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Em março de 2016, o portal UOL1 publicou uma reportagem cujo a manchete dizia: “40%
das mulheres que sofrem violência doméstica são evangélicas, diz pesquisa recente”. Essa mesma
notícia foi replicada em outros importantes indexadores de notícias mobilizando pautas, inclusive,
de alguns programas televisivos, tais como o programa Fala que eu te escuto, que é dirigido por
bispos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e exibido na Rede Record; e o programa De
Tudo um Pouco, que também é de confissão cristã, mantido pela Igreja Batista de Alagoinha e
exibido na Rede Tv. Em um desses programas televisivos, cujo tema foi “O Machismo e a
violência doméstica nos lares cristãos”, advogadas e psicólogas foram convidadas para discutir a
questão, tais profissionais atuavam em redes de atendimentos a mulheres mantidos por igrejas
evangélicas, nas cidades de São Paulo – SP e Belo Horizonte – MG.
A pesquisa na qual se referia a reportagem em questão foi realizada por Valéria Vilhena,
teóloga de tradição pentecostal, que durante o mestrado e o doutorado ambos cursados na
Universidade Presbiteriana Mackenzie, dedicou-se a entender a relação entre violência doméstica
e pertencimento religioso. Vilhena fez pesquisa de campo com mulheres atendidas pela Casa
Sofia, projeto mantido por entidade da Igreja Católica, que funciona há 12 anos na cidade de São
Paulo, responsável por oferecer atendimento psicológico, social e jurídico a mulheres de baixa
renda que sofreram violência doméstica. Segundo Vilhena, 40% de suas entrevistadas são assíduas
frequentadoras de igrejas evangélicas e sofrem violência de gênero no ambiente familiar,
porcentagem que certamente se estendida para a população em geral, deve aumentar2.
A divulgação ostensiva dos resultados da pesquisa realizada por Vilhena, permitiu a
divulgação de inúmeros projetos mantidos por igrejas evangélicas, baseados na Lei 11.340/06
também conhecida como lei “Maria da Penha” que regula e criminaliza a violência doméstica no
Brasil. Dentre os quais destacam-se os projetos “ Quebrando o silêncio”, mantido pela Igreja
1
Universo Online, conhecido pela sigla UOL, é uma empresa brasileira de conteúdo, produtos e serviços de Internet do
conglomerado Grupo Folha
2
http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/563718-quando-a-igreja-nao-discute-genero-ela-nega-direitos-
humanos-diz-evangelica-feminista (acessado em 27/05/2018)
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Adventista do Sétimo Dia; e “ Projeto Raabe: rompendo o silêncio, mantido pela Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD) e o “Espaço Elas”, mantido pela Igreja Batista de Lagoinha.
Assim, o presente artigo pretende apresentar alguns dados referentes a programas
desenvolvidos por organizações de caráter religioso, voltados para o atendimento de mulheres em
situação de violência na região Sudeste do Brasil. Em linhas gerais, trata-se de desenvolver um
exercício analítico que irá partir da descrição de alguns processos sociais que se inter-relacionam e
se afetam: a saber, associações especializadas no atendimento de mulheres vinculadas a agências
religiosas cristãs e a relação desses projetos com políticas públicas desenvolvidas pelo Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MFDH) dirigido pela Ministra Damares Alves,
sob a presidência de Jair Bolsonaro.
O primeiro cuidado analítico que apresento é o de tomar a violência doméstica como um
discurso, para tanto assumo a postura foucaultiana de tentar entender as disposições praticas das
falas sobre violência doméstica, os procedimentos que isso passa a suscitar e a materialidade que
esse processo produz. Andrade (2012 e 2018), desenvolve uma extensa e profunda análise
etnográfica com mulheres em situação de violência, ao analisar as interações e as narrativas das
mulheres nas delegacias especializadas na cidade de Campinas, apresenta um importante cuidado
analítico ao tentar esvaziar os sentidos jurídicos e institucionais que a concepção de violência
doméstica e a própria Lei Maria da Penha possuem, para pensar os sentidos de violência e da Lei
na interação dessas mulheres entre si e nesses espaços institucionais.
Outro cuidado analítico importante é considerar que as instituições feministas e nossa
legislação nacional já produziram uma materialidade acerca da violência de gênero e
procedimentos para punição e cuidado de quem esteja em situação vulnerável, e é inegável o
quanto essa materialidade é importante para compor uma justificativa de intervenção social e uma
pedagogia do cuidado nas atividades promovidas pelos projetos que serão analisados nesse texto.
Pretendo mostrar, no entanto, o modo como a temática da violência de gênero tem suscitado a
necessidade de produção de novos regimes éticos configurando novos espaços e novos sujeitos de
ação política.
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configuram como espaços de ação e produção de visibilidade política, permitindo que o
reconhecimento público do lugar de vítima também se figure em legitimidade pública de novas
trajetórias políticas.
Para tanto, torna-se importante lançar mão de algumas indagações gerais que orientaram
meu olhar: quais são as conexões entre ditas práticas religiosas e agendas civis associadas a
direitos sexuais e de gênero, tais como a união civil igualitária, combate à violência doméstica e a
adoção de crianças por casais homossexuais? De que maneira o religioso emerge como um código
que serve ora para a compatibilização de posições civis não necessariamente convergentes ora
para a reafirmação de irredutibilidades? Como e sob quais condições esse código religioso se torna
mola-mestre para a modelagem das contemporâneas formas de representação e experimentação de
novas identidades coletivas? Assim, busquei pensar - a partir da etnografia de projetos
empreendidos pela Igreja Universal (IURD), pela Igreja Batista de Lagoinha e pela Igreja
Adventista, voltados para a temática da violência de gênero - o processo de produção de sujeitos
por meio do desenvolvimento constante de pedagogias reguladoras de condutas e do
engendramento de tecnologias narrativas de si.
Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Adventista do Sétimo Dia e Igreja Batista de
Lagoinha ocupam posições distintas no campo religioso nacional, as três são centrais no modo
como relacionam tecnologias de evangelização a mídia televisiva e as mídias sociais. A Igreja
Adventista criou, ainda na década de quarenta o Sistema Adventista de Comunicação (SISAC),
com transmissão de programas de rádio em âmbito nacional, os programas evangelísticos
televisionados foram ao ar na década de sessenta, muito antes do ano de fundação da Igreja
Universal, fundada por Macedo em 1977.3 A Igreja Batista de Lagoinha é uma dissidência
3
Edir Macedo Bezerra, Romildo Ribeiro Soares e Roberto Augusto Lopes, provenientes da Igreja Nova Vida, fundaram
em 1977 uma denominação que teve dois nomes: Cruzada do Caminho Eterno e Igreja da Bênção. Três anos depois, por
3
pentecostal da Igreja Batista que foi fundada em 1953 na cidade de Belo Horizonte, desde 1973 a
Igreja tem como pastor presidente Marcio Valadão que é pai de Ana Paula e André Valadão,
fundadores do ministério musical Diante do Trono (ROSAS, 2015). Salvaguardados os devidos
cuidados, não se trata aqui de realizar uma análise que diferencie os projetos por seus
pertencimentos denomonacionais distintos, ao contrário, meu objetivo é pensar suas similitudes de
operação na medida em que se estabelecem e se conectam a determinadas gramáticas políticas de
reconhecimento.
Outra hipótese geral que orienta as reflexões aqui apresentadas é, ao contrário do que
comumente se imagina, religiões não produzem religiosos, igrejas não produzem fiéis. E sim, de
que constituem espaços privilegiados de produção incessante de corpos políticos ao incitar
determinadas pedagogias públicas, bem como a regulação da afetividade e das relações de gênero
e do sexo. Esta abordagem abre margem para se possa pensar, e este é o principal objetivo deste
trabalho, a intersecção entre processos de subjetivação, poder pastoral, direitos humanos e arena
política.
discordâncias com Macedo, R.R. Soares sairia para criar sua própria igreja (Igreja Internacional da Graça de Deus –
IIGD). Gomes (2004) e Mariano (1999) trazem informações mais detalhadas sobre o histórico de fundação da IURD.
4
A noção de indivíduo utilizada nesse trabalho não é a concebida por teorias de caráter fenomenológico que supõem
um sujeito pré-discursivo, autônomo e emancipado, atrelado a uma concepção quase que originária de liberdade, mas
a de um sujeito que emerge enquanto efeito da ação pensada aqui pelo conceito de poder, tal como sugere Butler
(2017) em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição.
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Pensar os projetos pentecostais voltados para a temática da violência doméstica como
espaços de assembly nos permite pensar esses projetos para além das vinculações institucionais
com as denominações religiosas que sediam tais iniciativas, colocando as mulheres participantes,
tanto as profissionais como aquelas que são assistidas, numa rede produtora de materialidades,
sentidos, ambiguidades e inteligibilidade que ultrapassa os interesses ou os serviços religiosos na
medida em que a justificativa ética das ações desenvolvidas se assenta numa agenda e numa
linguagem de direitos vinculada a Lei 11.340/06 , popularmente reconhecida como Lei Maria da
Penha.
Apesar da importância das relações que tais projetos constituem com uma rede que
ultrapassa interesses ou necessidades religiosas conectando-se a saberes e a discursos que pensam
mulheres como sujeitos de direitos, é importante ressaltar que esses mesmos projetos se anunciam
como projetos religiosos, e mais, as ações desenvolvidas se desdobram como resposta ética de
agências religiosas para o enfrentamento da violência doméstica. Tais desdobramentos podem ser
percebidos pelo modo como algumas denominações evangélicas realizaram, durante o ano de
2019 fóruns pastorais para discutir se, caso uma mulher esteja passando por uma situação de
violência, o divórcio deve ou não ser incentivado pela igreja,. Ainda aprofundando as conexões e
ambiguidades, um mesmo fórum ocorreu em Brasília, nas dependências da Câmara Federal, para
discutir o apoio ao PL 510/2019, proposto pelo Deputado Federal Luís Lima (PSL/RJ) que
assegura prioridade nos processos judiciais de separação ou divórcio à mulher vítima de violência
doméstica5. Diante de um acordo consensual entre parlamentares e pastores presentes se concluiu
que se há a um crime instituído por lei, as igrejas deveriam incluir a violência doméstica como
uma das concessões bíblicas para o divórcio.
5
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/08/07/aprovado-projeto-que-facilita-divorcio-para-mulheres-
vitimas-de-violencia-domestica
5
No comprometimento de tentar desenvolver algumas das questões acima apresentadas,
passo a tecer uma descrição de cada um dos três projetos a partir de duas dimensões relacionais,
suas atividades internas e institucionais, suas articulações e articuladoras políticas.
