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Daniel Rocha1
Na primeira página do jornal Los Angeles Daily Times de 18 de abril de 1906, registrou-
se, entre os destaques daquela edição, uma reportagem sobre a “estranha Babel de línguas”
(weird Babel of tongues) que estaria sendo testemunhada pelos presentes nas reuniões que
ocorriam na rua Azusa nº 312, em Los Angeles. O jornal falava dos participantes de uma “nova
seita de fanáticos” que praticavam rituais bizarros, pregavam “as teorias mais selvagens e se
entrega[vam] a um estado de louco êxtase”.2 O olhar cético e mesmo jocoso da imprensa em
relação àquele movimento também se fazia presente nas avaliações de algumas lideranças
protestantes sobre esse novo “movimento das línguas”. Outras viam aquelas manifestações
como uma forma desvirtuada de cristianismo cuja inspiração seria demoníaca. O pregador
conservador George Campbell Morgan referia-se ao movimento como “o último vômito de
Satanás” – the last vomit of Satan (Apud BROWN, 1996, p. 197).
Já aqueles envolvidos com os “sinais e prodígios” dessa nova descida do Espírito Santo
– que tinha na glossolalia, o “dom de línguas”, seu sinal confirmatório – acreditavam fazer parte
de um plano divino de restauração da fé do cristianismo primitivo, da fé dos apóstolos. O que
estava acontecendo em Los Angeles e outras partes dos Estados Unidos seria um sinal do
iminente retorno de Cristo em um cumprimento das profecias bíblicas sobre a “última chuva”
(latter rain) antes do fim dos tempos, “como um prelúdio da Segunda Vinda de Jesus Cristo,
desta vez para estabelecer o seu reino visível” (COX, 1995, p. 47).
1
Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017). Bolsista PNPD/CAPES e professor
colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Endereço eletrônico: danielrochabh@yahoo.com.br
2
Tradução nossa. O mesmo ocorre em todas as outras citações originalmente em inglês.
podendo mais ser vistos como uma pequena minoria sem maior relevância na vida religiosa e,
também, nos contextos social e político desses países. No caso do Brasil, os pentecostais
formam o grupo que mais cresce no campo religioso nacional de acordo com os dados dos
últimos Censos demográficos. Em 2010, 25.370.484 milhões de brasileiros se autodeclararam
membros de alguma igreja pentecostal, 13,3% do total da população. Com o adiamento do
Censo que deveria ter sido realizado em 2020, ainda não temos como mesurar a evolução do
número de pentecostais na última década, mas pesquisas recentes – com amostragens bem
menores que a do Censo do IBGE, é claro – têm indicado que a trajetória de crescimento dos
pentecostais tem se mantido ao longo dos últimos anos.3
O pentecostalismo tem se tornado cada vez mais familiar aos brasileiros. Juntamente
com o crescimento numérico vieram a expansão das igrejas, a grande visibilidade através da
mídia e da presença de seus templos na paisagem urbana, a participação de políticos
declaradamente pentecostais no espaço público, os grandes eventos que mobilizam milhares de
pessoas – como a “Marcha para Jesus” – e o convívio pessoal cada vez mais frequente de
brasileiros com amigos, familiares ou colegas de trabalho que são (ou se tornaram) pentecostais.
E esse movimento religioso não tem passado despercebido aos estudos acadêmicos. Se há
algumas décadas as pesquisas sobre o pentecostalismo eram raras e aquela parcela antes
reduzida e de tendência sectária da população brasileira não despertava maior interesse dos
estudiosos das religiões no Brasil, hoje em dia o quadro é bem diferente. O interesse dos
pesquisadores sobre o pentecostalismo tem sido crescente, embora tenha se apresentado de
maneira desigual entre as áreas – com, por exemplo, mais trabalhos entre antropólogos e
sociólogos do que entre historiadores – e entre os objetos de pesquisa analisados – com estudos
sobre a Igreja Universal do Reino de Deus sendo abundantes e trabalhos sobre outras
denominações pentecostais, como a Igreja do Evangelho Quadrangular e a igreja O Brasil Para
Cristo, escassos.
Os objetivos e recortes deste texto precisam ser compreendidos a partir do seu lugar e
de função dentro desta obra. Nossa pretensão é apresentar um texto introdutório, tão breve
quanto possível, sobre o pentecostalismo moderno e os estudos do pentecostalismo no Brasil,
especialmente os debates sobre as tipologias e “divisões internas” do campo pentecostal. A
abordagem tem um perfil histórico, de longa duração, procurando apresentar as origens, o
3
Por exemplo, em pesquisa realizada pelo instituto Data Folha nos dias 5 e 6 de dezembro de 2019, o percentual
do total de evangélicos encontrado foi de 31% dos entrevistados. Fonte:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/cara-tipica-do-evangelico-brasileiro-e-feminina-e-negra-aponta-
datafolha.shtml>. Acessado em 05 de outubro de 2021.
desenvolvimento e as “rupturas e permanências” na história do pentecostalismo brasileiro. Não
nos aprofundaremos no histórico e nas peculiaridades teológicas, organizacionais e perfis
socioeconômicos de denominações pentecostais específicas, pois esse trabalho será feito nos
capítulos posteriores.
O texto está dividido em quatro seções, sendo as duas primeiras sobre as origens do
pentecostalismo moderno e a terceira e quarta sobre o desenvolvimento e debates a respeito do
pentecostalismo no Brasil. Na primeira seção, procuraremos apresentar, brevemente, as raízes
históricas do pentecostalismo dentro da tradição protestante a partir dos movimentos de
renovação espiritual do século XVIII e nas transformações do protestantismo norte-americano
de tradição avivalista ao longo do século XIX, no qual elementos do pentecostalismo, ou um
proto-pentecostalismo, já podiam ser observados ainda nas últimas décadas dos oitocentos. Na
segunda seção discutiremos o advento do pentecostalismo moderno e debateremos o papel de
alguns de seus personagens centrais, como Charles Fox Pahram, William J. Seymour e William
H. Durham. Também discutiremos o legado do movimento da rua Azusa e o “pentecostalismo
de Chicago”, com o qual os pioneiros do pentecostalismo brasileiro tiveram contato.
