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DIDÁTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ENTRE A EXIGÊNCIA

DEMOCRÁTICA DE FORMAÇÃO CULTURAL E CIENTÍFICA E AS DEMANDAS DAS


PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS (*)

José Carlos Libâneo


Pontifícia Universidade Católica de Goiás

O texto discute a contribuição da didática para a formação de professores enquanto campo


de conhecimento preponderante na formação profissional do professor. Aborda,
especialmente, o papel da didática em face das tensões existentes entre a exigência social
e democrática de escolarização formal a todas as crianças e jovens e, ao mesmo tempo, a
necessidade de as escolas se organizarem de forma adequada para o acolhimento da
diversidade social e cultural. Na parte inicial, são indicadas as condições institucionais e
pedagógicas de eficácia do ensino na promoção da justiça social, destacando seu papel
imprescindível na formação cultural e científica dos alunos. Em seguida, discute-se a
conexão entre os aspectos pedagógico-didáticos e as práticas socioculturais e institucionais,
introduzindo uma determinada compreensão do tema da interculturalidade nas relações
entre ensino e aprendizagem. No terceiro tópico, propõe-se uma didática que dê conta de
articular a formação cultural e científica e a formação das capacidades intelectuais dos
alunos com as práticas socioculturais e institucionais (diferenças, interculturalidade, redes
de conhecimento, etc.), de modo a promover interfaces pedagógico-didáticas entre o
conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano.
Palavras-chave: Didática; Escolarização; Educação e Justiça social. Didática e práticas
socioculturais; Conhecimento teórico-científico e conhecimento cotidiano.

1. Situando o problema
O campo teórico e investigativo da didática convive hoje com tensões entre a
exigência social e democrática de provimento de escolarização formal a todas as crianças
e jovens e a necessidade de as escolas e professores levarem em conta, no ensino, a
diversidade social e cultural expressa pelas diferenças individuais e sociais entre os
alunos, em boa parte decorrentes das práticas sociais e culturais em que vivem. Dado
que as escolas têm a responsabilidade social de possibilitar a todos os alunos o acesso
ao conhecimento sistematizado e ao desenvolvimento de capacidades intelectuais
considerando, ao mesmo tempo, suas necessidades individuais e sociais enquanto
imersos em contextos socioculturais e institucionais, a investigação em didática precisa
assumir o encargo de discutir o papel das práticas socioculturais e institucionais no ensino
e aprendizagem. Para isso será preciso saber como a apropriação dos conceitos teóricos
da matéria pelos alunos pode tornar-se relevante para a análise das condições de sua
vida cotidiana e dos modos de atuação na vida social mais ampla.

2. Justiça social, escola e didática

Num entendimento mais geral, justiça social significa a busca pela sociedade do
bem social comum, reservando-se um papel específico ao estado. Mais especificamente,
a justiça social supõe a igualdade de direitos em situações de desigualdade social,
implicando justa distribuição da renda e oportunidades de acesso aos bens materiais e
culturais. Rouanet (2002) cita dois princípios formulados pelo filósofo liberal John Rawls:
Primeiro, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades
básicas iguais (...). Segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas
de tal modo que sejam, ao mesmo tempo, a) consideradas vantajosas para todos dentro dos
limites do razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.

(*) Texto publicado como capítulo II do livro: SANTOS, Akiko, SUANNO, João H. e SUANNO, Marilza V.R.
(Orgs.). Didática e formação de professores: complexidade e transdisciplinaridade. Porto Alegre: Sulina, 2013.
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Esses princípios, embora situados na doutrina liberal, destacam duas idéias


importantes para a justiça social: a garantia das liberdades básicas e as oportunidades
iguais para todos. No entanto, falta aí o princípio da diferença. Young (McDONALD, 1990,
in DINIZ-PEREIRA e ZEICHNER, 2008, p. 111) aponta que uma teoria da justiça envolve,
mas não está exclusivamente relacionada à distribuição de bens entre os indivíduos,
devendo incluir, também, relações sociais e processos, exigindo atenção às diferenças do
grupo social. Isso significa que a distribuição equitativa de bens e recursos não é
independente do contexto institucional, das estruturas sociais e das formas de opressão.
Ou seja, “os indivíduos são membros de grupos sociais, e as diferenças entre grupos
sociais estruturam as relações”. Então, a justiça social requer reconhecer e atender às
diferenças desses grupos a fim de minar a opressão.
Sem aprofundar agora a discussão desses princípios, pode-se dizer sua conquista
dependerá de políticas públicas que contribuam efetivamente para a construção de uma
sociedade mais justa e de uma posição definida da escola e do trabalho dos professores.
Não é tarefa fácil definir essas políticas, mas alguns direitos básicos universais do ser
humano compõem a pauta da justiça social, como a educação, a saúde, a segurança.
Nas condições peculiares do nosso país, é especialmente relevante a reflexão sobre a
relação entre justiça social e educação, como expressa Waltenberg:
(...) o interesse no tema da justiça social e nos instrumentos e mecanismos para sua
persecução é enormemente amplificado por vivermos num país com distribuição de renda
muito desigual, mais pobre do que aqueles em que boa parte das teorias da justiça foram e
são desenvolvidas, que apresenta um sistema político frágil e alto grau de informalidade nas
relações econômicas e, acima de tudo, onde os meios tradicionais para se promover a
justiça social são deficientes: sistemas tributários e redistributivos (...) Trata-se de uma
sociedade em formação, em alguns aspectos muito distantes dos ideais de justiça social
(WALTENBERG, 2008, p. 12).

