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COMENTÁRIO

ao EVANGELHO
SEGUNDO

JOÃO
EDITORA ACADEMIA CRISTÃ

Editores responsáveis
Luiz Henrique Alves da Silva
Dr. Paulo Cappelletti
Prof. Dr. Waldecir Gonzaga (PUC-Rio, Brasil)

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Abimar Oliveira de Moraes (PUC-Rio, Brasil)


Prof. Dr. Adelson Araújo dos Santos (Gregoriana, Roma, Itália)
Profa. Dra. Andreia Serrato (PUC-PR, Brasil)
Profa. Dra. Aparecida Maria de Vasconcelos (FAJE, Brasil)
Prof. Dr. Carlos Ignacio Man Ging Villanueva (PUCE, Equador)
Profa. Dra. Edith Gonzáles Bernal (PU Javeriana, Bogotá, Colômbia)
Profa. Dra. Eileen Fit Gerald (UC de Cochabamba, Bolívia)
Prof. Dr. Erico João Hammes (PUC-RS, Brasil)
Prof. Dr. Fernando Soler (PUC-Chile, Santiago)
Profa. Dra. Francilaide Queiroz de Ronsi (PUC-Rio, Brasil)
Prof. Dr. Francisco Nieto Renteria (UP, Mexico)
Prof. Dr. Gabino Uribarri (UP Comillas, Espanha)
Prof. Dr. Gilles Routhier (U. Laval, Quebec, Canadá)
Profa. Dra. Gizela Isolde Waechter Streck (EST, Brasil)
Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero (FTSA, Brasil)
Profa. Dra. Maria Isabel Pereira Varanda (UCP, Portugal)
Profa. Dra. Maria Teresa de Freitas Cardoso (PUC-Rio, Brasil)
Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP, Brasil)
Prof. Dr. Valmor da Silva (PUC-GO, Brasil)
Profa. Dra. Vilma Stegall de Tommaso (PUC-SP, Brasil)
Prof. Dr. Waldecir Gonzaga (PUC-Rio, Brasil)
Profa. Dra. Gleyds Silva Domingues (FABAPAR)
RAYMOND E. BROWN, S.S.

COMENTÁRIO
ao EVANGELHO
SEGUNDO

JO Ã O
Volume 1 (112‫)־‬
Introdução, Tradução e Notas

Tradutor:
Valter Graciano Martins

Santo André - SP
2020

CRISTÃ PAULUS
© by Yale University as assignee from Doubleday, a division of Randon House, Inc.
© by Editora Academia Cristã

Título do original inglês: The Gospel According to John (I-XII)

Supervisão editorial:
Luiz Henrique Alves da Silva
Dr. Paulo Cappelletti

Diagrnnmção:
Cicero Silva - (11) 97463-6460

Revisão:
Pe. Mizael A. Silva
Rogerio de Lima Campos

Capa:
lames Valdana

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Brown, Raymond Edward, 1928-1998.


Comentário ao evangelho segundo João Volume 1 (1-12): introdução, tradução e
notas / Raymond Edward Brown, S.S.; tradução de Valter Graciano Martins. - Santo
André: Academia Crista; São Paulo: Paulus, 2020.

Bibliografia
ISBN 978-65-5562-096-2
Título original: The Gospel According to John (I-XII)

1. Bíblia N.T.-João-Comentários. I. Título. II. Martins, Valter Graciano

CDD 226.5077
20-3498 CDU 226.5

índices para catálogo sistemático:

1. Evangelho segundo João - Comentário

CRISTÃ PAULUS
E ditora A cademia C ristã P a u lu s Editora
Rua M ario A ugusto do C arm o, 3 7 - Jard im A velino Rua Francisco Cru z , 229
C EP 03227 ‫ ־‬070 ‫ ־‬S ão Pau lo, S P ‫ ־‬Brasil 04117 ‫־‬091 ‫ ־‬São P au lo-S P
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Site: w w w .ed ito raacad em iacrista.com .b r Site: www.paulus.com.br
S umário

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA................................................................ IX


PRINCIPAIS ABREVIATURAS........................................................................ XIII
INTRODUÇÃO................................................................................................. 1
I. O ATUAL ESTADO DOS ESTUDOS JOANINOS..................................... 2
II. UNIDADE E COMPOSIÇÃO DO QUARTO EVANGELHO................... 6
A. O problema........................................................................................... 6
B. Soluções possíveis................................................................................ 8
C. A teoria adotada neste comentário...................................................... 19
III. A TRADIÇÃO POR DETRÁS DO QUARTO EVANGELHO................. 28
A. O valor da informação encontrada somente em João......................... 29
B. A questão da dependência dos evangelhos sinóticos......................... 32
C. O valor de João na reconstrução do ministério de Jesus.......................... 37
IV. INFLUÊNCIAS PROPOSTAS SOBRE O PENSAMENTO RELIGIOSO
DO QUARTO EVANGELHO...................................................................... 44
A. Gnosticismo.......................................................................................... 45
B. Pensamento helenista........................................................................... 49
C. Judaísmo palestino............................................................................... 54
V. DESTINATÁRIOS E PROPÓSITO DO QUARTO EVANGELHO........... 63
A. Apologética contra os adeptos de João Batista........................................ 64
B. Controvérsia com os judeus................................................................. 67
C. Controvérsia contra hereges cristãos................................................... 74
D. Encorajamento aos cristãos, gentios e judeus...................................... 76
VI. DATA DA REDAÇÃO FINAL DO EVANGELHO................................. 80
A. A última data plausível........................................................................ 80
B. Data mais primitiva plausível.............................................................. 84
VI Comentário ao evangelho segundo João

VII. IDENTIDADE DO AUTOR E LOCAL DA COMPOSIÇÃO................... 90


A. A evidência externa sobre 0 autor....................................................... 91
B. Evidências internas sobre 0 autor........................................................ 97
C. Correlação da hipótese de João como autor com uma teoria
moderna de composição........................................................................ 106
D. Local da composição..............................................................................111
VIII. QUESTÕES CRUCIAIS NA TEOLOGIA JOANINA.............................114
A. Eclesiologia.............................................................................................114
B. Sacramentalismo.................................................................................... 122
C. Escatologia..............................................................................................126
D. Os motivos sapienciais.......................................................................... 136
IX. IDIOMA, TEXTO E FORMATO LITERÁRIO DO EVANGELHO -
E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO............................... 145
A. O idioma original do evangelho........................................................... 145
B. O texto grego do evangelho.................................................................. 147
C. O formato poético dos discursos do evangelho................................... 149
D. Características notáveis no estilo joanino.............................................153
X. ESBOÇO DO EVANGELHO.......... ...........................................................158
A. Esboço geral do evangelho................................................................... 158
B. Esboço geral do Livro dos Sinais.......................................................... 160
XI. BIBLIOGRAFIA SELECIONADA GERAL................................................167

I. PRÓLOGO

1. Hino Introdutório (1,1(18‫־‬...............................................................................170

II. O LIVRO DOS SINAIS

P rimeira Parte: Os dlas iniciais da revelação de J esus........................................ 217

Esboço da primeira parte................................................................................... 218


2. O testemunho de João Batista: - Acerca de sua função (1,19-28)............... 219
3. O testemunho de João Batista: - Acerca de Jesus (1,29-34)........................ 236
4. Os discípulos do Batista vão a Jesus: - Os primeiros
dois discípulos e Simão Pedro (1,35-42).......................................................259
5. Os discípulos do Batista vão a Jesus: - Filipe e Natanael (1,43-51)............ 270
Sumário VII

Segunda P arte: D e C aná a C aná.......................................................................285

Esboço da segunda parte..................................................................................286


6. O primeiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da
Água em Vinho (2,1(11‫־‬.............................................................................. 288
7. Jesus vai para Cafarnaum (2,12)................................................................. 308
8. A purificação do Templo em Jerusalém (2,13-22)......................................311
9. Reação a Jesus em Jerusalém (2,23( 25‫־‬....................................................... 327
10. Diálogo com Nicodemos em Jerusalém (3,1-21)...................................... 330
1 1 . 0 testemunho final do Batista (3,22-30)..................................................... 359
12. A conclusão do diálogo (3,31-36)............................................................... 368
13. Jesus deixa a Judeia (4,1-3)..........................................................................376
14. Diálogo com a Mulher samaritana junto ao Poço de Jacó (4,4-42).............378
15. Jesus entra na Galileia (4,43-45).................................................................. 404
16. O segundo sinal em Caná da Galileia - A cura do filho
do oficial (4,46-54)....................................................................................... 409

Terceira Parte: Jesus e as principais festas dos judeus........................................ 421

Esboço da terceira parte....................................................................................422


17. Jesus e o sábado: - A cura em Betesda (5,1-15)........................................... 426
18. Jesus e o sábado: - Discurso sobre sua atuação no sábado (5,16-30).......... 435
19. Jesus e 0 sábado: - Discurso sobre sua atuação no
sábado (Continuação) (5,31-47)..................................................................... 448
20. Jesus na páscoa: - A multiplicação dos pães (6,1-15).................................. 460
21. Jesus na páscoa: - Caminhando sobre o Mar da Galileia (6,16-21)................484
22. Jesus na páscoa: - A multidão vai até Jesus (6,22-24)................................. 491
23. Jesus na páscoa: - Introdução ao discurso sobre o Pão da Vida
(6,25-34)........................................................................................................ 495
24. Jesus na páscoa: - Discurso sobre 0 Pão da Vida (6,35-50).........................505
25. Jesus na páscoa: - Discurso sobre o Pão da Vida
(Continuação) (6,51-59)................................................................................. 522
26. Jesus na páscoa: - Reações ao discurso sobre o Pão da Vida
(6,60-71)........................................................................................................ 540
27. Jesus na festa dos tabernáculos: - Introdução (7,1-13)...............................554
28. Jesus na festa dos tabernáculos: - Cena I (7,14-36).................................... 560
29. Jesus na festa dos tabernáculos: - Cena II (7,37-52)...................................572
30. O relato da mulher adúltera (7,53; 8,1-11)................................................. 589
31. Jesus na festa dos tabernáculos: - Cena III (8,12-20)..................................598
32. Jesus na festa dos tabernáculos: - Cena III (Continuação) (8,21-30).............. 608
VIII Comentário ao evangelho segundo João

33. Jesus na festa dos tabernáculos: - Cena III (Conclusão) (8,31-59)...................616


34. O clímax na festa dos tabernáculos: - A cura de um cego (9,1-41)...............639
35. O clímax na festa dos tabernáculos: - Jesus como a porta do
aprisco e 0 pastor (10,1-21).............................................................................................657
36. Jesus na festa da dedicação: - Jesus como Messias e
Filho de Deus (10,22-39)..............................................................................................680
37. Aparente conclusão do ministério público de Jesus (10,40-42)..................... 695

Q uarta P arte: J esus segue rumo à hora da Morte e Glória.................................... 699

Esboço da quarta parte........................................................................................................700


38. Jesus dá vida aos homens: - O relato de Lázaro (11,1-44)............................... 701
39. Os homens condenam Jesus à morte: - O sinédrio (11,45-54)...........................724
40. Jesus irá a Jerusalém para a páscoa? (11,55-57)...................................................733
41. Cenas preparatórias para a páscoa e a morte:
- A unção em Betânia (12,1-8)...................................................................................735
42. Cenas preparatórias para a páscoa e a morte:
- A entrada em Jerusalém (12,9-19)......................................................................... 746
43. Cenas preparatórias para a páscoa e a morte:
- A chegada da hora (12,20-36).................................................................................759

Conclusão: A valiação e balanço do ministério de Jesus........................................... 779

44. Uma avaliação do ministério de Jesus entre seu próprio povo (12,37-43).....780
45. Um diálogo de Jesus usado como um resumo de sua proclamação
(12,44-50).......................................................................................................................... 787

A pêndices

I: Vocabulário Joanino......................................................................................................794
II: A "P alavra".....................................................................................................................823
III: Sinais e Obras................................................................................................................. 831
IV: Egõ Eimi - "Eu S ou ".................................................................................................. 841

ÍNDICE DOS PRINCIPAIS AUTORES CITADOS..................................................... 849

ÍNDICE DE CITAÇÕES BÍBLICAS.................................................................................856

OUTRAS FONTES CITADAS.......................................................................................... 892


P refácio à E dição B rasileira

om dupla alegria é que aceitei e me proponho a fazer este prefá-


C cio à edição brasileira da obra do Prof. R aymond E dward B rown,
renomado biblista, com grande destaque sobremaneira no corpus joa-
nino: a primeira foi a de receber a notícia da tradução e publicação
para o português do Brasil desta obra monumental, em dois volumes
realmente densos e completos em todos os sentidos; e a segunda foi
ter sido convidado para prefaciar esta obra, que já tanto usamos em
nossos cursos de literatura joanina, na Graduação e na Pós-graduação
em todo o território deste imenso Brasil, de norte a sul, de leste a oeste.
Esta obra foi escrita por B rown, com seu original em inglês. Aliás,
o primeiro volume, The Gospel According to John, I-XII. A new translation
with introduction and commentary, The Anchor Yale Bible Commenta-
ries Series, Vol. 29. Hardcover: Yale University Press, 1966, 538 pp.,
e o segundo volume, sempre no inglês: The Gospel According to John,
X1II-XXI. A new translation with introduction and commentary, The Anchor
Yale Bible Commentaries Series, Vol. 29, Part A. Hardcover: Yale
University Press, 1970, 688 pp. Depois essa belíssima obra foi tra-
duzida para vários idiomas, o que a tornou ainda mais acessível.
A língua portuguesa é mais um ganho na difusão desta obra de super-
lativa grandeza e de valor incomensurável para os estudos joaninos e
bíblicos ein geral, sendo muito apreciada pelas várias tradições cristãs.
O Prof. R aymond E dward B rown , nascido em 1928 e falecido em
1998, atravessou o século XX sendo realmente um dos maiores biblistas
e renomados professores de Sagrada Escritura, especialmente do
Novo Testamento, com sede na Union Theological Seminary (UTS), de
New York, EUA. Como grande especialista em Literatura Joanina -
além de outros temas e textos do Novo Testamento - , a fim de que
realmente tenhamos uma maior ideia da grande envergadura das ca-
pacidades deste querido biblista joanino, eu gostaria aqui de recordar
algumas de suas obras, inclusive traduzidas para o português e muito
X Comentário ao evangelho segundo João

usadas em nossos cursos de teologia pelo vasto território nacional.


Vou procurar citar apenas algumas de suas obras, mantendo sua or-
dem cronológica de tradução e publicação no Brasil: Evangelho de João
e Epístolas (1975), As Recentes Descobertas e 0 Mundo Bíblico (1986), As
Igrejas dos Apóstolos (1986), A comunidade do discípulo amado (1999), En-
tendendo 0 Antigo Testamento (2004), O Nascimento do Messias (2011),
A Morte do Messias: Vol. 1 (2011), Λ Morte do Messias: Vol. 2 (2011), In-
trodução ao Novo Testamento (2012), Novo Comentário Bíblico São Jerôni-
mo - Antigo Testamento (2007) e Novo Comentário Bíblico São Jerônimo -
Novo Testamento (2011), sendo essas duas últimas obras uma coedição
entre R aymond E. B rown / J oseph A. F itzmyer / E . R oland .
Por isso, e por tudo mais que B rown representa no mundo da lite-
ratura bíblica, ver agora o seu Comentário ao Evangelho segundo João, esta
obra monumental, de superlativa qualidade e seriedade acadêmica -
como já o sabemos - , sendo traduzida e publicada no Brasil, disponível
em nossas mãos, a fim de facilitar ainda mais nossos estudos, é algo
que nos enche de alegria e renova nosso ânimo acadêmico. Desde que
o Vol. 1 foi publicado originalmente, em 1966, e o Vol. 2, em 1970, a
obra continua sendo muito atual e indispensável para os estudos refe-
rentes ao Quarto Evangelho, sendo cada vez mais traduzida e publica-
da em novas línguas, como está sendo agora para o português. Por isso,
continua sendo muito empregada nos estudos teológico-bíblicos, como
uma obra referencial. De fato, poucos textos têm sido usados no mundo
com tão ampla difusão e tradução para vários idiomas como esta obra.
Sendo já volumosa no original inglês, com seus dois amplos volumes,
ela é traduzida respeitando a mesma divisão, até mesmo porque são
1.698 páginas contando os dois volumes, na edição brasileira.
Não me cansarei de afirmar e não tenho dúvidas de que, como dito
acima, tendo em vista o amplo uso que já é feito desta obra no meio acadê-
mico nos cursos de Teologia no Brasil - tanto em nível de graduação como
de Pós-Graduação - , a tradução desse livro /dessa coletânea para o portu-
guês e sua publicação no Brasil constitui um ganho incalculável, visto que
abrirá inúmeras possibilidades para os estudos futuros, proporcionando
um maior acesso, em todos os sentidos, e não apenas linguístico.
Nestes dois volumes dedicados ao Evangelho de João, B rown reú-
ne todos os seus anos de magistérios, lecionando sobre a literatura joa-
nina, bem como recolhendo os frutos de seus antecessores neste mesmo
campo das Sagradas Escrituras. Nesse sentido, podemos considerar
Prefácio à edição brasileira XI

que B rown faz e nos apresenta uma grande síntese de todas as colabo-
rações anteriores a ele e lança luzes sobre as produções posteriores a
esta obra, como podemos conferir pelo seu amplo uso. Ele, mais que
ninguém de sua época, soube meditar e refletir sobre a riqueza da lite-
ratura joanina e, em especial, sobre o Quarto Evangelho e tudo aquilo
que ele representa em paralelo aos três outros Evangelhos no Novo
Testamento, da literatura Sinótica, trazendo/ dando/conferindo outra
tonalidade e riqueza de detalhes sobre a vida e a obra do Mestre.
Nos últimos séculos foram realizadas grandes descobertas bíbli-
cas que trouxeram luzes para os estudos bíblicos, os quais avançaram
e muito em suas pesquisas e investigações. Sobremaneira recordamos:
a) Guenizá do Cairo (Egito: 1896); Nag Hammadi (Egito: 1945) e
Qumran (Israel: 1947). Porém, alguns falam também do valor dos 70 li-
vros de metal com bíblicos, encontrados na caverna da Jordânia (2011).
Mas em nada todas essas descobertas afetaram os textos bíblicos. Pelo
contrário, toda a literatura encontrada até então tem ajudado ainda
mais os sérios trabalhos realizados nos estudos bíblicos, com muitas
dissertações e teses que são produzidas dentro de nossas inúmeras
Universidades espalhadas pelos cinco continentes do orbe terrestre.
Se os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) produziram a sua teolo-
gia própria, como, aliás, todos os autores bíblicos - com maior apro-
ximação de temas, linguagem, fatos da vida de Cristo - , o autor do
Evangelho de João seguiu um caminho diverso, com temas, vocabu-
lário e narrativas próprias, diferenciando dos sinóticos, com igual ou
superior riqueza de dados e teologia, mas não entrando em contradi-
ção e sim completando ainda mais os dados da revelação que o Verbo
Encarnado veio nos trazer. A riqueza teológica de João completa a
grandeza dos dados sobre a vida do Mestre e da Igreja nascente, sem
a qual não teríamos o mesmo acesso a tão fina teologia sobre Jesus
Cristo, como o Quarto Evangelho nos apresenta.
No que diz respeito ao trabalho de R aymond E dward B rown. Comen-
tário ao Evangelho segundo João. Volume 1: Introdução, Tradução e No-
tas (1-12). Santo André: Academia Cristã / São Paulo: Paulus, 2020,
a obra apresenta uma introdução geral ao Evangelho de João, tradução do
texto bíblico, comentários e notas ao texto grego dos capítulos 1 a 12 do
Quarto Evangelho, que conta com o Prólogo e o Livro dos Sinais. Ou-
tro aspecto muito positivo é toda a parte introdutória, com um status
cjuaestionis sobre o Quarto Evangelho, destinatários, data, autoria, local
XII Comentário ao evangelho segundo João

de composição, propósito, linguagem, unidade, gnosticismo, helenis-


mo, judaísmo, teologia etc., sendo dividida entre Prólogo (1,1-18) e Li-
vro dos Sinais: Primeira Parte: Os dias iniciais da Revelação de Jesus
(1,19-51); Segunda Parte: De Caná a Caná (2,1 a 4,54); Terceira Parte:
Jesus e as principais Festas dos Judeus (5,1 a 10,42); Quarta Parte: Je-
sus segue rumo à Hora da Morte e Glória (11,1 a 12,50); Apêndices e
vasta bibliografia para ulteriores aprofundamentos.
B rown pretende, com isso, apresentar-nos toda a riqueza do
Quarto Evangelho. Sua tradução procura manter a riqueza linguís-
tica, inclusive em seus detalhes, respeitando as nuances e o contexto
de cada narrativa; suas notas e seus comentários intentam traduzir a
riqueza e a beleza que a literatura joanina comporta, trazendo sempre
luzes para, inclusive, aproximar-se dos sinóticos com maior gosto e
desejo de crescer nas pesquisas e nos estudos bíblicos. É óbvio que ao
fazer a passagem do grego, língua original do Novo Testamento, para
uma outra língua, como o inglês ou o português, não é algo tão fácil
de se conseguir com isenção e maestria como consegue o nosso autor.
Mais ainda quando se trata de traduzir esta obra escrita originalmente
em inglês e agora versada para o português. Mas a tradução realmen-
te foi feita com esmero e coloca em nossas mãos esta obra-prima, com
todas as suas riquezas e detalhes.
Enfim, se não bastasse toda a riqueza da obra em si, com todos
os seus comentários e notas, ao longo dos dois volumes, B rown vai
nos presenteando com uma rica e vasta bibliografia, que muito ajuda
a todos os interessados em aprofundar ainda mais o tema, além de
que nos proporciona ter ciência das fontes em que o autor bebeu para
tecer sua obra. Mais ainda, esta obra também apresenta os índices re-
missivos dos autores e das passagens bíblicas citadas, separadas por
Antigo Testamento e Novo Testamento, inclusive do Evangelho de
João, bem como dos deuterocanônicos e de apócrifos.

Prof. Dr. Waldecir Gonzaga


Waldecir Gonzaga, Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia
Universidade Gregoriana (Roma) e Pós-Doutorado pela FAJE (Belo Horizonte).
Diretor e Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da
PUC-Rio: graduação e pós-graduação.
Rio de janeiro / RJ - Brasil / E-mail: waldecir@puc-rio.br
P rincipais A breviaturas

1. Obras Bíblicas e Apócrifas

Além das abreviações padrão de livros da Bíblia usadas na série:

Livros Deuterocanônicos do AT:


Tob Tobias
jt Judite
I & II Mac I & II Macabeus
Sir Sirácida ou Eclesiástico
Sab. Sal. Sabedoria de Salomão
Bar Baruque

Livros Apócrifos relatados no AT:


]ub Jubileu
I En 1 Enoque
II Bar II Baruque
I & II Esd I & II Esdras
Sal. Sal. Salmos de Salomão

2. Publicações

AASOR Annual of the American Schools of Oriental Research


AER American Ecclesiastical Review
APCh Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English
por R. H. Charles (2 vols.; Oxford: Clarendon, 1913)
ATR Anglican Theological Review
XIV Comentário ao evangelho segundo João

BA The Biblical Archaeologist


BAG W. Bauer (como traduzido por W. F. Arndt e F. W. Gingrich),
A Greek-English Lexicon of the New Testament (University
of Chicago, 1957)
BASOR Bulletin of the American Schools of Oriental Research
BCCT The Bible in Current Catholic Thought, ed. J. L. McKenzie, em
honra de M. Gruenthaner (Nova York: Herder & Herder,
1962)
BDF F. Blass and A. Debrunner (como traduzido por R. W. Funk),
A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature (University of Chicago, 1961). Referências
a Seções
Bib Biblica
BibOr Bibbia e Oriente
BJERL Bulletin of the John Rylands Library (Manchester)
BNTE The Background of the New Testament and Its Eschatology, eds.
W. D. Davies and D. Daube, em honra de C. H. Dodd
(Cambridge, 1956)
BVC Bible et Vie Chrétienne
BZ Biblische Zeitschrift
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CDC Cairo Genizah Document of the Damascus Covenanters
(the Zadokite Documents)
CINTI Current Issues in New Testament Interpretation, eds. W. Klassen
e G. F. Snyder, em honra de O. A. Piper (Nova York:
Harper, 1962)
CSCO Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium (Louvain)
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (Vienna)
DB H. Denzinger e C. Bannwart, Enchiridion Symbolorum, rev.
por A. Schönmetzer, 32 ed. (Freiburg: Herder, 1963).
Referências a seções
DBS Dictionnaire de la Bible - Supplement
ECW Early Christian Worship by Oscar Cullmann (ver General
Selected Bibliography)
EstBib Estúdios Bíblicos (Madri)
ET Expository Times
Principais abreviaturas XV

ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses


Evjean VEvangile de Jean by M.-E. Boismard et al. (Recherches
Bibliques, III; Louvain: Desclée de Brouwer, 1958)
EvTh Evangelische Theologie (Munique)
GCS Die Griechischen Christlichen Schriftsteller (Berlim)
HTR Harvard Theological Review
IEJ Israel Exploration Journal
IMEL In Memoriam Ernst Lohmeyer, ed. W. Schmauch (Stuttgart:
Evangelisches Verlag, 1951)
Interp Interpretation (Richmond, Virginia)
JBL Journal of Biblical Literature
JeanThéol Jean le Théologien by F.-M. Braun
JG Johannine Grammar by E. A. Abbott (Londres: Black,
1906). Referências a seções
JJS Journal of Jewish Studies
JNES Journal of Near Eastern Studies
JohSt Johannine Studies by A. Feuillet (Nova York: Alba, 1964)
JPOS Journal of the Palestine Oriental Society
JTS Journal of Theological Studies
LumVie Lumière et Vie
MD La Maison-Dieu
NovT Novum Testamentum
NRT Nouvelle Revue Théologique
NTA New Testament Abstracts
NTAuf Neutestamentliche Aufsätze, eds. J. Blinzler, O. Kuss, e F.
Mussner, em honra de J. Schmid (Regensburg: Pustet,
1963)
ΝΤΕ New Testament Essays by Raymond E. Brown (Milwaukee:
Bruce, 1965; reimpresso em Nova York: Doubleday Image,
1968)
NTPat Neotestamentica et Patristica, em honra de O. Cullmann
(SNT, VI)
NTS New Testament Studies (Cambridge)
PG Patrologia Graeca-Latina (Migne)
PL Patrologia Latina (Migne)
1QH Hinos de Ação de Graças
XVI Comentário ao evangelho segundo João

lQpHab pêser sobre Habacuque


1QM Qumran War Scroll [A Regra para a Guerra]
1QS Qumran Manual of Discipline [Manual de Disciplina]
RB Revue Biblique
RecLC Recueil Luden Cerfaux (3 vols.; Gembloux, 195462‫)־‬
RHPR Revue d'histoire et de philosophie religieuses
RivBib Rivista Biblica (Brescia)
RSPT Revue des sciences philosophiques et théologiques
RSR Recherches de science religieuse
RThom Revue Thomiste
SacPag Sacra Pagina, eds. J. Coppens, A. Descamps, E. Massaux
(Louvain, 1959)
SBT Studies in Biblical Theology (Londres: SCM)
SC Sources Chrétiennes (Paris: Cerf)
ScEccl Sciences Eccléstiastiques (Montreal)
SFG Studies in the Fourth Gospel, ed. F. L. Cross (Londres:
Mowbray, 1957)
SNT Supplements to Novum Testamentum (Leiden: Brill)
StB H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament
aus Talmud und Midrasch (5 vols.; Munique: Beck, 1922-55)
StEv Studia Evangélica (Papers from the Oxford International
Congresses of NT Studies; published at Berlin, Akademie-
Verlag)
TalBab The Babylonian Talmud, English ed. by I. Epstein (Lon-
dres: Soncino, 1961)
Taljer The Jerusalem Talmud
TD Theology Digest
ThR Theologische Rundschau (Tübingen)
TLZ Theologische Literaturzeitung
TNTS Twelve New Testament Studies by John A. T. Robinson (SBT,
No. 34; Londres: SCM, 1962).
TS Theological Studies
TWNT Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, ed. G. Kittel
(Stuttgart: Kohlhammer, 1933-)
TWNTE Same work translated into English by G. W. Bromiley
(Grand Rapids: Eerdmans, 1964-)
Principais abreviaturas XVII

TZ Theologische Zeitschrift (Basel)


VD Verbum Domini
VigChr Vigiliae Christianae
VT Vetus Testamentum
ZDPV Zeitschrift des Deutschen Palästina-Vereins
ZGB M. Zerwick, Graecitas Biblica (4 eds.; Roma: Pontifical Bi-
blical Institute, 1960). Referências são a seções; estas são
as mesmas na tradução inglesa da 4a ed. por J. Smith
(Roma: 1963)
ZKT Zeitschrift für katholische Theologie
ZNW Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft und die
Kunde der älteren Kirche
ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche

3. Versões

KJ The Authorized Version of 1611, ou a King James Bible


LXX The Septuagint
TM Masoretic Text [Texto MassoréticoJ
NEB The New English Bible (New Testament, 1961)
RSV The Revised Standard Version, 1946,1952
SB La Sainte Bible - "Bible de Jerusalem" - traduite en français
(Paris: Cerf). D. Mollat, L'Evangile de Saint Jean (2 ed. 1960)
Vulg. Vulgata

4. Outras Abreviações

NT Novo Testamento
AT Antigo Testamento
Aram. Aramaico
Boh. Bohairic (Cópta)
Et Etíope
Gr. Grego
Heb. Hebreu
OL [Latim antigo]
OS [Siríaco antigo[ (OS1‫ ״‬r; OSsin denote the Curetonian and Si-
naiticus mss. Respectivamente)
XVIII Comentário ao evangelho segundo João

Sah. Sahidic (Cópta)


App. Apêndices no final do livro
P Papyrus
par. Ver paralelo(s)
* O asterisco depois de um manuscrito indica a mão do co-
pista original, como distinta da dos últimos revisores.
[ ] Colchetes na tradução indica uma palavra ou passagem
textualmente dúbia.
INTRODUÇÃO
I
O ATUAL ESTADO DOS ESTUDOS JOANINOS

Neste século, um enorme volume de literatura tem-se dedicado ao


Quarto Evangelho. Aliás, a introdução mais instrutiva ao estudo do
evangelho é ler qualquer repertório bibliográfico da literatura sobre
João - por exemplo, o de H oward , ou o artigo mais sucinto de C ollins .
O caráter efêmero de algumas posições assumidas merece reflexão
sóbria. A análise mais valiosa da literatura joanina se encontra em
francês, nos escritos de M enoud , cujas próprias opiniões competentes
e equilibradas emergem de sua crítica das obras de outros estudiosos.
Suas bibliografias são de muita ajuda. A bibliografia em alemão de
H ähnchen é também notavelmente completa.
Particularmente, na década após a Segunda Guerra Mundial emer-
giu ali um número de contribuições maiores ao estudo de João. Os comen-
tários de ambos, H oskyns (1940) e de B ultmann (1941) podem ser inclusos
neste grupo, visto que não tiveram ampla circulação até após a Guerra.
Além disso, a Interpretação do Quarto Evangelho de D odd (1953) e os comen-
tários de Barrett (1955) e L ightfoot (1956) vêm imediatamente à mente.
A diferença de abordagem nestas várias obras causou muita discussão,
como evidenciado pelos artigos de G rossouw, K äsemann e Schnackenburg.
Mesmo uma leve familiaridade com esta literatura revela que a
tendência nos estudos joaninos tem passado por um interessante ci-
cio. No final do último século e nos anos iniciais deste século, a eru-
dição tem enfrentado um período de extremo ceticismo acerca deste
evangelho. João foi datado mui tardiamente, sim, na segunda metade
do segundo século. Como produto do mundo helenista, pensou-se
que ele fosse totalmente destituído de valor histórico e tivesse pouca
I · O atual estado dos estudos joaninos 3

relação com a Palestina de Jesus de Nazaré. O pequeno núcleo de dados,


em suas páginas, foi supostamente tirado dos evangelhos sinóticos
que serviram como base para as elaborações do autor. E desnecessário
dizer que poucos críticos pensaram que o Evangelho segundo João
tivesse a mais leve conexão com João filho de Zebedeu.
Algumas destas posições céticas, especialmente aquelas relativas
à autoria e à fonte de influência sobre o evangelho, são ainda man-
tidas por muitos reputáveis estudiosos. Não obstante, não existe se-
quer uma posição que não tenha sido afetada por uma série de ines-
peradas descobertas arqueológicas, documentárias e textuais. Estas
descobertas nos têm levado a desafiar inteligentemente os pontos de
vista críticos que quase vieram a ser ortodoxos e a reconhecer quão
frágil era a base que sustentava a análise altamente cética sobre João.
Consequentemente, desde a Segunda Guerra Mundial emergiu aí o
que o Bispo J ohn A. T. R obinson chama um "novo olhar" nos estudos
joaninos - um novo olhar que partilha muito com a visão ao mesmo
tempo tradicional no Cristianismo. A datação do evangelho tem sido
recuada para o final do primeiro século ou ainda mais cedo. A tradi-
ção histórica subjacente aos evangelhos sinóticos está sendo proposta
por alguns. De fato, o autor do evangelho está gradualmente tendo
seu status como um cristão ortodoxo restaurado, após longa debilita-
ção nas masmorras do Gnosticismo às quais ele foi relegado por mui-
tos críticos. E talvez mais forte ainda, alguns estudiosos ainda ousam
sugerir, uma vez mais, que João, filho de Zebedeu, bem que poderia
ter algo a ver com o evangelho. Entretanto, esta inversão de tendência
não significa que toda a crítica erudita interveniente tem sido em vão.
A erudição não pode retornar aos dias pré-crítica, e nem sempre se
deixa embaraçar pelo fato de que ela aprende através dos equívocos.
Aliás, é a admirável honestidade da crítica bíblica e sua habilidade em
criticar-se que a tem conduzido a uma avaliação mais conservadora
do valor histórico do Quarto Evangelho.
No vasto corpo da literatura sobre João, os alemães e os britânicos
têm sido os mais frutíferos contribuintes. Os alemães têm sido mais
aventureiros em suas teorias das passagens, composição e sequência do
evangelho. Os britânicos, tendendo menos às reconstruções hipotéti-
cas, têm feito mais para extrair uma teologia do evangelho como agora
se encontra. E também surpreendentemente, nenhuma destas grandes
abordagens à exegese joanina tem sido marcantemente influenciada
4 Introdução

pelas outras. O individualismo dos principais estudiosos tem sido


conspícuo, e em uns poucos casos parecería que pontos de vista opos-
tos foram deliberadamente ignorados. Como as bibliografias indicam,
este comentário tem tirado proveito dos escritores de todas as escolas.

BIBLIOGRAFIA

Sumários da literatura sobre ]oão

BRAUN, F.-M., "Ou en est Vétude du quatrième évangile", ETL 32 (1956),


535-46.
COLLINS, T. A., "Changing Style in Johannine Studies", BCCT, pp. 202-25.
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ROBINSON, James M., "Recent Research in the Fourth Gospel", JBL 78
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SCHNACKENBURG, R., “Neuere englische Literatur zum Johannesevangelium",
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STANLEY, D. M., "Bulletin of the New Testament: The Johannine Literature",
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O "Novo Olhar" nos Estudos Joaninos

HUNTER, A. M. "Recent Trends in Johannine Studies", ET 71 (1959-60),


164-67,219-22.
MITTON, C. L., "The Provenance of the Fourth Gospel", ET 71 (1959-60),
337-40.
I · O atual estado dos estudos joaninos 5

POLLARD, T. E., "The Fourth Gospel: Its Background and Early Interpreta-
tion", Australian Biblical Review 7 (1959), 4 1 5 3 ‫־‬.
ROBINSON, John A. T., "The New Look on the Fourth Gospel", StEv, I,
pp. 33850‫־‬. Now in Robinson's TNTS, pp. 94-106.
II
UNIDADE E COMPOSIÇÃO
DO QUARTO EVANGELHO

A. O PROBLEMA

O Quarto Evangelho, como o temos agora, é obra de um só homem? (Ex-


cluiremos desta discussão o relato da mulher Adúltera em 7,53-8,11, o
qual não se encontra nas testemunhas gregas mais antigas; ver § 30).
A solução comumente aceita, diante do advento da crítica bíblica, é
que este evangelho foi obra de João, filho de Zebedeu, escrito pouco
antes de sua morte. Discutiremos a identidade do autor na Sétima
Parte abaixo; mas, mesmo que descartemos a questão da identidade,
há no evangelho características que oferecem dificuldade para qual-
quer teoria de autoria unificada. Com muita frequência - como sa-
lientou T eeple , art. cit. - , as dificuldades têm sido criadas por não se
respeitar a intenção do autor, e hipóteses têm sido construídas onde
explicações simples estavam disponíveis. Todavia, levando em conta
estes fatos, encontramos estas dificuldades maiores:
Primeiro, há no evangelho diferenças de estilo grego. Enviamos
o leitor à discussão do capítulo 21 (segundo volume), a qual difere
do restante do evangelho em pequenos detalhes estilísticos que de-
latam a diferença de autoria. O Prólogo está escrito intercalando um
padrão poético cuidadosamente construído, só encontrado raramente
no próprio evangelho. Além do mais, o Prólogo emprega importan-
tes termos teológicos não encontrados em outro lugar no evangelho,
por exemplo, logos ("Palavra" personificada), charts ("graça" ou "amor
pactuai"), p lêrõ m a ("plenitude").
II · Unidade e composição do quarto evangelho 7

Segundo, há interrupções e inconsistências na sequência. Muito


se tem falado dos "saltos" geográficos e cronológicos em João, com
os quais, sem qualquer indicação de uma transição, um capítulo pode
ser situado num lugar diferente daquele do capítulo anterior. Tais sal-
tos só seriam cruciais se o evangelho fosse uma tentativa de dar-nos
um relato completo do ministério de Jesus, mas 20,30 e 21,25 declaram
especificamente que o relato no evangelho é incompleto. Todavia,
mesmo que sejamos cuidadosos em não impor ao evangelista nossa
paixão moderna por cronologia, há ainda aparentes contradições na
presente ordem do evangelho. Em 14,31, Jesus conclui suas observa-
ções na última ceia e dá a ordem de partir; mas isso é seguido por mais
três capítulos do discurso e a partida parece não ocorrer até 18,1. Em
20,30-31, nos é dada uma clara conclusão do evangelho: o evangelista
resume sua narrativa e explica o propósito que tinha na composição;
mas isso é seguido por outro capítulo, aparentemente independente,
com outra conclusão. Também parece haver uma dupla conclu-
são ao ministério público em 10,40-42 e 12,37-43 (ver discussão em
§ 37, p. 695), embora aqui a evidência não seja tão clara. Os discípulos
de João Batista, que estavam presentes quando o Batista identificou
Jesus e explicou sua missão em 1,29-34, parecem não entender nada
sobre Jesus em 3,26-30. Após seu primeiro sinal em Caná (2,11), Jesus
opera sinais em Jerusalém (2,23); e seu próximo milagre em Caná é
aparentemente designado como seu segundo sinal (4,54), como se não
houvessem sinais entre estes. Em 7,3-5, seus irmãos falam como se
Jesus nunca houvesse operado sinais na Judeia, a despeito dos sinais
em Jerusalém recém mencionados e outro milagre no capítulo 5. Na
última ceia, Pedro pergunta a Jesus aonde estava indo (13,36, tam-
bém 14,5); todavia, no mesmo cenário em 16,5, Jesus se queixa de que
ninguém lhe perguntou: "Aonde vais?" Por todo o capítulo 3, Jesus
esteve em Jerusalém, que está na Judeia; todavia, no meio do capítulo
(3,22) somos subitamente informados que ele entrou na Judeia. Uma
ou outras destas dificuldades podem ser explicadas, mas nem todas
elas. Parece que em João temos, de um lado, os elementos de um es-
quema planejado e coeso (Décima Parte, p. 158), e, do outro, elemen-
tos que parecem indicar alterações, inserções ou redações sucessivas.
De um lado há cenas dramáticas que revelam minucioso cuidado re-
dacional (cap. 9 e o julgamento diante de Pilatos em 18-19); do outro,
há cenas em que falta término e organização (caps. 7-8).
8 In trod u ção

T e r c e ir o , há repetições nos discursos, bem como passagens que


claramente não pertencem ao seu contexto. As vezes, a economia de
estilo do evangelista é realmente impressionante, mas, em outras ve-
zes, o que foi dito parece ser repetido mais e mais vezes apenas em
termos ligeiramente diferentes. Esta repetição não é pedagógica, mas
parece ser o resultado de duas diferentes tradições das mesmas pala-
vras (um fenômeno parecido com o que encontramos nas tradições
do Pentateuco). Por exemplo, o que é dito em 5,19-25, com uma ênfase
sobre a escatologia realizada (Oitava Parte, p. 114), aparece outra vez
e, em parte, quase literalmente em 5,26-30, com uma ênfase sobre a es-
catologia final. O que é dito e o que aconteceu em 6,35-50, onde Jesus
apresenta sua revelação como o pão da vida, é quase o mesmo que
é dito e aconteceu em 6,51-58, onde Jesus apresenta seu corpo como
o pão da vida (p. 522ss). O que é dito no último discurso em 14,1-31,
é dito largamente e outra vez em 16,4-33. Em adição a estas duplicações,
há seções de discurso que não pertencem ao seu contexto. Quem está
falando em 3,31-36, João Batista ou Jesus? O contexto indicaria João
Batista, mas as palavras são apropriadas a Jesus. Outro discurso que,
provavelmente, não está em sua sequência original é 12,44-50, onde
encontramos Jesus fazendo uma proclamação pública quando acaba-
mos de ser informados de que ele se ocultou (12,36).

B. S O L U Ç Õ E S P O S S ÍV E IS

Tais dificuldades como temos exemplificado acima têm levado muitos


estudiosos a abandonar a imagem tradicional da composição do evan-
gelho por run homem que consignava suas recordações. Com a máxima
simplificação, agruparemos abaixo as explicações modernas alternativas
sob três tópicos. Entretanto, enfatizamos que estas soluções não são neces-
sária e mutuamente exclusivas; podem ser, e às vezes são, combinadas.

(1) T e o r ia s d o s d e s l o c a m e n t o s a c id e n t a is

Talvez a solução mais simples às dificuldades encontradas em


João seja reorganizar partes do evangelho. Desde o tempo de T aciano
(c. de 175) até nossos dias, estudiosos têm imaginado que, movendo
passagens de um lado para o outro, poderíam pôr João em ordem
II · U n id a d e e co m p o siç ã o d o quarto e v a n g e lh o 9

consecutiva. Sua pressuposição usual tem sido de que algum acidente


deslocou passagens e destruiu a ordem original, criando assim a con-
fusão que agora deparamos no evangelho. Visto que não há absoluta-
mente evidência, em quaisquer das testemunhas textuais, de alguma
outra ordem além daquela que possuímos, deve-se assumir que este
deslocamento acidental ocorreu antes que o evangelho fosse publica-
do. E geralmente assume-se que isso aconteceu após a morte ou na
ausência do evangelista; pois, se ele estivesse presente, podería facil-
mente ter restaurado sua ordem original.
O número de reorganização que se tem proposto varia considera-
velmente. Muitos estudiosos que não são a favor de uma reorganiza-
ção, por exemplo, W ikenhauser, admitem, pelo menos, uma inversão
da ordem entre os capítulos 5 e 6 a fim de obter melhor sequência
geográfica. (Infelizmente, não temos prova de que o evangelista parti-
Ihou esse interesse geográfico). B ernard , em seu comentário, endossa
um novo arranjo razoavelmente extenso, afetando não só 5 e 6, mas
também a totalidade do 15 e 16, no último discurso, e partes de 3, 4,
10 e 12. Bultmann leva a reorganização ainda mais longe, de modo
que versículos e partes individuais dos versículos são afetados; por
exemplo, em uma parte de sua reorganização, a ordem dos versículos
é 9,41; 8,12 e 12,44. W ilkens e Boismard são outros que tendem a uma
frequente reorganização.
Não há dúvida de que a reorganização resolve alguns problemas
do evangelho. Que não os resolvem todos os meios que costumam ser
combinados com outra explicação da composição do evangelho, por
exemplo, as teorias da fonte ou edição que serão discutidas abaixo.
Entretanto, é importante notar que há sérias objeções a qualquer teo-
ria de deslocamento e reorganização:
P r im e ir a , há o risco de que as reorganizações reflitam os interesses
do comentarista, os quais podem não ser os mesmos interesses do
evangelista. E possível que as reorganizações destruam uma sequên-
cia que era tencionada, ao menos pelo redator final do evangelho. Por
exemplo, se a seção sobre João Batista, em 3,22-30 (§ 11), parece in-
terromper o que poderia ser a melhor sequência entre 3,1-21 e 31-36
(assim Bernard ), acaso não poderia alguém argumentar que a passa-
gern foi inserida em seu atual local precisamente para lembrar o leitor
da significação batismal das palavras em 3,1-21, significação esta que
de outra maneira pode ter-se perdido? Geograficamente, o capítulo 6
10 Introdução

transcorre melhor antes do 5, mas a intenção do evangelista poderia


ter sido o tema do pão de 6 a ser seguido imediatamente pelo tema
da água em 7 (37-38), a fim de ecoar o relato do Êxodo, onde Deus
deu a Israel pão do céu e água da rocha. Caso alguém comente o
evangelho como ora se encontra, está certo de estar comentando um
evangelho antigo tal como existiu realmente no momento final de sua
publicação. Se alguém se dedica a uma reorganização extensa, pode
estar comentando um híbrido que nunca existiu antes de emergir da
mente original do reorganizador. Alguém pode exagerar esta objeção;
por exemplo, B ultmann tem sido injustamente acusado de comen-
tar o Evangelho segundo B ultmann , em vez do Evangelho segundo
João. Ademais, o próprio título de seu comentário, Das Evangelium des
johannes (em vez do mais usual nach Johannes ou Johannesevangelium)
tem sido interpretado por alguns como a indicar a firme certeza de
B ultmann de que ele encontrou o real evangelho de João por detrás do
evangelho como nos tem sido transmitido. Mas isto deve ser lido em
grande parte como um título perfeitamente aceitável.
Segunda, reorganizações são baseadas na tese de que o evangelho
não faz sentido satisfatório como ora está; muitos comentaristas, en-
tretanto, como H oskyns, B arrett e D odd estão convencidos de que a
presente ordem faz sentido. Geralmente, se respeitarmos o limitado
propósito do evangelista, o evangelho é um documento inteligível em
sua presente forma; e podemos razoavelmente assumir que esta forma
do evangelho fez sentido a alguém que tinha a responsabilidade final
pelo aparecimento do evangelho. Mas devemos contar com a possibi-
lidade de que, enquanto este redator pôs o evangelho na ordem que
lhe parecia melhor, ele não estava numa posição de conhecer a or-
dem original do manuscrito e tinha de decidir pelo que nos foi dado.
A questão real é se as ferramentas científicas modernas quase 1900
anos mais tarde são aptas para estabelecer uma ordem mais original
do que foi possível para um redator contemporâneo. Que nenhuma
grande certeza determina esta tarefa é claramente demonstrado nas
penetrantes diferenças entre as elaboradas reorganizações propostas.
Terceira, teorias de deslocamento nem sempre oferecem uma ade-
quada explicação de como se deu o deslocamento. Se o evangelho foi
escrito em um rolo, torna-se difícil qualquer teoria de deslocamento.
Os rolos tendem a soltar suas folhas mais externas, mas não é plausível
a confusão de folhas no interior do rolo. Tem-se sugerido que um rolo
II · Unidade e composição do quarto evangelho 11

veio à parte em folhas separadas quando as junções onde as folhas fo-


ram coladas se soltaram. Mas devemos ter em mente que em tais rolos
as colunas escritas sobrepõem as junturas, e, se uma juntura se separa,
as folhas podem ser facilmente unidas.
Mais recentemente, os estudiosos têm sugerido que a forma ori-
ginal do evangelho era um códice ou livro, uma forma em que folhas
desprendiam constituem um risco maior. Mas, mesmo que as folhas
fossem desprendidas, a ordem original podia ser facilmente restaura-
da por aquelas folhas que não começaram com uma nova sentença e
terminaram na conclusão de uma sentença (porque sentenças incom-
pletas proveríam um indício para a sequência das folhas). Somente as
páginas que estavam unidas em si causariam problemas. Esta observa-
ção tem levado os defensores da teoria do deslocamento a calcularem
quantas letras estariam no recto e verso de uma folha de códice. Unidades
que fossem deslocadas teriam de ser de certa extensão ou um múltiplo
disso. B ernard, I, p. 28ss., faz um trabalho louvável de computar isto
pelo deslocamento que se propõe em João, e F. R. H oare fez uma for-
te exposição das possibilidades desta abordagem. Entretanto, alguém
pode indagar quão grande seria a probabilidade matemática de en-
contrar em um manuscrito de João um número tão grande de unida-
des que não se sobrepôs a outras folhas. Poderia‫־‬se indagar ainda em
quantos casos provados na antiguidade ocorreu em grande escala des-
locamento acidental antes que a obra fosse publicada.
Se a teoria do deslocamento de unidades regulares ao menos tem
alguma plausibilidade, não se poderia dizer o mesmo para uma teoria
de deslocamento de linhas. O fato de B ultmann nunca explicar como
o deslocamento que ele propõe poderia ter ocorrido constitui, como
observou E aston, art. cit., uma grande fraqueza. Presume-se que sua
reorganização é tão patentemente melhor do que a ordem existente
do evangelho, que se pode dizer que os deslocamentos têm sido de-
monstrados exegeticamente. No entanto, muitos não se deixarão con-
vencer tão facilmente. Acaso o evangelho foi escrito em pequenos
pedaços de papiro, amiúde contendo não mais que uma sentença?
Isto parece ser a única maneira de explicar os deslocamentos que
B ultmann propõe. Qualquer teoria de dano feito a um rolo ou códice
nos deixaria com sentenças interrompidas, que foram desmembradas,
mas, na teoria de B ultmann , os deslocamentos são sempre compostos
de sentenças completas.
12 Introdução

Em suma, a teoria de deslocamento acidental parece criar quase


tantos problemas quanto soluções. A solução de nosso problema pa-
receria estar na direção de um procedimento mais deliberado.

(2) Teorias de fontes múltiplas

Se o quarto evangelista combinou diversas fontes independentes,


algumas de diferenças estilísticas, bem como a falta de sequência e a
presença de duplicações, pode ser favorável. Nas formas recentes da
teoria da fonte, costuma-se presumir que o evangelista não compôs
nenhuma das fontes propriamente ditas, mas as recebeu de outro lu-
gar. Também costuma-se propor que estas fontes foram escritas, pois
fontes orais teriam sido transmitidas no próprio estilo do evangelista
e, assim, seriam mais difíceis de discernir. (Entretanto, podemos notar
que N oack tem sido um forte proponente de uma teoria em que todo o
evangelho nasceu de uma tradição oral). Com muita frequência, uma
teoria que concebe o evangelho como sendo composto de uma com-
binação de fontes tem-se associado com uma teoria que vê o evangelho
como tendo passado por diversas edições ou redações - mas essa
teoria composta pode tornar-se muito complicada. Por exemplo, na
primeira parte deste século um estudioso alemão chegou a seis combi-
nações de fontes e redações. Pode-se encontra uma história completa
das teorias das fontes nos exames da literatura joanina catalogados
no final da Primeira Parte da Introdução; os nomes de W endt, S pitta ,
F aure e H irsch têm-se associado a tais teorias.
Um interessante exemplo moderno é o de M acgregor e M orton .
Sobre a base de análise estatística, têm proposto que o evangelho foi
composto pela junção de duas fontes, J1 e J2. A primeira, a fonte mais
longa, é caracterizada por parágrafos curtos; a segunda tem pa-
rágrafos longos. Embora ambas as fontes pertençam à mesma esfera
geral de convicção teológica, há alguma evidência estilística que pro-
vém de mãos diferentes (op. cit., p. 71). J2 contém o capítulo 4, a maior
parte do 6,9-11,14-16.24 e 17. Essa interrupção do material em si mes-
ma não resolve os principais problemas mencionados acima, e assim
M acgregor também introduz a teoria das redações múltiplas. Tem-se
questionado a validade de dividir as fontes sobre a base de parágrafo
extenso. Talvez tudo o que a análise estatística tenha feito seja separar
as melhores seções redatadas do evangelho.
II · Unidade e composição do quarto evangelho 13

A form a m ais influente da teoria das fontes proposta hoje é a de


Bultmann, e discutirem os isto em detalhe. B ultmann distingue três
fontes principais.

(a) A Fonte Semeia-Quelle ou Fonte dos Sinais: João narra um número


seleto de milagres de Jesus, e estes constituem as principais se-
ções de narrativa na primeira parte do evangelho (caps. 1-12).
B ultmann sugere que estes foram excluídos de uma coleção
maior de sinais atribuídos a Jesus. A indicação de empréstimo
de uma fonte se encontra na enumeração de sinais em 2,11 e
4,54, e na menção de vários sinais em 12,37 e 20,30. A última
passagem declara que Jesus realizou muitos outros sinais não
registrados neste evangelho. B ultmann pensa que o relato do
chamado dos discípulos em 1,35-49 pode ter constituído a in-
trodução à Fonte Sinais. Esta fonte foi escrita num grego que
mostra fortes afinidades semíticas (verbo antes do sujeito, au-
sência de partículas conectivas etc.). Uma vez que B ultmann
não crê no miraculoso, e visto que ele acha esta fonte um tanto
mais desenvolvida do que o material de narrativa sinótica, ele
atribui a esta fonte pouco valor histórico real para reconstruir
a trajetória de Jesus de Nazaré. O texto grego da Fonte Sinais
reconstruída pode ser encontrada em Smith, pp. 38-44.
(b) A 'Offenbarungsreden'' ou Fonte do Discurso Revelatório: Foi des-
ta fonte que o evangelista extraiu os discursos atribuídos a
Jesus no evangelho. A fonte começou com o Prólogo e conti-
nha discursos poéticos escritos em aramaico. As Odes de Saio-
mão Siríacas constituem um exemplo sobrevivente do tipo de
literatura com que esta fonte se assemelha. A teologia desta
fonte era um antigo gnosticismo oriental como professado por
um grupo como os seguidores de João Batista e mais tarde
pelos escritos Mandeanos (ver Quarta Parte, p. 44). A fonte
foi traduzida para o grego ou pelo próprio evangelista ou por
outro, mas o formato poético foi mantido. A principal tarefa
do evangelista foi cristianizar e demitologizar os discursos.
Ele os colocou nos lábios de Jesus e, assim, lhes emprestou um
cenário histórico. O que uma vez foi dito pela figura gnóstica
do Homem Original é agora dito por Jesus o Redentor; o que
uma vez se referiu a algum filho da perdição agora se refere a
14 Introdução

Judas (17,12); 12,27 não mais se refere a um conflito geral com


o inferior mundo demoníaco, e sim à paixão de Jesus. Adições
e mudanças introduzidas na fonte material são reveladas por
seu afastamento do formato poético. Um texto grego da Fonte
do Discurso Revelatório reconstruída se encontra em Smith,
pp. 23-34 e em um texto inglês em E aston, pp. 143-54.
(c) O Relato da Paixão e Ressurreição: Embora esta narrativa tenha
muito em comum com o relato da paixão que sublinha os
evangelhos sinóticos, B ultmann insiste que o quarto evange-
lista a extraiu de material não sinótico. O estilo desta fonte não
é definido claramente, mas foi escrito em grego semitizante.
Para o texto grego reconstruído, ver Smith, pp. 48-51.

Na teoria de Bultmann, o evangelista entreteceu estas três fontes


com engenhosidade, fazendo-as o veículo de seu pensamento pessoal.
Ele mesmo pertencera a um grupo gnóstico de discípulos de João Ba-
tista e se convertera ao Cristianismo. Seu grego, como evidenciado
nas edições e passagens conectivas, mostra menos influência semi-
tica do que o de suas fontes. (Para detalhes de seu estilo, ver S mith,
pp. 9-10). Não obstante, de alguma maneira, a obra do evangelista
caiu em desordem; as linhas dos discursos foram misturadas e resul-
tou em um grande número de deslocamentos.
Portanto, B ultmann propõe um estágio final na evolução do
evangelho, a saber, a obra do Redator Eclesiástico. Esta figura teve
uma tarefa tanto literária quanto teológica. Primeiro, ele tentou reco-
locar a obra do evangelista na ordem própria. Em parte, teve êxito,
mas ainda deixou muitos deslocamentos. (Em alguma medida, o pró-
prio B ultmann concluiu a tarefa do Redator, movendo versículos em
círculo para restaurar a ordem original). A segunda tarefa do Reda-
tor era a mais importante, a saber, a teológica. A obra do evangelista
era ainda gnóstica demais para ser aceita pela Igreja em geral. Por
exemplo, ela não fez menção dos sacramentos ou da segunda vinda.
O Redator Eclesiástico, um tipo de censor librorum primitivo, anexou
referências sacramentais, como aquela feita à água em 3,5, à eucaristia
em 6,51-58 e aquela em 19,34b-35, se referindo simbolicamente tanto
ao Batismo como à Eucaristia. Anexou referências à escatologia final
e ao último dia em passagens como 5,29-29 e 12,48. Em detalhes his-
tóricos, o Redator tentou harmonizar João com a tradição sinótica.
II · Unidade e composição do quarto evangelho 15

Assim, ele conquistou para o Quarto Evangelho aceitação pela Igreja


da parte da Igreja.
É difícil uma avaliação da teoria de B ultmann como representante
das teorias das fontes. Muitos dos pontos fracos em tal reconstrução de
João são pessoais à própria forma da teoria da fonte de Bultmann; outras
deficiências são comuns a todas as teorias das fontes. Entre as primeiras
estão a postulada influência gnóstica, o pressuposto caráter não sacra-
mental da obra do evangelista e seu exclusivo interesse na escatologia
realizada; essas contendas serão examinadas mais adiante. Já salienta-
mos as dificuldades que enfrenta a hipótese do deslocamento elaborado
desenvolvida por Bultmann. O perfil do Redator Eclesiástico está parti-
cularmente sujeito à dúvida. As vezes é como se as adições creditadas a
ele fossem determinadas por uma forma de raciocínio circular em que
alguém decide um tanto arbitrariamente o que se adequa à perspectiva
teológica do evangelista e atribui o que é deixado para o Redator.
Mas, afora estas dificuldades periféricas, o que diriamos sobre a
Fonte Sinais e a Fonte do Discurso Revelatório? O formato quase poé-
tico dos discursos joaninos tem sido aceito por muitos (ver Nona Parte,
p. 145s); não há nenhuma necessidade de padronizar-se uma coleção
de poemas gnósticos, pois se assemelha ao estilo do discurso da Sa-
bedoria personificada no AT. A enumeração de sinais em várias pas-
sagens do evangelho é um argumento muito forte. Entretanto, se essa
enumeração reflete um estágio (oral) mais antigo e mais simples do
esquema do evangelho onde 4,54 foi o segundo sinal após o sinal de
Caná de 2,1-11, ou se houve uma Fonte Sinais realmente independen-
te não é decisivo sem outra evidência.
Quatro dificuldades maiores militam contra uma teoria das fon-
tes do tipo que B ultmann propõe:

(a) Em João, sinais e discursos estão estreitamente entretecidos.


D odd, Interpretation, tem mostrado, de uma forma impressio-
nante, que os discursos que acompanham os sinais são as in-
terpretações dos sinais. O capítulo 6 é um perfeito exemplo
disto, pois o Discurso do Pão da Vida interpreta a multipli-
cação dos pães. Este é um aspecto consistente dos capítulos
2-12, que parece incrível que os sinais e discursos viessem de
fontes totalmente independentes. Entretanto, pode-se reivin-
dicar uma exceção, pois os dois sinais em Caná, os quais não
16 Introdução

são acompanhados de discursos interpretativos (ver, porém,


p. 409 sobre 4 ,4 6 5 4 ‫)־‬. Estes dois sinais continuam sendo o me-
lhor argumento em prol da existência de algum tipo de Fonte
dos Sinais. Ver abaixo, p. 415.
(b) Incorporados nos discursos estão ditos de Jesus que, em com-
paração com os dos sinóticos, têm muita razão de ser conside-
rados como pertinentes a uma tradição primitiva das palavras
de Jesus. D odd, Tradition, tem mostrado isto, e no comentário
insistiremos no caso. Isto significa que, ao menos em parte, os
discursos consistem de ditos tradicionais e desenvolvimentos
explicativos. A coleção supostamente pré-cristã de poéticos
Discursos Revelatórios então se torna um tanto supérflua.
(c) As diferenças estilísticas entre as várias fontes não são verifi-
cáveis. E. Schweizer, op. cit., isolou trinta e três peculiaridades
do estilo joanino. Sua obra foi suplementada por J eremias e
M enoud, e tem sido conduzida ao seu desenvolvimento mais
pleno por R uckstuhl, cuja lista chegou a alcançar cinquenta.
Essas peculiaridades joaninas aparecem no material de todas
as três fontes propostas por B ultmann, tanto quanto no ma-
terial atribuído ao próprio evangelista, e inclusive em algum
do material atribuído ao Redator Eclesiástico (embora R ucks-
tuhl tenha aqui levado seus argumentos longe demais). Ora,
admitimos que, ao incorporar as fontes em uma só obra, o
evangelista teria introduzido elementos comuns de estilo.
Não obstante, se tivermos em mente que, segundo a hipótese
de Bultmann, uma das fontes estava originalmente na poesia
aramaica, e a outra, em grego semitizado, e o próprio evan-
gelista escreveu em um grego menos semitizado, o caráter
comum das peculiaridades joaninas, em todos os três, é inex-
plicável. Como P. P arker, p. 304, observou, "Parece que, se o
autor do Quarto Evangelho usou fontes documentárias, ele as
escreveu todas para si mesmo". O estudo compreensivo que
Smith faz de Bultmann (p. 108) conclui que os argumentos de
Schweizer e R uckstuhl apresentam obstáculos que as respos-
tas de B ultmann não conseguiram remover.
(d) Não há paralelos realmente convincentes na antiguidade para
os tipos de fontes que B ultmann tem postulado. Não temos
nada parecido com a Fonte Sinais proposta. As Odes de Salomão
II · Unidade e composição do quarto evangelho 17

foram propostas como um paralelo à Fonte de Discurso Reve-


latório, mas a similaridade desta coleção de hinos é mais para
o Prólogo do que para os Discursos. Naturalmente, B ultmann
une o Prólogo e os discursos como uma só fonte, mas o ele-
mento poético do Prólogo é bem diferente da dos discursos.
H ans Becker, op. cit., tem buscado paralelos para a Fonte de
Discurso de um campo mais amplo da literatura gnóstica.
É verdade que se podem achar paralelos isolados nas passa-
gens individuais na literatura Mandeana e Hermética (ver
Quarta Parte, p. 44ss). Mas isto não significa que haja um bom
exemplo de uma coleção de discursos como Bultmann propõe.

Parece haver uma forte reação entre os próprios discípulos de


Bultmann, por exemplo, K äsemann, contra a teoria das fontes em sua
formulação estrita. Não podemos apoiar, mas julgar que a teoria sofre
de dificuldades quase insuperáveis.

(3) Teorias das redações múltiplas

O esquema comum para estas teorias é de que um corpo básico


do material do evangelho foi redigido várias vezes para dar-nos a
presente forma de João. Não há concordância sobre o número de
redações ou se estas foram todas feitas pelo mesmo homem; mas, ge-
ralmente, ao menos se propõem dois redatores, e um deles é amiúde
identificado com o escritor das Epístolas Joaninas. E. Schwartz e
W ellhausen estavam entre os primeiros oponentes desta aborda-
gern. Podemos dividir os oponentes modernos em dois níveis: um
que propõe um reescrito mais completo do evangelho, outro que
propõe redação menor.
Primeiro, a teoria de uma redação que consiste em um reescrito
radical atinge o limite de uma teoria de fonte. Aponta para a razão
que, se houve documento original a ponto de dar à obra original uma
orientação totalmente nova, não estamos longe da combinação de
duas fontes. (Assim a hipótese de M acgregor-M orton, de J1 e J2, po-
deria ser realmente catalogada aqui). Somente quando o material adi-
cional vier do mesmo autor como a obra original é que obtemos uma
variação decisiva, variação esta que isenta a teoria da redação das
objeções sobre consistência estilística que sublinha a teoria da fonte.
18 Introdução

Um bom exemplo de uma teoria das redições que atribui reescri-


to ao mesmo autor (o Discípulo Amado) é a de W . W ilkens. Ele propõe
estes três estágios: (a) O Grundevangelium consistindo das narrativas
de quatro sinais galileus e três sinais hierosolimitanos - assim como
um livro de sinais (20,30). (b) O evangelista adicionou sete discursos
aos sinais. Estes discursos tiveram sua própria pré-história pelos quais
o evangelista foi responsável, (c) Esta coleção de sinais e discursos se
converteu em evangelho pascal pela transposição de três relatos da
semana pascal em um cenário mais antigo (2,13-22; 6,51-58; 13,1-7),
com isso estendendo o tema da páscoa por todo o evangelho. Então
houve uma considerável reorganização dos versículos e interrupção
de discursos. Estas redações representavam a obra de toda a vida do
evangelista; um redator final fez algumas adições, por exemplo, no
capítulo 21.
Há algumas contribuições importantes na teoria de W ilkens, da
qual temos dado apenas um esboço mais simples. A sugestão (ori-
ginalmente de seu pai) sobre a transposição de cenas da Páscoa tem
certa validade, como salientaremos no comentário. Além do mais,
esta teoria que aceita a autoria do Discípulo Amado (ver Sétima Parte,
p. 90ss), que foi uma testemunha ocular, é mais aceitável à presença
de uma tradição histórica do que a teoria de Bultmann. Não obstante,
uma das objeções à teoria de Bultmann é também válida aqui; a saber,
a dificuldade de explicar a estreita harmonia entre sinal e discurso.
Da mesma forma, a teoria de W ilkens do processo redacional consistia
em anexar material e reorganizá-lo, mas nunca em reescrever o que
foi originalmente escrito; essa parece ser uma maneira curiosa de al-
guém redatar sua própria obra.
Segundo, há outras teorias da redação que são menos radicais. Por
exemplo, P arker sugere duas redações de João. A segunda teria envoi-
vido a redação de passagens como 2,1-12,4,5 e 21, trechos grandemente
relativos à Galileia. Assim, P arker chega a uma primeira redação que
consistia no evangelho judaico, em harmonia com sua teoria de que o
evangelista era um discípulo judeu. Boismard tem sua própria varia-
ção de uma teoria redacional: João, filho de Zebedeu, foi o responsável
pelo plano central do evangelho e por sua tradição. Ele ou escreveu ou
supervisionou o escrito do evangelho básico e foi o responsável por
duas ou mais redações, as quais produziram leves mudanças de plano
e de diferentes formulações do mesmo material. Então houve uma
II · Unidade e composição do quarto evangelho 19

redação final por Lucas, o qual juntou no evangelho todos os elemen-


tos do material joanino, como o conhecemos agora. Boismard busca
provar esta identificação do redator das características lucanas que
encontra no estilo do capítulo 21 e nas edições ao Prólogo. Daremos
um exemplo da teoria da redação de Boismard em nossa discussão de
1,1934‫( ־‬pp. 252-257) e a comparamos com a teoria de B ultmann.
Ao julgarmos as teorias das várias redações, devemos abstrair
das peculiaridades individuais - por exemplo, a divisão de P arker
paralela a linhas geográficas, a identificação que Boismard faz do re-
dator final como sendo Lucas. Em si mesma, a teoria da redação pode
explicar as interrupções da sequência na presente forma do evangelho
- causada pela inserção do redator de novos materiais do esquema
original. Essa teoria pode também explicar repetições, pois o redator
podería ter incluído formas variantes das mesmas palavras. Porções
não anexadas de discurso poderíam ser explicadas por um desejo de
preservar uma parte da tradição sem ser capaz de achar um lugar
ideal para inseri-lo. As objeções estilísticas contra as teorias de fonte
não são aplicáveis aqui onde o material usado nas várias redações
veio do mesmo autor. Aquelas passagens do evangelho onde o estilo
grego mostra uma diferença de mão, por exemplo, capítulo 21, podem
ser explicadas pela inserção de uma redação final por outra mão.
Talvez a principal falha das teorias da redação seja a tentação de
reconstruir exatamente demais a história das redações. Os problemas
em João são óbvios, e é possível que várias redações hajam causado tais
problemas; mas devemos preservar nosso ceticismo acerca de qual-
quer tentativa de comentaristas de dizer-nos qual metade do versículo
pertence a que redação.

C. A TEORIA ADOTADA NESTE COMENTÁRIO

Comentaremos o evangelho em sua presente ordem sem impor reor-


ganizações. Alguns objetam a este procedimento com base em que tal
abordagem alcança somente o significado dado às passagens na reda-
ção final do evangelho, e daí talvez somente ao significado de um re-
dator subordinado em vez do significado do evangelista. Todavia, se
alguém pensa no redator final como leal ao pensamento do evange-
lista, haverá poucas vezes em que a redação mudou completamente
20 Introdução

o significado original de uma passagem. Preferimos correr este risco


a - mediante uma engenhosa reorganização - correr o risco maior de
impor às passagens um significado que nunca tiveram. Naturalmente,
onde houver razão de suspeitar que na história formativa do evange-
lho uma passagem tinha outro cenário e significado, a mencionare-
mos com qualificações próprias quanto à certeza com que a posição
original pode ser reconstruída. Mas daremos consideração primária à
passagem como agora se encontra.
Propomos cinco estágios na composição do evangelho. Estes, cre-
mos nós, são os passos mínimos, pois suspeitamos que os detalhes
completos da pré-história do evangelho são complicados demais para
reconstruir. Aqui, simplesmente descreveremos os estágios; as razões
para propô-los se tornarão evidentes nas partes seguintes da Introdu-
ção, e o impacto prático dos vários estágios serão vistos no comentário
sobre a tradução. Naturalmente, as dificuldades mencionadas no início
desta parte têm guiado o que propomos aqui, e as soluções prévias men-
cionadas têm todas elas contribuído para nossa tentativa de solução.
Primeiro estágio: A existência de um corpo de material tradicio-
nal pertencente às palavras e obras de Jesus - material similar ao que
já entrou nos evangelhos sinóticos, mas material cujas origens eram
independentes da tradição sinótica. (Naturalmente sabemos que os
evangelhos sinóticos eram dependentes de várias tradições, mas usa-
remos o singular, "tradição sinótica", quando traçarmos comparação
geral entre estes evangelhos e o evangelho de João). Discutiremos este
estágio na Terceira Parte desta Introdução, e a questão se o material
veio ou não de uma testemunha ocular na Sétima Parte.
Segundo estágio: O desenvolvimento deste material nos padrões joa-
ninos. Sobre um período que talvez durasse várias décadas, o material
tradicional foi peneirado, selecionado, avaliado e moldado na forma
e estilo dos relatos e discursos individuais que se tornaram parte do
Quarto Evangelho. Este processo provavelmente foi realizado através
de pregação e ensino orais, se pudermos extrair alguma analogia do
que conhecemos da formação dos outros evangelhos. B. N oack tem
prestado aos estudos joaninos um serviço na ênfase da influência da
tradição oral sobre o evangelho, embora suas conclusões sejam um
tanto exageradas. C. G oodwin, JBL 73 (1954), 61-75, notou interessantes
indicações de que algumas das citações que João faz do AT são de
memória, uma conclusão que também aponta para a transmissão oral.
II · Unidade e composição do quarto evangelho 21

Todavia, até o final deste segundo estágio, formas escritas do que foi
pregado e ensinado tomaram corpo.
Este estágio foi decisivamente formativo para o material que fi-
nalmente entrou no evangelho. Alguns dos relatos dos milagres de
Jesus, provavelmente aqueles mais usados na pregação, foram desen-
volvidos em dramas majestosos, por exemplo, capítulo 9. (Ver E. K.
L ee, "The Drama of the Fourth Gospel" [O Drama do Quarto Evange-
Iho], ET 65 [1953-54], 173-76). Os ditos de Jesus foram entretecidos em
extensos discursos de um caráter solene e poético, muito parecidos
com os discursos de Sabedoria personificada no AT (ver Oitava Parte,
p. 114s). Todas as técnicas do conto joanino, como equívoco ou ironia
(Nona Parte, p. 145s), foram introduzidas ou, ao menos, desenvolví-
das na forma como as conhecemos agora. Vários fatores contribuíram
para a fusão de sinal e discurso interpretativo. Isto não foi necessa-
riamente uma fusão artificial, pois mesmo no Primeiro Estágio, um
milagre às vezes levava consigo palavras de explanação. Agora, po-
rém, as necessidades de pregar e, talvez, em algumas cenas (cap. 6),
as necessidades de liturgia incipiente exigiam explicações mais longa
e um arranjo mais unificado.
Que esta pregação e este ensino foram obras de mais de um ho-
mem, foi sugerido pela existência de unidades do material joanino,
como o capítulo 21, que é diferente em estilo do corpo principal do
material. Pode ter havido muitas unidades que não sobreviveram. En-
tretanto, as que tiveram acesso no evangelho parecem originar-se em
grande parte de uma fonte dominante. Visto que os fios gerais do pen-
sarnento joanino são tão claros, mesmo nas unidades que mostram
diferenças menores de estilo, provavelmente pensaríamos em uma
escola intimamente unida de pensamento e expressão. Nesta escola, o
principal pregador era um dos responsáveis pelo principal corpo de
material do evangelho. Também é provável que em tal escola possa-
mos achar a resposta ao problema de outras obras joaninas, como as
Epístolas e o Apocalipse, as quais partilham pensamentos e vocabulá-
rio comuns, porém mostram diferenças de estilo.
Terceiro estágio: A organização deste material do Segundo Estágio
em um evangelho consecutivo. Esta seria a primeira redação do Quar-
to Evangelho como uma obra distinta. Visto que temos proposto no
Segundo Estágio um pregador dominante ou mestre e teólogo que deu
forma ao principal corpo de material joanino sobrevivente, parece
22 Introdução

lógico pressupor que foi ele quem organizou a primeira redação do evan-
gelho; neste comentário, é a ele que nos reportamos quando usamos o
termo "evangelista". É impossível dizer se ele escreveu fisicamente
o próprio evangelho ou usou os serviços de um escriba. Mais prova-
velmente, esta primeira redação estava em grego e não em aramaico
(ver Nona Parte, p. 145ss).
Como o esboço do evangelho (Décima Parte, p. 158ss) mostrará,
há coesão no plano global da obra como chegou até nós, e suspeita-
mos que esta coesão básica estivesse presente na primeira redação do
evangelho. Assim, nós discordamos de uma teoria como a de W ilkens,
que veria na primeira redação apenas uma coleção de sinais. Também
diferimos de P arker, que propõe uma primeira redação em que não
há ministério na Galileia. Nutrimos a dúvida de que qualquer redação
substancial de um evangelho que seja baseado finalmente em uma
tradição histórica das obras e palavras de Jesus pudesse ter ignorado
o ministério na Galileia, o qual foi parte intrínseca da vida de Jesus. Se
o plano da primeira redação do evangelho teve por tema a presença
de Jesus em várias festas dos judeus, como o presente esquema do
evangelho nos capítulos 5-10, então a cena na Galileia no cap. 6 teria
sido parte da primeira redação, pois aquele capítulo tem Jesus substi-
tuindo o maná associado com o tempo do Êxodo e a Páscoa.
A organização da primeira redação do evangelho implicava sele-
ção, e nem todo o material joanino que provém da pregação do evange-
lista teria sido incluído. Se o evangelista pregou em diversos anos, pro-
vavelmente teria fraseado a tradição das palavras de Jesus em formas
diferentes e em tempos diferentes. Assim, teria havido em circulação
diferentes versões de discursos, adaptados a variadas necessidades e
auditórios. Veremos a importância deste ponto no Quinto Estágio.
Quarto estágio: Redação secundária elaborada pelo evangelista. É
possível que o evangelista reeditasse seu evangelho diversas vezes ao
longo de sua vida, como Boismard tem sugerido; mas muitas das ca-
racterísticas que parecem requerer uma redação secundária podem ser
explicadas em termos de uma só reelaboração redacional. Quando discu-
timos o propósito pelo qual o Quarto Evangelho foi escrito (Quinta Par-
te, p. 63s), veremos que ele se propunha a responder a objeções ou difi-
culdades de diversos grupos, por exemplo, os discípulos de João Batista,
judeus-cristãos que ainda não tinham deixado a sinagoga, entre outros.
Sugerimos que a adaptação do evangelho a diferentes metas implicava
II · Unidade e composição do quarto evangelho 23

a introdução de novo material destinado a solucionar novos problemas.


Por exemplo, a passagem parentética de 10,22-23 parece representar
uma adaptação do relato do cego a uma nova situação no final de 80 e
início de 90, a qual envolvia a excomunhão da sinagoga dos judeus que
criam em Jesus como o Messias. Em nossa discussão de 1,1934‫־‬, nota-
remos os vestígios de redação ali (§2, §3). Entretanto, admitimos fran-
camente que nem sempre é possível distinguir entre o que pertence à
segunda redação do evangelho e o que pertence à redação final - que é
nosso próximo estágio.
Quinto estágio: A reelaboração ou redação final feita por algum ou-
tro além do evangelista e a quem chamaremos o redator. Pensamos que
a suposição mais provável é que o redator foi um amigo íntimo ou dis-
cípulo do evangelista, e certamente parte da escola geral de pensamen-
to à qual nos reportamos no Segundo estágio.
Uma das principais contribuições do redator ao evangelho foi pre-
servar todo o material joanino disponível do Segundo estágio que não
foi inserido previamente nas redações do evangelho. Este material em
parte seria material oriundo da pregação dos dias do próprio evange-
lista e, portanto, não diferiría em estilo ou vocabulário do restante do
evangelho. O fato de que este material foi acrescido no último estágio
do evangelho não significa que seja algo menos antigo do que o mate-
rial que encontrou sua forma nas primeiras redações. Assim, a idade
do material não é critério que sempre nos capacitará a detectar adi-
ções feitas pelo redator; a inconveniência de uma passagem intrusiva
na sequência do evangelho é um critério muito mais confiável. Que
algum deste material represente uma duplicata variante de material já
presente no evangelho é outro critério e, deveras, é a razão para assu-
mir que o redator final não foi o próprio evangelista. O evangelista te-
ria reelaborado o material num todo consistente; mas o redator, não se
sentido livre para reescrever o evangelho como chegou a ele, simples-
mente inseriu os discursos duplicados, amiúde lado a lado com a for-
ma do discurso que existia na redação anterior, por exemplo, 6,51-58
imediato a 35-50. Com alguns discursos que não tinham lugar pró-
prio, o redator decidiu adicioná-los no final de uma cena apropriada,
em vez de interromper a cena, por exemplo, 3,31-36 e 12,44-50.
Em particular, o redator parece ter formado uma grande coleção
de material joanino em que Jesus era retratado como a falar aos seus
discípulos. Essa coleção foi anexada ao discurso de Jesus da última
24 Introdução

ceia nos capítulos 15-17. Que esta redação foi obra do redator e não
do evangelista parece provável à luz do fato de que o término original
do último discurso em 15,31 não foi introduzido ou adaptado à nova
inserção. Entre o material assim adicionado está 16,4-33, uma variante
duplicada do discurso no capítulo 14.
O redator foi também o provável responsável por anexar ao es-
quema do evangelho o material nos capítulos 11 e 12. No comentário
(p. 696), sugerimos que o término original do ministério público veio
em 10,40-42, e salientamos o problema histórico causado pela apre-
sentação do relato de Lázaro em 11 como a principal causa da execu-
ção de Jesus. Se os capítulos 11 e 12 representam uma adição tardia
do material joanino, não é impossível que esta adição fosse feita na se-
gunda redação do evangelho (Quarto estágio). Não obstante, o uso do
termo "os judeus", em 11-12, difere daquele do restante do evangelho,
fato esse que é menos difícil de conciliar se o relato sobre Lázaro teve
uma história independente e foi agregado pelo redator.
A inserção do tema de Lázaro em 11-12 no relato dos últimos dias
antes da Páscoa parece ter levado o redator a mudar o incidente da
purificação do templo, originalmente associado à entrada de Jesus em
Jerusalém, a outra seção do evangelho (agora no cap. 2). O interesse
litúrgico parece ter sido um fator na mudança do material eucarístico
associado às palavras de Jesus sobre o pão e o vinho na última ceia da-
quele lugar para 6,51-58. Nesta sugestão da recolocação do material nos
estreitamos com W ilkens, embora não encontremos nada que nos dê o
motivo que o levou a atribuir tais mudanças; a saber, manter presente
o tema da Páscoa por todo o evangelho. Ao contrário, é bem provável
que a Páscoa já fosse mencionada em 2 e 6, e que o redator estivesse
simplesmente deslocando o material de uma festa pascal na vida de
Jesus para outra. Visto que comentaremos estas passagens em sua atual
sequência, também estaremos aptos a salientar os temas teológicos
naquela sequência que motivaram a recolocação.
Algum do material que o redator anexou parece ser mais forte em
sua referência aos sacramentos do que o restante do evangelho. Embo-
ra nas pegadas de Bultmann, não obstante, não cremos que o propósi-
to do redator fosse inserir referências sacramentais em um evangelho
não sacramental, mas, ao contrário, produzir mais clareza ao sacramen-
talismo latente já no evangelho (Oitava Parte, p. 114s). Cremos que o
sacramentalismo pode ser encontrado em todos os estágios que temos
II · Unidade e composição do quarto evangelho 25

proposto para a formação do evangelho, mas as referências sacramen-


tais explícitas podem pertencer predominantemente à redação final.
O redator anexou ao evangelho joanino material que não veio
do evangelista. Já apontamos para o capítulo 21 como um exemplo.
Provavelmente foi também o redator que anexou o Prólogo como um
hino outrora independente composto nos círculos joaninos.
Permanecemos incertos quanto a se o redator final foi também
responsável pela introdução em João de alguns paralelos à tradição
sinótica. Como se verá na Terceira Parte, cremos que a maior parte
do material joanino com paralelos na tradição sinótica não veio di-
retamente dos evangelhos sinóticos ou de suas fontes, mas de uma
tradição independente das obras e palavras de Jesus que têm inevitá-
veis similaridades com as tradições por detrás dos sinóticos. Todavia,
há umas poucas passagens onde, por exemplo, João é tão similar a
Marcos (6,7; 12,3.5), que não podemos excluir a possibilidade de que
o redator final haja introduzido elementos menores tomados direta-
mente dos sinóticos (com Marcos como a fonte mais provável). Mas
insistimos que tais paralelos estreitos podem também ser explicados
em termos de dependência de antigas tradições similares, e assim não
encontramos absolutamente razão que nos force a propor dependên-
cia joanina dos sinóticos, mesmo neste nível mais superficial de em-
prestar detalhes incidentals. Há observações redacionais, como 3,24,
que mostram consciência dos detalhes acerca da vida de Jesus que não
foram mencionados no evangelho propriamente dito, mas, reiteran-
do, isto não é uma prova clara de dependência dos sinóticos.
Resumindo, embora tenhamos conjeturado esta teoria dos cinco
estágios da composição do evangelho com alguma extensão, devemos
enfatizar que em suas linhas básicas a teoria realmente não é complica-
da e se adequa bem com mais plausibilidade com o que se pensa sobre
a composição dos outros evangelhos. Uma figura distinta na Igreja pri-
mitiva pregada e ensinada acerca de Jesus, usando o material não ela-
borado de uma tradição das obras e palavras de Jesus, mas modelando
este material para uma interpretação e expressão teológicas particu-
lar. Eventualmente, ele reuniu a substância de sua pregação e ensino
em um evangelho, seguindo o padrão tradicional do batismo, minis-
tério e paixão, morte e ressurreição de Jesus. Visto que ele continuou
a pregar e ensinar após a redação do evangelho, subsequentemente
fez uma segunda redação de seu evangelho, anexando mais material e
26 Introdução

adaptando o evangelho em resposta a novos problemas. Após sua


morte, um discípulo fez uma redação final do evangelho, incorporan-
do outro material que o evangelista havia pregado e ensinado, e inclu-
sive algum do material dos cooperadores do evangelista. Uma teoria
de duas redações e uma redação final por um discípulo não seriam ex-
traordinárias entre as teorias da composição de livros bíblicos - uma
teoria muito similar é proposta para o Livro de Jeremias.
Cremos que a teoria que temos proposto soluciona a maior parte
das dificuldades discutidas acima. Ela explica por que Schweizer e
R uckstuhl encontram um estilo mais uniforme por todo o evangelho,
pois nos segundo, terceiro e quarto estágio, uma figura dominante
moldou, fraseou e redatou o material, e inclusive em 5 muito do ma-
terial anexado se originou desta mesma figura. Todavia, enquanto
preserva a unidade substancial do evangelho, esta teoria explica os
vários fatores que militam contra a unidade da autoria. A redação no
Quinto Estágio explica a presença de material joanino de estilo di-
ferente e também a presença de discursos duplicados, as inserções
que parecem interromper, a aparente reorganização de algumas cenas
(todavia sem propor deslocamentos elaborados).
Nesta teoria permanecem muitas inadequações e incertezas. No
Segundo Estágio, onde o material do Primeiro Estágio foi desenvolvido
nos padrões joaninos, quanta contribuição pessoal deu o evangelista?
O que precisamente estava na primeira redação do evangelho, e o
que foi anexado na segunda? Como pode alguém infalivelmente dis-
tinguir entre a mão do evangelista que reelaborava sua obra? Não
pretendemos respostas fáceis a tais indagações. Tudo o que preten-
demos ter feito é apresentar uma hipótese progressiva para o estudo
do evangelho, uma hipótese que combine os melhores detalhes das
várias teorias apresentadas no início desta discussão e evitar mais
dificuldades óbvias.

BIBLIOGRAFIA

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Ill
A TRADIÇÃO POR DETRÁS
DO QUARTO EVANGELHO

Na teoria de composição que temos proposto, o Primeiro estágio en-


volve a existência de um corpo de material tradicional pertinente às
obras e palavras de Jesus. Agora discutiremos a probabilidade da
existência de tal tradição e de sua relação com as tradições subja-
centes aos evangelhos sinóticos» No momento, a questão diz respeito
ao caráter primitivo da tradição por detrás de João e, assim, se esta
tradição é de um status comparável com o das tradições sinóticas.
A questão ulterior do grau a que tal tradição primitiva da comunidade
cristã representa os feitos e as ipsissima verba de Jesus serão trazidos a
lume no final desta discussão.
O próprio fato de que João é classificado como um evangelho
pressupõe que ele é baseado em tradição similar, em caráter, às tra-
dições por detrás dos evangelhos sinóticos. Mesmo aqueles comenta-
ristas que tratam o Quarto Evangelho simplesmente como uma obra
de teologia, destituído de valor histórico, se deixariam impressionar
pelo fato de que esta teologia está escrita em um formato histórico.
Paulo também foi um teólogo, porém não escreveu sua teologia na
estrutura do ministério terreno de Jesus. Aliás, alguns considerariam
o Quarto Evangelho como uma tentativa de prevenir que a pregação
querigmática da Igreja fosse mitologizada e divorciada da história de
Jesus de Nazaré.
A Crítica da Forma estabeleceu que o esquema do ministério
de Jesus, visto nos evangelhos sinóticos, é uma expansão do esque-
ma querigmático básico dos feitos de Jesus usado pelos pregadores
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 29

primitivos. D odd, entre outros, tem mostrado que, em seus detalhes


fundamentais, o esquema em Marcos é o mesmo encontrado nos ser-
mões petrinos em Atos, especialmente At 10,34-43. Este esquema que-
rigmático não é dessemelhante do esquema do ministério em João,
como os artigos de D odd e Balmforth afirmam (também Barrett,
pp. 34-35). Se o querigma marcano começa com o batismo de Jesus,
por João Batista, assim também João. No querigma sinótico, o batismo
é seguido de um longo ministério na Galileia em que Jesus cura e faz
o bem; isto é encontrado também em João, porém mais sucintamente
(4,46-54,6). Após o ministério Galileu, nos sinóticos e em João, respec-
tivamente, Jesus vai para Jerusalém, onde fala nos recintos do templo;
então segue a paixão, morte e ressurreição. Onde João difere signi-
ficativamente do esquema sinótico é nas notícias de um ministério
hierosolimitano muito mais longo, mas isto seria uma variação essen-
ciai do esquema? Além do mais, Lucas também tem suas variações,
por exemplo, na viagem a Jerusalém, a qual abrange uns dez capítu-
los. Então podemos admitir que João tenha em seu esquema aspectos
basicamente querigmáticos; mas, mesmo com este reconhecimento,
devemos indagar se os aspectos querigmá ticos se originam de uma
tradição primitiva, pois poderianv representar concebivelmente uma
imitação artificial do estilo dos evangelhos.
Para responder a esta pergunta, primeiro avaliaremos a informação
singular a João. Se o que se encontra somente em João prova ser fac-
tual, então temos bons motivos para suspeitar que João tem suas raí-
zes em uma tradição primitiva sobre Jesus. Segundo, examinaremos
o material que é partilhado por João e os sinóticos, para ver se João o
extrai dos evangelhos sinóticos ou das tradições por detrás deles. Se
João não faz isso, então, reiterando, teríamos razão para propor uma
tradição independente e primitiva por detrás de João.

A. O VALOR DA INFORMAÇÃO ENCONTRADA SOMENTE


EM JOÃO

Hoje há uma crescente tendência de levar muito a sério os detalhes


históricos, sociais e geográficos peculiares às narrativas encontradas
somente no Quarto Evangelho; as obras citadas na bibliografia para
esta discussão de A lbright, H iggins, L eal, P ollard e Stauffer estão
30 Introdução

entre os muitos exemplos desta tendência. Investigações modernas de


antiguidade, especialmente através da arqueologia, têm averiguado
muito estes detalhes. Enviamos o leitor ao comentário para elabora-
ção específica, mas aqui podemos mencionar os seguintes casos como
os mais notáveis:

• No capítulo 4, as referências de João aos samaritanos, sua teo-


logia, sua prática de cultuarem sobre o Garizim, bem como a
localização do poço de Jacó parecem ser acurados.
• No capítulo 5, a mesma informação precisa sobre o poço de
Betesda é perfeitamente acurada quanto a nome, localização e
construção.
• Os temas teológicos formulados em relação à Páscoa (cap. 6) e a
festa dos Tabernáculos (7-8) refletem um acurado conhecimen-
to das cerimônias festivas e das leituras na sinagoga associadas
às festas.
• Detalhes sobre Jerusalém parecem ser acurados, por exemplo,
as referências ao poço de Siloé (9,7), ao Pórtico de Salomão
como um lugar resguardado no inverno (10,22-23) e ao pavi-
mento de pedra do Pretório de Pilatos (19,13).

Com base nessa exatidão podemos dizer que o Quarto Evangelho


reflete um conhecimento da Palestina como era antes de sua destruição
em 70 d.C., quando pereceram alguns destes marcos divisórios. Natural-
mente, isto não significa que a informação joanina sobre Jesus tenha sido
verificada, mas ao menos o cenário em que Jesus é colocado é autêntico.
Para os egrégios erros sobre a Palestina uma vez atribuídos a
João, amiúde há uma explicação perfeitamente razoável. Tentaremos
mostrar, no comentário, que esse propósito teológico - não necessa-
riamente uma cândida suposição acerca da duração do ofício sacer-
dotal - guiou a referência ao "sumo sacerdote daquele ano" (11,49).
O papel exagerado dos fariseus parece ser mais uma questão de ênfase
simplificada do que um conceito errôneo de seu papel no governo.
Terminologia anacrônica como "os judeus" para os oponentes de Je-
sus, e o uso de Jesus de "vossa lei" (8,17; 10,34), são mais reflexões das
tendências apologéticas do evangelho do que erros por ignorância.
Dos anacronismos uma vez alegados contra João, o mais sério foi
a linguagem abstrata que o evangelista atribuiu a Jesus. As referências
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 31

dualistas a luz e trevas, verdade e falsidade, que não são encontradas


nos sinóticos, pareceu claramente refletir a linguagem e pensamento
de um tempo posterior e outro lugar que o tempo e lugar do ministe-
rio de Jesus. O Jesus joanino parecia andar no mundo helênico do 2a
século. Mas hoje sabemos que a linguagem atribuída a Jesus, em João,
era perfeitamente familiar na Palestina do início do I a século. Os Ro-
los do Mar Morto encontrados em Qumran, desde 1947, têm nos dado
a biblioteca de uma comunidade essênica cuja extensão de existência
cobriu o período de cerca de 140 a.C. a 68 d.C. Estes documentos ofe-
recem paralelos ideológicos e terminológicos mais estreitos, ainda que
descobertos pelo dualismo e vocabulário peculiar do Jesus joanino
(ver Quarta Parte, p. 44s). Naturalmente, a descoberta não prova que o
próprio Jesus falasse nesta linguagem abstrata, visto que o evangelista,
familiarizado com tal linguagem, poderia ter meramente reinterpre-
tado Jesus em sua terminologia. (Além do mais, B ultmann sugere que
o evangelista fosse membro de uma seita gnóstica de discípulos de
João Batista que reinterpretaram Jesus contra um pano de fundo gnós-
tico). E temos ainda de enfrentar o problema de por que Jesus fala di-
ferentemente nos evangelhos sinóticos. Todavia, ao menos podemos
dizer que a linguagem abstrata usada por Jesus em João já não é um
argumento conclusivo contra o uso joanino da tradição histórica.
Voltemos por um momento ao material que não é exclusivo em
João, isto é, ao material tratado, respectivamente, em João e nos sinó-
ticos, mas onde o tratamento de João é nota damente diferente. Pen-
samos principalmente nos detalhes geográficos e cronológicos. Dife-
rente dos sinóticos, João tem: um ministério realizado por Jesus de
batizar no vale do Jordão; um ministério público de dois ou três anos;
frequentes viagens a Jerusalém; choques com as autoridades hieroso-
limitanas, que se estendem por um longo período de tempo; cumpli-
cidade romana na prisão de Jesus; um papel atribuído a Anás no inter-
rogatório de Jesus; véspera da Páscoa, e não o dia da Páscoa, como a
data da morte de Jesus. Em nossa opinião, como se verá no comentário,
pode-se fazer uma defesa em prol de cada um desses detalhes joani-
nos, e em algum deles a descrição joanina é quase certamente mais cor-
reta do que a descrição sinótica. Por exemplo, passagens como Lc 13,34
(várias tentativas de conquistar Jerusalém) e Mc 14,13-14 (Jesus tem
conhecidos em Jerusalém) são difíceis de conciliar com o esquema si-
nótico em que durante seu ministério Jesus vai a Jerusalém somente
32 Introdução

uma vez, nos últimos dias de sua vida. Reiterando, há a bem notória
dificuldade de conciliar as atividades que os evangelhos descrevem
como ocorrendo na sexta-feira santa com a datação sinótica daquele
dia como sendo a Páscoa.

B. A QUESTÃO DA DEPENDÊNCIA DOS EVANGELHOS


SINÓTICOS

Agora voltamos ao material que João partilha em comum com os


evangelhos sinóticos. Com respeito à narrativa, isto incluiría: parte do
ministério de João Batista; a purificação do templo (2,13-22); a cura do
filho do oficial do rei (4,46-54); a sequência centrada na multiplicação
dos pães (6); a unção de Jesus e a entrada em Jerusalém (12); e o esque-
ma geral da última ceia, a paixão, morte e ressurreição. Com respeito
aos ditos de Jesus, isto incluiría muitos versículos isolados.
O estágio mais antigo da teoria sobre a relação de João com os
sinóticos foi a suposição de que João foi escrito para suplementar a
descrição sinótica da vida e personalidade de Jesus. Hoje, este ponto
de vista está quase universalmente abandonado, pois os relativamente
poucos pontos de contato direto entre o esquema de João e o dos sinó-
ticos realmente cria mais problemas cronológicos e históricos do que
os resolve. Não existe no Quarto Evangelho nada que dê alguma in-
dicação de que o autor pretendia suplementar os evangelhos sinóticos
e nada que nos dê algum guia ou certeza a utilizar João neste sentido.
Na era da crítica, foi ganhando terreno a teoria de que em todo
o material comum, João era dependente dos evangelhos sinóticos.
Aliás, mesmo as cenas joaninas que não tinham paralelo na tradição
sinótica algumas vezes eram explicadas como um amálgama de deta-
lhes sinóticos. Por exemplo, pensava-se que o relato de Lázaro e suas
duas irmãs, no capítulo 11, fosse uma combinação de uma dos relatos
sinóticos acerca do ressurgir de uma pessoa morta, da parábola luca-
na acerca de Lázaro (ver Lc 16,31) e do relato lucano acerca de Marta
e Maria (Lc 10,38-42).
Esta teoria de modo algum tem sido descartada. M endner, art. cit.,
insiste fortemente que Jo 6 é dependente do relato sinótico da multi-
plicação (embora para a cena conectada de Jesus caminhando sobre
a água, a influência está na direção oposta!). L ee, art. cit., argumenta
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 33

em prol da dependência de João de Marcos, como faz Barrett em seu


comentário. B ailey, op. cit., mantêm que João conhecia o evangelho de
Lucas. Uma variação desta teoria é que o quarto evangelista conhecia
as tradições por detrás dos sinóticos mais do que os próprios evange-
lhos sinóticos. Por exemplo, veja as discussões das teorias de Borgen e
Buse em nossa discussão de Jo 18-19 (segundo volume). P arker, O sty
e Boismard estão entre os estudiosos que creem que tal relação existia
entre os evangelhos de João e Lucas.
Em contrapartida, há um crescente número de estudiosos que
pensam que João não era dependente dos evangelhos sinóticos nem
de qualquer de suas fontes escritas (contanto que essas fontes pos-
sam agora ser reconstruídas). G ardner-S mith se deixaram influen-
ciar nesta direção, e o Tradition de D odd é uma exaustiva defesa da
independência joanina.
Para decidir a questão, é preciso que se estude cada uma das ce-
nas e ditos partilhados pelas duas tradições, para ver em que João e os
sinóticos são iguais e em que diferem. É preciso também observar se
João concorda consistentemente com algum dos evangelhos sinóticos
no material peculiar àquele evangelho, ou com alguma combinação
significativa dos evangelhos sinóticos, por exemplo, com o material
próprio de Mateus e Lucas. Nesse estudo, as diferenças são ainda
mais significativas do que as similaridades; pois se alguém propõe
dependência joanina, esse deve estar apto a explicar cada diferença
em João como resultado de uma mudança deliberada do material si-
nótico ou de uma má interpretação desse material. (Vários motivos
poderíam guiar tais mudanças; por exemplo, melhor sequência, ên-
fase teológica). G oodwin, art. cit., argumenta que o quarto evangelista
citou o AT livremente de memória e que poderia ter feito o mesmo
com os sinóticos. Entretanto, qualquer explicação das diferenças joa-
ninas que apelem, como um princípio, para as mudanças numerosas,
caprichosas e inexplicáveis realmente remove a questão da área do
estudo científico.
No comentário, demos atenção particular a uma comparação de
João e os sinóticos. Nossa conclusão global relativas às similaridades é
que João tende a concordar com Marcos e com Lucas mais amiúde do
que com Mateus, mas sobre uma série de cenas João não concorda,
de uma maneira consistente, com qualquer um dos evangelhos sinó-
ticos. Se alguém quisesse propor dependência sobre a base somente
34 Introdução

de similaridades, esse mesmo teria que pressupor que o quarto evan-


gelista conhecia os três evangelhos e escolheu de uma maneira eclé-
tica, ora de um ora de outro. Não obstante, mesmo esta sugestão não
resiste quando se examinam as dessemelhanças. Em cenas paralelas, a
maioria dos detalhes peculiares a João, alguns dos quais tornam o re-
lato mais difícil, não podem ser explicados como mudanças delibe-
radas da tradição sinótica. Se alguém não pode aceitar a hipótese de
um evangelista displicente ou caprichoso, que mudou, acrescentou
e subtraiu detalhes gratuitamente, então esse mesmo se vê forçado a
concordar com D odd, que o evangelista extraiu o material para seus
relatos de uma tradição independente, similar, porém não a mesma
que as tradições representadas pelos evangelhos sinóticos.
No comentário, temos tido em conta também à possibilidade de
que o quarto evangelista extraiu de uma ou mais fontes que pareciam
jazer por detrás dos evangelhos sinóticos, por exemplo, de "Q " (a fon-
te que forneceu o material comum a Mateus e Lucas). Outro exemplo
já foi desenvolvido por I. B use, o qual sugere que, no relato da paixão,
João é dependente de uma das duas fontes pré-marcanas isolada por
T aylor. Esta é uma questão obviamente mais difícil, visto que uma
se trata de uma fonte reconstruída, e não de uma obra existente. Sem
sermos absolutos sobre a questão, tendemos a chegar à mesma so-
lução anterior, a saber, a independência joanina, pois uma vez mais
há muitas diferenças que não podem ser explicadas sem recorrer ao
material não sinótico. Todavia, aqui devemos encarar a dificuldade de
que as fontes sinóticas são apenas imperfeitamente representadas nos
evangelhos finais, e por isso uma fonte realmente pode ter material
contido que João extraiu ou não dos sinóticos. Entretanto, para esta-
belecer as diferenças joaninas sobre este princípio, é preciso uma vez
mais remover a solução de qualquer controle científico real. À luz da
evidência disponível, parece ser preferível aceitar a solução geral de
uma tradição independente por detrás de João.
Enfatizamos que esta é uma solução geral; com isso queremos
significar que o corpo principal do material em João não foi extraído
dos evangelhos sinóticos ou de suas fontes. Entretanto, anteriormente
(Segunda Parte) reconstruímos uma longa história para a composi-
ção do Quarto Evangelho. E bem possível que durante aquela história
houvesse influência cruzada da tradição sinótica. A menos que tenha-
mos de pressupor que a comunidade joanina fosse isolada de outras
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 35

comunidades cristãs (uma sugestão que não se harmoniza com a pro-


posta de que João foi escrito em Éfeso ou em Antioquia), é difícil crer
que esta comunidade mais cedo ou mais tarde não se tornasse familia-
rizada com a tradição do evangelho aceita pelas outras comunidades.
Talvez possamos ilustrar com alguns exemplos possíveis de in-
fluência cruzada. Podemos começar com Marcos. Ao discutir Jo 6,
mostraremos sérias razões para crer que a narrativa de João da mui-
tiplicação dos pães repousa sobre tradição independente. Todavia,
é notável que somente João e Marcos (6,37) mencionem a soma de
duzentos denários em referência ao preço do pão necessário para ali-
mentar a multidão. Outro exemplo notável é a mesma estranha ex-
pressão grega "perfume feito de nardo puro" que é usado em Jo 12,3
e Mc 14,3. A soma de trezentos denários aparece somente em Jo 12,4
e Mc 14,5 como um detalhe nos relatos da unção de Jesus. É quase
impossível decidir se paralelos tão pequenos representam influência
cruzada ou simplesmente mostram o fato de que a tradição indepen-
dente por detrás de João tinha muitos aspectos em comum com a tra-
dição admitidamente primitiva por detrás de Marcos.
Os importantes paralelos entre João e Mateus são relativamente
poucos (ver discussão de 13,16.20; 15,18ss. - Vol. 2). Há alguns conta-
tos interessantes entre João e o material petrino peculiar a Mateus (ver
discussão de 1,41-42; 6,68-69; 21,15-17). Além do mais, não se pode
esquecer o dito fraseado no estilo joanino que aparece em Mt 11,25-30
(Lc 10,21-22). Todavia, poucos estudiosos propõem contato direto en-
tre Mateus e João.
De muitas maneiras, a possibilidade de influência cruzada sobre
João vinda de Lucas é a mais interessante. Em cenas partilhadas por
João e vários dos sinóticos, os paralelos entre João e Lucas geralmente
não são impressivos. Ao contrário, é com o material peculiarmente lu-
cano que João tem os paralelos importantes. A lista seguinte de modo
algum é exaustiva (ver O sty, P arker, Bailey), porém mostra que os
paralelos estão, respectivamente, nos detalhes minuciosos e no amplo
âmbito da narrativa e idéias.

• Uma multiplicação de pães e peixes.


• Menção de figuras como Lázaro; Marta e Maria; run dos doze,
chamado Judá ou Judas (não o Iscariotes); o sumo sacerdote Anás.
• Nenhum julgamento noturno diante de Caifás.
36 In trod u ção

• A dupla questão expressa por Jesus acerca de seu caráter mes-


siânico e divindade (Lc 22,67,70; Jo 10,24-25.33).
• Três afirmações de "inocência" feitas por Pila tos durante o jul-
gamento de Jesus.
• Aparições pós-ressurreição de Jesus em Jerusalém; aqui, a si-
milaridade é muito forte, se os versículos como Lc 24,12 e 40
são originais.
• A pesca miraculosa (Lc 5,4-9; Jo 21,5-11).

Como vamos avaliar tais paralelos? Pessoalmente, nada encon-


tramos neles que prove a B oismard, de que Lucas foi o redator final do
Quarto Evangelho. Alguns dos paralelos podem ser mais bem expli-
cados, pressupondo que a tradição independente por detrás de João
tinha aspectos também encontrados nas fontes peculiares a Lucas,
mesmo que tais aspectos não apareçam de alguma maneira em am-
bas as tradições, por exemplo, João não conta o mesmo relato acerca
de Marta e Maria que conta Lucas. Mas tal suposição não explica to-
dos os paralelos. Por exemplo, no relato da unção dos pés em 12,1-7
(§ 41), João é dependente dos detalhes que vêm de um desenvolví-
mento lucano peculiar da narrativa básica, e é difícil ver como a fusão
de detalhes encontrada, respectivamente, em Lucas e João poderia ter
acontecido independentemente. Em contrapartida, há incidentes em
Lucas que podem muito bem ter surgido através de influência cruza-
da de algum estágio da tradição joanina, por exemplo, o segundo re-
mate da parábola sobre Lázaro (Lc 16,27-31) que menciona a possibi-
lidade de Lázaro retornar do túmulo. Assim, nas relações entre Lucas
e João, é possível influência cruzada em ambas as direções. Visto que
tal influência cruzada não é expressa em vocabulário idêntico, é bem
provável que ocorresse em um estágio oral na história da composição
do evangelho.
Portanto, para resumir, em muito do material narrado, respecti-
vamente, em João e nos sinóticos, cremos que a evidência não favo-
reça a dependência joanina dos sinóticos ou suas fontes. João recor-
reu a uma fonte independente de tradição sobre Jesus, semelhante às
fontes que subjazem aos sinóticos. A tradição joanina primitiva era
mais aproximada da tradição pré-marcana, mas também continham
elementos encontrados nas fontes peculiares a Mateus (p. ex., a fon-
te petrina) e a Lucas. Em adição ao material extraído desta tradição
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 37

independente, João tem uns poucos elementos que parecem sugerir


um empréstimo direto da tradição sinótica. Durante a formação oral
dos relatos e discursos joaninos (Segundo Estágio), mui provável-
mente havia alguma influência cruzada da emergente tradição do
evangelho lucano. Talvez, ainda quando não estejamos convencidos
disto, na redação final de João (Quinto Estágio) houve uns poucos
detalhes diretamente emprestados de Marcos. Não há evidência,
contudo, com a devida vênia a B ultmann, que tal empréstimo, se
realmente houve, foi com o propósito de fazer o Quarto Evangelho
aceitável à Igreja em geral.

C. O VALOR DE JOÃO NA RECONSTRUÇÃO DO MINISTÉRIO


DE JESUS

Tem sido ordinário na investigação crítica do Jesus histórico que não


se pode pôr nenhuma confiança no material encontrado em João.
Mesmo a "nova busca" do Jesus histórico entre os pós-bultma-
nianos, especialmente B ornkamm e C onzelmann, negligencia João.
Esta questão merece reavaliação em vista das conclusões alcançadas
acima; a saber, que dentro do material próprio a João há um forte
elemento de plausibilidade histórica, e que dentro do material par-
tilhado por João e os sinóticos, João recorre à tradição independente
e primitiva.
Mas ao reabrir a questão de se o Quarto Evangelho pode ou não
ser testemunha do Jesus histórico, devemos prosseguir com cuidado.
Na Segunda Parte, propusemos cinco estágios na composição de João,
com cada Estágio representando um passo adiante da tradição primi-
tiva. Não podemos ignorar as implicações de tal desenvolvimento,
pois ele limita a capacidade da forma final do evangelho de dar um
perfil cientificamente acurado do Jesus da história. Examinemos as
implicações de cada Estágio do desenvolvimento joanino.
{a) A tradição das obras e palavras de Jesus que subjazem a João
(Primeiro Estágio) se assemelha às tradições por detrás dos
evangelhos sinóticos. Em suma, essas tradições nos dão formas
variantes das narrativas sobre o que Jesus fez e disse. Ora, o
desenvolvimento de tais variantes exigiu tempo. Se indagar-
mos qual dessas tradições é a mais antiga, estamos formulando
38 Introdução

uma indagação que não admite nenhuma resposta simples.


