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ÓDIO

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ÜDIO, UM SENTIMENTO LÚCIDO

Rodrigo Lyra 1 e Carlos Camarg<i

Este trabalho teve como ideia fundamental realizar


um levantamento teórico a respeito do conceito de ódio
em Freud e em Lacan, não para explicar os fenôme-
nos decorrentes do ódio, a fim de torná-los plenamen-
te compreensíveis, mas para tentar situar um pouco 0
ponto inexplicável dessa questão. Geralmente, oscila-
se entre os fenômenos produzidos pelo ódio e algo que
temos chamado de "ódio estrutural", elemento estrutu-
ralmente participante da construção subjetiva. Há um
vaivém constante entre esse suposto ódio estrutural e o
ódio que se faz presente na experiência.
O senso comum nos convida a pensar amor e ódio
como dois avessos, ou mesmo como "duas faces de
uma mesma moeda", o que explicaria o caráter muito
frequentemente ambivalente das relações amorosas.
Freud, no entanto, adverte contra essa suposta com-
plementaridade dos afetos: amor e ódio, diz ele: ;.não
provêm da clivagem de um elemento original comum,
possuem origens diversas, e cada um passou pelo seu
próprio desenvolvimento [... ]". 3 Além disso, ele acres-
centa um descompasso temporal: o ódio seria anterior
ao amor.

p51·colocria Clínica -
1. Correspondente da EBP-Rio, Mestre em t>

PUC-Rio.
2. Psicólogo. .
_ ., [l 9 lS] Em: ObrasPszco-
3. Freud, S." Pulsões e destinos da pu Isao · · ·. l60.
, . de Sigmund Freud. Rw
[ogzcas •.. Imago' 2004. v. 1, P·
. de .Janeuo.
83
Essas duas pistas - as origens diversas e O <lese
. om-
p asso temporal - orientaram esta nossa investiga ..
. . d b çao
sobre O ódio, não se constltu1n o, o viamente, como
conclusões. São, na verdade, grandes problemas com os
quais nos deparamos. Qyestões que podem aparecer em
algumas perguntas: como situar essa anterioridade do
ódio? Como encarar a ambivalência, partindo, entretan-
to, da dissimetria e não da complementaridade? Qyal 0
sujeito desse ódio e, principalmente, qual seu objeto? Já
começamos a falar sobre objeto na mesa anterior.
Uma importante fonte teórica dessa afirmação so-
bre a anterioridade do ódio é ambígua e nos lança ao
encontro de várias questões decisivas sobre a própria
farmação do eu. Referimo-nos ao texto freudiano "Pul-
sões e seus destinos", no qual essa delicada temporali-
dade do ódio é abordada. A afirmação de Freud é preci-
samente a seguinte: tEnquanto relação com o objeto, o
ódio é mais antigo que o amor".4j
Apresenta-se, logo na primeira metade dessa frase
freudiana, um complicador que não pode ser deixado de
lado, justamente por se referir à relação com o objeto. A
rigor, não é verdade que Freud suponha, pura e simples-
mente, uma anterioridade do ódio em relação ao amor.
Seu ponto de partida, pelo contrário, é o momento em
que "o eu só ama a si mesmo e permanece indiferente
para com o mundo".5
Chamamos de ambígua essa referência porque 0
texto de Freud parece permitir, a todo instante, duas lei-
turas._A primeira aponta para uma unidade egoica pri-
mor<lial, fechada no amor de si mesma e no repúdio ao
que é externo e, portanto, odiado. A segunda leitura su-
gere que Freud produz uma série de abalos nessa visão

