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Religião e Poder: a Ascensão de um Projeto

de “Nação Evangélica” no Brasil?


Guilherme Casarões

É
possível falar em projeto de poder blicas guiados pela Bíblia. A bancada evan-
evangélico no Brasil? A combinação gélica, que realiza cultos semanais na Câ-
de três elementos – expansão demo- mara dos Deputados, conta com quase uma
gráfica de pessoas que se identificam com a centena de deputados e senadores atuantes.
fé evangélica (hoje representando, aproxi- O próprio presidente, ainda que não se de-
madamente, um terço da população), cres- clare evangélico, frequenta eventos em di-
cente politização de temas sobre costumes versas igrejas e adotou um chavão bíblico
e a ampliação de lideranças evangélicas na sua luta contra a imprensa, citando João
com mandato eletivo – suscitou questio- 8:32: “e conhecereis a verdade e a verdade
namentos sobre em que medida estaríamos vos libertará”.
diante de uma suposta “evangelização” da Ainda assim, falta muito para o Brasil se
política nacional. tornar uma “nação evangélica”. Do ponto de
De fato, o início deste novo ciclo polí- vista de políticas públicas, os efeitos da as-
tico, com a chegada de Jair Bolsonaro ao censão política de grupos pentecostais e ne-
poder, foi marcado por transformações sig- opentecostais são gradativos, muitas vezes
nificativas – algumas radicais, outras nem dispersos e nem sempre eficientes. Isso se
tanto – na relação básica entre Estado, re- deve a alguns fatores: primeiro, não é pos-
ligião e sociedade. No momento em que sível tratar os evangélicos como um grupo
escrevo este artigo, temos seis ministros homogêneo em termos de crenças, interes-
declaradamente evangélicos – alguns dos ses ou atitudes. A pluralidade protestante no
quais já disseram que tomam decisões pú- Brasil se manifesta tanto no plano teológico
e eclesiástico (denominações tradicionais,
Guilherme Casarões é doutor em Ciência Política pela Uni- pentecostais e neopentecostais) quanto em
versidade de São Paulo e professor da Escola de Administra-
ção de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.
outras clivagens, sejam elas regionais, de
Especializou-se em estudos de política externa, com ênfase renda ou de ideologia.
nas relações entre Brasil e Israel nas últimas duas décadas. Segundo, é necessário distinguir entre
Recentemente, vem se dedicando ao estudo da influência lideranças evangélicas e seus seguidores. A
evangélica sobre a política exterior e do fenômeno do nacio-
nalismo religioso ao redor do mundo, com ênfase no naciona-
filiação a uma igreja não necessariamente
lismo cristão. Foi pesquisador visitante na Tel Aviv Universi- se traduz em votos em pastores locais ou na
ty, Brandeis University e University of Michigan. adesão a pautas conservadoras específicas.

