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XI

OS DOIS TOROS ABRAÇADOS

Esta é a quinta e última aula que dedicamos à estrutura do toro. Para hoje, mais uma
vez, preparei uma série de argumentos logicamente articulados que permitem expor e
desenvolver os problemas em torno dos quais Lacan articulou dois toros abraçados.
Expressarei em forma de pergunta o que, no horizonte, escolhi como tema principal para
discutir: o que queremos dizer na psicanálise lacaniana quando dizemos que "o desejo do
homem é o desejo do Outro"? Tenho a impressão de que, entre os psicanalistas lacanianos, essa
frase tende a ser usada em um sentido. Vou propor que revisemos se a incorporação da topologia
tende a validar esse uso ou, talvez, a propor outro.
Primeira questão: o simbólico cerca um real. Nós propusemos este enunciado sob a
condição de que faça bucle. Poderíamos então começar a escrever no quadro:

O real assim cercado responde à definição de real como “o mesmo”. Então, apenas se
estabelece um real a partir de um determinado procedimento simbólico que consiste em que
se produza o encontro com "o mesmo". Encontro com "o mesmo" que é produto de uma
leitura, e não necessariamente propriedade dos fatos. Ou seja, estou propondo que a respeito
de certos fatos, o analista poderia dizer “Ah! Mas é a mesma coisa que aquilo”, e o analisando
responde “Ah, certo! Não havia me dado conta!".
Não percam de vista que não se trata de uma propriedade dos fatos em si, mas produto
de um ato de leitura desses supostos fatos “transformados” em cadeias significantes. A
psicanálise parte do pressuposto de que um neurótico é capaz de ler. Consegue-se que a leitura
seja feita de outra perspectiva para que se esvaia certo efeito.

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Ora, o real cercado pelo simbólico que o bucle estabelece implica um paradoxo - é
importante que vocês não percam isso de vista - porque é produto do encontro do simbólico
com o real, e de forma alguma se trata de um real puro. Apesar dessa ideia, o lacanismo
contemporâneo tende a pensar o real (ou o gozo) como independente do simbólico, o que
invalida completamente minha proposta. Do meu ponto de vista, o encontro do "mesmo" no
mundo humano, a articulação do simbólico com o real, implica um paradoxo (o da repetição),
a saber, que esse encontro com o "mesmo" não é um encontro com " o mesmo". A segunda vez
que acontece "o mesmo" a um sujeito humano falante, certamente não é aquele mesmo da
primeira: a mudança se verifica ao nível do valor. Isso é o que justifica fazermos esta inscrição:

No final da última aula me perguntaram porque eu representei isso em forma de espiral


e não em forma de círculo. Achei que tinha sido claro o suficiente durante a aula, mas parece
que tem algo que não consegui transmitir. Vocês se lembram da minha proposta?
Topologicamente falando, um toro pode ser constituído pela justaposição de círculos ou anéis,
bem como pela estrutura de uma espiral que se fecha sobre si mesma. Chamamos de
"enrolamento". Escolhemos essa forma de escritura, o bucle, para dar conta da articulação do
simbólico com o real. De modo que "o mesmo" (o real no mundo humano), encontrável apenas
através do simbólico, é inacessível sem a mediação do simbólico. Isso é produzido por um efeito
de leitura: é fundamental que o sujeito conte para que advenham as repetições. Com isso, se o
sujeito contar, a repetição ocorre como "outra vez o mesmo", e o que se demonstra é que se
repetido como "outra vez o mesmo", não é "o mesmo". Se não se conta, pode ser "o mesmo".
Isso acontece com os animais: eles comem a mesma comida todos os dias porque não contam.
Mas nós, sujeitos humanos, somos caracterizados por contar. E quando alguém não conta, a
clínica fica muito estranha porque começa a advir realmente "o mesmo". Há sujeitos que não
sabem contar e outros que poderiam, mas não contam.

