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CAPÍTULO 8 - O TORO E O DESEJO

Recebi muitas preocupações da parte de vocês nos últimos dias. Respondi a


cada uma delas individualmente. No entanto, gostaria de dirigir algumas
palavras ao grupo. Vocês terão percebido que não encorajo um trabalho sobre as
superfícies topológicas que nos afaste da clínica, mas, ao invés disso, tento
utilizar as elaborações de Lacan sobre a topologia para oferecer uma versão
mais precisa e eficaz da clínica psicanalítica.
Além de esse ser o objetivo, devo reconhecer que a conexão das superfícies
topológicas com as noções psicanalíticas que venho propondo está fortemente
determinada pela minha leitura pessoal dos textos de Freud e Lacan. Considero
importante fazer essa esclarecimento porque percebo que não são lidos dessa
forma por outros colegas psicanalistas lacanianos, nem mesmo pela maioria. Se
minha posição fosse a mesma que a da maioria dos lacanianos, eu proporia a
leitura lacaniana. Tenho a impressão de que uma característica do estudo das
superfícies topológicas, quando conectadas à psicanálise, é que elas
proporcionam uma leitura diferente em relação ao significado de muitos
argumentos presentes no ensino de Lacan.
Hoje, vou propor que trabalhemos em torno do conceito de "desejo", porque
acredito que as superfícies topológicas oferecem as bases mais sólidas para
interpretar em Lacan uma conceituação do desejo que difere bastante da
compreensão geral entre os psicanalistas.
Para esclarecer ainda mais minha proposta, gostaria de introduzir um primeiro
problema que vou enunciar de forma simples: afirmo que o trabalho
psicanalítico em relação ao desejo não isola o sujeito, mas o articula. Traduzido
para nossa linguagem: estou tomando uma posição sobre a questão de se o ato
do desejo é "sem o Outro" ou "com o Outro".
Interesso-me em comunicar-me com vocês, por isso estou colocando isso da
maneira mais simples possível. Assim, proponho que a direção da cura está
orientada para que o sujeito recupere, através do ato, a via do seu desejo,
articulando-se mais e melhor com o Outro - especialmente com o desejo do
Outro.
Isso não é o que leio e não é o que ouço como a posição mais comum entre os
lacanianos. Em vez disso, encontro uma concepção que sustenta que, no final da
análise, o sujeito cortaria os laços com o Outro e, como resultado disso, surge a
condição particular do sujeito, precisamente porque se desprende da alienação
através da separação. Em todos os casos de pacientes neuróticos que conheci,
incluindo eu mesmo como neurótico, cada vez que consegui curar em certa
medida parte da neurose, sempre observei um aumento, em minha opinião
muito saudável e interessante, na conexão com o Outro, embora não
necessariamente com todos ou a maioria dos semelhantes. Para entender isso, e
embora possa parecer surpreendente, é necessário esclarecer novamente a
diferença entre "condição particular" e "indivíduo". Tenho a impressão de que
na concepção contemporânea da direção da cura na psicanálise lacaniana,
tenta-se produzir o indivíduo moderno, ou seja, alguém cada vez mais livre,
independente e autônomo. Eu afirmo enfaticamente que a ética de Lacan não é
individualista.
O segundo problema, para o qual as superfícies topológicas podem oferecer
uma resposta muito clínica, pode ser formulado com uma pergunta: é o desejo
inexprimível e metonímico, ou habilita mais precisamente um ato definido e
determinado? O ato do desejo em si é inexistente (uma posição bastante
difundida hoje em dia) ou, ao contrário, é sempre esse desejo particular ou
outro? Digo "esse", e não esqueçam que isso poderia ser uma perspectiva
discursiva que não necessariamente faz com que "esse" esteja presente: poderia
ser algo lido retrospectivamente na história, apesar de ainda poder ser chamado
de "esse".
Nesse tema, parece-me que é importante estabelecer a distinção entre
"satisfação do desejo" e "ato do desejo". Minha impressão é que normalmente
se sustenta firmemente que o desejo é inexprimível, metonímico e que seu
objeto não é algo específico. Proponho que existe um ato do desejo e que não é
qualquer ato, apesar de o desejo não ser satisfeito, uma vez que o desejo é
indestrutível.
Hoje, também vou tentar trabalhar com o toro e os dois toros unidos, que não
deixam o desejo isolado. Na verdade, a estrutura do sujeito é inconcebível de
forma isolada e, portanto, requer certo trabalho para entender a condição
particular. Mas como conceber algo que seja "diferente de todos" sem que isso
implique necessariamente isolamento?
Lacan, através da superfície do toro, acessa uma espacialidade que permite um
fechamento. É verdade que ele demorou até o final do Seminário IX para chegar
a essa ideia, mas ali ele deixa claro que o enrolamento que produz no toro (na
última reunião, nós a chamamos de "geratriz") não produz um cilindro infinito,
mas sim se fecha, ao contrário, por exemplo, do esquema unilinear freudiano,
chamado de "do pente", que converte a direção em um segmento de linha e
pontos suspensivos. Tenho a impressão de que as dimensões não são orientadas
dessa maneira e que o esquema não permite inscrever o objeto, que fica
representado apenas por um símbolo.

