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“Topo MUNDO — LoUCO” — “AMP 2024 Jacques-Aaiw Mrizer (Paris) jam@lacanian net de quatro anos conduztu a vida da Associacao Mundial de Psicandlis Cabe a mim dar 0 titulo dos Congressos da AMP , Por que € assim? O habito tomou conta, tone se uma espécie de tradigo - que perigol Nao sexi sempre assim. Mas ¢ preciso acte que esse momento ainda ndo chegou. Portanto, prossigo. Nosso proxi mo Congreso tera como titulo: Todo mundo é louco Contexto » mundo é tal como 0 titulo desta Grande Conversagio Virtual, A mulher ndo existe, € um aforismo de Lacan. Eu o pesquei em um escrito mintisculo, composto por Lacan a meu pedido. ‘Tratava-se, entao, de defender 0 Departamento de Psicanillise le Vincennes, cuja existéncia, no Amago da Universidade de Paris 8, estava ameagacla. Alids, ela ainda esti ameagada, tc los 0 anos = por razdes conjunturais ¢ também por umg razao de estrutura, E que, na verdade, como escreve Lacan, ‘a psicanalise nao ¢ ni (Gria de ensino” + Isso se deve oposicao, que chamo de estrutural, entre o discurs analitico € 0 discurso universitério, entre o saber sempre suposto na pritica dla psicana lise ¢ o saber exposto, que fica em lugar de destaque no discurso universitirie. Nao you desenvolver essa oposicao bem conhecida por nos Pxtrai este aforismo de alguma jinhas escritas por Lacan, em um tempo que se sderia dizer que € de além-ti mulo, uma vez que se situa depois do Sentindrio intitula- eihnneeneeneancmmamennNeS do por ele cle “O momento de coneluir”. Tudo 0 que Lacan escreveu ou proferiu depois desse Semindrio goza de um estatuto especial, 0 de @ posterion do conjunto realizado ele antes de a repe ra, também em de seu ensino ~ vou usar esta pal egada © gue da a essas proposicdes fragmentarias um valor testamentiirio Lacan formulou Todo mundo ¢ fowco uma Gnica vez, em um texto publicado em uma revista confidencial, na €poca, Ornicar? Pelo fato de eu té-lo pingado, comentado, repetide, esse alorismo entrou na nossa lingua comum, a da AMP, € naquilo que pode riamos chamar de nossa doxa, Tornou-se até mesmo uma espécie de slogat ntendide de uma form No context da época, cle fo Jue lisonjeia os precon ceitos contempordineos, os da reivindicacto democratica de uma igualdade funckamental dos cidadios, impondo-se a hierarquia tradicional desconstruindo-a. E era essa} quia que regia a relagao do terapeuta com seu paciente. Digo isso sem nostalgia, uma vez que Lacan estava antecipando a ideologia contempordinea da igualdade universal seres falantes ao enfatizar a fraternidade como devendo ligar, segundo ele, 0 terape ele, temos de acolhé seu paciente, O homem « liberado », o da sociedade moderna, diz lo e, cto “reabrir [para ele] 0 caminho de seu sentido, numa fraternidade dlisereta er relago & qual sempre somos por demais desiguais™ Despatologizacio Se de fraternidacle que se trata, hd mnito ela deixou de ser discreta para ser, a0 contrario, exigida a plenos pulmées sob a forma de uma iguaklade total, inteira, dos seres falantes Nestas condigdes, nao nos surpreendamos que essa reivindicagao igualitari aduza no desaparecimento programado da clinica, Todos os tipos clinicos fio. pro- gressivamente subtraidos de ncle catdlogo clinico, jé rebaixado e desconstruido pelas sucessivas edicbes do DSM. F isto em um tempo no qual todos os individuos acometidos por um transtorno mental, por uma deficiéncia, pelo que antes era considerado como anormalidade, se associam ¢ formam grupo. Esses grupos, juridicamente fundamenta dos, in scritos, so com frequéncia constituidos como grupos de presstio — até mesmo os dos autistas, dos ouvidores de vozes etc. Tudo anuncia que a clinica logo seri coisa do passado. Cabe a nés alinhar nossa prittica a essa nova era, sem nostalgia, sem amargura. sem espirito de vinganca Num tal contexto, o aforismo lacaniano s6 pode ser interpretado como assumindo, validando um termo que est de agora em diante em uso (nds 6 ouvimos ressoar mais de uma vez durante esta Grande Conversicio): a “despatologizacao”. Nao haverd mais patologias, havera, ja ha, em vez disso, estilos de vida, livremente escolhides — un dpe Latcaniansa 9? 