Há uma narrativa biográfica por traz da palavra que nomeia o Projeto. Raabe é uma
personagem bíblica do Antigo Testamento, que vivia em Jericó, uma cidade-estado apresentada
como um importante centro comercial. Prostituta e comerciante, Raabe vivia em uma das torres da
muralha da cidade, e ao ver que alguns homens hebreus seriam perseguidos e mortos pelo rei
aceitou escondê-los em sua casa. Como recompensa, ela e seus filhos foram protegidos durante a
guerra em Jericó, ela casou-se com um hebreu e acabou fazendo parte da genealogia de Davi,
tornando-se a única mulher não judia citada na genealogia de Jesus. Segundo Cristiane Cardoso,
Raabe negou o poder do rei e de uma cidade para proteger o povo escolhido de Deus, com isso
provou sua coragem e mesmo sendo prostituta, tornou-se digna para entrar na genealogia dos
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principais reis da história do povo de Israel. Esse relato bíblico sobre a vida de Raabe serve como
base estruturante para o que se reconhece como diretriz geral do Projeto, que seria “garantir uma
vida digna às mulheres6”.
Além das ações de assistência realizadas diretamente nas delegacias, outra frente de ação
do Projeto Raabe são as cadeias e presídios femininos. As visitas às instituições carcerárias
ocorrem periodicamente as quintas e sextas-feiras, segundo o relato das voluntárias a dinâmica é
disposta da seguinte maneira, em um dos dias realizasse um culto mais tradicional, com pregação,
orações e músicas e no dia seguinte ocorre atividades de caráter mais pedagógico com cursos
profissionalizantes, tais como curso de estética e de artesanato, atendimentos psicológicos e
jurídico. Nas falas sobre as atividades realizadas pelo projeto, o objetivo principal seria o de
ressocializar essas mulheres, preparando-as para o mundo além dos muros das penitenciárias.
6
Cardoso, C. “O que é o projeto Raabe?” (2013)
7
Culto em comemoração do quarto aniversário do projeto Raabe, em 2015
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Apesar dos dois primeiros eventos serem bem antigos, hoje, juntamente com o Godllywood, as terapias são coordenadas
por Cristiane Cardoso e seu marido, Bispo Renato Cardoso. A atuação do casal não se limita apenas na direção dos
eventos na cidade de São Paulo, mas também na preparação de materiais, livros e na ministração de cursos e palestras em
muitos países.
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Apesar de o projeto ter começado na cidade de São Paulo, rapidamente ele foi se
multiplicando, e segundo o mapa institucional hoje ocorre em 22 Estados do país. Cabe ressaltar
que o projeto Raabe também foi levado para outros países da América Latina, tais como Chile,
Peru, Colômbia, e até para outros continentes. Na Europa o projeto encontra-se em Portugal,
Inglaterra e França - onde é majoritariamente frequentado por mulheres imigrantes e refugiadas -,
e no continente africano o projeto está em África do Sul, Moçambique e Zâmbia. No Brasil, o
projeto é pautado inteiramente pautado pela Lei Maria da Penha, já em outros países, o projeto se
fundamenta defendendo um modelo de relacionamento heterossexual que se distancia de ações
consideradas violentas, buscando, em caso de falta de uma legislação nacional, uma intersecção
com organizações defensoras dos direitos humanos. Esse programa se apresenta como um recorte
empírico privilegiado para se pensar o modo como questões de fundamentação teológica, tais
como o modelo de mulher, de relação heterossexual considerada saudável e de afetividade se
traduzem em ações políticas configuradas numa linguagem de política pública.
Além de Carlinda Tinoco, as atividades do Projeto Raabe também são coordenadas por
outras duas mulheres que se despontaram como lideranças importantes nos programas, Maria do
Parto Mendes Rosas e Edna Macedo. Maria Rosas se reconhece como mulher negra e indígena e
começou a frequentar a IURD ainda em sua cidade natal, Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.
Formada em Pedagogia, atuou como professora da Rede Pública do Estado do Rio de Janeiro por
mais de uma década, após concluir o curso de Administração de empresas, Maria Rosas é
convidada para atuar como administradora na Associação Brasileira de Assistência e
Desenvolvimento Social (ABDS) sediada na cidade de São Paulo. Em 2011 Maria Rosas passa a
atuar como voluntária como uma das coordenadoras do Projeto Raabe, coordenando equipes de
voluntárias e o treinamento de psicólogas e assistentes sociais para atuarem em presídios e
Delegacias da Mulher (DDM).
8
Edna Macedo também é um nome importante quando se pergunta sobre lideranças do
Projeto Raabe, irmã de Edir Macedo, seu nome aparece com frequência nos registros de inúmeros
projetos da Igreja Universal. Edna atuou com membro fundadora da Associação de Mulheres da
IURD, fundada ainda nos anos 90, responsável pela realização de trabalhos evangelísticos na
Fundação Casa e em presídios femininos. Desde que se mudou para a cidade de São Paulo, passou
a ter uma carreira política, tendo sido eleita em 2003 como Deputada Federal pelo PDT. Com a
fundação do Projeto Raabe, em 2011, Edna volta atuar na política partidária, se filia ao PRB e
passa a articular as agendas femininas no partido, demandas relacionadas a saúde e aos direitos
das mulheres.
Em 2018, Maria Rosas e Edna Macedo são eleitas Deputada Federal e Deputada Estadual
pelo Partido Republicano, cada uma obteve quase 100 mil votos. Nos materiais de campanha, as
citações as atividades desenvolvidas junto ao Projeto Raabe pareciam dar inteligibilidade às pautas
que ambas prometiam defender se eleitas, a saber, a ampliação de políticas específicas para a
saúde das mulheres e o combate a violência doméstica.
