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PSICANÁLISE EM IMERSÃO

Revue La Cause du Desir - No 106 - O3/2020 - Páginas 23 a 33

Jacques-Alain Miller

Hoje eu vou me dedicar às reflexões sobre a psicanálise que chegaram até mim
como um praticante, um praticante em cuja prática real desperta interrogações*1. De certa
forma, são reflexões realistas. Eu digo pensamentos sobre a psicanálise; sem dúvida seria
melhor dizer em psicanálise, porque essas reflexões não vêm a mim de uma posição
transcendente ou externa, mas de uma posição que é de inclusão na psicanálise, mesmo,
se me atrevo a usar essa palavra, de imanência. Um psicanalista reside na psicanálise. Ele
está contido nela. Uma posição de imanência, essa é a palavra que me ocorreu - já que
direi hoje apenas o que chega a mim por meio de associação livre. Estou imerso nisso.

FLUIDIFICAÇÃO

Estar imerso, imerso na psicanálise como em um líquido, é sem dúvida uma


imagem. Mas quando ela se apresentou, tive a oportunidade de dizer a mim mesmo que
de agora em diante a psicanálise realmente se tornou líquida. Também pode fazer alguém
pensar, por associação livre, que ela seria liquidada, mas precisamente, paro antes disso.
Eu digo líquido e vejo muitos depoimentos. Este adjetivo foi usado por um
sociólogo, Zygmunt Bauman, para qualificar a sociedade de hoje, a civilização. Se ele
chamou de líquido, imagino que foi por causa do que se manifesta como a mobilidade de
ideais, transformações tecnológicas cada vez mais aceleradas, a volatilização de limites e
fronteiras. Esta é uma forma de designar a emergência e os efeitos do que tem sido
chamado de globalização - pela qual, em última instância, nos referimos sobretudo ao
fenômeno de comunicação que tende a unificar as informações, mas que talvez se
apresente a nós primeiro por sua fase, seu aspecto de desconstrução. Pois bem, há também
uma desestruturação da psicanálise que, com Lacan, tinha encontrado a fonte no
estruturalismo. Se confiarmos nesta imagem, ela tende a se tornar uma psicanálise líquida.
De qualquer forma, esse é o fio que seguirei aqui.

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Lição de 12 de março de 2008 do curso de J.-A. Miller “Orientação lacaniana. Todo mundo é louco”, ensinamento proferido na
cátedra do departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Versão estabelecida por Pascale Fari a partir de uma transcrição
de Jacques Peraldi. Texto não relido por J.-A. Miller e publicado com sua amável autorização.
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Como a psicanálise se tornou líquida? Como nós praticamos isso hoje em uma
forma que não é mais - para colocar aqui de forma muito simples - a psicanálise sólida do
tempo da estrutura?
O estado atual da psicanálise enquanto líquida também pode explicar o fato de
que os recursos que encontramos na história da psicanálise - os casos originais de Freud,
suas construções teóricas, as diferentes épocas do ensino de Lacan ... - agora estão
imbuídos de uma certa nostalgia.
É apenas uma imagem que me ocorre, mas vou usar a metáfora para tentar ser
autêntico. Girar a metáfora é adotar - no que diz respeito à psicanálise, ao tratamento
analítico, à experiência de quem se dedica a ela, que se apega a ela - a imagem do fluido,
do que não é sólido, que flui, que escapa como indescritível. As modulações e
temperamentos que foram feitos para a noção do final da análise que constitui o passe
contribuem ainda para essa fluidificação. Como se diz hoje, lamentamos que o passe não
tenha mais as arestas de antes. De onde, na ocasião, uma incerteza sobre o caminho que
Lacan havia traçado e que um certo nome, aqui como em outros lugares, tinham tomado
emprestado dele. Esse caminho propiciou uma garantia que parece abalada hoje em dia.

