dade laborativa utilizado no âmbito previdenciário pela Perícia
Médica Federal, consta no Manual Técnico de Perícia Médica
Previdenciária que:

Incapacidade laborativa é a impossibilidade de desempenho das


funções específicas de uma atividade, função ou ocupação habi-
tualmente exercida pelo segurado, em consequência de alterações
morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente. Deverá
estar implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde
que palpável e indiscutível no caso concreto, o risco para si ou para
terceiros, ou o agravamento da patologia sob análise, que a perma-
nência em atividade possa acarretar (Brasil, 2018, p. 26-27).

Mas, o que é ser capaz ou incapaz para desempenhar uma


função ou atividade na divisão sociotécnica do trabalho na pers-
pectiva da saúde do/a trabalhador/a? A (in)capacidade tem relação
direta com o modo de organização social. No modo de produ-
ção capitalista, a incapacidade do/a trabalhador/a avaliada pelo
INSS, para fins de concessão de benefícios previdenciários, tem
relação com a capacidade de ainda vender sua força de trabalho e
produzir lucro ao capitalista, contudo, essa venda é condicionada

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306 • Labirintos do labor

às exigências legislativas burguesas de cumprimento de longas


jornadas de trabalho, de metas e desempenho, etc. Ora, um traba-
lhador ou uma trabalhadora poderia ser capaz - devido a alguma
limitação física - de trabalhar menos horas com metas reduzidas,
por exemplo, mas no capitalismo isso se torna impossível devido
à exigência de produção de excedente e de riqueza, à concorrên-
cia no mercado de trabalho, bem como ao mercado industrial
de reserva. Então esse/a trabalhador/a torna-se incapaz? Mas essa
incapacidade - a partir de determinantes sociais do processo saúde-
-doença-trabalho - é reconhecida?

A doença, a saúde e a morte não se reduzem a evidências “orgâni-


cas”, “naturais”, “objetivas”; elas estão intimamente inter-relacionadas
com características de cada sociedade. Expõem pontos reveladores,
como o fato de a doença ser socialmente construída e de o doente
ser um personagem social. Transparece, pois, que a compreensão do
processo de acidente e adoecimento transcende a aceitação de sua
multicausalidade, identificando-se seu fator determinante no social
(Mendes; Wünsch, 2007, p. 156).

E o que é ser apto/inapto para o trabalho? Para Carneiro


(2018, p. 221): “o conceito predominante, é o de que o traba-
lhador apto é aquele que reúne condições físicas e mentais
compatíveis com o exercício de uma atividade produtiva”. E o
que caracteriza uma situação de capacidade ou incapacidade
para o trabalho no modo de produção capitalista? Sobre essa
questão, Carneiro (2018, p. 221) também traz que “a incapa-
cidade laborativa, que leva à inaptidão, é entendida como a
perda ou redução da capacidade, resultante de alterações pato-
lógicas consequentes a doenças ou acidentes”.
Para trabalhar em saúde do trabalhador e da trabalhadora e
compreender as situações que incidem na ausência de saúde e
de “capacidade”, mesmo que temporária, para exercer atividades

Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 307

laborais assalariadas, é necessário não perder o horizonte de


que “a saúde tem como determinantes e condicionantes, entre
outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física,
o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais”
(Brasil, 1990, Art. 3).

Ter saúde suficiente ou mínima para o trabalho, é uma exigência


principal do mercado, e só vende sua força de trabalho, quem tem
“saúde suficiente” para executar o trabalho requerido. A produção
não necessita de trabalhadores saudáveis, mas sim, de indivíduos que
possam garantir a produtividade esperada (Nunes; Mendes, 2002, p. 2).

A capacidade de trabalho possui relação com as condições


de saúde e, contraditoriamente, o adoecimento foi visto - histo-
ricamente - como fenômeno estranho ao processo de produção.
A comprovação da incapacidade para o trabalho também se dá
nessa mesma lógica, ou seja, o direito ao afastamento das ativi-
dades laborais com proteção de renda estatal (Previdência Social)
é determinado, contraditoriamente, não apenas pela condição
saúde-doença incapacitante, mas também por uma comprovação
de procedimento clínico/cirúrgico e de tratamento que proporcio-
nam, “em tese”, a melhoria das condições de saúde, tal qual pode
ser evidenciado na fala da Trabalhadora 2:

Antes de fazer a cirurgia eu já me travava, pois eu não conseguia cami-


nhar e no primeiro momento que eu fui ao INSS e eles me negaram
o benefício. Aí minha cirurgia foi agendada para uns 30 dias depois,
se eu não me engano, aí eu entrei na justiça porque eles negaram né
e eu não conseguia trabalhar, não tinha condições de trabalhar, aí eu
entrei na justiça por esse motivo. Mas daí no momento que eu fiz a
cirurgia, eu entrei com um novo pedido administrativo, aí foi onde
foi concedido (Trabalhadora 2, grifo das autoras).

Livro 1.indb 15 24/10/2022 09:32:20


308 • Labirintos do labor

A Trabalhadora 2, por exemplo, na época do acesso ao auxílio


por incapacidade temporária desempenhava a função de cozinheira.
Na sua fala, há o relato de que, embora já se tratasse devido a “não
conseguir caminhar”, teve o benefício negado pelo INSS. A conces-
são do benefício previdenciário só se efetivou com a concretude
do procedimento cirúrgico para colocação de prótese no quadril
(artrose do quadril). Constata-se, dessa forma, que, muitas vezes, a
avaliação que é realizada no INSS está enraizada na comprovação
de doença ou até que essa comprovação seja a de “já estar insupor-
tável ou impossível trabalhar”. Tal situação foi igualmente trazida
pelo Trabalhador 4, o qual desempenhava a função de mecânico
e apresentava dorsalgia e dor lombar baixa como principal causa
do adoecimento, incapacidade e afastamento do trabalho:

Então era uma briga constante com eles. A gente expressava que
estava sentindo certa dor, a gente não entendia o porquê que estava
acontecendo aquilo com nós. O meu médico realmente ele tirou o
dele da reta, quando ele viu que deu problema, que eu reclamava
dele, ele tirou da reta: “o mesmo sente dor”, ele botava lá. Ai o INSS
me pedia: mas que tipo de dor? (Trabalhador 4, grifo das autoras).