O esquema comum, aquele que nos ensinam na Faculdade, composto por S1 -


S2, não permite nenhuma elaboração ética, ao mesmo tempo que nunca
escreveria algo do tipo, por exemplo, repetição e lutos. Porque após S1 e S2,
pontos suspensivos sempre aparecem por estrutura. Coloque o que colocarem, o
esquema não se fechará. No entanto, se a articulação participa de abrangências
que se fecham, é possível estabelecer que aquilo não se fechou, porque o ato
realizado não era o ato que correspondia. E se isso não se fechou, alguém pode
dizer, por exemplo: "Eu ainda, embora possa parecer mentira, estou me
recriminando por nunca ter concluído o ensino médio."
- E você, por que nunca concluiu o ensino médio?
- Bem... eu nunca concluí o ensino médio porque comecei a trabalhar e não
tinha tempo para fazê-lo.
- E por que você começou a trabalhar?
- Bem, agora que você pergunta... não havia tantas necessidades financeiras em
casa, não era pelo sustento.
- Então, por que você fez isso?
- E... agora que eu penso um pouco...

Passam algumas sessões, infelizmente as coisas não são tão rápidas e algo
surge...

- É que meu pai não tinha estudado, e sempre havia enfatizado que ele não tinha
estudado porque teve que trabalhar. Claro que meu pai era órfão de pai e
precisava sustentar a mãe. Mas eu não. E... por que eu fiz isso?
-Por que isso ficou em aberto? Porque ele, de acordo com suas próprias
coordenadas desejantes, deveria estudar e não trabalhar. Ele fez isso por um
ideal: para sustentar o pai. Seria interessante ver qual posição seu pai teria
tomado em relação a essa decisão; talvez ele tivesse se oposto fortemente. Às
vezes, os neuróticos vão além do que lhes é pedido. Talvez em algum momento
esse paciente dissesse:
No fundo, meu pai nunca me pediu para estudar e trabalhar, eu me adiantei.
Vocês provavelmente já ouviram mais de uma história assim. Às vezes, vamos
além e supomos. Por que isso ficou em aberto? Porque o ato não foi o
correspondente. Então, havia um ato. E é falso dizer que não há nenhum. Aí está
a questão ética. Portanto, nesse caso de não-fechamento, poderíamos trabalhar
algo relacionado à responsabilidade. Além disso, se alguém estiver em análise,
poderia até trabalhar a pergunta sobre se se trata de responsabilidade ou culpa.
Se é uma falha do ato por não estar à altura do ato do desejo, ou se, em vez
disso, é um problema de culpa por assumir a falha de alguém, de algum Outro,
e, por isso, talvez..Imerso nessa posição. Vou dizê-lo com todas as palavras, que
são as de Lacan: existem atos verdadeiros e existem atos falsos, tanto em termos
de estrutura quanto em termos de coordenadas históricas, embora na maioria das
vezes só se possa ter certeza disso de forma retrospectiva. Se existem atos
verdadeiros, temos que pensar, em um nível teórico, por meio de conceitos que
permitam inscrever a lógica do verdadeiro ato.

Com o toro e os dois toros abraçados, Lacan retoma uma dimensão que ele
havia apresentado no início de seu ensino, mas que teve que retificar devido a
uma falha teórica.

