Você está na página 1de 6

Universidade Federal do Paraná

Setor de Ciências Humanas


PET de Filosofia da UFPR
Ciclo de Seminários Psicanálise e Filosofia

Seminário 11, parte 11: análise e verdade


por Martim Fernandes

“Inicialmente, trata-se de ‘querer dizer algo’. Querer dizer algo, légein ti, semaínein ti: eis a
decisão que Aristóteles exige de toda pessoa, se ela que ser uma pessoa”1

Resumo: Conforme o texto estabelecido por Jacques-Alain Miller2, na aula “Análise e


verdade ou o fechamento do inconsciente”, Jacques Lacan aborda três pontos fundamentais, a
saber: (1) A distinção entre a prática psicanalítica e outras investigações do inconsciente, no
que diz respeito à dimensão transferencial; (2) A relação entre o sujeito falante, o
inconsciente e a verdade de seu desejo, a partir de um fundamento linguístico; E (3) a posição
de intervenção do analista, frente ao modo operatório da transferência, não como
interpretação explicativa, mas como atualização da realidade do inconsciente, fazendo surgir,
no próprio lugar da enunciação a abertura significante que se faz ouvir.

Preâmbulo

As aulas proferidas por Jacques Lacan não eram aulas, no sentido formal, que
concede créditos acadêmicos e diplomas. No período que compreende O Seminário, de
janeiro de 1964 a junho de 1969, a fala de Lacan ecoou na sala Dussane, da École Normale
Supérieure – ENS, rue d'Ulm nº45, em Paris, por esforço de intelectuais da época, tais como
Lévi-Strauss, F. Braudel e L. Althusser (DORGEUILLE, 2007, p. 91). Nesta altura, o clima na
França era de agitação, e não apenas pela repercussão da guerra do Vietnã, mas por tudo o
que culminaria nas marchas, greves e barricadas de Maio de 68, incluindo aí a centralidade da
discussão sobre o papel do ensino. Então, diferente do livro compilado por Jacques
Alain-Miller, em 1973, é neste contexto, ritualístico e situado, que a fala de Lacan se dá. Mas,
se estas informações diacrônicas, históricas, fossem, por outro lado, atualizadas, creio que

1
CASSIN, Barbara. O efeito sofístico. Trad. Ana Lúcia de Oliveira, Maria Cristina Franco e Paulo
Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2005, p.77.
2
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11. Trad. M.D. Magno. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985.
bastaria imaginar o ensino em um contexto correlato, no qual a própria razão universitária
está em jogo. Seria, talvez, o exercício de situar essa fala e esse encontro no auditório de uma
renomada instituição e ali escutar, conferindo à fala a maior dignidade, mesmo que suas
afirmações estejam à margem e na fronteira mesmo dos muros da universidade.

1. Situação analítica

Não raras vezes, a legitimidade de um ensino esteve atrelada a possibilidade desse


ensino se mostrar mais verdadeiro que outro. Não por acaso, talvez, Lacan abre a aula 11 do
seminário 11 com um questionamento sobre a dimensão da verdade na prática analítica.
Como Lacan vai fazer isso? Vai mostrar que outros autores (Spitz, Szasz e Nünberg)
estão, mais ou menos, enganados quanto à dimensão da verdade psicanalítica. E vai mostrar
que a prática autenticamente psicanalítica é aquela do campo freudiano. Qual campo? O
campo entre linguagem e transferência. Mas, qual a diferença, de partida, entre este campo e
os demais campos? Que toda investigação parte de algo não mensurável, não quantificável e
também não metafísico. Ou seja, de um registro que não é nem biológico e nem abstrato.
Trata-se, pois, de um campo que emerge na linguagem e se sustenta pela transferência. Mas
não só isso.
Lacan está contrapondo outros analistas e questionando o que eles entendem por um
bom encontro. Quer dizer, um encontro na dimensão da verdade. Mas, por que as demais
práticas, não menos terapêuticas, são equivocadas do ponto de vista psicanalítico?
Talvez, porque parecem querer manipular de “uma maneira unilateral”, como que
“operando a título não de modo algum heurístico, mas erístico” (LACAN, 1985, p.131),
referindo-se à afirmação de Szasz, de que o analista deve sempre ter razão. Mas também,
quando Szasz parece almejar, na relação analítica, uma certa posição explicativa, na
instituição de uma verdade que não seja engano.
Como Lacan responde? Responde que o encontro – a partir da palavra do paciente –
por si mesma tem dupla face. “É primeiro como se … por certa mentira, que vemos
instaurar-se a dimensão da verdade, no que ela não é. [Pois a mentira] se põe, ela própria,
nessa dimensão da verdade” (LACAN, 1985, p.132). Isso porque “o sujeito, na verdade de
seu desejo, está oculto de si mesmo pela dimensão da linguagem. Inversamente, quanto ao
desejo do sujeito, isso fala dele em seu discurso, sem que ele o saiba” (DOR, 1989, p. 114).
Agora, para compreender melhor essa relação entre o dito e o dizer, entre o sujeito e o
seu discurso, e mesmo retomar a própria divisão do sujeito, Lacan propõe uma estratégia
diferente. A estratégia de recorrer a uma discriminação da linguística, que é a diferença entre
o enunciado e o ato de enunciação. Esse raciocínio faz alusão a uma obra anterior de Lacan
(Position de l'inconscient, em Écrits, 1960), mas que nos ajuda a saber o que procuramos. E o
que procuramos é uma certa dimensão da verdade, no sujeito do inconsciente, que, para
Lacan, deve estar situada ao nível do sujeito de enunciação. Então, como se buscássemos
uma oportunidade de entrever a verdade do desejo, na oposição entre sujeito do enunciado e
sujeito da enunciação, partimos ao segundo ponto.

