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ano 23 • maio 2020 • edição 257 • r$ 21,50 • revistacult.com.

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Ética
em
tempos
de
peste
peste
de
tempos
em
Ética
Editora e diretora
responsável Daysi Bregantini Edição extraordinária colaboraram nesta edição
diretora de conteúdo
Fernanda Paola Diretora Aislan Camargo Maciera é doutor em Letras pela USP e membro
de arte Fernanda Ficher Pela primeira vez em 23 anos de existência, do grupo de pesquisa Literatura Italiana Traduzida (USP/UFSC)
Assistente de edição Amanda
Massuela Revisão Bárbara a Revista Cult não será distribuída fisicamente Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor
Prince e Cristina Yamazaki
projeto gráfico
e estará disponível exclusivamente na livre-docente da mesma instituição. Coordena o Laboratório de Pensamento
Político (Pepol/Unicamp) e dirige o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Fernanda Ficher plataforma digital. O mercado editorial, como da Unicamp.
departamento de vocês sabem, passa por transformações há Carla Rodrigues é doutora em Filosofia pela PUC-Rio, professora da UFRJ
marketing Reinaldo Calazans
marketing@revistacult.com.br
muito tempo e a tragédia da pandemia só e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (IFCS/UFRJ)
departamento financeiro
Arthur Chagas financeiro@
ampliou uma dificuldade já imensa. Existe Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, doutor em Psicologia
Experimental pela USP e professor titular da mesma instituição, onde coordena
revistacult.com.br sugestões uma saída que ainda não é visível, mas é o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise.
de pauta redacao@revistacult.
com.br Cartas cartas@ sentida. Existe uma saída porque a gente quer Ernani Chaves é doutor em Filosofia pela USP e professor titular da UFPA.
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da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), é um dos editores
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para anunciar encontrá-la. Nesse período de novas reflexões da revista Estudos Nietzsche (UFES).
fernanda@revistacult.com.br
e tantos mistérios, organizamos um dossiê Frei Betto é frade dominicano e escritor, autor de 68 livros editados no Brasil
CULT – REVISTA BRASILEIRA DE
CULTURA: Praça Santo Agostinho, que reúne pensadores e pensadoras brilhantes, e no exterior. Estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia.
70, 10º andar / Paraíso
São Paulo­‑SP / CEP 01533­‑ 070 enormes, que prepararam artigos originais Ivone Gebara é escritora e teóloga, doutora em Filosofia pela PUC-SP
Tel.:  11 3385 3385 • 11 9 9998 9728
whatsapp sobre uma questão essencial na atualidade: e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovânia, na Bélgica.

revistacult.com.br “ética em tempos de peste”. Marcio Sotelo Felippe é advogado e mestre em Filosofia e Teoria Geral do
cultloja.com.br Direito pela USP. Foi Procurador-Geral do Estado de São Paulo entre 1995 e 2000.
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Os textos partem de várias linhas de pesquisa Pedro Augusto Gravatá Nicoli é doutor em Direito pela UFMG
e professor adjunto da mesma instituição. Membro do corpo permanente
A Revista Cult é uma publicação
que, juntas, compõem um documento de professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.
mensal da Editora Bregantini. para ser lido  hoje e no futuro. É para ser Raphael Luiz de Araújo é doutor em Letras Modernas pela USP e tradutor.
A Cult não se responsabiliza pelas
ideias e conceitos expressos nos consultado e relembrado porque percorre com Regina Stela Corrêa Vieira é doutora em Direito pela USP e professora
artigos assinados. É proibida
a reprodução total ou parcial desta
sabedoria e detalhes precisos a convulsão da Unoesc. Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC-USP)
e do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.
publicação sem prévia autorização. social e ética deste ano que parece inaugurar
As edições antigas da Revista Cult
são vendidas pelo preço de capa o fim do mundo como o conhecemos. Renan Quinalha é advogado, doutor em Relações Internacionais pela
USP e professor da Unifesp. Membro da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/SP
da edição atual.
e presidente do Conselho de Administração do Núcleo de Preservação
Agradeço à generosidade de todos e todas que da Memória Política.

contribuíram com esta edição tão especial. Ruy Braga é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor titular
da USP e chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras
Boa leitura! e Ciências Humanas da mesma instituição.

Silvana de Souza Ramos é doutora em Filosofia pela USP e professora titular


Daysi Bregantini da mesma instituição. Dirige o Grupo de Estudos de Política e Subjetividades (USP)
daysi@revistacult.com.br e edita os Cadernos espinosanos (USP).

Suely Aires é doutora em Filosofia da Psicanálise pela Unicamp e professora


adjunta da UFBA. Membro do Colégio de Psicanálise da Bahia.

Táki Athanássios Cordás é doutor em Medicina pela USP e professor


colaborador do Departamento de Psiquiatria da mesma instituição.
FILIADA À
Tales Ab'Sáber é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor
ISSN 1414707­‑6  nº 257 da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
maio 2020  ano 23
Tarso de Melo é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP.
sumário

6 A revolta de
Albert Camus
62 O despotismo
delivery

16 66
contra a peste do capital
por Raphael Uma por Tarso de Melo “Arbeit
Luiz de Araújo
perspectiva Macht Frei”:
teológica Brasil, 2020

22 Os limites do
feminista
por Ivone Gebara 70 Maquiavel
demoníaco
por Aislan
Camargo Maciera

carisma: ética,
trabalho e
28 74
por Alvaro Bianchi
necropolítica A ética da Cuidado
em surto: da
78
por Ruy Braga
psicanálise
e a peste crise à ética
Desafios à
32
por Pedro Augusto
generalizada democracia Gravatá Nicoli e Regina
A aceleração por Christian Ingo por Renan Quinalha Stela Corrêa Vieira
da história Lenz Dunker
e o vírus veloz
por Tales Ab’Sáber
44 Coreia do Sul, 92 Fragmento
82 A economia
deve esperar

50
Brasil... ou o pior de um diário por Táki Athanássios Cordás
Sobreviver, por Carla Rodrigues e Suely Aires por Silvana
de Souza Ramos
mais uma vez!
por Ernani Chaves
56 Pandemia:
98 A pandemia
e suas
a antítese implicações
entre sociedade éticas
e mercado por Frei Betto
por Marcio Sotelo Felippe
dossiê

A revolta de
Albert Camus E
m Por que ler os clássicos?, Italo Cal‑ inspirada em sua juventude na Argélia, análo‑

contra a peste 
vino afirma que “Um clássico é um ga a sua experiência durante a Ocupação alemã
livro que nunca terminou de dizer na França e nutrida por reflexões presentes em
aquilo que tinha a dizer”. Atual‑ seus principais ensaios filosóficos, O mito de Sí-
mente, vale complementar que alguns são sifo (1942) e O homem revoltado (1951).
mais lidos em certos momentos históricos que A leitura da peste que acomete a cidade
outros. Na França, por exemplo, Paris é uma de Orã durante dez meses permite identificar
festa (1964), de Ernest Hemingway, adquiriu imagens e reflexões que ressoam hoje. Em
um súbito aumento de público após os aten‑ uma cidade sitiada, separados daqueles que
tados terroristas do Bataclan de novembro amam, também os “prisioneiros da peste” vi‑
Diante dos desafios que enfrentamos, o retorno à obra de de 2015. Algo semelhante ocorreu com Notre- veram o exílio em sua própria terra. Nesse sen‑
Camus nos coloca em comunidade para fazer frente a nossa -Dame de Paris (1831), de Victor Hugo, após o tido, a obra pode nos servir de companhia em
condição trágica incêndio na catedral mais famosa do país no momentos de solidão e espera de um futuro
ano passado.  incerto. É sabido que o próprio Camus já ha‑
Com o surto do novo coronavírus, chegou via escrito sobre o sentimento absurdo que a
Raphael Luiz de Araújo a vez de A peste (1947), de Albert Camus, vol‑ separação e o isolamento podem despertar em
tar ao centro das discussões, com o aumento nós. Suas reflexões de O mito de Sísifo indagam
de suas vendas em alguns países nos últimos justamente sobre como reagir ante a nossa an‑
meses. As coincidências temáticas do enredo gústia diante da morte e da indiferença do uni‑
com a atual pandemia, bem como suas refle‑ verso que habitamos. 
xões sobre a condição humana e a resistência Mas tal sentimento não se limita ao plano
ao totalitarismo político, são alguns dos pos‑ existencial da questão. Redigida em parte du‑
síveis fatores que reforçam a adesão atual ao rante os anos em que Camus editou o Combat,
livro. Além de ser uma das grandes obras lite‑ jornal da Resistência Francesa, a obra carrega
rárias do século 20, a crônica sintetiza o legado um plano de fundo histórico-social que permi‑
ético de um escritor famoso por ter conciliado te a construção de analogias com o que ocorria
em muitos aspectos conduta de vida e pensa‑ na época, no combate à “peste marrom” na‑
mento, à maneira de alguns filósofos da Grécia zista. Relida hoje, além de crônica de nossa
Antiga. Aventurando-se pelas vias do romance, insurreição contra a arbitrariedade da morte,
Camus nos oferece uma metonímia da sua obra, ela também remete à luta contra a opressão,

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a injustiça e o autoritarismo que ultrapassam ao flagelo. Seus cadernos contêm registros va‑ uma fé que, mesmo abalada, Paneloux procu‑
seu contexto de publicação. Se o vírus que nos riados, como conversas pitorescas no ônibus, ra sustentar, mas não sem uma angústia que
atinge tem algo de arbitrário, as circunstân‑ a história de um velho asmático que conta o dura até seu último instante, quando adoece e
cias em que nos ameaça depende de atitudes tempo transferindo ervilhas de uma panela morre de “caso duvidoso”, fixando um crucifi‑
humanas. Como pontua Jeanyves Guérin em a outra e até mesmo o curioso caso de um se‑ xo sozinho em seu quarto. 
Albert Camus: littérature et politique, “A metá‑ A peste projeta essa condição nhor que atrai gatos a sua janela para depois Seguindo os passos dos personagens sob a
fora da doença contagiosa mostra a progressão sobre a coletividade e realça escarrar sobre eles.  peste, notamos como se sentem estrangeiros
fulminante do mal”. Cidade mediterrânea, Orã é inicialmen‑ diante de um mundo que não podem com‑
A atual crise global nos força a encarar a importância de te apresentada com calor e movimento, uma preender e ao qual não podem se unir. Lemos
nossa condição diante da morte coletiva e da
negligência de alguns líderes mundiais que
nos recordarmos da morte de suas características é a “dificuldade que
se pode ter para morrer”. Em suas ruas, sua
também como a história de cada um soma-se à
do sofrimento coletivo: “a partir das primeiras
banalizam o sofrimento humano. No momen‑ com respeito e modéstia “aparência, animação e até prazeres pareciam semanas, um sentimento tão individual quan‑
to em que muitos estão fadados ao isolamen‑ comandados pelas necessidades do negócio”. to o da separação de um ente querido se tornou,
to e à inação, enquanto profissionais das áreas Mas ela se transforma à percepção dos conci‑ subitamente, o de todo um povo e, juntamente
tidas como essenciais estão nas ruas, Camus dadãos conforme tornam-se prisioneiros: “O com o medo, o principal sofrimento deste lon‑
nos convida a descobrir o que nos liga ao mun‑ sol da peste apagava todas as cores e escor‑ go tempo de exílio”. Todos os concidadãos, as‑
do e aos seres. Como expresso em um dos raçava qualquer alegria”. Bombardeados por sim, compartilham de algo semelhante ao que
parônimos mais representativos de sua obra, Anuncia-se que medidas precisam ser toma‑ números e estatísticas, eles sentem com mais Camus nomeara como absurdidade da exis‑
em tempos de quarentena trata-se de apren‑ das, mas nesse momento há uma primeira força o exílio em que se encontram sob o sol tência. No primeiro ciclo de obras do escritor
der a ser solitário sem deixar de ser solidário. divergência entre um profissional da saúde e inclemente. Alguns vagam agora pelas ruas sob esse tema, com O estrangeiro, Calígula, O
o posicionamento político da municipalidade. onde “reina um morno torpor” e sofrem com Estado de sítio e O mito de Sísifo, encontramos
A peste absurda Demora-se para reconhecer a peste, para de a distância daqueles que não podem estar tal divórcio entre o indivíduo consciente de sua
A história da onda epidêmica que atinge a ci‑ fato reagir à doença que se espalha.  por perto. Os olhos iluminam seus lugares de condição mortal e o mundo que o cerca e que
dade argelina de Orã ocorre durante dez me‑ A população também tenta seguir sua ro‑ afeto, e a ausência daquilo que era dado por continua, para além de sua morte. 
ses de um ano indeterminado da década de tina. Alguns manifestam incômodo por ter de garantido projeta uma luz como que póstuma A peste projeta essa condição sobre a cole‑
1940. A narrativa é dividida em cinco partes mudar certos hábitos, outros reúnem-se nas sobre as coisas.  tividade e realça a importância de nos recor‑
que retratam seu início, ápice e queda. A se‑ ruas para desfrutar do tempo e dos encontros Alguns personagens encarnam os medos e darmos da morte com respeito e modéstia. De
quência dos acontecimentos segue, assim, enquanto podem. Mas o aumento do número anseios dos que vivem a peste. Além de Tarrou início, “Ninguém aceitara ainda verdadeira‑
uma curva semelhante à de projeções de con‑ de mortos deixa a prefeitura sem alternativas e Rieux, o jornalista Raymond Rambert, de mente a doença. A maior parte era sobretudo
taminados e mortos que tentamos achatar ao e novas medidas são impostas à população. passagem pela cidade, dedica-se a tentar fugir sensível ao que perturbava os seus hábitos ou
redor do mundo neste momento. Ao longo da A cidade cerra seus portões, estabelecimentos para reencontrar sua noiva na França, mas aca‑ atingia os seus interesses. Impacientavam-se,
crônica, também assistimos à história de pes‑ são fechados e um toque de recolher é anun‑ ba desistindo para se reunir às formações sani‑ irritavam-se e esses não são sentimentos que
soas que se isolam em casa, que combatem a ciado. O peso do tempo se faz sentir no tédio tárias. Joseph Grand, o empregado da Câmara se possam contrapor à peste”. Há uma recusa
doença e que morrem aos milhares. dos cidadãos, enquanto “Milhares de rosas que sonha em conseguir se expressar bem, faz a se desprender dos próprios hábitos, a enca‑
Se a princípio o foco de nossa pandemia murchavam nas cestas dos vendedores, ao horas extras para ajudar com as questões admi‑ rar a doença e os óbitos, pois não se enqua‑
foram morcegos, também é um pequeno ma‑ longo das calçadas, e seu perfume adocicado nistrativas que envolvem o combate ao flagelo. dram na rotina dinâmica da cidade. Como a
mífero que anuncia a doença no início, após o flutuava por toda a cidade”. Cottard, que no começo do livro tenta suicidar‑ realidade absurda é desproporcional à razão,
narrador nos apresentar a cidade: ratos saem Conforme avançamos pela linha ascenden‑ -se, acaba por tirar proveito da situação a fim de ela é rechaçada. Os empreendimentos huma‑
aos montes às ruas para morrer e transmitir, te das mortes, os sobrevoos do narrador pintam lucrar com o mercado paralelo.  nos recusam os hospitais e cemitérios lotados,
por meio de suas pulgas, a peste bubônica à com lirismo o vento que varre a cidade ao mes‑ Nesse sentido, o padre militante Paneloux desviam os habitantes da angústia existencial.
população. A primeira vítima fatal com quem mo tempo que o calor e a luz do sol fulminam as é um daqueles que mais expressa as questões Mas a epidemia e nossa atual pandemia
ele depara é um cidadão comum, o zelador ruas e seus habitantes. Monótona, Orã povoa‑ metafísicas colocadas pela epidemia. Em seus impõem a imagem desse abismo da morte que
Michel, que é tratado sem sucesso pelo dou‑ -se com pequenas anedotas. Lemos relatos das sermões, o jesuíta tenta encaixar a peste nos suga milhares ao redor do mundo. Ensinados
tor Bernard Rieux. Em seguida, os casos se anotações do caderno de Jean Tarrou, um via‑ desígnios de Deus, mas também não se livra a progredir por uma vida ideal, com dinheiro,
espalham rapidamente pela cidade. Na linha jante de passagem pela cidade, que desenvol‑ da angústia diante da calamidade, potenciali‑ uma carreira bem-sucedida e uma família, ve‑
de frente do combate à doença, ele então se ve laços de amizade com Rieux e logo passa a zada na trágica cena da morte de uma crian‑ mos tudo isso igualmente fadado a perecer: “A
reúne com o prefeito e o médico Jean Castel. ajudar com as medidas profiláticas no combate ça – o filho do juiz da cidade. O flagelo exige peste suprimira os juízos de valor”, Camus

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nos recorda. Para alguns, tal equivalência no jornalismo. Torna-se, em 1943, editor do
moral de todas as ações pode conduzir ao jornal clandestino Combat – no qual um tre‑
niilismo, dado que uma das consequências cho de A peste é publicado – e circula com um Se em O estrangeiro lemos uma revolta
da revelação do absurdo é a supressão do sen‑ documento falso, sob o nome de Albert Mathé.
tido das coisas. Mas ele propõe também que A palavra “peste” figura nos cadernos do negativa, que se materializou no homicídio
a falta de sentido permite ressignificar nossa
própria vida. Em O mito de Sísifo, inspirado
escritor desde 1940, mas uma das notas em‑
blemáticas desses anos é a de novembro de
de um homem na praia, A peste permite
no amor fati nietzscheiano, ele nos ensina a 1942, quando escreve “Como ratos!”, referin‑ a reação positiva ao absurdo
responder a isso de forma otimista: “Tratava-se, do-se à invasão da zona livre, no sul da França,
anteriormente, de saber se a vida devia ter um pelo Exército alemão. Comparar com ratos o
sentido para ser vivida. Pelo contrário, parece‑ que era chamado de “peste marrom” trans‑
-me aqui ela será melhor vivida quanto menos figura os roedores em porta-vozes do flagelo.
sentido tiver. Viver uma experiência, um desti‑ Em 1942, Camus inicia a redação da primei‑ passa sua própria solidão e leva sua revolta a ça, esconde os gânglios, o pus e o vômito do
no, é aceitá-lo plenamente”.  ra versão enquanto passa uma temporada no transcender horizontalmente, isto é, em dire‑ paciente em agonia. Para cá dessa cortina, a
Panelier, ao sul de Lyon. Termina sua redação ção ao outro. Há uma “superação do indivíduo “abstração” – palavra-chave para o pensamen‑
Alvos da revolta coletiva no final do ano, mas, insatisfeito, parte para para um bem doravante comum”. to de Camus nesse momento – tenta preservar
Camus complementa o raciocínio absurdo com uma segunda, que vai ser redigida em Paris, Se nos voltamos para algumas das críticas uma realidade paralela, onde tudo está bem.
a constatação de que a revolta seria uma das quando se torna leitor na editora Gallimard. sociais presentes em A peste, é possível identi‑ No campo da disputa das narrativas, a abs‑
únicas escolhas filosóficas coerentes. Se em O O escritor menciona “um equilíbrio difícil de ficar alvos para tal revolta. Na primeira parte tração também atenta contra o diálogo. Assim
estrangeiro lemos uma revolta negativa, que se encontrar” ao se expressar sobre o árduo pro‑ do livro, as autoridades são incrédulas dian‑ como o vírus entra nas células humanas, se
materializou no homicídio de um homem na cesso de redação, que ocorre agora em inter‑ te do começo do surto. Demora-se para agir, reproduz e as implode, o mecanismo discur‑
praia, A peste permite a reação positiva ao ab‑ valos, ao longo dos quais são feitas alterações como se fossem necessários mais corpos infla‑ sivo que nega a gravidade da pandemia altera
surdo, que se concretiza em uma ação a favor importantes, como o abandono de seu perso‑ mados pela peste para dar combustível à ação o léxico das palavras, impossibilitando os diá‑
da coletividade contra a injustiça, o morticínio, nagem latinista, Stephan.  política. Ao perceber do que realmente se trata, logos e infectando-nos com a doença e com o
o autoritarismo. Entre determinações naturais Durante esse período e até o início dos anos o doutor Castel diz a Rieux: “Você sabe o que ódio mútuo. Ainda hoje, a luta de todos contra
e determinações sociais, a epidemia exige um 1950, Camus desenvolve o que se tornou seu vão responder-nos [...] Ela desapareceu dos paí‑ a morte transforma-se em debate sobre esco‑
ir e vir constante do indivíduo para o coletivo. ciclo da revolta, com A peste, as peças O Estado ses temperados há muitos anos”. Por essa mes‑ lher entre vida e economia, o uso incerto da hi‑
Em 1955, Camus afirma a Roland Barthes em de sítio e Os justos e o ensaio O homem revolta- ma via, há também por parte dos discursos de droxicloroquina se torna garantia de cura que
uma carta: “Comparada a O estrangeiro, A pes- do. Ele também publica em jornais os artigos poder uma negação em nomear as coisas como permite o retorno à normalidade, a obrigato‑
te marca, sem discussão possível, a passagem políticos que serão reunidos em suas Actuelles são. Sacrifica-se “muito ao desejo de não in‑ riedade de o Estado intervir em momentos de
de uma atitude de revolta solitária ao reco‑ I, como a série “Nem vítimas nem carrascos”. quietar a opinião pública” e preferem chamar calamidade torna-se filantropia. Camus nos
nhecimento de uma comunidade cujas lutas Do ponto de vista filosófico, o pensamento que a peste de “febre perniciosa”. No momento, alerta em “O diálogo e o vocabulário”, texto
devemos compartilhar. Se há evolução de O sustenta esses textos pode ser encontrado so‑ Rieux pouco se importa com sua nomeação, sobre a polêmica de O homem revoltado, que
estrangeiro para A peste, ela se dá no sentido da bretudo no ensaio central desse ciclo.  pois acha mais importante agir com rapidez, “em suma, a tática tem por meta preencher as
solidariedade e da participação”.  Em O homem revoltado, Camus define a porém tal questão retorna páginas adiante. palavras mecanicamente com um conteúdo
Pelo contexto de sua redação e publicação, revolta como um “não” do indivíduo contra Camus faz Jean Tarrou expressar uma críti‑ oposto ao que elas detinham até ali”. O léxico
seria difícil não a ler primeiramente como aquele que o oprime. Tal negação também é a ca que já havia colocado em carta a seu amigo alterado faz com que falemos línguas distin‑
uma crônica da Resistência Francesa. En‑ tomada de consciência de um “sim” que legi‑ e leitor Louis Guilloux: um dos grandes males tas, então o elo se rompe, como o escritor tam‑
quanto Camus desenvolve a ideia da epide‑ tima a existência de uma fronteira: “Aparen‑ do mundo é a falta de uma linguagem clara. bém registra em seu caderno no mesmo ano
mia, a França é derrotada pelos alemães no temente negativa, já que nada cria, a revolta é Ao se servir de etiquetas eufemísticas para da publicação de A peste: “A polêmica – como
campo de batalha, o exército de Hitler avança profundamente positiva, porque revela aquilo não dar à doença seu nome certo, o governo elemento da abstração. Cada vez que decidem
sobre o território e instala-se a República de que no homem sempre deve ser defendido”. transmite o vírus da ignorância a sua popula‑ considerar um homem como inimigo, ele se
Vichy. Camus chegara a Paris no início da dé‑ Quando um escravizado volta-se contra seu ção, o que a conduz à morte. Entre os hospitais, torna abstrato. É afastado para longe. Não se
cada de 1940. Tenta se engajar para lutar com opressor, ele reconhece que existem valores os cemitérios lotados e aqueles que ainda não quer mais saber se tem um riso irradiante. Ele
o Exército francês, mas não é aceito por conta aos quais tem direito e pelos quais vale a pena foram diretamente atingidos pela doença, o se tornou uma silhueta”. Os espaços de diálo‑
da tuberculose, então, como já fizera anterior‑ lutar. Por arriscar a própria vida em nome des‑ discurso que abstrai a fatalidade e o sofrimen‑ go são ocupados por monólogos que qualquer
mente na Argélia, concentra sua ação política ses valores, aceitando morrer por eles, ultra‑ to interpõe-se como uma cortina de fuma‑ robô de Twitter pode sustentar.

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dossiê

Se o outro e seu discurso são abstraídos, Jeanyves Guérin, nesse sentido, A peste já era alegórica, as metáforas do escritor retornam heróis. Nesse sentido, a “medida”, palavra re‑
perde-se acesso ao conhecimento também so‑ “uma forma discreta de contestar toda uma li‑ com força e, com isso, nos convidam a refletir petida em A peste – visto que é preciso a todo
bre as coisas. Tal obscuridade estende-se, por teratura resistencialista, gaulista e sobretudo um pouco mais sobre o seu entendimento de instante tomar “medidas” contra o flagelo – é
exemplo, à incerteza quanto ao número real comunista do pós-guerra”.  uma revolta “sob medida”. empregada junto à deusa nessas prescrições
de infectados e de mortos hoje. A ignorância Consequentemente, o local e o momento para combater nossa desmesura: “De uma for‑
também faz parte do flagelo. No jogo de luz e de circulação desse discurso não favorecem Revolta sob medida ma geral, observem a medida que é a primeira
sombra que atravessa A peste, Camus reitera totalmente a adesão a ele. O clero revolucio‑ No último capítulo de O homem revoltado, Ca‑ inimiga da peste e a regra natural do homem.
a importância da primeira para combater a nário compartilha parte de suas críticas com a mus evoca a medida (mesure) como elemento Nêmesis não era em nada, como lhes ensina‑
ignorância e suas consequências niilistas: “O intelligentsia parisiense. Embora A peste tenha constitutivo da revolta: “A medida não é o con‑ ram nas escolas, a deusa da vingança, mas a da
mal que existe no mundo provém quase sem‑ sido um sucesso de vendas, com a recepção de trário da revolta. A revolta é a medida, é ela medida. E seus golpes terríveis só atingiam os
pre da ignorância, e a boa vontade, se não for prêmios e mais de 96 mil exemplares vendi‑ quem exige, quem a defende e recria através homens quando eles se encontravam lançados
esclarecida, pode causar tantos danos quanto dos em três meses, muitos intelectuais acham da história e de seus distúrbios”. Após criticar na desordem e no desequilíbrio. A peste vem
a maldade”. Ante tais males, quando escreve suas ideias ingênuas, como Simone de Beau‑ ímpetos de insurreição que culminariam em do excesso. Ela é o próprio excesso, e não pode
sobre a revolta, destaca a necessidade de um voir, Jean-Paul Sartre, os surrealistas como niilismo, ele aponta para a necessidade de um se conter”. 
limite para que ela não se autodestrua. O com‑ André Breton, e mais tarde Roland Barthes. valor mediador que equilibraria tais ímpetos.  A modéstia apresenta-se, então, como nos‑
bate à negligência, à ignorância e à abstração Em A força das coisas (1963), Beauvoir escreve A deusa que ilustraria a medida a que o sa aliada no combate à peste. Na crônica, per‑
demanda coragem, mas também modéstia. que “assimilar a Ocupação a um flagelo natu‑ escritor se refere é Nêmesis, conhecida por cebemos que, em vez de um heroísmo solitá‑
Embora em seu senso comum a palavra “re‑ ral era fugir de novo da História e de seus ver‑ ser aquela que, a fim de devolver a ordem ao rio, a população constitui um único organismo.
volta” possa nos remeter a uma insurreição de‑ dadeiros problemas”. Sartre vai expressar tal cosmo, golpeava os que cometiam a desme‑ Mesmo com a existência das formações sani‑
senfreada, a movimentos que estão nas bases crítica à “frivolidade” de Camus por ignorar as sura (hýbris). De um ponto de vista filosófico, tárias, o narrador se recusa a adquirir um tom
das revoluções, com saques e assassinatos de infraestruturas históricas na querela da revis‑ Camus recupera Heráclito para criticar o fun‑ heroico ou a eleger salvadores. A luta, como
políticos, em O homem revoltado Camus reflete ta Les temps modernes, de 1952, que culmina na damento da ação histórica sob um vertiginoso uma tarefa de Sísifo, recomeça a cada dia e
antes sobre a coerência entre os princípios que ruptura pública da amizade entre eles. Barthes, movimento dialético contínuo: “A dialética não termina em grandes vitórias. Pelo contrá‑
sustentam o revoltado e a expressão de sua re‑ em 1955, estima, em nome do materialismo histórica, por exemplo, não continua indefini‑ rio, trata-se sempre de diminuir a amplitude
volta. O escritor concentra-se na manifestação dialético, que Camus falha ao tentar se colocar damente em busca de um valor desconhecido. da derrota. O narrador Rieux defende antes a
e nos motivos de tal contradição em persona‑ fora da história. Ela gira em torno do limite, seu valor primeiro. objetividade e a honestidade no combate ao
gens filosóficos, literários e políticos, sobretu‑ Diante de tais críticas e de sua atual releitu‑ Heráclito, inventor do devir, fixava entretanto flagelo – uma objetividade por vezes tão fria
do a partir de 1789, passando por nomes como ra, separada de sua representação unicamente um marco para esse processo contínuo. Esse quanto a própria abstração que enfrenta. Mes‑
Robespierre, Marquês de Sade, Charles Bau‑ limite era simbolizado por Nêmesis, deusa mo ao se referir às formações sanitárias, seu
delaire, Karl Marx e Friedrich Nietzsche. da medida, fatal para os desmedidos. Uma testemunho é sóbrio. A decisão de lutar contra
Como mencionado anteriormente, um dos reflexão que quisesse levar em conta as con‑ a morte é algo lógico e urgente, não extraor‑
alvos de Camus é o niilismo, mas não apenas o tradições contemporâneas da revolta deveria dinário: “os que se dedicaram às formações
mais famoso, de Bazárov, de Pais e filhos (1862), procurar a sua inspiração nesta deusa”. sanitárias não tiveram um mérito tão grande
e sim o do político autoritário ou do revolucio‑ Curiosamente, a primeira vez que a deu‑ em fazê-lo, pois sabiam que era a única coisa
nário que, em nome de uma ideia, nega toda a Na crônica, percebemos sa apareceu sob a pena do escritor foi em um a fazer, e não se decidir a fazê-lo é que teria
vida ao seu redor. Ele aponta para uma revolta texto que antecipa em seis anos e sintetiza a sido incrível”.
que sustente princípios humanos não só em que, em vez de um heroísmo orientação ética de A peste. Pela atualidade, Ao fim da crônica, a queda das estatísticas
oposição ao que chamaria “Terrorismo Irra‑
cional de Estado do Nazismo”, mas também
solitário, a população “Exortação aos médicos da peste” foi recupe‑
rado agora em abril pela coleção Tracts, da
não é coroada por uma cena épica, mas sim‑
plesmente por dois personagens nadando lado
ao “Terrorismo Racional” da União Soviéti‑ constitui um único organismo editora francesa Gallimard. A voz que emite a lado, reconhecendo o elo entre si e o Medi‑
ca. Vale observar que, com o fim da guerra, o as prescrições não se identifica, mas poderia terrâneo. É como se olhassem para algo que
escritor presencia uma euforia de parte da es‑ ser de Stephan, o latinista abandonado pelo a cidade não conseguia ver, como o narrador
querda ortodoxa francesa, que acreditava na escritor ao longo do processo de escrita, como declara no início: “Pode-se apenas lamentar
Revolução. Em 1946, o Partido Comunista é o mencionado previamente. Com menção à que tenha sido construída de costas para essa
maior partido da França, com 400 mil asso‑ peste dórica narrada por Tucídides, orienta-se baía e que, portanto, seja impossível ver o mar.
ciados, e havia formado um braço importante aos médicos a mesma prudência que os coros É sempre preciso ir procurá-lo”. Conforme
da Resistência Francesa. Então, como pontua das tragédias clássicas recomendavam a seus avançamos para o desfecho, referências ao

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dossiê

amor, seja entre amigos, seja entre amantes, Proust, Une épidémie de peste en Mésopotamie en peste”. Assim como o novo coronavírus, ela é
expõem esse sentimento que se encontra na 1867, do primeiro médico do xá da Pérsia, o dou‑ um inimigo monótono, que exige paciência,
base da revolta. Embora o escritor reconheça tor Tholozan. Para referências médicas, Camus mas também persistência e afinco. Tanto para
que os valores de uma insurreição possam va‑ recorre ao chefe do departamento de Higiene os que estão na linha de frente do combate
riar, haverá no fundo imagens de afeto, pois da Universidade de Paris, doutor Bourges, e Em um momento de mentiras, quanto para quem segue a quarentena, acos‑
“Há sempre um momento em que nos cansa‑ a sua obra La Peste: épidémiologie, bactériologie, tumar-se com o sofrimento e a morte pode ser
mos das prisões, do trabalho e da coragem prophylaxie, que complementa com Précis de negligências e negacionismo, uma armadilha. A peste não tolera dispersão
para reclamar o rosto de uma pessoa e o cora‑ pathologie médicale, de Besançon e Philibert. 
ção maravilhado de ternura”.  Esse retorno às pestes do passado con‑
Camus nos alerta para as nem ignorância.
O “novo” coronavírus é uma antiga novi‑
Assim, ainda que deusa da medida, Nême‑ tribui para reiterar o aspecto cíclico das epi‑ armadilhas do discurso político dade. O filósofo Alain Badiou destaca, no ar‑
sis é a inspiração para o terceiro ciclo de obras, demias na história da humanidade e expor tigo intitulado “Sobre a situação epidêmica”,
que seria o do amor, com o romance O primei- nossas diferentes reações ao longo do tempo. que, longe de ser algo novo e incrível, estamos
ro homem, a peça Don Faust e o ensaio “O mito Diante da calamidade social em que se encon‑ diante de uma consequência da nossa própria
de Nêmesis”. Esse projeto foi interrompido travam os japoneses de Fukushima em 2010, organização social: “sabemos que o mercado
pela morte precoce do escritor em janeiro de a crônica teve um aumento de vendas no Ja‑ mundial, em conjunto com a existência de
1960, em um acidente de carro no sul da Fran‑ pão. Em recente artigo para a Folha de S.Paulo, Assim, na crônica de Orã encontramos o disciplina global em relação às vacinas ne‑
ça, quando viajava de Lourmarin para Paris. publicado no início de abril, Silviano Santiago exílio e o absurdo, tema de seu primeiro ciclo cessárias, produz inevitavelmente sérias e
Nas imagens de afeto de sua vida, como a sim‑ expõe o potencial produtivo da releitura de A de obras (1942-44), quando a cidade mergulha desastrosas epidemias”. Ele nos lembra que
plicidade de sua mãe, a infância pobre em Ar‑ peste com estudantes universitários nos anos nos meses sombrios de peste: “o mar próximo essa é na verdade a nossa segunda Sars do
gel, as brincadeiras nas praias mediterrâneas 1960, nos Estados Unidos. E, enfim, durante a estava interditado e o corpo já não tinha direi‑ século, a síndrome respiratória aguda grave.
e as mulheres que amou, habitaria a chama à ditadura no Brasil e diante das recentes apolo‑ to às suas alegrias”. Também acompanhamos Quando a primeira foi descoberta em 2003,
qual ele retorna ao longo de sua obra. A me‑ gias a regimes pouco democráticos, e conside‑ aqueles que lutam diariamente para resistir à as pesquisas preventivas sobre a doença não
mória do amor na base da revolta a sustenta rando toda a desumanidade que parte da atual aniquilação do flagelo, objeto de reflexão do foram levadas adiante como deveriam. Assim
e a controla para que não se torne puro ódio.  cacocracia que governa o país, poderíamos segundo ciclo (1947-51). E nos interlúdios de também ocorre com outras doenças, como a
Embora os escritos do segundo ciclo de Ca‑ recuperar as reflexões não só de A peste, mas desejo e afeto entre os personagens, encontra‑ aids, o ebola e a Mers (síndrome respiratória
mus tenham lhe rendido críticas – como a de de outras obras antitotalitárias – como Calígu- -se uma parcela do amor, que seria desenvolvi‑ do Oriente Médio), que não recebem a devi‑
pregar uma “revolta castrada” ou uma “moral la, Cartas a um amigo alemão, Estado de sítio –, do em seu terceiro projeto. da atenção das autoridades responsáveis. No
da cruz vermelha” –, além de etiquetas como na medida em que expõem a face absurda de Apesar de a leitura de obras canônicas po‑ Brasil, estamos diante de um desprezo ainda
“santo laico”, A peste permanece hoje como lu‑ certos discursos e condutas políticas. der configurar uma finalidade em si, o resgate mais grave, como ilustra o exemplo do jovem
gar para outras analogias que permitem circuns‑ da crônica permite ampliar nossa percepção cientista Ikaro Alves de Andrade, doutorando
crevê-la em diferentes cenários. A própria obra Ética para tempos de peste sobre o drama que a humanidade atravessa da Universidade de Brasília (UnB), que vinha
é construída sobre várias experiências de epide‑ “Chama-se de clássico um livro que se confi‑ neste momento. Calvino também afirma que, estudando o vírus e perdeu sua bolsa. 
mias ao longo da história, em um árduo proces‑ gura como equivalente do universo, à seme‑ seja por contraste, seja nos reafirmando, os Diante dos desafios que enfrentamos, o
so de quase cinco anos: “O que escrevo sobre a lhança dos antigos talismãs”, afirma Calvino. clássicos nos definem. Recorremos a eles para retorno à obra de Camus nos coloca em co‑
peste não é documental, claro, mas reuni uma Se A peste tem o potencial de concentrar um aprender sobre quem somos e para buscar re‑ munidade para fazer frente a nossa condição
documentação bastante séria, histórica e médi‑ macrocosmo em seu microcosmo, ela oferece ferenciais. É como se essas obras tivessem um trágica. Também permite redescobrir a im‑
ca, porque é possível encontrar nela ‘pretextos’”, sobretudo um panorama da obra camusiana. potencial que Mircea Eliade, em O sagrado e portância de preservar princípios humanos
declara em carta a Jean Grenier. Como demons‑ Isso porque a evolução de seus escritos não o profano, encontra no mito: refixar modelos no seio de toda sociedade. Em um momento
tra Marie-Thérèse Blondeau em notas na edição se dá em linha reta, mas em forma de espiral: para momentos de desorientação moral e nos de mentiras, negligências e negacionismo, ele
francesa da Pléiade, Camus estudou sobre a pes‑ Camus revisita e ultrapassa suas primeiras fazer participar de um momento em que se nos alerta para as armadilhas do discurso po‑
te que atingiu a Pádova dos Carrara; remontou imagens e reflexões. Quem não reparou, no manifestou a verdade sobre a humanidade. lítico. Enfim, reencontramos em sua leitura,
ao flagelo em Milão; leu sobre a epidemia na início de A peste, a história de um homem que Daí seu potencial ontológico. por um lado, a memória do sofrimento huma‑
Mesopotâmia; pesquisou sobre epidemias havia sido condenado à morte por ter matado Rieux afirma com fervor que o flagelo, no causado pelos nossos excessos através da
na China e na Argélia. Em seus manuscritos, um árabe? (O estrangeiro). Ou quem não leu O como todos os males do mundo, “Pode servir história e, por outro, a imaginação necessária
encontramos referências a títulos como Mémoi- estrangeiro e percebeu que a anedota lida por para engrandecer alguns. No entanto, quando para enxergar o vírus invisível que nos ronda,
re sur la peste en Algérie, de Adrien Berbrugger, Meursault na prisão é a base do roteiro da peça se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso num momento em que qualquer distração
La défense de l’Europe contre la peste, de Adrien O mal-entendido? ser louco, cego ou covarde para se resignar à pode ser fatal.

