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“Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi que era um homem.
Em Clínica irônicai, Jacques-Alain Miller afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho; e que,
para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é, delirante”.
Freud em seu texto Neurose e Psicoseii, aproxima o sonho da psicose pois há uma realização
alucinatória do desejo no sonho e, a ideia de que se alucina quando se dorme, atualiza a tendência
do aparelho psíquico de se fechar. Se o sujeito acorda, é para continuar a dormir na rotina de sua
fantasia e evitar o despertar para o realiii.
No contexto freudiano, tanto na neurose quanto na psicose há uma perda da realidade e a criação
de uma nova realidadeiv. Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real.
Simplifiquemos, nos diz Miller: “o delírio é universal porque os homens falam e porque há
linguagem para eles”v. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que
temos de mais real: a não-relação sexual e a nossa própria mortalidade.
A clínica universal do delírio, é uma primeira orientação temática para a investigação da Seção
Clínica do IPSMMG no 1º semestre de 2023.
Essa proposta de Jacques-Alain Miller em 1988 encontra-se em seu texto a Clínica irônica e sua
atualidade nos direciona rumo ao Congresso da AMP em 2024, cujo tema é Todo mundo é louco,
orientação também de J.-A.Miller como um programa de trabalho e uma bússola para guiar-nos
no ultímissimo ensino de Lacanvi. São proposições que ressoam nos dias atuais.
Com a clínica universal do delírio ele nos convida a apreendermos a posição do psicanalista
como irônica, sustentado na inexistência do Outro. Advertido de que não há Outro do Outro, é
um modo de fazer e interrogar os significantes mestres de nossa época pois os discursos são
defesa contra o real.
O esquizofrênico nos ensina acerca de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem
e um uso da ironia. É aquele que não tem a sua disposição o discurso como defesa ao real. Trata-
se, nos diz J.-A.Miller, de uma exclusão interna, ele não se defende do real com a linguagem,
pois, para ele, o simbólico é real. Se não há discurso que não seja de semblante, há um delírio que
é do real, e trata-se do delírio do esquizofrênicovii.
A neurose e a paranoia, entretanto, fazem existir o Outro defendendo-se do real com o simbólico.
Como indica J.-A. Miller, em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na
psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os
quais ele, em sua neurose, deliroux. O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas
elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades
mentirosas.
Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o
real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma.
Mas nos perguntamos: como tocar o real com as palavras?, Como tocá-lo de boa maneira? xi.
Como um psicanalista na posição irônica permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito?
Como e quando perturbar uma defesa?
E nas psicoses? Pretendemos apagar ou acomodar o delírio, mas nunca nutri-loxii. Quando a ironia
é uma defesa e quando ela pode servir para perturbar a defesa?
A frase “Todo mundo é louco, isto é delirante”, ao universalizar a loucura e o delírio como um
fenômeno de significação inerente ao ser em geral, aponta para um mais além das psicoses, mas,
ainda, num campo que é clínico.
Ela também aponta para isso que, como psicanalista, trata-se de escutar o que se enuncia da boca
do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém xiii, lugar do sujeito designado desde
antes que o significante desenrole suas tecituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se
sofre, se goza.
A ironia é assim, uma forma de interrogação em que as palavras podem dizer outra coisa do que
dizem e confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante. Exige uma investida, uma
presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato
mobilize o corpo do falasser.
Como o psicanalista intervém protegendo a criança do familiarismo delirante de seus pais? E nos
casos do enlace mãe e filho que têm um caráter de loucura a dois? Como aliviar os homens de
seus delírios de paternidade?xiv Como o psicanalista em uma posição irônica pode intervir face a
crença louca no pai?
O vazio da posição do analista enfatiza o não saber a cada vez e, ao não obturar com o saber, há
possibilidade de invenção de um saber singular. Saber singular que distingue a psicanálise da
psicoterapia, pois essa consiste em fazer o sujeito crer em seu paixv.
Enquanto psicanalistas como podemos nos servir da ironia face à tendência atual à
despatologização generalizada, ancorada nos “estilos de vida”, produto da substituição dos
princípios clínicos pelos princípios políticosxvii?
J.-A. Miller ressalta que a própria psicanálise é repercutida nessa ideologia da despatologização,
devido a importância que enquanto psicanalistas concedemos à escuta. Face a tirania do gozo, do
efeito da reivindicação e da exigência do direito à despatologização, ancorada naquilo que um
sujeito diz que é, ou que quer ser, escuta-se o dizer ao pé da letra.
Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa xix. Como fazer
existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, fundamentada na autodeterminação,
tenta romper o corpo e o falante? Como introduzir uma abertura ao lugar no Outro do desejo e do
dizer, quando há uma crença delirante no mais de gozo?
Essas questões nos conectam à segunda orientação para as nossas investigações, a saber, a que
nos coloca rumo ao próximo XII ENAPOL, que acontecerá em 2023: Começar a se analisar.
Todo mundo está em seu mundo, isto é, naquilo que seu sintoma fomenta e, com isso, nos
viramos como podemos, nos entendemos e tentamos caminhar juntosxx.
xvii
MILLER, J. A. Todo el mundo es loco (discurso de fechamento Congresso da AMP 2022), transcrição não oficial; a
sair em breve na Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, Opção Lacaniana
xviii
MILLER, J. A., L´ecute avec et sans interprétation, Jacques-Alain Miller, LWT, Miller TV, in YouTube, 15-05-
2021.
xix
MILLER, J. A., La experiência de lo real em la cura psicoanalítica, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed. Paidós
2014 , p.34.
xx
MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed:
Padiós (2020) p. 342.