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Nos fenômenos mais tipicamente psicóticos, falhas na função da conta são notáveis.
Mias ainda, a teoria de Lacan é de que não se conta. Se quiserem rever, vejam a fórmula da
holófrase do Seminário 1130 na posição de S1 há um X, na posição de S2 está S1, e abaixo do
X está S2, tudo rodando no sentido horário. Lacan afirma que o conjunto dos significantes existe
como tal "se e somente se" são dois (não importa se sejam dois ou três). Vejam que toda a
diferença está na função da conta.
Uma das dimensões mais típicas do neologismo é, justamente, o fracasso da função da
conta. O neologismo psicótico que tenho verificado com mais frequência, com mais
regularidade em minha clínica, consiste em descobrir que o paciente não conta que já o disse:
"Senhor, queria te contar uma coisa", e sabe-se exatamente como toda essa frase vai seguir. O
aspecto neológico disso é que o paciente não contava que já havia me dito, quando em geral
(todos os que praticam sabem) como nós neuróticos nos perseguimos por dizermos as mesmas
coisas aos nossos analistas! Pedimos desculpas dez mil vezes porque contamos que já narramos
ou reclamamos disso várias vezes. Na psicose verifica-se a falha da função da conta, e é um dos
elementos neológicos mais claros, não descrito, mas um dos mais claros, porque o sujeito não
conta que já disse isso. O aspecto mais radicalmente psicótico desse fenômeno é que o paciente
sempre narra o mesmo como se fosse novo.
Assim, a forma de escrevê-lo em espiral tem a virtude de inscrever muito bem que se
trata da articulação do simbólico com o real. Deve-se ter em mente que o real com o qual
operamos na clínica psicanalítica é apenas o real que se articula com o simbólico. Sem dúvida,
existe outro real que é o da ciência, com o qual nada temos a fazer como analistas.
Bom. Então, demos dois passos. Não apenas temos que pretender que ele feche (nosso
primeiro bucle), mas temos que pretender que ele se repita (o bucle duplo); e novamente vos
digo que a repetição não é uma característica dos fatos, mas uma leitura possível dos fatos. Com
isso, a primeira coisa que fazemos na clínica psicanalítica é converter todos os elementos
discursivos em significantes, ou seja, enquadrá-los numa relação de vários S1 – S2.

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A fórmula proposta por Lacan no Seminário 11 encontra-se na aula 18, página 245 da edição espanhola. Alfredo
Eidelsztein desenvolveu exaustivamente o problema da holófrase em seu livro Estruturas clínicas a partir de Lacan
Vol. 1, 2001, Buenos Aires, Ed. Letra Viva. Nos capítulos II, IV; V e VI, o leitor interessado encontrará as pistas
necessárias para estabelecer, inclusive, uma nova abordagem da clínica psicanalítica lacaniana. Ao leitor curioso
que deseja uma explicação rápida, mas eficaz, do problema, recomendo a seção "f" do capítulo II.
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Existe uma primeira manobra que todo analista deve realizar sobre qualquer texto que
lhe é apresentado, que consiste em escolher o que mais preponderantemente tem valor
significante, e produzir o corte que o estabelece. Você sabe que quando dizemos "significante"
na clínica psicanalítica, fazemos um uso extremamente radical do termo, pois somos os únicos
que praticamos o que a linguística afirma: que entre "significante" e "palavra" há uma diferença
(um significante pode ser meia palavra ou três palavras).
Uma vez estabelecido o que tem valor significante fundamental (para isso, deve-se
colocar trabalhar certa disposição de sua subjetividade para essa escuta), uma vez que se tem
esse texto que se estabelece como S1, deve-se buscar nesse discurso aquilo lhe corresponde
como S2. “Quero me separar, venho vê-lo por isso.” A manobra é: “Quero me separar” é um
significante que, como tal, não significa nada. Portanto, devemos acrescentar o S2 que lhe
estabeleça o valor opositivo. Poderíamos responder ao nosso paciente, por exemplo: "Bom,
separe-se". E se sua resposta for "Não, o que acontece é que não posso", então se trata de:
"Quero me separar e não posso”. Devemos introduzir os cortes para produzir S1 e depois
estabelecer qual é o S2 que lhe corresponde, ou seja, aquele que se conecta com o primeiro na
forma de um bucle que articula a antecipação e retroação significante. Se fizermos isso, temos
a possibilidade de ter cercado um real através de um simbólico.
Estabelecidos S1 – S2, devemos buscar como isso se repete, pois se isso se repete
obteremos, como consequência da repetição, a demanda. Estabelecer a demanda é um trabalho
do analista.
"Quero me separar e não posso” ainda não é uma demanda, porque para algo ser uma
demanda tem que estar articulado à frustração. Se não houver frustração, não temos demanda.
E, para que haja frustração (isso é pura psicologia), deve haver repetição. Só então temos a
demanda, quando isso se repete. Não vou cansar de insistir: isso não se repete per se, não é que
seja observável, é um produto de leitura. É verdade que essa estrutura de repetição pode ser