4. Ibidem, p. 16 1.
5. Ibidem, p. 158 _
84
de narcisismo p~im~io e insist~ em uma relação mais
complexa entre 1ntenor e e>..rtenor. O texto oscila entre
essas du as ,·ertentes, mas~ com base na leitura de outros
textos de Freud e de Lacan, toma-se mais fácil privi-
legiar uma das leituras. Imaginando, porém, um leitor
q;e tenha acesso a Freud pela primeira Yez. é provável
que ele perceba, m ais claramente e apenas, uma grande
oscilação, n o texto, entre essas duas vias .
Sabemos que Lacan recusa a ideia de uma unida-
de primordial e podemos propor, com ele, a seguinte
objeção: como afirmar que um sujeito ama a si mesmo
antes que qualquer distinção entre dentro e fora tenha
permitido o isolamento de um objeto? Parece razoável,
portanto, fazer uma ressalva sobre o emprego do termo
''amor" para qualificar o afeto próprio a esse momento
mítico.
Essa ressalva encontra apoio no próprio te::-..'to de
Freud, quando observa que a suposição de uma unidade
primordial plena tem algo de insustentável - já que,
desde sempre, as moções pulsionais internas podem ser
percebidas como desprazerosas, e os objetos externos
podem ser fontes de prazer.
Em resumo, em vez de apostar em uma situação
inicial de perfeita satisfação do eu consigo mesmo, op-
tamos por perceber como Freud situa uma instabilida-
de essencial e sempre presente do eu, que serve como
motor para uma relação mais permeável entre dentro e
fora, descrita por ele da seguinte forma:

O mundo externo é decomposto agora em u1na par-


cela prazerosa, que [o sujeito] incorpora em si, e e1n
um resto, que lhe parece estranho. Do seu próprio
eu, ele extraiu uma parte que expeliu para o inundo
6
externo e que passa a sentir co1no hostil.

6. Ibidem, p. 159.
85
Para abordar o ódio, essa passagem é capital. Ela
aponta para um ato, uma expulsão fundadora, a partir d
qual surge tanto a estra~a alter~dade interna, quant:
a internalização do exterior. Precisamente nesse ponto
de surgimento do eu, a presença hostil expelida, a parte
afastada com ódio, é integrante do próprio sujeito, não
do mundo externo. Ou seja, o primeiro intercâmbio do
sujeito mítico com o mundo depende da expulsão de
um excesso interno inominável, a partir da qual a sepa-
ração entre dentro e fora deixa de ser mítica, ou abso-
luta, .e permite a instituição de um eu apoiado em uma
função simbólica, necessariamente externa.
É claro que isso se trata apenas de um recorte da te-
orização de Freud, extraído de um texto anterior ao "Mais
além do princípio do prazer", 7 à introdução da pulsão de
morte - que, obviamente, vai ser muito importante para
o tema do ódio. A ideia é nos determos especialmente
nessa passagem, uma indicação de que o ódio não deve
ser pensado simplesmente como uma reação ao que é
externo, ao que é desprazeroso, nem como um simples
avesso do que seria um amor primordial.
Lança-se a questão de como aproximar essa expul-
são mítica e estrutural dos fenômenos do ódio. Dito de
outra forma: de que maneira a "parte hostil expelida"
perfaz seu retorno?

ÓDIO ALÉM DA INVEJA

Sabemos que Lacan insiste na importância de dis-


cernir os registros imaginário e simbólico para melhor
situar as relações entre dentro e fora. Cada um guar-
~ seus perigos, precariedades, que sempre atualizam ª
instabilidade do sujeito.

7 · Freud , S."Além do prin cíp io do prazer" [1920] . Em : Edição stª~-


· das Obras Completas· de Sigmund Freud. R.10 de .Janei-
dard brast··tetra
ro: Imago, l 996. v. XVIII.
~6
Na relação imaginária, o espelho é a ilustração
dessa instabilidade: a imagem que dá corpo ao sujeito
rouba-lhe algo que ele insiste em recuperar. A relação
interdependente entre eu e outro constitui uma espé-
cie de espiral em que a percepção de unidade deverá
sempre vacilar, criando o que Lacan chama, no Seminá-
rio 2/' particularmente, de "desarvoramento". Por essa
razão, estamos habitu2dos a perceber que o recurso à
alteridade de que o sujeito se utiliza deixa como legado
uma forte tendência à rivalidade e à inveja: aquilo que o
outro tem ou é meu, ou deveria ser.
Tal disputa imaginária seria o fundamento do
ódio? Lacan responde: "Há uma dimensão imaginária
do ódio, na medida em que a destruição do outro é um .a;')
polo da estrutura da relação intersubjetiva", mas "o ódio ~
não se satisfaz com o desaparecimento do adversário".9
Essa não satisfação aponta para uma presença su-
plementar. O ódio não se resolve no plano imaginário,
na disputa, na inveja. Lacan usa, por exemplo, o mo-
delo animal para demonstrar que o papel de derrota-
do pode perfeitamente encontrar um bom lugar, sem
levar necessariamente à reação hostil. Por outro lado,
"se o outro aparece frustrando o sujeito do seu ideal e{)
da sua própria imagem, engendra a tensão destrutiva
máxima".10
Há aí uma diferença entre simplesmente vencer,
destacar-se no eixo imaginário, e, de alguma maneira,
frustrar o sujeito no seu ideal - ideal aqui não no sen-
tido de figuras ideais sociais, mas algo próximo de um
próprio ideal de si, uma formação egoica, eu ideal. Fica