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dossiê

Uma
perspectiva
teológica
feminista E
m tempos de coronavírus, ficamos pectiva que me atrevo a escrever algumas in‑
nos perguntando como uma frágil tuições a partir da teologia cristã – cujos con‑
força invisível em contínua expan‑ ceitos, crenças e expressões religiosas atuais
são pelo mundo pode mudar nos‑ posso de certa forma explicitar, visto que é a
sos comportamentos e nos ameaçar de mor‑ que melhor conheço. As crenças religiosas
te em meio a sofrimentos físicos e psíquicos se multiplicam hoje quase como o vírus. Bas‑
cada dia maiores. Como um vírus pode mudar ta buscá-las na internet e no WhatsApp para
a economia, a pesquisa científica, a arte, a li‑ ver como empunharam suas armas para de‑
teratura, as religiões, os hábitos, as relações fender-se contra o vírus causador de tantos
Mostrar o inferno e prever que ele terá em breve chamas
entre os governos e as relações entre pessoas distúrbios. Ele esvaziou templos, encontros
maiores não significa necessariamente ajudar as inclusive na própria família? Como um vírus espirituais oficiais, cursos e outras atividades.
pessoas que já vivem em outros infernos a saírem deles pode provocar tanto medo de nos aproximar‑ Porém, os fiéis criam devoções, correntes má‑
mos das pessoas e das coisas habituais e nos gicas, orações das mais diversas, cantos reli‑
fazer sentirmos mais ameaçadas e inseguras giosos inspirados no vírus, novenas, bênçãos
Ivone Gebara do que a habitual violência de nosso mundo? que enviam para todos os lados esperando tal‑
Impressiona-nos ver esse desconhecido cujos vez mover o coração de Deus. De repente a in‑
efeitos gregários nefastos sentimos, ver sua ternet passa a ser também um veículo “usado”
forma “cientificamente desenhada”, aumen‑ por Deus para continuar Sua ação em meio ao
tada milhares de vezes e mostrada nas telas rebanho. Tudo isso nos convida a pensar!
da TV como se fosse um verme da Terra em Reflito fora do eixo oficial e por isso me per‑
forma de coroa. De fato, ele é da Terra como mito elucubrações variadas. Sem dúvida minha
nós, e de certa forma nos escolheu como lugar perspectiva não vem corroborada pela teologia
para abrigar-se – sem que saibamos as razões. institucional, ou seja, pelas autoridades das Igre‑
Muitos especialistas debruçam-se hoje jas cristãs que guardam para si a prerrogativa de
para compreender algo desse fenômeno que serem as mais autorizadas intérpretes da tradi‑
convida ao pensamento e à ação. É nessa pers‑ ção bíblica e, através dela, da vontade de Deus.

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dossiê

Constato que “nesse tempo de peste” as Essa situação trágica me fez lembrar da gêneros, para além das etnias, para além das
Igrejas cristãs estão preocupadas em oferecer história de Jó. Uma novela bíblica que faz par‑ orientações sexuais, para além das religiões
serviços sobretudo de consolo e ajuda a seus te da literatura sapiencial. Conta a vida de um – apesar de se temer sua propagação maior
fiéis. Pelos meios de comunicação, tentam homem rico e justo que se vê de súbito atingi‑ nos grupos mais vulneráveis. O que estou su‑
manter a ligação com eles mediante liturgias,
celebrações, orações e outras formas de pre‑
do por inúmeros sofrimentos corporais, pela
perda de seus bens, dos filhos, filhas e esposa.
A riqueza material blinhando é a força desse vírus, capaz de mo‑
dificar os quadros hierárquicos e excludentes
sença virtual. Têm igualmente oferecido su‑ Nessa via dolorosa ele tenta de diferentes ma‑ promove a vida de das relações humanas, capaz de despertar
porte às populações de rua e a muitas pessoas neiras provar a Deus e a seus amigos o quanto iniciativas de ajuda mútua, mudanças políti‑
que não conseguem manter suas necessidades é justo, fiel servidor do Altíssimo, porém injus‑
alguns em detrimento cas e econômicas mundiais, redesenhando a
básicas alimentares e de higiene. Não me ate‑ tiçado por Deus. Num crescendo de tragédias e da vida da maioria. geopolítica mundial.
rei a esses gestos humanitários, mas gostaria defesas que Jó faz de si mesmo a alguns amigos, Entretanto, o contágio do vírus não conduz
de pensar alguns pontos em outra direção que a novela vai mostrar que não é por ser justa que E o desprezo “do pobre, necessariamente à solidariedade com quem é
julgo importantes para o contexto atual. uma pessoa está isenta de sofrimentos e das do órfão e da viúva” mais pobre, pelo fato de acreditarmos que es‑
Tomo a tradição bíblica como um conjun‑ grandes perdas provocadas pela morte. A expli‑ sas pessoas têm os mesmos direitos que as ricas,
to de textos históricos e literários importantes, citação desse drama humano se dá num diálo‑ não produz contágio mas é uma solidariedade imediata por causa do
uma tradição que marcou muitos povos desde
a Antiguidade até os dias de hoje. Extraio dela
go com Deus, que desafiado pelo Demônio ten‑
ta provar, por meio dos sofrimentos infligidos a
mortal, mas separação medo do número de pobres que seriam atingi‑
dos/as e da ameaça que isso representa aos/às
aquilo que considero próximo do bem comum, Jó, sua fidelidade para com Ele, seu Deus. Deus real de classes “coitados/as” das pessoas ricas. Embora haja
da boa convivência, do respeito possível, do cui‑ e o Demônio aparecem como as duas faces de muitos gestos de ajuda mútua em edifícios e
dado de uns com os outros e com o conjunto da uma mesma moeda – e é isso que nos impres‑ em bairros populares, há como uma espécie de
vida do planeta neste momento. Seria mais um siona, porque sempre os separamos como dois película protetora que nos torna até certo pon‑
texto de sabedoria que um texto contendo uma princípios que se opõem. Agora, parece que to invulneráveis no mais íntimo de nós. É como
“revelação divina” provinda dos céus. Isso por‑ reafirmamos sua proximidade e a necessidade se a ajuda dos governos não fosse por justiça e
que tomo a etimologia latina da palavra religião de um para que o outro exista em nós e no mun‑ direito, mas apenas para evitar um mal maior
(religare = religação) como aposta na necessida‑ do. O novo coronavírus, que chegou sem ser es‑ que tornaria o país insustentável.
de de segurar as mãos uns/umas dos/as outros/ perado, provoca dor e morte, mas também uma A televisão, a internet e os jornais mos‑
as para viver de outro jeito. Assim, Deus deixa consciência da necessidade de outras relações viventes. A novela, porém, nos deixa numa tram-nos diariamente horrores causados pelo
de existir como ser em si mesmo, impondo Sua entre nós e com o planeta. perplexidade ímpar porque tem um final feliz, vírus em diversas partes do mundo. Os meios
poderosa vontade, para se tornar o nome da “Havia um homem na terra de Hus chama‑ no qual tudo é recuperado. Certamente o final de comunicação nos invadem, dando primazia
força em nós e no planeta, capaz de tirar-nos de do Jó: era um homem íntegro e reto, que temia provém de outro tempo e de outros/as autores/ absoluta ao número de vítimas do vírus, con‑
nosso individualismo, do desejo de dominação a Deus e se afastava do mal. Nasceram-lhe as. Mas a ideia é que nem Deus pode evitar os tabilizando estatisticamente as atuais e as pos‑
de uns/umas pelos/as outros/as, da insensibili‑ sete filhos e três filhas. Possuía também sete sofrimentos, porque a vida os exige, mais ou síveis próximas vítimas em todas as partes do
dade diante da dor alheia, do esquecimento dos mil ovelhas, três mil camelos [...]” (Jó, 1, 1 a 3). menos, dependendo dos rumos que tomar. mundo. Esse excesso de informações na maio‑
andarilhos, que hoje constituem uma multidão A história segue anunciando de repente Sem dúvida o flagelo atual do coronavírus, ria das vezes não cria solidariedade, mas um
em busca de um espaço para viver. a perda de todos os bens, depois a morte das para além das tentativas de compreendermos “salve-se quem puder” e muito medo de que
De repente quem faz o papel de acordar‑ filhas e filhos e da esposa de Jó. Ele mesmo é por que está acontecendo neste momento de estejamos vulneráveis à enfermidade. Para se
-nos para nossa “boa” humanidade comum, acometido por uma violenta lepra que vai co‑ nossa história comum, está nos convidando contrapor ao nosso egoísmo imediato, as cenas
para a terra que somos e para a Terra na qual mendo todo seu corpo... Em um instante tudo a uma solidariedade que nunca se viu, por de distribuição de alimentos a quem mora na
habitamos é um vírus insignificante. Insigni‑ parecia normal, e em outro tudo ficou confuso exemplo, entre pessoas ricas e pobres. A ri‑ rua e às pessoas carentes das comunidades pa‑
ficante, porém com uma força de contágio e desarmônico! queza material promove a vida de alguns em recem ter a função de nos lembrar que não so‑
impressionante; insignificante, porém univer‑ Então, “Jó se levantou, rasgou seu manto, detrimento da vida da maioria. E o desprezo mos tão maus quanto parecemos ser... Talvez
salmente presente, espalhando e causando rapou sua cabeça, caiu por terra, inclinou-se “do pobre, do órfão e da viúva” não produz con‑ eu esteja sendo injusta com algumas pessoas,
terrores, temores e lágrimas. Insignificante, no chão e disse: Nu saí do ventre de minha tágio mortal, mas separação real de classes. No mas é o que me ocorre como reflexão. Mostrar
porém capaz de interromper o curso ordiná‑ mãe e nu voltarei para lá” (Jó 1, 20). É como entanto, embora esse vírus possa revelar privi‑ o inferno e prever que ele terá em breve cha‑
rio da vida ao qual nos havíamos habituado, se ele se rendesse à perda de tudo, porém sem légios maiores no cuidado das pessoas mais ri‑ mas maiores não significa, à primeira vista,
considerando-nos bons/boas e até melhores deixar de reafirmar que era um justo sofredor cas, que parecem ter sido as primeiras atingidas, ajudar as pessoas que já vivem em muitos ou‑
do que outras pessoas. e que o sofrimento era a condição dos seres ele está para além das classes, para além dos tros infernos a saírem deles. Entretanto, essa

18 19
dossiê

estamos tentando fazer tudo isso e nos prote‑ pois o vírus Deus Vida achou que não estava
gendo do contágio! Talvez. Mas quem provocou bom para a Terra e a torre caiu.
tudo isso agora? Um vírus... Só um vírus. O que Não há uma única lição religiosa ou teoló‑
ele está nos dizendo para além da proteção à gica a sublinhar e uma única ação a tomar em
qual temos que nos sujeitar para evitá-lo? tempos de peste. Que cada “mortal” humano
O fato é que agora não somos apenas No fundo, desde o início de minha refle‑ ouça com seus ouvidos e sinta com seu cora‑
espectadores/as das calamidades que nos xão estava com a tentação de afirmar a seme‑ ção, discuta com outros/as, e que juntos/as
lhança entre a imagem de Deus em tudo, para tomemos algumas decisões para que a vida
mostram nas telas sobre povos distantes; além e no bem e no mal, e o símbolo do co‑ reequilibre suas forças em nós. Isso pode ser
somos vítimas ou possíveis vítimas do vírus ronavírus, proveniente – como nós – da Terra.
Por isso lembrei-me de Jó, da competição en‑
possível se conseguirmos inventar uma cul‑
tura sustentável, uma cultura imersa nas ne‑
cuja história acompanhamos de perto tre Deus e o Diabo na vida de Jó, assim como cessidades da comunidade da Terra, da qual
nosso bem e nosso mal disputam em nossa somos apenas uma parte recém-chegada. Não
vida. Depois me lembrei do samaritano con‑ estamos sós... Viemos de longe fazendo nosso
vidando-nos a ser para além das hierarquias e caminho, misturados/as ao pó da terra e ao pó
títulos uns/umas para os/as outros/as... das estrelas. Tem jeito de concertar a rota er‑
Na mesma linha, quero lembrar algo mais rada que tomamos? Conseguiremos? Aposto
que me incomoda no que chamei de “mostra‑ com tremor e temor que sim, pois, como diz o
ções” dos meios de comunicação. Às vezes são poeta Antonio Machado, “caminhante, não há
“mostração” – às vezes indecente, porque desco‑ gem ética do Evangelho vai para além de uma “mostrações” exageradas, quase indecentes dos caminhos, se faz caminho ao andar”.
nhece os efeitos negativos que provoca – serve “mostração”, de um voyeurismo que pode ser mortos, dos doentes em hospitais, das aglome‑
para revelar o quanto há de sofrimento em nos‑ ineficaz. Nem sempre o que vê age em conse‑ rações nas comunidades e nas prisões domici‑
so país e o quanto há de sofrimento oculto que quência com o que viu. A mensagem ética de liares em que estamos encerrados/as. Apesar
desconhecemos. Mostrar pode parecer até um fato, quando toca minhas/nossas entranhas, da crueza, é como se essas imagens também
ato correto, no sentido de torná-los presentes me faz enxergar no homem caído a mim mes‑ nos dissessem: “Façam alguma coisa, porque
como alerta importante. Porém, não necessa‑ ma, me faz dizer “o que quero que me façam”. E eles são também vocês”... O vírus nos tornou
riamente é um gesto ético eficaz, pois restaria me leva a concluir, sem pensar, que isso que eu por um instante imagem e semelhança de nós
de fato o mais importante, que é incluir as pes‑ gostaria de ter como socorro é o que devo fazer mesmos/as e imagem uns/umas dos/as outros/
soas nas instâncias do direito e da justiça como ao/à outro/a no curto e no longo prazo. as, nascidos/as da Terra, terrícolas mortais.
cidadãos da nação e do mundo. Mas sei bem que essa ética não é simples O fato é que agora não somos apenas especta‑
Fico me perguntando se a “mostração” de como as frases que escrevo. O medo do/a ou‑ dores/as das calamidades que nos mostram nas
famintos, doentes, mortos, cidades infectadas tro/a me ameaça, suas feridas e seu cheiro me telas sobre povos distantes; somos vítimas ou
até o excesso tem apenas a função de alerta da repugnam... Muitas vezes sentimo-nos impo‑ possíveis vítimas do vírus cuja história acompa‑
poderosa indústria da informação, agora soli‑ tentes e até frustrados porque não consegui‑ nhamos de perto. Ninguém está preservado/a
dária com as vítimas. Suspeito que haja razões mos efetivamente mudar muita coisa. Há como de ser a próxima conquista do vírus. E essa si‑
ocultas que não nos são reveladas. De novo me uma deficiência que nos impede de mudar essa tuação peculiar nos convida a algo mais ou me‑
vem um texto bíblico, agora do Evangelho de situação no imediato e que nos brinda com um nos inédito, sobretudo neste tempo de comuni‑
Lucas (Lc 10, 29 a 37), que é chamado de pará‑ ranço da culpa que nos habita. Há nesse mo‑ cação direta e instantânea. O vírus nos convida
bola do bom samaritano. A cena se refere a um mento a distância das quarentenas, a falta de a repensar a organização de nossa vida pessoal,
homem ferido, caído numa estrada. Um jurista circulação, a necessária obediência às ordens econômica, política, social, cultural, religiosa,
passa, vê o homem e afasta-se dele; da mesma médicas e governamentais, como se tudo isso como a dizer-nos que no progresso ilimitado
forma um sacerdote correndo passa por ele e se tornasse um impedimento ético para agir. e seletivo que construímos estão presentes as
não para, visto que tinha deveres a cumprir em Porém, na ética do Evangelho a distância entre sementes de nossa própria destruição. E aí não
seu templo; e por fim passa alguém, um estran‑ as pessoas parece suprimida. Toca-se nos olhos posso deixar de pensar no mito da Torre de Ba‑
geiro, o samaritano, um ambulante qualquer cegos, aproxima-se de quem tem lepra, dá-se a bel (Gênesis, 11), construída para tocar o céu e
que ajuda o caído, leva-o a um hospital e pede mão ao/às coxos/as, divide-se a comida, parti‑ onde todos os seus habitantes só podiam falar
que cuidem de suas feridas. Creio que a mensa‑ lham-se túnicas. Dirão vocês: nesta emergência uma única língua. Algo aconteceu de repente,

20 21
dossiê

A
aposta deste artigo é que a atual por exemplo, do pleno emprego nos Estados
pandemia, ao esgarçar o tecido so‑ Unidos e da reserva de mercado aos trabalha‑

Os limites
cial, fatalmente mudará os rumos dores nacionais na Hungria. Em uma situação
da política brasileira. Resta saber como essa, o que fazer para assegurar alguma
para onde. Ainda que opaca, uma nova agenda capilaridade popular ao projeto necropolítico?
econômica e política está sendo delineada nes‑
te exato momento. E, se não estamos diante de “Afinidades eletivas”
uma alteração passageira da cena política na‑ Até bem recentemente, a solução para a qua‑

do carisma:
cional, quais seriam suas determinações socio‑ dratura do círculo consistia em patrocinar
lógicas mais profundas? Como se deslocarão as uma agenda ultraconservadora de costumes
classes, sobretudo os trabalhadores precários alinhada aos anseios do fundamentalismo
mais expostos aos riscos sanitários e aos efei‑ cristão, em especial da ascendente direita
tos economicamente deletérios da pandemia? evangélica. Contudo, é bastante incerta e tor‑

ética,
Afinal, qual é o impacto previsível da atual crise tuosa essa passagem de valores reacionários
sobre o projeto político bolsonarista? para concessões materiais aos subalternos,
Em primeiro lugar é necessário lembrar ainda mais em um contexto econômico mar‑
que o governo Bolsonaro representa um pro‑ cado por informalização das relações traba‑
jeto necropolítico de poder cujo propósito con‑ lhistas, aumento do desemprego/subemprego
siste em mobilizar permanentemente parte da e subsequente compressão dos rendimentos

trabalho e
sociedade contra um inimigo interno desuma‑ do trabalho derivada da agenda ultraneolibe‑
nizado e, portanto, passível de eliminação. Até ral do ministro Paulo Guedes.
o advento da Covid-19, o papel desse “outro Nossa hipótese é de que, até a pandemia,
desumanizado” foi ocupado, com diferen‑ o alinhamento popular ao projeto bolsonaris‑
tes ênfases e em diferentes contextos, pelos ta nascido durante a campanha presidencial

necropolítica
“vagabundos” e “bandidos”, grosseiramente de 2018 deveu-se, em larga medida, a uma
identificados com os militantes dos mais di‑ “afinidade eletiva” entre uma certa teologia
ferentes matizes de esquerda, em especial os neopentecostal e a “viração” típica do em‑
sindicalistas e os corruptos ligados por laços prego informal tal como observamos nas pe‑
inconfessáveis ao establishment político nacio‑ riferias do país. Aqui, talvez seja conveniente
nal. A conclusão é cristalina: para “salvar a Na‑ uma rápida digressão sociológica. Desde que a
ção” de seus inimigos internos, é necessário expressão “afinidades eletivas” foi alçada por
pôr um fim à democracia tal como desenhada Max Weber à posição de conceito clássico da
pela Constituição de 1988 e à sua pletora de di‑ sociologia, a relação entre doutrinas religiosas
Algo estratégico à narrativa necropolítica bolsonarista reitos humanos e sociais, instrumentalizados e diferentes ethos econômicos deixou de ocu‑
começou a manquejar com a chegada da pandemia por vagabundos e bandidos. par um espaço central na atividade investiga‑
O projeto em curso de subversão da de‑ tiva dos sociólogos.
mocracia brasileira alinhou-se, até o adven‑ Ao menos quando pensamos nos víncu‑
Ruy Braga to do coronavírus, a um conjunto de outras los entre interesses de classe – sobretudo das
experiências internacionais, principalmente classes subalternas, e visões sociais de mun‑
a estadunidense e a húngara, que pipocaram do vertebradas por dogmas transcendentes
após a crise de 2008. Porém, com uma notável –, reflexões a respeito das tais afinidades des‑
diferença: ao contrário dos regimes liderados locaram-se para um plano subsidiário, refu‑
por Donald Trump ou Viktor Orbán, o modelo giando-se, quando muito, em áreas bastante
brasileiro adotou uma estratégia econômica especializadas do campo científico. Em larga
ultraneoliberalizante cujos cortes de gastos mirada, a preocupação com o tema deslocou‑
públicos impedem, por parte do bolsonarismo, -se para a historiografia, como bem demons‑
concessões aos subalternos, como são os casos, tra, por exemplo, A formação da classe ope-

23
dossiê

rária inglesa (1963), trabalho mais afamado incontornáveis experts no assunto. Também pelo bolsonarismo parecia estar funcionando
de E. P. Thompson. No caso brasileiro, se os não é segredo que o aumento expressivo das relativamente bem. Afinal, o apoio daque‑
fundamentos econômicos da religiosidade hostes evangélicas ocorreu naquelas regiões e les que vivem com renda entre dois e cinco
popular deixaram relativamente de figurar
entre as preocupações centrais de nossas
grupos abandonados por décadas de elitização
do catolicismo. Também é compreensível que
O protestantismo, assim como salários mínimos manteve-se firme, mesmo
diante do crescimento econômico pífio colhi‑
pesquisas, faz falta olharmos para o espírito a hipertrofia das favelas e das comunidades o capitalismo, conservou sua do pelo governo em 2019. As principais lide‑
popular em busca de alguma iluminação para periféricas em condições notoriamente pre‑ ranças evangélicas seguem firmes no barco
as cores sombrias que matizam a crise atual. cárias tenha fortalecido entre os subalternos própria legalidade, evoluindo bolsonarista, endossando as mais destrambe‑
Assim, algo que sempre chamou minha a busca por promessas de segurança material historicamente de forma mais lhadas atitudes do presidente autoritário. E a
atenção na maneira como Weber construiu e consolo espiritual. O que permanece ainda contraposição estimulada pelas milícias vir‑
seu conceito é que a relação de afinidade ele‑ um tanto opaco é por que uma teologia que ou menos autônoma um em tuais entre o “vagabundo” e o “pai de família”
tiva intermediava estruturas sociais – notoria‑
mente a ascese protestante e a inclinação para
advoga o direito ao bem-estar físico do crente
se aproximou de forma tão íntima das formas
relação ao outro continuava alimentando ressentimentos no
meio de amigos e parentes.
a acumulação de capital –, sem que isso criasse mais ou menos tradicionais de “viração”, isto
uma nova substância social, uma nova sínte‑ é, o empreendedorismo popular muito comu‑ Pressionando o carisma
se. Ou seja, mesmo que a interação produzisse mente verificado na economia informal, afas‑ No entanto, algo estratégico à narrativa necro‑
consequências significativas, não ocorria ne‑ tando-se, em contrapartida, da gramática dos política começou a manquejar com a chegada
nhuma modificação notável na constituição direitos sociais. da pandemia. Ao fim e ao cabo, o projeto au‑
dos componentes iniciais. O protestantismo, Uma hipótese plausível arriscaria combi‑ tornou-se um desejo praticamente irrealizável toritário de Bolsonaro depende de uma habili‑
assim como o capitalismo, conservou sua pró‑ nar duas ordens de razões: uma de natureza para 40 milhões de trabalhadores informais, a dade importante: a fabricação de um inimigo
pria legalidade, evoluindo historicamente de mais objetiva, digamos, isto é, a precarização mensagem trazida pelas Igrejas neopentecos‑ interno (o petista corrupto, o vagabundo da
forma mais ou menos autônoma um em rela‑ das condições de reprodução dos trabalhadores tais parece a única esperança: “Deus quer ver ONG, o favelado bandido, a “feminazi” etc.)
ção ao outro. Daí o próprio Weber lembrar-se pobres, com a consequente mitigação da pro‑ seu povo seguro e próspero”. escolhido conforme as conveniências do mo‑
de nos alertar que a afinidade entre a ética messa dos direitos, e outra um pouco mais sub‑ Para tanto, são necessários o dízimo e a mento para mobilizar suas hostes reacionárias.
protestante e o espírito do capitalismo se per‑ jetiva, ou seja, o pragmatismo popular capaz de confissão positiva. Para alguém desesperança‑ Daí o verdadeiro curto-circuito que estamos
deu nos tempos da acumulação originária de reconhecer na doutrina neopentecostal uma do em relação às soluções coletivas mais tradi‑ observando no governo. Afinal, o que fazer
capital, restando quase nada nos dias atuais poderosa aliada na interpretação de como cionais, como os partidos políticos e/ou os sin‑ quando o inimigo interpela a humanidade
daquele “sóbrio capitalismo” sintetizado nas opera o neoliberalismo. Assim, a responsabi‑ dicatos, por exemplo, trata-se de um caminho como um todo, e não apenas parte dela, aque‑
prédicas de Benjamin Franklin. lidade financeira e o fortalecimento individual crível para o progresso material. Além de um la mais desavisada e susceptível às fake news?
Ainda assim, exatamente um século após a enfatizados pela teologia da prosperidade te‑ motivo poderoso de subjetivação da disciplina Como sustentar um projeto necropolítico quan‑
edição definitiva de seu trabalho mais afama‑ riam condições de aderir a um contexto geral do trabalho. A fim de demonstrar as bênçãos do estamos todos no mesmo barco ou quando
do, outra relação de afinidade eletiva, aparen‑ marcado pelo avanço da insegurança laboral, de Deus sobre o crente, a ênfase no dízimo o inimigo deixa de ser “desumanizável” por já
tada à estudada pelo sociólogo de Heidelberg, da regressão dos direitos sociais e da mercan‑ transforma-se em força motriz privilegiada não ser humano?
parece ter se enraizado na sociedade brasileira tilização das cidades e das comunidades. para a prosperidade econômica e consequen‑ Até o momento, a estratégia bolsonarista
com a força de um preconceito popular: a dou- Quando a perspectiva do progresso cole‑ temente para a disciplinarização do corpo do tem se agarrado encarniçadamente ao modelo
trina neopentecostal da prosperidade e o espírito tivo via fortalecimento de direitos universais trabalhador. Quando pesquisamos o trabalho necropolítico, ou seja, tem buscado reinventar
do empreendedorismo popular. Aqui, coloca-se desapareceu do horizonte, sobretudo dos tra‑ informal, tais práticas implicam jornadas em o inimigo interno. A Covid-19 não passaria de
o problema de buscar compreender em que balhadores jovens, como tive oportunidade de geral muito longas, a convivência com a vio‑ uma “gripezinha”. Na verdade, o perigo seria
medida a atração entre uma crença religiosa observar em 2019 ao participar de uma pesqui‑ lência social e com a irregularidade de rendi‑ a aliança entre governadores, presidente do
e uma ética profissional influenciou o desen‑ sa sobre trabalho e sofrimento psíquico, e a mentos, os incontáveis deslocamentos pela Congresso, juízes do Supremo e a rede Glo‑
volvimento dessa cultura material que, na au‑ competição por oportunidades de negócio na cidade e quadros críticos de fadiga crônica. bo, que conspiram contra o governo federal
sência de melhor expressão, chamaremos de informalidade aumentou devido ao aumento Em condições tão extremas, só mesmo a fé no por apoiarem as medidas de isolamento so‑
neoliberalismo. do desemprego, a fé em um Deus que recom‑ cumprimento da promessa divina da prosperi‑ cial. O argumento negacionista pode flutuar
O crescimento do movimento neopen‑ pensa os esforços individuais transformou-se dade econômica é capaz de sustentar a volição um pouco, às vezes admitindo certos riscos
tecostal no país é largamente estudado pela em aliado poderoso na labuta cotidiana. Se do trabalhador pobre. trazidos pela pandemia para os idosos. Mas o
bibliografia especializada. Ricardo Mariano imaginar um futuro mais acolhedor tendo em Até o surgimento da praga bíblica do coro‑ verdadeiro perigo seria a ardilosa conspiração
e Ronaldo de Almeida, por exemplo, são dois vista, por exemplo, o acesso à aposentadoria navírus, a quadratura do círculo encontrada contra o “mito”.

