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FALAR É UM TRANSTORNO DE LINGUAGEM1

Pascale Fari

Em primeiro lugar queria agradecer aos colegas da Escola de Orientação Lacaniana - seção
Rosário e ao conselho da Escola por ter conseguido organizar esta conferência de maneira
imprevista com o motivo da minha visita à dinâmica cidade de Rosário, e isto quando o
calendário de todos já estava muito ocupado. Agradeço também à Universidade Nacional de
Rosário por me receber com tanto entusiasmo e disponibilidade como pudemos escutar agora
há pouco e em particular ao reitor Franco Bartolacci que nos honrou com sua presença. Meu
agradecimento também à decana da faculdade de psicologia Soledad Cotone e às disciplinas
de Psicanálise 2 e Perspectiva da Educação e obrigada a vocês que são tantos a assistir a esta
conferência em presença ou através do YouTube da Universidade Nacional de Rosário.
Teremos a oportunidade de trocar opiniões na segunda parte desta noite e tenho a certeza de
que os comentários e as perguntas de vocês enriquecerão o debate. Peço desculpas
antecipadamente pelos meus erros em castelhano. Espero que este transtorno de linguagem
não incomode demasiadamente a escuta de vocês. Certamente, se houver algo que não se
entende, não deixem de levantar a mão para fazer uma pergunta. É uma honra e um prazer
falar com vocês em carne e osso e conversar sobre um tema que me toca de perto.

“Falar é um transtorno de linguagem”. Esta frase foi pronunciada por Jacques-Alain Miller
durante uma conversação clínica que teve lugar em Antibes, uma cidade do sul da França, que
fica perto de Cannes e de Nice, em 1998. A conversação teve como tema as psicoses
ordinárias. Quer dizer que os colegas - eu não assisti a esta conversação - se perguntavam
como existiam vários tipos de patologia psiquiátrica que não fossem da ordem da psicose
muito patente, da psicose extraordinária, muito florida. Eles trabalharam vários anos e então
esta conversação chegou a um sintagma especial que é a psicose ordinária, signos de psicose
pequenos, não extraordinários, mas que são muito úteis para trabalhar a clínica com esses
pacientes.

Então essa frase que diz que falar, finalmente, é um transtorno de linguagem foi produzida por
Jacques-Alain Miller nessa conversação. Imediatamente depois como convite a tomar
verdadeiramente a sério esse aforisma, acrescenta: penso isso de maneira profunda. Com
efeito, esta afirmação: falar é um transtorno de linguagem, soa a princípio como um chiste, um
Witz provocador e paradoxal, uma verdadeira bomba. Falar, um ato aparentemente tão
natural, entre aspas, como respirar, tão banal, tão elementar, viria a ser necessariamente um
transtorno, uma anomalia ou uma aberração, isso é situar de entrada o mais cotidiano dentro
da patologia.

Como vocês sabem, Freud foi o primeiro a subverter a fronteira entre o normal e o patológico,
como também sabem que o que hoje se conhece como despatologização adquiriu uma nova
intensidade com a inflação dos discursos igualitaristas e judicializados. Aqueles que assistiram
às últimas jornadas da sessão Rosário da EOL sobre a singularidade e a despatologização
puderam explorar esse tema tão atual.

1
Transcrição e tradução de Cristina Drummond (para circulação interna do Núcleo de Psicanálise com
Crianças – IPSM-MG)
Minha apresentação retomará o tema me centrando na fala e na linguagem. E para seguir a
apresentação da decana veremos, com efeito, que o mais singular do sujeito fica na linguagem.
Mas a afirmação de Miller vai mais além se consideramos que os transtornos de linguagem
constituem o enfoque princeps da psicose para Jacques Lacan. A partir daí essa frase evoca ou
ao menos não pode deixar de evocar a questão da psicose e sua relação com a fala, com o
simples fato de falar. Aqui já estamos no terreno do próximo congresso da AMP que terá como
tema “Todo mundo é louco”, um aforisma avançado por Lacan em 1978.

