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BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS

DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

FERREIRA, Walace1 - UERJ

RESUMO:
Pierre Bourdieu é, sem duvida, um dos grandes sociólogos do século XX, reconhecido interna-
cionalmente, e um dos grandes pensadores contemporâneos a abordar a questão da educação
de forma tão relevante. Neste artigo apresentamos sua teoria acerca da educação nas socieda-
des modernas, em que aparece uma considerável relação entre o papel da escola e a reprodu-
ção e legitimação das desigualdades sociais no contexto do capitalismo. Em seguida, propomos
uma reflexão sobre alguns aspetos da desigualdade social brasileira à luz da teoria de Bourdieu,
de maneira a estimular o leitor a ter um pensamento mais cuidadoso e crítico sobre a educação
e o seu papel.
PALAVRAS-CHAVE: Bourdieu - Concepção crítica - Desigualdade social no Brasil - Papel da edu-
cação.

ABSTRACT:
Pierre Bourdieu is, without doubt, one of the great sociologists of the twentieth century, recog-
nized internationally, and one of the greatest contemporary thinkers to address the issue of e-
ducation. This article presents the theory of Bourdieu on education in modern societies, in which
appears a significant relationship between the school and the role of reproduction and legitima-
tion of social inequalities in the context of capitalism. Then we propose a reflection on some
aspects of Brazilian social inequality in the light of Bourdieu's theory, so as to encourage the
reader to a more careful and critical thinking about education and its role.
KEYWORDS: Bourdieu - Critical conception - Social inequality in Brazil - The role of education.

“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produ-
ção ou a sua construção”.

1
Professor Substituto de Sociologia no CAp-UERJ; Doutorando em Sociologia no IESP/UERJ. Email:
walaceuerj@yahoo.com.br

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SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
Paulo Freire.
INTRODUÇÃO sociais, identificando os traços invisíveis que
não podemos notar através de um simples
Este artigo propõe uma análise sobre a
olhar de senso comum.
teoria de um dos mais influentes pensado-
res das ciências humanas no século XX, Pi- Bourdieu elabora, desse modo, um sis-
erre Bourdieu, no que se refere exatamente tema teórico voltado a mostrar como as
à área em que mais contribuiu: a educação condições de participação social dos indiví-
nas sociedades modernas. Na concepção do duos baseiam-se na herança social, que se
autor, aparecem relevantes aspectos sobre reproduz constantemente numa determina-
a relação entre herança familiar, sobretudo da sociedade - a qual ele chama de estrutu-
cultural, e desempenho escolar; além de se ra estruturante. Ou seja, a sociedade seria
estabelecer uma considerável relação entre uma estrutura estruturante na medida em
o papel da escola e a reprodução e legitima- que suas mais profundas relações estão
ção das desigualdades sociais no contexto constantemente sendo reestruturadas a
do capitalismo. partir das ações dos seus indivíduos. Assim,
o acúmulo dos bens simbólicos, dentre eles
Partindo dessas questões teóricas, a-
a educação, concentra-se nas estruturas do
bordadas nas primeiras quatro partes deste
pensamento dos indivíduos, e também nas
artigo, procuramos trazer alguns aspetos da
manifestações externalizadas por suas ações
desigualdade social brasileira, especialmente
(BOURDIEU, 1989).
aquela que atinge a esfera educacional, de
maneira a estabelecer uma reflexão dessas É importante dizer que a relação de in-
desigualdades à luz da teoria crítica bourdi- terdependência entre o conceito de habitus
esiana. Essas reflexões aparecem na parte e o conceito de campo é condição para seu
cinco e na conclusão deste artigo, que não pleno entendimento. O conceito de “campo”
pretende fazer uma análise profunda acerca em Bourdieu representa um espaço marca-
dessa relação e nem sequer a explanação do pela dominação e pelos conflitos. Como
de qualquer verdade numa área polemizada exemplo, podemos citar o campo jornalísti-
teoricamente e recheada de pesquisas apro- co, o campo literário, o campo educacional,
fundadas, mas apenas levar o leitor a um dentre muitos outros. Cada campo teria,
pensamento mais cuidadoso sobre a educa- segundo Bourdieu, uma certa autonomia,
ção e o seu papel nas sociedades modernas. possuindo suas próprias regras de organiza-
ção e de hierarquia social. Dentro desses
espaços limitados, os indivíduos atuariam
1. O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO DE PIERRE segundo seu capital social, ou seja, as pos-
BOURDIEU E O LUGAR DA EDUCAÇÃO sibilidades que possuem de acordo com a
Elaborando, obra por obra, um sistema rede de contatos da qual fazem parte.
completo de análise das relações sociais, Ou seja, a teoria praxiológica, ao fugir
Bourdieu desenvolveu uma sociologia que dos determinismos das práticas, pressupõe
trouxe relevante reflexão crítica em torno uma relação dialética entre sujeito e socie-
das estruturas sociais. Para ele, o papel do dade, uma relação de mão dupla entre habi-
sociólogo, enquanto um pesquisador atento tus individual e a estrutura de um campo,
das interlocuções sociais, seria o de desven- socialmente determinado. Segundo esse
dar o que se passa por trás das estruturas ponto de vista, as ações, comportamentos,