A partir da fala do Trabalhador 4 e do Manual das Doenças


Relacionadas ao Trabalho, reflete-se que “quando se menciona os
fatores psicossociais em LER/DORT2, fica a impressão de que
algumas dores estão apenas na mente dos pacientes e de que esses
estão fingindo [...] em muitos casos, a relação com o trabalho não
é caracterizada simplesmente porque não se realiza uma análise
detalhada da situação” (BrasiL, 2001, p. 427). Portanto, ao refe-
rir a dor e o não reconhecimento dela como fator incapacitante,
encontra-se uma contradição com a própria orientação à perí-
cia médica, de acordo com seu Manual Técnico: “o conceito de
incapacidade deve ser analisado quanto ao grau, à duração e à
profissão desempenhada” (Brasil, 2018, p. 27).

Livro 1.indb 16 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 309

Uma dor intensa na região lombar, por exemplo, do traba-


lhador na função de mecânico de automóveis, como é o caso do
entrevistado (Trabalhador 4), traz impactos distintos na relação
de incapacidade se comparado à mesma dor em um/a trabalha-
dor/a que não tem no esforço físico a condição para a venda de
sua força de trabalho - a dor é sentida individualmente, mas seus
agravamentos e impactos podem ser analisados sob a perspec-
tiva dos trabalhos e funções ocupadas. Compreender a dor como
fator importante na análise da incapacidade, a partir da inser-
ção laboral e da história relatada pelos próprios trabalhadores e
trabalhadoras, é buscar a efetivação dos princípios do campo da
saúde do trabalhador e da trabalhadora, o qual considera esses/as
trabalhadores/as como sujeitos participantes em todo o processo
de saúde-doença.

As principais causas de incapacidade dos/as trabalhadores/


as em Reabilitação Profissional

Os trabalhadores e trabalhadoras que participam da Reabilitação


Profissional junto ao INSS afastam-se do trabalho por incapaci-
dade laboral, a qual tem sua causa relacionada a um adoecimento
ou acidente. As doenças e causas de adoecimento e incapaci-
dade para o trabalho têm sua classificação no rol da Classificação
Internacional de Doenças (CID), considerando - conforme
subitem anterior - que a avaliação da (in)capacidade é reali-
zada por profissional Médico Perito.
Em consulta realizada no Sistema de Administração de
Benefícios por Incapacidade (SABI) , foi possível verificar a
causa/doença principal registrada pela Perícia Médica Federal
nos atendimentos de RP. Dos 294 trabalhadores/as, foi possível
constatar que 144 (49%) possuem, como causa do afastamento,
doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo3.
Importante mencionar que a evolução do modo de produção

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310 • Labirintos do labor

capitalista, com os processos contínuos de reestruturação produ-


tiva, tem acarretado alterações na organização do trabalho, com
impactos diretos na saúde da classe trabalhadora. Entre as conse-
quências no processo saúde-doença “destacam-se os problemas
osteomusculares e o adoecimento mental relacionados ao traba-
lho” (BrasiL, 2001, p. 40).

Se, por um lado, a automação possibilitou a diminuição do esforço


físico intenso, por outro lado, ela aumentou o trabalho repetitivo
com a utilização do mesmo grupo muscular para a execução das
atividades, sem o devido repouso necessário. Revela-se os sofri-
mentos mentais e o crescimento das doenças do trabalho como as
LER/DORT, as doenças ditas psicossomáticas e as crônico-dege-
nerativas (Nunes; Mendes, 2002, p. 2).

Apresenta-se, em relação a este aspecto, na Tabela 1, um


demonstrativo dos principais motivos de afastamentos dos traba-
lhadores e trabalhadoras em RP, dentro do grupo das doenças
do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo:
Buscando uma análise a nível nacional, os dados da Pesquisa
Nacional em Saúde (Ibge, 2020) mostram que, aproximada-
mente, 21,6% dos sujeitos com 18 anos ou mais de idade (ou
seja, 34,3 milhões) referiram na pesquisa problema crônico de
coluna (IBGE, 2020, p. 67). Em relação à escolaridade desses
sujeitos que relataram problema crônico na coluna, a proporção
foi significativamente maior entre as pessoas sem escolaridade
e fundamental incompleto (29,2%), do que nas demais cate-
gorias de escolaridade (Ibge, 2020, p. 68).
Esses dados nacionais corroboram com os resultados da
pesquisa documental realizada, do total de trabalhadores/as
em RP devido a doenças do sistema osteomuscular e do tecido
conjuntivo (144 sujeitos), 57% têm escolaridade formal incom-
pleta, ou seja, não concluíram o ensino fundamental e/ou médio.

Livro 1.indb 18 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 311

O que se pode inferir desses dados é que as relações sociais de


produção trazem impactos no processo de saúde-doença da classe
trabalhadora, ao passo que o adoecimento osteomuscular e a baixa
escolaridade são características presentes nos sujeitos da pesquisa.
Tal questão também reafirma o caráter social da doença e permite a
concepção dos determinantes sociais do perfil patológico através da
análise das condições coletivas de saúde - em diferentes sociedades
e no mesmo momento histórico - ou seja, há implicações diretas
do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais
no perfil patológico dos processos saúde-doença (Laurell, 1982).
Também em relação a esse tema, o Manual de Procedimentos
para os Serviços de Saúde sobre as Doenças Relacionadas ao
Trabalho apresenta que, embora não totalmente esclarecida, há
uma relação entre os fatores psicossociais e os problemas osteo-
musculares dolorosos. Trabalhadores e trabalhadoras submetidos/
as a altos níveis de exigências psicológicas no ambiente de traba-
lho e com maior poder de decisão têm um aumento do limiar da
dor, enquanto trabalhadores e trabalhadoras com pequenas possi-
bilidades de decisão no ambiente de trabalho apresentam menor
limiar. Assim, por exemplo, situações e ambientes de trabalho que
envolvem pouco poder de decisão contribuem para o desenvol-
vimento da depressão, o que explicaria o baixo limiar, tornando
os indivíduos mais sensíveis à dor (Brasil, 2001, p. 426).
Embora essa pesquisa tenha uma totalidade de trabalhado-
res/as em RP com benefício por incapacidade temporária que
não se refere à doença ou acidente de trabalho, a alta incidên-
cia de afastamento pelos motivos descritos na Tabela 1 - ou seja,
por doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo
- traz a reflexão das determinações sociais, tais quais as relações
de produção da sociedade capitalista - no processo de adoecer
da classe trabalhadora. Conforme apontado por Laurell (1982,
p. 5): “deve-se buscar a explicação não na biologia ou na técnica
médica, mas nas características das formações sociais em cada

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:32:20


312 • Labirintos do labor

um dos momentos históricos”. Para melhor compreensão dos


motivos de afastamentos do trabalho dos trabalhadores e traba-
lhadoras em RP, segue análise das falas dos sujeitos entrevistados
para este estudo, quando questionados sobre a doença principal
que gerou a incapacidade e acesso ao auxílio por incapacidade
temporária:

Eu tinha uma displasia no quadril esquerdo que eu não sabia, sabe.