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explicitamente enunciada pelo sujeito, oferecida por sua própria leitura. E nos casos em que
não procedem dessa forma, é preciso operar essa leitura em um trabalho tão bem chamado por
Lacan de preliminar à análise, e que consiste na puesta en forma da demanda
Repetição não significa apenas que o mesmo S1 - S2 entrem em relação (seria o caso
mais fácil de repetição), mas pode ser que a relação se apresente com outros significantes. Isso
está claro para vocês, não? Por isso a escuta tem que ser muito atenta, para que se possa afirmar
que adveio "o mesmo". Pode acontecer que o paciente nos diga: "Como o mesmo, se antes era
minha mãe e neste caso é minha irmã?". Seria preciso saber explicar que "sua mãe está para
X, assim como sua irmã está para Y, e nessas duas relações você ocupa o mesmo lugar de Z".
Aí os significantes mudam, mas a relação em jogo é a mesma. Com isso, seria preciso ver se os
significantes mudam.
Se realmente consideramos que este é um produto de leitura, podemos até descobrir que
uma demanda inconsciente está em jogo. Aqui nos deparamos com outro problema teórico, algo
esmagado entre os psicanalistas lacanianos contemporâneos: consiste em dar ao desejo uma
certa preeminência sobre a demanda. Algo como o desejo "é melhor" do que a demanda e, como
o desejo é inconsciente, a demanda não é. Falsíssimo. Justamente parte do trabalho do analista
é diagnosticar a demanda inconsciente, trabalho que, se não for feito, impede o início e o fim
da análise.
Não obstante o desejo seja inconsciente, ninguém nunca disse (dos bons autores, digo
eu) que a demanda não poderia ser inconsciente. Ou seja, que o que é solicitado e frustrado é
algo conhecido pelo próprio sujeito humano falante.
Da mesma forma, deve-se notar - é de suma importância estabelece-lo - que não é porque
a demanda seja inconsciente que ela se converte em desejo. Estou postulando, para escrever de
forma abreviada, um elo dessa natureza: duas cadeias, uma das quais opera como inconsciente
em relação à outra

Por fim, o paciente nos diz: "Está certo, é verdade, vim vê-lo com a intenção não de me
separar, embora dissesse que sim, agora venho descobrir que não...". Com essa retificação,

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não se operou nada sobre o desejo, mas sim sobre a demanda inconsciente. Se trata de um
trabalho preliminar.
Como vamos definir o desejo? Vou propor defini-lo como "mais além da demanda" (é
uma das definições canônicas em Lacan).31 Essa definição não nos impede de conceber a
existência de uma demanda inconsciente; porque, se está mais além da demanda, não nos
desvanece o campo do desejo: será então, também, o mais além da demanda inconsciente.
Se você sem lembram do grafo do desejo, ali o desejo está localizado entre as duas
demandas. Essa localização significa que, para estabelecê-lo, também terão que levar em conta
a demanda inconsciente. Suponham que o sujeito venha à consulta por X, e logo se estabelece
que o que ele realmente demanda é Y: o desejo estará mais além de ambas. Lacan se propõe a
pensá-lo entre ambas e, portanto, teremos que levar em conta porquê, se o que se exige é Y,
disse X.
Ora, se definirmos o desejo como mais além da demanda, o que Lacan quer dizer quando
afirma que "o desejo do homem é o desejo do Outro"? Essas duas definições apontam para a
mesma coisa?
Se dermos valor clínico a ambas as fórmulas (me parece que chegou a hora de fazermos
das fórmulas de Lacan algo com valor clínico), em função de que se estabelece o desejo? Isso
já é um mundo porque, em geral, na clínica lacaniana, o desejo não se estabelece porque o
desejo é pensado como metonímico, como indizível, e justamente o "neurótico" consistiria em
querer dizê-lo. Já esclareci minha posição sobre esse ponto: nas análises, não apenas se coloca
a pergunta de "o que deseja esse sujeito". Para mim, se há alguma marca especial da prática
psicanalítica deixada por Lacan é que ele inaugurou aquela pergunta perdida pelos pós-
freudianos: não o "O que aconteceu com você na infância que atrapalha o presente?", mas o
“O que do futuro está atrapalhando o presente dos analisandos?”. Aqui está outra maneira de
praticar a psicanálise e de considerar o desejo em ato.
Avancemos no estudo da frase: “O desejo do homem é o desejo do Outro”.
Acredito que chegou a hora de não ler esta frase pelo plano imaginário (embora Lacan
tenha começado por aí). É muito claro que a criança quer o brinquedo que outra criança quer, e
que, uma vez que tenha o dito brinquedo que a outra criança quer - se a outra criança quer outro
- ela também o irá querer. Este é um nível muito humano, onde o objeto do desejo de alguém é
o que o outro deseja.

