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Sobre o tratamento possível do autismo

Elisa Carvalho de Oliveira

Psicanalista, mestranda do programa de Pós- Graduação em Teoria Psicanalítica da


UFRJ

Tomando como referência principal o texto de Lacan: "Conferência em Genebra


sobre o sintoma" (LACAN, 1975), propomos, neste trabalho, articular algumas
questões que consideramos fundamentais para a abordagem do autismo.

Com objetivo de melhor situarmos as referências nas quais se baseia o presente


trabalho, passamos à enumeração dos seguintes pontos: 1) Sobre a linguagem; 2)
Acerca do autismo e 3) Um fragmento clínico.

1) Sobre a linguagem

Em uma passagem do texto sobre o sintoma, Lacan faz o seguinte questionamento:


"O que são os sonhos senão sonhos relatados?" (LACAN, 1975, p.124). Dessa
forma, ele ressalta a definição de Freud na Traumdeutung (FREUD, 1900/1975), de
que é somente a partir do relato, ou seja, apenas em função da articulação da fala
do sujeito, que se torna possível a interpretação e, portanto, a apreensão de algo
da ordem do sentido do sonho. Nessa via, é precisamente sobre o material do
sonho que Freud trabalha. Assim, ao proceder a uma interpretação, o analista deve
se ater à freqüência, à repetição e ao peso dado a certas palavras, na medida em
que é o relato do sonho, como matéria verbal, que serve de base para a
interpretação. Na psicopatologia da vida cotidiana, diz Lacan, acontece o mesmo.
Somente quando o sujeito se dá conta do lapso, ou do ato falho, é que se faz
possível algo da ordem de uma interpretação. "O exemplo maior é dado pelo
chiste" (LACAN, 1975, p.13), no qual a qualidade e o sentimento de satisfação
demonstrado pelo sujeito, e nisto Freud insiste, procede essencialmente do material
lingüístico.

Percorrendo nessa linha os primeiros textos de Freud que tratam do sonho, do ato
falho e do chiste, destacamos um ponto que se faz marcante ao longo desses livros
em termos da concepção de Freud com relação à palavra. Desde sempre, para
Freud, longe de terem um sentido em si mesmas, as palavras são mais
propriamente o objeto através do qual "se busca o caminho para abordar o
inconsciente" (Lacan, 1966, p.199).

Em seu ensino, Lacan substitui a palavra mot pela palavra signifiant. O significante,
por definição, é algo que se presta ao equívoco, quer dizer, remete a várias
significações possíveis. É justamente essa característica do significante que
promove, na fala do sujeito, uma abertura para uma pluralidade de sentidos,
favorecendo, assim, a passagem do inconsciente no discurso. Nesse sentido, Lacan
vai dizer que nenhuma interpretação deve ser teórica, ou sugestiva, quer dizer,
imperativa. Ela deve ser equívoca, pois a interpretação não é para ser
compreendida, mas para "provocar ondas" (Lacan, 1975, p.16).

O inconsciente nos fala por meio de suas formações, a partir da articulação


significante que surge na fala do sujeito. Assim, longe de ser um ajuntamento de
significantes, o inconsciente tem uma estruturação precisa. Dessa forma, Lacan
afirma que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (1975, p. 13). Ao
articular essa frase que se constitui em um dos pressupostos básicos de seu ensino,
ele diz que o faz, no entanto, com uma reserva: o que criou a estrutura é a
maneira pela qual "a linguagem emerge de início em um ser humano" (Lacan,
1975, p.13).

Tal passagem, entretanto, nos aponta uma questão, uma vez que nos perguntamos
a que apontaria o termo "de início" (au depárt) a que Lacan se refere quando fala
sobre a linguagem. Seguindo o texto da conferência em Genebra, ressaltamos que
a linguagem sem nenhuma existência teórica vai intervir sempre segundo a forma
de uma palavra forjada por Lacan, a saber, lalangue.