Nesta mesma convenção de Antibes, Miller situa diferentes enfoques dos transtornos da fala e
da linguagem no ensino de Lacan. Para o que hoje nos ocupa, lhes apresentarei três. O
primeiro enfoque dos transtornos da linguagem é a partir da clínica psiquiátrica, em segundo
lugar o enfoque estruturalista e em terceiro lugar, ao final de seu ensino Lacan revisa seu
enfoque sobre a linguagem isolando dois polos: a língua e o laço social. Veremos como e
porque a noção de transtorno de linguagem circunscrita, no começo, à psicose patente, se
generalizará até o ponto de poder ser aplicada ao mais simples, ao mais banal uso da palavra.

Para podermos compreender que o está em jogo nesta evolução de perspectiva temos que ter
presente como a clínica psiquiátrica clássica abordava os transtornos de linguagem, já que
Lacan partiu daí para propor outra leitura. Faz tempo que foram identificadas a importância e
a densidade dos transtornos de linguagem nas psicoses. Do que se trata? Exemplos típicos são
as palavras que se decompõem ou o uso da terceira pessoa para falar de si mesmo, ele ou ela
no lugar de eu, este exemplo que é tão característico da esquizofrenia e, claro, os neologismos,
quer sejam como sabem, invenção de novas palavras e às vezes de toda uma língua. Alguns
transtornos de linguagem foram e continuam sendo considerados característicos,
patognomônicos da psicose.

Jules Séglas, psiquiatra francês que Lacan cita algumas vezes, foi um dos primeiros psiquiatras
a afastar-se de uma concepção perceptiva da alucinação. De fato, ele se questionou sobre a
relação entre a alucinação e a função da linguagem, enquanto a alucinação se definia de modo
muito clássico como a percepção de algo que não existe. Em seu livro intitulado “Transtorno
da linguagem nos alienados”, Séglas se interessa pela grande variedade de fenômenos que
abarcam a expressão clássica “ouvir vozes”, por exemplo, em particular, alguns pacientes
afirmam que uma voz lhes fala sem que eles percebam o som. Se pode chamar de linguagem
do pensamento, conversação interior. A propósito disso, Lacan nota que no registro do
discurso o sujeito é ao mesmo tempo emissor e receptor e, mais além de um vínculo sensorial
externo da boca ao ouvido, a relação entre a fala e a audição é interna, estrutural à linguagem.
Lacan então sublinha os fenômenos de linguagem. Destaca uma causalidade psíquica nas
patologias psiquiátricas que não podem ser reduzidas a uma causalidade orgânica. É um ponto
muito atual.

Alguns anos depois Lacan vai transformar radicalmente a perspectiva sobre a psicose e seu
tratamento sempre seguindo a pista dos transtornos de linguagem. Nesta conversação sobre a
psicose, Miller destaca que as perturbações da linguagem podem afetar as próprias palavras,
os neologismos dos quais falei, por exemplo, mas as perturbações da linguagem também
podem afetar a significação da palavra, quer dizer, o que chamamos de seu significado. A
forma característica que marca cada delírio com seu próprio estilo, carrega uma significação
íntima, distante dos dicionários e dos códigos estabelecidos. Esta significação privada pode ser
localizada através da ressonância de uma palavra, da construção de uma frase, um dito
petrificado, um sentido suspenso, nesse acento de singularidade, quer dizer, o sentido íntimo,
privado, que cada pessoa dá a certas palavras e é um ponto central em nossa investigação de
hoje.

