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XX Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina

9 a 13 de agosto de 2022 IFCS/UFRJ - Rio de Janeiro – RJ

GT 23: Religião, gênero e novos sujeitos políticos

Ecoando nas bases: reações conservadoras ao “gênero” no catolicismo


contemporâneo

Jaqueline Sant’ana Martins dos Santos (PPGSA/UFRJ)


1

Resumo: A partir da análise de discursos públicos do padre conservador Paulo Ricardo


Azevedo (SILVEIRA, 2019) e do conteúdo de um ebook produzido pelo apostolado
brasileiro Movimento Felicidade Feminina, criado em 2017, este trabalho busca analisar
algumas reações inseridas no contexto do catolicismo contemporâneo ao gênero, tais
como a emergência de discursos que envolvem a chamada “ideologia de gênero” e
disputas em torno do reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos de minorias,
notadamente mulheres e pessoas LGBTs. Ao mapear como as noções de gênero e
sexualidade vêm sendo acionadas por atores sociais historicamente comprometidos
com o estabelecimento de valores e moralidades, buscamos ampliar a compreensão
sobre as múltiplas tensões e disputas discursivas que vêm ecoando no cenário político
brasileiro recente.

Palavras-chave: gênero; sexualidade; educação; religião; catolicismo.


2

Introdução

O avanço neopentecostal no espaço público brasileiro, incluindo a esfera política


institucional, vem ocupando um espaço central no campo dos estudos sobre religião e
religiosidades nas últimas décadas, contribuindo com a elaboração de importantes
diagnósticos sociais. Pesquisas sobre experimentações xamânicas em grandes centros
urbanos, a pluralidade ritualística de cultos de matriz africana e a incorporação de
práticas religiosas orientais ressignificadas por camadas médias, dentre outros
exemplos, mostram como a religiosidade mantém sua relevância na
contemporaneidade, a despeito de elaborações teóricas clássicas que apostavam em
um cenário diametralmente oposto.
Orientados por “valores religiosos” e aglutinados em torno de identidades
religiosas cristãs, incluindo católicos e evangélicos de diversas ramificações, atores
sociais identificados como “grupos conservadores que atuam organizadamente a fim de
impactar e obstruir demandas da sociedade civil”, vêm articulando-se contra as
“liberdades individuais” (GOMES, 2009, p. 19 apud MAFRA, 2012) em
contramovimentos que buscam agir de forma contrária aos avanços de pautas
feministas e de direitos de minorias sociais aglutinadas em movimentos LGBTs, bem
como ao enfrentamento de problemas diagnosticados por ativistas e pesquisadores
vinculados aos chamados “estudos de gênero”.

Fundamentando tais disputas estão visões de mundo e interpretações teológicas


díspares, que giram em torno da própria ideia de natureza humana e sua disposição
entre os sexos - enquanto católicos defendem uma complementaridade de homens e
mulheres entendidos como machos e fêmeas de uma mesma espécie humana, tal como
consolidado por documentos oficiais da Igreja como a Carta Apostólica Mulieris
Dignitatem (1988) e a Carta de João Paulo Paulo II às Mulheres (1995) , movimentos
militantes se aglutinam em torno de uma concepção de igualdade dos sexos,
problematizando em diversos graus um essencialismo biológico que determinaria a
existência de uma “essência feminina” e uma “essência masculina” que determinaria
disposições comportamentais consideradas naturais e inatas segundo a ótica cristã, tais
como doçura e domesticidade para mulheres e força e coragem para homens.

Desigualdades de oportunidades, visibilidade e reconhecimento, para além da


proibição de acesso e restrição de funções clericais, são identificadas e denunciadas
dentro e fora da Igreja, com destaque para o fato de que, historicamente, ela é um dos
principais atores sociais que contribuem com o controle corporal das mulheres,
construindo e propagando práticas como o aborto e o exercício da sexualidade fora do
3

matrimônio não apenas como falhas morais e espirituais - ou seja, como pecados, mas
também muitas vezes como crimes passíveis de punições e condenações judiciais,
como nas Ordenações Afonsinas, código jurídico português do século XV
profundamente informado por representações de gênero construídas sob influência da
moralidade cristã (SILVA, 2011).

As questões aqui apresentadas tiveram como ponto de partida um trabalho


apresentado em 2019 no I Gênero em Ação, seminário organizado pelo Núcleo de
Estudos de Sexualidade e Gênero da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ocasião
em que dediquei a apresentar de forma mais detida o posicionamento institucional da
Igreja Católica em relação aos direitos da mulher e ao gênero e os principais
documentos que condensavam a ótica do Vaticano sobre a natureza humana, suas
atribuições sociais e sua compreensão sobre a sexualidade humana segundo a
perspectiva do catolicismo. No presente trabalho, apresento duas frentes de
propagação de ideias antigênero vinculadas ao catolicismo, exemplos de reações ao
debate de gênero na sociedade brasileira que vêm ecoando com imensa força junto ao
público, registrando números impressionantes em redes sociais e outros meios de
comunicação. Um dos nossos exemplos é diretamente ligado à Igreja enquanto
instituição – trata-se do sacerdote, ativista, professor, apresentador e palestrante padre
pernambucano Paulo Ricardo Azevedo. O outro exemplo toma as palavras dessa
autoridade religiosa, dentre outras figuras católicas de destaque, e as traduz de forma
mais acessível para seu público através de publicações de textos e depoimentos em
seu site e de um livro digital (e-book, em inglês) distribuído gratuitamente na internet:
trata-se do apostolado “Movimento Felicidade Feminina”, criado por uma fiel católica
tradicional e especialmente dedicado para outras mulheres.

