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ANA MARTHA MAIA As criangas do Um sozinho — a loucura na infancia tio do Campo Freudiano em Barcelona com o seguinte titulo: Los nifios del uno solo. Desenvolvendo o tema da psicose infantil, em particular os autismos, Solano apresentou esta expresso se referindo ao sujeito que se co- loca fora do discurso € que, embora esteja na estrutura da linguagem, nao fala. E, quando fala, no se dirige a0 outro. Um sujeito que se assemelha aos “pla- netas” € “tem a compacidade de um ser-ai, como uma estrela”.! © que leva uma crianga bem pequena, como uma estrela, em sua insondé- vel decisio do ser, a permanecer na solidio ¢ na imutabilidade — tragos apon~ tados em diferentes pesquisas sobre os autismos, desde Kanner e Asperger — como uma resposta a0 encontro traumatico com a linguagem, que acontece N © final dos anos 1980, Esthela Solano apresentou um trabalho no Semin4 para o ser falante na madrugada da vida? © enigma da loucura na infincia tem produzido intensas paixdes, em virtude do lugar que a crianga ocupa hoje como objeto de gozo da mie, da familia e da civilizacio, nos tempos de declinio do pai, em que imperam 0 discurso capitalista, as teorias cognitivo-comportamentais (TCCs) e a indastria de medicamentos. 1 SOLANO-SUAREZ, E.“Los nifios del uno solo”, El Analiticin, n. 3, Barcelona, 1987, p46. lll As psicoses infantis foram reduzidas ao Transtorno do Espectro Autista no decorrer das publicagdes das novas classificagSes psiquidtricas. Proliferam técnicas de aprendizagem para adaptar a crianga ¢ 0 adolescente aos ideais de comporta- mento, ¢ ataques dirigidos 4 psicanilise ¢ tentativas de sua exclusio como uma das possiveis propostas de tratamento aos sujeitos autistas.A “batalha do autismo"” nfo é apenas uma resposta, mas a posigao firme da psicanilise de orientagio laca- niana diante desta politica de controle e generaliza¢io dos autismos. Podemos circunscrever quatro pontos fandamentais nesta batalha: 1) € uma batalha com as politicas publicas que impéem um tratamento padrio a partir de etiquetas, enquanto a politica da psicanilise enfatiza 0 ser falante ¢ seu modo singular de gozo, em sua relagao com a linguagem, seu corpo € os outros; 2) uma batalha no trabalho com os pais, como parceiros, inclusive esvaziando a ideia de que sio culpados pelo autismo do filho; 3) uma batalha para marcar a diferenga entre a psicandlise ¢ os métodos de aprendizagem que impdem um saber prévio 20 sujeito autista, no abrindo espaco para o que chamamos de “tratamento sob medida”; e 4) uma batalha para diferenciar a psicanidlise das psicoterapias que, embora se utilizem de significantes que fazem parte da orientacio lacaniana (como exemplo: “pratica entre varios”), propdem avaliagdes e métodos para 0 tratamento, de maneira muito parecida com as TCCs, quando apostam na pre- vengio e no trabalho pela via da maternagem.> A crianga que nio dirige uma demanda ao outro, que nio cede de seu goz0 vocal e urra, se morde, bate com a cabeca na parede, recusa 0 alimento ou come sem parar em seu funcionamento singular, esta crianga angustia os que estio em seu entorno, os pais, a familia e os profissionais que se dedicam a seus cuidados. O psicanalista nao esta a salvo de experimentar a angiistia no tratamento de uma crianga, seja ela um sujeito autista ou nao, conforme encontramos em relatos de casos. Sobre o tratamento de Nadia, Rosine Lefort descreve sua imobilidade total, poucos gestos com tendéncia 4 perseveracio, inflexibilidade ¢ imagem de um estado cataténico com auséncia de prazer autoerético. Com 13 meses € meio, seu peso ¢ estatura correspondem a um bebé de ocito meses. “No seu 2 LAURENT, E. La bataille de autisme: de la clinique a la politique. Paris: Navarin/Le Champ Freudien, 2012. a MAIA,A.M.W.