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A CLÍNICA EM LACAN E A

FUNÇÃO DO ANALISTA
AULA 6

Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo


CONVERSA INICIAL

Não obstante o retorno que Lacan empreendeu aos fundamentos mais


elementares e constitutivos da doutrina freudiana, sua leitura minuciosa dos
textos de Freud e sua insistência em ser freudiano, o fato é que o ensino de
Lacan não é uma “continuação” da obra de Freud, ou apenas uma atualização
dela. O psicanalista francês não apenas conectou a psicanálise freudiana com
os desenvolvimentos científicos de sua época, como a Linguística, a Lógica e a
Topologia, a Matemática, mas introduziu conceitos próprios, como o de objeto a,
e promoveu algumas outras torções conceituais de magnitudes, muitas vezes,
despercebidas pelos próprios lacanianos que o sucederam.
É comum que se empreenda uma leitura de Freud a partir de Lacan, em
que se veja nos textos freudianos aquilo que Lacan soube ler de Freud, ou seja,
pode-se fazer leituras lacanianas da obra de Freud. O fato é que os textos
freudianos, na sua monumental riqueza e complexidade, possibilitaram que
Lacan, munido de outras ferramentas conceituais, oriundas de outras ciências e
já em outro momento, pudesse desenvolvê-los. Desenvolvimento que, por óbvio,
implica em transformações.
Ao longo do nosso estudo, fizemos uma aproximação de conceitos
lacanianos, sem nos ater a uma exposição exaustiva do percurso teórico
empreendido por Lacan, tampouco na discussão das transformações pelas quais
esses conceitos passaram, isto é, sobre seu desenvolvimento e nuances. Nosso
objetivo foi de nos aproximarmos de algumas das noções mais elementares que
essa clínica implica, mais especificamente no que diz respeito à função do
analista.
Seguindo ainda nessa linha, iniciaremos este conteúdo pelos três
registros da experiência humana, os registros de simbólico, real e imaginário, de
modo a apresentar o nó borromeu ou borromeano, essa figura topológica que
Lacan extrai da matemática e que nos auxiliará em uma apreensão sobre a
constituição subjetiva.
Situaremos, assim, o registro do real, que indiretamente já abordamos
anteriormente. Seguiremos com o conceito de gozo, extremamente importante
para a clínica lacaniana, e depois com o de nome do pai. Por fim, e já que
estivemos tratando da função do analista no que diz respeito à condução do
tratamento do neurótico, especificamente, situaremos a função do analista em

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relação aos quadros de psicose, sublinhando justamente as diferenças entre as
duas funções.

TEMA 1 – RSI: REAL, SIMBÓLICO E IMAGINÁRIO – O NÓ

Costuma-se explicar que Lacan começou pelo imaginário, depois se ateve ao


registro do simbólico para, ao final de seu ensino, destacar o registro do real, o
que é verdade. Porém, os três registros sempre estiveram presentes em seu
ensino, articulados de diferentes maneiras, até culminarem no seminário de 1974
– 1975, denominado RSI. Lacan extrai seus três registros de Freud, como três
segmentos da imensa obra freudiana, e os propõe entrelaçados como uma nova
tópica, em referência ao nó borromeano. Ele apresenta a noção dos três registros
em 1953, porém na ordem de SIR,

Mais de vinte anos depois dessa conferência inaugural, em 1974-75, o


seminário de Lacan foi denominado RSI e nele empenhou-se em fazer
um balanço sobre os desenvolvimentos introduzidos ao longo de todos
esses anos de seminário em torno dessa tripartição: “Freud não tinha
do imaginário, do simbólico e do real a noção que eu tenho... mas,
mesmo assim, tinha uma suspeita deles.... Aliás, a verdade é que pude
extrair meus três [registros] de seu discurso, com tempo e paciência.
Comecei pelo imaginário, depois tive que mastigar a história do
simbólico com essa referência linguística... e acabei por lhes perceber
esse famoso real, sob a própria forma do nó”. (Jorge, 2008, p. 93)

