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2.

Cenário Sócio-Histórico

Para compreender esse fenômeno amplo e global, característico do regime


neoliberal vigente na contemporaneidade, é importante entender o pano de fundo de seu
desenvolvimento através do século XX e sua consequente aceleração e digitalização
efetivada a partir dos desenvolvimentos tecnológicos do século XXI. A saber, o novo
proletariado dessa era digital, que concerne tanto a chamada Indústria 4.0 quanto as novas
modalidades de trabalho de serviço digital, é consequência de todo uma série de
transformações que ocorreram desde 1970 e se introduziram formalmente no modelo
econômico brasileiro a partir da década de 1990. As transformações aludidas aqui se
referem à transição do Estado de bem-estar social ao modelo de flexibilização conhecido
como neoliberalismo, que já se tornaram bem destacados e materializados a partir dos
governos Thatcher, Pinochet e Reagan na década de 80.
Essa vicissitude do capitalismo através do último século é complexa, pois diz
respeito tanto às mudanças ocorridas na infraestrutura dos modos de produção quanto às
mudanças na superestrutura social que foram responsáveis por muitas das mudanças de
mentalidade que permitem as condições atuais. Porém esse panorama pode ser bem
resumido ao ressaltar as mudanças de pensamento sobre o papel do Estado e da economia
na construção e reprodução das estruturas sociais das quais dependemos.
O regime prévio, com bases liberais e keynesianistas, pertencia a uma específica
noção de capitalismo e economia política — e que inclusive foi exercida aqui no Brasil
durante o governo Vargas. Tal visão entendia o papel do Estado como intervencionista da
economia, aquele que regula o mercado privado através de taxações rigorosas e
incessantemente reproduz políticas de bem-estar social. Aqui vemos uma figura econômica
interessante, em que não só a política é entendida como elemento íntimo do funcionamento
financeiro de um país, mas se entende primariamente o quanto as pautas sociais e suas
consequentes regularizações trabalhistas podiam ser compatibilizadas com o mercado
privado, visando em última instância criar uma estrutura estável e radicalmente distante da
financeirização que gerou a Grande Depressão de 1929.
Com o passar do tempo, entretanto, lógicas mercadológicas foram se modificando e
modelos políticos caíram da popularidade na presença de um novo mundo em que o
comunismo se desmantelava e não era mais uma ameaça. Agora se falava de eficiência,
resultados, velocidade e rejuvenescimento da produção conforme novas tecnologias se
desenvolviam. Cada vez mais se ansiava por um crescimento agressivo das grandes
corporações, agora alinhadas em conglomerados e monopólios maiores, consequentes de
uma economia por muito tempo fixa por um modelo moderado e com menos crises.
Adicionalmente novas formas de mentalidade foram se ajeitando ao novo crescimento
fervoroso da economia, novas formas de consumo e identidade são enrijecidas através do
enraizamento das marcas, e com efeito, toda uma nova constelação moral e ética de
trabalho são constituídas na medida em que o mercado cresce para fora, visando acelerar a
economia e globalizar seus processos de produção.
Finalmente alcançamos o mundo propriamente pós-moderno, que incessantemente
se renova sob a égide da aceleração digital. Nos distanciamos do capitalismo industrial,
com um modelo disciplinar e autoritário acerca da ética de trabalho, e assim, se
consolidaram os modos de produção imateriais. Como assentado por muitos autores, junto
com esse novo regime econômico, se acompanha novos modos de viver e perspectivas
sobre o trabalho, nada sintetiza tão bem os novos tempos quanto o famoso discurso de
Margaret Thatcher em que se é dito: “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e
a alma”.
Como é ressaltado por Byung-Chul Han em sua obra “Sociedade do Cansaço”, a
ética do trabalho muda do ‘dever’ para ‘poder’, isto é, uma maneira de capturar um “a-mais”
da produção do funcionário. Para poder modelar a alma dos indivíduos, se constitui um
novo sujeito ideal para a sociedade, em que efetivamente se pressiona as pessoas para se
tornarem esse “sucesso” cada vez mais imposto como a conduta moral “correta” deste novo
mundo. Cada vez mais se idealiza e ritualiza a capacidade do trabalhador de se reinventar,
como empresário de si mesmo, ao se adaptar e otimizar para as demandas do mercado de
trabalho.
Sob o neoliberalismo, a ordem do mercado aparece para o sujeito como palco da
realização de uma série de valores, sob a condição de que ele participe do jogo da
concorrência e otimize suas capacidades competitivas. [...] Embora essa nova
mentalidade resulte em sofrimento para os sujeitos, carregados de expectativas,
descolados de suas condições objetivas e totalmente responsabilizados pelos seus
fracassos, ela é capaz de mobilizar afetos e ganhar adesão social. (DUNKER; SAFATLE;
SILVA JUNIOR, 2021)

Ou seja, aqui se constitui um novo sujeito assim como um papel a ser encenado por
todos, para assim, cada um participar no movimento do mundo e se sustentar
financeiramente. Mas mais do que isso, essa lógica nova só foi devidamente internalizada a
partir de um engendramento de subjetividade: um novo sistema de valores, cultura e
promessas. Cada um participa e oferece um excedente compulsório na medida em que eles
sentem que estão realmente se “inventando”, “empreendendo” e “inovando”, para assim,
conquistar seus sonhos e aspirações que ironicamente foram impostas nele a partir de
fontes exógenas. Como foi muito bem colocado por outros autores, não só o mercado criou
todo um novo léxico para acompanhar sua lógica, como por exemplo a noção de “capital
humano”, mas também a partir disso se mesclou o privado e público, a vida íntima e de
trabalho, e por conseguinte, nos sentimos e nos apresentamos como corpo-mercadoria,
como algo que comporta uma forma-empresa que nos dá a percepção de sermos
empreendedores de nossas próprias vidas.

