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Maio/ 2019

Professor: Dr. Wander de Lara Proença


Coordenadoria de Ensino a Distância: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida
Projeto Gráfico e Capa: Departamento de desenvolvimento institucional
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO
História do cristianismo I
Unidade I - Cristianismo antigo - Parte I
1. O estudo da história (O Cristianismo Antigo e Medieval)...............................07
2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o ambiente grego-romano..09
3. Contexto religioso em que se desenvolveu o cristianismo antigo..................15
4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios................................20

Unidade II - Cristianismo antigo - Parte II


1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano: os imperadores que
perseguiram e as formas de perseguição...........................................................29
2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga..........................................................37
3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo.......................................40
4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja fiel às origens apostólicas...........45

Unidade III - Cristianismo medieval - Parte I


1. Como se deu o surgimento do catolicismo romano?.....................................56
2. Como era a religião da igreja medieval e a religiosidade do povo?.................61
3. Doutrinas e ritos praticados na idade Média....................................................67

Unidade IV - Cristianismo medieval - Parte II


1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais..............................................78
2. Vida monástica: por uma espiritualidade voltasa à simplicidade e ao
próximo...................................................................................................................94
3. Movimentos pré-reformadores: por um retorno doutrinal e eclesiástico às
origens apostólicas.................................................................................................99

Para assistir os vídeos, ouvir os podcasts e fazer os exercícios,


acesse o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem)

Atenção! Lembre-se que faz parte de suas obrigações:


1 - Participação na disciplina por meio da realização dos exercícios;
2 - Exercício integrativo - Resumo da disciplina, 1500 palavras;
3 - 2 Provas objetivas (5 questões cada);
4- Leitura de textos complementares (100 páginas);
Consulte o “Programa de curso” e veja mais detalhes!

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HISTÓRIA DO CRISTIANISMO I
Apresentação da disciplina

Bem-vindo(a) à disciplina de História do Cristianismo!

Nela você estudará prioritariamente fenômenos históricos


ligados ao cristianismo nos períodos antigo e medieval,
buscando, porém, estabelecer interfaces e pontes com a história
da igreja cristã e movimentos derivados no tempo presente.

Dentro da organização curricular da FTSA, a contextualização tem


um papel muito representativo, pois seu ensino está comprometido
em oferecer uma educação contextualmente direcionada às
necessidades das igrejas brasileiras e latino-americanas. Para
análise da realidade, o conhecimento histórico é preponderante,
pois possibilita a compreensão do desenvolvimento social,
político, cultural religioso que configurou esta realidade. Permite
que se conheça a realidade, fundamente sua interpretação e, por
conseguinte, oriente a ação transformadora em contextos do tempo
presente, visto que a missão da igreja é continuidade de práticas
que nos antecederam no transcurso dos tempos. Neste sentido,
em relação à contextualização, a FTSA desde suas origens não
abre mão do legado teológico produzido pelo processo histórico
no advento da Reforma Protestante do século XVI. Mas,
igualmente, considera preponderante que essa teologia, que deve
estar sempre se reformando, seja interpretada e relida a partir das
especificidades do contexto latino americano.

A história possibilita que compreendamos como a igreja,


em outras temporalidades, vivenciou a fé, a espiritualidade,
praticou seu culto, formulou sua teologia, cumpriu sua missão,
agiu em missão em favor de um mundo mais justo e pleno
de vida, pelas prerrogativas do reino de Deus, promovendo
assim transformações em perspectiva integral. Deste modo,
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a disciplina histórica serve de referência para as demais, pois
é transversal aos diferentes conteúdos que compõem a matriz
curricular do curso teológico. Por ser também crítica da realidade,
contribui para ensinar que o movimento cristão experimentou
momentos de crises e desafiadores comprometimentos; fala de
perseguições sofridas que ameaçaram sua subsistência, mas
também de perseguições que ele mesmo empreendeu, em dados
momentos, contra os que se lhe opuseram ou não se moldaram
a seus dogmas.

O trabalho do estudante de história consiste em estabelecer


uma relação de interrogação recíproca entre presente e passado,
promovendo uma problematização, evitando, assim, apenas
busca das origens como meio de compreensão da vivência atual,
rejeitando os simplismos, triunfalismos e determinismos, tendo
em vista que o presente não é mera repetição de fenômenos ou
acontecimentos passados, nem o passado é um emaranhado de
eventos que necessariamente desembocam no presente.

Como uma metáfora do estudo da história, das relações entre


passado e presente, ou das permanências e rupturas ocorridas no
tempo, os historiadores costumam citar o exemplo do palimpsesto.
Palimpsesto é uma palavra grega usada para identificar o que ocorria
com a escrita em pergaminhos: uma antiga escrita, depois de ser apagada
para dar lugar a um novo registro, com o passar do tempo reaparecia,
permitindo sua leitura mesmo em tempos muito posteriores. A analogia
do palimpsesto é usada para demonstrar como determinadas
práticas podem reaparecer em tempos subsequentes, não como
mera repetição, mas de forma ressignificada, com nova roupagem
mesmo que já tenha sido considerada superada ou aniquilada.
São os processos de rupturas e permanências que caracterizam o
transcurso histórico.

Na estrutura curricular da FTSA, o curso de história está


distribuído em três disciplinas. Na parte I, parte-se dos
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primórdios do movimento cristão no ambiente antigo judaico e
greco-romano, avançando-se até o mundo medieval, quando se
dá a consolidação da cristandade. Em história II, os conteúdos
se concentram nos processos que envolveram a Reforma
Protestante e seus desdobramentos no mundo ocidental, com
destaque para os avivamentos que marcaram os séculos XVIII e
XIX, impulsionando as missões modernas. E, finalmente, a parte
III focará a presença do cristianismo no contexto brasileiro e na
América Latina, com caracterização dos grupos que deram origem
ao cenário religioso hoje em evidência: católicos, protestantes e
pentecostais, em suas variantes tipologias.

A mensagem de Jesus, que partiu da Galileia e Jerusalém,


chegou como Ele havia predito “aos confins da terra” (At 1:8).
O Brasil é um destes “confins”. A disciplina de História nos
ajudará a compreender como isso foi possível, guiando-nos
numa travessia de 21 séculos pelos caminhos desafiadores que
o tempo desenhou. Iniciemos a jornada...

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Unidade I – CRISTIANISMO ANTIGO
Introdução à unidade
Nesta unidade, apresentaremos alguns dos procedimentos que orientam
o estudo da História e também aspectos que caracterizam os períodos
antigo e medieval. Identificaremos o contexto de surgimento das primeiras
comunidades cristãs, assim como as transformações que envolveram as
práticas do cristianismo nascente antes que, no período medieval, viesse
a se configurar como cristandade.

Estudar a trajetória do movimento cristão nos períodos antigo e medieval


significa incursão em temáticas historicamente riquíssimas, como por
exemplo: o contexto em que viveram os primeiros cristãos; as relações de
conflito com o Império Romano e posterior vinculação do cristianismo com
o próprio Estado; o advento do papado, a cristandade medieval; o surgimento
do Islamismo e suas relações de tensão com territórios cristãos; fixação
de dogmas e doutrinas, como o purgatório e a veneração de imagens; a
organização da Inquisição; movimentos pré-reformistas, dentre outros.

Em síntese, esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos


conceituais que orientam o estudo da História; identificar aspectos
característicos do cristianismo antigo e medieval; compreender o contexto
em que surgiu e se desenvolveu o cristianismo; apresentar exemplos
históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval.

1. O estudo da História. O Cristianismo Antigo e Medieval


1.1 Em que consiste o estudo da História?
A História configura-se no campo de conhecimento que estuda o “tempo”,
mais essencialmente, os acontecimentos e transformações ocorridos no
tempo. Ou como dizia o importante historiador Marc Bloch: “História é o
estudo do homem no tempo”.

Um dos termos da língua grega para a palavra “tempo” é kronos – de


onde advém cronologia, que trata das temporalidades históricas. Essas
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temporalidades são classificadas para melhor demarcar os períodos
históricos. Para definição dessas escalas temporais, que indicam quando
começa e quando termina uma temporalidade, são convencionalmente
propostos alguns marcos ou acontecimentos representativos.

Glossário
As divisões cronológicas da História:
1) Pré-história (todo o período que antecede a invenção da escrita
em 3 mil a.C.)
2) Período antigo (da invenção da escrita, em cerca de 3 mil a.C.,
até a queda do Império Romano no Ocidente, no século V d.C.)
3) Período medieval (da queda do Império Romano no Ocidente
até o fim do Império Romano no Oriente, no século XV, quando em
1453 os muçulmanos tomaram a cidade Constantinopla (capital do
referido Império)
4) Período moderno (desde a tomada de Constantinopla até a
Revolução Francesa, em 1789)
5) Período contemporâneo (da Revolução Francesa aos dias atuais)

Fica caracterizado, pelos episódios indicados acima, que os critérios


usados são indicativos de mudanças (com dimensões geralmente
políticas ou sociais). Isso é algo simbólico, pois não significa que
abruptamente um período termina e começa outro; um determinado
período continua existindo ou se estendendo na temporalidade do outro,
naquilo que em História se chama de “continuidades” ou “permanências”.

Também é preciso dizer que outros critérios ou circunstâncias podem ser


usados para distinguir uma temporalidade de outra.

Para o estudo da história são fundamentais as fontes, que servem para


o historiador buscar evidências em sua análise e relato. As fontes para

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estudo do cristianismo são diversas, como por exemplo: os próprios
textos neotestamentários, as obras de Flávio Josefo, os achados
arqueológicos dos manuscritos de Qumran, a Didaquê, as catacumbas
de Roma, registros de historiadores não cristãos, correspondências,
literaturas não canonizadas, dentre outros.

Exercício de aplicação
Ao ler o texto bíblico de Lucas 1:1-4, que características podem ser
aplicadas ao trabalho do historiador na produção do conhecimento
histórico?
a) a busca de fontes históricas, independentemente de sua
confiabilidade, que servem para o historiador buscar evidências
em sua análise e relato.
b)a busca de fontes históricas diversas, sem uma grande
preocupação com a confiabilidade dos materiais, pois dependendo
do assunto a ser pesquisado sempre há uma variedade de
materiais disponíveis, mas sim que servem para o historiador
buscar evidências em sua análise e relato.
c) fazer um recorte cronológico para situar a produção do
conhecimento histórico, dentro das temporalidades históricas
propostas por marcos ou acontecimentos representativos.

Acesse o AVA para fazer o exercício e ver a reação do professor!

2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o


ambiente greco-romano
A história de conquista, poder e domínio do Império Romano começa
com a morte de Alexandre no século IV a.C., e a queda do grande Império
grego. Mantendo a influência da cultura e língua gregas, os romanos
tornaram-se sucessores dos gregos em todos os lugares, passando a
difundir os valores da então chamada cultura greco-romana (resultado

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da fusão entre as duas culturas) através da construção e manutenção
desse poderoso Império. Segundo o historiador Martin Dreher, houve um
movimento que foi o grande responsável pela unidade cultural do Império
Romano: o helenismo. Basicamente, trata-se da cultura da era de Alexandre,
quando língua, costumes, utensílios, arte, literatura, filosofia e religião dos
gregos foram disseminados em diferentes lugares do mundo antigo.

Saiba Mais
Siglas que identificam temporalidades:
a.C: antes de Cristo
d.C: depois de Cristo
a.D: anno domini (termo que significa “ano do Senhor”, em referência à
era de Cristo)

No período em que se consolidou como imperador romano, nos anos 40


a.C., Otaviano estabeleceu uma ordem ansiada por muitos, por meio da
chamada Pax Romana. Utilizando-se do controle das legiões armadas, fez
cessar os conflitos nas dimensões do Império através do uso da força. Em
12 a.C. recebeu o altíssimo cargo sacerdotal de “Pontifex Maximus”. Por
meio de uma votação popular o senado lhe acrescentou ainda: “Augusto
pater patriae”. Pouco antes de morrer, Otaviano Augusto apresentou
um relatório retrospectivo de sua política, destacando orgulhosamente
os títulos que recebera como homenagem por sua clemência, justiça e
piedade. Os romanos desenvolveram o culto ao imperador a partir do
momento em que este passou a receber o título de “Augusto”.

Uma inscrição feita na Ásia menor, em 9 a.C., dizia: “Pode-se colocar o


início do ano no aniversário de César, pois a divina providência trouxe à
vida dos homens: paz, salvação, abolição de guerras. O dia do nascimento
do deus foi para o mundo o início de boas notícias”. De acordo com
Dreher (1993), a unidade do Império apresentava-se de maneira visível
na figura do Imperador, que reunia na sua pessoa os principais cargos da
antiga república romana.
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Glossário
Pax Romana: paz romana
Pontifex Maximus: máximo pontífice
Pontífice: líder religioso supremo
Pater Patriae: pai da pátria
Augusto: venerável, digno de culto.
César: título concedido aos imperadores romanos que sucederam a
Caio Júlio César; designava o sucessor do imperador reinante.

No ano 14 d.C., ocorreu a morte de Augusto (aos 76 anos de idade). Seu


filho adotivo Tibério logo assumiu o governo, com 56 anos. Sob o seu
governo, Pôncio Pilatos foi constituído procurador da Judéia e da Samaria
(26-36 d.C.) – Jesus morreu durante o seu reinado. Em 37 d.C., Calígula
assumiu o governo, com 25 anos de idade: vida dissoluta e aspiração
exagerada; quis exigir que sua estátua fosse colocada no templo de
Jerusalém. Sua morte súbita, impediu a realização deste projeto. Em
41 d.C. foi morto numa revolta palaciana, pela guarda pretoriana, a qual
proclamou Cláudio (tio de Calígula), como César (41-54).

Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus


devido a conflitos surgidos entre eles. O testemunho do historiador antigo
Suetônio - em sua obra Vidas dos Césares - apresenta as razões dessa
medida adotada: “Expulsou os judeus de Roma, por que causavam agitação
contínua, instigados por um certo Chresto” (apud FABRIS, p. 45). Chresto
seria uma referência a Cristo? As circunstâncias parecem denotar esta
interpretação: a pregação sobre Jesus, anunciado como Cristo, o Messias
de Israel, teria provocado divisões e conflitos entre judeus, uma parte ligada
ao judaísmo e outra já convertida ao cristianismo. O certo é que os judeus
foram expulsos da cidade. Havia lá grande comunidade deles. Foram-lhe
proibidos o culto e as reuniões sinagogais. Este decreto também envolveu,
portanto, os judeus-cristãos. Mais tarde Nero revogou esse edito.
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Exercício de fixação

Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus


devido a conflitos surgidos entre eles. O motivo da expulsão foi o de
causarem agitações contínuas, instigados por um certo Chresto. As
circunstâncias parecem denotar esta interpretação: a pregação sobre
Jesus, anunciado como Cristo, o Messias de Israel, teria provocado
divisões e conflitos entre judeus, uma parte ligada ao judaísmo e
outra já convertida ao cristianismo, e isto afetava a chamada Pax
Romana. Seguindo esta mesma lógica, em que medida podemos
pensar que a morte de Jesus foi influenciada pela tentativa de
manutenção da Pax Romana?
a) Não podemos afirmar que a morte de Jesus foi influenciada pela
Pax Romana, uma vez que ela deveria ocorrer para cumprimento
da vontade de Deus que visava a salvação do ser humano;
b) O envolvimento político de Jesus com grupos revolucionários,
tais como os sicários e zelotes, que possuíam membros
dentro do grupo dos doze discípulos (Judas e Simão), sempre
representou uma ameaça ao governo de Roma, por isso ele foi
perseguido e morto;
c) A ameaça que Jesus causava à Pax Romana estava relacionada
aos embates com os religiosos judeus, que embora tivessem um
cunho religioso, poderia sublevar os ânimos dos seus respectivos
seguidores e provocar conflitos entre os grupos.
Acesse o AVA para fazer o exercício!

Glossário
Sinagoga: etimologicamente significa “casa do livro”, ou seja, lugar
de ensino da Lei e dos costumes judaicos; as sinagogas surgiram
no período do exílio babilônico sofrido pelos judeus, passando a ter
um papel importante na diáspora subsequente para, na ausência do
templo de Jerusalém, manter a identidade das tradições judaicas.

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No ano 54 d.C. Cláudio foi envenenado por sua esposa Agripina, que
o assassinou para entronizar seu filho Nero, fruto de seu primeiro
matrimônio, adotado por Cláudio. Nero tinha apenas 17 anos, recebendo,
por isso, auxílio de outros. Tornou-se depois descomedido: gostava de
apresentar-se publicamente como artista; mandou matar sem escrúpulos
quem se opusesse a ele; instigou a primeira perseguição contra os
cristãos em Roma, incendiando a cidade em 64, culpando por isto os
cristãos, perseguindo e condenando à morte os que eram presos.

Tácito, historiador antigo, relata as atrocidades praticadas por Nero,


mandando, inclusive, matar membros de sua família; suicidou-se em 68.
Tempos depois da morte de Nero, correu o boato de que na verdade não
havia morrido, o que teria sido apenas mais uma de suas artimanhas. A
sua possível reaparição causava terror e pode estar associada à base
imaginária com que o Apocalipse descreve a Besta que ressurge, depois
de ter sido ferida de “morte” (Ap 13).

Para saber mais sobre o comportamento de Nero, assista parte do


documentário em vídeo: Roma - Construindo um império (27:30 a 33:00
min.) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UFZ_ihWq8CY

Após sua morte, três generais foram proclamados


simultaneamente seus sucessores: Galba (Espanha); Oto (Roma); Vitélio
(Germânia). Nenhum dos três conseguiu aprovação de todo o Império: o
que tornava iminente uma nova guerra civil. Diante disto, Vespasiano (que
estava com suas tropas na Palestina, e com o apoio delas, conseguiu
apoderar-se do governo e estabelecer a ordem, em 69 d.C.

Vespasiano impôs a renovação da instituição do “primeiro sucessor”,


criada por Augusto, assegurando assim a sucessão de seus filhos. Em 79,
morre; seu filho Tito - o conquistador de Jerusalém - tornou-se imperador.
Em 81, sucedeu-lhe o seu irmão Domiciano (81-96), que: procurava
sublinhar seu poder absoluto; propagava em público a santidade de sua
pessoa, deleitando-se com a aclamação do povo a si e à sua esposa
no anfiteatro, no dia do grande banquete (“salve nosso Senhor e nossa
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senhora”); exigia de todos uma cega submissão às suas ordens; sufocava
qualquer movimento de resistência; em 96, foi vítima de uma conjuração.
Este é o imperador que ocupa o poder na época em que o livro do Apocalipse
foi escrito. Após sua morte, operou-se uma mudança: o senado elegeu como
imperador um descendente de uma antiga família romana: Nerva (96-98),
correspondendo assim à imagem do soberano movida pelo pensamento
estóico: “o melhor deveria governar em função do bem comum”.

Em 98, Trajano (Filho adotivo de Nerva) ocupa o poder, nele permanecendo


até o ano 117. Desta forma, pelo método da adoção, assegurava-se a
escolha do mais capacitado entre os candidatos.

Para saber mais sobre o Império Romano, assista os primeiros 25 minutos


do documentário em vídeo: Roma - Construindo um império. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=UFZ_ihWq8CY

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3. Contexto religioso em que se desenvolveu o
Cristianismo antigo

3.1 Crenças e diversidade de cultos no contexto greco-romano


Desde a antiguidade, o oriente considerava os soberanos como filhos dos
deuses. Por exemplo, no Egito, o Faraó recebia poder, leis e proteção para
governar o seu povo; isso legitimava seu poder como majestade intocável.
Quanto aos gregos, os deuses adorados por eles não estavam separados
dos homens por uma fronteira bem definida. Homens importantes podiam
ser elevados da condição humana à divina, colocados como heróis na
comunhão sagrada, como observado nas mitologias. Acreditava-se que
os deuses vinham até onde estavam os humanos ou desciam à terra em
forma humana, como observado em Atos 14:11, que relata que Paulo e
Barnabé, em Listra, depois de curarem um paralítico desde a infância,
provocaram a seguinte reação: “deuses em forma humana desceram até
nós”. Alexandre Magno, que difundiu o Império grego, no século IV a.C., já
era venerado por muitos de seus súditos. Sobre o chamado culto estatal,
as cidades romanas tinham seus deuses particulares; construíram-lhes
esplêndidos templos; a vontade dos deuses determinava a vida da cidade
e do Estado; festas e espetáculos culturais eram realizados durante o
ano em sua homenagem, algumas destas festas, por exemplo, estão
associadas aos jogos Olímpicos realizados a cada quatro anos.

Os deuses romanos participavam ativamente da política e da sociedade.


O culto era voltado em torno do Estado, havendo datas pré-estabelecidas
pelo calendário. O culto era obrigação civil. Durante a época de Augusto,
muitos templos foram edificados na Grécia, na Itália, no oriente e norte da
África. Tentava-se forjar uma moral a partir da religião, mas a influências
externas culturais eram muito intensas. Também houve forte influência
de cultos estrangeiros, trazidos do oriente para Roma. Valorizavam-se
os sacerdotes, cujos oráculos orientavam as batalhas, por exemplo. O
deus Sol (Hélio) ganhou projeção, na época do Novo Testamento, o qual
correspondia a Mitras (deus persa), ao ponto do próprio imperador se
identificar como seu legítimo filho.

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No ano 40 a.C., Herodes O Grande, rei judeu, assinou um acordo com
Roma no qual foram assegurados três principais benefícios aos judeus:
não trabalhar no sábado, não servir ao exército romano, não cultuar os
deuses do Império (apenas fazer orações em favor do imperador).

Nos primeiros anos de sua existência, comunidades cristãs formadas


também por judeus, beneficiaram-se de prerrogativas concedidas àqueles
no âmbito do Império Romano, pois eram vistas pelas autoridades como
ramificações do judaísmo. Muitos cristãos, em função disto, optavam
inclusive por realizar a circuncisão, como forma de se proteger de
possível questionamento pela não veneração aos deuses romanos ou
participação em cerimônias religiosas obrigatórias.

Posteriormente, porém, à medida que os cristãos cresceram, tendo a


adesão de diferentes povos gentílicos – havendo, também, conflitos
entre judeus e cristãos – estas regalias foram desaparecendo, dando
lugar a tensões e conflitos.

No Império Romano, um elemento importante destes cultos eram os


sacrifícios e oferendas de animais, feitos, de modo geral, da seguinte
maneira: parte era queimada; parte era dada aos sacerdotes; outra
vendida como carne no mercado; parte era distribuída aos pobres, em
ocasiões especiais. Toda carne era de alguma forma sacrificada; faziam-
se banquetes no templo, com a presença de parentes e amigos. Esperava-
se, com isto, que os deuses favorecessem o destino dos homens e
afugentassem o infortúnio e a ruína das cidades.

Acontecimentos milagrosos também ocorriam através de pessoas


dotadas de poderes especiais, que irradiavam força divina. Por exemplo,
quando o imperador Vespasiano chegou a Alexandria, pouco tempo
depois de tomar posse do governo romano, um cego pediu-lhe que
molhasse seus olhos com saliva, e um paralítico que lhe tocasse a perna
com seu calcanhar. Suetônio, historiador romano, relata que o imperador
atendeu a esse pedido, transmitindo força curativa aos doentes, que
recuperaram a saúde.
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Exercício de aplicação
A partir de Gálatas 6:12-14, qual a possível relação desta passagem
com o contexto religioso descrito acima?
a) A questão da circuncisão limitava-se exclusivamente a uma
questão religiosa, sem implicações com as políticas do império.
b) Deve levar em conta por um lado a ameaça de perseguição
romana e por outro lado os benefícios de isenção de certas
obrigações desfrutados pelos judeus.
c) A perseguição não era uma ameaça aos cristãos, assim,
qualquer relação à fatores relacionados à política imperial são
irrelevantes para a leitura da passagem acima.
Acesse o AVA para fazer o exercício!

3.2 Religiões de mistério


Paralelamente ao culto oficial desenvolveu-se grande religiosidade popular
marcada por intenso misticismo. Havia a busca de acontecimentos
milagrosos. No século I era muito forte o medo, a ameaça dos poderes
demoníacos, de doenças, infortúnios etc. As pessoas se sentiam
indefesas ante as forças sobrenaturais. As religiões de mistério se
apresentavam para dar “segurança” e meios de proteção: prometendo
salvação e oferecendo-lhe força curativa.

Saiba mais
Cultos de mistério: A expressão decorre do fato de a comunidade
reunida para determinados atos cultuais guardar silêncio absoluto sobre
tais atos, nada podendo revelar a não-iniciados. Os iniciados recebiam
fórmulas sagradas e sinais simbólicos, que ajudavam na identificação
mútua. Participavam libertos e escravos; homens e mulheres. Celebrava-
se ali o renascimento da pessoa para a eternidade; acreditava que os
deuses sofriam, morriam e ressuscitavam. Estes elementos criaram
aproximações entre os adeptos e a mensagem que ouviram sobre Jesus.

