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EDUCAÇÃO CRISTÃ E ESTUDOS DE GÊNEROS: EM DEFESA DE UM DIÁLOGO

FECUNDO.

Luiz dos Santos Mattos Júnior1


Perycles Emmanoel Gomes de Macedo2
Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda3

Neste resumo expandido pretendemos refletir em que medida é possível pensar em


aberturas para que se estabeleça um diálogo entre a educação confessional católica e os estudos
de gêneros e sexualidades. Sabemos que escolas confessionais são colégios que, de modo
diverso daqueles pretensamente laicos, professam abertamente seu vínculo a uma determinada
tradição religiosa, assumindo-a como a filosofia que deve permear a prática pedagógica e como
parâmetro para a construção de uma conduta religiosamente referenciada em seus discentes.
Nesse sentido, nos perguntamos se tal diálogo seria possível e, em caso de resposta afirmativa,
resta-nos pensar em que medida tal abertura descaracterizaria o ensino religioso, uma vez que
a hermenêutica oficial católica tem se posicionado historicamente contra o avanço das políticas
e das discussões de gênero, sobretudo através do dispositivo discursivo “ideologia de gênero”.
A questão central sobre a qual nos debruçamos é: haverá possibilidade de trato das
questões de gêneros e sexualidades por parte das escolas confessionais, dentro de uma
perspectiva alinhada aos principais postulados dos direitos humanos sem que, com isso, se
comprometa a tradição cristã?
Por último, a partir de alguns marcos teológicos e iconográficos, questionamo-nos se
a doutrina católica deve ser admitida como um campo discursivo sempre igual a si mesmo,
revelado de forma cabal por um deus que jamais muda, ou, se ao invés disso, poderia ser
interpretada como uma tradição em constante movimento, que ambiciona, ainda que a passos
lentos, acompanhar as principais mudanças históricas de modo a superar seus próprios erros e
a contornar postulados por ela mesma construídos a partir de estágios já superados da reflexão
humana. Para tanto, evocamos a Teologia da Libertação – tradição mística católica que
assinalou de maneira tonitruante a necessidade de construirmos um exercício da espiritualidade
que não seja capaz de nos desligar da terra, mas que, ao contrário disso, encontre na superação

1
Cientista Social e especialista em Coordenação Pedagógica, Gestão Escolar e Ensino de História - FAFICA.
Mestrando em Educação Contemporânea pelo PPGDUC da UFPE – CAA. E-mail: mattos.junior@ufpe.br
2
Pedagogo e Mestrando em Educação Contemporânea pelo PPGDUC da UFPE – CAA. E-mail:
perycles.macedo@ufpe.br
3
Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: Marcelo.gmiranda@ufpe.br
das contradições sociais uma maneira de manifestar o amor de Deus pela humanidade, tal qual
nos ensinou Leonardo Boff (2009). Lembramos ainda que o trato das problemáticas
concernentes a gêneros e sexualidades no âmbito religioso não é recente: tais questões já foram
alvo de enfrentamento sensível por mestres da arte sacra, como Bernini, Donatello, Boticelli
entre outros, que se opuseram à maneira ascética com que a Igreja tratou tais temas, tal qual nos
mostrou Camille Paglia (1999).

ENTRE IMPOSIÇÃO E ABERTURA.


