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O CONSERVADORISMO CLÁSSICO
E MODERNO: EXPRESSÃO E NOVOS
CONTORNOS NO BRASIL
1 | INTRODUÇÃO
No cenário contemporâneo uma “onda conservadora” (ALMEIDA, 2017, 2019) tem
tomado espaço significativo, não apenas no campo da política direta, mas, sobretudo –
e isso que sustenta a expressão na política – no âmbito das consciências individuais.
Este movimento é percebido tanto no Brasil e na América Latina, quanto em países de
capitalismo avançado da Europa e nos Estados Unidos. Isso nos leva a propor, portanto,
que a nova onda conservadora, ou “neoconservadorismo”, possui um fundamento comum
internacional, que seja: uma crise capitalista em níveis estruturais (SOUZA, 2015; ALMEIDA,
2017). Assim, também, o recurso ao conservadorismo se desenha como uma tentativa de
reorganizar e manter uma hegemonia econômica e cultural – uma vez que esse fenômeno
se expressa em ambas as esferas.
Desta feita, apesar de reconhecermos e indicarmos estes pressupostos nosso
objetivo neste artigo é apresentar o conservadorismo, inicialmente, na qualidade de um
sistema de ideias, que se desenvolve historicamente, assumindo novos contornos na
atualidade. Em seguida, pretendemos expor, de forma breve, o conteúdo conservador a
partir de movimentos político-culturais presentes, sobremaneira, na realidade brasileira,
especialmente, no tocante ao conservadorismo moral religioso.
Nesta lógica, é importante destacar, que conservadorismo é um conceito associado
a processos e contextos históricos específicos (ALMEIDA, 2017, 2019). Trata-se de um
sistema de ideias que surge, em sua forma clássica, com a emergência e a ascensão
da moderna sociedade burguesa a partir de processos revolucionários no século XVIII
(SOUZA, 2015, 2016). Inicialmente, o conservadorismo se realiza na qualidade de um
movimento reacionário, contrário à revolucionária classe burguesa, e atua a partir da defesa
e proteção das instituições e das tradições do Antigo Regime. Desta forma, corresponde a
um movimento saudosista que busca recuperar a cultura feudal, sem negar, vale evidenciar,
os avanços produtivos e econômicos da nova sociedade (LEILA, N. 2011; SOUZA, 2016).
Todavia, certos de que essa saudosa regressão seria impossível, os conservadores
aproximam-se, ainda que com ressalvas, à nova classe dominante – burguesia – sua
2 | O CONSERVADORISMO CLÁSSICO
O clássico conservadorismo compreende uma vertente político-ideológica
reacionária, que se opunha fervorosamente aos avanços políticos e sociais da era moderna
desencadeados pelas grandes revoluções do século XVIII e pelo pensamento ilustrado.
Neste sentido, conforme Souza (2015), este “movimento” tem sua gênese pós-1789 e “[...]
constituiu-se como sistema de ideias e posições políticas marcadamente antimodernas,
antirrepublicanas e antiliberais” (SOUZA, 2015, p. 4). Leila Netto (2011), por sua vez,
define o pensamento conservador como “[...] uma expressão cultural [...] particular de um
tempo e um espaço sócio-histórico muito precisos: o tempo e o espaço da configuração da
sociedade burguesa [...]” (NETTO, L, 2011 p.41).
Por este ângulo, se pudermos ser mais precisos: o conservadorismo surge e se
desenvolve na ocasião da moderna sociedade de classes, como reação às grandes
transformações decorrentes do avanço da classe burguesa – nesta ocasião, classe
revolucionária – nos marcos do Antigo Regime (SOUZA, 2015). Deste modo,
Movimentando-se no interior de uma formação social que não controlava,
a burguesia logo vai deflagrar uma dinâmica que levará ao colapso aquela
formação. Os séculos XVI, XVII e XVIII testemunham esta dinâmica: se as
“grandes descobertas” rompem com os limites físicos da feudalidade, a
manufatura se desdobrará na industrialização (com uma consequente e nova
urbanização). A chamada Revolução Industrial não é mais que a face evidente
da ascensão burguesa: o mundo burguês, aquele em que tudo o que é sólido
desmancha no ar (Marx e Engels, 1963, p. 24), começa a instaurar-se com ela
(NETTO, L, 2011, p. 42).
Posto isso, podemos afirmar que existe uma “tensão”, como assinala Leila Netto
(2011), justaposta ao pensamento de Burke e à tradição clássica do conservadorismo. O
principal expoente conservador – e toda a tradição – não recusa o desenvolvimento das
novas riquezas das nações, ou seja, não nega o avanço das forças produtivas, mas rejeita
as implicações socioculturais que derivam, necessariamente, deste desenvolvimento.
