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Cenário Sócio-Histórico
Ou seja, aqui se constitui um novo sujeito assim como um papel a ser encenado por
todos, para assim, cada um participar no movimento do mundo e se sustentar
financeiramente. Mas mais do que isso, essa lógica nova só foi devidamente internalizada a
partir de um engendramento de subjetividade: um novo sistema de valores, cultura e
promessas. Cada um participa e oferece um excedente compulsório na medida em que eles
sentem que estão realmente se “inventando”, “empreendendo” e “inovando”, para assim,
conquistar seus sonhos e aspirações que ironicamente foram impostas nele a partir de
fontes exógenas. Como foi muito bem colocado por outros autores, não só o mercado criou
todo um novo léxico para acompanhar sua lógica, como por exemplo a noção de “capital
humano”, mas também a partir disso se mesclou o privado e público, a vida íntima e de
trabalho, e por conseguinte, nos sentimos e nos apresentamos como corpo-mercadoria,
como algo que comporta uma forma-empresa que nos dá a percepção de sermos
empreendedores de nossas próprias vidas.
Mas o que seria a uberização do trabalho? Seria a modalidade de trabalho que recebe a
denominação da principal empresa privada global no ramo, caracterizada pelo fato de os
trabalhadores arcarem com os instrumentos de trabalho, com todas as despesas de
segurança, alimentação, limpeza, enquanto a empresa, através de um aplicativo para
smartphones, apropria-se do mais-valor gerado pelo serviço dos trabalhadores, sem
qualquer preocupação com os direitos trabalhistas conquistados arduamente pela classe
trabalhadora ao longo de sua história (ASCENÇÃO; PINHO, 2021)
Embora o fenômeno tenha se iniciado como uma alternativa aos táxis, ou seja, um
serviço de transporte digitalizado, sua maior e mais lucrativa inovação se consolidou a partir
de um serviço diferente: os de entrega de comida. Aplicativos como Ifood e Rappi se
tornaram altamente populares pelo mundo todo, sendo rapidamente seguidos por outros
como por exemplo o Uber Eats e 99 Food entre outros participantes menores do mercado.
A saber, além dessa indústria movimentar toda um novo excedente de capital
extremamente lucrativo para as empresas envolvidas, ela justamente foi produzida e é
alimentada pelas crises e instabilidades financeiras do neoliberalismo. Atualmente, segundo
pesquisas feitas usando o padrão de Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
pelo instituto Locomotiva, durante e após o período pandêmico cerca de 11,4 milhões de
brasileiros dependem de aplicativos para garantir uma parcela ou a totalidade de sua renda.
Agora, considerando essa estrutura, se pode ter uma imagem mais completa do evento em
questão. Da mesma maneira que esses aplicativos oferecem toda um novo sortilégio de
serviços convenientes para os novos modos de vida da era pós-moderna — especialmente
quando se leva em conta as adaptações impostas pela pandemia do vírus Covid-19 —, na
mesma moeda, é presente os novos modos de trabalho precarizados que sustentam a
existência desses aplicativos.
Isto é, uma nova rede de conexões e interdependências se revela. Cada vez mais o
número de empregos no Brasil cresce a partir do mercado informal, que justamente atende
às demandas do regime econômico neoliberal. Na medida em que a economia se
movimenta de maneira mais fluída, utilizando de artifícios digitais e acelerados, sua lógica
se torna mais presente e opressora. Lógica esta, que como já fora exposto, é baseada na
contratação irregular, pautada por uma estrutura de avaliações, competitividades e
engendramentos de hiper individualidades no cotidiano desse novo contingente de
trabalhadores.
Da mesma maneira que essas características se consolidaram através das novas
demandas financeiras do mercado privado que cresceram vertiginosamente no período
pós-guerra, elas se justificaram igualmente nas novas modalidades ideológicas presentes
no juízo moral comum. Ou seja, essa nova indústria é sustentada por um novo proletariado,
sujeito a condições precárias e não regularizadas de trabalho, e por isso apelidada como
“precariado” por acadêmicos e pesquisadores da atualidade.