 A mulher e a Igreja Católica contemporânea

Após o Concílio Vaticano II (1962-1965), que direcionou a atenção da instituição


para os problemas do homem concreto e histórico (MONTERO, 1995), podemos afirmar
que a Igreja Católica incorporou o reconhecimento de direitos que preservassem a
dignidade feminina, dedicando-se principalmente ao reconhecimento da centralidade da
mulher na manutenção das famílias, na educação e no cuidado das crianças e na lida
do trabalho doméstico, buscando a um mesmo tempo valorizar a importância do trabalho
reprodutivo e revesti-lo como um atributo “natural” da mulher, manifestação de uma
essência biológica e espiritual voltada para se “doar aos outros” enquanto mãe e
cuidadora. Nesse contexto, iniciativas religiosas de combate à exploração da mulher,
bem como a oferta de serviços e proteção para vítimas de abusos e demais mazelas
4

sociais, se dava primordialmente por essas circunstâncias serem entendidas como


violações de sujeitos e núcleos familiares já feridos por perturbações de sua “ordem
natural”, forçadas a assumirem e acumularem papeis que não lhes foram designados
pelo Deus cristão.

Por princípio, a noção de direitos humanos era percebida como algo


irreconciliável com o catolicismo por se estruturar a partir de um entendimento iluminista
do homem enquanto indivíduo dotado de liberdade e autônomo em sua consciência,
construção que emerge a partir de experimentações típicas vinculadas à consolidação
da modernidade na Europa ocidental que gerou fortes reações dentro da Igreja Católica,
notadamente em sua corrente ultramontana. A Igreja Católica, contudo, configurou-se
entre as instituições que souberam criar mecanismos de resistência e adaptação às
mudanças da sociedade ao longo do tempo (BERGER, 2000).

Conforme as demandas pela promoção da igualdade, do reconhecimento e


defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e da diversidade sexual foram sendo
incorporadas aos direitos humanos, com o termo “mulher” sendo substituído por
“gênero” na intenção de destacar o aspecto relacional entre mulheres e homens e as
demandas de movimentos feministas e demais grupos ativistas passaram a ganhar mais
visibilidade, houve um acirramento nas disputas interpretativas e um aprofundamento
de controvérsias dentro e fora de espaços decisórios. Isso se torna evidente quando
consideramos, por exemplo, as Conferências Mundiais das Nações Unidas sobre a
Mulher, com comitivas da Santa Sé demandando o “colcheteamento” do termo gênero
em documentos da IV Conferência Mundial sobre a Mulher realizada em Pequim (1995)
e derrubando o consenso que até então existia (CÔRREA, 2018, p. 4-6), formalizando
um pontapé inicial nas ofensivas à temática ao lado de lobistas profissionais, delegados
de associações “pró-vida”, ativistas “pró-família”, representantes de comunidades
terapêuticas de “reversão” e “reorientação sexual” etc. A pesquisadora Maria José
Rosado-Nunes (2008) afirma que “reivindicar o sexo e a reprodução como do campo
dos direitos, e, portanto, da política, retira-os do lugar da obediência às leis da natureza
dadas por Deus – e controladas pelas normas morais eclesiásticas – para colocá-los no
campo da realização da liberdade individual” (p. 75), uma frutífera pista para nossa
reflexão sobre a virada reacionária de segmentos religiosos nas discussões e no
estabelecimento de metas de políticas globais

Para fins de delimitação dos nosso objetivo, neste trabalho iremos considerar
iniciativas que se inserem na linhagem intelectual e teológica do catolicismo
conservador, aqui representadas por um apostolado católico tradicional e um sacerdote
5

filiado tanto ao grupo dos católicos tradicionais quanto ao grupo dos católicos
carismáticos, vinculados ao movimento Renovação Carismática Católica (RCC). Longe
de serem os únicos segmentos engajados nas “cruzadas contra o gênero” (CÔRREA,
2018), atores sociais identificados como católicos tradicionais ou tradicionalistas se
mostram como alguns dos mais obstinados e coesos nessas empreitadas, seja na
contínua divulgação de discursos e documentos chancelados por suas autoridades
institucionais, seja no acionamento de seu capital simbólico de modo estratégico. O
tradicionalismo católico orienta condutas distinguindo-se de outros segmentos religiosos
pelo peso simbólico de sua constância, em um longo processo cumulativo de reflexões
e conhecimentos que preserva uma visão específica sobre o que seria a “boa ordem”
do mundo, ou seja, segundo as hierarquias estabelecidas por Deus e transmitidas pela
Igreja, autodeclarada como “a maior especialista em humanidade”.

No enfrentamento das demandas por direitos sexuais e reprodutivos e do


reconhecimento da diversidade, grupos conservadores colaboram em ofensivas
político-discursivas voltadas a arregimentar simpatizantes em uma batalha em defesa
da moralidade cristã e da “família tradicional” através da criação e difusão de pânico
moral. Segundo Rogério Junqueira (2018), “Trata-se de um projeto que visa reafirmar o
estatuto de autoridade moral das instituições religiosas – in primis, a Igreja Católica –
ou salvaguardar sua influência em contextos mais secularizados” (p. 452). Para Maria
das Dores Machado (1996), conforme a secularização das sociedades fomentou uma
quebra de associação direta entre valores sociais e valores cristãos, instituições
religiosas passaram a investir na família como “instituição preferencial (...) em sua
articulação com a sociedade” (p. 5), uma vez que opera como espaço de reprodução
das crenças. Não à toa, os atuais posicionamentos da Igreja Católica, mesmo entre
segmentos que apoiam a promoção dos direitos sociais e a defesa dos mais vulneráveis
mais aberto, seguem enfatizando a importância da família, com membros da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por exemplo, demandando “uma
tomada de posição que garanta para as novas gerações uma escola que promova a
família, tal como a entendem a Constituição Federal (artigo 226) e a tradição cristã, que
moldou a cultura brasileira”1.
Segundo a socióloga Miriam Adelman (2009), a teoria feminista mostrou que “(...)
as relações de gênero são fundamentalmente relações de poder operantes em todas as
instituições e instâncias da vida social”, e “que o poder se produz por meio da
constituição das subjetividades humanas” (p. 196) e de sujeitos identificados como

