Você está na página 1de 27

Princípios e Métodos da Autoeducação

OLAVO DE CARVALHO

Aula 05: Plano de estudos e plano de vida


05 de outubro de 2012

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Então vamos começar assim, se vocês tiverem perguntas sobre as aulas anteriores, façam agora. Darei 5
minutos para vocês pensarem. Como nós já passamos da metade, então é bom fazer uma revisão.

Aluno: [inaudível].

Olavo: Pode fazer, mas faça alto.

Aluno: Uma delas é sobre [inaudível, [00:00:42]] e a segunda sobre a indicação de um livro sobre
[inaudível, [00:00:54]].

Olavo: Muito bem, então a primeira pergunta é que esclarecesse melhor a questão da meditação. Na
verdade eu não esclareci absolutamente nada, então é melhor esclarecer alguma coisa sobre a questão
da meditação. Então, a palavra meditação aqui foi usada em um contexto que se referia a leitura, quer
dizer você tomar algo que foi lido como objeto de uma meditação. E a meditação é algo que procede ao
contrário, no sentido contrário de uma demonstração ou prova. A meditação vai rastrear, vai fazer um
trajeto inverso partindo daquilo que você leu, dos conceitos abstratos que aparecem em um texto de
filosofia, ou de ciências sociais, ou do que quer que seja, até as experiências humanas de base que
motivaram aquele conceito.

Isso é uma operação básica que corresponde na esfera das ciências humanas àquilo que é o teste de
laboratório nas ciências naturais. Ou seja, quando você tem uma afirmação, uma proposição cujos
termos você conhece pelo seu significado convencional ou dicionarizado, isso não quer dizer, de
maneira alguma, que você conheça a intenção – quer dizer, o significado intencional com que a
proposição foi anunciada – e muito menos os objetos originários a respeito dos quais ela idealmente
versa. Ou seja, nós vamos fazer uma um trajeto que vai desde o raciocínio lógico até memória e
imaginação, ou idealmente até os sentidos; ao contrário da abstração, é uma concreção. Nós vamos
voltar desde um conceito abstrato até os entes, experiências e situações concretas das quais ela pode ter
emergido.

Isso não quer dizer que você vai adivinhar quais as situações e percepções das quais o autor partiu, mas
aquelas das quais você poderia partir para chegar a uma conclusão análoga. Então isso nos remete de
novo ao famoso método Stanislavski: quando você lê a proposição, você se pergunta “à que objetos do
mundo real, à que objetos da minha experiência eu precisaria estar me referindo para eu pensar isso que
esse sujeito está pensando agora?”. Você pode fazer isso a respeito de praticamente qualquer
2

proposição que você leia. Então é a tentativa de você se colocar na posição existencial necessária para
pensar aquelas coisas.

Normalmente nós não fazemos isso porque nós deslizamos em cima das proposições e dos seus
significados convencionais. Em primeiro lugar porque isso é mais fácil, você se mantém no nível do
puro raciocínio abstrato o qual procede de alguma maneira automática. Vocês não podem esquecer que
o raciocínio lógico-abstrato, por maior que seja o seu prestígio, é o mais mecânico e simplório de todos,
tanto que um computador pode imitá-lo. Para um computador imitar os processos da imaginação, da
memória humana ele ainda vai precisar evoluir muito. Eu não digo que seja impossível imitar, mas não
é uma coisa tão fácil assim [00:05] . Mas imitar o pensamento racional é simples, porque ele funciona de
acordo com protocolo fixo que vai se…um conjunto de regras fixas… é assim um programa de
computador na verdade.

Assim nós tendemos a nos manter nesse nível, e com isso você pode imitar discursos filosóficos,
discursos científicos com uma relativa eficácia, porém testado a identificar na realidade as coisas das
quais o autor que você lê está falando, ou que você mesmo está falando, você falha, você não consegue
perceber. Sobretudo não consegue perceber qual a sua relação pessoal real com aqueles objetos, então
fica como se fosse uma discussão entre dois bonecos de ventríloquo. O boneco não sabe o que está por
trás dele, não sabe por que ele está dizendo aquilo. Isso acontece com uma frequência extraordinária. É
só você testar, apertar um pouco as pessoas para saber do que elas estão falando, no máximo elas vão
enunciar um conceito abstrato que eles leram em um dicionário, ou em um manual, ou em um tratado
qualquer. Mas quando você pede “me dê um exemplo real do que você está falando, não um exemplo
imaginário, uma coisa que você tenha visto”, a coisa desaparece.

Eu me lembro, por exemplo, em uma conferência que eu estava ouvindo do José Luís Fiori, que é um
professor da USP, em que uma hora ele soltou uma frase assim: “liberalismo é fascismo”. Eu disse
“está bem, agora o senhor me dê um exemplo de um regime fascista que fosse inteiramente à favor da
liberdade de mercado, que não fosse um governo estatista e centralizador”. Ele procurou e
evidentemente não achou nenhum, ou seja, o conceito de liberalismo que ele tinha na mente não era
oposto logicamente ao conceito de fascismo que ele tinha. Ele entendia o fascismo como um regime
repressor, reacionário, anticomunista etc; nada disso, em princípio, é oposto a liberdade de mercado.

Isso quer dizer que é perfeitamente possível você ter um país com imensa liberdade mercado e ter um
regime anticomunista, repressivo, que coloque todos os comunistas na cadeia; e o liberalismo, por
outro lado, se define pela liberdade de mercado. Então conceitualmente as coisas não eram opostas.
Agora, na realidade elas se tornam opostas porque é praticamente impossível você exercer o controle
estatal sobre uma sociedade deixando a economia totalmente livre, não dá para fazer isso na prática,
embora, conceitualmente, não seja inconcebível.

Então significa dizer que aquele indivíduo estava pensando apenas com conceitos abstratos, com os
significados dicionarizados das palavras, e não com coisas. No Brasil praticamente toda opinião que
circula a respeito do que quer que seja não passa nesse teste. As pessoas não estão acostumadas a
meditar o que elas estão falando, ou seja, voltar desde o pensamento abstrato até a experiência
originária.

Você pode fazer isso com praticamente qualquer frase que você leia, ou com qualquer coisa que você
pense, e aliás deve fazer. Isso vai tornar o seu pensamento muito mais lento, porque quando você está
operando só com os significados convencionais, você está deslizando em uma combinatória meramente
3

verbal ou meramente lógica, como se diz, pode ser imitada em um computador. Agora quando você
quer voltar às experiências, cada palavra traz consigo uma carga enorme de recordações, emoções,
sentimentos etc, e não dá para fazer as coisas tão rápidas assim. Só que aos poucos é isso que vai dar a
densidade do que você está falando e na hora que você abre a boca as pessoas vão sentir a diferença, se
existe uma retaguarda, ou se não existe. É isso que a gente quer dizer quando a gente diz o sujeito sabe
do que eles está falando. Não quer dizer que ele leu muita coisa a respeito, não quer dizer que ele tem
muito conhecimento, mas quer dizer que aquilo é, como dizia Camões “um saber de experiência feita”,
não é só uma combinatória lógico verbal [00:10], tem a experiência real, tem os objetos concretos por trás
daquilo. Não quer dizer necessariamente que seja verdade o que ele está dizendo, porque ele pode
também ter interpretado a sua experiência erroneamente, ou a sua experiência pode ser limitada. Isso
tudo pode acontecer, mas se não tem sequer a experiência, então realmente não tem nada.

Existem muitos livros famosos de filosofia onde você encontra isso. Hoje mesmo eu estava lendo nesse
livro aqui (que depois vou sortear para vocês) Crítica do Pensamento Jurídico Moderno, Michel Villey,
é uma maravilha, (como veio dois exemplares, vou sortear um para vocês), onde ele mostra que
grandes filósofos que escreveram obras de filosofia do direito nada conheciam do direito, nunca tinham
lido um processo, não conheciam sequer as leis, era tudo baseado em um negócio totalmente abstrato,
isto é, você pega um conceito e deduz. Bom é convincente para que não conhece o negócio, mas o
Villey (que é um sujeito que passou a vida estudando o direito romano) sabe que as referências, por
exemplo, de Kant, são todas falsas, era tudo imaginário. Então aquilo não tem substância, o direito
sobre o qual Kant está falando é apenas um direito possível, um direito conceptual. Não quer dizer que
ele não faça sentido nenhum, pode até fazer sentido no mundo das abstrações, mas não corresponde a
experiência que um advogado, um juiz, um réu de um processo têm do direito.

É claro que o leitor totalmente ignorante do assunto não percebe a diferença porque as palavras são
mais ou menos as mesmas, os conceitos são mais ou menos os mesmos. Mas você com um pouco de
prática, você acaba percebendo isso: esse sujeito está falando com base em algo que ele viu? Ou ele é
apenas uma inteligência engenhosa que está combinando conceitos? Quanto mais engenhoso é o
sujeito, mais facilmente ele enganará. Eu me lembro, por exemplo, que eu tive a experiência dessa
distinção em um exemplo que eu já mencionei aqui. Quando eu abri o livro do Wittgenstein, Tratado
Lógico Filosófico, e tinha duas frases. Primeira, o mundo é o conjunto dos fatos, não das coisas.
Segunda, fato é a alteração de um estado de coisas.

Mas, primeiro, tem um problema lógico aí, porque se a definição de fato depende de coisas, então os
fatos não tem uma substancialidade por si mesmos, por isso dizer que “é o conjunto dos fatos e não das
coisas” não faz sentido. Em segundo lugar eu tentei imaginar um mundo composto somente de
alterações de estado de coisas. Como eu faria para inventar um mundo assim? Eu olho essa sala e vejo
que algumas coisas estão em movimento, estão se alterando, e outras não. Se todas se alterassem ao
mesmo tempo, eu não perceberia alteração alguma. Se quando você andasse, o chão se deslocasse junto
com você, você não sairia do lugar. Então a própria definição de alteração supõe que nem tudo se
altera, portanto alguma coisa mão muda. E se o mundo só se compões dos fatos, e os fatos são somente
as alterações, todas as coisas que não são alteradas saem fora do mundo, só que sem elas não pode
haver as alterações. Isto não é um exame lógico que eu fiz, é uma coisa que eu tentei imaginar, um
mundo composto somente de alterações. Isto não faz o menor sentido, o sujeito não sabe do que ele
está falando e ele não quer saber. Isso quer dizer, ele inventou uma premissa arbitrária, impôs a
premissa e continua raciocinando a partir dela. Se a premissa é essa, então o resto que ele diz em
seguida sumariamente não me interessa. Pode ser muito engenhoso, como de fato é. No meio tem uma
ou duas ideias interessantes, mas no conjunto aquilo não diz nada; pior, o livro termina com a
4

conclusão de que ele não diz nada. Ele não confessa que não disse nada e em seguida autor mudou de
ideia completamente, e decidiu investigar outra coisa. Eu digo que ele já deveria ter feito isso desde o
início.[00:15]

Ali o sujeito cria uma tremenda demonstração lógica, elegantíssima, para provar que ele não deveria ter
pensado em nada disso. Então é o caso de você pensar, mas por que as pessoas se interessam quando
justamente ele está dizendo que não interessa? Por que essa especulação em torno do vazio? É muito
simples, porque a discussão filosófica, sobretudo no meio anglo-saxônico, exclui a meditação por
hipótese. Na medida em que você acreditou na escola analítica, em que você só quer lidar com
conceitos lógicos que tem significados perfeitamente definidos e estabilizados, acabou a meditação.

Por exemplo, em matemática pura você não pode fazer meditação, porque não tem objeto ao qual
aquilo deva corresponder, você tem somente os conceitos e definições abstratas e as regras lógicas. Mas
tanto em lógica pura quanto em matemática, vamos dizer aritmética elementar, você para fazer uma
conta não precisa saber se a conta se refere a bolinhas, a bananas, a quadrados etc, não há objetos, há
somente as formas lógicas. Quanto mais o indivíduo se adestra nisso, e ele acredita que idealmente a
filosofia deve lidar com isso, então significa que ele exclui a meditação, ele não tem que retroagir até a
experiência concreta dos objetos. Por quê? Porque a experiência concreta é a experiência “subjetiva”,
individual, então não entra na discussão geral. Eu digo tudo bem, só que se você tirar isso, todos os
objetos desaparecerão. E sobrou só o quê? Uma estruturação lógica do nada.

É curioso se você fizer uma teoria inteiramente baseada em conceitos estáveis, como faz Spinoza, por
exemplo, na Ética ele dá uma definição do ser, e daí ele faz uma construção em cima. Essa construção
não tem significado concreto, e você, portanto, pode atribuir qualquer significado concreto que você
queira, porque ela é apenas um símbolo abstrato de um objeto indefinido. Então não tendo raiz na
experiência concreta, você pode preencher de qualquer conteúdo concreto que você queira, que vai
sempre funcionar.