Portanto, nada mais importante hoje, na área da educação, do que declarar que a
função das políticas de educação é tornar a sociedade mais justa. A despeito de notórios
dissensos e divergências entre investigadores e educadores brasileiros acerca das
funções da educação escolar, há um entendimento comum de que a escola constitui um
meio indispensável de promover a justiça social. As funções sociais da escola, o tipo de
aluno educado a formar, os modos de organização das atividades formativas, dependerão
dos objetivos e critérios de qualidade de ensino que forem propostos conforme teorias e
princípios inscritos nas concepções de pedagogia, educação, currículo e ensino, onde,
aliás, se encontram as fontes dos mencionados dissensos.
Neste texto não se furta a uma tomada de posição pela importância crucial da
escola na busca da justiça social, já que a baixa qualidade de ensino acentua
desigualdades sociais, perpetuando a injustiça social principalmente com os mais pobres.
Em estudo sobre a justiça social na escola brasileira, França e Gonçalves afirmam:
A política de universalização resultou na incorporação de um grande contingente de
crianças que estavam fora da escola. De acordo com Berhman e Birdsall (1983), a
consequência do aumento do número de matriculados é a redução da qualidade escolar. Os
resultados do SAEB e PISA, que visam medir qualidade educacional, captam o movimento
de queda na qualidade devido ao aumento da população de alunos. Todavia, os resultados
vão mais além, pois mostram que os estudantes de ensino fundamental e médio no Brasil
têm uma formação deficiente (vis-à-vis a outros países) e desigual (dentro do mesmo país).
(...) Além do mais, a grande maioria das crianças e jovens de famílias pobres encontram-se
matriculadas no ensino público; a diferença de desempenho entre o sistema privado e
público é um indicador de que o sistema educacional brasileiro traz características de
reprodução das disparidades de recursos já existentes. Mesmo dentro das escolas públicas
e privadas, o nível sócio-econômico da família é refletido no desempenho dos estudantes,
sendo menor à medida que a escola tem uma melhor qualidade (FRANÇA E GONÇALVES,
2008, p.112).

A refuncionalização ou resignificação das funções da escola desde os anos 1980


em âmbito nacional e internacional, surgiu de diferentes intencionalidades ideológicas,
políticas e pedagógicas. Desde esse período, tanto entre intelectuais do campo da
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educação e dirigentes públicos como em documentos de organismos financeiros


internacionais, vem se difundindo a idéia de que o insucesso da escola pública se deve ao
fato de ser “tradicional”, de estar baseada no conteúdo, na exclusão dos menos
favorecidos, na reprovação, no autoritarismo, práticas essas que levariam muitos alunos
ao fracasso escolar ou ao abandono da escola. Contra essa escola, tanto setores
conservadores quanto progressistas advogam novos modelos, novas teorias, novos
objetivos, novos formatos de funcionamento escolar. Com o apoio em premissas
pedagógicas humanistas, concebeu-se, assim, uma escola assentada, antes de tudo, no
respeito às diferenças sociais e culturais, aos diferentes ritmos de aprendizagem, na
flexibilização das práticas de avaliação escolar, tudo em nome da intitulada “educação
inclusiva” 1. Em texto de 2005, Miranda assinala a principal mudança na educação de
massas em decorrência das reformas educativas neoliberais iniciadas por volta de 1980.
Segundo ela:
(...) a escola constituída sob o princípio do conhecimento estaria dando lugar a uma escola
orientada pelo princípio da sociabilidade. O termo “sociabilidade” está sendo adotado aqui
para ressaltar que a escola organizada em ciclos se situa como um tempo/espaço destinado
à convivência dos alunos, à experiência da sociabilidade, distinguindo-se dos conceitos de
socialização e de desenvolvimento da sociabilidade tratados pela sociologia e psicologia
(2005).

Assim, não se trata mais de uma escola baseada no conhecimento, isto é, no


domínio dos conteúdos e na formação das capacidades cognitivas, mas de uma escola
que valoriza formas de organização das relações humanas, nas quais prevalecem
práticas de valores sociais tais como a convivência entre diferentes, o compartilhamento
de culturas, o encontro e a solidariedade entre as pessoas. Nesse tipo de escola, o aluno
não estaria usufruindo do conhecimento e das condições que poderiam promover o seu
desenvolvimento mental, mas sim do espaço “social” que a escola lhe oferece. Desse
modo, escreve aquela autora, quanto mais a escola desvincular-se de sua dependência
com a aquisição de conhecimentos, mais tempo terá para propiciar aos alunos o clima de
convivência e compartilhamento. Antonio Nóvoa pontua com clareza os dois tipos de
escola:
Um dos grandes perigos dos tempos atuais é uma escola a “duas velocidades”: por um lado,
uma escola concebida essencialmente como um centro de acolhimento social, para os
pobres, com uma forte retórica da cidadania e da participação. Por outro lado, uma escola
claramente centrada na aprendizagem e nas tecnologias, destinada a formar os filhos dos
ricos (NÓVOA, 2009).

Em relação ao mesmo tema, em entrevista publicada em 2004, Libâneo afirmava:


Se alguém acredita que a escola deva ser principalmente um espaço de socialização dos
alunos, que seja um lugar de encontro e compartilhamento entre as pessoas, que seja um
lugar para que sejam acolhidos seus ritmos, suas diferenças, suas inclinações pessoais,
então, nesse caso, o sistema de ciclos é ótimo, a flexibilização da avaliação é coerente. É
claro que essas coisas são importantes, mas penso que escola para a democracia e para a
emancipação humana é aquela que, antes de tudo, através dos conhecimentos teóricos e
práticos, propicia as condições do desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos. E
que faça isso para todos os que disponham das competências físicas e intelectuais
requeridas para fazer o percurso escolar. Aprender, então, consiste no desenvolvimento de
capacidades e habilidades de pensamento necessárias para assimilar e utilizar com êxito os
conhecimentos. (...) Sendo assim, a tarefa das escolas fica muita clara, que é assegurar as

1 Há no Brasil pesquisas mostrando que a utilização do sistema de ciclos como formas de correção do fluxo
escolar, ou seja, mantendo uma progressão continuada entre as séries escolares, evita a repetência e isso
produz economia ao sistema educacional. Não é de todo improvável que os sistemas oficiais de ensino de
vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, defendam para a opinião pública a adoção de critérios
pedagógicos humanistas para organização das escolas, quando de fato, o que se pretende é reduzir as
despesas com a educação pública, conforme recomendações do Banco Mundial. Na verdade, as agências
financeiras internacionais entenderam que seria oneroso continuar mantendo padrões da pedagogia
tradicional, que buscariam padrões de exigência difíceis de serem sustentados financeiramente pelo setor
público.
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condições para que a aprendizagem escolar se torne mais eficaz, mais sólida, mais
consolidada, enquanto ferramenta para as pessoas lidarem com a vida (LIBÂNEO, 2004).