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Por exemplo, o deus da cura Asclépio (ou Apolo), era popularmente muito
venerado, cujo símbolo era a serpente. O culto foi introduzido em 19 a.C.,
devido à grande peste que ocorrera nas dimensões do Império. Ao redor
dos templos deste deus, existiam vários dormitórios onde os doentes
ficavam hospedados, esperando serem curados durante o sono à noite –
especialmente paralíticos, mudos e cegos.

Saiba mais
Exemplo de um rito de iniciação nos cultos de mistério
Um dos rituais que envolvia os cultos de Ísis e Apolo dava-se
geralmente da seguinte forma: o iniciante fazia votos de ablução
(não comer carne por um determinado tempo, por exemplo, 10 dias);
logo após, o noviço vestia uma roupa específica, ao pôr-do-sol, e era
levado ao salão de culto, sendo que ali, repetia palavras como: “eu
cheguei às proximidades da morte e com a ajuda da divindade estou
agora alcançando a luz verdadeira”; no dia seguinte, ao clarear do dia,
terminada a celebração, o iniciado apresentava-se ao povo, vestido
com uma estola adornada com a figura do deus Sol. Isto significava
que, através da consagração, nasceu agora como ser divino, cheio
de força e rodeado por brilhante luz; estava agora preparado para um
dia se apresentar a Osíris, o juiz dos mortos.

O culto a Mitras difundiu-se bastante no Império Romano. Proveniente


da Pérsia, seu culto tratava de luta e vitória, por isso muitos soldados se
filiavam a essa religião, levando-a às fronteiras do Império. Venerado como
deus da luz, Mitras era aquele que dissipava as trevas. Religião de mistério
que, ao contrário das demais, só aceitava a filiação de homens, que eram
marcados na fronte com um ferro candente, como um guerreiro. Tornavam-
se membros, por meio de um batismo, após o qual podiam participar dos
banquetes santos, para os quais a comunidade se reunia. Após a morte,
cada um deveria responder por seus atos perante um tribunal divino, que
os pesaria numa balança antes de permitir-lhes a entrada para o mundo da
luz. Este culto atraía fiéis pelo dever moral que impunha.

18 | História do cristianismo I | FTSA


Saiba mais
Mitras e o Cristianismo: o culto a Mitras desempenhou uma acirrada
disputa com o cristianismo pela conquista de adeptos. Esse embate
terminou no 4º século, quando o imperador romano Constantino –
adepto de Mitras – declarou-se cristão e ressignificou ritos deste
culto com ritos cristãos, como, por exemplo, a fixação do dia 25
de dezembro como o natal de Cristo. Por isso, em muitos lugares
construíram-se templos cristãos sobre santuários de Mitras,
simbolizando a vitória de Cristo.

Em síntese, os cultos de mistério: (a) estavam difundidos em todo


o Império; (b) ofereciam proteção contra o mal e ajuda redentora da
divindade; e (c) concediam benesses mediante os ritos praticados pelos
iniciados.

Agora acesse o AVA e assista o vídeo!


Para saber mais sobre o contexto religioso do mundo greco-romano,
assista os últimos 20 minutos do documentário em vídeo: Deuses e
deusas - GréciaDisponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QwjW371UYOs

Acesse o AVA para baixar e ouvir o podcast!


Como a igreja primitiva caminhou nos limites e controles
estabelecidos pelo Império Romano? (10 minutos)

História do crist | FTSA | 19


4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios
4.1 As contribuições que o cristianismo recebeu para se
expandir
Costuma-se afirmar que, no contexto em que surgiu, três povos ou
civilizações acabaram por contribuir para a expansão do cristianismo:
os gregos – pela língua grega, que foi difundida pelo Império de
Alexandre o Grande, facilitando assim a comunicação do evangelho
(o Novo Testamento foi escrito nessa língua); os romanos – criaram
redes de comunicação por meio das estradas, além da tolerância
religiosa geralmente praticada em relação aos diferentes povos sob seu
domínio, o que deu certa liberdade para o cristianismo se expandir por
um determinado tempo; os judeus – outorgaram ao cristianismo a fé
monoteísta e a ideia sobre da vinda de um Messias, no tempo da diáspora;
o judaísmo é o berço religioso das comunidades cristãs, o próprio Novo
Testamento atesta isso.

Glossário
Diáspora: Significa dispersão. Dá-se o nome de diáspora às duas
grandes dispersões que envolveram o povo hebreu: a primeira
ocorrida por ocasião do cativeiro babilônico, no século VI a.C.; e
a segunda quando da destruição do templo de Jerusalém pelos
romanos, no ano 70 d.C. Para o judeu que vivia fora da Palestina,
Jerusalém permaneceu sendo o centro da sua fé e referencial de
vida. Lá era o local de sacrifícios ou peregrinações. A Palestina
continuava sendo a sua terra, herança dada por Deus. Fora do país,
o povo hebreu estava em terra alheia ou impura.

Por que os judeus foram para países estrangeiros? Por vários motivos:
devido aos exílios a que foram submetidos; para seguir as grandes
rotas comerciais, estabelecendo-se nas cidades mercantes ou portos;
em razão dos pesados tributos impostos pela dominação estrangeira à
agricultura, cresceu a pobreza e muitos preferiram outra sorte, por isso

20 | História do cristianismo I | FTSA


recorreram ao comércio. O judaísmo da diáspora também crescia pela
conversão de não-judeus.

Locais em que viviam os judeus, em expressivas aglomerações: Babilônia;


Síria; Ásia menor e Norte da África. Só no Egito, viviam 1 milhão de judeus,
sendo a maior parte em Alexandria.

Condições em que viviam os judeus na Diáspora: a) desfrutavam de


isenção do serviço militar; b) não tinham necessidade de comparecer no
dia de sábado perante instituições públicas e tribunais; c) as comunidades
tinham certa autonomia especialmente nas questões de fé; d) todo judeu
pagava sua contribuição ao templo, anualmente, o equivalente a dois dias
de trabalho (jornaleiro); quem podia pagava voluntariamente quantidades
mais altas; e) viagem a Jerusalém nas festas religiosas; f) por outro lado,
o Templo mantinha relações com as comunidades judaicas da diáspora;
g) falavam quase que exclusivamente grego; h) sofriam influência do
helenismo (iam ao teatro, participavam de competições esportivas etc.);
i) atraíam muitos simpatizantes às sinagogas (pregações e orações)
– a circuncisão se tornava obstáculo para ser prosélito; j) sofriam
perseguições e discriminações devido ao seu estilo de vida e costumes.

4.2 Desafios do movimento cristão para se desenvolver no


mundo urbano antigo
O movimento que Jesus funda e lidera se origina e se desenvolve e um
ambiente com traços predominantemente rurais. Após sua morte, há
uma grande demanda por se fazer a transposição da mensagem cristã
de cariz rural para o universo cultural citadino, da pólis grega. Os ensinos
de Jesus têm como cenário a vida rural: fala de semente, flores, trigo,
pássaros, pescadores, lírios do campo.

Para o tempo em que o movimento cristão necessitava transpor-se


do ambiente rural para o mundo urbano, a providência divina preparou
e vocacionou Saulo. Este teria a tarefa de fazer prosseguir a obra de
Jesus agora no espaço das grandes cidades. Comparativamente, vale
estabelecer um contraponto entre Jesus e Saulo.
História do crist | FTSA | 21
Saulo, nascido e formado até os 18 anos na cidade intelectual de Társis.
Em seguida, mudou-se para Jerusalém para estudos na escola rabínica
farisaica, tendo como mestre Gamaliel. Nesse tempo de estudos, residiu
provavelmente na casa de sua irmã, que morava na cidade santa (At 23:16).

Saiba mais
Társis: região da atual Turquia, com uma população de 300 mil
habitantes à época de Paulo. Era considerada o terceiro mais
importante centro da filosofia antiga, ficando atrás somente de
Atenas e Alexandria. Por essa razão, nela circulavam diferentes
correntes de pensamento; uma cidade cosmopolita, ou seja, nela
estavam representados diferentes mundos culturais.

Jerusalém: cidade com cerca de 60 mil habitantes nos dias de


Jesus. Nela estava situado o templo judaico, que abrigava a escola
rabínica (formada por fariseus) e a escola sacerdotal (formada por
saduceus); ambas forneciam membros para compor o Sinédrio
(alta corte jurídica formada por 70 doutores da Lei).

Jesus viveu 90% de sua existência terrena nas regiões rurais da Galileia;
não tendo condições financeiras para a obtenção de títulos nas escolas
rabínicas da Cidade Santa; Saulo era cidadão romano; Jesus, para
sobreviver, trabalhava na carpintaria ou no campo; Saulo, posteriormente,
irá elaborar todo o seu ensino tendo como pano de fundo a vida urbana;
suas ilustrações e metáforas têm origem naquilo que é próprio do seu
contexto de formação; em seus escritos, encontram-se reflexos de vistas
e cenários de Tarso de quando era ainda jovem, de ser conduzido em
“triunfo”, de jogos olímpicos, compara o “tabernáculo terrestre” desta
vida a um edifício de Deus, destaca as correntes filosóficas circulantes
nas pólis gregas; procurou também formar líderes nos grandes centros
– especialmente com a criação da Escola Paulina de Éfeso - para que
os mesmos dessem continuidade à missão de proclamar o evangelho,
principalmente entre os gentios.
22 | História do cristianismo I | FTSA
Saiba mais
Escola Paulina de Éfeso: Criada por Paulo, na cidade de Éfeso,
provavelmente no lugar onde funcionara anteriormente a Escola de
Tirano (At 19:9). A Escola Paulina teve três importantes funções: 1)
treinar e preparar líderes para a expansão missionária (Tito, Timóteo
e Silas são exemplos destas lideranças); produzir cópias das cartas
paulinas para envio circular a diferentes comunidades paulinas; 3)
preservar a teologia paulina, voltada aos gentios, fazendo frente às
ideias judaizantes que influenciavam o cristianismo nascente.

Saulo, depois Paulo, teve, portanto, um papel decisivo na tarefa de


introduzir a mensagem cristã nos espaços das grandes cidades do
mundo antigo. O êxito de tal empreitada se pode medir pela presença da
igreja – muitas vezes incômoda - nas principais cidades do mundo antigo
até o século II, como Roma, Alexandria no Egito, Éfeso, Corinto, além de
Jerusalém e Antioquia.

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Assistir à videoaula sobre Paulo e a institucionalização do
cristianismo (10 min.)

Exercício de fixação
Em que medida Paulo é responsável pelo êxito de introduzir a
mensagem cristã nos espaços da pólis grega e de construir elos de
aproximação entre povos e mundos tão distintos?
a) Paulo utilizou apenas a língua grega, não efetivando a passagem do
cristianismo da cultura semítica judaica para a cultura grega;
b) Uma das principais dificuldades de Paulo foi que, assim como Jesus, a
sua mensagem permaneceu tendo como pano de fundo as regiões rurais
da Galileia;
c) Paulo efetivamente conseguiu traduzir a mensagem do Cristo, o Messias
judaico, de uma cultura para outra: da cultura semítica dos judeus para a
cultura grega.

História do crist | FTSA | 23


4.3 Grupos sociais influentes no Império Romano
A mensagem cristã exerceu atração sobre três grupos sociais
muito representativos no Império romano: escravos, soldados e mulheres.

Em relação aos escravos, que compunham basicamente dois terços da


população total do Império Romano, que era de cerca de 70 milhões de
pessoas, a pregação cristã falava de igualdade de relações, visto em
diferentes textos, como por exemplo: “porque em Cristo não há mais
escravo nem livre” (Gl 3:28); ao escrever a Filemon, Paulo adverte que o
escravo Onésimo seja tratado como “irmão caríssimo” e não mais como
escravo (Fm 16); dentro da comunidade cristã as distinções sociais eram
niveladas, não havendo mais separação entre senhor e escravo; isso
apontava para o fim da escravidão à medida que o reino de Deus fosse
implantado e Jesus retornasse para reinar.

Em relação aos soldados, a guerra era uma das sinas do Império Romano,
expondo precocemente a vida dos combatentes; desse modo, uma mensagem
que falava de um mundo novo no qual não mais haveria a guerra e a violência
exercia grande fascínio sobre tais personagens e suas respectivas famílias,
que ansiavam por novos valores de preservação da vida.

Quanto à mulher, sua condição de exclusão social foi impactada por


uma mensagem de que em Cristo não há mais distinção entre homens
e mulheres (Gl 3:28). Segundo Rodney Stark (2006), as comunidades
cristãs se transformaram em espaços de acolhimento de mães em busca
de proteção para as filhas recém-nascidas que, segundo costumes no
mundo greco-romano, poderiam ser “descartadas” ao nascer quando
em uma casa já existisse uma filha. A igreja primitiva combateu as
práticas abortivas e de infanticídio de meninas, promovendo assim
uma mobilização em favor da vida. As mulheres, com isso, foram
numericamente muito expressivas nas comunidades cristãs. Em síntese,
fica evidente que a mensagem e a práxis cristã no mundo antigo não
separaram alma de corpo, ou o que é espiritual do que é material. Com
isso, desenvolveu uma missão contextualizada com as demandas sociais
24 | História do cristianismo I | FTSA
daquele tempo, caracterizando-se, assim, por uma integralidade no modo
de cumprir sua tarefa. Não quis apenas salvar as almas, mas transformar
o mundo pela pregação do Evangelho.

Glossário
Androcentrismo: comportamentos, sociedades ou situações em
que o foco é o homem, ou que são controlados por uma perspectiva
masculina.

O valor dado à mulher é um aspecto marcante no contexto das primeiras


comunidades cristãs. No ambiente judaico havia se formatado desde
os tempos vétero-testamentários uma mentalidade patriarcal com
absoluta superioridade do homem sobre a mulher. Exemplo disto era o
rigor com que a Lei religiosa se impunha em relação à mulher, sendo por
isso legada sua participação nos cerimoniais e cultos a uma condição
de inferioridade e submissão. Durante as cerimônias religiosas havia
espaços próprios e limites para a sua restrita participação, sendo
obrigada, inclusive, a permanecer em silêncio durante o evento. Tais
restrições impostas à mulher acabavam gerando comportamentos
um tanto constrangedores: estudos mostram que todo judeu piedoso
costumava repetir três vezes ao dia a oração “graças te dou, oh! Deus,
porque não nasci samaritano, nem escravo e nem mulher”. Na filosofia
grega à época também não era muito diferente: a liberdade era atributo
do homem. Platão e Xenofonte, por exemplo, afirmavam que as mulheres
haviam sido criadas exclusivamente para trabalhos domésticos.

Nesse contexto, foi decisiva para a libertação da mulher a atitude de


Jesus na realização de seu ministério terreno. Ele estabeleceu um
comportamento inaugural ao criar espaços de sociabilidade em relação
às mulheres, razão pela qual muitas passaram a segui-lo e a servi-lo, como
atestam os relatos dos evangelhos (Mt 27:55,56). Esta participação ativa
pode ser observada nos evangelhos, de forma explícita ou não: Jesus
valorizou a viúva no momento do ofertório (Mc 12:41-44); beneficiou-as
com milagres e curas (Mt 9:19-22, 15:21-28); citou-as em seus ensinos
História do crist | FTSA | 25
(Mt 13:33; 25:1-13); delas recebeu presentes (Mt 26:6-13); no momento
em que celebrou a última páscoa, no cenáculo, lá certamente estavam
as mulheres não apenas servindo na preparação dos elementos, mas
também desfrutando daquele momento de comunhão; no primeiro
anúncio que se faz da ressurreição acontecida, confiou-se a uma mulher,
Maria Madalena, essa nobre tarefa; também quando ocorreu o envio do
Espírito Santo em pentecostes, mulheres também estavam lá presentes,
em oração. Um antigo manuscrito, que se constatou ser um evangelho
escrito pelo apóstolo Tomé, foi encontrado por arqueólogos no Egito,
em 1945, o qual não apenas registra referências da valorização dada
por Jesus à mulher, como também destaca a participação de liderança
feminina no movimento comandado pelo Filho de Deus.

Quando nasceram inúmeras comunidades cristãs pelo trabalho apostólico,


mulheres também participaram ativamente do estabelecimento daquela
tarefa, constituindo-se também em membros da liderança que se
formava. São exemplos disto: Febe, diaconisa e líder da igreja existente
no porto de Cencréia, na cidade de Corinto; Trifena, Trifosa e Pérside, que
“muito trabalharam” em comunidades paulinas; Priscila, que juntamente
com seu marido, Áquila, realizou importante trabalho missionário em
Roma e, depois, em Corinto como colaboradores de Paulo, ressaltando-
se que há, inclusive, hipóteses de ter Priscila participado da redação da
carta aos Hebreus; Maria, mãe de Jesus que, segundo tradições da igreja
antiga, teve um importante papel de liderança nas igrejas da Ásia Menor,
desempenhando funções de pregadora e missionária em toda aquela
região, especialmente na cidade de Éfeso, onde também morou até o
final da sua vida junto à família de João apóstolo.

Exercício de reflexão
Com base no texto de João 4:1-42, no qual ocorre o diálogo de Jesus
com a mulher samaritana, os estudiosos do Novo Testamento
interpretam esta passagem como sendo uma das ações inclusivas
da pregação do Messias. Trata-se da elevação do papel feminino
na sociedade da época. Abaixo, encontra-se o recorte entre os
versos 5 a 19 deste diálogo:
26 | História do cristianismo I | FTSA
Chegou, pois, a uma cidade samaritana, chamada Sicar, perto das
terras que Jacó dera a seu filho José. Estava ali a fonte de Jacó.
Cansado da viagem, assentara-se Jesus junto à fonte, por volta da
hora sexta. Nisto, veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe
Jesus: Dá-me de beber.
8 Pois seus discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos.
Então, lhe disse a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, pedes
de beber a mim, que sou mulher samaritana (porque os judeus não se
dão com os samaritanos)? Replicou-lhe Jesus: Se conheceras o dom
de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele
te daria água viva. Respondeu-lhe ela: Senhor, tu não tens com que a
tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu, porventura,
maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do qual ele
mesmo bebeu, e, bem assim, seus filhos, e seu gado? Afirmou-lhe
Jesus: Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que
beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a
água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna.
Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais
tenha sede, nem precise vir aqui buscá-la. Disse-lhe Jesus: Vai,
chama teu marido e vem cá; ao que lhe respondeu a mulher: Não
tenho marido. Replicou-lhe Jesus: Bem disseste, não tenho marido;
porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é teu
marido; isto disseste com verdade. Senhor, disse-lhe a mulher, vejo
que tu és profeta.

(Bíblia Almeida Revista e Atualizada)

Partindo da leitura dos conteúdos apresentados na unidade e


nos textos do Novo Testamento, descreva as implicações sociais,
religiosas e políticas que este diálogo demonstrou quanto à
participação da mulher na igreja antiga, utilizando, no mínimo, 200
palavras.

História do crist | FTSA | 27


Referências
BARRO, Jorge H. De cidade em cidade. Londrina: Descoberta, 2002.

COMBLIN, José. Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993.

COMBY, J.; LEMONON. Vida e religiões no império romano no tempo das


primeiras comunidades cristãs. São Paulo: Paulinas, 1988.

DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal,


1993.

DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal,


1994.

FABRIS, Rinaldo. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo:


Loyola, 1988.

MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas,


1979.

STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera


a história. São Paulo: Paulinas, 2006.

28 | História do cristianismo I | FTSA


UNIDADE II – CRISTIANISMO ANTIGO
Introdução
Nesta unidade, veremos um pouco sobre a expansão do cristianismo,
investigando possíveis razões que conduziram uma religião de minorias
e da escória social, por assim dizer, ao patamar de religião em franca
expansão e, por conseguinte, assumindo um caráter universal em termos
de adesão e amplitude. Abordaremos como se delineia a espiritualidade
cristã nos quadros da igreja antiga, usando como base alguns fragmentos
de textos espirituais da época, como os do Bispo Hipólito de Roma.
Primeiramente, falaremos sobre como eram as reuniões e cultos na igreja
primitiva. Em seguida, a partir do exemplo de Hipólito, delinearemos
algumas das características da espiritualidade cristã primitiva, mesmo
sabendo que elas não se aplicavam a todos em todos os contextos.

Trataremos também das controvérsias doutrinárias e sobre a atuação


dos Pais da Igreja. O cristianismo, diferente das religiões pagãs do mundo
romano, não nascera como resultado de mitos e mágicas. Ele teve como
base a realidade e o fato histórico. Orígenes, Tertuliano, Justino Mártir,
Agostinho e tantos outros defensores da fé tiveram poderosa influência
em tornar o cristianismo mais razoável para os intelectuais, sendo
vários deles convertidos. Teremos, portanto, a oportunidade de estudar e
conhecer um pouco mais sobre a contribuição de alguns deles.

1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano: os


imperadores que perseguiram e as formas de perseguição
O primeiro imperador a iniciar uma ostensiva perseguição ao cristianismo
foi Nero (54-68). Após o incêndio na cidade de Roma, no ano 64, a mando
do próprio imperador, quando dez dos quatorze bairros foram destruídos,
os cristãos passaram a ser acusados como culpados por tal episódio,
sofrendo por isso atroz perseguição.

Tácito, historiador antigo, descreve as atitudes tomadas por Nero na


perseguição aos cristãos:
História do crist | FTSA | 29
Além de matá-los (aos cristãos) fê-los servir de diversão
para o público. Vestiu-os em peles de animais para
que os cachorros os matassem a dentadas. Outros
foram crucificados. E a outros acendeu-lhes fogo ao
cair da noite para que a iluminassem. Nero fez que se
abrissem seus jardins para esta exibição, e no circo ele
mesmo ofereceu um espetáculo pois se misturava com
as multidões disfarçado de condutor de carruagem
(Gonzalez, 1989, p. 56).

Trilhando o caminho da cruz, a igreja primitiva encontra na ressurreição


de Cristo a grande esperança de vitória e transformação. Vemos isso, por
exemplo, nos textos de Apocalipse 12:11 “[...] por causa do testemunho
que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”;
e Apocalipse 20:4, “vi ainda as almas dos decapitados por causa do
testemunho de Jesus... viveram e reinaram com Cristo. Bem-aventurado
e santo é aquele que tem parte nessa ressurreição... sobre estes a
segunda morte não tem autoridade [...]”.

Dados históricos e informações preservadas pela tradição antiga


referentes ao que ocorrera com os apóstolos e outros importantes líderes
do cristianismo em seus primórdios, também nos ajudam a entender
que o compromisso com o caminho da cruz foi levado até as últimas
consequências. Muitos foram submetidos ao martírio por causa do
evangelho de Cristo.

Vejamos primeiramente alguns exemplos envolvendo aqueles que


fizeram parte dos doze discípulos chamados por Jesus (Mc 3:13-19):

André: após a morte e ressurreição de Jesus, foi pregar o evangelho na


região do Mar Negro (hoje parte da Rússia); depois, segundo a tradição,
pregou na Grécia, em Acaia, onde foi martirizado numa cruz em forma de
“X”. Daí, este instrumento de tortura ter ficado conhecido como “cruz de
Santo André”.

Bartolomeu: pregou inicialmente na Arábia, depois Etiópia, e por fim, ao lado de


30 | História do cristianismo I | FTSA
Tomé, atuou como missionário na Índia, onde foi martirizado.

Filipe: atribui-se a este apóstolo a fundação da igreja de Bizâncio, cidade


mais tarde conhecida como Constantinopla. Posteriormente, pregou o
evangelho na Ásia Menor, na região de Hierápolis, onde se convertera a
mulher de um cônsul romano pela sua pregação. O cônsul, então furioso
por este episódio, mandou prender a Filipe e matá-lo de forma cruel.

Matias: Para o lugar de Judas Iscariotes, que se suicidou, a igreja primitiva


escolheu Matias como seu substituto (At 1:21-26). Segundo a tradição,
esse apóstolo se tornou missionário na Síria, onde acabou sendo
queimado numa fogueira por causa do evangelho.

Judas Tadeu: segundo a tradição, pregou na Pérsia, onde foi martirizado.

Mateus: desenvolveu grande parte de seu ministério pastoreando a


igreja de Antioquia, onde também escreveu o seu evangelho. Dirigiu- se
posteriormente para a Etiópia, onde veio a ser martirizado por causa da
pregação.

Pedro: depois de exercer importante liderança na igreja de Jerusalém,


este apóstolo transferiu-se para a cidade de Roma, capital do Império.
No ano 67, durante perseguição imposta por Nero, Pedro foi preso e
condenado a morrer crucificado. Relatos do segundo século afirmam que
o apóstolo, antes de sua execução, disse que não era digno de morrer
como morrera Jesus, o seu Senhor, e pediu para que fosse crucificado de
cabeça para baixo, e assim ocorreu.
Paulo: considerado um apóstolo “nascido fora de tempo” (1 Co 15:8),
tornara-se o grande líder da igreja entre os gentios e propagador da
“mensagem da cruz” (1Co 1:18-23). Uma carta de Clemente de Roma, no
segundo século, testifica o que ocorrera com este apóstolo:

Paulo esteve preso sete vezes; foi chicoteado,


apedrejado; pregou tanto no Oriente quanto no Ocidente,
deixando atrás de si a gloriosa fama de sua fé; e assim,
História do crist | FTSA | 31
tendo ensinado justiça ao mundo inteiro, e tendo para
esse fim viajado até os mais longínquos confins do
Ocidente, sofreu por fim o martírio por ordens dos
governadores, e partiu deste mundo para ir ocupar o
seu santo lugar (Anglin e Knight, 1947, p. 13).