A partir disso se infere que, além desse grupo de pessoas estarem submetidas a
condições bem diferentes das quais os sindicatos e frentes trabalhistas se estruturam para
enfrentar nos anos 60 e 70, eles estão sujeitos a novas percepções de si e os serviços que
eles oferecem. Aqui estamos aludindo à própria forma que comumente se entende e
moraliza esse mercado de trabalho, que é apenas um espelho ideológico da lógica
mercadológica que sustenta o regime neoliberal. E por isso, estão repletos de novas
contradições e conflitos não vocalizados pela mesma gramática e valores pelo qual se
entendia trabalho em outras eras do capitalismo.
O neoliberalismo não é apenas uma teoria econômica que acabou por favorecer a
financeirização das empresas, o nascimento do capitalismo imaterial, onde o valor da
marca pode superar a importância da produção. Ele também não é apenas o reflexo de
uma valorização do consumo, como padrão de formação de identidades e como ponto
de definição negocial. Ele representou uma nova moralidade que prescreve como
devemos sofrer sobre o neoliberalismo, tendo na sua cúspide preferencial a síndrome
depressiva. Agora o sofrimento não é mais um obstáculo para o desenvolvimento da
indústria, mas pode ser metodicamente produzido e administrado para aumentar o
desempenho e é isso que caracteriza o neoliberalismo no contexto das políticas de
sofrimento: individualização, intensificação e instrumentalização. (DUNKER; SAFATLE;
SILVA JUNIOR, 2021)
Eis aqui nosso paradigma mais geral até agora, entretanto, nos resta a apreensão
do cenário mais específico que diz respeito ao tema da nossa pesquisa ativa. Que, como já
foi introduzido aos poucos, se localiza nas condições dos entregadores por aplicativo e suas
formas de sofrimento psíquico na contemporaneidade, tendo como nexo as consequências
da precarização e uberização do desse mercado de trabalho informal.
A saber, existem dois fatores que precisamos levar em conta para a
contextualização mais particular de nosso objeto de pesquisa: a pandemia e suas crises
financeiras como um potencializador das tendências já denunciadas dentro do regime
econômico neoliberal; o neoliberalismo à brasileira como uma pedra de toque da alarmante
ausência de pautas políticas que concernem a agência desse grupo afetado, o que
demonstra um grande distanciamento entre as causas sociais e a administração econômica
do país.
Em primeiro lugar, acerca da divisão quase que absoluta entre a gestão da
economia nacional e os conflitos sociais que, paradoxalmente, mesmo sendo produto direto
deste, está completamente deslocado de uma ligação imediata e tangível ligação por parte
da percepção comum sobre o tema. Isso é um forte indicador para a presença de uma das
características mais importantes para a manutenção constante do neoliberalismo: a
despolitização da economia, reduzindo-a a mera gestão “técnica”.
No período atual, se fala por bastante tempo de “políticas de austeridade”, assim
como a popularização da ideia de que a economia é uma área quase que tecnocientífica e
que deve, portanto, ser administrada como um saber racional pelas mãos de poucos
“experts”. Mas muito além disso, se mobiliza uma série de valores estéticos, “psicologismos”
e moralizações incongruentes do discurso econômico, que estabelece uma forma de
justificativa para as decisões econômicas deslocadas da esfera política.
Mas a nomeação de tais políticas como “austeridade” era um fato a ser sublinhado. Pois
ela explicitava como valores morais eram mobilizados para justificar a racionalidade de
processos de intervenção social e econômica. Note-se que ser contra a austeridade é,
inicialmente, uma falta moral, um desrespeito ao trabalho de terceiros, além de uma
incapacidade infantil de retenção e poupança. Criticar a austeridade é assim colocar-se
fora da possibilidade de ser reconhecido como sujeito moral autônomo e responsável.