Primeiramente, é preciso admitir que a dimensão religiosa, ou se quisermos, o exercício
da espiritualidade, é certamente uma das experiências que atravessa a humanidade de maneira
mais marcante ao longo de toda sua trajetória. Desde a pré-história até os nossos dias, é possível
perceber como esse elemento tem se revelado persistente no curso dos desenvolvimentos
culturais. Em certo sentido, é razoável dizer que a história das produções humanas e das
espiritualidades se confundem. Para isso, basta que pensemos nas mais antigas descobertas
artísticas da arqueologia – todas elas dotadas de profundo significado espiritual. De modo
semelhante, o elemento que assinala a busca humana pelo transcendente pode ser identificado
na arquitetura (pensemos nas grandes construções religiosas, desde as pirâmides do continente
africano e americano até as portentosas e conhecidas catedrais como A Sagrada Família, em
Barcelona, ou a Basílica de Aparecida, em São Paulo); na música (desde o canto gregoriano,
no medievo europeu, aos pontos de candomblé e umbanda no Brasil de nossos dias); na filosofia
(que nasce em berço mítico e jamais se aparta completamente da metafísica), mas, sobretudo,
na educação.
A escola que conhecemos, a qual aborda os conhecimentos de maneira isolada, cuja
complexidade das disciplinas se intensifica gradualmente, que serializa os grupos de estudantes
com base na idade e que conta com uma figura de autoridade que deve coordenar os
movimentos de aprendizagem, é uma construção que, embora parta do Egito e seja
significativamente reelaborada pelo mundo grego, desenvolveu seus principais traços, a maioria
deles ainda em plena vigência, no seio da Igreja Católica de Roma, entre a primeira e a segunda
metade do medievo (MANACORDA, 2010). Assim como nos demais construtos culturais que
assinalamos, nos quais se podem identificar elementos que revelam uma certa necessidade de
transcendência, a escola também exibe em suas formas uma história que atesta não ter
suplantado de maneira disruptiva muitos dos elementos religiosos que a compuseram
originalmente – sobretudo se considerarmos o caráter conservador e até mesmo reacionário que
acompanha muitas tradições cristãs no que diz respeito às questões de gêneros e sexualidades
(OLIVEIRA, MIRANDA, SILVA, 2018).
A Igreja Católica – tradição cristã que agrega (ou apelo menos persuade) 105,94 milhões
de pessoas no Brasil – não é exceção nesse sentido, pois ela segue a regra. Ainda assim, é
possível dizer que a aversão de setores cristãos aos distintos grupos de diversidade sexual e de
gêneros ganha contornos bastante singulares em território brasileiro. Inclusive, no que diz
respeito à educação e às políticas que a evolvem.
De certa forma, é possível dizer que na tradição católica, assim como em grande parte
das demais ramificações históricas do cristianismo e do judaísmo, perdura um discurso em que
o corpo (e a matéria, de modo geral) é marcado como naturalmente pecaminoso – como uma
realidade que deve ser superada caso o ser humano almeje religar-se à Deus. De modo distinto
das antigas tradições religiosas ligadas à natureza, nas quais as divindades, via de regra, fazem
parte de um mundo manifesto já existente; na polêmica narrativa do Gênesis, Javé, ser que
existe desde sempre, sendo jamais criado, imaterial e incorpóreo, cria o mundo através da
palavra – Fiat Lux. Mesmo no Novo Testamento, no qual Deus aparece relativamente
humanizado na figura de Cristo, a rejeição da vida na carne, do corpo e do mundo manifesto é
atualizada tanto por Jesus (que afirma não ser o seu reino da terra, mas do além, e que aqueles
que desejam servi-lo devem negar seus próprios desejos) como por seus seguidores e mestres
fundadores da Igreja (que condenam as relações entre pessoas do mesmo gênero, assim como
a agentividade da mulher, entre uma infinidade de outras questões).
Nesse sentido, ao atestarmos que o discurso que assinala o corpo como naturalmente
pecaminoso foi, substancialmente assumido e ampliado por diversas tradições cristãs, torna-se
possível compreender porque o sexo foi e tem sido um tema tão interdito por grande parte das
ramificações do cristianismo, um tabu – já que o ato sexual pode ser descrito como fenômeno
de encontro humano que se realiza indiscutivelmente no e a partir do corpo. Contudo, mesmo
nos contextos cristãos, a exegese que marca a experiência sexual como algo que deve ser
vivenciado exclusivamente dentro do contexto ascético do casamento heterossexual e para a
reprodução humana, apesar de hegemônica, não é unívoca. Também não é recente o movimento
de insurgência que brota no interior mesmo da Igreja Católica no intuito de disputar discursos