Como sabemos, a generalização da forma-empresa no interior do corpo social abriu as


portas para os indivíduos se autocompreenderem como “empresários de si mesmos”
que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno
de “capitais” e que compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si
tendo em vista a produção de “inteligência emocional” e otimização de suas
competências afetivas. (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)

A história, entretanto, é maior do que isso. Com novos engendramentos de


subjetividade, novas gramáticas e compreensões de si, é necessário discutir quais foram os
efeitos disto. A saber, com a consolidação do neoliberalismo, também se tornou cada vez
mais parte do cotidiano e do mercado de trabalho a presença da tecnologia, isto é, sua nova
forma informacional-digital. Com os meios de produção interconectados em processos
globais, cada vez mais baratos e eficientes para as corporações, se despertou mediante
esse contexto a chamada Indústria 4.0: digitalizada, acelerada e amplamente dominada
pelo mercado privado, ou seja, sem regularização e com alto potencial de lucro caso seja
extensivamente usada por consumidores.
Com essa nova indústria, como já dito anteriormente, se abrem novas oportunidades
de lucro e crescimento. Com o regime neoliberal em todo seu fervor, em que se tem uma
administração política meramente gestora e subserviente às condições e demandas
financeiras dos conglomerados corporativos, se manifesta não só uma oportunidade, mas
também todo um novo mercado de trabalho a ser estabelecido com uma lógica trabalhista
deslocada de seu legado intervencionista e regulador da era anterior. Como já fora avisado
por Marcuse muito tempo atrás, o desenvolvimento desenfreado da tecnologia como centro
de crescimento do Capital tem seus perigos:

Nessa sociedade, o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário no quanto determina


não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente necessárias, mas também
as necessidades e aspirações individuais. Oblitera, assim, a oposição entre existência
privada e pública, entre necessidades individuais e sociais. A tecnologia serve para
instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controle social e coesão
social [...] A noção tradicional de "neutralidade" da tecnologia não mais pode ser
sustentada. A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a
sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na
elaboração das técnicas. (MARCUSE, 1973)

Assim, alcançamos o mais recente paradigma contemporâneo do trabalho no regime


neoliberal, a uberização. O funcionamento econômico do mundo, com sua razão
instrumental e dominância civilizatória sobre tudo e todos, criou sua mais autêntica
constelação de trabalhos: os serviços mediados digitalmente, sem regularizações e
altamente flexível nas relações entre funcionário e empregador. Sequer é mais apropriado
dizer isso, na medida em que esse mercado tem como fonte basal um trabalho terceirizado,
em que o indivíduo não é mais tratado como empregado, tal como ocorria no paradigma
socioeconômico anterior, precisamente porque a própria percepção de seu serviço mudou
— agora ele é seu próprio chefe e tem seus próprios horários.
Aqui se percebe uma importante contradição, por um lado, o trabalhador de serviço
digital realmente tem uma certa agência sobre como ele gerencia seu próprio labor, mas por
outro, ele simultaneamente está deslocado de toda uma estrutura capaz de proporcionar
certa estabilidade financeira e psicológica para ele. Isto é, os serviços, agora
descentralizados e sem regularização, se tornam mais instáveis, não confiáveis na medida
em que o proletário agora depende apenas de si mesmo para manter sua subsistência em
um mercado “intermitente”, rápido demais para proporcionar uma estrutura fixa para sua
remuneração e estilo de vida.

A terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então, partes inseparáveis


do léxico e da pragmática da empresa corporativa global. E, com elas, a intermitência
vem se tornando um dos elementos mais corrosivos de proteção do trabalho, que foi
resultado de lutas históricas e seculares da classe trabalhadora em tantas partes do
mundo. (ANTUNES, 2020)

A informalidade, a insegurança e precarização das condições de trabalho são


sintomas característicos da uberização, assim como do neoliberalismo no geral. Porém,
estes mesmos se justificam a partir das lógicas mercadológicas internalizadas na própria
percepção contemporânea do mercado de trabalho informal, que a saber, está crescendo e
se tornando uma parcela cada vez maior da realidade brasileira.
A uberização do trabalho surge como forma de escape à crise e acaba reforçando tanto
a lógica neoliberal, através do auto empreendedorismo, da competição constante e da
avaliação pública; quanto a precarização do trabalho, uma vez que esses mecanismos
neoliberais aumentam as jornadas de trabalho e prendem esses trabalhadores na falsa
ideia de flexibilidade (ASCENÇÃO; PINHO, 2021)

Enfim, se manifesta em sua totalidade nosso paradigma de pesquisa e sua


contextualização sócio-histórica. Mediante a instabilidade financeira do neoliberalismo, que
gera crises que pesam cada vez mais nas pessoas comuns, elas são agora pressionadas a
participar dessa nova arena em que cada um se gerencia como empreendedor de si,
situado em condições precárias de trabalho justificadas por uma lógica ideológica bem
específica, devemos averiguar essas condições e seu peso na mentalidade e saúde dos
indivíduos situados nela. Adicionalmente, com essa nova gramática criada para constituir os
novos sujeitos neoliberais e seus mercados de trabalho, é preciso questionar se a própria
linguagem pela qual seu possível sofrimento seria articulado também não é imbuída de
certos elementos ideológicos, ou seja, verificar se ela mesma produz novas formas de
sofrimento.

3. Caracterização da Instituição e/ou grupo

Nesse sentido, primeiro precisamos compreender o que é exatamente a uberização.


Que mercado de trabalho informal é esse? Quais são suas particularidades e suas formas
específicas de precarização? E a mais importante questão: quem são as pessoas que
constituem esse novo proletariado?
Uberização, como termo, se origina a partir da empresa pioneira nesse modelo de
serviços digitais. Um aplicativo que disponibiliza a partir da demanda de seus usuários,
motoristas terceirizados que oferecem transporte para seus clientes, essencialmente como
a já existente linhas de táxi, porém, com maior eficiência, flexibilidade e acessibilidade
justamente por ter como base uma estrutura digital. Rapidamente a presença do Uber se
juntou a outras alternativas, como a 99 taxi e o Cabify.
Aqui se encontram algumas das características comuns desse novo mercado. Uma
indústria digital, repleta de indivíduos contratados como terceiros, que irão oferecer serviços
baseados em uma demanda específica de algum aplicativo baixado nos dispositivos
eletrônicos de seus consumidores.

Mas o que seria a uberização do trabalho? Seria a modalidade de trabalho que recebe a
denominação da principal empresa privada global no ramo, caracterizada pelo fato de os
trabalhadores arcarem com os instrumentos de trabalho, com todas as despesas de
segurança, alimentação, limpeza, enquanto a empresa, através de um aplicativo para
smartphones, apropria-se do mais-valor gerado pelo serviço dos trabalhadores, sem
qualquer preocupação com os direitos trabalhistas conquistados arduamente pela classe
trabalhadora ao longo de sua história (ASCENÇÃO; PINHO, 2021)