ENTRE ESTRUTURA E ASPECTOS

Fluido é também o termo para um corpo que se deforma sob a ação de forças
mínimas. Isso não pode deixar de nos lembrar do nó a que Lacan recorreu em seu último
ensino e que ele promoveu, em grande parte em vão, como a referência da psicanálise.
Alguns tentaram ou estão tentando desenvolver esta cartilha. Não acho exagero dizer que
essas tentativas não levam à aquiescência da comunidade informal daqueles que a
praticam. Talvez essa referência não fosse mais do que uma metáfora e que a psicanálise
nodal se beneficiaria disso que chamei de psicanálise líquida.
A psicanálise nodal foi proposta por Lacan ao final de sua trajetória de estudos
das deformações. Por que não? Ela estuda deformações que respondem à ação de uma
força mínima, inteiramente concentrada na ação de puxar as cordas - não vejo outra
maneira de colocar isso. Quando passamos por onde Lacan passou, como chegamos a nos
concentrar nessa ação de puxar os pauzinhos e propô-lo como referência para a
psicanálise? Eu realmente vos dou como reflito sobre isso, com esse personagem
incipiente, emergente, mal formado. Como alguém passa a focar, a partir da psicanálise,
na ação de puxar as cordas?
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Nós mexemos os pauzinhos para obter mudanças na aparência de certas figuras


imediatamente, visualmente, perceptível. As demonstrações e mostrações que Lacan fazia
no quadro em seus Seminários tendiam a isso. Essas mudanças introduziam geralmente
um problema, sempre o mesmo, o de saber se os aspectos nodais diferentes respondem
ou não ao mesmo nó. Lacan concluiu seu ensino questionando apaixonadamente essa
possível redução. Em relação a esses aspectos diferentes, o mesmo nó, o que é? Por que
a prática e a reflexão de Lacan na psicanálise o levaram a isso?

(Esquema gráfico)

Um mesmo nó, que faria sua mesmice, seria identificável por sua estrutura
matemática. Lacan manteve essa estrutura matemática à distância, ele não a adotou de
fato, mas a guardou como referência, me parece. Ela carrega com ela a noção do nó fora
de todos os aspectos. Em outras palavras, Lacan explorou repetidamente a divisão entre
estrutura e aparência. Ele se esforçou para mostrar em que sentido uma multiplicidade de
aspectos poderia estar relacionada a uma unidade, à singularidade do mesmo objeto. Essa
multiplicidade de aspectos é uma multiplicidade da qual os elementos, capturados
visualmente, passam um para o outro sem uma quebra de continuidade. Nós puxamos as
cordas, nós puxamos, e isso se apresenta de uma outra maneira. É sempre o mesmo nó
que se apresenta em vários estados conforme o manipulamos?

(Esquema gráfico)

Na veia da metáfora que me trouxe aqui, essa multiplicidade testemunharia o


modo líquido, enquanto a estrutura nodal estaria no modo sólido. No contexto em que o
coloco, o estranho nó que Lacan trouxe à psicanálise poderia ser definido da seguinte
forma: o que resta da estrutura que responde ao estado líquido da psicanálise. Para usar
um termo estruturalista, o nó nos apresenta uma articulação entre o que é líquido e o que
resta da estrutura.

(Esquema gráfico)

A PALAVRA LÍQUIDA
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Tentemos incorporar a intuição que me leva a falar da psicanálise líquida. O que