1
Fonte: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/616315/bispos-nao-aceitam-ideologia-de--
genero-na-pratica-pedagogica Acesso em: 26 jul. 2022.
6

homens ou mulheres. Na reação político-discursiva da “ideologia de gênero”, o


gênero/gender tem seu sentido deturpado e simplificado por seus detratores, com sua
perspectiva passando a ser entendida como a extinção de diferenças sexuais naturais
entre homens e mulheres, difundindo a crença de que elas seriam derivadas de
construções sociais e, portanto, meras escolhas dos indivíduos, afrontando a moral, a
instituição familiar e o próprio sentido da criação do homem e da mulher segundo a
antropologia teológica católica da complementaridade. Nessa cosmologia baseada na
“lei natural” e no “princípio bíblico”, natureza e biologia são partes infalíveis dos
desígnios divinos, restando ao fiel resignação e obediência às normas dos sexos que
dividem a humanidade, imediatamente desdobradas em mulher-feminilidade-
maternidade e homem-masculinidade-paternidade.

 “Um cavaleiro de batina”: Padre Paulo Ricardo

O padre Paulo Ricardo de Azevedo é um sacerdote da Arquidiocese de Cuiabá


(MS) e liderança de grande destaque no meio virtual graças aos seus cursos de
formação evangelizadora em múltiplos formatos, tais como textos, slides, vídeos e
áudios em plataformas como Soundcloud e YouTube, onde acumula quase 233 milhões
de visualizações em seus mais de 3.700 vídeos. Atualizado diariamente com conteúdo
inédito, seu canal conta com transmissões ao vivo semanais, homilias, palestras e
meditações sobre variados temas. A figura desse sacerdote explicita algumas
entrelaçamentos e ambiguidades que caminham lado a lado no campo religioso
contemporâneo, já que ele começou a ganhar popularidade e notoriedade pública como
apresentador do programa semanal “Oitavo Dia”, dedicado à explanação da doutrina da
Igreja para os telespectadores da emissora de TV Canção Nova, braço midiático da
Renovação Carismática, um movimento católico contemporâneo que é alvo de inúmeras
críticas por parte de católicos tradicionais e tradicionalistas devido ao seu forte apelo
midiático e espetacular.
Os vídeos de maior repercussão online do sacerdote são aqueles que dizem
respeito ao “marxismo cultural” e ao “gramscismo”, onde o padre discorre sobre teorias
conspiratórias elaboradas por ativistas e intelectuais de extrema-direita que denunciam
como financiamentos estrangeiros de pesquisas acadêmicas e revoluções culturais
inflamadas por segmentos da esquerda política global estariam afetando não somente
a sociedade ocidental de influência judaico-cristã, mas também a própria Igreja, que
desde o Concilio Vaticano II (1962-1965) estaria deixando de lado dois de seus maiores
princípios, que compõem as maiores frentes de luta de Paulo Ricardo como influencer:
“a verdade religiosa (a verdadeira Igreja, a verdade revelada) e a verdade natural (a
família heterossexual)” (SILVEIRA, 2019, p. 297).
7

Figura 01 – Padre Paulo Ricardo em sessão da CDH do Senado Federal (2015)2

Defensor do armamentismo, ativista “pró-vida” e defensor dos “direitos das


famílias”, o sacerdote se consolidou como um lobista no Congresso Nacional junto a
deputados e senadores evangélicos e católicos, chegando a dar depoimentos públicos
à Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara Federal em 2013,
então presidida pelo pastor e deputado Marco Feliciano (PSC/SP), e à Comissão de
Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal em 2015, sob a
presidência do senador João Capiberibe (PSB/AP). Entre apoiadores e detratores,
Paulo Ricardo se consolidou como uma liderança conservadora das mais importantes
no cenário religioso brasileiro, circulando entre fiéis vinculados a Renovação Católica
Carismática, católicos tradicionalistas e outros cristãos que se identificam com seu tom
conspiracionista e reacionário, buscando em figuras de autoridade um viés de
confirmação para suas próprias opiniões. No próximo exemplo que iremos considerar
mais adiante, esse padre se destaca como uma das maiores referências contra o que a
autora identifica como “ideologia de gênero”.
É possível rastrear a enfática atuação de Paulo Ricardo nessa cruzada
antigênero desde pelo menos o ano de 2013, com a divulgação de sessões de debate
e votações importantes no Congresso Nacional e engajamento em lobby político em
votações que dizem respeito aos temas do aborto, da família, da educação e do
reconhecimento de direitos de minorias sexuais. Uma matéria do jornalista Carlos

2
Fonte: https://www12.senado.leg.br/tv/plenario-e-comissoes/comissao-de-direitos-humanos-e-legislacao-
participativa/2015/08/padre-paulo-ricardo-destaca-que-o-feto-de-12-semanas-nao-e-uma-bola-de-sangue-
mas-sim-um-ser-humano/@@images/image/imagem_tv Acesso em: 26 jun. 2022.
8

Magno de dezembro de 2014 mostra como o padre, adjetivado como “referência da


Igreja Católica no Brasil”, se coloca diante dessas questões. O texto fala sobre a atuação
do então senador Vital do Rêgo (PMDB/PB) na votação do Plano Nacional de Educação
(PNE), conforme podemos ler abaixo:

O Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, referência da Igreja


Católica no Brasil, agradeceu, em vídeo publicado em seu portal na
internet (www.padrepauloricardo.org), o empenho do senador Vital do
Rêgo (PMDB-PB) para garantir o conceito de família no Plano Nacional
de Educação – PNE, do qual Vital foi relator no Senado. Pe. Paulo foi
um grande defensor da manutenção do conceito de família defendido
pela Igreja.
Ele mantém um blog na internet no qual publica comentários em vídeo
sobre as atividades dos parlamentares – deputados federais e
senadores – no Congresso Nacional, quando o assunto desperta
interesse da Igreja. Ele havia cobrado um posicionamento do Senado
em relação ao PNE e elogiou a atitude de Vital que, no Plano, garantiu
a manutenção do conceito de família defendido pela igreja. (...) A
questão mais polêmica, que gerou um comentário extremamente
positivo e um agradecimento direto do Padre Paulo Ricardo a Vital, foi
a questão da exclusão das expressões “gênero”, “identidade de
gênero”, “identidade sexual”, “opção sexual” e “orientação sexual” do
PNE. “Tais expressões não encontram definição consensual na
doutrina e nem constam de nossa tradição legislativa”, afirmou Vital,
em seu texto. De acordo com o Padre Paulo, Vital “se dispôs a nos
ajudar não somente neste projeto do Código Penal, mas como também
para excluir a ideologia de gênero do Plano Nacional de Educação3.