Eu estava desde 2011 fazendo exames, que eu tinha uma dor na perna
e nenhum médico descobria e quando eu entrei no cargo de cozi-
nheira, que daí eu comecei a carregar peso e ficar de pé o dia todo,
eu comecei a travar, sabe, eu me abaixava e não conseguia mais voltar
(Trabalhadora 2, grifo das autoras).

A Trabalhadora 2, conforme a fala transcrita, teve como motivo


de afastamento a coxartrose (artrose do quadril). Há, em seu relato,
que desde o ano de 2011 estava investigando a causa/motivo das
dores nos membros inferiores, antes mesmo do desempenho da
função laboral de cozinheira. Assim, só houve o diagnóstico quando
as atividades desempenhadas (carregar peso, muito tempo em pé
sem revezamento de posição do corpo durante jornada de trabalho)
incidiram nas condições de saúde-doença, ou seja, a trabalhadora
“teve que travar”, chegar no limite da dor física.
Dando continuidade à análise, o Trabalhador 4 teve como
motivo do seu afastamento a dorsalgia, sendo esta a maior doença
encontrada nos afastamentos em RP, conforme Tabela 1.

Eu travava com muita dor, sentia muita dor, muita dor, daí faz exame,
faz exame, e foram ver que o meu nervo estava colando, daí eu tive
que me submeter a uma outra cirurgia pra descolar esse nervo, pra
eu poder ter movimento na perna e amenizar a dor, mas na realidade
a dor ela não parou (...) eu sinto muita dor, muita dor nas costas,

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 313

cãibra na perna, sabe, mas é coisa que com o tempo eu fui convi-
vendo (Trabalhador 4, grifo das autoras).

As falas apresentadas acima têm a “dor” como referência, bem


como a continuidade das atividades laborais, mesmo com episódios
de dores intensas. Quanto a esta questão, há um estudo realizado
por Hoefel et al. (2004) apresentando que, apesar dos sintomas
de dor osteomuscular existentes, os/as trabalhadores/as persistem
trabalhando e se afastam das atividades laborais apenas quando
apresentam um elevado grau de incapacidade, pois há um posi-
cionamento hegemônico das empresas e dos serviços médicos e
previdenciários que considera os trabalhadores com dor osteo-
muscular como “fracos”, “susceptíveis” ou “simuladores”. Portanto,
tal comportamento dos/as trabalhadores/as pode ser interpretado,
considerando a conjuntura do capitalismo e do mercado de traba-
lho, como uma tentativa de manutenção do emprego, da renda
e da sobrevivência.
Abaixo, nas falas transcritas dos trabalhadores entrevistados,
fica evidente às suas percepções em relação a não manutenção do
vínculo de trabalho após período de afastamento em recebimento
de auxílio-doença: “Eu fiquei encostado, recebendo auxílio-doença,
e nisso, fiz fisioterapia, até que o INSS me encaminhou para reabi-
litação na minha empresa, eles me deram um serviço um pouco
lá né, mas depois me demitiram” (Trabalhador 3, grifo das auto-
ras). Também como aponta o trabalhado 1, que diz:

Na realidade você não fica fora de uma empresa durante 3 anos e tu


vai voltar pra empresa, entendeu? Você tá fora, hoje a mudança na
vida é tudo muito rápido, a informação é muito rápida, as pessoas
às vezes saem muito rapidamente, trocam de setores e tal, então você
acaba ficando fora um tempo de uma empresa, você acaba não se
enquadrando mais. (Trabalhador 1, grifo das autoras)

Livro 1.indb 21 24/10/2022 09:32:20


314 • Labirintos do labor

Também para Hoefel et al. (2004), é comum que os profis-


sionais de saúde que atendem os trabalhadores e as trabalhadoras
com adoecimento e afastamento devido a LER/DORT, ao exami-
narem o processo saúde-enfermidade-trabalho, não visualizem na
organização do trabalho e nas condições laborais os determinantes
para o adoecimento, contribuindo para uma postura de culpabi-
lização e de responsabilização dos trabalhadores pela doença. A
dorsalgia, por exemplo, consta como uma das doenças do sistema
osteomuscular e do tecido conjuntivo, relacionadas com o traba-
lho, conforme Anexo II do Regulamento da Previdência Social
(Brasil,1999). E é a patologia/doença que tem maior incidência
na RP (48 trabalhadores/as afastados/as por esse motivo, ou seja
16,3%). Portanto, o rol de doenças geradoras de incapacidade de
maior prevalência na RP possui determinação saúde-doença-tra-
balho-incapacidade, devido aos episódios latentes de dor relatados
pelos sujeitos, podendo gerar, inclusive, novos agravos quando não
há um atendimento intersetorial eficaz entre as políticas públicas
de trabalho, saúde, previdência (entre outras).
No que tange à Previdência Social, é essencial ampliar o debate
e estudos sobre as possibilidades de equipes interdisciplinares para
atendimento nas diversas frentes de trabalho, entre elas a RP e
demais benefícios previdenciários, inclusive os por incapacidade.
Buscar essa construção no âmbito da Previdência Social permitirá
uma aproximação ao que vem sendo construído por toda classe
trabalhadora há diversas décadas: uma saúde pública e coletiva
que reconheça os determinantes sociais no processo de viver-a-
doecer e que, assim, nas avaliações de saúde-doença as histórias
dos sujeitos sejam respeitadas.