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Estudo realizado por Esther Solano, Pa- teológicos, de atores específicos e de pau-
blo Ortellado e Marcio Moretto, junto aos tas abrangentes, temas que serão aborda-
participantes da Marcha para Jesus de São dos nas seções a seguir2.
Paulo, em 2017, mostra que parte expressi-
va dos evangélicos rejeita o envolvimento Os fundamentos do projeto de poder
político de suas lideranças, não se identifica (neo)pentecostal
com a classe política e pregam a tolerância
à diversidade nas escolas1. Em outras pala-
vras, a influência de líderes religiosos sobre
os “crentes”, como os próprios evangélicos
E m linhas gerais, o projeto de poder (neo)
pentecostal se sustenta sobre dois pilares:
a teologia da prosperidade e a teologia do
se denominam, é parcial e assimétrica. domínio. Apesar de terem origens tão anti-
Terceiro, os evangélicos representam gas quanto o próprio protestantismo, ambas
somente um grupo – heterogêneo, frise- as teologias ganharam força nos Estados
-se – dentro de uma constelação de forças Unidos do pós-segunda guerra e foram ra-
políticas que sustenta o governo Bolsona- pidamente exportadas para outros cantos do
ro. Eles não necessariamente se identifi- mundo. A fusão desses movimentos, conhe-
cam com outros grupos, como as Forças cida como neopentecostalismo ou “terceira
Armadas, os “lavajatistas” anticorrupção, onda pentecostal”, popularizou-se a partir
os ideólogos influenciados por Olavo de das décadas de 1970 e 1980. Suas principais
Carvalho, os ruralistas ou os liberais eco- características são o abandono dos traços
nômicos. Há afinidades pontuais em certos sectários e ascéticos do pentecostalismo e
temas, mas divergências e choques em tan- a busca de adaptação às transformações so-
tos outros. Controvérsias em torno da mu- ciais, sobretudo relativas aos valores, inte-
dança da embaixada brasileira para Israel resses e práticas da sociedade de consumo.
ou demandas pela isenção da tarifa elétrica A teologia da prosperidade defende que a
para igrejas, por exemplo, colocou evan- fé cristã é recompensada com bênçãos mate-
gélicos em rota de colisão com a equipe riais, como bem-estar, saúde e boa situação
econômica do governo. financeira. Do ponto de vista da amplitude
A ideia deste artigo é mapear, em linhas da religião, a ênfase na dimensão econômi-
muito gerais, o que chamo de “projeto de ca da fé possui duas implicações importan-
poder” evangélico no Brasil. Considera- tes: em primeiro lugar, a religião alcança e
das as ressalvas acima, farei referência a se enraíza entre os estratos mais pobres da
um projeto (neo)pentecostal, entenden-
do que são as denominações ligadas ao
2 Este artigo se baseia, entre outros, nos valiosos trabalhos
pentecostalismo e ao neopentecostalismo de Amy Erica Smith, Religion and Brazilian Democracy:
mobilizing the people of God (Cambridge: Cambridge,
que se incumbiram, majoritariamente, da 2019); Gilberto Nascimento, O Reino: a história de Edir
busca por ocupação de espaços de poder, Macedo e uma radiografia da Igreja Universal (São
Paulo: Companhia das Letras, 2019); Andrea Dip, Em
dentro e fora do Estado. Esse projeto se Nome de Quem? A bancada evangélica e seu projeto
organiza em torno de certos fundamentos de poder (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018);
Christina Vital da Cunha, Oração de Traficante: uma
etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015); Ronaldo
1S
 olano, Esther et al. “Percepções Evangélicas sobre de Almeida, A Igreja Universal e Seus Demônios: um
Política e Sociedade Brasileiras”. Notas Friedrich Ebert estudo etnográfico (São Paulo: Terceiro Nome, 2009);
Stiftung Brasil, nº 11, 2017. Disponível em https://library. Ricardo Mariano, Neopentecostais: sociologia do novo
fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/13733.pdf pentecostalismo no Brasil (São Paulo: Loyola, 1999).

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população, a quem ela estende uma vasta O governo é somente um dos espaços a
rede de proteção social e oferece, além de serem ocupados, mas essencial para viabi-
promessas de abundância, soluções mági- lizar a conquista dos demais. Nos Estados
cas, curas físicas e espirituais e resolução de Unidos, o “dominionismo”, utilizado muitas
problemas familiares ou afetivos. Em segun- vezes com conotações negativas, refere-se
do lugar, a tradução de fé em prosperidade a uma suposta agenda da direita fundamen-
permite uma justificativa espiritual para o talista cristã que envolveria o soerguimento
avanço das condições de vida de uma classe de uma nação cristã, supremacista e estrita-
média emergente que traz, nesse processo, mente baseada nas leis da Bíblia a partir da
novas demandas em termos culturais, edu- captura das instituições democráticas. Aqui,
cacionais e econômicos. uma versão mais branda dessa teologia, bas-
Há também ganhos materiais para as pró- tante difundida entre denominações neopen-
prias igrejas, que passam a ofertar serviços tecostais, sugere que a ocupação de espaços
religiosos variados em troca de retorno, no- deve ser feita por evangelização, pela políti-
tadamente em forma de dízimo ou doações ca representativa e, por vezes, pela violência
para as obras eclesiais. Esse envolvimento fi- (vide Mateus 11:12).
nanceiro entre o fiel e sua igreja é estimulado Alguns anos atrás, vídeos e fotos de mar-
a partir da ideia de que a graça divina é fruto chas de um grupo de evangelização da Igreja
do sacrifício. Sendo assim, muitos veem e es- Universal do Reino de Deus (Iurd) causa-
timulam as grandes contribuições como de- ram polêmica. Chamados “Gladiadores do
monstração inquebrantável da fé. Paradoxal- Altar”, os jovens pareciam preparar-se para
mente, a pobreza é colocada como a ausência a guerra santa. Ainda que a própria igre-
de fé – e deve ser combatida com sacrifícios ja tenha buscado diminuir a relevância dos
financeiros ainda maiores. Essa dinâmica é “gladiadores”, alegando tratar-se de mera
crucial para a sobrevivência e a longevidade missão evangelizadora, algumas de suas
do empreendimento (neo)pentecostal. páginas nas redes socais sugerem que eles
A teologia do domínio, por sua vez, pres- propagavam discurso de ódio contra homos-
supõe que Deus e o diabo se encontram em sexuais e contra outras religiões, sobretudo
conflito permanente, tanto no plano espiritual as de matriz africana, como o candomblé e
quanto no terreno, sobre o controle do mundo. a umbanda. Os desdobramentos dessa radi-
A tarefa do cristão, nesse contexto, seria não calização violenta são visíveis, haja vista o
somente a obediência aos mandamentos bíbli- aumento de denúncias contra grupos – mui-
cos, mas também a guerra incansável contra tas vezes ligados ao tráfico – que invadem e
demônios que se manifestam na cultura e nas destroem centros, terreiros e igrejas ao redor
artes, na educação, na imprensa, nos negócios, do país.
na política, na família e na própria religião.
Conhecida como a visão profética das sete Os agentes do projeto de poder
montanhas (ou sete montes), essa doutrina – (neo)pentecostal
enunciada, entre outros, pelo pastor Johnny
Enlow – ensina que o Reino de Deus será er-
guido quando os cristãos ocuparem espaços
em todas essas dimensões da sociedade.
E sse projeto de poder organiza-se em tor-
no de diversos atores, que desempenham
funções sociais, econômicas e políticas va-