Um ponto bastante importante e que pode ser aprofundado em futuras


investigações são as frequentes referências ao que o sacerdote identifica como uma
“elite global” que defende o modernismo e possui uma orientação liberal – ou seja, que
defenderia as liberdades individuais e o retraimento da influência da religiosidade na
vida pública, de modo que esse aspecto fosse compreendido somente “(...) como uma
expressão da vida e da moral privadas e, portanto, parte da dimensão da subjetividade
(escolha pessoal/fé)”, segundo Deis Siqueira (2005, p. 717). Acima de tudo, tanto o que
o padre Paulo Ricardo quanto a autora de “Reencontrando o Caminho...” defendem é
uma retomada do poder e da influência da Igreja Católica na vida pública brasileira, de
modo que ela possa exercer livremente sua hegemonia em disputas interpretativas e
simbólicas – como, por exemplo, no citado caso do conceito de “família” na elaboração
de uma política pública educacional -, em hábitos, costumes e práticas pautadas pelos
seus valores e normas. Diante de uma sociedade moderna e, portanto, mais
heterogênea, a busca pela tomada desses mecanismos e instrumentos de controle
social torna-se um horizonte político crucial. Como o próprio padre Paulo Ricardo

3
Disponível em:
https://www.carlosmagno.com.br/bd/noticia.php?id=1163&titulo=padre_referencia_da_igreja_catolica_agr
adece_empenho_de_vital_para_garantir_conceito_de_familia_no_plano_nacio Acesso em: 26 jun. 2022.
9

colocou em sua fala à comissão do Senado Federal em 2015, “não me venham com
esse nhem-nhem-nhem de laicidade do Estado porque isso é maracutaia!”4

 O apostolado “Felicidade Feminina”

No contexto do catolicismo conservador, uma das reações mais frequentes aos


avanços do “modernismo” e movimentos “correlatos” – um grande guarda-chuva que
inclui secularização, feminismo, relativismo cultural, socialismo e ecumenismo religioso
-, é a organização de apostolados por parte dos fiéis leigos da Igreja (ou seja, aqueles
não ordenados). Essas iniciativas, que foram formalizados em 1965, pouco antes da
conclusão do Concílio Vaticano II, através do decreto Apostolicam Actuositatem, dedica-
se à evangelização e divulgação da doutrina da Igreja, bem como sua tradição e
ensinamentos de magistério, na forma de serviços, testemunhos e ações diversas,
entendidos como parte da missão de cada fiel de divulgar a sua fé e o que é entendido
como uma “mensagem de salvação” para todas as pessoas.

Figura 02 - Divulgação do e-book “Reencontrando o Caminho da Felicidade Feminina”


(2018)5

O apostolado “Movimento Felicidade Feminina” foi criado em 2017 pela dona de


casa Julie Maria de Lauriano e Silva e tem como carro-chefe o e-book Reencontrando
o Caminho da Felicidade Feminina” (2018), exemplo útil para mapear “referências e
discursos adotados pelo catolicismo tradicional, elaborado de forma espontânea e
didática por uma fiel engajada há muitos anos na divulgação de conteúdo normativo
sobre o papel da mulher, seus atributos e modos de ação ideais segundo essa visão de
mundo de orientação religiosa.

4
Fonte: SENADO FEDERAL. Ata da 62ª reunião (extraordinária) da Comissão Permanente de Direitos
Humanos e Legislação Participativa, 2015, p. 18.
5
Fonte: https://tinyurl.com/y4jtm4pu Acesso: 27 jul. 2022.
10

A carta fundacional do apostolado, disponibilizada em seu website oficial, diz o


seguinte:

Acreditamos em:
I. Deus Pai, Criador de todo o universo e na Igreja Católica fundada por
Jesus Cristo

Defendemos:
II. A dignidade inviolável da vida humana desde o primeiro instante da
concepção;
III. A criação do homem e da mulher como unidade - referente à
natureza humana – e como dualidade - referente à sexualidade
masculina e feminina;
IV. A complementaridade harmoniosa da masculinidade e da
feminilidade, mesmo depois do pecado original;
V. A família como instituição natural e divina constituída pelo
sacramento do matrimônio de um esposo com uma esposa, abertos à
vida;
VI. A família como célula fundamental da sociedade e insubstituível
para o bem do ser humano e o bem comum;
VII. O valor incaculável (sic) da família numerosa como sinal da benção
de Deus e generosidade do casal;
VIII. A capacidade do casal de praticar a castidade conjugal, e jamais
usar nenhum método contraceptivo caso tenham graves motivos para
esparçar (sic) os filhos;
IX. O discernimento para escutar o chamado de Deus para seguir a
vocação matrimonial, celibatária no mundo ou religiosa;
X. A capacidade de toda pessoa para viver a pureza interior e a
modéstia exterior como sinal do seu amor a Deus e ao próximo;
XI. A primacia (sic) do direito dos (sic) pais educarem seus filhos, sem
intromissão de qualquer outra instituição ou governo;
XII. A Doutrina Social da Igreja como luz que norteia a vida social,
política e econômica com o fim de defender a dignidade da pessoa e
os valores da família;
XIII. A intercessão da Sagrada Família para que toda família viva sua
vocação para alcançar a eternidade feliz6.

