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[Dados sobre esta edição:

Ed. eletrônica baseada na 1ª ed. impressa - Texto integral. Sem imagens.]


O
AVESSO
DO
IMAGINÁRIO
ARTE CONTEMPORÂNEA E PSICANÁLISE

TANIA RIVERA
É sempre contra a corrente que a arte tenta operar de novo seu
milagre.
JACQUES LACAN

O espaço não existe, é apenas uma metáfora para a estrutura de nossa


existência.
LOUISE BOURGEOIS

O olhar […] sempre procura: alguém,


alguma coisa.
ROLAND BARTHES
INTRODUÇÃO

Gosto de pensar na relação entre arte e psicanálise como uma fita de


Moebius – figura topológica que surgirá muitas vezes ao longo deste livro.
Assim como posso, passeando o dedo por sua superfície, passar de dentro
para fora e logo, em continuidade, de fora para dentro, tento deslizar entre
os dois campos de modo a dar voz ora a um, ora ao outro, pondo em prática
uma torção que talvez defina a ambos.
Mais do que forçar um diálogo entre dois campos bem delimitados
culturalmente, trata-se aqui da tentativa de explicitar algo que ambos
exploram de modos diferentes: uma reversão do eu e do mundo, uma
“cambalhota no cosmos sobre si mesmo” – como dizia Mário Pedrosa – [1]
que nos convida a reconfigurar a relação com nós mesmos e com o outro.
Tal convite, como uma mensagem de náufrago jogada ao mar, é um gesto
efêmero que pode nunca chegar a seu destino, mas repete-se como
endereçamento e assim pode se transmitir, de modo sempre imprevisível.
Esse gesto vai (re)construindo, assim, a cultura como “raiz aberta”, para
usar a expressão de Hélio Oiticica:[2] algo que já está lá mas deve ser
reinventado, em um incessante apelo ao outro.
Essa reconstrução da cultura e do sujeito é necessariamente polifônica,
implicando, é claro, outros campos do saber que tentamos aqui convocar,
especialmente com alguns autores da filosofia. Conto que essa polifonia
possa incorporar cada vez mais vozes, outros timbres, novas línguas.
Os textos aqui reunidos transitam entre o ensaio mais livre e aquele mais
conceitual. Trata-se sempre de confrontar trabalhos artísticos e problemas
teóricos, algumas vezes partindo dos trabalhos (ou de um artista em
particular), outras tomando o primeiro elã de questões conceituais. Os
capítulos esboçam uma vaga progressão, mas podem ser lidos de maneira
independente.
A primeira parte pretende abordar ao mesmo tempo as principais vias
pelas quais a psicanálise tenta se aproximar da arte e algumas das principais
questões a partir das quais reflete a própria produção artística: o corpo, a
imagem e a palavra, em manifestações tão diversas quanto a performance, a
videoarte e a arte dita conceitual.
A segunda parte traz uma conceitualização mais densa, em textos cujas
primeiras versões foram destinadas ao leitor familiarizado com a teoria
psicanalítica, e abordam aprofundadamente as relações entre sublimação,
imaginário e fantasia. Mas eles também permitem, espero, uma leitura mais
solta, em torno do mal-estar na cultura e da questão do espaço, ressaltando
alguns pontos da reflexão artística de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo
Meireles.
Os ensaios que compõem a terceira parte delineiam questões mais amplas
e menos diretamente ligadas à teoria psicanalítica, em uma abordagem que
não deixa, contudo, de ser por ela marcada. O papel da crítica de arte é
questionado em sua relação com a produção artística contemporânea,
especialmente em diálogo com Através, de Cildo Meireles. Apresenta-se
uma contribuição para a reflexão sobre o objeto de arte e sua “aura”, a partir
de Walter Benjamin e em confronto com trabalhos de Waltercio Caldas e,
mais uma vez, Cildo Meireles. Além disso, o conceito de arte pós-moderna
segundo Mário Pedrosa é ressaltado em sua dimensão ética, para a qual a
psicanálise revela-se uma importante influência. A radical abertura ao outro
implicada nessa dimensão é rapidamente explorada em Hélio Oiticica, na
proposta do parangolé, e em Lygia Clark com o trabalho que ela
considerava “terapêutico”.
Na última parte, mais próxima do que convencionalmente se chama
crítica de arte, cada ensaio refere-se à obra de um artista, explorando as
reflexões poéticas realizadas pelo próprio trabalho na tentativa de
retransmiti-las em múltipla polifonia.
Acompanha este volume, em dvd, o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte
contemporânea brasileira. A partir de entrevistas com os artistas Cildo
Meireles, Ernesto Neto e Ricardo Basbaum e com os teóricos e críticos
Glória Ferreira, Paulo Herkenhoff, Vladimir Safatle, Marília Panitz,
Frederico Morais, ele visa explorar a sofisticada reflexão sobre o sujeito em
sua relação com o outro realizada pela arte contemporânea brasileira. Este
trabalho conta com inserções sonoras de Rodolfo Caesar, trechos de vídeos
de Ernesto Neto e de participantes do projeto Novas Bases para a
Personalidade (NBP) de Ricardo Basbaum, fragmentos de trabalhos sonoros
de Cildo Meireles e do vídeo que acompanhou a exposição de Obscura luz
(em Paris, 2005), excertos do filme Cildo Meireles, de Wilson Coutinho, e
imagens do Divisor de Lygia Pape (em sua remontagem de 2010). Busca-se,
nesta polifonia, uma releitura plural da noção de participação do espectador,
da presença do corpo e da incidência da arte no social.
Agradeço muito a todos esses participantes e também a Waltercio Caldas,
Milton Machado, Umberto Costa Barros, Paula Pape, Ana Coutinho, Cesar
Oiticica Filho e à família Oiticica. Sou extremamente grata, ainda, a
Evandro Salles, Maria Cristina Poli, Izabela Pucu, Jeanne-Marie Gagnebin
e Marcos Bonisson (além de Anita e Isadora, sempre). A investigação que
deu origem a este trabalho contou com o apoio do CNPQ e da Funarte (MinC),
sob forma de uma Bolsa de Apoio à Produção Crítica em Artes Visuais
(Edital de 2008) que tornou possível, especialmente, a realização de uma
primeira versão do videoensaio. Para a publicação deste livro e a
reconfiguração final do DVD foi decisivo o auxílio da Secretaria de Estado de
Cultura do Rio de Janeiro.

Citando um dito do arqueólogo alemão Alfred Schuler que só seria passado


adiante “à boca pequena”, Walter Benjamin afirma que todo conhecimento
“deve conter um grão de contrassenso”. Assim como a pequena
irregularidade em um tapete antigo, residiria nisso sua “imperceptível
marca de autenticidade”.[3] Mais importante que a progressão de
conhecimento em conhecimento, o decisivo seria a rachadura capaz de se
revelar no interior de cada um deles. Espero aqui ter dado lugar a brechas
desse tipo, e que nelas cada leitor possa brevemente se alojar.
PARTE UM

CORPO,
IMAGEM E
PALAVRA
O RETORNO DO SUJEITO:
SOBRE PERFORMANCE E CORPO

Five points make a man


(cinco minúsculas gotas d’água)
JAMES LEE BYARS
Um amigo me contava, outro dia, a trágica história de uma conhecida que
ficou tetraplégica após um grave acidente. Falou de sua perturbação diante
do primeiro e-mail enviado por ela, do hospital, utilizando algum tipo de
instrumento para digitar com a boca: “Estou viva”. Lembrei-me
imediatamente de On Kawara e dos cartões-postais que ele enviava a
pessoas do meio artístico com a inscrição: “Eu ainda estou vivo – On
Kawara”.
Mais forte do que a escrita, a presença corporal de alguém, ao se oferecer
ao olhar do outro, não seria essencialmente uma declaração inequívoca de
que “se está vivo” – o que sempre significa que “ainda” se está vivo? “Na
morte”, dizia James Lee Byars em 1978, “anulo todas as minhas obras.” [4] O
que a presença do corpo denuncia, para além de qualquer reafirmação de
sua existência individual, é sua fugacidade, a condição mortal, passageira,
do homem. Como indica o título de um trabalho de Byars, um quadrado de
folha de ouro com 3 × 3 metros sobre o chão, no salão de entrada de uma
exposição em Berlim em 1989, The Perfect Performance is to Stand Still.
Eu gostaria de ressaltar, na performance, mais uma terrível (e por vezes
bela) ausência do que a presença mais ou menos espetacular do corpo.

Emprestar seu corpo à obra, dar à obra um corpo ou ainda fazer


CORPO E SUJEITO

do corpo uma obra – essas expressões não dizem tudo e mostram o jogo
mesmo entre corpo e arte, entre corpo e sujeito. Algo se subtrai e nos atinge
na presença maciça de um corpo oferecido ao olhar. Nesse jogo, refletir
sobre a performance é construir uma reflexão sobre a própria noção de
sujeito hoje. Em outras palavras, a performance põe em questão o sujeito –
e a arte, talvez seu reduto mais próprio.
O sujeito está no centro da questão da arte. Isso poderia parecer um viés
subjetivante, ou, pior, psicologizante. Mas não se trata disso. É necessário
afirmar hoje que a arte contemporânea é marcada por um verdadeiro
retorno do sujeito, de forma articulada ao que Hal Foster, em um famoso
texto, propõe como “retorno do real”.[5] Após a crítica à mímesis realizada
pelas vanguardas modernistas, que desmantelou a bem-aventurada e
calculada relação entre o sujeito da pintura e a “realidade” representada, o
sujeito, assim como o real, se faz valer de fora do espaço da representação,
contra, ao mesmo tempo, ilusionismos e formalismos. O real que, segundo
Foster, retorna na arte contemporânea, e que ele explora especialmente no
que diz respeito à pop art, é o oposto da realidade mimética construída de
forma ilusionista. Por uma torção talvez sutil, porém vigorosa, não se trata
mais da realidade como janela para o mundo, dada por e para um olho fixo.
Trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo
último das coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar
representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma definitiva.
Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e
violentamente.
O sujeito de que se trata na arte há muito não é mais aquele olho
soberano capaz de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas.
Ele é outro: descentrado, não coincide mais com um centro organizador da
representação. O sujeito que retorna na arte contemporânea se
desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no
mesmo passo em que se temporalizou e deslocou em uma nova concepção,
fragmentada, do espaço. Contudo, uma vez abandonado seu lugar como
origem inequívoca da representação, ele volta de fora da representação,
como corpo real – o que reconfigura suas relações consigo próprio, com o
objeto e com o espaço. O sujeito recusa-se a se assimilar ao olho ideal e,
nesse deslocamento, perde seu lugar de direito para retornar como questão,
em uma convocação direta do espectador.
Se, como dizia Robert Smithson, “a fotografia torna a realidade
obsoleta”,[6] o sujeito que zanzou pelo “deserto” de Malevich, sem se
encontrar no espelho, veio a esbarrar nas impecáveis ruínas que são os
objetos minimalistas, objetos que parecem recusar o sujeito para se afirmar
como entidades autônomas, puros objetos. Para se destacar da representação
mimética, é necessário que eles neguem o homem como seu par e se
recusem a espelhá-lo. Mas o que alcançam, assim, é convocar o sujeito a
uma nova forma de presença. “As três dimensões são principalmente um
espaço para mover-se”, já considerava o artista em seu fundamental
“Objetos específicos”, de 1965.[7] O minimalismo recoloca a
interdependência entre objeto e sujeito em termos não mais
complementares, mas alternantes: o objeto, como o cubo de seis palmos de
Tony Smith, diz ao sujeito: Die! (“morra”, este é seu título). “Seis palmos”,
reflete o próprio Smith, “sugere que se está morto. Uma caixa de seis
palmos. Seis palmos sob a terra.” [8] Extraído do campo da representação
para se inserir nas coordenadas do espaço circundante, o objeto faz aí um
inequívoco apelo ao sujeito, convidando-o a se perceber e se mover nesse
espaço real em que, eventualmente, o objeto vem violentamente – ou
belamente – atingi-lo.
Georges Didi-Huberman já mostrou o quanto as esculturas de Smith são
“objetos-questões”, o que podemos entender como objetos que põem
radicalmente em questão o eu (diante de Die, diz o autor, “nosso ver é
inquietado”,[9] pois somos postos diante daquilo que seria uma espécie de
túmulo e aparece em um verso de Mallarmé como um “calmo bloco caído
de um desastre obscuro”).[10] Desde o ready-made, o objeto já questionava
seu autor e qualquer ideia de autoria, ressaltando o contraste entre as
“intenções do artista”, como diz Duchamp, e o produto realizado. Mas, se o
autor é desbancado, é para que melhor possa surgir o sujeito, do lugar que
lhe seria de direito: “de fora”. São os “olhadores” que “fazem o quadro”, na
famosa fórmula de Duchamp.[11]
Contra qualquer psicologia a se fazer arauto da “interioridade” do eu e
defender sua “exteriorização” em uma ideologia expressionista, a
psicanálise é a reflexão que surge na aurora do século XX para literalmente
pôr o sujeito fora de si. O eu, diz a frase lapidar de Freud, “não é mais
senhor em sua própria casa”.[12] Talvez ele nem tenha mais casa, uma vez
que o inconsciente o desaloja, faz de seu mais íntimo o que Lacan
denomina êxtimo, cunhando um neologismo para denominar o que é
radicalmente singular, e no entanto vem de fora.
Seria seu corpo a sua casa, como parece defender Lygia Clark com seus
A casa é o corpo e O corpo é a casa? Não, no corpo o sujeito está um tanto
desconfortável. Não há coincidência entre eu e meu corpo. Isso é o que a
linguagem comum acentua todos os dias, quando dizemos “tenho um
corpo”, mais do que “sou um corpo”. No espaço, essa “casa” abre-se para
uma imprevisibilidade, um nomadismo, um trânsito que é o contrário da
ideia de um lócus fixo e assegurador. “O espaço arquitetural me transtorna”,
diz Lygia, explicando em seguida o que seria tal espaço: “Pintar um quadro
ou fazer uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura”.[13]
É nesse sentido do “transtorno” que o espaço vivido impinge ao sujeito que
deve ser tomada a afirmação de Freud de que a primeira casa do homem,
sua única legítima casa, absolutamente asseguradora mas de saída perdida,
seria o ventre materno.
Não basta uma apresentação do corpo, seja ela orgiástica, dolorosa ou
poética, para que se reafirme o sujeito. Ricardo Basbaum denuncia com
muita pertinência a existência de uma “anestesia” atual em relação à
performance.[14] Não creio que tal anestesia seja devida a condições
desfavoráveis de recepção, como desinteresse ou massificação extrema.
Talvez ela se deva ao fato de que, hoje, não basta a presença do corpo para
que a verdadeira questão do sujeito se coloque. A performance deve
explicitar uma reflexão poética que se engate na fugidia condição do sujeito
na contemporaneidade.

Ainda que diversas manifestações presenciais do artista possam


EU E O OUTRO

pretender uma afirmação identitária com, por vezes, ressonâncias políticas,


o essencial é que o corpo se dá a ver. “Toda carne”, escreve Merleau-Ponty
em 1960, “e mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma.”[15] O eu apela
ao outro, relembrando sua dependência constitutiva, que faz o seu íntimo
estar fora, êxtimo. A presença do corpo pode, nesse campo do olhar, incitar
a uma subversão do eu que faz surgir o sujeito do inconsciente. A
performance mostra, assim, que o sujeito só pode aparecer de forma
efêmera, fugaz, como efeito de um ato que se dá entre o eu e o outro. Não
se trata, nesse ato, de uma relação simétrica, mero jogo de espelhos. As
figuras formadas pelas linhas de Nazca, no Peru, só podem ser vistas de
avião, e eram portanto invisíveis para o povo que as construiu. Elas foram
feitas para um olhar de fora, um olhar absoluto, Outro. Na performance,
trata-se de “dar-se a ver” ao Outro. Nesse apelo além do espelho, há uma
tentativa um tanto sacrificial, a bem dizer, de “co-memorar” (relembrar) o
próprio surgimento do sujeito, em sua dependência e demanda em relação a
um Outro.
Marina Abramovic em Rhythm 0, realizada em 1974, entregou-se
inteiramente à manipulação dos espectadores, tendo a seu lado objetos
como batom, perfume, fósforos, água, uma vela, uma arma, uma bala, uma
serra, um machado, agulhas, uma tesoura, mel, uvas e enxofre. “Há 72
objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim como desejarem. Eu
sou o objeto”, era a declaração da artista.[16] Seis horas mais tarde, após
Marina ter sido despida, cortada, pintada, limpa, coroada com espinhos e ter
tido a arma, carregada, apontada para sua cabeça, a performance foi
interrompida por espectadores preocupados com seu desfecho.
Yoko Ono já havia, em sua Cut Piece, de 1964, convidado o público a
utilizar uma tesoura afiada para cortar suas roupas, desnudando-a. Nessas
ações, as artistas oferecem-se ao outro como objeto de modo a revelar a
condição fundamental do objeto para si mesmo e para o outro. É necessário
varrer de nossa ideia a tradicional diferenciação, complementar, entre
sujeito e objeto para poder espiar entre eles uma certa vertigem, uma
fabulosa e perigosa oscilação. Não se trata de tornar-se outro como em um
jogo de espelhos, sem restos e de forma inócua, numa complementar troca
de papéis. Trata-se, para o sujeito, de assumir, por um breve instante quase
insuportável, sua condição de quase-objeto, e com isso ver-se quase-sujeito:
não propriamente sujeito de seus atos, mas assujeitado a eles.
Paradoxalmente, ao assumir diante do outro sua condição de objeto – ao se
assujeitar – pode-se engatar a posição de sujeito (e desejar, ou seja,
reafirmar seu apetite do objeto). Algo se corta como a roupa de Yoko, algo
cai e se perde, nessa arriscada encarnação do sujeito realizada pela
performance.
Sob o provocativo convite à participação do espectador, o desenrolar da
proposta de Abramovic revela uma espécie de armadilha: a oferta de si
como objeto proposta pela artista pode engatar no outro o pendor para dela
se servir sem o respeito devido a seu semelhante ou até mesmo com
crueldade. Nada nisso deve nos surpreender, pois está de acordo com os
instrumentos a eles oferecidos e com a declaração-ato da artista (“Eu sou o
objeto”). Enlaçando o outro em um circuito quase irresistível, faço-me
cortar, faço-me ferir e ameaçar, pois materializo aí um quase-objeto que põe
em vertigem seus observadores. Estes podem, então, sentir-se chamados a
reduzir esse quase-objeto a um verdadeiro objeto – nem que seja, recurso
extremo e infalível, por sua morte.
Trata-se de um “ato cujo trajeto de alguma maneira tem que ser cumprido
pelo outro”,[17] como diz Lacan a respeito do ato analítico. Tal ato seria a
unidade mínima, essencial, de um processo analítico, que resultaria no que
o psicanalista chama “efeito de sujeito”. O sujeito não é mais do que um
rápido efeito que se perde em seguida, ele não goza de nenhuma constância,
ao contrário do eu que é imagem enganosa surgida no espelho com a
promessa, nunca inteiramente cumprida, de permanecer sempre a mesma. O
sujeito é efeito de um ato que se dá numa trajetória, num circuito que
necessita do outro, o convoca e só com ele se completa.
A performance pode assim fazer surgir o sujeito, pondo em jogo o eu e o
outro que é seu semelhante, de modo a, em última instância, realizar um
apelo ao Outro, à alteridade radical (assim como se endereçam ao Outro as
linhas de Nazca). Em Rhythm O, isso se materializa na intervenção de
alguns espectadores, que interromperam a performance por temer que
participantes chegassem a ferir ou até mesmo matar a artista. O Outro – no
caso de algumas performances, a polícia – lhe vem em salvação. Mais do
que uma comunicação com o outro, a presença corporal do artista implica,
portanto, um oferecimento-apelo ao Olhar Outro. Isso é o que confere a
uma ação realizada sem público, e mesmo de forma totalmente privada, a
possibilidade de ser tomada como uma performance – não seria tal oferta e
apelo ao Olhar, aliás, a radical implicação de todas as formulações
defendendo a própria vida como arte?
Por vezes, a performance agencia um convite a que o espectador se
ofereça também a este Olhar, tornando-se dela verdadeiramente um
participante. Assim, Sophie Calle convida pessoas para dormir em sua
cama, parecendo dizer: vem, tome meu lugar (Les Dormeurs, 1979). Nada
de ação: apenas durma. A artista fica ali, olhando, velando e,
eventualmente, fotografando o sono desses dormidores de empréstimo. Mas
e seus sonhos, quem os olharia?

Mais do que uma espetacular expressão na presença


ATO E SUJEITO EM LYGIA CLARK E LACAN

do corpo, a performance acentua um instante fugidio, na passagem do


tempo. Sua definição essencial talvez resida nesse caráter temporal de ação
passageira que a impede de ser fixada como objeto ou obra, mesmo que
dela se façam eventuais registros em fotografias ou filmes. Ainda quando
buscadas e planejadas com cuidado pelo artista, tais imagens são tomadas
como distintas da própria performance. Esses produtos secundários apenas
dão notícia da ação, de forma fragmentada e parcial. A crítica e curadora
Glória Ferreira defende de forma muito pertinente que o filme e as
fotografias concedem à performance uma inscrição no universo da imagem.
Mas por mais que façam da ação uma imagem, eles não são, em si, a
performance. Essa não se fixa em imagem e dela só restam dejetos, restos,
sejam eles textos, vestígios ou fotos. Uma performance, em si mesma,
parece sustentar que belo é o que passa, o que termina, o que é efêmero e se
apresenta já nos anunciando sua perda – como defende Freud em um
passeio com Lou Andreas-Salomé e o poeta Rainer-Maria Rilke, por ele
registrado em 1915 no belo texto “Sobre a transitoriedade”:

O valor de toda essa beleza e de toda essa perfeição é determinado


unicamente por sua significação para nossa vida de sensações, ela nem
mesmo necessita durar mais do que esta e é portanto independente da
duração temporal absoluta.[18]

A “vida de sensações” – ou seja, a vida tout court – se dá diante de uma


perda iminente. O essencial se passa num átimo para nos deixar na saudade.
“O doloroso”, diz Freud ainda neste pequeno ensaio, “também pode ser
verdadeiro.”[19]
Resistente ao domínio da imagem, denunciadora da falácia do objeto per
se, a performance não pode se definir pela presença do corpo, mas sim por
uma realização que se inscreve em um momento temporal para, em seguida,
se perder. Ela é sobretudo ato. Ato de perda. Um ato que implica, como
vimos com Yoko Ono e Marina Abramovic, um dispositivo capaz de
recolocar em jogo as posições de eu e objeto, convocando o Olhar e
fazendo surgir, em um átimo, o sujeito.
Podemos dizer que a performance realiza um sujeito-ato que não tem
lugar fixo, mas se desloca entre eu e outro, dentro e fora. Ele é análogo à
fita de Moebius, figura topológica que pode ser construída pela torção de
uma tira de papel seguida pela união de suas duas pontas, tornando-se uma
superfície de uma só face contínua. Muito explorada por Lacan em seus
seminários a partir de 1962, a superfície da fita, graças à torção que a
constitui, não apresenta distinção entre dentro e fora. O sujeito não é mais
que tal torção, o caminhar nessa superfície que se dá de forma contínua no
tempo, passando por dentro e por fora sem ruptura alguma. Lacan não é o
único, naquele momento, a se interessar por essa banda unilateral, que
promove uma verdadeira subversão em nosso mundo de representação,
implicando uma perturbadora reconfiguração do espaço. Anos antes, o
suíço Max Bill havia feito dela uma referência fundamental para a arte
brasileira, com a histórica presença da Unidade tripartida (1948-49), na i
Bienal de São Paulo (1951). Por sua vez, Escher a apresentara mais
diretamente em 1961 com sua Fita de Moebius i, e acrescentaria formigas
passeando em sua superfície contínua em 1963, na Fita de Moebius II.
Lacan fazia os ouvintes de seu Seminário sentirem ativamente essa figura
topológica e ressaltava a importância do corte da fita de ponta a ponta, na
linha de seu comprimento, que curiosamente não produz duas bandas
moebianas, mas uma só fita bilateral. Para o psicanalista, a fita de Moebius
não seria mais do que esse corte, ato que faz nela surgir a diferenciação
entre dentro e fora. É provavelmente por isso que Lacan a define como “o
suporte estrutural do sujeito como divisível”.[20]
Já Lygia Clark, em seu Caminhando, de 1963, faz do ato de cortar a fita
unilateral o próprio trabalho artístico. O corte por ela proposto difere do
lacaniano por não concluir a cisão ao longo da superfície, mas prosseguir
com ela em uma suave espiral, de modo a se tornar virtualmente infinito,
gerando uma banda cada vez mais longa, até que a largura da fita não
permita mais que a tesoura prossiga. A trajetória do corte acompanha a
continuidade dentro-fora dessa figura topológica até encontrar o limite
físico de sua largura. Ela produz como objeto remanescente uma fita ainda
unilateral, porém mais longa, pendendo em suaves curvas e mais orgânica,
por assim dizer, anunciando os Trepantes. O sujeito, nessa obra, não se
divide de uma vez, mas desdobra sua continuidade dentro-fora até o limite.
Ele se temporaliza, pondo-se em marcha como nada mais que esse próprio
ato e materializando-se como não mais do que um sutil mas poderoso efeito
de subversão espacial. O objeto deixa, nessa proposição, de ser o
complemento fixo, correlativo do sujeito, para com ele quase coincidir, em
um deslocamento continuado. Assim, Caminhando põe radicalmente em
questão o estatuto do objeto e do sujeito na arte, em prol de nada além de
uma ação no espaço e no tempo. A própria artista comenta:

Em seu diálogo com minha obra O dentro é o fora o sujeito atuante


reencontra sua própria precariedade. Também ele – como o Bicho –
não tem fisionomia estática que o defina. Ele descobre o efêmero por
oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao
tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se
identificam essencialmente no ato.

Diferente da pessoa que é agente do corte – a artista, no caso – é o sujeito,


móvel e precário, que o Caminhando visa fazer surgir em seu convite a um
ato temporal e capaz de subverter o espaço. O espaço torna-se assim um
campo de metamorfoses no qual o sujeito aparece, lançado fora de si e já
destinado a se perder no tempo. “O ato de se fazer é tempo”, sentencia
Lygia.[21]
Em “Capturar um fragmento de tempo suspenso” – ainda sobre este
ponto de virada em sua obra que é o Caminhando, de que ela diz só
importar “o ato-vivo-do-fazer” –, Lygia acentua o perigo que o ato põe em
jogo, a forma como ele põe em risco o sujeito:

O Caminhando me deixava dentro de uma espécie de vazio: a


iminência do ato, o abandono da transferência ao objeto, a própria
dissolução do conceito de obra e de artista, tudo isso provocava em
mim uma grande crise a qual, inconscientemente, eu já estava
buscando há muito tempo.[22]

“Através do Caminhando perco a autoria”, constata então a artista,


“incorporo o ato como conceito de existência.”[23] Mas o ato subverte a
própria noção de “existência”: não sou, propriamente, em mim mesma, mas
aconteço, em ato. Com ele, em decorrência dele, uma vez o ato realizado,
só depois dele. De produtor do ato, sua origem, o sujeito torna-se
caminhante, errático e temporário resultado, efêmero efeito. Lacan fala de
“um ato tal que, em seu fim, destitui o próprio sujeito que o instaura”.[24]
Lygia: “O depois está implícito no ato se fazendo”.[25]
O Caminhando fará Lygia chegar ao “pensamento mudo”: nada além de
pensamento, que nem precisa ser falado para o outro, que não é falado nem
para si próprio – tal pensamento vai além da ideia de comunicação, ele é
quase uma negação total do sujeito em prol do puro silêncio. Nada de
narração, nada de espaço. Fragmento de tempo em uma espécie de
performance absoluta: pensar mudo. Penso, logo aconteço. Ato invisível,
inaudível, incomunicável. Estou viva.

Tal ato – tal ato poético, digamos – é radical e estranhamente


POR UM ESPAÇO DO ATO

delicado. Lacan refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que


seria capaz de mudar o sujeito.[26] Vibração sutil, oscilação da vida por um
fio, que intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para lhe mudar
as feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público
assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo
como uma janela que o espectador não ultrapassa, ou só ultrapassa de
maneira pontual. Já a performance nasce misturada à vida, ela é
acontecimento e não narração, ela se põe à nossa frente, nos faz esbarrar ou
desvia nosso caminho, pretende transformar o espaço cotidiano.
O ato de que estamos tratando liga-se, de fato, a uma configuração
instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais
olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao
espaço ilusionista substitui-se o espaço real de uma ação entre sujeito e
objeto que se marca no tempo. Ou seja, delineia-se aí um espaço de perda, e
não mais do espelhamento entre eu e mundo que permite a fixação da
imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no
Outro para além da imagem de que somos feitos.” Ele prossegue, então, em
uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou melhor, de sua falta de
lugar e da configuração espacial que isso acarreta, para além da imagem em
espelho: “Esse lugar representa a ausência em que estamos”.[27]
Deslizante e imprevisível esse espaço, lugar de ausência em vez de
imagem, é difícil de conceber e teorizar. No Manifesto Gutai, em 1956, Jiro
Yoshihara indica seu caráter perturbador.

Quando a qualidade do indivíduo e o material selecionado se fundem


no forno do automatismo, ficamos surpresos ao ver a emergência de
um espaço desconhecido, não visto e não experimentado. O
automatismo transcende inevitavelmente a própria imagem do artista.
Nós tentamos realizar nosso próprio método de criar espaço em vez de
depender de nossa própria imagem.[28]

O “automatismo” do ato quebra a imagem especular e abre este incrível


espaço “não visto” que parece ser o próprio espaço do Olhar de que
falávamos. A reflexão sobre a percepção realizada por artistas os mais
variados, especialmente nas décadas de 1960 e 70, leva, mais do que à
identidade do sujeito consigo próprio, a esta vivência do real que não se
cristaliza mais na imagem, mas passa pelo ato. Como diz ainda Lygia Clark:
“Instável no espaço, parece que estou me desagregando. Viver a percepção,
ser a percepção…”.[29]
Nessa busca da percepção vivida talvez haja algo como a possibilidade
de que o eu que percebe seja capaz de se perceber percebendo, em uma
coalescência da mão direita tocando a mão esquerda tocando o objeto, na
concepção de Merleau-Ponty.[30] Mas, na percepção, o sujeito, em vez de se
encontrar enfim consigo mesmo, no mundo, mais parece se perder no
espaço, estranhado. A noção merleau-pontyana de uma “carne do mundo”
da qual faríamos parte já apontava para essa estranha disseminação do
corpo, no campo da percepção. Uma vez perdido o lugar de senhor da
percepção, resta a constatação um tanto angustiante de que sou objeto de
percepção do outro, misturo-me à cena do mundo para um olhar externo, e
não detenho a posição autônoma e imperturbável que asseguraria o mundo
da percepção abrindo-se ao mesmo tempo que minhas pálpebras. Sou
imagem que não se vê completamente a si própria, e portanto me mimetizo
no ambiente – tal é a proposta inovadora que, já na década de 1930, Roger
Caillois realizava no contexto da reflexão intelectual ligada ao surrealismo.
Em seu seminal “Mimetismo e psicastenia legendária”, Caillois mostra
que a magia mimética, tida pelos pesquisadores como uma defesa, pode, na
realidade, levar pequenos animais mais diretamente à morte, consistindo em
um “luxo” sem finalidade, ou mesmo um “luxo perigoso”.[31] Há pequenas
lagartas, por exemplo, que mimetizando jovens arbustos se fazem podar por
horticultores; outras simulam folhas tão bem que se roem mutuamente.
Além disso, estudos teriam mostrado que animais que se mimetizam são
comidos pelos predadores em quantidade semelhante àquela dos que não se
mimetizam, o que provaria que o disfarce não tem finalidade de proteção. O
fundamental, na argumentação de Caillois, é desmontar a ideia de qualquer
funcionalidade do mimetismo para mostrar que os corpos tendem a uma
espécie de assimilação imaginária ao espaço, por pura captação na imagem.
Mais do que isso: entre o espaço e a “personalidade”, para usar seu próprio
termo, o autor localiza um “distúrbio”.[32] “Parece até”, diz belamente, “que
se exerce uma verdadeira tentação do espaço.”[33]
Rosalind Krauss aproxima do informe de Georges Bataille o mimetismo,
por ela caracterizado como “este espasmo da natureza em que os limites são
fragmentados e as distinções realmente apagadas”.[34] Mais do que uma
crítica da forma, porém, interessa a Caillois o papel da ação que torna
problemática a percepção e tira, literalmente, o homem de seu lugar.

A percepção do espaço é, sem dúvida, um fenômeno complexo: o


espaço é indissoluvelmente percebido e representado. Desse ponto de
vista, é um duplo diedro a todo momento mudando de grandeza e de
situação: diedro da ação cujo plano horizontal é formado pelo solo e o
plano vertical pelo homem mesmo que anda e que em decorrência
desse fato forma o diedro consigo mesmo.[35]

Neste primeiro diedro, o homem é a origem da visão. O fato de ele


caminhar, se mover, já torna mutável o campo da percepção. Mas é com o
segundo diedro que este campo se torna francamente complexo, “mudando
de grandeza e situação”, como vimos acima.
Diedro da representação determinado pelo mesmo plano horizontal que o
precedente (mas representado e não percebido), cortado verticalmente na
distância onde o objeto aparece. É com o espaço representado que o drama
se precisa, pois o ser vivo, o organismo, não é mais a origem das
coordenadas, mas um ponto dentre outros; ele é desapossado de seu
privilégio e, no sentido forte da expressão, não sabe mais onde colocar-se.
[36]

A percepção / representação é um drama que se desenrola entre o


domínio da visão de que o homem é o senhor, ocupando o “ponto de vista”
central, e o campo do olhar, no qual ele é olhado e assim se torna parte da
cena do mundo. É dessa reviravolta de agente da visão em objeto do olhar
que se trata no mimetismo. Nele, a presença do corpo conjuga-se à ação e
se submete ao olhar do outro, em uma tentação imagética que faz do sujeito,
objeto. Leitor apaixonado do texto de Caillois, Lacan afirmará décadas mais
tarde que “o que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que
está do lado de fora”.[37] Mais do que seduzir ou enganar o outro seu
semelhante, trata-se aí do Olhar de que falávamos com as linhas de Nazca,
Olhar absoluto que captura o sujeito.
Apesar de tratar de pequenos insetos e outros animais, é o homem que a
reflexão de Caillois realmente visa. O autor faz menção à loucura, mais
especificamente aos esquizofrênicos, como “espíritos desapossados” a
quem o espaço apareceria com uma “potência devoradora”. Tais pessoas
atravessariam então a fronteira de sua pele e habitariam “do outro lado dos
seus sentidos”. É aí que toma sua definição a “psicastenia legendária” do
título, referida à teoria de Pierre Janet como uma “despersonalização por
assimilação ao espaço”. O sujeito

procura se ver de um ponto qualquer do espaço. Ele mesmo se sente


virar espaço, espaço negro onde não se pode pôr coisas. Ele é
semelhante, não semelhante a alguma coisa, mas simplesmente
semelhante. E ele inventa espaços dos quais ele é a “possessão
convulsiva”.[38]

Homem e espaço convulsionados, despossuídos mutuamente. Seria esta


uma definição possível da performance: o sujeito tornado espaço? Uma vez
possuído pelo corpo, o espaço o desaloja e abre-se ao surgimento do sujeito.
Correlativamente ao aparecimento disseminado do sujeito fora do corpo,
inventam-se espaços, como propõe Caillois na citação acima. O espaço não
pode mais ser fixo, ele deve ser inventado, criado em ato na flutuante,
movente e estilhaçada medida do sujeito.
Lacan afirma que o “mimetismo é, sem dúvida, o equivalente da função
que, no homem, se exerce pela pintura”.[39] Mas de que “pintura” se trata? Se
um pássaro pintasse, diz o psicanalista, seria deixando cair suas penas; uma
árvore, sua casca e suas folhas. No ato mesmo de se exteriorizar, o sujeito
perde algo, de seu corpo caem objetos, dejetos que são uma espécie de
materialização de seu próprio descentramento. Apelando ao olhar, a
performance deixa vestígios, iscas capazes de nos fisgar neste mesmo gesto
transformador.
“Não esqueçamos que a pincelada do pintor é alguma coisa em que se
termina um movimento”, diz Lacan, dialogando implicitamente com o
tachismo e a action painting. Mas não se trata aí de expressão no sentido de
dar a ver, no exterior, uma interioridade bem definida. Não se trata de um
indivíduo que se manifesta em sua autonomia e indivisibilidade, e sim de
um sujeito que recoloca em jogo seus próprios fundamentos, entre imagem
e gesto, materializando-se como não mais que um resto.
É por esse gesto – acrescenta logo em seguida o psicanalista, após
lembrar que o pássaro perderia suas penas ao pintar –, “é por esta dimensão
que estamos na criação escópica – o gesto enquanto movimento dado a
ver”.[40] O ato que, como já falamos, só se realiza com o outro, mostra na
performance sua dimensão de gesto que se suspende ou contém, ao se
destinar ao Olhar. “O que é um gesto?”, pergunta Lacan. “Um gesto de
ameaça, por exemplo? Não é um golpe que se interrompe. É pura e
simplesmente algo que é feito para se conter e se suspender.”[41]
Em Rest Energy, de 1980, Marina Abramovic e seu companheiro Ulay
encontram-se em um tenso equilíbrio sustentado por um arco e flecha. Ulay
segura a base da flecha apoiada no fio do arco em sua máxima extensão,
enquanto Marina apoia todo seu corpo na mão que segura o corpo de
madeira do arco. A flecha está direcionada para o coração de Abramovic, e
bastaria um deslize de Ulay para que ela se desprendesse e a ferisse. Essa
ameaça sustém os dois corpos inclinados para trás, estendidos como o fio
do arco, suspensos e paralisados graças a essa tensão do fio com a flecha.
Essa performance talvez evoque o risco mortal de uma relação amorosa, a
extrema dependência e sujeição a que ela pode levar. Mas esse ato amoroso
e ameaçador, realizado a dois, torna-se gesto ao se conter e suspender,
oferecendo-se ao Olhar. Há uma parada do ato, essencial porque inscreve o
gesto em retrocesso. Trata-se de ameaça, e não de agressão, justamente
porque o ato se detém.
O gesto implica a presença do corpo, e no entanto aponta para fora dele –
para, pelo menos, um outro corpo que o coopta, por uma semelhança
empática, amorosa, cuja face escondida é a agressão. Mas é graças ao
endereçamento ao Olhar que o gesto se dá como suspensão e perda. Os
corpos de Marina Abramovic e Ulay se engancham em uma energia estática
graças a um objeto, o arco e flecha, ele mesmo composto de duas partes
interdependentes, porém destacáveis, formando um mecanismo de
propulsão que as separa justo após ser atingido o máximo de cruzamento
entre as duas. Entre os corpos dos dois artistas, um movimento se desenha,
uma trajetória que não se cumpre – do corpo parte algo que não se torna
propriamente visível, mas atinge seu alvo. Daí a potência da presença do
corpo para a convocação do Olhar. “O sujeito do inconsciente”, diz Lacan,
“se engancha no corpo” [42] e se propulsiona no corpo do outro, diríamos,
para nos atingir no nosso.
Portanto, em tal gesto dado a ver, o sujeito não está totalmente presente –
ele está, diz Lacan, como “teleguiado”.[43] Pois aí se acentua, mais do que
seu desejo, aquele do Outro a quem ele se dá a ver. O Sujeito torna-se aí,
em uma vertigem, quase-objeto, objeto do desejo do Outro, que ele busca
ativamente atiçar (olhe-me!).
O sujeito voa por aí como flecha errática (visando nada menos que o
coração). Ele não é mais do que um “sobrevoo”, diz Lacan – [44] e flutua
como pássaro, talvez, perdendo suas penas e nos fazendo às vezes olhar
para cima. Nada a ver com a perspectiva em voo de pássaro – aqui, o
pássaro cai e passa a fazer parte da paisagem e, num clic de fotografia, nela
faz mancha, perdendo suas plumas.

Ricardo Basbaum nota que a performance hoje está em quase toda parte,
misturada a outros meios na produção contemporânea. Essa é uma
indicação preciosa. Mais do que ao abandono da mesma como objeto de
estudo, a performance talvez nos leve à obrigação de recolocarmos hoje a
questão: o que ela significa? Mais do que a presença do corpo ou a primazia
do comportamento sobre o objeto ou o produto, trata-se de pôr em questão
seu dispositivo operante.
Fala-se muito em desaparecimento ou desmaterialização do objeto na arte
contemporânea, e com isso se perde de vista sua fundamental operação
sobre o sujeito: deslocalização e convocação – o sujeito é deslocado, diante
do objeto, para aparecer como efeito de sujeito.
Tal efeito de sujeito é poderoso – ele nos punge e assujeita, dá limites e
ao mesmo tempo, tenho vontade de dizer, nos faz oceano. Tal catarse,
verdadeiro acontecimento (happening?), o acontecimento humano por
excelência (pois é o que nos faz humanos), nos refaz em momentos
precisos, preciosos, em que o sujeito é o acontecimento. O sujeito é o
acontecimento – o sujeito é ato, é gesto, é movimento que transforma o
espaço, mas só depois, nunca antes, só depois que o outro empresta a esse
gesto seu olhar, seu corpo. Caminhante, o sujeito é um “itinerário interior
fora de mim”, nas palavras, ainda, de Lygia Clark.[45]
O teatro perfeito é uma performance concebida em 1975 por Byars e, ao
que parece, jamais realizada. Cem pessoas, reunidas em um jardim de uma
vila europeia, dirigem seu olhar suavemente para o horizonte. De repente,
ouvem um sussurro: “O teatro perfeito é o olhar”. No horizonte, exatamente
à distância que o olho pode discernir, um homem vestido de vermelho
aparece por apenas um instante.
KOSUTH COM FREUD:
A IMAGEM E A PALAVRA

O sujeito nunca é, o sujeito é apenas


o processo de significação.
JULIA KRISTEVA APUD JOSEPH KOSUTH

(À Propos (Reflecteur de Reflecteur) #75, 2004)

Eu penso no que sou quando não penso em pensar.


JACQUES LACAN APUD JOSEPH KOSUTH

(À Propos (Reflecteur de Reflecteur) #70, 2004)


O primeiro capítulo do imponente livro Art Since 1900 trata, curiosamente,
de psicanálise, mostrando que ela compartilha com a arte modernista um
mesmo contexto histórico e que entre elas se produzem variadas interseções
ao longo do século. Os autores identificam uma influência mais ou menos
direta da psicanálise sobre a produção artística, embasada em interesses
comuns, como o fascínio pelas origens, o primitivo e a loucura, ou ainda,
“mais recentemente”, a subjetividade e a sexualidade.[46] Além disso, notam
que termos psicanalíticos entraram no vocabulário de base da arte e da
crítica do século XX. Os entrelaçamentos dos dois campos parecem-me,
contudo, ir além das conexões históricas que desenham um conjunto de
temas comuns e de aplicações de conceitos psicanalíticos como
instrumentos críticos. Mais amplamente, devemos conceber, em um
contexto histórico-cultural expandido, que a psicanálise partilha com a arte
do século XX – e continua hoje compartilhando – questões fundamentais a
respeito da própria natureza da imagem.
Imagem: adotaremos neste ensaio esse termo vago, sem dúvida
polissêmico (para não dizer francamente problemático), para designar o
campo do visual que envolve o sujeito e se configura no campo mais amplo
das representações – entendidas como produtos de determinadas relações
entre sujeito e objeto. No terreno que a psicanálise compartilha com a arte,
em diálogos múltiplos e cruzados (e por vezes até cegos, ou surdos,
desencontrados), tais relações são postas em crise, constituindo um campo
notadamente móvel e sujeito a subversões de um ou outro termo, sujeito ou
objeto. O discurso que abre tal crise da imagem talvez seja aquele que a põe
radicalmente na berlinda, na trilha indicada por Mallarmé em 1885 ao
afirmar que “o moderno desdenha imaginar”.[47]
Desde seu ato de fundação com A interpretação dos sonhos, a psicanálise
trata da imagem, recuperando por via insuspeita um dos significados do
eidolon grego, o de imagem do sonho, que coexistia com as conotações de
aparição suscitada por um deus e de fantasma de um defunto. Por mais que
Lacan tenha, para ressaltar a importância da linguagem na constituição do
sujeito, buscado varrer do campo da psicanálise a prepotência da imagem
que a obscurecia nos autores pós-freudianos, a imagem não cessa de
retornar, repetidamente. O imaginário em Lacan é o registro do engodo, da
ilusão que devemos desdenhar (como para Mallarmé), pois encobre o
sujeito do inconsciente. No entanto, a imagem é, desde Freud, como
veremos neste ensaio, simultaneamente encobrimento e vislumbre do desejo
que move o sujeito. Com a invenção freudiana do inconsciente, a noção de
imagem se reconfigura segundo algumas linhas de força que nos parecem
ressoar na produção artística do século XX e preparar uma nova abordagem
do campo disperso em que psicanálise e arte contemporânea se relacionam.
Empregaremos, portanto, o termo “imagem” porque vemos nele,
justamente pelas dificuldades que levanta, no que carrega de problemático e
impreciso – por vezes sendo aproximado da ideia de figuração, no discurso
corrente sendo oposto ao campo da escultura etc. –, uma importante
potência crítica. Talvez com ele seja possível pôr em crise, mais uma vez e
repetidamente, certas ideias dominantes, como a atual versão de
iconoclasmo apontada por Arlindo Machado,[48] para recolocar a velha
questão da imagem, na contracorrente e em companhia da psicanálise e de
alguns trabalhos de Joseph Kosuth sobre a obra de Freud.

Já em 1899, no precoce texto “Lembranças encobridoras”,


SONHO, MEMÓRIA E PALAVRA

Freud pôs vigorosamente em questão o estatuto da recordação e, com ela, o


da imagem. Ele mostrou que nossas lembranças mais vívidas podem não ser
mais do que fantasias. Tais imagens fixam uma recordação que não ocorreu
na realidade, ou privilegiam um evento totalmente banal. Em seu âmago,
porém, há uma terrível verdade que elas escondem, encobrem: um
acontecimento traumático. Assim, por exemplo, Freud nada recorda do
nascimento de sua irmã, que, no entanto, lhe trouxe consequências sem
dúvida importantes. Em contrapartida, ele guarda a nítida recordação de um
incidente banal ocorrido durante a viagem de trem que fez com a família
nessa ocasião.[49] O que parece sem importância e corriqueiro toma o lugar
de algo fundamental que é a ele contíguo, mas permanece oculto, como um
curto fragmento de filme que bruscamente termina e apenas deixa sugerido
o que se seguiria como cena principal.
Em outra modalidade de lembrança encobridora, temos cenas de grande
acuidade perceptiva, mas que não aconteceram factualmente. Trata-se de
fantasias que encobrem a cena real, traumática, mas não deixam de
apresentá-la de maneira deformada e cifrada. Seja de maneira deslocada ou
disfarçada, na lembrança encobridora encontra-se condensado o essencial
do conflito que constitui o sujeito. A lembrança encobridora é, neste
sentido, uma espécie de enigmática fotografia do infantil.
Assim, Freud faz da reprodução mnêmica uma construção que encobre a
verdade, mas de alguma maneira a deixa entrever, e pode portanto ser
perscrutada em uma tentativa de desvelamento. Com isso, ele acentua a
distância entre vivência e representação. A imagem é obstáculo, é véu sobre
o trauma, e podemos chamá-la, nessa vertente, de imagem-muro. Mas por
entre sua trama, em suas lacunas, encontra-se, in-visível, um acontecimento
terrível – em sua vertente, digamos, de imagem-furo.[50]
As lembranças são o material privilegiado do inconsciente (chamado por
Freud de Outra Cena), exprimem-se “em imagens visuais”[51] e são ávidas
por revivescência, levando à alucinação que é o sonho: pensamento tornado
imagem. O sonho é também uma cena – a cena por excelência, via real do
inconsciente –, que segundo Freud vem substituir uma “cena infantil”,
modificando-a.
A essa imagem originária, a essa alucinação que constitui o sonho em si,
porém, não se pode ter acesso direto. O sonho que se interpreta é o texto do
sonho, aquele que Freud recomenda que seja escrito assim que acordamos e
dele nos lembramos, ainda que seja de madrugada – é melhor ter um
caderninho na mesa de cabeceira, como fez ele durante vários anos. Ou é o
texto-relato do sonho contado e recontado em análise, não importam tanto
as inúmeras alterações que ele possa sofrer, o fundamental é que elas levem
aos pensamentos oníricos – graças às associações que refazem, no sentido
inverso, o trabalho figurativo do sonho, nesta espécie de trabalho de
linguagem chamado associação livre.
A obra freudiana opera assim uma espécie de desdobramento da imagem,
um descolamento de si mesma que lhe confere outra espessura. Nisso, ela é
herdeira de uma verdadeira revolução ocorrida nas relações entre sujeito e
imagem, várias décadas mais cedo: a invenção da fotografia. Ao cumprir a
pauta realista com precisão quase absoluta, a fotografia acaba por abrir uma
crise sem precedentes na história da mímesis. Entre a representação e o
referente não há mais a distância segura que a pintura tentava ultrapassar.
De um só golpe, é a própria realidade que é posta em questão: seria ela
apenas imagem? O real se distancia até se tornar inatingível, enquanto a
imagem assume a dupla e paradoxal função de mostrá-lo e escondê-lo, ao
mesmo tempo.
Não é abusiva a concepção de Walter Benjamin de um “inconsciente
ótico”, marcado pelo surgimento da fotografia e comparável ao inconsciente
“pulsional” freudiano.[52] A fotografia inaugura um modo de análise do
visual que a cronofotografia, por exemplo, mostra com Muybridge: haveria
ou não um momento na corrida de cavalos em que nenhuma das patas do
animal se encontraria apoiada no chão? A psicanálise opera no sujeito
aquilo que a fotografia realiza no âmbito da realidade: torna-o
problemático, opaco, sujeito a análise.
Mas dizer que o inconsciente freudiano é “pulsional”, como o caracteriza
Benjamin, é uma meia verdade. Freud localiza as pulsões na fronteira com a
biologia, frisando que elas devem, no aparelho psíquico, se fazer
representar. O material do psiquismo são as representações, acompanhadas
de forma mais ou menos errante por afetos. Para tratar do sujeito
desencontrado, descentrado pelo inconsciente, é curioso que Freud lance
mão, repetidamente, do modelo de aparelhos óticos, que lhe permitem
conceber, a partir da premissa de uma espessura e opacidade fundamentais à
construção da realidade, uma estratificação diversamente refratada da
representação, correspondendo aos diferentes sistemas psíquicos:
consciente, pré-consciente e inconsciente.

Proponho simplesmente seguir a sugestão de visualizarmos o


instrumento que executa nossas funções anímicas como semelhante a
um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo.
Com base nisso, a localização psíquica corresponderá a um ponto no
interior do aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da
imagem.[53]

Não se trata apenas de fazer da localização psíquica um lugar virtual que se


sobreponha às porções do cérebro – com as quais, na época de Freud como
hoje, alguns cientistas teimam em reduzir a questão do sujeito. O que o
psicanalista persistirá em chamar de “aparelho” psíquico produz imagem no
sonho prioritariamente, e também na lembrança encobridora, borrando as
fronteiras entre sonho e recordação. Tal aparelho também produz piadas,
lapsos e sintomas, fazendo da linguagem um sintoma. A imagem também é
sintoma: ela cristaliza um conflito entre o que se pode e o que não se pode
mostrar, entre o sexual enigmático e o eu, entre a imagem-muro e a
imagem-furo. Longe de ser um material inerte que constituiria o
inconsciente, a imagem é incerta, cambiante e disfarçada, distorcida pela
censura. Os processos pelos quais ela se forma são figuras de linguagem:
condensação e deslocamento (que Lacan faz equivaler à metáfora e à
metonímia, respectivamente), pois a imagem está de saída entrelaçada à
palavra. O sonho é rébus, enigma em imagens que devem ser
(re)transformadas em palavras, ou melhor: palavras que desenham imagens
a serem retraduzidas. O sonho é “linguagem pictórica”, nos termos de
Freud.[54] As palavras são plásticas, podem-se com elas fazer imagens –
aliás, pode-se com elas fazer todo tipo de coisas, como diz Freud em seu
livro sobre os chistes, as piadas. Os pensamentos que compõem o sonho são
abstratos, são palavras, mas devem ser representados visualmente.

Não há dificuldade em explicar o constrangimento imposto à forma


pela qual os pensamentos oníricos se expressam. O conteúdo dos
sonhos consiste, em sua maior parte, em situações visuais, e os
pensamentos oníricos, por conseguinte, devem ser submetidos, em
primeiro lugar, a um tratamento que os torne adequados a esse tipo de
representação.[55]

É nesse sentido que Freud afirma que “as palavras são frequentemente
tratadas, nos sonhos, como se fossem coisas”[56] como coisas visíveis.

Em 1989, Joseph Kosuth instalou seu Zero & Not na


O READY-MADE E O SONHO

Bergasse 19, casa e consultório de Freud durante décadas, até sua fuga dos
nazistas em 1938. O artista cobriu as paredes com uma cuidadosa
reprodução de trechos da obra do psicanalista Psicopatologia da vida
cotidiana e, em seguida, cobriu-os com fita negra, barrando-os de modo a
impedir quase totalmente sua leitura – de maneira semelhante ao que Freud
caracteriza como o trabalho da censura sobre o material inconsciente. Zero
& Not foi o primeiro passo para transformar em um espaço de arte
contemporânea o imóvel esvaziado dos principais pertences de Freud, que
seguiram com ele para Londres e hoje compõem o Museu Freud nessa
cidade. Kosuth convenceu artistas como John Baldessari, Jenny Holzer e
Ilya Kabakov, entre outros, a doarem obras suas para o museu, formando a
base da coleção da Fundação para as Artes, Museu Sigmund Freud em
Viena. Em 1997, a exibição da coleção foi reaberta com novos trabalhos de
artistas como Sherrie Levine, Marc Goethals e Jessica Diamond. Kosuth
apresentou aí um novo trabalho, intitulado O. & A. / F!D! (to I.K. and J. F.).
Nesta última obra, Kosuth se apropria de uma passagem de “Os chistes e
sua relação com o inconsciente”[57] reproduzido sobre uma parede. O trecho
de Freud trata dos sonhos e, mais especificamente, da transformação do
conceito em imagem, dos pensamentos em “quadro onírico”:

O trabalho do sonho – ao qual retorno após essa digressão – submete o


material dos pensamentos, apresentados no modo optativo, à mais
estranha das revisões. Primeiro, passa do optativo ao presente do
indicativo; substitui o “Oh! Se ao menos…” pelo “É”. Confere-se
então ao “É” uma representação alucinatória; aquilo que chamei de
“regressão” no trabalho do sonho – o trajeto que leva dos pensamentos
às imagens perceptivas, ou, para usar a terminologia da ainda
desconhecida topografia do aparato mental (não entendido
anatomicamente), da região das estruturas dos pensamentos às
percepções sensoriais. Nesse caminho, inverso ao curso tomado pelo
desenvolvimento das direções das complicações mentais, os
pensamentos oníricos ganham pictorialidade; eventualmente, chega-se
a uma situação plástica que é o núcleo do manifesto “quadro onírico”.
[58]

Parte do texto citado, que prossegue ainda em algumas frases, é coberto por
uma grande fotografia emoldurada que impede parte de sua leitura (lê-se
integralmente o trecho que vai até “não entendido anatomicamente”). A
imagem (a “pictorialidade”, ou melhor, a visualidade (Anschaulichkeit), no
termo usado por Freud) é aí decomposta em sua relação com o desejo. O
sonho transforma o desejo (“would it were”, na versão em inglês empregada
por Kosuth) em imagem (“it is”). Essa obra sublinha e revela o sentido em
que o sonho, na fórmula de Freud, é uma “realização de desejo”: ele realiza,
põe em cena o desejo, isso que desliza incessantemente na linguagem, nas
cadeias do significante. A expressão utilizada por Freud, Wunscherfüllung,
não acentua tanto a dimensão de construção de realidade presente na
tradução para o português, correspondendo mais à noção de que o desejo
seja “cumprido” ou “atendido”. Mas o verbo erfüllen também pode tomar o
sentido de aparecer, o que reforça a ideia de que o sonho consiste em uma
realização de desejo na medida em que ele torna visual – faz aparecer – o
desejo. Talvez se possa generalizar a fórmula e afirmar que a imagem é um
trabalho que faz aparecer o desejo.
O trabalho de Kosuth faz do próprio texto de Freud, por sua vez, um it is,
mostrando-o como uma imagem que escapa em parte à significação, já que
uma fotografia – justamente! – vela parte do texto (como um “quadro
onírico” velaria o texto do sonho, ao mesmo tempo que o faz ver),
mostrando uma porta de entrada (de um consultório? Do Museu Freud? Do
inconsciente? Seja como for, ela está fechada). Por sua vez, essa imagem é
recortada por um breve texto de Kosuth, uma espécie de slogan que ocupa
quase um quarto de sua superfície, cobrindo todo o canto inferior direito:
“Uma fronteira aqui se encontra entre uma ‘coisa’ independente e sua
seleção e substituição”.
A referência a uma coisa e sua seleção evoca o procedimento de Marcel
Duchamp e nos faz perceber que Kosuth faz uma espécie de ready-made
com o texto freudiano. “A inicialmente brilhante mudança de paradigma de
Duchamp com o ready-made estava, compreensivelmente, situada no
mundo de objetos: ela parecia insistir em maior flexibilidade formal, mas
ainda assim formal”, nota o artista. Ele realiza então uma torção na noção
de ready-made que dá o tom de toda sua obra, na intenção de levar o
“conceito de ready-made ao seu nível estrutural mais profundo no que diz
respeito ao processo de significação na arte”.[59] Ele chegará a rebatizá-lo
made-ready.
O “processo de significação na arte” assim concebido por Kosuth, em
companhia de Freud, parece, portanto, jogar com imagem e linguagem,
estabelecendo relações e descontinuidades entre eles, marcando zonas de
invisibilidade e, por assim dizer, “dessignificação”. As “coisas” (os “it is”
que formam o “quadro onírico”), no sonho, são selecionadas e substituídas
à exaustão, levadas a remeter sempre a outras “coisas”, e assim se coloca
em jogo, repetidamente, a “fronteira” entre “uma coisa” e “sua seleção ou
substituição”. Uma “coisa” qualquer, inócua em si mesma, é tornada opaca
por sua “seleção” pelo sonho, abrindo infinitas possibilidades de
substituição associativa. Tal como Freud o concebe e se propõe a lê-lo, o
próprio sonho, por implicar uma espécie de subversão da representação,
talvez se aparente a um ready-made: selecionadas e substituídas de maneira
múltipla, suas imagens são retomadas nos fios da linguagem, do desejo,
para se descolar de referentes concretos em prol de uma opacidade e uma
incerteza interpretativa prenhe de sentidos.
Se a imagem é apresentação de desejo, como arriscamos dizer acima, isso
não significa, portanto, que ela tenha um significado preciso, podendo ser
reduzida a um único enunciado. Pelo contrário, a relação entre imagem e
desejo põe em xeque a própria linguagem, apontando para zonas nas quais a
significação resiste e torna sensível a pulsação do sujeito desejante.
O uso da “cosmografia” (ressalte-se aí a grafia) freudiana interessa a
Kosuth por prover “uma estrutura de significação mais ampla que pode
situar proposições artísticas específicas” e consistir em um “contexto
teórico que é não assertivo (uma presença teórica negada) mais do que uma
falta ‘a ser’ interpretada”.[60] Ele parece se referir especialmente a Zero &
Not, no qual reproduz uma passagem de Freud nas paredes e sobre ela
inscreve uma grossa linha que a torna ilegível. A obra censura ou nega a
teoria, impedindo que ela seja “assertiva”, para usar o termo do artista. A
tensão assim produzida duplica e reflete a questão da própria natureza da
significação, entre palavra e imagem. A teoria, tornada imagem, torna-se
opaca e problemática, tanto quanto a arte: ela não interpreta, mas recoloca,
com a arte, a questão da significação e de seu sujeito.
É em tal contexto de reflexão sobre o processo de significação na arte
que o artista “usa” Freud por nove anos, a partir de 1981. Kosuth se
apropria e reflete, em seu trabalho, sobre a obra de outros autores, como
Kafka, Musil, Joyce e Italo Svevo – além de Walter Benjamin e
Wittgenstein, sua influência seminal e mais marcante –, interessado no
“amplo campo de pensamento que afetou as ‘margens’ intelectuais do
século XX”. Kosuth põe em ato um “serviço filosófico” ou “uma atividade
pós-filosófica” que visa reciclar a filosofia com a arte, visto que “de alguma
forma, a arte herdou muito do programa da filosofia, sem os riscos de
alguns dos aspectos especulativos que trouxeram problemas para esta”.[61]
Não é surpreendente que ele avance nessa direção justo com Freud,
apesar do antissubjetivismo professado pelo artista. A psicanálise rompe
com a filosofia ao se embasar em uma práxis clínica – que herda da tragédia
grega sua primeira denominação como “método catártico” – e por ela se
livra de certo risco especulativo, sem contudo deixar de retornar a alguma
“especulação” na elaboração de sua teoria, que tem como núcleo, diga-se de
passagem, ainda outro empréstimo à tragédia grega, o complexo de Édipo.
A psicanálise apela para o sujeito, visa nele operar efeitos, assim como
Kosuth pretende engajar seu olhador / leitor no processo de significação
posto em marcha por suas obras. De fato, o artista parece orgulhoso ao
relatar que seu Zero & Not, originalmente realizado no consultório de um
psicanalista na cidade belga de Gent, teria, segundo este profissional, se
tornado parte da terapia.
Dizíamos, com Freud, que recordações de vivências
REPETIÇÃO, FERIDA E IMAGEM

marcantes, que costumam ser visuais, exercem um papel central para


qualquer produção de imagem. Elas são uma parte importante dos
pensamentos oníricos, sobre a qual o psicanalista afirma:

Sempre que surge a possibilidade, essa parte dos pensamentos oníricos


exerce uma influência decisiva sobre a forma assumida pelo conteúdo
do sonho; constitui, por assim dizer, um núcleo de cristalização que
atrai para si o material dos pensamentos oníricos e, desse modo, afeta
sua distribuição. A situação do sonho não é, com frequência, outra
coisa senão uma repetição modificada, e complicada por interpolações,
de uma dessas vivências marcantes; por outro lado, as reproduções
fiéis e diretas de cenas reais raramente aparecem nos sonhos.[62]

A “seleção” e a “substituição” da “coisa” que vimos Kosuth sublinhar não


são portanto aleatórias, mas se pautam por um insuspeitado – e in-visível –
ponto de atração. É surpreendente que já apareça aqui, como verdadeiro
motivo da criação onírica, a repetição, que só vinte anos mais tarde terá, na
obra de Freud, reconhecido seu lugar central no funcionamento anímico,
com a introdução da pulsão de morte. A “cristalização” é uma questão de
“forma” e implica – levando-se em conta a enorme complexidade lógica de
todo esse material a que Freud chama “pensamentos oníricos” – um
trabalho do sonho que fragmenta, desloca e condensa, seleciona o material
adequado para se construírem “situações” e enfim cria nas surpreendentes
palavras de Freud “novas superfícies”.[63]
As vivências infantis deixam literalmente marcas, mas não são em si
cenas reprodutíveis – a recordação já foi conformada pela cena da fantasia e
com ela já se tornou cobertura, imagem-muro ou véu sobre essa cena
perdida que se tratará, em análise, de construir (e não recuperar ou
descobrir, pois ela só se pode constituir ficcional e retrospectivamente). A
vivência em si não é propriamente imagem, ao contrário, é seu oposto
(imagem-furo, o furo na imagem), e no entanto incita à sua formação
(criando “novas superfícies”). O originário é cena Outra, obscena, por
assim dizer, porque põe em xeque a própria possibilidade de encenação, de
representação. Sua potência é anticênica, informal, pulsante – figural, se
quisermos empregar o termo de Jean-François Lyotard.[64] Ele toma lugar de
originário como tal, nuclear para a constituição do sujeito, ao se organizar
como cena – mas conformando, paradoxalmente, uma cena ausente (e não
apenas escondida), ferida na imagem e no corpo (a palavra grega “traûma”
designa ferida, justamente). Trata-se de uma espécie de sumidouro que suga
os pensamentos para o campo do visual, criando, com o sonho, imagens
capazes de tornar realidade o desejo ou, ainda, de pôr em xeque o próprio
desejo e trair sua escondida e problemática origem, no pesadelo.
No aparelho anímico não deixa de se tratar, portanto, de produção de
imagem, ainda que de linguagem se entreteça seu trabalho. A natureza da
imagem é compósita, como sustenta de forma brilhante Jacques Rancière ao
pensar no cinema, mas não apenas nele: as imagens “são em primeiro lugar
operações, relações entre o dizível e o visível”.[65] O que a psicanálise vem
marcar fortemente, porém, é que a imagem, ao articular o dizível e o
visível, delineia também um campo de invisibilidade e inefabilidade que lhe
é essencial, e não deixa de através dele se apresentar.
Tal campo deixa-se entrever no sonho-modelo apresentado por Freud
para introduzir seu método interpretativo, conhecido como “sonho da
injeção de Irma”. Trata-se de um sonho do próprio psicanalista no qual ele
vê, em um grande salão onde estaria recebendo amigos, uma antiga
analisanda a quem dá o nome de Irma. Ela não lhe parece nada bem, e ele a
leva até a janela para lhe examinar a garganta. Irma resiste, mas logo abre
“a boca como devia”. Freud vê então, de um lado, uma grande placa branca
e, do outro, “extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis
estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos
turbinados do nariz”.[66] Em seguida, alguns colegas médicos também
examinam a paciente e um deles profere o veredicto absurdo de que se
trataria de uma infecção sem importância, pois logo viria uma disenteria, e
a toxina seria eliminada. Neste momento, percebe-se que a origem da
infecção estaria em uma injeção aplicada por outro médico. Tratava-se de
uma injeção, diz Freud, de “um preparado de propil, propilos… ácido
propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse
preparado, impressa em grossos caracteres)”.[67]
As abundantes associações do sonhador levam à sua interpretação como
desejo de ser inocentado de possíveis críticas em relação à sua
conscienciosidade médica no tratamento psicanalítico de Irma. Esta não se
acharia totalmente curada de sua histeria, pensava Freud, por não ter
“aberto a boca como deveria”, ou seja, por não ter aceitado falar tanto
quanto seria necessário para ir adiante em seu tratamento. Mas sobre a boca
aberta da figura de Irma, que Freud associa a outras mulheres, inclusive sua
esposa, ele se recusa a associar mais longamente. A boca aberta dentro da
qual se vê algo terrível – tocando no limite último da imagem – dá então
lugar ao que Freud curiosamente chama “umbigo do sonho”.