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riadas. No centro dessa articulação estão as da pelo patriarca (e bispo primaz) Manoel e
igrejas. Do lado pentecostal, as Assembleias seus filhos, Samuel e Abner, está à frente do
de Deus (ADs) possuem a maior força, seja Ministério da Madureira, com grande força
graças ao número de fieis (12,3 milhões pe- no Rio e em São Paulo. O eixo RJ-SP tam-
los números do IBGE, de 2010; 22,5 milhões bém é campo de batalha entre lideranças da
pelas estimativas da própria Assembleia, de Convenção Geral e do Vitória em Cristo.
2009), seja por algumas de suas lideranças O mesmo ocorre com as igrejas neopen-
midiáticas. Dentre as neopentecostais, des- tecostais. Dos rachas da Universal, nasce-
taca-se a Igreja Universal do Reino de Deus ram a Igreja Internacional da Graça de Deus,
(Iurd), liderada pelo bispo Edir Macedo. fundada em 1980 pelo cunhado de Macedo,
Fundada em 1977 e estimando mais de 8 mi- o missionário R.R. Soares (com mais de 1
lhões de fiéis (dados de 2012; censo de 2010 milhão de fiéis em 2014) e a Igreja Mun-
indica 1,8 milhão), a Universal não é somen- dial do Poder de Deus, criada em 1998 pelo
te a maior denominação da “terceira onda”, apóstolo Valdemiro Santiago (com quase
como também foi considerada a quinta ins- 800 mil fiéis em 2017). Além delas, também
tituição mais prestigiosa entre os brasileiros, se destacam a Igreja Apostólica Renascer
em pesquisa Datafolha de 2015 – ficando em Cristo, inaugurada pelo apóstolo Este-
atrás da imprensa, das redes sociais, da Igre- vam Hernandes em 1986 e idealizadora da
ja Católica e das Forças Armadas. Marcha para Jesus no Brasil; a Igreja Sara
Uma das características mais importantes Nossa Terra, criada pelo bispo Robson Ro-
do movimento pentecostal é sua fragmenta- dovalho em 1992 e reconhecida como uma
ção. As ADs, por exemplo, estão divididas das comunidades neopentecostais brasileiras
entre a Convenção Geral das Assembleias de com maior alcance global. Ambas alegam
Deus no Brasil (fundada em 1930 e liderada ter mais de um milhão de seguidores.
pelo pastor José Wellington Costa Júnior) e A disputa pelo mercado da fé fez com
as mais recentes Convenção Nacional das que cada uma dessas igrejas, sobretudo as
Assembleias de Deus no Brasil (também neopentecostais, erguessem expressivas es-
conhecida como Ministério da Madureira, truturas empresariais e midiáticas. Da ad-
fundada em 1958 e presidida pelo bispo Sa- ministração financeira ao recrutamento e
muel Ferreira) e Convenção da Assembleia formação de novos pastores, a gestão eclesi-
de Deus no Brasil (fundada em 2017, sob o ástica possui nível de profissionalismo com-
comando do pastor Samuel Câmara). Além parável ao de multinacionais. Os resultados,
delas, atua de maneira independente o mi- em termos de rentabilidade, são eloquentes:
nistério Vitória em Cristo, do pastor e tele- impulsionada por doações, a arrecadação
vangelista Silas Malafaia. das igrejas praticamente dobrou entre 2006
Na raiz dessas clivagens estão diver- e 2013, segundo dados da Receita Federal.
gências teológicas, eclesiásticas e, princi- As lideranças, naturalmente, foram gran-
palmente, políticas: Samuel Câmara, hoje, des beneficiárias da prosperidade dos negó-
exerce grande influência entre os assem- cios. Em matéria de 2013, a Forbes com-
bleianos da região Norte do país, a única pilou estimativas sobre o patrimônio dos
em que o número de evangélicos supera o principais líderes evangélicos brasileiros:
de católicos. A família Ferreira, representa- Macedo (950 milhões de dólares), Santia-