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Sem dúvida, é a fórmula canônica do final dos anos 50 (à altura dos Seminários 5 e VI; assim como os escritos
"A direção da cura..." e "A significação do falo...) Curiosamente, esta definição foi reintroduzida por Lacan no
contexto de dois seminários de forte cunho topológico: os Seminários IX e XIII.
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Não se trata disso no nosso trabalho: este é o nível mais imaginário que o desejo pode
adquirir, nunca decisivo para nenhum caso clínico, mas também nunca ausente.
Outra forma de trabalhar com essa frase (muito frequente entre os comentadores de
Lacan) consiste em definir o desejo do sujeito considerando até que ponto o sujeito é tomado
como objeto, no desejo do Outro. Observe que há um problema nessa frase, e é que nas
elaborações de Lacan, em torno do fato de o sujeito adquirir o estatuto de objeto do desejo do
Outro, indicam para ele uma manobra do sujeito e não do Outro - algo não suficientemente
destacado -.
Pensem na legalidade da alienação e da separação: o que relaciona o desejo do sujeito
ao desejo do Outro é a separação. Mas essa relação entre o desejo do sujeito e o desejo do Outro
é operada por uma manobra do sujeito. E, portanto, a pergunta motriz dessa lógica é "Pode ele
me perder?", que é uma pergunta do sujeito. Não se trata da captura histórica pelo desejo do
Outro. Seu objetivo é escapar do efeito letal da afânise (assim propõe Lacan no Seminário 11 e
em Posição do inconsciente), relacionando o sujeito em sua condição de afânise com o intervalo
da cadeia do Outro.
Essa leitura errônea se manifesta em uma concepção evolutiva da criança tomada como
objeto pela mãe (que em Freud seria a equação pênis = criança, ou a libidinização que a mãe
realiza sobre a criança). Nessa perspectiva, torna-se evidente para nós que há sim uma captura
do sujeito como objeto feito pelo Outro, principalmente nos casos em que se verificou uma
rejeição.
De onde tiramos que o desejo toma a criança como objeto? A equação pênis = criança
afirma isso? Freud alguma vez supôs que o desejo da mulher, em sua condição particular, é o
falo? Para as mulheres mães que querem filhos, esse é o objeto de desejo? Conheço muitas
mães profundamente deprimidas porque sua condição de mãe arruinou sua posição desiderativa
mais do que nunca. Não é essa a afirmação de metade das mulheres que vocês conhecem?: "O
que acontece é que me dediquei aos filhos, e a depressão que tenho é porque não cultivei meu
desejo."
Tudo vai na contramão dessa teoria que afirma que a mãe toma o filho como objeto de
seu desejo. Acho que é um ideal, um belo ideal, um pouco antiquado. É claro que quase ninguém
mais deseja filhos nos países ricos do Ocidente.
De onde tiramos que a mulher, como sujeito, vale como mãe? Verifica-se, por exemplo,
na dor de muitas mulheres estéreis. Essa é uma dor que se corta com uma serra. Mas vocês não
acham que é mais tipicamente a ➝ a'? Não dói muito mais quando sua irmã ou cunhada

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engravida?: "A idiota da minha cunhada, que já tem três meninos, vai ter um quarto!" Isso é
apresentado de forma excelente no filme britânico “Secrets and Lies". É um filme de
permanentes inversões moebianas: tem uma mulher solteira que tem um filho, é uma catástrofe,
e tem outra, de boa classe social, que não pode. Está tudo invertido, uma branca e uma negra.
É estupenda, tem uma estrutura topológica notável e até se parece com Antígona...
Se vocês ainda têm dúvidas, problemas ou ressalvas, sugiro que discutam com um
belíssimo texto de Lacan, "Duas notas sobre a Criança". Ao decidir escrever sobre o problema,
ele afirmou que a criança foi capturada como objeto do fantasma parental. Quem disse que se
tratava do desejo parental? Como objeto do fantasma é claríssimo que sim: muitos de nós temos
embutido em nosso fantasma a inclusão de uma certa lógica pertencente ao fantasma de um ou
de ambos os nossos pais.
Que se trata do objeto do fantasma vê-se muito claramente porque não é apenas ter um
filho, mas também porque supõe uma condição. Suponha que uma mulher infértil veio ver a
mim, que tenho uma provedoria de crianças. Ela me dizia: "Ah, eu quero um menino".
Suponham que eu respondesse a ela: "Ok, aqui está um" e mostrasse a ela um com três pernas
e sem olhos. A senhora, visivelmente perturbada, me perguntaria novamente: "Tem mais? Posso
escolher?
Vocês me diriam que a mulher se desculparia com: "Acho que vou ter que voltar
amanhã, porque acabei de perceber que esqueci meu cartão de crédito" para não dizer
diretamente: "Como que vou levar um bicho assim?". A condição é muito clara. O fantasma é
um provedor de condição, e para todos nós, se queremos um filho, ele sempre será fortemente
conotado pela condição. Veja os pais incentivando os filhos varões a jogar futebol... Veja a cara
dos pais quando descobrem, confirmam, que ele não tem habilidade (não que seja ruim, mas
que é um verdadeiro desastre): é melhor tirar ele de campo pra não passar esse papelão... Isso
dói também, dói não ter filho, mas às vezes dói mais que o filho não tenha certa condição
A condição é muito marcada. Proponho que o lugar do filho seja fortemente
fantasmático. O que está muito marcado é que tipo de objeto somos para o Outro, mas não sei
por que dizemos "desejo do Outro". E, então, por que a frase? Há uma explicação muito
interessante de Lacan, que é que o desejo do homem é o desejo do Outro devido à posição de
nesciência em que o homem se mantém em relação ao seu próprio desejo.32 Esta é a única vez
que Lacan usa "nesciência". O termo não existe em espanhol. Em francês, é usado para quando