85 9 perdacle imprescritivel porque ela é a dos sujeitos de direito (droit). Digamos que o reto. (droit) leva a melhor sobre o torto® Freud falava da substituicio do principio de realidade pelo principio do prazer Assistimos & substituigao do principio juridico pelo principio clinico, que passa a ser ex assimilado « um supremacismo, doravante aviltado nos r igimes democriticos. As conse- Be quéncias se fazem sentir desde jd, Para dar um tinico exemplo recente, a lei adotada estc de ano pelo Parlamento francés estipula que qualquer reserva, reticéncia, modulagao feita a ac pedico de um sujeito ~ sujeito de direito ~ de uma transicdio de género, tal como se diz bi sera doravante constituida como delito, Foi necessiria a intervencao das instancias da ct Escola da Causa Freudiana para que a Assembleia Nacional ¢ © Senado homologusserr in duas emendas fundamentando uma excecio para as terapeutas, desde que suas propo pr sicdcs demonstrem prudéncia, convidem a reflexdo © no contrariem a benevoléncia € “ © respeito que se impdem diante do que chamei de livre escolha de seu estilo de vida. a Um politico francés propoe, hoje inclusive, que a mudanea de sexo seja introduzida na € Constituicao francesa e reconhecida como um direito humano fundamental, até entio a negligenciado. Nessas condigdes, 0 aforismo formukido por Lacan em 1978 € entendido como pi perfeitamente conectado com Zeitgeist, com 0 espitito da época, No entanto, nessa via pi teria sido melhor dizer: Todo mundo é normal. di Um duplo paradoxo > A formula Todo mundo é louco, com letada no texto de Lacan com um “ou seja, deliramte”, nao deixa de fazer ressoar, porém, algum ruido. De fato, a imputagao de loucura e de delirio decorre também da clinica. Seria validar, ao que parece, © fim da clinica, mas em termos que pertencem & clinica, Ora, esse nao € 0 tinico paradoxo intro: duzido por esse aforismo, Com efeito, Todo mundo é louco, quem diz isso? $6 pode ser si ) Jouco. Sua proposicio €, portanto, um delitio. Como universal, é 0 decalque exato do n dito de Epiménides, enunciado no singular por um Bu (Jo), a saber, £u minio (Je mens) n Este duplo paradoxo ¢ suscetivel de fazer suspeitar que hd, no aforismo em questo, algc “ mais ¢ talvez diferente ca validacao da dita ‘despatologizagio is Reconhego que, difundindo este aforismo, cortando-o de seu contexto eseritu- ristico, elevando-o ou rebaixando-o a qualidade de um slogan - oh, quanto é ef ~, eu, sem diivida, favoreci um mal-entendido que deve ser corrigido no momento de 1 fazer dele o tema do nosso proximo Congreso. Nada mais simples: basta ressituitlo no contexto deste breve escrito do qual 0 extrai ao que me dedicarei sob a forma inevita- E velmente abreviada exigida pela fungao de encerramento que determina meu dever aqui A Lacaniana a 85 10 Dezembro COE Dialética a favor da clinica Antes de me dedicar a este trabalho de recontextualizacao indico, em um breve excurso, como se poderia ‘salvar a clinica’ a despeito de qualquer despatologizacd Bastaria recorrer & dialética do Mons enhor Dupanloup, ajustada para acalmar os arc daqueles