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go (220 milhões), Malafaia (150 milhões), cipais teologias neopentecostais – a prospe-
R.R. Soares (125 milhões) e Hernandes (65 ridade e o domínio – que se manifestam,
milhões). Como consequência da fortuna, entre outras coisas, na formação de milícias
estilos de vida muitas vezes opulentos e fre- evangélicas contra minorias religiosas em
quentes desentendimentos com a justiça e a regiões periféricas.
Receita. Macedo, assim como Hernandes e
sua esposa, a bispa Sônia, já foram presos e Evangélicos e política
ainda sofrem processos no Brasil e nos Es-
tados Unidos.
Outra característica visível da expansão
das igrejas (neo)pentecostais é a diversifi-
É na política, contudo, que o projeto de
poder dos grupos evangélicos se realiza.
Ainda que o envolvimento de pentecostais
cação de atividades. Além da expansão dos na disputa partidária seja antigo e remonte
templos dentro do país e além-fronteiras, à década de 1960 – quando a denominação
muitas dessas comunidades possuem redes pentecostal O Brasil para Cristo, fundada
de televisão e rádio (ou espaço cativo em ca- pelo pastor Manoel de Mello e Silva, ele-
nais abertos), jornais, editoras e gravadoras geu um deputado federal e um estadual –,
gospel, que fidelizam um público religioso foi no contexto da redemocratização que as
em franca ascensão. igrejas buscaram ocupar espaços legisla-
Nesse sentido, a Universal é exemplar: tivos. Abandonando o isolamento político
controla, hoje, a segunda maior emissora que marcou a evolução do protestantismo
aberta do país, a Record (parte do quarto no Brasil, lideranças evangélicas passaram
maior conglomerado midiático do país, o a se guiar pelo lema “irmão vota em irmão”
Grupo Record), além de possuir um canal e colocaram em marcha alguns pressupostos
religioso, a TV Universal; publica a Folha da teologia do domínio.
Universal, com tiragem semanal superior a A Assembleia de Deus foi pioneira nes-
2 milhões, além de jornais em Portugal e na se processo. Desde as eleições constituintes
África do Sul; esta à frente da gigante radio- de 1986, ano em que lideraram a criação da
fônica Rede Aleluia, com afiliadas em todo Frente Parlamentar Evangélica (FPE), os
o país; comanda a Line Records, que já lan- assembleianos estabelecem estratégias para
çou ou produziu grandes nomes da música o lançamento de candidaturas oficiais em
cristã contemporânea. todos os estados. Mais tarde, a Universal
Por fim, existem crescentes interações aprimorou métodos de seleção de candida-
entre a fé evangélica, o crime organizado e tos a partir de processos verticais e centra-
o tráfico de drogas. Esse fenômeno está re- lizados na cúpula da igreja, baseando-se em
lacionado, sobretudo, à força das igrejas na recenseamento e critérios geográficos. Em-
periferia de grandes centros urbanos, como bora ambas tenham seus próprios partidos
Rio ou São Paulo, assim como à sua entrada – o Partido Social Cristão (PSC) é ligado às
no sistema carcerário. Deve-se ressaltar que ADs, ao passo que o Republicanos (antigo
nenhuma denominação aprova ou referenda Partido Republicano Brasileiro, PRB) é co-
a relação entre seus seguidores, o tráfico e o mandado por líderes da Iurd, como o bispo
crime. Ainda assim, existem afinidades ele- licenciado Marcos Pereira) –, as igrejas se
tivas entre o mundo do tráfico e as duas prin- beneficiam da fragmentação partidária e do