E no que consiste esse nó? Nós já o vimos, brevemente, quando tratamos


do tema do fantasma, da fantasia fundamental inconsciente que estrutura o
sujeito na sua relação com a falta de objeto inerente a pulsão, ou seja, com o
objeto a. Essa primeira abordagem que fizemos já nos adianta algumas noções
importantes em relação ao nó como, por exemplo, a de enodamento de seus
toros, de seus arcos. Vejamos, pois, que uma propriedade fundamental dessa
representação gráfica é o fato de que, ao desligar um dos arcos apenas, os
outros dois também se desatam, de modo que a unidade da estrutura se dá em
função de sua amarração tripartite.

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Figura 1 – Nó borromeano ou borromeu, simplificado

R
S

Os arcos assim entrelaçados constituem uma unidade, porém, uma


unidade precária. Essa unidade pode se desfazer, e refazer, sendo que o próprio
sujeito é o seu tecelão. Assim, desde a teoria do narcisismo freudiana, passando
pelo estádio do espelho, o que Lacan especificava era o registro do imaginário,
para, depois, em seu retorno à Freud, a teoria do significante destacar o
inconsciente estruturado como linguagem, ou seja, o simbólico. Mais ao final de
seu ensino, Lacan pode então sublinhar o real em jogo na estrutura.
Quando destacamos o entrelaçamento dos três arcos quanto à
configuração da fantasia do sujeito, o fizemos sublinhando sua função de
proteger o sujeito da angústia da falta real de objeto. Isso nos possibilita
estabelecer uma noção importante em psicanálise, que é a distinção entre o real
e a realidade. Compreendemos que a realidade é moldada pela fantasia
inconsciente do sujeito, pelas lentes simbólico-imaginárias que visam preencher
a falta de objeto inerente e constitutiva de nosso desejo, respondendo, com isso,
àquela pergunta sobre o “que vuoi?”.
Desta forma, na análise com o neurótico, ao escutar os pontos de
angústia, as ambiguidades significantes, o analista irá franquear essa
amarração, sustentar uma desestruturação aqui e ali, em doses, digamos,
homeopáticas, apontando para a maneira que essas amarrações se deram, para
que possam se refazer. Daí a análise visar o feminino, o real, como dissemos no
final do capítulo anterior, aquilo que está para além das configurações simbólico-
imaginárias do sujeito, dessa significação fálica dada, para engendrar novas
possibilidades de amarração, ou seja, transpassar a fantasia fundamental do
neurótico. Veremos que, no caso do tratamento com sujeitos psicóticos, a
direção do tratamento será diferente, porque essa amarração, justamente, não
se dá da mesma forma que na neurose.
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Com isso, o nó se estrutura em torno mesmo do a, de modo que o real
participa da estrutura de modo central, excêntrico a ela. Ele é o furo em torno do
qual giram os arcos e toda a configuração simbólico-imaginária que estrutura
nossa realidade, a realidade psíquica. Já o real “Ao contrário, [...] é precisamente
aquilo que escapa a esta realidade, o que não se inscreve de nenhum modo pelo
simbólico; ele remete ao traumático, ao inassimilável, ao impossível” (Jorge,
2008, p. 97).

TEMA 2 – O REAL

No primeiro capítulo, vimos que o sujeito do inconsciente ocupa um lugar


de exterioridade em relação ao significante, um lugar de corte que faz dele
indefinido e indefinível, um nem-isso-nem-aquilo. Aproximando um pouco mais
o processo de constituição desse sujeito, vimos então que na operação de
alienação, quando a criança adere ao campo do simbólico, do significante, ela o
faz deixando algo de si, que fica de fora.
Depois, nos detivemos sobre o objeto a, e com a falta que sua noção
representa, que funciona como causa da estrutura do desejo. Uma sucessão de
faltas, portanto, vai sendo delimitada no ensino de Lacan, sempre a apontar para
algo que não se inscreve no campo da linguagem, que não se deixa
significantizar, isto é, não se deixa fotografar pelo imaginário e nem nomear pelo
simbólico.