O que quer que você diga por essa linha vai cair no tal do princípio da falseabilidade do Popper, não
pode ser provado nem contestado porque não se refere a coisa nenhuma e não tem equivalente na
experiência. Isso quer dizer que quanto mais claro e definido for o conjunto de conceitos que está em
uma doutrina, mais facilmente ele escapará de ter qualquer relação com a realidade concreta. E quando
você penetrar na realidade concreta, você vai ter que sacrificar a clareza da demonstração lógica porque
lidará com elementos que não podem ser conhecidos apenas pela sua definição, mas que exigem do
leitor ou ouvinte um apelo a sua memória real, como acontece nos diálogos socráticos, onde os
ouvintes são testemunhas do que Sócrates está falando. Ele faz as perguntas para que os indivíduos
busquem na sua própria memória, na sua própria experiência, a resposta. Então eles são testemunhas do
que Sócrates está dizendo, ou seja, se elas não quiserem buscar os seus elementos na memória, você
não pode fazer nada, você não pode impor a eles uma prova, porque não se trata de uma prova lógica e
sim de uma validação por testemunho. Testemunho de quem? Do ouvinte e do leitor. É como quando
você, ao explicar alguma coisa, perguntar “não é assim na sua experiência?”. E se o sujeito quiser
mentir a respeito da experiência dele? Você não pode fazer nada. E se ele não se lembrar da
experiência? Você não pode fazer nada. Ou seja, não é como uma demonstração matemática que se
impõe por si mesma, independentemente das intenções subjetivas dos ouvintes e leitores.

Então todo o mundo da especulação lógica [00:20] e da especulação lógico matemática é o mundo que
independe do testemunho, mas que por outro lado não se refere a coisa nenhuma. E onde quer que você
esteja se referindo a alguma coisa do mundo real, você nunca escapará da necessidade da validação por
5

testemunho. O testemunho humano é o fundamento de todos os conhecimentos substantivos,


conhecimentos que tem conteúdo. Então isso quer dizer que não pode haver uma certeza inteiramente
objetivada como existe na matemática. Então 2+2 é 4, mesmo que não existe quatro objetos e mesmo
que ninguém saiba disso e mesmo que isso não se refira nada. A forma lógica continua sendo válida em
si mesma. Então como não tem objeto, não depende de testemunho algum, mas tudo quanto se refere a
alguma coisa real nunca pode ser objeto de uma prova lógica inteiramente objetivada que valha por si
independentemente até da ausência de ouvintes, ou da existência de ouvintes, isso nunca existe, sempre
você vai ter a interferência do testemunho humano.

A validação do testemunho depende de quanto esse testemunho seja fidedigno. E a fidedignidade do


testemunho você vai buscar aonde? Na sua experiência e na sua memória. Isso significa que a
experiência individual humana e a memória humana é a base de todo conhecimento, não existe outra.
Você pode dizer que existe a revelação divina. Eu digo sim, mas se a revelação divina é dada para um
sujeito que depois mente a respeito dela, dançou né? Quer dizer que mesmo a revelação divina vai
depender de que ela seja dirigida a testemunhas fidedignas. Se você estudar a história da origem dos
evangelhos, você vai ver que a Igreja examinou vários relatos, dezenas de relatos e chegou a conclusão
que somente 4 eram fidedignos. Isso significa que Jesus veio ao mundo, fez lá os seus milagres, fez a
pregação e no dia seguinte já tinha dezenas de relatos falsos a respeito. O ideal das ciências hoje em dia
é reduzir tudo a provas objetivadas, quer dizer, à impessoalidade total. Em primeiro lugar, isso é
impossível, e em segundo lugar, isso expressa uma covardia cognitiva tremenda, isto é, eu quero uma
verdade que se imponha totalmente por si mesma, sem que eu tenha sequer de concordar com ela, ou
seja, onde não haja a responsabilidade humana.

Aluno: A física quântica já fala agora de que a consciência do observador (…).

Olavo: Pois é o que eu estou falando, não tem escapatória. Mesmo em física você não vai ter (…).

Aluno: Está mudando (…).

Olavo: Não, está mudando na física quântica. A física quântica é um setor altamente desenvolvido (…).

Aluno: É isso que eu me pergunto, dentre todas as áreas, a física é a mais evoluída e que mais
repercute (…).

Olavo: Olha, você quer saber, quando repercute, ela repercute de uma maneira errada. Porque quando
se reconhece na física, por exemplo, esse coeficiente de incerteza e essa dependência do testemunho
humano, o neguinho que está acostumado com o ideal da prova objetivada, ele entra em crise e daí
começa a dizer que não existe prova de nada, que é tudo relativo, é tudo subjetivo e portando vale tudo.
E daí nasce o Paul Feyerabend com o negócio do Contra o Método, ou seja, vale argumento retórico,
vale argumento poético, vale historinha, vale o que você quiser. Por quê? Essa confissão da física
quântica de que tudo no fim das quantas vai depender de um observador é interpretada dentro de uma
tradição de pelos menos três séculos de oposição entre o subjetivo e o objetivo, eles não conseguem
raciocinar fora disso [00:25].

Ou seja, aquilo que é objetivo é aquilo que não depende de ninguém, aquilo que é totalmente
impessoal, portanto é o mundo das medições e relações matemáticas. E aquilo que depende dos
sentidos, de uma presença humana, então é o subjetivo. Então observe uma coisa, as relações
matemáticas não aparecem diante de nós como entidades materiais, elas só são alcançadas pela
6

abstração humana. Então acontece que você começa a chamar de objetivo um mundo de equações
matemáticas que não existe fisicamente. E tudo aquilo que se impõe a você fisicamente como esse
universo inteiro, passa a ser subjetivo. Isso é absolutamente louco. Ademais, quando você fala que só é
objetivo aquilo que tem a medida exata, eu pegunto: mas quem faz as medidas? Medir é comparar uma
coisa com a outra, nenhuma medida é jamais objetiva, por definição. Isso quer dizer que há uns três
séculos, desde Newton, não por iniciativa do próprio Newton, mas pela difusão do prestígio da ciência
newtoniana que criou isso, se criou essa inversão, a troca completa do objetivo e do subjetivo.

E em segundo lugar isso abole, anula a escala de certeza, porque quando você tem uma certeza
matemática de alguma coisa, ela é apenas uma certeza matemática, ou seja, ela é apenas uma relação
formal entre dois conceitos estabilizados que podem ter existência meramente verbal. Por exemplo, se
você perguntar o que é um neutrino, os caras te respondem com uma definição, agora se você pergunta
neutrino existe, o cara fala não sei. O mundo inteiro das partículas subatômicas é assim. O sentido da
palavra existir em física atômica é altamente problemático. Não dá para saber se uma coisa existe ou
não, dá apenas para lidar com ela matematicamente, medi-la e até fazer algumas previsões a respeito,
que terão uma validade estatística no fim das contas. Isso é tudo que a física quântica faz, o estatuto
ontológico daquelas coisas, é um bicho de sete cabeças, ninguém sabe. Isso quer dizer que não
podemos jamais tomar a certeza lógica ou matemática como se fosse o modelo de certeza para nós, a
certeza máxima. Ela corresponde a certeza máxima na escala de credibilidade dos discursos e somente
dos discursos. O discurso poético se baseia na mera possibilidade, o discurso retórico na
verossimilhança, o discurso dialético na probabilidade razoável, e o discurso lógico analítico na certeza
total, mas é apenas a certeza formal interna ao discurso. O fato de um discurso ser estruturado segundo
um padrão de certeza máxima, não quer dizer que o conteúdo dele tenha objetivamente certeza
máxima, que seja real.

Aluno: É a certeza da forma?

Olavo: É a certeza da forma, eu estou falando do grau de credibilidade dos discursos e não dos seus
objetos e conteúdos. O próprio Aristóteles que inventou essa escala, ele diz em um certo momento
assim: “A poesia é mais verdadeira do que a história”. Isso parece demolir a teoria dos quatro discursos
inteira, mas porque ele está falando da veracidade substantiva da coisa. Através da poesia você capta
certas realidades universais que todos os seres humanos podem comprovar, ao passo que a história te dá
uma narrativa cuja credibilidade depende de documentos, de uma fé de testemunhos incoerentes etc, é
uma validade relativa. Um personagem como Dom Quixote é psicologicamente verdadeiro, universal,
todos podem reconhecê-lo e todos entendem uma dimensão quixotesca na conduta humana [00:30], como
entendem, por exemplo, a dimensão da traição e da intriga quando observa o personagem de Iago no
Otelo e assim por diante.
E a narrativa histórica da época? Se você ler a bibliografia de Luís XIV, saberá que está faltando um
monte de pedaços e que estes dependem de depoimentos que você não pode testar até o fim e assim por
diante. É uma validade muito relativa. Quando Aristóteles fala da escala de credibilidade, ele está
falando da escala de credibilidade formal dos discursos, ou seja, do tipo de credibilidade a que o
discurso pretende atingir na cabeça do ouvinte – credibilidade e não veracidade. Credibilidade é um
mero efeito psicológico.

Aluno: Professor, a credibilidade de uma biografia, então, seria retórica?

Olavo: É retórica sim. Às vezes, chega a ser dialética, no máximo. Por exemplo, se o que você está
enunciando vem na forma de um discurso poético, significa que não há a intenção de provar nada e que
7

você só está querendo despertar a imaginação do seu ouvinte para certas possibilidades e assim por
diante. Quando chega no último grau da escala e você dá uma demonstração matemática, você quer
dizer que há uma certeza absoluta, mas esta certeza está dentro das premissas que você colocou no
início e essas premissas, inclusive, podem ser falsas. Não está nos poderes do discurso lógico atestar a
veracidade das suas próprias premissas, tanto que pode haver um discurso inteiramente lógico sobre
entidades desconhecidas, como em álgebra, por exemplo: você não sabe quais são os valores que está
lidando, se a sobre b é igual a x sobre y, você não precisa saber o que é a ou b. O discurso lógico,
portanto, diz respeito à credibilidade da sua forma e não à veracidade do seu conteúdo. Se o seu foco é
a veracidade do conteúdo, então a classificação em quatro discursos não resolve o problema
inteiramente. Você tem que apelar para outros critérios.

Aluno: O Senhor orienta fazer os quatro discursos [inaudível, [00:32:50]] e daí comparar com um
[inaudível, [00:32:57]].

Olavo: Não dá para fazer isso porque a veracidade de um discurso não depende do discurso. O seu
nível de credibilidade sim, ele depende da sua forma. Se há uma forma poética, tem uma credibilidade
x; se há uma forma lógico-matemática, a credibilidade é y. Mas a veracidade de um discurso nunca está
nele; está naquilo que ele se refere, que está externo.

No início da modernidade, confundiu-se a credibilidade máxima com a veracidade máxima e, portanto,


o discurso lógico-matemático ficou como modelo, mas hoje nós já sabemos que não é assim. Se as
pessoas tivessem lido Aristóteles direito na época, perceberiam que não é assim. Então, levantariam a
pergunta: se não é o discurso lógico-matemático que nos dá a veracidade máxima, onde está e qual é o
modelo de veracidade máxima que existe? Qual é aquela coisa da qual você não pode duvidar de
maneira alguma, sob aspecto algum? É aquilo do qual você foi testemunho direto. É possível verificar
isso, sobretudo, quando você é testemunha única. Por exemplo: você viu um sujeito matar o outro, viu
um indivíduo pegar uma faca e enfiar na barriga do outro e o outro cair, estrebuchar e morrer e o
assassino se mandar. Ocorre o seguinte: não há impressões digitais, a arma do crime desapareceu e o
sujeito apresenta vinte testemunhas que disseram que o viram, naquele momento, no Estado do Mato
Grosso [00:35]; mas você estava lá e sabe qual é a verdade.

Só existe um modelo de certeza absoluta: a testemunha solitária. Esta é a que inaugura toda a fase da
nossa civilização porque foi assim que aconteceu com Cristo pendurado no alto da cruz: só ele sabia o
que estava acontecendo, os outros não estavam entendendo nada, os apóstolos que sabiam um pedaço
tinham fugido. Cristo no alto da cruz é o modelo da testemunha solitária e é o modelo da verdade que
foi passado para nós. Ou seja, se a testemunha solitária nos dá o máximo de veracidade a que nós
podemos atingir, isso significa que não há garantias externas da veracidade de nada. O máximo de
objetividade da verdade corresponde com a máxima dificuldade de prova e isto faz parte da estrutura e
do destino do ser humano e não tem escapatória.

A busca de uma verdade intersubjetiva que se imponha a todos uniformemente é, em primeiro lugar,
uma falsidade e, em segundo lugar, uma covardia. Ou seja, nós queremos uma garantia externa de que
nós estamos vendo a verdade. Não existe isso. Nunca vai existir.

Primeiro porque toda e qualquer prova externa é feita com conceitos abstratos. Existe verdade abstrata?
Só no sentido lógico da coisa. A verdade da realidade não pode ser abstrata porque o abstrato é só um
corte que nós fazemos para efeito do nosso pensamento; o abstrato está só no pensamento, não está na
realidade. A verdade na realidade só pode ser conhecida por testemunho direto: quando você vê um
8

sujeito esfaqueando o outro e este cair e morrer, o que aconteceu? Aconteceu exatamente isso. Qual é a
verdade da situação? É esta: o sujeito matou o outro. Este enunciado está dado pelo próprio
acontecimento, não é um pensamento que eu tive. Mesmo que eu pense outra coisa, aquilo continua
sendo verdade. A verdade objetiva é a verdade que está na estrutura e na ordem efetiva da realidade e
não no meu pensamento. Este é apenas um reflexo longínquo e parcial disso aí e só tem validade
quando há uma raiz na própria realidade e é esta raiz que a meditação busca. Ou seja, a meditação
busca transformar um pensamento abstrato em testemunho real: você dá um testemunho daquilo que
disse ou não dá. É este o único método que funciona para buscar a verdade.

