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GÊNERO, SEXUALIDADES, CONSUMO MIDIÁTICO E COTIDIANO ESCOLAR:

UMA ABORDAGEM INTERSECCIONAL

Fernando Santos da Silva.1


Ricardo Augusto de Sabóia Feitosa.2

Nas últimas décadas, as discussões acerca de gênero e sexualidades ganharam cada


vez mais destaque em todo o mundo. O acesso facilitado aos dispositivos digitais, sobretudo
em nações em desenvolvimento como o Brasil, por seu turno, tem possibilitado uma
participação mais expressiva da população nesses debates, visto que o ambiente virtual
oferece um amplo espaço para discussões abertas. Conforme dados da 34ª edição da Pesquisa
Anual do Centro de Tecnologia de Informação Aplicada (FGVcia) sobre o Mercado Brasileiro
de Tecnologia da Informação e Uso nas Empresas 3, no país há 464 milhões de aparelhos
eletrônicos, que incluem smartphones, notebooks, computadores e tablets, em uso. O acesso
crescente à tecnologia tem sido um catalisador para a expansão das conversas sobre questões
de gênero e sexualidade, permitindo que um número maior de pessoas se envolva e contribua
para esses diálogos.
Diante desse cenário, o projeto de iniciação científica “Gênero, Mídia e Escola –
abordagens interseccionais a partir das práticas de consumo midiático de estudantes do ensino
médio da cidade de Caruaru (PE)” investiga as relações entre o consumo midiático e a
apropriação desses conteúdos pelos estudantes do ensino médio na cidade de Caruaru
(Pernambuco), em interface com as vivências das questões de sexualidade e gêneros no
cotidiano escolar.

OBJETIVOS
O foco principal da pesquisa é a análise da "ideologia de gênero" como dispositivo
presente nas práticas e discursos do cotidiano escolar. Esse termo surgiu pela primeira vez em
1997, sendo inicialmente introduzido por escritos provenientes dos setores mais
conservadores da Igreja Católica. Contudo, sua ascensão para o centro das discussões no
Brasil se deu em 2010, durante a elaboração do Plano Nacional de Educação.

1
Graduando em Comunicação Social. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA).
Fernando.fss@ufpe.br.
2
Doutor em Sociologia. Professor-adjunto na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA).
ricardo.saboia@ufpe.br.
3
Disponível em: <https://eaesp.fgv.br/producao-intelectual/pesquisa-anual-uso-ti>. Acesso em 24 nov 2023.
A expressão ganhou notoriedade e se tornou objeto de debates intensos, marcando
presença não apenas nos círculos acadêmicos, mas também nos âmbitos político, social e
educacional. Sua complexidade reside na abordagem das concepções sobre identidade de
gênero, sexualidade e papel social, despertando tanto apoio fervoroso quanto oposição
veemente nas esferas públicas local, brasileira e global (ROSA, SOUZA, CAMARGO, 2019).

EDUCAÇÃO E MÍDIA
O campo dos meios de comunicação social é crucial para o entendimento das questões
de gênero e sexualidades, tanto em seu diálogo com a educação como com outros campos
sociais. Como destaca Kellner (2001, p. 9), a existência de uma cultura da mídia a vincula a
diversos processos, em que suas imagens, textos e sons “ajudam a urdir o tecido da vida
cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos
sociais e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade”. Não obstante,
também “fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia
e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de ‘nós’ e ‘eles’”. Esta cultura faz-se presente, como
não poderia ser diferente, da realidade cotidiana escolar, seja como parte de um projeto
pedagógico, seja nas conversas formais e informais, dentro e fora das salas de aula.
Assim, o consumo de mídia pelos estudantes ocupa posição central nos processos
educacionais, compondo parte de como eles se comportam diante das discussões de gênero e
sexualidade no ambiente digital/midiático. Isso implica a investigação de como esses alunos
consomem mídia, compreendendo tanto seus usos dentro da sala de aula quanto fora dela, seja
entre os próprios estudantes, com os professores, a equipe administrativa da escola ou outros
profissionais. É preciso construir uma abordagem crítica em relação a essas práticas de
consumo, utilizando-as como instrumentos reflexivos para compreender o processo de
aprendizagem, suas conexões com as práticas sociais e o impacto que exercem sobre as
abordagens pedagógicas. Dessa forma, o consumo midiático dos estudantes demanda ser
contextualizado e interpretado no âmbito educacional de maneira mais abrangente, assim
abordando criticamente as práticas de consumo como ferramentas para refletir sobre o
processo de aprendizagem, e suas interações com as práticas sociais e pedagógicas, em
perspectiva interseccional (COLLINS e BILGE, 2019).
É relevante perceber que a mídia não apenas reverbera temas relativos às sexualidades
e ao gênero, pois ativamente elabora suas representações sociais e culturais. De Lauretis
(1987) nos lembra que esta se configura como uma “tecnologia de gênero”, ou seja, como
dispositivo que, em interação com outras instâncias como a academia, a escola, o cinema ou
os sistemas jurídicos, atua tanto na “construção” como na “desconstrução” das categorias e
marcadores que busca representar. Já Weeks (2016, p. 8) reconhece que “a sexualidade está
inevitavelmente e sempre emaranhada nas espirais das relações de poder”, e sua análise deve
“enfatizar a vivacidade das agências pessoais e coletivas”.