A concepção de escola assentada no acolhimento e na integração social está


explícita em documentos orientadores das políticas educacionais para os países pobres
monitoradas pelo Banco Mundial. A tônica desses documentos, sob o véu de uma visão
humanista de redução da pobreza, é a lógica economicista: preparar trabalhadores
empregáveis, flexíveis, adaptáveis, competitivos. No Brasil, essa concepção foi
claramente explicitada no Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003) com base
na Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Tailândia, 1990), e em ações
presentes em sucessivas políticas educacionais desde os anos 1990, passando pelos
Governos FHC e Lula, tais como: correção do fluxo escolar, organização em ciclos,
flexibilização da avaliação, integração da escola de alunos com deficiências, sistema de
avaliação estandardizado. É este o sistema de ensino que vigora há 20 anos, marcando
toda uma geração de alunos e cujos resultados aparecem nos próprios índices de
desempenho do sistema escolar divulgados pelos órgãos oficiais.
A visão de escola voltada para a o desenvolvimento da “sociabilidade”, ou seja,
uma escola em que seu funcionamento se caracteriza por relações sociais assentadas em
formas de integração social, convivência e compartilhamento de práticas solidárias e não
pela ênfase na formação cultural e científica, tem sido compartilhada, também, por uma
parte de intelectuais de orientação sociocrítica em educação. Eis que se fundem projetos
liberais à direita e experiências educacionais sociabilizantes à esquerda, levando ao
empobrecimento cultural e científico da escola. Enquanto isso, Miranda (2005) aponta um
incrível paradoxo: o mesmo sistema educacional que refuncionaliza a organização escolar
para o acolhimento e a integração social, colocando em segundo plano o conhecimento e
a aprendizagem na sala de aula, introduz as avaliações estandardizadas como o SAEB, a
provinha Brasil, o ENEM. Eis que tais instrumentos não visam avaliar níveis de progresso
dos alunos na convivência, na auto-estima, na vivência de práticas sócio-culturais, mas
nos conhecimentos escolares. O sistema produz, assim, formas sub-reptícias de exclusão
social e escolar, pois são os pobres que estarão despreparados para sair-se bem nessas
provas e, desse modo, para disputar vagas no ensino médio, na universidade e no
mercado de trabalho.
Do ponto de vista da concepção histórico-social, defendida aqui, as conseqüências
da adoção dessa concepção de escola baseada meramente no acolhimento e na
integração social, são propiciadoras de exclusão social pela própria escola. Tal como
mostra Charlot (2005), em primeiro lugar, com a desvalorização da formação cultural e
científica e do papel da escola na formação das capacidades cognitivas, há um
ocultamento da dimensão cultural e humana da educação. Em segundo lugar, dissolve-se
a relação entre universalismo e diferença cultural, quer dizer, do direito de ser ao mesmo
tempo diferente culturalmente e semelhante (igual) em termos de dignidade e
reconhecimento humano. Em terceiro lugar, o desprezo ao papel da escola em relação ao
conhecimento faz aumentar as desigualdades sociais do acesso ao saber, ocultando o
efeito nocivo de fatores intra-escolares nas aprendizagens. Eis que, desse modo, são
fabricadas as vítimas preferidas da globalização: os pobres, as minorias étnicas, as
famílias socialmente marginalizadas.
Em relação às políticas educacionais orientadas pelo liberalismo econômico, os
prejuízos ao processo de escolarização são reforçados pela redução das
responsabilidades do Estado em relação à educação (como, também, à saúde e à
assistência social), diminuindo os investimentos públicos e afetando, entre outras coisas,
os salários e a formação profissional dos professores.
Para não ser um dos canais de perpetuação da injustiça social, a escola com
qualidade educativa deve ser aquela que assegura as condições para que todos os
alunos se apropriem dos saberes produzidos historicamente e, através deles, possam
desenvolver-se cognitivamente, afetivamente, moralmente. Desse modo, a escola
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promove a justiça social cumprindo sua tarefa básica de planejar e orientar a atividade de
aprendizagem dos alunos, tornando-se, com isso, uma das mais importantes instâncias
de democratização social e de promoção da inclusão social.
A atividade de aprendizagem pressupõe um conjunto de saberes produzidos na
experiência sócio-histórica da humanidade, denominado pelo pedagogo russo V. Davídov,
de conhecimento teórico-científico2, articulado às disposições individuais e socioculturais
dos alunos (as quais vão constituindo formas de mediação cognitiva). A viabilização
dessa relação se dá por procedimentos pedagógico-didáticos (mediação didática) que
viabilizam o encontro do aluno com os objetos de conhecimento. Há que considerar,
entanto, que as disposições individuais e socioculturais dos alunos referem-se à sua
subjetividade, sendo esta composta de uma cultura subjetiva e uma cultura objetiva, já
que a mente humana se constitui socialmente. Eis que nos encontramos frente a um
aluno com características individuais singulares que são, ao mesmo tempo, sócio-
culturais. Charlot ajuda a compreender três sentidos da educação que não podem ser
dissociados:
É o processo por meio do qual um membro da espécie humana, inacabado, desprovido dos
instintos e capacidades que lhe permitiriam sobreviver rapidamente sozinho, se apropria,
graças à mediação dos adultos, de um patrimônio humano de saberes, práticas, formas
subjetivas, obras. Essa apropriação lhe permite se tornar, ao mesmo tempo e no mesmo
movimento, um ser humano, membro de uma sociedade e de uma comunidade, e um
indivíduo singular, absolutamente original. A educação é, assim, um triplo processo de
humanização, de socialização e de singularização. Esse triplo processo é possível apenas
mediante a apropriação de um patrimônio humano. Isso quer dizer que educação é cultura,
em três sentidos que não podem ser dissociados (2000).