Se os analistas sustentam a existência de um inconsciente, conforme Lacan


assinala, isto é, fundado sobre a experiência, esta, desde a sua origem (e este
termo retorna neste ponto no texto), tem uma relação com lalangue. Segundo
Lacan, a lalangue merece ser chamada a justo título de materna, já que é pela mãe
que a criança, pode-se dizer, a recebe. Assim, é importante destacar que a criança
não a aprende, ela a recebe.

Contudo, desde o início a linguagem implica uma espécie de sensibilidade. É


surpreendente constatar como uma criança pequena pode vir a fazer uso de
palavras como "talvez" ou "todavia", antes mesmo de ser capaz de construir
verdadeiramente uma frase. Certamente ela as escutou, mas a compreensão de
seu sentido pela criança é algo que merece nossa atenção. De acordo com Lacan,
isso prova que há algo como uma peneira através da qual a água da linguagem, ao
atravessá-la, chega a deixar alguns resíduos com os quais, necessariamente, o
sujeito terá que se haver.

É certamente do texto da experiência cotidiana da análise, que algo voltará a surgir


nos sonhos, em toda a sorte de formas de dizer, em função da maneira pela qual a
lalangue foi não só falada, mas também escutada por cada um em sua
particularidade.

O homem pensa com a ajuda de palavras. E é no encontro destas com seu corpo
que algo se esboça. Ou seja, ali se situa o sentido. Assim, ressaltamos a pergunta
formulada por Lacan: "Se não existissem palavras do que poderia o homem
testemunhar?" (Lacan, 1975, p.125). Esse ponto nos leva à segunda parte deste
trabalho, em que apresentamos uma questão acerca da possibilidade de situarmos
algo da ordem de uma posição do autista na linguagem. O que nos faz, seguindo a
trilha aberta por Lacan, perguntar se, mesmo antes de ter acesso a uma fala
articulada em palavras, o autista poderia, em sua particularidade, algo
testemunhar?

2) Acerca do autismo

Ao falar sobre o autismo na Conferência em Genebra, como resposta a alguns de


seus interlocutores, Lacan faz determinadas pontuações, que, como foi dito
anteriormente, se constituem em balizas importantes para abordarmos a questão
sobre a possibilidade de um tratamento analítico.

Inicialmente, Lacan afirma que, como o nome indica, os autistas "escutam a si


mesmos" (Lacan, 1975, p.134). Escutam muitas coisas, sendo que, em alguns
casos, o fato de escutarem pode, inclusive, desembocar em uma alucinação. E
nesse ponto, Lacan ressalta que a alucinação tem sempre um caráter mais ou
menos vocal.

Seguindo o texto, destacamos como referência para a abordagem do autismo,


neste trabalho, o ponto em que Lacan formula que nem todos os autistas escutam
vozes, embora articulem muitas coisas. Nesse caso, trata-se de ver precisamente
"de onde eles escutaram o que articulam" (Lacan, 1975, p. 134). Essa passagem,
portanto, nos aponta para uma questão acerca da possibilidade de algo da ordem
de uma alteridade se apresentar para o autista. Dissemos "algo da ordem", já que
o lugar de onde os autistas escutaram o que articulam não está devidamente
situado. Contudo, diz Lacan, seria necessário precisá-lo, o que se constitui em uma
importante indicação em termos da Direção da cura.

Em um ponto seguinte, Lacan vai dizer que se trataria de saber por que há algo no
autista ou no chamado esquizofrênico que se congela. "Mas não se pode dizer que
não fala" (Lacan, 1975, p. 134). Segundo essa linha de raciocínio, tratar-se-ia,
portanto, de fazer uma pergunta a respeito da ordem de que esta fala deriva. Uma
fala que, inclusive, conforme foi apontado, não faz laço de comunicação com o
Outro.

A seguir Lacan enuncia: "Que você (referindo-se ao interlocutor) tenha dificuldade


para escutá-lo, para dar alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente
de personagens sobretudo verbosos" (Lacan, 1975, p. 134). Nessa passagem,
Lacan aproxima diretamente o autismo e a psicose, sendo que não os iguala
totalmente, deixando uma margem para abordarmos o autismo sem tomá-lo tão
imediatamente no campo das psicoses.O que nos leva à questão da possibilidade de
os autistas estarem presentes de alguma forma na linguagem.