8. Lacan, J. O Seminário - livro 2: o eu na teoria de Freud e na técni-


ca da psicanálise [ 1954/1955]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
9. Lacan, J. O Se minário - livroJ: os escritos técnicos de Freud
[1953/ 1954]. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 315.
10. Ibidem, p. 322.
87
claro que a presença capaz de perturbar a imagem do
sujeito, ao mesmo tempo em que pode aparecer na rela~
ção con1 outros, a excede.
Nesse ponto, as observações de Lacan sobre .
amor ajudam a cercar, a delimitar a presença de alg~
que escapa ao eu e que serve de causa aos dois afetos.

Aquele que aspira ser amado se satisfaz muito pou-


co em ser amado pelo seu bem. Sua exigência é ser
amado tão longe quanto possa ir a completa subver-
são do sujeito numa particularidade, e no que essa
particularidade possa ter de mais opaco, de mais im-
pensável.11

É uma passagem bonita sobre o amor.


Ora, se, por meio do amor, um sujeito pode esperar
obter uma inclusão afetiva do estranho, uma relativa
inscrição para tudo aquilo que está em exílio da rela-
ção sexual, poderíamos situar o ódio em uma posição ao
"'
mesmo tempo semelhante e inversa. ~e uma figura é ca-
paz de perturbar um sujeito, por fazê-lo sentir, de modo
perturbador, o seu próprio impensável, por lançá-lo a
uma posição impossível de ser suportada em função de
suas coordenadas subjetivas, é de se esperar que ela seja
alvo do ódio do sujeito.]
Por mais que, nos fenômenos da vida, uma coisa
possa esconder-se por trás da outra, parece fundamen-
tal perceber que o grave na relação co1n o outro não
ocorre quando ele simplesmente se destaca na balan-
ça imaginária, mas sim quando perturba a montag~in
~ubje_tiva. Em uma palavra, o grande perigo do co~fhto
imaginário não é a derrota, é a dissolução. Dificil e ten-
tar simplesmente classificar os eventos, os fenômenos
da vida: isto é inveja, aquilo é ódio. A ideia não é tanto

11 . Ibidem, p . 315.

88
essa, mas perceber que uma coisa por t , d
ras a outra p 0 d
apontar para um excesso, para uma n ~ e
'd d ao complementa-
na e.
É justa1nente por essa razão que
. . , como observa
Lacan. o s1n1ples desaparecimento dessa fi
gura tende a
não representar un1a solução eficaz Pelo c t , .
. · on rano, a
P resença imaculada de sua ausência poderi·a · •
. , servir Jus-
ta1nen te para eterniza~ o o~io. Talvez por isso seja tão ~
co1nu1n buscar a hum1lhaçao pública ou a degradação
do sujeito ou do povo odiado, como forma de destituí-
lo, de destituir essa figura capaz de significar para um
sujeito, mais do que a sua derrota, a sua dejeção. Nos
termos de Lacan:

Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do ou-


tro, o ódio quer o contrário, seja o seu rebaixamento,
seja a sua desorientação, o seu desvio, o seu delírio, ._
a sua negação detalhada, a sua subversão. É nisso
que o ódio, como o amor, é uma carreira sem limite.12

Há, portanto, um ilimitado em questão. Uma pre-


sença suplementar que pode apoiar-se nas relações
com semelhantes, mas que excede o plano da inveja.
Um sujeito não odeia o outro em função daquilo que
ele tem, mas sim do excesso que ele engendra quando
entra em relação consigo. É necessário delimitar me-
lhor esse excesso.