“Intervengio na mesa sobre autismos da Grande Conversagio sobre a Escola Una, na Assembleia Geral do X Congresso da AMP”, 29 de abril de 2016. Dis- ponivel em http://autismoepsicanalise.blogspot.com.br/2016/06/tres-intervencoes- -sobre-os-autismos.html Acesso em 30 de julho de 2017. 112 LATUSA 22 | LOUCURAS ATUAIS rosto, s6 seu olhar est vivo”.* Nadia passa dias sentada em seu travesseiro, com as mios agarradas 3s bordas do leito, sem esbogar emocio, nem interesse pelos objetos. Em uma sessio, ela dirige brevemente um sorriso para Rosine ¢ de- pois brinca com sua mio. Em outra sessio, dirige uma demanda novamente para Rosine e se retrai: Sua atitude, no conjunto, esté menos ativa. ‘Apés este inicio que se apresentava para mim apenas como uma observagio, pois 0 projeto de um tratamento nao tinha sido ousado com um crianga tio pequena, ela faz um retrocesso. Nos dias seguin- tes seu estado se agrava. Ela est cada vez mais pilida, completamente retraida, muito triste, recusa pegar todo objeto que Ihe é oferecido, brinquedo ou biscoito, e se balanga sem parar. No seu rosto de velha precoce, nio resta mais que um olhar desolado, patético, que ela me lana quando eu a deixo. E este olhar que me trard de volta, que comecaré uma aventura analitica para ela ¢ para mim e que me tornara analista.* Esthela Solano-Suarez também conta sobre a angistia da analista no en- contro com uma crianga, desta vez autista. Ela conclui: Faz um tempo que me fago perguntas sobre este tema; um tempo que tem a ver com um encontro que aconteceu ha quase vinte anos, quando, com toda a minha inocéncia,em um momento determinado de minha vida, me autorizei como analista, © acaso conduziu até meu consultério uma crianga autista, Penso que este encontro me traumatizou o suficiente como para seguir, desde este momento até 0 presente, fazendo-me perguntas sobre a questio.* Sendo assim, 0 que faz o analista com sua angtistia é dar outro destino a ela que nao atrapalhar o trabalho da crian¢a, como testemunham Rosine Lefort e Es- thela Solano-Suarez. Elas também nos contam sobre o efeito destes encontros em suas préprias anzlises e que foi a partir deles que elas se autorizaram como analistas. LEFORT, R. & LEFORT, R. Naissance de l'Autre: deux psychanalyses, Nadia, 13 mois, 4 Marie-Francoise, 30 mois. Paris: Seuil, 1980, p. 7. 5 Ibid.,p.9. 6 SOLANO-SUAREZ, E.“‘Los nifios del uno solo”. Op. cit., p. 44. ASCRANGAS DO UM SOZINHO , Ana Mots Mow 113 Oretorno a Freud ea loucura na infancia A proposta de retorno ao texto fieudiano marcou 0 ensino de Lacan. Desde © inicio, ele criticou os desvios tedricos dos analistas anglo-saxdes. Assim tam- bém, encontramos o tema da loucura em diferentes momentos: a loucura como liberdade do ser, exclusio do Outro simbélico, foraclusio do significante do Nome-do-Pai e como inconsisténcia do Outro na foraclusio generalizada. Em seu primeiro Seminario, ao langar a pergunta “o que fazemos, quando fazemos anilise?”,? Lacan sustenta 0 principio freudiano de se tomar “um caso na sua singularidade”* ¢ de interrogar sempre a teoria a partir da clinica. Neste Seminario, cle aborda as psicoses nas criangas, comentando dois casos clissicos da literatura psicanalitica: 0 caso Dick, de Melanie Klein, ¢ 0 caso Robert, “o Menino Lobo”, de Rosine Lefort, iniciando com uma critica & anilise das defesas, conforme a proposta de Anna Freud. Um pequeno exemplo é o caso de