4
Segundo dados do IBGE de 2020, 50% da população brasileira declara-se católica. Com a margem de erro de
2% para mais ou pata menos.
e significados da cosmovisão cristã, a fim de propor hermenêuticas que sejam mais afirmativas
da vida na terra, das diferenças, do corpo e do sexo.
É próprio das formações discursivas o elemento da heterogeneidade. Um discurso é
sempre composto por uma infinidade de discursos que se confrontam, que se influenciam, se
aniquilam, se reafirmam e se ressignificam (FISCHER, 2001; FOUCAULT, 2004; 2008).
Não obstante a heterogeneidade e a abertura para a transformação que se pode verificar
em alguns de seus desdobramentos, em termos políticos e democráticos, é preciso reconhecer
e preocupar-se com o caráter problemático e potencialmente nocivo que alguns grupos cristãos
têm revelado, principalmente nos últimos decênios da história do Brasil. Para determinados
setores reacionários, católicos e protestantes (sobretudo os pentecostais e neopentecostais), não
basta que seus membros vivam de acordo com as interpretações bíblicas e com as visões de
mundo que livremente escolheram. Para esses grupos, não é suficiente que eles mesmos tenham
a autonomia de viver de acordo com suas crenças e tradições e de transmiti-las à sua
descendência, bem com àqueles indivíduos que livremente as desejarem. O que vimos no Brasil,
a partir da década de 1990 e, de maneira mais radical nos anos seguintes à década de 2000, foi
o desenvolvimento de um projeto de poder proselitista/religioso, profundamente
descomprometido e que viola os direitos humanos e com os próprios pilares do cristianismo5,
vinculado a valores ultraconservadores e reacionários, que representam uma ameaça à
sociedade de maneira geral e, particularmente, às pessoas que vivenciam suas subjetividades
fora da normativa heterossexual, que tenta se apropriar do dispositivo sexualidade para barrar
o avanço de grupos subalternizados e categorizados como minorias sociais e para levar a cabo
seu plano de dominação.
A título de compreensão, Maria Machado (2018) nos oferece uma visão privilegiada
dos elementos que estão presentes no momento da construção do dispositivo “ideologia de
gênero. Segundo afirma, essa ferramenta discursiva tem origem na segunda metade da década
de 1990. Por ocasião da Conferência Internacional da Mulher, realizada pela ONU em Pequim,
no ano de 1995, tem início um debate entre as estudiosas e ativistas feministas e representantes
do vaticano ali presentes. Nesse episódio, os membros da Santa Sé questionaram o uso da
palavra “gênero”. A exigência desse grupo de religiosos era que os documentos em pauta
usassem a palavra “sexo” ao invés de “gênero”. Com isto, o que eles pretendiam era reafirmar

5
Chamamos aqui de cristianismo os valores ensinados pela figura histórica/literária de Jesus.
a ideia de que a mulher é uma realidade essencial, natural, provinda de Deus, ou seja, eles
desejavam sustentar a origem biológica do construto social “mulher”.
A partir daí, intelectuais ligados à Igreja Católica começaram a elaborar diversos
argumentos no sentido de desmobilizar aquilo que passaram a chamar de “ideologia de gênero”
– ou seja, se organizaram para descredibilizar o diverso e heterogêneo conjunto de teorizações
que sustentam que gênero é uma formulação paulatina, que não nasce com os indivíduos, sendo,
portanto, um aparato social e historicamente construído.
De modo geral, o sintagma “ideologia de gênero” tenta desqualificar os estudos de
gênero e os direitos sexuais e reprodutivos a partir de uma ressignificação anacrônica e
capiciosa da palavra ideologia. A argumentação desse grupo de reacionários afirmava que os
estudos de gênero não poderiam ganhar status de teorias, pois, segundo eles, uma teoria
necessita ser verificável através de experimentos e isso seria impossível no caso em questão. A
ideologia, por outro lado, seria um corpo fechado de ideias, um falso discurso inventado por
algum grupo ou indivíduo pessoalmente implicado na situação em questão, logo, não é neutra
e, por conseguinte, também não é científica (MACHADO, 2018).