GÊNERO, COTIDIANO ESCOLAR E MÍDIA-EDUCAÇÃO


Em consonância com estas perspectivas, Bento ressalta que “o gênero é resultado de
tecnologias sofisticadas que produzem corpos-sexuais (2011, p. 550). Em relação à escola, ela
enfatiza que “há um projeto social, uma engenharia de produção de corpos normais, que
extrapola os muros da escola, mas que encontrará nesse espaço um terreno fértil de
disseminação”. Ressalta, porém, que “a escola não é uma ilha” e se, historicamente reproduz
visões naturalizadas dos gêneros, das sexualidades e das relações sociais, também se vê diante
de uma “produção incessante de contradiscusos”, em que ela, “de múltiplas formas, está
inserida nesta disputa” (BENTO, 2011, p. 558).
Essas dimensões construtivas, desconstrutivas e performáticas atravessam o cotidiano
da vida escolar, nas mais variadas formas: nas relações de sociabilidade, na formação
pedagógica, nos processos de aprendizagem, na construção da cidadania etc. Assim, é
necessário pensá-las em relação ao que se costuma investigar como o campo da “mídia-
educação”. Recuperando a trajetória deste domínio, Bévort e Belonni (2009, p. 1082)
enfatizam a ideia “de que não pode haver cidadania sem apropriação crítica e criativa, por
todos os cidadãos, das mídias que o progresso técnico coloca à disposição da sociedade”. Por
sua vez, há a necessidade de “integrar estas mídias nos processos educacionais em todos os
níveis e modalidades, sem o que a educação que oferecemos às novas gerações continuará
sendo incompleta e anacrônica” (Idem).
A mídia-educação desponta, assim, como um campo de práticas e reflexões que
permitem ao investigador explorar, sempre sob perspectiva crítica e dialógica, os potenciais
usos e consumo das mídias no interior da escola, de modo formal ou informal, reconhecendo
que tanto alunos como professores e gestores o exercem continuamente, trafegando entre os
saberes educacionais e midiáticos no ambiente escolar (nosso domínio de investigação) e em
suas vidas em geral.
A pesquisa subsiste-se na justificada da urgência de se compreender, na atualidade,
como as questões relacionadas a gênero e sexualidade permeiam diversas esferas do ambiente
escolar. Isso abrange não apenas a educação formal, mas também as interações informais e as
dinâmicas de relacionamento presentes no cotidiano escolar. É essencial investigar como
essas questões se manifestam em suas várias dimensões: identitárias, culturais, de
sociabilidade, entre outras.
Além disso, é crucial reconhecer que os meios de comunicação desempenham um
papel central na contemporaneidade como uma arena significativa para a produção,
reprodução, recriação e visibilidade dos sistemas de sexo e gênero. Eles influenciam
ativamente na construção de narrativas, estereótipos e na disseminação de ideias que moldam
as percepções sociais sobre gênero e sexualidade. Portanto, compreender a interseção entre
esses meios de comunicação e o ambiente educacional é fundamental para uma análise
abrangente e para o desenvolvimento de estratégias educacionais inclusivas e progressistas.
É imperativo, quando se investiga interseccionalmente a compreensão do papel dos
meios de comunicação frente às questões de gênero e o cotidiano escolar, tanto no que se
refere às mídias tradicionais como às novas tecnologias, como agentes cruciais na criação e
perpetuação das questões relacionadas a gênero e sexualidade dentro do contexto escolar
específico em estudo. Isso implica uma análise minuciosa das mensagens, narrativas e
representações veiculadas pelos meios de comunicação, reconhecendo seu impacto na
formação de identidades e na construção de conceitos relacionados a gênero e sexualidade
entre os estudantes.
Compreendemos ser igualmente importante operar a interseção crítica entre os campos
da comunicação e da educação, especialmente no que diz respeito às questões de gênero e
