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“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo
mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a
imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu
nunca convivi com pessoas ajuizadas”
Nise da Silveira
Existir compreende uma parcela de sofrimento que não se elimina: nosso corpo
se degrada, nossas leis são imperfeitas, a natureza nos impõe reveses de toda ordem. É
isso que Freud compreende, ao longo de sua vasta obra, pelo mal-estar: essa parcela da
existência sempre em falta que não poderemos eliminar e que, portanto, faz parte da
existência humana. Tristeza, solidão, frustração, desconsolo, procrastinação, desânimo,
luto são sofrimentos que fazem parte da sensibilidade do sujeito e que compõe,
necessariamente, uma narrativa, uma história. Diz o psicanalista brasileiro Christian
Dunker (2015, p. 40) que quando articulamos em narrativa uma forma de sofrimento,
nos tornamos imediatamente parte de uma comunidade invisível, daqueles que já
passaram por isso antes de nós e dos que irão passar por isso depois de nós. Portanto, o
sofrimento possui uma articulação histórica e antropológica em seus fundamentos.
A partir de uma leitura do filósofo Nietzsche, a psicanalista Viviane Mosé
(2018) situa o ato de sofrer e a dor como parte de toda ação humana, na medida em que
estes advém do choque que caracteriza a vida como uma eterna expansão e superação de
si mesma. A dor é, portanto, própria da vida, do existir, do ato de fazer escolhas, de
lidar com perdas, erros e com a morte. O que, no entanto, paulatinamente
acompanhamos em nossas sociedades contemporâneas é uma crescente negação e
silenciamento do sofrimento como parte da existência. Isso ocorre, em grande medida,
pelo recobrimento da falta (castração) pela nomeação diagnóstica, padronizando o
sofrimento psíquico e considerando a tristeza como uma alteração química
desapropriada de narrativa histórica. Ou seja, reduz-se questões sociais a fenômenos
puramente biológicos a partir da lógica da doença.
O crescimento da patologização do sofrimento acompanha a necessidade de
medicalização na corrida contra o tempo em um mundo ativo, rápido e performático que
diz respeito ao modo de vida do capitalismo em sua fase neoliberal. Tal como afirmam
os psicanalistas Roberto Calazans e Christiane Matozinho (2021), o sujeito precisa o
mais rápido possível se anestesiar em busca da permanente e ilusória felicidade. Nesse
contexto, os autores questionam: não estariam as doenças mentais em um continuum de
crescimento justamente por estarem remetidas ao discurso que possibilita sua presença?
Na obra Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, Vladmir Safatle, Nelson
da Silva Junior e Christian Dunker (2021, p. 10) compreendem o neoliberalismo como
uma forma de gestão psíquica e de produção de figuras da subjetividade que abrange
determinados padrões de ação e de sofrimento. Dizem eles: “não é mero acaso que a
ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 tenha sido acompanhada pela reformulação
brutal da gramática do sofrimento psíquico através da hegemonia do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”.
Há, portanto, relações profundas entre os experimentos de engenharia social do
neoliberalismo e a reconstrução das estruturas categoriais clínicas. Dizem os autores que
tal reconstrução se expressa, sobretudo, com o apagamento das neuroses, com a
hegemonia da depressão, com a redução da psicose à forma unitária da esquizofrenia,
com a consolidação de transtornos borderline. Somando-se a isso, há uma substituição
da clínica tradicional, que antes restrita ao tratamento de doenças, passa agora a ser
manejada pela lógica do aperfeiçoamento, explorando fármacos destinados ao
sofrimento psíquico com o novo objetivo de potencializar performances no trabalho e na
aprendizagem. A natureza disciplinar do discurso neoliberal passa a se utilizar, assim,
de categorias morais e psicológicas como pressupostos silenciosos da ação econômica.
Desde suas raízes, a base do discurso neoliberal está na moralidade e em uma
ética embasada na ideia de liberdade como uma definição de propriedade de si. Ser
livre, na perspectiva neoliberal, é ser proprietário de si mesmo, alguém que faz as
próprias regras e prevê os próprios riscos. Essa dimensão traz efeitos significativos nos
modos agir e viver, uma vez em que essa estrutura de pensamento e de agenciamento
das relações sociais e afetivas impede qualquer tipo de solidariedade em seu liame. Para
Vladmir Safatle (2021), essa forma de vida degrada a intimidade e a experiência de
sofrimento, posto que as estruturas defensivas do sujeito são fortalecidas pela lógica
concorrencial. Procura-se, a todo custo, destruir o outro e tudo o que parecer ameaçador
à frágil imagem construída de si mesmo, em uma sociedade onde o vazio de referências
revela, igualmente, uma exaltação da imagem seguida pela consequente fragilidade de
simbolização da linguagem como abertura para produção do novo.