Mais além do enfoque fenomenológico dos transtornos de linguagem, Lacan vai propor uma
conceituação absolutamente inédita. Recordemos primeiro a característica da linguagem na
ordem simbólica: é o reenvio e o deslocamento de palavras, de significantes e de significações
de maneira flexível e articulada. Uma palavra, uma significação, reenvia a outra. É o princípio
do dicionário e é a base da ordem simbólica: os termos podem circular. Freud havia falado de
recusa e de uma não inscrição simbólica para qualificar a alucinação de um de seus pacientes.
Lacan segue e retoma esta pista. Na alucinação um elemento simbólico é cortado de suas
associações, de seus laços com outros elementos. Este elemento fora da cadeia simbólica já
não se conecta com nada, já não se articula com nada. Esta conceituação é absolutamente
nova. A alucinação é a reaparição no real de um elemento que não foi simbolizado. A
alucinação não é um fenômeno perceptivo, é um transtorno de linguagem. Além disso, Lacan
amplia esta perspectiva para a psicose em seu conjunto, o pai sendo um princípio separador
que vem como terceiro entre a mãe e o filho. Lacan chama de foraclusão do Nome-do-Pai a
essa perturbação do sistema simbólico, essa não simbolização da falta, da ausência.

Gostaria de relatar uma vinheta clínica relativa a um paciente esquizofrênico que eu


acompanhei em psiquiatria. Quando era criança, logo depois da morte de um familiar, chamou
sua atenção o seguinte: na França, os nomes das classes da educação secundária são números
decrescentes, mas a última classe, a que segue à primeira se chama terminal. Terminal? Se
perguntava ansioso, significa que não há nada depois, que é o final? Para superar sua angústia
da morte ele se interessa pelos androides e outras criaturas eternas criadas pela ciência. Mas
isto não será suficiente para evitar uma descompensação esquizofrênica maior, precisamente
antes do último ano de bacharelado, ao qual não assistiu. Tudo sucedeu como se o significante
terminal, carregado com a significação mortal insubjetivável, tivesse passado ao real levando
consigo tudo o que havia constituído o universo e a realidade do paciente até aquele
momento.

Essa concepção da alucinação na perspectiva de que seja um transtorno de linguagem


esclarece o fato de que o paciente padece a alucinação de maneira totalmente externa, com
uma estranheza radical. É o que às vezes parece mais louco: o paciente não reconhece sua
produção psíquica como sendo sua, mas isto se deve precisamente ao fato de que o elemento
que reaparece no real está desvinculado de suas relações simbólicas com os outros
significantes. A estrutura da mensagem e do intercâmbio se perturbou. O sujeito não pode se
reapropriar da mensagem, tampouco dialetizá-la. Ele se vê então atacado de fora por esse
significante enigmático que se dirige a ele precisamente porque não se conecta a nada mais.

Com sua fineza clínica admirável Lacan nota, por exemplo, que tomar a palavra pode constituir
uma conjuntura iminente para o desencadeamento de uma psicose. Dizer eu, falar em nome
próprio, é situar-se em oposição, pelo menos hipotética, com o outro, é assumir uma
reparação simbólica.
Este foi o caso de outra paciente que fazia uma suposta análise com um profissional muito mal
orientado. Um capítulo atrás do outro, se tratava de construir, segundo ela, sua história: sua
mãe, sua irmã e seu pai, não faltava ninguém. Mas quando por fim ia chegar ao capítulo sobre
ela mesma, aquele de seu eu, seu corpo assim como seu universo simbólico explodiram em
pedaços. Assim, tratava de inventar sistemas e bricolagens para que seus pés deixassem de
falar com ela, ou melhor, para que isso deixasse de falar com ela em seus pés. Não entendia
porque os sapatos de segurança que tinham solas isolantes não a protegiam do exterior,
daquilo que para ela era uma intromissão verbal contínua e insuportável do Outro. Neste
processo, retomo uma expressão de Jacques-Alain Miller, ocorreu uma transferência de
dimensão, já não se trata de um jogo, de uma transferência, de um intercâmbio entre o sujeito
e o outro, por exemplo, tenta-se saber quem pronunciou a alucinação, se foi o sujeito ou o
outro que proferiu esta palavra. Não se trata tanto disso, mas de uma transferência de
dimensão, ou seja, se passa do simbólico ao real.