O cumprimento da justiça social por meio da atividade de aprendizagem e do


ensino - conforme a idéia vygotskiana de que a função primordial do ensino é promover e
ampliar o desenvolvimento da capacidade intelectuais, - implica uma relação pessoal
entre o professor e o aluno visando o aprimoramento da mediação cognitiva deste último.
Ao mesmo tempo, como a escola ensina a sujeitos concretos, é preciso que a
aprendizagem de conteúdos e de procedimentos mentais esteja ligada à experiência
sociocultural. O lema que resume este pensamento é a expressão de Gimeno Sacristán:
uma escolarização igual, para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum (2000,
p. 68).
Desse modo, por um lado, acredita-se na universalidade da cultura escolar de
modo que à escola cabe transmitir, a todos, os saberes públicos que apresentam um
valor, independentemente de circunstâncias e interesses particulares, em função da
formação geral. Mas, por outro lado, como a escola lida com sujeitos diferentes, cabe
considerar no ensino a diversidade cultural, a coexistência das diferenças, a interação
entre indivíduos de identidades culturais distintas. Eis, portanto, quatro ingredientes
absolutamente imprescindíveis para que o ensino esteja à altura dessa missão da escola:
a) os conteúdos; b) o desenvolvimento das capacidades intelectuais; c) as características
individuais e sociais do aluno; d) os fatores socioculturais e institucionais da
aprendizagem.
3. A introdução da problemática da cultura no campo do ensino. O
multiculturalismo e a interculturalidade
Após a crítica à idéia de escola incorporada pelo sistema de ensino brasileiro e por
segmentos de educadores, os leitores poderão perguntar: trata-se, então, de voltar à
escola tradicional, à escola dos conteúdos? Trata-se de defender a reprovação, as provas

2 No quadro conceitual de Davídov, este conjunto é chamado de “conhecimento teórico” ou “conhecimento


teórico-científico”. Para mais além do sentido comum de “teórico” como o saber especulativo, esse autor
considera conhecimento teórico, ao mesmo tempo, como produto do desenvolvimento histórico e processo
mental. Conhecimento teórico refere-se, então, a categorias mentais que tornam possível lidar com os objetos
de conhecimento da realidade, ou seja, um procedimento lógico da mente, conceitos gerais possíveis de
serem aplicados a situações particulares.
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de avaliação, ao invés da promoção automática? E onde fica a subjetividade dos alunos,


as necessidades e ritmos psicológicos individuais? Onde fica o respeito às diferenças
sociais e culturais, a consideração da experiência social dos alunos, a rede de saberes
em que os alunos estão inseridos em sua vida cotidiana?
A posição a ser defendida aqui é de que não deve haver incompatibilidade entre a
formação cultural e científica que visa o desenvolvimento das capacidades intelectuais e a
consideração do conhecimento cotidiano dos alunos e dos fatores socioculturais na
aprendizagem.
Desde o início dos anos 1990, no Brasil e na América Latina, cresceu a
importância dos componentes culturais no mundo contemporâneo. A cultura passou a ser
considerada não apenas como formas de expressão da vida em sociedade e um
subproduto da estrutura social, mas como um campo de atuação humana, um espaço que
constitui realidades, um espaço de lutas. Com isto, a problemática cultural e seus
elementos como as diferenças de classe social, étnicas, de linguagem, políticas, físicas,
sexuais, as relações desiguais de poder, o conhecimento cotidiano dos alunos, as redes
de saberes, as diversas práticas institucionais em que os alunos crescem e se
desenvolvem, passaram a ser integrados nos modos de compreender a dinâmica da
escola. É precisamente isso que tem sido chamado de multiculturalismo – ou seja, a
expressão dessas realidades culturais – e interculturalidade, que é a análise dessa
problemática na educação e a busca de formas de intervenção propositiva na realidade
multicultural (CANDAU, 2005).
Mas, uma vez reconhecida a relevância da problemática multicultural na escola,
foram surgindo entre intelectuais, dirigentes de órgãos públicos, políticos, educadores,
proposições muito diferentes para os objetivos e as formas de funcionamento da escola.
Para ficarmos apenas no campo das perspectivas sóciocríticas, pode-se delimitar duas
delas. A primeira atribui prevalência à formação cultural e científica, em que se valoriza o
domínio pelos alunos dos saberes sistematizados como base para o desenvolvimento das
capacidades cognitivas e a formação da personalidade, por meio da atividade de
aprendizagem socialmente mediada. Essa proposta, por outro lado, entende que se
ensina a alunos concretos, então, é necessário vincular os conteúdos e os processos de
formação da personalidade às experiências socioculturais dos alunos3. A segunda
valoriza a formação por meio de experiências socioculturais vividas em situações
educativas (cultivo da diversidade, práticas de compartilhamento de diferentes valores e
de solidariedade, atividades sobre problemas da vida cotidiana, etc.). No limite, o centro
do currículo são os conhecimentos locais, a vida cotidiana dos alunos, os saberes e
experiências da comunidade, etc..4 Vê-se que o foco dessa proposta está mais na prática
social que acontece em contextos mais imediatos, ou seja, em características culturais
mais localizadas, e menos na cultura acumulada, nos saberes sistematizados ou na
prática propriamente pedagógica, que identifica a primeira posição.

3 As posições de Vigotsky e seguidores atribuem peso considerável aos conteúdos no processo de


escolarização. Mas aqui, a valorização dos conteúdos (que também é uma característica forte da pedagogia
tradicional) não leva a um currículo monocultural. Na teoria histórico-cultural há, de fato, a ideia de que os
seres humanos se tornam humanos pela interiorização da cultura social, enquanto expressão da atividade
humana. Mas Vygotsky põe em evidência o papel do aluno nessa interiorização e, além disso, na
aprendizagem compartilhada, na interlocução com parceiros - o outro como parceiro imprescindível para a
aprendizagem, razão pela qual é ressaltado o papel das práticas socioculturais na aprendizagem.