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escolhas ou aspirações individuais não deri- ticas culturais ou linguísticas de seu meio
vam de cálculos ou planejamentos, são, familiar, teriam maior probabilidade de obter
antes, produtos da relação entre um habitus o sucesso escolar. Em suas pesquisas na
e as pressões e estímulos de uma conjuntu- França, Bourdieu procurou demonstrar que
ra (SETTON, 2002). existe relação entre a cultura e as desigual-
dades escolares. Ou seja, a escola pressu-
É através dos seus habitus que os in-
põe certas competências que são, de fato,
divíduos elaboram suas trajetórias e assegu-
adquiridas na esfera familiar e no meio soci-
ram a reprodução social. Esta reprodução,
al do indivíduo. Utilizando-se do conceito de
no entanto, não pode se realizar sem a sutil
“violência simbólica”, o autor busca desven-
ação dos agentes e das instituições, preser-
dar os mecanismos que fazem com que os
vando as funções sociais por uma forma de
sujeitos aceitem com naturalidade as repre-
dominação simbólica exercida sobre os indi-
sentações e as ideias dominantes, coorde-
víduos e com a adesão deles. Dessa manei-
nadas pela burguesia. A violência simbólica,
ra, um dos primeiros e mais importantes
na sua visão, seria desenvolvida pelas insti-
conceitos utilizados por Bourdieu é o de
tuições e pelos agentes que as põem em
habitus, que é determinado pela posição
prática e sobre a qual se apoiaria o exercício
social do indivíduo na sociedade, posição
da autoridade (VASCONCELLOS, 2002).
esta que lhe permite pensar, ver e agir nas
mais variadas situações. O habitus traduz, Seria através da transmissão da cultu-
dessa forma, estilos de vida, julgamentos ra escolar, a partir especialmente do ambi-
políticos, morais e estéticos, além de ser ente da escola, com suas regras, valores e
também um meio de ação que permite criar padrões de comportamento, que a classe
ou desenvolver estratégias individuais ou dominante revelaria a sua violência simbóli-
coletivas (BOURDIEU, 1989). ca sobre alunos das classes populares. Isso
ocorreria a partir de conteúdos, programas,
Outro conceito muito importante do
métodos de trabalho e de avaliação, rela-
autor para a finalidade deste artigo consiste
ções pedagógicas, práticas linguísticas e
no de “capital cultural”, bastante utilizado
temáticas abordadas. Com isso, a violência
nos seus trabalhos sobre escolaridade. O
simbólica se mostraria eficaz, no sentido de
capital cultural refere-se, pois, aos dispositi-
explicar a adesão dos dominados pela cultu-
vos técnicos e simbólicos adquiridos pelos
ra imposta pelas classes dominantes, na
sujeitos no meio social. É o conjunto de
qual se aceitam regras, sanções, regras de
diplomas, nível de conhecimento geral, ex-
direito ou morais e práticas linguísticas.
periências com teatro, artes, idiomas e boas
maneiras (BOURDIEU, 1998). Este conceito
distingue-se de outros dois também de su-
2. O PENSAMENTO EDUCACIONAL ANTE-
ma importância, o “capital econômico” e o
CEDENTE À BOURDIEU
“capital social”, sendo o capital econômico
relacionado às posses financeiras e os bens Bourdieu teve o mérito de formular, a
portados pelo sujeito, enquanto o capital partir dos anos 60, uma resposta original,
social vincula-se às redes de relações sociais abrangente e bem fundamentada, teórica e
que este sujeito possui com outros agentes. empiricamente, para o problema das desi-
gualdades escolares, especialmente no foco
Segundo Bourdieu, os estudantes de
de suas observações. Daí seu paradigma
classe média ou da alta burguesia, pela pro-
romper com a forma de se abordar as ques-
ximidade com a cultura “erudita”, pelas prá-
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tões referentes à educação até então sidade, da primeira geração beneficiada pela
(MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). forte expansão do sistema educacional no
pós-guerra. Essa geração, reunida em seto-
Até meados do século XX, predomina-
res mais amplos do que as tradicionais elites
va, nas Ciências Sociais, uma visão extre-
escolarizadas, se viu frustrada em suas ex-
mamente otimista, de inspiração funcionalis-
pectativas de mobilidade social através da
tai, que atribuía à escolarização um papel
escola, devido à desvalorização dos títulos
central no duplo processo de superação do
escolares que acompanhou a massificação
atraso econômico, do autoritarismo e dos
do ensino na Europa.
privilégios, associados às sociedades tradi-
cionais, e de construção de uma nova socie- Diante dessa crise do paradigma fun-
dade. Esta seria justa, baseada na merito- cionalista, Bourdieu propôs, nos anos 60,
cracia; moderna, centrada na razão e nos outra maneira de se pensar a questão. Os
conhecimentos científicos; e democrática, dados que apontavam a forte relação entre
fundamentada na autonomia individual. Su- desempenho escolar e origem social e que,
punha-se que por meio da escola - mesmo em última instância, negavam o paradigma
pública e gratuita - seria resolvido o proble- funcionalista, transformaram-se nos elemen-
ma do acesso à educação, garantindo, des- tos de sustentação da nova teoria. Onde se
sa maneira, a igualdade de oportunidades via igualdade de oportunidades, meritocra-
entre todos os cidadãos. cia e justiça social, Bourdieu passou a ver
reprodução e legitimação das desigualdades
O que ocorreu, todavia, nos anos 60,
sociais. A educação perderia o papel, que
foi uma crise profunda dessa concepção de
lhe fora atribuído, de instância transforma-
escola e uma reinterpretação radical do pa-
dora e democratizadora e passaria a ser
pel dos sistemas de ensino. Abandona-se o
vista como uma das principais instituições
otimismo das décadas anteriores, em favor
por meio da qual se mantêm e se legitimam
de uma postura bem mais pessimista. Em
os privilégios sociais. Uma das teses centrais
primeiro lugar, tem-se, a partir do final dos
da sua Sociologia da Educação é a de que
anos 50, a divulgação de uma série de
os alunos não são indivíduos abstratos que
grandes pesquisas quantitativas patrocina-
competem em condições relativamente i-
das pelos governos inglês, americano e
gualitárias na escola, mas atores socialmen-
francês (Aritmética Política inglesa, Relatório
te constituídos que traz incorporada, em
Coleman - EUA, Estudos do INED - França)
larga medida, uma bagagem social e cultu-
que, em resumo, mostraram, de forma cla-
ral diferenciada e mais ou menos rentável
ra, o peso da origem social sobre os desti-
no mercado escolar (MARTINS NOGUEIRA;
nos escolares. A partir deles, tornou-se im-
NOGUEIRA, 2002).
perativo reconhecer que o desempenho es-
colar não dependia, tão simplesmente, dos Decorrente desta abordagem, Bourdi-
dons individuais, mas também da origem eu lança a concepção de que a escola não é
social dos alunos, sua classe, etnia, sexo, neutra. Formalmente, ela efetivamente tra-
local de moradia, dentre outros aspectos de taria a todos de modo igual, na medida em
ordem social. Em segundo lugar, a mudança que todos assistiriam às mesmas aulas, se-
no olhar sobre a educação nos anos 60 es- riam submetidos às mesmas formas de ava-
teve relacionada a efeitos inesperados da liação, obedeceriam às mesmas regras e,
massificação do ensino. Os anos 60 marcam portanto, teriam as mesmas chances. Con-
a chegada, ao ensino secundário e à Univer- tudo, Bourdieu mostra que, na prática, as

