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Introdução
matrimônio não apenas como falhas morais e espirituais - ou seja, como pecados, mas
também muitas vezes como crimes passíveis de punições e condenações judiciais,
como nas Ordenações Afonsinas, código jurídico português do século XV
profundamente informado por representações de gênero construídas sob influência da
moralidade cristã (SILVA, 2011).
Para fins de delimitação dos nosso objetivo, neste trabalho iremos considerar
iniciativas que se inserem na linhagem intelectual e teológica do catolicismo
conservador, aqui representadas por um apostolado católico tradicional e um sacerdote
5
filiado tanto ao grupo dos católicos tradicionais quanto ao grupo dos católicos
carismáticos, vinculados ao movimento Renovação Carismática Católica (RCC). Longe
de serem os únicos segmentos engajados nas “cruzadas contra o gênero” (CÔRREA,
2018), atores sociais identificados como católicos tradicionais ou tradicionalistas se
mostram como alguns dos mais obstinados e coesos nessas empreitadas, seja na
contínua divulgação de discursos e documentos chancelados por suas autoridades
institucionais, seja no acionamento de seu capital simbólico de modo estratégico. O
tradicionalismo católico orienta condutas distinguindo-se de outros segmentos religiosos
pelo peso simbólico de sua constância, em um longo processo cumulativo de reflexões
e conhecimentos que preserva uma visão específica sobre o que seria a “boa ordem”
do mundo, ou seja, segundo as hierarquias estabelecidas por Deus e transmitidas pela
Igreja, autodeclarada como “a maior especialista em humanidade”.
1
Fonte: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/616315/bispos-nao-aceitam-ideologia-de--
genero-na-pratica-pedagogica Acesso em: 26 jul. 2022.
6
2
Fonte: https://www12.senado.leg.br/tv/plenario-e-comissoes/comissao-de-direitos-humanos-e-legislacao-
participativa/2015/08/padre-paulo-ricardo-destaca-que-o-feto-de-12-semanas-nao-e-uma-bola-de-sangue-
mas-sim-um-ser-humano/@@images/image/imagem_tv Acesso em: 26 jun. 2022.
8
3
Disponível em:
https://www.carlosmagno.com.br/bd/noticia.php?id=1163&titulo=padre_referencia_da_igreja_catolica_agr
adece_empenho_de_vital_para_garantir_conceito_de_familia_no_plano_nacio Acesso em: 26 jun. 2022.
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colocou em sua fala à comissão do Senado Federal em 2015, “não me venham com
esse nhem-nhem-nhem de laicidade do Estado porque isso é maracutaia!”4
4
Fonte: SENADO FEDERAL. Ata da 62ª reunião (extraordinária) da Comissão Permanente de Direitos
Humanos e Legislação Participativa, 2015, p. 18.
5
Fonte: https://tinyurl.com/y4jtm4pu Acesso: 27 jul. 2022.
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Acreditamos em:
I. Deus Pai, Criador de todo o universo e na Igreja Católica fundada por
Jesus Cristo
Defendemos:
II. A dignidade inviolável da vida humana desde o primeiro instante da
concepção;
III. A criação do homem e da mulher como unidade - referente à
natureza humana – e como dualidade - referente à sexualidade
masculina e feminina;
IV. A complementaridade harmoniosa da masculinidade e da
feminilidade, mesmo depois do pecado original;
V. A família como instituição natural e divina constituída pelo
sacramento do matrimônio de um esposo com uma esposa, abertos à
vida;
VI. A família como célula fundamental da sociedade e insubstituível
para o bem do ser humano e o bem comum;
VII. O valor incaculável (sic) da família numerosa como sinal da benção
de Deus e generosidade do casal;
VIII. A capacidade do casal de praticar a castidade conjugal, e jamais
usar nenhum método contraceptivo caso tenham graves motivos para
esparçar (sic) os filhos;
IX. O discernimento para escutar o chamado de Deus para seguir a
vocação matrimonial, celibatária no mundo ou religiosa;
X. A capacidade de toda pessoa para viver a pureza interior e a
modéstia exterior como sinal do seu amor a Deus e ao próximo;
XI. A primacia (sic) do direito dos (sic) pais educarem seus filhos, sem
intromissão de qualquer outra instituição ou governo;
XII. A Doutrina Social da Igreja como luz que norteia a vida social,
política e econômica com o fim de defender a dignidade da pessoa e
os valores da família;
XIII. A intercessão da Sagrada Família para que toda família viva sua
vocação para alcançar a eternidade feliz6.
6
Disponível em: http://felicidadefeminina.com.br/carta-fundacional/ Acesso em: 17 jul. 2022.