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver


um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o
trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um
emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e
que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do
sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no
desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela
interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim
definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da
intricada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em
que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho,
tal como um cogumelo de seu micélio.[68]

Se a imagem onírica é pictograma, escrita visual, isso não implica tanto a


possibilidade de interpretá-la, explicitando aquilo que ela representaria,
quanto o fato de que ela contém um ponto de densidade que põe em xeque a
interpretação porque desestabiliza qualquer relação representativa, ao
disseminar-se em múltiplos referentes. Vai nessa direção a proposta de
Georges Didi-Huberman de que se pense a imagem, com Freud, como
rasgo, rasgo que é um trabalho, um processo que “abre” a representação.[69]
O autor lembra que a mímesis é, já na Poética de Aristóteles, múltipla,
podendo seguir meios variados. No sonho abre-se a questão da semelhança
e a mímesis se dá por meios curiosos, que mais deformam do que
constroem imitações. Pois o sonho mostra algo – mais do que isso,
acrescentaríamos, ele faz algo: realiza um desejo, ou seja, torna-o imagem
(e texto) –, mas não pode mostrar algo, deve esconder, disfarçar para tornar
imagem o que não pode ser visto / dito como tal. Mesmo a condensação,
que agrupa conteúdos ou substitui um conteúdo por outro, a partir de
alguma semelhança entre eles, tende a deformá-los ao uni-los. E é justo em
seu ponto mais denso, ali onde a imagem, plural, resiste a significar algo,
que o desejo mostra sua marca.
Não é à toa que Freud ilustra sua concepção da condensação
A MÍMESIS E O REAL

com os retratos compósitos de Francis Galton (1822-1911), pesquisador


inglês de interesses múltiplos que fundou a teoria da eugenia aplicando as
teorias de seu primo Charles Darwin ao estudo da hereditariedade, além de
ser considerado o pai da psicometria, da psicologia diferencial e da técnica
de uso de digitais para identificação. Galton trabalha, a partir de 1877, com
superposição de fotografias de indivíduos de determinado grupo, gerando
retratos compósitos, imagens um tanto embaçadas nas quais se ressaltam os
traços fisionômicos comuns. Assim, ele chega, por exemplo, ao retrato do
“tipo judeu”. Deixarei de lado as funestas implicações de suas pesquisas
para notar que sua técnica põe em relevo algo fundamental à fotografia (e à
imagem, segundo a psicanálise): unindo traços de pessoas diferentes,
constrói-se uma imagem de ninguém, o retrato de um conceito, seja ele
imaginado como traço de personalidade ou de família. Em uma estranha
simetria com o que o surgimento da fotografia opera no seio da
representação, o inconsciente incide sobre a questão da imagem de maneira
a retirar dela a possibilidade de correspondência direta com um referente, e
com isso problematiza fortemente seu caráter mimético, o põe em crise e
situa a psicanálise como uma verdadeira crítica da imagem.
Uma vez afastada a correspondência direta entre imagem e referente, a
montagem toma então o primeiro plano, lembrando a contemporaneidade
estrita da psicanálise com o principal rebento da fotografia, o cinema. Os
procedimentos de representação que Freud identifica no sonho e refaz em
sua interpretação abrem uma multiplicidade de relações, uma fuga de
associações em que imagem e linguagem se enodam e contrapõem de
maneira imprevisível. Em lugar de uma relação mais ou menos estável entre
o que é representado e sua representação, a linguagem estabelece aí uma
variedade de pontos (e contrapontos) de contato e de distância, fazendo da
imagem um rébus, uma imagem-texto espessa, que revela ao mesmo tempo
que vela o que representa. Ela deve, portanto, ser vista ou “lida” também de
formas infinitas, interpretada sempre de forma limitada e em movimento, já
que falta o código capaz de tornar possível uma tradução direta da imagem
à palavra. Nos termos de Didi-Huberman, a imagem está “em processo”:
“Então, assemelhar não diz mais de um estado de fato, mas de um processo,
uma figuração em ato que vem, pouco a pouco ou de repente, fazer se
tocarem dois elementos até então separados (ou separados segundo a ordem
do discurso)”.[70]
No processo de produção de imagens esse autor concede um importante
lugar ao “não saber”, ao desconhecido. É importante ressaltar, contudo, que
não se trata tanto do que resiste ao conhecimento, e sim do que, muito mais
radicalmente, impossibilita a simbolização – trata-se desse “umbigo” que
Freud identifica ao sexual enigmático e Lacan chama de real. Na imagem
está em obra um ponto cego, insondável, que resiste à simbolização e
insiste em pôr em risco – em rasgo – a representação. Jean-François
Lyotard, ao longo de seu clássico Discours, figure [Discurso, figura],
ressalta do “figural” a natureza pulsional, energética, dessa força capaz de
transgredir e mesmo violentar a ordem do discurso.
O real é o que “não cessa de não se escrever”, no bordão incessantemente
repetido por Lacan. Ele impõe limites à representação e a conduz a sempre
se relançar, tornando-a um processo repetido e talvez infinito, pois coincide
com sua própria interpretação. Mas isso não é tudo. É desse mesmo ponto
de resistência à simbolização que se origina o elã para a criação do sonho,
com o desejo a buscar na imagem sua realização, mesmo que seja, como a
boca aberta de Irma, para mostrar coisas que mal podem ser inscritas e
clamam pela intervenção da linguagem, de um significante como a fórmula
da trimetilamina. Essa substância, não por acaso, é um produto da
decomposição do esperma. Na borda do abismo onde o coloca o
inconsciente e o sexual, Freud apela à química, à ciência bem formalizada,
ao simbólico em sua estrutura de linguagem.
“Há um trabalho do negativo na imagem”, nota Didi-Huberman em sua
leitura de Freud, “uma eficácia ‘sombria’ que, por assim dizer, cava o
visível (o ordenamento dos aspectos representados) e mortifica o legível (o
ordenamento dos dispositivos de significação)”.[71] Tal trabalho do negativo
será teorizado por Freud mais detidamente na parte final de sua obra, com o
conceito de pulsão de morte. Se o umbigo do sonho já designava esse ponto
de fuga que marca um esvaziamento da imagem e aponta in extremis para
uma destruição de qualquer possibilidade de representação, é ele também
que faz apelo à linguagem e incita a seu entrelaçamento com o visível para
a produção de imagens – que vêm contornar esse ponto cego.
Não se trata, portanto, na reflexão psicanalítica sobre a imagem, de algo
que, visível, não se possa mostrar – porque recalcado – mas, mais
radicalmente, da existência de uma matéria bruta da imagem que é informe,
excrescência terrível, abismo onde nada se vê e diante do qual o homem
vacila. Não apenas informe – para aludir ao termo proposto por Georges
Bataille para nomear uma indistinção entre figura e fundo, eu e outro –,
trata-se aí de algo obsceno no sentido que Hal Foster emprega, ligando-o à
noção de abjeção elaborada por Julia Kristeva. Referindo-se a uma obra de
Cindy Sherman (Untitled # 153), Foster afirma que “o objeto-olhar é
apresentado como se não houvesse cena para representá-lo, não houvesse
moldura de representação para contê-lo, não houvesse tela”.[72]

Quando a cena ameaça se romper, vemos surgir, como no


ESQUELETOS DE IMAGENS

sonho de Irma, um significante, letra quase “pura”, suporte material da


linguagem. Nele, a linguagem escancara sua dimensão visual e se aproxima
ao máximo da imagem. A essa tensão entre significação e fruição, entre
contemplação e leitura, Joseph Kosuth dedica grande parte de suas
investigações artísticas. Trata diretamente disso a instalação Zeno nas
margens do mundo conhecido, apresentada na xlv Bienal de Veneza. O
artista apropriou-se de um trecho de texto literário, A consciência de Zeno,
de Italo Svevo, recortando-o em frases apresentadas em três línguas. Não
por acaso, o romance, de 1923, é o primeiro escrito literário a narrar, de
forma um tanto irônica, um tratamento analítico. Zeno encarna um dândi
que apresenta sintomas em profusão, confirmando de forma simplista
algumas ideias de Freud. Seu analista sugere como parte do tratamento, de
modo bastante heterodoxo, que ele escreva sua autobiografia. Apesar de
apresentar um discurso cético em relação à psicanálise, a própria construção
do romance aponta para uma proximidade entre literatura e psicanálise
muito mais fundamental do que a ideia de que o tratamento analítico
equivaleria à escrita autobiográfica. Svevo afirmava explicitamente que a
literatura é mais “psicanalítica” do que o tratamento a que os médicos
restringiriam a psicanálise – ao menos de acordo com a visão francamente
caricatural que o romancista apresenta do que seja um tratamento analítico.
“Grande homem é nosso Freud”, diz ele em uma de suas cartas, “porém
mais para os romancistas do que para os doentes.”[73] De acordo com Kosuth,
esse livro aborda vários conceitos que se tornaram depois básicos “para
nosso discurso no resto do século”.[74]
O artista ressalta a repetição como chave dessa novela. De fato, o
narrador afirma: “O tempo para mim não é essa coisa insensata que nunca
para. Para mim, só para mim, ele retorna”.[75] O tratamento analítico é uma
autobiografia na medida em que obriga a um retorno e a uma construção
(ficcional) do passado. Porém, ao contrário de Freud, o analista de Zeno
assegura-lhe que sua “lembrança seria nítida e completa”. Zeno retorque de
modo eloquente a respeito da questão da imagem e sua relação com a
palavra, no trecho reproduzido por Kosuth em sua instalação:

Quando atingi o torpor que deveria facilitar a ilusão e que me parecia


não ser mais que a associação de um grande esforço a uma grande
inércia, acreditei que as imagens fossem verdadeiras reproduções dos
dias longínquos. Teria podido suspeitar logo de que não eram assim,
pois, mal desvaneciam, eu as recordava, só que sem nenhuma
excitação ou comoção. Recordava-as como nos recordamos dos fatos
que nos são contados por alguém que não os tenha presenciado. Se
fossem verdadeiras reproduções, teria continuado a rir delas e a chorá-
las, como no instante em que as tivera. E o doutor registrava. Dizia:
“Conseguimos isto, conseguimos aquilo”. Na verdade, não havíamos
obtido mais do que signos gráficos, esqueletos de imagens. Fui levado
a crer…[76]

A última frase abre, no livro de Svevo, um novo parágrafo, e prossegue


além das reticências introduzidas por Kosuth: “Fui levado a crer que se
tratava de uma reevocação de minha infância…”. Vem então o relato de um
sonho mostrando o sofrimento de Zeno quando criança, ao ir à escola
enquanto seu irmão mais novo tinha permissão para ficar em casa. O
protagonista desacredita seu analista e interrompe sua análise, ao perceber a
perturbadora natureza de linguagem que possuem essas imagens e decretá-
las “inventadas”. Ele resiste a reconhecer nelas o que, por contraste, delicia
Kosuth (e Freud): sua natureza de “signos gráficos, esqueletos de imagens”
recusando uma visibilidade plena e segura e desenhando um “in-visível”,
perfilando um horizonte incerto.
Em uma versão anterior dessa obra, Kosuth fizera um mesmo trecho do
livro ser repetido e traduzido, em alemão e inglês. Já em Veneza, o texto
contínuo citado acima aparece parte em italiano, parte em húngaro e inglês.
Apenas as pessoas que conhecem as três línguas poderiam, para o artista,
“ver” a instalação inteira. Em uma fina análise do romance de Svevo,
Kosuth nota que o ponto de vista de Zeno é outside, e é nessa posição que o
“olhador / leitor” – como ele gosta de chamá-lo – será também engajado no
trabalho. O olhador está “fora” de parte do visível, diante de um visível que
não é completamente legível. O mais importante, porém, é que Kosuth
afirma fazer, desse texto híbrido e estranhado por recortes e trasladações,
tornado opaco e inacessível a uma leitura discursiva, um “horizonte”.[77] Esse
horizonte desenhado por palavras nas paredes dessa instalação é
acompanhado ainda de reproduções de recortes de jornais, tornando-se
polifônico, múltiplo.
“Eu uso imagens linguisticamente. A linguagem está sempre lá, quer eu
use ou não palavras”, nota Kosuth. Poderíamos afirmar que ele também faz
o inverso: usa a linguagem visualmente, imageticamente, quer use ou não
imagens. De fato, o artista diz querer nessa obra “fazer um trabalho que seja
contemplativo”,[78] o que teria até então evitado. Olhar tal horizonte coincide
com estar envolvido no problemático processo de significação a que a obra
convida.
Dizia acima que a psicanálise concebe a imagem como um certo híbrido
entre imagens e palavras, em um regime um tanto caótico do qual é possível
se inferir certa retórica – dada pelo deslocamento (metonímia) e pela
condensação (metáfora) –, mas que interdita o estabelecimento de uma
simbologia estável, uma iconografia. O referente perdeu sua presença
tangível com a concepção do inconsciente como locus do trauma, e o tecido
da representação se esgarça e expande, tomando lugar ao mesmo tempo
daquilo que se trata de representar e do que se representa, em ato. Os meios
de representação coincidem com o objeto a ser representado – a linguagem,
na obra de Kosuth, é o próprio horizonte –, e vira-se do avesso a afirmação
de Aristóteles segundo a qual os homens “se comprazem no imitado” graças
ao fato de nele reconhecerem o original. O filósofo afirmava que “se
suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer [hédones, em
grego] lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão somente da execução,
da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie”.[79]
A mímesis não é apenas semelhança, mas inclui uma dessemelhança,
uma distância em relação ao “original” que, como lembra Jacques Rancière
com a expressão “alteração da semelhança”, é a própria condição da arte.
Aliás, é no sentido de tal alteração múltipla e infinita “que a arte é feita de
imagens, quer seja ou não figurativa”.[80] Do original passamos, com Freud,
a um originário que não se pode ver, mas que constitui o fulcro do visível,
sendo o original perdido que se tratará de (re)construir, com imagens,
palavras, com palavras tornadas imagens. “Como a palavra sabe atravessar
o tempo!”, exclama Zeno. “Ela própria é um acontecimento que se interliga
aos acontecimentos!” [81]
Talvez estejamos diante de um novo regime da imagem, uma
FORT! DA!

redistribuição de suas relações com o visível e com a linguagem. A


opacidade, o movimento, a montagem toma a dianteira na produção da
imagem sobre o “reconhecimento” de que falava Aristóteles na citação
acima. Uma vez retirado o “original” da imagem, seria ela capaz de
produzir, nos termos de Aristóteles, algum prazer? Algum “prazer” poderá
vir dos elementos inerentes à própria obra (da “execução”, da “cor” etc.),
como atesta – e disso faz profissão de fé – parte da arte modernista. Ou se
poderia pensar que, uma vez subvertida a mímesis pelo desaparecimento do
referente, a própria noção de prazer deve por sua vez se transformar?
É justo de tal transformação do prazer que trata o texto freudiano “Além
do princípio de prazer”. O pesadelo, por exemplo, mostra uma primazia do
desprazer contradizendo a satisfação que, supõe-se, acompanharia a
realização de desejo. No domínio da arte, em especial, o prazer encontra-se
francamente problematizado, como nota o próprio Freud.

Nos adultos, a atividade artística de jogo e imitação que,


diferentemente do comportamento da criança, visa a pessoa do
espectador, não poupa a este, por exemplo na tragédia, as mais
dolorosas experiências, e, no entanto, pode ser por eles sentida como
um prazer superior.[82]

Inscrevendo-se de maneira inconteste na tradição estética, Freud revê nesse


momento o postulado, vigente desde o início de sua obra, de que o
funcionamento do aparelho psíquico busca obter prazer e evitar o desprazer
(segundo o chamado “princípio de prazer”). Ele propõe então a repetição do
trauma como regime primordial da psique. A oposição prazer / desprazer é
revista em função do gozo (como Lacan propõe chamá-lo) que mescla
ambos em uma angústia cheia de volúpia, em um prazer “superior”, porque
um tanto terrível. Prazer transformado em angústia, desprazer tornado
volúpia: o gozo está ligado à repetição do que não se encena, não se
escreve. Mas se joga, repetidamente, o que é capaz de engatar alguma
encenação.
É justamente um jogo, uma brincadeira infantil que é evocada por Freud
a esse respeito. Seu neto de um ano e meio gostava muito de jogar para
longe de si todo tipo de objeto. Um dia, esse comportamento se tornou claro
como um “jogo completo”. O menino segurava por um barbante um carretel
e se pôs a arremessá-lo para dentro de sua caminha, onde ele desaparecia
sob o cortinado. A criança emitia então o som “oooo”, reconhecido por seus
familiares como o advérbio fort, “longe”. Ao puxar de volta o carretel para
si, trazendo-o de volta à visão, o menino dizia “aaaa”, que os outros
significavam como da, algo como “aí está!”. Para o psicanalista, trata-se
nesse jogo de uma grande realização cultural da criança, uma importante
renúncia pulsional. Com o carretel, ela brincaria de fazer sua mãe partir,
repetindo essa vivência dolorosa, antes vivida passivamente. Com o jogo,
graças à substituição da mãe pelo objeto-carretel, a criança teria inventado
um modo de trazê-la simbolicamente de volta, renunciando assim à posse
total desse seu objeto primeiro.
Os slogans e neons de Kosuth não deixam de ser um modo de
compulsivamente retomar esse momento inaugural de significação que é
também aquele em que surge um sujeito. Inicialmente, o sujeito não é mais
do que a simples oposição entre os fonemas “o” / “a” (de “fort” e “da”),
mas ao tomar o barbante e, repetidamente, fazer algo desaparecer de sua
vista, ele cria um mundo de opacidade que põe à prova, todo o tempo, a
possibilidade de significá-lo. Como formula Lyotard em Discours, figure,
“há uma compulsão de opacidade que faz que isso de que se fala seja dado
como perdido”.[83] A partir daí o visual, ou o “inconsciente ótico”, na
expressão de Benjamin retomada por Rosalind Krauss, “reclama para si
essa dimensão de opacidade, de repetição, de tempo”.[84]
Em 1985, Kosuth apresentou na galeria Leo Castelli sua exposição Fort!
Da!. Ele usava marcas de X, já empregadas na série “Cathexis” (1981), no
chão da galeria e em uma fotografia de grandes dimensões onde se lê a
seguinte inscrição: “Há um texto perdido e uma tradução, há uma ordem,
uma lista, há um quadro e um lugar de onde lê-lo”. Os X marcados no chão
do espaço expositivo e no chão que o reproduz, idêntico, na fotografia,
fazem um jogo entre o que está fora e dentro da obra, pondo em questão o
próprio lugar de seu olhador / leitor. O texto está irremediavelmente perdido
( fort!), o que se apresenta é sempre uma tradução, no da! que anuncia seu
aparecimento como imagem.
Lyotard põe em relevo o gesto de Kosuth (seus X, suas palavras) como
aquele do homem que desenha alguns traços em um suporte, anteriormente
à definição de seu produto como pintura ou escrita: “Ele apela, por meio do
visível-legível, a uma ‘presença’ que é mais do que o calmo ato de ver e
ler”.[85] Tal presença é, contudo, marcada por uma opacidade, ou um jogo de
esconde-esconde entre imagem e sujeito. Não se trata apenas, como notava
Kosuth a respeito de Zero & Not, de apresentar a ausência, mas da
“linguagem reduzida a palavras, fazendo da própria textura do ler uma
‘chegada’ na linguagem, uma chegada que constrói outras ordens, as quais
cegam ao se fazer visíveis”.[86]
A imagem posta à prova de sua opacidade gera então, em um extremo, o
apelo à materialidade da letra. Em outro extremo, ela é capaz de gerar uma
busca pelo real além da imagem, realizando o desafio de tornar visível a
zona de “dessignificação”, realçar suas cores, por assim dizer, de forma a
tirar da total opacidade alguns elementos. Para Hal Foster, em seu famoso
ensaio “The Return of the Real”, algumas obras contemporâneas querem
que “o real exista, em toda a glória (ou o horror) de seu desejo pulsátil”.[87]
Para esse fim, elas não só atacam a imagem, mas tentam romper a tela, a
cena que torna imagem essa opacidade, buscando refazer seu encontro
traumático ou materializar o que vimos Freud chamar de “umbigo do
sonho”.
Por mais que pareçam opostas, essas duas vertentes se situam em um
mesmo terreno de jogo entre sujeito e objeto, submetidas a esse estranho
funcionamento que Freud denomina “compulsão à repetição”, no regime da
pulsão de morte. A linguagem, materializada, apresentada como imagem
problemática, distante mil léguas de qualquer ingênuo subjetivismo, não
deixa de recolocar subterraneamente em jogo o sujeito em sua complexa
articulação com a representação, e o faz talvez de forma mais potente do
que ao tomá-lo diretamente como tema. Recoloca-se em jogo também,
nesse contexto, o diálogo entre produção artística e psicanálise, de forma
insuspeita e mais íntima do que normalmente se supõe. Como afirma
Kosuth,

a ubíqua influência de Freud continua gerando um efeito em nossa


leitura de numerosos códigos culturais. Nós sabemos onde ela se situa,
não sabemos dizer onde ela não se situa. “Buscar significados” em um
contexto freudiano, fora do contexto, provê uma certa
autorreflexividade em um contexto de arte sobre esse próprio processo.
[88]
A LETRA, A IMAGEM: GARY HILL

O olho está na fala.


JEAN-FRANÇOIS LYOTARD

Escrever é quebrar o laço que une a palavra a mim mesmo.


MAURICE BLANCHOT
“Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, diz Roland
Barthes em 1970.[89] Comentando uma enciclopédia que traz uma série de
letras formadas por desenhos de objetos variados, ele diz que todos os
artistas, monges, litógrafos e pintores ali citados

fecharam o caminho que parece levar […] da letra à palavra, e


tomaram outro caminho, que é o caminho não da linguagem, mas da
escrita, não da comunicação, mas da significância: aventura que se
situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente
por isso, no centro de sua ação.[90]

A exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de


uma dimensão da linguagem que fica de ordinário submersa, subjugada
pelo império do signo. Ao se destacar da significação das palavras e frases
que ela compõe, a letra abre para a “significância”: resistência, cheia de
emoção, ao sentido, vago erotismo que não se deixa fixar em nenhuma
decifração, brecha da linguagem na qual a poesia e a psicanálise não cessam
de se aventurar.
Nessa aventura que Barthes nomeia “escrita”, compõem-se as letras do
alfabeto com elementos variados do mundo – tais como pássaros, cobras,
homens, monstros, troncos etc. – de modo a, por exemplo, se ter no “O”
dois corpos nus semifletidos, unidos pelas mãos e pelos pés, e cobertos de
pequenas estrelas. Os escribas / desenhistas deste modo fariam da letra,
imagem; com eles, “a letra torna-se imagem na tela do mundo”.[91]
Com a letra, fazer imagem: este é também, para Freud, o trabalho do
sonho. O sonho é o domínio das quimeras, do imaginário mais fecundo, é a
tela onde se projetariam todas as fantasias. Mas Freud o caracteriza como
linguagem – “linguagem pictográfica”, mais precisamente, conjugando
imagem e palavra como resultado da transposição de um texto (o dos
pensamentos latentes) em cenas visuais (que, por sua vez, são retraduzidas
no relato do sonho). Os pensamentos oníricos podem chegar a constituir
uma “situação plástica” que é o núcleo do “quadro onírico”.[92] Nesse
contexto que faz do sonho um “quadro”, é surpreendente ver Freud afirmar,
apesar de tudo, que “os sonhos constroem-se mesmo com palavras”.[93]
A linguagem dos sonhos é pictográfica e suas cenas são construídas com
palavras. Contudo, no sonho, entre imagem e palavra a relação não é
exatamente contínua e harmoniosa. O pictograma onírico é rébus, é
charada: assim como, para significar soldado, podemos desenhar um sol ao
lado de um dado. Um rébus simples como esse mostra bem que, para chegar
a sua solução, é necessário tornar a imagem palavra. Ou melhor: para
reescrever as palavras que compõem o sonho, devemos caminhar letra a
letra. O sonho não seria, portanto, tão “linguagem” assim – na direção
apontada por Barthes, ele é sobretudo escrita. Aventura que vai além da
comunicação, além do sentido, o sonho parece ser o domínio privilegiado
da significância. Um sonho não é comunicável como tal, ele deve ser
interpretado, ou seja: ele nos convida de saída à aventura de sentidos
múltiplos, palavras plurais. Em vez de sofrer duas transposições diretas (a
tradução do texto – inconsciente – em imagem e, em seguida, novamente
em texto – ao ser relatado), o sonho vai sendo, em cada um desses estágios,
transformado de maneira um tanto imprevisível e fragmentária, deixando
restos, lacunas, impossibilidades. Mesmo quando o sonho deixa uma
lembrança coerente, diz Freud, ele nos confronta com algo estranho. Há
sempre algo de perturbador num sonho. Ele nos faz girar infinitamente em
torno de um ponto cego, uma obscuridade que Freud curiosamente chama
de “umbigo” – como a fazer do sonho um corpo.
Sob o véu de suas profusas imagens, o sonho tem como núcleo uma
opacidade, um ponto “insondável” que é seu “ponto de contato com o
desconhecido”.[94] Nesse ponto de que já tratamos no ensaio anterior, seu
“umbigo”, ele mergulha na obscuridade e encontra o limite à sua
interpretação – como acontece a Freud diante da terrível boca aberta de
Irma no célebre sonho que lhe abre o caminho da interpretação dos sonhos.
Mas é desse mesmo ponto que vem a potência formadora das imagens – que
talvez continuem orbitando à sua volta, recobrindo tal ponto cego, mas ao
mesmo tempo apontando sempre para ele. Quando se chega muito próximo
deste ponto impossível de imaginar, como no sonho de Freud, as imagens
são postas em xeque, e a letra deve vir em nosso socorro – pelo súbito
aparecimento da fórmula química da trimetilamina.
O pictográfico compreende portanto duas possibilidades, dois polos
extremos. No primeiro, teríamos uma conivência entre palavra e imagem. O
termo “rosa” deveria ter o perfume da rosa, para aludir à célebre questão
posta por Shakespeare em Romeu e Julieta. A escrita poderia esposar a
forma de seu tema, como faz o caligrama Il Pleut [Chove] de Guillaume
Apollinaire, dispondo as letras em linhas verticais descontínuas, de modo a
desenhar a queda de suas gotas. Nessa vertente, o signo enviaria
diretamente à coisa que ele representa, como os ideogramas chineses faziam
em sua origem, ao grafar “cavalo”, por exemplo, com traços que imitam
esse animal em movimento.
Mas a “linguagem pictográfica” que é o sonho nos aponta o outro polo
extremo da articulação entre palavra e imagem, aquele no qual elas se
apresentam lado a lado e entre uma e outra há alguma interseção, mas de
maneira tensa, conflitante, impossibilitando a direta transposicão de uma a
outra e obrigando-nos a errar nos limites da significação.
Para Lacan, o fato de Freud tomar o sonho como um rébus significa
tomá-lo como “uma escrita”.[95] O inconsciente seria, portanto, o que se lê. E
o que se lê é equívoco, é o que não envia diretamente a um referente, mas
se endereça ao sujeito (sujeito-leitor) como carta / letra (lettre) roubada, e
no entanto essencial: “Para cada um a letra / carta é seu inconsciente”.[96]
A letra não permite diretamente a leitura, mas problematiza o sentido e a
visualidade. O ponto obscuro que ameaça toda a feérica figuração do sonho,
o umbigo que põe em vertigem o sonhador, é nele que vem se inscrever a
fórmula da trimetilamina – com a qual Lacan identifica a carta / letra do
conto “A carta roubada” de Allan Poe, para dizer que “a carta / letra (lettre)
é aqui sinônimo do sujeito inicial, radical”.[97]
Não se trata, porém, de tomar a letra como anterior à linguagem, mas de
vê-la como o operador do escrito, que é um “efeito de linguagem”.[98] É com
a própria linguagem que se forja algo que traça e força seus limites,
desenhando suas bordas. Trata-se aí de uma escrita que não visa
diretamente o sentido mas outra coisa, materializando os traços que dão
origem ao sujeito. Como caracterizar essa escrita que não reafirmaria a
convencional fronteira entre signo linguístico e imagem, mas inscreveria
traços que transbordam de um a outro, pondo em questão a representação –
e seu sujeito?

Gary Hill é um consagrado artista norte-


A VIDEOARTE ENTRE IMAGEM E PALAVRA: AROUND & ABOUT

americano, nascido em 1951, cujos vídeos e instalações tecem complexas e


sofisticadas relações entre imagem, texto e som. Seu trabalho traz a questão
das relações entre visualidade e linguagem para o seio da imagem técnica
que poderia parecer a mais distante da escrita, por ser o terreno que afirma a
vitória da ilusão da imagem mimética e em movimento. Mas a videoarte
realizava, desde seus primórdios na década de 1960, uma vigorosa crítica da
imagem técnica disseminada pela televisão, buscando colocar em crise sua
dimensão puramente mimética, em prol de uma torção poética de seus
meios. Nam June Paik é a principal referência dessa proposta, disseminada
em seguida por outros videoartistas. Alinhando-se a ela, Hill afirma que sua
posição é a de “questionar o lugar privilegiado que a imagem”, em sua
implicação com a visão, possui em nossa “consciência”.[99]A partir da virada
para a década de 1980, a linguagem toma um lugar privilegiado neste
questionamento realizado em vários trabalhos do artista.
Para Raymond Bellour, Hill busca “ver a linguagem na imagem, na
espessura de uma mesma matéria”.[100] Um trabalho como Around & About
(1980, vídeo em cores, 4 min 45 de duração), porém, mostra uma relação
muito mais complexa entre os dois domínios. Ele apresenta uma série de
imagens fixas em sucessão rápida, em geral em corte seco, acompanhada
por um texto em off com a voz do próprio artista. A montagem segue o
ritmo das palavras, cada imagem coincidindo com uma sílaba ou fonema,
ou ainda com uma palavra. O ritmo das sequências sonora e imagética é
rápido e quase coincidente, não havendo pausa entre as frases. Não se
esboça, porém, nenhuma relação ilustrativa entre texto e imagem. Nenhuma
narrativa é criada entre os elementos. As imagens são muitas vezes de
difícil reconhecimento, pois trazem enquadramentos inusitados ou recortes
em close acentuado. Temos, por exemplo, um teclado de computador visto
de um ângulo pouco usual, ou parte do braço de uma cadeira, ou ainda parte
de uma janela. Outros elementos são evidentes: uma parte da parede com
tijolos aparentes, um pedaço de régua, uma maçaneta. Mesmo esses, porém,
tornam-se quase abstratos. É necessário um certo tempo para que possamos
identificar nessas imagens uma série de recortes de um ambiente,
aparentemente um escritório, que jamais nos é trazido de maneira
panorâmica ou em um plano ampliado que permitisse a reconstrução
imaginária do cômodo. A noção de um espaço unificado por meio da
localização dos objetos nos é negada, assim como nos é impedida a
percepção de “nossa” localização em tal espaço. O ponto de vista da câmera
é tão fragmentado quanto os objetos que ela enfoca.
Cada imagem é tratada como uma sílaba, e a montagem vai
emparelhando-a a outras em sucessão, formando talvez “palavras” e
“frases”. O vídeo pareceria afirmar, portanto, que a imagem se constrói de
forma análoga à linguagem. Parodiando Lacan, poderíamos talvez formulá-
lo como: a imagem videográfica se estrutura como uma linguagem. Mas a
edição de Around & About não conforma unidades significantes, nem as
combina em cenas que se poderiam comparar a frases de um discurso capaz
de ser transposto em narrativa verbal. Cada imagem é, nessa obra,
apresentada como letra. Hill parece brincar e revirar a lógica da montagem
– que, no cinema como no vídeo, costuma estar a serviço da construção de
uma narrativa e de um espaço onde esta se desenrola. Em vez de servir à
comunicação, aqui o agenciamento de imagens e palavras serve à
significância, construindo esse curioso efeito de linguagem que é uma
escrita.
Ao pôr em paralelo imagem e palavra, esse vídeo não as faz se refletirem
em espelho, mas apresenta entre elas uma disjunção fundamental. De uma a
outra, faz-se um jogo que o próprio Hill chama de uma espécie de
“automação orgânica” que ocorreria “à medida que a fala empurra as
imagens para fora e para dentro e para fora da tela”.[101] As palavras não
encontram as imagens, mas as “empurram”. E as próprias palavras não se
deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Embora as frases
sejam compreensíveis, não se sabe bem, do início ao fim, do que trata tal
fala, quase logorreica – apesar de consistir em enunciados correntes. O
texto começa com: “Tenho certeza de que isso poderia ter tomado um outro
caminho, um caminho completamente diferente, um caminho que nunca
veio à mente. Mas isso é um dado”. Os “caminhos” do discurso continuam
então a se traçar, com palavras, sem que se chegue a lugar nenhum – pois
trata-se de nada além do próprio caminho, ou seja, da linguagem levada aos
últimos limites. Por vezes, o texto parece ressoar o “caminho” que vão
conformando as imagens em sucessão – “às vezes apenas se sai e entra
novamente”, diz-se a determinada altura. Em lugar de construir um enredo,
a fala apenas se deposita, em sua materialidade audível: “É uma espécie de
entulho”. Falando sobre a própria linguagem, a fala deixa de servir à
comunicação, pois, assim como a sequência imagética, ela se fragmenta na
materialidade de suas unidades – e assim, apesar de continuar familiar,
torna-se estranha no sentido do Unheimliche freudiano. As próprias
palavras tornam-se, como as imagens de Around & About, difíceis de
reconhecer, elas fogem à maneira do que formula Hill ao dizer que as
palavras “estão paradas como veados num campo. Se me aproximo
depressa demais, elas desaparecem no movimento rápido das coisas”.[102]
A linguagem e o visível são incompatíveis, afirma Foucault em As
palavras e as coisas. É certo que a linguagem não pode descrever o quadro
As meninas de Velázquez – ou melhor, ela pode fazê-lo, mas deixará de fora
muita coisa, pois as palavras jamais poderão substituir a pintura. Mas há
muito de linguagem em um quadro como o do pintor espanhol – assim
como na montagem de uma cena em vídeo. As meninas traz, como
sabemos, uma cena da corte, em uma cuidadosa organização espacial onde
as regras da perspectiva e a figuração do próprio artista pintando são
genialmente exploradas e convidam a uma “leitura”, digamos, que vai
muito além do mero reconhecimento da cena ou do virtuosismo realista do
pintor. Se entre pintura e linguagem a relação é, portanto, na palavra de
Foucault, “infinita”, isso não significa apenas que a linguagem correrá
sempre atrás da pintura, sem conseguir alcançá-la.[103] Podemos dizer que
entre o visual e o linguageiro a relação é infinita, excessiva e contaminada,
porque eles se entrecruzam sem se encontrar de forma cabal, mas refazendo
laços dissonantes que põem em questão a própria natureza da representação
(e do sujeito).
Ao tensionar a relação entre imagem e palavra, Gary Hill questiona
radicalmente, de fato, a posição do sujeito diante da representação. Em
Around & About, isso se dá tanto através da imagem quanto do texto. A fala
se endereça diretamente ao espectador, tratando-o por “você”, e no entanto
deixa-o incerto quanto à mensagem a ele endereçada. “É fácil ser
desviado.” Questionar a imagem e a linguagem é apelar para a letra, é abrir
o campo da significância e pôr em movimento (em aventura, como dizia
Barthes) o sujeito. Mudar sua posição – pois, como sublinha o artista, “há
sempre um outro modo de ver” a partir da posição na qual você se encontra,
de seu ponto de vista.[104] Esses múltiplos modos “outros” de ver põem em
questão a posição do sujeito e, correlativamente, o espaço à sua volta. O eu
não é mais senhor de seu próprio espaço, diríamos, parodiando Freud. Nem
de suas costumeiras palavras.
O texto de Around & About traz ainda a curiosa afirmação de que “talvez
seja minha culpa. Eu vim despreparado. Não estou pronto para ser
complexo”. Em torno e a respeito (“around and about”) da linguagem, esse
trabalho é também sobre o sujeito, girando em volta dele e de sua
impossível relação com o outro. “Eu não quero que você esteja envolvido
em decifrar nada”, diz ele. Nada se oferece à decifração porque não se trata
de enunciados difíceis ou enigmáticos, mas, de saída, de uma comunicação
impossível.
Em uma entrevista, Hill conta ter feito esse vídeo em um momento de
muita ansiedade, no qual passava por problemas conjugais e se mudou para
o pequeno escritório usado na filmagem. O texto foi escrito rapidamente,
como se ele “estivesse gritando”.[105] Ao editar as imagens, ele queria
“abusar” delas, manipulá-las com palavras. Expandir esse pequeno espaço e
persuadir a mulher do “paradoxo arte / vida” – tais eram as duas tentativas
nas quais o artista afirma ter igualmente falhado.

A escrita ideográfica chinesa, apesar de


O AVESSO DA IMAGEM, O REVERSO DA PALAVRA: URA ARU

consistir em conjuntos convencionais de traços e apenas em alguns casos


manter a semelhança direta com a coisa representada, pode eventualmente
ser explorada como materialização do sonho de unir o signo à coisa. É
nessa perspectiva que ela aparece no filme O livro de cabeceira, de Peter
Greenaway (1997), ao mesmo tempo que se evidencia sua dimensão
corporal como inscrição na pele, à maneira da tatuagem e outras marcas e
inscrições no corpo. A cada aniversário, a protagonista recebia, desde muito
pequena, a escrita do pai sobre sua nuca e seu rosto, refazendo uma espécie
de ritual de nomeação. Já adulta, ela buscará repeti-lo em situações
claramente eróticas. Em determinado momento, um calígrafo profissional
que acaba de cobri-la de ideogramas lhe ensina que a palavra “chuva”
deveria cair como chuva, a palavra “fumaça”, flutuar no ar como fumaça.
Em seguida, a moça se põe sob a chuva e a tinta escorre sobre sua pele,
chegando quase a realizar essa paixão da semelhança.
Como Greenaway, Lacan foi profundamente provocado pelo Japão, que
chegou a visitar em 1971. Para ele a língua japonesa, por ter tomado
emprestados os ideogramas da língua chinesa para constituir sua escrita,
traz a todo momento “a distância do pensamento, ou seja, do inconsciente, à
fala”.[106] O leitor japonês pode ler um ideograma de mais de uma maneira:
tomando-o por seu valor semântico, ou seja, pelo sentido que já possuía em
chinês, ou por seu valor significante, como um fonema totalmente
independente do seu sentido originário. Cada letra tem ao menos duas
leituras em japonês, podendo chegar a ter de seis a dez, segundo Jean-Louis
Gault. Além disso, a partir do empréstimo inicial dos ideogramas chineses,
a escrita japonesa fragmentou-se em vários tipos, que não é o caso aqui de
destrinchar. O importante é notar que nela opera uma “generalização do
jogo sobre o significante”.[107] Em suma, o ideograma interessa a Lacan para
caracterizar a letra, não tanto pelos resquícios da conivência com a coisa
que ele representaria em sua origem, quanto pela desnorteadora
multiplicidade de leituras a que ele convoca na língua japonesa.
Gary Hill morou no Japão em 1984-85 e se impressionou com a
existência, na língua japonesa, de uma grande quantidade de palíndromos –
palavras que permanecem iguais se lidas de trás para adiante. A partir dessa
constatação ele realiza Ura Aru (the backside exists) (vídeo em cores, 28
min, 1985-86). Ura é avesso, Aru é existência. Hill afirma que existe o
backside, há um reverso da linguagem e da imagem. Os palíndromos que
ele apresenta, escritos ou acústicos, são significantes que podem ser
revertidos, mas tomam então outro sentido. Assim asu (“amanhã” ou “os
próximos dias”) torna-se usa, “melancolia”. As palavras são apresentadas
por escrito na tela, em nosso alfabeto latino, para aí se reverter e traçar um
percurso sobre uma cena que também se reverte. A cena inicial acompanha
o movimento preciso, de cima para baixo, de uma faca abrindo a barriga de
um peixe. A palavra “hara” aparece sobre o corte, na vertical, ao mesmo
tempo que vozes em off a pronunciam, e se rebate sobre seu eixo, para ficar
de cabeça para baixo (“arah”), ainda acompanhando o movimento da faca.
“Belly”, barriga em inglês, é grafada no canto inferior direito da tela, e logo
em seguida aparece a palavra “heart” (coração) usando o h invertido de
“hara”. A cena recomeça mostrada de trás para frente, com o corte
desaparecendo à medida que a faca sobe pelo corpo do peixe. A palavra
“arah” é pronunciada de forma praticamente idêntica a “hara”. Os termos
“guts” (entranhas) e “mind” (mente) percorrem em seguida o canto inferior
da tela, da direita para a esquerda. Mais uma vez a cena é mostrada na
direção original e o corte se refaz enquanto “hara” é pronunciada – desta
vez, contudo, é a palavra “gate” (portão) que aparece.
O vídeo prossegue repetindo com outros termos essa mesma complexa
estrutura de reversão da palavra e da imagem. As palavras japonesas são
muitas vezes pronunciadas por um homem ou uma mulher (dois atores
ocidentais), quando não são ditas por um ator em bem ritualizada cena de
teatro nô. As cenas revertidas provocam muitas vezes uma grande
estranheza, e não se sabe bem, em muitos casos, qual é o direito e o avesso
– ou seja, em que direção elas foram efetivamente filmadas. Os termos em
inglês não representam apenas a tradução dos japoneses, mas por vezes
também entram no jogo, revertendo-se por sua vez sob a lógica do
palíndromo.
Para o crítico John Hanhardt, em Ura Aru a linguagem é tornada
“material”.[108] De fato a palavra é, como afirma Freud, um “material plástico
que se presta a todo tipo de coisas”.[109] Coisas variadas, em transformação,
visto que, como diz Paul-Emmanuel Odin, em Ura Aru “o texto está vivo”.
[110]
A palavra parece então se relacionar com a imagem em pé de igualdade,
com ela tecendo o mundo. Mas o que faz a língua, ao ser apresentada em
sua materialidade escrita, é revirar-se para significar outra coisa e lembrar-
nos que entre significante e significado a relação é arbitrária e talvez até
mesmo móvel. Sem dúvida, Ura Aru me deixa – a mim, ocidental que
desconhece a língua japonesa – ao mesmo tempo perdida e encantada com
o deslizamento entre significante e significado a me negar qualquer
apreensão do jogo da língua (do jogo de alíngua, a lalangue de Lacan:
aquilo que escapa à significação para ser puro jogo sensível, ritmo e
melodia que convoca o corpo a alguma dança). O fato de Hill trazer para
esse jogo palavras em inglês, porém, lembra-nos que tampouco em nossas
línguas ocidentais somos mestres desse jogo. Talvez não exista língua
materna – somos sempre estrangeiros na linguagem.
E na imagem? A incidência desse jogo sobre as imagens que o
acompanham em Ura Aru é digna de nota. O vídeo mostra, como formula
Odin, que “o problema do sentido concerne as noções de espaço, de tempo,
do devir”. No domínio do imaginário, o visível se organizava em prol do
sentido para fazer do espaço uma área homogênea e sem falhas, na qual
podemos reafirmar nosso lugar de “senhores de nossa própria casa”.
Revertendo a cena, a letra rasga o véu da imagem, quebra o espelho e nos
faz entrever o estranho ponto em que a imagem se engancha no real. Como
já apontava com precisão Arlindo Machado comentando Ura Aru, “o
mundo invertido – a reversão de tudo a seu avesso – traz à tona uma outra
dimensão de realidade, que jamais imaginaríamos convivendo lado a lado
com o mundo que nos é familiar, uma dimensão que é o outro do mesmo”.
[111]

Uma cena bastante complexa nos interessa em particular, por tratar direta
e explicitamente da problemática do espelho. Apesar de ser difícil descrevê-
la, pelo acúmulo de elementos em um tempo reduzido, é fundamental tentar
trazê-la para o domínio da escrita. Um homem tem a face muito próxima do
espelho. Ele sopra, produzindo o embaçamento de uma pequena área em
forma de círculo. Traça com o dedo uma borda para o círculo ao mesmo
tempo que pronuncia o termo “omokage”, que aparece na parte superior da
tela em letras pouco contrastadas em relação ao fundo. No embaçado
aparece o termo “visage” (rosto). O homem passa novamente o dedo no
espelho, fazendo o mesmo movimento no sentido inverso: “omokage” se
revira, e a ele é acrescida a letra “u”, ao mesmo tempo que é dito egako
omou. Aparece a palavra “traces” (traços) sobre o embaçado, em seguida
percorrem a tela thought draws breath drawing breath (pensamento
desenha sopro desenhando sopro). Nesse momento percebemos que a cena
está sendo passada ao revés, pois o homem aspira o vapor que estava
condensado sobre o espelho. O ator pronuncia algo repetidamente e o termo
“breath” se revira e duplica duas vezes em seu canto inferior. Ele se desloca
para trás e nesse momento a câmera, fixa até então, gira noventa graus para
a direita de modo a mostrar sua figura de perfil.
A montagem é muito sofisticada e a cena é particularmente perturbadora.
Não sabemos muito bem onde está a câmera, o jogo de espelhos e de
reversão de cenas nos deixa perdidos. As palavras se espelham como as
imagens, mas algo quebra este espelho e nos deixa sem lugar, entre
estranhas cenas e línguas estrangeiras. Demoramos a perceber que se trata
de um espelho de três faces fazendo ângulo entre si, como uma janela com
dois batentes abertos em ângulo.
A cena prossegue com uma dupla sequência que realiza um vertiginoso
percurso da imagem sobre o espelho – levando-nos à sensação de quase
atravessá-lo. Aparece o termo “face” (rosto) revirado no canto da tela. A
câmera gira no sentido oposto cerca de 120 graus, mostrando
sucessivamente três diferentes reflexos: perfil, frente e outro perfil do
homem, que diz algo. No meio desse caminho, reflete-se no fundo do
espelho um vulto de mulher, coberto por um véu negro, andando de costas,
ao mesmo tempo que uma voz feminina pronuncia algo. Entre a imagem
fora do espelho e seu reflexo, um elemento portanto se interpõe, passando
tão rapidamente quanto uma palavra sussurrada. A cena é então passada no
sentido oposto, trazendo a passagem do vulto andando para frente, enquanto
“face” se desdobra em espelho e entre “ecaf” e “face” surge, exatamente no
momento em que a mulher sussura algo, o termo “evil” (maldade). “Evil”
se reverte então em “live” (vivo). O homem aproxima-se e se distancia do
espelho, com ritmo, enquanto “evil” gira sobre seu eixo transformando-se
em “devil” (diabo, demoníaco), em seguida “lived” (vivido) e novamente
“devil”.
Esse vídeo faz palíndromos com imagens, ou seja, as toma de modo
“literal”, decompondo-as em letras. A face, o encontro de si mesmo no
espelho que organiza num só golpe espaço e sentido, dá lugar a traços,
pistas que tentamos seguir, tracejamentos onde a unidade semântica das
palavras se dissolve. O sopro, noção central no pensamento taoísta que
“engendra a vida, ao mesmo tempo o espírito e a matéria, o Um e o
múltiplo, as formas e sua metamorfose”, retoma no espelho o
engendramento das coisas e do sujeito.[112] Na superfície vítrea um gesto
escreve com o sopro um traço – esse é o estopim para a viravolta
vertiginosa que se realiza então, graças ao jogo formado entre os espelhos.
Somos postos em movimento, pelo ponto de vista da câmera, de modo a
acompanhar a multiplicação do reflexo no espelho. Entre reflexo no espelho
e objeto capturado diretamente pela câmera não há distinção nítida, posto
que não sabemos onde estamos, de que lado está nosso olho-câmera. Graças
à manipulação da cena em sua edição, nos é apresentado então o vislumbre
de um atravessamento do espelho. A “face” se põe pelo avesso de maneira a
dar origem a um insuspeitável mal que é a própria vida, seu fulcro no
mundo revirado que nos esforçamos em manter encoberto. Um elemento
enigmático da cena, em preto, apenas passa, andando para frente ou para
trás, enquanto sopra uma palavra estrangeira (“evil”, provavelmente) –
como para marcar a importância do aparecimento de algo obscuro e
inapreensível, quase demoníaco, cuja sombra fugaz traça no espelho uma
brecha, marcando nele uma sutil mas indelével rachadura. “O que sustenta a
imagem”, dizia Lacan no Seminário 20, “é um resto.”[113]
O backside existe: a imagem traz seu inquietante avesso que nos tira o
tapete e nos faz ir além da completude ilusória de nossa imagem no
espelho. Ura Aru nos força a abrir os olhos, se consideramos que, como
dizia André Breton, “o olho não está aberto enquanto se limita ao papel
passivo de espelho”.[114]
Os palíndromos demonstram de forma privilegiada a possibilidade de a
língua se revirar e mostrar sua literalidade, seu caráter de letra capaz de
romper o sentido. A função da letra aparece então como apelo ao corpo,
mas não para simplesmente afirmá-lo e defendê-lo, e sim para denunciar
sua dimensão imagética, especular, e então evocar sua materialidade
sensível, sua presença erótica. Dispositivos artísticos podem assim suscitar
o gozo provocado pela escrita, pelas marcas (do outro) no meu corpo – não
o corpo que vejo no espelho, domesticado, mas aquele que aparece, em
rébus e sensações, no sonho. A letra faz entrever o impossível mundo do
espelho revirado – o que podemos chamar de avesso do imaginário.

Graças à operação de literalização da palavra e da


A LETRA E A UTOPIA DO SUJEITO

imagem, temos em Ura Aru um palimpsesto móvel em que, entre os traços


que vão e vêm, desenhando um espaço improvável, se movimenta o sujeito.
Talvez este vídeo consiga o desafio de tornar visível o “bloco mágico”,
brinquedo que Freud toma como modelo de nosso aparelho psíquico. No
mercado até hoje, com pequenas modificações, ele consiste em uma
superfície na qual se pode escrever sem tinta, com um instrumento
pontiagudo, graças ao contato que ele promove entre a base de cera e uma
camada de celuloide. Uma vez descoladas essas camadas, a inscrição
desaparece da superfície, apesar de permanecer sulcada na cera. Para Freud,
também a psique seria dividida em diversas camadas por entre as quais
pulsam traços que se depositam e podem aparecer e desaparecer, numa
dança complexa e descontínua que é a matriz de nosso conceito de tempo.[115]
Talvez o jogo de Gary Hill com palíndromos descole camadas e explore o
“bloco” que somos nós mesmos.
O sujeito pulsa, descontínuo. Ele é temporal – não cronológico, o que lhe
daria um sentido evolutivo, mas repetitivo, irrompendo de forma arrítmica.
O sujeito é um efeito, consequência de uma escrita espaço-temporal, que se
dá só depois – na temporalidade de que trata a psicanálise, aquela que é
própria ao inconsciente. Tal efeito de sujeito é convocado pela letra. “Litura
pura, é o literal”, diz Lacan. “Produzi-la é reproduzir esta metade sem par
da qual subsiste o sujeito.”[116] O sujeito não se apoia no par, espelhado. Ele é
capenga, se sustenta em nada mais que um traço pela metade, desprovido de
reversibilidade. Os palíndromos de Hill refazem, pela duplicação, o corte
que é uma virada: do espelho para o real que não se deixa ver, que não se
deixa significar.
“Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal
quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É
somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta.”[117] É
nessa virada, vertiginosa, que surge o sujeito, em um momento de gozo que
a arte explora. A arte veicula este “um pouco demais” que afeta a língua,
especialmente a língua japonesa, como nota Lacan.[118]
Se o inconsciente se estrutura como uma linguagem – como diz o
psicanalista –, o sujeito não é linguagem, nem toma na linguagem seu lugar
fixo, sua morada. Antes, a letra assinala a materialidade da língua, o ponto
em que a linguagem “toma corpo” – pois convoca nosso corpo a
comparecer no domínio da representação de maneira a perturbá-lo,
acentuando as lacunas e os limites da significação. Abrindo o caminho para
uma fulguração do sujeito, nas brechas onde se pode fazer a poesia, a arte.
O sujeito é sem lugar, entre linguagem e imagem. Ele surge no instante
de quebra do lugar espacial e semântico que vimos em obra nos trabalhos
de Gary Hill. Ele é quase distópico, não fosse por apontar um lugar
possível, no futuro, mas que só retroativamente se pode assinalar. Há, na
afetação da linguagem e da imagem pela letra, um envio ao futuro, porque
se trata aí do apelo à potencialidade transformadora do sujeito, a se realizar
apenas retroativamente, lançando-o em um devir imprevisível. Utopia, em
sua etimologia grega ou-(prefixo de negação) tópos, é um lugar que se
define negativamente. Mais do que a promessa ou a esperança de um lugar
ideal, saturado imaginariamente, a utopia do sujeito é um não lugar, é uma
aventura para longe da “casa” de que o eu é ilusoriamente o senhor. Utopia
móvel, perpétua travessia.
PARTE DOIS

SUBLIMAÇÃO,
ESPAÇO E
FANTASIA
SUBLIMAÇÃO, PARANGOLÉ
E CULTURA

Sublime é o ponto mais elevado


do que está embaixo.
JACQUES LACAN
A questão da criação artística aparece na teoria freudiana bastante cedo, e já
em 1907 configura uma torção fundamental, no texto “O poeta e o
fantasiar”.[119] A Dichtung, a criação ficcional ou poética, não é tanto um
objeto a ser analisado quanto o modelo sobre o qual Freud se ampara para
conceber a fantasia como produção psíquica constituinte do sujeito. O
fantasiar faria de cada um de nós um poeta, um artista. A sublimação se
articula a esse trabalho ressaltando sua dimensão pulsional ao indicar a
possibilidade de substituir o objetivo sexual por outro, eventualmente mais
valorizado socialmente. Como o objeto originário da pulsão foi
inexoravelmente perdido, a libido é extremamente plástica e pode investir
objetos variados e assumir metas diversas, sem nunca se satisfazer
inteiramente, mas sempre relançando a deriva que chamamos desejo.
Mesmo que Freud ligue por vezes a sublimação à criação artística, podemos
dizer que esse destino pulsional indica algo muito mais geral e fundamental:
a articulação do desejo à cultura – ou melhor, a constituição do desejo e do
sujeito na cultura, de saída e inexoravelmente.
A noção de sublimação não é, portanto, específica à questão da arte. Ao
contrário, ela relança a aproximação entre psicanálise e arte no campo
alargado da cultura no qual a psicanálise é sempre porta-voz do mal-estar e
da crise. Em vez de teorizar sobre a criação artística como diante de um
objeto bem delimitado e externo ao seu terreno de direito – aquele da
clínica –, a psicanálise, com a arte, recoloca portanto a questão da relação
entre sujeito e cultura. E para tratar dessa questão, a própria psicanálise
põe-se em crise, aceita subverter-se, performa o descentramento que a
funda. Faz-se crítica – vendo na sublimação não tanto uma reconciliação
com a sociedade, um respeito a seus “valores”, quanto a transformação
permanente de uma realidade cambiante. Pois a sublimação, como
demonstra particularmente a produção artística, é capaz de agenciar na
cultura efêmeras aparições do sujeito do desejo, convidando a uma
constante reinvenção da cultura.

É necessário ter cuidado, portanto, para não cair


A SUBLIMAÇÃO COMO OPERAÇÃO SIGNIFICANTE

na falácia de tomar a criação como atribuição de alguém – um eu. Somente


no século XIV algumas iluminuras começam a ser assinadas por seus autores,
e apenas com o Renascimento o artista será visto como criador, e não mais
mero veículo do poder divino graças à intervenção do poder, bem mais
terreno, da Igreja. Um eu capaz de criar, e mesmo de ser genial, original em
sua criação, é aquele que vai se autonomizando em um mundo que se
desencanta, ao longo dos séculos, digamos – simplificando ao extremo –,
até a passagem para o século XX. Tal eu criador, senhor da criação, é o oposto
daquele sujeito que não é mais senhor em sua própria casa. A arte moderna,
que nasce ao mesmo tempo que a psicanálise, à primeira vista parece
acentuar a figura do gênio, liberando-o da mímesis, da imitação da
realidade. Interessando-se pela arte dos povos ditos primitivos, dos loucos
ou das crianças, ou mais radicalmente ainda, principalmente com o
surrealismo, buscando uma produção “automática”, ditada pelo
inconsciente, os artistas modernos não deixam, porém, de maneira talvez
menos evidente, de questionar a ideia de autoria. É Marcel Duchamp com
seus ready-mades que, em primeiro lugar, põe em xeque a criação ao fazer
da autoria não mais que um gesto – o de equilibrar uma roda de bicicleta
num banquinho, por exemplo (Roda de bicicleta, 1913), ou o de girar um
mictório para deixá-lo em posição horizontal (Fonte, 1917). A autoria
torna-se não mais que um certo rearranjo de objetos cotidianos, e a
produção artística rompe com a posição central do eu criador.
A partir do final da década de 1950, tal questionamento da criação e da
autoria se dissemina e se radicaliza na arte contemporânea. O campo da
criação artística põe-se então a cumprir nele mesmo uma tarefa crítica no
sentido forte do termo: ele põe em crise a própria noção de criação,
trazendo para seu bojo questões sobre o sujeito, a representação e o objeto.
Em 1957, Tony Smith manda fazer, por telefone, um cubo preto de
aproximadamente 1,80 metro de lado (Die). Em 1960, no mesmo ano em
que Lacan profere seu Seminário sobre a sublimação, Ben Vautier, artista
ligado ao grupo Fluxus, que dissolvia a autoria entre seus diversos
membros, concebe sua Mystery Box. Essa caixa poderia ser reproduzida
indefinidamente e traz a inscrição: “Não abra. Esta caixa perde todo seu
valor e significação estética como obra de arte (mistério) no instante em que
é aberta”. Ela deveria conter poeira em seu interior. Para versões posteriores
do mesmo trabalho, Georges Maciunas pensa em preeenchê-la com cascas
de ovo, cascas de laranja ou saquinhos de chá usados, e comenta, com
ironia, que isso seria muito prático, pois assim eles poderiam livrar-se do
lixo e ainda ganhar dinheiro com ele.No início dos anos 1960, Andy Warhol
faz quadros que são reproduções serigráficas de fotos publicadas em
jornais, enquanto Lygia Clark chega à radicalidade de seu Caminhando: a
obra de arte não é mais do que o gesto, desdobrado no tempo, de cortar no
sentido longitudinal uma fita de Moebius de papel com uma tesoura. Em
1966, Nelson Leirner envia para o Salão de Brasília um porco empalhado.
Em 1970, Antonio Manuel apresenta seu corpo nu como obra na abertura
do Salão de Arte Moderna no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Nessa profusão de práticas díspares, das quais trazemos apenas alguns
exemplos dispersos, como conceber uma noção unificada de criação? Não
se trata mais propriamente de um objeto – a obra –, feito por um sujeito – o
artista – sob o modo da “criação” de algo que antes não existia. A arte põe-
se a criticar a si mesma, questionando vigorosamente a posição do sujeito,
do objeto e da representação.
Ao mesmo tempo que surgia a arte contemporânea, Lacan propunha em
seu Seminário que a criação fosse concebida como ex-nihilo. À primeira
vista, essa fórmula pareceria indicar a produção autônoma de uma obra, à
maneira de Deus criando o Universo a partir “do nada”. Mas, se a criação
divina confirma a onipotência de seu agente, a criação lacaniana, ao
contrário, põe radicalmente em questão a posição do sujeito de tal ato. O
uso que faz Lacan da expressão latina indica a prevalência do significante
que, sempre como “de fora”, “do nada”, ao se criar introduz no mundo
natural a dimensão do vazio e do cheio. É o significante que cria, nessa
medida, o nada. Referindo-se à produção de um vaso de argila como
significante, em conversa com textos de Heidegger, Lacan afirma que

esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é,


em sua forma encarnada, o que caracteriza como tal o vaso. É o vazio
que ele cria, introduzindo com isso a própria perspectiva de preenchê-
lo. O vazio e o cheio são pelo vaso introduzidos em um mundo que,
por si mesmo, não conhece nada disso. É a partir desse significante
modelado que é o vaso que o vazio e o cheio entram como tais no
mundo, nem mais nem menos, e com o mesmo sentido.[120]

O acento aí não é dado ao objeto criado, nem ao seu criador, mas a uma
operação significante – a de criação do próprio significante, ou seja, sua
incidência capaz de gerar, no mundo “natural”, a cultura (e, no mesmo
golpe, o sujeito como efeito dessa operação). Tal operação introduz num
objeto – ou num ato – um “nada de particular” capaz de comemorar ou “re-
suscitar” em nós a origem da cultura. Não se trata necessariamente,
portanto, de fazer surgir um objeto tal que jamais tenha antes existido, mas
de um agenciamento significante que pode ser como uma bricolagem, uma
sutil operação sobre objetos que já estão lá, fora de nós – objetos quaisquer
como as caixinhas de fósforo que Lacan encontra durante a guerra na casa
de Jacques Prévert (elas eram a única coisa que restava, em tempos de
guerra). A tais objetos a dignidade da Coisa perdida só confere um brilho
problemático (posto que a Coisa, como diz Lacan, “literalmente não é: ela
se distingue como ausente, estrangeira”).[121] A Coisa só se apresenta como
fora e em perda. Em vez de senhor da criação, capaz de produzir a Coisa, o
eu se descentra, diante dessa familiar estranheza. Poeira, restos de comida
ou o corpo, algo se apresenta de modo a desmontar a pretensa dignidade do
objeto primordial. Somos, nessa apresentação da Coisa, tomados e
subvertidos como por um lance de dados – jogo simbólico que produz
alguma poesia. Nesse golpe, e não antes dele, pode surgir algum sujeito,
efemeramente, como seu produto. A miragem da Dignidade da Coisa, assim
como a d’O Belo, desfaz-se na própria obra – com minúsculas, pois não é
mais possível aí A Obra (assim como não é mais possível O Sujeito, mas
apenas o sujeito barrado, dividido, castrado).