Em uma outra passagem, Lacan aponta que o autista não dá provas de ter
escutado o que alguém tem a dizer-lhe, uma vez que este se ocupa dele.
Ressaltamos que tal marcação poderia vir a ser uma indicação para o lugar do
analista na Direção da cura do autismo. Na medida em que, o "ocupar-se" do
paciente poderia vir a se configurar em uma postura demasiado demandante por
parte do analista e isso, como resposta, só geraria um agravamento da posição do
autista.

Dessa forma, consideramos que o analista, avisado, deveria sustentar, ao longo do


tratamento, um acolhimento das manifestações trazidas pelo paciente, uma escuta
de suas articulações, para que viesse a surgir, em um determinado momento
lógico, o que indica Lacan, ao enunciar que "finalmente, sem dúvida, há algo a
dizer-lhes" (Lacan, 1975, p.134).

3) Um fragmento clínico

Neste ponto, trazemos o fragmento do caso clínico de uma criança, que contava
com seis anos de idade no início de seu tratamento.
Ao longo das primeiras sessões, Íris apresentava uma constante movimentação,
que consistia em andar por todos os espaços da casa onde se situava o consultório.
Em determinados momentos, ela passava a pular com o corpo extremamente
rígido, emitindo alguns sons, sem que fosse possível apreender o sentido.

No primeiro momento, Íris não falava nenhuma palavra articulada e não


demonstrava nenhuma demanda, a não ser no momento em que tomava a mão do
analista para, juntamente com a sua, abrir a porta da sala. Contudo, não se poderia
dizer que seu olhar era totalmente indiferente, pois, se inadvertidamente seu olhar
encontrava o do analista, em uma posição ativa, Íris desviava o seu olhar. O olhar
do Outro contava para ela, muito embora não fosse possível suportá-lo.

Frente ao estado em que Íris se encontrava, havia algo que fazia uma escansão, ou
seja, marcava uma diferença em seu movimento aparentemente contínuo. Era algo
que chamava sua atenção, mantinha sua concentração e se repetia ao longo das
sessões. Ao encontrar alguma reentrância na parede, ela se detinha e passava a
retirar a tinta, fazendo com que surgisse um pequeno buraco. Com os fragmentos
de tinta e cimento que ficavam em sua mão, fazia um movimento brusco com os
dedos, que expulsavam estes pequenos objetos, de modo que eles caíssem no
chão. Era marcante que, ao atirar esses mínimos objetos longe, Íris emitia um
determinado som: "Aaah!".

Neste ponto, importa assinalar que, ao longo das sessões, uma pequena
modificação nas atividades que Íris executava passou a ocorrer de alguma forma.
Em determinada sessão, a paciente chegou a tomar alguns papéis que ficavam no
armário do consultório e passou, a partir disso, a realizar a sua atividade retirando
um pedaço de papel que era então, posteriormente jogado pela janela. Assim, algo
de diferente surgiu, pois ela precisava fazer este trabalho com a massinha até que
todo o bloco tivesse sido fragmentado, o que a fazia buscar outro em seguida.

A partir desse momento em que Íris não só anda pelos espaços e retira os pedaços
de tinta das paredes, mas também se detém por algum tempo em torno dos
fragmentos de papel, ocorre um determinado momento em que surge uma fala do
analista endereçada a ela, apesar de outras palavras já terem sido ditas não só a
ela mas, inclusive, em torno dela. É quando o analista diz a ela que talvez pudesse
deixar algo para trabalhar na próxima sessão; se ela voltaria, será que precisava
jogar tudo? Será que algo não poderia restar ali, no espaço de seu tratamento? Ou
mesmo faltar, na execução de sua atividade?