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voto proporcional de lista aberta para ampli- tãs no contexto da crescente polarização
ficar sua capilaridade regional. política da última década. Com esposa e al-
Tradicionalmente, lideranças políticas guns de seus filhos frequentadores da Igreja
evangélicas concentraram-se em partidos do Batista, o católico Bolsonaro, aos poucos,
chamado “centrão”, hoje representados por acercou-se de lideranças evangélicas. Foi
legendas como Partido Progressista (PP), Silas Malafaia quem celebrou seu terceiro
Democratas, Partido Social Democrático casamento, com Michelle, em 2013. No
(PSD), Partido da República (PR), além dos ano seguinte, tentou, com apoio do depu-
próprios PRB e PSC. Foi dali que consegui- tado Marco Feliciano (PSC-SP), assumir
ram exercer grande influência sobre o go- a Comissão de Direitos Humanos e Mino-
verno Lula. Estabelecendo uma relação de rias da Câmara. Em 2016, filiou-se ao PSC
coexistência com forças de esquerda, muitos e, em seu primeiro grande evento na nova
grupos evangélicos amealharam cargos, con- legenda, viajou com os filhos para Israel e
cessões de rádio e TV, passaportes diplomá- foi batizado pelo pastor Everaldo Pereira
ticos e, sempre que possível, contiveram o nas águas do rio Jordão. Até poucos dias
avanço de pautas progressistas. No governo da eleição de 2018, o mais cotado para ser
Dilma, o relacionamento entre a presidente e vice na chapa de Bolsonaro era seu amigo,
evangélicos se esgarçou rapidamente, abrin- pastor e ex-senador Magno Malta (PR-ES).
do espaço para a considerável adesão dessas Não surpreende, portanto, que muitos
lideranças ao processo de impeachment, em evangélicos tenham se encantado com a re-
2016 (sob a batuta do assembleiano Eduardo tórica de Jair Bolsonaro, em sua trajetória
Cunha), e ao governo Michel Temer. rumo à presidência da República. “Deus
A despeito da crescente força legislati- acima de tudo! Não tem essa historinha de
va dos evangélicos, observada na expansão Estado laico não. O Estado é cristão e a mi-
de sua bancada no Congresso, faltava-lhes noria que for contra, que se mude. As mi-
um candidato majoritário com viabilidade norias têm que se curvar para as maiorias”,
eleitoral. Muitos acreditaram que Marina disse o então pré-candidato a uma plateia
Silva, convertida à Assembleia de Deus em de apoiadores em Campina Grande (PB),
1996, desempenharia esse papel nos pleitos em fevereiro de 2017. Um ano mais tarde,
de 2010 e 2014. No entanto, a trajetória po- Bolsonaro traria a expressão máxima do
lítica da ex-senadora e ex-ministra acreana, projeto nacionalista cristão em seu slogan
intimamente ligada ao Partido dos Traba- de campanha: “Brasil acima de tudo, Deus
lhadores (PT) e às causas ambientais, bem acima de todos”.
como sua hesitação diante de temas contro- Estima-se que dois terços dos votos
versos como aborto e união homoafetiva, evangélicos no segundo turno de 2018 te-
expuseram a fragilidade da adesão evangé- nham ido para Bolsonaro. Isso os coloca
lica à sua candidatura. como um dos principais grupos responsá-
Nas eleições de 2018, o ex-capitão Jair veis pela eleição do novo presidente. Não
Bolsonaro corporificou essa expectativa obstante, deve-se chamar atenção ao fato
de muitos evangélicos. Outrora mero par- de que uma parcela expressiva da popula-
lamentar corporativista e de declarações ção evangélica rejeitou ou não aderiu ao
grosseiras, passou a militar por pautas cris- projeto bolsonarista, o que reforça as pre-

