Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. Situando o problema
O campo teórico e investigativo da didática convive hoje com tensões entre a
exigência social e democrática de provimento de escolarização formal a todas as crianças
e jovens e a necessidade de as escolas e professores levarem em conta, no ensino, a
diversidade social e cultural expressa pelas diferenças individuais e sociais entre os
alunos, em boa parte decorrentes das práticas sociais e culturais em que vivem. Dado
que as escolas têm a responsabilidade social de possibilitar a todos os alunos o acesso
ao conhecimento sistematizado e ao desenvolvimento de capacidades intelectuais
considerando, ao mesmo tempo, suas necessidades individuais e sociais enquanto
imersos em contextos socioculturais e institucionais, a investigação em didática precisa
assumir o encargo de discutir o papel das práticas socioculturais e institucionais no ensino
e aprendizagem. Para isso será preciso saber como a apropriação dos conceitos teóricos
da matéria pelos alunos pode tornar-se relevante para a análise das condições de sua
vida cotidiana e dos modos de atuação na vida social mais ampla.
Num entendimento mais geral, justiça social significa a busca pela sociedade do
bem social comum, reservando-se um papel específico ao estado. Mais especificamente,
a justiça social supõe a igualdade de direitos em situações de desigualdade social,
implicando justa distribuição da renda e oportunidades de acesso aos bens materiais e
culturais. Rouanet (2002) cita dois princípios formulados pelo filósofo liberal John Rawls:
Primeiro, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades
básicas iguais (...). Segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas
de tal modo que sejam, ao mesmo tempo, a) consideradas vantajosas para todos dentro dos
limites do razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.
(*) Texto publicado como capítulo II do livro: SANTOS, Akiko, SUANNO, João H. e SUANNO, Marilza V.R.
(Orgs.). Didática e formação de professores: complexidade e transdisciplinaridade. Porto Alegre: Sulina, 2013.
2
Portanto, nada mais importante hoje, na área da educação, do que declarar que a
função das políticas de educação é tornar a sociedade mais justa. A despeito de notórios
dissensos e divergências entre investigadores e educadores brasileiros acerca das
funções da educação escolar, há um entendimento comum de que a escola constitui um
meio indispensável de promover a justiça social. As funções sociais da escola, o tipo de
aluno educado a formar, os modos de organização das atividades formativas, dependerão
dos objetivos e critérios de qualidade de ensino que forem propostos conforme teorias e
princípios inscritos nas concepções de pedagogia, educação, currículo e ensino, onde,
aliás, se encontram as fontes dos mencionados dissensos.
Neste texto não se furta a uma tomada de posição pela importância crucial da
escola na busca da justiça social, já que a baixa qualidade de ensino acentua
desigualdades sociais, perpetuando a injustiça social principalmente com os mais pobres.
Em estudo sobre a justiça social na escola brasileira, França e Gonçalves afirmam:
A política de universalização resultou na incorporação de um grande contingente de
crianças que estavam fora da escola. De acordo com Berhman e Birdsall (1983), a
consequência do aumento do número de matriculados é a redução da qualidade escolar. Os
resultados do SAEB e PISA, que visam medir qualidade educacional, captam o movimento
de queda na qualidade devido ao aumento da população de alunos. Todavia, os resultados
vão mais além, pois mostram que os estudantes de ensino fundamental e médio no Brasil
têm uma formação deficiente (vis-à-vis a outros países) e desigual (dentro do mesmo país).
(...) Além do mais, a grande maioria das crianças e jovens de famílias pobres encontram-se
matriculadas no ensino público; a diferença de desempenho entre o sistema privado e
público é um indicador de que o sistema educacional brasileiro traz características de
reprodução das disparidades de recursos já existentes. Mesmo dentro das escolas públicas
e privadas, o nível sócio-econômico da família é refletido no desempenho dos estudantes,
sendo menor à medida que a escola tem uma melhor qualidade (FRANÇA E GONÇALVES,
2008, p.112).
1 Há no Brasil pesquisas mostrando que a utilização do sistema de ciclos como formas de correção do fluxo
escolar, ou seja, mantendo uma progressão continuada entre as séries escolares, evita a repetência e isso
produz economia ao sistema educacional. Não é de todo improvável que os sistemas oficiais de ensino de
vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, defendam para a opinião pública a adoção de critérios
pedagógicos humanistas para organização das escolas, quando de fato, o que se pretende é reduzir as
despesas com a educação pública, conforme recomendações do Banco Mundial. Na verdade, as agências
financeiras internacionais entenderam que seria oneroso continuar mantendo padrões da pedagogia
tradicional, que buscariam padrões de exigência difíceis de serem sustentados financeiramente pelo setor
público.