32
Tal como afirma Lacan em “Subversào do Sujeito” .... p.829: “Pois aí se vê que a insciência [nesciência] que o
homem tem de seu desejo é menos insciência [nesciência] daquilo que ele demanda - que, afinal, pode ser cingido
- do que insciência a partir da qual ele deseja.”
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algo não pode ser conhecido por causa de sua própria estrutura, quando algo é impossível de
ser conhecido (e não é misterioso nem inefável). Lacan a utiliza para explicar que é como Outro
que o homem deseja. Lacan explica isso pelo uso do genitivo (único caso em que não abre a
ambiguidade do genitivo): é como Outro que o homem deseja. Portanto, ninguém pode dizer:
"eu desejo" do ponto de vista do desejo inconsciente.
É um sentido não-típico dessa fórmula de Lacan. A gente fica muito com o imaginário.
Lhes proponho que a fórmula “O desejo do homem é o desejo do Outro” permanece como um
estabelecimento da nesciência mais profunda do mundo humano.
Bem, muito bem. Até agora um tópico.
Para Lacan, o problema do objeto do desejo só é concebível em relação à demanda.
Nesse esquema, que relaciona a demanda do Outro com o estabelecimento do objeto de desejo
para o sujeito, assim como a demanda do sujeito no estabelecimento do objeto de desejo para o
Outro, não se tratará de uma relação de desejo a desejo.
É uma relação entre a demanda e o objeto de desejo. Precisamente, Lacan propõe que o
desejo se estruture como mais além da demanda. Como isso pode ser concebido? Colocando o
toro como superfície fechada: seriam as voltas repetitivas que constituem a superfície do toro,
indicando a Lacan que a frustração é o que dá o objeto da demanda e que é nada.

Se alguém produz um certo ato de leitura que consiste em tomar todas as voltas da
demanda e pensá-las, concebê-las, como se fossem uma superfície fechada como um toro, então
aí sim se produz algo da índole do objeto do desejo.
Para essa estrutura, a função determinante proposta por Lacan é a conta. Eu já lhes disse:
o sujeito se estabelece como um "menos um": em sua conta, ele vem como aquele que conta
quando se desconta de sua própria conta.33

33
Essa linha é a defendida por Lacan na aula 12 do Seminário IX, em 7 de março de 1962. Cito e traduzo a versão
de Michel Roussan: " não há nenhuma necessidade de que ele saiba contar para que se possa dizer e demonstrar
28
O exemplo que Lacan sempre deu se verifica no modo como as crianças contam os
outros filhos de seus pais em relação a si mesmas. Surge aquele momento em que há uma certa
necessidade de descontar-se da conta: “Meus pais tiveram três filhos, mas eu tenho dois
irmãos”.
Aí advém algo novo no mundo que é esse sujeito como menos um. Agora,
simultaneamente, temos a clínica de um "menos um” articulada a um "mais um". Percebendo
que alguém se descontou, podemos dizer que há aí menos um, mas essa diferença também é
registrável em termos de "há um a mais".
O toro oferece essa possibilidade, pois se se pudesse contar as voltas da demanda e
afirmar que são, por exemplo, trezentas, para constituir o toro haverá sempre uma volta a mais:
a diretriz, ou a volta dada em torno do buraco (que também poderia ter sido dita como não
contada ou contada a menos). Sempre que se produz o fechamento, se produz a volta a mais ou
a volta contada a menos. Já aviso que advém somente pelo fechamento, que é um ato de leitura,
e não uma característica dos fatos.
O advento da subjetividade na clínica consiste em articular leituras. Aqui se produz algo
contrário à deriva metonímica: um fechamento. Só advém o sujeito (na lógica de um "menos
um" e um "mais um") a partir do momento em que esse fechamento é produzido. Se esse
fechamento não se produz, não advém, então, o sujeito do inconsciente. Não estamos
acostumados a conceber, com Lacan, ao sujeito como uma estrutura de fechamento,
acreditamos que o a forma mais lacaniana de todas é considerá-lo aberto... Lacan sempre
propôs, para o sujeito, superfícies fechadas (e também para a realidade humana, sobre a qual
trabalharemos em nosso próximo encontro).
Então, é preciso produzir o toro. O toro, enquanto objeto real, jamais existe no dizer de
alguém. Nenhum dizer de alguém "fecha". Nós, lacanianos, trabalhamos na direção de que não
se feche, e temos que mudar o rumo de nossa tarefa. Que se feche significa: "Então, pode-se
dizer que você quer tal coisa?" ou "Tudo da entender que você ..."
Se vocês não concordam comigo, se vocês acham que o desejo é metonímico, se vocês
acham que a clínica metonímica significa que todos tem que se parecer com a esquizofrenia, eu
não diria que vocês estão equivocados (não estou qualificado para dizer que vocês se
equivocam.) Talvez, um pouco ironicamente, lhes perguntaria: e pra que o toro? Teriam um
problema ao justificar a presença crucial desde o Seminário IX até “L’Étourdit” do uso do toro