Se você quer apenas a prova intersubjetiva que cria uma verdade obrigatória para todo mundo, esta
verdade será abstrata e se referirá somente a pensamentos, ou seja, a aspectos seletivos da realidade e
não a seus entes concretos. É por isso que entre essas verdades abstratas e as suas exemplificações
concretas, sempre existe uma margem de diferença, uma margem de erro. Em toda conclusão científica
genérica, a conclusão só se refere a certos aspectos da realidade que foram considerados
abstrativamente. E os outros aspectos? São considerados acidentes, elementos supervenientes. Pode
ocorrer no mundo algum acontecimento que se constitua somente da sua essência abstrata tal como
consta da definição? Não, a presença de acidentes e de elementos supervenientes é o que dá a
concreção do fato e a sua substancialidade real. Por exemplo, há os crimes definidos e tipificados no
Código Penal [00:40]. Existe algum crime possível que se constitua somente daqueles elementos que
estão definidos no Código e que não tenha nenhum elemento superveniente acidental? Por exemplo, o
crime tem que ser cometido em algum lugar. Pode ser um crime que aconteceu em lugar nenhum? Não.
Se não houver um lugar, não tem crime. O Código Penal se refere a isso? Não. O Código Penal define o
estupro. O lugar onde aconteceu o estupro é indiferente à definição genérica. Isso quer dizer que não
pode acontecer nenhum estupro que se constitua, exclusivamente, daquilo que está definido no Código.
Você tem milhões de outros elementos acidentais que o compõem para que ele possa ser uma realidade.
Quanto mais a ciência se “aperfeiçoa” e as pessoas se especializam naquilo, mais elas acreditam que os
elementos, tal como estão definidos na sua ciência, existem em si mesmos. Ou seja, elas tomam essas
entidades concretas e acreditam que são reais, mas eu digo, só se for em um mundo de fantasmagoria.

Quando a modernidade consagra o raciocínio lógico-matemático como o topo e o modelo da


veracidade – e não apenas da credibilidade como fazia Aristóteles, que é muito mais prudente –, cria-se
um mundo de fantasia que vai ser imposto obrigatoriamente a todo mundo como se fosse o mundo real.
Por exemplo, morre um milhão de pessoas por ano em decorrência de erro médico nos Estados Unidos.
Não há nenhuma doença que mate mais do que isso. O câncer e as doenças cardíacas não matam tanta
gente assim. A medicina é um negócio altamente perigoso. Isso não quer dizer que se você suprimisse a
profissão médica morreria menos gente, não significa isso. Porque há outras pessoas que morreram de
outras coisas e, certamente, a medicina diminuiu a mortandade de pessoas que estavam ameaçadas por
outras coisas que não são erros médicos – mas o número é impressionante. Quando você vê esses erros
médicos, conclui-se que quase todos eles são causados por isto: o indivíduo observou uma entidade
abstrata e a considerou real. Por exemplo, há a situação da taxa de colesterol: o sujeito está totalmente
assintomático, está se sentindo muito bem, vai ao médico e este lhe diz que a taxa de colesterol está
muito alta e deve diminuí-la. Por que? Porque existe uma definição da média saudável e você está
acima dela. Mas eu não sou um cidadão médio, eu sou só eu, não sou mais ninguém. Faz tempo que
eles estão tratando de um paciente abstrato e genérico. Estatisticamente, isso dará certo em cerca de
60% ou 70% casos, mas necessariamente vai falhar nos outros 30%.

Aluno: O que fazer?


9

Olavo: o que fazer é o seguinte: não basta o treinamento do médico na ciência médica; ele precisa ter o
senso da experiência direta altamente desenvolvido. Ocorre que o indivíduo que sai da faculdade de
medicina hoje não sabe fazer o exame físico. Eles deixam tudo por conta dos testes do computador.

Eu vou contar uma estória para vocês: uma vez eu peguei uma coceira absolutamente infernal. Eu
coçava 24 horas por dia, parecia um macaco, não conseguia dormir, já estava pensando em estourar os
miolos. Passei em vários médicos, que me deram um monte de coisa, tudo errado. Eu tinha um amigo
pediatra, Dr. Paulo Ligier. Eu pedi ao Paulo para me indicar um clínico geral velho, com mais de 70
anos. Ele me indicou um professor dele, o Dr. Domingos Minervino [00:45]. Eu entrei no consultório e o
médico falou: “Chega para lá que você está com sarna!”. Ele passou o remédio e em vinte e quatro
horas eu estava bom. Os caras não sabiam identificar uma porcaria de uma sarna. Por quê? Eles não
tinham estudado? Estudaram. Só que eles não tinham aquela prática da observação direta que só o
tempo dá.

Isso quer dizer que uma medicina que era menos científica e que era mais dependente da
responsabilidade pessoal do médico funcionava melhor. Eu vi inúmeros casos como esse. Então é
assim: em medicina o cara começa a ficar bom depois dos sessenta. Médico novo? Não. Quando não há
experiência, você substitui pelo quê? Pelo raciocínio abstrato, pelo manual etc. A experiência é aquele
negócio indizível que você tem e domina, mas que não conseguiria explicar. Não é porque seja
irracional ou subjetivo. Não é nenhuma das duas coisas; é uma coisa inteiramente objetiva que você
viu. É tão objetiva quanto o testemunho no caso do homicídio, mas ela não tem ainda os conceitos
estabilizados para ser descrita. O sujeito precisaria ser um monstro de escritor para descrever a sua
experiência pessoal nisso aí. Mas o cara já é um grande médico, você ainda quer que ele seja
Shakespeare? Ele consegue fazer, mas não sabe explicar como faz. Essa é a cota de experiência pessoal
que é intransferível.

Quando você quer se livrar da experiência pessoal e transferir tudo para a esfera das medições
objetivas, acontece aquilo que eu expliquei no curso Conhecimento e Moralidade: para fazer medições
objetivas você precisa de aparelhos, e para manipulá-los você precisa de técnicos. Que tipo de
conhecimento esses técnicos têm sobre os aparelhos? Eles têm somente os conceitos abstratos ou a
experiência pessoal no manejo dos aparelhos. Essa experiência pessoal é, frequentemente,
intransmissível em palavras, o sujeito tem que manejar aquilo, ele sabe fazer mas não sabe explicar. Ou
seja, quando você chega no máximo de exatidão científica, você ainda está dependendo do testemunho
individual. Por isso que a ideia de conhecimento está intrinsecamente ligada à ideia da responsabilidade
individual e do testemunho individual.

Toda a nossa civilização – que foi a única na qual se pode desenvolver o conceito da ciência, do
conhecimento objetivo etc., e que passou essa noção para as outras – é inaugurada pelo testemunho
individual: Cristo no alto da cruz. Então não adianta querer fugir da sua responsabilidade e se escorar
em uma ciência impessoal. Não existe isto. É tudo balela. O portador do conhecimento é o ser humano
real. Não é o livro. Essa é outra ilusão: o progresso do conhecimento. Não existe progresso do
conhecimento, existe o aumento do número de registros do conhecimento adquirido. Por exemplo: as
bibliotecas e os arquivos aumentam etc. Só que a cada geração, alguém tem que ler e entender aquilo.
Isso quer dizer que o progresso do conhecimento não é um dado objetivo, é uma figura de linguagem,
uma metonímia. Não foi o conhecimento que aumentou, foi o número de registros. Portanto, o modo de
aquisição do conhecimento desses registros tem que se aprimorar também. É preciso criar novas
técnicas de informação e de pedagogia para permitir que a cada geração, as pessoas absorvam uma
parte daquilo. É o que fala o Jean Fourastié: o progresso do conhecimento vem junto com o progresso
10

da ignorância; quanto mais conhecimento registrado, mais ignorante você se torna.

É aí que vem uma concepção básica – não só deste curso, mas de tudo que eu estou fazendo [00:50]:
talvez o progresso do conhecimento não consista em aumentar o número de registros, mas em criar
pessoas qualificadas para manipular os registros. O problema, portanto, não é saber quanto de
conhecimento nós temos, mas quantas pessoas podem entender esse negócio.

O conhecimento não é um objeto e nem uma coisa. O conhecimento é uma propriedade do ser humano
e só existe na cabeça dele; e o ser humano só existe sob a forma de uma individualidade concreta. Você
pode conceber algum conhecimento que seja possuído coletivamente sem que nenhum dos indivíduos
que compõem a coletividade o possua? É possível afirmar: “nós sabemos tal coisa, mas nenhum de nós
sabe”? Não, é autocontraditório. Não pode haver progresso do conhecimento, só pode haver aumento
do número de conhecedores ou de pessoas qualificadas para o conhecimento. Veja que uma pesquisa
científica aumenta o número de registros e estes ficam guardados em arquivos, bibliotecas, publicações
especializadas etc., à espera de que alguém vá lá decifrar aquele negócio. Às vezes não vem ninguém.
Pode haver descobertas científicas espetaculares que estão lá em uma revista de província há 70 anos e
que ninguém descobriu.

Em segundo lugar, o aumento da quantidade de registros requer uma tecnologia cada vez mais
aprimorada para lidar com isso. Por exemplo, o advento dos computadores ajudou bastante. Você não
precisa ficar manipulando fichinha, o computador te ajuda. Isto facilita realmente as coisas, mas facilita
o acesso físico à informação. Nós criamos meios técnicos materiais de acesso a volumes imensos de
informação. Ao mesmo tempo, tentamos qualificar as pessoas para lidar com isto ou não? O progresso
dos equipamentos não é acompanhado pelo progresso da qualificação humana para lidar com eles. Isto
aqui foi um processo que eu observei no jornalismo.

Até os anos 50, os jornais eram impressos com uma técnica chamada linotipo. Linotipo era um
caldeirão de chumbo fervendo. O sujeito digitava o texto ali: para cada letra que ele batia, caía um
molde de letra e, no fim de cada linha, derramava o chumbo ali e criava uma linha de chumbo com
aquelas letrinhas. Em seguida, aquela linha de chumbo caía e ia sendo empilhada; depois pegavam as
várias pilhas e as ajeitava dentro de um formato de jornal – dentro tinha um molde de ferro – e daquilo
se prensava um papelão e deste fundia uma outra chapa semicircular que ia para rotativa. Era feito
assim. Eu lembro que naquela época, o pessoal da gráfica eram todos homens velhos com muita
experiência, entendiam o negócio de trás para diante e, frequentemente, davam lições no pessoal da
redação: a gente mandava o texto com erro, chegava no linotipista e ele dizia: isso aqui está errado.
Com o progresso da técnica, resolveu-se fazer a composição em offset, por computador etc.
Compravam umas máquinas maravilhosas, o computador, naquele tempo, era do tamanho desta casa e
chamaram uns técnicos; então aprimorou. Só que aconteceu o seguinte, ninguém sabia lidar com
aquelas máquinas. Então, repentinamente, os jornais que tinham alcançado um nível técnico
maravilhoso decaíram para o nível do mais extremo primitivismo, começaram a aparecer erros que
eram inconcebíveis antigamente. Porque para qualificar as pessoas para lidar com os novos
equipamentos levava pelo menos 20 anos. Mas quando a nova geração era qualificada, os
equipamentos já tinham sido aprimorado um pouco mais, já não era mais aquilo, já tinha o
microcomputador [00:55]. É um negócio alucinante.

A educação não é capaz de acompanhar essas coisas. Quanto mais veloz o progresso da técnica, mais
veloz o progresso da ignorância. Eu me lembro de ter sido o primeiro cara que lidou com esse negócio
da diagramação de jornal para os novos métodos gráficos. Os erros que aconteciam eram monstruosos,
11

coisas inconcebíveis na etapa anterior. Um dia eu diagramei o jornal, mandei para a gráfica e no dia
seguinte, aparece na primeira página do jornal a seguinte coisa: “seu fulano, esta matéria entra na
página tal; assinado, Olavo”. São erros monstruosos, até hoje os jornais não se recuperaram disso. Por
exemplo, o número de erros de gramática que acontecem, erros de revisão, multiplicou por mil. Porque
antigamente os revisores eram pessoas experientes e havia uma conexão entre os revisores e o pessoal
da gráfica: eles trabalhavam juntos. Então, o que passava pelo revisor, o linotipista corrigia na hora de
digitar. Tudo isso se perdeu, um patrimônio humano enormemente valioso, uma geração inteira de
gráficos experientes que foram mandados para casa. Foram demitidos para contratar um monte de
moleques idiotas que não sabiam fazer nada. E pior, o moleque idiota vinha com um senso de
superioridade imenso e falava “você é um troglodita, fica aí com esse negócio de linotipia, nós estamos
na ponta da vanguarda técnica”.

Eu estou dando um exemplo muito simples que se dá numa indústria relativamente simples. Quando
você chega em outras indústrias mais complexas de maior responsabilidade, pode acontecer o que
ocorreu em Chernobyl ou esse negócio que aconteceu no Japão, há uma usina no Japão que também
está vazando energia atômica para todos os lados. Isso é pior do que Chernobyl e ninguém está falando
justamente porque é pior.

Quando você lê um livro de história das ciências, em geral, essas histórias contêm somente as
descobertas, ou seja, as teorias que deram certo. E as que deram errado? São mil vezes mais e isso faz
parte da história das ciências.