No ano 67, quando da perseguição movida por Nero, Paulo foi preso e
levado a Roma, onde recebera o martírio. Pelo fato de possuir cidadania
romana, este apóstolo não poderia ser crucificado (algo humilhante para
o cidadão romano), por isso deram-lhe como sentença a decapitação
(morte instantânea). A tradição conservou de forma reverente o lugar
da execução deste apóstolo, juntamente com Pedro: “Desde a mais alta
antiguidade, a igreja romana celebrou juntos os martírios de Pedro e de
Paulo no dia 29 de junho” (Comblin, 1993, p. 169,170).

Simão Zelote: desenvolveu seu ministério de evangelização na Pérsia,


onde o culto ao deus Mitras (deus Sol) estava extremamente desenvolvido.
Devido a conflitos com seguidores de Mitras, acabou sendo morto por se
negar a oferecer sacrifício a esta divindade.

Tiago (Filho de Alfeu): pregou o evangelho na Síria. Segundo o historiador


antigo Flávio Josefo, foi linchado e apedrejado até a morte (Proença,
2001, p. 103).

Tiago (filho de Zebedeu): segundo tradições antigas, citadas por Justo


Gonzalez, este apóstolo desenvolveu um trabalho missionário na Espanha,
pregando na região da Galícia e Zaragoza. “Seu êxito não foi notável,
pois os naturais desses lugares se negaram a aceitar o evangelho”. Ao
regressar para Jerusalém, percorreu o caminho que deu origem ao lugar
hoje conhecido como “Caminho de San Tiago de Compostela”, na Espanha.
Em Jerusalém, veio a ser preso, sendo em seguida, decapitado por ordem
de Herodes Agripa, no ano 44 (At 12:1,2) (Proença, 2001, p. 103).Tomé:
segundo a tradição, desenvolveu sua atividade missionária inicialmente
na Índia. Dali dirigiu-se para o Egito, onde realizou importante trabalho
entre os habitantes de língua copta, ministério este que deu origem à
32 | História do cristianismo I | FTSA
comunidade até hoje lá existente. A Igreja Cristã Copta, como é conhecida,
está separada do catolicismo romano desde o IV século, tendo patriarcas
em sua liderança (Proença, 2001, p. 103).

Saiba mais
Santiago de Compostela:
Os Caminhos de Santiago são os percursos dos peregrinos que
afluem a Santiago de Compostela, na região noroeste da Espanha,
desde o século IX para venerar as relíquias do apóstolo Tiago, cujo
suposto sepulcro se encontra na catedral de Santiago de Compostela.
A peregrinação foi uma das mais concorridas da Europa medieval,
sendo concedida indulgência plena a quem a fizesse.

João: este é, reconhecidamente pela tradição e pelos depoimentos do


cristianismo antigo, o último apóstolo a morrer. Morreu na velhice, por
volta do ano 100, na cidade de Éfeso, onde morava com sua família. Este
apóstolo desenvolveu o seu ministério na Ásia Menor, onde foi preso
nos anos 90, na época da intensa perseguição imposta pelo imperador
Domiciano ao cristianismo, quando acabou deportado à ilha de Patmos,
no Mar Egeu, vindo a receber ali a revelação do Apocalipse, por volta do
ano 96. Sendo solto posteriormente, permaneceu em Éfeso ensinando
até ao final da sua vida (Gonzalez, 1989, p. 60).

Além dos apóstolos, outros importantes líderes do cristianismo primitivo


também deram a sua vida pela causa do evangelho. É o caso de Timóteo,
discípulo de Paulo, que segundo testemunho de Nicéfero, no segundo
século, “foi martirizado durante o reinado de Domiciano, no ano 96 a.D.,
em Éfeso, cidade onde morava quando o apóstolo lhe escreveu as duas
cartas” (Anglin, 1947, p. 15).

Também de Tiago “o irmão do Senhor”, que exerceu importante liderança


na igreja de Jerusalém, foi martirizado. O historiador Flávio Josefo, que
descreveu o sítio desta cidade pelo exército do general Tito, no ano 70,
História do crist | FTSA | 33
atribui a destruição de Jerusalém a um “juízo de Deus sobre os judeus
pelo fato de terem assassinado a Tiago, o Justo” (Anglin, 1947, p. 11).
Também o historiador da igreja, Eusébio, cita um escritor do segundo
século, chamado Hegesipo, que descreve a morte de Tiago. Afirma este
autor, que tinha se levantado um conflito entre os judeus convertidos e
os descrentes a respeito de Jesus ser ou não o Messias, e pediram a
Tiago que resolvesse a questão. “Os escribas e fariseus” – diz Hegesipo
– “Colocaram Tiago de um lado do templo e exclamaram, dirigindo-se a
ele: visto que o povo é levado em erro a seguir a Jesus que foi crucificado,
declara-nos qual é a porta pela qual se chega a Jesus, o crucificado?”. Ao
que ele respondeu em alta voz: “O Filho do Homem está agora assentado
nos céus, à mão direita do grande poder e está para vir nas nuvens
do céu”. E como muitos se gloriaram no testemunho de Tiago, estes
mesmos sacerdotes e fariseus tomaram a decisão de levá-lo à parte alta
do templo e de lá o lançaram abaixo, “passando em seguida a apedrejá-
lo, visto não ter morrido logo que caiu no chão, enquanto, ajoelhando-se
pedia o perdão de Deus aos seus agressores”. Deste modo ele sofreu o
martírio (Anglin e Knight, 1947, p. 11,12).

Assista os primeiros 30 minutos do vídeo A expansão do


cristianismo antigo e a formação do cânone bíblico. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=LshphS25FWY

Até o terceiro século da era cristã, a cruz realmente pautou a atuação da


igreja. E é prova evidente disso o fato de tal período ter ficado conhecido
como a “era dos mártires”. O historiador Justo Gonzalez descreve
com precisão ainda outros fatos desse período, como por exemplo, o
testemunho de fé demonstrado por Inácio de Antioquia. Discípulo do
apóstolo João, viveu no período de 60 a 117 d.C. Tornou- se célebre pela
fidelidade a Cristo em meio às perseguições que sofrera e às cadeias
que enfrentou devido à fé que professava. Sendo levado a Roma, em
algumas paradas obrigatórias, não se esquecia de escrever às igrejas
que o recebiam ou lhe enviavam saudações.
34 | História do cristianismo I | FTSA
Para testemunhar sobre Jesus Cristo, Inácio está
disposto a enfrentar a morte. E, a caminho do martírio,
proferiu as seguintes palavras: “Não quero apenas ser
chamado de cristão, quero também me comportar como
tal. Meu amor está crucificado. Não me agrada mais a
comida corruptível... mas quero o plano de Deus que é a
carne de Jesus Cristo... e seu sangue quero beber, que é
bebida imperecível. Porque quando eu sofrer, serei livre
em Jesus Cristo, e com ele ressuscitarei em liberdade.
Sou trigo de Deus, e os dentes das feras hão de me
moer, para que possa ser oferecido como pão limpo
de Cristo” (GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São
Paulo: Vida Nova, 1989, p. 66).

Não é diferente o exemplo de fé de Policarpo de Esmirna, o qual, diante da


insistência das autoridades para que jurasse pelo imperador e maldissesse
a Cristo, recebendo em troca disto a liberdade, respondeu: “vivi oitenta e
seis anos servindo-lhe, e nenhum mal me fez, como poderia eu maldizer ao
meu rei, que me salvou?” E estando atado já em meio à fogueira, Policarpo
elevou os olhos ao céu e orou em voz alta: “Senhor Deus Soberano [...] dou-
te graças, porque me consideraste digno deste momento, para que, junto a
teus mártires, eu possa ser parte no cálice de Cristo. Por isso te bendigo e
a te glorifico. Amém” (Gonzalez, 1989, p. 71,72).

As experiências de Inácio e Policarpo retratam bem a disposição dos


cristãos de tal período em dar testemunho de sua fé em obediência a
Jesus Cristo, até às últimas consequências. Para a igreja desse período,
a ressurreição foi, sem dúvida, o impulso maior à perseverança e à
fidelidade ao caminho da Cruz.

Ao falar sobre martírios de cristãos, o teólogo Jürgen Moltmann diz


que em Cristo aconteceu o que acontecerá com todos os que trilham
o caminho da cruz. Nos sofrimentos de Cristo são antecipados os
sofrimentos escatológicos do mundo inteiro. Ele acrescenta que “é Cristo
que sofre através dos seus discípulos mártires, pois na Paixão apostólica
História do crist | FTSA | 35
pelo evangelho e pela nova criação está presente o próprio Cristo”. Por isso
os sofrimentos apostólicos, como perseguição, prisão, pobreza e fome,
são também sofrimentos de Cristo e, como tais, dores de parto da nova
criação. E finaliza: “Nestes sofrimentos do caminho da cruz, o mundo
presente perece e nasce o novo mundo de Deus” (Moltmann, 1993, p. 216).

Acesse o AVA e assista a videoaula: ROMA E AS PERSEGUIÇÕES


AO CRISTIANISMO

Exercício de Fixação
Com base nos conteúdos lidos e na videoaula assistida, assinale
a alternativa que indicam as opções que constituíram os motivos
pelos quais os cristãos foram perseguidos no Império Romano.
I - Negação do culto ao imperador romano.
II - A pregação cristã não interferia nas festividades religiosas, não
constituindo um motivo para perseguição.
III - O anúncio de outro reino a ser instaurado com o advento de
Jesus.
IV - A presença de pestes compreendida como falta de culto
oferecida por parte da população.
a) I, III, IV b) I, II, III c) II, III, IV

2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga


Na comunidade cristã do primeiro século, iniciou-se um novo paradigma
litúrgico, no qual o que predominava não eram os holocaustos expiatórios
mosaicos – posto que a cruz era o cerne da fé e da práxis dos crentes,
sendo, portanto, o sacrifício de Cristo suficiente para a remissão
dos pecados, e à “justificação” do pecador –, mas sim os atos que
provocavam comunhão, misericórdia e solidariedade entre os fraternos.
Cremos nesta possibilidade, mesmo considerando a posição de alguns
autores, como N. Lohfink, que alegam que a prestação de culto a Jesus
36 | História do cristianismo I | FTSA
como Divino no primeiro século é uma hipótese que esbarra na tradição
monoteísta judaica, da qual aqueles primeiros cristãos procediam, fato
que leva a considerar a possibilidade de ter-se prestado culto a Jesus
como “intermediário”, ou seja, um culto que “de Cristo, subia novamente
a Deus Pai” (Proença, 2001, p. 24).

Sabe-se com segurança, porém, que o paradigma da comunhão entre


os da fé era simbolizado pelo “partir do pão”, conforme ensinara Jesus.
A comunidade se reunia para o culto todo primeiro dia da semana,
impulsionada por duas razões básicas: o “sabor” da comunhão e a
celebração do Cristo ressurreto: “É patente que o maior motivo que
levou os primeiros cristãos a cultuarem a Jesus foi, sem dúvida alguma,
a sua ressurreição, a qual autenticou sua origem divina e seu senhorio”
(Proença, 2001, p. 26).

Vale destacar algumas das características comuns aos cultos das


primeiras comunidades cristãs, com base nas informações de Justo
Gonzalez (1993, p. 150-155), a quem uma vez mais nos reportamos.
A primeira delas é o espírito de celebração, que aquela comunidade
mantinha em quase todos os cultos. Segundo Gonzalez, tudo era motivo
para celebração: “a comunhão era uma celebração. O tom característico
do culto era o gozo e a gratidão, e não a dor ou a compunção”.

Outra característica comum era a participação da comunhão somente


aos batizados. A todos era permitido assistir os cultos. Todavia, quando
se aproximava o momento da ceia, permaneciam obrigatoriamente
no recinto apenas os membros assíduos da igreja, ou seja, apenas os
batizados. Neófitos não batizados e visitantes ficavam de fora.

Gonzalez (1993, p. 152) ressalta ainda outra característica que, desde


cedo, fizera parte do repertório litúrgico daquelas comunidades, que era a
celebração nas catacumbas. A razão pela qual se davam estas reuniões
nestes locais inauditos, era porque ali estavam enterrados os heróis da
fé; e os cristãos criam que a comunhão os unia, não só entre si e com
Jesus Cristo, mas também com seus antepassados na fé.
História do crist | FTSA | 37
Contudo, muito mais que nas catacumbas, os cristãos reuniam- se nos
lares particulares. Há inclusive indicações disto nas Escrituras (como,
por exemplo, em At 16:40 e Fl 1,2). Gonzalez afirma que, à medida
que as congregações iam crescendo e se expandindo, algumas casas
foram dedicadas exclusivamente aos cultos, e posteriormente foram
transformadas em templos (mas com a devida descrição pública).

Por muito tempo, pode-se dizer que o cristianismo continuou sendo


um “braço” do judaísmo, posto que, mesmo avançando com a doutrina
evangélica apostólica, este preservou a tradição ritualística da lei e
dos costumes judaicos. Daí se fala em uma tradição “judaico-cristã”,
não podendo desvincular a segunda da primeira. Um exemplo é que a
igreja primitiva possuía duas vertentes teológicas: a ala judaizante
(representada por Pedro), e a ala gentílica, da qual Paulo fora o mentor.
Aliás, de acordo com José Comblin, Paulo foi o verdadeiro fundador
do cristianismo, como movimento religioso independente do judaísmo
(Comblin, 1993).

Para melhor traçar o perfil religioso aqui referido, faremos breve menção
do caso de um bispo e pastor da igreja de Roma no século III, Hipólito de
Roma (160-235). Exímio escritor e erudito, Hipólito intentara com seus
escritos recuperar para a vida da igreja a “verdadeira tradição apostólica”,
difundindo seus comentários e lembranças dos costumes legados pelos
apóstolos, mas que aos poucos vinham sendo deixados de lado.

A espiritualidade cristã, em Hipólito, resumia-se basicamente em guardar


preceitos morais e costumes religiosos (“místicos”). Nota-se uma
observância exagerada aos mínimos detalhes dos ritos, que regiam a
ação humana de forma global. Havia ritos e normas para tudo: quanto
ao “uso” correto da sexualidade, sobre a castidade, sobre casados e
solteiros, orientações aos batizandos, aos catecúmenos, às viúvas,
confessores e até crianças.

Sobre a doutrina de Hipólito, um comentarista, que escreveu a introdução


de um de seus escritos, disse o seguinte:
38 | História do cristianismo I | FTSA
Torna-se moralista. Considerada a época crítica e difícil
da igreja, comenta o livro de Daniel e, fazendo ressaltar
as catástrofes do porvir da humanidade, tira lições, dá
conselhos [...] Pretende assim levar à confiança em Deus,
mesmo quando se é perseguido ou incompreendido,
fatos esses reais em sua vida agitada [...] Liga-se de modo
escravizante ao texto bíblico como este se encontra, sem
interrogar se tal capítulo fora escrito em hebraico, aramaico
ou se encontra apenas em grego [...] Preocupa-se com o
ensinamento que pretende tirar de um texto, como perfeito
alegorista, sem tomar em consideração a realidade à qual a
revelação quer ser resposta (Roma, 1981, p. 08).
Dessa forma, observa-se que a liturgia era a própria vida para os cristãos
que seguiam tais preceitos, e a vida prosseguia sendo regida por normas
e orientações de ordem litúrgica. Exercia-se o sacerdócio sob o controle
da tradição apostólica, porém, admitindo paralelamente a submissão
a um legalismo ritualístico, reminiscente do judaísmo. Estabelecia-se,
assim, uma espiritualidade “seletiva”, onde as regras de fé e prática
mais aparentavam um código de posturas moralizante e legalista do
que qualquer outra coisa, fato que mais distanciava do que facilitava a
aproximação dos neófitos até Cristo.

Acesse o AVA e assista videoaula – Liturgia e espiritualidade na


igreja primitiva (10 minutos) / Proença.

Exercício de aplicação
Com base no conteúdo lido e na videoaula 7, que apontam algumas
características litúrgicas da igreja antiga, qual dos elementos
abaixo ainda permanece central para a maioria das igrejas cristãs
de vertente protestante:
a) Papel importante da ceia litúrgica;
b) Ausência de templos, sendo utilizadas exclusivamente casas
domésticas;
c) Demorada preparação para o batismo.

História do crist | FTSA | 39


3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo
De que modo podemos relacionar o problema das controvérsias
teológicas e doutrinárias entre a igreja e outras crenças ou religiosidades
do mundo antigo com o desenvolvimento e as facetas que o cristianismo
foi assumindo até a conclusão deste período? Essa pergunta servirá
como problema e orientação para o que será desenvolvido nesse tópico.
A ideia básica é a de expor sobre duas abordagens inter-relacionadas com
este problema, a saber: a) caracterização das crenças e/ou “heresias”
principais que fizeram frente ao cristianismo; b) as respostas dadas pela
Igreja, seja contra ou a favor da manifestação dessas crenças.

Conflitos são comuns quando falamos em ser humano e história. Mais


ainda, quando esse ser humano é o crente (tanto no sentido estrito, como
lato), e quando essa história é a história da Igreja. Desde os começos
da era cristã, vimos controvérsias de todos os tipos: no tempo de Paulo
foram o gnosticismo, judaísmo e outras doutrinas semelhantes; no século
III foi debatida a questão da readmissão dos “desviados” na igreja. Quer
dizer, não faltaram querelas e muito menos respostas (umas se julgando
bem fundamentadas, outras nem tanto) para as principais questões que
envolviam a fé cristã de um modo geral.

Neste tópico, vamos tratar especificamente sobre algumas das crenças


e “heresias” que geraram muitas das controvérsias até o IV século da era
cristã. De modo semelhante, também veremos a atuação dos chamados
“Pais da Igreja”, tanto no Oriente como no Ocidente cristão, nos casos de
afirmação ou negação e combate de uma determinada doutrina ou crença.

As perguntas que podemos lançar inicialmente são: quais os fatores


que, na história da igreja, determinaram o surgimento da teologia cristã?
O que é uma heresia e como ela se constitui? De que forma a igreja
combateu os “hereges” desse período? Em nome de que ou quem e com
que “armas” ela combateu e por quê? Qual foi o papel dos pais da igreja
nesse contexto de conflitos de interesse e controvérsias doutrinárias?
Nosso olhar certamente estará condicionado pelo presente, mas nunca

40 | História do cristianismo I | FTSA


na intenção de julgar, e sim de compreender (ainda que parcialmente) o
passado, que sempre estará em suspenso e seus fatos nunca poderão
ser apreendidos absolutamente, “tal como aconteceram”.

3.1. Os chamados “movimentos heréticos”


Os movimentos chamados “heréticos”, muitas vezes pejorativamente
e sem uma devida investigação, são considerados, na história da
igreja, como aqueles que se apresentaram subversivos à ortodoxia, por
defenderem ideias, práticas e doutrinas que ameaçavam a integridade
dogmática e institucional da igreja. Nesse sentido, vale observar que, para
a igreja, bastava algum movimento ou pessoa destoar do que era ensinado
e determinado pela regra de fé ortodoxa, que já poderia ser considerado
“herético” e digno de condenação, o que nem sempre significava avesso à
Bíblia e seus ensinamentos. Um exemplo disso está no que aconteceu com
os anabatistas no século XVI, perseguidos pela própria igreja protestante
e julgados como hereges perturbadores da ordem, basicamente porque
ansiavam e lutavam por uma reforma mais profunda (estrutural). Assim,
faz-se necessário para nós pesquisadores da igreja, considerar uma
multiplicidade de vertentes que geram um dado movimento e certa crença
ou doutrina, sem condenar de antemão. O julgamento sempre deve ser
evitado, especialmente no estudo da história.

O que aqui vamos fazer é um breve “passeio” pelos principais movimentos


que foram condenados na era cristã, descrevendo as mais latentes
marcas deixadas, tentando exercitar, antes, uma mentalidade crítica e
investigativa, e não condenatória.
a) Gnosticismo (séc. I)
Afirmava basear-se no “conhecimento” (gnose), embora não se tratasse
do conhecimento racional (que, por sinal, era rejeitado pelos gnósticos),
mas um conhecimento místico, sobrenatural, transcendental. Defendia
uma visão dualista do universo, de origem persa, que separava pares
opostos, irreconciliáveis, como o Deus transcendente dos gnósticos
(criador da realidade espiritual, boa) e um “demiurgo” (semideus, que

História do crist | FTSA | 41


criara o mundo material, mau). Considerando que o mundo material é
mau, logo, Cristo não poderia ter tido uma encarnação real, mas aparente,
isto é, de natureza docética, um espírito visível, um fantasma. Boa parte
dessa visão gnóstica da realidade se arraigou tanto que até hoje continua
viva e presente, inclusive na Igreja.
b) Marcionismo (séc. II)
Um dos movimentos provenientes do gnosticismo. Foi fundado em 144
d.C. por Marcião de Sinope, um cristão religioso que foi denunciado pela
igreja como herege. Sustentava em sua doutrina elementos gnósticos,
tais como o dualismo, o docetismo cristológico e a recusa do Antigo
Testamento. Desenvolveu melhor essa doutrina dos dois deuses,
representados nos dois testamentos: A.T. - Demiurgo (justiça/lei); N.T. -
Deus Superior (Jesus/Evangelho/amor).
c) Montanismo (séc II)
Originou-se entre 160 e 170 na Frígia, através de um certo Montanus, um
ex-sacerdote das religiões de mistério, convertido ao movimento cristão.
Ao ser batizado, pelo ano 150, manifestou a glossolalia (dom de línguas),
passando a ensinar, a partir daí, que a direção da igreja não deveria
ser por intermédio de cargos ou ofícios, mas sim, pela “voz do Espírito
Santo” transmitida pela glossolalia. Passou a anunciar o fim do mundo
através de suas profecias e ordenava a seus adeptos a se reunirem em
um determinado local — regiões da Frígia, na Ásia Menor — para aguardar
a descida da Jerusalém celestial. Possuía duas discípulas imediatas:
Priscila e Maximila, que serviam como suas intérpretes, quando dizia
comunicar-se verbalizando “línguas espirituais”. Foi um movimento que
queria a renovação das realidades pneumáticas e escatológicas da igreja
dos primeiros tempos. Sua doutrina reunia três elementos principais:
escatologia, ascetismo e profetismo.
c) Arianismo (séc III-IV)
Foi uma visão cristológica sustentada pelo presbítero Ário (246- 336),
que negava a divindade de Jesus e sua consubstancialidade com o Pai.
O início da controvérsia se deu quando o bispo Alexandre de Alexandria
42 | História do cristianismo I | FTSA
(250-328) começou a debater teologicamente com o pai do arianismo. A
dinâmica do debate é bastante ampla. Seus pontos eram vários e sutis.
Mas, como faz lembrar Justo González (1991, p. 90), “podemos resumir
toda a controvérsia à questão de se o Verbo era co-eterno com o Pai ou
não”. O próximo tópico trata, dentre outras coisas, dos desdobramentos
desta controvérsia na vida da igreja da época. Gonzalez resume
graficamente o campo de forças em torno do qual tal querela gravitava:

Ário dizia que o Verbo (Cristo) não era Deus, mas somente a primeira
dentre as criaturas. Alexandre, valendo-se da visão do Evangelho de
João, afirmava que o Verbo sempre tinha existido com o Pai e que,
junto com o Pai, ele também era Deus, isto é, tinham a mesma essência
divina, embora não fossem uma e a mesma pessoa. Interessante notar
que ambos os partidos tinham textos bíblicos em que se embasavam e
razões lógicas que faziam a posição do oponente parecer insustentável
(Gonzalez, 1990, p. 91).

3.2. A reação da igreja: doutrinas e dogmas


Evidentemente, a Igreja não permaneceu calada e imóvel, apenas
assistindo a implosão de suas doutrinas e práticas tradicionais. O cerne
de sua reação se dá por conta de iniciativas isoladas, como a de Alexandre
e outros bispos e teólogos da igreja, não citados. Quer dizer, tinha-se,
em primeiro lugar, a convicção de que essas contendas só podiam ser
vencidas pela força do argumento da fé. E é aqui que começam a surgir,
de maneira mais sistematizada, as produções teológicas do período.
A teologia nasce como produto do conflito. Porém, em segundo lugar,
entravam também as implicações políticas dessas controvérsias.

Com o surgimento da “paz” na Igreja, após a ascensão e “conversão” ao


cristianismo do Imperador Constantino o perigo de perseguição se tornou
praticamente remoto, ao passo que havia uma liberdade maior para se
debater religião. Porém, Igreja e Estado aliaram-se no sentido de conter
os conflitos que pudessem surgir entre os fiéis em função de tais debates.

História do crist | FTSA | 43


Segundo Gonzalez (1990, p. 88), “Constantino queria que a igreja fosse
o ‘cimento do império’, e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar
a unidade do Império”. Assim, quando a controvérsia ariana tornou-se
pública, com o risco de dividir toda a igreja oriental, Constantino resolveu
interferir, dando opiniões sobre o assunto. A saída que ele encontrou para
resolver esse e outros impasses e colocar a vida da igreja em estabilidade,
foi a de convocar uma grande assembleia de todos os bispos cristãos.