Embora o fenômeno tenha se iniciado como uma alternativa aos táxis, ou seja, um
serviço de transporte digitalizado, sua maior e mais lucrativa inovação se consolidou a partir
de um serviço diferente: os de entrega de comida. Aplicativos como Ifood e Rappi se
tornaram altamente populares pelo mundo todo, sendo rapidamente seguidos por outros
como por exemplo o Uber Eats e 99 Food entre outros participantes menores do mercado.
A saber, além dessa indústria movimentar toda um novo excedente de capital
extremamente lucrativo para as empresas envolvidas, ela justamente foi produzida e é
alimentada pelas crises e instabilidades financeiras do neoliberalismo. Atualmente, segundo
pesquisas feitas usando o padrão de Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
pelo instituto Locomotiva, durante e após o período pandêmico cerca de 11,4 milhões de
brasileiros dependem de aplicativos para garantir uma parcela ou a totalidade de sua renda.
Agora, considerando essa estrutura, se pode ter uma imagem mais completa do evento em
questão. Da mesma maneira que esses aplicativos oferecem toda um novo sortilégio de
serviços convenientes para os novos modos de vida da era pós-moderna — especialmente
quando se leva em conta as adaptações impostas pela pandemia do vírus Covid-19 —, na
mesma moeda, é presente os novos modos de trabalho precarizados que sustentam a
existência desses aplicativos.
Isto é, uma nova rede de conexões e interdependências se revela. Cada vez mais o
número de empregos no Brasil cresce a partir do mercado informal, que justamente atende
às demandas do regime econômico neoliberal. Na medida em que a economia se
movimenta de maneira mais fluída, utilizando de artifícios digitais e acelerados, sua lógica
se torna mais presente e opressora. Lógica esta, que como já fora exposto, é baseada na
contratação irregular, pautada por uma estrutura de avaliações, competitividades e
engendramentos de hiper individualidades no cotidiano desse novo contingente de
trabalhadores.
Da mesma maneira que essas características se consolidaram através das novas
demandas financeiras do mercado privado que cresceram vertiginosamente no período
pós-guerra, elas se justificaram igualmente nas novas modalidades ideológicas presentes
no juízo moral comum. Ou seja, essa nova indústria é sustentada por um novo proletariado,
sujeito a condições precárias e não regularizadas de trabalho, e por isso apelidada como
“precariado” por acadêmicos e pesquisadores da atualidade.
A partir disso se infere que, além desse grupo de pessoas estarem submetidas a
condições bem diferentes das quais os sindicatos e frentes trabalhistas se estruturam para
enfrentar nos anos 60 e 70, eles estão sujeitos a novas percepções de si e os serviços que
eles oferecem. Aqui estamos aludindo à própria forma que comumente se entende e
moraliza esse mercado de trabalho, que é apenas um espelho ideológico da lógica
mercadológica que sustenta o regime neoliberal. E por isso, estão repletos de novas
contradições e conflitos não vocalizados pela mesma gramática e valores pelo qual se
entendia trabalho em outras eras do capitalismo.

Antes mesmo da ascensão de Thatcher e Reagan, Foucault dedica seu curso de


1978-1979 no Collège de France ao neoliberalismo, apresentado como uma forma
específica de governamentalidade, na qual a economia se converte em um modo de
gestão de si e dos outros. Como modo de gestão de si, o neoliberalismo pressupõe um
sujeito que age em conformidade com a lógica capitalista, movido pelo interesse, pela
utilidade, pela satisfação, que se traduzem nas formulações teóricas em termos
matemáticos. Como modo de gestão dos outros, o neoliberalismo pressupõe um modelo
de interação social baseado na dinâmica do mercado. Operando de maneira
espontânea, o mercado tende a confluir para situações de equilíbrio. Tanto a gestão de
si como a gestão dos outros, por conseguinte, subordinam-se à lógica da exaltação do
valor. Depois de esvaziar a vontade humana de tudo que não esteja em consonância
com os ditames do mercado, o neoliberalismo a desloca para o centro de seu
funcionamento. A tão louvada autonomia dos indivíduos se revela tão logo como
absoluta heteronomia. (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)
Se torna claro, portanto, que esse fenômeno diz respeito à mais nova forma de
exploração e consequente forma de sofrimento em nossa era digital. Pois, como já foi dito
por muitos pesquisadores nos últimos anos, como Ehrenberg, Safatle, Dunker e Han entre
outros, vivemos em uma era de cansaço, marcada pela epidemia crescente de depressão e
ansiedade, que podem inclusive ser entendidas como sintomas dos conflitos sociais
contemporâneos.
Ou seja, se torna importante, a partir desse perfil que só recentemente vem sendo
estudado por pesquisadores como Ricardo Antunes, averiguar como essas relações
importantes entre sofrimento psíquico e neoliberalismo funcionam no âmago dos
entregadores por aplicativo. E podemos, possivelmente, compreender até como o
sofrimento psíquico pode estar sendo utilizado por essas empresas para atingir níveis mais
altos de produtividade e lucro.

O neoliberalismo não é apenas uma teoria econômica que acabou por favorecer a
financeirização das empresas, o nascimento do capitalismo imaterial, onde o valor da
marca pode superar a importância da produção. Ele também não é apenas o reflexo de
uma valorização do consumo, como padrão de formação de identidades e como ponto
de definição negocial. Ele representou uma nova moralidade que prescreve como
devemos sofrer sobre o neoliberalismo, tendo na sua cúspide preferencial a síndrome
depressiva. Agora o sofrimento não é mais um obstáculo para o desenvolvimento da
indústria, mas pode ser metodicamente produzido e administrado para aumentar o
desempenho e é isso que caracteriza o neoliberalismo no contexto das políticas de
sofrimento: individualização, intensificação e instrumentalização. (DUNKER; SAFATLE;
SILVA JUNIOR, 2021)

3.1. Caracterização do tema de intervenção no Brasil

Eis aqui nosso paradigma mais geral até agora, entretanto, nos resta a apreensão
do cenário mais específico que diz respeito ao tema da nossa pesquisa ativa. Que, como já
foi introduzido aos poucos, se localiza nas condições dos entregadores por aplicativo e suas
formas de sofrimento psíquico na contemporaneidade, tendo como nexo as consequências
da precarização e uberização do desse mercado de trabalho informal.
A saber, existem dois fatores que precisamos levar em conta para a
contextualização mais particular de nosso objeto de pesquisa: a pandemia e suas crises
financeiras como um potencializador das tendências já denunciadas dentro do regime
econômico neoliberal; o neoliberalismo à brasileira como uma pedra de toque da alarmante
ausência de pautas políticas que concernem a agência desse grupo afetado, o que
demonstra um grande distanciamento entre as causas sociais e a administração econômica
do país.
Em primeiro lugar, acerca da divisão quase que absoluta entre a gestão da
economia nacional e os conflitos sociais que, paradoxalmente, mesmo sendo produto direto
deste, está completamente deslocado de uma ligação imediata e tangível ligação por parte
da percepção comum sobre o tema. Isso é um forte indicador para a presença de uma das
características mais importantes para a manutenção constante do neoliberalismo: a
despolitização da economia, reduzindo-a a mera gestão “técnica”.
No período atual, se fala por bastante tempo de “políticas de austeridade”, assim
como a popularização da ideia de que a economia é uma área quase que tecnocientífica e
que deve, portanto, ser administrada como um saber racional pelas mãos de poucos
“experts”. Mas muito além disso, se mobiliza uma série de valores estéticos, “psicologismos”
e moralizações incongruentes do discurso econômico, que estabelece uma forma de
justificativa para as decisões econômicas deslocadas da esfera política.