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chances são desiguais. Alguns estariam nu- lizados (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA,
ma condição mais favorável do que outros 2002).
para atenderem às exigências, muitas vezes
Assim sendo, cada ser passa a ser ca-
implícitas e subliminares, da escola. Ao sub-
racterizado por uma bagagem socialmente
linhar que a cultura escolar é a cultura do-
herdada. Essa bagagem inclui, por um lado,
minante dissimulada, Bourdieu abre cami-
certos componentes objetivos, externos ao
nho para uma análise mais crítica do currí-
sujeito, e que podem ser postos a serviço
culo, dos métodos pedagógicos e da avalia-
do sucesso escolar. Fazem parte dessa pri-
ção escolar, pois os conteúdos curriculares
meira categoria o capital econômico, toma-
seriam selecionados em função dos conhe-
do em termos dos bens e serviços a que ele
cimentos, dos valores, e dos interesses das
dá acesso, o capital social, cuja importância
classes dominantes. Como diz o autor:
se dá pelo conjunto de relacionamentos
É provável por um efeito de inércia sociais influentes mantidos pela família, a-
cultural que continuamos tomando lém do capital cultural institucionalizado,
o sistema escolar como um fator de formado basicamente por títulos escolares.
mobilidade social, segundo a ideo- As referências culturais, os conhecimentos
logia da escola libertadora, quando,
considerados legítimos e o domínio maior ou
ao contrário, tudo tende a mostrar
que ele é um dos fatores mais efi-
menor da língua culta, trazidos de casa por
cazes de conservação social, pois certas crianças, facilitariam o aprendizado
fornece a aparência de legitimidade escolar, na medida em que funcionariam
às desigualdades sociais, e sanciona como uma ponte entre o mundo familiar e a
a herança cultural e o dom social cultura escolar.
tratado como dom natural
(BOURDIEU, 1998, p. 41). Desse modo, é muito importante sali-
entarmos a percepção bourdiesiana de que
a educação escolar, no caso das crianças
O indivíduo, em Bourdieu, é um ator oriundas de meios culturalmente favoreci-
socialmente configurado em seus mínimos dos, seria uma espécie de continuação da
detalhes. Os gostos mais íntimos, as prefe- educação familiar, enquanto, para as outras
rências, as aptidões, as posturas corporais, crianças, significaria algo estranho, distante,
a entonação de voz, as aspirações relativas ou mesmo ameaçador. Nesse tom, a avalia-
ao futuro profissional, tudo seria socialmen- ção escolar vai muito além de uma simples
te constituído. A partir de sua formação ini- verificação de aprendizagem, incluindo um
cial, em um ambiente social e familiar, os verdadeiro julgamento cultural e até mesmo
quais correspondem a uma posição específi- moral dos alunos. Como diz o autor:
ca na estrutura social, os sujeitos incorpora- Na verdade, cada família transmite
riam um conjunto de disposições para a a seus filhos, mais por vias indiretas
ação típica dessa posição - um habitus fami- que diretas, um certo capital cultu-
liar ou de classe - que passaria a conduzi-los ral e um certo ethos, sistema de va-
ao longo do tempo e nos mais variados am- lores implícitos e profundamente in-
bientes de ação. Já a estrutura social se teriorizados, que contribui para de-
finir, entre outras coisas, as atitudes
perpetuaria, porque estes próprios sujeitos
face ao capital cultural e à institui-
tenderiam a atualizá-la ao agir de acordo ção escolar. A herança cultural, que
com o conjunto de disposições típicas da difere, sob dois aspectos, segundo
posição estrutural na qual eles foram socia- as classes sociais, é a responsável
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pela diferença inicial das crianças ne pela caracterização genealógica que a
da experiência escolar e, conse- constitui. Pelo contrário, é produto do traba-
quentemente, pelas taxas de êxito lho de instauração e manutenção que é ne-
(BOURDIEU, 1998, p. 42). cessário para produzir e reproduzir relações
Salienta-se que essas exigências só duráveis e úteis, com vistas a proporcionar
podem ser plenamente atendidas por quem lucros materiais ou simbólicos. A rede de
foi previamente socializado nesses mesmos ligações é o produto de estratégias de in-
valores. Pode ser na família, ou também vestimento social consciente ou inconscien-
através do contato pessoal com amigos e temente orientadas para a instituição ou a
outros parentes que possuam familiaridade reprodução de relações sociais. Nela se es-
com o sistema educacional. Vê-se, neste tabelecem sentimentos de reconhecimento,
caso, a importância do capital social como de respeito, amizade, dentre outros. Estabe-
um instrumento de acumulação do capital lecem-se também garantias institucionaliza-
cultural. Com isso, o capital econômico e o das, como direitos. Tudo isso, constituído a
social funcionariam, na maior parte das ve- partir das trocas executadas pelos seus
zes, apenas como meios auxiliares na acu- membros, tais como palavras e presentes.
mulação do capital cultural. Como assegura o autor:
A troca transforma as coisas troca-
das em signos de reconhecimento
3. O CAPITAL SOCIAL E O CAPITAL CULTURAL e, mediante o reconhecimento mú-
NA EDUCAÇÃO tuo e o reconhecimento da inclusão
no grupo que ela implica, produz o
Retomando o conceito de capital soci-
grupo e determina ao mesmo tem-
al, este consiste num conjunto de recursos po os seus limites, isto é, os limites
atuais ou potenciais ligados à posse de uma além dos quais a troca constitutiva,
rede durável de relações mais ou menos comércio, comensalidade, casamen-
institucionalizadas de inter-conhecimento e to, não pode ocorrer. Cada membro
de inter-reconhecimento. Em outras pala- do grupo encontra-se assim instituí-
vras, representa a vinculação a um grupo, do como guardião dos limites do
como conjunto de agentes que não somente grupo (BOURDIEU, 1998, p. 68).
são dotados de propriedades comuns, mas
também são unidos por ligações permanen-
tes e úteis. Essas ligações, entretanto, são Já quanto ao capital cultural incorpo-
irredutíveis às relações objetivas de proxi- rado à realidade escolar, distinguem-se três
midade no espaço geográfico ou no espaço formas sob as quais o capital cultural pode
econômico e social, uma vez que são funda- subsistir: no estado incorporado, no estado
das em trocas inseparavelmente materiais e objetivado e no estado institucionalizado
simbólicas cuja instauração e perpetuação (BOURDIEU, 1998).
supõem o reconhecimento dessa proximida- No estado incorporado, o capital cultu-
de pelos agentes participantes (BOURDIEU, ral aparece sob a forma de disposições du-
1998). ráveis no organismo do próprio indivíduo. É
Importante destacarmos que a exis- um ter que se tornou ser, uma propriedade
tência de uma rede de relações não é exa- que se fez corpo e tornou-se parte integran-
tamente um dado natural, como é o caso do te da pessoa, um habitus. Este capital não
grupo familiar, por exemplo, o qual se defi- pode ser transmitido instantaneamente,