Essa é a “versão curta” da história que se consolidou nos relatos sobre as origens do
pentecostalismo moderno. Quando se trata do caso brasileiro, normalmente, acrescenta-se a
informação de que William H. Durham recebeu o “batismo no Espírito Santo” em Azusa e
levou a mensagem para sua igreja na North Avenue em Chicago, onde os pioneiros do
pentecostalismo brasileiro (Daniel Berg e Gunnar Vingren das Assembleias de Deus e Luigi
Francescon da Congregação Cristã no Brasil) tiveram contato com o pentecostalismo. Essa é
uma forma de se contar a história das origens do pentecostalismo moderno, mas não é a única
e, no nosso entendimento, não é a mais adequada. Assim como o próprio pentecostalismo, a
historiografia e os debates em torno de suas origens e desenvolvimento têm passado por um
processo de profundas transformações. Allan Heaton Anderson, por exemplo, observa que,
tendo por base fontes históricas do período inicial do pentecostalismo, normalmente
confeccionadas por pastores e missionários brancos dos Estados Unidos, por muito tempo
perdurou uma história do pentecostalismo contada de uma “perspectiva predominantemente
norte-americana branca, negligenciando (se não ignorando completamente) o trabalho vital e
muitas vezes mais significativo de pioneiros pentecostais asiáticos, africanos, afro-americanos
e latinos” (ANDERSON, 2019, p. 19).
Augustus Cerillo Jr. (1997, p. 30) argumenta que os estudos sobre as origens do
pentecostalismo moderno têm tomado, de forma geral, quatro diferentes caminhos
interpretativos: a) uma história providencialista: visão defendida por autores pentecostais
(especialmente os que foram contemporâneos do pentecostalismo inicial) que entendem o
movimento como uma intervenção divina na história; b) interpretações que privilegiam as
raízes históricas do pentecostalismo: os adeptos dessas abordagens entendem o
pentecostalismo mais como uma continuidade em relação aos movimentos avivalistas do século
XIX do que uma ruptura na história do cristianismo; c) a ênfase no pentecostalismo como um
fenômeno multicultural: essa corrente de autores prioriza o papel dos negros no advento do
pentecostalismo e a experiência da rua Azusa como paradigmática no sentido de trazer à tona
uma forma de espiritualidade extremamente influenciada pelas crenças, práticas e ritos de
origem africana e, também, uma experiência comunitária que buscava romper com as divisões
baseadas em gênero, cor e etnia; d) por fim, uma perspectiva funcionalista: os pesquisadores
que adotam essa linha procuram entender as funções (sociais, psicológicas, políticas etc.) que
o pentecostalismo assumiu em determinado contexto, que ajudam a explicar a aderência das
pessoas às suas formulações teológicas e à sua experiência religiosa. Dentre as rotas traçadas
por Cerillo Jr., os leitores logo perceberão que este texto procura entender o pentecostalismo
como um fenômeno de longa duração e que não pode ser devidamente compreendido se
desconectado das transformações do protestantismo norte-americano do século XIX. Mas,
como o próprio autor observa, “poucos historiadores utilizam apenas uma das abordagens em
suas interpretações das origens do pentecostalismo” (CERILLO JR., 1997, p. 30). A
combinação de elementos das diferentes abordagens nos permite uma análise mais coerente e
aberta à complexidade do objeto pesquisado. Por exemplo, muitas vezes análises funcionalistas
e históricas são complementares e não excludentes.
Mas a história que contaremos talvez não seja a que gostaríamos de contar. Todo texto
histórico necessita de certos recortes relacionados à sua proposta e, obviamente, todo recorte
envolve um certo nível de arbitrariedade. De antemão, procuramos deixar claro para o leitor
que nossa abordagem é direcionada por nosso objetivo – analisar as raízes e o desenvolvimento
do pentecostalismo no Brasil – e limitada, em termos de detalhes históricos e aprofundamento
em certas questões, pelos limites que um texto de caráter introdutório e de menor “fôlego”
evidentemente possui. Se nosso objetivo é traçar alguns apontamentos gerais sobre o
pentecostalismo que chegou ao Brasil, então nos detivemos nos pontos que, entendemos, são
mais pertinentes para entendermos o pentecostalismo que Berg, Vingren e Francescon
trouxeram em suas “malas”, vindos dos Estados Unidos para o Brasil. Dessa forma, em vários
momentos, acabamos nos aproximando do enredo da “versão curta” que contamos
anteriormente e do pentecostalismo dos “homens brancos” mencionado por Anderson. Mas
procuramos, sempre que possível, deixar clara a pluralidade que marca essa história das origens
do pentecostalismo e indicar algumas referências sobre o tema.4
Nesta época, teve início nas colônias inglesas na América do Norte o que se tornou
conhecido como o Primeiro Grande Avivamento. O foco inicial desses avivamentos – que
4
Na bibliografia disponível em português, uma obra que procura apontar para a diversidade regional, racial e de
gênero no surgimento e na história do pentecostalismo é o já mencionado texto de Anderson: ANDERSON, Allan
Heaton. Uma introdução ao pentecostalismo: cristianismo carismático mundial. São Paulo: Loyola, 2019.
tiveram como grandes expoentes os pregadores calvinistas Jonathan Edwards e George
Whitefield – foi a Nova Inglaterra da terceira geração de puritanos, que já haviam, de certa
forma, se afastado do “fervor religioso” e ideal ascético das gerações anteriores dos chamados
“Pais Peregrinos”. De acordo com Marsden (2015, p. 29), “em alguns lugares, as igrejas
congregacionais estavam começando a mover-se em direção a tornarem-se mais como igrejas
paroquiais do velho mundo, nas quais todos eram batizados na igreja e os padrões para a
aceitação de membros adultos não eram severamente estritos”. Os pregadores avivalistas
causaram grande impacto, ressaltando a ira vindoura de Deus contra os impenitentes e a
necessidade de uma conversão pessoal e genuína para que as pessoas fossem salvas e
participassem das congregações locais. O movimento gerou uma grande corrida às igrejas. Os
avivamentos se espalharam pelas colônias, tornando-se um assunto de repercussão tanto nas
colônias quanto na Inglaterra e na Escócia.5
Ao longo do século XVIII, os avivamentos perderam força, mas o século XIX foi
marcado, logo em suas primeiras décadas, por uma nova onda de fervor religioso nos já
independentes Estados Unidos da América. Se os avivamentos do século XVIII tiveram como
centro irradiador a Nova Inglaterra dos congregacionais e seus pregadores de matriz calvinista,
o século XIX seria o “século dos metodistas”.6 Além da mensagem mais acessível e da sua
identidade com a teologia/prática dos avivamentos, o metodismo se adaptou melhor ao período
do alargamento das fronteiras, com a expansão do país rumo ao oeste. Nesse contexto, a “fé
despertada era avessa ao intelectualismo, à teologia e às instituições teológicas formadoras de
um clero esclarecido”, uma religião “prática, colada aos problemas da vida cotidiana aos quais
procurava apresentar soluções espirituais” (CAMPOS, 2005, p. 106). Também foi prática
corrente a organização de camp meetings, espécie de acampamento/retiro espiritual, nos quais,
durante alguns dias, os fiéis se reuniam para uma série de pregações, estudos bíblicos, orações
e cânticos – inclusive há uma série de relatos de experiências de êxtase religioso no ambiente
informal desses acampamentos.