É dessa mesma fratura no Eu pela qual o sujeito é


A ESTRANHA ESTÉTICA FREUDIANA

remetido à Coisa que se trata no único conceito “estético” de Freud: “O


Estranho” (Das Unheimliche). O estranho, Unheimliche, é familiar,
heimlich: o íntimo é êxtimo. Há nele uma subversão da ideia de
reconhecimento de si em si mesmo e no mundo das representações. Quebra-
se o espelho do eu, secreta base da mímesis vigente desde o Renascimento
como parâmetro maior das artes. Quando Freud afirma se interessar por um
ramo remoto e negligenciado da estética, o campo do estranho, ele está
propondo uma espécie de antiestética. A estética normalmente não
interessaria ao psicanalista, diz ele, por dizer respeito a impulsos
emocionais refreados, “inibidos em seus objetivos” e dependentes de
fatores variados.[122] Mas a estética do estranho é justamente o oposto desta
idílica e engessada “teoria da beleza”: em lugar de amortecer e esconder o
sexual, ela traz à luz o que deveria ter permanecido escondido. O eu
representa a si próprio, duplicando-se, e o duplo, de garantia de
imortalidade, revira-se em “estranho anunciador da morte”.[123] Algo retorna,
repetidamente, em traços (ir)reconhecíveis do que nos é mais familiar. Isso
pode ser um pouco inquietante, quase assustador, mas também aponta para
uma reviravolta poética na situação do eu, dando notícia do sujeito. E
ecoando a vigorosa subversão da imitação que os artistas modernos
realizaram em prol de uma aventura de linhas, cores, do espaço, da
linguagem. E do sujeito.
É tornado estranho (ou extranho), na imagem, no objeto, na linguagem,
que o sujeito pode surgir na cultura. Temos em algumas das pinturas
rupestres da gruta de Chauvet um traço desse gesto constitutivo ao mesmo
tempo da cultura e do sujeito. O homem pré-histórico pousou a mão sobre a
parede de pedra e soprou sobre ela os pigmentos que tinha em sua boca. Ele
inscreveu assim sua imagem, em negativo, ao retirar sua mão. “Retrato”
deriva de traho, que em latim significa arrastar, levar consigo, cativar, mas
também retirar, extrair. É ao se retirar, atuando um estranhamento em
relação a si mesmo, que o sujeito pode aparecer como vestígio – e traço que
nos é legado por esses tempos imemoriais. Essa imagem “dá aos olhos que
a produzem um signo in absentia”, nota finamente a filósofa Marie-José
Mondzain. E tal signo “é o primeiro autorretrato, não especular”.[124] Esse
“gesto fundador e singular”, que nossas crianças não deixam de repetir em
seus primeiros anos de pré-escola, faz da imagem o que a autora belamente
chama de “imagem falante”. Ela conclui: “As imagens aqui falam não para
dizer alguma coisa, mas para designar aquele por quem elas, de ora em
diante, serão faladas”.[125]
Um autorretrato não especular é o inverso daquela imagem do eu
conformadora, ortopédica e alienante que Lacan tematiza em seu famoso
estádio do espelho. Em vez de imagem total, gestáltica, ele não seria mais
do que um vestígio da presença do corpo. Ao fazer do vestígio um traço, ele
torna-se uma inscrição fundante que se realiza graças a um gesto de
alternância entre presença e ausência, à maneira do fort-da do netinho de
Freud. Na brincadeira que substitui a mãe por um objeto qualquer, o menino
cumpre uma extraordinária realização cultural, renunciando à presença de
seu objeto primeiro. O carretel se presta de maneira especial a essa tarefa
por ser um artefato que permite uma manipulação também especial: ele
possui um apêndice, o fio que pode ser empunhado de maneira a gerar o
gesto que o retira da vista para, em seguida, recolocá-lo em cena. Essa
brincadeira encena, com o objeto, aquilo que o menino realizará consigo
próprio alguns dias mais tarde: sua própria desaparição no espelho de
parede, graças ao gesto corporal de agachar-se para fora do escopo do
mesmo. “Bebê óóó” (“fort”, longe), comunicará então o menino à mãe,
quando esta retorna. A dialética da ausência / presença na imagem faz falar.
Ou melhor, como dizia Mondzain, a imagem designa aquele por quem ela
será falada. A imagem aparece como ponto de partida de um
endereçamento para o outro que, uma vez reconhecido (ao se ouvir o som
óó como sendo a palavra “fort”, por exemplo), ingressa no campo do
sentido e da comunicação.
Retomar essa cena para evocar sua marca e, com ela, o surgimento de
uma outra cena – aquela do sujeito – é uma aspiração central da arte de
nosso tempo, desde que um Kasimir Malevich, por exemplo, faz do quadro
nada além de um quadrado negro sobre fundo branco (Quadrângulo, 1915),
vendo aí a “primeira forma de expressão do sentimento não objetivo”.[126] Ao
retirar a pintura da lógica do espelho, da imitação da realidade, Malevich
opera uma espécie de inversão do imaginário, rompendo-o de maneira
similar ao menino do fort-da ao se subtrair à imagem especular. O que o
artista denomina “suprematismo” visa esvaziar o mundo dos objetos
miméticos, da figuração, em prol de algo superior, a “representação não
objetiva”. “O quadrado do suprematista e as formas que dele se originam
devem ser equiparados aos primeiros traços (sinais) do homem primitivo
que, em suas combinações, representavam não ornamentos, mas a sensação
de ritmo”, afirma Malevich.[127] Ritmo, alternância do sujeito.
Diante do quadrado negro, ou do quadrado branco que quase não se
distingue do fundo também branco na tela Branco sobre branco, de 1917,
temos uma espécie de antiespelho que nos convida ao descentramento. Um
artista norte-americano como Barnett Newman, com seu expressionismo
abstrato cheio de campos de cor, parece tocar em algo próximo ao que
Mondzain indica com a mão em negativo da gruta de Chauvet, quando
afirma, em 1947, que “sem dúvida o primeiro homem era um artista”. Ele
continua: “A primeira expressão do homem, como seu primeiro sonho, foi
estética. A fala foi uma explosão poética, e não uma exigência da
comunicação”.[128] Mais do que um texto, mais do que uma linguagem
pictórica, talvez o sonho seja, primordialmente, cor – largos campos de cor
como os do pintor expressionista abstrato. A fala, antes de ser linguagem,
talvez seja música, transformando o grito de dor em sinal desejante do
sujeito. Newman confirma: “O primeiro grito do homem foi uma canção”.
[129]

Freud aponta que a ficção oferece mais meios para a evocação do campo
do estranho do que a “vida real”.[130] Assim como o eu se constitui numa
linha de ficção, sua subversão depende de dispositivos ficcionais(e / ou
espaciais: como já dizia Jentsch, o autor que serve de base a Freud para sua
reflexão sobre o estranho, o Unheimliche tem a ver com uma “falta de
orientação”).[131] Se, como afirma Lacan, “a fantasia é a obra de arte de uso
interno do sujeito”,[132] é na medida em que a fantasia aliena o sujeito, mas o
fantasiar também pode atuar na contracorrente e levar a uma
desestabilização dessa cena em reviramentos parciais que põem o eu em
movimento e incitam a algumas pulsações do sujeito. Nas artes visuais
como na literatura, o campo da cultura oferece pontos de enganchamento e
reviramento da fantasia.

A psicanálise já nasce como uma crítica cultural. A


A PSICANÁLISE, CRÍTICA DA CULTURA

civilização é vista por Freud como nociva à saúde mental, por se basear em
injunções morais que imporiam ao homem uma severa repressão sexual.
Em 1908, ele afirma que, apesar de não ser atribuição do psicanalista
propor reformas na sociedade, suas considerações a respeito dos efeitos
nocivos da “moral sexual civilizada” poderiam servir como defesa da
necessidade de mudanças. A vulgarização da teoria psicanalítica trouxe,
sem dúvida, contribuições para a revolução dos costumes realizada no
século XX. Em geral, os psicanalistas seguiram, contudo, sem propor
reformas na sociedade – apesar de Freud não ter se furtado a exprimir
publicamente suas opiniões sobre o antissemitismo e a guerra, por exemplo.
Em um espectro mais amplo, podemos considerar o próprio nascimento
da psicanálise como produto de uma crise na cultura, e ver em sua trajetória
até hoje uma atuação problematizadora do homem e da civilizacão. A
psicanálise surge no amplo contexto de crítica da representação da realidade
que, desde o Renascimento (e com nuances que não cabe aqui destrinchar),
se sustentava em uma racionalidade central e sem falhas. Em fins do século
XIX, o equilíbrio entre o sujeito e a representação mostra-se em crise em

variados campos da produção cultural, especialmente na literatura e nas


artes plásticas. O conceito psicanalítico de inconsciente vem, nesse
panorama, denunciar o descentramento do eu e, ao mesmo tempo, a falta de
garantias da representação. Ele gerará, nessa dupla empreitada, importantes
incidências na cultura.
Especialmente nos anos 1920, como sabemos, Freud debruça-se sobre a
civilização e delineia sua concepção da formação das massas, fornecendo os
fundamentos de uma reflexão política imbricada à subjetividade e abrindo
caminho para a teoria crítica da sociedade forjada décadas mais tarde pela
chamada Escola de Frankfurt. De posse desses fundamentos, à psicanálise
pareceria se abrir a possibilidade de um engajamento social efetivo, para
além da denúncia dos efeitos deletérios da excessiva renúncia pulsional
exigida socialmente. De maneira análoga ao trabalho clínico analítico, que
dissolve sintomas desfazendo idealizações e desmontando identificações, se
poderia conceber que a psicanálise teria na cultura o papel de esgarçar as
ilusões e expor o mal-estar constitutivo e transformador. Cabe-nos refletir,
hoje, sobre em que medida tal papel foi e é efetivamente exercido pelos
psicanalistas.
Seja como for, a imbricação constitutiva entre subjetividade e cultura é
essencial à psicanálise, e deve ser levada a sério em sua produção teórica.
Essa disciplina não forma com o sujeito um campo totalizante que lhe
permita se restringir à clínica analítica e às teorias psicanalíticas. Não é do
próprio “discurso do inconsciente que iremos recolher a teoria que dele dê
conta”, como nota Lacan.[133] Para falar do sujeito, a psicanálise deve
obrigatoriamente se debruçar sobre o que lhe é mais êxtimo, no neologismo
forjado pelo psicanalista. É impossível recorrer a uma referência fixa para a
apreensão do inconsciente, pois ele não é seu próprio centro, mas remete a
um campo Outro. Buscar saber d’Isso, portanto, nos tira o tapete, nos
subverte. Pois o sujeito se constitui em relação a uma “exterioridade
íntima”.[134] A Coisa psicanalítica está, portanto, na cultura, e devemos aí
buscá-la, para ter notícias do sujeito.
Essa seria a exigência metodológica fundamental a que a psicanálise
deve se conformar para ser fiel ao seu próprio objeto, o sujeito do
inconsciente (ou melhor, o sujeito / a cultura). A psicanálise deve buscar
descentrar-se, é imperioso que ela assuma um movimento de reviramento,
de subversão, de mal-estar na cultura. Em sua potência crítica, a psicanálise
pode acompanhar e acentuar a crise que conforma sujeito e cultura, de
modo a assumir um papel na contínua transformação de ambos. Além disso,
talvez a psicanálise sempre esteja em uma situação crítica (como se diz de
um doente em estado grave), e deva aceitar “re-colocar-se” a cada momento
em crise, no confronto com a cultura.
Segundo Roland Barthes, a crítica é nada mais, nada menos que a
“construção do inteligível do nosso tempo”.[135] A psicanálise pode e deve
participar, legitimamente, de tal construção. Nessa empreitada a se realizar
em companhia de outras disciplinas nas ciências humanas, sua
particularidade talvez resida na tentativa de dar voz ao que parece resistir à
inteligibilidade. Resistir a tornar muito rapidamente inteligível “nosso
tempo” para fazer ressoar o inatual, o tempo da catástrofe humana que as
teorias tendem a logo encobrir. Nessa resistência, ela pode se associar ao
campo da arte, que também parece particularmente afeito a apresentar o que
foge à compreensão imediata e convida a uma reflexão mais ampla e
sensível.

Entre sujeito e cultura Freud concebe um mal-estar


MAL-ESTAR E PARANGOLÉ

fundamental, como já lembramos. Na expressão “mal-estar” há estar: na


cultura o sujeito está, ele que nunca é de maneira reificada e constante. Na
cultura ele surge, o sujeito do inconsciente, o efêmero testemunho da
subversão do eu – este, ilusoriamente fixo, alienado nas formações
imaginárias, ou seja, ideológicas, de que se compõe o campo social. Isso
nos permite pensar a criação como re-volta nesse sentido forte – e mais
fundamental do que o caráter explicitamente político de muitas obras de
arte do nosso tempo. Como diz Lacan comentando Sade, a obra de arte
pode ser “uma experiência que, por seu processo, arranca o sujeito de suas
amarras psicossociais” – e nos impede “toda apreciação psicossocial da
sublimação de que se trata”.[136] A arte contemporânea, de fato, agencia
intervenções críticas na cultura, convidando a experiências de subversão – e
de reflexão sobre o sujeito e o mundo, entrecruzando-se com a psicanálise e
a filosofia, entre outros campos do saber.
Para se posicionar como crítica da civilização e fazer jus à torção
necessária para que o sujeito surja na cultura – para que ele aí possa, em
algum lugar, mal-estar –, a psicanálise deve se assumir como ensaística. É
na categoria do ensaio que uma teoria assume com mais vigor suas próprias
limitações, seu caráter de experimentação sempre fragmentária,
delimitando-se radicalmente da ilusão científica de forjar um discurso que
veicule a própria realidade. O ensaio é o gênero fiel à concepção
fragmentada da realidade, e por isso nele o mal-estar pode ser posto em
ação, ou seja, posto a falar, a teorizar a própria incômoda torção na qual se
configuram sujeito e cultura. Nós mesmos devemos aceitar nos colocarmos
nesse balanço, ou melhor, nessa verdadeira subversão, para refletir sobre
ela. O ensaísta é aquele que sai do centro e arrisca se perder. Na sua própria
(ou melhor, imprópria) criação teórica ele performa a crítica à noção de
sujeito como origem e centro da criação – ou, como afirma Adorno, a forma
do ensaio “acompanha o pensamento crítico de que o homem não é nenhum
criador”.[137]
Que método deveria então adotar uma crítica psicanalítica?
“Contrariamente ao que se crê”, diz Benjamin em 1922, “a tarefa da grande
crítica não é nem de ensinar através de explanação histórica, nem formar o
espírito por meio da comparação, mas de chegar ao conhecimento se
abismando na obra.”[138] Trata-se de se lançar na experiência do Outro, da
extimidade. Trata-se de mergulhar na obra como em um abismo (o nosso
abismo). Nessa queda, a teoria se põe em atrito e pode sofrer alguns golpes.
Ela deve se suspender e surpreender, se deixar ficar abismada com o que a
obra lhe traz.
Hélio Oiticica busca justamente o ato de olhar para um abismo em seu
Mergulho do corpo (Bólide caixa 22, apropriação, poema caixa 4, de 1967).

Uma caixa-d’água feita de concreto: o concreto fica aparente, cinza,


sem pintura, cheio d’água mas não completamente, quase até em cima:
no fundo você pode ver através da água, cortadas em letras de
borracha, as palavras mergulho do corpo. A sensação é do ato de olhar
para um abismo: talvez a tentação de mergulhar, aqui sintetizada pelas
palavras poéticas.[139]

Temos aí a concretude de uma simples caixa-d’água – objeto talvez


emblemático do trabalho civilizatório, e que não deixa de ser um vaso que
pode estar vazio ou ser preenchido, exatamente como aquele tratado por
Lacan como modelo de sublimação. O vaso é o objeto capaz de indicar com
certeza, em escavações arqueológicas, a presença longínqua de uma cultura.
O objeto capaz de preencher essa função na atualidade talvez seja algo
como uma feia caixa-d’água industrial. Nessa coisa qualquer – resto da
civilização e, contudo, ou por isso mesmo, tão radicalmente humana! – o
corpo é evocado para, em uma vertigem, convidar ao mergulho de tornar-se
outra coisa. Como diz Lacan em seu Seminário sobre a sublimação, o modo
de operar da arte consistiria “sempre em inverter a operação ilusória, para
retornar para o fim primeiro, que é projetar uma realidade que não é aquela
do objeto representado”.[140] Não é propriamente a realidade do objeto que
está aí em jogo, mas sim o real do sujeito.
Nenhum significante nomeia tão bem a “modelagem do significante”, o
mergulho do corpo e a inversão da ilusão implicadas na sublimação quanto
o Parangolé de Oiticica. O termo vem da gíria dos morros na época e
denota o surgimento de uma situação inesperada entre pessoas, agitação,
entusiasmo repentino, alegria. Algo acontece entre pessoas, graças a um
objeto que se propõe como “transobjeto”, busca da própria “estrutura do
objeto” que se dá entre sujeito e cultura.[141] Tal objeto encarna a própria
imbricação entre sujeito e cultura. Os parangolés são estandartes, capas ou
túnicas, muitas vezes compostos de planos sobrepostos de tecidos diversos,
eventualmente revelando a inscrição de palavras ou frases. São objetos ou
vestimentas que seguramos, em continuidade com o corpo, ou vestimos ––
e que nos convidam a dançar, experimentando a vertigem de nosso mal-
estar na cultura. Mas parangolé é também uma denominação de Oiticica
para sua reflexão artística como um todo – trata-se de uma proposição
geral, e não apenas de certo conjunto de objetos característicos.
O Parangolé P15 Capa 11, de 1967, traz a inscrição “incorporo a
revolta”. Os Parangolés nos transformam, estejamos dentro (vestindo,
dançando) ou fora deles (olhando e, através do outro, também em
movimento, de certa maneira). Aliás, a maioria desses “transobjetos”, para
usar o termo de Hélio, tem a estrutura da fita de Moebius, a fita unilateral
que é dentro-fora, materializando o êxtimo, graças a uma torção de sua
superfície. Essa mesma fita que Lygia Clark havia empregado, e que Lacan
começara, pouco antes, a utilizar em seu Seminário como apoio para as
elaborações sobre a estrutura do sujeito.
O Parangolé é um acontecimento que põe em ato, através de um objeto,
a imbricação constitutiva do sujeito na cultura. Ele pode, então, transtornar
um pouco, se não transformar, esse ponto agudo em que o sujeito é cultura.
Como diz ainda Hélio, falando do “participador” (e não mais “espectador”)
do Parangolé, há uma “violação do seu estar como indivíduo no mundo,
diferenciado e ao mesmo tempo ‘coletivo’, para o de ‘participar’ como
centro motor, núcleo, mas não só ‘motor’ como principalmente ‘simbólico’,
dentro da estrutura-obra”.[142]
Se o indivíduo está no mundo – e nele está ao mesmo tempo
“diferenciado” e “coletivo”, Oiticica busca uma “violação” desse estar,
capaz de transformar o indivíduo em outra coisa: em “motor simbólico”.
Como no ato analítico segundo Lacan, há aí um circuito que só se completa
com o outro. O Parangolé nomeia tal torção que se dá com o outro – e toma
sua origem no Outro, pois já é apropriação da palavra e do ato de um outro
anônimo. Em sua última entrevista, apenas uma semana antes de sua morte
em 1980, o artista conta, sobre o Parangolé:

Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. […] Um dia eu estava no


ônibus e na praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma
espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No
dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de
madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem
vértices de retângulo no chão. Era um terreno baldio, com um matinho
e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio
de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de
aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: “aqui é…” e a
única coisa que eu entendi, que estava escrito era a palavra
“parangolé”. Aí eu disse: “É essa a palavra”.[143]

Assim, a formulação do Parangolé, segundo o próprio Hélio, teria sido


determinada por “experiências coletivas anônimas”.[144] O trabalho do
mendigo descrito pelo artista ressoa claramente em diversas obras do
artista, especialmente nas construções que ele chamava “bólides” e
“penetráveis”. O significante “modelado”, assim como o objeto “criado”,
vêm do Outro, nos ensina Oiticica. Ele não é criado por alguém, mas
radicalmente anônimo, comum, contrário à autoria – e votado à
transmissão. A apropriação a que ele nos convida é transitória, dirigida a
um outro, sempre. Apropriação: tornar próprio o que é do outro, para passá-
lo adiante e, nessa passagem, tornar-se outro. A arte é, nesse sentido,
marcada pela transitoriedade – como já dizia Freud em 1915 no texto
“Sobre a transitoriedade”–, mas não apenas no sentido da limitação de sua
duração no tempo. Uma obra seria transitória também no sentido de ser um
trânsito entre sujeitos. Tal passagem, que poderíamos tomar como capaz de
definir a cultura, não é, porém, certeira, imediata e garantida. Ela é precária
e adversa – pois, para lembrar o conhecido lema de Oiticica, “da
adversidade vivemos”.[145]
Nessa trans-missão, o sujeito não apenas está na cultura, mas se apropria
de seu mal-estar nela de modo a transformá-la um tanto. Sem a pretensão
de nela “existir”, ele opera uma forma crítica de aparecimento – algo como
o que Oiticica nomeia “subsisto”:
– a constatação de uma subsistência que se mantém, subsistência
SUBSISTO

intelectual, poética e criadora que estabelece posições


permanentemente críticas, que colocam em questão o próprio
problema da criação artística (eu, particularmente, procuro desintegrá-
lo, dissecá-lo, desde o início de toda minha evolução).[146]

Em lugar de “eu sou”, logo “eu existo”, a enunciação “subsisto” indica uma
existência dividida, precária e oscilante, uma posição em crise – e crítica,
fomentadora da crise. Única enunciação, talvez, capaz de definir o sujeito
descentrado, subsisto é ela mesma a apropriação de um significante:
Oiticica a toma de Colidouescapo, o livro-poema publicado por Augusto de
Campos em 1971. Formado de folhas duplas soltas dobradas ao meio, cada
uma com uma inscrição (“suscrevo”, “exispero”, “esisto”, “subscontro”,
entre outras), esse livro se transforma segundo a manipulação de seu leitor,
convidado a redobrar e / ou misturar as folhas à vontade. Formam-se, nessa
transliteração reveladora, palavras como “susto”, “excrevo” e “subsisto”.
Subsisto indica a possibilidade, no trânsito entre sujeitos e na remodelagem
literal da língua, de alguma recriação do sujeito e da cultura.
A FANTASIA E O ESPAÇO:
LYGIA CLARK

Parece até que se exerce uma


verdadeira tentação do espaço.
ROGER CAILLOIS

O homem contemporâneo escapa às leis da gravitação espiritual.


Ele aprende a flutuar na realidade cósmica como em sua própria realidade
interior.
Ele se sente tomado pela vertigem.
As muletas que o amparavam caem longe de seus braços.
Ele se sente como uma criança que deve aprender a equilibrar-se para
sobreviver.
É a primeira experiência que começa.
LYGIA CLARK
Quando Freud afirma que o “eu não é mais senhor em sua própria casa”,[147]
tendemos a sublinhar o “não é mais senhor”: o inconsciente retira do eu a
pretensão ao domínio e controle de si mesmo. O resto da frase, porém,
coloca questões não menos importantes: de que casa se trata, que seria
“própria” ao eu, mesmo que ele não seja dela o “senhor”? E por que Freud
lança mão de uma referência arquitetônica para falar do eu em sua relação
com o inconsciente?
Na verdade, desde muito cedo Freud preocupa-se em formalizar uma
concepção tópica do aparelho psíquico, não deixando dúvidas sobre a
importância do lugar e do espaço em sua teoria. Em “A interpretação dos
sonhos”, de 1900, ele já apresentava seu primeiro diagrama do aparelho
psíquico, um compartimento com duas extremidades, uma perceptiva e
outra motora. Entre a recepção de percepções e a emissão de atividade
motora, situavam-se os sistemas que formam o aparelho psíquico:
percepção-consciência, inconsciente e pré-consciente. Trata-se sempre de
lugares móveis, que não passam de refrações diferenciadas (nas metáforas
óticas caras a Freud) ou de escritas múltiplas a atravessar as diferentes
instâncias psíquicas. Enquanto isso, o eu flutua no texto do psicanalista de
modo a indicar tanto o indivíduo (ainda que dividido) quanto sua imagem,
até chegar em 1923, na chamada segunda tópica, a nomear uma instância
psíquica diferenciada, o Eu (ou Ego, seguindo a tradução inglesa para das
Ich) ao lado do Id (ou Isso, das Es) e do Supereu ou Superego.
“O eu é antes de tudo um eu corporal, não é apenas um ser de superfície,
mas é a própria projeção de uma superfície”, afirma Freud.[148] Trata-se,
portanto, da superfície (o corpo), ou melhor, do que da superfície faz-se
imagem, em um certo jogo de transformação no espaço (uma projeção).
Isso deveria talvez ser suficiente para nos fazer compreender a importância
do uso da topologia por Jacques Lacan, décadas mais tarde, explícita no uso
da preposição de lugar no bordão que parafraseia Descartes: “Penso onde
não sou, logo sou onde não penso”.[149]
Nos lugares psíquicos delineados por Freud, vemos que se trata de tomar
literalmente o espaço na reflexão sobre o sujeito. A insistência de Lacan no
fato de que não se trata de metáfora em seu uso de figuras topológicas não
pode significar outra coisa: trata-se também, na reflexão psicanalítica sobre
o sujeito, do espaço e de sua configuração. Há, nas palavras do psicanalista
francês, um “divórcio existencial onde o corpo desmaia na espacialidade”.
O divórcio entre corpo e ser é estrutural e leva à necessidade de uma
[150]

construção que o remedeie, atando o corpo ao espaço com as firmes


coordenadas geométricas que permitem a projeção da imagem do corpo no
espelho – e o advento de um espaço organizado ilusoriamente segundo as
leis da perspectiva que é correlata à posição do sujeito moderno. Não é por
acaso que Lacan se interessa tanto pela anamorfose, que põe a perspectiva a
serviço de uma certa torção e já coloca em jogo a posição do sujeito. Ao
longo de seu ensino, porém, permanece latente a questão da verdadeira
subversão do espaço que acompanharia a subversão do sujeito. Essa é a
questão central – e no entanto pouco reconhecida pelos analistas – que me
parece fornecer o substrato fundamental à topologia lacaniana. De maneira
explícita, ela será efetivamente trabalhada e levada às últimas
consequências em outro campo de produção cultural ao longo do século XX:
a arte moderna e contemporânea. Reconhecendo ser esta uma questão
primordial à arte contemporânea, Georges Didi-Huberman afirma que

portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma


categoria ideal do entendimento, mas o elemento despercebido,
fundamental, de todas as nossas experiências sensoriais ou
fantasmáticas. […] As imagens – as coisas visuais – são sempre já
lugares: elas só aparecem como paradoxos em ato nos quais as
coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por se
abrir em nós, para nos abrir e com isso nos incorporar.[151]

O uso que Lacan faz da fita de Moebius,


SUBVERSÃO DO ESPAÇO, SUBVERSÃO DO SUJEITO

fundamental em seu ensino, é o primeiro marco de uma paixão pelos


objetos que subvertem a representação comum do espaço, à maneira como
o inconsciente freudiano subverte o sujeito. Ao levar em consideração o
espaço, a topologia põe o imaginário pelo avesso.
Afinal, de que “superfície” se trata, cuja projeção para Freud seria o eu?
Trata-se da projeção do corpo, imagem corporal no espelho, em uma
primeira resposta. Mas tal “casa” imaginária, o corpo, não tem senhor:
revira-se então a imagem e seu referente, e o eu torna-se fita moebiana:
superfície unilateral, sem distinção entre dentro e fora e, portanto, sem
projeção. Misteriosa figura, que mostra (mostra, não: realiza) o eu como
não mais que o trajeto que desliza pela banda, movimento que passa dentro
e fora, subvertendo sua distinção – afinal, como formula Lacan, o mais
íntimo é êxtimo.
A fita de Moebius concretiza a relação entre o sujeito do inconsciente e o
objeto qualquer, o objeto decaído que o psicanalista denomina objeto a. A
relação entre sujeito e objeto segue certas coordenadas, certos roteiros
fundamentais para a vida de cada um, que Freud nomeia “fantasias”. Para
Freud, fantasia é uma narrativa ou uma cena que pode ser ou não
inconsciente e mostra que nossa constituição depende de nos tornarmos
sujeitos de uma ficção fundamental. Lacan propõe uma formalização, o
matema da fantasia, que faz desta uma equação entre sujeito (do
inconsciente) e o objeto (perdido), na fórmula S/◊a, que se lê “sujeito
barrado punção de a”. A punção indica, diz Lacan, “todas as relações,
menos a igualdade”;[152] ela marca um circuito pulsional, uma trajetória entre
sujeito e objeto. Se introduzíssemos a terceira dimensão nessa inscrição
bidimensional que é o símbolo matemático da punção, ela se torceria,
talvez, tornando-se fita moebiana. De fato, a fantasia é o precipitado do
desejo do Outro que dá lugar ao sujeito como seu objeto, e portanto ela não
é interna nem externa. Ela inscreve o “objeto causa do desejo” do sujeito, e
no entanto tem como ponto de fixação o sujeito no lugar de objeto (do
Outro). Na fantasia, o sujeito não é mais senhor de seu próprio objeto, eu
diria.
Não é de estranhar que a representação do espaço seja contígua à questão
do sujeito e torne-se legítimo objeto de estudo da psicanálise. A
configuração espacial que tomamos por “natural” é profundamente
influenciada pela configuração sistematizada das leis da perspectiva que
datam do Renascimento, e tem seu organizador fundamental no gérmen do
sujeito moderno: o olho central que guia a geometria descritiva. Fixo e
autônomo, por trás desse olho ao qual o mundo se dá a ver sem falhas não
deixa de se perfilar ainda Deus, garantia suprema da partilha bem
organizada entre entes e objetos. A tal estabilidade do sujeito em sua
relação com o mundo, capaz de gerar imagens apaziguadoras e fiéis à
realidade, opõe-se à posição instável, móvel e angustiante do sujeito que,
dividido, barrado, não tem mais “casa” – e faz jogo, na fórmula da fantasia,
com um objeto igualmente problematizado, caído, que marca sua separação
com o Outro. Entre sujeito barrado e objeto a, não há espelho capaz de
construir uma imagem constante, narcísica, mas perfila-se a angústia, pondo
em vertigem a imagem. Não há mais garantia suprema de estabilidade entre
os termos da representação, mas reconhecimento de um Olhar Outro que, de
fora, faz o sujeito tropeçar e, deixando sua posição de senhor magnânime da
representação, ser olhado.
Outros pensadores constroem na segunda metade do século XX essa crítica
do sujeito no olhar. Principalmente Maurice Merleau-Ponty, que era amigo
de Lacan, dizia, já em 1948, que em vez “deste universo racional aberto,
por princípio, às empresas do conhecimento e da ação”, “os modernos” nos
apresentam “um saber e uma arte difíceis, cheios de reservas e restrições,
uma representação do mundo que não exclui fissuras nem lacunas, uma
ação que duvida de si mesma e, em todo caso, não se vangloria de obter o
assentimento de todos os homens”.[153] É a arte moderna que permite ao
filósofo entrever esse mundo no qual não podemos mais nos situar como
em nossa própria casa, e vislumbrar o espaço dessa ação que escapa e
duvida de si mesma, ao mesmo tempo que se afirma como ato descentrado,
incapaz de garantir uma comunidade, mas sim de instalar um ineliminável
mal-estar na civilização.
“Alguma coisa no espaço”, afirma Merleau-Ponty em 1960, “escapa a
nossas tentativas de sobrevoo.”[154] Não há mais possibilidade de domínio do
sujeito sobre um campo visual: algo escapa e obriga-o a se inscrever no
espaço. Decaído, ele perde suas plumas – assim como um pássaro deixaria
cair suas penas ao pintar, segundo a curiosa suposição de Lacan em seu
Seminário xi. Algo cai, se deposita, se (des)materializa como objeto a, ao
mesmo tempo que o sujeito se (re)divide. Entre sujeito e objeto não há a
simples distância em duas dimensões que a imagem especular permite fixar,
mas uma mobilidade correspondente ao surgimento da terceira dimensão.
Não é por acaso que Merleau-Ponty toma o elã de sua reflexão da pintura
desse grande contemporâneo de Freud que foi Paul Cézanne. Dos contornos
ilusórios que definem a priori a imagem, das coordenadas geométricas que
predeterminam o espaço mimético, Cézanne passa, com suas pinceladas de
pura cor – seus pequenos azuis, seus pequenos marrons, como ele
costumava dizer –, a fazer de um quadro algo diferente de um espelho da
realidade. Ele faz da pintura o depósito de algo que convoca o sujeito a se
reconstituir, dividido, assujeitado a um espaço não mais pacífico, mas
vertiginoso, em que ele próprio se arrisca a cair. Disso trata a arte moderna,
que surge no mesmo momento que a psicanálise, e tratará a arte
contemporânea, desenvolvendo-se em torno de questões que tangenciam
pontos essenciais ao pensamento lacaniano.
Lacan alinha-se à posição de Mallarmé ao afirmar que “o moderno
desdenha imaginar”,[155] ou de Tristan Tzara ao declarar que “tudo que
olhamos é falso”,[156] fazendo a crítica do imaginário logo após ter se tornado
seu maior pensador, com a concepção do estádio do espelho. Ou melhor, ao
mesmo tempo que se torna o grande teórico do imaginário. Pois já na
primeira página de “O estádio do espelho…” Lacan nota que, ao contrário
do que acontece com o macaco, o ato de reconhecimento da imagem de si
no espelho não se esgota, na criança, com uma imagem controlada e inerte.
Ele dá lugar a gestos no espaço real,

a uma série de gestos em que ele experimenta ludicamente a relação


dos movimentos assumidos da imagem com seu ambiente refletido, e
deste complexo virtual com a realidade que ele duplica, ou seja, com
seu próprio corpo e com as pessoas, ou até com os objetos, que estão à
sua volta.[157]

Dessa espécie de fotografia, instantâneo da imagem do corpo que se fixa


neste reconhecimento e no qual se precipita o eu, nasce também, portanto,
toda a questão da tridimensionalidade na qual se inscreve o gesto na relação
com o outro, com o objeto. A imagem recoloca em questão a “realidade”,
assim como o fez a fotografia no século XIX, incitando ao questionamento da
representação e à violenta crítica à mímesis que inaugura a arte moderna.
Há um ato fundamental e singular, de reconhecimento, a que se seguem
gestos múltiplos, no divórcio entre corpo e espaço. Da fixidez necessária ao
olho para o instante de reconhecimento seguem-se movimentos variados e
imprevisíveis (impossíveis de prever), atravessando o espelho e marcando a
existência de uma presença além (ou aquém) da imagem. Assim, “a imagem
parece ser o umbral do mundo visível”, como diz Lacan, porque ela marca
dois lados, aquele da virtualidade especular e outro de outra coisa, outro
espaço que não aquele, ilusório, do reflexo sobre a superfície bidimensional
do espelho.[158]
Daí vem o interesse do psicanalista francês pela “obsessão pelo espaço”
que é o mimetismo segundo Roger Caillois, pensador que também
apresenta importantes ligações com o círculo surrealista. Como já vimos no
primeiro ensaio deste livro, Caillois introduz o gesto, as ações do homem,
no seio dos esquemas geométricos que arbitrariamente compõem a
concepção (e, portanto, a percepção) clássica de espaço. Com isso, ele
promove um verdadeiro rompimento com o esquema perspectivo, fazendo
com que o sujeito fixo, olho central que o organizava, saia de repente a
perambular.

A percepção do espaço é sem dúvida um fenômeno complexo: o


espaço é indissoluvelmente percebido e representado. Desse ponto de
vista, é um duplo diedro a todo momento mudando de grandeza e de
situação: diedro da ação cujo plano horizontal é formado pelo solo e o
plano vertical pelo homem mesmo que anda e que em decorrência
desse fato forma o diedro consigo mesmo.[159]

Tudo se transforma se o homem está caminhando, movendo-se, produzindo


seus gestos descentrados. Além disso, na segunda face do duplo diedro, que
Caillois chama “diedro da representação”, “o drama se precisa”, pois nele o
ser vivo “não é mais a origem das coordenadas”, como era o caso no diedro
da percepção. Ele não passa, no “espaço representado”, de um ponto entre
outros. Assim, “é desapossado de seu privilégio e, no sentido forte da
expressão, não sabe mais onde colocar-se”.[160]
Divorciado do espaço, o sujeito não tem mais casa. Recolocado no
interior da geometria que ele antes sustentava como que de fora, em
sobrevoo, ele cambaleia e põe o próprio espaço a oscilar. De sujeito
magnânime da representação ele se torna assujeitado a ela, objeto para o
olhar. Os animais que se mimetizam, para Caillois, não seguem em absoluto
nenhuma finalidade – como a de enganar seus predadores, como se costuma
acreditar. O mimetismo é puro luxo, ele se dá como uma captura do sujeito
no espaço circundante. Ele mostra, fundamentalmente, que se está de cara
assujeitado a um olhar Outro que, de fora, faz do mundo uma cena na qual
devemos nos inserir.
As chamadas linhas de Nazca foram realizadas no período pré-
colombiano pelo povo de mesmo nome, compondo enormes desenhos
cuidadosamente realizados pela extração e limpeza das pedras e do escuro
solo do deserto peruano, deixando ver o subsolo mais claro. Naquela época,
ninguém podia ver essas figuras geométricas e de animais que hoje podem
ser contempladas ao se sobrevoar a área de avião. Puro luxo: elas foram
feitas para o Outro Olhar.
Deve-se levar a sério a afirmação de Lacan de que a
LYGIA CLARK E O DESPERTAR NO ESPAÇO

fantasia é “a obra de arte de uso interno do sujeito”,[161] e concluir que a arte


ensina à psicanálise sobre a fantasia. Isso não significa, contudo, que arte e
psicanálise se reflitam mutuamente em espelho. Antes, há entre elas arestas,
questões que uma coloca à outra desde que as recoloquemos em diálogo.
Elas de fato colocam-se em tensão, no amplo campo cultural em que se
inscrevem a arte contemporânea e o pensamento lacaniano. Entre os dois
campos há pontos de contato variados que, mais do que influências diretas,
delineiam um entrecruzamento complexo de questões. Algumas delas, que
o pensamento lacaniano compartilha com a arte contemporânea, são: a do
objeto arruinado e inimaginável, a do gesto e do ato que recolocam a
questão do corpo para além da imagem especular e, ligada a esta última, a
do espaço como imprevisível, não mais organizado pelas linhas de força
que compunham, na representação clássica, o ilusionismo tridimensional.
Essas três questões acompanham, de fato, a configuração do sujeito
dividido em sua relação com o objeto. Começando pela vertente própria a
este último, diríamos que se trata do objeto não como símbolo, mas como
fato (como dizia John Cage), objeto que não pode ser imaginado e é uma
espécie de ruína, objeto oco que é resto da operação de constituição do
sujeito no campo do Outro. Gérard Wajcman traz uma grande contribuição
a esse respeito quando situa o objeto a no século que seria o século do
objeto, tendo como seu umbigo fundamental o Holocausto.[162] Ou melhor, a
Shoah, tal como vem nomeá-lo uma obra de arte, o filme de Claude
Lanzmann – filme feito de testemunhos e não de imagens disso que é
impossível figurar, impossível imaginar, desse extremo terrível de violência
que abre uma ferida no meio do século. O objeto distancia-se da imagem
para acentuar seu caráter real, lembrando, com Lacan, que o objeto a nos
obriga a conceber (e, portanto, até certo ponto, imaginar) algo que
problematiza a imagem e nos impõe o desafio de tentar forjar “um outro
modo de imaginarização”.[163]
Esse outro modo constitui uma espécie de avesso do imaginário. A
imagem não é apenas aquela forma que organiza o corpo, fixa o eu numa
linha de ficção e desfralda a tela sobre a qual uma ilusória realidade virá se
apresentar. O homem também “é desfeito segundo sua imagem”, como diz
Maurice Blanchot.[164] O campo da visualidade também dá lugar a operações
que visam romper a tela / espelho e fazer entrever o objeto – construindo
então um espaço difícil de conceber, que não se deixa restringir às
coordenadas da projeção imagística. O espaço real.
Boa parte da produção contemporânea compartilha o desafio de assim
revirar o imaginário, de modo a convocar o sujeito. No vasto e até indeciso
terreno dessa produção, destaca-se a reflexão vigorosa de Lygia Clark sobre
o ato, que já evocamos em nosso ensaio sobre a performance.
Em 1963, apenas um ano após Lacan começar a fazer uso da fita de
Moebius em seu Seminário, Lygia põe-se também a utilizar esse objeto
topológico. O psicanalista já havia recortado a fita em todo seu
comprimento, seguindo a linha mediana de sua largura, o que
surpreendentemente produz uma banda bilateral, para dizer que o sujeito
não é mais do que esse corte que inaugura a distinção entre dentro e fora.
Ele a define então, como já citamos, como “o suporte estrutural do sujeito
como divisível”.[165]
Por sua vez, Lygia Clark, em seu Caminhando, de 1963, faz na fita
unilateral, com uma tesoura, um corte transversal que não reencontra seu
ponto de partida, mas prossegue sempre em uma nova volta, tornando sua
largura cada vez mais fina e seu diâmetro cada vez maior, prolongando e
expandindo a torção da banda em direção a uma ruptura final – que virá
necessariamente, já que a largura da fita não é infinita, mas se retarda no
trajeto repetitivo da tesoura sobre o papel.
Caminhando é uma verdadeira revolução na obra da artista: ele lhe
permite ultrapassar a distinção sujeito / objeto e portanto recusar
radicalmente a noção de objeto de arte, em prol de uma primazia do ato. Ao
propor o corte transversal da fita como o próprio trabalho artístico, Lygia
desmaterializa de forma revolucionária a obra de arte, introduzindo uma
sofisticada reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto – ou
seja, em termos psicanalíticos: sobre a fantasia.
Caminhante, o sujeito é um “itinerário interior fora de mim”, escreve
Lygia em 1965.[166] Isso permite à artista radicalizar sua proposta de
participação do outro, do espectador, na configuração do trabalho artístico.
Já com seus Bichos, desde 1960 ela convocava o espectador a ser coautor,
podendo manipular essas esculturas de alumínio cheias de dobradiças de
modo a provocar nelas movimentos. Privilegiava-se o contato “orgânico”
entre o homem e o objeto, fazendo da obra o que se dá entre os dois, no
gesto de um que gera em resposta movimento do outro. Quando perguntam
à artista quantos movimentos o Bicho pode fazer, ela responde: “Eu não sei,
você não sabe, mas ele sabe…”. E prossegue: “O Bicho não tem avesso”.[167]
Ao dissolver o objeto em favor do ato, Caminhando radicaliza ainda mais
a proposta de participação do outro na obra. Lygia chega a abandonar os
termos “obra” e “objeto” de arte em prol do termo “proposição”,
acentuando o seu caráter de apelo ao sujeito. De forma articulada a tal
convite, o Caminhando desmaterializa o próprio eu, vem colocá-lo em
crise, subvertê-lo e assim propor um despertar do sujeito de sua alienação
especular. A fala de Lygia é dramática a esse respeito: “Instável no espaço,
parece que estou me desagregando”.[168]
“Meu corpo me abandona”, diz, ainda, perguntando em seguida:

Onde está o Bicho-eu? Eu me torno uma existência abstrata. Afogo-me


em verdadeiras profundezas, sem pontos de referência com meu
trabalho – que me olha de muito longe, do exterior de mim mesma.
“Fui eu quem fiz aquilo?” Perturbação. Delírio de fuga. Estou presa
apenas por um fio. Meu corpo me deixou – “caminhando”. Morta?
Viva? Sou atingida pelos cheiros, pelas sensações táteis, pelo calor do
sol, os sonhos.[169]

Trata-se de um sujeito precário, que retoma em ato a fantasia. E opera nela


um reviramento: a fantasia deixa de ser uma tela a encobrir o real, para se
afirmar como corte que convoca sujeito e objeto a se (re)desprender, ambos
subvertidos, descentrados, decaídos. Lygia anuncia então, em 1968, a
respeito da obra de Hélio Oiticica assim como de sua própria obra (e,
entenda-se, de si mesma), “o precário como novo conceito, a magia do ato
na sua imanência e também a negação do objeto que perdeu toda sua carga
poética ainda projetada, para se transformar num poço onde a multidão se
debruça para se encontrar na sua essência”.[170] A essência está no fundo do
poço, onde o eu não mais se projeta como imagem-objeto no espelho
d’água de Narciso, mas se põe em vertigem, diante de uma queda iminente.
Sobre a obra O dentro é o fora (1963), uma fita de Moebius modificada
em aço inoxidável, Lygia afirma ainda que

o sujeito atuante reencontra sua própria precariedade. […] Ele


descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora
o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação.
Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato.[171]

Nisso sua operação é radical e talvez diferente da de Lacan. O corte que


define o sujeito, para a artista, não se dá em ato uma vez por todas, mas é o
próprio desenrolar temporal de sua tentativa, nunca alcançada e,
paradoxalmente, desde o início presente.
Caminhando põe radicalmente em questão o estatuto do objeto e do
sujeito na arte, em prol de nada além de um simples ato se desenrolando no
tempo. O objeto quase desaparece, e deixa de ser o complemento fixo,
correlativo do sujeito. Mas o ato promove aí uma espécie de coalescência
entre objeto e sujeito que desloca um e outro em favor de um espaço
definido pelo movimento. Em vez de fazer cair o objeto e pôr em vertigem
o sujeito, o ato artístico clarkiano sustenta no tempo a oscilação entre dentro
e fora, tornando-a virtualmente sem fim.
“O ato de se fazer é tempo”, sentencia Lygia.[172] “O ato de se fazer”: de
fato, o sujeito se faz no ato, de maneira que quase o des-faz, o
desmaterializa, por assim dizer, destacando-o de sua imagem corporal para
lançá-lo na precariedade, em um súbito despertar. Tal despertar é um ato e,
no entanto, não tem início nem fim, não se localiza no tempo mas é o
tempo: interminável, talvez como todo processo analítico, segundo Freud.
Não se captura, em ato, mais do que um lapso perdido de tempo, no qual se
dissolve o corpo e o sujeito em prol da fugidia e poética sensação.

Quero viver como o ponteiro do relógio


mil vezes segue o mesmo roteiro
momento vivo, ele é num ponto
A referência do real.[173]

Em 1973, Lygia formula a ideia de que a própria vida (a simples vida, o


fazer-se tempo) seria uma proposição, o que a faz ficar quase um ano sem
realizar nenhum trabalho de arte. Ela nomeia Pensamento mudo isso que
“era o simples viver sem fazer nenhuma proposição, era o reaprender, ou
por outro lado, havia, através das outras proposições, reaprendido a viver e
estava me expressando através da vida!”.[174]
Em contraste com a mera apresentação do corpo sem uma
REVIRAVOLTAS DA FANTASIA

real problematização do sujeito, as proposições de Lygia Clark trazem o


corpo de maneira a, sutil e efemeramente, capturar o sujeito no cerne de sua
problemática constituição. As reflexões de Mário Pedrosa e a leitura de
Merleau-Ponty, entre outros, exercem sem dúvida um papel importante na
construção do pensamento clarkiano, ao lado da presença crescente da
psicanálise, que se torna predominante a partir de 1972-74, período durante
o qual a artista faz análise com Pierre Fédida em Paris. A complexa relação
de Lygia com a psicanálise necessitaria de uma ampla investigação histórica
capaz de mapear suas leituras e seus contatos com psicanalistas, no Rio de
Janeiro e em Paris. Mas essa influência mescla-se, sem dúvida, a um
espírito da época marcado pela valorização do corpo e o aparecimento de
práticas de grupo nas práticas terapêuticas e fronteiriças, o que torna
impossível delimitá-la com precisão.
O que Lygia chama “Fantasmática do corpo” reúne explicitamente o
processo terapêutico que ela vive naquele momento e suas propostas
poéticas. Em carta de 1974 a Oiticica, ela afirma que está vivendo em sua
análise “o costurar do corpo”. No curso que ministra na Sorbonne nesse
período, desenvolve com um grupo de alunos proposições como Baba
antropofágica e Canibalismo (ambos de 1973), passando pela “nostalgia do
corpo”, que ela define nesse momento como uma fragmentação corporal,
para chegar à reconstrução do mesmo como “corpo coletivo”. No conhecido
Baba antropofágica, cada participante vai desenrolando a linha de um
carretel que tem dentro da boca e depositando-a, cheia de saliva, sobre uma
pessoa deitada. Ele inicialmente sentiria que tira um simples fio da boca,
mas em seguida lhe viria a “percepção”, segundo Clark, de que seriam as
próprias vísceras que ele estaria pondo para fora. “Aliás”, afirma a artista
nesse ponto, “é a fantasmática do corpo que me interessa e não o corpo em
si”.[175] O mais importante não é a proposição em si, mas o que cada um faz
dela como fantasia ou “fantasma” (o termo comumente empregado na
psicanálise francesa para a “fantasia” freudiana é “fantasme”, que vem do
vocabulário psiquiátrico). Para Clark, as fantasias são prioritariamente
narrativas corporais, de que os escritos da artista nessa época fornecem
vários exemplos, no tom do seguinte trecho: “Receber o pênis, retorno ao
útero, a vagina que se abre para fora se revirando pelo avesso”.[176]
Independentemente dos limites da influência direta da psicanálise, é
importante frisar que o apelo clarkiano ao corpo visa menos à presença dele
em si do que à sua apresentação como convite a que o sujeito fale de seu
corpo – e com seu corpo, de alguma maneira – na arte. A experiência
corporal deve, portanto, dar lugar à fala. Assim, no curso ministrado pela
artista na Sorbonne, o grupo de alunos vive com a artista e seus objetos
relacionais experiências que só “compreenderão no exercício posterior do
relato”. Lygia acrescenta ainda, em entrevista concedida em 1974 a Roberto
Pontual: “Como me disse Fédida, era o momento de construir com o corpo
um espaço para a palavra”.[177] O espaço se constrói com o corpo, para a
palavra. O próprio Fédida, comentando a obra de Lygia em entrevista a
Suely Rolnik, fala de uma espécie de “comunicação” que seria “um espaço
que só se pode construir com a linguagem e plasticamente”.[178] Entre corpo e
palavra, entre o eu e o outro, pode surgir em um átimo o sujeito. Do
Pensamento mudo a um ato falado, Lygia desenha um arco invisível que
constrói um imprevisível espaço do sujeito, rompendo em definitivo as
fronteiras da arte.
A dissolução da própria arte empreendida pela artista acompanha o
desmonte das categorias de objeto de arte, de artista e de espectador, e se
concluirá na radicalidade da proposta “terapêutica” clarkiana: nem o objeto
nem o sujeito têm estatuto independente, e portanto não há mais “arte”.
Lygia começa, em 1976, a praticar o que ela nomeia Estruturação do self e
consiste em sessões individuais em seu apartamento em Copacabana,
promovendo uma experiência corporal de seus “clientes” com seus
maravilhosos e precários Objetos relacionais: almofadas, sacos cheios de ar
ou isopor, pedras, conchas, meias-calças contendo outros objetos etc. O
objeto relacional criaria com o corpo, segundo Lygia, “relações através de
textura, peso, tamanho, temperatura, sonoridade e movimento”.[179] As
sessões eram regulares, com frequência de até três vezes por semana, e boa
parte da sessão parece, pelos relatos da artista, ser ocupada com a
verbalização de associações a partir das sensações experimentadas. A partir
de 1984, Clark vai deixando esse trabalho, até abandoná-lo totalmente
pouco antes de morrer, em 1988.
Não me parece que ela tenha deixado de ser artista para tornar-se
efetivamente terapeuta. Lygia levou às últimas consequências seu projeto
artístico – e isso, paradoxalmente, obrigava a um total abandono do circuito
de arte, da ideia de exposição de objetos de arte para a contemplação e do
próprio estatuto de artista. A Estruturação do self concretiza o que ela já
constatava na carta a Oiticica de 1974: nas proposições corporais em grupo,
a parte mais “interessante” é o “vécu”, a fala dos participantes após cada
experiência, comunicando o que o trabalho suscitou em cada um. Além de
ser singular, a “fantasmática” que então se constrói pode se transformar a
cada vez que o participante refaz a experiência. “Já vi que meu trabalho é
para ser feito dessa maneira”, prosseguia Lygia, “e não posso me exprimir
mais como num espetáculo em que as pessoas nada vivem.” A experiência
estética implica uma “fantasmática” própria a cada um, e a proposição
artística não pode, portanto, prescindir do testemunho e da elaboração de
cada participante. O artista deve escutar a vivência de cada um, e sua
própria experiência é por ela transformada: “Assim vou me elaborando
através da elaboração do outro”.[180] Clark põe em prática, dessa maneira, não
apenas uma mescla entre arte e vida, mas a proposta (uma proposição
maior) de que a arte convide o sujeito a se transformar em ato,
poeticamente.
A experiência implicaria, nesse sentido, momentos nos quais o eu se
subverte e retoma suas condições de constituição – de modo poético porém
arriscado, carreando alguma angústia, em um certo deleite, uma mescla de
prazer e sofrimento a que Lacan chama gozo. Um processo analítico não
deixa de agenciar, também, pelos meios que lhe são próprios, um convite
dessa ordem. Caminhando nos ensina que, a partir desses momentos de
descentramento, abre-se uma trajetória que pode, em ato, construir um
espaço: da “casa” do eu o sujeito se desfaria, despertando para uma
caminhada errante pela cena da fantasia. Além de efêmera, tal reviravolta é
interminável, ela deve sempre se refazer, sua matéria não é mais do que o
próprio tempo.
“Tenho medo do espaço”, escreve Lygia em 1965, “mas a partir dele me
reconstruo.”[181] Tal reconstrução inclui sujeito e objeto em uma reviravolta
do espaço. Nela o sujeito se põe em movimento e pode alterar (pelo menos
um pouco) sua posição na cena da fantasia. A fantasia é uma espécie de
roteiro repetido à exaustão ou cena que parece imutável, mas em análise, na
transferência com um dado analista, ela ganha espessura, por assim dizer,
distendendo-se em três dimensões – e portanto nela o sujeito pode se pôr a
caminhar. E pode dar lugar a um ato, um gesto capaz de quebrar a imagem
especular, rompendo as firmes coordenadas da imagem-muro, em prol de
uma imagem-furo que lança o sujeito no espaço real, imprevisível e
mutante, que se conjuga ao tempo. “Agora”, dizia Lygia ainda em 1965, “o
espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação.”[182]
Segundo Lacan, um processo analítico levaria à “travessia da fantasia”.
Mas isso não deve ser entendido como a possibilidade de o sujeito
subitamente atravessar a fantasia em um sentido único, despontando fora
dela como quem fura uma onda. Parece-me, antes, que a travessia nomeia a
apresentação das narrativas fantasísticas no espaço que se constrói pela fala
e com o corpo. Nesse espaço, o sujeito pode, digamos, dar alguns passos e
experimentar gestos que retomam e exploram de forma vívida as
coordenadas (os fios de baba, talvez) que o ligam ao outro.
Em uma de suas últimas notas, Freud toca, pela única vez em seus
escritos, na questão do espaço: “O espaço pode ser a projeção da extensão
do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. […] A psique é
estendida; nada sabe a respeito”.[183]
CRUZEIRO DO SUL
E O AVESSO DO IMAGINÁRIO

É muito impertinente que o real não se conceba senão por ser impróprio.
JACQUES LACAN
Cruzeiro do Sul é um cubo de nove milímetros de lado composto de uma
seção de pinho e outra de carvalho. Ele alude à mitologia indígena, na qual
o atrito entre os dois tipos de madeira para produzir faísca corresponde a
uma espécie de ritual de invocação da divindade do fogo. Nesse trabalho de
1969-70, Cildo Meireles ressalta a poética delicadeza da cosmogonia
indígena. Há nele algo fundamental, contudo, que não se esgota nessa
referência, mas reside na relação desse objeto com o espaço: ele deve ser
colocado em uma sala vazia de pelo menos duzentos metros quadrados.
Esse cubo é um objeto mínimo que rompe o espaço circundante e o
transforma. A sala torna-se enorme, e nossa própria estatura e lugar
oscilam. O cubo, tão pequeno, reveste-se de uma dignidade monumental e
parece, em um primeiro momento, excluir-nos. Nele não temos a
possibilidade de nos reconhecer, ele não nos estende um espelho – não
apenas por não ser figurativo, mas, mais fundamentalmente, porque põe em
questão a simetria e a homogeneidade ilusória do espaço onde nos
encontramos. A despeito de seu tamanho, Cruzeiro do Sul carrega mesmo
uma poderosa centelha: ele tem a potência de suspender a organização
imaginária do espaço, sua lógica especular, ameaçando revirar essa malha
imagética para nos fazer entrever o espaço real. O espectador oscila,
perdendo sua ilusória posição central, sua pretensão de ser senhor do espaço
e da imagem. Retirado do espelho, ele não tem mais lugar.
Com a linha tênue pela qual se unem os dois retângulos de madeira de
cores diferentes, Cruzeiro do Sul mostra que um objeto pode materializar a
sentença de Lacan segundo a qual “nada é mais compacto que uma falha”.
[184]
Chamado objeto a, ele nos obriga, para concebê-lo, a “outro modo de
imaginarização”.[185] Encontramo-nos habitualmente em uma construção
espacial imaginária, graças ao enodamento fornecido por nossa imagem
especular. Rompendo a ilusória complementaridade sujeito-objeto e
fazendo oscilar tal montagem imaginária, o objeto engataria uma espécie de
reviramento desse campo, por assim dizer. O eu não tem mais lugar. O
pequeno bloco mostra-se capaz de sugar as coordenadas do espaço ilusório
e homogêneo, e, tornando-se uma espécie de sumidouro, convida o sujeito a
atravessá-lo.
Com suas ressonâncias celestes, astronômicas e mitológicas, bem como
suas alusões históricas ao massacre e à catequização dos índios, Cruzeiro do
Sul nos recoloca a questão de qual seria a “casa” do homem. “O homem
encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para além da
imagem de que somos feitos. Esse lugar representa a ausência em que
estamos.”[186] Lugar de ausência no Outro, lugar entre significantes:
localizações sem consistência imaginária. É impossível fazer desse lugar
uma residência segura para o sujeito.
Para Cildo Meireles, a palavra mais bonita “é lejos porque pressupõe que
seu ser está aqui e lá ao mesmo tempo. O lá é uma constatação do ser”.[187]
Menos uma constatação do que uma condição do sujeito, lejos: a de nunca
estar aqui, em sua casa, mas sempre deslocado, lá. Onde nem se sabe bem,
nesta terra de ninguém que é o inconsciente. Estar lá – Wo Es war, soll Ich
werden, na proposta de Freud costumeiramente traduzida por “ali onde isso
estava, eu devo advir”.[188] Nessa espécie de programa de uma análise, ao
mesmo tempo caracterizada por Freud como um “trabalho de cultura”, é
curioso que se trate de uma preposição de lugar, wo: onde isso estava, eu
devo advir. Indicação de um lugar do qual é impossível determinar a estrita
localização, mas onde vem ocorrer uma passagem ou uma substituição de
peso: do Es, d’isso, ao Eu, Ich. Lá onde isso estava, eu devo tornar-me. Lá
devo tornar-me – as noções de descentramento do eu e subversão do sujeito
explicitam aí seu substrato espacial. Em vez de tomá-la como afirmação de
um lugar enfim encontrado para o sujeito do inconsciente, devemos ver na
frase de Freud a indicação de uma operação que concerne ao espaço tanto
quanto ao sujeito, em um complexo imbricamento.
Ou talvez, pensando em Mallarmé, possamos levá-la às últimas
consequências para afirmar, sobre o que se passa em uma análise, que “nada
terá tido lugar senão o lugar”.[189]

Como já notamos, em sua reflexão sobre o sujeito Freud é


UMA BRECHA NO VISÍVEL

sempre levado a conceber tópicas do aparelho psíquico, ressaltando sempre


que se trata de lugares “virtuais” – e muitas vezes fazendo apelo a modelos
óticos para caracterizá-los: microscópios, câmeras fotográficas. O
psicanalista não chega, porém, a tomar o próprio espaço como objeto de
reflexão. Ele prefere falar de superfície, base de inscrição psíquica. Já em
1901, caracterizando o trabalho do sonho como aquele que fragmenta,
desloca, condensa, selecionando o material adequado para se construírem
“situações”, Freud acrescentava, enigmaticamente, que esse trabalho seria
capaz de criar “novas superfícies”.[190] A superfície desdobra-se em diversos
estratos, especialmente quando Freud toma como modelo o bloco mágico,
composto de várias camadas de escrita. Nessas superfícies opera a lógica do
palimpsesto, no qual as inscrições dos traços mnêmicos são múltiplas e
estabelecem entre si uma dinâmica de reinscrição ou retomada. Na inscrição
dos traços de memória segundo Freud há, portanto, um jogo entre planos,
por entre as sucessivas camadas, no espaço entre elas – implicando,
portanto, ainda que de forma rudimentar, uma tridimensionalidade.
Já Lacan enxerga sobretudo uma torção da superfície, como na fita de
Moebius, no que diz respeito ao sujeito do inconsciente. Trata-se, portanto,
de topologia, do estudo da subversão de nosso espaço comum de
representação. Na fita de Moebius, como já vimos, não há dentro e fora, não
há direito e avesso, não haveria Es e Ich a se substituirem na ocupação de
um mesmo lugar. Haveria, entre eles, uma certa travessia, uma torção, uma
subversão. Onde estava isso, vem o eu. Onde estava eu, pode vir isso.
Heidegger, em conferência sobre a escultura proferida em 1964, nota que
o espaço define-se, desde o pensamento grego, por uma remissão ao corpo.
O espaço é a extensio, a dimensão tridimensional onde se movem os corpos.
O filósofo busca, porém, caracterizá-lo pelo que lhe seria próprio,
desembaraçado da perspectiva corporal. Ele concebe então o espaço como o
que “espaça”. Trata-se, então, “de ver como o homem é no espaço. O
homem não é no espaço como um corpo. O homem é no espaço, de modo
que ele instala o espaço, sempre já instalou espaço”.[191]
O homem não está no espaço como um corpo capaz de se localizar em
um palco que a ele preexiste. Espaço e homem se instauram, imbricados um
ao outro, e tal concepção permite ao filósofo forçar uma brecha no tecido
do visível, rompendo a concepção mimética da arte:

Quando o artista modela uma cabeça, parece que ele copia apenas a
superfície visível; na verdade ele plasma o que é propriamente
invisível, a saber, o modo como essa cabeça olha no mundo, como ela
detém-se no aberto do espaço no qual ela é solicitada e pelos homens e
pelas coisas.[192]

Como traçar as linhas de força desse “aberto do espaço”, ou do que


preferimos chamar de “avesso do imaginário”? Como caracterizar o “outro
modo de imaginarização” de que fala Lacan a respeito do objeto a? Diante
dessa questão, podemos renunciar a ir além, reconhecendo no vislumbre do
real que aí se dá uma intransponível impossibilidade de simbolização. Ou
podemos buscar na topologia as linhas de força do que Lacan chama “trans-
espaço”, sublinhando o quanto ele é feito da pura articulação significante, à
qual teríamos algum acesso, contudo, graças aos “elementos intuitivos” que
esta deixa a nosso alcance.[193] Podemos, ainda, ao lado de trabalhos de arte,
tentar ir além desses elementos intuitivos, explorando as estratégias
significantes que podem gerar a abertura de tal trans-espaço. Nessa
tentativa, não se trataria de definir ou descobrir de vez esse avesso do
imaginário, o que equivaleria simplesmente a encobri-lo por mais uma
construção imaginária, mas de acompanhar algumas de suas desnorteadoras
travessias, algumas de suas possíveis travessuras.