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diferentemente do dinheiro ou de um título
de nobreza, mas se adquire de uma forma
Por fim, o estado institucionalizado é
totalmente dissimulada e inconsciente. Co-
um tipo de forma de objetivação que é pre-
mo diz: “Não pode ser acumulado para além
ciso ser colocado à parte, uma vez que con-
das capacidades de apropriação de um a-
fere ao capital cultural propriedades intei-
gente singular; depaupera e morre com seu
ramente originais. Segundo diz:
portador, com suas capacidades biológicas,
sua memória, etc” (BOURDIEU, 1998, p. Ao conferir ao capital cultural pos-
75). suído por determinado agente um
reconhecimento institucional, o cer-
Já no estado objetivado, aparecem sob tificado escolar permite, além disso,
a forma de bens culturais, como quadros, a comparação entre os diplomados
livros, dicionários, instrumentos e máquinas. e, até mesmo, sua ‘permuta’ (subs-
O capital cultural, no estado objetivado, tituindo-os uns pelos outros na su-
detém um certo número de propriedades cessão); permite também estabele-
que se define apenas em sua relação com o cer taxas de convertibilidade entre o
capital cultural e o capital econômi-
capital cultural em sua forma incorporada.
co, garantindo o valor em dinheiro
Como diz: de determinado capital escolar
O capital cultural no estado objeti- (BOURDIEU, 1998, p. 79).
vado apresenta-se com todas as
aparências de um universo autôno-
mo e coerente que, apesar de ser o 4. O INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO DE
produto da ação histórica, tem suas ACORDO COM A CLASSE SOCIAL
próprias leis, transcendentes às
vontades individuais, e que perma- Bourdieu distingue três conjuntos de
nece irredutível, por isso mesmo, disposições e de estratégias de investimento
àquilo que cada agente ou mesmo escolar os quais seriam adotados tendenci-
o conjunto dos agentes pode se a- almente pelas classes populares, classes
propriar (BOURDIEU, 1998, p. 78). médias (ou pequena burguesia) e pelas eli-
tes (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA,
2002).
E quanto à sua existência, diz:
O primeiro desses grupos, pobre em
É preciso não esquecer, todavia, capital econômico e cultural, tenderia a in-
que ele só existe e subsiste como
vestir de modo moderado no sistema de
capital ativo e atuante, de forma
material e simbólica, na condição de
ensino. Seria um investimento relativamente
ser apropriado pelos agentes e utili- baixo, o que se explicaria por várias razões.
zado como arma e objeto às lutas Em primeiro lugar, devido à percepção, a
que se travam no campo da produ- partir dos exemplos acumulados, de que as
ção cultural (campo artístico, cientí- chances de sucesso são reduzidas, na medi-
fico, etc.) e, para além desses, no da em que faltariam os recursos econômi-
campo das classes sociais, onde os cos, sociais e, sobretudo, culturais necessá-
agentes obtêm benefícios propor- rios para um bom desempenho escolar. Isso
cionais ao domínio que possuem tornaria o retorno do investimento muito
desse capital objetivado, portanto,
incerto e, portanto, o risco muito alto. Essa
na medida de seu capital incorpora-
do (BOURDIEU, 1998, p. 78). incerteza e esse risco seriam ainda maiores