4Este posicionamento sobre funções da escola é bastante próximo às concepções de John Dewey para quem
a escola é um prolongamento simplificado e organizado das atividades cotidianas, sociais. Também é certo
que Paulo Freire deu uma expressiva contribuição a esta posição. Hoje, temos várias formulações originadas
no pensamento pós-moderno como os estudos culturais de inspiração pós-estruturalista, a teoria curricular
crítica, a concepção do conhecimento em rede, entre outras.
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As duas posições representam uma evidente polarização entre o universalismo e o


relativismo, o primeiro referindo-se à existência de uma cultura universal e de valores
universais, o segundo ao pluralismo das culturas e às diferenças entre as pessoas. No
entanto, muitos educadores se perguntam sobre a possibilidade de uma solução
pedagógica que viesse reunir essas duas posições. Em outras palavras, defender a
imprescindibilidade dos conteúdos como referência para o desenvolvimento das
capacidades intelectuais dos alunos leva a rejeitar o papel das culturas particulares, das
diferenças socioculturais? Será possível conciliar a posição relativista, em que os valores
e práticas são produtos socioculturais, portanto, resultantes do modo de pensar e agir de
grupos sociais particulares, com a exigência "social" de prover a formação geral,
acessível a todos, independentemente de contextos particulares? Seria pedagogicamente
viável prover os alunos dos conteúdos científicos sem deslegitimar os discursos dos
alunos a partir de seus contextos de vida?
Minha posição em relação a essas perguntas situa-se para além da polarização,
visando superá-la, com base na proposição de Gimeno Sacristán: uma escolarização
igual, para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum. Por um lado, trata-se de
assegurar o direito à semelhança, vale dizer, à igualdade, pelo provimento da formação
cultural e científica, isto é, o domínio do saber sistematizado como suporte para o
desenvolvimento das capacidades intelectuais. Por outro, trata-se de considerar a
diferença, pois a formação cultural e científica se destina a sujeitos diferentes. A diferença
aqui é encarada não como uma excepcionalidade, mas como condição concreta do ser
humano e das situações educativas, ponto de partida para uma aprendizagem com
sentido para o sujeito que aprende.
Boaventura Santos escreve que a desigualdade material está profundamente
entrelaçada com a desigualdade não material, ou seja, as desigualdades sociais e
diferenças possuem íntima relação com o acesso ou não ao conhecimento. São
desigualdades de natureza educativa, de capacidade representacional, de capacidade de
comunicar-se e expressar-se, desigualdade de oportunidades, de capacidade para
organização, participação social e tomada de decisões (SANTOS, 1997). Para ser mais
justa e democrática, a sociedade contemporânea clama, entre outras causas, por
processos de ensino que ajudem os alunos no seu desenvolvimento, cultural, científico,
ético e afetivo. A aprendizagem escolar deve ser um fator de ampliação das capacidades
dos alunos de promover mudanças, em si e nas condições objetivas em que vivem,
fundamentando-se na ética da justiça social. Para isso, trata-se de articular a formação
cultural e científica com as práticas socioculturais (diferenças, valores, redes de
conhecimento, etc.) de modo a promover interfaces pedagógico-didáticas entre o
conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano. O modo de
se trabalhar com esta idéia na sala de aula será apresentado a seguir.
4. Os elementos constitutivos do trabalho didático na investigação recente da
didática
Na tradição da investigação pedagógica, a didática tem sido vista como um
conhecimento relacionado com os processos de ensino e aprendizagem que ocorrem em
ambientes organizados de relação e comunicação intencional, visando a formação dos
alunos. Segundo Karl Stocker, pedagogo alemão (1964), “o processo didático (...) tem seu
centro no encontro formativo do aluno com a matéria de ensino”. Desse modo, o
entendimento atual em boa parte das teorias do campo científico da didática é ver o
ensino como atividade de mediação para promover o encontro formativo, educativo, entre
o aluno e a matéria de ensino, para cuja compreensão se juntam as teorias do ensino, as
teorias do conhecimento, as ciências auxiliares da educação, como a sociologia e a
psicologia, e a epistemologia das disciplinas ensinadas.
Com que categorias lida a didática? Quais são os elementos constitutivos do ato
didático? A análise do ato didático destaca uma relação dinâmica entre três elementos -
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professor, aluno, matéria - a partir dos quais são feitas as clássicas perguntas: O que
ensinar? Para que ensinar? Quem ensina? Para quem se ensina? Como se ensina? Sob
que condições se ensina? (LIBÂNEO, 1994).
Estas perguntas definem as categorias ou os elementos constitutivos da didática
que, por sua vez, formam a base do seu conteúdo. Obviamente, o significado de cada um
desses elementos e as relações que existem entre eles decorrem de concepções
filosóficas, epistemológicas e pedagógicas.
“O que ensinar” remete à seleção e organização dos conteúdos, decorrentes de
exigências sociais, culturais, políticas, éticas, ação essa intimamente ligada aos objetivos,
gerais ou específicos, que expressam a dimensão de intencionalidade da ação docente,
ou seja, as intenções sociais e políticas do ensino. A seleção dos conteúdos implica, ao
menos, os conceitos básicos das matérias e respectivos métodos de investigação, a
adequação às idades e ao nível de desenvolvimento mental dos alunos, aos processos
internos de assimilação, aos processos comunicativos na sala de aula, aos significados
sociais dos conhecimentos.
O professor põe-se como mediador entre o aluno e os objetos de estudo, enquanto
os alunos estabelecem com o conhecimento uma relação de estudo. A par disso,
professores e alunos estão implicados numa relação social que se materializa na sala de
aula mas, também, na dinâmica das relações internas que ocorre na escola em suas
práticas organizativas.
O “como ensinar” e as “condições de ensino e aprendizagem” correspondem aos
métodos e formas de organização do ensino, em estreita relação com objetivos e
conteúdos, estando presentes, também, no processo de constituição dos objetos de
conhecimentos. As condições das ações didáticas dizem respeito, no geral, às condições
concretas de ensino e de aprendizagem que incidem no processo de ensino-
aprendizagem. Mais especificamente, referem-se às políticas educacionais e diretrizes
normativas para o ensino; às práticas socioculturais, familiares, locais; ao funcionamento
da escola como as práticas de organização e gestão, o espaço físico, o clima
organizacional, os meios e recursos didáticos, o currículo, os tempos e espaços; às
condições pessoais e profissionais dos professores; às características individuais e
socioculturais dos alunos, às disposições internas para estudo e acompanhamento das
atividades didáticas, necessidades sociais e aprendizagem; ao relacionamento entre
professor e alunos, alunos e colegas.
Verifica-se que, a partir dos elementos constitutivos do ato didático, há uma
intensa articulação com outros campos científicos tais como a teoria do conhecimento, a
psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, a sociologia, a pesquisa cultural, etc.,
visando à compreensão do fenômeno ensino. Desse modo, a didática se assume como
disciplina de integração, articulando numa teoria geral de ensino as várias ciências da
educação e compondo-se com as metodologias específicas das disciplinas curriculares.
Ou seja, combina-se o que é geral, elementar, básico, para o ensino de todas as matérias
com o que é específico das distintas metodologias, em estreito vínculo com a teoria do
conhecimento, a psicologia aplicada ao ensino e a sociologia das situações escolares e
dos contextos socioculturais.
Para que um professor transforme as bases da ciência em que é especialista, em
matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa matéria para a formação da
personalidade do aluno, é preciso que ele tenha, pelo menos: a) formação na matéria que
leciona; b) formação pedagógico-didática na qual se ligam os princípios gerais que regem
as relações entre o ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino de
determinada matéria, aspecto também denominado “conhecimento pedagógico do
conteúdo”; c) o conhecimento das características individuais e sociais dos alunos; d) o
conhecimento das práticas socioculturais e institucionais e suas formas de atuação na
aprendizagem.
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Como ato de mediação, o ensino visa assegurar os meios e as condições para que
ocorra o encontro formativo - afetivo, cognitivo, ético, estético - entre o aluno e o objeto de
conhecimento, ou seja, a confrontação ativa, cognitiva e afetiva, do aluno com a matéria.
O trabalho do professor consiste em fazer a mediação entre os aspectos externos e os
aspectos internos da educação e do ensino. Para Danílov:
(No ensino), “a experiência social em toda sua multilateralidade e complexidade se
transforma em conhecimentos, habilidades e hábitos do educando, em idéias e qualidades
do homem em formação, em seu desenvolvimento intelectual, ideológico e cultura geral”
(DANÍLOV, 1984, p.26).