Lacan faz um esclarecimento crucial sobre o que é recusado no real. O que se recusa em um
objeto indizível, que não tem nome, que se intromete porque se trata de um elemento
libidinal, que excede o que o sujeito pode suportar, é o que Lacan chama de gozo, quer dizer, é
o que se situa mais além dos limites e da regulação operada pelo princípio do prazer.

Que o sujeito seja psicótico ou não, há sempre um real que escapa, Miller sustenta que a
noção da foraclusão na psicose pode ser estendida ao conjunto das estruturas clínicas. Para
dizer de outro modo, trata-se de um passo da foraclusão restringida ao Nome-do-Pai na
psicose à foraclusão generalizada para todos os seres falantes. O que isso significa? Há em
todos os casos e não só na psicose um sem nome, um indizível.

Ao final do ensino de Lacan não se trata mais “apenas” de um significante único excluído da
simbolização. É o centro mesmo da língua, íntimo, privado, que é excluído do simbólico ao
mesmo tempo em que constitui sua raiz, seu núcleo. Então, a linguagem, a partir daí, se
decompõe em duas vertentes: a língua por um lado e o laço social por outro. O que chamamos
de linguagem se compõe da língua mais o elemento social que a normaliza.

Lacan inventa o neologismo “lalíngua” contraindo o artigo e o substantivo em uma única


palavra que se situa no nível onde ninguém entende ninguém. O sentido das palavras, seu
investimento libidinal, é diferente para cada pessoa. Tão privada, a lalíngua é o coração dessa
singularidade. Lalíngua é uma bricolagem heterogênea que mescla balbucios, retalhos de
palavras escutadas, significantes amo, frases, entonações, sotaques. Lalíngua encarna esse
núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com
respeito à comunidade humana. É com a lalíngua e contra ela que nos inscrevemos no mundo.
Lalíngua não apenas se coloca de entrada como um transtorno maior da linguagem, lalíngua
arruína o ordenamento simbólico da linguagem e inclusive sua existência. A linguagem, diz
Lacan, não existe. Há apenas múltiplos suportes da linguagem que se chamam lalíngua. Assim
como A Mulher não existe, não existe A Linguagem ou A Língua senão as línguas concretas,
efetivamente faladas, sempre particularizadas. A língua é antes de tudo uma multiplicidade
inconsistente, é uma ficção múltipla, mutante, mas essa ficção compartilhada por aqueles que
falam uma língua dada, castelhano, francês. É uma ficção ordenada com leis de composição no
nível da gramática e do sentido. Mas, finalmente, são as normas que tornam possível que nos
entendamos ainda que seja minimante. Nos entendemos com mal-entendidos, mas
entendemos, mais ou menos. A rotina assegura a estabilidade das significações e do mundo do
qual sentimos fazer parte. Os discursos estabelecidos são modalidades reguladas, vindas do
uso da língua e de como dirigir-se ao outro. É, portanto, a outra vertente da linguagem, o que
faz laço social. É no nível do vínculo social que se situarão os transtornos massivos de
linguagem característicos em certas psicoses.

Há mais de dez anos recebo um paciente que não consegue fazer tela, quer dizer, proteger-se
dos ditos ou da angústia dos outros. O início de uma decisão, de um conflito, podia angustia-lo
durante dias. Seu recurso era então retirar-se do mundo, refugiando-se em sua cama, medida
de salvaguarda que chamou de “parênteses” na primeira sessão. Em um primeiro momento de
seu tratamento se produziu um alívio graças à função do “parênteses”. O “parênteses” é sua
solução para estar a salvo, mas sem ruptura, para estar separado conservando um vínculo. Em
primeiro lugar as sessões permitiram aperfeiçoar essa solução, torná-la mais operativa graças a
perguntas muito simples, do tipo: Como se poderia colocar isso entre parênteses? Em que
poderia consistir um parênteses? Em uma segunda fase o tratamento se apoia em uma ficção
cinematográfica. Sem um fio advertido, ele escreve atualmente críticas para uma revista de
cinema. Quando se chega a um ponto sem saída, às vezes pergunto a ele como se poderia
tratar isso em um filme. Convocar o registro da ficção que para ele é o mais operatório, o do
cinema, o ajuda a conceber roteiros que freiem a angústia e a encontrar alternativa diante de
uma situação bloqueada. O alívio não vem tanto, ou para nada, de uma busca concreta de
solução, mas precisamente da colocação em marcha discursiva de um registro ficcional
condicional, como seria, como poderia ser.