Proponho a vocês que articulem o binário "palavra cheia" e "palavra vazia" com
esse problema, para observar o trabalho de Lacan, o notável desenvolvimento
que descobrimos se conseguirmos acompanhar os movimentos que ele fez em
seus textos.

A proposta de "palavra cheia" e "palavra vazia" é de 1953. Lacan teve que


abandoná-la porque percebeu que, em um nível elementar, não há nenhuma
"palavra cheia", porque todo significante em si mesmo, enquanto tal, não
significa nada. Se nos seus dois primeiros seminários ele trabalhou com essa
diferença, no terceiro ele abandonou essa abordagem. Além disso, no avanço de
seu ensino sobre a psicose, ficou claro que esse binário respondia à lógica
clínica da psicose.

Uma vez que "palavra cheia" e "palavra vazia" se esvaziaram, ficamos sem
avaliar adequadamente o problema de que todo significante, enquanto tal, não
significa nada (o que não é totalmente verdade; experimentem com qualquer
paciente analisando: escolham um significante com alto valor de significado
para o sujeito e façam-no vacilar de forma desestabilizadora; verão que a
atuação ou a interrupção do tratamento ocorrem na próxima sessão...
Experimentem, não acho que terão coragem, dada a escassez de pacientes e a
responsabilidade que se tem!).
Lacan acaba tendo que produzir algo que ocupe o lugar da "palavra cheia": o
ato. Estava mal teorizado através da "palavra cheia", porque não existe nenhuma
fórmula que, por si só, produza a verdade. "Palavra cheia" dava a impressão de
que sim, enquanto as outras eram "palavra vazia". Não seremos capazes de
introduzir nada semelhante ao ato se não conseguirmos substituir essa falsa
noção de "cadeia" significante por loops repetitivos em uma estrutura fechada: o
toro, que se diferencia assim da banda de Möbius.

Na aula 12 do Seminário IX, Lacan introduziu desenvolvimentos muito


extensos em torno do toro e sua articulação com os problemas psicanalíticos.
Nessa mesma aula, Lacan antecipou que apresentaria um extenso
desenvolvimento pessoal em torno de um problema, sobre o qual ele havia
deixado uma pista em "Função e Campo...", .

Vamos ver o que Lacan propôs sobre o toro no texto citado:


"Dizer que esse sentido mortal revela em palavras um centro exterior à
linguagem é mais do que uma metáfora e manifesta uma estrutura. Essa
estrutura é diferente da espacialização da circunferência ou da esfera em que
alguns se deleitam em esquematizar os limites do vivente e de seu meio:
responde, antes, a esse grupo relacional que a lógica simbólica designa
topologicamente como um anel.
Se quisermos dar uma representação intuitiva, parece que mais do que a
superficialidade de uma área, é à forma tridimensional de um toro que
deveríamos recorrer, porque sua exterioridade periférica e sua exterioridade
central constituem apenas uma única região."

Destaquemos alguns elementos da citação:


Na expressão "centro exterior", vocês notarão que o toro oferece uma metáfora
surpreendente: nada é mais óbvio do que o centro de "algo" estar no interior
desse "algo". Lacan afirma que, embora seja uma metáfora, aqui revela-se uma
propriedade da estrutura.

Se vocês pegarem um toro, ao falar de "exterioridade central" e "exterioridade


periférica", é evidente que estamos falando do mesmo espaço, que não há
descontinuidade. Se submergirmos um toro em um ambiente repleto de gás
celeste, haverá gás celeste ao redor do toro e em seu buraco central, sem
descontinuidade.

Assim, a ideia de "centro exterior" também deve ser aplicada à noção de


"sujeito dividido" para entender o verdadeiro alcance dessa divisão. A divisão
do sujeito não é interna (algo como o sujeito dividido em duas partes: uma
inconsciente e outra pré-consciente), mas entre ele e seu exterior: o Outro, que
lhe é central.