As trajetórias das lideranças do Projeto Raabe aqui citadas nos permitem supor que os
projetos de combate a violência de gênero desenvolvidos por igrejas pentecostais e
neopentecostais não apenas reconfiguram as relações históricas entre agencias religiosas e a
produção de determinadas políticas públicas como também são capazes de conferir autenticidade
política a mulheres que passam a ocupar posições legislativas em partidos políticos sem histórico
de atuação pública em pautas identitárias. Em 2018 houve um aumento significativo de mulheres
que foram eleitas em partidos considerados de direita sob a defesa de pautas historicamente
relacionadas a uma agenda política feminista ou atrelada a partidos políticos de esquerda, tais
como a saúde das mulheres, direitos reprodutivos e o combate a violência de gênero. Esse
movimento ocorrido em 2018 já havia ocorrido nas eleições municipais de 2016, na cidade de São
Paulo, por exemplo, das 11 mulheres eleitas como vereadoras, 7 são evangélicas, em suas páginas
pessoas, o combate a violência doméstica aparece como pauta de ação parlamentar, que se divide
com a defesa de direitos para as crianças e para pessoas com deficiência.
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(TAVOLARO, 2015). Em 2014 integrou o grupo de celebridades que participou do reality show A
Fazenda, da Rede Record, em seguida, Andressa se tornou apresentada de um programa no canal
Multishow. Após se submeter a um procedimento estético, Andressa foi hospitalizada por 25 dias,
mais de metade dos dias passou em uma sessão de terapia intensiva, onde relata ter visto a morte
de perto. Na última semana de dezembro de 2014, Andressa se converte se batiza no hospital e se
torna membra da IURD. Sua repentina recuperação e sua conversão inesperada tomam os jornais e
redes sociais o que a faz vir para São Paulo e testemunhar sobre sua cura a mais de vinte mil
pessoas presentes no Templo de Salomão. Recuperada, Andressa rompeu seu contrato com a
Multishow e foi trabalhar como apresentadora de um dos quadros do Programa Domingo Show,
na Rede Record.
Como madrinha oficial do Projeto Raabe, Andressa passou a viajar pelo Brasil e para
alguns países como Portugal e Àfrica do Sul, para contar seu testemunho. O circuito para
testemunhos de Andressa ampliou-se ainda mais a partir de agosto de 2015 com o lançamento de
sua biografia intitulada: “Andressa Urach - Morri para viver: meu submundo de fama, drogas e
prostituição” O lançamento do livro ocorreu nos maiores presídios femininos do país, além de uma
palestra sobre superação, após a distribuição dos livros Andressa autografava cada um deles, com
isso em setembro de 2015 seu livro já havia vendido 400 mil cópias subindo para o ranking dos
livros mais vendidos do país, em janeiro de 2016, sua biografia já havia vendido um milhão de
cópias.
A convite do Deputado Sergio Peres (PRB-RS) Andressa Urach passou a ocupar o
cargo de assessoria da Comissão de Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul em março
de 20199. Em outubro desse mesmo ano, Andressa Urach pede exoneração do cargo para voltar
para São Paulo onde passou a coordenar um reality show com mulheres que se prostituem e que
desejam deixar a prostituição, o programa televisivo começou a ser exibido em abril de 2020 na
Univer, canal de televisão administrado pela IURD cuja programação é exclusiva para assinantes.
9
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/02/26/interna-brasil,740038/andressa-urach-vai-assumir-
assessoria-da-comissao-de-direitos-humanos.shtml
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Andressa Urach no presídio feminino de Taubaté-SP
b) Espaço Elas
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objetivo com os atendimentos é promover o encaminhamento jurídico e auxílio nas temáticas do
divórcio e dos direitos patrimoniais. As atividades do Espaço não aglutinam atendimentos em
DDM’s ou presídios, como ocorre no Projeto Raabe, mas nos discursos de cursos e materiais
empreendidos pelo projeto é recorrente perceber um alargamento dos sentidos acerca das
condições e violências sofridas pelas mulheres, atrelando a situação de violência doméstica ou a
condição do encarceramento feminino a experiências de traumas e abusos vividos durante a
infância. Essa associação faz com que o Espaço Elas apresente sempre inúmeras atividades e
atendimentos para crianças, inclusive cursos de apoio e participação no Conselho Tutelar da
região, o que nos remete a um outro projeto, que não foi fundado pela Igreja Batista de Lagoinha e
não tem sua sede na cidade de Belo Horizonte, mas passou a atuar na sede do Espaço com várias
atividades assistências, trata-se do Projeto Proteger, que foi fundado e coordenado pela Pastora
Damares Alves, que como já citei é atual Ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos (MMDH) do governo federal. Por atuar como pastora da Igreja Batista de
Lagoinha há 13 anos, Damares aparece entre as membras fundadoras do Espaço Elas.
Damares Alves cursou teologia e atuou como missionária na Missão Jocum (Jovens com
uma Missão), uma organização missionária internacional e interdenominacional que é mantida por
várias igrejas pentecostais. Filha de um pastor importante da Igreja do Evangelho Quadrangular,
desde criança Damares participou de projetos de implantação de igrejas nas regiões nordeste e
norte do Brasil. Sua trajetória política iniciou-se ainda na década de noventa quando atuava como
pastora de uma igreja na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo. Em 1999, logo após
concluir o curso de direito, Damares se muda para Brasília quando passa a atuar como assessora
parlamentar junior do gabinete do Deputado Josué Bengtson (PTB-Pará) que também era pastor da
Igreja Quadrangular. Em janeiro de 2003, Damares passa a trabalhar como assessora parlamentar
sênior no gabinete de Magno Malta quando ele foi eleito ao senado, e em seguida atuou como
chefe de gabinete de João Campos (PRB), até se tornar, em 2013, assessoria na Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, onde permaneceu durante todo o período em que o
Deputado e Pastor Marco Feliciano (PSC) atuou como presidente.