que, na Igrcja, se insurgiam contra as proscrigdes concementes ao progresso. ao liberalismo ¢ & civilizacdo moderna articulados no Spilabus do Papa Pio IX. O astuto bispo, porta-voz da corrente liberal, procede distinguindo dois niveis: aquele que ele ois, abaixo disso, ele chama de tese, onde o principio € afirmado como absoluto; de a 0 relative, O inscreve a hipctese (no sentido daquilo que estéi sob a tese), onde triui principio, embora absoluto em seu nivel, permite que se abra um espaco para mod Bes, certamente subordinadas, mas nas quais sio levacas em conta as circunstncias, © que € oportuno € 0 que niio 0 €, as necessidades da operatividade ete. Assim, 6 al © 0 relativo, longe de se contradizer, coexistem como bons viziahos, com a condicio de que se estabeleca uma hierarquia entre os dois termos, » dese Para nos servimos dessa dialética: a tese como absoluto corresponderia parecimento de toda patologia ao igualitarismo pds-clinico, Todavia, no interesse do piblico, para fazer frente A desordem € aié mesmio as destruicbes que a aplicacdo cogs a de acarretar, as distingdes da clinica seriam conserva do principio absoluto nao deixe onciliaria 0 das no nivel subordinado da hipétese. Pu me permito observar que isto re ponto de vista dos meus colegas Dominique Laurent ¢ Francois Leguil® com 0 meu ~ tese para mim, hipétese para eles. © que nao se ensina Depois dessa digressdo, minha primeira observagao, ou retificacao, sera das ma simples; contento-me em levar em conta a frase que se segue imediatamente ao “Todo mundo € louco, ou seja, delirante”, Esta frase € a seguinte: “F isso mesmo que se de monstra no primeiro passo rumo ao ensino™, Aqui, nada de despatologizacio, mas um paixamento, uma destituicdo e, por que nao, uma desconstrugao do que € © ensino isto pode parecer surpreendente da parte de um sujeito que por muito tempo celebrou a artir de seu ensino posicao de professor € que falava, ele prdprio, a De fato, 0 que, segundo Lacan ~ 0 ultimissimo Lacan, 0 além-Lacan —, se demons: tra assim sendo que ensinar é uma loucura, que o ensino é um delitio? Deste modo, 0 feroz 4 fungio do ensino. forismo em questo se inscreve no Ambito de uma criti Essa critica feroz — mente clinica ~ enquadra o aforismo acrescentaria eu, prop! mundo € louco". Relendo 0 que o precede no texto, pereehe-se que, desde o inicio, ‘rat -se dle uma critica, ndo da clinica, mas, sim, ce todo ensino, A partir dai, ouve-se 0 slo q gan como enunciando: “E preciso ser louco para ensinar, quem ensina delira’. A primeira u strutura de todo ensino, ¢ . © que preocupa Lacan €, a0 que parece, a Curiosa maneira de defender o Departamento de Psicanilise - qu ele encorajou cuja existéncia sempre sustentou ~ ao desvalorizar o ensino e, muito particularmente, 0 da psicanilise, escrevendo que “o discurso analitico nao € matéria de ensino’, E por que t nao & Quais sdo as raz6es alegadas por Lacan para combater assim a funcao do ensino? ‘ Fm primeiro lugar, o discurso analitico, diferentemente dos trés outros construidos € por ele, “no ensina nada porque ~ Lacan o enuncia ~ exclui a dominagio”. O discurso, r analitico nfo € o discurso do mesize que é por exceléncia, discurso da dominacio, dado que este se estabelece sob o indiscutivel de um significante-mestre. O discurso do mestre ensina 0 que € um saber, ou seja, que o saber é sempre servo de um significante- U mestre ~ isto no € desmentico pelas condicdes de nascimemto da Universidade, que ¢ adamente na época de Carlos Magno, O discurso analitico pode ser situado aprox €, tampouco, um discurso universitirio, que instala um saber no lugar dominante, que < permite e até mesmo exige 0 cnsino. O discurso universitario &, por exceléneia, discurso \ do ensino, Por fim, o discurso da histérica faz do sujeito o mestre do mestre; cle domina < © dominador e, ao fazé-lo, 0 poe a trabalho, o de produzir um saber. Fle nao é 0 saber servo do mestre, menos ainda o saber-mesize. Eo discurso que impele A invencio do dade estrutural do discurso da histérica com saber, tanto assim que Lacan enfatiza a afi © da ciéncia. © discurso analitico, também cle comporta o lugar da dominagio ~ no canto superior esquerdo dos esquemas de Lacan. No entanto, esse lugar & ecupado por um elemento que nio ¢ feito para dominar, comandar, submeter, mas para causar 0 desejo: 0 que Lacan chama de objeto a. O objeto a, causa do desejo, digo eu, uma ver que, preci: samente, o desejo nao se deixa dominar, € insubmisso a todo comand, ludibria ¢ troca dele, Onde esta o saber nesse discurso? Fle esti na posigdo de nunca ser sendo suposto —€ nao explicito -, a diferenca do discurso universitério, Nunca sendo senao suposto, € como um sub-posto (sous-posé) que cle sustenta @ instncia da cau © analista se faz o semblante, Aqui, nada de ensino, o que nao impede que seja possivel ase de um saber sem valor eventualmente, aprender com ele (en enseigner), mas Ge ensino, sem ordem, nem coeréneia, nem sistema, um saber que se deve a encontros alealorios, sem lei, Portanto, © discurso analitico no domina. F, em particular, ele no domina seu sujeito ~ a ser entendide como voces quiserem ulitico a capacidade Segunda razao alegada por Lacan para recusar ao discurso de ser matéria de ensino: ‘ele nao tem nada de universal’. De fato, ele nao é de forma inbo (Un-tout-seul). § alguma ‘para todos. Ele € digamos, para um s6, para o Une-soz para ele sozinho que a interpretagao pode dar lugar a um saber, o qual desvanece assim Opciio Lacaniana n° 85 2 Dezentbr: CE que voce pretende universulizi-lo, fazé-lo valer para te m, ento, explicar a im grande publico 0 efeito sensacional de uma interpretagao: isso apenas realcard seu carter banal, ou bem discutive Introduzo aqui Uma modulacio. Lacan nao diz que a psicandlise nde poderia ser atéria de ensino, mas, site liscurso analitico nao poderia sé-lo, ou seja, grosso jue o odo, a pritica da psicandlise. Ademais, ha, ao lado, as teorias da psicandlise, s t6ria, bem como os debates suscitados por ela e que se depositam, Uma vez entencida & essa partilha, essa divisdo entre pratica teoria da psicandlise, nao ha, aqui, nenhuma E F 1! esenca da psicandlise na Universidade refutagdo do Departamento de Psican: Ao contrario, hd uma restrico que abre ¢ libera um campo: a prittica da psicanilise n&o se ensina, no maximo, ela é supervisionada, ocasionalmente, a cada vez € concernent » se deixa levar ao universal, mas que se pode elevar, quando um caso singulaz, que nik cle se presta a isto, a dig adigma, nidade do p: Trata-se, portanto, de uma adverténcia de Lacan para com seus alunos. Saiban nente € fac Jo que hes for ensinado sobre a psicandl c mn saber que versidade Ihes permitird, a vocés, fazerem 2 economia de uma psicandlise, Serd preciso, como indica abertura dos Escritos, “colocar & ®, pagar com a sua pessoa ¢ isso, como algo muito diferente de um aluno, a saber, como analisante Do impossivel ao necessirio Ordeno a sequéncia do meu discurso de encerramento, que é mais o de uma aber- A f tura, ate Jo-me a esse texto de Lacan €, antes de tudo, a frase que fiz colocar na capa de seus pequenos escritos reunides na coletinea intitulada “Paradoxos”. E com 0 terceiro » fazer p dos paradoxos desse texto que comega o segundo pariigeafo: “Ce © que nao