Há outra indicação, por meio da qual Lacan vai propor que o toro deva ser
considerado mais como um objeto tridimensional do que como uma superfície
bidimensional.
"Esse esquema satisfaz a circularidade sem fim do processo dialético que ocorre
quando o sujeito realiza sua solidão, seja na ambiguidade vital do desejo
imediato, seja na plena assunção de seu ser-para-a-morte."
Aqui temos outro problema que teremos que estudar: se é correto afirmar que ao
toro corresponde uma circularidade infinita. Continuando com a citação:

"No entanto, também pode ser percebido nele que a dialética não é individual e
que a questão da terminação da análise..." VI

Como se termina uma análise? Vocês lembram que foi uma das perguntas do
início: "mais solitário ou mais articulado?"

"No entanto, também pode ser percebido nele que a dialética não é individual e
que a questão da terminação da análise é o momento em que a satisfação do
sujeito encontra como realizar-se na satisfação de cada um, ou seja, de todos
aqueles com os quais se associa na realização de um empreendimento humano."

Não percamos de vista que estamos abordando duas questões às quais mais
tarde a autocrítica de Lacan fará referência: primeiro, que o toro vale mais como
um objeto tridimensional do que como uma superfície (mais tarde ele afirmará
exatamente o contrário, ao definir o sujeito como infinitamente plano); e
segundo, que a análise consiste em uma estrutura de dialética infinita.

Agora, o que já está colocado aqui é que, embora o fim da análise deva
responder à condição particular do sujeito, isso exige a satisfação de cada um
"de todos aqueles com os quais [o sujeito] se associa na realização do
empreendimento humano", e não apenas do sujeito. A mesma citação continua
da seguinte forma:

"Entre todas as atividades propostas no século, a obra do psicanalista é talvez a


mais elevada, pois opera nele como mediadora entre o homem da preocupação e
o sujeito do saber absoluto. Por isso também exige uma longa ascese subjetiva,
que nunca seja interrompida, pois o fim da própria análise didática não é
separável da entrada do sujeito em sua prática."

Essa ideia é extremamente interessante. Vocês sabem que Lacan de forma


alguma rejeitou a noção de "análise didática". Na verdade, ele a definiu e
estabeleceu suas coordenadas ao afirmar que a análise didática não pode ser
oposta à análise terapêutica (assim é como se fala na APA - Associação
Psicanalítica Americana). Lacan afirmou que essa distinção era falsa: há
componentes terapêuticos e didáticos em ambos os casos.

A análise didática, segundo Lacan, é a análise que se caracteriza porque nela


nenhum passo pode ser pulado. A análise de alguém que não deseje se tornar
analista não precisa atravessar todas as dimensões até alcançar o final.
Não percam de vista que a citação afirma que a análise didática termina com a
particularidade de que o ex-paciente começa a receber pacientes... Vocês veem
como ele ficou mais articulado? Quem conclui uma análise completa torna-se
um analista. Este dado é interessante para pensar se ele ficou mais ou menos
articulado ao desejo do Outro.

Bem. Na última vez, cometi um erro grave, peço desculpas diante do gravador...
Foi incrível, quase um lapsus: disse a vocês que Lacan não tinha usado o termo
"toro" em sentido topológico desde "Função e Campo..." até o Seminário IX.
Isso é falso, devo corrigir.

Cerca de quinze anos atrás, quando li em "A Instância da Letra..." a definição de


cadeia significante, sobre a qual estou tentando chamar a atenção de vocês
("anéis de um colar que se fecha no anel de um colar feito de anéis"), notei que
lá Lacan não usou "toro", mas sim "anel". No entanto, mesmo assim, em
"Função e Campo..." ele já havia articulado a estrutura combinatória do "anel"
ao objeto topológico chamado "toro".
Se vocês procurarem "toro" no dicionário, encontrarão duas entradas. Em uma
delas, "toro" remete ao latim "taurus". Aí é definido como "macho adulto do
gado bovino". Nosso uso do termo vem do latim "torus", que por sua vez vem
do grego. Curiosamente, a definição do dicionário coincide com aquela que
tiraremos dos manuais de topologia: "superfície de revolução gerada por uma
circunferência que gira ao redor de uma reta fixa em seu plano, que não a
corta". Esta é a definição do dicionário da Real Academia Espanhola, disponível
na Internet.