com que necessidade constituinte de sua função de sujeito ele vai cometer um erro de conta. Não é preciso que
ele saiba, nem mesmo que procure contar, para que esse erro de contagem seja constitutivo dele, sujeito. Enquanto
tal, ele é o erro.” (p.128) /.../ “o sujeito como tal, é menos-um” (p.129)
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que realizou Lacan. Por quê uma superfície fechada para dar conta da estrutura do sujeito com
que opera a psicanálise?
Então, este é um ato de leitura, o terceiro34 necessário: produzir “um uno35” que será
dito elipticamente, como um meio-dizer, mas que não pode faltar em uma análise ou no umbral
de seu fim.
Se trata de fazer algo da ordem de “um uno36” com todas as voltas da demanda. O desejo
está articulado, mas não é articulável; no entanto, ele é dito de forma elíptica (eu citei para
vocês da última vez, lembram?).
O que se propõe é que, sendo desejo uma volta a mais ou a menos que nunca pode ser
equiparada a nenhuma das voltas da demanda (nossa geratriz), ele está articulado; então pode
ser dito de forma elíptica. Quero dizer, há uma maneira de meio-dizê-lo
O dizer humano tem voltas insuspeitadas. A retórica, por exemplo, nos ensina
reviravoltas insuspeitadas. Vocês sabem que Lacan concebeu o dizer na prática psicanalítica
regido pela ética do "bem dizer", que é a ética da retórica. Na retórica, a ética é imperativa
porque a retórica é a arte da persuasão: trata-se de persuadir sobre fatos opináveis. Como se
trata de produzir efeitos, na retórica se concebe uma forma ética, já que dizer implica um ato.
E como para Lacan há ato do desejo, vocês sabem em que ele consiste? Ao conseguir produzir
esse dizer elíptico, que tenha a virtude de capturar, na volta do dizer, isto:

34
Os dois anteriores foram: primeiro, produzir o encontro com "o mesmo", ou seja, que o bucle se feche. Em
segundo lugar, pretender que isso se repita. Em ambos os casos, nada é propriedade dos fatos, mas tarefa da leitura
do analista.
35
[N.T] Mantido em espanhol dadas as dificuldades de tradução [“um um”] ao considerar o fenômeno da
apócope na palavra em espanhol.
36
[N.T] Ver nota anterior.

30
Se conseguirmos, no dizer elíptico, articular a demanda mais o objeto do desejo, teremos
conseguido meio-dizer o desejo.
Segundo Lacan, isso se produz, e é ao que tende a clínica psicanalítica: fazer que o
sujeito recupere a via de seu desejo. Para isso, ele tem que ser capaz de meio-dizer o que deseja
(é um grande progresso, no que diz respeito a meio-dizer o que se deseja, poder estabelecer o
objeto do fantasma). Como a clínica psicanalítica que praticamos é com pacientes neuróticos,
no início de nossa prática não encontramos o fantasma em sua forma normal, mas em sua versão
neurótica; isto é, que o objeto do desejo da fantasia é substituído pela demanda do Outro.
Então a direção da cura obriga a passar disso:

Para isso:

Bem, vamos dar um passo adiante.


O passo que é requerido é o dos dois toros abraçados.
Se trabalhamos com os dois toros abraçados, se resolve essa fórmula de Lacan já que,
nos dois toros abraçados, à geratriz de um, corresponde a diretriz do outro e vice-versa. Para
nós, essa relação nos esclarece a articulação entre a demanda e o objeto do desejo.
Se estabelecemos o abraço de um toro com outro toro, então coincidirá com o buraco
do a de um toro, uma volta completa da demanda do outro. Lacan vai dizer que, sobre isso, o
Outro não é responsável37. Em outras palavras, como a demanda do Outro (em nosso abraço à
demanda desse Outro) marca nosso desejo, nisso, o dizer do Outro não é responsável.38 Cada
um de nós, como desejantes, tem conotado, marcado e - digamos bem - fixado o desejo como
mais além da demanda do Outro. Nesse caso, como a demanda do Outro conota o objeto de
desejo do sujeito, o Outro não é responsável. Coisa que, parece-me, é verificada com bastante
clareza. Alguma vez vocês supuseram que o desejo dos pais, tomando os pais como
representantes do Outro, tem alta incidência estatística com o desejo dos filhos? Ou seja, estou
perguntando se o filho de Bach era músico e o filho de Einstein era matemático, isso significa