Mesmo dentro da família sinótica de tradições, uma não pode
dar uma regra geral quanto a que forma de um dito deve ser
sempre preferida, a forma "Q " ou a forma marcana. Assim
também, ao comparar João e os sinóticos, descobrimos que
alguns casos o material subjacente ao relato de João parece
ser mais primitivo do que o material subjacente ao(s) relato(s)
sinótico(s), por exemplo, o relato de Jesus caminhando sobre
a água em Jo 6,16-21. Em outros casos, a verdade é justamente
o oposto. Assim, se faz necessário o julgamento crítico para
cada caso.
Talvez possamos aproveitar esta ocasião para insistir que, quan-
do no comentário analisamos uma narrativa ou dito joanino e des-
cobrimos que há tradição primitiva subjacente, somos perfeitamente
cônscios de que estamos usando "primitivo" num sentido relativo,
pois a tradição primitiva já pode representar dez ou vinte anos de
desenvolvimento do tempo de Jesus. Em geral, onde possível, tentare-
mos recuar as origens do material joanino ao Primeiro Estágio, e então
mostrar quais as implicações isto pode ter para o ministério histórico
de Jesus. Mas não pretendemos tentar ou ser capazes de decidir, com
qualquer consistência, precisamente quanta história científica subjaz a
cada cena joanina. De modo semelhante, ao pontuarmos os paralelos
sinóticos para os relatos e ditos joaninos, não fazemos pressuposição
de que os paralelos sinóticos são necessariamente ecos exatos do que
Jesus fez e disse. Ao contrário, tomamos por admitido algum conhe-
cimento da história da tradição sinótica. O propósito em apresentar
tais paralelos é mostrar que o evangelho de João não é tão diferente
quanto possa parecer à primeira vista.
(b) Os Segundo e Terceiro Estágios, em nossa teoria da composi-
ção de João, viram o re-arranjo dramático e teológico da ma-
téria crua da tradição de Jesus e a tessitura desses relatos e
ditos reagrupados em um evangelho consecutivo. Este mes-
mo processo, mutatis mutandis, também ocorreu na formação
dos evangelhos sinóticos. A um só tempo, João o evangelista
foi mencionado como 0 Teólogo, quase com a implicação de
que somente no Quarto Evangelho tivemos um ponto de vista
teológico da carreira de Jesus. Hoje reconhecemos que cada
evangelho tem um ponto de vista teológico, e que o quarto
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 39

evangelista é um teólogo entre os outros evangelistas teólo-


gos. Não obstante, é ainda verdadeiro que o quarto evange-
lista é o teólogo par excellence. Em particular, a formação dos
ditos de Jesus nos discursos joaninos representou uma pro-
funda síntese teológica. Parece procedente, por exemplo, que
por detrás de Jo 6 subjaz aí um matiz do material tradicional,
contendo não só a multiplicação dos pães, mas também uma
má interpretação do que estava implícito pela cena, e a conse-
quente explicação do pão feita por Jesus. Todavia, a formação
deste material para a magnífica estrutura que ora temos em Jo
6 representa a compreensão teológica sem paralelo das últimas
implicações dos feitos e palavras de Jesus. Os relatos sinóticos
menos desenvolvidos da cena não são da mesma qualidade ou
supremacia teológicas. Naturalmente, em qualquer tentativa
de usar João como guia para o Jesus histórico, tal desenvolví-
mento teológico tem de ser levado em conta. Não estamos su-
gerindo que a profunda visão teológica joanina não tenha sido
leal ao Jesus de Nazaré; ao contrário, às vezes tem produzido
implicações encontradas numa cena, por mais que retroceda-
mos essa cena à sua origem. Mas o desenvolvimento subse-
quente, não importa quão homogêneo seja, é um elemento de
distorção com frequência quando se trata de estabelecer cien-
tificamente as circunstâncias exatas do ministério de Jesus.
E assim, embora pensemos que o Quarto Evangelho reflita
memórias históricas de Jesus, quanto maior for a extensão
do reagrupamento teológico dessas memórias, mais difícil de
usar se torna o material joanino na busca do Jesus histórico do
que a maioria do material sinótico.
Ainda além do desenvolvimento que entrou na formação das
unidades joaninas está o desenvolvimento que ocorreu quando es-
sas unidades foram unidas em um evangelho. Requereram-se sele-
ção e realce para tornar possível a estruturação ora presente em João.
Assim, na primeira redação de João assumiram a vanguarda temas
que provavelmente eram bem obscuros na grande atividade do mi-
nistério atual. É bem plausível, por exemplo, que Jesus houvesse fala-
do publicamente por ocasião das festas judaicas e houvesse dirigido
suas observações para um contraste entre seu próprio ministério e o
tema da festa. Mas a recolocação sistemática das festas expressas em
40 Introdução

Jo 5-10 é o produto de muita reflexão feita pelo autor, em uma tenta ti-
va de captar a significação de Jesus e seu ministério.
Se tudo isto significa que João (e isto é também procedente dos
outros evangelhos) é um tanto distante de uma história ou biografia
de Jesus, Jo 20,30-31 tem deixado claro que a intenção do autor era
produzir um documento não com base na história, e sim na fé. To-
davia, Sanders, art. cit., está plenamente certo em insistir que João é
profundamente histórico - histórico no sentido em que a história diz
respeito não só ao que aconteceu, mas também ao significado mais
profundo do que aconteceu.
(c) A redação final do evangelho, Quinto Estágio da composição,
põe ainda mais obstáculos a utilização de João na reconstru-
ção do ministério de Jesus. O material extra joanino que foi
inserido na narrativa do evangelho não foi necessariamente
arranjado em alguma ordem cronológica; e deveras, segundo
nossa hipótese, a adição do material causou a recolocação de
cenas tais como a purificação do templo. Assim, não é possí-
vel uma aceitação absoluta do presente arranjo do evangelho
como realmente cronológico.
João menciona ao menos três Páscoas (2,13; 6,4; 11,55) e, portanto,
implica ao menos um ministério de dois anos. Os biógrafos de Jesus
têm usado esta indicação para formar um esquema do ministério, di-
vidindo o material encontrado nos evangelhos para as atividades do
primeiro e segundo (e terceiro) anos. Por exemplo, é possível que nos
digam que o Sermão do Monte (Mt 5-7) ocorreu no primeiro ano do
ministério, pouco depois da Páscoa (Jo 2,13). Tal procedimento não é
válido. Não só ignora o fato de que o próprio material sinótico não
é ordenado cronologicamente (p. ex., o Sermão do Monte, como agora
se encontra, é um composto de palavras ditas em várias ocasiões),
mas também ignora o fato de que os próprios evangelhos não dão
indicações reais para tal sincronização da data joanina e sinótica. Ava-
liada com propriedade, a tradição sinótica e a tradição joanina não são
contraditórias; às vezes iluminam uma à outra através de compara-
ção, como M orris, art. d t., tem realçado. Entretanto, o fato de que ne-
nhuma tradição mostra interesse científico em cronologia se percebe
quando buscamos combiná-las em um quadro consecutivo. Mesmo os
poucos pontos de possível contato cronológico entre as duas tradições
oferecem dificuldade. Por exemplo, na primeira parte do ministério
III · A tradição por detrás do quarto evangelho 41

descrita em João, Jesus faz diversas viagens à Judeia e volta outra vez
à Galileia, mas é muito difícil combinar alguma das viagens com a
tradição sinótica de um retorno à Galileia depois do batismo por
João Batista. A multiplicação dos pães encontrada em todos os qua-
tro evangelhos pode parecer oferecer possibilidade de sincronização,
mas o resultado é confundido pela presença de dois relatos da multi-
plicação em Marcos-Mateus.
Entretanto, ainda que houvesse possibilidade de sincronização,
uma teoria de um ministério de dois ou três anos como uma estru-
tura para dividir as atividades de Jesus ignora o problema gerado
pelo propósito para o qual o Quarto Evangelho foi escrito. Visto que
Jo 20,30 declara especificamente que o evangelho não é um relato
completo das atividades de Jesus, não há como saber que as três Pás-
coas mencionadas eram as únicas Páscoas naquele ministério. Não
há razão real para que alguém não possa postular um ministério de
quatro ou cinco anos. Além do mais, visto que a primeira Páscoa
mencionada em João é finalmente conectada à cena da purificação
do templo, uma cena que, provavelmente, foi deslocada, alguns têm
questionado o valor da referência a esta primeira Páscoa como uma
indicação cronológica.
A luz de todas estas observações, seria claro por que devemos
ser mui cautelosos acerca do uso de João em reconstruir cientifica-
mente, com detalhe, o ministério de Jesus de Nazaré, ainda quando
devemos ser cuidadosos em usar assim os outros evangelhos. Cre-
mos que João é baseado em uma tradição sólida das obras e palavras
de Jesus, uma tradição que às vezes é muito primitiva. Cremos que
amiúde João nos dá informação histórica correta sobre Jesus que ne-
nhum dos outros evangelhos preservou, por exemplo, que, à seme-
lhança de João Batista, Jesus teve um ministério de batismo por um
período antes de começar seu ministério de ensino; que seu minis-
tério público durou mais de um ano; que foi várias vezes a Jerusa-
lém; que a oposição das autoridades judaicas, em Jerusalém, não se
confinou aos últimos dias de sua vida; e muitos detalhes acerca da
paixão e morte de Jesus. Todavia, ao avaliar a descrição joanina de
Jesus, não podemos negligenciar as inevitáveis modificações feitas
nos vários estágios da composição joanina.
42 In tro d u çã o

B IB L IO G R A F IA

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III · A tradição por detrás do quarto evangelho 43

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IV
IN F L U Ê N C IA S P R O P O S T A S
SO B R E O P E N S A M E N T O R E L IG IO S O
DO QUARTO EVANGELHO

Comentamos a fundo a perspectiva teológica do Quarto Evangelho.


De muitas maneiras, esta é uma perspectiva única, bem diferente das
perspectivas teológicas moderadamente divergentes encontradas nos
evangelhos sinóticos. A figura de Jesus que caminha pelas páginas de
João difere de muitas maneiras da figura apresentada nos sinóticos.
Não só está aí uma maneira diferente de falar, mas também a majes-
tosa atemporalidade da divindade que sobressai mais claramente.
O Jesus joanino se apresenta diante dos homens com a solene fórmula
"eu sou" (ver Apêndice IV, p. 841ss). Ele adentrou um mundo de tre-
vas como a luz, a um mundo de falsidade e ódio como a verdade; e sua
presença divide os homens em dois campos como os que se aproxi-
mam da luz ou que se afastam dela, como os que acreditam na verdade
ou que se recusam a ouvi-la. Quanto do evangelista entrou neste perfil
de Jesus? Alguns dirão que, porque o evangelista se afinava com sua
personagem, era apto a ver em Jesus mais do que outros viam e seu
gênio o capacitou a apresentá-lo. Outros pensarão no perfil de Jesus
como, quase inteiramente, criação do evangelista. Em qualquer caso,
até certo ponto, talvez o indefinível, a própria perspectiva e visão do
evangelista ecoem no evangelho. Como explicar as características pe-
culiares do pensamento do evangelista? O que o influenciou?
Por todo o comentário, tomaremos cuidado para não exagerar as
diferenças entre João e os sinóticos em seus perfis de Jesus, e tentaremos
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 45

mostrar que mesmo os elementos mais caracteristicamente joaninos


têm algum paralelo na tradição sinótica. Todavia, tendo afirmado esta
cautela, ainda devemos reconhecer um rasgo caracteristicamente joa-
nino de pensamento que nos é preciso explicar. As três influências
mais frequentemente sugeridas sobre o evangelista são gnosticismo,
o pensamento helenista e judaísmo palestinense.

A. GNOSTICISMO

A teoria da influência gnóstica sobre João tem sido popularizada


pela Escola da História da Religião (B ousset, R eitzenstein), tão proe-
minente nas primeiras décadas deste século. A teoria tem tido im-
portantes proponentes em W. Bauer e B ultmann. Em contrapartida,
Büchsel, P ercy e E. Schweizer têm questionado exaustivamente a teoria.
Em geral, a questão é difícil, porque, como J. M unck, CINTI,
p. 224, o expressa, o gnosticismo é "um termo científico que não tem
nenhuma definição científica aceita por todos". Todos podem reco-
nhecer padrões comuns no gnosticismo desenvolvido. Por exemplo,
dualismo ontológico; seres intermediários entre Deus e o homem;
a agência desses seres em produzir o mal, mundo material; a alma
como uma fagulha divina aprisionada à matéria; a necessidade de co-
nhecimento conquistado através de revelação a fim de livrar a alma e
guiá-la à luz; a limitação numérica daqueles que são aptos a receber
esta revelação; o revelador salvífico. Mas, qual desses elementos é es-
sencial para um movimento ser realmente chamado gnóstico?

(1) João e 0 gnosticismo cristão

O gnosticismo clássico, como o conhecemos através dos comen-


tários hostis dos Padres da Igreja, era um movimento que apareceu
plenamente desenvolvido no 2° século d.C. Portanto, se datarmos o
evangelho mais ou menos em 90-100 (ver Sexta Parte, p. 80s), rara-
mente poderia ter sido influenciado por este gnosticismo. Mas tem
havido uma tendência de postular uma forma mais antiga de gnosti-
cismo, ou ao menos traçar os componentes do gnosticismo a uma data
mais antiga. Os estudiosos falam de gnosticismo pré-cristão, gnos-
ticismo judaico e inclusive aplicam o termo à teologia de Qumran.
46 In trod u ção

Parte da dificuldade é que, até tempos recentes, havia em existência


bem pouca literatura gnóstica vinda dos primeiros séculos, e assim o
campo era amplamente aberto a hipóteses. Os estudiosos foram inteli-
gentemente cautelosos em reconstruir o pensamento gnóstico a partir
de uma apologética patrística dirigida contra ele.
A descoberta em Chenoboskion, no Egito, em 1947, de um grupo
de documentos gnósticos em copta tem mudado todo o quadro. Com
respeito a João, agora somos aptos a comparar este evangelho com o
gnosticismo cristão do 2a século. Uma das obras gnósticas, o E v a n g e lh o
d a V e r d a d e , é uma tradução copta de uma obra grega da escola do gnos-
ticismo valentiniano e talvez fosse composto pelo próprio V alentino .
Q uispel e B arrett, em seus artigos, e Braun , J e a n T h é o l, I, pp. 11121‫־‬, têm
comparado o pensamento e vocabulário deste documento com o de
João. Concluem os dois evangelhos são muito distintos um do outro.
Se houvesse pontos comuns de origem, então havería um considerá-
vel divergência nos respectivos desenvolvimentos. O presente escritor
tem devotado um artigo a uma comparação entre João e outra obra de
Chenoboskion, o E v a n g e lh o d e T o m é . Nesta obra, o gnosticismo não é tão
desenvolvido como aquele de o E v a n g e lh o d a V e r d a d e , e Tomé pode ser
mais bem descrito como incipientemente gnóstico. Todavia, ainda há
uma considerável distância entre João e Tomé, pois termos caracteristi-
camente joaninos são usados em T o m é de uma maneira bem diferente
do uso joanino. Se há alguma dependência um do outro, é totalmente
indireta; e a direção da dependência seria Tomé de João.
Assim, até onde podemos determinar, João estaria fora de lugar
entre as obras gnósticas encontradas em Chenoboskion. Não quere-
mos dizer que João não pudesse ter sido usado pelos gnósticos do 2 a
século (ver Sexta Parte, p. 80ss), mas que ele não é uma composição
gnóstica típica do 2Qséculo.

(2) João e 0 g n o s tic is m o p r é - c r i s t ã o r e c o n s tr u í d o

Voltando agora às antigas formas postuladas pelo gnosticismo, exa-


minemos a proposta de Bultmann de que a Fonte do Discurso Revela-
tório era gnóstica em sua tendência, e que o evangelista era ex-gnóstico.
(Para um conciso tratamento das idéias de Bultmann sobre o gnosticismo,
ver seu P r i m i t i v e C h r i s t i a n i t y [Nova York: Meridian, 1957], pp. 162-71).
Visto que o evangelista tem desmitologizado e cristianizado sua fonte,
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 47

Bultmann desfaz a obra do evangelista a fim de reconstruir este gnos-


ticismo. Ele a classifica como antiga gnose oriental, em distinção à
última gnose, mais helenizada, da qual estivemos falando acima. Por
exemplo, há no gnosticismo reconstruído um dualismo de luz e trevas,
porém não a especulação sobre as origens de trevas e mal. Na esfera
da luz há seres sobrenaturais além de Deus, por exemplo, os anjos;
mas este gnosticismo não propõe complicadas teorias de emanação.
Além do mais, visto que este gnosticismo é um ramo do judaísmo ou
que foi influenciado pelo judaísmo, seu dualismo tem sido modificado
pelo dogma veterotestamentário da supremacia de Deus mesmo so-
bre a esfera do mal. Assim, a criação do mundo não envolveu batalha
entre trevas e luz, como no dualismo iraniano ou do zoroastrismo.
Talvez a única doutrina mais importante na reconstrução que
Bultmann faz deste gnosticismo seja o mito redentor. Como visto nos
documentos gnósticos tardios, este mito pressupõe a existência de um
Urmensch, um Homem Original, uma figura de luz e bondade, que foi
rasgado e dividido em pequenas partículas de luz. Essas partículas,
como almas humanas, foram semeadas em um mundo de trevas, e
tem sido a tarefa dos demônios fazê-las esquecer suas origens ceies-
tiais. Então Deus envia seu Filho em forma corporal para despertar
essas almas, liberá-las de seus corpos de trevas e guiá-las de volta
ao seu lar celestial. Ele faz isso proclamando a verdade e dando às
almas o verdadeiro conhecimento (gnõsis) que as capacitará a encon-
trar seu caminho de volta. B ultmann encontra traços de tal mito nas
entrelinhas dos discursos em João. A figura ora introduzida na histó-
ria como Jesus foi uma vez o redentor gnóstico e revelador celestial.
Na Fonte do Discurso Revelatório, este redentor era o preexistente
(Jo 1,1) que se fez carne (1,14) e finalmente voltou para Deus. Ele era
a luz que entrou no mundo (1,9; 8,12); ele era o caminho para Deus
(14,6). O Paráclito é outra faceta do mito gnóstico (ver Apêndice V,
vol. 2, p. 1640).
A acusação de raciocínio circular tem sido lançada contra Bultmann;
a saber, que ele pressupõe que houve um gnosticismo ao pano de fundo
de João, e então usa João como sua principal fonte para reconstruir este
gnosticismo. Entretanto, Bultmann alega ter outra evidência deste gnos-
ticismo pré-cristão nos traços daquilo que tem sobrevivido nas Odes
de Salomão (ver p. 195) e, particularmente, nos escritos mandeístas. Os
mandeus foram uma seita batizante ainda existente na Mesopotâmia.
48 Introdução

As pesquisas de L idzbarski e L ady D rower têm capacitado os estu-


diosos a reconstruírem algo de sua história e pensamento pregressos;
para um sumário, veja D odd, Interpretation, pp. 115-130. Sua teologia,
quando aparece em plena florescência, é um misto altamente sincré-
tico de doutrina judaica, mito gnóstico e cristianismo nestoriano e sírio.
Suas lendas contam como fugiram para Babilônia sob a perseguição
dos falsos profetas (como Jesus) e falsas religiões (judaísmo e cristia-
nismo). Seu grande revelador, Manda d'Hayye, cujo nome significa
"conhecimento da vida", foi batizado por João Batista. Ele ensinou
um caminho de salvação que capacitaria os homens a se transferirem
para o mundo de luz.
As formas mais antigas de teologia mandeísta que conhecemos
devem datar-se em época relativamente tardia à era cristã, e não há
possibilidade de que João fosse influenciado por este pensamento
como agora o conhecemos. Devemos notar ainda que não há obra
mandeísta semelhante a João; nem há uma obra mandeísta que se
assemelhe exatamente à Fonte de Discurso Revelatório proposta por
Bultmann. Mas B ultmann presume que o pensamento mandeísta re-
presenta um derivativo tardio do mesmo tipo de gnosticismo que ele
postula na era neotestamentária entre os discípulos de João Batista, e
que serviu de pano de fundo para João. Daí ele citar símbolos parale-
los, padrões de pensamento e frases em João e nos escritos mandeísti-
cos; e ele os vê como ecos de gnosticismo cristão.
Como devemos avaliar as teorias de Bultmann acerca dos man-
deanos? A investigação mais recente é a de K. R udolph, Die Manääer
(Göttingen: Vandenhoeck, 1960), e ele sugere que os mandeus bem
que poderiam estar certos em traçar suas raízes à Palestina, na era
cristã mais antiga. E, naturalmente, provavelmente houvesse conti-
nuidade entre o estágio mais antigo de seu pensamento e o estágio
mais recente que nos é conhecido. Como para as origens do gnosticis-
mo mandeísta, a teoria que está ganhando terreno é que os defenso-
res gnósticos do pensamento e escrito mandeístas são relativamente
recentes.
Não obstante, todo o problema do gnosticismo pré-cristão per-
manece difícil. Quando o gnosticismo aparece no 2“ século d.C., é
um amálgama de diferentes fios de pensamento, e alguns desses fios
são realmente antigos. Mas, realmente foram eles associados na era
pré-cristã? Pois foi a união desses fios que produziu o gnosticismo.
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 49

Como tem realçado A. D. N ock, "Gnosticism", HTR 57 (1964), 255-79,


as descobertas de Chenoboskion têm reafirmado a imagem patrística
do gnosticismo como uma heresia cristã. A figura de Cristo parece
ter sido o catalizador que estimulou a forma de atitudes e elementos
proto-gnósticos nos corpos definíveis de pensamento gnóstico.
Em particular, as últimas pesquisas sobre o redentor do mito
gnóstico feitas por C. C olpe (1961) e Η. M. Schenke (1962) lança sé-
rias dúvidas sobre se os elementos antigos, porém heterogêneos, que
compuseram aquele mito já estavam unidos no período pré-cristão
ou cristão primitivo. Schenke tem argumentado que a identificação
amiúde feita do redentor gnóstico com a teoria de "o Filho do Ho-
mem" é um desenvolvimento pós-cristão. Outro fato que lança dú-
vida sobre a teoria de B ultmann é que o pensamento da comunidade
de Qumran não tem semelhança com a reconstrução de B ultmann de
que uma seita batizante palestinense no l 2 século já estava em pauta.
E, no entanto, esta comunidade, inegavelmente, tem estreitas afini-
dades geográficas e teológicas com João Batista, e assim se podería
esperar que fosse algo similar aos sectários gnósticos de João propos-
tos por Bultmann. Em Qumran há um dualismo modificado; há ele-
mentos proto-gnósticos, porém não há redentor mitológico e não há
gnosticismo desenvolvido.
Em suma, não se pode alegar que a dependência de João de um
postulado gnosticismo oriental primitivo tenha sido refutada, mas a
hipótese permanece muito tênue e de muitas maneiras desnecessária.
Esperamos mostrar abaixo que a especulação veterotestamentária
acerca da Sabedoria personificada e o vocabulário e pensamento
do judaísmo sectário, como a comunidade de Qumran, percorrem
um longo caminho para preencher o pano de fundo do vocabulário
e expressão teológicos joaninos. Visto que se sabe que estas fontes
propostas de influência existiram, e a existência da fonte proto-man-
deísta gnóstica de Bultmann permanece duvidosa, temos muita ra-
zão para dar-lhes preferência.

B. PENSAMENTO HELENISTA

Ao suscitar-se a questão da influência grega sobre João, temos de


fazer uma importante distinção. Há um forte elemento helenista já
50 Introdução

presente no judaísmo dos tempos neotestamentários, tanto na Pales-


tina como em Alexandria. Portanto, se João era dependente do judaís-
mo contemporâneo, inevitavelmente houve uma influência helenista
sobre o pensamento joanino. Já falamos de especulação da Sabedoria
personificada; nos livros deuterocanônicos, como Sirac e Sabedoria de
Salomão, esta especulação foi matizada pelo pensamento helenista. Já
falamos também de Qumran, e houve forte influência helenista sobre
tais seitas judaicas. J osefo traça uma analogia entre o pensamento dos
essênios (consideramos que o grupo Qumran se compunha de essê-
nios) e o dos neopitagóricos, atribuindo aos essênios uma antropo-
logia com claros aspectos helenistas. B raun, JeanThéol, II, pp. 252-76,
aponta para afinidades entre a Hermética e o pensamento essênio como
encontrado em J osefo e nos rolos de Qumran. C ullmann tem tentado
unir os essênios de Qumran, os samaritanos e os helenistas (At 6,1)
sob as bandeiras de um judaísmo neoconformista partilhando uma
oposição ao templo e uma predileção pelo pensamento helenista.
Portanto, tomamos por admitido uma tendência grega dentro do
judaísmo que exerceu uma influência sobre o vocabulário e pensamento
joaninos. Mas a pergunta que fazemos aqui é se houve outra influência
helenista sobre João que não surgiu através do judaísmo, mas veio de
fora. Acaso o evangelista estava particularmente familiarizado com o
pensamento grego, a ponto de interpretar a mensagem evangélica em
termos helenistas? Têm-se oferecido três tendências do pensamento
grego como possíveis explicações para as peculiaridades na expressão
teológica joanina: uma forma popular de filosofia grega, F ilo e a Her-
mética. Discutiremos cada um por sua vez, mas talvez seja oportuno
enfatizar que estamos buscando influência formativa no pensamento
do evangelista. Um problema ligeiramente diferente é se o evangelista
deu ou não ao evangelho um verniz de fraseologia helenista a fim de
converter o mundo grego. Esta questão se relaciona mais estreitamente
com o propósito do evangelho que será discutido na Parte V, p. 63ss.

(1) João e a filosofia grega

Alguns dos comentaristas mais antigos sobre João, por exemplo,


E. A. A bbott, W. R. Inge, enfatizaram os empréstimos joaninos das
escolas de pensamento filosófico grego, especialmente do platonismo
ou estoicismo.
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 51

Primeiro, podemos considerar o platonismo. Há em João contras-


tes entre o que está acima e o que está abaixo (3,31), entre espírito e
carne (3,6; 6,63), entre vida eterna e existência natural (11,25-26), entre
o verdadeiro pão do céu (6,32) e o pão natural, entre a água da vida
eterna (4,14) e água natural. Estes contrastes podem ser comparados a
uma forma popular de platonismo onde existe um mundo real, invi-
sível, eterno, contrastado com o mundo das aparências aqui embaixo.
A similitude é impressionante, mas devemos notar que o platonismo
popular já havia se infiltrado no judaísmo. Como veremos na Parte
VIII, p. 114ss, além da distinção horizontal e linear entre a era atual
na história de Israel e a era futura após a intervenção divina, havia
também no pensamento judaico deste período uma distinção vertical
entre o celestial e o terreno. Não é desconhecido no AT um contraste
entre espírito e carne (Is 31,3), e Qumran oferece um contraste entre
o que jaz no nível da carne e o que é de cima (1QH 10.23,32). Mesmo
0 contraste entre verdadeiro pão e pão natural é prefigurado numa
passagem como Is 55,1-2, onde o pão do ensino de Deus é contrastado
com o que não é pão. Assim, as afinidades com o platonismo popular
que têm sido propostas por João são muito bem explicáveis à luz do
judaísmo palestino. Algumas vezes são apenas afinidades aparentes
que são explicáveis em termos do AT; algumas vezes são afinidades
reais, mas que têm sua origem no pensamento grego que já se torna-
ram parte do pano de fundo judaico.
Tem-se sugerido um paralelo com o estoicismo pelo uso de logos,
“a Palavra", no Prólogo, pois este era um termo popular no pensa-
mento estoico. Nosso tratamento deste termo no Apêndice II, p. 823
mostrará que o uso joanino é bem diferente daquele dos estoicos.
Além do mais, o hino que constitui o Prólogo teve sua própria histó-
ria dentro dos círculos joaninos, e é arriscado argumentar com base
nos paralelos terminológicos no Prólogo com vistas a influenciar todo
0 evangelho. Assim, não há razão para supor que o evangelho fosse
influenciado por alguma filosofia mais grega do que o que já estava
presente no pensamento e linguagem gerais da Palestina.

(2) João e Filo

Tem-se sugerido uma dependência joanina de F ilo de Alexandria.


Contemporâneo de Jesus, F ilo representou em sua obra uma tentativa
52 Introdução

de combinar pensamento judaico e grego. Não temos clara evidência


de que a obra de F ilo era conhecida na Palestina do 1“ século; e, assim,
se o evangelista foi dependente de F ilo, provavelmente esta familia-
ridade foi adquirida fora da Palestina. Uma vez mais, o uso de logos,
no Prólogo, constitui um argumento-chave, pois F ilo empregava este
termo (ver Ap. II, p. 823ss). A rgyll, art. cit., tenta mostrar uma ampla
dependência joanina de F ilo, em virtude de algumas das imagens bí-
blicas usadas por João (escada de Jacó, serpente de bronze, visão de
Abraão), que são também usadas por F ilo, precisamente em conexão
com a doutrina do logos. E possível perdermos o ponto do argumento;
mas o próprio fato de que, diferente de F ilo, João não usa esta imagem
em conexão com "a Palavra", e o fato de que, no evangelho como um
todo, “a Palavra" exerce apenas uma função menor, parecería enfra-
quecer o caso da dependência de F ilo.
O instrutivo artigo de W ilson sobre o tema é muito ponderado.
Ele observa que, enquanto conhecemos a obra de F ilo, a maior parte
do trabalho de seus predecessores não chegou a sobreviver. As re-
flexões filonianas sobre o logos provavelmente são o clímax de uma
longa história de tal pensamento. Além do mais, tanto F ilo como João
recorreram ao AT, e no conceito do logos ambos recorreram à Literatu-
ra Sapiencial do AT. Portanto, não surpreende que às vezes seu pen-
sarnento se desenvolva ao longo de linhas paralelas. Mas quando se
passa a procedimento metodológico essencial, F ilo e João estão longe
um do outro. O esmagador colorido filosófico encontrado em F ilo não
aparece em João, e as elaboradas alegorias filonianas têm pouco em
comum com o uso joanino da Escritura. D odd, Interpretation, p. 133,
disse que F ilo, juntamente com o judaísmo rabínico e a Hermética, per-
manece uma de nossas fontes mais diretas para o pano de fundo do
pensamento joanino. Pessoalmente, cremos que a evidência aponta
mais para um pano de fundo comum partilhado tanto por F ilo como
por João. Talvez B raun, JeanThéol, II, p. 298, o haja formulado melhor:
se F ilo nunca existisse, o Quarto Evangelho mui provavelmente não
teria sido nada diferente do que é.

(3) joão e a hermética

Não obstante, outros estudiosos que propõem a influência hele-


nista sobre João se volvem para uma religião mais elevada e filosófica,
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 53

tal como a da Hermética. No Egito, no 2a e 3Ωséculos d.C., um corpo


de literatura grega se desenvolveu centrado em Hermes Trismegistus,
um lendário filósofo do antigo Egito, que cria ter sido deificado como
o deus Thoth (= Hermes). O pensamento expresso nesta literatura é
um sincretismo de filosofia platônica e estóica com a tradição religiosa
do Oriente Próximo. Os vários livros da literatura, grandemente inde-
pendentes uns dos outros, em sua maior parte foram escritos depois
do Quarto Evangelho, embora haja elementos antigos contidos neles.
A edição crítica deste corpus de escrito, que constitui a Hermética, tem
sido publicada por N ock e F estucière. Lançados na forma de diálogos
entre Hermes e seus filhos, estes escritos proclamam um elevado con-
ceito de Deus e das obrigações éticas do homem. O homem perfeito
possui o conhecimento de Deus, e a salvação se dá através deste co-
nhecimento revelado (ver Jo 17,3). Podem-se encontrar na Hermética
elementos de semipanteísmo e de gnosticismo.
Ao comparar estes escritos com João, os estudiosos têm encontra-
do alguns paralelos de pensamento e vocabulário muito interessantes
(ambos, B raun e D odd, fornecem listas). A maioria não propõe de-
pendência direta de João da Hermética, mas D odd fica impressionado
com o valor da Hermética na interpretação de João. K irkpatrick, art. cit.,
ressaltou que as similaridades entre as duas literaturas não devem ser
super enfatizadas. Alguns dos termos teológicos que são os mais im-
portantes na Hermética estão totalmente ausentes de João, por exemplo,
gnõsis, mystêrion, a th a n a s ia ("imortalidade")/ dêm iou rgos ("demiur-
go"). Uma comparação estatística de vocabulário é também interessante.
Há 197 palavras significativas em João que começam com uma das
quatro primeiras letras do alfabeto grego; 189 destas aparecem na LXX;
somente 82 delas aparecem na Hermética. Assim, João é muito mais
próximo à linguagem grega veterotestamentária do que à da Hermé-
tica. B raun expressa outra cautela. Há indicações de que alguns dos
autores da Hermética conheciam o Cristianismo e inclusive escreveram
contra ele. Braun detecta a presença de um escriba que poderia ter
algum conhecimento de João. Se este for o caso, a direção de paralelos
entre João e a Hermética teria de ser seriamente examinada.
Assim, uma vez mais, estamos tratando com uma literatura que
é mais recente que João, mas cujos antigos estágios hipotéticos são
usados para explicar o pensamento do quarto evangelista. A melhor
explicação poderia ser que nas similaridades as duas literaturas se
54 Introdução

entrelaçam (p. ex., vocabulário como "lu z", "vida", "palavra") são
ambas dependentes de uma terminologia teológica mais antiga que
qualquer uma delas; a saber, a terminologia que dependia da combi-
nação de especulação sobre Sabedoria e pensamento grego abstrato.
Tal combinação já é exemplificada no período pré-cristão no deutero-
canônico Livro de Sabedoria. Que esta base comum foi construída de
duas maneiras tão diferentes como agora vemos na Hermética e João,
sugere que as duas literaturas tinham pouco a ver uma com a outra
nos estágios formativos. Assim, concordaríamos com K irkpatrick de
que podemos avaliar a Hermética no mesmo nível que os escritos man-
deus e que outras evidências do gnosticismo, isto é, como constituin-
do não de parte significativa do pano de fundo do evangelho.

C. JUDAÍSMO PALESTINO

Um grande número de estudiosos está chegando ao acordo de que o


principal pano de fundo para o pensamento joanino foi o judaísmo
palestino dos dias de Jesus. Este judaísmo estava longe de ser monolí-
tico, e sua própria diversidade ajuda a explicar diferentes aspectos do
pensamento joanino. Consideraremos o AT, o judaísmo rabínico e o
judaísmo dos sectários de Qumran.

(1) João e 0 Antigo Testamento

João tem menos citações diretas do AT do que têm os outros evan-


gelhos. O texto grego de N estle indica somente 14, todas dos livros do
cânon palestinense do AT. Na lista de referências veterotestamentárias
de W estcott-H ort, usadas no NT, somente 27 passagens são cataloga-
das por João, quando comparadas com 70 por Marcos, 109 por Lucas
e 124 por Mateus. Não obstante, a infrequência de testimonia joanina é
decepcionante, como mostra Barrett em seu artigo sobre o tema. Mui-
tos dos temas do testimonia sinótico têm sido entretecidos na estru-
tura do Quarto Evangelho sem citação explícita do AT. Diferente de
Mc 7,6, João não cita Is 29,13, em razão de que o coração do povo de
Israel estava longe de Deus, embora o honrassem com seus lábios; to-
davia, no Quarto Evangelho, este tema corre por todos os argumentos
de Jesus perante "os judeus".
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 55

Mais importante, como Braun tem mostrado em JeanThéol, II,


João reflete ainda mais claramente do que os evangelhos sinóticos as
grandes correntes do pensamento veterotestamentário. Jesus é apre-
sentado como o Messias, o Servo de Yahwéh, o Rei de Israel e o Pro-
feta - todas figuras na galeria das expectativas veterotestamentárias.
Muitas das alusões ao AT são sutis, porém muito efetivas. H oskyns,
art. cit., tem mostrado como Gênesis influenciou João, ainda que João
nunca o cite explicitamente. A narrativa dos primeiros dias da criação
e do primeiro homem e mulher é a espinha dorsal de Jo 1,12,10‫־‬, e o
tema da mãe Eva retorna quando Jesus pende da cruz em 19,25-30. Há
referências a Abraão (8,31ss.), Isaac (3,16) e Jacó (4,5ss.).
Todo o relato de Moisés e do Êxodo é um assunto muito do-
minante, como G lasson tem mostrado detalhadamente. Alguns es-
tudiosos têm inclusive sugerido que toda a organização do Quarto
Evangelho foi modelada no Êxodo. E nz, art. cit., compara os sinais de
Jesus, como registrados em João, com os sinais de Moisés em trazer as
pragas sobre o Egito. Inevitavelmente, essas equivalências elaboradas
são forçadas em alguns detalhes, embora concordemos com Smith de
que um fator muito importante no conceito joanino de "sinal" foi o
uso de "sinal" para os milagres de Moisés (Ap. III, p. 831). Sem nos
tornarmos dependentes desta busca pelo mesmo padrão estrutural
em Êxodo e João, todavia podemos ressaltar as numerosas referências
joaninas a Moisés (1,17; 5,46 etc.) e aos eventos do Êxodo (o maná em
6,31ss., a água da rocha em 7,38, a serpente de bronze em 3,14, o taber-
náculo em 1,14). Os discursos de Moisés em Deuteronômio têm sido
sugeridos com frequência como oferecendo um paralelo na psicologia
de sua composição dos discursos de Jesus em João, isto é, ambos re-
presentam uma re-elaboração do material tradicional no formato de
discurso. O conceito deuteronômico de mandamento é bem estreito
com o conceito joanino. Há também referências a outros eventos na
história subsequente de Israel (aos Juizes em 10,35; ao tema do pastor
régio em 10,lss.).
Metade das citações explícitas de João provém dos profetas (ein-
co de Isaías; duas de Zacarias). G riffiths, art. cit., tem oferecido o
Deuteroisaías como um bom paralelo veterotestamentário a João,
pois ambos reinterpretam tradições prévias com considerável origi-
nalidade. É ao Deuteroisaías que devemos ir para o pano de fundo
do uso joanino de eg õ eim i, "Eu sou" (Ap. IV, p. 841 s) e para alguns
56 Introdução

elementos da universalidade atribuída à missão de Jesus. A última


parte de Zacarias parece estar por detrás das reflexões de João sobre
a festa dos tabernáculos e sobre a fonte de água viva (7,37-38). V aw -
ter, art. cit., sugere que Ezequiel pode oferecer o pano de fundo para
certos aspectos na teologia joanina do Filho do Homem e do Paráclito.
A literatura sapiencial é também importante para uma compreen-
são de João. Como nos outros evangelhos, assim também em João o
livro dos Salmos é uma frequente fonte para testimonia. Na Parte VIII
mostraremos que a influência mais decisiva sobre a forma e estilo dos
discursos de Jesus no Quarto Evangelho vem dos discursos da divina
Sabedoria nos livros como Provérbios, Sirac e Sabedoria de Salomão.
Pode-se indagar legitimamente se tal dependência do AT mostra
que o ambiente do pensamento de João foi o judaísmo palestino, pois
a LXX era conhecida fora da Palestina. Alguns estudiosos têm argu-
mentado que ao menos algumas das citações explícitas do AT, que
aparecem em João, parecem ser diretamente traduzidas do hebraico
e não vêm da LXX (assim B raun, JeanThéol, II, pp. 20-21); isto modi-
ficaria a sugestão de G oodwin de que as variações em João da LXX
provêm do fato de que o evangelista citou livremente e de memória.
Uma possibilidade mais interessante é que nas passagens como 3,14;
4,6.12; 7,38 e 12,41, João pode estar citando os Targuns palestinos (as
traduções aramaicas locais da Escritura) em vez da Bíblia Hebraica.
As implicações para o pano de fundo do evangelho são óbvias.

(2) / oão e 0 judaísmo rabínico

Estas reflexões nos levam à questão da relação entre o Quarto


Evangelho e os documentos rabínicos. Os últimos são notoriamente
difíceis de datar. Foram escritos na era cristã e amiúde muito recen-
tes, mas frequentemente preservam material muito antigo que retro-
cede ao tempo de Jesus e inclusive mais cedo. (Entretanto, o leitor sai
lucrando em observar que, enquanto citaremos paralelos rabínicos,
às vezes se torna impossível provar que este paralelo reflita o pen-
sarnento do judaísmo do I a século). Visto que a obra dos rabinos é a
continuação do judaísmo farisaico dos dias de Jesus, ela é de grande
importância para o estudo neotestamentário.
Estudiosos como S chlatter e Strack e B illerbeck têm apontado
para muitos paralelos entre o pensamento joanino e o rabínico, como
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 57

veremos no comentário. Mais recentemente, D odd, Interpretation,


pp. 74-97, e D. D aube, The New Testament and Rabbinic Judaism (London
University, 1956), têm proposto interessantes aspectos de João em sua
participação da literatura rabínica. Conceitos como o de Messias ocul-
to (ver p. 53) e especulações sobre o papel criativo da Torá (que João
adaptou para "a Palavra" - ver Ap. II, p. 823) e sobre a natureza da
vida no mundo por vir são todos importantes para os desenvolvimen-
tos da compreensão joanina.
Miss G uilding tem afirmado que os discursos que Jesus pronun-
cia por ocasião das grandes festas estão estreitamente relacionados
com os temas das leituras assinaladas para serem feitas nas sinagogas
durante essas festas (ver p. 518ss). No capítulo 6, B orgen ressaltou
quão similar é o formato do Discurso de Jesus sobre o Pão da Vida ao
modelo homilético da Midráshim rabínica (ou interpretação livre de
passagens bíblicas). Outros têm encontrado no capítulo 6 paralelos à
Páscoa judaica, Haggadah, no serviço Seder. Essa forte influência judai-
ca sobre o Quarto Evangelho poderia mui plausivelmente ser explica-
da se teve suas origens na Palestina ou se seu autor estava familiari-
zado com o judaísmo palestinense. Isto explicaria também o acurado
conhecimento de detalhes palestinos mencionados na Parte III acima.

(3) João e qumran

Até a descoberta dos Rolos do Mar Morto, pouco se conhecia do


judaísmo sectário na Palestina. Os documentos rabínicos preservaram
o espírito e pensamento dos fariseus; mas os saduceus eram (e perma-
necem) escassamente conhecidos, e ainda menos conhecidos eram os
essênios que foram mencionados brevemente em J osefo, F ilo e P línio.
E a vida e pensamento do último grupo que nos têm sido desvendados
através dos manuscritos e descobertas arqueológicas em Qumran no
extremo noroeste do Mar Morto. O fato de que a comunidade essênia
em Qumran foi destruída em 68 d.C. significa que, com rara exceção,
seus documentos antedataram a literatura cristã e que, diferente do
caso da literatura mandeísta e da Hermética, não temos de reconstruir
uma teologia pré-cristã com base em documentos posteriores.
Visto que tanto a literatura de Qumran como a do NT são de-
pendentes do AT, os únicos paralelos de pensamento e vocabulário
que realmente podem ser significativos para determinar a influência
58 Introdução

são aqueles que também não se encontram no AT. Artigos sobre a


relação entre João e Qumran (B rown, F.-M., B raun, K uhn ) têm dis-
tinguido um dualismo modificado como um dos mais importantes
paralelos. Na literatura de Qumran há dois princípios criados por
Deus os quais estão numa luta ferrenha para dominar a humanidade
até o tempo da intervenção divina. São eles o príncipe das luzes (tam-
bém chamado o espírito da verdade e o espírito santo) e o anjo das
trevas (o espírito de perversão). No pensamento de João, Jesus veio
ao mundo como a luz que vence as trevas (1,4-5), e todos os homens
devem escolher entre luz e trevas (3,19-21). Jesus é a verdade (14,6), e
depois de sua morte a luta para vencer a força má é deflagrada pelo
Espírito da Verdade (ou o Espírito Santo: 14,17,26). Notar-se-á que
não só o dualismo, mas também sua terminologia é partilhada por
João e Qumran. Este dualismo não se encontra no AT, e K uhn pode
estar certo em sugerir que suas raízes últimas estão no zoroastrismo
(onde, entretanto, se encontra um dualismo absoluto dos princípios
opostos e incriados - uma possível exceção é a forma zervanista do
zoroastrismo em que os dois princípios são subordinados a uma dei-
dade suprema). Diversos dos apócrifos refletem também este dua-
lismo; por exemplo, os Testamentos dos Doze Patriarcas. Em geral, são
estas obras que de alguma maneira se relacionam com o grupo de
Qumran. O recente estudo de O. B ocher, Der johanneische Dualismus
im Zusammenhang des nachbiblischen Judentums (Gütersloh: Mohn,
1965) insiste que o dualismo joanino é mais próximo ao dualismo da
apocalíptica judaica e o pensamento sectário do que é para qualquer
outra nas fontes helenistas e gnósticas.
Outro ponto significativo partilhado por João e Qumran é o ideal
do amor entre irmãos dentro da comunidade. Enquanto algumas pas-
sagens nos evangelhos sinóticos enfatizam o dever do cristão de amar
todos os homens, a ênfase de João é sobre o amor para com os demais
cristãos (13,34; 15,12). O conceito de Qumran de amor como um man-
damento positivo é mais desenvolvido do que no AT, mas sempre a
ênfase é sobre o amor entre os membros da seita, até ao ponto de odiar
os demais. A relação entre a água e a doação do espírito, um simbo-
lismo querido a João (3,5; 7 ,3738‫)־‬, pode também estar sugerido na li-
teratura Qumran. Documentaremos estas observações no comentário.
Em nosso julgamento, os paralelos não são bastante estreitos para
sugerir uma dependência literária direta de João sobre a literatura
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 59

Qumran, porém sugerem familiaridade joanina com o tipo de pensa-


mento exibido nos rolos. (Devemos admitir a possibilidade de que este
pensamento e vocabulário não eram a propriedade exclusiva dos essê-
nios de Qumran). Ora, naturalmente, João é um documento cristão; e
a centralidade de Jesus no pensamento joanino o torna bem diferente
da teologia de Qumran, a qual é centrada na Lei. Por exemplo, en-
quanto para Qumran o príncipe das luzes e o espírito da verdade são
títulos para o mesmo ser celestial, para João a luz e o Espírito da Ver-
dade são dois agentes distintos da salvação. Esperamos tais diferenças
em qualquer comparação entre uma literatura cristã e não cristã, e é
uma inadimissível simplificação pensar que, por causa de tais diferen-
ças óbvias, não possa haver nenhuma relação entre João e Qumran.
Assim, T eeple, art. cit., atribui uma grande importância ao fato de que
há conceitos e termos teológicos que se encontram com frequência
na literatura Qumran, porém não em João, e vice-versa. Isso nada
significa, a menos que alguém esteja tentando mostrar que a literatura
de Qumran foi a única e direta fonte do pensamento de João. Real-
mente não é significativo que se assuma alguns dos mais importantes
paralelos do vocabulário entre João e os rolos de Qumran e encontre
uma única ou ocasional ocorrência de tal vocabulário em outro lugar
na literatura judaica. A real questão é se as outras ocorrências dão evi-
dência da ênfase que é partilhada por João e Qumran. Por exemplo,
no AT há muitas referências à luz como algo espiritualmente bom;
o SI 27,1 diz: "Yahweh é minha luz". (M. D ahood, The Anchor Bible,
vol. 16). Mas isso não é o mesmo que a oposição dualística entre luz e
trevas, que é um fator maior na teologia de Qumran e de João. Já disse-
mos que ambos, Qumran e João, têm raízes no AT; mas se estas duas
literaturas revalorizaram termos veterotestamentários relativamente
insignificantes, e os desenvolveram em grande parte da mesma ma-
neira, então temos paralelos significativos.
O que se pode dizer é que para alguns aspectos do pensamento e
vocabulário joaninos a literatura de Qumran oferece um paralelo mais
próximo do que qualquer outra literatura contemporânea ou não cris-
tã mais antiga, quer no judaísmo ou no mundo helênico. E, de fato,
para tais aspectos Qumran oferece um paralelo melhor do que mesmo
os mais recentes escritos mandeístas pós-joaninos ou herméticos.
Portanto, em suma, sugerimos que nos esquemas do pensamento
teológico joanino se deu a influência de uma combinação peculiar de
60 Introdução

vários modos de pensar que eram correntes na Palestina durante a


vida terrena do próprio Jesus, e depois de sua morte. Os pregadores
cristãos interpretaram Jesus, o Cristo, com o pano de fundo do AT, e a
pregação por detrás do Quarto Evangelho não era exceção. Entretanto,
o Quarto Evangelho tem feito isto não tanto através de citação explí-
cita, quanto para mostrar como os temas veterotestamentários foram
implicitamente entretecidos nas ações e palavras de Jesus. Em particular,
este evangelho foi muito mais longe do que os sinóticos ao interpre-
tar Jesus em termos da figura do AT da Sabedoria personificada. Al-
gum pano de fundo do pensamento de Jesus pode ser encontrado nas
pressuposições da teologia farisaica de seu tempo, como estas nos são
conhecidas dos escritos rabínicos posteriores. Não é acidental que Je-
sus é chamado de Rabi mais frequentemente em João do que em qual-
quer outro evangelho. Além do mais, em João o pensamento de Jesus
é expresso num peculiar vocabulário teológico que agora sabemos ter
sido usado por um importante grupo sectário judaico na Palestina.
Tudo isto significa que o quarto evangelista tomou a simples
mensagem de Jesus e a reinterpretou em termos da Literatura Sapien-
ciai veterotestamentária e do pensamento farisaico e sectário, talvez
porque o próprio evangelista fosse particularmente familiarizado com
tal pensamento? Ou tais elementos já estavam na própria perspectiva
e expressão de Jesus, e até certo ponto ficaram perdidos na tradição
sinótica de suas obras e palavras? Uma resposta matizada, em parte,
incluiria ambas as sugestões. De um lado, é tempo de liberar-se da
presunção de que o próprio pensamento e expressão de Jesus eram
sempre simples e sempre em um só estilo, e que tudo o que cheira a
sofisticação teológica viria dos evangelistas (implicitamente mais in-
teligentes). Do outro, devemos reconhecer no quarto evangelista um
homem de gênio teológico que depositou algo de si mesmo e de sua
própria perspectiva na composição do evangelho. Na literatura grega,
ninguém tem um problema similar nos diálogos de Platão em distin-
guir o que é de Sócrates e o que é de Platão, ainda quando o Sócrates
de Xenofonte fala diferentemente do Sócrates de Platão? Talvez uma
chave deste problema no evangelho seja a própria reivindicação dos
evangelhos de serem dependentes do testemunho de um discípulo
que era particularmente amado por Jesus (21,20 e 24; 19,35 - ver Parte
VII, p. 90ss). Se este é o caso, pode-se presumir certa congenialidade
de pensamento entre discípulo e mestre.
IV · Influências propostas sobre o pensamento religioso do quarto evangelho 61

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V
DESTINATÁRIOS E PROPÓSITO
DO QUARTO EVANGELHO

Os com entaristas sobre João têm sugerido muitos motivos que po-
deriam ter inspirado a composição do evangelho. Talvez houvesse
uma advertência contra exagerar a necessidade de encontrar obje-
tivos específicos no evangelho. Se João tem por base uma tradição
histórica e uma visão teológica genuínas, então uma das razões pri-
mordiais para escrever o evangelho poderia ter sido preservar esta
tradição e esta teologia. Mas, uma vez observada esta advertência,
surge a questão dos objetivos imediatos que poderíam ter guiado a
escolha do m aterial e a orientação que o autor lhe deu.
Muitos têm encontrado um motivo apologético ou missioná-
rio no Quarto Evangelho. Os grupos propostos a quem a argumen-
tação poderia ter sido dirigida inclui os adeptos de João Batista,
"os jud eu s", e vários grupos heréticos, gnósticos ou docéticos. Ou-
tros estudiosos ressaltam que João foi escrito para confirmar cris-
tãos em sua fé. S chnackenburg tem proposto sabiamente que um
erro insistente tem sido a tentativa de interpretar tudo no evan-
gelho em termos de um desses objetivos, e o fracasso de reconhe-
cer que as distintas redações do evangelho podem representar a
adaptação da mensagem central a uma nova necessidade. Assim, é
perfeitamente legítim o falar dos diversos objetivos do evangelho.
Distinguiremos quatro.
64 Introdução

A. APOLOGÉTICA CONTRA OS ADEPTOS DE JOÃO BATISTA

No final do último século, Baldensperger, insistindo que o Prólogo


era a chave para se entender João, ressaltou o desfavorável contraste
entre João Batista e Jesus no Prólogo. Ele sugeriu que um dos prin-
cipais propósitos do evangelho era refutar as reivindicações dos
adeptos de João Batista, os quais estavam exaltando seu mestre à
custa de Jesus. Que B aldensperger reconhecera um dos objetivos do
evangelho, isso foi aceito pela maioria dos comentários subsequen-
tes. Como já mencionamos, B ultmann até mesmo propôs que o evan-
gelista foi um dos adeptos gnósticos de João Batista e que o Prólogo
inicialmente era um hino de louvor de João Batista. Entretanto, mais
recentemente S chnackenburg, em "Johannsjünger", e outros têm rea-
gido contra exageros na ênfase dada a este motivo apologético. Note-
mos os seguintes pontos.
Nossa evidência acerca dos adeptos de João Batista é muito es-
cassa. Em At 18,5-19,7, Lucas fala de um grupo de cerca de doze
discípulos em Efeso (local tradicional para a composição do Quarto
Evangelho) que haviam sido batizados com o batismo de João e nada
conheciam do Espírito Santo. Geralmente se pensa que eram seguido-
res de João Batista que mantinham sua identidade e circulavam pelo
mundo grego. Mas a passagem poderia significar simplesmente que
eram discípulos primitivos de Jesus que haviam sido batizados com
água durante o ministério de Jesus (Jo 3,23) antes que o Espírito fosse
dado (7,39), pois tais discípulos não mostram nenhuma oposição para
aceitarem a plena iniciação cristã que lhes oferece Paulo.
Nossa outra fonte mais importante de informação é o Recogni-
tions da Pseudo-Clementina, uma obra do 3“ século extraída de fontes
mais antigas (provavelmente 2“ século). Na época em que Recognitions
foi composta, era conhecido do autor que os adeptos de João Batista
alegavam que seu mestre, e não Jesus, era o Messias (ver abaixo,
pp. 224-225). Assim, estes sectários teriam muito bem sobrevivido na
era cristã e se convertido em oponentes do Cristianismo. Não obstante,
não podemos estar absolutamente certos de que os sectários do l 2 sé-
culo já estivessem fazendo tais alegações acerca de João Batista. Aliás,
as formas siríacas e latinas do Recognitions diferem significativamente
quanto a leitura de ao menos uma das passagens em que João Batista
é chamado o Messias - uma diferença que pode indicar uma teologia
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 65

em desenvolvimento sobre este ponto que só encontrou gradualmente


seu caminho na literatura. De qualquer maneira, não temos muitos
dados para interpretar o pensamento dos adeptos na época em que
João foi escrito.
Não há prova de que os primeiros adeptos de João Batista fossem
gnósticos, e a Pseudo-Clementina não apresenta evidência disto. É ver-
dade que o gnosticismo aparece entre os mandeus, os quais bem que
poderíam ter descendido de um grupo dos sectários, mas tudo induz
a suspeitar de que o gnosticismo foi um elemento mais recente acres-
cido através de sincretismo mandeano, em vez de ser parte da he-
rança dos sectários. (Em geral, a literatura mandeísta mostra respeito
para com João Batista e menciona que ele batizou o revelador celestial,
Manda d'Hayye). Uma indicação mais sólida de um possível elemen-
to gnóstico na teologia dos adeptos de João Batista é a tradição patrís-
tica que traça as origens do gnosticismo em Samaria, onde João Batista
provavelmente foi ativo (ver nota sobre 3,23). Os pais fundadores do
gnosticismo, Simão Mago e Dositheus de Siquém, foram identificados
nos escritos patrísticos como seguidores de João Batista. Discutiremos
abaixo os possíveis aspectos antignósticos em João, porém permanece
duvidoso se estes devam ser também considerados como dirigidos
contra os seguidores de João Batista.
É razoável suspeitar que algumas das negações sobre João Batista,
no Quarto Evangelho, se destinavam como refutações das reivindi-
cações que os adeptos de João Batista fizeram em prol de seu mestre.
Aqui se pode fornecer um guia através das reivindicações feitas pelos
últimos adeptos de João Batista no Recognitions no 3Qséculo. Assim,
é possível encontrar os motivos apologéticos em 1,8-9, os quais afir-
mam que Jesus, não João Batista, era a luz; em 1,30, que afirmam que
Jesus existiu antes de João Batista e é maior que ele; em 1,20 e 3,28,
que ressaltam que João Batista não é o Messias; em 10,41, que diz que
João Batista nunca operou quaisquer milagres. E bem provável que
seja parte da apologética contra os adeptos de João Batista que João
não põe ênfase no ministério de João Batista como pregador e bati-
zador, tal como encontramos descrito em Mt 3,1-12. João apresenta
João Batista apenas como testemunha de Jesus. A adição do redator
final, em 4,2, refuta qualquer alegação de que Jesus fosse um batiza-
dor no mesmo nível que João Batista (alegação que pode achar apoio
em 3,22.26), e que a ideia pode também estar por detrás de ljo 5,6.
66 Introdução

Talvez a expressão mais eloquente em qualquer discussão dos corres-


pondentes méritos de João Batista e de Jesus se encontra em Jo 3,30,
em que João Batista fala de sua própria decrescente importância dian-
te de Jesus. (Ver mais B. W. Bacon, JBL 48 [1929], 40-81).
O comentário fará menção de outros possíveis exemplos desta
apologética. Não obstante, deve ficar claro que é impossível interpre-
tar todo o evangelho com o pano de fundo da teologia dos adeptos
de João Batista. Muitos estudiosos veem uma conexão entre João
Batista e Qumran: João Batista viveu na mesma época e na mesma
região da Judeia como os sectários de Qumran, e seu pensamento e
vocabulário têm muitas afinidades com Qumran. Sobre esta base,
tem-se sugerido que os seguidores de João Batista seriam solidários
com o pensamento de Qumran, e que, visto que o Quarto Evange-
lho lhes é dirigido, isso explica tantas afinidades com Qumran. Em
outras palavras, João retratou Jesus com vestes de Qumran a fim de
conquistar os adeptos de João Batista. Isto é possível, mas um tanto
simplista e resulta muito hipotético. No máximo consegue explicar
pequena parte do evangelho.
O Prólogo merece especial consideração, pois em passagens
como 1,6-9,15 há forte apologética contra qualquer exagero do papel
de João Batista. Não é sábio usar o Prólogo como chave para todo o
evangelho se, como cremos, uma vez que ele era um hino indepen-
dente que foi adaptado para servir como a introdução ao evangelho.
Além do mais, a atenção dada a João Batista no Prólogo em parte é
acidental. O comentário sugerirá que, quando o Prólogo foi anexado,
ele causou um deslocamento das primeiras linhas do evangelho que
naturalmente concernia a João Batista. A inserção destas linhas des-
locadas no coração do Prólogo foi guiada em parte pelo desejo práti-
co de não perdê-las e em parte por motivo apologético. (Isto nos leva
a suspeitar que a apologética contra os seguidores de João Batista
pertence a um dos últimos estratos da composição do evangelho).
A história literária das linhas acerca do Batista inseridas no Prólogo
impossibilita interpretar outras partes do Prólogo à luz desta apo-
logética. Por exemplo, justamente porque o Prólogo identifica Jesus
como a Palavra, não há razão para crer que os sectários pensassem
que João Batista fosse a Palavra.
Embora possa haver passagens dirigidas contra os exageros des-
tes sectários, o Quarto Evangelho dá um lugar de honra ao próprio
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 67

João Batista. É verdade que João não registra o dito encontrado em


Mt 11,11 e Lc 7,28, em que Jesus identifica João Batista como o maior
entre os nascidos de mulheres. Não obstante, para João, o papel de
João Batista era muito importante: foi enviado por Deus (1,6) a revelar
Jesus a Israel (1,31; 3,29); e foi um dentre as maiores testemunhas em
prol de Jesus, sendo colocado lado a lado com a Escritura e os mila-
gres (5,31-40). Se Jesus era a luz, João Batista "era a lâmpada que ardia
e alumiava" (5,35). Assim, a visão de João Batista no Quarto Evange-
lho não é menos elogiável do que a dos sinóticos.

B. CONTROVÉRSIA COM OS JUDEUS

Em um evangelho que contém tradição histórica, esperaríamos en-


contrar alguma memória da polêmica de Jesus com os fariseus. Visto
que Jesus se dirigiu primariamente ao povo de Israel e tentou levá-los
a crer que o reino de Deus estava presente em seu próprio ministé-
rio, naturalmente esperamos encontrar este elemento preservado nos
evangelhos na forma de apelo missionário a Israel ou em termos de
uma apologética a responder à rejeição judaica de Jesus. Há exemplos
disto em Mateus; mas, ao formar um contraste entre cristão e judeu,
João bem que poderia ser o mais enérgico entre os evangelhos.
Por exemplo, João insiste enfaticamente que Jesus é o Messias,
a mesma alegação que os judeus rejeitavam. João usa a forma grega
deste título (ch risto s) mais amiúde do que qualquer outro evange-
lho e é o único evangelho a usar a forma transliterada m essia s (1,41;
4,25). João identifica Jesus com figuras retratadas no AT e nas ex-
pectativas apocalípticas judaicas: o Servo de Deus (ver comentário
sobre 1,29.34); o cordeiro apocalíptico (1,29); o Rei de Israel (1,49); o
Santo de Deus (6,69). Um relance no Esboço do Primeiro Livro do
evangelho (p. 161) mostra a importância dada ao tema da substitui-
ção de Jesus das instituições judaicas como a purificação ritual, o
templo e o culto em Jerusalém (caps. 2-4) e das festas judaicas como
o Sábado, a Páscoa, os Tabernáculos e a Dedicação (caps. 5-10).
Ora, plausivelmente, por que alguns destes temas, da própria pers-
pectiva de Jesus sobre seu ministério, senão em razão desta ênfase
em João? Sugeriremos duas tendências na ênfase joanina sobre os
judeus e sua teologia.
68 In trod u ção

( 1) Justificação das reivindicações cristãs contra a incredulidade judaica

A impressão mais forte que se tem ao ler sobre o tratamento que o


Quarto Evangelho dá aos judeus, é de sua atitude polêmica. Aqui, há
um ataque contra a posição religiosa do judaísmo - Jesus é o Messias,
e em sua presença, e face a face com o que ele tem feito, o judaísmo
tem perdido sua preeminência. Além do mais, a atitude do evange-
lho é mais forte do que caberia esperar pela tentativa do cristianismo
de justificar seu próprio status; aqui, há um argumento contundente.
João recorre a um estilo rabínico de argumentar em passagens como
10,34-36, a fim de defender o direito de Jesus de ser chamado Filho
de Deus. O evangelho apela para princípios judaicos legais (5,31 ss.;
8,17) a fim de justificar o testemunho de Jesus em seu próprio favor.
O caráter mais amargo das polêmicas pode ser facilmente visto em
passagens como 8,44-47.54-55. Os discípulos de Moisés e os discípulos
de Jesus (9,28) estão implicados em uma luta.
A atitude polêmica do Quarto Evangelho para com o judaísmo
é vista no uso do termo "os judeus", o qual ocorre setenta vezes em
João como comparado com cinco ou seis ocorrências em cada evan-
gelho sinótico. G rässer, art. cit., tem questionado a evidência do uso
deste termo como um índice da atitude joanina, visto que o termo
tem várias nuanças de significado no evangelho - esta observação é
procedente. Por exemplo, quando Jesus está falando a um estrange!-
ro, como a samaritana em 4,22, ele usa os judeus como não mais que
meros religiosos, designação nacionalista (ver também 18,33.35). Em
passagens que falam das festas ou dos costumes dos judeus (2,6.13;
7,2), não pode haver nenhum uso pejorativo do termo. Além do
mais, há um estrato do material joanino, particularmente evidente
em 9-12, em que o termo, os judeus, simplesmente se reporta aos
judaizantes, e assim abrange tanto os inimigos de Jesus como aque-
les que criam nele. (Há evidência de que esta porção é uma inserção
recente no plano original do evangelho e, portanto, pode ter tido sua
própria história dentro da tradição joanina; ver também o comentá-
rio sobre 8,31). Deixando de lado estas exceções, algumas das quais
bem óbvias, outras delas são explicáveis em termos de crítica literá-
ria, o Quarto Evangelho usa "os judeus" quase como termo técnico
para as autoridades religiosas, particularmente as de Jerusalém que são
hostis para com Jesus.
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 69

Esta compreensão do termo pode ser evidenciada de três manei-


ras. Primeiro, fica bem claro que em muitos casos o termo "os judeus"
nada tem a ver com diferenciação étnica, geográfica ou religiosa.
Aqueles que são judeus étnica, religiosa e geograficamente (mesmo no
sentido estrito de pertencer à Judeia) são distinguidos de "os judeus".
Por exemplo, em 9,22, os parentes do cego, obviamente eles mesmos
judeus, lemos que temiam "os judeus", isto é, os fariseus que, no caso,
são investigadores. O ex-coxo, ele mesmo judeu, é descrito em 5,15
como a informar "os judeus" de que Jesus fora seu benfeitor. Segundo,
em algumas passagens, o evangelho fala intercambiavelmente de
"os judeus" e os principais sacerdotes e fariseus, enquanto em 18,12
são a guarda de "os judeus". Em 8,13, os que interrogam são cha-
mados fariseus, enquanto em 8,18ss., eles são "os judeus". Terceiro,
esta compreensão é endossada por uma comparação com os sinóti-
cos. Em Jo 18,28-31, "os judeus" conduzem Jesus perante Pilatos, en-
quanto em Mc 15,1, o sinédrio tem esta tarefa. Ver também Jo 2,18 e
Mc 11,27-28.
Ora, como este uso peculiar do termo pode ser explicado, pois
obviamente é anacrônico no ministério de Jesus? Amiúde tem-se
observado que em João muitas das classes e divisões de pessoas tão
proeminentes na cena sinótica viessem a desaparecer: por exemplo, os
saduceus, herodianos, zelotes, coletores, escribas, pecadores, justos,
pobres, ricos etc. Em certa extensão, isto se deve ao dualismo do evan-
gelho que nivela a distinção de classe: agora só há bom e mau, filhos
da luz e filhos das trevas, os verazes e os mentirosos. Mas, de outra
maneira, o desaparecimento destes grupos é a obra de simplificação
e a mudança de perspectiva histórica. Cremos que o evangelho foi es-
crito depois de 70 d.C., quando muitas das distinções e agrupamentos
religiosos dos dias de Jesus não mais tinham qualquer significado; a
destruição do templo tinha simplificado o judaísmo. Assim, somente
os principais sacerdotes e os fariseus permanecem em João - os princi-
pais sacerdotes, em razão de seu papel no sinédrio e nos julgamentos
de Jesus eram parte tão essencial da história a ser esquecida; os fari-
seus, porque são precisamente aquela seita judaica que sobreviveu à
calamidade de 70. O judaísmo da época, durante a qual o evangelho
foi escrito, era o judaísmo farisaico.
É esta situação em que o evangelho foi escrito que explica o uso
do termo "os judeus". A era das grandes incursões missionárias cristãs
70 Introdução

ao judaísmo já havia passado. Jesus fora pregado aos judeus respec-


tivamente na Palestina e na Diáspora, e a decisão pró ou contra Jesus
já havia sido tomada. Para a maioria, os judeus que aceitaram Jesus
eram agora simplesmente cristãos e parte da Igreja, de modo que,
quando os cristãos falavam "os judeus", sem qualificação, estavam se
referindo aos que haviam rejeitado Jesus e permanecido leais à sina-
goga. Descobrimos exatamente este uso do termo em Mt 28,15. Assim,
numa época em que havia sentimentos indispostos entre a Igreja e a
sinagoga, "os judeus" era um termo usado com conotação de hostili-
dade para com os cristãos. No Quarto Evangelho, pois, o evangelista
usa o termo com a implicação que ele teve em sua própria época. Para
ele, "os judeus" pertencem a "o mundo", isto é, são parte daquela
divisão de homens que estão em oposição dualística a Jesus e se recu-
sam a vir a ele como a luz. (João não é antissemita; o evangelista está
condenando não a raça nem as pessoas, e sim a oposição a Jesus).
Isto não significa que o evangelista tenha esquecido as verdadei-
ras circunstâncias do ministério de Jesus no uso anacrônico de "os
judeus". Com este termo, ele indica sua convicção de que os judeus
de sua própria época são os descendentes espirituais das autoridades
judaicas que foram hostis a Jesus durante seu ministério. Ele consi-
dera a atitude dessas autoridades como a atitude tipicamente judai-
ca como a conhece em seu próprio tempo. Diferente dos evangelhos
sinóticos, João não ataca os fariseus nem os judeus por hipocrisia ou
por seu comportamento moral ou social; todo o ataque sobre eles se
centra em sua recusa de crer em Jesus e seu desejo de matá-lo. Eis por
que a luta entre a Igreja e a sinagoga, no tempo do evangelista, não
tem por base os costumes, e sim a aceitação de Jesus como o Messias.
Mesmo a questão da observância da Lei que de tal modo envolveu as
energias de Paulo desapareceu em João. João não trata da Lei ou como
um problema para os cristãos ou como inimiga; ela é simplesmente
algo que já foi superado pelo grande ato do amor pactuai divino em
Jesus Cristo (1,17). A Lei é algo que diz respeito aos judeus, não aos
cristãos; e assim Jesus fala dela aos judeus como "vossa Lei" (8,17;
10,34; também 15,25 - note bem o uso similar de "vossas sinagogas"
em Mt 18,34).
Ainda outro aspecto da atitude joanina é visto na distinção entre
"os judeus" e "Israel". O último é um termo favorável que descreve
a real sucessão à herança veterotestamentária. João Batista veio para
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 71

que Jesus fosse revelado a Israel (1,31). Natanael, que prontamente


aceita Jesus, não é um judeu, e sim um genuíno israelita (1,47), um ho-
mem sem dolo que substitui o antigo Jacó-Israel em quem não havia
dolo. Mesmo a ênfase sobre Jesus como um rabi, no Quarto Evange-
lho, pode refletir polêmicas joaninas. O termo não é claramente um
anacronismo como anteriormente assumiu (ver nota sobre 1,38), mas
a ênfase joanina sobre o título pode ser com o intuito de contrastar Je-
sus com os grandes rabinos da assembléia judaica em Jâmnia, no últi-
mo quarto do I a século. O contraste entre os discípulos de Moisés e os
discípulos de Jesus em 9,28 é mais do mesmo tipo. Entretanto, deve-se
notar que João não reage às reivindicações judaicas sobre Moisés, sem
denegrir Moisés; pois, no pensamento joanino, se os judeus realmente
criam em Moisés, então deveríam crer em Jesus (5,46).

(2) Apelo aos judeu cristãos na sinagoga da diaspora

Se a polêmica contra a sinagoga é um importante fator motiva-


dor no Quarto Evangelho, devemos reconhecer que provavelmente
esta batalha não está sendo deflagrada na Palestina. O evangelho,
em sua presente forma, é escrito em grego e tem cuidado de expli-
car palavras hebraicas e aramaicas como Messias, Rabi, Siloé termos
oriundos da Palestina que raramente necessitam de explicação na
Palestina. Tampouco, uma informação como 4,9, requeira um audi-
tório palestino. Naturalmente, não é impossível que a primeira re-
dação de João fosse dirigida ao cenário palestino, e a(s) redação(s)
subsequente(s), adaptada(s) a um auditório que vive fora da Pales-
tina. Tampouco, uma vez que creiamos que o evangelho foi também
dirigido aos gentios, seja impossível que algumas dessas explicações
fossem incluídas para leitores gentílicos. (Isto parece ser verdadeiro
em 2,6 e 19,40, onde costumes judaicos de caráter geral são explica-
dos). Não obstante, a teoria mais plausível é que mesmo essas passa-
gens que contêm polêmica contra a sinagoga contemplam a situação
fora da Palestina. Em 7,35 há uma referência sarcástica feita pelas
multidões ao que os judeus farão: "Irá porventura para os dispersos
entre os gregos, e ensinará os gregos?" Este é um exemplo de ironia
joanina onde a verdade é proposta involuntariamente pelos adver-
sários de Jesus. O evangelho é prova de que, através de seus pregâ-
dores, Jesus se encaminha para a Diáspora.
72 Introdução

Ora, como temos enfatizado, a atitude de João para com "os ju-
deus" não é missionária, e sim apologética e polêmica. A violência
da linguagem no capítulo 8, comparando os judeus a raça do diabo,
raramente se destina a converter a sinagoga, a qual, no pensamento
joanino, é agora a "sinagoga de Satanás" (Ap 2,9; 3,9). Não é acidental
que algumas das discussões em João entre Jesus e os judeus anteci-
pam a clássica apologética que J ustino dirigiu a T rifo em meados do
2Ωséculo. Assim, juntamente com Schnackenburg, "Messiasfrage", rejei-
tamos, ao menos em parte, a tese de John A. T. R obinson e V an U nnik
de que o propósito principal e quase exclusivo de João era servir como
um manual missionário para converter os judeus da Diáspora. Se a
linguagem do argumento joanino contra os judeus serve como guia, o
propósito teria sido o de opor-se à propagando judaica, e não de per-
suadir os judeus com uma esperança de conversões em massa.
Todavia, podería ter havido um grupo de judeus ao qual o evan-
gelho foi dirigido com certa perspectiva promissora; a saber, o peque-
no grupo de judeus que criam em Jesus, mas que ainda não tinham
rompido sua relação com a sinagoga. Nos anos 80 e 90 do I a século,
estes cristãos judaicos ainda enfrentavam uma crise.
Nos primeiros anos após a morte de Jesus, seus discípulos se de-
pararam com oposição da parte dos líderes hierosolimitanos, justa-
mente como Jesus enfrentara oposição. Atos preserva memórias de
conflitos entre os líderes cristãos e o Sinédrio (4,1-3; 5,17-18). A deci-
são de Gamaliel em At 5,33-40 parece haver marcado uma encruzilha-
da para a comunidade cristã judaica de Jerusalém e haver iniciado um
período de relações mais pacíficas entre ela e o Sinédrio. É verdade
que At 8,1 se reporta a uma perseguição da Igreja em Jerusalém, mas
os que foram dispersos eram os cristãos helenistas que antagonizaram
as autoridades judaicas por sua oposição ao templo. Em anos subse-
quentes, houve casos isolados de violência, como a execução de Tiago,
filho de Zebedeu, e a prisão de Pedro, da parte de Herodes (At 12,2-3),
mas, diferentemente, a comunidade hierosolimitana parece ter vivido
em paz com as autoridades judaicas. Não há indício de perseguição
em 49 d.C., quando o concilio de Jerusalém foi convocado. Tiago foi
muito cuidadoso em juntar a observância de alguns pontos básicos
do ritual mosaico a todos os cristãos, inclusive gentios, no território
da Palestina e Síria (At 15,22ss.), provavelmente com a intenção de
evitar atrito com o judaísmo. Em 58, quando Paulo veio a Jerusalém
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 73

(At 21,188s.), era ainda costumeiro aos cristãos judaicos oferecer sacri-
fício no templo. A subsequente execução de Tiago nos anos 60, sob a
ordem do sumo sacerdote, marcou a abertura de um novo período de
hostilidade.
Não obstante, como C arrol, art. cit., tem ressaltado, foi somente
o judaísmo encurralado dos dias depois da destruição do templo que
pensavam ser absolutamente necessário eliminar os judeus que criam
em Jesus. O perigo de extinção geralmente força uma religião a tornar-
se mais rigidamente ortodoxa a fim de sobreviver, e o judaísmo não
era exceção. Com o templo e o sacrifício extintos, a devoção à Lei era
o fato principal que mantinha o judaísmo unido. A atitude de Paulo
para com a Lei e, deveras, a própria liberdade do comportamento de
Jesus teriam sido bem notórias; e, portanto, na situação perigosa que
o judaísmo enfrentou depois de 70, os judeus que criam em Jesus fo-
ram considerados como um fator possivelmente subversivo a respeito
da importantíssima questão da Lei. Ao longo dos anos 80 houve uma
tentativa organizada de forçar os judeus cristãos a abandonar as sina-
gogas. Vemos um eco disto no Shemoneh Esreh ou Eighteen Benedictions
recitado pelos judeus como a principal oração nas sinagogas. A refor-
mulação dessas bênçãos ocorreu depois de 70; e a décima segunda
bênção, mais ou menos em 85, era uma maldição sobre os minim ou he-
reges, primariamente judeus cristãos. (Ver W. D. D avies, The Setting of
the Sermon on the Mount JO Cenário do Sermão do Monte] [Cambridge:
1964], pp. 275-76). Visto que esta maldição tinha de ser recitada pelos
judeus nas sinagogas, um judeu que cria em Jesus seria forçado a amai-
diçoar a si mesmo ou ainda admitir publicamente sua crença, recusan-
do-se a recitar a maldição. Em torno de 90, enquanto o Rabi Gamaliel
II era presidente da assembléia de Jâmnia, a excomunhão formal veio a
ser de uso mais frequente como uma arma contra os dissidentes.
Já explicamos esta sequência de eventos com detalhes por causa
de sua importância para a datação do Quarto Evangelho (ver Parte
VI, p. 80ss). Há indicações mais claras de que o Quarto Evangelho
faz um apelo a estes judeus que criam em Jesus e que estavam dividi-
dos entre sua fé e um desejo natural de não desertarem do judaísmo.
O ataque geralmente hostil contra "os judeus" não se aplicaria a eles,
pois foram precisamente os judeus hostis a Jesus que estavam causan-
do problema aos judeus com tendências cristãs. A forte ênfase sobre
Jesus como o Messias (especialmente 20,31) se destinaria a fortalecer
74 Introdução

sua fé nesta confissão crucial que tinha se tornado duro teste da contí-
nua admissão às sinagogas. O tema da substituição que Jesus fez das
instituições e festas judaicas seria para eles um estímulo, pois teriam
de deixar tais práticas para trás se fossem afastados das sinagogas.
Mais especificamente: em três ocasiões (9,22; 12,42; 16,2), João men-
ciona excomunhão da sinagoga. Duas vezes João se refere àqueles que
criam em Jesus porém não tinham coragem de confessar sua fé. Em
12,4243‫־‬, esta referência é combinada com amargo sarcasmo; em 19,38,
José de Arimateia é apresentado como exemplo de alguém que vencera
este temor e publicamente reconhecido como seguidor de Jesus. O tema
da excomunhão é mais forte no capítulo 9; e nesta narrativa, como A llen,
art. cit., tem mostrado, o protagonista é um homem que veio a crer em
Jesus mesmo à custa de sua expulsão da sinagoga. João está convidando
os judeus cristãos nas sinagogas da Diáspora a seguirem seu exemplo.

C. CONTROVÉRSIA CONTRA HEREGES CRISTÃOS

Uma tradição que retrocede ao 2“ século e Irineu (Contra Heresia, 3,


11:1; SC 34:179-80) diz que o evangelho de João foi escrito contra C e-
rinto, um herege da Ásia Menor com tendências gnósticas. Não sabe-
mos muito do pensamento de C erinto, mas Irineu (IBID., 1, 26:1; PL
7:686) diz que C erinto considerava Jesus como sendo o filho de José,
enquanto Cristo era um aeon celestial que desceu sobre Jesus por certo
tempo na época de seu batismo e o abandonou antes de sua morte.
Se esta é uma descrição correta da doutrina de C erinto, há pouco no
evangelho que se destina a refutar tal teoria. A refutação real deste tipo
de pensamento vem de 1 João com sua forte insistência de que Jesus é
o Cristo que veio em carne e que Jesus não pode ser separado (4,2-3).
Talvez toda a informação que Irineu nos passa é que na literatura joa-
nina havia um ataque contra C erinto. Pode ser que C erinto também
mantivesse que o mundo foi criado por um demiurgo, e não por Deus.
Neste caso, Jo 1,3 seria significativo, pois ele insiste que toda a criação
foi efetuada pela Palavra de Deus. Mas dificilmente isto se constitui
uma ênfase no evangelho.
J erônimo {In Matt. Prolog.; PL 26:19) menciona que o evangelho
de João foi dirigido a E bion ao mesmo tempo que a C erinto. Prova-
velmente E bion não fosse uma pessoa real, mas um herói epônimo
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 75

dos ebionitas, um grupo judaico cristão. Irineu faz a primeira menção


de E bion na mesma página onde menciona C erinto (Contra Heresia, 1,
26:2; PL 7:686 - talvez esta seja a razão por que J erônimo pressupõe
que o evangelho foi também dirigido a E bion). O pensamento de que
0 Quarto Evangelho foi escrito para refutar cristãos como os ebionitas,
que não conseguiram abandonar suas práticas judaicas, é algo pare-
cido com a proposta feita acima de que ele foi escrito em parte com
um discurso dirigido aos judeus cristãos nas sinagogas. Os ebionitas
tinham traços deste pensamento teológico, por exemplo, dualismo, o
que também foi encontrado em Qumran (ver J. F itzmyer, TS 16 [1955],
335-72). Assim, o que dissemos acima sobre os possíveis aspectos de
Qumran na teologia dos adeptos de João Batista também pode apli-
car-se aqui. O quarto evangelista podería ter escolhido linguagem
como a de Qumran para apelar a grupos que partilhavam linguagem
e pensamento similares. Em suma, enquanto não negamos que certas
características que aparecem na teologia ebionita mais recente corres-
pondam às características em João, o fato é que o evangelho pode ser
proveitosamente lido por aqueles com incipientes tendências ebioni-
tas, ainda quando não creiam que haja suficiente evidência de que o
evangelho foi dirigido aos ebionitas especificamente. Pode-se mencio-
nar que V itorino de Pettau, em torno de 300 d.C., junta o V alentino
gnóstico a E bion e C erinto como outro objetivo contra quem o evange-
lho supostamente foi dirigido {In Apoc. 11.1; CSEL 49:97).
Também se tem sugerido que o Quarto Evangelho foi dirigido
contra o docetismo. O docetismo não era por si só tão herético quanto
uma postura que se achava um certo número de heresias. Sua afir-
mação central era que Jesus Cristo realmente não veio em carne, pois
sua carne era apenas uma aparência - apenas se parecia com homem.
Algumas das observações de Inácio de Antioquia, em torno de 110
d.C., parecem ser dirigidas contra tal erro, e assim este pensamento
herético bem que podería estar em circulação quando João foi escrito.
A teoria de W ilkens acerca das várias redações do evangelho (ver Par-
te II acima) vê uma crescente polêmica contra o docetismo nas últimas
redações do evangelho. Por certo que há em João passagens que têm
uma tendência anti-docética. "A Palavra se fez carne" (1,14) vem ime-
diatamente à mente. A cena em 19,34 deveria ser um golpe mortal a
causa docetista, pois o realismo do sangue e água vertendo do lado fe-
rido de Jesus milita contra qualquer teoria de que fosse um fantasma.
76 Introdução

Que esta é uma cena importante em João é sublinhado pelo parêntese


redacional no versículo seguinte (35), o que reivindica verificação de
testemunha ocular. Não obstante, há muitos motivos teológicos em
19,34, por exemplo, sacramentalismo, o cumprimento de 7,38-39; e
não é possível estar certo qual motivo estava sendo sublinhado pelo
redator. Os docetistas parecem ter negligenciado a Eucaristia e ter ne-
gado que ela era a carne de Jesus (Inácio, Smymaeans v 1). Portanto, o
realismo eucarístico de Jo 6,51-58 pode também ter sido anti-docético
em tendência. A dificuldade é que todas estas passagens são perfeita-
mente compreensíveis mesmo sem a interpretação anti-docética. Um
julgamento equilibrado seria que um motivo anti-docético é possível
e mesmo provável no evangelho, mas não tem grande proeminência.
Se ele existe, sua melhor atestação se encontra em passagens que per-
tencem ao último estágio da redação joanina. Por contraste, a Primeira
Epístola oferece mais versículos passíveis de interpretação anti-docé-
tica do que o evangelho que é mais extenso.
Nem uma das sugestões de que João foi escrito contra cristãos he-
reges primitivos é destituída de dificuldade. O evangelho não parece
endossar a tese de que este motivo era particularmente forte na mente
do evangelista.

D. ENCORAJAMENTO AOS CRISTÃOS, GENTIOS E JUDEUS

J ohn A. T. R obinson e V an U nnik mantêm que João mostra pouco in-


teresse nos gentios. Ressalta-se que 20,31 especifica o propósito do
evangelho nestas palavras: "... para que [continueis] tendo fé de que
Jesus é o Messias", e que, para os gentios, o Messias ou Christos não
era um título religioso significativo. Primeiro, entretanto, há a ques-
tão se este versículo se refere aos que viriam a crer ou aos que já são
crentes. Segundo, não devemos esquecer que os pregadores cris-
tãos levavam para os gentios muita terminologia religiosa judaica.
Os gentios que se tornavam interessados na mensagem sobre Jesus
logo teriam que aprender certo pano de fundo veterotestamentário
(um bom exemplo é o argumento de Paulo extraído do AT e dirigi-
do aos gentios conversos na Galácia) e ter que aprender o que Mes-
sias significava. Assim, não há contradição em dirigir um evangelho
aos gentios a fim de persuadi-los de que Jesus é o Messias. Terceiro,
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 77

a to ta lid a d e d e Jo 20,31 d ev e receb er atenção; o texto d iz q u e o evange-


lho foi e scrito "... p a ra q u e [continueis a] ter fé d e q u e Jesus é o M essias,
0 filho de Deus". C o m o Schnackenburg, ''Messiasfrage", en fa tiz a , n ã o h á
d ú v id a d e q u e o s e g u n d o títu lo a p e la ria a u m co n tex to relig io so de
u m g e n tio o n d e os d e u s e s tin h a m filhos.
Se n o Q u a rto E v a n g e lh o n a d a h á q u e exclua ate n ç ã o aos gentios,
há d o la d o p o s itiv o claras a firm a ç õ es d e u n iv ersa lism o . Jesus v e m ao
m u n d o c o m o lu z p a ra todo homem (1,9). Jesus tira os p e c a d o s d o mundo
(1,29); ele v e m p a ra sa lv a r o mundo (3,17). Q u a n d o ele for le v a n ta d o
na c ru z e n a re s s u rre iç ã o , a tra irá a si todos os homens (12,32). A lém
d essas a firm açõ es, q u e im p lic a m in clu sã o d o s g en tio s, h á referên cias
específicas. C o m iro n ia in co n scien te, os ju d e u s e m 7,35 p re d iz e m in-
c re d u la m e n te q u e Jesu s iria à D iá sp o ra e n s in a r aos g reg o s. O m in isté-
rio p ú b lic o a tin g e u m clím ax final e m 12,20-21, q u a n d o os g reg o s o u
gentios q u e re m v e r a Jesu s - u m sin a l d e q u e to d o s os h o m e n s com e-
çaram a ir a Jesu s e q u e, p o rta n to , a g o ra é o te m p o (ou "a h o ra " ) de
seu re to rn o ao P ai n a crucificação, re ssu rre iç ã o e ascen são . (R obinson,
TNTS, p. 1127, p e n sa q u e " g re g o s" e m 7,35 significa os ju d e u s d e fala
grega, p o ré m p e n s a m o s q u e o p a p e l d e 12,20, n o p la n o d o ev an g elh o ,
não p o d e se r e x p lic a d o a m en o s q u e "g re g o s" sig n ifiq u e gentios). Em
10,16, Jesu s frisa q u e te m o u tra s o v e lh a s q u e n ã o p e rte n c e m a este
aprisco, m a s q u e d e v e m se r b u s c a d a s e feitas p a rte d e u m só re b a n h o
sob u m só p a s to r. Q u e isto se refe re à c o n v e rsã o d o s g en tio s, recebe
0 e n d o sso d e 11,52; ali so m o s in fo rm a d o s q u e Jesus m o rre u n ão só
pela n ação ju d a ic a , m a s ta m b é m p a ra re u n ir os filhos d isp e rso s de
D eus e fazê-lo s u m só. E m 4,35, Jesu s v ê o c a m p o d a m issã o sam ari-
tana já m a d u ro p a ra a ceifa; e c o n q u a n to os s a m a rita n o s n ã o fossem
p rec isam e n te g e n tio s, estã o fo ra d a c o rre n te p rin c ip a l d o ju d aísm o .
Estes m esm o s s a m a rita n o s s a ú d a m Jesus e m 4,42 co m o "o S a lv ad o r
do mundo”. F in a lm en te , n ã o é im p o ssív e l q u e a h o m e n a g e m feita a
Jesus co m d e s d é m , p e lo s ro m a n o s e m 19,1-3,19-22, te n h a im plícita
ironia jo a n in a a p re d iz e r q u e u m d ia estes g e n tio s re a lm e n te aceitarão
a Jesus co m o rei. A ssim , p a re c e b e m claro q u e os g e n tio s ex ercem u m
p a p e l n a p e rs p e c tiv a d o Q u a rto E v an g elh o .
N ã o o b s ta n te , ta lv e z seria m e lh o r a firm a r q u e m u ito d o ev an g e-
lho é d irig id o ao c ristã o c ren te se m d istin çã o d e se su a a scen d ên cia é
ju d aica o u g en tílica. E ste é u m e v a n g e lh o d e sig n a d o a ra d ic a r o c ren te
m ais fu n d o e m su a fé. E b e m p ro v á v e l q u e o e x p re sso p ro p ó sito d o
78 Introdução

e v a n g elh o em 20,31 n ã o seja p rim a ria m e n te m issio n á rio , e p o d e -se


a p re s e n ta r b o n s a rg u m e n to s p a ra se c o m p re e n d e r este v e rsíc u lo no
se n tid o d e o leito r continuar te n d o fé d e q u e Jesus é o M essias, o Fi-
lh o d e D eus. O e v a n g e lh o q u e r to rn a r esta fé e m a lg o v iv o , e a ssim o
n o m e d e Jesu s g e re v id a n o leitor. C e rta m e n te , o c re n te e stá e m foco
p o r to d o s os c a p ítu lo s 13-17 (cap ítu lo s q u e V an U nnik, p . 410, en co n -
tra d ific u ld a d e p a ra su a tese d e q u e o e v a n g e lh o é p rim a ria m e n te
u m a o b ra m issio n á ria d irig id a ao s ju d e u s). U m n o v o p o v o tem -se
m an ifestad o , u m p o v o v in d o , re sp e c tiv a m e n te , d o a p risc o ju d a ic o e
d e fo ra (10,16), u m p o v o cujas o rig e n s te rre n a s são d e p o u c a im p o r-
tân cia, v isto q u e são g e ra d o s d e cim a (3,3). É v e rd a d e q u e , à m o d a d e
ap o lo g ética c o n tra os ju d e u s, o e v a n g e lista frisa q u e Jesu s v e io p a ra
os seu s, e os se u s n ã o o rec e b e ra m (1,11). M as o e v a n g e lista fala m u ito
m ais à q u e le s q u e o a ceitam e, assim , se to rn a m filh o s d e D eu s, g e ra d o s
n ã o d a v o n ta d e h u m a n a , e sim d e D e u s (1,12-13).
N a P a rte VIII, p . 114ss, d isc u tire m o s a lg u m a s d a s ê n fa se s teoló-
g icas d e c isiv a s q u e su b ja z e m ao e v a n g e lh o , a q u i, p o ré m , d e v e m o s
a n te c ip a r, re s s a lta n d o q u e to d a s essa s ê n fa se s sã o d irig id a s a crises
d e n tro d a Igreja c re n te, m ais q u e à c o n v e rsã o d o s n ã o -c re n te s. Se o
e v a n g e lh o e n fa tiz a a e sca to lo g ia re a liz a d a , isso d e v e a fa s ta r o c re n te
d e q u a lq u e r ên fa se e x a g e ra d a so b re as g ló ria s a n te c ip a d a s d o fu tu ro
a d v e n to d e Jesu s. O e v a n g e lh o deseja q u e o c re n te c o m p re e n d a q u e
já p o s s u i a v id a e te rn a , q u e ele já é filh o d e D e u s e já sa tisfe z se u
ju iz. Se o e v a n g e lh o te m u m fo rte m a tiz sa c ra m e n ta l, se u p ro p ó s ito
é e n ra iz a r o b a tism o e a e u c a ristia n o q u e Je su s d isse e fez, p a ra q u e
o c re n te n ã o p e rc a o se n so d e c o n ta to co m o Je su s te rre n o e, assim ,
o C ristia n ism o se d e g e n e re e m u m a relig iã o d e m isté rio . Se o e v a n -
g elista c o n d u z à fig u ra d o P a rác lito (v er A p ê n d ic e V, vol. 2, p. 1641),
seu p ro p ó s ito é re a s s e g u ra r ao c re n te q u e , co m o p a s s a r d a g e ra ç ã o
a p o stó lic a , a m e m ó ria d e Je su s n ã o d e v e se r e x tin ta , p o is o E sp írito
d e Jesu s p e rm a n e c e n o cristão , m a n te n d o v iv a a q u e la m e m ó ria . P or-
tan to , o p ro p ó s ito p rim o rd ia l d o e v a n g e lh o é fa z e r o c re n te v e r exis-
te n c ia lm e n te o q u e e ste Jesu s e m q u e m ele crê sig n ifica e m te rm o s
d e v id a . B ultmann n ã o fez d o s e s tu d o s jo a n in o s u m d e sse rv iç o em
in d ic a r a lg u m a s d a s q u a lid a d e s ex iste n cia is d o Q u a rto E v a n g e lh o .
N o e n ta n to , m u ito m a is q u e B ultmann, c re m o s q u e o e v a n g e lista fu n -
d a m e n to u este alv o e x isten cial n u m a d e scriçã o d e Je su s q u e e ra n ão
só h istó rico , m a s ta m b é m d e v a lo r h istó rico .
V · Destinatários e propósito do quarto evangelho 79

BIBLIOGRAFIA

ALLEN, E. L., "The Jewish Christian Church in the Fourth Gospel", JBL 74
(1955), 88-92.
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(1964-65), 398-408.
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Synagogues", BJRL 40 (1957-58), 19-32.
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SCHNACKENBURG, R., "Das vierte Evangelium und die Johannesjünger",
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VAN UNNIK, W. C., "The Purpose of St. John's Gospel", StEv, I, pp. 382-411.
VI
DATA DA REDAÇÃO FINAL
DO EVANGELHO

A g o ra é a v e z d e a b o rd a r a q u e s tã o d a d a ta a se r a tr ib u íd a à forma
escrita final d o e v a n g e lh o . D ev e re ssa lta r-se q u e n ã o e s ta m o s in d a -
g a n d o q u a n d o a tra d iç ã o h istó ric a p o r d e trá s d o Q u a rto E v a n g e lh o
to m o u fo rm a , o u q u a n d o o e v a n g e lh o foi p rim e iro e scrito e re d a ta -
d o - e m o u tra s p a la v ra s , p rim a ria m e n te , a q u i n ã o e sta m o s p re o c u -
p a d o s e m d a ta r o s E stág io s 1-4 e m n o ssa te o ria d a c o m p o siç ã o d o
e v a n g elh o , p o is, a lé m d o m ais, e ste s e stá g io s são h ip o té tic o s. A q u i,
a q u e s tã o d iz re s p e ito à d a ta s o m e n te d o e stá g io d o e v a n g e lh o q u e
n ã o é c la ra m e n te h ip o té tic o , a sa b er, a fo rm a fin a l q u e c h e g o u a n ó s,
in clu siv e o c a p ítu lo 21.

A. A ÚLTIMA DATA PLAUSÍVEL

A m arg e m p a ra d a ta r João tem sid o g ra n d e m e n te re d u z id a n o s ú lti-


m o s trin ta anos. H oje, a m aio ria d o s e stu d io so s c o n sid e ra u m a g ran -
d e im p o ssib ilid a d e as d a ta s a n te rio rm e n te su g e rid a s p o r H . D elafosse
(170 d.C .) e A. L oisy (150-160 - s u a o p in iã o e m 1936). Barrett, p . 108,
estab elece 140 d.C . co m o a ú ltim a d a ta p o ssív e l p a ra a p u b lic a ç ã o d o
e v a n g elh o , m a s m esm o isto é m u ito excessivo. (N o te, e n tre ta n to , q u e
Barrett está fa la n d o d e p u b lic a çã o , n ã o d e c o m p o sição ). A o p in iã o
g eral fixa 100-110 co m o a ú ltim a d a ta p la u sív e l p a ra a c o m p o siç ão
escrita d e João. D isc u ta m o s a lg u n s d o s fato re s q u e tê m a ju d a d o a
d e te rm in a r este terminus ante quem.
VI · Data da redação final do evangelho 81

O a rg u m e n to clássico u s a d o e m a p o io d e u m a d a ta m u ito re-


ce n te p a ra Jo ão foi o d e s e n v o lv im e n to d a teologia. F. C. B aur coloca
os sin ó tico s, P a u lo e João n o e s q u e m a d e tese, a n títe se e sín tese hege-
lian as, c o m João re p re s e n ta n d o u m p e río d o q u e te m id o m u ito além
d a teo lo g ia p a u lin a . E m b o ra Baur a in d a te n h a se u s a d m ira d o re s, p o r
e x em p lo , M ary A ndrews, a te o ria d o d e se n v o lv im e n to lin e a r d a teo-
logia n e o te s ta m e n tá ria te m sid o re fu ta d a com êxito. Se n o s lem b rar-
m o s d e q u e os e scrito s d e P a u lo a n te d a ta ra m os e v a n g e lh o s sinóticos,
u m a c risto lo g ia d e s e n v o lv id a se to rn a u m c ro n ô m e tro m u ito p recá-
rio, co m o tem re s s a lta d o G oodenough. O p o n to d e v ista d e q u e o sa-
c ra m e n ta lism o jo an in o , p o r e x e m p lo , 6,51-58, é d e se n v o lv id o d e m a is
p a ra te r s id o f o rm u la d o n o I a sécu lo reflete a lg u m a s id éia s a n tiq u a d a s
so b re as o rig e n s d o p e n s a m e n to sa c ra m e n ta l n a Igreja. B asicam ente,
tem o s o u tro e x e m p lo d o a rg u m e n to d o d e se n v o lv im e n to d a teologia
na a le g a ç ão d e q u e o Q u a rto E v a n g e lh o seria p o ste rio r, p o rq u e ele
p ro v é m d o m e s m o a u to r q u e as E p ísto las Jo a n in a s, e e sta s são p o ste-
rio res, p o rq u e reflete m a o rg a n iz a ç ã o ta rd ia d a Igreja. N ã o o b sta n te , a
a u to ria c o m u m d o e v a n g e lh o e d a s E p ísto las é alg o q u e d e v e se r exa-
m in a d o , e n ã o a ssu m id o ; e ta m b é m os p a ra le lo s d a o rg a n iz a ç ã o e n tre
a c o m u n id a d e d o s e scrito s d o M a r M o rto e o p e rfil lu ca n o d a Igreja
em A to s tê m c a u sa d o sério re p e n s a r acerca d o su p o s to c a rá te r ta rd io
d a o rg a n iz a ç ã o d a Igreja. A ssim , p o d e -se d iz e r q u e, e n q u a n to a m aio-
ria d o s e s tu d io s o s a in d a p e n s a e m João co m o o ú ltim o d o s q u a tro
e v a n g elh o s, é m u ito difícil fixar a d a ta d o e v a n g e lh o co m b a se n u m a
teo ria d o d e s e n v o lv im e n to teológico. N a d a ex iste n a teo lo g ia d e João
q u e ex clu a c la ra m e n te d o I a sécu lo a re d a ç ã o final.
O u tro a rg u m e n to u sa d o p a ra d e m o n stra r a necessidade d e datar-se
João n o fim d o 2a sé cu lo foi a aleg ação d e q u e n ão h á e v id ê n c ia d o u so
d e João p o r escrito res a n te s d o 2a século. E su fic ie n te m e n te claro q u e
n a ú ltim a p a rte d o 2a sécu lo , d e p o is d e 170, o Q u a rto E v a n g e lh o era
c o n h e cid o d e T aciano, M elito d e S ard es, T eófilo d e A n tio q u ia , I rineu,
e n tre o u tro s . T o d a v ia , u m d e tid o ex a m e d o s p rim e iro s escrito res nes-
te sécu lo le v o u Sanders, s e g u id o d e B arrett, a m a n te r q u e n ã o h á p ro -
v a s a tisfa tó ria p a ra o u so d o e v a n g e lh o a n te s d e 150. E sta ev id ên cia
tem sid o re -e x a m in a d a e x a u stiv a m e n te p o r B raun, JeanThéol, 1, q u e
e n c o n tra a m p la ra z ã o p a ra a firm a r q u e João foi aceito n o s círculos
o rto d o x o s n o E gito, R om a, Síria e Á sia M e n o r, a in d a d e sd e os pri-
m eiro s a n o s d o 2a século. P o r e x em p lo , Braun, a rg u m e n ta n d o c o n tra
82 Introdução

Sanders e B arrett, te m p o r c erto q u e I nácio d e A n tio q u ia , e m to rn o


d e 110, e ra d e p e n d e n te d e João, a in d a q u a n d o n ã o cite o e v a n g e lh o
ad litteram. O tra ta m e n to co m to d a a m p litu d e feito p o r M aurer, d o
p ro b le m a , ch eg a à m e sm a co n clu são . À lu z d e u m c u id a d o s o e s tu d o
d e u m a p a s sa g e m e m J ustino M ártir, e m to rn o d e 150, R omanides, art.
cit., m a n té m q u e este a p o lo g ista co n h ecia o Q u a rto E v a n g e lh o ; e esta
é ta m b é m a co n clu são d e B raun. T arelli e B oismard a c re d ita m q u e
C lemente d e R o m a, 96 d .C ., fez u s o d o Q u a rto E v a n g e lh o , m a s isso
é m u ito d ifícil d e estab elecer. N e ste caso, a e v id ê n c ia q u a n d o m u ito
p a re c e m o s tra r q u e C lemente tin h a c o n h e cim e n to d o p e n s a m e n to e
v o c a b u lá rio teo ló g icos sim ila re s ao s e n c o n tra d o s e m João.
A ssim , so b re a q u e stã o d o a n tig o u s o p a trístic o d e Jo ão a in d a res-
ta m u ita d ife ren ç a d e o p in iã o e n tre os e stu d io so s c o m p e te n te s. P es-
so a lm e n te , a c h am o s a tra e n te o e s tu d o d e B raun, p o is se u s c ritério s
so b re o u s o d e João, p o r v á rio s escrito res, são c rite rio sa m e n te q u alifi-
cados. U m a av a liaç ã o o b jetiv a p a re c e ría in d ic a r q u e o a rg u m e n to d a
d a ta ta rd ia d e João, e m ra z ã o d e o e v a n g e lh o n ã o te r sid o u s a d o n o
início d e 2a sécu lo , já p e rd e u to d a a força p ro b a tó ria q u e p o r v e n tu r a
te n h a tid o . E m c o n tra p a rtid a , p e rm a n e c e m o s in c e rto s so b re q u a lq u e r
a rg u m e n to c o n clu siv o d e u m a d a ta p rec isa d o e v a n g e lh o e x tra íd a d o
s u p o s to u so d e le p o r C lemente ou p o r Inácio. A in d a q u e Inácio co n h e -
cesse a tra d iç ã o jo a n in a , co m o p o d e m o s e sta r certo s d e q u e e stá g io d e
co m p o sição d o e v a n g e lh o p ro v é m se u co n h e cim e n to ? N ã o h á p ro v a
p o ssív e l d e q u e Inácio co n h ecesse a fo rm a fin al d o e v a n g e lh o , co m o
ela c h e g o u a nós.
A in d a o u tro a rg u m e n to p a ra a d a ta ta rd ia d e João te m sid o a evi-
d e n te afeição p o r este e v a n g elh o e n tre os círculos gn ó stico s d o 2a século.
V on L oewenich (1932) fo rm u la a tese d e q u e João circu lo u p rim e ira -
m en te n o s a m b ie n te s gnósticos h ete ro d o x o s a n te s q u e fosse a m p la -
m en te a d m itid o n a Igreja; e S anders e Barrett p o s tu la m q u e os g n ó sti-
cos são os p rim e iro s a m o stra r traço s d e fin id o s d o u so d e João. A força
d e ste a rg u m e n to p a ra a d a ta ç ã o d o e v a n g e lh o d e p e n d e , e m a lg u m a
ex ten são , d a d a ta q u e se a trib u i p a ra a e m e rg ên c ia d o g n o sticism o .
Se o g n o sticism o é u m fen ô m e n o d o 2a século, e João te m su a o rig e m
n o s círcu lo s gnó sticos, e n tã o é lógico d a ta r João n o 2a século. M as, se
à m a n e ira d e B ultmann, se p o s tu le u m g n o sticism o p ré-c ristã o , e n tã o
o u so g n ó stico d e João n ã o é d e c isiv am e n te sig n ificativ o p a ra d a ta r o
ev an g elh o . Já d isc u tim o s a ú ltim a h ip ó te se n a P a rte IV:A.
VI · Data da redação final do evangelho 83

O e s tu d o d e B raun d o 2a sécu lo tin h a e m m e n te o p ro b le m a d o


u so g n ó stic o d o e v a n g e lh o , e ele c h e g o u à c o n clu são d e q u e o u so
o rto d o x o d o e v a n g e lh o era, re sp e c tiv a m e n te , m ais a n tig o e m ais fiel
ao e v a n g e lh o d o q u e o u s o g nóstico. A m e d id a q u e p ra tic a m e n te não
tiv em o s o b ra s re p re s e n ta tiv a s d o g n o stic ism o d o 2“ século, e ra possí-
vel p o s tu la r a e x istên cia d e u m g n o stic ism o cristã o u m ta n to a n ô m alo ,
b em d ife re n te d a h e re sia d e sc rita p e lo s P a d re s - u m g n o sticism o d o
q u al João se ria re p re s e n ta n te . C o m o já m e n c io n a m o s n a P a rte IV: A , a
d e sco b e rta e m C h e n o b o sk io n d e d o c u m e n to s re p re s e n ta n d o o gnos-
ticism o d o 2a sé cu lo te m m o stra d o q u e João te m p o u c o e m c o m u m
com o b ra s co m o o evangelho da Verdade e o evangelho de Tomé. O n d e
q u e r q u e esses e v a n g e lh o s e João te n h a m d e s e n v o lv id o u m tem a co-
m u m , os d o c u m e n to s g n ó stic o s m a n tê m u m a d istâ n c ia m u ito m aio r
d a m e n s a g e m e v a n g élic a p rim itiv a d o q u e João. A ssim , p a re c e ób-
vio q u e o g n o stic ism o d o 2a sécu lo , co m o n o s é c o n h e cid o a p a rtir d e
C h e n o b o sk io n , é p ó s-jo an in o .
A tese d e q u e João e ra d e p e n d e n te d o s e v a n g elh o s sinóticos tem
favorecido u m a d a ta ç ã o p o ste rio r, e sp ecialm en te se M ateu s e L ucas
forem d a ta d o s n o s a n o s 80. M as, co m o v im o s n a P a rte IILB, esta de-
p en d ên cia é a g o ra rejeitad a p o r m u ito s estu d io so s. O p o n to d e vista
o p osto q u e p ro p õ e u m a tra d içã o h istó rica in d e p e n d e n te p o r d e trá s d e
João te n d e a retro cecer a d a ta d o Q u a rto E vangelho. Se h á e m João u m a
trad ição co rreta d e lu g ares, situ açõ es e co stu m es p alestin o s, p arece ló-
gico m a n te r q u e tal tra d içã o to m o u form a an te s d a d estru ição d e 70 ou,
ao m en o s, p o u c o d e p o is d e 70, q u a n d o h a v ia a in d a u m a teste m u n h a
que p o d ia lem b rar-se d o am b ie n te p a le stin o tal com o era. É m u ito im -
p ro v áv e l q u e a lg u é m p u d e s se v o lta r à P alestin a d o s an o s 80 e co m p o r
u m a tra d içã o con fiável d a s o b ras e p a la v ra s d e Jesus com b ase e m tra-
dições locais já p e rd id a s. P ois a d ev astação ro m a n a d a te rra e o exílio
d a c o m u n id a d e c ristã n o s a n o s 60 c o n stitu íra m u m a fo rm id áv el barrei-
ra à c o n tin u id a d e d a tradição. O ra, se aceitarm o s a p ro b a b ilid a d e (que
é u m a certeza a p ro x im ad a ) d e q u e a tra d içã o h istó rica p o r d e trá s do
ev an g elh o , n o sso P rim eiro E stágio, foi fo rm a d a an tes d e 70, os estágios
su b seq u e n te s d a co m p o sição d o ev an g elh o n ã o p o d e m ser p ro lo n g a-
d o s m u ito a lé m d e 100. Q u e tal tra d içã o p o d e ría ter so b rev iv id o b em
n o 2a sécu lo an te s d e a ssu m ir a fo rm a final é m u ito difícil d e acreditar.
O a rg u m e n to m ais c o n c lu siv o c o n tra a d a ta ç ã o ta rd ia d e João tem
sid o a d e s c o b e rta d e d iv e rso s tex to s d e João e m p a p iro d o 2a século.
84 Introdução

E m 1935, C. H . R oberts p u b lic o u R y la n d s P a p y ru s 457 (P52), u m frag -


m e n to d e có d ice eg íp cio d e Jo 18,31-33.37-38. A d a ta ç ã o d e s te p a p iro
em 135-50 te m sid o a m p la m e n te aceita; e a ú ltim a te n ta tiv a d e d a ta r
o p a p iro n e o te s ta m e n tá rio p o r K. A land, N TS 9 (1962-63), 307, assi-
n ala a P52 u m a d a ta n o "in ício n o 22 sécu lo ". M ais re c e n te m e n te , d u a s
d a ta s p o ste rio re s ao 2a sécu lo o u a n te rio re s ao 3a sé cu lo (175-225)
testificam q u e o Q u a rto E v a n g e lh o foi p u b lic a d o co m o B o d m e r Pa-
p y ri II e XV (P66, P 75), d a n d o -n o s m u ita s seções su b sta n c ia is d e João.
O u tra te s te m u n h a eg íp cia d e João é P a p y ru s E g e rto n 2 (tra ta d o em
u m a d e n d o ao c o m e n tá rio so b re o cap. 5), u m a o b ra c o m p o sta d e m ais
o u m en o s 150, re c o rre n d o ta n to a João q u a n to ao s sin ó tico s. Q u e este
" e v a n g e lh o d e sc o n h e c id o " é d e p e n d e n te d e João, e n ã o v ice-v ersa,
é hoje a m p la m e n te aceito; e é im p o rta n te q u e a m b o s e ste s p a p iro s
e o Diatessaron d e T aciano, ou h a rm o n ia d o s e v a n g e lh o s, escrito
em to rn o d e 175, d ã o a João ig u a l s ta tu s co m os e v a n g e lh o s sin ó ti-
cos. D ificilm en te se p o d e im a g in a r tal a v aliação , se João a c ab a sse d e
ser co m p o sto .
A ssim , é s u fic ie n te m e n te ó b v io q u e João c irc u la v a e m m u ita s
c ó p ia s n o E g ito n o p e río d o d e 140-200. A te o ria d e q u e João foi com -
p o s to n o E g ito te m tid o e sca sso a p o io . Se, co m o g e ra lm e n te se su -
p õ e , ele foi c o m p o sto n a Á sia M e n o r (o u m e sm o n a S íria), a d m itiría -
m o s te m p o p a r a ele c h e g a r ao E gito e te r ali u m a c irc u la ç ã o p o p u la r .
A lém d o m ais, o B o d m e r P a p y ri re fle te p a rc ia lm e n te d ife re n te s tra -
d içõ e s te x tu a is d o e v a n g e lh o , isto é, P66 é p ró x im o a o te x to q u e re-
c e n te m e n te e n c o n tra m o s n o C o d e x S in a itic u s; P 75 é q u a s e o m e sm o
q u e o tex to d o C o d e x V a tic a n u s. O d e s e n v o lv im e n to d e ta l v a ria ç ã o
te ria q u e rid o te m p o .
E m s u m a , os a rg u m e n to s p o sitiv o s p a re c e m a p o n ta r p a ra 100-110
co m o a ú ltim a d a ta p la u sív e l p a ra a co m p o siç ão d o e v a n g e lh o , com
fo rte p ro b a b ilid a d e fav o re c en d o a lim ite m ais a n tig o d e 100.