uma mulher que busca anilise por cau- sa de um estado de angiistia grave que perturba sua vida e seus estudos para obedecer 4 mie. A analista nio percebe que a paciente entra em angistia com sua intervengio e Lacan critica a forma como ela trabalha com a transferéncia: Anna Freud comecou a interpretar a relagio analitica segundo o pro- tétipo da relagio dual, que é a relagio do sujeito & sua mie. Ela se en- controu logo numa posigo que nio s6 marcava passo, mas era com- pletamente estéril. [...] Deveria ter distinguido a interpretaco dual, em que © analista entra numa rivalidade de eu a eu com 0 analisado, e a interpretago que progride no sentido da estruturagio simbélica do sujeito,a qual deve ser situada para além da estrutura atual do seu eu. Para Lacan, a posi¢io de Anna Freud é uma “posicdo de reeducagio pré- via"”:“tudo parte nela da educacio, ou da persuasio do eu, e tudo deve voltar ali”,'® enquanto Klein parte de outro lugar: “Melanie Klein enfia o simbolis- mo, com a maior brutalidade, no pequeno Dick! [...]. Este modo de fazer se presta evidentemente a discussdes tedricas — que no podem ser dissociadas do 7 LACAN, J. © Semindrio, livro 1: 0s escritos tdcnicos de Freud (1953-4). Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor, 1983, p. 19. @ Ibid.,p.21. 9 Ibid. p.80 10 Ibid. p. 83. 114 LATUSA 22 , LOUCURAS ATUAIS diagndstico do caso. Mas é certo que depois dessa intervencao, alguma coisa se produz. Tudo esti ai ; / Embora também critique a forma de interpretagio da analista, Lacan faz um elogio a Klein. De fato, Klein esteve mais préxima do texto freudiano do que Anna Freud, que acreditava que a crianga, por ter um inconsciente em formagio, nao estabelecia transferéncia € que a psicandlise com crian¢as somente era possivel no trabalho de orientagao de pais. Por sua vez, Klein nao sé considerava a crianca como um sujeito em anilise, como intervinha com interpretagdes que partiam de sua concep¢ao do Edipo precoce, em relagao 4 teorizag3o de Freud. O caso Dick é considerado 0 primeiro caso de autismo da histéria da psi- canilise, Lacan sublinha a falta de contato do menino, sua profunda indiferenca, sua apatia, auséncia, situando ai o que ele chama de “o defeito de seu ego”, no sentido de que ainda nio estaria formado:“Com efeito, é claro que, nele, o que no é simbolizado é a realidade. Esse jovem sujeito esta inteirinho na realidade, no estado puro, inconstituido. Ele est inteirinho no indiferenciado’ 2 Assim, nio se trata de fortalecer 0 ego, de definir 0 eu como uma fungio auténoma, nem de introduzir o simbolo com significados articulados as fan- tasias, ao imagindrio do analista. Aos poucos, acompanhamos como Lacan vai introduzindo a relacio do imaginario com o simbélico ¢ o real. Lacan retoma Freud ao trazer para discussio a questéo da falta de objeto, em contraposi¢ao a rela¢io de objeto ideal, a diade mae-bebé na qual os pés- -freudianos sustentavam os tratamentos: “Ora, 0 que é que constitui o mun- do humane? ~ senio o interesse pelos objetos enquanto distintos, os objetos enquanto equivalentes. 0 mundo humano é um mundo infinito quanto aos objetos. A esse respeito, Dick vive num mundo nio-humano”."> Seu comentario nio diminui o valor que atribui ao trabalho de Klein com esta crianga."“Este texto € precioso”, diz ele, ressaltando que, para Dick, nao ha nem outro, nem eu. E entio que Melanie Klein, com esse instinto de animal que a fez alids perfurar uma soma de conhecimentos até entdo impenetrivel, ousa Ihe falar ~ falar a um ser que se deixa, pois, aprender como alguém que, no sentido simbélico do termo, nao responde, Ele est ld como U1 Ibid., p. 83-4. 