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dossiê

sustenta a adesão do crente ao líder carismá‑ excessivamente distante de suas possibilida‑


Como bem nos lembra Max Weber em sua célebre tico vê-se abalada pela fragilidade das provas des, afirmando até com certo orgulho que não
sociologia política, quando a fé no cumprimento da graça, inicia-se um interregno reflexivo que precisavam receber “favores” de governo ne‑
usualmente progride na direção do abandono nhum. Quando indagados sobre o futuro, es‑
da promessa divina que sustenta a adesão do do chefe. Afinal, a lealdade do crente ao supos‑ ses jovens professavam sua fé na providência
crente ao líder carismático vê-se abalada pela to escolhido por Deus nunca é incondicional divina: “Deus proverá meu sustento”. Não é
e pode avançar na direção de um divórcio liti‑ difícil identificar uma ética influenciada pela
fragilidade das provas da graça, inicia-se um gioso. Se o desemprego aumentar ainda mais e, teologia da prosperidade vertebrando a visão
interregno reflexivo que usualmente progride por consequência, os subempregos explodirem
em número, deteriorando as condições de vida
social de mundo desses jovens.
No entanto, como conciliar este ethos la‑
na direção do abandono do chefe e de trabalho dos mais pobres, é bem possível boral com a necessidade de acessar uma po‑
que testemunhemos uma reviravolta na rela‑ lítica pública emergencial desenhada para
ção de afinidade eletiva entre a ética neopente‑ enfrentar o achatamento dos rendimentos
costal da prosperidade e o empreendedorismo dos informais causado por medidas de isola‑
econômico plebeu que, até o momento, favore‑ mento social? Ou como mitigar os riscos da
ceu a adesão de setores populares ao carisma pandemia quando os trabalhadores precários
O que chama a atenção é que a estratégia culpa pela crise social que se avizinha, tentan‑ de Jair Messias Bolsonaro. estão entre os grupos mais expostos à disse‑
bolsonarista logrou até certo ponto reinventar do assumir a capa do defensor do emprego e da O presidente ultradireitista apostou em minação do vírus? É pouco crível o cenário
a polarização necropolítica, levando pessoas às renda dos trabalhadores precários. Assim, Bol‑ uma crise de saúde pública mais ou menos futuro traçado pelo governo ultradireitista,
ruas em carreatas a fim protestar contra o iso‑ sonaro imagina localizar-se confortavelmente controlada pelos governos estaduais e muni‑ apoiado em uma pandemia controlada segui‑
lamento social. Por um lado, temos os alinha‑ no hipotético cenário da contenção do vírus so‑ cipais, seguida por uma recuperação econô‑ da por rápida recuperação econômica. Resta
dos ao discurso presidencial, segundo o qual o mada a uma crise econômica branda. Poderia mica rápida nos próximos anos como forma saber como as bases populares do projeto au‑
sistema político tradicional e a rede Globo se‑ então surgir como único líder de um país rele‑ de assegurar a popularidade de seu projeto toritário reagirão quando perceberem que, ao
meiam a morte econômica da população pobre vante a afirmar que o remédio do isolamento autoritário. Para tanto, conta com alguns contrário do que dizem o ministro da Econo‑
ao advogar medidas de isolamento que invia‑ era mais amargo que a cura da pandemia. trunfos importantes, como o pagamento do mia e os pastores televangelistas, a ação do
bilizam os pequenos negócios e a economia Há alguma chance de o ardil político bol‑ auxílio emergencial de 600 a 1.200 reais aos Estado será cada dia mais importante para
informal. Por outro lado, temos os perfilados sonarista alcançar êxito? Grande parte da trabalhadores informais. Não resta dúvida assegurar a subsistência dos trabalhadores
com a Organização Mundial de Saúde (OMS), equação montada pelo “gabinete do ódio” pre‑ de que, num primeiro momento, o governo pobres em meio à pandemia.
esgrimindo gráficos epidemiológicos em de‑ sidencial depende da resiliência das atuais ba‑ será beneficiado pelos pagamentos emer‑ Aparentemente, o apoio das comunidades
fesa da testagem em massa e do isolamento ses populares do governo. O cálculo seria mais genciais. Todavia, não está claro que efeito periféricas às medidas de isolamento social
social como a maneira mais eficiente de evitar ou menos o seguinte: se chegar ao fim da crise político de médio prazo a experiência popu‑ esboça os contornos da mudança no humor
milhares de mortes físicas. O negacionismo contando ainda com o apoio de cerca de 20% lar em relação à renda cidadã teria sobre a popular. O bolsonarismo pode estar prestes a
bolsonarista elegeu até seu campeão na ba‑ do eleitorado, Bolsonaro termina o mandato massa precarizada de quase 90 milhões de descobrir que, mesmo em sua versão neolibe‑
talha contra o vírus: a cloroquina e a hidroxi‑ ainda com chances de figurar em 2022 entre pessoas que se inscreveram no programa ape‑ ral, a teologia da prosperidade deve ser capaz
cloroquina. Ou seja, a guerra entre “bolsomi‑ os dois candidatos nas urnas do segundo tur‑ nas até o fechamento desta edição, no mês de de agasalhar aqueles que aderirem a ela. E que,
nions” e “petralhas” foi substituída por uma no. E o medo do retorno da esquerda ao poder abril. Afinal, o ultraneoliberalismo de Paulo ao fim e ao cabo, o projeto necropolítico levado
furiosa batalha paneleira entre “cloroquiners” lhe asseguraria um novo mandato. Trata-se de Guedes preconizou sistematicamente o des‑ adiante pela “familícia”, com ou sem distribui‑
e “quarenteners”. E a necropolítica agora ali‑ uma aposta altamente arriscada, pois subsu‑ manche de direitos sociais protetivos. E seu ção massiva de cloroquina e hidroxicloroquina,
menta uma escolha de Sofia: o que é preferível, mida aos humores populares em um momento êxito foi percebido por muitos. contradiz o amparo espiritual e a prosperida‑
a morte econômica ou a morte física? de crise social. Aqui, vale lembrar que nos re‑ Em 2019, quando participei de uma pes‑ de material que o crente busca nessa religião.
Ao mesmo tempo que trata de reinventar ferimos basicamente aos evangélicos, que em quisa sobre trabalho e sofrimento psíquico, Afinal, o bolsonarismo não é uma nova subs‑
sua estratégia em torno da mobilização per‑ 2018 garantiram ao candidato ultradireitista tive a oportunidade de verificar que muitos tância social criada pelas afinidades eletivas
manente contra o inimigo interno, o governo uma dianteira de mais de 10 milhões de votos jovens entrantes no mercado de trabalho existentes entre a teologia da prosperidade e o
federal tenta se livrar do ônus da crise econô‑ sobre Fernando Haddad. informal nem pensavam em se aposentar empreendedorismo popular. Na realidade, tra‑
mica vindoura, transferindo-o para o colo de No entanto, como bem nos lembra Max We‑ algum dia. A maior parte nem ao menos mi‑ ta-se apenas de outro falso ídolo com a cabeça
prefeitos e governadores que adotaram medi‑ ber em sua célebre sociologia política, quando rava um emprego com carteira de trabalho. de ouro, o peito de prata, as pernas de ferro e os
das isolacionistas. Ou seja, busca se livrar da a fé no cumprimento da promessa divina que Esses jovens consideravam a proteção social pés de barro.

26 27
dossiê

E
m uma conferência feita em Viena, eram nomeadas de As Benévolas para evitar
em 1955, Jacques Lacan afirmou que que se pronunciasse o nome delas, por medo
teria ouvido da boca de Carl Gustav de que isso atraísse o castigo e a cólera.
Jung que Sigmund Freud, quando A ironia final sugere que, punida pela Nê‑
chegava ao porto estadunidense de Nova York mesis, ou seja, como se fosse uma deusa, a
para as célebres conferências na Universidade peste seria devolvida para sua casa em passa‑

A ética da
de Clark, teria declarado: “eles não sabem que gem de “primeira classe”, ou seja, de fonte de
lhes estamos trazendo a peste”. Ao que tudo miséria e infortúnio a psicanálise poderia se
indica, a frase não teria sido exatamente essa, inverter em passatempo luxuoso e rico, per‑
conforme o Dicionário de psicanálise (Zahar, dendo toda sua “virulência”. Isso se ajusta à
1998), mas mesmo assim ela parece conden‑ tônica repetitiva dos comentários de Lacan

psicanálise
sar a ideia de que a psicanálise seria uma prá‑ contra o anti-intelectualismo e o conformis‑
tica subversiva e crítica. Menos do que uma mo das Sociedades de Psicanálise, contra o
inexatidão histórica, é possível que o mito da “carreirismo” dos candidatos a psicanalistas
psicanálise como peste, que se infiltra na cul‑ e contra os compromissos ideológicos que
tura produzindo desordem e revelação de suas os psicanalistas deveriam evitar como ideais

e a peste
verdades intestinas, tenha sido a expressão do ilusivos da modernidade, a saber: o ideal do
desejo de Lacan e funcione como uma espécie amor humano concluído, o ideal da autenti‑
de síntese de seu ensino. cidade e o ideal da não-dependência. É com
Se essa hipótese é razoável, seria preciso a crítica desses três ideais que Lacan abre seu
descobrir por que a alegoria da peste atraiu La‑ Seminário sobre a ética da psicanálise, quatro
can. Examinando o contexto exato de sua apari‑ anos depois. Um ano antes, em seu texto mais

generalizada
ção, três outras imagens circundam o enuncia‑ importante sobre o tratamento, chamado A
do: a estátua da Liberdade, que “ilumina o uni‑ direção do tratamento e os princípios de seu po-
verso”; a “arrogância, cuja antífrase e perfídia” der, Lacan afirmava que estava por se formular
ameaçam seu brilho; e a vingança (Nêmesis), uma ética da psicanálise que pusesse em sua
que poderia fazer Freud voltar para a Europa cúspide a questão do desejo.
em “passagem de primeira classe” (Escritos, p. A peste é uma alegoria precisa para os pro‑
404). Temos aqui o movimento característico pósitos de Lacan, por se colocar exatamente
da obra lacaniana, que se inscreve na herança na encruzilhada entre os dois mundos dos
do Iluminismo, da razão e da universalidade, quais emerge a psicanálise como discurso,
A alegoria lacaniana da peste convoca determinações médicas,
mas que se depara, em um momento trágico, como clínica e como ética. A peste é ao mes‑
sanitárias e econômicas à luz da ciência, mas desencadeia com uma espécie de exagero de confiança, o mo tempo um fenômeno natural, cuja gênese
conturbados processos éticos, políticos e morais que a torna arrogante e exposta crescentemen‑ pode ser estudada pela medicina e pela bio‑
te à perfídia (intriga) e ao temor (antífrase). logia, a partir de seus vetores e de sua etiolo‑
A figura retórica da antífrase não indica ape‑ gia, e um acontecimento social, que envolve
Christian Ingo Lenz Dunker nas ironia ou sarcasmo, mas uma inversão se‑ a interpretação de afetos, como o medo e a
gundo a qual, por exemplo, o pior pode emergir vingança e a mobilização de uma atitude ética.
do melhor. Quando Dom João rebatiza o cabo Para Lacan, a psicanálise é filha da moderni‑
das Tormentas como cabo da Boa Esperança, dade, da ciência e do sujeito cartesiano com
ele faz uma antífrase. Quando Eurípedes batiza seu espírito das Luzes, mas sua ética pode ser
sua peça sobre as três Fúrias de Eumênides, ou reconstruída a partir das tragédias gregas, da
seja, As Benévolas, ele faz uma antífrase. Lem‑ Ética a Nicômaco de Aristóteles e do amor cor‑
bremos que Tisífone (Castigo), Megera (Ran‑ tês, essa figura da aurora renascentista. Não é
cor) e Alecto (Inominável) eram três Erínias, por outro motivo que ele dirá, na mesma fra‑
ou seja, elas puniam os crimes humanos, ao se, que o “sujeito sobre quem operamos em
passo que Nêmesis, a deusa mencionada por psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” e
Lacan, punia apenas os deuses. Ora, as Fúrias que “por nossa posição de sujeito somos sem‑

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dossiê

pre responsáveis” (Escritos, p. 873), ou seja, um soas. A brucelose abortiva, doença provável na da culpa, mas de todo tipo de catástrofes inte‑ exemplifica que na ética da psicanálise trata-se
aparente paradoxo, porque se poderia dizer que peste de Tebas, não se mostra um castigo dos riores” (p. 383). de “reparar e não de desfazer” (p. 385).
o sujeito da ciência e o discurso que dela emana, deuses contra a cidade, mas um ajuste de con‑ Até aqui a ética da psicanálise mostra-se Temos aqui outra figura da peste. Ela não
enquanto qualificação apurada da razão, pede tas com as desmesuras do poder concentrado uma ética universalista, não apegada à positi‑ está mais figurada coletivamente como cas‑
apenas que os sujeitos “obedeçam”. Mas não é nas mãos de uma única pessoa: Édipo. vidade da felicidade ou do gozo, mas à condi‑ tigo ou ultrapassagem (húbris) da medida
só isso. Segundo o argumento de Lacan, é pre‑ Contudo, ao contrário do que se advoga na ção negativa do desamparo, do sofrimento e do humana, mas indica o caminho da solitude
ciso responsabilidade pela própria posição de crítica de ocasião contemporânea, a ética da desejo. Até aqui o desenvolvimento sobre An‑ que se espera de quem se orienta pelo desejo.
sujeito, e responsabilidade é uma noção ético‑ psicanálise, segundo Lacan, não é uma ética tígona teria deixado o problema da peste para A peste de Filoctetes não é contagiosa, mas
-jurídica, e não apenas cognitivo-científica. edipiana, mas uma ética do desejo, cujo me‑ trás, como uma espécie de contingência menor, mesmo assim afasta os outros, tornando-o
Percebe-se assim como a alegoria lacania‑ lhor exemplo se encontraria em sua filha An‑ signo da alternação entre a determinação dos dejeto e excesso desagradável na missão helê‑
na da peste dialoga com o momento atual de tígona, que dá título à segunda das tragédias deuses e dos homens, menos do que efeito de nica. Filoctetes representa assim as vidas sem
generalização da peste, figurada pela pande‑ tebanas. Antígona recusa-se a deixar insepulto um desejo singularmente transgressivo. Con‑ importância. Matáveis e insignificantes, para
mia do novo coronavírus. Ela convoca deter‑ seu irmão Polinice e advoga que ele deve ter tudo, o tema parece ressurgir nas cinco páginas além de sua função e instrumentalidade, elas
minações médicas, sanitárias e econômicas à um enterro tão digno quanto seu outro irmão, finais do seminário sobre a Ética, sob a figura são o preço e o sacrifício a pagar para que tudo
luz da ciência, mas desencadeia conturbados Etéocles, apesar de este ter traído o pacto esti‑ um tanto despropositada de Filoctetes, para continue andando, para que a economia não
processos éticos, políticos e morais. Nessa cir‑ pulado em Tebas sobre a alternância do poder mostrar que “um herói não precisa ser heroico pare de trabalhar e para que esqueçamos que
cunstância torna-se mais agudo decidir qual entre os filhos de Édipo. Ameaçada de ser en‑ para ser um herói” (p. 384). toda vida está em uma vida, como já nos havia
lei queremos e de que forma nos faremos res‑ terrada junto com seu irmão, caso se recusasse Filoctetes é o guarda de armas de Hércu‑ mostrado Antígona.
ponsáveis pelo desejo que lhe é correlato. a cumprir as ordens de Creonte, Antígona man‑ les, um dos pretendentes de Helena de Troia e No estado de epidemia que nos assola, as li‑
Lembremos que a primeira parte da trilo‑ tém-se firme em sua deliberação, enfrentando um dos argonautas que partiram em busca do ções deixadas pela ética da psicanálise podem
gia tebana, conhecida como Édipo Rei, deveria a lei da cidade e as ordens de seu próprio futuro Velocino de Ouro. Ao longo da viagem ele co‑ ser de alguma valia. Antes de tudo a epidemia
chamar-se, rigorosamente, Édipo tirano. Para a sogro. Para Lacan, Antígona torna-se um para‑ meça a incomodar seus colegas porque sofre não deve ser encarada como um castigo, que
filosofia política antiga, admitia-se que a tirania digma para a ética da psicanálise porque: com um machucado malcheiroso no pé. A ori‑ nos leva ao rancor diante do que não tem nome,
era um regime político razoável em duas condi‑ 1. Ela não cede de seu desejo, nem em função gem do ferimento é controversa. Ele teria sido conforme a regra das três Fúrias. Ela não deve
ções: a guerra e a peste. Nessa situação o saber do serviço dos bens, nem se deixa comandar picado por uma serpente enviada por Hera nos dar a ocasião para a vingança de Nêmesis.
específico, de um general ou de um médico, tor‑ pelo ódio, pelo temor ou pela culpa: “A ética da para prejudicar o amigo de Hércules, ou en‑ Ela interpela a responsabilidade ética de cada
na-se mais importante do que o saber geral do psicanálise não é uma especulação que incide tão ele teria denunciado o local onde estavam qual para com seu desejo, ou para o serviço dos
político. Édipo é um tirano e não um rei, porque sobre a ordenação, a arrumação do que chamo depositadas as cinzas de Hércules, apontan‑ bens, em um momento de relativa suspensão
ascende ao trono de Tebas por seus méritos e de serviço dos bens. Ela implica, propriamen‑ do o lugar com o pé e sendo punido com uma jurídica. Não somos deuses, por isso a peste
virtudes, notadamente ao derrotar o enigma da te falando, a dimensão que se expressa no que flecha envenenada com o sangue da Hidra de nos convida a reencontrar nosso devido tama‑
Esfinge. O primeiro ato da tragédia de Sófocles se chama experiência trágica da vida” (O Semi- Lerna. Durante a expedição, e em função do nho e a reconhecer a extensão inesperada do
trata justamente da peste que se abateu sobre nário: livro 7, p. 375-76). ferimento, ele é abandonado sozinho na ilha mundo, até mesmo para a ciência. A epidemia
Tebas e do problema político que cabe a Édipo 2. Ela age de acordo com o princípio de que de Lemnos, também conhecida como Crise, é ocasião de encontro com a peste, que nos
resolver. Sua primeira decisão é interromper “não poderia haver satisfação de ninguém sem onde permanece por dez anos. A sorte de Fi‑ expõe ao medo e liberta angústias indetermi‑
as preces religiosas e declarar aberta a investi‑ a satisfação de todos” (p. 350), portanto o di‑ loctetes muda quando Ulisses descobre que nadas e intensifica sintomas mais explícitos.
gação sobre as causas do miasma – termo que reito à memória não pode ser suprimido a Po‑ a única forma de vencer a guerra de Troia é Tal qual Édipo, estamos diante da tarefa de
remete a uma perturbação ao mesmo tempo linice – não por ser seu irmão, mas por todos usando as armas de Hércules, cujo paradeiro enfrentar a peste com responsabilidade e inte‑
natural e moral. Tirésias, o adivinho cego, re‑ integrarmos uma comunidade simbólica. apenas o guarda de armas conhecia. Forma-se ligência. Assim como Antígona, não devemos
vela que a causa é si mesmo, o que tornará a tra‑ 3. Ela confronta a própria morte e seu desam‑ então uma expedição para resgatar Filoctetes. usá-la para ceder de nosso desejo e voltar ao
gédia, a partir de então, uma investigação sobre paro fundamental, “sem esperar a ajuda de Ao fazer de Filoctetes o herói suplementar esquecimento do trabalho. Não ceder ao custo
as origens e a genealogia do filho de Laio. ninguém” (p. 364). da ética psicanalítica, Lacan inventa o verda‑ contábil do valor das vidas inutilmente perdi‑
É possível que Sófocles repetisse a concep‑ 4. Ela opõe-se à ordem dos poderes do mestre, deiro anti-Édipo: serviçal, e não líder, com um das, nem das perdas irreconhecidas com seus
ção de Tucídides em sua descrição da peste que que afirma: “que o trabalho não pare. Quanto ferimento aberto, e não uma cicatriz nos tor‑ lutos suspensos, adiados ou impedidos. En‑
caiu sobre Atenas aproximadamente em 430 a. ao desejo, vocês podem esperar sentados”. nozelos, ele é o herói que “pode ser traído im‑ quanto a epidemia perdurar, estaremos todos
C.: a primeira reação de busca dos templos re‑ 5. Ela não age em nome do bem maior, mas do punemente” (p. 384). Sua grande virtude é que na ilha de Crise, sozinhos mas não necessaria‑
ligiosos, a suspeita de que ela provém dos ani‑ bem dizer: “Fazer as coisas em nome do bem, não se ressente dos colegas que o abandona‑ mente solitários, deixados para trás, mas não
mais (zoonose), sua transmissão infecciosa, sua e mais ainda em nome do bem do outro, eis o ram, não se vinga deles recusando-se a cumprir abandonados, traídos por aqueles que deviam
relação com a guerra e a movimentação de pes‑ que está bem longe de nos abrigar não apenas a tarefa nem abusa do saber de que dispõe. Ele nos proteger, assim como Filoctetes.

30 31
dossiê

A aceleração
da história e
o vírus veloz A
rápida reconfiguração do mundo ainda em busca de determinação de caminhos
e da vida que a pandemia do novo e de possibilidades, de nome e de inscrição de
coronavírus Sars-Cov-2 vem pro‑ experiência, de fato ainda inconcebível e aber‑
duzindo nos colocou em posição to, algumas elaborações do caráter político e
radical de espanto, surpresa, dúvida e renova‑ econômico de sua atuação global se ligam ao
ção necessária – isso se estivermos de algum necessário trabalho sobre o que o vírus pode
modo em contato com o lado vivo do fenôme‑ significar, ou performar, fazer ou criar na vida
Em um processo da reversão do casamento da virulência no, e não sob o simultâneo regime da angús‑ dos homens, algo para além, ou para aquém,
do vírus com a virulência de nosso mundo hiperacelerado, tia, do luto e da melancolia, do choque ou do se pudermos ver um dia, do horror da expe‑
esmagamento traumático pela força irrecusá‑ riência crua da dissolução do mundo e da mor‑
a ação social universal de desacelerar a vida se tornou vel do real. O movimento coletivo e político te que paralisa a vida e a todos.
parte importante do antídoto que tomou o planeta em 2020 se dá diante da O vírus e sua violência infeciosa não são
máxima alteridade da consciência das ilusões apenas um “objeto natural”, como se tem ob‑
humanas, tão vitais na constituição da cultura, servado, um acontecimento puro das possibi‑
Tales Ab’Sáber da proteção ante a presença concreta da morte lidades da vida no planeta, um caso genético
em toda a trama de nossa vida. darwiniano de microbiologia a mais, entre as
Certa vez o historiador Paul Veyne definiu tantas catástrofes que nosso momento de an‑
o momento histórico da Revolução – pensando tropoceno agonístico tem imprimido sobre o
com a experiência moderna francesa do fenô‑ ambiente mais amplo, este objeto todo, de dis‑
meno – como aquele em que as vozes, as nar‑ puta radical e de violência particular, que já
rativas e as explicações da experiência se mul‑ deixou de nos ser comum. Sob o ataque de um
tiplicavam ao infinito, sem que nenhuma delas agente rápido e eficaz vindo de nosso próprio
pudesse enfeixar a totalidade do mundo que mundo em desequilíbrio, um agente preciso
acontecia para além do entendimento: a pró‑ e sincronizado para arruinar exemplarmente
pria revolução. Diante desta produção emo‑ nossa vida técnica tida por infinita, atingindo
cional e política ampla e variável, terrorífica e a existência e a cultura na base de nossa in‑
nova, brilhantemente radical e obscuramente fraestrutura, esquecemos ainda uma vez que
perigosa, que é o vírus em nosso mundo e vida, nós mesmos temos sido responsáveis pela

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dossiê

para de acontecer nem de acelerar sua fre‑ ser extirpada. O vírus, como vimos em tempo de tráfico e de fluxos, tecnologia globalizada
quência sempre mais ampla e eficaz. histórico real, de fato viajou simplesmente mantida sob a égide da forma mercadoria, de
Os antropólogos também nos ensinam que a jato por todo o planeta, tendo os melhores comunicação e de circulação acelerada de pes‑
Toda poesia diante do mesmo modo que exterminamos a massa hospedeiros vivos e os melhores assentos soas, de serviços e de bens. Assim, o vírus é,
biológica em um processo de monotonizacão possíveis, nosso próprio corpo, assim como em suas facetas produtivas para nós, de crise e
da vida e do espanto da Terra, que apaga as transições entre as fazem os executivos da reprodução e do cres‑ de morte, simultaneamente um objeto “de na‑
diante de nós mesmos massas humanas, a industrialização que nos cimento do dinheiro mundial, seus primeiros tureza”, referido ao seu autoengendramento
é própria e a vida e as necessidades dos outros vetores, e, da noite para o dia, em questão de imanente, a ser estudado e desarticulado por
leva o selo simples do vivos, também exterminamos sistemas de vida, poucas semanas, estava presente em cada ciência, e um real objeto político e econômico,
valor, e a marca pobre linguagem e experiência do próprio humano,
outras ontologias e outras cosmologias, dife‑
país da Terra. O filme Contágio, dirigido por
Steven Soderbergh, contou muito dessa his‑
um objeto da natureza humana, que tem pro‑
fundidade histórica e faz efeito sobre a vida
da mercadoria rentes e alternativas, que poderiam muito bem tória, ainda em 2011, de modo quase perfeito social das nações. Assim como é um efeito de
nos ajudar a dar outras perspectivas para nossa e em detalhes, na máxima velocidade da pro‑ retorno sobre todos nós dos produtos recu‑
jornada acelerada rumo ao nada. Nada impe‑ fecia dos sonhos, da clarividência profana do sados de nossa própria tecnologia e de nosso
dia portanto, nesta guerra de fundo invisível cinema, para a consciência e a inconsciência modo de vida, de nossa técnica do tempo, de
ao conceito, mas muito visível em todo ato de geral de uma época. A diferença pequena de nosso próprio potencial de invenção objetifi‑
progresso, de um certo homem contra tudo o nossa situação e a do filme é que lá o vírus era cante da natureza, para nós muito mais coisa
que se move ou vive, que em algum momento ainda mais rápido em sua destrutividade bio‑ do que vida.
liquidação de espécies e da diversidade bioló‑ do nosso jogo satisfeito do desequilíbrio e da lógica A potência de infecção do vírus e seu De nós mesmos portanto, dimensão tecno‑
gica em todo o planeta, em velocidade verda‑ morte do que não é nosso próprio lugar priva‑ efeito econômico global diz respeito também lógica imanente que não se separa da potência
deiramente industrial, em escala global como a do de sobrevivência, de classe, de raça, de téc‑ à própria potência técnica universal da época, e dos efeitos do vírus em nossa vida. Como o
de nossos negócios. Nossos próprios campos de nica e nacional, que nós mesmos entrássemos assim como é o próprio filme, esse produto co‑ vírus de internet, e sua promessa constante de
extermínio da Terra, que evidentemente não se em regime de liquidação biológica ambiental, letivo que o antecipou, que pressentiu em sonho catástrofe global sempre adiada por mais um
deixa exterminar, mas se altera de forma ago‑ e passássemos a ser alvo de nossa espetacular a peste, como disse Antonin Artaud, simples‑ ano, gerado conceitualmente por homens, que
nística para nós, nunca pararam de se multipli‑ violência, como todos os demais existentes. mente contando a história com uma década infecta nossos computadores e que só existe
car. Dos cem tigres que restaram na região de Isso se dá pelo fato cotidiano de ser assim que de antecedência. As comunicações e interliga‑ porque os computadores existem, o coronaví‑
Bengala, como li há quatro anos em um jornal tratamos grande parte da vida sobre a Terra: ções de todo o planeta, com seu gasto monu‑ rus de agora só é o agente potente que nos põe
na Índia, ao rinoceronte branco extinto das objetificação, dessolidarização, violência e mental de energia, ordenadas até hoje apenas em risco radical por estar exatamente dentro
savanas africanas, aos corais de todo o mundo extermínio. Terra e vida como commodities, pelo movimento ascendente do Capital global da grande maquina produtiva humana, nossa
que desaparecem em tempo real, acidificando resistência neutra ao progresso, ao poder e ao fazem parte plenamente da Covid-19. Aquilo época, sendo fruto de processos estabelecidos
as águas e levando com eles os peixes maravi‑ mercado; e não vida, diferença, espanto, con‑ que Theodor Adorno chamou, com Karl Marx, por pessoas e pelo poder, que vem de longe.
lhosos que dizíamos admirar, às abelhas que vivência, maravilha, contemplação e aprendi‑ de nível de técnica da época. A comunicação e os deslocamentos ubíquos
morrem aos milhões no Brasil do agronegócio, zado. Toda poesia diante da vida e do espanto O vírus, e sua mensagem planetária ainda e extremamente rápidos, que levam homens,
com seus 467 pesticidas de toda ordem de toxi‑ diante de nós mesmos leva o selo simples do enigmática e ainda múltipla, mas certamen‑ coisas e dinheiro por todo o planeta, são condi‑
dade liberados somente em 2019, extinguindo valor, e a marca pobre da mercadoria. te um fato social global total, são uma fusão ção da força de ataque real do vírus sobre esse
o mel e destruindo a cadeia da polinização da Muito pelo contrário de ser apenas um obje- de um real natural, desde condições socioam‑ próprio sistema de vida, o planeta humano,
vida, ao atum contaminado pela água pesada to e natural, para nós, seres humanos culturais, bientais degradadas, crise da indústria na Terra em um verdadeiro nó borromeu da imanência
da catástrofe nuclear de Fukushima, no Ja‑ simbólicos e tecnológicos, o vírus também é e na terra dos corpos humanos geridos em mas‑ catastrófica de nosso mundo sobre si próprio.
pão, às queimadas e derrubadas constantes um acontecimento histórico, claramente polí- sa que preparamos durante décadas com cuida‑ Ele parasita nossas células e nosso DNA, tanto
dos posseiros do neofascismo brasileiro na tico-ambiental, de um momento fundante da do para seu advento – as condições de destrui‑ quanto todo nosso sistema mundial de trans‑
floresta amazônica de precisamente agora, às consciência de nossa ação em nosso degradan‑ ção daquilo que meu pai, Aziz Ab’Sáber, junto portes transnacionais de massas e a jato. E visa
pestes biológicas, lançadas como bombardeio te mundo avançado, da natureza da vida sob o com Paulo Emílio Vanzolini, chamaram um à nossa vida, tanto quanto a ordem geral de
constante de nossa vida sobre a dos demais regime universal da industrialização e da glo‑ dia de refúgios biogeográficos ou morfoclimá‑ práticas e ritmos da vida universal de mercado.
seres do planeta, nossa intervenção radical balização de capitalismo tardio. Ele é também ticos para a aceleração do relógio da vida – um A velocidade do mundo da catástrofe imi‑
e inconsciente, ou até mesmo plenamente um fato tecnológico hipercontemporâneo, des‑ campo de destruição que foi articulado com nente do mercado global é tamanha que pode‑
consciente, sobre a massa viva da Terra não ta realidade histórica ampla que não pode lhe a tecnologia de ponta de nosso sistema geral mos dizer que, já na origem da história, dado

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o estado técnico do tempo, quando o vírus tempo na experiência do avanço industrial e


apareceu em Wuhan na China ele já estava na financeiro global, que também desaguou nes‑
Lombardia italiana, em Madri, em Nova York, sa cultura da morte generalizada, que agora O vírus é de fato mais o que nós fizemos dele
em Teerã, em Paris e em São Paulo, bem como, se representa pelo ponto objetivo pratica‑
evidentemente, ele já estava na Coreia e na mente mínimo no espaço, negativo radical, e de nós mesmos. Como o transmitimos e
Alemanha – os países um pouco mais conscien‑ da existência do próprio vírus – a já bem co‑ multiplicamos, como nos cuidamos ou nos
tes política e tecnicamente para responderem nhecida necropolítica colonial capitalista, de
o mais rápido possível à catástrofe imunitária Achille Mbembe, também necropolítica am‑ destruímos, como o transportamos de modo quase
anunciada já na primeira aparição, e salvarem
o máximo de vidas ante a inércia da velocidade
biental recusada, o holocausto colonial de
Mike Davis, que sempre acompanhou toda
instantâneo e ubíquo para todas as cidades do
do mundo articulada à velocidade do próprio expansão de riqueza material da moderni‑ mundo, são fatos que fazem parte da sua potência
vírus. Assim como, em uma velocidade que dade. O vírus é momento universalizante de
transcende o tempo e o espaço, o vírus já estava nossa cultura da gestão global da morte, que
bem figurado em 2011 no filme de Soderbergh, tem ao menos 500 anos, em oposição a uma
sonhado em sua aproximação psicossocial e possível cultura do recebimento, do cuidado
de terror. Ou até mesmo, já sonhado há muito e da vida, da abundância em equilíbrio e su‑
nos velhos filmes de ataques enigmáticos de ficiente, como expressa a ideia da deusa in‑ é a própria lembrança do real da morte como pe e mortífero. Por um lado, o vírus é a exigên‑
bolhas assassinas ou doenças vindas do espaço, diana Lakshmi, uma cultura estética da con‑ coisa da civilização. cia radical de trabalho real, sobre nós mesmos
que pululavam nos anos 1950 da Guerra Fria e templação e do direito universal à existência Por esse lado, ele é tudo o que precisamos e nossa vida, o simbolizador extremo de tudo o
sua paranoia objetiva de liquidação iminente de tudo o que é vivo, que insistimos de modo mesmo evitar, para não nos paralisarmos dian‑ que existe que é morte real entre nós, um foco
da humanidade a partir de um agente íntimo radical em não considerar. te da vida, a invasão da ideia da inutilidade das analisador da vida e da cultura – diante de sua
e estrangeiro. Avatar da velocidade da luz de Assim, o vírus nos aparece em suas faces coisas, a acédia pós-moderna, da luz negra de verdade todas as posições, desejos e falsifica‑
nossas próprias comunicações globais, o vírus antagônicas. Como outro e radicalmente ne‑ um destino cruel que se aproxima com mui‑ ções possíveis se revelam –, como costumam
vem realmente do tempo humano degradante gativo de nós mesmos, o estranho e estran‑ ta rapidez de todos nós. E só podemos torcer dizer os psicanalistas. Por outro lado, o vírus é
do espaço e tecnológico maníaco, da terra em geiro absoluto, condensando toda angústia para que, quando ficarmos doentes, como fruto, e seu impacto é resultado, da própria cul‑
transe globalizada total, desde as entranhas de e todo medo diante do polo mais radical da provavelmente ficaremos um dia, tenhamos tura existente, do mercado mundial cosmopo‑
nossa vida de desequilíbrios e recusas radicais. queda, limite difícil de todo narcisismo ou hospitais e outros humanos que nos cuidem lita capitalista, que determina um tanto de sua
Em sua potência, ele foi gestado em nossas onipotência, da realidade da dor, do aban‑ no limite da vida e da morte, e que o vírus, e potência, destrutiva e crítica.
ações e nos movimentos práticos nos aviões e dono e da morte. Como forma primordial de o vírus político do negacionismo neofascista Entre enigma da morte e problema plena‑
na internet, ações e movimentos que também vida, lutando para se manter em reprodução do mundo, não destruam simplesmente tudo. mente conhecido, da natureza mortífera de
nos impedem de olhar para as perdas acelera‑ em nosso corpo, com a força da vida que quer Ao mesmo tempo, por outra faceta, o vírus nossa própria ordem da vida, entre obscuro,
das sempre correlatas à produtividade, para viver, como dizia Freud, esse quase nada que nos aparece como fruto simbólico e político da‑ misterioso e não-eu, por colocar a morte so‑
poder nos alcançar logo, em qualquer bairro, precisa se articular a um outro para se repro‑ quilo mesmo que fizemos como opção de cultu‑ bre a mesa de jantar de todos nós; ou como
supermercado, loja ou rua do planeta. Ou ain‑ duzir, fragmento de proteína de RNA com um ra e de civilização, da modernidade degradada resultado pleno, catástrofe de geopolítica
da, simbolicamente, em todos os meios de co‑ microtecido de gordura ao redor, por nos ser na forma da expansão infinita do circuito de global e de economia voltada para forçar a
municação e de sentido do mundo. de fato tão íntimo e saber tanto de nosso pró‑ valor, Capital, como resultado do mundo que privatização da renda, dos direitos e da saú‑
Assim, mais do que nunca, o vírus é de fato prio impulso destrutivo para o outro, impresso criamos como cidadãos mundiais do mercado de, o vírus se faz tão verdadeiramente obscu‑
mais o que nós fizemos dele e de nós mesmos. em nossa própria civilização, derruba espeta‑ de consumo universal e de nossa tecnologia ro quanto simbolicamente situado. Ele tem
Como o transmitimos e multiplicamos, como cularmente o homem, parando suas cidades, avançada, orientada somente para a própria quase a estrutura simbólica, por assim dizer,
nos cuidamos ou nos destruímos, como o trans‑ arruinando suas economias, fazendo tábula produção desse mesmo mundo, que se resolve de uma formação do inconsciente na civiliza-
portamos de modo quase instantâneo e ubíquo rasa de suas relações sociais. Aquele que se como uma cifra sempre crescente em um com‑ ção, ao velho modo freudiano de entender a
para todas as cidades do mundo, são fatos que considerou o senhor da Terra e da vida, o mais putador de Wall Street, Londres ou Berlim. Um coisa do inconsciente: tão presente e afirma‑
fazem parte da sua potência. Objeto de nature‑ poderoso e plenamente capaz de submeter a mundo não apenas onipotente, o da técnica, da tivo, cultural e civilizatoriamente, quanto de
za e de técnica, há algo no vírus que vai implicar tudo e a todos, curva-se impotente por um ins‑ mercantilização mundial dos espaços e da ci‑ fato sempre oculto. O vírus é nosso primeiro
a revisão política e prática do que fizemos e fa‑ tante ao mínimo do mínimo do mínimo, à ver‑ dadania mundial do consumo, mas, na mesma sintoma global, universalmente percebido pe‑
zemos de nós mesmos até agora. E já há muito dadeira microvida, à quase vida do vírus, que medida de seu poder, um mundo também tor‑ los homens.