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Logo na primeira frase da Carta, podemos ler o seguinte: “Perita em humanidade, a Igreja está sempre
interessada por tudo o que diz respeito ao homem e à mulher”. Esse documento, publicado pela
Congregação para a Doutrina da Fé em maio de 2004, afirma ter como propósito “propor reflexões”
contrapondo conceituações antropológicas contemporâneas com a sua “antropologia bíblica”, erigida
notadamente durante o papado de João Paulo II (1978-2005), e afirma que “a Igreja sente-se hoje
interpelada por algumas correntes de pensamento, cujas teses muitas vezes não coincidem com as
finalidades genuínas da promoção da mulher”. Para mais, cf. VATICANO. Carta aos Bispos da Igreja
Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo. Roma, 2004. Disponível em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collab
oration_po.html. Acesso em 27 jul. 2022.
12
8
Fonte: VATICANO. Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher
na Igreja e no Mundo. Roma, 2004. Disponível em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collab
oration_po.html. Acesso em 27 jul. 2022.
13
Tanto no exemplo dos discursos do padre Paulo Ricardo quanto no livro que
reúne as principais bandeiras do apostolado feminino católico há um apelo muito forte
à empiria de quem ouve ou lê esse conteúdo. Tudo seria muito “evidente”, parte de um
plano que estaria atuando em todas as esferas da vida contemporânea – na cultura
(músicas populares, programas de TV, revistas, museus etc.), nas escolas, nas
instituições políticas, dentro das próprias igrejas. Caberia aos leitores e ouvintes abrir
os olhos e ouvidos para a mensagem que esses interlocutores estão apresentando e se
mobilizarem contra o avanço dessa “ideologia de gênero” que estaria sendo imposta a
fim de destruir as “famílias tradicionais”, começando por ataques “às qualidades
inerentes” à homens e mulheres, como podemos ler no seguinte trecho do livro
“Reencontrando o Caminho...” que traz uma referência a um vídeo do padre Paulo
Ricardo:
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“Desejo que você e eu, com a firme resolução e profunda confiança, nos deixemos
ser moldadas por Nossa Senhora, nosso modelo de Mãe e Educadora. Porque Ela é a mulher que ganhou
com seu fiat aquilo que Eva perdeu por causa de sua desobediência” (SILVA, 2018, p. 126, destaques no
original).
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A diferença entre os sexos não é algo que inventamos e sim algo que
percebemos pela simples observação. (...) Negar as qualidades
inerentes ao homem e a mulher, confirmadas pela mais básica biologia,
psicologia e moral irá (sic) aumentar os desequilíbrios, traumas, dores
e angústias das crianças expostas a essas ideologias, pois “o fato mais
óbvio que temos a nosso respeito é que ou somos homens ou somos
mulheres” (p. 38, destaques no original, com citação de texto do padre
Paulo Ricardo Azevedo).
10
Fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=790458087769846 Acesso em: 26 jun. 2022.
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Cabe destacar que não é possível saber se comentários críticos a esse discurso
não se fazem presentes por conta de uma moderação desse espaço virtual, que
apagaria tais comentários, ou pela atuação de algoritmos que filtram o alcance desse
conteúdo em redes sociais e o dirige especificamente para pessoas que mantém um
histórico de afinidade com esses materiais. Considero fundamental citar e esmiuçar os
discursos propagados por esses atores sociais em nosso trabalho porque eles
explicitam articulações estratégicas travadas a fim de promover uma ofensiva política
nos campos da educação e dos direitos acionando o “gênero” como um fator
desestabilizante. O alcance das publicações e dos vídeos desse sacerdote, que possui
mais de 1,5 milhão de seguidores na rede social Facebook, 1,4 milhão de inscritos em
seu canal no YouTube e 265 mil seguidores na rede Twitter, é imenso – muito maior do
que esses números indicam na verdade, uma vez que ele integra uma rede muito bem
articulada de influenciadores digitais, comunicadores, ativistas e políticos
conservadores aliados, tal como a deputada federal Chris Tonietto (PSL/RJ)12.
Iniciativas desse tipo se organizam não mais como reações, mas como ofensivas
antigênero (SANTOS, 2022) promovidas publicamente ao longo das últimas décadas
11
Fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=790458087769846 Acesso em: 26 jun. 2022.
12
Eleita em 2018, a deputada acumula doze propostas legislativas referentes às temáticas do aborto, os chamados
“crimes contra a vida” e assistência a pessoas com incongruências de gênero ou transgênero, tais como o PL
564/2019, que dispõe sobre a representação e defesa dos interesses do nascituro, e o PL 1945/2020, que Altera
dispositivo do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para fins de inclusão de causa de
aumento de pena em caso de aborto realizado em razão de microcefalia ou qualquer outra anomalia ou
malformação do feto. O projeto “Elas no Congresso”, que acompanha o trabalho de mulheres eleitas por todos os
partidos políticos do país no Congresso Nacional, lista todas essas iniciativas, reunidas e abertas para consulta no
link https://www.elasnocongresso.com.br/perfil/chris_tonietto.
16
por figuras como o padre Paulo Ricardo, que em dezembro de 2013 já disseminava o
pânico moral da “ideologia de gênero” em palestras em vídeo divulgadas em seu site
oficial:
O padre prossegue:
13
Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/a-defesa-da-familia-no-congresso-
nacional?page=3 Acesso em: 28 jul. 2022.