O inconsciente permanece o coração do ser para alguns, e outros


acreditarão seguir-me ao fazer dele o outro da realidade. A única
maneira de sair disto é colocar que ele é o real, o que não quer dizer
nenhuma realidade. O real na medida em que ele é impossível de dizer,
isto é, na medida em que o real é o impossível, muito simplesmente”.
(Lacan apud Jorge, 2008, p. 97)

Desta forma, o que se pode verificar é que o ensino de Lacan “caminha


no sentido do cerceamento cada vez mais rigoroso da categoria do real” (Jorge,
2008, p. 97). O real será definido como o impossível de dizer, como aquilo que
não cessa de não se escrever (Jorge, 2008, p. 146), ou seja, ele é o traumático,
na medida em que não pode ser assimilado pela disposição simbólico-imaginária
do sujeito, ele não faz sentido, é o nonsense. Contudo, ele será definido como o
núcleo do inconsciente, em torno do qual este gira estruturado como linguagem,
como uma borda, uma espécie de vórtex em torno de um furo. Como o umbigo

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do sonho ao qual se referia Freud, diante do qual as interpretações ficam sempre
aquém.
A ênfase aqui não é a do inconsciente estruturado como uma linguagem,
em uma referência ao simbólico, mas ao inconsciente naquilo que dele não se
pode apreender por meio do simbólico, ao inconsciente enquanto aquilo que se
repete porque não se deixa simbolizar. Esse furo diz respeito aos limites do
simbólico e nos remete à falta constitutiva de objeto da pulsão, tal como vimos
com o conceito de objeto a. Trata-se daquilo que está para além das palavras,
além das possibilidades de assimilação de nosso aparelho psíquico, da
inexistência da relação sexual, já que o ser humano só goza mesmo é de sua
própria fantasia.
De maneira mais palatável, são reais as experiências que o sujeito vive e
que não lhe fazem sentido, que não se conformam àquilo que ele espera, que
desorganizam sua estabilidade psíquica, que não se enquadram em sua
fantasia, que não cabem no seu sonho. O real se dispõe sempre num mais além,
e, por isso, que o articularemos com um conceito lacaniano importante para a
prática clínica dessa vertente e que é o conceito de gozo.

TEMA 3 – O GOZO

O conceito feminino “la jouissance”, ou gozo, se transforma no ensino de


Lacan, como todos os outros. Porém, como também fizemos com os outros,
dentro dos limites das abordagens, o trataremos de forma aproximativa
ressaltando alguns aspectos, mas como uma espécie de fotografia, ou seja, não
trataremos das nuances de seu desenvolvimento ao longo do ensino do autor,
embora elas sejam importantes para o analista que deseja seguir e se aprofundar
nessa vertente.
Costuma-se pensar o gozo como uma satisfação sofrida, ou um
sofrimento prazeroso, isto porque ele tem uma relação com a repetição e com o
real. Ele será articulado por Lacan com a noção freudiana de pulsão de morte e,
por tudo isso, sua delimitação nos aponta, como clínicos, para um índice do real,
daquelas experiências traumáticas e de excesso na economia psíquica de uma
pessoa, ele aparece assim relacionado à angústia e ao objeto, e não se deve
confundi-lo pura e simplesmente com o prazer. O gozo, em geral, está
relacionado com aquilo contra o qual o sujeito se defende, pois trata-se de um
prazer de intensidade traumática, um prazer que se conjuga com o desprazer.
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Para a psicanálise lacaniana, o sujeito não é barrado porque seu primeiro
objeto de desejo é interditado socialmente, como para Freud no Complexo de
Édipo. Ele o é porque o sujeito é referido à própria linguagem que instaura uma
divisão constitutiva. É a lei da linguagem que, como vimos, cinde o sujeito, o
divide, e o gozo se deixa entrever como uma repetição obstinada na tentativa de
atravessar essa barreira, de consumar o incesto, não com a mãe, mas com o
objeto fundamental, cujo protótipo é a mãe. Eliminar, portanto, a falta constitutiva
que a noção de objeto a representa, a falta estrutural, causa do desejo.