Conclusão

O campo da saúde do/a trabalhador/a requer o reconhe-


cimento dos determinantes sociais do processo saúde-doença

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:32:20


(In)capacidade para o trabalho e reabilitação profissional • 315

e incapacidade, na perspectiva de proteção social da classe


trabalhadora. O presente artigo evidencia que a realidade dos/
as trabalhadores/as que realizaram Programa de Reabilitação
Profissional é reveladora de uma experiência que não reconhece
o trabalhador e a trabalhadora enquanto sujeitos do processo
saúde-doença-incapacidade, como foi demonstrado nos frag-
mentos das falas dos sujeitos entrevistados na pesquisa de campo.
Entende-se que a efetivação do direito ao Trabalho, à
Previdência Social, à Reabilitação Profissional, à Saúde do
Trabalhador e a outros direitos de proteção social é essencial
para o acesso da classe trabalhadora a condições dignas de manu-
tenção da vida e de sobrevivência. Desta maneira, é necessário
pensar numa perspectiva crítica-dialética a saúde do traba-
lhador e da trabalhadora “para além de condição necessária à
reprodução social da classe trabalhadora, mas como um direito
social inerente ao homem, condição indispensável para a vida
e a sociabilidade humana” (Mendes; Wünsch, 2011, p. 479).
A classe trabalhadora necessita de acesso a políticas públicas
universais que respeitem a saúde e a vida de todos os traba-
lhadores e trabalhadoras. Contudo, este acesso não deve ser o
fim, e sim um caminho importante para o enfrentamento do
modo de sociabilidade imposto pelo capitalismo. Por fim, a
Previdência Social, através da Reabilitação Profissional como
serviço voltado à saúde do trabalhador e da trabalhadora, neces-
sita responder às históricas contradições enquanto política
pública para o reconhecimento e garantia do direito à proteção
social da classe trabalhadora.

Notas
1

Este estudo é parte constitutivo da dissertação de mestrado da primei-
ra autora junto ao Programa de Pós-graduação em Política Social e Ser-
viço Social (UFRGS). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Unidade de Ensino com número de aprovação CAAE
45796721.8.0000.5334.

Livro 1.indb 23 24/10/2022 09:32:20


316 • Labirintos do labor
2
Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e os Distúrbios Osteomusculares
Relacionados ao Trabalho (DORT).
3
Grupo de doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo,
agrupadas entre os códigos M00 a M99 na classificação das doenças da
Organização Mundial da Saúde (OMS).

Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fe-
derativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da Repúbli-
ca, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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PNSST. Diário Oficial da União: Brasília, 8 nov. 2011 (2011b).
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______. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre
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Livro 1.indb 27 24/10/2022 09:32:20


Superando o estigma do “encostado”:
A realidade do trabalhador frente a
incapacidade laboral

Francynne Minuscoli Gonçalves


12

O
presente artigo irá abordar os desafios enfrentados pelos
trabalhadores adoecidos e incapacitados para o labor na
sociedade capitalista, a partir da crítica em relação ao
estigma do “encostado”, nomenclatura utilizada popularmente para
definir usuários que acessam benefícios da política de Previdência
Social. Neste sentido, será refletido sobre a centralidade do trabalho
e a consequente redução/limitação da vida ao emprego, utilizando-
-se de subsídios os resultados da pesquisa “A desproteção social e o
adoecimento no trabalho bancário: para quê(m) serve o “pente-fi-
no”do INSS?” na qual trabalhadores adoecidos do setor bancário
trouxeram os desafios enfrentados quando diagnosticados inca-
pazes para o exercício do labor; e a importância da rede de apoio
social e familiar para a superação dos estigmas que envolvem o
afastamento e a recuperação da saúde.

A centralidade do trabalho na sociedade capitalista

O trabalho, considerado um processo no qual o homem trans-


forma a natureza externa e a si mesmo, conforme Marx (2011: 55)

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:32:20


Superando o estigma do “encostado” • 321

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o


homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria
ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio com a natureza
como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de
seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se
dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana.
Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo
tempo modifica sua própria natureza.

Sendo assim, o homem utiliza-se de sua força e energia


para o exercício do labor, em diferentes condições de trabalho,
como em uma indústria, no meio doméstico, em um hospital
ou em uma universidade. Mas, toda a classe trabalhadora tem
em comum, além da capacidade teleológica, o fato de vender
sua força de trabalho com o intuito de atender suas necessidades
básicas. Trabalhar é, acima de tudo, uma questão de sobrevi-
vência na sociedade do capital.
As condições de trabalho refletem os níveis de saúde popula-
cionais desde a Antiguidade, quando o trabalho era considerado
um castigo e não havia preocupação com aqueles que o exerciam,
sendo a origem da palavra o Tripalium - um instrumento de
tortura (Minayo-Gomez;Thedim-Costa, 1997). Com o avanço
do sistema capitalista, o homem “livre” para vender a sua força
de trabalho passa a contar com os maquinários neste processo,
segundo Minayo-Gomez & Thedim-Costa (1997: 22)

As jornadas extenuantes, em ambientes extremamente desfavoráveis


à saúde, às quais se submetiam também mulheres e crianças, eram
frequentemente incompatíveis com a vida. A aglomeração humana em
espaços inadequados propiciava a acelerada proliferação de doenças
infecto-contagiosas, ao mesmo tempo em que a periculosidade das
máquinas era responsável por mutilações e mortes.

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:32:20


322 • Labirintos do labor

Os acidentes de trabalho e a perda de funcionários culminaram


nas primeiras iniciativas em relação à proteção dos trabalhadores
através de leis, principalmente na Europa no século XIX, sendo
que no Brasil devido processo tardio de industrialização passam a
se efetivar leis nesse intuito no século XX. O capitalismo depende
da venda da força de trabalho para sua manutenção e a interrup-
ção do labor em decorrência da doença ou até mesmo do óbito,
acarretando prejuízo na linha de produção, por isto, os referi-
dos autores relatam a contratação de médicos ocupacionais pelas
indústrias a fim de identificar possíveis riscos e acidentes.
Os setores produtivos de indústria, agricultura e serviços passa-
ram por uma imensa transformação ao longo do século XXI, com
destaque para a expansão do setor de serviços na chamada indús-
tria 4.0, marcada pelo avanço das Tecnologias de Informação e
Comunicação - TICs (Antunes, 2018), com a substituição da
ferramenta humana para a tecnologia digital e a flexibilização do
mundo corporativo, segundo Antunes (2018: 42)

O fundamento dessa pragmática que invade todo o universo global


do trabalho se evidencia. Na empresa “moderna”, o trabalho que os
capitais exigem é aquele mais flexível possível: sem jornadas pré-de-
terminadas, sem espaço laboral definido, sem remuneração fixa, sem
direitos, nem mesmo o de organização sindical. Até o sistema de
“metas” é flexível: as do dia seguinte devem ser sempre maiores do
que aquelas obtidas no dia anterior.