O discurso analítico permite acolher um sujeito a partir de sua incomparável particularidade. O


analista poderá servir para o estabelecimento de um laço, de um “diálogo” a partir da língua
privada, particularizada do sujeito e a partir daquilo que lhe permite fazer laço social.

O caso desse paciente nos permite entender, este é um ponto muito importante, que a ficção
ainda que não exista, é uma construção extremamente muito operatória. Não é porque a
ficção não exista que ela não seja uma construção muito útil para sustentar o discurso, para
ordenar as relações de um com o outro, para saber como se virar no mundo.

A quarta e última parte da minha apresentação se centra no corpo, já que este é


imprescindível quando se evoca a palavra e a língua. Por um lado, é no corpo onde a língua
deixa marcas indeléveis e por outro, se fala com seu corpo. Lacan caracteriza a língua por sua
capacidade de nos afetar. A língua nos afeta em primeiro lugar por tudo o que comporta como
efeitos que são afetos. Miller nos propõe um comentário luminoso desta afirmação que não é
tão fácil de entender. Ele diz: as palavras não apenas têm uma significação, mas também um
efeito de afeto no corpo. Devemos dar a este termo de afeto toda a sua generalidade. Trata-se
de que o que perturba deixa marcas no corpo. Essas marcas indeléveis é o que chamamos de
um acontecimento de corpo. Este termo, nota Miller, é na realidade uma condensação. Trata-
se sempre de acontecimentos de discurso que deixaram marcas no corpo. Nosso corpo foi
amassado, formado, abusado, batido, cortado, pelo encontro com a língua que fala de nós,
aquela que nos falou. É pouco dizer que a língua nos afeta, ela é nossa carne e nosso sangue.
Encontro mítico, a língua é o trauma constitutivo da subjetividade. É ao mesmo tempo nossa
prisão, nosso carimbo mais singular e o lugar do qual nos desprendemos para nos dirigirmos
ao outro. Desafiando a insuportável ligeireza da ordem simbólica, a língua o marca com pesos
mortos e com feridas. Estas marcas se tramam no inconsciente repetindo este ponto
traumático uma e outra vez enquanto o sujeito tenta romper com elas. O estilo de cada um e
também os seus sintomas assinam o modo em que uma existência tenta se virar com estas
marcas indeléveis. Por outra parte, como eu dizia, se necessita de um corpo para falar. O corpo
como tal - é um comentário de Miller sobre uma citação de Lacan – não fala. Ele goza em
silêncio. Mas é com seu corpo que se fala, a partir deste gozo fixado uma vez por todas. Miller
sublinha assim: esse falar com seu corpo, cada sintoma, cada acontecimento de corpo, o
traduz, o trai. Lacan considerava que estava aí o osso de seu ensino. Falo sem sabê-lo, falo com
meu corpo e isso sem sabê-lo, por isso digo mais do que eu sei.

Assim, na língua que falamos está tudo salvo, estandardizado, porque falar compromete
profundamente nosso corpo e nossos afetos. Cada vez que tomo a palavra indico também
como me afeta ou não o que digo. Meu discurso leva a marca das palavras que me marcaram
para sempre. Devo entrever o que me anima, o que me assusta. Essas inflexões, esses
tropeços, o significado particular que dou a uma ou outra palavra são desvios em relação a
uma norma suposta. Nossa diferença se acomoda e se expressa nesses desvios. Nossa
singularidade palpita neste espaço em que nossa palavra é não conforme, desviada, torcida.
Dizendo-o de outra maneira, falar é sempre um acontecimento de corpo que revela nossa
relação íntima com a língua. Falar é dispor, acomodar um espaço para seu próprio dizer nas
repetições das marcas primordiais da língua. Falar é atualizar o trauma da língua, é tentar
exorcizar esse feitiço, mas isto é a nossa própria carne. Falamos sozinhos, falamos com as
paredes, falamos para esquecer que gritamos no vazio. Nesse sentido, a palavra é menos
comunicação do que satisfação encerrada sobre ela mesma, um monólogo autista, um gozo do
blábláblá.