12 Ibid., p. 84. 18 Ibid AS CRIANGAS D0 UM SOZINHO | Ana Martha Maia 115 Se ela nio existisse, como se fosse um movel. E,entretanto, ela Ihe fala. Ela di literalmente nomes ao que, sem davida, participa do simbolo Porque pode ser imediatamente nomeado, mas que, para esse sujeito, 86 era, até entio, realidade pura ¢ simples." Este € 0 maior valor do trabalho que Klein realiza com Dick: ela falacom cle. E 0 efeito aparece ao longo das sessies que ela descreve. Klein nao recuow diante da loucura infantil. _A critica 4 interpretacio kleiniana é centrada no “cariter de intrusio, de Coisa posta sobre o sujeito”.'® Se na medida em que Klein fala com Dick, algo S€ passa, € se os objetos sio constituidos por projecées, introje¢des, sadismo que © sujeito vé voltar nos objetos, Lacan conclui que ha simbélico ¢ imaginario. E que a questao ¢ justamente a jungio dos dois, imaginirio ¢ simbélico, com © real. E neste momento que ele apresenta o esquema dtico, articulando-o a0 estidio do espelho. E convida Rosine Lefort para apresentar 0 caso Robert. Robert foi uma das criangas que Rosine Lefort atendeu em Parent de Rosan, quando chegou para participar de uma pesquisa sobre hospitalizagio de longa duragio com criangas de até trés anos, realizada no servico de Jenny Aubry."* La, Rosine encontrou criangas abandonadas, doentes, em internagio coletiva, com diagnésticos nio diferenciados. “Em anilise com Lacan, Rosine parte da falta de objeto e considera 0 corpo com furos, superficies ¢ bordas, em sua orientagao para o real”."” Suas anotagoes diarias das sessSes com Nadia ¢ Marie-Frangoise foram organizadas no livro Nascimento do Outro. O tratamento de Marie-Francoise é uma impor- tante referéncia, mesmo tendo sido interrompido, uma vez que esta menina autista de trinta meses estava comecando a mostrar os efeitos de seu trabalho com a analista. As sessées com Robert foram publicadas em Les structures de la 1! psychose: l'enfant au loup et le Présiden 14 Ibid., p.85 15 Ibid.,p.90 16 LEFORT, R. & LEFORT, RR. Naissance de "Autre: deux psychanalyses, Nadia, 13 mois, ncoise, 30 mois. Op. cit. Marie-Fi 17 MAIA,A.M.W."Elle s'appelle Sabine e os autismos ~ da clinica 4 politica, retorno”, Arquivos da Biblioteca, n, 10, Rio de Janeiro, 2015. 18 LEFORT,R.& LEFORT, R. Les structures de la psychose: Venfant au loup et le Président. Paris: Seuil, 1988. 116 LATUSA 22, LOUCURAS ATUAIS O terceito livro dos Lefort, La distinction de l’autisme,"? apresenta a tese da estrutura autistica, ¢ 0 quarto aborda a sexualidade femninina a partir do caso Maryse, que também estava entre as criangas de Parent de Rosan. Estas quatro publicagSes sobre a clinica a partir do ensino de Lacan constituem uma grande contribuigao para a psicanilise com criancas. 0 tratamento psicanalitico dos autismos e das psicoses infantis De uma certa maneira, no se sabe se é uma boa coisa empregar a mesma palavra para as psicoses na crianga ¢ no adulto. Durante dé- cadas, recusava-se a pensar que pudesse haver na crianca verdadeiras Psicoses — procurava-se vincular os fenémenos a certas condigdes organicas. A psicose nio é estrutural, de jeito nenhum, da mesma maneira na crianga ¢ no adulto. Se falamos legitimamente de psicoses na crianga, é porque, como analistas, podemos dar um passo além dos outros na concep¢io da psicose." A leitura de O Seminario, livro 2 remete ao tempo em que a psicose da crianga era tomada como debilidade mental. Com Lacan, passamos a falar de uma posi¢io do sujeito diante do saber e da presenca do fendmeno elementar (1955-6 e 1958). Sim, como