O trabalho formal enfrenta ataques de regressão de direitos


como a Reforma Trabalhista e Previdenciária, ao mesmo tempo
que o trabalho via plataforma e desregulamentado se expande,
através do fenômeno da uberização do trabalho (Antunes, 2018).
As políticas sociais que deveriam dar conta das necessidades
humanas são submetidas a contrarreformas nas quais se legitimam
uma sociabilidade de consumo, segundo Iamamoto (2008:118)

Livro 1.indb 3 24/10/2022 09:32:20


Superando o estigma do “encostado” • 323

A mundialização do capital tem profundas repercussões na órbita


das políticas públicas, com suas conhecidas diretrizes de focaliza-
ção, descentralização, desfinanciamento e regressão do legado dos
direitos do trabalho. Esse cenário avesso aos direitos nos interpela.
Atesta, contraditoriamente, a urgência de seu debate e de lutas em
sua defesa, em uma época que descaracterizou a cidadania ao asso-
ciá-la ao consumo, ao mundo do dinheiro e à posse das mercadorias.

A falsa ideia de “ser empreendedor de si mesmo” vem sendo


construída nesta geração, onde motoristas de aplicativo custeiam
os veículos e todos os custos, possuem jornadas de trabalho inde-
terminadas para conseguir o mínimo de sustento enquanto o
dono da plataforma disponibiliza apenas o software e obtém o
lucro em cima disto.
Segundo Gaulejac (2007) o trabalho vem sendo administrado
por gestões gerencialistas, que se caracterizam por: avaliações
individuais e quantitativas; a responsabilização do trabalha-
dor por seu desenvolvimento profissional (construção de uma
“carreira de sucesso”); a captura da subjetividade do trabalhador,
que deve se identificar com a missão da empresa; é extrema-
mente individualista, enfraquece os laços entre os trabalhadores
e legitima o lucro como objetivo fim do trabalho.
Se anteriormente o adoecimento atingia expressivamente
o estado físico do indivíduo, com o aumento das Lesões Por
Esforço Repetitivo/Distúrbios Osteomusculares Relacionados
ao Trabalho - LER/DORT no século XX, no século XXI o adoe-
cimento mental se mostra cada vez mais presente na vida dos
trabalhadores, principalmente do setor de serviços.
Considerando a categoria bancária, alvo do estudo da disser-
tação de mestrado realizada, dados do Observatório de Saúde
e Segurança no Trabalho revelam que no ano de 2021, dos
afastamentos de bancários caracterizados como adoecimentos
decorrentes do trabalho pela Previdência Social, 53% foram

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:32:20


324 • Labirintos do labor

decorrentes de transtornos mentais e 24% por lesões osteo-


musculares. Se compararmos com dados de 2012 do mesmo
observatório, aproximadamente dez anos atrás, 39% dos afas-
tamentos da categoria bancária foram decorrentes de lesões
osteomusculares, exemplificando que o modo de gestão do
trabalho se alterou e a condição de saúde mental dos trabalha-
dores teve alto impacto.
No setor industrial, os dados do observatório ainda revelam
as condições precárias as quais são submetidos os trabalhado-
res no âmbito da segurança de maquinários, evidenciando que
no ano de 2021, 51% dos afastamentos do INSS reconhecidos
como acidentários no setor da indústria foram correspon-
dentes ocasionados por fraturas nos corpos dos trabalhadores
(Observatório de Saúde e Segurança no Trabalho, 2021).
Não é por acaso que o trabalho é um determinante e condicio-
nante de saúde (Brasil, 1980), tendo em vista que ao mesmo passo
que possibilita o acesso ao mínimo para sobrevivência, ele tem um
potencial adoecedor tendo em vista que tem como ferramenta o
corpo humano. Sendo assim, priorizar a saúde do trabalhador se
torna uma necessidade iminente, no seu contexto amplo, de elimi-
nação de qualquer tipo de exploração e violência no trabalho.

O estigma do “encostado”: a desvalorização dos trabalha-


dores com limitações de saúde

As principais instituições sociais como a família, a escola e


a igreja, reforçam a importância do trabalho na vida humana e
possuem um papel fundamental para a legitimação do ideário
posto. Desde a infância, crianças são ensinadas a pensar no que
vão ser quando crescerem e, trabalhos com remunerações baixas
ou menor exigência de formação acadêmica, são desvaloriza-
dos. Diante disto, a ideia de realização profissional se coloca em
voga, considerando que “trabalhar não significa apenas produzir;

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:32:21


Superando o estigma do “encostado” • 325

é também transformar a si mesmo, e no melhor dos casos, é uma


ocasião oferecida à subjetividade para se testar, e até mesmo para
se realizar” (Dejours, 2004: 30).
As pessoas são constantemente avaliadas pela sua capacidade
de produzir, ainda que estejam submetidas a processos adoecedo-
res. O trabalhador ativo é útil ao sistema vigente, que não permite
paradas, pois é do trabalho que se obtém os meios de subsistência
para a classe que vive do trabalho e, para os capitalistas, a partir
dele que se detém lucro.
Devido às mutações ocorridas a partir da Revolução Industrial,
o trabalho de “castigo” passou a ocupar um espaço significativo
na sociedade, sendo uma ferramenta de “dignificação” do homem.
Afinal, quem nunca ouviu que a mulher que executa o trabalho
doméstico “não faz nada”? Ou, numa roda de apresentações entre
desconhecidos, a pessoa referir “sou da empresa X”? E também
que quem não está inserido no mercado de trabalho e recebe
benefícios sociais como o Programa Auxílio Brasil é “vagabundo”?
Estas concepções sobre o trabalho, construídas socialmente,
constituem-se enquanto estigmas sociais, considerados atri-
butos depreciativos definidos por um grupo social que gera a
não-aceitação dos estigmatizados (Goffmann, 1988). Os estig-
mas desconsideram a diversidade humana e a possibilidade de
criação de diferentes trajetórias, discriminando tudo aquilo que
foge do dito “normal” pela sociedade. Ainda, “o estigma pode
impedir as pessoas de procurar ajuda para sua doença, tornan-
do-a pior do que é realmente” (Muñoz; Miguel, 2020: 47).
No âmbito da saúde do trabalhador, um dos estigmas sociais
que se enfrenta é em relação ao indivíduo que adoece e necessita
acessar o sistema de seguridade social brasileira, os chama-
dos popularmente de “encostados do INSS”. A crítica social
aos beneficiários da previdência se dá fortemente em relação
aos que não estão efetivamente trabalhando, mas que acessam
o seguro social para possibilitar o tratamento de saúde que