14
Proposição da Deputada Federal Iara Bernardi (PT). Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de
1989, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) e o Decreto-Lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT) para definir os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de
gênero. Estabelece as tipificações e delimita as responsabilidades do ato e dos agentes. Status:
arquivado ao final da legislatura em 2014.
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Considerações finais
hierarquia da Igreja que nunca se casaram, não criam filhos e vivem vidas bastante
reclusas. Contudo, não se trata de trazer à tona os conhecimentos e posicionamentos
apenas de homens ordenados, já que mesmo o pai da autora, apresentado como
publicitário, se faz presente na obra para referendá-lo como um marco contra a
“ideologia de gênero” em seu prefácio. A autoridade masculina exala de cada parte de
um livro que, ao fim e ao cabo, se apresenta como um guia e régua para a felicidade
feminina à luz desse ideário católico conservador.
O campo da educação se apresenta como uma arena de disputa política da
maior importância, sendo percebido por muitos grupos religiosos conservadores como
um locus central na “doutrinação” de crianças e adolescentes. Segundo esses grupos,
feministas e ativistas ligados à movimentos em prol de pessoas LGBTs estariam
influenciando as escolas a inserirem conteúdo político nos planos de educação,
difundindo ideias e promovendo valores contrários ao conceito de “família tradicional”
cristã e estimulando a sexualização precoce de menores de idade diante da possível
oferta de aulas de educação sexual. É fundamental destacar que iniciativas como o
projeto “Escola sem Partido” floresceram nesse contexto de acirramento do debate
sobre os conteúdos inseridos nos planos de educação e de extrema vigilância sobre os
profissionais da área, e ainda que atualmente haja uma melhor compreensão sobre a
atuação de grupos religiosos e a articulação de conservadorismos em ofensivas
antigênero, os usos políticos desses discursos seguem sendo feitos de forma explícita,
dando visibilidade e fortalecendo a atuação de diversos grupos políticos e marcando
presença em diversas campanhas eleitorais, como o caso da professora Ana Caroline
Campagnolo, eleita deputada estadual pelo PSL de Santa Catarina em 2018 após
ganhar visibilidade através de um processo contra sua ex-orientadora de mestrado por
suposta perseguição ideológica e discriminação religiosa após ser reprovada na cátedra
de “História e Relações de Gênero” e a própria campanha que elegeu o atual presidente
da República Jair Bolsonaro (PL/RJ), que reconhecidamente promoveu mentiras e
distorções sobre a existência de “doutrinação política” e promoção de “ideologia de
gênero” nas escolas.
Torna-se cada vez mais importante acompanhar as estratégias e armadilhas
conceituais e discursivas que vêm se estruturando e fortalecendo ao longo das últimas
décadas, ecoando no espaço público e ganhando audiências cada vez maiores e mais
amplas através da mobilização de emoções e moralidades. A retórica da “ideologia de
gênero” segue avançando e se conecta de forma muito. notadamente aquelas dirigidas
ao campo pedagógico. Não podemos negligenciar os esforços dirigidos e avanços
conquistados com muita luta por uma sociedade mais plural, que contemple e respeito
os direitos de minorias sociais.
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Referências
MAFRA, Clara. O percurso da vida que faz o gênero: Reflexões antropológicas a partir
de etnografias desenvolvidas com pentecostais no Brasil e em Moçambique.
Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. 32, n. 2, p. 124-148, 2012.
MAGNO, Carlos. Padre referência da Igreja Católica agradece empenho de Vital para
garantir conceito de família no Plano Nacional de Educação. Carlos Magno [Website],
16 dez. 2014. Disponível em:
https://www.carlosmagno.com.br/bd/noticia.php?id=1163&titulo=padre_referencia_da_i
greja_catolica_agradece_empenho_de_vital_para_garantir_conceito_de_familia_no_pl
ano_nacio Acesso em: 26 jun. 2022.
Padre Paulo Ricardo destaca que o feto de 12 semanas não é uma bola de sangue,
mas sim um ser humano. Vídeo (14’31). YouTube TV SENADO, 06 jun. 2015.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WBKzgS2FrBM Acesso em: 26 jun.
2022.
PY, Fabio. Padre Paulo Ricardo: cavaleiro de batina do apocalipse pandêmico. Mídia
Ninja [online], 01 fev. 2021. Disponível em: https://midianinja.org/fabiopy/padre-paulo-
ricardo-cavaleiro-de-batina-do-apocalipse-pandemico/ Acesso em: 26 jun. 2022.
ROSADO-NUNES, Maria José. Direitos, cidadania das mulheres e religião. Tempo soc.
[online], vol. 20, n. 2, p. 67-81, 2008.
SANCHES, Simone. Bispos não vão aceitar ideologia de gênero na prática pedagógica
Jornal Cruzeiro do Sul, Sorocaba, 13 jun. 2015. Disponível em:
https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/616315/bispos-nao-aceitam-ideologia-de--
genero-na-pratica-pedagogica Acesso em: 26 jul. 2022.
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