Se, por um lado, o abaixamento de tensão inerente ao funcionamento


do princípio de prazer está relacionado ao prazer, por outro lado, o
gozo tem a ver com um “mais-além” do prazer, com a produção do
aumento da tensão. E, como o gozo está intimamente ligado ao corpo
(“para gozar, é preciso um corpo”), Lacan afirma que “a dimensão do
gozo para o corpo é a dimensão da descida rumo à morte”. (Lacan
apud Jorge, 2008, p. 43)

Note-se que o gozo encerra em si uma impossibilidade, um impossível,


daí sua repetição indefinida e a angústia em jogo nela. O gozo é interditado
àquele que fala, nos diz Lacan, e também representa uma incompatibilidade com
o desejo. Vejamos a seguir a simplificação de um esquema que nos é
apresentado pelo psicanalista Marco Antônio Coutinho Jorge, no seu livro
Fundamentos de Psicanálise: de Freud a Lacan – A clínica da fantasia (2010), e
que nos auxiliará para a compreensão do gozo como essa manifestação clínica
que excede o campo do prazer.

desprazer prazer Princípio de prazer


a c

gozo Pulsão de morte / gozo


d

Fonte: esquema elaborado com base em Jorge, 2010, p. 133.

Nesse esquema, o trajeto de ab representa a excitação sexual, isto é, o


aumento de tensão psíquica que uma pulsão instaura demandando descarga e
que é vivido como desprazer. Já o trajeto de bc é o da satisfação sexual, quando
uma pulsão tem sua descarga possibilitada pela ligação com um objeto que lhe

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viabiliza essa descarga. Essa satisfação é vivida como prazer. O ponto c,
portanto, representa o circuito da satisfação possível, sempre parcial, de modo
que o trajeto de abc é, portanto, o da pulsão de vida, daquelas pulsões que se
ligam a um representante psíquico, um significante e, por meio deste, alcançam
satisfação, sob a égide do princípio do prazer.
Já o trajeto de cd representa o mais além da satisfação, do princípio do
prazer, aquela repetição insistente que não se contentou com a satisfação
parcial. Aqui o objeto visado já não é aquele contingente, possível, capaz de
viabilizar uma descarga e uma satisfação parcial, mas o objeto visado pela
pulsão de morte na ânsia de redução de toda excitação psíquica à zero é aquele
que Freud se referiu desde o Projeto para uma psicologia científica, texto de
1895, como das Ding, isto é, A Coisa.
A Coisa, assim maiúscula, que supostamente nos faria completos e
eliminaria toda a falta inerente a estrutura, o objeto perdido do desejo, ou seja,
aquele que não existe nem nunca existiu. Ao definir essa repetição para além do
princípio do prazer, Freud institui o conceito de pulsão de morte, e Lacan o
articulará com o de gozo, como aquilo que não se detém com o prazer possível,
repetindo a falta inerente à pulsão na tentativa de eliminá-la por completo. Como
vimos, essa falta é estrutural e não é passível de eliminação, sendo que sua
extinção corresponderia à morte do sujeito.

