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Fevereiro 2022 84
ENTREVISTAS PRELIMINARES NA CLÍNICA
PSICANALITICA COM CRIANÇAS*
Guy TROBAS (PARIS)
guy. trobas@freefr
• cantes da criança sujeito. Isto se dá somente se, a propósito de algo que a perturba,
- que a faz sofrer, a criança inclua este algo nos significantes que a representam como
sujeito, quer dizer, em sua própria fala. Esta operação subjetiva substitui o universal
pela particularidade e abre a possibilidade de substituir a demanda inicial do Outro
que se apresenta, em geral, como uma necessidade, por urna demanda do sujeito como
• ___________ tal. Aqui temos uma primeira orientação nas entrevistas preliminares com as crianças.
• _________
Agora a questão da demanda. Este ponto é, evidentemente, essencial, já que se
trata, como com um adulto, de amarrar o sintoma com a demanda. Mais precisamen-
te, trata-se de que a criança assuma, reconheça seu mal-estar, seu sofrimento, para
empurrá-la, não somente para uma queixa, mas a uma demanda dirigida a um analista,
também este particular.
Aqui devemos dissolver uma ambiguidade. Quando falamos da demanda de uma
- criança, isto não quer dizer que seria uma demanda específica, quer dizer, diferente
da do adolescente ou do adulto. A demanda, tal como Lacan introduziu esse conceito,
distinguindo-o da necessidade e do desejo, e com seus dois níveis, do enunciado e da
enunciação, é sempre demanda de um sujeito. E precisar, como disse Lacan, que o dito
sujeito é uma criança, já é um preconceito.
É este preconceito que pode deslizar até o ponto de alguém se dizer 'psicanalista
de crianças'. Mais amplamente, se consideramos com Lacan que o que constitui a es-
pecificidade do psicanalista é, como disse, ser um "praticante da demanda", existe uma
possibilidade de degradação da essência da psicanálise ao apresentar-se como especia-
lista deste ou daquele objeto da clínica. Esta possibilidade não é imaginária e responde
a uma pressão, uma exigência do mercado da saúde mental. Temos exemplos!
Voltemos ao 'psicanalista de crianças'. Esta "especialidade" coloca um problema
na prática com crianças. O de introduzir um limite a priori no trabalho com o Outro
que sustenta uma demanda para seu filho. Com efeito, pode ocorrer, primeiro, que
é pertinente, até necessário, incluir este Outro no dispositivo que vamos propor para
avançar no tratamento da criança; e, segundo, que o desepvolvimento de sua demanda,
inicialmente para seu filho ou sua filha, desemboque em uma demanda para si mesmo.
Isto não é raro, se deixarmos a porta aberta para explorar, circunscrever a demanda do
Outro. E então, o que faz o psicanalista de crianças com esta transferência do adulto?
Sigamos um pouco mais com o tema da demanda. Parece-me importante assi-
nalar aqui que a estruturação da demanda do sujeito, o modo como está articulada
no registro dos significantes do Outro e articulável na função da palavra, é algo que
já se elabora, e com todas as suas determinações para o futuro, nos primeiros anos
da infância. De certa forma, isto verifica o que Freud disse ao retomar do poeta
Wordsworth, que "a criança é o pai do homem". A dialética da demanda, para todo
sujeito, fica determinada por suas modalidades infantis e, é claro, o que comprovamos
na psicanálise com qualquer adulto no movimento da regressão tópica - cada deman-
da, como enunciação, remete a uma demanda que atuou em sua infância e que se
articulou com um objeto pulsional.
O que podemos deduzir disso? Podemos deduzir que é possível fazer emergir a
demanda de uma criança,para além de um "sim" formal e de conveniência, sob a pres-
são do Outro que demanda. Para isso, é preciso levar em conta uma pequena inversão:
enquanto a demanda do adulto torna analítico o seu sintoma, quando estabelece seu
interlocutor analista em posição de sujeito suposto saber, o que, como assinalou Lacan,
suscita seu amor na criança, a minha hipótese é que é seu amor que a empurra a colo-
car o analista nessa posição. É um ponto no qual o analista deve prestar atenção, quer
dizer, prestar atenção aos significantes que assinalam este afeto positivo.
Tenho aqui um belo caso sobre isso. Um colega, que trabalha em uma instituição,
se queixa do seguinte: "com essa criança nada acontece nas entrevistas - fala pouco,
somente de coisas corriqueiras de sua atualidade e de uma maneira neutra, descritiva".