4
condições para que a aprendizagem escolar se torne mais eficaz, mais sólida, mais
consolidada, enquanto ferramenta para as pessoas lidarem com a vida (LIBÂNEO, 2004).
promove a justiça social cumprindo sua tarefa básica de planejar e orientar a atividade de
aprendizagem dos alunos, tornando-se, com isso, uma das mais importantes instâncias
de democratização social e de promoção da inclusão social.
A atividade de aprendizagem pressupõe um conjunto de saberes produzidos na
experiência sócio-histórica da humanidade, denominado pelo pedagogo russo V. Davídov,
de conhecimento teórico-científico2, articulado às disposições individuais e socioculturais
dos alunos (as quais vão constituindo formas de mediação cognitiva). A viabilização
dessa relação se dá por procedimentos pedagógico-didáticos (mediação didática) que
viabilizam o encontro do aluno com os objetos de conhecimento. Há que considerar,
entanto, que as disposições individuais e socioculturais dos alunos referem-se à sua
subjetividade, sendo esta composta de uma cultura subjetiva e uma cultura objetiva, já
que a mente humana se constitui socialmente. Eis que nos encontramos frente a um
aluno com características individuais singulares que são, ao mesmo tempo, sócio-
culturais. Charlot ajuda a compreender três sentidos da educação que não podem ser
dissociados:
É o processo por meio do qual um membro da espécie humana, inacabado, desprovido dos
instintos e capacidades que lhe permitiriam sobreviver rapidamente sozinho, se apropria,
graças à mediação dos adultos, de um patrimônio humano de saberes, práticas, formas
subjetivas, obras. Essa apropriação lhe permite se tornar, ao mesmo tempo e no mesmo
movimento, um ser humano, membro de uma sociedade e de uma comunidade, e um
indivíduo singular, absolutamente original. A educação é, assim, um triplo processo de
humanização, de socialização e de singularização. Esse triplo processo é possível apenas
mediante a apropriação de um patrimônio humano. Isso quer dizer que educação é cultura,
em três sentidos que não podem ser dissociados (2000).
4Este posicionamento sobre funções da escola é bastante próximo às concepções de John Dewey para quem
a escola é um prolongamento simplificado e organizado das atividades cotidianas, sociais. Também é certo
que Paulo Freire deu uma expressiva contribuição a esta posição. Hoje, temos várias formulações originadas
no pensamento pós-moderno como os estudos culturais de inspiração pós-estruturalista, a teoria curricular
crítica, a concepção do conhecimento em rede, entre outras.
7
professor, aluno, matéria - a partir dos quais são feitas as clássicas perguntas: O que
ensinar? Para que ensinar? Quem ensina? Para quem se ensina? Como se ensina? Sob
que condições se ensina? (LIBÂNEO, 1994).
Estas perguntas definem as categorias ou os elementos constitutivos da didática
que, por sua vez, formam a base do seu conteúdo. Obviamente, o significado de cada um
desses elementos e as relações que existem entre eles decorrem de concepções
filosóficas, epistemológicas e pedagógicas.
“O que ensinar” remete à seleção e organização dos conteúdos, decorrentes de
exigências sociais, culturais, políticas, éticas, ação essa intimamente ligada aos objetivos,
gerais ou específicos, que expressam a dimensão de intencionalidade da ação docente,
ou seja, as intenções sociais e políticas do ensino. A seleção dos conteúdos implica, ao
menos, os conceitos básicos das matérias e respectivos métodos de investigação, a
adequação às idades e ao nível de desenvolvimento mental dos alunos, aos processos
internos de assimilação, aos processos comunicativos na sala de aula, aos significados
sociais dos conhecimentos.
O professor põe-se como mediador entre o aluno e os objetos de estudo, enquanto
os alunos estabelecem com o conhecimento uma relação de estudo. A par disso,
professores e alunos estão implicados numa relação social que se materializa na sala de
aula mas, também, na dinâmica das relações internas que ocorre na escola em suas
práticas organizativas.