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Se a face terrível do vírus é a velocidade sional com a vida social, configurada global‑ multiplicado na cultura da imagem perma‑
planetária de contágio, da vida global e local mente. Se Benjamin chamou a atenção para o nente do mundo. O homem unidimensional é
de mercado articulada em um único grande mundo sem experiência da informação de su‑ o espelho triste da mercadoria como sua única
relógio desabalado rumo à catástrofe, no qual perfície – onde as frutas caíam já embaladas experiência, bem concebido por Andy Warhol,
ele adentrou e acelerou – o famoso relógio do
fim do mundo dos cientistas atômicos que
Como o vírus para o mundo das árvores com a aparente facilidade com
que os aviões riscavam o céu – que era a vida
e o fascista de consumo de Pier Paolo Pasolini
é aquele que esqueceu toda dimensão da ex‑
contam o tempo da aniquilação por vir, desde e o dissolve por um segundo, prática da indústria, e também a dissolução periência que não seja o circuito fechado de
o advento da bomba termonuclear em 1945, do mundo da leitura, dos narradores e da vida viver para as coisas, e as imagens das coisas,
bem comentado por Paulo Arantes, o marca‑
a velocidade, o ritmo aberta do primeiro capitalismo, se ele se preo‑ que realizam a excitação da circulação do di‑
dor do processo da hecatombe tecnológica do progresso imanente cupou com os gases mortais que viriam rápi‑ nheiro o mais rápido possível. O território sim‑
que Günther Anders viu, ainda antes de todos, dos como os aviões para exterminar popula‑ bólico do consumo é excitado e monótono ao
e que Alan Moore e Dave Gibbons formula‑ nas formas de vida, foi ções inteiras na guerra dos anos 1930, porque mesmo tempo, em um vórtice acelerado, uma
ram como arte pop maior em seu Watchmen a liga inconsciente do não era razoável imaginar que eles viessem dominação abstrata, descentrada dos corpos
nos anos 1980 –, sua face política é a denúncia de fábricas reais de extermínio de populações e cujos efeitos inconscientes estão ligados à
radical, incontornável, das opções econômicas aplainamento da vida política inteiras, é porque ele não viu a aceleração má‑ corrosão da integridade do eu. É dessa massa
e sociais dos últimos 50 – ou 500? – anos da vida
sobre a Terra, que fixaram o mundo na cisão da
do mundo do trabalho xima e constante dos mercados financeiros de
nosso tempo, que fazem realidades econômi‑
de pacto com a vida produtiva e consumptiva
que se produzem as multidões globais, sem‑
sociedade de classes e transformaram direitos diante do mundo do poder cas inteiras aparecerem e desaparecerem ao pre em busca de uma política que lhes retire
humanos e ambientais em uma barganha tensa toque de botões, trabalhando dia e noite sem daí, mas que volta sempre para o próprio ter-
de má distribuição geral dos valores, de exter‑ parar um segundo. Bem como mundos geo‑ ritório da velocidade.
mínio bem administrado, ou não, para a contí‑ gráficos e biomas. Ao mesmo tempo, massas de excluídos,
nua acumulação em permanente estado exci‑ bombardeando no mesmo momento históri‑ A história da industrialização da expe‑ sem lugar em um mundo que também liqui‑
tatório de aceleração e concentração de poder. co o Vietnã com napalm – naquela que foi a riência é também a história da aceleração do da o trabalho na exata velocidade que forma
A história da velocidade no século 20, até primeira vitória histórica da lentidão contra mundo. Muito do sofrimento contemporâneo, consumidores, são mantidas gerencialmente
o paroxismo da velocidade da ubiquidade da a velocidade –, o século 20 efetivamente só vários psicanalistas já observaram, se dá na deprimidas, ou estrategicamente encarcera‑
internet de hoje, é também a história da dis‑ acelerou. Na Blitzkrieg da guerra ou do mer‑ impossibilidade psíquica política de muitos das, ou até mesmo socialmente exterminadas,
solução do caráter conflitante da classe traba‑ cado, quem era mais rápido sempre deveria e muitos de nós habitarem tal circuito veloz em zonas de espera pelo mundo, como disse
lhadora em relação à vida de mercado, na vida vencer. De fato, a dinâmica da produção, das traumático da cultura. Porque, como os bits Paulo Arantes. A velocidade mínima para ha‑
social. Como o vírus para o mundo e o dissolve informações e da circulação financeira global dos milhões que decidem a vida das nações, bitar algum lugar de troca em nosso mundo é
por um segundo, a velocidade, o ritmo do pro‑ ganhavam velocidade rumo à quantidade de no fluxo da globalização financeira se moven‑ a dos carros, das motos ou até das bicicletas,
gresso imanente nas formas de vida, foi a liga informação veloz, própria da desmaterializa‑ do como espírito sobre a Terra, os homens além do WhatsApp onipresente, que driblam
inconsciente do aplainamento da vida política ção da vida da internet. Em conjunto com a viraram insumo abstrato e barato alocável e o trânsito parado das metrópoles globais, as
do mundo do trabalho diante do mundo do po‑ repressão, fosse ela soft ou hard, da violência realocável nesses mesmos processos de infor‑ máquinas da vida dos homens avulsos, uberi‑
der. Das metralhadoras e dos aviões, do víncu‑ policial ou da “dessublimação repressiva” do mação e de excitação. O destino deles é ofere‑ zados, neoescravos trabalhadores sem direi‑
lo entre guerra e cinema do início do século 20, mercado de consumo, contra qualquer ordem cer os corpos ao modo mais plástico possível, tos, cuja única chance é se moverem o tempo
pensado por Paul Virilio, à linha de montagem de tempo e de espaço da socialização da vida, sem caráter – disse desde Mário de Andrade todo, levando com eles outras mercadorias,
de produtos de massa que amontoava popula‑ os homens foram redefinidos pelas práticas até Richard Sennett –, para serem um duplo sejam coisas, sejam homens, pela cidade da
ções de proletários e fazia os carros individuais da velocidade. No mesmo processo histórico encarnado da produção de massas industrial, vida sem pouso. Por isso tudo, um vírus que
que os dispersavam pelo mundo, de Henry profundo, eles se constituíram como massas da libido social da flutuação da informação fi‑ faz parar, que faz parar a máquina histórica
Ford, ao aumento constante de produtividade de trabalhadores consumidores, que espelha‑ nanceira global, da performance farsesca da de fato, realiza o maior choque conceitual e
articulado ao aumento constante de bens da vam na própria alma a vida excitada da merca‑ economia dos derivativos, que anima ou desa‑ abre o maior espaço potencial de transforma‑
sociedade de consumo, dos Tempos modernos doria e sua imagem, os ritmos cada vez mais nima suas vidas a partir da possessão central ção que o mundo capitalista é capaz de intuir.
de Chaplin à luta da contracultura de massas velozes do mundo. do dinheiro. Resolvem sua vida como fanta‑ Somos apenas o transmissor veloz do nega‑
dos anos 1950 e 1960 por uma velocidade Velocidade, voracidade de consumo, exci‑ sia da cidadania global no consumo como um tivo real do vírus, uma parte mesma de seu
“para fora” do sistema e para a experiência, tação e repressão social davam forma a uma espaço político sem contrato regulatório pos‑ poder viral. O terror não é o da dissolução
versus a velocidade dos aviões supersônicos classe trabalhadora que se tornava unidimen‑ sível, forma rápida e liberada do desejo, bem dos potenciais de sustentação da vida, que

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bem ou mal se realizam materialmente já há expansão daquilo que foi a grande paixão hu‑ cidades como São Paulo, Níger ou Mumbai,
muito tempo. O terror é o da paralisação do mana do movimento – de compromisso ame‑ por exemplo – simplesmente não existe para
sistema velocidade da vida, que nos diz sem‑ ricano constante: a indústria cultural mundial, o vírus. Ele é revolucionário apenas por distri‑
pre que, para que a coisa do mundo ande, só e sua sociedade do espetáculo. A mensagem e o impacto buir-se de modo mais ou menos democrático,
podemos viver neste grau de mobilização total
dos corpos e dos espíritos. Ninguém pode dar
A segunda globalização, que está em crise
há dez anos, foi a movida pelos circuitos glo‑
universal do vírus sobre todos como único valor reconhecido universal de
unidade entre os homens no mundo do merca‑
de ombros à máquina do mundo. Ninguém. bais do capital financeiro concentrado e das configuram agora mesmo o tempo do. A democratização da morte nos lembra da
Apenas o vírus. Há algum direito às formas desregulamentações e reengenharias empre‑ falta de democracia real. Certamente as clas‑
existenciais da lentidão e do tempo em nosso sariais generalizadas que visavam levar ao de uma terceira globalização ses sociais encontrarão modos diferenciados
mundo? Ou apenas a vida sob a forma de uma grau zero o valor político do trabalho em todos contemporânea, que inaugura de privatização do cuidado e do respeito na
revolta antissistêmica, no limite do geológi‑ os lugares. Ela se articulou à grande exporta‑ hora extrema da universalização da infecção,
co, de um vírus, o menor ser vivo conhecido, ção mundial da indústria e do trabalho para o o século 21 como mundo próprio como bem disse Mike Davis e como denun‑
nosso inimigo mortal e nosso amigo crítico Leste asiático, e à formação radical e celerada de problemas e de experiências cia o pensamento antirracista nas grandes
assustador, pode abrir o homem para a ideia de sujeitos e cidadãos mundiais do consumo, cidades americanas da pobreza e da pobreza
de que há vida para fora do sistema mundial com seu desejo simples apoiado na explosão segundo as marcações que virão negra e latina. Mas, também, nunca entre os
da mercadoria?
A mensagem e o impacto universal do ví‑
da produtividade de um mercado de oferta
mundial de bens em aparente expansão infini‑
dos historiadores homens, ao menos desde as grandes revolu‑
ções socializantes do passado que forçaram a
rus sobre todos – pessoas, países e vida sobre ta. Foi a globalização dos fluxos de informação, universalidade da ideia dos direitos, um polo
a Terra – configuram agora mesmo o tempo de bens, dinheiro e commodities de modo des‑ simbólico/real comum se fez mais ou menos
de uma terceira globalização contemporânea, regulamentados dos projetos sociais nacionais, tão bem distribuído, tão universal em seu di-
que inaugura o século 21 como mundo próprio a globalização neoliberal dos anos 1990 e 2000. forma necessariamente global. De fato, nosso reito irrecusável, tão revelador da unidade da
de problemas e de experiências segundo as Ela visava a um mundo social homogêneo, em primeiro sintoma global. Uma globalização da experiência social sob o que a recusa sempre,
marcações que virão dos historiadores. Afora estado puro de consumidores e de trabalhado‑ crise, de uma impensável por enquanto saúde mesmo que a produzindo de forma negativa.
a globalização estratégica da guerra mundial res sem direitos, de sociedades sem compro‑ pública mundial que se choca com a velocida‑ Pelo negativo e pela morte, o vírus força a
estadunidense constante, a primeira globali‑ misso e pouca ideia do comum. E ela arruinou de extremada a que fomos lançados no mundo consciência da ilusão histórica, produtora de
zação contemporânea que generalizou modos a si própria, depois de um rastro de destruição do mercado de fora e de dentro de nossos es‑ poder, da diferenciação social e da cisão do
de viver se deu ao redor dos tratados de desen‑ mundial, como jogo de pura especulação fi‑ píritos, produzindo, com o choque, estilhaços mundo, em partes, propriedades e classes, ra‑
volvimento e promoção de democracia liberal, nanceira destrutiva levado além do limite, que de sentido. ças e gêneros. Como universal negativo con‑
sob a égide da pax americana para quem a não existia para o dinheiro global, em 2008 e O que agora choca muitos no mundo, com creto, da distribuição da doença e da morte
aceitou..., dos pactos econômicos internacio‑ 2009. Foi nesse espaço histórico de globaliza‑ a revolução simbólica iminente do vírus des‑ e da percepção da irracionalidade destrutiva
nais do pós-guerra que modularam e organiza‑ ção que o Brasil lulista teve um desempenho, fazendo todos os circuitos e contratos entre que é pensarmos a saúde como um bem pri‑
ram a ação e o horizonte de desenvolvimento social e econômico, o melhor possível. Agora nós, e ao mesmo tempo anima tantos outros, vado, e não como trabalho social e coletivo, o
dos países inscritos, o conjunto de consen‑ chegamos à terceira globalização, em uma é o fato simples de que não existem barrei‑ vírus atravessa todo tipo de território estabele‑
sos conhecidos pelo signo de Bretton Woods. significativa mudança de maré do tempo, que ras, fronteiras, propriedade e cisões espaciais cido pelo regime da propriedade, e da história
Essa série de entendimentos econômicos e de impõe ao mundo o próprio recusado. simbólicas – os espaços das diferenças entre as do desenvolvimento capitalista, dos interesses
invenção de instituições financeiras e media‑ A experiência histórica da crise imunológica classes inscritas materialmente nas cidades, individuais e da acumulação privada de ener‑
doras internacionais – Banco Mundial, Fun‑ e de contaminação viral, pandemia, em escala e no mundo cindido de norte e sul, Ociden‑ gia social, que despreza a todos os demais
do Monetário Internacional (FMI), agências de toda a vida mundial, força a problemática te e Oriente, da terra do Capital – que o vírus entes, seres e mundos desta Terra tornada pe‑
internacionais de apoio ao desenvolvimento da saúde como uma perspectiva comum, tanto reconheça, considere ou respeite. Os limites quena. Como bem disse a filha do presidente
regional nos moldes estabelecidos... – criou as humana como do planeta. Algo aconteceu que, materiais, sociais e simbólicos inscritos nas do banco Santander, a segunda vítima do co‑
condições para que a cultura da mercadoria pela primeira vez, nos pôs em necessidade so‑ realidades urbanas das cidades diferenciadas ronavírus em Portugal: onde estavam os milhões
global – o mundo de suas cidades, de suas ca‑ lidária global, como em um barco – na imagem das classes sociais do mundo, que distribuem de minha família quando meu pai implorava por
sas e suas vidas, tanto familiares como indivi‑ antiga do papa Francisco –, ou um avião a jato tudo o que existe de valor de modo radical‑ ar, como todos os demais? O valor da vida e da
duais, bem como a fundamental vida de seus comum, para sermos mais adequados aos fa‑ mente desigual entre os homens – a lógica experiência, da saúde e das relações políticas,
carros... – se projetasse, a partir da década de tos... o destino de nossa dissolução vital junto da acumulação e da diferenciação do Capi‑ quando medido em dinheiro, como forma di-
1960, como a base imaginária e ideal para a à do planeta, que será vivido e resolvido de tal inscrita como urbanização das cisões, em nheiro, caiu próximo a zero, diante do vírus.

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O trabalho social solidário parece valer tanto dos anos 1990 e 2000 apenas se extinguiram, E deve ser por isso que, se quisermos so‑ na Terra é nossa subjetivação para o consumo.
ou mais que os circuitos fantasmáticos do va‑ com o coronavírus humano, por absoluta im‑ breviver a ele, como pessoas e civilização – e Nosso fascismo de consumo, que engoliu a
lor de troca no mundo. Uma dimensão política possibilidade de serem efetivamente pagos na ainda a outros mais como ele, que virão nas subjetivação política no mundo do século 20.
impensável para muitos. nova ordem da economia do mundo, pós-ví‑ mesmas condições de troca, velocidade, hi‑ É preciso diminuir a velocidade, e a veloci‑
O vírus, ao universalizar a transmissão rus. As dívidas terão que ser reinventadas. perprodutividade e desrespeito sistemático dade do sonho subjetivante da vida da forma
da morte, utilizando-se dos próprios meca‑ Todos os efeitos políticos derivados do por qualquer refúgio biogeográfico – precisa‑ mercadoria, sua excitação fetichista e sua atua‑
nismos normais da vida hiperveloz do mun‑ ataque utópico do vírus sobre nossa vida virão mos vitalmente desacelerar, tanto quanto pre‑ ção sobre a vida. É preciso de fato controlar o
do do mercado contemporâneo, faz de todos deste vértice comum: as ordens da proprieda‑ cisamos de consciência e de ciência generosa. vírus. Mas se o vírus é um negativo absoluto,
os homens iguais diante de sua experiência, de, da riqueza e da pobreza, do individualismo A mercadoria precisa sair de seu regime pandê‑ que chegou a todo mundo em tempo recorde
suspendendo radicalmente por um tempo os narcísico de mercado e do desprezo pela ex‑ mico. No momento histórico de grandes con‑ e mudou nossa vida de fato praticamente da
contratos e valores – onde estavam os meus mi- clusão fabricada em escala global, junto com sequências que vivemos, não paramos a vida noite para o dia, é porque ele convida clara‑
lhões diante do universal da crise da saúde que é a mercadoria, não poderão dar conta da uni‑ de trocas de mercado apenas porque a conta‑ mente à experiência do nunca antes pensado.
a mesma de todos? e onde estão diante da reces- versalização da força do comum, que se impõe minação rápida e maciça de um agente infecio‑ Ele já nos pensou, já alterou inteiramente nos‑
são mundial do vírus? – e a onipotência técnica pela presença desabusada e universal de uma so mortal porá em cheque o sistema existente so cotidiano e práticas de existência, no nunca
dos senhores do mundo, fazendo os valores morte material que nos unifica, o vírus, a crise de saúde pública comum, e com ele nossa vida. antes pensado. É essa zona de sombra do con‑
sustentadores de todos os mercados e contra‑ ambiental, tecnológica e humana. Um comum O mesmo sistema de saúde que as sociedades teúdo de seu sentido que terá que ser deseja‑
tos, regidos pela propriedade e pelo direito de que só sabe, por agora, se reconhecer assim. felizes de individualismo de mercado e inimi‑ da e sonhada, e é esse sonho e desejo histórico
determinação dos preços do trabalho, sumirem Por isso, em um processo da reversão do zade do comum tanto atacaram e esvaziaram que estará em grande disputa. Mas não há dú‑
no ar. O vírus mata as pessoas sem respeitar os casamento da virulência do vírus com a vi‑ nos últimos 50 anos, quando pensado apenas vida, essa formulação é um potencial histórico,
estigmas de classe, ou os contratos da injusti‑ rulência de nosso mundo hiperacelerado de na lógica das desapropriações de classe exis‑ constituída como desejo deste autor. Na dispu‑
ça, se preferirmos, e desse modo não reconhe‑ reprodução da vida em desequilíbrio, a ação tente antes do vírus. Paramos a vida também ta pelo sentido por vir da experiência histórica
ce o fundamento do contrato social original do social universal de desacelerar a vida se tornou porque intuímos – em um protopensamento futura, é possível pensar assim. Porém não é
mundo do Capital. Não considera nenhuma parte importante do antídoto. O vírus pegou político ainda não formulado inteiramen‑ necessário que seja assim. Bem mais real é a
propriedade, nenhuma fortuna, nenhuma ne‑ carona na aceleração, desloca-se para dentro te, emergência dolorosa e vital de uma nova atenção aos verdadeiros terrores do passado,
gociação diferencial capitalista para a reprodu‑ dela e revela o valor de sua desrealização da concepção e conceituação por vir, que existe o que nos trouxe aqui. O passado sabe mais de
ção da vida. Ele as desorganiza, tira a organici‑ vida humana e do planeta. O que estou tentan‑ por agora no estado de angústia de uma ver‑ nosso futuro, do que o desejo abstrato de su‑
dade de todas elas. O mundo da reprodução e do sugerir é que a famosa aceleração da vida dadeira pré-concepção, de uma realidade ainda peração da vida má de nosso tempo pelo que
acumulação infinita de valor, que sempre ex‑ urbana global, do capitalismo de poder total impensável – que a crítica da ordem das trocas será o trabalho humano a partir da mensagem
ternaliza a morte e gerencia o extermínio dos sobre a Terra e da gestão das existências... é mundiais hiperaceleradas e hiperconcentra‑ desconhecida do vírus.
outros, não existe diante da ação socializante também o vírus. das em seus polos de decisão e poder faz parte
radical do vírus, que, até segunda ordem, não da mensagem do vírus. Reduzir a velocidade da
respeita a onipotência arrogante do dinheiro vida, desfazendo os contratos de velocidade,
e transforma todos em humanos mais ou me‑ que são verdadeiros conteúdos intangíveis do
nos comuns, miseravelmente comuns diante É preciso diminuir a valor de troca universal da época, passou a ser
da morte e do outro humano, forçando enfim a face social, coletiva e histórica, de preserva‑
uma cultura comum igualmente vulnerável à velocidade, e a velocidade ção da doença diante da própria vida.
dor e à extinção. Me parece isso que está ex‑ do sonho subjetivante da Nosso modo de viver se tornou definitiva‑
presso, por exemplo, quando o Financial Times, mente viral, mortífero. Precisamos de menos
órgão de comunicação dos mestres do univer‑ vida da forma mercadoria, velocidade, de menos ritmo, de menos excita‑
so do dinheiro mundial, propõe em editorial
um novo pacto de Bretton Woods, um novo
sua excitação fetichista ção generalizada orientada para a reprodução
do poder mundial de concentração e investi‑
acordo político-econômico mundial que rea‑ e sua atuação sobre a vida mentos, de modo que tenhamos um mundo de
loque os fundos planetários para a produção algumas qualidades vitais humanas de algum
consciente e planejada de desenvolvimento modo livres de preço. A renda básica universal,
e vida por vir... Por que, de fato, se for assim, é compromisso de todos com todos, também
porque os contratos das dívidas mundiais ge‑ aparece exatamente aí. A formação sociológi‑
radas na ordem da globalização de mercado ca principal que sustenta tal inferno do poder

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Coreia do Sul,
Brasil...
ou o pior
Muitos autores acreditam que a Covid-19 pode mudar
radicalmente a organização do neoliberalismo. Sozinho,
Q uando, no dia 9 de fevereiro de 2020,
o Oscar premiava Parasita nas cate‑
gorias de melhor filme e de melhor
filme estrangeiro, a Coreia do Sul,
país de nascimento do diretor Bong Joon-ho,
já estava diante da disseminação da Covid-19
Assim, enquanto Parasita consolidava uma
trajetória de admiração pela capacidade de
crítica ao neoliberalismo, o governo sul-corea‑
no avançava sua política de articulação entre
exigências sanitárias e imperativos econômi‑
cos. A racionalidade neoliberal – com ênfase
no entanto, o vírus não é capaz de transformações sociais
fazia 20 dias. na máxima responsabilização individual e em
O primeiro caso no país fora notificado medidas de controle extremas – está sendo
Carla Rodrigues e Suely Aires em 20 de janeiro na cidade de Daegu, onde a usada em relação à Covid-19. É, no entanto,
doença foi detectada num grupo de evangéli‑ incompatível escolher Parasita como paradig‑
cos. Adotou-se uma série de medidas de con‑ ma de crítica ao neoliberalismo e eleger a po‑
trole e gestão da população, que incluiu a bus‑ lítica de saúde da Coreia do Sul como exemplo
ca ativa de possíveis pessoas infectadas para de sucesso epidemiológico.
promover o maior isolamento possível no me‑
nor tempo após a contaminação. Estão sendo Parasitas: o filme e as metáforas
usadas diferentes tecnologias de controle, A racionalidade sustentada pela gramática
combinando geolocalização, mensagens em neoliberal, em sua retórica de eficiência e reso‑
telefones celulares e medições regulares de lutividade, produz certa diferença interpretati‑
temperatura em pessoas que estão em contato va quando pensada em relação à população e/
com pacientes diagnosticados com a doença. ou em relação à individualidade. Muitas vezes,
Muito rapidamente, as providências tomadas aquele que elogia o controle da população em
pela Coreia do Sul tornaram-se paradigma de nome da defesa da vida é o mesmo que se opõe
eficácia contra a pandemia. à restrição do direito de ir e vir, em defesa da

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liberdade individual. A vida é aqui pensada de mural com fotos do sr. Park, agora desempe‑ no qual ela se dedica a pensar que existe uma
modo distinto em cada situação: como vida nhada por Ki-taek. O que insiste, assim como dimensão da vida política que está diretamen‑
biológica, a ser preservada do ataque do vírus, o cheiro, não é nomeado. te relacionada à nossa vulnerabilidade à perda
e como vida social e política, a ser reconhecida A suposição de que há uma responsabilida‑ e ao trabalho de luto que se segue. No mundo,
em sua individualidade neoliberal, plena de de individual por ser rico ou pobre, a retórica no fim de abril de 2020 já temos mais de 3 mi‑
direitos mas também carregada de responsa‑ do empreendedorismo de si, o apagamento lhões de casos confirmados e mais de 200 mil
bilidades cujas consequências, em termos de das deficiências de sistemas de saúde pública pessoas mortas, segundo os dados oficiais da
sofrimento psíquico, são incomensuráveis. sucateados ao longo de décadas de redução Organização Mundial da Saúde (OMS). É a par‑
Nesse contexto, mais do que nunca, a noção de Se o excesso de responsabilização de investimentos sociais reproduzem-se nos tir dessa condição de vulnerabilidade, perda e
biopolítica se mantém atual: não há vida bio‑
lógica que não seja política. Mas essa mesma
individual oblitera nossa modos de cuidado relativos à Covid-19. Repe‑
te-se insistentemente que cada um deve fazer
luto – agravado pela impossibilidade de enter‑
rar os mortos – que acreditamos poder mobili‑
distinção pode ainda ser lida como diferença interdependência, a Covid-19 pode a sua parte, de forma autônoma: ficar em casa, zar a filosofia de Butler para pensar o contexto
entre o controle do outro, suposto como aque‑ lavar as mãos, usar álcool em gel. E se alguém da pandemia. Ainda mais quando nos últimos
le que contamina, e a restrição de minha liber‑ tanto nos levar a admiti-la como adoece a culpa pode ser colocada no outro, dias, em 24 horas, o número de óbitos pela Co‑
dade, afirmada como um lugar privilegiado e reforçar ainda mais a produção naquele que não se cuidou, no entregador de vid-19 nos Estados Unidos ultrapassou o nú‑
plenamente racional diante dos riscos. Uma alimentos, no motoboy, na falta de higieni‑ mero de mortos no atentado de 11 de setembro
ficcionalização do outro – imigrante, morador de danos diferenciados pelas zação do mercadinho. O anonimato do vírus de 2001. Corpos enterrados em valas comuns,
de rua, ignorante – como inimigo da saúde pú‑ condições sociais e econômicas convoca, em uma lógica paranoide, um nome sem rituais de despedida e luto que permitam
blica, e, no mesmo movimento, preservação de que o expulse dos limites individuais: chama‑ alguma possível elaboração da perda.
meu lugar social, representado pelos limites da do de “vírus chinês”, esse nome talvez revele “Somos desfeitos uns pelos outros. E se não
casa e ampliado pelo uso das redes. uma paranoia em funcionamento. A lógica de o somos, falta algo em nós. Esse parece ser o
Nesse sentido, o filme Parasita é provocati‑ responsabilização por si e de culpabilização caso com o luto, mas só porque já era o caso
vo não apenas por iniciar com a busca pelo si‑ do outro mostra-se a mesma, sendo ampliada com o desejo. Nem sempre permanecemos in‑
nal de wi-fi de alguma casa ou estabelecimen‑ pelo consumo: não por acaso faltam álcool em tactos. Podemos até querer, ou mesmo conse‑
to comercial, sem pagar o preço pelo acesso. gel, luvas e máscaras; não por acaso, faltam guir por um tempo, mas apesar de nossos me‑
Tampouco pela família trabalhadora que bus‑ respiradores. O que aí se oblitera é a interde‑ lhores esforços, nos desfazemos, na face do
ca outra casa, outras paredes e outro teto sob no carro, e a mulher gozando, implorando pendência, a solidariedade necessária à ma‑ outro, pelo toque, pelo cheiro, pelo tato, pela
os quais se abrigar. Mas sim pelo que aí insiste por drogas, como a prostituta que teria usado nutenção do tecido social. O individualismo perspectiva do toque”, escreve Butler, num
em dissonância. Cabe lembrar que, em 2019 aquela calcinha? em sua concorrência e comparação entre vi‑ trecho que nos desafia, porque neste momen‑
e 2020, não foram poucos os usos do termo O parasitismo pode ser questionado em das, o “eu” que se afirma único e valioso, des‑ to a única forma de evitar a Covid-19 é evitar o
“parasita”, que pareciam fazer referência ao cada um dos casos e coloca-se para além da de‑ considera o “nós” que o contágio da Covid-19 outro, o toque, o tato, o contato, o que também
filme ou ao menos fazer ecoar o sucesso da sigualdade econômica e social, em que os ricos insiste em reafirmar. Não há cuidado para um faz evitar a formação desse “tênue nós” que
película. O servidor público “parasita”, nas parecem ser ricos por merecimento e os pobres que não seja cuidado de todos. Butler propõe fundar na experiência de perda.
palavras do ministro da Economia; a pronta parecem estragar o que tocam, com seu cheiro Se o excesso de responsabilização individual
resposta dos memes e charges que afirma‑ nauseabundo. De um lado e do outro, ambos Interdependência e trabalho de luto oblitera nossa interdependência, a Covid-19
vam que os políticos, esses sim, eram parasi‑ respondem à lógica da racionalidade neolibe‑ Neste ponto, consideramos que a filósofa Ju‑ pode tanto nos levar a admiti-la como reforçar
tas; e tantos outros usos que desconsideravam ral e aparecem como os únicos responsáveis dith Butler pode nos ajudar, com a noção de ainda mais a produção de danos diferenciados
a indefinição de quem é o parasita do filme: o por sua riqueza ou pobreza. Ao fim e ao ter‑ interdependência que vem desenvolvendo pelas condições sociais e econômicas. É aqui
inseto, eliminado pela dedetização gratuita, mo, tudo parece voltar ao “normal”: os ricos em sua obra desde que os Estados Unidos se que a biopolítica mostra sua máscara de mor‑
logo nas primeiras cenas? A família Kim, que se vão para outra casa, uma nova mansão, e os viram diante do trauma de uma grande perda, te: necropolítica que expõe mais radicalmente
busca trabalho por meios ilícitos, mas, tendo pobres mantêm-se pobres, presos ou mortos. os mortos no 11 de setembro. O pensamento à morte uns do que outros e que torna invisí‑
obtido emprego, dedica-se aos afazeres e fan‑ A dissonância insiste por meio da subserviên‑ da autora passou a se voltar para esta pergunta veis e anônimas certas mortes.
tasia ter uma casa como aquela? Ou o casal cia, da saudação cordial de Geun-se ao sr. Park, que a pandemia explicita de forma tão inquie‑ Nesse sentido, passa a ser necessário re‑
Park, cuja fantasia erótica sustenta-se na vida antes de atacar a família Kim na festa de ani‑ tante: “o que nos constitui como nós?”. É um pensar a relação entre as condições sociais e
dos pobres – o homem pedindo à sua esposa versário, e pela sustentação das funções do po‑ dos temas principais do livro Vida precária: os os atos individuais e coletivos, produzindo um
que use a calcinha vagabunda, encontrada rão, com seu acender de luzes e a adoração ao poderes do luto e da violência (Autêntica, 2019), questionamento radical da ênfase dada aos

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Segue a mesma linha o artigo do filósofo sul‑ fim do mundo que o fim do capitalismo. Se a
-coreano Byung-chul Han, cujo diagnóstico é Covid-19 será ou não o fim do mundo, impos‑
muito preciso: “Poderíamos dizer que na Ásia sível dizer. Se seremos todos reduzidos a me‑
as epidemias não são combatidas somente pe‑ ros parasitas, responsáveis por nos alimentar
los virologistas e epidemiologistas, e sim prin‑ de algum outro organismo vivo, também não.
O individualismo em sua concorrência e cipalmente pelos especialistas em informática Com algum otimismo, é verdade, talvez sem‑
comparação entre vidas, o “eu” que se afirma e macrodados”. Em outras palavras, poucos pre nos reste a possibilidade de pensamento
países fizeram tão bem a transição da biopolí‑ crítico que, como já dizia Freud, pode romper
único e valioso, desconsidera o “nós” que o tica de Michel Foucault, organizada por estatís‑ a mera obediência a princípios fixos, sejam
contágio da Covid-19 insiste em reafirmar. Não há ticas, para a biopolítica gerida por algoritmos,
inteligência artificial e administração de perfis.
eles religiosos ou políticos.
Nos anos 2000, o jovem filósofo inglês
cuidado para um que não seja cuidado de todos Mark Fisher escreveu Capitalist realism, cujo
Brasil... ou o pior subtítulo contestava a máxima de Thatcher
Diante da “guerra cultural” que não dá tré‑ e perguntava: “não há alternativa?”. Na filo‑
gua nem em tempos de pandemia, as metá‑ sofia, na psicanálise e na melhor tradição do
foras bélicas estão dominando o discurso na‑ pensamento crítico que pretendemos manter
cionalista, mobilizando as Forças Armadas e viva, trata-se de fazer, a cada momento, as
afirmando a soberania nacional diante das perguntas certas. Talvez seja a última chance
orientações da OMS, organismo supraesta‑ de escutar a dimensão da violência a que esta‑
cuidados individualizados e individualizantes, vida que se alimenta indevidamente de outra tal mal recebido em gestões com forte ênfase mos sendo submetidos e de refazer a pergunta
pois o reconhecimento da interdependência vida para sobreviver. no nacionalismo. O filósofo Paul B. Preciado, de Fisher: “qual é a alternativa?”. É isso... ou
implica uma responsabilidade ética com toda Há um grande conjunto de autores que nesse ponto, foi preciso ao escrever sobre o pior.
forma de vida. É o que sugere o filósofo Achille acredita na capacidade de a Covid-19 pro‑ a articulação entre biopolítica e formas de
Mbembe no contundente “O direito universal mover uma mudança radical na organização controle de doenças, ao afirmar: “Diga-me
à respiração”, em que se pergunta se seremos do neoliberalismo. Sozinho, no entanto, o ví‑ como sua comunidade constrói sua sobe‑
capazes de redescobrir nosso vínculo com a rus não é capaz de transformações sociais. E, rania política e te direi que formas tomarão
totalidade do vivo, a ligação inexorável entre mais, como estamos argumentando até aqui, tuas epidemias e como combatê-las”. Por
humanidade e biosfera. há uma racionalidade neoliberal que permeia aqui, a situação é de catástrofe anunciada,
Por isso, não há como dizer “fique em de tal modo a nossa vida que, por vezes, nem seja pelo desmonte do Sistema Único de
casa” para quem não tem casa, tampouco sequer somos capazes de perceber o quanto Saúde (SUS) que já estava em curso, seja
“fique em casa” para quem não tem como se exaltamos exatamente o que talvez precisásse‑ pela ênfase em “salvar a economia”, frase
manter financeiramente em período de isola‑ mos criticar. Num excelente artigo publicado que oculta não apenas o óbvio – a total inca‑
mento. E, mais, não há como dizer “fique em no Lundi matin, o historiador francês Jérôme pacidade do governo de fazer qualquer tipo
casa porque não haverá hospitais para todos” Baschet chama o novo coronavírus de doença de política de saúde –, mas principalmente
(como se alguma vez tivesse havido, mas essa do “capitaloceno”, que vai nos obrigar, pela retoma um velho slogan do neoliberalismo,
seria outra conversa) sem que se torne eviden‑ primeira vez, a experimentar de maneira sen‑ dito e repetido muitas vezes pela inglesa
te que ficar em casa é primeiro proteger um sível a “verdadeira amplitude das catástrofes Margareth Thatcher nos anos 1970: “Não há
sistema de saúde débil. A contrapartida tam‑ globais”. Ao fazer essa constatação, ele tam‑ alternativa”. Dito com mais palavras, a frase
bém não é produtiva. Dizer “trabalhe, enfren‑ bém argumenta que os indicadores de suces‑ anuncia que, não importa quantas vidas ve‑
te o vírus, seja corajoso” é a desresponsabiliza‑ so da Coreia do Sul só foram possíveis por um nham a ser sacrificadas, quantas famílias ve‑
ção total do Estado diante de qualquer forma conjunto de condições muito particulares, que nham a sofrer, quantos corpos sejam enter‑
de cuidado com as vidas. Qualquer proposta vão desde características geógraficas específi‑ rados em valas comuns e sem direito sequer
de cuidado precisa ser coletiva e ampliada, de cas, passando pela experiência da gripe asiá‑ a ritual fúnebre, a racionalidade econômica
modo que todas as vidas contem como vidas, o tica, em 2002, pela identificação precoce do e a responsabilidade individual devem pre‑
que de forma alguma parece ser o caso de Pa- novo vírus e, principalmente, pelo emprego valecer, reforçando a percepção do filósofo
rasita, seja no filme, seja na metáfora de uma imediato de técnicas de controle da população. Slavoj Žizžek de que é mais fácil imaginar o