E foi assim que, em 325, o concílio afinal se reuniu na cidade de Nicéia, na


Ásia menor, perto de Constantinopla. Hoje conhecemos esta assembleia
como sendo o primeiro concílio universal da igreja na história. Não se
sabe o número exato de bispos ali reunidos. Como informa Gonzalez,
acredita-se que tenham sido trezentos. Embora a maioria dos cristãos
ali congregados não pertencesse a nenhum dos grupos outrora
mencionados, conta-se que a maioria posicionou-se para o lado que
defendia a doutrina da Trindade, em oposição à negação da divindade de
Jesus por parte dos arianos. Aliás, a natureza divino-humana, ora apenas
divina, ora apenas humana, de Jesus foi um dos temas mais recorridos
desde o primeiro século, como vimos anteriormente.

Em Nicéia, portanto, chega-se ao que podemos chamar de ápice, naquele


tempo, das discussões acerca da natureza de Deus: divino? Humano?
Um? Dois? Três? Depois de um processo interno à reunião, que aqui não
cabe narrar, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de
Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra “consubstancial” (de
uma só substância) no documento final, chegou- se à formulação de uma
Doutrina da Trindade através do “Credo Niceno”, que hoje em dia é tido
como o credo cristão mais universalmente aceito.

Pode-se dizer, como finalização deste tópico, que as reações da Igreja a


todos estes e outros movimentos, crenças e “heresias” que surgiram até
o fim do período antigo, deram-se através de quatro principais instâncias:

44 | História do cristianismo I | FTSA


• Primeiro, o fortalecimento da autoridade apostólica: hierarquização
ou clericalização da Igreja;
• Segundo, a produção de importantes escritos: credos, confissões
de fé, manuais.
• Terceiro, Concílios eclesiásticos;
• Quarto, estabelecimentos de livros “canônicos”, os quais
deveriam ser escritos por apóstolos ou por discípulos de apóstolos;
serem livros cristocêntricos e, por fim, serem aceitos perante a
comunidade.

Acesse o AVA e assista à videoaula 3 – O contexto religioso em


que se desenvolveu o cristianismo antigo - e observe a diversidade
que caracterizou as primeiras comunidades cristãs.

Exercício de reflexão

Como você imagina que tenha se dado a construção das doutrinas


cristãs no início da igreja? Teria existido um modelo uniforme de
cristianismo, ou uma face pluralista teria sido a característica
daquela igreja antiga? Elabore a sua resposta utilizando, no mínimo,
200 palavras.

4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja fiel às origens


apostólicas
Nesta unidade, estamos aprendendo um pouco mais sobre como se
fazia teologia no período antigo com a experiência dos chamados Pais
da Igreja. A partir deles, veremos que a teologia é um saber racional,
sim, mas que tem uma dimensão espiritual e de reverência para com o
sopro do Espírito. Ao mesmo tempo, concluiremos que teologia é coisa
humana, composta a partir de experiências concretas de fé, luta e busca
por iluminação pela vontade de Deus. Sua matéria-prima é a própria vida
História do crist | FTSA | 45
e seu chão é a história. A pergunta é: de que maneira homens como
Gregório, Ambrósio, Agostinho ou Jerônimo tornaram-se pais da igreja e
em função de que questões e atuação?

Os Pais da Igreja ficaram assim conhecidos por serem os representantes


diretos e indiretos da tradição apostólica, isto é, a tradição da igreja.
Devemos tratar de uma maneira mais específica sobre quem foram os
pais, por quais critérios eles foram assim chamados e as razões pelas
quais os cristãos, hoje, ainda podem e devem recorrer à leitura dos pais.
Uma dessas características é o zelo para com as Escrituras, algo bastante
peculiar em se tratando do contexto ao qual acabamos de estudar, de
controvérsias e conflitos doutrinários.

O professor de estudos bíblicos e teológicos do Eastern College,


Christopher Hall, afirma que os pais demonstravam um enorme zelo para
com Deus e as Escrituras. E, muitas vezes, como acontece conosco, seu
zelo manifestava-se tanto em suas forças como em suas fraquezas.
Afirma que “eles têm muito a ensinar-nos sobre reverência, santo temor,
autosacrifício, autoconsciência e autodecepção, adoração, respeito,
oração, estudo e meditação” (Hall, 2000, p. 53).

Glossário
Patrística: filosofia cristã formulada pelos pais da igreja nos
primeiros cinco séculos da era cristã, buscando combater a
descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova
religião, calcando-se em argumentos e conceitos procedentes
da filosofia grega. Algumas das principais ênfases ou marcas
teológicas da “teologia patrística” são: as “duas naturezas de
Cristo” (humanidade e divindade); formulação da doutrina da
trindade; concílios ecumênicos (formulação dos Credos Niceno e
Calcedônio); combate às heresias do gnosticismo e da religiosidade
e cultura helênica (grega).

46 | História do cristianismo I | FTSA


Dentro da classificação mais ampla dos “pais da igreja”, segundo Hall,
encontramos os oito doutores da igreja: quatro doutores do oriente
e quatro doutores do ocidente, aos quais, baseados neste autor,
dedicaremos especial atenção, destacando os principais pontos que
envolvem suas vidas e pensamentos.

4.1. Os quatro doutores do Oriente


a) Atanásio (296-373)
Segundo relatos, foi um dos homens mais corajosos, astutos e cuidadosos
de seu tempo. “Não haviam respostas neutras a Atanásio” (Hall, 2000,
p. 59). Precoce no desenvolvimento de seu pensamento, escreveu
duas importantes obras (“Um discurso contra o incrédulo” e “Sobre a
Encarnação”) antes dos 20 anos de idade. Aos 33, foi nomeado bispo
da igreja em Alexandria. Durante quarenta e cinco anos, foi exilado cinco
vezes de sua igreja pela oposição firme feita às ideias do presbítero Ário.
Suas ênfases principais geralmente gravitavam em torno do tema da
encarnação do Filho. A controvérsia com o arianismo era o que balizava
sua teologia, que era principalmente soteriológica. Para ele, “somente
Deus pode salvar”, e “Cristo é adorado nas igrejas” (Hall, 2000, p. 60-61).
b) Gregório de Nazianzo (329-390)
Nasceu na pequena cidade de Nazianzo, na Capadócia. Membro de
família rica, tinha uma personalidade forte, introspectiva, talvez o que o
tenha feito se atrair para a solidão, oração e vida contemplativa. Recebeu
excelente educação ao longo de sua vida. Rejeitava posições de liderança
na igreja, em detrimento de uma vida calma e tranquila dedicada aos
estudos. Isso, porém, gerou um conflito que o acompanhou ao longo de
sua trajetória: a disposição em atender ao chamado para servir a igreja,
para depois abrir mão desta tarefa em nome da intensa vocação para a
vida monástica e acadêmica.
Embora fosse amante da academia, sua leitura das escrituras não estava
condicionada aos imperativos racionais. Neste ponto surge seu conflito
com os eunomianos, um grupo de estudiosos que defendia a razão como
História do crist | FTSA | 47
maior princípio norteador do conhecimento sobre a divindade. Gregório
combate isso ao dizer que “a saúde espiritual e a argúcia hermenêutica
não podem ser separadas” (Hall, 2000, p. 71).
c) Basílio, O Grande (330-379)
Bispo e teólogo da igreja proveniente da província romana da Capadócia.
Era amigo íntimo de Gregório, com quem estudou em Atenas por seis
anos, mergulhando na arte da retórica. Diferentemente de seu amigo,
Basílio era um homem orientado para a ação. Tanto que, após um ano
de experiência como docente na escola de Cesaréia, ele abandona a
carreira acadêmica para se dedicar à vida eclesial, como fruto de uma
“renovação espiritual” pela qual passara. Todavia, tanto quanto seu
prezado Gregório, Basílio desenvolveu uma teologia coerente com seu
pensamento. Sua ênfase está na rejeição da “alegoria” em sua versão
interpretativa da criação. O caminho mais seguro, segundo ele, é ficar em
silêncio perante o texto. A autoridade de Gênesis está no movimento do
Espírito em Moisés.
d) João Crisóstomo (347-407)
De todos os pais da igreja, exceto Agostinho, afirma Hall, a exegese de
João é a mais inteligível, acessível e disponível aos leitores modernos.
Por sua inflamada retórica, ficou conhecido como o “boca de ouro” (que
significa “Crisóstomo”, em grego). Possui uma vasta obra teológica, mais
concentrada em homilias exegéticas e sermões. É um dos pais que mais
ressaltou a importância de estudar as escrituras. “A raiz de todos os males”,
acreditava ele, “é a falta de conhecimento das escrituras” (Hall, 2000, p. 93).

4.2. Os quatro doutores do Ocidente


a) Ambrósio de Milão (339-397)
Nasceu em Tréveros, mudando-se logo depois para Roma, onde recebeu
boa educação, estudando literatura romana e grega, já que provinha
de uma família bem abastada. Era bastante respeitado por sua ética
e autoridade moral, fruto de sua vida pública íntegra no meio político.
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Assim, com a morte do bispo Auxêncio (que era ariano), Ambrósio foi
escolhido para ser o novo bispo de Milão. Embora não tivesse formação
teológica, seus estudos na língua grega o auxiliaram em sua exegese
das Escrituras. Como bispo, não se envolveu muito em controvérsias
teológicas. Era conhecido mais por seu caráter, diplomacia, coerência e
bondade, que por suas ideias e/ou qualidades como teólogo. Teve grande
influência na conversão de Agostinho, a quem batizou tempos depois.
A interpretação alegórica das Escrituras (especialmente do AT) foi sua
marca como teólogo.

b) Jerônimo (347-420)
“A vida de Jerônimo é um admirável exemplo da graça de Deus operando
por meio das ambiguidades humanas” (Hall, 2000, p. 106). Possuía
uma personalidade áspera e contraditória: extremamente sensível às
críticas, capaz de atacar alguém com uma mão, e acariciar com a outra.
É geralmente reconhecido como o erudito mais eminente entre os pais.
Reconhecido tradutor da Bíblia, dos textos hebraicos e parte do NT em
grego para o Latim, uma versão que ficou conhecida como vulgata.
Seu pensamento também é rico por tocar em termos não muito usuais
na época (como a relação entre sexo, Deus e teologia), e pelo fato de
interagir com os grandes escritores de sua época e cultural. Por isso,
como afirma Hall, relacionar nossa experiência a de Jerônimo pode
abrir novos caminhos de reflexão sobre a vida cristã e o chamado ao
discipulado no século XXI.

c) Agostinho (354-430)
Um dos mais brilhantes pensadores cristãos de todos os séculos. Seu
pensamento situa-se na transição entre a antiguidade e a medievalidade.
Foi um grande “divisor de águas”, visto que influenciou todo o pensamento
teológico posterior na igreja cristã (medieval e moderna). Teve uma
trajetória longa e conflitiva, passando por diversas crenças e movimentos
(que influenciaram a formação de seu pensamento), antes de se converter
definitivamente ao cristianismo: maniqueísmo, ceticismo, astrologia,
neoplatonismo. Suas principais ênfases teológicas foram: Graça, Livre-

História do crist | FTSA | 49


Arbítrio (embate com Pelágio), Mal (ideia de pecado original), Autoridade,
Verdade, Razão e Fé. Escreveu várias obras teológicas, comentários
bíblicos e sermões. As mais conhecidas são as suas Confissões (397-
398) e Cidade de Deus (iniciado em 413, terminado em 426).

d) Gregório, O Grande (540-604)

Quase 150 anos separam o papa Gregório I de Agostinho. Sua vida


parece, como diz Hall, providencialmente ordenada para o papel que
desenvolveria na Igreja Ocidental: seu avô (Felix II) também havia sido
papa; assim como Ambrósio, antes de se tornar monge, ele também
passou pela vida política, tendo sido prefeito de Roma; depois de um
período vivido como monge beneditino, foi indicado pelo papa Pelágio
II para servir como representante episcopal na igreja Oriental em
Constantinopla. Posteriormente, em seu posto como papa (de 590 a
604), Gregório foi responsável pelo envio de missionários para atuar
no mundo anglo-saxão, e também pela divulgação de uma espécie de
canto musical hoje conhecida como canto gregoriano. Assim, como
Ambrósio, ele tinha predileção pela alegoria como forma de interpretação
da Bíblia. Nada podia ser ignorado e desprezado, desde que saudável,
como instrumento de leitura das escrituras. Em uma de suas cartas, ele
escreveu que, na “compreensão da Escritura sagrada, tudo quanto não se
opõe a uma fé sadia não deve ser rejeitado” (Hall, 2000, p. 121). Escreveu
muitos sermões sobre diversos livros da Bíblia.
Tratou-se, nos tópicos anteriores, de um panorama histórico acerca
das controvérsias doutrinárias e produção teológica da igreja até o fim
desse período chamado antigo (com exceção da menção a Gregório
O Grande, que se situa na medievalidade). A intenção foi mostrar que
o desenvolvimento do pensamento cristão na história da igreja antiga
não se deu de uma forma unânime, uníssona, sem conflitos. Temos de
suspeitar até mesmo dos “consensos” e acordos outrora feitos, como no
caso de Constantino e Nicéia, embora a providência divina nos faça crer
que, mesmo em meio aos desacordos e falhas humanas, o Espírito de
Deus continuou soprando e agindo nos “vasos de barro”. Isso é o mais
fascinante.
50 | História do cristianismo I | FTSA
Entre os pais da igreja, vimos tanto consonâncias como discórdias, e um
exemplo disso está no caso da interpretação alegórica das escrituras:
enquanto Basílio e Crisóstomo criticaram o uso da alegoria e defenderam
uma interpretação mais literal, Ambrósio e o papa Gregório a advogaram.
Os desentendimentos entre essas importantes figuras mostram a
diversidade de interpretações, visões, e produções teológicas existentes
no meio cristão desde os primórdios. Terá sido isso algo apenas negativo?
Deixamos algumas “conclusões inconclusas” sobre as quais podemos
chegar acerca do desenvolvimento teológico e doutrinário nesse período:
• Primeiro, a reflexão teológica não é permanente e perene
(constante, imutável);
• Segundo, ela dialoga com os problemas, tendências e conflitos
de uma época;
• Terceiro, a teologia é necessariamente, e ao mesmo tempo,
espiritual e saber racional. Isso aprendemos com os pais da igreja,
especialmente com Agostinho;
• Quarto, a Teologia é coisa humana, composta a partir de
experiências concretas de fé, luta e busca por iluminação pela
vontade de Deus. Sua matéria-prima é a própria vida.

Exercício de aplicação
Os pais da Igreja tiveram um papel relevante para a formação e
estruturação da teologia cristã. Porém, não apenas o conteúdo,
mas a forma como fizeram teologia trouxe implicações para o fazer
teológico hoje. Dentre as características apontadas na unidade,
qual delas abaixo tem relevância atual?
a) A reflexão teológica como algo perene e imutável, isenta de
divergências.
b) A reprodução de dogmas sem considerar os conflitos da época,
pois a reflexão teológica é atemporal.
c) A matéria da reflexão é o chão da vida e sua história, e o caminho
de construção deve ser dialogal com os problemas de sua época.

História do crist | FTSA | 51


Considerações finais

Entre Constantino e Teodósio: por uma igreja profética frente à


oficialização romana

O escritor Leonardo Boff (1988, p. 59) ilustra a atuação da igreja em seus


primórdios ao citar a opinião de Celso – filósofo pagão do século III — que
classifica os cristãos como “os que se colocavam contra as instituições
divinas do império”. Por seu modo de viver, diria este filósofo, “os cristãos
levantaram um grito de revolta” contra a ideologia imperial que fazia do
Imperador um deus e das estruturas do vasto império algo divino. Boff
acrescenta que o novo comportamento dos cristãos provocou, sem
violência, um tipo de revolução social e cultural no Império Romano, que
está na base de nossa civilização ocidental, hoje vastamente secularizada
e esquecida de seu princípio genético. Tudo isso entrou no mundo por
causa do comportamento de Jesus que atingiu o homem pelas suas
raízes, acionando o princípio- esperança e fazendo-o sonhar com o Reino
que não é um mundo totalmente outro que este, mas esse mesmo, porém
totalmente novo e renovado (Boff, 1988, p.59).

A partir do quarto século d. C., outro quadro será vislumbrado.


Constantino, que se torna imperador romano, declara-se cristão por volta
do ano 313, após uma experiência mística que afirma ter-lhe ocorrido,
quando se preparava para uma guerra: um sinal de cruz apareceu-lhe no
sol, sob os dizeres “por este sinal vencerá”. Constantino, que era devoto
do deus Mitra, após a vitória na guerra, entendeu ser uma mensagem de
mudança. Daí em diante concedeu liberdade de culto ao cristianismo,
doou recursos para construção de templos, remunerou o clero com as
espessas do Estado, conferindo-lhe também poder administrativo no
Império, reabriu a Terra Santa aos cristãos e judeus, cuidou pessoalmente
da realização do primeiro grande concílio da igreja: o de Nicéia, em 325.

52 | História do cristianismo I | FTSA


Glossário
Mitra: deus do Sol, da sabedoria e da guerra na mitologia persa.
Representava a luz, significando, literalmente, em persa, “divindade
solar”. Ao longo dos séculos, foi incorporado à mitologia hindu e à
mitologia romana. No império romano, seu dia de celebração era
25 de dezembro, em razão do solstício de inverno.

Parte da igreja entendeu ser Constantino um instrumento divino para


ajudar a consolidar politicamente o reino de Deus na terra. Mais tarde,
outro imperador — Teodósio, em 382 — consolidou o projeto de tornar o
cristianismo a religião oficial do Império Romano. Nascia assim a Igreja
Católica Romana. A partir daí, a igreja desempenhará em tal sociedade
um papel semelhante ao da velha religião estatal, ou seja, concebendo
Cristo apenas como um rei celestial que dá apoio ao imperador cristão
que governava em seu nome.

Mas é preciso ponderar que, mesmo não sendo majoritário, sempre houve
um grupo que resistiu e buscou vias alternativas para preservar as origens
apostólicas da mensagem e da missão cristãs, lutando por um reino de
Deus que não se rendia ao reino do poder político e do dinheiro. A voz
profética voltada para o mundo e em favor da vida em sua integralidade,
resistiu, como o veremos em discussões subsequentes deste curso.

Acesse o AVA e assista a videoaula – A institucionalização da


igreja e o surgimento do papado (10 minutos)

Exercício de fixação

Com base no vídeo e também no texto da unidade, indique quais


as principais mudanças que afetaram o cristianismo a partir da
conversão do imperador Constantino:
História do crist | FTSA | 53
I - Liberdade de culto
II - Grande adesão numérica ao cristianismo
III - Não interferência do imperador na vida da igreja
IV - Restituição dos bens confiscados pelos cristãos
a) I, II, III b) I, II, IV c) II, III, IV

Referências
ANGLIN, W.; KNIGHT, A. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Casa
Editora Evangélica, 1947.

BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1988.

BORNKAMM, G. Crítica Literária de Filipenses. In: ____. Pablo de Tarso.


Salamanca: Sigueme, 1982.

COMBLIN, José. Paulo Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993.

GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1989.

GONZALEZ, Justo. A era dos gigantes. Uma história ilustrada do


Cristianismo, Vol. 2. São Paulo: Vida Nova, 1991.

MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993.

PROENÇA, Wander de Lara. Cruz e ressurreição: a identidade de Jesus


para os nossos

dias. Londrina: Descoberta, 2001.

ROMA, Hipólito de. Liturgia e catequese em Roma no século III. Petrópolis:


Vozes, 1981.

54 | História do cristianismo I | FTSA


UNIDADE III – CRISTIANISMO MEDIEVAL - Parte I
Introdução
O objetivo desta unidade é compreender as principais transformações
pelas quais passou o cristianismo na transição da antiguidade para
a medievalidade. Também, identificar alguns dos elementos que
propiciaram essas transformações e como eles influenciaram a vida da
igreja e a cosmovisão dos cristãos nos séculos adiante.

Que transformações sofreu o cristianismo ao tornar- se religião imperial


e que configuração assumiria a partir do momento em que o papado
tomou os poderes espirituais e temporais supremos, e diante de outras
mudanças no transcorrer da Idade Média? Procuraremos responder a
estas questões ao longo desta unidade, tanto abordando o processo de
institucionalização do cristianismo e a clericalização, como o surgimento
de uma de suas principais instituições, que permanece firme e forte até
hoje: o papado.

O termo “medieval”, é importante observar, muitas vezes assume um


sentido pejorativo e preconceituoso, quando é utilizado para descrever
um período intermediário (médio), de espera, no qual quase nada de
importante aconteceu, nenhum modelo interessante, padrão estilístico
atraente ou produção intelectual relevante que se possa considerar. É
visto como um tempo-lacuna, que fica no meio, entre a antiguidade e
a idade moderna, estes sim, períodos de “real validade” (Dreher, 1994,
p. 7). Muitos, inclusive, a denominam de “idade das trevas”, ou “era das
trevas”; mil anos sombrios de desilusão e derrocada de sonhos. Essa
ideia surge entre pensadores do século XV em diante, interessados em
enaltecer a influência do pensamento antigo — retomado com o advento
do Renascimento e depois com o Iluminismo — e rejeitar qualquer traço
que representasse o Antigo Regime, que, por sinal, ainda sobrevivia nas
formas de exploração dos camponeses.

Ao lado deste, coexiste e frutifica um outro mito, tão prejudicial quanto

História do crist | FTSA | 55


aquele, porém, com tonalidades mais imaginárias: é a idealização e
romantização dos tempos medievais, povoados de heróis cavaleiros
investidos em suas armaduras, que percorrem o mundo batalhando
pela justiça e pela fé, pela honra e pelo amor. Consideramos ambas as
posições no sentido de mostrar como a ideia de Idade Média pode ser ao
mesmo tempo complexa e simples, bem como de esclarecer alguns dos
preconceitos que gravitam em torno dela.

Fato é que se trata de um novo período na vida da Igreja, com novas


práticas, novas doutrinas, novos desafios, tanto em sua vida interna,
como nas relações externas. A história não se repete, está sempre se
transformando.

Nosso intuito aqui não é fazer um “passeio” pelas transformações


ocorridas nesse período, mas apenas destacar as principais, no que diz
respeito a dogmas e doutrina. Iniciamos, portanto, com as seguintes
perguntas: que transformações sofreu o cristianismo ao tornar-se
religião imperial e que configuração assumirá a partir do momento em
que o papado assume poderes espirituais e temporais supremos? Quais
foram os processos que culminaram na cristandade medieval? Que tipo
de doutrinas e dogmas são originários desse período?

1. Como se deu o surgimento do catolicismo romano?


1.1. O fortalecimento institucional
O Ocidente medieval nasce sobre as ruínas do mundo romano. Segundo
Jacques Le Goff (1994, p. 27), em Roma esse “novo” ocidente encontrou
vantagens e desvantagens; “ela foi seu alimento e sua paralisia”. A partir
da adesão de Constantino à fé cristã, no séc. IV, Roma deixa, pelo menos
oficialmente, a proteção dos deuses tutelares, em nome da proteção do
Deus cristão: paz e prosperidade parecem estar de volta sob o comando
de Cristo. Cria-se uma falsa ideia de unidade do império, tendo a religião
cristã como cimento dessa unidade. Mas, como diz Le Goff, “o cristianismo
é um falso aliado de Roma”. As estruturas romanas não passavam de

56 | História do cristianismo I | FTSA


“um quadro” onde o cristianismo poderia tomar forma. Essa religião tinha
pretensões mais universais, e não se limitava a uma só civilização.

Com a queda do Império em 476 – após um período de quase setenta


anos, iniciado com a invasão e tomada de Roma por Alarico, chefe dos
Godos, em 410 – explica Le Goff que o cristianismo será “o principal
agente de transmissão da cultura romana ao Ocidente medieval. Herdara,
sem dúvida, de Roma e das suas origens históricas, a tendência para
dobrar-se sobre si próprio” (1994, p. 29).

Saiba mais

A ideia exposta por Martin Dreher é de que “a Idade Média foi


um período de tradução”. Neste sentido, a cristandade, enquanto
herdeira da cultura greco-romana, manteve alguns laços inevitáveis
com essa cultura. Mas a linguagem conceitual com a qual ela se
dirige a esse mundo medieval, não é de tradução do antigo, mas de
recriação desse antigo em função de um novo. O que isto significa?
Quer dizer que ela recria esse mundo a partir do próprio universo
de linguagem e representação que a Idade Média apresenta,
conferindo, talvez, a “velhas práticas”, uma nova roupagem, um novo
verniz, configurando assim algumas práticas novas. Essa transição
da língua grega para a latina não se dá por meio de uma tradução,
mas de refundações e ressignificações, a partir da linguagem e do
símbolo.
DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. Vol. 02. (Coleção
História da Igreja). São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.9

História do crist | FTSA | 57


Um fator primordial para a coesão e fortalecimento do cristianismo, nesse
momento de nascimento do medievo, foi o crescimento do papado. Desde
Constantino, a autoridade da igreja, por meio dos serviços realizados
pelos clérigos e bispos regionais — sempre, é claro, debaixo das “barbas”
do imperador romano — vinha sendo cada vez mais incrementada e
valorizada. Quando as estruturas desse império, que tinha na igreja seu
elemento de coesão, começam a ruir com as invasões germânicas, ocorre
processualmente um empoderamento natural das autoridades eclesiásticas
como sendo as vozes máximas do cristianismo. A igreja passa a ser a
“grande instituição provedora da antiga ordem que fora capaz de sobreviver,
evitando ser subvertida pelos invasores” (Walker, 1981, p. 180).