O chamado Segundo Grande Avivamento, cujo ápice foi em torno da década de 1830,
foi profundamente marcado pela “Era Metodista”, mesmo que alguns dos seus principais
expoentes, como Charles Finney, fossem de origem calvinista. Finney levou a lógica dos camp
5
As séries de pregações de George Whitefield nas colônias inglesas na América do Norte, por exemplo,
dominavam as manchetes dos jornais da época. Ver: LAMBERT, Frank. “Pedlar in divinity”: George Whitefield
and the Great Awakening (1737-1745). Journal of American History, v. 77, n. 3, p. 812-837, 1990.
6
De acordo com Reily (2003, p. 40), se “quando da pequena criação da Igreja Metodista Episcopal em 1784, havia
menos de 15 mil metodistas nos Estados Unidos; nos meados do século XIX, estes já constituíam a maior Igreja
do país”.
meetings para as grandes cidades com suas campanhas evangelísticas que duravam vários dias.
Nessa época, ganharam ainda mais espaço as pregações profundamente emocionais; a
utilização de novos métodos para levar a mensagem ao público; o uso intensivo da música como
ferramenta evangelística e devocional; e o foco cada vez maior no indivíduo e em seu livre-
arbítrio em relação à salvação.
7
O papel das mulheres como pregadoras, organizadoras de grupos e difusoras dos ideais de santificação foi
fundamental para o crescimento do movimento holiness, sendo um exemplo marcante do que Vítor Izecksohn
(2021, p. 73) chamou de “‘feminilização’ da religião tanto em termos de adesão como de culto” no protestantismo
norte-americano da segunda metade do século XIX. Diferentemente das grandes denominações protestantes do
país, nos pequenos grupos holiness as mulheres exerciam autoridade e se destacavam entre as escritoras e
distribuidoras de livros e textos ligados ao movimento. Outra mulher que se destacou nesse período foi a
evangelista negra Amanda Berry Smith, que pregou nos camp meetings de holiness por todo o país e, inclusive,
viajou ao redor do mundo levando sua mensagem de “santidade” em encontros religiosos na Europa e na África.
Sobre a atuação das mulheres no movimento holiness e, posteriormente, nos primeiros anos do pentecostalismo,
ver: MENDIOLA, Kelly Willis. The hand of a woman: four holiness-pentecostal evangelists and American Culture
(1840-1930). Tese de Doutorado, University of Texas – Austin, 2002.
Holiness, obra essencial para se entender a natureza e as ênfases do movimento. Palmer
sintetizou a busca pela santificação em “três passos simples: a consagração da vida totalmente
a Deus; a crença na promessa de Deus para a santificação; e dar testemunho do que Deus fez”
(HEMPTON, 2005, p. 140).
8
Como Jesus não retornou, os mileritas tornaram-se motivo de piada, e do que sobrou do movimento após o
“grande desapontamento” – como ficou conhecido chamado esse episódio –, alguns seguidores de Miller, sob a
orientação de Ellen White, formaram o que viria a ser, até hoje, uma importante denominação: os Adventistas do
Sétimo Dia.
ocorreria em 1914 (STROZIER, 2002, p. 187). Também é importante observar que a glossolalia
não era uma experiência espiritual que havia ficado “esquecida no tempo” e teria ressurgido
subitamente no início do século XX. Por exemplo, Joseph Smith, o patriarca do mormonismo,
em 1842 afirmava que a igreja dos santos dos últimos dias acreditava no dom de línguas e
interpretação de línguas (VOGEL; DUNN, 1993). Um exemplo relatado entre os mórmons é o
de Elisabeth Ann Whitney que, após receber uma bênção de Joseph Smith em uma reunião em
1835 – na qual Smith lhe prometera o “dom de cantar de forma inspiradora” –, se levantou e
passou a cantar em uma língua desconhecida, sendo interpretada por Parley P. Pratt.9
9
Cf. em <https://www.churchofjesuschrist.org/study/church-historians-press/at-the-pulpit/part-1/chapter-
2?lang=por>. Consultado em 24 de out. de 2021.
10
De acordo com Elliot (2019, p. 329), Irving defendia: a escatologia pré-milenarista; “uma cristologia que
defendia que Cristo havia sido plenamente humano, mas permaneceu sem pecado através do poder do Espírito
Santo; e a abertura à disponibilidade [e contemporaneidade] dos dons carismáticos”.
si só, um indício suficiente da permanência do mesmo conteúdo ou significado por elas
designado” (KOSELLECK, 2006, p. 105). Nas últimas décadas do século XIX, tornou-se
frequente entre os grupos de holiness o uso de expressões e termos que, posteriormente, seriam
identificados com o pentecostalismo moderno. Um exemplo disso é o uso de “batismo no
Espírito Santo” para se referir à santificação, a “segunda bênção” da terminologia herdeira do
pensamento de Wesley e consolidada por Phoebe Palmer. Mas, nesse período, tal batismo no
Espírito Santo ou, batismo com fogo – um importante grupo de holiness do período era chamado
de Fire-Baptized Holiness Church, denominação fundada por Benjamin H. Irwin –, não estava
ligado à glossolalia. Variações nas ênfases teológicas do movimento começavam a aparecer e
alguns já falavam em uma “terceira bênção”.11
Assim como “batismo no Espírito Santo”, o termo “pentecostal” também foi muito
utilizado no século XIX, mas não estava diretamente vinculado às manifestações de glossolalia.
O termo foi empregado, inicialmente, como um sinônimo para santidade. Os movimentos de
holiness acabaram dando origem a uma série de cisões dentro do metodismo norte-americano
e ao surgimento de igrejas locais e pequenas denominações de alcance, normalmente, regional.
Nesse processo, várias igrejas adotaram o termo “pentecostal” em seus nomes. Por exemplo,
William Howard Hoople organizou três congregações de holiness em Nova Iorque entre 1894
e 1895: Utica Avenue Pentecostal Tabernacle, Bedford Avenue Pentecostal Church e
Emmanuel Pentecostal Tabernacle. As três congregações se uniram para formar a Associação
de Igrejas Pentecostais da América (Association of Pentecostal Churches of America). Essa
associação se uniu a uma série de outros pequenos grupos de holiness, dando origem, em 1907,
à Pentecostal Church of the Nazarene, que mais tarde mudaria seu nome para Igreja do
Nazareno.12
2. O pentecostalismo inicial
11
O pregador canadense R. C. Horner defendia a ideia do batismo do Espírito Santo como uma terceira bênção
que fornecia ao crente um poder especial para o trabalho evangelístico, para “ganhar almas” (DAYTON, 1987, p.