ÚLTIMAS PALAVRAS.
Os marcadores de gênero e sexualidade têm insistentemente se reafirmado como causa
de sofrimento, de perseguição e de violência em inúmeros espaços, inclusive nos diversos níveis
da escola. Estudiosos, como Bourdieu e Passeron (2014) dentre outros, começaram a
problematizar e a denunciar visões encantadas a respeito da escola e do sistema educacional
como garantia do progresso, de mobilidade social e de inclusão. A partir desses estudos,
sabemos que essa instituição (confessional ou não) não somente foca na construção de
conhecimentos, mas ao fazê-lo, reproduz padrões sociais que podem ser profundamente
opressores e segregadores. Em virtude disso, diferentes sujeitos não têm visto a escola como
um lugar no qual se deve demorar e ou considera-la como um espaço que contribui para a
mobilidade social, na democracia e pluralidade (CARRITO; ARAUJO, 2011).
Em virtude de sua alegada vocação ao amor e ao acolhimento do outro, a superação
das diversas violências, inclusive as de gênero, deveria ser algo eminente para as instituições
educativas religiosas. Em consonância com essa perspectiva, o Papa Francisco (2013, p. 88),
em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, chama a atenção dos cristãos católicos
afirmando que “[...] na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura”.
Os questionamentos levantados em torno desse campo, certamente precisam de
amadurecimento e da elaboração de perguntas que ajudem todos e todas a ir além da
ingenuidade e da tentativa de manter o mundo onde todos e todas vivenciam exclusivamente a
cisheterossexualidade – ou seja, um mundo que nunca existiu.
Tal qual já vimos em tempos recentes, com as ecumênicas e insurgentes teologias da
libertação, as instituições católicas – dentre elas as escolas, precisam ser aliadas às vozes que
desejam trabalhar em prol da renovação do mundo e da afirmação da vida. Para Buber (1982),
assim como para Arendt (2016), o educativo atravessa incontornavelmente o movimento de
apresentar o mundo àqueles que nele chegam. Trata-se de, em um mesmo movimento, preservá-
lo e renová-lo. Preservar as ideias, as ações e expressões que celebram a humanidade em suas
infinitas possibilidades e renovar aquilo que já não cabe, superar as vozes que aprisionam, que
negam, dividem, marginalizam e matam. Tal empreendimento educativo/religioso certamente
se apresenta como tarefa que deveria inspirar responsabilidade e abertura, e não imposição. E,
imbuídos dessa responsabilidade ética para com aqueles e aquelas que chegam ao mundo e não
deveriam ter de escolher entre suas vidas e sua fé, afirmamos que entre a educação confessional
católica e os estudos de gênero não precisa haver nenhuma dicotomia, mas um diálogo fecundo.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
BOURDIEU, Pierre;PASSERON, Jean-Claude. Reproduções: elementos para uma teoria do
sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2014.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis: Vozes,
2009.
CARRITO, Manuela; ARAUJO, Helena. Insucesso e abandono escolar e a construção social a
masculinidade. Atlas do XI congresso da sociedade portuguesa de educação. Instituto
Politécnico da Barra, jun – jul. 2011.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. In Cadernos de
pesquisa, n.114, p. 197 – 223, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada
em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyolaa, 2004.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelli Gaudium. Vaticano, 2013.
MANACORDA, Mario A. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. 13. Ed.
São Paulo: Cortez, 2010.
MACHADO, Maria das Dores C. O discurso cristão sobre a “ideologia de gênero”. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, 2018.
OLIVEIRA, Aurenéa de; MIRANDA, Marcelo H. G. de; SILVA, Maria A. M. P. da. Questões
de gênero, sexualidade e laicidade no ensino público tendo como eixo de debate a disciplina de
ensino religioso em escolas de Recife. ETD – Educação Temática Digital, v,20, n. 4, p. 864
– 886, 2018.
PAGLIA, Camile. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertit a Emily Dickinson. São
Paulo: Companhias das Letras, 1992.

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