B. DATA MAIS PRIMITIVA PLAUSÍVEL

D e a lg u m a m a n e ira , o terminus post quem n ã o é tão fácil d e esta b e le c e r


com o o terminus ante quem. U m a v e z m ais, m e n c io n e m o s os fato res
q u e in c id e m n e s ta q u e stã o , co m o le m b re te d e q u e e sta m o s p rim a ria -
m en te p re o c u p a d o s co m a re d a ç ã o final d o e v a n g elh o .
VI · Data da redação final do evangelho 85

R e ssa lta m o s p re v ia m e n te q u e a tra d iç ã o h istó ric a q u e tem o s p ro -


p o s to p o r d e trá s d o Q u a rto E v a n g e lh o foi m u i p ro v a v e lm e n te for-
m a d a a n te s d e 70, e q u e v á ria s d é c a d a s p ro v a v e lm e n te d e c o rre ra m
e n tre a fo rm a ç ã o d e sta tra d iç ã o (P rim eiro E stágio) e a re d a ç ã o final
d o e v a n g e lh o (Q u in to E stágio). A s tra d iç õ e s q u e su b lin h a m os ev an -
g elh o s sin ó tico s g e ra lm e n te são d a ta d a s n o p e río d o e n tre 40 e 60. A l-
g u n s g o s ta ria m d e d a r u m a d a ta p o s te rio r à tra d iç ã o c o rre sp o n d e n te
a João; m a s, c o m o te m o s in sistid o , n ã o se p o d e fo rm u la r u m juízo
a b s o lu to d e q u e a tra d iç ã o p ré -jo a n in a é m ais d e s e n v o lv id a d o q u e a
tra d iç ã o p ré-sin ó tica . E m re la to s e d ito s p a rtilh a d o s p e la s d u a s tra d i-
ções, tem -se feito u m c ritério e m c a d a caso, e a lg u m a s v e z es tal crité-
rio fav o rece a a n tig u id a d e d e João. A ssim , p e sso a lm e n te e sta ría m o s
d isp o s to s a a s sin a la r a m e sm a d a ta à tra d iç ã o p o r d e trá s d e João q u e
é a s s in a la d a p a ra as fo n te s sin ó ticas, e d a ta r o P rim e iro E stágio d a
c o m p o siç ão d o e v a n g e lh o a o p e río d o e n tre 40 e 60.
N ã o o b s ta n te , m e sm o co m os e v a n g e lh o s sin ó tico s, h o u v e u m
lap so d e te m p o e n tre a fo rm a çã o d a s fo n tes p o r d e trá s d o s e v a n g e lh o s
e a a tu a l c o m p o siç ão e scrita d o s e v a n g elh o s. P o r ex em p lo , M a te u s e
L ucas às v e z es são d a ta d o s n o p e río d o e n tre 75 e 85. E m co n fo rm id ad e
co m n o s s a h ip ó te se , João p a s s o u p o r v á ria s re d a ç õ e s e u m a re d a ç ã o fi-
nal. P e n s a m o s se r b e m p ro v á v e l q u e a primeira re d a ç ã o d e João ten h a
sid o d a ta d a n o m e sm o p e río d o g e ra l co m o M a te u s e Lucas.
T e m o s a d v e rtid o c o n tra a te m e rid a d e d e fixar a d a ta d a s o b ras
n e o te s ta m e n tá ria s co m b a se n o d e s e n v o lv im e n to c o m p a ra tiv o de
su a s teo lo g ia s. T o d a v ia, q u a n d o c o n fin a d o a u m a ú n ic a fo rm a d e li-
te ra tu ra , e ste m é to d o te m c e rta v a lid a d e . É lícito c o m p a ra r os q u a tro
e v a n g e lh o s a fim d e d e c id ir e m g e ra l q u a l é o m ais p rim itiv o e q u a l o
m ais d e s e n v o lv id o . D e u m m o d o g eral, crem o s q u e o critério pré-crí-
tico d e q u e Jo ão é teo lo g ic a m e n te o m a is d e s e n v o lv id o e o ú ltim o d o s
e v a n g e lh o s é e s se n c ia lm e n te ju d icio so . E m n o ssa o p in iã o , M ateu s,
p ro v a v e lm e n te o ú ltim o d o s e v a n g e lh o s sin ó tico s (ca. 85?), co m p a ra-
d o a Jo ão , é o q u e m ais c o m p e te e m d e se n v o lv im e n to teológico.
E n tre tan to , o u tro s, p o r ex em p lo , G oodenough, têm u s a d o a teolo-
gia c o m p a ra tiv a p a ra a rg u m e n ta r em p ro l d e u m a d a ta m ais a n tig a p a ra
João. P o r ex em p lo , o b serv a-se q u e João, n a ú ltim a ceia, n ão se rep o rta
à in stitu içã o d a eu caristia, e, p o rta n to , alega-se q u e João re p re se n ta u m
p e río d o a n te s q u e o relato p a u lin o d a in stitu ição viesse a d q u irir p rep o n -
d erân cia. T al a rg u m e n to reflete o p re ssu p o sto a lta m e n te q u estio n áv el
86 Introdução

d e q u e o re la to d a in stitu iç ã o te m s u a o rig e m e m P a u lo , e n ã o n a tra -


dição m ais antiga. A lém d o m ais, ela falha em reconhecer q u e Jo 6,51-58
p o d e m u ito b e m c o n te r o re la to jo a n in o adaptado d a in stitu iç ã o , re-
m o v id o a q u i d o re la to d a ú ltim a ceia. O u tro a rg u m e n to d o silêncio
é q u e João, co m o M arco s o u L ucas, ig n o ra o n a sc im e n to v irg in a l, e
p o r isso é m a is a n tig o d o q u e M a te u s o u L ucas. E n tre ta n to , d e v e -se
d eix ar a b e rta a p o s s ib ilid a d e d e q u e e m Jo 7,42 a o b se rv a ç ã o so b re o
n a scim en to d e Jesu s é d e ix a d a se m re sp o sta , n ã o p o r c a u sa d a ig n o -
rân cia d o e v a n g elista , m a s co m o u m e x e m p lo d e iro n ia jo a n in a , u m a
iro n ia q u e im p lic a q u e o e v a n g e lista c o n h e cia o v e rd a d e iro re la to d o
n a scim en to d e Jesus. (N ão o b sta n te , o u tra s in te rp re ta ç õ e s d a iro n ia
são p o ssív e is, e a ssim o a rg u m e n to n ã o é se g u ro ). C e rta m e n te , João
e v id e n c ia u m in te re sse n o q u e p re c e d ia o b a tism o d e Je su s n o Jo rd ã o ;
so m e n te a in v estig a ç ã o jo an in a , d ife re n te d a d e M a te u s e L u cas, n ã o
toca as o rig e n s h u m a n a s d e Jesu s, e sim s u a p ree x istê n c ia . Se o r e d a to r
final d e João d e c id iu p re fa c ia r o e v a n g e lh o co m tu n h in o c o m u n itá -
rio a Jesu s co m o a P a la v ra , isto n ã o significa q u e ele ig n o ra v a to d a s
as n a rra tiv a s d a in fân cia. M u i p la u siv e lm e n te , ele e stá sim p le s m e n te
re fle tin d o o u s o local n a Á sia M e n o r o n d e o p o v o c a n ta v a " h in o s a
C risto co m o a D e u s", e n q u a n to M a te u s e L u cas e stã o re fle tin d o a
m e n ta lid a d e d a P a lestin a o n d e tra d iç õ e s p o p u la re s d o n a sc im e n to d e
Jesus fo ra m p re s e rv a d a s. A o ju lg a r a te n ta tiv a d e G oodenough e o u -
tro s d e a rg u m e n ta r e m p ro l d e u m a d a ta a n tig a d a teo lo g ia c o m p a ra -
tiv a, d e v e m o s a d m itir q u e n a d a e n c o n tra m o s e m João q u e ex ig e u m s
d a ta a n te rio r a 70 p a ra a fo rm a escrita fin al d o e v a n g elh o .
H á u m a in d ic a çã o ra z o a v e lm e n te p rec isa p a ra o terminus post
quem e m p ro l d a d a ta ç ã o d e João n o te m a d a e x c o m u n h ã o d a s sin a-
g o g as q u e, co m o v im o s n a P a rte V:B, ex erce u m im p o rta n te p a p e l n o
e v a n g elh o . O p ro b le m a n ã o p a re c e te r sid o a c e n tu a d o a n te s d e 70; e os
d a tá v e is in c id e n te s co m o a fo rm u la ç ã o d a s d o z e b ê n ç ã o s n o Shemoneh
Esreh e o u s o d e e x c o m u n h ã o fo rm a l e m Jâ m n ia p e rte n c e m ao p e río -
d o d e 80-90. E sta e v id ê n c ia to rn a im p ro v á v e l u m a d a ta a n te rio r a 80
p a ra a co m p o sição escrita final d o e v a n g elh o , e d e v e ra s faz os a n o s 90
a ép o ca p ro v á v e l. O Diálogo contra Trifo d e J ustino, e m to rn o d e 160,
re p re s e n ta u m a c ú m u lo d a p o lêm ic a ju d a ic o -c ristã q u e se d e se n v o l-
v e u ao lo n g o d o 2a século. À s v e z es ela p a re c e e sta r e m c o n tin u id a d e
d ire ta co m a p o lêm ic a c o n tra a sin a g o g a e m João, e isto oferece o u tra
ra z ã o p a ra n ã o se d a ta r a fo rm a fin al d e João tã o c e d o n o I a século.
VI · Data da redação final do evangelho 87

Já n o ta m o s e sa lie n ta re m o s m a is n o c o m e n tá rio q u e as seções e m João


q u e se r e p o r ta m e sp ec ific am e n te à e x c o m u n h ã o p a re c e m p e rte n c e r
aos e stá g io s fin ais d a r e d a ç ã o d o e v a n g elh o . Isto p o d e sig n ificar q u e a
p rim e ira re d a ç ã o d o e v a n g e lh o to m o u c o rp o n o s a n o s 70 o u início d e
80, a n te s q u e a q u e s tã o d a e x c o m u n h ã o se in flam asse.
O c a p ítu lo 21,18-19 fo rn ece u m te ste m u n h o sim bólico, p o ré m re-
la tiv a m e n te claro d o fato d e q u e P e d ro m o rre u p o r crucifixão, ev en to
este q u e se d e u n o final d o s a n o s 60. A lé m d o m ais, se o D iscípulo
A m a d o é u m a fig u ra h istó rica (e isto, e m n o ssa o p in iã o , é v irtu a lm e n te
d isp o n ív e l p e la e v id ê n c ia - v e r P a rte VII, p. 90ss), en tã o , a p a re n te m e n -
te e m u m c o n sid e rá v e l in te rv a lo a p ó s a m o rte d e P ed ro , u m a teste-
m u n h a o c u la r d o m in isté rio d e Jesu s v iv e ra p o r m u ito te m p o - , teste-
m u n h a q u e e s ta v a in tim a m e n te c o n e cta d a com o Q u a rto E vangelho.
A d isc u ssã o n o c o m e n tário so b re 21,22-23 re a lm e n te só é inteligível
n estes term o s; p o is, p o r q u e su rg iría aí u m p ro b le m a acerca d a d ata-
ção d o d isc íp u lo a n te s d o re to rn o d e Jesus, se o d isc íp u lo a in d a estav a
v iv o e co m s a ú d e ? O raciocínio c o m p lic a d o em to rn o d a in te rp re ta ç ã o
m ais ó b v ia d a a firm a ç ão d e Jesus é u m a te n ta tiv a p a te n te m e n te deses-
p e ra d o ra d e ju stificar o q u e é u m fait accompli. A liás, o to m d a crise no
ca p ítu lo p a re c e ría in d ic a r q u e a m o rte d e ste d isc íp u lo m arc a o fim de
u m a e ra n a Igreja e a co n clu são d o p e río d o d a s te ste m u n h a s oculares.
U m a v e z m ais, u m a d a ta m u ito a n te rio r a 80 e lim in a to d a esta p lau si-
b ilid ad e , e u m a d a ta n o s a n o s 90 p a re c e m ais p ro v áv e l. P o d e-se n o ta r
q u e o u tra o b ra n e o te sta m e n tá ria q u e se p re o c u p a co m o m esm o p ro -
b lem a d a m o rte d a g eração ap o stó lica, a sab er, 2 P d (3,3-4), g e ralm en te
é c o n s id e ra d o p e lo s críticos, p ro te s ta n te s e católicos, co m o se n d o u m a
d a s ú ltim a s o b ra s d o N T (em b o ra p e n se m o s q u e n ã o h á ra z ã o p a ra qu e
c h e g u em a d a ta r 2 P e d ro m ais ta rd e q u e, m ais o u m en o s, 125).
N a P a rte VIII, a p re s e n ta re m o s n o ssa c o m p re e n sã o d o s pro b le-
m as teo ló g ico s b ásico s d o ev a n g elh o ; estes p ro b le m a s, com o os e n ten -
d e m o s, e x ig em u m a d a ta p o s te rio r a 70. A escato lo g ia re a liz a d a qu e
d o m in a o e v a n g e lh o p a re c e ser u m a re sp o sta à d e m o ra in d e fin id a d a
p a ro u sia . C o m o a p a re c e u a n te s d e 70, o p ro b le m a d a p a ro u s ia era
tem a p a ra re s p o s ta m ais fácil - Jesu s logo v iria o u tra vez, m a s o tem p o
ex ato n ã o p o d ia se r d e te rm in a d o . Se 1 P e d ro fo r d a ta d a a n te s d e 70,
tem o s u m a e lo q u e n te te s te m u n h a d e q u e a im in ên c ia d a p a ro u s ia era
a in d a u m a g ra n d e p a rte d a e x p e c ta tiv a cristã a p o n ta n d o p a ra a que-
d a d e Je ru s a lé m ( lP d 4,7). A re in te rp re ta ç ã o rad ic al d a q u e stã o em
88 Introdução

João q u e p õ e a ênfase p rin c ip a l n a escato lo g ia re a liz a d a (sem ex clu ir


a e x p e cta tiv a c o n tín u a , p o ré m in d e fin id a , d e u m a v in d a final) p a re c e
p e rte n c e r a u m p e río d o p o ste rio r. D e m o d o se m e lh a n te , co m o esp e-
ram o s m o stra r n o A p ê n d ic e V (no vol. 2, p. 1641), to d a a d o u trin a d o
P aráclito co m o a p re se n ç a c o n tín u a d e Jesu s e m s u a Igreja, p a re c e ser
c a u sa d a p e lo p a s sa g e iro p e río d o a p o stó lic o e a r u p tu r a d o s laço s h u -
m a n o s c o m Jesu s d e N a z a ré . O sa c ra m e n ta lism o d o e v a n g e lh o , v isa n -
d o a ra d ic a r os s a c ra m e n to s n o m in isté rio d e Jesu s, p a re c e d irig id o a
u m a ép o ca em q u e a relação e n tre a v id a eclesiástica e a v id a h istó ric a
d e Jesu s se to m o u o b scu recid a.
E m s u m a , crem o s q u e a e x te n sã o d e te m p o d u r a n te o q u a l a for-
m a final d o Q u a rto E v a n g e lh o p o d e ria ter escrito é, e m se u s lim ites
m áx im o s, 75 a 110 d .C , m a s a c o n v e rg ê n c ia d e p ro b a b ilid a d e s a p o n ta
fo rte m e n te p a ra u m a d a ta e n tre 90 e 1 0 0 .0 te s te m u n h o d a d o m a is o u
m en o s e m 200 p o r Irineu (E usébio, Hist. 3,23:1-4; G C S 9 2 3 6 - 3 8 :‫)ו‬, n o ssa
m ais a n tig a e im p o rta n te te s te m u n h a e m p ro l d o Q u a rto E v a n g e lh o ,
d iz q u e João, o d isc íp u lo a sso c ia d o com o e v a n g e lh o , v iv e u e m Éfeso
d u ra n te o re in a d o d e T rajano (98-117). C aso se aceite esta a n tig a a tri-
b u içã o d o e v a n g e lh o (v er P a rte VII, p . 90ss) e a c o m b in a co m a im p li-
cação e m Jo 21,20-24 d e q u e o d isc íp u lo re sp o n sá v e l p e lo e v a n g e lh o
está m o rib u n d o o u já m o rre u , e n tã o se p o d e fixar u m a d a ta p la u s ív e l
d e m ais o u m e n o s 100 p a ra a redação final d o e v a n g e lh o . Se a tra d iç ã o
h istó rica q u e s u b lin h a o e v a n g e lh o re tro a g e a 40-60, e a p rim e ira re-
d ação d o e v a n g e lh o fo r d a ta d a alg o e n tre 70 e 85 (u m a d a ta ç ã o q u e é
m u ito m ais u m a co n jectu ra), e n tã o o s cinco e stá g io s q u e te m o s p ro -
p o s to n a co m p o siç ão d o e v a n g e lh o c o b riría m q u a re n ta a n o s d e p re -
gação e re d a ç ã o escrita.

BIBLIOGRAFIA

Geral

ANDREW S, M ary E., " The authorship and Significance of the Gospel of John",
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VI · Data da redação final do evangelho 89

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TARELLI, C. C , "Clement of Rome and the Fourth Gospel", JTS 48 (1947),
208-9.
VII
IDENTIDADE DO AUTOR E
LOCAL DA COMPOSIÇÃO

É n o tó rio q u e m u ito s e stu d io so s bíblicos são tam b é m leito res calorosos


d as h istó rias d e investigação. Estes dois in teresses se c o n ju lg am n a b u s-
ca d a id e n tid a d e d o a u to r d o Q u a rto E vangelho. A n tes d e d isc u tirm o s
a ev idência, p o d e ser b o m aclarar o conceito d e " a u to r". N a term in o -
logia d a crítica literária m o d e rn a , " a u to r" e "escrito r" c o stu m a m ser
term o s sin ô n im o s; q u a n d o n ão são, é c o stu m eiro id en tificar o colabora-
d o r literário com o se n d o tam b é m a u to r. A a n tig u id a d e n ã o p a rtilh a v a
este excelente se n tid o d e créd ito s p ró p rio s, e a m iú d e os h o m e n s, cujos
n o m es ia m u n id o s a livros bíblicos, n u n c a p u s e ra m a p e n a e m p a p iro .
P o rtan to , em relação a livros bíblicos, m u ita s v ezes tem o s d e d istin g u ir
en tre o autor, cujas id éias o livro ex p ressa, e o escritor. O s escrito res re-
co rriam a u m a escala m aio r q u e v a i d e secretário s q u e se lim ita v a m a
colocar p o r escrito serv ilm en te o q u e era d ita d o p elo s a u to re s a té os
co lab o rad o res a lta m e n te in d e p e n d e n te s q u e, tra b a lh a n d o com b a se n o
rasc u n h o d a s id éias d o s au to res, d a v a m seu p ró p rio estilo literário à
o b ra final. Q u e a lg u m a d istin ção e n tre a u to r e escrito r p o d e se r ú til
em c o n sid e rar o Q u a rto E van g elh o é su g e rid o p e la existência d e v á ria s
o b ras jo an in as n o N T q u e m o stram d iferen ças d e estilo. A q u e stã o d e
d iferen ças estilísticas e n tre João e 1 João será d isc u tid a n a in tro d u ç ã o ao
co m en tário so b re as E pístolas [no prêlo]; m as a n e c essid ad e d e p ro p o r
d iferen tes escritores p a ra João e A p o calip se é d e v e ra s óbvia.
M e sm o q u e rese rv e m o s a a u to ria à re s p o n s a b ilid a d e d a s id é ia s
b ásicas q u e a p a re c e m em u m liv ro , os p rin c íp io s q u e d e te rm in a m a
VII · Identidade do autor e local da composição 91

a trib u iç ã o d e a u to ria n a Bíblia sã o in v a ria v e lm e n te a m p lo s. Se u m au -


to r p a rtic u la r é c e rc a d o p o r u m g ru p o d e d isc íp u lo s q u e lev a a v a n te
se u p e n s a m e n to m e sm o a p ó s s u a m o rte , s u a s o b ras p o d e m ser-lhe
a trib u íd a s c o m o a u to r. O liv ro d e Isaías foi o b ra ao s m e n o s d e três
p rin c ip a is c o n trib u in te s, e s u a c o m p o siç ão c o b riu u m p e río d o d e m ais
d e 200 an o s. T o d a v ia, ele n ã o é s im p le sm e n te u m a a n to lo g ia h etero -
gênea; p o is ele te m sim ila rid a d e s d e tem a e estilo q u e reflete m u m a
escola d e p e n s a m e n to e q u e , n o a m p lo se n tid o bíblico d e a u to ria , jus-
tifica a a trib u iç ã o d o liv ro a Isaías. E m u m se n tid o a in d a m a is a m p lo
d e a u to ria , S a lo m ão é tid o co m o o a u to r d a L ite ra tu ra S apiencial (Pro-
v érb io s, E clesiastes, S a b e d o ria d e S alom ão), p o rq u e su a co rte p ro p i-
ciou u m a a tm o s fe ra e m q u e a lite ra tu ra d e sa b e d o ria fo rm a l p ô d e de-
sen v o lv er, e a ssim ele se rv iu d e p a tro n o d o s e scrito res sap ien ciais. De
u m m o d o sim ila r, D avi é tid o co m o a u to r d o s S alm os, e M oisés com o
a u to r d o P e n ta te u c o , a in d a q u e p a rte s d e sta s o b ra s fo ra m c o m p o sta s
c e n te n a s d e a n o s a p ó s a m o rte d o a u to r tra d icio n a l. A g o ra v o lta m o s
aos a n tig o s te s te m u n h o s so b re a a u to ria d o Q u a rto E v a n g e lh o , e de-
v e m o s m a n te r d ia n te d e n ó s o a m p lo c o n te ú d o d a a n tig a concepção
d e a u to ria , p a ra q u e n ã o n o s in clin e m o s a faz e r estes te ste m u n h o s
d iz e r m a is d o q u e se d e s tin a v a m a d ize r. A lg u m a s v e z es o " a u to r"
d e u m liv ro é s im p le sm e n te u m a d e sig n a ç ã o p a ra a autoridade p o r
d e trá s dele.

A. A EVIDÊNCIA EXTERNA SOBRE O AUTOR

Esta e v id ê n c ia c o n siste n a s a firm a ç õ es d e a n tig o s e scrito res cristão s e


está c o n v e n ie n te m e n te d isp o n ív e l n o s c o m e n tário s d e B ernard e Bar-
rett. Ela te m sid o e x a u stiv a m e n te d isc u tid a p o r N unn . O ferecerem o s
a p e n a s u m s u m á rio a q u i. Irineu ( c . 1 8 0 2 0 0 ‫ )־‬e m Adv. Haer. 3 ,1 :1 (SC
34:96) d iz q u e , d e p o is d a co m p o siç ão d o s o u tro s e v a n g elh o s, João,
o d isc íp u lo d o S e n h o r q u e re c lin o u so b re se u p e ito (Jo 13,23; 21,20),
p u b lic o u se u e v a n g e lh o e m Éfeso. O riu n d a s d o m esm o p e río d o , h á
o u tra s a n tig a s te s te m u n h a s d a a u to ria d e João, o d isc íp u lo d o S enhor
(Barrett, p p . 96-97); B ernard, I, p p . LVI-IIX): o F ra g m e n to M u ra to -
ria n o (c. 170-200); o P ró lo g o la tin o m a rc io n ita (c. 200); e C lemente de
A le x a n d ria co m o c ita d o p o r E usébio, Hist. 6 ,1 4 :7 (GCS 92:550). Se esta
tra d içã o d e a u to ria foi b e m e sta b e le c id a n o fin al d o 2a século, p arece
92 Introdução

p ro v á v e l q u e os a u to re s d e ste s te s te m u n h o s e sta v a m id e n tific a n d o


"João o d isc íp u lo " co m o João filho d e Z e b e d e u , u m d o s D o z e (ain d a
q u e Sanders, art. cit., c o n te ste isto). I rineu n ã o a firm a q u e ele esteja
fala n d o d o filh o d e Z e b e d e u (ver, p o ré m , E usébio Hist. 7 ,2 5 :7 [GCS 92:
692] e o L eu cian o Atos de João [c. 150]). T o d a v ia, m e sm o q u e a c eite m o s
a e v id ên cia d e q u e os a n tig o s e scrito res e stiv e ra m fa la n d o d o filh o d e
Z e b e d eu , p e rm a n e c e o u tra q u e stã o , a sa b er, se e s ta v a m c e rto s q u a n d o
assim id en tifica m este João a q u e m o e v a n g e lh o c o s tu m e ira m e n te e ra
a trib u íd o - u m a q u e stã o q u e d isc u tire m o s m a is a d ia n te .
E n tre ta n to , d e v e -se fo rm u la r a p rim e ira q u e s tã o c o n c e rn e n te ao
v a lo r d a tra d iç ã o d e q u e o Q u a rto E v a n g e lh o v eio d e João, o d isc íp u lo
d o S en h o r. O p ró p rio e v a n g e lh o fala d o D isc íp u lo A m a d o q u e recos-
to u ao p e ito d o S enhor. A caso Irineu e sta v a s im p le sm e n te co n jetu -
ra n d o q u e este d isc íp u lo se m n o m e e ra João? H á u m a b o a in d ic a çã o
d e q u e n ão , p o is s e g u n d o E usébio Hist., 4, 14:3-8 (GCS 9*:332), Irineu
o b tev e s u a in fo rm a ç ã o d e P olicarpo, b isp o d e E sm irn a , q u e o u v ira a
João. Se fo r p o ssív e l esta b e le c e r u m a c a d eia d e tra d iç ã o , d e João p a ra
P olicarpo p a ra Irineu, e n tã o o te s te m u n h o d e I rineu q u a n to à a u to ria
é d e v e ra s m u ito v alio sa, m a s a e x a tid ã o d a c o rre n te d e tra d iç ã o tem
sid o c o n te s ta d a so b v á ria s razõ es.
a. Irineu s itu a João e m É feso, e n ã o h á e v id ê n c ia n e o te s ta m e n tá ria
d e q u e João, filho d e Z e b e d e u , a lg u m d ia e ste v e e m Éfeso. É
v e rd a d e q u e A p o c a lip se (1,9) a ssu m e te r sid o e scrito p o r c erto
João em P a tm o s, n a s c ercan ias d e Efeso, m a s se ria este João o
filho d e Z e b e d eu ? E m A p 18,20 e 21,14, o a u to r se re fe re aos
D o ze co m o se n ã o fosse u m d e se u n ú m e ro - u m a objeção d i-
ficilm en te co n clu siv a, p o ré m d ig n a d e c o n sid e raç ã o . Q u a n to
à c a rre ira d o filho d e Z e b e d e u , p a re c e te r sid o a tiv o n a á re a
d e J e ru sa lé m e P a lestin a , ao m e n o s a té 49 d.C . (A t 3,1; 8,14;
G1 2,9). N e m n o d isc u rso d e P a u lo ao s a n c iã o s d e É feso e m 58
(A t 20,18ss.), n e m n a E p ísto la a o s E fésios (63?) h á q u a lq u e r in-
d icação d a p re se n ç a d e João e m Éfeso. Q u a n to à te o ria d e q u e
João foi p a ra É feso n o te m p o d a re v o lta n a P a le stin a (66-70),
p o d e -s e o b jetar d e q u e n a Carta aos Efésios d e Inácio ( c. 110)
se m en c io n a o tra b a lh o d e P a u lo e m Éfeso, m a s n a d a d e João.
P apias, q u e e screv e d a Á sia M e n o r e m to rn o d e 130, n ã o p a re c e
m e n c io n a r a e s ta d a d e João n a Á sia. N ã o c a u sa s u rp re s a q u e
P olicarpo d e E sm irn a, e m su a b re v e c a rta a o s filip e n se s (c. 135),
VII · Identidade do autor e local da composição 93

n ã o h aja m e n c io n a d o João, m a s d e v e m o s n o ta r q u e a v id a u m
ta n to le n d á ria d e P olicarpo, p o r P io n io , n ã o faz refe rê n c ia a Po-
LiCARPO c o m o te n d o c o n h e cid o João, d e ta lh e q u e é b ásico p a ra
a e v id ê n c ia d e I rineu.
N e n h u m a rg u m e n to d e ev id ên cia n e g a tiv a é n a tu ra lm e n te con-
clusivo, e h á a lg u m a ev id ên cia im p re ssio n a n te d e q u e João, o filho d e
Z eb ed eu , re a lm e n te estev e e m Éfeso. Justino, em Éfeso e m to m o d e 135,
fala d e João u m d o s a p ó sto lo s d e C risto, com o h a v e n d o resid id o ali
(Trypho 81,4; PG 6:669; com E usébio Hist. 4,18:6-8; G CS 9’:364-66). P ode-
ria u m a tra d içã o e sp ú ria ter se d e sen v o lv id o tã o d ep ressa? O apócrifo
Atos de João, escrito e m to rn o d e 150, p o r L eucius C harinus, m enciona o
m in istério d e João e m Éfeso. P olicrates, b isp o d e Éfeso, escrev en d o ao
p a p a V ítor e m to rn o d e 190 (E usebius, Hist. 5, 24:3; GCS 9 4 9 0 :‫)י‬, afirm a
que João foi s e p u lta d o em Éfeso. E scavações e m Selçuk, u m a colina nas
p ro x im id a d e s d e Éfeso, em baixo d a basílica rec e n te m e n te co n stru íd a
em h o n ra d e João, tê m m o stra d o a existência d e u m m a u so lé u d o 3Ωsé-
culo; e B raun, JeanThéol, 1, p . 374, p e n sa q u e isto c o n firm a o teste m u n h o
de P olicrates. A ssim , a objeção à tra d içã o d e Irineu com b ase e m qu e
João n u n c a estev e e m Éfeso é escassam en te conclusiva.
b. H á u m a tra d iç ã o d e q u e João, filh o d e Z e b e d e u , m o rre u a in d a
jo v em . A s e v id ê n c ia s s u m a ria d a s , e x tra íd a s ta n to d e P hilip de
S id e (430) co m o d e G eorge H amartolus (9 q século), a trib u e m a
P apias a tra d iç ã o d e q u e João foi m o rto p e lo s ju d e u s , ju n ta m e n -
te co m s e u irm ã o T iago (q u e m o rre u n o s a n o s 40). D u a s m ar-
tiro lo g ia s d e E d e ssa e C a rta g o (5Ω-6Ωséculos) tra z e m a m esm a
tra d iç ã o . É p o ssív e l e n c o n tra r u m a d isc u ssã o c o m p le ta em Ber-
nard, I, p p . XXXVII-XLV, m a s a c o n fia b ilid a d e d e ssa s fontes
n ã o é p a rtic u la rm e n te im p re ssiv a . E m p a rte , a tra d iç ã o p ro v a -
v e lm e n te re s u lta d e u m a c o n fu sã o d e João B atista com João o
filh o d e Z e b e d e u , e e m p a rte d e u m a in te rp re ta ç ã o p o r d e m a is
lite ra l d e M c 10,39, o n d e Jesu s p re d iz q u e os filhos d e Z e b e d eu
p a rtilh a ria m d e s e u so frim e n to . E ste a rg u m e n to c o n tra a tra d i-
ção d e Irineu é m u ito fraco.
c. T em -se s u g e rid o q u e Irineu e sta v a e rra d o acerca d a relação d e
P olicarpo co m João, co m o a p a re n te m e n te e sta v a e rra d o e m o u-
tro s casos. E m Contra Heresias 5, 33:4 (PG 7:1214), ele d iz que
P apias o u v iu João; m a s isto c o n tra d iz a p ró p ria e v id ê n c ia d e
P apias, co m o E usébio (Hist. 3, 39:2; G C S 92:286) foi p r o n to em
94 Introdução

sa lie n ta r. Se P apias c o n h e ce u João so m e n te a tra v é s d e in te r-


m e d iá rio s, e Irineu e sta v a sim p lific a n d o a rela çã o e n tre P apias
e João, co m o p o d e m o s sa b e r q u e n ã o e sta v a sim p lific a n d o a
relação e n tre P olicarpo e João? N a tu ra lm e n te , Irineu d iz q u e
c o n h e ce u P olicarpo p e sso a lm e n te , e n q u a n to n ã o a le g a te r co-
n h e c id o P apias. N ã o o b sta n te , o fato d e q u e Irineu fosse m u ito
jo v em n o te m p o e m q u e ale g a te r c o n h e cid o P olicarpo, n o m í-
n im o ele c a u sa c o n fu sã o co m o u m a p o ssib ilid a d e .
d. T em -se s u g e rid o q u e h a v ia e m É feso o u tro João q u e foi o a u to r
d o e v a n g e lh o , e q u e Irineu e o u tro a n tig o e scrito r c o n fu n d ira m
este João com o filho d e Z e b e d e u q u e fo ra d isc íp u lo d o S en h o r.
(E sta p ro p o sta é u m ta n to d ife re n te d a s u g e stã o já m e n c io n a d a ,
q u e , ao falar d e João, o d isc íp u lo d o S en h o r, Irineu n ã o tin h a e m
m e n te o filho d e Z e b e d e u ; to d a v ia , m u ito s d o s p o n to s fo rm u -
la d o s ab aix o se rã o re le v a n te s a a m b a s as su g e stõ e s). D iv e rso s
c a n d id a to s têm sid o p ro p o sto s p a ra e ste o u tro João d e Éfeso.
Primeiro, p o d e m o s m e n c io n a r João M a rc o s q u e fig u ra e m A to s
co m o p a re n te d e B arn ab é e p a rte d o te m p o c o m p a n h e iro d e P au lo .
Q u e João M arco s e sta v a e m É feso, isso é m e n c io n a d o e m 2 T m 4,11.
N ã o se o ferece p e la tra d iç ã o n e n h u m a d ific u ld a d e q u e associa João
M arco s co m o v id e n te d e A le x a n d ria , e m v e z d e É feso, p o is e sta tra-
d ição n ã o a p a re c e a té o 4“ sécu lo (E usébio, História, 2,16:1 e 24:1; G C S
9 1 4 0 , 174:‫)ו‬. A lém d o m ais, e m d o is a rtig o s m u ito in te re ssa n te s, B runs
m o stro u q u e h a v ia c o n fu sã o n a a n tig u id a d e e n tre João, filh o d e Z e-
b e d e u , e João M arcos. A o c o m e n ta r so b re A t 12,12, C risóstomo p a re c e
te r p e n s a d o q u e o João m e n c io n a d o ali era João o d isc íp u lo , q u a n d o
c o m u m e n te se c o n c o rd a q u e e ra João M arco s (B runs, "Jo h n M a rk " ,
p. 91). U m a te s te m u n h a e g íp cia d o 5a sécu lo id en tifica João M a rc o s
co m o o d isc íp u lo se m n o m e d e Jo 1,35. U m a tra d iç ã o d o 62 sécu lo , d e
C h ip re, d iz q u e Jesus e n c o n tro u João M arco s q u a n d o re a liz o u o m i-
lag re d o ta n q u e d e B etesda, u m m ila g re n a rra d o so m e n te n o Q u a rto
E v an g elh o , e fala d a p re se n ç a d e ste João e m Éfeso. E scrito res eclesiás-
ticos e s p a n h ó is d o 62-82 sécu lo s id e n tific a m João, o d isc íp u lo , co m o
p a re n te d e B arnabé. U m a o b ra á ra b e d o 102 sécu lo , tra z e n d o co n sig o
fra g m e n to s m a is a n tig o s, id en tifica João M arco s co m o u m d o s se rv o s
q u e d is trib u íra m a á g u a tra n s fo rm a d a e m v in h o e m C a n á , o u tro m ila-
g re só e n c o n tra d o n o Q u a rto E v an g elh o . T o d a esta in fo rm a ç ã o p o d e
ser refo rça d a q u a n d o M orton Smith p u b lic a su a rec é m d e sc o b e rta
VII · Identidade do autor e local da composição 95

carta d e C lemente d e A le x a n d ria , a q u a l p e rte n c e a u m e v a n g elh o


secreto d e M a rc o s, u m e v a n g e lh o q u e p a re c e n a rr a r o u eco ar certos
rela to s jo an in o s.
T o d o e ste m a te ria l in d ic a a p o s s ib ilid a d e d e u m a c o n fu sã o n a a n -
tig u id a d e , e m b o ra a lg u m a s d a s refe rê n c ia s sejam c la ra m e n te se m va-
lor. D ev e-se n o ta r q u e a té a g o ra n ã o h á m u ito te s te m u n h o a n tig o q u e
id e n tifiq u e João M arco s co m o o a u to r d o Q u a rto E v an g elh o . Q u a n d o
João M a rc o s é id e n tific a d o co m o u m e v a n g elista , ele é a sso ciad o ao
e v a n g e lh o d e M a rc o s (P ró lo g o m o n a rq u ia n o d o 3a sécu lo ao S egun-
d o e v a n g elh o ). C aso se p o ssa fo rm u la r a lg u m a rg u m e n to c o n v in cen te
em p ro l d a a u to ria d e João M arco s d o Q u a rto E v a n g e lh o , isso te m s u a
o rig e m e m e v id ê n c ia in te rn a e se rá d isc u tid o m ais a d ia n te .
Segundo, p o d e m o s m e n c io n a r João o P re sb ítero , assim c h a m a d o
p o r P apias, b is p o d e H ie ró p o lis, n a Á sia M en o r. E sc re v e n d o m ais o u
m en o s e m 130 (E usébio, Hist., 3, 39:4; G C S 91:286), P apias n o s co n ta
co m o s a iu e m b u sc a d a v e rd a d e c ristã n e sta c id a d e fo ra d o cam inho:
"Se, p o is, v e io a lg u é m q u e fosse s e g u id o r d o s an cião s [presbyteroi],
eu in v e s tig a v a os d ito s d o s an c iã o s - o q u e d isse A n d ré , o u P ed ro ,
o u F ilip e, o u T o m é, o u T iago, o u João, o u M a te u s, o u o q u e d isse al-
g u m o u tro d o s d e m a is d isc íp u lo s d o S en h o r; e as coisas q u e A ristion
e o a n c iã o [presbyteros] João, d isc íp u lo s d o S en h o r, e sta v a m d iz e n d o " .
N e sta a firm a ç ão , a p a re n te m e n te P apias m e n c io n a d o is g ru p o s d e ho-
m en s, d e n o m in a n d o a a m b o s d e " d isc íp u lo s d o S e n h o r", e h á u m João
em c a d a g ru p o . O p rim e iro g ru p o c o n té m os n o m e s d o s D oze, com
b ase n o p re té rito p e rfe ito d o v e rb o ("d isse "), p a re c e ría já e sta r m o r-
tos, e a ssim se p o d e id e n tific a r o João n o p rim e iro g ru p o co m o o filho
d e Z e b e d e u . O s e g u n d o g r u p o c o n té m d o is h o m e n s, A ristion e João,
q u e ta lv e z e stiv e sse m e n tre o n ú m e ro m a io r d o s d isc íp u lo s d e Jesus
fora os D o z e (v er Lc 10,1); com b a se n o te m p o p re s e n te d o v e rb o , p a-
receria a in d a e s ta r v iv o s q u a n d o P apias fez su a s in q u iriçõ es. A lg u n s
e s tu d io s o s tê m o b jeta d o q u e te s te m u n h a s o cu lares co m o d isc íp u lo s
d o S e n h o r d ific ilm e n te a in d a e sta ria m v iv o s e m 130 d.C ., e tê m p ro -
p o sto q u e este s e g u n d o g ru p o co n sistia d e d isc íp u lo s d o s A p ó sto lo s
e, p o rta n to , d e d isc íp u lo s d a s e g u n d a g era ç ã o ("p re sb íte ro " p o d e ter
este sig n ificad o ). E n tre ta n to , d e v e -se re ssa lta r q u e, e n q u a n to P apias
p o d e ria e s ta r e s c re v e n d o e m to rn o d e 130, ele fala d e a v e rig u aç õ e s
a n te rio re s, q u e m sa b e m u ito s a n o s a n te s e e m u m a ép o ca e m q u e d is-
c íp u lo s d o S e n h o r p o d e ría m a in d a e sta r vivos.
96 Introdução

A ssim , p a re c e q u e, além d e falar d o filho d e Z e b e d e u , P apias fala


d e o u tro João q u e o c u p a v a a p o sição d e co m u n ic ar c ertas n o tícias acer-
ca d e Jesus, se era o u n ão p ro p ria m e n te u m a te ste m u n h a ocular. (Pare-
cem fo rçad as as ten tativ as d e Z ahn e o u tro s d e su ste n ta r q u e P apias fala
d u a s v e z es d o m esm o João). P apias não diz q u e e ste João v iv ia e m Éfe-
so o u q u e e screv esse algo. Q u e e ste João v iv e u e m É feso é p r e s s u p o s to
p o r escrito res p o ste rio re s. O Apostolic Constituitions d o 4Ωsé cu lo , VII
46 (F u n k e d ., p p . 453-55), a o m e n c io n a r b isp o s d e É feso, fala d e u m
João co m o se n d o o João, a p a re n te m e n te João o P re sb ítero , d e s ig n a d o
p o r João o A p ó sto lo . E usébio (Hist. 3, 39:6 (GCS 9':288) cita u m a n o tí-
cia d e q u e h a v ia e m Éfeso d o is tú m u lo s o u m o n u m e n to s fu n e rá rio s
fig u ra n d o o n o m e "João". A m b a s e sta s p a ssa g e n s e ta m b é m D ioní-
sio d e A le x a n d ria , c ita d o p o r E usébio (Hist. 7, 25:6-16; G C S 9 2:694-96),
su g e re a tiv id a d e literá ria p a ra João o P re sb ítero , a sa b er, q u e foi o
a u to r v isio n á rio d o A p o calip se. T al su g e stã o v isa a ise n ta r o filh o d e
Z e b e d e u d a re s p o n s a b ilid a d e p e lo m ile n a rism o d a q u e le livro.
P o rta n to , u m a v e z m ais, n ã o h á a m a is lev e e v id ê n c ia p o sitiv a , n a
a n tig u id a d e , d e fazer João o P re sb íte ro o a u to r d o Q u a rto E v an g elh o .
A liás, a e v id ê n c ia , s e g u n d o P apias q u e m e n c io n a João o P re sb íte ro ,
afirm a q u e João, filho d e Z e b e d e u , e sta v a ta m b é m e m É feso e foi o
a u to r d o Q u a rto E v an g elh o . Q u e o e v a n g e lista e ra João o P re sb íte ro
c o n stitu i u m a teo ria m o d e rn a . T em -se o b se rv a d o q u e o a u to r d e 2
e 3 João se d e n o m in a p re sb íte ro , e p o d e -s e firm a r a tese d e q u e este
m esm o p re s b íte ro foi o a u to r d e 1 João e d o Q u a rto E v a n g e lh o . N ã o
o b sta n te , a a u to ria c o m u m d o e v a n g e lh o e d a s E p ísto las é d is p u ta d a ;
e, a in d a q u e se a d m ita , o títu lo " p re sb íte ro " , e n c o n tra d o e m 2 e 3 João,
seria a p lic áv e l a João, filho d e Z e b e d e u . E m l P d 5,1 tem o s e v id ê n c ia
d e q u e o term o " p re sb íte ro " e ra u s a d o p a ra m e m b ro s d o s D oze; e
d e v e ra s a afirm ação d e P apias com q u e co m e ç a m o s e sta d isc u ssã o p a -
rece u s a r o te rm o "an c iã o s" o u " p re sb íte ro s" p a ra o p rim e iro g ru p o
d e h o m e n s m e n c io n a d o s q u e sã o d e fin itiv a m e n te m e m b ro s d o s D oze.
C o n s e q u e n te m e n te , p o d e m o s o b se rv a r q u e c e rta m e n te h á b e m p o u c a
ev id ên cia a e n d o s sa r João o P re sb ítero co m o o a u to r d o Q u a rto E v an -
g elh o , m a s a p re se n ç a d e d o is Joães cria a p o s s ib ilid a d e d e c o n fu sã o
n a recen te e v id ê n c ia p a trístic a q u a n to a q u e m e sc re v e u o e v a n g elh o .
e. U m fato r fin al q u e te m le v a d o a lg u n s a d u v id a r d a e v id ê n c ia
d e Irineu é a e x istên cia n a a n tig u id a d e d e g r u p o s q u e n e g a v a m
q u e o Q u a rto E v a n g e lh o foi escrito p o r João, filho d e Z e b e d e u .
VII · Identidade do autor e local da composição 97

Irineu, Contra Heresias, 3, 11:9 (SC 34:202), m e n c io n a aq u eles


m e s tre s e q u iv o c a d o s q u e , e m s u a a n s ie d a d e d e c o m b a te r os
falso s c a rism á tic o s e p ro fe ta s m o n ta n ista s, se re c u sa v a m a
a d m itir o d o m d o Espírito. Isto os forçou a rejeitar o evangelho
s e g u n d o João o n d e o S e n h o r p ro m e te ra e n v ia r o P arácleto. T er-
tuliano, Contra Mar dão, 4,2 (CSEL 47:426), su g e re u m em ba-
raço acerca d o Q u a rto E v a n g e lh o e m v irtu d e d a d ific u ld a d e
d e h a rm o n iz a r-s e su a c ro n o lo g ia com a d o s sinóticos. E m se u
Contra Heresias, LI (GCS 31:248ss.), E p ifân io (c. 375, m a s recor-
re n d o à o b ra m ais a n tig a d e H ipólito d e R om a, a lu n o d e Irineu)
m e n c io n a q u e o Alogoi a trib u iu , re sp e c tiv a m e n te , A p o calip se
e João ao h e re g e C erinto. O n o m e Alogoi, re fle tin d o o g reg o
p a ra " n ã o logos", p a re c e se r u m a a lc u n h a c ria d a p a ra d e sig n a r
os q u e re je ita v a m o e v a n g e lh o q u e com eça com u m P ró lo g o
c o n c e rn e n te ao logos. P re su m e -se q u e H ipólito te n h a escrito
u m liv ro e m d e fe sa d e u m Q u a rto E v an g elh o . E stu d io so s arg u -
m e n ta rã o q u e tal o p o siç ã o a o e v a n g e lh o e sc a ssa m e n te p o d e ria
ter-se d e s e n v o lv id o , se o e v a n g e lh o fosse c o m u m e n te a trib u í-
d o a u m a p ó sto lo . N ã o o b sta n te , n ã o p o d e m o s ig n o ra r o fato d e
q u e e ste s g r u p o s m a rg in a is, q u e p a ra se u s p ro p ó sito s teológi-
cos p e s so a is reje ita v a m o Q u a rto E v an g elh o , e ra m v isto s com o
h e re g e s; e a a u d á c ia d e g ru p o s h e ré tic o s e m se u s conceitos bí-
blico s, p o r e x e m p lo , os m arc io n ita s, n ã o d e v e ser su b e stim a d a .
N ã o p a re c e q u e h aja n a Igreja p rim itiv a e v id ê n c ia re a l d e u m a
d ú v id a g e ra l acerca d a a u to ria jo an in a.
A ssim , é ju sto d iz e r q u e a ú n ic a tra d iç ã o a n tig a so b re a a u to ria d o
Q u a rto E v a n g e lh o e m p ro l d a q u a l se p o d e a d u z ir u m c o n ju n to con-
sid e rá v el d e e v id ê n c ia é q u e te m p o r a u to r d o e v a n g e lh o a João, filho
d e Z e b e d e u . H á a lg u n s p o n to s v á lid o s n a s objeções su sc ita d a s a esta
tra d içã o , m a s a a firm a ç ã o d e Irineu e stá lo n g e d e te r sid o in v alid a d a .

B. EVIDÊNCIAS INTERNAS SOBRE O AUTOR

T an to im p líc ita , q u a n to e x p lic ita m e n te , o Q u a rto E v an g elh o n o s in-


form a alg o so b re se u a u to r. C o m e c em o s c o n c e n tra n d o -n o s n a e v id ê n -
cia ex p lícita. D u a s p a ssa g e n s id e n tific a m a fo n te d a tra d iç ã o q u e se
e n c o n tra n o e v a n g elh o . E m 19,35, so m o s in fo rm a d o s q u e u m q u e v ira
98 Introdução

o la d o tra s p a s s a d o d e Jesu s d u r a n te a cru cifix ão d e ra te s te m u n h o , e


seu te s te m u n h o e ra v e rd a d e iro . A te s te m u n h a o c u la r n o C a lv á rio n ã o
é c la ram e n te id en tifica d a , m a s u m p o u c o a n te s d e s ta p a s sa g e m , e m
19,26-27, o u v im o s d a p re se n ç a d o d isc íp u lo a q u e m Jesu s a m a v a ao
p é d a cru z. U m a p a ssa g e m m ais clara se e n c o n tra e m 21,24, o n d e so-
m o s in fo rm a d o s acerca d o d isc íp u lo a q u e m Jesu s a m a v a : "E ste é o
d isc íp u lo q u e testifica d e sta s c oisas e a s e screv eu ; e sa b e m o s q u e o se u
te s te m u n h o é v e rd a d e iro " . À lu z d e ste v e rsíc u lo , n ã o fica d e fin id o se
o d isc íp u lo e m q u e stã o e scre v e u fisica m en te e sta s coisas o u a s fez es-
crev er. "E stas c o isas" p o d e m refe rir-se s o m e n te ao s e v e n to s n o cap í-
tu lo 21; v isto , p o ré m , q u e e sta é o b v ia m e n te u m a refe rê n c ia à m e sm a
te s te m u n h a o c u la r co m o e m 19,35, o d isc íp u lo e m q u e stã o e stá se n d o
p ro p o sto co m o a fo n te d e to d a a n a rra tiv a d o e v a n g e lh o . N o ta r-se -á
q u e a a firm a ç ão e m 21,24 d istin g u e c la ra m e n te o d isc íp u lo d o e sc rito r
d o c a p ítu lo 21 (o "n ó s").
C o m o d e v e m o s a v a lia r e sta s d u a s p a ssa g e n s? O c a p ítu lo 21 é u m a
ad ição ao e v a n g e lh o e p e rte n c e à re d a ç ã o final. A o u tra p a ssa g e m ,
19,35, é u m p a rê n te se , p ro v a v e lm e n te a d ic io n a d o n o a to d e p u b lic a r o
e v a n g elh o . P o rta n to , n ã o p o d e m o s e sta r se g u ro s d e q u e , n a p rim e ira
red a ç ã o d o e v a n g elh o , h o u v e sse ta l a trib u iç ã o d a tra d iç ã o d o e v a n -
g elh o a u m d isc íp u lo q u e foi te s te m u n h a ocu lar. N ã o o b sta n te , a in d a
q u a n d o esta a trib u iç ã o p e rte n ç a ao ú ltim o e stá g io d a p ré -p u b lic a ç ã o
d o e v a n g elh o , p a re c e ria re p re s e n ta r o c o n ceito p re v a le c e n te n o s c írcu-
los jo an in o s d o fin al d o l ß século. E v e rd a d e q u e tal a trib u iç ã o p o d e ria
ter sid o a n e x a d a ao e v a n g e lh o com o u m a te n ta tiv a d e v e stir u m a o b ra
a n ô n im a co m o m a n to d a a u to rid a d e a p o stó lic a , p o ré m u m a a trib u i-
ção sem u m n o m e p e sso a l n ã o p a re c e a m ais a d e q u a d a p a ra tal p ro -
p ó sito . D e q u a lq u e r m o d o , a n te s q u e se faça tal co n cessão , a p rim e ira
tarefa é v e r se a a trib u iç ã o p o d e ser le v a d a a sério.
Q u e m é este d isc íp u lo a q u e m Jesu s a m a v a ? H á n o Q u a rto E v an -
g elh o três tip o s d e referên cias a d isc íp u lo s a n ô n im o s:

(a) E m 1,37-42, d o is d isc íp u lo s d e João B atista s e g u e m a Jesus.


U m é c h a m a d o A n d ré ; o n o m e d o o u tro n ã o é m e n c io n a d o .
N o co n tex to im e d ia to , a p a re c e m o u tro s d isc íp u lo s: S im ão Pe-
d ro , F ilip e e N a ta n ae l.
(b) H á d u a s p a ssa g e n s q u e m e n c io n a m " o u tro d isc íp u lo " o u "o
o u tro d iscíp u lo ":
VII · Identidade do autor e local da composição 99

• 18,15-16: P e d ro e o u tro d isc íp u lo se g u e m a Jesu s, o q u a l foi


le v a d o c ativ o p a ra o p a lá c io d o s u m o sa ce rd o te . O o u tro
d isc íp u lo é c o n h e cid o d o su m o sa c e rd o te e in tro d u z P e d ro
n o p alácio .
• 20,2-10: M a ria M a d a le n a co rre a P e d ro e ao o u tro d isc íp u -
lo (aq u e le a q u e m Jesu s a m a v a ) p a ra in fo rm a r-lh e s q u e o
c o rp o d e Jesu s n ã o está n o tú m u lo . O o u tro d isc íp u lo p a ssa
a d ia n te d e P e d ro ru m o ao tú m u lo . P e d ro e n tra p rim e iro ;
e n tã o o o u tro d isc íp u lo e n tra , v ê e crê.
(c) H á seis p a s sa g e n s q u e m e n c io n a m o d isc íp u lo a q u e m Jesus
a m a v a (o v e rb o " a m a r" é agapan em to d o s os casos, exceto
20,2, o n d e se u s a filein):
• 18,23-26: O d isc íp u lo a q u e m Jesu s a m a v a rec lin a so b re o
p e ito d e Jesu s d u ra n te a ú ltim a ceia, e S im ão P e d ro lh e faz
sin a is a q u e p e rg u n ta s s e so b re o tra id o r.
• 19,25-27: O d isc íp u lo a q u e m Jesu s a m a v a p e rm a n e c e ju n to
à c ru z , e Jesu s d á M aria a este d isc íp u lo co m o su a m ãe.
• 20,2-10: O " o u tro d isc íp u lo " m e n c io n a d o sob ( b ) acim a é
id e n tific a d o e m u m p a rê n te s e co m o " a q u e le a q u e m Jesus
a m a v a " . P a ra o c o n te ú d o d a cen a, v e r acim a.
• 21,7: O discípulo a q u e m Jesus am a v a se encontra em u m bar-
co p esq u eiro com Sim ão P ed ro e os d em ais discípulos; ele re-
conhece o Jesus ressu rreto e m p é n a p raia e inform a a Pedro.
• 21,2-23: O d isc íp u lo a q u e m Je su s a m a v a está se g u in d o Pe-
d ro e Jesus; o e scrito r n o s lem b ra, e n tre p a rê n te se , q u e ele é
o m e sm o d isc íp u lo m e n c io n a d o e m 13,23-26. P e d ro se vol-
ta e v ê o d isc íp u lo e in d a g a d e Jesu s so b re ele. Jesus d iz
q u e , p o ssiv e lm e n te , o d isc íp u lo ficará v iv o a té q u e ele volte.
O e sc rito r d iz q u e esta a firm a ç ão d e Jesus g e ro u co n fu são
e n tre o s c ristã o s q u e c o m e ç a ra m a c re r q u e o d isc íp u lo n ão
m o rre ría . L e n d o n a s e n tre lin h a s, p o d e m o s p re s u m ir q u e o
d isc íp u lo já h a v ia m o rrid o , d a í a n e c e ssid a d e d e explicação.
• 2 1 ,2 4 :0 e scrito r n o s in fo rm a q u e este d isc íp u lo é a fo n te d a s
co isas q u e têm sid o n a rra d a s.

A o c o m p a ra r estes tip o s d e referên cias, d e sco b rim o s q u e 20,2


id en tifica o D isc íp u lo A m a d o (d o ra v a n te D A ) com o o u tro d isc íp u -
10 m e n c io n a d o n a s e g u n d a p a ssa g e m d e (b). N ã o fica claro se o DA
100 Introdução

d e v e o u n ã o se r ta m b é m id e n tific a d o com o o u tro d isc íp u lo n a p ri-


m eira p a s sa g e m sob (b); m a s u m a re s p o s ta a firm a tiv a é s u g e rid a p e lo
fato d e q u e o d isc íp u lo n e sta cena (18,15-16) é a sso c ia d o c o m P e d ro ,
u m a asso ciação q u e p a re c e c a ra c te riz a r ao D A . N ã o ex iste n a d a q u e
c la ra m e n te id e n tifiq u e o d isc íp u lo a n ô n im o e m (a) c o m o s e n d o o D A ,
e m b o ra P e d ro esteja u m a v e z m a is n o co n tex to , a in d a q u e m e n o s di-
reta m e n te. A ssim , d e v e -se n o ta r q u e ao m e n o s n a s e g u n d a p a s sa g e m
sob (b) e e m (c) tem o s o m esm o d isc íp u lo a n ô n im o q u e é c o n h e c id o d e
d u a s m a n e ira s d ife ren te s, co m o " o o u tro d isc íp u lo " e co m o " o d isci-
p u lo a q u e m Jesu s a m a v a " . Se foi a m o d é stia q u e le v o u e sta te ste m u -
n h a o c u la r a n ã o refe rir-se a si m e sm o n o m in a lm e n te a o re p o rta r-se
ao s re la to s tra d ic io n a is so b re Jesu s, é difícil d e c re r q u e ele c h a m a sse
a ate n ç ã o c o n s ta n te m e n te p a ra o a m o r e sp ecial q u e Je su s tin h a p a ra
co m ele. U m a so lu ç ã o p la u s ív e l é q u e o d isc íp u lo , te s te m u n h a o c u la r,
refe riu a si sim p le sm e n te co m o " o o u tro d isc íp u lo " , e q u e fo ra m se u s
p ró p rio s se g u id o re s q u e se re fe rira m a ele co m o o D A . E sta su g e s-
tão receb e a lg u m a c o n firm a ç ão d e 20,2, o n d e " a q u e le a q u e m Je su s
a m a v a " é o b v ia m e n te u m p a rê n te s e a d ic io n a l p a ra id e n tific a r " o o u -
tro d isc íp u lo " . D isc u ta m o s a g o ra as v á ria s so lu çõ es p r o p o s ta s p a ra a
id e n tid a d e d o DA .
Primeiro, tem -se p ro p o sto q u e o D A n ã o é u m a fig u ra real, e sim
u m sím b o lo . P a ra L oisy, p . 128, ele é o d isc íp u lo c ristã o p e rfe ito , ju n to
a Jesu s n a ú ltim a ceia e n a h o ra d a m o rte , o p rim e iro a c re r n o C risto
re s su rre to . P a ra K ragerud, o D A é o sím b o lo d a escola jo a n in a d e p e n -
sarn en to . P a ra B ultmann, p . 369ss., e m v á ria s c e n as o D A r e p re s e n ta o
ra m o h e le n ista d a Igreja C ristã. E m 19,26, Jesu s d e ix a s u a m ã e (= cris-
tia n ism o ju d aico ) ao s c u id a d o s d o D A (= ig reja h e le n ista ). E m 20,2-10,
o D A (igreja h e le n ista ) p a ssa a d ia n te d e P e d ro (igreja ju d aic a) e m crer.
N a v e rd a d e , este é u m a re n o v a ç ã o d o sim b o lism o a n tig o ; G regório o
g ra n d e (Horn. In Evang. I I 22; PL 76:1175), e n c o n tro u o m e sm o sim b o -
lism o e n c o n tra d o p o r B ultmann, a p e n a s e m o rd e m in v e rsa , p o is o D A
n o p e n s a m e n to d e G regório re p re s e n ta a S in ag o g a e P e d ro r e p re s e n ta
a Igreja.
Q u e o D A tem u m a d im e n sã o fig u rativ a é p a ten te. D e m u ita s m a-
neiras, ele é o cristão exem plar, p o is n o N T " a m a d o " é u m a m a n e ira
d e d istin g u ir aos cristãos. N o e n tan to , esta d im e n sã o sim bólica n ã o sig-
nifica q u e o D A n a d a m ais é d o q u e u m sím bolo. A lg u é m p o d e acei-
tar u m a d im en são sim bólica p a ra M aria e P ed ro , co m o faz Bultmann;
VII · Identidade do autor e local da composição 101

m as isso n ã o r e d u z e stes p e rs o n a g e n s a m e ro s sím bolos. A essência


ób v ia d a s p a s s a g e n s e m João q u e d e scre v e o D A é q u e se tra ta d e u m
ser h u m a n o real, cujas ações são im p o rta n te s n o c e n ário d o ev an g e-
lho. E a ssim n ã o crem o s q u e o rec o n h ecim en to d a d im e n sã o secundár
ria e sim b ó lica d o D A im p e ç a a b u sc a p o r su a id e n tid a d e .
Segundo, L á z a ro é a fig u ra m a sc u lin a n o e v a n g e lh o d e q u e m se
d iz e s p ec ific am e n te q u e Jesu s o a m a v a . Filein o u philos se ap lica a Lá-
z a ro e m 11,3.11.36; agapan é u s a d o e m 11,5. (N o tam o s q u e o u so d e
v e rb o s e m refe rê n c ia ao D A é a p e n a s o o p o sto , p o is ali agapan é m ais
freq u en te). F ilson, art. cit. a rg u m e n ta q u e o e v a n g e lh o e sta v a d esti-
n a d o a se r a u to -in te lig ív e l a se u s leito res, os q u a is n ã o tiv e ssem q u e
re c o rre r a u m a tra d iç ã o d o 2a sécu lo p a ra id e n tific a r o a u to r com o
se n d o João, filh o d e Z e b e d e u , e d a í o D A seria in te rp re ta d o p e lo p ró -
p rio e v a n g e lh o e m refe rê n c ia ao a m o r d e Jesus p a ra com L ázaro. (Seu
a rg u m e n to só é v á lid o se os leito re s n ã o fo ssem b e m cien tes d a id en -
tid a d e d o a u to r m e sm o a n te s q u e tiv e ssem c o m e ç a d o o e v a n g elh o , e
b e m q u e p o d e ría m te r sid o cô n scio s d isto se o a u to r fosse u m ap ó sto lo
fam oso). E ckhardt, op. cit., v a i a in d a m ais lo n g e s u g e rin d o q u e L ázaro
era u m p s e u d ô n im o p a ra João, filho d e Z e b e d e u , d e p o is d e se r tra-
z id o d e v o lta d e n tre os m o rto s p e lo p o d e r d e Jesus! S anders, art. cit.,
p. 84, p e n s a q u e a b a se d o Q u a rto E v a n g e lh o foi u m a o b ra escrita
em a ra m a ic o p o r L á z aro (o q u a l e ra e n tã o c ita d o p o r João M arcos,
q u e e ra o e v a n g elista ). E d ig n o d e n o ta q u e to d a s as p a ssa g e n s acerca
d o D A o c o rre m a p ó s a re ssu rre iç ã o d e L ázaro . T em -se s u g e rid o (com
e x a g e ra d a im a g in a ç ã o ? ) q u e a ra z ã o p e la q u a l o D A foi o p rim e iro a
rec o n h e c er o C risto re s s u rre to , e m 21,7, foi e m ra z ã o d e L ázaro h a v e r
p a s s a d o p e la m e s m a ex p eriên cia.
T o d a v ia, é d ifícil c re r q u e a m e sm a p e sso a seja m e n c io n a d a ano-
n im a m e n te n o s c a p ítu lo s 13-21 e seja o u tra v e z m e n c io n a d a nom i-
n a lm e n te só n o s c a p ítu lo s 11 e 12. É v e rd a d e q u e os c a p ítu lo s 11 e 12
p o d e m m u ito b e m re p re s e n ta r o m a te ria l jo a n in o in se rid o n o ú ltim o
e stá g io d a re d a ç ã o d o e v a n g e lh o o u d a re d a ç ã o final, e isto p o d e ex-
p lic a r o d ife re n te e m p re g o n e sse s c a p ítu lo s. M as d e v e m o s p re s s u p o r
q u e o r e d a to r fin a l teria d e ix a d o esta e v id e n te in co n sistê n c ia e n ã o te-
ria in tr o d u z id o a d e sig n a ç ã o d o D A ta m b é m n a q u e le s c a p ítu lo s? N a-
tu ra lm e n te , re c o n h e c e m o s q u e e sta objeção n ã o é in su p e rá v el: d e p o is
d e tu d o , n o s cân tico s d o S ervo d o D e u te ro isa ía s o S ervo é a n ô n im o ,
e n q u a n to e m o u tro s c a p ítu lo s o S ervo é id e n tific a d o co m o Jacó-Israel.
102 Introdução

N ã o o b sta n te , n ó s p e rg u n ta m o s se n ã o é m a is lógico p re s s u p o r q u e
o D A seja a lg u é m q u e n ã o é m e n c io n a d o n o e v a n g e lh o , m a s e ra b e m
c o n h ecid o ao s leitores.
Terceiro, João M arco s é o u tro p o ssív e l c a n d id a to p a r a o p a p e l
d o DA . P arker e Sanders id e n tific a ra m o a u to r d o Q u a rto E v a n g e lh o
co m o se n d o João M arco s (p a ra Sanders, o e v a n g e lista n ã o é o m es-
m o p e rs o n a g e m q u e o D A se ria L ázaro ), p o n to d e v ista m a n tid o a n o s
a trá s p o r W ellhausen. H á u m n ú m e ro d e fato re s q u e p a re c e m p re s s u -
p o r isto e faz e r d e João M arco s u m b o m c a n d id a to :

• O la r d e João M arco s e m Je ru sa lé m (A t 12,12), e a m a io r p a r-


te d o Q u a rto E v a n g e lh o está c e n tra d o n o m in isté rio d e Jesus
e m Jeru salém . A in fo rm a ç ã o g eo g ráfica c o rre ta p e c u lia r a este
e v a n g e lh o p e rte n c e g ra n d e m e n te à á re a h ie ro so lim ita n a .
• João M arco s p a re c e te r tid o p a re n te s n a classe sa c e rd o ta l. S eu
p rim o B arn ab é e ra lev ita (Cl 4,10; A t 4,36). A liás, h á a lg u m a s
refe rê n c ia s a n tig a s a João M arco s co m o sa ce rd o te . O Q u a rto
E v a n g e lh o m o stra c erto in te re sse n o te m p lo e n a s festas; e se
o d isc íp u lo d e 13,15 fosse o D A , e n tã o e ra c o n h e c id o d o su m o
sacerd o te.
• A tra v é s d e P a u lo , M arco s p a re c e ter-se fa m ilia riz a d o c o m L u-
cas (Fm 24), e isto e x p licaria a in flu ê n cia c ru z a d a e n tre a tra d i-
ção lu c a n a e jo an in a.
• João M arcos parece ter tido contato com P edro (At 12,12; l P d 5,13),
e o D A é c o n sta n te m e n te a sso c ia d o c o m P e d ro . O Q u a rto E van-
g e lh o d á a P e d ro u m p a p e l m u ito im p o rta n te .

O u tro s a rg u m e n to s tê m sid o fo m e n ta d o s, m a s e stes sã o os m ais


n o táv eis. A í v e m im e d ia ta m e n te à m e n te a objeção d e q u e tra d ic io -
n a lm e n te João M arco s é tid o co m o se n d o o a u to r d o s e g u n d o e v a n g e-
lho, n ã o d o Q u a rto . E n tre ta n to , co m o re ssa lto u B runs, "John Marks",
p. 90, as te s te m u n h a s d o 2a século, n o to ca n te a o E v a n g e lh o d e M arco s,
n u n c a id e n tific a m João M arco s com M arco s o e v a n g e lista . É d ig n o d e
n o ta q u e e m A to s L ucas n u n c a refe re a João M arco s sim p le s m e n te
co m o M arco s, e m u ito s e scrito res p a trístic o s n ã o re c o n h e c e ra m q u e o
M arco s d a s c a rtas p a u lin a s e ra o João M arco s d e A tos.
P o d e-se o ferecer u m a objeção m a is fu n d a m e n ta l p a ra a tese d e
q u e João M arco s e ra o D A , isto é, q u e p a re c e ría lógico q u e o D A fosse
VH · Id en tid a d e d o au tor e lo ca l d a c o m p o siç ã o 103

um dos Doze. Sua intimidade com Jesus parece ter-lhe dado uma po-
sição ao lado de Pedro como uma das figuras mais importantes no
ministério. Estes são os primeiros dois discípulos a serem informados
do túmulo vazio em 20,2. A posição do DA junto a Jesus na última
ceia é outra indicação, pois os evangelhos sinóticos descrevem esta
refeição como uma das partilhadas por Jesus com os Doze (Mc 14,17;
Mt 26,20). Como, pois, poderia o DA ter sido João Marcos (ou, por
essa razão, Lázaro), que nunca é mencionado no relato sinótico do
ministério? Isto significaria que o discípulo que estava mais próxi-
mo a Jesus nem mesmo fosse lembrado nas listas de seus discípulos
especialmente escolhidos! Todo o mundo cristão estava aguardando
com expectativa que Jesus voltasse antes da morte do DA (Jo 21,23);
todavia, se o DA fosse João Marcos, os registros cristãos nem mesmo
registra o fato que Jesus o conhecera.
Q u a r t o , João, filho de Zebedeu, parece preencher muitos dos re-
quisitos básicos para a identificação como o DA. Ele era não só um
dos Doze, mas, juntamente com Pedro e Tiago, um dos três discípu-
los constantemente selecionados por Jesus a estar com ele. A íntima
associação com Pedro proposta na descrição do DA não se enquadra
com nenhuma outra figura neotestamentária tanto quanto se enqua-
dra com João, filho de Zebedeu. Nos sinóticos, João aparece com Pedro
mais amiúde do que qualquer outro discípulo; e na história primitiva
descrita em Atos, João e Pedro são companheiros em Jerusalém (caps.
3 4 ‫ )־‬e na missão a Samaria (8,14). A última missão é muito importante
à luz do que o Quarto Evangelho diz sobre uma missão entre os sa-
maritanos (ver p. 402).
Um fator extremamente importante ao estudar a identidade
do DA é que o Quarto Evangelho alega preservar suas memórias
de Jesus. Se estas são realmente suas memórias, elas sobreviveram
mesmo quando amiúde fossem muito diferentes das memórias que
introduziram o querigma petrino que subjaz a Marcos e, através de
Marcos, influenciou Mateus e Lucas. Em outras palavras, a tradição
histórica de João aparece assim como um desafio à tradição geral
partilhada pelos sinóticos. Não parece provável que o homem por
detrás dela devesse ser um homem de efetiva autoridade na Igreja,
um homem de um status não diferente do de Pedro? Neste aspecto,
João, filho de Zebedeu, seria um candidato mais provável do que
uma figura menor como João Marcos.
104 Introdução

H á o u tro s p o n to s m e n o re s q u e fav o re c em João, filh o d e Z e b e d e u .


É b e m p o s s ív e l q u e ele fo sse a p a re n ta d o c o m Je su s. N a n o ta so b re
19,25, s a lie n ta re m o s a s ra z õ e s p o r q u e te m -se s u g e rid o q u e S alo m é
fosse a m ã e d e Jo ão e ta m b é m a irm ã d e M a ria , m ã e d e Je su s. Se João
e ra s o b rin h o d e M a ria , isto e x p lic a ria p o r q u e Je su s c o n fio u a João
s u a m ã e (1 9 ,2 5 2 7 ‫)־‬. P o d e ría ta m b é m e x p lic a r u m d o s g r a n d e s p ro -
b le m a s s o b re o D A ; a sa b e r, q u e , se "o o u tro d is c íp u lo " d e 18,15-16
e ra o D A , e n tã o o D A e ra c o n h e c id o d o s u m o sa c e rd o te . P a ra ex p li-
c a r co m o u m p e s c a d o r G a lile u c o m o Jo ão te ria tid o " a c e sso " n a casa
d o s u m o s a c e rd o te , a lg u é m fa ria Jo ão u m p r o v e d o r o fic ial d e p e ix e ,
ao p a lá c io sa ce rd o ta l! O u tro s re c u a m à in fo rm a ç ã o d e P olicrates d e
É feso (c. 190) d e q u e João, o D A , e ra u m sa c e rd o te q u e u s a v a a lâm i-
n a s a c e rd o ta l d e o u ro (E usébio, Hist. 5 ,2 4 :3 ; G C S 9h490). E n q u a n to a
in fo rm a ç ã o d e P olicrates d e q u e Jo ão e s ta v a e m É feso p o d e ju stifi-
car a lg u m a c o n fia n ça , a in fo rm a ç ã o so b re o s a c e rd ó c io d e Jo ão b e m
q u e p o d e ría s e r u m a d e d u ç ã o d a p a s s a g e m q u e e s ta m o s c o n s id e ra n -
d o . O m e s m o p a re c e r foi feito n a a n tig u id a d e d e T ia g o e M a rc o s (d e
to d o s o s trê s, B ernard, II, p . 594, le v a e sta in fo rm a ç ã o m u ito a sé rio ,
re s s a lta n d o q u e s u a p o siç ã o s a c e rd o ta l p o d e ria e x p lic a r p o r q u e T ia-
g o e Jo ão , ju n ta m e n te co m P e d ro , e ra m im p o r ta n te s n a ig re ja h ie ro -
so lim ita n a e m c o n fo rm id a d e co m G 1 2,9). M as, se d e ix a rm o s d e la d o
o p a re c e r d e P olicrates so b re o sa c e rd ó c io d e Jo ão , a p o s s ib ilid a d e
d e q u e Jo ão fo sse s o b rin h o d e M a ria p o d e a ju d a r a e x p lic a r s u a s co-
n ex õ e s sa c e rd o ta is, p o is M a ria tin h a p a re n te s n a fa m ília s a c e rd o ta l,
d e a c o rd o co m Lc 1,5.36 (e m b o ra a h is to ric id a d e d e s ta in fo rm a ç ã o
lu c a n a n ã o seja a c eita p o r to d o s).
A lista m a is c o m p le ta d e o b jeçõ es à id e n tific a ç ã o d e Jo ão , filh o
d e Z e b e d e u , c o m o o D A se e n c o n tra n o "John the Sun o f Zebeãee" d e
P arker, u m a rtig o e sc rito co m o fim d e o p o r-s e à s h ip ó te s e s , q u e
g ra d u a lm e n te g a n h a v a te rre n o , d e q u e Jo ão foi o a u to r d o e v a n g e -
lh o . E m n o s s o ju íz o p e sso a l, a lg u m a s d a s m u ita s o b jeçõ es q u e ele
a p re s e n ta n ã o sã o c o n v in c e n te s. P o r e x e m p lo , o fa to d e q u e o Q u a r to
E v a n g e lh o n ã o m e n c io n e S alo m é, m ã e d e João, o u T ia g o , s e u irm ã o ,
n ã o p a re c e ría d ifícil d e e n te n d e r; se João n ã o fez m e n ç ã o d e le m e s-
m o p o r ra z õ e s d e a n o n im a to , p o d e ria te r e s te n d id o e ste a n o n im a to
à su a fam ília. O s a rg u m e n to s s e g u in te s sã o u n s d o s q u e o fe re c e m
re a l d ific u ld a d e :
VII · Identidade do autor e local da composição 105

• Jo ã o e ra G a lile u , m a s e ste é u m e v a n g e lh o q u e d á m áx im a
a te n ç ã o ao m in is té rio h ie ro s o lim ita n o d e Jesu s. A ex p licação
u s u a l é q u e , c o m o u m d o s trê s e sc o lh id o s d e Jesu s, João o
a c o m p a n h a v a a J e ru s a lé m e m se u s v á rio s itin e rá rio s. Se João
e ra s o b rin h o d e M a ria , p o d e m o s ta m b é m re le m b ra r q u e M a-
ria tin h a p a re n te s n a Ju d e ia (Lc 1,39). A ra z ã o p o r q u e o Q u a r-
to E v a n g e lh o c e n tra a a te n ç ã o e m Je ru s a lé m , e m p a rte é teoló-
gica; n ã o h á im p lic a ç ã o n e c e ssá ria d e q u e o a u to r n ã o tiv e sse
c o n h e c im e n to d o e x te n so m in is té rio g alileu .
• A t 4,13 d e s c re v e o filh o d e Z e b e d e u c o m o " ile tra d o e se m
p o s iç ã o s o c ia l", a trib u to s d ific ilm e n te d a d o s ao q u a rto ev a n -
g e lista . N ã o o b s ta n te , a u to ria , c o m o m e n c io n a m o s n o início
d e s ta p a rte , n ã o sig n ific a n e c e s s a ria m e n te q u e João e screv es-
se fis ic a m e n te o e v a n g e lh o o u lh e d e sse e x p re ssã o g ráfica re-
la tiv a m e n te flu e n te . O e v a n g e lh o a le g a q u e D A foi a fo n te d e
s u a tra d iç ã o , e é isso q u e n o s p r e o c u p a a q u i.
• D u a s d a s p rin c ip a is c e n a s d e q u e João foi te s te m u n h a , a
T ra n s fig u ra ç ã o e a a g o n ia n o ja rd im , n ã o sã o m e n c io n a d a s
n e s te e v a n g e lh o . Isto é e s tra n h o , a m e n o s q u e a c eite m o s a
s u g e s tã o u m ta n to fo rç a d a d e q u e a p a ix ã o d o D A p e lo an o -
n im a to o le v o u a o m itir c e n a s q u e n ã o p u d e s s e m se r d es-
c rita s s e m a u to -id e n tific a ç ã o . E n tre ta n to , se n o ta rá q u e os
e le m e n to s q u e a p a re c e m n a s d e sc riç õ e s sin ó tic a s d a tra n sfi-
g u ra ç ã o e d a a g o n ia ta m b é m a p a re c e m n o Q u a rto E v an g e-
lh o (v e r c o m e n tá rio so b re 12,23.27-28); e, d e certos aspectos,
c o m o e s p e ra m o s m o s tra r, o tra ta m e n to d e q u e o m a te ria l no
Q u a r to E v a n g e lh o p o d e ria se r m a is o rig in a l d o q u e o tra ta -
m e n to sin ó tico .

P o rta n to , h á co m m u ita c la rez a d ific u ld a d e s a se re m e n c ara d as,


caso se id e n tifiq u e o D A c o m o se n d o João, filh o d e Z e b e d eu . N ã o obs-
tan te , e m n o s s a o p in iã o p e sso a l, h á d ific u ld a d e s a in d a m ais sérias se
ele fo r id e n tific a d o co m o se n d o João M arcos, L ázaro o u a lg u m desco-
n h ecid o . Q u a n d o tu d o isso é d ito e feito, a c o m b in ação d e ev id ên cias
e x te rn as e in te rn a s , a sso c ia n d o o Q u a rto E v a n g e lh o com João, filho de
Z e b e d e u , faz e sta h ip ó te se m a is fo rte, se se e stá p re p a ra d o p a ra d a r
c ré d ito à p re te n s ã o d e ste e v a n g e lh o n o se n tid o d e d e p e n d e r d e u m a
te s te m u n h a o c u la r co m o fonte.
106 Introdução

C. CORRELAÇÃO DA HIPÓTESE DE JOÃO COMO AUTOR


COM UMA TEORIA MODERNA DE COMPOSIÇÃO

A alegação d o e v a n g elh o d e ter u m a te ste m u n h a o c u la r co m o fo n te


tem o a m p a ro , sob a an álise d e u m a crítica m o d e rn a , d a tra d içã o q u e
subjaz ao ev an g elh o ? C o m o se p o d e conciliar a alegação d e q u e João,
filho d e Z e b ed eu , foi o a u to r com o p ro cesso d e co m p o sição d o ev an -
gelho p ro p o sto n a S e g u n d a P arte? João teria sid o re sp o n sá v e l so m e n te
p e la trad ição h istórica p o r d e trá s d o e v a n g elh o (P rim eiro E stágio)? E sta
p arecería se r a p ro p o sta m ín im a q u e se p o d e ria fazer e a in d a a trib u ir
a u to ria (no a n tig o se n tid o d e " a u to r" = a u to ria) a João. O u a e v id ên cia
a d m ite João co m o te n d o sid o o a u to r d e u m a m a n e ira m ais im e d ia ta ,
n o se n tid o d e q u e João foi o p re g a d o r e teólogo q u e d e u fo rm a ao m ate-
rial histó rico n o s relato s e d isc u rso s d o e v a n g elh o (S eg u n d o e T erceiro
Estágios) e a in d a re d a to u o e v a n g elh o (Q u a rto Estágio)?
A n tes d e te n ta r u m a re sp o sta a e sta s p e rg u n ta s , te m o s q u e recor-
d a r q u e n ã o se p o d e m a n te r q u e João fosse o re d a to r fin al d o e v a n -
g elh o (Q u in to E stágio), p o rq u e o " n ó s" d e 21,24 é d istin to d o D A , e
tam b é m p o rq u e o D A p ro v a v e lm e n te já estiv esse m o rto q u a n d o o ca-
p ítu lo 21 foi escrito (21,22-23). Isto significa q u e a lg u é m m ais, a lé m d e
João, esta v a e n v o lv id o n a c o m p o sição d o e v a n g elh o ; e, d e v e ra s, a a n ti-
g a ev id ên cia n ã o a trib u i a João a a u to ria c o m p le ta d o e v a n g e lh o , p o is
q u ase c a d a relato d a co m p o sição associa o u tro s com João. C lemente d e
A lex an d ria (E usébio Hist., 6,14:7; G C S 92:550) d iz q u e João foi en co ra-
jad o p o r se u s d isc íp u lo s o u c o m p a n h e iro s. O F ra g m e n to M u ra to ria n o
(c. 170) ta m b é m fala d a in stig aç ã o d o s d isc íp u lo s e b isp o s co leg as d e
João, e d iz q u e João re la to u " to d a s as coisas e m se u p ró p rio n o m e, aju-
d a d o p e la revisão d e to d o s" . O P refácio latin o à V u lg a ta d e João fala q u e
João re u n iu se u s d isc íp u lo s e m Efeso a n te s d e m o rre r. O P ró lo g o la tin o
a n ti-m a rc io n ita (c. 200) fala d e P apias e scre v e n d o o e v a n g e lh o sob o di-
ta d o d e João. H á u m a tra d içã o d o 4Qsécu lo d e q u e M arcião foi escrib a
d e João; e n o s Atos de João, d o 5‫ ט‬século, P rócoro, d isc íp u lo d e João, ale-
g a ter sid o o escriba a q u e m João d ito u o e v a n g e lh o e m P a tm o s. E stas
atrib u içõ es são len d á ria s; m as, to m a d a s c o m o u m to d o , c o n stitu e m u m
a n tig o reco n h ecim en to d e q u e os d isc íp u lo s d e João c o n trib u íra m p a ra
o e v a n g elh o co m o escrib as o u m esm o com o red a to re s.
V oltando ag ora à q u estão suscitada acim a, p o d e m o s com eçar in d a-
g an d o se a trad ição histórica p o r d etrás d o ev an g elh o (P rim eiro Estágio)
VII · Identidade do autor e local da composição 107

reflete o te s te m u n h o d e u m a te s te m u n h a o cu lar. N a tu ra lm e n te , o p ró -
p rio fato d e q u e p ro p o m o s tra d iç ã o h istó ric a ao m e n o s to rn a p o ssív e l
q u e João esteja p o r trá s d e ste e v a n g e lh o , m a s a in d a ex istem dificul-
d a d e s. D odd p ro v a v e lm e n te seja o m a io r d e fe n so r m o d e rn o d e u m a
tra d içã o h istó ric a in d e p e n d e n te n a b a se d e ste e v a n g e lh o , e, to d av ia ,
ele n ã o c o n s id e ra co m o p ro v á v e l a a u to ria jo a n in a (Tradition , p. 171)·
A d ific u ld a d e fu n d a m e n ta l é q u e , e n q u a n to em a lg u n s casos a fo rm a
d e u m a n a rra tiv a o u d ito su b ja c e n te o re la to jo a n in o seja m ais p rim i-
tiv o q u e a fo rm a su b ja c e n te a o re la to sin ó tico , e m o u tro s casos ela é
m ais d e s e n v o lv id a . C o m o p o d e tal d e se n v o lv im e n to co n ciliar-se com
a teo ria d e q u e a fo rm a se o rig in a d e u m a te s te m u n h a o c u la r q u e p re-
su m iv e lm e n te re c o rd a ria e x a ta m e n te o q u e aco n teceu ?
A o tr a ta r d o s e v a n g e lh o s sin ó tico s, o n d e h á ta m b é m m a rc a n te
d e s e n v o lv im e n to n a tra d iç ã o h istó ric a su b ja c e n te , os crítico s e n fa ti-
z a m q u e o s p r ó p rio s e v a n g e lis ta s n ã o fo ra m te s te m u n h a s o c u la re s
e q u e a s tra d iç õ e s q u e u s a ra m p e rm a n e c e ra m , e m s u a m a io r p a rte ,
em a lg u m a d is tâ n c ia n o te m p o e m a tu r id a d e d o te s te m u n h o o cu lar.
E n tre ta n to , e m M a rc o s p a re c e h a v e r c o m fre q u ê n c ia c e n a s q u e ap a -
re n te m e n te tê m c a ra c te rístic o s o c u la re s d ire to s, p re s u m iv e lm e n te
p o rq u e , n e s te s ca so s, M a rc o s e stá se v a le n d o d o te s te m u n h o o c u la r
d e P e d ro . A lg u n s d o s a s p e c to s n a tra d iç ã o h istó ric a q u e su b ja z a
João d e n u n c ia m m e m ó ria s q u e p o d e m te r v in d o , se m a lte ra ç ã o , d e
u m a te s te m u n h a o c u la r (v er P a rte III:A , p . 29). M as se a lg u é m a tri-
b u i to d a a tra d iç ã o h istó ric a a u m a te s te m u n h a o c u la r, e n tã o esse
m esm o p r o p o r ia q u e e sta te s te m u n h a o c u la r e x e rc e u c o n sid e rá v e l
lib e rd a d e e m a d a p ta r e d e s e n v o lv e r s u a s m e m ó ria s d o q u e Jesus
d isse e fez. Isto n ã o p a re c e im p ro v á v e l se n o s le m b ra rm o s d e q u e
u m q u e se p r e s u m e se r a te s te m u n h a o c u la r, Jo ão , filh o d e Z ebe-
d e u , e ra ta m b é m a p ó s to lo c o m is s io n a d o a p r e g a r Je su s ao s h o m e n s.
N e c e s sa ria m e n te , ele te v e q u e a d a p ta r ao se u a u d itó r io a tra d iç ã o
d a q u a l e le e ra u m a te s te m u n h a v iv a . A c o n c ep ç ã o d a te s te m u n h a
a p o s tó lic a c o m o u m r e p o r ta r im p a rc ia l cujo p rin c ip a l in te re sse era
a d e ta lh a d a e x a tid ã o d a s m e m ó ria s q u e ele re la to u c o n s titu i u m
a n a c ro n is m o . (S obre e sta q u e stã o , a d isc u s s ã o d a C o m issã o Bíblica
P o n tifícia C a tó lic a d e 21 d e a b ril d e 1964 é d e in te re s s e p a ra d e ix a r
b e m c la ro q u e a s te s te m u n h a s a p o stó lic a s n ã o fo ra m c a n a is p a ssiv o s
d a tra d iç ã o : " In te rp r e ta ra m s u a s p a la v ra s e feito s e m c o n fo rm id a d e
co m a s n e c e s s id a d e s d e s e u s o u v in te s " ).
108 Introdução

E m s u m a , p o is, a q u e stã o d e se a tra d iç ã o h istó ric a su b ja c e n te a


João v eio d e u m a te s te m u n h a o c u la r co m o João, filho d e Z e b e d e u , só
p o d e ser re s p o n d id a c ien tificam en te e m te rm o s d e p ro b a b ilid a d e . Em
u m p ra to d a b a la n ç a está o fato d e q u e esta tra d iç ã o m o stra d e sen v o l-
v im e n to . Isto n ã o c o n stitu i u m o b stá c u lo in su p e rá v e l, e p e sso a lm e n te
crem o s q u e se c o m p e n sa com a a n tig a tra d iç ã o e o p ró p rio e v a n g e lh o
reiv in d ic a q u e ele re p re s e n ta o te s te m u n h o d e u m a te s te m u n h a ocu-
lar. A ssim , n ã o p e n sa m o s ser an ti-cien tífico m a n te r q u e João, filh o de
Z e b e d e u , p ro v a v e lm e n te fosse a fo n te d a tra d iç ã o h istó ric a p o r d e trá s
d o Q u a rto E v an g elh o .
A g o ra p o d e m o s v o lta r à q u e stã o d e se u m a te s te m u n h a o c u la r
(João) fosse ta m b é m o re sp o n sá v e l p e lo S e g u n d o E stág io a té o Q u a rto
E stág io , p e la c o m p o sição d o e v a n g e lh o , o n d e a tra d iç ã o h istó ric a foi
fo rm a d a p o r n a rra tiv a s d ra m á tic a s e p o lid a s e p o r lo n g o s d isc u rso s
e, fin a lm e n te , p o r u m e v a n g e lh o c u id a d o s a m e n te re d a ta d o . A q u i, as
d ific u ld a d e s são m a is fo rm id á v e is. P o r e x e m p lo , é re a lm e n te conce-
b ív el q u e u m a te s te m u n h a o c u la r fosse re sp o n sá v e l p e la fo rm a final
d o rela to d e co m o M aria u n g iu a Jesus (12,1-7)? Se a crítica m o d e rn a
tem a lg u m a v a lid a d e , e n tã o a u n ç ã o d o s p é s d e Je su s r e p re s e n ta u m
a m á lg am a d e d e ta lh e s d iv e rso s d e d o is re la to s in d e p e n d e n te s , e m u m
d eles u m a m u lh e r u n g iu a cabeça d e Jesu s e n o o u tro u m a m u lh e r
p e c a d o ra e n x u g o u e se u s cabelos c a íra m so b re se u s p é s. A ssim , n e ste
e em m u ito s o u tro s casos h á u m a c o n sid e rá v e l d istâ n c ia e n tre o q u e
está a g o ra n o e v a n g e lh o e o q u e a in v estig a ç ã o crítica re c o n s tru iría
co m o a cen a o u d ito rea l n o m in isté rio d e Jesu s - u m a d istâ n c ia q u e
en v o lv e sim p lificação , a m p lia ç ã o , o rg a n iz a ç ã o , d ra m a tiz a ç ã o e d e-
se n v o lv im e n to teológico. O s e stu d io so s d iv e rg irã o n a a v a lia ç ã o d e s ta
d istân cia, m a s to d o s c o n c o rd a rã o q u e há u m a d istâ n c ia . Só co m g ra n -
d e d ific u ld a d e é q u e o p ro ce sso re sp o n sá v e l p o r tal d e se n v o lv im e n to
p o d e ser a trib u íd o a u m a te s te m u n h a o cu lar.
A q u i, e m n o ssa o p in iã o , as p ro b a b ilid a d e s fav o re c em o u tra so-
lu ção , p o is p o d e m o s faz e r u s o d a a n tig a e v id ê n c ia d e q u e os disci-
p u lo s d e João ex e rc e ra m c erto p a p e l n a co m p o siç ão d o e v a n g elh o .
A cim a, fav o recem o s a su g e stã o d e q u e João, filho d e Z e b e d e u , foi a
fo n te d a tra d içã o h istó ric a su b jacen te q u e já h a v ia tid o a lg u m d e se n -
v o lv im en to e m s u a p ró p ria p reg a ç ã o . E b e m p o ssív e l q u e se u s disci-
p u lo s, im b u íd o s co m se u e sp írito e sob su a d ire triz e e stím u lo , p re -
g a ra m e d e s e n v o lv e ra m a in d a m ais s u a s rem in isc ên c ia s, s e g u n d o as
VII · Identidade do autor e local da composição 109

n e c e s s id a d e s d a c o m u n id a d e à q u a l m in istra v a m . V isto q u e o e v an g e-
lh o p a re c e im p lic a r q u e o D A v iv e u m ais te m p o d o q u e a m a io ria d a s
o u tra s te s te m u n h a s o c u la res, n ã o p re c isa m o s p r e s s u p o r q u e a fonte
d a tra d iç ã o h istó ric a h a v ia c e ssa d o n o início d a p re g a ç ã o d o s d isc íp u -
los, p o is p o d e ria m v o lta r ao s e u m e s tre e c o m p a rtilh a r g ra n d e p a rte
d e s u a s e x p e riê n c ia s co m o m in isté rio d e Jesus. (Em p a rte , isto p o d e
ex p licar o fato d e q u e a lg u n s d o s rela to s jo an in o s m o stra m m a io r p o -
lid e z e d e s e n v o lv im e n to d o q u e o u tro s relatos). E m p a rtic u la r, p ro p o -
ría m o s um só discípulo principal cuja tra n sm issã o d o m a te ria l h istórico
rec e b id o d e Jo ão foi c a ra c te riz a d a p o r u m g ên io d ra m á tic o e p ro fu n d a
v isão teo ló g ica, e é a p re g a ç ã o e e n sin o d e ste d isc íp u lo q u e d e ra m
fo rm a a o s re la to s e d isc u rso s o ra e n c o n tra d o s n o Q u a rto E v an g elh o .
Em s u m a , este d isc íp u lo te ria sid o re sp o n sá v e l p e lo s S e g u n d o Está-
gio a té o Q u a rto E stág io n a c o m p o siç ão d o e v a n g e lh o co m o os tem os
p ro p o sto . F oi s u g e rid a u m a a n a lo g ia p o r G äechter (ZKT 60 [1936],
161-87): a rela çã o e n tre o d isc íp u lo q u e e scre v e u o Q u a rto E v an g elh o
e a te s te m u n h a o c u la r q u e foi s u a fo n te n ã o é d ife re n te d a relação
e n tre M arco s e P e d ro . (D isp e n sa r d iz e r q u e e sta a n a lo g ia teria d e ser
q u alificad a). N ã o d a m o s n o m e ao d isc íp u lo -e v a n g e lista d o Q u a rto
E v an g elh o , a in d a q u e a lg u é m se d eix e a tra ir p e la h ip ó te se d e João
o P resb ítero .
P o d e -se s u s c ita r a objeção d e q u e , se João, filho d e Z e b e d e u , foi
a p e n a s a fo n te d a tra d iç ã o h istó ric a , e n tã o o d isc íp u lo -e v an g e lista
foi o a u to r re a l d o e v a n g e lh o ; e n a re a lid a d e o e v a n g e lh o n ã o seria o
E v an g elh o s e g u n d o João. A m e sm a a n a lo g ia d e M arco s e P e d ro p o d e
ser u s a d a c o n tra n o ssa teo ria, p o is, a lé m d o m ais, o se g u n d o ev an -
gelh o n ã o s u rg iu co m o o E v a n g e lh o se g u n d o M arco s, n e m com o o
e v a n g elh o s e g u n d o P e d ro . H á d o is p o n to s q u e p o d e m ser fo rm u la d o s
em re s p o s ta a esta objeção.
Primeiro, n a m e n ta lid a d e c ristã p rim itiv a , as raíz es ap o stó lic a s d e
u m a o b ra re a lm e n te e ra m m ais d ig n a s d e n o ta d o q u e as c o n trib u i-
ções d o s q u e re a lm e n te c o m p u s e ra m e e sc re v e ra m a o b ra. O s estu -
d io so s d ife re m e m se u s c ritério s so b re a a u to ria d o N T , m a s alguns
e v o c aria m ta l p rin c íp io p a ra ex p lic ar a a trib u iç ã o d e 2 P e d ro a P e d ro
e as P a sto ra is a P au lo . O fato d e q u e o se g u n d o e v a n g e lh o foi atri-
b u íd o a M a rc o s e n ã o a P e d ro p ro v a v e lm e n te n ã o d e v a se r reso lv id o
em te rm o s d e q u a n to o u q u ã o p o u c o M arco s e x a m in o u d e tid a m e n -
te a tra d iç ã o d e P e d ro , e sim em te rm o s d o fato d e q u e M arcos era
110 Introdução

co n h ecid o n a Igreja p rim itiv a co m o c o m p a n h e iro d e P a u lo , B arn ab é


e P ed ro . (A ssim , a ssu m im o s q u e a id en tifica ç ã o m o d e rn a d e M arco s
co m João M arco s seja c o rre ta , m e sm o q u e e ssa id en tifica ç ã o p a re c e ter
sid o ig n o ra d a n o 2“ século). O p rim e iro e v a n g e lh o reflete u m a situ a -
ção q u e é ju s ta m e n te o o p o sto . A re la ç ã o d o p rim e iro e v a n g e lista com
M a te u s p ro v a v e lm e n te fosse m ais tê n u e d o q u e a d e p e n d ê n c ia q u e
M arco s tev e d e P e d ro ; m a s o p rim e iro e v a n g e lista n ã o e ra u m a fig u ra
b e m c o n h e cid a , e a ssim s e u e v a n g e lh o v e io a se r d e s ig n a d o d e a c o rd o
co m su a fo n te a p o stó lic a u m ta n to d ista n te . O fato d e q u e o d isc íp u -
lo -ev an g elista d o Q u a rto E v a n g e lh o n ã o e ra fam o so p ro v a v e lm e n te
fosse u m fato n a a trib u iç ã o d a q u e le e v a n g elh o .
M as h á u m a segunda co n sid eração m ais im p o rta n te . S u g e rim o s q u e
a relação d e João com se u s d isc íp u lo s fosse m u ito m ais e stre ita d o q u e a
relação d e P e d ro com M arco s (que e m se u s p rim e iro s d ia s e ra m a is ín-
tim o d e P aulo), e q u e o Q u a rto E v an g elh o re a lm e n te e stá n o e sp írito d e
João. A d m itid a m e n te , a q u i e sta m o s e sp ec u lan d o , m a s a s a n tig a s refe-
rên cias ao s d isc íp u lo s d e João p a re c e m im p lic a r certa in tim id a d e e n tre
o m estre e os q u e se re u n ira m e m to m o dele. E assim , q u a n d o falam o s
os d iscíp u lo s, estam o s p e n s a n d o e m h o m e n s to ta lm e n te fo rm a d o s n o s
p ró p rio s p a d rõ e s d o p e n sa m e n to d e João. E m n o ssa c o m p re e n sã o pes-
soai d o e v an g elh o , n ã o seria ex ato d iz e r q u e a in flu ên cia d e João se con-
finasse à p ro v isã o d a tra d içã o histórica, p o is o d e se n v o lv im e n to d e ste
m ate ria l n o S e g u n d o E stágio até o Q u a rto E stágio é u m a c o n tin u a çã o
n o s m o ld es d o d e sen v o lv im e n to já e n c o n tra d o n o P rim e iro E stágio.
(E essa é a ra z ã o p o r q u e às v ezes é m u ito difícil e sta r se g u ro se u m as-
p ecto p a rtic u la r d e u m relato o u exposição d e u m d ito d e Jesu s p e rte n c e
à trad ição histó rica o u é p a rte d e in te rp re ta ç ã o su b seq u e n te ). A lé m d o
m ais, o ev an g elh o p a re c e im p licar, ao m en o s n o c a p ítu lo 21, q u e o D A
p e rm a n ec e u v iv o co m o u m a in flu ên cia c o n tín u a a tra v é s d o p e río d o
e m q u e o e v a n g elh o esta v a se n d o escrito, d e m o d o q u e se p o d e d iz e r
(21,24): "É ele q u e m escrev eu estas coisas" (i.e., fez co m q u e fo ssem es-
critas - v e r no ta). E m c o n tra p a rtid a , isto n ã o significa q u e o d iscíp u lo -e-
v an g elista p u d e s s e ser re d u z id o ao p a p e l d e secretário d e João, m a s, ao
co n trário , q u e a real co n trib u ição fo rm a tiv a d o d isc íp u lo ao e v a n g elh o
refletiu estre itam e n te a p e rsp e c tiv a d e se u m estre.
C om o m en cionam os n a S eg u n d a P arte, p o d e-se e n c o n trar algu-
m a evidência d e sta teoria n o fato d e q u e existem v árias o b ras jo an in as
(Evangelho, E pístolas e A pocalipse) q u e p a rtilh a m d e am b ien te teológico
VII · Id en tid a d e d o au tor e lo ca l d a c o m p o siç ã o I ll

distintivo, porém trazem a lume diferenças de estilo e desenvolví-


mento. B arrett, p. 113, tem sugerido que os diferentes alunos reu-
nidos em torno de João foram responsáveis pelas três obras (embora
as Epístolas sejam mais subdivididas). Ele pensa que Apocalipse é a
obra que é mais diretamente de João, pois é muito mais primitiva e
semítica do que o estilo mais polido das Epístolas e do evangelho.
Se alguém se sente inclinado a propor escritores diferentes para o
evangelho e as Epístolas, sua proximidade parecería indicar que seus
escritores pertenceram à mesma escola de pensamento; e assim a su-
gestão de que foram diferentes discípulos de João é bem plausível.
(Deixaremos para a Introdução às Epístolas uma discussão completa
desta questão e uma exposição de nossos pontos de vista pessoais).
E, naturalmente, descobrimos a mão de outro discípulo de João, e pro-
vavelmente um estreitamente associado ao evangelista, na redação
final do evangelho (Quinto estágio).
Uma vez mais, a fim de sermos perfeitamente claros, não temos
ilusões de que a teoria da autoria apresentada nesta discussão te-
nha sido ou possa ser provada. E uma teoria a d h o c , formulada com
a intenção de fazer a máxima justiça possível à evidência antiga, ao
testemunho do próprio evangelho e às claras exigências da erudição
crítica. Ela não satisfará a alguém que se convence de que somente
uma destas três fontes de conhecimento sobre a autoria do evangelho
necessita de ser levada a sério.

D . L O C A L D A C O M P O S IÇ Ã O

As antigas tradições sobre a composição de João mencionam Efeso, e


mencionaremos abaixo a evidência interna em favor de Efeso. Mas,
antes de tudo, consideremos os outros candidatos.
A l e x a n d r i a tem tido seguidores certos (S tather H unt , B roomfield,
J. N. S anders, por enquanto). A ampla circulação de João no Egito,
como atestado pelos papiros, é um fator aqui. Não obstante, exige-se
prudência, pois uma razão pela qual há papiros egípcios de qualquer
obra é que o clima do Egito era mais favorável do que o de outros cen-
tros cristãos para a sobrevivência dos papiros. O fato de que Alexandria
era a pátria de F ilo, dos autores do C o r p u s H e r m é t i c o s e do V alen-
tino gnóstico tem sido de alguma importância no pensamento dos
112 Introdução

e s tu d io so s q u e m a n tê m q u e o e v a n g e lh o foi in flu e n c ia d o p o r u m a ou
o u tra d e ssa s esco las d e p e n sa m e n to .
Antioquia d a Síria é o u tra c a n d id ata, e u m a e n d o ssa d a p o r W . B auer
e B urney . A p o s s ib ilid a d e d e q u e Inácio d e A n tio q u ia se v a le sse de
João é u m im p o rta n te fato r a q u i. Se h á o u n ã o d e p e n d ê n c ia literá-
ria d ire ta , o fato d e q u e h á sim ila rid a d e s n a teo lo g ia d e I nácio com
os tem a s jo an in o s é b a s ta n te p a ra su sc ita r a q u e s tã o d e se v ie ra m d a
m esm a reg ião . H á e v id ê n c ia d e u m a tra d iç ã o e n tre e sc rito re s latin o s
d e q u e I nácio foi d isc íp u lo d e João (p a rá fra se s p o r R ufino d e E usébio
Hist. Ill 36:1-2 [GCS 9 2 7 5 :‫ ]ו‬e p o r J erônimo d e E usébio Crônicas [GCS
47:193-4]). P a ra e v id ê n c ia siríaca d a m e sm a tra d iç ã o n o s sécu lo s q u a r-
to e sex to , v e r C. F. B urney , The Aramaic Origins of the Fourth Gospel
[As O rig en s A ra m a ica s d o Q u a rto E v an g elh o ] (O xford: C la re n d o n ,
1922), p. 130. O u tro s e x tra em u m a rg u m e n to d a s relaçõ es e n tre 1 João
e M ateu s, v isto q u e o ú ltim o é g e ra lm e n te tid o co m o se n d o u m ev a n -
g elh o d a Síria. N ã o o b sta n te , a falta d e p a ra le lo s e stre ito s e n tre João e
M a te u s tem to m a d o a rg u m e n to d u v id o so . T o d a v ia, o u tro a rg u m e n to
está b a s e a d o n a s se m e lh a n ç a s e n tre João e as Odes de Salomão, u m a
o b ra siríaca; re a lm e n te n a d a existe a q u i q u e n o s c o n v e n ç a d e q u e o
e v a n g elh o fo sse escrito n a Síria.
Éfeso a in d a p e rm a n e c e te n d o a p rim a z ia p a ra a id en tifica ç ã o com o
se n d o o local o n d e João foi co m p o sto . A lém d isso , a v o z q u a se u n â n i-
m e d a s an tig a s te ste m u n h a s q u e tra ta m d o tem a , tem o s u m a rg u m e n -
to d o s p a ra lelo s e n tre João e o A p o calip se, p o is a ú ltim a o b ra p e rte n -
ce c la ram e n te à á re a d e Efeso. O m o tiv o a n ti-sin a g o g a n o e v a n g elh o
(ver Sexta P arte, p. 80ss) faz se n tid o n a reg ião d e Éfeso, p o is A p 2,9
e 3,9 a te sta a m a rg a s p o lêm icas a n ti-sin a g o g as n e sta á re a d a A sia M e-
nor. Se h á n o e v a n g elh o u m a p o lêm ic a c o n tra os d isc íp u lo s d e João
B atista, só h á m en ç ã o n e o te sta m e n tá ria d e d isc íp u lo s b a tiz a d o s com
o b a tism o d e João e m u m lu g a r fora d a P a lestin a - E feso (A t 19,1-7).
Se h á p a ra lelo s e n tre João e os ro lo s d e Q u m ra n , acaso é a c id e n ta l q u e
p a ra lelo s sejam q u a se v isív eis e m C olo ssen ses e E fésios, e p ísto la s di-
rig id a s à reg ião efésia? Q u a lq u e r in cip ien te p o lêm ic a a n ti-d o cé tic a e
an ti-g n ó stica ta m b é m teria sid o n u m a cena d o m éstic a d e Éfeso.
A q u e s tã o d o local d a co m p o siç ão d o e v a n g e lh o n ã o é d e e x tre m a
im portância; p o ré m n a d a h á n a evidência in tern a q u e d ê m aio r su p o rte
a q u a lq u e r o u tra teo ria d o q u e a d e u m a a te staç ã o a n tig a ; a sa b er, q u e
o e v a n g elh o foi c o m p o sto e m Éfeso.
VII · Identidade do autor e local da composição 113

BIBLIOGRAFIA

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VIII
QUESTÕES CRUCIAIS NA TEOLOGIA JOANINA

O b v ia m e n te, u m c o m e n tá rio n ã o o ferece e sp a ç o a u m lo n g o tra ta m e n -


to d a teo lo g ia jo an in a. E n tre ta n to , a a b o rd a g e m q u e se a s su m e p a ra
certas q u e stõ e s d is p u ta d a s n a teo lo g ia jo a n in a c o n trib u i p a ra d e te r-
m in a r to d a su a p e rsp e c tiv a n o p ro p ó sito e co m p o siç ão d o e v a n g elh o .
E stas q u e stõ e s seletas se rã o a q u i d isc u tid a s su c in ta m e n te .