37
“Posición del inconsciente” (p. 815).
38
A única ressalva que Lacan faz a essa ideia é para o psicanalista na posição de ensinador (não está claro para
mim por que ele faz essa ressalva). Isso significaria que, se eu fosse para vocês alguém que estivesse em condições
de colaborar na sua formação como analistas (não sei se é o caso porque nosso pacto é universitário e não está
claro para mim "um por um" como nos vinculamos), então eu seria responsável pela conotação do seu desejo pelo
o que digo. [A.E.]
31
que aqueles pais queriam isso? Não é incrível para você supor que seu desejo era o que seus
pais queriam como representantes do Outro? Você já calculou que seus pais podem desejar
alguma coisa? Imagino que sim, mais do que um de vocês poderia ter imaginado que o desejo
do pai era tal coisa ou outra; que poderia caminhar pelo dinheiro, pela música, pela arte, pelo
conhecimento, uma das grandes vertentes de campos onde o desejo pode circunstanciar-se.
Verificaram que seu desejo estava por aí de forma razoavelmente coincidente? Ou melhor, você
não acha mais lógico sugerir que seu desejo é marcado pelo abraço que deram em algo que seus
pais disseram? Esta última forma esclarece muito mais e permite conceber claramente a
diferença entre os Irmãos.
Vou ler para vocês a única citação que trouxe sobre a fixação do desejo. Não sei se vocês
leram a Escansión 1- Nueva Serie, que trata de textos institucionais, um escrito que se chama
"El Señor A", que é de 18 de março de 1980. Essa carta é muito interessante, apresenta todo o
assunto da a dissolução. Bem, eu lhes leio. Já é um pouco tarde, mas vamos um pouco mais
longe.

“Outro me pede para articular a relação do que chamei de colagem, com o que Freud chama, referindo-
se à repressão, fixação. Além disso, ele é uma pessoa que não se contentou em me enviar esta pergunta,
mas anexou textos. Para dizer a verdade, ele não os enviou para mim, deixou ontem, em minha casa.
Se trata de Christiane Rabant, que ficou impressionada, ele me disse, com o que acabei articulando
sobre a carta de amor
O que é que se fixa? O desejo, que, por estar tomado no processo da repressão, é preservado em uma
permanência que equivale à indestrutibilidade.
Este é o ponto em que insisti até o fim, sem dar o braço a torcer.
Nisso, o desejo contrasta fortemente com a labilidade do afeto.".

Estamos em 1980. Repare que ele insistiu até o final: a indestrutibilidade do desejo e a
fixação do desejo. Eu sei que mais de um de vocês pode estar pensando: "Claro, o desejo é
indestrutível porque, como é um desejo de nada e está mais além de toda demanda, é impossível
destruí-lo"
Lhes pergunto, o que ganhamos em chamar isso de "fixação"? Em que medida está
fixado?
Agora, o afeto sim vai e vem, não se apega a nada em particular; às vezes você quer
uma coisa, outras vezes outra. "Contraste", diz Lacan.

"A perversão é muito indicativa a esse respeito, pois a fenomenologia mais simples revela claramente
a constância dos fantasmas privilegiados.
Porém, mesmo quando indica o caminho, desde a origem dos tempos, ela não nos abre sua entrada, já
que foi necessário Freud"

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A perversão não nos abriu a porta. Lacan afirma que o que melhor indica a fixação
fantasmática do desejo é a perversão, mas que precisou de Freud para poder dizer algo sobre
isso.

"Foi preciso que Freud primeiro descobrisse o inconsciente para que pudesse ordenar o catálogo
descritivo desses desejos por esse caminho; em outras palavras: a sorte das pulsões - como traduzo
Triebschicksale.
O que se tenta estabelecer é o laço dessa fixação do desejo com os mecanismos do inconsciente.
Foi justamente a isso que me dediquei, pois nunca pretendi superar Freud, como me acusa um de meus
correspondentes, mas sim prolongá-lo"

Bem, 1980, há muitos temas aqui. A questão é: em que Lacan não quer dar o braço a
torcer a respeito da fixação do desejo? Não tem a ver com o fato de que o sujeito não dá o braço
a torcer a respeito da fixação de seu desejo? Suponham que vocês queiram algo e não nada.
"Nada" é o que os frustra. Suponham que vocês desejam algo, seria inconcebível para vocês se
- falando sobre isso que vocês desejam e pensam em renunciar - eu lhe dissesse: "Cuidado se
você vai renunciar a respeito do que deseja, porque você nunca vai se livrar dos efeitos dessa
renúncia”? Embora não possam dizê-lo todo e jamais possam satisfazê-lo plenamente, refiro-
me a que o desejo está forte e precisamente enlaçado ao mais além da demanda do Outro – que
o particulariza, que o torna desejo disso e não do outro ou de qualquer coisa -, mas não ao desejo
do Outro.
Eu nunca lhes diria: "Levem em consideração o desejo de seus pais, porque em função
disso estará seu desejo."
O que estou propondo a vocês é que existem marcas. Entendem que esses são
significantes?