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pelo fato de que o retorno do investimento rem o sucesso escolar. As famílias desse
escolar é dado no longo prazo, sendo que grupo social já possuiriam um volume razo-
essas famílias estariam, em função de sua ável de capitais que lhes permitiriam apostar
condição socioeconômica, menos prepara- no mercado escolar sem correr tantos ris-
das para suportar os custos econômicos cos. Para Bourdieu, no entanto, o compor-
dessa espera. Seria um pesado fardo, por tamento das famílias das classes médias não
exemplo, o adiamento da entrada dos filhos pode ser explicado apenas pelas chances
no mercado de trabalho, fator necessário comparativamente superiores de seus filhos.
para se adquirir a qualificação exigida para Seria necessário considerar, igualmente, as
altas funções. expectativas quanto ao futuro, sustentadas
por esses grupos sociais. Originárias, em
Acrescenta-se a isso o fato de que o
grande parte, das camadas populares e ten-
retorno alcançado com os títulos escolares
do ascendido às classes médias por meio da
depende, parcialmente, como já foi dito
escolarização, as famílias de classe média
anteriormente, da posse de recursos eco-
nutririam esperanças de continuarem sua
nômicos e sociais passíveis de serem mobili-
ascensão social, agora, em direção às elites.
zados para potencializar o valor dos títulos.
No caso dessas famílias, nas quais esses Todas as condutas das classes médias
recursos são reduzidos. Segundo Bourdieu, poderiam ser entendidas, dessa maneira,
nessas famílias, de um modo geral, a vida como parte de um esforço mais amplo com
escolar dos filhos não seria acompanhada vistas a criar condições favoráveis à ascen-
de modo muito sistemático e nem haveria são social. Nessas classes sociais seria nor-
uma cobrança intensiva em relação ao su- mal evidenciar determinadas disposições de
cesso escolar. As aspirações escolares desse renunciarem aos prazeres imediatos, em
grupo seriam moderadas, esperando dos benefício do seu projeto de futuro, especi-
filhos que eles estudassem apenas o sufici- almente dos filhos. Sacrificariam a compra
ente para se manter. Esse estágio de edu- de bens materiais e viagens, por exemplo,
cação já significaria, na maioria dos casos, o de modo a investirem na boa escolarização
alcance de uma escolarização superior à dos dos seus filhos.
pais. Essas famílias tenderiam, assim, a pri-
Além disso, a classe média tenderia a
vilegiar as carreiras escolares mais curtas,
controlar a fecundidade, desenvolvendo a
que dão acesso mais rapidamente à inser-
estratégia de concentrar os recursos num
ção profissional. Um investimento numa
número reduzido de filhos. Embora, de um
carreira mais longa só seria feito nos casos
modo geral, possa se falar que a aspiração
em que a criança apresentasse, precoce-
por ascensão social, que caracteriza as clas-
mente, resultados escolares excepcional-
ses médias, conduz à tendência de se inves-
mente positivos, capazes de justificar a a-
tir fortemente na escolarização dos filhos,
posta arriscada no investimento escolar.
não se pode esquecer que o grau em que
Já as classes médias - ou pequena isso ocorre dependeria do peso relativo dos
burguesia, segundo a expressão de Bourdi- capitais em cada uma das frações da classe
eu -, tenderiam a investir pesada e sistema- média. As frações mais providas de capital
ticamente na escolarização dos filhos. Esse econômico - ao contrário das que possuem
comportamento se explicaria, em primeiro quase que exclusivamente capital cultural -
lugar, pelas chances objetivamente superio- tenderiam a não conceder uma prioridade
res dos filhos das classes médias alcança- tão acentuada ao investimento escolar. Se-