o líquido está fazendo aqui? Onde exatamente se encaixa? Fala-se de dinheiro líquido,
por exemplo. O psicanalista lacaniano deve de ter uma preferência por dinheiro líquido.
Quando o consumidor da psicanálise se propõe a pagar com cheque, isso é uma pequena
pista de transferência negativa, eu já constatei isso. Quando a transferência se torna
positiva, o paciente se oferece para resgatar seus cheques, o que significa que você não
deve descontá-los ainda. Em qualquer caso, fique como evidências de resistência à
liquidez. O dinheiro líquido é assim chamado porque passa de mão em mão sem deixar
vestígios, sem ser escrito, escapando das estruturas que, de outra forma, o capturariam.
Mas não é nesse sentido que estamos falando de psicanálise líquida. Em vez disso, é a
própria palavra que merece esta adjetivação.
A fala é líquida. Freud abriu a porta simplesmente dizendo que estava
convidando o paciente para dizer o que quiser. É a palavra vontade em seu lugar aqui,
uma vez que é mais sobre retirar o discurso do testamento? É sobre ter aquela vontade de
dizer o que te passa pela cabeça, desconsiderando o decoro, desconsiderando a verdade
como precisão, sem a aprovação que você pode dar ao que você diz, etc. O que coletamos
sob o nome de associação livre - se considerarmos o que isso está no limite - é um convite
para usar a palavra sem a restrição de se comunicar. É uma associação livre da
comunicação, livre dela. Esse modo de falar muito especial clareia o que chamo de seu
aspecto líquido.
A liquidez da fala demorou a se afirmar. Também precisa de tempo no próprio
tratamento - no início da experiência, a fala é mais restrita. Quando a análise ultrapassa
os limites médios que Freud lhe impôs, quando a experiência dura, o aspecto líquido da
fala se afirma cada vez mais.
Esse aspecto líquido é sem dúvida – isso é uma hipótese - o que levou Lacan,
depois de vinte anos de ensino, trazer a noção de lalíngua em sua diferença com a
linguagem. A linguagem da palavra exige estrutura. Lacan apresentou este termo de
linguagem ao basear-se no discurso, que ele considerou científico, a partir da Linguística
Saussuriana e Jakobsoniana. Inicialmente, ele fez derivar a palavra como palavra de
estrutura- se assim posso dizer – palavra essencialmente referenciável à estrutura, a qual
distingue o significante e o significado e relaciona o significado com a substituição e
combinação de elementos significantes. Esse é o ponto de Arquimedes a partir do qual
Lacan levantou a obra de Freud e a reordenou. E foi em seu próprio ponto de Arquimedes
que ele se atracou apresentando uma outra perspectiva, destacando o status de lalíngua
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que eu diria hoje, em vez disso, que ela responde ao estado líquido da fala. Essa báscula,
que Lacan introduz de uma forma que ainda me parece surpreendente em seu último e
ultimíssimo ensino, ocorre no final do Seminário XX, Mais ainda.
O conceito de lalíngua pretende arruinar a psicanálise sólida. Este conceito
anuncia que a fala é da ordem da secreção, que ela é um fluido linguístico. Ele já anuncia
que o significante não é mais do que o produto do discurso "científico" sobre lalíngua -
"científico" entre aspas, uma vez que não estamos mais em tempos de podermos dizer
que a linguística de Saussure é a ciência da linguagem. A linguística saussuriana era uma
forma de captar a fala líquida. O que Lacan, no rastro de Saussure, chamou de linguagem
era uma estrutura a qual ele acabou por descobrir que ela estava distante da lalíngua; sem
dúvida é por esse motivo que ele então preferiu o nó, em que a estrutura do nó é adequada
para o aspecto do nó. Por outro lado, no limiar de seu último ensino, Lacan colocou, não
apenas que há lalíngua, mas também que há uma lacuna necessária entre lalíngua e a
linguagem.
(Esquema gráfico)

Esse é o valor a ser dado ao esboço da cronologia que ele apresenta ao dizer -
eu o estou citando – que a linguagem, antes de mais nada, ela não existe. Só vem a existir
uma vez que tentamos descobrir algo sólido sobre a lalíngua. Assim, desenvolvemos a
estrutura da linguagem que é, diz ele, apenas uma elucubração do conhecimento sobre
lalíngua.
Essa me parece realmente a principal lacuna a partir da qual girar, não somente
a teoria, mas também a prática da psicanálise. A partir daí, a teoria da psicanálise se
desprende de sua herança - Lacan tentando garantir um tênue laço com a sua psicanálise
nodal. Portanto, entramos na prática contemporânea da psicanálise, sem dúvida, ao
mesmo tempo em que falamos mais amplamente de uma civilização onde o Outro não
existe, onde a evidência da inexistência do Outro está sempre mais presente - o que
poderia ser traduzido nos termos da sociedade líquida. Isso cai, tem repercussões muito
diretas na prática da análise, na prática do analista, em seu - se assim posso dizer - nível
de percepção da fala, da fala do analisando.