2. Dito/ dizer; enunciado/ enunciação;

Na obra How to Do Things with Words, que reúne as leituras de John Langshaw
Austin, na universidade de Harvard, no ano de 1955, encontramos o questionamento de uma
velha assunção da filosofia – a assunção de que “dizer algo é, sempre e simplesmente,
afirmar algo” (AUSTIN, 1962, p. 12). E não é que, certas afirmações não possam ser
declaradas verdadeiras ou falsas do ponto de vista do ato de enunciação. Mas, Austin vai
diferenciar as afirmações “que procedem de uma enunciação constatativa, das que fazem
alguma coisa, sem que com isto sejam declaradas verdadeiras ou falsas: [estas são] as
enunciações performativas. [Então] estes últimos atos de enunciação aparecem como
enunciações que nos permitem fazer coisas por meio da própria palavra” (DOR, 1989, p.116).
Então, é como se a questão filosófica em torno da verdade de um enunciado, com
Austin, não fosse mais do que um caso particular. Sendo o caso geral “que toda enunciação é,
antes de mais nada, um ato de discurso que, como tal, visa a realizar alguma coisa” (DOR,
1989, p.116). Mas, antes ainda de um segundo passo de nosso raciocínio, a partir de Austin,
veremos que podemos circunscrever a enunciação, em linguística, através de certos
parâmetros. Sendo os mais importantes aqueles que dirão respeito à colocação em cena do
sujeito em seu enunciado e na sua enunciação: o sujeito do enunciado e o sujeito da
enunciação. Sabemos, portanto, com a ajuda da linguística, que um ato de discurso, antes
mesmo de ser declarado verdadeiro ou falso (e, talvez, sem mesmo qualquer constatação
desse tipo), ele já visa realizar alguma coisa.
Como sugere Lacan, nós analisamos o enunciado que diz “eu minto”, não com uma
intervenção que demande uma explicação, pois não há nada o que explicar a respeito de um
dito em análise. Talvez, em outra situação, poderíamos fazer como René Magritte, sobre o
ícone de cachimbo, emoldurado com a legenda “Isto não é um cachimbo”3, quando ao ser
chamado de mentiroso, ele responde: “vocês podem encher de fumo o meu cachimbo? Não,
não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu tivesse escrito no meu quadro:
'isto é um cachimbo', eu teria mentido."4 Mas essa não é a situação da análise, não é mesmo?
O que a divisão entre enunciado e enunciação nos ajuda a perceber, na teoria
psicanalítica, é que o dito “eu minto”, ainda não está em uma dimensão da verdade do
inconsciente, pois se situa ao nível do enunciado. Ou seja, o “eu” que ali é invocado pelo
sujeito para representar a sua participação no discurso, como locutor e sujeito da enunciação,
é um significante de substituição. Em qual sentido? No sentido de que “o sujeito não pode,
evidentemente, falar por si mesmo tal verdade, pois ele nunca está senão representado em seu
próprio discurso. Ele não pode a não ser fazê-la falar” (DOR, 1989, p. 114).
Agora, “uma vez que o desejo do sujeito só pode se fazer ouvir como um significante
de substituição” (DOR, 1989, p. 114), então, sabemos que isso fala dele. E nesse dizer, nesse
desfile da palavra, em que o sujeito falante articula algo de seu desejo, o analista espera o
momento oportuno, o momento ao nível da enunciação. Como diz Lacan, o analista espera o
sujeito, e lhe remete “sua própria mensagem em sua significação verdadeira, quer dizer, em
forma invertida. Ele lhe diz – nesse eu o engano, o que você envia como mensagem é o que
eu mesmo lhe exprimo e, fazendo isto, você diz a verdade” (LACAN, 1985, p. 133). Ou ainda,
em outras palavras, o inconsciente é aquilo que se tranca, mas uma vez que isso se abre,
segundo uma pulsação temporal, “o analista está em posição de formular esse ‘você diz a
verdade’, e nossa interpretação jamais tem sentido senão nessa dimensão” (LACAN, 1985, p.
133). Ainda, de outra forma, pode-se dizer que a distinção entre dito e dizer, enunciado e
enunciação, ajuda a marcar a “esquize que faz com que o sujeito como tal se distinga do
signo em relação ao qual, de começo, pôde constituir-se como sujeito” (LACAN, 1985, p.
135), e essa marcação nos fornece um ponto de partida, para não confundirmos aquilo que é
coextensivo ao registro do inconsciente com aquilo que, simplesmente, é o lugar da
enunciação. Por fim, em uma última formulação, conforme o psicanalista lacaniano Joël Dor,
“de uma certa maneira, existe pois uma oposição entre o sujeito do enunciado e o sujeito da
enunciação que não faz outra coisa senão duplicar a oposição evidenciada no interior do
sujeito, pela divisão do sujeito” (DOR, 1989, p.118).