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Então, temos essa cadeia que se repete. E acontece que o espaço entre S3 e S2 estaria
sempre voltado para cima. Essa porção do bucle inúmeras vezes repetida daria a conotação do
objeto, certo? Isso é o que faria a borda do buraco central do toro.
Lacan propôs que, em função do abraço do sujeito à demanda do Outro (ou seja, o que
o Outro diz ou disse), algo da natureza de uma volta a mais, ou contada a menos,
necessariamente será produzido. Esta volta será distinta das voltas da demanda, embora seja
constituída pelo mesmo material. Esse material serão as marcas do desejo, e o desejo estará
fixado, estará selado, a essas marcas, marcas significantes que o particularizam.
Seu desejo não será marcado pelo desejo de seus pais. Mal seria marcado pelo desejo
de seus pais, já que seus pais não podem dizer plenamente o que desejam, menos ainda você
seria capaz de dizer o que eles desejam. O que estou propondo é que o que eles disseram a partir
do seu abraço a esse dizer, marcará necessariamente o desejo: o desejo terá essas marcas que
são marcas que não o confundem com a demanda e, portanto, não se convertem em destino.
Necessariamente o desejo de cada um de nós não é desejo de qualquer coisa porque, em
nosso advento como sujeitos, o desejo foi conotado por algumas, várias, voltas da demanda do
Outro. Isso deixou marcas, marcas da natureza do indestrutível. Seu desejo nunca deixará de
ter essas marcas. Que interpretação fará delas e que respostas lhes dará? Não está escrito e não
se pode saber. Sempre se tratará de algo da ordem da interpretação e do "novo", mas nem por
isso será qualquer coisa ou nada. A cultura ocidental moderna nos propõe que não é nada
(niilismo) ou que se trata de dólares ou seus equivalentes (o que é o objeto da demanda).
Toda essa proposição tem um substrato ético e, portanto, o pior perigo é renunciar,
claudicar. Porque nosso desejo tem marcas pelo fato de estar fixado no dizer do Outro. A o que
do dizer do outro? Àquela parte do dizer do Outro à qual nos abraçamos ou somos abraçados.
Da mesma forma, onde quer que entremos no abraço na posição de Outro, produziremos
o mesmo efeito em quem encarna a posição complementar; ou seja, como pais, não pode deixar
de acontecer que as bobagens que dizemos cumpram a função de marcar o desejo de nossos
filhos.
Sem dúvida alguns estarão pensando, por exemplo, como explicar a diferença no efeito
da demanda do mesmo Outro entre dois Irmãos. Sobre esse problema há um mundo a se discutir,
mas ele se resolve entre duas posições
Uma primeira resposta estabelece que o abraço está determinado. Se colocarmos como
princípio o fator determinista, então é pela equação dos pais e, por sua vez, pela equação dos
avós que produziu a equação desses pais. Assim, toda ética desaparece. Pensando assim, não
há por onde começar.
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A outra posição (é a minha, por enquanto não encontrei mais ninguém que a sustente)
supõe que não há determinação para isso, que seria o momento "zero" do sujeito, um começo
ético puro não susceptível de ser articulado a qualquer determinação. Seria uma primeira
escolha do sujeito, um sujeito que como estatuto lógico é apenas “suposto”.
Com este modelo, o problema de a que volta da demanda do Outro alguém abraçou é
problema de cada um e só se pode saber retroativamente. É a única forma de começar a falar a
partir de um ato ético, pois se não tudo se dilui no determinismo do “conforme como seus pais
te trataram, você será como pessoa”. Lacan propõe que o estatuto do inconsciente é ético.
Da próxima vez, começaremos a trabalhar o último dos grandes temas: o cross-cap para
articular a lógica do fantasma (como proposta por Lacan) e uma concepção de realidade que
dele deriva.
Vamos fazer isso em etapas. Primeiramente, vamos trabalhar o quinto postulado de
Euclides e seus problemas; a perspectiva como surgiu em Alberti, Dürer e Leonardo, e o tema
do plano projetivo. Em seguida, continuaremos a olhar para o cross-cap e tentaremos articulá-
lo à extensa nota incluída em 1966 em “De uma questão preliminar...”

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