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ria necessário observar, também, que a pelos séculos e pelas últimas décadas a par-
tendência maior ou menor ao investimento tir, sobretudo, da reprodução de classes.
escolar estaria relacionada com a trajetória Nesse sentido, a contribuição crítica de
ascendente ou descendente da fração de Bourdieu pode ser de extrema relevância
classe média em questão. Nesse sentido, os para uma análise da realidade brasileira. As
grupos ascendentes seriam os que deposita- elites sempre desenvolveram mecanismos
riam maiores esperanças na escolarização que lhes assegurassem a permanência nas
de seus filhos. posições de origem ascendente. A própria
circulação dentro da estrutura social brasilei-
Por fim, Bourdieu se refere às elites
ra não foi capaz de reduzir em grandes es-
econômicas. Esses grupos investiriam pesa-
calas a desigualdade que o século XX her-
damente na escola, porém, de uma forma
dou do passado escravista. Não se pode
bem mais descontraída do que as classes
negar que pobres e negros tiveram mobili-
médias. Isso se deveria, por um lado, ao
dade entre gerações, mas isso foi muito
fato de que o sucesso escolar no caso des-
mais caracterizado por uma passagem da
sas famílias é tido como algo natural, que
área rural para o meio urbano, do que pro-
não depende de um grande esforço de mo-
priamente representou consideráveis ganhos
bilização familiar. As condições objetivas,
em relação à hierarquia social (RIBEIRO,
tais como a posse de um volume expressivo
2007).
de capitais econômicos, sociais e culturais,
tornariam o fracasso escolar bastante im- O modelo rural, formador da socieda-
provável. Ademais, as elites estariam livres de brasileira, tinha como fortes traços a
da luta pela ascensão social. Elas já ocupam desigualdade, que aparecia na concentração
as posições dominantes, não dependendo, de terras, nas influências econômicas e polí-
portanto, do sucesso escolar dos filhos para ticas e no despreparo de grande parte dos
ascender socialmente. trabalhadores. Foi exatamente essa popula-
ção desprivilegiada do Brasil rural aquela
Em relação às elites, importante sali-
que mais sofreu com os efeitos do rápido
entar que Bourdieu contrasta as frações
processo de industrialização e urbanização.
mais ricas em capital cultural com aquelas
Muitos de seus filhos foram viver nas cida-
mais ricas em capital econômico. As primei-
des, mas sentiram na pele o peso da ori-
ras seriam propensas a um investimento
gem, seja través do preconceito da origem
escolar mais intenso, visando o acesso às
racial, seja através do preconceito da falta
carreiras mais longas e prestigiosas do sis-
de conhecimentos técnicos para se empre-
tema de ensino. Já as frações mais ricas em
garem nos novos ramos fabris existentes
capital econômico tenderiam a buscar na
(RIBEIRO, 2007).
escola, principalmente, uma certificação que
legitimaria o acesso às posições de controle Abaixo, tabela que mostra a distribui-
já garantidas pelo capital econômico. ção do rendimento segundo a cor em 1999
e 2009, demonstrando como os negros se-
guem, no período atual, em consideráveis
5. BREVE REFLEXÃO DAS DESIGUALDADES desvantagens econômicas em relação aos
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL À LUZ DE brancos e como a riqueza no Brasil segue
BOURDIEU concentrada em benefício de pequenos gru-
A história do Brasil mostra como as pos.
desigualdades sociais foram se reproduzindo Além disso, o crescimento do sistema
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educacional, ao longo do século XX, tam- universalização do ensino nesta faixa etária.
bém foi bastante lento. Nas décadas de A educação, dessa maneira, permaneceu
1960 e 1970, para se ter uma ideia - perío- como fonte de acesso à reduzida parcela
do considerado como o auge da industriali- privilegiada da população durante boa parte
zação -, as universidades e as escolas de do século passado (RIBEIRO, 2007).
nível secundário (atual ensino médio), cres-
Vejamos dados atuais, que mostram
ceram mais que o ensino básico. Com isso,
menos negros (pretos e pardos) no ensino
a maior parte da população desprovida eco-
superior, se comparados aos brancos. Ou
nomicamente e que vinha da área rural para
seja, a educação superior continua conside-
a área urbana não conseguiu ingressar no
ravelmente segregada em favor de grupos
sistema escolar básico. Apenas mais recen-
racialmente definidos e de condições eco-
temente, a partir da década de 1990, pu-
nômicas determinadas:
demos verificar um efetivo aumento do en-
sino básico no Brasil, caminhando para a

Tabela 1:

Fonte: IBGE. Disponível em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/


srV_B5CqtR1tCkPbIEjb5Q?feat=embedwebsite>.