Da mesma forma, era moral a defesa de que os indivíduos deveriam parar de procurar
“proteção” nos braços paternos do Estado-providência a fim de assumir a
“responsabilidade” por suas próprias vidas, aprendendo assim a lidar com o mundo
adulto de uma “sociedade de risco” (embora nunca tenha realmente ficado claro se os
riscos afinal eram para todos). (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)
[...] tratava-se de passar do social ao psíquico e levar sujeitos a não se verem mais
portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como operadores de
performance, otimizadores de marcadores não problematizados. Para tanto, seria
necessário que a própria noção de conflito desaparecesse do horizonte de constituição
da estrutura psíquica, que uma subjetividade própria a um esportista preocupado com
performances se generalizasse, e para isso a mobilização de processos de
internalização disciplinar de pressupostos morais era fundamental. Por isso, as
modalidades neoliberais de intervenção deveriam se dar em dois níveis, a saber, no
nível social e no nível psíquico. Essa articulação se explica pelo fato de os conflitos
psíquicos poderem ser compreendidos como expressões de contradições no interior de
processos de socialização e individuação. Elas são as marcas das contradições
imanentes à vida social. (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)
Mas em meados dos anos 1970 o próprio capitalismo parece ter sofrido uma mutação.
Em vez de proteção e narrativização do sofrimento, descobre-se que a administração do
sofrimento, em dose correta e de forma adequada pode ser um forte impulso para o
aumento de produtividade. (DUNKER; SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)
Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma sociedade com
menos intervenção do Estado, ideia tão presente nos dias de hoje, é simplesmente
falsa. [...] Na verdade, o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na
configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que
um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social. Ou seja, o
neoliberalismo é um modo de intervenção social profunda das dimensões produtoras de
conflito. Pois para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa pudesse
reinar, o Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir
que a política intervisse na autonomia necessária de ação da economia. (DUNKER;
SAFATLE; SILVA JUNIOR, 2021)
A liberdade de poder (Können) produz até mais coações do que o dever (Sollen)
disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem um limite; o poder não.
Portanto, a coerção proveniente de poder é ilimitada e, por esse motivo, encontramo-nos
em uma situação paradoxal. (HAN, 2020)
Assim, nos resta uma última questão: considerando os nexos que convergem e
separam de maneiras específicas a esfera social, política, econômica e psíquica, quais são
os efeitos dessas condições duras e recentes do mercado uberizado na saúde mental dos
entregadores? As especulações vão longe, suas gramáticas de sofrimento podem ter sido
invisibilizadas na lógica do mercado, assim como exploradas mediante uma incapacidade
de articular propriamente a narrativa de seu sofrimento. Estaríamos presenciando
possivelmente uma exploração psíquica, que já é presente na bolha corporativa, agora
sendo efetivada em classes menos abastadas na realidade brasileira. Poderíamos estar
situados em uma era em que nosso gozo, em forma de dor assim como de desejo, é parte
do valor excedente extraído do trabalho. É isso que será averiguado, através do prisma de
uma pesquisa metodológica, em nosso grupo alvo: os entregadores de aplicativo, o novo
proletariado digital, preso na ilusão da liberdade no trabalho.
Assim, se torna importante lembrar de uma reflexão de Byung-Chul Han sobre
liberdade na contemporaneidade:
A liberdade é a antagonista da coerção. Ser livre significa estar livre de coerções. Ora,
mas essa liberdade, que deveria ser o contrário da coação também produz ela mesma
coerções. Doenças psíquicas, como depressão ou burnout são expressões de uma
profunda crise da liberdade: são sintomas patológicos de que hoje ela se transforma
muitas vezes em coerção. O sujeito do desempenho, que se julga livre, é na realidade
um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem um senhor, explora
voluntariamente a si mesmo. (HAN, 2020)
É assim que Christian Dunker introduz o leitor à edição brasileira dos “Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise” de Theodor W. Adorno. Embora essa frase aparente um
pouco radical, especialmente fora de contexto, aqui Dunker nos introduz a constelação
conceitual de Adorno, que entende a psicologia como elemento crítico, e, portanto, a crítica
igualmente como qualquer outro objeto.