99). Dessa forma, para Horner, teríamos três ações distintas da graça divina: a “primeira bênção” seria a conversão,
a “segunda bênção”, a santificação e a “terceira bênção”, o batismo no Espírito Santo.
12
A Quinta Assembleia Geral (1919) mudou o nome oficial da denominação para Igreja do Nazareno. De acordo
com Blumhofer (1989, p. 183), a abolição da “palavra ‘pentecostal’ do nome da Igreja do Nazareno [...]
simbolizava a rejeição da ‘heresia da terceira bênção’ e o seu desejo de se dissociar do pentecostais”. Em
documento oficial da Igreja do Nazareno, é dito que “A Assembleia Geral de 1919, em resposta a memoriais de
35 assembleias distritais, oficialmente mudou o nome da organização para Igreja do Nazareno devido aos novos
significados que se tornaram associados ao termo ‘pentecostal’” (CHURCH OF THE NAZARENE, 2009, p. 20).
Neste ponto, retomamos nossa “história curta” contada no primeiro parágrafo da seção
anterior. No alvorecer do século XX, o pregador independente, mas de formação metodista e
profundamente identificado com as doutrinas do movimento de holiness,13 Charles Fox Parham
havia iniciado a defesa de uma nova interpretação sobre a “terceira bênção”. Em Topeka, no
Bethel Bible College, Parham defendia que existiria uma bênção diferente da santificação e cujo
sinal seria a manifestação do dom de línguas. Dessa forma, a proposta de Parham guarda várias
continuidades com os debates que já ocorriam dentro dos movimentos de holiness ao inserir a
glossolalia em uma já conhecida matriz wesleyana de aperfeiçoamento cristão e, também, como
sinal visível de uma experiência com o Espírito Santo.14
13
De acordo com Blumhofer (1989, p. 74), apesar de Charles Parham não mencionar ter participado do movimento
holiness, suas perspectivas sobre santificação correspondiam às da National Holiness Association.
14
Alguns autores ressaltam a importância do contato de Parham com Frank Sandford, polêmico líder do
movimento The Kingdom que organizou, em 1893, uma comunidade chamada Shiloh no Maine.. Kay (2011) diz
que provavelmente Parham tenha ouvido sobre a relação entre a glossolalia e o batismo com o Espírito Santo em
seu encontro com Sandford em 1900. Ver também Blumhofer (1989, 76-81) e Peters (2008, p. 81-85).
15
As dúvidas sobre o fato de se estarem falando línguas dos homens ou “línguas dos anjos”, que estão presentes
no contexto de Parham, nos dão oportunidade de se fazer uma distinção entre glossolalia e xenoglassia (ou
xenolalia). De acordo com Robert Mapes Anderson (1992, p. 16), o termo glossolalia tem sido utilizado para “se
referir tanto a vocalizações ininteligíveis quanto para o uso milagroso de uma língua que o falante nunca
aprendeu”. Com o objetivo de evitar ambiguidades, pesquisadores têm utilizado glossolalia para classificar
manifestações de línguas ininteligíveis e xenoglassia para o uso – miraculoso – de um idioma desconhecido pela
pessoa “abençoada”. Em termos práticos, o uso de glossolalia para descrever os fenômenos das línguas no
pentecostalismo normalmente é aplicável em todos os casos, dado que, ainda segundo Anderson (1992, p. 16-17),
os estudos realizados não conseguiram comprovar experiências reais de xenoglassia. Mas, para Parham, a
experiência da xenoglassia também era uma realidade: “Eu tenho falado muitas vezes no idioma iídiche, uma
linguagem compreendida por todos os judeus da Europa Central, e eu espero que Deus me dê um maravilhoso
ministério entre os judeus em Jerusalém. [...] Eu acredito que Deus tomará minha língua e falará através destes
lábios de barro, pois o Espírito Santo é a inspiração, ele é capaz de falar qualquer língua do mundo através de nós”
(PARHAM, s/d, p. 67).
16
Em entrevista à imprensa local, S. J. Riggins, aluno de Parham disse: “Eu acredito que todos eles estão loucos.
Nunca vi nada parecido. Eles estavam correndo pela sala, falando, gesticulando e usando essa linguagem estranha
e sem sentido que afirmam ser a palavra do Altíssimo” (apud BLUMHOFER, 1989, p. 84).
Pessoas eram atraídas pelos relatos de conversões, curas divinas e, especialmente, pelas
manifestações do dom de línguas.
Com pisos sujos de serragem e tábuas ásperas como bancos, as reuniões diárias começavam
por volta das dez da manhã e geralmente iam até tarde da noite. Eram completamente
espontâneas e geralmente emocionais, sem programação ou oradores planejados. Cantar em
línguas e pessoas caindo ao chão “sob o poder” ou “mortas no Espírito” eram fenômenos
comuns. A integração racial nesses encontros era singular na época e pessoas de minorias
étnicas descobriram o senso de dignidade e de comunidade que lhes era negado na cultura
urbana em geral. A equipe de liderança central de Seymour era totalmente integrada, com
homens e mulheres negros e brancos sendo responsáveis por vários aspectos do trabalho. [...]
Centenas de visitantes de todo o continente e do exterior vinham para ver o que estava
acontecendo e ser batizados do Espírito. Muitos deles inauguraram centros pentecostais em
várias cidades dos Estados Unidos e, gradualmente, em locais mais distantes (ANDERSON,
2019, p. 54-55).
O avivamento da rua Azusa e o ministério de Seymour têm sido tratados por muitos
autores como o marco inicial do movimento pentecostal moderno. Entretanto, entendemos que
esse papel atribuído à rua Azusa pode acabar por encobrir as raízes plurais do pentecostalismo
moderno. Joe Creech (1996) procurou contestar o que ele considera uma “compreensão mítica”
do movimento da rua Azusa como a raiz da qual todo o pentecostalismo floresceu. Essa
compreensão não tem se limitado às narrativas internas de grupos pentecostais, mas também
tem sido responsável por visões, até certo ponto, distorcidas nos estudos acadêmicos sobre as
origens do pentecostalismo. O avivamento de Azusa se tornou, em alguns relatos, como a
experiência característica do pentecostalismo inicial (cuja originalidade e inocência se
perderam no tempo), sendo esse então marcado por “espontaneidade, liderança carismática,
êxtase e a subversão das categorias de raça, classe e gênero”, sendo percebido, dessa forma,
como “como um movimento homogêneo exibindo um ethos igualitário e sectário comum”
(CREECH, 1996, p. 406).