PRESENÇA DE LALANGUE
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Em que nível está o inconsciente? É no nível da linguagem ou no nível de


lalíngua? É no nível da linguagem, como estruturada, ou é no nível de lalíngua que já
começa, ou melhor, implica sua desestruturação, sua fluidificação?
Lacan começou dando uma resposta ambígua, poupando a cabra e o repolho,
até tombar para o lado da lalíngua, ou seja, o que chamei de discurso líquido.
Primeiramente, o inconsciente no nível da linguagem. O inconsciente está no
nível da linguagem como estrutura. O inconsciente é estruturado como uma linguagem e,
em particular, ele se estrutura na oposição do significante e do significado. É neste nível
que Lacan foi capaz de reformular as principais estruturas clínicas entregues pela
psiquiatria clássica, bem como nos primeiros tempos da elaboração freudiana. É neste
nível que devemos o que, na clínica, continua a nos guiar como estrutura.

(Esquema gráfico)

Mas é aqui que precisamos reencenar o que o próprio Freud dizia do


inconsciente, a saber, que ele é apenas hipotético. Lacan retoma isso - no que diz respeito
a lalíngua, o inconsciente é apenas hipotético como estrutura. A psicanálise é não
newtoniana, porque deve simular essa hipótese. Na psicanálise, nós somos obrigados a
fingir uma suposição sobre a coerência, a conjunção e a conjugação de o que, sobre o nó,
chamei de aspectos.
Como dizer da forma mais simples e mais próxima da prática? O inconsciente
é uma construção. O menor controle existe para provar isso. Na sua prática, um analista
só lida com o inconsciente como uma construção da qual tenta a edificação, que tenta
verificar, que corrige, sem tirar essa construção do registro das hipóteses. Quando esse
analista entrega seu trabalho a um colega na estrutura do controle, ele fornece uma
hipótese que se presta à discussão, correção, ou seja, o inconsciente é uma construção do
lado da prática do analista. Eu não sei como ser mais realista do que isso, é assim que
funciona. Nós não entendemos apenas sob essas espécies.
Em segundo lugar, o inconsciente ao nível da lalíngua. Sempre para tentar ser
realista, ou autêntico, eu diria que está do lado do analisando, no sentido de que – cito
Lacan - o inconsciente é um saber fazer com lalíngua. Isso qualifica, se assim posso dizer,
a prática do analisando precisamente na medida em que escapa ao que ele está dizendo;
E isto, não como uma mensagem a ser decifrada (caso em que permaneceria incluída no
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depoimento). Se levamos a sério que isso lhe escapa, devemos dizer, como fez Lacan,
que se qualifica de afetos, afetos que mais tarde ele também chamará de acontecimentos
de corpo - eu entendo este termo até agora – de afetos que permanecem enigmáticos e
que são relacionados com a presença de lalíngua.
Há uma lacuna entre o que o sujeito é capaz de afirmar e seus afetos fechados
sobre seu enigma. Pelo menos é assim que entendo o que Lacan formula nos termos
seguintes - os efeitos da lalíngua vão muito além de qualquer coisa que o ser falante
possa denunciar. Essa frase, é preciso dizer, abre um campo não balizado pela estrutura
da linguagem. Ela não diz que o que o sujeito é suscetível de enunciar nos permite
alcançar todos os efeitos de lalíngua mas, ao contrário, que o que se anuncia não nos
permite alcançar todos os seus efeitos. E o que é dito, mesmo para ser decifrado pelo
analista, não nos permite alcançar todos os efeitos da lalíngua. Se é à palavra que pode
ser atribuído o resort desses efeitos, eles são, apesar de tudo, empurrados para fora do
reino da declaração.
Lacan, então, dará a esses efeitos seu desenvolvimento completo, sua essência
plena – sua Wesen no sentido em que Heidegger usa essa palavra (o tradutor de seu Cours
recentemente publicado sublinha que, com ele, Wesen significa essência plena, esplendor
da essência) – envolvendo acontecimentos de corpo. Já enfatizei essa expressão, que
desde então floresceu. Lacan finalmente a citou apenas uma vez, mas indicando, parece-
me, uma direção essencial. Aqui sou levado para mais perto do que estou imerso, para
diferenciar entre formações inconscientes e acontecimentos de corpo.