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A
“ doença é a zona noturna da vida,
uma cidadania mais onerosa. To‑
dos que nascem têm dupla cidada‑
nia, no reino dos sãos e no reino
dos doentes. Apesar de todos preferirmos só
usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tar‑
de nos vemos obrigados, pelo menos por um

Sobreviver,
período, a nos identificarmos como cidadãos
desse outro lugar.”
É com essas palavras que Susan Sontag
abre seu livro Doença como metáfora, escrito
em 1978, quando a autora fazia seu primeiro
tratamento contra o câncer. Tratava-se, diz ela,

mais
menos de querer analisar esse deslocamento,
uma espécie de migração que nos leva do mun‑
do dos sãos para o mundo das doenças, e mais
de entender a construção dos estereótipos que
as cercam, das “fantasias sentimentais e pu‑

uma vez!
nitivas” que giram em torno delas. Principal‑ em outras épocas da nossa história são, evi‑
mente quando se trata da tuberculose e do cân‑ dentemente, muito procedentes e em vários
cer, assim como, posteriormente, da aids. Seu aspectos bastante esclarecedoras da situa‑
tema, continua Sontag, não é a doença física ção atual. Há, sem dúvida, de uma maneira
em si, seu entendimento e sua descrição médi‑ geral, procedimentos muito semelhantes se
ca, mas os usos que fazemos dela como figura compararmos, por exemplo, as formas de
ou metáfora. Esses usos, por sua vez, precisam contenção e tratamento relativas às epide‑
ser revertidos em seu contrário, na medida em mias que acometeram as cidades europeias
que a autora afirma, peremptoriamente, que no final do século 17, formas que tinham sido
Qual é nossa posição nesse cenário? Somos soldados a enunciação das doenças por metáforas não sucessivamente elaboradas a partir da “peste
contra o quê, de quem, a quem obedecemos, por que é a melhor maneira de lidar com elas. Em vez negra”, que atingira Ásia e Europa no século
obedecemos ou devemos obedecer? disso, se faz necessário e urgente desmontar as 13. Uma cidade “pestificada” era obrigada a
metáforas, para que possamos enfrentá-las e fechar suas fronteiras, era submetida a um
sermos mais resistentes a elas. Eu diria que tal policiamento espacial estrito, as atividades
Ernani Chaves desmonte implica um gesto, que seria ao mes‑ dos citadinos rigorosamente acompanhadas
mo tempo ético e político. Ético na medida em e registradas, as possibilidades de contágio, o
que pressupõe outras formas de convivência controle das visitas aos doentes e a purificação
social, assim como a aquisição de novos hábi‑ das casas supervisionadas pelos médicos, a
tos que implicam, muitas vezes, numa mudan‑ quem cabia a palavra final. Era preciso sempre
ça radical, uma espécie de reeducação. Político conter a possibilidade do contágio e, ao mes‑
uma vez que todas essas discussões só ganham mo tempo, prevenir as desordens, as revoltas,
pleno sentido quando passam a apontar para os crimes, a vagabundagem, as deserções e as
a situação do atendimento à saúde da popula‑ mortes não notificadas. A “cidade pestilenta”
ção, à necessidade de financiamento urgente passa a ser então uma espécie de laboratório,
e crescente para a pesquisa científica, assim um local de experimentação permanente, no
como para a formulação de uma política públi‑ qual são testadas as eficácias dessas medidas,
ca de apoio incondicional aos doentes. seu alcance real, sobre as quais se teorizam,
As inúmeras analogias que têm sido feitas se pensam e se constroem códigos de atuação,
entre a pandemia da Covid-19 e epidemias procedimentos de conduta, assim como se

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exige de todos não exatamente a compreensão to estão na ordem do dia. Ao mesmo tempo, a relação direta que se estabeleceu entre a vida
racional da importância dos cuidados, mas a conclamação à união, ao estar acima das ideo‑ biológica e as intervenções políticas. Ora, mas
obediência, o medo e a servidão. logias, à solidariedade irrestrita, acena para o que há de propriamente singular agora? O que
De Thomas Hobbes a Jean-Jacques Rous‑ o sonho da “comunidade” unida e feliz. En‑ essa explosão desnuda, ilumina, traz à tona de
seau, a filosofia política clássica procurou res‑ tretanto, somos a todo momento lembrados forma tão avassaladora, tão cruel, tão sem con‑
ponder a essa urgência, que implicava em dar de que estamos em guerra, de que lutamos descendência para com elevados sentimentos
conta do paradoxo da “comunidade”, como contra um inimigo comum, cuja letalidade como comiseração, solidariedade, empatia, en‑
querem alguns autores contemporâneos – pa‑ ainda não podemos enfrentar integralmente A proposição de Susan Sontag, fim, todos esses ideais comunitários?
radoxo que insiste em dizer que a comunidade com as armas poderosas da ciência e ao qual Em primeiro lugar, não se trata, necessa‑
é ao mesmo tempo o que nos é necessário, mas sucumbimos aos milhares – um inimigo que segundo a qual era preciso riamente, de atingir com as mesmas medidas
também perigosa e hostil. Lembremos, rapida‑ é, principalmente, “invisível”. A proposição desmontar as metáforas para que profiláticas, por exemplo, a população como
mente, da crítica de Rousseau a Hobbes em Do de Susan Sontag, segundo a qual era preciso um todo, mas sim parcelas da população con‑
contrato social: a submissão de homens disper‑ desmontar as metáforas para que pudéssemos pudéssemos enfrentar melhor sideradas com um potencial elevado de risco
sos ao mando de um só constitui tão somente
um “agregado”, jamais uma “associação”. Em
enfrentar melhor as doenças, revela-se, mais
do que nunca, um relativo fracasso. Parece, ao
as doenças, revela-se, mais do de contágio, de tal modo que não se trata de
combater, pura e simplesmente, o “mal”, mas
suma, “não há nela nem bem público, nem cor‑ contrário, que sempre precisamos de metáfo‑ que nunca, um relativo fracasso também, e principalmente, de combater sua
po político”. Dessa perspectiva, era como se os ras, como se, por meio delas, fosse possível circulação descontrolada e, por outro lado, de
homens hobbesianos só pudessem salvar a pró‑ combater a morte ou ainda encontrar um le‑ procurar proteger o corpo social exposto a pro‑
pria vida se a morte fosse seu bem comum. Em nitivo eficaz. Como se as palavras, enfim, não cessos de contaminação generalizada. Isso é
oposição a isso, sabemos, Rousseau coloca as tivessem perdido sua eficácia simbólica em levado ao paroxismo quando a guerra é contra
ideias de liberdade, justiça e igualdade. O que meio a um mundo dominado pelos algoritmos. um inimigo invisível. Em termos freudianos –
não significa dizer que, com isso, ele tenha re‑ As metáforas guerreiras parecem, então, nos e agora sou eu quem faz o complemento –, o
solvido o problema do paradoxo, pelo contrário, transportar para um cenário de guerra total. medo se transforma facilmente em angústia,
de certo modo o aprofunda, levando a questão Mas qual é nossa posição nesse cenário? So‑ aquela que sentimos quando não estamos de
para outro rumo: se não é possível a existência mos soldados de quê, contra o quê, de quem, namentalidade” –, passou a se constituir numa luvas e tocamos o botão de nosso andar no
de uma “comunidade” – por essa espécie de a quem obedecemos, por que obedecemos ou poderosa chave explicativa. Não há espaço, elevador do prédio onde moramos. Um ges‑
fratura, de ferida, constitutiva das associações devemos obedecer? nem tempo aqui, para que possamos analisar to tão cotidiano, tão “natural”, mas que pode
humanas, que parecem só se reunir, se juntar, A filosofia política mais recente gira em tor‑ e discutir os meandros, as divergências, os disparar um profundo sentimento de angús‑
se agregar, quando se está diante da morte, no de um conceito que, neste momento, tem deslocamentos que o conceito de biopolítica tia. Afinal, será que o inimigo está aqui, comi‑
não da morte individual, de cada um, mas da sido referido à exaustão e atingido um nível sofreu desde que foi retomado em nova cha‑ go, no elevador? Trata-se, portanto, de uma
morte em massa, coletiva –, então só nos resta‑ elevado de saturação e, portanto, de equívocos ve, no hoje mais que célebre último capítulo nova confrontação com a morte, pois embora
ria a solidão, a proclamação da própria solidão, e apropriação apressada: o de biopolítica. Com do primeiro volume da História da sexualidade, o agente tenha nome, ele não tem, por outro
um tema reiterado nos últimos escritos. A exi‑ ele, pretende-se explicar o modo como o poder de Michel Foucault. lado, visibilidade. A “síndrome imunitária”,
gência da solidão se constitui assim como uma é exercido em nossa época, garantindo com Entretanto, em meio a esse debate apaixo‑ como chama Esposito, assume certa propor‑
espécie de revolta silenciosa contra a ausência isso, que determinadas estratégias fortaleçam nado que se instalou desde março de 2020, eu ção delirante: toda proteção será inútil se ela
da “comunidade”. as relações de dominação. Um conceito, igual‑ gostaria de destacar a contribuição que me pa‑ não for visível e reconhecível por todos, com‑
Se retomo aqui, de forma ligeira e apres‑ mente, que procura explicar como a dinâmica rece das mais importantes e que passou quase bate-se o inimigo invisível por meio de um re‑
sada, esse aspecto tão importante da filosofia do capitalismo se metamorfoseia para manter que despercebida em meio à avalanche de críti‑ gime de visibilidade total de nossas armas, a
política clássica, é porque penso que ele retor‑ sua hegemonia e como procura garantir essa cas, de réplicas e tréplicas à posição de Giorgio começar pelas máscaras e luvas que usamos;
na, sob as formas próprias de nossa época e a hegemonia. A ideia de que o limiar de nossa Agamben no texto “O estado de exceção pro‑ o inimigo não é apenas o vírus invisível, mas o
despeito das enormes diferenças, nos intensos, modernidade é marcado por uma nova forma vocado por uma emergência infundada”. Tra‑ outro que não torna visível sua proteção, seu
inúmeros e infinitos debates a que assistimos de imbricação entre vida e política, cujo obje‑ ta-se da contribuição de outro filósofo italiano, escudo, sua arma. Entretanto, como bem lem‑
hoje a propósito da pandemia que nos assola. tivo primordial é a “população” e seus movi‑ Roberto Esposito, no breve texto “Tratados a bra Esposito, não podemos esquecer que por
Vida e morte, medicina e política, participação mentos biológicos transformados em estatís‑ todo custo”, publicado logo após a primeira po‑ trás desses eventos do cotidiano – que talvez
do Estado, exigência de controle e, ao mesmo ticas, as quais geram políticas de prevenção e lêmica entre Agamben e Jean-Luc Nancy. Para se reduzam demasiadamente à esfera da parte
tempo, de contenção das desordens e dos deli‑ enfrentamento de doenças – imbricação essa Esposito, a explosão da pandemia da Covid-19 da população que mora em prédios e condo‑
tos cometidos durante o período de isolamen‑ que ainda suscita uma nova forma de “gover‑ leva ao extremo, às últimas consequências: a mínios aparelhados por complexos sistemas

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Ou seja, em nome da síndrome imunitária, é que a medicina deveria ditar a ação do Esta‑
o próprio corpo democrático que corre perigo, do, e finalmente há a adoção de medidas de
de tal modo que o risco se torna ainda maior: emergência por parte do Estado, que podem
deslizarmos de um regime “emergencial”, deslizar para formas autoritárias e ditatoriais
isto é, provisório, enquanto durar a pandemia, de governar. Entretanto, no caso do Brasil, es‑
Se é verdade que todo trauma ocorre a posteriori, para um “estado de exceção”, quando o provi‑ ses três aspectos ganham uma conotação pró‑

então o futuro próximo e o distante serão sório se torna permanente, quando a exceção
se torna a regra. Mais cauteloso que o Agam‑
pria, devido às enormes desigualdades que
nos constituem e que culminam num enfren‑
marcados por essa experiência, na qual medo ben das primeiras declarações, Esposito faz tamento político com consequências danosas
uma diferença sutil entre “emergência” e “ex‑ para o controle e o enfrentamento da pande‑
e angústia se alternam ceção”. As sucessivas manifestações em apoio mia da Covid-19 entre nós.
à volta da ditadura no Brasil, endossadas pelo Têm-se atribuído aos filósofos, desde que
presidente, mostram que esse perigo é real. Platão resolveu ser o conselheiro do tirano
Entretanto, em relação à pandemia, elas ocor‑ em Siracusa, incompetência absoluta para
rem aqui com o sinal trocado: enquanto diver‑ resolver os problemas que eles mesmos cria‑
sos autores – além de Esposito, Byung-Chul ram. Assim, a ideia de que fazer filosofia sig‑
Han, por exemplo – apontam para o fato de nificaria mais problematizar que apresentar
que as sociedades ocidentais, orientadas pe‑ soluções constitui uma espécie de salvo-con‑
los ideais da democracia, caminhariam para duto que nos redime dessa falta de talento
de vigilância –, trata-se principalmente de en‑ xar de assinalar que, em países como o Brasil, a adoção de medidas autoritárias próprias de para intervenções práticas. Vou fazer uso
frentar um medo que as dinâmicas da globa‑ os embates entre a medicina e a política, suas regimes autoritários como a China, no nosso desse salvo-conduto para finalizar este bre‑
lização infiltraram definitivamente entre nós, proximidades e suas distâncias, revelam o caso a volta ao regime militar garantiria ao ve texto. Como todos os outros que trataram
o medo das migrações, do afluxo de refugia‑ estado precário do atendimento à saúde das presidente não o combate ao vírus pelo uso dessa mesma questão, este artigo surge para
dos, desses “outros” sempre perigosos e que populações mais vulneráveis, desde que o des‑ de medidas autoritárias, que diminuiriam o indicar possíveis caminhos de compreensão
podem trazer consigo toda sorte de doenças. monte progressivo do Sistema Único de Saúde espaço de liberdade das pessoas controladas e até mesmo de respostas – em primeiro lu‑
Em segundo lugar, a medicalização da po‑ (SUS) vem se concretizando nos últimos anos. e obedientes ao regime, mas sim pela atitude gar a mim mesmo – a uma série de questões
lítica e a politização da medicina atinge um pa‑ Nossas condições de vulnerabilidade bioló‑ contrária, de descrédito à ciência, de repúdio e problemas que alguns filósofos, já há algum
tamar inigualável, que remonta ao nascimento gica à pandemia não são resultado, portanto, às determinações da Organização Mundial da tempo, levantaram. Respostas toscas prova‑
da medicina social. Ganha hoje uma enorme apenas de uma deficiência, de uma fragilidade Saúde (OMS), pois afinal de contas se trataria velmente, a serem questionadas e criticadas,
materialidade o princípio foucaultiano de que biológica própria deste ou daquele indivíduo, apenas de um mal menor, passageiro, nada provisórias decerto, que procuram exorcizar
toda medicina, seja ela qual for, em qualquer por questões genéticas; num país de extrema que pudesse vencer a preparação atlética de o medo e diminuir a angústia – sou parte de
regime político, será sempre uma medicina desigualdade social, a prevenção e o tratamen‑ um soldado. A defesa intransigente do isola‑ grupo de alto risco, pela idade e pelas comor‑
social, isto é, uma medicina que visa a estra‑ to das doenças respiratórias, por exemplo, não mento vertical e da subordinação do social ao bidades –, orientadas por meus estudos e pes‑
tégias de prevenção em nível mais amplo e pode ser eficaz diante das precárias formas de econômico sinaliza para o princípio quase nor‑ quisas. Não sei como será o “day after”. Sou
mais global como forma de conter epidemias atendimento à população que só pode recorrer mativo da biopolítica contemporânea: deixar cético quanto aos abalos profundos que tudo
e pandemias. A prática médica mostra, mais ao SUS, das precárias formas de higienização morrer – “alguns têm de morrer... paciência”, isso deixará no neoliberalismo triunfante de
do que nunca, que não opera apenas a partir das cidades, que vão da coleta irregular de lixo disse o presidente – para poder viver. Assim, nossa época. E se é verdade que todo trauma
de uma zona indiferenciada e neutra, a serviço que se acumula nas periferias à ausência de está inteiramente legitimada a morte dos que ocorre a posteriori, então o futuro próximo e
da verdade científica, mas que está enraizada um sistema eficiente de esgotos. constituem um perigo biológico para os outros. o distante serão marcados por essa experiên‑
em contextos históricos e culturais claramen‑ Em terceiro lugar, há o perigo de que esse Desse modo, esses três aspectos se com‑ cia, na qual medo e angústia se alternam – o
te definidos, que não a excluem do debate, ao entrelaçamento entre política e processos pletam e se explicam conjuntamente: há uma que será, certamente, atenuado, mas nunca
contrário, ela está inteiramente imersa nele, biológicos incite a prática abusiva de deslocar parcela da população que precisa ser excluída apagado por inteiro de nossa memória, mes‑
pelas consequências econômicas das medi‑ procedimentos democráticos ordinários para dentro das próprias cidades (e não mandadas mo quando houver vacina. Sei, principalmen‑
das protetivas. Contudo, sempre pensando no disposições de caráter emergencial. Em face para um “vale” ou para uma instituição fecha‑ te, que nunca desejei fazer parte, mais uma
paradoxo trágico entre nossa necessidade de do alto risco que a comunidade corre diante da fora dos muros da cidade, como durante vez, de um grupo de risco, como já tinha sido
estreitar laços comunitários e os perigos que desse invasor mortífero, se impõe e natura‑ a epidemia da lepra), há um controle médico quando do aparecimento da aids. Enfim... so‑
esses laços trazem consigo, não podemos dei‑ liza a necessidade de medidas emergenciais. permanente, regular e contínuo, de tal modo breviver, mais uma vez!

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dossiê

Pandemia:
a antítese
entre
sociedade
e mercado A
s forças da natureza são obviamen‑ e destruindo 12 mil edifícios, Voltaire conjec‑
te indiferentes a modos de produ‑ turou sobre Deus em Poema sobre o desastre de
ção, tempo e espaço. Mas são as Lisboa e aproveitou o ensejo para atingir seus
estruturas sociais que determi‑ adversários filosóficos. Ou o homem nasceu
nam as consequências, o grau de sofrimento e culpado e Deus pune sua raça, ou esse senhor
quem morre mais. Em 1989, o terremoto de São absoluto do ser e do espaço, sem furor, sem
Francisco, de intensidade 7,1 graus na escala piedade, tranquilo, indiferente, segue a eterna
Richter, causou a morte de 63 pessoas e deixou torrente de seus primeiros decretos. Em Carta
A Covid-19 vem no momento em que avançamos cerca de 3.700 feridos. Em 2010, o terremoto sobre a providência, Rousseau respondeu que
em Porto Príncipe, no Haiti, magnitude 7 na não foi a natureza que reuniu 20 mil casas de
selvagemente para o neoliberalismo em suas máximas
escala Richter, matou mais de 300 mil pessoas seis a sete andares e que “se os habitantes des‑
e trágicas consequências e deixou outros 300 mil feridos. Dez meses de‑ sa grande cidade estivessem melhor distribuí‑
pois, uma epidemia de cólera matou 9 mil. dos e possuíssem menos coisas, o dano teria
Quando a natureza atinge a existência hu‑ sido muito menor, ou talvez nulo”. Ou seja,
Marcio Sotelo Felippe
mana, o impulso primário é buscar o culpado não culpemos Deus ou a natureza por males
mais à mão no imaginário. Pode ser Deus, a que são sociais.
cruel natureza ou o enigmático ente a que se O vírus atinge o planeta. O vírus ameaça
denomina destino. Mas muito frequentemen‑ a humanidade. Planeta ou humanidade de‑
te destino é uma expressão que encobre com signam tanto os habitantes de Manhattan, da
um véu de irracionalidade o que é apenas avenue Foch, em Paris, do Leblon, no Rio, ou
obra humana. dos Jardins, em São Paulo – e também desig‑
Quando um terremoto atingiu Lisboa em nam os 800 milhões de pessoas que passam
1755 matando algo entre 70 e 90 mil pessoas fome no mundo, segundo dados das Na‑

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dossiê

ções Unidas (2017). No planeta vive o 1% das aprendendo a desinfetar privadas e vendo
pessoas que detém renda maior que os res‑ quão agradável é essa tarefa.
tantes 99% da população mundial. Vivem 42 Na situação de normalidade, sem pande‑
pessoas cuja riqueza é igual à de 3,7 bilhões mia, convivemos com a desigualdade, a extre‑
A pandemia é como uma radiografia do
dos mais pobres que lutam para sobreviver, ma pobreza e metade da população mundial capitalismo: ao expor a diferença de consequências
para suprir necessidades básicas. Vivem os lutando para sobreviver – como se fossem
que têm renda para ficar em casa e fazer suas fatos da ordem natural das coisas. Mas a pan‑ e sofrimentos que o cotidiano oculta, mostra
compras de alimentos pela internet, os que demia é como uma radiografia do capitalismo: cruamente o injusto, o irracional, a inadequação
não vão comer hoje por causa da pandemia ao expor a diferença de consequências e sofri‑
e os que já não comiam antes da pandemia. mentos que o cotidiano oculta, mostra crua‑ de um modo de produção que exclui a maior
Vivem os que podem se isolar e os que moram
em aglomerados miseráveis, em um cômodo
mente o injusto, o irracional, a inadequação de
um modo de produção que exclui a maior par‑
parte da população mundial dos bens materiais
apenas, para os quais as palavras “confina‑ te da população mundial dos bens materiais necessários para uma sobrevivência digna
mento”, “isolamento” ou “quarentena” são necessários para uma sobrevivência digna
piadas de mau gosto. Vivem 4,5 bilhões de e do acesso a bens culturais ou estéticos que
pessoas que não têm saneamento, água en‑ fazem a consciência transcender os limites da
canada, desprovidos das condições mínimas aridez do cotidiano. Que fazem uma vida valer
de higiene. a pena ser vivida
Para os miseráveis deste planeta, uma ca‑ O capitalismo, afinal, nada mais é do que próprios dos meios de produção anteriores que políticos e liberdades individuais. Impôs-se
tástrofe natural se soma à catástrofe social aquilo que os autores da tradição contratualis‑ implicavam subordinação pessoal dos produto‑ uma limitação à jornada de trabalho, proteção
permanente. A pandemia fará muitos morre‑ ta denominavam estado de natureza, o estado res diretos, servos e escravos: “A sociedade bur‑ à maternidade e proibição do trabalho de me‑
rem antes, mas a rigor a vida com pandemia hipotético que precedia logicamente a socieda‑ guesa em sua totalidade é essa guerra de todos nores. A Constituição de Weimar consagrou
e sem pandemia é uma relativa diferença de de e conduzia, pela razão, os seres humanos à os indivíduos, uns contra os outros, já apenas direitos sociais como direitos humanos. Um
grau de horror. Para quem viu o filme O poço organização política. No capítulo 13 do Leviatã, delimitados entre si por sua individualidade, e pouco mais tarde, o new deal de Roosevelt e as
(2019), seria viver no nível 200 ou no nível 220. Hobbes afirma que na natureza do homem en‑ o movimento geral e desenfreado das potên‑ ideias de Keynes punham o Estado como pro‑
Pesquisas dizem que no Brasil 70% das contramos três causas de discórdia: a competi‑ cias elementares da vida, livres das travas”. Em motor de políticas de proteção social.
pessoas não têm como trabalhar em casa e ção, a desconfiança e a glória. Sobre a questão judaica (1843), diz que a liberda‑ O segundo pós-guerra vê o ápice do Estado
58% dos moradores das favelas têm alimentos A competição leva os homens a atacar os ou‑ de na sociedade burguesa é a de “uma mônada de bem-estar social, particularmente na Euro‑
para apenas uma semana. Estima-se que algo tros tendo em vista o lucro. “Usam a violência isolada, dobrada sobre si mesma”. pa (mas também no projeto de sociedade que
em torno de 50 milhões não tenha contrato para se tornarem senhores das pessoas, mu‑ Nessa guerra, evidentemente a proprie‑ era o espírito da nossa Constituição de 1988).
formal de trabalho e outro tanto esteja em si‑ lheres e filhos e rebanhos dos outros homens.” dade é que determina quem vence e quem Diante do holocausto, o conceito de dignidade
tuação precarizada. E assim, “durante o tempo em que os homens perde. A anarquia, prossegue Marx, “é a lei da humana é consagrado nas modernas Constitui‑
Os que estão relativamente mais protegi‑ vivem sem um poder comum capaz de os man‑ sociedade burguesa [...] e a anarquia da socie‑ ções, a começar pela Lei Fundamental da Ale‑
dos pela estrutura social capitalista têm agora ter a todos em respeito, eles se encontram na‑ dade burguesa é a base do moderno estado de manha. Políticas de proteção dos trabalhadores,
possibilidade de saber como vivem os excluí‑ quela condição a que se chama guerra”. Que coisas público, assim como o estado de coisas garantias de vida digna, saúde, educação, habi‑
dos do planeta. Possuem dinheiro, mas não há não consiste apenas em luta real, mas na dis‑ público é, por sua vez, o que garante esta anar‑ tação, proteção dos idosos, previdência social.
muito o que fazer com ele. Não estão poden‑ posição para tal durante o tempo em que não quia”. Em outros termos, o Estado burguês é Mas, paralelamente, plantava-se a semen‑
do gozar da liberdade de ir e vir que todas as há garantia do contrário. Como esse estado de um modo de garantir e perpetuar o estado de te do neoliberalismo. O caminho da servidão,
constituições burguesas democráticas garan‑ coisas é insuportável – a guerra de todos contra natureza, a liberdade de oprimir. de Friedrich Hayek, foi publicado em 1944. Ti‑
tem tanto aos banqueiros como aos pedintes todos entre indivíduos atomizados – a organi‑ O processo histórico de construção do Es‑ nha veleidades filosóficas que supostamente
das ruas. Não podem frequentar restaurantes zação política da sociedade põe fim a ele pela tado de bem-estar social que alteraria algo embasavam uma noção de moral e sociedade,
cinco estrelas nem viajar, assim como nunca submissão ao soberano (qualquer forma de or‑ na análise fria e crua de Marx em A sagrada mas ao fim e ao cabo consistia em um amon‑
puderam os bilhões de excluídos sair dos limi‑ ganização política). família, escrito na primeira metade do século toado de abstrações, desprovidas de qualquer
tes de seu lugar; não podem flanar às margens Na A sagrada família, Marx descreve a 19, começa nos primórdios do século 20 com método e de análise empírica, que concluíam
do rio Sena, tampouco usufruir as delícias da sociedade burguesa usando a expressão de as Constituições do México e de Weimar. Na que fascismo e socialismo eram duas faces da
sociedade de classes patriarcal em que mu‑ Hobbes, guerra de todos contra todos entre in‑ primeira, os direitos trabalhistas foram decla‑ mesma moeda. Para Hayek, o regime nazista
lheres podem ser usadas como objetos. Estão divíduos atomizados, rompidos os privilégios rados direitos fundamentais, além dos direitos a serviço e financiado pelo grande capital, o

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stalinismo, o new deal e o Estado da Repúbli‑ dito de Rubens Casara, com o título provisório No neoliberalismo, o capital financeiro é sem‑
ca de Weimar eram simplesmente “o Estado”, de Compreender para se revoltar, sustenta que pre soberano.
ente maligno e inimigo da humanidade que a ideologia é transformada em uma específica O que está na cabeça dessa gente é o que
ofendia o valor sagrado da liberdade indivi‑ racionalidade no neoliberalismo). dizia Thatcher. Não há sociedade, há indiví‑
dual. Em 1947 foi criada a Sociedade Mont Paul Verhaeghe, psicanalista belga que duos que lutam por seus interesses e olham
Pèlerin, a partir de uma reunião organizada escreveu um livro sobre as consequências antes para si próprios. A vida social resume-se
por Hayek. Nota-se uma ou outra diferença sociais do neoliberalismo, What about me?, ao mercado. Quem está fora do mercado está
entre os fautores do neoliberalismo, mas a baseado em sua própria experiência clínica, fora da sociedade. O vírus é o mesmo, mas as
noção básica pode ser expressa na identidade A vida social resume-se ao disse em uma entrevista que “o aumento da pandemias são duas. A dos que têm casa, pa‑
entre sociedade e mercado. Em outros termos: mercado. Quem está fora desigualdade nos rendimentos é um traço trimônio, renda, banheiros, água encanada e
perda de direitos dos trabalhadores e ausên‑ típico das sociedades neoliberais. Se pensar‑ a dos que não têm nada disso. Enquanto hou‑
cia de proteção social, entregues os excluídos do mercado está fora da mos nas consequências do liberalismo em um ver capitalismo tudo será dois: pandemias ou
à própria sorte porque estão fora do mercado.
Sem a pretensão filosófica de Hayek, que
sociedade. O vírus é o mesmo, nível mais psicológico, não será exagerado
dizer que o neoliberalismo nos tornou indiví‑
terremotos ou qualquer alteração na nature‑
za que afete os seres humanos. Até o dia em
ainda falava em moral e sociedade, o neolibe‑ mas as pandemias são duas duos competitivos. Se a isso juntarmos a me‑ que nossa existência for transformada em um
ralismo de Thatcher simplesmente resgatava o ritocracia econômica, criamos um sistema de modo em que abrimos mão de nossas próprias
estado de natureza. Em uma entrevista dizia: vencedores e perdedores, em termos indivi‑ forças para receber outras que são possíveis
“quem é a sociedade? Não há essa coisa. Exis‑ duais. O passo em direção à solidão, ansieda‑ somente com um vínculo real entre os seres
tem indivíduos homens e mulheres e existem de e depressão é muito pequeno nesse sistema humanos. Em que escapamos do estado de
famílias, e nenhum governo pode fazer qual‑ binário. Em termos gerais, faz-nos sentir infe‑ natureza para construir uma sociedade real.
quer coisa exceto por meio de pessoas e pessoas lizes, pois somos animais sociais, precisamos
que olham para elas próprias antes”. Passamos do outro, prosperamos em grupo. Esse sistema
por um tempo, continuava, em que pessoas e A análise crítica de Marx, que denunciava o econômico anula esse aspecto crucial da natu‑
crianças foram ensinadas a pensar que o gover‑ papel do Estado de garantir a “ordem anárqui‑ reza humana”.
no deve resolver problemas, ou os sem-teto que ca”, é, portanto, reproduzida com sinal positi‑ Ainda em Sobre a questão judaica, Marx
o governo devia lhes dar uma casa. vo por Thatcher, como o ideal a ser atingido: a contrapõe à sociedade burguesa uma passa‑
A menção às crianças era estratégica. O função do poder político é garantir a liberdade gem de Do contrato social (1762), de Rousseau:
neoliberalismo não se pretende apenas uma dos indivíduos para alcançar apenas seus pró‑ “quem se propõe a tarefa de instituir um povo
concepção de governo e de política econômi‑ prios interesses (pessoas que olham antes para deve transformar a natureza humana (quer
ca. É um projeto que nega a própria ideia de si mesmas, dizia a bruxa). Como a proprieda‑ dizer, o homem em seu estado natural) de um
uma filosofia moral (ainda que Hayek pen‑ de já estabeleceu quem sai na frente, ou quem todo perfeito e solitário em parte de um todo
sasse ter uma, simplesmente a liberdade de vence no aglomerado global de indivíduos que maior, substituir a existência física e inde‑
indivíduos atomizados como valor), que nega olham antes para si mesmos, o projeto “there is pendente por uma existência parcial e moral.
que deva haver uma resposta ou defesa de al‑ no society” significa o massacre social de quem Deve ser despojado de suas próprias forças
guma resposta à pergunta “que devo fazer?”, dispõe somente de sua força de trabalho para para que receba outras, que lhe são estranhas
ou seja, em que medida uma conduta afeta o sobreviver. Se o mercado a absorve, pode ter e das quais só possa fazer uso com a ajuda de
outro. Ele simplesmente elimina o outro por‑ uma vida. Se não, pode morrer à míngua. outros homens”.
que não existe sociedade. Uma ruptura com Como o projeto é transformar a consciência A pandemia vem no momento em que a
qualquer ideia de vínculo entre seres huma‑ humana, os aparatos ideológicos são dispensá‑ Constituição do bem-estar social de 1988 está
nos que transcenda seus interesses como veis. A ideologia faz aparecer como de interesse revogada de fato, a partir do golpe de 2016, e
indivíduos, tais como solidariedade, frater‑ da totalidade a “ordem anárquica” da socieda‑ em que avançamos selvagemente para o neo‑
nidade e igualdade. Quando Thatcher diz de burguesa. Na ideologia ainda há uma ho‑ liberalismo em suas máximas e trágicas con‑
“crianças”, explicita o projeto de liquidar com menagem do desvalor ao valor, tal como a hi‑ sequências. Congelamento de gastos sociais,
a moralidade das relações humanas desde a pocrisia é uma homenagem do vício à virtude. revogação de direitos trabalhistas, reforma
educação. Mais descaradamente: “a econo‑ Mas o neoliberalismo não cuida de dar ao real da previdência. Na pandemia, algo mais que 1
mia é o método, o objetivo é mudar o coração enganosa aparência: a consciência humana trilhão de reais foi liberado para os bancos ao
e a alma”. deve entender como valor o desvalor (livro iné‑ mesmo tempo que salários foram mutilados.