Tudo isso é causado por esse erro monstruoso cometido no começo da modernidade, que é o de tomar a
máxima credibilidade do discurso como se fosse coisa idêntica à máxima veracidade do seu conteúdo.
Aristóteles tinha a ideia de que não era assim, tanto que ele dizia que o discurso lógico-analítico não
fornece conhecimento algum, apenas formaliza um conhecimento que você já tem, mas a busca do
conhecimento tem que se dar por outros meios, sobretudo meios dialéticos, que é a confrontação de
hipóteses. O que é a confrontação de hipóteses? É o que, hoje, nós chamamos de método científico, ou
seja, a velha dialética de Aristóteles simplesmente mudou de nome e virou método científico. Ele tinha
muita ideia de que nós, na maior parte dos assuntos, não alcançamos o nível de formalização necessário
para fazer uma demonstração lógico-matemática. Então, nós temos que nos contentar com menos e,
portanto, entra ali o elemento do que ele chama “a prudência”, “a frôneses”. O que é a prudência? É
uma sabedoria que você adquiriu por experiência. Não tem como escapar disso.

Esse exercício de meditação – podemos chamá-lo assim – serve para você escapar da falsa certeza das
demonstrações lógicas para a incerteza sapiente e razoável [1:00] do que você conhece por experiência
pessoal. Qualquer livro que você leia baseado nisso, em primeiro lugar, você vai ter muitas decepções,
porque em cada linha que você ler, você vai pensar “deixa eu ver à que isso corresponde, deixa eu fazer
o que esse sujeito está falando, fazer, pelo menos, imaginariamente”. E, às vezes, você verá que não é
possível fazer.

Foi com esse método que eu puxei várias críticas que eu tenho apresentado a filosofia moderna, a
Descartes, Kant, Hobbes, Maquiavel etc. Foi simplesmente isso, eu tentei levar a sério o que eles
estavam falando, mas o que eles diziam em um plano genérico, abstrato, eu buscava alguma
correspondência no mundo da realidade experienciável, então eu pensava, deixa eu tentar imaginar ou
fazer isso. A tal da dúvida sistemática de Descartes, eu digo: não é possível fazer. Por que eu sei?
Porque eu tentei. Ele está falando uma coisa que na realidade ele não fez e que não podia fazer. Então,
depois, examinando aquilo com mais atenção, eu cheguei a conclusão de que aquela suposta narrativa
12

que ele apresenta dos pensamentos que ele teve é uma camuflagem de pensamentos totalmente
diferentes que ele teve. Nesse caso você entra no perigoso terreno da sacanagem; às vezes, não é uma
sacanagem intencional, mas é uma auto-sacanagem, o indivíduo enganou-se a si mesmo. É claro que
isso é uma decepção, porque um filósofo não deveria fazer isso; ele deveria, em primeiro lugar,
aprender a não fazer isso, a não se enganar-se a si mesmo. E esse engano, quando adquiri as proporções
de uma falha estrutural de um sistema filosófico inteiro, então ele se chama paralaxe cognitiva; mas é
só nesse caso, não é qualquer errinho que se torna uma paralaxe cognitiva. Depois que eu coloquei esse
termo em circulação, qualquer besteira que alguém fala é chamado de paralaxe cognitiva – acusam até
o Paulo Ghiraldelli de paralaxe cognitiva. Paralaxe cognitiva é para Descartes, Kant etc., é preciso ser
um gênio para cair na paralaxe cognitiva, é preciso ter um sistema filosófico inteiro. Então a meditação
é a vacina contra a paralaxe cognitiva.

Aluna: Depois de tanto tempo ninguém descobriu isso?

Olavo: Ninguém disse isso com a cara de pau que eu estou dizendo. Mas eu posso dizer isso porque eu
não devo nada para ninguém, não tenho chefe de departamento para me fiscalizar, não tenho emprego.

Eu tenho um primo que, quando jovem, cometeu uns delitos – a moda era as pessoas encherem a
cabeça de maconha, roubar um automóvel, pegar umas garotas, dar uns rolés com elas, transar, e depois
largar o carro em qualquer lugar –, e ele fez isso duas ou três vezes e foi para a cana. Quando ele saiu
de lá, estava totalmente marginal e ninguém lhe dava um emprego; ele só conseguiu um emprego de
office boy no escritório de advocacia do pai dele. Um dia ele precisava de um documento em um
cartório, era uma situação urgente e o funcionário não queria entregar o documento para ele. Foi
quando ele perguntou: “Meu amigo, você tem emprego?” “Tenho” “Você tem CPF?” “Tenho” “Você
tem RG?” “Tenho” “Tem título de eleitor?” “Tenho” “Pois é, eu não tenho nada disso e, por isso
mesmo, não me custa nada saltar esse balcão e encher a sua cara de porrada!”. Então eu estou mais ou
menos na situação desse meu primo. Academicamente falando, sou um joão ninguém, não tenho
satisfação para dar para ninguém, então eu posso dizer essas coisas, estou livre para dizê-las.

Aluna: Então, muitos podem dizer muitas coisas, mas acho que esclarecer tanto assim…

Olavo: Não, mas dizer assim desse jeito, não dá, todo mundo enrola.

Aluno: Professor, ao longo desse estudo, quando e como fazer essa meditação?

Olavo: Eu sugiro que, quando você ler um texto – por exemplo de filosofia ou ciências sociais –, não o
coloque em dúvida de início [1:05], aceite o que o autor está falando. Porque se você não aceitar, você
não levará a sério, e se você não levar a sério, você não vai tentar reconhecê-lo na realidade. Então
você precisar dar um certo nível de credibilidade ao autor, sem medo de que ele te engane. Depois que
você entender o que ele está falando, tente imaginar as coisas. Às vezes não é possível, na primeira
linha você já empaca, isso acontece, obviamente; mas são apenas casos extremos, como o de
Wittgenstein. Em geral, o descompasso entre o raciocínio abstrato e a experiência concreta, aparecerá
mais adiante. No começo o autor está falando algo razoável e depois você vê que no fundo existe essa
absurdidade.

Por exemplo, depois de estudar muito Kant, de rachar muito a cabeça, acompanhar, virar uma coisa
muito séria, de repente me deu esse instalo: ele fala desse negócio de sujeito-objeto, mas ele nunca se
lembrou que ele também é um objeto. E se ele não fosse um objeto, eu não poderia ler o livro dele, ele
13

existiria apenas como sujeito. Então você percebe que esse todo esse sistema está errado, porque ele é
baseado na ideia de tampar a metade da realidade e proibir as pessoas de olhar aquele lado. Mas
acontece que é naquele lado que existe realmente um sujeito chamado Immanuel Kant que escreve
livros. Isso significa que você só pode aceitar a filosofia de Immanuel Kant se você achar que ela foi
escrita por Deus. Se for um sujeito que realmente existia, que as pessoas viam na rua e conversavam
com ele, e ele escreveu esse livro; se é assim, então as coisas não podem ser do jeito que ele disse.
Quando ele diz: “Nós nunca conhecemos a coisa em si, só conhecemos a sua aparência fenomênica”,
podemos dizer muito bem, mas ele quer que eu conheça a filosofia de Kant em si e não a sua aparência
fenomênica. Isso significa que a existência do livro dele prova que as coisas não são do jeito que ele
está dizendo, ou seja, eu não consigo conceber um mundo onde eu só tenha acesso a experiências
fenomênicas, porque eu próprio sou um objeto, e sou, portanto, uma aparência fenomênica. E se eu
disser que aquilo que eu conheço de mim mesmo são apenas sucessivas aparências fenomênicas, ou
seja, se o meu conhecimento de mim mesmo se constitui somente de cascas, se eu nunca vou poder
aprofundá-lo ao ponto de poder julgar o conhecimento que eu tenho dos objetos, tudo que eu disser a
respeito do meu conhecimento deles, é também uma aparência fenomênica, inclusive a filosofia inteira
de Kant.

Eu cheguei a essa conclusão não por examinar logicamente a filosofia de Kant, mas por tentar realizá-
la na minha imaginação, com toda a inocência do mundo, sem nenhuma sacanagem com ele. Quando
você faz as coisas assim, a fragilidade de filosofias muito importantes aparecem diante de você de uma
maneira absolutamente escandalosa. Então você percebe que toda a glória da modernidade está em um
negócio chamado tecnologia, pois do ponto de vista intelectual maior, é uma desgraça. Isso quer dizer
que o QI dos filósofos e cientistas abaixou, mas o dos engenheiros subiu muito. Por isso você cria
equipamentos cada vez mais maravilhosos para serem operados por pessoas cada vez mais idiotas.

É simplesmente você recuar da sentença abstrata a uma imagem concreta, que pode imaginária; mas de
preferência, não. É preferível que seja algo da memória, ou seja, é você tentar ver o que o sujeito está
falando, ver, sentir e tocar, como se aquilo fosse [1:10] um sonho acordado dirigido. Quando você assiste
uma peça de teatro ou um filme, existe lá uma sequência de imagens. Essa sequência de imagens
devem evocar em você certas emoções que saem da sua memória – são análogos que você puxa. Por
exemplo, você está assistindo, como diz o Gugu “a história comovente do menino e seu cão”; o
cãozinho desaparece e o menino fica chorando. Você nunca passou por nada disso? Ou alguma coisa
parecida? É por isso que você consegue se emocionar diante daquilo. Isso significa que, nas obras de
ficção, esse apelo a memória afetiva é quase automático.

Você deve fazer a mesma coisa com obras de ciência e filosofia. Vai lê-las como se fossem obras de
ficção, como se fossem pautas que o autor criou para guiar a sua imaginação e a sua memória. Isso é
um teste muito mais temível do que qualquer análise lógica que você faça dos textos; porque na análise
lógica você só encontra contradições lógicas, e contradições lógicas não significam grande coisa. Um
autor pode cometer contradições lógicas horríveis e ainda assim estar dizendo a verdade, simplesmente
na hora de se expressar, ele se equivocou, se atrapalhou, mas, no fundo, ele está dizendo a verdade.

Pode ser também que a contradição lógica expresse uma contradição real, quer dizer, não aspectos
contraditórios de uma realidade que ele percebeu e que não conseguiu reduzi-las a uma unidade lógica;
tudo isso pode acontecer. Assim, ficar buscando contradições lógicas é coisa de gente desocupada. Mas
isso que eu estou falando não é sobre buscar contradições lógicas, você está buscando a substância real
do que o sujeito disse; e, às vezes, você percebe que não é possível encontrá-la porque essa substância
não existe. Ele está falando em um nível onde só é possível a combinação lógico-verbal. Agora quando
14

você lê um filósofo realmente grande, nunca acontece isso: Aristóteles ou Leibniz sempre sabem do
que estão falando; e quando não sabem, eles sabem que não sabem. Sabem que a coisa é apenas uma
especulação lógica

Agora, quando você pega, por exemplo, Nietzsche, que explica tudo pelo ressentimento, todo mundo é
um bando de complexados, que está mentindo para esconder as suas fraquezas. Eu digo: muito bem,
agora me diga quais são as suas fraquezas e o que você está querendo esconder? Ele não fala disso, ao
contrário, ele escreve um livro inteiro para dizer “Por que eu sou um filósofo tão genial? Por que eu
escrevo tão bem?” Ele escreve isso! Quando você vai ver, descobre que ele era um pobretão, sifilítico,
que ninguém ligava a mínima pra ele…bom, estou entendendo por que ele precisa de uma
compensação. Então, o que ele escreve do ressentimento teria uma validade muito maior se tivesse esse
componente confessional. Como não tem, como ele esconde, então fica uma comédia. Muita coisa do
que ele diz poderia ter validade, mas essa validade seria relativa, seria, por assim, dizer proporcional ao
valor da confissão. Como não tem isso ele apaga a confissão e fica apenas aquele imenso discurso de
acusação, no qual a pessoa do acusador tem que ficar invisível, ou seja “quem está falando isto?”. Em
seguida ele brinca de dizer que é o anticristo. Anticristo nada! Você é um coitado, rapaz! Sinceramente,
a obra de Nietzsche é tragicômica. Não podemos negar o talento dele, mas aquilo, como dizia
Pirandello: “Ma non è una cosa seria.” Agora, se viesse com essa confissão da sua própria impotência,
miséria etc., ah bom, então seria outra coisa [1:15]. Mas esses caras em geral são assim, Jean Jacques
Rousseau também acusa todo mundo e ele sai sempre bonito.

Aluno: Nessa que o senhor fala que os filósofos falseiam a posição existencial deles...

Olavo: Falseiam a posição existencial. Como é que você sabe disso? Pela meditação. Então você vai
ver que esse cara realmente não acredita no que ele está dizendo. Ele só acredita naquele momento em
que ele tá escrevendo. Ele se transporta para um estado imaginário, recorta a realidade, olha aquilo
como quem tá vendo uma tela e escreve aquilo como se fosse verdade. É como você estar em um
cinema e estar acreditando inteiramente no que está se passando na tela, e esquece que está num
cinema, que pagou entrada, que vai voltar pra casa. Então é uma espécie de alucinação visual.

Aluno: Professor, Maquiavel poderia ser (...)

Olavo: Maquiavel é um exemplo extremo disso aí: é tudo alucinação. No entanto as pessoas levam
aquilo mortalmente a sério.