Ônro ALÉM DA CASTRAÇÃO


, . , . . na o afeto do ódio
Ja no Se mznarzo 1, Lacan aprox11 ,
. , . 1
de uma figura s1mbohca, que e e e a h ma de erro. E uma
, .
, b' 'd de São espec1es
tripartição: erro, engano e am 1gu 1 a · _
. , d por ele. Nao
de dimensões da linguagem destaca as

12. Ibidem, p. 316.


89
se trata de uma tríade ~u~tas veze~ ~or ele retomada,
mas há aí uma superposiçao entre od10 e erro que
, ·1 A f un d~çao
pareceu bastan~e utI .
~ · b ,1 nos
sim o ica do sujeito,
no campo da linguagem, exige uma separação, u
perda que permite a constituição da cena subjeti;a
, . D a,
mas que deixa restos, vestigios. e maneira bem di-
reta, a questão seria: é em função dessa perda, dessa
falta, dessa manifestação de castração que o ódio se
instala?
Essa é uma leitura. Encontramos, na bibliografia,
textos psicanalíticos que mais ou menos situavam 0
ódio como uma reação ao fato de que há castração. o
ódio como um rebote da castração. Mas o ódio não pode
resumir-se a isso, ao menos não exatamente. ·
Associar o ódio ao preço cobrado pela fundação
simbólica resultaria em uma péssima consequência clí-
nica, que seria a de fazer da psicanálise uma disciplina
da submissão à perda, um forçamento da aceitação da
falta, para que então o ódio pudesse dissipar-se.
Ao analisar a incidência do simbólico, é bastante
claro que Lacan não se contenta com essa dimensão
da perda, da linguagem como uma mentira irremedi-
ável. Em lugar de buscar a solução alhures, é no pró-
prio tecido simbólico que a emergência da verdade será
perseguida. A figura do erro é uma dessas encarnações
- ainda no Seminário JJ vale lembrar - e, nos termos
de Lacan, "se demonstra no fato de que, num dado mo-
mento, se chega a uma contradição". 13
Em vez de conformar-se com a impossibilidade de
tocar a verdade por meio da fala humana, Lacan encon-
tra, na emergência de certo tipo de contradição, u1:1ª
~assagem da errância subjetiva habitual para a matena-
hzação de um erro sem lugar e singular.

13. Ibidem, p. 30 1.
90
Para melhor compreender a superposição lacania-
na entre erro e ódio, usaremos como apoio ~rna tese de
Marcus André Vieira) presente tm A. ética da paíxã.o.:~
Ali, ele tr~ta do erro como a aparição, na fala, de algo
não planeJado, de uma presença que, justamente por
ser insensata, introduz a dimensão da verdade : "O erro
diz respeito a um significante que é o não poder ser'.
1

Pode provocar o desprezo, a depreciação, a necessidade


apaixonada de exclui-lo da série, de eliminá-lo. Este é 0
fundamento do ódio".15
Em outras palavras, o erro consistiria em um sür-
nificante que, de alguma maneira, extrapolaria o pró- º
prio exercício corrente do simbólico. Assim, pode-se
dizer que, correlato ao ódio, o erro veicula, por meio
da fala, uma presença êxtima, que tende a levar ao im-
passe a construção subjetiva. É uma situação distinta
do mais habitual reconhecimento de certo esvazia-
mento da cena.
Em suma, a causa do ódio não seria a falta que
empobrece a satisfação, mas um excesso que, para um
sujeito, surge justamente no lugar de um de seus im-
possíveis, de seu "não pode ser". Nos termos de Lacan,
"nada concentra mais ódio do que esse dizer onde se
situa a ex-sistência".16
Essa figura do erro possui a prerrogativa de pos-
sibilitar uma passagem do ódio como rompante, como
fenômeno, como excesso, para algo mais apreensível na
linguagem, para a ex-sistência. A ex-sistência é sempre
excessiva, justamente por situar-se nessa relação com-
plicada entre dentro e fora. Mas ela não é apenas exces-
siva por ter certas coordenadas. A ex-sistência não é o

14. Vieira, .M. A. A ética da paixão. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


15. Ibidem, p. 174.

l6. Lacan,J. O Seminário - livro 20: mais, ainda [1972/ 1973]. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985. p.164.
91
noine para um excesso universal, mas para um excesso
particular, ou singular.