Ao dizer "anel", Lacan está utilizando uma noção que não vem da topologia de
superfícies, mas da topologia algébrica. Existem várias topologias. Se vocês,
hoje, procurassem um professor sério no campo das ciências exatas e dissessem:
"Sou um psicanalista lacaniano e gostaria de aprender sobre noções de
topologia", é quase certo que o professor lhes enviaria símbolos extravagantes,
letras incomuns e fórmulas incrivelmente complexas, e ainda lhes recomendaria
livros que não contêm nenhum desenho nem nenhuma superfície. Até é bastante
provável que a palavra "superfície" não constasse nesse livro... Sabe por quê?
Porque a topologia de superfícies se desenvolveu entre 1880 e 1890; ou seja, o
que para nós é a crème de la crème implica um atraso de cerca de cento e vinte
anos no campo das elaborações topológicas. Hoje, apenas se estuda a topologia
algébrica, e essa já estava em vigor na época de Lacan.

Então, Lacan diz: a estruturação algébrica à qual me refiro é um anel, que nada
mais é do que uma combinação de letras com um sistema específico de relações.
E ele propõe, para equipará-lo, o "rosquinha" - que é um objeto - ao qual ele
chama de "toro" porque é assim que figura no dicionário da língua francesa.
Lacan toma o "objeto" porque está propondo uma concepção espacial do
problema, mas está falando de uma Topologia em nível algébrico na qual, para
esse objeto, corresponde a designação "anel".
Eu retomo meu erro. É verdade que Lacan não utilizou a designação "toro" entre
"Função e Campo..." e o Seminário IX, mas ele tratou do problema em termos
algébricos e, para isso, utilizou a designação "anel" no Seminário 1, no
Seminário 2, no Seminário 5 e em "A Instância da Letra..." Vou propor que
vocês ouçam as citações para ver como esse problema entrou na psicanálise, que
tipo de articulação ele apresentou com os conceitos psicanalíticos e que tipo de
respostas nos trouxe.
Em "Função e Campo...", a ideia é um "centro exterior". O centro é exterior.
Para todos nós, é impossível coincidir com o concêntrico: como sujeitos
falantes, nunca podemos fazer algo que seja da natureza do concêntrico em
relação a nós mesmos. Nunca podemos e nunca poderemos coincidir conosco
mesmos. Nunca podemos dar um golpe em nosso próprio centro, porque nosso
próprio centro é exterior a nós. Querem a prova? Lacan é implacável em sua
lógica: vocês conhecem algo sobre o dispositivo do "passe"? Não estou me
referindo aos tecnicismos de "passante", "passador", "cartel do passe", etc.
Lacan propõe algo incrível até aquele momento, que nem o analisante nem o
analista podem dizer "terminamos". Porque a experiência dessa análise está
entre os dois: o centro dessa experiência é exterior a cada um. Portanto, alguém
de fora, um terceiro, deve vir e dizer se terminou ou não. Isso implica a abolição
da "alta" estabelecida pelo analista. É incrível, é radical, é um pensamento
levado às últimas consequências.

A seguir, faremos uma pequena investigação sobre os usos do termo "toro" sob
a forma de "anel" que Lacan realizou até a aula 12 do Seminário IX.

Na aula 14 do Seminário 1, Lacan diz:


"A primeira alienação do desejo está ligada a esse fenômeno concreto. [Lacan
se refere à alienação à imagem do semelhante] [... ] O homem sabe que é um
corpo, embora nunca o perceba de forma completa, pois está dentro dele, no
entanto, ele sabe. Essa imagem é o anel [para nós: o toro], a garganta, através da
qual o feixe confuso do desejo e das necessidades deve passar para que ele
possa ser ele, ou seja, para acessar sua estrutura imaginária.
A fórmula "o desejo do homem é o desejo do outro", como toda fórmula, deve
ser usada no lugar certo. Não é válida em um único sentido" x.