A partir daí podemos generalizar uma afirmação de Lacan sobre o sujeito psicótico no
Seminário 3. Fala de algo que lhe falou, como o louco quando relata suas alucinações. Falamos
de um lugar que está fora da linguagem, lugar que é simultaneamente seus centros mais
íntimos. Falamos destas palavras que nos falaram, que nos marcaram na vida, como o louco.
Tentamos nos extrair desse lugar tecendo novamente laços, articulando um discurso a partir
desses significantes sozinhos, destes símbolos petrificados fora da cadeia. Mas não é isso
precisamente, não é nisto que consiste o delírio, a saber, reconstruir uma trama discursiva a
partir de elementos não simbólicos. Neste sentido falar é efetivamente delirar. Mas além de
qualquer normatividade, falar é um transtorno de linguagem dado que se fala a partir de um
lugar excluído do simbólico, mas que no entanto marcará cada tomada de palavra.

Nesta perspectiva para que serve um tratamento psicanalítico? Uma psicanálise desnuda
nossa relação íntima com a língua. Isolando seus pontos de fixação, o tratamento abre a via a
novos modos de se virar com isso. Foi o que ocorreu no caso de Clara. Farei referência a um
momento de seu tratamento no qual a aparição de um neologismo em um sonho foi
determinante na direção do tratamento. Eis o texto do sonho: “Estou em uma escola, mas não
há ninguém. Caminho pelos locais vazios e logo vejo a palavra INDOLEANCE em letras
maiúsculas. Não entendo o que quer dizer. É uma palavra que não existe! Exclama.” Corto a
sessão, sublinhando : Muito bem! É esse o programa! Antes de continuar quero dizer que o
neologismo indoleance não corresponde a indolência já que o equivalente indolence existe em
francês e tem o mesmo sentido que indolência. A palavra doléance que escutamos em
indoleance significa que ela reclama um sofrimento. Lutadora e apaixonada, Clara é uma
mulher que sabe e que manda. Não suporta nem a perda nem a ausência de sentido. Sua
queixa sempre termina em um sentido único: o outro a abandona ao seu sofrimento. Essa é a
sua acusação fundamental, esta queixa, doléance, é sua dor. No começo, disse Clara, muito
cedo, recém-nascida, seus pais a haviam deixado sozinha para ir festejar em outro lugar.

Este sonho a remete a um cenário maior de sua infância. Diante do mais mínimo deslize de
linguagem, seu pai falava: “Dicionário!”. Clara cumpria a ordem, para ele ela tinha que ler em
voz alta no dicionário a passagem errônea. Desde então ela já se colocava a postos. Seu
discurso abunda em insultos e grosserias especialmente quando se irrita. Seu sonho, no qual
ela se encontra sozinha em uma escola, propõe a alternativa de uma palavra que não figura no
dicionário do Outro. Este achado tem uma função separadora com respeito à tirania paterna,
mas, sobretudo com respeito à tirania do sentido. Seu sonho abre uma via original. Ficarei por
aqui ao pé da letra, em indoléance o prefixo negativo in conduz a um composto novo que, se
existisse, poderia ser o contrário de doléance, queixa, reclamação, sofrimento. Indoléance
ressoa também com indolência, a ausência de dor e de paixão. Indoléance faz escutar tanto a
dor, queixa, como o seu contrário, a queixa, doléance, se torna indolor. O trabalho do sonho
condensa essas duas vertentes em uma só palavra. A dor, doléance, se escreve como gozo
primordial ao mesmo tempo em que é negativizado pelo equívoco que suspende o sentido. Se
o sonho é uma via régia para o inconsciente é também porque suas fórmulas incríveis, suas
alianças estranhas, compósitas, desviam os sentidos demasiado fixados. O sonho exemplar de
Clara configura um tratamento possível de seu gozo: soltar o sentido que gera sua dor.