A. ECLESIOLOGIA

A q u e stã o d e se h á e m João u m a teo lo g ia d a Igreja tem se to rn a d o u m a


q u e stã o c a n d e n te n o s e s tu d o s jo an in o s. P a ra B ultmann , o e v a n g e lista
foi u m g n ó stico c o n v e rso , e u m a d a s fo n tes b á sic a s d o e v a n g e lh o era
gn ó stica; p o rta n to , n ã o se p o d e e s p e ra r q u e o Q u a rto E v a n g e lh o m o s-
tre u m v e rd a d e iro se n tid o d a tra d iç ã o , o rd e m eclesiástica, h istó ria d a
salv ação o u d o s s a c ra m e n to s ( Theology , II, p p . 8-9,91). E m João (4,23),
a Igreja é u m c o n ju n to d e in d iv íd u o s u n id o s p o r u m a fé p e sso a l e m Je-
su s, em v e z d e ser o p o v o d e D e u s d e s c e n d id o d e Israel. E m João, n ã o
h á ên fase so b re a u n id a d e o rg ân ic a d a Igreja. E. S chweizer , art. cit., n ã o
p a rtilh a d a s p re ssu p o siç õ e s g n ó stic a s d e B ultmann , m a s su a s co n clu -
sõ es so b re a eclesiologia jo a n in a n ã o são m u ito d ife ren te s. E m c o n tra -
p a rtid a , p a ra B arrett, p. 78, o q u a rto e v a n g e lista é m a is cô n scio d a
ex istên cia d a Igreja d o q u e q u a lq u e r o u tro e v a n g elista . O . C ullm ann ,
" l/é v a n g ile jo h a n n iq u e e t l'h isto ire d u s a lu t" , N T S 11 (1964-65), 111-22,
c o n tra d iz v ig o ro s a m e n te a p re te n s ã o d e B ultmann d e q u e João p e r-
d e u a p e rs p e c tiv a d a h istó ria d a salvação.
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 115

A n te s d e tra z e r o p ro b le m a a to n a, tem o s d e faz e r c e rtas co n sid e-


raçõ es m eto d o ló g ic a s. O a rg u m e n to d o silêncio (i.e., u m a rg u m e n to
b a s e a d o e m u m a o m issã o sig n ificativ a) ex erce u m im p o rta n te p a p e l
n a v isã o m in im a lista d a eclesio lo g ia jo an in a . U m p rin c íp io tácito p a-
rece se r q u e a q u ilo q u e Jo ão n ã o m e n c io n a é q u e a isso se o p õ e, o u , ao
m en o s, c o n s id e ra d e im p o rtâ n c ia m ín im a . T al p re ssu p o siç ã o n ã o está
isen ta d e risco s, co m o e sp e ra m o s d e m o n stra r.
C o m o n o s s o primeiro e x e m p lo d o a rg u m e n to d o silên cio , p o d e -
m o s m e n c io n a r a a le g a ç ã o d e q u e m u ito s te rm o s eclesiais n ã o se en-
c o n tra m e m Jo ão. O e s tu d io s o cató lico , D ' A r a c o n , art. cit., o b se rv a
q u e n ã o e n c o n tra m o s e m João d e sc riç õ e s d a c o m u n id a d e c ristã com o
" ig re ja " , o u co m o " p o v o d e D e u s" , o u co m o " c o rp o d e C risto " . N ão
h á im a g e m d a c o m u n id a d e co m o u m ed ifício . O u tro s te rm o s ecle-
siais o c o rre m a p e n a s r a ra s vezes: " n o iv a " (3,29); " re in o d e D e u s"
(3,3,5); " a p ris c o " (10,16). M as, co m o ta l silê n c io d e v e se r a v a lia d o ?
O s te rm o s c ita d o s sã o te rm o s eclesiais n e o te s ta m e n tá rio s ; m a s, com
a ex ceção d e " re in o d e D e u s " , re a lm e n te n ã o sã o te rm o s evangélicos.
C o m o os e v a n g e lh o s sin ó tic o s fa ria m se este c rité rio d e eclesio lo g ia
lh es fo sse a p lic a d o ? N e s te s trê s e v a n g e lh o s , o te rm o " ig re ja " n o sen-
tid o e s trito o c o rre s o m e n te e m M t 16,18 (v er M t 18,17). E m M arco s,
so m e n te e m u m a p a s s a g e m (2,19-20) h á c e rto u so d a im a g e m d a noi-
v a /n o i v o p a r a d e s c re v e r a re la ç ã o d e Je su s c o m s e u s d isc íp u lo s, e
M arco s n ã o u s a o c o n c eito d e " p o v o d e D e u s" . A q u i, a d ific u ld a d e
rea l n ã o s e ria q u e a te rm in o lo g ia eclesial d e João e stá s e n d o com -
p a ra d a co m a d e o b ra s q u e n ã o e stã o n o s e v a n g e lh o s , p o r ex em -
p io , as e p ís to la s p a u lin a s ? A p re s u n ç ã o tác ita p a re c e s e r q u e , se João
e sta v a in te re s s a d o n a Ig reja, João se ria tã o liv re c o m o as e p ísto la s
p a u lin a s n o u s o d o v o c a b u lá rio eclesial. E n tre ta n to , se h á v a lid a d e
a a firm a ç ã o d e q u e Jo ão e ra d e p e n d e n te d e u m a tra d iç ã o h istó ric a
d a s p a la v r a s d e Je su s, e n tã o h o u v e lim ite s m a is e stre ito s im p o sto s
ao v o c a b u lá rio u s a d o n o e v a n g e lh o . P o r c e rto q u e o p e n s a m e n to joa-
n in o r e p r e s e n ta u m d e s e n v o lv im e n to e a m p lific a ç ã o d o q u e Jesus
e n s in a ra d u r a n te s e u m in is té rio , m a s o fo rm a to d e u m e v a n g e lh o
to rn o u im p e ra tiv o e x p re s s a r e ste d e s e n v o lv im e n to e m te rm o s q u e
fosse ra z o a v e lm e n te fiel ao v o c a b u lá rio d e Jesu s. N ã o p o d e m o s es-
p e ra r e n c o n tra r o e v a n g e lis ta c o lo c a n d o fla g ra n te a n a c ro n ism o n o s
láb io s d e Je su s - p o r e x e m p lo , e n c o n tra r o Je su s jo a n in o fa la n d o
so b re s e u c o rp o q u e é a Igreja.
116 In trodu ção

A s e g u n d a consideração metodológica sobre o argumento do silên-


cio diz respeito a comparações feitas entre João e os outros evangelhos.
Tem-se observado que João falha em registrar algumas das expressões
e cenas eclesiais registradas nos evangelhos sinóticos. Por exemplo,
S chweizer, p. 237, diz de João: "Ele não faz menção ou da eleição
(Mc 3,13ss.) ou do envio dos discípulos (Mc 6,7ss.)". Como veremos
abaixo, outros estudiosos caracterizam João como não sacramentalista,
porque o Quarto Evangelho omite as cenas pertinentes à eucaristia e o
batismo, as quais se encontram nos sinóticos. Todavia, a seleção de ce-
nas evangélicas em grande medida foram determinadas pelo propósito
do evangelista, e não se deve esperar que todos os evangelhos expres-
sem sua eclesiologia nos mesmos termos. E verdade que João ignora
a missão apostólica dos discípulos? Realmente, João não dá uma lista
dos Doze e não tem nenhuma cena pelo Mar da Galileia onde os dis-
cípulos são chamados a deixar sua pesca e a seguir Jesus. Mas, acaso a
cena em 1,35-50 não é o equivalente joanino da eleição dos discípulos?
Esta eleição é pressuposta em 6,70; 13,18 e 15,16. Em 15,16; 17,18; 20,21
reflete-se uma missão dos discípulos e está inclusa em 21,1-11. Assim,
a ideia da missão dos Doze não está ausente em João, mas é expressa
em termos que são diferentes de sua apresentação nos evangelhos
sinóticos. De modo semelhante, não representa a verdade dizer que
João não incluiu nenhuma cena de uma aliança com um novo povo de
Deus, só porque João deixou de registrar as palavras de Jesus sobre o
sangue da aliança (Mc 14,24). O tema da aliança aparece em Jo 20,17
em outra forma: "Eu estou subindo... para meu Deus e vosso Deus".
Este dito adapta à nova situação cristã a fórmula pactuai de Lv 26,12 e
Ex 6,7: "Eu serei o vosso Deus".
As vezes o argumento do silêncio pode ser distorcido; pois é pos-
sível que certas coisas não sejam mencionadas em João, não porque o
evangelista discorde delas, mas porque ele as pressupõe. Se o evange-
lho foi escrito para mostrar aos cristãos que sua vida na Igreja estava
radicada no próprio ministério de Jesus, então, mui logicamente, po-
demos suspeitar que o evangelista estivesse pressupondo a existência
de situações e ordem eclesiásticas, e não sentiu necessidade de provar
a importância da Igreja no viver cristão. Se o evangelista enfatizou
a união individual com Jesus, esta necessidade não se deu porque o
evangelista fizesse oposição ao aspecto intermediário da Igreja e dos
sacramentos, mas talvez porque fizesse oposição ao formalismo que
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 117

é o in e v itá v e l p e rig o d a s in stitu iç õ e s e p rá tic a s estab elecid as. É b em


p ro v á v e l q u e o p ro p ó sito d o e v a n g e lista n ã o fosse o d e sv io d e ssa s ins-
titu iç õ e s, e sim a te n ta tiv a d e r e s g u a rd a r su a significação. E p o ssív el
q u e n ã o te n h a sid o se u d e s d é m d a Igreja, e sim o te m o r d e q u e a Igreja
fosse in te r p re ta d a g ra d u a lm e n te co m o u m a e n tid a d e in d e p e n d e n te
d o Je su s h istó rico . A ssim , d e v e -se se r e x tre m a m e n te c u id a d o so em
in ferir o m o tiv o d o e v a n g e lista d e se u silêncio.
E m p a rtic u la r, a a b o rd a g e m q u e B ultmann faz d o e v a n g e lh o o
d eix a a b e rto a objeções m e to d o ló g ic a s so b re a q u e stã o d a eclesiolo-
gia (e d o s s a cra m e n to s). B ultmann rec o n h e c e q u e n o e v a n g elh o , com o
o ra o tem o s, h á c la ras refe rê n c ia s aos sa c ra m e n to s e à h istó ria d a sal-
v ação , p o ré m c o n sid e ra e stes co m o ad iç õ e s d o R e d a to r E clesiástico
q u e im p ô s eclesio lo g ia n o e v a n g e lh o o rig in a l. A lg u m a s v e z es h á só-
lid as ra z õ e s e x tra íd a s d a crítica lite rá ria d e a trib u ir tais p a ssa g e n s à
re d a ç ã o fin al d o e v a n g e lh o ; m as, em o u tro s casos, com o v e re m o s no
c o m e n tá rio (p. ex., 19,34), su sp e ita -se q u e u m a p a ssa g e m é atrib u í-
d a ao r e d a to r p re c is a m e n te p o rq u e ela é sa cra m e n tal. A lém d o m ais,
com o te m o s in sistid o , o conceito d o re d a to r co m o a lg u é m q u e corrige
a teo lo g ia d o e v a n g e lista e stá lo n g e d e ser p ro v a d o . Se estiv erm o s
certo s e m p e n s a r n o r e d a to r c o m o u m d isc íp u lo d e João e c o -d iscíp u lo
d o e v a n g e lista , e n tã o a eclesiologia m ais ó b v ia d e cen as a n e x ad a s
p elo r e d a to r p o d e se r sim p le sm e n te u m a clarificação e a m p lia ç ã o d a
p ró p ria p e rs p e c tiv a d o e v a n g elista .
Isto n o s lev a n o ssa terceira e ú ltim a o b se rv a ç ã o m eto d o ló g ica.
Ju s ta m e n te co m o A to s é u s a d o lad o a la d o com o e v a n g e lh o d e Lucas
em u m e s tu d o d a teo lo g ia lu ca n a , a ssim ta m b é m as o u tra s o b ras d a
escola jo a n in a , E p ísto las e A p o c a lip se , d e v e m ser c o n su lta d a s an tes
d e g e n e ra liz a r acerca d o p o n to d e v ista jo a n in o d a Igreja. F euillet e
Schnackenburg têm feito isso e m se u s e stu d o s; e su a in te rp re ta ç ã o d a
eclesio lo g ia jo a n in a é, e m m in h a o p in iã o , m u ito m ais sa tisfa tó ria d o
q u e a d o s e s tu d io s o s q u e p a re c e m p r o p o r u m a o p o siç ã o n ecessária
e n tre e sta s o b ras, m e sm o q u a n d o "o s escrito s jo a n in o s" te n h a m tan to
em c o m u m n o q u e se refere ao estilo , id eo lo g ia e term in o lo g ia . A s li-
m itaçõ es im p o s ta s a u m e v a n g elh o p o r se u fo rm ato e seu p ro p ó sito nos
a d v e rte m q u e u m e v a n g elh o n e c e ssa ria m e n te será u m m o stru á rio in-
c o m p le to ao s p e n s a m e n to s d e se u a u to r. O ra, se João, 1-3 João e A po-
calip se tê m s u a o rig e m e m e scrito res d ife re n te s d e n tro d a escola joani-
n a, d e v e -se e s p e ra r q u e tais e scrito res n ã o c o n c o rd e m em c a d a p o n to .
118 Introdução

N ã o o b sta n te , m u i a m iú d e e stes o u tro s escrito s se ria m su ficien tes


p a ra a ju d a r-n o s a p re e n c h e r p o n to s n a teo lo g ia jo a n in a so b re o s q u a is
o e v a n g elh o m a n te v e silêncio. R eco rrer a o u tra s o b ra s jo a n in a s é, em
m u ito s casos, m u ito m e n o s a rrisc a d o d o q u e a q u e la s re c o n stru ç õ e s
e sp ec u lativ as d o p e n s a m e n to d o e v a n g e lista q u e tê m co m o b a se s o
q u e ele não disse.
C o m tais ca u te la s n a m e n te , v o lv a m o -n o s a a lg u n s d o s p o n to s
d isc u tid o s n a eclesiologia jo an in a . A q u e stã o d e se João p e r d e u o u não
a p e rsp e c tiv a d a h istó ria d a sa lv a ç ão se rá tra ta d a n a e scato lo g ia. A qui,
p o ré m , p o d e m o s d iz e r q u e h a v e ria a lg u m a q u alificação d a aleg ação
feita p o r Schweizer , p. 240, d e q u e João n ã o re tra ta a Igreja c o m o u m
p o v o b a s e a d o n u m a to d e D e u s n a h istó ria . P a ra João, n ã o é p o ssív e l
n e n h u m a v id a cristã se m a m o rte , re ssu rre iç ã o e a sc e n sã o d e Jesus,
p o is a q u e le ato salvífico d e D e u s n a h istó ria é a fo n te d o E sp írito , o
q u a l é o p rin c íp io d a v id a cristã. João n ã o p o d e u s a r o te rm o " p o v o "
p a ra d e s c re v e r a q u e le s cujo s ta tu s c ristã o é d e p e n d e n te d e s te a to d e
D eus; m as, co m o p a ssa m o s a v e r ag o ra , isso n ã o ex clu i o u tro s m o d o s
p o ssív e is d e in d ic a r a ex istên cia d a u n id a d e e n tre o s cren tes.
(1) A cjuestão da comunidade. A ênfase e m João so b re u m a relação
in d iv id u a l co m Jesus exclui o conceito d e c o m u n id a d e q u e é essencial
p a ra a eclesiologia? P o r ex em plo, tem -se a le g a d o q u e o q u a rto ev an -
gelista to m o u a v in h a, sím b o lo v e te ro te sta m e n tá rio p a ra a n a ç ão d e
Israel, e a a d a p to u à fig u ra d e u m a v id e ira q u e re p re se n ta Jesus e os
ram o s q u e re p re se n ta m os cristãos. A g o ra, o m o tiv o d o sím b o lo n ã o é
a co letiv id ad e, e sim a d e p e n d ê n c ia d e Jesus. N ã o o b sta n te , o sim bolis-
m o d a v id eira e d o s ram o s n ã o é tão sim ples. C o m o sa lie n ta re m o s no
co m en tário so b re o cap ítu lo 15 [no v o lu m e Π], a LXX, n o SI 80,14-15, já
id en tifico u a v id eira com o "filho d o h o m e m " , e assim a identificação
d a v id eira com o Jesus p o d e ter tid o raízes, p o r assim d izer, e m u m a
a n tig a trad ição . O fato d e q u e e m D n 7 u m "filho d o h o m e m " é u m a
fig u ra h u m a n a q u e rep re sen ta to d o o p o v o d e D eu s, e, assim , é u m a
p esso a c o rp o rativ a, n os a d v e rte em classificar com tan ta facilid ad e o
uso jo an in o d a v id eira e d o s ra m o s com o e strita m e n te in d iv id u alista .
A aleg ação d e q u e João e n fa tiz a a u n id a d e com Je su s à c u sta
d a c o m u n id a d e , d e v e m o s n o ta r a o raç ã o d e Jesu s em 17,22: "... p a ra
q u e sejam u m " . A d e m a is, p o d e m o s q u e s tio n a r se n a c o n cep ção neo-
testa m e n tá ria h á u m a d istin ç ã o a g u d a e n tre u n iã o p e sso a l co m Je-
su s e a c o m u n id a d e . E in te re ssa n te q u e e m Q u m ra n , p o r e x e m p lo ,
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 119

a p a la v ra y a h a d , q u e é o n o m e p a ra c o m u n id a d e , e n fa tiz a a u n id a d e
d o s m e m b ro s. U m fa to r m u ito im p o rta n te n e sta u n id a d e é a aceitação
d e u m a in te rp re ta ç ã o p a rtic u la r d a Lei. Mutatis mutandis, a m esm a
id eia se ria a p lic áv e l à c o m u n id a d e c ristã e à a d e sã o d o s m e m b ro s a
Jesus. U m a d a s lições d o sím b o lo d a v id e ira e d o s ra m o s é q u e , se al-
g u é m d e v e p e rm a n e c e r n a v id e ira co m o u m ram o , esse a lg u é m d ev e
p e rm a n e c e r n o a m o r d e Jesu s (15,6). T o d a v ia, esse a m o r d e v e se r ex-
p re sso e m a m o r p a ra co m o c re n te co m o ir m ã o /ir m ã (15,12). N e n h u m
e v a n g e lh o e n fa tiz a ta n to q u a n to faz João, a p o n to d e q u e o a m o r cris-
tão seja u m a m o r d e c o -d isc íp u lo d e Jesu s e, p o rta n to , u m a m o r no
in te rio r d a c o m u n id a d e cristã.
T a m p o u c o a v id e ira é a ú n ica m etá fo ra im p o rta n te d o ev an g elh o
em relação ao co n ceito jo an in o d e c o m u n id a d e . H á ta m b é m a im ag em
d o re b a n h o e d o a p risc o n o c a p ítu lo 10. A lg u n s têm o b jetad o q u e nes-
ta p a rá b o la " re b a n h o " o u " o v e lh a " é m e n c io n a d o so m e n te u m a v ez
(10,16). M as a im a g e m d o ap risco q u e p e rc o rre im p lic ita m en te o to d o
é ta m b é m sím b o lo d a c o m u n id a d e . N o c o rp o m a io r d a lite ra tu ra joa-
n in a, e n c o n tra m o s u m a forte ê n fase so b re a c o m u n id a d e cristã, l jo 2,19
d escrev e os a n tic risto s co m o a q u e le s q u e têm se ex clu íd o d a com uni-
d a d e cristã. A p 19,6-8 e 21,2 u sa a im a g e m d a n o iv a d e C risto (tam bém
Jo 3,29); e A p 21,3 se re p o rta ao p o v o d e D eu s, a p re s e n ta n d o im plici-
tam e n te os cristão s co m o os h e rd e iro s d o Israel d e o u tro ra . E v e rd a d e
q u e n o Q u a rto E v an g elh o n ã o h á ên fa se so b re a c o n tin u id a d e d e san-
g u e co m Israel, u m p ro b le m a q u e d e ix o u P a u lo a tu rd id o . P a ra João, o
v e rd a d e iro isra e lita é N a ta n a e l (1,47) q u e crê em Jesus. O v e rd a d e iro
israelita n ã o n asce d a lin h a g e m c a rn a l (1,13), m as é g e ra d o d a á g u a e
d o E sp írito (3,5); é filho d e D eu s, n ã o p o rq u e Israel seja filho d e D eus,
m as p o rq u e ele é c re n te (1,12). M as estes c re n tes estã o a ta d o s à com u-
n id a d e a tra v é s d a fé e m Jesus e s e u a m o r u n s p a ra c om os o u tro s, e são
a ju n ta d o s d o m u n d o in te iro e m u m só p o v o (11,52).
(2) A questão da ordem eclesiástica. A fig u ra jo a n in a d a v id e ira é
s a lie n ta d a (p. ex., Schweizer , p . 236), a sa b er, e n q u a n to a m b a s as fi-
g u ra s r e tra ta m Jesu s co m o a fo n te d a v id a , n ã o h á n e n h u m a ênfase
n o sím b o lo d e João so b re as d ife re n te s fu n çõ e s d o s v á rio s m em b ro s
d a c o m u n id a d e . P a ra João, o im p o rta n te é q u e os m e m b ro s estejam
u n id o s a Je su s, e n ã o h á ên fa se d e q u e a lg u n s ra m o s são os canais
a tra v é s d o s q u a is a v id a p a ssa d e Je su s p a ra os o u tro s. A tra v é s d o ar-
g u m e n to d o silên cio, isto p o d e im p lic a r q u e n ã o h á e m João n e n h u m
120 In trod u ção

sentido de organização eclesiástica. (Schweizer, p. 237), diz da ima-


gern joanina da Igreja: "Não tem sacerdotes nem oficiais. Já não há
qualquer diversidade de dons espirituais. ... Não há absolutamente
ordem eclesiástica"). Mas, seria esta é uma dedução válida? Aqui se
aplicam todas as nossas cautelas prévias sobre o argumento do si-
lêncio. Do simbolismo da videira e dos ramos, por exemplo, se pode
concluir que o evangelista deseja frisar a união com Jesus, e esta ênfa-
se se adequa ao propósito do evangelho. Mas, ir além disso, e propor
que o evangelista se opõe ou é indiferente a uma Igreja estruturada, é
demasiadamente temerário.
Em termos concretos, há passagens em João que implicam uma
organização entre os que creem em Jesus. No tratamento joanino dos
discípulos há um duplo aspecto. Amiúde eles são o modelo para to-
dos os cristãos. Como diz V ia , p. 173: "Para João, os discípulos re-
presentam a Igreja ou são a Igreja em miniatura, de modo que, o que
ele diz sobre os discípulos, compreende a Igreja". Entretanto, em al-
gumas passagens onde Jesus fala do futuro, os discípulos assumem
os aspectos de líderes da Igreja. Em Jo 21,15-17, a Pedro se confia o
cuidado pastoral sobre o rebanho. Em 4,35-38 e 13,20, subentende-se
que os discípulos exercem um papel na missão cristã; e 20,23, a eles
se dá poder autoritativo de absolver ou reter os pecados dos homens.
As outras obras da escola joanina apresentam um sentido de orga-
nização eclesiástica, ljo 2,24 subentende-se um ensino autoritativo.
Ap 21,14 descreve a Jerusalém celestial como edificada sobre os fun-
damentos dos Doze Apóstolos. A descrição da corte celestial em Ap 4
bem que pode refletir o arranjo da distribuição das autoridades ecle-
siásticas na liturgia terrena no tempo do escritor. No entanto, o fato
de que as referências procedem de diferentes tons na literatura joani-
na torna difícil fazer um juízo global da concepção que o evangelista
tinha de organização eclesiástica.
(3) A q u e s tã o d o r e in o d e D e u s . A omissão em João da fórmula
b a s ile ia to u th e o u , "reino de Deus [ou do céu]", exceto para 3,3,5, consti-
tui um problema difícil, ainda que um obstáculo não tão difícil para a
escatologia joanina como poderia parecer à primeira vista. A ênfase si-
nótica sobre b a s ile ia que se faz presente em Jesus parece ter-se tornado
em João uma ênfase sobre Jesus que é b a s ile ia ("rei") e que reina. João
se refere quinze vezes a Jesus como rei, quase o dobro do número de
vezes que esta referência ocorre em qualquer dos outros evangelhos.
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 121

A lém d o m ais, as p a rá b o la s q u e os sin ó tico s asso ciam a basileia p arece


d a r lu g a r e m João à lin g u a g e m fig u ra tiv a c e n tra d a n a p e sso a d e Jesus.
Se basileia n o s sin ó tico s é co m o o fe rm e n to a g in d o n u m a m assa de
p ã o , o Je su s jo a n in o é o p ã o d a v id a . Se h á u m a p a rá b o la sinótica do
p a s to r e d a o v e lh a p e rd id a , o Jesu s jo a n in o é o m o d elo d e p a sto re s.
Se os sin ó tico s re g is tra m u m a p a rá b o la em q u e basileia é com o a v in h a
q u e se rá c e d id a a o u tro s (M t 21,43), o Jesus jo an in o é a v id eira.
E m certa ex ten são , esta m u d a n ç a d e ên fase significa q u e e m João
h á m e n o s referên cia a p a re n te à c o le tiv id a d e d o q u e h á n o conceito si-
n ó tico d e basileia. M as n ã o d e v e m o s ex ag erar. Se Jesus é o rei d e Israel,
en tã o ele te m u m Israel d e c ren tes a g o v e rn a r; se Jesus é o p a sto r, e n tão
tem u m re b a n h o q u e tem d e ser co n g re g a d o ; se Jesus é a v id eira, en tão
h á ra m o s n a v id eira. A lém d o m ais, ao c o m p a ra r o sim b o lism o d os
sin ó tico s e d e João so b re este p o n d o , d e v e m o s ter u m e n te n d im e n to
preciso d o q u e está im p lícito n o s e v a n g elh o s sinóticos p o r basileia tou
theou. A ên fa se p rim á ria n e sta e x p ressão está n o re in a d o o u g o v ern o
d e D eu s, e n ã o em se u rein o - alg o a tiv o está im plícito, n ã o alg o estáti-
co; n ã o u m lu g a r o u in stitu ição , m as o exercício d o p o d e r d e D eus so-
bre as v id a s d o s h o m en s. A ssim , basileia tou theou n ã o é sim p lesm en te
a Igreja, e a ra rid a d e d a ex p re ssã o em João n ã o reflete n e cessariam en te
u m a falta d e a p reciação p e la Igreja. A o e n fa tiz a r o p a p e l d e Jesus com o
basileia e a o u s a r lin g u a g e m p a ra b ó lic a d o p ró p rio Jesus (em v e z d e "o
rein a d o d e D eu s"), talv ez João a p re se n te m ais c la ram e n te d o q u e os
sinóticos o p a p e l d e Jesus n a basileia tou theou. M as tal clareza é m ais
c o m p re en sív e l e m term o s d o p ro p ó sito d e ste ev an g elh o .
E m s u m a , h á em João p a ssa g e n s q u e fo rn ecem u m q u a d ro de
u m a c o m u n id a d e d e c re n te s c o n g re g a d o s p o r a q u e le s a q u e m Jesus
en v io u . E sta c o m u n id a d e é e s tru tu ra d a , p o is a lg u n s são p a sto re s (ao
m en o s P e d ro d e a c o rd o com 21,15-17) e o u tro s são o v elh as. Q u e tal
eclesio lo g ia n ã o receb e m a io r ên fase n o e v a n g e lh o é m ais inteligível
se o e v a n g e lista e sta v a to m a n d o p o r a d m itid o a ex istên cia d a Igreja,
su a v id a e in stitu içõ e s, e te n ta n d o re la c io n a r esta v id a d ire ta m e n te a
Jesus. Q u e este foi o caso e q u e o e v a n g e lista n ã o se o p u n h a a u m a
Igreja o rg a n iz a d a é su g e rid o p e la s o u tra s o b ra s jo an in as. E m 1 João,
e n c o n tra m o s u m a c o m u n id a d e o rto d o x a e ju sta d a q u a l os h ereg es
são ex clu íd o s; n o A p o calip se, e n c o n tra m o s u m fo rte se n tid o d a conti-
n u id a d e e n tre a Igreja cristã o rg a n iz a d a so b re os D oze A p ó sto lo s e o
Israel d o A T o riu n d o d a s d o z e tribos.
122 Introdução

B. SACRAMENTALISMO

T alvez n e n h u m o u tro p o n to d o p e n s a m e n to jo a n in o haja u m a divi-


são tão incisiva e n tre os e stu d io so s co m o h á so b re a q u e stã o d o sacra-
m en talism o . E m c o n tra p a rtid a , h á u m g ru p o d e e stu d io so s joaninos,
in clu in d o , resp e c tiv a m e n te, p ro te sta n te s (C ullmann , C orell ) e católi-
cos (V awter, N iewalda ), q u e e n c o n tra e m João referên cias so b re o s sa-
cram en to s. E sta av aliação sa cra m e n tal d o Q u a rto E v a n g e lh o te m sid o
p o p u la riz a d a n a F ran ça p e lo c o m e n tário d e B ouyer so b re João e na
A m érica p o r D. M. S tanley e m u m a série d e a rtig o s n a re v ista litú rg i-
ca católica Worship. E m geral, os c o m e n tário s b ritâ n ic o s d e H oskyns,
L ightfoot e B arrett tê m se re v e la d o d e c isiv am e n te fa v o rá v e is a o sa-
cra m en ta lism o jo an in o . B arrett, p. 69, afirm a: "... h á m ais e n sin o sacra-
m en ta l em João d o q u e n o s o u tro s e v a n g elh o s". T o d o s e stes e stu d io so s
te n d e m a v e r referên cias sim bólicas ao b a tism o em p a ssa g e n s jo an in a s
q u e m e n c io n am á g u a e à e u c aristia e m p a ssa g e n s jo an in a s q u e tra ta m
d e refeições, p ã o , v in h o e v id eira. U m â m b ito a in d a m ais a m p lo d e re-
ferência sa cra m e n tal tem sid o p ro p o sto p e lo s escrito res católicos, p o r
ex em p lo , ao c a sa m en to e m C a n á e à e x tre m a u n ç ã o n a cena d a u n ç ã o
d o s p é s (12,1-8). E m n o sso a rtig o (cf. p. 143, biblio g rafia) so b re o tem a,
p p . 205-6, d a m o s u m a lista d e u m a s v in te e cinco referên cias sacram en -
tais p ro p o sta s e m João! Q u a se to d a s estas referên cias sa cra m e n tais
p ro p o sta s são à m o d a d e sim b o lism o . A ex plicação d e p o r q u e o ev an -
g elista a p re s e n to u os sa cra m e n to s a tra v é s d e sim b o lism o p a re c e jazer
n este p rin cíp io : o rec o n h e c im e n to d e q u e a p ro fecia v e te ro te sta m e n -
tária q u e tev e u m c u m p rim e n to n o N T crio u u m a se n sib ilid a d e cristã
à tipo lo g ia; p o rta n to , era in telig ív el a p re s e n ta r as p a la v ra s e ações de
Jesus co m o tip o s p ro fético s d o s sa cra m e n to s d a Igreja. C ullmann en-
fatiza q u e o b a tism o e a e u c aristia e ra m fam iliares às c o m u n id a d e s
cristãs p rim itiv a s, e q u e, p o rta n to , as referên cias sim b ó licas a eles se-
ria m facilm en te reco n h ecid as. A o asso ciar B atism o e E u caristia com as
p ró p ria s p a la v ra s e ações d e Jesus, João está u m a v e z m ais te n ta n d o
m o stra r as raízes d a v id a eclesial n o p ró p rio Jesus.
E m c o n tra p a rtid a , h á o u tro g r u p o d e e stu d io so s jo a n in o s q u e n ã o
v e e m e m João refe rê n c ia s ao s sa cra m e n to s. E n tre o s q u e a s su m e m u m
p o n to d e v ista m ín im o d e s a c ra m e n ta lid a d e jo a n in a p o d e -s e e n u m e ra r
B ornkamm , B ultmann , L ohse e S chweizer , n o ta n d o , c o n tu d o , q u e se u s
p o n to s d e v ista v a ria m a m p la m e n te . Em geral, b a se ia m s u a tese n a falta
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 123

d e refe rê n c ia s p a te n te s ao b a tism o e à e u c a ristia em João. João não


n a rra a ação e u c arístic a d e Je su s n a ú ltim a ceia n e m u m m a n d a m e n to
b a tis m a l ex p lícito co m o M t 28,19. A lém d o m ais, a lg u n s in sistiría m
q u e, a o c e n tra r a sa lv ação n a aceitação p e sso a l d e Jesu s co m o o en-
v ia d o d e D e u s, João c rio u u m a a tm o sfe ra teo ló g ica q u e e v ita ria m ele-
m e n to s in te rm é d io s co m o os sa cra m e n to s. A ên fa se e m João é so b re a
p a la v ra , n ã o so b re o sa cra m e n to . Já c h a m a m o s a a te n ç ã o p a ra a atri-
b u içã o d e B ultmann p a ra o R e d a to r E clesiástico d o q u e ele c o n sid e ra
as três refe rê n c ia s c la ra m e n te sa c ra m e n ta is n o e v a n g e lh o (v er p. 14).
Q u a n to às re fe rê n c ia s sim b ó licas ao s sa cra m e n to s, e stes e stu d io so s da
escola n ã o s a c ra m e n ta lista sim p le sm e n te c o n sid e ra ria m a d esco b erta
d e m u ito d e s te sim b o lism o co m o eisegesis.
C o m o d e v e m o s ju lg a r esses p o n to s d e v ista ra d ic a lm e n te op o s-
tos? H á p o n to s v á lid o s fo rm u la d o s d e c a d a lad o . C o m ecem o s com
as re fe rê n c ia s jo a n in a s m ais ex p lícitas ao s sa c ra m e n to s, a q u e la s q u e
B ultmann rele g a ao R e d a to r E clesiástico. Será v isto n o c o m e n tário so-
b re 6,51-58 q u e c o n c o rd a m o s com B ultmann e B ornkamm d e q u e há
raz õ e s v á lid a s p a ra se p e n s a r q u e e stes v e rsíc u lo s fo ra m a n e x a d o s ao
c a p ítu lo 6. Sem c o n s id e ra r os a rg u m e n to s literá rio s v á lid o s e m p ro l
d e tal p o n to d e v ista , a lg u n s d o s in té rp re te s sa c ra m e n ta lista s d e João
têm e n fra q u e c id o su a p ró p ria p o s tu ra . M as, a in d a q u e u m a referên cia
m ais ex p lícita a u m sa c ra m e n to , co m o 6,51-58, seja u m a ad ição , ain-
d a s u rg e a q u e s tã o se tal a d iç ã o se d e s tin a v a a c o rrig ir a teo lo g ia do
e v a n g elista o u to rn a r se u p e n s a m e n to m a is explícito. K öster, art. cit.,
p p . 62-63, é p e rfe ita m e n te c o rre to , p o r e x em p lo , ao in sistir q u e já h o u v e
u m e le m e n to cú ltico e sa c ra m e n ta l p re s e n te n o c a p ítu lo 6 m esm o sem
51-58. P o rta n to , o re c o n h e c im e n to d e q u e a lg u m a s d a s referên cias sa-
c ra m e n ta is e x p lícitas p e rte n c e m à r e d a ç ã o fin al n ã o significa q u a lq u e r
aceitação d a te o ria d e q u e o e v a n g e lh o o rig in a l e ra n ã o sa cra m e n tal e
a n ti-sa c ra m e n ta l. É u m a q u e stã o d e v e r d ife re n te s g ra u s d e sacram en -
ta lid a d e n a o b ra d o e v a n g e lista e n a d o re d a to r final.
Q u a n d o v o lta m o s às refe rê n c ia s jo a n in a s im p líc ita s e sim bólicas
ao s s a c ra m e n to s, c re m o s q u e m u ito s d o s in té rp re te s sa cra m e n talista s
n ão tê m u s a d o c ritério re a lm e n te científico em d e te rm in a r a p resen ça
d e sím b o lo s sa cra m e n tais. Seu p rin c íp io d ire tiv o p a re c e se r q u e, v isto
q u e u m a p a s s a g e m p o d e ser e n te n d id a sa c ra m e n ta lm e n te , su a in ten -
ção e ra s a c ra m e n ta l. N ã o só B ultmann , m a s a m aio ria d o s e stu d io so s
c o n s e rv a d o re s co m o M ichaelis e Schnackenburg te m d e te c ta d o o
124 Introdução

p e rig o d e eiseg esis aq u i. P ara a lg u m a s d a s refe rê n c ia s sa c ra m e n ta is


p ro p o sta s p o r C ullmann e N iewalda n ã o h á n o c o n tex to e v id ê n c ia d e
q u e a in ten ção d o e v a n g elista e ra esta p a ra a p a ssa g e m . D ia n te d e sta
d ific u ld a d e , N iewalda tem p o sto d e lad o , co m o im p ra tic á v e l, a b u sc a
d e in d icaçõ es in te rn a s d a in te n ç ão sa c ra m e n ta l d o a u to r. Ele re c u a a
u m a ev id ê n c ia e x te rn a, a sa b er, u m a in d icação , n o s p rim e iro s sécu lo s,
d e q u e u m a p a s sa g e m d e João era e n te n d id a co m o u m a refe rê n c ia
sim b ó lica a u m sa cra m e n to . P a ra esse p ro p ó sito , ele c o n su lta os escri-
tos p a trístic o s, a litu rg ia , a a rte d a s c a ta c u m b a s etc.
N o art. cit. tem o s a p re se n ta d o u m a exposição d e ta lh a d a d e nosso s
p o n to s d e v ista p esso ais so b re o c ritério n ecessário p a ra aceitar referên -
cias sacram en tais sim bólicas em João. E m resu m o , d e v e m o s aceitar a
ev id ên cia ex tern a p ro p o sta p o r N iewalda com o u m critério negativo. Se
n ão h á n a Igreja p rim itiv a ev id ên cia d e q u e u m a p a ssa g e m d e João era
e n te n d id a sa cra m e n talm en te , en tã o d e v e ser receb id a com m u ita cau-
tela ten tativ as m o d e rn a s d e in tro d u z ir u m a in te rp re ta ç ã o sacram en tal.
F azem os u m a su p o sição fu n d a m e n ta l d e q u e a in ten ção d o e v an g elista
era q u e su a s referências im plícitas fossem e n te n d id a s co m o se n d o aos
sacram en to s, e q u e a lg u m v estíg io d esse e n te n d im e n to p ro v a v e lm e n te
teria sobrevivido n o uso cristão prim itivo d o evangelho. O s sacram entos
d o b atism o e d a eucaristia e ra m tem as p o p u la re s e n tre escrito res e
artistas cristãos, e é im p ro v á v el q u e ig n o ra ssem u m a p a ssa g e m q u e
g eralm en te fosse e n te n d id a com o se n d o u m a referência sacram en tal.
E n tretan to , ev id ên cia e x tern a so m e n te é in su ficien te co m o u m cri-
tério positivo d e referên cia sacram en tal. M u ito s d o s p rim e iro s escrito res
cristãos n ã o e sta v a m faz e n d o exegese d o e v a n g elh o , e sim u sa n d o -o
liv re m e n te co m o u m a ferram e n ta l catequética. P o rta n to , m esm o q u e
u sa sse m u m relato jo an in o , co m o a d a c u ra n o c a p ítu lo 5, co m o u m a
ilu stração d o b a tism o cristão , isto n ão é u m a g a ra n tia su ficien te d e q u e
o ev an g elista tiv esse essa fin a lid a d e em m e n te com o relato . A s v ezes
u m co n sid eráv el p e río d o d e te m p o se p a ra o e v a n g e lh o d a p e rtin e n te
referên cia litú rg ica, literá ria e artística q u e ach asse u m u so sa cra m e n -
tal p a ra u m a p a ssa g e m d o e v an g elh o . N a q u e le tem p o , u m sim b o lism o
p o d e ría ter d e se n v o lv id o o q u e n ã o era p a rte d o e v a n g e lh o orig in al.
E a ssim , em a d iç ã o ao sin a l n e g a tiv o s u p r id o p o r e v id ê n c ia ex-
te rn a , te ría m o s u m a in d ic a ç ã o p o s itiv a d e n tr o d o p r ó p rio te x to d e
q u e a in te n ç ã o d o e v a n g e lis ta e ra fa z e r re fe rê n c ia ao s s a c ra m e n to s.
N a tu ra lm e n te , ao d e te r m in a r o q u e c o n s titu i u m a in d ic a ç ã o p o s itiv a ,
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 125

os ex eg etas co n co rd arão . M ichaelis, p o r exem plo, ao rejeitar pratica-


m e n te to d o s os e x e m p lo s d e C ullmann , p a re c e ex ig ir d o e v a n g elista
o tip o d e in d icação q u e p o d e ria m o s e sp e ra r e m u m escritor d o século
20. Isto seria hip er-crítico, p o is o sim bolism o to m a d o p o r a d m itid o no
1“ século p o d e ria n ão p a re c e r a b so lu ta m e n te óbvio à m e n ta lid a d e m o-
d e rn a , m u ito m en o s p ro p e n sa ao sim bolism o. Q u e m teria o u sa d o ver
n a elev ação d a se rp e n te d e b ro n z e n u m a h a ste u m sím bolo do Jesus
crucificado, se o p ró p rio ev an g elista n ã o h o u v e sse in d ic a d o isto (3,14)?
D os sím b o lo s q u e o p ró p rio e v a n g elh o tem id en tificad o (para o u tro
exem plo, v e r 21,18-19), é óbvio q u e a m e n ta lid a d e d o ev an g elista não
era a b s o lu ta m e n te a m esm a q u e a m e n ta lid a d e d o in té rp re te m od ern o .
C o m o u m e x em p lo d o q u e co n sid e raría m o s u m a indicação p ositiva
a d e q u a d a d e q u e a in te n ç ã o d o e v a n g elista era a p re s e n ta r u m a refe-
rên cia sacram en tal, o leito r p o d e c o n su lta r o co m en tário so b re o relato
d a c u ra d o cego, n o c a p ítu lo 9, e d a lav ag em d o s p és, e m 1 3 ,1 1 1 ‫־‬.
A ssim , o c ritério n ec essá rio p a ra se rec o n h e c ere m referências
sim b ó licas ao s s a c ra m e n to s se e n c o n tra n a c o m b in ação d e in d icação
in te rn a e n a e v id ê n c ia cristã e x te rn a p rim itiv a . E ste critério n ão é p e r-
feitam e n te se g u ro ; m a s ele r e d u z c o n sid e ra v e lm e n te os p e rig o s d e
eisegesis, e n q u a n to q u e n ão expõe o ev an g elh o a exegese m inim alista.
U sa n d o este c ritério d e e v id ê n c ia c o m b in a d a , d e sco b rim o s q u e, em
ad ição às refe rê n c ia s m ais ex p lícitas aos sa cra m e n to s, a lg u m a s d a s
q u ais é p o s s ív e l q u e v e n h a m d o re d a to r final, h á n a p ró p ria subs-
tância d o e v a n g e lh o u m a m p lo in te resse sa cra m e n tal; e n e ste asp ecto
João e stá e m p le n a h a rm o n ia com a Igreja e m geral.
E n tão , o q u e d iz e r d a o m issão , e m João, d e p a ssa g e n s sacram en -
tais e n c o n tra d a s n o s sin ó tico s? A a u sên c ia d a cena a m iú d e tid a com o
a re p re s e n ta r a in stitu iç ã o d o b a tism o (M t 28,19) re a lm e n te n ã o cons-
titu i p ro b le m a , v isto q u e a cena n ã o se e n c o n tra em M arcos o u Lu-
cas. (E d e v e -se n o ta r q u e os teó lo g o s clássicos n ã o estã o c o n co rd es de
q u e a cen a d e scre v e a in stitu iç ã o d o b a tism o . H á a lg u n s, p o r exem plo,
E stius, q u e a sso c ia riam a in stitu iç ã o com a cena d e N ic o d e m o s en-
c o n tra d a so m e n te e m João. Em q u a lq u e r caso, este é u m p ro b le m a
p o s te rio r ao N T ). A o m issã o d a cen a eu c arístic a n a ú ltim a ceia é m ais
difícil; m a s se a h ip ó te se n o c o m e n tá rio fo r c o rre ta , ecos d e sta cena
fo ram in c o rp o ra d o s em 6,51-58.
O q u e u m a c o m p a ra ç ã o com os sin ó tico s m o stra é q u e, e n q u a n -
to João p o d e ria tra ta r d o b a tism o e d a e u c aristia , este e v a n g e lh o não
126 Introdução

associa estes sacram en to s com u m d ito sim p les e d e g ra n d e im p o r-


tância d e Jesus p ro n u n c ia d o n o final d e su a v id a com o p a rte d e su as
in stru çõ es d e d e s p e d id a d irig id a s aos se u s d iscípulos. A s referências
jo an in as a estes d o is sacram en to s, tan to as referências explícitas q u a n to
aq u elas q u e são sim bólicas, e m to d as a s cenas d o m in istério . Isto p arece
ajustar-se b e m à in ten ção d o e v an g elh o d e m o stra r co m o a s in stitu içõ es
d a v id a cristã estão ra d ic a d a s n o q u e Jesus disse e fez e m su a v id a.
A lém d o m ais, e n tre os q u a tro e v a n g e lh o s, ao d e João, m a is q u e
a to d o s os o u tro s, d e v e m o s a p r o fu n d a c o m p re e n sã o cristã d o p ro p ó -
sito d o b a tis m o e d a e u c aristia . E João q u e m n o s in fo rm a q u e , a tra v é s
d a á g u a b a tism a l, D e u s g e ra filhos p a ra Si e d e rra m a so b re eles Seu
E sp írito (3,5; 7,37-39). A ssim o b a tism o se to rn a u m a fo n te d e v id a
e te rn a (4,13-14), ju sta m e n te co m o a e u c a ristia ta m b é m é u m m eio in-
d isp e n s á v e l d e tra n s m itir a v id a d e D e u s ao s h o m e n s a tra v é s d e Jesus
(6,57). D e u m a m a n e ira sim b ó lica, João m o stra q u e o v in h o eu carís-
tico significa u m a n o v a d isp e n sa ç ã o a s u b s titu ir o a n tig o (a c e n a em
C an á e a d escrição d a v id e ira n o c a p ítu lo 15) e q u e o p ã o e u c arístic o
é o v e rd a d e iro p ã o d o c é u a s u b s titu ir o m a n á (6,32). F in a lm e n te , em
u m a cen a d ra m á tic a (19,34), João m o stra sim b o lic a m e n te q u e a m b o s
estes sa cra m e n to s, á g u a b a tism a l e sa n g u e e u carístico , tê m a fo n te de
su a ex istên cia e p o d e r n a m o rte d e Jesus. E ste sa c ra m e n ta lism o joa-
n in o n ã o é m e ra m e n te an ti-d o cé tic o n e m p eriférico , p o ré m m o stra a
conexão essen cial e n tre o m eio sa c ra m e n ta l d e rec e b e r v id a n o seio d a
Igreja n o fin al d o I s2sécu lo e o m eio p e lo q u a l a v id a e ra o fere c id a aos
q u e o u v ia m Jesu s n a P a lestin a . C aso se u se o s im b o lism o , é p o rq u e so-
m e n te a tra v é s d o sim b o lism o o e v a n g e lista p o d ia e n s in a r su a teo lo g ia
sa c ra m e n ta l e a in d a p e rm a n e c e r fiel à fo rm a lite rá ria d o e v a n g e lh o n a
q u a l e sta v a escre v e n d o . Ele n ã o p o d ia in te rc a la r teo lo g ia sa cra m e n -
tal n o re la to e v an g élico p o r m eio d e ad iç õ e s a n a crô n ic a s e e s tra n h a s ,
m as p o d ia m o stra r resso n â n c ia s sa c ra m e n ta is d a s p a la v ra s e o b ra s d e
Jesus q u e já e ra m p a rte s d a tra d iç ã o d o e v a n g elh o .

C. ESCATOLOGIA

H á u m a e n o rm e q u a n tid a d e d e lite ra tu ra q u e tra ta d a escato lo g ia neo-


testam en tária, e o p ro b le m a é tão co m p licad o q u e a q u i só p o d e m o s
tocar d e lev e n a s ram ificações d o p ro b le m a q u e a p a re c em e m João.
VIII · Q u e stõ e s cru ciais na teo lo g ia joanin a 127

Embora quase cada ponto sobre a escatologia seja controverso, inclu-


sive sua definição, talvez possamos abordar melhor a escatologia joa-
nina sob dois tópicos.

( 1) O ponto de vista "vertical" e 0 "horizontal" da ação salvífica de Deus

Se usarmos a terminologia espacial, podemos caracterizar o pon-


to de vista bíblico geral da salvação como "horizontal", pois enquanto
Deus age do alto, Ele age em e através da sequência da história. Desde
o tempo da criação, Deus tem guiado o mundo e os homens de maneira
inexorável rumo a um clímax, um clímax que às vezes é visto em ter-
mos de intervenção divina no curso linear da história. E assim a salva-
ção jaz ou na história ou como clímax da história. Oposto a este está o
ponto de vista "vertical" que visualiza dois mundos coexistentes: um
celestial e um terreno; e o mundo terreno é apenas uma sombra do ce-
lestial. A existência terrena é existência fracassada, e a história é o pro-
longamento do sem sentido. A salvação se torna possível através do
escape para o mundo celestial, e isto só pode ocorrer quando alguém
ou alguma coisa desce do mundo celestial para libertar os homens da
existência terrena. Obviamente, estas são descrições simplificadas dos
dois pontos de vista, mas teremos que indagar para qual ponto de
vista da história e salvação o Quarto Evangelho se inclina.
De muitas maneiras, este evangelho revela uma aproximação ver-
tical da salvação. O Filho do Homem desceu do céu (3,13); a Palavra
se fez carne (1,14), com o propósito de oferecer salvação aos homens.
O ápice de sua carreira é quando ele for elevado ao céu, na morte e
ressurreição, a fim de atrair a si todos os homens (12,32). Há em João
um constante contraste entre dois mundos: um em cima e o outro em
baixo (3,3.31; 8,23); uma esfera que pertence ao Espírito e uma esfera
que pertence à carne (3,6; 6,63). Jesus traz a vida do outro mundo,
"vida eterna", aos homens deste mundo; e a morte não tem poder so-
bre esta vida (11,25). Seus dons são dons "reais", isto é, dons celestiais:
a verdadeira água da vida, como contrastada com água ordinária
(4,10-14); o verdadeiro pão da vida, como contrastado com pão pere-
cível (6,27); ele é a verdadeira luz que veio ao mundo (3,19). Estes
característicos, revelando uma aproximação temporal e vertical da
salvação, têm constituído um dos principais argumentos de Bultmann
no desenvolvimento da hipótese da influência gnóstica sobre João.
128 Introdução

M as há ta m b é m em João m u ito d a a p ro x im aç ã o d a id eia h o riz o n -


tal d a salvação. O P ró lo g o , q u e d e screv e a d e scid a d a P a lav ra e m c arn e
h u m a n a , n ão ig n o ra a h istó ria d a salv ação q u e com eça co m a criação.
Se a v in d a d e Jesu s re p re s e n ta a e ra d o d o m ín io d o E sp írito so b re a car-
ne, d e m o d o q u e to d o s os h o m e n s c u ltu e m a D e u s em E sp írito , a his-
tó ria ju d a ic a te m sid o a p re p a ra ç ã o p a ra esta era c u lm in a n te (4,21-23).
A to ta lid a d e d a s E scrituras q u e reg istra m a h istó ria d a salv ação a p o n ta
p a ra Jesu s (5,39). A " h o ra " d e q u e o u v im o s ta n to e m João (2,4; 8,20;
12,23 etc.), a h o ra d a p a ix ã o , m o rte , re ssu rre iç ã o e a sce n sã o d e Je su s é
a h o ra c u lm in a n te n a lo n g a h istó ria d o tra to d e D e u s com o s h o m en s.
O s c o stu m es, festas e in stitu içõ e s relig io sas ju d a ic o s e n c o n tra m seu
c u m p rim e n to em Jesu s (ver E sboço n a D écim a P a rte , p. 158ss).
T a m p o u c o a h istó ria se d e té m n e sta h o ra. T em -se o b s e rv a d o q u e,
em v ez d e escrev er u m e v a n g e lh o e u m L ivro d e A to s, o q u a rto ev a n -
gelista c o n c e n tro u d e n tro d o e v a n g e lh o n ã o só a h o ra escato ló g ica d o
m in isté rio , m a s ta m b é m to d o o " te m p o d a Igreja". E a ssim se p o d e
p e n s a r q u e, co m a in te rv e n ç ã o d e Jesu s, n a d a m ais p o d ia h a v e r. M as o
ev an g elista, co m o já su g e rim o s acim a, está p re s s u p o n d o a ex istên cia
d e u m a Igreja. S eu p ro b le m a n ã o é se h a v e rá u m " te m p o d a Ig reja",
m as co m o isto se relacio n a com Jesus. Ele p re s s u p õ e a tiv id a d e m issio -
n á ria c ristã (4,35-38; 20,21), u m conflito d o C ristia n ism o com o m u n d o
(16,8), u m in flu x o d o s q u e v irã o a cre r a tra v é s d a p re g a ç ã o d a p a la v ra
(17,20) e a re u n iã o d eles em u m só re b a n h o p a ra q u e sejam p a sto -
re a d o s (21,52; 10,16; 21,15-17). Q u e e sta m o s certo s e m in sistir q u e o
p e n s a m e n to jo a n in o n ã o é d e s titu íd o d e u m a p e rsp e c tiv a h o riz o n ta l
so b re a salv ação é ta m b é m s u g e rid o n o L ivro d o A p o c a lip se , o q u a l
se p re o c u p a p re c isa m e n te com u m a sa lv a ç ão q u e h á d e v ir n o fim d a
h istó ria. In d u b ita v e lm e n te , A p o c a lip se e João re v e la m d ife re n te s ên-
fases so b re esta q u e stã o , m a s d e v e m o s ser c a u te lo so s e m a s su m ir q u e
su a s p o siçõ es são c o n tra d itó ria s.
A ssim , o p o n to d e v ista jo a n in o d a salv ação é ta n to v e rtic a l q u a n -
to h o riz o n tal. O a sp e c to v e rtica l e x p re ssa a s in g u la rid a d e d a in te rv e n -
ção d iv in a e m Jesus; o a sp ec to h o riz o n ta l estab elece u m a re la ç ã o e n tre
esta in te rv e n ç ã o e a h istó ria d a salvação. Eis p o r q u e n e n h u m a in te r-
p re ta ç ã o g n ó stica d o Q u a rto E v a n g e lh o p o d e fazer ju stiça ao s e u en-
sin o p len o . P o d e-se d iz e r (talv ez com d e m a sia d a sim p lic id a d e ) q u e a
co m b in ação d o v ertical com o h o riz o n ta l re p re s e n ta u m a co m b in a çã o
d a s a b o rd a g e n s h e le n ista s e ju d a ic a s d a salv ação , m a s tal c o m b in a çã o
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 129

o c o rre u m u ito a n te s q u e o Q u a rto E v an g elh o fosse escrito. Já estava


p re s e n te n o d e u te ro c a n ô n ic o L iv ro d a S ab ed o ria. D odd, Interpretation,
p. 144ss., te m m o stra d o q u e o a n tig o p e n s a m e n to rab ín ico reflete dois
d ife re n te s a sp e c to s d a " v id a fu tu ra " . U m lim ite o h o riz o n ta l, p o r-
q u a n to p ro p õ e d u a s e ra s e m q u e a v id a d a e ra p o r v ir s u b stitu i a v id a
d a e ra a tu a l. O o u tro lim ita o v e rtica l, p o is p ro p õ e u m a v id a além -tú -
m u lo , d ife rin d o d a v id a d o s h o m e n s so b re esta terra. N a tu ra lm e n te ,
a teo lo g ia c ristã te m feito u m a sín te se sim ila r d o v e rtica l e d o h o ri-
z o n ta l, p ro p o n d o a im o rta lid a d e d a a lm a ta n to q u a n to a re ssu rre içã o
final d o s m o rto s.

(2) Escatologia realizada e escatologia final

E ste tó p ico se relacio n a com o p re c e d e n te , m a s tem u m a m o d a-


lid a d e le v e m e n te d ife ren te . N a p re g a ç ã o d e Jesu s so b re a basileia tou
theou e em su a a titu d e p a ra com se u p ró p rio m in isté rio h á u m a p ers-
p ectiv a c la ra m e n te escato ló g ica, p o is ele se a p re s e n ta co m o q u e m d e
a lg u m m o d o te m in tro d u z id o o m o m e n to d e fin itiv o n a existência h u -
m an a. M as, d e q u e fo rm a ex a ta m e n te ?
O s d e fe n s o re s d a escato lo g ia final e a p o calíp tica, p o r exem plo,
A. Schweitzer , m a n té m q u e, ao falar d a v in d a d a basileia, Jesus estav a
fala n d o d a q u e la d ra m á tic a in te rv e n ç ã o d e D eu s q u e lev aria a h istó ria
a u m a c o n su m a ç ão . E m su a in te rp re ta ç ã o , Jesu s e sp e ra v a essa inter-
v en ção e m se u p ró p rio m in isté rio o u n o fu tu ro im e d ia to , d e m o d o
q u e fosse c o n c re tiz a d o a tra v é s d e su a m o rte. Q u a n d o su a s esp era n ç as
foram f ru s tra d a s e a basileia n ã o v eio, a Igreja e v e n tu a lm e n te reso lv eu
o p ro b le m a p ro je ta n d o a v in d a final d e Jesus p a ra u m fu tu ro rem o to .
Em c o n tra p a rtid a , os d e fe n so re s d a escato lo g ia re a liz a d a , p o r exem plo,
C. H. D odd, m a n tê m q u e Jesu s p ro c la m o u a p re se n ç a d a basileia d en -
tro d e se u p ró p rio m in isté rio , m a s sem os a d o rn o s ap o c alíp tico s ge-
ra lm e n te a sso c ia d o s co m o ev en to . S ua p rese n ç a e n tre os h o m e n s era
u m a e a ú n ic a v in d a d e D eu s. M as se u s se g u id o re s fo ra m o s h e rd e iro s
d e u m a tra d iç ã o a p o c alíp tica q u e falav a d e u m a v in d a em p o d e r e m a-
jestad e, e a ssim n ã o p o d ia m cre r q u e tu d o foi re a liz a d o n o m in isté rio
d e Jesus. P a ra sa tisfa z e r su a s e x p e cta tiv a s, p ro je ta ra m u m a se g u n d a
v in d a m ais g lo rio sa n o fu tu ro - a p rin c íp io , n u m fu tu ro p ró x im o ; de-
pois, n u m fu tu ro rem o to . E n tre estes d o is p o n to s d e v ista s ex trem o s
d a e sca to lo g ia d o e v a n g elh o , h á to d a u m a g a m a d e p o n to s d e vista
130 Introdução

in term éd io s. U m o u tro p o n to d e v ista, c o m u m em o u tro s tem p o s, ago-


ra está p e rd e n d o a p o p u la rid a d e , a saber, q u e a basileia tou theou esta-
b elecida com o re su lta d o d o m in istério d e Jesus era a Igreja. T alv ez o
p o n to d e v ista in te rm é d io m ais a m p la m e n te aceito seja q u e o re in a d o
escatológico d e D eus estav a p re se n te e o p e ra n te n o m in isté rio d e Jesus,
m as d e u m a m a n e ira p ro v isó ria. O estab elecim en to o u realização da
basileia a in d a está p o r vir, e a Igreja é o rie n ta d a p a ra essa fu tu ra basileia.
Em m u ito s casos, João é o m e lh o r e x em p lo , n o N T , d e escato lo g ia
rea liz a d a . D e u s se re v e lo u em Jesu s d e u m a fo rm a d e fin itiv a , tu d o
in d ica q u e já n ã o h á m ais n a d a o q u e d izer. Se a lg u é m a p o n ta p a ra
p a ssa g e n s v e te ro te sta m e n tá ria s q u e p a re c e m im p lic a r u m a v in d a d e
D eu s em g ló ria, o P ró lo g o (1,14) re sp o n d e : "T e m o s v isto a g ló ria d e
D eu s". Se a lg u é m in d a g a o n d e e stá o ju íz o d e D e u s q u e m a rc a a in-
terv e n çã o fin al d e D eu s, Jo 3,19 re sp o n d e : "O ra, o ju íz o d e D e u s é
este: a lu z e n tro u n o m u n d o " . D e u m a m a n e ira a firm a tiv a , M t 25,31ss.
d e screv e a v in d a a p o c alíp tica d o F ilho d o H o m e m e m g ló ria e se as-
s e n ta n d o n o tro n o d o ju íz o p a ra s e p a ra r os b o n s e os m a u s. M as, p a ra
João, a p re se n ç a d e Jesus n o m u n d o co m o a lu z se p a ra o s h o m e n s e m
a q u eles q u e são filhos d a s trev as, q u e o d e ia m a lu z, e a q u e le s q u e se
a c h eg a m p a ra a lu z. A tra v é s d o e v a n g elh o , Jesu s p ro v o c a a u to -ju íz o
q u a n d o os h o m e n s se a lin h a m p a ra ele o u c o n tra ele; n a v e rd a d e , su a
v in d a c o n stitu i u m a crise n o se n tid o ra d ic a l d e sta p a la v ra , o n d e ela
reflete o g reg o krisis o u " ju lg a m e n to " . A q u e le s q u e se re c u s a m a cre r
já estão c o n d e n a d o s (3,18), e n q u a n to os q u e c re e m n ã o e s ta rã o sob
condenação (5,24) - v er a discussão d o conceito joanino d e Ju lg am en to
n a p . 605ss). A té m e sm o o g a la rd ã o já está re a liz a d o . P a ra o s sin ó tico s,
" v id a e te rn a " é alg o q u e a lg u é m receb e n o ju ízo final o u n u m a era
fu tu ra (M c 10,30; M t 18,8-9), m a s p a ra João ela é u m a p o s s ib ilid a d e
p re s e n te p a ra os h o m en s: " A q u e le q u e o u v e m in h a s p a la v ra s e te m fé
n a q u e le q u e m e e n v io u possui a v id a etern a... já p a s s o u d a m o rte p a ra
a v id a " (5,24). P a ra L ucas (6,35; 20,36), a filiação d iv in a é u m g a la r-
d ã o d a v id a fu tu ra ; p a ra João (1,12), ela é u m a d á d iv a c o n c e d id a a q u i
so b re a terra.
T o d av ia, e m João h á ta m b é m p a s sa g e n s q u e reflete m u m ele-
m e n to fu tu ro e m su a escato lo g ia. T em o s q u e d is tin g u ir e n tre a s q u e
são s im p le sm e n te fu tu ris ta s e as q u e são a p o c alíp tica s. P o r exem -
p io , u m d e s ta c a d o e le m e n to fu tu ris ta é q u e o d o m c o m p le to d a v id a
n ã o v e m d u r a n te o m in isté rio d e Jesus, m a s só m a is ta rd e a tra v é s d a
VIII · Q u e stõ e s cru ciais na teo lo g ia joan in a 131

ressurreição. Quando Jesus fala de uma oportunidade presente de


receber vida, devemos compreender que na intenção do evangelista
Jesus realmente está falando através das páginas do evangelho a um
auditório cristão pós-ressurreição. Estes cristãos são aqueles que têm a
chance de obter vida pela fé em Jesus, através do batismo (3,5) e através
da eucaristia (6,54). O fator gerador de vida é o Espírito (6,63; 7,38-39),
e esse Espírito só é dado depois que Jesus houver subido para o Pai
(7,39; 16,7; 19,30; 20,22). A fé plena em Jesus, que traz vida aos homens
só é possível depois da ressurreição, quando os homens o confessarem
como Senhor e Deus (20,28). Somente então compreendem o que ele
significa quando diz: "eu sou" (8,28). O alimento eucarístico é um dom
futuro da perspectiva do ministério público (6,27.51).
Há outro elemento futurista na atitude de Jesus para com o que
acontece depois da morte. Embora Jesus insista que "vida eterna" é
oferecida aqui em baixo, ele reconhece que a morte física ainda inter-
vém (11,25). Esta morte não pode destruir a vida eterna, mas obvia-
mente havería um aspecto de completude na vida eterna após a morte
que falta àqueles que ainda não passaram pela morte física. Além do
mais, após a morte já não há a possibilidade de perder a vida eterna
através do pecado. Outra indicação de galardão futuro é a afirmação
de que Jesus passa pela morte e ressurreição, a fim de preparar mora-
das na casa de seu Pai para onde ele levará os que creem nele (14,2-3).
Se os homens veem a glória de Jesus sobre esta terra, há uma visão fu-
tura de glória a ser concedida quando se juntarem a Jesus na presença
do Pai (17,24).
A maioria dos estudiosos ao menos admitirá os elementos futu-
ristas mencionados até então; o problema real diz respeito aos ele-
mentos finais ou apocalípticos na escatologia de João. Haverá uma
segunda vinda, uma ressurreição dos mortos, no fim dos tempos, e
um juízo final? Há passagens claras que falam nestes termos (5,28-29;
6,39-40.44.54; 12,48). Como estas passagens devem ser tratadas e re-
conciliadas com o que temos visto da escatologia realizada? Para Bult-
mann , elas são adições do Redator Eclesiástico, adaptando a teologia
joanina à teologia da Igreja em geral. Que este não é um ponto de
vista satisfatório mesmo sobre bases meramente literárias, tem sido
frequentemente observado, pois algumas das passagens não parecem
ser adições (ver S mith, pp. 230-32). Que isso não é certo sobre o quadro
global da teologia joanina é sugerido por outra obra, o Apocalipse,
132 Introdução

q u e é o liv ro d o N T q u e tra ta d a escato lo g ia a p o c alíp tica ex confesso.


Em c o n tra p a rtid a , a in d a q u e creiam o s, c o n tra B ultmann , q u e h á u m a
co rre n te d e escato lo g ia ap o c alíp tica n o p e n s a m e n to jo a n in o g e n u ín o ,
há p o u c a d ú v id a d e q u e a te n ta tiv a d e V an H artingsveld d e re fu ta r
B ultmann , p o n d o e m João a ên fase so b re escato lo g ia fu tu ra lev a o
p ê n d u lo ex cessiv am e n te n a d ire ç ã o o p o sta .
Stauffer tem s u g e rid o q u e o e v a n g e lista é u m r e fo rm a d o r n o sen-
tid o d e q u e, p o r su a ên fa se so b re a escato lo g ia re a liz a d a e o M essias
o cu lto (p. 232s) está a rra n c a n d o os e le m e n to s a p o c a líp tic o s v u lg a re s
q u e tê m p e n e tra d o o p e n s a m e n to cristã o d e s d e a m o rte d e Jesus. Seu
p o n to d e v ista n ã o está lo n g e d a p o siç ã o d e D odd d e q u e a e sca to lo g ia
re a liz a d a jo a n in a é m u ito p ró x im a d o p e n s a m e n to o rig in a l d e Jesus.
B oismard, c o n tu d o , p e n sa q u e as p a s sa g e n s q u e tra ta m d a a p o c alíp tica
final são as m ais a n tig a s n o d e s e n v o lv im e n to d o p e n s a m e n to jo an in o ,
e as q u e tra ta m d a e sca to lo g ia re a liz a d a re p re s e n ta m a p e rsp e c tiv a
m ais recen te.
N ã o p o d e m o s d isc u tir to d a s e sta s su g estõ es; m a s, a p a rtir d a
e v id ên cia n e o te s ta m e n tá ria , su g e rim o s co m o u m a h ip ó te s e v iáv e l
o se g u in te d e s e n v o lv im e n to g eral d a e scato lo g ia n e o te sta m e n tá ria .
D e n tro d a p ró p ria m e n sa g e m d e Jesu s h a v ia u m a te n sã o e n tre a esca-
to lo g ia re a liz a d a e a final. E m s e u m in isté rio , o re in a d o d e D e u s e sta v a
se fa z e n d o m an ifesto e n tre os h o m en s; e, n o e n ta n to , co m o h e rd e iro
d e u m a tra d iç ã o ap o c alíp tica , Jesu s ta m b é m falo u d e u m a m an ifesta-
ção final d o p o d e r d iv in o a in d a p o r v ir. A o b s c u rid a d e d a s refe rê n -
cias d o e v a n g e lh o in d ic a ria q u e Jesu s n ã o tin h a u m e n sin o claro so b re
com o o u q u a n d o e sta m an ifestaç ã o fin al se co n c re tiz a ria . H á a lg u m a s
afirm açõ es q u e p a re c e m re p o rta r-se à su a v in d a n o fu tu ro p ró x im o
(M c 9,1; 13,30; M t 10,23; 26,64); o u tra s p a re c e m p re s s u p o r u m la p s o d e
tem p o (Lc 17,22)e u m a d a ta im p re cisa (Mc 13,32-33). É u m p ro c e d im e n -
to d u v id o s o s u p rim ir u m o u o o u tro g r u p o d e a firm a ç õ es a fim d e re-
c o n stru ir u m p o n to d e vista escatológico c o n sisten te m a n tid o p o r Jesus.
O re c o n h e c im e n to d e q u e h a v ia e le m en to s n a p ró p ria e sca to lo g ia d e
Jesu s ta n to re a liz a d a q u a n to fin al significa q u e , n o s s u b s e q u e n te s d e-
se n v o lv im e n to s q u e d isc u tire m o s abaixo, os e scrito res n e o te sta m e n -
tário s n ã o e sta v a m c ria n d o teo ria s ex nihilo d a e scato lo g ia re a liz a d a
o u d a fin al, m a s e sta v a m a p lic a n d o a u m a situ a ç ã o p a rtic u la r u m a
o u o u tra ten sã o já p re s e n te n o p e n s a m e n to d e Jesus. E p o d e m o s a g re -
g a r q u e h a v ia ten sõ es d e a m b o s os tip o s d e e scato lo g ia n o ju d a ís m o
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 133

c o n te m p o râ n e o d e Jesus. O Rolo de Guerra (1QM ) m o stra as expectati-


v as d e Q u m ra n d a in te rv e n ç ã o d iv in a final. T o d av ia, ao m esm o tem -
p o , os a d e p to s c ria m q u e já p a rtilh a v a m d o s d o n s celestiais d e D eus,
fo ra m lib e rta d o s d o ju íz o e d e s fru ta v a m d a c o m p a n h ia d o s anjos. V er
J. L icht, IFJ 6 (1956), 1 2 -1 3 ,9 7 .
A c o n fu sã o acerca d a e scato lo g ia é u m a característica d o p en -
sarn en to c ristã o p rim itiv o . A t 2,17s. re tra ta P e d ro a p ro c la m a r q u e o
ú ltim o d ia c h e g a ra n a re ssu rre iç ã o d e Jesus e o d e rra m a m e n to d o Es-
p írito . A ssim , a p rim e ira ên fa se n a e x p e cta tiv a escatológica p a re c e ter
sid o q u e to d a s as co isas e ra m a c o m p a n h a d a s p o r e e m Jesu s C risto e
q u e s o m e n te u m b re v e ín te rim seria c o n c ed id o p o r D eu s p a ra p e rm i-
tir q u e a p ro c la m a ç ã o escato ló g ica fosse feita aos h o m en s. A rejeição
d e sta p ro c la m a ç ã o p o r m u ito s lev a v a a v a n te o u tra ten sã o d e p e n sa-
m e n to o riu n d a d e Jesu s q u e falo u d e u m a v in d a d o F ilho d o H o m e m em
ju íz o s o b re o s p e rv e rs o s , u m q u a d ro q u e n a tu r a lm e n te e ra m a tiz a d o
p o r e le m e n to s a p o c alíp tico s d o p ró p rio p a n o d e fu n d o d o p re g a d o r.
A p a s s a g e m g ra d u a l d o s a n o s su sc ito u m ais a g u d a m e n te o p ro b le m a
d e q u ã o lo g o e sta v in d a o c o rre ría , u m p ro b le m a q u e c a u so u a n g ú stia
a P a u lo e m s u a c o rre sp o n d ê n c ia com os tessalo n icen ses e coríntios.
(Q ue a e x p e c ta tiv a d e P a u lo d e u m a se g u n d a v in d a n ã o o im p e d iu d e
ter u m a fo rte escato lo g ia re a liz a d a é v isto e m su a a titu d e p a ra com
a Igreja n a s E p ísto las d o C ativeiro). Escrita talvez n os an o s 60, lP d 4,7
p o d ia a in d a p ro c la m a r: " O fim d e to d a s as coisas e stá p ró x im o ".
A d e s tru iç ã o d e Je ru sa lé m e m 70 foi u m d iv iso r d e á g u a s n o de-
se n v o lv im e n to d o p e n s a m e n to escato ló g ico d o N T . E óbvio, à lu z de
p a ssa g e n s co m o Lc 21,20 e A p 4-11 q u e a lg u n s teó lo g o s v ira m a des-
tru ição d e Je ru sa lé m c o m o o c u m p rim e n to (parcial) d a s p a la v ra s d e
Jesus a trib u in d o a v in d a d o F ilho d o H o m e m e m ju ízo p a ra p u n ir
os p e rv e rso s. M as, o q u e d iz e r d o g lo rio so esta b e le c im e n to d a basi-
leia? A lg u n s p a re c e m te r c o n se rv a d o su a s e sp e ra n ç a s d e u m a viva
p a ro u s ia im e d ia ta e n q u a n to h o u v e sse u m re p re s e n ta n te d a g eração
ap o stó lica v iv o . A s reaçõ es à p a ssa g e m d e ste ú ltim o sin a l tan g ív e l d a
p a ro u s ia im e d ia ta são e n c o n tra d a s n o cin ism o q u e é o alvo d e 2 P d 3,4
e o d e s a p o n ta m e n to d o q u a l se fala e m Jo 21,22-23.
O u tro s a s s u m ira m u m a re s p o s ta m ais p o sitiv a. D eix a n d o d e lad o
a q u e stã o d e q u a n d o Jesu s v o lta ria , e n fa tiz a ra m tu d o o q u e os cristãos
já h a v ia m rec e b id o e m Je su s C risto . N ã o h á n e c e ssid a d e d e excessiva
p re o c u p a ç ã o so b re o ju ízo final, p o is a reação d o s h o m e n s p a ra com
134 Introdução

Jesu s e m relação à fé o u falta d e fé já e ra u m ju ízo . N ã o h á n e c e ssid a d e


d e excessivo a n seio p e la s b ên ç ão s q u e a p a ro u s ia tra ria , p o is a d iv in a
filiação e a v id a e te rn a , os d o is d o n s m aio res, já e s ta v a m d e p o sse d o s
cristão s, a tra v é s d a fé e m Je su s e a tra v é s d o b a tism o e d a e u c aristia .
P ara a q u e le s q u e m o rria m e m Jesu s n ã o h a v ia a g o n ia in d e fin id a de
a g u a rd a r a té o ú ltim o d ia e a re ssu rre iç ã o d o s m o rto s, p o is a p ó s a
m o rte h a v ia u m a c o n tin u a ç ã o d a v id a e te rn a q u e já p o s s u ía m - u m a
c o n tin u a çã o q u e a m o rte n ã o p o d ia a fe ta r e u m a c o n tin u a ç ã o q u e
c o n stitu ía u m a u n iã o a in d a m ais ín tim a c o m Je su s e se u P ai. D e te m p o
em tem p o , a p e rse g u iç ã o e a p ro v a ç ã o r e a c e n d e ría m o p r o fu n d o an e lo
p e lo re to rn o im e d ia to d e Jesus e o d iv in o liv ra m e n to . V em os isto e m
A p 12-22, o n d e a p e rse g u iç ã o ro m a n a ag e co m o u m c a ta lisa d o r p a ra
as e s p e ra n ç a s ap o calíp ticas. M as o e n sin o c ristã o o rd in á rio e ra m a is e
m ais fo rm u la d o e m term o s d e escato lo g ia re a liz a d a . E sta co m b in a çã o
d e u m a p re d o m in a n te escato lo g ia re a liz a d a co m m is tu ra s d e ex p ecta-
tiv as a p o c alíp tica s tem c o n tin u a d o co m o u m a p e rsp e c tiv a c ristã n o r-
m al a té n o sso s d ias.
P ro p o n d o co m o s u p o m o s u m lo n g o d e s e n v o lv im e n to n a c o m p o -
sição d o Q u a rto E v an g elh o , a p a rtir d o e stá g io d a tra d iç ã o h istó ric a
a té o estág io d a re d a ç ã o final (P rim eiro ao Q u in to E stágio), a priori p o -
d e m o s e s p e ra r e n c o n tra r e m João v e stíg io s d e o scilação p a ra cá e p a ra
lá d e e x p e cta tiv a escato ló g ica n o l e século. B ultmann , D odd e B lank
estão , crem o s n ó s, certo s e m in sistir q u e a p rin c ip a l ê n fa se n o e v a n -
g elh o é so b re a e sca to lo g ia re a liz a d a , p o is o e v a n g e lh o p ro p ria m e n te
d ito foi e scrito n o p e río d o a p ó s a q u e d a d e Je ru sa lé m , q u a n d o a s e sp e-
ran ç a s d e u m a p a ro u s ia im e d ia ta ra p id a m e n te se d e sv a n e c e ra m . U m
d o s p ro p ó sito s d o e v a n g e lh o e ra e n s in a r ao s cristã o s q u a l o d o m q u e
h a v ia m rec e b id o em Jesu s, q u e e ra a fo n te e b a se d e s u a v id a n a Igre-
ja. O e v a n g e lh o c o n sid e ra m u i c la ra m e n te a v in d a d e Jesu s co m o u m
ev e n to e scato ló g ico q u e m a rc o u a m u d a n ç a d o s a eo n s. Se o e v a n g e lh o
com eça co m " N o p rin c íp io " , isso se d e v e ao fato d e q u e a v in d a d e
Jesu s será a p re s e n ta d a co m o u m a n o v a e d e fin itiv a criação. O s o p ra r
d e Jesu s so b re o s d isc íp u lo s e m 20,22, q u a n d o lh e s c o m u n ic a o E spí-
rito g e ra d o r d e v id a , é com o o s o p ra r d e D e u s so b re o p ó q u a n d o n o
p rin c íp io c rio u o h o m e m (G n 2,7), m a s a g o ra , a tra v é s d e S eu E sp írito ,
D eu s tem re c ria d o os h o m e n s co m o S eus p ró p rio s filh o s (1,12-13).
A s p a s sa g e n s e m João q u e tra ta m d a e sca to lo g ia a p o c a líp tic a são
u m a lem b ran ç a d e q u e e ste te m a e ra e n c o n tra d o n a p ró p ria p re g a ç ã o
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 135

d e Jesu s. Eles to m a ra m su a fo rm u la ç ã o e m u m p e río d o n o d esen v o l-


v im e n to d o p e n s a m e n to jo a n in o q u a n d o a e sca to lo g ia fin al era u m
im p o rta n te m o tiv a d o r. A caso e ste foi u m p e río d o p rim itiv o com o
p e n s a B oismard, ou u m p e río d o re c e n te c o m o p e n s a B ultmann ? C om o
v e re m o s n o c o m e n tá rio , e sta s p a s sa g e n s são a m iú d e d u p lic a ta s d e
o u tra s p a s s a g e n s o n d e as m e sm a s p a la v ra s d e Jesu s são in te rp re ta d a s
em te rm o s d e e sca to lo g ia re a liz a d a ; p o r e x em p lo , c o m p a re 5 ,2 6 3 0 ‫־‬
(ap o calíp tica) co m 5,19-25 (realizad a). E m tais casos, B ultmann p o d e -
ria e s ta r c e rto e m a trib u ir a a d iç ã o d a p a ssa g e m com escato lo g ia final
ao r e d a to r fin a l (ou, ao m en o s, p o d e -se su g e rir, à s e g u n d a re d a ç ã o do
e v a n g e lh o - Q u a rto E stágio).
E n tre ta n to , é n e c essá rio d u a s a d v e rtê n c ia s. Primeira, u m a v ez q u e
n ão c re m o s q u e o r e d a to r fosse u m c en so r, e sim , ao c o n trá rio , a lg u é m
q u e p re s e rv a v a o m a te ria l jo a n in o , e q u e te n ta v a fazer d o e v a n g elh o
u m a coleção c o m p le ta d e ste m a te ria l ta n to q u a n to p o ssív e l, o m ate ria l
p e rtin e n te à e sca to lo g ia final a crescid o ao e v a n g e lh o n ã o e ra necessa-
ria m e n te u m m a te ria l ta rd io . B oismard p o d e ria e s ta r certo ao p e n s a r
q u e e s ta s p a s s a g e n s a d ic io n a d a s e ra m a n tig a s in te rp re ta ç õ e s; talv ez
to m a sse m fo rm a n o p e río d o a n te rio r a 70 q u a n d o a escato lo g ia final
e ra m a is v iv id a . N e ste caso, o re d a to r e sta ria a d ic io n a n d o m ate ria l
a n tig o q u e n ã o fo ra in c o rp o ra d o n a p rim e ira re d a ç ã o d o ev an g elh o .
E n tre ta n to , v isto q u e h o u v e ta m b é m m o m e n to s, a p ó s 70, em q u e a
escato lo g ia a p o c alíp tica re v iv e u , co m o já m e n c io n a m o s e m referên cia
ao A p o c a lip se , é m u ito difícil faz e r q u a is q u e r afirm açõ es a b so lu ta s
so b re a re la tiv a a n tig u id a d e d e tais p a ssa g e n s.
U m a segunda a d v e rtê n c ia d iz re sp e ito ao p re s s u p o s to p ro p ó sito
d o re d a to r (o u o re sp o n sá v e l) e m a d ic io n a r ao e v a n g elh o p a ssa g e n s
n as q u a is a escato lo g ia final foi p ro p o sta . N ã o existe p ro v a rea l d e qu e
isto foi feito n u m a te n ta tiv a d e fazer o e v a n g elh o m ais o rto d o x o e acei-
táv el à Igreja. E m p a rte , a in te n ç ão d o re d a to r p o d e ria te r sid o a p re-
serv ação d o m a te ria l jo an in o q u e d e o u tro m o d o teria se p e rd id o . Se a
red a ç ã o fin al d o e v a n g elh o o c o rre u n o final d o s an o s 90, talv ez p o u co
d e p o is d o p e río d o e m q u e o A p o c a lip se foi escrito, o re d a to r estav a
v iv e n d o em u m p e río d o d e p e rse g u içã o , q u a n d o u m a ên fase so b re a
escato lo g ia fin al te ria e n co rajad o os leito res d o ev an g elh o . O u p o d e -se
a in d a s u p o r q u e ele n ã o d esejav a q u e a in te n siv a escatologia rea liz a d a
d o e v a n g e lh o fo m e n tasse a e x p e cta tiv a d a s e g u n d a v in d a e assim d a r
u m falso q u a d ro d o p e n s a m e n to to ta l d e João, filho d e Z e b e d eu , e do
136 Introdução

ev an g elista. Em q u a lq u e r caso, a fo rm a final d o e v a n g elh o , co m su a


d u p la escato lo g ia, n ã o é, e m m in h a o p in iã o , u m e sp e lh o infiel d a s vá-
rias ten sõ es n a p ró p ria a titu d e d e Jesus p a ra com a escatologia.

D. OS MOTIVOS SAPIENCIAIS

U m asp ecto q u e d estaca im e d ia ta m e n te o Q u a rto E v an g elh o d o s o u tro s


e v an g elh o s e lh e d á força p e c u lia r é su a a p re se n ta ç ã o d e Jesus com o
revelação e n c a rn a d a q u e desce d o alto p a ra oferecer ao s h o m e n s lu z e
v e rd a d e . E m d iscu rso s d e so le n id a d e q u a se p o ética, Jesus se p ro cla m a
com a fam o sa fó rm u la "E u so u ", e su a s o rig en s d iv in a s e celestiais são
visíveis tan to n o q u e d iz q u a n to n a m a n e ira com o o diz. Seu e u so u de
o u tro m u n d o é visível n a m an e ira d e tra ta r com m ajesto so d e s d é m as
tra m as c o n tra ele e as ten ta tiv a s d e p ren d ê -lo . Ele é m ais b e m descrito
em su as p ró p ria s p alav ras: " N o m u n d o , p o ré m n ã o d e le ". S ugerim os
q u e, ao esb o çar este perfil d e Jesus, o ev an g elista g ra fo u co m m aiú s-
culo u m a id en tificação d e Jesus com a S ab ed o ria d iv in a p e rso n ific ad a
com o d escrita n o AT. (O bviam ente, este n ã o é o ú n ico fato r q u e tem
c o n trib u íd o p a ra o perfil, m as a q u i d esejam o s c h a m a r a ate n ç ã o p a ra a
força e n ú m e ro d o s tem as sapienciais). Ju sta m en te co m o os escritores
n e o te stam e n tá rio s e n c o n tra ra m em Jesus o a n títip o d e e le m en to s nos
livros h istó rico s d o A T (p. ex., d o Ê xodo, M oisés, D avi) e o c u m p rim e n -
to d a s p a la v ra s d o s p ro fetas, o ev an g elista d e tal m o d o v iu e m Jesus a
cu lm in ação d e u m a tra d içã o q u e p e rc o rre a lite ra tu ra sap ien cial d o AT.
A lite ra tu ra sa p ie n c ia l co b re u m a m p lo e sp e c tro d e m a te ria l e é
u m d o s se to re s m ais c o sm o p o lita s d o A T, te n d o m u ito e m c o m u m
com os escrito s d o s sáb io s d o E gito, S u m é ria e B abilônia. E ste ecu m e-
n ism o d o m o v im e n to sa p ie n c ia l ficou p a te n te e m u m p e río d o ta rd io
n a a b e rtu ra d o s sáb io s bíb lico s à in flu ê n cia h e le n ista , p o is ele e sta v a
em ação c o m o E clesiastes e a S a b e d o ria d e S alo m ão q u e o p e n s a m e n to
e v o c a b u lá rio filosóficos g reg o s fiz e ra m su a s m a is im p o rta n te s in cu r-
sõ e s n a B íblia. Q u a se m e ta d e d a lite r a tu r a d e u te ro c a n ô n ic a , p re s e r-
v a d a n o c â n o n d e A le x a n d ria , é d e u m c a rá te r sa p ie n c ia l. A m esc la d e
m isticism o o rie n ta l e m ito lo g ia co m a filosofia g re g a , e n c o n tra d a n a
lite ra tu ra sa p ien cial, ex e rc e u u m a in flu ê n cia q u e c o n tin u o u m esm o
a p ó s o p e río d o bíblico, e p o d e m -se e n c o n tra r v e stíg io s d e la n o g n o sti-
cism o e n o h e rm e tic ism o egípcio.
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 137

N o N T , T iag o re p re s e n ta u m liv ro sa p ie n c ia l cristão, ilu stra n d o


a q u e la p a rte d e escrito sa p ie n c ia l q u e tra ta d a ética p rática. A lg u m as
d a s te n d ê n c ia s m a is m ísticas n o p e n s a m e n to sa p ien cial tiv e ra m ra-
m ificaçõ es em C o lo ssen se s e Efésios. O e v a n g e lh o d e João, q u e se su-
p õ e h a v e r s u rg id o n a q u e le m esm o a m b ie n te co m o a q u e le a p o n ta d o
n e s ta s d u a s e p ísto la s, ta m b é m rev e la esta in flu ên cia. N o A p ê n d ic e II,
p. 823ss m o s tra re m o s o p a n o d e fu n d o q u e a lite ra tu ra sa p ie n c ia l ofe-
rece p a ra o co n ceito d e " P a la v ra " o u logos; a q u i e sta re m o s m ais p reo -
c u p a d o s co m o p e rfil jo an in o d e Jesus.
E m b o ra refe rê n c ia s à S a b e d o ria d iv in a p e rso n ific a d a (u m a fi-
g u ra fem in in a , v isto q u e a p a la v ra h e b ra ica p a ra sa b ed o ria, h okm ã,
é fem in in a ) estejam e s p a lh a d a s p o r to d a p a rte n o A T, a q u i no ssas
fo n tes p rin c ip a is se rã o os p o e m a s d e d ic a d o s à S a b ed o ria e encon-
tra d o s e m Jó 28; P r 1-9; B a ru q u e 3,9-4,11-19; 6,18-31; 14,20-15,10; 24;
Sb 6-10.
D e a c o rd o com estas descrições, a S ab ed o ria existiu com D eus
d e sd e o p rin c íp io , a in d a an te s q u e h o u v e sse u m a terra (Pv 8,22-23;
S iraque 24,9; Sb 6,22) - assim tam b é m o Jesus joanino é a P alav ra qu e era
n o p rin cíp io (1,1) e estava com o Pai an te s q u e o m u n d o viesse à exis-
tência (17,5). D iz-se q u e S abedoria é u m a em an ação p u ra d a glória do
O n ip o ten te (Sab 7,25) - assim tam b é m Jesus tem a glória d o Pai a qual
ele fez m an ifesta aos h o m en s (1,14; 8,50; 11,4; 17,5.22.24). D iz-se q u e a
S abedoria é u m reflexo d a e tern a lu z d e D eus (Sab 7.26); e, ao ilu m in ar
a v e re d a d o s h o m en s (Sir 1,29), ela d ev e ser p refe rid a a q u a lq u e r lu z na-
tu ral (Sab 7,10.29) - n o p e n sa m e n to joanino, D eus é lu z ( ljo 1,5); e Jesus,
q u e v e m d e D eus, é a lu z d o m u n d o e d o s h o m en s (Jo 1,4-5; 8,12; 9,5),
finalm ente d e stin a d o a su b stitu ir to d a a lu z n a tu ra l (A p 21,23).
A S a b e d o ria é d e sc rita co m o h a v e n d o d e sc id o d o céu p a ra m o ra r
com os h o m e n s (Pv 8,31; Sir 24,8; B ar 3,37; Sab 9,10; Tg 3,15) - assim
ta m b é m Jesu s é o F ilho d o H o m e m q u e d e sce u d o céu à te rra (1,14;
3,31; 6,38; 16,28). E m p a rtic u la r, Jo 3,13 é m u ito e stre ito com Bar 3,29 e
Sab 9,16-17. O re to rn o fin al d a S a b ed o ria ao céu (1 Enoque 42,2) p ro p i-
cia u m p a ra le lo co m o re to rn o d e Jesu s a se u Pai.
A fu n ç ã o d a S a b e d o ria e n tre os h o m e n s é e n sin á-lo s so b re as coi-
sas q u e são d o a lto (Jó 11,6-7; Sab 9,16-18), e n u n c ia r a v e rd a d e (Pv 8,7;
Sab 6,22), m in is tra r in stru ç õ e s q u a n to ao q u e a g ra d a a D eus e com o
fazer S u a v o n ta d e (Sab 8,4; 9,9-10) e, assim , g u ia r os h o m e n s à v id a
(Pv 4,13; 8,32-35; Sir 4,12; Bar 4,1) e im o rta lid a d e (Sab 6,18-19). E sta é
138 Introdução

p re c isa m e n te a fu n ção d e Jesus co m o re v e la d o r, c o m o re tra ta d o em


n u m e ro s a s p a s s a g e n s e m João. A o c u m p rir s u a tare fa , a S a b e d o ria
fala n a p rim e ira p e sso a e m lo n g o s d isc u rso s d irig id o s ao s s e u s o u -
v in te s (Pv 8,3-36; Sir 24) - a ssim ta m b é m Je su s a s su m e s u a p o siç ã o
e fala ao s h o m e n s e m se u s d isc u rso s, às v e z e s c o m e ç a n d o co m "E u
so u "... (A p ê n d ic e IV, p. 841ss). O s sím b o lo s q u e S a b e d o ria u s a p a r a a
in stru ç ã o q u e oferece são sím b o lo s d e a lim e n to (pão) e b e b id a (ág u a,
v in h o ), e c o n v id a os h o m e n s a c o m e r e b e b e r (Pv 9,2-5; Sir 24,19-21;
Is 4,1-3 [D eus o fere c en d o S u a in stru çã o ]) - a ssim ta m b é m Je su s u sa
estes sím b o lo s p a ra su a rev e laç ã o (Jo 6,35.51ss.; 4,13-14).
A S a b e d o ria n ã o se satisfa z e m s im p le sm e n te o ferecer se u s d o n s
ao s q u e v iere m ; ela p e rc o rre as ru a s e m b u sc a d e h o m e n s e lh es clam a
(Pv 1,20-21; 8,1-4; Sab 6,16) - assim ta m b é m e n c o n tram o s o Jesus joani-
n o c a m in h a n d o p e la s ru a s, a e n c o n tra r os q u e o s e g u irã o (1,36-38.43),
s a in d o ao e n c o n tro d o s h o m e n s (5,14; 9,35) e a n u n c ia n d o se u c o n v ite
em lu g a re s p ú b lic o s (7,28.37; 7,44). U m a d a s tare fa s m a is im p o rta n te s
q u e a S a b e d o ria e m p re e n d e é in s tru ir d isc íp u lo s (Sab 6,17-19) q u e são
se u s filh o s (Pv 8,32-33; Sir 4,11; 6,18) - a ssim ta m b é m e m João aq u e -
les d isc íp u lo s q u e são re u n id o s e m to rn o d e Jesus são c h a m a d o s se u s
p e q u e n in o s (8,33). A S a b e d o ria testa estes d isc íp u lo s e os fo rm a (Sir
6,20-26) a té q u e a a m e m (Pv 8,17; Sir 4,12; Sab 6,17-18) e se to rn e m
am ig o s d e D e u s (Sab 7,14.27) - a ssim ta m b é m Jesu s p u rific a e san tifica
seu s d isc íp u lo s com su a p a la v ra e a v e rd a d e (15,3; 17,17) e os testa
(6,67) a té q u e p o s s a m c h a m á -lo s se u s a m a d o s a m ig o s (15,15; 16,27).
E m c o n tra p a rtid a , h á h o m e n s q u e rejeitam a S a b e d o ria (P v 1,24-25;
Bar 3,12; E n 42,2) - a ssim ta m b é m v e m o s e m João m u ito s q u e n ão
o u v irã o q u a n d o Jesus lh es o ferece a v e rd a d e (8,46; 10,25). A m o rte é
in ev itá v e l p a ra os q u e reje ita m a S ab ed o ria; a v e rd a d e é in atin g ív e l;
e se u p ra z e r n a s coisas d a v id a é tra n sitó rio . (B runs, art. cit., re s s a lto u
q u e a fria p e rs p e c tiv a c a u sa d a p e la b a n c a rro ta d a sa b e d o ria e m Ecle-
siastes n ã o é d ife re n te d a q u e la q u e se a lu d e e m Jo 6,63, o n d e lem o s
q u e a ca rn e é sem v a lo r e só o E sp írito p o d e d a r v id a). A ssim a v in d a
d a S ab ed o ria p ro v o c a u m a d iv isão : a lg u n s b u s c a m e a c h a m (P v 8,17;
Sir 6,27; Sab 6,12); o u tro s n ã o b u sc a m , e q u a n d o m u d a r e m d e id eia,
será ta rd e d e m a is (Pv 1,28). A m e sm a lin g u a g e m em João d e sc re v e o
efeito d e Jesu s so b re o s h o m e n s (7,34; 8,21; 13,33).
A lém d e s ta s c o m p a raç õ e s e n tre a c a rre ira d a S a b e d o ria e o m i-
n isté rio d e Jesu s, p o d e -se e n c o n tra r o u tro p a ra le lo c o m a S a b e d o ria
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 139

n o E sp írito -P a rác lito q u e e n sin a os h o m e n s a e n te n d e r o q u e Jesus


lh es c o n to u (A p ê n d ic e V, V ol. 2, p . 1640). T a m b é m se p o d e co m p a-
ra r a h a b ita ç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o d e Jesu s n o in te rio r d o s q u e creem
nele (14,23) co m o p o d e r d a S a b e d o ria d e p e n e tra r o s h o m en s
(Sab 7,24.27).
E sta b re v e e x p o sição a ju d a ria a c o n firm a r n o ssa afirm ação (Q u ar-
ta P a rte acim a) d e q u e a lite ra tu ra sa p ie n c ia l oferece m elh o res p a ra -
lelos p a ra a d escriçã o jo a n in a d e Jesu s d o q u e p a ssa g e n s gnósticas
p o ste rio re s, m a n d e a n a s o u h e rm é tic a s a lg u m a s v e z es su g e rid a s. (Po-
de-se ta m b é m n o ta r q u e , o q u e João p a rtilh a e m c o m u m com estes úl-
tim o s c o rp o s d e lite ra tu ra , c o stu m a re p re s e n ta r u m a h e ra n ç a c o m u m ,
p o rém in d e p e n d e n te m e n te rec e b id a , d a lite ra tu ra sa p ie n c ia l judaica).
E n tre ta n to , João n o ta v e lm e n te m o d ific o u d e ta lh e s d a a p re se n ta ç ã o d a
S ab ed o ria, in tro d u z in d o u m a p e rsp e c tiv a h istó ric a m u ito m ais ag u -
d a d o q u e se e n c o n tra n o s p o e m a s v e te ro te sta m e n tá rio s. Se Jesus é a
S a b ed o ria e n c a rn a d a , esta e n c a rn a ç ã o o c o rre u em u m lu g a r e tem p o
p a rtic u la re s , u m a v e z e p a r a s e m p re . M as, m e sm o e sta d e m ito lo g i-
zação d o co n ceito d e S a b e d o ria , in c o rp o ra n d o -a n a h istó ria d a salva-
ção, n ã o é to ta lm e n te n o v a , p o is se e n c o n tra a m e sm a te n d ê n c ia na
p ró p ria lite ra tu ra sa p ie n c ia l ta rd ia . S ira q u e 24,23 e B a ru q u e 4,1 id en -
tificariam a S a b e d o ria com a Lei d a d a n o S inai, e Sb 10 ilu stra a ativi-
d a d e d a S a b e d o ria n a s v id a s d o s p a tria rc a s , d e s d e A d ã o a té M oisés.
(E in te re s s a n te n o ta r q u e as refe rê n c ia s d e João ao A T são e m g ra n d e
p a rte refe rê n c ia s a h o m e n s co m o A b ra ã o , M oisés e Isaías, q u e têm
d a d o te s te m u n h o d e Jesu s e p re v ira m se u s d ia s e, assim , tê m sid o tes-
te m u n h a s d a s a b e d o ria d iv in a - 5,46; 8,56; 12,41). João lev a isto m ais
longe, v e n d o e m Jesu s o s u p re m o e x e m p lo d a S a b e d o ria d iv in a ativ a
n a h istó ria e d e v e ra s a p ró p ria S a b e d o ria d iv in a.
A a p re s e n ta ç ã o d e Jesu s co m o a S a b e d o ria d iv in a é u m d esen v o l-
v im e n to p a r tic u la rm e n te jo a n in o , o u p o d e re m o n ta r-s e à a n tig a tra-
d ição d o s o u tro s e v a n g elh o s? É p o ssív e l e n c o n tra r a lg u m a in fo rm ação
p e rtin e n te a esta c o m p re e n sã o d e Jesu s e m to d o s os e v a n g elh o s. P or
ex em p lo , e m b o ra às v e z e s Jesu s u sa sse o m a n to d e p ro fe ta , ta m b é m re-
v elav a c e rto s cara c te rístic o s d o m e stre d e sa b e d o ria . (V er A. F euillet ,
RB 62 [1955], 179ss). Ele era a b o rd a d o co m o "M estre"; e re u n ia disci-
p ulos; re s p o n d ia a in d ag açõ es so b re a Lei; falava em p ro v érb io s e p a-
rábolas. N o s ú ltim o s ev a n g elh o s h á ten d ê n c ia p a ra salien tar o caráter
sapiencial d o s p ro n u n c ia m e n to s d e Jesus. M ateu s e L ucas g e n e ra liz a m
140 Introdução

d ito s d e Jesu s u m a v e z d irig id o s a u m a situ a ç ão p a rtic u la r e fizeram


deles d ito s sa p ie n c ia is co m a p licação u n iv e rs a l (p. ex., v e r D avies,
Setting, p p . 457-60). O s e stu d io so s d ife re m so b re q u a n to d e ste cará-
ter sa p ie n c ia l foi e n c o n tra d o e m "Q " (a fo n te c o m u m p a ra M a te u s
e L ucas), m a s o fato d e q u e " Q " te n h a ao m en o s a lg u n s a sp e c to s sa-
p ien c iais significa q u e as ên fases sa p ie n c ia is re m o n ta a u m estágio
re la tiv a m e n te a n tig o n a fo rm a ç ã o d a tra d iç ã o d o e v a n g e lh o . En-
tre ta n to , d e v e -se n o ta r q u e em g eral a c o rre n te d a tra d iç ã o sap ien -
ciai n o s sin ó tico s n ã o se d e se n v o lv e e x a ta m e n te d a m e sm a fo rm a que
se d e s e n v o lv e em João. N o s sin ó tico s, o e n sin o d e Jesu s m o stra certa
c o n tin u id a d e com os e n sin o s éticos e m o ra is d o s sáb io s d a lite ra tu ra
sap ien cial; em João, Jesus é a S a b e d o ria p e rso n ific ad a .
N ão o bstante, h á u m as p o u cas p assag en s n os sinóticos q u e são
m u ito m ais p ró x im as à tensão sapiencial q u e acham os em João. Em
Lc 21,15, Jesus p ro m ete d a r a seus discípulos sabedoria q u e os capaci-
tará a falar. E m Lc 11,49, atribui-se u m d ito a "a S abedoria d e D eu s", a
q u al M t 23,34 atrib u i ao p ró p rio Jesus. O d ito enigm ático, "A Sabedo-
ria é justificada p o r [todos] os seus filhos [ou feitos]", se e n co n tra em
am bos, M t 11,19 e Lc 7,35, em u m contexto q u e p o d e lev ar o leitor a
identificar Jesus com o a "S abedoria" d o dito. Em o u tra p a ssa g e m "Q "
(Lc 11,31; M t 12,42), Jesus é exaltado acim a d a sab ed o ria d e Salom ão.
E m M c 10,24, Jesus se dirige a seus discípulos com o "F ilhos", u m a for-
m a d e d iscurso que, com o dissem os acim a, em p reg a, respectivam ente,
a Sabedoria personificada e o Jesus joanino. O tem a d e Jesus v in d o ao
m u n d o p a ra ch am ar h o m en s se encontra em todos os três sinóticos
(Mc 2,17 e par.). E m Lc 6,47 (porém não em M t 7,24), Jesus diz: "Todo
aquele que vem a mim e ouve m in h as palavras"... - u m d ito n o estilo da
Sabedoria p erso nificada e típica d o Jesus joanino (5,40; 6,35.45).
A p a ssa g e m m ais im p o rta n te n os e v a n g elh o s sinóticos q u e reflete
o tem a d a S ab edoria p e rso n ificad a é o "lo g io n jo an in o " (M t 11,25-27;
Lc 10,21-22), u m d ito " Q " em q u e Jesus é a p re s e n ta d o c o m o u m reve-
lad o r, co m o o F ilho q u e c a p ac ita h o m e n s a c o n h e ce rem o Pai. D avies,
Setting, p. 207, su g e re q u e a ên fa se o rig in a l n e sta re v e laç ã o p o d e ria
ter sid o m ais escatológica d o q u e sap ien cial. N ã o o b sta n te , a q u i tem o s
u m d ito d o tip o m a rc a n te m e n te jo an in o , o q u a l se re m o n ta à tra d iç ã o
p rim itiv a . O d ito q u e o se g u e e m M t 11,28-30, q u a n d o Jesu s c o n v id a
h o m e n s a irem a ele a fim d e a c h a r d e sca n so , ecoa e s tre ita m e n te os
ap elo s d a S a b ed o ria em S ira q u e 24,19 e 51,23-27.
VIII · Questões cruciais na teologia joanina 141

A e v id ê n c ia sin ó tica n ã o é e sm a g a d o ra , m as h á b a sta n te dela


p a ra le v a r se a s u s p e ita r q u e a id en tificação d e Jesus com a S ab ed o ria
p e rs o n ific a d a n ã o e ra a criação o rig in a l d o Q u a rto E v an g elh o . P ro v a-
v e lm e n te a q u i, co m o se d á com o u tro s te m a s jo an in o s co m o os d ito s
"a h o ra " e o "E u s o u " , João g ra fo u e m m a iú sc u lo e d e se n v o lv e u u m
tem a q u e já e ra p a rte d a tra d iç ã o p rim itiv a .

• ·

P o rta n to , n a fo rm a d e av aliação , co m o d e v e m o s e stim a r o lu g a r d a


teo lo g ia jo an in a n o e sp ec tro d a teologia d o N T? C o m o já a d v e rtim o s
(P arte IV:A), p o u c o c ré d ito se p o d e d a r ao p o n to d e v ista m ais an tig o
q u e co lo cav a os sin ó tico s, P a u lo e João e m u m a se q u ên cia h eg elian a
de tese, a n títe se e síntese. A m o d a d e reação a tais seq u ên cias artificial-
m en te u n ifo rm e s, a te n d ê n c ia m ais recen te tem sid o tra ta r a teologia
jo an in a co m o se estiv esse fora d e seq u ên cia - ou n o se n tid o d e q u e o
e v a n g elista estiv esse tão a fa stad o d o p e n sa m e n to cristão o rto d o x o a
p o n to d e ser u m p ro fe ta in co n scien te d e u m a a p ro x im aç ã o existencial
de Jesus q u e p e n e tra o e x te rn alism o d a Igreja e d o s sa cra m e n to s e co-
locou c a d a cristão n u m a relação d ire ta d e "E u -tu " com Jesus. A in d a
o u tra su g e stã o é q u e João re p re se n ta o p e n s a m e n to q u e circulava em
u m a c o m u n id a d e " c o n tra -c o rre n te " , se p a ra d a d a Igreja e m geral.
P e sso alm en te , n ã o e n c o n tra m o s m a io r d ific u ld a d e em a d e q u a r
João à v e rte n te p rin c ip a l d o p e n s a m e n to cristão; é o u tra faceta d a m ui-
tifo rm e c o m p re e n sã o cristã d e Jesus. N a tu ra lm e n te , a teologia d e João
n ão é a m e sm a d e P au lo , o u a d e T iago, o u d e q u a lq u e r d o s escritores
sinóticos. E m b o ra to d o s esses escrito res p a rtilh a sse m d e u m a u n id a d e
essencial n a fé q u e os to rn o u cristãos, ta m b é m exibiam u m a no táv el
d iv e rsid a d e n a a b o rd a g e m e ên fase teológicas (ver n o ssas observações
em N o v T 6 [1963], 298-308). T al d iv e rs id a d e é b e m ilu stra d a n o s di-
feren tes tra ta m e n to s n e o te sta m e n tá rio s d o s p ro b le m a s já d isc u tid o s
- eclesiologia, sa cra m e n to s e escatologia. N ã o c rem o s q u e haja ev id ên -
cia co n v in c e n te d e q u e a lg u m escrito r n e o te sta m e n tá rio c o n sid erasse
a Igreja, os sa c ra m e n to s o u a p a ro u s ia com o se n d o irrelev an tes; m as
c e rtam en te e x p ressão , d e m u ita s m a n e ira s d ife ren te s, à relev ân cia des-
tes tó p ico s, e e sta e x p ressão foi g ra n d e m e n te g u ia d a p o r fato res de
tem p o , lu g a r e e n te n d im e n to in d iv id u a l. C e rta m en te , a tra v é s d e com -
p aração , p o d e m o s a c h ar v estíg io s d e d e se n v o lv im e n to e sequência,
142 Introdução

m as n ã o h á d e se n v o lv im e n to lin e a r to d o -a b ra n g e n te n o p e n sa m e n to
n eo te stam e n tá rio . R econhecer isto to rn a m u ito c o m p re en sív e l o lu g ar
d o p e n s a m e n to teológico a lta m e n te p e c u lia r co m o o d e João.
Q u e João te m m u ito e m c o m u m co m o u tra s o b ra s d o N T já foi en-
fatiza d o e m a rtig o s c o m p a ra tiv o s recen tes. A lé m d o s e s tu d o s d e João
e d o s sin ó tico s m e n c io n a d o s n a T erceira P a rte , tê m h a v id o e s tu d o s so-
b re João e P a u lo , p o r exem plo: A. F ridrichsen, e m The Root of the Vine
(N ova York: P h ilo so p h ic al L ib rary , 1953), p p . 3 7 6 2 ‫ ;־‬e P. B enoit, N TS
9 (1962-63), 193-207 (re su m id o e m in g lês e m TD 13 [1965], 135-41).
E stes a rtig o s e n c o n tra m m u ita s sim ila rid a d e s su b ja c e n te s e n tre o p e n -
sarn en to jo a n in o e p a u lin o , a d e sp e ito d a a rtic u la ç ã o m u ito d ife ren te .
Q u a n d o c o n s id e ra rm o s o P ró lo g o , sa lie n ta re m o s q u e esse h in o joani-
n o a p a re n te m e n te ú n ico tem p a ra lelo s d e fin id o s c om o s h in o s p a u lin o s
em C o lo ssen ses e F ilipenses.
E m se u e x au stiv o co m en tário so b re a E pístola aos H e b re u s, C.
Spicq (Paris: G ab ald a, 1952), I, p p . 109-38, d ed ica u m e stu d o m u ito inte-
ressan te a u n s d ezesseis p aralelo s e m p e n sa m e n to e n tre João e H ebreus.
E ag o ra a lg u é m p o d e ria ad icio n ar a esta lista as a fin id ad e s d e Q u m ra n
e n co n trad as em a m b a s a s obras. Spicq, I, p . 134, o b serv a q u e d estes con-
tato s p arece q u e H e b re u s rep re sen ta u m elo e n tre as elaborações teoló-
gicas d e P au lo e João. P o d eria tam b ém ser ex traíd a u m a lo n g a lista de
p aralelo s e n tre João e as E pístolas G erais, e sp ecialm en te 1 P ed ro . A ssim ,
e n q u a n to o q u a rto evangelista p o d e ria ser "o T eólogo", ele n ã o e ra tão
solitário n e m tão d e satu a liz ad o com o m u ito s q u e re m nos fazer crer.

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IX
ID I O M A , T E X T O E F O R M A T O L IT E R Á R IO
DO EVANGELHO - E ALGUM AS
C O N S I D E R A Ç Õ E S SO B R E O ESTILO

A . O ID IO M A O R IG IN A L D O E V A N G E L H O

É provável que o idioma ordinário de Jesus fosse o aramaico, embo-


ra haja alguns estudiosos que pensam que ele falava normalmente o
hebraico. O fato de que os Rolos do Mar Morto em grande parte estão
em hebraico, significa que o hebraico fosse preferido como o idioma
sacro e literário, e que o hebraico falado permaneceu em uso entre os
letrados da Judeia mais do que se pensava antigamente. Mas esta evi-
dência realmente é pouco para provar que um profeta galileu como
Jesus falasse ao povo em hebraico, embora Jesus conhecesse o hebrai-
co para o uso na sinagoga.
Esse pano de fundo aramaico naturalmente teve um efeito na
qualidade do grego em que as memórias das palavras de Jesus fossem
preservadas pelos evangelhos. Além do mais, havia mais influência
semítica sobre este grego, pois os primeiros pregadores apostólicos
que levaram a mensagem de Jesus ao mundo grego eram também
semitas para os quais o grego era, no máximo, um idioma secundário.
Provavelmente, também, muitos dos evangelistas eram judeus cujo
imperfeito domínio do grego tem de ser levado em conta. Todavia,
outro fator é que a mensagem cristã no mundo grego foi anunciada
primeiramente nas sinagogas da diáspora e, consequentemente, era
exprimida no vocabulário religioso do judaísmo de fala grega - um
146 Introdução

g reg o q u e fo ra in flu e n c ia d o p e lo estilo se m itiz a d o d a LXX, o g re g o


d o AT. P o rta n to , d e to d o s estes can ais, o a ra m a ísm o , o h e b ra ís m o e
o se m itism o (i.e., c o n stru ç õ es a n o rm a is e m g reg o , p o ré m n o rm a is e m
aram aico , em h e b ra ico o u e m a m b o s estes id io m a s se m ita s) fiz e ra m
seu in g re sso n o s e v a n g elh o s. D ev e se r e v id e n te q u e a p re se n ç a d e tais
asp ecto s n ã o é su ficien te p a ra p ro v a r q u e u m e v a n g e lh o foi p rim e iro
escrito e m u m d e ste s d o is id io m as; n o m áx im o , p o d e -se p r o v a r q u e
certo s d ito s a n te rio rm e n te ex istira m e m a ra m a ic o o u h e b ra ico , o u q u e
o id io m a n a tiv o d o e v a n g e lista n ã o e ra o grego.
É p o ssív e l q u e o Q u a rto E v a n g e lh o fosse o rig in a lm e n te escrito
em a ra m aic o n o to d o o u em p a rte , e o q u e isto in d ic a ria ? D ificilm en te
se p o d e n e g a r a p o ssib ilid a d e , p o is tu d o in d ic a q u e a lg u m m a te ria l
ev an g élico foi escrito e m aram aico . P o r e x e m p lo , P apias in fo rm a q u e
M a te u s c o m p ô s as p a la v ra s (do S enhor) n o " d ia le to h e b ra ic o " , isto é,
p re s u m iv e lm e n te aram aico . Um evangelho segundo os Hebreus, o u "es-
crito e m le tra s h e b ra ic a s" , e ra c o n h e cid o a n te s d o te m p o d e J erôni-
mo. E n tre os e s tu d io so s m o d e rn o s q u e tê m su g e rid o q u e , n o to d o o u
em p a rte , João foi p rim e iro escrito e m a ra m a ic o e stã o B urney, T orrey,
B urrows, M acgregor, D e Z waan, B lack e B oismard; e le m b ra m o s q u e
B ultmann p re s s u p ô s u m o rig in a l a ra m a ic o p a ra a F o n te d o D isc u rso
R ev elató rio . O s se g u in te s a rg u m e n to s tê m sid o p ro p o sto s:

(a) A p resen ça d e aram aísm o s, p o ré m n ã o d e h e b ra ísm o s - G orrey


c o n sid e ra isto co n clu siv o , p o ré m n ã o Burney;
(b ) A presença de trad u ções confusas, isto é, crê-se que o estado
confuso de um a p assagem grega resultou de um erro de con-
siderar em grego um a frase aram aica obscura, e o verd ad eiro
sentido da passagem fica clara retraduzindo ao aram aico -
Burney depende bastante disto;
(c) A ex istên cia d e m a n u sc rito g reg o co m v a ria n te s q u e p o d e m
re p re s e n ta r d u a s p o ssív e is tra d u ç õ e s d ife re n te s p a ra o g reg o ,
d o a ra m aic o o rig in a l - B lack e B oismard tê m a p re s e n ta d o n u -
m ero so s ex em p lo s, e n o c o m e n tá rio c h a m a re m o s a a te n ç ã o
p a ra s u a s su g estõ es;
(d) O fato d e q u e a lg u m a s citações q u e João faz d o A T p a re c e m
q u e fo ra m e x tra íd a s d ire ta m e n te d o h e b ra ico (B urney) o u d o s
ta rg u n s , tra d u ç õ e s a ra m a ic a s d o A T u s a d a s n a s sin a g o g a s ga-
lileias (B oismard);
IX · Idioma, texto e formato literário do evangelho 147

(<e) A p o s s ib ilid a d e d e re tro v e rte r a " p o e sia " d o s d isc u rso s o u d o


P ró lo g o e m b o a p o e sia a ra m a ic a (B urney) - le m b ra m o s q u e
B ultmann su g e re o p a ra le lo d a s Odes de Salomão , as q u a is es-
tã o e m siríaco (u m a fo rm a ta rd ia d e aram aico ).

E stes a rg u m e n to s n ã o são d e ig u a l v a lo r. Já c h a m a m o s a ate n ç ã o


p a ra a in su fic iê n c ia d e (a ) co m o p ro v a . A s tra d u ç õ e s c o n fu sa s m en -
c io n a d a s e m (b ) são m a is c o n v in c e n te s, m a s h á s e m p re u m e le m en to
d e s u b je tiv id a d e e m d e c id ir q u e o g re g o n ã o faz se n tid o co m o a g o ra
está. C o m (d) tem o s s e m p re q u e e n fre n ta r a p o s s ib ilid a d e d e q u e o
e v a n g e lis ta e s tiv e sse re a lm e n te c ita n d o o g re g o v e te ro te sta m e n tá rio ,
p o ré m liv re m e n te e d e m e m ó ria . M e sm o a citação d o A T d o s ta rg u n s
a ra m a ic o s p o d e s im p le s m e n te re fle tir o p ró p rio u so d e Jesu s, sem
p ro v a r q u e o e v a n g e lh o foi e scrito e m a ra m aic o . A ssim , n e n h u m ar-
g u m e n to é su fic ie n te , e é m a is u m a q u e s tã o d e c o n v e rg ê n c ia d e pos-
s ib ilid a d e s. A d ific u ld a d e d o p ro b le m a é in d ic a d a p e la a d v e rtê n c ia
s e m p re c re sc e n te d o s p a rtid á r io s d e u m o rig in a l a ra m aic o . B urney
foi m a is c a u te lo s o d o q u e T orrey, e B lack e B oismard são a in d a m ais
c a u te lo so s d o q u e B urney.
P esso alm en te, ten d e m o s a co n co rd ar com a m aioria d o s estudiosos
que n ã o e n c o n tra m evidência a d e q u a d a d e q u e u m a edição com pleta d o
E vangelho se g u n d o João (Terceiro Estágio) se m p re existiu em aram aico.
E n tretan to , é p o ssível q u e p o rçõ es d a trad ição histórica subjacente em
João fo ssem escritas em aram aico, especialm ente se a fonte d esta tradi-
ção foi João, filho d e Z eb ed eu . M as, m esm o esta p o ssib ilid ad e p erm an e-
ce além d e p ro v a. Se h á trad u çõ es confusas p a ra o g reg o o u traduções
altern ativ as, estas p o d e m ter su rg id o n a tran sm issão o ral e trad u ção do
m aterial h istórico an tes d o P rim eiro Estágio, especialm ente já q u e o gre-
go n ão teria sid o o id io m a n ativ o d e João. C om o as an tig as traduções
gregas altern ativ as e n c o n trara m seu ingresso n a s trad u çõ es d e diferen-
tes m an u sc rito s d o Q u a rto E vangelho n ão é fácil explicar, m as este fe-
n ô m en o n ã o é d e stitu íd o d e d ificu ld ad e, n ão im p o rta q u a n d o ocorreu.

Β. O TEXTO GREGO DO EVANGELHO

A ciência d a crítica te x tu a l é b e m difícil; u m a d isc u ssã o co m p le ta d a s


p ressu p o siç õ e s tex tu a is p o r d e trá s d a tra d u ç ã o seria c o m p lic a d a p a ra
148 Introdução

o leito r c o m u m , e u m ta n to d e sn e c e ssá ria p a ra o e ru d ito . C o m o se d á


com a m a io r p a rte d a s o u tra s o b ra s n e o te sta m e n tá ria s, o tex to g re g o
b ásico é d e te rm in a d o p o r u m a c o m p a ra ç ã o d o s g ra n d e s có d ices d o 42
e 5“ séculos: V atican o , S in aíticu s e o C ó d ice G reco -L atin o B ezae. Em
g eral, o V atican u s re p re se n ta u m a tra d iç ã o te x tu a l " o rie n ta l" p o p u la r
n o E gito, p a rtic u la rm e n te em A le x a n d ria , e n q u a n to B ezae re p re s e n -
ta u m a tra d iç ã o te x tu a l " o c id e n ta l", ta m b é m e n c o n tra d o n a s a n tig a s
tra d u ç õ e s p a ra o latim (LA) e S iríaco (SA). E n q u a n to e m o u tro lu g a r o
S in áiticu s é p a re c id o c o m o V a tican u s, p o is o s p rim e iro s se te c a p ítu lo s
d e João são m ais p a re c id o s com o Bezae.
D ev em -se a v a lia r as d ife re n te s red a ç õ e s d e sta s e d e o u tra s teste-
m u n h a s tex tu a is g reg a s, so m a d a s à e v id ê n c ia d a s a n tig a s v e rsõ e s em
latim , siríaco, c ó p tico e etió p ico . A s citações d e João n o s a n tig o s P a-
d re s d a Igreja são ta m b é m im p o rta n te s. O n d e h á re d a ç õ e s d ife re n te s
d e a lg u m a im p o rtâ n c ia real, a p re se n ta re m o -la s com u m a av aliação ;
m as n ã o faz e m o s n e n h u m a te n ta tiv a d e d a r a lista c o m p le ta d e teste-
m u n h a s p o r d e trá s d e c a d a red a ç ã o . N ã o n u trim o s o d esejo d e so b re-
c a rre g a r n o ssas n o ta s com to d a s as refe rê n c ia s e sig las q u e se p o d e m
ac h ar n a s n o ta s d e ro d a p é d e u m a crítica d o g re g o n e o te sta m e n tá rio .
A q u i, d e v e m o s d a r a lg u m a a te n ç ã o às re c e n te s d e s c o b e rta s d e
p a p iro s q u e a fe ta m o tex to d e João, p o is e ste s sã o d a m á x im a im -
p o rtâ n c ia . A g o ra te m o s m a is c ó p ia s d e p a p ir o d e Jo ão (d e z e sse te )
d o q u e d e q u a lq u e r o u tro liv ro d o N T . O s p a p ir o s g re g o s d a co leção
d e B odmer, p u b lic a d o s n o s ú ltim o s d e z a n o s, sã o o s m a is n o tá v e is
em v ir tu d e d e s u a a n tig u id a d e . E m s u a m a io ria , sã o te s te m u n h a s
te x tu a is d o e v a n g e lh o u n s 150 a n o s m a is a n tig o s q u e os g r a n d e s có-
d ice s m e n c io n a d o s acim a. É b e m ó b v io q u e P 75 c o n c o rd e m a is es-
trita m e n te co m o C ó d ic e V a tic a n u s, c o n tu d o te m u m te x to q u e e stá
em a lg u m lu g a r e n tre o V a tic a n u s e o S in á itic u s, ta lv e z u m ta n to
m ais p a re c id o co m o ú ltim o . Q u a n d o e ste s d o is p a p ir o s c o n c o rd a m ,
p ro p ic ia m u m a e v id ê n c ia m u ito fo rte p a ra u m a re d a ç ã o , e te m o s
feito u s o a m p la m e n te d e le s e m n o ssa tra d u ç ã o . N ã o o b s ta n te , n ã o
tem o s h e s ita d o em reje ita r su a e v id ê n c ia q u a n d o as leis d a c rítica
tex tu a l p a re c e m a p o n ta r p a ra o u tra re d a ç ã o e n c o n tr a d a e m u m a tes-
te m u n h a m a is re c e n te co m o s e n d o a m a is o rig in a l. A lé m d o m a is , o
p ró p rio fato d e q u e P 56 e P 75 n e m s e m p re c o n c o rd a m sig n ific a q u e a té
200 d.C . m u ita s m u d a n ç a s e e q u ív o c o s d e c o p ista s já h a v ia m a d e n -
tra d o as c ó p ia s d o tex to d o e v a n g e lh o .
IX · Idioma, texto e formato literário do evangelho 149

O u tro d e sen v o lv im e n to d ig n o d e n o ta n o e stu d o tex tu al d e João


tem sid o a o b ra d e Boismard, o q u a l está b u sc a n d o estabelecer redações
m ais p rim itiv a s d o q u e as p re se rv a d a s em q u a isq u e r d as teste m u n h a s
gregas. S uas p rin c ip ais ferram e n ta s são as p rim e ira s v ersões, as citações
e n c o n tra d a s n o s P a d re s d a Igreja e o Diastessaron d e T aciano (harm onia
d o s e v a n g elh o s escrita m ais o u m en o s e m 175, p ro v av e lm e n te em gre-
go, p o ré m só p re se rv a d a em co m en tário s e tra d u ç õ es m ais recentes).
Ele salien ta q u e as red açõ es p atrísticas, p o r exem plo, as d e J oão C risós-
tomo, c o stu m a m ser sig n ificativ am en te m ais b rev es d o q u e as redações
e n c o n tra d a s n o s códices, e a b re v id a d e é fre q u e n te m en te u m sinal de
u m a red a ç ã o m ais original. R ecentem ente, J. N. Birdsall d e m o n stro u
a p o ssib ilid a d e d e q u e o texto patrístico d iv erg e n te rec o n stru íd o p o r
Boismard era a in d a valio so n o te m p o d e Fócio (9a século). A s discussões
d e Boismard têm exercido c o n sid eráv el influência so b re a tra d u ç ão fran-
cesa d e João p a ra a "Bíblia d e Jeru salém ", La Sainte Bible (abrev. SB).
N a s n o tas p a ra n o ssa tra d u ç ã o m en cio n arem o s a lg u n s d o s exem plos
m ais im p re ssiv o s a p re se n ta d o s p o r Boismard; m as o n d e su as redações
são in te ira m e n te d e p e n d e n te s d a s v ersõ es e d a s citações patrísticas, e
não e n c o n tra m e n d o sso n as teste m u n h a s d o m an u sc rito grego, ficam os
m u ito h esitan tes. O s Pais às v ezes a p re se n ta v a m u m a b rev e form a de
u m a p a ssa g e m p o rq u e e sta v a m in te ressa d o s só em p a rte d a citação; às
v ezes a d a p ta ra m p a ra p ro p ó sito s teológicos; e assim têm su as lim ita-
ções co m o g u ias p a ra o v o cab u lário exato d a s p a ssa g e n s d a E scritura.
M e sm o co m o u so d e to d a a e v id ê n c ia m ais rec e n te e a aplicação
d a s re g ra s d a crítica tex tu a l, os e stu d io so s n e m se m p re c o n c o rd a rão
so b re as re d a ç õ e s g re g a s o rig in a is d e a lg u m a s p a ssa g e n s co n tro v er-
sas. N e s te s caso s, te m o s p re fe rid o u s a r colchetes p a ra to rn a r esta in-
certeza im e d ia ta m e n te ó b v ia a o leitor.