Aluno: (...) Essa falsificação da posição existencial teria agido também com a reforma literária? Por
exemplo, este estilo que o senhor colocou, ele sempre escreve na terceira pessoa ... (inaudível)?

Olavo: O estilo acadêmico, os cacoetes da linguagem acadêmica facilitam muito isso. Praticamente
convidam você a fazer isso. Você não é obrigado a fazer. Você pode, dentro de um estilo acadêmico,
manter a referência à sua experiência real. Pode fazer isso. O Eric Voeglin faz isso. O essencial do
método analítico dele foi colocado em livro autobiográfico, que é Anamnesis. Ele pega lá suas fantasias
de infância e diz é assim que a coisa funciona. Como é que você vai saber? Bom, você dá o
testemunho. Não é assim com você? Então, a linguagem que ele usa não é uma linguagem de literato,
de escritor, de poeta. Ainda é uma linguagem acadêmica mesmo quando ele está se referindo a essas
experiências. Mas ele não escapa disso: ele sempre sabe quem ele é, onde ele está e desde onde ele está
falando. E é isso que marca o verdadeiro domínio que o sujeito tem do assunto, ele não se deixa
hipnotizar pelos conceitos que ele mesmo criou. Quando ele diz: “Toda busca filosófica é um negócio
15

tentativo” ― ele chama de zetético, zetetikós, que quer dizer busca. Não é a expressão de um sistema
final, de uma resposta final, é apenas um negócio que ele está tentando ali e que não vai dar certo. “Nós
vamos levantar até um certo ponto, depois outro vai ter de continuar, e depois outro, e outro e outro”.
Ele tá sempre consciente disso ― como Santo Tomás de Aquino está sempre consciente. Quando Santo
Tomás diz: “Veritas filia temporis” (Verdade é filha do tempo), quer dizer: “Tudo aquilo que eu estou
dizendo não é completo, a coisa tem outros aspectos que eu não peguei”. E quando ele tem aquela
revelação final e diz que tudo o que ele escreveu não valia coisa nenhuma ― não quer dizer que não
valha coisa nenhuma, quer dizer que, comparado ao que ele sabia agora e ao que ele não conseguiria
dizer, aquilo não era nada.

Então, de certo modo, essa é a maravilha da experiência humana, diante da infinitude da verdade. A
expressão da falibilidade humana e da incompletude do conhecimento humano, você pode olhar de
duas maneiras: por um lado você fica triste e decepcionado porque você tem uma expectativa
demasiado alta a respeito de si. Você achava que conseguiria o conhecimento universal absoluto de
tudo quanto existe ― e só conseguiu um conhecimento relativo e parcial de alguma coisinha. Bom,
mas quem o mandou ter expectativa alta? Quem lhe disse que você era Deus? Se você tem expectativa
modesta, ao contrário, a coisa muda, porque a falibilidade (e parcialidade) dos meus conhecimentos é
uma expressão da infinitude da verdade, da riqueza infinita da verdade. E daí você diz: “Mas isto é uma
maravilha! Quanto mais eu descobrir, depois vem mais, e vem mais e vem mais, e não vai acabar”.
Então você não fica mais desanimado. [1:20:00]
O meu conhecimento é parcial por quê? Porque, além do que eu sei e consigo dizer, tem muito mais
coisa que eu sei e não consigo dizer, e além daquilo que eu não consigo dizer tem mais coisa que eu
não sei ainda. Então por isso que eu digo às vezes, a minha imagem do Paraíso tem uma biblioteca com
todos os livros que Deus escreveu; e tudo que não estiver escrito lá eu pergunto pra Ele, e Ele me
explica. E não vai acabar. Então, não vai ser mais a tentativa e erro como aqui. Você vai caminhar de
verdade em verdade. Então, essa é uma imagem paradisíaca. Mas acredito que as coisas serão
realmente assim. E evidentemente nós não alcançamos isso nessa vida porque isso seria incompatível
com uma existência mortal. O que adianta um conhecimento infinito para um cara que vai ter uma vida
finita, não adianta nada. Então nós temos um conhecimento finito aqui para depois ter um
conhecimento infinito. Assim não precisa ficar com pressa.

E quando você lê o livro The Boy Who Met Jesus, do Emmanuel Segatashya... Sabem a história né? Era
um garoto que não tinha sido nem batizado, era analfabeto e não tinha nem sobrenome; ele não tinha
nem nome. Só tinha um nome genérico, chamavam ele de Segatashya, que era o nome da família. Ele
disse que foi Jesus que o batizou: “Agora você se chama Emanoel” ― o desgraçado do menino não
tinha nem nome. E um dia ele estava lá em um canto da lavoura e apareceu Jesus Cristo para ele:
“Olha! Se Eu lhe der uma mensagem para levar para as pessoas, você leva?” Aí ele pensou, pensou e
disse “Sim, eu levo, mas com uma condição” “Qual é?” ― perguntou Jesus ― “Você tem que
responder todas as minhas perguntas”. Então ele começa a fazer aquelas perguntas para Jesus “Por que
eu tenho que amar os meus inimigos se você não ama seu o inimigo, que é Satanás?”. São perguntas
óbvias né? E assim vai… e todos nós vamos morrer com muitas dessas perguntas na cabeça. E se Jesus
respondeu até para esse rapaz, por que não vai responder para os outros.

Aluno: Professor, nesse caso há uma sabedoria infusa?

Olavo: Não. Isso é uma ignorância infusa. Sabedoria infusa é quando você não sabe um negócio e
acorda sabendo porque Deus botou lá. Mas não quer dizer que é uma sabedoria infusa, às vezes é uma
informação infusa. Sabedoria infusa é quando Ele dá um monte de coisas de uma vez e aquilo toma a
16

forma de uma revelação pessoal, como teve São Paulo que ficou três dias cego e quando voltou a ver
estava entendendo um monte de coisas que ele não entendia antes. Eu já tive um exemplo de
informação infusa, de coisas que eu pedia para saber, rezava e ficava sabendo; mas era uma coisa aqui,
outra coisa ali, não era uma sabedoria infusa, era apenas uma informaçãozinha. E isso todos nós
podemos ter, e nós temos direito a isso. Se Deus pode criar milagres para curar doenças incuráveis,
modificar situações catastróficas, por que Ele não pode lhe dar uma informação? A pessoa não se
lembra de fazer isso né? “Ah! Eu não tô entendendo esse negócio”. Então pede para Deus fazê-lo
entender. Já experimentaram isso alguma vez? Você ora para Deus curar a sua hemorroida, para lhe
arrumar uma namorada… mas naquilo que você faz no dia a dia você não ora para Deus: “Deus, me faz
entender esse negócio?” Use isso! Está à sua disposição 24 horas por dia, e funciona pra caramba! Não
tem a história do rei Salomão, que pediu a sabedoria?

Aluno: [inaudível] existe uma maneira de (…)

Olavo: Não sei.

Aluno: Essa história do Guénon e Fritjof Schuon, falando que se você conhecer alguns princípios
metafísicos, de alguma maneira, você consegue fugir dessa condição de ignorância [inaudível] tem um
jeito parecido com isso.

Olavo: De jeito nenhum, [1:25:00] você pode conhecer todos os princípios metafísicos, todos, do começo
até o fim. Se lhe derem uma questão concreta, você vai errar. É o que eu falo do Guénon, uma vez, em
uma discussão com um grupo de guenonianos, eu disse olha aqui, os caras sabem os princípios
metafísicos, sabem, sei lá, até a data do fim do mundo, mas um pouco depois de 1920, ele escreve
assim: “A China jamais será bolchevique”. Uai, ele conhece os princípios da metafísica, mas ele não
sabe o que está acontecendo na China? Então por que ele fala a respeito? Por que ele não diz apenas
“não sei”? Porque ele acreditava que podia deduzir a história de princípios metafísicos. O que é
impossível. Ele confiava cegamente naquela teoria hindu dos ciclos e então suprime a criatividade
divina ― às vezes, Deus pode querer que seja diferente.

Esse é um aspecto no qual o fabuloso René Guénon era um caipira. Todos nós podemos cometer um
vexame. Mas quando eu falei isso aos guenonianos, eles ficaram loucos da vida, loucos, furiosos. Olha,
eu sou um grande admirador de René Guénon, aprendi muita coisa com René Guénon. E acho que no
essencial, ele tem razão, quando ele afirma que existe um núcleo de doutrina metafísica que está
presente igualmente em todas as religiões, isso existe, é o mesmo núcleo. Só que acontece o seguinte, é
apenas doutrina metafísica. E o que é doutrina metafísica? É a estrutura geral da realidade. Portanto são
os elementos fixos e imutáveis da realidade universal. E os elementos mutáveis? Não estão incluídos aí.
E o caminho da salvação? Não está incluído aí. E mais um monte de coisas que não estão incluídas aí.

Claro que o núcleo metafísico das religiões tem de ser o mesmo. Elas estão todas no mesmo mundo e
sabem que estão no mesmo mundo, e estão falando de uma coisa real, mas não vai passar daí. Isso é a
mesma coisa, por exemplo, que dois exércitos em luta e que, por definição, eles estão no mesmo campo
de batalha e eles sabem onde fica o campo de batalha. Eles coincidem nesse ponto. Você pode acreditar
neles, mas não quer dizer que eles querem a mesma coisa ou que eles tão lutando pela mesma coisa,
não. De tudo que eu estudei de religiões comparadas, a minha conclusão é que elas são incomparáveis
― porque nunca tão falando da mesma coisa, nunca. Então não é assim: são várias propostas e como
fazer a mesma coisa. Por exemplo, falando em caminho da salvação, só existe uma religião que
conhece o caminho da salvação: o cristianismo. As outras religiões oferecem outra coisa. Se funciona
17

ou não, eu não sei, mas é de outra coisa que elas tão falando.

Por exemplo, para os judeus, em nenhum lugar do Antigo Testamento Deus está oferecendo salvação
pra eles. Ele está oferecendo um futuro brilhante para Israel, o que é outra coisa. E os judeus
individuais, o que vai acontecer com eles? Não sei, pode vasculhar o antigo testamento que não tá dito
nada. Parece que alguns vão para o inferno, existem lá várias ameaças: Israel vai se sair bem, mas você
vai se sair mal. E você só tem uma resposta para isso no novo testamento. Então, como não tem outro,
você vai comparar o que com o que? As religiões são núcleos de civilizações e elas se compõem não
somente da sua doutrina explícita, mas do conjunto do entendimento que se teve dessa doutrina, dessa
revelação na civilização inteira. [1:30:00] Como é que você vai comparar um treco desses?

Aluno: Professor, mas não é possível entender o novo testamento sem o antigo, que veio antes dele.

Olavo: Ele diz que é o contrário, que o antigo testamento não existiria sem Ele.

Aluno: Mas Ele veio para cumprir o que estava lá né?

Olavo: Sim, mas que Ele modificou um monte de coisas é óbvio né, não precisa nem dizer. Ele veio
cumprir um núcleo essencial, eliminando milhões de detalhes. O que Ele diz é o seguinte, no fundo,
toda aquela parafernália da Lei queria dizer isso. E, se fizer isso, você não precisa cumprir aquela Lei
toda. Quer dizer, cumpre no sentido de que supera e transcende. A Lei foi abolida? Não. E o judaísmo
foi abolido? Não. Por que a comunidade judaica não foi extinta? Por que Deus deixou eles continuarem
fazendo os mesmos ritos? Alguma finalidade tem. Quando chegar ao apocalipse, você poderá dizer,
eles estão sendo guardados para no fim dos tempos desempenharem uma missão tal. Então é importante
que eles continuem sendo judeus e praticando aquelas coisas todas. Ainda que estejam errados, é
importante que eles continuem lá. Dizem que, no fim das contas, são os judeus que vão trazer a
salvação da lavoura…no fim dos tempos. Então é por isso que não pode deixar o führer matar todos.
Ainda tem um servicinho para eles fazerem, deixem eles aí.

Aluno: Professor, dentro do percurso educacional que o senhor deu ontem, seguindo a teoria geral dos
quatro discursos, o estudo das religiões poderia ajudar em algum momento?

Olavo: Pode, mas eu não recomendaria isso logo no começo não. Você tenta o estudo das religiões
depois de uma bela formação de Filosofia, História, essas coisas todas. Por que muitas pessoas vão
estudar religiões comparadas porque elas estão procurando uma religião para seguirem. Então é igual
naquele filme do Woody Allen: o sujeito vai no Espiritismo, vai no Seicho Noiê, vai no Hare Chrishina,
porque está procurando uma religião que o agrade, que seja do seu gosto.

Aluno: Mas a formação religiosa é um universo [inaudível].

Olavo: Também não sei. Sinceramente não sei como é que funciona isso.

Aluno: [inaudível] pelos quatro discursos, pelo próprio encaminhamento da educação que o senhor
falou das artes, da filosofia e depois, por último, da ciência [inaudível] da realidade, a percepção das
coisas que a gente sente e depois a verbalização, depois a ciência, ou seja, o real está e aparece
sempre no começo da educação.

Olavo: Sim, mas como é que você vai educar uma criança? Como é que faz isso? Isso pra mim é um
18

enigma.