se ensina? Nac que, aqui, ele passa do im nsmuta um impossivel em um real, Digamo’ € a primeira vez que Lacan tran ossivel a0 necessirio. O que € impossivel ensinar, ndo obs inte, como ensiné-lo? De fato, apesar de ser impossivel ensinar, isso, no entanto. ¢ nat © distinguir ensinar € ensinar, ou seja, para reto! necessdrio. Sera precise, pr ; termo de Bertrand Russell, “estratificar’ os dois termos. Ha 0 ensinar considerado lado do impossivel ¢ 0 ensinar do lado do necessario. De um ao outro, certamente € problematico Esta passagem nao € para todos. Lacan deixa entender que elt nao concerne 'S, mas a wm, a saber, Freud, A frase seguinte 0 convoca: “Foi por ai que Freud ca 4 to minhou’. Aqui, ha um privilégio: Freud, o primeiro © por muito tempo, tinha o encargo de ensinar © que no se ensina, ou seja, a praitica da psicandlise. E ele 0 fez pagando Opti Lacaniana n° 85 B Dezembn i a com sua pessoa, Na Traumdeutung, ele apresenta muitos de seus sonh 1s € nunca recua em recorter as suas proprias formacées do inconsciente para fazer avancar a psicandlise, Ora, 0 que vale para ele nao vale para todos: Mas, diria eu, vale também para Lacan, Nao € possivel que ele nao tenha pensa- do em si mesmo. Ele porém, nao o diz, Talvez este seja o tinico caso em que ele da provas de modéstia, uma vez que ele nao era propenso a isso, Dado que Lacan foi um reformador da pritica analitica, isto certamente vale para ele também, embora tenh: se defendido disso dizendo que os tragos por meio dos quais sua pritica se distingue $6 valem para cle mesmo, Imiti-lo ou nao, é da responsabilidade de cada um, Ele, no entanto, em certa ocasido, fez uma doutrina da duragao variivel da sesso, mas ndo de sua brevidade. Haveria muito a dizer aqui, 0 que nao farei agora, pois realcarei a frase seguinte onde figura nosso aforismo “Tudo nao passa de sonho (Rien n'est que réve)” Aqui esté ela: “Freud considerou que tudo nao passa de sonho, ¢ que todo mundo (se tal expressao pode ser dita) ~ de fato, é universal, contrariamente ao que ele afirma anteriormente -, todo mundo € louco, ou seja, delirante’. As teses concentradas nes frase, concernem, 2 um 6 tempo, ao sonho, & loucura e ao delirio, Blas demandam ur ana Freud, Assim, € antes desdobramento, Deve-se notar que elas sio atribuidas, por Li de mais nada as obras de Freud que recorrerei para esclarecer essa frase, onde tod metapsicologia e toda a clinica esto em jogo. Notem que, em Lacan, as sessGes nao si » as Uinicas a serem curtas, © até mesmo L tracurtas. Seus escritos estio sempre sob tensio, uma tensio incessantemente cm mov mento ~ ora ele fiz rodeios, associa, vagueia, ora seu discurso se condensa brascamente € dispara uma flecha implacavel que fulgura. E 0 caso dessa frase ~ s6 que, nesse breve escrito, tudo é magro, despojado, reduzido ao osso. Comecemos com a proposi¢ao: “tudo nao passa de sonho”. Frase de tirar o folego. zuntamo-nos se foi Lacan quem pode escrever isso, quando, em um Semindrio, ele se cf 10 célebre titulo da pega de Calderén, La Vie est un songe, para negar a tese que ela contém e invalidé-la, no que diz respeito ao discurso analitico. Se tudo € sonho, 0 que € ore entido Devemos chegar a enunciar: “nada € real” (rien mest réef) (real no de Lacan)? © real é apenas ilusio, fico, até mesmo delirio? Afina U, por que nao? Aqui sio evocadas proposigdes de Lacan que sempre foram consideradas enig ticas. Na primeira licao do Semindrio: O sinthoma, Li ‘A aponta a homogeneidade do maginirio © do real, que ele propde fundamentar-se na estrutura bindria do numero, mies de cer referéncia a teoria de Cantor ~ que encontramos, por outro