C O FORMATO POÉTICO DOS DISCURSOS DO EVANGELHO

Q u e a p ro s a jo a n in a d o s d isc u rso s d e Jesus é ex c ep c io n alm en te solene


tem s id o re c o n h e c id o p o r m u ito s. A lg u n s têm s u g e rid o q u e e sta p ro sa
é q u a s e p o é tic a e d e v e se r im p re ssa em fo rm a to poético. Isto oferece-
ria m a is u m p o n to d e s im ila rid a d e e n tre o Jesu s jo a n in o e a S ab ed o ria
p e rso n ific a d a , p o is a S a b ed o ria fala e m p o esia. Q u a l seria a b a se p a ra
c o n s id e ra r os d isc u rso s jo a n in o s co m o q u a se p o ético s?
150 Introdução

O p rin c íp io fu n d a m e n ta l n a p o e sia d o A T é o p a ra le lism o , e oca-


sio n a lm e n te a p a re c e p a ra le lism o n a s p a la v ra s d e Jesu s c o m o re p o r-
ta d a s p o r João. P a rale lism o sin o n ím ico , o n d e a s e g u n d a lin h a re ite ra
a id eia d a p rim e ira , é e x e m p lific a d o e m Jo 3,11; 4,36; 6,35; 7,34; 13,16.
P aralelism o antitético, o n d e a se g u n d a lin h a oferece u m c o n tra ste com
a p rim e ira , se e n c o n tra e m 3,18; 8,35; 9,39. H á u m in te re s s a n te ex em -
p io e m 3,20 e 21, o n d e a to ta lid a d e d e u m v e rsíc u lo é c o n tra p e s a d a
co m o u tro . P a rale lism o sin tético , o n d e o se n tid o flu i d e u m a lin h a
p a ra a o u tra , é b e m ilu s tra d o em 8,44. U m a fo rm a p a rtic u la r d isto é
o p a ra lelism o " e sc a lo n a d o " , o n d e u m a lin h a re tira a ú ltim a p a la v ra
p rin c ip a l d a lin h a p re c e d e n te , se e n c o n tra n o P ró lo g o , e m 6,37; 8,32;
13,20; 14,21. E n tre ta n to , a p re se n ç a d e p a ra le lism o , e n q u a n to fre q u e n -
te em João, n ã o é o característico d o m in a n te d o s d isc u rso s. P o d e m o s
n o ta r a in d a q u e o p a ra le lism o n ã o é p e c u lia r ao Q u a rto E v an g elh o .
B urney, Poetry, p p . 63-99, m o stra q u e as m e sm a s fo rm a s d e p a ra le -
lism o se e n c o n tra m n a s p a la v ra s d e Jesus re g is tra d a s p e lo s sin ó tico s.
R itm o n ão é m u ito fre q u e n te n a p o e sia sem ita, p o ré m ocorre. Em
Poetry, p p . 174-75, B urney re tra d u z Jo 10,lss. p a ra o aram aico e m o stra
u m m o d elo d e ritm o . A retro v e rsã o n ã o é so m e n te m u ito esp ecu lativ a,
m as tam b é m há rela tiv a m e n te p o u c a s seções d o e v a n g elh o q u e se p res-
tam a u m p a d rã o d e ritm o , m esm o q u a n d o re tro v e rtid o ao aram aico .
Se os d is c u rs o s d e Je su s e m João d e v e m se r im p re s s o s e m fo rm a -
to p o é tic o , a b a se d o e stilo q u a s e p o é tic o jaz n o ritm o . A lg u n s p r o p o -
ria m u m ritm o co m b a se n o s a c en to s. A o m e n o s e m a lg u m a e x te n -
são , a d e lin e a ç ã o d e p u lsa ç ã o é c a lc u la d a n u m a h ip ó te s e a ra m a ic a
o rig in a l. P o r e x e m p lo , B urney e n c o n tra lin h a s d e q u a tr o b a tid a s
c a d a em 14,1-10; lin h a s d e trê s b a tid a s e m 3,11 e 4,36; e a d o lo ro s a
m é tric a Qinah d e trê s b a tid a s n a p rim e ira lin h a e d u a s n a s e g u n d a
em 16,20. G ächter te m sid o o m a is e s m e ra d o e m su a b u s c a d e u m
ritm o d e síla b a s e n fa tiz a d a s e m João. S u a s o b ra s c o m o tex to g re g o ,
e m b o ra o c a sio n a lm e n te r e c o n s tru a o o rig in a l a ra m a ic o . E le p re fe re
lin h a s c u rta s d e d u a s b a tid a s c a d a , e n ã o crê q u e a d iv is ã o p o é tic a
d e u m a lin h a c o n s titu a n e c e s s a ria m e n te u m a u n id a d e d e s e n tid o - a
lin h a é u m a d e a c e n to rítm ic o e n ã o n e c e ssita c o m u n ic a r u m p e n s a -
m e n to c o m p le to . E ste a sp e c to faz a re c o n s tru ç ã o d e G ächter d a p o e -
sia to ta lm e n te ú n ic a e lh e d á b e m p o u c a se m e lh a n ç a c o m a p o e s ia
s a p ie n c ia l d o A T. G ächter ta m b é m in siste e m u m sis te m a a lta m e n te
co m p le x o d e a rra n jo estró fico .
IX · Idioma, texto e formato literário do evangelho 151

C o m o já m e n c io n a m o s, Bultmann m a n té m q u e a fo rm a g reg a
d o s d isc u rs o s e m João te m em su a m a io r p a rte p re s e rv a d o o fo rm a to
p o é tic o d a F o n te d o D isc u rso R e v e lató rio o rig in al. A seleção e p u -
b licação q u e D. M. S mith faz d o m a te ria l q u e B ultmann a trib u i a
esta fo n te (v er Composition, p p . 2 3 3 4 ‫ )־‬m o stra , n u m p rim e iro relance,
q u ã o b o m se ria p u b lic a r João n o fo rm a to p o ético . E su g e rim o s q u e
isto se p ro v a v e rd a d e iro m e sm o q u a n d o n ã o re c o rre m o s aos su p o sto s
o rig in a is a ra m a ic o s o u a in d a s e p a ra r as b a tid a s rítm icas. N a s v á ria s
seções d e d is c u rs o d o e v a n g e lh o h á u m c o n sta n te efeito rítm ico d e
lin h a s d e a p ro x im a d a m e n te a m esm a e x ten são , c ad a u m a c o n stitu in d o
u m a c lá u su la. P o ssiv e lm e n te, isto reflete u m ritm o fo rte n u m original
a ra m aic o , m a s o p a d rã o g eral é to ta lm e n te o b se rv á v e l n o grego. Dois
asp ecto s d o a rra n jo d e B ultmann são m ais a b e rto s a d ú v id a . Ele ju n ta
o P ró lo g o co m o re sta n te d o m a te ria l d e d isc u rso , m as o p aralelism o
" e sc a lo n a d o " d o P ró lo g o re p re se n ta u m estilo p o ético m u ito m ais cui-
d a d o s a m e n te e la b o ra d o d o q u e q u a lq u e r p a ssa g e m n o s d iscu rso s. Em
n o ssa o p in iã o , o P ró lo g o e ra u m h in o , e n q u a n to os d isc u rso s n ã o o
eram . S e g u n d o , e m su a rec o n stru ç ã o d o fo rm a to p o ético , B ultmann
é m ais a rb itrá rio e m su a excisão d a s g lo sas q u e ele a trib u i ao re d a to r
final. N ã o e sta m o s certo s d e q u e o fo rm a to p o ético seja tão fixo o u es-
trito q u e lin h a s d e s a rru m a d a s p o ssa m se r tra ta d a s co m o adições.
E m su a tra d u ç ã o d e João p a ra a "B íblia d e Je ru sa lé m " francesa,
D. M ollat n o s d e u os d isc u rso s n u m fo rm a to p o ético - u m a d a s p o u cas
te n ta tiv a s m o d e rn a s d e faz e r isto e m u m a Bíblia d e s tin a d a a o p ú b lic o
geral. E le n u n c a fo rm u la se u s p rin c íp io s p a ra d iv id ir os v erso s; m as,
co m o se d á co m B urney e B ultmann, faz su a s d iv isõ e s d e a c o rd o com
o s e n tid o . A s v e z es, e m se u esforço p a ra a p re s e n ta r os v e rso s equili-
b ra d o s n a tra d u ç ã o fran cesa, M ollat sacrifica o e q u ilíb rio d o s v erso s
g reg o s. B ultmann n ã o tev e d e e n fre n ta r este p ro b le m a d e tra d u ç ão ,
po is ele im p rim e em g re g o os v e rsíc u lo s d o e v a n g elh o . M ollat ad o -
to u a fo rm a d e b lo co p a ra se u s v e rso s p o ético s, e n q u a n to B ultmann o
q u e b ra a o p o r os v e rso s e m p o siçõ es su b o rd in a d o s.
É u m exercício m u ito in te ressa n te fazer u m e s tu d o co m p arativ o
d e sta s v á ria s te n ta tiv a s d e p ô r os d isc u rso s jo an in o s n u m fo rm a to
p o ético . T a lv ez d o is terço s d a s v ezes, B ultmann e M ollat e sta rã o de
ac o rd o so b re o n ú m e ro d e lin h a s e m q u e u m v e rsíc u lo d e v a ser di-
v id id o . T o d a v ia , m e sm o co m u m terço d e v a ria çã o , eles e stã o m u ito
m ais p e rto u m d o o u tro d o q u e d e G ächter. T o m a n d o a p e n a s u m
152 Introdução

exem plo, em 6,35, am bos, M ollat e B ultmann, têm três versos, en-
quanto G ächter tem cinco.
E difícil d a r a lg u m a p ro v a conclusiva d e q u e u m fo rm a to po ético
é justificado. T alvez tu d o o q u e se p o ssa d ize r é que, q u a n d o se e lab o ra
o m aterial p o r certo tem p o , p ro c u ra n d o ach ar u m a e stru tu ra poética,
en tão acaba sen tin d o -se en v o lv id o p o r u m ritm o. E assim , com a lg u m a
hesitação, tem os d ecid id o u sa r o fo rm ato poético e m n o ssa p ró p ria tra-
d u ção a fim d e oferecer ao leitor u m a o p o rtu n id a d e d e ju lg a r p o r si m es-
m o se h á o u n ão u m equilíbrio rítm ico nos v erso s joaninos. M as tem o s
d e fazer u m a ad vertência. N ossa div isão d o s v ersos n a p re se n te obra
p erm an ece fiel à d iv isão n o g reg o (com ocasional in v ersão d e versos); e
assim , visto ser p reciso v árias p a la v ras p o rtu g u e sa s p a ra tra d u z ir u m a
p a la v ra grega, n em sem p re será p o ssível ap arecer o eq u ilíb rio e n tre os
versos n a tra d u ç ão p o rtu g u e sa . P ara se o b terem m ais lin h as se faz ne-
cessário ig n o ra r o equilíbrio grego, com o M ollat tem feito d e te m p o
em tem po. T em os tra d u z id o com o u m só v erso o d u p lo " a m é m " (p ara
trad u ção , v e r n o ta sobre 1,51), u sa d o tão a m iú d e pelo Jesus jo an in o p a ra
in tro d u z ir u m discurso. E stritam ente, ele n ão é p a rte d a p oesia, m a s n ão
parecia v aler a p e n a m a n te r u m fo rm ato especial p a ra a ú n ica linha.
N ã o h e sita m o s c o n su lta r as re c o n stru ç õ e s d e B ultmann, M ollat e
Burney, n e m h e sita m o s em d isc o rd a r com su a d iv isã o e m v e rso s o n d e
crem o s se ju stificav a o u tra d iv isão . E m a lg u n s caso s difíceis, u m a su -
g estão d e a lg u m e stu d io so é tão b o a co m o o u tra , e re c o rre r a u m ori-
g in al a ra m aic o h ip o té tic o re a lm e n te n ã o é d ecisiv o . A lg u m a s v e z es,
a d iv isã o d o s v e rso s tem d e se r d e te rm in a d a p e la d iv isã o q u e se en-
c o n tra n o co n tex to. P o r ex em p lo , o q u e a g o ra te m o s co m o os q u a tro
p rim e iro s v e rso s d e 12,26 re a lm e n te p o d e ria se r im p re sso co m o dois:

Se a lg u é m q u e r se rv ir-m e, e n tã o m e siga;
e o n d e e u e stiv e r, aí ta m b é m e sta rá m e u serv o .

E n tre ta n to , so m o s in clin a d o s a in te rro m p e r isto e tra ta r d a s cláu -


su la s a d v e rb ia is c o m o v e rso s d istin to s p o r a n a lo g ia d a s c lá u s u la s con-
d icio n ais em 12,24. N a v e rd a d e , e m certa é p o ca, p ro v a v e lm e n te estes
fo ssem d ito s in d e p e n d e n te s , e a ssim a força d a a n a lo g ia n ã o é se g u ra .
R e iteran d o , 3,15, q u e tra d u z im o s co m o d o is v e rso s, p o d e ría m p e rm a -
n ecer facilm en te co m o u m só v erso . E n tre ta n to , é u m c o n tra ste ó b v io
com a ú ltim a p a rte d e 3,16 q u e re a lm e n te tem d e se r q u e b ra d a em
IX · Idioma, texto e formato literário do evangelho 153

d o is v e rs o s , e este c o n tra ste tem d e te rm in a d o n o sso e m p re g o em 3,15.


S u c e ssiv a m e n te, a m b o s estes v e rsíc u lo s tê m g u ia d o n o ssa p re se n te
d iv is ã o d e 3,20-21. N o c o n te x to d o P ró lo g o te m o s im p re ss o o v ersí-
cu lo 15 in s e rid o co m o p ro sa , p o is ele n ã o se h a rm o n iz a com a c u id a-
d o s a p o e s ia d e s te h in o . M as, q u a n d o as m esm a s p a la v ra s a p a re c em
n o p ró p rio e v a n g e lh o , c o rre s p o n d e m ao fo rm a to p o ético d o s d iscu r-
sos (1,30). P o rta n to , os p rin c íp io s d a d iv isã o sã o flexíveis.
T alvez v a lh a a p e n a insistir u m a v ez m ais q u e o uso d o form ato
poético significa a p e n a s q u e h á u m equilíbrio q u ase poético com a pro sa
d o s d iscu rso s. N ã o crem o s q u e co n sisten tem en te se p o ssa ach ar ritm o,
p aralelism o estrito ou p a d rõ e s a c en tu a d o s exatos. Se a p ro sa é solene,
está lo n g e d e ser lírica. A lin g u a g e m d o s d iscu rso s com pleta a m o n ó to n a
g ran d e z a p ela rep etição d a s sim p les p a la v ras e n ã o p elo u so d e vocabu-
lário a lta m e n te literário. P or essa razão, tem os tra d u z id o estes discursos
p a ra o p o rtu g u ê s o rd in á rio (e d e v e ra s n ão teríam os a cap acid ad e literá-
ria p a ra criar u m a g e n u ín a p oesia p a ra eles, caso fosse isso justificado).

D. CARACTERÍSTICAS NOTÁVEIS NO ESTILO JOANINO

(1) Inclusão. N o fin al d e u m a p a ssa g e m , o e v a n g e lh o c o stu m a m en-


cio n ar u m d e ta lh e o u faz u m a a lu sã o q u e le m b ra alg o re g istra d o na
a b e rtu ra d a p a ssa g e m . E ste a sp ec to , b e m a te s ta d o e m o u tro s livros
bíblicos, p o r e x e m p lo , a S a b e d o ria d e S alo m ão , p o d e se rv ir com o u m
m eio d e d e lim ita r u m a u n id a d e o u u m a s u b u n id a d e , ao u n ir o início
e o fim . N o te as refe rê n c ia s aos d o is m ilag re s d e C a n á e m 2,11 e 4,54;
as refe rê n c ia s à T ra n sjo rd â n ia e m 1,28 e 10,40; as referên cias im p lícitas
ao c o rd e iro p a sc a l em 1,29 e 19,36.
(2) Quiasmo o u p a ra lelism o in v ertid o . E m d u a s u n id a d e s q u e p ar-
tilh am u m n ú m e ro d e asp ecto s paralelo s, o p rim e iro versículo d e I cor-
resp o n d e ao ú ltim o v ersícu lo d e II, o se g u n d o versículo d e I correspon-
de ao ú ltim o v ersícu lo v izin h o d e II etc.

I II
vs. 1 vs. 7
vs. 2 vs. 6
vs. 3 vs. 5
vs. 4
154 Introdução

Bons ex e m p lo s p o d e m se r v isto s e m 6,36-40 (p. 276) e n a o rg a n i-


zação d o ju lg a m e n to p e ra n te P ilato s (18,28-19,16).
(3) Significado duplicado ou duplo. O e v a n g e lh o c o stu m a ex e rc e r
d u p lo s sig n ificad o s d e p a la v ra s, q u e r e m a ra m a ic o o u e m g reg o , p o r
exem p lo : e m 3,3ss. e m an õthen co m o " d e cim a" o u " n o v a m e n te " ;
em 4,10-11 n o d u p lo sig n ificad o " v iv o " e " flu in d o " p a ra d e sc re v e r a
ág u a; e m 7,8 n a a m b ig u id a d e d e " su b in d o " (a Je ru sa lé m o u ao Pai?).
(4) Incompreensão. E ste a sp ec to a lg u m a s v e z e s é a c o n tra p a rte d o
p rec e d e n te ; e m o u tro s casos, se relacio n a co m a lin g u a g e m sim b ó lica
d e Jesus. Q u a n d o Jesu s e stá fa la n d o n o n ív el celestial o u e te rn o , s u a s
o b serv açõ es às v e z e s são in c o m p re e n d id a s co m o se re fe rin d o a u m a
situ a ç ão m a te ria l o u te rre n a . A á g u a e o p ã o q u e ele e m p re g a p a ra
sim b o liz a r su a rev elação n ã o são c o m p re e n d id o s p e lo a u d itó rio co m o
sím b o lo s (4,10ss.; 6,32ss.). S eu c o rp o é o te m p lo q u e se rá d e s tru íd o e res-
su scitad o , m a s os o u v in te s p e n s a m n o te m p lo d e Je ru sa lé m (2,19-22).
Em p a rte , isto p o d e se r u m a técnica lite rá ria in te n c io n a d a , p o is a in-
c o m p re e n sã o g e ra lm e n te lev a Jesu s a ex p licar-se m ais a m p la m e n te e
a re v e la r s u a d o u trin a . E n tre ta n to , v isto q u e e ste sim b o lism o é o e q u i-
v a le n te jo a n in o d a lin g u a g e m p a ra b ó lic a d o s sin ó tico s, e sta in co m -
p re e n s ã o é o e q u iv a le n te jo a n in o d a falh a em c o m p re e n d e r q u e v a i
d e e n c o n tro às p a rá b o la s n a tra d iç ã o sin ó tica (M c 4,12). R e p re se n ta a
in c a p a c id a d e d o m u n d o em v e r a v e rd a d e .
(5) Ironia. O s o p o n e n te s d e Je su s g o s ta m d e fa z e r a firm a ç õ e s so-
b re ele q u e sã o d e p re c ia tiv a s , sa rc á stic a s, in c ré d u la s o u , ao m e n o s,
in a d e q u a d a s n o s e n tid o q u e p re te n d e m . N ã o o b s ta n te , à m o d a d e iro -
n ia, e sta s a firm a ç õ e s à s v e z e s são v e rd a d e ir a s o u m a is sig n ific a tiv a s
n u m s e n tid o q u e ele s n ã o c o m p re e n d e m . O e v a n g e lis ta s im p le s m e n te
a p re s e n ta ta is a firm a ç õ e s e as d e ix a se m re s p o s ta (o u r e s p o n d id a s
co m e lo q u e n te silên cio ), p o is ele e stá c e rto d e q u e s e u s le ito re s c re n -
tes v e rã o a v e rd a d e m a is p r o fu n d a . B ons e x e m p lo s sã o 4,12; 7,35.42;
8,22; 11,50.
(6) Notas explicativas. N o e v a n g e lh o , às v e z e s e n c o n tra m o s co-
m e n tá rio s ex p licativ o s, in se rid o s n a n a rra tiv a c o rre n te d o re la to . Ex-
p licam n o m e s (1,38.42) e sím b o lo s (2,21; 12,33; 18,9); c o rrig e m p o ssí-
v eis in c o m p re e n sõ e s (4,2; 6,6); le m b ra m o leito r d o s e v e n to s re la ta d o s
(3,24; 11,2) e re-id en tifica m q u e m são os p e rs o n a g e n s e n v o lv id o s n a
tra m a (7,50; 21,20). T enney c o m p u to u u m a s c in q u e n ta e n o v e d e ssa s
n o tas; e se n ã o lev a sse m à c o n fu sã o b e m q u e p o d e ría m se r c o lo c a d a s
IX · Idioma, texto e formato literário do evangelho 155

e m b a ix o d a p á g in a co m o n o ta s d e r o d a p é , c o m o faz E. V. R ieu em su a s
tra d u ç õ e s d o N T . N ã o o b sta n te , isto c ria u m p ro b le m a d e versificação;
e a s sim te m o s a d o ta d o o ra z o á v e l c o m p ro m isso d e u s a r p a rê n tese s,
ex ceto p a ra a n o ta o casio n al q u e n ã o p u d e rm o s tra b a lh a r u n ifo rm e -
m e n te n a n a rra tiv a . E stas n o ta s às v e z e s são in d ic a tiv a s d o p ro cesso
re d a c io n a l e m a tiv id a d e n a co m p o siç ão d o e v a n g elh o .

BIBLIOGRAFIA

Idioma original

BROW N, Schyler, "From Burney to Black: The Fourth Gospel and the Aramaic
Question", CBQ 26 (1964), 323-39 - boa bibliografia.
GUNDRY, R. H ., "The Language Milieu of First-century Palestine", JBL 83
(1964), 404-8.

Texto grego

1. O P ap iro Bodm er:

P66 o u B odm er P a p y ru s II, d a ta n d o d e m ais ou m enos 200, foi publicado


p o r V. M artin, com caps, i-xiv, su rg in d o em 1956 e o resto em 1958.
Para correções d a edição d e 1956, ver Teeple e W alker em JBL 78
(1959), 148-52; e Fee em JBL 84 (1965), 66-72. Para u m a boa bibliogra-
fia, v e r N T A 2 (1958), #322. U m a edição revisada de P66 foi publicada
p o r M artin e J. W. Barns em 1962. Para correções subsequentes, ver
Barns em m useon 75 (1962), 327-29.
P75 o u B odm er P a p y ru s XV, d a ta n d o de m ais ou m entos 200, foi publica-
do p o r M artin e R. K asser em 1961.
Em u m artig o sequenciado, K. A land tem analisado as relações destes
dois p a p iro s e co nfrontado suas reedições: NTS 9 (1962-63), 303-13;
NTS 10 (1963-64), 62-79, d a ta n d o particu larm en te com P66; NTS 11
(1964-65), 1-21, tra tan d o p articu larm en te com P75.
CLARK, K. W., "The Text of the Gospel 0 John in Third-century Egypt", N ovT
5 (1962), 17-24.
PORTER, C. L., "Papyrus Bodmer XV (P75) and the Text of Codex Vaticanus",
JBL 81 (1962), 363-76.
156 Introdução

ZIM M ERM AN N, H v "Papyrus Bodmer II und seine Bedeutung für die Text-
geschickte des Johannesevangeliums'' BZ 2 (1958), 214-43.
Em 1958, R. K asser p u blicou P ap y ru s B odm er III, u m a versão d e João do
4a século Boh. (Cópta) tra d u z id a d iretam en te do grego. Em u m artigo
museon 74 (1961), 423-33, K asser estu d a este m an u scrito em relação a
outras testem u n h as cópticas de João.

2. C itações patrísticas

BIRDSALL, J. N., "Photius and the Text of the Fourth Gospel", NTS 4 (1957-58),
61-63.
BOISMARD, M.-E., "Critique textuelle et citations patristiques", RB 57
(1950), 388-408.
___________ "Lectio Brevior, Potior", RB 58 (1951), 161-68.
___________ "Problèmes de critique textuelle concernant le quatrième évangile",
RB 60 (1953), 347-71.

Formato poético

BURNEY, C. F., The Poetry of Our Lord (Oxford: C larendon, 1925).


GÄCHTER (Gaechter)* P., em u m a série d e artigos, tem d iscu tid o passa-
gens individuais:
1,1-18 ZKT 60(1936), 99-111;
5,19-30 N TA uf, p p . 65-68;
5,19-47 ZKT 60 (1936), 111-20;
5,35-58 ZKT 59 (1935), 419-41;
8,12-59 ZKT 60 (1936), 402-12;
10,11-39 ZKT 60 (1936), 412-15;
13-16 ZKT 58 (1934), 155-207.

Característicos de estilo

CLAVIER, H., "L'ironie dans le quatrième évangile", StEv, I, p p. 261-76.


CU LLM AN N, O., "Der johanneische Gebrauch doppeldeutiger
Ausdrücke als Schlülssel zum Verständnis des vierten Evangeliums",
TZ 4 (1948), 360-72.

Ambas as grafias são usadas pelo autor em suas próprias obras publicadas.
IX · Idioma, texto e formato literário do evangelho 157

LÉON-DUFOUR, X., "Trois chiasmes johanniques", NTS 7. (1960-61), 249-55.


LU N D , N . W., "The Influence of Chiasmus upon the Structure of the Gospels'',
ATR 13 (1931), 27-48,405-33.
TENNEY, M. C., "The Footnotes of John's Gospel", Bibliotheca Sacra 117
(1960), 350-64.
X
ESBOÇO DO EVANGELHO

A. ESBOÇO GERAL DO EVANGELHO

A se g u in te d iv isã o é s u g e rid a p e lo p ró p rio ev an g elh o :

1.1- 18: PR Ó L O G O

U m p rim itiv o h in o cristão , p ro v a v e lm e n te o riu n d o d o s círcu lo s


jo an in o s, o q u a l foi a d a p ta d o p a ra se rv ir c o m o a b e rtu ra à n a rra tiv a
ev an g élica d a c a rre ira d a P a la v ra e n c a rn a d a .

1 ,1 9 1 2 ,5 0 ‫־‬: LIVRO D O S SIN A IS

O m in isté rio p ú b lic o d e Jesus n o q u a l ele se m a n ife sta c o m o sin a l e


p a la v ra ao se u p ró p rio p o v o co m o a rev elação d e se u P ai, só p a ra
ser rejeitad o .

13.1- 20,31: LIVRO D A GLÓRIA*

A q u eles q u e o ac eita m Jesu s m o stra su a g ló ria re g re s sa n d o ao P ai


em "a h o ra " d e su a crucifixão, re ssu rre iç ã o e ascen são . P le n a m e n te
g lo rificad o , ele co m u n ic a o E sp írito d e v id a.

21.1- 25: EPÍLOGO*

U m relato adicional d e u m a aparição p ós-ressurreição d e Jesus n a G a-


lileia, p a ra d e m o n stra r com o Jesus p ro v ê as necessidades d a igreja.

* Estas divisões aparecem no volume 2.


X · Esboço do evangelho 159

É s u fic ie n te m e n te c la ro q u e o fin a l d o c a p ítu lo 12 e o in ício d o 13


m a rc a m e s p e c ific a m e n te a in te r ru p ç ã o d a n a rra tiv a . E m 1 2 ,3 7 4 3 ‫ ־‬há
u m a d e s c riç ã o e a n á lis e s u m a r ia d a s d o m in is té rio p ú b lic o d e Jesus
e s e u e fe ito s o b re o p o v o ; 12,44-50 a p re s e n ta as ú ltim a s p a la v ra s d e
Je su s d irig id a s a o p o v o e m g e ra l. E m 13,1-3 h á u m a m u d a n ç a em ên -
fase, m a rc a d a p e la s p a la v ra s " O ra , u m p o u c o a n te s d a festa d a p á s-
coa, e s ta n d o Je su s c ie n te d e q u e já h a v ia c h e g a d o a h o ra d e p a s s a r
d e s te m u n d o p a ra o P a i". T o d a s as p a la v r a s d e Je su s n o s c a p ítu lo s
13-17 sã o d irig id a s a " o s s e u s" (13,1) d isc íp u lo s a q u e m ele a m a e
q u e v ie ra m a c re r n ele. O e s p írito d e s ta s d u a s p rin c ip a is d iv isõ e s d o
e v a n g e lh o é re s u m id o e m d o is v e rsíc u lo s d o P ró lo g o (1,11-12) q u e
c o n tra s ta s e u p r ó p r io p o v o q u e n ã o o a c e ito u e os q u e o a c e ita ra m ,
to rn a n d o -s e a s sim filh o s d e D e u s. A s e g u n d a d iv is ã o d o e v a n g e lh o
ch eg a a o fim e m 20,30.31, u m a c o n c lu sã o q u e c o m e n ta o c o n te ú d o e
p ro p ó s ito d o e v a n g e lh o . A s ra z õ e s p a r a tra ta r c a p ítu lo 21 co m o u m
E p ílo g o se rã o e x p o s ta s e m n o sso s e g u n d o v o lu m e .
T e m o s d e s ig n a d o 12,19-50 c o m o " O L iv ro d o s S in a is" , p o rq u e
e ste s c a p ítu lo s se o c u p a m p r in c ip a lm e n te d o s m ila g re s d e Je su s,
d e s ig n a d o s c o m o " s in a is " , e o s d is c u rs o s q u e in te r p r e ta m o s sin ais.
P o r c o n tra s te , a p a la v r a " s in a l" , n a s e g u n d a d iv is ã o d o e v a n g e lh o ,
o c o rre s o m e n te n a a firm a ç ã o s u m a r ia d a d e 20,30. A s e g u n d a d i-
v isã o , q u e n a r r a o q u e a c o n te c e u d e s d e a ta r d e d e q u in ta -fe ira d a
ú ltim a c e ia a té o a p a re c im e n to d e Je su s a s e u s d is c íp u lo s d e p o is d a
re s s u rre iç ã o , tu d o isso c o n té m o te m a d o re to r n o d e Je su s a s e u P ai
(13,1; 14,2.28; 15,26; 16,7.28; 17,5.11; 20,17). E ste r e to r n o sig n ific a a
g lo rific aç ã o d e Je su s (13,31; 16,14; 17,1.5.24), d e m o d o q u e o Jesu s
r e s s u rre to a p a re c e u a se u s d is c íp u lo s c o m o S e n h o r e D e u s (20,25.28)
- d a í n o s s o títu lo " O L iv ro d a G ló ria " . O s sin a is d o p r im e ir o liv ro
a n te c ip a ra m a g ló ria d e Je su s d e u m a m a n e ira f ig u ra tiv a p a r a a q u e -
les q u e tin h a m a fé d e v e r a tr a v é s d o s sin a is s u a sig n ific a çã o (2,11;
11,4.40), m a s m u ito s s a u d a r a m e ste s sin a is c o m a p e n a s p e rc e p ç ã o
lim ita d a e u m a fé in su fic ie n te . A a ção d o s e g u n d o liv ro , d irig id a
aos q u e c ria m n o s sin a is d o p rim e iro , n a r e a lid a d e c o n c re tiz a o q u e
foi a n te c ip a d o p e lo s sin a is d o p r im e ir o liv ro , d e m o d o q u e o P ró lo -
go p o d e e x c la m a r: "e v im o s a s u a g ló ria , c o m o a g ló ria d o u n ig ê n ito
d o P a i" (1,14).
160 Introdução

B. ESBOÇO GERAL DO LIVRO DOS SINAIS

P ro p o m o s d iv id ir e ste liv ro e m q u a tr o p a rte s ; o e sb o ç o d e ta lh a d o d e


c a d a p a rte s e rá d a d o n o in íc io d e n o ssa e x p o siç ã o d a m e sm a . N a s
p ró x im a s d u a s p á g in a s s im p le s m e n te d a re m o s u m esb o ço g e ra l d e
to d o o liv ro c o m a s p rin c ip a is s u b d iv is õ e s, d e m o d o q u e o le ito r p o s-
sa s e g u ir in te lig e n te m e n te n o ssa e x p o siç ã o d o s p rin c íp io s q u e n o s
o rie n ta p a ra e s ta b e le c e r a d iv is ã o d o L iv ro d o s S inais.
Q u a is são as in d icaçõ es d e n tro d o p ró p rio e v a n g e lh o q u e p o d e m
se rv ir co m o g u ia p a ra s u b d iv id ir o L ivro d o s S inais? Q u e as in d ic a -
ções n ã o são a b s o lu ta m e n te claras é s u g e rid o p e la s m u ita s d isc u ssõ e s
e n tre os e s tu d io so s so b re co m o este liv ro d o e v a n g e lh o d e v e ser d i-
v id id o . D ep o is d o P ró lo g o , h á u m a n a rra tiv a re la tiv a m e n te c o n tín u a
d e 1,19 a 12,50. O e v a n g e lh o n o s d á a lg u m a s in d ic a çõ e s d a p a s sa g e m
d o tem p o , p o r e x em p lo , as trê s P ásco as m e n c io n a d a s e m 2,13; 6,4 e
11,55; m as e sta s são m e ra m e n te p a ra s itu a r o c e n ário p a ra u m a n a rra -
tiv a p a rtic u la r, e n ã o existe n a d a a su g e rir q u e p o s s a m se r u tiliz a d o s
co m o in d ic a d o re s p a ra u m a d iv isã o d o e v a n g elh o . A id e ia d e d iv id ir
o m in isté rio d e Jesus em d o is o u trê s a n o s n ã o p ro v é m d o p ró p rio
ev an g elh o .
Se falarm o s d e u m L ivro d o s S inais, n ã o é im p o ssív e l q u e p rec i-
sa m e n te os sinais re p re s e n te m u m a ch a v e p a ra a d iv isã o d o liv ro . O s
se g u in te s sin ais m ira c u lo so s são n a rra d o s co m certo d e ta lh e:

(1) T ra n sfo rm a ç ão d a á g u a e m v in h o e m C a n á (2,1-11)


(2) C u ra d o filho d o oficial d o rei e m C a n á (4,46-54)
(3) C u ra d o p a ra lític o n o p o ç o d e B etesd a (5,1-15)
(4) M u ltip licação d o s p ã e s n a G alileia (6,1-15)
(5) C a m in h a n d o so b re o M a r d a G alileia (6,16-21)
(6) C u ra d e u m cego e m Je ru sa lé m (9)
(7) R essu rreição d e L ázaro d e n tre os m o rto s e m B etânia (11)
X · Esboço do evangelho 161

DIVISÃO DO LIVRO DOS SINAIS


(1,19-12,50)

Prim eira Parte: Os dias iniciais da Revelação de Jesus (1,19-51; 2,1-11)


A. 1,19-34 O Testem unho de João Batista:
(19-28) Concernente ao seu papel em relação àquele que há de vir;
(29-34) Concernente a Jesus.
B. 1,35-51 Os Discípulos do Batista vão a Jesus quando se manifesta;
(35-42) a. Dois discípulos - Jesus reconhecido como Rabi;
b. Simão Pedro - Jesus como o Messias;
(43-51) a. Filipe - Jesus como o cum prim ento da Lei e dos Profetas;
b. N atanael - Jesus como o Filho de Deus e Rei de Israel;
- Dito sobre o Filho do Homem.
(2,1-11 Os Discípulos creem em Jesus quando m anifesta Sua Glória em
Caná - esta cena tanto encerra a Primeira Parte como abre a Segunda Parte)

Segunda Parte: De Caná a Caná - várias reações ao m inistério de Jesus nas


diferentes seções na Palestina (2-4)
A. 2,1‫־‬11 O Prim eiro Sinal em Caná da Galileia - água em vinho.
12 Transição - Jesus vai para Cafarnaum.
B. 2,13-22 Purificação do Tem plo em Jerusalém.
23-25 Transição - reação a Jesus em Jerusalém.
C. 3,1-21 Discurso ante Nicodem os em Jerusalém.
22-30 O testem unho tinal acerca de Jesus.
31-36 Discurso de Jesus concernente ao precedente.
4,1-3 Transição - Jesus deixa a Judeia.
D. 4,4-42 Discurso à m ulher sam aritana junto ao poço de Jacó.
43-45 Transição - Jesus entra na Galileia.
E. 4,46-54 O Segundo Sinal em Caná da Galileia - cura do filho do oficial;
a família crê.
(Esta cena tanto encerra a Segunda Parte como abre a Terceira Parte)
162 Introdução

Terceira Parte: Jesus e as principais festas dos judeus


(5-10, introduzido por 4,46-54)
(4,46-54 Jesus devolve a vida ao filho do oficial em Caná)
A. 5,1-47 O Sábado - Jesus realiza obras que som ente Deus p ode fazer
no sábado:
(1-15) Dom da vida [cura] para o hom em no poço Betesda em Je-
rusalém;
(16-47) Discurso explicativo da doação da vida e sua obra no sábado.
B. 6,1-71 Páscoa - Jesus oferece pão que substitui o m aná do Êxodo:
(1-21) M ultiplicação dos pães; cam inhando sobre o m ar;
(22-24) Transição - A m ultidão vai a Jesus.
(25-71) Discurso explicativo da multiplicação.
C. 7,1-8.59 Tabemáculos - Jesus substitui as cerimônias da água e da luz:
7 (1-13) Introdução: Jesus subirá à festa?
(14-36) Cena 1: Discurso sobre o meio dia da semana festiva;
(37-52) Cena 2: O últim o dia da festa:
[7,53-8,11 A A dúltera - interpolação não joanina]
8 (12-59) Cena 3: Discursos mistos.
9,1-10,21 Consequência dos Tabernáculos:
9 (1-41) C ura do cego de nascença - Jesus como a luz;
1 0 ( 1 ,2 1 ) Jesus como a porta e pastor.
D. 10,22-39 Dedicação - Jesus, o Messias e Filho de Deus, é consagrado
no lugar do altar do templo:
(22-31) Jesus como o Messias;
(32-39) Jesus como o Filho de Deus.
40-42 A parente conclusão ao m inistério público.

Quarta Parte: Jesus segue rum o à hora da m orte e da glória (11-12)


A. 11,1-54 Jesus dá vida aos homens; os hom ens condenam Jesus à morte:
(1-44) Jesus dá vida a Lázaro - Jesus como a vida;
(45-54) O Sinédrio condena Jesus à morte; foge para Efraim.
55-57 Transição - Jesus irá a Jerusalém para a Páscoa?
B. 12,1-36 Cenas preparatórias para a Páscoa e morte:
(1-8) Em Betânia, Jesus é ungido para a morte;
(9-19) As m ultidões aclam am Jesus quando entra em Jerusalém ;
(20-36) A vinda dos gregos m arca a vinda da hora.

Conclusão: Apreciação e clímax do m inistério de Jesus (12,37-50):


12 (37-43) Apreciação do m inistério de Jesus por seu próprio povo;
(44-50) Discurso independente de Jesus usado como proclamação final.
X · Esboço do evangelho 163

U m sim p les o lh ar d e relan ce n a d istrib u ição d estes sinais q u e estão


ao lo n g o d o s c a p ítu lo s d e João in d ica q u e dificilm ente fo rm a m u m a
b a se a d e q u a d a p a ra a d iv isão d o ev an g elh o . E d e v e ra s cabe-nos enfati-
z a r q u e estes sin ais são m en c io n ad o s n ã o só n o L ivro d o s Sinais, p o is há
referên cias p a ssa g e ira s (alg u m as v ezes im plícitas) aos sin ais em 2,23;
4,45; 7,4; 12,37 (e v e r 20,30). O fato d e h a v e r sete sin ais n a rra d o s p o r
ex ten so te m fascin ad o a lg u n s, p o is u m e sq u em a d e setes é ev id en te
e m o u tra o b ra n a escola jo an in a, A pocalipse. B oismard, art. cit., aperfei-
ç o o u co m m u ito refin am e n to a d esco b erta d e sete n o Q u a rto Evangelho:
sete m ilag res; sete d iscu rso s; sete sím iles u sa d o s p o r Jesus; sete títulos
n o c a p ítu lo 1; sete d ia s em 1-2; sete p e río d o s n a v id a d e Jesus etc. M as
u m a v isã o m ais d e p e rto leva à s u sp eita d e q u e esta e n g e n h o sid a d e está
se n d o im p o s ta ao ev an g elista, o q u a l n u n c a d e u a m ais leve indicação
d e q u e ele te m em m e n te tais e sq u em a s n u m érico s e n u n c a u sa a p ala-
v ra sete (em c o n tra ste com o A pocalipse). P o r exem plo, a in ten ção do
ev an g elista (4) e (5) acim a será tra ta d a com o d o is sinais sep arad o s.
D odd , Interpretation, d iv id e o L iv ro U m e m se te e p isó d io s, os
q u a is fo rm a m u m a d is trib u iç ã o m u ito m a is sa tisfa tó ria d o q u e os
se te sin ais:

(1) O N o v o P rin c íp io (2,1-4,42)


(2) A P a la v ra G e ra d o ra d e V id a (4,46-5,47)
(3) O P ã o d a V id a (6)
(4) L u z e V id a (7-8)
(5) Ju íz o a tra v é s d a L u z (9,1-10,21) e A p ê n d ic e (10,22-39)
(6) A V itó ria d a V id a so b re a M o rte (11,1-53)
(7) V id a a tra v é s d a M o rte (12,1-36)

O p rin c íp io g e ra l d e D odd d e u n ir sin a l com d isc u rso in te rp re -


ta tiv o é v á lid o , e s u a b rilh a n te a n á lise q u e ele faz d e m u ita s d e sta s
u n id a d e s d e v e d e ix a r u m a m arc a p e rm a n e n te n o s e s tu d o s joaninos.
M as h á u m p ro b le m a d e d istrib u iç ã o geral. H á c erta u n id a d e n o s ca-
p ítu lo s 2-4, m a s e sta u n id a d e d e v e se r p o s ta e m p é d e ig u a ld a d e com
u m c a p ítu lo s in g u la r co m o 11? C a p ítu lo s 2-4 são c o m p o sto s d e n o m í-
n im o cin co re la to s d ife re n te s c o lo cad o s em locais d ife ren te s; c a p ítu lo
11 co n siste, su b s ta n c ia lm e n te , d e u m a n a rra tiv a c o m p acta. D odd n ão
teria se d e ix a d o im p re ss io n a r p e lo d esejo d e e n c o n tra r u m p a d rã o d e
sete n o e v a n g elh o ?
164 In trod u ção

Propomos nossa própria divisão com certa hesitação, estando


ciente do risco de impor nossos pontos de vista ao evangelista. Porém
alegamos que há no próprio evangelho certas indicações em prol das
linhas gerais desta divisão. Por exemplo, o tema de João Batista e de
seus discípulos que se tornaram discípulos de Jesus serve de nexo a
1,19-2,11, nossa Primeira Parte. O próprio evangelho faz a conexão
entre o primeiro sinal em Caná e o segundo sinal em Caná, as duas
cenas que constituem a demarcação de nossa Segunda Parte. A ênfase
sobre festas como ocasião e simultaneamente tema dos discursos de
Jesus é sublinhada pelo evangelista nos capítulos 5-10, nossa Terceira
Parte. E não só o tema de Lázaro, mas também certas peculiaridades
estilísticas conferem certa unidade aos capítulos 11-12, Quarta Parte.
Além do mais, há nesta divisão um deliberado esforço de respei-
tar a fluidez do pensamento do evangelho. No Apocalipse fica bem
claro o último membro de uma série de sete assuntos é ao mesmo tem-
po o início da série seguinte, por exemplo, Em Ap 8,1, o sétimo selo
abre as sete trombetas. Enquanto nos sentimos relutantes em transferir
aspectos que são peculiares a Apocalipse como um livro apocalíptico
(p. ex., padrões números) à diferente forma literária do evangelho, não
obstante, sugerimos que este aspecto de pensamento sobreposto pode
ajudar também a estabelecer a divisão do evangelho. Por exemplo, o
evangelista une claramente a cena em Caná à que precedeu, enfatizando
o papel dos discípulos (2,2.11); todavia, ao enfatizar que este foi o pri-
meiro sinal de Jesus, o evangelista também olha para o que segue. Salta
à vista o mesmo problema com o segundo milagre em Caná (4,46-54),
que volta o olhar para o primeiro milagre em Caná, e, no entanto, foca-
liza adiante seu tema de vida, o qual está elaborado no capítulo 5. Os
argumentos finais sobre como situar todas as cenas numa divisão do
evangelho pode achar uma solução se reconhecermos que estas cenas
têm um duplo papel de concluir uma parte e abrir a seguinte.

Os te m a s d a s p a r t e s i n d i v i d u a i s d o L i v r o d o s S in a i s

Primeira Parte: Aqui, os temas são óbvios em nossa divisão. A ques-


tão adicional de se esta parte é mantida junta pelo tema dos setes dias
da nova criação será discutida em relação a 2,1-11.
Segunda Parte: Há ao menos dois temas principais que percorrem
esta parte. Enquanto o evangelista sugere estes temas mais claramente,
X · Esboço do evangelho 165

n ã o se p o d e ach á-lo s e la b o ra d o s c o n siste n te m e n te em c a d a su b d iv i-


são; e o a n seio p o r d e se n v o lv im e n to lógico te m le v a d o os in té rp re te s
a fo rç a r estes te m a s p a ra a lém d a in te n ç ão e x p re ssa d o e v an g elh o .
O p rim e iro te m a é o d e s u b s titu ir as in stitu içõ e s e os p o n to s d e v ista
relig io so s ju d a ic o s p e la p e sso a d e Jesus:

E m A: a s u b stitu iç ã o d a á g u a p a ra as p u rificaçõ es ju d aic as


E m B: a su b stitu iç ã o d o te m p lo
Em D: a substituição d o culto praticado em Jerusalém e em G arizim -

E n tre ta n to , e m C n ã o h á refe rê n c ia c lara a su b stitu iç ão ; é fo rçad a


a su g e stã o d e q u e Jesu s e stá s u b s titu in d o o n a sc im e n to n o seio d o
P ovo E sc o lh id o p e la g e ra ç ã o d e cim a. P o ssiv e lm e n te, e m E possa-se
ach ar u m a s u b s titu iç ã o d e fé in a d e q u a d a e m sin ais, m a s isto dificil-
m en te é u m p o n to d e v ista relig io so p a rtic u la rm e n te ju d aico .
O s e g u n d o tem a é o d a s d iferen tes relações d e in d iv íd u o s e g ru p o s
com Jesus:

E m A: os d isc íp u lo s c re e m e m C a n á d a G alileia
N a T ra n siç ão d e 2,23-25, m u ito s e m Je ru sa lé m creem in ad e-
q u a d a m e n te e m se u s sin a is
E m C: N ic o d e m o s, e m J e ru sa lé m , crê in a d e q u a d a m e n te
E m D: a m u lh e r s a m a rita n a crê co m d ú v id a s (4,29); a p o p u la -
ção s a m a rita n a crê m ais p le n a m e n te (4,42)
N a T ra n siç ão d e 4,43-45, m u ito s d e n tre o s g a lile u s c reem ina-
d e q u a d a m e n te e m se u s sin a is
E m E: o o ficial d o re i e s u a casa p a s s a m a cre r com b a se n a p a-
la v ra e sin a l d e Jesu s

A te n ta ç ã o é e n c o n tra r u m d e s e n v o lv im e n to ló g ico n e s ta se-


q u ê n c ia . T em -se su g e rid o o cre sc im e n to d a fé d e N ic o d e m o s, u m ju-
d e u , a tra v é s d a m u lh e r s a m a rita n a (sem i-ju d ia), em relação a o oficial
d o rei, u m g en tio . E n tre ta n to , a d e sig n a ç ã o d o oficial c o m o g e n tio tem
p o r b a s e s u a id en tifica ç ã o co m o c e n tu riã o sinótico; João n ã o m encio-
n a ta l coisa, e d ific ilm e n te o e v a n g e lista p o d e ria e s p e ra r q u e os leito-
res o s u g e risse m . O u tro s e stu d io so s v e e m u m a p ro g re ssã o geográfica:
a fé fica m ais fo rte q u a n d o Jesu s se re tira d e Je ru sa lé m a tra v é s d e
S am aria p a ra a G alileia. M as a fé d o s g a lile u s, em 4,43-45, é a m esm a
166 Introdução

q u e a fé d o s d e Je ru sa lé m e m 2,23-25; e n ã o h á d ife re n ç a sig n ific a tiv a


d e fé e n tre a p o p u la ç ã o sa m a rita n a d e 4,42 e d a c asa d o oficial d e 4,53.
P recisam o s a c a u te la r-n o s p a ra n ã o se rm o s m ais e n g e n h o so s d o q u e o
p ró p rio e v a n g elista .
T erceira Parte: E sta é d o m in a d a p e la s ações e d isc u rso s d e Jesus
p o r ocasião d a s g ra n d e s festas judaicas. N ã o o b stan te, a relação e n tre o
q u e é d ito a u m tem a d a festa é m en o s ó bvia e m a lg u n s casos d o q u e e m
o u tro s. A s su b d iv isõ e s B e C são as m ais claras, m as e m D a referên cia
ao tem a d a D edicação é su til e se lim ita a u m ú n ico v ersícu lo (10,36).
H á su b tem as: o sim bolism o d o Ê xodo n o m a n á e n a á g u a q u e v e rte d a
rocha, u n in d o 6 e 7; a o p osição aos fariseu s u n in d o 9 e 10. O tem a d a
lu z ilu stra d o e m 9 é co m b in a d o n a p ró x im a p a rte p o r u m a o rd en a ç ã o
d o tem a d a v id a e m 11, e h á m u ito s p a ra lelo s e n tre estes d o is cap ítu lo s.
Q u a rta P arte: O te m a d a v id a e m o rte q u e d o m in a e sta p a rte é
c e n tra d o e m to rn o d e L ázaro. D isc u tire m o s n o c o m e n tá rio o s d e ta lh e s
d a crítica lite rá ria q u e su g e re q u e e sta p a rte tev e s u a p r ó p ria h istó ria
p ecu liar.

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XI
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA GERAL

N ã o se te m feito n e n h u m a te n ta tiv a d e d a r u m a b ib lio g ra fia jo a n in a


c o m p le ta ; só são c ita d a s o b ra s re a lm e n te u s a d a s - o b ra s re c e n te s re-
c e b em a m á x im a a te n ç ã o . P a ra o m é to d o d e re fe rê n c ia a e sta b ib lio -
g ra fia , v e r p . XI.

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I
PRÓLOGO

U m p r i m i t i v o h in o c r is tã o , p r o v a v e l m e n t e o r iu n d o d o s c ír c u lo s jo a n i-
n os, 0 q u a l f o i a d a p ta d o p a r a s e r v ir c o m o a b e r tu r a à n a r r a tiv a e v a n g é -
lic a d a c a r r e ir a d a P a l a v r a e n c a r n a d a .
1. HINO INTRODUTORIO
( 1 , 1 ‫ ־‬18 )

Primeira Estrofe
1 1N o p rin c íp io e ra a P a lav ra ,
A P a la v ra e sta v a n a p re se n ç a d e D eu s,
E a P a la v ra e ra D eus.
2N o p rin c íp io , ele e sta v a p re s e n te co m D eus.

Segunda Estrofe
3T o d as as coisas v ie ra m a ex istir a tra v é s d ele,
à p a rte d ele, n a d a v eio a existir.
4A q u ilo q u e v ie ra a ex istir n e le e ra a v id a ,
e esta v id a e ra a lu z d o s h o m en s.
5A lu z b rilh a so b re as tre v a s,
to d a v ia as tre v a s n ã o a v e n c era m .

(6H o u v e u m h o m e m e n v ia d o p o r D e u s cujo n o m e e ra João 7q u e


v eio co m o te s te m u n h a a testificar d a lu z p a ra q u e, a tra v é s d e le , to d o s
os h o m e n s v iesse m a c re r - 8m a s so m e n te p a ra testificar d a lu z , p o is
ele m esm o n ã o e ra a lu z. 9A v e rd a d e ira lu z q u e ilu m in a a to d o h o m e m
esta v a v in d o ao m u n d o ).

Terceira Estrofe
10Ele e sta v a n o m u n d o ,
e o m u n d o foi feito p o r ele;
to d a v ia , o m u n d o n ã o o reco n h eceu .
11V eio p a ra o q u e era seu ,
to d a v ia os se u s n ã o o ac eita ra m .
1 · Hino introdutório 171

12M as a to d o s o s q u e o a c e ita ra m
ele d e u p o d e r p a ra se to rn a re m filhos d e D eus.

Isto é, o s q u e c re e m e m se u n o m e - 13os q u e fo ra m g e ra d o s, n ã o p o r
m eio d o sa n g u e , n e m p o r m eio d o d esejo carn al, n e m p o r m eio d o
d esejo d o h o m e m , m a s p o r D eus.

Quarta Estrofe
14E a P a la v ra se fez ca rn e
e fez s u a h a b ita ç ã o e n tre nós.
E te m o s v isto su a glória,
a g ló ria d e u m F ilho ú n ic o v in d o d o Pai,
c h e io d e a m o r co n sta n te.

(15Jo ão testific o u d ele, p ro c la m a n d o : "E ste é a q u e le d e q u e m eu


disse: A q u e le q u e v e m d e p o is d e m im v a i a d ia n te d e m im , p o is existia
a n te s d e m im ").

16E d e s u a p le n itu d e
to d o s n ó s tiv e m o s p a rtic ip a ç ã o -
a m o r p o r a m o r.

17P ois e m b o ra a Lei fosse u m d o m a tra v é s d e M oisés, este a m o r cons-


tan te v e io p o r in te rm é d io d e Jesu s C risto . 18N in g u é m jam a is v iu a
D eus; é D e u s o F ilho ú n ico , e s ta n d o se m p re ao la d o d o P ai, é q u e m
O rev e lo u .

15: te s ti f i c o u . No tempo presente histórico.

NOTAS

1.1. No princípio. Na Bíblia hebraica, o prim eiro livro (Gênesis) é denom inado
por suas palavras iniciais: "N o princípio portanto"; o paralelo entre o
Prólogo e Gênesis seria facilmente visto. O paralelo continua nos versí-
culos seguintes, onde os tem as da criação e da luz e as trevas são um a
lem brança do Gênesis. A tradução que João faz da frase de abertura de
Gn 1,1, que é a m esm a da LXX, reflete um a com preensão daquele ver-
sículo evidentem ente m uito difundido nos tem pos neotestam entários;
172 I. Prólogo

isso não nos dá necessariam ente o significado original tencionado pelo


autor de Gênesis. E. A. Speiser (The Achor Bible, vol. 1) trad u z assim:
"Q uando Deus determ inou criar o céu e a terra"...
princípio. Este não é como em Gênesis, o princípio da criação, pois a criação
vem no versículo 3. Ao contrário, o "princípio" se refere ao período an-
terior à criação e é um a designação, mais qualitativa do que tem poral, da
esfera de Deus. Note como o evangelho de Marcos se abre: "O princípio
do evangelho de Jesus Cristo [o Filho de Deus]"...
era a Palavra. Desde os dias de C risóstomo, com entaristas têm reconhecido
que cada um dos três usos de "era", no v. 1, tem conotação diferente:
existência, relação e predicação, respectivam ente. "A Palavra existia"
tem afinidade com as afirmações de Jesus do "Eu sou" no próprio evan-
gelho (ver Apêndice IV, p. 841ss). Não cabe especulação sobre como a
Palavra veio a existir, pois a Palavra sim plesm ente existia.
na presença de Deus. Aqui e no v. 2 tentam os um a tradução que capture a
am biguidade do grego pros ton theon. Duas traduções básicas têm sido
propostas: (a) "com Deus" = em com panhia. BDF, § 2391, ressalta que,
em bora pros com o acusativo geralm ente se aplique a m ovim ento, algu-
m as vezes é usado no sentido de em com panhia, segundo a debilitação
geral no grego helenista da distinção entre preposições de m ovim en-
to e de localização, p. ex., entre eis e en. A ideia de em com panhia na
pré-criação aparece em Jo 17,5: "aquela glória que eu tive contigo [para
com] antes que o m undo existisse". Ver a redação alternativa de 7,29.
(b) "para com Deus" = relação. Em um artigo em Bib 43 (1962), 366-87,
De la P0TTER1E argum entou de m odo contundente que o sentido dinâ-
mico de eis e pros não se perdeu no grego de João. Ele insiste que, quan-
do João usa pros e o acusativo, não significa em com panhia. Ele aponta
(p. 380ss.) para o v. 18, o qual form a um a inclusão com o v. 1, e a expres-
são encontrada ali, eis ton kolpon (literalmente, "no seio do Pai", ou, como
nossa tradução, "estando sem pre ao lado do Pai"). Todavia, o argum ento
que extrai do v. 18 para a interpretação dinâm ica do pros, no v. 1, depen-
de do uso dinâm ico de eis, no v. 18, e isto é disputado. Tam bém se extrai
um argum ento de ljo 1,2: "... esta vida eterna tal como estava na presen-
ça do Pai [pros ton patera]". Todavia, visto que o sujeito desta sentença é
"vida", parece estar implícita com unhão mais que relação. Com parações
entre João e 1 João com base no vocabulário apresentam dificuldade, pois
as m esm as palavras aparecem nas duas obras com nuanças ligeiram ente
diferentes. Nosso ponto de vista pessoal é que há um a nuança de relação
em Jo 1,1b, m as sem a precisão daquela relação entre a Palavra e Deus o
Pai que alguns veriam, p. ex., filiação.
1 · H in o in trod u tório 173

p resen ça d e D e u s. Aqui, o artigo é usado com th eos. Q uando o Pai, Jesus e o


Espírito Santo são envolvidos, ho th eos é com frequência usado para Deus
o Pai (2Cor 13,13). O v. 18, com a inclusão do v. 1, fala do Pai, como o
paralelo recém -m encionado em ljo 1,2. A enfatizar a relação entre a Pa-
lavra e Deus o Pai, o vs. 1 ao m esm o tem po os distingue implicitamente.
era D e u s . O v. lc tem sido o tem a de prolongada discussão, pois ele cons-
titui u m texto crucial pertinente à divindade de Jesus. N ão há artigo an-
tes de th eo s como houve no v. lb. A lguns explicam isto com a simples
regra gram atical de que substantivos predicativos geralm ente são anar-
throus [sem o artigo] (BDF, § 273). Entretanto, enquanto m ui provável-
m ente th eos seja o predicado, tal regra não vale necessariamente para
um a afirm ação de identidade como, por exemplo, na fórm ula "Eu sou"...
(Jo 11,25; 14,6 - com o artigo). Para preservar na tradução a diferente
nuança de th eos com e sem o artigo, alguns (M offatt) traduziríam : "A
Palavra era divina". Mas isto parece frágil demais; e, além do mais, há
no grego u m adjetivo para "divino" (th e io s ) que o autor não escolheu
usar. H aenchen, p. 31338, objeta a este últim o ponto porque pensa que tal
objetivo tem laivos de grego literário, não no vocabulário joanino. A NEB
parafraseia a linha: "O que Deus era, a Palavra era"; e isto é certam ente
m elhor que "divino". No entanto, para um leitor cristão m oderno, cujo
pano de fundo trinitário o acostum ou a pensar "D eus" como o concei-
to m ais am plo do que "D eus o Pai", a tradução "a Palavra era Deus" é
plenam ente correta. Esta redação é reforçada quando se lem bra que no
evangelho como ora se encontra, a afirmação de 1,1 quase certam ente se
destina a form ar um a inclusão com 20,28, onde no final do evangelho
Tomé confessa Jesus como "m eu Deus" (ho th eos m o u ). Estas afirmações
representam a resposta afirm ativa joanina à acusação feita contra Jesus
no evangelho que ele não tinha razão ao fazer-se igual a Deus (10,33;
5,18). N ão obstante, devem os reconhecer que entre "a Palavra era Deus"
do Prólogo e a confissão posterior da Igreja de que Jesus era Cristo "Deus
verdadeiro do verdadeiro Deus" (Niceia), houve m arcante desenvolví-
m ento em term os de pensam ento filosófico e um a diferente problem á-
tica. Ver comentário.
3. T odas a s co isa s v ie r a m a ser. Desde o 2 a século em diante, isto foi tom ado
como um a referência à criação. P ollard, a rt. c it., o vê como um a am pla
referência a todas as ações eternas de Deus, inclusive a história da sal-
vação, porque o Q uarto Evangelho não está interessado em cosmologia.
Entretanto, verem os que o Prólogo teve um a história independente do
evangelho e não tem necessariam ente a m esm a teologia que o evangelho.
Em qualquer caso, "todas as coisas" é um conceito mais am plo do que
174 I. Prólogo

"o m undo", a esfera do hom em , cuja menção se fará nos vs. 9-10.0 verbo
"veio a existir" é egeneto, usado constantem ente para descrever criação
na LXX de Gn 1.
à parte dele. Boismard, p . 11, in siste q u e " s e m ele " n ã o é u m a tr a d u ç ã o a d e -
q u a d a , p o is e s tá im p líc ito n ã o só c a u s a lid a d e , m a s ta m b é m p re s e n ç a .
3b-4. Estas linhas costum am ser divididas de outra m aneira, assim: "3be à
parte dele não veio à existência algo que não existia. / 4Nele estava a
vida". Nessa divisão, a cláusula "que veio a existir" - em vez de começar
v. 4 - com pleta o v. 3. Esta divisão alternativa se encontra na Vulgata
Clementina; e de acordo com M ehlmann , "De mente", foi a divisão do
próprio J erônimo (exceto em um caso). Mas D e la P otterie, "De interpre-
tatione", insiste que J erônimo só m udou para esta divisão c. 401 d.C. por
razões apologéticas. Com entaristas m ais m odernos usam a divisão que
temos escolhido em nossa tradução; M arrett e H aenchen constituem ex-
ceções. N um a tentativa para provar que nossa divisão é a m ais antiga,
Boismard, p. 14, dá um a im pressionante lista de escritores patrísticos que
a usam; e sugere que a tradução alternativa acima só foi introduzida no
4a século como apologética anti-ariana. Os arianos usaram nossa divisão:
"Aquilo que veio a estar nele era a vida", para provar que o Filho passara
por m udança e, portanto, realm ente não era igual ao Pai. Para opor-se a
isto, os Pais ortodoxos preferiram a tradução alternativa, a qual rem oveu
a base da interpretação ariana. Não obstante, nem todos os estudiosos
aceitam essa explicação da origem da divisão alternativa. M ehlmann ,
"A Note", tenta m ostrar que ela era pré-ariana; e H aenchen sugere que
nossa pontuação teve origem entre os gnósticos. Seja como for, a poesia
do Prólogo favorece nossa divisão, pois o paralelism o climático ou "es-
calonado" das linhas requer que o final de um a linha se contraponha
com o início da próxim a. Em nossa divisão, o "veio a existir", no final do
v. 3, contrapõe-se a "veio a existir" no início do 4. Além do mais, há um
interessante paralelo em Q um ran para 3b que ajuda a confirm ar nossa
redação (1QS 11,11): "E por Seu conhecimento tudo veio a existir, e por
Seu pensam ento Ele dirige tudo o que existe, e sem Ele nada é feito [ou
m anufaturado]". Ver D e la P otterie para um a exaustiva discussão de
todo o problem a.
4a. Aquilo que veio a existir nele era a vida. H á nesta linha cinco problem as
m uito difíceis: (a) "Aquilo que viera a existir". O Prólogo m uda do ao-
risto egeneto, "veio a existir", que foi usado duas vezes no v. 3, para um
gegonen perfeito "viera a existir". A lguns creem que isto constitui um a
tentativa de d ar um a ideia genérica de ser criado: "tudo aquilo que viera
à existência". Entretanto, norm alm ente a ênfase no tem po perfeito está
1 · Hino introdutório 175

na duração: algo ocorreu no pretérito, m as ainda tem efeito no tem po


de falar, (b) "Nele" [pessoa] ou "nele" [coisa]? V an H oonacker em 1901
e LoiSY em 1903 sugerem um a possibilidade que não fora reconhecida
pelos com entaristas mais antigos; a saber, que esta frase deve ser tra-
d uzida "nele" [coisa] e considerada como sendo um casus pendens resu-
m indo "aquilo que viera a existir". A tradução resultante, "Aquilo que
viera a existir, nele [coisa] era a vida", oferece sérias dificuldades. Caso
se pretendesse um a continuação, en toutõ ("nisto") seria mais normal;
tam bém a palavra "vida" não tem artigo e seria um predicado, não um
sujeito. Que "vida", em 4a, seria um predicado é tam bém sugerido pelo
paralelism o "escada", visto que o que então seria um predicado em 4a
seria um sujeito em 4b. Há um a variante da tradução "nele" [coisa] que
é optado p o r M ollat em SB: "Aquilo que viera a existir, nisso ele era a
vida". Esta tradução evita algum as das dificuldades supram encionadas;
porém introduz como sujeito o pronom e implícito no verbo, e não há
outro exem plo disto nos vs. 1-5. Veja L acan , pp. 67-69. (c) Se aceitarmos
a leitura "nele" [pessoa], a que grupo de palavras o associaremos? Há
duas redações possíveis: "Aquilo-que-viera-a-existir era a vida nele" e
"Aquilo-que-viera-a-existir-nele era a vida".
M uitos estudiosos m odernos aceitam a prim eira redação, "era a vida
nele", e assim juntam E usébio, C irilo de A lexandria, A gostinho e a maioria
dos Padres latinos. Esta tradução usualm ente impõe que o sujeito, "aqui-
lo-que-viera-a-existir", seja tom ado no m esm o sentido que "todas as coi-
sas" que entraram para a existência do v. 3; a saber, que se refere a toda a
criação. Entretanto, 4b ("esta vida era a luz dos hom ens") parece indicar
que não toda a criação, m as somente as criaturas vivas ou, mais prova-
velm ente, os hom ens estão implícitos por "aquilo-que-viera-a-existir" em
4a. Um a dificuldade adicional nesta tradução é a estranheza do verbo, e
m uitos têm parafraseado: "encontraram vida" ou "estavam vivos". Mes-
mo o tem po do verbo é difícil já que esperaríam os um tem po presente:
"está vivo nele". Por estas razões, as discussões recentes entre L acan e
V awter acham esta tradução tão confusa. Se o autor do Prólogo quisesse
expressar os mesmos sentim entos do hino em Cl 1,17, "nele todas as coi-
sas subsistem ", então escolheu um m odo m uito obscuro para fazê-lo.
O rígenes, H ilário, A mbrósio e os Padres gregos mais antigos aceitaram a
segunda redação: "Aquilo-que-viera-a-existir nele era a vida". Esta seria
a redação norm alm ente indicada pela posição da frase "nele" em grego.
A cláusula "aquilo-que-viera-a-existir nele" não tinha nada a ver com uma
m udança no seio da Palavra ou com a preexistência das idéias divinas no
m undo. Ao contrário, seguindo o v. 3, a cláusula representa um a redução
176 I. Prólogo

da criação; ο ν. 4 não se destina a falar sobre a totalidade da criação, m as


um a criação especial na Palavra, (d) "era a vida" ou "é vida"? Há respei-
tável evidência textual para ler-se um tem po presente no v. 4a; contudo,
ambos os papiros Bodmer endossam o imperfeito. Requer-se o m esm o
tem po em am bas as linhas do v. 4, e a evidência em prol do imperfeito,
em 4b, é esm agadora (ainda quando Boismard, p. 12, o corrigiría e leria
o presente em am bas as linhas). Sugerim os que o im perfeito era o ori-
ginal em 4a, m as alguns copistas o m udaram para o presente, porque o
adaptaram m elhor com a redação supram encionada: "Aquilo-que-vie-
ra-a-existir é vida nele", (e) "vida" - isto significa vida natural ou vida
eterna? Se o sujeito da linha 4a for tom ado como sendo toda a criação,
então vida eterna seria singularm ente inapropriada. Mas se, como suge-
rimos, está implícito um aspecto especial da criação, i.e., criação na Pala-
vra, então vida eterna é plenam ente apropriada. A palavra para "vida"
(zõê - ver Apêndice 1:6, p. 794s) nunca significa vida natural em João ou
nas Epístolas de João. A identificação desta vida com a luz dos homens, na
próxim a linha, nos faz pensar que está implícita a vida eterna. No Prólo-
go a 1 João (1,2), "vida" é especificada como "vida eterna".
4b. esta vida era a luz. A lguns inverteríam sujeito e predicado: "a luz dos ho-
m ens era esta vida". A pontam para 8,12, "a luz da vida". (Ver discussão
em B o i s m a r d , pp. 18-19). Um a vez mais, o paralelism o "escada" pressu-
põe que "luz" é o predicado, visto que ser o sujeito de 5a. O sim bolismo
de luz se relaciona com Gn 1.
5. brilha sobre. A sugestão de Bultmann , p. 264, de que este verbo original-
m ente era imperfeito, não conta com nenhum endosso textual.
não a venceram. Este aoristo se referiría a um a tentativa específica das tre-
vas de vencer a luz? O u é um aoristo com posto sum ariando um a série
de tentativas (BDF, § 332)? O u é um aoristo gnôm ico indicando que as
trevas estão sem pre tentando vencer a luz (BDF, § 333)? Se, como penso,
isto é um a referência ao pecado em Gn 3, então o significado norm al do
aoristo, como um a única ação pretérita, é adequado.
venceram. O verbo grego katalambanein é de tradução difícil, e podem os dis-
tinguir quatro tendências entre os tradutores: (a) "apreender, com preen-
der". C1R1L0 de A lexandria, a tradição latina, L agrange , B raun estão entre
os m uitos que interpretam o verbo como um a referência à com preensão
intelectual. Se "a luz" for um a referência à Palavra encarnada, este signi-
ficado é bem inteligível; pois então o verso está dizendo que os hom ens
não perceberam a luz trazida por Jesus durante seu m inistério (3,19).
O m elhor argum ento para esta tradução se encontra nos paralelos nos
vs. 10 e 11: "todavia as trevas não a com preenderam ... todavia o m undo
1 · Hino introdutório 177

não o reconheceu... todavia os seus não o aceitaram". Note que, se no


v. 5b aceitarm os "com preender", o kai iniciai deve ser traduzido como
"todavia", e não como "pois", (b) "vencer, receber, aceitar, apreciar".
D upont , Bultmann e W ikenhauser estão entre os que preferem o signi-
ficado que se ajusta ao significado de paralambanein ("aceitaram ") no
v. 11. Em bora Black , p. 10, não considere "receber" como um a tradu-
ção ad eq u ad a do grego, ele sugere que o original aram aico la qabblêh
qablâ, "as trevas não a receberam ". (O jogo aram aico entre qablâ, "tre-
vas", e qabblêh, "recebê-la" é óbvio). O utros proponentes de um ori-
ginal aram aico para o Prólogo reconstroem o verbo original de outra
m aneira. Burney pensa em um 'aqbêl original, "trevas", lê erroneam en-
te como ’qabbêl , "receber"; S chaeder abandona o jogo de palavras e
sugere 'a h a d , "vencer"; N agel , art. cit., salienta que o radical qbl no
aram aico tardio (siríaco) tem um a nota de oposição, e faz outras suges-
tões que podem significar, respectivam ente, "apreender" e "vencer".
A evidência aram aica dificilm ente é conclusiva, (c) "suplantar, vencer
[apreender n u m sentido hostil]". O rígenes, a m aioria dos Padres gre-
gos, S chlatter , W estcott e Boismard estão entre os que aceitam este sig-
nificado. Katalambanein tem este significado em seu único outro uso em
João (12,35): "as trevas não vos apanhem ". A oposição entre luz e trevas
no pensam ento dualístico joanino parece exigir esse verbo para descre-
ver seu choque. Como verem os, o conceito da Palavra no Prólogo é simi-
lar à da Sabedoria personificada no AT. É digno de nota que Sb 7,29-30
com para a Sabedoria a um a luz que as trevas não podem suplantar,
pois a p erversidade não prevalecerá contra a Sabedoria. O utro paralelo
está nas Odes de Salomão 18,6: "Para que a luz não seja vencida pelas
trevas". Os Atos de Tomé 130 falam de um a "luz que não foi vencida".
Estas razões e paralelos nos fazem aceitar "vencer" para o v. 5b, mas
adm itim os que a leitura 5b, como razão para 5a ("todavia as trevas não
a venceram ") destrói o paralelism o com 10c e 11b. (d) "dom inar". Esta
é a tentativa de M offatt de captar os dois significados de "entender"
e "vencer". O utra tradução am bígua pode ser "absorver". Finalm ente,
devem os m encionar a possibilidade de que katalambanein tinha outro
significado q u ando o versículo perm aneceu como parte independente
de um hino, e assum iu outro significado quando o hino se tornou o
Prólogo do evangelho.
6. Houve. Isto não é o ên, "era", usado no tocante à Palavra nos vs. 1-2, e sim
o egeneto usado para a criação nos vs. 3-4. João Batista é um a criatura.
enviado por Deus. Em 1,33 João Batista falará de "aquele que me enviou a
batizar"; em 3,28 ele diz: "Eu sou enviado diante dele".
178 I. Prólogo

7. dos homens. A relação foi deslocada de "todas as coisas" do v. 3 para a


esfera dos hom ens. Há quem veja aqui um a visão do papel de João Ba-
tista que contradiz 1,31/ onde lemos que João Batista veio para que Jesus
fosse revelado a Israel. Mas a ideia é que, em últim a análise, a m ensagem
de João Batista atingisse todos os hom ens, precisam ente como a m ensa-
gern de Jesus, com unicada a Israel, atingisse todos os hom ens. O Q uarto
Evangelho enfatiza mais o papel de João Batista como um a testem unha
na qualidade de batizador.
8. não era a luz. Em 5,35 Jesus chama João Batista de lâm pada; m as Jesus mes-
mo é a luz (3,19; 8,12; 9,5).
9. Alguns tom ariam este versículo como poesia continuando o v. 5, assim:

Ele era a luz verdadeira


que ilum ina luz a todo homem;
ele tem vindo ao m undo.

A linha 9a pode significar: "A luz verdadeira era", ou, se suprirm os um su-
jeito da forma verbal: "Ele era a luz verdadeira". O significado seria em par-
te determ inado pelo que é feito com 9c onde a forma verbal é simplesmen-
te um particípio ("vindo ao m undo"), provavelm ente m odificando "luz".
Se lermos 9a como "Ele era a luz verdadeira", então o particípio separado
em 9c é m uito desajeitado; note como isso tem de ser artificialmente evita-
do acima suprindo outro "ele era" em 9c. Se lermos 9a como "A luz verda-
deira era", então o particípio de 9c é a continuação perifrástica do verbo:
"A luz verdadeira estava... vindo ao m undo". A circunlocução perifrástica
é conhecida no grego clássico, mas sua frequência no NT pode estar sob a
influência aram aica (BDF, § 353). O uso perifrástico de einai ("ser") m ais
um particípio presente como um a circunlocução para o imperfeito ocorre
nove vezes em João. A dificuldade especial em 1,9 é que o verbo "era" é
separado do particípio por cláusula, embora tenham os exemplos de sepa-
ração similar em 1,28; Mc 14,49; Lc 2,8 (ver ZHB, § 362). Talvez o motivo
por detrás da separação no vs. 9 fosse term inar o versículo sobre o tem a de
"o m undo" que se resum e no vs. 10. Além do mais, se com base em BDF,
§ 3531se quisesse enfatizar que em tais casos de perífrase separada há certa
independência concedida ao verbo principal, então a ideia é que havia um a
luz verdadeira e ela estava vindo ao m undo.
Juntamente com Bernard, G ächter, K äsemann, entre outros, pensam os
que a evidência é fortemente para não considerar o v. 9 como parte da
poesia do Prólogo. Ele não tem a partícula conjuntiva kai que é tão comum
nas partes poéticas do Prólogo; ele usa a subordinação que estas não têm.
1 · H in o in trod u tório 179

A "luz" é o sujeito do v. 9; e este sujeito não é apreendido no v. 10. Ao


contrário, o pronom e m asculino no v. 10 ("luz" é neutro) indica que seu
sujeito é a Palavra, o m esm o sujeito que é proem inente nas linhas iniciais
d e outras estrofes (vs. 1.3.14). A perífrase que tem os postulado para o
v. 9 seria estranha em poesia, e totalm ente distinta o uso de "era" nos vs.
1-2. O v. 9 é u m contraste com o v. 8 - a luz verdadeira é Jesus, não João
Batista - e pertence ao m esm o nível da história literária do Prólogo como
o v. 8, a saber, o nível da redação final. M uito curiosam ente, Schnacken-
burg considera som ente 9c como sendo redacional.
lu z v e rd a d e ira . "V erdadeira" reflete a l ê t h i n o s ‫׳‬, ver Apêndice 1:2, p. 794ss.
dá lu z . H á quem pense que isto não significa a luz da revelação, e sim o
foco do juízo, a luz implacável e autorreveladora não deve ser evitada.
Todavia, o v. 7 parece im plicar um a luz que em que alguém crê.
a to d o h o m e m . Se o testem unho de João Batista fosse a todos os hom ens, a
esfera da m anifestação da luz verdadeira dificilmente pode ser menor.
v in d o ao m u n d o . Há duas palavras possíveis para o particípio modificar: (a) "ho-
m em " = "A luz verdadeira que dá luz a todo homem vinda ao m undo". Esta
é a interpretação das versões antigas (OL, Vulg., OS, Boh.), os Padres gregos
(Eusébio, C irilo de A lexandria, C risóstomo) e muitos estudiosos modernos
(Burney, Schlatter, Bultmann, W ikenhauser). Ela cria um a redundância,
pois na literatura rabínica "os que entram no m undo" é um a expressão para
homens. Sobre esta base, Bultmann, p. 316, pensa que devemos simplesmen-
te suprim ir "homem " no v. 9 como um a glosa, (b) "luz"="A luz verdadeira...
estava vindo ao m undo". Esta interpretação é endossada pela Saídica, os Pa-
dres latinos (Tertullano e C iprlano) e a maioria dos comentaristas modernos
(Lagrange, Braun, D upont, W estcott, M acgregor, Bernard, Boismard entre
outros). Isso se ajusta melhor ao contexto, pois no v. 10 a ênfase está na Pa-
lavra ( - a luz) como estando no m undo. Notamos também que "vindo ao
m undo" não é usado em João para descrever homens, e sim para descrever
Jesus, a luz; p. ex., 3,19: "A luz que, vinda ao m undo" (também 12,46). Final-
mente, parece que o contraste do v. 9 com o v. 8 exige também esta interpre-
tação: João Batista não era a luz; a luz verdadeira estava vindo ao mundo.
10. E le e s ta v a . A Palavra, não a luz.
0 m u n d o . Ver Apêndice 1:7, p. 794ss. Isto é parte da criação do v. 3, mas
som ente aquela parte da criação que é capaz de resposta, o m undo dos
hom ens. Isto é visto claram ente em 3,19: "A luz tem vindo ao m u n d o , mas
os h o m e n s têm preferido as trevas à luz".
fo i fe ito . Ou, "veio a existir" - o e g e n e to da criação no v. 3.
não 0 recon h eceu . N a questão de se este versículo atribui ao AT ou ao NT a
presença da Palavra de Deus entre os hom ens, podem os trazer à m ente
180 I. Prólogo

que no AT o pecado fundam ental é o fracasso de obedecer a Iahweh,


enquanto que, para João, o pecado fundam ental é o fracasso de conhecer
e crer em Jesus. (Naturalm ente, conhecer a Jesus tam bém im plicaria ar-
rependim ento e nova vida em seu serviço).
11. Para 0 que. A expressão é neutra; ela ocorre outra vez em 19,27, onde o
discípulo leva M aria ao seu (para seu próprio lar, ao seu cuidado). N o v.
11a, a ideia parece ser o que era peculiarm ente seu em "o m undo", i.e., a
herança de Israel, a Terra Prom etida, Jerusalém.
os seus. Aqui a expressão é masculina. Os que pensam que este hino, ori-
ginalmente, estava em aramaico, salientam que d ileh ("seu" - sem dife-
renciação de gênero) deveria ter sido encontrado em ambos, 11a e 11b.
São difíceis de explicar por que o tradutor grego preferiu dois gêneros
diferentes para expressá-lo. A referência é claram ente ao povo de Israel;
segundo Ex 19,5, Iahweh disse a Israel: "Sereis minha própria possessão
entre todos os povos". Bultmann , p. 35, rejeita isto e vê um a referência
cosmológica, em vez de um a referência à história da salvação. Sua inter-
pretação em ana de sua pressuposição de que o Prólogo, originalm ente,
era um hino gnóstico.
12. As linhas 12a-b pertencem ao hino original, ou são com entários em pro-
sa? B ernard, D e A usejo, G reen, H aenchen , R obinson , Schnackenburg não
as aceitam como parte do hino. Em parte, a posição assum ida dependerá
se alguém considera ou não esta estrofe como um a referência à carreira
histórica da Palavra encarnada. Em caso afirmativo, parece estranho ter-
m inar a estrofe na nota negativa do v. 11. Todavia, se o form ato poético
é o critério absoluto, então estes versos tem um a estrutura distinta dos
versículos precedentes.
todos os que 0 aceitaram. Esta cláusula, no nom inativo, é um a expansão do
objeto indireto de "capacitar" (literalmente, "ele os capacitou") no v. 12b.
Este é um exemplo da construção casus pendens, onde um a frase é re-
m ovida de seu lugar norm al na sentença e se coloca em prim eiro lugar.
A construção ocorre 27 vezes em João, com parada com 21 vezes nos três
sinóticos. Não obstante, a frase assim rem ovida é geralm ente um a am-
plificação de um nom inativo ou um acusativo, raram ente de um dativo,
como aqui. A construção é semítica, m as tam bém se encontra no grego
coloquial de origem não semítica.
deu poder. Literalmente, "dado poder" (edõken exousian), ou, se quiserm os
traduzir o grego exousia mais exatamente, "deu autoridade ou direito"
- D odd , Interpretation, p. 2701, caracteriza "poder" como um a tradução
mais corrom pida. Não obstante, fazer disto um pronunciam ento semi-
jurídico em que a Palavra deu aos hom ens o direito de se tornarem filhos
1 · Hino introdutório 181

de Deus é introduzir um elem ento estranho ao pensam ento de João: a


filiação tem por base o gerar divino, não em um a reivindicação da parte
do hom em . Bultmann , p. 361, e Boismard, pp. 42-43, provavelm ente este-
jam certos em ver o grego como um a tentativa esdrúxula de verter a ideia
p o r detrás da expressão semita, "ele lhes deu [nathan] de tornarem-se".
filhos de Deus. "Filhos "-tekna (tam bém 11,52); huios, "filho", é usado em
João som ente para Jesus. C ontraste Mt 5,9, o qual usa huioi para ho-
mens: os pacificadores serão cham ados filhos de Deus; tam bém Paulo
em G1 3,26. Todavia, enquanto João preserva um a diferença de voca-
bulário entre Jesus, como filho de Deus, e os cristãos como filhos de
Deus, é em João que nosso presente estado como filhos de Deus sobre
esta terra vem a lum e m ui claram ente; ljo 3,2: "A m ados, agora somos
filhos de Deus".
isto é, aos que creem em seu nome. Esta cláusula também explica 0 objeto in-
direto de "deu poder", justamente como o v. 12a; somente enquanto 12a
está no nominativo, 12c está no dativo. (Temos tentado captar a melhor
concordância de 12c, introduzindo-o com "Isto é"). Que 12a e 12c realmen-
te dizem a mesma coisa, tem deixado sua marca na transmissão do texto.
Alguns dos Padres latinos, gregos e siríacos, e o Diatessaron, parecem omi-
tir 12c, enquanto uns poucos Padres latinos, P hiloxenus de M abbug e uma
testem unha etíope om item 12a. Boismard, RB 57 (1950), 401-8, argumenta
que o presente texto de João é um a combinação de redações alternativas.
Entretanto, o fato de que 12c está num a linguagem e padrão de pensamen-
to joaninos típicos torna possível que 12c seja um a expansão redacional
do hino. E possível que tenha sido anexado para acentuar que não só a
aceitação original de Jesus (aoristo em 12a), mas também a fé contínua nele
(presente em 12c), habilitaram os hom ens a se tornarem filhos de Deus.
creem em. Ver Apêndice 1:9, p. 794ss sobre pisteuein eis, uma construção típica-
mente joanina.
em seu nome. Isto é tam bém tipicam ente joanino (2,23; 3,18; ljo 5,13). Crer
no nom e de Jesus não é diferente de crer em Jesus, embora a primeira
expressão realce claram ente que, para crer em Jesus, tem de crer que ele
porta o nom e divino, dado a ele p or Deus (17,11-12). Para a possibilidade
de que este nom e possa ser "EU SOU", ver Apêndice IV, p. 841ss.
13. Acaso o v. 13 é parte do hino poético original, ou parte do comentário
redacional? B ernard, G äechter, G reen, H aenchen , Jeremias, K äsemann ,
R obinson , Schnackenburg e W ikhnhauser estão entre os que creem ser
um a am pliação redacional. Certam ente, o estilo é diferente das estro-
fes claram ente poéticas do hino. O m otivo apologético é forte em 13, e
isto não ocorre no tocante aos versículos poéticos. Os vs. 1-4, 9-12 e 14
182 I. Prólogo

louvam as atividades da Palavra, enquanto o v. 13 fala daqueles que


creem nele. De fato só há um a séria objeção em relação a ambos, 12c e
13 como adições redacionais: 12c é dativo, 13 é nom inativo (como 12a
- temos tentado expressar a diferença pelo travessão). Seria o caso de
estarm os encontrando adições feitas por diferentes mãos? Entretanto, no
nível das idéias, 12c e 13 podem ir juntos, pois no pensam ento joanino os
que creem e os gerados por Deus são equivalentes: "Todo aquele que crê
ser Jesus o Messias é gerado por Deus" (ljo 5,1).
os que foram gerados. A evidência textual para ler um plural é esmagadora,
sem sequer um único manuscrito grego endossando o singular. O singular,
"aquele que foi gerado", é lido por um a testemunha VL [Vetus Latina], tal-
vez pelo VScur [Vetus Siríaco]; e esse texto é aplicado a Jesus por diversos Pa-
dres (Justino?, Irineu, T ertuliano) e por alguns escritos antigos (Liber Comicus
Apostolorum). Sobre esta evidência m uito débil, o singular tem sido endos-
sado por um considerável núm ero de estudiosos: Boismard, B lass, Braun,
Burney, D upont, M ollat (SB), Z aiin , entre outros. A evidência patrística
para o singular é difícil de avaliar, porque pode ser que o texto esteja sim-
plesmente passando por um a adaptação para Jesus a fim de endossar o nas-
cimento virginal. Pode-se imaginar um argum ento a fortiori: se é verdade
que os cristãos não são gerados por meio do sangue, por meio do desejo
carnal etc., quanto mais verdadeiro era isto concernente a Jesus. A evidên-
cia latina também tem armadilhas, pois o latim qui é, respectivamente, sin-
guiar e plural, e a diferença entre qui natus est e qui nati sunt é apenas no
verbo. Três argumentos parecem favorecer conclusivamente o plural. Pri-
meiro, ambos os antigos papiros Bodmer leem plural. Segundo, os textos no
processo de transmissão tendem a tornar-se mais, não menos, cristológicos.
É lógico pressupor que a tradição copista, num a escala tão grande, diluiría
um a valiosa referência ao nascimento virginal de Jesus, se o singular fos-
se a redação original? Terceiro, João e 1 João nunca descrevem Jesus como
tendo sido gerado por Deus (ljo 5,18 é duvidoso); porém falam assim dos
que seguem Jesus (3,8; ljo 3,9; 4,7; 5,1-4; 5,18a). Recentemente, J. Schmid
discutiu o problema exaustivamente, somente para optar pelo plural, como
faz Barrett, Bultmann, L ightfoot, W ikenhauser, entre outros.
O único argum ento contra o plural é a relação do v. 13 com 12b. B oismard ,
p. 37, indaga como pode a Palavra capacitar os hom ens a se tornarem
filhos de Deus, se já foram gerados por Deus. Mas isto equivale a im por
um a lógica exata dem ais à sequência. O v. 13 explica o que está implícito
por filhos de Deus; explica que os que aceitaram Jesus foram aqueles
que foram concedidos a Jesus pelo Pai (6,37.65); não eram os gerados de
baixo, e sim os gerados do alto (3,3).
1 · Hino introdutório 183

gerados. Embora este verbo possa significar "nascer" (como de um princí-


pio fem inino - ver nota sobre 3,3), a ideia de atividade implícita em "ge-
rados" é claram ente m ais apropriada. Em ljo 3,9, menciona-se a semente
de Deus.
não por meio do sangue. A palavra para "sangue" é plural. Isto é curioso
contra um pano de fundo da m entalidade hebraica, pois ali o plural de
"sangue" significa sangue derram ado. Bernard, I, p. 18, sugere um pano
de fundo da filosofia grega, onde se pensava que o embrião fosse feito
do sangue m aterno e da sem ente paterna. Nesta interpretação, as três
negativas no versículo excluem m ulher, desejo e homem. Tal interpreta-
ção elim ina qualquer uso do texto para provar o nascim ento virginal de
Jesus. O utros sugerem que devem os pensar no "sangue" do v. 13b e da
"carne" de 13c como um a unidade, o hebraico "carne e sangue" equiva-
lente a "hom em " (Mt 16,17; IC or 15,50). Esta explicação é excluída pelo
fato de que "sangue" é plural, e pela ordem "sangue, carne"; além do
m ais 13c não fala da "carne", e sim do "desejo da carne". Boismard, p. 44,
m enciona a possibilidade de que "sangue" possa ser um m odo dignifi-
cante de falar de semente. Tal eufem ism o parece im provável, visto que
nos escritos joaninos não há hesitação de falar sobre sem ente (ljo 3,9).
nem por meio do desejo carnal. Literalm ente, "o desejo da carne". A palavra
"desejo" é om itida em alguns mss. etíopes e em alguns dos Padres, pro-
vavelm ente com o fim de m anter o texto em mais conform idade com
a expressão idiom ática "carne e sangue" supram encionada. Thelêma,
"vontade, desejo", aparece com o significado de "concupiscência" em al-
guns dos papiros gregos deste período. Aqui, "carne" não é um princípio
m au oposto a Deus. Antes, é a esfera do natural, a impotência, o superfi-
ciai, oposto a "espírito", que a esfera do celestial e do real (3,6; 6,63; 8,15).
nem por meio do desejo do homem. O hom em era visto como o principal agen-
te na geração; alguns consideravam o papel da m ulher não mais que
um vaso para o embrião. Esta cláusula é om itida no Vaticanus, MS. 17, e
alguns dos Padres. Boismard , RB 57 (1950), 401-8, sugere que a redundân-
cia nestas cláusulas, e a evidência para a om issão de um ou outro, ao fato
de que tem os um a combinação de redações alternativas.
14. O v. 14 pertence à seção do Prólogo? D e A usejo pensa que 14a-b formam
por si m esm os um a estrofe ou estância de linha dupla; e põe 14c-e com
16 e 18 como outra estrofe. Schnackenburg elimina 14c-d como um a adi-
ção e retém som ente 14a-b, como um a poesia original. G reen considera
apenas 14e como um a adição. Para K äsemann , todo o versículo é um a
adição. Com base no form ato poético, pode-se notar que o padrão fan'
aparece nas prim eiras três linhas. A últim a linha não pode ser facilmente
184 I. Prólogo

separada da poesia, visto que ela se une tão estreitam ente com 16. Parece
preferível aceitar a totalidade do v. 14 como poesia, e este é o ponto de
vista da maioria dos críticos.
se fez carne. "Carne" significa aqui o hom em por inteiro. E interessante que
mesmo na elem entar term inologia cristológica do l 2 século não se diz
que a Palavra veio a ser um hom em , m as equivalentem ente que a Palavra
veio a ser homem.
fez sua habitação. Skênoun, relacionada a Skêriê, "tenda", literalm ente é
"fincar um a tenda". No NT, o term o se encontra som ente aqui e no Apo-
calipse; ver comentário para o pano de fundo veterotestam entário.
entre nós. Literalmente, "em nós"; com pare Ap 21,3: "Eis que a habitação
de Deus está com os homens; ele habitará com eles". Aqui, a prim eira
pessoa faz sua aparição no Prólogo; "nós" se refere à hum anidade.
nós. Este é um uso mais restringido da prim eira pessoa, pois o "nós" não
é a hum anidade, e sim as testem unhas apostólicas, como no Prólogo de
1 João. E esta m udança de significado refletida em "nos" e "nós" que
levam alguns a pensar no v. 14c-d como sendo um a adição.
visto. Para theasthai, ver Apêndice 1:3, p. 794ss. C om pare ljo 1,1: "... algo
que temos visto [hõran] com nossos próprios olhos; algo que realm ente
visualizamos ftheasthai], e sentim os com nossas próprias m ãos". D e A u-
sejo, pp. 406-7, pensa que esta é um a referência a ver o Cristo ressurreto,
m as tal salto desde a encarnação é abrupta demais.
glória. Para doxa, ver Apêndice 1:4, p. 794ss.
de um filho único. Literalmente, "como de um único Filho"; as versões (OS,
Copt, Eth.) e T aciano parecem ter lido o "com o" antes na linha: "como
a glória de um único Filho". K acur , art. cit., pensa que esta é a redação
original. Não obstante, as versões não seriam precisas sobre um ponto
como este; além do mais, pode ter sido teologicam ente desejável evitar
a redação "como de um único Filho", para que alguém não o interprete
para significar "como se fosse um Filho único". O significado de "com o"
é, naturalm ente, não "como se", m as "na qualidade de".
Filho único. Para um tratam ento completo deste term o monogenês, ver D.
M oody, JBL 72 (1953), 213-19. Literalmente, o grego significa "de um tipo
[£e«os] singular [monos]". Embora genos se relacione distintam ente com
gennan, "gerar", há pouca justificativa grega para a tradução de monogenês
como "único gerado". A Vetus Latina o traduziu corretam ente como
unicus, "único", e assim fez J erônimo onde não se aplicava a Jesus. Mas,
para responder à alegação ariana de que Jesus não foi gerado, m as fei-
to, J erônimo o traduziu como unigenitus, "único gerado", em passagens
como esta (também 1,18; 3,16.18). A influência da Vulgata sobre o KJ fez
1 · Hino introdutório 185

"único gerado", a redação inglesa padrão. (Realmente, como temos in-


sistido, João não usa o term o "gerado" para Jesus). Monogenês descreve
um a qualidade de Jesus, sua unicidade, não o que é cham ado na teologia
trinitária sua "processão". Isto reflete o hebraico yãhld, "único", precio-
so", que é usado em Gn 22,2.12.16, para Isaque, filho de Abraão, como
monogenês é usado para Isaque em Hb 11,17. Isaque era o filho singular-
m ente precioso de Abraão, porém não seu único gerado.
vindo do Pai. "Vindo" não está no grego, m as é suprido pelo contexto. Qual
palavra esta frase modifica: "Filho" (W . Bauer , Boísmard, Bultmann ,
W estcott) ou "glória" (B raun , D upont , L agrange)? No v. 44, Jesus ataca
os judeus por não buscarem aquela glória que vem do Deus único. Assim,
há um paralelo joanino para glória vinda do Pai, m as não exatam ente no
sentido implícito aqui. Ver tam bém 17,22, onde lemos, implicitamente,
que a Jesus foi dada glória pelo Pai. Há tam bém paralelos joaninos para a
aplicação da frase "de [para] o Pai" ao Filho (6,46; 7,29; 9,16; 16,27), e dois
outros usos do "único Filho" (3,15-17; ljo 4,9) m encionam o envio que o
Pai faz do Filho ao m undo. Não há diferença m uito im portante no signi-
ficado, não im porta que palavra a frase modifique. Se lerm os "um único
Filho vindo do Pai", a referência é à missão do Filho, não sua processão
dentro da Trindade; o "tem os visto" torna isto certo.
cheio de. O que este adjetivo modifica: a Palavra, a glória, ou o Filho? A
forma nom inativa m asculina singular deve fazer da concordância com
"a Palavra" do 14a a construção mais regular, e esta é a com preensão das
traduções latinas. (Esta é outra razão por que alguns estudiosos conside-
ram 14c-d como um a adição). Entretanto, como salienta BDF, § 1371, este
adjetivo é às vezes tratado como indeclinável; daí ele poder modificar
"glória" (assim Codex Bezae, Irineu , A tanásio , C risóstomo) ou "único
Filho". Isso não implicaria m aior diferença de significado.
amor constante. Literalmente, dois substantivos, charts e alêtheia ; para
Boísmard, a construção do adjetivo, "com pleto" seguido por dois deter-
minativos, é um a prova de que Lucas redigiu o Prólogo, pois há em Atos
cinco exemplos de tal construção. Charis, "graça", só aparece em João
aqui; ela se encontra 25 vezes em Lucas-Atos, e em Paulo é frequentemen-
te com um para o dom de Deus da redenção. Para alêtheia, "verdade", ver
Apêndice 1:2, p. 823s. Não obstante, estas duas palavras são usadas aqui
de um a m aneira única, refletindo o famoso par veterotestam entário hesed
e ’emet. A hesed de Deus é Sua bondade ou misericórdia em escolher Israel
sem qualquer mérito da parte de Israel e Sua expressão deste amor para com
Israel na aliança. Traduções sugeridas são: "am or pactuai", "am or com-
passivo", "benignidade", "longanim idade". Para os essênios de Qumran,
186 I. Prólogo

sua com unidade era um a aliança de hesed. A ’emet de Deus é Sua fi-
delidade às prom essas pactuais. Traduções sugeridas são: "fidelidade,
constância, lealdade". Em Ex 34,6, ouvim os esta descrição de Iahweh
como Aquele que faz um a aliança com Moisés no Sinai: "Oh! Senhor,
Deus compassivo e gracioso, tardo em irar-te e rico [rab] em hesed e
'emet". Ver tam bém SI 25,10; 41,7; 86,15; Pr 20,28. K uyper, art. cit., fornece
um a abordagem profunda.
A objeção real de ver charis e alêtheia no Prólogo como um a tradução
de hesed e 'emet é que hesed norm alm ente é traduzido na LXX por
eleos, "misericórdia", não por charis. Não obstante, o uso que João faz
da Escritura com frequência não fiel à LXX. J. A. M ongomery , "H ebrew
Hesed and Greek Charis", HTR 32 (1939), 97102‫־‬, tem m ostrado que
charis é um a excelente tradução tanto de hesed como de 'emet do AT
e charis e alêtheia de Jo 1,14 pelas m esm as palavras (taibütâ e qushtâ).
O dialeto cristão siro-palestino traduz charis por hasdâ (= hesed). Como
para alêtheia, num a passagem como Rm 15,8, representa claram ente a
fidelidade à aliança do AT. E interessante notar que a Palavra de Deus
que desce do céu no Ap 19,11-13 é cham ado "fiel e verdadeiro [pistis...
alêthinos ]", que provavelm ente é outra reflexão do tema hesed e 'emet.
15. João Batista faz esta afirmação de Jesus em 1,30. Hoje se concorda que
este versículo é um a adição ao hino original, um a adição do m esm o tipo
que os vs. 6-8(9), interrom pendo bruscam ente os vs. 14 e 16.
testificou. Literalmente, presente histórico, embora H aenchen , p. 353, o trate
como um presente real no sentido que João Batista está agora dando tes-
tem unho juntam ente com a comunidade. O uso de um presente para um
tempo aoristo em narrativa vivida é comum no NT. Alguns o consideram
como um sinal de influência aramaica, porém se encontra tam bém em es-
critores clássicos. Black, p. 94, diz que nada há de especialmente semítico
sobre seu uso, embora seja excessivo em Marcos e João. Provavelm ente
deva ser considerado como um exemplo de escrito menos polido. Notare-
mos os presentes históricos nas notas textuais da tradução.
proclamando. Literalm ente, tem po perfeito: "e tem proclam ado": aqui, o
perfeito tem sim plesm ente o valor de um tem po presente (BDF, § 341).
O presente do verbo krazein é raro, e o perfeito é usado em seu lugar (BDF,
§ 101). O testemunho de João Batista acerca de Jesus e a proclamação dele
são vistos ainda em vigor frente as reivindicações dos sectários.
eu disse. Mesmo em 1,30, a referência a um a afirmação prévia por João Ba-
tista é confusa; aqui é lógica e o sinal de edição, indubitável.
16. Uns poucos com entaristas (Bernard, K äsemann ) excluiríam este versículo
do hino original. Em contrapartida, o v. 16 está estreitam ente ligado ao 14,
1 · Hino introdutório 187

com 16a recobrando o tem a de plenitude (entretanto, não totalm ente na


form a "escalonada"), e 16c recobrando o tem a de amor. Talvez (ver abai-
xo) o kai introdutório esteja presente. Em contrapartida, a poesia de 16
não é da m esm a qualidade que o restante do hino. Se 16 foi um a adição,
então tem os que aceitar dois estágios de edição, pois não faria sentido
dizer que o m esm o redator, ao m esm o tempo, anexou ambos, 15 e 16 (16
expande 14; 15 é um a interrupção). Talvez seja preferível optar por sim-
plicidade e aceitar 16 como parte do hino.
E. O v. 16 começa com hoti ("porque, já que") nos m elhores testemunhos,
incluindo o papiro Bodmer. Entretanto, há respeitável evidência grega
para kai - tam bém nas versões e nos Padres, m as não seria necessário ser
precisas testem unhas num a instância como esta. O m elhor argum ento
para hoti é a possibilidade de que kai foi introduzido em imitação à ini-
ciai kai encontrada em todo o poema. Boismard, pp. 59-60, e Bultmann ,
p. 516, argum enta, em contrapartida, que hoti pode ser um a inserção re-
fletindo a exegese alexandrina do tem po de O rígenes quando se pensava
que João Batista ainda estava falando: "Ele existia antes de mim, porque
de sua plenitude todos nós temos [inclusive eu] partilhado". A sugestão
de que hoti representa um equívoco do relativo aram aico de (Burney,
B lack, p. 58) é exageradam ente especulativo. Se hoti for original, então
o v. 16 é um a prova de que a Palavra que se fez carne na verdade estava
cheia de um am or duradouro, pois daquela plenitude todos nós fomos
capazes de participar.
plenitude. Plêrõm a, ocorrendo som ente aqui nos escritos de João, é um
im portante term o teológica paulino; aparece no hino de Cl 1,19: "E
nele aprouve a Deus habitasse todo o plêrõma''. Sua conotação exata,
no Prólogo, dependerá, até certo ponto, do que m odifica "cheio de"
no v. 14.
nós. Isto se refere ao gênero hum ano como fez o "nos" em 14b; ver nota
sobre "nós" no v. 14c.
por. A preposição anti não ocorre outra vez nos escritos joaninos; talvez
este seja um argum ento contra considerar o v. 16 como redacional, pois
esperaríam os que o editor usasse um vocabulário tipicam ente joanino.
Diversos significados são possíveis aqui: (a) "Am or no lugar de amor".
Esta ideia de substituição, como m antida pelos Padres gregos (O rígenes,
C irilo de A lexandria , C risóstomo), implica a hesed de um a N ova Aliança
no lugar da hesed do Sinai. O v. 17 parece endossar isto. A objeção de
que João não teria considerado a doação da Lei no Sinai como hesed por
causa da oposição joanina a "os judeus" parece ignorar o fato de que
João nunca nega o papel de Israel. Em 4,22, ouvimos: "A salvação é dos
188 I. P ró lo g o

judeus [= Israel, dos lábios de um estrangeiro]", (b) "Graça sobre graça",


ou "graça após graça": acumulação. M uitos com entaristas m odernos (La-
grange, H oskyns, Bultmann, Barrett) endossam esta redação com base
em um texto em Filo (De Posteritate Caini 145) onde anti tem claram ente
este significado. Norm alm ente, contudo, acum ulação seria expresso p or
epi, enquanto anti implica oposição ou substituição. A tradução de anti
como acum ulação é fortem ente endossada por Spicq em Dieu et 1'homme
(Paris: Cerf, 196), pp. 30-31, citando o estudo especializado que W. H en-
driksen faz de anti no NT. (c) "graça por graça" ou "graça encontrando
graça": correspondência. A ideia por detrás desta tradução é que a graça
que constitui nossa participação corresponde à graça da Palavra. Bernard,
J. A. T. Robinson e Lacan endossam esta tradução que se confina a um
significado reconhecido de anti, "em troca de". Joüon com para anti com
o hebraico keneged em Gn 2,18.20, "um a auxiliadora ao lado dele"; ver
RSR 22 (1932), 206. A tradução de charts como refletindo hesed se har-
m oniza com a tradução (a) mais facilmente do que com as outras duas
traduções, porém não é im possível nem com (b) e (c).
17. Que este versículo não pertence ao hino original é m antido p or Bernard,
Bultmann, D e A usejo, Käsemann, Schnackenburg, entre outros. Entre
suas peculiaridades está a m enção de figuras históricas (p. ex., Moisés),
um aspecto não encontrado nos hinos paulinos; todavia, Hb 1,1 mencio-
na os profetas. Bultmann diz que o contraste neste versículo, entre lei e
graça (charts = "am or") pertence m ais à teologia paulina; no entanto, veja
abaixo. Não há kai conectivo. Talvez seja m elhor ver no v. 17 um a expli-
cação redacional de 16c.
fosse um dom. "Dar uma lei" não é uma expressão grega, mas tipicamente semita.
este amor constante. Uma vez mais, isto representa os dois substantivos cha-
ris e alêtheia. Os artigos antes dos substantivos indicam um a referência
ao "am or constante" já m encionado no v. 14, daí nossa tradução como
"este". Caso se aceite a tradução de 16c como "am or em lugar de amor",
então esse entende o dom da Lei através de Moisés como um exem plo
de hesed e ’emet, um a com preensão que realm ente reflete a perspectiva
do AT. A teoria de que o v. 17 contrasta a ausência de am or duradouro
na Lei com a presença do am or constante em Jesus Cristo, não parece
fazer justiça à honorífica referência de João a Moisés (1,45; 3,14; 5,46).
Ao contrário, o v. 17 contrasta o am or constante exibido na Lei com o
suprem o exemplo de am or constante exibido em Jesus. É verdade que no
evangelho Jesus fala negativam ente de "vossa lei"; contudo isto reflete
oposição, não tanto à Lei como dada a Moisés, quanto à Lei interpre-
tada e usada pelas autoridades judaicas contra Jesus e o Cristianismo.
1 · Hino introdutório 189

Em João não há sugestão de que, quando a Lei foi dada através de Moisés,
esse não foi um ato magnificente do am or de Deus. Um contraste similar,
em espírito, ao de jo 1,17 se encontra em Hb 1,1: "H avendo Deus antiga-
m ente falado m uitas vezes, e de m uitas maneiras, aos pais, pelos profetas,
a nós falou-nos nestes últim os dias pelo Filho". Boismard, pp. 62-64, argu-
m enta que o am or duradouro não é tanto um atributo divino, e sim uma
referência às qualidades inerentes no hom em e plantadas ali por Jesus
Cristo. A distinção é provavelm ente dem asiadam ente sutil.
18. A lguns estudiosos que consideram o v. 17 como redacional aceitam o
18 como parte do poem a original, p. ex., D k A usejo e Bernard . Pode ser
m ontado em quatro linhas em form a poética, assim:

N inguém jam ais viu a Deus;


é Deus o Filho único,
sem pre ao lado do Pai,
que o revelou.

B e r n a r d , contudo, o m onta em três linhas, combinando 18b-c em um a úni-


ca linha. Em am bos os casos não há kai; a coordenação é pobre; e há casus
pendens - indicações de que não estam os tratando de poética como hino.
Deus 0 Filho único. Esta frase é por si só om itida em casus pendens e então
resum ida na últim a cláusula do v. 18 p or ekeinos ("aquele único") como o
sujeito de "revelado", assim: "Deus o único Filho... aquele que O tem re-
velado". As testem unhas textuais não estão concordes sobre a redação; há
três possibilidades: (a) \ho\ monogenês theos, "Deus o único Filho". Isto
é endossado pela evidência dos m elhores m anuscritos gregos, incluin-
do o papiro Bodmer, pela Siríaca, por I rjneu, C lemente de Alexandria e
O rígenes. Esta redação é suspeita de ser alta e teologicamente desenvol-
vida; todavia, não é polêm ica anti-ariana, pois os arianos não se evadi-
ram em dar este título a Jesus. Há quem objete sobre a estranheza da afir-
m ação de que som ente Deus pode revelar a Deus e a implicação de que
som ente Deus tem visto a Deus. (b) monogenês huios, literalm ente "o
Filho, o único". Esta combinação aparece em três dos outros quatro usos
de monogenês nos escritos joaninos (3,16.18; ljo 4,9), e seu aparecimento
aqui pode ter resultado de um a tendência escribal de conformar. Esta re-
dação é atestada pelas versões (Latina, VScur), pelas últim as testem unhas
gregas e p o r A tanásio , C risóstomo e os Padres latinos, (c) monogenês, "o
único Filho". Enquanto esta é a redação simples, pode ter resultado de
conform idade com o v. 14. Poderia-se explicar a redação (b) como um a ex-
pansão disto. Ela tem a atestação mais pobre das três redações: T aciano ,
190 I. Prólogo

O rígenes (u m a v ez ), E pifânio , C irilo de A lexandria . Boismard a ac eita,


m a s a c o m p le ta fa lta d e e n d o s s o te x tu a l g re g o a faz su s p e ita .
sempre ao lado do Pai. Literalmente, "aquele que está em [a=ds] o seio do Pai".
Para eis, ver nota sobre "na presença de Deus", no v. 1; D e la P oiterie
enfatizaria a força dinâm ica da preposição como indicativo de um a re-
lação ativa e vital. Seio implica afeição. O uso do particípio presente
("aquele que é") implica que o Jesus terreno, a Palavra-que-se-fez-carne,
estava com o Pai ao mesm o tem po que estava na terra? T hüsing , p. 209,
e W indisch, ZNW 30 (1931), 221ss., argum enta contra tal interpreta-
ção; H aenchen , p. 3247s, salienta que eirtai não tem particípio pretérito
e m antém que o particípio presente, aqui, tem um a conotação pretérita,
"aquele que estava". Todavia, caso se queira endossar sim ultaneam ente
na terra e no céu, então pode evocar 3,13, onde Jesus fala de si m esm o
como "o Filho do Hom em que está no céu", e 8,16, "porque não sou eu
só, m as eu e o Pai que m e enviou". O utros pensam que a referência ao
Filho ao lado do Pai é um a referência à ascensão. Assim toda a carreira
da Palavra está esboçada no Prólogo: a Palavra com Deus; a Palavra veio
ao m undo e se fez carne; a Palavra regressou ao Pai. Este grande ciclo de
descida e subida é proem inente no evangelho, p. ex., 16,28. N enhum a
decisão conclusiva sobre estas várias interpretações parece possível.
O revelou. O "O" não é expresso, m as é exigido, se traduzirm os o verbo
como "revelar". O verbo exêgeisthai significa "levar a", m as não é ates-
tado neste significado no NT ou na antiga literatura cristã (BAG, p. 275);
ali significa "explicar, reportar", e especialm ente "revelar [segredos di-
vinos]". No artigo, ele se devotou a este versículo (tam bém o Prologue,
pp. 66-68), Boismard defende aqui o significado "levar", conectando o
verbo com a frase "no seio do Pai", assim: em bora ninguém jam ais visse
a Deus, o único Filho, que está com o Pai, tem levado os hom ens para o
seio do Pai. E assim, a Palavra que estava com Deus se tornou hom em e
levou hom ens de volta a Deus. Esta sugestão funciona contra a outra tese
de Boismard de que foi Lucas quem adaptou o hino ao evangelho de João
como um prólogo, pois é precisam ente nos escritos lucanos que o verbo
não significa "levar a".

COMENTÁRIO: GERAL

Se João tem sid o descrito com o a p éro la d e g ra n d e v a lo r e n tre os escri-


tos d o N T , en tão se p o d e d izer q u e o P rólogo é a p éro la d e n tro d este
evangelho. E m s u a com paração d a exegese q u e A gostinho e C risóstomo
1 · Hino introdutório 191

fa z e m d o P ró lo g o , M . A . A ucoin sa lie n ta q u e a m b o s m a n tin h a m q u e


e stá a lé m d o p o d e r d o h o m e m falar co m o João faz n o P rólogo. A es-
co lh a d a á g u ia co m o o sím b o lo d e João o e v a n g elista foi g ra n d e m e n te
d e te rm in a d o p e lo s a rro u b o s celestiais d a s lin h a s iniciais d o ev an g e-
lh o . O c a rá te r sacro d o P ró lo g o tem -se refletid o n u m p e re n e co stu m e
q u e a Ig reja O c id e n ta l tem d e lê-lo co m o u m a b ê n ç ão so b re os enfer-
m o s e so b re as c ria n ça s rec é m -b a tiz a d as. Seu a n tig o lu g a r c o m o a o ra-
ção fin al d a M issa R o m an a reflete s e u u so c o m o u m a b ênção. D everas,
ele a s s u m iu u m c a rá te r m ág ico q u a n d o e ra u s a d o em a m u le to s em
to rn o d o p esco ço p a ra p ro te g e r c o n tra a s e n fe rm id a d e s. N ã o o b stan te,
to d a s e s ta s a testaçõ es d e s u b lim id a d e n ã o re m o v e m o fato d e q u e os
d e z o ito v e rsíc u lo s d o P ró lo g o c o n tê m p a ra o ex eg eta u m n ú m e ro de
p ro b le m a s te x tu a is, críticos e in te rp re ta tiv o s d esco n c e rta n te s.