Durante os vinte anos em que Damares Alves exerceu atividades como assessoria jurídica
do Congresso Nacional, suas principais áreas de atuação foram direito da família, infância e
educação, trabalhando diretamente na Frente Parlamentar Evangélica, na Frente Parlamentar Mista
de defesa da família e apoio a vida, e na Frente Parlamentar de Combate às drogas. Das alianças
que estabeleceu em sua trajetória no Congresso Nacional emergiram sua posição como membra
fundadora e coordenadora da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (AnaJure) e do
Programa Proteger (Programa Nacional de Prevenção de violência e criminalidade infantil),
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fundado por Guilherme Zanina Schelb, procurador geral da República, também membro fundador
da AnaJure e defensor público do projeto Escola sem Partido.
No âmbito do Espaço Elas, Damares Alves atuou sempre como palestrante do Delas, um
evento que ocorre mensalmente a partir da realização de palestras temáticas que tratam sempre de
questões relativas as mulheres e ao mundo social. A cada encontro, uma pastora ou liderança do
Espaço fica responsável por desenvolver com a participantes alguma temática relacionada aos
trabalhos ou projetos missionários que realizam junto a igreja, as temáticas são múltiplas,
casamento, cuidados estéticos, saúde feminina, direito familiar e política, estas duas últimas
ficavam sempre sob a responsabilidade de Damares que sempre trazia algum projeto de lei ou
alguma questão que estava sendo debatida no Congresso Nacional para o conhecimento das
participantes. Foi num encontro do Delas que Damares falou sobre a importância da aprovação do
Estatuto do Nascituro10, do projeto de lei sobre infanticídio11, da cartilha Maria da Penha vai à
escola12, foi nesses eventos que a ministra falou inúmeras vezes sobre ideologia de gênero, e sobre
a importância de os evangélicos estarem na política, sobre o papel que Deus concedeu às mulheres
no trabalho pela nação. Alguns trechos de várias dessas palestras passaram a ser reproduzidos na
internet, em forma de memes ou chacotas que construíram uma figura caricatural para a atuação
pública de Damares. Dentre as palestras mais divulgadas está a que passou a ser conhecida nas
redes sociais como “o episódio de Jesus na goiabeira”, trata-se de uma palestra proferida no
âmbito das atividades do Espaço Elas em 2016, a temática geral do evento era sobre como saber se
você sofreu abuso sexual na infância e quais são os sinais para se reconhecer se uma criança sofre
abuso sexual, o trecho que viralizou nas redes sociais foi o trecho em que Damares passa a
testemunhar sobre o abuso sexual que sofreu quando criança, sobre depressão e suicídio e o
momento de sua conversão, quando Jesus aparece para ela no pé de goiabeira e a impede de
cometer suicídio13. Outro trecho de vídeo que foi extensamente compartilhado nas redes socais,
em programas televisivos de humor e rendeu muitos memes, mas que não foi produzido no âmbito
do Espaço Elas, mas num evento católico carismático, foi o de uma outra palestra sobre ideologia
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O Projeto de Lei 478/2007, de autoria dos deputados federais Luiz Carlos Bassuma e Miguel Martini, defendia a
alteração do código penal brasileiro para considerar o aborto como crime hediondo, proibir em todos os casos, além de
proibir o congelamento, descarte e comércio de embriões humanos, com a única finalidade de serem suas células
transplantadas em adultos doentes
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PL 1057/2007 - conhecido como "Lei Muwaji" teve a atuação direta de Damares desde 2007, sua última tramitação na
Camara foi em 2015
12
trata-se de um material sobre a necessidade de se discutir violência doméstica nas escolas para a proteção das famílias
https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/centro-judiciario-mulher/o-nucleo-judiciario-da-mulher/projetos/eixo-
comunitario/maria-da-penha-vai-a-escola
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https://www.youtube.com/watch?v=B67Z3f7DAmM
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de gênero e abuso infantil em que Damares cita uma personagem de uma produção infantil da
Disney, a Elsa, do filme Frozen, e afirma que ela seria lésbica14.
A participação de Damares nos eventos do Espaço Elas sempre foi fundamental, primeiro
porque suas palestras atraiam um público maior de mulheres, nos meses em que era ela quem iria
falar, o evento ocorria no salão principal da Igreja, com capacidade para três mil pessoas, em
segundo porque sua participação abria margem para alianças, tanto dentro da Igreja de Lagoinha,
como com outras denominações evangélicas, e até com entidades católicas. As atividades do
Espaço Elas para além da dinâmica assistencial também serviram como veículo de produção de
alianças políticas, um espaço para a formação política de mulheres e de produção de mulheres
para a política. Assim como ocorre com o Projeto Raabe da Igreja Universal, o Espaço Elas
também se configura como um lugar que coloca mulheres em condição de assembleia e que
passam a acionar um conjunto de pautas identitárias que vão se distanciando dos legados
feministas e da própria retórica política identitária operada por partidos de esquerda colocando
violência de gênero e abuso sexual como problemas que afetam a saúde e o bem-estar das
famílias.