3
La trahison des images (René Magritte, 1929)
4
FIGUEIREDO, Virginia. Isto é um cachimbo. Kriterion, Belo Horizonte , v. 46, n. 112, p. 442-457,
Dez. 2005. Disponível em: <http://ref.scielo.org/329dzg>
3. Transferência é atualização da realidade do inconsciente

No terceiro momento de sua aula, Lacan reafirma que “a transferência, como modo
operatório, não poderia bastar-se em se confundir com a eficácia da repetição, com a
restauração do que está ocultado no inconsciente, senão com a catarse dos elementos
inconscientes” (LACAN, 1985, p. 137). Fornece então um esquema, um modo ótico, “que faz
acordar-se a noção de que a transferência é ao mesmo tempo obstáculo à rememoração e
presentificação do fechamento do inconsciente, que é a falta, sempre no momento preciso, do
bom encontro” (LACAN, 1985, p.138). E mesmo afirmando que situar a transferência
corretamente é da ordem do impossível, Lacan não nega o seu intento de levar à crítica nada
menos que o plano da realidade. Propõe, afinal, que “a transferência não é a atualização da
ilusão que nos levaria a essa identificação alienante que constitui qualquer conformação,
ainda que a um modelo ideal, de que o analista, em caso algum, poderia ser suporte”
(LACAN, 1985, p.139).
Dito de outra forma, a oposição entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação,
parece resultar em alguma consequência ao nível da prática psicanalítica. Segundo Joël Dor,
esta consequência seria a introdução de “um ponto de vista essencialmente novo em relação à
atenção flutuante” (DOR, 1989, p.118).
Em outras palavras, poderíamos dizer que a dimensão da verdade na psicanálise,
diferente de outras práticas, está no registro da análise da transferência, como atualização da
realidade do inconsciente. Em qual sentido? “no sentido de que ali [no bom encontro] reside
o espaço operatório onde o paciente pode ser convocado à investigação de seu próprio
inconsciente e, por conseguinte, pode-se ver o mais seguramente confrontado com a questão
de seu desejo” (DOR, 1989, p.12).

4. Referências

AUSTIN, John. L. How To Do Things With Words. Londres: Oxford University Press,1962.
Disponível em:
<https://archive.org/details/HowToDoThingsWithWordsAUSTIN/page/n7/mode/2up>
CASSIN, Barbara. O efeito sofístico. Trad. Ana Lúcia de Oliveira, Maria Cristina Franco e
Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2005.

DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan. Artes Médicas: Porto Alegre, 1989.
DORGEUILLE, Claude. L'enseignement de Lacan change à nouveau de lieu. La revue
lacanienne 2007/2 (n° 2), p. 91 – 94. Disponível em:
<https://www.cairn.info/revue-la-revue-lacanienne-2007-2-page-91.htm>

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11. Trad. M.D. Magno. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1985.

Você também pode gostar