Aluno: A arte e a religião (…)

Olavo: Eu acho que se você quiser educar uma criança, você já começou a fazer besteira na mesma
hora. Porque você está querendo moldar uma criança de acordo com uma imagem que está na sua
cabeça. E acontece que a verdadeira imagem, o verdadeiro modelo, não é um conceito abstrato, é uma
pessoa real. Então, a verdadeira educação é aquela que você está passando para a criança 24 horas por
dia. Não aquela que você passa nos momentos que está tentando educá-la. Tem um momento que você
diz: “Olha! Faça assim, assim e assado!”. Você está educando a criança. Muito bem, depois você está
fazendo outra coisa completamente diferente, você está lá, trabalhando, está discutindo com sua
mulher, está assistindo futebol ― ela está vendo você. Então você está “educando a criança” quando
você não sabe que está educando. E é isso que ela vai pegar, e não aquilo que você quis passar para ela
apenas naqueles momentos. Então a ilusão de educá-la pode ter efeitos desastrosos. Porque sempre vai
ser na base do faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. [1:35:00] Então, o que você vai fazer? Vai
tentar agir com ela da melhor maneira possível, e vai passar para ela a seguinte mensagem: “Faça
exatamente como eu faço”. Não por que seja o melhor possível, mas porque eu não posso educar uma
criança para ser melhor do que eu mesmo sou. Lamentavelmente, esse é o pai que você tem, você não
conseguiu um melhor, tudo o que eu posso ensinar a você é ser como eu.

Aluno:É porque o senhor acha que a influência paterna é pequena mesma?

Olavo: É enorme, avassaladora. Quanto menos você interferir conscientemente e quanto mais você se
deixar levar simplesmente pelo amor que você tem pela criança, mais vai acertar. Você não foi
colocado ali para educá-la, em primeiro lugar. Você é um pai, tem de prover tudo que ela precisa e
protegê-la. Então, a educação entra lá ao lado da proteção, você a protege contra certos males, contra
certos perigos, isso é o máximo que você vai fazer. Se você fizer isso, já estará educando; porque ela
vai aprender a fazer as mesmas coisas com os outros. Vários filhos meus mostraram que tinham um
sentimento de proteção com as crianças menores que é um negócio maravilhoso. De onde eles pegaram
isso? De mim, porque eu tinha isso com eles. Eu não pensei em educá-los para serem assim. Eu
simplesmente fiz isso com eles, e eles chegaram à conclusão que deviam fazer a mesma coisa. É um
bom sentimento que você está ensinando, não porque você quis ensinar, mas simplesmente porque você
tinha esse bom sentimento. Eu acho que o amor paterno tem uma força em cima das crianças que é uma
coisa avassaladora. Melhor do que qualquer educação que você queira passar para eles. Não estou
dizendo que seja uma fórmula, eu não entendo nada de educação de criança, estou dando apenas uma
experiência pessoal. E eu vejo que casais que tentam educar, formar os filhos etc., às vezes criam cada
deformidade humana que é um negócio terrível.

Eu reconheço que na formação intelectual das minhas crianças, eu sempre fui deficiente. Eu ensinei
pouco para elas, porque eu não sabia como ensinar. Eu pensei, não vou tentar fazer um negócio que eu
não sei. Mas eu sei criar uma atmosfera aonde a criança se sinta amada, protegida, compreendida, e
isso vai dar uma base emocional para ela, depois o que ela tiver que aprender, ela aprende. Isso eu fiz, e
pior, deu certo. Quem conhece meus filhos, sabe como eles são pessoas felizes, equilibradas e
saudáveis. Isso é o máximo que eu consigo fazer. Se você disser, agora você deve transformar seu filho
em gênio, eu digo, eu não sei como é que se faz isso. Se ele tiver vocação para isso, ele vai fazer
sozinho, como o Gugu fez. O Gugu estudou dez vezes mais do que eu. Por quê? Porque ele quis. E os
outros? Tem uns que não estudaram coisa nenhuma.
19

A minha primeira filha teve horror de escola antes de ela ter ido para a escola. Meses antes ela falava:
“Eu não vou”. E depois não foi mesmo. Eu dizia “mas você não sabe o que é”, e ela respondia: “Não
quero saber!”. Acho que fiz o melhor que podia fazer nas condições que eu tinha; condições não
externas, não estou culpando as condições externas. São condições internas, no limite da minha
capacidade. Se você me perguntar “Você sabe educar uma criança?”. Eu digo “Não sei, mas se ela viver
comigo, ela vai ser uma pessoa saudável e feliz”. Isso aí eu posso ensinar a fazer, ele pode continuar
analfabeto, mas isso aí vai ter.

É verdade, a minha filha mais velha foi estudar pela primeira vez quando ela tinha 25 anos. Um dia ela
disse: “Ah! Vou estudar, vou para escola”. Foi assim mesmo. [Quando ela era uma criança] não queria,
não queria, era um desespero, ela chorava, parecia que estavam torturando ela. Eu não sei de onde ela
tirou esse horror de escola, eu não tenho a menor ideia, mas foi assim. E daí um dia veio um motorista
da escola procurá-la: “Cadê a guria?”. Sumiu, estava escondida atrás de uma árvore do fundo do
quintal. Então o motorista pegou-a no colo e a estava levando – e ela foi indo chorando: “Não! Não
quero ir, socorro pai, socorro mãe, socorro Bidu!”. Bidu era o cachorro. [1:40:00] “Ah, não! Desce! Pode
ficar aí! Minha filha não vai pedir socorro para o cachorro não! Pode ficar em casa”. E ficou, até os 25
anos. Escrevia e falava tudo errado, até depois de grande. Agora não, agora ela se formou, é advogada.
Mas ela deixava uns recados assim: “Oi, pezoal!”. Fazia um bilhetinho de Natal: “Aqui pra você da sua
amiga amômima.” Quem era a amiga amômima? Só podia ser uma. Todo mundo falava mal, mas eu
falava “Não, mas eu confio nela, vai dar tudo certo, deixa aí”. Deu certo no fim das contas.

Então, eu não estou dando isso como uma fórmula, não tô dando uma receita, tô dizendo só o que me
aconteceu. Tem muitas teorias sobre como educar crianças etc. Eu não nunca confiei em nenhuma. Eu
pensei, não sei o que fazer, então vou fazer o mínimo. Eu acho que se você fizer isso, sempre funciona;
tanto que aquele ditado francês diz o seguinte “quem está sentado no chão não cai”. Se as suas
pretensões são muito pequenininhas, provavelmente você vai conseguir realizar. Deixa para você ter
pretensões mais ambiciosas aonde você tem mais capacidade. Por exemplo, esse negócio de educar
jovens adultos para a vida intelectual, oh! Raios, isso eu sei fazer porra! Conhece alguém que faz isso
melhor que eu? Não tem. Isso eu faço, no resto vou ser bastante… aqui eu tenho pretensões. Eu tenho
pretensões de que vários de vocês venham a realizar coisas importantes na vida intelectual; e sei que
vão fazer ― não todos, mas muitos né? E sei como levá-los a fazer isso e tô fazendo. Agora, para
educar criança… é como treinar cachorros, não sei. Meus cachorros não me obedecem: você o manda
vir, ele vai, e assim por diante; você o manda deitar, ele levanta. É uma desmoralização completa, não é
minha praia, eu não sei o que fazer aí.

Música: durante sete anos tentaram me educar para tocar piano, fizeram tudo o que podiam, não
conseguiram, fracassaram completamente. Eu sempre achava que tinha mais teclas do que dedos, não
vai funcionar, são dez dedos e sete teclas, não pode funcionar, isso é impossível, não tem proporção.
Não é verdade? Tem pessoas que transcendem isso, não sei como. Eu nunca consegui. E, no entanto,
depois eu estudei muita coisa de teoria musical, às vezes, eu fazia umas análises musicais que os
maestros ouviam e falavam “Pô, você estudou música?” “Não” “Sabe tocar alguma coisa?” “Nem
campainha”. Meu problema não eram os ouvidos, eram os dedos, acho que eu não tinha coordenação
motora.

Aluno: Por quanto tempo tentaram?

Olavo: Fizeram várias tentativas ao longo de sete anos… não foi. Várias pessoas fracassaram em me
ensinar várias coisas. Um professor de Geometria – enquanto estavam me ensinando álgebra, estava
20

tudo bem, eu tirava notas boas, entre 8 e 10. Quando entrou na Geometria, empacou, e um dia eu falei:
“Eu não quero aprender esse negócio, quer saber, não vou aprender”. O professor alertava “Mas você
vai tirar zero” “Pode me dar o zero”. Então é assim, são limitações que você tem, às vezes sua
inteligência empaca em um negócio e não vale a pena você forçar. Agora o que você sabe, você sabe e
tem o direito de ter segurança naquilo. Esse negócio de analisar situações sociais, dramas culturais, eu
faço isso desde os doze anos de idade. Então isso eu sei fazer.

Aluno: O senhor disse que passou sete anos tentando tocar piano (…)

Olavo: [1:45:00] Não! Os professores faziam o melhor que eles podiam, mas não vai assim. Assim como
existe inteligência especializada, existe burrice especializada. Certas coisas que, por um motivo
qualquer, empacam. Por isso eu sou meio contra os programas educacionais, você tem x matérias e tem
que aprender um pouco de cada uma. Às vezes não dá. Às vezes para você aprender uma, tem que
esquecer a outra, depois você volta naquela primeira. E, além disso, eu não sei para que ensinar tanta
coisa para as crianças, se elas vão esquecer tudo mesmo. De tudo que me ensinaram na escola
secundária, eu só lembro uma coisa, me lembro do latim. Por quê? Porque eu queria aprender. Por que
eu queria aprender? Porque eu gostava do professor, era um velhinho, gordinho, simpático, muito
humilde, e que conhecia aquele negócio. Ele dava uma certa segurança, e aquilo eu quis aprender. O
resto apagou tudo.

Aluno: Uma vez o senhor falou que o Latim, quando era uma língua acadêmica, o quanto era útil (…)

Olavo: Nossa! O Latim faz milagres com a sua inteligência.

Aluno: Não só para isso mas para o diálogo temporal(…)

Olavo: Sim, para estruturar o seu mundo. As declinações, os tempos verbais, as conjugações. Tudo isso
aí é a estruturação do mundo.

Aluno: [inaudível]

Olavo: Sem sombra de dúvida. O latim é a língua da civilização, como foi o grego no começo. No
começo dos dois primeiros séculos a igreja usava, sobretudo, o grego, depois foi passando a usar o
latim. Observe que todo o novo testamento tem sempre uma atitude simpática para com Roma ―
nunca fala mal de Roma. São Paulo apóstolo, muitas vezes, falando com orgulho que ele era um
cidadão romano. Quantas vezes ele entra na encrenca, o governo romano que tira ele da encrenca, não é
assim? Então, vãos dizer assim, o cristianismo nasce com uma queda por Roma. Então quando acabam
adotando o latim, isso faz do latim a língua da civilização. O latim todo mundo deveria estudar. É uma
língua muito bonita, é linda. Não tem outra língua que tenha essa solenidade ou grandiosidade do latim.
E também, a clareza, a sutileza para distinções filosóficas. As obras filosóficas mais sutis, como as de
Santo Tomás de Aquino e Duns Scot, foram escritas em latim, não podiam ser escritas em outra língua.
Estou falando isso não porque eu aprendi latim, é porque é assim mesmo.

Então, essa questão de educação de crianças, não sou nenhuma autoridade no assunto, eu falo apenas
por experiência. Quanto menos você forçar, melhor. A coisa principal é você ensinar a ela a amar pai e
mãe. E você faz isso tendo amor por ela e não querendo corrigir muito, é sendo bom, é fazendo para a
criança o que gostariam que fizessem por você. Não é isso o que diz o segundo mandamento? Se você
não cumprir o segundo mandamento com seus filhos, então vai cumprir com quem? Por exemplo, se a
21

criança é pequena, eu sempre recomendo isso para as mães jovens, até os cinco anos, não dê bronca
nenhuma, nunca. Só fale docemente com a criança, sempre. Porque o tal do ego começa a formar-se,
conscientemente, aos cinco anos. Não adianta dar bronca em quem não tem o ego suficiente para se
comandar a si mesmo.

E vejo que no Brasil, o que as pessoas chamam de educação, é simplesmente moldar as crianças para
que as crianças não os perturbem. É o mandamento número um da educação brasileira, não me encha o
saco. Esse é o pecado número um: encher o saco do seu pai ou da sua mãe. Porque qualquer coisa que a
criança lhe desagrade, você vai dar uma bronca nela. É uma coisa totalmente subjetiva, [1:50:00] não é
que você esteja ensinando para ela um mandamento divino, uma lei universal, você está ensinando a
disposição do seu fígado no momento. Então você aprender a se refrear em uma hora em que a criança
está apenas lhe incomodando, mas o que ela está fazendo não é intrinsecamente errado, eu acho que é
uma boa coisa. Você pode pedir para ela parar de te incomodar, mas não pode dar uma bronca nela, só
por uma coisa que não é errada. Você está querendo estudar um negócio e ela está fazendo barulho ali,
sei lá, dando martelada em um negócio ― não é errado o que ela tá fazendo. Você pode pedir para ela
parar, mas dar bronca por quê? Agora, se ela está lá estrangulando o irmãozinho, a coisa é
intrinsecamente errada e você pode dar bronca, mandar parar. Como o Percival, quando viu a Leila
pequenininha e perguntou se ele poderia enfiar os dedos nos olhos dela. Eu disse “não!”. Mas que
pergunta idiota. Então eu acho que, por hoje, se não tem perguntas, vamos parar por aqui.