Ao considerarmos essa fala como tendo alguma importância, isso se deu,


logicamente, em função de seus efeito, pois neste momento, por uma primeira vez
Íris olhou para o analista, diretamente, como se desse provas, de uma forma
diferente , de que havia escutado.

Assim, em torno das articulações que passaram a se circunscrever no espaço do


consultório ao longo das sessões, e como efeito mesmo do que passava a operar
em seu tratamento, Íris olhou de forma diferente para o analista e chegou em
determinada sessão a dirigir a este um chamado, um chamado com o nome do
analista, o que poderíamos considerar que estaria na via de um apelo.

Na sessão a que nos referimos, Íris chegou para seu atendimento, e da escada que
vai dar na sala do consultório, chamou o analista, muito surpreendentemente, pelo
seu nome. Logo após esse momento, quando escutou o analista dizer: "Você me
chamou?", Íris sorriu, o que não havia acontecido até então Isso apontou para a via
de uma articulação de uma outra ordem, que envolveria, então, um certo laço com
o Outro.
O apelo verbalizado, diz Lacan (1953), diferentemente do apelo mimetizado, que
pode ser realizado por qualquer ser, é algo que envolve o Outro e implica, inclusive,
a possibilidade de recusa. É algo que delimita uma outra posição para o sujeito, na
medida em que é "a condição si-ne-qua-non para este aceder à realidade humana"
(Lacan, 1953, p. 103).

Nesse ponto, recorremos ao texto: "Pequeno discurso aos psiquiatras" (LACAN,


1975), no qual, ao final de sua exposição, Lacan formula a pergunta: "Então, para
que serve a linguagem?" (Lacan, 1975, p.17) Se ela não é feita para significar as
coisas, expressamente, quer dizer, se esta não é a sua primeira destinação e nem
tampouco o é a comunicação, é simples: a linguagem faz o sujeito. Desse modo, o
resultado da linguagem é que alguma coisa chega ao sujeito, alguma coisa
acontece, no Outro, quer dizer, sempre no Outro. Isso faz com que aquilo que se
chama ser humano tenha como primeira experiência o seguinte: "ele percebe que
acontecem coisas quando se fala" (Lacan, 1975, p.17).

Seguindo esta via, pontuamos as indicações de Lacan, em termos de que o autista


se configura em um personagem sobretudo verboso, o que nos leva a considerar
que, apesar de seu estado, ele está de alguma forma na linguagem. E a questão é
justamente: de que forma? Na medida em que é possível que mesmo
pontualmente, ele chegue a escutar algo e a partir disso chegue a realizar
articulações que venham a sustentar sua posição. E que finalmente, não se possa
dizer que não fala. Apesar das conseqüências de uma grave problemática em
relação ao laço com o Outro, e que toca o impossível no sentido de fazer laço
social, o que recolhemos da clínica com o autista, na particularidade de cada caso,
é que uma aposta sustentada pelo desejo do analista tem efeitos, e que estes
podem vir a promover uma abertura na via de um tratamento possível.

Referências bibliográficas:

FREUD, S. (1900). A Interpretação dos Sonhos. Edição Standart brasileira das


obras completas de Sigmund Freud, vol. V, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.

---------- (1901) A psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standart brasileira das


obras completas de Sigmund Freud, vol. VI, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.

---------- (1905) O Chiste e sua relação com o Inconsciente Edição Standart


brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago,
1975.

LACAN, J. (1953-54) O Seminário. Livro 1: Os escritos técnicos de Freud.Rio de


Janeiro, Jorge Zahar, 1983.

---------- (1966) Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade


e um sujeito qualquer. In A Controvérsia Estruturalista. 1966. (p.198-212).

------------ (1975) Conferencia en Ginebra sobre el síntoma. Intervenciones y


textos 2, 115-144. Buenos Aires: Manantial, 1988.

---------- (1975) Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines.


5-61. Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976.
---------- (1975) Pequeno discurso de Jacques Lacan aos psiquiatras. Dizer 10. Rio
de Janeiro, 1994.

 
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