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:32:21


326 • Labirintos do labor

necessitam, sendo importante ressaltar que a Previdência Social


é uma política de caráter contributivo, ou seja, mensalmente os
trabalhadores do Regime Geral de Previdência Social descon-
tam uma parcela de sua remuneração para custear o acesso aos
direitos previdenciários.
Parece que se apaga o fato do dito “encostado” ser também
um contribuinte, se não fosse, não teria acesso aos benefícios de
auxílio-doença e aposentadoria por invalidez quando adoecidos.
Há uma criminalização do acesso a um direito social, estabele-
cido na Constituição Federal de 1988, com frequentes ataques
aos que acessam a Previdência Social, com medidas de revisão
como o Programa de Revisão de Benefícios Por Incapacidade -
PRBI, chamado “pente-fino” que se iniciou em 2016 no governo
Michel Temer, que cessou cerca de 74% dos benefícios revisa-
dos até o ano de 2018 segundo dados do Instituto Nacional
de Seguridade Social - INSS.
É chamado de “pente-fino”, sendo este instrumento utilizado
para a retirada de parasitas - para que não sobre nenhum nos
cabelos daqueles que se utilizam da ferramenta, evidenciando a
operacionalização da revisão de benefícios reforça o estigma do
trabalhador afastado como “encostado”. A mídia, bem como
o próprio INSS, divulga dados de cessação denominando os
segurados como fraudadores do seguro social, sem nenhuma
crítica ao modelo de avaliação biomédica proposto pelo órgão,
que muitas vezes não leva em consideração o conjunto de fato-
res que leva os trabalhadores ao afastamento laboral.
O trabalhador que não está produzindo mais-valia em virtude
de sua condição de saúde, não tem mais valor para a sociedade do
capital. Se sua capacidade produtiva foi reduzida em virtude do
adoecimento no trabalho, a própria empresa que ocasionou esta
condição, demite o trabalhador assim que finda a estabilidade
obrigatória de 12 meses após o retorno ao trabalho; inclusive,

Livro 1.indb 7 24/10/2022 09:32:21


Superando o estigma do “encostado” • 327

se percebe a necessidade de estudos em relação ao retorno ao


trabalho posterior ao auxílio-doença acidentário.

Estratégias coletivas de enfrentamento ao estigma do “encos-


tado”: o caso dos bancários de porto alegre e região

No cotidiano da intervenção profissional enquanto assistente


social do Departamento de Saúde e Condições de Trabalho do
Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região - Sindbancários,
os trabalhadores verbalizaram sobre as dificuldades de enfren-
tamento ao adoecimento e da importância do sindicato para a
recuperação da saúde mental durante o afastamento do trabalho.
Pesquisar sobre a categoria bancária também significa compre-
ender as mudanças do mundo do trabalho, pois o setor passou
por intensas transformações com o avanço tecnológico, segundo
Jinkings (2002: 17)

[...] os bancários defrontam-se com processos extremamente dinâ-


micos de tecnização e reorganização do trabalho, que degradam de
modo acelerado suas condições laborais e de emprego. Em contexto
de rápida destruição de postos de trabalho e de difusão de formas
precárias de contratação nos bancos, milhares de trabalhadores
sujeitam-se a práticas de controle e dominação que intensificam e
disciplinam mais seu trabalho.

A partir desta experiência empírica, foi elaborado o projeto


de pesquisa “A desproteção social e o adoecimento no traba-
lho bancário: para quê(m) serve o “pente-fino” do INSS?” para
a construção da dissertação do Mestrado em Política Social e
Serviço Social da UFRGS, sendo este um estudo explicativo
de caráter qualitativo, constituído de duas etapas: a pesquisa
documental, com a análise dos registros do software do referido
sindicato; e, a pesquisa de campo, com a realização de entrevistas

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:32:21


328 • Labirintos do labor

com a metodologia de história oral para conhecer a trajetória


de trabalhadores adoecidos (Quadro 01) em auxílio-doença por
acidente de trabalho (B91) quando convocados para a revisão
de benefícios do PRBI, dados que subsidiarão a discussão sobre
o estigma, enfoque deste artigo, sendo que as falas dos entrevis-
tados serão digitadas em itálico, a fim de destacar as concepções
dos próprios trabalhadores sobre os processos que vivenciaram.

Quadro 01 - Características dos entrevistados da pesquisa


Tempo Tipo
de Agravo à de
Entrevistados(as) Banco Cargo trabalho saúde benefício

Sofrimento
Bancário A Público Técnico
Bancário 31 anos psíquico e B91
LER/DORT

Assistente
Bancária B Privado de Geren- 21 anos Sofrimento B91
te psíquico

Bancária C Privado Caixa 35 anos LER/DORT B91

Gerente
de contas
Bancária D Privado pessoa 33 anos LER/DORT B91
física

Fonte: dados sistematizados pela autora.

Ao conhecer a história destes 4 bancários(as) adoecidos em


decorrência do labor que tiveram de se afastar do trabalho através
de benefício previdenciário, se evidenciaram relatos que reforçam
a existência do estigma do “encostado”, em três etapas do processo

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:32:21


Superando o estigma do “encostado” • 329

de adoecimento: na fase do diagnóstico, no afastamento para


tratamento de saúde e no retorno ao trabalho.
O estigma afasta-os do diagnóstico, sendo desvelada a cultura
do presenteísmo, quando o indivíduo permanece trabalhando
mesmo que apresente sintomas de adoecimento para não ter
prejuízos na carreira profissional, tendo em vista que é mal-visto
o trabalhador que precisa de afastamento médico, como relata a
bancária C “Então vai fazendo infiltração, vai fazendo infiltração.
Eu tenho que estudar e tenho que trabalhar, então, eu aceitava…”.
Quando o acompanhamento de saúde sugere o afastamento
das atividades laborais para tratamento e, por conseguinte, se têm
a concessão de benefício previdenciário,os trabalhadores enfren-
tam diariamente o estigma do “estar encostado”. Os bancários
relataram que se sentiam isolados socialmente, com sentimento
de vergonha por terem adoecido no ambiente que lhes provia
sustento e não estarem exercendo atividade laboral, como expressa
a fala da bancária D:

Muitos não sabem até hoje que eu estou afastada. Alguns até pensam
que eu já estou aposentada porque sabem que eu sou bancária há muito
tempo. Mas assim, são poucas pessoas que sabem que eu estou afastada
porque infelizmente... Hoje eu sei que tenho todo esse direito? Sei que eu
tenho todo esse direito porque eu adoeci no banco e por causa do banco,
eu sei tudo isso. Mas ainda tu tem aquele sentimento, eu tenho aquele
sentimento de vergonha ainda, de dizer “ eu estou afastada “ porque a
sociedade te vê assim, como, eles usam a palavra encostado, hoje em dia
eu aprendi que eu não sou uma encostada. Mas eles usam ainda. Te vêem
assim como uma pessoa que não trabalha, que a gente tem a obrigação
de trabalhar, como se fosse, vamos supor “ uma vagabunda “. [...] Uma
“vagabunda” nos termos de não trabalhar. A gente é visto assim. Eu sinto
vergonha disso. Por isso que muitos não sabem…

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:32:21


330 • Labirintos do labor

A vergonha de acessar um direito social é resultado de uma


sociedade meritocrática, que vangloria a produtividade a qualquer
custo, no qual a identidade do homem está plenamente associada
ao emprego que possui, segundo Merlo et al. (2001: 253)

Os indivíduos expressam sentimentos de desvalia, insegurança quanto


ao futuro profissional, inconformismo diante de algumas limitações,
incertezas e morosidade no processo terapêutico e de reabilitação,
medos e fantasias inconscientes, manifestações depressivas e de revolta
associadas, em geral a incorporação de toda uma ideologia de culpa-
bilização individual.

Carregar esse estigma não se finda no ato da alta pericial do


benefício, tendo em vista que este processo se agrava no momento
do retorno ao trabalho, como refere a bancária D “Eu tenho medo
dessa rejeição sim, como acontece com muitos, ser jogada de
escanteio? Sim, ser jogada de escanteio, tenho esse medo. Porque
colegas passam por isso, os que retornam passam por isso”.
O retorno com a capacidade produtiva limitada e/ou reduzida,
aliado ao estigma do trabalhador adoecido, também ocasiona em
diversas demissões de trabalhadores adoecidos, como verbaliza
a bancária B “Eu cheguei a retornar ao meu trabalho, fui demi-
tida após acabar minha estabilidade e a medicina do trabalho
não acatou a demissão por causa da minha doença”.
Os programas de readaptação e retorno ao trabalho oferta-
dos pelos empregadores, bem como a reabilitação profissional
oferecida pelo INSS em algumas situações, tornam-se ineficien-
tes para o rompimento do caráter depreciativo que o afastamento
do trabalho introjetado no meio corporativo. Ainda que por um
período se tenha algum acolhimento diferenciado, aqueles que
retornam ao trabalho acabam tendo que retomar solicitações de
auxílio por incapacidade ao INSS em virtude da revitimização
a um processo de trabalho adoecido.

Livro 1.indb 11 24/10/2022 09:32:21


Superando o estigma do “encostado” • 331

As soluções institucionais ainda são a nível individual, como se


o trabalhador adoecido fosse o “problema” a ser solucionado pelas
empresas, quando, na verdade, a estrutura social vigente leva-os
ao adoecimento. O índice elevado de adoecimento nos bancos
vem sendo denunciado pelo movimento sindical e pelo Ministério
Público do Trabalho, que impetrou ações civis públicas em relação
ao Itaú1 e o Santander2, sendo ambos condenados devido dano
moral coletivo causado em seus trabalhadores.
O dano moral coletivo no âmbito judicial se constitui enquanto
uma categoria de dano no qual há prejuízo grave aos interes-
ses fundamentais da sociedade (Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, 2022). Como exemplo de lesão injusta aos interesses
sociais, na sentença de condenação do banco Santander, a juíza
do trabalho explicita que os trabalhadores de bancos múltiplos
estão no segundo lugar do ranking de concessões de auxílio-do-
ença por acidente de trabalho em virtude de transtornos mentais
e comportamentais, no período de 2012 a 2016, conforme dados
do Ministério da Fazenda.
É reconhecido o caráter adoecedor do trabalho bancário, sendo
o Estado responsável pela administração e custeio dos auxílios por
incapacidade a partir das contribuições dos segurados, não sendo
cobradas as multas para as empresas que geram tal adoecimento
pelo INSS, ainda que estabelecido em lei. Sendo assim, as ações
civis públicas têm sido uma forma de responsabilizar as empresas
pelo adoecimento, obrigando-as a repensar a gestão do trabalho
a fim de evitar novas as ações.
Como resposta a estes desafios do cotidiano, além da busca
pelos direitos no âmbito judicial, os bancários referem que a rede
de apoio social e familiar é fundamental para a superação dos estig-
mas que envolvem o adoecimento no trabalho e o afastamento
para a recuperação da saúde. No mundo da pseudoconcreticidade
(Kosik, 1976), não há espaço para questionar o processo social que
envolve o trabalho, as relações de poder e o adoecimento que somos

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(classe trabalhadora) submetidos no cotidiano. O afastamento do


cotidiano do trabalho faz parte de um desvio do caminho consi-
derado “normal”, um détour (Kosik, 1976) no qual o trabalhador
pode conseguir refletir sobre a realidade em que está inserido.
Nestes desvios, se encontram outras pessoas pelo caminho, os
quais fortalecem a rede de apoio do trabalhador adoecido, sendo o
principal exemplo posto pelos bancários o Grupo de Ação Solidária
- GAS do Sindbancários, que reúne trabalhadores adoecidos sema-
nalmente a fim de criar estratégias coletivas de enfrentamento aos
agravos à saúde.
Os entrevistados narram suas histórias de vida no trabalho com
ênfase no momento em que surgiu o movimento sindical e verba-
lizam que este ressignificou os processos que estavam vivendo em
decorrência do adoecimento, como verbaliza a bancária B “O
movimento sindical me salvou. Se não fosse pelo sindicato, eu
definitivamente não sei onde eu estaria, não sei sabe? Eu não sei
se eu não teria feito coisa pior...”
Ainda que seja importante ressaltar que os sindicatos preci-
sam se reorganizar e fortalecer o movimento em suas bases para
uma alteração na estrutura do sistema, é preciso entender que
ainda são espaços como o GAS que conseguem

propiciar a estes trabalhadores a reconstrução de laços de solidarie-


dade e a inserção em ações de engajamento social, mediante a análise
coletiva do adoecimento relacionado ao trabalho. Constitui-se,
portanto, em um grupo de apoio psicossocial e, também, em um
dispositivo de participação social, vinculado à problemática do
processo saúde-doença-trabalho (Netz; Amazarray, 2006: 131).