Longe de esgotar os inúmeros pontos passíveis de elaboração analítica nessa


listagem, destaco a centralidade da vida conjugal e reprodutiva e das temáticas da
sexualidade e da família, que se fazem presentes em 11 das 13 afirmações do
documento. É difícil ponderar se isso acontece por se tratar de um apostolado fundado
por uma mulher e voltado para outras mulheres ou porque se trata de pontos centrais
no debate contemporâneo, onde atores sociais vinculados à Igreja Católica e demais
instituições religiosas buscam marcar presença, tensionando debates e pautando
disputas político-discursivas. A afirmação número XI, por exemplo, que diz respeito à
primazia dos pais na educação dos filhos, “sem intromissão de qualquer outra instituição
ou governo”, remete imediatamente à atuação de bancadas religiosas na interdição de
projetos de leis e na revogação de políticas públicas que pautam a educação sexual e
o debate sobre a diversidade sexual nas escolas, pejorativamente compreendidos por

6
Disponível em: http://felicidadefeminina.com.br/carta-fundacional/ Acesso em: 17 jul. 2022.
11

seus detratores como “ideologia de gênero”, e o avanço do reconhecimento do


“homeschooling” como alternativa pedagógica para esses grupos, que argumentam que
o estado estaria violando a autoridade dos pais sobre os filhos.
O grande destaque desse apostolado, funcionando como uma espécie de
panfleto sobre suas ideias, é o livro “Reencontrando o Caminho da Felicidade Feminina”,
que argumenta que grupos feministas e demais defensores da chamada “ideologia de
gênero” estariam promovendo a infelicidade das mulheres em todo o mundo ao
defenderem seu afastamento do lar, desnaturalizando a vocação para a maternidade e
rebaixando o reconhecimento do papel do cuidado. Tudo isso teria início com a
problematização e questionamento da “natureza feminina”, que segundo a autora e as
fontes que ela cita ao longo do livro, teria sido criada pela vontade divina segundo um
princípio de complementaridade com uma “natureza masculina”. Operando de acordo
com os desígnios de Deus, esse essencialismo binário vincularia sexo, atributos,
comportamentos e papeis sociais de forma harmônica, tal como aponta a quarta
afirmação do apostolado, e seria a base da “boa ordem do mundo”, configuração que
estaria sendo colocada sob rasura e incessantemente atacada na modernidade. Após
essa conspurcação da essência feminina, a maternidade – compreendida como
vocação primordial da mulher – também passaria a ser atacada, tendo a defesa do
aborto como principal arma. É nessa etapa que os direitos reprodutivos e sexuais
emergem como campos de disputa, tendo sua autonomia e legitimidade questionadas
em confrontação com textos da doutrina católica que dizem respeito aos propósitos da
humanidade e aos papeis do homem e da mulher na sociedade.
Respaldando as ideias da autora Julie Maria da Silva estão os discursos do
padre Paulo Ricardo Azevedo, que é fartamente citado ao longo de todo o livro, bem
como documentos do Vaticano que dizem respeito aos direitos reprodutivos e aos
papeis socialmente atribuídos a homens e mulheres, tais como a Carta aos Bispos da
Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo,
assinada em 2004 pelo então cardeal Joseph Ratzinger (posteriormente Papa Bento
XVI)7. O trecho do livro a seguir exemplifica o que buscamos resumir:

7
Logo na primeira frase da Carta, podemos ler o seguinte: “Perita em humanidade, a Igreja está sempre
interessada por tudo o que diz respeito ao homem e à mulher”. Esse documento, publicado pela
Congregação para a Doutrina da Fé em maio de 2004, afirma ter como propósito “propor reflexões”
contrapondo conceituações antropológicas contemporâneas com a sua “antropologia bíblica”, erigida
notadamente durante o papado de João Paulo II (1978-2005), e afirma que “a Igreja sente-se hoje
interpelada por algumas correntes de pensamento, cujas teses muitas vezes não coincidem com as
finalidades genuínas da promoção da mulher”. Para mais, cf. VATICANO. Carta aos Bispos da Igreja
Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo. Roma, 2004. Disponível em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collab
oration_po.html. Acesso em 27 jul. 2022.
12

A negação da maternidade como algo intrínseco à feminilidade resultou


na total banalização do dom da sexualidade e ao desassociar o sexo
da maternidade sobrou apenas a mentalidade contraceptiva, que
tornou comum a esterilização voluntária e impôs o aborto – crime
hediondo - como algo corriqueiro. (...)
A biografia da fundadora da primeira clínica de aborto nos EUA em
1919, a enfermeira Margareth Sanger, reflete o radical desprezo pela
maternidade que culminou ao chamar “direito reprodutivo” o ato da mãe
assassinar o filho ainda no seu ventre. Sua clínica é hoje um império
da morte, uma indústria que arrecada milhões com abortos, venda de
órgãos de nascituros e massiva propaganda contra gravidez com
mensagens enganosas, prometendo “controle de natalidade”, quando
o que se vende é assassinato dos seres mais inocentes e indefesos. O
objetivo propagado por esta figura era que os úteros se
transformassem em “verdadeiros cemitérios de crianças”14. E ela
conseguiu. Negada a existência da natureza humana feminina e o dom
maternal, o resultado é o falso igualitarismo dos sexos ou a geração
genderless, conceito que pretende impor uma suposta “neutralidade”
sexual (SILVA, 2018, p. 13-15, grifos no original).