60 61
dossiê

T
“ oda a forma de movimento da in‑ de exploração de mão de obra, porque é disso
dústria moderna deriva [...] da que se trata.
transformação constante de uma Para contextualizar, é importante lembrar
parte da população trabalhadora que o primeiro iPhone, da Apple, foi lançado
em mão de obra desempregada ou semiem‑ em 2007 com seu sistema iOS, e no ano se‑
pregada” – já faz mais de 150 anos que Karl guinte a Google lançou o Android. Juntos, hoje,
Marx identificou em O capital a importância os sistemas operacionais dessas duas empre‑

O despotismo
do exército industrial de reserva para a acumu‑ sas estão instalados na maioria absoluta dos 8
lação capitalista, ao expor como o capital se bilhões de celulares que circulam pelo mundo
beneficia da manutenção de trabalhadores (sim, há mais smartphones do que pessoas
desempregados para forçar mais e mais para na face da Terra!). Ninguém negará, portan‑
baixo os salários e as condições de trabalho to, que houve uma profunda transformação

delivery
dos empregados, num movimento (nacional na maneira como grande parte da população
e internacional) que impõe a lei “sagrada” da mundial se comunica, consome e trabalha.
oferta e demanda e, assim, nas palavras de Também é difícil negar o que há de positivo
Marx, “completa o despotismo do capital” so‑ nessa transformação. No entanto, sob a ca‑
bre a classe trabalhadora. mada dos aspectos positivos, da “facilidade”
De lá para cá, muitos trabalhadores já ou‑ e “comodidade” trazidas para a vida de tantas

do capital
viram essa ideia de modo bastante mais bru‑ pessoas de diferentes classes e países, escon‑
to: “se você não quiser fazer isso por esse valor, de-se uma infinidade de aspectos negativos, a
lá fora tem um monte de gente que quer”. Se maioria deles relacionada às péssimas condi‑
essa é uma constante no desenvolvimento do ções de trabalho e remuneração que tornam
capital, temos boas razões para investigar a viável não apenas a expansão e a populariza‑
forma assumida por esse movimento em nos‑ ção desses aplicativos, mas também a acumu‑
sa época, na qual o incremento da tecnologia lação de capital, em números assustadores,
para substituir, mediar, intensificar e depre‑ nas mãos dos proprietários desses aplicativos
Entre o que Marx observou e nossa quarentena, ciar a exploração de mão de obra, favorecendo em bem pouco tempo.
algo importante se mantém: a lucratividade sempre a acumulação do capital, aparece cada Em época de pandemia, notadamente no
vez mais como um conjunto de facilidades e trabalho dos entregadores com motos, bici‑
do capital é garantida e ampliada pela exploração comodidades ao alcance de um clique. cletas e mesmo a pé, é difícil esconder a forma
multiforme dos trabalhadores Refiro-me, em especial, à importância como se integram essas duas camadas – posi‑
que os aplicativos de mediação de mão de obra tiva e negativa – ao fazer com que cheguem às
assumiram hoje na vida de grande parte da casas em quarentena as mais diversas merca‑
Tarso de Melo população mundial, o que se tornou ainda dorias. Tornamo-nos profundamente depen‑
mais evidente – e crítico – à sombra da atual dentes dessa exploração da mão de obra por
pandemia de coronavírus. Mesmo assim, sei aplicativos para dar conta das tarefas essenciais
que para muita gente talvez soe estranho cha‑ de nossa vida, das necessidades do nosso corpo.
mar de aplicativos de mediação de mão de obra: Ao mesmo tempo, isso se tornou relativamen‑
por um lado, há quem veja neles apenas co‑ te mais acessível. Fomos, assim, levados a um
modidade e goste de classificá-los como apli- novo estilo de vida, que não diz respeito apenas
cativos de serviços, que possibilitam a comuni‑ às classes média e alta, mas a uma parcela cada
cação entre consumidores e “empreendedo‑ vez mais ampla da população, que adere não
res”; por outro lado, aqueles que já repararam por luxo, mas pela compulsoriedade desse es-
na forma como se estrutura a relação entre tilo de vida: não raro, o preço dos produtos en‑
essas empresas-aplicativos e os trabalhado‑ tregues em casa, incluindo a remuneração do
res “conectados” sabem que o mais correto entregador, é menor do que nos estabelecimen‑
seria chamá-los, sem rodeios, de aplicativos tos que passamos a chamar de “lojas físicas”.

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dossiê

Estamos, enfim, “todos” conectados – mas dicais, àquele movimento apontado por Marx tamente contribui para embaralhar a percep‑ nologia nos diz que “o céu é o limite”, mas a
a que custo social? Minha intenção, no âmbito – o número de desempregados e subemprega‑ ção de que, com novas vestes, repete-se ali o lógica cruel do capital se conserva no essen‑
dessas reflexões sobre ética nos tempos da peste, dos permite às empresas-aplicativos um re‑ mesmo “despotismo do capital” do século 19. cial: empurrar o trabalhador para a beira do
é levantar perguntas sobre a forma como cada baixamento da remuneração e das condições E mais: como a figura do capitalista (quase) de‑ abismo para que aceite quaisquer condições
um de nós pode lidar com esse estilo de vida de trabalho que, numa tacada só, garante ao saparece na “mediação” do aplicativo, esse en‑ de trabalho.
que, na verdade, é uma faca no pescoço. Quais capital e a nós, consumidores, o proveito que contro entre trabalhador (que atende) e traba‑ O momento atual, de enfrentamento da
condições temos – como indivíduos e como cada um busca: o lucro para o capital, o “con‑ lhador (que é atendido) parece se dar de modo pandemia, curiosamente reposicionou os ter‑
classe – de enfrentar uma transformação des‑ forto” para nós. apenas horizontal, sem nenhuma sombra de mos dessas questões que vínhamos fazendo
se tamanho? Como seguir em frente quando Numa conferência de 2004, quando essa exploração. Ou, no máximo, como exploração diante das formas atuais de exploração do tra‑
não podemos mais fingir que não vemos que onda dos smartphones e aplicativos era ain‑ do “privilegiado”, que naquele momento está balho. De um lado, expôs as vulnerabilidades
a classe trabalhadora está sendo obrigada a se da uma abstração na cabeça dos inventores, o consumindo, sobre o “empreendedor”, que dos trabalhadores formais, que estão vendo o
travestir de empreendedora para se encaixar sociólogo Richard Sennett denunciava nossa num momento seguinte pode – tem a potência salário ser reduzido ou, pior ainda, estão sen‑
nos padrões terríveis que as empresas impõem, transformação em “consumidores de potên‑ para – assumir o papel do explorador. E assim do entregues ao desemprego. De outro, mos‑
apenas e tão somente porque são cada vez mais cia”. Como exemplo dessa nova cultura, citava sucessivamente, num jogo de espelhos. trou que o Estado tem condições de investir
raras as ofertas de trabalho? Como dizer que a “necessidade” de termos memórias digitais Quando parece que todos exploram todos, de modo mais intenso e decisivo em melhores
voltaremos à “normalidade” quando normal é que comportam infinitos livros e discos que os verdadeiros beneficiários dessa nova e po‑ condições de saúde e de proteção social, em‑
a precarização extrema das vidas? nunca serão lidos e ouvidos, carros supervelo‑ tente forma de exploração têm mais motivos bora não o faça porque, na disputa política
Várias manifestações em meio à pandemia zes para ficar no congestionamento, veículos para comemorar, porque todo esse arranjo pelo orçamento, as necessidades da popula‑
tratam dessas questões pela ótica da “culpa de de guerra para levar os filhos à escola. que permite empresas imensas (iFood, Rappi ção são negligenciadas.
quem é privilegiado”, para pôr a culpa tanto Diante do sociólogo, naquele momento, e UberEats valem, cada uma, alguns bilhões Não sabemos que tempos virão depois
nos outros como em si mesmo, tentando de‑ estava um iPod, que hoje é praticamente um de dólares) “desaparece” justamente quan‑ dessa quarentena, no Brasil e no mundo. Há
finir, a partir daí, a conduta mais correta. En‑ dinossauro tecnológico se comparado aos do sua atuação é mais decisiva: não passar muitas apostas, otimistas e pessimistas, mas
tretanto, parece-me evidente que não se trata smartphones: “o fenomenal atrativo comer‑ ao “empreendedor” nada além dos poucos é bem difícil imaginar como se comportarão
apenas de uma contradição moral (num senti‑ cial do iPod consiste precisamente em dispor reais que sobram da taxa de entrega paga pelo as sociedades no “depois”. Só temos a certeza
do fraco, porque a moral também é concreta) – de mais do que uma pessoa jamais seria ca‑ “consumidor”, eximindo-se de quaisquer das de que o capital não perderá a oportunidade
ser contra a exploração dos trabalhadores mas paz de usar. O apelo está, em parte, na ligação responsabilidades que o capital costumava ter de aprofundar sua dominação sobre o traba‑
beneficiar-se dessa exploração –, e sim de uma entre a potência material e a aptidão potencial com relação ao trabalho. lho. De nossa parte, portanto, é hora de unir‑
contradição concreta – ser parte da classe tra‑ da própria pessoa. [...] comprar um pouquinho Estamos no meio dessa guerra e, se abrir‑ -se em torno de compromissos políticos que
balhadora, que vê suas condições de trabalho de iPod é algo que promete expandir nossas mos os olhos, o fato de termos nas mãos o apa‑ impeçam novas investidas do capital e que
regredirem, e ser forçado a abraçar um novo capacidades; todas as máquinas dessa espécie relhinho que viabiliza essa exploração brutal façam regredir o estágio catastrófico no qual
estilo de vida baseado na hiperexploração dos jogam com a identificação do comprador com torna ainda mais evidente nossa participação já estamos. Por exemplo, medidas jurídicas
trabalhadores, alimentando, assim, um moi‑ o excesso de capacidade nelas contido. A má‑ nesse movimento em que trabalhadores são que tornem os trabalhadores – empregados e
nho em que, mais cedo ou mais tarde, será tri‑ quina torna-se uma espécie de prótese médica rebaixados sob o peso que outros trabalhado‑ desempregados – menos vulneráveis ao des‑
turado. Esse é o nó. gigantesca”, escreve Sennet em A cultura do res fazem, seja para assumir aquela função nas potismo do capital (entre outros despotismos
Não é a primeira vez na história em que novo capitalismo. Vários autores, há muito tem‑ condições oferecidas pelo patrão (agora quase que se somam no mesmo intento contra a po‑
nos deparamos com essa encruzilhada. En‑ po, têm refletido sobre esse comportamento, invisível), seja para atender a um estilo de vida pulação): desde o restabelecimento de direitos
tre o que Marx observou e nossa quarentena, mas o que isso significa em termos de trabalho? que se assenta sobre uma contradição típica trabalhistas derrubados nos últimos anos até
algo de muito importante se mantém: a lu‑ Ter no bolso um aparelho que, em potência, do capitalismo: depende da inserção de muita a consolidação da “renda básica emergencial”
cratividade do capital é garantida e ampliada oferece a “liberdade” de não ter nem patrão gente no consumo, mas empurra os trabalha‑ como auxílio permanente a toda a população,
pela exploração multiforme dos trabalhadores. nem horários e rotinas, um computador mi‑ dores cada vez mais para a miséria. mesmo para quem não precisa – o que afetaria
Hoje, na época das telas acesas, quando os en‑ núsculo que permite ativar-se em múltiplas Os instrumentos são outros, mas, como significativamente a reação dos trabalhadores
tregadores chegam aos nossos portões, somos plataformas, “fazer seu próprio salário”, con‑ sempre, o capital se beneficia ao dispor tra‑ diante da frase já citada: “se você não quiser
postos diante de uma realidade amarga: nosso tatar diretamente os clientes de seu “empreen‑ balhadores contra trabalhadores, desempre‑ fazer isso por esse valor, lá fora tem um monte
estilo de vida, cheio de facilidades, comodida‑ dimento” como entregador ou outro “serviço”, gados contra empregados, informais contra de gente que quer”. Se cada vez houver menos
des e até mesmo segurança ante a ameaça do ao mesmo tempo que também nos mantém formais, mesmo quando diz que está apenas gente lá fora obrigada a aceitar as imposições
vírus, só é possível porque grande parcela da conectados a amigos e familiares, a formas de “conectando pessoas” ou pondo empreen‑ brutais do capital, a conversa será em outros
população está sendo submetida, em níveis ra‑ entretenimento, bancos, notícias, tudo, cer‑ dedores e consumidores em contato. A tec‑ termos – socialmente mais justos.

64 65
dossiê

“[...] a morte dos nossos companheiros teria parecido mais injusta


se pudéssemos prever que aquele fascismo que havíamos combatido,
que nos reduzira a escravos, que nos marcara como gado, estava derrotado,
mas não morto, e se transplantaria de país a país.”
Primo Levi, “Um passado que acreditávamos não mais voltar”

“Arbeit
Macht Frei”:
Brasil, 2020
E
m 18 de dezembro de 2009, a pla‑ berta”. A evocação do artigo de Levi, naquele
A premissa nas relações sociais e de trabalho no Brasil ca de ferro fixada pelos nazistas na momento, era importante para compreender
dialoga perfeitamente com a ideia nazista exposta entrada do complexo de Auschwitz, o significado daquele roubo: o químico italia‑
no letreiro de entrada do complexo de Auschwitz na Polônia, foi roubada. A escrita no, de origem judaica, passou onze meses, en‑
“Arbeit Macht Frei”, ali colocada pelos alemães tre fevereiro de 1944 e janeiro de 1945, como
em 1940, foi encontrada três dias depois pela prisioneiro no campo de trabalho e extermí‑
Aislan Camargo Maciera polícia polonesa no norte do país. Os cinco nio de Monowitz (Auschwitz 3). Sobrevivente,
homens acusados do roubo foram presos e, transformou-se em um dos maiores escritores
apesar das evidências de que agiam pagos por da literatura italiana do século 20, referência
alguém que encomendara o delito, assumiram fundamental da literatura de testemunho so‑
a culpa. O episódio teve repercussão significa‑ bre a Shoah e a Segunda Guerra Mundial. Seu
tiva na imprensa mundial e, naquela ocasião, livro de estreia, É isto um homem?, publicado
os jornais recuperaram um artigo do escritor pela primeira vez em 1947, é um documento
italiano Primo Levi, que tinha como título a indispensável da memória dos prisioneiros
inscrição do portão de entrada do Lager. dos campos de concentração nazistas.
O texto, publicado pela primeira vez em Primo Levi, sobretudo no início de sua
novembro de 1959 pelo periódico Triangolo carreira como escritor – período que com‑
rosso, veículo da Associação dos Ex-deporta‑ preende o final da década de 1940 e o início
dos Italianos, vinha mais uma vez a público da década de 1970 –, contribui com vários
para questionar o significado daquelas três veículos antifascistas e ligados a partidos
palavras: em tradução livre, “o trabalho li‑ de esquerda, escrevendo artigos, ensaios

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e contos que, em alguns casos, seriam in‑ trabalhar”, e engrossando o coro de uma elite significativamente as possibilidades de contá‑
corporados a algumas de suas obras poste‑ econômica muito preocupada com seus ganhos, gio. Talvez os patrões – aqueles que, a bordo
riormente. Em “Arbeit Macht Frei”, Levi fala e pouco ou nada interessada na saúde e bem‑ de seus confortáveis automóveis que custam,
sobre o trabalho, tema ao qual voltaria com -estar dos trabalhadores, determinados seto‑ no mínimo, em torno de setenta vezes o sa‑
mais profundidade em seu sexto livro, A cha- res da sociedade colocam despudoradamente
À elite, os lucros e a lário médio de seus funcionários, saíram em
ve estrela (1978): o diálogo entre um químico em questão a letalidade do novo coronavírus carreata nos últimos dias em várias cidades do
e um operário, montador de grandes estrutu‑ e o número de mortes causadas pela Covid-19. possibilidade de acesso Brasil – também não se importem. E por quê?
ras metálicas, que viaja o mundo todo para Com isso, conduzem manifestações – que vão
realizar seu ofício, é uma ode àquilo que Levi de encontro à principal recomendação da Orga‑
aos bens materiais e Porque esse pensamento egoísta e elitista está
arraigado na cabeça daquele que nasceu, cres‑
chama de “trabalho liberatório”, muito di‑ nização Mundial da Saúde (OMS): evitar aglo‑ imateriais; à classe média, ceu e vive em uma sociedade com as bases fin‑
ferente do trabalho ultrajante e sem sentido merações – a fim de encorajar a volta daquilo cadas na sociedade escravocrata.
dos prisioneiros dos campos de concentração. que chamam de “atividade produtiva”. Produ‑
o sonho inalcançável, O regime nazista transformou seus prisio‑
O livro foi alvo de certa parte da crítica mar‑ tiva para quem? revestido e disfarçado neiros em “bons animais de trabalho, analfa‑
xista, mas através de Faussone, o protagonis‑ Levi já dizia, a respeito da inscrição nazis‑ betos, sem qualquer iniciativa, incapazes de
ta-operário, Levi dá a entender a ideia de tra‑ ta: “seu significado literal é ‘o trabalho liberta’; de possibilidade, de se rebelar e criticar”. No que a “elite do atra‑
balho que liberta: “Excluindo-se momentos seu significado profundo é bem menos claro, pertencer à elite; so” quer transformar sua classe trabalhadora?
prodigiosos e singulares que o destino pode só pode causar perplexidade e presta-se a al‑ Levi nos faz refletir, dando parte da resposta:
nos dar, amar o próprio trabalho (o que, in‑ gumas considerações”. Continua o autor: “É às classes trabalhadoras, “frases como a de Auschwitz, ‘O trabalho li‑
felizmente, é privilégio de poucos) constitui mais provável que [a frase] tivesse significa‑
a melhor e mais concreta aproximação à feli‑ do irônico [...]. Traduzida em linguagem ex‑
a ilusão de que berta’, ou como a de Buchenwald, ‘A cada um
o seu’, assumem um significado preciso e si‑
cidade sobre a Terra: mas esta é uma verdade plícita, ao que parece, ela deveria soar mais o trabalho liberta nistro. São antecipações das novas tábuas da
que pouquíssimas pessoas conhecem”. ou menos assim: ‘O trabalho é humilhação e Lei ditada pelo patrão ao escravo e válida só
Em tempos de quarentena, nos quais o tra‑ sofrimento, e não compete a nós, Herrenvolk, para este último. Se o fascismo tivesse preva‑
balho volta a ser tema – assim como em 2009, povo de senhores e heróis, mas a vós, inimigos lecido, a Europa inteira estaria transformada
quando ocorreu o roubo do letreiro da entra‑ do Terceiro Reich. A liberdade que vos espera num complexo sistema de campos de trabalho
da dos campos da morte –, é necessário que é a morte’”. As palavras do autor impactam. forçado e de extermínio, e tais palavras, cini‑
voltemos ao texto de Levi. O atual contexto O impacto vem da verdade que as palavras militarismo, colonialismo, corporativismo” camente edificantes, seriam lidas na porta de
de pandemia e os discursos que dele surgem trazem: de fato, a inscrição sobre o portão do essenciais ao fascismo, “está a vontade clara, entrada de todas as fábricas e de todos os can‑
permitem-nos, a partir de potente analogia, complexo de Auschwitz era escárnio, rebaixa‑ por parte de uma classe, de desfrutar do tra‑ teiros de obras”.
demonstrar como o autor italiano, muito além mento, humilhação. balho alheio e, ao mesmo tempo, negar-lhe Mas a derrota de Hitler e Mussolini na
de testemunha dos campos nazistas, é um dos A premissa, nas relações sociais e de tra‑ qualquer valor humano”. Segunda Guerra não foi a derrota total do fas‑
maiores pensadores do século 20. O roubo do balho no Brasil, dialoga perfeitamente com O contexto no qual vivemos, evidentemen‑ cismo. Em trecho do artigo citado na epígrafe
letreiro do campo de Auschwitz configurou-se, a ideia nazista exposta no letreiro de entrada te, não se aproxima da máquina de extermínio deste texto, publicado em 1974, Primo Levi
naquela ocasião, como um atentado à memó‑ do campo da morte. Tais relações sempre se nazista da Segunda Guerra. Mas, ao pensar sentencia: “Cada época tem seu fascismo: [...]
ria e à história. Hoje, no mundo totalmente em pautaram pela hierarquização, pela desvalo‑ nos constantes desvarios do presidente da a isso se chega de muitos modos, não necessa‑
alerta devido à disseminação de um vírus e à rização e estereotipação do trabalho braçal, República apelando para que as pessoas vol‑ riamente com o terror da intimidação policial,
doença que ceifa milhares de vidas todos os pela desigualdade social e pela discrimina‑ tem ao trabalho “porque a economia não pode mas também negando ou distorcendo infor‑
dias, trata-se de um atentado à vida. ção racial. À elite, os lucros e a possibilidade parar”, e ameaçando baixar decretos que pos‑ mações, corrompendo a justiça, paralisando
Diante da situação de crise pela qual pas‑ de acesso aos bens materiais e imateriais; à sibilitem a reabertura do comércio e dos ser‑ a educação, divulgando de muitas maneiras
samos, uma crise, acima de tudo, humanitária, classe média, o sonho inalcançável, revestido viços em uma situação de pandemia global, sutis a saudade de um mundo no qual a ordem
alguns parecem querer ressoar a inscrição na‑ e disfarçado de possibilidade, de pertencer à vemos claros exemplos de como o valor hu‑ reinava soberana e a segurança dos poucos
zista, roubando não o letreiro em si, mas o sig‑ elite; às classes trabalhadoras, a ilusão de que mano é negado a determinadas camadas de privilegiados se baseava no trabalho forçado
nificado quase sarcástico que sua mensagem o trabalho liberta. Quando a elite econômica nossa população. Talvez o presidente não se e no silêncio forçado da maioria”.
contém. Não a transmitem literalmente, mas escolheu colocar um típico reverberador das importe – ou não tenha pensado, já que esse Em suma, a brutalidade e a violência fas‑
apresentam em seu discurso a real essência ideias fascistas no poder, escolheu se distan‑ não é seu forte – com as pessoas que, todos os cistas emergem, travestidas de preocupação
daquilo que ela significa. Emitindo aos qua‑ ciar ainda mais dos indesejáveis. Levi afirma‑ dias, durante horas, espremem-se no trans‑ com o povo, com a tradição e com a Pátria. É o
tro ventos que as pessoas “querem e precisam va, em seu texto de 1959, que por trás de “todo porte público para ir ao trabalho, aumentando que vemos. É o que nos diz Primo Levi.

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dossiê

Maquiavel
demoníaco
M
aquiavélico! Como o nome Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio
A lição do filósofo florentino para nosso de um modesto secretário e História de Florença. Foi apenas em outubro
presente, um tempo de liberdade sob ameaça florentino, amante da liber‑ de 1531, quatro anos depois da morte do autor,
dade, do povo e da República, que o tipógrafo Antonio Blado, de Roma, publi‑
se transformou em adjetivo que denota um cou os Discursos. O príncipe saiu alguns meses
Alvaro Bianchi comportamento pérfido, falso e malévolo? mais tarde, em janeiro de 1532, e as Histórias
Quantos personagens há na obra de Maquia‑ em março. Pouco depois apareceram em Lyon,
vel que poderiam ter ocupado esse indesejado na França, as Óperas toscanas de seu ex-amigo,
lugar, o de dar nome ao mal: os cruéis Agáto‑ o poeta Luigi Alamanni, nas quais é feita re‑
cles, Oliverotto de Fermo e Ramiro de Orco; o ferência jocosa a um “áureo livro moral”, que
implacável César Bórgia; o obstinado Giuliano intérpretes julgaram ser O príncipe.
della Rovere. É verdade que a fama de Nicolau Alamanni, exilado na França depois de ter
Maquiavel em Florença não era das melhores, participado de uma fracassada conjuração
e quando ocupava o posto de segundo secretá‑ para assassinar Giulio de Médici, nunca per‑
rio foi denunciado duas vezes: uma por práti‑ doou Nicolau por ter tentado se reaproximar
cas sexuais condenadas e outra por apropriar‑ dos senhores de Florença. Para alguns, o poeta
-se de documento oficial. Mas certamente não foi o autor do primeiro documento do antima‑
merecia esse adjetivo. quiavelismo. Inaugurou assim um gênero da
Talvez seja essa fama e as inimizades que literatura política. Outros o seguiram, como
angariou em Florença, ao lado daquela “grande o cardeal Reginald Pole, que ouviu Thomas
e continua malignità di fortuna” da qual sempre Cromwell, chanceler de Henrique VIII, refe‑
reclamou, que fizeram a publicação de suas rir-se ao florentino e mais tarde teve a opor‑
obras principais demorar tanto – O príncipe, tunidade de lê-lo, durante uma estadia na

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Itália. Em um texto redigido em 1539, mas níaca perdura e resiste até mesmo em plenos
publicado apenas dois séculos depois, Pole séculos 20 e 21. É bastante conhecido o comen‑
definiu Maquiavel como “inimigo do gênero tário de Leo Strauss, em 1958, o qual conside‑
humano” e O príncipe como um livro “ditado rava a doutrina de Maquiavel “diabólica e ele O que nunca perdoaram em Maquiavel foi a
pelo diabo”. Os ataques contra ele se tornam
mais frequentes e intensos, porém, a partir
próprio é um diabo”. Ideia semelhante aparece
em livreco de Olavo de Carvalho, publicado em
afirmação de uma moralidade laica, mundana e
da segunda metade do século 16, e seu nome 2011, no qual o objetivo de Maquiavel é definido feroz, que via no povo o guardião da liberdade
passou a integrar o Index de livros e autores
censurados ou proibidos já em 1557, quando
como a construção de um “Estado pós-cristão
ou anticristão”, o que exigia “abolir a Fortuna
e nos grandes a fonte da dominação e da opressão
foi incluído na categoria de “culpado”. Tam‑ em nome da Virtù, subjugar Deus a uma vonta‑
bém entrou no Index librorum prohibitorum a de humana que escolheu livremente o Inferno”.
Summo Pontifice, publicado em 1564, durante Conclui o astrólogo afirmando: “Se isso não é
a última sessão do Concílio de Trento, quando diabolismo em estado puro […], então é preciso
o florentino passou a fazer parte da categoria rever a definição de diabo”.
“primeira classe”, composta de autores que ti‑ Como compreender essa interpretação teo‑
veram não apenas as obras condenadas, mas lógica – escatológica, às vezes – e sua persistên‑ losofia, e não naquelas máximas da política prá‑ das misérias e sofrimentos do povo da penín‑
também o próprio nome. cia? Fosse ela meramente ficcional não poderia tica que fizeram sua fama. Embora poderosa, a sula Itálica. A autonomia da política era não
Embora a antimachiavellistica seja vasta e ter durado tanto. Mesmo a mentira precisa da interpretação croceana era falha. Croce negava apenas um princípio heurístico, um “cânone
tenha se espraiado pelos séculos, a imagem verdade para sobreviver. Benedetto Croce pode ao florentino uma moral que lhe era imanente. de interpretação”, como diria Croce. Era, tam‑
esculpida por Pole era também de outros ajudar a resolver esse enigma. Em um peque‑ Não é possível deixar de notar uma moral laica, bém, um desafio político ao poder da Igreja.
tantos, e o secretário florentino passou a ser no texto, publicado em 1925, o qual se tornaria terrena, na obra de Maquiavel, na qual a resis‑ É por essa razão que o antimaquiavelis‑
visto como uma figura demoníaca. Para o hu‑ peça-chave da machiavellistica contemporânea, tência do povo à opressão é a própria medida mo foi predominantemente conservador ou
guenote Innocent Gentillet, que publicou, em o crítico abrucês anunciou: “Maquiavel desco‑ da política. É nessa chave que ganha sentido a reacionário. Maquiavel não ofendeu muitas
1579 um discurso contra Maquiavel, tratava-se briu a necessidade e a autonomia da política, crítica do florentino à Igreja, essa colossal força almas sensíveis e piedosas que considera‑
de um defensor das tiranias e responsável por que está além – ou melhor, aquém – do bem e heterônoma que subjugava as cidades e conde‑ vam aberrante seu realismo político. As pes‑
ter ensinado aos franceses “ateísmo, sodomia, do mal moral, que tem leis contra as quais é inú‑ nava o povo à dominação. Naqueles dois humo‑ soas que se sentiram ofendidas eram, em sua
perfídia, crueldade, usura e outros vícios se‑ til rebelar-se, que não pode ser exorcizada nem res que segundo Maquiavel sempre habitam as maioria, representantes dos poderes políticos
melhantes”. O livro de Gentillet circulou por expulsa do mundo com água benta”. cidades – o povo que “não quer ser comandado e eclesiásticos dominantes. Se tem algo que
toda a Europa e foi rapidamente traduzido Essa revolução copernicana, essa desco‑ nem oprimido pelos grandes” e “os grandes elas nunca perdoaram em Maquiavel não foi
em latim, inglês, holandês e alemão. Ao todo berta da autonomia da política levada a cabo [que] desejam comandar e oprimir o povo” –, a aquela máxima que recomendava ao príncipe
foram 24 edições nos 75 anos após a primeira por Maquiavel, era interpretada por Croce no Igreja sempre esteve do lado dos grandes, en‑ ser temido, ou a outra que dizia para usar bem
publicação. Outros livros se seguiram e nas últi‑ âmbito de sua filosofia dos distintos, a qual quanto o florentino sempre depositou sua espe‑ a crueldade, ou ainda aquela que prescrevia
mas décadas do século Maquiavel se tornou um distinguia o espírito teórico do espírito práti‑ rança no povo. Apenas este poderia assegurar a realizar as injúrias “todas juntas” e os bene‑
personagem conhecido de muitos. Sinal dessa co, produtor de ações e não de teorias, e por liberdade da cidade. fícios “pouco a pouco”. A Igreja da Inquisição
difusão era sua presença no teatro elisabetano, sua vez distinguia neste último as dimensões Por um lado, a relação de Maquiavel com não precisava do florentino para saber disso,
frequentemente como a própria encarnação do da Economia ou da Política, referente ao útil, a moral cristã não era de mera indiferença, e os jesuítas, seus adversários ferrenhos, não
demônio, o qual muitas vezes recebia o apelido e da Ética, própria do bem. Croce esclarecia como sugere Croce. O pensamento do floren‑ estavam muito dispostos à autoacusação. O
de Old Nick. Marlowe colocou o próprio floren‑ que o conceito de útil não se confundiria com tino assumia uma atitude hostil e fortemente que nunca perdoaram em Maquiavel foi a afir‑
tino na abertura de O judeu de Malta, fê-lo dizer o mero egoísmo. Por essa razão, embora Eco‑ antagônica a essa moral. Têm razão aqueles mação de uma moralidade laica, mundana e
“para alguns, talvez meu nome seja odioso”, e nomia e Política fossem atividades amorais, que desde o século 16 o acusam de violar pre‑ feroz, que via no povo o guardião da liberda‑
Shakespeare se referiu em Henrique VI ao “as‑ não era imorais. A relação da Economia e da ceitos caros ao cristianismo. Nessa crítica, é de e nos grandes a fonte da dominação e da
sassino Machiavel”. Política com a Ética não era, assim, de antago‑ bom lembrar, católicos como Pole e protes‑ opressão. Essa é a verdade do antimaquiave‑
A história da antimachiavellistica procede nismo, e sim de distinção. tantes como Gentillet sempre concordaram. lismo e essa é a lição do secretário florentino
sem interrupção pelos séculos, mas os argu‑ A invenção de Maquiavel, segundo Croce, Mas o princípio cristão mais importante que para nosso presente, para um tempo no qual
mentos principais já estavam todos postos no era em primeiro lugar uma descoberta filosófi‑ Maquiavel violou foi o da autoridade – e, em a liberdade se encontra sob ameaça. E é por
16. Os contextos são outros e os atores políti‑ ca. O que havia de verdadeiramente revolucio‑ primeiro lugar, a autoridade da Igreja, vista isso que para os grandes ele continuará sendo
cos muito diferentes, mas a imagem demo‑ nário na obra do secretário florentino era sua fi‑ como uma força corrupta e dissolvente, causa sempre demoníaco.