O “como ensinar” e as “condições de ensino e aprendizagem” correspondem aos
métodos e formas de organização do ensino, em estreita relação com objetivos e
conteúdos, estando presentes, também, no processo de constituição dos objetos de
conhecimentos. As condições das ações didáticas dizem respeito, no geral, às condições
concretas de ensino e de aprendizagem que incidem no processo de ensino-
aprendizagem. Mais especificamente, referem-se às políticas educacionais e diretrizes
normativas para o ensino; às práticas socioculturais, familiares, locais; ao funcionamento
da escola como as práticas de organização e gestão, o espaço físico, o clima
organizacional, os meios e recursos didáticos, o currículo, os tempos e espaços; às
condições pessoais e profissionais dos professores; às características individuais e
socioculturais dos alunos, às disposições internas para estudo e acompanhamento das
atividades didáticas, necessidades sociais e aprendizagem; ao relacionamento entre
professor e alunos, alunos e colegas.
Verifica-se que, a partir dos elementos constitutivos do ato didático, há uma
intensa articulação com outros campos científicos tais como a teoria do conhecimento, a
psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, a sociologia, a pesquisa cultural, etc.,
visando à compreensão do fenômeno ensino. Desse modo, a didática se assume como
disciplina de integração, articulando numa teoria geral de ensino as várias ciências da
educação e compondo-se com as metodologias específicas das disciplinas curriculares.
Ou seja, combina-se o que é geral, elementar, básico, para o ensino de todas as matérias
com o que é específico das distintas metodologias, em estreito vínculo com a teoria do
conhecimento, a psicologia aplicada ao ensino e a sociologia das situações escolares e
dos contextos socioculturais.
Para que um professor transforme as bases da ciência em que é especialista, em
matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa matéria para a formação da
personalidade do aluno, é preciso que ele tenha, pelo menos: a) formação na matéria que
leciona; b) formação pedagógico-didática na qual se ligam os princípios gerais que regem
as relações entre o ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino de
determinada matéria, aspecto também denominado “conhecimento pedagógico do
conteúdo”; c) o conhecimento das características individuais e sociais dos alunos; d) o
conhecimento das práticas socioculturais e institucionais e suas formas de atuação na
aprendizagem.
9
Como ato de mediação, o ensino visa assegurar os meios e as condições para que
ocorra o encontro formativo - afetivo, cognitivo, ético, estético - entre o aluno e o objeto de
conhecimento, ou seja, a confrontação ativa, cognitiva e afetiva, do aluno com a matéria.
O trabalho do professor consiste em fazer a mediação entre os aspectos externos e os
aspectos internos da educação e do ensino. Para Danílov:
(No ensino), “a experiência social em toda sua multilateralidade e complexidade se
transforma em conhecimentos, habilidades e hábitos do educando, em idéias e qualidades
do homem em formação, em seu desenvolvimento intelectual, ideológico e cultura geral”
(DANÍLOV, 1984, p.26).
Há, pois, uma relação entre o desempenho escolar e as práticas das quais ela
participa. Desse modo, a aprendizagem ou problemas de aprendizagem são criados na
interação entre a criança e as tradições culturais realizadas na prática situada em uma
dada instituição, com determinadas crianças. Considerando, por exemplo, as práticas
escolares, as crianças tanto se apropriam de experiências socio-históricas acumuladas
como contribuem para elas, tanto emocionalmente como cognitivamente (p.29).
Há que considerar, no entanto, que atividades com artefatos e procedimentos
mediados por práticas sociais, são muito diferentes conforme se dêem na escola, em
casa, na creche, no ensino superior, na educação profissional, etc. Em razão disso, é
preciso diferenciar distintas modalidades de aprendizagem nestas diferentes instituições,
pois em cada uma tem um tipo de conhecimento e de métodos de aprendizagem. Gimeno
Sacristán reforça essa idéia de Hedegaard:
Nas sociedades complexas, as clássicas funções da escolarização encontram-se
distribuídas entre diferentes espaços vitais, a cargo de mecanismos de influência
diversificados, e acontecem no interior de várias instituições. (...) As escolas se centrarão
mais em algumas responsabilidades do que a outras, conforme circunstâncias e
necessidades de cada sociedade. Esses campos de ação mais próprios deveriam ser
aqueles que menos oportunidades tenham de ser desenvolvidos por outros agentes
socializadores de forma controlada e reflexiva. O cultivo da leitura e escrita, por exemplo, ou
o proporcionar uma visão científica do mundo, é papel das escolas fazê-los sendo pouco
provável que outros agentes o façam nas condições e meios com os quais podem fazê-los
(2000, p. 100).
Ou seja, crianças e jovens estão na escola para adquirir competências para a vida
adulta, como ler e escrever, contar, etc., de modo que o papel da escola é integrar os
conceitos científicos com os conceitos cotidianos trazidos de casa e do meio social,
elevando os conceitos cotidianos a um patamar mais elevado de desenvolvimento
cognitivo. Hedegaard designa essas relações de “duplo movimento” do ensino:
12