Segue-se, então, uma citação direta do documento do Vaticano, onde lê-se:


De acordo com tal perspectiva antropológica, a natureza humana não
teria em si mesma características que se imporiam de forma absoluta:
cada pessoa poderia e deveria modelar-se a seu gosto, uma vez que
estaria livre de toda a predeterminação ligada à sua constituição
essencial. Um tal processo leva a uma rivalidade entre os sexos, onde
a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, com
a consequência de introduzir na antropologia uma perniciosa confusão,
que tem o seu revés mais imediato e nefasto na estrutura da família.
Uma segunda tendência emerge no sulco da primeira. Para evitar
qualquer supremacia de um ou de outro sexo, tende-se a eliminar as
suas diferenças, considerando-as simples efeitos de um
condicionamento histórico-cultural. Neste nivelamento, a diferença
corpórea, chamada sexo, é minimizada, ao passo que a dimensão
estritamente cultural, chamada gênero, é sublinhada ao máximo e
considerada primária. O obscurecimento da diferença ou dualidade dos
sexos é grávido de enormes consequências a diversos níveis8.

O principal alvo do livro é o movimento feminista, que teria se difundido em todo


o mundo propagando a “ideologia de gênero” e um “falso igualitarismo” (p. 124) entre
homens e mulheres. Logo nas primeiras páginas, em um prefácio assinado por Cleomar
Eustáquio, o pai da autora, o feminismo é chamado de “doença” que faria parte de um
“sistema sociopolítico materialista” que leva a mulher a competir com o homem “em
tudo” (p. 5). Ao detectar a insatisfação e o nível de estresse de mulheres ao redor do
globo com suas realidades cotidianas, o livro menciona estudos estrangeiros e
publicações de revistas como o semanário “Veja” ao tecer críticas sobre o acúmulo
feminino de jornadas de trabalho, somando os papeis de dona de casa, esposa e mãe
com o trabalho fora do lar.

8
Fonte: VATICANO. Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher
na Igreja e no Mundo. Roma, 2004. Disponível em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collab
oration_po.html. Acesso em 27 jul. 2022.
13

Ignorando a realidade material da maioria das mulheres do mundo, que sempre


tiveram que conciliar o trabalho doméstico não-remunerado com alguma forma de
trabalho (mal)remunerado, a autora defende que o feminismo teria convencido e
doutrinado as mulheres de que é possível conciliar carreiras profissionais com a
maternidade, entendida como vocação natural de toda mulher, forçando-as a trabalhar
fora de casa. Estabelecendo a figura da Virgem Maria como modelo de mãe e
educadora9, o livro sugere o retorno ao lar como solução para a infelicidade feminina,
compreendida como a sensação de esgotamento e incapacidade de “dar conta de tudo”
e ser uma “supermulher”. Como exemplo, Julie Maria faz um longo comentário sobre a
biografia da CEO da rede social Facebook, Sheryl Sandberg, que advoga pela expansão
da liderança feminina no mundo dos negócios sem deixar de mencionar as dificuldades
que encontra na busca por conciliação entre trabalho, vida pessoal e maternidade.
O livro não poupa o sistema capitalista e os avanços industriais que
despersonalizam o trabalho, a terceirização de tarefas domésticas e transformações no
sistema educacional - conformado para uma formação profissional cada vez mais
especializada -, mas dedica seus maiores ataques para o movimento feminista, que teria
efeitos nefastos para a sociedade como um todo, influenciando homens e mulheres,
como nos exemplos de um pai que teria forçado sua filha à profissionalização e
mulheres que criticam outras mulheres que decidem se tornar “do lar”, rotulando-as
como “burras” e “antiquadas”.

Tanto no exemplo dos discursos do padre Paulo Ricardo quanto no livro que
reúne as principais bandeiras do apostolado feminino católico há um apelo muito forte
à empiria de quem ouve ou lê esse conteúdo. Tudo seria muito “evidente”, parte de um
plano que estaria atuando em todas as esferas da vida contemporânea – na cultura
(músicas populares, programas de TV, revistas, museus etc.), nas escolas, nas
instituições políticas, dentro das próprias igrejas. Caberia aos leitores e ouvintes abrir
os olhos e ouvidos para a mensagem que esses interlocutores estão apresentando e se
mobilizarem contra o avanço dessa “ideologia de gênero” que estaria sendo imposta a
fim de destruir as “famílias tradicionais”, começando por ataques “às qualidades
inerentes” à homens e mulheres, como podemos ler no seguinte trecho do livro
“Reencontrando o Caminho...” que traz uma referência a um vídeo do padre Paulo
Ricardo:

9
“Desejo que você e eu, com a firme resolução e profunda confiança, nos deixemos
ser moldadas por Nossa Senhora, nosso modelo de Mãe e Educadora. Porque Ela é a mulher que ganhou
com seu fiat aquilo que Eva perdeu por causa de sua desobediência” (SILVA, 2018, p. 126, destaques no
original).
14

A diferença entre os sexos não é algo que inventamos e sim algo que
percebemos pela simples observação. (...) Negar as qualidades
inerentes ao homem e a mulher, confirmadas pela mais básica biologia,
psicologia e moral irá (sic) aumentar os desequilíbrios, traumas, dores
e angústias das crianças expostas a essas ideologias, pois “o fato mais
óbvio que temos a nosso respeito é que ou somos homens ou somos
mulheres” (p. 38, destaques no original, com citação de texto do padre
Paulo Ricardo Azevedo).

 Articulações e ofensivas “antigênero”

Um vídeo intitulado “Padre Paulo Ricardo e a “imbecilização” de uma nação” foi


publicado na página oficial do político no Facebook em 201710 e posteriormente em
2020, registrando mais de um milhão de visualizações. Nele, o sacerdote tece
acusações aos educadores afirmando que eles estariam politizando crianças e
adolescentes e promovendo uma “lenta e gradual imbecilização” do país para facilitar o
“domínio esquerdista”. Embebido no conspiracionismo promovido pelo autodeclarado
filósofo e guru intelectual da extrema-direita brasileira Olavo de Carvalho e no
desconhecimento da realidade do ensino brasileiro, o padre afirma que isso se daria
porque, segundo ele:

(...) ao invés de estarem aprendendo o português, estão aprendendo a


cartilha marxista. E isso ajuda muito porque, afinal de contas, se eu
quero implantar o socialismo, eu preciso dominar a sociedade e, para
dominar, nada melhor que dominar uma classe de idiotas. Eles são
anti-intelectualistas, não querem absolutamente que você aprenda
nada, que você estude nada, e, se for pra estudar, que seja do jeito
que eles querem. Isso é o gramscismo na prática! (...) Sem que eu
tenha vivido a sua vida, eu estou descrevendo alguns capítulos que
você viveu na escola, na universidade, em tantos lugares.