Die, o cubo que Tony Smith realizou em 1958, tem seis pés
O ESPAÇAMENTO

(aproximadamente 1,80 metro) de lado, como vimos no primeiro ensaio


deste livro. “Seis pés”, afirma o artista, “sugere que se está morto. Uma
caixa de seis pés. Seis pés sob a terra.”[194]Esse marco do surgimento da arte
minimalista mostra de forma eloquente o quanto o objeto, por mais que se
subtraia da lógica figurativa – ou melhor, quanto mais se subtrai dela,
retirando-se da posição de espelho do eu – pode ser um apelo ao sujeito.
Especialmente na medida em que o objeto agencia uma configuração
espacial que implique e inclua o sujeito, impossibilitando-lhe a
apaziguadora posição (egoica) de espectador. Desapossado de sua ilusória
posição central e excluído do visível, o sujeito tropeça na rasteira que lhe
oferece o espaço tornado moebiano. Duas posições lhe restam, caso essa
operação, nunca certeira e completamente previsível, tenha sucesso. A
primeira corresponde a aceitar, ao menos por um átimo, perder sua condição
de observador ilusoriamente central – o eu chegando quase a aceitar o
convite: Die! (Morra!) – e ver-se como ponto entre outros no campo do
olhar. Temos aí, nessa reviravolta moebiana, nesse trans-espaço, um
surgimento efêmero do sujeito como efeito. A segunda, sempre possível,
recusa tal possibilidade e contrapõe à brecha aí aberta no espaço o campo
imaginário de representação ilusória – no qual, a maior parte das vezes,
objetos como esse ficam sem lugar, o que pode até gerar uma peremptória
negativa de seu caráter artístico.
É fundamental, nessa obra de Smith, sua escala humana: seis pés, cerca
de 1,80 metro. Impõe-se o objeto em igual medida ao homem, sem porém
estender-lhe um espelho, mas afrontando-o no limite de sua condição. Já o
pequeníssimo cubo de Meireles (isso sim é que é minimal art, arte mínima
– se o leitor me permite a brincadeira) poderia parecer confirmar a ilusória
estatura do eu. Mas Cruzeiro do Sul escancara e leva às últimas
consequências o que está implícito no cubo de Smith: sua transformação do
espaço visando o sujeito. O pequeno objeto de Cildo espaça, como diria
Heidegger. E diante dele devemos ceder espaço à cosmogonia indígena, à
história dos vencidos. Entre o pinho e o carvalho, um gesto simples, um
atrito repetido deve vir reacender a civilização, a cultura – e com ela o
sujeito. Poderosa e delicada centelha. Fulgurante, ela comemora nosso
surgimento ardente, também filhos do fogo.
Estudo para espaço é um trabalho de Meireles também de 1969, como o
Cruzeiro do Sul. Consiste no seguinte texto datilografado sobre papel:

Estudo para área: por meios acústicos (sons). Escolha um local (cidade
ou campo), pare e concentre-se atentamente nos sons que você
percebe, desde os próximos até os longínquos.

O sujeito, espaçando, abre mão da visão em prol dos sons que lhe dão
notícia do próximo e do distante, sem que possam, contudo, lhe fornecer
uma clara localização de si (como seria o caso para alguns animais, como
os morcegos). O espaço, liberado da visão, torna-se aí dinâmico, vivo,
transformando-se a cada instante de acordo com a distância precariamente
estimada entre o objeto que dá notícias de si pelo som e o sujeito-espaço
que tenta liberar-se da janela pela qual ele habitualmente confina o espaço
na moldura do visível (essa janela pela qual vemos o mundo e que Lacan
designa como a fantasia).
Apesar de não sermos obrigados a fechar os olhos para fazer análise,
Freud nota que para descobrir o segredo dos sonhos teria sido necessário
fechar ao menos um olho. É o que um sonho, justamente, lhe ensina, na
noite que precede o funeral de seu pai. Num grande cartaz estaria impresso
“pede-se que você feche os olhos”, ou, relata o sonhador, “pede-se que você
feche um olho”.[195] Também na estruturação de uma situação analítica há,
como bem se sabe, uma certa operação que concerne à visão, no dispositivo
do divã. Analista e analisando não se veem – para que possa então se abrir o
espaçamento que define o campo do olhar. Tal montagem não deixa de ser
um setting, mas visa romper com o que há nele de cênico para que se
entreabra a Outra Cena do inconsciente. Para tanto, é necessário que o
analista, um pouco como o Cruzeiro do Sul, seja o suporte do objeto a.
Em As meninas de Velázquez, obra diante da qual seríamos
O ESPAÇO DA OBRA

“tomados em seu espaço”, Lacan afirma que ficaria claro o quanto uma
obra de arte é uma carta roubada, uma carta de baralho virada, que se
apresenta a nós como questão. O essencial ao efeito dessa obra residiria na
maneira como cada um responderá a tal questão, ou seja, baixará suas
cartas, subjugando-se a ela. Tal sujeição tem uma estreita relação com a
subversão do sujeito, pois,

de fato, a relação com a obra de arte está sempre marcada por essa
subversão. Parecemos ter admitido, com o termo de sublimação, algo
que, em suma, não é outra coisa, porque se aprofundamos
suficientemente o mecanismo da pulsão para ver o que acontece aí, é
uma ida e volta do sujeito ao sujeito, sob a condição de se captar que
essa volta não é idêntica à ida e que, precisamente, o sujeito, conforme
a estrutura da fita de Moebius, se fecha a si mesmo depois de ter
logrado essa meia-volta que faz que, partindo de seu anverso, volte a
se costurar em seu reverso. Em outras palavras, há que se fazer duas
voltas pulsionais para que se logre algo que nos permita captar o que
concerne autenticamente à divisão do sujeito.[196]

A sublimação concerne ao campo da arte na medida em que anuncia a


subversão a que convida o quadro, este objeto que estabelece com o sujeito
uma relação “fundamentalmente diferente daquela do espelho”.[197] Como na
fita de Moebius, trata-se de ser tomado em uma reviravolta, cumprindo o
circuito pulsional. Ordinariamente, segundo Lacan, damos apenas uma
volta. É nessa medida que “para o tipo de artista com quem lidamos, ou
seja, aqueles que nos consultam, a obra de arte é para uso interno. Ela lhe
serve para dar sua própria volta”.[198] Ou seja, há uma dimensão em que a
obra de arte coincide com a fantasia – que seria, como já vimos, a obra de
arte para uso interno do sujeito. Mas isso não basta para falar do campo da
arte, pois esta se define justamente por seu “uso externo”, ou seja, por sua
potência de chegar ao outro. É essa a fundamental lição da sublimação, o
ponto em que ela não coincide com a fantasia e indica a possibilidade de
uma operação sobre a fantasia: é necessária outra volta, um laço, um
circuito que enganche o outro. Não se trata, na arte, de “dar sua própria
volta”, mas de dar mais uma volta, imprópria (nos dois sentidos do termo:
uma volta que não é sua e que não se coaduna inteiramente ao enredo
fantasístico no qual este eu toma lugar). As meninas, obra de mestre, nos
apresenta uma volta já feita, e assim nos engancha e incita a fazer outra.
Mas como ela consegue essa façanha?
Em primeiro lugar, parece fundamental ao psicanalista indicar que o
quadro se constitui como um Vorstellungsrepräsentanz, o representante da
representação do qual fala Freud em “O inconsciente”, de 1915. As meninas
não apenas representa uma cena da corte do rei Felipe iv, mas representa a
representação dessa cena. Em vez de acentuar a ilusão da cena, esse quadro
se assume e se apresenta como representante da cena. O principal
responsável por tal arranjo significante é a presença do quadro dentro do
quadro, a tela revirada que o próprio Velázquez está pintando e que a maior
parte dos comentadores especula ser um retrato do casal real, enquanto
Lacan insiste que se trataria da própria cena mostrada em As meninas, mas
ao reverso. A grande obra-prima seria o primeiro quadro da história a
mostrar a tela dentro da tela, prefigurando a estratégia de um Magritte, por
exemplo. É bem mais comum a presença de espelhos dentro de quadros,
refletindo a cena ou o que estaria fora dela, o observador, e disso essa obra
também é um exemplo de peso, com o espelho no qual se refletem,
debilmente, os personagens do rei e da rainha. Em contraste com o jogo
especular reduplicado, a grande tela revirada que toma boa parte de seu
primeiro plano nada mostra, ela é a apresentação de uma pura opacidade no
seio da cena. Penso que talvez essa opacidade seja constitutiva de qualquer
cena, como uma espécie de forro. Mesmo em trabalhos que não figuram
explicitamente seu reverso, Lacan nos incita, assim, a conceber uma
estrutura de inversão e crítica do imaginário, e nos leva a perguntar se
dependeria dela a “segunda volta” a que nos convida uma grande obra de
arte.
A análise lacaniana ecoa a então recém-publicada leitura desse quadro
por Foucault, afirmando que talvez haja nele “como que a representação da
representação clássica e a definição de espaço que ela abre”.[199] As meninas
constitui uma reflexão, em pintura, sobre o que é a pintura, o que é pintar e
como se organiza o próprio domínio da representação no momento histórico
que é o seu. A análise foucaultiana retraça cuidadosamente as linhas
organizadoras da composição, para acentuar aí, fundamentalmente, a
existência de dois pontos. No centro de um X que organiza a posição dos
demais personagens, encontra-se a infanta Marguerita. Próximo dela, outro
centro possível é ocupado pelo espelho no qual se reflete o casal real, em
segundo plano. As linhas que partem destes dois pontos convergem para um
ponto situado fora do quadro: o ponto em que nós, espectadores, nos
encontramos – tornados assim, à nossa revelia, rei e rainha, e capazes de
aparentemente ocupar este “centro simbolicamente soberano”. O princípio
de ordenação da representação encontra-se, portanto, fora da representação
propriamente dita, fora de cena. O quadro constitui um jogo de olhares onde
nós somos olhados pelo quadro, como notará Lacan, sublinhando o olhar do
personagem do pintor diante de sua tela revirada. Por essa volta moebiana
somos, portanto, jogados para dentro dele. O que Foucault acentua, porém,
é o fato de que o sujeito que funda tal representação estaria aí elidido,
vendo nisso a abertura da possibilidade de uma representação se dar como
“pura representação”.[200]

Lacan insiste que sua leitura confirma


A SUBVERSÃO DO SUJEITO E A REVIRAVOLTA DA FANTASIA

aquela de Foucault, trazendo no entanto a particularidade do campo da


psicanálise. Mas o próprio filósofo, presente em uma das sessões desse
seminário e instado pelo próprio psicanalista a responder se ele o havia lido
bem, replica que Lacan teria “reformado” um tanto suas elaborações.[201] De
fato, a proposta de Lacan, muito complexa e não isenta de obscuridades, se
distingue da de Foucault de forma sutil e no entanto cheia de
consequências. Enquanto esta privilegia a localização do objeto, duplicado
na tela em um jogo que exclui o sujeito, o psicanalista dedica-se a localizar,
na própria estrutura da perspectiva geométrica, o lugar do sujeito, de saída
considerando-o interno ao quadro. Ele insiste, assim, na ideia de que “a
perspectiva organizada é a entrada do campo do escópico do próprio
sujeito”.[202]
Tradicionalmente, concebe-se que a perspectiva artificial estabelece no
Renascimento, pela primeira vez na história, um lugar único e fixo ao
sujeito, na posição do olho do pintor que organizaria o espaço da
representação. Isso é estritamente verdadeiro na chamada perspectiva
central, que constrói um único ponto de fuga, correlativo à posição do olho
do pintor fora do quadro. Desde o primeiro tratado de perspectiva da
história, aquele de Alberti, aparecem contudo técnicas que empregam mais
de um ponto de origem (por vezes chamado “o outro olho”) para essa
construção geométrica. Lacan se apoia no esquema que utiliza dois pontos e
corresponde grosso modo à combinação entre a vista frontal e a vista de
perfil do objeto a ser representado. A perspectiva, modalidade de
representação que costuma ser tomada como modelo para a também
nascente noção de indivíduo, já estaria assim marcada, segundo o
psicanalista, pela divisão do sujeito. Podemos dizer que se marca aí uma
distância de si a si mesmo, permitindo, portanto, a construção da cena da
fantasia e o estabelecimento de um lugar nela para o eu. De fato, como
afirma Lacan,

estamos aqui para ver como esse quadro nos inscreve a perspectiva das
relações do olhar no que se chama a fantasia (fantasme) enquanto ela é
constitutiva. Há uma grande ambiguidade sobre o termo “fantasia”.
Fantasia inconsciente, bem, isso é um objeto. Em primeiro lugar, é um
objeto onde perdemos sempre uma das três peças que há aí dentro, a
saber, dois sujeitos e um a.[203]

Mas, para Lacan, o essencial é a relação que o quadro agencia entre tal
sujeito dividido e o objeto a. O sujeito “se sustenta”, diz ele, “em sua
própria divisão, em torno deste objeto a presente que é armação (ou
engaste, monture)”.[204] Essa fenda corresponde à figura da infanta
Marguerita. É interessante notar a natureza espacial dessa relação, marcada
pela locução prepositiva “em torno de”. Lacan a confirma em seguida,
pondo na boca do personagem Velázquez, presente no quadro, a frase: “Tu
não me vês de onde eu te olho”. Este onde não é um ali, ou um aí como
aquele do Dasein de Heidegger, não é propriamente um lugar e sim uma
fenda, um intervalo no qual algo cai. Assim se define o objeto a cuja
posição é assumida pela figura da infanta Marguerita, no centro do quadro.
É a presença desse objeto que constituirá um apelo ao sujeito, na medida
em que ele engancha a divisão do eu e também evoca uma função do Outro
pela qual este é esvaziado, puro reflexo como o casal real no espelho ao
fundo, que o psicanalista chega a comparar à tela de televisão.
Encarnando desse modo a presença do objeto a, a obra de arte poria em
jogo a própria estrutura da fantasia. O quadro desmonta a cena e põe em
jogo seus elementos constitutivos, convidando o sujeito a se redividir em
suas relações com o objeto e com o Outro.
Essa sofisticada operação depende de um complexo agenciamento
significante, na própria composição do quadro e especialmente no que se
refere à sua construção perspectiva, capaz de traçar nele um lugar que é de
crítica da própria representação. Outras estratégias poderiam ser adotadas
para isso, e duas vias são rapidamente mencionadas por Lacan: a da arte
moderna, com “suas manchas de cor” (que não são mais que merda, diz ele)
ou com os ready-mades de Duchamp. Em jogo com a figura da princesa, é
importante notar que temos ainda em As meninas, como aponta o
psicanalista, uma janela que representa a janela de nosso próprio olhar,
emoldurado pela fantasia. Trata-se de uma porta semiaberta, no plano mais
recuado do quadro, na qual encontra-se um homem, identificado como um
outro Velázquez, um certo Nieto Velázquez, figura que teria favorecido o
pintor junto ao rei. Ele está em movimento, quase saindo da cena. É essa
figura quem ocupa, para Lacan, o lugar de outro sujeito na citação acima. O
enredo, os personagens do quadro refletem e representam, assim, as
próprias condições da fantasia, inclusive o fato de que nela o sujeito se
divide de modo a se dirigir a seu umbral, chegando quase a sair de cena.
A apresentação na arte desse limiar da posição do sujeito na fantasia é
sublinhada pelo psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, especialmente
a partir de telas de Edward Hopper, nas quais se apresenta uma cena que
explicita seu próprio umbral e mostra personagens que por vezes parecem
estar prestes a atravessá-lo. Esses quadros explicitariam que a fantasia não
deixa de ser uma “janela para o real”, segundo Lacan.[205]
Sua depurada análise de As meninas indica assim, entre os demais
elementos da fantasia, a apresentação de uma janela para o real semelhante
ao que Freud denomina “umbigo do sonho”: um ponto de opacidade, em
geral recôndito, que é uma condição necessária à construção de toda
representação. Ao mesmo tempo que a fantasia vem, a serviço do
imaginário, cobrir o real como uma tela e fornecer um lugar fixo ao eu, ela
agencia pontos de enganchamento da divisão do eu, da subversão do
sujeito, convidando a que se ponha pelo avesso o imaginário de modo a que
se deixe entrever o real.
Vimos que Lacan traça no espaço do quadro um oco no qual vem se
situar (como fenda) a infanta Marguerita. Teríamos aí, talvez, a
transformação da tela em uma espécie de vaso, como aquele que servia de
modelo para a sublimação. Mas ao apresentar criticamente o quadro como
uma janela e desmontá-lo nos elementos estruturais da fantasia, essa obra
vai além da função do vaso. Ela agencia a abertura de um espaço que não se
delimita mais pelas coordenadas imaginárias da geometria, mas revira-se no
interior de si mesmo e constitui um trans-espaço difícil de fixar, chegando
quase a apresentar um fora da cena, um espaço impossível como aquele
obtido pelo que os matemáticos chamam “inversão” e que consistiria em
fazer passar o quadro por dentro de sua janela interna como quem o vira
pelo avesso. Então seríamos puxados, talvez, junto com nossa cena
cotidiana, por essa mesma mão que manipula o quadro – pois tal espaço
atrai o sujeito em uma vertigem cheia de gozo.
Sem chegar à radicalidade dessa inversão, a arte nos capta em seu espaço
de modo a nos incitar a dar alguns passos na cena da fantasia, em
atravessamentos pontuais. A travessia da fantasia que, para Lacan, se
operaria em uma análise, não deve ser compreendida como uma trajetória
pela qual se passa pela cena para deixá-la para trás, tampouco como uma
inversão completa da cena capaz de jogar o sujeito para fora dela. A
travessia da fantasia é plural, sempre a se refazer como o passeio do dedo
sobre a superfície da fita de Moebius. Ela nomeia a movimentação que o
sujeito se põe a realizar nesse espaço de modo a revirar suas coordenadas
imaginárias, tomá-las criticamente e assim, em alguma medida,
reconfigurar sua montagem.
É nessa medida que o quadro constitui uma tela, mostrando que “a tela
não é apenas o que oculta o real”, pois ela “ao mesmo tempo o indica”.[206]
Essa obra convida o sujeito a se descentrar no espaço para reencontrar a
moebiana subversão que é sua dimensão real. Daí vem a necessidade de se
considerar, para a própria experiência analítica, a topologia, o rompimento
com a geometria tradicional em prol do reviramento do espaço, nos limites
do “imaginarizável”. Para um psicanalista, dirá Lacan, a topologia não é um
conhecimento suplementar, mas “é o próprio tecido que ele corta, quer o
saiba ou não”.[207] Ele deve cortá-lo com o gume da linguagem, desmontando
e remontando criticamente sua estrutura cênica.

Tal janela denunciada, tal tela rasgada em As meninas talvez


TRANSFERÊNCIAS

anunciem algo que só se concretizará posteriormente, especialmente ao


longo do século XX: a vigorosa quebra do espelho testemunhada pelo
abandono da mímesis, o esgarçamento da tela, a quebra da moldura, o
franqueamento do espaço do mundo, a busca de uma apresentação capaz de
colocar por terra a lógica da representação. Essas não constituem,
propriamente falando, questões e estratégias do tempo de Velázquez, mas
configuram o campo que se abre em fins do século XIX e a partir daí toma
direções diversas, chegando a um ponto crítico, é o caso de dizer, a partir da
passagem para os anos 1960. Ao trazer o objeto a para o primeiro plano,
talvez Lacan aplique sobre As meninas, esta obra-prima de 1656, uma
leitura contemporânea, uma análise informada pelas questões que guiaram a
arte (e também, em certa medida, a psicanálise) no século XX. O quadro a
acolhe, no entanto, mostrando que essas questões não deixam,
provavelmente, de se colocar já nele, ao menos em germe. Ou, como diz
Lacan a Foucault, as mesmas questões se recolocam sempre, estruturadas
da mesma forma, e a elas os homens se recusam, a cada época, segundo
determinado repertório de maneiras.
O objeto a vem aí espaçar, cortando a tela e impedindo que o sujeito
ocupe a posição de olho central, medida e senhor da representação. Um
certo arranjo significante é capaz de (re)apresentar o objeto a como causa
da divisão do eu e engatar no sujeito sua subversão, que vai de par com uma
experiência singular do espaço. Tal estrutura e tal acontecimento não
deixam, segundo Lacan, de apresentar uma estranha familiaridade com o
processo analítico:

Isso não está feito para que nós, analistas, que sabemos que aí está o
ponto de encontro do fim de uma análise, nos perguntemos como, para
nós, se transfere esta dialética do objeto a, se é neste objeto a que está
dado o término e o encontro onde o sujeito deve se reconhecer? Quem
deve fornecê-lo? Ele ou nós? Não teríamos tanto a fazer quanto
Velázquez em sua construção? [208]

O objeto a é algo que está em jogo entre o sujeito barrado e o Outro. Mas
acho que ele, mais do que ser fornecido, é o que se perde. Só se pode
construí-lo no espaço, na cena, ou seja, na fantasia, e talvez se trate aí de
uma construção perspectiva como a do quadro de Velázquez, um
agenciamento capaz de revirar a cena imaginária para que as relações entre
o sujeito, o objeto a e o outro apresentem sua montagem e possam ser
matéria de análise, ou seja, quebra. A fantasia já estava lá e no entanto tem
que ser construída em análise, como sublinha Freud. Tal construção
implica, paradoxalmente, desmontagens e reviramentos da cena, em
pontuais e repetidos atravessamentos que o sujeito nela realiza – como nos
ensina a arte.
É curioso que Lacan fale de uma “transferência” da dialética do objeto a
entre psicanálise e arte. Talvez a psicanálise tenha que aceitar se submeter
um tanto à alteridade de um campo outro, o campo da arte, para refletir
sobre tal encontro com o objeto a no próprio seio da experiência analítica.
Entre elas, algo cai e se perde. Essa relação deve assumir seu caráter
histórico, no sentido que a psicanálise nasce num determinado momento e
um trabalho artístico se constrói numa complexa relação com sua época.
Fundamentalmente, talvez ambos os campos se rocem, por lidarem, por
meios próprios a cada um deles, com o trabalho de cultura de que fala
Freud, convocando aquele lugar indeterminado, aquela Outra Cena onde
d’isso, desta carta escondida, deste objeto qualquer, pode (re)fazer-se o
sujeito e seu mundo.
PARTE TRÊS

A CRISE,
A ÉTICA E
O OBJETO
NADA

da memorável crise
ou se houvesse
o evento
ARTE É CRÍTICA: SOBRE ATRAVÉS

cumprido em vista de todo resultado nulo


humano

TERÁ TIDO LUGAR


uma elevação ordinária verte a ausência

SENÃO O LUGAR
inferior marulho qualquer como para dispersar o ato vazio
[…] nessas paragens
do vago
onde toda realidade se dissolve
STÉPHANE MALLARMÉ

(trecho de “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”)


Para Walter Benjamin, os poetas encontram “na rua o lixo da sociedade e a
partir dele fazem sua crítica heroica”.[209] Seriam como sucateiros, catadores
de rua, os artistas. Benjamin os encontra na descrição do chiffonnier feita
por Baudelaire: aquele que registra e coleciona o que a grande cidade
despreza e destrói. Nada mais distante do herói criador ou do gênio
romântico. O herói moderno é decaído, é um operário; sabe-se de antemão
que ele jamais triunfará. Ele não cria nada de novo, belo ou sublime; apenas
recolhe os dejetos da civilização. Com eles, porém, faz algo extraordinário:
em sua arte, em sua poesia, forja uma verdadeira potência crítica da cultura.
Tal configuração da arte não é exatamente aquela do tempo de
Baudelaire, nem é aquela prevalente na arte produzida até 1940, quando
Benjamin percebe que não conseguirá fugir dos nazistas e resolve se
suicidar. Ela é a do nosso tempo. Nela, as noções de criação e criador
parecem anacrônicas, e a definição de crítica de arte torna-se francamente
problemática. “Insensatos os que lamentam o declínio da crítica”, dizia
Benjamin já em 1928, “pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é
uma questão de correto distanciamento.”[210] Não há mais uma clara distância
entre produção e crítica a partir do momento em que a própria produção
artística assume como cerne de sua poética uma dimensão crítica, ou seja,
põe-se a quebrar (krinein, em grego), a pôr em crise os parâmetros culturais
definitórios da arte. A crítica se sentia “em casa”, prossegue o filósofo, “em
um mundo em que perspectivas e prospectos vêm ao caso e ainda é possível
adotar um ponto de vista”.[211] De fato, não temos mais a nosso dispor um
ponto de vista fixo como aquele que sustentava e centralizava, graças a uma
implícita ordenação divina, a organização perspectiva da representação
renascentista. Se “no século XX os espelhos voaram em pedaços”, como diz
Francis Ponge pensando em Picasso,[212] a multiplicidade de pontos de vista
nega ao eu qualquer abrigo. Como já vimos dizer Freud, o eu não é mais
“senhor em sua própria casa”.[213] Que ponto de vista se poderia oferecer, em
nossos dias, através dos múltiplos escombros recolhidos e registrados pelo
artista?
O sujeito vê-se ele mesmo despedaçado, retirado de sua posição central.
Ele se extrai diante de objetos, das “coisas” com as quais Benjamin,
desiludido, fecha seu comentário: “As coisas nesse meio-tempo caíram de
maneira demasiado abrasante sobre o corpo da sociedade humana”.[214]
Na passagem para a década de 1960, Jacques Lacan nota que
A COISA E O OBJETO

nosso objeto primordial, o objeto da pulsão, é desde sempre perdido, é a


Coisa (das Ding) sempre buscada, mas nunca reencontrada como tal. Ela
não pode sequer ser imaginada. Em nossa atividade desejante temos acesso
apenas a seus substitutos, aos objetos que fugazmente parecem tomar seu
lugar, mas não são mais do que ruínas. O psicanalista retoma então a
questão da sublimação, definida por Freud justamente por uma substituição,
não necessariamente do objeto, mas do objetivo da pulsão: a meta sexual
seria trocada por outra, em geral mais valorizada socialmente (o que muitas
vezes se acompanha de uma mudança de objeto). A sublimação nomeia,
portanto, uma dessexualização necessária à própria constituição da cultura,
e diz respeito, de forma geral, à deriva que caracteriza o desejo. Do sexo a
outra coisa, toda a atividade humana decorre de um jogo pulsional no qual é
impossível chegar a uma satisfação completa.
Ainda que Freud mencione a sublimação a respeito da criação artística,
dela não resulta, portanto, uma reflexão específica a respeito da arte. Já
Lacan, localizando-a claramente no domínio do objeto, a particulariza como
uma operação significante pela qual um objeto seria elevado “à dignidade
da Coisa”.[215] A um primeiro olhar, essa famosa fórmula pode parecer
referir-se à arte clássica e às quimeras estéticas de um Belo harmônico. Se o
desejo se origina da perda de um objeto especial e a partir disso se define
como uma errância por objetos que jamais serão a Coisa, a sublimação
pareceria enfim lograr o encontro ideal com o objeto perdido. Mas o que o
psicanalista aponta é o avesso dessa idealização. A Coisa é pura perda, seu
lugar é um vazio, seu modelo é o vaso, objeto que só se define por
conformar um oco. Elevar algo a esta (in)dignidade comporta, portanto,
uma terrível ameaça. O quadro Os embaixadores de Holbein serve de
modelo a Lacan pelo uso da anamorfose, o trompe l’oeil construído pelo
uso deformado da perspectiva. Ao lado de elementos representando o mais
alto refinamento cultural, acha-se nessa pintura, se a vemos de frente, um
objeto alongado que não deixa de evocar um falo em ereção. Se olharmos
para o quadro de viés, porém, ele se transforma em uma caveira.
O sublime está portanto ligado a uma pungente revelação e a “dignidade
da Coisa” não é em nada apaziguadora, mas nos joga na cara a frágil e
violenta condição humana. Lacan acentua, assim, o que a estética do
Romantismo já apontava ao mesclar o Belo ao Terrível. Mas é a concepção
de objeto implicada na fórmula lacaniana da sublimação que merece
especial destaque: trata-se de um objeto qualquer, um objeto decaído.
Indigno. Objeto desdenhado, caído, perdido, que o artista não cria,
propriamente, mas recolhe como o chiffonier de Benjamin. Objeto capaz de
lembrar ao sujeito sua finitude e de retirá-lo da pretensão de se afirmar
como dono dos objetos, senhor do espaço e da representação, legítimo
criador – ou supremo crítico.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Lacan vai a Saint-Paul de Vence
visitar seu amigo Jacques Prévert e se surpreende com sua coleção de
caixas de fósforo. Vazias, elas estavam encaixadas umas nas outras,
dispostas de maneira encadeada e, segundo o psicanalista, “extremamente
agradável”, formando uma longa fileira que ornamentava parte da casa.[216]
Caixas de fósforos vazias eram talvez os únicos objetos sem valor, a única
coisa, naquele momento de grande penúria, que se podia colecionar.

Inspirado no pensamento de Lacan, Hal Foster


O RETORNO DO REAL É UM RETORNO DO SUJEITO

propôs na década de 1990, como já mencionamos, o “retorno do real” como


uma noção essencial para a arte contemporânea. Com ele, passaríamos da
“realidade como um efeito de representação para o real como uma coisa de
trauma”.[217] Para Lacan, real é o registro que se articula ao simbólico e ao
imaginário para constituir a complexa e compartilhada realidade humana. O
simbólico, domínio da linguagem e das trocas culturais, toma para este
autor um papel prevalente na organização da realidade. Ele fornece as
linhas de estruturação do imaginário, domínio cujo fulcro é a imagem
especular do corpo e que configura a imagem como falaciosa, encobrindo
algo que não se pode ver como tal: o real, que resiste a ser simbolizado.
Parte da produção contemporânea visaria, para Foster, chegar à repetição
de um encontro traumático com o real dessimbolizado e terrível, para além
da imagem. Assim, a série “Death in America”, de Andy Warhol, traz uma
repetição de imagens de acidentes de carro reproduzidas de fotografias
jornalísticas. Está explícita aí uma dimensão da obra de Warhol que pode
não estar em primeiro plano nos simulacros que são as imagens de sopas
Campbell’s, por exemplo, mas que não deixa de transparecer nos retratos de
Marilyn – especialmente quando lembramos que, no momento em que o
artista produz essas imagens, ela tinha acabado de se suicidar. Porém, o
núcleo trágico da obra desse artista não diz respeito tanto a essa faceta,
identificável em alguns de seus trabalhos, quanto a algo mais estrutural: a
acentuação da repetição automática como dispositivo fundamental para a
reprodução imagética. A explicitação desse funcionamento é que seria
capaz de evocar o trauma. A apresentação de uma mesma fotografia duas
ou mais vezes repetida vai nessa direção, assumindo e ressaltando sua
condição de reprodução. Mas isso não é tudo: algo acontece e se inscreve
na imagem, talvez de maneira fortuita, circunstancial, como a mancha sobre
o rosto do cadáver de Ambulance Disaster (1963). É essa marca, esse
recobrimento de uma parte da imagem, que punge e fere Hal Foster neste
trabalho de Warhol. Algo acontece e incide sobre a “máquina” warholiana
de reprodução de imagens, mostrando que, se o artista afirma querer ser
uma máquina, o mais importante será o que excede o automatismo e faz o
dispositivo “errar”, por assim dizer. A máquina pode ser humana.
De forma similar, Roland Barthes, também influenciado por Lacan,
concebe em A câmera clara o punctum como aquele ponto, em uma
fotografia, que ameaça lhe furar os olhos.[218] Uma mancha, um detalhe
qualquer, algo ex-cêntrico, seria capaz de desestabilizar o enquadramento
representativo, de modo imprevisível e radicalmente singular. Algo rompe a
cena e acontece, em ato, para determinado olhador, como uma convocação
pungente, entre a ameaça e a poesia, a angústia e o prazer.
Haveria, para Foster, outras diversas modalidades de retorno do real na
arte contemporânea. Pode-se jogar com uma apresentação da ilusão capaz
de quebrar a ilusão, em um certo hiper-realismo, por exemplo, ou pode-se
tentar chegar a uma “representação sem cena”, sem enquadramento, sem
tela, no que o autor chama “arte abjeta”.[219] Essas diferentes estratégias
mostram que um importante desafio da arte contemporânea consiste, eu
diria, em construir representações capazes de criticar sua própria natureza
representacional – colocá-la radicalmente em crise, rompê-la, em prol de
algo que Foster não ressalta, mas me parece essencial: uma certa presença
traumática do sujeito.
Isso porque o cerne do trauma não está no fato, apontado pelo crítico, de
que nele há uma confusão entre o eu e o mundo, o interior e o exterior. Com
efeito, não há aí um “eu” bem delimitado, organizado e unificado pela
imagem do corpo. Porém, no que diz respeito ao sujeito – ao sujeito do
inconsciente, bem distinto desse eu ilusório –, é justo no trauma que ele se
esboça. A estranha força do trauma provém dessa situação de angústia
extrema na qual o sujeito se faz valer como não mais que uma ferida
(traûma, em grego), uma mancha ou um rasgo na tela da realidade,
reabrindo um excesso capaz de, a um só tempo, pôr em xeque tanto a
representação quanto a ele mesmo. O sujeito é instável, efêmero, pois não é
mais que um certo efeito – precisamente este efeito de ruptura da
representação onde o eu perde seu lugar e se dissolve, deixando surgir num
átimo o ponto nuclear de nossa constituição. O sujeito não é mais do que
uma pulsação imprevisível e impossível de se comunicar mas que, no
entanto, como nos mostra a arte, pode se transmitir, ou seja, passar ao outro
como uma missão. Há um apelo ao outro no surgimento deste núcleo
incerto de dor e prazer, nesse gozo que comemora nossa frágil constituição
como sujeitos.
A noção lacaniana de real faz eco ao que Merleau-Ponty, em conferência
de 1945, já apontava como um excesso no real, em contraponto com a
natureza da representação cinematográfica:

Jamais no real a forma percebida é perfeita, há sempre tremidos,


rebarbas e uma espécie de excesso de matéria. O drama
cinematográfico possui, por assim dizer, um grão mais cerrado que os
dramas da vida real, ele se passa em um mundo mais exato que o
mundo real.[220]

O “drama”, a organização narrativa e espacial da representação, dá ao


sujeito um lugar mais ou menos fixo e encobre o perturbador “excesso” do
real. Esse regime é o que chamamos “imagem-muro”. Boa parte da
produção artística contemporânea visa furar esse muro ou esgarçar esse véu,
rompendo tal domínio imaginário apaziguador e ilusório. Ela se alinha à
“imagem-furo”, que, através de estratégias variadas, busca quebrar o
“drama”, a realidade, em busca de algo para além da representação. Tal
potência crítica da representação implica uma alteração fundamental na
posição do sujeito. Ele foi retirado de um lugar central no “drama”, na
estrutura da representação. Mas ele retorna, agora, de fora do campo da
representação. Sob a égide do real, ele é convocado a comparecer em toda
sua potência de disseminação e fugacidade, como efeito poético. O sujeito
não é mais que um efeito. Feito de poesia, da ferida imaterial, e tanto mais
fundamental, que clama por se transmitir entre nós.
O sujeito parece, em algumas facetas da produção contemporânea, sair
completamente de cena em prol da disseminação crítica dos modos de
representação. Um exemplo extremo dessa configuração seria aquele que
faz Warhol afirmar “Eu quero ser uma máquina”.[221] Em outra modalidade, o
sujeito se veria anulado pela presença maciça do objeto. Para se afirmar
como entidade autônoma e se destacar da representação mimética,
recusando e esgarçando o “drama” da representação, o objeto parece por
vezes negar o sujeito como seu par. À primeira vista, os objetos
minimalistas operariam tal negação; porém, por mais “específicos” que eles
sejam (para usar o termo de Donald Judd), tais objetos formulam,
implicitamente, uma convocação à presença do sujeito. O que é negado ao
sujeito é a simples confirmação de seu lugar como complemento do objeto
no “drama” da representação clássica. Em troca, ele é fortemente
convocado a se apresentar no espaço transformado pelo objeto.
Como vimos no primeiro ensaio deste livro, happenings e performances
parecem, por sua vez, reafirmar a presença do sujeito pela apresentação do
corpo do artista, muitas vezes acompanhada de um convite ao ato dirigido
ao espectador. Em vez de uma confirmação da identidade do eu graças à
inclusão do corpo no campo da representação, opera-se, numa reviravolta
crítica, uma quebra desse campo. O corpo, em sua dimensão não imagética,
mas real, rompe em ato o drama, tornando-o imprevisível e transformando o
espaço à sua volta. Sob modos diversos, o eu aparece numa exploração de
sua alteridade constitutiva, o que termina por problematizar fortemente a
relação entre corpo e sujeito e acentuar a desmaterialização desse último. O
apelo direto ao espectador busca fazer comparecer o sujeito no real, por fora
do enquadramento da representação. O ato é o que permite, aqui, romper
esse enquadramento. Em vez de confirmar o lugar daquele que o realiza,
trata-se de um ato que o descentra, retirando-o de sua ilusão solipsista.
Trata-se de um ato que precisa do outro para fazer apelo ao sujeito – que
não está no corpo de ninguém, propriamente, mas em uma passagem de um
a outro, convocando o corpo em toda sua potência disruptiva.

Como dizia Rimbaud, “o eu é um outro”: [222] descentrado pela arte


ATRAVÉS

moderna, ele não está mais no centro organizador da representação. O


sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e
problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que
se temporalizou e se deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do
espaço. Em vez de manter o jogo da alteridade que o constitui como
alienado de si mesmo, em vez de brincar de ser outro, em uma mobilidade
que pode por vezes fixar por um tempo alguma posição diante do
desmantelamento crítico da representação, ele parece dissolver-se a ponto
de quase se retirar. Ele diria, em vez de “o eu é um outro”: eu não é. Mas é
quando não tem mais lugar na representação, justamente, que ele pode se
apresentar: retornar como convocação direta ao espectador. Com-vocação:
convite a tomar a palavra, a ter voz. Convite que é como uma mensagem
apagada jogada dentro de uma garrafa ao mar, carregando o belo risco de
jamais chegar a ninguém.
Cildo Meireles situa a concepção de Através (1983-89) no ruído de um
papel celofane jogado na lixeira. Quando andamos por suas passagens
cobertas de pedaços de vidro, tal ruído talvez se faça ouvir para além do
barulho nítido de nossos pés moendo ainda mais os cacos. Por mais que
estejamos bem calçados, o caminho é perigoso, nos impede de pisar em
terra firme. Caminho crítico: precário e feito de quebras.
Devemos passar, caminhar entre os anteparos de materiais heterogêneos
que nos impedem a visão direta da enorme bola de celofane amassado que
está no centro do espaço. Ela possui, grosso modo, uma escala humana. As
cercas de madeira, metal ou arame, os painéis de vidro ou plástico e até os
peixes transparentes nadando no aquário retangular mostram essa coisa
central de modos diversos e por vezes até parecem aumentar sua luz (e
talvez seu mistério). A presença desse grande objeto luminoso pulsa,
poderosa, por entre as telas e os véus translúcidos. Mas talvez essa coisa só
se deixe entrever, nunca se ofereça diretamente à visão, nem mesmo quando
a espiamos pelo intervalo de um anteparo a outro.
Um véu semitransparente, como se sabe, era um importante recurso para
a técnica da perspectiva geométrica. Esse “véu interceptor”, criado por
Alberti, devia ser colocado entre o olho e o “corpo a ser representado”, para
que o pintor pudesse traçar mais facilmente os eixos da pirâmide visual.[223]
Tecido de trama aberta, o véu é uma grade que não apenas filtra, mas
aprisiona o visível. “Saiba”, escreve Alberti, “que se você modifica a
distância e a posição do centro, a coisa vista ela mesma parecerá
modificada.” Essa é a razão pela qual o véu presta o inestimável serviço de
“manter uma coisa sempre idêntica ao olhar”.[224]
Os vidros, os véus, as telas e grades de Através não fixam o olhar e a
coisa olhada. Em vez de nos posicionar firmemente em relação ao visível, a
variedade de painéis multiplica as faces do objeto e cria espaçamentos,
intervalos entre os quais devemos – é imperativo – deslocar-nos. Tal
deslocamento é essencial a esse trabalho – o olhar é uma travessia múltipla,
a se repetir conformando espaços vazios, disseminando a quebra da
estrutura da representação. O objeto, ele mesmo feito de nada além da
transparência adensada do celofane, é como que jogado no lixo: ele se
multiplica e se modifica ao se quebrar em diversas faces, aquelas refletidas
pelos diversos anteparos. O olhar denuncia sua condição mediada, sempre
através de algo – perspicere quer dizer justamente ver através, em latim.
Em pequenas quebras que nossa própria travessia refaz, em ato, algo
pode de repente acontecer: como se chamado pelo mísero pedaço de papel
celofane, emerge o sujeito como não mais que uma posição incerta. O ato é
aí como o ato analítico de que fala Lacan (e aqui é importante lembrar que
“análise” quer dizer “quebra”). O ato quebra e pode suscitar uma trans-
missão da quebra. Em vez de um circuito que vai de um ponto de partida a
um de chegada de forma invariável, num caminho fechado e pré-fixado,
temos uma deriva, uma travessia imprevisível que transforma o espaço e
seus componentes.
Através é um labirinto onde não corremos o risco de nos perder – mas só
porque, de saída, nele já estávamos perdidos.

QUEBRASComo fazer crítica de arte diante de uma obra que já agencia, em si


mesma, a mais sofisticada crítica?
Através é uma obra que atravessa as condições da representação e abre
espaços insuspeitos para o que fica de fora dela mesma. Talvez por isso o
projeto inicial de Cildo Meireles tenha sido de montar essa instalação ao ar
livre, antes de confiná-la na grande sala onde ela se encontra hoje, no
Instituto Inhotim, em Minas Gerais. Apontando para um “fora”, um espaço
inimaginável, isso que ela faz surgir é o sujeito contemporâneo, em sua
mobilidade, sua ferida, sua poesia. Esse sujeito que a poesia de Stéphane
Mallarmé já prenunciava e tentava encarnar no escrito e em seus
espaçamentos, denominando-o justamente de poema crítico.

As quebras do texto […] observam de concordar, com sentido e não


inscrevem espaço nusenão até seus pontos de iluminação: uma forma,
talvez, daí saia, atual, permitindo, ao que foi longo tempo o poema em
prosa e nossa pesquisa, culminar, enquanto, se juntamos melhor as
palavras, poema crítico.[225]

A “forma” é atual porque atualiza a crise, a cada leitura, com seus


espaçamentos. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, de 1897, visa,
como explicita Mallarmé em seu prefácio, fazer o leitor “abrir os olhos”.
Quanto ao futuro desse poema crítico, o poeta presume “nada ou quase uma
arte”[226] prevendo, curiosamente, o que podemos dizer muitas vezes ter
diante dos olhos na produção contemporânea. Uma vez problematizado o
campo da Arte, a produção artística se dissemina e se volta para fora dela
mesma, tornando-se quase nada, quase “uma arte”. Alguma arte.
Como o poema crítico, talvez nos caiba fazer hoje a crítica crítica. Não
para se instalar na pretensão de uma metacrítica que abarque e apresente
suas próprias condições, mas para saber-se fundamentalmente atravessada
por uma crise permanente e que deve ser constantemente realimentada para
que a reflexão crítica mantenha hoje sua pertinência, considerando que sua
hora “há muito tempo já passou”, como vimos com Benjamin.
Toda análise crítica se vê hoje condenada a denunciar como ilusão sua
pretensão de atingir o ponto central de uma obra. Toda aproximação crítica
está condenada a uma certa deriva, a um quase. O crítico e teórico do
cinema Raymond Bellour propõe que se substitua a ilusória apreensão de
um filme ou de parte dele por uma multiplicidade de gestos diante do
cinema: gesto de parada da imagem, gestos de passagem de filme em filme,
de um conceito a um fotograma etc.[227] Uma dissolução da crítica, uma
crítica do próprio propósito crítico talvez deva levar-nos à definitiva
substituição do julgamento por nada além de gestos. Limitados gestos
girando em torno de algo, como nós no labirinto de Através (os elementos
teóricos, assim como os da história da arte, seriam como os diversos
anteparos aí existentes, podendo tanto esconder a obra quanto acentuar sua
luz). Gestos capazes de quebrar a si mesmos, de se assumir como quebra.
Ou melhor: de transmitir as quebras da própria obra e recolocar em marcha
a crise que já era sua. Gestos críticos.
Renunciando a um discurso totalizante, os escritos críticos flertam com o
formato do ensaio. “O ensaio é a forma de categoria crítica do nosso
espírito”, já sentenciava Max Bense na década de 1940.[228] O ensaio, como o
próprio termo indica, é experimentação. Ele se assume como “interrogação,
pensamento vivo”, nas palavras de Jean Durançon.[229] Pensamento movente,
fragmentário, mas que não deixa de ser audacioso. Sua lei mais profunda,
como diz Adorno, “é a heresia”.[230] Porque ele não se inclina diante de
dogmas, mas deve fragmentar, quebrar, para fazer jus às quebras sobre as
quais reflete. Como também formula Adorno, “o ensaio pensa em
fragmentos, uma vez que a própria realidade [e a própria arte, nós
diríamos] é fragmentada”.[231]
Na tessitura que é o ensaio, o próprio ensaísta aceita sair do centro e
arrisca se perder. “O pensador, na verdade”, diz ainda Adorno, “nem sequer
pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem
desemaranhá-la”.[232] Talvez ele não crie nada, ou quase nada. Aliás, sua sina
é refletir sobre objetos criados. A forma do ensaio “acompanha o
pensamento crítico de que o homem não é nenhum criador”.[233] Ele mesmo
se vê como um catador de lixo, buscando coisas e pensamentos, como o
artista para Benjamin. Mas nosso chiffonnier não é como o de Baudelaire,
que cata o lixo para vendê-lo à fábrica onde será reciclado. Ele não visa
retirar de circulação esses trapos da civilização; pelo contrário, ele quer dar-
lhes algum arranjo, ele quer mostrá-los. Ele almeja, como Mallarmé com
seus espaços em branco, abrir nossos olhos. E o crítico, recolhendo desse
catador os produtos, com insistência o coloca diante de nossos olhos. O
chiffonnier-crítico recupera o sentido figurado do termo francês: o de
fofoqueiro. Pois o escrito crítico deve transmitir, ou seja, tomar para si e
passar adiante a crise que é o próprio trabalho artístico. Algo deve guiar
profundamente a reflexão crítica, algo de essencial à obra, mas que essa
aponta de fora: o acontecimento que ela é.
E não será tal acontecimento uma comemoração daquilo mesmo que
marca o sujeito e o constitui?
Ainda Benjamin: “O olhar é o fundo do copo do ser humano”.[234] Através.
MÁRIO PEDROSA, ÉTICA E ARTE PÓS-
MODERNA

Pois nós não somos, na literatura e na arte.


ANDRÉ BRETON
Mário Pedrosa, crítico de arte, jornalista e professor, nasceu em Timbaúba,
no estado de Pernambuco, em 1900 e foi um comunista militante que
amargou, ao sabor da conturbada história política do país entre os anos
1930 e 1970, algumas vezes a prisão, noutras o exílio. Pedrosa cultivava o
contato próximo com artistas e exerceu um papel fundamental na incitação
à criação de uma linguagem da arte brasileira, rompendo com a tradição do
nacionalismo mais ou menos folclórico que a Semana de Arte Moderna
havia cristalizado, não sem contradições, em 1922. Sua posição política e
seu conhecimento das vanguardas russas foram fundamentais para o rumo
tomado para o surgimento, nos anos 1950, de uma vanguarda artística
brasileira com o concretismo. E para uma passagem com características
próprias à arte contemporânea, com o neoconcretismo, cujo marco fundador
é a i Exposição Neoconcreta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
em março de 1959. Apesar de o grupo neoconcreto ter-se, como
movimento, rapidamente dissolvido, já em 1961 suas questões centrais
deram ensejo a derivações múltiplas que até hoje pautam grande parte da
produção artística brasileira.
Em 1967, refletindo sobre os desdobramentos desse movimento no
trabalho de Hélio Oiticica e Lygia Clark, Pedrosa elabora, de forma
precursora, o conceito de “arte pós-moderna”, vários anos antes de o termo
pós-modernismo ter sido introduzido por Charles Jenks em debates a
respeito da arquitetura em 1975, de Jean-François Lyotard expandir o termo
em seu A condição pós-moderna (1979) e de Fredric Jameson explorá-lo,
na década de 1980, como a lógica cultural do capitalismo tardio. De saída
Pedrosa concebe o pós-moderno como propriamente artístico, em contraste
com os diversos autores que a partir daí se dedicam a conceitualizar a
sociedade pós-moderna e indicar suas incidências no campo da arte, mas
em consonância antecipada com Leo Steinberg – que pouco depois, em
1968, qualificará de pintura pós-moderna o abandono da verticalidade em
prol do flatbed, do plano horizontal onde o homem trabalha (assim como
dorme, se reproduz etc.), abrindo a superfície pictórica novamente “ao
mundo”. Em outra chave e com diferentes referências, Pedrosa concebe a
arte pós-moderna, como veremos, como uma postura fundamentalmente
ética. Em tal ética da arte sobre a qual Hélio Oiticica e Lygia Clark
oferecem a reflexão e a prática mais contundentes, interessa-nos apontar a
presença da psicanálise no pensamento de Pedrosa e sua incidência na
produção artística brasileira.

As referências teóricas de Pedrosa são numerosas,


NEOCONCRETISMO, TEORIA E ÉTICA

homem erudito como ele era, e delinear influências diretas implicaria um


artifício duvidoso. Devemos reconhecer que em seus escritos são notórias,
entre outras, a referência ao pensamento de Ernst Cassirer e Suzanne
Langer e a presença difusa da fenomenologia. Apesar de raramente citar
Merleau-Ponty, Pedrosa teria, segundo Otília Arantes, indicado aos
neoconcretistas o pensamento do filósofo – que aparece como ponta de
lança do Manifesto Neoconcreto, escrito pelo crítico e poeta Ferreira Gullar
e assinado por todos os artistas e poetas participantes da exposição (além do
próprio Gullar, eram eles: Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia
Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis).[235] Mas tal
referência explícita não deve ser tomada como uma influência exclusiva e
nem mesmo linear. Para Paulo Herkenhoff, “talvez os neoconcretistas
devam mais a Husserl (via seu conhecimento por Pedrosa) que a Merleau-
Ponty”.[236] Lygia Pape conta, em 1995, em um texto curiosamente intitulado
“O que eu não sei”, que seria equivocado ver em Merleau-Ponty o
“norteador da produção neoconcreta”. E prossegue:

Nada disso aconteceu. Merleau surge quando da finalização das obras


e da necessidade de um texto contextualizador […] para uma produção
nunca vista antes, carregada de novidades e invenções.

Conceitos novos se insinuavam nas obras como a quebra das


categorias, como o abandono de uma posição privilegiada para a
chamada escultura, como o uso de linguagens diversas na mesma obra
(imagens e palavras inter-relacionadas), o corte e a dobradura da
página como expressão (que vai desencadear o surgimento dos
primeiros “livros-poemas”), conceitos tão revolucionários que vão
desde esse momento libertar o artista para um universo de
possibilidades, um novo espaço na arte e o surgimento de um ser
plástico sem designação própria, sem escala, indo do mínimo ao
tamanho máximo como as instalações (que ainda não tinham esse
nome), denominado, para uso convencional: objeto.
Pape menciona outras “lembranças filosóficas” que seriam

afins à produção neoconcreta: Bergson com sua “durée” e seu


princípio de intuição, os pré-socráticos em sua busca do elemento
primordial, o tempo segundo Heidegger, formulações de Nietzsche,
Kant e “outros ao sabor das direções individuais de membros do
grupo, como Freud e as questões psicanalíticas.”[237]

Em reação ao que consideram demasiadamente racionalista na produção


concreta, os neoconcretistas recolocam com vigor o problema da expressão.
O manifesto anuncia justamente uma revisão das posições teóricas da arte
concreta, “uma vez que nenhuma delas ‘compreende’ satisfatoriamente as
possibilidades expressivas abertas por essas experiências”.[238] Mas não se
tratou de adotar outra posição teórica bem definida (a de Merleau-Ponty,
por exemplo) que pudesse guiar a produção artística. A experiência
neoconcreta não advém de qualquer teoria, justamente porque se baseia na
compreensão de que a produção artística é ela mesma reflexão e produção
de conhecimento, ao lado – e não em consequência – de elementos teóricos
variados, em torno de questões fundamentais à arte assim como à vida e à
filosofia, especialmente aquela do lugar do sujeito e sua relação com o
objeto.
Tal questionamento toma, no pensamento de Pedrosa, um alcance
verdadeiramente revolucionário, recuperando à sua maneira a utopia da
vanguarda russa do início do século XX. Ele visa retomar o elã da arte
abstrata como intrinsecamente transformador do homem e do mundo. Os
artistas abstracionistas teriam como tarefa “ampliar o campo da linguagem
humana na pura percepção”. Não se deve portanto confundir, segundo o
crítico, revolução política e revolução artística. A primeira estaria a
caminho, segundo sua surpreendentemente otimista previsão de 1967 (três
anos após a instalação da ditadura militar ultraconservadora no Brasil), e a
“revolução social” iria se processando “de qualquer modo”, enquanto a

revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do


indivíduo, sua alma, não virá senão quando os homens tiverem novos
olhos para olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas
tremendas transformações e intuição para superá-las.[239]
Tal transformação revolucionária é intrinsecamente estética – e ética. Após
retomar e desenvolver algumas questões a respeito das relações entre a obra
e o eu do artista e discuti-las com alguns autores em psicanálise
(especialmente Ernst Kris), Pedrosa afirma, à guisa de conclusão do artigo
“Arte e Freud”, publicado no Jornal do Brasil em 1958:

Eis por que é privilégio da arte nos dar da vida uma imagem muito
mais complexa e profunda do que qualquer outro meio de expressão.
Suas formas nos revelam virtualidades irrealizáveis ou inconcebíveis
pelo nexo causal simples, descobrindo em nós mesmos novas maneiras
de sentir e, portanto, de ser. Uma nova ética.

Para essa nova ética o pensamento de Freud nos vem, desde que
apareceu, abrindo caminho e nos preparando o advento com força e
penetração incomparáveis.[240]

Longe de ser uma entre outras disciplinas interessantes para a reflexão


sobre arte, a psicanálise mostra-se fundamental, louvada como nada menos
do que fundadora do campo no qual se desdobra todo o pensamento do
crítico. Se uma comentadora atenta como Otília Arantes afirma que Pedrosa
teria se mantido “sempre, apesar de tudo, muito reticente em relação à
psicanálise”, é porque confunde a crítica (localizada) de Pedrosa à aplicação
interpretativa e subjetivista da psicanálise (de que o famoso ensaio de Freud
sobre Leonardo da Vinci apresenta o melhor exemplo) com a consideração
mais ampla do crítico acerca desta disciplina.[241] O reconhecimento da
contribuição freudiana para a cultura como radicalmente ética e imbricada
aos caminhos tomados pela arte ao longo da primeira metade do século XX dá
testemunho de uma leitura de Freud sofisticada e potente. Essa imbricação
entre psicanálise, ética e arte edifica uma importante plataforma para refletir
sobre as propostas neoconcretistas e suas derivações posteriores.

O neoconcretismo digere o neoplasticismo e o construtivismo


ESPAÇO E EXPRESSÃO

para deles retomar uma aspiração fundamental e especialmente cara aos


artistas russos do início do século XX. “Espaço não existe apenas para o
olho”, escrevia El Lissitzky em 1923, “ele não é um quadro; quer-se viver
nele.”[242] Com a linha orgânica de Lygia Clark e em seguida seus casulos e
bichos, com o corpo-cor e a tensão dançante dos metaesquemas de Hélio, e
então seus núcleos e penetráveis, o neoconcretismo ganha o espaço como
espaço vivencial. “De nada servirá ver em Mondrian o destruidor da
superfície, do plano e da linha, se não atentamos para o novo espaço que
essa destruição construiu”, brada o Manifesto Neoconcreto.
Ao contrário de acentuar a planaridade da tela, a autonomia ou a
autorreflexividade da arte, trata-se de construir um “novo espaço” que
designa, de saída e fundamentalmente, a busca de um lugar para o sujeito:
“significação existencial”, “emotiva” e “afetiva” são termos correntes no
Manifesto Neoconcreto. Espaço e expressão se articulam: “A arte
neoconcreta funda um novo ‘espaço’ expressivo”. Se o espaço expressivo é
aquele onde pode surgir o sujeito, nesse “novo espaço” o sujeito não
coincide com a pessoa do artista, como no tachismo então em voga e
violentamente criticado por Pedrosa por nele dominar o plano da
“expressão direta”, no qual “o pintor mescla suas afeições e sentimentos
pessoais, seus desejos e faniquitos mais explícitos, ao ato de realizar, de
modo que a obra resultante é apenas uma projeção afetiva dele”.[243]
Apresentando muito pouca “distância psíquica”, o valor das obras tachistas
seria o de mero “documento humano”, sem alcançar a “distância psíquica
ideal” que, no abstracionismo, determina que haja “de um lado, o artista
individual em todo o livre desabrochar de sua personalidade” e, de outro, “a
obra falando sozinha uma linguagem própria e, sem apelos diretos a
sentimentalidades, a prazeres e sugestões externas, a angústias ou neuroses
da vida privada do seu criador”.[244]
O principal modelo de sujeito tomado por Pedrosa para repensar a
expressão é bem outro: aquele dos loucos artistas do Engenho de Dentro,
instituição psiquiátrica onde Nise da Silveira havia fundado em 1946 uma
Seção de Terapêutica Ocupacional na qual trabalharam os artistas Ivan
Serpa, Abraham Palatnik e Almir Mavignier. “Com os três”, afirma Paulo
Herkenhoff, “a matriz da arte geométrica no Rio de Janeiro passa pelo
Engenho de Dentro”, o que seria a base para que o neoconcretismo inserisse
“radicalmente a subjetividade no universo racional da geometria”.[245]
A Nise da Silveira, apoiada na teoria de Carl G. Jung, interessava
identificar nas obras do Engenho de Dentro arquétipos imemoriais e
compreendê-las à luz de elementos míticos, no sentido, talvez, em que
Pedrosa falava de “documento humano”. Ao crítico, em contraste,
interessava identificar nos ditos loucos uma distância de si a si mesmo, uma
fenda no eu que favoreceria a construção de uma “obra falando sozinha
uma linguagem própria”, como vimos no trecho acima citado, na medida
em que a obra seria capaz de fazer-se no artista – mas justo ali onde ele não
afirma um eu autor, e sim deixa-se criar, descentrado, por tal fala externa.
Rafael, um jovem paciente do Engenho de Dentro, serve de exemplo para
que Pedrosa possa formular uma espécie de presença artística do sujeito,
justo no ponto em que o eu falha ou se fende. Rafael traçava em segundos
seus desenhos, sem nenhum “controle consciente ou intelectual”, diz
Pedrosa. O rapaz deixaria de repente seus companheiros de brincadeira para

concentrar-se, em relâmpago de tempo, em si mesmo, ou sorrindo


misterioso e alegre, não sei para quem, num jogo maravilhoso e
autêntico, no curso do qual passava por vezes, pelas costas, o lápis ou
o pincel de uma mão para outra, e com o mesmo movimento deixava o
outro braço, agora armado, correr livremente pelo painel, conclusão de
um gesto que vinha de longe. Nesse momento, sim, tudo era jogo,
expressão, autenticidade.[246]

Em uma espécie de escrita automática, como aquela sonhada – mais do que


efetivamente realizada – pelos surrealistas, o gesto artístico de Rafael não
vem dele próprio, mas “de longe”. Não é aleatório que Pedrosa tenha
resolvido mostrar os desenhos do jovem justamente a André Breton – que,
segundo ele, os teria considerado superiores aos de Matisse. A expressão
autêntica que interessa a Pedrosa é aquela mesma que funda o surrealismo
como leitura poética da psicanálise, mas que às vezes parece submergir no
torvelinho de fascinantes figuras oníricas. A loucura aparece no pensamento
de Breton como enigma sedutor (em Nadja, modelo da mulher misteriosa e
inapreensível) ou como produção acabada (no livro de Hans Prinzhorn,
principalmente), não como modelo da falha, da divisão do eu teorizada por
Freud. Contudo, o fato de os surrealistas terem reconhecido prontamente a
incidência do inconsciente na relação do sujeito com a linguagem mostra
que eles compreenderam muito bem a proposta freudiana, melhor mesmo
que a medicina da época. Tal apropriação das ideias psicanalíticas no campo
da literatura e da arte resultará, diga-se de passagem, em uma base
importante para a trajetória de Jacques Lacan, que frequentava esse círculo,
foi médico de Picasso e recolheu importantes indicações de Salvador Dalí
para a elaboração de sua tese de doutorado em medicina, defendida em
1932.
Paulo Herkenhoff salienta que Pedrosa era leitor de Freud e ressalta sua
ligação com os surrealistas, especialmente em sua estada em Paris nos anos
1930, mas nota que o crítico teve a clareza, “que outros latino-americanos
não haviam tido até aquele momento, de que o surrealismo era a via fácil,
mas não era a solução para a América Latina”. “No entanto”, prossegue,
“isso não significava descartar a psicanálise, mas evitar sua borda mais
banal e trazer a questão da psicanálise para o próprio processo criativo e da
percepção.”[247]
Na relação da psicanálise com a arte trata-se, muito mais
fundamentalmente do que de uma imagética do inconsciente, da
reafirmação da divisão do sujeito, do fato de o eu não ser mais “senhor em
sua própria casa”, na famosa frase de Freud. Cria-se um novo espaço, na
arte, porque lhe falta uma casa própria. Em vez de encontrar aí um lugar,
estável, trata-se de pôr em prática, exercitar e comemorar sua condição
centrífuga, seu exílio, a fenda que o constitui como outro para si mesmo. É
curioso que Lacan, nesse mesmo momento fecundo de passagem para os
anos 1960, também fale, em seu Seminário 7, da arte como ligada à ética, e
da própria psicanálise como, acima de tudo, uma ética. A ética / estética
delineada por Lacan é a de uma subversão do sujeito: o que o determina
mais intimamente está fora, o íntimo é êxtimo.
A questão da relação entre arte contemporânea brasileira e surrealismo é
complexa e merece um exame mais detido. Talvez o mais importante ponto
de convergência resida na sofisticada concepção do objeto e de sua relação
com o sujeito existente no pensamento surrealista. Ela aparece
principalmente na ideia de objet trouvé, objeto encontrado, e está
condensada na seguinte fórmula de Breton: “Nada do que nos cerca nos é
objeto, tudo nos é sujeito”.[248] Tal jogo entre sujeito e objeto possibilita que
se pense o objeto como sujeito, ou seja, o objeto não como produto de
determinado sujeito e capaz de se relacionar com outros sujeitos, mas como
espaço de surgimento do sujeito. Só então qualquer objeto pode se tornar
tema (que também se diz sujet, em francês). Como ensina a psicanálise, é
na relação com um objeto primordial de saída perdido (o seio que nos
alimenta, no mito construído por Freud) que o sujeito surge – já apartado de
si mesmo – e inicia sua busca desejante por objetos diversos.
Temos talvez nesse apontamento surrealista o fundamento da revisão da
expressão a que se dedicaram Pedrosa e os neoconcretos. Ressoa a fórmula
de Breton na bela frase de Pedrosa em 1951: “A obra de arte vive
subjetivamente”.[249] Em 1957, uma formulação aproximada aparece em uma
nota, escrita por Gullar, Reynaldo Jardim e Oliveira Bastos, que teve
importante papel na ruptura com os poetas concretos de São Paulo: “A
linguagem não tem nenhuma ação direta sobre o mundo dos objetos a não
ser ‘no sujeito’, isto é, na proporção em que o mundo dos objetos, tornado
significação, cultura, é já o sujeito”.[250]
O objeto de arte é o sujeito. O mais íntimo está fora, no objeto. Esse é o
gérmen do conceito de não objeto, desenvolvido posteriormente por Gullar.
É por se definir justamente como tal jogo entre sujeito e objeto que o não
objeto, reafirmando “a arte como formulação primeira do mundo”, mantém
com o sujeito uma relação, como afirma Gullar, que “dispensa
intermediário”.[251] Para o crítico e poeta, graças à estrutura do não objeto,
espectador e obra se fundem no espaço, durante a experiência artística. A
negação do objeto é afirmação, nele, do sujeito, e é nesse sentido que “o
não objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), não como
testemunha passiva de sua existência, mas como condição mesma de seu
fazer-se”.[252]
Em vez de se confirmar como parte de uma obra e pretender completá-la
pela afirmação de seu eu, trata-se, na complexa reflexão neoconcreta, de
transformar a si próprio através do objeto, na medida em que este apresenta
algo fundamental ao humano e no entanto não é atributo de ninguém, mas
está entre os humanos, na cultura. O eu se revira poeticamente no espaço,
abrindo mão da expressão direta para tornar-se ele mesmo forma sinuosa,
forma indefinida. Forma. Como já dizia Malevich, “as sensações de sentar,
de levantar ou de andar são sobretudo sensações plásticas”.[253] Trata-se do
espaço aberto para o surgimento de um sujeito sem substância e
problemático, que não coincide nem com o artista nem exatamente com o
espectador, mas aparece entre ambos, sempre outro, nunca idêntico a si
mesmo. A participação do espectador, que tomará a linha de frente dos
trabalhos de Oiticica e Clark e também de Lygia Pape, refere-se justamente
a isso, a tal torção transformadora do sujeito, na maioria das vezes através
de um objeto. O sujeito, em vez de reafirmar seu eu por meio da obra de
arte, surge partido, dividido, e portanto capaz de se subverter numa sutil – a
ao mesmo tempo violenta – partilha do mundo, de si mesmo, do outro (isso,
afinal, que costumamos chamar cultura).
A definição de arte pós-moderna de Pedrosa é forjada em
A ÉTICA DA ARTE PÓS-MODERNA

companhia de Hélio Oiticica, em seu famoso texto de 1967 sobre o artista.