lado, na se- ‘pean Lacaniana a 85 4 i i ‘ i : yuencia desse texto cuja composiclo analiso de perto. Isso certamente homogéneo a0 sob a forma “tudo ndo passa de sonho”. A homogeneidade imaginario-rea Tudo se pass & completada pela noacdo de que “o simbolo remete ao imaginério mente, & teoria dos como se, no que concerne 3 matematica evocada por ele €, precisa slic fossem reabsorvidos no imagindrio. conjuntos, tanto 0 real quanto « firmagio de que “tudo nao Nao precisamos disso para que scja fundamentada passa de sonho”? Essa supremacia do imaginario é, cla 1 condiga0 sine qua non para que se possa dizer “tudo nao passa de sonho”, Lacan iniciou o que deve se chamado de seu ensino acentuande a pr ia do imagindrio, por exemplo, em *O {0 cuja promogio Lacan garantiria a© gi a de seu discurso? Isto nao dei estidio do espelho..”. Nao seria também o im ia de ser satisfatcrio para a mente que final da uajeto 2ixo esse tema em Suspenso aprecia que o discurso se feche sobre si mesmo, Todavia, ds utilizando um estilo interrogativo além do condicional, Invencao do real proposigaio de Lacan encontra-se na lige IX do jo esse fio, uma segun Segu mesmo Semindrio, Ele ressalt 4, aqui, que se afasta de Freud, Com efeito, dia ele: “(.) a insvincia do saber renovada por Freud, quero dizer renovada sob a forma do inconscien te, no supde obrigatoriamente de modo algum o real de que me sirvo"®, Retenho dessa aan, a teoria freudiana do inconsciente nao supde 0 real ¢ proposicio que, segundo 1: que ela poderia sustentar-se sem o real, © real em funcao no discurso analitice é invengio dele, ele é ~ indica Lacan ~ sua yeagdo” a articulacao freudiana do inconsciente: cle reage a esta articulagao inventando al a ser apenas sua “resposta sintomatica ine o real, Lacan chega a reduzir 0 1 Ciente freudiano. Isso implica em retirar desse termo toda pretensio ao universal, reduy Jo ao sintoma do um-sozinho, Ha muito a dizer, aqui, mas vou abreviar de que a teoria de Freud nao supde o real. Sim, sem duvida, memos & ideia aiticula que alguma coisa opera, permitindo ao sujeito discriminar ~ digamos Jetalhes — entre sonho ov alucinagio, por um lado, ¢ realidade, por outro Substituir sem revogar Freud variou muito sobre o estatuto deste aparelho, deste dispositive nomeado por cle de Realitdispriifimg, o teste de realidade, como foi traduzido. Formular, como faz Lacan, que “tudo nao passa de sonho", € desdenhar do teste da realidacle. F amputar Lrcaniana n® 85 15 Teoria freudiana de um termo que, no entanto, parece essencial e assim € considera pelos psicanalistas, Que impudéncia nadificar o teste de realidade ¢, além do ma is, imputar isso a Freud! No entanto, a teoria freudiana nao € to clara que nao se possa discriminar, atra- vés de sua obra, 0 que sem: ntém e o que se descarta qua nlo a esse ponto, Hi espaco para uma escolha na obra de Freud ~ que nfo é o jardim francesa plantado por Lacan mas, do contrario, uma selva. Le n escolhe enfatizar em Freud 0 que relativiza, até mes mo toma ilus6ria a propria nogio de teste de realidade. A questo € apaixonante pa um analista, s6 posso aborcla, aqui, em curto-cireuito. Por essa razao, irei imediatamente ao breve ¢ magistral texto de Freud intitulado al’, con- Formulagdes sobre os dois principios do funcionamento psiquico” - ou “mer forme primeiro, tulo Vi 1 traduciio ~ de 1911, deixando de lado dois textos que o precedem no famoso em “Projeto para uma Psicologia Cientifica”, de 1895; 0 segundo, da Traumdeutung. Tambem deixo de lado 0 texto escrito trés anos mais tarde sobre a metapsicologia dos sonhos, onde ele enuncia ~ ercio que pela primeira vez, como aponta