Então, primeira utilização: o toro se articula à relação entre o sujeito e seu


corpo. Como devemos considerar o sujeito lá? Vocês se lembrarão que os
convidei a examinar cuidadosamente o que significa "sujeito do inconsciente" e
sugeri que a melhor interpretação para continuar estudando a fita de Möbius era
com a frase "o inconsciente implica um sujeito", ou seja, da fala inconsciente
emerge um 'querer dizer' como se fosse um sujeito. Aqui, no Seminário 1, não.
Aqui ele é ligado ao corpo. Que outra acepção de 'sujeito' que tenhamos lido em
Lacan podemos utilizar? Proponho a vocês: 'sujeito humano falante'.
Quantos 'sujeitos do inconsciente' estão aqui, presentes, em ação? As respostas
seriam, eu acredito: ou nenhum, ou no máximo um, pois como o único que fala
sou eu, o único que conta suas anedotas, que deixa escapar algo de seu
fantasma, o que está exposto o tempo todo sou eu. Mas se eu perguntasse
quantos 'sujeitos humanos falantes' estão aqui, ninguém hesitaria em dizer
'vinte'. Trata-se de outra acepção de 'sujeito', referindo-se a coisas ligadas a
corpos. Proponho a vocês que talvez o 'toro' possa nos auxiliar a conceber
melhor a estrutura do 'sujeito humano falante' do que a do 'Sujeito do
inconsciente'.
Na aula 7 do Seminário 2, Lacan diz:
'Lembrem-se do que dissemos em anos anteriores sobre as chamativas
coincidências que Freud aponta na ordem do que ele chama de telepatia. Coisas
muito importantes, no âmbito da transferência, se realizam correlativamente em
dois pacientes, estando um em análise e o outro apenas em contato, ou estando
ambos em análise.' XI.
Quem de vocês se lembrava deste trecho?
Lacan afirma que Freud escreveu (eu, sinceramente, não encontro onde, porque
em 'Psicanálise e Telepatia' 3 não está) que a dois de seus pacientes acontecia a
mesma coisa: eles tinham o mesmo ato sintomático, estando um em análise e o
outro apenas em contato, ou estando ambos em análise. Vou ler como continua a
citação de Lacan:
'No momento oportuno, mostrei-lhes que por serem agentes integrados, elos,
suportes, anéis de um mesmo círculo de discurso, é que os sujeitos veem
emergir ao mesmo tempo tal ato sintomático, ou revelar tal lembrança.'
É que participamos da mesma cadeia, somos elos da mesma cadeia. Freud e
seus dois pacientes, os três, participam da mesma cadeia, são elos encadeados.
Não é incrível que se a cadeia se fecha da mesma forma, todos os elos dessa
cadeia estejam conotados da mesma maneira? Com isso, neste seminário, Lacan
propõe, de novo, o “anel”.
"E não percam de vista que ele o propõe como 'anéis entrelaçados', como elos
de uma corrente, como pelo menos dois touros abraçados.
No Seminário 4, Lacan afirma que, para Freud, o inconsciente tem uma lógica
flexível, como se fosse uma lógica de borracha. Leio o que segue, apenas para
amaciar o ouvido. Vamos ver em que sentidos devemos entendê-lo:
'De borracha não significa que tudo seja possível. Dois anéis entrelaçados um
com o outro, mesmo sendo de borracha, até nova ordem nada nos autoriza a
separá-los.'
Novamente, o que Lacan está propondo como metáfora dessa estruturação
lógica é a dos dois 'toros abraçados'. Observem, então, como os dois 'touros
abraçados' começam a ser uma referência insistente em Lacan (desde 'Função e
Campo...', onde o toro aparece para formular o 'centro exterior' do sujeito) até os
Seminários 1, 2 e 4, onde surgem as primeiras metáforas espaciais para as
ligações entre pessoas consideradas como sujeitos humanos falantes. A melhor
maneira de compreender tais ligações é considerar cada um como um 'anel' que
se entrelaça, se amarra, a outro 'anel' com níveis crescentes de integração; ou
seja, todos nós estamos participando de uma cadeia maior, sobre a qual não
sabemos como participamos (e em outras ocasiões, sequer sabemos que estamos
participando).
Continua o Seminário 5, que é de crucial importância porque é da mesma época
de 'A Instância da Letra', onde está a fórmula.
'Isso foi apenas um parêntese, para voltar ao meu texto.
Nele, verão, pois, que o que chamo, seguindo Roman Jakobson, seu inventor,
funções metafóricas e metonímicas da linguagem podem ser expressas de
maneira muito simples no registro do significante.
Como já afirmei várias vezes ao longo dos anos anteriores, as características do
significante são as da existência de uma cadeia articulada...'
Vocês já sabem - eu disse da última vez - que 'cadeia significante' é uma
expressão cunhada por Ferdinand de Saussure, e que, para ele, a cadeia era
definida por 'um significante, depois outro e depois outro', em uma estrutura
espacial unidimensional e orientada.
Digo isso porque quero que prestem atenção em como continua a citação de
Lacan:
'... cadeia articulada, que, acrescento neste artigo, tende a formar agrupamentos
fechados, ou seja, formados por uma série de anéis que se engancham uns com
os outros para constituir cadeias, que por sua vez se engancham com outras
cadeias como se fossem elos...'"