Inocêncio I (402-417) foi um desses líderes de destaque e proeminência


nesse período. Reivindicou para a igreja romana a custódia da tradição
apostólica e o mérito da fundação do cristianismo ocidental e, além
disso, buscou a fundamentação no concílio de Nicéia, em 325, para a
jurisdição universal dos bispos romanos.

1.2. O nascimento do papado


Estabelecer categoricamente quem foi o primeiro papa e quando isso
se deu tem sido um assunto controverso, pois prevalecem imprecisões
históricas sobre os critérios e argumento apresentados pela própria igreja.
Porém, um nome importante e referencial aparece ainda no século V: Leão
I (440-461), que pode ser considerado o primeiro papa nos moldes como
hoje conhecemos essa figura religiosa.

Leão I teve um papel importante quando da invasão dos hunos e vândalos,


e também nos resultados a que chegou o Concílio de Calcedônia (451).
Porém, os historiadores convencionam que sua principal contribuição se
deu com a “ênfase ao primado de Pedro entre os apóstolos, tanto no que
respeita à fé, quanto no que se refere ao governo, ensinando que o que
Pedro possuíra, havia passado aos sucessores de Pedro”. Para completar,
conseguiu com que o imperador do Ocidente, Valentino III, promulgasse
58 | História do cristianismo I | FTSA
um edito ordenando a todos que obedecessem ao bispo de Roma (papa),
como portador que era do “primado de São Pedro” (Walker, 1987, p. 180).

Assim, todos os bispos de Roma, a partir de Leão I, passaram a ser


reconhecidos como sucessores do apóstolo Pedro, título cuja argumentação
justificatória principal se vale de uma interpretação das próprias palavras
de Jesus, quando declarou: “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18).
Outros bispos vierem após estes. Em suma, vale destacar que os direitos
que o papado medieval viria mais tarde reivindicar para si, já se esboçavam
por volta dos séculos V e VI. E, como observa Walker (1981, p. 181), “só no
transcurso dos séculos, e não sem fazer face a muitas vicissitudes, foi que
se deu a plena efetivação do ideal papal”. O papado, enquanto coqueluche
da igreja católica medieval, aparece como fruto de um processo, entre
conflitos, impedimentos e avanços. Fato é que ele se estabeleceu no
Ocidente, a partir do V século, e permanece até os dias atuais como força
representativa do poderio máximo da igreja católica e como guardião de
seus mais caros interesses.

Todavia, o reinado da igreja não iria se estabelecer assim, sem conflitos.


Estamos falando de um período em que a ocupação e o domínio do antigo
território do império pelos povos bárbaros é crescente, além de ser fonte
de confrontos e mortes por toda parte. Era necessário à igreja, a fim de
manter seus privilégios perante a civilização e influência sobre as questões
públicas, fazer novos acordos e estreitar novas relações, exatamente como
fizera com o antigo império, quando de sua oficialização como religião do
imperador. “A relação entre igreja e estado”, afirma David Bosch (2002, p.
273), “era, efetivamente, a de ‘dar’ e ‘receber’. O regime seria abençoado
pela igreja, e o Estado, em troca, garantiria a esta proteção e apoio”.

Como ilustração, basta mencionar a carta que o imperador carolíngio


Carlos Magno escreveu ao papa Leão III, em 796, na qual reafirmava seu
dever de defender, em qualquer lugar, a sagrada igreja de Cristo contra os
assaltos dos pagãos e as devastações dos descrentes.
História do crist | FTSA | 59
Exercício de fixação
Frente às mudanças políticas ocorridas no início da Idade Média a
igreja assume novos papéis e começa a dar forma a novas formas
de estrutura interna. A respeito do papel nascente do papado,
podemos afirmar que:
a) Não é possível indicar nenhum personagem específico como
ponto de partida do papado nos moldes como essa figura é hoje
conhecida.
b) Nos inícios do medievo o crescimento do papado se constituiu
como um fator de coesão e fortalecimento do cristianismo.
c) O fortalecimento das autoridades eclesiásticas não tem nenhuma
correlação com a ruína do império romano.
Acesse o AVA para fazer o exercício!

Saiba mais
A relação entre o poder da Igreja e o poder do Império
A relação entre imperador e papa, durante o início da Idade Média,
jamais foi livre de tensão; havia quase constantemente uma
silenciosa contenda pela supremacia. Ao mesmo tempo, sabiam
que se necessitavam mutuamente. O que valia para a esfera mais
alta também valia no nível local; cada bispo ou sacerdote dependia
da boa vontade e apoio das autoridades, e todo governante local
requeria a aprovação da igreja. A dependência da igreja em relação
ao poder imperial, também no trabalho missionário, constituía
tanto uma necessidade quanto um ônus (BOSCH, David. Missão
Transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão.
São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 273)

60 | História do cristianismo I | FTSA


2. Como era a religião da igreja medieval e a religiosidade
do povo?
2.1. Autoridade, clericalismo e exclusão dos leigos
O medievalista Hilário Franco Jr. fala de uma “linha tendencial” que ocupa
a igreja cristã por toda a Idade Média, e resume a participação política e
eclesiástica do cristianismo nesse período, dizendo que, num primeiro
momento, a organização da hierarquia eclesiástica visava à consolidação
da recente vitória do cristianismo. A seguir, a aproximação com os
poderes políticos garantiu à igreja maiores possibilidades de atuação.
Em uma terceira fase, o corpo eclesiástico separou-se completamente
da sociedade laica e procurou dirigi-la, buscando desde fins do século XI
erigir uma teocracia que esteve em via de se concretizar em princípios
do século XIII. Contudo, por fim, as transformações que a cristandade
conhecera ao longo desse tempo inviabilizaram o projeto papal e
prepararam a sua maior crise, a Reforma Protestante do século XVI
(Franco Jr., 2006, p. 67).

Na opinião de Franco Jr. (2006, p. 69), a Idade Média nasceu da articulação


que a igreja fez entre elementos da romanidade e elementos da cultura
germânica. Ela foi “oponto de encontro entre aqueles povos”. Foi necessária,
porém, a criação de uma estrutura e hierarquia próprias, voltadas ao
controle do laicato pelo clero, supervisionando ofícios religiosos, dando
orientação em questões referentes a dogma e doutrina, realizando obras
sociais, protegendo os mais pobres, oferecendo privilégios aos mais
ricos, combatendo (e, paradoxalmente, legitimando) o paganismo.

Glossário

Germânico: referente à atual Alemanha. Do conjunto de línguas


faladas por tribos germânicas é que se originaram o inglês, o
alemão, o neerlandês e as línguas escandinavas.

História do crist | FTSA | 61


Nesse momento se acentua o controle dos “bens de salvação” pelo clero.
Ocorre o que eu chamaria de cartada definitiva da hierarquia em relação
à exclusão dos leigos (que já vinha gradativamente ocorrendo), seja na
administração dos sacramentos, seja no acesso às escrituras. O grego,
aos poucos, deixa de ser a língua-mãe, língua de acesso, dando lugar
ao latim, língua restritiva, especialmente às camadas populares. A igreja
adota o latim como seu dialeto principal, passa a usar a vulgata, versão
em latim da Bíblia, traduzida por Jerônimo, e as missas (outra instituição
desse período) também são realizadas em latim.

De um movimento profético, em suas origens, o cristianismo passa


a ser uma religião cada vez mais institucionalizada e clericalizada.
Isso se dava por um processo de legitimação dessa autoridade
junto às camadas leigas. Boreau afirma que a concentração de todas
essas atividades nas mãos de apenas alguns cristãos era aceita com
naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que tal poder lhes fora atribuído
pela própria Divindade: segundo o texto bíblico, Cristo dera aos apóstolos
autoridade para expelir demônios, curar doenças e difundir sua doutrina.
Os apóstolos, por sua vez, transmitiram esse poder aos bispos, isto é,
os anciãos da comunidade, que fizeram o mesmo com seus auxiliares.
Logo o clero se formava pela transferência de certo poder extra-humano
por parte de quem possuía, para indivíduos que desde então passavam a
integrar a mesma comunidade sagrada. Desde o princípio, por sua própria
natureza, o clero estava distanciado dos demais cristãos (Boureau, 2002,
p. 214). Muito rapidamente, desde o III século, a organização da igreja foi
hierarquizando os ministérios, que antes eram destinados a todo o povo
de Deus, conforme se pode notar nas palavras de Alain Boureau:

Os ofícios carismáticos de profeta, de doutor, de confessor


são perdidos ou integrados ao “carisma da verdade”
(charisma veritatis certum) atribuído aos ministérios
propriamente sacerdotais. Tal institucionalização
do carisma conhece um desenvolvimento particular
no Ocidente, no qual as funções de bispo e de papa
adquirem uma crescente amplitude, ligada a uma
62 | História do cristianismo I | FTSA
espiritualidade específica, mas também à ausência
de um poder imperial forte e à solidez das estruturas
territoriais romanas utilizadas pela rede episcopal.
Assim, a igreja ocidental constitui-se efetivamente em
garantia da fé, em objeto substantivo da confiança no
Cristo (2002, p. 414).

Hilário Franco Jr., um historiador, obviamente não considera o fator


teológico que envolve a questão. Mas, apenas para realçar, as lideranças
eclesiásticas foram constituídas, desde o tempo apostólico, para o serviço
à igreja, manutenção da ordem, ensino do Evangelho e esclarecimento
frente às crenças e ataques de seu tempo. Com o passar dos séculos
ela foi se perdendo em meio à querelas de poder, prestígio, autoridade e
doutrina. E o ministério ordenado, que entre os primeiros cristãos nasceu
sob o signo do serviço e do amor, começa a se desvirtuar e gerar essa
“natureza” de separação e distanciamento, à qual alude Franco Jr, em
relação aos demais cristãos, subvertendo os princípios sob os quais fora
instituída (ver 1 Pe 5:1-4).

A cobrança de Pedro em torno dos líderes da igreja, no aludido texto, não


era para que se transformassem em líderes polivalentes, personalistas
e gananciosos, como muitos foram através dos séculos e como
alguns hoje, consciente ou inconscientemente, ambicionam se tornar.
Sua tarefa era mais ampla e difícil: conduzir o rebanho com o desejo
de servir (não dominar) e em busca da mútua cooperação, como
aconteceu com os primeiros cristãos (At 2:42-47). Não é o pastoreio do
isolamento, da imunidade ou superioridade em relação às ovelhas, mas
da sujeição, encarnação e envolvimento dignos de servos participantes
dos sofrimentos e também da glória de Cristo. Veremos, mais adiante,
que o monasticismo foi uma das instituições que, em parte, conseguiu
preservar esse ideal do evangelho, a partir do VI século.

Até aqui, realçamos o mundo de práticas religiosas institucionalizadas;


agora, passamos para o das não institucionalizadas ou, até certo ponto,
não reconhecidas pela Igreja, e por isso subversivas; passaremos, portanto,
História do crist | FTSA | 63
não somente pelos processos que envolvem o poder e a instituição da
igreja, mas principalmente por algumas das crenças e práticas religiosas
que vão sendo reafirmadas, criadas e alimentadas entre os do povo, com
ou sem a anuência da ordem, seus dogmas e doutrinas.

O historiador André Vauchez, em sua obra A Espiritualidade na Idade


Média Ocidental, diz que para falar de espiritualidade na Idade Média
é preciso ir além de um pensamento que a postule como mera adesão
a um corpo de doutrinas e dogmas, mas também “uma impregnação
dos indivíduos e das sociedades pelas crenças religiosas que eles
professam”. A espiritualidade que passa a ser desenvolvida nesse
momento, especialmente entre as camadas populares (pobres, artesãos,
camponeses), tem mais a ver com expressividades e religiosidades que
são fruto de uma interiorização e individualização da mensagem cristã
nas pessoas, em contato com as crenças pagãs (Vauchez, 1995, p.11).

Exercício de aplicação
Já nos primeiros séculos começou-se a delimitar uma distinção
acentuada entre clero e laicato. Ao longo da história da igreja,
as tensões surgiram devido a esta separação. Dentre as causas
indicadas na unidade, quais características abaixo podem ser
apontadas como fatores desse processo de separação?
I) A concentração de funções nas mãos de poucos e sua
consequente distorcida legitimação teológica.
II) Uma aplicação clara das diretrizes bíblicas sob a instituição
de uma hierarquia para controle e submissão da igreja sob as
diretrizes divinas.
III) Uma deturpação de funções vinculadas ao serviço da
comunidade, fazendo do ministério ordenado um fator de distinção
e separação.
a) I e II b) I e III c) II e III
Acesse o AVA para fazer o exercício!

64 | História do cristianismo I | FTSA


2.2. Religiosidade popular
Da sacralidade das formas organizadas, deslocamo-nos para a sacralidade
dos ritos e da religiosidade popular. Comentamos anteriormente que nos
séculos V e VI houve uma profusão de crenças místicas que se misturam
com a fé cristã. No século VIII, a clericalização só fazia aumentar o fluxo
dessas crenças entre os leigos. Sobre o sincretismo na Idade Média,
Vauchez afirma que:

Pressentimos que a vida espiritual das massas


transbordava dos limites obrigatórios da instituição
eclesiástica, e até do dogma cristão. [...] Mesmo nas
regiões cristianizadas de mais longa data, a religião
oficial ainda era apenas, em muitos casos, um verniz
que recobria superficialmente elementos heterogêneos
qualificados de “superstições” pelos clérigos (1995, p.23).

A natureza ou o teor dessas práticas também já foi comentada na


unidade anterior. Vauchez destaca algumas novas e velhas práticas que
vigoravam nesse momento, como o culto dos mortos, como mostra, no
século IX, a instituição da festa de todos os santos, satisfazendo um dos
caprichos da piedade popular, à medida que enfatizava a vocação para
a salvação dos fiéis defuntos. Estes ritos foram introduzidos no Cânon
da missa, mostrando que “a espiritualidade do clero e a dos fiéis não
constituíam nessa época dois mundos sem comunicação”.

Essa observação de Vauchez incrementa as suspeitas de que o combate


às superstições nem sempre foi algo assim tão ferrenho, a julgar
pelas conveniências e/ou tendências de cada momento desse período
medieval, em constante mudança.

Outro encontro entre piedade popular e clerical está no culto dos santos
e anjos. Segundo Vauchez, a imagem de um Deus-Juiz, implacável,
onisciente e distante, que estava incutida no imaginário dos fiéis,
fazia com que o desamparo desses só aumentasse. Havia, assim,

História do crist | FTSA | 65


a necessidade de recorrer a mediadores, entidades espirituais mais
acessíveis aos homens comuns, papel este desempenhado pelos santos
e os anjos. Seu papel era o de conferir validade aos desejos dos fiéis e
atendê-los na medida do possível. Mas a principal função era a proteção
dos homens. “Os arcanjos, únicos individualizados, eram gênios tutelares
das comunidades humanas e dos detentores do poder”.

Outra pratica que só crescia em vigor e prestígio era o culto das relíquias.
Relíquias eram os objetos, ou até supostas partes do corpo, dos santos
do passado (apóstolos, mártires), que passaram a ser veneradas ao
representarem o contato desses fiéis com o “outro mundo”, também
pelo “dinamismo benéfico” delas emanado, tornando possíveis vitórias e
curas nas mais diferentes áreas da vida. Desse modo, a espiritualidade
medieval assumia contornos cada vez mais definidos: o contato com o
sobrenatural se dava por meio de gestos, expressões da alma e sacrifícios
feitos pelos fiéis.

Fórmulas, barganhas e promessas: elementos constitutivos de uma


religião que se tornava cada vez mais utilitária e voltada para a satisfação
das carências pessoais. Paralelamente, tanto ao espiritualismo utilitário
que se desenvolvia na periferia da igreja, como ao engessamento
institucional e dogmático vislumbrado no centro, desenvolvia-se uma
forma “alternativa” de espiritualidade no período medieval, que é a
espiritualidade monástica.

Em síntese, a flexibilização crescente dos costumes e das práticas religiosas


no seio da igreja cristã e à revelia dos dogmas e leis, que supostamente
deveriam coibir tais práticas, conduziu a uma espiritualidade ao mesmo
tempo em que mais intimista, também mais utilitária, no sentido de
tentar manipular o sagrado em função dos desejos e anseios humanos.
Vimos, portanto, que a espiritualidade que passa a ser desenvolvida nesse
momento, especialmente entre as camadas populares (pobres, artesãos,
camponeses), tem mais a ver com expressividades e religiosidades que
são fruto de uma interiorização e individualização da mensagem cristã nas
pessoas, em contato com as crenças pagãs.
66 | História do cristianismo I | FTSA
Exercício de aplicação

A respeito da dinâmica observada na construção das espiritualidades


no período medieval, podemos destacar algumas relações que se
fazem presentes na construção das diferentes espiritualidades ao
longo do tempo:
a) A espiritualidade do clero sempre será a mesma desenvolvida
por todos os fiéis, não havendo conflito entre ambas.
b) Uma mesma configuração histórica pode propiciar a formação
de distintas espiritualidades; por exemplo, as espiritualidades
utilitária e monástica no período medieval.

Acesse o AVA para fazer o exercício e ver a reação!

Acesse o AVA e assista a videoaula: Surgimento de doutrinas e


dogmas no catolicismo medieval (10 minutos)

3. Doutrinas e ritos praticados na Idade Média


3.1. O surgimento de heresias
Para a consolidação da estrutura hierárquica e autoridade, vistas em
itens anteriores, um outro elemento, paradoxalmente, deu sua parcela de
contribuição: as chamadas “heresias”.

De acordo com Hilário Franco Jr. (2006, p. 69), estas eram produto do
sincretismo que fazia a força, mas também a fraqueza do cristianismo.
De fato, ao reunir e harmonizar componentes de várias crenças da época,
a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível
de interpretações discordantes do pensamento oficial do clero cristão.
Do ponto de vista deste, heresia era, portanto, um desvio dogmático que
colocava em perigo a unidade da fé.
História do crist | FTSA | 67
Saiba mais
Importantes concílios da igreja antiga:
A forma mais usual de debate e combate às heresias foi, desde o
século II, a realização de grandes concílios ecumênicos (universais),
como os de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e
Calcedônia (451). Porém, com o estabelecimento da cristandade
a partir da Idade Média, foi necessário, em certos momentos, fazer
“vistas grossas” frente a rebelião de crenças populares que se
uniram ao catolicismo.

Na desordem provocada pelas invasões, como afirma Le Goff (1994,


p.60), os bispos e os monges haviam se tornado eles mesmos chefes
polivalentes de um mundo desorganizado: juntavam à sua função
religiosa uma função política, negociando com os bárbaros; uma função
econômica, distribuindo víveres e esmolas; uma função social, protegendo
pobres contra poderosos; e até uma função militar, organizando a
resistência ou lutando com as ‘armas espirituais’, onde já não houvesse
armas materiais.

Tentaram conter o avanço dos costumes bárbaros, com a aplicação


de disciplinas penitenciais e da lei canônica (o início do século VI é,
simultaneamente à codificação civil, época de realização de sínodos e
concílios). Porém, como observa Le Goff, eles mesmos estavam sendo
“barbarizados” e viam-se incapazes de lutar contra as ingerências da
barbárie dos grandes (líderes, chefes dos povos) e do povo. Usaram,
assim, a velha tática de guerra do “se não pode vencê-los, junte-se a
eles”. A igreja começa a institucionalizar práticas que até então eram
avidamente rechaçadas como superstições e heresias, ratificando, nas
palavras de Le Goff (1994, p. 61), a regressão da espiritualidade e da
prática religiosa: “julgamentos de Deus, inaudito crescimento do culto
das relíquias, reforço dos tabus sexuais e alimentares em que a mais
primitiva tradição bíblica se alia aos costumes bárbaros”.

68 | História do cristianismo I | FTSA


Desde a sua oficialização, no séc. IV, como aponta Leonildo S. Campos,
o cristianismo se tornou um produtor hegemônico de símbolos, práticas
e rituais religiosos. Nesse período, com a abertura ao culto cristão, já
vinha ocorrendo um progressivo processo de sincretismo, sob os olhos
do imperador. Como descreve Campos (1997, p. 170), desde então,
houve uma espécie de adaptação do culto cristão aos novos lugares de
adoração, alguns deles anteriormente dedicados aos deuses pagãos.
Vários santuários locais foram reconsagrados aos mártires e santos
cristãos, e com o passar dos séculos, um comércio de imagens, ícones
e relíquias sagradas se estabeleceu ao redor deles, práticas essas que
constituíram mais de mil anos depois, aos olhos dos reformadores,
evidências claras da “paganização” da Igreja cristã.

Após a desintegração do poder político do Império Romano, a igreja


permaneceu como o único centro de referência capaz de manter a
tradição e os costumes do passado. O uso da violência e a imposição
da fé, especialmente sobre uma população rural portadora de crenças
mágicas e pagãs, tornou-se algo comum naquele momento. Entretanto,
como acentua Campos, essa catequese “apenas formou uma camada
de verniz sobre uma antiga realidade religiosa”. Como também aponta
Keith Thomas (1991, p. 171), a aristocracia eclesiástica não conseguiu
influenciar profundamente as massas populares, e por toda a parte na
Europa, “multiplicavam-se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros
fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam poder de curar enfermidades
e proteger as pessoas dos perigos”.

Uma das características da espiritualidade medieval no século VIII foi


o retorno ao Antigo Testamento. Dela, o que marcou profundamente
foi a vida espiritual e as mentalidades religiosas. Na época do Império
carolíngio o cristianismo tornara-se mais e mais uma questão de práticas
exteriores e cumprimento de lei e regras espirituais. O moralismo
carolíngio e os costumes bárbaros facilitaram mais um regresso às
praticas judaizantes, e a fé cristã corria o risco de se deformar em credos
e costumes supersticiosos.
História do crist | FTSA | 69
Glossário
Carolíngio: Referente a Carlos Magno (742 - 814), cujo personagem
é o maior representante do Império Carolíngio – dinastia que ocupou
grande parte da região central da Europa medieval, constituindo o
embrião da atual França.

Nesse tempo, a vida litúrgica toma lugar crescente na vida dos fiéis. Os
paramentos da missa evoluem e, com a constante clericalização, há uma
exclusão dos fiéis da comunhão, que se evidenciava por diversas razões
práticas (Vauchez, 1995, p. 16-17):
• Primeiro, o culto e seus ritos tornaram-se um “apanágio de
especialistas”;

• Segundo, houve a inserção do canto gregoriano (forma erudita de


canto, bem alheia ao costumes e cultura do povo);

• Terceiro, a adoção do latim como língua cultual; as leituras eram


feitas em latim, tornando impossível a compreensão pela maioria
das pessoas, de cultura germânica;

• Quarto, uma separação da relação que havia entre vida cotidiana


e sacramento; elimina-se tudo o que poderia haver de realista e
concreto no sacramento. Por ex. A comunhão (eucaristia) passou
a ser dada, não mais na mão do fiel, mas diretamente em sua boca.

3.2. Valorização da magia


Um legado do catolicismo medieval foi, portanto, o apego às relíquias
ou objetos mágicos como fetiches de proteção. Estes eram guardados
nos lares dos devotos com o sentido de ajuda contra doenças, infortúnios

70 | História do cristianismo I | FTSA


do demônio, intempéries ou pragas que poderiam ameaçar as colheitas.
Thomas exemplifica isto dizendo que o ritual básico era o benzimento
com sal e água para a saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos.
Mas os livros litúrgicos da época também traziam rituais para benzer
casas, gados, culturas, embarcações, ferramentas, armas, cisternas e
fornalhas. Havia fórmulas para abençoar homens que se preparavam para
sair em viagem, para travar um duelo, para entrar em batalha ou mudar
de casa. Havia métodos para abençoar os doentes e tratar de animais
estéreis, para afastar o trovão e trazer a fecundidade ao leito matrimonial.
Fundamentalmente em todo esse procedimento era a ideia de exorcismo,
o esconjuro formal do demônio, expulsando de algum objeto material por
meio de preces e da invocação do nome de Deus. A água benta podia ser
utilizada para afastar maus espíritos e vapores pestilenciais. Era remédio
contra a doença e a esterilidade (Thomas, 1991, p. 38).

Glossário
Magia: prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso
dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais, valendo-se da
intervenção de seres sobrenaturais e da manipulação de algum
princípio oculto supostamente presente na natureza, seja por meio
de fórmulas rituais ou de ações simbólicas.