TEMA 4 – O NOME DO PAI

O antropólogo Claude Lévi-Strauss identificou que a lei de interdição ao


incesto é, de fato, universal em relação à humanidade, pois está presente em
todos os agrupamentos humanos já conhecidos, de modo que essa primeira
renúncia ao objeto do desejo, corroborando o que Freud havia estabelecido já
antes, configura-se como a via pela qual o homem deixa o registro da natureza
e adentra no mundo da cultura e da civilização.
O conceito de Nome do pai remete, em Lacan, a releitura do complexo de
Édipo freudiano em forma de metáfora, a metáfora paterna, extraindo do drama
de Édipo uma fórmula, uma lógica da estruturação do sujeito e do desejo em
relação às leis da linguagem, isto é, do significante. O nome do pai será a
instauração dessa barra em relação ao gozo, à medida que interdita o objeto
primário do desejo.

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A presença de um pai real já não é mais necessária, posto que o operador
de sua função passa a ser um significante, o significante da falta na mãe que,
como vimos, é o falo. Vejamos: o desejo da criança pela mãe não é interdito por
um pai real, mas por uma falta na própria mãe, isto é, a própria mãe deve estar
submetida à lei do desejo, para que não localize na criança o objeto único de seu
desejo. Assim, ela deseja outras coisas para além do bebê, o que introduz entre
ela e a criança uma mediação, ela poderá, com isso, se ausentar
temporariamente. O reconhecimento dessa falta na mãe, que já vimos com o
conceito de falo, é o que possibilita que a criança inscreva em seu psiquismo
essa falta constitutiva que coloca o desejo humano em marcha.
É ao renunciar a posição de ser o falo da mãe que a criança poderá
deslocar seu desejo para objetos substitutivos, cujo protótipo é o falo do pai. De
ser o falo da mãe, ela passa a querer ter o falo do pai, porque situa nele o objeto
do desejo da mãe e, assim, inaugura-se então o desejo naquilo que ele tem de
metonímico, conforme vimos, ele se desloca de objeto em objeto. O pai odiado
e temido será tomado pela criança, no final do Édipo, como uma figura de
identificação, um Ideal de eu.
A palavra ocupa nesse processo dialético um lugar fundamental, pois ela é
o signo da ausência. Em psicanálise, como vimos, a palavra não visa apenas
representar a coisa ou o significado, pois o significante não é funcional, como
nos lembra Lacan. A palavra, mais do que comunicar, evoca, isto é, presentifica
a ausência. Uma mãe ausente, quando chamada, aparece, como se fosse um
passe de mágica para a criança. Como escreveu Clarice Lispector, a palavra é
o nosso domínio sobre o mundo.
No entanto, para que a criança chame a mãe, demande por ela, para que
a palavra venha a se instalar nessa função invocante, é necessário que antes se
tenha experimentado a ausência dessa mãe. Essa é a experiência do neto de
Freud, por exemplo, que simulava a presença e a ausência da sua mãe num jogo
de carretel, acompanhado pelas palavras Fort–da, no texto Mais além do
princípio do prazer. Trata-se da simbolização da falta, em que a palavra vem se
colocar no lugar do objeto que se ausenta. A simbolização da falta é a entrada
da criança no mundo da linguagem.
O que importa perceber aqui é que essa falta que se transmite é
estruturante, à medida que o primeiro objeto do desejo é relegado à categoria de
impossível, o que possibilita que ele seja indefinidamente deslocado. Ao ser