do considerado como o auge da industriali-


Além disso, o crescimento do sistema
zação -, as universidades e as escolas de
educacional, ao longo do século XX, tam-
nível secundário (atual ensino médio), cres-
bém foi bastante lento. Nas décadas de
ceram mais que o ensino básico. Com isso,
1960 e 1970, para se ter uma ideia - perío-
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 55
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
a maior parte da população desprovida eco- privilegiada da população durante boa parte
nomicamente e que vinha da área rural para do século passado (RIBEIRO, 2007).
a área urbana não conseguiu ingressar no
Vejamos dados atuais, que mostram menos
sistema escolar básico. Apenas mais recen-
negros (pretos e pardos) no ensino superior,
temente, a partir da década de 1990, pu-
se comparados aos brancos. Ou seja, a edu-
demos verificar um efetivo aumento do en-
cação superior continua consideravelmente
sino básico no Brasil, caminhando para a
segregada em favor de grupos racialmente
universalização do ensino nesta faixa etária.
definidos e de condições econômicas deter-
A educação, dessa maneira, permaneceu
minadas:
como fonte de acesso à reduzida parcela

Tabela 2:

Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/06/29/brancos-ganham-duas-vezes-mais-que-
negros-e-dominam-ensino-superior-no-pais-mostra-censo-2010.htm>.

culturais. Os hábitos cultivados pelas elites


Numa linguagem bourdiesiana, a vio-
acabaram se envolvendo com a ideia de que
lência simbólica presente na estrutura social
estes seriam os melhores hábitos, e os esti-
brasileira a dividiu em classes bem defini-
los de vida dessa classe marcou profunda-
das, sustentando-as segundo o preconceito
mente os principais espaços de interação
e a segregação. Nesta sociedade, o poder
social no país.
simbólico do capital econômico sempre e-
xerceu considerável poder que se espalhou Nesse contexto, a educação foi se de-
para os demais campos de vínculos sociais, senvolvendo, inicialmente, como fonte de
tais como relações profissionais, políticas e acesso aos membros dessas elites, que nela