(Esquema gráfico)

SENTIDO DE DESEJO OU SENTIDO DE GOZO

Quando confinamos o inconsciente como um conceito a que o ser falante é


passível de afirmar, quando postulamos que seu status se deve ao que o sujeito afirma, o
inconsciente - em poucas palavras - permite isolar as formações do inconsciente. O que
Freud descobriu em suas primeiras obras - A Interpretação dos Sonhos, Psicopatologia
da Vida Cotidiana, A Palavra do Espírito ... -, Lacan reuniu sob o título de formações do
inconsciente, onde a função de decifrar o significante está em evidência (pelo menos
desde que ele nos ensinou a lê-lo de acordo com a estrutura saussuriana). Mas quando
ampliamos o inconsciente aos afetos enigmáticos, ele inclui os acontecimentos de corpo
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dos quais nada demonstra que eles têm a mesma estrutura que as chamadas formações do
inconsciente.
As formações do inconsciente são uma categoria da psicanálise sólida, se eu
posso dizer. O gráfico de Lacan é feito para dar conta das formações do inconsciente
sobre o fundamento da existência do Grande Outro, ou seja, sobre o fundamento de que
a hipótese é uma tese. O Grande Outro, quer dizer, o lugar das estruturas, no plural, porque
se estendem a tudo que chamamos de sociedade, história ou civilização. Podemos também
dizer estrutura, no singular, se relacionarmos todas essas estruturas à estrutura da
linguagem.

(Esquema gráfico)

As formações do inconsciente são também uma categoria que supõe a Lei


relativa à qual o desejo se apresenta como autônomo, entendendo-se que a Lei pode ser
demostrada como tendo suas origens no desejo. Como opera a decifração das formações
do inconsciente, senão sempre demostrando que elas têm um sentido de desejo?
Bem, quando estamos lidando com acontecimentos de corpo, essas são
entidades que têm um sentido de gozo. O sentido de gozo é bastante distinto do sentido
de desejo. Quando é sobre o sentido do desejo, há comunicação - onde se pode
compreender como o significante que falta na fala do analisando pode ser trazido pelo
analista sob as espécies de interpretação. Se há comunicação quando há um sentido de
desejo, há satisfação quando há um sentido de gozo. Não comunicação, mas satisfação.
Essa distinção abrange a da linguagem e da lalíngua.
Isso teve uma tradução teórica à qual obviamente continuamos apegados. A
tradução teórica das formações do inconsciente e do sentido do desejo é o que praticamos
como psicanálise do sujeito, apegado à linguagem, à sua estrutura, ao inconsciente como
estrutura de linguagem. Nessa ordem, o final da análise é a resolução do enigma do
desejo; é a emergência surgimento do que quer dizer o desejo, recoberto e ao mesmo
tempo detectado por e nas formações do inconsciente. A psicanálise do sujeito - como eu
a chamo aqui – está certamente em evidência no início da análise e, hipoteticamente, no
seu fim.
Mas há outro curso de análise, onde estamos lidando no nível de lalingua e dos
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afetos singulares que ele gera no corpo. O fim que surge é da ordem, não da solução, mas
antes de tudo de uma nova satisfação. A conexão do sujeito e do corpo impõe sua presença
na experiência, na medida em que o corpo é o lugar do gozo.
Claro, os dois níveis se articulam, se estamos dispostos a admitir com Lacan em
seu último ensino escreve que a miragem da verdade não tem outro fim senão a satisfação
que marca o fim da análise. É um curto-circuito; ele promete, se assim posso dizer, que
o início, que se organiza na psicanálise do sujeito, encontra como em diagonal seu fim na
psicanálise do parlêtre. A questão sobre o sentido do desejo e a verdade encontra sua
resposta na satisfação, o que supõe que as memórias da verdade tenham se extinguido e
sua miragem volatizada. Estou falando de diagonal porque foi sob a espécie de uma
diagonal que Lacan escreveu ao final da análise em um de seus Seminários.