É também no momento de ócio, no qual o trabalho deixa de


ser a atividade central do indivíduo, que é possível se reconectar
ao ambiente familiar e comunitário, no sentido de fortaleci-
mento dos vínculos com pessoas que não as do espaço laboral,

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onde as jornadas de trabalho diárias representam a maior parte


das horas do dia.
Embora a família seja impactada diretamente pelo adoecimento,
no quesito financeiro, social e psíquico, é também um espaço
privilegiado para o apoio e tomada de consciência em relação ao
processo vivenciado pelo trabalhador, como relata a bancária D
“A minha família sempre me apoiou [...] A minha irmã sempre
me dizia “tu é só mais uma, tu é um número”, ela me alertava
isso. [...] E te substituem ligeirinho, não te preocupa com isso”.
Cabe ressaltar que o tipo de vínculo estabelecido entre amigos
e familiares se difere das relações empresariais, não significando
concorrência e/ou poder entre os mesmos, por isto, podem contri-
buir com a recuperação da identidade dos trabalhadores para além
do estigma de “encostado” e a priorização do tratamento de saúde,
pois a maior preocupação se dá em relação ao bem-estar do familiar.
A rede familiar e comunitária também provê o suporte financeiro
devido a redução salarial existente na medida de que o afastamento
do trabalho ocorre, ou quando aguardam o restabelecimento do
benefício quando cessado indevidamente - no chamado limbo
previdenciário3, conforme relato da bancária B

O que eu passo é suplício, de não saber o que vai ser meu dia de
amanhã, se eu vou estar recebendo, se eu não vou, se eu vou conse-
guir pagar minhas contas, se eu vou conseguir, se eu vou ter alguém

pra me ajudar... se meu filho vai poder me ajudar, se a minha mãe


vai estar aqui pra me ajudar.

O avanço tecnológico e o individualismo da sociedade moderna


refletem na construção dos estigmas e da identidade dos indivíduos,
bem como a redução dos laços afetivos e de solidariedade, mas
também na organização das lutas sociais, podendo ser considerado

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Como resultado de processos macrossociais das sociedades moder-


nas, a perda da força e do significado dos contextos locais estaria
criando, nos indivíduos, uma sensação de estarem fora da rede social
e, consequentemente, de estarem alijados dos processos decisórios. A
percepção mais imediata seria a do esvaziamento das relações afetivas
entre as pessoas e, no plano político, do enfraquecimento da cidada-
nia (Andrade; Vaitsman, 2002: 927 APUD Giddens, 1991).

Enquanto seres sociais (Lukács, 2013), os indivíduos se (re)cons-


troem a partir das relações sociais, por isto, o interesse do capital em
reduzir os vínculos entre as pessoas na sociedade moderna. Porém,
se percebe que há um movimento de resistência e persistência no
fortalecimento dos vínculos entre as pessoas, que se reinventa há
mais de 20 anos, como o GAS, para seguir trilhando o caminho
da saúde dos trabalhadores bancários.

Conclusões

O título da obra Labirintos do Labor remete-nos à existência


de diversos caminhos em relação ao mundo do trabalho. Relembra,
ainda, a dificuldade de encontrar a saída em um caminho com
diversos desafios, sendo este o significado da palavra labirinto…
Mas será possível encontrar esta saída sozinho? Os trabalhado-
res da pesquisa supracitada referem que a partir do momento em
que encontraram outros trabalhadores para compartilhar a expe-
riência que vivenciavam tomaram consciência coletivamente do
adoecimento em decorrência do trabalho, bem como construíram
estratégias coletivas de superação do estigma que envolve o adoe-
cimento laboral e o afastamento do trabalho, rompendo com a
lógica do senso comum de “encostados”.
Pode ser que seja possível encontrar a saída de maneira indi-
vidual, mas percebe-se que no coletivo, com a diversidade de
experiências a serem trocadas, o movimento dialético de sucessivas

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aproximações e reflexões sobre o adoecimento possibilita o encon-


tro de atores fundamentais para a transformação da estrutura social.
No Grupo de Ação Solidária, os trabalhadores comparti-
lham suas histórias de vida e trabalho, se fortalecendo a partir da
compreensão do adoecimento no trabalho como um fenômeno
coletivo, inerente ao sistema capitalista, refutando o sentimento de
culpa que muitas vezes acomete o adoecido. Também constroem
estratégias de saúde e resistência a partir de suas experiências e do
conhecimento científico, considerando a presença de profissio-
nais e estudantes da área da saúde na mediação do grupo, sendo
também um espaço de formação de militantes no campo da saúde
do trabalhador.
A frase de Marx que refere que “O capital não tem, por isso, a
mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador,
a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração”
coloca em voga a necessidade de tornar visível o processo de adoe-
cimento no trabalho capitalista e os efeitos na vida dos indivíduos,
a fim de desconstruir os estigmas, principalmente o do “encos-
tado”, como discutido neste capítulo, através da interlocução
entre a academia e os movimentos sociais, no intuito de fomen-
tar a organização da classe trabalhadora na luta pelos seus direitos.

‘Notas
1
Para mais dados sobre a Ação Civil Pública em relação ao banco Itaú,
acesse o processo: nº 0010182-28.2013.5.12.0035.
2
Para mais dados sobre a Ação Civil Pública em relação ao banco San-
tander acesse o processo: nº 342-81.2017.5.10.0011
3
Referimo-nos ao limbo previdenciário quando período em que o tra-
balhador discute sua situação junto ao INSS sem o recebimento de
remuneração por parte do órgão, tampouco pelo empregador.

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