A anestesia da capacidade reflexiva e a condição de alienação está na base,
portanto, do funcionamento neoliberal, que visa apresentar soluções impositivas como
as únicas possíveis. A icônica frase pronunciada por Margaret Tatcher, “there is no
alternative”3, quando do avanço do capitalismo neoliberal para dentro das políticas de
Estado ilustra um marco na sustentação da supremacia neoliberal como uma “única
condição possível” às economias mundiais, proliferando esse slogan tal como se
multiplica um sedutor apelo publicitário. Como pensar a educação através desse
discurso totalizante que aniquila qualquer possibilidade de enlace com o outro e do
reconhecimento da diferença? Como pensar a educação e os processos educativos pelo
atravessamento de uma lógica de patologização do sofrimento psíquico?
3
“Não há outra alternativa”, em inglês. Esse é o slogan político que situa a perspectiva da
primeira ministra britânica, ao referir-se que não há alternativa às leis do mercado, ao neoliberalismo e à
globalização, fazendo defesa intransigente das medidas duras de seu governo.
política educacional do país e/ou à falta de qualidade das escolas, que correspondem à
problemas coletivos, por exemplo, podem ser facilmente transformados em uma questão
pessoal, disciplinar e patológica (a atribuição de um transtorno mental acompanhada de
um ou mais medicamentos).
Assim, como propõe pensar Nadja Hermann (2014), a educação e a instituição
escola, profundamente influenciadas pelos dualismos presentes na herança metafísica,
tendem a ver o outro como tudo o que se opõe às idealizações, trazendo para o cotidiano
escolar o peso interpretativo de oposições. Através desse olhar totalizante, vai se
delimitando no interior das instituições e das relações de convívio social quem são os
desviados e os de “rumo certo”, os desadaptados e os adaptados, os desobedientes e os
obedientes, os hiperativos e os “normais”, aqueles que são “dignos” de um futuro, e os
que ficarão pelo caminho por não atingirem um desempenho satisfatório referenciado
pela lógica das competências, da aprendizagem e de discursos meritocráticos.
As autoras Maria da Conceição Passeggi, Maria Helena Abrahão e Christine
Delory-Momberger (2012) enfatizam que a pressão social e, mais especificamente, o
cerceamento produzido pela instituição escola e pela educação diante de uma cultura
normativa que se utiliza de imperativos sociais como ideais de ação imprimem marcas
sócio-históricas indeléveis nos sujeitos, reverberando a introjeção de uma
responsabilidade solitária de iniciativa e motivação. Além disso, ao serem legitimados
como alicerce simbólico do enlace do sujeito com a cultura, tal concepção normativa
demarca descompassos e desajustamentos quando o sujeito se vê desprovido daquilo
que supostamente deveria reconhecer e adquirir aos moldes normativos esperados.
Fazendo frente à lógica da maximização de ganhos de aprendizagem individual,
tão fortemente sustentada pela lógica neoliberal de privatização da vida e
empresariamento de si, os autores Masschelein e Simons (2021), em seu livro Em
defesa da escola: uma questão pública, salientam que a função da escola repousa,
sobretudo, na ideia de formação, compreendendo-a como uma suspenção da certeza do
mundo, tendo o saber associado à dúvida, à pergunta, à crise e à abertura. Assim, para
além da aprendizagem, que pressupõe um percurso de introversão e extensão do mundo,
é função da escola a formação, ou seja, contemplar a crise, a ruptura e a transformação
do sujeito. A transformação passa a ser o próprio sentido da formação, uma vez em que
esta envolve um constante movimento de sair de si mesmo ou até mesmo de transcender
a si, proporcionando um movimento de ir além de seu próprio mundo.
Questionamo-nos, portanto, em que medida é possível produzir experiências
transformadoras no contexto escolar, uma vez em que a lógica das competências e da
patologização da vida impera e se prolifera, também, no discurso da educação?
Compreendemos, para fins de enlaçar a reflexão, que a educação tem um papel
subversivo fundamental frente à lógica biomédica e neoliberal, uma vez em que é
aquela que, como nos lembra Paulo Freire (2019) em sua obra Pedagogia da
Autonomia, tem o dever de manter firme no educando seu gosto pela rebeldia. Rebeldia
é compreendida aqui não como ato de indisciplina, tal como na compreensão metafísica
do desajuste, mas, sim, como ato corajoso de suspender o mundo, isto é, de subverter o
instituído através do ato de arriscar-se, aventurar-se a transpor a realidade tal como ela é
dada, abrindo fendas a alargar o tempo presente, rumo a um futuro em transformação.
REFERÊNCIAS
HERMANN, Nadja. Ética & educação: outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2014.