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1) Sobre a linguagem
Percorrendo nessa linha os primeiros textos de Freud que tratam do sonho, do ato
falho e do chiste, destacamos um ponto que se faz marcante ao longo desses livros
em termos da concepção de Freud com relação à palavra. Desde sempre, para
Freud, longe de terem um sentido em si mesmas, as palavras são mais
propriamente o objeto através do qual "se busca o caminho para abordar o
inconsciente" (Lacan, 1966, p.199).
Em seu ensino, Lacan substitui a palavra mot pela palavra signifiant. O significante,
por definição, é algo que se presta ao equívoco, quer dizer, remete a várias
significações possíveis. É justamente essa característica do significante que
promove, na fala do sujeito, uma abertura para uma pluralidade de sentidos,
favorecendo, assim, a passagem do inconsciente no discurso. Nesse sentido, Lacan
vai dizer que nenhuma interpretação deve ser teórica, ou sugestiva, quer dizer,
imperativa. Ela deve ser equívoca, pois a interpretação não é para ser
compreendida, mas para "provocar ondas" (Lacan, 1975, p.16).
Tal passagem, entretanto, nos aponta uma questão, uma vez que nos perguntamos
a que apontaria o termo "de início" (au depárt) a que Lacan se refere quando fala
sobre a linguagem. Seguindo o texto da conferência em Genebra, ressaltamos que
a linguagem sem nenhuma existência teórica vai intervir sempre segundo a forma
de uma palavra forjada por Lacan, a saber, lalangue.
O homem pensa com a ajuda de palavras. E é no encontro destas com seu corpo
que algo se esboça. Ou seja, ali se situa o sentido. Assim, ressaltamos a pergunta
formulada por Lacan: "Se não existissem palavras do que poderia o homem
testemunhar?" (Lacan, 1975, p.125). Esse ponto nos leva à segunda parte deste
trabalho, em que apresentamos uma questão acerca da possibilidade de situarmos
algo da ordem de uma posição do autista na linguagem. O que nos faz, seguindo a
trilha aberta por Lacan, perguntar se, mesmo antes de ter acesso a uma fala
articulada em palavras, o autista poderia, em sua particularidade, algo
testemunhar?
2) Acerca do autismo
Em um ponto seguinte, Lacan vai dizer que se trataria de saber por que há algo no
autista ou no chamado esquizofrênico que se congela. "Mas não se pode dizer que
não fala" (Lacan, 1975, p. 134). Segundo essa linha de raciocínio, tratar-se-ia,
portanto, de fazer uma pergunta a respeito da ordem de que esta fala deriva. Uma
fala que, inclusive, conforme foi apontado, não faz laço de comunicação com o
Outro.
Em uma outra passagem, Lacan aponta que o autista não dá provas de ter
escutado o que alguém tem a dizer-lhe, uma vez que este se ocupa dele.
Ressaltamos que tal marcação poderia vir a ser uma indicação para o lugar do
analista na Direção da cura do autismo. Na medida em que, o "ocupar-se" do
paciente poderia vir a se configurar em uma postura demasiado demandante por
parte do analista e isso, como resposta, só geraria um agravamento da posição do
autista.
3) Um fragmento clínico
Neste ponto, trazemos o fragmento do caso clínico de uma criança, que contava
com seis anos de idade no início de seu tratamento.
Ao longo das primeiras sessões, Íris apresentava uma constante movimentação,
que consistia em andar por todos os espaços da casa onde se situava o consultório.
Em determinados momentos, ela passava a pular com o corpo extremamente
rígido, emitindo alguns sons, sem que fosse possível apreender o sentido.
Frente ao estado em que Íris se encontrava, havia algo que fazia uma escansão, ou
seja, marcava uma diferença em seu movimento aparentemente contínuo. Era algo
que chamava sua atenção, mantinha sua concentração e se repetia ao longo das
sessões. Ao encontrar alguma reentrância na parede, ela se detinha e passava a
retirar a tinta, fazendo com que surgisse um pequeno buraco. Com os fragmentos
de tinta e cimento que ficavam em sua mão, fazia um movimento brusco com os
dedos, que expulsavam estes pequenos objetos, de modo que eles caíssem no
chão. Era marcante que, ao atirar esses mínimos objetos longe, Íris emitia um
determinado som: "Aaah!".
Neste ponto, importa assinalar que, ao longo das sessões, uma pequena
modificação nas atividades que Íris executava passou a ocorrer de alguma forma.
Em determinada sessão, a paciente chegou a tomar alguns papéis que ficavam no
armário do consultório e passou, a partir disso, a realizar a sua atividade retirando
um pedaço de papel que era então, posteriormente jogado pela janela. Assim, algo
de diferente surgiu, pois ela precisava fazer este trabalho com a massinha até que
todo o bloco tivesse sido fragmentado, o que a fazia buscar outro em seguida.
A partir desse momento em que Íris não só anda pelos espaços e retira os pedaços
de tinta das paredes, mas também se detém por algum tempo em torno dos
fragmentos de papel, ocorre um determinado momento em que surge uma fala do
analista endereçada a ela, apesar de outras palavras já terem sido ditas não só a
ela mas, inclusive, em torno dela. É quando o analista diz a ela que talvez pudesse
deixar algo para trabalhar na próxima sessão; se ela voltaria, será que precisava
jogar tudo? Será que algo não poderia restar ali, no espaço de seu tratamento? Ou
mesmo faltar, na execução de sua atividade?
Na sessão a que nos referimos, Íris chegou para seu atendimento, e da escada que
vai dar na sala do consultório, chamou o analista, muito surpreendentemente, pelo
seu nome. Logo após esse momento, quando escutou o analista dizer: "Você me
chamou?", Íris sorriu, o que não havia acontecido até então Isso apontou para a via
de uma articulação de uma outra ordem, que envolveria, então, um certo laço com
o Outro.
O apelo verbalizado, diz Lacan (1953), diferentemente do apelo mimetizado, que
pode ser realizado por qualquer ser, é algo que envolve o Outro e implica, inclusive,
a possibilidade de recusa. É algo que delimita uma outra posição para o sujeito, na
medida em que é "a condição si-ne-qua-non para este aceder à realidade humana"
(Lacan, 1953, p. 103).
Referências bibliográficas:
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