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https://www.youtube.com/watch?v=T_n27Fy5al0
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Quebrando o Silêncio15
A campanha se desenvolve durante todo o ano, mas uma das suas principais ações ocorre
sempre no quarto sábado do mês de agosto. Este é o “Dia de ênfase contra o abuso e a violência”,
quando ocorrem passeatas, fóruns, escola de pais, eventos de educação contra a violência e
manifestações na América do Sul. A cada ano um tema é escolhido para ser discutido e abordado
com propósito de conscientizar a comunidade, denunciar abusadores e ajudar as vítimas, no ano de
2017, o tema escolhido foi violência sexual.
Para além das atividades sazonais de formação e atendimento de mulheres que foram
vítimas de violência doméstica, o projeto também dispõe de uma rede extensa de profissionais
especialistas que formulam materiais educativos, tais como vídeos, curta-metragem, uma revista
virtual de circulação mensal e programas televisivos exibidos com periodicidade semanal na Tv
Novo Tempo, canal de televisão à cabo que é mantido pela Igreja Adventista.
Diferente de como ocorre no Projeto Raabe, o Projeto Quebrando o Silêncio não atua em
delegacias especializadas no atendimento de mulheres, defensorias públicas ou presídios
femininos, sua atuação ocorre em organizações mantidas pela igreja tais como colégios
confessionais, e projetos assistenciais. As palestras e a distribuição dos materiais produzidos pelo
projeto também ocorrem escolas da rede pública de ensino em vários Estados do país, como é o
caso do Estado de São Paulo.
15
http://quebrandoosilencio.org/o-projeto/
15
final do quadro de justificativas acerca das atividades desenvolvidas no projeto se lê sobre a
necessidade de se pensar medidas para o fortalecimento das famílias16.
No ano de 2019 o tema anual escolhido pelo Projeto Quebrando o Silêncio foi abuso
sexual infantil, o vídeo de lançamento da campanha, com a duração de apenas um minuto discorre
sobre alguns sinais e fala do silêncio, da denúncia como possibilidade de quebrar com o silêncio.
Nos vídeos e materiais didáticos a figura do abusador é sempre representada pela figura de um
homem onde não é possível ver seu rosto ou perfil étnico racial, o ato de denunciar é sempre
apresentado pela figura de uma mulher, a denúncia se configura como uma ação pública, uma ação
generificada, corporificada por uma mulher cujo perfil racial é de uma pessoa branca.
Dentre as lideranças importantes do Projeto está Damaris Moura, filha de uma família de
duas gerações de pastores da Igreja Adventista, Damaris (assim como Damares) também viveu
desde a infância a experiência de ser filha de um pastor que implantava igrejas no Nordeste, seu
retorno para a região sudeste também se deu na juventude. Filha de mãe professora, Damaris
cursou licenciatura em Letras e em seguida cursou Direito e se especializou em Direitos
Fundamentais pela Universidade de Coimbra em Portugal17. Em 2003, Damaris começou a atuar
como advogada voluntária no Quebrando Silêncio, a partir de 2007 tornou-se editora responsável
pela revista do Projeto, nesse período passou a produzir materiais sobre abuso sexual infantil e
direitos patrimoniais para mulheres. Em 2011 passou a atuar como assessora parlamentar da
bancada evangélica na Assembleia Legislativa de São Paulo tornando-se representante junto a
OAB-SP de projetos de combate a intolerância religiosa e de defesa da liberdade religiosa. Em
16
http://quebrandoosilencio.org/o-projeto/
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https://www.damarismoura.com.br/
16
2018 Damaris foi eleita pelo PHS para seu primeiro mandato como deputada estadual de São
Paulo, alguns meses após sua posse, em 2019, ela vai para o PSDB.
Dentre as ações implementadas por Damaris como Deputada Estadual está a tramitação e
aprovação do PL 17.186 que reconhece o último sábado de agosto como o dia Estadual da
campanha Quebrando o Silêncio, a lei foi sancionada pelo governador João Dória em 21 de
outubro de 2019, numa reunião no Palácio dos Bandeirantes que reuniu Damaris e lideranças da
Igreja Adventista.
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No site pessoal e nos resumos de sua atuação política, o debate sobre violência doméstica,
questões relacionadas a infância, a pessoas idosas e pessoas com deficiência emergem como
prioridade. Logo após a lei Quebrando o silêncio ter sido sancionada na Assembleia Legislativa de
São Paulo, o debate acerca de projetos evangélicos sobre violência doméstica voltou a ocupar o
cenário da Câmara, desta vez para a aprovação de uma menção honrosa ao Projeto Raabe da Igreja
Universal, o projeto não apenas recebeu honrarias em uma das sessões parlamentares como
homenageou uma de suas fundadoras, Carlinda Tinoco, que recebeu o título de cidadã paulistana.
Maria Rosas (Deputada Federal), Carlinda Tinoco (cidadã paulistana) e Edna Macedo (deputada estadual)
Falar, expor, explicitar são noções que permeiam o título dos projetos da IURD: Raabe-
Rompendo o Silêncio e da Igreja Adventista: Quebrando o silêncio, esse exercício narrativo coloca
em circulação um conjunto polissêmico de sentidos para a denúncia, que emerge operada como
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categoria jurídica, mas emerge também como categoria de interação social nesses espaços. O
testemunho tão usual na gramática evangélica passa a ser configurado pelo ato de denunciar.