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 56


SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
viram a possibilidade de ganhos de status e e que a educação apresentaria pouca força
aquisição de um capital cultural que se jun- para alterar.
taria ao capital econômico já portado por
É com isso que podemos propor uma
suas famílias. Com o avanço das taxas de
leitura reflexiva acerca dos projetos de a-
escolarização, hoje em dia a educação no
ções afirmativas que vêm sendo implemen-
Brasil de qualidade, a despeito dos projetos
tados no Brasil, já que têm se configurado
de universalização da alfabetização, é privi-
como as principais políticas voltadas para a
légio de poucos que podem efetivamente
redução das desigualdades raciais. Até que
arcar com seus altos custos.
ponto as ações afirmativasii, ao darem maior
Assim sendo, o capital cultural, indis- possibilidade de acesso a cargos, empregos
pensável para uma boa evolução na apren- e vagas nas universidades – através das
dizagem e no aprimoramento do conheci- cotas universitárias –, efetivamente serão
mento acerca do mundo a nossa volta, aca- capazes de reduzir as desigualdades que
ba por vincular-se diretamente às posses acometem grupos segregados, como a i-
provenientes das condições de classe. Isso mensa população negra? Embora a preten-
explica boa parte da relação proporcional- são seja dar um suporte aos beneficiados,
mente crescente entre a condição de renda ligando-os ao capital econômico, cultural e
per capita dos estudantes e o avanço nas social das elites, será necessário que as
transições escolares, e a manutenção das pessoas beneficiadas consigam transmitir
desigualdades educacionais no país. Portan- aos seus filhos os mesmos capitais necessá-
to, a partir destas desigualdades, explica-se rios para chegarem aos patamares alcança-
como que, num país de fortes gradações de dos pelos pais sem a necessidade da mesma
qualidade escolar, as desigualdades de ren- reserva de vagas.
da e de cor persistem consideravelmente,
Nesse sentido, Bourdieu nos permite
mesmo após termos verificado um aumento
pensar que as atuais políticas de justiça
considerável no acesso à educação, em to-
social podem estar apenas tentando ajustar
das as faixas, nos últimos anos.
a estrutura social existente, em busca de
Vinculado a esses dois tipos de aportes justiça e redução das desigualdades, mas
sociológicos – o capital econômico e o capi- sem alterar a estrutura que gerou as pró-
tal cultural – podemos nos inspirar em prias desigualdades. Assim sendo, o Brasil
Bourdieu para identificarmos a forte presen- pode estar mantendo as mesmas desigual-
ça, no Brasil, do capital social. Este aporte, dades que historicamente apresentou, ape-
caracterizado pelas redes de contatos esta- nas reduzindo-as um pouco, porém sob o
belecidas pelos agentes da estrutura social, manto das políticas de igualização e da pre-
foi e continua sendo aspecto de relevante ocupação com os índices de melhorias soci-
centralidade para a manutenção das desi- ais que não transformariam a sua estrutura
gualdades de classe. As redes sociais das efetivamente desigual.
pessoas com capital econômico e capital
cultural intensos são mais amplas e mais
articuladas do que daqueles que detém me- CONCLUSÃO
nores capitais desses tipos. Aí atua a violên- Apesar de os trabalhos de Bourdieu
cia simbólica que acomete a sociedade bra- terem revelado as limitações da educação,
sileira, reestruturando uma realidade desi- enquanto portadora de um papel revolucio-
gual em seus aspectos de classe e de raça, nário, devemos ressalvar que a crença na
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 57
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
educação permanece bastante viva na lite- teoria para pensarmos a educação e o seu
ratura pedagógica, nas políticas públicas e real papel transformador nas sociedades mo-
no inconsciente coletivo. No Brasil, a educa- dernas. Sem nos prendermos a uma cadeia
ção, enquanto potencializadora de transfor- pessimista, mas procurando nos desprender
mação, continua em destaque, especialmen- dela, alguma reflexão certamente poderá nos
te nos círculos públicos que envolvem os ajudar a melhorar nossa atuação enquanto
debates políticos. Defende-se que através profissionais da educação.
do crescimento educacional o país poderá
gerar uma massa mais consciente politica-
mente, mais qualificada profissionalmente e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
mais avançada moralmente. Entretanto, o BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação.
que os debates políticos não mostram são Petrópolis: Vozes, 1998.
os limites da própria educação dentro de
uma sociedade hierarquizada, do ponto de ______________. O Poder Simbólico. Rio
vista de vários capitais indispensáveis para de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A,
os efeitos pretendidos através do investi- 1989.
mento em educação. ______________. Pierre Bourdieu: So-
No século XX, pouco depois do fim da ciologia. ORTIZ, Renato (org.). São Paulo:
abolição, foram chegando propostas e ideias Ática, 1983.
de modernização ao país, mas junto houve a MARTINS NOGUEIRA, Cláudio Marques;
persistência de uma complexa teia de tradi- NOGUEIRA, Maria Alice. "A sociologia da
cionalismo político, social e econômico, que educação de Pierre Bourdieu: Limites e con-
persiste até hoje em nossas vidas, tecendo tribuições". In: Revista Educação e Soci-
um país contraditório: rico porém desigual. A edade, vol. 23, nº 78, Campinas, 2002.
educação aparece no seio dessas contradi-
ções, haja vista as desigualdades que acom- RIBEIRO, Carlos Antônio Costa. Estrutura
panham o seu processo. As melhores escolas de classe e mobilidade social no Brasil.
normalmente são pagas, e são quase que Bauru, SO: Edusc, 2007.
exclusivamente acessíveis às classes médias e SETTON, Maria da Graça Jacintho. "A teoria
altas. Seus alunos, em grande medida, tra- do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura
zem consigo toda uma conjunção de capitais contemporânea". In: Revista Brasileira de
indispensáveis para o sucesso educacional. Educação, nº 20, Maio/Jun/Jul/Ago, 2002.
Por outro lado, o ensino público geralmente
apresenta uma série de problemas, desde a VASCONCELLOS, Maria Drosila. "Pierre
falta de infraestrutura adequada, até a má Bourdieu: a herança sociológica". In: Edu-
remuneração do corpo docente. No momento cação & Sociedade, vol. 23, nº 78, abril,
de concorrer às vagas dos melhores cursos e Campinas, 2002.
nas melhores faculdades, os indivíduos mais
bem preparados levam vantagens, contes-
VIEIRA DA COSTA, Andréa Lopes. Ação
tando a aparente e enganosa igualdade meri-
Afirmativa e o Combate as Desigualda-
tocrática de oportunidades.
des Raciais no Brasil: Em busca do Ca-
Aceitemos ou não a leitura de Bourdieu minho das Pedras. Tese de Doutorado,
para analisar as questões atuais do Brasil, IUPERJ: 2005.
podemos, sem sombra de dúvidas, usar sua

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 58


SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
i
Émile Durkheim foi um dos expoentes do fun-
cionalismo. A educação, segundo Durkheim,
transmitiria valores morais que integram a soci-
edade, sendo a coesão social o aspecto de sua
maior preocupação. O autor destaca a função
uniformizadora e diferenciadora da educação: de
um lado, visando a integração do indivíduo no
contexto social, transmitindo valores e desenvol-
vendo atitudes comuns; de outro lado, a educa-
ção diferenciadora, respondendo à divisão social
do trabalho e reforçando-a. No Brasil, este para-
digma do consenso influenciou especialmente a
obra de Fernando Azevedo, sociólogo inspirado
na teoria durkheimiana. Azevedo foi o pioneiro
da Escola Nova, movimento que nas primeiras
décadas do século XX defendia a universalização
da escola pública, laica e gratuita. Segundo de-
fendia, os sistemas educativos variam de acordo
com as formas de sociedade, só sendo compre-
endidos, pois, em função do todo. Assim, ele
destaca o papel socializador da educação, seu
caráter coercitivo, sua importância para a inte-
gração social e as relações entre mudança social
e educacional. No Brasil em que viveu, marcado
pela emergência da sociedade urbano-industrial,
uma de suas grandes preocupações foi o ajus-
tamento da educação às novas condições histó-
rico-sociais.
ii
Ótimo estudo sobre as ações afirmativas, Cf.
VIEIRA DA COSTA, Andréa Lopes. Ação Afir-
mativa e o Combate as Desigualdades Ra-
ciais no Brasil: Em busca do Caminho das
Pedras. Tese de Doutorado, IUPERJ: 2005.

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 59


SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

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