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Psicanálise Aplicada, Psicanálise Pura e o Passe


Celso Rennó Lima

O que lhes trago hoje é uma re-elaboração de conceitos que operam na


clínica, a partir da leitura e discussão do texto de J-A. Miller – Psicanálise pura,
psicanálise aplicada e psicoterapia – publicado na Revue de Psychanalyse, La
Cause freudienne nº 48. A escolha deste artigo tem como objetivo associar-nos à
preparação ao III Congresso da AMP cujo tema gira em torno da Formação do
Psicanalista. Ao que parece, mesmo com todos os percalços comuns ao trabalho em
cartel, nossa produção aconteceu e, juntamente com este, outros textos estão sendo
discutidos nesta importante Jornada de Cartéis da EBP-MG.
Vamos ao texto:
É a claudicação do saber, da crença no sintoma que abre um espaço para que um
endereçamento possa ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho
possa ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira
mensagem cifrada, plena de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se
apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um "x" no
caminho do sujeito. Miller1 nos lembra a propósito do sintoma e a crença que
sustenta este sintoma: “Lacan reenvia o sintoma analítico a um fato de crença. Como ele
diz, acredita-se. Acredita-se que isso pode falar e que isso pode ser decifrado. Acredita-se no
sentido.
Esse "acredita-se" acentua a relatividade transferencial do sintoma. "O sintoma, acredita-
se nele", que tanto surpreendeu na sua formulação, é a conseqüência do sujeito suposto
saber.” Este é o momento de claudicação, portanto, é quando se instala, no ponto de
inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a
sua verdade. Aqui também acrescentaremos uma passagem importante do nosso
texto referência: “Quando se diz "suposto", ninguém supõe. Lacan tinha insistido
nisso. O sujeito é suposto, mas ninguém supõe, ele é suposto ao significante.”
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Nota - Salvo quando for mencionado, estaremos sempre nos referindo ao texto referência citado
acima.
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Para que isto possa acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida, deverá ser feita
para que um significante qualquer venha se alojar aí, onde o saber falhou. Este
significante será, ele mesmo, integrante do sintoma que se constituirá neste
momento. É a transferência que, agora, pode sustentar estrategicamente a direção
do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de
volta no discurso. Amor que se sustenta, exatamente na crença transferencial que
vem na trilha da instalação do que se chama sintoma analítico. “O amor visa o
sujeito”. Esta é a fórmula lacaniana que se contrapõe à fórmula do amor narcísico
que visa apenas a imagem.
No entanto, para que as coisas possam continuar caminhando em função da
política do tratamento, é fundamental que este lugar ao que se dirige o analisante
em função do amor de transferência seja "cadaverizado", para usar uma expressão
que Lacan utiliza em "A coisa freudiana", e que seja anulada a própria resistência
do analista, o que eqüivale dizer que ele não vai simplesmente insistir na
significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições. Este ponto abre
a possibilidade de inserir uma passagem que, acredito, é o eixo da tese defendida
por Miller no nosso texto de referência: “É preciso primeiramente perceber que é
justamente porque se define o real como excluído do sentido que se pode colocar sentido
sobre o real. Eu não digo ”no real", eu digo "sobre". O "nó" supõe um campo, e não existe
o “dentro” da rodela de barbante.” E ele continua na construção de um importante
algoritmo que indica a importante disjunção entre o simbólico e o real que se
esclarece a partir da introdução da teoria dos nós que nos indica que os dois
“podem permanecer disjuntos entanto separados”: “Pode-se, sobre o real, colocar o saber,
mas na perspectiva do real como excluído do sentido, aí colocar saber não é jamais senão
uma metáfora. Escrevemos o sentido sobre o real:
Sentido
Real”
Se tomarmos o Grafo do Desejo e colocarmos a claudicação do sintoma em
s(A) teremos, no vetor que daí parte, um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se
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o analista se deixa levar pelo sentido que lhe é proposto, exaltando o Sq, o traço
que lhe foi atribuído, ele estará favorecendo uma identificação e esvaziando sua
palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para
a circulação no andar inferior do Grafo: s(A) ----- (A) ----- i(a) --- (m). No entanto,
para que uma análise possa acontecer é fundamental que, no amor de transferência
que se instala, pelo menos um dos dois saiba que não tem o que lhe está sendo
atribuído. Isto é o que se espera de um analista: que coloque em operação o desejo
do analista que foi constituído em análise.
É somente deste lugar que uma interpretação pode operar. A interpretação
que deverá apontar para o vazio, assim como o dedo de São João no conhecido
quadro de Leonardo Da Vinci. Em outras palavras, a interpretação, como Freud a
apresenta, é “onde as pontas que se tem, os clarões de verdade que se tem, nós os
montamos como saber fazemos uma construção. Isso, do lado do analista. Freud, ele,
pensando que essa construção deve ser comunicada ao paciente quando convém. No que ele
se distingue de Lacan, no ato. Do lado do analisante, o mesmo termo de construção se
impõe. Fala-se de construção do fantasia fundamental. O que indica que o fantasia
fundamental é uma construção. Não é saber no real.”