ÓDIO E GOZO DO ÜUTRO

o que estabelece uma relação entre essas figuras


simbólicas eventualmente abstratas e o campo mais
concreto das relações é justamente o que se chama de
gozo, ou seja, as satisfações pulsionais singulares, que
tendem a fazer obstáculo às construções coletivas e
universais. Mesmo no campo individual, o gozo tende a
evocar justamente esse ponto de alteridade interna, de
presença êxtima, de erro.
Jacques-Alain Miller, no seminário Extimidade,
sintetiza esse problema com a seguinte frase : "Odeia-se
especialmente a maneira particular com que o Outro
goza". 17 O gozo encarna justamente o excesso que men-
cionávamos, o que o faz exceder o plano da inveja. É que
o gozo, de certa maneira, não tem parceiro. Ou melhor,
seu parceiro tende a ser o objeto, uma posição muito
delicada quando nela um sujeito se enxerga. Qyando
um excesso de satisfação do Outro é detectado, o lugar
do sujeito fica prejudicado.
Não há como não notar uma proximidade entre
essa maneira de localizar o ódio e o preconizado pela
teoria lacaniana da angústia. É bom lembrar também
que o ódio recebe uma espécie de elogio de Lacan. Oito
anos depois da célebre frase que define a angústia como
0 único afeto que não engana, o ódio é descrito, no Semi-

nário 18, como "o único sentimento lúcido".18 Foi nisso


que nos inspiramos ao escolher o título - provocativo
- desta mesa.

17 · Miller, J.-A. Extimidade. Buenos Aires: Paidós, 2011.


18. Lacan ' J· o 5emmano
· , • - 1tvro
. . - fosse
18: de mn discurso que na 0
semblante [1970- 1971] . Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p .98.
92
Se a angústia. se define pela presença , na cena, de
um objeto especial, capaz de perturbar a m on tagem o
ódio talvez possa ser entendido como a rea ~ •
. . . , . çao a um
ente que, no eixo 1mag1nano, encarna essa posição a
partir da qual o sujeito se depara com O resto. Trata-
se ele uma espécie de mudança invisível de estatuto do
parceiro do ódio, que tende a passar de rival imaginário
para Outro gozador.
Aqui, a ampliação de um traço da neurose ajuda a
compreender essa ligação entre ódio e gozo do Outro: é
a fantasia de que, "se o Outro goza, deve ser de mim". O
excesso próprio ao gozo do Outro engendra um objeto,
que é o próprio sujeito. Assiin, o ódio se dirige ao gozo
do Outro não por rivalidade, não por ciúme, mas pelo
efeito nefasto que esse gozo pode eventualmente exer-
cer sobre o sujei to.
Esse mecanismo é bastante evidente nos diver-
sos encontros de povos, nacionalidades e religiões.
Como destaca Jacques -Alain l\1iller, nesse mesmo se-
minário , apesar do discurso universal do direito às
particularidades , tende a ser particularmente intole-
rável o contato com o modo alheio de obter satisfa-
ção, que pode ser vivida con10 uma afronta. As pró-
prias relações amorosas. aliás, exige1n um trabalho
constante de recobrimento em torno desse excesso
próprio à satisfação.
A figura do erro, anteriormente mencionada, é va-
liosa porque nos orienta na passagem do coletivo ao in~
dividual. Afinal, há excessos de gozo por toda parte, ate
porque o gozo é, por definição, excessivo. As pequenas
materializações, como o erro, ajudam a localizar as co-
ordenadas singulares que fazem alguém particularm~n-
te sensível a certos modos de gozo, próprios ou alheios.
Ou seja, são indicações subjetivas que permitem dar um
lugar clínico ao problema do ódio. Em uma pergunta: de
que gozo eu sou o objeto?
93
Nesse sentido, por mais que, tanto o ódio , qu anto
0 amor tenham uma relação fundamental com a causa
com O objeto a, com o excedente - o que faz de amb '
. · ,, 19 d ,
uma ,·,carreira sem I1m1tes - po er1amos propor q
os
0 ódio se situa de um modo mais absoluto e menos
bíguo com relação a esse objeto.
a;~
O ódio tende a concentrar-se no excesso, no im-
possível, na ex-sistência, enquanto o amor transita in-
cessantemente entre a causa e a demanda. Há, no amor
um trabalho incessante de composição entre gozo e'
parceria que o ódio dispensa, em sua "lucidez".

l9. Lacan J o
' ·
s •,. . d Freud
· emmarzo - livro 1: os escritos técnicos e
[ 195 3/ 1954] Ri 0 d .
· e Janeiro: Zahar, 1983. p. 316.
94

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