ele sugere, podemos dar um passo além quanto as psicoses e, eu diria, quanto aos autismos também, Nos anos 1950, Lacan apresentou um Seminério inteiro sobre as psicoses € escreveu 0 texto De uma questao preliminar a todo tratamento possivel da psicose.2 Este € 0 momento em que Lacan apresenta a metéfora paterna, sua leitura sobre o Edipo freudiano. Ele sempre apontou para algo que o significante nio recobre e, mais tarde, apresentou a pluralizacio do Nome-do-Pai para dizer sobre as intimeras possibilidades de amartacio dos registros, as invengdes sin— gulares do ser falante. 19 LEFORT,R. & LEFORT, R. La distinction de Pautisme. Patis: Seuil. 2003. 20 LEFORT, R. & LEFORT, R. Maryse devient une petite fille: psychanalyse dune enfant de 26 mois, Paris: Seuil, 1995. 21 LACAN, J. O Seminario, ivro 2:0 ex na teoria de Freud e na técnica da psicandlise (1954-5) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 134-5. 22 LACAN, J."De uma questio preliminar a todo tratamento possivel da psicose” (1958) Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 7 AS CRIANGAS 00 UM SOZINHO., Ana Martha Masa u nt ressalta que, na que era preci mente dele, ao interpret Laure: téncia de quela época, anos 1950, Lacan prosseguiu na adver- So retornar a Freud antes que se desviasse demasiada- t4-lo, porque i iti i se multiplicavam, Inclus Porg! 08 fratamentos psicanaliticos das psicoses ive, © Kleinismo jé se debrugava sobre o tratamento das psicoses em criangas e adultos, e divulgava suas publicagdes. A interpreta~ $40 destes tratamentos incidia sobre a unidade imaginaria do corpo. E alguns Ptopunham que o analista se col: h and rato outs 1 lugar do ee olocasse no lugar da mae, enquanto outros no lugar do ; fazendo uma sociedade sem pai, na vertente da psicoterapia insutucional. Laurent, entio, circunscreve que “por nfo haver transferéncia Paterna, nem por isso o problema é tomar-se por mies ou irmaos. Trata-se de Ver que © que esti em questio é a relacio do sujeito com a propria lingua”. A defini¢ao de Lacan sobre alingua, em sua relago com a linguagem, abre uma via de trabalho, principalmente quando o “Outro nao. existe”, em que podemos destacar tanto o que dizem Rosine e Robert Lefort sobre 0 Outro no autismo quanto a expressio de Miller para descrever 0 declinio do simbo- lico ¢ seus efeitos nos sintomas contemporineos.* Alingua nao visa 4 comunicagio ¢ se encontra aquém da linguagem. Quer dizer, alingua é prévia 4 linguagem, que, por sua vez,““é uma elucubragio de saber sobre alingua”.** Como se encontram alingua e linguagem nos autismos? Na orientagio para o real, ao longo de seu ensino, Lacan junta 0 campo da linguagem com o estatuto de alingua. Por qué? Para Miller, ele se deu conta de que a palavra pode ser pensada como gozo."“A linguagem nao é somente comunicagio”.% © resultado desta mudanga de axioma é a passagem da pro- blematica do Outro para a do Um, inclusive do S,. O significante no tem. somente uma fungio de mensagem, mas de gozo também, ¢ nio se reduz a sua articulagio com o S,: hi o Um sozinho. “Nao é 0 mesmo tentar alcangar o Um a partir do Outro, que tentar alcangar o Outro a partir do Um. [...] Pois bem, neste novo axioma, 0 prévio nio é 0 Outro, e sim 0 gozo e, por conse- guinte, o Um, a posi¢ao do Um, a tese do Um”.” 23 LAURENT, E. “Les traitements psychanalytiques des psychoses”, Les Feuillets du Courtil, n, 21, Bruxelles, 2003. 24 LACAN, J. O Semindrio, livro 20: mais, ainda (1972-3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 25 Ibid., p. 190 26 Ibid. 27 MILLER, J.-A. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidés, 1998, p. 343. : ug LaTUSA 22. LOUCURAS ATUA'S Alingua e o simbélico se constituem de S, ¢ na elucubragio de saber é pre ciso produzir algo como S,, ou seja, colocar os $, em cadeia, para se estabelecer um discurso — questo crucial nas psicoses e nos autismos. Se primeiramente 0 gozo é gozo do Um, gozo do corpo e de seus “fora de”, como diz Miller, 0 gozo é gozo do Um, ¢ alingua, prévia 4 estrutura, tam- bém ¢ feita dele. “O problema agora é como passar desse Um do gozo ¢ de alingua ao Outro, quer seja 0 outro da linguagem ou o a do mais-de-gozar" Como fazer dois (deux) deles (d’eux)? Como os S, se articulam? Alingua se or- dena somente se um significante assume o valor de outro, de ser dois. “Quan- do este problema se resolve, nasce a estrutura”,” por isso Miller considera que 0s Lefort escolheram bem o titulo do primeiro livro: Nascimento do Outro. Eles partiram do Um ¢ 0 Outro se tornou 0 problema, E neste sentido que Stiglitz teceu um comentario sobre as criangas do Um sozinho descritas por Solano: 0 Um sozinho era 0 $, que permanecia nao articulado no autismo e na psicose precoces devido 4 foraclusio do Nome-do-Pai, na época da clinica descontinuista.” © que Stiglitz aponta € que a clinica da foraclusio generalizada também esta cheia de criangas do Um sozinho. Podemos acrescentar com a leitura dos Lefort ¢ a partir de O Seminério, livre 23, de Lacan, sobre o sinthoma, que se trata do Um sem o Outro.” O S, sozinho, sem o S,, elucida a solidio nos autismos.“Um trago de estrutura do autismo é chegar ao isolamento de Tanatos, um real insuportavel”,* sustentam os Lefort. Na conferéncia realizada em Bogota durante a V Semana do Autismo, Jean-Claude Maleval abordou a questo sobre alingua e linguagem nos au- tismos, quando se referiu 4 entrada do sujeito autista na linguagem pelo signo, € no pelo significante: “Alingua, essa pura materialidade significante, livre de toda significagao ¢ particularmente apropriada para cifrar 0 gozo, nio chegou a estender suas raizes no corpo do autista. No entanto, ¢ indiscutivel que ele 28 Ibid., p. 359. 29 Ibid., p. 360. 30 STIGLITZ, G.“Los nifios y el psicoanilisis: escuchar el inconciente. El nifio en nues- tro malestar”. Anexo da brochura do II Encontro dos Nticleos da Nova Rede Cereda no Brasil, Si0 Paulo, 2010. LACAN, J. O Semindrio, livro 23: 0 sinthoma (1975-6), Rio de Janciro: Jorge Zahar Editor, 2007. LEFORT, R. & LEFORT, R.. Les structures de la psychose Op.cit., p. 225. 31 fant aus loup et le Président 32 119 RS CRIANGAS DO UM SOZINHO , Ana Matha Maia est4 submetido ao banho d e linguagem, que & .e que A desta com uma grande co UE A weiss fipesece a consegue se apropriar Um passo além Retomando a cita sao de Lacan em O Seminario, livro 2 sobre 0 “ além dos outros” m ¢ veste € um desafio atual que se coloca na batalha d Principalmente qq tamento psicanali ‘um passo lo autismo, wando ainda sio divulgados trabalhos que insistem no tra~ itico dos autismos ¢ das psicoses infantis fundamentados na maternagem, em que o desejo materno é confundido com a presenga da mae Ou a qualidade de seus cuidados. Sabemos como sio mortiferas as paixdes, pela vertente imaginaria, Amédio. A clinica dos autismos ensina que néo podemos recorrer ao mito do amor materno, nem ao Edipo. Como sustentar o tratamento psicanalitico no encan- tamento pela relagio mie-bebé, a partir dos anos 1970 do ensino de Lacan? Como usar os termos invasio de gozo, bordas pulsionais, objeto artistico, ilha de competéncia ¢ fungao do duplo sem trabalhar com alingua? Afinal, é “nis- to que o inconsciente, no que aqui eu 0 suporto com sua ciftagem”, nos diz Lacan, “sé pode estruturar-se como uma linguagem, uma linguagem sempre hipotética com relagio ao que a sustenta, isto é, alingua””.