Mas a nomeação de tais políticas como “austeridade” era um fato a ser sublinhado. Pois
ela explicitava como valores morais eram mobilizados para justificar a racionalidade de
processos de intervenção social e econômica. Note-se que ser contra a austeridade é,
inicialmente, uma falta moral, um desrespeito ao trabalho de terceiros, além de uma
incapacidade infantil de retenção e poupança. Criticar a austeridade é assim colocar-se
fora da possibilidade de ser reconhecido como sujeito moral autônomo e responsável.
Da mesma forma, era moral a defesa de que os indivíduos deveriam parar de procurar
“proteção” nos braços paternos do Estado-providência a fim de assumir a
“responsabilidade” por suas próprias vidas, aprendendo assim a lidar com o mundo
adulto de uma “sociedade de risco” (embora nunca tenha realmente ficado claro se os
riscos afinal eram para todos). (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)

Por valores estéticos, me refiro ao levantamento de um ideário imagético,


frequentemente visto no neoliberalismo como o clássico sujeito que fracassa
financeiramente em razão de sua “preguiça”, “falta de inteligência” ou ausência de uma
predisposição a ser produtivo, que no Brasil acaba por se mesclar com uma série de
preconceitos herdados de nossa história. Por “psicologismos”, me refiro à uma diversidade
de afetos e sentimentos entendidos frequentemente como deploráveis ou infantis que são
atribuídos tanto ao fracasso financeiro quanto a atitude diante desse fracasso por parte dos
indivíduos, que remetem à exemplos como uma inteligência “baixa”, falta de motivação
entendida como fraqueza ou uma “infantilidade” acerca do mundo causada por uma
ingenuidade ou visão de mundo utópica. Ou seja, aqui se forma um ritual ideológico que
visualiza as pessoas como imbuídas de certa responsabilidade e autonomia, e quando
fracassam, se levanta — sob a égide da de uma hiper individualidade pós-moderna — toda
uma série de juízos que visam desqualificar as capacidades psicológicas e cognitivas
daquela pessoa, assim como a autenticidade de sua possível frustração. Por moralização
do discurso econômico, me refiro aqui às inevitáveis consequências desse arranjo
estabelecido e descrito aqui, que tem como produto, o primado de valores estéticos e
morais sobre as discussões efetivamente políticas acerca da economia.
Se estabelece um conjunto de maneiras de compreender o sujeito, as categorias e
ações que o definem em virtude de suas ações como um homo economicus, que tem como
meta, reforçar uma série de ideais que devem ser reproduzidos por todos. Se ressalta e
hipostasia uma capacidade natural dos humanos serem perfeitamente racionais, e muito
mais, capazes de uma incessante reinvenção de si mesmos a partir de rituais consumistas
e centrados na produção e trabalho, como se esses fossem intimamente ligados aos
sonhos e aspirações por uma vida melhor. Vivemos em uma era de otimização e “doping”,
que gera como resultado inevitável a queda dessa encenação, entendida a partir de um
prisma psicopatológico como depressão ou síndrome de burnout. Essencialmente, se cria a
ilusão de que tudo é possível através do trabalho, e se o indivíduo é incapaz de alcançar
resultados concretos, o problema reside nele, como sujeito moral, ao invés da realidade
social que o cerca e condiciona.

[...] tratava-se de passar do social ao psíquico e levar sujeitos a não se verem mais
portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como operadores de
performance, otimizadores de marcadores não problematizados. Para tanto, seria
necessário que a própria noção de conflito desaparecesse do horizonte de constituição
da estrutura psíquica, que uma subjetividade própria a um esportista preocupado com
performances se generalizasse, e para isso a mobilização de processos de
internalização disciplinar de pressupostos morais era fundamental. Por isso, as
modalidades neoliberais de intervenção deveriam se dar em dois níveis, a saber, no
nível social e no nível psíquico. Essa articulação se explica pelo fato de os conflitos
psíquicos poderem ser compreendidos como expressões de contradições no interior de
processos de socialização e individuação. Elas são as marcas das contradições
imanentes à vida social. (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)

A nova gramática de sofrimento, pautada por uma individualização e culpabilização


dos resultados, que são medidos sistematicamente sob uma métrica tecnocrática, exalta e
comemora a competitividade. Se engendra uma coação e pressão para as pessoas a
trabalharem mais a partir de histórias e relatos autobiográficos de vitória e sucesso,
vendidas no mercado de ideias como mercadoria, tendo como objetivo final, apenas a
exploração da insegurança e desespero dos sujeitos neoliberais, que constantemente se
medem e se comparam aos outros pelas mesmas métricas, não importando o quão
irracional a linha de pensamento é. O neoliberalismo, como já foi indicado anteriormente por
certos autores, além de modelo econômico, é um novo modo de exploração do trabalhador,
que agora utiliza de formas cada vez mais sutis e invisíveis de coerção e manipulação,
mobilizando a própria psicologia como tecnologia de poder, ou seja, o próprio sofrimento
contemporâneo, sintoma das condições sociais cada vez mais precarizadas, é
cuidadosamente administrado e gerenciado para se alcançar um novo excedente de
produtividade dessa classe trabalhadora.