Chegamos ao fim da arte moderna, nota o crítico, e os critérios para
apreciação de obras de arte não são mais os mesmos. “Estamos agora em
outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural.”[254] Esse ciclo,
a “arte pós-moderna”, seria radicalmente diferente do anterior e se
caracterizaria como “antiarte”. Nela, a produção contemporânea brasileira
tomaria o papel de precursora:

A esse novo ciclo de vocação antiarte chamaria de “arte pós-moderna”


(De passagem, digamos aqui que desta vez o Brasil participa dele não
como modesto seguidor, mas como precursor. Os jovens do antigo
concretismo e sobretudo do neoconcretismo, com Lygia Clark à frente,
sob muitos aspectos anteciparam-se ao movimento do op e mesmo do
pop).[255]

Em tal “arte na situação” ou, na expressão que Pedrosa toma emprestada de


Oiticica, “arte ambiental”, as “estruturas perceptivas e situacionais” tomam
a dianteira em relação aos “valores plásticos”. Ela derrubaria todas as
“modalidades de expressão: pintura-quadro, escultura etc.” em prol da
proposta de uma “manifestação total, íntegra, do artista nas suas criações”.
Em vez de confirmar um solipsismo do eu, tal “manifestação íntegra” do
artista é busca do outro – o outro como necessidade absoluta para que a
obra se dê. Como frisa Herkenhoff, o neoconcretismo irá gerar sofisticados
“diagramas de alteridade”. O crítico e curador ressalta que a proposta
artística de obras “abertas”, que necessitam do outro para se completar,
consiste em um “ato político” radical, sobretudo no contexto da ditadura
militar a partir de 1964. Por isso Herkenhoff discorda fortemente da ideia
corrente segundo a qual o neoconcretismo não seria politizado.[256]
De fato, a “arte pós-moderna” é antiarte no sentido em que a própria arte
dissolve seus contornos, suas delimitações, para se disseminar na cultura,
em uma operação que deve ser considerada como intrinsecamente
“política”, se considerarmos o termo em seu sentido alargado como o que se
dá na pólis, espaço comum no qual se inscreve a relação com o outro.
A presença do artista implica uma torção, uma alteração de sua posição
em prol do surgimento de um espaço do outro e para o outro. Nesse
sentido, é significativo o uso que Lygia e Hélio fazem da fita de Moebius,
objeto topológico que apresenta uma superfície unilateral. Essa fita
apresenta uma torção da superfície que anula a distinção fora / dentro,
contradizendo nossos hábitos espaciais e nos convidando a realizar com ela
uma experiência – um trajeto existencial, no Caminhando de Lygia Clark,
em 1963, ou um encontro complexo com o outro, como no Diálogo de
mãos, de 1966, única obra realizada pelos dois artistas em conjunto.É
curioso que Lacan também faça uso, como sabemos, da fita de Moebius em
seu Seminário, tomando-a como “o suporte estrutural do sujeito como
divisível”.[257] A ação, a participação, longe de serem meras modalidades de
recepção da obra, são frutos da complexa operação que podemos chamar de
subversão do sujeito: a ativação de sua divisão em relação a si mesmo, que
corresponde a uma abertura ao outro. Ressoando essa autêntica experiência
de alteridade, Adorno afirma que as obras de arte, “no instante da
expressão”, podem tornar-se “aparições no sentido mais rico do termo,
aparições de um outro”.[258]
À maneira da fita de Moebius, a arte é antiarte, ambiental, porque está
voltada para fora de si mesma. Como afirma Pedrosa, na arte de Oiticica
“nada é isolado. Não há uma obra que se aprecie em si mesma, como um
quadro”.[259]

Oiticica explicita que a arte como manifestação ambiental


O PARANGOLÉ E O COLETIVO

inclui outra manifestação, como sua “necessidade ética”: a “social”. O


artista as unifica em uma “posição ética” que seria também política, porém
destacada de qualquer proposta ideológica ou partidária – ela seria
anárquica e radicalmente livre. Mas ele não deixa de alinhá-la à posição de
“todas as autênticas esquerdas no nosso mundo”.[260]
Sua aproximação do samba e da favela da Mangueira deve ser vista nessa
perspectiva de alargamento do terreno da arte para uma ação ética no campo
mais ampliado da cultura. A noção-chave a respeito desse alargamento é o
Parangolé. Esse termo nomeia estandartes e capas feitas a partir de 1964 e
das quais boa parte apresenta, justamente, uma torção moebiana de tecidos
ou outros materiais. É fundamental que ele se apresente em continuidade
com o corpo, empunhado ou vestido, mas isso não basta: é necessário que
se dance. Mas tampouco basta vesti-lo e dançar: é necessário um outro que
olhe e assim participe dessa experiência.
Mais fundamentalmente, o Parangolé vem, de saída, do outro. Trata-se,
como vimos, de um termo literalmente achado na rua, em uma precária
construção feita por um mendigo em um terreno baldio, com estacas entre
as quais erguiam-se paredes de barbante. Em um pedaço de aniagem,
Oiticica viu uma inscrição na qual constava a palavra “parangolé”, termo
que na gíria significa algo como “agitação súbita, animação, alegria e
situações inesperadas entre pessoas”.[261] O Parangolé é de ninguém e de
todos e por isso o artista faz questão de que se manifestem, na exposição
“Nova Objetividade”, em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, as “experiências coletivas anônimas” que teriam determinado sua
formulação.[262]
Muito mais do que indicar uma série de trabalhos com características
próprias, o Parangolé é uma definição propositiva e aberta, como a Merz de
Schwitters. O termo nomeia algo fundamental à arte, e que no entanto diz
respeito a um campo muito mais amplo que o da produção propriamente
artística. Parangolé é algo que se passa entre as pessoas, um acontecimento
imprevisível, coletivo e anônimo, que se dá entre, enlaçando o outro e
refazendo, nesse compartilhamento, a cultura.
Dar voz e lugar a isso, refazê-lo na arte, é uma ação profundamente ética,
transformadora e formadora da cultura. Porque a cultura para Hélio não é
um dado que herdamos da história, mas uma “raiz aberta”, a se refazer e
inventar a cada momento em que a partilha de algo coletivo e anônimo nos
oferece um ethos, morada efêmera e que só se delimita pela presença de
outros que dela se avizinham.

Em carta de 1974, Clark conta a Hélio várias fantasias


LYGIA CLARK E O SINGULAR

tratadas em sua análise com Pierre Fédida em Paris, referindo-se a elas


como “descobertas”, e afirma: “Um dia terei que escrever um livro onde
essa análise unifique arte, criação e vida numa só experiência”.[263] Ela nota
que seu trabalho se “encaixa” totalmente em sua análise, e isso a espanta. É,
sem dúvida, uma radical concepção da arte como experiência fundamental
vivida por cada um, de modo singular, que guiará sua decisão de receber
pessoas individualmente para tratamento com seus “objetos relacionais”.
Aproximando seu trabalho do processo por ela experienciado em análise,
Lygia consegue, de fato, unificar arte, criação e vida. E assim alarga o
campo artístico de modo a romper com as fronteiras tradicionais do campo
da arte (o museu, o ateliê) para atingir o mais fundamental na relação com o
outro.
Ao conhecer Tunga, Lygia teria dito que não fazia arte. Segundo o artista,
tal rompimento teria se dado porque “no espaço da arte já não cabia seu
pensamento”.[264] Mas não se deve pensar que sua reflexão caberia bem e se
resolveria no espaço clínico psicanalítico. A artista se apropria de elementos
da teoria psicanalítica para propor uma prática concebida por ela mesma e
em total coerência com sua trajetória artística. O encaminhamento de Lygia
para o trabalho “terapêutico” que ela chama Estruturação do Self
(empregando a expressão do psicanalista inglês Donald Winnicott), a partir
de 1976 até perto de sua morte, em 1988, é um alargamento das fronteiras
da arte, em busca do outro e de uma apreensão extrema do acontecimento
entre sujeitos de que se trata na arte – como na vida.
Esse trabalho se fazia com múltiplos objetos relacionais, que podiam ser
conchas a se colocar nas orelhas ou nos olhos, almofadas, leves ou pesadas,
recheadas de materiais diversos como isopor, areia, seixos, ou ainda objetos
mais elaborados, proposições realizadas anteriormente pela artista, como a
Máscara abismo de 1968, entre outras. Sua concepção aparenta-se à dos
“objetos transicionais” de Winnicott: objetos em posição de trânsito entre
sujeitos, objetos que substituem alguém (como, por exemplo, o
cobertorzinho pode estar no lugar da mãe e ser absolutamente necessário
para que a criança se tranquilize e adormeça). Com os objetos relacionais,
Lygia põe o objeto em segundo plano, para acentuar a relação com o outro
(não por acaso, Oiticica também gostava de chamar seus objetos – os
“bólides” – de transobjetos). O objeto deixa de ter nele mesmo um fim e se
transforma, assim, em um apelo, um convite ao outro e à construção de sua
fala, de suas fantasias. É importante notar que eventuais objetos trazidos
pelos seus “clientes” eram também incorporados ao trabalho.
Em nota sobre seu trabalho “terapêutico”, Lygia afirma: “Dissolvo-me no
coletivo”.[265] Se no Caminhando teria se despojado com nunca, diz ela, de
sua individualidade, já a respeito de seu curso na Sorbonne, intitulado “O
corpo e o espaço”, ela afirma, em 1974: “Vou me elaborando através da
elaboração do outro”.[266] Se aí acontece algo como uma “estruturação do
eu”, é graças à convocação de algo comum a duas pessoas, algo anônimo
que se reativa graças às proposições da artista. Como ela dizia, de maneira
antecipadora, já em 1963,

a obra de arte toma novamente o sentido do anonimato. Todos terão a


possibilidade de criar seu vir-a-ser. Com isso, ela perde realmente o
conceito antigo de obra de arte, pois os museus serão laboratórios para
que se encontrem novos “caminhando” para o indivíduo, tendendo a se
fundir mesmo com o consultório do analista.[267]

Na busca absoluta, radical, do íntimo em Lygia Clark, temos também um


alargamento “pós-moderno”: a arte rompe seus limites para se propor como
aposta ético-estética fora do terreno da arte. Procura a morada do homem –
sem centro, anônima porém coletiva – e dá lugar, em acontecimentos
pontuais e efêmeros, a um sujeito sempre em transformação, com o outro.
A AURA E O SUJEITO
EM WALTERCIO CALDAS
E CILDO MEIRELES

Conta-se à boca pequena um dito de Schuler, segundo o qual todo


conhecimento deve conter um grão de contrassenso, assim como os tapetes
ou frisas ornamentais da Antiguidade sempre apresentavam em algum
lugar uma ligeira irregularidade em seu desenho.
Dito de outro modo, o decisivo não é a progressão de conhecimento em
conhecimento, mas a rachadura no interior de cada um deles.
Imperceptível marca de autenticidade, que a distingue de toda mercadoria
feita em série, a partir de um modelo.
WALTER BENJAMIN
Em Los Velázquez (1993), reproduzido posteriormente no Livro Velázquez
(1996), Waltercio Caldas “apaga” as personagens do grande clássico da
história da arte As meninas (1656), apresentando, em pequeno quadro a
óleo, apenas a sala do palácio que abriga a cena da corte. O quadro não tem,
é claro, a intenção de fazer-se passar pelo original – bem maior do que ele,
inclusive –, mas se afirma como reprodução assumida ou, antes, mero
lembrete daquela cena que se reconhece de saída, apesar da estranheza de
sua “manipulação”. Ele coloca a questão do que é um quadro, um grande
quadro, uma obra-prima como As meninas. Se não consiste nas personagens
e no arranjo cênico entre elas, residirá ele em uma certa composição de luz?
Uma arquitetura?
Para completar, uma placa de vidro semiopaca interpõe-se entre o
pequeno quadro e nosso olhar, tornando-o embaçado, um tanto desfocado.
Como se tivéssemos fechado um pouco os olhos, para ver melhor (ou pior)
– ou seja, para ver nele o que ali não está. Curiosamente, algo dessa obra-
prima então se apresenta, se transmite, apesar de toda a limitação em sua
reprodução. Ou melhor, algo traz de volta a aura do grande quadro do pintor
espanhol, graças, justamente, ao fato de sua reprodução assumir-se como
limitada e manipulada, além de um pouco borrada.
A aura está fora do quadro.

A aura não é simplesmente, para Walter Benjamin, a tradição, a


AURA E O INSTANTE

autenticidade assinalando em uma obra seu pertencimento histórico. Ela


marca “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que
ela se encontra”.[268] Esse aqui e agora não é mais, obviamente, aquele do
ritual, cujos resquícios ainda dariam à obra um caráter mágico no qual o
valor de existência conta mais do que de exposição. Ele tampouco é aquele
da exposição de As meninas no Museu do Prado, no lugar onde ela se
encontra, em sala adequada à sua grandeza. Esse “aqui e agora” da aura
designa um momento preciso e, no entanto, imprevisível: o do olhar. Ele se
demarca da contemplação prevista institucionalmente, indicando que a
experiência estética não se restringe aos lugares que a cultura lhe assinala.
No campo do olhar, a encenação se assume em uma autocrítica: não se trata
mais de quadro, mas de ganhar o espaço, de tornar-se arquitetura (a arte por
excelência, a única que sempre existiu, como nota o filósofo).
O olhar dissemina-se no mundo, enquanto a contemplação estava
confinada a lugares: a igreja, o museu. E no mundo, o olhar é móvel,
incerto.
As formulações benjaminianas em torno da aura, como afirma o início do
célebre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, “põem de
lado numerosos conceitos tradicionais – como criatividade e gênio, validade
eterna e estilo, forma e conteúdo”, que poderiam, segundo ele, ser utilizados
com fins “fascistas”. Os conceitos concebidos pelo filósofo, em
contraponto, “podem ser utilizados para a formulação de exigências
revolucionárias na política artística”, porque são dialéticos.[269] Da arte, pode-
se então pretender retirar uma reflexão que vá além dela e além do
princípio, reacionário segundo Benjamin, da “arte pela arte”, para atingir
elaborações sobre o homem e a sociedade.
Nesse sentido ampliado, o estético é sempre político, e é a aura – em sua
crítica, ou na medida em que ela é pensada já em crise, só é identificada
durante seu ocaso – que permite tal articulação fundamental. Mas devemos
ir mais devagar, e voltar à própria definição desse conceito por Benjamin.

Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de


elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa
tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho,
que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas
montanhas, desse galho.[270]

A reprodutibilidade, expandida e bem-acabada graças à invenção da


fotografia e do cinema, põe em declínio a aura como “existência única” e
garantia de autenticidade da obra de arte. Isso é fato e constitui a leitura
mais disseminada a respeito da aura, sublinhando um aspecto fundamental a
toda produção artística do século XX até os dias atuais. Mas isso não é tudo.
A sofisticada dialética benjaminiana aponta como fundamental à aura,
como vemos no trecho acima, um caráter de “aparição”, implicando uma
temporalidade própria: à aparição deve-se suceder um desaparecimento. Ou
talvez haja um desaparecimento anterior à aparição, e esta seja sempre,
mais rigorosamente falando, uma reaparição (apesar de única, a cada vez).
A cadeia de montanhas que se observa em repouso, numa tarde de verão, já
estava, sem dúvida, à nossa vista. Mas é de súbito que ela aparece, em sua
qualidade aurática, ao nosso olhar. O instante em que isso se dá desdobra-se
em um passado. Por mais perto que esteja, a coisa olhada faz-se distante,
porque é perdida no momento mesmo de sua aparição.
É essa a sutil dialética convocada por Waltercio: ele opera sobre uma
obra de “existência única”, aurática no sentido da tradição, para fazer dela
uma ausência. A reprodução serve, mais do que ao propósito de “re-
apresentar” a obra, para que ela seja evocada como perda. Reproduzir é
fazer perder e, no entanto, no instante dessa subtração – ou um instante
antes dela –, dá-se uma aparição única. Só em perda algo pode apresentar-se
ao olhar; apenas à distância uma mera visão pode tornar-se aparição única.
Essa é a temporalidade do olhar: só retroativamente, após o
desaparecimento, uma vez estabelecida uma certa distância, acontece o
instante aurático.
A referência a uma cadeia de montanhas é, a esse respeito, eloquente: em
se tratando de arte, de representação, essa aura que respiraríamos na
paisagem está, desde o início, perdida. Mas algo na representação deve ser
capaz de “projetar sua sombra sobre nós”, como o galho de Benjamin. A
aura nomeia esse momento em que estamos na representação, como em
repouso em uma paisagem. Habitar a representação é torná-la uma
apresentação, ou seja, é vivê-la como uma aparição.
O jogo perto / longe da dialética benjaminiana implica, de fato, uma
localização do sujeito. Ele talvez encontre um modelo no jogo do fort / da,
a célebre brincadeira do netinho de Freud exposta em 1920 no texto “Para
além do princípio de prazer”. O menino de dezoito meses jogava seu
carretel para dentro do cortinado onde ele desaparecia (acompanhado da
vocalização “oooo”, entendida por seus familiares como fort, algo como
“longe”) e, então puxava o barbante para si, de modo a saldá-lo com um
sonoro “aaaa”: da, aí está. Essa alternância é o marco zero da aquisição da
linguagem pela criança e indica, segundo o psicanalista, uma grande
realização cultural efetuada pelo menino: ele substituiria a mãe pelo carretel
e, assim, se separaria dela ao mesmo tempo que criaria, a partir desse
primeiro objeto, um mundo plural de objetos referidos a ele mesmo – perto
ou longe, perdidos ou achados pelo olhar. A aura parece nomear o ponto de
congelamento, cristalização desse movimento, dessa alternância, pondo à
distância o objeto, por mais perto que ele esteja. Nesse instante, mais
importante do que o carretel – suas propriedades, suas características – é o
fio que o liga à mão do menino. Fora de cena, ele não é parte da imagem,
do objeto, mas não deixa de ser a condição fundamental para que algo se
ofereça ao olhar.

Talvez a aura possa ser aproximada da efêmera beleza de que


CHOQUE E REPRODUÇÃO

fala Freud em seu texto “A transitoriedade”, de 1915. Para o psicanalista, é


justamente o caráter passageiro do belo que aumenta seu valor. “O valor da
transitoriedade”, diz ele, “é o valor de escassez no tempo.” E prossegue: “A
limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”.[271]
Fruir a beleza de uma paisagem, assim como das mais elevadas obras da
civilização, implica, portanto, um luto antecipado por elas. Só é belo o que
está fadado à destruição, logo posto à distância de nós, mesmo quando se
encontra muito próximo.
Se a técnica de reprodução retira a obra do domínio da tradição, aquele
da “unidade” e da “durabilidade” (para usar os termos de Benjamin),
lançando-a no terreno mais incerto da “transitoriedade” e da
“repetibilidade”, seu caráter de aparição súbita já o indicava, de modo
fundamental. A aura coincide, nesse sentido, com seu declínio. Esse não
indica exclusivamente que a obra perdeu sua ligação com a tradição e a
história e, com isso, abriram-se as portas para sua utilização política como
meio de controle das massas (o que o cinema viria realizar como nenhum
outro meio, graças a seu caráter intrinsecamente coletivo e a seu alcance em
escala industrial). Mais sutil, porém poderosamente, a reprodutibilidade põe
em crise as noções de gênio, criação, estilo etc., de modo a reconfigurar o
próprio campo da produção artística, pois marca uma transformação radical
do campo da mímesis. À primeira vista, a reprodução reforça a
representação mimética, à maneira como a fotografia e o cinema refletiriam
o real. Mas “retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a
característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o
semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue
captá-lo até no fenômeno único”.[272] O “original” não é mais que um
“semelhante”, e ali onde tudo é semelhante, não pode mais se tratar de
produzir semelhança. Quando não há mais distância entre o referente,
autêntico, e sua reprodução, é a própria lógica da cópia que se revira,
revelando a quebra do laço entre signo e coisa, e marcando o colapso de
qualquer garantia no campo da representação. A reprodução toma o lugar
da mímesis e configura um território de dessemelhança e de distância entre
signo e coisa, campo aberto para operações cruzadas e horizontais, em vez
da rígida verticalidade hierárquica entre o original e a cópia, o referente e
sua representação.
Por isso “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se
orientar em função da reprodutibilidade”, ou seja, “quanto menos colocar
em seu centro a obra original”.[273] A reprodutibilidade não diz respeito
apenas à possibilidade de copiar uma obra, mas desestabiliza a própria ideia
de um original a se representar. De fato, a reprodutibilidade técnica é uma
operação que ganha um alcance político, nesse sentido: ela desdobra-se em
gesto transformador da realidade, ao questionar o fundamento mimético da
arte. Deixando definitivamente para trás o uso ritual ou mágico dos seus
primórdios, ela alcança outra esfera fundamental. Como diz Benjamin, “em
vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política”.
[274]

A crítica da aura, e sua transformação em aparição para um olhar


implicado num campo incerto de representação, já era perceptível nos
dadaístas que, mesmo sem fazer uso de técnicas de reprodução,
“aniquilavam impiedosamente a aura de suas criações”,[275] ao fazerem seus
poemas fonéticos ou “saladas de palavras” ou ao misturarem em seus
quadros ou colagens elementos díspares, usando materiais pouco nobres
como botões ou tíquetes de trem. “De espetáculo atraente para o olhar e
sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro”, diz Benjamin sobre
tais manifestações. A obra não se coaduna mais à lógica da contemplação,
ela implica aquilo que o filósofo, profundamente influenciado pela teoria
freudiana do trauma, chama de “choque”. O choque pode ser “moral”, nas
agressões dos dadaístas, ou “físico”, perceptivo, como nas bruscas
mudanças de ponto de vista exigidas pelo cinema; o ponto fundamental é
que ele corresponde às metamorfoses pelas quais passa o homem
contemporâneo. Ou seja, o choque nomeia a falta de lugar estável para o
sujeito, sua condição errante. Em vez de contemplar em repouso a cadeia de
montanhas no horizonte, o homem moderno põe-se a praticar – nos parques
de diversão, por exemplo – o que Benjamin chama “a arte de ser
excêntrico”.[276]
A aparição súbita que define a aura segue a lógica do choque e é,
portanto, retroativa, só-depois, submetida à temporalidade do trauma
segundo Freud: apenas um instante mais tarde ela pode ter acontecido
(Benjamin fala, a respeito da fotografia, de um “choque póstumo”). Essa
operação temporal revira-se ainda, contudo, para visar o futuro. Também
sobre a fotografia, Benjamin já falava de uma centelha de acaso, de “aqui e
agora”, com a qual “a realidade chamuscou a imagem”. O espectador o
procura, esse “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em
minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos
descobri-lo, olhando para trás”.[277] O “aqui e agora” continua pulsando, há
nele uma promessa de futuro localizada no passado. Algo virá, numa “aura”
como aquela que o vocabulário médico conjuga à epilepsia: discretos sinais
anunciando a crise declarada. E é esse o fulcro do “inconsciente ótico”: algo
já aconteceu, deu-se uma aparição e, no entanto, ela vai se reproduzir, deve
se repetir e por isso nos mantém diante desse objeto, dessa imagem, em
uma suspensão tão angustiosa quanto gozosa.

Em outro ensaio deste livro já falei de Através, uma


DESEJO E DISSOLUÇÃO DA AURA

instalação de Cildo Meireles que tem quinze metros de lado e, em seu


centro, uma grande bola de papel celofane de cerca de três metros de
diâmetro. O artista localiza a origem da concepção desse trabalho no fato de
um dia, em seu ateliê, ter chamado sua atenção um ruído vindo da cesta de
lixo. Era um papel de presente, uma folha de celofane amassada que ali
ainda se expandia. A bola ao centro da instalação não se expande, mas
irradia luz própria, fazendo, tal como a folha descartada, com que se levante
o olhar, ou se movimente o sujeito. Um barulho semelhante ao de sua
expansão é assumido por nós, espectadores, convidados a caminhar sobre
dezesseis toneladas de vidro quebrado que vão se partindo e reacomodando
sob o peso de nossas passadas. Em volta da esfera, andamos por entre
planos retangulares de superfícies diversas: tela de náilon, grade, cerca de
madeira, aquário de vidro onde nadam peixinhos transparentes, em uma
espécie de labirinto cujas paredes o olhar pode atravessar quase totalmente.
Os anteparos translúcidos ou vazados fazem da bola de luz algo distante,
por mais perto que ela esteja. Através desses materiais diversos, a bola pode
de repente aparecer, graças a essa modulação entre distância e presença que
agencia nosso olhar sobre a esfera de celofane amassado, matizando sua
luminosidade e, ao mesmo tempo, construindo um espaço ordenado para
nossa movimentação. Ordenado e um tanto violento: as grades nos detêm,
algumas barreiras nos limitam, ainda que translúcidas ou parciais. É essa a
violência do deslocamento, da falta de lugar fixo e garantido para o homem
– sob seus pés o solo não é firme, mas instável e quase perigoso. Sujeito a
choques, condenado a flâner (o flâneur, para Benjamin, é o homem que saiu
do enquadramento), esse passante não deixa pistas, não imprime pegadas
nesse chão móvel. Cada passada dissemina-se em mil pequenos choques
entre os mínimos pedaços de vidro, na ameaça talvez de que toda a cena se
rompa em pedaços.
A “sensação de modernidade” conquista-se ao preço da “dissolução da
aura através da experiência do choque”, diz Benjamin.[278] Sua dissolução
talvez não seja, porém, um aniquilamento, mas uma disseminação. A aura
não está mais circunscrita à posição tradicional do espectador diante da
obra, ela dissemina-se no mundo e derruba as fronteiras da arte. Aliás, ela
denomina algo que de saída não era específico à arte, como mostra
Benjamin ao vinculá-la ao amor, em rápida menção a versos de Goethe que
seriam “a descrição clássica do amor, saturado da experiência da aura”:

Nenhuma distância te faz difícil


Vir voando e apaixonada [279]

De fato, a aura é “manifestação irrepetível de uma distância”, na medida em


que sua complexa estrutura de proximidade e distância (como já vimos, ela
é “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”) é
aquela do desejo. Um verso de Baudelaire, citado logo a seguir por
Benjamin, traz à luz essa posição do objeto de desejo perdido para sempre,
e sempre a reencontrar: “E te amo tanto mais, bela, que tu de mim foges”.[280]
Em sonho, Benjamin estava na rive gauche, diante da catedral de Notre-
Dame. Mas não havia Notre-Dame, e ele fica transtornado de nostalgia:

A extraordinária nostalgia que, no seio do objeto desejado, me


assaltara, não era aquela que, de longe, tende à imagem. Era a bem-
aventurada nostalgia que já franqueou o limiar da imagem e da posse,
e só tem consciência da força do nome do qual vive a coisa amada, no
qual ela se transforma, envelhece, rejuvenesce e, ela mesma sem
imagem, é o refúgio de toda imagem.[281]

Há uma nostalgia, portanto, que “tende à imagem”, “de longe”: o desejo


encheria de aura, então, o objeto, tornando-o uma verdadeira imagem (ou
seja, um objeto para o olhar). Mas algo acontece e leva a um “além” da
imagem. Uma vez que a potência significante ou literal toma a dianteira
sobre a “posse” que é a imagem, esta se transforma e dissemina,
“assaltando” o observador. Qualquer ilusão de habitar a cena é perdida
junto com o objeto desejado, provocando uma nostalgia que não é apenas
sofrimento, mas também bem-aventurança. Talvez nosso termo “saudade”
seja perfeito para denominar tal deleite da perda.

Como em Através, entre sujeito e obra de arte não há transparência


O OBJETO OLHA

e imediatez, mas alguma distância, anteparos, véus, grades diversas e


superfícies translúcidas. Imagens, reproduções. Não se trata, no campo do
olhar, de uma simples equação entre o olho e o objeto. Trata-se de uma cena
montada no espaço, em três dimensões, na qual o sujeito é convocado a se
inserir de modo a se tornar também objeto do olhar: “Quem é olhado ou se
crê olhado levanta os olhos. Experimentar a aura de um fenômeno significa
dotá-lo da capacidade de fazer com que se levante o olhar”, afirma
Benjamin. Algo chama o sujeito, numa caracterização do campo do olhar
que se revela precursora das análises de Maurice Merleau-Ponty e Jacques
Lacan. Benjamin prossegue citando Proust: “Certos amantes do mistério
querem acreditar que nos objetos fica algo dos olhares que os roçam”.[282] A
célebre experiência da madeleine, a sublime memória involuntária do
escritor, teria a ver com a aura: capacidade de o objeto reacender
sensivelmente o desejo no sujeito.
Para Benjamin, Paul Valéry fala da percepção no sonho como
“caracterizada pela aura”. “Quando digo: vejo esta coisa, não interponho
uma equação entre mim mesmo e a coisa. […] No sonho, em troca, subsiste
uma equação. As coisas que vejo me veem como eu as vejo”.[283]
O olhar revira-se entre sujeito e objeto, e é então este último que parece
olhar o sujeito, retirando-o do lugar de senhor da representação e brincando
com sua ex-centricidade. Mas tal jogo de olhares não é recíproco como quer
Valéry (ou talvez só no sonho ele possa apresentar uma perfeita
reversibilidade). Assim como dizem do amor, o olhar costuma ser cego.
Quando sou olhado, deixo de ver. Enquanto sou visto por alguém que
também vejo, não estou no campo do olhar. Sou olhado, tomado pelo olhar
capaz de dotar algo de aura, quando sou observado como se através de um
buraco de fechadura, por um olho fora de cena (trata-se então de um
olharem off, como se diz de uma voz em off). “Poder-se-ia dizer”, escreve
Benjamin, “que é tanto mais subjugante um olhar quanto mais profunda é a
ausência de quem olha.” [284]
Quem olha se ausenta, não é mais um sujeito em pé de igualdade com
aquele que é olhado. Mostrando como esse jogo do olhar se dá no campo da
linguagem e, portanto, comanda também a literatura, o filósofo afirma:
“Mesmo as palavras podem ter sua aura”. Como disse Karl Krauss, “quanto
mais perto se olha uma palavra, mais longe a palavra olha”.[285] A palavra nos
olha, subjugando-nos em sua poesia; ela estará, portanto, distante, quanto
mais perto estiver. E a palavra “tem” ou “pode ter” aura, porque a aura não
é atributo de qualquer imagem ou palavra, em si mesma, mas se define
como uma certa relação entre objeto (imagem, palavra…) e sujeito, na qual
o objeto é dotado da capacidade de olhar o sujeito, de chamá-lo, de fazer
com que se levante seu olhar.
Benjamin cita ainda os versos de Baudelaire, “O homem aí passa através
florestas de símbolos / Que o observam com olhares familiares”. Em
seguida, o filósofo comenta: “Quanto mais se dá conta Baudelaire deste
fato, mais claramente se percebe a decadência da aura em sua poesia”.[286] Os
símbolos formam florestas pelas quais o homem apenas passa, flâneur,
incapaz de dominá-las e domesticá-las. Não é ele quem vê e emprega
símbolos; ao contrário, ele é por eles observado. O familiar torna-se
inquietante, seguindo a oscilação que define o estranho (Unheimliche) para
Freud, no conhecido texto de 1919. Essa noção nomeia uma reviravolta
entre familiaridade e estranheza que define o campo do olhar. O estranho
diz respeito a “tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à
luz”, na definição que o psicanalista vai buscar em Schelling.[287] O caráter
de aparecimento da aura não deixa de se conjugar a essa pulsação entre o
que se vê e o que se oculta, ressaltando a noção também benjaminiana de
“inconsciente ótico”.
Entre as coisas nos vendo como nós as vemos, no sonho de Valéry, e a
inquietante floresta de Baudelaire há uma diferença sutil, porém importante:
na segunda, a aura só se apresenta ao decair. Uma palavra pode então
desmoronar sobre si mesma, como aconteceria na poesia de Baudelaire,
segundo Benjamin. Em vez de roçar nossa pele como a sombra do galho na
cena campestre da aura, a palavra cairia sobre nossas cabeças como o céu
dos gauleses, derrubando-nos, sem dúvida. Ou apenas desestabilizando,
com esse choque, a posição do sujeito, e ao mesmo tempo disseminando a
cena de modo a – como em Através – fazer dela inúmeros planos entre os
quais ele deve se mover. Tudo é semelhança, mas não há “original” a que se
assemelhar. O centro da representação não é mais que lixo, mas pode-se,
não sem ironia, dotá-lo de alguma luz, para fazê-lo trazer à tona outra coisa
que não ele mesmo.
O desencontro entre homem e símbolo, entre sujeito e signo, reflete-se
em nossa relação com os aparatos, a técnica e a tecnologia. “Uma das
funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o
homem e o aparelho.”[288] Esse equilíbrio parece perigoso, ele pode ser o das
massas, da propaganda, da ideologia disseminada graças à distração. Mas
Benjamin não deixa de apontar outra possibilidade: “Fazer do gigantesco
aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa
a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido”.[289]
Fazer da técnica um objeto humano. O aparelho técnico do nosso tempo
não seria mais do que algo intermediário entre eu e o outro, não para que
formemos, a partir daí, uma massa coesa e compacta, sempre em torno de
um líder, como na célebre descrição feita por Freud em 1921 no ensaio
“Psicologia das massas e análise do eu”. Mas um meio no qual se pode
introduzir desvios, brechas onde o desejo possa fugidiamente aparecer, e o
sujeito se apresente numa aura incerta e bruxuleante, disseminado por entre
imagens, reproduções sem fim. Através do mundo.
Na arte, o homem não se apresenta completamente, maciçamente, mas,
na lição fundamental deixada por Freud, ele mal-está. De banda, meio
atravessado, é aí o lugar privilegiado de sua súbita aparição – nessa morada
da qual ele não é o senhor. É na cultura que surge, efêmero e disseminado, o
que há de mais íntimo e singular – um pouco como Benjamin faz dizer um
“poeta contemporâneo”: “Para cada homem existe uma imagem que faz o
mundo inteiro desaparecer”.[290] A imagem não está no mundo como a
paisagem diante de nós, mas dele se exclui, se destaca, no momento agudo
em que o sujeito nela se dissemina. Na decadência do mundo, a poesia
então triunfa, pois ela divisa “espaços vazios” e neles se insere (como teria
feito Baudelaire, ainda e sempre Baudelaire, segundo Benjamin).
No desconforto, no deslocamento, pulsa e se dissemina uma centelha, no
lugar da aura perene e bem estabelecida. Nossa tarefa histórica é com ela
acender a técnica, refazendo espaços vazios e neles inserindo poesia. Mas já
não seria esta a tarefa de um Velázquez, ou, na verdade, de todos os
artistas?
Baudelaire, visionário, concebia como tarefa artística em geral “que toda
modernidade deva ter valor para se tornar futuramente antiguidade”.[291]
PARTE QUATRO

TRANSMISSÕES
ERNESTO NETO:
A PELE E O ESPAÇO

A geometria nasce do reflexo do corpo


projetado na minha mente.
LYGIA CLARK
A pele é fora. Ela me delimita, traçando bordas e marcando fendas,
passagens para o mundo.
Espera-se que eu fique “dentro” de minha própria pele, encarnando uma
unidade localizável em um dado local. Mas algo pode vir me revirar no
espaço, tirando-me subitamente do lugar e apresentando a pele fora de mim,
im-própria – e no entanto tão profundamente íntima. Os objetos e
ambientes de Ernesto Neto convidam a essa reviravolta poética – essa
“cambalhota no cosmos” que é, para Mário Pedrosa, o destino do homem.[292]
Fora, encontro-me estranhada e ganho mobilidade. Ou melhor: devo
redesenhar o próprio espaço, suas linhas e volumes, sua espessura, sua fina
matéria. Pele e espaço brincam – como as crianças – com os limites, as
margens, atravessando fronteiras e traçando curvas, pontuadas por frágeis
ou firmes costuras. De repente, pende um volume, numa parábola abrupta,
porém gentil. Em delicada tensão, tudo está, na verdade, prestes a cair. Diz:

A gente está sempre caindo, o mundo está sempre caindo. O giro que o
planeta dá em torno do Sol é uma queda constante, só que ao mesmo
tempo que há queda, a velocidade mantém você nessa órbita. A gente
está sempre caindo no chão, caindo na cama. O nosso corpo vai
caindo, né? [293]

Homem cadente: ele não está em si, mas no espaço – não tanto em ilimitada
expansão quanto em tensão permanente. No espaço, ele não tem lugar fixo,
esse herdeiro decaído das utopias nas quais floresceu o século XX.
Fora encontra-se seu íntimo.

Malevich dizia que o crânio do homem é também cosmos. Neto diria que a
pele do homem é talvez o universo – ou melhor, universos múltiplos e
cheios de dobras, de torções, improváveis paisagens que não conseguimos
sequer imaginar, pois obrigam corpo e pensamento a uma louca
cambalhota. Isso que a matemática concebe com números e fórmulas, Neto
concretiza com lycra e sutileza.
A ação da gravidade traçaria em suas instalações as únicas retas ali
existentes. A natureza, lembra o artista, não apresenta reta perfeita, a não
ser na linha virtual da queda do corpo no espaço. As gotas esguias formadas
por algum peso – especiarias, plástico, isopor, lantejoulas – encarnam no
tecido fino e flexível a queda, essa fundamental condição humana. Ela é
revelada, porém contida, ou melhor: suspensa. Para de repente se
apresentar, lúdica, na queda de um corpo (o meu, talvez) sobre um volume
macio.
Não há reta – aquela resultante da ação da força da gravidade está
balanceada, modulada, e pode apenas ser intuída das linhas curvas formadas
nas paredes elásticas de seus pendentes em forma de gota alongada. O cubo
branco da tradicional sala de exposição transforma-se, sutil mas
poderosamente, graças a essa arquitetura mole. Não se trata aí de
coordenadas, de paralelas, mas de um espaço talvez hiperbólico, espaço
curvo. Louco e lírico espaço.
O espaço que não obedece à geometria euclidiana, esse impensável da
matemática e da física, fascina os artistas desde o início do século XX. A
quebra do protocolo de representação da perspectiva artificial empreendida
por Cézanne e pelos cubistas tira o homem do lugar central que ocupava
desde o Renascimento. Era essa sua maior ilusão. Rompida, ela cede lugar a
uma mescla da arte com o mundo, seja em uma intenção iconoclasta, seja
em uma utopia revolucionária (ou em ambas).
E onde está o homem, nos novos “sistemas de representação” (para falar
como Malevich) postos em ação na arte? Ele quer espaço. “Espaço não
existe apenas para o olho”, escreve El Lissitzky em 1923, “ele não é um
quadro; se quer viver nele.” [294] Não se trata, porém, de nele viver como em
um cubículo feito na medida exata do homem. Não se trata de tentar
recuperar sua velha casa. No suprematismo, trata-se de abri-la ao infinito.
Trata-se, é certo, de conceber um espaço sem centro, espaço excêntrico no
qual o homem ganha em mobilidade o que perde em segurança. “O espaço
existe para o homem”, sublinha El Lissitzky, “o homem não existe para o
espaço.”[295]
(Olho para a janela e me surpreende uma forma suspensa, curva
recortada no céu azul de inverno, não muito acima da corcova de um morro
carioca. Bem próximo – mas talvez por ilusão de ótica –, parado no ar,
enquanto pássaros pretos passam rápidos e indiferentes entre mim e ela,
parece estar uma pessoa num parapente, súbito surfista num céu sem ondas.
Me encanta a duradoura suspensão, a paralisia que contradiz, de pé, a lei da
gravidade. E contradiz o artista russo: o homem parece existir para o
espaço.)
Por um infeliz acaso ele teria os pés na Terra, na terra. Neto lhe restitui a
suspensão.

O trabalho de Ernesto Neto mostra que não é necessário usar objetos


topológicos ou complicadas fórmulas matemáticas para subverter nosso
lugar no mundo. Sua lida com o espaço toma como evidência a sofisticada
concepção de Heidegger: o espaço espaça. Ele é o que “recebe, abarca e
guarda”, mas também espaça desbravando, libertando, liberando um
“âmbito livre”, um “aberto”.[296] A escultura é uma confrontação com o
espaço. Em um enfrentamento transformador, ela exploraria a relação
indissociável entre homem e espaço: “O homem não faz o espaço; o espaço
também não é nenhum modo subjetivo da intuição; ele também não é nada
objetivo como um objeto. O espaço precisa, antes, do homem para espaçar
como espaço”.[297]
“Homem?”, pergunta o filósofo. E responde: “Espaço”.[298]
A geometria hipersensível de Neto segue e desenvolve a lição de Lygia
Clark com a “linha orgânica”: a linha não é contorno, não é delimitação
imposta pelo artista, ela deve surgir do delicado confronto entre duas cores,
dois campos de pintura. Ela sobressai da superfície, linha-escultura, linha-
espaço. A linha já é o sujeito.
Com seu famoso Caminhando (1963), Lygia usa a fita de Moebius, o
mais conhecido dos objetos topológicos, aquele que contraria nossos
hábitos espaciais em suas fundamentais delimitações entre dentro e fora,
direito e avesso. Não que lhe interessasse a topologia em si mesma. Trata-se
de nela caminhar, rasgando-a com a tesoura, com ritmo e método, em um
ato transformador do sujeito. Nessa ação, espaço e tempo se expandiriam e
fundiriam, até o momento – crucial, apesar de menos ressaltado pela artista
– em que a superfície da fita, delgada demais, em definitivo se romperia.
É talvez esse rompimento que Neto toma num lance rápido da mão, para
logo dispersá-lo, em gesto largo, no espaço. Ele não precisa de objetos para
demonstrar a topologia, ele prescinde da própria geometria para ir além
dela. Ele nem mesmo precisa da pangeometria de El Lissitzky; a
matemática e a física já não nos parecem tão promissoras. Hoje, o artista
recolhe e concretiza os precipitados daquele gesto subversivo de torção do
espaço e do homem. Basta-lhe a força gravitacional – que Einstein toma,
justamente, como consequência da estrutura geométrica do espaço-tempo.
À geo-metria, medida da Terra, ele responde com a desmedida do gesto.
Daí a enormidade de seu mais singelo objeto (uma bola de borracha, uma
esfera de plástico, por exemplo). Daí sua menor tenda – penso na Fluência
topológica em um campo estrutural para um ponto de alta densidade, yeah!
(1992) – construir uma catedral.
Esse espaço desmedido, modulado em suaves curvas, passagens e gretas,
nos oferece uma casa mole e que parece prestes a se distorcer, obedecendo à
lógica da topologia – essa espécie de delírio da geometria. Se topos é lugar,
em grego, a topologia não é a ciência da localização, mas o estudo do fato,
desnorteador, da falta de um lugar predeterminado para o sujeito. Poderia
ter ele ainda alguma casa? Talvez a arte seja sua casa, só ela, efêmera em
suas ações. Não o museu, em sua concretude arquitetônica e institucional,
mas, às vezes, o que se passa ali (e pode se passar em qualquer parte).
O espaço desmedido tem a ver com o vazio-pleno de Clark, mas deve ser
modulado por superfícies curvas de maneira a nos convidar a nele
deambular, a traçar uma trajetória, como no labirinto de Hélio Oiticica.
“Quero que as pessoas se percam dentro deste labirinto transparente, um
labirinto de tempo”, diz Neto.[299] O labirinto de Oiticica é, de saída, busca do
corpo-cor. Na cor se encontraria o sujeito, adentrando o penetrável e
fazendo dele, por menor que seja, um labirinto infinito graças ao gesto de
mover suas placas, graças à andança dentro dele. O espaço se faz com o
tempo, ambos se definem apenas por seu encontro nas trilhas do homem.
Não é necessário recorrer à geometria, as paredes são discretas e não temos
que encontrar o caminho certo, como nos labirintos antigos. Pois, no
espaço, estamos de saída em um labirinto sem centro e sem saída. Ou seja,
o labirinto é o mundo – e especialmente a favela, suspensa e precária
construção do homem labiríntico.
O espaço deve ser recortado por curvas, como nesses grandes tecidos
suspensos estendidos a meia altura da sala de exposição (penso na
exposição “From Sebastian to Olivia”, montada em Berlim, em 2007, mas
há muitos outros exemplos recentes). Eles impedem uma visão total da
altura do ambiente, contudo apresentam passagens por onde podemos subir
(uma pequena torre nos convida a isso) e contemplar o “teto” tornado
“chão”. Labirinto aéreo.
Não seria o espaço multidimensional um labirinto complexíssimo,
justamente? O traçado mais simplório de um labirinto sobre uma superfície
bidimensional cresce nos ares, transformando-se em um incrível
emaranhado de passagens curvas que desembocam uma dentro da outra, e
por vezes uma desemboca dentro de si mesma, sem que saibamos dizer,
malgrado a extensão, a enormidade de alguns de seus vãos, se estamos em
um espaço finito ou sem fim. Nessa travessia perpétua, cada compartimento
é semelhante, porém diferente dos anteriores (e dele mesmo). E em cada um
desses moles compartimentos de Neto – fato fundamental que ainda não
levamos aqui em consideração – encontra-se gente.
Gente caindo, gente andando, espaço-gente. Objetos para a gente: as
pequenas torres de observação, algumas lúdicas peças de encaixar, piscinas
de bolas de plástico ou água. Colchões com formato orgânico onde
podemos exercer nossa queda e nossa suspensão. Formas infantis nas quais
pulsa algo de abissal, pré-histórico. Cheiros. Cores suaves dispersas pelos
véus, ou cores que explodem em trabalhos bem recentes, lembrando que
cromo-somos, somos cor, para além da biologia (ou, ainda, não somos mais
do que cor, na grafia cromossomos). Corpo-cor, na expressão de Oiticica.
Cor-espaço. Cor-vida. “A vida tem cor, ela bate, ela é crua”, diz Neto. Ela
bate como o coração escarlate da exposição “The Edges of the World”, na
Hayward Gallery (Londres, 2010), no qual se entra para fazer vibrar o
tambor do peito. “Agora eu estou querendo a cor com volúpia.”
O espaço necessita de recorte, de cor, de paredes (ainda que curvas e
transparentes): ele só espaça, com o homem, quando partido. O espaço é
partilha: partilha do sensível, como quer Jacques Rancière, repartição do
campo perceptivo entre os sujeitos. Volúpia na qual cada um toma parte.
Divisão na qual nasce o sujeito e o mundo, graças ao compartilhamento
fundamental desses recortes.
O espaço deve ser seccionado, eventualmente quadriculado como na
geometria que a perspectiva artificial dos artistas renascentistas ajudou a
forjar. Mas essa grade pode ser rompida. Uma outra grelha pode interceptá-
la de modo a criar uma fuga, um outro plano sutilmente perpendicular a ela
(nas Malhas da liberdade de Cildo Meireles, 1976-77). Mas a lógica da
grade pode também ser rompida por sua transformação em algo maleável,
fino e colorido bordado a nos abrigar e suspender. O espaço já era de saída,
como nota Ernesto, recortado em rede – em nível quase imperceptível, na
malha do tecido transparente. A malha se define como um entrelinhas, algo
composto de intervalos, de buracos regulares. Ela é capaz, graças a suas
fendas, justamente, de capturar (peixes, animais ou, no caso que nos
interessa, o olhar). Aquele que espaça é um espaço-entre, e não um espaço
em si – o trabalho de Neto parece ensinar a Heidegger. À afirmação “O
homem – espaço”, Neto retrucaria: “Entre os homens: espaço”.
O Diálogo de mãos (1966) traz precisamente uma cinta elástica
moebiana enlaçando os pulsos de Lygia Clark e Hélio Oiticica, como
vimos. Apesar de Lygia sonhar com um “corpo coletivo”, ela sabe que a
relação com o outro supõe o giro da fita, a torção topológica que põe meu
íntimo fora de mim. Esse mesmo giro que Oiticica localiza no samba, e
denomina Parangolé (não por acaso, boa parte de seus estandartes e capas
têm uma estrutura moebiana). Esse termo, como já vimos, foi encontrado na
rua, inscrito em uma efêmera construção de um sem-teto, de um andarilho,
precário labirinto que prefigura alguns dos penetráveis e dos bólides do
artista. Na gíria carioca da época, parangolé significava acontecimento
súbito, agitação coletiva. Ele nomeia algo que se dá entre as pessoas, e
define para o artista não apenas alguns objetos em continuidade com o
corpo e que convidam a uma dança que envolve aquele que contempla, mas
uma proposição maior e capaz de rebatizar, de modo um tanto enigmático,
aberto, a própria arte.

O homem cadente é o equilibrista que aceita sua queda, mas a transforma


em dança. À seriedade concentrada, apesar de lúdica, do equilibrista de
circo, Neto substitui o camelô, o vendedor ambulante sempre em
movimento na grande cidade. Homem que gravita pelo incrível labirinto
urbano.
Essa figura retoma, implicitamente, o marginal / herói de Hélio Oiticica
(“Seja marginal, seja herói”), aquele que vive da adversidade, construindo
seu parangolé e nos convidando a com ele dançar. E dialoga com o camelô
de Cildo Meireles, pequeno boneco de borracha que dança atrás de seus
inúmeros e pequenos objetos – mil alfinetes, mil barbatanas de colarinho –
que fascinam o artista por sua duvidosa utilidade, seu caráter de resto
sensível da produção industrial em larga escala (Camelô, 1998).
O camelô de Neto carrega um volume impressionante de objetos de
pouco valor, equilibrando os ícones decaídos do capitalismo tardio. Homem
cadente, ele se sustenta de maneira insegura, porém cheia de ginga, de
“jogo de cintura”, como se diz. Novo Macunaíma – para retomar o
personagem de Mário de Andrade que se tornou emblemático de certa
concepção crítica de brasilidade, no contexto de nosso modernismo –, ele
não se balança mais na rede, com preguiça, mas se pendura nos ônibus e se
instala provisoriamente nas calçadas, sempre atento à aproximação dos
fiscais da prefeitura, que lhe dará poucos segundos para juntar suas
bugigangas e fugir. Ágil e um tanto ardiloso, ele é, ao mesmo tempo,
“mole”, como a casa-arte de Neto. Ele tem dengo.
O camelô é, na verdade, uma multidão: milhões de pessoas que
inventam, nos países ditos periféricos, um meio de integração ao bruto
sistema de consumo do qual foram excluídos, graças à chamada “economia
informal”. Mas ele não constitui uma massa coesa, submetida ao poder do
Estado ou da economia. Sua aceitação da lógica do capital tem fins
mutualistas; ele se pendura nela para seu próprio bem, mas ao fazê-lo a
subverte um tanto, flexibilizando-a criativamente e com prazer, com dengo.
Dessa turba também faz parte o malabarista de Cildo: ele realiza a façanha
de materializar um objeto sem lugar no espaço, objeto-tempo que dança,
lúdico gozo desafiando a queda inevitável (“O malabarista encontra um
lugar no tempo”, diz o artista).[300]

Em 2005, Neto foi convidado a expor no Museu Freud, na histórica


residência do psicanalista na Bergasse 19. No momento em que o curador
lhe fez o convite, por telefone, o artista dirigia a certa velocidade; logo que
disse “sim, claro”, entrou no túnel Rebouças, o mais longo do Rio de
Janeiro, que o fascina. “As pedras têm peso”, diz ele, referindo-se às
enormes rochas que formam os morros da cidade. “Há uma energia lá
dentro” e há algo de escultórico nos túneis, nos morros, nesta cidade. A
ideia de expor na casa de Freud não lhe era indiferente. Sua mãe fez muitos
anos de análise, e durante sua infância e adolescência, nos anos 1970-80,
era quase obrigatório fazê-lo, no meio carioca mais intelectualizado. “A
psicanálise foi muito importante para mim. Eu mesmo fiz análise,
obviamente”, afirma o artista, localizando o início desse tratamento em sua
passagem para a idade adulta, antes de começar sua carreira. Para realizar
Tractatus I Deuses, ele juntou vários elementos a respeito da psicanálise, de
Viena e de sua proposta poética, em uma espécie de “coquetel” que compõe
o que ele considera ser o trabalho de narrativa mais explícita e controlada
de sua trajetória.
Há um divã – mais precisamente, uma cadeira Thonet, remetendo ao
célebre móvel austríaco de madeira em formas curvas que teve seu primeiro
modelo fabricado em meados do século XIX. Ernesto tinha em casa uma
Thonet, quando criança, e ressalta o fato de ela ter sido a primeira cadeira a
ser exportada em larga escala, devido à praticidade de ser desmontável – o
que o artista conecta ao “pensamento camelô”, tão importante em sua
poética. Quanto a Viena, chama-lhe a atenção ser a cidade natal de Ludwig
Wittgenstein, a quem ele homenageia citando em seu título o Tractatus
Logico-Philosophicus. O imponente tratado é ironicamente remetido aos
deuses por Neto. Entre filosofia e religião, entre razão e transcendência, o
artista faz do Id freudiano (o Isso, das Es, em alemão) um conectivo.
Trata-se de uma montagem cênica pouco usual nos trabalhos do artista e
que não pode ser penetrada, pois a galeria consiste em uma espécie de
vitrine. Uma armação tubular de cobre delimita um espaço cúbico que é
recoberto de tule de poliamida semitransparente rosada em algumas de suas
faces. Dele se projetam sustentáculos do mesmo tecido suportando em seu
interior em cubo menor também formado desse material. No interior do
espaço assim delimitado, sobre uma pilha de livros, a cadeira equilibra-se
precariamente, com suas belas curvas de madeira e seu encosto de palhinha.
Nela recosta-se uma figura de tecido rústico inspirada na Vênus de
Willendorf, a mais famosa peça antropomórfica pré-histórica, descoberta na
Áustria em 1908. Ela tem costura aparente e apresenta diversos “umbigos”,
por assim dizer, pontos que sobressaem da superfície formando nós. Da
zona genital e do alto da cabeça partem meias de poliamida que vão sendo
costuradas em bifurcações, formando uma estrutura orgânica e ramificada
que toca as paredes do cubo em alguns pontos. Um dos pontos de
sustentação para essa delicada estrutura que pende dentro do cubo é um
balão cheio de bolas de plástico – localizado fora da cena, sobre o “teto” –
que Neto diz ser o Id. O cubo mais externo seria o Superego e o interno, o
Ego. “A gente está ali, dentro desse ego-nave”, diz ele.
A meia que parte da cabeça liga-se diretamente à parede mais externa
que representa o Superego. Mas uma bifurcação corta essa trajetória
conectando-a aos tubos que vêm do Id e do sexo. Nesse ponto de conexão
há um volume dentro da meia, marcando um encontro que o artista chama
de “sinapse-cópula”. No chão, ao lado da pilha de livros, um círculo de
pequenas pedras remete a algo como Stonehenge, diz Neto. Recobertas pelo
tule, as pedras formam um relevo sutil. O artista volta então a tocar na
questão da concentração de energia, da densidade da pedra, de que falava a
respeito dos túneis cariocas.
Neto realiza com esse trabalho uma construção tópica própria, a partir
daquelas que Freud fez questão de edificar. Ele materializa uma delicada e
ramificada trajetória entre sexo e mente que vai delimitando lugares
específicos, ao mesmo tempo que remete a uma narrativa virtual, à maneira
de Duchamp com seu Grande vidro (ou A noiva despida por seus
celibatários, mesmo, 1915-23). Sua visualidade é problemática, ela dá a ver
algo que é um dispositivo, mais do que um objeto a contemplar. Os
elementos estão ali, explícitos, mas é necessário que o olhador ponha algo
de seu para que a máquina possa funcionar.
Em sua transparência e suspensão, essa “casa” do homem psicanalítico
tem algo de onírico. Ela flutua, desenhando um acontecimento, um frágil
encontro que definiria o sujeito.

Enquanto preparava a exposição “Dengo” (no Museu de Arte Moderna de


São Paulo, em 2010), Neto me falava dessa palavra tão brasileira e que
compõe esse vocabulário íntimo, e um pouco infantil, que usamos nas
relações amorosas. Subitamente ele fixou o olhar na sua frente, e me
perguntou: “Você vê?”. Me fez, então, sentar em sua cadeira, para que dali
eu pudesse contemplar um pequeno emaranhado de fios pendendo na lateral
de uma mesa de computador. Um cabo curto e desligado estava caído sobre
outro cabo, mais firme, e nele se sustentava delicadamente, quase tocando o
chão, arqueando-se no ar. No mecânico circuito de cabos interconectados,
na teia desumana do mundo dito globalizado, o dengo desenha pontos
sinuosos, moles tentáculos. Do diagrama ortogonal nasce uma topologia
dançante. Da grade brota um colorido crochê, caprichosa e sinuosa costura.
“Dengo” é essa suave e imprevista curvatura pela qual um fio, uma reta,
cai sem chegar ao chão, pendendo belamente, vitoriosa porém frágil,
aguardando que nosso olhar a descubra no meio do burburinho, das
bugigangas do nosso mundo. Dengo é o gesto pelo qual troco de lugar com
o outro, que oferece seu olhar dengoso a um compartilhamento. Com seu
dengo, o camelô encarna o giro de que falávamos, acentuando a gentileza
dessa torção pela qual estamos fora de nós e aí encontramos o outro,
reconhecendo um comum a nós (rede colorida? véu transparente?) – que
nunca está já dado, mas necessita ser a cada momento reinventado.
Sabemos que o artista seria uma espécie de catador de lixo, para Walter
Benjamin. Ele juntaria aquilo que a sociedade despreza e desdenha, para
mostrá-lo transformado. Esse trabalho poético é, de saída, comum, nos dois
sentidos do termo. Ele trata das coisas mais corriqueiras de modo a fazer
delas um convite ao olhar (ou seja, ao afeto e ao pensamento, a um
pensamento sensível, por assim dizer). E ele se dá naquilo que, impalpável,
é de saída comum aos homens, coletivo e contudo radicalmente singular.
Impróprio, próprio de cada um e propriedade de ninguém. O catador torna-
se astronauta ou cientista louco e faz, de cada pequena coisa comum e
desprezível, o cosmos (“Eu amo a ideia de meu trabalho parecer um big
bang”, diz Neto).[301]
Tornado camelô, o que ele faz é pouco, é pendurar os restos da sociedade,
expondo-os. Mas ele o faz com dengo, o que muda tudo. O dengo não é
atributo de ninguém, ele é sempre um chamado, um apelo ao outro.
Ninguém faz dengo sozinho. A criança ou o amante, com seu dengo,
convida o outro. Neto faz disso que é tão íntimo, e no entanto nos revira
para fora, em busca do outro, um espaço compartilhado. Nossa única casa
possível. Nossa sensível habitação, dengosa, sempre em queda iminente: a
arte.
LOUISE BOURGEOIS E
O HETERORRETRATO

A autoexpressão é uma defesa.


LOUISE BOURGEOIS

O quadro, seja qual for,


e mesmo o autorretrato,
não é miragem do pintor
e sim armadilha para o olhar.
JACQUES LACAN
Para Freud, a psicanálise poderia “pôr em evidência novas correlações nesta
obra-prima de tecelagem que se desenvolve entre as predisposições
pulsionais, as experiências vividas e as obras de um artista”.[302] Louise
Bourgeois, falecida em 2010 aos 98 anos, parece ter tomado literalmente a
metáfora freudiana, tornando-se uma grande tecelã que se referia
insistentemente a sua própria vida, especialmente a certas vivências de sua
infância.
Para que seja possível tecer relações entre os três planos apontados por
Freud (pulsão, vida e obra), pressupõe-se, contudo, que haja de um a outro
diferença e distância. Em contraponto, a artista francesa radicada nos
Estados Unidos parece ter dedicado uma parte de sua longa existência a
misturá-los. Ao tentar tornar indiscerníveis vida e arte, ela se alinhava a
uma importante preocupação das vanguardas da primeira metade do século
XX e tornava-se, na década de 1980, um dos mais importantes nomes do

chamado “novo subjetivismo” na arte contemporânea.


A exposição itinerante “Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido”,
vista em 2011 em São Paulo e no Rio de Janeiro, tem como eixo central a
tese de que boa parte da produção da artista decorre diretamente de sua
análise pessoal. A publicação, como um dos volumes do catálogo dessa
exposição, de anotações variadas feitas ao longo de décadas, com o título
Escritos psicanalíticos, é o ato final dessa mistura arte / vida.
Esse ato é tanto mais significativo por se realizar praticamente no
momento de sua morte. Isso sugere que Louise se ausenta, sempre, de
alguma maneira – como ela anotava em 1957, “nós existimos
principalmente por nossa ausência”.[303]

A concepção curatorial dessa retrospectiva baseia-se na tese


ESCRITOS “PSICANALÍTICOS”

de que existe uma relação direta e unívoca entre a obra de Bourgeois e o


campo da psicanálise. Os trabalhos nela apresentados, segundo o curador
Phillip Larrat-Smith, deveriam ser vistos como “formas simbólicas” com
“raízes psicanalíticas”.[304] Disso seus “escritos psicanalíticos” forneceriam
supostamente a prova.
As notas soltas da artista que compõem tais “Escritos” foram encontradas
por seu assistente em duas levas, em 2004 e em 2010, aos milhares, dentro
de caixas. A seleção agora publicada põe em evidência a análise pessoal da
artista, até então ausente de seus escritos e declarações. As anotações
presentes no catálogo por vezes mencionam – mas nem sempre – seu
analista e seu processo analítico, ao lado de reflexões diversas, lembranças
fragmentárias, relatos de sonhos e rápidas menções a Melanie Klein, Freud
e Marie Bonaparte. Há trechos como “em que consiste uma inveja do pênis
(?) Como prová-la (?)”,[305] mas também falas prosaicas como “gostaria de
ser como todos os outros adultos”.[306] Essas notas estão longe de constituir o
corpus imponente de Escritos psicanalíticos sugerido pelo título.
As notas intercalam observações sobre a vida e o trabalho da artista, mas
raramente estabelecem relações diretas entre o processo analítico pelo qual
passava e o que produzia como arte. Quando alguma relação é esboçada, ela
parece pobre, capenga, diante dos elementos em jogo. “A escultura pode
integrar muita agressão cega”, porém isso não basta, a escultura “exige mais
que isso”, reconhece a artista em nota de 1962, por exemplo.[307] Ou a ligação
é rápida demais, e a interpretação se esvazia: “Os dois desenhos que
representam as mamas da mãe podem ser o refúgio na mãe depois da
decepção provocada pelo pai. Digo isso racionalmente, não por percepção”.
[308]

A própria Bourgeois não parece dar muito crédito a esse tipo de relação
simbólica, portanto. Sem deixar de evocar simbolismos desse tipo ao longo
de sua obra, ela afirma desconfiar das palavras.

Eu suspeito das palavras. Elas não me interessam, elas não me


satisfazem. Sofro por causa do modo como as palavras esgotam a si
mesmas.
Suspeito dos Lacans e Bossuets porque eles gargarejam com suas
próprias palavras. Sou uma mulher muito concreta. As formas são
tudo…
Com palavras pode-se dizer qualquer coisa. Pode-se mentir por um
dia inteiro, porém não se pode mentir quando se recria a experiência…
[309]

Mas, se “as formas são tudo”, a artista não deixa de empregar palavras em
seu trabalho – não só em títulos, como em comentários e fabulações
autobiográficas que devem ser considerados parte de sua obra, e não algo
exterior a ela e capaz de decifrá-la.
Além de suspeitar de Lacan, Louise Bourgeois também se declara
decepcionada com ele, bem como com Freud e André Breton, pois eles lhe
“prometeram a verdade e só mostraram teorias”. Ela declara ainda que os
dois grandes psicanalistas nada teriam feito pelos artistas, e que ela
simplesmente não poderia “usá-los”.[310] Se ela “usa” muito a psicanálise,
não é, portanto, por devoção ou homenagem. A menção ao bispo e teólogo
do século XVII Jacques-Bénigne Bossuet, por sua vez, parece feita para que
não restem dúvidas a respeito do quanto a artista põe em questão suas
próprias falas e reconhece não deter, em suas palavras, o saber sobre sua
obra (e si mesma), como vemos no famoso trecho do grande orador
católico:

amiúde o que tu sabes, não o sabes;


o que está em ti, está longe de ti;
tu não tens o que possuis.

Portanto, não concordo em absoluto com Larrat-Smith quando ele – após


ter dito que os “escritos psicanalíticos” de Bourgeois são “herméticos e
patológicos”– afirma que “os textos psicanalíticos de Louise Bourgeois
elucidam as interconexões entre sua própria análise, suas leituras de
literatura psicanalítica, sua excêntrica produção artística, sua relação
simbólica com os materiais e sua invenção formal”.[311]
Parece-me, antes, que esse material, que possui frequentemente o tom de
relatos de sonhos, faz com que nos percamos em fluxos de escrita, em
evocações múltiplas, com frequência impossíveis de localizar, em detalhes,
sofrimentos, sintomas e fragmentos de sonhos que são os restos, as ruínas
de uma vida. Entre essas relíquias por vezes parecem se projetar
efemeramente – apenas por um segundo – um ou outro trabalho plástico de
Bourgeois, em um vago e plural palimpsesto impossível de decifrar. Tanto
melhor.