Não é uma descrição complicada. Ou seja, nós poderíamos ter um colar de elos,
no qual cada elo é constituído por um colar de elos. Seu design não seria muito
sofisticado, mas é oposto ao design proposto por Ferdinand de Saussure.
O artigo ao qual Lacan fazia referência na citação anterior é 'A Instância da
Letra', e vejam que ele afirma de forma indireta, alusiva, que acrescenta isso aos
desenvolvimentos realizados por Ferdinand de Saussure e Freud:
'Com a segunda propriedade do significante de se compor segundo as leis de
uma ordem fechada, afirma-se a necessidade do substrato topológico do qual o
termo de cadeia significante, que eu utilizo ordinariamente, fornece uma
aproximação: anéis cujo colar se sela no anel de outro colar feito de anéis.
Tais são as condições de estrutura que determinam - como uma gramática - a
ordem das imbricações constituintes do significante até a unidade
imediatamente superior à frase...'
Esta é, então, a sua definição de 'cadeia significante'.
Queria que trabalhássemos - com isso concluímos a reunião de hoje - como
seria conveniente conceber a ligação de dois toros abraçados, considerando que
o modelo de dois toros abraçados implica uma redução (assim como a cadeia
significante, conceituada por Saussure, pode ser representada por S1 e S2) dos
'anéis cujo colar se sela no anel de outro colar feito de anéis'.
Se tivermos dois toros abraçados, podemos testar a seguinte ideia: reduzir a
distância que os separa a zero; ou seja, torná-los 'infinitamente próximos' (noção
que vocês já conhecem, já que expliquei como uma superfície fechada como o
toro pode ser construída com anéis).
Portanto, proponho que as duas superfícies amarradas estão 'infinitamente
próximas'. Se estiverem infinitamente próximas, percebam que a 'diretriz' de um
dos toros coincide com a 'geratriz' do outro, e vice-versa."
.
.