Deste modo, podemos assinalar que o conservadorismo, representado,
particularmente, pelo pensamento de Burke, deseja a continuidade do desenvolvimento
econômico capitalista sem romper com as instituições sociais pré-capitalistas – uma
Por este ângulo, o curso histórico que levou à consolidação da sociabilidade burguesa
e do capitalismo como modo de produção, entregou à classe que os personificam, antes
revolucionária, o posto de classe dominante. Neste lugar, a burguesia deixa de ser expressão
dos interesses universais e populares – que incorporou para a conformação de uma base
social que sustentasse seu projeto – e passa a defender, estritamente, seus interesses
particularistas, especialmente no tocante a manutenção das suas instituições. Logo, na
brava defesa de seu status quo a classe burguesa perde seu caráter revolucionário, se
opondo, consequentemente, a qualquer intenção de revolução e controlando os possíveis
focos de resistências.
Inicia-se, assim, por volta de 1830, um profundo e complexo movimento, ao fim
do qual aquela cultura [moderna] ver-se-á refuncionalizada para atender às
exigências que agora se põem à burguesia trata-se de uma refuncionalização
que terá por objetivo eliminar ou neutralizar os conteúdos subversivos
da cultura moderna, especialmente aqueles vinculados à sua dimensão
emancipadora; um analista deste movimento, certeiramente, caracterizou-o
como “o rompimento com a tradição progressista” (Coutinho, 2010): para a
burguesia, a questão que se punha era lateralizar os núcleos que, na cultura
ilustrada, guardavam um potencial de crítica à sua dominação de classe
(NETTO, L, 2011, p. 47).
Isso, por sua vez, atribui aos neoconservadores a forte característica de valorizarem
o presente (COUTINHO, 2014; SOUZA, 2015, 2016). O saudosismo do conservadorismo
clássico, portanto, não compõe o arcabouço do conservadorismo moderno, o que importa
neste novo estágio é “o aqui e agora” da moderna sociedade burguesa (COUTINHO, 2014).
Em vista deste fator, então, o movimento conservador na contemporaneidade se identifica,
e pode ser percebido, como um movimento de tendência progressista, um terceiro (e
mais apropriado) termo, ao passo que rejeita as “utopias totalitárias” – reacionárias e
revolucionárias (SOUZA, 2015, 2016).
No tocante à razão os conservadores modernos estabelecem uma relação bastante
específica: não a negam, como fazia aqueles da tradição clássica, mas rejeitam sua
corrente teórica – o racionalismo – pelo mesmo processo, também, não cativam nem se
comprometem, em sua totalidade, com o irracionalismo. No que diz respeito a isso, afirma
Coutinho (2014), “não é a razão per se que inspira a crítica conservadora; é, tão só, a
arrogância do racionalismo moderno e a sua ideia nefasta de ‘possibilidade infinita’ na
Considerando o espaço estabelecido para este artigo não nos deteremos a explicar,
adequadamente, estas duas matrizes – inglesa e norte-americana –, dedicaremos nossa
atenção e análise às manifestações do conservadorismo no Brasil, particularmente, através
do aprofundamento do fundamentalismo religioso, da intolerância, da discriminação e da
diminuição do Estado. É certo que estes elementos não compõem – ao menos não da
mesma forma – o arsenal das tradições conservadoras que expomos nas seções anteriores,
no entanto, em nossa perspectiva, não fogem por completo delas.
A contraditória união do conservadorismo com o liberalismo e com as tendências
fascistas, inevitavelmente, atribui-lhe novo delineamento, todavia o imperativo de proteger,
a qualquer custo, uma determinada sociedade – neste caso, a burguesa –, suas instituições
e tradições, e o forte apelo à moral, sobretudo religiosa, demonstram o histórico cariz
conservador. Ronaldo Almeida (2017, 2019) indica que o atual conservadorismo na
sociedade brasileira diz respeito a principal resultante de diferentes forças políticas frente
o cenário de crise enfrentado no país, “[...] isto é, o vetor que tem apontado a direção e o
sentido do processo social em curso” (ALMEIDA, 2019, p. 187).