Dessa forma, podemos falar de pelo menos duas tendências (ou subculturas) no
movimento pentecostal da primeira década do século XX: o Movimento da Fé Apostólica
capitaneado por Seymour e o que Creech chama de “Velho Movimento da Fé Apostólica” (Old
Apostolic Faith Movement), herdeiro das posições teológicas e das perspectivas conservadoras
de Parham. Assim, buscar essas variadas facetas e raízes nos ajuda a entender o pentecostalismo
inicial: como um movimento não somente urbano, mas também enraizado nas pequenas cidades
do meio rural, e a perceber que a experiência de quebra de barreiras baseadas em cor e etnia, de
informalidade e de grande participação de lideranças femininas de Azusa, conviveu mesmo em
sua época com críticas de outros adeptos da crença na contemporaneidade dos dons do Espírito
Santo, que tinham percepções muito mais restritivas e socialmente limitadas (e mesmo
segregacionistas) em relação à “liberdade” que poderia ser proporcionada pelo agir do Espírito
Santo.
Entretanto, Parham não conseguiu se manter por muito tempo como uma liderança de
maior relevância nacional mesmo na corrente branca/conservadora do pentecostalismo. Uma
outra tendência – que, inclusive, partia de pressupostos teológicos diferentes dos de Parham –
rapidamente se estabeleceu como um polo alternativo e, posteriormente, conflitante com Azusa.
William H. Durham, pastor de formação batista e que liderava a Chicago’s North Avenue
Mission, “visitou a missão da rua Azusa em Los Angeles, onde recebeu o batismo no Espírito
Santos e falou em línguas no dia 02 de março de 1907” (BURGESS; MCGEE, 1988, p. 255).
Com o retorno de Durham a Chicago, a North Avenue Mission se transformou em um
importante centro de difusão do pentecostalismo, rivalizando “com a rua Azusa em influência
e resultou indiretamente na criação de várias congregações pentecostais de imigrantes europeus
em Chicago, especialmente italianos e escandinavos” (ANDERSON, 2019, p. 59).
17
Segundo os dispensacionalistas, a Bíblia anuncia uma perspectiva de história dividida em sete eras ou
“dispensações”. C. I. Scofield (1967, p. 5), o principal divulgador das crenças dispensacionalistas nos Estados
Unidos no início do século XX, afirmava que “uma dispensação é um período de tempo durante o qual o homem
é testado em relação à sua obediência a alguma revelação específica da vontade de Deus”. As dispensações, ou as
diferentes formas como Deus teria lidado com a humanidade ao longo do tempo, seriam as seguintes: 1) a
“Inocência”, que terminaria com a Queda e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso; 2) a “Consciência”, que se
findaria com o Dilúvio; 3) “O Governo Humano”, que seria encerrado em Babel; 4) a “Promessa”, que acabaria
na escravidão no Egito; 5) a “Lei”, que terminaria com a rejeição e crucificação de Cristo; 6) a “Graça” ou “Período
da Igreja”, que se encerraria com o governo do Anticristo durante a Tribulação, a Batalha do Armagedom e a
Segunda Vinda de Cristo; e, por fim 7) o “Milênio”, no qual Cristo reinaria pessoalmente na Terra junto aos seus
santos.
convenções realizadas naquela cidade inglesa. O movimento de Keswick apresentava uma
compreensão de santificação diferente da tradição wesleyana que era adotada pelos movimentos
de holiness e defendida por Parham e Seymour. Partidário dos ensinos de Keswick sobre o
tema, Durham, mesmo tendo sido “batizado no Espírito Santo” em Azusa, estabeleceu uma
discordância pública em relação à crença na santificação como uma obra da graça divina
recebida posteriormente, como uma “segunda bênção:
18
Campos (2005, p. 113) menciona divisões nas Assembleias de Deus já na década de 1930 com o surgimento no
nordeste da Igreja de Cristo e da Igreja Adventista da Promessa.
1950. Sobre as particularidades teológicas da primeira onda, Freston aponta a ênfase nas
manifestações de glossolalia como o ponto em comum entre as ADs e a CCB. Outro tópico de
aproximação, também em harmonia com as tendências predominantes no pentecostalismo
inicial, era a crença na iminência da Segunda Vinda de Cristo. Já em outros aspectos teológico-
doutrinários, o “pentecostalismo sueco” e o “pentecostalismo italiano” apresentavam (e
continuam apresentando) muitas diferenças. Mendonça (2002, p.48) afirma que enquanto os
assembleianos se caracterizavam por uma “teologia arminiano-wesleyana e eclesiologia
batista”, a CCB somava à sua crença na contemporaneidade dos dons do Espírito Santo uma
“teologia e eclesiologia residualmente presbiterianas”. Freston voltou a estabelecer
similaridades entre as igrejas do pentecostalismo clássico no perfil socioeconômico de seus fiéis
– normalmente pobres e de nível de escolaridade mais baixo –, no seu crescimento nas primeiras
décadas longe do ambiente das grandes cidades, nos padrões comportamentais/morais muito
rígidos e nas tendências sectárias mais radicais, com um discurso muito forte de rejeição das
“coisas do mundo”.
19
Na declaração de fé da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, no item “A missão da igreja”, é
dito que: “A Igreja foi eleita para a adoração e louvor da glória de Deus, recebendo, também, a missão de proclamar
o evangelho da salvação ao mundo todo, anunciando que Jesus salva, cura, batiza no Espírito Santo e que em breve
voltará”. Disponível em: <https://assembleia.org.br/wp-content/uploads/2017/07/declaracao-de-fe-das-
assembleias-de-deus.pdf>. Acessado em 27 de outubro de 2021.
mundo a partir de meados dos anos 1940” e, especialmente, por sua expansão na América
Latina, Ásia e África.
A terceira onda do pentecostalismo brasileiro teve início na virada dos anos 1970 para
os 1980 e representa a vertente pentecostal mais estudada pelos pesquisadores nas últimas
décadas, especialmente a sua principal representante: a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). Com poucas exceções, as igrejas dessa última onda da tipologia de Freston são
chamadas de neopentecostais, termo que inclusive foi se consolidando na mídia e no senso
comum, muitas vezes com conotação negativa.20 Além da IURD, as principais igrejas da
terceira onda são a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), a Renascer em Cristo, a
Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra e, de histórico mais recente mas com grande
visibilidade midiática, a Igreja Mundial do Poder de Deus, do Apóstolo Valdemiro Santiago.