Como sempre – quando se trata de análise, e também de arte – os


DESIDENTIDADES

diversos elementos de que se compõem esses escritos mostram-se lacunares


e multívocos. Disso decorre seu interesse: eles entram no jogo complexo já
existente entre as obras e as declarações da artista, podendo eventualmente
levar a novas ideias a respeito de seu trabalho. A obra de Bourgeois
continua viva, pulsante, à espera não só de nossos olhos mas também de
nossa fala, de nossos escritos. Nessa perspectiva, porém, é importante
insistir que as anotações da artista devem ser tomadas não como algo que,
de fora, viria esclarecer o significado de um ou outro de seus trabalhos
artísticos, mas como parte de sua obra, assim como os diários que ela
manteve ao longo da vida e preservou para a posteridade. E entre os
diversos elementos que constituem esse conjunto talvez não haja
homogeneidade e identidade. Na “obra-prima de tecelagem” evocada por
Freud, talvez alguns fios estejam rompidos e outros acabem estranhamente
revelando-se como pedaços de um tecido diferente.
Tomar como um dado a identidade entre os elementos do trabalho da
artista e a psicanálise é, por um lado, levar a sério – ou tomar de forma
literal – a clara presença de elementos de psicanálise nas falas e escritos da
artista a respeito de algumas obras. Por outro lado, é ignorar a reflexão que
seu trabalho artístico realiza, nele mesmo, a respeito da questão da
identidade. Esta é desfeita e explorada como múltipla e distorcida, como
por exemplo em Cell xxiv (retrato, 2001), presente nessa exposição. Nessa
“célula”, rostos duplos são costurados em trio e disseminam-se em
inúmeros pontos de vista graças a dois espelhos duplos fazendo ângulo na
parte inferior da caixa. Onde está a imagem, o reflexo “correto”? Onde
localizar aí alguma identidade?
Não se trata de subjetivismo acrítico em Louise Bourgeois. Ela recusa-se
a falar diretamente de sua vida pessoal (“Não gosto disso”, diz em
entrevista de 1976).[312] Sua obra não é seu retrato fiel, mas distorção,
“reconstrução de um passado”, exploração da linguagem, do objeto e da
imagem de modo a fazer outra coisa, fora dela mesma. Entre sua vida, suas
“disposições pulsionais” e suas obras, não se trata de encontrar fortes fios à
espera de serem trançados em um tecido resistente (e capaz de tudo
encobrir). Mesmo o que se apresenta como clara declaração pode se revelar
um fio roído. A tessitura talvez esteja prestes a se desfazer, sua trama não é
linear e mostra buracos, rasgos e remendos.
Em vez de confirmar o papel da psicanálise como instrumento de
decifração de “formas simbólicas”, o trabalho desta artista, ao referir-se
literalmente à psicanálise, desloca e torna vã qualquer possibilidade de
decifração.
O que haveria a decifrar diante do já mencionado trabalho A destruição
do pai (1974), objeto tridimensional que se apresenta como uma espécie de
palco reduzido, em cuja superfície interna inferior e superior brotam formas
orgânicas em borracha cujos moldes eram órgãos de animais, como coxas
de galinha e pernil de cordeiro? Para Larrat-Smith, a “realização catártica”
desse trabalho fecharia o “período psicanalítico” de Bourgeois, iniciado ao
mesmo tempo que sua análise, em 1952. As obras mais tardias teriam,
segundo ele, “mais um caráter de crítica: o par de células Red Room
(Quarto vermelho) critica a cena originária, o Arch of Hysteria (Arco da
histeria) critica Charcot etc”.[313]
Sobre A destruição do pai, a artista declara:

Há uma mesa de jantar e pode-se ver que acontecem vários tipos de


coisas. O pai está se pronunciando, dizendo à plateia cativa como ele é
ótimo, todas as coisas maravilhosas que fez, todas as más pessoas que
prendeu hoje. Mas isso acontece dia após dia. Uma espécie de
ressentimento cresce nas crianças. Chega o dia em que elas se irritam.
Há tragédia no ar. Ele já fez demais esse discurso.
As crianças o agarram e o põem sobre a mesa. E ele se torna a
comida. Elas o dividem, o desmembram e o comem. E assim ele é
liquidado.[314]

Esse comentário não é um elemento constituinte do trabalho, mas não deixa


de fazer parte dele. Trata-se, é óbvio, de uma versão ficcional do mito
elaborado por Freud em “Totem e tabu” – que por sua vez já era uma ficção
necessária para que se conceba a organização estrutural do sujeito. Ficção
sobre ficção, fabulação sobre mito, a referência da artista à psicanálise se dá
menos como apresentação simbólica de conceitos psicanalíticos do que
como citação quase literal. Em vez de se deixar interpretar ou decifrar pela
teoria psicanalítica, trabalhos como esse assumem a psicanálise como
terreno de diálogo ou apropriação – trazendo-a para dentro do campo da
arte, ao mesmo tempo que problematizam o próprio domínio artístico em
prol de um alargamento de seu campo de ação e de relação com teorias
sobre o homem e o mundo.
Não há nada a ser descoberto porque tudo já é encobrimento. Tecido
sobre tecido. (Seria toda imagem, toda arte sempre lembrança encobridora?
– nos faz perguntar Bourgeois.)
Tratar-se-ia então, nos seus trabalhos artísticos, do retorno de “desejos
proibidos”, ou melhor, para ser fiel ao título da exposição em inglês (“The
Return of the Repressed”), de retorno do recalcado?
Em seu texto sobre a Gradiva, Freud refere-se a uma gravura de Félicien
Rops mostrando um asceta que, tentando expulsar a tentação pela imagem
do crucifixo, vê aparecer no lugar do Cristo uma lasciva figura de mulher
nua na cruz. Essa seria uma espécie de modelo do recalcamento, capaz de
mostrar, como nenhum outro, que “quando o que foi recalcado retorna,
emerge do próprio recalcante”.[315]
Diante de cada trabalho de Bourgeois, cabe perguntar: o que é a cruz, o
que é a mulher nua? Recalcado e recalcante se confundem a ponto de não
serem mais identificáveis como esses dois elementos díspares. Pensemos
por exemplo em Sleep II (1967), escultura de mármore no formato de um
pênis largo e discretamente pendente. Tem-se aí explicitamente um pênis,
não se trata de a psicanálise desvendar na obra a presença do pênis como
uma significação subtraída ou escondida. Sleep II não simboliza um pênis
sob o modo do recalcamento – ou seja, disfarçando, apresentando o
elemento recalcado sob um modo alusivo ou enigmático.
Não há distância entre o que simboliza e o que seria simbolizado, por
isso parece não haver símbolo. Um pênis é um pênis, literalmente. Mas, ao
lado da presença material do mármore branco e de algo que não sabemos
bem o que é em sua forma, chamá-lo de Sono faz dele outra coisa. Coisa
poética.
A literalidade pode parecer ingênua. Isso já não é um pênis, mas continua
sendo um pênis, claro. E referindo-se explicitamente à teoria psicanalítica.
Em outro exemplo importante, as Filletes de Bourgeois apresentam
plasticamente a equação girl = phallus estabelecida por Otto Fenichel,
psicanalista austríaco que se estabeleceu nos Estados Unidos em 1938. Mas
a literalidade não é isenta de operações e agenciamentos simbólicos. Ela
consiste em uma sofisticada (e por vezes desnorteadora) rede de operações
plástico-linguísticas.

Essa exposição revela e põe em primeiro plano um fato até


A CONSTRUÇÃO DO TRAUMA

agora tomado como incerto e que havia sido negado pela artista em
entrevista de 1993: [316] Louise Bourgeois fez análise durante vários anos.
Seu analista foi Henry Lowenfeld, entre 1952 (após algumas sessões com
outro analista, Leonard Cammer) e 1966, e ela continuou a vê-lo, de modo
esporádico, até 1982. Alemão, judeu e marxista, Lowenfeld teve como
analista e mentor justamente Otto Fenichel, que era integrante do primeiro
círculo de discípulos de Freud. Lowenfeld chegou a frequentar a Sociedade
Psicanalítica de Viena antes de emigrar para os Estados Unidos às vésperas
da Segunda Guerra Mundial, e em uma de suas reuniões apresentou um
escrito que se tornou um clássico sobre a dinâmica psíquica do artista. É
óbvio que essa apresentação de caso não podia se referir a Bourgeois, pois
apenas quinze anos mais tarde ele começaria a recebê-la em análise.
Estranhamente, porém, ao ler Lowenfeld tem-se a impressão de que poderia
se tratar dela.

Enquanto a obra artística da paciente, escapando relativamente da


inibição, pode constituir um exutório para suas tensões, ela pode se
poupar da formação de sintomas neuróticos. Os quadros desse período
[…] eram uma representação repetitiva das experiências traumáticas
de sua infância assim como de traumatismos mais tardios. A
compulsão à repetição exige que a ferida seja sempre mais uma vez
reparada.[317]

Lowenfeld caracteriza o artista como alguém propenso a conflitos


neuróticos e situa a produção artística como uma saída sublimatória,
fazendo referência à clássica teoria kleiniana da reparação. Mas o principal
ponto da reflexão desse psicanalista, sua contribuição original, é a ideia de
que o artista seria traumatofílico. O elemento marcante do caso clínico por
ele apresentado é

a importância dos traumatismos na vida desta paciente. Experiências


pouco diferentes nelas mesmas de experiências vividas por outros
sujeitos revestem-se nela de um caráter traumático e vêm se inserir na
estrutura traumática da paciente. Mais do que isso, ela provoca ela
própria situações que, no seu caso, revelam-se traumáticas.[318]

Bougeois parece tomar as ideias de Lowenfeld ao pé da letra. Ela afirma,


em nota de 1959: “O menor estímulo me afeta como um acontecimento / da
maior importância […] faço de tudo uma história terrível na qual / as coisas
vão de mal a pior”.[319] Outra anotação, do mesmo ano, prossegue: “De mal a
pior, eu digo – Esse é o / meu bordão”.[320] Dizer que assim ela homenageia
seu analista pareceria muito forçado. Bourgeois chega a mencionar a ideia
de catarse, afirmando que seu trabalho lhe permitiria livrar-se da raiva e da
agressividade ou apaziguar sua angústia, em uma nota ou outra. Mas Arte é
uma garantia de sanidade, trabalho de 2000, é uma inscrição
deliberadamente precária, em lápis sobre papel – como se as próprias letras
imprecisas pudessem questionar tão peremptória afirmativa. Talvez a
artista, ao citar afirmações da teoria psicanalítica, introduza uma torção
paródica capaz de criticar a posição afirmativa da teoria. Capaz de pôr em
questão o reducionismo da ideia de cartarse como libertação de conflitos e a
rigidez da equivalência simbólica, para assinalar a complexidade e a
multivocidade do inconsciente (ou seja: da vida).

A mais insistente referência de Bourgeois a suas vivências de infância


FICÇŌES

é apresentada em Abuso infantil, narrativa acompanhada de fotografias de


época e de obras da artista publicada em 1982 na revista Artforum, da qual
reproduzimos parte do texto:

Alguns de nós somos tão obcecados pelo passado que morremos disso.
É a atitude do poeta que nunca encontra o paraíso perdido e é de fato a
situação dos artistas que trabalham por um motivo que ninguém
consegue apreender. Talvez queiram reconstruir algo do passado para
exorcizá-lo. É que, para certas pessoas, o passado tem tal atração e tal
beleza…
Tudo que faço é inspirado no início de minha vida.
À esquerda, a mulher de branco é A Mestra. Ela veio para a família,
mas dormia com meu pai e ficou dez anos.

Então você vai me perguntar: Como é que numa família de classe


média uma professora era uma peça do mobiliário-padrão? Bem, o
motivo é que minha mãe a tolerava e é esse o mistério. Por que o
fazia? [321]

Após mencionar o fato de que a mãe a usava para vigiar seu marido e que
isso é “abuso infantil”, além de lamentar a traição que teria sofrido por
parte de seu pai e também de sua professora, Bourgeois conclui: “Todo dia
você tem de abandonar seu passado ou aceitá-lo, e se não conseguir aceitá-
lo torna-se uma escultora”.[322]
Referências como essa talvez possam, sim, ser tomadas em Bourgeois
como construções em análise, ou seja, recriações, fabulações. Elas se
apresentam como evidência (e podem apresentar fotografias como uma
espécie de “prova”), mas são assumidamente “reconstruções” do passado,
na tentativa de “exorcizá-lo”. O trabalho artístico seria homólogo ao
trabalho analítico, nesse sentido. Suas construções correm o risco, porém,
de se tornarem lembranças encobridoras. Elas recobrem o trauma e mais
escondem do que mostram o recalcado. A fixidez e a insistência nessa
narrativa apontam notadamente para essa possibilidade, que a própria artista
evoca várias vezes através de uma citação de La Rochefoucauld: “Como
disse La Rochefoucauld, ‘Por que vocês falam tanto? O que é que têm a
esconder?’. O objetivo das palavras muitas vezes é esconder as coisas. Eu
quero ter uma lembrança total e um controle total do passado. Então, que
sentido teria mentir?”.[323]
A narrativa de Abuso infantil é uma variante edípica, é claro, mas isso
não faz dela um trauma, propriamente. Independentemente da vida de
Louise, contudo, se definirmos o trauma (lembrando-nos que o termo
significa ferida, em grego) como aquilo que se repete, causando sofrimento
e demandando elaboração, percebemos que seu funcionamento fornece os
fundamentos da proposta de Bourgeois, seu tema preferido e a própria
estrutura de seu trabalho, que repete incessantemente certas recordações
quase anedóticas. O trabalho artístico mimetiza a estrutura do trauma e o
reconstrói ficcionalmente, poeticamente. A teoria de Lowenfeld parece,
assim, ser confirmada por sua mais famosa paciente, que se apresenta como
uma traumatofílica empedernida (como ironiza um blog a respeito da
artista, “a dor é o meu negócio”). Mas ali onde esse psicanalista pressupõe
absoluta identidade entre a pessoa e o que ela produz, a artista introduz uma
torção: para ela como para algumas outras pessoas, “o passado tem tal
atração e tal beleza…”, como vimos em Abuso infantil. No que seria
trauma, a artista aponta beleza. E atração: inclusive para um outro, para
outros. Há um claro endereçamento ao outro, na apresentação de tais
elementos supostamente biográficos e íntimos.
Para Freud, boa parte de nossa atividade psíquica consiste na produção
de fantasias análogas àquelas criadas pelo escritor ou artista em suas
ficções. O eu é formado ficcionalmente, como ressalta Lacan, e não bastam
os fatos em si: os acontecimentos de nossa vida devem formar uma espécie
de romance. Nossas fantasias são realizações de desejo, mas nos outros
provocariam repulsa ou indiferença. No domínio da arte, esse terreno de
jogo e brincadeira, as fantasias do artista seriam capazes, contudo, de
enganchar as nossas próprias fantasias, levando-nos assim a extrair delas
algum deleite. Para chegar a tal efeito, segundo Freud, o poeta ou artista
deveria suavizar e disfarçar o caráter egoísta de seus devaneios, além de
seduzir com um “prazer puramente formal, isto é, estético”.[324]
Louise Bourgeois parece contradizer o psicanalista, ao assumir suas
fantasias e traumas como radicalmente pessoais. Ela ensina que é justo ao
apresentar a intimidade de modo extremo que se alcança algo universal,
algo que está entre os humanos. É o radicalmente “pessoal” que toca o
outro, é o singular que chega a tocar o que é comum a todos. Para alcançar
o universal, dedique-se a pintar sua aldeia, como se sabe desde Tolstói. Mas
a estratégia da escultora não é tão simples e merece mais atenção. Não se
trata da fantasia ou do trauma brutos, neles próprios, e sim de engatar o
processo de (re)construção do trauma, assumindo-o como largamente
estruturado pela ficção, pois há nele algo – que é o que realmente interessa
evocar – que só pode ficar “escondido”, porque, a bem dizer, é impossível
de apresentar como tal.
Ao mesmo tempo que parece apresentar literalmente sua própria vida, a
artista afirma: “Jamais falo literalmente; para compreender-me é preciso
usar analogia e interpretação, saltos de todo tipo…”.[325] Essa afirmação é um
tanto irônica, pois um trabalho como Abuso infantil impede qualquer
interpretação no sentido de uma decifração de algo que ali estaria
disfarçado. Mas ao negar a literalidade a artista aponta que um trabalho
como este já é interpretação, e não mais propriamente memória, nem muito
menos fato ocorrido. Quando algo é aí apresentado como uma lembrança, é
na medida em que esta se assume como ficção, em sua própria apresentação
– seja qual for o seu grau de fidelidade em relação às vivências factuais da
artista.
Se todo dia tem-se que abandonar o passado ou aceitá-lo, e quem não
consegue aceitá-lo torna-se uma escultora, como vimos afirmar Bourgeois,
essa recusa a aceitar implica não simplesmente repeti-lo literalmente, mas
dele fazer algo, com ele construir outra coisa – uma escultura,
eventualmente. Ela não abandona o passado, tampouco chega a esquecê-lo,
mas dele forma “sedimentos”, como indica em uma de suas notas: “Que os
sedimentos se formem selados pela / paz da desmemória”.[326]
Segundo Larrat-Smith, os escritos recém-revelados de Louise Bourgeois
“certamente confirmam a centralidade da memória em seu processo
criativo”.[327] Isso é verdade, mas apenas na medida em que a artista faz da
memória uma desmemória. Isso não parece corresponder exatamente à
ausência de memória, mas sim à lembrança de algo que se assume como
não recordação. “Tive um flashback de algo que nunca existiu”,[328] diz
Bourgeois em um livro feito artesanalmente em tecido e sugestivamente
chamado Ode à l’Oubli (Ode ao esquecimento), de 2002. Além dessa frase,
a única inscrição ali presente é “The Return of the Repressed” (O retorno do
recalcado). Isso sugere que para a artista o recalcado tem a ver com o
retorno, a recordação de algo que não houve, mas é um importante
acontecimento humano. O passado pulsa, fragmentário, demandando
reconstrução, e as esculturas formam dele sedimentos, precipitados que são
testemunhos do acontecido, mas também são dele uma desmemória, ou
seja, marcam a impossibilidade de total revivescência.
Não é o estudo da psicanálise, mas sim, provavelmente, sua própria
experiência em análise que mostra a Louise que o inconsciente não é um
baú de imagens maravilhosas ou terríveis que podemos recuperar, mas uma
escrita fragmentária, uma inscrição intermitente de traços de memória, o
encontro fortuito com cacos de palavras e imagens multívocas e em fuga.
Na recordação trata-se de cenas, sejam elas vagas ou bem construídas, que
com frequência escondem outras cenas. A lembrança é fragmentária ou até
mesmo inexistente (habitando aquilo que Freud chama de Outra Cena), ou
é lembrança encobridora, véu sobre outra coisa que não se deixa lembrar,
mas deve ser construída ficcionalmente para que se tenha algum acesso à
verdade do sujeito.

>Afirmei acima que não se trata de autorretrato na obra de


AUTORRETRATOS

Bourgeois. Não se trata de clara e direta remissão a sua autobiografia, mas


de fabulações – de fabulações psicanalíticas, eu diria – que realizam uma
espécie de paródia da psicanálise, sem deixar de homenageá-la e talvez, até
certo ponto, sem querer contradizê-la. Mais do que usar a psicanálise como
referência cabal, Bourgeois mimetiza, em seu trabalho, isso de que se trata
em uma análise.
Mas talvez devêssemos considerar os trabalhos de Louise Bourgeois,
sim, como autorretratos – posto que de alguma maneira ela neles se
apresenta. Ainda que nem todos sejam acompanhados de uma narrativa
autobiográfica, eles se referem fortemente a ela e a tornam presente como
uma espécie de aura. Louise está em cada uma de suas peças no sentido em
que Freud diz que no sonho estamos em toda parte, podemos ser qualquer
um dos personagens (e talvez – por que não? – mesmo dos objetos materiais
aí presentes). A respeito de Janus florido (1968), ela afirma:
É simétrico como o corpo humano e possui a escala daquelas diversas
partes do corpo a qual, talvez, se refira: uma máscara facial dupla, dois
seios, dois joelhos. A sua posição dependurada indica passividade, mas
sua massa atraída para baixo expressa resistência e duração. Talvez
seja um autorretrato – um entre muitos.[329]

Essa indicação não nos habilita a interpretar a escultura como se se tratasse


de um sintoma histérico, como tenta, sem nenhum pudor, fazer Larrat-
Smith. Ele ignora a principal objeção a esse tipo de aventureira explicação:
apenas as associações da própria analisanda poderiam, se fosse o caso,
trazer os elementos para uma interpretação. Mesmo que Louise o tivesse
feito com Lowenfeld, porém, seria questionável a pertinência de tal trabalho
– sempre incompleto, como toda interpretação – para o estudo de sua obra.
Parece-me muito mais interessante refletir sobre o modo de construção
de um retrato de si realizado pelas esculturas de Bourgeois. Há algo dela
neste objeto por ela construído. Mas ela mesma não sabe bem do que se
trata: há algo que se apresenta como busca, hesitação, porque é impossível
chegar a uma verdade cabal a respeito de si próprio.
Em um dos primeiros ditos Escritos psicanalíticos, em 1951, ao relatar
um sonho, a artista nota:

Talvez não seja a verdade mas pode ser uma forma de verdade, você
sabe tão pouco, tem de tentar fazer o possível para aprender a ler o que
a rodeia! […] Vou perder minha verdade agora que a tenho, vou perdê-
la.[330]

Na boca de uma escultora, a expressão “uma forma de verdade” toma outro


relevo. A “verdade” se apresenta como formas diversas. O que nos rodeia
deve ser “lido”, pois suas formas podem revelar alguma verdade. Mas esta
não é única, e talvez se perca assim que cremos obtê-la, pois essa verdade
faz desse eu um outro.
Todo autorretrato, toda autorreferência carrega a declaração de Rimbaud
de que “o Eu é um outro”,[331] explicitando um abalo, fundamental ao século
XIX, cujo tremor atinge ainda os dias de hoje. Seu epicentro foi o surgimento

da fotografia, capaz de realizar com precisão extrema a pauta mimética


prevalente nas artes plásticas até então e deslocá-la para dar origem à arte
moderna. Os retratos pintados, que antes eram caras e demoradas aquisições
burguesas, em poucas décadas se tornaram fotografias populares a ponto de
servirem ao objetivo de identificação policial, e por fim geraram as pobres
fotos 3 × 4 de nossos documentos de identidade.
Porém, como bem nota Guimarães Rosa, os retratos fotográficos são
enganadores, as fotografias, mesmo tiradas em sucessão, podem ser bem
diferentes umas das outras e nisso apenas refletem nossa problemática
relação com o espelho – “O espelho, são muitos”, diz o escritor.[332] Na busca
de minha verdadeira forma, fixo alguma imagem capaz de ancorar meu eu e
fazer-me esquecer da sentença de Rimbaud. Mas não por muito tempo.
Alguma estranheza está sempre à espreita e me assalta, em instantes
fugidios que a arte do século XX muitas vezes buscou suscitar.
“Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de
romance”, diz Barthes na epígrafe de sua autobiografia.[333] Esse trecho está
reproduzido, no livro, em letra cursiva. Se a frase nega a aderência do
sujeito a sua obra, a letra – seu traço, rastro de sua presença corporal – a
ressalta. Ou seria de outro que não Barthes essa caligrafia?

Bourgeois afirma que “toda a obra de um artista é a realização


HETERORRETRATOS

de um autorretrato”.[334] Em vez de uma ficção onde se afirme um eu, trata-


se, nesse retrato, de problematizar a natureza do eu, mais do que de lhe
restituir um lugar de direito.
O moderno quer ver-se outro, ou quer ver a si mesmo para além do
retrato. Essa talvez seja ainda a grande paixão de nossos tempos. Ela
emerge de uma catástrofe, ou melhor, de um naufrágio – aquele do poema
“Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, de Stéphane Mallarmé.[335] Nem
mesmo no fundo do naufrágio o eu encontrará alguma morada, este eu que
está sendo, no exato momento em que Mallarmé escreve esse poema de
1897, desalojado por Freud da consciência de si. Nem mesmo o
acontecimento tenebroso podia lhe fornecer alguma âncora, na vertigem do
poeta. “Nada terá tido lugar senão o lugar.” Mas algum lugar paradoxal
parece então restar ao eu, um espaço que anula todo acontecimento mas se
afirma como lugar (de anulação). Espaço revirado de vagas, ossos, onde
alguma “elevação ordinária” não faz mais do que verter “a ausência”.
Espaço escultórico, talvez. O sujeito não é, aí, mais do que o lugar de uma
“memorável crise”. Espaço informe, perigosa e múltipla travessia – “nessas
paragens do vago onde toda realidade se dissolve”.
Mallarmé “escava o verso”, como diz ele mesmo, de modo a atingir um
espaço inimaginável onde a realidade já se dissolveu e, diante e contra ela,
o homem se dispersou. “Quem escava o verso”, analisa Maurice Blanchot,
“escapa ao ser como certeza.” Tal experiência marcante de incerteza “do
ser” faz do eu um lugar móvel e vertiginoso, girando em torno de um
sumidouro. “Quem escava o verso morre”, chega a dizer Blanchot,
“reencontra sua morte como abismo.”[336]
Bourgeois repete sempre o mesmo gesto de autorreferência, literalmente,
para designar a frase de Rimbaud: Eu é um outro (já que a “a repetição do
retrato”, como diz Barthes, “leva a uma alteração da pessoa”).[337] Ou, pior:
Bourgeois repete e repete a autobiografia, para da alteração tentar fazer uma
anulação, chegando quase a enunciar: eu não é. “A larva tira a seda da boca,
constrói o casulo e quando termina ela morre. O casulo exauriu o animal.
Eu sou o casulo. Não tenho ego. Sou meu trabalho”, declara a artista em
1988.[338]
Em vez de um espelho capaz de fixar o eu, o trabalho anula o eu. Entre o
eu e o sujeito do inconsciente a obra cava uma distância, uma diferença
fundamental. Quando a artista declara, em 1993, “eu sou meu trabalho”, ela
acrescenta em seguida: “Não sou o que sou como pessoa”.[339] Algo dela
mesma só pode surgir em seu trabalho com a condição de se diferenciar do
que ela seria “como pessoa”. Não se trata de confirmar, na obra, o que a
artista já era como “eu”, mas de colocar a tônica em algo que escapa nela
mesma e no entanto lhe é fundamental – e só surge como obra. Há aí uma
alteração, uma torção fundamental, perceptível também na frase: “Na
verdade, minha obra é mais eu que minha presença física”.[340] Compondo
um certo personagem-artista, um certo alterego que não só se relaciona com
o ego, mas o anula e substitui, Louise assim se retira, mas, ao mesmo
tempo, não deixa de apresentar algo muito íntimo – a ela e também a nós
todos.
Isso não quer dizer, porém, que a obra artística se limite a construir um
alter ego capaz de se oferecer como “a verdadeira” Louise, em uma espécie
de revelador alterretrato. Trata-se de criticar a própria ideia de unidade de
si e dispersar o sujeito nos objetos, nas esculturas ou na paisagem.
Referindo-se a esculturas de mármore branco feitas no final da década de
1960, mas falando de boa parte de sua obra – ou talvez, em um certo
sentido, de toda sua obra –, Bourgeois diz: “Bem, estou em todas essas
paisagens, paisagens inconscientes, suaves, o máximo da suavidade – até os
Cumuls (Cúmulos) pertencem todos ao mesmo grupo. São antropomórficos
e também são paisagens”.[341]
Na arte, o sujeito está disperso. Não é possível apresentar dele um retrato
– a não ser que se trate de um heterorretrato: retrato díspar e opaco, que não
reflete uma coisa ou alguém que estaria fora dele, mas se compõe como
heterogeneidade assumida e buscada como tal.
No final dos anos 1940, Bourgeois realiza uma série de figuras em escala
humana, de madeira, que expõe na Galeria Peridot. Entre elas está Sleeping
Figure (Figura adormecida). Ela afirmava se tratar da criação de um
ambiente no qual o espectador pudesse caminhar entre as esculturas, a
disposição de cada uma e a distância entre elas sendo fundamental. Estava
em jogo a necessidade de tornar presentes figuras de que ela tinha muita
saudade, e dessa forma ela reconstruía um “passado indispensável”.[342] A
peça One and Others, de 1955, tem um título que “poderia ser o mesmo de
muitas a vir”, diz a artista.[343] Nela as figuras em escala humana dão lugar a
formas pequenas no mesmo material, e o espaço que havia buscado entre as
peças se retrai: “Toda a distância foi reduzida a zero. As formas se tocam e
funcionam exclusivamente ao se tocarem, ao se relacionarem”. Graças a
isso a artista teria entrado no “espaço abstrato”.[344]
Bourgeois não diria, parodiando Rimbaud, que a escultura é um outro,
mas afirma, peremptória, que “a escultura são os outros”.[345] Mais do que
significar que ela em seu trabalho destrói e reconstrói simbolicamente os
personagens de sua vida, essa frase enuncia que sua escultura não é ela
mesma – mas são os outros (nós) nos quais cada um se reencontra um
pouco, singular, e no entanto diferente de si próprio.
Trata-se assim, no trabalho de Louise Bourgeois, fundamentalmente, da
relação entre o eu e os demais, de modo a deslocar o sujeito do seu próprio
eu e recolocá-lo em jogo com os outros. Diz-se que boas cercas fazem bons
vizinhos, mas Bourgeois replica, categórica, que “boas cercas são
obsoletas”.[346] Ela conta que seus vizinhos derrubaram uma cerca para fazer
outra muito maior e ela então teria utilizado os esteios da velha cerca para
fazer uma escultura, embalando-os em grupos unidos por uma fita metálica.
A arte pareceria, dessa maneira, se revoltar contra a cerca que nos separa –
aquela mesma barreira existente entre cada eu e os demais, e capaz de gerar
em mim, como afirma Freud, uma reação de repulsa ou indiferença em
relação às fantasias do outro. Para destruir essa cerca e permitir que algo se
passe entre os eus, Bourgeois não disfarça o que há de pessoal na sua
fantasia, nem se ocupa em seduzir o espectador por seu aspecto meramente
formal, como faria o artista segundo Freud. Sua obra constrói uma
intimidade que denuncia e põe em xeque a própria estrutura da cerca,
mostrando a falácia de tal delimitação estrita para cada eu.
Assumindo e pondo em ato a ideia de que a própria figura do artista tem
algo de ficcional, ela denuncia, de forma paródica e não destituída de
humor, o fato de que todo eu é construído ficcionalmente. Com isso, como
quem dá uma rápida piscadela para seu interlocutor, ela revira sua obra em
apelo ao outro, em convite a que ele entre em sua suposta intimidade para
que aí, por debaixo da cerca, nesse “espaço abstrato” que é o da arte, algo
se transmita que é singular, mas comum (pois construído com os outros, de
saída). O sujeito: heterorretrato de todos e de ninguém.
Como diz Louise Bourgeois em uma entrevista de 1997, “a beleza é a
busca do ‘outro’”.[347]
MILTON MACHADO E A
ARQUITETURA DO PENSAMENTO

Mais filosófica que a ciência e mais rigorosa, ou seja, mais próxima da


essência da coisa − é a arte.
MARTIN HEIDEGGER

Arte é um troço mole, por isso são necessários fios flexíveis para tirar suas
medidas.
MILTON MACHADO
Milton Machado é um arquiteto sem medidas e um historiador do futuro.
Em seu trabalho parece se condensar, em um pulsante e heterogêneo caos,
nada menos que o mundo (um pouco como o aleph de Borges: tudo estaria
ali, ao mesmo tempo). Quando nos aproximamos um pouco mais, porém,
percebemos o rigor do traçado lógico e a ousadia da construção poética. “A
expressão do que existe é uma tarefa infinita”, como dizia Merleau-Ponty.[348]
Mas ao arquiteto não basta exprimir o que já existe. Exprimir o que existe
é, obrigatoriamente, construir o mundo (e seu tempo), incessantemente e de
forma plural.
Não se trata, portanto, de tecer sobre a realidade uma malha de ficção,
como talvez tenha feito até hoje boa parte da literatura e da arte. Trata-se de
revelar a própria estrutura que sustenta a relação entre coisa e linguagem e
embasa nossa ilusão de realidade homogênea. Trata-se, como na música, de
um trabalho de significantes, reordenando domínios como o do ritmo, da
harmonia, da melodia. Talvez isso tenha alguma relação com a paixão foliã
de Milton ao tocar tamborim na bateria Tsunami do tradicional bloco
carnavalesco das Carmelitas, e com sua prática solitária de improviso no
violão. Menos especulativamente, pode-se supor ligada a isso a importante
presença da música em vários de seus trabalhos, em geral em parceria com
seu grande amigo Rodolfo Caesar (mas também com Alexandre Fenerich e
Vania Dantas Leite, mais pontualmente). Nas cogitações poéticas de Milton,
trata-se de tocar o mundo, refazê-lo. Redesenhá-lo. Apresentar suas tripas,
ou seja: a estrutura simbólica que coincide em parte com o sistema da
linguagem, mas em outra grande parte o transforma, obrigando-o a ir além
dele mesmo, apontando para os restos que o transbordam e põem em xeque.
Porque tal estrutura é precária, fragmentada, está puída como tecido velho.
É necessário reinventá-la.
Como na máquina do mundo de Carlos Drummond de Andrade, estamos
diante de uma revelação. Mas ela não vem de repente, como no poema,
brotada da terra pedregosa de Minas durante uma perambulação do poeta.
Seu aparecimento é laborioso, pois coincide com uma verdadeira
reconstrução do dispositivo criador do mundo. Diante da possibilidade de
sua súbita revelação, o artista não renuncia e parte, mãos pensas, deixando
que se reencerre a resposta final que ali se oferecia. Ele sabe, de saída, que
não há resposta, e por isso põe a mão na massa; o pensamento força o sulco
do chão de barro e revira-lhe os torrões, refaz o mundo e pergunta, sabendo
que terá que repetir mil vezes essa operação, cada vez um pouco diferente.
O artista é a própria máquina do mundo.
Para assim revirar o mundo, é necessário ao mesmo tempo construir uma
narrativa e ir além de qualquer narrativa, subvertendo-a. É impossível e sem
interesse retomar a velha manta da modernidade com suas grandes e
unívocas narrativas. E já que não há uma História, mas muitas histórias,
variadas e sempre parciais, toda história, em vez de narrar fatos, ao se
desdobrar revela sua própria potência de gerar mundo (o que ecoa a ideia
de mundo erigindo mundo de Hélio Oiticica, sem, contudo, que se possa
identificar aí uma influência direta para História do futuro).
O simbólico é um jogo, uma aposta. A partir de sua leitura de Lévi-
Strauss, Lacan anuncia que “o inconsciente é estruturado como uma
linguagem” porque estamos tomados em um jogo de significantes que
produz intersubjetividade. Assim se constrói nossa realidade, como num
jogo de par ou ímpar. A estrutura é jogo imprevisível, e não sistema
imutável. A estrutura é máquina: ela gera mundo e portanto está voltada
para o futuro, só se realiza depois, assim como o significado de uma frase
se oferece após o fim de sua enunciação, retroativamente. O inconsciente,
da mesma forma, ignora a passagem do tempo cronológico – sob seu
domínio o passado não ficou para trás, mas continua pulsando no presente,
traçando narrativas futuras (que Freud chama de fantasias). A
temporalidade do inconsciente é aquela do só depois, da retroação. O
passado lateja e demanda (re)construção, ele não cessa de retomar sentidos,
retroativamente, e de apontar sua seta para o futuro. Diariamente,
reinventamos nossas histórias do futuro.
E sem a garantia do fato anterior e já dado de modo definitivo, toda
história torna-se paródia de si mesma.

“A graça do mágico está no truque, não na levitação”, afirma


O TRUQUE

Machado. O truque é subitamente revelado, e o grande mágico torna-se


voluntariamente um farsante, um manipulador. O artista muitas vezes
parodia a mágica alheia, os ilusionismos consagrados, para neles revelar o
truque.
No recente vídeo Vermelho (2009), uma placa de metal vermelha é
reinserida na linha de pintura de uma fábrica de móveis de escritório. Ali
onde circulam, em um sistema fechado e perfeito, peças ainda não pintadas,
o monocromo abre subitamente uma brecha e faz da indústria, pintura,
dialogando ironicamente com a história da arte. A tradição pictórica assim
se conjuga à indústria formando com ela dois lados de uma mesma moeda.
E o agenciamento poético revira as condições de produção e recepção,
jogando com as relações entre sujeito e objeto. A peça vermelha, que já
havia passado pelo processo de pintura, volta ao circuito de modo a se
reinserir nele como uma espécie de observador. O que era objeto inerte e
industrial, fruto de uma linha de produção, torna-se outra coisa, torna-se um
sujeito-pintura. Na exposição de 2009 na galeria Nara Roesler que tinha
como título, justamente, “Produção”, a placa era exposta como uma tela, ao
lado de uma montagem de gaveteiros da mesma cor, empilhados e com
gavetas semiabertas, formando uma espécie de escada (Pilha). “Havia a
placa como elemento de produção e o móvel como produto”, diz o artista.
“Um espionando o outro.”
Ao artista não interessa produzir objetos − nem mesmo objetos potentes
como os ready-mades, capazes de questionar o estatuto da arte ante a
indústria. Interessa a ele introduzir fissuras, pequenas perturbações capazes
de revelar todo o sistema. Da mesma fábrica vieram estantes e praticáveis
que, montados no salão, receberam então as obras do acervo da galeria,
antes guardadas em sua reserva técnica (na qual, em troca, foram dispostas
placas de metal). Ao longo da exposição, compradores ou visitantes eram
recebidos no próprio espaço expositivo, não em escritório reservado, e os
funcionários eventualmente precisavam aí manipular as obras de outros
artistas representados pela galeria. Tudo o que normalmente está fora e
fornece o enquadramento socioeconômico que sustenta uma exposição – o
armazenamento, a comercialização, as negociacões entre os atores desse
jogo – tornou-se parte da “produção” do próprio artista. Tratava-se, nas
palavras de Machado, de “um modo de reagitar o objeto da circulação
trazendo-o de volta para a produção”.
A inserção de um elemento dissonante no circuito de produção industrial
parece dialogar com as Inserções em circuitos ideológicos de Cildo
Meireles. A mensagem “Yankees go home” decalcada na garrafa de Coca-
Cola ou o carimbo “quem matou Herzog” nas cédulas de cruzeiros são
elementos estranhos ao processo de produção desses suportes, mas que
mantinham com eles, naquele momento histórico do país, uma evidente
relação ideológica de oposição. Já o circuito trabalhado por Machado,
décadas mais tarde, parece despido de qualquer ideologia. Não se trata tanto
de inserção quanto de distorção: elementos internos são utilizados de modo
a revirar o próprio circuito, forçando-o a funcionar contra ele mesmo, ou
melhor, levando-o a mostrar o sistema que normalmente fica oculto sob a
primazia do resultado, de seu produto final. Trata-se, para usar o termo do
artista, de reagitar objeto e sistema de produção e de consumo de arte.
Reagitar um sistema é investigá-lo e explorá-lo, performando ou
mimetizando suas operações para revirá-las de modo a mostrar o truque,
revelar o engodo no qual nos encontramos imersos a ponto de naturalizá-lo
ou de a ele ficarmos cegos. Todo sistema, como os de produção industrial
ou artística, configuram-se em relação à ordem do simbólico, o domínio da
linguagem ao qual estamos de saída e inexoravelmente submetidos.
Machado trabalha a linguagem e a realidade por ela conformada, de modo
a, ao mesmo tempo, refletir sobre a arte, o homem, o mundo.
Nisso ele parece se alinhar a Joseph Kosuth, para quem a arte teria
tomado para si, na contemporaneidade, as questões sobre o homem e o
mundo nas quais a filosofia teria fracassado. Machado é um dos raros
artistas no mundo que de fato performam tal tarefa filosófica, que o próprio
Kosuth acabou evitando em prol de uma reflexão mais sobre a própria arte e
menos sobre o sujeito e o mundo. O artista não compartilha a crença, que
em sua opinião sustentaria a proposta de Kosuth, de ser possível investigar
a própria “natureza” da arte para chegar a sua “verdade”. Não há verdade da
arte. A própria arte não pode, portanto, ser capaz de chegar a uma meta-
arte, tampouco poderia alguma teoria filosófica fornecer sua explicação
última. Desse modo, Machado coloca as mãos na massa, por assim dizer,
das teorias, não para adotá-las e aplicá-las, mas para fazer com elas outra
coisa, coisa de pensamento divertido e, muitas vezes, plástico. Ele de fato
apaga as delimitações, invade fronteiras e perturba tanto a expectativa de
uma obra de artista quanto de uma reflexão de filósofo. Sua atividade como
professor universitário, PhD em fine arts e pesquisador do CNPQ não é, em
absoluto, secundária ou contingencial, mas manifesta tal hibridismo
fundamental a sua proposta.

A arte não é uma evidência, não é um dado, uma imagem ou um


A DIVERSÃO

objeto. É uma busca, ou melhor: uma investigação. Mas trata-se de As


férias do investigador, como afirma o título do trabalho de 1981, e o
pensamento torna-se uma diversão: o que retorce, mostra o verso e desvia
da versão consagrada.
Assim, Machado mistura erudição e gíria, rigor investigativo e improviso
jazzístico, lógica irrepreensível e batucada. O artista-investigador de férias
“dá um tempo em seu compromisso com a verdade e faz dela arremedos
suspeitos”. Ele cria paralogias malandras, explorando as possibilidades de
subversão da linguagem. Entre essas, o dispositivo da diáfora assinala em
seu pensamento a preocupação com questões que marcaram a arte desde
que Raymond Roussel encena, em 1919, suas Impressões da África,
influenciando toda uma geração de escritores e artistas, e notadamente
Marcel Duchamp.
Diáfora é a figura de linguagem presente em construções como, em
Camões, “novos mundos ao mundo irão mostrando”. Roussel a radicaliza,
no início de sua obra, tomando como regra usar termos multívocos como
“bande” (indicando a lateral de uma mesa de bilhar x um bando de
criminosos), nas frases quase homófonas “les lettres du blanc sur les
bandes du vieux billard” e “les lettres du blanc sur les bandes du vieux
pillard”, para a partir delas construir uma narrativa iniciando-se com a
primeira e se concluindo com a segunda. Apesar de as duas frases serem
quase idênticas, a distância semântica entre elas é enorme: a primeira
refere-se a letras escritas com o giz de bilhar nas laterais de uma velha mesa
do jogo; e a segunda, a cartas de um homem branco sobre os bandos do
velho pilhador. Tal diferença assinala que é apenas retroativamente, ao final
de cada frase, em sua última palavra, que se precipita o sentido. A língua
não está inteiramente submetida à significação, mas é primordialmente
material de jogo, de brincadeira, de deslizamento. Pela homofonia, o
significante toma a dianteira sobre o significado, introduzindo
descontinuidades no campo do sentido e construindo um imaginário
realmente fantástico porque quase impossível, nos limites da linguagem.
O próprio Roussel revela, pouco antes de se suicidar, o método que teria
guiado a construção de parte de sua obra, caracterizando-o como
“essencialmente um procedimento poético” que seria, inclusive, parente da
rima.[349] Após um curto período de aplicação literal, o procedimento teria
evoluído de maneira a levar o escritor a extrair uma série de imagens do
deslocamento de um texto qualquer. Um texto, para tornar-se escrita, deve
ser objeto de distanciamento e desvio, gerando imagens no limite do
imaginável. Para Michel Foucault, Roussel “não quer duplicar o real com
um outro mundo, mas, nos redobramentos espontâneos da linguagem,
descobrir um espaço insuspeitado e recobrir coisas ainda nunca ditas”.[350]
A revelação do procedimento é curiosa e um tanto perturbadora. O
escritor evoca o objetivo de apresentar o método para que outros possam
dele tirar proveito, mas isso não convence. O discurso de Como escrevi
alguns de meus livros não é exterior a sua obra, mas faz nela uma espécie
de dobra, tornando-a por assim dizer mais espessa, dotada de verso e
reverso. Mas ele não nos permite de fato interpretar ou compreender a obra.
Creio que a revelação adensa e refaz o enigma, porque convoca a própria
opacidade da linguagem, o ponto no qual ela não significa nada – que é
justamente aquele do qual pode provir sua força poética de dizer sempre
outra coisa.
Duchamp, em nota a respeito de O grande vidro, afirma: “O desvio
(l’écart) é uma operação”.[351] Uma operação de diferenciação mínima (infra
mince, diria ele) que lhe permite fazer jogos de palavras como “un mot de
reine / des maux de reins” (uma palavra de rainha / dores nos rins).[352] E o
leva a aplicar desvios a imagens e objetos assim como a palavras, em boa
parte de sua obra.
Por “traços diafóricos” Milton Machado denomina “semelhanças
marotas”, construídas como “aproximação e identidade por distanciamento
e diferenciação”. Diáfora é o título de uma série de esculturas que se inicia
em 1990 com um retângulo de ferro perfurado por pregos apenas em parte
de sua superfície, formando um padrão quadriculado. Na versão feita para a
exposição em Roma também em 1990, o mesmo procedimento é realizado
em duas chapas de aço, repetindo o padrão do piso quadriculado da galeria.
“Os quadrados das cerâmicas do chão da versão romana produzem diáfora
em relação aos quadrados formados pelos pregos nas chapas”, nota o artista.
Não é o objeto criado por ele que é concebido como uma diáfora em relação
ao padrão do piso, mas o contrário: retroativamente, as cerâmicas lá
existentes formam com o objeto uma relação diafórica. Machado prossegue:

Furos preenchidos × furos vazios. Quadrados preenchidos por pregos ×


quadrados vazios de pregos. Chapa apoiada × chapa pendurada. Chapa
chapa, prego prego, furo furo, funcionam como a frase exemplar: Il
sogno della mia vita è perdere la mia vita. Vita vita, vida cintura,
prego furo, e por aí vai.

Por coincidência, as cerâmicas romanas tinham as mesmas dimensões dos


quadrados da chapa de ferro, o que o artista marotamente atribui a
“intervenções divinas”. Uma terceira Diáfora, apresentada em São Paulo
em 1993, “incorpora” a geometria dos elementos já presentes: uma mesa,
uma chapa, módulos, sugerindo uma irônica retomada da herança
concretista na arte brasileira. Machado afirma ainda: “Mas gosto também de
olhar essas esculturas como o que são, objetos plásticos de fazer
barulhinhos. Diáfora é um barulhinho”.
A um “filósofo do desmesurado” é necessária a viagem, a diáfora (que
em grego significa diferença e dispersão e também pode tomar a conotação
de exílio). Ele força as medidas, as fronteiras de dado território, instaura a
diferença e inventa outro lugar onde se está de passagem, se é estrangeiro
(um lugar do futuro, talvez). O real apresenta-se, retroativamente, como
algo produzido pela linguagem, pelo simbólico, mas que no entanto, em
uma espécie de quiasma, já estava lá. A evidência não está no passado ao
qual se opõe um presente, mas em um futuro anterior: uma vez construída
ficcionalmente pelo artista, ela terá sido o real.
A diáfora denuncia nossa condição de estrangeiros à linguagem,
passageiros das palavras (como de um ônibus ou barco). Por um segundo
esse reviramento da língua nos põe fora da palavra e talvez por um instante
nos aproxime do real, em seu excesso inominável. A diáfora faz do mesmo
outra coisa, faz do dentro do enunciado um fora e depois o integra
novamente – mas pagando o preço de tornar-se ela mesma um fora.
Transformando-se. Irmanada à alegoria, ela faz dizer mais do que está dito,
convocando o fundo de excesso que o sentido encobre e limita. Por isso,
provavelmente, ao “Investigador em férias que só perfaz horas extras”
interessa, como diz Machado, “mais o excesso de resultados e de respostas
do que as justas medidas”.
O artista afirma que o poético é sempre over. Talvez haja, de fato, algo de
excessivo em seu trabalho – isso mesmo que o faz caracterizar-se como
“filósofo do desmesurado”. Tal excesso vai no sentido da alegoria para
Walter Benjamin: é desmesurado o que implica dispersão e fragmentação.
Não se trata nunca de representação simbólica, em suas fabulações, em suas
ficções, mas de operações poéticas que põem em xeque qualquer
possibilidade de decifração. Diferentemente da metáfora, na qual o nome de
alguma coisa é transportado para outra coisa – segundo a clássica definição
de Aristóteles –, a alegoria consistiria no trânsito do nome de outra coisa
para outra coisa, em um jogo que põe em questão o próprio processo de
significação (assim, o artista pode escrever que “todos os mundos de HF
[História do futuro] são metafóricos; mas sem o Mundo Imperfeito e o
Mundo Perfeito como metáforas, não seria possível dizer de que o Mundo-
Mais-que-Perfeito é uma metáfora”). Metáfora da metáfora: a palavra
desliza e é impossível tocar a coisa de que se trata.
Sem referentes fora dela mesma, a história nasce de uma catástrofe e só
se pode contar como história do futuro. O sentido é nômade. A
representação só se refere a si mesma e portanto qualquer investigação
sobre a significação deve ser uma diversão – não existe versão certa. O
imóvel (de Edifício Galaxie, vídeo que possui várias versões entre 1975 e
2003) torna-se móvel e vice-versa, desde que eu lhes dê o mesmo nome. A
própria linguagem é lugar de torção, de dispersão, de diáfora.

História do futuro não é um de seus ensaios


HISTÓRIA DO FUTURO, OU O MUNDO: MODO DE USAR

experimentais, de seus “ensaios satíricos”, como Milton Machado os


nomeia, mas a magnum opus que de alguma maneira tudo perpassa. Nela, o
dispositivo satírico reveste-se de discurso científico, ou melhor, de ficção
científica. O artista se encanta com a possibilidade, aventada por um
especialista, de que ele venha a se materializar em um game. Um psiquiatra
à la Machado de Assis em seu O alienista poderia ver aí um delírio, mas se
espantaria com a precisão de sua sistematização e concluiria talvez tratar-se
de um delírio bem-sucedido, ou seja, de um arremedo perfeito para a
realidade esburacada vivida na loucura. Um delírio capaz de tirar seu autor
da loucura e trancafiar todos aqueles que continuam acreditando no pouco
de realidade (como diria Breton) que sustenta a precária empiria de nosso
dia a dia.
Um trabalho de 1978, concebido enquanto o artista frequentava um curso
de especialização em urbanismo (antes de seu mestrado, iniciado em 1980),
tem como ponto de partida a localização, no mapa do centro do Rio de
Janeiro, de uma espécie de furo no espaço urbano: as enormes fundações
abandonadas de um edifício na avenida Nilo Peçanha, um arranha-céu
anunciado, na época, como o maior prédio da América Latina. Essas ruínas
subterrâneas foram tomadas por Milton Machado como centro de rotação
de uma régua, que foi então acionada por um peleteco, até parar e
determinar uma direção – em referência ao caráter arbitrário de muitas
decisões do planejamento urbano. A reta assim obtida apontava cinco
construções que o artista propõe serem destruídas: parte dos armazéns do
porto, o Viaduto da Perimetral, a Igreja da Candelária, o Palácio Gustavo
Capanema e o Museu de Arte Moderna. Essa espécie de “utopia negativa”
constitui a Fábrica utópica de realidades objetivas (F.U.R.O.). A realidade seria,
assim, fabricada graças à construção de furos; ela é objetiva apenas na
medida em que o objeto é perda e ruína (ecoando, em uma direção
insuspeitada, o não objeto de Ferreira Gullar).
As fundações do “Buraco do Lume” – como ficou popularmente
conhecido o local – seriam como os “pilares do novo mundo” de História
do futuro. Milton Machado considera uma espécie de “exemplo de uma
história do futuro” o fato de que todos os pontos marcados viriam a sofrer
radicais transformações, e em alguns casos verdadeiras destruições, como é
o caso do MAM incendiado, e em breve, conforme projeto já em andamento,
para a Perimetral e o Cais do Porto. A Candelária foi objeto de um projeto
(abandonado) de deslocamento; o Palácio Gustavo Capanema mudou várias
vezes de função e de identidade. Algo perfura o tempo e transforma o
espaço urbano: de proposição fictícia, a destruição torna-se real. Algo se
repete, sempre atual e capaz de produzir passado e futuro. Afinal, como diz
Lyotard em uma lição exemplar para qualquer reflexão sobre a
contemporaneidade e o pós-moderno, “devemos admitir uma multiplicidade
de tempos atuais”.[353]
A história não é um acúmulo e uma sistematização de fatos, mas o
movimento de apropriação de uma reminiscência, o relampejo de uma
catástrofe passada, como dizia Walter Benjamin. A história (re)cria furos,
catástrofes, ruínas. E um fato só se torna fato histórico “postumamente,
graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”.[354] A
tarefa do historiador é, portanto, a de captar e mostrar a configuração desse
momento em que sua própria época entra assim em contato com uma época
anterior. Enquanto isso, o futuro, como aponta o filósofo, seria o tempo em
que permaneceria entreaberta a porta para o Messias.
Já a reflexão de História do futuro quebra qualquer lógica messiânica,
revelando que não há mais salvação no horizonte dos tempos. A catástrofe
passada continuará a se reproduzir no futuro, indefinidamente, gerando a
cada vez, novamente, um mundo. A história é um jogo, quase um
videogame, no qual arriscamos a vida e devemos fazer algumas escolhas –
poucas, dentro de um leque prefixado. Pode-se sucumbir ingenuamente,
simplesmente esperar a morte, como é o caso do personagem Morto Vulgar.
Ou fugir em desespero, como o Sedentário, realizando o movimento
contrário àquele da máquina simbólica: descer para as profundezas,
acreditando em um solo seguro, em uma realidade independente do jogo e
capaz de subsistir a seus efeitos. Ou ainda pode-se tomar a saída marota de
acompanhar o próprio jogo, seguindo o ritmo de seus movimentos. Rolando
como uma pequena esfera, temos aí a figura do Nômade, emblema do
artista.
História do futuro é mostrada em Gibellina, na Sicília, em 1991, quando,
segundo o artista, “as ficções de HF são mais uma vez submetidas a testes nos
laboratórios de produtividade do real”. Repete-se então a estranha
experiência de imbricação entre ficção e realidade e de reversão temporal.
Por coincidência, a cidade havia sido totalmente destruída por um
terremoto, em 1968. “Se minhas ficções passarem no teste, e se minhas
analogias provarem ser produtivas, os bravos habitantes da grande Cidade-
Mais-que-Perfeita de Gibellina poderão muito bem exemplificar os meus
Nômades”, diz Machado. Longe de ser o campo de partida da ficção, o real
é o terreno no qual se dá a confirmação da operatividade do funcionamento
simbólico que só se pode reconstruir com ficções plurais. Não há
recobrimento total entre real e simbólico, entre mundo e linguagem.
Como diz Lyotard, “deve enfim ficar claro que não nos cabe fornecer
realidade, mas inventar alusões ao concebível que não pode ser
apresentado”.[355] O inventor do concebível, ou o Investigador (em férias) de
Milton Machado, não acredita, como o cientista, poder chegar a um real
último graças à validação experimental de suas hipóteses. Ele desconfia que
não haja referência última à qual as hipóteses devam ser ajustadas. Portanto,
o cientista-sátiro faz do laboratório o próprio real, na medida (sem medidas,
claro) de sua “produtividade” ficcional. CQD: a ficção faz o real.
São e não são fortuitas, portanto, as coincidências entre as invenções
ficcionais e o real. Há relampejos (para falar como Benjamin) que se dão
pelo aparecimento de semelhanças ocasionais, reativando o passado e
retransformando o presente (a partir do futuro, ou seja, da ficção). Mas tais
lampejos são faíscas que não chegam a queimar. Elas não permitem a
elaboração de um discurso capaz de organizá-las em um sentido coerente (à
maneira do que faz há milênios a astrologia a partir das cintilâncias que nos
lançam as estrelas). Elas não autorizam uma doutrina como a da mímeses
ou a da metáfora. Tais coincidências são como piscadelas que subitamente
nos lança o mágico, mostrando o artifício de suas façanhas. Elas revelam
pontualmente a estrutura, não pela demonstração de um todo unificado, mas
pelo fragmento, pelo arbitrário. Não se pode laçar o simbólico e estendê-lo
sobre a mesa; resta apenas nele inventar caminhos nômades − para, aqui e
ali, escorregar em seus furos, como em falhas geológicas. O simbólico é
esburacado, e entre suas malhas se cai às vezes em outro tempo, num
vislumbre instantâneo de outro mundo.
“Para lidar com a perplexidade contemporânea, só um projeto que seja
flexível, moldável, adaptativo. Plástico, enfim”, afirma Machado. E
arremata: “Com a plasticidade da sátira, como sugerido por Lyotard”. A
sátira é instrumento de esferidade, de nomadismo. O procedimento satírico
torna maleável (plástico) o próprio mundo. De acordo com a lógica da sátira
segundo o filósofo francês, para falar do que é pretensamente preciso e
imutável seria preciso adaptar-se a ele, no sentido de adotar seu próprio
estilo rígido e estável – mas sem nele acreditar. Ou seja, alguma torção,
algum desvio se realiza de modo a denunciar no discurso a falha, a
inconsistência – do simbólico, do mundo, da arte. O termo (arte) deve para
Milton Machado ser grafado assim, entre parênteses, para “afirmar a
relatividade, a contingência, a natureza intervalar, modular, o caráter insular
do território”, como afirma em resposta a Guilherme Bueno em entrevista
recente. Uma ilha deve lançar pontes e eventualmente sonhar com a junção
completa afirmada pela Pangeia sobre a qual o artista leu em 1978 – quando
ela não passava de uma hipótese – e que ele situa como marco inicial da
construção de História do futuro. Mas ela também deve assumir seu caráter
insular e precário, atendo-se aos parênteses que a colocam em suspenso:
longe do mundo, fora – apenas por um instante – do sentido, pronta para a
catástrofe que rompe todos os diques e a separa de vez do continente, para
que em seguida seja repetida a construção de pontes até que venha a
destruição do sistema, mais uma vez, e assim repetidamente.
História do futuro ensina que o simbólico destrói e constrói,
alternadamente. Destrói a perfeição e o ideal, destrói as pontes com o outro
e as reconstrói. Nossa “cidade”, a morada do homem, seu ethos, não é fixa e
segura. Como já dizia Freud, o homem não é mais senhor em sua própria
casa; como dizia Nietzsche, Deus está morto. No simbólico não estamos em
terra firme, tampouco voamos graças às mãos hábeis de algum piloto. Na
linguagem, não criamos raízes, mas estamos em exílio (em diáfora). Não só
porque não temos lugar predeterminado, mas também porque a própria
estrutura da linguagem não é imutável: seu motor é um Módulo de
Destruição / Construção que executa ciclos sem fim. O Mundo Imperfeito
relaciona-se com uma cidade perfeita, mas tal antítese não leva à Cidade-
Mais-que-Perfeita como síntese. Não há resolução final que reconcilie os
contrários. O mais-que-perfeito é invenção, diz o artista. Uma invenção
necessária: “Foi necessário inventá-lo para que eu pudesse falar do Mundo
Imperfeito e do Mundo Perfeito. E para poder olhar tais mundos em
perspectiva, como que à distância”. O que faz a arte é forçar uma distância,
é forjar uma perspectiva que nos permita ver o mundo. Só depois da arte.
Depois da arte, o mundo (a arte talvez sempre construa histórias do futuro).
Em sua ilimitada abrangência, História do futuro mostra-se também uma
história (revirada, é claro) da arte. As esculturas, de formas clássicas e
materiais nobres, são deslocadas da tradição formal para se tornarem
personagens: a bela esfera negra é o Nômade, o portentoso cubo vazado,
enorme grid de ferro é o Módulo de Destruição. Isso se passa mais ou
menos como uma criança que amassa na mão um pedaço de pão e o põe na
mesa, dizendo à outra, para começar a brincadeira: este é o super-homem,
ou este é o meu cavalo.

“História do futuro é sobre sua exterioridade”,


COM O SUJEITO, E NÃO DIANTE DE SEUS OLHOS

afirma Milton Machado. É sobre o mundo. A arte é fora dela mesma.