O que se objetiva, no final das contas, é uma primeira desarticulação do


binário S1- S2 que, enquanto enunciado, enquanto sentido, sustenta sob a barra a
relação de um sujeito com o objeto que ele escolheu a partir da interpretação que
ele fez do desejo do Outro ($<>a). Objeto esse que ele acredita poder consistir o
Outro. A interpretação, portanto, abre um buraco no sentido até então
estabelecido. Este vazio cria um estado de desamparo (hilflösigkeit) não deixando
outra saída ao sujeito senão o bem-dizer, pois deslocando-se do eixo do enunciado
para o da enunciação, ele se depara com a verdade que circula entre o gozo e a
castração e que se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É neste ponto, e
somente aí, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo, pois pela via da
fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários.
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Este é o trajeto que vai preparar o momento em que um ato analítico poderá
acontecer e possibilitar a que experiência da fantasia fundamental possa tornar-se
pulsão.
Um pouco de topologia pode nos auxiliar a definir como esse caminho se
desenha e ajudar a diferenciar uma psicoterapia de uma psicanálise.
Não fazendo silêncio, o analista impede que o objeto "a" possa reinar como
semblante. O que vai acontecer, como conseqüência, é o favorecimento a uma
identificação a partir mesmo da ação da sugestão através do convencimento, como
vimos acima. Este movimento dirige o vetor para o andar inferior do Grafo
estabelecendo duas posições distintas para os dois sujeitos em questão: o terapeuta
e o paciente. Eles permanecerão, indefinidamente, cada qual do seu lado sem que
as intervenções possam produzir efeito. Teremos então uma topologia da banda
circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que estão presentes
dois sujeitos e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir
sobre o outro.
Quando, no entanto, o desejo do analista opera fazendo reinar o objeto "a"
ali onde uma resposta é esperada, o vetor é lançado na direção do andar superior
do Grafo e, em função mesmo da não resposta, sofre uma meia volta e retorna, ao
sujeito, como sua própria mensagem invertida. A topologia que se desenha não é
mais a da banda circular, mas sim a da Banda de Moebius, dizendo que em uma
análise temos apenas um sujeito em questão, pois a estrutura desta superfície
demonstra a existência de um só lado e de um só corte.
Esta articulação coloca uma questão e abre a possibilidade de discutir um
outro aspecto desta diferenciação entre psicanálise e psicoterapia: trata-se do que
encontramos no momento em que Lacan trabalha, especificamente no Seminário
XI, o conceito de liquidação da transferência. Ali ele estabelece um dialogo com os
conceitos estabelecidos pela IPA, no que diz respeito ao final de análise. O corpo
teórico que sustenta o trabalho na IPA vai à direção de acreditar que no final da
análise a transferência poderia ser liquidada. Para tanto, seria fundamental que o
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analista levasse o sujeito a não deixar resto algum, já que a identificação, como é de
nosso conhecimento, se estrutura em torno do eixo imaginário e a partir da
idealização. Desta forma, um "Eu" (moi) surgiria ali onde um sujeito, enquanto
resposta do real, deveria surgir. Teríamos, então, um reforço da alienação e não a
separação buscada.
Retomando o Grafo, lembro-lhes que Lacan, ao construí-lo, descreve este
pequeno (d), como índice do estado de desamparo (detresse - hilflosigkeit) no qual
se encontra a criança em seu primeiro encontro com o Outro (descrito por Freud
como Nebemmensch). O passo seguinte é a passagem pelas demandas do Outro ($
<> D) onde vão se estruturar as pulsões em seu movimento de ir e vir em torno do
vazio da falta no Outro S(A). Uma relação muito especial vai se estabelecer a partir