Problema da relação do prólogo com 0 evangelho

N a e stim a d e a lg u n s, o P ró lo g o te m p o u c o a v e r com a su b stâ n -


cia d o e v a n g e lh o , p o ré m re p re s e n ta u m a fo rm u la ç ã o d a m en sa g e m
cristã e m te rm o s h e le n ista s p a ra c a p ta r o in te re sse d o s leito res gregos.
P a ra o u tro s , o P ró lo g o é u m p refá c io ao e v a n g e lh o - u m a a b e rtu ra ,
u m e sb o ço o u su m á rio . T o d a v ia, co m o a a b e rtu ra d e u m ev an g elh o ,
o P ró lo g o te m certa sin g u la rid a d e . N a lite ra tu ra ju d a ic a e helen ista,
a a b e rtu ra n o rm a l d e u m liv ro q u e n a rra u m a h istó ria é u m su m á rio
la p id á rio d e c o n te ú d o (L ucas, A p o calip se) o u o tó p ico d o p rim e iro
c a p ítu lo (M arcos). U m a a b e rtu ra p o é tic a com o o P ró lo g o só p o d e ser
ig u a la d a e m e p ísto la s co m o 1 João e H e b re u s. E n q u a n to ao c o n teú -
d o , e m b o ra d o is o u tro s e v a n g e lh o s, M a te u s e L ucas, tê m u m p refá-
cio a n te s q u e co m ecem o re la to d o m in isté rio p ú b lic o d e Jesus, estes
p refácio s faz e m u m a a b o rd a g e m in te ira m e n te d ife re n te d a q u e la d o
P ró lo g o . Eles re tro c e d e m a h istó ria d e Jesu s à su a con cep ção , m as a
a b e rtu ra p o é tic a d e João re m o n ta ao te m p o a n te rio r à criação. O Pró-
logo n ã o se p re o c u p a com as o rig e n s te rre n a s d e Jesus, e sim com a
ex istên cia celestial d a P a la v ra n o p rin c íp io .
Se a d m itirm o s q u e o conceito p o r d e trá s d o P ró lo g o seja ú nico,
n o ta m o s relaçõ es e n tre ele e o c o rp o d o e v a n g elh o . O s vs. 11 e 12
p a re c e m s e r u m re su m o d a s d u a s p rin c ip a is d iv isõ e s d e João. O v. 11
co b re o L iv ro d o s S inais (caps. 1-12), o q u a l co n ta co m o Jesus veio
à su a p ró p ria te rra a tra v é s d o m in isté rio n a G alileia e Je ru sa lé m e,
192 I. Prólogo

n o e n ta n to , se u p ró p rio p o v o n ã o o recebeu. O v. 12 c o b re o L iv ro
d a G lória (caps. 13-20), o q u a l c o n té m as p a la v ra s d e Jesu s ao s q u e o
rec e b e ra m e in fo rm a co m o ele re to rn o u ao se u P ai a fim d e d a r-lh e s
o d o m d a v id a e fazê-lo s filh o s d e D eu s. J. A. T. R obinson , p . 122,
in siste so b re o n ú m e ro d e tem a s p a rtilh a d o p e lo P ró lo g o e o re s ta n te
d o ev an g elh o : p ree x istê n c ia (1,1=17,5); a lu z d o s h o m e n s e d o m u n d o
(1,4.9=8,12; 9,5); o p o sição e n tre lu z e tre v a s (1,5=3,19); v e n d o s u a gló-
ria (1,14=12,41); o ú n ico F ilho (1,14.18=3,16); n in g u é m , sa lv o o F ilho,
tem v isto a D e u s (1,18=6,46). E, n a tu ra lm e n te , as d u a s in te rru p ç õ e s
so b re João B atista se rela cio n a m com o q u e o e v a n g e lh o d irá so b re ele
(1,7 e re to m a d o e m 1,19; 1,15=1,30). A ssim , ao m e n o s e m su a fo rm a
a tu al, n ã o se p o d e d iz e r q u e o P ró lo g o seja to ta lm e n te e s tra n h o ao
ev an g elh o .
N ã o o b sta n te , h á a lg u m a s d ife ren ç a s e n tre o P ró lo g o e o e v a n g e -
lh o q u e têm d e se r ex p licad as. H á n o P ró lo g o lin h a s a lta m e n te p o é -
ticas, e x ib in d o u m p a ra le lism o clim ático o u " e sc a lo n a d o " , o n d e u m a
p a la v ra p ro e m in e n te e m u m v e rso (às v e z e s o p re d ic a d o o u a ú ltim a
p a la v ra) é e la b o ra d a n o v e rso s e g u in te (às v ezes co m o su jeito o u p ri-
m eira p a la v ra). E ste p a ra le lism o , e n q u a n to e n c o n tra d o ta n to n o A T
(SI 96,13) co m o em o u tro lu g a r em João (6,37; 8,32), n u n c a a tin g e a
perfeição ilu s tra d a n o s vs. 1-5 d o P rólogo. E m João, os d isc u rso s d e
Jesus têm u m a s o le n id a d e e lin g u a g e m q u e v ã o a lém d a p ro s a o rd in á -
ria, m as n a d a h á p o r ex ten so n o e v a n g e lh o q u e se ig u a le à e s tru tu ra
p o ética d o P ró lo g o . (Isso se d á p o rq u e , e m b o ra o v. 15 seja o m e sm o
q u e o v. 30, e la b o ra m o s o v. 15 co m o p ro v a , p o is ele n ã o se ig u a la com
o estilo p o ético d o P rólogo; to d a v ia , e s tru tu ra m o s o v. 30 n o fo rm a d o
sem i-p o ético d o s p ro n u n c ia m e n to s solenes).
A lém d e u m a d ife ren ç a d e fo rm a to , h á ta m b é m co n ceito s e ter-
m o s teo ló g ico s n o P ró lo g o q u e n ã o tê m eco n o e v a n g e lh o . A fig u ra
cen tral d o P ró lo g o é a P a lav ra , u m te rm o q u e n ã o o c o rre co m o u m
títu lo cristo ló g ico n o e v a n g elh o . O s im p o rta n te s te rm o s ch a ris, " a m o r
p a c tu a i" , e p lêro m a , " p le n itu d e " , d o s vs. 15 e 16 n ã o o c o rre m n o e v a n -
gelho; e a leth eia , " fid e lid a d e c o n sta n te " , tem u m sig n ific a d o d ife re n -
te (" v e rd a d e " ) n o ev an g elh o . O q u a d ro d e Jesus co m o o T a b e rn á c u lo
("h a b ita r e m te n d a " ), n o v. 14, n ã o o co rre n o e v a n g e lh o , o n d e Je su s é
o tem p lo (2,21).
A co n fu sa c o m b in ação d e sim ila rid a d e s e d iss im ila rid a d e s e n tre
o P ró lo g o e o e v a n g elh o tem sid o in te rp re ta d a d e d ife re n te s fo rm as.
1 · Hino introdutório 193

R u c k s t u h i . está c o n v e n c id o p e la s sim ila rid a d e s d e q u e a m esm a m ão


c o m p ô s a a m b o s, o P ró lo g o e o e v a n g elh o , e n q u a n to J. A. T. Ro-
BiNSON crê q u e o m esm o a u to r escrev eu o P ró lo g o d e p o is d e h a v e r
escrito o e v a n g e lh o . S c h n a c k e n b u r g , c o n v e n cid o p e la s dissim ilari-
d a d e s d e q u e o P ró lo g o n ão foi o rig in a lm e n te o b ra d o ev an g elista,
rejeita co m o a d iç õ e s s e c u n d á ria s a lg u n s v e rso s d o P ró lo g o q u e le-
v a m as c a ra c te rístic a s jo an in as. H oje m u ito s a u to re s são im p e lid o s a
p r o p o r u m p o e m a o rig in a lm e n te in d e p e n d e n te q u e foi a d a p ta d o ao
e v a n g e lh o . Isto p o d e ría ex p licar os a sp ec to s jo an in o s n a s p a ssa g e n s
n ã o p o é tic as, m a s n ã o explica os asp ec to s jo an in o s n o p o e m a origi-
n al. Se to m a rm o s a lg u m a d a s m u ita s rec o n stru ç õ e s críticas d o p o e m a
o rig in a l (v er ab aixo), in clu siv e a d e S c h n a c k e n b u r g , o n d e tem h a v id o
u m a te n ta tiv a sistem ática d e ex clu ir os a sp ec to s jo an in o s, m esm o as-
sim n o s d e p a ra re m o s com u m p o e m a q u e é m ais p ró x im o aos escritos
jo an in o s d o q u e q u a lq u e r o u tro n o N T. Isto é facilm en te v isto com -
p a ra n d o -o co m o P ró lo g o 1 João e A p 19,13, o n d e Jesu s é c h a m a d o a
P a la v ra d e D eu s. P o rta n to , e n q u a n to é p e rfe ita m e n te ra z o á v e l reco-
n h e c er q u e a e v id ê n c ia a p o n ta p a ra a co m p o sição d o P ró lo g o com o
in d e p e n d e n te d a d o e v a n g elh o , p a re c e ta m b é m ra z o á v e l p ro p o r que
o P ró lo g o foi c o m p o sto em círculos jo an in o s. A s sim ila rid a d e s e n tre a
poesia d o P ró lo g o e o e v a n g e lh o são a ssim ex p licad as.
O e s tu d o q u e D e A usejo faz d o s h in o s d o N T su g e re q u e a solu-
ção e stá e m v e r q u e o p o e m a o rig in a l q u e su b jaz ao P ró lo g o era u m
h in o d a igreja jo an in a. O s h in o s a C risto são m e n c io n a d o s n o N T em
Ef 5,19 e, talv e z, ta m b é m e m C l 3,16. P línio, e sc re v e n d o a T ra ja n o
m ais o u m e n o s e m 111 d.C . (Epist. 10, 96:7), d e scre v e os cristão s de
B itínia, n a Á sia M en o r, com o a c a n ta r " u m h in o a C risto com o a u m
D eu s". E usébio (Hist. 5, 28:5; GCS 95500) cita u m te ste m u n h o q u e fala
d e s a lm o s e h in o s q u e d e sd e o p rin c íp io e ra m e n to a d o s a C risto com o
a P a lav ra , d iv in iz a n d o -o . É in te re ssa n te q u e estas referên cias a h inos
te n h a m a lg u m a co n ex ão com a Á sia M en o r; a ssim a co n jectu ra de
q u e o o rig in a l d o P ró lo g o era u m h in o d a igreja jo an in a em Efeso tem
u m a re iv in d ic a ç ã o à p ro b a b ilid a d e . P a ra c o m p ro v a r esta h ip ó tese,
p rim e iro c o m p a re m o s o P ró lo g o com a lg u m d o s h in o s n e o te stam e n -
tário s co n h ecid o s.
Se a n a lis a rm o s F1 2,6-11, d e sco b rim o s u m a se q u ên c ia n ã o dife-
ren te d a d o P ró lo g o . F ilip en ses com eça o h in o com C risto Jesus exis-
tin d o n a fo rm a d e D eus, co m o o P ró lo g o com eça n o s in fo rm a n d o que
194 I. Prólogo

a P a lav ra e ra D eus. F ilip en ses d iz q u e Jesu s se e s v a z io u e a s su m iu


a fo rm a d e u m serv o , v in d o a ex istir [ou n ascer] n a se m e lh a n ç a d e
h o m em ; o P ró lo g o d iz q u e a P a la v ra se fez carne. F ilip en ses d iz q u e
D eu s e x a lto u a Jesu s a tal p o n to q u e to d a lín g u a p ro c la m e q u e Je su s é
o S en h o r, p a ra a g ló ria d o Pai; o P ró lo g o te rm in a com o te m a d e D eu s,
o ú n ico Filho, e s ta n d o s e m p re ao la d o d o P ai, e o v. 14 fala d a g ló ria d e
u m F ilho ú n ic o v in d o d a p a rte d o Pai. E m a m b o s os casos, a e x altação
o u g ló ria é testificad a p e lo s h o m en s.
U m a an á lise d e C l 1,15-20 ta m b é m m o stra s im ila rid a d e s co m o
P ró lo g o (v er J. M . R obinson, JBL 76 [1957], 278-79). E m C o lo ssen ses,
o u v im o s q u e o F ilho é a im a g e m d o D eu s in v isív el; n o P ró lo g o , ele
é a P a la v ra d e D eus. E m C o lo ssen ses, to d a s as coisas sã o c ria d a s em ,
a tra v é s d e e p a ra o F ilho; n o P ró lo g o , to d a s as coisas são c ria d a s a tra -
v és d e, em e n ã o à p a rte d a P a lav ra . E m C o lo ssen ses, o F ilho é o p rin -
cípio; n o P ró lo g o , " N o p rin c íp io e ra a P a la v ra ". E m C o lo ssen ses, to d a
a p le n itu d e h a b ita n o F ilho e to d a s as coisas são rec o n h e c id a s a tra v é s
dele; n o P ró lo g o , to d o s n ó s tem o s p a rtic ip a ç ã o n a p le n itu d e d a P ala-
v ra -q u e -se -fe z -c a rn e .
M esm o u m b rev e h in o co m o o d e lT m 3,16 m o stra p a ra le lo s ao
Prólogo. A li o u v im o s: "Ele se m an ife sto u n a carne... ele foi e le v a d o em
glória". O s v ersícu lo s iniciais d e H e b re u s fo rm a m u m b re v e p ró lo g o
n a fo rm a d e h in o q u e lem b ra o P ró lo g o joanino. H b 1,2-5, se m u s a r a
ex p ressão "a P a lav ra ", d iz q u e D eu s "n o s falou p o r m eio d o Filho... em
q u e m tam b é m criou 0 mundo. Ele reflete a glória d e D eus... s u s te n ta n d o
o u n iv erso p o r su a p a la v ra [rem a] d e p o d e r. Q u a n d o fez a p u rific a ç ão
d o s p e c ad o s, ele se a sse n to u à m ão d ire ita d a M ajestad e n a s a ltu ra s" .
P o r fim , H b 4,12 fala d e "a p a la v ra d e D e u s", m a s é d ú b ia a ex eg ese
q u e v ê isto co m o u m a referên cia p e sso a l a Jesus.
U m a p o io p a ra v e r v e stíg io s d e u m h in o o rig in a l n o P ró lo g o se
e n c o n tra n a coleção d o 2Ösécu lo d e h in o s cristã o s se m i-g n ó stic o s co-
n h e c id o s c o m o a s Odes de Salomão. Veja B raun , JeanThéol, 1, p p . 224-51,
p a ra u m a relação d e sta s Odes co m o evangelho da Verdade e o s R olos
d o M ar M o rto . E stes h in o s têm c e rta relação e m estilo e v o c a b u lá rio
co m o P ró lo g o , e sp ec ia lm e n te n o s n ú m e ro s VII, XII, XVI, XIX e XLI.
A Odes 41,13-14 d iz q u e o Filho d o A ltíssim o ap a re c eu n a perfeição d e
seu Pai: "U m a lu z sa iu d a P a la v ra q u e n ele d e s d e o p rin c íp io ... ele foi
d e s ig n a d o a n te s d a criação d o m u n d o " . Odes 18,6 d iz q u e a lu z n ã o
foi v e n c id a p e la s trev as. A ssim , te m o s te m a s jo a n in o s p re s e rv a d o s e m
1 · Hino introdutório 195

estilo d e h ino. N o e n ta n to , p o d e m o s m en c io n ar q u e a existência d e tais


h in o s cristão s g n ósticos rea lm e n te n a d a faz p a ra p ro v a r a afirm ação de
B ultmann d e q u e o h in o d o P rólogo o rig in a lm en te e ra p a rte d a Fonte
d o D iscu rso R ev elatório e o rig in a lm en te u m h in o gnóstico escrito em
lo u v o r a João B atista. A s p o u c a s p a ssa g e n s citad as n a s Odes possível-
m e n te são d e p e n d e n te s d e João. N a p rim itiv a lite ra tu ra gnóstica são
escassos, caso haja, os b o n s p a ra lelo s por extenso p a ra a e s tru u tra qu e
B ultmann e n c o n tra n o P rólogo. M ais especificam ente, n ão h á a m ais
lev e e v id ên cia d e q u e os a d e p to s d o B atista se m p re se re p o rta ra m a
João B atista co m o a P alav ra. O s fortes asp ecto s anti-gnósticos n o P rólo-
g o (vs. 3,14) ta m b é m m ilita m c o n tra esta h ip ó te se .

A formação do prólogo

Se a c e ita rm o s a e v id ê n c ia d e q u e a b a se d o P ró lo g o c o n sistiu de
u m h in o c o m p o s to n a igreja jo an in a , q u a is v e rsíc u lo s p e rte n c e ra m a
este h in o e co m o fo ra m a n e x a d o s ao ev a n g elh o ? N ã o h á co n co rd ân -
cia so b re a m b a s as q u e stõ e s. N a ú ltim a q u e stã o , h á q u e m p e n se q u e
h o u v e d o is e stá g io s d e re d a ç ã o d o h in o p a ra a d a p tá -lo ao ev an g e-
lho; h á q u e m p e n se q u e h o u v e u m , e este foi feito p e lo re d a to r final.
G âechter s u g e re q u e a a d a p ta ç ã o foi feita p e lo tra d u to r q u e trab a-
lh o u co m João e e x p re sso u se u p e n s a m e n to e m grego. B oismard p e n sa
q u e L u cas r e d ig iu e ste h in o p o rq u e e n c o n tra e x p re ssõ e s lu c a n a s nos
vs. 14 e 17; as s im ila rid a d e s com os h in o s p a u lin o s ta m b é m explica-
ria m a in te rv e n ç ã o d e Lucas.
N a p rim e ira q u e stã o co n cern en te ao q u e p e rte n ce ao h in o origi-
nal, h á in clu siv e m ais d eb ate. D am o s abaixo u m q u a d ro com a opi-
n ião d o s críticos. T o d o s os citad o s c o n sid e ram os vs. 6-8 e 15 com o
ad içõ es se cu n d á ria s; e m u ito s an e x aria m os vs. 9,12-13,17-18. A ún ica
c o n co rd ân cia g eral é so b re os vs. 1-5,10-11 e 14 com o p a rte s d o p o em a
original. O p rin c ip a l critério é a q u a lid a d e po ética d o s v erso s (exten-
são, n ú m e ro d e acentos, c o o rd en ação etc.). E n tretan to , com o H aenchen
tem sa lie n ta d o c o n tra os a d e p to s e x tre m a d o s d e ste critério (G âechter,
B ultmann , K äsemann , Schnackenburg ), o tip o d e re g u la rid a d e q u e exi-
gern n ã o se e n c o n tra n a m aio ria d o s h in o s p a u lin o s. A lém d o m ais, se o
critério p o ético for p o sto com o b a se d e u m o rig in al aramaico h ipotético,
n o s situ a m o s e m u m a p o s tu ra e x a g era d am e n te subjetiva. O u tro crité-
rio em d e te rm in a r os v erso s d o o rig in al é o d a s idéias, p o r exem plo,
196 I. Prólogo

a exclusão d o p o e m a d a s frases apo lo g éticas escritas c o n tra os segui-


d o res d o Batista. N ã o o b stan te, q u a n d o u m e stu d io so m ais a rb itrá rio
form a u m co n ju n to d e p ressu p o siçõ es so b re o teo r o rig in a l d o p o e m a
(teoria gnóstica), e e n tã o p ro c e d e m a elim in ar as frases q u e n ã o se h a r-
m o n iz a m com su a h ip ó tese, este critério se to rn a m u ito subjetivo.

£
aceita

t—‫ג‬
Bernard 1‫־‬5, 18.

Ο1
//
Bultmann 1-5, 9-12b, 14, 16.
D e A usejo ‫״‬ 1‫־‬5, 9-11, 14, 16, 18.
//
G aechter 1‫־‬5, 10-12, 14, 16, 17.
//
G reen 1, 3-5, 10-11, 14a-d, 18.
//
H aenchen 1‫־‬5, 9-11, 14, 16, 17.
//
K äsemann 1, 3-5, 10-12. (incerteza sobre 2)
SCHNACKENCURG ‫״‬ 1, 3-4, 9-11, 14abe, 16.

U m a v ez te n h a m sid o d e te rm in a d o os v e rso s o rig in a is, h á o p ro -


b lem a em re p a rti-lo s em e sta n ç as o u estro fes. P a res e x te n so s co n sti-
tu e m u m critério a q u i, e m b o ra D e A usejo o ig n o re c o m p le ta m e n te .
N o e n ta n to , n ã o se d e v e ex ig ir p ro p o rç ã o m a te m á tic a e strita , v isto
q u e n ão se e n c o n tra n o s h in o s p a u lin o s. O d e s e n v o lv im e n to d e p e n -
sarn en to p o d e ta m b é m se r u m im p o rta n te critério , m a s h á m u ita d is-
c o rd â n c ia so b re o d e se n v o lv im e n to n o P ró lo g o .
N a s n o ta s v a m o s e x p o r as ra z õ e s p ró o u c o n tra as v á ria s teo rias
so b re lin h a s in d iv id u a is. C o m g ra n d e h e sita çã o , su g e rim o s o s e g u in te
esboço d a fo rm a çã o d o P ró lo g o , e n fa tiz a n d o su a n a tu re z a e x p e rim e n -
tal. O h in o original:

Primeira Estrofe: vs. 1-2 A Palavra com Deus.


Segunda Estrofe: 3-5 A Palavra e a Criação.
Terceira Estrofe: 10-12b A Palavra no Mundo
Quarta Estrofe: 14,16 A Participação da Comunidade na Palavra.

A este h in o têm -se a n e x a d o d o is p a re s d e adições:

1. A m p lificação e x p licativ as d a s lin h a s d o hino:


vs. 12c-13, a n e x a d o s n o fin al d a terceira estro fe p a ra e x p lic ar co m o
os h o m e n s se to rn a m filhos d e D eus;
vs. 17-18, a n e x a d o s n o final d a q u a rta e stro fe p a ra ex p lic ar "o
a m o r p o r a m o r".
1 · Hino introdutório 197

2. O m a te ria l p e rtin e n te a João B atista - talv e z o rig in a lm e n te os v er-


sícu lo s in iciais d o e v a n g e lh o , d e slo c a d o s q u a n d o o re d a to r final
in tr o d u z iu o h in o co m o P rólogo:
v s. 6-9, a n e x a d o s n o final d a s e g u n d a estrofe, a n te s d e d isc u tir a
E n carn ação ;
v s. 15, a n e x a d o n o m eio d a terc eira estrofe.

N ã o v e m o s co m o p o d e m o s e sta r certo s se estes d o is p a re s d e ad i-


ções fo ra m o b ra d e u m só h o m e m e se fo ram in tro d u z id a s ao m esm o
tem p o .
H á d iv e rs a s q u e stõ e s q u e fo rm u la m o s sem a te n ta r p a ra a o rd em .
B urney, B lack e B ultmann a rg u m e n ta m fo rte m e n te e m p ro l d e u m
o rig in a l a ra m a ic o p a ra o h in o ; a e v id ê n c ia n ã o é co n clu siv a. L und e
B oismard v e e m u m p a d rã o d e q u iástic o n a fo rm a final d o P ró lo g o (ver
In tro d u ç ã o , P a rte IX:D, p. 136). O a rra n jo d e L und, art. cit., é b a sta n te
co m p licad o . O d e Boismard é m ais sim p les, e é e n d o ssa d o p o r algu-
m as o b se rv a ç õ e s v á lid a s (o v. 18 fin al ex trai o tem a d o v. 1 inicial; e
o v. 15 fo rm a p a re lh a com os vs. 6-8). N ã o o b sta n te , os p a ra le lo s q u e
Bosmard e n c o n tra e n tre vs. 3 e 7 e e n tre vs. 4-5 e 16 são a lta m e n te
im a g in a tiv o s. P e rm a n e c e m o s n a d ú v id a so b re a a p lic a b ilid a d e d e u m
p a d rã o q u iástic o ao P rólogo.
A q u e s tã o d e se o P ró lo g o c o m e ç a fa la n d o d a c a rre ira e n c a rn a -
d a d a P a la v ra co m o Je su s C risto se rá d is c u tid a m a is a d ia n te . N ã o
o b s ta n te , d e v e m o s m e n c io n a r a h is tó ria n o v e le sc a d e D e A usejo d e
q u e to d o o h in o se re fe re à P a la v ra -q u e -se -fe z -c a rn e . C o rre ta m e n te ,
ele in s is te q u e o s h in o s p a u lin o s te n d e m a re p o r ta r - s e a Je su s C ris-
to e x a u s tiv a m e n te . F ilip e n se s, p o r e x e m p lo , e stá fa la n d o d e Jesu s
C risto m e s m o q u a n d o fala d e s e u se r n a fo rm a d e D e u s a n te s d e
e s v a z ia r-s e e a s s u m ir a fo rm a d e se rv o . E sta fo rm a d e lin g u a g e m
é e s tr a n h a à te o lo g ia c ristã d e p o is d e N iceia; p o is a n te s d a E ncar-
n a ç ão se fala d a S e g u n d a P e sso a d a T rin d a d e e in siste -se q u e Jesus
C risto v e io à e x istê n c ia n o m o m e n to d a E n c a rn a ç ã o . M as o N T n ã o
fez u m a d is tin ç ã o tão p re c is a e m s u a te rm in o lo g ia , e D e A usejo b e m
q u e p o d e e s ta r c erto . A o m e n o s se p o d e d iz e r q u e m e s m o e m seu
v e rs íc u lo in ic ia l o P ró lo g o n ã o c o n c eb e u m a P a la v ra q u e n ã o se rá
p r o n u n c ia d a ao s h o m e n s.
198 I. P ró lo g o

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Primeira Estrofe: A P a la v r a c o m D e u s (vs. 1-2)

Se é incomum abrir um evangelho com um hino, o louvor da Palavra não


é abertura inadequada ao relato escrito do querigma apostólico. No v. 24
e em 15,3, Jesus caracteriza sua mensagem como uma "palavra"; o Pró-
logo mostra que o próprio mensageiro era a Palavra. Podemos ter uma
indicação de tal contraste no próprio evangelho, em 10,33-36, onde pare-
ce haver um contraste entre a p a la v r a de Deus, que é dirigida aos homens
e os faz deuses, e o Filho de Deus, que é enviado ao mundo e é chamado
Deus (= "A Palavra era Deus"). Visto que as primeiras palavras do Prólo-
go abriram também ao Gênesis, elas são peculiarmente adequadas para
abrir o relato do que Deus disse e fez na nova dispensação.
A descrição da Palavra com Deus no céu antes da criação é no-
tavelmente breve; não há a mais leve indicação de interesse em es-
peculações metafísicas sobre as relações no seio de Deus ou no que
a teologia posterior chamaria processões trinitárias. O Prólogo é uma
descrição da história da salvação na forma de hino, em grande parte
como o SI 78 é uma descrição poética da história de Israel. Portanto, a
ênfase está primariamente na relação de Deus com os homens, antes
de estar na relação com Ele mesmo. O próprio título "Palavra" implica
uma revelação - não tanto uma ideia divina, mas uma comunicação
divina. As palavras "no princípio", embora se reportem à pré-criação,
implicam que uma criação está em andamento, um começo. Se este
poema se destinava a concentrar-se em Deus mesmo, não haveria prin-
cípio. O Prólogo diz que a Palavra era; não especula c o m o a Palavra era,
não visa às origens da Palavra, mas o importante é o que a Palavra faz.
O Prólogo não segue na direção de seu paralelo em Qumran citado na
nota sobre os vs. 3b-4. Ali, em boa forma helenista, enfatiza-se o conhe-
cimento de Deus como um fator criativo; aqui, enfatiza-se a Palavra de
Deus, ao estilo do AT. Discutiremos o pano de fundo do conceito de "a
Palavra" no Apêndice II, p. 823s; aqui, porém, podemos enfatizar que
toda a concepção do hino, como história salvífica, o leva para longe
do mundo do pensamento helenista mais especulativo. Como salienta
D odd , a r t . c i t ., p. 15, nenhum pensador helenista veria um clímax na
Encarnação, precisamente como nenhum gnóstico proclamaria triun-
fantemente que a Palavra veio a ser carne.
1 · Hino introdutório 199

C o m o m e n c io n a d o n a n o ta so b re lc , "A P a lav ra era D eu s" do


P ró lo g o o ferece d ific u ld a d e p o rq u e n ã o h á a rtig o a n te s d e theos. Isto
im p lic a q u e " D e u s" significa m en o s q u a n d o p re d ic a d o d a P a lav ra do
q u e q u a n d o u s a d o co m o u m n o m e p a ra o P ai? U m a v e z m ais, o leitor
d e v e d e sp o ja r-se d e u m e n te n d im e n to p ó s-n ic e n o d o v o c a b u lá rio en-
v o lv id o . H á q u e se faz e r d u a s co n sid eraçõ es:
O N T n ã o ap lica com fre q u ê n c ia a Jesu s o te rm o "D eu s".
V. T aylor , ET 73 (1961-62), 116-18, se p e rg u n ta se o N T se m p re ch am a
Jesu s d e D e u s, v isto q u e q u a se c a d a tex to p ro p o sto tem su a s dificul-
d a d e s. V eja n o sso a rtig o q u e tra ta d e to d o s os tex to s p e rtin e n te s no
TS 26 (1965), 545-73. A m aio ria d a s p assag en s s u g e rid a s (Jo 1,1.18; 20,28;
R m 9,5; H b 1,8; 2 P d 1,1) está e m h in o s o u d o x o lo g ias - u m a in d icação
d e q u e o títu lo " D e u s" e ra a p lic a d o a Jesu s m ais fre q u e n te m e n te na
fó rm u la litú rg ic a d o q u e em n a rra tiv a o u lite ra tu ra ep isto lar. Lem -
b re m o -n o s o u tra v e z d a d escrição q u e P línio faz d o s cristão s e n to a n -
d o hinos a C risto co m o D eus. A re lu tâ n c ia d e a p lic ar e sta d e sig n a ç ão
a Jesu s é c o m p re en sív e l com o p a rte d a h e ra n ç a n eo te stam e n tá ria do
ju d aísm o . P a ra os ju d e u s , " D e u s" s u b e n te n d ia o P ai celestial; e até
q u e u m a c o m p re e n sã o m ais a m p la d o term o fosse a lc a n ç ad a , ele n ão
p o d ia se r a p lic a d o a Jesu s sem g ra n d e esforço. Isto é refletid o em
M c 10,18, o n d e Jesu s se rec u sa se r c h a m a d o b o m u m a v e z q u e so m en -
te D e u s é b o m ; e m Jo 20,17, o n d e Jesus c h a m a o P ai " m e u D eu s"; e
em Ef 4,5-6, o n d e Jesu s é m e n c io n a d o co m o " u m S e n h o r", m as o P ai é
"o ú n ic o D e u s" . (A fo rm a co m o o N T a b o rd a v a a q u e stã o d a d iv in d a -
d e d e Je su s n ã o e ra a tra v é s d o títu lo " D e u s", e sim d e sc re v e n d o su as
a tiv id a d e s n o s m esm o s te rm o s q u e d e scre v ia as a tiv id a d e s d o Pai;
veja Jo 5,17.21; 10,28-29). N o v. lc , o h in o jo a n in o está lim ita n d o o uso
d e " D e u s" p a ra o F ilho; m as, ao o m itir o a rtig o , ele e v ita q u a lq u e r su-
g estão d e id en tifica ç ã o p e sso a l d a P a la v ra com o Pai. E, p a ra os leito-
res g en tílico s, se e v ita v a ta m b é m q u a lq u e r su g e stã o d e q u e a P alav ra
fosse u m s e g u n d o D e u s em q u a lq u e r se n tid o h elen ista.
E n tre ta n to , h á u m a c o n sid e raç ã o u lte rio r. T em os m e n c io n a d o a
su g e stã o feita p e lo e stu d io so católico D e A usejo d e q u e a P a lav ra , p o r
to d o o P ró lo g o , significa a P alav ra -q u e -se-fe z -ca rn e e q u e to d o o h ino
se re p o rta a Jesu s C risto. Se isto é assim , e n tã o talv ez haja ju stificativ a
em v e r n o u s o d o theos sem a rtig o algo m ais h u m ild e d o q u e o u so d e
ho theos p a ra o Pai. E Jesus C risto q u e m d iz e m Jo 14-28: "O P ai é m aio r
d o q u e e u ", e q u e em 17,3 fala d o Pai com o "o único v e rd a d e iro D eus".
200 I. Prólogo

O rec o n h e c im e n to d e u m a h u m ild e p o siç ã o p a ra Jesus C risto e m rela-


ção ao P ai n ão é e s tra n h o d o s h in o s cristão s, p o is F12,6-7 fala d e Jesu s
co m o se e sv a z ia n d o e n ã o se a p e g a n d o à fo rm a d e D eus.
P o rq u e o v. 2 re p e te o v. 1, a lg u n s e stu d io so s o a trib u e m à re d a -
ção se c u n d á ria d o h in o . T o d a v ia, se c o n sid e ra rm o s os vs. 1-2 co m o
u m a estro fe, e n tã o o v. 2 p o d e se r u m a inclusão: a e stro fe co m eça e
te rm in a n o tem a d e "o p rin c íp io " . L und ale g a ser isso u m e x e m p lo d e
q u iasm o , u m a v e z q u e as id é ia s d o v . 2 c o n stitu e m u m a o rd e m in v e r-
sa d e la ,b . B ultmann , p. 17, p ro v a v e lm e n te esteja certo q u a n d o in siste
q u e a rep e tiç ã o e stá lo n g e d e ocioso. O g ra n d e p e rig o p a r a q u a lq u e r
c o m u n id a d e h e le n ista e m ler q u e a P a la v ra e ra D e u s seja p o lite ísta , e
o v. 2 in siste o u tra v e z so b re a relação e n tre o P ai e a P a lav ra .

S e g u n d a E strofe: A Palavra e a criação (vs. 3-5)

C o m o a p a re c im e n to d e " v ie r a m a e x is tir" (egeneto ), n o v. 3,


e s ta m o s n a e s fe ra d a c ria ç ã o . T u d o o q u e é c ria d o se r e la c io n a in -
tim a m e n te c o m a P a la v ra , p o is fo i c ria d o n ã o só a tr a v é s d e la , m a s
ta m b é m p a ra ela. D e s c o b rim o s a m e s m a id e ia n o h in o d e C l 1,16:
" P o rq u e n e le to d a s a s c o isa s fo ra m c ria d a s ... to d a s a s c o isa s fo ra m
c ria d a s p o r ele e n e le " . A m e s m a u n i d a d e q u e e x iste e n tr e a P a la -
v ra e s u a c ria ç ã o e m Jo 15,5 se a p lic a rá a Je su s e a o c ristã o : " S e m
m im n a d a p o d e is fa z e r" .
O fato d e q u e a Palavra cria sig n ifica q u e a c riação é u m a to d a
rev elação . T o d a a criação p o rta o selo d a P a la v ra d e D e u s, d o n d e a
in sistê n c ia e m Sb 13,1 e R m 1,19-20, d e q u e a p a rtir d e S u a s c ria tu ra s
D e u s é rec o n h e c ív e l p e lo s h o m e n s. A lé m d o m ais, o p a p e l d a P a la-
v ra n a criação sig n ifica q u e Je su s te m u m a re iv in d ic a ç ã o so b re tu d o ;
co m o o v. 10 in sistirá p u n g e n te m e n te , o m u n d o re je ito u e sta re iv in -
dicação . A e x p re ssã o " to d o s " (panta ), n o v. 3, é u m a fó rm u la q u a se
litú rg ic a q u e c a p ta a p le n itu d e d a criação d e D eu s. N o te se u u s o e m
R m 11,36: " P o rq u e d e le e a tra v é s d e le e p a ra ele sã o todas as coisas.
A ele a g ló ria p a ra se m p re . A m é m " . V eja ta m b é m IC o r 8,6 e o a p a re -
cim e n to d e panta n o h in o d e Cl 1,16.
B oismard, p p . 102-5, p e rg u n ta q u e tip o d e c a u sa lid a d e a P a la v ra
exerce n a criação: eficiente o u e x e m p lar? N o A p ê n d ic e II, p . 823ss,
sa lie n ta re m o s q u e a p a la v ra c ria d o ra d e D e u s n o A T p a re c e se r a cau-
sa eficien te d a criação. T o d a v ia , a S a b e d o ria p e rs o n ific a d a e a T o rá
1 · Hino introdutório 201

(que são tam b é m p a rte d o p a n o d e fu n d o d o u so d a P a lav ra no Prólo-


go) p a re c e m ex ercer n a criação a c a u sa lid a d e d e u m m o d elo ou exem -
p iar. P o rta n to , p o d e h a v e r e le m en to s d e a m b o s os tip o s d e c a u sa lid a d e
na criação a tra v é s d e e na P alav ra. Boismard declara: "P o r isso é pro-
v ável q u e p a ra João tam b é m a P a lav ra d e D eus exerça u m a p a rte na
criação, p o rq u e ela é o p ro n u n c ia m e n to d e u m a ideia, e n ão p o rq u e
seja d o ta d a , co m o tal, com eficácia". E n tretan to , n a d a há n o P rólogo a
e n fa tiz a r q u e a P a lav ra é o p ro n u n c ia m e n to d e u m a id eia d iv in a, e tal
e sp ecu lação p e rte n c e m ais ao m u n d o g reg o e à teologia p o sterio r.
N o te m o s fin a lm e n te q u e ao d iz e r q u e é a tra v é s d a P a lav ra q u e to-
d a s as co isas v ie ra m à ex istên cia, o P rólogo está lo n g e d o p e n sa m e n to
g n ó stico , n o q u a l u m d e m iu rg o , e n ão D eus, foi o re sp o n sá v e l pela
criação m a te ria l, a q u a l é m á. V isto q u e a P a lav ra se relacio n a com o
Pai e a P a la v ra cria, p o d e -se d iz e r q u e o Pai cria a tra v é s d a P alavra.
A ssim , o m u n d o m ate ria l foi c ria d o p o r D e u s e é bom .
A in te rp re ta ç ã o d o v. 4 d e p e n d e d e co m o se reso lv e o difícil pro-
b lem a d e s u a tra d u ç ã o (ver nota). N a tra d u ç ã o aceita, ele m arca u m a
p ro g re s s ã o so b re o v. 3 d e d u a s m an e ira s. P rim eiro , o fato d a criação
(de q u e to d a s as coisas v iera m à existência) já n ã o está e m p a u ta ; tem -
se m u d a d o a ên fa se p a ra 0 que v eio à existência. S e g u n d o , o foco está
so b re u m a sp e c to esp ecial d o q u e veio à existência, a sab er, o q u e veio
a ex istir n a P a la v ra - a criação e sp ecial d o m u n d o . É v e rd a d e q u e p a ra
a lg u n s e s tu d io s o s o P ró lo g o n e ste p o n to p a s so u d a criação p a ra a En-
ca rn a ç ão (S pitta, Z ahn , B. W eiss, V awter ). S alien tam q u e o d o m d a v id a
q u e é m e n c io n a d o n o v. 4 está asso c ia d o n o e v a n g e lh o com a v in d a d e
Jesu s (3,16; 5,40; 10,10). T o d a v ia, u m salto d a criação, n o v. 3, p a ra a
v in d a d e Jesu s, n o v. 4, p a re c e ex c essiv am e n te a b ru p to , e sp ec ialm en te
q u a n d o o " a q u ilo q u e v eio a ex istir", no v. 4, é u m elo p a ra "v ie rem a
ex istir", n o v. 3. Se os vs. 4-5 se re p o rta m à v in d a d e Jesus, e n tã o a reíe-
rên cia m ais clara à su a v in d a em 9 e 10 p a re c e tau to ló g ica. T am bém o
re d a to r d o P ró lo g o in se riu u m a referên cia a João Batista depois d o v. 5,
e d ific ilm e n te se p o d e im a g in a r q u e o r e d a to r in tro d u z iría João B atista
d e p o is d e d e s c re v e r o m in isté rio d e Jesus e se u efeito. E v id en tem en te,
o re d a to r p e n s o u q u e as referên cias à v in d a d e Jesus co m eçaram no
v. 10; ele p õ e a v in d a d e João B atista no m o m e n to d a q u e la v in d a. N a-
tu ra lm e n te , o re d a to r p o d e ría ter-se e q u iv o c a d o com o teo r d o s vs.
4,5, m as ele esta v a m u ito m ais p e rto d o h in o o rig in al d o q u e estam os.
Esta o bjeção ta m b é m m ilita c o n tra a teo ria d e K äsemann , q u e vê u m a
202 I. Prólogo

referên cia à v in d a d e Jesus, n ã o no v. 4, e sim n o v. 5, o q u a l ele ju n ta


ao 10, e c o n tra a teo ria d e B ultmann , q u e com eça a o b ra d o re v e la d o r
na H istó ria com o v. 5, o q u a l ju n ta ao 9.
S u g erim o s q u e o sig n ificad o d o s vs. 4-5 está m u ito m ais p ró x im o
ao d o v. 3. A lu z d a s p a la v ra s iniciais d o h in o tem h a v id o u m p a ra le lo
d e lib e ra d o aos p rim e iro s c a p ítu lo s d e G ênesis. Isto lev o u ao v. 3 com
seu u so d e egeneto (ver nota); e ag o ra ele leva aos 4-5 com a m en ç ã o
d a lu z e trev as, p o is a lu z foi a p rim e ira na criação d e D eu s (G n 1,3).
"V id a" é tam b é m o tem a d o relato d a criação em G n 1,11 ("c ria tu ra s
v iv as" em 1,20.24 etc.). N a tu ra lm e n te , em seu p rim e iro c a p ítu lo , G ê-
nesis está fala n d o d e v id a n a tu ra l, e n q u a n to o P rólogo está fa la n d o d e
v id a etern a. T o d av ia, a v id a e te rn a é tam b é m m e n c io n a d a n o s p rim e i-
ros cap ítu lo s d e G ênesis, p o is 2,9 e 3,22 falam d a á rv o re d a v id a cujo
fruto, q u a n to co m id o , faria o h o m em v iv er p a ra se m p re . O h o m e m
foi ex clu íd o d e sta v id a em v irtu d e d e seu p ecad o ; m as, co m o v em o s
n o A p 22,2, a v id a e te rn a d o Ja rd im d o É d en , p re fig u ra v a a v id a q u e
Jesus d a ria ao s h o m en s. Em Jo 6, Jesus falará d o p ã o d a v id a q u e u m
h o m em p o d e co m er e v iv er p a ra se m p re - u m p ão , p o rta n to , q u e tem
as m esm as q u a lid a d e s q u e o fru to d a á rv o re d a v id a no P araíso. Jo 8,44
m en cio n a a p e rd a d a o p o rtu n id a d e d e v iv er e te m a m e n te so frid a p elo
h o m em no P araíso, q u a n d o d escrev e o d iab o co m o h o m ic id a d e s d e o
p rin cíp io e o p ai d a m e n tira (a se rp e n te m en te a Eva). E assim su g e ri-
m os q u e n o v. 4 o P rólogo está a in d a fala n d o n o co n tex to d a n a rra tiv a
d a criação d e G ênesis. A q u ilo q u e veio e sp ec ialm en te à existência na
P alav ra criad o ra d e D eus era o d o m d a v id a etern a. Esta v id a e ra a luz
d o s h o m en s p o rq u e a á rv o re d a v id a e stav a e stre ita m e n te a sso ciad a
com a á rv o re d o c o n h ecim en to d o b em e d o m al. Se o h o m e m sobrevi-
vesse ao teste, en tã o teria p o ssu íd o a v id a e a ilu m in a ç ã o etern as.
O v. 5 p o d e tam b é m se r in te rp re ta d o c o n tra este p a n o d e fu n d o .
H o u v e u m a ten ta tiv a d a s tre v a s d e v e n c er a lu z - a sa b er, a q u e d a
d o h o m em . N o te q u e o ao risto , " v e n c e ra m " , a ssim receb e seu signi-
ficado n o rm a l co m o u m a referên cia à ação p re té rita sin g u la r. M as a
lu z b rilh a em , p o is e m b o ra o h o m e m p ecasse, foi-lhe d a d o u m raio
d e esp eran ça. G n 3,15 d iz q u e D eu s p ô s in im iz a d e e n tre a s e rp e n te
e a m u lh e r, e q u e a se rp e n te n ã o e sta v a d e s tin a d a a v e n c er su a p ro -
le. Em p a rtic u la r, a se m e n te d a m u lh e r, q u e p a ra o N T era Jesus, se-
ria v ito rio sa so b re S atanás. (E n fatizam o s q u e aq u i e sta m o s tra ta n d o
com a c o m p re e n sã o cristã, talv e z ju d aic a ta rd ia , d e G n 3,15, n ã o d a
1 · Hino introdutório 203

c o m p re e n s ã o d o a u to r o rig in al d a p assa g e m ). Q u e os círculos joani-


n o s p u s e ra m em relev o G n 3,15, v e m o s n o A p 22, o n d e a v itó ria de
Jesu s so b re o d ia b o é re tra ta d o em term o s d a v itó ria d o filho d a m u -
lh er so b re a s e rp e n te.

P arên tese: O testemunho que João Batista dá da luz (vs. 6-9)

Se a s e g u n d a estro fe tra to u d a criação p e la P a la v ra e seu d o m da


v id a e lu z in icial, e a te n ta tiv a d a s tre v a s d e v en cer a lu z, a terceira
estro fe tra ta rá d a p ró p ria v in d a d a P a lav ra ao m u n d o p a ra d e rro ta r
as tre v a s. E n tre as d u a s estro fes, u m re d a to r in se riu q u a tro v ersícu lo s
q u e tra ta m d e João B atista e seu p a p e l d e p r e p a r a r os h o m e n s p a ra a
v in d a d a P a la v ra e d a luz.
B o ism a r d , e n tre o u tro s, tem feito u m a in te re ssa n te su g e stã o so-
b re a o rig e m d o s vs. 6-7: q u e e ra m a a b e rtu ra o rig in a l d o e v a n g elh o
q u e fo ra m d e slo c a d o s q u a n d o o P ró lo g o foi a n ex ad o . A s p rim e ira s
p a la v ra s d o v. 6, " H o u v e u m h o m e m e n v ia d o p o r D eus cujo n o m e
era Jo ão ", se ria m u m a a b e rtu ra n o rm a l p a ra u m a n a rra tiv a histórica.
Jz 13,2 a b re as n a rra tiv a s so b re S an são com "E h o u v e u m h o m e m d e
Z o rá d o s d a n ita s " (ta m b ém 19,1; IS m 1,1). A lém d o m ais, se ao m en o s
a s u b stâ n c ia d e 6-7 v iesse a n te s d e 1,19, teria h a v ia bo a sequência:
o v. 7 d iz q u e João B atista veio co m o te s te m u n h a p a ra testificar, e
19ss. a p re s e n ta seu te ste m u n h o e as c irc u n stâ n c ia s sob as q u a is ele
foi d a d o . Em tais c irc u n stâ n c ia s, a e stra n h a e x p re ssã o "testificar da
lu z" faz m a is se n tid o . O rig in a lm e n te , a lu z p o d e ser v ista, e n ã o há
n e c e ssid a d e d e a lg u é m q u e testifiq u e dela; m a s em 19ss., a q u e stã o
é d e testificar d ia n te d o s q u e são h o stis e q u e a in d a n ã o v ira m Jesus.
O v. 8 tem u m m o tiv o p e c u liar. Já m en c io n am o s, n a In tro d u ç ã o
(P arte V:A) q u e u m a d a s m eta s d o Q u a rto E v an g elh o era a d e refu tar
as e x a g e ra d a s reiv in d ic a çõ e s feitas p e lo s se g u id o re s d e João B atista.
N o v. 8, o P ró lo g o s u b o rd in a Jo ão B atista a Jesus. A caso a refu tação é
ain d a m ais específica? A caso os se g u id o re s p e n s a v a m q u e João Batis-
ta fosse a lu z? T em -se s u g e rid o q u e o Benedictus, h in o d e Z acarias em
Lc 1,68-79, fosse u m h in o a João B atista, su b se q u e n te m e n te a d a p ta d o
ao u s o cristão . O s vs. 78-79 c o n ectam o m in isté rio d e João B atista com
a q u e le m o m e n to em q u e d o alto ra io u o d ia d e d a r lu z ao s q u e se
a s se n ta m e m trev as. A ssim , é possível q u e os sectário s reiv in d ic a sse m
p a ra Jo ão B atista o títu lo d e luz.
204 I. Prólogo

A p a re n te m e n te , ο v. 9 é a tran sição q u e o re d a to r fez p a ra a d a p -


tar os vs. 6-8 a o se u p re s e n te lu g a r n o P ró lo g o . A ê n fa s e so b re a lu z
real e x tra iu o te m a d o 8; a ê n fa se so b re a v in d a ao m u n d o p r e p a r a
p a ra o 10. J. A. T. R obinson , p. 127, p e n s a q u e o s q u a tr o v e rsíc u lo s
(6-9), b e m co m o o 15, fo ra m p a rte d a a b e rtu ra o rig in a l d o e v a n g e lh o ;
c o n tu d o , n a v e rd a d e s o m e n te 6-7 leem b e m a n te s d o 19. A im a g e m
d a lu z v in d a ao m u n d o p a ra ilu m in a r os h o m e n s é to m a d a d o A T,
p a rtic u la rm e n te d e Isaías. N a d e sc riç ã o d o m e ssiâ n ic o p rín c ip e d a
p a z , Is 9,2 a n u n c ia : "O p o v o q u e c a m in h a v a em tre v a s v iu g r a n d e
lu z; a lu z b r ilh o u so b re a q u e le s q u e h a b ita v a m n a te rra d a s tre v a s " .
N a s e g u n d a p a rte d e Isaías (42,6), Ia h w e h p ro c la m a d e S eu serv o :
"E u te d o u c o m o u m a a lia n ça ao p o v o , u m a lu z à s naçõ es... p a ra tira r
d a p ris ã o os q u e se a s se n ta m em tre v a s" . N a te rc e ira p a rte d e Isaías
(60,1-2), o u v im o s a tro m b e ta c o n v o c a r Je ru sa lé m : " L e v a n ta -te , res-
p la n d e c e , p o rq u e já v e m a tu a lu z , e a g ló ria d o S e n h o r v a i n a s c e n d o
so b re ti. P o rq u e eis q u e as tre v a s c o b rira m a te rra , e a e s c u rid ã o os
p o v o s; m a s s o b re ti o S e n h o r v irá s u rg in d o , e a s u a g ló ria se v e rá so-
b re ti". O P ró lo g o asso cia o te s te m u n h o d e Jo ão B atista, a v o z isa ia n a
n o d e s e rto , co m a p ro c la m a ç ã o p ro fé tic a d a v in d a d a lu z. O Q u a r to
E v a n g e lh o n ã o foi o ú n ic o em a d a p ta r a Je su s as p ro fe c ia s v e te ro -
te s ta m e n tá ria s p e rtin e n te s à lu z; M t 4,16 ap lica Is 9,2 ao m in is té rio
d e Jesu s.
P o d e m o s m e n c io n a r d e p a s sa g e m q u e H. S ahlin , art. cit., tem
te n ta d o m o s tra r q u e o s vs. 6-9 p e rte n c e ra m à fo rm a o rig in a l d o P ró -
logo e fo ra m a p lic a d o s à P a la v ra . P o r e x e m p lo , ele lê: "E le [a P a la-
v ra] se to rn o u h o m e m , e n v ia d o p o r D eus. Ele v e io p a ra te stific a r
d a lu z"... S ahlin su g e re q u e sob a in flu ê n cia d o s p a ra le lo s sin ó tic o s
co m o M c 1,4, os v e rsíc u lo s fo ra m e q u iv o c a d a m e n te a p lic a d o s a João
B atista. Isto é e n g e n h o so , m a s c o m p le ta m e n te a lé m d a p o s s ib ilid a d e
d e p ro v a .

T erceira E strofe: A Palavra no mundo (vs. 10-12b)

A terc eira e stro fe d o h in o o rig in a l p a re c e tra ta r d a P a la v ra en-


c a rn a d a n o m in isté rio d e Jesus. E n tre ta n to , m u ito s e s tu d io s o s n ão
p a rtilh a m d e s te p o n to d e v ista . W hstcott, B ernard e B oismard su g e -
re m q u e a refe rê n c ia à p re se n ç a d a P a la v ra n o m u n d o , n o s vs. 10,12,
d e v a se r in te r p re ta d a em te rm o s d a a tiv id a d e d a p a la v ra d iv in a
1 · Hino introdutório 205

n o p e río d o v e te ro te s ta m e n tá rio ; e Schnackenburg, p. 88, p e n s a na


p re s e n ç a d a S a b e d o ria n o m u n d o e em Israel. T em -se su g e rid o o
p e río d o e n tre A d ã o e M oisés p a ra o v. 10; a a lia n ça sin a ític a e a sub-
s e q u e n te in fid e lid a d e d e Isra e l p a ra o 11; e o re m a n e sc e n te fiel de
Isra e l p a ra 0 12.
N a tu ra lm e n te , e ste p o n to d e v ista im p lic a q u e o r e d a to r d o Pró-
lo g o e n te n d e u m a l o h in o , in s e rin d o a refe rê n c ia a João B atista a n te s
d o v. 10. A lé m d o m a is, v a i c o n tra o fato d e q u e a m a io ria d a s frases
e n c o n tr a d a s e m 10-12 a p a re c e n o e v a n g e lh o c o m o u m a d e scriçã o d o
m in is té rio d e Jesu s. Se a P a la v ra está n o m u n d o (10a), Jesu s d iz q u e
e n tr o u n o m u n d o (3,19; 12,46), q u e e stá no m u n d o (9,5); e a m iú d e
e s ta s a firm a ç õ e s e s tã o e m ju sta p o siç ã o ao tem a d e se r ele a lu z, ju sta-
m e n te c o m o 1,10 se g u e 1,5 co m seu tem a d e lu z. A p re se n ç a d a P a lav ra
n o m u n d o é re je ita d a , p o is o m u n d o n ã o rec o n h e c e a P a la v ra (10c).
D e m o d o s e m e lh a n te , a p re se n ç a d e Je su s n o m u n d o e n c o n tra rejei-
ção (3,19), p o is os h o m e n s n ã o re c o n h e c e m q u e m é Je su s (14,7; 16,3;
l j o 3,1). A rejeição p a rtic u la rm e n te p u n g e n te d a P a la v ra p o r seu
p ró p rio p o v o (11b) e ta m b é m seu p a ra le lo n o m in isté rio d e Jesus
q u a n d o é re je ita d o n a G alileia (4,44) e p e lo p o v o ju d a ic o e m g eral
(12,37). A fra se " n ã o a c e ita ra m " (paralambanein em 11; lambanein em
12) é u s a d a p a ra Je su s em 3,11 e 5,43 (lambanein ). D e v e ras, co m o já
s a lie n ta m o s , o s vs. 11 e 12 re a lm e n te sã o s u m á rio s b re v e s d a s d u a s
p a rte s d o e v a n g e lh o : o L ivro d o s S in ais e o L iv ro d a G ló ria. A lin h a
in icial d o L iv ro d a G ló ria (13,2) a n u n c ia : " T e n d o a m a d o os seus q u e
e s ta v a m n e s te m u n d o , a m o u -o s a té o fim ". E m o u tra s p a la v ra s , em
lu g a r d o p o v o ju d e u q u e h a v ia sid o d e le (1,11), a g o ra fo rm o u
em to rn o d e si u m n o v o " s e u " , o s c re n te s c ristã o s (1,12).
O a rg u m e n to co n clu siv o d e q u e os vs. 10-12 se re p o rta m ao m i-
n istério d e Jesus, e m m in h a o p in ião , se e n c o n tra no 12. Schnackenburg
n ão tem d ific u ld a d e com o v. 12, p o sto q u e rejeita a q u e le v ersícu lo
d o h in o o rig in a l; m as q u a lq u e r c o m e n ta rista q u e aceite o v. 12 com o
p a rte d o h in o co n ta com a a firm a ç ão d e q u e a c a rre ira d a P alav ra no
m u n d o c a p a c ito u h o m e n s a se to rn a re m filhos d e D eus. P arece incrí-
vel q u e e m u m h in o v in d o d e círcu lo s jo an in o s se e x p liq u e a possibi-
lid a d e d e se to rn a r filho d e D eu s d e o u tra m a n e ira e n ã o em term o s
d e ser g e ra d o d e cim a p e lo E sp írito d e Jesu s (3,3.5; v e r c o m e n tário
sob 17 e m T h e A n c h o r Bible; l j o 3,9 Ino p rêlo j). Se a rev elação d o AT
c a p a c ito u h o m e n s a se to rn a re m filhos d e D eu s, to d a a co n v ersação
206 I. Prólogo

com N ic o d e m o s se to rn a in in telig ív el. D odd, Interpretation, p . 282,


a rg u m e n ta q u e a n te s d a v in d a d e Jesu s h a v ia filh o s d e D e u s e cita
11,52 acerca d o s filhos d isp e rso s d e D eus. João, p o ré m te m e m m e n te
q u e estas p e sso a s d isp e rsa s já são filh as d e D e u s se m te r o u v id o d e
Jesu s e ser g e ra d a s d o alto? O u João n ã o q u e ria d iz e r se n ã o q u e e sta s
são p e sso a s q u e fo ra m c h a m a d a s p o r D eu s a fim d e se fa z e re m s u a s
filhas e ac eita re m Jesus co m o se u p a sto r?
A ssim , c o n c o rd a m o s com B üchsel, B auer, H arnack, K äsemann,
e n tre o u tro s, d e q u e a terceira e stro fe d o h in o se re p o rta ao m in is-
tério te rre n o d e Jesus. N o ta m o s q u e o h in o d e F1 2,6-11 p a s sa d e Je-
su s n a fo rm a d e D eu s d ire ta m e n te p a ra Jesus n a fo rm a d e se rv o , d o
céu p a ra o m in isté rio d e Jesus, se m q u a lq u e r d e scriçã o d a o b ra d e
D eu s n o p e río d o v e te ro te sta m e n tá rio . N o h in o e m Cl 1,5-20, o p e n -
sarn en to p a s sa d o F ilho co m o a im a g e m d e D eu s e o p rim o g ê n ito
d e to d a a criação p a ra a m o rte d e Jesus.
P o d e m -se fazer u m a s p o u c a s o b se rv a ç õ e s so b re os v e rsíc u lo s in-
d iv id u a is. C o m o sa lie n ta re m o s n o A p ê n d ic e II, p. 823ss, a rejeição d a
P a lav ra p e lo s h o m e n s, n o v. 10, é m u ito sim ila r à rejeição d a S ab ed o -
ria p e lo s h o m e n s e m 1 Enoque 42,2: "A S a b e d o ria v e io p a ra fa z e r su a
h a b ita çã o e n tre os filhos d o s h o m e n s e n ã o e n c o n tro u lu g a r d e m o ra -
d a ". Esta é a reflex ão d a teologia jo a n in a d e q u e Jesu s é a S a b e d o ria
p erso n ific ad a . O v. 11 n ã o é sin ô n im o com o 10 (com a d e v id a v ê n ia a
B ultmann), p o ré m q u e circ u n scre v e a a tiv id a d e d a P a la v ra p a ra com
Israel. Ele re p re s e n ta o se n tim e n to e x p re sso e m M t 15,24 d e q u e Je-
su s foi e n v ia d o so m e n te às o v e lh a s p e rd id a s d a casa d e Israel. E m
Jo 12,20-23, q u a n d o os g e n tio s v ã o a Jesus, este é o sin a l d e q u e o
m in isté rio está co n c lu íd o e a h o ra já c h eg o u . P a ra a lg u n s, o c o n tra ste
e n tre a n ão aceitação n o v. 11 e a aceitação n o v. 12 p a re c e in cisiv o
d em ais; n ã o o b sta n te , e x a ta m e n te o m esm o c o n tra ste se e n c o n tra e m
3,32-33: "T estifica d e q u e tem v isto e o u v id o , m as n in g u é m aceita se r
seu teste m u n h o . T o d o s q u a n to s ac eita m s e u te s te m u n h o te m testifica-
d o d e q u e D e u s é fiel". E sses c o n tra ste s in cisiv o s são e n c o n tra d o s em
a n tig o s h in o s cristão s, p o r ex em p lo , lT m 3,16: "A q u e le q u e se m an i-
festo u n a carn e, ju stificad o n o E sp írito ".
Versículos 12c-I3. A raz ã o p a ra a a v aliação d e ste s v e rsíc u lo s
co m o u m c o m e n tário re d a c io n a l so b re o v. 12 foi d e s e n v o lv id a n a s
n o tas, o n d e a c h am o s n ecessário ex p licar os v e rsíc u lo s p a ra ju stifica r
n o ssa tra d u ç ã o . O re d a to r fez su a ad iç ã o e n tre as estrofes.
1 · H in o in trod u tório 207

Quarta Estrofe: A p a r t ic i p a ç ã o d a c o m u n i d a d e n a P a la v r a - q u e - s e - f e z - c a r n e
(vs. 14 e 16).

A última estrofe do hino introduz a comunidade e dá expressão


poética ao que a intervenção da Palavra significa na vida da comuni-
dade. Em particular, o v. 14a,b resume e dá expressão mais vital ao
que foi dito nos vs. 1014 ;11‫־‬c-e e 16 amplificam a ideia de se tornar
filhos de Deus do v. 12, mostrando como partilhamos da plenitude
do único Filho de Deus. Esta é a última estrofe do hino e forma uma
inclusão com a primeira estrofe. Os vs. 14 e 1 são os dois únicos versí-
culos no hino que menciona especificamente "a Palavra".
V. 1. A Palavra era (ên) equivalente ao v. 14. A Palavra se tom ou
1. A Palavra na presença (egeneto)
de Deus equivalente a 14. A Palavra entre nós
1. A Palavra era Deus equivalente a 14. A Palavra se fez cante
Assim, na eterna existência da Palavra, na estrofe inicial, se con-
trasta a Palavra se tomando temporal na última estrofe, a qual capta
a atividade dos versículos precedentes do hino e os contrasta delibe-
radamente com o tema da terceira estrofe, e pode-se ver que não há
contradição em sugerir que a terceira estrofe trata do ministério de
Jesus e ainda o 14a é uma clara referência à Encarnação. O v. 14a,b
oferece um resumo da atividade da Palavra para a admiração e louvor
da comunidade, já que se espera a participação da comunidade em
um hino. Quando o hino foi adaptado para servir de Prólogo para o
evangelho, o resumo deste versículo podería também indicar o curso
da atividade de Jesus a seguir.
O v. 14a descreve a Encarnação em linguagem fortemente realís-
tica, enfatizando que a Palavra se fez c a r n e . A palavra "came" pare-
ce ter sido associada com a Encarnação dos primeiros dias da expres-
são teológica cristã. Rm 1,3 descreve o Filho de Deus que descendeu
de Davi segundo a carne; e Rm 8,3 capta ainda melhor o elemento
de escândalo nisto quando fala de "enviar Deus Seu próprio Filho
na semelhança de carne pecaminosa". O hino em lTm 3,16 contrasta
a manifestação na carne com a vindicação no Espírito. A menção de
carne em Jo 1,14 representa um elemento quenótico comparável ao
que achamos no hino de F1 2,7: "Ele se esvaziou, assumindo a forma
de servo, tomando-se na semelhança de homem"? D e A usejo, em seu
artigo sobre "cam e" em João (EstBib 17 [1958], 411-27) enfatiza isto.
208 I. Prólogo

Visto q u e, em su a o p in ião , to d o o h in o tem sid o em lo u v o r d o Jesus en-


carn ad o , a afirm ação n o v. 14a d e q u e a P alav ra se fez c a rn e teria u m a
ênfase especial d e fraq u eza e m o rta lid ad e . T o d av ia, K äsemann, p. 93,
insiste q u e o escân d alo consiste n a p resen ça d e D eus e n tre os h o m e n s
e n ão em to m a r-se carn e - n ão o com o, m as o fato. P ara K äsemann, 14a
n ão d iz m ais q u e o 10a, "Ele estava n o m u n d o " . O p a ra lelism o e n tre
14a e 14b p arece a p o ia r a in te rp re ta ç ã o d e K äsemann.
H á u m a in ten ção po lêm ica no v. 14a? C e rta m en te , su a teologia n ão
teria siso co m p atív el com os liam es d o p e n sa m e n to gn ó stico o u docéti-
co. N e n h u m o u tro v e rso n o h in o d á ex p ressão m ais incisiva à d iferen ça
en tre o conceito d a P alav ra no P ró lo g o e o d o s estoicos e d o Corpus
Hermeticum. O s g reg o s q u e a d m ira v a m o logos co m o rec ap itu lação d a
o rd em d o m u n d o e a sp ira v am e sta r u n id o com D eu s e m Seu u n iv erso .
A su g estão d e q u e o e n co n tro final com o logos d e D eu s fosse q u a n d o o
logos se fizesse carn e teria sid o in im ag in áv el. O P ró lo g o n ã o d iz q u e a Pa-
lavra e n tro u n a carn e o u h a b ito u n a carne, m as q u e a P alav ra se fez carne.
P o rtan to , em v ez d e o ferecer a lib eração d o m u n d o m a te ria l p e lo q u a l
a m en te g reg a a s p ira v a , a P a lav ra d e D e u s e sta v a e n tã o in ex tric a v el-
m en te se v in cu lo u à h istó ria h u m a n a . T o d a v ia, e m b o ra 14a n ã o fosse
aceitáv el a a lg u n s d a s escolas d o p e n s a m e n to filosófico o u teo ló g ico
n o m u n d o h e le n ista , n ã o p o d e m o s e sta r certo s d e q u e ele foi escrito
c o n tra tais p o n to s d e v istas. A s e p ísto la s jo an in a s são m ais c la ra m e n te
p olêm icas, co m o em l jo 4,2-3: "T o d o e sp írito q u e reconhece q u e Jesus
C risto veio em carne p e rte n c e a D eus, e n q u a n to to d o e sp írito q u e n ã o
confessa Jesu s n ão p e rte n c e a D e u s" (ta m b ém 2Jo 7). É possível q u e
haja n o e v a n g e lh o u m e le m e n to d e p o lêm ic a so b re este p o n to , em
p a ssa g e n s co m o 6,51-59 e 19,34-35. P o d e m o s n o ta r fin a lm e n te q u e a
ên fase d o h in o so b re a carn e, n o v. 14a, é u m ta n to d ife re n te d a a titu d e
n o c o m e n tário re d a c io n a l so b re o h in o e m 13, o n d e se e n fa tiz a q u e os
filhos d e D e u s n ã o fo ram g e ra d o s p e lo d esejo d a carn e.
F ix em o -n o s a g o ra à a titu d e p a ra com a rev elação im p líc ita em
"A P alav ra se fez c a rn e". O títu lo , "a P a la v ra ", foi a p ro p ria d o n o
v. 1, p o rq u e o ser d iv in o d e scrito ali se d e stin a v a a falar a o s h o m en s.
Q u a n d o o títu lo é u s a d o p e la se g u n d a v e z n o v. 14, este se r d iv in o assu -
m iu a fo rm a h u m a n a e, d e ste m o d o , a ch o u a fo rm a m ais eficaz e m q u e
ex p ressar-se ao s h o m en s. A ssim , ao to rn a r-se carn e, a P a la v ra n ã o cessa
d e ser a P alavra, m as exerce su a fu n ção com o a P alav ra co m p letam en te.
A o c o m e n ta r so b re este v ersícu lo , B ultmann, p. 42, fo rm u la u m a d a s
1 · Hino introdutório 209

teses q u e p e rc o rre m se u c o m e n tá rio n o c u rso d o se u su g e stiv o p en -


sa rn e n to , a sa b er, q u e o c o n ta to com a P a la v ra -q u e -se ‫־‬fez-carne é u m
c o n ta to co m a a u to re v e la ç ã o , p o is Jesus n ã o tra z e n sin o e n e m é u m
g u ia a o s m isté rio s celestiais tais co m o e n c o n tra d o s n a d escrição gnós-
tica d e m e s tre s q u e d e sc e ra m d o céu. O c o n tra ste com a descrição
g n ó stic a é v á lid a : Jesu s é a S a b e d o ria e n c a rn a d a o u a au to rev elação .
Bultmann, p o ré m , em g ra n d e m e d id a n ã o faz o m esm o d e u m revela-
d o r se m rev elação ? T alvez isto seja típ ico d e u m a h ip er-re a çã o a u m
p o n to d e v ista m ais a n tig o e m q u e se p e n sa v a q u e Jesus p ro cla m a sse a
re v e laç ã o n u m a série d e p ro p o siç õ e s o rd e n a d a s . P rim eiro , é v e rd a d e
q u e p o r to d a p a rte a ên fa se d e João seja so b re a c eita r Jesus, e m u ita s
v e z e s isto sig n ifica a c eita r su a reiv in d ic a çã o d e se r o e n v ia d o d e D eus.
M as, co m o in siste K äsemann, p p . 95-96, se o fato d e q u e Jesus foi en-
v ia d o é tão im p o rta n te , isto e m si m e sm o é u m a tre m e n d a revelação
d e "a ú n ic a co isa q u e é n e c essá ria ". É u m a rev elação d e q u e o C ria-
d o r, a q u i, está p re s e n te com s u a s c ria tu ra s; e o C ria d o r n ão v e m d e
m ão s v a z ia s, p o is ele d á lu z e v id a e a m o r e ressu rre içã o . S e g u n d o , aí
p e rm a n e c e u m a c o n sid e rá v e l q u a n tid a d e d e e n sin o so b re o q u e Jesus
d iz. P o r e x e m p lo , h á e n sin o so b re o a m o r salvífico d e D eus p a ra com
os h o m e n s (3,16-17), so b re o E sp írito S anto, o P aráclito , so b re a Lei e
s u a s o b rig a ç õ es (5,16-17; 7,19-23), so b re os d e v e re s d o a m o r e n tre os
c ristã o s (8,12-17.34), so b re o b a tism o (3,5) e so b re a e u c aristia (6,51-58
- n a tu ra lm e n te , B ultmann rejeita as p a ssa g e n s sa c ra m e n ta is com o
ad iç õ e s d o R e d a to r E clesiástico). M u ito d o e n sin o q u e M a te u s expres-
sa n o S e rm ã o d o M o n te se e n c o n tra em João, às v ezes e s p a lh a d o e em
v á ria s fo rm a s, m as, n ã o o b sta n te , p re se n te . P o rta n to , p o d e m o s d ize r
q u e, se a P a la v ra se fez carn e, n ão foi a p e n a s p a ra se r e n c o n tra d a , m as
ta m b é m p a ra falar.
O v. 14b e as lin h a s su c essiv as m o stra m q u e, se a P alav ra se fez
carn e, ela n ã o cesso u d e se r D eus. Em 14b, isto é d a d o ex p re ssã o no
v e rb o skên ou n ("fa ze r u m a h ab itação ; fincar u m a te n d a " ) q u e tem
im p o rta n te s asso ciaçõ es n o AT. O tem a d e "fin c ar" se e n c o n tra em
Ex 25,8-9 o n d e se o rd e n a q u e Israel faça u m a te n d a (o T ab ern ácu lo
- skên ê) p a ra q u e D eu s h a b ita sse e n tre Seu p o v o ; o T a b e rn á c u lo se
to rn o u o local d a p re se n ç a d e D eu s n a terra. Foi p ro m e tid o q u e nos
d ia s id e a is p o r v ir este fin car te n d a e n tre os h o m e n s seria especial-
m e n te im p re ssiv o . J13,17 diz: "E v ós sa b ere is q u e e u so u o S en h o r vos-
so D eu s, q u e h a b ito [k a ta sk ên o u n ] em Sião". N o te m p o d o reg resso
210 I. Prólogo

d o exílio b ab ilô n ico , Zc 2,10 p ro clam a: "E x u ltai e a le g ra-te, ó filha d e


Sião, p o rq u e eis q u e v e n h o , e farei m in h a h a b ita ç ã o [k a ta s k ê n o u n ]
n o m eio d e ti, d iz o S en h o r". N o te m p lo id eal d e scrito p o r E zeq u iel
(18,7), D eu s fará S ua h a b ita çã o n o m eio d e Seu p o v o p a ra se m p re , o u ,
co m o a LXX o tem : ‫ ״‬M eu nome h a b ita rá n o m eio d a casa d e Israel p a ra
se m p re ". (E stas p a la v ra s são im p o rta n te s te n d o em v ista o in te re sse
jo an in o em 0 nome). Q u a n d o o P ró lo g o p ro c la m a q u e a P a lav ra fez s u a
h a b ita çã o e n tre os h o m e n s, so m o s in fo rm a d o s q u e a c a rn e d e Jesu s
C risto é a n o v a localização d a p rese n ç a d e D e u s na terra, e q u e Je-
su s é a s u b s titu iç ã o d o a n tig o T ab ern ácu lo . O e v a n g e lh o a p re s e n ta rá
Jesu s co m o a s u b s titu iç ã o d o te m p lo (2,19-22), q u e é u m a v a ria ç ã o d o
m esm o tem a. N o A p 7,15, o v e rb o s k ê n o u n é u s a d o p a ra a p re se n ç a d e
D eus n o céu, e n q u a n to em 21,3 a g ra n d e v isã o d a Je ru sa lé m celestial
ecoa a p ro m e ssa d o s p ro fetas: "E le h a b ita rá [s k ê n o u n ] com eles, e se-
rão Seu p o v o ". A ssim , ao h a b ita r e n tre os h o m e n s, a P a la v ra a n te c ip a
a d iv in a p rese n ç a q u e, se g u n d o o A p o calip se, será v isív el a o s h o m e n s
n o s ú ltim o s dias.
C o m o u m p a sso in te rm e d iá rio e n tre o p e n ta tê u c o e p ro fético d e
"fincar te n d a " e o u so d e "fincar te n d a " no P rólogo, p o d e m o s c h a m a r a
aten ção p a ra p a ssa g e n s n a litera tu ra sap ien cial o n d e se d iz q u e a Sabe-
d o ria finca ten d a ou faz su a h ab itação e n tre os h o m en s (ver A p ê n d ic e
II, p. 823s). N o h in o d e S iraque 24, a S ab ed o ria canta: "O C ria d o r d e
todos... escolhe o local p a ra m in h a ten d a , d izen d o : Faze tu a m o ra d a
[k a ta s k ê n o u n ] em Jacó, em Israel tu a h eran ça". A ssim , ao fazer su a ha-
bitação e n tre o s h o m en s, a P alav ra está a g in d o com o faz a S abedoria.
H á o u tro a sp ec to d a p rese n ç a d iv in a s u g e rid o n o v. 14b. O s ra-
d icais skn q u e s u b lin h a o v e rb o g reg o "fa z e r te n d a " se a sse m e lh a m à
raiz h eb raica S k n , q u e ta m b é m significa " h a b ita r" e d a q u a l se d e riv a
o su b s ta n tiv o shekinah. N a teologia rab ín ica, shekinah e ra u m te rm o
técnico p a ra a p rese n ç a d e D eu s h a b ita n d o e n tre Seu p o v o . P o r exem -
pio, em Ex 25,8, o n d e D eu s d iz "E m e farã o u m s a n tu á rio , e h ab i-
tarei n o m eio d eles". C o m o o u so d e memra d isc u tid o n o A p ê n d ic e
II, p. 823s, o u s o d a shekinah com o u m su b s titu to p a ra Ia h w e h em
S eus tra to s com os h o m e n s era u m m o d o d e p re s e rv a r a tra n sc e n -
d ên cia d e D eus. O T a rg u m d e D t 12,5 tem a shekinah d e D e u s m o-
ra n d o n o s a n tu á rio em v ez d e Seu n o m e. A am e a ç a e m O s 5,6 d e
q u e Iah w e h se re tira rá d e Israel se to rn a n o T a rg u m u m a am e a ç a
d e q u e Ele fará S ua shekinah su b ir ao céu e se a p a rta r d o s h o m e n s.
1 · Hino introdutório 211

M e sm o a o n ip re se n ç a d e D eu s q u e n e n h u m s a n tu á rio p o d e a b arcar
n o T a lm u d e é c h a m a d a S ua shekinah. A in d a q u e a lg u m a s d e ssa s o b ras
te n h a m s u a o rig e m n u m p e río d o a p ó s o I a sécu lo d.C ., a teo lo g ia d a
shekinah e ra c o n h e cid a n a q u e le tem p o ; e é b e m p o ssív e l q u e n o u so
d e skên ou n o P ró lo g o está re fle tin d o a id eia d e q u e Jesus é a g o ra a
shekinah d e D eu s, o locus d e e n c o n tro e n tre o Pai e a q u e le s h o m en s
e n tre os q u a is ela se rá Seu d eleite. Veja L. Bouyer, " Le Schékinah, Dieu
avec nous ‫״‬, BVC 20 (1957-58), 8-22.
O p e n s a m e n to d a p re se n ç a d iv in a em Jesus q u e a g o ra se rv e com o
o T a b e rn á c u lo e, talv ez, co m o a shekinah tra n sb o rd a n o v. 14c: "T em os
v isto su a g ló ria ". N o AT, a glória d e D e u s (heb. kãbôd-, gr. doxa - veja
A p ê n d ic e 1:4, p. 794ss) im p lica u m a m an ifestaç ã o visível e p o d e ro -
sa d e D e u s ao s h o m en s. N o T a rg u m , " g ló ria " tam b é m se to rn o u um
s u b s titu to , co m o memra e shekinah, p a ra a p rese n ç a visível d e D eus
e n tre os h o m e n s, e m b o ra seu u so n ã o fosse tão fre q u e n te co m o o d os
o u tro s s u b s titu to s . (Se em Ex 24,10 so m o s in fo rm a d o s q u e M oisés e os
an cião s v ira m o D eu s d e Israel, n o T a rg u m O n k elo s o u v im o s q u e "vi-
ram a g ló ria [aram . q a r ] d o D eu s d e Israel"). N ã o o b sta n te , n o q u e
p rim a ria m e n te e sta m o s in te re ssa d o s é a c o n sta n te co n ex ão d a glória
d e D eu s co m S ua p rese n ç a n o ta b e rn á c u lo e n o tem p lo . Q u a n d o M oi-
sés s u b iu ao M o n te Sinai (Ex 24,15-16), so m o s in fo rm a d o s q u e u m a n u -
v e m c o b riu o m o n te e a g ló ria d e D eu s p a iro u ali e n q u a n to D eu s falava
com M o isés so b re a c o n stru ç ã o d o tab e rn ác u lo . Q u a n d o o tab e rn ác u lo
foi e rig id o , a n u v e m o c o b riu e a g ló ria d e D eu s o en c h eu (Ex 40,34).
O m e sm o fe n ô m e n o é re g is tra d o q u a n d o o te m p lo d e S alo m ão foi de-
d ic a d o (lR s 8,10-11). Ju sta m e n te a n te s d a d e stru iç ã o d o te m p lo p elos
b a b ilô n io s, Ez 11,23 n o s in fo rm a q u e a g ló ria d e D e u s a b a n d o n o u a
cid ad e; m a s n a v isã o d o tem p lo r e s ta u ra d o E zequiel v iu a glória d e
D eu s u m a v ez m ais e n c h e n d o o edifício (44,4). A ssim , é b em ap ro -
p ria d o q u e , d e p o is d a d escrição d e co m o a P a lav ra e d ifico u u m taber-
n á c u lo e n tre os h o m e n s n a c a rn e d e Jesus, o P ró lo g o m en c io n aria q u e
su a glória se to rn o u visível.
O s v e rs o s 14c e d se refe re m a u m a m an ifestaç ã o p a rtic u la r da
g ló ria d a P a la v ra e n c a rn a d a ? Já m en c io n am o s n a n o ta q u e " te m o s vis-
to " p a re c e s e r u m a referên cia a te s te m u n h a a p o stó lic a , co m o o "n ó s"
d o P ró lo g o a 1 João. P o rta n to , m u ito s s u g e re m q u e o h in o está se re-
p o r ta n d o ao m o m e n to e m q u e P e d ro , João e T iago te s te m u n h a ra m a
T ra n sfig u ra ç ã o d e Jesus, u m a cen a n ã o re g is tra d a e m João, p o ré m
212 I. Prólogo

e n c o n tra d a n o s sin ó tico s e 2 P d 1,16-18. N a q u e la o casião , Lc 9,32 d iz


q u e v ira m su a glória. E ju sta m e n te co m o o P ró lo g o fala d a g ló ria d e
u m F ilh o ú n ico , a ssim n a T ra n sfig u ra ç ã o a v o z celestial p ro c la m o u
Jesu s co m o " m e u F ilho a m a d o " (" a m a d o " tem a c o n o ta ç ã o d e " ú n i-
co"). O rela to d a T ra n sfig u ra ç ão em 2 P e d ro p o d e ría m o s tra r a lg u -
m a lu z so b re o p ro b le m a m e n c io n a d o n a n o ta , se n o v. 14d a " v in d a
d o P ai" m o d ifica "g ló ria " o u "F ilh o ". Em 2P d 1,16-17, o a u to r falan -
d o co m o P e d ro diz: "... fo m o s te s te m u n h a s o c u la re s d e su a m ajes-
tad e. Ele recebeu de Deus 0 Pai h o n ra e glória''... (Bo R eicke, T h e A n-
c h o r Bible, vol. 37); a q u i, e v id e n te m e n te , é a g ló ria q u e v e m d o Pai.
U m a referên cia à T ra n sfig u ra ç ão se a d e q u a ria b e m com o te m a d o
tab e rn ác u lo q u e v im o s n o v. 14b, p o is a cen a n o m o n te d a T ransfi-
g u ra ç ã o é d e scrita n o s e v a n g e lh o s sin ó tico s em te rm o s e v o c a tiv o s d a
a p a riçã o d e D eu s a M oisés n o S inai, e a c o n stru ç ã o d a s te n d a s o u ta-
b e rn á c u lo s é esp ec ific am e n te m e n c io n a d a (M c 9,5). A ssim , h á m u ito
a re c o m e n d a r a su g e stã o d e q u e 14c,d é u m eco d a T ra n sfig u ra ç ão .
N ã o o b sta n te , ela lem b ra n ã o m ais q u e u m a p o s s ib ilid a d e d e q u e os
escrito res jo an in o s c o n h e cia m a cena d a T ra n sfig u ra ç ão .
Vale a p e n a c o m p a ra r a exegese q u e Bultmann faz d o v. 14 com
a d e Käsemann. E n fatizan d o o asp ecto q u en ó tico d e 14a, Bultmann,
p. 40, fala d o escân d alo im plícito n a co ncepção d e q u e o re v e la d o r não
é n a d a m ais sen ão u m h o m em . N o to can te a "te m o s v isto su a gló ria",
esta n ão é u m a visão sem lim itações. Se p u d é sse m o s v e r d e u m a m an ei-
ra tra n sp a re n te , a carn e seria sem sentido; se n ã o v íssem o s d e m o d o al-
g u m , n ão h av ería revelação. K äsemann, p o le m iz a n d o c o n tra B ultmann,
insiste n o caráter glorioso d a P alav ra-que-se-fez-carne. A ca rn e n ã o é
sim p lesm en te u m a in có g n ita a tra v és d a q u a l os h o m en s v eríam ; an tes,
a glória d a P alav ra m a n té m o c a m in h o a b e rto à carn e n a s m iracu lo sas
o b ras p a ra q u e sejam vistas. Käsemann v in cu la os m ilag res d o Jesus joa-
n in o e seu s d iscu rso s revela tórios (e p a ra e m a lg u m a m e d id a d e s tru ir
a d ico to m ia d a s fontes q u e Bultmann tem p ro p o sto - v e r In tro d u ç ão ,
P arte II:B[2]). O m iracu lo so em João n ão é os resto s d e ix a d o d a fonte
d o s sinais, m as é a p a rte essencial d a a p re se n ta ç ã o d a P a la v ra en car-
n ada. Em "a P alavra se fez carne", Käsemann vê n ão tan to q u e o rev elad o r
seja ap en as u m h om em , m as qu e D eus está p resen te n a esfera h u m an a .
O tem a d o a m o r p a c tu a i c o n sta n te (h esed e 'emet - v e r n o ta)
q u e ap a re c e n o v. 14e e é e la b o ra d o n o v. 16 se a d e q u a b e m co m as
referên cias ao ta b e rn á c u lo e à g ló ria q u e tem o s d isc u tid o . A g ra n d e
1 · Hino introdutório 213

ex ib ição d o a m o r p a c tu a i c o n sta n te d e D e u s n o A T se d á n o Sinai, o


m e sm o c e n á rio o n d e o ta b e rn á c u lo se to rn o u a h a b ita çã o p a ra a glória
d e D eu s. A ssim a g o ra a su p re m a exibição d o a m o r d e D eu s é a Pa-
la v ra e n c a rn a d a , Jesus C risto , o n o v o T a b e rn á c u lo d a g ló ria d iv in a.
Se n o ssa in te rp re ta ç ã o d e " a m o r p o r a m o r" fo r c o rreta, o h in o chega
a u m fim co m a triu n fa n te p ro c la m a ç ã o d e u m a n o v a alian ça su b sti-
tu in d o a a lian ça sinaítica.

P arên tese: João Batista testifica da preexistência de Jesus (v. 15)

O v. 14 tem d e c la ra d o q u e a p reex isten te P alavra celestial se to rn o u


carne. A p a re n te m e n te , o re d a to r q u e an e x o u os vs. 6-9 tam b ém ane-
xou o v. 15, ten c io n an d o c o n firm ar o v. 14 com o teste m u n h o d e João
B atista d e q u e Jesus é p reex isten te. H á p o lêm ica óbvia contra q u a lq u e r
su g e stã o d e q u e João B atista p u d e s se ser m aio r q u e Jesus, p o rq u e ele
co m eço u seu m in istério p rim eiro . V er c o m en tário so b re 1,30. E difícil a
su g e stã o d e J. A. T. Robinson d e q u e, com o os vs. 6-7, o v. 15 e ram p arte
d a a b e rtu ra o rig in al d o e v an g elh o , e sp ecialm en te p o rq u e e n tã o não ha-
v eria raz ã o a p a re n te p a ra a m esm a afirm ação n o v. 30. S ugerim os qu e
o re d a to r final, v e n d o q u e p o d e ria se r útil, aq u i, e n fatizar o tem a d a
p reex istên cia, in tro d u z iu n o P rólogo c o p ia n d o a frase d o v. 30.
Versículos 17-18. C o m o já e x p lic am o s n a n o ta, o v. 17 m era m e n te
ex p lica o q u e foi d ito n o v. 16, m e n c io n a n d o as d u a s ocasiões d a de-
m o n stra ç ã o q u e D e u s faz d o a m o r p a c tu a i, a sab er, n a d o a ç ão d a Lei
a M o isés n o S inai e e m Jesu s C risto. O v. 17 su g e re m ais c la ram e n te
d o q u e o h in o a s u p e rio rid a d e d o a m o r p e rp é tu o e x p re sso em Jesus
C risto , e o v. 18 explica essa su p e rio rid a d e . N a tu ra lm e n te , a im p o s-
s ib ilid a d e d e M o isés v e r a D e u s está n o fato d e q u e o a u to r deseja
c o n tra s ta r co m o c o n ta to ín tim o e n tre F ilho e Pai. Em Ex 33,18, M oisés
p e d e p a ra v e r a g ló ria d e D eu s, m as o S en h o r diz: " N ã o p o d e s v e r m i-
n h a face e v iv e r". Isaías (6,5) exclam a com terro r: "Ai! E sto u p e rd id o ...
p o rq u e m e u s o lh o s v ira m o Rei, o S e n h o r d o s E xércitos", o n d e nem
m esm o ex iste u m a in d a g a ç ã o p a ra v e r a face d e D eus. C o n tra este
p a n o d e fu n d o v e te ro te sta m e n tá rio , q u e n e m m esm o os m aio res re-
p re s e n ta n te s d e Israel v ira m a D eu s, João a p re se n ta o e x em p lo d o úni-
co F ilh o q u e n ã o só tem v isto o Pai, m as está se m p re ao Seu lad o . Po-
d e m o s in clu siv e s u s p e ita r q u e este tem a foi p a rte d a p o lêm ic a jo an in a
c o n tra a sin a g o g a , p o is ele é re p e tid o em 5,37 e 6,46. N ã o o b stan te,
214 I. Prólogo

o tem a d e q u e so m e n te o F ilho v iu o Pai ta m b é m im p re ss io n a ria o


m u n d o h e le n ista q u e tin h a c o n h e cim e n to d o D e u s in v isív el cuja su b s-
tância n ã o p o d e ria se r a p re e n d id a p e lo s h o m en s.
A am p lificação red a c io n a l d o h in o , n o v. 18, n ã o é c a re n te e m h a-
b ilid ad e ; o re d a to r tra b a lh o u p a ra in c o rp o ra r n ele d iv e rs a s in clu sõ e s
com o v. 1. Ju s ta m e n te co m o n o v. 1, a P a la v ra e ra D eu s, a ssim a q u i o
ú n ico Filho é c h a m a d o D eus. Ju sta m e n te co m o n o v. 1 a P a la v ra esta-
va n a p rese n ç a d e D eus, assim n o 18 o ú n ic o F ilho e stá se m p re ao la d o
d o Pai. Esta é u m a relação ú n ic a d o F ilho c o m o Pai, tã o ú n ic a q u e João
p o d ia falar d e "o F ilho ú n ico é D e u s", q u e faz com q u e su a re v e laç ã o
seja a s u p re m a rev elação .

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II
O LIVRO DOS SINAIS

O ministério público de Jesus no qual ele se manifesta com sinal e palavra


ao seu próprio povo como a revelação de seu Pai, só para ser rejeitado.

"Veio para 0 que era seu,


todavia os seus não 0 aceitaram”.

P r im eira P a r t e : O s dias in iciais da revelação de Jesus


ESBOÇO
PRIMEIRA PARTE: OS DIAS INICIAIS DA REVELAÇÃO DE JESUS
(1,19-51, seguido por 2,1-11)

A. 1,19-34: O TESTEMUNHO DE JOÃO BATISTA


(19-28) Primeira Divisão - Testem unho acerca de sua função
em relação com aquele que vem. (§ 2)
(a) 19-23: Primeiro interrogatório de João Batista:
19-21: João Batista nega funções tradicionais.
22-23: João Batista reivindica o papel da voz isaiana.
(b) 24-28: Segundo interrogatório de João Batista:
João Batista descreve seu próprio batism o como
prelim inar e exalta aquele que vem.
(29-34) Segunda Divisão: Testem unho acerca de Jesus. (§ 3)
(a) 29-31: Jesus é:
29: o cordeiro de Deus;
30-31: o preexistente.
(b) 32-34: Jesus é:
32-33: Aquele sobre quem o Espírito desce e re-
pousa;
34: o escolhido.

B. 1,35-51: OS DISCÍPULOS DO BATISTA VÃO A JESUS QUANDO SE


MANIFESTA
(35-42) Primeira Divisão: Os prim eiros dois discípulos e Simão
Pedro (§ 4)
(a) 35-39: Dois discípulos - Jesus reconhecido como Rabi.
(b) 40-42: Simão Pedro - Jesus como o Messias
(43-51) Segunda Divisão: Filipe e Natanael. (§ 5)
(a) 43-44: Filipe - (Jesus como cum prim ento da Lei e dos
Profetas [v. 45]).
(b) 45-50: Natanael - Jesus como Filho de Deus Rei de Israel.
51: Um dito independente sobre o Filho do Hom em.

Esta Parte tem sua conclusão em 2,1-11, a cena em Caná onde Jesus m anifesta
sua glória e seus discípulos creem nele. Esta cena em Caná tam bém serve
como a cena de abertura da Segunda Parte e será discutida ali.
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 219

2 .O TESTEMUNHO DE JOÃO BATISTA:


- ACERCA DE SUA FUNÇÃO
( 1 , 19 - 28)

1 19O ra, este é o te ste m u n h o q u e João d e u q u a n d o os ju d e u s envia-


ra m sace rd o te s e levitas d e Jeru salém a p e rg u n ta r-lh e q u e m ele era.
20Ele d e c la ro u se m q u a lq u e r restriç ão , co n fessan d o : "E u n ã o sou
o M essias".
21Eles o in te rro g a ra m m ais: "E n tão , q u e m és tu? Elias?" "E u não
s o u " , re s p o n d e u .
"É s o p ro fe ta ? " N ão !", re s p o n d e u .
22E n tã o , lh e d isse ra m : " E n tã o , q u e m és? - d e m o d o q u e p o ssa-
m o s d a r a lg u m a re s p o s ta à q u e le s q u e n o s e n v ia ra m . O q u e d ize s
d e ti m e s m o ? "
23Ele d isse , c ita n d o o p ro fe ta Isaías: "E u so u -

'u m a v o z n o d e se rto cla m an d o :


P re p a ra i o c a m in h o ao S e n h o r!"'

24M as os e m issário s d o s fariseu s 25o in te rro g a ra m -n o m ais: "Se


n ã o és o M essias, n e m Elias, n e m o P ro feta, e n tã o q u e e stá s faz e n d o
b a tiz a n d o ? " 26João lh es resp o n d e u : "E u e sto u a p e n a s b a tiz a n d o com
á g u a ; m a s h á u m e n tre v ó s a q u e m n ã o reco n h eceis - 27a q u e le q u e há
d e v ir a p ó s m im , e e u n e m m esm o so u d ig n o d e d e s a ta r as correias
d e su a s a n d á lia " . 28Foi em B etânia q u e isto a c o n te c eu , além d o Jo rd ão
o n d e João c o s tu m a v a b a tiz ar.

21: respondeu: no tempo presente histórico.


220 II. O Livro dos Sinais

NOTAS

1.19. Ora. Esta seção começa com um kai, como tam bém serve de abertura
em m uitos dos livros da LXX (2Sm, 1 e 2Rs). Antes que o Prólogo fosse
prefixado, é possível que este versículo servisse de abertura do evan-
gelho, em bora um a possibilidade mais provável seja que os vs. 6 8 )7‫)?־‬
precedessem o v. 19 e constituíssem a abertura original.
este é 0 testemunho. Nos vs. 6-7 ou vimos que João Batista foi enviado a
testificar da luz, e agora, aqui, é o testem unho acerca de si próprio. Espe-
ram os um testem unho acerca de Jesus, m as esse só vem nos vs. 29-34 no
dia seguinte. A sequência original provavelm ente fosse confundida pela
ação redacional; ver pp. 252-257 abaixo.
os judeus. Para o uso deste term o como um a referência às autoridades reli-
giosas hostis a Jesus, particularm ente as de Jerusalém, veja Introdução,
Parte V:B.
enviaram. M uitas boas testem unhas anexam "a ele"; m as isto está perdido
em ambos os papiros Bodmer e, provavelm ente seja um esclarecim ento
redacional.
sacerdotes e levitas. Com o fim de indagar sobre sua função de batizar, en-
viam os especialistas em purificação ritual. Esta é um a interessante con-
frontação de João Batista e os sacerdotes em vista da tradição lucana de
que João Batista era filho de sacerdote (Lc 1,5). N orm alm ente, "levitas"
se referem a um a classe sacerdotal inferior, m as algum as vezes, nos do-
cum entos rabínicos, à guarda do templo. São raros no cenário do NT
(somente em Lc 10,32; At 4,36).
Jerusalém. No grego de João, esta é sem pre a Hierosolyma helenizada; no
Apocalipse, sem pre a Hierousalêm mais prim itiva - certam ente, um a in-
dicação de diferentes escribas.
20. declarou sem qualquer restrição, confessando. Literalm ente, "Confessou, e
não negou, confessou" - tautológico mesm o para João. É bem provável
que este seja um sinal de elaboração redacional, pois não há em João
outro exemplo desta dupla combinação de positivo, negativo, positivo.
Eu não sou 0 Messias. Há quem sugira que o "Eu" é enfático: Eu não sou, mas
outro é. No entanto, não há muita evidência de que João Batista identificou
aquele que vem após ele como o Messias no sentido estrito, i.e., o ungido rei
davídico. Jo 3,28 é a única referência específica a João Batista como a prepa-
rar o caminho para o Messias; pode estar implícito em Lc 3,15-16.
21. Então. Oun é a partícula conectiva favorita de João (195 vezes); nunca
ocorre em 1 João - reiterando, um a interessante indicação de diferentes
copistas nas obras joaninas.
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 221

quem és tu? Elias? O utras separações destas palavras são atestadas, mas
esta é endossada pelos papiros Bodmer.
23. A forma com um no NT de citar Is 40,3 vem substancialm ente da LXX,
onde "no deserto" modifica a "voz", e não do TM, onde "no deserto" é
parte do que é dito, assim:

Uma voz clam ando,


"Preparai o cam inho do Senhor no deserto;
Fazei reta um a vereda para o nosso Deus no erm o".

O fato de que João Batista estava num a região desértica quando fez ecoar
sua voz profética fez a leitura da LXX mais adequada aos propósitos do
NT. O sim bolism o de p reparar um cam inho para Iahw eh provavelm ente
seja extraído das preparações para as procissões em honra das estátuas
dos deuses ou em honra de potentados visitantes. G arofalo, art. cit., in-
dica um bom paralelo em um papiro ptolem aico do 3“ século a.C. que
descreve preparações sendo feitas para a visita do capitão da guarda real.
As instruções são que "se faça um a estrada" para sua chegada (G renfell.
H unt, Greek Papyri, Series II [1897], p. 28, xivB).
uma voz. A gostinho (Sermons 293:3; PL 38:1328) observa poeticam ente que
João Batista foi um a voz por certo tem po (Jo 5,35), m as Cristo é a eterna
Palavra desde o princípio.
24. os emissários dos fariseus. Esta é um a tradução um tanto am bígua que tra-
ta de captar as possibilidades oferecidas pelas duas diferentes redações
gregas deste versículo e as várias interpretações que os estudiosos fazem
delas: (a) "E os enviados eram da parte dos fariseus" - um artigo antes
do particípio. Isto tem um a atestação mais fraca. Presum ivelm ente, "os
enviados" seriam um a referência aos sacerdotes e levitas mencionados
no v. 19, em bora Bernard veja nesta redação um a tentativa de introduzir
um novo grupo. A dificuldade básica é que sacerdotes e levitas normal-
m ente pertenceríam ao partido saduceio. L agrange, p. 37, dá evidência
para m ostrar que alguns sacerdotes viviam de mãos dadas com os fari-
seus, m as dificilmente isto seja um a explicação satisfatória da presente
passagem . O utros usam isto como prova de que o evangelista nada co-
nhecia da Palestina. Entretanto, o evangelista nunca entra em detalhes
sobre os vários grupos na Palestina (mesmo os coletores e os herodia-
nos estão ausentes em João) porque, no tem po em que este evangelho
foi escrito, estes grupos não mais eram tão significativos. O judaísmo
que sobreviveu à destruição do tem plo era de uma forte m atiz farisaica,
e para um evangelho escrito com esta situação em mente, "fariseus" e
222 II. O Livro dos Sinais

"judeus" seriam os títulos mais significativos para as autoridades judaicas.


Assim, podem os ter aqui um a simplificação. Veremos tam bém a possibi-
lidade de que a menção dos fariseus seja o resultado de labor redacional.
Podem os trazer à m ente Mt 3,7, onde saduceus e fariseus se dirigiram
a João Batista, (b) A redação grega sem o artigo antes do particípio, tra-
duzido ou como "E alguns fariseus foram enviados" (Dodd, Tradition,
pp. 263-64) ou como "foram enviados da parte dos fariseus" (B ernard).
Esta redação é atestada por ambos os papiros Bodmer. A tradução de
Dodd evita a dificuldade de introduzir um a nova delegação; a segunda,
a tradução mais difícil, tem a m elhor chance de ser correta.
25. interrogaram-no mais. A mesma expressão, como no v. 21; talvez um sinal
de duplicação redacional.
27. aquele que a de vir. Ou como um particípio (ho erchomenos) ou com o um
verbo infinitivo (erchetai), esta frase m arca as expectativas de João Ba-
tista tanto nos evangelhos como em Atos. Em vista da discussão no co-
m entário que talvez João Batista esperasse que Elias viesse, notam os que
Ml 3,1, passagem frequentem ente associada com Elias, diz: "Eis que ele
está vindo [erchetai]", e Mt 11,14 fala de "Elias que está vindo". Assim,
"aquele que a de vir" poderia ter sido um título para Elias.
digno. Axios; estranham ente, am bos os papiros Bodmer leem "apto"
(hikanos), um a redação que é um a harm onização com os sinóticos - veja
comentário.
desataras correias. Tarefa de um escravo. B ernard, I, p. 41, cita um princípio
rabínico, que um discípulo pode oferecer para fazer qualquer serviço a
seu m estre que um escravo fazia a seu senhor, exceto o de desatar suas
sandálias.
28. Betânia. Esta não é a vila próxim a a Jerusalém (11,18), e sim um lugar na
Transjordânia do qual não resta nenhum vestígio. P arker, art. cit., tem
tentado resolver o problem a do desaparecim ento da segunda Betânia
através de um a tradução que a eliminasse totalm ente: Isto aconteceu em
Betânia, além do ponto no Jordão onde João estivera batizando. Assim,
ele situa todo o incidente em Betânia vizinha de Jerusalém , oferecendo
um a explicação de por que as autoridades judaicas estão ali. O utra so-
lução foi oferecida por O rígenes (Comm. 6,40; GCS 10:149) que dizia que,
embora quase todos os m anuscritos leem Betânia, ele não conseguia achar
tal vila na Transjordânia (c. 200 d.C.). Portanto, ele preferiu outra reda-
ção: "Betábara", um a vila cuja existência é tam bém atestada no Talm ude.
("Betábara" é lida no OS de João). Se Betábara, "o lugar de travessia", é
a redação correta (e um crítico como Boismard segue O rígenes nisto), en-
tão João pode estar cham ando a atenção para o paralelism o Josué-Jesus.
2 * 0 testemunho de João Batista: acerca de sua função 223

Justam ente como Josué conduziu o povo através do Jordão à terra prome-
tida, assim Jesus está percorrendo a terra prom etida à frente de um novo
povo. A tradição peregrina identifica o mesm o lugar junto ao Jordão
para ambos: a travessia de Josué e o batism o de Jesus. No entanto, pode
ser que este sim bolismo bem plausível torne o nom e parcam ente atesta-
do de Betábara ainda m ais suspeito. M esmo o nom e de Betânia é aberto
à interpretação simbólica; K rieger, art. cit., sugere que ele se deriva de
bet-aniyyah, "casa de resp osta/testem unha/testem unho", um a derivação
que faria o nom e apropriado para o lugar onde João Batista dava teste-
m unho de Jesus. Sobre esta base, K rieger e outros negam a realidade
geográfica do local; m as onde há sim bolismo em João, geralm ente ele
se origina de um a interpretação engenhosa do fato, em vez de criação
m eram ente imaginativa. Os estudiosos têm se tornado mais cautelosos
agora de que alguns nom es joaninos de lugares, um a vez considerados
m eram ente simbólicos (p. ex., Betesda em 5,2), têm se revelado factuais.

COMENTÁRIO: GERAL

Este e v a n g e lh o com eça p ro p ria m e n te d ito com o te ste m u n h o d e João


B atista d a d o e m três d ia s (1,29.35), d ia s q u e têm im plicação m ais sim -
b ólica d o q u e e s trita m e n te cronológica. N o p rim e iro d ia d o testem u -
n h o d e João B atista so b re se u p ró p rio p a p e l é g ra n d e m e n te negativo;
n o s e g u n d o , João B atista testifica p o sitiv a m e n te q u e m Jesus é; n o ter-
ceiro, João B atista en v ia se u s p ró p rio s d isc íp u lo s p a ra q u e seg u issem
a Jesus. C o m o D odd, Tradition, p . 248, tem sa lien tad o , esta tríplice p ro -
g ressão é sim p le sm e n te in d icativ a d o e sq u em a d e fin id o em a n d a m e n -
to e m 1,6-8: p rim e iro , o p ró p rio João B atista n ã o era a luz; seg u n d o ,
ele v eio p a ra testificar d a lu z (= Jesus); terceiro, a tra v é s dele, to d o s os
h o m e n s v iesse m a crer.
N o s sin ó tico s te m o s u m g ra n d e ju lg a m e n to d e Jesu s d ia n te d o
S in é d rio d u r a n te a n o ite a n te rio r à su a m o rte. U m a d a s técnicas d e
João é m o s tra r q u e os tem a s q u e o c o rre m em u m lu g a r, n o s sinóticos,
tin h a m u m a re a lid a d e q u e a b ra n g e to d o o m in isté rio d e Jesus, e isto é
p a rtic u la rm e n te p ro c e d e n te à lu z d o tem a d e Jesus p e ra n te o trib u n al.
A P a la v ra a g o ra p a ssa a falar ao s h o m e n s, e to d o o m in isté rio d e Jesus
ao s h o m e n s b u s c a rá p ô r a v e ra c id a d e d e sta P a la v ra sob ju lg a m e n to ,
b u s c a n d o te s te m u n h a s e m p ro l dela. V o cab u lário ju ríd ic o com o
co n fissão , in te rro g a ç ã o , te s te m u n h o se e n c o n tra ao lo n g o d e to d o o
224 II. O Livro dos Sinais

Evangelho d e João; e em 5,31-40, em u m m o m en to culm inante, Jesus apre-


senta to d a u m a série d e testem unhas d a veracid ad e d a palav ra d e Deus:
D eus m esm o, as Escrituras, M oisés e João Batista. A ssim , ela se a d e q u a ao
pro p ó sito d e João d e q u e m esm o antes d e Jesus se m anifestar, o evange-
lho se inicia com u m julgam ento e João Batista sob interrogatório.
C o m o sa b em o s d o s sin ó tico s e d e J osefo (Ant . 18.5.2; 118), João
B atista a tra iu com seu m in isté rio g ra n d e s m u ltid õ e s ao v a le d o Jor-
dão . Ele h a v ia d e sc id o d o d e se rto d a Ju d e ia , a q u e la s co lin as e sté reis
ao o c id e n te d o M ar M o rto , e com zelo ap o c alíp tico p a s s o u a p ro cla -
m a r o d ia d o ju ízo . Ele m in istra o b a tism o d e á g u a aos q u e a c e ita v a m
su a m e n sa g e m e rec o n h e c ia m su a p ró p ria p e c a m in o sid a d e . P o u c o
d isto a p a re c e e m João; p o is o e v a n g e lista n ã o e stá in te re s s a d o e m João
B atista co m o b a tiz a d o r o u co m o p ro fe ta , m a s a p e n a s n o fato d e q u e
ele e ra u m a ra u to d e Jesus e a p rim e ira te ste m u n h a n o g ra n d e trib u n a l
d a P alav ra. Jo 1,26 sim p le sm e n te p re s s u p õ e q u e o leito r sab e q u e João
B atista e ra b a tiz a d o r.
C o m o rela to d e João B atista, q u e a p a re n te m e n te tem p o u c o em
c o m u m co m a tra d iç ã o sin ó tica, se h a rm o n iz a co m o s o u tro s ev a n -
g elhos? João n o s d á in fo rm a ç ã o co n fiáv el e in d e p e n d e n te so b re João
B atista? E stas são q u e stõ e s q u e o c u p a rã o n o ssa d isc u ssã o d e p o is.

COMENTÁRIO: DETALHADO

H á do is in terro g ató rio s n o p rim e iro dia: vs. 19-23 e 24-27. N o p rim e iro ,
João B atista n eg a p a ra si q u a lq u e r u m d o s p a p é is trad icio n ais escatoló-
gicos com n eg ativ as p ro g re ssiv a m en te m ais co n tu n d e n tes: "E u n ã o so u
o M essias... e u n ão sou... N ão!" Ele reiv in d ica p a ra si a p e n a s a fu n ção
d e a ra u to , assim focan d o to d a a aten ção so b re a q u e le q u e e sta v a ehe-
g an d o . N o se g u n d o in terro g ató rio , ele justifica su a fu n ção d e b a tiz a r
tam b ém em term o s d e p re p a ra ç ã o p a ra aq u e le q u e h a v ia d e vir.