Aluno: Posso fazer uma última pergunta?

Olavo: Pode…bom mas vocês entenderam o que é o negócio da meditação, a ligação de leitura com
meditação. A meditação tem, de certo modo, que surgir sozinha, você não pode forçar. Você vai lendo e
aceitando e… veja a sua imaginação ir acompanhando o negócio. Mas aprenda, desde o início, a não ler
apenas no nível lógico verbal em que as coisas estão sendo colocadas. Faça sempre as imagens no
fundo, as recordações no fundo. Chega uma hora que empaca, porque, às vezes, você não entendeu o
que ele está falando, não conhece os significados estabilizados dos termos. Então você usa um
dicionário, uma coisa assim, mas apenas para complementar aquilo.

Grande parte do “aprendizado universitário” é ensinar as pessoas a falar como os seus professores, ou a
falar como os autores dos livros ― é exatamente o que você não deve aprender. Porque você deve
aprender a falar com os grandes escritores, romancistas, poetas etc.; com os filósofos, não. Porque a
finalidade de uma aula de filosofia não é um texto literário, é uma referência ao mundo real. Então o
que você tem de procurar lá? O mundo real. E não aprender a falar como eles.

Dificilmente você encontra um grande filósofo que fala do mesmo jeito que o meio filosófico dele fala.
Isso pode acontecer às vezes, onde você tem, por exemplo, um ensino universitário de altíssima
qualidade e um diálogo entre profissionais. Na universidade medieval acontece isso e no romantismo
alemão também. Então você tem uma linguagem comum entre os filósofos, mas é só quando é um
negócio de alta qualidade. Normalmente você não deve fazer isso não. Porque normalmente você verá
que o filósofo tem alguma coisa séria a dizer, ele vai ter que inventar a linguagem própria com a qual
ele vai dizer aquilo. E, às vezes, a linguagem soa muito esquisita para os seus colegas, como acontece
com o Eric Voeglin.

O Eric Voeglin cria todo um vocabulário dele. Praticamente nenhum dos termos fundamentais que ele
usa tem o significado dicionarizado, tudo tem uma nuance própria. O Bernard Lonergan faz a mesma
coisa. Então você aprender a falar que igual aos seus colegas acadêmicos é se nivelar a uma
22

comunidade que, frequentemente, não merece isso. Mas aprender a imitar quem sabe falar… por que
você vai pegar a linguagem acadêmica se pode aprender a linguagem do Eric Voeglin ou de um
Lonergan? [1:55:00] O Lonergan faz alta filosofia com uma linguagem de professor primário. Ele vai
desdobrando as coisas até os seus mínimos detalhes de modo que até um jumento entenda aquilo. E ele
leva 100 páginas para chegar em uma coisa simples, porque ele quer que você acompanhe tudo e não
perca nenhum pedacinho. É o estilo dele.

Quando você lê o Xavier Zubiri, é o contrário, ele tem um vocabulário altissimamente carregado, que
supõe que você conheça todo o vocabulário escolástico e mais alguma coisa que ele inventou. Bom, é o
jeito dele. Mas quando você lê aquilo você percebe que ele domina realmente aquilo, ele sabe do que
está falando. Mas é por isso que essa formação literária é importante no começo. Porque a literatura é a
arte de você manter a linguagem próxima da experiência. É aquele negócio do Saul Bellow, de que a
função dos escritores é transmitir a experiência autêntica, ao passo que o que ele chama de intelectuais:
“Intelectuais lidam com ideias e ideologias, nós lidamos com a experiência autêntica”.

Mas, quando você chega na esfera das ideias e ideologias, só vale aquilo que tem raiz na experiência
autêntica. Muitos filósofos às vezes caem em erros monstruosos porque eles não dominam a linguagem
da expressão da experiência. Então aqui tem uma experiência que fica muda, confusa e tosca; e em
cima tem toda uma elaboração lógica que não tem nada a ver com isso, que não faz pontes entre uma
coisa e outra. Então, sem a formação literária, nada feito gente. Isso é mais importante do que qualquer
outra coisa. Se você dedicar anos da sua vida lendo as grandes obras da literatura e do teatro, é a
melhor coisa que pode lhe acontecer. Mesmo que você depois vá estudar uma coisa completamente
diferente. Alguma outra pergunta?

Aluno: Professor, ainda existem universidades de verdade no mundo?

Olavo: Tem, tem. Aqui mesmo você tem algumas.

Aluno: Elas conservam esse método? [inaudível]

Olavo: Não sei se é bem assim. Pelo menos não tem aquele impacto imbecilizante que tem outras né?
Se você quiser eu o dou uma listinha. Tem alguém no Brasil que me pediu isso aí, porque queria vir
para cá e eu pedi para o Frederick Wagner, que é o editor do The Voeglin View. E ele me deu uma
listinha.

Aluno: Uma das perguntas que foram feitas no começo da aula, através do chat, que é uma história de
várias linhas [inaudível] sobre a história do desenvolvimento dos estudos literários, das gramáticas
[inaudível].

Olavo: Bom, existe a História da Filologia Clássica do Wilamowitz-Moellendorff. Quanto a história


dos estudos literários, existe um monte. Existe a História da Crítica Moderna, de René Wellek. Mas
seria bom ler antes o livro Teoria da Literatura, desse mesmo autor (René Wellek) e Austen Warren.
Esse livro História da Crítica Moderna é uma espécie de continuação – essa é uma obra enorme, são 4
volumes. Se você percorrer aquele e ler pelo menos alguns desses críticos fundamentais como o Dr.
Johnson, Matthew Arnold, Remy de Gourmont, isso nunca vai lhe fazer mal.

Aluno: Professor, sobre o que o senhor explicou no começo da aula, do conceito de acidente
metafisicamente necessário, foi o senhor que descobriu isso? E como que o senhor encaixa isso?
23

Olavo: [2:00:00]Eu não li isso em lugar nenhum. Eu cheguei a uma conclusão pensando assim: mas isso tá
implícito nas grandes filosofias. Tem muita coisa que elas já disseram, mas não disseram com todas as
letras, como os Quatro Discursos; não foi eu que descobri, foi Aristóteles. Mas ele descobriu e não
disse. Então, é aquele negócio que diz o Heiddeger, em muitas filosofias, o grande valor delas tá
naquilo que elas não disseram; que deixa implícito e que chega até nós assim. E que isso nos permite
descobrir alguma coisa que também não foi um anão que descobriu. Em suma, nesse negócio de
filosofia, a originalidade não importa. E se importa, é para carreiras acadêmicas: “ah, eu fui o primeirão
que descobriu isso”. Pode até ter sido, mas não é isso que tem importância. Eu acho que essa noção de
que a metafísica é necessária, eu nunca vi em parte alguma. Mas se você observar, toda a filosofia de
Aristóteles transpira isso.

Essas grandes filosofias clássicas têm um tesouro de verdades implícitas, que você só capta se as ler
dessa maneira que eu estou falando. Se você se atém muito aos detalhes, a estrutura do texto, você
estará, em primeiro lugar, procurando um nível de precisão que não existe, quanto mais analisar o
texto, mais você vai ver que ele está cheio de ambiguidades. Em segundo lugar, Aristóteles nunca
esteve interessado na filosofia de Aristóteles. Ele estava interessado nas coisas que ele estava falando,
que eram, por exemplo, o comportamento dos animais, o mecanismo dos sonhos, a meteorologia, a
estrutura do Estado. Ele sempre está falando de alguma coisa e nunca da filosofia de Aristóteles.

Então eu acho que a gente deve ler Aristóteles assim, de olho no objeto do qual ele está falando e não
no texto. Mas, às vezes, você pode ser infiel ao texto porque está olhando para o objeto, e não está
ligando muito para os detalhes de expressão que ele usou. Eu acho um absurdo alguém dizer que vai
estudar a filosofia de Aristóteles porque ela não foi feita para ser um objeto. Ela é como os óculos que
você põe, você não põe os óculos para ficar olhando a lente. Na verdade, se você está olhando a lente, é
porque ela está suja. Normalmente você não vê a lente, você está olhando as coisas através delas, as
filosofias são assim, são grades feitas para você olhar o objeto.

Como vocês já devem ter viu em um desenho, aquele vidro todo quadriculado que você põe na frente
para dividir o objeto em pedacinhos ― a filosofia é isso. O vidro não tem importância em si. Claro que
se você é um fabricante de vidro, vai prestar atenção no vidro. Mas muito do que hoje se entende como
estudo de filosofia é isto: eles ficam lá estudando o texto, a obra filosófica, e o coitado do objeto jamais
aparece. Para você olhar o objeto, tem que olhar para aspectos dele que não estão explicitados no texto.
Coisas que o autor deixou mudo, mas que está ali implícito de alguma maneira. Então você tem que ir
muito além do texto. Então é claro que aí forma uma tensão: por um lado, a fidelidade à interpretação
do texto que você está usando; por outro lado, a realidade do objeto. As duas coisas nunca estão
perfeitamente de acordo, mas é necessário saber o que você quer. Você quer fazer história da filosofia?
Quero fazer aqui uma exposição da filosofia de Aristóteles, historicamente fidedigna etc. Ou você está
interessado nas coisas nas quais Aristóteles está falando? Estou apenas pedindo para Aristóteles me
ajudar a enxergar aquela coisa.

Por exemplo, São Tomás de Aquino muitas vezes está se baseando em Aristóteles, mas ele é infiel a
Aristóteles. Por quê? Porque ele não está interessado em Aristóteles, e sim na coisa. Então mais tarde
vem algum filólogo afirmando que Santo Tomás interpretou Aristóteles errado. Bom, estaria errado se
ele estive falando de Aristóteles. Mas ele não está. [2:05:00] Ele está apenas se apoiando em Aristóteles
para falar de alguma coisa, e ele não tem nenhuma obrigação de ficar estritamente limitado ao texto.

Isto é uma coisa que nas universidades brasileiras, sobretudo na USP, as pessoas têm uma dificuldade
24

imensa de entender. Eles têm aquela idolatria do texto que é uma coisa horrível. Se eu vou me ater ao
texto, então eu só posso saber dos objetos mencionados naquilo que está dito no texto e nada a mais.
Então se Aristóteles está falando de cachorro, eu só posso saber do cachorro naquilo que está no texto
de Aristóteles. Eu não posso olhar um cachorro para ver se é assim. Então vira realmente um
conhecimento livresco, que só tem valor escolar ― que é o problema desses caras como Júlio Lemos,
Adriano Correia etc. É uma doença, mas eles não sabem que é doença.

Chega um momento em que você tem que fazer a seguinte escolhera: eu quero fazer uma coisa que seja
academicamente respeitável ― que agrade os meus professores, chefes de departamento etc. ― ou
quero fazer uma coisa que seja útil para a cultura brasileira, para as pessoas. Até certo ponto é possível
conciliar as duas, mas chega um momento que deve haver uma ruptura, ou você faz uma coisa ou faz a
outra. A melhor coisa é você ter nascido rico e não precisar de emprego universitário algum. É o caso
do Mário Ferreira, ele era dono de quatro cinemas, vivia da arrecadação dos cinemas e não precisava
dar satisfação a ninguém. Se isto não aconteceu com você… bom, você vai ter que fazer algum arranjo,
ou vai ter que se imbuir de uma cara de pau e, como se diz: “comer mortadela e arrotar peru”. Você
pode estar lá pobre, mas mantém a cabeça erguida. Agora, depender de um emprego universitário,
espero que isso nunca lhe aconteça.

Você pode até o emprego, mas se ele começar a humilhá-lo muito, vá embora, faz outra coisa. Salário
de professor universitário não é tão invejável assim né? Mas se você estudou Direito, o que você
prefere: ficar dando lição na faculdade ou abrir um escritório e ganhar um montão de dinheiro? O
prestígio acadêmico no Brasil não vale tanto assim. Aqui ele vale um pouco mais. Mas, mesmo aqui, já
tem pesquisas hoje que mostram que um diploma universitário não dá acesso a níveis de vida
superiores, não dá mesmo. Aqui está cheio de engenheiro que está trabalhando de frentista de posto de
gasolina e assim por diante. Quando começa a acontecer isso, eu digo que o diploma universitário é um
símbolo de ascensão social de uma outra época. Então ele virou o quê? Uma superstição, é uma coisa
na qual você ainda acredita mesmo que não funcione.

Aluno: Mas isso é a justificativa das cotas no Brasil atualmente (…)

Olavo: Mas isso é um estelionato “Ah! Nós vamos dar cotas para a população negra e pobre”. Primeiro,
vocês estão dando papel pintado para eles, estão enganado os coitadinhos. Está dando porcaria para
eles e ainda está se gabando de fazer um grande benefício. Essa porcaria de educação que vocês
oferecem, não deveriam oferecer para ninguém. É uma ilusão, a educação no Brasil não é um
instrumento de ascensão social. Mas ela é um instrumento de bloqueio da ascensão. Quer dizer, o
diploma não dá ascensão social, mas a falta dele pode atrapalhar; então é uma coisa negativa, ela
funciona por estímulo negativo. E depois você pergunta para mim: “Você prefere fazer o que está
fazendo ou prefere ser professor da USP?” [2:10:00] Pelo amor de Deus né? Eu tenho muito mais
satisfação, não tenho chefe para mandar em mim, ganho mais dinheiro, tô mais feliz. E você diz: “Ah,
mas eles não o reconhecem”. Mas eu também não os reconheço, que diferença vai fazer. Quando o
Bruno Tolentino falava “Nós precisamos convencer a USP a lhe dar um diploma de Doutor Honoris
Causa”, eu respondia “Mas quem vai assinar o diploma? Esse vai ser um cheque sem fundos, eu não
posso aceitar uma porcaria dessa, só vai me desmoralizar”. Mais alguma pergunta?