Mas em meados dos anos 1970 o próprio capitalismo parece ter sofrido uma mutação.
Em vez de proteção e narrativização do sofrimento, descobre-se que a administração do
sofrimento, em dose correta e de forma adequada pode ser um forte impulso para o
aumento de produtividade. (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)

A heteronomia da agência individual nessa forma emergente de capitalismo


pós-industrial denunciada já por Foucault (2004), foi um dos sinais da gradual, mas certeira
transição que ocorreria nos próximos 40 anos, em que o Estado necessariamente começa a
impor essas lógicas mercadológicas aqui desconstruídas através de uma variedade de
métodos. Estado-nação e mercado privado estavam alinhados para a edificação desse
projeto, que fundamentalmente modificou os modos de vida e capacidade de se articular
suas contradições inerentes:

Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma sociedade com
menos intervenção do Estado, ideia tão presente nos dias de hoje, é simplesmente
falsa. [...] Na verdade, o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na
configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que
um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social. Ou seja, o
neoliberalismo é um modo de intervenção social profunda das dimensões produtoras de
conflito. Pois para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa pudesse
reinar, o Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir
que a política intervisse na autonomia necessária de ação da economia. (DUNKER;
SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)

Portanto, se conclui que esse longo projeto de despolitização da economia, ocorre


como um planejamento e engenharia social que tinha como objetivo o crescimento
desenfreado da economia e sua financeirização, assim como uma nova forma de
exploração, agora psíquica, que deixa o novo proletariado desamparado, tanto no nível
legislativo quanto narrativo. Além do mais, o resultado mais notável foi a mais completa
alienação política, que gerou um perigoso analfabetismo na capacidade das classes
oprimidas de utilizarem um discernimento crítico para sequer compreenderem as condições
em que estão agora sujeitos à constantemente.
Agora, para a segunda parte de nosso paradigma particular, devemos comentar
brevemente sobre os impactos e intensificações que ocorreram na área por consequência
da pandemia. É importante ressaltar o quanto esse evento acelerou o já crescente e
alarmante processo de uberização dos serviços, algo que foi eficientemente aproveitado
pelas empresas, que apenas enriquecerem neste período de profunda crise.
Durante esse período, muitas medidas importantes foram tomadas visando proteger
a saúde pública, como os períodos de lockdown e distanciamento social, em que muitos
estabelecimentos tiveram que fechar temporariamente por não operarem em serviços
essenciais. Com efeito, a economia entrou em ciclos sucessivos de queda, em que menos e
menos capital se movimentava, a inflação crescia, e muitas pessoas estavam tendo que
lidar com a simultânea necessidade de ficar dentro de casa mesmo sem um trabalho remoto
que compense pela falta de renda. Enquanto pessoas perdiam ou suas vidas trabalhando
ou sua estabilidade financeira, a lei do capital continuava a se movimentar e pautar a
circulação financeira do mundo, o crescimento da inflação foi acompanhado por um
incremento de taxação de juros e formas mais agressivas de especulação por parte de
quem estava abastado de capital de investimento, gerando novas formas de ganhar
dinheiro e manter as corporações vivas em um período de intensa instabilidade econômica.
Desse modo, mais uma vez foi se constituindo uma nova empreitada do mercado
privado e suas pautas ideológicas. Dessa vez, além de desmantelamentos de sindicatos e
demissões em massa, houve um repentino crescimento do mercado informal, que agora
servem dois propósitos adicionais: responder à crise causada pela pandemia, e assim,
movimentar capital variável (tal como a Tendência a Queda da Taxa de Lucro de Marx nos
indica); e utilizar da ausência de empregos estáveis e acessíveis para artificialmente
aumentar um mercado que já estava em crescimento e se tornando uma das indústria mais
lucrativas da era digital. Assim como todos os serviços digitais cresceram nesse período de
isolamento social, por outro lado foi se tornando mais essencial e conveniente o uso
frequente daqueles mesmos aplicativos que edificaram o mercado de trabalho uberizado.
Portanto, vemos os pólos contraditórios do regime neoliberal em sua maior
destilação nesse período. A própria economia fora incapaz de se manter estável ou
alinhada com o bem-estar generalizado em um período de crise, todavia, a plasticidade e
fluidez das suas novas formas trabalhistas, assim como suas lógicas bem conformadas de
“capital humano” e engendramentos de subjetividades na forma corpo-mercadoria, se
tornaram habilmente capazes de tornar um período de caos e imprevisibilidade em uma
oportunidade de enriquecimento para os detentores desses meios de produção. Mais uma
vez, o neoliberalismo, tal como indica em seu nome, comporta tanto aspectos do liberalismo
anárquico e pautado por uma esfera financeira autônoma, mas também sua característica
mais sofisticada, uma engenharia social de coerção social que produz uma fácil adaptação
da mais-valia para qualquer mudança abrupta no mercado, algo que como já sabemos
desde Marx, apenas intensifica a miséria e aumenta a desigualdade social.
A partir desse pano de fundo delineado, desde o século XX até os complexos
eventos caóticos da década de 20 no século XXI, podemos traçar algumas das
consequências mais importantes. A saber, se consolidou um novo proletariado mais
precarizado e menos protegido por regularizações trabalhistas, e, portanto, mais suscetível
à exploração. Essas condições, já características de uma economia intermitente e
anárquica, se intensificaram com o progresso tecnológico, a digitalização e força estatal que
coagiu a implementação ideológica das novas gramáticas de sofrimento. Todos esses
elementos se coadunam na uberização do mercado de trabalho: uma indústria altamente
imprevisível, repleta de precarização das condições de trabalho, completamente
reproduzida e justificada não pela compreensão da forma-empresa como a constituição
natural do sujeito neoliberal, mas também pela completa apatia e indiferença sintomática da
grande crise política de nossos tempos — o narcisismo e hiper individualidade,
consequentes da competitividade e egoísmos como valores centrais na nossa economia
sustenta sob a égide de um sistema de morais.

A liberdade de poder (Können) produz até mais coações do que o dever (Sollen)
disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem um limite; o poder não.
Portanto, a coerção proveniente de poder é ilimitada e, por esse motivo, encontramo-nos
em uma situação paradoxal. (HAN, 2020)

Assim, nos resta uma última questão: considerando os nexos que convergem e
separam de maneiras específicas a esfera social, política, econômica e psíquica, quais são
os efeitos dessas condições duras e recentes do mercado uberizado na saúde mental dos
entregadores? As especulações vão longe, suas gramáticas de sofrimento podem ter sido
invisibilizadas na lógica do mercado, assim como exploradas mediante uma incapacidade
de articular propriamente a narrativa de seu sofrimento. Estaríamos presenciando
possivelmente uma exploração psíquica, que já é presente na bolha corporativa, agora
sendo efetivada em classes menos abastadas na realidade brasileira. Poderíamos estar
situados em uma era em que nosso gozo, em forma de dor assim como de desejo, é parte
do valor excedente extraído do trabalho. É isso que será averiguado, através do prisma de
uma pesquisa metodológica, em nosso grupo alvo: os entregadores de aplicativo, o novo
proletariado digital, preso na ilusão da liberdade no trabalho.
Assim, se torna importante lembrar de uma reflexão de Byung-Chul Han sobre
liberdade na contemporaneidade:

A liberdade é a antagonista da coerção. Ser livre significa estar livre de coerções. Ora,
mas essa liberdade, que deveria ser o contrário da coação também produz ela mesma
coerções. Doenças psíquicas, como depressão ou burnout são expressões de uma
profunda crise da liberdade: são sintomas patológicos de que hoje ela se transforma
muitas vezes em coerção. O sujeito do desempenho, que se julga livre, é na realidade
um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem um senhor, explora
voluntariamente a si mesmo. (HAN, 2020)

3.3 Papel da psicologia da psicologia frente ao tema

Trata-se, portanto, da psicologia como ideologia e da psicoterapia como uma espécie de


sutura para o mal-estar trazida pelo grão de verdade do sintoma ou pela experiência
histórica do sofrimento. (ADORNO; DUNKER, 2015)

É assim que Christian Dunker introduz o leitor à edição brasileira dos “Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise” de Theodor W. Adorno. Embora essa frase aparente um
pouco radical, especialmente fora de contexto, aqui Dunker nos introduz a constelação
conceitual de Adorno, que entende a psicologia como elemento crítico, e, portanto, a crítica
igualmente como qualquer outro objeto.
Para entendermos isso, tem-se que levar em conta a psicologia como uma disciplina
oriunda do “despertar” do sofrimento psíquico como condição socialmente compreendida.
Então, é natural indagar sobre a maneira pela qual esse sofrimento é mediado entre
sujeitos, para assim, compreender seu saber como um diagnóstico do tempo. Trata-se,
portanto, de uma situação única, em que a psicologia é um elemento ideológico da
sociedade, mas também pode ser elevada a um estatuto crítico do significado do sofrimento
humano em um dado momento da História.
Levando em conta isso, pode-se entender a disciplina como um campo do saber que
ao mesmo tempo espelha como uma sociedade entende o sofrimento e manifesta os
conflitos e contradições imanentes a mediação desse sofrer. Isto é, se pode entender
sofrimento tanto como uma reprodução dos conflitos sociais quanto às medidas que são
estabelecidas para suprimir esse sofrer, que é o elemento constrangedor que revela os
problemas de nosso tempo.
Não entrando agora nos exatos detalhes da questão ideológica em psicologia, ainda
assim é inevitável a revelação da psicologia como algo eminentemente político. Político não
no sentido de mera gestão do que se tem disponível a fazer, tal como ocorre nos dias de
hoje, mas sim como aquilo que se discute a partir de um horizonte, horizonte esse que visa
ampliar ou materializar aquilo que importa para todos que vivem em civilização. Portanto, a
psicologia é um dos saberes mais importantes na medida em que ela mostra o que
incomoda, o que faz sofrer, aquilo que efetivamente perturba uma população em vigência
das condições de vida atual.
Entendendo esse panorama, pode-se resumir a questão da psicologia tanto como
método de intervenção multidisciplinar quanto saber crítico. O que está sendo aludido aqui
é: a psicologia como corpo de conhecimento que revela o sofrimento, mal-estar e patologia
que necessariamente precisa se manter implícito para perpetuar aquilo que o causa. Da
mesma maneira que em Freud a psique foi entendida como um aparelho que reprime,
recalca ou deforma seus conflitos para se manter de uma dada forma, poder-se-ia dizer o
mesmo sobre qualquer estrutura social vigente, especialmente a atual.

Uma sociedade pode ser analisada como um sistema de normas, valores e regras que
estruturam formas de ação e julgamento em suas aspirações de validade. [...] No
entanto, poderíamos complexificar o cenário, afirmando que tal processualidade de
interação entre fatos e normas seria necessariamente contraditória por operar a partir da
produção contínua de conflitos entre normas explícitas e implícitas. Nenhuma sociedade
tem apenas estruturas normativas explícitas, mas se assenta também em um conjunto
implícito de disposições de conduta e de inflexão das normas enunciadas. Isso nos
levaria a imaginar que uma perspectiva crítica seria aquela capaz de explorar as
contradições no interior do próprio sistema de normas através da explicitação do que
precisa continuar implícita para poder funcionar. (DUNKER, SAFATLE, SILVA JUNIOR;
2018)

Imprescindível ressaltar, claro, que a linguagem crítica que se constrói aqui


necessariamente tem que levar em conta como esse sofrimento é discutido, isto é, dado
uma gramática. Pois nem todo sofrimento é uma patologia, e nem toda patologia é
entendida como sofrimento. A própria psicologia sempre está em risco de cair na
normalização do sofrimento ou na invisibilização de uma patologia, pois sempre está
vulnerável e aberta à maneira que se discute e entende o que é sofrer no meio social. Uma
patologia sempre será entendida como um sofrimento excessivo, algo incontornável, ou
seja, diz respeito ao circuito de afetos que são levantados para entender o sofrimento
intermédio de um sistema moral. Exatamente por isso que por toda história se encontrou
uma rede de normas e valores que tem como objetivo tanto administrar as patologias
quanto abarcar o sofrimento de tal maneira que suas causas se tornem implícitas.
Como já foi levantado aqui muitas vezes, é pertinente entender o regime político e
econômico que a sociedade se situa sob hoje. A saber, vivemos em uma era pós-moderna,
pautada pelo neoliberalismo, e, portanto, é necessária entender que sistema de normas e
valores foram engendrados por ele, qual é o circuito de afetos que o mantêm, e quais são
suas contradições implícitas que dizem respeito à gramática de sofrimento e a gestão de
patologias contemporâneas. É a partir desse levantamento extenso que se pode ser capaz
de desenvolver um discernimento crítico com potencial de descortinar o enigma da saúde
mental atual.
Juntando ao pano de fundo desenvolvido através dos últimos capítulos, se alcança o
contexto necessário para analisar extensamente as relações entre neoliberalismo e saúde
mental. Já foi expresso anteriormente a intimidade e nexo causal entre esse regime
econômico e o fenômeno da uberização, que é a condição social principal do nosso grupo
alvo de estudo. Mas a questão que estava sendo apenas referenciada e agora pode ser dita
claramente é a relação da psicologia com esse paradigma. Em outras palavras, que diz
respeito à psicologia em um cenário que aparenta apenas ser objeto da política e de causas
sociais?
A sua resposta diz respeito à questão de remontar as peças que já vem sendo
distribuídas por essa complexa paisagem. Retomando a noção da psicologia, como um
campo de saber tacitamente político, comporta em si o potencial de esclarecer essa
dimensão velada a partir de um discernimento crítico, que como Safatle argumentou, nesse
ato pode revelar as contradições e oferecer um novo horizonte. Isto é, se levarmos em
conta como o neoliberalismo, a partir da sua já bem definida engenharia social, faz gestão
do sofrimento assim como modela as gramáticas das patologias, nos é desbloqueado uma
nova trajetória capaz de articular os conflitos sociais, conflitos esses que geram uma
aparência fenomênica vista pela sociedade, nos consultórios e pesquisas.
Esse fenômeno é o da crescente precarização da saúde mental, e inclui-se aqui
seus discursos afetivos sobre ele. Vivemos em uma era em que se discute bastante esse
tópico a partir de uma gama de contextos, nos foi apresentado com o tempo todo um léxico
para expressar nossos sentimentos. Discursos estes, que tem uma forte dimensão
psicológica mesclada com uma moral. Essa é a era em que se fala de “insegurança”,
“motivação”, “potencial”, “autoestima”, “mentalidade” e “saúde”. É um jogo de contrastes
entre características mentais e formas de sucesso. Todas elas, tanto o “sucesso” quanto a
“derrota”, são medidas a partir de elementos quantitativos e tecnocráticos, ou seja, remetem
a lógica de mercado e o sujeito monadológico.
Sujeito monadológico se refere aqui ao conceito de agente-livre, indivíduo
autônomo, criado pela teoria liberal e intensificado no neoliberalismo. Como já se sabe,
essa linguagem e articulação tem como efeito colocar todo um peso moral sobre a o
fracasso financeiro, que realmente dá um sentimento de validade para o uso da palavra
“fracasso”. Se utiliza de uma flexibilidade oferecida por esse vocabulário para justificar e
naturalizar as posições de sucesso econômico no sistema, e assim, simultaneamente
pressionar e motivar o indivíduo a produzir mais. Não é por acaso que usa motivar, com um
sentido tácito de meramente induzir algo a se movimentar, agir, mesmo que seu objetivo
não seja garantido. Isto é, se mobiliza os indivíduos a trabalharem mais sob a égide de
sucesso, mas principalmente a partir do linguajar da “motivação”, algo que remete à um dos
elementos mais recentes dos meios de comunicação: a popularização de coaches e
centralidade midiática dada agora aos profissionais de saúde mental. Estamos aqui
discutindo o atual “psicologismo” de um antigo mito, a meritocracia.