Para entendermos isso, tem-se que levar em conta a psicologia como uma disciplina
oriunda do “despertar” do sofrimento psíquico como condição socialmente compreendida.
Então, é natural indagar sobre a maneira pela qual esse sofrimento é mediado entre
sujeitos, para assim, compreender seu saber como um diagnóstico do tempo. Trata-se,
portanto, de uma situação única, em que a psicologia é um elemento ideológico da
sociedade, mas também pode ser elevada a um estatuto crítico do significado do sofrimento
humano em um dado momento da História.
Levando em conta isso, pode-se entender a disciplina como um campo do saber que
ao mesmo tempo espelha como uma sociedade entende o sofrimento e manifesta os
conflitos e contradições imanentes a mediação desse sofrer. Isto é, se pode entender
sofrimento tanto como uma reprodução dos conflitos sociais quanto às medidas que são
estabelecidas para suprimir esse sofrer, que é o elemento constrangedor que revela os
problemas de nosso tempo.
Não entrando agora nos exatos detalhes da questão ideológica em psicologia, ainda
assim é inevitável a revelação da psicologia como algo eminentemente político. Político não
no sentido de mera gestão do que se tem disponível a fazer, tal como ocorre nos dias de
hoje, mas sim como aquilo que se discute a partir de um horizonte, horizonte esse que visa
ampliar ou materializar aquilo que importa para todos que vivem em civilização. Portanto, a
psicologia é um dos saberes mais importantes na medida em que ela mostra o que
incomoda, o que faz sofrer, aquilo que efetivamente perturba uma população em vigência
das condições de vida atual.
Entendendo esse panorama, pode-se resumir a questão da psicologia tanto como
método de intervenção multidisciplinar quanto saber crítico. O que está sendo aludido aqui
é: a psicologia como corpo de conhecimento que revela o sofrimento, mal-estar e patologia
que necessariamente precisa se manter implícito para perpetuar aquilo que o causa. Da
mesma maneira que em Freud a psique foi entendida como um aparelho que reprime,
recalca ou deforma seus conflitos para se manter de uma dada forma, poder-se-ia dizer o
mesmo sobre qualquer estrutura social vigente, especialmente a atual.
Uma sociedade pode ser analisada como um sistema de normas, valores e regras que
estruturam formas de ação e julgamento em suas aspirações de validade. [...] No
entanto, poderíamos complexificar o cenário, afirmando que tal processualidade de
interação entre fatos e normas seria necessariamente contraditória por operar a partir da
produção contínua de conflitos entre normas explícitas e implícitas. Nenhuma sociedade
tem apenas estruturas normativas explícitas, mas se assenta também em um conjunto
implícito de disposições de conduta e de inflexão das normas enunciadas. Isso nos
levaria a imaginar que uma perspectiva crítica seria aquela capaz de explorar as
contradições no interior do próprio sistema de normas através da explicitação do que
precisa continuar implícita para poder funcionar. (DUNKER, SAFATLE, SILVA JUNIOR;
2018)
ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp,
2015.
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado na era digital, São Paulo:
Boitempo, 2018.
ANTUNES, Ricardo (Org.). Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0, São Paulo:
Boitempo, 2020.
DUNKER, Christian; SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da. Neoliberalismo como
Gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
DUNKER, Christian; SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da. Patologias do social:
arqueologias do sofrimento psíquico, Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
NEIVA, K.M.C. Aspectos teóricos, metodológicos e experiências práticas. São Paulo: Vetor,
2010.
TORRES, Claudio. V.; NEIVA, Elaine. R. (Org.). Psicologia social: principais temas e
vertentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.