Tudo o que se espera, com base nos elementos constitutivos mencionados, é a


consecução da aprendizagem dos alunos. Autores pertencentes à tradição da teoria
histórico-cultural mostram a mediação didática como sendo a forma de ativação do
processo de aprendizagem. Klingberg, por exemplo, escreveu que o caráter científico do
ensino é dado pela condução do processo de ensino com base no conhecimento das leis
que governam o processo de conhecimento. Segundo ele:
O processo docente do conhecimento - embora somente em alguns casos se descubra o
novo de forma objetiva – é um insubstituível campo de exercício para o desenvolvimento
das forças cognoscitivas dos alunos, para sua curiosidade, sua alegria pela investigação e
as descobertas, sua capacidade de poder perguntar, de ver problemas e chegar
metodicamente à sua solução (1972, p. 47).

Na mesma direção segue o didata alemão Lompscher (1999), para quem a


organização didática visa a promover a atividade de aprendizagem dos alunos: “A
organização didática dos processos de aprendizagem (...) deve ser orientada em direção
à atividade dos alunos”. Desse modo, a efetividade do ensino, portanto, se revela ao
assegurar as condições e os modos de viabilizar o processo de conhecimento pelo aluno,
ou seja, a aprendizagem.
Yves Lenoir reconhece, na relação educativa escolar, a existência de dois
processos de mediação: “aquele que liga o sujeito aprendiz ao objeto de conhecimento
(relação S – O), chamado de mediação cognitiva, e aquele que liga o formador professor
a esta relação S – O, chamado de mediação didática” (cf. Lenoir, 1999, p.29). Sobre isso,
escreve D´Ávila:
A relação com o saber é, portanto, duplamente mediatizada: uma mediação de ordem
cognitiva (onde o desejo desejado é reconhecido pelo outro) e outra de natureza didática
que torna o saber desejável ao sujeito. É aqui que as condições pedagógicas e didáticas
ganham contornos, no sentido de garantir as possibilidades de acesso ao saber por parte do
aprendiz educando (2008, p. 31).

Esse entendimento da relação entre a mediação didática e a mediação cognitiva


parece-nos compatível com a posição de Vygotsky dentro da teoria histórico-cultural. A
aprendizagem humana se caracteriza como mudanças qualitativas na relação entre a
pessoa e o mundo, pela mediação de instrumentos ou ferramentas culturais envolvendo a
interação entre pessoas. Dito de outra maneira, o desenvolvimento das funções mentais
superiores supõe a internalização de ferramentas culturais/formas culturais de
comportamento, já desenvolvidas na sociedade, por meio da linguagem. Para Vygotsky,
“todas as funções mentais superiores são relações sociais internalizadas” (1983, p. 151),
tal como esclarece Smolka:
Vygotsky aponta a possibilidade de se considerar o desenvolvimento mental como um
processo de apropriação e elaboração da cultura, no sentido de que as funções psicológicas
superiores são transformações internalizadas de modos sociais de interação, incluindo
artefatos culturais (instrumentos técnicos) e formas de ação e signos (instrumentos
psicológicos) (SMOLKA, 2001, p. 54).