da interpretação que se faz desta falta, construindo-se uma cena (S<>a) que precisa
ser retificada para que um saber fazer com seu sintoma possa advir em s(A). Isso
só é possível porque uma nova referência ao desejo (d) pode ser mantida. É por
isso que afirmamos que só há um sujeito em questão na análise, o analisante, e que
é somente a partir de um ponto fora da linha - que correlaciono, nesta situação, à
função do desejo do analista - será possível sustentar o corte de uma linha sem
pontos.
Retomo o que acabo de dizer por um outro caminho. Partindo do conceito
de Sujeito Suposto Saber, Lacan vai nos dizer que esse sujeito, que supostamente
sabe sobre o analisante, na verdade nada sabe. O que se liquida na transferência,
portanto, é esta suposição de saber, já que durante o processo, a cada intervenção
do analista ela vai sendo desfeita. Em outras palavras, como nos diz Lacan, este
sujeito suposto saber deve ser considerado liquidado exatamente no momento da
análise em que se começa, a saber, alguma coisa. Por isso ele pode, neste momento,
ser chamado de sujeito suposto vaporizado. Ainda uma outra forma de se dizer
isto, com Lacan, é que a sustentação da transferência se dá pelo fato do analista se
colocar como um "X" para o analisante. Quando o analisante vai, passo a passo,
esburacando este lugar, o analista vai perdendo esta aura de suposição de saber. A
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conseqüência disto é que o analista não vai mais ter o poder de relançar o sujeito
para mais uma volta no seu percurso. Espera-se que este momento seja aquele que
venha encerrar um tempo de compreender e o sujeito em questão possa fazer uma
passagem a partir mesmo do resto em que o sujeito suposto saber se transforma.
Para além de suas vestimentas imaginárias, semblantes que o analista pode
encarnar para um sujeito, ver-se-á cair do lugar do Outro do saber para o lugar do
a, objeto libidinal.
Esta passagem, como a conhecemos na teoria de Lacan, é a passagem de
analisante a analista, quando este sujeito deseja, ele mesmo prestar-se a sustentar
este lugar de causa.
Este termo "liquidação da transferência", se ele tem um sentido, é o da
liquidação permanente deste engano através do qual a transferência tende a
exercer o fechamento do inconsciente. Ou seja, no duplo movimento da
transferência onde o sujeito se engancha supondo um saber ao Outro -
estabelecendo o amor de transferência - vamos ver acontecer o engodo do
tamponamento da falta do Outro. Este mecanismo é o da relação narcísica onde o
sujeito tenta se colocar no lugar em que ele acredita poder ser amado pelo Outro. É
na relação de miragem, proposta pelo eixo a-a’, que o sujeito irá se referenciar para
convencer-se amável.
Podemos tomar o esquema L, na tentativa de explicitar este mecanismo:
Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na
mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no
Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que
na verdade ele é. Este traço poderá ser tomado aqui na sua referência ao objeto 'a',
na medida que é este traço que faz a borda deste objeto que, na verdade é um vazio
no espelho. A partir daí, vai se estabelecer uma relação de transferência e o sujeito
vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo
Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência.
Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência
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do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito


como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo
narcísico, lugar do engodo amoroso.
Cada vez que o analista intervém, ele o faz como se fosse a boca do Outro
(A) visando o sujeito do inconsciente ($), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern

unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja, o que não tem palavra S(A), ou
ainda a causa de desejo.
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece
no eixo da relação narcísica e que tende a exercer o fechamento do inconsciente.
Lacan chamou este eixo narcísico, imaginário, de muro da linguagem. Isto
pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a
linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem
que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quando ele se
dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma
estará impedido o acesso do simbólico ao real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S.
Ora, cada vez que o analista intervém, ele o faz do lugar do Outro, como nos diz
Lacan em "A direção da cura...", promovendo uma brecha neste muro da
linguagem, esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito “. Este momento
se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o
sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido,
percebe-se pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz,
mas fundamental. É o momento em que podemos testemunhar do aparecimento
do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se
apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que é isto
que produz um ato: relança o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova
série produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de
desejo”.
Retomando a questão da identificação que é uma das balizas que podemos
estabelecer entre a psicanálise e a psicoterapia, vamos observar que ela ocorre a
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partir da escolha que o sujeito faz de um certo traço no Outro. Não é um traço
qualquer. É um traço tal que o sujeito acredita poder dizer do desejo deste Outro. É
um traço que vai dizer que, deste ponto, o sujeito vai ser amado pelo Outro. Este
traço idealizado vai constituir o núcleo de sua fantasia, a borda do enquadre da
realidade para este sujeito, porque é a partir deste traço que vai se constituir sua
fantasia fundamental e que vai dizer como o sujeito interpretou o desejo do Outro.
Esse traço é o traço unário (Einzeger Zug). Em outras palavras, este traço é o S1 ao
qual o sujeito se encontra assujeitado. É o mestre que dita o caminho que o sujeito
deve seguir para ser amado. Quando Lacan diz que a interpretação deve visar,
para além da significação, a qual significante o sujeito se encontra assujeitado, é a
isso que ele alude. Ora, tudo isto poderá ser traduzido pela fórmula lacaniana: "o
desejo é sua interpretação".
A identificação especular imediata é apenas a sustentação da identificação
que está em jogo nesta entrada do S1, já que é esta identificação primeira que
sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro. Em outras palavras: eu
desejo o que o Outro deseja que eu deseje. Esta é a perspectiva do sujeito no campo
do Outro, onde a identificação especular poderá ser vista como algo que satisfaz.
Esta identificação estabiliza a imagem e sustenta o sujeito no mundo de alguma
maneira. Na verdade, sempre vão existir pontos de identificação, de ancoragem,
afinal Lacan coloca no fim do seu Grafo do Desejo o matema I(A). Estes pontos de
ancoragem deverão se sustentar na articulação lógica que vem se instalar ali onde a
fantasia fundamental ditava as regras. Isto diz de um novo enlaçamento que se
estrutura a partir da responsabilidade e não mais na hipotética garantia do Outro.
No percurso pelo grafo sempre se esbarra em pontos de ancoragens
identificadoras. Na verdade cada ponto de estofo nada mais é que ponto de
identificação significante.
Retornando ao percurso de uma análise, vamos dizer que o mal-estar a
partir da claudicação do sintoma produz uma demanda ao Outro para que seja
reconstituído o sintoma. Uma vez feito o percurso e experimentado o vazio no
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ponto onde a falta do Outro se apresenta, acontece a possibilidade de mudar o