72 73
dossiê

T
“ ome cuidado e proteja os outros.” -nos a entender as muitas operações materiais,
A Organização Mundial da Saúde simbólicas e afetivas envolvidas na complexa
(OMS) é incisiva na recomendação relação de cuidado e a importância delas.
quanto às medidas protetivas bási‑ No cruzamento dessas perspectivas, o cui‑
cas diante da pandemia da Covid-19. Na crise dado se afirma como operação básica da pro‑
global, o cuidado se torna a chave indispensá‑ dução da vida e da sociabilidade, por meio da
vel para compreender as muitas dimensões qual indivíduos se ocupam diretamente em

Cuidado
dos problemas gerados, agravados ou expos‑ garantir existência de outros. Ocupam-se con‑
tos pelo novo vírus. cretamente dos corpos, em especial daqueles
Cuidar de si, cuidar do outro, cuidar do que são dependentes, em suas necessidades
próximo, cuidar dos seus, cuidar de quem é físicas. Limpam e nutrem. E o fazem não em
mais vulnerável, cuidar de idosos, cuidar de abstrato, mas cozinhando, varrendo, lavando
quem cuida, cuidar da sociedade. Nos dis‑ roupas e vasos sanitários, dando banhos, reco‑

em surto: da
cursos públicos, o cuidado aparece como ele‑ lhendo fezes, limpando secreções.
mento essencial para sairmos de um labirinto Tais operações, em sua concretude, mos‑
assustador de incertezas que toma proporções tram-se literalmente vitais. A vida não existiria
civilizacionais. sem elas. Basta pensar o que seria dos bebês se
Em paralelo, toma forma um conjunto de não fossem cuidados. Por isso mesmo, esses

crise à ética
medidas emergenciais gerado pela pressão do saberes-fazeres que garantem nossa humani‑
isolamento social. Os governos buscam aten‑ dade material nunca são só físicos. Entram no
der materialmente às faltas geradas por quem, domínio da formação subjetiva das pessoas,
forçado a se isolar, cuida de si e dos demais. tanto de quem cuida como de quem é cuida‑
Rendas garantidas, em variados formatos e do: sentir segurança, lidar com o sofrimento,
em diversos países, surgem como alternativa sentir-se bem física e mentalmente. O cuida‑
para viabilizar essa operação de cuidado cole‑ do é também atenção, presença, antecipação,
tivo sem correlatos na história humana. trato das angústias.
Mas o que nos mostra a visibilização do cui‑ Descrever essa série de atividades, mate‑
Cuidar de si, do próximo e da sociedade, como agora dado na pandemia? Estamos realmente diante riais e afetivas, num momento de crise como
se quer para o enfrentamento da pandemia, passa de uma mudança no valor atribuído ao cuida‑ o presente, dá sentido a muita coisa. Tudo isso,
pela concretude da vida de quem sempre cuidou do? Percebemos, finalmente, que todo ser hu‑ de súbito, torna-se importante, já que muitas
mano precisa de cuidado? É tempo de uma éti‑ pessoas passam a ser confrontadas com a rea‑
ca do cuidado? Medidas como a renda mínima lidade cotidiana dessas tarefas no isolamento.
Pedro Augusto Gravatá Nicoli e Regina Stela Corrêa Vieira garantida integram esse processo? E o que será Além disso, há a expectativa de necessidades
de tudo isso quando o pior passar? ainda mais duras, mais intensas de cuidado,
O primeiro passo para tentar responder a na hipótese crescente de adoecimento. Gente
essas questões é entender o que é o cuidado e que nunca cuidou diretamente, ou que nunca
desenhar um quadro mais preciso de como uma o fez de maneira extensiva, passa a ter que cui‑
crise do cuidado se instalou entre nós, de ma‑ dar. E talvez aprenda algo com isso.
neira ainda mais aguda, no curso da pandemia. O problema é que, ao longo da história, as
Definir cuidado não é fácil. Há muitas for‑ coisas têm sido diferentes. Essas atividades
mulações e disputas ao redor do conceito. Con‑ são tradicionalmente feitas por pessoas em
tudo, ele se afirma em muitos campos do saber condição de precariedade, consideradas so‑
como um elemento indispensável para com‑ cialmente subalternas. Por mulheres, em sua
preender como se produz e se mantém a vida absoluta maioria. Por mulheres negras, po‑
social. Nas especialidades da saúde, na psico‑ bres. Como empregadas domésticas, diaris‑
logia, na sociologia, na filosofia e no direito, es‑ tas, babás, cuidadoras de idosos, auxiliares de
tudos rigorosos, nas últimas décadas, auxiliam‑ enfermagem. Cuidar de si, do próximo e da

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garantida tem o potencial de dar forma à difi‑ Precisamos acreditar que não. Que essa
culdade de medir o valor de algo tão concreto experiência permitirá compreender que mo‑
e difuso, tão permanente, tão presente no co‑ delos como o da renda garantida devem com‑
Nunca antes entendemos tão bem a precariedade tidiano como o cuidado. Afinal, como valorizar por o quadro institucional permanente de re‑
as longas horas em que uma mãe concretamen‑ conhecimento e valorização do cuidado, junto
generalizada de nossas existências. Somos te se dedica a um filho doente? Ou que uma avó com uma redistribuição das próprias respon‑
radicalmente dependentes. Nunca sentimos toma conta de seus netos para que a mãe possa sabilidades por esse cuidado, em termos de
trabalhar fora? Garantir renda mínima é, aqui, gênero e raça. Que um debate concretamente
nossa vulnerabilidade de maneira tão evidente. exatamente o que o adjetivo propõe: o mínimo. situado sobre uma ética do cuidado ganhará
A necessidade monumental de cuidado para que a No caso brasileiro, diante das pressões so‑
ciais intensas, firmou-se um programa de ren‑
espaço, ocupando o centro da arena legislati‑
va e executiva e o coração das políticas econô‑
humanidade continue a existir está diante de nós. da básica emergencial, direcionado a trabalha‑ micas. A economia, afinal, só tem sentido se
doras e trabalhadores informais, autônomos a vida se reproduzir de forma adequada para
e sem renda fixa. A medida afeta o mundo do todas e todos.
cuidado de algumas formas. Uma delas é a pró‑ O que a crise do coronavírus promove é
pria possibilidade de trabalhadoras do cuidado, também uma janela histórica. Nunca antes en‑
que perderam a fonte de renda, receberem esse tendemos tão bem a precariedade generalizada
sociedade, como agora se quer para o enfren‑ dos novos arranjos. Se o discurso do cuidado benefício. É o caso, por exemplo, de muitas tra‑ de nossas existências. Somos radicalmente de‑
tamento da pandemia, passa pela concretude assume formas positivas, a primeira vítima balhadoras domésticas e cuidadoras informais. pendentes. Nunca sentimos nossa vulnerabili‑
da vida de quem sempre cuidou. fatal do vírus no Rio de Janeiro foi uma traba‑ Apenas para que se dimensione, o Instituto dade de maneira tão evidente. A necessidade
A realidade dessas trabalhadoras não se lhadora doméstica. Nas famílias em isolamen‑ Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) es‑ monumental de cuidado para que a humani‑
explica com o enaltecimento do cuidado ati‑ to, aumenta a violência contra as mulheres, a tima que, em 2020, o Brasil tenha mais de 4,5 dade continue a existir está diante de nós. Que
vado pela crise. As profissões do cuidado não quem as estruturas sociais atribuem o dever milhões de trabalhadoras domésticas na infor‑ essa janela nos sirva, então, para fomentar um
têm valorização institucional articulada, sen‑ do cuidar. Nas linhas de frente da atenção à malidade. Além disso, a renda emergencial é refletir e agir mais amplo ao redor do reconhe‑
do econômica e afetivamente apropriadas a saúde, profissionais de enfermagem têm de uma tentativa de retirar outras trabalhadoras cimento social, jurídico, institucional e econô‑
um modelo que as invisibiliza. Estão entre as oferecer cuidados em hospitais à beira do co‑ e trabalhadores informais das ruas, para que mico do valor do cuidado. Em uma ética que
mais mal remuneradas e precárias em termos lapso, enquanto elas mesmas adoecem. também se isolem, cuidando de si e dos demais. parta da concretude, da interdependência, da
de garantias sociais. É o caso das trabalhado‑ Em paralelo, no isolamento, o mundo bus‑ Mas nada veio de graça. A instituição de tal me‑ materialidade da vida que se produz e se sus‑
ras domésticas, babás e cuidadoras, que têm ca respostas emergenciais para lidar com a cri‑ dida ocorreu em meio a muita disputa. tenta no dia a dia. O reconhecimento do valor
um histórico de acesso parcial a direitos tra‑ se. Parte disso vem se estruturando ao redor Ora, se isolamento e cuidado são tão vitais, do cuidado deve se tornar permanente, para
balhistas e sociais, e das profissionais de en‑ de modelos de rendas garantidas, em especial ficam algumas perguntas: por que tantas que‑ que nos tornemos também, permanentemente,
fermagem, que convivem no cotidiano com para trabalhadoras e trabalhadores impossibi‑ relas para aprovar a renda emergencial e seu uma sociedade que cuida de si.
jornadas extensas e baixos salários. litados de continuar seus ofícios. A essas pes‑ valor? Será que o valor do cuidado consiste em
Para as cuidadoras não remuneradas, o soas o chamado é, mais uma vez, o do cuidado: umas poucas centenas de reais ao mês? E será
reconhecimento do valor do trabalho que isolem-se, cuidem-se, e a contrapartida será a que só tem valor emergencial? Não deveríamos
executam nem sequer é cogitado institucio‑ garantia de um benefício social. discutir programas permanentes que valorizem
nalmente. Mães, filhas e avós trabalham sem Se, por um lado, a renda garantida faz face o cuidado de modo sistemático?
cessar em atividades domésticas para garantir à impossibilidade de remuneração pelo traba‑ Essas perguntas ainda ficam em aberto, mas,
que a vida prossiga, mas a naturalização dos lho na quarentena, de forma indireta ela reco‑ desde já, a pandemia global expôs uma crise
papéis de gênero faz com que esses esforços nhece institucionalmente, atribui relevância profunda. A crise de um modelo socioeconômi‑
sejam apagados. Logo, nas condições de “nor‑ jurídica e expressa um valor econômico para co que historicamente desvalorizou o cuidado e
malidade”, tanto o cuidado como quem cuida o cuidado. O benefício é oferecido justamente que agora, mais uma vez, precisa dele para que
são desvalorizados. para que as pessoas possam cuidar de si e de tudo possa se resolver. Mais cedo ou mais tarde,
Diante da pandemia, porém, o cuidado suas famílias. porém, virão as respostas científicas e médicas
emergiu como um valor social forte. Ao mes‑ Esse tipo de reconhecimento do cuidado é ao vírus, e tudo passará. O que veremos depois?
mo tempo, as pessoas que cuidam foram as uma das principais lutas daquelas que traba‑ Um retorno à “normalidade”? À desvalorização
primeiras a sofrer os efeitos físicos e psíquicos lham com ele. Entre os direitos sociais, a renda sistemática das trabalhadoras do cuidado?

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Desafios à
democracia
O
ano de 2020, ainda pela metade, não são plenamente visíveis. Mas o que já
Em um país que historicamente flerta com o já entrou definitivamente para a vemos atesta gravidade. Em primeiro plano,
autoritarismo, a emergência sanitária pode ser um história. Não seria apressado di‑ as mortes se multiplicaram em proporção as‑
zer que enfrentamos, neste exato sustadora: enterros em valas comuns, caixões
pretexto ideal para dar lastro a ânsias autoritárias momento, um dos mais marcantes aconteci‑ lacrados, impossibilidade de rituais de despe‑
mentos do século 21. O alastramento de uma dida. Além da ameaça direta da morte, outras
versão de um vírus até então pouco conhecido, mudanças também estão sendo duramente
Renan Quinalha
cujo epicentro era a China, logo tomou todos os sentidas: hospitais lotados; fechamento de
continentes do mundo profundamente globali‑ fronteiras e interrupção dos fluxos de pessoas
zado. Em pouco tempo, um único tema passou entre países; vigilância em massa e monitora‑
a hegemonizar, em todas as línguas, os notici‑ mento dos cidadãos por meio do aparelho ce‑
ários, debates públicos e angústias: a Covid-19. lular; militarização da fiscalização das medi‑
Não há área do conhecimento ou campo das restritivas; proibição de cultos religiosos e
da vida social que não tenham sido profunda‑ demais aglomerações; guerras comerciais por
mente impactados pela pandemia, categoria medicamentos e instrumentos; países inteiros
utilizada pela Organização Mundial da Saúde com suas atividades econômicas paralisadas
(OMS) para classificar doenças infecciosas por período indeterminado.
que afetaram um grande número de pessoas A metáfora da “guerra” contra um “inimigo
espalhadas pelo mundo. Esse alerta colocou invisível” passou a ser empregada com frequên‑
às claras uma situação de emergência que cia. Quarentena, isolamento vertical, distancia‑
suspendeu qualquer conceito de normalidade mento social, orçamento de guerra, atividades
que alimentávamos até poucas semanas atrás. essenciais: todos termos até então desconheci‑
Os efeitos dessa crise sanitária, com des‑ dos que se tornaram, repentinamente, de uso
dobramentos políticos e econômicos, ainda corrente no vocabulário popular.

79
dossiê

Mas, afinal, como essas medidas se rela‑ ciedade, parece preciso, em algum grau, sacri‑ patológico. Se hoje Bolsonaro se notabiliza
cionam com o direito, em uma via de mão du‑ ficar – ainda que temporariamente – algumas internacionalmente por contrariar as orienta‑
pla, tanto dependendo de suas normas e ins‑ dimensões sensíveis da própria democracia, ções das autoridades sanitárias e especialistas,
tituições como as impactando? Há um direito como certos direitos individuais e a separação não é por apreço à democracia. Ao contrário,
da emergência mobilizado para lidar com a e limitação recíproca dos poderes.  é por seu obscurantismo anticientificista e
crise? A excepcionalidade autoriza suspensão Isso porque o poder sempre tende a se por uma tentativa de boicotar medidas deter‑
de garantias constitucionais? Quais os riscos
Não sabemos como sairemos concentrar, caso uma partilha não esteja minadas por governadores e prefeitos, con‑
éticos, políticos e jurídicos existentes para a dessa pandemia, mas fato bem assegurada e institucionalizada. O acú‑ trariando também posições externadas pelo
democracia no período pós-pandemia?  mulo de prerrogativas e competências, por Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal
São questões complexas impossíveis de é que, em um prazo maior si só, já acarreta riscos de abuso e desvio em Federal (STF).
esgotar neste texto. Mas é possível traçar algu‑ ou menor, de modo mais ou qualquer regime. Para minimizá-lo, é funda‑ Fato é que não haveria momento pior para
mas aproximações e reflexões ainda no calor mental, conforme artigo de Tom Ginsburg e essa quantidade de poderes concentrados nas
dos acontecimentos. Relativizações de direi‑ menos gradativo, teremos Mila Versteeg no blog da Harvard Law Review, mãos do Executivo. Temos a pior crise sanitá‑
tos, com fundamentos e justificativas diversas,
não são uma novidade. Isso acontece cotidia‑
uma democracia e um Estado que três princípios sejam observados: (i) ha‑
ver supervisão do Legislativo e do Judiciário
ria da jovem democracia brasileira coincidindo
com o pior presidente dessa história recente.
namente nos tribunais, que se veem obriga‑ de Direito para reconstruir em relação ao Executivo; (ii) as medidas de Não sabemos como sairemos dessa pandemia,
dos a sopesar princípios e garantias em casos exceção devem ser limitadas apenas àquelas mas fato é que, em um prazo maior ou menor,
complexos que envolvam colisão de direitos. estritamente necessárias; e (iii) os poderes de modo mais ou menos gradativo, teremos
Além disso, é bastante comum nas Consti‑ devem ser delegados apenas durante o esta‑ uma democracia e um Estado de Direito para
tuições contemporâneas, em diversos países, do de emergência. reconstruir. E com o desafio de uma socieda‑
a existência de cláusulas de emergência, as Bolsonaro flertou com um possível esta‑ Sem dúvida, o momento é de enorme ex‑ de muito mais desigual, com seus estruturais
quais permitem a suspensão – mais ou menos do de sítio, mas logo sentiu que não teria as cepcionalidade pelas razões expostas. Enfren‑ problemas de concentração de riqueza e falta
parcial – da ordem constitucional em nome de condições políticas de instituí-lo. No entanto, tamos uma das piores epidemias do último sé‑ de crescimento econômico agravados, além da
uma emergência de saúde pública, de uma ca‑ mesmo fora do quadrante desse sistema cons‑ culo. O problema é que essa tragédia sanitária fragilização do repertório de direitos constitu‑
lamidade natural, de uma guerra ou de outra titucional de crises, sem precisar mobilizar a coincide com um momento bastante grave da cionais e com instituições menos sólidas.
hipótese de grave excepcionalidade. suspensão do ordenamento jurídico, o gover‑ democracia brasileira. A ascensão da extrema
Exemplo é a Carta Constitucional brasi‑ no conseguiu instituir medidas restritivas por direita no mundo se traduziu, no Brasil, na
leira de 1988, que estabeleceu um sistema de meio de leis como a n. 13.979/20 e de diversas convergência entre autoritarismo político, ul‑
crises que permite, apenas nas situações pre‑ medidas provisórias. Liberdade de ir e vir e traliberalismo econômico e  conservadorismo
vistas no próprio texto, a ampliação excepcio‑ direitos trabalhistas são exemplos de garan‑ moral, materializados na eleição de Bolsonaro.
nal dos poderes do Executivo. Compõem esse tias já flexibilizadas em nome da emergência. Em um país que historicamente flerta com
sistema o estado de defesa e o estado de sítio, Como dito, direitos constitucionais não são tanta intensidade com o autoritarismo, a emer‑
figuras que, a despeito das diferenças de finali‑ absolutos e há procedimentos para sua limita‑ gência sanitária pode ser um pretexto ideal
dades e níveis de emergência, precisam ambas ção, desde que justificada e razoável. Quando para dar lastro às ânsias autoritárias, porque
de justificativas bem fundamentadas, devem há instrumentos legais disponíveis, essas me‑ respaldada cientificamente para aprofundar a
passar pelo crivo do Congresso e só valem en‑ didas, submetidas a controle legislativo e judi‑ exceção já tão normalizada em nossa democra‑
quanto perdurar a excepcionalidade. cial, podem ser um caminho menos arriscado cia. Não se trata de ser contra as medidas sani‑
Além dessas exigências que funcionam que a suspensão dos direitos. tárias de distanciamento social e de isolamen‑
como travas democráticas para aventuras au‑ O grande paradoxo é que os governos pre‑ to, que são mesmo necessárias e fundamentais.
toritárias do governante de ocasião, há tam‑ cisam de mais ferramentas para responder Contudo, é preciso estar atento para garantir
bém a necessidade de imposição de limites com agilidade e efetividade a uma situação que as restrições a direitos sejam discutidas
territoriais e temporais para as restrições, o grave que não estava suficientemente con‑ publicamente, justificadas e amparadas na
dever de declinar das garantias afetadas, bem templada no texto constitucional, ao mesmo própria Constituição, com uma duração limi‑
como prever salvaguardas para minimizar os tempo que a concentração desses poderes tada e com salvaguardas para a democracia.
impactos nos direitos fundamentais dos cida‑ excepcionais nas mãos do Executivo tem um O que em um momento se coloca neces‑
dãos, além de mecanismos de fiscalização por potencial danoso à democracia. Assim, para sário e salutar, como as medidas restritivas,
parte dos outros poderes. salvar a ordem constitucional e a própria so‑ pode, em condições diversas, acabar sendo

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A economia
deve esperar
E
ntre os 195 países-membros da Nem o que ocorreu no Norte da Itália ser‑
Organização das Nações Unidas viu de exemplo. Políticos populistas, como o
Uma visão da situação da saúde no país, (ONU), há dois países observado‑ prefeito de Milão com seu slogan inicial “Mi‑
desconhecida para a grande maioria das pessoas res não membros, um único mere‑ lão não para” e suas desculpas tardias, ignora‑
ceria ser citado no Enfermaria n. 6 de Anton ram o bem-estar de seus cidadãos e aceitaram
Tchékhov ou inserido no Alienista do bom Ma‑ a pressão dos empresários, com sua ganância
Táki Athanássios Cordás chado. Algum dos diferentes romances distó‑ neoliberal, para não propor o isolamento so‑
picos que estão sendo escritos no momento de cial. Pronto, a falta de isolamento diante de
pandemia ambientará seu enredo nesse mes‑ um vírus altamente contagioso disseminou
mo país, não duvido. a tragédia. O segundo elemento é a marcada
Não é necessário comprar passagem e arris‑ desigualdade no acesso ao sistema de saúde
car-se em aeroportos para visitá-lo, basta estar italiano, no qual os serviços especializados,
em São Paulo, Baixada Santista, Brasília, Natal, sobretudo os de alta qualidade, variam con‑
Fortaleza e outras cidades do Brasil, espiar pela forme a posição social das pessoas (melhor
janela e observar carreatas barulhentas. Ban‑ educação, rendimento e condição laboral) e
deiras e buzinaços contra o isolamento social, as diferenças geográficas.
frases jocosas contra a “gripezinha” e danças Se foi Sigmund Freud que disse ou não, já
macabras regadas a alienação com simulacros não me lembro, mas a ideia de que não é o
de caixão. povo que faz seu governante e sim o contrário
A falta de humanidade incluiu buzinaço e daria uma boa manchete sobre a foto do presi‑
barulheira em frente ao Instituto do Coração dente da República indo às ruas sem máscara,
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Me‑ tomando pingado na padaria, tossindo e abra‑
dicina da Universidade de São Paulo (Incor‑ çando os incautos e pressionando para a volta
-HCFMUSP). imediata ao trabalho.

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Falar de saúde é um assunto tão vasto que próximo de zero menor é a desigualdade so‑ Como bem apresenta o advogado Francis‑
exigiria do autor e do leitor tolerância com as cial, sendo 1 quando a desigualdade atinge o co Petros, os partidos políticos transformaram
diferentes tomadas panorâmicas, sem a possi‑ máximo possível. O índice de Gini é medido seus assuntos internos em questões mais re‑
bilidade de um aprofundamento maior e mais também pela ONU, que divulga anualmente levantes do que o interesse público (Migalhas,
técnico – que não é o escopo deste artigo. seus dados no Relatório de Desenvolvimento 16 abr. 2020). Um de seus produtos é a criação
Não obstante, este psiquiatra, não especia‑
lista em epidemiologia, resolveu dar uma vi‑
Em 2018, o Brasil tinha Humano (RDH). No relatório de 2016, o Brasil
obteve um índice de Gini de 0,515 e foi apon‑
de um número enorme de interesses privados
que instigaram a corrupção: “É essa a causa
são, ainda que limitada, da situação da saúde 13,5 milhões de pessoas tado como um dos 10 países com maior desi‑ mais profunda do que vimos desde Collor até
no país, desconhecida para a grande maioria gualdade do mundo. Perdendo por um golzi‑ Temer ou, se quiserem, de Paulo César Farias
das pessoas. Uma visão dos aspectos psicoló‑
(6,5%) com renda mensal nho, nos acréscimos vem o Paraguai, com um a Wesley Batista. Do ponto de vista da socie‑
gicos e psiquiátricos. per capita inferior a índice de 0,517. dade, sobretudo do poder econômico, a leitura
O Programa das Nações Unidas para o De‑ O relatório de 2019 deixa claro, ao avaliar desse quadro não gerou indignação, ao contrá‑
senvolvimento (Pnud) avalia os países pelo 145 reais ou 1,9 dólar as desigualdades, que não é possível avaliar as rio, engendrou a adaptação impressionante
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por dia, critério adotado quatro dimensões do desenvolvimento huma‑ pela qual a obtenção dos benefícios privados
que se baseia em três dimensões: saúde (vida no separadamente das políticas de saúde: a eco‑ trouxe ao alcance o uso da coisa pública. Ob‑
longa e saudável), educação (acesso ao conhe‑ pelo Banco Mundial para nomia (interação das desigualdades com os pa‑ viamente, tais interesses excluíram do orça‑
cimento) e renda (padrão de vida digno).
Cada dimensão do IDH corresponde a um
identificar a condição drões de crescimento econômico), a sociedade
(como as desigualdades afetam a coesão social),
mento e das proposições afirmativas do Estado
a educação, a saúde, a tecnologia, ou, de forma
subíndice, que pode ser analisado em sepa‑ de extrema pobreza a esfera política (as desigualdades influenciam geral, o desenvolvimento”.
rado, sendo o da saúde representado pela ex‑ a participação política e o exercício do poder Nada mais claro de entender que saúde e
pectativa de vida. No caso do Brasil, em 2018, político) e a paz e a segurança (como as desi‑ política são inseparáveis. O Relatório de De‑
a expectativa de vida para o cidadão brasileiro gualdades interagem com a violência). É fácil senvolvimento Humano elaborado em 2018
era de 75,7 anos, que correspondia a um valor entender que saúde está intimamente relacio‑ profetiza: “As desigualdades podem, ainda,
no subíndice de 0,857, na faixa de alto desen‑ nada com o fato de 50% ou mais da população fazer aumentar quer a procura, quer a oferta
volvimento humano para saúde. Em 2019, o brasileira continuar sem saneamento básico, de líderes populistas e autoritários. Quando
último Relatório de Desenvolvimento Huma‑ com a operação de mais de 3 mil lixões ilegais o agravamento das desigualdades leva ao re‑
no lançou dados sobre o IDH de 189 países, ao ar livre (abertos pelo que chamamos de lei forço do sentido de injustiça sistêmica, pode
referentes a informações de 2018. Levando te desértico, o país vive de exportação de gás. “que não pega”) e com uma taxa de desempre‑ tornar o público mais receptivo a movimentos
em conta os três índices do IDH, o Brasil ocu‑ Seu presidente Gurbanguly Berdimuhamedow, go de 11,2% no trimestre encerrado em janeiro políticos não convencionais. Nalguns contex‑
pa a 79a posição no ranking, encontrando-se que governa desde 2006, é dentista, se diz DJ e de 2020, atingindo 11,9 milhões de pessoas. tos, a participação política aumenta em condi‑
novamente na surpreendente faixa de alto de‑ escritor de best-sellers sobre ervas medicinais, Em 2018, o país tinha 13,5 milhões de pessoas ções de elevada desigualdade de rendimento,
senvolvimento humano. Acredita nisso quem tem entre seus exotismos a troca do nome dos (6,5%) com renda mensal per capita inferior a quando os líderes populistas alimentam os
não conhece a piada estatística de que, se eu dias da semana e a descrença da seriedade da 145 reais ou 1,9 dólar por dia, critério adotado ressentimentos ao associarem, explicitamen‑
como um frango e você nenhum, na média co‑ pandemia. Determinou a seus ministros que pelo Banco Mundial para identificar a condição te, a exclusão política à socioeconômica. De
memos meio frango cada um. usem a fumaça da queima de um alcaloide de extrema pobreza. Esse número é equivalen‑ um modo mais geral, os líderes populistas de
Quando o IDH do Brasil é ajustado pela de‑ chamado hamala para matar “os vírus invisí‑ te à população de países como Bolívia, Bélgica, direita podem servir-se da ansiedade econô‑
sigualdade social (Inequality-adjusted Human veis aos olhos”. Cuba, Grécia e Portugal – portanto, como não mica, do descontentamento popular e da le‑
Development Index, IHDI), o país perde 23 po‑ Voltemos às mazelas locais. Outro instru‑ ligar isso à saúde? Impossível não entender que gitimidade diminuída dos partidos do status
sições: o que era 0,761, descontado pela desi‑ mento usado como medida de desigualdade a saúde está relacionada com o fato de 38,8 mi‑ quo para alcançarem o poder”.
gualdade, cai para 0,574, uma perda de 24,5%, de renda é o índice ou coeficiente de Gini, de‑ lhões de trabalhadores estarem na informalida‑
chegando a um índice médio de desenvolvi‑ senvolvido pelo estatístico italiano Corrado de, um recorde, equivalente a 41,4% da força de A defesa da saúde pública
mento empatado com o Tajiquistão e atrás do Gini e publicado em 1912. Medindo a desi‑ trabalho; que é impossível falar de isolamento A pandemia viral expôs novamente, para quem
Turcomenistão. Abrindo um parêntese, apenas gualdade social, indica se há muita ou pouca social e álcool em gel quando faltam água e não gosta e para quem acha que saúde pública
para lembrar ou apresentar: o Turcomenistão diferença entre os mais pobres e os mais ricos sabão numa comunidade como Paraisópolis, é coisa de pobre, as fragilidades e urgentes ne‑
é uma antiga república soviética que alcançou em uma região ou país. Valores do índice de onde vivem cerca de 42 mil pessoas, ou na Ro‑ cessidades do nosso Sistema Único de Saúde. O
a independência em 1991; predominantemen‑ Gini são dispostos entre 0 e 1; quanto mais cinha, que tem quase 70 mil habitantes. SUS, criado a partir da famosa Constituição

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“cidadã” de 1988, tem como definição que “a 20% da população tem plano de saúde – o que
saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. não impede que mesmo os portadores de pla‑
196). Faz troça o humor patrício dizendo, como nos de saúde e serviços privados busquem o
se sua afirmação fosse herética, que gostaria SUS para receber atendimentos dificultados
que os políticos brasileiros se tratassem no SUS. ou protelados pelos planos, bem como para
Meio piada, meio desafio, muito antes de ouvi‑ casos de alta complexidade, a exemplo dos Tão necessários no atual momento, os leitos de
rem ou não ouvirem que Boris Johnson, primei‑ transplantes, da hemodiálise e dos medica‑ Unidade (ou Centro) de Terapia Intensiva (UTI)
ro-ministro da Grã-Bretanha desde 2019, foi tra‑ mentos de alto custo. Enquanto o SUS, para
tado e internado no Serviço Nacional de Saúde atender 150 milhões de pessoas, consome são escassos. Enquanto no Japão, por exemplo,
(NHS) quando infectado pelo Covid-19. Vamos 45% do total de gastos com saúde no país, o se‑
lembrar que o sistema de saúde inglês, que exis‑ tor de saúde suplementar, representado pelos
existem 13,5 leitos de UTI por mil habitantes,
te desde 1948, foi o modelo para a criação do planos de saúde, tem 40 milhões de usuários, temos em média no país 1,95 por mil habitantes
SUS, e independentemente da ideologia políti‑ que representam 20% da população, e conso‑
ca, Labour ou Tories, ninguém ousou mexer no me 55% desse total de gastos. São 40 milhões
sistema de saúde deles. Aliás, “by Appointment de pessoas e consomem 55% desse total de
of Her Majesty The Queen”, a própria família real gastos. Esses dados demonstram sobejamen‑
de Windsor também se trata no NHS. Não obs‑ te a necessidade de um financiamento melhor,
tante, o SUS é tido por todos (ou quase todos), muito melhor e maior para o sistema público.
inclusive fora do país, como um sistema próxi‑ O país gasta meros 3,8% de seu Produto Inter‑
mo do ideal. no Bruto (PIB) em saúde, enquanto a média UTI, segundo o Cadastro Nacional de Estabe‑ dispunham de maca com suporte de cilindro
O brasileiro em geral não sabe que as dos países desenvolvidos utiliza algo como lecimentos de Saúde (CNES). Desses, apenas de oxigênio.
ações do SUS vão muito além da assistência 6,5% a 7% do PIB. A Emenda Constitucional 482 cidades têm vagas disponíveis pelo SUS, A avaliação do governo é que em abril de
médica – toda a área de vigilância sanitária e n. 95/2016, conhecida como “emenda do fim 8,6% do total nacional. Dos 50 mil leitos de UTI 2020, no meio da crise, um quarto de todos
epidemiológica, verificação da qualidade de do mundo” ou “PEC da morte” e aprovada habilitados em janeiro, apenas cerca de 16 mil os ventiladores pulmonares do país, cerca de
alimentos e água, fornecimento de vacinas, no governo Temer, congelou os gastos com estão disponíveis pelo SUS, o restante perten‑ 3.700, estavam quebrados por falta de manu‑
controle de zoonoses e assistência farmacêu‑ saúde por 20 anos. E há pouco o governo (vo‑ ce à rede privada. Fiscalização realizada pelo tenção. Li que cruzes brancas foram instaladas
tica. Mas o que leva às frequentes queixas e cês sabem quem) manobra para desvincular Conselho Federal de Medicina e divulgada há no vão livre do Museu de Arte de São Paulo
deficiências diariamente apontadas? Como receitas para a área. Segundo um estudo da cerca de um ano, portanto antes da situação (Masp), na Avenida Paulista, na região central
apontam Walter Cintra Ferreiro Junior e Ana Comissão Intersetorial de Orçamento e Fi‑ atual, já mostrava uma situação extremamen‑ da capital paulista, no domingo do dia 12 de
Maria Malik (Blog Estadão, 11 abr. 2020), são nanciamento (Cofin) do Conselho Nacional te preocupante. Tragicamente lembrando ou‑ abril, em manifestação contra a falta de equi‑
notórias as deficiências no processo de ges‑ de Saúde (CNS), o SUS já perdeu 20 bilhões de tra piada brasileira do indivíduo defunto que pamentos de proteção dos profissionais de saú‑
tão do sistema, como falta de compromisso reais desde 2016, e 400 bilhões é a estimativa prefere ir para o inferno brasileiro apesar da de durante a crise do coronavírus. Milhares de
dos políticos, clientelismo, corporativismo, de perda em duas décadas. ameaça de comer uma lata de fezes por dia, queixas aos órgãos de classe, como o Conselho
patrimonialismo, mandonismo, que impedi‑ Os leitos hospitalares no Brasil encolheram e não para outros aparentemente melhores... Federal de Medicina e o Conselho Federal de
ram e ainda impedem que estruturas funda‑ em 12,6% nos últimos 10 anos, e não estou porque um dia falta o diabo, um dia falta fogo, Enfermagem, dão conta de que profissionais
mentais para a boa gestão do SUS funcionem falando apenas da tolice de desativar leitos um dia falta lata... Em 63% das 131 unidades vêm sendo obrigados a trabalhar na falta de
adequadamente. Os autores, dois dos maio‑ psiquiátricos necessários em certas situações, de internação visitadas, foram encontradas um item ou muitas vezes na falta de todos os
res pensadores na saúde do país, apontam a mas leitos clínicos, cirúrgicos, pediátricos, ge‑ camas sem lençóis, superlotação em mais da equipamentos de proteção. A piada mencio‑
urgência de um sistema de informação ade‑ riátricos etc. Tão necessários no atual momen‑ metade dos quartos (53%), falta de grades nas nada é trágica e escatológica, mas não faria o
quado e de um sistema para regular seus re‑ to, os leitos de Unidade (ou Centro) de Terapia camas em 21% e de cama regulável em 17%, menor sentido em Reykjavik.
cursos assistenciais. Intensiva (UTI) são escassos. Enquanto no biombos para separar um leito de outro (26%).
Merecem ser citados alguns dados prelimi‑ Japão, por exemplo, existem 13,5 leitos de UTI Grande número delas não tinha monitor de O estetoscópio cubano
nares para evidenciar a necessidade de maior por mil habitantes, temos em média no país pressão intracraniana (PIC), monitor de débi‑ não toca a “Internacional”
financiamento. Aproximadamente 80% da 1,95 por mil habitantes. Saliento o termo “em tos cardíacos, oftalmoscópio; em 35% faltava (e índio não quer apito)
população brasileira depende do SUS, cerca média”, porque em janeiro de 2020 apenas 545 ventilador mecânico; 29% não dispunham de O contínuo desmantelamento da saúde públi‑
de 150 milhões de pessoas, enquanto apenas dos 5.570 municípios (9,8%) tinham leitos de monitor cardíaco para transporte, e 21% não ca passa pelo então presidente eleito (vocês