O processo de ensino e aprendizagem assegura esse processo em que o ensino


medeia as condições de internalização de ferramentas culturais existentes na cultura e
nas práticas sociais (interação social no cotidiano, nas comunidades, nas práticas
institucionais). Pela aprendizagem, práticas sociais se convertem em funções mentais no
10

indivíduo, produzindo mudanças qualitativas no seu modo de ser e de agir, ou seja,


atuando no desenvolvimento humano. Assim, aprendizagem, na teoria histórico-cultural,
pode ser definida como processos de mudanças qualitativas mais ou menos estáveis na
personalidade, efetivados pela internalização de significados sociais, especialmente
saberes científicos, procedimentais e valorativos, por mediações culturais e interações
sociais entre o aprendiz e outros parceiros, que promovem o desenvolvimento cognitivo,
afetivo e moral dos indivíduos.
O papel do ensino é, precisamente, promover o desenvolvimento mental por meio
da aprendizagem, convertendo a aprendizagem em desenvolvimento. Tem-se, assim, a
subordinação da mediação didática à mediação cognitiva – a serviço da qual está o
processo de aprendizagem e ensino - um processo de objetivação do real que se dá na
relação entre sujeito(s) e objeto(s), num contexto espaço-temporal determinado. A
mediação didática consiste, assim, em estabelecer as condições ideais à ativação do
processo de aprendizagem, ou seja, assegurar as melhores condições possíveis de
transformação das relações que o aprendiz mantém com o saber. Em síntese, a didática é
a sistematização de conhecimentos e práticas referentes aos fundamentos, condições e
modos de realização do ensino e da aprendizagem dos conteúdos, habilidades, valores,
visando o desenvolvimento das capacidades mentais e a formação da personalidade dos
alunos. Nessa definição, a didática é inseparável das metodologias específicas de ensino
das matérias.
A didática e as didáticas específicas formam uma unidade, uma vez que o objeto
de estudo de ambas é a mediação das aprendizagens ou as relações entre a
aprendizagem e o ensino. Ressalte-se, além disso, que a didática e as didáticas
especificas estão, necessariamente, vinculadas aos conteúdos específicos das disciplinas
ensinadas, razão pela qual devem ser considerados como a referência para a
organização dos conhecimentos e práticas dessas disciplinas. Nesse sentido, ganha
realce o entendimento de alguns didatas franceses para quem a didática é o estudo dos
processos de ensino e aprendizagem em sua relação imediata com os conteúdos dos
saberes a ensinar, a organização das situações didáticas e a escolha e os meios de
ensino (LIBÂNEO, 2010). Assim entendidas, a didática e as didáticas específicas tornam-
se os saberes mais relevantes da formação profissional de professores.
O conceito de mediação, tal como entendido aqui, possibilita a articulação entre os
elementos constitutivos do ensino. Se o aspecto definidor da didática é a mediação da
mediação cognitiva, ou seja, mediação das relações do aluno com os objetos de
conhecimento, então, o conceito de referência da didática é a mediação das relações
entre ensino e aprendizagem voltadas para o desenvolvimento humano. O trabalho dos
professores é o ensino visando a aprendizagem, ou seja, promover mudanças qualitativas
no desenvolvimento mental do aluno. O professor realiza plenamente seu trabalho
quando ajuda o aluno a adquirir capacidades para novas operações mentais e a operar
mudanças qualitativas em sua personalidade.
Portanto, o problema pedagógico-didático diz respeito às formas pelas quais
práticas sociais formam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos sendo
que os resultados social, pedagógico, cultural, da escola, expressam-se nas
aprendizagens efetivamente consumadas. Escola e ensino existem para promover e
ampliar o desenvolvimento das capacidades cognitivas e a formação da personalidade.
Formar capacidades cognitivas é formar o pensamento teórico-científico por meio de
abstrações e generalizações, que levam às categorias e aos conceitos, que são
procedimentos mentais para nos relacionarmos com o mundo. Desse modo, a atividade
pedagógica somente é pedagógica se ela mobiliza as ações mentais dos sujeitos, visando
a ampliação de suas capacidades cognitivas e a formação de sua personalidade global.
Essa formação de ações mentais ou novos usos de uma ação mental requer, por parte
dos alunos, uma atividade reflexiva e, da parte dos professores, a mediação didática,
precisamente a intervenção intencional na formação de processos mentais do aluno.
11

A formação dos processos mentais pelos conteúdos e o contexto sociocultural e


institucional da aprendizagem
Mencionamos anteriormente que a aprendizagem é uma mudança nas relações
entre a pessoa e o mundo, por meio de relações intencionais entre sujeito(s) e objeto(s)
de conhecimento, num contexto espacio-temporal determinado. Vejamos, agora, a
relação entre o ensino e os contextos socioculturais e institucionais, uma vez que estes
contextos, na tradição da teoria histórico-cultural, figuram entre os princípios gerais de
aprendizagem. Seguirei, neste tópico, boa parte das idéias de Marianne Hedegaard
(2004, 2005).
Para essa autora, seguindo a tradição de Vygotsky, a interação entre indivíduos
em práticas socioculturais e institucionais desempenha papel fundamental na formação de
instrumentos psicológicos, já que o ser humano interioriza formas culturalmente
estabelecidas de funcionamento psicológico. Ou seja, as práticas socioculturais e
institucionais que crianças e jovens compartilham na família, na comunidade e nas várias
instâncias da vida cotidiana são, também, determinantes na formação de competências,
na apropriação do conhecimento e na identidade pessoal, sendo que elas são
caracterizadas na escola tanto como contexto da aprendizagem quanto como conteúdo
(HEDEGAARD, 2004, p.25). Isto quer dizer que o desenvolvimento do pensamento de um
aluno, que ocorre no processo de apropriação dos conteúdos científicos, precisa estar
articulado com as formas de conhecimento cotidiano das quais ele participa na família, na
escola ou na comunidade local. Escreve Hedegaard:
Ao considerar as práticas como importantes para a compreensão do uso de ferramentas,
isto implica que a aprendizagem seja conceitualizada dentro de um contexto em que as
tradições e práticas devem ser vistas como parte das condições de aprendizagem. (...)
Diferenças nas práticas em diferentes instituições dão à criança diferentes competências e a
competência da criança é avaliada de forma diferente em diferentes instituições, porque tais
práticas fazem diferentes exigências para a criança (Ib. p.26).