Destarte, a igreja, nas palavras de Thomas, atuava como “repositório


de poderes sobrenaturais”, subsidiando crenças sobre as quais nem ela
mesma tinha o controle. Esses poderes podiam ser distribuídos aos
fiéis para auxiliá-los em seus problemas do cotidiano. As concepções do
sagrado conferiam-lhe um caráter de “sagrado selvagem”, parafraseando
Roger Bastide. O mais paradoxal é que essas crenças surgiam, sobretudo,
ligadas aos sacramentos tradicionais da igreja, como o batismo e a
eucaristia, além de rituais como a missa (que entra em vigor por volta do
século IV), o culto mariano – que ocorre como uma adaptação do antigo
culto à deusa Diana, a partir da homologação da devoção à Maria como
Mãe de Jesus, no concílio de Éfeso em 431 – e o culto aos mártires ou
História do crist | FTSA | 71
a adoração dos santos. Essa última, ao lado do culto mariano, tornou-se
uma das formas de devoção popular mais comuns e mais bem difundidas
no período medieval. Acreditava-se na proteção dos santos, que estavam
sempre a postos para cuidar de uma variedade de eventualidades da vida
cotidiana.

Acesse o AVA e assista ao vídeo: A residência de Maria, mãe de


Jesus, em Éfeso (10 minutos) disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=bH0E_pLZ__4

O historiador Keith Thomas diz que a proteção dos santos conferia um


sentido de identidade e existência corporativa a pequenas instituições
que, do contrário, seriam indiferenciadas. Foi por isso que continuaram a
ter popularidade, como nomes para escolas e universidades mesmo numa
era protestante. Mas a adoração dos santos em geral dependia da crença
de que os santos e santas do passado, além de terem sido exemplos
de um código ideal de conduta moral, podiam ainda empregar poderes
sobrenaturais para aliviarem as adversidades de seus adeptos na terra.
As doenças, assim como as profissões e localidades, eram atribuídas aos
cuidados especiais de um santo apropriado, pois, na mentalidade popular,
os santos eram usualmente vistos mais como especialistas do que como
clínicos gerais (Thomas, 1991, p.37).

Não obstante levarmos em consideração esses elementos, vale ressaltar,


segundo Thomas, que não era a igreja quem oferecia diretamente e
deliberadamente esse “corpo mágico” de ritos e crenças aos leigos. “As
principais preocupações da igreja eram espirituais. Em sua maioria, as
alegações de magia na religião eram parasitárias de suas doutrinas”
(Thomas, 1991, p. 51). Ou seja, pela leitura que faz esse historiador, era
72 | História do cristianismo I | FTSA
apenas em âmbito popular que se creditava um poder mágico a tais
doutrinas da igreja; as crenças populares eram, nesse sentido, releituras
ou ressignificações, desde uma perspectiva originária daqueles meios,
do corpo ritual e dogmático tradicional estabelecido e disponibilizado
pela igreja. Por isso, pode-se concluir que ela foi em parte “culpada” por
possíveis desvios doutrinários ou “heresias”, e em parte inocente ou
mera expectadora de tudo aquilo. Contudo, a igreja combatia e deixava
de combater as chamadas “superstições” em seu seio conforme as
conveniências do momento, adotando uma postura ambivalente: ora
lutando contra as crenças populares, ora endossando ou fazendo “vistas
grossas” frente a elas. É como pressupõe a lógica oferecida por Thomas
(1991, p. 54), quando diz que, se a crença na eficácia mágica da hóstia
servia para aumentar o respeito pelo clero e fazer com que os leigos
fossem mais regularmente à igreja, por que não tolerá-la tacitamente?
Práticas como a veneração de relíquias, a recitação de preces ou o uso
de talismãs e amuletos podiam chegar a excessos, mas qual o problema,
enquanto o efeito disso fosse unir mais o povo à verdadeira igreja e ao
verdadeiro Deus? O que contava era a intenção do devoto, e não os meios
empregados. Desde que tais práticas refletissem uma autêntica confiança
em Deus e seus santos, delas não poderia advir dano sério.

Os líderes e articuladores da Reforma Protestante, no século XVI, viriam


a reagir energicamente contra as conotações mágicas vivenciadas pela
igreja católica medieval, atribuindo às mesmas, inspirações do mal,
associando-as à prática de necromancia. Os ritos católicos eram vistos,
em sua maioria, como metamorfoses mal disfarçadas de cerimônias
pagãs anteriores, os primeiros reformadores também começaram a
suspender costumes tradicionais do calendário. Evidentemente, essa
nova atitude protestante em relação à magia eclesiástica não logrou uma
vitória imediata, e algumas tradições do passado católico continuaram a
subsistir (Thomas, 1991, p. 66-70).

História do crist | FTSA | 73


Exercício de fixação

Sobre a valorização da magia no catolicismo medieval, podemos


afirmar que:
a) Trata-se de um processo no qual um dos polos (o clero) era
completamente ativo na transmissão dos conteúdos de fé e o outro
(os leigos) completamente passivo, direcionado unicamente pelas
instruções do clero. Assim, a responsabilidade total deve recair
sobre a incapacidade da igreja em lidar com a religiosidade popular.
b) O desenvolvimento das crenças mágicas na Idade Média mostra
que o processo de assimilação da fé é um processo também ativo,
de ressignificação de práticas e crenças. Neste sentido é difícil
pensar em um controle absoluto, mas, isso também não isenta a
igreja de deixar de lado uma visão crítica e não segundo as suas
conveniências das práticas adotadas pelos fiéis.

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Considerações finais
Retomando de maneira breve o conteúdo das duas últimas unidades,
dada sua interligação: vimos, em primeiro lugar, que o desenvolvimento
do papado foi extremamente relevante para o fortalecimento institucional
do cristianismo em meio a um império em ruínas e as facetas de um novo
mundo (medieval), cheio de “armadilhas” e desafios, que requereria novas
posturas e adaptações por parte da igreja. Em um segundo momento,
a clericalização dos ministérios e a exclusão do povo de Deus à mera
passividade (pelo menos em tese) foi outra forma que a igreja encontrou
para se articular e se firmar frente às mudanças políticas e sociais na
Idade Média.

Em terceiro lugar, fez-se uma observação geral acerca das crenças e


doutrinas que emergiram nesse período, ora sendo combatidas, ora
74 | História do cristianismo I | FTSA
sendo legitimadas, de acordo com a estratégia e/ou a conveniência do
momento. Nisso vemos claramente destacada a capacidade da religião,
em um sentido mais amplo, tanto de dogmatização e intolerância,
quanto de flexibilização dos costumes e práticas que configuram uma
vida consagrada. Vislumbramos, de modos diferentes, essa adaptação
sendo feita no cristianismo contemporâneo, seja entre católicos ou
protestantes. A adaptação, seja de que ordem for, não é um problema. O
problema ocorre quando essa adaptação compromete a integridade da
mensagem e do testemunho cristãos. E quanto a isso precisamos estar
atentos. O conhecimento histórico, assim, nos ajuda a compreender a
realidade e interpretá-la, construindo diretrizes para novas ações no
tempo presente.

Outro fator para o qual precisamos atentar é quanto à nossa tendência


ao julgamento. Frisamos este ponto já na primeira unidade, mas é uma
ressalva sempre cabível: avaliar criticamente não equivale a julgar de forma
anacrônica; o julgamento é um dos lugares impróprios da história e da
teologia. Dadas as alternativas históricas que estes cristãos medievais
tinham à sua disposição, as escolhas aqui apresentadas foram as que
pareceram ter mais nexo para eles. “É preciso perguntar se nossas opções,
em circunstâncias similares, teriam sido mais adequadas, mesmo se
diferentes” (Bosch, 2002, p. 274).

Exercício de reflexão

Olhando para os caminhos construídos pela Igreja em sua relação


com o Estado, quais são algumas das lições que podemos tirar
para a reflexão frente as alternativas que temos hoje? (mínimo de
200 palavras)

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História do crist | FTSA | 75


Glossário
Anacronismo: atribuir a uma época ou a um personagem ideias e
sentimentos que são de outra época; julgar atitudes ou fatos que
não estão de acordo com sua época.

Referências
BOUREAU, Alain. Fé. In: LE GOFF, J. & SCHIMITT, J. C. Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. Vol. 1. São Paulo: EDUSC, 2002.

BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de paradigma na


teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002.

CAMPOS, Leonildo S. Templo, Teatro e Mercado. Petrópolis: Vozes; São


Paulo: Simpósio e UMESP, 1997.

DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. Vol. 02. (Coleção História


da Igreja). São Leopoldo: Sinodal, 1994.

FRANCO JR, Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo:


Brasiliense, 2006.

LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Vol. I. Lisboa:


Editorial Estampa, 1994.

THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia


das Letras, 1991.

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos


VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1987.

76 | História do cristianismo I | FTSA


UNIDADE IV – CRISTIANISMO MEDIEVAL

Introdução
Nos próximos tópicos, vamos estudar outro fenômeno religioso
importante da Idade Média: o monasticismo. Buscamos compreender,
em linhas gerais, o que se entende por monasticismo? Onde ele surgiu
e com que proposta? Em que medida ele se diferenciava do modelo de
igreja vigente, e/ou em que medida apenas lhe servia de apoio? Quais
são os desdobramentos possíveis desse movimento? Em que medida
o monasticismo pode ser considerado um “agente missionário” durante
esse período? Que tipo de influência exerceu na história do cristianismo,
não apenas na Idade Média, mas também em seu futuro? Em linhas
gerais, compreender o que foi o monasticismo, suas principais correntes e
influências no mundo medieval; entender em que medida o monasticismo
pode ser considerado um “agente missionário” durante esse período.
Neste aspecto, cabe destacar seu papel voltado à integralidade da missão:
cuidado social de desvalidos, doentes, órfãos, idosos e viúvas; trabalho
educacional oferecido a quem não podia pagar por ele; produção de livros
e formação de bibliotecas, assegurando a preservação e transmissão
de conhecimentos e saberes às gerações futuras; o conhecimento de
plantas, responsável por assegurar tratamento e cura das vítimas mais
expostas a um tempo de epidemias coletivas, salvando assim os que se
encontravam mais alijados do amparo social.

Também veremos sobre o Islamismo. Este tem sido, nos dias atuais,
assunto recorrente nos meios de comunicação, assim como tema cada
vez mais desafiador nos campos de estudo que tratam do cenário religioso
contemporâneo. O movimento islâmico tem suas raízes históricas na
Idade Média, sendo, já em sua gênese, protagonista de tensões e embates
envolvendo cristianismo e judaísmo, especialmente pelas disputas e
controle de territórios sagrados. Objetivamos conhecer o surgimento do
Islamismo; analisar a relação do Islã com o cristianismo e o judaísmo
História do crist | FTSA | 77
no contexto medieval; trazer reflexões para o cenário religioso atual que
envolve as religiões monoteístas.

Veremos por que uma reforma passou a ser vista como necessária na
Igreja, ainda no período medieval, culminando na ruptura protestante
configurada no século XVI? Por que muitos cristãos, por diferentes
motivos, especialmente a partir do século X, passaram a ver a necessidade
de reforma? Buscaremos conhecer os motivos que levaram cristãos
em diferentes momentos e lugares do contexto medieval a desejarem
uma reforma na igreja; identificar e caracterizar alguns dos aspectos
teológico-doutrinários que são vistos como preponderantes para a busca
por reformas; estabelecer noções preparatórias para compreensão dos
movimentos denominados de “pré-reformadores” no período medieval, a
serem analisados na próxima unidade. Diante disto, ainda analisar: O que
foram os chamados movimentos pré-reformadores e por que assim são
denominados? Qual a importância deles nesse período de transição? No
que de fato avançaram em relação ao status quo religioso de seu tempo?
Começamos a estudar aqui um período importante na história da igreja,
pois os personagens e acontecimentos desse período precederam e
abriram passagem para aquilo que tempos depois se passou a denominar
Reforma Protestante.

1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais


1.1. As origens do Islã
Discórdia familiar: assim começa a descrição bíblica do que viria a se
tornar um histórico conflito entre povos que professam a fé monoteísta.
Segundo a narrativa bíblica do Gênesis, não podendo ter filho de sua
mulher Sarai, Abrão tomou por esposa a sua escrava egípcia, Hagar, da
qual viera a nascer-lhe Ismael. Esta atitude, que foi inicialmente sugerida
pela própria Sarai, tinha precedentes legais no Código de Hamurabi
(elaborado na Mesopotâmia), o qual prescrevia para os contratos de
casamento, a obrigação de prover-se esposa para o marido, caso a
mulher não pudesse lhe gerar filhos.
78 | História do cristianismo I | FTSA
Glossário
Mesopotâmia: termo que significa terra ou região entre rios; entre
os rios Tigre e Eufrates, localizados na Ásia.
Código de Hamurabi: conjunto de leis criadas na Mesopotâmia, por
volta do século XVIII a.C., pelo rei Hamurabi, da primeira dinastia
babilônica. O código é baseado na lei de talião, “olho por olho, dente
por dente”. As 281 leis foram talhadas numa rocha de diorito de cor
escura.

A concepção de Ismael, entretanto, gerou desentendimento e conflito


entre senhora e escrava: “Vendo Hagar que havia concebido, foi sua
senhora por ela desprezada ... Disse Sarai a Abrão: seja sobre ti a afronta
que se me faz a mim [...] Sarai humilhou-a, e ela fugiu de sua presença”
(Gn 16:1-6).

Depois disso, um anjo do Senhor apareceu-lhe “no caminho do deserto


de Sur” (v.7) ordenando a Hagar que voltasse para a casa de sua senhora,
fazendo-lhe, inclusive, uma promessa: “Multiplicarei sobremodo a sua
descendência [...] Concebeste, e darás à luz um filho a quem chamarás
Ismael [...] Ele será entre os homens como um jumento selvagem;
a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele”. (Gn 16:9-
12). Interessante é notar que as promessas feitas por Deus a Abrão
incluem também Ismael: “Dar-te-ei à tua descendência a terra das tuas
peregrinações, toda a terra de Canaã em possessão perpétua, e serei
o seu Deus [...] abençoá-lo-ei (Ismael), fá-lo-ei fecundo e o multiplicarei
extraordinariamente; gerará doze príncipes, e dele farei uma grande
nação” (Gn 17:8,20). Ismael também foi incluído na aliança pelo rito da
circuncisão, juntamente com seu pai (Gn17: 23-27).

Mais tarde, de forma miraculosa, a estéril Sara também viria a conceber,


seria um menino sobre o qual também repousaria grande e até maior
História do crist | FTSA | 79
promessa: “Sara tua mulher te dará um filho e lhe chamarás Isaque:
estabelecerei com ele a minha aliança, aliança perpétua para a sua
descendência” (Gn 17:19).

Um novo desentendimento surge quando ocorre o nascimento daquela


criança: “Vendo Sara que o filho de Hagar, a egípcia, caçoava de Isaque,
disse a Abraão: rejeita essa escrava e seu filho, porque o filho dessa
escrava não será herdeiro com Isaque meu filho” (Gn 21:9-10).

A escrava então conduziu o seu filho ao deserto, onde se tornou guerreiro,


vindo a se casar com uma egípcia. Ismael morreu com “cento e trinta e
sete anos” (Gn 25:17) e a sua descendência passou a ocupar as regiões
da atual Arábia Saudita (v. 18).

1.2. A ocupação da Palestina pelo povo hebreu


Segundo a narrativa do Gênesis, e como dito anteriormente, de Abraão
descende Isaque, do qual nasceu Jacó, que teve o seu nome mudado para
Israel (Gn 32:28). De Israel nasceram doze filhos, que vieram a formar as
doze tribos que ocupariam a terra prometida por Deus a Abraão, por volta
do ano 1.200 a.C., conquistada sob a liderança de Josué, após a libertação
do Egito e a peregrinação pelo deserto. Nesta terra da promessa, o rei Davi,
por volta do ano mil a.C., fez de Jerusalém a capital do seu reino, onde
seria construído por Salomão, no século X a. C., o templo sobre o Monte
Sião, que se tornaria a principal referência sagrada para o povo judeu, que
faria daquela cidade, definitivamente, a “Cidade Santa”. Historicamente,
nasceria ali a primeira religião monoteísta: o Judaísmo (nome dado por
referência à proeminente tribo de Judá). Da descendência deste povo,
mais tarde, também nasceu Jesus Cristo, a partir de quem se formou a
segunda crença monoteísta: o Cristianismo.

No século VI a.C., os hebreus foram submetidos ao duro exílio babilônico,


quando também ocorreu a primeira destruição do templo. Após setenta
80 | História do cristianismo I | FTSA
anos de cativeiro, apenas um terço da população que fora deportada
retornou, o restante espalhou-se nas mais diferentes cidades do mundo
antigo, fato que ficou conhecido como a diáspora (dispersão) judaica. A
população que voltou do exílio, sob a liderança de Esdras e Neemias, teve
a difícil tarefa de reerguer a nação, reconstruir os muros e o antigo templo.

Nos dias de Cristo, da população de 5,5 milhões de judeus, apenas um


terço continuava a viver na sua própria pátria, estando sob o domínio
político do Império Romano. Esta presença estrangeira na sua terra
gerava grande desconforto e revolta ao povo que se considerava legítimo
herdeiro daquelas possessões devido às promessas que o próprio Deus
havia feito ao patriarca Abraão. Foi nesse ambiente de insatisfação
que, no ano 66 d.C., eclodiu uma revolta armada dos partidos religiosos
judaicos que buscavam a libertação da presença e dominação romana
na Palestina. Após quatro anos de sangrentos combates, finalmente,
as legiões romanas, lideradas pelo general Tito, conseguiram retomar
o controle da cidade de Jerusalém, quando o templo acabou sendo
completamente destruído pelos soldados romanos, cumprindo, assim, o
que Cristo havia predito em Mateus 24:1,2.

Neste episódio, no ano 70 d. C., todos os judeus foram definitivamente


expulsos da sua terra, ocasionando a segunda diáspora. A partir disso,
o povo judeu passou a existir como nação sem território e sem Estado.
Disperso agora pelo mundo, foi através da religião, centralizada nas
sinagogas, que este povo procurou preservar os seus costumes, tradição
e a identidade religiosa. Os sacrifícios de animais deixaram, então, de
ser praticados: não havia mais o templo para este rito. Um rabino, por
volta do ano 90, ao visitar as ruínas da Cidade Santa, interpretou o texto
de Oséias 6:6 (“pois misericórdia quero, e não sacrifício”), dizendo que a
partir de então, a “caridade” iria substituir os sacrifícios até o dia em que
aquele espaço sagrado fosse novamente restaurado.

História do crist | FTSA | 81


Assista o documentário: A destruição do Templo de Jerusalém.
Programa Evidências. 27 minutos. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=yWMEmMikh88

No IV século, Constantino, imperador romano, declarou-se cristão e


reconheceu o Cristianismo como religião lícita em todo o Império.
Helena, mãe do imperador, tornou-se uma cristã piedosa e promoveu a
construção de templos na Palestina, em locais considerados sagrados
pelos antigos cristãos: o da Natividade em Belém, onde Jesus nascera,
e também o do Santo Sepulcro, onde se acreditava que o corpo de
Cristo havia sido sepultado. A partir daí, nos séculos seguintes, visitar
a Palestina passou a ser o sonho de toda a cristandade, motivada pelos
mais diferentes interesses: conhecer os lugares em que Jesus viveu;
batizar-se no Rio Jordão; conseguir objetos supostamente sagrados
(como, pedaços da cruz em que Cristo morrera, ou que tivessem sido
utilizados por algum dos apóstolos, e ainda, pedras do Sinai, água do
Rio Jordão etc.), por acreditarem que os mesmos possuíssem poderes
miraculosos contra enfermidades ou para proteção das casas e dos
negócios; pagar votos ou penitências. Também foram construídos
vários mosteiros nestes arredores. Neste tempo, os judeus tiveram nova
permissão para visitar a Terra Santa, na prática, porém, houve dificuldades
para ali se estabelecerem devido a presença em maioria de cristãos que
lá se fixaram e ao estigma que os cristãos medievais cultivavam por eles.
Tal embate era basicamente ocasionado por dois motivos: primeiro, eram
diretamente responsabilizados pela morte de Jesus; segundo, haviam
perseguido a igreja primitiva, proibindo os cristãos de se reunirem no
templo de Jerusalém e também em muitas das suas sinagogas.

No século V, porém, com a tomada do Império Romano do Ocidente,


pelos chamados “povos bárbaros”, ocorreram profundas turbulências
políticas que afetaram o controle da Palestina pelos cristãos. Mas, foi
partir do século VII d. C, quando surgiu a religião fundada por Maomé,
que a disputa religiosa pela Cidade Santa se agravou ainda mais.
82 | História do cristianismo I | FTSA
1.3. Formação e desenvolvimento do Islamismo
No século VII d.C., surgiu a terceira religião monoteísta, o Islamismo,
fundada por Maomé, de origem árabe. Atribui-se a ascendência
genealógica do povo árabe a Ismael, o filho de Abraão com a escrava
egípcia Hagar. As diferentes tribos, que se formaram a partir deste
povo, se tornaram politeístas (crença em vários deuses), ao contrário
dos descendentes de Isaque. É de uma destas tribos que nascerá,
no ano 570 d. C., em Meca, Maomé. Tendo ficado órfão muito cedo,
Maomé foi criado por seu tio. Passou por grandes privações até tornar-
se administrador dos bens da rica viúva Kadidja, com a qual casou em
595. Ao tornar-se mercador, viajou até a Síria, onde teve contato com as
doutrinas monoteístas (crença em um só Deus), passando a ser por elas
influenciado.

Foi a partir daí que começou então a se preocupar com as crenças do seu
povo, fato que o levava a se retirar sistematicamente para as montanhas
nas proximidades de Meca, onde, por volta do ano 610, afirmara ter
tido visões e audições nas quais ouvia a voz de Deus e via o arcanjo
Gabriel. Passou a estar convicto de ser um escolhido de Deus (nome
que em árabe significa Alá) para ser o profeta que iria reconduzir o seu
povo à verdadeira fé no verdadeiro Deus. Suas primeiras pregações, em
que descrevia em cores vivas o fim do mundo, os castigos do inferno e
as alegrias do paraíso, não obtiveram muito êxito. Conflitos de ordem
econômica levaram-no a fugir para Medina, em 622, onde viria a conquistar
muitos seguidores. Como um líder messiânico, acreditava ser o escolhido
para restaurar a verdadeira religião de Abraão; objetivava aperfeiçoar o
Judaísmo e Cristianismo, nos quais via distorções. Tornou-se ferrenho
adversário dos judeus quando estes rejeitaram suas pregações. Por
ocasião da sua morte, em 632, Meca já havia sido por ele conquistada
tornando-se a cidade sagrada do Islã e quase toda a Arábia já seguia
seus ensinamentos. O Alcorão (ou Corão), que registra seus ensinos e
revelações, veio a ser escrito algum tempo depois, tornando-se a verdade
absoluta a ser obedecida e o fundamento do Islamismo (“islã” significa
“submissão à vontade de Deus”).
História do crist | FTSA | 83
Glossário
Monoteísmo: Fé professada em um único Deus.
Alá: Palavra árabe que significa “Deus”.
Alcorão (ou Corão): Termo da língua árabe Al-qurã, que significa “A
leitura” (leitura sagrada).
Islã (Islamismo): Significa “submissão à vontade de Alá”.
Israelenses: Judeus que atualmente vivem no Estado de Israel (na
Palestina).
Muçulmano: Vocábulo do árabe Muslim, que significa “aquele que
se entrega ao Islã”.
Palestina: Região geográfica da Ásia, atualmente ocupada por
judeus, cristãos e muçulmanos.
Palestino: Termo usado para identificar os muçulmanos que
atualmente vivem na Palestina.

Após a morte de Maomé, o movimento islâmico passou a ser liderado


pelos califas (“sucessores”), e um objetivo maior passou a ser perseguido:
fazer com que todos os homens reconheçam que Alá é o único Deus e
Maomé o seu profeta. Para isso formaram-se exércitos árabes, pois a
verdade do Islã deveria ser propagada, ainda que para isso fosse preciso
o auxílio da espada. Iniciava-se, desta forma, o que viria a se configurar
em guerra santa. Em pouco mais de um século de existência, o Islamismo
já havia feito grandes conquistas religiosas e territoriais. Uma delas foi
Jerusalém, com seus lugares sagrados, invadida e dominada pelos árabes
no ano 638, sob a liderança religiosa do califa Omar.

Dois anos depois, com a conquista de Cesareia e Gaza, toda a região


estava sob o domínio do Islã. No início, não houve perseguição nem a
cristãos nem a judeus que habitavam a Terra Santa pelo fato de serem
também monoteístas. Ao entrar em Jerusalém, o califa Omar decretou:
84 | História do cristianismo I | FTSA
“os cristãos terão garantidos os seus bens e suas igrejas ... Os judeus
podem morar em Jerusalém junto com os cristãos, desde que respeitem
o Profeta e o Corão”. Proibiu-se, entretanto, que os cristãos fizessem
propagação da sua fé entre os muçulmanos e que estes viessem a se
converter ao Cristianismo ou ao Judaísmo. Mais tarde, no lugar do antigo
templo dos judeus, os árabes construiriam duas mesquitas, sendo a
de Omar considerada o terceiro mais importante santuário do Islã, por
acreditarem que daquele lugar o profeta Maomé ascendeu ao céu, logo
depois de sua morte.