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substituído, esse primeiro objeto é recalcado, ou seja, funda-se o inconsciente
do neurótico, submetido as leis da linguagem tal como elas estruturam o
inconsciente.
O objeto primeiro, recalcado e abandonado, não será jamais reencontrado
nos objetos substitutivos, o que, como vimos, é a própria noção de desejo. Desta
forma, é que o Nome do pai estabelece uma barra em relação ao gozo, porém,
também aponta com o falo para outras possibilidades, conforme a identificação
com o pai como Ideal de eu. Esse falo servirá como um guia para o sujeito, na
errância de seu desejo.
Na metáfora paterna lacaniana, esse objeto perdido e recalcado, quando
deslocado, traduz-se como a própria relação entre a palavra e a coisa que, como
vimos, com o conceito de significante, jamais será unívoca. O simbólico também
estrutura nossa relação com a realidade, e é justamente esse modo de se
relacionar com a linguagem que possibilita que o sujeito formule uma questão
sobre seu próprio desejo e sobre si mesmo, e a enderece ao Outro, que na
análise vem a ser o analista. Ou seja, é o que viabiliza a transferência do
neurótico com o analista, através do suposto saber, já que há espaço para essa
suposição, à medida que o neurótico não sabe algo de seu desejo.
Lembremos que é justamente em relação à possibilidade de
estabelecimento da transferência que Freud havia situado os maiores entraves
em relação ao tratamento psicanalítico das psicoses. Como sabemos, a neurose
caracteriza-se pelas dúvidas, enquanto as psicoses, pelas certezas. Essa é a
diferença entre os sintomas e os delírios, por exemplo. Os delírios se constituem
como um saber consolidado, uma certeza sobre o desejo do Outro. E já que
estivemos tratando sobre a entrada no mundo da linguagem pela via neurótica,
encerraremos este nosso percurso com algumas breves considerações sobre a
estrutura das psicoses, diante das quais Lacan nos convocou a não recuar.

TEMA 5 – A PSICOSE

Se Freud não tratou de nenhum caso concreto de psicose e admitia


claramente uma impossibilidade do método clássico da psicanálise nesse
sentido, Lacan começou por ela, em sua tese de doutorado, e dedicou todo um
seminário ao tema, o seminário livro 3 – As psicoses, desenvolvendo suas teses
a respeito dessa estrutura clínica até o final de seu ensino.

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Se o mecanismo próprio da neurose é o recalque, como vimos, em que o
sujeito cede em relação ao gozo do objeto primário, em prol do falo paterno, e
inaugura, assim, o deslocamento que caracteriza o desejo humano; o que Lacan
concebe como sendo próprio da psicose é a foraclusão, isto é, a rejeição do
Nome do pai para fora do regime do simbólico. O psicótico é aquele que rejeita
a castração e, consequentemente, sua entrada no mundo da linguagem não tem
essa mediação simbólica do falo, tal como temos visto no caso dos neuróticos.
Um traço bastante interessante de ser notado, por exemplo, no que diz
respeito à eclosão das psicoses, é o fato de que não raro ela coincide com
questões relativas à paternidade, ou a assunção de posições fálicas, por
exemplo, no caso clássico de Schreber, quando alçado à presidência de um
tribunal superior. Essa posição notadamente o convoca a ocupar um lugar para
o qual ele mostra não ter condições simbólicas de assumir, pois lhe falta uma
referência fálica para isso, e a psicose então se desencadeia.
Como não há inscrição simbólica da falta no Outro, este se apresentará
para o sujeito psicótico como completo e consistente, absoluto, daí sua relação
com a palavra não ter a relativização metafórica, o que faz com que o Outro fale
por si só, e o sujeito o escute não como um pensamento seu, que lhe inspira
dúvida a respeito de sua veracidade, como no sintoma neurótico, mas como algo
real, vindo de fora, o que se observa nos fenômenos elementares da psicose, os
delírios e as alucinações.
O psicótico é invadido pela linguagem porque sua relação com o
significante não é permeada pela falta, o que faz com que a relação da palavra
com a coisa seja tomada no nível da consistência. Ele não faz metáfora, não
substitui um significante por outro, não desloca, não suporta o fato de que
subsista uma falta no Outro, inerente às palavras. Daí o texto delirante não
comportar resquício de dúvida, visando preencher por completo a falta não
inscrita. Conforme Lacan, no texto da Instância da letra no inconsciente, “Uma
palavra por outra, eis a fórmula da metáfora” (Lacan, [1957], 1998, p. 510).
Dessa maneira, o psicótico fica restrito a uma relação imaginária com a
linguagem, em que o sentido é unívoco e tudo que estivemos vendo acerca do
inconsciente como o registro do duplo sentido, da polissemia, não funciona
nessa estrutura, o que impõe mudanças substanciais na função do analista, bem
como na sua técnica. Não se farão, por exemplo, interpretações ambíguas, como
estivemos estudando, pois o psicótico não relativiza, ele tomará as palavras