20
Como bem observado por Ismael de Vasconcelos Ferreira (2017, p. 15): “É preciso destacar também que a
terminologia neopentecostalismo não encontra lugar no cotidiano religioso dos ditos representantes deste termo.
Nenhum fiel se considera neopentecostal. Esta classificação veio de fora, de uma tentativa acadêmica de se
compreender a religiosidade pentecostal, e que acabou por se popularizar, na academia e mesmo nos espaços
religiosos, sendo que neste se dá sempre de modo reprovativo.”
Apesar de os líderes das duas principais denominações neopentecostais – Edir Macedo (IURD)
e Romildo Ribeiro Soares (IIGD) – terem iniciado sua vivência no pentecostalismo na Igreja
Nova Vida do missionário canadense Robert McAlister, uma característica das igrejas da
terceira onda é seu caráter “autóctone”: organizadas e comandadas por lideranças nacionais.
Em relação às ondas anteriores, as igrejas neopentecostais guardam algumas semelhanças,
especialmente com igrejas da segunda onda, como os cultos voltados para a cura divina, sua
proliferação preponderantemente no meio urbano e o uso intenso dos meios de comunicação,
com programas de rádio, mas, dada a ampliação da presença de televisores nos lares dos
brasileiros, também ocupando espaço considerável nas grades de programação das emissoras
de TV através da compra de horários e, no caso da IURD, da aquisição de emissoras de
televisão.
O modelo das ondas elaborado por Freston tem o mérito organizar sob alguns padrões
a diversidade do pentecostalismo e, como ele próprio afirma, ressaltar “de um lado, a
versatilidade do pentecostalismo e sua evolução ao longo dos anos e, ao mesmo tempo, as
marcas que cada igreja carrega da época em que nasceu” (FRESTON, 1993, p. 66). Entretanto,
algumas limitações precisam ser apontadas em relação à tipologia das ondas do
pentecostalismo. Alguns desses problemas podem ocorrer através de um uso muito fechado ou
mesmo ingênuo da cronologia das ondas. Por exemplo: apesar de uma tendência das igrejas que
surgiram no Brasil no início dos anos 1980 poderem ser classificadas como neopentecostais, ou
de terceira onda, isso é uma tendência e não uma regra. Igrejas pentecostais surgiram nesse
período com caraterísticas mais ligadas à segunda onda. Mesmo igrejas que mencionamos como
exemplos da terceira onda, como a Renascer em Cristo, não possuíam, inicialmente uma ênfase
muito clara na teologia da prosperidade e na batalha espiritual (a igreja ficou conhecida no
começo dos anos 1990 por seu trabalho de evangelismo com jovens e suas bandas de rock e
heavy metal gospel). Por outro lado, elementos, que viriam a ser característicos do
neopentecostalismo, já estavam presentes em algumas igrejas da segunda onda, como o
pragmatismo nos pedidos e os exorcismos “espetacularizados” na Deus é Amor e o chamado à
batalha espiritual contra as religiões afro-brasileiras na Igreja Nova Vida, tendo o livro Mãe de
Santo (1968) de Robert McAlister grande influência na retórica neopentecostal posterior.
Como resultado dessa tensão interna criada pelos movimentos de renovação dentro do
protestantismo brasileiro, ocorreu uma série de cismas nas igrejas que deram origem a novas
congregações independentes e novas denominações, como a Metodista Wesleyana (1967), a
Presbiteriana Renovada (1972) e a Convenção Batista Nacional (1965). Além dessas que
mantiveram os nomes das denominações de origem, uma série de pequenas comunidades e
outras denominações também surgiram desse movimento, sendo a mais conhecida a Igreja
Cristã Maranata (1968), tendo se originado do movimento de renovação carismática dentro do
presbiterianismo.
Como situar tais igrejas na tipologia das ondas? Concordamos com Leandro Seawright
Alonso (2008, p. 40) quando ele afirma que a classificação de Freston deixa um “grande vácuo”
em relação às igrejas surgidas no movimento de renovação espiritual a partir dos anos 1960.
Embora Freston traga as noções de “Renovação Carismática Protestante” e “Comunidades
carismáticas”, essas ficam deslocadas em relação à sua tipologia do pentecostalismo brasileiro.
Além disso, Alonso alerta para o fato de que Freston utiliza uma noção de carismatismo que
“funciona” na análise do caso norte-americano, “onde os pentecostais são mantidos no âmbito
das igrejas históricas” (ALONSO, 2008, p. 40), mas que não é facilmente aplicável ao caso
brasileiro. Faria algum sentido uma diferenciação entre igrejas pentecostais e igrejas
carismáticas, sendo essas últimas as originárias dos cismas das igrejas protestantes tradicionais?
No nosso entendimento, tal diferenciação carece de referenciais mais objetivos. O ser originário
de cismas protestantes é algo recorrente na história das igrejas pentecostais. No próprio
histórico da maior delas, as Assembleias de Deus, podemos traçar suas origens a uma polêmica
causada pela pregação da doutrina por seus missionários pioneiros em uma igreja batista.
Também não podemos considerar a questão da nomenclatura (a manutenção da tradição
denominacional de origem no nome da igreja) como um padrão para tal divisão: Igreja
Presbiteriana Renovada e Igreja Cristã Maranata são oriundas do presbiterianismo. Deveriam
ser classificadas de forma diferente apenas pela opção de nomenclatura feita? Dessa forma,
embora saibamos que seja uma questão aberta a debates, consideramos que essas igrejas devem
ser classificadas como igrejas pentecostais, sendo a noção de carismatismo utilizada para definir
movimentos de caráter renovado/pentecostal, mas que permanecem dentro das estruturas
eclesiásticas das igrejas cristãs tradicionais (não “oficialmente” pentecostais).
4. Enquanto Jesus não volta: algumas observações sobre o pentecostalismo no Brasil atual
Em 1920, Torrey escreveu um pequeno texto com o título Is the present tongues
movement of God?,21 no qual refutava os rumos do pentecostalismo que ganhava espaço no
país. Sua resposta à pergunta do título do texto era um sonoro “não”. Torrey afirmava que a
21
Disponível em: <https://digitalcommons.biola.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1023&context=biola-pubs>.