Toda a igreja imperial do Oriente sucumbiu perante o Islã: o Egito e o Norte


da África, Damasco, Egito, Pérsia; parte da França e Espanha, também
trocaram o Evangelho pelas leis do Corão. Os principais centros da fé cristã
antiga, como Jerusalém, Antioquia (Síria), Alexandria (Egito) e Cartago
(África), foram dominados por essa nova religião, restando apenas Roma
e Constantinopla, sendo que esta última viria também a ser conquistada
pelos turcos otomanos, em 1453.

Com o controle das regiões que haviam sido o berço da fé cristã, a partir
do século VIII, cristãos e judeus passaram a ter cada vez mais dificuldades
para realizarem peregrinações à Terra Santa. Por isso, a partir do século
XI, os cristãos passaram a organizar movimentos conhecidos como
“Cruzadas”, que duraram dois séculos (1096-1291), visando a libertação
daqueles territórios. A organização da primeira cruzada se deu no ano de
1096, por convocação do Papa Urbano II. Foi constituída por um exército
de cristãos que totalizou 20 mil homens e mulheres, os quais marcharam
para Jerusalém, em uma caminhada que durou mais de dois anos. O
historiador Martin Dreher descreve os episódios e as mobilizações que
marcaram algumas das cruzadas:

O primeiro grupo partiu da França e era composto por


20.000 homens e mulheres. Seu líder era um eremita
de nome Pedro de Amiens, um dos muitos pregadores
ambulantes da época. Pedro e todos os seus seguidores
queriam ir para Jerusalém, a fim de esperar a libertação
História do crist | FTSA | 85
de Sião e milagres. Não tinham dinheiro, nem alimentos,
mas muita fome. Houve depredações, saques e mortes
por onde passaram. Depois de muitas dificuldades
chegaram à Ásia Menor, onde foram dizimados pelos
turcos [...] Em 1097 formou-se um grupo com 12.000
homens e mulheres. A caminhada até Jerusalém
levou dois anos. Em 14 de julho de 1099 Jerusalém foi
tomada. Como era uma sexta-feira, todos se lembraram
da crucificação de Jesus e, por isso, organizaram uma
matança feroz contra a população muçulmana. Não
houve sobreviventes. Os judeus haviam se refugiado
em sua sinagoga. Ela foi posta em chamas. Todos
morreram. Finalmente, esse bando, manchado de
sangue, entrou na Igreja do Santo Sepulcro para se
reunir em oração diante de Deus (1994, p. 58, 59).

Na verdade, o objetivo da libertação da Terra Santa jamais foi alcançado,


pois tudo o que conquistaram voltaram rapidamente a perder. Ainda mais
sete cruzadas foram organizadas sem que obtivessem maiores êxitos,
pelo contrário, quase todas tiveram um fim trágico, principalmente para
os cristãos do Ocidente. A partir daí, a Palestina ficou exclusivamente
debaixo do controle islâmico, que fez definitivamente de Jerusalém um
dos lugares sagrados de sua fé.

SAIBA MAIS: A Palestina nos dias atuais!


Amparadas pela Inglaterra, desde o final do século XIX, grandes levas
de judeus começaram a imigrar para a antiga Palestina, fato que se
intensificaria ainda mais na década de 1940, quando o movimento
nazista, liderado por Hitler, na Alemanha, provocou a Segunda
Guerra Mundial, ocasião em que aproximadamente 6 milhões
de judeus foram mortos nos campos de concentração. Com este
“holocausto”, no final da guerra, em 1945, o mundo se sensibilizou
com a situação em que se encontrava este povo. A partir daí, países
86 | História do cristianismo I | FTSA
como Estados Unidos e Inglaterra, lideraram um movimento para a
reintegração de Israel em sua pátria, até que em 1947, a Organização
das Nações Unidas (ONU), em uma reunião presidida pelo brasileiro
Osvaldo Aranha, votou pela partilha da terra da Palestina em dois
territórios, dando aos judeus o direito de reconstruírem o seu Estado.
Dessa forma, em 1948, foi criado o novo Estado de Israel, do qual,
perto de 800 mil árabes saíram ou foram expulsos, formando um
contingente atual de 2,5 milhões de refugiados vivendo em vários
países. Em pouco tempo os judeus, que receberam uma região
desértica, desenvolveram avançada tecnologia de irrigação, fazendo
literalmente o “deserto florescer”, vindo a constituir-se em uma das
grandes potências no cenário econômico mundial.
Nesta partilha de território feita com os árabes, Jerusalém e outros
locais sagrados tiveram que também ser divididos, sendo que o exato
lugar do antigo templo judaico continuou ocupado pela mesquita
muçulmana de Omar. Daí porque os judeus passarem a empreender
guerrilhas na Terra Santa visando expandir suas fronteiras, transferir
para Jerusalém a capital do seu Estado, atualmente centrada em
Telaviv, e reconquistar para sua fé o lugar do antigo templo, do
qual só lhes resta, atualmente, o Muro das Lamentações, e ali
novamente reconstruir um novo santuário aos moldes daquele.
Em 1967, após intensos e sangrentos combates, a parte árabe da
cidade de Jerusalém foi tomada pelos israelenses, desencadeando,
assim, a revolta por parte dos palestinos (como são chamados os
muçulmanos que lá vivem), o que transformou a Terra Santa num
permanente palco de guerrilhas.
Foi neste período que surgiu o líder Yasser Arafat, que criou, no final
dos anos 60, a Fath, movimento guerrilheiro islâmico que se tornou
a espinha dorsal da Organização para a Libertação da Palestina
(OLP). Nos anos 70, ele colocou a questão da Palestina no centro
das atenções mundiais com uma sangrenta campanha terrorista
contra Israel, momento em que os países árabes chegaram a fazer
um boicote nas exportações de petróleo. Porém no final dos anos

História do crist | FTSA | 87


80, desistiu do plano de riscar o Estado judeu do mapa. Já nos
anos 90, Arafat começou a procurar acomodação com o inimigo,
passando a buscar acordos de paz, chegando a receber, inclusive,
o Prêmio Nobel, ganho em parceria com o israelense Itzhak Rabin
pelos acordos de paz assinados em 1993. Nesses acordos, Rabin
concordara em ceder, aos poucos, os territórios ocupados enquanto
a OLP, por sua vez, passaria a reconhecer o Estado israelense. O
assassinato de Itzhak em 1995, por um judeu fanático, atravancaria
novamente os processos de paz.
Yasser Arafat passou a presidir a Autoridade da Palestina, com sede
na Faixa de Gaza, que controla 80% deste território que é habitado
por 1 milhão de palestinos e 4 mil colonos israelenses, exercendo
também controle sobre 40% da Cisjordânia, onde vivem milhões
de Palestinos e 200 mil colonos judeus. Arafat teve como grande
objetivo não só recuperar territórios perdidos, mas, principalmente,
constituir um Estado Palestino, com capital em Jerusalém.
Em outubro de 2000, o então presidente americano Bill Clinton
convocou Arafat e o primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, para
discutirem um acordo final para as desavenças entre árabes e
judeus. A reunião ocorreu no Egito, e os dois líderes concordaram
em tentar acalmar os ânimos no Oriente Médio, mas se recusaram
a pôr o acordo no papel e até mesmo a trocar um aperto de mãos.
Barak chegou, inclusive, a surpreender com uma ousada proposta
de criar o Estado palestino em 90% da Cisjordânia, com capital
nos bairros árabes de Jerusalém. Israel anexaria apenas áreas
densamente habitadas por judeus. Sob o olhar de Bill Clinton, Yasser
Arafat rejeitou integralmente a oferta. Para espanto e irritação do
anfitrião americano, partiu sem fazer a contraproposta esperada
pela Casa Branca.
Certamente, Arafat não pensava numa proposta inferior do que a
soberania palestina sobre a parte árabe da Cidade Santa, ocupada
por Israel na Guerra de 1967, pois, prometera centenas de vezes
ao seu povo que não negociaria a entrega de Jerusalém Oriental
88 | História do cristianismo I | FTSA
e, particularmente, aquilo que se tornou o ícone do nacionalismo
palestino: a Esplanada das Mesquitas (local do antigo templo da
religião judaica). Muitos israelenses viram nesta atitude a prova
de que o líder palestino nunca pretendeu realmente fazer a paz.
Contudo os palestinos também ficaram frustrados com o resultado
de oito anos de negociações e com a determinação dos israelenses
de continuarem instalando colonos nos territórios que ocupam
desde 1967. O líder iraquiano Saddam Hussein, quando convidado
a participar de uma reunião com outros governantes árabes para
discutir o conflito na Palestina, em outubro de 2000, não hesitou em
propor uma guerra santa para libertar Jerusalém.

SAIBA MAIS: O monoteísmo em conflito


As três únicas religiões monoteístas do mundo, Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo, têm em comum não apenas o fato de
professarem a fé no mesmo Deus, chamado de “Javé” pelos judeus,
de “Senhor” pelos cristãos, e de “Alá” pelos islâmicos, mas também o
pertencimento a uma aliança feita com o mesmo patriarca, Abraão:
árabes e judeus pela ascendência étnica, e cristãos pela herança
espiritual, conforme análise feita pelo apóstolo Paulo em Gálata
3:16, dizendo que o “legítimo descendente de Abraão é Cristo”.

No relato bíblico de Gênesis 12, Deus fez promessas a esse patriarca


dizendo que a sua “descendência seria numerosa”, e de fato isto
aconteceu, sobretudo no que diz respeito à família de fé monoteísta:
as três únicas religiões monoteístas, isto é, que professam a fé em
um só Deus, são conjuntamente responsáveis pelo maior número
de seguidores no cenário religioso mundial: o judaísmo, professado
pelo judeus, que totalizam hoje uma população de aproximadamente
15 milhões de pessoas, vivendo, em sua maioria, fora do Estado de
Israel; a religião islâmica, que perfaz um total de 1,4 bilhão de adeptos
no mundo; e o cristianismo, que, em todas as suas ramificações,
reúne atualmente cerca de dois bilhões de fiéis.
História do crist | FTSA | 89
Curiosamente, essas três religiões estão agora sendo protagonistas
do estado de medo e de tensão de um possível conflito mundial.
Os conflitos envolvendo islâmicos e norte-americanos vêm se
intensificado cada vez mais nos últimos anos, atingindo seu ápice
no atentado terrorista contra os Estados Unidos, na cidade de Nova
York, ocorrido no dia 11 de setembro de 2001, motivado por grupos
radicais islâmicos. Diante disso, uma pergunta vem normalmente
sendo feita: por que esse sentimento de ódio entre líderes políticos
e religiosos que professam a fé no mesmo Deus?
É possível esboçarmos algumas explicações a esta questão.
Em primeiro lugar, porque os EUA tiveram participação direta no
processo de criação do Estado de Israel na Palestina, em 1948,
motivados, certamente pelo interesse de estabelecer um braço de
controle no Oriente Médio, região onde estão as maiores reservas
de petróleo do mundo, responsáveis pelo movimento da “máquina”
de produção capitalista, combustível este que está sob o controle
dos países muçulmanos.
Segundo, porque os norte-americanos são grandes aliados de Israel
nos conflitos contra os árabes na Palestina, fornecendo-lhe apoio e
armamento bélico que faz do seu exército, uma poderosa e temível
força militar.
Terceiro, porque o capitalismo norte-americano alimenta e fortalece
ainda mais a já poderosa economia israelense, uma vez que grandes
detentores do capital mundial são banqueiros judeus — por isso o
atentado ter sido feito contra os maiores símbolos do capitalismo,
no grande centro econômico do mundo.
Em quarto lugar, porque vem sendo cultivado historicamente um
sentimento de ódio do Islamismo para com o Cristianismo, desde
o tempo das Cruzadas Medievais, quando cristãos e muçulmanos
travaram sangrentos combates na disputa por territórios, em que
a escravidão e outras formas de atrocidades foram praticadas
reciprocamente para com os prisioneiros de guerra.

90 | História do cristianismo I | FTSA


Em quinto lugar, porque durante a Guerra Fria (disputa político-
armamentista entre os Estados Unidos e a extinta União
Soviética), nas alianças estabelecidas, os judeus foram aliados
dos norte-americanos, e, nesta disputa de interesses, alguns
países muçulmanos acabaram sendo invadidos pelos soviéticos,
como fora o caso do Afeganistão, em 1979, fato que transformou
territórios sagrados pelos islâmicos em palco de disputas por parte
dos “infiéis”. Desta forma, com a ruína do “muro” do socialismo, em
1989, os cristãos norte-americanos capitalistas comemoraram a
“vitória”, enquanto que do lado muçulmano permaneceram rancores
e sentimentos de vingança para com o Ocidente, devido ao rastro de
miséria e destruição que foram deixados em seus territórios.
Em sexto lugar, porque durante a Guerra do Golfo, em 1991, os
americanos estabeleceram bases militares na Arábia Saudita, para
combater o Iraque, mantendo-as até hoje, fato que é visto por grupos
islâmicos mais radicais como profanação do território que lhes é
sagrado.
Sétimo, porque além de ser honroso para os islâmicos, é obrigação,
se preciso for, agirem radicalmente pela fé que professam,
conforme a interpretação literal que fazem de certas passagens do
Alcorão, como por exemplo, o que está escrito na Sura 9, versículo
5: “Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os,
e cercai-os e usai de emboscadas contra eles”. E mais adiante, o
livro insiste que nações, não importa quão poderosas, deverão ser
combatidas “até que abracem o Islã”. Vale dizer que o Islamismo
mais ortodoxo considera os cristãos como idólatras, por adorarem
as três pessoas da Trindade.
A julgar pelas escatologias concebidas por essas três religiões,
para Jerusalém e a Terra Santa ainda estão reservados muitos
acontecimentos apocalípticos: os judeus ortodoxos ainda aguardam
a vinda do Messias, que naquela terra instaurará um reinado político,
subjugando as demais nações; cristãos prenunciam uma batalha do
bem contra o mal no “Vale do Armagedom” (localizado na Palestina);
História do crist | FTSA | 91
e os islâmicos também se preparam para o jihad, que será a “guerra
santa” final contra os inimigos do Corão.
A verdade é que, o fanatismo, a intolerância religiosa e o desrespeito
para com a vida humana, estão ao ponto de desencadear uma
luta do bem contra o mal, ou do Oriente contra o Ocidente. E, para
isso, infelizmente, não apenas crianças estão sendo doutrinadas,
como também populações inteiras estão sendo ameaçadas de
extermínio, como é caso do povo do Afeganistão e de outros
países circunvizinhos, como se já não lhes bastasse a luta pela
sobrevivência e a guerra contra a fome e a miséria.
É preciso, entretanto, fazer algumas ressalvas: assim como o
Islamismo não se restringe somente ao povo árabe e nem todo
muçulmano é terrorista, também o modelo de cristianismo professado
e vivido pelos Estados Unidos não representa necessariamente a
proposta do evangelho pregado por Jesus Cristo.
De maneira geral, entretanto, a religião, que deveria promover a paz, a
valorização da vida, e criar parâmetros para o respeito e a convivência
humana, está não apenas dando um péssimo exemplo ao mundo ao
pôr em risco a vida do planeta em toda a sua biodiversidade, como
também gerando a possibilidade de um terceiro conflito mundial, o
que reconduziria a humanidade aos tempos de combates tribais,
conforme o que já alertara o grande físico Albert Einstein: “Não sei
com que armas se lutaria na Terceira Guerra Mundial; na Quarta sim:
com paus e pedras.”

Assista ao vídeo:

Entenda a importância de Jerusalém para israelenses e palestinos


(8minutos). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rMX64Y0FMcc

92 | História do cristianismo I | FTSA


Exercício de Aplicação

Jerusalém, um barril de pólvora! Como visto no conteúdo acima, as


origens do conflito em terras palestinas remontam séculos atrás na
história. Dentre os motivos deste conflito, destacam-se:

I - As causas são estritamente religiosas e as questões políticas


são apenas secundárias. A leitura que os povos envolvidos
fazem de seus textos religiosos determinam as ações políticas
projetadas.

II – Religião e política estão intrinsecamente relacionadas, de


tal forma que motivos religiosos alimentam comportamentos
políticos e questões políticas reforçam posicionamentos
religiosas.

III – Além das questões locais, a política internacional também


favorece aspectos do conflito, tornando o conflito em questão
um ponto de tensão com implicações para o mundo.

Considerando os motivos acima, qual das alternativas abaixo


corresponde à resposta correta.

a. ( ) I e II estão corretas

b. ( ) I e III estão corretas

c. ( ) II e III estão corretas

d. ( ) Não há nenhuma correta

e. ( ) Todas estão corretas

História do crist | FTSA | 93


2 - Vida monástica: por uma espiritualidade voltada à
simplicidade e ao próximo
2.1. Oriente: os pais do deserto
Origina-se no séc. IV, no deserto egípcio, uma marca bem específica do
monasticismo: a fuga do mundo. Não era uma fuga ou escape puro e
simples, mas uma busca por novas formas de martírio. Nessa época,
com a oficialização do cristianismo como religião imperial e o fim das
perseguições, o “martírio de sangue” caiu em desuso: não era mais
necessário pagar o preço, até com a própria vida, para ser discípulo e
discípula de Jesus. A “vitória” do cristianismo, para os cristãos mais
comprometidos e fervorosos dessa época, representou, na verdade, uma
grande derrota, pois ocorreu uma aliança com os poderes seculares, e,
como corolário, ruína ética e moral, venda de princípios; o mundo não
se tornou mais cristão porque se cristianizou; continuou-se a preferir a
escuridão à luz (1Jo 3:19).

A lógica, portanto, foi: se o mundo não era mais o inimigo do cristão,


então o cristão é quem deveria estabelecer inimizade com o mundo.
Os eremitas (monges) tornaram-se os novos mártires, à medida que se
afastaram do mundo, opondo-se ao seu sistema e estilo de vida, optando
pelo deserto, cujas expressões eram: fuga, silêncio e oração.

Henri Nouwen (2004, p. 12-13) relata que a fuga para o deserto era o meio
de evitar a tentadora conformidade ao mundo. Antão, Agatão, Macário,
Poemen, Teodora, Sara e Sinclética foram líderes espirituais no deserto.
Ali se tornaram um novo tipo de mártires: testemunhas contra os poderes
destrutivos do mal, testemunhas do poder salvífico de Jesus Cristo. Desta
forma, seu objetivo principal era: viver sempre em pureza e morrer em paz!

2.2. Ocidente: monasticismo beneditino


O monasticismo ocidental, por sua vez, nasce por volta do VI século,
através do modelo legado pela regra de Benedito de Núrsia, ou
simplesmente São Bento. Inicialmente, bebeu dos ideais e paradigmas

94 | História do cristianismo I | FTSA


de seu homônimo oriental. Mas logo se distanciou deste, especialmente
em quatro aspectos, destacados por Justo González (1991, p. 39-41):

Primeiro, o espírito prático dos romanos. Muito acostumados com a vida


cotidiana, a colocar a “mão no arado”, os romanos rejeitavam o espírito
ascético oriental, de flagelação do corpo para elevar o espírito. Para eles,
o ascetismo deveria servir de apoio e fortalecimento (do corpo) para os
enfrentamentos da vida humana secular.

Segundo, no monasticismo ocidental não se buscava apenas a salvação


individual, mas a realização da obra de Deus. O ideal de São Bento era:
cultivar a terra com as mãos e praticar a opus Dei (obra de Deus).

Terceiro, o ideal beneditino de vida em comunidade. Os monastérios


eram verdadeiras “confrarias de ajuda mútua”. Ao invés de reclusos e
exclusivistas, os monges eram ativos na comunidade, prestando serviços
e interagindo com ela.

Quarto, o monasticismo ocidental não vivia em permanente tensão com


a igreja hierárquica; embora fosse uma expressão diferencial dessa
igreja, ainda se mantinha fiel aos seus princípios fundamentais, isto é,
submisso à hierarquia eclesiástica.

Era essencialmente comunitário, bem organizado e estruturado. O labor dos


monges era algo extraordinário e exemplar. O trabalho era uma atividade
sagrada, obra do Senhor. Havia uma união entre o trabalho intelectual, o
trabalho físico, braçal, na lavoura, nas edificações e serviços do mosteiro, e
o trabalho espiritual, de oração, muito importante aos monges beneditinos.
A oração era o alimento para a vida, para o enfrentamento das intempéries
do tempo e das circunstâncias existenciais.

A espiritualidade desenvolvida pelos monges do ocidente era, nesse


sentido, uma “espiritualidade a longo prazo” (Bosch, 2002, p.286), pois
não se fiava em métodos e “mandingas” espirituais para se alcançar o
sucesso imediato nas coisas da vida; era preciso muito trabalho em todos
os sentidos, e o trabalho iniciado por uma geração deveria ser terminado

História do crist | FTSA | 95


por gerações posteriores, que deveriam nutrir o mesmo espírito de
perseverança, de enfrentamento das adversidades e de proatividade
frente aos desafios que se tinha adiante.

2.3. O monasticismo como agente missionário


Em princípio, tratou-se de um movimento que não parecia ter nenhum tipo
de consciência missionária, devido ao seu ideal ascético, que se acentuava
muito mais entre os monges do Oriente. Porém, o monasticismo ocidental
diferenciou-se do oriental no sentido de não propor uma fuga do mundo
e nada mais. Como vimos, a intenção da vida ascética, para eles, estava
intrinsecamente relacionada com a vida em comunidade e o envolvimento
(até certo ponto) com o mundo ao redor. Nesse sentido é que o missiólogo
David Bosch aponta para esta forma de monasticismo como sendo
missionária por excelência, talvez uma das únicas expressões missionárias
cristãs que se viu na igreja medieval (considerando as demais ordens
religiosas, que surgiram nos séculos posteriores).

Segundo Richard Niebuhr (apud Bosch, 2002, p. 283), o monasticismo


salvou a igreja medieval daquilo que seria a petrificação e perda da visão
e caráter revolucionários do cristianismo. Bosch (2002, p. 285-286), por
sua vez, aponta algumas razões para isso. Destaca que o monasticismo
pode ser considerado como um agente missionário no medievo devido:
Primeiro, à alta estima que os monges gozavam entre a população
geral. Com a Era Constantiniana, os monges passaram a ocupar o
lugar antes reservado aos mártires, aos olhos dos cristãos. Os monges
representavam uma vida cristã austera, e eram aqueles que repeliam os
“inimigos espirituais” dos muros da cidade.
• Segundo, ao seu estilo de vida exemplar, que alcançou
principalmente os camponeses. Veja essa frase de um monge celta
chamado Columbano (543-615): “Aquele que diz crer em Cristo
deve andar como Cristo andou, pobre, humilde e pregando sempre
a verdade”. O interessante aqui é que, ao invés de arrancar de forma
violenta, procurava-se transformar as crenças dos camponeses,
relacionando-as com a liturgia e calendário cristãos.
96 | História do cristianismo I | FTSA
• Terceiro, aos mosteiros, que eram centros de trabalho, mas
também de cultura e educação. Cada mosteiro constituía um vasto
complexo de edificações, igrejas, oficinas, armazéns e asilos que
beneficiavam toda a comunidade adjacente. A antiga tradição
de estudo encontrou refúgio nos monastérios. “O monastério
incorporou o ideal da ordem espiritual e da atividade moral
disciplinada que, com o tempo, permeou a igreja toda, deveras, a
sociedade em sua íntegra”.
• Quarto, paciência, obstinação e perseverança dos monges. Houve
ataques dos povos bárbaros, no séc. VI, que se sentiam atingidos
com o sucesso dos mosteiros. Noventa e nove de cem monastérios
poderiam ser destruídos (e vários realmente foram), mas a teimosia e
forte persistência dos monges faziam com que nenhuma causa fosse
considerada perdida. Tudo poderia ser retomado e reconstruído pelos
sobreviventes, que, mesmo em meio a muitas limitações e dificuldades,
conseguiam se reerguer e manter viva a tradição monástica.

Todas essas atitudes eram missionárias, sem pretender sê-las. Ou seja,


seguindo Bosch (2002, p.286), embora essas comunidades monásticas não
fossem intencionalmente missionárias, quer dizer, criadas com o propósito
da missão, elas estavam impregnadas de uma dimensão missionária.
Com suas principais marcas: peregrinação, comunidade, reflexão,
ascetismo, contemplação ao Divino e sua Criação, essas comunidades
realizaram a missão de Deus. É bom que isso seja ressaltado, antes que
o período medieval passe como um período árido da igreja em termos de
cumprimento dos propósitos para os quais foi criada.