No caso do Projeto Raabe, exceto nos cursos sobre amor inteligente, nos demais
encontros promovidos, o momento do testemunho de si é considerado fundamental. Ao se relatarem,
as participantes reconstituem cenas do cotidiano com seus parceiros ou ex-parceiros, constituindo
uma narrativa permeada por sentimentos, mágoas e experiências.
Gregori (1993) em sua pesquisa com mulheres que viviam relações abusivas e que já
tinha passado com situações de violência, observa uma forma narrativa comum entre suas
interlocutoras, pois os relatos comumente eram marcados por categorias de linguagem que remetem
a uma queixa. Para a autora, “a queixa é uma construção descritiva. O narrador apresenta os fatos
compondo os personagens: o eu vitimado e o outro culpado”. (GREGORI, 1993, p. 185).
As narrativas são construídas de modo a organizar os acontecimentos a partir das polaridades,
a vítima e culpado, de modo que o exercício predominante sempre consiste sempre em declarar o que
o outro havia feito, do que exteriorizar emoções. O resultado dessa dinâmica produzida pelo
exercício narrativo estabelecido entre essas duas posições discursivas, é a produção de um culpado,
posição essencial pois sem ela, não há vítima (GREGORI, 1993, p.186).
A estrutura narrativa apresentada por Gregori também é percebida na dinâmica de
funcionamento dos três projetos aqui analisados, os relatos se constituem com o intuito de tentar
construir, da maneira mais factível possível, a experiência de violência vivida. O fato é que, como
vimos, os encontros promovidos no âmbito do Projeto Raabe e do Espaço Elas reúnem centenas de
mulheres, produzindo tecnologias que precisam dar conta de alargar a dimensão terapêutica e
intimista que era constitutiva de projetos e rodas de acolhimento de relatos de violência, pois tais
espaços constituem uma linguagem tecnológica que precisa dar conta de uma assembleia. Os
espaços produzidos por esses projetos não se configuram apenas como espaço de fala ou escuta, mas
sim como espaço de onde se pode ser visto, no qual denuncia, arrependimento, sofrimento e vitória
precisam se explicitar, exteriorizar se materializar numa cena de multidão. Assim, nesses espaços a
experiência do sofrimento só existe enquanto experiência pública.
Nesse exercício de dar conta de uma audiência a categoria denúncia emerge como uma
unidade operadora de sentidos da cena. A denúncia, enquanto marcador discursivo, opera nas
narrativas com duas temporalidades, a da própria narrativa, pois dar o testemunho de si é fazer uma
denúncia, e a procura por auxílio jurídico. Os relatos comumente apresentam como gancho inicial,
frases do tipo, “Deus me deu coragem e hoje eu vim denunciar meu marido pra vocês”. As
confissões das cenas de sofrimento, e mesmo a identidade do agressor entram numa dinâmica de
19
exterioridade, tudo é exposto, não apenas para as mulheres ali presentes, mas para quem acompanha
as reuniões pela internet.
A narrativa de si categorizada com denúncia, se constitui numa fala que precisa reunir
um conjunto de marcações para se tornar verossímil num contexto de assembleia, dentre as
marcações as que mais se repetiram foram, abuso sexual na infância, ausência dos pais, desestrutura
familiar, baixo autoestima, usadas pelas denunciantes de modo a tentar explicar, pelas próprias
palavras, as causas de sua sujeição ao sofrimento, temáticas chave das atividades assistenciais
desenvolvidas pelos projetos e pautas justificadoras da atuação política de suas lideranças.
A legitimidade e a pluralidade dos espaços e tecnologias narrativas merecem atenção
especial neste processo. Pensar denuncia a partir da experiência dos Projetos Raabe, Elas e
Quebrando o Silêncio não se limita ao encaminhamento e ao reconhecimento jurídico de um
sofrimento pessoal, a denúncia como narrativa de si amplia os espaços locutórios dos sujeitos, a
denúncia é uma ação narrativa, algo meio semelhante ao modelo da confissão, mas que não pretende
absolver o pecador do seu pecado, mas reconhecer publicamente uma vítima. Assim, todos os
espaços produzidos no projeto se constroem como espaços locutórios, onde se pensa e se negocia
tecnologias variadas de narrativas pessoais. Isso ocorre nas delegacias especializadas, nos presídios,
nos cursos, e nos inúmeros momentos de atendimento individual.
Judith Butler (2015) discorre acerca da produção de sujeitos a partir da construção de
narrativas pessoais, articulando a uma produção filosófica sobre o conceito filosófico de violência, o
primeiro exercício consiste em olhar para os relatos pessoais, não como a verdade de uma existência
individual, mas como o efeito de uma relação, que no caso dos projetos aqui analisados se constitui
numa experiência de assembleia. Disso emerge a ideia de que toda a história de um “eu” é também a
história de uma relação (BUTLER, 2015, p. 18), tal suposição nos permite pensar narrativas de si
como tecnologias produtoras de sujeitos reflexivos, e que os sujeitos se produzem e são produzidos
no ato público da narrativa. Assim, tais projetos produzem uma ação narrativa e espaços locutórios
para denuncia e reconhecimento de uma condição de vítima de violência doméstica, algo que a partir
desse processo passa a disputar seu reconhecimento como pauta religiosa e sua legitimidade como
ação política de mulheres evangélicas.