O “conservadorismo à brasileira”, de que nos fala Souza (2015), deriva, de acordo
com as análises de Almeida (2019) de um profundo quadro de crise que possui expressões
em níveis políticos, culturais e jurídicos. Esta crise, apesar de se encontrar em curso,
mundialmente, desde 2008, é desencadeada com maior expressão no Brasil a partir de
2013, e aprofundada com o golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em
2016, e com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 (BRAZ, 2016; ALMEIDA, 2017, 2019).
Desde então avança em nosso país, nas palavras de Almeida (2019), um amálgama de
valores culturais e uma concertação de forças políticas que configuram o que tem sido
nomeado de “onda conservadora”.
O uso dos termos “amálgama” e “concertação”, por eles mesmo, talvez dispensasse
nossa explicação, no entanto, importa-nos reiterar: o dito conservadorismo brasileiro reúne
atores e esforços políticos distintos, “[...] um conjunto relativamente variado de discursos,
valores, ações e posicionamentos políticos com interesses parciais e conjunturalmente
comuns” (ALMEIDA, 2017, p. 4). Neste sentido, a reação conservadora no Brasil compõe-
se, essencialmente, por conservadores, propriamente ditos, evangélicos fundamentalistas,
e fascistas. Assim, é certo que estes grupos não possuem identidade, ou designação,
A linha de força que se segue refere-se, como pontuado por Almeida (2017), “[...] à
disputa pela moralidade pública, que no Brasil encontra nas religiões cristãs os principais
canais de sacralização da família e da reprodução da vida.” (ALMEIDA, 2017, p. 17). Neste
campo, portanto, os conservadores pautam maior controle dos corpos, dos comportamentos
e, inclusive, dos vínculos familiares (ALMEIDA, 2017, 2019). Rejeitam sistematicamente o
aborto e estabelecem ênfase na família como uma instituição constituída exclusivamente
por um homem e uma mulher, logo, negando aquelas formadas por casais homoafetivos
(SOUZA, 2016).
Neste mesmo raciocínio, sob a justificativa de defesa da moral, o grupo conservador
relega a educação e a orientação sexual nas escolas da rede pública, realizando
considerável propaganda negativa – o que, aliás, tem conquistado a opinião coletiva – e
barrando estas propostas no legislativo, uma vez que ocupam um significativo número de
cadeiras na câmara dos deputados.
As proposições de ordem moral não apontam somente para um tradicionalismo
que apenas resiste ao mundo em mudança, como comportam-se setores da
Igreja Católica. Os evangélicos pentecostais têm um conservadorismo ativo
e não apenas reativo destinado à manutenção do status quo tradicional de
caráter mais católico. A esses evangélicos têm interessado a disputa pela
moralidade pública (Casanova, 1994). Não somente a proteção da moralidade
deles, mas a luta para ela ser inscrita na ordem legal do país (ALMEIDA, 2017,
p. 18).
A terceira linha de força que, em acordo com Almeida (2017, 2019), une evangélicos
e conservadores, concerne à segurança. Em respeito a este aspecto a onda conservadora
brasileira tem encaminhado propostas políticas, demandas coletivas e medidas
governamentais que indicam e endossam posturas e ações de cunho mais repressivo e
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conservadorismo no Brasil, devendo ser compreendido enquanto uma expressão
– talvez, a mais significativa – do quadro de crise vivenciado pelo país, conforma-se em um
conservadorismo moral e religioso (ALMEIDA, 2017). Como salienta Souza (2016), trata-
se de uma ideologia concentradora das classes dominantes que camufla as contradições
inerentes à sociabilidade burguesa, sobretudo, mediante a naturalização das relações
sociais de opressão e exploração, contribuindo com a manutenção e ampliação do
capitalismo.
Para chegarmos à discussão do Estado brasileiro, no entanto, apresentamos o
conservadorismo em seu momento fundador, em um espaço e contexto bastante específicos,
um movimento de reação contra o pensamento iluminado e os processos revolucionários
burgueses, defensor das instituições e tradições do antigo regime (NETTO, L., 2011;
SOUZA, 2015, 2016). Assim como, expomos seu processo de avanço e desenvolvimento a
partir da identificação enquanto ciência social, se aproximando da classe burguesa e sendo
adotado por ela como sua ideologia, quando essa torna-se classe dominante (SOUZA,
2015, 2016).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Ronaldo de. A onda quebrada-evangélicos e conservadorismo. Cadernos Pagu, Campinas
Unicamp, nº 50, 2017.
SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação de. O conservadorismo moderno: esboço para uma
aproximação. Serviço Social & Sociedade, p. 199-223, 2015.
SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação de. Edmund Burke e a gênese conservadorismo. Serviço
Social & Sociedade, p. 360-377, 2016.