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missas enunciadas na introdução deste arti- premo Tribunal Federal seria “terrivelmen-
go. No limite, a convergência programática te evangélico”.
no plano das elites políticas não se traduz Dessa forma, ao contrário de outros go-
necessariamente em voto ou em apoio. vernos, que abriram espaço para políticos
evangélicos como forma de compor coali-
As pautas do projeto de poder zões (vide os casos de Marcelo Crivella, Ge-
(neo)pentecostal orge Hilton e Marcos Pereira, ministros de
Dilma e Temer ligados à Iurd), a nomeação

É inegável, por outro lado, que a vitória de


Bolsonaro também tenha sido o triunfo
de diversas lideranças evangélicas – quase
de diversos evangélicos para a Esplanada
reveste-se de grande simbolismo. São eles
Onyx Lorenzoni (ex-chefe da Casa Civil e
todas elas presentes na tribuna presidencial atual ministro da Cidadania), o general Luiz
nas comemorações do último 7 de setem- Eduardo Ramos (Secretaria de Governo),
bro. Uma vez de posse do poder político, Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), An-
elas buscam o passo definitivo de seu pro- dré Luiz Mendonça (Advocacia-Geral da
jeto, no plano das ideias (e das leis): poli- União), Abraham Weintraub (Educação) e
tizar os temas caros à sua fé, sobretudo no Damares Alves (Mulher, Família e Direitos
campo dos costumes. A intenção é travar, Humanos). Os dois últimos estão na van-
em pé de igualdade política, uma “guerra guarda da chamada guerra cultural.
cultural” contra as forças progressistas e Na mesma linha do que se transformou
secularistas – que, segundo eles, domina- o nacionalismo cristão norte-americano3,
ram a cultura e as artes por décadas e foram os guerreiros culturais tupiniquins vêm
responsáveis não só pelo colapso moral do buscando usar as alavancas do Estado para
país, mas também pela própria marginali- promover transformações na legislação e
zação social dos evangélicos. em políticas públicas sobre temas como
A “crentefobia”, tema que vem ganhan- aborto, união homoafetiva, “ideologia de
do certo destaque na imprensa, somente po- gênero” e abstinência sexual – ou seja,
deria ser combatida por meio do resgate das pretendem exercer maior controle sobre os
raízes cristãs do país. Daí a força do projeto corpos, sobretudo femininos. Além disso,
nacionalista cristão encampada pelo novo buscam realocar recursos públicos das ar-
governo. Ainda que a indissociabilidade tes, da cultura e do entretenimento em fa-
entre fé e patriotismo toque os corações de vor de grupos religiosos e temáticas cristãs.
muitos outros cristãos, entre católicos e es- Mas, a disputa interna por poder, seja entre
píritas, a mensagem é particularmente forte igrejas ou entre evangélicos e grupos fun-
entre comunidades e lideranças evangéli- damentalistas católicos, geralmente asso-
cas, que veem em Bolsonaro não somente ciados ao “olavismo”, assim como as com-
a concretização de pautas específicas, mas plexas dinâmicas legislativas, fazem com
também do reconhecimento de sua ascen- que o avanço dessas pautas de costumes
são política e social. Um dos exemplos seja muito lento – e nada garante que elas
mais eloquentes dessa deferência foi dado serão levadas a cabo num futuro próximo.
em julho de 2019, quando o presidente pro-
meteu que um de seus indicados para o Su- 3 Ver Michelle Goldberg, Kingdom Coming: the rise of
Christian Nationalism (New York: W.W. Norton, 2006).

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Surpreendentemente, apesar dos es- grupos pentecostais –, já foi anunciada, em
forços concentrados na guerra cultural, o dezembro último, pelo deputado Eduardo
projeto (neo)pentecostal caminha mais ra- Bolsonaro. Ao mesmo tempo, o silencioso
pidamente em áreas que não dependem de desmonte da Fundação Nacional do Índio
aprovação legislativa ou naqueles em que (Funai) revela a aliança entre ruralistas e
evangélicos conseguiram formar alianças grupos missionários para a “evangeliza-
com outras forças políticas. Postergada no ção” dos povos indígenas – e a eventual
início do governo graças à pressão contrá- desapropriação de suas reservas. Pelas bei-
ria de militares e ruralistas, a transferência radas, lideranças (neo)pentecostais seguem
da embaixada brasileira em Israel, de Tel deitando as raízes de um projeto de poder
Aviv para Jerusalém – um sinal da profe- que poderá mudar a cara do país nos pró-
cia bíblica do fim dos tempos, para alguns ximos anos.

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