James Strachey, o admiravel tradutor de toda a obra de Freud para o inglés ~ que ou’ é a sede do teste de realidade (ele também anora isso em scu escrito sobre a Verein ng) Freud introduziu o termo teste de realidade, pela primeira vez, em “Formulagées sobre os dois principios...” , mas foi para logo aotar que os processos inconscientes zombam do teste de realidade, sio impermeéveis 4 sua acio. Em primeiro lugar, 0 texto visa a articular a relagio entre © principio de prazer € © principio de realidade. Detenhamo-nos na tese de Freud segundo a qual © aconte ico € a Hinset mento decisive no desenvolvimento psiq) ng, a instauracho do principio de realidade, que constituiria um progresso da mais alta importancia: © principio de realidade substitu 0 que era agraddvel, buscado sob império do principio de prazer um Jusigewinn, um ganho de prazer, um matis-de-gozar. Temos, aqui, a satisfacao de reencontrar, em psicandlise, um dos esquemas mais tradicionais, segundo 0 qual crescer alcancar a maturidade implica renuneiar ao prizer para confrontar-se com a dura reali- dade. Acabou 0 riso! No entanto, como jf foi observado, 0 inconsciente nie conhece « teste de realidade Acrescente-se a isto uma notacao essencial de Freud, que vem matizar, ¢ até mes- mo contradizer a ideia de um € simples do primeiro principio pelo que 3 substituigio do principio de prazer pelo principio de realidade implica deposicao, re ibstituigao pur segundo. O proprio Freud matiza sia proposicio: estartamos errados em pensa radu vogagio, destituigao (Absetzimg, em alemio). Ketivamente ~ termo pelo qua 720 palavra Wirklicbkeit =, essa substituicao permite, ao coutrario, diz Freud, “a preservaccic a salvaguarcla do prineipio de prazer Em outras palavras, parodiando uma frase famosa de Clausewitz, a substituicio 16 Deeem k i f convenes permite o prosseguimento do principio do prazer por meio do principio da realidade. O jue se trata cle obter por meio do principio do prazer, € depois pelo principio de reali de é sempre, o Lusigewinn, segundo 0 termo por veres empregado por Freud ¢ que tre duziremos por esta expressio de Lacan: 0 mais-de-gozar. E este se revela, para retoma. validade gota, uma formula de Lacan, “impossivel de negativizar” pelo principio da Sonho e loucura Em curto-circuito, digamos que se escolhermos privilegiar essa perspectiva, € no ado do sonhador € indestrut a do dito teste de realidade, demonstramos em qué o es vel, que o despertar € apenas uma ilustio. Acordar é continuar a sonhar com os olhos abertos. Nessc sentido, de fato, “tudo nao passa de sonho", Para Freud, 0 delitio pertence a mesma classe de fendmenos psiquicos que 0 sonho, Isso € enunciado no prefiicio d primeira edigao da Traumdentung: “o sonho € © primeiro elemento de uma classe de S, Cujos outros membros slo as fobias, as obsessdes © os fendmenos psiquicos anorn pias histéricas © as obsesses n delirios’, Seria preciso saber por que ele insere as fe mesmo capitulo, Ainda no pensei sobre esta questio. Além disso, no capitulo da Traumdeutung intitulado *Relagdes entre sonhos ¢ doencas mentais’, Freud trata sonho € loucura em pé de igualdade. Nés o vemos citar filésofos em apoio 2 sua tese. Nao é seu costume fazer isso, Seria preciso recensear ¢ aparecimento de fildsofos em scu texto. E extremamente raro, Pois bem, ali, ele cita Kant: °O ke tese freudiana -; depois, Schopenhauer, dizendo que © sonho é uma breve loucura € 10 € alguém que sonha no estado de vigilia” — 0 que é verdadeiramente uma Joucura um sonho prolongado. universal ¢ a loucura nte © sonho como fendme Devemos distinguir severam os distinguiss que acomete apenas