Há, pois, uma relação entre o desempenho escolar e as práticas das quais ela
participa. Desse modo, a aprendizagem ou problemas de aprendizagem são criados na
interação entre a criança e as tradições culturais realizadas na prática situada em uma
dada instituição, com determinadas crianças. Considerando, por exemplo, as práticas
escolares, as crianças tanto se apropriam de experiências socio-históricas acumuladas
como contribuem para elas, tanto emocionalmente como cognitivamente (p.29).
Há que considerar, no entanto, que atividades com artefatos e procedimentos
mediados por práticas sociais, são muito diferentes conforme se dêem na escola, em
casa, na creche, no ensino superior, na educação profissional, etc. Em razão disso, é
preciso diferenciar distintas modalidades de aprendizagem nestas diferentes instituições,
pois em cada uma tem um tipo de conhecimento e de métodos de aprendizagem. Gimeno
Sacristán reforça essa idéia de Hedegaard:
Nas sociedades complexas, as clássicas funções da escolarização encontram-se
distribuídas entre diferentes espaços vitais, a cargo de mecanismos de influência
diversificados, e acontecem no interior de várias instituições. (...) As escolas se centrarão
mais em algumas responsabilidades do que a outras, conforme circunstâncias e
necessidades de cada sociedade. Esses campos de ação mais próprios deveriam ser
aqueles que menos oportunidades tenham de ser desenvolvidos por outros agentes
socializadores de forma controlada e reflexiva. O cultivo da leitura e escrita, por exemplo, ou
o proporcionar uma visão científica do mundo, é papel das escolas fazê-los sendo pouco
provável que outros agentes o façam nas condições e meios com os quais podem fazê-los
(2000, p. 100).

Ou seja, crianças e jovens estão na escola para adquirir competências para a vida
adulta, como ler e escrever, contar, etc., de modo que o papel da escola é integrar os
conceitos científicos com os conceitos cotidianos trazidos de casa e do meio social,
elevando os conceitos cotidianos a um patamar mais elevado de desenvolvimento
cognitivo. Hedegaard designa essas relações de “duplo movimento” do ensino:
12

Na abordagem do duplo movimento, enfatizamos as relações entre conceitos cotidianos já


adquiridos pelas crianças, conceitos da matéria e conhecimento local. O principal ponto do
duplo movimento no ensino é criar tarefas de aprendizagem que podem integrar o
conhecimento local com relações conceituais nucleares de uma matéria, de modo que o
aluno possa adquirir o conhecimento teórico a ser utilizado em suas práticas locais. (...) Na
abordagem do duplo movimento, o plano de ensino do professor deve avançar de
características abstratas e leis gerais de um conteúdo para a realidade concreta, em toda a
sua complexidade. Inversamente, a aprendizagem dos alunos deve ampliar-se de seu
conhecimento pessoal cotidiano para as leis gerais e conceitos abstratos de um conteúdo
(HEDEGAARD, 2005, pp. 69-70).

A autora amplia essa idéia mostrando que o ensino, cuja referência é o


conhecimento teórico-científico (no sentido de procedimentos de pensamento), ajuda o
aluno a organizar suas experiências e conceitos em torno de um conceito nuclear e,
desse modo, vão adquirindo “ferramentas mentais” para analisar e compreender a
complexidade do mundo ao seu redor, tornando funcionais na vida cotidiana das pessoas
os conceitos formais abstratos. É o conhecimento teórico-científico e os procedimentos
mentais que abrem para essa possibilidade.
Considerações finais
As apostas em favor da escola para todos devem ter como referência um
entendimento muito explícito de que o trabalho pedagógico pressupõe intencionalidades
políticas, éticas, didáticas, em relação às qualidades humanas, sociais, cognitivas, a
serem formadas pelos alunos. Face aos clássicos temas da didática como a relação
conteúdo e forma, a ênfase ora nos aspectos materiais ora nos aspectos formais do
ensino, entre a formação cultural e científica e a experiência sociocultural dos alunos,
cabe, mesmo em tempos de mudança, a aposta na universalidade da cultura escolar, no
sentido de que cabe à escola transmitir a todos, saberes públicos que apresentam um
valor, independentemente de circunstâncias e interesses particulares, em função da
formação geral. Mas, junto a isso, permeando os conteúdos cabe, também, considerar a
diversidade cultural, a coexistência das diferenças, a interação entre indivíduos de
identidades culturais distintas.
Trata-se, assim, de uma didática crítica atravessada pela perspectiva intercultural
em que se articulam, num mesmo processo, o universalismo e relativismo. A unidade
entre a formação cultural e científica e as práticas interculturais requer dos professores
não apenas uma atitude humanista aberta à diferença mas, principalmente, a
incorporação dessa relação no cerne tanto das práticas de organização e gestão da
escola e da sala de aula como na própria metodologia de ensino.
Dessa forma, a função da escola e do ensino é a de promover e ampliar o
desenvolvimento mental, de formação do pensamento e de formação moral, visando a
formação da personalidade global. Formar a personalidade significa considerar fortemente
os motivos dos alunos. Na prática significa que, ao lidar com os conteúdos, o professor
também deve remeter-se aos motivos, ou seja: a) considerar as diferenças socioculturais
entre os alunos, as identidades pessoais, o pertencimento a culturas específicas; b)
preocupar-se com a formação de motivos éticos e sociais, entre eles, por exemplo, a
formação para o respeito à diferença, para o compartilhamento, hibridismo cultural, etc.
Trata-se de estabelecer um patamar básico de formação em relação aos
conhecimentos científicos e a procedimentos de pensamento conectados a praticas
socioculturais da aprendizagem, necessário para a inclusão social e cultural, como
requisito indispensável para assegurar a democracia e a igualdade de direitos para todos
os membros da sociedade. Para a didática, a questão crucial é saber como, nas
interações pedagógico-didáticas, ligar o conhecimento teórico-científico aos contextos
particulares dos alunos, ou seja: a) como organizar o conteúdo de modo a, por meio
deles, desenvolver capacidades intelectuais; b) como usar o conhecimento teórico-
13

científico para analisar contextos concretos; c) como relacionar o conhecimento teórico-


científico aos contextos locais em que ocorrem as interações pedagógico-didáticas.
Por fim, continua de pé a idéia de que a escola é o melhor lugar e o melhor
caminho para a luta política pela igualdade e inclusão social. Não é possível democracia
econômica, social, política, intelectual, sem a escolarização. Praticar justiça social hoje na
escola é essencialmente assegurar a cada aluno a qualidade cognitiva e operativa dos
processos de aprendizagem. A referência principal de qualidade das escolas é o que os
alunos aprendem, como aprendem, em que grau são capazes de pensar e agir com o que
aprendem.
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