Essa “humanização” da empresa capitalista, responsável pela criação de uma zona


intermediária entre técnicas de gestão e regimes de intervenção terapêutica, com um
vocabulário entre a administração e a psicologia, permitiu uma mobilização afetiva no
interior do mundo do trabalho que levou à “fusão progressiva dos repertórios do
mercado com as linguagens do eu”. As relações de trabalho foram “psicologizadas” para
serem mais bem geridas, até chegar ao ponto em que as próprias técnicas clínicas de
intervenção terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, a
padrões de avaliação e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da
administração de empresas. As técnicas de steps, de foco, de gerenciamento de “capital
humano”, de “inteligência emocional”, de otimização de performance que tinham sido
criadas nas salas de recursos humanos das grandes empresas agora faziam parte dos
divãs e consultórios. Nem todos tinham percebido, mas não estávamos apenas falando
como empresários de nós mesmos. Estávamos transformando tal forma de organização
social em fundamento para uma nova definição de normalidade psicológica. Nesse
sentido, tudo que fosse contraditório em relação a tal ordem só poderia ser a expressão
de alguma forma de patologia. Patologizar a crítica era simplesmente mais um passo.
(DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)

A patologização da qual Safatle se refere, além de explorada a fundo por


pesquisadores como Ehrenberg, diz respeito à epidemia da depressão e ansiedade
generalizada na contemporaneidade. Vivemos em um mundo de deprimidos, e muitos,
embora não oficialmente diagnosticados, falam e discursam sobre experiências prévias com
essa patologia. Outro fenômeno que acompanha esse é o aumento exponencial do
consumo de antidepressivos, que inclusive a partir de uma retroalimentação, se tornou
genérico e combate vários transtornos simultaneamente: depressão, ansiedade e TDAH
entre outros. Junto com o crescente mercado farmacológico, que até hoje sabe muito pouco
sobre os mecanismos de ação exata desses fármacos, se tornou uma indústria bilionária
através dos anos. O consumo generalizado de medicamentos que combatem a depressão,
além de estar conectado aos conflitos imanentes à sociedade, pode ser compreendido
como uma das gestões do neoliberalismo, pois algo pouco expresso pelos veículos de
comunicação, é justamente como se diagnostica depressão.
A primazia da depressão como quadro diagnóstico na psicopatologia se inicia nos
anos 70, que é precisamente o período em que o neoliberalismo começa a se tornar o
regime econômico hegemônico. Essa mudança de paradigma no DSM-III (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) não envolve apenas o foco nessa nova
patologia, mas também se relaciona com a separação entre a psiquiatria e psicopatologia
etiológica, isto é, a psicanálise. Gradativamente as neuroses e psicoses foram sumindo dos
diagnósticos, e em troca houve o primado da esquizofrenia e o desaparecimento da
paranoia, mas a principal mudança ocorreu na criação de categorias clínicas
descritiva-cognitivas para criar e listar todos os transtornos.
Não entrando muito a fundo nas questões psicopatológicas, em resumo, foi
dispensado o linguajar psicanalítico, e assim, patologias que eram mais definidas a partir de
conflitos psíquicos ou complexos etiológicos relacionados à infância. Ao invés de remeter
uma doença à sua gênese particular e sua narrativa pessoal, se foi constituído uma
linguagem psicopatológica que não expressa mais conflitos e agora meramente descreve
como o paciente se sente a partir de um prisma cognitivo e comportamental.

A anedonia, esse sintoma central da depressão, a incapacidade de experimentar prazer


com outro, consigo e no mundo, torna-o uma espécie de ditador de si mesmo, em um
impasse com suas próprias ordens, incapaz de entender o porquê de sua greve para
iniciar, ou fazer algo que por outro lado lhe parece óbvio, prático e indiscutivelmente
desejável. De certa maneira a depressão só descreve, ela não narra, ela luta contra a
perda de memória e de concentração, o que a torna um ser de cansaço, ela é greve e
ao mesmo tempo a lei opressiva que a torna possível. Nesse sentido, o reinado da
depressão é também um reinado crítico contra a era do “capital humano”, do prazer dócil
e flexível no trabalho e da narrativa do talento, do propósito e da autorrealização que
sobrecarrega a produção com métricas de desempenho e resultado. Daí que o
depressivo não esteja exatamente trazendo um recado da realidade como ela é, mas
como um fragmento de verdade sobre por que não conseguimos perceber as coisas. Em
certa medida ela responde demasiadamente bem à demanda de renunciar a si mesmo,
ao se tematizar apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado de
seu papel. Sua resposta insiste na coerência, na unidade e na síntese em um universo
no qual a produção se torna deslocalizada, em que os manuais de gerenciamento nos
ensinam como criar mais sofrimento para incitar mais produção, assim como
fragmentam a narrativa do trabalho e do estudo em blocos de potencialidade e listas de
traços desejáveis e funcionalmente adequados. Assim como para o neoliberalismo o
mercado é um Outro compacto e fechado, idêntico a si mesmo em suas regras
imutáveis, o Outro da depressão é composto por uma lei consistente e soberana em
relação à qual só podemos nos apresentar como corpos-mercadorias, crianças
amparáveis ou narcisos impotentes. (DUNKER; SAFATLE, SILVA JUNIOR, 2020)