sexualidade. Isso implica estabelecer uma conexão mais estreita e reflexiva entre as
investigações acadêmicas e a realidade social, cultural e pedagógica das escolas na região em
foco. Busca-se, assim, promover uma abordagem que vá além do âmbito teórico, integrando a
pesquisa acadêmica às práticas reais, considerando não apenas a influência dos meios de
comunicação, mas também como tais influências se manifestam no contexto educacional e
nas interações diárias dos estudantes e profissionais da educação. Essa aproximação crítica
visa enriquecer tanto o debate acadêmico quanto as práticas pedagógicas, contribuindo para
uma compreensão mais holística e sensível das dinâmicas de gênero e sexualidade nas escolas
da região.
METODOLOGIA
A pesquisa "GÊNERO, MÍDIA E ESCOLA – ABORDAGENS INTERSECCIONAIS
A PARTIR DAS PRÁTICAS DE CONSUMO MIDIÁTICO DE ESTUDANTES DO
ENSINO MÉDIO DA CIDADE DE CARUARU (PE)", atualmente em estágio inicial, adota
uma estratégia metodológica centrada na condução de entrevistas semiestruturadas com
estudantes do ensino médio em Caruaru (PE). Essa abordagem será complementada por
possíveis grupos focais e pela aplicação de questionários adicionais, todos voltados para a
obtenção de dados qualitativos substanciais, fundamentais para sustentar uma análise crítica
das temáticas intrínsecas abordadas pela pesquisa.
A coleta desses dados qualitativos é submetida a uma metodologia de interpretação e
análise social crítica conhecida como Análise de Discurso (AD). Inspirada em contribuições
teóricas de Orlandi (2020), Verón (1980) e outros expoentes nesse campo, a AD foi
selecionada como o método fundamental para compreender e interpretar os discursos dos
estudantes. A AD permitirá uma investigação detalhada das nuances, significados e
construções simbólicas presentes nas narrativas dos entrevistados, possibilitando uma
compreensão mais profunda das percepções, representações e experiências individuais e
coletivas dos estudantes em relação às questões de gênero, sexualidade e mídia. Essa análise
crítica não apenas identifica padrões e tendências nos discursos dos participantes, mas
também explora as conexões desses discursos com o contexto social mais amplo, incluindo
aspectos culturais, históricos e educacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao adotar essa abordagem metodológica, almeja-se não apenas capturar dados
superficiais, mas, fundamentalmente, explorar os significados subjacentes aos discursos dos
estudantes, trazendo à tona perspectivas profundas e valiosas que enriquecem a compreensão
das interseções entre gênero, mídia e experiência escolar.
Dessa forma, o projeto não se limita apenas à investigação das questões de gênero,
sexualidade e mídia; ele atua como um ambiente de aprendizagem prática e enriquecedora
para os pesquisadores e colaboradores, capacitando-os para enfrentar desafios complexos e
fornecendo-lhes ferramentas valiosas para a sua formação acadêmica e pessoal.
Essa abordagem, alinhada aos objetivos do projeto, busca construir pedagogicamente
uma atuação que contribua para o avanço do conhecimento crítico nas áreas de educação,
gênero e sexualidades e comunicação. Se estas, na contemporaneidade, exigem um
permanente olhar crítico que reflita sobre suas novas configurações, entendê-las no exercício
vivo e plural do cotidiano escolar torna-se um desafio incontornável para a reivindicação da
escola como ambiente emancipador.

REFERÊNCIAS

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BÉVORT, Evelyne e BELLONI, Maria Luiza. Mídia-educação: conceitos, história e
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KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o
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[Acessado 11 Maio 2022], pp. 687-715. Disponível em: Epub 31 Mar 2009. ISSN 1678-
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