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como se fossem coisas, literalmente, ao pé da letra. A palavra ganhará vida
própria, e o sujeito psicótico é tomado por uma perplexidade frente a essa
autonomia de um significante que significa por si só, sem ter de se remeter a
outro em cadeia. Ele experimenta a si próprio como objeto do desejo do Outro.
Assim, diferente da sua função no tratamento de um neurótico em que o
analista vai operar com uma separação do sujeito em relação aos significantes
que o determinam, apontando para o furo do registro do simbólico, porque o
neurótico tem estrutura simbólica para suportar; no tratamento com psicóticos, o
analista irá testemunhar, sustentar e até ajudar a criar significantes para que o
sujeito possa dar conta do real insuportável. Se no caso do neurótico a análise
visa desalojar o sujeito de uma identificação alienante, no caso do psicótico não,
a visada do analista será antes a de sustentar o lugar simbólico que o sujeito
puder criar e que o ancore, estabilizando-o.
O delírio nessa perspectiva pode ser tomado, então, não como um
problema, a ser eliminado, mas como uma construção do próprio sujeito e que
tem como função sua estabilização frente a um real não mediado. Ele já é em si
mesmo um recurso endógeno, uma estória que o alienado cria para colocar no
lugar de um buraco, um lugar que ele fabrica para ocupar frente a um real não
assimilado.
O analista irá, em geral, ratificar esses significantes, operando mais como
uma testemunha das construções possíveis, validando-as, sem interpretá-las, no
sentido que vimos nos capítulos anteriores, pois isso poderia desestruturar uma
amarração já não tão consistente, produzindo efeitos muitos mais danosos do
que terapêuticos. Daí a importância de um diagnóstico estrutural na clínica
psicanalítica, para auxiliar na direção do tratamento.
O analista será tomado pelo sujeito psicótico em uma relação sobretudo
imaginária, em que o sujeito tende a se fundir com o analista, a experimentá-lo
como um intruso e invasor, desencadeando vivências persecutórias. Cabe ao
analista criar um espaço seguro de escuta, oferecendo ao sujeito uma versão do
Outro menos consistente, de não saber, de testemunha. O analista não irá
compreendê-lo e jamais direcioná-lo, pois o que o analista dirige é o tratamento
e não o paciente (Lacan, 1998, p. 592).

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NA PRÁTICA

Freud apontava para a impossibilidade de estabelecimento da


transferência na psicose em função da libido estar direcionada ao próprio eu do
sujeito e não aos objetos externos, o que comprometeria seu investimento
libidinal no analista. No entanto, o próprio Freud ao se referir às manifestações
da transferência na sua vertente negativa a exemplificava utilizando-se de casos
de paranoia. Verifica-se, de fato, que o psicótico endereça, sim, sua palavra ao
analista, apenas não da mesma forma que o neurótico. Este último supõe no
analista um saber, enquanto o psicótico já tem no delírio um saber estabelecido,
sua relação com o Outro não comporta o não saber. Mas de que forma, então,
se endereça o psicótico ao analista?
Voltemo-nos, então, para um caso clínico. O Sr. João frequenta o
dispositivo do CAPS desde muito tempo, e estabelece espontaneamente uma
transferência com o analista que por lá circula, chamando-o para sucessivas
conversas reservadas. João busca-o recorrentemente para compartilhar suas
ideias, desenhos, histórias, e relatar as angústias e medos que sente ao sair na
rua, ao pegar o ônibus e conviver.
O Sr. João relata ter medo de, ao andar na rua e se deparar,
eventualmente, com uma mulher grávida, por exemplo, chutar sua barriga; ou
então, dentro de um ônibus, pegar “sem querer” no pênis de um outro homem.
Esses medos o assaltam, o invadem, mas não impedem que ele venha até o
dispositivo de saúde, se desloque sozinho e viva com relativa autonomia.
Em uma sessão de atendimento, quando perguntado como lida com esses
pensamentos intrusivos, o Sr. João conta ao analista que, mesmo com os
medos, ele consegue vir até o dispositivo de saúde em função do “BIP”. O
analista, contudo, não compreende e pergunta do que se trata o BIP, ao que
João explica: “O BIP é aquele aparelhinho doutor”, que quando apertado, nos
conta João, informa instantaneamente a polícia sobre o que se passa, mantendo
automaticamente a situação sob controle.
Ele não dispõe de um aparelho desses, objetivamente falando, mas
psiquicamente, sim, João o inventa. O analista apenas testemunha e valida esse
recurso que o próprio João arquitetou, sem fazer qualquer tipo de
questionamento acerca de sua veracidade ou realidade objetiva, dado que claro
está que se trata de um recurso delirante, porém eficaz, que estrutura o sujeito