Primeiro Interrogatório, Primeira Fase: João Batista nega funções tradicionais


(1,19-21)

N aq u ela ép oca n ão h av ia u m a ex p ectativ a ju d aica u n ifo rm e d e fi-


g u ra escatológica sin g u lar. U m a m aio ria d e n tre os ju d e u s e sp e ra v a o
M essias. T o d av ia, a lg u n s d o s livros apócrifos d escre v e m a in te rv en ç ã o
d e D eu s sem n u n ca m en c io n ar o rei d av íd ico u n g id o ; e n q u a n to q u e
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 225

em v á ria s p a ssa g e n s d e 1 Enoque a fig u ra d o Filho d o H o m em , e não o


M essias, in co rp o ra as ex p ectativ as d o a u to r. O s essênios d e Q u m ran
p a re c e m ter e s p e ra d o três fig u ras escatológicas: u m pro feta, u m m es-
sias sa ce rd o ta l e u m m essias régio. P assag en s com o Jo 1,21; Mc 6,15;
M t 16,14 testificam d a v a rie d ad e d e expectativas escatológicas po-
p u lar. E m bora João seja nossa única testem u n h a deste interrogatório
feito a João Batista q u a n to a q u e figuras escatológicas m ais p o p u lares
com as q u ais ele se identificou, n a d a há d e plausível sobre isso. A o bati-
zar, João Batista estava realizan d o u m a ação escatológica; sua m ensagem
era a d e in terv en ção divina; as m u ltid õ es e stavam com eçando a segui-lo;
ele estav a o p e ra n d o n u m a área não longe d o centro essênio n o M ar M or-
to (e as a u to rid a d e s d e Jerusalém tin h am su sp eitas sobre essênios). As
a u to rid a d e s b em q u e p o d e ría m ter in d ag a d o sobre q u em ele pensava
ser. M t 3,7-10 m enciona os fariseus e sad u ceu s com o v in d o p a ra ouvir
João Batista e d escreve sua h o stilid ad e p a ra com eles; Mc 11,30-32 e
M t 11,18; 21,32 m o stram q u e as a u to rid ad e s n ão criam e m João Batista.
(1) João Batista não era o Messias. É difícil e sta r certo se há al-
g u m a h ie ra rq u ia e n tre as três fu n çõ es so b re as q u a is v e rsa o in terro -
g a tó rio d e João B atista, m a s a e x p e cta tiv a d o M essias p a re c e ter sid o
a e x p e c ta tiv a n a c io n a lista m ais rad ical. E d ig n o d e n o ta q u e, em b o ra
Jesu s n ã o re iv in d ic a sse p a ra si o títu lo d e M essias e aceitasse a desig-
n a ç ão só co m re lu tâ n c ia e rese rv as, os p rim e iro s cristão s a ssu m ira m o
"M essias" co m o seu títu lo p o r e xcelência e e m su a fo rm a g reg a , "C ris-
to ", se to rn o u p a rte d e se u p ró p rio nom e.
Seria a ên fase d e João d e q u e João Batista n ão era o M essias m ais
d o q u e u m a rem in iscência histórica? A caso esta é p a rte d a apologética
d e João c o n tra as reiv in d icaçõ es d o s se g u id o re s d o Batista? N ão p o d e-
m o s e sta r certo s d e q u e no 1L’século se u s s e g u id o re s p ro cla m a ram João
B atista co m o se n d o o M essias; m as p arece q u e o fizeram ta rd e dem ais,
caso d e p e n d a m o s d a evidência d o Recognitions P seu d o -C lem en tin o
(ver In tro d u ç ão , P arte V:A, e Schnackenburg, "D ie Jo h an n esjü n g er",
p p . 24-25). N o latim d o Recognitions I 54 (PG 1:1238) e I 60 (PG 1:1240)
e n c o n tra m o s os a d e p to s d e João e n fa tiz a n d o q u e seu m estre, n ão Jesus,
era o M essias. É p o ssív e l q u e João esteja re fu ta n d o u m a fo rm a p rim iti-
v a d e s ta reiv in d icação , esp ecialm en te em v ista d a evidência em Lc 3,15
d e q u e o p o v o p e n sa v a q u e João B atista fosse o M essias.
(2) João Batista não era Elias. S e g u n d o u m a tra d içã o p o p u la r
(2Rs 2,11), E lias foi le v a d o p a ra o céu n u m a c a rru a g e m ; e a id eia de
226 II. O Livro dos Sinais

q u e ele a in d a estiv e sse v iv o e a tiv o foi fo m e n ta d a p e lo e s tra n h o a p a -


re c im e n to d e u m a c a rta d e le a lg u m te m p o d e p o is d e h a v e r s id o le-
v a d o (2C r 21,12). N a s e x p e c ta tiv a s p ó s-e x ílio , E lias h a v ia d e v o lta r
a n te s d o d ia d o S e n h o r (n ão n e c e s s a ria m e n te a n te s d o M essias). Em
M l 3,1 (c. 450 a.C .) h á u m a re fe rê n c ia a o an jo q u e p r e p a r a r ia o ca-
m in h o d o S e n h o r e u m a a d iç ã o (lig e ira m e n te p o ste rio r? ) a o liv ro
(4,5 [3,23H]) id en tifica este m e n sa g e iro co m se n d o Elias. N o 2“ sé cu lo
a.C . o u m ais c e d o , 1 Enoque 90,31 e 89,52, e m su a e la b o ra d a a leg o -
ria a n im a l d o s q u a d ro s d a h istó ria , o r e to rn o d e E lias a n te s d o ju l-
g a m e n to e a n te s d o a p a re c im e n to d o g r a n d e c o rd e iro a p o c a líp tic o .
A ú ltim a re fe rê n c ia é in te re s s a n te q u a n d o n o s le m b ra m o s d e q u e o
B atista e s ta v a p ro c la m a n d o o c o rd e iro d e D eu s. A in d a o u tra re fe rê n -
cia d o 2a sé cu lo se e n c o n tra epn S ira q u e 48,10: " E stá e sc rito q u e e s tá s
d e s tin a d o , n u m a é p o c a p o r v ir, a p ô r fim à ira a n te s d o d ia d o Se-
n h o r" . A e x p e c ta tiv a d e E lias e v id e n te m e n te e ra m u ito e s te n d id a n a
P a lestin a n o s d ia s d e Je su s (M c 8,28; 9,11) e c o n tin u o u n o ju d a ís m o
d a e ra p ó s-c ristã . D u ra n te o 2“ sécu lo d .C ., e ra a firm a d o q u e E lias u n -
g iria o M essias - veja J. K lausner, The Messianic Idea in Israel (L o n d res:
A llen a n d U n w in , 1956), p p . 451-56; G. M olin, "Elijahu der Propher und
sein Weiterleben in den Hoffnungen der Judenturms und Christenheit",
Judaica 8 (1952), 65-94.
O s in te rro g a d o re s te ria m tid o b o a r a z ã o p a ra s a b e r d e Jo ão
B atista se ele a le g a v a se r E lias. Ele u s a v a v e ste s c o m o a s d e E lias
(c o m p a re M c 1,6 co m 2Rs 1,8, e m b o ra o m a n to d e p e lo fo sse a v e s-
tim e n ta p ro fé tic a p a d rã o , c o m o Z c 8,4 in d ic a ). T o d o s o s e v a n g e lh o s
c o n e c ta m Jo ão B atista co m Is 40,3, a v o z n o d e s e rto . M olin , p . 80, d á
e v id ê n c ia d e q u e Is 40,3 m a is ta r d e foi c o m b in a d o co m M l 4,5 e re-
in te r p re ta d o p a ra re fe rir-s e a E lias (veja M c 1,2, c o m b in a n d o Isa ía s
e M a la q u ias).
T em os q u e p e rg u n ta r u m a v ez m ais, se a ê n fase d e João é q u e João
B atista n ã o era Elias, seria p a rte d a p o lêm ica c o n tra os a d e p to s d o Ba-
tista? R ichter, art. cit., p e n sa q u e o s sectário s id en tifica v a m João B atista
com Elias em ra z ã o d e Elias se r u m a fig u ra m essiân ica (m essiân ica
em u m se n tid o m ais a m p lo d o q u e u m a referên cia ao rei d av íd ico ).
M ais ta rd e se p e n s o u e m Elias c o m o u m m essias sa ce rd o ta l la d o a la d o
com o M essias d av íd ico ; p o r ex em p lo , veja N . W ieder, "The Doctrine of
Two Messiahs among the Karaites", JJS 6 (1955), 14-25. M as, co m o v e re -
m o s a d ia n te , n ã o h á e v id ên cia su ficien te p a ra p e n s a r q u e E lias fosse
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 227

u m a fig u ra m essiân ic a n o te m p o em q u e João foi escrito , e m b o ra


E lias, c o m o p re c u rs o r d o S en h o r, p u d e s s e ter su b s titu íd o o M essias
d a v íd ic o e m c e rtas e x p e cta tiv a s escatológicas. A objeção real à teoria
d e R ichter é q u e n ã o h á e v id ê n c ia clara d e q u e os a d e p to s p e n sa sse m
e m Jo ão B atista co m o Elias. T o d a v ia, n a fo rm a siríaca d o Recognitions
P s e u d o -C le m e n tin o 1 54, os a d e p to s re tra ta m João B atista co m o estan-
d o o c u lto e m rec lu são , p re s u m iv e lm e n te p a ra v o ltar; esta n ã o é u m a
d e scriçã o im p ro v á v e l d e Elias. Ig u a lm e n te , se o m a te ria l d a n a rra ti-
v a lu c a n a d a in fân cia acerca d o B atista v eio d o s a d e p to s d o B atista,
Lc 1,17 d e sc re v e João B atista co m o Elias. A q u e stã o d a s p o lêm icas
a n ti-se c tá ria s p e rm a n e c e in ce rta , e a q u e stã o so b re Elias a p o n ta n d o
p a ra Jo ão B atista p o d e se r s im p le sm e n te u m a rem in iscên cia histórica.
A fo rm a e m q u e João B atista rejeita a p o ssib ilid a d e d e se r Elias,
em João, a p re s e n ta u m q u a d ro d ife re n te d a q u e le d e M arcos e M a-
teu s. M c 1,2 a p lica M l 3,1 a João B atista, com isso id en tifica n d o -o
co m o Elias. M t 11,14 se re p o rta as e sta s p a la v ra s d e Jesu s co n cern en -
tes a Jo ão B atista: "E se q u e re is d a r c ré d ito , é este o Elias q u e h a v ia
d e v ir" . F in a lm en te , a m b o s, M c 9,13 e M t 17,12, m o stra m Jesus afir-
m a n d o q u e E lias já v eio , p re s u m iv e lm e n te em João B atista. L ucas
p a re c e m a n te r u m a p o siç ã o in te rm e d iá ria , p o is fora d a referên cia na
n a rra tiv a d a in fân cia, o p ró p rio e v a n g e lh o d e L ucas n u n c a identifica
João B atista co m o Elias. D e fato, L ucas p a re c e o m itir d e lib e ra d a m e n te
p a s sa g e n s e m M arco s q u e in d u z iría m tal id en tificação . P ara Lucas,
Jesu s é o E lias fig u ra d a m e n te (cf. 4,24-26; 7,11-17 co m lR s 17,18-24;
o " s u b ir" d e 9,61 com 2Rs 2,11; 12,49 com lR s 18,38).
C o m o re s o lv e rm o s p o n to s d e v ista tão d iv e rso s acerca d a rela-
ção d e Jo ão B atista com a e x p e cta tiv a acerca d e Elias? S ahlin, art. cit.,
b u sc a re m o v e r a d ific u ld a d e e m João m e d ia n te u m a rec o n stru ç ã o q u e
faz Jo ão B atista a firm a r q u e ele é Elias. N ã o h á a b so lu ta m e n te n e n h u -
m a e v id ê n c ia p a ra esta re o rg a n iz a ç ã o d o s v ersícu lo s, e su a so lu ção
n ã o le v a ria a e v id ê n c ia lu ca n a em c o n sid eração . U m a ex p licação m ais
c o n s e rv a d o ra , q u e b u sc a h a rm o n iz a r os e v a n g e lh o s re m o n ta ao s d ias
p a trístic o s: E lias (João) n ã o e sta v a n a p e sso a d e João B atista, m a s exer-
cia p a ra co m Jesu s a fu n ç ã o d e Elias, p re p a r a n d o se u c a m in h o (M ar-
cos, M a te u s) - a ssim , G regório o G ra n d e PL 76:1100. E n tre tan to , esta
so lu ç ã o e v ita a v e rd a d e ira d ific u ld a d e , p o is a q u e stã o rela tiv a a João
B atista d iz re s p e ito p re c isa m e n te à fu n çã o q u e ele está ex ercen d o , e
João n e g a q u e está e x e rc e n d o a fu n çã o d e Elias.
228 II. O Livro dos Sinais

U m a so lu ç ã o m u ito m ais p ro v á v e l foi p ro p o sta p o r J. A. T.


Robinson, art. cit., o q u a l p e n sa q u e João e stá p re s e rv a n d o u m a rem i-
niscên cia h isto ric a m e n te c o rre ta d e q u e João B atista n ã o p e n s a v a em
si m esm o co m o a ex ercer o p a p e l d e Elias. H á n o s sin ó tico s p a s sa g e n s
claras (M c 6 , 1 4 7 , 2 8 ;15‫ )־‬in d ic a n d o q u e o p o v o e H e ro d e s faz iam d is-
tin ção e n tre João B atista e Elias; e em M t 17,10-13, o s d isc íp u lo s d e
Jesus, e n tre o s q u a is e sta v a m os p rim e iro s d isc íp u lo s d e João B atista
(P edro?), e x p re ssa m q u e n u n c a p e n s a ra m em João B atista c o m o Elias.
N o to can te às p a ssa g e n s s u p ra c ita d a s, q u e id e n tific a m João B atista
com Elias, este n ã o é a c o n cep ção d o p ró p rio João B atista, e sim a
co n cep ção d a teo lo g ia cristã p rim itiv a , a q u a l via n o p a p e l d e E lias a
m elh o r m a n e ira d e in te rp re ta r a relação d e João B atista co m Jesus; a
sab er, João B atista e sta v a p a ra a v in d a d e Jesus o q u e E lias teria e s ta d o
p a ra a v in d a d o S enhor.
(3) João Batista não era o Profeta - u m eco d e D t 18,15-18. A
leg islação d e u te ro n ô m ic a e sta v a p re o c u p a d a com v á rio s fu n c io n á -
rio s n o g o v e rn o e so c ie d a d e d e Israel: ju izes (16,18), o rei (17,14), sa-
c e rd o tes (18,1) e p ro fe tas. E n tre ta n to , a leg islação g e ra l c o n c e rn e n te
ao p ro fe ta , em v irtu d e d e su a fo rm u la ç ã o ("O S en h o r, v o sso D e u s,
su scitará u m p ro fe ta se m e lh a n te a m im [M oisés]"), v e io a se r in te r-
p re ta d a co m o a p re d iç ã o d a v in d a d e u m a fig u ra p a rtic u la r q u e se-
ria o P ro feta-co m o-M oisés. Veja Η . M. T eeple, The Mosaic Eschatologi-
cal Prophet (JBL M o n o g ra p h , x, 1957). E n c o n tra m o s e m lM c 4,41-50;
14,4, a e x p ectativ a d a v in d a d e u m p ro fe ta q u e p o d e ria re so lv e r os p ro -
b lem a s leg ais d a m esm a fo rm a q u e M oisés. S om os in fo rm a d o s q u e e m
Q u m ra n os essên io s a d e rira m à T o rá e às a n tig a s leis d a c o m u n id a d e
até q u e v iesse u m p ro fe ta - p re s u m iv e lm e n te o P ro feta-co m o -M o isés
(L. H . S1LBERMAN, VT 5 [1955], 79-81; R. E. B rown, C B Q 19 [1957], 59-61).
À a lu sã o bíblica p a ra este P ro feta receb e a te n ç ã o p ro e m in e n te n u m a
coleção d e p a s sa g e n s d e Q u m ra n q u e tra ta os in im ig o s com triu n -
fo escato ló g ico (4Q Testimonia, ca. 100 a.C . - e rro n e a m e n te c h a m a d a
u m a an to lo g ia m essiân ica; veja P. S kehan, C B Q 25 [1963], 121-22).
A t 3,22 id en tifica Jesus co m o se n d o o P ro feta-co m o -M o isés. A s ex-
p e c ta tiv a s d o p o v o c o n c ern e n te s à v in d a d e ste P ro feta sã o v ista s e m
Jo 6,14 e 7,40 em contextos o n d e se faz referência a M oisés (veja tam -
b é m 7,52). P ara co n su lta d e ta lh a d a , R. Schnackenburg, "Die Erwartung
des Prophetens nach dem Neuen Testament und den Qumran-Texten",
StEv, I, p p . 622-39.
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 229

É in te re s s a n te q u e e m su a s p e rg u n ta s d irig id a s a João B atista


os sa c e rd o te s p õ e m la d o a la d o Elias e o P rofeta-com o-M oisés. O u-
tro e scrito jo an in o , A p 11, d e scre v e d u a s te ste m u n h a s escatológicas
em te rm o s q u e ev o c am M oisés e Elias. E stas d u a s fig u ras ap a re c em
ju n ta s n a cen a sin ó tica d a T ra n sfig u ra ç ão (Mc 9,4). O fato d e q u e
E lias, à se m e lh an ç a d e M oisés, e sta v a a sso c ia d o com o M o n te Sinai
o u H o re b e (lR s 19,8), p ro v a v e lm e n te asso c ia n d o -se n o p e n sa m e n -
to p o p u la r, e e ste p a n o d e fu n d o d o d e se rto p o d e ría ter su g e rid o
q u e tin h a m a lg o e m c o m u m com João B atista. Veja G lasson, Móses,·
p p . 27-32. U m a v ez m ais, R ichter, art. cit., p e n sa q u e a ê n fase d e Jo ão
d e q u e Jo ão B atista n ã o e ra o P ro feta-co m o -M o isés e stá ra d ic a d a nas
a p o lo g é tic a s jo an in a s c o n tra o s a d e p to s d o B atista. N ã o há ev id ên cia
d e q u e o s a d e p to s c o n sid e ra sse m João B atista co m o se n d o este profe-
ta, e m b o ra M c 11,32 a firm a q u e to d o o p o v o c o n sid e ra v a João Batista
co m o um p ro fe ta , e o p ró p rio Jesu s d isse q u e João B atista e ra m ais q u e
u m p ro fe ta (M t 11,9).
R e c e n te m en te , A . S. van der W oude, e m La secte de Qumran
(Recherches Bibliques, IV; L ouvam : 1959), p p . 121-34, te m s u g e rid o q u e
os trê s p a p é is escato ló g ico s p ro p o sto s p e lo s sa ce rd o te s a João B atista
d e v e m e s ta r a sso c ia d o s às três fig u ra s e s p e ra d a s p e lo s sectário s d e
Q u m ra n . H á m u ito s elos, g eo g ráfico s e ideo ló g ico s, q u e co n ectam
João B atista a estes essên io s; e se m ter sid o n e c e ssa ria m e n te u m es-
sên io , Jo ão B atista b e m q u e p o d e ría ter sid o in flu e n cia d o p e lo con-
tato co m eles. Se V an der W oude está certo, os sa ce rd o te s e sta v a m
p ro p o n d o essa c o n ex ão e m su a s seleções d a s d iv e rsa s p o ssib ilid a d e s
escato ló g icas. E m 1QS ix 11 tem o s a frase: "... a té a v in d a d o p ro feta
e d o m essias d e A rã o e Israel". P a ra a e v id ê n c ia q u e id en tifica estas
três fig u ra s c o m o o P ro feta-co m o -M o isés, u m m essias s a c e rd o ta l e u m
m essias rég io , v e r n o sso a rtig o e m C B Q 19 (1957), 53-82. D u a s d as
fig u ra s e s p e ra d a s p o r Q u m ra n e ra m as m e sm a s q u e as d u a s d a s pos-
sib ilid a d e s s u g e rid a s a João B atista: o M essias e o P ro feta. A dificul-
d a d e re a l é se E lias e ra o m essias sa c e rd o ta l, co m o m a n té m V an der
W oude. H a v ia u m a tra d iç ã o d e q u e Elias era u m sa ce rd o te , e J eremias,
T W N T E , II, p . 932, su g e re q u e esta tra d iç ã o p o d e re c u a r ao s tem p o s
p ré-c ristã o s. T o d a v ia, os essê n io s d e Q u m ra n in sistia m e m u m sacer-
d ó cio d e lin h a g e m z a d o q u ita p u r a (i.e., d e sc e n d ia d e Z a d o q u e , sacer-
d o te e m J e ru sa lé m n a ép o c a d e D avi), e n ã o h á e v id ê n c ia d e q u e Elias
era s a c e rd o te z a d o q u ita . P a ra a rg u m e n to s u lte rio re s c o n tra id en tifica r
230 II. O Livro dos Sinais

E lias e o m essias sa ce rd o ta l, v e r J. G iblet e m L'attente du Messie (Re-


ch erch es B ibliques, I; L ou v ain : D esclée d e B ro u w er, 1954), p . 112ss.
Em n o ssa o p in iã o , a su g e stã o d e V an der W oude é p o ssív e l, p o ré m
n ão p ro v a d a . P ara o u tro s, co m o B rownlee e Stauffer, têm -se feito
ten ta tiv a s m en o s felizes d e in te rp re ta r as p e rg u n ta s e m Jo 1,20-21
c o n tra o p a n o d e fu n d o d o s R olos d o M ar M orto. Veja H . B raun, ThR
28 (1962), 198-95.

Primeiro Interrogatório: Segunda Fase: João Batista reivindica 0 papel da voz


isaiana (1,22-23)

H a v e n d o n e g a d o os p a p é is escato ló g ico s tra d ic io n a is, a g o ra


João B atista se id en tifica n o s m e sm o s term o s h u m ild e s p e lo s q u a is
os sin ó tico s o id en tifica m , a sa b er, co m o a v o z p re p a ra tó ria d e Is 40,3.
A p a ssa g e m d e Isaías se referia o rig in a lm e n te ao p a p e l d o s an jo s n a
p re p a ra ç ã o d o c a m in h o p e lo d e se rto p e lo q u a l Israel p u d e s s e reg re s-
sa r d o c a tiv eiro b ab ilô n ico à te rra d a P alestin a. C o m o u m a m á q u in a
d e te rra p le n a g e m m o d e rn a , os anjos tin h a m q u e n iv e la r as c o lin a s e
a te rra r os v a le s e, assim , p r e p a r a r u m a g ra n d e e stra d a . João B atista,
p o ré m , tem d e p r e p a r a r u m a e stra d a , n ã o p a ra o p o v o d e D e u s reg re s-
s a r à terra p ro m e tid a , e sim p a ra D e u s v ir ao se u p o v o . S u a fu n ç ã o d e
b a tiz a r e p ro c la m a r n o d e se rto v isa v a a b rir os co raçõ es d o s h o m e n s, ni-
v e la n d o seu o rg u lh o , p re e n c h e n d o su a v a c u id a d e , e a ssim p re p a rá -lo s
p a ra a in te rv e n ç ã o d e D eus.
A referên cia d e João a Is 40,3 d ife re e m d o is a sp ec to s d a q u e la
d o s e v a n g e lh o s sinóticos. Primeiro, os p ró p rio s e v a n g e lista s sin ó tico s
ap lic am o tex to a João B atista, e n q u a n to q u e e m João, é João B atista
q u e o ap lica a si m esm o . Em geral, isto te m sid o in te rp re ta d o c o m o o
m é to d o d e João d e d e ix a r a João B atista d a r ele m e sm o te ste m u n h o .
E n tre tan to , a g o ra sa b em o s q u e é p e rfe ita m e n te p la u sív e l q u e João Ba-
tista u sa sse o texto e m referên cia a ele m esm o . O s e ssê n io s d e Q u m ra n
u s a v a m p re c is a m e n te este texto p a ra ex p licar p o r q u e d e c id ira m v iv e r
n o d eserto : e sta v a m p re p a ra n d o o c a m in h o p a ra o S e n h o r, e s tu d a n d o
e o b s e rv a n d o a Lei (1QS 8,13-16). O u so d o tex to isa ia n o p o d e ria se r
o u tro p o n to d e c o n ta to e n tre João B atista e Q u m ra n . Segundo, João se
re p o rta à citação n u m a fo rm a lig e ira m e n te d ife re n te d a q u e la d o s si-
n óticos. E n q u a n to a m b o s s e g u e m a tra d iç ã o g e ra l d a LXX (v er n o ta),
os sin ó tico s v a ria m d a LXX e m a p e n a s u m a frase:
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 231

U m a v o z n o d e se rto clam an d o :
" P re p a ra i o c a m in h o d o S enhor;
fazei re ta su a [LXX: d e D eus] v e re d a " .

Jo ão , e m c o n tra p a rtid a , tem a p e n a s u m a lin h a d e m en sag em :


" E n d ire ita r o c a m in h o d o S e n h o r"; e isto c o n té m e le m en to s d e am -
b a s as lin h a s d a m e n sa g e m sin ó tica d a LXX. P o d e-se su g e rir q u e João
s im p le s m e n te re d u z iu a fo rm a tra d icio n a l; m as, co m o in siste D odd,
Tradition, p. 252, João é a lta m e n te in d e p e n d e n te ao citar a E scritura.

Segundo Interrogatório: João Batista descreve seu próprio batismo como prelimi-
nar e exalta aquele que vem (1,24-28)

O s e m issá rio s rec e b e ra m u m a re sp o sta às su a s p e rg u n ta s con-


c e rn e n te s ao p a p e l d o B atista; a g o ra q u e re m u m a ju stificativ a p a ra
su a fu n ç ã o d e b a tiz a r. A q u e le s e stu d io so s q u e creem q u e h á d o is g ru -
p o s d e e m issá rio s e n v o lv id o s em 1,19 e 24 (veja n o ta), p e n sa m q u e a
s e g u n d a p e rg u n ta é m ais teó rica e d ig n a d o s farise u s com su a p ro -
p e n s ã o teo ló g ica. E n tre ta n to , o q u e stio n a m e n to ad ic io n al feito p elos
em issário s podería sim p le sm e n te ser o re s u lta d o d e re d u p lic a ç ã o lite-
rária; veja p p . 252-257 abaixo. A p e rg u n ta n o v. 25 n ã o é p ercep tív el-
m e n te u m a p ro g re s s ã o à p e rg u n ta n o v. 19, já q u e a p rim e ira p e rg u n ta
foi c e rta m e n te p ro v o c a d a p e lo fato d e João e sta r b a tiz a n d o .
A objeção p ro p o sta p elo s fariseus tem su a lógica: se João Batista
n ão re iv in d ic a n e n h u m p a p e l rec o n h e c id a m e n te escatológico, p o r
q u e ele e stá re a liz a n d o u m a ação escato ló g ica, com o b a tiz ar? H á al-
g u n s a sp e c to s in te re ssa n te s na re sp o sta d e João B atista. Ele p ro fessa
e sta r b a tiz a n d o a p e n a s co m á g u a ; e em 1,33 o u v ire m o s q u e Jesus se
p õ e a b a tiz a r co m u m E sp írito san to . Esta d istin çã o d e d o is tip o s d e
b a tis m o é c o m u m n o s q u a tro e v a n g e lh o s e p a re c e ser u m a p e cu larie-
d a d e cristã, p o is n o p e n s a m e n to h e b re u b a tism o o u p u rific a ç ão com
á g u a e co m u m e sp írito sa n to v ê m ju n to s. Em Ez 36,25-26, D eu s p ro -
m ete: " A s p e rg ire i á g u a p u ra so b re v ós, e sereis lim p o s d e to d as as
v o ssas im p u re z a s... E u vos d a re i u m co ração n o v o , e p o rei d e n tro d e
v ó s u m espírito novo". Zc 13,1-3 p ro clam a: " N a q u e le d ia h a v e rá u m a
fonte aberta p a ra a casa d e D avi, e p a ra os h a b ita n te s d e Jeru salém
contra 0 pecado, e c o n tra a im p u re z a ... farei sair d a terra tam b é m os
p ro fe ta s e o espírito de impureza". Em su a reg ra d e v id a, os essên io s d e
232 II. O Livro dos Sinais

Q u m ra n e n s in a v a m (1QS 4,20-21): "D eus... p u rific a rá o h o m e m p o r


m eio d e u m e sp írito sa n to , e a sp e rg irá so b re ele um espírito de verdade
como água purificadora". O p e n s a m e n to c ristã o te m d iv id id o e ste s d o is
asp ecto s d e b a tism o e p u rific a ç ão , e a ssim p ro ss e g u iu e x p lic a n d o a
relação d o b a tism o d e João B atista com o b a tism o cristão . E sta n o ta
a in d a p e rs is te em A t 19,1-6, o n d e os d isc íp u lo s q u e b a tiz a v a m co m o
b a tism o d e João sã o d istin to s, p o rq u e n ã o h a v ia m rec e b id o o E spírito.
P o d e m o s c o m p a ra r Jo 1,26-27 e 33 com o q u e o s sin ó tico s tê m a
d iz e r so b re os d o is b a tism o s e a q u e le q u e v e m d e p o is d e João B atista:

Mc 1,7-8: H á v in d o a p ó s m im (op isõ m ou) u m q u e é m ais p o d e ro s o


d o q u e eu;
Eu n e m m esm o so u a p to (hikanos) d e a b a ix a r e d e s a ta r as
co rreias d e su a s sa n d álias.
Eu v o s te n h o b a tiz a d o com á g u a (h y d a ti ),
m a s ele v o s b a tiz a rá com u m E sp írito san to .
Lc 3,16: Eu v o s b a tiz o co m á g u a (hydati);
m as h á v in d o u m q u e é m ais p o d e ro s o d o q u e e u
p a ra q u e m e u n e m m esm o so u a p to p a ra d e s a ta r as cor-
reias d e su a s sa n d álias.
Ele v o s b a tiz a rá com u m E sp írito sa n to e fogo.
M t 3,11: Eu vos batizo com á g u a (en hydati) p a ra arrependim ento;
m as u m q u e está v in d o a p ó s m im (opisõ m ou) é m a is p o -
d e ro so d o q u e e u ,
p a ra q u e m e u n ã o so u n e m m e sm o a p to p a ra le v a r su a s
sa n d álias.
Ele v o s b a tiz a rá co m u m E sp írito sa n to e fogo.
A t 13,25: M as eis h á v in d o a p ó s m im (m et3em e) u m p a ra q u e m n ã o
so u d ig n o (axios) d e d e s a ta r a sa n d á lia d e se u s pés.

U m a v ez q u e p a rte d o rela to q u e João d á so b re João B atista tem


p a ra lelo s sinó ticos, a lg u n s têm s u g e rid o q u e tem o s u m a a d iç ã o red a -
cional e m p re s ta d a d a tra d içã o sinótica. N a In tro d u ç ã o (P arte III:B) te-
m o s m a n tid o q u e a m a io r p a rte d a tra d içã o jo an in a é in d e p e n d e n te d a
trad ição sinótica. C o m p ro v e m o s a q u i, v e n d o se o re la d o d e João p o d e
ser ex p licad o co m o u m e m p ré stim o d e a lg u m e v a n g e lh o sinótico.
P rim e iro , João te m asp ec to s e m c o m u m com A to s co m o o p o s to aos
o u tro s e v a n g e lh o s, a sa b er, o u so d e " sa n d á lia " n o sin g u la r, o u so d e
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 233

" d ig n o " (a x io s ) e m v e z d e " a p to " (h ik a n o s ), e n ão em d e sc re v e r aq u e-


le q u e v e m co m o se n d o " m a is p o d e ro s o d o q u e e u ". T o d a v ia, ao u sa r
op isõ m ou p a ra " a p ó s m im ", João c o n c o rd a com M arcos e M ateu s
c o n tra A to s c o m s e u m et3em e. A o fa la r d e d e s a ta r as c o rre ia s d a san-
d á lia , Jo ão se a p ro x im a m a is d e L u cas, p o is to d o s os o u tro s têm va-
ria ç õ e s (Mc: " a b a ix a r" ; M t: " le v a r as sa n d á lia s " ; At: " d e s a ta r a san-
d á lia " ). A o n ã o m e n c io n a r u m b a tis m o co m fogo, João se a p ro x im a
m a is d e M a rc o s, c o n tra M a te u s e L ucas. A o u s a r a fra se en hydati,
João se a p ro x im a m a is d e M a te u s, c o n tra M arco s e L ucas (hydati).
M a rc o s p õ e os d o is tip o s d e b a tis m o e m p a ra le lism o im e d ia ta m e n te
a n tité tic o o u c o n tra s ta n te , e n q u a n to M a te u s e L u cas s e p a ra m os d o is
b a tis m o s ao in te rc a la r u m v e rso e n tre as d u a s m en çõ es; João a v an ça
a in d a m a is, s e p a ra n d o -a s p o r m eio d e u m n ú m e ro d e v e rsíc u lo s.
A lu z d e s ta e v id ê n c ia , ficaria b e m e v id e n te q u ã o difícil e c o m p lic a d o
é b u s c a r u m a ex p lic aç ã o p a ra a fo rm a d e João se e x p re ssa r co m o u m
e m p ré s tim o d o s e v a n g e lh o s sinóticos. C o m o o b se rv a Dodd, Tradition,
p. 256, "A h ip ó te se m ais sim p les, e s e g u ra m e n te a m ais p ro v áv e l, é
q u e e sta p a rte d a p re g a ç ã o d o B atista, q u e e v id e n te m e n te e ra consi-
d e ra d a n a Igreja p rim itiv a co m o d e cru cial im p o rtâ n c ia , fosse p rese r-
v a d a e m d iv e rs o s ra m o s d a tra d iç ã o , e q u e as v ariaçõ es s u rg ira m no
p ro ce sso d e tra n s m is s ã o o ral".
E m lu g a r d e " a lg u é m é m ais p o d e ro s o d o q u e e u ", João B atista,
d e a c o rd o co m João, fala d e "a u m e n tre v ó s a q u e m n ã o reconheceis".
Esta d e scriçã o n ã o está im p lícita co m o u m a c e n su ra ao a u d itó rio p o r
su a c e g u e ira , p o is João B atista a d m ite e s p o n ta n e a m e n te (v. 33) q u e
ele m e sm o n ã o p o d ia rec o n h e c er Jesu s sem o au x ílio d e D eus. A ntes,
n e sta d e scriçã o p o d e m o s ter u m eco d e u m a teo ria p o p u la r so b re o
M essias, isto é, a teo ria d o M essias o cu lto . S e g u n d o as ex p ectativ as
m essiân ic as " n o rm a is " , o M essias seria c o n h e cid o p o rq u e faria sua
a p a riç ã o e m B elém (Jo 7,42; M t 2,5). M as ta m b é m p a re c e ter h a v id o
u m a te n sã o a p o c alíp tica d a e x p e c ta tiv a m essiân ica o n d e a p resen ça
d o M essias n a terra seria secreta a té q u e, d e re p e n te , ele se m o strasse
ao se u p o v o . T em o s u m eco d isto e m Jo 7,27 (veja ali). A teo lo g ia d o
M essias o c u lto é e n u n c ia d a p e lo ju d e u T ifo em seu a rg u m e n to com
J ustino n o 2“ século: "O M essias, a in d a q u a n d o n asça e co n cretam en -
te ex ista e m a lg u m lu g a r, é u m d e sc o n h e c id o " (Dialogue 8,4; 60,1).
T ifo m a n té m q u e o M essias a g u a rd a ria até q u e Elias v iesse p a ra un-
gi-lo e fazê-lo co n h ecid o . (É in te re ssa n te q u e , ju sta m e n te co m o Elias
234 II. O Livro dos Sinais

está a p o n ta n d o p a ra o M essias, João B atista a p o n ta p a ra Jesus). E ste


tip o d e m essian ism o se a p ro x im a m u ito m ais d a s e x p e c ta tiv a s d o Fi-
lh o -d o -H o m e m -o cu lto d e 2 Enoque d o q u e d a s e x p e c ta tiv a s d a v íd ic a s
a sso ciad as a M q 2, e re a lm e n te p o d e re p re s e n ta r u m a c o m b in a çã o d a s
d u a s ten sõ es. N o s sinóticos, se e n c o n tra m o s as e x p e cta tiv a s d a v íd ic a s
p a d rã o n a s n a rra tiv a s d a in fân cia, o tem a d o M essias o c u lto p a re c e
v ir a lu m e n a co n fissão p e trin a (Mc 8 ,2 7 3 0 ‫ ־‬e p a r.), o n d e P e d ro reco-
n h ece Jesu s co m o o M essias, cuja v e rd a d e ira id e n tid a d e te m e sta d o
o cu lta d o s h o m e n s re c o n h e c id a so m e n te d e D eus. P a ra u m a d isc u ssã o
m ais co m p le ta d o M essias o cu lto , veja S. M owinckel, He that Cometh
(N ashville: A b in g d o n , 1954), p p . 304-8; E. Stauffer, " A g o n sto s C h ris-
to s", BNTE, p p . 281-99.
S o m en te João n o s in fo rm a q u e João B atista p a rtilh a v a d e s ta s ex-
p e c ta tiv a s a p o c alíp tica s d e a lg u é m o c u lto q u e v iria, e isto é p e rfe ita -
m en te p lau sív e l. E sta refe rê n c ia é ta m b é m p a rte d a a p o lo g é tic a c o n tra
os a d e p to s d o B atista? N a fo rm a siríaca d o Recognitions P se u d o -C le -
m entino, I 54, os a d e p to s su sten tav am que, ap ó s sua m orte, João Batista
rea lm e n te v iv ia em iso la m e n to secreto e, se g u n d o se s u p u n h a , e sta v a
p a ra v o lta r. Esta p o ssib ilid a d e é u m a in d icação d e q u e o s sectário s
o lh av a m p a ra João B atista co m o o M essias o cu lto ? Stauffer, p. 292,
e n tre o u tro s, p e n sa assim . N este caso, a p o lêm ic a c o n tra as re iv in d i-
cações d o s sectário s le v a ra m João a re g is tra r a s rem in isc ên c ia s d e q u e,
p a ra João B atista, h a v ia d e v ir U m q u e seria d e sco n h e c id o .
H á o u tro p o n to q u e d e v e m n o s referir a n te s q u e d eix em o s 1,26-27.
C ullmann, EC W , p. 60ss., é u m d o s q u e v e e m n e ste s v e rsíc u lo s u m a
forte referên cia ao sa c ra m e n to c ristã o d o b a tism o . E m 1,26, C ullmann
crê q u e João está c o n tra s ta n d o o b a tism o d o B atista co m á g u a e a p e s-
soa d o p ró p rio Jesus. Ele afirm a q u e o c o n tra ste e m João n ã o é co m o
é n o s sinóticos:

Eu e sto u b a tiz a n d o com á g u a vs. Ele b a tiz a rá co m u m E sp írito


san to ;
mas, E u e s to u b a tiz a n d o com á g u a vs. H á u m e n tre v ó s a q u e m n ão
reco n h eceis.

N ão o b stan te, com o tem o s salien tad o , é so m e n te M arcos q u e faz


u m co n traste imediato e n tre os d o is tipos d e b atism o . A lém d o m ais, o
co n traste real e m João n ã o é e n tre b a tism o com á g u a e a p e sso a d e Jesus,
2 · O testemunho de João Batista: acerca de sua função 235

e sim e n tre João B atista e o D esconhecido q u e virá. Em TS [Theological


Studies ] 23 (1962), 197-99, já d isc u tim o s as referên cias p ro p o sta s ao
b a tis m o c ristã o n e sta p a ssa g e m e d e sc o b rim o s q u e n ão fo ram m u i-
to c o n v in c e n te s. N a tu ra lm e n te , o b a tism o d e Jesus, p o r João B atista,
tev e u m a im p o rta n te in flu ê n cia so b re a te o ria e p rá tic a d o b a tism o
c ristã o - T omás de A quino o c o n sid e ra v a co m o a ocasião d a in stitu ição
d o b a tis m o cristã o (veja F.-M. Braun, "Le baptême d'après le quatrième
évangile", R T h o m 48 [ 1948], 358-62). M as a q u e stã o em p a u ta é se o
re la to q u e João faz d isto tem a lg u m te o r sa cra m e n tal especial, e não
e n c o n tra m o s tal ev id ên cia.
E ste p rim e iro d ia te rm in a com u m a referên cia ao local o n d e João
B atista d a v a te s te m u n h o . E n c e rra r u m a seção com u m a referência
g eo g ráfica é c o m u m e m João (6,59; 8,20; 11,54). E ste local d a lé m d o
J o rd ã o será m e n c io n a d o o u tra v e z à m o d a d e in clu sã o em 10,40, q u e
n u m p rim e iro e stá g io d o e v a n g e lh o p o d e ter m a rc a d o o fim d o m inis-
tério p ú b lic o . João tem o u tra in fo rm a ç ã o geográfica so b re João B atista
n ão e n c o n tra d a n o s sin ó tico s, p o r e x em p lo , c o n c ern e n te ao m in istério
d e João B atista e m E n o n , n a s p ro x im id a d e s d e S alim (3,23). C o m o in-
siste D odd , Tradition, p p . 249-50, estes d e ta lh e s geo g ráfico s em p res-
tam m a tiz à te o ria d e q u e o Q u a rto E v a n g e lh o p re se rv a tra d iç ã o in d e-
p e n d e n te so b re João B atista.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia no fi-


n al d o § 3.!
3 .0 TESTEMUNHO DE JOÃO BATISTA:
- ACERCA DE JESUS
( 1 ,29-34 )

1 29N o d ia se g u in te , q u a n d o ele a v isto u Jesus v in d o e m s u a d ire ç ão ,


exclam ou:

"E is o C o rd e iro d e D eu s
q u e tira o p e c a d o d o m u n d o .

30E so b re q u e m e u disse:

'A p ó s m im v e m u m h o m e m
q u e m e p re c e d e u ,
p o is a n te s d e m im ele existia.'

31"E u m esm o n ã o o co n h ecia, m a s o m o tiv o d e e u v ir e b a tiz a r com


á g u a , foi p a ra q u e ele se rev e lasse a Israel".

32João d e u ta m b é m este teste m u n h o :

"E u te n h o v isto o E sp írito d e sc e n d o


com o p o m b a v in d a d o céu,
e v eio re p o u s a r so b re ele.

33"E eu não o conhecia; m as A quele que m e enviou a b atizar com água


m e disse: 'Q u a n d o vires o Espírito descer e rep o u sa r sobre alguém ,

29: v i u ‫ ׳‬e x c la m o u . No tempo presente histórico.


3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 237

esse é aq u ele q u e v em b atizar com u m Espírito santo.' 34O ra, eu mes-


m o ten h o visto e tenho testificado: 'Este é o escolhido d e D eus'".

NOTAS

1.29. N o d ia s e g u i n te . A p aren tem en te (à luz do v. 32), a cena joanina


o co rre ap ó s o b atism o de Jesus, não m encionado por João. Entre os
sinóticos, so m ente Mt 3,14 su b en ten d e um conhecim ento de Jesus
da p a rte de João Batista antes do batism o. Lucas não, ain d a quando,
seg u n d o a n a rra tiv a lucana da infância, João Batista e Jesus sejam
a p a re n ta d o s.
0 C o r d e ir o d e D e u s . O significado do genitivo dependerá da interpretação
de "o cordeiro" (veja com entário). Se o C ordeiro é o Servo, então a frase
de João segue o p adrão do Servo d e la h w e h . Se o C ordeiro é o cordeiro
pascal, então o genitivo pode ter o sentido de "dado por Deus".
tira 0 peca d o . Aqui, o presente pode ter função de futuro (ZGB, § 283): "re-
m overá". Este verbo a irein ocorre na LXX de ISm 15,25; 25,28, no senti-
do de perdoar pecado ou rem over culpa, ljo 3,5 tem "rem ove pecados
[plural]". O plural se refere a atos pecam inosos, enquanto o singular se
refere a um a condição pecaminosa. Visto que a cláusula "que rem ove o
pecado do m undo" se encontra som ente em Jo 1,29, e não com a outra
m enção do Cordeiro em 1,36, há quem o considere como sendo a adição
do evangelista a um a tradição mais original na qual João Batista disse
sim plesm ente "Eis o Cordeiro de Deus".
30. so b re q u e m . A redação p e r i, que evidentem ente significa "sobre", agora,
com a evidência adicional de P6675‫׳‬, resultaria em h y p e r, que oferece dois
possíveis significados. Bernard, 1, p. 47, opta por "em cujo meio"; mas
BDF, § 231', e ZGB, § 96, sugere h y p e r = p e r i neste caso.
Eu d is se . O v. 30 é quase idêntico ao v. 15; o "eu disse" pode ser um a ten-
tativa redacional de fazer adm issão pela introdução do v. 15 no hino do
Prólogo. N a verdade, João Batista não disse isto num a ocasião anterior
no evangelho. Encontramos um caso sim ilar de auto-citação sem um
antecedente exato em 3,28.
A p ó s m im v e m u m h o m em . O v. 15 fala de "aquele que vem [ho
erchom enos] após mim"; aqui, temos erchetai - veja nota sobre o v. 27. Dodd,
T ra d itio n , pp. 273-74, sugere que isto não precisa ser uma nota de tempo, mas
pode referir-se ao seguinte como um discípulo; assim tam bém Boismard,
"Les traditions", pp. 28-29. No entanto, os paralelos sinóticos que vimos
238 II. O Livro dos Sinais

no com entário sobre o v. 27 se referem ao tem po, e que, provavelm ente,


seja o que está implícito em João.
a n te s de m im ele e x is tia . Literalmente, "antes de m im ele era [ein ai] quan-
do a existência de Jesus está envolvida, João prefere o verbo "ser", em
vez do verbo "tornar-se" (g in e sth a i - m esm o contraste em 8,58). A paren-
temente, a palavra para "antes", o adjetivo p r õ t o s ("prim eiro"), usada
como um com parativo, tem significação tem poral, m as essa tradução
anularia o contraste:

está para vir [ e r c h e s th a i ] após [opisõ] = tem po


há de vir [g in e s th a i] adiante de [ e m p r o s t h e n ] = posição
era [ e in a i] antes de [p r õ to s ] = tem po

A razão real para os com entaristas evitarem a referência tem poral, na ter-
ceira cláusula, é que ela põe o tema da preexistência de Jesus nos lábios
de João Batista (veja comentário). A tentativa de Dodd de evitar isto é
prim orosa (T r a d itio n , p. 274): "H á um hom em em m eus passos que assu-
m iu a precedência sobre mim, porque ele é e sem pre foi essencialm ente
m eu superior". O utros atribuem a João Batista som ente as duas prim ei-
ras linhas, e a últim a ao evangelista. Isto deixaria João Batista com um
contraste entre seguir no tem po e preceder em posição; a últim a linha
que diz respeito à precedência no tem po parece essencial.
31. e b a tiza r. Literalmente, "batizando"; veja ZGB, § 283-84, para o possível
tem po futuro: "Eu vim para batizar".
com á g u a . Em vista da fraca evidência patrística, Boismard, "Les tr a d itio n s " ,
p. 10, om ite isto como um a glosa.
revelo u . P h a n ero u n é frequente em João (9 vezes quando contrastado com
um a vez nos sinóticos, Mc 5,22), particularm ente para a saída de Jesus da
obscuridade e ser visto pelos homens.
Israel. Em geral, este term o, no uso joanino, tem um a boa conotação (como
oposto a "os judeus"), e se refere ao povo de Deus.
32. ten h o v is to . O tem po perfeito indica que a ação, que presum ivelm ente
ocorreu no batism o de Jesus, ainda está tendo seu efeito, a saber, o Espíri-
to ainda está com Jesus. Para o verbo th ea sth a i, veja Apêndice 1:3, p. 794ss;
na referência paralela no v. 33 para ver o Espírito, usa-se h oran (e id e in ).
com o p o m b a . Esta frase é om itida em OS; e há m enos hesitação em sua se-
quência nos mss. gregos. Para alguns, isto é evidência de que ela foi in-
terpolada dos sinóticos. No entanto, pode ser que a confusão foi causada
pela ausência da frase no v. 33; a hesitação sobre a sequência pode re-
fletir a influência de diferentes sequências sinóticas nos copistas do ms.
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 239

Por que um a pom ba seria o símbolo do Espírito, não é totalm ente claro.
Talvez o pairar do espírito sobre as águas prim evas, em Gn 1,2, tenha su-
gerido o pairar de um a ave (como em Dt 32,11); esta observação aparece
na tradição judaica (B ernard, I, p. 49). A. F euillet, RSR 46 (1958), 52444‫־‬,
dá um tratam ento com pleto da questão e sugere que o símbolo da pom ba
é um a alusão ao povo do novo Israel como o fruto do Espírito.
v e io re p o u sa r so b re ele. Esta frase tam bém se encontra na descrição do batis-
mo no e v a n g e lh o s e g u n d o o s H e b re u s (Jerônimo In Isaia 20, 2; PL 34:145). Se
apoia o Evangelho segundo aos H ebreus na tradição joanina? Sabemos
dos paralelos relativam ente poucos entre duas obras, e é mais provável
que am bos, João e esse escrito, estão extraindo da tradição não sinótica.
33. A q u e le q u e m e e n v io u . Veja nota sobre 1,6.
co m á g u a . Boismard trata como um a glosa; veja nota sobre v. 31.
m e d is se . João Batista é aquele a quem a palavra de Deus veio (Lc 3,2).
a q u ele q u e v e m b a tiz a r co m u m E sp ír ito sa n to . Boismard trata isto também
como um a glosa. Não obstante, a sugestão de que foi interpolado dos
sinóticos se depara com a objeção de que a forma joanina não é a mesma
que quaisquer das form as sinóticas da cláusula. Em particular, Mateus
e Lucas m encionam o batism o "com um Espírito santo e fo g o " . Estas
são realm ente alternativas, pois o batism o com um Espírito santo é um
purificação benéfica, enquanto o batism o com fogo é um a purgação des-
trutiva (Is 4,4) - P. van I mschoot, " B aptêm e d 'ea u e t b a p tê m e d 'e s p r it sa in t" ,
ETL 13 (1936), 65366‫־‬. O "e fogo" poderia ter sido parte do logion origi-
nal, pois a om issão cristã da frase é m ais fácil de explicar do que a adição.
34. te n h o v is to ... te n h o te stific a d o . Tem pos perfeitos; a ação continua.
0 e sc o lh id o d e D e u s . Esta leitura se encontra na escritura original do Co-
dex Sinaiticus, OL, OS e em alguns Pais, e pode ter o apoio do Papyrus
O xyrhynchus 208 (3‫ ט‬século). A vasta maioria das testem unhas gregas
lê "o Filho de Deus", como fazem com entaristas como B ernard, B raun,
B ultmann, entre outros. No entanto, com base nas tendências teológi-
cas, é difícil im aginar que escribas cristãos m udassem "o Filho de Deus"
para "o escolhido de Deus", enquanto um a m udança na direção opos-
ta seria totalm ente plausível. A harm onização com os relatos sinóticos
do batism o ("Tu és [Este é) m eu F ilho am ado") tam bém explicaria a in-
trodução de "o Filho de Deus" em João; o m esm o fenôm eno ocorre em
6,69. Portanto, a despeito da evidência textual mais fraca, parece pre-
ferível - com L agrange, Barrett, Boismard, entre outros - aceitar "o es-
colhido de Deus" como original. Para um interessante paralelo para as
duas redações, contraste Lc 18,35 com Mt 27,40. Em um texto aramaico
de Q um ran, um a figura que parece ter um papel especial no plano
240 II. O Livro dos Sinais

providencial de Deus (o Messias?) é cham ado "o escolhido de Deus"


( b h y r ’I h ’). Veja J. Starchy, " U n te x te m e s sia n iq u e a ra m éen d e la g r o tte 4
de Q u m r a n " , M é m o ria l d u c in q u a n te n a ir e d e l'E co le d e s la n g u e s o rie n ta le s de
(Paris: Bloud et Gay, 1964), pp. 51-66. Pode
l'I n s titu t C a th o liq u e d e P a ris
ser que Starchy estivesse confiante dem ais na identificação como Mes-
sias, como salientado por J. F itzmyer, CBQ 27 (1965), 348-72.

COMENTÁRIO

João Batista, q u e foi tão rese rv ad o acerca d e seu p ró p rio p a p e l, a g o ra se


to m a enérgico em d a r teste m u n h o acerca d e Jesus. N u m a série d e teste-
m u n h o s p ro fu n d o s, João Batista identifica Jesus com o o c o rd eiro d e D eu s
(v. 29), com o o p reex isten te (30) e com o o p o rta d o r d o E spírito (32-34).
A ssim , aq u i João e x p a n d e p a ra nós, n os lábios d e João Batista, to d a u m a
cristologia. A q u eles fam iliarizad o s com o perfil d e João B atista encon-
tra d o n a trad ição sinótica terão d ific u ld a d e d e im a g in a r q u e o Batista
conhecesse a preexistência d e Jesus o u seu sofrim ento e m orte. P ara al-
g u n s críticos, isto n ão é pro b lem a, já q u e p a ra eles o Batista sim p lesm en te
se to m o u o a ra u to d a teologia d o evangelista, e as p a la v ra s a trib u íd a s
ao Batista são criação teológica m ais q u e rem iniscência histórica. N o en-
tanto, p o d e ser q u e a solução n ão seja tão sim ples. V erem os abaixo q u e
as afirm ações a trib u íd a s ao Batista p o d e m ter tid o p a ra ele u m se n tid o
em perfeita consonância com a p ersp ectiv a escatológica d o AT. N este
caso, a o bra d o evangelista n ão era criar os teste m u n h o s d e 1,2 9 3 4 ‫־‬, e sim
to m ar m aterial tradicional so b re o Batista e fazer d ele o veículo d e u m a
p ercep ção cristã m ais p ro fu n d a p a ra o m istério d e Jesus. T em os e x p o sto
este p o n to d e vista p o r extenso em u m artig o c itad o na B ibliografia.
C o m o se d á com a seção a n te rio r, esta seção p o d e se r d iv id id a
em d u a s p a rte s: 29-31: Jesus co m o 0 Cordeiro de Deus e 0 preexistente; e
32-34: Jesu s co m o "portador" do Espírito e 0 escolhido de Deus. C a d a p a rte
m en cio n a q u e o B atista estava b a tiz a n d o com á g u a , q u e ele v iu Jesus,
q u e ele testifica a seu resp eito e q u e ele n ão o reco n h eceu p rev ia m e n te.

Jesus como 0 Cordeiro de Deus (1,29)

N e ste v ersícu lo , e n c o n tra m o s p e la p rim e ira v e z u m a fó rm u la


d e rev elação q u e João u sa e m d iv e rsa s ocasiões. M . de G oedt, N TS 8
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 241

(1961-62), 142-50, tem a n a lisa d o a fó rm u la assim : u m m en sa g e iro d e


D eu s v ê u m a p e sso a e d iz : "E is!" Isto é s e g u id o d e u m a d escrição em
q u e o v id e n te rev ela o m istério d a m issã o d a p esso a. O u tro s e x em p lo s
d o p a d rã o se e n c o n tra m e m 1,35-37.47-51; 19,24-27. E sta fó rm u la tem
su a s ra íz e s n o A T, p o r e x em p lo , em IS m 9,17: " Q u a n d o S am u el v iu
S aul, o S e n h o r lh e d is s e : 'E is a q u i está o h o m em ... q u e g o v e rn a rá so b re
o m e u p o v o " '. E n tre ta n to , se u u so n o N T é p e c u lia rm e n te jo an in o , d e
m o d o q u e s a b e m o s q u e to d o o m a te ria l tra d ic io n a l q u e se e n co n tra
em 1,29 te m sid o re fu n d id o e m u m m o ld e jo an in o .
R e to rn e m o s a g o ra ao sím b o lo d e "o C o rd e iro [a m n o s ] d e D eu s",
u m sím b o lo so b re cujo sig n ificad o h á u m a g ra n d e q u a n tid a d e d e dis-
cu ssão . U m s u m á rio c o n v e n ie n te d a lite ra tu ra e n tre 1950-60 p o d e ser
e n c o n tra d o e m V irgulin, a r t . c it . Sem p re te n d e rm o s se r e x au stiv o , dis-
c u tire m o s trê s s u g e stõ e s p rin c ip ais.
(1) O Cordeiro como o cordeiro apocalíptico. D odd, In te rp re ta -
tio n , p p . 230-38, aceita este co m o o sig n ificad o ten c io n a d o p e lo evan-
gelista. N ã o o b sta n te , ju n ta m e n te com B arrett, a r t. c i t . , crem o s qu e
esta in te rp re ta ç ã o d o C o rd e iro p o d e r m ais b e m e n te n d id a co m o o sig-
n ific ad o te n c io n a d o p o r João Batista.
N o c o n te x to d o ju ízo final a p a re c e aí, n a ap o c alíp tica ju d aica, a
fig u ra d e u m c o rd e iro v ito rio so q u e d e s tru irá o m al n o m u n d o . O
T e s t a m e n t o d e J o sé, 19,8, fala d e u m c o rd e iro ( a m n o s ) q u e v en ce as bes-
tas m a lv a d a s e as e sm a g a sob a p la n ta d o s pés. H á n e sta p a ssa g e m
d o s T e s t a m e n t o s d o s D o z e P a tr i a r c a s in te rp o la ç õ e s cristãs, m as C harles,
A P C h , II, p. 353, m a n té m q u e a fig u ra p rin c ip a l n ã o é u m a in te rp o -
lação. (O v a lo r d e sta p a ssa g e m d e p e n d e rá , em a lg u m a ex ten são , da-
q u ela teo ria d a co m p o siç ão d o T e s t a m e n t o d o s D o z e P a tr i a r c a s , i.e., se
é b a s ic a m e n te u m a o b ra ju d a ic a o u cristã). E m 1 E n o q u e 90,38, q u e é
p a rte d a g ra n d e aleg o ria an im a l d a história, ali chega n o final u m to u ro
q u e se c o n v e rte em u m c o rd e iro com chifres n a s costas. (Infelizm en-
te, a lín g u a e tío p e lê " p a la v ra " em v ez d e "co rd e iro " , e assim n o ssa
re d a ç ã o re p re s e n ta u m a co n jetu ra, m as p ro v a v e lm e n te in co rreta ". N o
co n tex to d o ju íz o final, so m o s in fo rm a d o s q u e o S e n h o r d a s o v elh as
se re g o z ijo u so b re o c o rd eiro . N o N T , a fig u ra d o c o rd e iro v e n c ed o r
a p a re c e n o A p o calip se: em 7,17, o C o rd e iro é o líd e r d o s po v o s; em
17,14, o C o rd e iro e sm a g a os p o d e re s m a u s d a terra.
A im a g e m d o c o rd e iro a p o c alíp tico e d e s tru id o r se a d e q u a m u ito
b em ao q u e sa b em o s d a p re g a ç ã o escatológica d o B atista. João Batista
242 II. O Livro dos Sinais

ch am o u a aten ção p a ra a ira v in d o u ra (Lc 3,7), q u e o m a c h a d o já esta-


va p o sto n a raiz d a á rv o re e q u e D eu s já d e rru b a ra e lan çara ao fogo a
p ró p ria á rv o re q u e n ão p ro d u z fru to (Lc 3,9). A m b o s, M t 3,12 e Lc 3,17,
refletem a fero c id a d e gráfica d a e x p e cta tiv a d o ju ízo q u e o B atista n u -
tria p o r a q u e le q u e vem : "E m su a m ã o tem a p á , e lim p a rá su a e ira, e
reco lh erá n o celeiro se u trig o , e q u e im a rá a p a lh a com fogo q u e n u n c a
se a p a g a rá ". N ã o é a b so lu ta m e n te d e s titu íd o d e p la u s ib ilid a d e q u e o
B atista p u d e s s e ter d e scrito a q u e le q u e v e m co m o o c o rd e iro ap o ca-
líptico d e D eus.
H á d u a s objeções a esta in te rp re ta ç ã o d e "o C o rd e iro d e D eu s".
P rim eira, h á u m v o c a b u lá rio d ife re n te n e sta s refe rê n c ia s ao "c o rd e i-
ro": em Jo 1,29 a p a la v ra é amnos, e n q u a n to n o A p o c a lip se o c o rd e iro
ap o calíp tico é arnion. N ã o o b sta n te , e n q u a n to João e o A p o c a lip se
são o b ra s d a esco la jo an in a, a m iú d e reflete m d ife ren ç a s d e v o c a b u lá -
rio - sin al d e q u e fo ram escrito s p o r m ão s d ife ren te s. A lém d o m ais,
o v o c a b u lá rio d o escrito a p o c alíp tico te n d e a se r fo rm a liz a d o , e o
A p o c a lip se p o d e e sta r sim p le sm e n te u s a n d o u m te rm o a p o c alíp tico
p a d rã o p a ra "c o rd e iro " . 1 Enocfue, n o q u e está p re s e rv a d o d e le em
g reg o , p a re c e u s a r anen, d e q u e arnion é u m d im in u tiv o . F in a lm en te ,
o Testamento de José u sa amnos p a ra o c o rd e iro v e n c e d o r. A p ró p ria es-
colha q u e João faz d e amnos p o d e s e r d e te rm in a d a p e la s in te re ssa n te s
p o s s ib ilid a d e s teo ló g icas d a p a la v ra , co m o v e re m o s abaixo.
U m a s e g u n d a o b jeção te m p o r b a se a c lá u s u la q u e d e s c re v e o
C o rd e iro d e D eu s: ele re m o v e o p e c a d o d o m u n d o . E n te n d id o c o n -
tra o p a n o d e fu n d o d a s a ç õ es sa lv ífic a s d e Je su s, ta l d e s c riç ã o ra ra -
m e n te p a re c e a d e q u a r-s e a o q u a d ro s in ó tic o d a p re g a ç ã o d o B a tista,
o n d e a q u e le q u e v e m v isa a d e s tr u ir o m a lfe ito r. N ã o o b s ta n te , p o d e
se r q u e n o s lá b io s d o B atista a fra se p o s s a se r i n te r p r e ta d a c o m o
u m a re fe rê n c ia à d e s tru iç ã o d o p e c a d o d o m u n d o . E in te re s s a n te
e s tu d a r o p a ra le lis m o e n tre airein (" re m o v e r" ) e luein ( " d e s tr u ir" ),
e m 1 João:

3,5: "E b em sabeis que ele se m anifestou p ara remover nossos pecados".
3,8: "P a ra isto o F ilho d e D e u s se m a n ifesto u : p a ra destruir as
obras do diabo".

E assim su g e rim o s q u e o B atista e x alto u Jesu s co m o o c o rd e iro d a


ex p ectativ a ap o c alíp tica ju d a ic a q u e h a v ia d e ser le v a n ta d o p o r D e u s
3 · O testem u n h o d e João Batista: A cerca d e Jesus 243

para destruir o mal no mundo, um quadro não tão longe daquele do


Ap 17,14.
D odd , Interpretation, p. 236, insiste sobre o aspecto messiânico
deste cordeiro apocalíptico. Não obstante, como veremos abaixo, não
é certo que o Batista esperasse um Messias davídico régio.
(2) O Cordeiro como o Servo Sofredor. O Servo de Iahweh é o
tema de quatro cânticos em Deuteroisaías: 42,1-4 (ou 7, ou 9); 49,1-6
(ou 9, ou 13); 50,4-9 (ou 11); 52,13-53. Há uma grande controvérsia
se este Servo é um indivíduo (Jeremias, Moisés), ou uma coletivi-
dade (Israel), ou uma personalidade corporativa. Naturalmente, os
autores neotestamentários não teriam pensado nestes cânticos como
um corpo isolado de literatura como fazemos, mas poderíam ter
visto que um tema comum do Servo de Deus se encontraria em Isaías.
Realmente, é bem provável que conectassem o notável perfil do sofri-
mento deste Servo em Is 53 com outras descrições de sofredores ino-
centes no AT, por exemplo, SI 22. M orna H ooker, Jesus and the Servant
(Londres: SPCK, 1959), tem criticado, talvez generalizando demais, o
abuso do tema neotestamentário do Servo pelos exegetas que pare-
cem pensar que os evangelistas anteciparam o ato de D uhm de isolar
os cânticos do Servo em 1892. Seja como for, estamos simplesmente
indagando aqui se o uso de "Cordeiro de Deus", em Jo 1,29, foi ma-
tizado pelo uso de cordeiro como uma referência ao Servo Sofredor
de Iahweh em Is 53.
Na realidade, isto envolve duas questões: primeiro, é possível que
o Batista chegasse a ter tal compreensão do Cordeiro de Deus? Segun-
do, ou o evangelista teria entendido do mesmo modo? J. Jeremias, C ull-
mann e Boismard respondem a primeira pergunta afirmativamente; e o
argumento em prol deste ponto de vista acha uma boa exposição em
D e la P otterie, art. cit. Entretanto, buscamos em vão nos sinóticos por
qualquer indicação de que o Batista pensasse que aquele que vem após
ele sofresse e morresse. Aliás, não há evidência clara de que antes dos
tempos cristãos o Servo Sofredor fosse isolado e entrasse para a galeria
das figuras escatológicas esperadas, ou que o Messias fosse identificado
com o Servo Sofredor. A despeito das alegações de D upont-Sommer e
A llegro, simplesmente não há prova de que os essênios de Qumran ti-
vessem uma teologia de um Messias sofredor; veja J. C armignac, Christ
and the Teacher of Righteousness (Baltimore: Helicon, 1962), pp. 48-56. Há
referências em Qumran às passagens do Servo de Isaías; mas, em vez
244 II. O Livro dos Sinais

d e ap licar estes textos a u m a figura m essiânica o u escatológica, os es-


sênios p arecem ter o lh ad o p a ra su a c o m u n id a d e com o ju sta m e n te so-
fred o ra p o r o u tro s (assim H. R inggren, The Faith of Qumran [Filadélfia:
F ortress, 1963], p p . 196-98). A ssim , e n q u a n to não p o d e m o s n e g a r q u e
seja possív el q u e João B atista p e n sasse em Jesus com o o S ervo S ofredor,
n ão existe p ro v a real d e q u e o ten h a feito.
Q u e o e v a n g elista in te rp re to u o C o rd e iro d e D e u s c o n tra o p a n o
d e fu n d o d a d escrição d o S ervo em Isaías p o d e -se s u s te n ta r p e lo u so
d e v á rio s a rg u m e n to s, (a) Is 53,7 d e scre v e o S erv o assim : "E le n ã o
a b riu su a b o ca, co m o o v e lh a q u e é lev a d a p a ra o m a ta d o u ro , e co m o
u m c o rd e iro [amnos] d ia n te d e se u s to sq u ia d o re s" . E ste tex to é a p li-
cad o a Jesu s e m A t 8,32, e assim a c o m p a ra ç ã o e ra c o n h e c id a d o s cris-
tão s (ta m b ém M t 8,17 = Is 53,4; H b 9,28 = Is 53,12). N o final d o I a
século, C lemente d e R om a (I 16) a p lic o u Is 53 lite ra lm e n te a Jesus.
(b) T od o s os cânticos q u e se re p o rta m ao S ervo se e n c o n tra m n a se-
g u n d a p a rte d e Isaías (40-55). O N T associa esta p a rte d e Isaías a João
Batista, po is "a v o z q u e clam a no d e serto " d o s vs. d e a b e rtu ra (Is 40,3).
(c) H á d o is traço s n a d escrição q u e o B atista faz d e Jesu s, e m 1,32-34,
q u e p o d e m rela cio n a r-se com o tem a d o S ervo. N o v. 32, o Batis-
ta d iz q u e v iu o E sp írito d e sce r so b re Jesus e p a ira r so b re ele; e m
34, o B atista id en tifica Jesus co m o o e sco lh id o d e D eus. Em Is 42,1
(u m a p a ssa g e m q u e os sin ó tico s ta m b é m v in c u la m co m o b a tism o
d e Jesu s feito p e lo Batista) o u v im o s: "E is a q u i o m eu S ervo, a q u e m
su ste n h o ; 0 meu Eleito, em q u e m se c o m p ra z a m in h a a lm a " [veja
Mc 1,11], p u s o m eu espírito sobre ele". Veja ta m b é m Is 61,1: " O e s p írito
d o S en h o r D eus está so b re m im ". E ste a rg u m e n to p re s s u p õ e q u e o
ev an g elista fez u m a co n ex ão e n tre o S ervo d e Is 42 e o S erv o d e ís 53.
{d) Jesu s é d e scrito em term o s d o S ervo S o fre d o r em o u tra p a rte e m
João (12,38 = Is 53,1). E stes a rg u m e n to s s ã o a p e n a s u m re s u m o d a evi-
d ên cia (veja Stanks, op. cit.).
H á d o is p o n to s esp eciais q u e d e v e m se r c o n sid e ra d o s. L em os
q u e o C o rd e iro d e D eu s re m o v e (airein) o p e c a d o d o m u n d o . E sta não
é a m esm a im a g e m e n c o n tra d a em Is 53,4.12, o n d e lem o s q u e o S erv o
lev a so b re o u c a rre g a (pherein / anapherein) os p e c a d o s d e m u ito s.
T o d av ia, esta d iferen ça n ã o é d a m aio r im p o rtâ n c ia , p o is os p rim e iro s
cristão s d ificilm en te e x tra iría m u m a d istin ç ã o p rec isa se e m su a m o r-
te Jesus tiraria p e c a d o ou o lev aria so b re si. A LXX u sa a m b a s, airein
e pherein, p a ra tra d u z ir o h e b ra ico nasã'. N ã o o b sta n te , a refe rê n c ia a
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 245

le v a r p e c a d o s , e m Is 53,12, n ã o p o d e ser u s a d a p a ra p ro v a r q u e o C or-


d e iro é o S erv o S o fred o r, co m o se c o stu m a fazer. O se g u n d o p o n to é
a s u g e stã o d e q u e " c o rd e iro " em João é u m a tra d u ç ã o e q u iv o c a d a d o
a ra m a ic o talyâ, q u e p o d e sig n ificar am b o s, " se rv o " e " c o rd e iro "; e as-
sim o q u e r e a lm e n te o B atista d isse foi: "E is a q u i está o S ervo d e D eus"
(assim B all, B urney, J eremias, C ullmann, Boismard, D e la P otterie).
A re fu ta ç ã o q u e D odd faz d isto em Interpretation, p p . 235-36, nos pa-
rece co n c lu siv a. O S ervo d e Isaías é c o n h e cid o co m o o 'ebed Y H W H
(ara m a ico fa b d â ); n ã o há a b so lu ta m e n te n e n h u m a e v id ê n c ia d e talyâ
(heb. tãleh ) s e n d o u s a d a p a ra o Servo. T a m p o u co , p o d e -se acrescen-
tar, tãleh é s e m p re tra d u z id a p o r am n os n a LXX. T o d av ia, m esm o
sem e ste s d o is p o n to s d ú b io s, p a re c e h a v e r no e v a n g e lh o b a sta n te in-
d icaçõ es p a ra co n e cta r o C o rd e iro d e D e u s e o S ervo S ofredor.
(3) O Cordeiro como o cordeiro pascal. M u ito s d o s P a d re s oci-
d e n ta is fa v o re c e ra m esta in te rp re ta ç ã o (e n q u a n to os P a d re s orien-
tais fav o re c era m o S ervo S o fred o r), e tem e n c o n tra d o em Barrett u m
e lo q u e n te d e fe n so r. H á v á rio s a rg u m e n to s co m o su p o rte , (a) O cor-
d e iro p a sca l é u m c o rd e iro real, e n q u a n to n a in te rp re ta ç ã o d o Servo
S o fred o r, o " c o rd e iro " é a p e n a s u m e le m e n to iso la d o e in cid e n ta l na
d e scriçã o d a m o rte d o S ervo. (b ) O sim b o lism o d a P áscoa é freq u en -
te n o Q u a rto E v a n g e lh o , e sp e c ia lm e n te e m relação à m o rte d e Jesus;
e isto é im p o rta n te p o rq u e , n o p e n s a m e n to cristão , o C o rd e iro , p o r
m eio d e su a m o rte , re m o v e o p e c a d o d o m u n d o . Jo 19,14 d iz q u e Je-
su s foi c o n d e n a d o à m o rte ao m eio d ia n o d ia a n te rio r à P áscoa, e
este e ra o m o m e n to ex ato em q u e os sa ce rd o te s co m e ç a v am a m a-
ta r o s c o rd e iro s p a sca is n o tem p lo . E n q u a n to Jesu s e sta v a n a cru z,
u m a e sp o n ja e m b e b id a em v in h o lh e foi e rg u id a co m h isso p o (19,29);
e foi co m h iss o p o e n c h a rc a d o com o sa n g u e d o c o rd e iro p ascal qu e
as o m b re ira s d a s p o rta s d o s isra e lita s e ra m m a rc a d a s (Ex 12,22). Jo
19,36 v ê c u m p rim e n to d a E sc ritu ra n o fato d e q u e n e n h u m d o s os-
so s d e Jesu s foi q u e b ra d o , e isto p a re c e re p o rta r-se a Ex 12,46, o n d e
lem o s q u e n e n h u m o sso d o c o rd e iro p ascal seria q u e b ra d o . (Veja
ta m b é m Jo 19,31). (c) Jesu s é d e sc rito co m o o C o rd e iro e m o u tra obra
jo a n in a , o A p o c a lip se ; e o tem a d a P áscoa a p a re c e ali. O C o rd e iro de
A p 5,6 é u m c o rd e iro m o rto . Em A p 15,3, o C ân tico d e M oisés é o
cân tico d o C o rd e iro . E m A p 7,17 e 22,1, o C o rd e iro é v isto com o a
fo n te d e á g u a v iv a, e isto p o d e ser o u tra co n ex ão com M oisés q u e faz
s a ir á g u a d a ro ch a. A p 5,9 m en c io n a o sa n g u e re d e n to r d o C o rd eiro ,
246 II. O Livro dos Sinais

u m a referên cia p a rtic u la rm e n te a p ro p ria d a a o tem a p a sc a l o n d e a


m arca d o sa n g u e d o c o rd e iro p o u p o u a casa d o s israelitas.
U m a objeção p ro p o sta contra in te rp re ta r o C o rd e iro d e D e u s com o
o co rd eiro p ascal é q u e n o p e n sa m e n to ju d aico o c o rd e iro p a sca l n ã o
era u m sacrifício. Isto p ro ced e, e m b o ra n a época d e Jesus o asp ecto
sacrificial tin h a co m eçad o a in filtrar no conceito d o c o rd e iro pascal,
p o rq u e os sacerd o tes a rro g a ra m p a ra si a m atan ça d o s co rd eiro s. Em
q u a lq u e r caso, a d iferença e n tre o sa n g u e d o co rd eiro o ferecid o e m sa-
crifício p elo liv ra m e n to n ão é m u ito g ran d e . U m a v ez q u e os cristão s
p a ssa ra m a c o m p a ra r Jesus com o c o rd eiro pascal, n ã o h e sita ra m em
u sa r lin g u a g e m sacrificial: "C risto, n ossa P áscoa, foi sacrificado" (IC o r
5,7). Em tal intensificação d o conceito cristão d o c o rd e iro p ascal, a fu n -
ção d e rem o v e r o p e c ad o d o m u n d o p o d e ría facilm ente a d eq u ar-se.
U m a objeção m ais im p o rta n te é q u e o P e n ta te u c o g re g o n o r-
m a lm e n te fala d o c o rd e iro p a sca l c o m o probaton, n ã o c o m o amnos.
Q u e as d u a s p a la v ra s n ã o são m u ito d ife re n te s vê-se, c u rio sa m e n te ,
em Is 53,7, a p a s sa g e m d o S ervo S o fred o r, o n d e probaton ("o v e lh a " )
e amnos a p a re c e m em p a ra lelism o . M as p o d e h a v e r ta m b é m evi-
d ên cia d e q u e amnos era u s a d a p o r c ristã o s p a ra o c o rd e iro pascal.
lP d 1,18-19 a sse g u ra ao s cristã o s q u e já fo ra m e m a n c ip a d o s c o m p re -
cioso s a n g u e , co m o d e u m c o rd e iro (amnos) im a c u la d o e in co n ta m i-
n a d o , a sab er, o sa n g u e d e C risto . E m b o ra n ã o p o ssa m o s fo rm u la r
a rg u m e n to s a q u i, in d ic a m o s a p o s s ib ilid a d e d e q u e 1 P e d ro fosse in-
te rp re ta d a c o n tra o p a n o d e fu n d o d e u m a c e rim ô n ia c ristã b a tism a l
pascal. A d escrição d o amnos co m o im a c u la d o ev o ca Ex 12,5, o n d e u m
c o rd e iro se m im p e rfe iç ã o é e sp ecificad o p a ra a P áscoa. A ssim , a dife-
ren ça d e v o c a b u lá rio n ã o é d ecisiv a.
C o m esses b o n s a rg u m e n to s e m fav o r d o s q u e a firm a m q u e o
e v an g elista a p o n ta v a p a ra o C o rd e iro d e D e u s co m o re fe rê n c ia ao
S ervo S o fred o r e a o c o rd e iro p ascal, n ã o v e m o s sé ria d ific u ld a d e e m
m a n te r q u e João v isa v a a a m b a s as referên cias. A m b a s se a ju sta m
b e m à cristo lo g ia d e João e são b e m a te s ta d a s n o C ristia n ism o d o 1“
século. A liás, u m a d u p la refe rê n c ia sim ila r p ro v a v e lm e n te p o ssa ser
en co n trad a em 1 P edro, o n d e, em bora o tem a pascal seja p ro em in en -
te, tam b é m a p a re c e o tem a d o S ervo S o fred o r (2,22-25 = ís 53,5-12).
A h o m ília d e M elito d e S a rd es so b re a P áscoa, d o final d o 2a sécu lo ,
en trelaça os d o is tem as; p o is e n q u a n to M elito d iz q u e Jesu s v eio em
lu g a r d o c o rd e iro pascal, ele d e scre v e a m o rte d e Jesu s e m te rm o s
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 247

d e Is 53,7: "... le v a d o co m o u m c o rd e iro , sacrificad o co m o u m a ove-


lh a, s e p u lta d o co m o u m h o m e m " . N ão é im p o ssív e l q u e, além d estes
d o is tem a s, João p o d e ria ta m b é m ter tra z id o a lg u n s ecos d a referência
o rig in a l d o B atista ao c o rd e iro a p o c alíp tico n o e v a n g e lh o (so m en te
n o A p o calip se).
Já d e m o s as su g estõ es m ais im p o rta n tes p a ra o significado d e "o
C o rd e iro d e D eu s". O u tro s estu d io so s trazem à m en te Jr 11,19: "E eu
era co m o u m m a n so cordeiro, q u e levam à m atan ça". Visto qu e Je-
rem ias p o d e ria ter sid o o p a d rã o so b re o q u al o D euteroisaías for-
m o u a im ag em d o Servo Sofredor, esta su g estão p o d e ser incorpora-
d a n a in te rp re ta ç ã o d o C o rd eiro com o o Servo. O u tra teoria é qu e o
C o rd e iro d e D eu s é u m a referência ao co rd eiro (atnnos: Ex 29,38-46)
oferecid o co m o u m a o ferta p elo p ecado. E n q u an to o s e g u n d o é atraente,
p o rq u e explicaria a ideia d o C o rd e iro rem o v e n d o o p e c ad o d o m u n d o ,
d ev e-se n o ta r q u e o novilho e o b o d e e ram o feren d as pelo p e cad o m ais
co m u n s. E m q u a lq u e r caso, n ão h á o u tra evidência d e q u e tais sacrifícios
fo rm a v am o p a n o d e fu n d o p a ra a cristologia joanina. G lasson, Moses,
p. 96, n o s lem bra q u e n o T arg u m hierosolim itano sobre Ex 1,15, M oisés
é c o m p a ra d o a u m cordeiro, e q u e no relato d e Isaque (Gn 22,8) ouvi-
m o s a frase: "D eu s p ro v erá o cordeiro [probaten]". T anto o sim bolism o
Je su s/M o isé s (passim) com o o sim bolism o Je su s/Isa q u e (talvez Jo 3,16 =
G n 22,2; Jo 19,17 = G n 22,6) são c onhecidos n o Q u a rto E vangelho.

)esus como 0 Preexistente (1,30-31)

O te m a d a p ree x istê n c ia d e Jesu s se e n c o n tra no P ró lo g o , em 8,58


e 17,5; p o rta n to , co m o in d ic a d o n a n o ta , ju lg a m o s a q u i in aceitáv eis as
te n ta tiv a s d e e v ita r u m a im p lic a ç ão d a p ree x istê n c ia . O v e rd a d e iro
p ro b le m a , n a tu ra lm e n te , d iz re sp e ito à p ro b a b ilid a d e d e e n c o n tra m o s
tal te s te m u n h o d a p ree x istê n c ia n o s láb io s d o B atista. D eve-se n o ta r
q u e o v. 30, co m s u a v a ria n te n o v. 15, e m a lg u m a e x te n sã o co rresp o n -
d e co m o v. 27 (ju sta m e n te co m o o 31 c o rre s p o n d e com 26 n o tem a d e
Jesu s n ã o reco n h ecid o ):

PR IM E IR A C L Á U S U L A
v. 15: a q u e le q u e v e m d e p o is d e m im
v. 30: a p ó s m im v e m u m h o m e m
v. 27: a q u e le q u e h á d e v ir a p ó s m im
248 II. O Livro dos Sinais

SE G U N D A C LÁ U SU LA
vs. 15, 30: tem p rec e d ê n cia so b re m im
v. 27: n e m m esm o so u d ig n o d e d e s a ta r as c o rre ia s d e su a
sa n d á lia

O ra, v im o s n o c o m e n tá rio so b re o v. 27 q u e a m b a s a s id é ia s e vo-


cab u lá rio d a q u e le v e rsíc u lo te m p a ra le lo s n a tra d iç ã o sin ó tica d a s p a -
lav ra s d o B atista. P o rta n to , n a d a h á n a s p rim e ira s d u a s c lá u su la s d o
v. 30 q u e n ã o se h a rm o n iz e com o q u a d ro g eral d o B atista n o e v a n g e -
lho; n o sso p ro b le m a se c e n tra n a terc eira cláu su la: "... p o is ele ex istia
an te s d e m im ".
A ên fase so b re a p ree x istê n c ia d e Jesu s p o d e se r c o n s id e ra d a p a r-
te d a p o lêm ica c o n tra os a d e p to s d o B atista, co m o C u u .mann, art. cit.,
tem in d ic a d o . O s a d e p to s re iv in d ic a v a m s u p e rio rid a d e p a ra o B atista
so b re Jesu s, e m v irtu d e d e se u s e n h o r te r v in d o p rim e iro , e a p rio -
rid a d e n o te m p o e n v o lv ia p r io rid a d e e m d ig n id a d e . N o te co m o
G n 48,20 en fatiza q u e Jacó p õ e E fraim an te s (emprosthen ) d e M anassés.
U m a re s p o s ta ao a rg u m e n to d o s a d e p to s (u m a re sp o sta q u e a ju d a a
e sta b e le c e r q u e h a v ia e sse a rg u m e n to se ctá rio ) se e n c o n tra n a Pseu-
do-Clementina, o n d e se m a n té m q u e p rio rid a d e n ã o significa s u p e rio -
rid a d e , e sim in fe rio rid a d e , p o is o m al v e m a n te s d o b e m , C a im v e io
a n te s d e A b el etc. (Homilies I I 16,23; PG 2:86, 91). Jo ão a p re s e n ta u m a
resp o sta d iferen te: p rio rid a d e in d ica s u p e rio rid a d e , m as, a d e s p e ito
d a s a p a rê n c ia s, Jesus re a lm e n te era a n te rio r ao B atista, p o rq u e Jesu s
p reex istia.
E nq u an to faz esta afirm ação com o resposta apologética, o evange-
lista ain d a p o d ería estar apoiando-se em u m d ito tradicional d o Batista.
J. A. T. Robinson, art. cit., tem d a d o u m e x e m p lo m u ito c o n v in c e n te
em p ro l d a tese d e q u e o B atista p e n sa v a e sta r p r e p a r a n d o o c a m in h o
p a ra Elias. Já m e n c io n am o s n a n o ta so b re 1,27 q u e " a q u e le q u e a d e
v ir" p o d e ría te r s id o u m títu lo p a ra Elias com b a se e m M l 3,1. João
B atista a n te c ip o u q u e a q u e le q u e v e m p u rific a ria com fogo (M t 3,12);
a o b ra d e E lias é c o m p a ra d a a u m fogo p u rific a d o r e m M l 3,2; 4,1;
S iraq u e 48,1. Se o B atista e sp e ra v a q u e Elias v iesse, e n tã o se to m a
ób v io p o r q u e os d isc íp u lo s e sp e ra v a m q u e Jesus ag isse co m o E lias
(Lc 9,52-56), e p o r q u e L ucas a p re se n ta Jesu s co m o E lias (veja acim a,
p. 226s). P o d e ser q u e a tese d e Robinson p o ssa ser u sa d a p a ra explicar
com o Jo 1,30 p o d ia re p re s e n ta r as p a la v ra s d o B atista. Se o B atista
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 249

p e n s a v a n a q u e le q u e v e m co m o p re e x iste n te a ele, a p reex istên cia do


F ilho d e D e u s n ã o tin h a q u a lq u e r se n tid o cristão , n e m a p reex istên cia
d a P a la v ra n o s e n tid o jo an in o , m a s e m te rm o s d a p ree x istê n c ia com o
Elias. E ste ex istira n o v e sécu lo s a n te s d e João B atista, e, n o e n ta n to ,
su a v o lta e ra e s p e ra d a co m o m e n sa g e iro a n te s d o ú ltim o ju ízo de
D eus. D ele o B atista p o d ia d izer: "E le exerce p rec e d ê n cia so b re m im ,
p o rq u e ex istia a n te s d e m im ".
P o r esta ótica, é im p o rta n te n o ta r q u e J. J eremias, The Servant of God
(SBT N o. 20), p. 57, p e n sa q u e, p o ssiv elm en te, Elias era tid o com o o ver-
d a d e iro Servo d e D eus. S iraq u e 48,10 fala q u e Elias viria restabelecer as
trib o s d e Israel, a p a re n te m e n te u m a referência à m en sa g e m d o Servo
em Is 49,6. A m b os, M c 9,13 e A p ll,3 s s ., p arecem re tra ta r Elias com o
so fred o r. Se esta tê n u e ev id ên cia d ev e ser co n firm ad a, en tão p o d em o s
c o m b in a r a referência a Elias com o o p reex isten te com a referência ao
C o rd e iro d e D eu s = o Servo S ofredor = Elias.
N o v. 31, o tem a d o M essias d e sc o n h e c id o o u o c u lto reap arece
d e s d e o v. 26. O c a rá te r a p o c alíp tico d e sta e x p e cta tiv a , d e q u e tratá-
v a m o s p o d e h a rm o n iz a r-se com a e x p e cta tiv a d a v in d a d e Elias. Pró-
x im o ao 2“ sécu lo , é Elias q u e está p a ra re v e la r o M essias oculto; m as
n o p e río d o a n te s d a d e stru iç ã o d o tem p lo , q u a n d o as ex p ectativ as
escato ló g icas e ra m m ais v a ria d a s , se p o d e ria p e n s a r n o p ró p rio Elias
co m o s e n d o o M essias oculto.
O v. 31 ta m b é m ex erce u m p a p e l na p o lêm ica c o n tra os a d e p to s
d o B atista. O s cristã o s n ã o a c h a ra m fácil ex p licar p o r q u e Jesus p e rm i-
tiu se r b a tiz a d o c om o b a tism o d e a rre p e n d im e n to d o Batista. N o evan-
getho segundo os Hebreus (Jerônimo, Contra Pelágio III 2; PL 23:570-71),
esta d ific u ld a d e é reso lv id a p e lo p ro te s to d e Jesus: "E u te n h o p e c ad o
p a ra q u e e u vá e seja b a tiz a d o p o r ele [João B atista]?" O u tro eco d e sta
d ific u ld a d e é o u v id o e m M t 3,14-15, o n d e o B atista p ro te sta d ia n te
d e Jesu s q u e se u s p a p é is e sta v a m se n d o in v e rtid o s. S u g erim o s q u e
o m esm o p ro b le m a é refletid o em Jo 1,31. P a ra João n ão h á p ro b le m a
d e Je su s rec e b e r u m b a tism o d e a rre p e n d im e n to , p o is to d o o p ro p ó -
sito d o b a tis m o d o B atista co n sistia e m rev e la r a Israel a q u e le q u e
v em . A re m issã o d e p e c a d o s n ã o é asso c ia d a ao B atista, e su a p re-
g ação a u m b a tism o d e a rre p e n d im e n to co m o e m M c 1,4, m as an-
tes ao C o rd e iro d e D e u s q u e tira o p e c a d o d o m u n d o . A ssim João
re m o v e u d o re la to q u e ele faz d o in c id e n te q u a is q u e r asp ecto s d o
b a tis m o em q u e os sectário s p u d e s se m se g loriar.
250 II. O Livro dos Sinais

A a firm a ç ã o d e q u e a té o b a tis m o d o B atista n ã o re c o n h e c e u


Jesu s co m o o q u e v e m im p lic a q u e o B atista n ã o e s ta v a tã o fam ilia-
riz a d o co m Jesu s, e m b o ra a lg u n s a le g u e m q u e ele c o n h e c e sse Je su s,
p o ré m n ã o co m o o p re e x is te n te (B ernard, I, p. 48). N ã o fica c la ro se
isto p o d e s e r c o n c ilia d o co m a rela çã o e n tre as d u a s n a rr a tiv a s d a
in fân cia p ro p o s ta s p o r L ucas. E n tre ta n to , Lc 1,80 p r e s s u p õ e q u e o
B atista c re sc e u co m o so litá rio n o d e s e rto d a J u d e ia , fo ra d e q u a is-
q u e r c o n ta to s fam iliare s.

Jesus como aquele sobre quem 0 Espírito desce e repousa (1,32-33)

O fato d e q u e João se re p o rta ao b a tism o d e Jesus a p e n a s in d ire -


ta m e n te co m o o m o m e n to e m q u e o E sp írito d e sce u so b re ele p o d e
tam b é m re fletir o d esejo d o e v a n g e lista d e n ã o p ro p ic ia r ao s se ctá rio s
n e n h u m ap o io . P o d e m o s c o m p a ra r o re la to d e João d a d e sc id a d o Es-
p írito co m o d o s sinóticos:

Mc 1,10: O E sp írito d e sc e n d o co m o p o m b a so b re [eis] ele


M t 3,16: O E sp írito d e D e u s d e sc e n d o co m o p o m b a , v in d o so b re
[epi] ele
Lc 3,22: O E sp írito S an to d esce e m fo rm a c o rp ó re a co m o p o m b a
so b re [epi] ele
Jo 1,32: O E sp írito d e sc e n d o d o c é u co m o p o m b a so b re [epi] ele

A o u s a r "o E sp írito " sem o u tra qualificação , João se a p ro x im a


m ais d e M arco s, m a s a o d e sc re v e r a d e sc id a , João se a p ro x im a m a is d e
M ateu s. João d ife re d e to d o s os sin ó tico s e m d o is elem en to s: João n ã o
d escrev e o p ró p rio b a tism o e, ao d e sc re v e r a d e sc id a d o E sp írito , João
u sa a frase " d o céu [ex ouranou]". O s sin ó tico s m e n c io n a m a voz do céu
(Lucas: ex ouranou; M arco s-M ateu s: ek tõn ouranõn), e n a e x p re ssã o
g reg a, L ucas tem o m e sm o q u e João. O ecleticism o d a s s im ila rid a d e s é
m ais u m a v ez u m a rg u m e n to c o n tra o e m p ré stim o joanino; ta m p o u c o ,
n a p re s u n ç ã o d e e m p ré stim o , h á q u a lq u e r m o tiv o d isc e m ív e l n o q u e
João o m ite (a a b e rtu ra d o s céu s, a v o z e su a m en sa g e m ).
P o rtan to , se a descrição jo an in a d a d e scid a d o E spírito p a re c e re-
p re se n ta r u m a tra d içã o in d e p e n d e n te , lig eiram en te v a ria n te d a(s) tra-
dição(s) sinótica(s), veio a ser, e m su a p re se n te form a, u m v eícu lo d a
teologia joanina. João d iz q u e o E spírito veio re p o u s a r ( menein - p a la v ra
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 251

jo an in a fav o rita; veja A p ê n d ic e 1:8, p. 794ss) so b re Jesus; e v isto q u e Je-


su s p o s s u i p e rm a n e n te m e n te o E sp írito , ele d isp e n s a rá este E sp írito a
o u tro s n o B atism o. O tem a d a d isp e n sa ç ã o d o E sp írito a p ó s a m o rte e
re s s u rre iç ã o d e Jesu s é re c o rre n te e m to d o o e v a n g e lh o (3,5.34; 7,38-39;
as p a s s a g e n s acerca d o P a rác leto em 14-16; 20,22).
O u tro d e ta lh e q u e se h a rm o n iz a co m a teo lo g ia jo an in a é q u e o
te s te m u n h o d e D e u s acerca d e Jesu s n ã o é e x p re sso d ire ta m e n te , m as
a tra v é s d o B atista (v. 33). N o c a p ítu lo 5 so m o s in fo rm a d o s q u e o tes-
te m u n h o d e D e u s acerca d e Jesus v e m a tra v é s d e d iv e rso s can ais, d o s
q u a is o p rim e iro m e n c io n a d o é João B atista (5,33-35).
N ã o o b stan te, os relato s sinóticos d a teofania n o b atism o têm tam -
b é m tem sid o objeto d e c o n sid eráv el elaboração; e d o p o n to d e v ista d o
c a rá te r m ais o u m en o s p rim itiv o , o relato d e João é b e m escasso. Em
M arco s-M ateu s é Jesus q u e m v ê o E spírito d escen d o , e n q u a n to Lucas
p arece p re s s u p o r u m a u d itó rio m ais n u m e ro so ao d e c la ra r q u e o Espí-
rito d esceu e m uma forma corpórea. A alegação d e João d e q u e so m en te
o B atista v iu o E spírito é rela tiv a m e n te m o d esta. M arcos e Lucas regis-
tram u m a v o z celestial q u e se d irig e a Jesus, e d e sta vez é M ateu s que
p arece p re s s u p o r u m a u d itó rio m ais n u m e ro so q u e recebe a m en sag em
d a v o z n a terceira p esso a ("E ste é o m e u Filho a m a d o "). E m bora João
n ão se o p o n h a em d irig ir o te ste m u n h o d iv in o a p a rtir d o céu (12,28),
a q u i a n a rra tiv a a p e n a s alega q u e D eus falou p rev ia m e n te ao Batista.
M e sm o sem o te ste m u n h o e x te rn o d escrito n o s relato s sinóticos,
João e n te n d e c la ra m e n te o im p a c to d a d e scid a d o E sp írito so b re Je-
su s e m b o a m e d id a d a m esm a m a n e ira com o os o u tro s ev an g elh o s,
a sab er, q u e ela lhe assin a la co m o ú n ico in stru m e n to d e D eu s e, em
p a rtic u la r, co m o o M essias e o S ervo d o S enhor. Em Is 11,2, som os
in fo rm a d o s q u e o e sp írito d e Iah w e h re p o u sa rá (LXX anapauein, não
menein) so b re o re n o v o d a e stirp e d e Jessé q u e é o rei d av íd ico . N os
Testamentos dos Doze Patriarcas, o e sp írito ap a re c e ao M essias d a v íd ico
(O Testamento de Judá 24,1-3) e so b re o m essias s a ce rd o ta l (O Testamento
de Levi 18,7 - o n d e ele re p o u so u : katapauein). E já m en c io n am o s qu e
Is 42,1 d iz q u e Iah w e h p ô s seu e sp írito so b re o Servo.

]esus como 0 escolhido (1,34)

Se e sta re d a ç ã o é c o rre ta (veja n o ta), e n tã o o tem a d o S ervo p ro s-


se g u e n e s te títu lo q u e ecoa Is 42,1. Braun, JeanThéol, II, p p . 71-72,
252 II. O Livro dos Sinais

objeta q u e D e u s escolheu m u ita s fig u ra s n o A T e q u e o " e s c o lh id o "


n ã o é n e c e s s a ria m e n te u m a re fe rê n c ia ao S erv o isa ia n o . M as isto d e i-
xa d e e x p lic a r o fato d e q u e Is 42,1 é ta m b é m p a rte d o re la to sin ó tic o
d o b a tis m o ("E ste é o m e u F ilho a m a d o em quem tenho todo prazer"),
e q u e, d e s se m o d o , é o lu g a r m a is n a tu r a l p a ra e x p lic a r a re fe rê n c ia
a "o e s c o lh id o ". A cim a, m e n c io n a m o s o u tro s ecos d o te m a d o S erv o
n e sta seção.
O v. 34 te rm in a esta cena d u p la d o te s te m u n h o d o B atista n o s vs.
19-28 e 29-34. C o m o se d á com fre q u ê n c ia , João in d ica isto p o r m eio d e
u m a inclusão: o v. 19 com eçou: "E ste é o te ste m u n h o q u e João d e u " ...
Q u a n d o n o s re tro c e d e m o s p a ra a riq u e z a e p r o fu n d id a d e d o m a te ria l
c o n tid o e n tre os v ersícu lo s, a p re c ia m o s a g e n ia lid a d e d e João e m in-
c o rp o ra r to d a a cristo lo g ia em u m a só cena su cin ta.

Crítica literária

Em n o sso co m en tário , tem o s a n a lisa d o 1,19-34 co m o a g o ra se en-


co n tra n o e v a n g elh o so b re o p rin c íp io geral d e q u e, n ã o im p o rta q u a l
teria sid o su a p ré-h istó ria literária, a seção, em su a fo rm a a tu a l, faz
sen tid o ao m en o s p a ra o re d a to r final d o ev an g elh o . E m n o ssa In tro -
d u ção , S e g u n d a P arte, d isc u tim o s as teo rias d a c o m p o sição d o ev a n -
gelho, e sp ecialm en te as teo rias d a s fontes e d a s v á ria s red açõ es. En-
q u a n to n ã o for p o ssív el m o stra r c o m o e stas teo rias são a p lic a d a s p e lo s
d iv erso s c o m e n tarista s a to d o o e v a n g elh o , to m a re m o s e sta ú n ica cena
e m o strare m o s co m o as teo rias são a p lic ad a s aq u i. A p a rtir d e sta ilus-
tração, e s p e ra m o s d e m o n s tra r a e n g e n h o sid a d e , as co n trib u iç õ e s e as
insuficiências d a s reco n stru çõ es literárias d o Q u a rto E van g elh o .
H á certas in d icaçõ es e m 1,19-34 q u e re v e la m u m a re-e la b o raç ã o
d o m aterial, (a) H á p a ssa g e n s com claro s p a ra le lo s sin ó tico s (vs. 23,26
f"E u e s to u b a tiz a n d o com á g u a "], 27,32,33 ["b a tiz a rá com o E sp írito
san to "]), e o u tra s p a ssa g e n s q u e n ã o tê m p a ra le lo s sin ó tico s - u m
efeito q u e pode ser e x p lic ad o p ela co m b in a çã o d e d u a s tra d içõ e s.
(b) H á u m a certa falta d e se q u ên c ia n a n a rra tiv a . O v. 19 com eça com
u m a n ú n c io d o te s te m u n h o d o B atista; m as o te s te m u n h o acerca d e
Jesu s n ão com eça im e d ia ta m e n te , e to d a a cena se re p a rte e n tre d o is
d ias. O v. 21 seria s e g u id o m ais lo g ic a m e n te p e lo 25 d o q u e p e lo 22.
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 253

O s vs. 26 e 31 p a re c e m com o se fossem em seq u ên cia direta, (c) H á toda


u m a série d e d u p licatas: d o is p a re s d e em issário s (19,24); "E p erg u n -
tara m -lh e " o co rre d u a s v ezes (21,25); "Eis a q u i o C o rd e iro d e D eus"
o co rre d u a s v ezes (29,36); "E eu n ão o co nhecia" o corre d u a s vezes
(32,33); a d escid a d o E spírito é d escrita d u a s v ezes (32,33). E p o d e m o s
acrescen tar q u e o v. 30 reitera 0 15.
V ejam o s a g o ra co m o e stas d ific u ld a d e s p o d e m se r reso lv id as,
p rim e ira m e n te , p o r u m a teo ria d a s fo n tes co m o ilu s tra d a n a recons-
tru ç ã o d e B ultmann, e e n tã o p o r u m a teo ria d a s v á ria s red açõ es com o
ilu s tra d a n a rec o n stru ç ã o d e Boismard.
S e g u n d o s u a h ip ó te s e g e ra l (veja p. 206ss), B ultmann m a n té m
q u e u m a n a rr a tiv a b a s ic a m e n te s im p le s c o m p o sta p e lo e v a n g elis-
ta foi re to c a d a p e lo R e d a to r E clesiástico q u e in tr o d u z iu p a ra le lo s
à tra d iç ã o s in ó tic a e a ssim c a u so u ta n to a falta d e se q u ê n c ia com o
as d u p lic a ta s . D e sfa z e n d o a o b ra d o R e d a to r E clesiástico, B ult-
mann, p. 58, faz s u a re c o n s tru ç ã o d o re la to o rig in a l d o e v a n g elis-
ta. A p re s e n ta m o s isto ab a ix o , a d a p ta d o a n o ssa tra d u ç ã o ; o leito r
n o ta rá c o m o su a se q u ê n c ia s u a v e e v ita a m a io ria d a s d ific u ld a d e s
s u p ra m e n c io n a d a s . (O sin a l / / / in d ic a o n d e B ultmann o m ite as
a d iç õ e s d o R e d a to r; n o te ta m b é m a re o rg a n iz a ç ã o d o s v e rsíc u lo s
n o final).
19O ra , este é o te ste m u n h o q u e João d e u q u a n d o os ju d e u s lhe
e n v ia ra m d e Je ru sa lé m sa c e rd o te s e lev itas a p e rg u n ta r-lh e q u e m
ele era. 20Ele d e c la ro u sem q u a lq u e r restrição , co n fessan d o : "E u n ão
so u o M essias". 21P e rg u n ta ra m -lh e m ais: "E n tão , q u e m és tu? Elias?"
"N ã o s o u " , re s p o n d e u . "É s tu o P ro feta?" "N ão !", rep lico u . / / / 3",M as
lhe p e rg u n ta ra m a in d a: "Se n ã o és o M essias, n e m Elias, n e m o Pro-
feta, e n tã o o q u e estás fa z e n d o b a tiz a n d o ? " 26João lhes resp o n d e u :
" / / / H á u m e n tre v ó s a q u e m n ão reco n h eceis. / / / 31Eu m esm o n u n -
ca o co n h eci, a in d a q u e a p ró p ria ra z ã o d e eu v ir e b a tiz a r foi p a ra q u e
ele fosse re v e la d o a Israel. / / / 33M as a q u e le q u e m e e n v io u a b a tiz a r
m e disse: 'Q u a n d o v ire s o E sp írito d e sce r e re p o u s a r so b re alg u ém ,
ele é e s s e / / / . ' 34A g o ra e u m esm o te n h o v isto e te n h o testificado: 'E ste
é o F ilho d e D e u s'" . 28Foi e m B etânia q u e isso a c o n te c eu , d a lé m d o
Jo rd ão , o n d e João c o stu m a v a b a tiz ar.
E n tão s e g u e m 29-30,35ss.
V an I ersel, e s tu d io s o católico, a c eito u a rec o n stru ç ã o básica d e
Bultmann e a lev o u a in d a m ais longe. Ele faz m ais u so d o s conectivos
254 II. O Livro dos Sinais

d e João d o q u e faz Bultmann, p o r ex em p lo , vs. 22a,24. Ele e v ita a d u -


p licata q u e e n v o lv e o C o rd e iro d e D e u s (29,36) q u e B ultmann m a n -
tém , o m itin d o a m a io r p a rte d o v. 29.
A te o ria d a s d iv e rs a s re d a ç õ e s faz o u tra a b o rd a g e m d e 1,19-34,
co m o ilu s tra d o e m B oismard, "Les traditions". S e g u in d o W ellhausen ,
B oismard p e n s a e m te rm o s d e n a rra tiv a s p a ra le la s re e sc rita s. O s
p a s so s em s u a re c o n s tru ç ã o d o re la to jo a n in o p o d e m se r c a ta lo g a -
d o s co m o seg u e: (a) O e v a n g e lh o p r o p ria m e n te d ito c o m e ç o u o ri-
g in a lm e n te co m o m a te ria l o ra e n c o n tra d o e m Jo 3,22-30, a sa b e r,
q u e Jesu s v e io à J u d e ia e n q u a n to o B atista e sta v a b a tiz a n d o e e ste
testific o u q u e Je su s cresc e ría e n q u a n to ele m e sm o d im in u iría . (Re-
ferên cias ao s e n c o n tro s p re té rito s e n tre o B atista e Je su s e m 3,24.26
são re d a c io n a is). Boismard s u b s ta n c ia isto s a lie n ta n d o p a ra le lo s en -
tre Jo 3,22-30 e M c 1,4-5. Ele p e n s a q u e , o rig in a lm e n te , o m a te ria l
so b re o B atista foi s e g u id o p e lo in c id e n te e m C a n á , d e m o d o q u e
o tem a n o iv o s /c a s a m e n to e sta ria p re s e n te e m a m b a s as p a s sa g e n s ,
(b) P o s te rio rm e n te , o p r ó p rio e v a n g e lis ta s u b s titu iu e sta n a rr a tiv a
d a rela çã o d o B atista e Je su s (3,22-30) co m o u tra n a rra tiv a , in te ira -
m e n te d ife re n te d e s ta relação . (A q u i, Boismard d ife re d e W ellhausen
q u e p e n s a v a s im p le s m e n te em u m re la to v a ria n te d a m e s m a cen a).
O tem a d a n o v a n a rra tiv a e ra o b a tis m o d e Je su s p e lo B atista c o m o
u m a m a n ife s ta ç ã o d o M e ssia s a té e n tã o o c u lto . João B atista d á seu
te s te m u n h o d ia n te d o s fa rise u s q u e in ju stific a v e lm e n te se re c u s a m a
crer. E sta n a rra tiv a d o b a tism o , q u e a ssim reflete c e rta p o lê m ic a con-
tra os ju d e u s , Boismard c h a m a V ersão X. (c) N o e n ta n to , m a is ta r d e o
p ró p rio e v a n g e lis ta re to c o u a V e rsão X p a ra fazê-la m a is c la ra e m a is
p ró x im a d a tra d iç ã o sin ó tica . Ele faz a lu sõ e s ao A T m a is e sp ec ífic as
e e n fa tiz o u o te m a d a p re e x istê n c ia . N e sse te m p o , a p o lê m ic a e x tra í-
d a d a p a s sa g e m foi d irig id a c o n tra os se m i-c ristã o s q u e n e g a v a m
a d iv in d a d e d e Je su s, e q u e m sa b e ta m b é m c o n tra o s s e c tá rio s d o
B atista. E sta n a rra tiv a é a V ersão Y.
A í resta u m q u a rto p asso , m as p o r u m m o m e n to n o s d e te re m o s
p a ra v e r co m o Boismard p õ e as V ersões X e Y ju n ta m e n te com a intro-
d u ção q u e p a rtilh a m em c o m u m . (A tra d u ç ã o d e João tem sid o a d a p ta -
d a à n o ssa trad u ção ).
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 255

V E R SÃ O X VERSÃO Y
6O ra , h o u v e u m h o m e m e n v ia d o p o r D eu s cujo n o m e e ra João 7que
v eio co m o te s te m u n h a p a ra testificar da lu z p a ra q u e, a tra v é s dele,
to d o s o s h o m e n s v iesse m a crer. 8M as so m e n te p a ra testificar d a luz,
p o is ele m e s m o n ã o e ra a luz. 19O ra, este é o te ste m u n h o q u e João d e u
q u a n d o os fa rise u s [ju d e u s n o tex to Yj e n v ia ra m d e Jeru salém sacer-
d o te s e lev ita s a p e rg u n ta r-lh e q u e m ele era: 20ele d e c la ro u sem qual-
q u e r restriç ão , c o n fe ssa n d o : "E u n ã o sou o M essias". 21Eles o in terro -
g a ra m m ais: "E n tã o , q u e m és tu? E lias?" "E u n ão so u ", ele re sp o n d e u .
"É s tu o p ro fe ta ? " "N ã o !", rep lico u .
25T o rn a ra m a p e rg u n ta r-lh e : "Se 22E n tão lh e d isseram : " Q u e m és
n ão és o M essias, n e m Elias, n e m tu p re c isa m e n te - p a ra q u e p o ssa-
o p ro fe ta , e n tã o o q u e e stá s fazen- m o s d a r a lg u m a re sp o sta aos qu e
d o b a tiz a n d o ? " n o s e n v ia ra m . O q u e ten s a d ize r
d e ti m esm o ? "
2 6 a ! ‫ ״‬. sr
João lh es re s p o n d e u 23Ele d isse, c ita n d o o p ro fe ta
Isaías: "E u sou 'u m a v o z n o de-
se rto q u e clam a: P re p a ra i o cam i-
n h o a o S en h o r!'
26cH á u m e n tre v ó s a q u e m n ão 30bA p ó s m im v e m u m h o m em
reco n h eceis; q u e tem p rec e d ê n cia so b re m im ,
p o is já existia a n te s d e m im .
31Eu m e s m o n u n c a o conheci, 33E eu m esm o n ã o o conhecia,
m u ito e m b o ra a p ró p ria ra z ã o m as A q u e le q u e m e e n v io u a ba-
p o r q u e e u v im e b a tiz a v a foi p a ra tiz a r m e disse:
q u e ele fosse re v e la d o a Israel". 'Q u a n d o vires o E spírito descer e
32João d e u ta m b é m este teste m u - re p o u sa r so b re alg u ém , esse é ele.'
nho: "E u v i o E sp írito d e sc e n d o ///34O ra , e u m esm o te n h o v isto e
co m o p o m b a d o céu e v eio re p o u - te n h o testificado: Este é o escolhí-
sa r so b re ele". d o d e D e u s'" .
28Foi e m B etânia q u e isto a c o n te c eu , d a lé m d o Jo rd ã o , o n d e João cos-
tu m a v a b a tiz ar.
35N o d ia se g u in te , João foi p a ra lá 29N o d ia s e g u in te , q u a n d o tev e
com s e u s d isc íp u lo s, 36 e o b ser- a v isã o d e Je su s v in d o p a ra ele,
v a v a Je su s p a s s a n d o , e disse: "E is d isse: "E is a q u i o C o rd e iro d e
a q u i e stá o C o rd e iro d e D e u s D eus
q u e re m o v e o p e c a d o d o m u n d o " .
256 II. O Livro dos Sinais

(d) U m re d a to r, d ife re n te d o e v a n g elista (p ara B oismard, o re d a -


to r é L ucas), d e c id iu q u e to d a s e sta s a n tig a s in tro d u ç õ e s se ria m in-
c o rp o ra d a s n o e v a n g e lh o final. Ele to m o u (a) e o p ô s d e p o is d o rela to
d e N ic o d e m o s, d a n d o assim u m p a d rã o g eo g ráfico n o s c a p ítu lo s 3-4
d e Jeru salém , Ju d e ia , S am aria e G alileia (d o s g e n tio s - veja a o rd e m
lu can a em A t 1,8). O re d a to r to m o u X e Y e os c o m b in o u e m u m a só
n a rra tiv a q u e foi d e ix a d a n o início d o e v a n g elh o .
C o m p a re m o s a g o ra a s d u a s teo rias re p re s e n ta d a s p o r B ultmann e
Boismard. São re a lm e n te d ife ren te s? A d e B ultmann é m u ito m ais sim -
p ies, e m u ito s a c h a rã o a teo ria d e Boismard im p la u sív e l, a sa b er, q u e
o e v an g elista c o m p ô s três d ife re n te s a b e rtu ra s p a ra seu e v a n g e lh o .
N a v e rd a d e , a re c o n stru ç ã o d e B ultmann n ã o é tão d ife re n te d a V er-
são X d e Boismard, v isto q u e c a d a u m a foi iso la d a m e d ia n te a rem o -
ção d e m a te ria l q u e tem p a ra le lo s sinóticos. A m a io r d ife re n ç a é q u e
p a ra Bultmann o m a te ria l com p a ra le lo s sin ó tico s foi a d ic io n a d o p e lo
R ed ato r E clesiástico, e n q u a n to Boismard p e n sa n o m a te ria l co m o p e r-
ten cen te à V ersão Y, o b ra d o p ró p rio e v a n g elista .
O fato r cru cial, p o is, p a re c e ser o m a te ria l com p a ra le lo s sin ó ti-
cos; e se B ultmann está certo, se ría m o s c a p az e s d e d e te c ta r n e ste m a-
terial u m e le m e n to q u e, o u c o rrig iría o re la to o rig in a l, o u o faria m ais
o rto d o x o , p o is esses fo ram os m o tiv o s q u e g u ia ra m a m ã o d o R e d a to r
E clesiástico. T o d av ia, se a lg u é m q u ise sse c o rrig ir o o rig in a l c o m o p ro -
p õ e B ultmann, a p rim e ira coisa q u e ele faria é re m e d ia r su a o m issã o
m ais e v id e n te , a sab er, o rela to d o b a tism o d e Jesus. O m a te ria l acres-
cid o n ã o m en c io n a o b a tism o d e Jesus, n e m m esm o a v o z celesial.
V an Ihrsel, p. 266, está p e rfe ita m e n te certo e m a firm a r q u e n e ste caso,
se h o u v e u m a red a ç ã o , foi com o p ro p ó sito d e s u p le m e n ta r m ais q u e
corrigir.
A lém d o m ais, q u a lq u e r s u g e stã o d e q u e o m a te ria l a d ic io n a l
foi to m a d o d o s sin ó tico s se d e p a ra c o n tra as d isc re p â n c ia s m en cio -
n a d a s em n o sso c o m e n tário . R ecen tem en te, D odd ( Tradition ), Buse e
V an Iersel têm e s tu d a d o e s m e ra d a m e n te esta seção e c o n c lu íd o q u e
h á d ific u ld a d e s sérias c o n tra a teo ria d e e m p ré s tim o d ire to . N o m ate -
rial jo an in o em 1,19-34 q u e tem p a ra le lo s com a tra d iç ã o sin ó tica, h á
trin ta e oito palavras q u e João e M arco s p a rtilh a m , q u a re n ta q u e João
e M ateu s p a rtilh a m e trin ta e sete q u e João e L ucas p a rtilh a m - o b v ia-
m en te, n ão h á d e p e n d ê n c ia clara d e u m sin ó tico m ais q u e d o o u tro s.
Q u a n to à fraseologia, há d u a s ex p re ssõ e s q u e so m e n te João e M arcos
3 · O testemunho de João Batista: Acerca de Jesus 257

u s a m , três q u e so m e n te João e M a te u s u sa m , u m a q u e so m e n te João e


L u cas u sa m . I n d e p e n d e n te m e n te, rela to s p a ra le lo s d o m esm o m ate-
ria l p a re c e m se r in d ic a d o s p o r tais estatísticas.
D eve-se fazer outra ob servação ao estim ar a capacidade daquele
que deu a form a atual a 1,19-34. O delicado equilíbrio entre os dois
dias de testem unho revela considerável talento: eles contêm m ais ou
m enos a m esm a quantidade de m aterial; cada um tem seu tem a; cada
um é quase subdividido em duas partes; um a inclusão m antém o todo
unido. A despeito dos leves traços de irregularidade no produto final,
isso não levaria algu ém a ad m itir que o resultado é considerável-
m ente m ais rico do que o original hipotético de B ultmann?
A teo ria d e Boismard, a p e sa r d e co m p licad a e fastidiosa com o é,
explica m e lh o r as d u p lic a ta s e o fato d e q u e to d o o m ate ria l d a seção
ten h a u m a to n a lid a d e h a rm o n io sa . (A bstraím os, com o se m p re , d e sua
id en tificação d o re d a to r final co m o se n d o Lucas, identificação essa que,
em n o ssa o p in iã o , vai além d a evidência). Seu p rim e iro p a sso é teórico
d e m a is e d esafia as p ro v a s, m as os p a sso s d o is e três fazem o p ró p rio
e v a n g elista resp o n sá v e l p o r to d o o m aterial c o n tid o em 1,19-34. Q u e
em a lg u m a ép o ca na h istó ria d a co m p o sição d o e v a n g elh o d o is rela-
tos jo an in o s d o te ste m u n h o d o B atista em p ro l d e Jesus fo ram u n id o s
n o q u e a g o ra tem o s é p e rfe ita m e n te p lau sív e l, e m b o ra n ã o p o ssam o s
e sta r c erto s d e q u e tal ju n çã o fosse a o b ra d o re d a to r final. P essoalm en-
te, so m o s m ais in clin a d o s a v e r a m ão d o re d a to r final n a red ação d o
P ró lo g o e n o c o n seq u e n te d eslo c a m e n to d e 1,6-7(87) e a trib u ir a com bi-
n ação d o s relato s a u m d o s d iv erso s estág io s d e fo rm ação d o co rp o do
e v a n g e lh o (v er acim a, p p . 21-22 - T erceiro e Q u a rto Estágios).

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4. OS DISCÍPULOS DO BATISTA
VÃO A JESUS: - OS PRIMEIROS DOIS
DISCÍPULOS E SIMÃO PEDRO
( 1 ,35-42 )

1 35N o dia seg u inte, estava ali João o u tra vez com dois discípulos; 36e
o b se rv a n d o Je su s p a ssa r, exclam ou: "E is a q u i o C o rd e iro d e D eus".
37O s d o is d isc íp u lo s o u v ira m o q u e ele d isse e se g u ira m a Jesus.
38Q u a n d o Jesu s o lh o u ao re d o r e os n o to u se g u in d o -o , lh es p er-
g u n to u : " o q u e b u sc ai? " Eles lh e d isse ram : "R abi, o n d e estás m o-
ra n d o ? " ("R ab i" q u e significa "M estre"). 39"V in d e e v e d e ", res-
p o n d e u ele. E n tão fo ra m v e r o n d e ele m o ra v a e ficaram com ele
a q u e le d ia (era cerca d e q u a tro d a tard e).
40U m d o s d o is q u e o se g u ira m , d e p o is d e o u v ir João, era A n d ré,
irm ã o d e S im ão P ed ro . 41A p rim e ira coisa q u e ele fez foi e n c o n tra r
s e u irm ã o S im ão, e disse-lhe: "E n c o n tra m o s o M essias!" (T rad u zi-
d o , "M e ssia s" significa "U n g id o "). 42Ele o lev o u a Jesus q u e olh o u
p a ra ele e disse: "T u és S im ão, filho d e João; te u n o m e será C efas"
(q u e q u e r d iz e r " P e d ro " ).

36: e x c l a m o u 38 ,‫׳‬: p e r g u n t o u ; 39: respondeu; 41: f o i e n c o n tr a r e d is s e . No tempo presente


histórico.