As pessoas, portanto, perderam sua capacidade de articular seus sintomas e


mal-estares a partir de conflitos, tensões, contradições e ambivalências, e, agora são dadas
um diagnóstico definitivo, que remete a nenhum aspecto narrativo de sua vida ou mundo, e
este é acompanhado por uma série de medicamentos recomendados e prescrições morais
escondidas sobre o véu de uma psicoterapia que irá lhe integrar na sociedade novamente.
Se a depressão é percebida através do comportamento improdutivo, desanimado,
estacionário e isolado, sua “cura”, sua volta à normalidade, só pode ser expressa a partir de
conceitos como produtividade, trabalho, rotina e integração social, ou seja, sua contraparte
é entendida como a participação na sociedade, não levando em conta, porém, qual lógica
se esconde sob o véu dessa integração.
A lógica a que me refiro é clara: a mercadológica. Com todos os indivíduos
naturalmente se entendendo como corpo-mercadoria, como forma-empresa, como
investidores e detentores de um “capital humano”, nada mais intuitivo senão suas ações,
motivações e conquistas serem expressas a partir de métricas empresariais e financeiras. O
sujeito neoliberal é moldado a partir de pressões a produzir mais, quando se sucumbe à
pressão social de ser mais, ser “mais ele mesmo”, ele é diagnosticado com depressão até
se tornar funcional novamente. Por “ser mais” e “funcional”, lembremos que a própria
mediação social que determina conceitualmente esses termos é pautado pela própria lógica
de mercado. “Ser mais você mesmo” é apenas se vender mais, se terceirizar mais,
encontrar sua identidade e reconhecimento de mais trabalho. Ser “funcional” é participar de
uma sociedade com modos de reconhecimento empresariais, aquele que é “normal” é quem
ativa e compulsoriamente segue os rituais de otimização e desempenho necessários para
manter a maquinaria socioeconômica atual funcionando.
O sujeito neoliberal de desempenho como empresário de si mesmo explora-se
voluntaria e apaixonadamente. Fazer de si uma obra de arte é uma aparência bela e
enganosa que o regime neoliberal mantém para explorá-lo por inteiro. A técnica de
poder do regime neoliberal assume uma forma sutil. Não se apodera do indivíduo de
forma direta. Em vez disso, garante que o indivíduo, por si só, aja por si só de forma que
reproduza o contexto de dominação dentro de si e o interprete como liberdade. Aqui
coincidem a otimização e a submissão, a liberdade e a exploração. (HAN, 2020)

A partir de um dos vários exemplos paradigmáticos, se clarificou o processo


importante, porém pouco visto, que é necessário para qualquer estudo de psicologia social.
As contradições e conflitos sociais que se reproduzem e são mediadas pelo linguajar
diagnóstico, assim como a lógica de reconhecimento desse mesmo. Portanto, se é parte do
objeto de pesquisa o sofrimento psíquico de um grupo de pessoas, grupo esse que é e está
constantemente sendo atravessado pelas condições sócio-históricas atuais, o
desenvolvimento de um discernimento crítico e consciência política é imprescindível para o
conhecimento consequente.
Isto é, para realmente ocorrer uma apreensão do objeto de pesquisa, em todas as
suas contradições, conflitos e circuitos afetivos, é necessário em última instância uma
análise crítica extensa da estrutura normativa e moral que cerca não só o que se estuda,
mas o próprio sujeito [pesquisador] que o estuda. Só assim a psicologia alcança seu
potencial como um campo de conhecimento que efetivamente descreve como o sofrimento,
mal-estar e sintoma ocorrem na sociedade, ou seja, em todo seu contexto e narrativa social.
A psicologia social e sua pesquisa não necessariamente precisam “consertar” ou
“curar” um problema, sequer pode ter certeza de que isso é possível. Mas talvez, ao
elucidar e expor uma estrutura implícita de gestões e coerções, sustentada por e escondida
sob o véu de normas e valores explícitos, é possível manifestar uma clara crítica imanente
ao regime que a construiu e moldou. Regime esse que atravessa inúmeras esferas da vida
pública e privada de todos. O objeto em questão, os entregadores de serviço, são ao
mesmo tempo algo isolado e total, cindido e coeso, espelho e opaco, reprodutor e
autárquico, cabe a nós manifestar sua forma mais apropriada, como algo em conflito direto
com a administração atual da vida. Cabe a nós compreender eles como algo que
fundamentalmente representa os problemas e as tensões da vida social contemporânea,
repleta de problemas, que se continuarem tácitos, perpetuarão sob a égide do capitalismo
neoliberal.

Esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da psicologia à psicologia


social, mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a natureza
histórico-social do ser humano. Desde o desenvolvimento infantil até as patologias e as
técnicas de intervenção, características do psicólogo, devem ser analisadas criticamente
à luz desta concepção do ser humano é a clareza de que não se pode conhecer
qualquer comportamento humano isolando-o ou fragmentando-o, como se este existisse
em si e por si. (LANE; CODO, 1989)

Da mesma maneira que qualquer psicologia precisa da transversalidade de outros


saberes do homem, como foi expresso por Lane, isso se aplica igualmente aos outros
campos de conhecimento em relação à psicologia. Se ela é capaz, a partir da
transdisciplinaridade, quebrar suas correntes ideológicas, seu conhecimento crítico é
igualmente valioso para outras disciplinas, especialmente quando se fala de suas pesquisas
sobre o humano e seu sofrimento.
REFERÊNCIAS:

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BOUCHER, Geoff. Marxismo, Petrópolis: Vozes, 2012.

DUNKER, Christian; SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da. Neoliberalismo como
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FERREIRA, Rita de Cassia C. Psicologia social e comunitária: fundamentos, intervenções e


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HAN, Byung-Chul. Psicopolítica, Belo Horizonte: Âyiné, 2020.

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LOURENÇO, Júlia Costa. Uberização do Trabalho Como Forma de Retomada do


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