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diante de impulsos próprios de teor agressivos e sexuais, que remontam a temas
insuportáveis que o invadem. O analista não visa, aqui, desamarrar o arranjo que
o sujeito fabricou para sustentar sua realidade psíquica, seu trânsito na
sociedade, sua inserção possível no convívio social, ao contrário, serve como
testemunha e como um Outro validador desse anteparo.

FINALIZANDO

Iniciamos esta abordagem pela figura topológica do nó borromeano, que


articula os três registros da experiência humana, os registros de simbólico, real
e imaginário. Vimos que essa figura topológica que Lacan extrai da matemática
prefigura uma amarração subjetiva em torno de uma falta, representada pela
noção de objeto a, e que ela pode desfazer e se refazer pelo sujeito que dela
participa como um tecelão.
Depois, definimos o conceito de real, que já vínhamos localizando em
sucessivas faltas na constituição do sujeito e de seu desejo. Vimos que o
conceito de real nos remete às experiências que o sujeito vive e que não lhe
fazem sentido, que não se conformam àquilo que ele espera, que desorganizam
sua estabilidade psíquica, que não se enquadram em sua fantasia. O real,
portanto, diz respeito ao traumático, ao impossível de ser simbolizado e foi por
isso que o articulamos com o conceito lacaniano de gozo.
O gozo, geralmente descrito como uma satisfação sofrida, ou um
sofrimento prazeroso, guarda uma relação com a repetição e com o real e, por
isso, foi articulado por Lacan com a noção freudiana de pulsão de morte. Sua
apreensão na clínica se faz importante porque nos aponta para um índice do
real, daquelas experiências traumáticas e de excesso na economia psíquica de
uma pessoa, ele aparecerá, desta forma, relacionado com a angústia e com o
objeto a.
O conceito de Nome do pai foi então abordado como a releitura que Lacan
fez do Édipo freudiano como metáfora paterna. O desejo da mãe, ao se orientar
para além da criança, possibilitará que esta enderece seu desejo para o falo do
pai, substituindo o objeto primário para esse segundo e deste indefinidamente
para outros. Essa castração simbólica instaura justamente a barreira em relação
ao gozo, ordenando o desejo.
Por fim, como estivemos estudando durante os capítulos anteriores, a
perspectiva da função do analista sob a ótica do tratamento com neuróticos, nos
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detivemos sobre essa função no caso da psicose. Vimos que ela muda
consideravelmente, à medida que o analista não vai interpretar no sentido
lacaniano, desestabilizando a configuração simbólico-imaginária da fantasia
fundamental do sujeito, mas testemunhando suas construções possíveis,
validando-as e, eventualmente, participando na construção desses lugares
possíveis, de uma amarração possível do nó borromeano que estrutura o sujeito.

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REFERÊNCIAS

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: as bases


conceituais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

_____. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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