Afinal, segundo a leitura feita pelo artista do conceito de Benjamin, “a aura
é o dentro que está fora”.
A ideia de um exterior que se conjuga ao interior é fundante da arte
contemporânea brasileira, com O dentro é o fora (1963) de Lygia Clark. A
fita de Moebius, figura topológica unilateral, é por ela utilizada em
Caminhando (1963) para permitir um percurso existencial ao longo do
tempo (“o ato de se fazer é tempo”, dizia a artista). O único trabalho
realizado em parceria por Clark e Hélio Oiticica retoma a fita unilateral
colocando-a em torno dos punhos dos dois artistas em um Diálogo de mãos
(1966). Os Parangolés de Hélio têm em geral faixas de tecido, ou outros
materiais, que se retorcem como a banda de Moebius, realizando seu
projeto de se dar como um “transobjeto”, um objeto que está no corpo e está
fora, está naquele que veste e naquele que olha.
Na obra de Milton Machado o pensamento parece fazer ele mesmo a
torção, a subversão da fita de Moebius. A diáfora não deixa de ser uma
torção desse tipo, no seio da linguagem. Mas talvez Machado estresse a
banda de Moebius de modo a alargar sua exterioridade e tornar um Homem
muito abrangente, como afirma o título da bela performance de 2002 na
qual um atirador de facas atinge muitas vezes seu alvo dentro do contorno
de um corpo desenhado na parede, enquanto o artista, seu assistente,
inscreve em carvão na parede: “Um homem tão abrangente que ocupasse o
mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se muito bem
como assistente de um mau atirador de facas”.
O Homem muito abrangente é quase total. Mas lhe falta algo: sua
interioridade, justamente. Ele não possui individualidade e “nem sequer
uma aparência”, como afirma o texto do artista a seu respeito. Trata-se de
um sujeito impuro, híbrido, plural. Ele está “além dos limites”, e seu “corpo
é todo poros”, como afirma o título do texto que transcreve conversa
polifônica entre personagens como Plínio o Velho, Leonardo da Vinci, Pico
della Mirandola, David Lowe, entre outros “amigos”. O corpo não é
interno, ele não deve ser considerado como “entidade fechada e isolada”,
mas como “‘coisa’ relacional”, “criada, delimitada, sustentada e finalmente
diluída em um fluxo espacial-temporal de múltiplos processos”. O corpo se
dissipa de forma a abranger as múltiplas relações com o outro e o mundo.
Para acompanhar o movimento do Módulo e assim se salvar da própria
destruição, em História do futuro o Nômade deve, na pausa infinitesimal
antes de o sistema retomar seu ciclo, “negociar uma posição”. Tal
negociação do Nômade com o Módulo de Destruição implica diferença e
relação e engloba todo tipo de jogo, como afetar / ser afetado, combater /
ser combatido, atravessar / ser atravessado, negociar com etc. Este é nosso
ethos, nossa ética: negociar com o simbólico demanda um certo jogo de
cintura, demanda esferidade, digamos, e nomadismo (ou seja, implica uma
escolha do exílio, uma recusa do sedentarismo). Em uma torção
fundamental para HF, o artista indica que não é o Módulo de Destruição o
motor de todo esse sistema, como afirmamos acima. É o Nômade o motor
do simbólico. “Penetrando (etc. etc.) o Módulo de Destruição, o Nômade
coloca o universo inteiro (i.e., o universo fragmentário de HF) em movimento
(põe o universo para correr), transformando-o.”
E nós somos o Nômade, diante / dentro de História do futuro. Parece
referir-se a essa obra a afirmação de Lyotard de que “esses ensaios, assim
como essas frases, são feitos ‘dentro do ser’ e não diante de seus olhos.
Cada trabalho apresenta um microuniverso; a cada vez, o ser não é nada
senão cada uma dessas apresentações”.[356] Um pouco como Flaubert
afirmando “madame Bovary, c’est moi”, devemos, diante desse trabalho,
apostar, um pouco confusos: História do futuro, c’est moi.
Estamos “dentro”, porém em exílio, em diáfora. História do futuro nos
nega, assim, a posição central – porém desimpedida – necessária para sobre
ela fazer um “tratado” (gênero que, segundo Lyotard, “incita a arrogância”,
[357]
aquela arrogância que, nos filósofos, transforma-se em metafísica). As
(re)invenções aqui por mim ensaiadas devem ser tomadas, talvez, como
Cidades Mais-que-Perfeitas que o Módulo de Destruição já começou a
aniquilar. Seja como for, diante da ausência de tratados definitivos sobre a
arte e sobre o mundo, resta-nos apontar o artista como, em definitivo, um
tratante.
A ESTÉTICA É SEMPRE POLÍTICA:
CILDO MEIRELES

A arte aqui não é sintoma da crise, ou da época, mas funda o próprio


sentido da época, constrói os seus alicerces espirituais.
HÉLIO OITICICA
No mundo em que o mercado de arte se internacionalizou a ponto de quase
apagar as fronteiras entre países e continentes, não parece fazer sentido
buscar caracterizar uma arte “inglesa”, “chinesa” ou “brasileira”. A arte
contemporânea poderia, por uma certa vertente, ser de fato tomada como
exemplar na defesa da globalização: faz-se arte na América Latina como na
Ásia ou na África (ou seja, seguindo os parâmetros já definidos pela Europa
e pelos Estados Unidos). No entanto, a um olhar mais atento não escapa o
fato de que parte da produção atual em arte recoloca em jogo questões de
pertencimento e de marcas culturais e geográficas, muitas vezes
economicamente traçadas.
É comum, entre críticos estrangeiros, a caracterização da arte brasileira
contemporânea por sua abertura à participação sensorial do espectador. Os
marcos fundadores dessa preocupação estariam no neoconcretismo e se
firmariam especialmente nas derivações deste, realizadas principalmente
pelas propostas de Lygia Clark e Hélio Oiticica ao longo das décadas de
1960 e 1970. De forma bem distinta de uma op art, porém, a participação
concebida por esses artistas é profundamente conceitual, implicando uma
sofisticada reflexão sobre o objeto de arte, o sujeito da arte e a relação entre
sujeitos segundo a arte. Essa última questão chega, em Oiticica, a constituir
uma verdadeira conceitualização da cultura – assumindo-a como cultura
brasileira, localizada histórica e socioeconomicamente, especialmente com
a proposição do Parangolé.
Para refletir sobre a atual produção artística brasileira, é portanto
imprescindível recuperar e vivificar a problemática do sujeito, de maneira a
ir além do lugar comum da “participação do espectador” e mostrar suas
relações com o questionamento do objeto, do espaço e da cultura. Tento
neste ensaio recolocar tal problemática em jogo, em movimento, na obra de
Cildo Meireles – que a retorce para fazê-la, de saída, uma questão política.
Tentando fazer jus à sutileza e ao caráter “encarnado”, por assim dizer,
dessa problemática, tomo como base uma entrevista realizada com o artista
em maio de 2009. Busco entrelaçar elementos de filosofia e psicanálise com
a fala e os próprios trabalhos de Cildo, na tentativa de criar ressonâncias
reveladoras acerca da arte brasileira e transformadoras de temas tradicionais
à abordagem da arte contemporânea, como a temporalidade, a aura, a busca
do espaço real, o outro e o comum.
Talvez nos seja impossível, como já apontava Freud
ENTRE SUJEITO E CULTURA, A HISTÓRIA

em 1927, escrever sobre nosso próprio tempo. Seria necessário tomar certa
distância para fazer dele um passado, uma história. Impossível fazer disso
em que estamos mergulhados um objeto de reflexão rigorosa, de
conhecimento imparcial. É des-conhecendo que estamos no mundo, e toda
reflexão sobre ele – e o homem – acaba talvez reproduzindo um certo
velamento, atualizando uma alienação no sentido forte que lhe dá Lacan: a
formação do eu se dá fora, no objeto.
Informados sobre o caráter ilusório e parcial de toda abordagem do
“presente”, não cessamos, porém, de tentar falar dele. Mesmo quando não
tomamos a atualidade como objeto, mesmo quando pretendemos fazer
história e nos debruçamos, prudentes, sobre o passado. Não é possível sair
de seu tempo para, observador onisciente, percorrer os acontecimentos
passados e atuais com um mesmo sábio e soberano distanciamento. Não só
estamos implicados nesses acontecimentos, como neles nos formamos e
vivemos. O sujeito nunca aparece em si, como entidade deles independente
– ao contrário, ele se aninha em alguns objetos singulares, que ocupam um
lugar de destaque na cultura: especialmente as obras de arte. Nelas, o
sujeito se esconde mas se deixa parcialmente revelar, de acordo com a
estrutura de alienação pela qual se constituiu.
Tentando talvez dar notícia do fora que nos formou, a crítica de arte
sustenta-se como discurso sobre alguns objetos privilegiados na cultura, os
objetos de arte. Mas o mundo dos objetos da cultura é, de saída, o sujeito –
nele se passa algo de fundamental que nos faz sujeitos. Toda consideração
sobre as relações da arte com a sociedade deve levar em conta o fato de que
a arte agencia ações sobre a cultura e o sujeito, sobre seu complexo vínculo
constitutivo. Seria muito redutor pensar uma incidência da arte sobre a
sociedade que não passasse por uma ação sobre o sujeito.
O objeto de arte transmite algo do sujeito, pois ele carrega um
testemunho do acontecimento incomparável que nos constitui. A arte
projeta às vezes no futuro, como o faz Mário Pedrosa, este acontecimento
subversivo, “cambalhota no cosmos”, pela qual o homem se revira em
objeto de si mesmo.

O homem, objeto de objeto de si mesmo, talvez vá terminar seu ciclo,


sem saber mais onde encontrar-se, ou encontrar sua essência ou sua
substância. Terá ele feito, então, a cambalhota no cosmos sobre si
mesmo, seu destino. Mas saberá, então, naqueles inconcebíveis
tempos, que é ele próprio? Isto é, que é nós mesmos, ainda e sempre?
[358]

Longe de resolvê-la, tal cambalhota relança, sem cessar, a questão do que é


o homem – e de suas relações constitutivas com o objeto. Inquirido sobre a
questão do sujeito e do objeto em seu trabalho, Cildo Meireles afirma sentir
“que eles aparecem em vários momentos, mas não é uma coisa refletida,
consciente, uma decisão. É um afloramento”.[359]
Na cultura, o sujeito está – ou melhor, ele mal-está, se levarmos a sério a
ideia freudiana de que há sempre mal-estar na cultura. Na arte, objeto e
sujeito afloram de modo privilegiado, retomando suas condições de origem.
O lugar do sujeito é incerto, na medida em que ele de saída está
provisoriamente nos objetos, e mesmo naqueles que preexistem a ele. Ele
não é mais, de forma estável e bem delimitada, numa relação de
independência e complementaridade em relação ao objeto. O sujeito está lá,
em algum lugar, eventualmente em algum objeto, longe – ou, para usar a
palavra em língua espanhola: “lejos”. Para o artista, essa seria a palavra
mais bonita que existe.

Isso que é estranho no “lejos”, é que é um lá, mas que normalmente é


povoado por algum ser. Tem alguma coisa de vida, de ser que eu
associo a esta palavra. Lembro-me de viagens noturnas por Goiás,
quando eu tinha cinco ou seis anos, e de repente via uma luzinha lá
longe, podia ser o farol de um carro que daqui a tantos minutos ia
cruzar comigo. Ou seja, no “lejos” há uma presença. É claro, tinha esse
sujeito que estava experimentando essas coisas [aponta para si com as
mãos unidas], mas também eventualmente tinha um sujeito que estaria
lá, mesmo.

Lá longe, no “lejos”, há uma promessa de cruzamento, de encontro. Haveria


uma espécie de “interpenetrabilidade que, na verdade, é uma zona de
dissolução dos dois lados, sei lá, desses dois sujeitos”, diz Cildo Meireles.
Entre mim e algo que de repente se dá a ver há um poético encontro –
mas isso permanece longe, “lejos”.
O mal-estar na cultura marca a impossibilidade de um encontro sem
falhas entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e suas produções culturais.
E aponta também que é de forma conflitante e não homogênea que se dá o
intrincamento entre sujeito e cultura na história – ou melhor, que é essa
complexa imbricação que faz história. A história é feita desse cruzamento
entre sujeito e cultura, e carrega portanto suas tensões e contradições.
Tomando essa posição em relação à história, podemos afirmar que a
produção artística brasileira atual não se mostra como uma decorrência
linear de sua história recente, numa lógica evolutiva e mecanicista, mas que
nela pulsam, plurais, incertas e por vezes silenciosamente, as questões que
estiveram em primeiro plano décadas atrás. Não há mera continuidade, mas
um campo aberto de enorme complexidade entre uma geração e outra. Há
questões que, semeadas em determinado momento, voltarão para questionar
os homens do futuro – e formá-los como tais. Talvez possamos tomar nesse
sentido a afirmação que faz Mário Pedrosa em 1967: “O artista de hoje
tenta, sem o saber, em suas pesquisas por vezes tão premonitórias, situar o
homem no contexto futuro”.[360]
Em contrapartida, o passado continua a pulsar, hoje, de um modo que nos
força também à difícil tarefa de tentar situar o homem no contexto passado.
Pois, como escrevia Walter Benjamin em 1940, “existe um encontro
secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra
está à nossa espera”.[361]

Para Benjamin, como bem se sabe, a reprodução técnica da


A AURA E A TRANSITORIEDADE

imagem generalizada pela fotografia e pelo cinema seria capaz de destacar


o objeto reproduzido do domínio da tradição. Viveríamos um declínio da
aura, uma certa propriedade do objeto de arte que, em vez de ser
simplesmente definida como brilho advindo de sua unicidade ou raridade,
recebe do filósofo uma conceituação um tanto rebuscada e contraditória.

Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de


elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa
tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho,
que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas
montanhas, desse galho.[362]

Não é no domínio específico da arte que Benjamin buscará definir a aura,


mas primeiramente no da natureza – no domínio da paisagem, bem ao gosto
do Romantismo que ele tão bem estudou. Trata-se da relação do homem
com algo um tanto longínquo, exterior a ele, e que se dá à contemplação –
qualquer coisa, talvez, desde que se ofereça ao olhar como uma “aparição”.
Nessa “aparição” que é a aura, o fator espacial envolvido parece ser o de
uma certa distância: as montanhas estão no horizonte, quanto a isso não
resta dúvida. O galho, por sua vez, está acima de nós, distante o suficiente
para projetar alguma sombra. Graças a esse espaçamento entre sujeito e
objeto algo pode então se transmitir de um a outro: a sombra projeta-se em
nós; a aura das montanhas, nós a respiramos. Sua aparição assemelha-se a
uma reminiscência: “Numa tarde de verão…” – pois talvez seja necessário,
ao falar dela, estabelecer também uma distância temporal. Trata-se de uma
aparição no passado: ela é única porque foi perdida, só retrospectivamente
pode ser reconhecida como tal. A coisa deve se distanciar tanto espacial
quanto temporalmente, “por mais perto que ela esteja”: há que estar de
algum modo “perto”, apesar da distância. A sombra do galho deve estar
sobre nós, a aura das montanhas deve ser por nós respirada, naquela
longínqua e agradável tarde de verão.
Foi também num dia de verão que Freud passeava com Rainer-Maria
Rilke e Lou Andreas-Salomé pelos campos, às vésperas da Primeira Guerra
Mundial. A beleza do cenário não trazia ao poeta nenhum contentamento,
pois lhe perturbava a ideia de que ela estava fadada a desaparecer, quando
chegasse o inverno, assim como “toda beleza humana e toda a beleza e
esplendor que os homens criaram ou poderão criar”. Para Rilke, a
perspectiva de fenecimento retirava daquela beleza qualquer possibilidade
de presença, destituindo-a de qualquer potência aurática, poderíamos dizer.
Para Freud, porém, é justamente a transitoriedade dessa beleza, seu caráter
efêmero, que aumenta seu valor. “O valor da transitoriedade”, diz ele, “é o
valor de escassez no tempo.” E prossegue: “A limitação da possibilidade de
uma fruição eleva o valor dessa fruição”.[363]
Haveria, portanto, uma temporalidade própria à aura. A distância
temporal que ela parece estabelecer é a marca de uma certa perda iminente
capaz de contaminar a presença atual da coisa contemplada, de modo a
torná-la uma “aparição”. Por isso a aparição é “única” e a “coisa”,
“distante”, “por mais perto que ela esteja”. Trata-se de uma “coisa” que, no
instante mesmo em que aparece ao olhar, é nele perdida – fazendo-se,
portanto, passado. É justamente essa transitoriedade que pode lhe conferir
uma aura, e isso implica uma certa mobilização do sujeito: como mostra
Freud, ele deve engatar um trabalho de luto: o trabalho psíquico pelo qual o
sujeito refaz ativamente a perda que lhe é imposta e, através dessa perda de
algo, transforma-se a si mesmo. A Rilke, naquele momento, a experiência
do olhar estava fechada porque ele se revoltava contra a perda e se recusava
a tal luto.
Uma certa precariedade, uma iminência de queda e perda aparecem como
fundamentais no pensamento de Cildo Meireles.

Uma das belas experiências que eu tive com arte foi com o Umberto
Costa Barros, em 1970 [na montagem da exposição “Do Corpo à
Terra”, com curadoria de Frederico Morais]. De manhã ele chegou e
ocupou o porão do Palácio das Artes em Belo Horizonte, que estava
cheio de tijolos, ripas, sarrafos, caibros, telhas etc., restos da obra que
tinha sido ali realizada. No final do dia, quando eu desço no porão,
vejo que Umberto pegou tudo que estava no equilíbrio mais instável.
Simplesmente pegava uma ripa e botava em pé, no equilíbrio mais
precário mesmo. Tijolos, numa linha assim, infinita. Você tinha a
impressão de que se respirasse um pouco mais forte ia derrubar tudo.
Uma sensação estranha, muito legal.

Através da arte, caminhamos e refazemos nossa precariedade. Objeto de


arte e sujeito são agentes de um mesmo luto.
Se o contemplador de Benjamin devia estar “em repouso”, o de Freud
passeia pelos campos, móvel, e é convocado a uma mobilidade mais
fundamental: aquela que lhe permite reavaliar sua própria condição,
tomando de si mesmo alguma distância. Medindo-se pela transitoriedade
que a aura lhe impinge, o homem “não é mais senhor em sua própria casa”,
como já afirmamos várias vezes com Freud. O observador, tocado pela
aura, não é mais senhor de sua própria paisagem, nem de sua arte. Sem
firme lugar de repouso, ele vaga e se divide, ele próprio transitório,
marcado pela perda de algo – assinalando o horizonte de sua morte
inevitável.
Comentando a frase de Freud, Cildo Meireles diz que “pensando bem, o
homem não é senhor em lugar nenhum. Essa foi uma espécie de falácia
milenar. Mas talvez necessária”.
O artista conta sua visita ao célebre políptico A adoração do cordeiro
místico (1432), de Jan Van Eyck e seu suposto irmão Hubert, que se
encontra numa igreja na cidade belga de Gent e teria sido objeto de
peregrinação de grandes pintores dos séculos seguintes: “É realmente
deslumbrante. A obra consegue te tirar dali, da frente dela e daquele tempo
ali, e te joga em outra… Você não consegue evitar esse sequestro. Sequestro
relâmpago”.
Em vez de repouso, a contemplação levaria a uma vigorosa
movimentação que implica certa despossessão de si, numa perda de lugar
que não é sem risco, como indica a brincadeira de Cildo ao falar de
“sequestro relâmpago”. Num relâmpago, numa fulguração, algo toma o
sujeito e o deixa sem lugar e sem tempo – jogando-o talvez na distância que
a aura, apesar de reafirmar um “perto”, não cessa de indicar.
Tradicionalmente, na imagem “a unidade e a durabilidade” associam-se
intimamente, enquanto na reprodução imbricam-se “a transitoriedade e a
repetibilidade”, como nota Benjamin.[364] Na reprodução, mesmo a mais
perfeita, perde-se algo: “O aqui e agora da obra de arte, sua existência
única, no lugar em que ela se encontra”.[365] A unicidade da obra perde-se ao
mesmo tempo que se põe em xeque a unidade e o lugar do sujeito – ao
mesmo tempo, ou seja, no tempo de uma atualidade cheia de dobras onde o
passado e o futuro continuam sempre a pulsar.
Não se deve interpretar a constatação benjaminiana da perda da
autenticidade do objeto de arte, porém, como uma sentença de morte da
aura, em prol do frio domínio da reprodução técnica com sua pobre ditadura
da semelhança por ela mesma. Em um mundo capaz de gerar imagens em
profusão, a aura parece declinar e tornar-se ainda mais efêmera em sua
aparição. Mas isso não leva a seu total desaparecimento, uma vez que a
existência da aura talvez tenha sempre se devido à sua própria perda, à
desaparição súbita que a ela se segue. Por um lado, portanto, ela arriscaria
se perder diante dos meios técnicos de reprodução em larga escala, mas, por
outro, como sua perda era desde sempre condição de sua possível aparição,
ela termina por recuperar seu pulso, mais aparição do que nunca, efêmera
centelha.
Não faz sentido, como aponta Benjamin, falar em autenticidade de uma
fotografia. Não há aí um original gerando cópias, como era o caso das
gravuras feitas a partir de grandes chefs-d’œuvre da pintura. Em vez de
apoiar nesse fato um questionamento do valor artístico da fotografia, deve-
se ver nele uma transformação operada pela invenção da fotografia sobre a
natureza da arte. Por isso o filósofo vaticina que “a arte contemporânea será
tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade”,
ou seja, “quanto menos colocar em seu centro a obra original”.[366] Com a
reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emanciparia radicalmente de seu
valor de culto, do uso ritual ou mágico sobre o qual ela teria surgido de
modo parasitário, ela deixaria o vasto domínio da religião para alcançar
outra esfera humana. “Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se
em outra práxis: a política.”[367]
A reprodução fotográfica marca a perda de algo – ela aponta, como
escreve Barthes em seu A câmara clara, que isso-foi, algo se passou e a
fotografia guarda sua marca, transmite sua aparição.[368] É justamente ao
fazê-lo que ela, em vez de deteriorar-se como mera cópia, pode aceder a
alguma aura, ou melhor, pode lograr reconstruir sua lógica de aparição e
perda em nós. É notável que Benjamin aponte justamente nessa operação,
de forma tão contundente, um alcance político.
É certo que isso se refere, em parte, à larga difusão de produções técnicas
como os filmes e suas consequências na formação e manejo das massas.
Mas não deixa de apontar para outra possibilidade, aquela que, falando do
cinema, o filósofo assim caracteriza: “Fazer do gigantesco aparelho técnico
do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica
cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido”.[369]
Fazer da técnica um objeto humano. Forjar no objeto nervos humanos, e
assim fazer história, ou seja, aceitar perder-me no momento mesmo em que
compareço, num ato fundamentalmente político, ao encontro marcado com
esse tal “alguém” que está na Terra, à minha espera.

O objeto nos chama, às vezes, em certos momentos únicos,


A AURA SE DÁ ATRAVÉS

auráticos talvez. Momentos de um certo afloramento. Cildo Meireles fala, a


respeito da concepção de sua instalação Através, de um barulho que
subitamente lhe chama a atenção, e que ele descobre vir de sua lixeira. Era
uma folha de papel celofane que ele havia amassado e jogado fora.
Através, 1989, instalado permanentemente no Instituto Cultural Inhotim,
tem em seu centro uma bola de cerca de três metros de diâmetro, feita de
papel celofane transparente amassado. À sua volta estão dispostos, em uma
área de quinze metros de lado, diversos elementos como cortinas, painéis de
plástico e vidro de dimensões variáveis, translúcidos, bem como redes e
cercas de todo tipo: barras de ferro, treliças, arame farpado, telas de nylon,
madeira, alambrado, cordas. Um aquário retangular abriga pequenos peixes
transparentes. A estrutura da obra é a de um labirinto, mas nele não nos
perdemos porque podemos ver através de suas paredes vazadas ou
translúcidas, bem como nos intervalos entre elas. E porque a luminosa bola
de celofane pulsa em seu centro de modo a nos atrair e deter, em sua escala
quase humana, em sua estatura quase monumental. Ela é luz,
principalmente, transpassando dezenas de superfícies e nos convidando a
contemplá-la, não tanto em si mesma quanto nos reflexos e recortes através
de planos diversos que a multiplicam e reproduzem.
A aura sempre está através, nunca na coisa mesma. A obra pode não ser
mais do que um dejeto, um objeto cotidiano, recuperado da lixeira. A folha
plástica que comumente é usada para embalar um objeto especial, um
presente, pode tornar-se ela mesma uma obra – desde que ela nos chame,
nos lance, de alguma maneira, um apelo. De origem obscura, a obra não
encontra mais em si mesma sua garantia – e talvez nunca seja autêntica, na
medida em que se perdeu a autoridade, a autoria como firme amarra de seu
lugar na cultura. Em ressonância a isso, o sujeito deve se deslocar através
da obra, em busca deste algo longínquo (e no entanto perto) que se
transmite em pulsos incertos. Sob suas passadas, dezesseis toneladas de
cacos de vidro fazem ruídos semelhantes àquele produzido pela folha de
celofane na lixeira, quebrando-se ainda mais e obrigando-nos a andar em
ritmo lento e a tomar consciência de nossos passos. “O vidro quebrado”, diz
Cildo, “faz você ir na velocidade correta do trabalho. De uma certa maneira,
ele é uma pulverização deste solo, deste chão.” A aura puxa nosso tapete e
nos deixa quase sem chão.
O artista comenta ainda que “tem alguma coisa que acaba aparecendo em
várias obras como a estrutura de um paradoxo. Uma estrutura labiríntica é
sempre um convite a uma certa visitação, por outro lado o vidro funciona de
uma maneira oposta a isso”.
O vidro deixa de ser o transparente suporte de uma aparição, para tornar-
se quebra e opacidade, pondo em desequilíbrio o próprio lugar do sujeito.
Convidado a se movimentar, mas obrigado a certa lentidão: tal seria a
paradoxal posição do contemplador. Nessa sutil e complexa montagem do
espaço de contemplação que desmonta a construção tridimensional, fazendo
dela um labirinto de superfícies bidimensionais, há uma quebra do espaço
ilusório. E assim a cena vista pelo sujeito é posta em crise, de modo a
revirar a posição que nela ocupa o observador.
Tal construção crítica do espaço era já buscada por Cildo nos Cantos
(1967-68) e nos Espaços virtuais: Cantos (1968), pela quebra irônica do
traçado arquitetônico para indicar um lugar que não poderia estar lá,
abrindo uma brecha no encontro entre três retas que costuma constituir,
como num ângulo de parede, a estrutura mínima da tradicional construção
perspectiva. Forjando uma dobra virtual na superfície representativa,
delineia-se um misterioso espaço para além da representação. É através,
atravessando a obra, que se abre a brecha onde devemos questionar a arte, o
sujeito, o mundo. “Os cantos são como uma cena de Vermeer. Neles
acontece de tudo”, diz o artista.[370]
Cildo Meireles considera como seu mestre o peruano Felix Alejandro
Barrenechea, com quem estudou em Brasília. Ele ensinava principalmente
os fundamentos do olhar, fazendo com que seus alunos passassem horas
olhando uma tela ou um objeto qualquer. “A ideia era olhar mesmo,
impregnar-se do objeto observado, transformar-se nele”, diz Cildo.[371] Em
entrevista a Frederico Morais, o artista afirma que Barrenechea se
interessava especialmente pela questão da quarta dimensão.[372] Questionado
a esse respeito, ele comenta que essa era uma preocupação disseminada no
espírito da época.
Mário Pedrosa já notava que a ciência recente se distancia da concepção
racional de um universo em três dimensões para abrir-se “de todos os
lados”, fazendo com que “seus espaços” sejam “múltiplos”. Ele conclui
então que

neste universo dinâmico, instável, paradoxal, em que as velhas noções


geométricas são destruídas, o artista não tem mais pontos de referência
para se orientar nem instrumentos de prospecção fáceis e cômodos
como, por exemplo, nos tempos clássicos, a perspectiva e o escorço.
Logo, não mais pode deixar-se levar pelo caminho bem pavimentado
da ciência dedutiva e dos espaços euclidianos. A própria intuição não
está mais confinada ao sensível imediato. Como o geômetra moderno,
cada artista é obrigado a montar sua própria geometria, e é daí, dessa
concepção individual mas universal, que ele parte, e nunca do conceito
morto.[373]

Cildo Meireles dedica-se em larga medida a construir, ao longo de sua


produção, uma geometria própria. Em sua obra, fica claro que a geometria é
o ponto de partida incerto para uma reflexão sobre o lugar imprevisível do
sujeito em um mundo instável, e que ela é capaz de gerar espaços múltiplos
e complexos onde o conceito não é “morto”, mas o conceitual se torna vida,
numa dimensão ao mesmo tempo singular e universal.
Antes de serem incorporados de modo abusivo pelo mundo da
tecnologia, especialmente da informática, os espaços impensáveis que os
artistas do século XX compartilham com os físicos são profundamente
subversivos. Há algo de “anedótico” nos Cantos, diz Cildo. Parodiando o
rigor técnico da geometria euclidiana, eles subvertem a própria lógica da
representação mimética perspectivista e, com ela, põem em xeque o lugar
do sujeito. Nowhere is My Home, como declara o título dado pelo artista a
seus primeiros Espaços virtuais: Cantos para o Salão da Bússola, em 1969.

Em 1925, El Lissitzky analisava a arte revolucionária baseado


O ESPAÇO E O SUJEITO

numa concepção de plano que deixa de ser uma mera superfície para
“incluir o espaço”, ultrapassando a perspectiva em prol de uma
“pangeometria” variada que constituía tentativas plurais de exploração do
espaço, em diálogo com a matemática e a física.[374] Ele reconhece um marco
dessa invenção do espaço no quadrado negro de Malevich: “Esse quadrado
inteiramente cromático, inteiramente saturado de cor em uma superfície
branca, engendrou uma nova concepção de espaço”.[375] Em 1919, Malevich
já escrevera que “nesse momento, o caminho do homem passa pelo espaço.
O suprematismo, semáforo da cor, situa-se em seu abismo infinito”.[376] Se o
homem caminha num espaço dinâmico e complexo, a arte o põe a andar na
beira do abismo.
Em seu alinhamento com as vanguardas russas do início do século XX, ao
lado da influência direta de Pedrosa, o projeto neoconcreto delineava-se
como uma tentativa de expansão no espaço, a partir do uso do “vocabulário
geométrico” para expressar “realidades humanas complexas”, como
explicita Ferreira Gullar no Manifesto Neoconcreto. A arte se daria como
“fenômeno que dissolve o espaço e a forma como realidades causalmente
determináveis e os dá como tempo – como espacialização da obra”.[377]
Gullar precisa: “Entenda-se por espacialização da obra o fato de que ela
está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando o impulso que a
gerou e de que ela era já a origem. […] A arte neoconcreta funda um novo
‘espaço’ expressivo”.[378]
O espaço surge como preocupação expressiva, tanto em Lygia Clark com
sua linha orgânica e, em seguida, seus Casulos e seus Bichos, quanto em
Hélio Oiticica e seu mergulho na cor (seu “corpo-cor”) para chegar à
arquitetura dos Núcleos e dos Penetráveis. O espaço se distende em
dimensões múltiplas e se desmaterializa em tempo e ato, o que levará ao
desdobramento das trajetórias de Lygia e Hélio, para além do
neoconcretismo, como busca do sujeito no corpo e do ato transformador do
sujeito – e do social, explicitamente em Oiticica. A respeito dessas
questões, Cildo Meireles refere-se a uma conversa com Guy Brett, anos
atrás:

Guy via a obra de Lygia Clark como se dando da pele para dentro, e a
de Hélio Oiticica, da pele para fora. Isso batia com uma questão que eu
tinha com esses dois artistas. Quando você pega os Bichos da Lygia,
ainda se trata de um acesso a uma interioridade, mas conseguida
através de um observador externo que se insere na história da
escultura. Houve uma época em que eu ficava pensando qual dos dois
teria chegado a uma chave mais geral para essa questão do lugar do
sujeito, desse novo lugar do sujeito. Num determinado momento eu
achei que era essa saída do Bicho, que é um primeiro estágio na Lygia,
porque depois ela passou mesmo para uma coisa que era da
sensibilidade lá para dentro. E o Hélio, tinha essa coisa que desde o
início me impressionou: o fato de que o objeto, esse lá, esse limbo, sei
lá, de repente passa a ser o lugar do sujeito. Quer dizer, você está
dentro da cor – sempre lembrando que, quando você pensa no El
Lissitzky, você vê a origem de tudo, sobretudo do neoconcretismo.
Mas eu acho que houve esse avanço, a partir exatamente desse
reposicionamento do sujeito em relação a esse tipo de produção. Eu
noto que em alguns trabalhos essa é uma preocupação que aparece às
vezes, e às vezes até esqueço onde aparece – mas, por exemplo, acho
que no Cinza isso é muito claro.

À chave mais geral, uma espécie de síntese do “dentro” de Lygia com o


“fora” de Hélio, incluindo sua incidência social, talvez seja Cildo que
melhor tenha a ela chegado, ecoando, de maneira insuspeitada, a afirmação
de Mondrian em 1937: “O único problema na arte é chegar a um equilíbrio
entre o subjetivo e o objetivo”.[379] Isso implica, como mostra a obra de
Meireles, a construção de um espaço crítico.
Cinza (1984-86) consiste em duas cabines de 27 metros cúbicos cada
uma. As paredes e o teto são painéis de lona pintada, formando uma base de
acrílico sobre tela, inteiramente preta em um compartimento e branca no
outro. Sobre a base branca foi aplicado carvão em quase toda a extensão
dos painéis. Um carvão foi posicionado no centro do cubo e iluminado de
modo a gerar projeções dele em cada parede e no teto, e somente nas
pequenas áreas correspondentes a essas projeções não é aplicado carvão,
ficando visível a base branca. Restam em cada painel do cubo, portanto,
uma vez subtraído o carvão, pequenos trapezoides brancos marcando sua
ausência. No cubo de base preta é feito procedimento análogo, com o giz
branco cobrindo tudo, salvo os retângulos e o círculo gerados pela projeção
de um pedaço de giz, em seguida retirado. O chão do cubo negro está
coberto de carvão, o do cubo branco, de giz. Temos, assim, lado a lado no
espaço tridimensional, uma espécie de leitura do quadrado negro e do
quadrado branco sobre branco de Malevich, inaugurando um jogo, uma
contaminação entre eles marcada pelos materiais utilizados, os clássicos giz
e carvão (cujo índice nas telas da parede e do teto tem a cor oposta: branco
para o carvão, negro para o giz).
Em Cinza, estaríamos talvez “dentro da cor”, como queria Hélio com
seus penetráveis. Porém, o uso exclusivo do branco e do preto – que não
são exatamente cores, segundo Cildo – faz da cor, signo e da pintura,
inscrição. Esse trabalho brinca com a chamada Geração 80, fazendo uma
leitura crítica da volta à pintura proposta pelos artistas que dela faziam
parte. Nas palavras do artista, trata-se de “uma pintura na qual se pode
entrar, pisar, interagir de maneira a ir além da simples posição de espectador
diante da tela”.
No lugar do giz e do carvão, subtraídos do interior dos cubos, somos
convidados a nos colocar. Há uma “migração sujeito / objeto”, na expressão
de Meireles. Migração: o objeto ausente que comanda tal arquitetura não
garante um lugar para o sujeito, mas obriga a um trânsito, uma passagem.
Devemos entrar e sair de um e outro cubículo, passar de um ao outro. Os
passos do espectador misturam a partilha entre branco e preto, de maneira a
fazer surgir nuances de cinza. Na alternância branco / preto, inscreve-se
algo, marcam-se vestígios da passagem do sujeito. Da “impressão” na
superfície, diríamos, faz-se então “expressão” no espaço vivencial. Em tal
espaço, o sujeito não encontra enfim sua casa. Ao contrário, tal
possibilidade de localização do sujeito no espaço é radicalmente negada, ao
mesmo tempo que se indica um jogo, uma alternância necessária entre
objeto e sujeito. Talvez nesse jogo possamos ver o “equilíbrio entre
subjetivo e objetivo” visado por Mondrian (ou seria antes de um
desequilíbrio que se trata?). Seja como for, trata-se de construir um espaço
crítico: que põe em crise qualquer estabelecimento de lugares. Nem preto,
nem branco: cinza. Nem objeto, nem sujeito. Nem dentro, nem fora: o
sujeito, para Cildo Meireles, está de passagem, andarilho.

Esse espaço crítico é aquele do sujeito no mundo – ele tem,


O ESPAÇO DO OUTRO

portanto, uma inequívoca incidência política. No que Cildo caracteriza


como um projeto dos anos 1970, jamais realizado, teríamos

um país tão estreito, tão estreito que não coubesse ninguém lá dentro.
Todos os seus nacionais seriam necessariamente estrangeiros. Isso é
um pouco também uma situação de fronteira que eu acho interessante,
onde exatamente esse sujeito da pele para fora, digamos, ele não tem
um lugar físico. Isso é a coisa do malabarista, que você só resolveria se
introduzisse uma outra variante – o tempo, sei lá. Seria impossível
numa coisa meramente espacial.

O espacial é levado a seus limites, e a ideia de quarta dimensão aparece na


vertente que faz dela o tempo, como postula a teoria da relatividade de
Einstein. Privado de um lugar fixo e predeterminado, o homem torna-se o
malabarista de Cildo: aquele capaz de manipular objetos no espaço de modo
a expandi-lo e movimentá-lo. “O malabarista”, diz o artista, “é uma síntese
do conceito de território.” Manipulando três objetos em um território para
apenas dois, ele introduz a questão do tempo. “Na verdade, o malabarista é
aquele que encontra um lugar no tempo”, conclui o artista.[380]
Um “lugar no tempo”: o sujeito só tem lugar na história. Seu lugar é
sempre uma fronteira, ele nunca é parte de um território, mas deve se
movimentar para dentro e fora de uma linha precária. Agenciando objetos
de modo a convocar o tempo, o artista estaria continuamente fazendo
história.
“Muitos dos meus trabalhos”, afirma o artista, “passam por uma noção de
território que, nesse exato momento, está em estado de indefinição, de
suspensão.”[381] Forçando o espectador a ir além da geometria euclidiana,
criticando a ideia de um território do sujeito, o malabarista lhe entreabre um
campo quase “mágico”, poético, o do olhar para além da mera visão. A
suspensão na qual se encontram os malabares, num átimo, é também
convite a uma certa suspensão do observador, colocado em movimento e
equilíbrio precário.
Em seu projeto inicial para Inhotim, Através deveria ser instalado ao ar
livre – talvez para contaminar todo o mundo, o espaço circundante, em uma
mesma lógica crítica. Já que, como afirma Cildo, “não há saída fora da
lógica do objeto de arte”.[382]
As relações do sujeito com o espaço parecem, de fato, íntimas. “O
homem-espaço”, anota Heidegger em anexo ao texto de uma conferência
proferida em 1964. E, em seguida: “Homem? Espaço”.[383] Mas o que é o
espaço? A resposta do filósofo é: “O espaço espaça” (der Raum räumt).[384]
Entre o espaço e o homem haveria uma “misteriosa” relação de constituição
mútua. “O homem não faz o espaço; o espaço também não é nenhum modo
subjetivo da intuição; ele também não é nada objetivo como um objeto. O
espaço precisa, antes, do homem para espaçar como espaço.”[385]
Espaçar seria “desbravar”, “libertar”, liberar um “fora”, um “aberto”,
abrindo “a possibilidade de ‘regiões de encontro’ (Gegende, em alemão), de
pertos e longes, de direções e limites, a possibilidade de distâncias e
grandezas”, prossegue Heidegger. Se o espaço é a instalação de regiões
determinadas, ele diferencia o perto e o longe, limitando mas ao mesmo
tempo abrindo a possibilidade de encontro entre diferentes. Criar espaço
possibilita um encontro tenso, uma certa confrontação – segundo o tradutor
deste texto, Gegende é região, bairro, entorno, mas deriva de gegen, que
tem sua origem no latim contra.[386] O homem espaça, e ao fazê-lo, ele recria
espaços em si mesmo, dividindo-se, abrindo em si a brecha, a perda de que
falava Freud no seu texto sobre a transitoriedade, ao lado e contra o outro.
Como já vimos, Cruzeiro do Sul, de 1969-70, é um cubo de nove
milímetros de lado, formado de uma seção de pinho e outra de carvalho.
Esses dois tipos de madeira são atritados pelos índios para produzir fogo e
isso seria visto na mitologia indígena como uma espécie de poético ritual de
invocação da divindade do fogo. Nessa evocação da cultura indígena, temos
sem dúvida um ato político no sentido estrito: uma defesa dos índios cuja
dominação através da força bruta, mas também da religião, marca nossa
história. Sabemos o quanto a história de artista é tocada pela causa indígena
pela qual militava seu pai Cildo Meirelles, importante indigenista, bem
como seu tio Francisco Meirelles. Mas o fundamental no Cruzeiro do Sul, o
que ele tem de político num sentido mais amplo, no sentido estético-
político, reside em sua relação com o espaço: ele deve ser colocado em uma
sala de pelo menos duzentos metros quadrados, vazia.
Cruzeiro do Sul espaça, e para tal ele precisa de nós, do homem, como
dizia Heidegger. O espaço se faz em nós, ele nos espaça e, nesse espaço,
abre vias de “comunicação” desse incomunicável, desse grande
acontecimento entre homens que a centelha provocada pela manipulação da
madeira ilustra tão bem.
Questionado sobre a reflexão sobre o espaço como central em seu
trabalho, Cildo confirma que isso seria reiterado ao longo de sua produção,
mas afirma:

À medida que o tempo passa, eu cada vez mais acredito que a única
coisa que existe mesmo é o tempo, todo o resto é resíduo. Talvez exista
apenas esse único e grande mecanismo que a gente não consegue saber
exatamente o que é. […] Às vezes eu me pego pensando assim: mas o
que será um planeta? Talvez seja o acúmulo de algum resíduo que só
um tempo muito longo permitiria se manifestar como tal. Talvez a
Terra não seja grande coisa, talvez ela não seja mais do que um
cisquinho de uma bactéria que se reproduziu, agora necessariamente
vai chegar um ponto irredutível do que ela é. E é isso que vai constituir
todo o resto.

O planeta talvez não seja mais do que um acúmulo de tempo. Nesse


vertiginoso pensamento, a arte assumiria uma desmaterialização radical do
mundo para, em seguida, reconstruir um mundo outro, a partir de algo
mínimo, mas capaz de convocar o sujeito em seu jogo com o outro.

Uma das marcas fundamentais e comuns entre Lygia Clark e Hélio


ESPAÇO SONORO

Oiticica foi a tentativa de ultrapassar a delimitação entre dentro e fora que


estabelece a base de nossa corriqueira experiência do espaço, em prol de
uma torção entre essas duas noções que seria fundamental para a
experiência artística, envolvendo a relação com o objeto e o outro. Como já
vimos, o uso que os dois artistas fazem da fita de Moebius tem aí um papel
importante, ao materializar tal tentativa.
Em Cildo Meireles, a fita de Moebius aparece em Mebs / Caraxia (1970-
71), um lp de 33 rotações no qual são registradas conversões sonoras, por
oscilação de frequência, dos gráficos de uma fita de Moebius e de uma
espiral. O neologismo caraxia é uma palavra-valise formada pela contração
de caracol com galáxia. Esse trabalho brinca com a ideia de um espaço
sonoro, que já aparecera na seguinte proposição, de 1969:

Estudo para área: por meios acústicos (sons). Escolha um local (cidade
ou campo), pare e concentre-se atentamente nos sons que você
percebe, desde os próximos até os longínquos.

Essa área conformada pela audição concede ao homem algum lugar no


tempo. Trata-se de um lugar efêmero, sempre em mutação, que faz dele um
malabarista, detendo os objetos apenas para rapidamente relançá-los, sem
parar, sempre em movimento. Talvez o netinho de Freud que gostava de
brincar de jogar seu carretel para longe, para fora do campo de visão, fosse
já um aprendiz de malabarista.
O artista leva às últimas consequências o projeto neoconcreto que vimos
aparecer no Manifesto escrito por Gullar: dissolver o espaço e a forma e
apresentá-los como tempo. A área sonora delimitada pela proposição de
Cildo é sempre cambiante, é acontecimento no tempo e resiste à
cristalização imaginária que faz do espaço um lugar reconhecível à primeira
olhadela. Mas talvez essa experiência construa, sim, determinado espaço – e
talvez os deficientes visuais cheguem a ter na ambientação sonora uma
referência fundamental para sua localização. Seja como for, para aqueles
que têm no visual sua principal baliza essa área acústica é um campo de
estranheza, uma espécie de forro invisível da cena do mundo.
Esse campo “in-visível” se aproxima, provavelmente, daquilo que Freud
nomeava como Outra Cena, a cena do inconsciente. O objeto sonoro é
quase imediatamente perdido – só podemos ecoar aquilo que chegou aos
nossos ouvidos, relançando-o em uma espécie de malabarismo (por isso
Lacan faz dele o objeto a por excelência). A memória não costuma permitir
a “re-evocação” de frases ouvidas da mesma maneira que permitiria a
reprodução de coisas vistas. Mas esse é um domínio que parece escapar a
afirmativas tão peremptórias – ouvir vozes é uma experiência radicalmente
humana e não é exclusiva à sintomatologia psicótica, apesar de não fazer
parte de nossa experiência cotidiana. Freud salientava que as frases ditas em
sonho em geral teriam sido efetivamente ouvidas na vida de vigília, e fazia
das coisas ditas pelos pais uma espécie de base do supereu.
Mas é sem dúvida o domínio da música aquele que, na cultura, mostra do
que se trata, no domínio do som, para o homem. A música é memória. É
desnorteador pensar na possibilidade de se ouvir sempre músicas diferentes,
sem que nenhuma peça jamais se repita. Ouvimos e reouvimos música: a
música é uma experiência que pede repetição, ou seja, ela é claramente uma
atividade desejante. Seu objeto é a voz, a que nos submetemos muito
precocemente em nossa constituição como sujeitos. A voz do outro entra
pelo corpo de modo inescapável, não há como tapar inteiramente as orelhas
como quem fecha os olhos. O timbre, o ritmo, as vibrações sonoras atingem
meu corpo, ainda que de maneira subliminar, convidando-me a alguma
dança (e eu devo, em geral, calá-los, deixar de ouvi-los, para que o eu possa
permanecer quieto no seu canto).
A voz atinge o corpo e fala dele, antes de falar com ele. Ela veicula a
linguagem, a cultura, e delimita o que fica fora desse campo: o ruído, o puro
barulho, a natureza. Há vozes não localizáveis em corpo algum, vozes do
Outro que a cultura materializa – penso no rádio e na estranheza que deve
ter encarnado no momento de sua invenção, mas o fundamental é notar que
a música existe para ser cantada por qualquer um, ela não depende de
determinado intérprete, como bem mostram as cantigas populares que
sequer têm um autor definido. A música é invocação, é convite a que eu
cante (ainda que silenciosamente). A música toca e circula entre os homens.
Sal sem carne explora essa circulação e a promove, entre sonoridades
múltiplas. O lp de 1975 traz uma mixagem entre vários elementos, tais
como entrevistas, um canto indígena avá-canoeiro, gravações da festa do
Divino Padre Eterno em Trindade de Goiás e trechos da Rádio Relógio (que
até alguns anos atrás, além de dar as horas, trazia informações gerais, de
tipo enciclopédico, iniciadas pelo bordão “Você sabia?”). A ideia inicial era
trabalhar com os índios kraôs, de grande importância para o artista. Na
década de 1940, seu pai foi enviado à região conhecida como Bico do
Papagaio, na fronteira entre Maranhão, Piauí e o atual estado do Tocantins,
para tratar de um inquérito administrativo a respeito da morte de índios. Ele
transformou em inquérito policial o que se revelou um massacre de grandes
proporções realizado por um fazendeiro local, e assim contribuiu de forma
decisiva para a primeira condenação por assassinato de índios no país. Em
retaliação, grupos ligados ao fazendeiro conseguiram fazer com que ele
perdesse o emprego, o que trouxe dificuldades para a família Meirelles ao
longo de boa parte da década de 1950.
Para realizar Sal sem carne, Cildo buscou, sem sucesso, autorização para
ir à kraholândia. Optou, então, por entrevistar caboclos, de vaga
descendência indígena, alojados em um acampamento que existia em torno
de uma instituição psiquiátrica em São Cotolengo, também em Trindade de
Goiás. Conversou também com o chamado Zé Nem, um índio xerente
(povo próximo dos krahôs) que conheceu em Goiânia. A todos indagava
qual seria a diferença entre índios e brancos.
Vários dos entrevistados responderam que o índio come carne sem sal. O
título Sal sem carne inverte tal resposta e com isso retorce e relança a
pergunta sobre a identidade, que sempre pressupõe diferença, demarcação
em relação ao outro. Esse trabalho toca, assim, em um ponto de
identificação e diferenciação que o Brasil costuma denegar, apesar da
miscigenação patente que compõe boa parte de sua população. Sal sem
carne mistura índio e branco, sobrepondo-os em uma espécie de
palimpsesto e agenciando diálogos – ou melhor, uma polifonia – que
constitui um espaço sonoro e político.
Esse espaço é aquele, segundo o artista, da terceira margem do rio,
segundo o título do famoso conto de Guimarães Rosa.Tal seria a posição
dos excluídos, daqueles que não pertencem a nenhuma das margens da
sociedade. Trata-se de um “lugar que não está”, que não mantém uma
posição fixa, que “flutua” (como se diz da movimentação de um jogador de
basquete). Entre o índio e o não índio, Meireles agencia uma flutuação, uma
mobilidade que bem poderia caracterizar a população brasileira em geral.

Para a Bienal de Liverpool em 2004, Cildo pretendia sobrepor todas


POLIFONIAS

as canções dos Beatles, alinhando-as por seu ponto mediano de modo a


formar uma espécie de pirâmide cuja base é dada pela peça mais longa
(“Hey Jude”, com mais de sete minutos). Mas o preço dos direitos autorais
que deviam ser pagos a seu detentor, Michael Jackson, era impraticável. Ele
optou então por trabalhar com The Beatles One, álbum de 2000 que reúne
27 singles dos rapazes de Liverpool. Liverbeatlespool começa, portanto,
com “Hey Jude” e a ela vão se incorporando outras canções, em uma
sofisticada mixagem na qual por vezes reconhecemos um trecho de uma ou
outra canção (ou dela lembramos?), por vezes ouvimos uma massa sonora
que faz da música um ruído estranho, uma massa sonora, uma multidão de
canções.
Uma vez que se atinge o ponto mediano de todos esses hits, eles passam
a ser tocados ao contrário. Isso não faz muita diferença no momento em que
há muitos trechos em sobreposição. Quando “Hey Jude” toca sozinha,
porém, a inversão da direção de reprodução sonora produz um efeito
curioso de familiaridade e estranheza, pois algo se reconhece como próprio
da música da banda mas talvez com um toque folk, enquanto a letra faz
ouvir uma língua desconhecida (ou melhor: inexistente). Do hit, esse
produto extraordinário da cultura de massa, Meireles refaz a voz (de cada
um e de todos, de uma multidão, ao mesmo tempo) como apelo que funda o
sujeito. Como dizia Barnett Newman, “o primeiro grito do homem foi uma
canção”.[387]
A ideia de tocar a música de trás para diante vem de um comentário de
Andy Hosey, um matemático e músico brilhante que passou muitos anos em
uma instituição psiquiátrica antes de Cildo conhecê-lo em Nova York.
Hosey lhe disse que grandes obras-primas da música erudita, especialmente
composições de Beethoven, teriam uma estrutura espelhada, de tal modo
que se poderia, ao atingir o meio da peça, tocá-la ao contrário. A música
teria, assim, uma estrutura topológica.
O artista queria que Liverbeatlespool ganhasse o espaço externo,
reproduzida por caixas acústicas localizadas em janelas e voltadas para a
rua. Para atender às restrições previstas pelas leis locais, porém, ele teve
que mudar de planos e optou por adaptar uma caixa de som a uma bicicleta
que cruzava as ruas da cidade, conduzida por um estudante de arte. Essa
saída parece-me mais fiel à dimensão topológica do trabalho, por fazer o
som se movimentar continuamente pelo espaço urbano. Talvez o essencial
da topologia, como já nos ensinava Caminhando de Lygia Clark, seja
justamente o movimento, o deslocamento – de fato os objetos topológicos
são, em geral, espaços que permitem a passsagem dentro-fora, como mostra
a fita de Moebius, além de outros objetos que não poderemos aqui explorar,
como a garrafa de Klein e o toro.
Essa torção, essa operação topológica no campo sonoro, refaz da fala e
da canção algo mais fundamental: a voz. Como o primeiro grito de um
homem (como dizia Newman), refazendo-se através de vozes plurais,
retomando a potência de uma voz que nunca é propriamente a do sujeito (o
grito talvez seja justamente a fala que não se reconhece, que dificilmente
podemos atribuir a alguém, diferente do que fazemos sem dificuldade ao
ouvir uma frase ou uma canção). Grito de ninguém – e de todos, e que não
deixa de ser audível talvez em cada palavra que alguém pronuncia (como
nos faz ouvir Cildo Meireles).
Em vez do grito, podemos propor que o primeiro apelo do homem, sua
primeira expressão, tenha sido um riso. Mais do que o grito, o riso é
transmissível e até mesmo contagioso, em alguns casos. Freud já apontava
no humor e na piada atividades humanas fundamentais de enlaçamento ao
outro e nas quais se manifesta, talvez mais do que em qualquer outra, o fato
de que o inconsciente está nos produtos e efeitos que circulam entre as
pessoas, e não no interior recôndito de cada indivíduo.
Rio oir parte de uma brincadeira com palavras, uma manipulação poética
da linguagem, na formação desse palíndromo em língua espanhola. Rio
refere-se a curso de água, mas também à cidade do Rio de Janeiro. Esse
projeto de 1976 inicialmente visava a apropriação de sons já existentes para
fazer “um rio virtual”.[388] Em 2010-11, Meireles o realiza pela captação do
ruído das águas das nascentes que dão origem às três bacias hidrográficas
do Brasil: Tocantins / Amazonas, São Francisco e Paraná / Prata. Na banda
Oir, ele “emenda” essas águas sonoramente, replicando a união que se
realiza, de fato, no ponto geográfico chamado Águas Emendadas, próximo
de Brasília. No trecho Rio, ele mixa risadas de homens, mulheres e
crianças, algumas gravadas para esse fim, outras apropriadas de material já
existente.
Algo de caudaloso transmite-se entre os homens, e os põe juntos no
mesmo barco – como se diz – ou no mesmo leito de rio, na mesma risada,
cada um formando parte de um mesmo marulho – e assim formando o
espaço improvável da terceira margem do rio.
Com as pequenas Cigarras de metal (2010), Cildo imaginava centenas de
pessoas na Cinelândia, no Rio de Janeiro, fazendo juntas o estalo provocado
pela manipulação do objeto – e assim refazendo, podemos pensar, o
zumbido que esses insetos produzem nos momentos que antecedem as
primeiras chuvas na região Centro-Oeste, parecendo tomar todo o espaço,
sem fim, em uma mesma expectativa, uma mesma premente necessidade.
Tal polifonia também constitui Babel (2001-06). Trata-se de uma
estrutura de metal de cerca de cinco metros de altura e dois metros de
diâmetro, na qual estão fixadas dezenas de aparelhos de rádio de design e
idade variáveis. O fundamental dessa escultura é o que ela transmite,
literalmente: cada um desses aparelhos de rádio está ligado em uma
frequência diferente, veiculando a programação de um dos inúmeros canais
de rádio do mundo. Em meio a um chiado indistinto, ao se aproximar de um
deles o ouvido descobre-se algo que já estava ali, porém não se podia
perceber em sua singularidade. Talvez surja de repente um grito ou um riso
– um prazer, uma dor – para além de noticiários e música comercial.
Transmite-se aí algo longínquo e, no entanto, humano, familiar. Estranha
polifonia.

Para o filósofo francês Jacques Rancière, o domínio da estética é


A AURA E O OUTRO

aquele de uma “partilha do sensível”: “O sistema de evidências sensíveis


que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que
nele definem lugares e partes respectivas”.[389] Ele é de saída, portanto, um
campo político, aquele da pólis onde o cidadão toma parte, justamente. Ou,
como diz o próprio Rancière:

Existe, portanto, na base da política, uma “estética” que não tem nada
a ver com a “estetização da política” própria à “era das massas” de que
falava Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no sentido de
uma captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo
pensamento do povo como obra de arte. Insistindo na analogia, pode-
se entendê-la num sentido kantiano – eventualmente revisitado por
Foucault – como o sistema das formas a priori determinando o que se
dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do
invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o
que está em jogo na política como forma de experiência. A política
ocupa-se do que se vê e o que se pode dizer sobre o que é visto, de
quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das
propriedades do espaço e dos possíveis do tempo.[390]

Todo ato artístico seria político, portanto, num sentido muito mais
fundamental do que o da intenção de veicular um enunciado ideológico.
Podemos dizer que o objeto ou ato artístico seria capaz de evocar o campo
sensível que está na base da política e de agir sobre ele de maneira
eventualmente transformadora, na medida em que rearranjaria os recortes
entre tempos e espaços, visível e invisível, palavra, ruído e melodia. Com
isso, a arte incidiria justamente sobre o “lugar” do sujeito na pólis.
Incidir sobre esse campo não significa reafirmar os recortes já
estabelecidos entre tempo e espaço, visível e invisível, palavra e ruído, mas
introduzir neles um certo desvio, como faz com frequência Cildo Meireles.
Desvio para o vermelho (1967-84) é um de seus trabalhos mais conhecidos.
Mais que a simbologia introduzida pela cor vermelha ao cobrir todo um
espaço doméstico bem arrumado e pequeno-burguês – vermelho comunista,
vermelho do sangue, das paixões, da violência – o fundamental parece ser
aí o desvio. Subvertendo as categorias do visível e do objeto, esse trabalho
nos põe em suspense diante de um espaço estranhado e que tem um canto –
onde, como já ouvimos Cildo dizer de seus Cantos, pode acontecer de tudo.
Um dos vértices da sala integralmente vermelha abre-se para o escuro no
qual podemos acompanhar, após os instantes necessários para a
acomodação dos olhos, a grande mancha vermelha, ondulante, que vai se
tornando mais fina. O vermelho desvela-se como tinta, como cor de onde
parte todo aquele pedaço de mundo, aquela arquitetura tão ordenada. Um
ruído de líquido escorrendo ressoa em nós, até que avistamos a fonte de
todo o vermelho: uma pia pregada na parede, torta, quase deixando escorrer
o líquido vermelho que jorra da torneira, sem parar. É dispensável ressaltar
que a pia faz oscilar nosso chão, nosso espaço.
Para Marie-José Mondzain, o sujeito é em sua origem um homo
spectator, nascendo na imagem que tem como modelo as “mãos em
negativo” da gruta de Chauvet – aquelas inscrições rupestres feitas com
pigmentos soprados da boca sobre a mão espalmada na parede da caverna
de maneira a se obter, ao retirá-la, o contorno da mão recortado na mancha
de cor à sua volta. Tal gesto funda o olhar ao mesmo tempo que funda o
sujeito: aquele que não se confunde com sua presença corporal, mas dela se
demarca, retirando sua mão para produzir o signo pelo qual ele se
inscreveria na cultura. É marcando sua ausência, pela retirada da
materialidade de seu corpo, que o homem se inscreve como imagem – que
se dá a ver para si e para os outros – e ao mesmo tempo se separa e se
diferencia da imagem como sujeito falante. “A imagem da mão é a imagem
de um outro com o qual nenhuma relação real é acessível, mas com o qual a
ligação imaginária passa pelo reconhecimento do que se assemelha e faz
sinal (ou faz signo, signe) desde o distante.”[391]
A partir de tal mítico momento originário, o homem se separa de si
mesmo e se articula, no campo do olhar, ao outro. Suas marcas, na imagem,
dão notícia dele, um pouco como as inscrições em carvão e giz presentes
nos painéis de Cinza. Há então que se pensar sobre a “situação política dos
laços que se tecem na partilha dos olhares”, como nota Mondzain.
Discutindo com Benjamin, a filósofa francesa nota que

o primeiro valor de exposição surgiu quando o espectador se expôs ele


mesmo, em primeiro lugar, na destreza dos primeiros gestos que o
separaram dele para nascer ao olhar dos outros. Não se trata apenas
desta aura que é o distante da presença e a prova iluminadora de uma
ausência, trata-se também de fundar a condição política da presença
com os outros.[392]

Se a aura é “o distante da presença”, ela é a marca do acontecimento que


faz nascer a imagem ao mesmo tempo que o sujeito falante. E inaugura a
possibilidade de uma tessitura de olhares, uma trama na qual cada homem
se dá a ver – já signo, e portanto diferente dele mesmo – ao outro. Uma
certa “presença com os outros”, no campo do olhar, é uma condição
política, e é nela que a aura pode aflorar.
Para prosseguir na questão dessa presença com os outros no campo do
olhar, Mondzain convoca Hannah Arendt em sua releitura de Kant. Arendt
ressalta que o conceito de juízo é o que permite a Kant ir além do “gosto”
individual em prol de um “alargamento do espírito”, pela comparação de
nosso juízo com o juízo que os outros poderiam emitir. É pela imaginação
que se poderia aceder a tais possíveis juízos outros. O pensamento crítico
torna, portanto, “os outros presentes, movendo-se, assim, potencialmente,
em um espaço que é público, aberto a todos os lados”, como nota Arendt.[393]
É o espírito, o juízo, que capacitaria o artista, com seu gênio, a encontrar
para as ideias uma expressão capaz de comunicar aos outros o estado de
espírito por elas provocado. Os artistas tornariam comunicável aquilo para o
qual não temos palavras. Pela arte, emoções que seríamos incapazes de
comunicar a outrem se tornariam comunicáveis, “em geral”. O artista
precisa dos outros para exercer seu gênio na criação de obras – e o
espectador nunca está sozinho; “espectadores existem somente no plural”,
como diz Arendt. “A condição sine qua non para a existência do objeto belo
é a sua comunicabilidade; o juízo do espectador cria o espaço sem o qual
não seria absolutamente possível a aparição de tais objetos.” [394]
O espectador, diante da obra, “cria o espaço” de existência de tais objetos
encarregados de passar algo incomunicável. É muito curioso tal
deslizamento que Arendt realiza do julgamento ao espaço. A comunicação
do incomunicável se daria graças à criação de um espaço. Toda operação
sobre o espaço é uma operação que se dá com objetos ou atos, sobre o
sujeito – ou melhor, sobre o laço de um sujeito a outro (essa terceira
margem). Nessa medida, o espaço seria a região do comum, daquilo que se
partilha. Mais do que de uma comunicação direta de alguma ideia ou
emoção, trata-se de uma passagem tortuosa que deve refazer tais laços, em
torno de algo quase indizível – pois diz respeito ao que há de mais íntimo
ao sujeito.

Nas famosas Inserções em circuitos ideológicos, de


O COMUM: TRANSMISSÃO DA DIFERENÇA

1970, há uma explícita motivação ideológica. No Projeto Coca-Cola, Cildo


Meireles propõe que sejam colados na garrafa do refrigerante decalques de
silk screen com a inscrição “Yankees go home!”. E um pouco abaixo:
Inserções em circuitos ideológicos: 1. Projeto Coca-Cola. Gravar nas
garrafas opiniões críticas e devolvê-las à circulação. Coladas na garrafa
vazia, as frases são quase invisíveis. Mas ficam bem legíveis ao se
preencher a garrafa com o líquido escuro na fábrica, para sua distribuição.
No Projeto cédula, notas de dinheiro carimbadas com a inscrição “Quem
matou Herzog?” têm teor semelhante, remetendo ao assassinato do
jornalista durante a ditadura militar, e deveriam ser recolocadas em
circulação após receberem tal inscrição.
Cildo desdenha esses objetos em si e toma suas fotos como meros
registros ou relíquias. Importa, aí, “isolar e fixar a noção de circuito”, como
diz o artista, para nele inserir um desvio, uma provocativa subversão.[395] “O
trabalho só existe enquanto estiver sendo feito. O seu lugar é um pouco o do
terceiro malabar na mão do malabarista. Está ali num processo de
passagem.”[396]
O fundamental é uma passagem. Muito mais do que um espaço bem
estabelecido, trata-se do espaço cambiante e móvel do circuito, onde a
posição dos atores e dos objetos estabelecem um jogo dinâmico. Nesse
trabalho, tal circuito se materializa graças a uma mensagem de claro cunho
político. Mas essas mensagens não fixam um “lugar” para a obra. A arte
não tem propriamente lugar, pois ela é a passagem, a circulação entre
sujeito e cultura, a tensão que define essa relação. Ela toca, portanto, no
mal-estar na cultura, atualizando-o historicamente e fazendo política, ao
mesmo tempo que retoma, num malabarismo, a dupla e tensionada
constituição do sujeito, na cultura. Por isso Cildo Meireles insiste que em
sua obra, mais do que intervenções políticas no sentido estrito, “prevalecem
os aspectos não regionalizáveis; aspectos que são questões do homem”.[397]
Trata-se, nas Inserções em circuitos ideológicos, sem dúvida, de
comunicação, mas num sentido mais amplo e fundamental do que a emissão
e posterior recepção de palavras de ordem. Sob as mensagens ideológicas e
seu explícito questionamento de um certo contexto sociopolítico, comunica-
se também este incomunicável impulso que faz do sujeito um ponto de um
circuito mais amplo, onde dele aos outros algo pode se passar, delimitando
tempos e espaços – e subvertendo-os, introduzindo desvios no circuito de
modo a, eventualmente, transmitir ao outro um acontecimento
profundamente transformador.
Para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, “nós comparecemos: nós viemos
juntos ao mundo”.[398] Não no sentido em que haveria uma produção
simultânea de diversas unidades distintas, mas naquele em que não pode
haver “vinda ao mundo que não seja radicalmente comum”.[399] “Comum”
não designa aí o pertencimento a uma substância única, mas a partilha de
uma falta de essência – de uma falta, eu diria, de lugar. É isso que se
partilha com o outro: um certo desvio, uma certa oscilação.
Em Babel (2001-06), como já mencionei, dezenas de aparelhos de rádio
estão ligados e transmitem num volume no limite do audível o programa de
alguma estação de rádio do mundo. Impossibilitando qualquer comunicação
no sentido estrito, semiótico, Babel concretiza a pluralidade de línguas que
a ela é atribuída pela Bíblia. Por isso mesmo, ela é capaz de transmitir
notícias do sujeito e do mundo em sua radical heterogeneidade, lembrando
a impossibilidade de uma comunidade feita de semelhança e entendimento.
Ela ecoa a formulação de Mário Pedrosa, ainda em 1967:

O homem moderno se vai transformando numa caixa de condutos de


comunicação cada vez mais complicados, cada vez mais
aperfeiçoados. […] Ele é cada vez mais outra coisa que ele próprio, e,
na medida dessa progressiva e dialética objetivação, se vai tornando o
tema exclusivo ou absorvente de sua própria arte. Assim como seu
coração pode ser substituído por outro artificial, que se aperfeiçoa, sua
alma vai sendo também reconstituída lá fora na trama das
comunicações que recebe e transmite.[400]
A “alma” do homem está fora: na trama entre os homens, em transmissões
por vezes enigmáticas e potencialmente transformadoras.
Reagindo à queda do Muro de Berlim, Nancy defende a existência de um
“comum” para além do comunismo, baseando-se na evidência de que “não
existimos sós. Ou antes, não há só que exista”.[401] Babel mostra que algo se
transmite na diferença, no ruído indistinto da mistura de línguas dos rádios.
Já em Marulho (1997) ficava claro que o mar se faz, em sua imensidão e
seu barulho, das vozes dos homens pronunciando juntas e em ondas a
palavra “água” em dezenas de línguas. Suas belas ondas feitas de papel,
mar de livros, mar de fotografias, mostram seu caráter humano: fabricado,
reproduzido tecnicamente como queria Benjamin. A palavra “marulho”
designa o movimento quase imperceptível das ondas do mar, mas também
conota agitação, confusão. Algo se passa entre nós, algum marulho que é
como a voz anônima de toda a humanidade. Voz de todos e de ninguém.
Mensagem numa garrafa de náufrago. Como testemunho de algo
incomunicável, algo urge por passar entre os homens, transmitir-se, e
transformar poeticamente a realidade.
Mas o que pede passagem, de que se deve testemunhar, diante do outro?
Maurice Blanchot atribui a Platão a frase “Pois da morte, ninguém tem
saber”, e prossegue:

E no entanto, sempre, escolhemos um companheiro: não para nós, mas


para alguma coisa em nós, fora de nós, que necessita que nós faltemos
a nós mesmos para passar a linha que não atingiremos. Companheiro
de saída perdido, a própria perda que está daqui em diante em nosso
lugar.
Onde buscar o testemunho para o qual não há testemunho? [402]

Comparecemos apelando ao outro, diante disso que é nossa própria perda,


como na experiência inaugural do homem que deixa ao outro seu sinal, sua
marca em negativo na imagem da mão na gruta de Chauvet.
“O primeiro homem é sempre uma multidão”, na frase que Cildo
Meireles cita do religioso e cientista evolucionista francês Teilhard de
Chardin e usou como epígrafe ao projeto de Eureka Blindhotland para a
Sala Experimental, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1975.
Meireles aponta um acontecimento de sua infância como
PRESENTES E SEQUESTROS

importante para sua decisão de se tornar artista. Ele viu um homem muito
simples passando pela vegetação próxima à casa de sua avó. De casa, à
noite, as crianças avistavam a fogueira que o homem havia feito no mato, a
cerca de trezentos metros dali. Cildo passou toda a noite imaginando o que
ele estaria fazendo. Pela manhã, correu ao local. “Ele já havia partido, mas
o que encontrei ali foi talvez a coisa mais decisiva para o caminho que
tomei em minha vida.”[403] O andarilho havia construído durante a noite uma
casa em miniatura, feita de pequenos pedaços de madeira, com janelas e
portas que se abriam. Impressionou muito a Cildo a possibilidade de “se
fazer coisas e deixá-las para os demais”.[404] Ele comenta:

Isso me marcou muito. É aquela coisa, nunca acontecia nada e


qualquer pequeno evento é algo importante. Toda curiosidade
pressupõe uma expectativa. Mas quando você encontra essa coisa
esperada é algo que comove, e naquelas circunstâncias aquilo me
comoveu. Esse andarilho não aspirava nem mesmo ao desanonimato.
[…] Isso era uma coisa de um sujeito muito nobre. De um
desprendimento total de si. Era um presente.
Isso te aponta uma possibilidade de ser.