(Esquema gráfico)

Sem dúvida seria necessário introduzir uma tripartição da experiência analítica.


que começa com a verdade e o desejo na encosta da estrutura, que se conclui sob a
satisfação, entre o que acontece e o que possivelmente faz acontecimento.

(Esquema gráfico)

Quando Lacan diz que o sintoma é um acontecimento do corpo, ele o diz


exatamente - com a seguinte frase, em sua escrita "Joyce o sintoma" - Deixemos o sintoma
para o que ele é: um acontecimento de corpo. Este rebaixamento do sintoma ao
acontecimento de corpo, na minha opinião, significa que não se trata de uma formação
do inconsciente e que ele se relaciona, não com o sujeito do significante, mas com o corpo
concebido como patrimônio do homem, um bem do corpo investido de libido, do corpo
como um lugar de gozo - e isso é porque Lacan pode dizer que ele esvazia o ser.

(Esquema gráfico)

CORTE DO ACONTENCIMENTO

Nesse sentido, onde acredito ser o mais realista possível como um praticante
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imerso, proponho entender por acontecimento de corpo um acontecimento de gozo.


Existem acontecimentos de desejo? Esses são chamados de revelações, porque são
sempre acontecimentos de verdade, onde estamos acostumados a distinguir um antes e
um depois da sua emergência.
Devemos entender que o acontecimento de corpo é fixado de uma vez por todas?
Sem dúvida, se isso existe, o sintoma é uma fixação de gozo.

(Esquema gráfico)

Mas isso também abre a questão de saber o que, do gozo, pode ser deslocado
em uma psicanálise. Quais são os acontecimentos de gozo que ocupam o que chamei de
curso de análise, em que a fala líquida mostra ser capaz de deslocar o gozo?
Não devemos esquecer a distância que separa a clínica-estrutura da clínica-
acontecimento. A prática de controle que mencionei anteriormente se encaixa nessa
lacuna. Há espaço para o controle porque há um hiato entre a clínica-estrutura e a clínica-
acontecimento. Não podemos deduzir o acontecimento a partir da estrutura. E essa
dedução impossível mistura precisamente o lugar da interpretação.

(Esquema gráfico)

Na psicanálise do sujeito, a interpretação joga em relação à verdade, mas este


não é o caso em toda a análise. Como diz Lacan, não é porque o sentido de sua
interpretação tem efeitos que os analistas estão certos. Digamos que a interpretação seja
avaliada pelo acontecimento de gozo de que é ela é capaz de eventualmente engendrar. A
psicanálise joga com o que produz gozo.

(Esquema gráfico)

Essa psicanálise é necessariamente sustentada pela ideia de que o que trabalha


para o gozo é um saber? Lacan martelou, segundo sua expressão, que o saber inconsciente
trabalha para o gozo. Devemos manter este conceito de saber, para o qual se mantêm os
conceitos de cifração e decifração? É lá que se impõe o exercício da psicanálise líquida?
Pelo contrário, parece-me que se o nó é a estrutura adequada à psicanálise líquida, como
indica Lacan, então é necessário relativizar, ou mesmo descartar a decifração em favor
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do corte, o corte do círculo de fragmento. Se a psicanálise nodal de Lacan encena a ação


de atirar para entregar seus aspectos, ela envolve também uma outra ação, que mencionei
ano passado, a ação do corte cirúrgico.

(Esquema gráfico)

Pode ser que seja não a decifração, mas o corte, o que é essencial; que é o corte
o que pode ser realizado no nível do acontecimento de gozo. Pode ser então que o que foi
chamado de sessão curta (mencionada em um outro contexto de Lacan no início de seu
ensino) ou a sessão dos tempos da psicanálise líquida, aquela que não é ordenada pelas
formações do inconsciente, mas pelos acontecimentos de gozo.
Portanto, como a experiência mais autêntica revela, a contingência, que é o que
qualifica o amor, é também o destino do psicanalista em sua interpretação.

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