™ E preciso manter a proposta, como fazia Lacan, de um retorno constante a Freud. E seria 0 caso, entio, de propormos um retorno a Lacan, partindo do pressuposto que o tiltimo ensino foi mesmo lido? Uma nova lei esti surgindo, a lei n. 13.438, que determina o seguinte: § 5° E obrigatoria a aplicagio a todas as criancas, nos seus primeiros 18 meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construido com a finalidade de facilitar a deteccio, em consulta pedidtrica de acompa- nhamento da crianga, de risco para o seu desenvolvimento psiquico.°® 33, MALEVAL, J.-C. “De la estructura autistica” Bogoti, 12 agosto de 2017. Notas pessoais. Conferéncia organizada pela NEL, 34 LACAN, J. O Seminério, livro 20; mais, ainda (1972-3). Op.cit., p. 190. 35 CE http://www2.camara, Jeg br/legin/fed/lei/2017/lei-13438-26-abril-2017-784640-pu- blicacaooriginal-152405-pl html Acesso em 30 de julho de 2017. 120 LATUSA 22, LOUCURAS ATUAIS A proposta agora & que ToHOS os bebés sejam submetidos a uma avaliagio na rede pitblica, em TODO o pals, para detecglo de riscos de problemas de desenvolvimento psiquico, Nio é uma lei especifica para o rastreamento do ‘Transtorno do Espectro Autista, mas, quando tudo é autismo, é um incentivo para a“epidemia”, a patologizagio ¢ a medicalizagio da infancia. Com esta lei retorna a questio da delicadeza, da complexidade no esta~ belecimento do diagnéstico no autismo, inclusive na distingdo com a psicose infantil, € a questio das propostas de universalizagao dos tratamentos. Se, por um lado, o diagnéstico pode orientar, por outro, pode levar ao pior. Sabemos de seus possiveis efeitos devastadores para a crianga e seus pais, efeitos de se= Bregagio dos que sio “mais diferentes", para os quais pouco adianta insistir em tratamentos padronizados Pode-se obter como resultado que 0 sujeito consinta um pouco me= Ihor com a presenga do outro, que se apresente com uma conduta social “adequada", durante certo tempo, sendo ele literalmente trei- nado para suportar o mal-estar que experimenta ¢ se apresentarme= nos louco", mas sem que jamais se saiba o que ele deseja, pelo que se interessa, ¢ até onde poderia ir em seu caminho de vida, caso Ihe dirigissem a aposta de que poderia, a seu modo, avangar. Mesmo que se esteja fazendo uso da psicandlise como uma tentativa de se fandamentar a criagao de instrumentos de triagem ¢ avaliagio que verifiquem indicadores clinicos de risco para o desenvolvimento psiquico, mesmo que se publiquem artigos descrevendo que escalas e instrumentos de avaliagio tém sido um recurso para o estabelecimento de diagnésticos precoces para pre- vengio de transtornos, nio é possivel para a psicanilise sustentar esta proposta. No minimo, porque a clinica psicanalitica no & baseada em evidéncias. Uma clinica que se limita a descrever transtornos é uma clinica sem suj Uma clinica que se propée a tratar o sujeito, mas desconsidera ¢ desconhece o real do gozo, é mais um dos desvios tedricos que constam na historia da psi canilise e esti situada no campo da psicogénese ¢ da psicologia do desenvolvi- mento. Retornando ao quarto ponto que levantamos na Grande Conversagio da Escola Una, em 2016, a psicanilise nio é uma psicoterapia. 36 MAIA,A.M.W.“A crianga, 0s autismos ¢ a instituigio, Cien Digital, n. 21,2017, hetp:// ‘en-brasil,blogspot.com.br/p/cien-digital.htm! 121 AS CRIANGAS 0 UM SOZINHO , Ana Martha Maz

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