Para Nancy, se existe arte, é em razão de um em-comum, e “a arte detém


algo do em-comum que ela talvez seja a única a deter”.[405] A arte vem do
outro. Na comparição existe uma dimensão que não é apenas da
constatação e defesa do comum, mas é uma verdadeira posição ética: há que
comparecer politicamente, ou seja, diante e em relação ao outro. A arte,
parece afirmar a produção de Cildo, deve ser um presente que atualiza e
materializa este em-comum, com todo o peso de posição ética que isso
implica.
Seriam os trabalhos de Cildo presentes para o outro? Ele responde:

Eu gostaria que fossem. Quero acreditar que sejam presentes. Acho


que tem um aspecto em qualquer tipo de produção em que você esteja
envolvido, que é este de doação mesmo, você tenta partilhar sua
opinião sobre alguma coisa – a maneira como dois elementos se
portam, duas linhas etc. Tem alguma coisa ali que você gostaria de
partilhar, claro.
Mas essa partilha implica uma certa despossessão do sujeito. “O homem
encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para além da
imagem de que somos feitos. Esse lugar representa a ausência em que
estamos.”[406] A casa do homem está para além da imagem, ela é um lugar de
ausência e descentramento, um lugar de perda, como já dizia Blanchot.
Lugar paradoxal porque inexistente: nada além de uma certa mobilidade do
sujeito em relação a si mesmo e ao outro. Sujeito andarilho. Esse lugar
supõe um outro com o qual ele possa ser partilhado, mas não sob o modo do
encontro. Como se encontrar num lugar que é de perda? Sem lugar, algo
convoca de um a outro, na passagem de algo que diz radicalmente respeito
a eles, mas situa-se fora.
Retomando o “sequestro relâmpago” de que falava Cildo, coloca-se a
questão de para onde são levadas as pessoas sequestradas. “Qual o
cativeiro?”, brinca o artista.

O cativeiro é exatamente isso, o que cada artista acha que pode, que
poderia partilhar, e que pudesse ser uma coisa legal para o outro, que
fosse uma coisa positiva, que participasse de uma construção desse
outro (ideal para ele mesmo). Os votos, os augúrios são os melhores
possíveis. Claro que você já fez trabalhos que mudaram as vidas de
pessoas. Talvez você nunca venha a saber. Quando você tiver 103
anos, vem alguém te dizer isso.

Mas o que se partilha não seria justamente o sequestro? Seria, diz Cildo,
algo “que possibilitasse esse sequestro, que seria exatamente um estado de
diálogo entre um sujeito qualquer e determinado objeto”. O cativeiro não é
nosso lugar, dele devemos sair. Reagindo à pergunta de se tal cativeiro seria
uma fronteira, seria seu país tão radicalmente estreito, o artista lembra que
se trata de “um país que só pode existir de fora”.
Para Jean-Christophe Bailly, a política é um “pensamento de pontes e
passarelas, um pensamento do umbral”.[407] O umbral é uma abertura, uma
passagem entre o dentro e o fora, uma possibilidade de troca e partilha.
Nesse umbral, o modelo do comum abrigando diferenças é o da linguagem,
comum entre as diversas línguas como estrutura subjacente a suas
diferenças. Entre línguas há traduções possíveis, mesmo que elas sempre
impliquem algum resto, apontando impossibilidade de uma tradução
perfeita. Bailly constrói então uma alegoria próxima do estreito país de
Cildo Meireles: a da casa feita só de umbrais. O nome dessa casa seria o da
“comunidade da existência”,[408] na qual o comum é uma participação do
múltiplo no mesmo, abrindo para o surgimento do outro, das diferenças.
Tal formulação de uma multiplicidade no mesmo não diz respeito apenas
à troca dita intersubjetiva, ao jogo de espelhos entre um e outro onde as
semelhanças podem atrair e encantar, mas podem também levar à violência
mais pura. Uma comunidade possível é a do país que só existe “de fora”,
como dizia o artista: é aquela que reconhece um fora como testemunho do
nosso íntimo, e portanto inaugura o umbral por onde algo pode se passar, se
transmitir. Um fora nos determina, e dele a arte dá notícias, de forma
privilegiada, construindo um incerto e efêmero território onde surgimos,
fora de nós. É isso, que Blanchot nomeava “alguma coisa fora de nós”, que
é coletivo, levando-nos portanto a buscar o outro para sua transmissão. Só
pelo outro pode-se falar disso (d’Isso, o Id de Freud).
Cildo menciona esse “coletivo” ao falar das coincidências que aparecem
na produção científica: duas pessoas podem estar trabalhando sem saber,
independentemente e geograficamente bem distantes, na mesma hipótese ao
mesmo tempo, sem que haja nenhuma comunicação entre elas.

Em arte, onde não existe ainda tal instantaneidade na troca de


informação – ela começa talvez a aparecer –, isso também acontece o
tempo todo. Ou você tem que acreditar numa coisa coletiva que estaria
aí, presente sem a gente saber, e que seria uma espécie de isca em
direção a alguma coisa que seja comum, que seja a aspiração profunda
de cada um, algo assim.

A arte vem sempre do outro. Até porque, como já afirmava Georges


Bataille, “o que eu penso, não o pensei sozinho”.[409]

Eu não sei exatamente como determinados trabalhos, ao longo da


história da arte, me ajudaram, mas foram doações essenciais, que me
mantiveram e me mantêm vivo, de uma certa maneira. Você recebe de
outros.

A arte é doação, e ela ultrapassa a individualidade do artista em prol de um


“comum”. Para Cildo Meireles,
é como aquele conceito de livro de Jorge Luis Borges: na verdade não
existem livros, existe um único livro que vem sendo escrito pela soma
do que produzem todos os escritores. Acho que arte é um pouco assim.
E talvez o cativeiro seja a soma de todos esses cativeiros, ainda
personalizados, que seriam, talvez, o universo de cada artista. Em
muitos casos, eles passam exatamente por essa experiência coletiva,
mesmo, de ser partilhado por muito mais gente do que se imagina.

A arte: experiência coletiva, política, que nos tira do lugar. Não


propriamente para nos instalar em outro lugar, mas pelo transporte em si.
Pela transitoriedade. Pois não há lugar para onde leve a arte. O cativeiro de
todos é o de ninguém: livro que corresponde ao mundo. Nesse sentido a arte
pode ser dita utópica: sem lugar. Ou tendo como topos, lugar, não mais do
que uma promessa. O território esfacelado e reconstruído a que ela convida
é o desejo. Ela é convite, promessa mantida, reiterada, mas nunca
inteiramente cumprida. Algo sutil mas poderoso como um sorriso, um
efêmero mas aurático presente:

Uma vez também em Brasília, era uma da tarde, eu tinha saído do


[colégio] Elefante Branco e estava descendo para uma livraria em que
às vezes eu passava, era a Dom Bosco, na rua da Igrejinha. Eu estava
descendo pela [superquadra] 307, naquele vermelho de Brasília, aquele
sol ardido. Aí passa um moleque de uns dez anos e de repente me dá
um sorriso, cara, tão gratuito. Eu nunca consegui esquecer. Tem a ver
com o andarilho. Isso deve ter sido em 62, 63.

Rápido encontro em que algo se passa – algo que nem se sabe bem o que é.
Seu poder transformador pode se limitar a uma promessa, mas com ela
talvez já consiga abrir alguma brecha sutil porém vigorosa, algum desvio,
se acreditarmos no que formula Bailly pouco após o fim dos regimes
comunistas:

Abrir no acúmulo dos dias acontecimentos tais que a promessa que


eles contêm seja por um instante, por um longo instante mantida, tal é
a natureza mais própria das revoluções: elas não revolucionam por
realizações, mas porque abrem no acúmulo e na inércia dos dias a
fratura de um futuro que não realizam.[410]
No momento em que eu escrevia a maior parte dessas linhas, Cildo
PÓS-ESCRITO

Meireles estava montando o trabalho While u Weight em uma remota cidade


ao norte da Noruega. Esse trabalho vem de um projeto feito para o Paço das
Artes em São Paulo em 1976, e depois proposto para o irrealizado Museu
de Esculturas em Brasília, em 1998. Ele então receberia o título Chão.
Trata-se de uma plataforma de oito metros de diâmetro instalada ao nível do
terreno, ao ar livre, e forrada com a vegetação que existe a seu redor. Em
função do peso das pessoas que se colocam sobre ela, um mecanismo
montado sob a plataforma faz com que ela oscile um pouco, num ângulo
que corresponde a, no máximo, onze centímetros de deslocamento de suas
bordas. Para Cildo, esse trabalho traz uma “instabilidade”, nos fazendo
“perder o chão”. O título atual é um trocadilho com a expressão “while u
wait” (“while you wait”), comum para indicar serviços rápidos como, por
exemplo, o conserto que um sapateiro pode realizar enquanto o cliente
espera.
Enquanto você espera, você pesa, e seu peso (weight), sua presença
transforma algo no mundo, mudando minimamente seu ponto de vista, seu
lugar. Utópica transformação.
NOTAS

1 Mário Pedrosa, “Especulações estéticas: Lance final III”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 139.

2 Hélio Oiticica, “Crelazer”, in Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 116.

3 Walter Benjamin, “Brèves Ombres ii”, in Oeuvres ii. Paris: Gallimard, 2000, p. 349.

4 Citado em Jean F. Grunfeld, “Golddust is my Ex-Libris”, in <http://www.minusspace.com/2005/05/death-done-and-undone-by-gabrielle-civil>. Consultado em 23/12/2006.

5 Hal Foster, The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century. Cambridge/ Londres: mit Press, 1996.

6 “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson” [1970], in G. Ferreira & C. Cotrim (orgs.), Escritos de artistas: Anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 280.

7 Donald Judd, “Objetos específicos”, in G. Ferreira & C. Cotrim, op. cit., p. 102.

8 Citado em Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 91.

9 Id., ibid., p. 95.

10 Id., ibid., p. 116.

11 Marcel Duchamp, “Le Processus créatif”, in Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994, p. 247.

12 Sigmund Freud, “Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse” [1917], in Gesammelte Werke [GW], V. XI. Londres: Imago, 1940, p. 295 [ed. bras.: “Conferências

introdutórias sobre psicanálise”, in Edição standard brasileiras completas de Sigmund Freud [ESB], V. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 336].

13 Lygia Clark, “Do ato” [1965], in Lygia Clark (catálogo). Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997/99, p. 164.

14 Em mesa-redonda que acompanhou a exposição Jardim das delícias no Museu da República, Rio de Janeiro, em 7/12/2006.

15 Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, trad. Maria Ermantina Pereira e Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 42.

16 Citado em Tracey Warr & Amelia Jones, The Artist’s Body. Londres: Phaidon, 2000, p. 125.

17 Jacques Lacan, Seminario xv: El ato psicoanalítico, sessão 14 (20/03/1968). Transcrição inédita.

18 S. Freud, “Vergänglichkeit”, in gw, op. cit., V. X, p. 359 [ed. bras.: “Sobre a transitoriedade”, in esb, op. cit., v. xiv, p. 346].

19 Id., ibid., pp. 358-59.

20 Citado em Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan, trad. Maria Luiza X. de A. Borges & Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1996, p. 505.

21 L. Clark, op. cit., p. 165.

22 Id., “Capturar um fragmento de tempo suspenso” [1973], in Lygia Clark, op. cit., p. 187.

23 Id.,“Da supressão do objeto (Anotações)” [1975], in Lygia Clark, op. cit., p. 265.

24 J. Lacan, “L’Acte psychanalytique: Compte rendu du séminaire 1967-1968”, in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 375 [ed. bras.: “O ato psicanalítico: Resumo do seminário de

1967-68”, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 371].

25 L. Clark, “Do ato”, op. cit., p. 165.

26 J. Lacan, “L’Acte psychanalytique”, op. cit., p. 378 [ed. bras.: p. 374].

27 Id., Le Séminaire, livre x: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 60 [ed. bras.: O seminário, livro x: A angústia, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 58].
28 Citado em T. Warr & A. Jones, op. cit., p. 194.

29 L. Clark, “Do ato”, op. cit., p. 164.

30 Ver M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível, trad. José Arthur Giannotti & Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2000, pp. 131-32.

31 Roger Caillois, “Mimetismo e psicastenia legendária”. Che Vuoi? Psicanálise e Cultura, n. 0, v. 1, 1986, p. 60.

32 Id., ibid., p. 63.

33 Id., ibid., p. 62.

34 Rosalind Krauss, O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 184.

35 R. Caillois, op. cit., p. 62.

36 Id., ibid., pp. 62-63.

37 J. Lacan, O seminário, livro xi: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 104.

38 R. Caillois, op. cit., p. 63.

39 J. Lacan, O seminário, livro XI, op. cit., p. 106.

40 Id., ibid., p. 111.

41 Id., ibid., p. 113.

42 J. Lacan, “Télévision”, in Autres écrits, op. cit., p. 537 [ed. bras.: “Televisão”, in Outros escritos, op. cit., p. 535].

43 J. Lacan, O seminário, livro xi, op. cit., p. 111.

44 Id., ibid., p. 95.

45 L. Clark, “Do ato”, op. cit., p. 164.

46 Hal Foster et al., “Psychoanalysis in Modernism and as Method”, in Art Since 1900: Modernism, Antimodernism, Postmodernism. Londres: Thames & Hudson, 2004, p. 1.

47 Stéphane Mallarmé, “Richard Wagner: Rêverie d’un poète français”, in Écrits sur l’art. Paris: Flammarion, 1998, p. 364.

48 Ver Arlindo Machado, O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

49 Ver Sigmund Freud, “Lembranças encobridoras”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [esb], V. III. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

50 Ver a respeito dessa distinção meu livro Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

51 In visuelle Bilder, no original. Ver S. Freud, “Die Traumdeutung”, in Gesammelte Werke [gw], V. II/III. Londres: Imago, 1942, p. 551 [ed. bras.: “A interpretação dos sonhos”, in

ESB, op. cit., V. IV/ V, p. 500].

52 Walter Benjamin, “Pequena história da fotografia” [1931], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 94.

53 S. Freud, “A interpretação dos sonhos”, in ESB, op. cit., V. IV/ V, p. 491.

54 No original, Bildliche Sprache: linguagem ou língua pictórica. Ver S. Freud, “Die Traumdeutung”, op. cit., V. II/III, p. 323.

55 Id., “Sobre os sonhos”, in ESB, op. cit., V. V, p. 590. Tradução revista de acordo com a edição original.

56 Id., “A interpretação dos sonhos”, op. cit., V. IV/ V, p. 286.

57 E não um trecho de “A interpretação dos sonhos”, como afirma equivocadamente o catálogo da exposição Freud and Contemporary Art: The Collection of the Sigmund Freud

Museum Vienna. Nova York: Austrian Cultural Forum, 2006, p. 26.

58 S. Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in esb, op. cit., pp. 186-87. Tradução revista de acordo com a edição original. Ver “Der Witz und Seine Beziehung zum

Unbewussten”, in gw, op. cit., V. VI, p. 185.

59 Joseph Kosuth, Zeno at the Edge of the Known World (catálogo). xlv Bienal de Veneza, 1993, p. 104.
60 Id., “Art After Philosophy and After”, in Collected Writings: 1966-1990. Cambridge / Londres: mit Press, 1991, p. 233.

61 Id., Zeno at the Edge of the Known World, op. cit., p. 104.

62 S. Freud, “Sobre os sonhos”, op. cit., V. V, p. 591. Grifos meus.

63 Neue Oberflächen, no original. Ver S. Freud, “Über den Traum”, in gw, op. cit., V. II/III, p. 673 [ed. bras.: “Sobre os sonhos”, in ESB, op. cit., V. V, p. 591].

64 Jean-François Lyotard, Discours, figure. Paris: Klincksieck, 2002.

65 Jacques Rancière, Le Destin des images. Paris: La Fabrique, 2003, p. 14.

66 S. Freud, “A interpretação dos sonhos”, op. cit., V. IV/ V, p. 128.

67 Id., ibid., p. 129.

68 Id., ibid., p. 482.

69 Georges Didi-Huberman, Devant l’Image. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.

70 Id., ibid., 182.

71 Id., ibid., p. 174.

72 H. Foster, The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century. Cambridge / Londres: mit Press, 1996, p. 149.

73 Citado em Alfredo Bosi, “Uma cultura doente?”, in I. Svevo, A consciência de Zeno. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 409.

74 J. Kosuth, Zeno at the Edge of the Known World, op. cit., p. 153.

75 Italo Svevo, op. cit., p. 17.

76 Id., ibid., pp. 373-74.

77 J. Kosuth, Zeno at the Edge of the Known World, op. cit., p. 152.

78 Id., ibid., p. 156.

79 Aristóteles, Poética, trad. Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 107 (§ 1448b: 8; 16-19).

80 J. Rancière, op. cit., p. 15.

81 I. Svevo, op. cit., p. 318.

82 Eu assinalo a expressão que corresponde ao original hoher Genuss. Ver S. Freud, “Além do princípio do prazer”, in esb, op. cit., V. XVIII, p. 29.

83 J.-F. Lyotard, op. cit., p. 104.

84 Rosalind Krauss, The Optical Unconscious. Cambridge / Londres: mit Press, 1998, p. 24.

85 J.-F. Lyotard, “Foreword: After the Words”, in J. Kosuth, Collected Writings, op. cit., p. xviii.

86 J. Kosuth, Collected Writings,op. cit., pp. 221-22.

87 H. Foster, The Return of the Real, op. cit., p. 140.

88 J. Kosuth, Collected Writings, op. cit., p. 232.

89 Roland Barthes, “O espírito da letra”, in O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 93.

90 Id., ibid., p. 94.

91 Id., “Erté ou ao pé da letra”, in O óbvio e o obtuso, op. cit., p. 114.

92 “Traumbild”, como grafa Freud, entre aspas. Ver S. Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” [1905], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas

de Sigmund Freud [esb], V. III. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 187.

93 Id., ibid., p. 43.


94 Id., “A interpretação dos sonhos”, in ESB, op. cit., V. IV, p. 132.

95 Jacques Lacan, “Fonction et champ de la parole et du langage”, in Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 267 [ed. bras.: “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, in Escritos.

São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 268].

96 Id., Le Séminaire, livre ii: Le Moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1978, p. 231 [ed. bras.: O seminário, livro ii: O eu na teoria de

Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 248].

97 Id., ibid., p. 231 [ed. bras.: p. 247].

98 J. Lacan, Le Séminaire, livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 45 [ed. bras.: O seminário, livro XX: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 63].

99 Robert Mittenthal, “Standing Still on the Lip of Being: Gary Hill’s Learning Curve”, in Gary Hill (catálogo). Washington, Hirshhorn Museum, 1994, p. 93.

100 Raymond Bellour, L’Entre-images 2: Mots, images. Paris: P.O.L., 1999, p. 37.

101 Gary Hill: O lugar do outro /Where the Other Takes Place (catálogo). Rio de Janeiro: CCBB, 1997, p. 70.

102 Id., ibid., p. 72.

103 Michel Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 25.

104 Gary Hill, op. cit., p. 38.

105 Lucinda Furlong, “A Manner of Speaking: An Interview with Gary Hill”. Afterimage, n. 10, 1983.

106 J. Lacan, “Avis au lecteur japonais” [1972], in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 498 [ed. bras.: “Aviso ao leitor japonês”, Outros escritos, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2003, p. 500].

107 Jean-Louis Gault, “Quelques traits remarquables de la langue japonaise”, in Analytica 55 (Lacan et la chose japonaise). Paris: Navarin, 1988, p. 25.

108 John G. Hanhardt, “Between Language and the Moving Image: The Art of Gary Hill”, in Gary Hill, op. cit., p. 64.

109 S. Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in ESB, op. cit., V. III, p. 49.

110 Paul-Emmanuel Odin, “Ura Aru (The Backside Exists)”, in <www.newmedia-art.info/cgi-bin/show-oeuasp?ID=150000000034433&lg=FRA>. Consultado em 06/07/2012.

111 Arlindo Machado, “Por que se desorganizam a linguagem e o sentido?”, in Gary Hill: O lugar do outro/ Where the Other Takes Place (catálogo), op. cit., p. 19.

112 François Cheng, “Lacan et la Pensée chinoise”, in J. Aubert et al., Lacan: L’Écrit, l’image. Paris: Flammarion, 2000, p. 136.

113 J. Lacan, Le séminaire, livre XX: Encore, op. cit., p. 12 [ed. bras.: O seminário, livro xx: Mais, ainda, op. cit., p. 14].

114 André Breton, Le Surréalisme et la peinture. Paris: Gallimard, 1965, p. 258.

115 Ver S. Freud, “Uma nota sobre o bloco mágico”, in ESB, op. cit., V. XIX.

116 J. Lacan, “Lituraterre” [1971], in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 16 [ed. bras.: “Lituraterra”, in Outros escritos, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 21].

117 Id., ibid., p. 16 [ed. bras.: pp. 21-22].

118 Id., ibid., p. 15 [ed. bras.: p. 20].

119 Sigmund Freud, “Escritores criativos e devaneio”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [ESB], V. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

120 Jacques Lacan, Le Séminaire, livre vii: L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 145 [ed. bras.: O seminário, livro vii: A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 151-52].

121 Id., ibid., p. 78 [ed. bras.: 82].

122 S. Freud, “O estranho” [1919], in ESB, op. cit., V. XVII, p. 275.

123 Id., ibid., p. 294.

124 Marie-José Mondzain, “Les Images parlantes”, in M. Gagnebin (org.), Les Images parlantes. Paris: Champ Vallon, 2005, p. 21.
125 Id., ibid., p. 22.

126 Kasimir Malevich, “Suprematismo”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna, trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 347.

127 Id., ibid, p. 347.

128 Barnett Newman, “O primeiro homem era um artista”, in H. B. Chipp, op. cit., p. 559.

129 Id., ibid., p. 560.

130 S. Freud, “O estranho”, in ESB, op. cit., V. XVII, p. 310.

131 Ernst Jentsch, Zur Psychologie des Unheimlichen, in <http://edocs.ub.uni-frankfurt.de/volltexte/2008/10095>. Consultado em 1/7/2012.

132 J. Lacan, Le Séminaire, livre XIII: L’Objet de la psychanalyse, sessão de 25/05/1966.Transcrição inédita.

133 J. Lacan, “La Méprise du sujet supposé savoir”, in Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 330 [ed. bras.: “O engano do sujeito suposto saber”, Outros escritos, trad. Vera Ribeiro. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 330].

134 Id., Le Séminaire, livre VII: L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 167 [ed. bras.: O seminário, livro VII: A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 173].

135 Roland Barthes, “Qu’est-ce que la Critique?”, in Essais critiques. Paris: Seuil, 1964, p. 266 [ed. bras.: “O que é a crítica”, in Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007].

136 J. Lacan, Le Séminaire, livre VII: L’Éthique de la Psychanalyse, op. cit., p. 237 [ed. bras.: p. 246].

137 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, in Notas de literatura i. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2003, p. 36.

138 Walter Benjamin, “Annonce de la revue Angelus Novus”, in Oeuvres i. Paris: Gallimard, 2000, p. 268.

139 Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 72.

140 J. Lacan, La Sublimation, op. cit., p. 170 [ed. bras.: p. 176].

141 H. Oiticica, “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit, pp. 66-67.

142 H. Oiticica, “Anotações sobre o Parangolé”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit., p. 71.

143 Citado em L Figueiredo (org.), Hélio Oiticica: A pintura depois do quadro. Rio de Janeiro: Silvia Roesler, 2008, pp. 264-65.

144 H. Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit., p. 93.

145 Id., ibid., p. 98.

146 Id., “Anotações para serem traduzidas para inglês: para uma próxima publicação”, in P. Braga (org.), Fios soltos: A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 318.

147 Sigmund Freud, “Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, in Gesammelte Werke [GW], V. XI. Londres: Imago, 1944, p. 295 [ed. bras.: “Conferências introdutórias

sobre psicanálise”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [ESB], V. XV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 336].

148 Id., “Das Ich und das Es” [1923], in GW, op. cit., V. XIII, p. 253 [ed. bras.: “O ego e o Id”, in esb, op. cit., V. XIX, p. 39]

149 Jacques Lacan, “L’Instance de la lettre ou la raison depuis Freud”, in Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 517 [ed. bras.: “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, in

Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 521].

150 Id., “Remarque sur le rapport de Daniel Lagache”, in Écrits, op.cit., p. 681 [ed. bras.: “Obsevações sobre o relatório de Daniel Lagache, in Escritos, op. cit., p. 688].

151 Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998, pp. 246-47. Grifos meus.

152 François Baudry, “Fantasia”, in Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan, trad. Maria Luiza X. de A. Borges & Vera Ribeiro. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 196.

153 Maurice Merleau-Ponty, Causeries. Paris: Seuil, 2002, p. 63.

154 Id., O olho e o espírito, trad. Maria Ermantina Pereira & Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify: 2004, p. 29.
155 Stéphane Mallarmé, “Richard Wagner: Rêverie d’un poète français”, in Écrits sur l’art. Paris: Flammarion, 1998, p. 364.

156 Tristan Tzara, “Manifeste Dada 1918”, in Dada est tatou, tout est Dada. Paris: Flammarion, 1996, p. 208.

157 J. Lacan, “Le Stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique”, in Écrits, op. cit., p. 93 [ed. bras.: pp. 96-

97].

158 Id., ibid., p. 95 [ed. bras.: p. 98].

159 Roger Caillois, “Mimetismo e psicastenia legendária”. Che Vuoi? Psicanálise e Cultura, n. 0, V. 1, Porto Alegre, 1986, p. 62.

160 Id., ibid., pp. 62-63.

161 J. Lacan, Séminaire L’Objet de la psychanalyse, sessão de 25/05/1966. Transcrição inédita.

162 Gérard Wajcman, “L’Art, la psychanalyse, le siècle”, in J. Aubertet et al., Lacan: L’Écrit, l’image. Paris: Flammarion, 2000.

163 J. Lacan, Le Séminaire, livre X: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 51 [ed. bras.: O seminário, livro x: A angústia, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 50].

164 Maurice Blanchot, “Les Deux Versions de l’imaginaire”, in L’Espace littéraire. Paris: Folio, 2000, p. 350 [ed. bras.: “As duas versões do imaginário”, in O espaço literário, trad.

Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 262].

165 Citado em P. Kaufmann, op. cit., p. 505.

166 Lygia Clark (catálogo). Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997/99, p. 164.

167 Id., ibid., p. 121.

168 Id., ibid, p. 121.

169 Id., ibid., p. 164.

170 Lygia Clark & Hélio Oiticica, Cartas: 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p. 57.

171 Lygia Clark, op. cit., p. 165.

172 Id., ibid, p. 165.

173 Id., ibid., p. 132.

174 Id., ibid., p. 270.

175 L. Clark & H. Oiticica, op. cit., p. 223.

176 Lygia Clark, op. cit., p. 293.

177 Id., ibid., p. 315.

178 “Não estar em repouso com as palavras (entrevista com Pierre Fédida)”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro (catálogo). São Paulo:

Pinacoteca do Estado, 2005/06, p. 69.

179 Lygia Clark, op. cit., p. 319.

180 L. Clark & H. Oiticica, op. cit., pp. 222-23.

181 Lygia Clark, op. cit., p. 164.

182 Id., ibid., p. 165.

183 S. Freud , “Achados, ideias, problemas” [1938], in ESB, op. cit., V. XXIII, p. 336.

184 Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 14 [ed. bras.: O seminário, livro XX: Mais, ainda, trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.

17].

185 Id., Le Séminaire, livre x: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 51 [ed. bras.: O seminário, livro X: A angústia, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 50].
186 Id., ibid., p. 60 [ed. bras.: p. 58]

187 Cildo Meireles: Geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva, 2001, p. 20.

188 Sigmund Freud, “Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, in Gesammelte Werke [gw], v. xv. Londres: Imago, 1944, p. 86.

189 Stéphane Mallarmé, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, in Mallarmé, trad. A. de Campos, D. Pignatari & H. de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2006, pp. 170-71.

190 S. Freud, “Über den Traum”, in gw, op. cit., V. II/III, p. 673 [ed. bras.: “Sobre os sonhos”, in ESB, V. V, p. 39].

191 Martin Heidegger, “Observações sobre arte – escultura – espaço”. Artefilosofia, n. 5, 2008, p. 19.

192 Id., ibid., p. 20.

193 J. Lacan, Le Séminaire, livre X: L’Angoisse, op. cit., p. 51 [ed. bras.: pp. 50-51].

194 Citado em Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 91.

195 S. Freud, “A interpretação dos sonhos”, in ESB, op. cit., V. IV, p. 304.

196 J. Lacan, Le Séminaire, livre XIII: L’Objet de la psychanalyse, sessão de 11/05/1966. Transcrição inédita.

197 Id., ibid., sessão de 25/05/1966.

198 Id., ibid., sessão de 11/05/1966.

199 Michel Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 31.

200 Id., ibid., p. 30.

201 J. Lacan, Le Séminaire, livre XIII: L’Objet de la psychanalyse, sessão de 18/05/1966.

202 Id., ibid., sessão de 25/05/1966.

203 Id., ibid., sessão de 18/05/1966.

204 Id., ibid., sessão de 25/05/1966.

205 Ver Marco Antonio Coutinho Jorge, Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 251.

206 J. Lacan, Le Séminaire, livre xiii: L’Objet de la psychanalyse, sessão de 18/05/1966.

207 Id., ibid., sessão de 08/06/1966.

208 Id., ibid., sessão de 25/05/1966.

209 Walter Benjamin, A modernidade e os modernos, trad. Heidrun Krieger Mendes da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 15.

210 Id., Obras escolhidas II: Rua de mão única, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho & José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 54.

211 Id., ibid., p. 54.

212 Citado em Murielle Gagnebin, “Picasso, Iconoclaste… ”. L’Arc, n. 82, 1981, p. 39.

213 Sigmund Freud, “Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse” [1917], in Gesammelte Werke, V. XI. Londres: Imago, 1944, p. 295.

214 W. Benjamin, Obras escolhidas ii: Rua de mão única, op. cit., p. 54.

215 Jacques Lacan, Le Séminaire, livre vii: L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 133 [ed. bras.: O seminário, livro VII: A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 141].

216 Id, ibid., p.136 [ed. bras.: p. 143].

217 Hal Foster, The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century. Cambridge / Londres: mit Press, 1996, p. 146.

218 Roland Barthes, A câmara clara, trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

219 H. Foster, op. cit., p. 153.


220 Maurice Merleau-Ponty, Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996, p. 73.

221 Citado em H. Foster, op. cit., p. 130.

222 Arthur Rimbaud, “Carta dita do vidente”, in Rimbaud por ele mesmo, trad. Alberto Marsicano & Daniel Fresnor. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 109.

223 Leon Battista Alberti, De la peinture,de pictura [1435]. Paris: Macula / Dédale, 1992, p. 147 [ed. bras.: Da pintura, trad. Antonio Silveira Mendonça. Campinas: Editora da

Unicamp, 2009, p. 109].

224 Id., ibid., p. 149 [ed. bras.: p. 110].

225 Stéphane Mallarmé, Divagações, trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: ufsc, 2010, p. 238. Grifos meus.

226 Id., “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” in Mallarmé, trad. A. de Campos, D. Pignatari & H. de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 152.

227 Raymond Bellour, “L’Analyse flambée”, in L’Entre-Images: Photo, cinéma, vidéo. Paris: La Différence, 2002.

228 Citado em Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, in Notas de Literatura i, trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2003, p. 38.

229 Jean Durançon, “Le Droit à l’essai”, in M. Gagnebin & S. Liandrat-Guigues (orgs.), L’Essai et le cinéma. Seyssel: Champ Vallon, 2004, p. 232.

230 T. W. Adorno, op. cit., p. 45.

231 Id., ibid., p. 35.

232 Id., ibid., p. 30.

233 Id., ibid., p. 36.

234 W. Benjamin, Obras escolhidas ii, op. cit., p. 49.

235 Otília Arantes, “Mário Pedrosa, um capítulo brasileiro da teoria da abstração”, in M. Pedrosa, Forma e percepção estética. São Paulo: Edusp, 1996.

236 Paulo Herkenhoff, Poética da percepção: Questões da fenomenologia na arte brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 2008, p. 61.

237 Lygia Pape, “O que eu não sei”, in Item, n. 1, 1995, p. 17.

238 Ferreira Gullar, Manifesto Neoconcreto, in Experiência neoconcreta. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

239 Mário Pedrosa, “Arte e revolução”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 247.

240 Id., “Arte e Freud”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 230.

241 O. Arantes, op. cit., p. 17.

242 El Lissitzky, “Proun Space”, in Russia: An Architecture for World Revolution. Cambridge / Londres: mit Press, 1989, p. 138.

243 M. Pedrosa, “Da abstração à auto-expressão”, in Mundo, homem, arte em crise, op. cit., p. 37.

244 Id., ibid., p. 40.

245 P. Herkenhoff, “Diagrama da vida (entrevista com Suely Rolnik)”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro (catálogo). São Paulo,

Pinacoteca do Estado, 2005/06, p. 82.

246 M. Pedrosa, “Da abstração à auto-expressão”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 44.

247 P. Herkenhoff, “Diagrama da vida”, op. cit., p. 81.

248 André Breton, Le Surréalisme et la peinture. Paris: Gallimard, 2006, p. 56.

249 M. Pedrosa, “Forma e personalidade”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 220.

250 F. Gullar, op. cit., p 77.

251 Id., ibid., pp. 94-95.

252 Id., ibid., p. 100.


253 Kasimir Malevich, “Suprematismo”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna, trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 349-50.

254 M. Pedrosa, “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 205.

255 Id., ibid., pp. 205-06.

256 Em entrevista concedida em 2009 para a realização do vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira, que acompanha este livro.

257 Citado em Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan, trad. Maria Luiza X. de A. Borges & Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1996, p. 505.

258 Theodor W. Adorno, Teoria estética, trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 127.

259 M. Pedrosa, “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 207.

260 Hélio Oiticica, “Programa ambiental”, in Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 79.

261 Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996, p. 88.

262 H. Oiticica, “Esquema geral da Nova Objetividade”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit., p. 93.

263 Lygia Clark & Hélio Oiticica, Cartas: 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p. 248.

264 Tunga, “O sabonete é uma escultura (entrevista a Suely Rolnik)”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento, op. cit., p. 89.

265 Citado em Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento, op. cit, p. 13.

266 L. Clark & H. Oiticica, op. cit., p. 21.

267 Citado em S. Rolnik, op. cit., p. 24.

268 Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [1935], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:

Brasiliense, 1994, p. 167.

269 Id., ibid., p. 166.

270 Id., ibid., p. 171.

271 Sigmund Freud, “Sobre a transitoriedade” [1915], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, V. XIV, p.

317.

272 W. Benjamin, op. cit., p. 170.

273 Id., ibid., p. 180.

274 Id., bid., pp. 171-72.

275 Id., ibid., p. 191.

276 Id.,“Sobre alguns temas de Baudelaire”, in A modernidade e os modernos, trad. Heidrun Krieger Mendes da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 56.

277 Id., “Pequena história da fotografia” [1931], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 94.

278 Id., “Sobre alguns temas de Baudelaire”, op. cit., p. 70.

279 Id., ibid., p. 67

280 Id., ibid., p. 67.

281 Id., “Brèves Ombres” [1933], in Oeuvres ii. Paris: Gallimard, 2000, p. 343.

282 id., “Sobre alguns temas de Baudelaire”, op. cit., p. 66.

283 Id., ibid, p. 66.

284 Id., ibid., p. 67.


285 Id., ibid., p. 76.

286 Id., bid., p. 66.

287 S. Freud, “O Estranho” [1919], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, op. cit., v. xvii, p. 282.

288 W. Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit., p. 189.

289 Id., ibid., p. 174.

290 Id., “Brinquedo e brincadeira: Observações sobre uma obra monumental” [1928], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 253.

291 Citado em W. Benjamin, “A modernidade”, in A modernidade e os modernos, op. cit., p. 17.

292 Mário Pedrosa, “Especulações estéticas: Lance final iii”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 139.

293 Em entrevista que concedeu, em abril de 2009, para o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira, que acompanha esse volume.

294 El Lissitzky, “Proun Space”, in Russia: An Architecture for World Revolution. Cambridge/ Londres: mit Press, 1989, p. 138.

295 Id., ibid., p. 140.

296 Martin Heidegger, “Observacões sobre arte – escultura – espaço”. Artefilosofia, n. 5, 2008, pp. 18-19.

297 Id., ibid., p. 20.

298 Id., ibid., p. 21.

299 Citado em Katya Garcia-Anton, “Ernesto Neto: Gramatica Jocosa”, in Ernesto Neto. Londres: Institute of Contemporary Arts, 2000, p. 28.

300 Cildo Meireles: Geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva, 2001, p. 21.

301 Id., ibid., p. 30.

302 Sigmund Freud., “Goethe-Preis 1930: Brief an Dr. Alons Paquet” [O prêmio Goethe], Gesammelte Werke [gw]. Londres: Imago, 1944, v. xiv, p. 550.

303 Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2011, p. 49.

304 Ibid., contracapa.

305 Ibid., p. 65.

306 Ibid., p. 85.

307 Ibid., p. 111.

308 Ibid., p. 130.

309 Louise Bourgeois, Marie-Laure Bernadac & Hans-Ulrich Obrist, Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, trad. Álvaro Machado & Luiz Roberto Mendes

Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2000, p. 16.

310 Id., ibid., p. 229.

311 Philip Larrat-Smith, “Introdução: A escultura como sintoma”, in Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, op. cit., p. 9.

312 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 105.

313 P. Larrat-Smith, op. cit., p. 19.

314 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 115.

315 S. Freud, “Der Wahn und die Träume in W. Jensens Gradiva” [1906], in gw, op. cit., V. VII, p. 61.

316 Ver L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 245.

317 Henry Lowenfeld, “Traumatisme psychique et expérience créatrice chez l’artiste” [1937], in Psychanalyse à L’Université, n. 8, v. 2, 1977, p. 671.

318 Id., ibid., pp. 669-70.


319 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 54.

320 Id., ibid., p. 86.

321 Id., ibid., p. 133.

322 Id., ibid., p. 134.

323 Citado em P. Larrat-Smith, op. cit., p. 11.

324 S. Freud, “Escritores criativos e devaneios” [1907], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, V. IX, p.

158.

325 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 16.

326 Citado em Donald Kuspit, “Louise Bourgeois em análise com Henry Lowenfeld”, in Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, op. cit, p. 30.

327 P. Larrat-Smith, op. cit., p. 13.

328 Citado em P. Larrat-Smith, ibid., p. 77.

329 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 91.

330 Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, op. cit., p. 21.

331 Arthur Rimbaud, “Carta dita do vidente”, in Rimbaud por ele mesmo, trad. Alberto Marsicano & Daniel Fresnor. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 109.

332 João Guimarães Rosa, “O espelho”, in Ficção completa i. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 52.

333 Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes, trad. Leyla Perone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 11.

334 Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, op. cit., p. 313.

335 Stéphane Mallarmé, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, trad. Haroldo de Campos, in A. de Campos, D. Pignatari & H. de Campos (orgs.), Mallarmé. São Paulo:

Perspectiva, 2006, p. 152.

336 Maurice Blanchot, “L’Expérience de Mallarmé”, in L’Espace littéraire. Paris: Gallimard, 1955, p. 38 [ed. bras.: “A experiência de Mallarmé”, in O espaço literário, trad. Álvaro

Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 31].

337 R. Barthes, O óbvio e o obtuso, trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 183.

338 Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, op. cit., p. 173.

339 Id., ibid., p. 204.

340 Id., ibid., pp. 198-200.

341 Id., ibid., p. 126.

342 Id., ibid., p. 106.

343 Id., ibid., p. 77.

344 Id., ibid, p. 107.

345 Citado em P. Larrat-Smith, op. cit., p. 14.

346 Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, op. cit., p. 111.

347 Ibid., p. 358.

348 Maurice Merleau-Ponty, Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996, p. 21.

349 Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres. Paris: Gallimard, 1995, p. 23.

350 Michel Foucault, Raymond Roussel. Paris: Gallimard, 1992, p. 25.


351 Marcel Duchamp, Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994, p. 41.

352 Id., Notes. Paris: Flammarion, 1999, p. 141.

353 Jean-François Lyotard, “Philosophy and Painting in the Age of their Experimentation”, in The Lyotard Reader. Nova York: Wiley-Blackwell, 1989, p. 186.

354 Walter Benjamin, Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 232.

355 J.-F. Lyotard, Le Post-moderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1988, p. 27.

356 Id., “Philosophy and Painting in the Age of their Experimentation”, op. cit., p. 190.

357 Id., ibid., p. 189.

358 Mário Pedrosa, “Especulações estéticas: Lance final iii”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, pp. 138-39.

359 Esta e as demais citações do artista, salvo indicação explícita, provêm da entrevista que ele concedeu em 2009 para o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea

brasileira, que acompanha em DVD este livro.

360 M. Pedrosa, op. cit., p. 137.

361 Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”, in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 223.

362 Id., “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 170.

363 Sigmund Freud, “Sobre a transitoriedade” [1915], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p.

317.

364 W. Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit., p. 170.

365 Id., ibid., p. 167.

366 Id., ibid., p. 180.

367 Id., ibid., pp. 171-72.

368 Roland Barthes, A câmara clara, trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

369 Id., ibid., p. 174.

370 Cildo Meireles: Geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva, 2001, p. 40.

371 Id., ibid., p. 20.

372 Cildo Meireles: Algum desenho (1963-2008). Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2008, p. 60.

373 Mário Pedrosa, “As relações entre a ciência e arte” [1953], in Forma e percepção estética. São Paulo: Edusp, 1996, p. 248.

374 El Lissitzky, “A. and Pangeometry”, in Russia: An Architecture for World Revolution. Cambridge/ Londres: mit Press, 1989, p. 143.

375 Id., ibid., p. 144.

376 Kasimir Malevich, “Le Suprématisme”, in Malevitch Écrits. Paris: Ivrea, 1996, p. 226.

377 Ferreira Gullar, “Manifesto neoconcreto” [1959], in Experiência neoconcreta. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

378 Id., ibid.

379 Piet Mondrian, “Arte plástica e arte plástica pura (Arte figurativa e arte não figurativa)”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 354.

380 Cildo Meireles: Geografia do Brasil, op. cit., p. 21.

381 Id., ibid., p. 20.

382 Id., ibid., p. 72.

383 Martin Heidegger, “Observações sobre arte – escultura – espaço”. Artefilosofia, n. 5, 2008, pp. 19-21.
384 Id., ibid., p. 19.

385 Id., ibid., p. 20. Grifos do autor.

386 Id., ibid., p. 20, n. 11.

387 Barnett Newman, “O primeiro homem era um artista”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna, op. cit., p. 560.

388 Em entrevista a Camila Molina, “A obra sonora de Cildo Meireles”. O Estado de S. Paulo, 21/08/2011.

389 Jacques Rancière, A partilha do sensível: Estética e política, trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: Editora 34 / Exo, 2005, p. 15.

390 Id., ibid., p. 16.

391 Marie-José Mondzain, Homo Spectator. Paris: Bayard, 2007, p. 31. Grifos meus.

392 Id., ibid., p. 203.

393 Hannah Arendt, A vida do espírito, trad. Antônio Abrances et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 513.

394 Id., ibid., p. 519.

395 Cildo Meireles: Geografia do Brasil, op. cit., p. 56.

396 Id., ibid, p. 58.

397 Id., ibid., p. 19.

398 Jean-Luc Nancy, “La Comparution”, in J.-L. Nancy & J.-C. Bailly, La Comparution. Paris: Christian Bourgois, 2007, p. 57.

399 Id., ibid., p. 58.

400 M. Pedrosa, op. cit., p. 138.

401 J.-L. Nancy, op. cit., p. 56.

402 Maurice Blanchot, “Le Dernier à parler”, in Une Voix venue d’ailleurs. Paris: Gallimard, 2002, p. 71.

403 Nuria Enguita, “Lugares de divagación: Una entrevista con Cildo Meireles, in Cildo Meireles. Valencia: ivam Centre del Carme / Generalitat Valenciana, 1995, p. 13.

404 Id., ibid., p. 14.

405 J.-L. Nancy, op. cit., p. 91.

406 Jacques Lacan, Le séminaire, livre x: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 60 [ed. bras.: O seminário, livro x: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 58].

407 Jean-Christophe Bailly, “Avant Propos”, in J.-L. Nancy & J.-C. Bailly, op. cit., p. 20.

408 Id., ibid., p. 23.

409 Citado em M. Blanchot, La Communauté inavouable. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983, p. 16.

410 J.-C. Bailly, “L’Isthme”, in J.-L. Nancy & J.-C. Bailly, op. cit., p. 42.
SOBRE OS TEXTOS

Parte dos ensaios deste livro tiveram como ponto de partida, às vezes com
muitas modificações e acréscimos, outras com pequenos ajustes, os
seguintes textos:

O retorno do sujeito: Ensaio sobre a performance e o corpo na arte


contemporânea. Polêm!ca, UERJ, n. 18, 2006.
Kosuth com Freud: Imagem, psicanálise e arte contemporânea. Arte
&AMP; Ensaios, EBA / UFRJ, ano XIII, n. 13, 2006.
A letra e a imagem: Gary Hill, videoarte e psicanálise. Psicologia &AMP;
Sociedade, V. 21, 2009.
A criação crítica: Oiticica com Lacan. Trivium: Estudos interdisciplinares,
UVA, ano II, edição I, 2010.

Ensaio sobre o espaço e o sujeito: Lygia Clark e a psicanálise. Ágora, PPGTP /


UFRJ, V. 11, n. 2, 2008.

A transmissão como uma Torre de Babel: Psicanálise e arte contemporânea,


in Fernanda Costa-Moura (org.), Psicanálise e laço social. Rio de
Janeiro: 7 letras, 2010.
O retorno do sujeito e a crítica na arte contemporânea. Criação e crítica:
Seminários Internacionais Museu Vale. Rio de Janeiro: Suzy Muniz,
2009.
Ethics, Psychoanalysis and Postmodern Art in Brazil: Mário Pedrosa, Hélio
Oiticica and Lygia Clark. Third Text: Critical Perspectives on
Contemporary Art &Culture, n. 114, V. 26, 2012.
O sujeito e a aura. Marcelina, FASM, ano 3, n. 5, 2010.
A pele e o espaço. Ernesto Neto: Dengo. São Paulo: MAM, 2010.
Nota sobre as fabulações psicanalíticas de Louise Bourgeois. Trivium:
Estudos Interdisciplinares, UVA, ano III, edição 2, 2011.
A arquitetura do pensamento: Milton Machado. História do futuro. São
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A estética é sempre política: Cildo Meireles e o sujeito na arte
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WARR, Tracey & Amelia jones. The Artist’s Body. Londres: Phaidon, 2000.
ÍNDICE DE NOMES [+]

A
Abramovic, Marina 25, 28, 32, 43-44
Adorno, Theodor W. 120, 196-97, 216
Alberti, Leon Battista 167, 191
Andrade, Mário de 260
Apollinaire, Guillaume 84
Arantes, Otília 204, 207
Arendt, Hannah 356-66
Aristóteles 65, 73, 312

B
Bailly, Jean-Christophe 376, 378
Baldessari, John 56
Barrenechea, Alejandro 342
Barros, Umberto Costa 335
Barthes, Roland 7, 81-83, 91, 119, 186, 292, 294, 339
Basbaum, Ricardo 23, 45
Bastos, Oliveira 212
Bataille, Georges 40, 69, 377
Baudelaire, Charles 181, 197, 238, 240-41, 243
Beethoven, Ludwig van 358
Bellour, Raymond 88, 196
Benjamin, Walter 11-12, 53-54, 60, 75, 121, 181-82, 184, 195, 197, 225,
228-29, 231-35, 237-43, 266, 312, 316, 318, 321, 332-33, 335, 337-39,
361, 364, 372
Bense, Max 196
Bergson, Henri 205
Bill, Max 32
Blanchot, Maurice 79, 141, 293-94, 372, 375-76
Bonaparte, Marie 273
Borges, Jorge Luis 301, 377
Bossuets, Jacques-Bénigne 274
Bourgeois, Louise 7, 269, 271-77, 280-83, 285-91, 293-97
Breton, André 99, 199, 210, 212, 274, 313
Brett, Guy 346
Bueno, Guilherme 319
Byars, James Lee 17, 19-20, 45

C
Caesar, Rodolfo 302
Cage, John 141
Caillois, Roger 39-42, 129, 138-39
Caldas, Waltercio 11, 227, 231
Calle, Sophie 30
Cammer, Leonard 282
Camões, Luís Vaz de 307
Campos, Augusto de 127
Cassirer, Ernst 204
Castro, Amilcar de 204
Cézanne, Paul 137, 251
Charcot, Jean-Martin 277
Chardin, Teilhard de 373
Clark, Lygia 11, 23, 30, 33, 36-38, 45, 110, 123, 129, 140, 142, 144-51,
202, 204, 208, 214-15, 218-19, 222, 247, 253-54, 259, 321, 328, 345-47,
352, 358

D
Da Vinci, Leonardo 207, 322
Dalí, Salvador 211
Darwin, Charles 66
della Mirandola, Pico 322
Descartes, René 132
Diamond, Jessica 56
Didi-Huberman, Georges 22, 65, 67-68, 133
Drummond de Andrade, Carlos 302
Duchamp, Marcel 22-23, 58, 109, 169, 264, 307, 309
Durançon, Jean 196

E
Einstein, Albert 253, 349
El Lissitzky 208, 251-53, 343, 346
Escher, Maurits Cornelis 32
F
Fédida, Pierre 147, 149, 218
Fenerich, Alexandre 302
Fenichel, Otto 281-82
Ferreira, Glória 31
Flaubert, Gustave 323
Foster, Hal 20, 69, 77, 185-87
Foucault, Michel 90-91, 165-66, 172, 308, 361
Freud, Sigmund 23, 31, 50-71, 73-75, 77, 82-84, 90, 92, 95, 100, 107-08,
112-14, 116-17, 119, 126, 131-32, 134, 137, 146, 148, 152, 157-58, 162,
164, 169, 173, 182-83, 205, 207, 210-12, 232-33, 235, 241-42, 261,
263-64, 271, 273-74, 276, 280, 282, 287, 289-90, 293, 296, 303, 320,
329-30, 334-35, 337, 351, 353-54, 359, 376

G
Galton, Francis 66
Gault, Jean-Louis 93
Goethals, Marc 56
Goethe, Johann Wolfang von 237
Greenaway, Peter 92-93
Guimarães Rosa, João 292, 356
Gullar, Ferreira 204, 212-13, 316, 345, 353

H
Hanhardt, John 95
Heidegger, Martin 111, 159,161, 168, 205, 252, 259, 299, 350-51
Herkenhoff, Paulo 204, 209, 211, 215
Hill, Gary 85, 88-92, 94-95, 100-01
Holbein, Hans 184
Holzer, Jenny 56
Hopper, Edward 169
Hosey, Andy 358
Husserl, Edmund 204
J
Jackson, Michael 357
Jameson, Fredric 202
Janet, Pierre 41
Jardim, Reynaldo 204, 212
Jenks, Charles 202
Jentsch, Ernst 116
Jorge, Marco Antonio Coutinho 169
Joyce, James 60
Judd, Donald 189
Jung, Carl G. 209

K
Kabakov, Ilya 57
Kant, Immanuel 205, 361, 365
Klein, Melanie 273, 282, 358
Kosuth, Joseph 47, 51, 56-62, 69-72, 75-77, 306
Krauss, Karl 240
Krauss, Rosalind 40, 75
Kris, Ernst 206
Kristeva, Julia 47, 69

L
La Rochefoucauld, Antoine de (conde) 286
Lacan, Jacques 7, 21, 23, 28, 30, 32-33, 36-38, 41-44, 47, 50, 55, 67-68, 74,
84-85, 89, 93, 95, 99-101, 105, 110-12, 114, 116, 118, 120-24, 132-34,
136-38, 140-42, 145, 150-51, 153, 156-60, 162-73, 183-87, 194, 211-12,
216, 239, 269, 274, 287, 303, 329, 354, 374
Langer, Suzanne 204
Lanzmann, Claude 141
Larrat-Smith, Phillip 275, 272, 277, 289, 291
Leirner, Nelson 110
Leite, Vania Dantas 302
Levine, Sherrie 56
Lévi-Strauss, Claude 303
Lowe, David 322
Lowenfeld, Henry 282-83, 286, 291
Lyotard, Jean-François 62, 67, 75-76, 79, 202, 316, 318-19, 323

M
Machado, Arlindo 51, 96
Machado, Milton 299, 301, 304-07, 310-13, 316-19, 321
Machado de Assis, Joaquim Maria 313
Maciunas, Georges 110
Magritte, René 165
Malevich, Kazimir 21, 115, 213, 250-51, 345, 347
Mallarmé, Stéphane 22, 50-51, 137, 158, 177, 195, 197, 293
Manuel, Antonio 110
Matisse, Henri 210
Mavignier, Almir 209
Meireles, Cildo 11, 155, 157, 161-62, 190, 194, 236, 258, 260-61, 305, 328,
330-31, 335, 337, 339, 341-42, 346-50, 352-53, 356-60, 362, 366-67,
373-77, 379
Meirelles, Cildo (pai) 351
Meirelles, Francisco 351
Merleau-Ponty, Maurice 24, 39, 136-37, 147, 187, 204-05, 239, 301
Mondrian, Piet 208, 347-48
Mondzain, Marie-José 114-16, 362, 364-65
Morais, Frederico 335, 342
Musil, Robert 60
Muybridge, Eadweard 54

N
Nancy, Jean-Luc 367, 372, 374
Neto, Ernesto 249-50, 252-55, 258-61, 263-66
Newman, Barnett 115-16, 358-59
Nietzsche, Friedrich Wilhelm 205, 320

O
Odin, Paul-Emmanuel 95-96
Oiticica, Hélio 10-11, 121-24, 126-27, 145, 147, 150, 202, 208, 214-18,
222, 254, 258-60, 303, 321, 325, 328, 345-48, 352
On Kawara 19
Ono, Yoko 25, 31
P
Paik, Nam June 88
Palatnik, Abraham 209
Pape, Lygia 204-05, 214
Pedrosa, Mário 9, 11, 147, 201-02, 204, 206-12, 214, 216, 249, 330, 332,
342, 345, 370
Picasso, Pablo 182, 211
Platão 372
Plínio (o Velho) 322
Poe, Edgar Allan 85
Ponge, Francis 182
Pontual, Roberto 149
Prévert, Jacques 112, 184
Prinzhorn, Hans 210
Proust, Marcel 239

R
Rancière, Jacques 63, 73, 258, 361
Rilke, Rainer-Maria 31, 334-35
Rimbaud, Arthur 190, 292, 294, 296
Rolnik, Suely 149
Rops, Félicien 280
Roussel, Raymond 307-08

S
Sade, Marquês de 120
Andreas-Salomé, Lou 31, 334
Schelling, Friedrich Wilhelm Joseph von 241
Schuler, Alfred 12, 225
Schwitters, Kurt 218
Serpa, Ivan 209
Shakespeare, William 84
Sherman, Cindy 69
Silveira, Nise da 209
Smith, Tony 110, 160-61
Smithson, Robert 21
Spanudis, Theon 204
Steinberg, Leo 202
Svevo, Italo 60, 69-71

T
Tolstói, Liev 288
Tunga 219
Tzara, Tristan 137

U
Ulay 43-44

V
Valéry, Paul 239-41
Van Eyck, Hubert 337
Van Eyck, Jan 337
Vautier, Ben 110
Velázquez, Diego 91, 163, 165, 168-69, 171-73, 243
Velázquez, Nieto 169
Vermeer, Johannes 342

W
Wajcman, Gérard 141
Warhol, Andy 110, 185-86, 188
Weissmann, Franz 204
Winnicott, Donald 219
Wittgenstein, Ludwig 60, 263

Y
Yoshihara, Jiro 38

+ A numeração dos links, dos índices, corresponde à paginação da edição impressa do mesmo título.

Optamos por mantê-la apenas como referência, já que ela na verdade varia conforme a plataforma digital de leitura que se utilize.
ÍNDICE DE OBRAS

A
A adoração do cordeiro místico 337
A casa é o corpo 23
A destruição do pai 277
Abuso infantil 285-88
Ambulance Disaster 186
Arch of Hysteria 277
Around & About 85, 88-92
Arte é uma garantia de sanidade 283
As férias do investigador 307
As meninas 91, 163-65, 169, 171-72, 227-28
Através 11, 190-91, 194, 196, 236, 239, 241-42, 339-40, 350

B
Baba antropofágica 148
Babel 360, 370, 372
Bicho 33, 144, 345-46
Bólide 126, 222, 259
Branco sobre branco 115

C
Camelô 260
Caminhando 33, 36-37, 110, 142, 144, 146, 151, 215, 222, 253, 321, 358
Canibalismo 148
Cantos 341, 343, 362
Casulos 345
Cathexis 76
Cell xxiv (retrato) 276
Chão 379
Cigarras 360
Cinza 346-48, 364
Cruzeiro do Sul 155-57, 161-63, 351
Cumuls 295
Cut Piece 25

D
Death in America 185
Dengo 265
Desvio para o vermelho 362
Diáfora 310
Diálogo de mãos 215, 259, 321
Die 110, 160
Do corpo à terra 335

E
Edifício Galaxie 312
Escritos psicanalíticos 272-73, 291
Espaços virtuais: Cantos 341, 343
Estruturação do self 149-50, 219
Estudo para espaço 162
Eureka Blindhotland 373

F
Fábrica utópica de realidades objetivas (f.u.r.o.) 313
Filletes 271
Fita de Moebius I 32
Fita de Moebius I I 32
Fluência topológica em um campo estrutural para um ponto de alta
densidade, yeah 254
Fonte 109
Fort! Da! 73, 76
From Sebastian to Olivia 255

G
Grande vidro (ou A noiva despida por seus celibatários, mesmo) 264, 309

H
História do futuro 303, 312, 316-17, 319-21, 323
Homem muito abrangente 321-22
I
Impressões da África 307
Inserções em circuitos ideológicos 305, 366-67

J
Janus florido 290

L
Les Dormeurs 30
Liverbeatlespool 357-58
Livro Velázquez 227
Los Velázquez 227

M
Malhas da liberdade 258
Marulho 372
Máscara abismo 219
Mebs / Caraxia 353
Mergulho do corpo 121
Merz 218
Mystery Box 110

N
Nova objetividade 217
Nowhere is my Home 343
Núcleos 345

O
O corpo é a casa 23
O dentro é o fora 33, 145, 321
O livro de cabeceira 92
O teatro perfeito 45
O.&A. / F!D! (to I.K. and J. F.) 56
Objetos relacionais 149, 219
Ode à l’Oubli 289
One and Others 295
Os embaixadores 184
P
Parangolé 119, 122-24, 217-18, 259-60, 321, 328
Penetráveis 126, 208, 259, 345, 348
Pensamento mudo 147, 149
Pilha 304
Produção 304
Projeto cédula 366
Projeto Coca-Cola 366

Q
Quadrângulo 115

R
Red Room 277
Rest Energy 43
Rhythm 0 25, 28
Rio oir 359
Roda de bicicleta 109

S
Sal sem carne 355-56
Shoah 141
Sleep ii 281
Sleeping Figure 295

T
The Edges of the World 258
The Perfect Performance is to Stand Still 20
Tractatus i Deuses 261
Trepantes 33

U
Unidade tripartida 32
Untitled #153 69
Ura Aru (the backside exists) 94-96, 99

V
Vermelho 304
W
While u Wait 379

Z
Zeno nas margens do mundo conhecido 69
Zero & Not 59, 60-61, 76
A Secretaria de Estado de Cultura (SEC) vem trabalhando desde 2008 para
difundir, estimular e fortalecer a cultura do Rio de Janeiro, criando
mecanismos de fomento e políticas estruturantes para o setor, em todas suas
vertentes, buscando contemplar todos os setores e áreas, desde as
manifestações mais tradicionais, e abrangendo agentes culturais de todo o
estado.
Como parte desse trabalho, a sec criou o edital de Artes Visuais – dentro
do pacote de 41 editais lançado em agosto de 2011 –, com a finalidade de
incentivar a criação artística, bem como a integração cultural, a pesquisa de
novas linguagens, a formação e o aprimoramento de pessoal de sua área de
atuação.
Balizado por esses parâmetros, o edital proporcionou apoio financeiro a
projetos que propunham a circulação, o intercâmbio e a implementação de
ações de Artes Visuais no Rio de Janeiro, visando estimular a
multiplicidade e a diversidade de tendências e linguagens.
Através do edital, a sec contemplou projetos como este, de exposições de
arte, intervenções urbanas e publicações de arte. E, assim, reiterou o
compromisso do Governo do Rio de Janeiro de oferecer uma programação
plural, de qualidade, ampla e diferenciada.

Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro

Projeto realizado com o patrocínio do Governo do Rio de Janeiro e da


Secretaria de Estado de Cultura – Edital ARTES VISUAIS 2011
© Cosac Naify, 2013, e-book, 2014

© Tania Rivera, 2013

COORDENAÇÃO EDITORIAL Milton Ohata

ASSISTENTE EDITORIAL Paulo Pirozelli

REVISÃO Maria Fernanda Álvares e Ana Tereza Clemente

PROJETO GRÁFICO ORIGINAL Gabriela Castro

ADAPTAÇÃO E COORDENAÇÃO DIGITAL Antonio Hermida

PRODUÇÃO DE EPUB Fabian J. Tonack

1ª edição eletrônica, 2014

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

sobrenome, nome [1969-]

O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise / Tania Rivera

São Paulo: Cosac Naify, 2014

ISBN 978-85-405-0664-0

1. Arte contemporânea

2. Psicanálise

I. Título.

Índices para catálogo sistemático:

1. Arte contemporânea e psicanálise 701.15


COSAC NAIFY

rua General Jardim, 770, 2° andar

01223-010 São Paulo SP

cosacnaify.com.br [11] 3218 1444

atendimento ao professor [11] 3823 6560

professor@cosacnaify.com.br
Este e-book foi projetado e desenvolvido em dezembro de 2013, com
base na 1ª edição impressa, de 2013.

FONTES Swift e Helvetica


SOFTWARES Adobe InDesign e Sigil
Capa
Introdução
PARTE UM
O retorno do sujeito: Sobre performance e corpo
Kosuth com Freud: A imagem e a palavra
A letra, a imagem: Gary Hill
PARTE DOIS
Sublimação, parangolé e cultura
A fantasia e o espaço: Lygia Clark
Cruzeiro do Sul e o avesso do imaginário
PARTE TRÊS
Arte é crítica: Sobre Através
Mário Pedrosa, ética e arte pós-moderna
A aura e o sujeito em Waltercio Caldas e Cildo Meireles
PARTE QUATRO
Ernesto Neto: A pele e o espaço
Louise Bourgeois e o heterorretrato
Milton Machado e a arquitetura do pensamento
A estética é sempre política: Cildo Meireles
Notas
Sobre os textos
Bibliografia
Índice de nomes
Índice de obras
Patrocínio
Créditos
Redes sociais
Colofão
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