Não restam dúvidas de que a Idade Média foi um período em que a igreja
e os cristãos se viram envoltos em uma série de problemas das mais
diversas ordens, como já vimos até aqui. E talvez esses problemas (e os
julgamentos a eles correspondentes) sejam muito mais evidentes para
nós, mesmo enxergando a séculos de distância, que para os cristãos
daquela época. A avaliação sobre este contexto, não pode ser de todo
negativa, como ressalta Bosch:
História do crist | FTSA | 97
Havia algo errado com a ideia de tentar criar uma
civilização cristã, de moldar as leis de acordo com o
ensinamento bíblico, de submeter reis e imperadores à
obrigação explícita do discipulado cristão? É indubitável
que o paradigma analisado neste capítulo tem seu
lado obscuro, mas ele também ofereceu contribuições
positivas. Além disso, precisa-se entender que era lógico
as coisas se desenvolverem dessa maneira após a
vitória de Constantino; ademais, era inevitável, dadas
as circunstâncias, que assim evoluíssem. Portanto,
ao criticarmos nossos antecedentes espirituais, e o
fazemos incansavelmente, lembremos que não nos
teríamos havido melhor que eles (2002, p. 291).

Exercício de Fixação

Na história do movimento monástico o princípio do ascetismo


assumiu interpretações diferentes, implicando em atitudes
distintas em relação à igreja institucional e ao mundo. Sobre as
atitudes decorrentes da prática ascética pode-se afirmar que:
( ) O monasticismo, independente de suas formas possíveis,
foi incapaz de estabelecer uma relação de apoio com o a igreja
institucional, pois o conflito sempre foi a principal forma de
construção desta relação.
( ) O princípio ascético não é incompatível com um determinado
engajamento com questões relacionadas ao mundo, pois pode tornar-
se um instrumento de fortalecimento para os enfrentamentos da vida.

( ) O ascetismo monástico pode tornar-se um instrumento de


potencialização do serviço ao mundo, caso não interprete o
ascetismo apenas como uma flagelação do corpo para elevação
do espírito.
Acesse o AVA para finalizar o exercício e veja a reação!

98 | História do cristianismo I | FTSA


3. Movimentos pré-reformadores: por um retorno
doutrinal e eclesiástico às origens apostólicas
Como visto nas unidades anteriores deste curso, no período “medieval”
ou Idade Média, que corresponde aos séculos V e XV, desenvolveu-se o
catolicismo marcadamente institucionalizado, com acentuada estrutura
hierárquica, sustentada na figura papal e no clericalismo de bispos e
sacerdotes. Nesse mesmo período, também, foi marcante a vivência
de um cristianismo mais popular, folclórico, profundamente arraigado
em imaginários religiosos sincréticos, com fortes raízes fincadas no
elemento da magia. Isso porque, especialmente, a partir do século IV,
quando o cristianismo se tornou religião lícita e oficial do Império Romano,
desenvolveu-se um intenso e crescente processo de aculturação entre
doutrinas cristãs e antigas práticas cúlticas que permeavam o universo
religioso do mundo greco-romano.

No chamado “período áureo” da Idade Média, verificam-se vários


prejuízos à missão da igreja. A preocupação da igreja voltou-se quase que
exclusivamente para a elaboração dogmática da teologia, fundamentada
em categorias filosóficas, sob forte influência da metafísica. O que
mais importava era o Cristo triunfante e transcendental, e não o Jesus
histórico. Há também, nesta época, forte interesse pela vida monástica,
a qual levava os cristãos a fugirem do mundo e seus conflitos, com o
propósito de se dedicarem à purificação e contemplação nos desertos.

Diante desse quadro, alguns dos fatores podem ser destacados como
preponderantes para um anseio por mudanças ou reformas, que prepararam,
inclusive, o advento da Reforma Protestante do século XVI.

3.1. Motivos de reforma


Primeiro, a igreja estava vivendo uma crise teológica, doutrinária e
institucional. Até o séc. IV, por exemplo, o Cristianismo, sem ter posses,
em meio a perseguições e conflitos internos, manteve uma linha de frente
que fazia jus aos ensinamentos deixados por Jesus e os apóstolos.
História do crist | FTSA | 99
Após o IV século, porém, especialmente a partir do momento em que
o imperador romano Constantino se declarou cristão, um outro quadro
passa se configurar.

Segundo, pelas disputas e corrupção do poder. Após Constantino, os


clérigos passam a ter remuneração do Estado, constroem-se suntuosos
templos, o poder religioso passa a estar atrelado ao poder político etc. A
igreja alia-se ao Império Romano, contra o qual deixa de exercer função
profética de denúncia e reivindicação — o Estado passa agora a beneficiá-
la. A igreja desempenha em tal sociedade, a partir de então, um papel

semelhante ao da velha religião estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas


como um rei celestial que dá apoio ao imperador cristão que governava
em seu nome. A missão histórica de Jesus foi por isso obscurecida, e a
missão legítima da igreja também o foi, na mesma proporção.

Terceiro, se observa o que se pode chamar de “adesão sem conversão”,


ou seja, inúmeras pessoas passaram a aderir ao cristianismo por
conveniência ou status, afinal, era agora a “religião do Imperador”.
Com isso, trouxeram consigo para o âmbito da igreja antigas crenças,
especialmente as que estavam associadas às divindades femininas no
panteão greco-romano. Foi assim que o culto a Diana, tão popular na
cidade de Éfeso, por exemplo, foi substituído a partir do século V pelo
culto a Maria mãe de Jesus; também os antigos deuses protetores das
cidades foram substituídos pelos “santos protetores” cristãos, no caso,
os apóstolos e mártires; e ainda, a veneração de objetos e imagens como
elementos do culto.

Quarto, Jesus deixa de ser o único mediador (também a mãe de Jesus e


os apóstolos, especialmente passam a exercer tal função); surge a figura
papal, como representante de Cristo na Terra; a Bíblia passa a ser lida
somente em latim e pelos clérigos, ficando, portanto, distante do povo;
a justificação passa a se dar também por obras, daí as penitências, os
autoflagelos, as indulgências como meios de redimir pecados.

100 | História do cristianismo I | FTSA


Quinto, surge ainda a doutrina do purgatório, mediante a qual era dada
a oportunidade de salvação após a morte àqueles que não se preparam
devidamente em vida.

Sexto, pode ser citado ainda o surgimento da Inquisição, que se constituía


num tribunal eclesiástico que dava à igreja o direito de punir e de matar,
se preciso fosse, àqueles que ousassem questionar as doutrinas
canônicas ou a verdade que pertencia de forma exclusiva e absoluta à
igreja medieval.

Sétimo, grande apego à magia. Segundo o sociólogo Leonildo Campos,


nesse período, a assimilação da fé cristã pela população rural, mediante
a catequese, “formou uma camada de verniz sobre uma antiga realidade
religiosa” (1977, p.170), desencadeando um intenso apego às relíquias
como fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que
supostamente teriam sido utilizados pelos apóstolos ou outros mártires
do cristianismo e que eram, então, guardados nos lares dos devotos com
o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios do demônio ou
como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas.
Esta “magia” dos objetos desencadeou um verdadeiro comércio de
amuletos. Leonildo Campos descreve este cenário de magia:

Multiplicaram-se os cultos às relíquias sagradas,


verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam
poder de curar enfermidades e proteger as pessoas
dos perigos. Esses objetos, que pensavam terem
pertencido aos santos ou simplesmente por terem
sido usados na missa, eram trocados, presenteados,
roubados, vendidos ou comprados. Muitos deles eram
empregados com as mais diversas finalidades, desde
o auxílio no trabalho de parto até na cura de peste no
gado bovino ou afastar epidemias de seca, fome ou
pragas de gafanhotos (1997, p. 171).
O historiador inglês Keith Thomas (1991, p.36). também afirma que no
contexto da Idade Média as relíquias sagradas tornaram-se fetiches
História do crist | FTSA | 101
milagrosos, tidos como dotados do poder de curar enfermidades e proteger
contra perigos; atribuía-se igualmente uma eficácia miraculosa às imagens.
A representação de são Cristóvão, que com tanta frequência ornamentava
as paredes das igrejas das aldeias inglesas, supostamente concedia um
dia de imunidade à doença ou à morte a todos os que a fitassem.

Este mesmo autor constata que no mundo medieval havia se desenvolvido


um “amplo leque de fórmulas para atrair a bênção prática de Deus sobre
as atividades seculares”, acrescentando. Keith Thomas descreve algumas
destas práticas carregadas de magia e simbolismo:
O ritual básico era o benzimento com sal e água para
a saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos. Mas
os livros litúrgicos da época também traziam rituais
para benzer casas, gados, culturas, embarcações,
ferramentas, armas, cisternas e fornalhas. Havia fórmulas
para abençoar homens que se preparavam para sair em
viagem, para travar um duelo, para entrar em batalha ou
mudar de casa. Havia métodos para abençoar os doentes
e tratar de animais estéreis, para afastar o trovão e trazer a
fecundidade ao leito matrimonial [...] Fundamentalmente
em todo esse procedimento era a ideia de exorcismo,
o esconjuro formal do demônio, expulsando de algum
objeto material por meio de preces e da invocação do
nome de Deus. A água benta podia ser utilizada para
afastar maus espíritos e vapores pestilenciais. Era
remédio contra a doença e a esterilidade (1991, p.38).

Observa ainda que, no período entre os séculos XVI e XVII, da história


inglesa, os objetivos pelos quais a maioria dos homens recorria a
sortilégios e a feiticeiros eram precisamente aqueles para os quais “não
havia alternativa técnica adequada”. Assim, na agricultura, o lavrador
que normalmente confiava em suas próprias habilidades e perícias,
quando ficava dependente de circunstâncias fora do seu controle — a
fertilidade do solo, as condições meteorológicas, a saúde do gado —,
ele se mostrava mais propenso a acompanhar suas atividades normais
com alguma precaução mágica. Na ausência de herbicidas, “havia
102 | História do cristianismo I | FTSA
encantamentos para manter a erva daninha distante das plantações”, e,
em lugar de inseticida e raticida, “havia fórmulas mágicas para afastar as
pestes”. Havia também sortilégios para aumentar a fertilidade da terra,
além de precauções rituais que rodeavam a caça e a pesca, “atividades
especulativas, isto é, incertas ambas” (Thomas, 1991, p.175).

Exercício de Fixação
Considere o texto a seguir:
“No contexto da Idade Média as relíquias sagradas tornaram-
se fetiches milagrosos, tidos como dotados do poder de curar
enfermidades e proteger contra perigos; atribuía-se igualmente uma
eficácia miraculosa às imagens. A representação de são Cristóvão, que
com tanta frequência ornamentava as paredes das igrejas das aldeias
inglesas, supostamente concedia um dia de imunidade à doença ou à
morte a todos os que a fitassem” (Proença, 2019).
Este trecho permite considerar o estilo de igreja do período
medieval, inclusive sendo motivo para a necessidade de reformas
doutrinárias. A partir disto, é correto afirmar:
a) ( ) que a eclesiologia medieval, fundamentada na liturgia ritualista
ficava distante do povo, a ponto de o poder de curar pessoas já não
existia mais;
b) ( ) que o estilo de vida cristão do período medieval proporcionava
a busca pela espiritualidade transcendente e, sendo assim, não
havia necessidade de ir até a igreja local para cultuar a Deus;
c) ( ) que devido à busca pela prática religiosa, os fiéis entendiam
a força miraculosa e mágica dos objetos que pertenceram aos
líderes e personagens bíblicos;
d) ( ) que a teologia da igreja medieval era pautada em
conhecimentos científicos e, por isto, a espiritualidade foi
racionalista e politicamente ativa;

História do crist | FTSA | 103


3.2. Os principais movimentos
O Ocidente Medieval vivia (entre os séculos XIII e XIV) um período de
transição e transformações em diversas áreas, trazidas por guerras,
pragas e crises econômicas.

Na igreja a situação não era muito diferente. O que se contempla é o


declínio da igreja institucional, que havia se transformado em uma
monarquia e rivalizava com as nações-estado emergentes na época.
Emergentes, também, foram alguns movimentos que despontaram da
periferia eclesiástica nesse período. Foram, em parte, movimentos de
contestação e, em parte, de assentimento à ordem estabelecida.

Vimos que na Idade Média o monasticismo, de certo modo, representa


um movimento de contestação a certo estilo de vida e maneira de ser
igreja na sociedade, embora se mantivesse ligado formalmente a ela.

O conhecido mosteiro de Cluny, na França, fundado em 910 D. C., levara


às últimas consequências os preceitos estabelecidos pela regra de São
Bento. Muito mais disciplina, oração, estudo, penitências e dedicação à
opus Dei (obra de Deus). “Não seria exagero ver em Cluny a expressão
mais autêntica das aspirações espirituais da sociedade feudal” (Vauchez,
1995, p. 36).

Vejamos a seguir alguns desses movimentos.

3.2.1. Os Albigenses ou Cátaros


O termo Albigense se deve o local de surgimento deste movimento: a
cidade de Albi, na França, no século XII. Também ficaram conhecidos
como Cátaros (termo grego que significa “puros”). Um movimento
de leigos, os quais começaram a ler a Bíblia, traduzindo trechos do
evangelho para a língua francesa; denunciavam que o papa e os clérigos
não tinham exclusivamente acesso a Deus; criticaram a corrupção do
clero; celebravam a ceia, o batismo, negavam a veneração de imagens.
Esse movimento foi responsável pela organização mais sistematizada

104 | História do cristianismo I | FTSA


do tribunal da Santa Inquisição, sob ordens do papa Inocêncio III, com o
intuito de combater como hereges os albigenses e, em seguida, também
os valdenses. Perseguidos, da França se espalharam para outras regiões
da Europa, funcionando como “comunidades cristãs secretas”.

3.2.2. Os Valdenses
Em 1176, Pedro Valdo, um rico comerciante de Lyon perguntou a um
mestre de teologia: “Qual o melhor caminho para Deus?”. O mestre, por
sua vez, citou-lhe um venerado texto monástico: “Se queres ser perfeito,
vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu”. Valdo
obedeceu ao “chamado”. Vendeu tudo que tinha, deixando uma quantia
razoável para sua mulher e filhos, e o restante doou aos pobres.

Sua atitude impressionou vivamente seus amigos. Em 1177, um grupo


de homens e mulheres juntou-se a ele, pregando o arrependimento. Eles
mesmos se auto-intitulavam “Pobres de Espírito”. Dirigiram-se ao Concílio
Lateranense, em 1179, solicitando a permissão para pregar. O pedido foi
indeferido. Pedro e seus fraternos entenderam aquilo como a “voz do
homem em oposição à voz de Deus” (Walker, 1981, p. 324). Continuaram
a pregar. Considerados desertores, todos foram expulsos da igreja, em
1184, pelo papa Lúcio III (1181-1185).

Vindo a Reforma, os valdenses, que haviam se expandido em meio à


forte repressão da igreja para fora de sua região de origem, aceitaram
seus princípios e se tornaram protestantes.

3.2.3. Os Dominicanos
Na mesma atmosfera de “pobreza apostólica” e literal cumprimento dos
mandamentos de Cristo, surge a ordem dos dominicanos. Foi fundada
por Domingos (1170-1221).

Estudante brilhante, jovem de grande espírito religioso, Domingos


resolveu escolher o caminho da abnegação, sacrifício e seguir o modelo
de Paulo, querendo ganhar o povo pela “loucura da pregação”.
História do crist | FTSA | 105
Em 1215, amigos presentearam-no com uma casa em Toulouse. Ali
realizou os primeiros trabalhos de treinamento e discipulado. Com a
permissão do Papa Honório III (1216-1227) — embora não sem resistência
e lutas — criou então uma ordem de pregadores, que logo recebeu o nome
de “ordem dos dominicanos”.

Quando Domingos faleceu (1221), a ordem já contava com sessenta


casas espalhadas em oito províncias. Sua marca característica era o zelo
no estudo e a ênfase na pregação e no ensino. Trabalhou nas cidades
universitárias e logo se viu bem representada nos corpos docentes das
universidades.

3.2.4. Os Franciscanos
Se grande foi o prestígio dos dominicanos, maior ainda talvez tenha sido
a honra e aceitação popular alcançada pelos franciscanos e, de modo
especial, pelo seu fundador Francisco (1182-1226).

Ele não era monge, nem clérigo; era um leigo, que fazia questão de assim
permanecer para evangelizar os leigos abandonados pastoralmente, em
especial, os pobres (Boff, 2002, p. 136).

Surge não do centro do poder, mas da periferia da igreja institucional,


como a maioria dos movimentos de renovação da igreja na história,
como ressalta Boff (2002, p. 13): “É na periferia que eclodiram os grandes
profetas, nasceram os movimentos reformadores e onde viceja o Espírito.
A periferia possui um privilégio teológico, pois nela nasceu o filho de Deus”.

Iniciou seu movimento na “igrejinha de Porciúncula”, a mais pobre das


igrejas de Assis, cidade natal de Francisco. Durante uma peregrinação
a Roma, em 1206, ele julgou ter ouvido a voz divina, o próprio Cristo
dizendo: “Francisco, vai e repara minha igreja porque, como vês, está em
ruínas”. Foi o que, intuitivamente, ele fez.

O franciscanismo foi um movimento de contestação à igreja, por ser


uma ordem monástica das ruas, fora dos mosteiros, pregando a pobreza
106 | História do cristianismo I | FTSA
voluntária, defendendo o direito dos pobres e necessitados e vivendo ao
lado deles, formando uma comunidade de fraternos e iguais.

Uma de suas petições mais frequentes era para que: “No nosso gênero
de vida, ninguém seja prior, mas todos sejam designados indistintamente
como irmãos menores e se lavem os pés uns dos outros” (apud Boff, 2002,
p. 141). Sua contestação se firmava principalmente contra as formas de
poder e controle clerical, e contra as riquezas e benesses usurpadas pela
igreja, em sua associação com os poderes seculares.

Glossário
Prior: No contexto da Idade Média, prior designava o chefe, o
comandante ou, literalmente, “aquele que está à frente” de uma
organização religiosa ou militar. No caso da Igreja, o prior era um
padre, e o conjunto de seus domínios era chamado de priorado.

Há uma história de uma conversa entre o papa (Inocêncio III) e Francisco,


em que o primeiro disse: “Veja, no tempo de Pedro se dizia que a igreja
não possuía nem ouro e nem prata. Hoje, temos ouro e temos prata”,
argumentou ele apontando para uma suntuosa basílica recém edificada;
Francisco, por sua vez, respondeu: “Na mesma proporção em que podes
afirmar agora possuir ouro e prata, já não podes, porém, dizer ao paralítico:
‘Levanta-te e anda’”.

Boff (2002, p. 134) complementa, dizendo que em Francisco encontramos,


coexistindo com grande tensão e equilíbrio, o não conformismo com a
obediência, a aceitação da Igreja dos clérigos com o alargamento corajoso
do espaço dos leigos, o respeito pela piedade litúrgica oficial com a
criatividade de uma cultura religiosa popular.

Respeitou até a morte esse princípio. Tanto que em seu leito de morte
recomendou: “Conservar a pobreza e a fidelidade à Igreja romana, mas
pondo acima de todas as normas o santo evangelho”. Ou seja, para
Francisco era importante a persistência na igreja e obediência a seus
História do crist | FTSA | 107
líderes. Mas, acima de qualquer estrutura temporal, religiosa, política e
ideológica, estava a submissão ao Evangelho. Ele seguia os vestígios da madre
igreja, mas, principalmente, os vestígios de Jesus Cristo e do Evangelho.

3.2.5. John Wycliff e os Lolardos


Na Inglaterra do séc. XIV surgiu o pré-reformador João Wycliff (1328-1384),
que estudou e ensinou em Oxford durante grande parte de sua vida. Ali ele
desenvolveu suas atividades como padre e como professor universitário.

Ensejando um retorno ao ideal neotestamentário, Wycliff começou


incisivamente a se opor aos dogmas e ingerências da Igreja Católica, a
partir de 1378, chegando a atacar a autoridade do papa em 1382.

Afirmou em um de seus livros que “Cristo e não o Papa era o chefe da


igreja”, e que “a Bíblia e não a Igreja era a autoridade única para o crente
e que a igreja Romana deveria se modelar segundo o padrão da Igreja do
Novo Testamento” (Cairns, 1995, p. 206).

Como suporte a esses ideais, tomou duas importantes medidas: a


tradução completa do Novo Testamento para o inglês; a criação de um
grupo de pregadores leigos, os “lolardos”, que deram continuidade às
ideias de Wycliff por toda a Inglaterra e região.

Glossário
Lolardos: terminologia que significa “cantores”; ou “perseguidos”.

3.2.6. John Huss e os Hussitas


Quando Ricardo II, da Inglaterra, casou-se com Ana, da Boêmia, muitos
jovens boêmios foram estudar na Inglaterra e lá conheceram as ideias de
Wycliff.

John Huss (1373-1415), que também era originário da mesma região,


tendo estudado e lecionado na Universidade de Praga, leu e adotou as

108 | História do cristianismo I | FTSA


ideias de Wycliff e, tal como ele, também se propôs a reformar a Igreja
Romana em sua região, o que lhe rendeu a inimizade do papa. Muitos de
seus livros foram reproduções quase literais dos livros de Wycliff (como a
sua obra Sobre a Igreja, de 1412). Em 1413, um sínodo romano condenou
formalmente os escritos de Wycliff. Huss foi condenado à morte e
executado (queimado vivo), após haver negado a se retratar de suas
colocações no Concílio de Constança (1415). Jonh Huss foi queimado
vivo em 1415. Conta a história que ao ser levado para a execução teria
pronunciado uma frase profética, mais ou menos nos seguintes termos:
“dentro de um século Deus levantará alguém cuja voz não poderão calar”.
Exatamente um século depois, Martinho Lutero deflagraria o golpe final
nas estruturas eclesiásticas que ainda resistiam às reformas que se
faziam urgentes.

Todos esses têm sido chamados de precursores da Reforma. Não há


dúvidas de que merecem esse nome visto que representaram, em seu
tempo e de maneiras próprias, uma contestação à igreja: ao defenderem
o direito do pobre, ao resistirem à ostentação de poder e riqueza
eclesiástica, ao se preocuparem com a espiritualidade do povo, ao
abrirem acesso à Palavra de Deus, e assim por diante.

Mas também é verdade que todos foram homens e mulheres (visto que
alguns movimentos, como o dos franciscanos, acolheram mulheres)
de seu tempo, atendendo a demandas muito peculiares. E, como tais,
tiveram suas limitações, que nos impedem de os associar diretamente à
Reforma do século XVI. Indiretamente, porém, plantou-se uma semente,
preparou-se um terreno.

O Espírito de Deus age na história de maneira irreverente e revolucionária,


escolhendo seres humanos como agentes, ultrapassando as barreiras
estruturais e institucionais com o dinamismo e a força que fazem do
Evangelho do Reino de Deus, um vinho novo que sempre transborda dos
velhos odres para uma nova geração atenta aos propósitos divinos e
disposta a cumprir sua missão.
História do crist | FTSA | 109
Assista os 25 minutos finais do filme: John Huss – o mártir.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=74TH8mAGijM

Exercício de reflexão

Após assistir o vídeo de John Huss, como pode ser caracterizada a


fé de um pré-reformador (máximo de 200 palavras) Acesse o AVA
para finalizar o exercício e veja a reação!

Considerações finais
Diante de um quadro religioso e teológico que não mais se fundamentavam
nas escrituras bíblicas como única regra de fé e prática, surgiram
movimentos de reforma dentro da própria igreja medieval, antes mesmo
da Reforma Protestante que viria a ocorrer no século XVI.

Como vimos, desde meados do século XII, movimentos que brotaram


da periferia da igreja institucional começaram, através da pregação e,
sobretudo, do estilo de vida que passaram a imprimir, a ser considerados
movimentos de contestação à ordem estabelecida. Começando pela
iniciativa de pessoas como Domingos, Francisco, Valdo, Huss, Wycliff,
dentre outros, conhecidos ou anônimos, vimos que surgiram aqui e acolá
genuínas buscas por servir a Deus e a seu reino em meio ao governo
temporal da igreja (que muitas vezes militou contra o próprio reino).

Dentre os movimentos pré-reformadores, destacam-se os Cátaros ou


Albigenses (na França), no século XII; os Valdenses (na França e Itália), nos
séculos XII e XIII; os movimentos liderados por John Wiclyff na Inglaterra,
no século XIV, e Jonh Huss, na Boêmia, no século XV. Todos esses
tiveram em comum o anseio de mudanças e restauração de princípios
teológico-doutrinários apostólicos. Desse modo, por exemplo, traduziram
e leram a Bíblia em suas próprias línguas; prestaram cultos e buscaram
110 | História do cristianismo I | FTSA
a Deus sem a mediação sacerdotal ou institucional; vivenciaram uma
espiritualidade simples, leiga, carismática; questionaram a supremacia
papal e o valor das obras como meios de salvação; desenvolveram uma
missão de forma integral, preocupando-se com os necessitados, lutando
por construir um mundo mais justo e igualitário.

Referências
BOSCH, David. Missão transformadora. Mudanças de paradigma na teologia
da missão. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2002.
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CAIRNS, Earle. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova,
1995.
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DREHER, Martin N. A Igreja no mundo medieval. S. Leopoldo: Sinodal, 1994.
GONZALEZ, Justo. A era das trevas. São Paulo: Vida Nova, 1988.
GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a
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História do crist | FTSA | 111


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