Nessas publicações, os comentários críticos ou questionadores da fala


elaborada pelo religioso são inexistentes, ao passo que manifestações de medo, raiva
e temor de pais e familiares se multiplicam diante da ameaça de “doutrinação” e da
secundária denúncia de perda da qualidade do ensino escolar presente nesse discurso.
Entre os mais de 2,3 mil comentários da primeira publicação do vídeo, um deles se
destaca ao manifestar “medo de por o filho que ainda não tenho na escola”, conforme a
Figura 03 abaixo:

10
Fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=790458087769846 Acesso em: 26 jun. 2022.
15

Figura 03 – Printscreen da publicação de vídeo do Padre Paulo Ricardo na página oficial


do presidente Jair Bolsonaro no Facebook11

Cabe destacar que não é possível saber se comentários críticos a esse discurso
não se fazem presentes por conta de uma moderação desse espaço virtual, que
apagaria tais comentários, ou pela atuação de algoritmos que filtram o alcance desse
conteúdo em redes sociais e o dirige especificamente para pessoas que mantém um
histórico de afinidade com esses materiais. Considero fundamental citar e esmiuçar os
discursos propagados por esses atores sociais em nosso trabalho porque eles
explicitam articulações estratégicas travadas a fim de promover uma ofensiva política
nos campos da educação e dos direitos acionando o “gênero” como um fator
desestabilizante. O alcance das publicações e dos vídeos desse sacerdote, que possui
mais de 1,5 milhão de seguidores na rede social Facebook, 1,4 milhão de inscritos em
seu canal no YouTube e 265 mil seguidores na rede Twitter, é imenso – muito maior do
que esses números indicam na verdade, uma vez que ele integra uma rede muito bem
articulada de influenciadores digitais, comunicadores, ativistas e políticos
conservadores aliados, tal como a deputada federal Chris Tonietto (PSL/RJ)12.

Iniciativas desse tipo se organizam não mais como reações, mas como ofensivas
antigênero (SANTOS, 2022) promovidas publicamente ao longo das últimas décadas

11
Fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=790458087769846 Acesso em: 26 jun. 2022.
12
Eleita em 2018, a deputada acumula doze propostas legislativas referentes às temáticas do aborto, os chamados
“crimes contra a vida” e assistência a pessoas com incongruências de gênero ou transgênero, tais como o PL
564/2019, que dispõe sobre a representação e defesa dos interesses do nascituro, e o PL 1945/2020, que Altera
dispositivo do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para fins de inclusão de causa de
aumento de pena em caso de aborto realizado em razão de microcefalia ou qualquer outra anomalia ou
malformação do feto. O projeto “Elas no Congresso”, que acompanha o trabalho de mulheres eleitas por todos os
partidos políticos do país no Congresso Nacional, lista todas essas iniciativas, reunidas e abertas para consulta no
link https://www.elasnocongresso.com.br/perfil/chris_tonietto.
16

por figuras como o padre Paulo Ricardo, que em dezembro de 2013 já disseminava o
pânico moral da “ideologia de gênero” em palestras em vídeo divulgadas em seu site
oficial:

Quando os parlamentares evangélicos e o povo cristão lutam contra


este projeto de lei, algumas pessoas questionam se são
preconceituosos ou odeiam os homossexuais. Mas, não se trata disto.
A política é a arte de buscar o bem comum. Se o suposto "bem" de
uma minoria irá destruir o bem comum, o "bem" desta minoria deve ser
limitado. Está em jogo um bem comum importantíssimo chamado
"família". O povo brasileiro, que é soberano, vê na família um grande
valor. Ora, a ideologia de gênero é a relativização dos papéis sexuais,
de tal forma que a família natural já não tenha mais razão de existir. E
esse tipo de relativização não é querido (sic) pelo povo brasileiro13.

O padre prossegue:

O que os cristãos pedem e querem é que as pessoas que forem


agredidas ou sofrerem alguma injustiça por causa da sua
homossexualidade sejam julgadas pelas mesmas leis que protegem as
outras pessoas, sem privilégios indevidos. A única razão para a criação
de uma lei "especial" para este grupo está registrada na literatura da
agenda de gênero e é o que está acontecendo na Europa: primeiro,
criminaliza-se qualquer forma de contestação ao comportamento
homossexual; depois, as crianças recebem "educação sexual"
obrigatórias nas escolas; e, por fim, é proibida a objeção de
consciência dos pais à manipulação ideológica nos colégios.

Destacamos o uso das expressões “privilégios indevidos”, “agenda de gênero” e


“manipulação ideológica” no trecho acima citado. Elas são recorrentes nas
manifestações públicas deste segmento, compondo uma narrativa de denúncia e
contestação de injustiça e imposição – não à toa, o Projeto de Lei nº 122/200614 era
frequentemente chamado de “lei da mordaça gay”, termo também adotado pelo padre
em sua publicação. Trata-se, como destaca o pesquisador Emerson da Silveira (2019),
da ideia de uma guerra cultural que é acionada e reavivada incessantemente entre
esses segmentos religiosos, que são incentivados a cerrar fileiras como guerreiros que
combatem “o bom combate” – ou, conforme a figura acionada pelo teólogo e professor
Fabio Py (2021), como fiéis seguidores de um “cavaleiro de batina” tal qual o padre “pró-
vida” e armamentista Paulo Ricardo de Azevedo.