Qualquer lacaniano legítimo aqui presente, ouvindo-me, diria: 'Alfredo ficou


com os primeiros seminários de Lacan e continua trabalhando com a
intersubjetividade, porque o tempo todo está propondo que no final da análise o
sujeito fica mais e melhor articulado aos outros sujeitos... Ele está rejeitando
uma grande mudança na teoria de Lacan que consiste na renúncia à relação
intersubjetiva'. Sim, Lacan renuncia à relação intersubjetiva, mas não porque
supõe que não há vínculos entre os sujeitos, mas para distingui-la da
transferência analítica.
Por exemplo, o que me chama muito a atenção é o que acontece com este grupo
que vocês formam e eu não. Eu os vejo saudando-se com muita familiaridade,
fraternalmente, no início de cada aula - algo que eu não havia observado em
nenhum grupo de pós-graduação que conduzi nos últimos anos.
Poderíamos começar a postular que esse vínculo entre vocês não é
intersubjetivo, pois os leva à semelhança; todos são caracterizados pelo mesmo.
Proponho que o que se nota entre vocês é uma afinidade da semelhança. Esse
tipo de vínculo, em nossa álgebra, é representado assim: a-a~. Esta escrita
significa que não há aí relação intersubjetiva, não são considerados como
sujeitos, não são considerados na diferença entre cada um (vejo que todos fazem
um esforço para esquecer as diferenças particulares, como se fossem amigos;
mas isso não inscreve a diferença particular de cada um de vocês).
Lacan verifica que há outro vínculo possível, ou seja, aquele em que um se
dirige ao Outro, ou seja, que, segundo Lacan, nunca se pode escrever S-S. Isso é
o que ele descobre, que não há vínculo ao Outro. Se há um verdadeiro Outro,
esse vínculo também não é intersubjetivo, pois não ocorre uma relação em que
ambos estejam na mesma posição de sujeitos. O individualismo moderno tende
a nos fazer acreditar na afirmação de Lacan de que 'o ato é sem o Outro', que o
sujeito pode ser sem o Outro ou sem o Outredire. No entanto, isso entra em
contradição com o que Lacan propõe, já que para ele não há sujeito sem o
Outro, nem Outro do Outro - o que significa o oposto do individualismo
predominante.
Então, proponho que efetivamente não há relação intersubjetiva, mas que o 'anel
de anéis' nos permite inscrever o vínculo dialético, o 'diálogo' (entre aspas,
porque é uma noção problemática para nós).
Qualquer um que pratique a análise, ou seja analisado, tem uma ideia clara de
que não se trata de um diálogo, mas que também não é um monólogo. É aí que
começam a nos ser úteis expressões da psicanálise como 'ISSO' ou 'Isso'. Há o
analista, há o analisante e há 'ISSO'. 'ISSO' que foi dito ou o que Isso quer dizer.
'ISSO' que não se termina de dizer ou que será dito. Está o 'Isso', e fica claro que
esse vínculo não forma um diálogo.'Anéis de anéis' não coloca a
intersubjetividade, mas propõe o vínculo discursivo estrito de Lacan, onde a
geratriz de um dos toros coincide com a diretriz do outro.

Não perca de vista que estamos trabalhando com uma superfície fechada e que,
através do procedimento de abraçar os toros "infinitamente próximos", estamos
fazendo coincidir a geratriz de um com a geratriz do outro, e vice-versa.
Trata-se de uma coincidência absoluta, não passaria nada entre eles, nenhuma
substância material, porque o discurso matemático vai além disso. Quando
alguém diz em matemática "infinitamente próximo", isso escapa a qualquer
laminação, por mais fina que seja. Então, se eu os faço coincidir plenamente,
vocês entendem que estou fechando o buraco interior?

Lacan sustenta que o "anel [ ... ] se fecha com outro anel [ ... ]", removendo os
dois colares que estão de cada lado. Quando digo que "se fecha", estou dizendo
que é fechado como um quarto selado, uma câmara selada. Aceitam a palavra
"selado" aqui? Além disso, "selado" implica uma marca, uma estampilha. A
marca é o pagamento dos impostos, e o que antes era feito pelo funcionário dos
correios era carimbar o selo: arruinava o selo, era um selo que matava outro
selo.

Observem duas coisas. Estamos dizendo: 1) que o toro se fecha duplamente (um
toro em si mesmo é uma superfície fechada), porque se eu produzo um abraço,
ignoro o buraco "interior" (usamos aspas porque dissemos que esse buraco não
é interior); e 2) se eu digo que "se fecha", estou afirmando que é marcado,
conotado de alguma forma.

Como exemplo, podemos considerar o toro A como o do sujeito do nosso


paciente. O toro B poderia ser o da mãe, no caso dela estar em análise, e ele
reclamar que ela nunca o deixa em paz. Assim, o toro B seria o do sujeito e o
toro A o do Outro. São lugares intercambiáveis, que podemos designar como
lugares "enunciativos". Notem que isso representa uma mudança na base
argumentativa da relação A-S em relação ao esquema L.

O toro em si é uma superfície fechada. Com isso, é marcado, conotado com uma
condição particular. Os topólogos nos deixaram essa pista ... Chama-se
"geratriz". Se é chamada de geratriz, se indica a direção, não está muito longe
do desejo, certo? Portanto, está intimamente ligada ao objeto do desejo, e a
geratriz à demanda, assim como o S é ao desejo e o A é à demanda do Outro.
Nisso, muitos dos nossos colegas se confundem, pois trabalham com a ideia de
que o desejo do sujeito é marcado pelo desejo do Outro. Bem, por hoje, vamos
encerrar aqui. Na próxima vez, leremos juntos as últimas três páginas da aula 12
do Seminário IX, para desenvolver e sustentar melhor essas últimas articulações
que propus a vocês.

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