Aluno: [inaudível,[2:11:00]].

Olavo: Mas o que estou falando da meditação é isso. Quer dizer, você preencher cada linha com um
conteúdo imaginário seu tirado da experiência real. Se você não chegou nisso, não entendeu, não
25

assimilou realmente. E se você fez isso, não precisa fazer nenhum esforço de memória para lembrar-se
do que leu. Porque aquilo já está ligado, está arraigado na sua experiência profunda. Por exemplo, se
você leu, sei lá, 20 linhas de René Descartes dessa maneira, essas 20 linhas já se incorporaram na sua
experiência, fazem parte da sua vida. Não é uma coisa que você precisa manter na memória. Você não
precisa fazer esforço pra se lembrar disso, como você não precisa fazer esforço pra se lembrar de sua
primeira namorada. No momento em que virou uma experiência real, acabou o problema da memória,
acabou o problema da assimilação. Esse problema existe enquanto o conteúdo que você está lendo é
uma coisa externa. Se você não está entendendo alguma coisa e quer um esforço de memorização, você
pode fazer isso, e eu sugiro que você faça o experimento de memorização, mas não com obras de
filosofia, de ciências sociais etc., faça com grandes obras de literatura. Como esse aqui que estava lá
recitando Shakespeare ontem, só vai lhe fazer bem isso aí. Porque uma obra de arte tem múltiplos
significados, muitos níveis de significados que você nunca vai esgotar. Então cada situação da vida que
lhe evocar um verso de Shakespeare, esse verso lhe mostrará um novo significado; e nunca vai
terminar. Você adquiriu uma série de formas que servem para iluminar distintas situações. Então isso
virou uma parte sua. Eu tenho uma meia dúzia de versos que eu vivo citando, porque eles são parte da
minha vida. São experiências que eu passo e que eu vejo que esses versos expressam aquilo melhor do
que eu saberia dizer. Então é isso que faço, em vez de dizer o negócio, eu puxo o verso da memória e
digo: “é isto!”.

Agora, se você estiver numa estrutura escolar e precisa aprender para fazer um exame, bom, azar seu
meu filho, eu não mandei você fazer isso. Eu não recomendei que ninguém se submetesse a essa
humilhação. Mas se você quer, faça. Mas às vezes é uma situação tão artificial, tão forçada, que ela só
vai fazer mal pra sua inteligência. O que você quer? Quer o raio do diploma ou o aprendizado
verdadeiro? Às vezes dá pra ter as duas coisas ao mesmo tempo, mas às vezes não dá. Eu mesmo lhes
dei a experiência de certas disciplinas que eu falei: “Não posso aprender isso. Isso está me fazendo
mal”. Talvez mais tarde eu possa voltar a isso. Mas isso tá impondo, na minha mente, certas estruturas
que contrariam o funcionamento natural da minha inteligência. Então não é bom eu aprender isso
agora. Assim como, por exemplo, a criança fazer certos tipos de ginástica ou certos tipos de esforço que
vão impedir que ela cresça. Isso pode ser bom, mas não agora, deixa pra depois.

Eu me lembro de quando estava no secundário e estava começando a conquista da linguagem, [2:15:00]


lendo os poetas, aprendendo a expressar minhas experiências etc. Era isso que me interessava. Daqui a
pouco vem um cara com um negócio totalmente estranho, totalmente artificial, e quer que eu aprenda
isso. Eu pensei, isso vai me fazer mal. Se eu estou tentando dizer as coisas exatamente como eu as
experimentei, eu não posso, ao mesmo tempo, tentar assimilar uma estrutura completamente estranha,
que um outro está me impondo. Eu posso fazer isso mais tarde, mas agora não. Tanto que quando eu
voltei a esse negócio de Geometria, eu tinha trinta e tantos anos; aí ficou fácil, não faz mais mal.

É como a comida, o organismo relativamente saudável sabe o que ele precisa; e você sente vontade de
comer aquilo que precisa. Por exemplo, as crianças gostam muito de doce porque precisam de energia
para gastar, pois elas ficam pulando o dia inteiro. Já experimentou olhar uma criança brincando e tentar
imitar todos os gestos que ela faz num dia? Você não aguenta 15 minutos. Então é por isso que ela quer
doce o dia inteiro. O que você faz? Dá o doce pra ela. Mas daí vem os médicos e pedagogos dizendo
que isso faz mal e aquilo faz mal. Quem faz mal é você, porra! Não tem coisa que faça mais mal do que
encheção de saco. Você impor o tédio à criança é uma coisa criminosa. Você tem aquele bichinho vivo,
tão animado, cheio de vida, e você impõe a ele um negócio chato que ele vai ter que ficar horas sentado
ali. Que coisa horrorosa! O simples fato de ter que ir pra escola… na idade média, o ensino escolar
começava aos quinze, dezesseis anos. E até lá:“Vá brincar!”; e foi uma época de grande florescimento
26

intelectual.

Se a criança quiser aprender, deixa ela aprende ué? O Gugu com onze anos lia livro de Física da
universidade; por que ele queria, ninguém o mandou fazer isso. Ele quer, deixa ele. Os outros não
queriam ler coisa nenhuma. Eu mesmo, algum interesse por negócio científico, eu só fui ter muito mais
tarde, por motivos razoáveis. O tempo de aprendizado varia de acordo com cada pessoa. Cada um tem
um ritmo e você mesmo que tem que descobrir.

Tem coisas que é obrigatório você ensinar a todo mundo. Por exemplo, ensinar a ler e escrever. Ler,
escrever e as quatro operações, isso você impõe a todo mundo. E o resto deixa como vier. Os três r’s
que falam os americanos: reading, writing, rhythmics; aprenda apenas isso e o resto quando der. Porque
sem essas três coisas você não vai conseguir aprender mais nada. Então elas são instrumentos de
aprendizagem, não são conteúdos, são ferramentas. Então, mesmo que a criança não queira, você diz
senta aí e vai aprender o bê-á-bá, tabuada e tal. Isso aí é decoreba. Mas isso é rápido, em um ano você
ensina tudo o que tem que ensinar.

Esse problema da assimilação não existe na medida em que você transforme a sua leitura, o seu
aprendizado em experiência pessoal profunda. Você nunca mais vai esquecer. Eu cito aqui coisas que
eu li há quarenta anos, que eu nunca mais abri o livro. Por quê? Porque aquilo incorporou. Incorporou
por quê? Porque você ilumina o sentido do que você está lendo com o senso da sua experiência interior
verdadeira. Então automaticamente aquilo se incorpora. São fórmulas verbais que, ou por harmonia ou
por contraste, o ajudam a dizer o que você está realmente percebendo. Então faça com que, de tudo que
você ler, nada fique estranho. [2:20:00]

Agora, me deem mais dois minutos, vamos voltar um pouco ao assunto de anteontem, sobre as
cronologias. Esses dias eu estava lendo um livro, esse aqui L’histoire de France interdite (História
proibida da França). É um professor de história que está analisando as mudanças desastrosas no ensino
de História na França. Essas mudanças desastrosas foram introduzidas por mentes iluminadas que
diziam o seguinte: “O ensino da disciplina tem que estar num nível da pesquisa científica tal como está
se desenvolvendo naquele momento”. Eu ouvi essa história no Brasil, no tempo em que eu trabalhava
numa revista chamada Sala de Aula, em 1986 ou 1987. Na revista da Fundação Victor Civita, estavam
lá um monte de educadores iluminados querendo mudar a educação brasileira; eles diziam a mesma
coisa: o ensino tem que acompanhar a pesquisa científica. Eu, no fundo da minha ignorância ― eu não
sou educador de criança, eu não sei nada disso ―, eu falava: “Mas isso não dá pra fazer”. Primeiro,
porque a pesquisa muda todo dia; e você pega um garoto de 10 anos, atualiza ele com a pesquisa
científica de quando ele tinha 10 anos, e quando ele chegar na universidade, aquilo tudo já não vale
mais. Então o que você tem que transmitir é um legado comum, da qual uma parte pode ser depois
impugnada pela pesquisa científica. Quando você está ensinando História, não está ensinando História
de acordo com os últimos cânones da pesquisa, com as últimas descobertas. Não, você tá ensinando um
legado comum, que se incorpora na cultura em geral, e que pode depois ser aperfeiçoado ou mudado
por esta ou aquela pesquisa, nunca impugnado no todo.

Mas essa ideia de que o que importa é você ensinar não a narrativa histórica como um todo, mas sim a
História que os pesquisadores históricos estão desenvolvendo, cria o seguinte problema: você vai
ensinar as crianças, por exemplo, como é que elas têm que fazer pesquisa de arquivo, fontes primárias
etc. Você pegar um garoto de oito, dez anos e ensinar isso pra ele, sendo que evidentemente ele não tem
maturidade para julgar. Por exemplo, a credibilidade de um documento depende muito da sua
experiência humana, de você aprender, por exemplo, a ter ouvido para as expressões verbais etc.―
27

depende muito da experiência. Então uma criança não pode fazer isso, é o primeiro problema. Segundo,
não dá para você, com documentos de fontes primárias, ensinar a história inteira. Por exemplo, se você
pegar um livro de história universal, como o Will Durant, que tem 11 volumes. Quantos documentos de
fonte primária tem para sustentar aquilo? Não são 11 volumes, são 11 mil volumes; então não dá pra
ensinar. Então o que você faz? Ensina só certos pedaços, com as suas devidas fontes primárias e todos
os requisitos científicos etc. Resultado: você some com a cronologia. Você só tem um pedaço aqui, um
pedaço acolá, e não tem senso nenhum da cronologia inteira. Isso aconteceu na França.

Na hora que você eliminou a cronologia, o que você eliminou? Uma linguagem comum do debate
cultural. E você faz com que cada mente individual se desenvolva isoladamente, fora de um patrimônio
narrativo comum, e daí cada um vai se apegar aos costumes e padrões da sua comunidade mais
imediata, sobretudo comunidade étnica, ou bairro em que ele vive, ou partido em que ele está. Então o
que é que você criou? Criou uma barbárie completa. Então foi uma coincidência eu ler isso justamente
no instante que eu estava mostrando pra você: ter a cronologia na sua cabeça inteira antes de preenchê-
la dos conteúdos respectivos é a base de sua educação. Eu estava dizendo isso para vocês e daí eu abro
esse livro e vejo o desastre que fizeram na França, quando aboliram a cronologia. [2:25:00]

Através deste curso, vocês estão adquirindo um instrumento que está, no mesmo momento, sendo
jogado fora pela educação. Então, você imagina, por exemplo, entre todos os alunos desse curso, vamos
dizer 3 mil, 4 mil, 5 mil, sei lá – não deste curso, estou falando do Seminário de Filosofia –, com todos
esses, você vai ter um senso de temporalidade comum, você sempre vai saber do que os outros estão
falando, e isso cria a possibilidade de um diálogo cultural ― os outros não têm.

Uma vez Antônio Donato me trouxe uma redação que ele viu no ginásio, aonde o sujeito falava que
Júlio César foi um general romano que participou da Independência Americana e condenou Joanna
D’Arc à fogueira; daí ele morreu, ressuscitou no terceiro dia, subiu ao céu, de onde ele mandou o
furacão Katrina. Então, você conhece o Samba do Crioulo Doido, do Stanislaw Ponte Preta. Aquilo
virou realidade no ensino. A concepção histórica que as pessoas têm é assim. Então é claro que é a pura
barbárie. E, através desse cuidado que vocês terão com a cronologia, vocês vão eliminar esse problema
para sempre. Vocês vão criar um terreno comum, uma consciência histórica comum, entre, sei lá, mil, 2
mil, 3 mil pessoas. Começou o diálogo cultural brasileiro, já começou. Imagine o que acontecerá
quando vocês escreverem livros, trabalhos acadêmicos, e começarem a publicar essa coisa, e
começarem a ocupar um espaço no mundo editorial. Vocês vão fazer um bem danado para todo mundo.
Porque todo mundo vai entender o que vocês estão falando. A possibilidade da restauração intelectual
do Brasil já está acontecendo. Não apareceu publicamente ainda, mas ela já está acontecendo. E os
meios pelos quais ela está acontecendo são esses meios aqui. Não são apenas Princípios e Métodos da
Autoeducação, são também Princípios e Métodos da Educação em Geral. A diferença é que a
autoeducação ninguém vai lhe dar isso pronto, você mesmo vai ter que fazer.

Está bem? Então por hoje acabou. Até amanhã, muito obrigado.

Transcrição: Antônio Lima, Diego Fernandes, Fábio Guerra e Silvio Sandro.

Revisão: Fábio Guerra e Silvio Sandro [silviosiandro@gmail.com].

Você também pode gostar