13
Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/a-defesa-da-familia-no-congresso-
nacional?page=3 Acesso em: 28 jul. 2022.
14
Proposição da Deputada Federal Iara Bernardi (PT). Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de
1989, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) e o Decreto-Lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT) para definir os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de
gênero. Estabelece as tipificações e delimita as responsabilidades do ato e dos agentes. Status:
arquivado ao final da legislatura em 2014.
17

Considerações finais

O objetivo desse trabalho foi apresentar de forma breve, a partir de dois


exemplos, alguns modos de articulação, difusão e promoção ideológica de atores
sociais católicos contemporâneos que vêm promovendo elaborações discursivas e
simbólicas a partir de pânicos morais engatilhados pelas discussões de gênero em
nossa sociedade. Como pano de fundo de todas essas movimentações temos cartas e
documentos recentes, elaborados pelo Vaticano, a respeito da doutrina católica que são
utilizados por segmentos religiosos de orientação conservadora que se organizam em
ofensivas antigênero buscando combater o que eles identificam como avanços da
secularização na sociedade e do modernismo nas instituições, o que demandaria uma
ação urgente e coordenada contra movimentos feministas, LGBTs e organizações da
sociedade civil que atuam na defesa de um estado laico e plural, voltado para a
promoção dos direitos e a autonomia de indivíduos politicamente minoritarizados.
Considero importante destacar o uso crescente de mulheres como porta-vozes
desses movimentos, muitas vezes trazendo suas experiências como filhas, mães e
esposas como dispositivos de autoridade e mobilização emocional, como é o caso dos
apostolados criados e mantidos por mulheres católicas autodeclaradas como
antifeministas e conservadoras. Isso também nos interessa na medida em que, longe
de trazer uma possível inovação ou mudança no modo como as instituições religiosas
se estruturam e organizam, essa participação feminina acaba por reforçar uma ideologia
hierárquica e excludente na Igreja, bem como a autoridade de seus sacerdotes, de modo
que “tudo muda para se manter no mesmo lugar”.
Em todo esse segmento é possível observar uma notável valorização do que é
considerado “trabalho de mulher”: ela seria a base das famílias, a principal provedora
do cuidado, a maior responsável pela criação dos filhos e pela gestão da vida doméstica
e tudo isso seria pouco ou nada reconhecido pela sociedade enquanto atividades
importantes e valiosas, mas de certo modo, aqui o papel social da mulher fica restrito a
esse campo da reprodução da vida, pautado pela idealização da maternidade e da
domesticidade. Nessa visão de mundo, uma mulher não pode escapar dessa construção
de mundo heteronormativa, onde o matrimônio e a maternidade se apresentam como
horizontes ideais na vida de uma mulher leiga (ou seja, não ordenada), tendo como
alternativa somente a vida no celibato. Considerando de forma mais detida o próprio
livro que trouxemos aqui como um exemplo de reação ao debate de gênero que ecoa
em nossa sociedade, mesmo a questão de uma autoridade feminina parece
comprometida, já que todos textos e documentos que referendam as ideias
apresentadas na obra foram escritos, acordados e chancelados por homens da
18

hierarquia da Igreja que nunca se casaram, não criam filhos e vivem vidas bastante
reclusas. Contudo, não se trata de trazer à tona os conhecimentos e posicionamentos
apenas de homens ordenados, já que mesmo o pai da autora, apresentado como
publicitário, se faz presente na obra para referendá-lo como um marco contra a
“ideologia de gênero” em seu prefácio. A autoridade masculina exala de cada parte de
um livro que, ao fim e ao cabo, se apresenta como um guia e régua para a felicidade
feminina à luz desse ideário católico conservador.
O campo da educação se apresenta como uma arena de disputa política da
maior importância, sendo percebido por muitos grupos religiosos conservadores como
um locus central na “doutrinação” de crianças e adolescentes. Segundo esses grupos,
feministas e ativistas ligados à movimentos em prol de pessoas LGBTs estariam
influenciando as escolas a inserirem conteúdo político nos planos de educação,
difundindo ideias e promovendo valores contrários ao conceito de “família tradicional”
cristã e estimulando a sexualização precoce de menores de idade diante da possível
oferta de aulas de educação sexual. É fundamental destacar que iniciativas como o
projeto “Escola sem Partido” floresceram nesse contexto de acirramento do debate
sobre os conteúdos inseridos nos planos de educação e de extrema vigilância sobre os
profissionais da área, e ainda que atualmente haja uma melhor compreensão sobre a
atuação de grupos religiosos e a articulação de conservadorismos em ofensivas
antigênero, os usos políticos desses discursos seguem sendo feitos de forma explícita,
dando visibilidade e fortalecendo a atuação de diversos grupos políticos e marcando
presença em diversas campanhas eleitorais, como o caso da professora Ana Caroline
Campagnolo, eleita deputada estadual pelo PSL de Santa Catarina em 2018 após
ganhar visibilidade através de um processo contra sua ex-orientadora de mestrado por
suposta perseguição ideológica e discriminação religiosa após ser reprovada na cátedra
de “História e Relações de Gênero” e a própria campanha que elegeu o atual presidente
da República Jair Bolsonaro (PL/RJ), que reconhecidamente promoveu mentiras e
distorções sobre a existência de “doutrinação política” e promoção de “ideologia de
gênero” nas escolas.
Torna-se cada vez mais importante acompanhar as estratégias e armadilhas
conceituais e discursivas que vêm se estruturando e fortalecendo ao longo das últimas
décadas, ecoando no espaço público e ganhando audiências cada vez maiores e mais
amplas através da mobilização de emoções e moralidades. A retórica da “ideologia de
gênero” segue avançando e se conecta de forma muito. notadamente aquelas dirigidas
ao campo pedagógico. Não podemos negligenciar os esforços dirigidos e avanços
conquistados com muita luta por uma sociedade mais plural, que contemple e respeito
os direitos de minorias sociais.
19

Referências

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e a sociologia contemporânea. São Paulo: Blucher, 2009.

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20

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