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sabem quem) dizer que os médicos cubanos enfoque preventivo, planejamento de ações e saúde e posteriormente a falência do sistema mas cientificamente, até o momento, temos
estavam sendo usados como “trabalho escra‑ bom relacionamento interpessoal na equipe, funerário. Sepultamentos têm ocorrido em ca‑ um único estudo sobre os efeitos da quaren‑
vo”. O programa, que começou em 2013, po‑ identificando-se posturas e técnicas de acolhi‑ madas triplas, já que a adoção da vala comum tena sobre a saúde mental. O estudo “The
deria continuar apenas se os profissionais re‑ mento, vínculo e responsabilização [...] Apon‑ não estava suportando a demanda. Há poucos Psychological Impact of Quarantine and How
cebessem o pagamento completo e pudessem tam-se fortes indícios de que o PMM (Progra‑ dias, pesquisadores da Fiocruz e da Fundação to Reduce It: Rapid Review of the Evidence”
trazer a família. Os cubanos atuavam, em sua ma Mais Médicos), além do acesso às consultas Getulio Vargas (FGV) divulgaram um relatório foi publicado no dia 26 de fevereiro no Lancet,
maioria, em áreas pobres e remotas do país, médicas, oferta cuidados integrais em saúde e sobre o risco de disseminação da Covid-19 en‑ uma das mais prestigiosas revistas médicas do
onde médicos brasileiros não querem traba‑ contribui para o fortalecimento da atenção bá‑ tre populações indígenas, a partir da vulnera‑ mundo, por Samantha Brooks e seus colegas
lhar. O governo ainda trabalha, com pífios re‑ sica no país”. bilidade geográfica e sociodemográfica desse do King’s College, em Londres.
sultados, para substituí-los em 8.332 posições A saída de médicos cubanos deixou várias grupo: “o crescimento exponencial de casos Os autores revisaram 24 pesquisas sobre o
deixadas pelos cubanos que retornam para regiões desassistidas, em particular na Amazô‑ confirmados de Covid-19 na população brasi‑ impacto psicológico da quarentena, os quais
casa. Um lobby nacional de prefeitos – a Fren‑ nia, onde o Conselho Indigenista Missionário leira e a clara interiorização da circulação viral, levaram em conta os dados recentemente en‑
te Nacional de Prefeitos (FNP) – e o Conselho (Cimi) acusava em 2018 que 77% das vagas em com destaque para os estados do Amazonas e contrados na China mas também quarentenas
Nacional de Secretarias Municipais de Saúde substituição aos cubanos não eram preenchidas. Amapá, nos alertam para os impactos dessa ocorridas na China e no Canadá em 2003, e
(Conasems) disseram à época, em nota, que Para receber a assistência mais básica, os pandemia nos povos indígenas”. em Hong Kong e Taiwan em 2005, durante o
29 milhões de brasileiros poderiam ficar sem moradores de determinadas regiões tinham Enquanto os primeiros casos entre os ya‑ surto de Síndrome Respiratória Aguda (Sars).
atendimento básico de saúde. Essas organiza‑ que se deslocar até 80 quilômetros para serem nomamis aparecem, 20 mil garimpeiros en‑ Também foram analisadas informações de
ções pediram que o governo torne possível que atendidos em cidades maiores. No caso de tram e saem da terra indígena yanomami sem diferentes cidades da África postas em qua‑
os cubanos fiquem no país. Mais Médicos foi atendimento de urgência, as distâncias aumen‑ nenhum controle. Povos indígenas são grupos rentena durante o surto de ebola em 2014. A
um programa lançado em 8 de julho de 2013 tam para até 400 quilômetros, informa o órgão. de extremo risco e devem ser imediatamente maioria dos estudos relatou efeitos psicoló‑
pelo Governo Dilma, com o objetivo de suprir Estamos falando de um estado onde a ca‑ protegidos, sob risco de genocídio – com a gicos negativos agudos, incluindo sintomas
a carência de médicos nos municípios do in‑ pital Manaus, supostamente um centro mais cumplicidade do governo brasileiro. de irritação, angústia, sintomas depressivos,
terior e nas periferias das grandes cidades do bem aparelhado que zonas mais distantes, aumento da irritabilidade, tédio e insônia, es‑
Brasil. O programa levou 15 mil médicos – em primeiro decretou a falência do sistema de Junto com o infectologista, tresse pós-traumático, confusão e raiva. Os
2017 chegou a 18.240 –, garantindo acesso a 63 o psiquiatra principais fatores de estresse incluíram maior
milhões de pessoas em 4.058 municípios. Antes de mais nada, é importante entender duração da quarentena, medo de infecção,
O próprio The New York Times dizia, em 11 a diferença técnica entre quarentena e isola‑ frustração, tédio, suprimentos inadequados,
de junho de 2019, que com a saída de 8 mil mé‑ mento. Quarentena é a separação e restrição perda financeira e estigma. Junto com esses
dicos 28 milhões de pessoas em todo o Brasil do movimento de pessoas que foram poten‑ fatores, informações contraditórias por parte
tiveram o acesso à saúde “abruptamente in‑ Povos indígenas são cialmente expostas a uma doença contagiosa das autoridades ou a sensação de que elas não
terrompidos”. O jornal indicava que a retirada para verificar se ficarão doentes, reduzindo tinham adequado controle da situação aumen‑
dos cubanos poderia ter “severas consequên‑
grupos de extremo assim o risco de infectar outras pessoas. Essa tavam muito os sintomas psicológicos negati‑
cias para aqueles com menos de 5 anos, po‑ risco e devem ser situação difere do isolamento, em que pessoas vos. As pessoas avaliadas na pesquisa citavam
tencialmente levando à morte mais de 37 mil já diagnosticadas com uma doença contagiosa que além de informação e confiança espera‑
crianças até o ano de 2030”. imediatamente são separadas de outras que não estão doentes. vam das autoridades transparência, claras de‑
Em trabalho científico, Franco, Almeida e protegidos, sob risco No entanto, os dois termos são frequentemen‑ terminações sobre quais ações devem ser to‑
Giovanella (Cadernos de saúde pública, 2018) te usados ​​de forma intercambiável. Fato claro madas e razões científicas para a quarentena.
concluem, ao avaliar a integralidade das práti‑ de genocídio – com é que não haverá bem-estar sem saúde men‑ Os efeitos psicológicos e psiquiátricos sobre as
cas de médicos cubanos, quando no Brasil: “A
atuação dos médicos cubanos apresenta ele‑
a cumplicidade do tal. Em adição ao temor da doença nossa e dos
nossos, com as incertezas do trabalho e da
equipes de saúde também eram devastadores
– efeitos que temos encontrado nas equipes de
mentos condizentes à integralidade das práti‑ governo brasileiro economia, com o que virá depois, a quarentena saúde atuando no Brasil, que além disso traba‑
cas na atenção primária, com prestação de um tem impacto fundamental sobre três elemen‑ lham com equipamento de proteção inadequa‑
leque amplo de ações e serviços, coerente com tos importantes do ser humano: a autonomia, do ou ausente: exaustão, afastamento social
a complexidade dos problemas de saúde e plu‑ a competência e a sociabilidade. dos colegas, ansiedade, irritabilidade, insônia,
ralidade dos cenários. Os profissionais possuem De modo intuitivo, todos sabemos que a redução da concentração e memória, inde‑
marcada capacidade de inserção comunitária, quarentena nos desagrada e nos faz sofrer, cisão na tomada de atitudes, deterioração

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referir-se à sensação dolorosa, sofrida, de es‑ a recursos de apoio psicológico neste momen‑
tarmos sozinhos. Já a palavra “solitude”, em to tornou-se bastante restrito, não só pela im‑
geral de uso poético, não tem essa carga: sim‑ possibilidade de buscar ajuda externa como
plesmente expressa o fato de estarmos a sós. pela dificuldade de pedir ajuda a psicólogos e
O período de quarentena é um fator de O frequente contato de familiares com seus psiquiatras on-line, por razões óbvias de falta
idosos, ainda que impossível de modo físico, de privacidade.
estresse importante e que pode agir como mas ao menos telefônico, por Skype ou ou‑ Declarei que fazia um recorte para a mu‑
desencadeante ou agravante de quadros tra mídia, reduz significativamente o risco de
complicações clínicas e psiquiátricas.
lher de classe média quando falava de violên‑
cia doméstica. O que farão outras mulheres
psiquiátricos preexistentes controlados ou não Exercendo um recorte e falando em par‑ sem recursos – e que constituem a maioria da
ticular da mulher de classe média, responsá‑ população brasileira – é uma incógnita trági‑
vel maior ou única pelo que se convencionou ca. Estudos psiquiátricos na infância e adoles‑
chamar de reprodução social (parir, alimen‑ cência mostram que violência doméstica en‑
tar, cuidar, ajudar no crescimento dos filhos), tre adultos está relacionada com transtornos
podemos dizer que o vírus não é democrático psiquiátricos nas crianças que os presenciam,
nas questões de gênero. A mulher que exerce mesmo não sendo os alvos de violência.
do desempenho profissional, relutância em dências de possíveis síndromes inflamatórias um trabalho remoto e precisa cuidar da casa, Aumento do desemprego, situação econô‑
trabalhar ou pedir afastamento. Até três anos graves relacionadas ao Covid-19 nesse público dos filhos e do companheiro (quando há), mica deteriorada, fome, um governo sem com‑
após o fim da quarentena esses profissionais – além da saúde mental das crianças, que escapa sem a ajuda da escola e da empregada do‑ petência e antidemocrático, assistência médi‑
apresentavam um quadro diagnosticado como à preocupação dos pais, que devem adequar a méstica (que, espera-se, ficou em casa, mas ca insuficiente – infelizmente temos tudo para
estresse pós-traumático. linguagem à faixa etária e conversar aberta‑ com o salário integral), atravessará um perío‑ corroborar o que artigos científicos internacio‑
O estresse pós-traumático é caracteriza‑ mente sobre temores e fantasias. Um dos estu‑ do de grande estresse e poderá necessitar de nais têm chamado de pandemia de problemas
do por lembranças persistentes, pesadelos dos analisados comparando crianças que pas‑ ajuda qualificada. psicológicos e psiquiátricos, agora e principal‑
ou sensação de que o evento traumático está saram por quarentena com crianças que não fi‑ A violência contra a mulher tem recebido mente após o término da quarentena.
acontecendo novamente (flashbacks); reações caram nessa situação mostrou que as primeiras destaque neste período, em que muitas vezes
físicas como sudorese, náusea e tremores; tinham risco quatro vezes maior de desenvolver a quarentena deixa sob o mesmo teto, 24 ho‑
perda de interesse pelas atividades habituais um estresse pós-traumático. Não há dados, mas ras por dia, a vítima e seu algoz. O número de
e quadros depressivos. a violência contra crianças é um fato esperado casos de violência contra a mulher aumentou
Segundo a Organização Mundial da Saúde durante esse período e é relevante lembrar que em São Paulo durante a quarentena, segundo
(OMS), as doenças psiquiátricas respondem violência contra crianças, bem como abuso e o Núcleo de Gênero e o Centro de Apoio Ope‑
por 5 das 10 maiores causas médicas de inca‑ negligência, são fatores de risco para doença racional Criminal (CAOCrim) do Ministério
pacidade humana, ou seja, dias perdidos de psiquiátrica futura. Público de São Paulo (MPSP): em um mês,
trabalho ou estudo ao longo da vida. Idosos são outra população de extremo ris‑ houve aumento de 30%. Foram decretadas em
O período de quarentena é um fator de es‑ co físico, já sobejamente anunciado, mas tam‑ março 2.500 medidas protetivas em caráter de
tresse importante e que pode agir como desen‑ bém de risco psíquico quando isolados em casa urgência contra 1.934 no mês anterior. O mes‑
cadeante ou agravante de quadros psiquiátricos diante da situação de quarentena, na qual há mo órgão divulgou um aumento no número de
preexistentes controlados ou não. Pacientes aumento de eventos cardíacos – como hiperten‑ prisões em flagrante devido a casos de violên‑
com histórico de depressão, transtorno bipolar, são e infarto –, acidentes vasculares cerebrais e cia doméstica: em fevereiro foram 177, já em
transtorno obsessivo-compulsivo com rituais diabetes, bem como depressão, agitação, irrita‑ março foram 268. Dados obviamente subnoti‑
de limpeza, transtornos ansiosos, esquizofre‑ bilidade e descompensação de pacientes com ficados pelo temor da vítima.
nia, transtornos alimentares e dependência de quadros demenciais ou de Alzheimer. Na Argentina, no Canadá, na França, na
álcool e drogas devem receber apoio familiar e Estudos mostram que, se soubermos a Alemanha, na Espanha, no Reino Unido e nos
a manutenção vigorosa do acompanhamento diferença entre solidão e solitude, é possível Estados Unidos, ativistas de direitos das mu‑
psiquiátrico e psicológico. ajudar. Segundo as reflexões do teólogo Paul lheres e autoridades relatam que durante a
Há preocupação também com a saúde física Tillich, a palavra “solidão” geralmente tem pandemia o número de casos de violência do‑
das crianças, na medida em que há novas evi‑ carga negativa, melancólica, triste: costuma méstica aumentou entre 30% e 40%. O acesso

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Fragmento
de um diário São Paulo, 19 de abril de 2020. econômico, social e político, e aparentemen‑
Primeiras anotações sobre o impacto da pan‑ te não há nenhuma ação coordenada para evi‑
Aos poucos, percebemos que o colapso atinge todos, demia de Covid-19 no Brasil. Convivemos tar isso. “Colapso” é um substantivo masculi‑
mas não do mesmo modo oficialmente com o coronavírus desde 25 de no que se refere àquilo que está em processo de
fevereiro de 2020, quando um empresário desmoronamento, ao que sofre uma drástica
de 61 anos recebeu o diagnóstico positivo no experiência de crise ou está prestes a acabar,
Silvana de Souza Ramos Hospital Israelita Albert Einstein. O paciente, a se tornar ruína. Na medicina, designa um
que se recuperou em duas semanas, havia re‑ estado físico de debilidade pelo enfraqueci‑
tornado ao Brasil de uma viagem ao norte da mento do organismo ou pela perda excessiva
Itália, região que começava a enfrentar uma de líquidos, algo que acarreta insuficiência
explosão de casos da doença. Desde o apare‑ cardíaca ou mesmo um estado de síncope,
cimento desse primeiro caso até o fechamento isto é, de perda dos sentidos ou de falência
desta edição, foram registradas 7.485 mortes do sistema nervoso. Na botânica, sinaliza a di‑
no país pela doença. Desse total de vítimas fa‑ minuição ou extinção completa da turgescên‑
tais, 2.654 foram registradas no estado de São cia de um vegetal. Em termos sociais, pode
Paulo. O estado está no epicentro da pandemia significar a redução brusca de eficiência na
no Brasil, país que já soma, a despeito da difi‑ produção e a queda drástica do consumo, in‑
culdade para realizar testes de detecção da pre‑ dicando, assim, uma recessão econômica. Em
sença do vírus, 110.156 infectados. termos políticos, pode representar a perda de
Como os povos originários da terra brasi- poder por parte de determinado ator ou grupo
lis, lembrados ironicamente no dia 19 de abril, social ou, ainda, a destruição interna das ins‑
seremos também dizimados por uma gripe? tituições por meio de processos de corrupção.
A impressão que mais circula entre nós: cor‑ Colapso pode ser sinônimo de desmaio, des‑
remos o risco de sofrer um colapso sanitário, falecimento, chilique, fanico, decadência,

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declínio, queda, degradação, enfraquecimen‑ Estado mais rico e populoso do país. Quase cia aos familiares das vítimas, tampouco tem
to, falha, derrocada, depauperamento, pereci‑ um mês depois, alguns homens e mulheres se esforçado verdadeiramente para que a
mento, agonia. É o próprio sistema que parece saem às ruas em seus carros, buzinam em necessária ajuda financeira chegue aos que
colapsar, defendem alguns. Será mesmo? Todo
o sistema civilizatório segundo o qual nos or‑
frente a hospitais onde a maioria dos leitos já
se encontra ocupada por convalescentes de
O presidente, contra o parecer precisam dela com urgência. Governadores e
prefeitos enfrentam forte pressão da elite eco‑
ganizamos pode agora ruir? Somos e seremos Covid-19, alguns deles internados em Unida‑ de seu antigo ministro da nômica para que sejam flexibilizadas as medi‑
todos atingidos da mesma forma? Não nos es‑ des de Terapia Intensiva (UTI). das de isolamento social. A curva de mortos
queçamos: é sobre o risco iminente de morte A despeito dos riscos à saúde trazidos pela Saúde, já demitido, insiste continua a crescer em todo o país. Em São
que estamos falando. pandemia, os autodenominados “cidadãos de em negar a gravidade do Paulo, a doença chega às periferias pobres,
bem” exigem a volta às aulas e a reabertura do onde mata com maior rapidez que nos bairros
São Paulo, 20 de abril de 2020. comércio e das demais atividades econômi‑ problema, afirmando estar nobres da cidade, onde o contágio se iniciou.
Relato das primeiras reações às iniciativas cas. As carreatas da morte, como ficaram co‑ mais preocupado com Já sentimos os efeitos da gestão imunitária a
de controle da pandemia, desde que foram nhecidas, afirmam que a economia não pode que estamos sujeitos, esta que deixa parte da
decretadas algumas medidas públicas contra parar, pois a recessão a que nos sujeitaremos as consequências nocivas população vulnerável à doença, segundo um
a proliferação da doença, especialmente por
parte dos governadores e prefeitos do país.
adiante poderá trazer fome e miséria e, por
consequência, mais mortes que a propagação
resultantes de medidas cálculo bastante cruel: os que sobreviverem
se tornarão imunes, os que morrerem morre‑
A cidade de São Paulo está tensa. Há uma descontrolada do coronavírus pelo país. Fa‑ que paralisem a economia riam de qualquer modo. Por meio desse tipo
criatividade que vem das janelas: aplausos, zendo coro ao discurso do presidente da Re‑ de gestão, o presidente-mito ensaia afirmar
gritos, cantorias, panelaços. Os últimos acon‑ pública, elas afirmam que há histeria em torno seu poder ao propagar a morte anônima e
tecem desde o dia 17 de março de 2020. Du‑ de um problema corriqueiro de saúde: uma em massa daqueles que estão aquém da pos‑
rante noites seguidas, essas manifestações gripe qualquer que, no máximo, pode ser letal sibilidade de sofrer um controle estatal que
insultam o presidente da República, exigin‑ ao atingir velhos e portadores de comorbida‑ os obrigaria a se recolherem em local seguro
do ações mais eficazes no combate ao avan‑ des. Parte dos paulistas defende, portanto, a para que ficassem mais protegidos da ação do
ço da doença no país. O presidente, contra o posição do presidente e crê que a salvação de doloroso suplício. Usado como bode expiatório vírus. Entregues à própria sorte, que destino
parecer de seu antigo ministro da Saúde, já todos reside no trabalho. Mas, é preciso per‑ pela Coroa portuguesa para debelar uma revol‑ terão? Que vidas a gestão da pandemia em
demitido, insiste em negar a gravidade do guntar, no trabalho de quem? Quem são esses ta contra a derrama – a cobrança obrigatória de nosso país está disposta a tentar salvar, mes‑
problema, afirmando estar mais preocupado que, sem levar em conta os riscos de contágio impostos sobre a extração de ouro na Colônia mo que para isso seja preciso lançar mão de
com as consequências nocivas resultantes de e de morte, buzinam no ambiente aparente‑ –, ele foi enforcado pela manhã, no Rio de Ja‑ tecnologias de controle de deslocamentos
medidas que paralisem a economia. O isola‑ mente protegido de seus carros, clamando os neiro. Em seguida, teve o corpo esquartejado individuais e coletivos? Aos poucos, percebe‑
mento social traz às janelas o coro de insatis‑ trabalhadores, abatidos por uma crise econô‑ em quatro partes e espalhado pela estrada de mos que o colapso atinge a todos, mas não do
fação daqueles que, ao contrário, defendem mica que se iniciou antes mesmo da chegada acesso a Ouro Preto. Sua cabeça foi exibida em mesmo modo.
medidas governamentais de combate à proli‑ da pandemia, para que sejam reconduzidos uma estaca na praça central da cidade. A con‑
feração da Covid-19 em consonância com as aos postos de produção, comércio e prestação denação de Tiradentes a uma pena severa ser‑ São Paulo, 22 de abril de 2020.
recomendações da Organização Mundial da de serviços? viu para que a Coroa portuguesa demonstrasse Comemoram-se timidamente os 520 anos
Saúde (OMS). Em dissonância, há dois dias toda sua força, a fim de desencorajar futuras da invasão da terra brasilis pelos portugueses.
acontecem protestos contra a manutenção São Paulo, 21 de abril de 2020. rebeliões de inconfidentes. O poder político se A pandemia domina a cena e detém a cidade. A
desse isolamento e em defesa do impeach- Feriado de Tiradentes. Imagens de valas aber‑ afirmava assim pelo direito de infringir a mor‑ única vez que vimos São Paulo parar comple‑
ment do atual governador de São Paulo, João tas e de corpos insepultos vindas do estado do te violenta. O espetáculo do suplício aparecia tamente, foi por causa de uma ameaça do Pri‑
Doria, antes aliado do presidente. Os eventos Amazonas, especialmente da cidade de Ma‑ como o ritual capaz de representar e dar legiti‑ meiro Comando da Capital (PCC), em 2006.
contra as medidas de quarentena ocorrem naus, capital do estado, proliferam nos noticiá‑ midade ao poder soberano. A paralisação durou apenas um dia. Muitos
em vários pontos da capital, especialmente rios. Valas comuns sendo abertas, caminhões Entre nós, hoje, as imagens de corpos se‑ sentiram nas periferias do estado de São Pau‑
na avenida Paulista. No interior e na Baixada frigoríficos instalados na proximidade de hos‑ pultados de maneira improvisada aparecem lo os efeitos mortíferos da retaliação a esse
Santista, também são vistos sinais de descon‑ pitais e cemitérios para que os profissionais apenas como signos de nosso possível colapso. ataque à ordem pública. Hoje, mais uma vez,
tentamento por conta dos sucessivos decre‑ responsáveis possam dar conta dos processos O presidente permanece impassível diante da outro elemento, o vírus, fere a simbologia liga‑
tos estaduais e municipais que, desde o dia de sepultamento. Nessa mesma data, em 1792, agonia de parte da população. Até agora, não da à fundação de São Paulo, a do bandeirante,
24 de março, frearam o avanço econômico do o alferes Tiradentes foi condenado a sofrer um enviou sequer uma mensagem de condolên‑ aquele explorador a quem nada pode deter,

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balhadores, os desempregados, os mendigos, um estabelece uma rotina, assume certos ris‑


os sem-teto, os sem-família, os sem-amor, os cos, faz seus próprios cálculos. A despeito de
sem-ninguém, os que não têm acesso a água não conseguirmos compreender inteiramente
limpa, higiene, muito menos a um respirador o que se passa no presente, começamos a pen‑
Como sair do buraco civilizatório em que nos artificial, caso necessário. sar na incerteza do futuro, e a sofrer de futuro.
Nem todos são iguais perante a doença e Depois do colapso, teremos de lidar com o
enfiamos? Sentimos o colapso na agonia de a morte. Enquanto alguns clamam pela volta luto em relação àqueles que perdemos, e tere‑
nosso tempo. Ele nos agride, nos envergonha, ao trabalho, outros prosseguem em sua coti‑ mos também de lidar com a perda da vida que
diana tentativa de sobreviver e de deixar vi‑ tínhamos, e que nunca mais será a mesma. Se
nos desconcerta. É até possível denegar o que ver. Nem todos correm os mesmos riscos em agora alguns apelam para a fé e outros para a
acontece, como muitos insistem em fazer, mas meio à pandemia. A máquina, aquela que não
pode parar, a que não aceita a preguiça, põe
descrença, depois do fim de tudo, depois de
vermos de perto o real e a finitude, precisare‑
não há para onde fugir verdadeiramente em xeque a universalidade do direito a se‑ mos de uma nova fides. Ou isso, ou a barbárie
gurança, água, respiração e vida. No centro de antigas normalidades potencializadas.
dela, estão os visíveis e vigiáveis, os que serão
monitorados e assim protegidos por sistemas
tecnológicos complexos. E, em suas bordas, os
invisíveis, os que não receberão o auxílio e a
proteção de que necessitam e cuja morte pos‑
sivelmente não será notificada.
o incansável desbravador de novos territórios possa agora ter se transmutado num algoz de
em busca de riqueza e progresso. O vírus o nossa economia e costumes. São Paulo, 23 de abril de 2020
confina, no mesmo passo em que avança mor‑ Então, é isso mesmo, entraremos em co‑ Diante do avanço da Covid-19, da desigual‑
talmente sobre as populações periféricas. O lapso por causa de uma gripe? Sacrilégio inad‑ dade, do desconforto, da incerteza, do medo
paulista sofre porque não se contenta em ficar missível. Nenhum coronavírus poderia deter e da morte, realizemos a tentativa de recolher
em casa, porque precisa sair, trabalhar e pro‑ nossa invencível avidez por trabalho, planilhas algumas imagens de beleza em meio ao caos.
duzir. Porém, mesmo confinado, ele realiza e formulários. Agora, porém, a região se vê Realizemos uma pausa para olhar o céu, ve‑
seu trabalho de modo incessante e remoto. De obrigada a se fixar na curva, a realizar o acha‑ racidade. Surgem diante de nós novos tons de
todos os pecados, o que menos pode suportar tamento da maldita curva de infectados. É cinza, mas também de azul, rosa, violeta. O
é o da preguiça. A gula é bem-vinda, e há entre certo que preferiria abraçar novos deuses e se céu de São Paulo se reinventa, o ar se redesco‑
nós justificado orgulho dos maravilhosos chefs ajoelhar diante deles a ter de se curvar à tare‑ bre, livre de boa parte da poluição que cotidia‑
e dos diferentes restaurantes instalados na ci‑ fa de achatar a curva. “Que sejam cancelados namente o envenena. Mais estrelas, até Vênus
dade. De acordo com a cultura local, a avare‑ os velhos, esses que não mais produzem, pura e uma Superlua aparecem e brilham. Com’è
za pode até ser necessária, pois sabemos aqui danação do sistema”, dizem alguns. “Doentes bella questa città. A fé ganha novos desenhos
como cuidar do dinheiro. A inveja “boa” pode sejam recolhidos em campos de concentra‑ e gestos. Na televisão, revemos a imagem da
ser útil em alguns casos, por incitar a competi‑ ção”, sugere outro, sendo logo repreendido por solidão do Papa na praça São Pedro, no dia
ção e a vitória por mérito. Sentimos, é claro, ira dizer o que não deve ser dito, ao menos não 27 de março, realizando excepcionalmente a
diante de qualquer atraso, pois temos pressa. em público, e não dessa maneira. Hoje, o pre‑ bênção Urbi et Orbi. Assistimos também aos
Admitimos certa soberba, afinal, São Paulo é sidente, ao ser questionado sobre o número desesperados que se ajoelham e oram nas
a locomotiva deste país. A luxúria não é nosso atual de mortos pela Covid-19, desconversou calçadas de nosso país. Como sair do buraco
forte, mas também não chega a incomodar. A afirmando não ser coveiro. Pobres coveiros, civilizatório em que nos enfiamos? Sentimos
preguiça, contudo, essa virtude de Makunaíma assim como os profissionais da saúde, eles o colapso na agonia de nosso tempo. Ele nos
não pode ser aceita, tampouco podemos crer também estão na linha de frente do combate agride, nos envergonha, nos desconcerta. É
que um vírus, outrora trazido por imigrantes à doença. Assim como os que não podem se até possível denegar o que acontece, como
e responsável por dizimar grande parcela de isolar, os que estão entregues à própria sorte, muitos insistem em fazer, mas não há para
indivíduos pertencentes aos povos originários, os que estão vulneráveis ao contágio, os tra‑ onde fugir verdadeiramente. Aos poucos, cada

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A
pandemia causada pelo novo coro‑
navírus veio nivelar a humanidade.
E suscitar sérias questões éticas.
Não faz distinção de classe, como
a anemia e o raquitismo, que resultam da fome;

A pandemia
de gênero, como as doenças da próstata; nem de
orientação sexual, como a aids, que no início afe‑
tava predominantemente homossexuais.
Trata-se, agora, de enfrentar um inimigo
invisível que exige urgente mobilização glo‑
bal para deter seu avanço. E é em momentos

e suas
de crise como este que as pessoas se revelam.
A questão ética fundamental que a pande‑
mia levanta refere-se ao valor da vida huma‑
na. Para o capitalismo, a vida em si tem valor veis. E nossos parentes e amigos infectados
zero, a menos que revestida de adereços com devem padecer sozinhos nos hospitais, sem

implicações
valor de mercado e robustecida por bens patri‑ que possamos consolá-los – exceto pelo celular,
moniais e financeiros. Prova disso é o descaso quando ainda não entraram no respiradouro.
humano em nossas cidades, cujas calçadas se Os falecidos, não temos direito de pranteá‑
enchem de pessoas maltrapilhas que sobrevi‑ -los no velório, nem mesmo de cumprir seus úl‑
vem da caridade alheia. Não teriam valor ne‑ timos desejos – o enterro ou a cremação, com
nhum e, ao cruzar com elas, muitos evitam se uma roupa ou um símbolo religioso específico.

éticas
aproximar, receiam o mau cheiro e o assédio. Como anônimos, são descartados tal como
Suponhamos que uma dessas pessoas ga‑ ocorria na Idade Média com os infectados pela
nhe uma fortuna na loteria e, pouco depois, peste. Estão proibidos de rituais fúnebres. As‑
apareça a bordo de um reluzente Mercedes sim, a Covid-19 rouba-lhes a dignidade. E nos
Benz. Imediatamente passará a ter valor social apunhala ao nos obrigar a ficar afastados de
e ser reverenciada – com o respeito e a inveja quem somos mais próximos. É uma tríplice
de quem o observa. Portanto, eis o patamar morte: a individual, do paciente; a familiar,
antiético ao qual o sistema capitalista nos con‑ dos ausentes; a social, causada pela interdição
Diante do vírus, o espectro da morte nos nivela. duz: valemos pelo que portamos, e não pelo de velório, enterro e culto religioso.
Mas para o capitalismo, a vida em si tem valor zero simples fato de sermos humanos. Outra dimensão ética suscitada pela
Agora, o espectro da morte nos nivela. A de‑ pandemia é o conflito entre solidariedade e
vastação letal ocupa praticamente todo o noti‑ competitividade. Todos conhecemos gestos
Frei Betto ciário. Somos obrigados a redimensionar nos‑ meritórios de solidariedade visando a aplacar
sos critérios, valores e hábitos. Até as nações nosso isolamento e favorecer o socorro às ví‑
mais ricas descobrem que o dinheiro não é timas, como o da jovem do apartamento 404
suficiente para evitar a pandemia. Só a ciência que, todos os dias, prepara a refeição da idosa
é capaz de detê-la, mas ela andava muito ocu‑ do 302, obrigada a dispensar a cozinheira; o do
pada em descobrir, nos laboratórios, como au‑ empresário que distribui quentinhas aos mo‑
mentar os lucros das empresas farmacêuticas, radores das ruas de sua vizinhança; o do uni‑
enquanto faltavam recursos para combater a versitário que se apresentou como voluntário
fome e o aquecimento global. em um hospital, disposto a carregar macas e
A Itália nos mostrou como a pandemia limpar enfermos. Ou como o do bombeiro
coloca sérios dilemas éticos. Médicos e enfer‑ carioca Elielson dos Santos, que, do topo da
meiros tiveram que optar entre um ou outro escada Magirus, oferece com seu trompete
paciente, devido à falta de recursos disponí‑ músicas a moradores do Rio.

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“Eu não ligo pro coronavírus. Vou subir no ar,


Há que ressaltar também a solidariedade de Cuando la tormenta pase pegar ele e falar: ‘Chega! Acaba agora!
países que enviaram recursos a outros, especial‑ Y se amansen los caminos Você não pode deixar os velhinhos longe das crianças!’”
mente Cuba, que deslocou centenas de médicos y seamos sobrevivientes Bento Chiri, 4 anos
para reforçar o socorro na Itália e na Espanha. de un naufragio colectivo.
No entanto, falou mais alto a competitivi‑ Con el corazón lloroso
dade, valor supremo do capitalismo. O chinês y el destino bendecido “Não quero mais falar com ninguém pelo celular,
Jack Ma, fundador da plataforma de vendas nos sentiremos dichosos
on-line Alibaba e um dos homens mais ricos tan sólo por estar vivos.
lá só tem uma tela, você não pode tocar, abraçar.”
do mundo, ofereceu gratuitamente kits de tes‑ Y le daremos un abrazo Matteo Camarote Andrade, 5 anos
tes para diagnosticar Covid-19 e respiradores al primer desconocido
a 50 países, inclusive Cuba. Porém a transpor‑ y alabaremos la suerte
tadora aérea era de bandeira norte-americana, de conservar un amigo. “2020 está sendo um ano meio que arruinado. É muito
e a Casa Branca, desprovida do mínimo senso Y entonces recordaremos estranho ficar em casa com tudo isso. Não tenho medo,
humanitário, valeu-se do genocida bloqueio todo aquello que perdimos só incerteza.”
imposto à ilha do Caribe para impedir que a y de una vez aprenderemos
carga chegasse a seu destino. todo lo que no aprendimos.
Enzo Braz, 12 anos
Em nome de caprichos políticos, sacrifica-se Ya no tendremos envidia
a vida de nações. Algo semelhante ocorreu com pues todos habrán sufrido.
o governo da Bahia, que comprou equipamen‑ Ya no tendremos desidia
“Eu quero que o corona vá embora! Quero voltar pra
tos da China no valor de 42 milhões de reais. Ao Seremos más compasivos. escola e fazer minhas atividades.”
passar de navio pelos EUA, a encomenda foi Valdrá más lo que es de todos Bebel de Luna, 5 anos
apropriada pelo governo da nação imperial. Que lo jamás conseguido
As implicações éticas suscitadas pela pan‑ Seremos más generosos
demia se assemelham às de situações de guer‑ Y mucho más comprometidos “O corona é chato! Não aguento mais ficar enfurnada
ra. O governo Bolsonaro, monitorado pelo
dentro de casa, quero a minha liberdade!”
Fundo Monetário Internacional (FMI), havia Entenderemos lo frágil
aplicado ao Brasil um rigoroso ajuste fiscal co‑ que significa estar vivos Tainá Chagas, 7 anos
roado pelo teto de gastos e por juros elevados. Sudaremos empatía
Desde a posse, alegava não ter dinheiro e pre‑ por quien está y quien se ha ido.
cisar promover reformas, como a da Previdên‑ Extrañaremos al viejo “Mamãe, isso é vida real!”
cia, para poupar recursos. que pedía un peso en el mercado, Júlia Castellani Malavasi, 5 anos
Dinheiro nunca falta quando se trata de que no supimos su nombre
pagar os juros da dívida pública e saciar o vo‑ y siempre estuvo a tu lado.
raz apetite dos bancos. Desde que assumiu o Y quizás el viejo pobre “O coronavírus é perigoso, começou na China e veio
Ministério da Economia, Paulo Guedes trans‑ era tu Dios disfrazado. pra cá de repente. É fatal , pode matar muita gente.
feriu aos bancos 433 bilhões de reais – dinheiro Nunca preguntaste el nombre
Mas tenho esperança que descubram logo uma vacina.”
do povo, sonegado da educação, da saúde, do porque estabas apurado.
saneamento etc. O que vale mais: o lucro dos Y todo será un milagro Leo Zotelli, 9 anos.
bancos ou a vida de milhões de brasileiros? y todo será un legado
O combate à pandemia exigiu medidas y se respetará la vida,
urgentes e, como por milagre, apareceu 1,3 la vida que hemos ganado. “Você sente falta da escola? ‘Mamãe, sinto saudades
trilhão de reais! Recursos há, mas não vonta‑ Cuando la tormenta pase das férias’!”
de política de quem qualificou a pandemia de te pido Dios, apenado, Akira Haddad, 8 anos
“gripezinha” e demonstra não se importar com que nos devuelvas mejores,
a morte em proporções geométricas. como nos habías soñado.
Deixo à nossa reflexão o poema “Esperan‑
za”, do cubano Alexis Valdés:

100
Aislan Camargo Maciera
Alvaro Bianchi
Carla Rodrigues
Christian Ingo Lenz Dunker
Ernani Chaves
Frei Betto
Ivone Gebara
Marcio Sotelo Felippe
Pedro Augusto Gravatá Nicoli
Raphael Luiz de Araújo
Regina Stela Corrêa Vieira
Renan Quinalha
Ruy Braga
Silvana de Souza Ramos
Suely Aires
Táki Athanássios Cordás
Tales Ab’Sáber
Tarso de Melo

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