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Argumento da Seção Clínica

Cristiana Pittella – diretora da Seção Clínica do IPSMMG

A Clínica universal do delírio

“Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi que era um homem.

Agora não sei se sou um homem que sonhou ser borboleta,

ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem”

(mestre taoísta Chuang Tzu)

Tudo não passa de sonho? A questão da realidade, do ser e da existência é fundamentalmente


humana.

Em Clínica irônicai, Jacques-Alain Miller afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho; e que,
para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é, delirante”.

A vida é sonho? O que se passa com o real?

Freud em seu texto Neurose e Psicoseii, aproxima o sonho da psicose pois há uma realização
alucinatória do desejo no sonho e, a ideia de que se alucina quando se dorme, atualiza a tendência
do aparelho psíquico de se fechar. Se o sujeito acorda, é para continuar a dormir na rotina de sua
fantasia e evitar o despertar para o realiii.

No contexto freudiano, tanto na neurose quanto na psicose há uma perda da realidade e a criação
de uma nova realidadeiv. Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real.

Simplifiquemos, nos diz Miller: “o delírio é universal porque os homens falam e porque há
linguagem para eles”v. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que
temos de mais real: a não-relação sexual e a nossa própria mortalidade.

A clínica universal do delírio, é uma primeira orientação temática para a investigação da Seção
Clínica do IPSMMG no 1º semestre de 2023.

Essa proposta de Jacques-Alain Miller em 1988 encontra-se em seu texto a Clínica irônica e sua
atualidade nos direciona rumo ao Congresso da AMP em 2024, cujo tema é Todo mundo é louco,
orientação também de J.-A.Miller como um programa de trabalho e uma bússola para guiar-nos
no ultímissimo ensino de Lacanvi. São proposições que ressoam nos dias atuais.
Com a clínica universal do delírio ele nos convida a apreendermos a posição do psicanalista
como irônica, sustentado na inexistência do Outro. Advertido de que não há Outro do Outro, é
um modo de fazer e interrogar os significantes mestres de nossa época pois os discursos são
defesa contra o real.

O esquizofrênico nos ensina acerca de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem
e um uso da ironia. É aquele que não tem a sua disposição o discurso como defesa ao real. Trata-
se, nos diz J.-A.Miller, de uma exclusão interna, ele não se defende do real com a linguagem,
pois, para ele, o simbólico é real. Se não há discurso que não seja de semblante, há um delírio que
é do real, e trata-se do delírio do esquizofrênicovii.

A neurose e a paranoia, entretanto, fazem existir o Outro defendendo-se do real com o simbólico.

Quais seriam as diferenças entre as modalidades de delírios dos neuróticos, articulados ao


fantasma, aos ideais e às exigências superegóicas, com os delírios na psicose, paranoia e
esquizofrenia? O que as psicoses ordinárias podem nos ensinar sobre a clínica universal do
delírio?

Podemos investigar a loucura no ensino lacaniano em seus momentos diversos. Como se


conjugam ou se articulam as afirmações lacanianas, “Não fica louco quem quer”viii com “Todo
mundo é louco, isto é, delirante”? Louco e delirante são equivalentes? E ainda, a afirmação
lacaniana: “E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não
seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade”ix.

Como indica J.-A. Miller, em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na
psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os
quais ele, em sua neurose, deliroux. O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas
elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades
mentirosas.

Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o
real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma.

Mas nos perguntamos: como tocar o real com as palavras?, Como tocá-lo de boa maneira? xi.
Como um psicanalista na posição irônica permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito?
Como e quando perturbar uma defesa?

E nas psicoses? Pretendemos apagar ou acomodar o delírio, mas nunca nutri-loxii. Quando a ironia
é uma defesa e quando ela pode servir para perturbar a defesa?
A frase “Todo mundo é louco, isto é delirante”, ao universalizar a loucura e o delírio como um
fenômeno de significação inerente ao ser em geral, aponta para um mais além das psicoses, mas,
ainda, num campo que é clínico.

Ela também aponta para isso que, como psicanalista, trata-se de escutar o que se enuncia da boca
do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém xiii, lugar do sujeito designado desde
antes que o significante desenrole suas tecituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se
sofre, se goza.

A ironia é assim, uma forma de interrogação em que as palavras podem dizer outra coisa do que
dizem e confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante. Exige uma investida, uma
presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato
mobilize o corpo do falasser.

Como o psicanalista intervém protegendo a criança do familiarismo delirante de seus pais? E nos
casos do enlace mãe e filho que têm um caráter de loucura a dois? Como aliviar os homens de
seus delírios de paternidade?xiv Como o psicanalista em uma posição irônica pode intervir face a
crença louca no pai?