Acessado em 14 de julho de 2021.
ideia de que quem não tenha recebido o dom da glossolalia não teria, de fato, recebido o batismo
do Espírito Santo, contrariava o texto bíblico. Aumentando o tom de suas críticas, Torrey dizia
que as lideranças pentecostais faziam uso de métodos ligados, por um lado, ao charlatanismo
e, por outro, a cultos de possessão de outras tradições religiosas. Alguns que dos que entravam
nessa espécie de transe e começavam a falar em línguas estranhas estariam, segundo Torrey,
possuídos por demônios e não pelo Espírito Santo. Concluindo, Torrey afirmava que o
pentecostalismo é “um movimento que todo aquele que crê e obedece a Palavra de Deus deve
abandoner, exceto para expor, caso haja oportunidade, os males e erros grosseiros ligados a
ele”.
Entretanto, é importante perceber que, apesar das divergências e críticas feitas por
lideranças fundamentalistas, as nascentes igrejas pentecostais foram, progressivamente,
incorporando os princípios fundamentalistas às suas declarações de fé. A espontaneidade, o
primado da oralidade sobre a tradição teológica e uma certa informalidade que marcou os
primórdios do movimento pentecostal na tradição de Azusa foram, aos poucos, tendo que
conviver com um processo lento e gradual de institucionalização em igrejas locais e
denominações de caráter nacional. Novas “revelações do Espírito Santo” levaram a sucessivas
cisões dentro dos incipientes grupos pentecostais.22 Outro ponto importante a ser observado é
a proximidade que o ramo mais conservador (e branco) do pentecostalismo, especialmente o
“pentecostalismo de Chicago”, tinha com os ensinamentos da tradição de Keswick e a
escatologia dispensacionalista, dois movimentos que, junto com o literalismo bíblico,
formavam a base teológica das principais lideranças do movimento fundamentalista.
Saulo Baptista (2002, p. 26) afirma que “o movimento pentecostal não tinha um corpo
de doutrinas próprio, além da afirmação do batismo com o Espírito Santo, associado com o dom
de línguas. Esse vazio de doutrina os pentecostais procuraram preenchê-lo adotando o conjunto
de dogmas fundamentalistas”. No mesmo sentido, José Miguez Bonino (2003, p. 40) diz que
“em algumas denominações, particularmente das igrejas de santidade e dos nascentes
movimentos pentecostais, sua tradição pietista e evangélica foi como que moldada novamente
pela influência fundamentalista”. Apesar de terem sido, como vimos, alvos constantes de
22
Um exemplo importante dessa dinâmica do pentecostalismo norte-americano é o caso das Assembleias de Deus
(Assemblies of God).22 Enfrentando uma série de divergências teológicas internas, especialmente em relação a
adeptos do Jesus Name Movement (também chamado de Oneness Pentecostalism) que, entre outras coisas, negava
a doutrina da Trindade, lideranças das Assembleias de Deus decidiram deixar claras suas crenças básicas e
inegociáveis. Nesse espírito, foi aprovado, em 1916, o primeiro Statement of Fundamental Truths das Assembleias
de Deus norte-americanas, contendo 17 artigos. Tais “verdades fundamentais” incluíam a reafirmação da doutrina
da Trindade, a divindade de Cristo, a perspectiva escatológica pré-milenarista, o batismo por imersão entre outros
pontos.
ataques de lideranças fundamentalistas, as igrejas pentecostais que começaram a se organizar
nos Estados Unidos na década de 1910 aderiram a vários dos princípios fundamentalistas e à
escatologia dispensacionalista. Podemos dizer que as crenças confessadas pelas igrejas
pentecostais uniam literalismo bíblico – a defesa da infalibilidade e inerrância da Bíblia –, pré-
milenarismo dispensacionalista e a crença na contemporaneidade dos dons do Espírito Santo,
sua crença diferencial.
23
Disponível em: <https://assembleia.org.br/em-que-cremos/>. Acesso em 15 de jun. 2020.
24
Entre os pesquisadores brasileiros que se dedicaram ao estudo das práticas sociais e políticas dos pentecostais,
o livro O refúgio das massas do suíço Christian Lalive D’Epinay (1970) exerceu um grande impacto. Para
D’Epinay, uma característica central da visão pentecostal do mundo é a radical separação entre a “vida espiritual”
e as “coisas do mundo”. Uma das bases teológicas que embasariam tal posicionamento seria a hegemônica
perspectiva escatológica pré-milenarista. O pré-milenarismo seria, na opinião do historiador Paulo Siepierski
(2004, p. 81), o “responsável” por uma separação do mundo por parte daqueles que o confessam. “Essa separação
revela-se, por exemplo, no desprezo ao prazer, no isolamento cultural, na passividade sociopolítica e no
pessimismo em relação a qualquer esforço para transformação da sociedade”.
estavam sob a influência “demoníaca” e todo o planeta seria em breve subjugado por uma
liderança política manipulada pelo próprio Satanás? Se a derrota na arena política era inevitável,
por que lutar? A luta justificável seria aquela por conquista de almas para Jesus numa batalha
contra as tentações do mundo e as forças espirituais satânicas. Mais do que determinante de
uma visão negativa dos “negócios humanos”, especialmente a política, o pessimismo
escatológico dos pentecostais era uma expressão de descontentamento de um grupo religioso
minoritário, muitas vezes discriminado e composto por fiéis que se encontravam nos estratos
economicamente inferiores da sociedade. Os “sinais dos tempos” não indicavam a possibilidade
de um período de paz e prosperidade para os pentecostais na terra. Isso só seria viável após a
intervenção sobrenatural de Deus na história e a Segunda Vinda de Jesus Cristo. Entretanto,
mesmo os observadores menos atentos do campo religioso brasileiro podem perceber que o
sectarismo, o desinteresse pela política e a rejeição das “coisas do mundo” não são mais
características da grande maioria do pentecostalismo no Brasil – talvez a Congregação Cristã
no Brasil ainda seja um dos últimos resquícios desse pentecostalismo old school. Se a
escatologia pré-milenarista era a razão do sectarismo e do “pessimismo” sociopolítico, porque
a postura dos pentecostais frente ao “mundo” mudou se a crença escatológica “oficial”
permaneceu a mesma?