Apesar do destaque dado aos projetos aqui analisados, é preciso ressaltar que projetos
desenvolvidos por igrejas evangélicas cuja base de ação é a Lei Maria da Penha têm se
multiplicado nos últimos três anos, a Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), por
intermédio do Departamento de Teologia realizou nos anos de 2015, 2016 e 2017, seminários e
treinamentos, voltados para pastoras, missionárias e voluntárias em geral, interessadas no
desenvolvimento de projetos eclesiásticos especializados no atendimento de mulheres que foram
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vítimas de violência de gênero no contexto familiar. Nesses seminários registrou-se a participação
de voluntárias de ao menos quarenta denominações evangélicas distintas, interessadas no
treinamento e conhecimento do texto jurídico e nas diretrizes para a abertura do projeto em suas
comunidades (DUARTE, 2019). No formato desses seminários apresenta-se um modelo no qual
defende-se a importância de se constituir um espaço de acolhimento protagonizado por mulheres,
o que acaba por atribuir ainda mais centralidade a atuação de mulheres advogadas, pastoras,
missionárias, psicólogas e assistentes sociais, modelo semelhante ao encontrado em outros espaços
de atendimento a mulheres que sofreram violência doméstica.
Para introduzir a proposta analítica que sugere pensar a igreja como uma tecnologia
produtora de sujeitos – por meio do treino e da elaboração contínua das técnicas de ajuntamento,
governo das condutas e narrativas públicas de si –, torna-se imprescindível situar o conceito de
religião, tendo como ponto de partida a concepção de “religião pública” (Montero, 2016).
Como pondera Montero, nas últimas décadas foi possível notar o movimento crescente de
sujeitos religiosos e agências religiosas mobilizando debates acerca dos direitos civis, bem como,
dos rumos da política econômica e estatal do país. Os usos de novas tecnologias para a produção
de audiência, assim como a disposição de novos atores e espaços de fala, suscitam a necessidade
de se deslocar a investigação das práticas religiosas para além do que tradicionalmente era
considerado como religioso, tais como rituais e templos, estendendo-a para o plano das interações
entre os sujeitos na arena pública (2016:139).
O primeiro deslocamento heurístico importante que o conceito de “religião pública”18
supõe é o afastamento das abordagens que consideram indevida a presença das religiões e de
18
Casanova (1994) constituiu a concepção de religião pública para pensar um distanciamento de algumas teorias
weberianas da secularização. Para Montero, A definição de “religião pública” proposta por José Casanova (1994)
permanece, a nosso ver, tributária da problemática weberiana da distinção das esferas de valor. Para ele, as religiões se
“desprivatizam” em dois sentidos: tornaram-se objeto da atenção de vários públicos, tais como a mídia, os políticos, os
cientistas sociais, etc., e colocaram-se na arena pública enquanto forças de contestação moral e política. A própria ideia
de que as religiões se desprivatizam (ainda que entre aspas) dá por suposto, senão que a religião esteve em algum
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sujeitos religiosos na esfera pública. Isso porque religião e religiosos não podem ser pensados
enquanto fenômenos cuja própria ontologia coloca em xeque os princípios de funcionamento do
público, mas sim, enquanto atores que também constituem o público ao acionar diferentes
tecnologias de visibilidade. Esse deslocamento permite uma mudança nos modos usuais de
formulação da religião enquanto problema teórico, ao considerá-la um efeito das interações e
disputas por espaços de publicidade, entendendo o papel fundamental dos sujeitos religiosos não
apenas na produção do reconhecimento público das agências religiosas, mas também, na produção
de secularismos (Cefaï, 1996; Montero, 2016). Este trabalho pretendeu demonstrar que, ao
contrário do que sugere Beyer (1998), as religiões não necessariamente precisam agir no campo
próprio da religião em um regime diferenciado, e relativamente autônomo, com relação às
instituições econômicas, jurídicas ou científicas. Ao pensar igreja como uma tecnologia que
produz sujeitos – na medida em que constitui mecanismos de engendramento e publicidade de
corpos que são modelados por meio da experiência da diferenciação binária de gênero e da
heterossexualidade saudável –, não se pretende descrever a agência de um conjunto de atores
religiosos que operam a partir de um sistema dogmático. Os dados que apresentarei nos permitem
pensar, ao contrário, uma gramática de assembleias cuja linguagem se articula por meio da
formulação de um discurso e de um entendimento público sobre si, por meio de testemunhos
religiosos e depoimentos jurídicos, que não se restringe a um discurso “puramente” religioso 19.
momento fora da vida pública, ao menos que na oposição público/privado as esferas são distintas, estáveis, autônomas
e fechadas em si mesmas (2016:129).
19
Tal percepção emerge como cerne das pesquisas reunidas no projeto Religião, Direito e Secularismo: a
reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo (FAFESP). As pesquisas mostram que as narrativas
“religiosas”, ao menos quando expressas em público, não estão formuladas em termos de “pecado”, “de violação das
normas religiosas” etc., mas, ao contrário, vão assumido as gramáticas que predominam nas arenas em que se
encenam demandando “justiça”, vida, “dignidade”, “inclusão”, paz, etc., e diluindo, por via de consequência, o que
deveria ser, na leitura de Beyer a comunicação caracteristicamente religiosa desse sistema funcional.
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A questão é que em Butler o conceito de aparição passa a se tornar quase que um sinônimo da
noção de público, que consiste sempre num espaço que é habitado pelos sujeitos que reivindicam a
partir dele, o direito de serem vistos. No presente texto, uso a noção de aparição, tanto para pensar
os projetos evangélicos voltados para o atendimento de mulheres em situação de violência como
tecnologias usadas pelos sujeitos para serem vistos, reconhecidos como sujeitos inclusive para
ocupar posições na política institucional.
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