endereçamento da demanda que não será mais de reconstituição do sintoma, mas
de relançamento do desejo de saber. Não mais de apaziguamento no sintoma, mas
de uma inquietação produtiva.
De volta ao ponto do Ideal do Eu, o ponto no campo do Outro que o sujeito
elege como sendo aquele onde ele pode ser amado, pode ser visto pelo Outro, é
esse ponto que lhe permitirá se suportar numa situação dual. Caso não houvesse
esse ponto de ancoragem, de identificação no campo do Outro, esta dualidade
especular seria insuportável. É o que acontece na psicose, quando a Bejahung
fundamental não acontece e, como conseqüência, falta ao sujeito este ponto de
ancoragem produzindo uma tendência a fazer desaparecer o intervalo entre um e
outro, sempre que a dualidade especular ocorrer. Na psicose a saída é o delírio, a
erotomania; na neurose é o amor. A diferença entre um e outro fica por conta da
certeza que o psicótico tem. Para o neurótico, mesmo que seu amor seja tão intenso
que fique como se fosse colado ao outro, vai existir uma certa distância colocada
pela dúvida: será que ele me ama mesmo? Na psicose a certeza é plena: ele me
ama, ou ele me odeia.
Na relação especular, o amor sustenta o engano, mas é nesta relação que se
instala o significante necessário à introdução de uma perspectiva centrada sobre o
ponto do ideal. Este ponto, este traço, para que ele possa se tornar um ponto de
visada do sujeito, tem que ser um traço que se refere ao objeto 'a'. Ele é o traço da
borda de onde o objeto foi subtraído. O “I” é o significante que desenha o contorno
nesta borda. É um significante qualquer, mas não pode ser qualquer um. É aquele
eleito por estar mais próximo do objeto perdido, por isso Lacan matemiza assim
este ideal: I(a). Sustentado por este traço é que vai se instalar o sujeito suposto
saber a partir do significante da transferência. Todo o trabalho de análise, todo o
trabalho da interpretação, vai à direção de promover a separação deste I do a, para
reconstituir, no final, o I(A) na transferência de trabalho.
Nesta coalescência do traço com o objeto, um dando suporte ao outro, um
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fazendo o outro existir na sua ausência, como ponto de visada, é que vai se
estabelecer o engano da transferência. Este engano pode-se dizer, muito
simplesmente, é o seguinte: se você tem o traço da borda do objeto, você tem o
objeto. Neste ponto acontece algo de paradoxal, pois, ao perceber que as coisas não
são bem assim, ao se deparar com o vazio deste objeto vai acontecer, como diz
Lacan, a descoberta do analista, pois se ao se dirigir ao sujeito suposto saber para
se sustentar na alienação do seu sintoma, o analisante encontrar um analista, ele
vai se deparar com este vazio, com esta inconsistência do Outro.
Sabemos que toda intervenção do analista aponta para o final de análise. Em
outras palavras, não há final de análise sem interpretação. Cumpre ressaltar que há
intervenções do analista que não são interpretações. É preciso que haja pelo menos
uma interpretação que faça descolar o I do a para que se possa alcançar o final de
análise.
Um analista é aquele que escuta por detrás dos ditos do analisante. É
preciso que ele saiba que existe um para-além da demanda endereçada ao sujeito
suposto saber, que é uma demanda de amor. É preciso que ele saiba que se a
demanda de amor aponta para um mais-além, o desejo aponta para um mais-
aquém. Por isso Lacan forjou esta frase tão contundente quando ele tratou do amor
de transferência: "Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa
mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo". E Lacan continua dizendo que apesar desta
fala apontar para o oral, ela nada tem a ver com a nutrição pois seu acento recai
totalmente neste efeito de mutilação. É o que vai nos apontar a possível
continuação da fala do analisante: "Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa -
mistério!, se transforma, inexplicavelmente em presente de merda".
Na verdade, se pensamos no agalma, este que sustenta a transferência, este
que está dentro do Sileno e que ninguém viu, o que está dentro é resto. Quando,
diz Lacan, após esta passagem em que o psicanalista se transforma em resto,
podemos dizer que será possível dar-nos conta da vertigem que acontece quando
estamos diante de uma página em branco. Se o sujeito não pode tocar nesta folha
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em branco, diz Lacan, é porque ele a toma como papel higiênico. Esta distância
entre o ideal e o objeto criado, estabelecido pelo princípio de realidade é que
promove esta desidealização aterrorizadora.
A liquidação da transferência é um assunto de destituição do sujeito
suposto saber que se transforma num resto, exatamente este resto que nunca foi
absorvido pelo saber suposto e que ao final, será elevado à condição de causa de
desejo. É quando, finalmente, o analista estará reduzido ao representante da
representação do objeto "a".

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