Este colega se ausenta de férias, duas semanas, sem informar a criança. Quando volta,
encontra com ela em um corredor e é interpelado: "não te vi nas semanas passadas.
Por que estiveste ausente? Eu te procurei e tinha coisas para te contar". Aqui está sua
demanda, de forma implícita.
É verdade que a demanda de uma criança pode se expressar de um modo mais
ou menos evidente e, por isso, não devemos confundir a relativa incompletude das
funções de seu eu com a do sujeito. Isto coloca o tema de alguns possíveis preconcei-
tos do analista, que podem se apresentar como obstáculos em sua escuta e restringir
este pleno estatuto de sujeito à criança. É algo que se observa, com certa reserva,
em relação à função da palavra. Por exemplo, não diria bem o que quer dizer, sua
palavra não se apresenta com o mesmo grau de confiabilidade que a do adulto e, a
famosa "verdade que sai da boca da criança", seria alvo de um juízo. É, provavelmen-
Por isso, estou muito atento à transferência deste Outro e me oponho a certa orientação
da prática que considera que o consultório é um lugar, um território que deve estar fe-
chado para os pais.
Eu dizia "tratamento eventual da criança". Por quê? Porque pode ocorrer que esta
entrevista ou várias entrevistas com o Outro da demanda desemboquem na não necessi-
dade de receber a criança. Pelo menos, tenho a experiência disso, em particular no caso
- de certa maneira, não tão complexo, como diz Lacan - no qual o sintoma da criança
resulta claramente de um efeito direto da angústia massiva dos pais ou de um deles. O
que acontece neste caso, de modo surpreendente, é o aplacamento ou até o desapare-
cimento deste ou daquele transtorno, na medida em que as defesas do sujeito contra a
intensidade da angústia do Outro, já não se fazem tão necessárias.
Esse modo de praticar pode encontrar uma objeção: a de induzir a culpabili-
dade dos pais. É uma objeção que tem raízes objetivas. É verdade' que os analistas
raciocinando, ainda, segundo a lei de causa e efeito, puderam atuar nesta direção, às
vezes de modo selvagem, alimentando essa crítica bastante comum. Entretanto, estas
práticas denunciadas com razão, ocultam a verdadeira questão em jogo. De fato, exis-
te, em primeiro lugar, com raras exceções, uma culpabilidade estrutural em cada um.
Segundo, esta culpabilidade existe quase sempre com relação aos filhos e, terceiro,
esta culpabilidade está em jogo a cada vez que um dos pais se encontra, em relação a
um interlocutor, em uma posição que supostamente implicaria numa apreciação, um
juízo relativo ao seu amor, seu cuidado e até à educação do seu filho. Não é raro, na
clínica, observar que esta culpabilidade se traduz em vários signos de ambivalência e
transferência negativa. Obviamente, temos que levar em conta este registro estrutural
da culpabilidade. Tê-lo em conta não é somente um convite, uma incitaão à benevo-
lência, mas também a uma lógica doutrinal e a uma ética, para que essa benevolência
pareça autêntica. O que quero dizer?
Primeiro, que deduzo de nossa doutrina lacaniana da causa o seguinte: o laço dire-
to na lei da causa e efeito é, em nosso campo da subjetividade, um espelhismo cientificis-
ta simplificador que nos leva a deduzir um ou outro sintoma da criança a partir de certo
perfil psicológico de algum membro da família. Segundo, que nossa ética, deduzida do
"impossível de educar", supõe nos distanciarmos do preconceito de uma educação ideal
e, por consequência, do modo de amar que conviria ou não a uma criança.
Para concluir: fazer obstáculo à disjunção que acabamos de invocar, implica tratá-
-la. Isto tem uma consequência lógica forte para nós: dar a si mesmo, quando praticamos
a psicanálise com crianças, uma grande liberdade de princípio para elaborar a modaliza-
ção da resposta ao Outro que demanda. Uma demanda deve ficar como uma demanda e
não se tornar uma exigência à qual daríamos uma resposta automática. É essa liberdade
da modalização de nosso discurso que implica a consequência técnica que nos habitu-
Notas
* Conferência ministrada em 30/04/19 em Florianópolis, promovida pelo Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação
Lacaniana de Santa Catarina, seguida de conversação clínica sob a responsabilidade do Pandorga - Núcleo de Pesquisa
e Investigação Clínica de Psicanálise com Crianças.
1. Lacan, J. (2003). "Nota sobre a criança". In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p369.
2. Ibid., p.369.