A interpretação analítica aposta em um novo significante. Sem dúvida nenhuma pastoral no


horizonte. Uma análise permite sintomatizar nossa relação singular com a língua sem que isso
faça desaparecer as marcas com as quais fizemos nosso destino e nossa desgraça. O achado
conserva a marca de um rasgado inesquecível. Um tratamento analítico não tem o poder de
nos liberar da ficção da língua, mas abre possibilidades novas, vivas, criativas.

Concluirei sublinhando que vimos como a singularidade se expressa necessariamente em


desvios, em brechas mais ou menos sutis ou massivas com respeito à norma. Mas, sobretudo,
assim como o louco que fala de suas alucinações, nosso discurso procede de um lugar de exílio
simbólico. Isso a partir deste ponto excluído, mas central, que Lacan nomeou de êxtimo,
exterior e íntimo, associando exterior e íntimo. É a partir deste ponto excluído, mas central,
êxtimo, que falamos. Neste sentido, como indica Miller, todos os discursos são defesas contra
o real. Todos somos delirantes. Já em 88, Miller concluía seus comentários assim: diante do
louco, diante do delirante, não te esqueças de que és, foste, um analisante e que tu também
falavas daquilo que não existe.

Em sua argumentação para o próximo congresso da AMP sobre o tema “Todo mundo é louco”,
Miller sublinha que a psicanálise situa o normal e o patológico em continuidade. Os
psicanalistas não são guardiões da realidade comum, dedicando-se a tratar de uma linha
infranqueável entre o normal e o patológico. Não existe uma fronteira estanque entre a
linguagem supostamente normal e a de um louco. Cada língua tem um tecido singular e há
diferentes tipos de tecido, mas eles não pertencem a categorias impermeáveis e fixas.
Portanto, isto não significa que tudo esteja em tudo e que não haja diferença nem tipos
clínicos. Miller assinala que não se trata de constituir uma linha dogmática que dê conta de
tudo de maneira homogênea, mas de buscar o marco teórico que permita mais
especificamente contar com tal ou qual caso.

Uma palavra para terminar sobre a língua, viva e morta. A fixidez das marcas não simbolizadas
que constituem nossa lalíngua privada a converte, como diz Lacan, em uma língua morta,
ainda que continue em uso. Esse oximoro tão significativo sublinha sua força indestrutível e
sua inércia. A petrificação de seus símbolos que nunca deixam de repetirem-se idênticos a si
mesmos. Por outro lado, a língua está aberta à criação, à invenção de significações
desconhecidas, de novas composições, a escrituras incríveis. Uma língua é uma agitação
permanente. Entram novas palavras, se criam vínculos inesperados entre significantes e
significados, outras caem em desuso, Lacan diz: é um chicletes. O inaudito é que mantenha
seus truques. A língua é um conjunto aberto e por isso, precisamente, é um lugar de
confrontação e transformação. A língua está viva porque em todo momento cada sujeito para
falar, a cria, dando-lhe um empurrãozinho. Seus contornos porosos, sua sutil mescla de
elasticidade e fixidez, sua multiplicidade inconsistente lhe permitem acolher as diferenças e
novas inscrições. A língua é a interface na qual confluem a estrutura universal da linguagem, as
práticas sociais e a lalíngua privada de cada sujeito. É uma encruzilhada de caminhos mutante
mas sempre particularizada no singular e no coletivo. Só há línguas particulares. Ninguém é
mestre da língua e não tudo pode ser dito. Para a psicanálise cada uma delas veicula outro real
diferente daquele que ocupa os gramáticos e os linguistas, juristas e sociólogos, um real que
remete ao impossível de dizer e como A Mulher, como a flor, mergulha suas raízes no gozo.

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