alguns? O senso comu: nos, que aii 0% pstaria que e ver entre os dais introcluzissemos na mesma classe, No entanto, € proprio da psicandlis ra rete Ar aproxinat apenas diferencas de qualidade ¢ nao diferencas de natureza, ambault, evocada ontem por F, Leguil. E préprie da psicanalis inte a orientacao de Clé uardioes da realidad sses fendmenos em continuidade, 20 paso que cabe aos comum discrimind-los ¢ tragar uma linha intransponivel entre 0 normal ¢ 0 patoldgice. dlongar inde Apesar dos curtos-circuitos pelos quiais tive de me decidir pat lamente este discurso de eacerramento, acredito ter proposto uma orientacio clara para os trabalhos que serio apresentados em nosso proximo Congreso, daqui a dois anos Traduca: Vera Avelar Ribeiro Revisdo: Marcus André Veit 7 Dezembro 2 ‘Opeae Lacaniana n Notas Apresentagio pucixime Congeesso da AMP. que aconteser em Paris, sta interven foi pronun iio Virtual Inemacional da AMP — A naalber nit existe, em 3 de abril d 2 ileoconterencia wi pe ¢ Herve Damas, assim come com a conta ala Wojnarowisk. Texto na relido pelo autor 2 incennes!”, Corel, Tscola Bravia de Psicanise, 6533 4 O08), "A agressvidade em psicandlse” In Bsertos. Ri 2 sponta o lugeré epoca, ¢ 8 por J-A. Miller para espe eta" (CEM Nota ps ToL ro TER, p.209). fel structure & la logique» & Leguil,F.’tomanie dep ven publicadas nesse mesmo mimero de ba Cause du des wan, J (abel, 2010). Op 8 CF Lacan, J (1994) “Abertura desta coletines’ In Escrfos. Op. eit, pr peo Lacaniana n° 85. 18 Dezembro OPCAO LACANIANA Revista Brasileira Internacional de Psicanalise {lain Miller Todo mundo é louco — AMP 2024 Oito pontuacgées sobre a crise do pa OPCAO LACANIANA ( ISSN 1519-3128 acional Opctio Lacaniana & uma revista psicanalitica brasileira in Edi Rua Albuquerque Lins 9 la por Edligoes Bolia 12/212 01230-000 Colaboragao: Fundacao do Campo Freudiano € Associacio Mundial de Psicandlise Acordos com “La Lettre Mensuelle” da Ecole de Ja Cause freuclienne Integra a rede Scilicet III que retine ao lado de Ornicar? as seguintes publicacdes: Clique, Belo Horizonte; Cuadernos de Psicoandlisis, Bilbao; Fl Psicoandlisis, Madrid; Freudiana, Barcelona; La Cause Freudiene, Paris La Psicoanalisi, Roma, La Psychanalyse, Atenas; Mental, Paris-Bruxe Opeao Lacaniana, Sio Paulo; Quarto, Bruxelas FUNDADORES: Antonio Beneti, Angelina Tarari, Bernardino Home, Luiz Henrique Vidigal DIRETOR: Jacques-Alain Miller EDITORA: Angelina Harari COORDENAGAO: ‘Teresinha N, Meirelles do Prade COLABORAGOES: Guilherme Beheche (Traducdo do espanbol), Pacl (Traducdo do espanbol), Teresinha N. Meirelles do Prado (Distribuicdo e Revistio Técnica) Thales Prado (Resumos ¢ Abstracts) DIAGRAMACKO: Angela Mendes e Fabiane Daniels IMAGEM DA CAPA: Monotipia sobre chapa de aluminio com cabelos, Crédito: Arthur Amador Os colegas que desejarem receber Opedio Lacaniana por correio ou desejarem difundi-la, podem dirigir-se a com Redacao pelo e-mail oplacaniana@gy OPCAO LACANIANA Revista Brasileira Internacional de Psicandlise 85 EDITORIAIS Ana Lydia Santiago, A psicanalise virtual, 3 Silvia Salman, & crescente decomposicao do discurso analitico, 5 ORIENTACAO LACANIANA Jacques-Alain Miller: Todo mundo é louco - AMP 2024, 8 ito pontuacdes sobre a crise do passe, 19 Conversagao entre Buenos Aires ¢ Paris em torno de Lacan hispano, 27 Encontro com Christine Angot, 43 PSICANALISE REMOTA... Luciana Silviano Brandao, §. possivel andlise on-linc?, 61 Romulo Ferreira, A psicanalise virtual, 63 Paula Borsoi, Psicandlise online: analista suporte do tropeco, 68 Henri Kaufmanner, Meta andlise?, 73

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