O vazio da posição do analista enfatiza o não saber a cada vez e, ao não obturar com o saber, há
possibilidade de invenção de um saber singular. Saber singular que distingue a psicanálise da
psicoterapia, pois essa consiste em fazer o sujeito crer em seu paixv.

O saber e a crença, teriam um estatuto de delírio?xvi

Enquanto psicanalistas como podemos nos servir da ironia face à tendência atual à
despatologização generalizada, ancorada nos “estilos de vida”, produto da substituição dos
princípios clínicos pelos princípios políticosxvii?

J.-A. Miller ressalta que a própria psicanálise é repercutida nessa ideologia da despatologização,
devido a importância que enquanto psicanalistas concedemos à escuta. Face a tirania do gozo, do
efeito da reivindicação e da exigência do direito à despatologização, ancorada naquilo que um
sujeito diz que é, ou que quer ser, escuta-se o dizer ao pé da letra.

Mas essa ideologia apaga completamente a psicanálise, as possibilidades da palavra do Outro, a


saber, do inconsciente e da interpretação xviii. Nesses tempos em que o cogito contemporâneo é,
como ressaltou J.-A. Miller, Sou o que eu digo, como introduzir a enunciação? A diferença entre
o significante e o significado?
Quais as consequências e desafios os psicanalistas estão encontrando em suas práticas
institucionais ou em consultórios, em sua articulação com outros campos de saber como a
medicina, a saúde mental, o direito e a educação? Como os psicanalistas introduzem a clínica,
operam e fazem valer o direito à interpretação? O que tem inaugurado e possibilitado essa
experiência?

Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa xix. Como fazer
existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, fundamentada na autodeterminação,
tenta romper o corpo e o falante? Como introduzir uma abertura ao lugar no Outro do desejo e do
dizer, quando há uma crença delirante no mais de gozo?

Essas questões nos conectam à segunda orientação para as nossas investigações, a saber, a que
nos coloca rumo ao próximo XII ENAPOL, que acontecerá em 2023: Começar a se analisar.

Todo mundo está em seu mundo, isto é, naquilo que seu sintoma fomenta e, com isso, nos
viramos como podemos, nos entendemos e tentamos caminhar juntosxx.

Bem vindos ao trabalho!


i
MILLER, J. A. Clínica Irônica (1993) in ___ Matemas I, Campo Freudiano no Brasil, Jorge Zahar Editor, 1996, p. 192.
ii
FREUD, S., Neurose e Psicose (1924) in __ Neurose, Psicose, perversão, obras incompletas de Freud: tradução Maria
Rita Salzano Moraes - Belo Horizonte: Ed Autêntica 2016, p.273.
iii
MILLER, J. A. Despertar, O sonho sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, AMP, Silicet, EBP, 2020, p.
18.
iv
FREUD, S., A perda da realidade na neurose e na psicose (1924) in __ Neurose, Psicose, perversão, obras incompletas
de Freud: tradução Maria Rita Salzano Moraes - Belo Horizonte: Ed Autêntica 2016, p.284.
v
MILLER, J. A. Clínica Irônica (1993) in ___Matemas; tradução Ségio Laia; revisão técnica
Angelina Harari __ Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. Pg 192.
vi
MILLER, J. A. Brújula de la última enseñanza (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos
Aires, Ed: Padiós (2020) p. 315.AM, Todo el mundo es loco pg 315 ,
vii
MILLER, J. A. Clínica Irônica (1993) in ___Matemas; tradução Ségio Laia; revisão técnica
Angelina Harari __ Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p.190.
viii
LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica – 1946 in ___ Escritos; tradução Vera Ribeiro, Rio de Janeiro.
Ed Aahar, 1998 (Campo Freudiano no Brasil) p.177.
ix
idem
x
MILLER, J. A. L’interpretation à l’envers, Cause Freudienne Revue de psychanalyse, n.32, Vous ne dites rien, 1996
ECF, Diffusion Navarin Seuil, p.12
xi
MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed:
Padiós (2020) p. 341.
xii
MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed:
Padiós (2020) p.338.
xiii
MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed:
Padiós (2020) p. 333.
xiv
E. Laurent in https://elp.org.es/el_nino_como_real_del_delirio_familiar_e/
xv
idem
xvi
MILLER, J. A. Diversificación del uno (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos
Aires, Ed: Padiós (2020) p. 312.

xvii
MILLER, J. A. Todo el mundo es loco (discurso de fechamento Congresso da AMP 2022), transcrição não oficial; a
sair em breve na Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, Opção Lacaniana
xviii
MILLER, J. A., L´ecute avec et sans interprétation, Jacques-Alain Miller, LWT, Miller TV, in YouTube, 15-05-
2021.
xix
MILLER, J. A., La experiência de lo real em la cura psicoanalítica, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed. Paidós
2014 , p.34.
xx
MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed:
Padiós (2020) p. 342.

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