As crenças escatológicas são ininteligíveis se dissociadas de seu contexto de formação
e, nos termos de Koselleck (2006), das experiências e expectativas dos grupos que as
confessam. Uma nova percepção sobre o presente pode ser responsável por uma transformação
em relação ao futuro esperado. Dessa forma, compreender a passagem, por exemplo, do
discurso de o “crente não se envolve em política” para o chamado a “ganhar o Brasil para Jesus”
passa, obrigatoriamente, por entender uma série de transformações internas e externas ao
pentecostalismo, que tiveram profunda influência na forma como parte de suas lideranças
passaram a pensar seu papel no contexto político e “espiritual” do Brasil. A partir de meados
dos anos 1980, o pentecostalismo passou por uma série de experiências sem precedentes em
sua história até então: afirmação como força política-eleitoral a partir de 1986 com a eleição de
diversos representantes pentecostais nas casas legislativas e mesmo no comando do poder
executivo em importantes cidades brasileiras; o já mencionado crescimento contínuo do número
de pentecostais atestado pelos últimos Censos demográficos, o que vem fomentando sonhos de
um Brasil majoritariamente pentecostal dentro de algumas décadas; diversificação do perfil
socioeconômico dos pentecostais no Brasil, com o fortalecimento desse grupo entre setores da
classe média; e a popularização entre os pentecostais de tendências teológicas que valorizam o
sucesso e o recebimento das bênçãos de Deus (bênçãos materiais, inclusive) neste mundo, como
a já mencionada teologia da prosperidade, mas também a chamada Teologia do Domínio. A
principal influência entre lideranças pentecostais brasileiras é a perspectiva de Teologia do
Domínio sustentada pelo teólogo e pastor norte-americano C. Peter Wagner. De acordo com
Nina Rosas (2015, p. 246), Wagner defende
que o domínio e a autoridade sobre a terra foram dados por Deus aos homens desde
Adão, mas foram perdidos pelo pecado original. Recuperados por Jesus através do
sacrifício vicário, devem ser retomados pelos crentes. Isso se daria por meio de luta
espiritual contra o diabo, que estaria bloqueando a atmosfera da terra e impedindo o
fluxo do céu e a emanação de bênçãos advindas do alto. Como corolário, pensa-se
que os fiéis não estariam em seus locais de trabalho apenas para sobreviver. Teriam
a oportunidade de exercer liderança, dominar e ditar regras de acordo com os valores
do reino de Deus.
Mesmo com a popularização entre os pentecostais de crenças ligadas, direta ou
indiretamente, a uma perspectiva escatológica de fundo pós-milenarista, as igrejas pentecostais
brasileiras continuaram confessando, com pouquíssimas exceções, uma narrativa escatológica
pré-milenarista e dispensacionalista. Podemos afirmar que as transformações estão ocorrendo
mais no nível prático do que no teológico. Se, por um lado, não houve uma adesão “oficial” ao
pós-milenarismo que tenha precedido a mudança da relação dos pentecostais com a política,
por outro lado, apesar de continuarem crendo que o advento do Milênio só ocorrerá após a
parousia, o pré-milenarismo não tem fomentado a alienação política e o afastamento do
“mundo” que a literatura especializada considerava como consequência lógica de tal crença.
Uma hipótese que podemos levantar, com alguma segurança, é a de que o pessimismo
pentecostal – em sintonia com sua crença pré-milenarista/dispensacionalista – tinha como uma
de suas principais razões a consciência de que o poder político e/ou a hegemonia cultural
estariam distantes deles e, baseado em seu antagonismo visceral, em poder de “forças
malignas”. O questionamento de tal poder “diabólico” era feito baseando-se em uma forma
antagônica de política e de governo. Uma forma que expressaria os valores divinos, um modelo
de reino milenar legitimamente cristão. Sendo a possibilidade da implementação de tal reino
algo muito distante e impalpável, tendia-se ao pessimismo e à ansiedade para que essa nova era
fosse implantada através de uma interferência divina, dando fim à história e aos governos
iníquos. Por outro lado, quando há uma virada nesse quadro – como tem ocorrido nas últimas
décadas – e grupos que se consideravam marginalizados começam a acreditar na possibilidade
de influir de maneira decisiva nos rumos da nação e a se identificarem como parte da “maioria
cristã e conservadora” da população, o pessimismo cede espaço para um discurso que alimenta
expectativas intra-históricas de resgate do sonho da “nação cristã”.
3) As divisões teóricas e as dissoluções de fronteiras “práticas”: Se, seguindo a
proposta de Freston, conseguimos estabelecer alguns padrões para a divisão interna do campo
pentecostal no Brasil em uma perspectiva de duração mais longa, um recorte recente sobre o
campo pentecostal brasileiro torna tais diferenças mais nebulosas. Podemos dizer que mesmo
uma diferenciação rígida entre igrejas pentecostais clássicas e igrejas neopentecostais ou pós-
pentecostais precisa ser relativizada. Já nos anos 1990, Pierre Sanchis (1994, p. 52) afirmava
que “há uma evolução no mundo pentecostal, evolução complexa, se se atentar para o fato de
que o estilo das igrejas de cura já começou a contaminar algumas das igrejas mais ‘clássicas’”.
Por que as religiões tradicionais perdem espaço para as pós-modernas? Uma resposta inicial
poderia ser esta: enquanto as tradicionais insistem numa ética salvacionista que expressa
grandes princípios dogmáticos universais transcendentes, as pós-modernas pregam e agem
fora de sistemas de verdades eternas e imediatas. A um Deus transcendente que age em outra
escala de tempo, opõem um Deus imanente que opera na contingência humana. Não há
verdades eternas, mas verdades provisórias que “são verdadeiras” na provisoriedade do
existir, na contingência do sujeito (MENDONÇA, 2006, p. 91).
Considerações finais
25
Por exemplo: BEAUREGARD, Mario; PAQUETTE, Vincent. EEG activity in Carmelite nuns during a mystical
experience. Neuroscience letters, n. 444, 2008, p. 1-4.
Mais ainda do que as igrejas pentecostais, o que se expande são as características desta
religiosidade” (ALMEIDA, 2008, p. 55).
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em 1909, sendo reeditada em 1917 e 1967].
26
Esse texto, muito provavelmente, foi escrito por Parham em 1911, mas não temos como confirmar tal data. Na
cópia consultada de The Everlasting Gospel, não conseguimos identificar a data da publicação da edição. No
prefácio escrito pelo filho de Parham, Robert L. Parham, é dito que o texto foi escrito em 1911 e que “estamos
agora em meio à Segunda Guerra Mundial”. Então, crê-se ser uma edição publicada entre 1939 e 1945. Entretanto,
ao analisar a obra, é possível perceber a presença de textos de Parham que tratam de episódios ocorridos após
1911. Possivelmente, trata-se de uma coletânea de textos escritos por Parham em diferentes períodos de sua vida
VOGEL, Dan; DUNN, Scott C. “The tongue of angels”: glossolalia among Mormonism’s
founders. Journal of Mormon History, v. 19, n. 2, p. 1-34, 1993.