NOTAS

1.35. estava ali. Literalmente, "estava em pé"; Bernard, I, p. 53, toma-o no sentido
de que o Batista estava em pé, aguardando Jesus. Mais provavelmente, o
verbo simplesmente implica que ele estava presente; veja BAG, p. 383 (II 2b).
260 II. O L ivro d o s S in ais

d o is d isc íp u lo s.Um deles era A ndré (v. 40); o outro não tem seu nom e ex-
presso. Deveria ser identificado com o "outro discípulo" = "o discípulo
a quem Jesus am ava" (tradicionalm ente identificado com João, filho de
Zebedeu; veja acima p. 98)? O escriba que foi o responsável pelo capítulo
21 podería ter pensado assim, pois ele descreve o Discípulo A m ado em
um a situação m uito semelhante à que temos aqui (21,20). Todas as listas
dos Doze trazem Simão, André, Tiago e João como os quatro primeiros;
os sinóticos mencionam estes mesmos quatro (Lucas omite André) como
os primeiros discípulos chamados enquanto pescavam no M ar da Galileia
(Mc 1,16-20 e par.). A p rio ri, pois, pode haver certa probabilidade de que o
discípulo não mencionado nom inalm ente fosse um dos quatro, especial-
m ente visto que o Quarto Evangelho cita nom inalm ente A ndré e Pedro
como dois dos primeiros três chamados. Assim, há algum a base para a
identificação do discípulo não nom eado desta passagem como sendo João.
Boismard, D u B a p tê m e , pp. 72-73, argum enta que Filipe é o discípulo sem
menção nom inal, ressaltando que Filipe e A ndré estão sem pre juntos nes-
te evangelho (6,5-9; 12,21-22) e procedem da m esm a vila (1,44). Pode-se
tam bém salientar que A ndré e Filipe estão juntos na lista dos Doze em
Mc 3,18 (os dois nom es são adjacentes em At 1,13, porém não unidos por
um a conjunção como um par). Não obstante, a lista em M ateus e Lucas
separam seus nomes. A verdadeira dificuldade para Boismard é que 1,43
parece introduzir Filipe pela prim eira vez e torna difícil de crer que ele já
fosse m encionado. Alguns têm sugerido que esta cena em João constitui
num a adaptação da cena sinótica onde o Batista envia seus discípulos a
fazer perguntas a Jesus (Mt 11,2; Lc 7,19). Há bem poucas sim ilaridades
entre as duas cenas.
d is c íp u lo s. Todos os evangelhos concordam que o Batista tinha discípulos.
Aparentem ente, p or seu batismo, form am um grupo separado, com suas
próprias regras de jejum (Mc 2,18 e par.; Lc 7,29-33) e inclusive suas pró-
prias orações (Lc 5,33; 11,1). Jo 3,25 e 4,1 sugerem certa rivalidade entre
os discípulos do Batista após a m orte deste.
36. o b se rv a n d o . O verbo e m b le p e in (duas vezes em João, aqui e v. 42) significa
fixar o olhar em alguém e, assim, olhar com penetração e discernim ento.
Esse significado é mais apropriado para o v. 42 do que aqui.
37. Os d o is d is c íp u lo s. Os mss. gregos leem "seus dois discípulos"; m as a po-
sição de "seus" varia tanto que provavelm ente se deva considerar um a
clarificação posterior.
38. n o to u . Para th e a sth a i, veja A pêndice 1:3, p. 794ss. Aqui, o verbo não tem
significado especial; a descrição paralela mais próxim a em 21,20 usa o
b lepein simples.
4 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Os primeiros dois discípulos... 261

buscai. Em seu esforço por estabelecer o substrato aram aico de João, Bois-
m a r d , Du Baptême, p. 73, insiste que o verbo aram aico be 'â significa tanto

"buscar ou procurar por" como "esperar", e que am bos os significados


estão envolvidos aqui. Ele vê um significado superficial de "O que que-
reis?" e um significado mais profundo de "O que estais procurando?"
Não obstante, am bas estas nuanças de significado podem ser encontra-
das no grego zêtein sem recorrer ao aramaico. A redação variante, "A
quem procurais?", reflete um a com preensão da cena como se nela propi-
cia um a teologia do discipulado. Veja tam bém 20,15.
"Rabi". Literalm ente, "m eu grande [=senhor, m estre]"; a tradução de João
com o "m estre" não é literal, m as reflete perfeitam ente o uso daquele tí-
tulo. (Está implícito em Mt 23,8). Tem-se suscitado a questão se o apa-
recim ento de "rabi" como um a forma de discurso nos evangelhos se-
ria anacrônico. Não há evidência judaica para a prefixação de "rabi" ao
nom e de algum dos sábios no período anterior a 70. A Epístola de Sherira
Gaon (10“ século d.C.) diz que a prim eira pessoa a portar o título "rab-
ban" foi Gam aliel (c. da m etade do 1“ século), um a data que concorda
com a evidência de que som ente com a escola em Jâmnia "rabi" veio a
ter um uso regular como título para estudiosos "ordenados". Entretanto,
E. L. Sukenik, Jüdische Gräber Jerusalems um Christi Geburt (Jerusalém: 1931)
descobriu um ossário no M onte das Oliveiras onde didaskalos, palavra
usada em João para "m estre", é usada como título (Pl. 3 in Tarbiz 1 [19301;
F rey, Corpus Inscriptionum Judicarum, 1266). Sukenik data este ossário em
diversas gerações antes da destruição do templo. Se didaskalos representa
rabi (tam bém representava mõreh nesta época), o ossário pode indicar
que o uso neotestam entário de rabi além de tudo não é anacrônico. Veja
H. S hanks, JQR 53 (1963), 337-45 (com um aviso de que sua hipótese de
que Gamaliel o Ancião viveu além de setenta não é usual).
Somente João faz uso frequente do termo "rabi". Lucas não usou; em Ma-
teus, somente Judas fala a Jesus assim. Em João, a frequência dos termos
"rabi" e "mestre", usados pelos discípulos ao se dirigirem a Jesus, parece
seguir um plano deliberado: estes termos aparecem quase exclusivamente
no Livro dos Sinais, enquanto no Livro da Glória os discípulos se dirigem
a Jesus como “kyrios [senhor]". Nestas formas de discurso, João podería
estar tentando captar o aum ento da com preensão da parte dos discípulos.
morando. Para o verbo menein, o qual ocorre três vezes nos vs. 38-39, veja Apên-
dice 1:8, p. 794ss. No nível da conversação normal, menein pode significar
"alojar-se" (Mc 6,10; Lc 19,5), aqui, porém , o term o tem m atizes teoló-
gicos - veja comentário. O tema de onde Jesus vive é suscitado em Mt
8,18-22 (Lc 9,57-60): certo escrita diz "Mestre, eu te seguirei aonde fores";
262 II. O Livro dos Sinais

m as Jesus diz que o Filho do Hom em não tem onde reclinar sua cabeça.
Isto é seguido por outro incidente, onde Jesus diz a um discípulo: "Se-
gue-me". Note os paralelos nestas cenas sinóticas ao relato de João.
39. quatro da tarde. Literalmente, "a hora décim a"; presum ivelm ente, João está
com putando as horas a partir do am anhecer, às 6 da m anhã. N. W alker,
"The Reckoning of H ours in the Fourth Gospel", NovT 4 (1960), 69-73,
tem revivido a sugestão de B elser e W estcott de que, diferente dos evan-
gelhos sinóticos, João com puta as horas a partir do meio dia, segundo o
costume dos sacerdotes rom anos, dos egípcios etc. Ele alega que 10 da
m anhã faria m elhor sentido no presente contexto. Não obstante, é bem
claro no relato joanino da m orte de Jesus que o dia seguinte, a Páscoa,
começaria no início da noite, e não ao meio dia; este detalhe favorece
um a com putação das horas vespertinas a partir das 6 da tarde, e as horas
m atutinas a partir das 6 da manhã.
A indicação de tem po tem algum a importância? A lgum as vezes, as ano-
tações joaninas sobre o tem po parecem ter im portância especial, p. ex.,
"meio dia" em 19,14; outras vezes, não, p. ex., "m eio dia" [hora sexta]
em 4,6. O fato de que dez é um núm ero significativo no AT e um nú-
mero perfeito para os pitagóricos e F ilo tem levado Bultmann, p. 70, a
sugerir que João menciona a hora décim a como a hora do cum prim ento.
Uma sugestão mais im portante é que aquele dia era um a sexta-feira, daí
a véspera do sábado; assim, os discípulos ficaram com Jesus desde as 4
da tarde de sexta-feira até a noite de sábado, quando o sábado já havia
expirado, pois não podiam se m over a algum a distância, um a vez que o
sábado começava na noite de sexta-feira. Veja nota sobre 2,1.
40. irmão de Simão Pedro. Presumivelmente, Pedro seria bem conhecido do leitor.
João mostra uma marcante preferência pelo nome combinado, Simão Pedro.
Como o restante do NT, exceto 2Pd 1,1 (e talvez At 15,14), João usa para
Pedro "Simão", e não "Simeão". ("Simão" era um genuíno nome grego; "Si-
meão" seria uma transliteração preferível para o nome hebraico Sim'öri).
Mt 10,2 e Lc 6,14 concordam que André e Pedro eram irmãos.
41. A primeira coisa que ele fez foi. Há diversas redações e traduções possíveis:
(a) prõton. O uso adverbial do neutro do adjetivo (= A ndré primeiro en-
controu seu irm ão antes de fazer algum a outra coisa) é a redação mais
bem atestada, apoiada por P“ ·75; é adotada aqui. A bbott, JG, § 1901b, in-
terpreta prõton como acusativo m odificando Simão e indicando que Pe-
dro tem o prim eiro lugar; assim tam bém C ullmann, Peter (2 ed., 1962),
p. 30; (b) prõtos. O adjetivo m asculino nom inativo m odificando "A ndré"
é encontrado em mss. sináiticos e gregos posteriores. Esta redação (A ndré
foi o prim eiro a encontrar seu irm ão Simão Pedro) tem sido tom ada por
4 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Os primeiros dois discípulos... 263

m uitos para subentender que, subsequentem ente, o outro discípulo não


m encionado nom inalm ente (João?) foi encontrar seu irm ão (Tiago). Al-
guns veem esta implicação tam bém na redação proton, p. ex., A bbott, JG,
1985. (c)prõi. Este advérbio, significando "no início da m anhã seguinte",
tem o endosso do OL e do OScur; é adotada por B ernard e Boismard, porque
ela favorece a hipótese dos sete dias (p. 300 abaixo). Não obstante, outro
dia parece estar implícito por 1,39 mesmo sem esta tradução, embora a
redação prõi enfatize a hora m atutina vá de encontro à hipótese do sábado
m encionada em relação ao v. 39. O advérbio é um a "leitura fácil" e pode
ser um a tentativa escribal de clarificar o obscuro proton, (d) A palavra é
om itida totalm ente por T aciano, OScur, e alguns dos Padres.
seu irmão. O grego tem idios que pode ser traduzido "seu próprio irmão"
em favor da teoria de dois grupos de irm ãos supram encionados sob (b).
BDF, § 2861, contudo, insiste que ele não é enfático.
Messias. A transliteração grega do aram aico me SThâ (= heb. mãSih) ocorre
no NT som ente aqui e em 4,25.
"Ungido". Literalmente, Christos; por analogia em 1,38, este não deve ser
transliterado como "Cristo", e sim traduzido com este significado.
42. olhou para. Veja nota sobre "observando" no v. 36.
filho de João. As testem unhas textuais mais recentes leem "filho de Jonas",
pela assim ilação de Bar Jonah em Mt 16,17. Não fica claro se "Jonas" e
"João" com o equivalente grego de "Jonah", m as isto pode representar
confusão.
Cefas. Somente João, entre os evangelhos, dá a transliteração grega do nom e
aram aico de Pedro, Kêphâ, ou, talvez, no aram aico galileu Qêphâ, visto
que kappa grego geralm ente traduz o qoph semítico (BDF, § 392); um inter-
câmbio de qoph e kaph é atestado pelo aram aico galileu. Mt 16,18 endossa
o substrato aram aico, porém não o expressa (o jogo de palavras em "Pe-
dro" e "rocha" não é bom em grego, onde a prim eira é Petros e a segunda
é petra; é perfeito em aram aico, onde am bas são qêphâ). Nem Petros em
grego nem Kêphâ em aram aico é o nom e próprio normal; antes, é uma
alcunha (como o português "Rocha") que teria de ser explicado por algo
no caráter ou na carreira de Simão.

COMENTÁRIO: GERAL

O capítulo 1,35-50 está associado ao testemunho do Batista em 1,19-34


pelo simples recurso de repetir o testemunho do Batista acerca de Je-
sus como o Cordeiro. O testemunho reiterado em 1,36, contudo, já não
264 II. O Livro dos Sinais

tem e m si m e sm o v a lo r re v e lató rio ; seu p ro p ó sito é in ic ia r a c a d e ia d e


relação q u e tra rá os d isc íp u lo s d o B atista a Jesu s e os fará d isc íp u lo s
d o p ró p rio Jesus. C o m o 1,7 p ro m e te u , a tra v é s d o B atista o s h o m e n s já
co m eçaram a crer.
O m esm o p la n o d e d iv isã o q u e e n c o n tra m o s n o s vs. 1 9 3 4 ‫ ־‬se en-
c o n tra aq u i. O m ate ria l está se p a ra d o ao lo n g o d e d o is d ia s, m en cio -
n a d o esp ec ific am e n te e m 35 e 43 (o u tro d ia b e m q u e p o d e e sta r im p lí-
cito e m 39, m as o e v a n g e lista n ã o o g rafo u com m a iú sc u la ). D e n tro d e
cad a d ia h á u m p a d rã o d e su b d iv isã o , co m o p o d e se r v isto c la ra m e n te
n o E sboço (p. 218).
N o s vs. 35-50, João m en c io n a cinco d iscíp u lo s: A n d ré , u m d is-
c íp u lo n ã o m e n c io n a d o n o m in a lm e n te , P e d ro , F ilip e e N a ta n a e l; em
o u tro lu g a r, este e v a n g e lh o m en c io n a Ju d a s Iscariotes, o u tro J u d a s e
T om é (os "filh o s d e Z e b e d e u " , em 21,2, p o d e m se r u m a glosa). Em -
b o ra João m en c io n e "o s D o ze" (6,67; 20,24), n ã o h á u m a lista jo an in a
d o s D oze.
O rela to jo a n in o d o c h a m a d o d o s p rim e iro s d isc íp u lo s é b e m di-
feren te d o rela to sinótico, m u ito e m b o ra a o m e n o s d o is d o s m e sm o s
p e rs o n a g e n s (P e d ro e A n d ré ) este jam e n v o lv id o s. S e g u n d o João, o
c h a m a d o p a re c e te r o c o rrid o e m B etânia, n a T ra n sjo rd â n ia , e os p ri-
m eiro s d isc íp u lo s fo ssem a n te rio rm e n te d isc íp u lo s d o B atista. S eg u n -
d o os sin ó tico s, o c h a m a d o o c o rre u n a p ra ia d o M a r d a G alileia, o n d e
P ed ro , A n d ré , T iago e João e sta v a m p e sc a n d o . A h a rm o n iz a ç ã o p a -
d rã o é q u e Jesu s p rim e iro c h a m o u os d isc íp u lo s co m o João n a rra , m a s
q u e, s u b s e q u e n te m e n te , v o lta ra m à su a v id a n o rm a l n a G alileia a té
q u e Jesu s foi lá p a ra c h a m á -lo s d e n o v o ao m in isté rio , co m o n a rra m
os sinóticos. P o d e h a v e r a lg u m a v e rd a d e b ásica n e sta re c o n stru ç ã o ,
p o ré m v a i c o n s id e ra v e lm e n te a lém d a e v id ê n c ia d o s p ró p rio s e v a n -
g elhos. E m João, u m a v e z q u e os d isc íp u lo s são c h a m a d o s, p e rm a n e -
cem d isc íp u lo s d e Jesu s sem a m ais lev e su g e stã o d e v o lta re m o u tra
v ez à v id a n o rm a l. N e m n o re la to sin ó tico d o c h a m a d o n a G alileia h á
q u a lq u e r in d ic a çã o d e q u e estes h o m e n s tiv e ssem v isto p re v ia m e n te
a Jesus. D e fato, L ucas p a re c e e m b a ra ç a d o d ia n te d o fato d e q u e e ste s
h o m e n s se g u isse m a Jesu s n o p rim e iro c o n ta to , e m u d a a o rd e m m a r-
can a d o m a te ria l a fim d e fazer a cen a m ais raz o á v e l. (Em 4,38-5,11,
L ucas p õ e a c u ra d a so g ra d e P e d ro a n te s d o c h a m a d o d e P e d ro p a ra
fo rn ecer o m o tiv o d e u m m ila g re p a ra e x p lic ar p o r q u e P e d ro se g u e
a Jesus). T al p ro c e d im e n to d ific ilm e n te teria sid o n e c essá rio se fosse
4 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Os primeiros dois discípulos... 265

p re s s u p o s to q u e P e d ro e A n d ré c o n h ecessem Jesus e o u v isse m o tes-


te m u n h o d o B atista.
N ã o o b sta n te , a in fo rm a ç ã o d e João é b e m p lau sív e l, co m o a p ró -
p ria d iscrep ân cia d o relato sinótico p o d e ría indicar. H á em A t 2,21-22
u m eco d e q u e os p rim e iro s d isc íp u lo s re a lm e n te se ju n ta ra m a Jesus
n o m o m e n to d e se u b a tism o ; p o is P e d ro in siste q u e a q u e le q u e assu -
m isse o lu g a r d e J u d a s fosse u m d o s h o m e n s " q u e n o s a c o m p a n h a ra m
d u r a n te to d o o te m p o e m q u e o S e n h o r e n tra v a e saía e n tre nós, come-
çando do batismo de João". V isto q u e esta o b se rv a ç ã o n ã o se h a rm o n iz a
com o p ró p rio re la to n o e v a n g e lh o d e L ucas, h á b o a ra z ã o p a ra levá-lo
a sério.
E n tre ta n to , m e sm o q u e a in fo rm a ç ã o h istó rica su b lin h e o relato
d e João, ele foi re o rg a n iz a d o co n fo rm e a u m a certa o rie n taç ã o teoló-
gica. E m 1,35-51 e 2 ,1 1 1 ‫־‬, João a p re s e n ta u m p a ra d ig m a d a vocação
cristã. E m c a d a d ia h á u m a p ro fu n d a m e n to g ra d u a l n a c o m p re en sã o
m ais p r o fu n d a acerca d a q u e le a q u e m os d isc íp u lo s estã o se g u in d o .
Isto ch eg a a u m clím ax em 2,11, o n d e Jesu s re v e lo u su a g ló ria e os d is-
c íp u lo s c re ra m nele. T a m b ém , p re c isa m e n te co m o o e v a n g elista u so u
o te s te m u n h o d o B atista p a ra a p re s e n ta r ao leito r u m a rica cristologia,
assim e m 1,35-52 ele e x tra i d o s d isc íp u lo s u m te ste m u n h o acerca de
Jesu s q u e c o n s titu i u m a cristo lo g ia a in d a m ais rica. N o s sin ó tico s e
em A to s d e s c o b rim o s q u e a n te s e d e p o is d a ressu rre içã o os d isc íp u lo s
a p lic ara m a Je su s títu lo s e x tra íd o s d o A T a tra v é s d o s q u a is d e ra m ex-
p re ssã o à su a c o m p re e n sã o d e su a m issão . D e fato, a lg u m a s d a s abor-
d a g e n s m o d e rn a s d a cristo lo g ia n e o te sta m e n tá ria co n sistem d e u m
e s tu d o d e tais títu lo s. O q u e João fez foi re u n ir e stes títu lo s n a cena d a
v o cação d o s p rim e iro s d isc íp u lo s. N o s vs. 35-42, Jesus é re fe rid o com o
rab i (m estre) e M essias; em 43-50, co m o a q u e le d e scrito n a Lei m osai-
ca e n o s p ro fe ta s, co m o F ilho d e D e u s e R ei d e Israel; fin alm en te, em
51, Jesu s refere a si m esm o com o títu lo F ilho d o H o m e m .
Q u e os d isc íp u lo s n ã o a tin g ira m tal p e rc e p ç ão em d o is o u três
d ias, o p ró p rio início d o m in isté rio é b a sta n te ób v io a p a rtir d a ev id ên -
cia d o s sinóticos. P or ex em p lo , so m e n te n o m eio d o relato d e M arcos
(8,29) é q u e P e d ro p ro c la m a Jesus co m o M essias, e isto é a p re se n ta d o
com o u m clím ax. Tal cena seria a b so lu ta m e n te in in telig ív el se, com o
n a rra d a e m João, P e d ro so u b e sse q u e Jesus é o M essias an te s d e havê-lo
e n c o n trad o . O p ró p rio Q u a rto E vangelho, su b se q u e n te m e n te , insiste
so b re o g ra d u a l d e se n v o lv im e n to d a fé d o s d isc íp u lo s (6,66-71; 14,9); e,
266 II. O Livro dos Sinais

d ev eras, João é o m ais in sisten te d e to d o s os ev an g elh o s d e q u e a ple-


n a co m p reen são d o p a p e l d e Jesus só veio d e p o is d a ressu rreição (2,22;
12,16; 13,7). A ssim , não p o d e m o s tra tar Jo 1,35-51 sim p lesm en te com o
u m a n arrativ a histórica. É b e m p ro v áv el q u e João esteja co rreto em p re-
serv ar a m em ó ria, p e rd id a nos sinóticos, d e q u e os p rim eiro s d iscíp u lo s
foram an tes d iscíp u lo s d o Batista e fo ram c h a m a d o s n o v ale d o Jo rd ão
ju stam en te d ep o is d o b atism o d e Jesus. João, p o rém , colocou em seu s
lábios, neste m o m en to , u m e sq u em a d o g ra d u a l a u m e n to d e c o m p reen -
são q u e o co rreu p o r to d o o m inistério d e Jesus e d e p o is d a ressu rrei-
ção. João u so u a ocasião d o c h a m a d o d o s d iscíp u lo s p a ra re su m ir o q u e
significa a co n d ição d o d isc ip u la d o em to d o o seu d esen v o lv im en to .

COMENTÁRIO: DETALHADO

Dois discípulos seguem a Jesus como Rabi (1,35-39)

N este tem p o , a p ro clam ação q u e o B atista faz d e Jesus com o o C o rd ei-


ro d e D eus acha u m a u d itó rio q u a n d o d o is d isc íp u lo s seguem a Jesus.
O tem a d e " se g u ir" Jesus a p a re c e n o s vs. 37, 38, 40, 43. Isto significa
m ais d o q u e a n d a r n a m esm a d ireção , p o is " se g u ir" é o te rm o p o r ex-
celência p a ra a d ed ic a ç ão d o d isc ip u la d o . O u v im o s d e se g u ir co m o
u m d isc íp u lo em 8,12; 10,4.27; 12,26; 13,36; 21,19.22; e e m M c 1,18 e
p aralelo (os d isc íp u lo s ju n to ao M ar d a G alileia). O im p e ra tiv o "se-
g u e-m e" a p a re c e nos relato s sinóticos d o c h a m a d o d o s d isc íp u lo s
(Mc 2,14: c h a m a d o d e Levi; M t 8,22: c h a m a d o d e u m d isc íp u lo sem
nom e; M t 19,21: c h a m a d o d o jo v em rico). A ssim , d e s d e as p rim e ira s
p a la v ras, João in sin u a q u e o s d isc íp u lo s d o Batista estã o p a ra se to rn a r
d isc íp u lo s d e Jesus. P or cau sa d isto , o B atista a g o ra p o d e d e sa p a re c e r
d a cena e p e rm itir q u e se u s d isc íp u lo s a ssu m a m a tarefa d e d a r teste-
m u n h o acerca d e Jesus. "Q u e ele [Jesus] cresça e e u d im in u a " (3,30).
N o te q u e n o início d o p ro ce sso d o d isc ip u la d o é Jesu s q u e m to m a
a in iciativ a, v o lta n d o -se e d irig in d o -lh e a p a la v ra . C o m o Jo 15,16
e n u n c ia rá , " n ã o fostes v ó s q u e m e escolhestes. N ã o , e u v o s esco lh i".
A s p rim e ira s p a la v ra s d e Jesus n o Q u a rto E v a n g e lh o c o n stitu e m u m a
p e rg u n ta q u e ele d irig e a c a d a u m q u e o seg u ir: "A q u e m b u sc a i? "
C o m isto João im p lic a m ais d o u m a in d a g a ç ã o b a n a l so b re a ra z ã o d e-
les p a ra a n d a re m a p ó s ele. E sta q u e stã o toca a n e c e ssid a d e b á sic a d o
4 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Os primeiros dois discípulos... 267

h o m e m q u e o faz v o lta r-se p a ra D eu s, e a re sp o sta d o s d isc íp u lo s


d e v e ser in te rp re ta d a no m esm o n ív el teológico. O h o m e m deseja ficar
( m e n e i n : " h a b ita r, p e rm a n e c e r" ) com D eus; ele e stá c o n sta n tem e n -
te b u s c a n d o s u p e ra r a te m p o ra lid a d e , m u d a n ç a e m o rte , b u sc a n d o
e n c o n tra r a lg o q u e seja p e rm a n e n te . Jesu s re s p o n d e com o desafio
to d o -a b ra n g e n te d irig id o à fé: "V e n h a e veja". P o r to d a p a rte , o tem a
d e Jo ão d e " ir" a Jesu s será u s a d o p a ra d e sc re v e r a fé (3,21; 5,40;
6,35.37.45; 7,37 etc.). D e m o d o se m e lh a n te , " v e r" Jesus co m p ercep ção
é o u tra d e scriçã o jo an in a d a fé. E in te re ssa n te q u e em 5,40; 6,40.47,
p ro m e te -s e v id a e te rn a resp e c tiv a m e n te ao s q u e v ão a Jesus, ao s qu e
o lh a m p a ra ele e ao s q u e c reem n ele - três d ife ren te s m a n e ira s d e des-
c re v e r a m e sm a ação. Se a p re p a ra ç ã o d o s d isc íp u lo s com eça q u a n d o
v ã o a Je su s p a ra v e r o n d e ele está m o ra n d o e f i c a r com ele, ela será
c o m p le ta d a q u a n d o v i r e m su a g ló ria e c r e r e m n ele (2,11). Esta cena é a
a n te c ip a ç ã o d o q u e o u v ire m o s e m 12,26: "Se a lg u é m m e serv e, en tã o
m e siga; e o n d e e u e stiv e r, aí ta m b é m e sta rá o m eu serv o ".
D ev em o s n o ta r q u e algo d a lin g u a g e m d e sta seção se o rig in a do
tem a d e Jesus co m o a S abedoria d iv in a (veja In tro d u ção , P arte VIII:D),
co m o sa lie n ta B oismard em D u B a p tê m e , p p . 78-80. D e Sb 6, p o r exem -
p io , p o d e -s e e x tra ir os se g u in te s p aralelo s:

6,12: A S a b e d o ria se deix a v e r facilm en te p o r a q u e le s q u e a a m a m e é


e n c o n tr a d a p o r a q u e le s q u e a b u s c a m .
6,13: "E la a n te c ip a os q u e a d esejam , p rim e ira m e n te faz e n d o -se co-
n h e c id a d e le s" , ju sta m e n te co m o Jesus to m a a iniciativa.
6,16: "Ela vai em busca dos q u e são dignos dela e graciosam ente se m ani-
festa a eles q u a n d o se p õem em seu cam inho" - veja Jo 1,43.

Em P r 1,20-28, a S abedoria clam a em v o z alta n as ru as, co n v id an -


d o o p o v o a ir a ela; os q u e rec u sa m este c h a m a d o b u scam -n a e não
a en c o n tram . A q u ele q u e acha a S ab ed o ria acha a v id a (8,35). A ssim
tam b ém n o s v ersícu lo s su b seq u e n te s d e João os d iscíp u lo s sairão triu n -
fan tem en te a n u n c ia n d o a o u tro s o q u e já e n c o n trara m (1,41.45).

A n d r é e n c o n t r a S im ã o e 0 le v a a J esu s 0 M e s s i a s (1,40-42)

M e sm o q u a n d o isto p o d e ter a c o n te c id o em o u tro d ia (veja n o ta


so b re v. 39), João n ã o m en c io n a o u tro d ia p a ra q u e n ã o se p e rd e sse
268 II. O Livro dos Sinais

a co n ex ão co m a cen a p re c e d e n te . O s d isc íp u lo s c o m e ç a ria m a a g ir


co m o a p ó sto lo s e lev a ria m o u tro s a Jesus.
N o m o m e n to e m q u e A n d ré ach a P e d ro , ele sa b e q u e Jesu s é o
M essias. D odd, Tradition, p. 290, rela cio n a esta id en tifica ç ã o com a
p ro cla m a ç ã o q u e o Batista faz d e Jesu s c o m o o C o rd e iro d e D e u s (p ara
D odd, títu lo e q u iv a le n te a M essias). N ã o o b sta n te , d e p o is q u e A n d ré
e seu c o m p a n h e iro o u v ira m esta p ro c la m a ç ã o acerca d o C o rd e iro , fa-
la ra m a Jesu s m e ra m e n te co m o rab i. É o in te resse d e le s d e ficarem
com Jesu s q u e, s e g u n d o a teo lo g ia jo an in a , lh es d e u u m c o n h e c im e n to
m ais p ro fu n d o so b re q u e m é ele.
E n q u a n to n o Q u a rto E v a n g e lh o A n d ré confessa Je su s co m o M es-
sias, esse p riv ilé g io n a tra d iç ã o sin ó tica recai e m S im ão (M c 8,29 e
par.). E in te re ssa n te q u e João co n ecta a c o n fissão m essiân ic a co m o
c h a m a d o d e S im ão e, co m o faz M t 16,16-18, com a m u d a n ç a d e n o m e ,
d e S im ão p a ra P ed ro . T o d o s os e v a n g e lista s sab em q u e S im ão rec e b e u
o n o m e d e P ed ro , m as so m e n te M a te u s e João m e n c io n a m a o casião
em q u e ele a recebe (M c 3,16 sim p le sm e n te m en c io n a o fato d a m u -
d an ça sem n e c e ssa ria m e n te im p lic a r q u e já h a v ia a c o n te c id o q u a n d o
Jesu s c h a m o u os D oze). Em João, a m u d a n ç a d e n o m e o c o rre n o início
d o m in istério ; em M a te u s ela o co rre já h a v ia p a s s a d o m ais d a m e ta d e
d o m in istério . C o m o se sab e à lu z d o AT, o a to d e d a r u m n o v o n o m e
tem u m a relação d ire ta com o p a p e l q u e o h o m e m e x ercerá n a h istó ria
d a salv ação (G n 17,5; 22,28). N este p o n to , o rela to d e M a te u s é m ais
p o lid o d o q u e o d e João, p o is M a te u s explica a relação d o n o v o n o m e
("ro ch a") co m o p a p e l d e P e d ro co m o a p e d ra fu n d a m e n ta l d a Igreja.
João ressa lta a p e n a s q u e o n o m e v eio d o d isc e rn im e n to d e Jesu s em
relação a P e d ro ("Jesus o lh o u p a ra ele"). O u so q u e João faz d a fo rm a
a ra m a ic a d o n o m e é o u tro fa to r e m a b o n o d a a n tig u id a d e d a fo rm a
jo an in a d a trad ição .
B ultmann , p. 712, te n ta h a rm o n iz a r João e M ateu s, in sistin d o
n o te m p o fu tu ro em Jo 1,42: "T u serás c h a m a d o C efas". Ele crê q u e
o rela to d e João d e v e se r tra ta d o co m o p ro fecia d e u m a cen a fu tu ra
co m o M t 16,18, a q u a l João n ã o n a rra p o rq u e e ra e x tre m a m e n te co-
n h ecid a. N ã o o b sta n te , a in te rp re ta ç ã o q u e B ui/ γμανν faz d o te m p o
fu tu ro c e rta m e n te é d u v id o sa , p o is o te m p o fu tu ro é p a rte d o esti-
lo literá rio d a m u d a n ç a d e n o m e, m esm o q u a n d o o n o m e é m u d a d o
n o m esm o in sta n te . O fu tu ro é u sa d o n a LXX d e G n 17,5 e 15, a in d a
q u a n d o o a u to r c o n siste n te m e n te u se o n o v o n o m e d a q u e le m o m e n to
4 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Os primeiros dois discípulos... 269

em d ia n te . A p a re n te m e n te , p o is, o re la to d e João significa q u e o n o m e


d e S im ão foi m u d a d o p a ra P e d ro em se u p rim e iro e n c o n tro com Je-
sus. P a ra m ais so b re a in te rp re ta ç ã o d a s c en as p e trin a s em João e M a-
teu s, veja c o m e n tá rio so b re 6,69.
O rIcenes (Catena Frag. XXII; G C S 10:502) n os d á o p rim e iro exem -
p io d e u m a im p o rta n te in te rp re ta ç ã o d e Jo 1,42. Ele vê a q u i u m indício
d e q u e S im ão to m a rá o lu g a r d e Jesus, já q u e Jesus, que é a rocha, cha-
m a S im ão d e " ro c h a " , a in d a q u a n d o Jesus, q u e é o p a sto r (10,11.14),
faz d e S im ão u m p a s to r (21,15-17). É v e rd a d e q u e João faz essa alu-
são na im a g e m d e Jesu s co m o a ro ch a ferid a p o r M oisés n o d e serto
(7,38), m a s este e v a n g e lh o n u n c a ch a m a Jesus e sp ecificam en te a rocha
(com o faz IC o r 10,4), n e m fala d e Jesu s co m o a p e d ra a n g u la r (A t 4,11;
Rm 9,33; M t 21,42). C o n se q u e n te m e n te , a in te rp re ta ç ã o d e O rígenes
p a re c e se r m ais u m caso d e teo lo g ização d a ev id ê n c ia n e o te sta m e n tá -
ria g e ra l d o q u e u m a ex eg ese d e João. Veja abaixo, p. 283.

[A b ib lio g ra fia p a ra esta seção está in clu sa na B ibliografia n o final


d o § 5 .]
5. OS DISCÍPULOS DO BATISTA VÃO A JESUS:
- FILIPE E NATANAEL
( 1 ,43-5 1 )

1 43N o d ia seg u inte, ele q u eria ir p a ra a G alileia, e n tã o e n c o n tro u Fili-


pe. "S egue-m e", disse-lhe Jesus. 44O ra, Filipe era d e B etsaida, a m esm a
vila d e A n d ré e P edro. 45Filipe en co n tro u N atan ael e lhe disse: "E ncon-
tram o s aq u ele descrito n a Lei m osaica e nos p ro fetas - Jesus, filho d e
José, d e N arazé". 46M as N a ta n ae l retrucou: "N azaré! P o d e v ir alg o b o m
dali?" E ntão Filipe lhe disse: "V em e v ê p o r ti m esm o ". 47Q u a n d o Jesus
v iu a N a ta n ae l v in d o p a ra ele, exclam ou: "Eis aq u i u m g e n u ín o israeli-
ta; nele n ão existe dolo". 48"C om o m e conheces?", p e rg u n to u N atan ael.
"A n tes q u e Filipe ter te ch a m a d o ", re sp o n d e u Jesus, "e u te vi deb aix o
d a figueira". 49N atan ael replicou: "R abi, tu és o Filho d e D eus; tu és o Rei
d e Israel". 50Jesus resp o n d e u : "T u crês, só p o rq u e e u te d isse q u e te vi
debaixo d a figueira? V erás coisas m u ito m aio res d o isso".

51E ele lh e d isse: " V e rd a d e ira m e n te , e u a s se g u ro a to d o s v ó s, v e re is


o céu a b e rto e os anjos d e D eus su b in d o e d e sc e n d o so b re o F ilh o d o
H o m e m ".

43: encontrou, disse; 45: encontrou, disse; 46: disse; 47: exclamou; 48: perguntou; 51: disse.
No tempo presente histórico.

NOTAS

1.43. e le q u e r i a ... e n c o n t r o u . A identidade do sujeito não é clara. Pedro foi


mencionado por último e então gramaticalmente seria a melhor escolha
5 · Os discípulos do batista vão a jesus: Filipe e Natanael 271

para o sujeito. Entretanto, enquanto João poderia nos dizer que Pedro
encontrou Filipe, dificilmente ele se deteria para nos dizer que Pedro
queria ir para a Galileia. Na presente sequência, provavelm ente Jesus
está im plícito como o sujeito, em bora em um estágio anterior da narra-
tiva A ndré poderia ter sido o sujeito (veja comentário).
ir. A parentem ente, Jesus ainda está na região de Betânia, a um a distância
de dois dias da Galileia (2,1).
encontrou. Os que pensam que Filipe era um dos dois discípulos mencio-
nados em l,35ss., interpretam isto no sentido de "encontrou outra vez".
A pontam para o uso de "encontrar" em 5,14 e 9,35, onde Jesus sai em
busca de um hom em que estivera com ele há pouco tem po antes. Não
obstante, nesses casos a conotação peculiar de "encontrar outra vez" é
clarificada pelo contexto. O v. 43 parece não ser diferente do v. 41, onde
"encontrar" é usado para introduzir um personagem .
Filipe. Ele é o terceiro discípulo a ser m encionado nom inalm ente em João,
depois de A ndré e Simão Pedro; a m esm a ordem se encontra na lista que
P apias faz dos anciãos a quem ele consultou (acima, pp. 94-95). Embora
Filipe seja m encionado nom inalm ente em todas as listas dos Doze, so-
m ente João lhe dá algum papel na narrativa do evangelho (6,5-7; 12,21-22;
14,8-9). A m em ória de Filipe foi honrada em Hierápolis, a sé de P apias, e
ali se m enciona a presença das filhas de Filipe (E usébio Hist. 3, 31:3; GCS
91: 264). É bem provável que o últim o detalhe aponta para um a confusão
acerca de Filipe, um dos sete líderes helenistas (At 6,5), que viveu em
Cesareia com quatro filhas (21,8-9).
44. Ora. Ou, talvez, "pois", se o fato de que Filipe era da Galileia foi a razão
por que Jesus o cham ou antes de sair para a Galileia.
Betsaida. João pensa em Betsaida como estando na Galileia (explicitamente,
em 12,21); na verdade, era em Gaulanitis, território de Filipe além da
fronteira da Galileia de Herodes. A localização de João pode refletir o
costum e popular: ela aparece tam bém na Geografia de Ptolom eu (5,16:4);
Josefo, Ant. 18.1.1; 4, fala de Judas, o revolucionário, como de Gaulanitis,
m as em 1.6; 23 o chama de galileu. Também a informação de João pode
refletir as divisões políticas de um período posterior (B ernard, 11, p. 431,
sugere que em torno de 80 a extensão da Galileia incluía Betsaida).
a mesma vila de André e Pedro. O território de Filipe era densam ente gen-
tílico, um fato que pode explicar por que judeus como A ndré e Filipe
tivessem nom es gregos (veja tam bém nota sobre Sim ão/Sim eão, 1,40).
Q ue o lar de A ndré e Pedro fosse em Betsaida não se harm oniza com Mc
1,21.29, que parece localizar seu lar em Cafarnaum . Seguindo O rígenes,
Boismard, D u Baptême, p. 90, sugere que Betsaida foi introduzida no relato
272 II. O Livro dos Sinais

de João em razão de significar "local de caça [pesca]", e assim tem os um a


referência simbólica ao tem a de Mt 4,19: "Segui-me, e eu vos farei pes-
cadores de hom ens". A bbott, JG, § 2289, harm oniza sobre a base de um a
distinção entre a preposição ek e apo; ele sugere que Filipe (e igualm ente
Pedro e André) era de Betsaida no sentido de que nascera ali, m as seu
lar atual era em C afam aum . A base gram atical é fraca; m as, caso se faça
necessário um a harm onização, esta é um a solução possível.
45. N a ta n a el. Este discípulo, conhecido somente de João, não aparece em ne-
nhum a lista dos Doze. Visto ser natural de Caná, a tradição grega o iden-
tifica com Simão o cananeu (Mc 3,18; Mt 10,4) - um a etimologia equivoca-
da. No 9a século, Ish'odad de Merv o identificou com Bartolomeu, porque,
justamente como Natanael vem depois de Filipe em João, assim o nome
de Bartolomeu segue o de Filipe em todas as listas dos Doze, exceto a de
At 1,13. O nome Natanael significa "Deus tem dado", e isto tem levado al-
guns a identificarem-no com Mateus, cujo nome significa "dom de Iahweh".
Todas estas identificações são forçadas e implicam que o discípulo tinha
dois nomes hebraicos. É preferível aceitar as antigas sugestões patrísticas
de que ele não era um dos Doze; veja a cuidadosa discussão docum entada
por U. H olzmeister, Bib 21 (1940), 28-39. Embora João tivesse em mente
que Natanael veio a ser um símbolo de Israel indo a Deus, não há evidên-
cia de que Natanael seja uma figura m eram ente simbólica.
Jesus, filh o d e José. Esta é a forma norm al de distinguir este Jesus particular
dos outros do m esm o nom e em N azaré (tam bém 6,42; Lc 4,22). O utra
designação, "filho de M aria" (Mc 6,3), é estranha e pode ser um indício
de ilegitim idade - veja E. S tauffer, Jesu s a n d H is S to r p (Londres: SCM,
1960), pp. 23-25.
46. " N a z a r é ! P o d e v i r a lg o bo m d a li? " O dito pode ser um provérbio local
refletindo ciúm e entre a vila de N atanael, Caná, e a vizinha, Nazaré.
Boismard, D u B a p tê m e , p. 93, aponta para a dúvida expressa em 7,52
de que o M essias pudesse vir da Galileia; todavia, Filipe não disse es-
pecificam ente a N atanael que Jesus era o Messias. O utra sugestão de
Boismard de que N atanael está evocando a teoria do M essias oculto
(veja acima, p. 234s.) parece ir além da evidência. Se Galileia, em vez
de N azaré, é o foco real da objeção, então se pode notar que "profetas"
galileus já tinham causado problem a, p. ex., Judas o galileu, de At 5,37
(Josefo A n t . XX.V.2; 102).
47. u m g e n u ín o isra elita . Literalmente, "verdadeiram ente um israelita"; o
advérbio a l ê t h õ s nessa posição pode servir como o equivalente de um
adjetivo (a l ê t h i n o s ). Veja Apêndice 1:2, p. 794ss. B ultmann, p. 736, diz
que ele significa "alguém digno do nom e de Israel".
5 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Filipe e Natanael 273

nele não existe dolo. Não fica claro o que há sobre Natanael para provocar
esta observação. Teria sido sua prontidão em crer quando indicado?
48. Como me conheces? Literalmente, "De onde me conheces?"; Jesus respon-
derá quanto ao onde ele o viu. Para paralelos semíticos e clássicos para
o intercâm bio de palavras interrogativas como "donde" e "com o", veja
Barrett, p. 154.
debaixo da figueira. João sublinha a habilidade de Jesus conhecer coisas além
da condição hum ana normal. Todavia, a im pressão de que a afirmação de
Jesus causa em N atanael tem levado com entaristas a especular sobre o que
N atanael estaria fazendo debaixo da figueira. Algum as vezes os rabis en-
sinavam ou estudavam debaixo de um a figueira (Midrásh Rabbah sobre
Eclesiastes v. 11) e inclusive com paravam a Lei à figueira (TalBab Erubin
54a); e assim surge aí um a tradição de que Natanael era um escriba ou rabi.
A m enção da Lei, no v. 45, tem sido usada para endossar isto; e é com
base nisso, de que Natanael era erudito, que levou A gostinho a excluí-lo
dos Doze! J eremias, art. cit., pensa no sim bolismo da árvore do conhe-
cim ento no Paraíso. Ele sugere que provavelm ente N atanael estivesse
confessando seus pecados a Deus debaixo da árvore e que Jesus lhe está
assegurando que seus pecados foram perdoados por Deus (veja SI 32,5).
C. F. D. M oule, art. cit., recorda o relato de Suzana (deuterocanônico
Dn 13), onde as testem unhas são testadas com perguntas concernentes
à árv o re debaixo da qual ocorreu o adultério. Ele cita evidência tal-
m údica para a fórmula: "Debaixo de qual árvore?", como um a prova de
evidência; e pensa ser possível que Jesus estivesse m ostrando que ele
tem conhecim ento acurado de Natanael. Por causa da referência a Nata-
nael como um israelita (Israel = Jacó), ainda outros sugerem que ele es-
tava lendo os relatos de Gênesis sobre Jacó. O utros nos lem bram que em
Mq 4,4 e Zc 3,10, "assentar debaixo da figueira" é um símbolo de paz e
abundância messiânicas. Estamos longe de exaurir as sugestões, todas
elas frutos de m era especulação.
49. Rabi. Os discípulos continuam a cham ar Jesus de "M estre", ainda quan-
do lhe aplicassem títulos m uito mais significativos. Este é um elemento
de rem iniscência histórica dentro do tem a teológico de conhecim ento
intensificado.
50. C om pare este versículo com 11,40: "Eu não te disse que, se creres, verás
a glória de Deus?" A prom essa de ver em 1,50 se cum pre em 2,11 com a
m anifestação da glória de Jesus em Caná, onde os discípulos creram.
51. Verdadeiramente, eu asseguro a todos vós. Usaremos esta expressão e variantes
como: "Que eu vos assegure firmemente"; "solenemente vos asseguro"
para a tradução de "Amém, amém". Os sinóticos usam ou "Eu vos digo"
274 II. O Livro dos Sinais

ou "Amém, eu vos digo"; um amém sozinho ocorre 31 vezes em Mateus,


13 vezes em Marcos, 6 vezes em Lucas. Somente João usa o "am ém " du-
plicado (veja Mt 5,37 para "sim, sim"), e isto ocorre 25 vezes. Os judeus
usavam "am ém " (duplicado em Nm 5,22) em corroboração e resposta,
particularm ente na oração, mais ou menos como as congregações respon-
dem aos pregadores evangélicos. O uso que Jesus faz do "am ém " como
prefácio a um a afirmação é peculiar e indubitavelm ente uma autêntica
reminiscência. (Veja D. Daube, JTS 45 [1944], 27-31 para dois exemplos ju-
daicos os quais ele crê serem semelhantes ao costume de Jesus. J. N aveh,
IEJ 10 [1960], 129-39, publicou um a carta hebraica do 7a século a.C. na qual
3mn é usado como uma afirmação de que a declaração ou juram ento é ver-
dadeiro). Jesus tem ouvido do Pai tudo o que ele diz (8,26.28), e o "am ém "
com o qual introduz o que diz nos assegura que Deus garante a veraci-
dade de suas afirmações. Ele é a Palavra de Deus; é o Am ém (Ap 3,14;
2Cor 1,19). A raiz hebraica envolvida (3mn) significa "confirmar, tornar
certo, endossar"; no passivo "ser endossado" significa "ser verdadeiro".
Em nossa tradução, temos tentado captar estas conotações.
vereis. O "doravante" anexado, aparecendo nos m anuscritos posteriores,
é um a glosa escribal de Mt 26,64: "doravante vereis o Filho do Hom em
assentado à mão direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu".
Filho do Homem. Este título tem suas raízes em Ezequiel, Dn 7,13 (= símbo-
lo hum ano do vitorioso povo de Deus), e 1 Enoque (= salvador preexis-
tente). Todos os evangelhos concordam que Jesus usava este como um a
auto-designação, e aparentem ente mais frequente do que qualquer dos
outros títulos associados com ele. Nos sinóticos há três grupos de afir-
mações Filho do Homem: (1) as que se referem à atividade terrena do
Filho do H om em (comendo, m orando, salvando o perdido); (2) as que se
referem ao sofrimento do Filho do Homem; (3) as que se referem à glória
e parousia futuras do Filho do Hom em em juízo. Há em João doze passa-
gens que mencionam o Filho do Hom em , todas no Livro dos Sinais, ex-
ceto 13,31. Embora Jesus fale am iúde de seu retorno no últim o discurso
(13-17), ele não usa "o Filho do H om em " em tais referências. Três das
passagens sobre o Filho do Hom em dizem respeito à sua "ascensão"
(3,14; 8,28; 12,34), um a expressão que se refere tanto à crucifixão quanto
ao retorno à presença do Pai no céu - portanto, passagens que tocam os
grupos sinóticos 2 e 3. A m aioria das passagens joaninas sobre o Filho
do Hom em diz respeito à glória futura; o juízo final é m encionado em
5,27. O grupo sinótico 1 não é apresentado nas passagens joaninas sobre
o Filho do Homem. Veja R. Schnackenburg, "Der Menschensohn im Johannes
-evangelium", NTS 11 (1964-65), 123-37.
5 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Filipe e Natanael 275

C O M E N T Á R IO : G ER A L

As duas divisões da narrativa que descrevem a vinda dos primeiros


discípulos a Jesus (1,3542‫ ־‬e 43-50) têm um equilíbrio ainda mais estri-
to das partes do que as duas divisões da narrativa do testemunho do
Batista (1,1928‫ ־‬e 2 9 3 4 ‫)־‬. Note os seguintes paralelos:

§ 4 (35 ‫־‬42 ) § 5 (43 ‫־‬50 )


35‫־‬39 43 ‫־‬44
Jesus encontra dois discípulos Jesus (?) encontra Filipe
Eles o seguem "Segue-me"
"Vinde e vede"

40 ‫־‬42 4 5 -5 0
Um dos dois, André, encontra Simão Filipe encontra Natanael
André: "Encontramos o Messias" Filipe: "Encontramos aquele
descrito"...
"Vem e vê"
Jesus olha para Simão Jesus vê Natanael vindo
Jesus saúda Simão como Cefas Jesus saúda Natanael como um
genuíno israelita

O equilíbrio não é perfeito. Em § 4 o diálogo longo, na primeira


parte; em § 5 ele está na segunda parte. O mesmo se pode dizer de
"Vem e vê". A divisão entre as duas partes de § 4, como indicada pela
conotação de tempo do v. 39, é mais nítida, visto que se pode inferir
que a segunda parte ocorre em outro dia. Não há tal interrupção em
§ 5, cuja tradução temos impressa como um parágrafo. (B oismard, D u
B a p tê m e , p. 95, divide § 5 entre vs. 4 6 4 7 ‫ ־‬e, sem a mais leve justificativa
no texto, supõe que a última parte da cena ocorreu em outro dia. Sua
divisão negligencia a óbvia similaridade entre 45 e 4 0 4 1 ‫־‬, um parale-
lismo que obriga a estabelecer a divisão antes de 45 do mesmo modo
como se estabelece antes de 40).
Vimos (pp. 2 5 5 2 5 8 ‫ )־‬que a delicada divisão e equilíbrio das partes
em "O Testemunho de João Batista" (1 ,1 9 2 8 ‫ ־‬e 29-34, § 2 e § 3) foi o resul-
tado de redigir e combinar relatos distintos. As imperfeições que reve-
lam o processo redacional pode também ser visível aqui, especialmente
na obscuridade encontrada na abertura de § 5 (v. 43 - nota). Bultmann,
276 II. O Livro d o s Sinais

p. 68, faz uma interessante observação quando afirma que a passagem


faria mais sentido se André fosse aquele que encontrou Filipe. André e
Filipe são não só amigos íntimos no evangelho, mas também isto expli-
ca o enigmático v. 41: André primeiro encontrou seu irmão Simão; então
encontrou Filipe. Mas no processo redacional, a introdução do tema da
ida de Jesus para a Galileia fez agora de Jesus o sujeito que encontra
Filipe, e assim o equilíbrio foi criado com a abertura de § 4 onde Jesus
toma a iniciativa. Tal mudança é, naturalmente, de pouca importância.

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Filipe segue a Jesus (1,43-44)

Aceitando o atual estado da narrativa em que Jesus é aquele que en-


contra Filipe, nos deparamos com a sugestão de que a decisão de Jesus
de deixar o vale do Jordão, indo para a Galileia, se relaciona com o
chamado de Filipe. Talvez, antes de deixar a região, se possa imaginar
Jesus como a esperar concluir o chamado de todos os discípulos do Ba-
tista para que o seguissem. Há quem sugira que Jesus esperava parti-
cularmente Filipe, porque, sendo de Betsaida da Galileia, ele podería
agir como guia para a viagem. Isto faria sentido se Jesus estivesse indo
imediatamente do vale do Jordão para o Mar da Galileia (como nos
sinóticos: Mc 1,14-16; Mt 4,12-13), região familiar a Filipe. Mas em João
Jesus voltará à sua própria região, as partes montanhosas de Nazaré e
Caná. Pode ser que o fato de Filipe chamar Natanael, que era de Caná,
local do próximo relato, seja a chave para o raciocínio do evangelista.
Temos presumido que o chamado de Filipe ocorreu no vale do
Jordão. Outros interpretam o v. 43 no sentido de que Jesus realmente
saíra para a Galileia e encontrara Filipe de caminho, talvez nas pro-
ximidades do Mar da Galileia. Então, seguindo isso, Filipe encontrou
Natanael na Galileia. No entanto, a indicação em 2,1 é que a viagem
se deu após o chamado de Filipe e Natanael.

Natanael vai a Jesus, 0 Filho de Deus e Rei de Israel (1,45-50)

O chamado de Filipe não envolveu a atribuição de algum


novo título a Jesus, e aparentemente não desenvolve o tema de
5 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Filipe e Natanael 277

c o n h e c im e n to p ro g re ssiv o . N o e n ta n to , co m o m o stra m as p a la v ra s d e
F ilip e a N a ta n a e l, tem h a v id o , re sp e c tiv a m e n te , d o is n o v o s títu lo s e
h á u m c o n h e c im e n to m ais p ro fu n d o . A id en tificação d e Jesus com o
" a q u e le d e s c rito n a Lei m osaica e n o s p ro fe ta s" , p ro v a v e lm e n te seja
u m a a firm a ç ão g eral d e q u e Jesu s é o c u m p rim e n to d e to d o o AT.
Lc 24,27 in d ic a q u e , a p ó s a ressu rre içã o , os d isc íp u lo s v iera m a ter
u m a c o m p re e n s ã o m ais p le n a d e Jesus, p o is Jesu s ex p lico u aos dois
d isc íp u lo s n a e s tra d a d e E m a ú s co m o to d a s as coisas na E scritu ra se
refe ria m a ele m esm o : "co m e ç a n d o p o r M oisés e to d o s os p ro fe tas".
(A tra d iç ã o tem c o n e cta d o as cen as jo an in a s e lu ca n a s, id en tifica n d o
N a ta n a e l co m o u m d o s dois: E eifânio Adv. Haer. 23,6; PG 41:305). Em
Jo 5,39, so m o s in fo rm a d o s q u e as E scritu ras testificam e m fav o r de
Jesus; e m 5,46, q u e M oisés e scre v e u so b re ele; em 6,45, q u e o q u e está
escrito n o s p ro fe ta s é re p re s e n ta d o e m se u m in istério .
A caso se p re te n d e alg o m ais específico n a d escrição d e Filipe?
A frase " a q u e le d e sc rito n a Lei d e M oisés" p o d e ría m u ito b e m iden-
tificar Je su s c o m o o P ro feta-co m o -M o isés d e D t 18,15-18. O "aq u e -
le d e s c rito p e lo s p ro fe ta s" é m ais difícil d e id en tificar: p o d e ria ser o
M essias, o F ilh o d o H o m e m (D aniel) o u in clu siv e Elias (M alaquias).
A ú ltim a p o s s ib ilid a d e é su g e stiv a , p o is e n tã o F ilipe esta ria identifi-
c a n d o Je su s co m o o P ro feta-co m o -M o isés e Elias - os d o is g ra n d e s
re p re s e n ta n te s d a Lei e d o s p ro fe tas. A d ic io n a n d o isto à id en tificação
d e Jesu s co m o o M essias, n o v. 41, teríam o s e n tã o os d isc íp u lo s d o
B atista re c o n h e c e n d o Jesu s sob os m e sm o s três títu lo s q u e o B atista
h a v ia n e g a d o - m a s p o d e ser q u e isto seja ir lo n g e d em ais.
N a ta n a e l rea g e às notícias d e Filipe so b re Jesus com d ú v id a avil-
tan te, u m a reação q u e Jesus e n c o n trará com m u ita frequência e n tre os
q u e creem n a Lei e n o s p ro fetas (p. ex., 7,15.27.41). M as q u a n d o Filipe
insiste, N a ta n ae l se d isp õ e a ir e ver; p o rta n to , ele n ão é com o "os ju-
d e u s " d o c a p ítu lo 9 q u e aleg am aceitar M oisés (9,29), p o rém rejeitam o
d esafio d e Jesu s d e v e r e, p o r isso, caem n a cegueira (9,41). Em razão
d a d isp o siç ão d e N a ta n ae l d e v ir à luz, Jesus o enaltece com o u m ge-
n u ín o rep re sen ta n te d e Israel. A q u i João p o d e estar p e rto d a distinção
q u e P a u lo faz em R m 9,6: "N e m to d o s os q u e d esce n d e m d e Israel [Jacó]
p e rte n ce m a Israel"; o v e rd a d e iro israelita crê em Jesus.
A p ro c la m a ç ã o d e N a ta n a e l c o m o g e n u ín o isra e lita sem d o lo é
o u tro e x e m p lo d a fó rm u la re v e la tó ria iso la d a p o r M. D e G oedt (veja
p. 240 acim a). Q u a l é o p o n to e x a to d e s ta d e s ig n a ç ã o d e N a ta n ae l?
278 II. O Livro dos Sinais

P arece e s ta r im p líc ita u m a c o m p a ra ç ã o com Jacó; p o r q u e , e m b o ra


Jacó fosse o p rim e iro a le v a r o n o m e d e Israel (G n 32,28-30), s e u s tra to s
com L ab ão e co m E saú o c a ra c te riz a ra m c o m o u m h o m e m f ra u d u le n to
(G n 27,35). O u tro s e s tu d io s o s in tr o d u z e m n e ste q u a d ro o te m a d o
S erv o S o fre d o r " e m cuja b o ca n ã o h a v ia f ra u d e " (Is 53,9). B o is m a r d ,
Du Baptême, p p . 96-97, p e n s a n o tem a d o S erv o e s p e c ia lm e n te co m o
se e n c o n tra em Is 44. E m Is 4,3-5, D e u s g a ra n te a se u se rv o Jacó q u e
derramará Seu espírito so b re os d e s c e n d e n te s d e Jacó q u e p o rta re m
n o m es sim b ó lico s, in c lu siv e o n o m e “Israel " . O s vs. 6-7 re s s a lta m
q u e s o m e n te o S e n h o r, 0 Rei de Israel, é D eu s. A ssim , n o s d ia s m e ssiâ -
nico s, o v e rd a d e ir o p o r ta d o r d o n o m e d e Israel se rá a q u e le q u e é fiel
a Ia h w e h e n ã o se rv e a o u tro s d e u se s. N e sta in te rp re ta ç ã o , " d o lo "
teria o s ig n ific a d o q u e a lg u m a s v e z e s tem n o A T d e fid e lid a d e re-
lig io sa a Ia h w e h (Zc 3,13). A n a tu re z a tê n u e d e s te s p a ra le lo s co m o
tem a d o S erv o é ó b v ia.
B oismard, ibid., p p . 98-103, te m p o p u la riz a d o a in d a o u tra in te r-
p reta çã o d e " u m g e n u ín o israelita": este e m a n a d a s a n tig a s e tim o -
logias p o p u la re s (errô n eas) d o n o m e "Israe l" e m te rm o s d e " v e n d o
a D eu s". N a ta n ae l seria d ig n o d o n o m e d e "Israe l" p o rq u e v e ria a
D eus, ju sta m e n te co m o Jacó v iu a D eu s face a face n o te m p o em q u e
seu n o m e foi m u d a d o p a ra Israel (G n 32,27-30). Isto p o d e ría ser u n i-
d o à p ro m e ssa d e Jesu s feita a N a ta n a e l n o v. 50: ‫ ״‬Verás co isas m u ito
m aio res", e talv ez a ju d e a ex p licar a v isã o p ro m e tid a em 1,51. U m a
su g e stã o final d ig n a d e n o ta é q u e N a ta n a e l é o ú ltim o d o s d isc íp u lo s
a serem c h a m a d o s, e n ele se c u m p re o p ro p ó sito p a ra o q u a l o B atista
veio: "M as o m o tiv o d e eu v ir e b a tiz a r com á g u a foi p a ra q u e ele [Je-
su sj se rev e lasse a Israel" (1,31).
N a n o ta so b re o v. 48, já m e n c io n a m o s q u ã o difícil é e x p lic a r p o r
q u e o fato d e Je su s te r v isto a N a ta n a e l d e b a ix o d a fig u e ira p r o d u z tal
im p re s s ã o . C e rta m e n te , p a re c e ir a lé m d o e s p a n to s o c o n h e c im e n to
s o b re n a tu ra l, p o ré m n e n h u m a ex p lic aç ã o é to ta lm e n te s a tisfa tó ria .
N a ta n a e l, c o n d u z id o a u m p ro fu n d o c o n h e c im e n to q u e Je su s re v e -
la so b re ele, p ro c la m a Je su s c o m o o F ilho d e D e u s e R ei d e Israel.
O s e g u n d o d e s te s títu lo s é u m a re fe rê n c ia ao rei m e ssiâ n ic o , m a s
esta co n fissão está n u m p la n o m ais e le v a d o d o q u e o d o M e ssia s n o
v. 41. N o final d o m in is té rio p ú b lic o , q u a n d o Je su s e n tr a r e m Jeru -
salém , ele se rá a c la m a d o co m o rei (12,12-19), p o ré m m o s tra rá q u e
n ã o é u m rei e m u m s e n tid o n a c io n a lista . S eu re in o n ã o p e rte n c e
5 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Filipe e Natanael 279

a e s te m u n d o (18,36); e se u s s ú d ito s n ã o sã o ju d e u s , e sim cren tes.


E N a ta n a e l, o is ra e lita g e n u ín o , q u e o g lo rifica; e p o r isso "o Rei d e
Isra e l" d e v e s e r e n te n d id o c o m o o rei d a q u e le s q u e c re e m co m o N a-
ta n a e l. N e s te s e n tid o , e ste títu lo é a c u lm in a ç ã o n a sé rie d e títu lo s
q u e te m o s v isto .
O p rim e iro d o s d o is títu lo s, " o F ilho d e D e u s ', p ro v a v e lm e n te
fo sse u m títu lo m e ssiâ n ic o , m u ito e m b o ra M owinckel , He that Cometh,
p p . 293-94, e n tre o u tro s , q u e s tio n e isto. N a fó rm u la d e c o ro a ç ã o no
A T, o re i d a v íd ic o , o m e ssia s, foi c h a m a d o p o r Ia h w e h d e " filh o "
(2Sm 7,14; SI 89,27); e m p a rtic u la r, o SI 2,6-7 se ria e x c ele n te p a n o d e
fu n d o p a ra f u n d ir o s títu lo s " F ilh o d e D e u s" e "R ei d e Isra e l". E ntre-
ta n to , é b e m p ro v á v e l q u e Jo ão te n c io n e d a r a " F ilh o d e D e u s" u m
s ig n ific a d o m a is p ro fu n d o . N a p ro g re s s ã o teo ló g ic a in d ic a d a p e lo s
títu lo s d o c a p ítu lo 1, a q u a l e n v o lv e o g r a d u a l c re sc im e n to d o s disci-
p u lo s n u m c o n h e c im e n to a b ra n g e n te d e to d o o m in is té rio d e Jesu s, é
b e m p ro v á v e l q u e Jo ão q u ise s s e in c lu ir e m "F ilh o d e D e u s" u m a con-
fissão d a d iv in d a d e d e Jesu s. O p r ó p rio e v a n g e lh o se e n c e rra rá em
20,28 c o m a c o n fissã o d o s d isc íp u lo s d e Je su s co m o S e n h o r e D eus;
e le m b ra m o s ta m b é m q u e u m a e x p lic aç ã o d a d e s ig n a ç ã o d e N a ta -
n a e l c o m o isra e lita foi q u e ele v e ria a D eus. C e rta m e n te , o s leito re s
d o e v a n g e lh o , n o fin al d o 1“ sé cu lo , te ria m se a c o s tu m a d o co m u m
sig n ific a d o m a is p r o f u n d o d e "F ilh o d e D e u s" . Em q u a lq u e r caso,
este c a p ítu lo , tra ta n d o -s e d o B atista e d e s e u s d isc íp u lo s , ch eg a a
u m a c u lm in a ç ã o co m a m e sm a n o ta em q u e a cen a b a tis m a l te rm in a
n a tra d iç ã o sin ó tica: a p ro c la m a ç ã o d e Je su s co m o o F ilh o d e D eus
(M c 1,11 c o m b a s e n o SI 2,7).
M u ito e m b o ra João te n h a e sb o ç a d o o d e se n v o lv im e n to d a com -
p re e n s ã o d o s d isc íp u lo s, e ste re la to n ã o é c o m p le to q u a n d o creem
p o rq u e Jesu s h o u v e sse falad o ; ta m b é m v e ria m su a s o b ras, isto é, os
sin ais q u e m a n ife sta m su a g ló ria. E assim , n o v. 50, Jesus in fo rm a N a-
tan ael q u e a in d a v e ria co isas m u ito m aio res, assim p re p a ra n d o o p al-
co p a ra o m ila g re e m C a n á , o p rim e iro d o s sin a is d e Jesus q u e lev a rão
os d isc íp u lo s a v e re m su a g ló ria e c re re m n ele (2,11). U m a v e z m ais,
João re s u m e u m p ro ce sso m ais longo: o s d isc íp u lo s v e rã o a g ló ria d e
Jesu s p o r c o m p le to so m e n te q u a n d o tiv e re m v isto a " g ra n d e coisa"
final, a o b ra s u p re m a d a m o rte , re ssu rre iç ã o e ascen são , e so m e n te
e n tã o é q u e c re rã o p le n a m e n te . (Veja 5,20-21 e 14,12, os q u a is v in cu la
a re s s u rre iç ã o -a sc e n sã o co m o te m a d e "co isas m aio res".
280 II. O Livro dos Sinais

Um dito independente sobre 0 Filho do Homem (1,51)

N o final ex ato d e sta p a rte so b re o c h a m a d o d o s d isc íp u lo s n o v ale


d o Jordão, su rg e u m v ersícu lo q u e tem c a u sa d o tan to p ro b le m a p a ra os
co m en taristas co m o q u a lq u e r o u tro v ersícu lo iso lad o n o Q u a rto E van-
gelho. N o ssa p rim e ira in d ag a ç ã o seria se 1,51 se m p re foi a sso ciad o ao
contexto n o q u al ora se e n co n tra. H á certas indicações ao c o n trá rio . Pri-
meiro, em 1,50, Jesus foi a n d a n d o p a ra N atan ael; se 1,51 m e ra m e n te d á
seq u ên cia ao d iálogo, p o r q u e n ã o o b tem o s u m a n o v a ru b rica: "E ele
[Jesus] lh e d isse [a N atan ael]"? U m relan ce em 11,11 m o stra q u e João
fre q u e n te m en te indica u m a c o n tin u ação m ais su a v e ao d iálo g o . Segun-
do, em b o ra a sen ten ça fosse d irig id a a N a ta n ae l, o "v o s" e m 51 é p lu ra l,
com o ten ta m o s in d ic a r tra d u z in d o -o com o " to d o s v ó s". O v. 51 foi u m a
v ez d irig id o a u m g ru p o , o u , em se u a tu a l contexto, p o d e ria m o s im agi-
n a r co m o se fosse d irig id o a to d o s os d isc íp u lo s c h a m a d o s n o c a p ítu lo
1, o u ao m en o s a Filipe e N atan ael? Terceiro, já in d ic a m o s q u e o relato
d e C an á seria u m a b o a seq u ên cia d e 50, ilu s tra n d o as "coisas m aio res"
q u e N a ta n ae l veria. O v. 51 n ão p arece m e lh o ra r a seq u ên cia; a té certo
p o n to , é rep e titiv o em su a p ro m e ssa d e ver. Quarto, n o q u e se g u e o
v. 51 n ão h á n a d a a in d ic a r q u e su a p ro m e ssa já se c u m p risse , se a visão
p ro m e tid a d ev esse ser to m a d a literalm en te. Quinto, co m o já in d ic a m o s
na n o ta d o versículo, m esm o os a n tig o s escribas v ira m a sim ila rid a d e
e n tre o d ito em 51 e o q u e Jesus d iz e m s e u ju lg a m e n to d ia n te d e C aifás,
em M t 26,64. Se o d ito jo an in o tem alg o a v e r com a exaltação d e Jesus,
o c enário d o d ito sim ilar em M ateu s p o u c o a n te s d a m o rte, ressu rre içã o
e ascen são d e Jesu s é m ais a p ro p ria d o . O u tro d ito sinótico in te ressa n te
é o d e M t 16,27-28: "O Filho do H07nem v irá n a glória d e seu Pai com seus
anjos... Eu vos asseguro q u e a lg u n s d o s q u e a q u i estão n ã o p ro v a rã o a
m o rte a té q u e vejam 0 Filho do Homem v in d o em seu rein o ". M a te u s co-
loca este d ito logo d e p o is d a confissão d e S im ão acerca d e Jesus com o
o M essias e a m u d a n ç a d o n o m e d e Sim ão, ju sta m e n te co m o Jo 1,51
seg u e logo d e p o is 1,41-42. A ssim , p a ra lelo s e m M ateu s n o s p ro v ê com
u m a base objetiva p a ra su sp e ita r q u e u m d ito p rim itiv o c o n c ern e n te a
u m a visão fu tu ra d o Filho d o H o m em , p re se rv a d o n o v. 51, e m su a for-
m a joanina, foi u m a vez e n c o n tra d o e m o u tra seq u ên cia além d a q u e la
em q u e ora se e n co n tra.
P o d e m o s a in d a s u s p e ita r q u e o sig n ific a d o o rig in a l d o d ito foi
u m a referên cia à re ssu rre iç ã o o u à p a ro u s ia , o n d e seria a p ro p r ia d a a
5 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Filipe e Natanael 281

p re s e n ç a d o s an jo s so b re o g lo rific ad o F ilho d o H o m e m . N ã o h á an-


g e lo fa n ia s n o re la to jo an in o d o m in isté rio p ú b lico ; m a s os anjos, em
to d o s os re la to s d o e v a n g e lh o , e stã o a sso c ia d o s com o tú m u lo v azio
e a m iú d e com o ju íz o final. W indisch , em seu se g u n d o artig o , insis-
te e sp e c ia lm e n te so b re o re la to d a re ssu rre iç ã o no evangelho de Pedro,
36-40, e tam b ém sobre o C odex Bobiensis d e Mc 16,4, o n d e se narra
q u e a n jo s desceram d o céu e subiram com Jesus. Q u e o d ito jo an in o
era u m a refe rê n c ia a este rela to p a rtic u la r é, n ão o b sta n te , m u ito
ó bvio, e sp e c ia lm e n te já q u e o v. 51 m en cio n a su b ir a n te s d e descer.
N ã o im p o rta q u ã o p la u sív e l p o d e ser u m a rec o n stitu iç ã o d o qu e
o rig in a lm e n te o d ito sig n ificav a, n o s d e p a ra m o s com o p ro b le m a do
q u e ele sig n ifica em su a a tu a l seq u ên cia; p o is se fosse co lo cad o em
su a p re s e n te s e q u ên c ia d u r a n te o p ro cesso red a c io n a l ou no final do
e v a n g elh o , faria s e n tid o d o q u e o n d e ora se e n co n tra. M esm o q u e o
d ito o rig in a lm e n te se referisse à re ssu rre iç ã o o u p a ro u sia , n ã o h á ra-
zão p a ra se p e n s a r q u e faz se n tid o o n d e o ra se e n c o n tra, p o is a v isão
d o v. 51 n ã o é u m a p ro m e ssa m ais rem o ta d o q u e a v isã o m en c io n ad a
em 50. P a ra d a r s e n tid o ao 51, em su a p re se n te se q u ên c ia, d e v e m o s
b u sc a r u m sig n ific a d o fig u ra tiv o q u e p o ssa c u m p rir-se n o fu tu ro im e-
d iato d o m in isté rio , ju sta m e n te co m o o v. 50 se c u m p riu e m C aná.
D esde o tem p o d e A gostinho (m as não antes - B ernard, I, pp. 70-71),
os e x e g eta s têm v isto u m a co n ex ão e n tre o v. 51 e G n 28,12, o n d e em
so n h o Jacó vê u m a e sca d a e s te n d id a d a te rra ao céu: "... e os anjos
d e D e u s e s ta v a m s u b in d o e d e sc e n d o p o r ela". M ichaelis tem p o sto
em d ú v id a esta co n ex ão e n tre João e o G ênesis, m as p a re c e convicto
so b re a b a se d a clara m en ç ã o d e anjos s u b in d o e d e sce n d o , especial-
m en te se e v o c a rm o s a referên cia a n te rio r a Jacó-Israel na cena de
N a ta n ae l. T o d a v ia , a in d a q u e G ên esis s u p ra a im a g e m p a ra o d ito
jo an in o so b re o F ilho d o H o m e m , q u a l é a in te rp re ta ç ã o d o dito? São
os d isc íp u lo s q u e a ju d a rã o a fo rm a r o n o v o Israel, e d e q u e m N a ta n ae l
é u m e x e m p lo , p ro m e te ra m u m c o n h e cim e n to e sp iritu a l c o m p a ráv e l
à v isão d e Jacó? Q u a n d o os e stu d io so s te n ta m se r m ais p reciso s, su as
d ife re n te s re s p o s ta s são e n g e n h o sa s. E x e m p lifiq u e m o s u m p o u c o as
m ais im p o rta n te .
N o ta r-se -á q u e n o v. 51 os anjos estã o s u b in d o e d e sc e n d o so b re
o F ilho d o H o m e m , e n q u a n to G ên esis m en c io n a su b ir e d e sce r "so-
b re e la " , p re s u m iv e lm e n te , a e sc a d a (assim a LXX). E n tre tan to , a lg u n s
ra b in o s leem " so b re ele", isto é, so b re Jacó (Midrásh Rabbah LXIX 3
282 II. O Livro dos Sinais

so b re G n 28,13). A lg u n s e stu d io so s p e n s a m q u e a ú ltim a re d a ç ã o jaz


p o r d e trá s d a fo rm a q u e João d á ao d ito . Isto faria o F ilho d o H o-
m em (u m a fig u ra co letiv a em D n 7) u m s u b s titu to d e Jacó (= Israel, e
em a lg u m a e x ten são u m a fig u ra coletiva). T o d a a teo ria é d u v id o sa .
É p o ssív el, p o ré m n ã o certo, q u e o F ilho d o H o m e m e m João seja u m a
fig u ra coletiva; 12,32-34 d istin g u e e n tre o F ilho d o H o m e m e to d o s os
q u e creem nele. S e g u n d o , em João, é N a ta n a e l q u e é o e q u iv a le n te d e
Israel, n ã o Jesus, o F ilho d o H o m em .
O u tra v a ria n te so b re o re la to d e Jacó é ta m b é m tra z id a à d is-
c u ssão . N a Midrásh Rabbah 58,12 so b re G n 28,12, d e s c o b rim o s q u e a
v e rd a d e ira a p a rê n c ia d e Jacó e stá n o c é u e n q u a n to se u c o rp o jaz n a
te rra , e os an jo s e stã o se m o v im e n ta n d o p a ra trá s e p a ra fre n te e n tre
eles. A p lic a n d o isto a João, a lg u n s s u g e re m q u e Je su s re a lm e n te e stá
co m o P ai co m o F ilho d o H o m e m , e, n o e n ta n to , ao m e s m o te m p o
está n a te rra ; e os an jo s c o n s titu e m a c o m u n ic a ç ã o e n tr e o Je su s ce-
lestial e o te rre n o . U m a v a ria n te m a is p la u s ív e l se ria q u e Je su s m es-
m o é a co n e x ão e n tre re a lid a d e c e le stia l e a te rre n a . C o m v a ria ç õ e s,
u m a te o ria c o m o e sta é p r o p o s ta p o r O deberg, Bultmann , L ightfoot ,
e n tre o u tro s . D ev e-se s a lie n ta r q u e a fo n te ra b ín ic a p a ra a te o ria n ã o
é m ais a n tig a q u e o 3“ s é cu lo d .C ., e m b o ra a in te rp re ta ç ã o d e G ê n e sis
seja m ais a n tig a .
A in d a em o u tra v ariação , os T a rg u n s (O n k elo s e Je ru sa lé m ) têm
a shekinah d e D e u s (veja p. 210 acim a) so b re a escad a. J ustino Trypho
86,2 (PG 6:680) reflete a a n tig a crença cristã d e q u e C risto e sta v a n a
escad a. T e n d o assim os anjos s u b in d o e d e sc e n d o so b re o F ilho d o
H o m em , em v ez d e so b re a escad a, João p o d e ría e sta r c o n tin u a n d o
o tem a d o P ró lo go, a sab er, q u e Jesus é a localização d a shekinah. (Ver
co m en tário so b re Jo 12,41). Q uispel, art. cit., leva esta su g e stã o a o exa-
gero, asso c ia n d o o v. 51 com o m ístico merkabah n o ju d a ísm o , b a se a d o
em esp ecu lação so b re a c a rru a g e m d iv in a v ista p o r E zequiel (l,4 ss.)
Q uispel p e n s a n o s anjos s u b in d o a o F ilho d o H o m e m a cim a n o céu e
d e sce n d o ab aix o a N a ta n a e l (ain d a q u a n d o João d ig a d e sc e n d o sobre 0
Filho do Homem). O u tra v ariação co n cen tra-se n o lu g a r o n d e Jacó teve
su a visão, a sab er, Betel, a "casa d e D eus... p o rta d o céu ". A id eia é
q u e, p o sto q u e os anjos so b em e d escem so b re o F ilho d o H o m e m ,
Jesus e stá a s su m in d o o lu g a r d e Betei co m o a casa d e D eu s - u m exem -
p io d o tem a d o P ró lo g o d e Jesus co m o o T a b e m á c u lo e o tem a d o s
e v a n g elh o s d e Jesus com o o T em plo. Esta in te rp re ta ç ã o é d e fe n d id a
5 · Os discípulos do batista vão a Jesus: Filipe e Natanael 283

d e ta lh a d a m e n te p o r F ritsch, art. cit. J eremias en fatiza a rocha e m Betei


so b re a q u a l Jacó d o rm iu e a q u a l se to rn o u ali u m a co lu n a cerim onial
(G n 28,18). N a lite ra tu ra ju d aica, a q u a l J eremias cita, se d e sen v o lv e u
u m a c o rre n te m ística em to rn o d essa p e d ra co m o a p rim e ira p e d ra
c ria d a p o r D e u s e a q u e la q u e Ele fez crescer p a ra fo rm a r o m u n d o .
A a p licação a João seria q u e n o v. 51 Jesus su b stitu iu a p e d ra d e Betei, e
isto seria u m e x e m p lo d o tem a d e Jesus q u e c o n v erte S im ão em p e d ra
(1,41-42).
N e n h u m a d e sta s v a ria n te s é p a rtic u la rm e n te co n v in cen te. Entre-
ta n to , n o tem a q u e têm em c o m u m p ro v a v e lm e n te estejam certas; se
é co m o a e sca d a , a shekinah, a merkabah, Betel o u a ro ch a, a v isão signi-
fica q u e Jesu s co m o o F ilho d o H o m e m v eio a ser o foco d a glória di-
v in a, o p o n to d e c o n ta to e n tre céu e terra. A os d isc íp u lo s se p ro m e te,
fig u ra d a m e n te , q u e c h e g a rã o a v e r isto; e, d e v e ra s, em C a n á eles efe-
tiv a m e n te v e e m su a glória.
D e v e m o s c h a m a r a a te n ç ã o p a ra u n s p o u c o s d e ta lh e s específicos.
O v. 51 p ro m e te : "V ereis 0 céu aberto". A ssim , e m b o ra João o m itisse
a refe rê n c ia à a b e rtu ra d o céu ao d e sc re v e r a d e scid a d o E sp írito so-
b re Je su s n o b a tism o , a referên cia a p a re c e a q u i, ju sta m e n te com o o
v. 49 o e q u iv a le n te d a p ro c la m a ç ã o b a tism a l d e Jesus co m o o Filho
d e D eu s. A e x p re ssã o d e Jo 1,51 é m ais e stre ita com Lc 3,21: am b as
têm o s in g u la r d e ouranos ("c é u " - M arcos e M a te u s têm o p lu ra l) em
a m b a s u s a m anoigein (" a b rir" - M arco s u sa o u tro v erbo). Se o v. 51
e stev e u m a v e z em o u tra se q u ên c ia, a p o ssív e l relação d a a b e rtu ra d o
céu co m o tem a b a tism a l p o d e ria ter sid o u m fator, ju n ta m e n te com a
referên cia a Jacó, a tra in d o -o à su a a tu a l localização. M ichaelis, art. cit.,
ta m b é m c o n e cta ria a m en ç ã o d o s anjos com a p rese n ç a d o s anjos na
cen a d a s ten ta çõ e s d e Jesus (M t 4,11), a q u a l na tra d iç ã o sinótica seg u e
im e d ia ta m e n te a p ó s o b atism o .
Já falam o s d a seq u ên cia d e títu lo s n o ca p ítu lo 1. O v. 51 in tro d u z
"o F ilh o d o H o m e m " (o q u e n ã o se e n c o n tra n o p a n o d e fu n d o d e Gê-
n esis so b re o so n h o d e Jacó). Este é o ú n ico títu lo , no cap ítu lo , q u e Jesus
u sa p a ra si m esm o , u m fato q u e p o d e refletir u m a rem in iscên cia histó-
rica d e q u e Jesu s fez u so d e ste títu lo , com o d istin to d o s títu lo s d a d o s
a ele p e lo s d isc íp u lo s a p ó s a ressu rre içã o , p. ex., F ilho d e D eus. Se, em
su a a tu a l seq u ên cia, o v. 51 significa q u e os d isc íp u lo s v e rã o a g lória do
F ilh o d o H o m e m d u ra n te se u m in istério , este é o ú n ico ex em p lo d e ste
tip o d e p a ssa g e m so b re o F ilho d o H o m e m em João (ver nota). N atan ael
284 II. O Livro dos Sinais

g lorificou a Jesu s co m o o Rei d e Israel (ap a re n te m e n te , ig u a la n d o -se


a "M essias"); Jesu s lh e re s p o n d e , p ro m e te n d o u m a v isã o d e si m esm o
co m o o F ilho d o H o m e m . E m M t 26,64 - a p a s sa g e m q u e sa lie n ta m o s
co m o u m n o tá v e l p a ra le lo d e Jo 1,51 - , q u a n d o o su m o sa c e rd o te lh e
p e rg u n ta se ele é o M essias, Jesus lh e re s p o n d e , p ro m e te n d o u m a vi-
são d o F ilho d o H o m em .

BIBLIOGRAFIA

Veja BARROSSE e BOISMARD na Bibliografia sobre o § 3.


ENCISO VIANA, "La vocation de Natanael y d Salmo 24", EstBib 19
(1960), 229-36.
FRITSCH, I., "'... videbitis... angelos Dei ascendentes et descendentes
super Filium hominis' (10. 1, 51)", VD 37 (1959), 3-11.
JEREMIAS, J., "Die Berufung des Nathanael", Angelos 3 (1928), 2-5.
MICHAELIS, W., “Joh 1,51, Gen 28,12 und das Menschensohn-Problem", TLZ
85(1960), 561-78.
MOULE, C. F. D., "A Note on 'under the fig tree' in ]ohn 1 48, 50", JTS N.S.
5(1954), 210-11.
QUISPEL, G., " Nathanael und der Menschensohn ()oh 1, 51)", Z N W 47
(1956), 281-83.
SCHULZ, S., Menschensohn, pp. 97-103 on 1.51.
W INDISCH, H., "Angelophanien um den Menschenohn auf Erden", Z N W 30
(1931), 215-33.
__________ "Joh i 51 und die Auferstehung Jesu", ZN W 31 (1932), 199-204.
O LIVRO DOS SINAIS

S egunda P arte: De C aná a C aná


ESBOÇO
SEGUNDA PARTE: DE CANÁ A CANÁ
(Várias respostas ao m inistério de Jesus nas diferentes regiões da Palestina)
(caps. 2-4)

A. 2 ,1 1 1 ‫־‬: O PRIMEIRO SINAL EM CANÁ DA GALILEIA (§ 6)


Jesus transform a água em vinho e seus discípulos passam a
crer nele.

2,12: TRANSIÇÃO - Jesus vai para C afam aum (§ 7)

B. 2,13-22: A PURIFICAÇÃO DO TEMPLO EM JERUSALÉM (§ 8)


Jesus é desafiado pelas autoridades judaicas.
(13-17) A purificação dos recintos do templo.
(18-22) O dito sobre a destruição do templo.

2,23-25: TRANSIÇÃO - Reação a Jesus em Jerusalém (§ 9)

C. 3,1-21: DIALOGO COM NICODEMOS EM JERUSALÉM (§ 10)


Jesus fala de geração do alto, e não é com preendido.
(2-8) Primeira Divisão - G erando do alto através do Espírito.
(9-21) Segunda Divisão - Isto se torna possível através da fé
quando o Filho houver ascendido.
(a) 11-15: O Filho deve subir ao Pai.
(b) 16-21: Fé em Jesus é indispensável para beneficiar-se
deste dom.
3,22-30: O TESTEMUNHO FINAL DO BATISTA EM PROL DE JESUS
(§ 11)

3,31-36: DISCURSO COMPLETANDO AS DUAS CENAS ANTERIORES


DESTE CAPÍTULO (§ 12)

4,1-3: TRANSIÇÃO - Jesus deixa a Judeia (§ 13)


Esboço 287

D. 4 ,4 4 2 ‫־‬: DIÁLOGO COM A MULHER SAMAR1TANA JUNTO AO


POÇO DEJACÓ (§14)
Jesus oferece o dom da água viva e é saudado pelos samarita-
nos como o Salvador do m undo.
(4 6 ‫ )־‬Introdução e cenário.
(6-26) Primeira Cena: O diálogo com a M ulher Samaritana:
(a) 6-15: Diálogo sobre a água viva.
(b) 16-26: Diálogo sobre o verdadeiro culto.
(27-38) Segunda Cena: Diálogo com os discípulos:
27-30: Conexão entre as duas cenas.
(a) 31-34: Diálogo sobre alim ento para Jesus.
(b) 35-38: Provérbios parabólicos da ceifa:
35-36: Negação do provérbio sobre um intervalo
entre sem ear e colher.
37-38: Afirmação do provérbio sobre uma semea-
dura e outra colheita.
(39-42) Conclusão: A conversão da população.

4,43-45: TRANSIÇÃO - Jesus entra na Galileia (§ 15)

E. 4,46-54: O SEGUNDO SINAL EM CANÁ DA GALILEIA (§ 16)


Jesus cura o filho do oficial régio e a família do oficial se converte.
6 .0 PRIMEIRO SINAL EM CANÁ
DA GALILEIA - TRANSFORMAÇÃO
DA ÁGUA EM VINHO
(2, 1 - 1 1 )

ry

O ra , n o te rc e iro d ia h o u v e u m c a s a m e n to e m C a n á d a G ali-
leia. A m ã e d e Je su s e s ta v a lá, 2e o p r ó p r io Je su s e s e u s d is c íp u -
lo s ta m b é m fo ra m c o n v id a d o s p a ra a c e le b ra ç ã o . 3Q u a n d o o vi-
n h o fic o u e sc a sso , a m ã e d e Je su s lh e falo u : "E le s n ã o tê m v in h o " .
4M as Je su s re s p o n d e u -lh e : " M u lh e r, o q u e isto te m a v e r c o n tig o
e c o m ig o ? M in h a h o ra a in d a n ã o c h e g o u " . sS u a m ã e i n s t r u iu os
s e rv e n te s : " F a z e i tu d o o q u e e le v o s d is s e r" . 6C o m o p r e s c r ito p a ra
as p u rific a ç õ e s ju d a ic a s , h a v ia à d is p o s iç ã o se is ta lh a s d e p e d r a
co m á g u a , c a d a u m a c o n te n d o d e 90 à 100 litro s. 7" E n c h e i es-
sas ta lh a s co m á g u a " , o r d e n o u Je su s, e as e n c h e ra m a té a b o r d a .
8" A g o ra " , d is s e -lh e s , " tira i a lg u m a e le v a i-a a o m e s tre -s a la " .
E fiz e ra m a ssim . 9M a s tã o lo g o o m e s tre -s a la p r o v o u a á g u a tra n s -
fo rm a d a em v in h o (na v e r d a d e ele n ã o tin h a id e ia d e o n d e e la v eio ;
s o m e n te o s s e rv e n te s s a b ia m , v is to q u e h a v ia m tir a d o a á g u a ), o
m e s tre -s a la c h a m o u o n o iv o , 10e lh e s a lie n to u : " P rim e iro , to d o s ser-
v e m o v in h o se le to ; e n tã o , q u a n d o o s c o n v id a d o s já te n h a m b e b id o
à s a c ie d a d e , o v in h o in fe rio r. T u , p o ré m , g u a r d a s te o v in h o se le to
a té a g o ra " . ' 1O q u e Je su s fez e m C a n á d a G a lile ia m a rc o u o p rin -
c íp io d e s e u s sin a is; a ssim ele re v e lo u su a g ló ria e s e u s d is c íp u lo s
c re ra m n ele.

3: f a lo u ; re sp o n d e u ; 5: in s tr u iu ; 7: o rd e n o u ; 8: d iss e ; 9: cham ou; 10: s a lie n to u . No tempo


presente histórico.
6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da água em vinho 289

NOTAS

2.1. no terceiro dia. T eodoro de M opsuéstia (In Joanne [Syr.] - CSCO 116-39)
conta este dia como o terceiro dia após a cena batismal de 1,29-34, com
o prim eiro dia m encionado em 1,35, e o segundo em 1,43. Embora isto
certam ente seja exegese possível, m uitos exegetas agora contam do dia
do cham ado de Natanael e Filipe, sugerindo que aquele dia e o seguinte
(ou talvez dois dias intervenientes) foram gastos na viagem do vale do
Jordão à Galileia. Visto que o segundo m ilagre de Caná também ocorre
"depois de dois dias" (4,43), alguns sugerem que há aqui um a referência
m eram ente simbólica à ressurreição.
um casamento. As festividades usuais consistiam de um a procissão em que
os am igos do noivo traziam a noiva à casa do noivo, e então um a ceia
nupcial; aparentem ente, as festividades duravam sete dias (Jz 14,12;
Tb 11,19). A M ishnah (Kethuboth 1) ordenava que o casam ento de uma
virgem ocorresse na quarta-feira. Isto concordaria com a conjetura de
que 1,39 precedeu im ediatam ente o sábado; a ação de 1,40-42 teria ocorrí-
do no sábado até a tarde de dom ingo; a de 143-50, de dom ingo até a tarde
de segunda-feira; de segunda-feira até a tarde de terça-feira teria sido o
segundo dia da jornada; e Jesus teria chegado em Caná na terça-feira à
tarde ou na m anhã de quarta-feira.
Caná. No NT, esta vila é m encionada som ente por João (também 21,2); Jose-
fo a m enciona em seu Life 16 (# 86). O local indicado aos peregrinos des-

de a Idade Média, Kefr Kenna, 4,5 km s a nordeste de Nazaré, provável-


m ente seja errôneo (etimologicamente, do grego, esperaríam os que fosse
preservado o nom e semítico como Qana, não Kenna). Khirbet Qânâ, 15
kilom etros ao norte de N azaré, etimologicam ente é preferível e parece
adequar-se à localização de Josefo. Somente João e Lucas (4,14-16) conhe-
cem a atividade de Jesus na Galileia, região m ontanhosa nas proxim ida-
des de N azaré, im ediatam ente após o batismo; Marcos-Mateus começa o
m inistério junto ao Mar da Galileia.
A mãe de Jesus. Entre os árabes de hoje, a "mãe de X" é um título honroso
para um a m ulher que tem sido bastante afortunada em gerar um filho.
João nunca a denom ina de Maria.
estava lá. Há um a tradição apócrifa de que Maria era a tia do noivo, a quem
um antigo prefácio latino do 3“ século identifica como sendo João, filho
de Zebedeu. Isto deve ser associado à tradição de que Salomé, esposa
de Zebedeu e m ãe de João, foi irm ã de Maria, um parentesco que faz
de João prim o de Jesus (ver nota sobre 19,25 - volum e II). A presença
de Jesus não tom a im plausível de que um parentesco estava envolvido
290 O Livro dos Sinais

no casamento, a m enos que o convite viesse através de N atanael, que era


de Caná.
2. seus discípulos. Presumivelmente, os que foram chamados no capítulo 1 agora
se tornaram seguidores regulares de Jesus. A bandonaram as formas
ascéticas do Batista pelas práticas m enos abstêm ias de Jesus (Lc 7,33-34).
Ao referir-se consistentem ente a estes hom ens durante o m inistério como
"discípulos", e ao evitar o título "apóstolo", João m ostra um sentido his-
tórico, pois "apóstolo" é um termo que pertence ao período pós-ressur-
reição - veja J. Dupont, "Le nom d'Apötres, a-t-il été donné aux Douze par
Jésus?" L'Orient Syrien 1 (1956), 267-90,425-44.
3. Quando 0 vinho ficou escasso. M uitos com entaristas (L agrange, B raun, B ult-
mann, Boismard) preferem a redação m ais longa da m ão original do Si-
naiticus e da OL: "Ora, não tinham vinho, pois o vinho fornecido para a
festa já tinha esgotado". Todavia, am bos os papiros Bodm er endossam a
redação m ais breve.
A mãe de Jesus lhe falou. Por que M aria está especialm ente preocupada, e por
que ela se dirige a Jesus? M uitos têm im aginado que ela estava pedindo
um milagre. Entretanto, não há evidência de quaisquer m ilagres pré-
vios realizados p or Jesus, e nada há na im agem que o AT faz do Messias
que teria levado os judeus a esperarem que ele operasse m ilagres em
favor de indivíduos (todavia, veja 7,31). Uma expectativa de m ilagres é
mais com preensível se Jesus fosse tido como o Profeta-como-M oisés ou
como Elias que voltou à vida, pois o AT atribuía m ilagres tanto a Moi-
sés como a Elias. A maioria dos com entaristas, incluindo católicos como
G äechter, B raun, V an den B ussche, Boismard, C harlier, não vê evidência
na solicitação de Maria a expectativa de um m ilagre. V an den B ussche, I,
pp. 38-39 (tam bém Z ahn, Boismard), não crê que M aria estivesse inclu-
sive rogando que Jesus fizesse algo, m as está sim plesm ente inform ando
a desesperadora situação. A resposta de Jesus, contudo, em que se recusa
a envolver-se, parece indicar que algo se esperava dele.
"Eles não têm vinho". Na multiplicação dos pães para 4.000, Mc 8,2
(Mt 15,32) diz: "Eles nada têm para comer".
4. Mulher. Isto não constitui um a repreensão, nem um term o descortês, nem
um a indicação de ausência de afeto (em 19,26, o Jesus m oribundo o usa
para Maria). Para Jesus, era norm al o uso de um a forma polida de falar às
m ulheres (Mt 15,28; Lc 13,12; Jo 4,21; 8,10; 20,13); da m esm a forma tam-
bém se atesta na escrita grega. O peculiar é o uso de "M ulher" isolado
(sem um título acom panhante, ou um adjetivo qualificativo) por um filho
falando à sua mãe - não há precedente para isto em hebraico nem , até
onde vai nosso conhecimento, em grego. Certam ente, isso não dem onstra
6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da água em vinho 291

um a tentativa de rejeitar ou desvalorizar a relação mãe-filho, pois Maria


é denom inada a "m ãe de Jesus" quatro vezes nos vs. 11 2 ‫( ־‬duas após
Jesus haver-lhe cham ado "M ulher"). Tudo isso nos leva a suspeitar que
haja no título um alcance simbólico, "M ulher". Traduzi-lo por "Mãe"
obscureceria esta possibilidade, e tam bém ocultaria a peculiaridade da
expressão. Veja abaixo, nota sobre 4,21.
0 que isto tem a ver contigo e comigo? Literalmente, "o que a m im e a ti?"
- um semitismo. (Em João, semitismos aparecem m ais frequentem ente
no diálogo do que em narrativa na terceira pessoa; veja Bonsirven, "Les
aramaismes de Saint jean 1'Evangéliste?" Bib 30 [1949], 432). No AT, a
expressão hebraica tem duas nuanças de significado: (a) quando uma
parte está injustam ente aborrecendo outra, a parte injuriada pode dizer:
"O que a m im e a você?", i.e., O que tenho feito a você para que me
faça isto? Q ue razão de discordância há entre nós? (Jz 11,12; 2Cr 35,21;
lR s 17,18); (b) quando se solicita que alguém se envolva em um a questão
que sente não ser um negócio propriam ente seu, pode dizer ao parceiro:
"O que a m im e a você?", i.e., isso é problem a seu; como vou envolver-
me? (2Rs 3,13; Os 14,8). Assim, há sem pre algum a recusa de envolvi-
m ento inoportuno e um a divergência entre os pontos de vista das duas
pessoas preocupadas; todavia (a) implica hostilidade, enquanto (b) im-
plica sim ples desencargo. Am bas as nuanças de significado aparecem no
uso neotestam entário: (a) aparece quando os dem ônios replicam a Jesus
(Mc 1,24; 5,7); aparentem ente (b) aparece aqui. No entanto, é interessante
que alguns dos Padres gregos interpretam Jo 2,4 no sentido (a) e pensam
em um a censura a Maria. Para exegese patrística, veja R euss e B resolin;
para um estudo com pleto da frase, veja M ichaud, pp. 247-53. Podemos
m encionar que tem havido aí um a tentativa de introduzir um a variante
de (b) na interpretação de João. Em 2Sm 16,10, "O que a mim e a ti?",
parece significar: "Isto não é problem a nosso"; portanto, alguns sugerem
que Jesus está dizendo a Maria que este não é um problem a dele nem
dela. Todavia, o fato de que ele se refira em seguida "m inha hora", pare-
ceria indicar que ele está negando som ente seu envolvimento.
Minha hora ainda não chegou. A antiga tradução disto como um a afirmati-
va interrogativa ("Acaso m inha hora chegou agora?"), endossado por
G regório de Nissa e T eodoro de Mopsuéstia, foi revivido por Boismard,
Du Baptême, p. 156ss. e M ichel, art. cit. Com certeza, esta é um a constru-
ção grega possível, quando a palavra oupõ começa um a cláusula, p. ex.,
Mc 8,17. Contudo, a palavra oupõ ocorre doze vezes em João, e todos os
dem ais usos são negativos. A comparação com as construções m ui simi-
lares em 7,30 e 8,20 serviría para convencer que aqui a frase é negativa,
292 O Livro dos Sinais

correspondendo à negativa implícita em "O que isto tem a ver contigo e


comigo?"
hora. Para este termo técnico joanino, se reportando ao período da paixão,
morte, ressurreição e ascensão, veja Apêndice 1:11, p. 794ss. A tentativa de
entender "hora", neste versículo, como o m om ento da abertura do minis-
tério ou da glorificação inicial de Jesus m ediante seu prim eiro m ilagre, é
compreensível em vista do contexto; todavia, vai contra o restante do uso
joanino do termo e é refutado pela reiteração em 6,6.8.30; 8,20, que o tem-
po ou hora de Jesus não havia chegado. Especialmente, deve-se rejeitar a
sugestão de que a hora dos milagres era antecipada por Jesus à solicitação
de Maria, pois no pensam ento joanino a hora não está sob o controle de
Jesus, e sim sob o do Pai (12,27; tam bém Mc 14,35 - para as limitações
de Jesus neste respeito, veja H aible, a rt. c it.). B resolin m ostra que a com-
preensão da "hora" como a hora da paixão anterior a A gostinho ; os Pais
gregos, segundo R euss, creem mais na hora do prim eiro milagre.
5. "F azei tu d o 0 q u e ele v o s d isse r" . As instruções de Maria ecoam as de
Faraó em Gn 41,55: "Ide a José, e fazei tudo o que ele vos disser".
P. G ächter, M a r ia im E rden lebert (Innsbruck: 1953), p. 192, m antém que
devem os entender isto neste sentido: "Se ele vos disser algo, não im porta
o que seja, fazei-o". Isto é atraente, mas, na verdade, não justificado pelo
grego. T udo indica que Maria não tinha dúvida de que Jesus interviria, e
só é incerto quanto ao m odo da intervenção.
6. se is talh as d e p e d ra com á g u a . Na busca de simbolismo, tem-se dado atenção
ao núm ero seis (um m enos de sete - um sím bolo judaico da imperfei-
ção) e à menção das talh as d e p e d ra (Ex 7,19, onde Moisés transform a em
sangue a água nas talhas de pedra egípcias - um sinal em conform idade
com 7,9). Ambas as tentativas no simbolismo são forçadas. O uso de ta-
lhas de pedra provavelm ente fosse o ponto de partida das leis levíticas
de im pureza ritual (Lv 11,29-38): enquanto as talhas de cerâmica podiam
tom ar-se ritualm ente contam inadas e ser quebradas, as jarras de pedra
não podiam adquirir im pureza (veja M ishnah B etsah 2:3). Para as purifi-
cações judaicas, consulte Mc 7,3-4.
de 9 0 à 1 0 0 litr o s. As talhas contêm duas ou três m edidas; um a m edida é
cerca de 30 litros.
8. tir a i a lg u m a . Este verbo é norm alm ente usado em referência a um poço,
e W estcott sugere que um poço, e não as talhas, é a fonte da água. Esta
sugestão parece ir contra o contexto óbvio; pois é im provável que, tendo
feito os servos encher as talhas com cerca de 450 litros de água, Jesus
agora os faça tirar mais água do poço. O problem a é que m uitos sentem
dificuldade com a implicação de Jesus transform ar 450 litros de água
6 · O prim eiro sinal em Caná da G alileia-T ran sform ação da água em vin ho 293

em vinho. O utra tentativa de evitar isto é a sugestão de Dacquino (VD 39


[1961], 92-96) de que som ente a água tirada das talhas se converteu em
vinho. Isto é possível, m as não é o significado óbvio do relato.
mestre-saía. A palavra architriklinos tem como sua referência prim ária (BAG,
p. 112) o escravo que era responsável pela adm inistração de um ban-
quete; daí, "chefe dos serventes ou m ordom o". Na verdade, a literatura
judaica não nos oferece paralelo para o suposto funcionário em João; e
pode m uito bem ser que na sequência do relato o funcionário assum isse
algum dos aspectos do arbiter bibendi, bem conhecido no m undo gentí-
lico. A lguns querem ver um paralelo com aquele que preside o jantar
em Siraque 32,1; neste caso, aquele que preside não é um servo, nem o
m elhor hom em , m as um conviva escolhido no transcorrer da azáfama,
porque ele m antém relações fam iliares com o noivo.
10. Primeiro, todos servem 0 vinho seleto. Não tem os na literatura contemporâ-
nea atestação para este costum e, m as é o tipo de prática perspicaz que é
com um à natureza hum ana. A sugestão de que o costum e é um a criação
ad hoc é hiper-crítica.
11. ele revelou sua glória. C om pare 12,23; 17,24; para João, a verdadeira gló-
ria de Jesus só é revelada em "a hora". Visto que 7,39 afirm a claram ente
que d u ran te o m inistério Jesus ainda não fora glorificado, tem os que
p en sar que o v. 11 ou é um a referência a um a m anifestação parcial da
glória, ou com o sendo p arte da condensação do treinam ento dos disci-
p u los onde se prefigura toda sua carreira, inclusive sua visão da glória
do Jesus ressurreto.

C O M E N T Á R IO

R e c o n s tr u in d o 0 r e l a to b á s ic o

Temas e alusão teológicos de tal modo dominam a narrativa de Caná


que é muito difícil reconstruir um quadro convincente do que se
imagina ter acontecido e as motivações dos personagens dramático.
Alguns comentaristas nos aliviariam deste fardo negando que haja
algum relato tradicional básico de Jesus por detrás do relato, e consi-
derando tudo como uma criação meramente teológica. Naturalmente,
para os que negam a possibilidade do miraculoso, todos os relatos de
milagre concernentes a Jesus são suspeitos. Mas, por que o relato de
Caná seria mais suspeito do que os outros?
294 O Livro d o s Sinais

Dos sete sinais miraculosos narrados por João (veja Apêndice III,
p. 841ss), três são relatos variantes de incidentes narrados nos sinóti-
cos, e três são milagres de um tipo encontrado nos sinóticos. Somen-
te o milagre de Caná não tem paralelo na tradição sinótica. Assim,
Bultmann, entre outros, sugere forte influência pagã na formação do
relato, especialmente a influência do culto de Dionísio, o deus da vin-
dima. A festa de Dionísio era celebrada no 6“ dia de janeiro, enquanto
o registro de Caná se tornou parte da epifania litúrgica celebrada na
mesma data. Durante a festa, as fontes dos templos pagãos sobre o
Andros emanavam vinho em vez de água.
Embora esta evidência seja interessante, dificilmente é conclusiva
para as origens da narrativa joanina. Devemos ter em mente que tanto
as datas como os motivos das festas cristãs eram com frequência delibe-
radamente selecionadas para substituir as festas pagãs. Além do mais,
pode-se indagar legitimamente se o evangelista, que mostrou que se
move dentro da estrutura geral dos milagres tradicionais de Jesus em
seis de suas sete narrativas, seria plausível introduzir uma sétima nar-
rativa de uma tradição estranha? Quanto à singularidade do milagre,
acaso transformar água em vinho é tão diferente da multiplicação dos
pães? Ambos têm eco na tradição Elias-Eliseu que fornece o pano de
fundo para os milagres de Jesus, provavelmente porque somente neste
ciclo de relatos o AT narra numerosos milagres realizados em favor
de indivíduos. A multiplicação dos pães é antecipada em 2Rs 4,42-44,
e talvez a transformação de água em vinho para suprir a festa de ca-
sarnento possa ser comparada ao miraculoso ato de Elias fornecendo
carne e azeite em lRs 17,1-16, e o ato de Eliseu suprindo azeite em
2Rs 4,1-7. Todos estes são milagres que atendem a uma inesperada
necessidade física que nas circunstâncias particulares não poderíam
satisfazer por meios naturais. Outro obstáculo à tese de que o relato de
Caná foi emprestado das lendas helenistas de milagre para a narrati-
va - tão atípicas da atmosfera dos prodígios helenistas. João não nos
conta como ou quando a água se converteu em vinho, mas revela o
milagre quase de passagem. P.-H. M enoud, RHPR 28-29 (1948-49), 182,
ressalta o quanto Caná difere de uma metamorfose pagã.
Assim, parece que não podemos escapar tão facilmente do pro-
blema da tentativa de reconstruir uma narrativa básica subjazendo
aos temas teológicos. Podemos começar com o escassez de vinho
que alguns sugerem foi causado pela inesperada presença de Jesus e
6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da água em vinho 295

se u s d isc íp u lo s (ain d a q u a n d o n ã o p re c isa m o s d isc u tir as in te rp re ta -


ções rid íc u la s c e n tra d a s n a p e s a d a b e b e d e ira d e Jesu s e n a s ten ta tiv a s
d e M aria d e fazê-lo ir p a ra casa). D errett, q u e é u m p e rito em d ire ito
o rie n ta l, fez u m c u id a d o s o e s tu d o d o s c o stu m e s n u p c ia is ju d aico s, e
d e s c o b riu q u e o s u p rim e n to d e v in h o d e p e n d ia , em a lg u m a ex ten são ,
d o s p re s e n te s d o s co n v iv as. Ele p e n sa q u e Jesu s e se u s d isc íp u lo s, em
v irtu d e d e s u a p o b re z a , fa lh a ra m n e ste d e v e r e assim fo ram a causa
d a escassez.
O d iálo g o e n tre M aria e seu filho, e o q u e acontece depois, são m ais
difíceis d e e n ten d er. E v id en tem en te, M aria ch a m o u a atenção d e Jesus
p a ra a d e se sp e ra d o ra situ ação (veja nota). Em o u tra s cenas joaninas
(5,5-7; 6,5.9; 11,21) h á ap resen taçõ es sim ilares d e situações h u m a n a s in-
so lú v eis sem q u a lq u e r expectativa d e ou esp eran ça d a intervenção de
Jesus. E n tretan to , M aria p arece e sp era r a lg u m a resp o sta o u ação d a par-
te d e Jesus. A n a tu re z a exata d a expectativa n ão fica clara à lu z d a n arra-
tiva, e n e n h u m a d a s m u itas c onjeturas d o s c o m en taristas é convincente.
Se a tese d e D errett é correta, M aria p o d e ría ter lem b rad o a Jesus dos
resu lta d o s d e su a falha em o b serv ar o co stu m e d e u m p resen te nupcial.
A resp o sta n eg ativ a d e Jesus a M aria está em h arm o n ia com as passa-
gens sin ó ticas q u e tra tam d e M aria em relação à m issão d e Jesus (Lc 2,49;
M c 3,33-35; Lc 11,27-28): Jesus se m p re insiste q u e o p aren tesco h u m an o ,
seja o d e M aria, o u o d e seus p a re n tes in créd u lo s (Jo 7,1-10), não p o d e
afetar e m n a d a o d esen v o lv im en to d e seu m inistério, pois ele tem qu e
realizar a o b ra d e seu Pai. C om o a firm a Schnackenburc, p. 30, o m istério
d e Jesus é tal que, em b o ra realm en te h u m a n o , ele n ão p o d e ser o brigado
p elo s reclam o s d a carne e san g u e. Ele é o p rim eiro d aq u eles cuja gera-
ção n ã o p ro ce d e d o san g u e, n e m d o desejo carnal, n e m d o desejo do
h o m em , m as d e D eus (1,13). A recusa é cortês; n ão há indicação d e qu e
M aria está se n d o c e n su ra d a p o r estar fora d e o rd em , não m ais qu e em
Lc 2,49. T am p o u co , com o afirm am o s na respectiva nota, h á u m a rejei-
ção d ela co m o m ãe - o q u e está se n d o n e g a d o é u m a função, n ão um a
pessoa. Jesus está se colocando além d a s relações fam iliares naturais,
m esm o q u a n d o ele a exigir d e seus d iscíp u lo s (M t 19,29).
A p ersistên cia d e M aria em face d a recusa co n stitu i u m a dificul-
d ad e, n ã o p a ra ser a te n u a d a p ela su p o sição d e q u e, a tra v és d e sinais,
o u a tra v é s d a p o lid e z d e seu m o d o , Jesus in d icav a a M aria q u e ele real-
m en te n ã o estav a re c u sa n d o se u p e d id o . A d ific u ld a d e p o d e ao m enos
ser ilu m in a d a p e lo s e x em p lo s d e p ersistên cia sim ilar em face d a recusa
296 O Livro dos Sinais

d e Jesu s e x ib id a p o r p e rso n a g e n s e m M t 15,25-27 (ta m b é m 8,6-8,


se o v. 7 for lid o co m o u m a p e rg u n ta n e g a tiv a ) e em Jo 4,47-50 (o o u -
tro m ilag re e m C aná). Tal p e rsistê n c ia se m p re p a re c e c o n v e n c e r Jesus
d e agir. E d e tal m o d o se d á q u e, a d e sp e ito d a rec u sa d e Je su s e m
a te n d e r à in te rv e n ç ã o so licitad a p o r M aria, isso p ro p ic ia a o casião d o s
p rim e iro s sin ais d e Jesus. E scrito res so b re M ario lo g ia tê m se e m p e -
n h a d o e m g ra n d e m e d id a e m p ro l d e ste fato, e, n o e n ta n to , d e v e -se
n o ta r h o n e s ta m e n te q u e o e v a n g e lista n a d a sa lie n ta so b re o p o d e r d a
in tercessão d e M aria e m C an á. Se o m ila g re é u m a re s p o s ta à su a fé
p e rsiste n te , este p o n to n ã o é ex p lícito , co m o é n o s e x e m p lo s sin ó tico s.
M esm o as p a la v ra s fin ais d e M aria, "F azei tu d o o q u e ele v o s d iss e r" ,
e n fa tiz a m a so b e ra n ia d e Jesu s e n ã o a in te rce ssão d e M aria; e, d e fato,
p a re c e ser p re c isa m e n te a e s p o n ta n e id a d e d e c o n fia r n a s o b e ra n ia d e
Jesus q u e p re p a ra o c a m in h o p a ra o m ilagre. Schnackenburg (p p . 37-38),
u m católico, p e n sa q u e a d ecisão d e Jesu s d e o p e ra r o m ila g re é, na
m e n te d o e v a n g elista , p a ra se r re la ta d a n ã o ta n to co m a so licitação
d e su a m ãe, q u a n to co m u m a d ire triz d o P ai n ã o m e n c io n a d a - u m a
o b serv ação q u e p o d e se r p ro c e d e n te , m a s q u e v a i a lé m d a e v id ê n c ia .
Esta sequência d o s eventos em C aná é o bviam ente incom pleta: o q u e
parece ser u m p e d id o m eram en te n a tu ra l d a p arte d e M aria vai seg u id a
d e u m a recusa d a p arte d e D eus, com o se o p e d id o afetasse d e a lg u m
m o d o a substância d e seu m inistério. V erem os a d ian te q u e este diálogo
faz sentido n o nível d a teologia joanina, m as não fica claro se estaria im -
plícito n o nível d a tradição histórica. A lg u n s autores católicos recentes
se im pressionam tanto pelas ap aren tes inconsistências d a n a rra tiv a que,
e n q u an to aceitam a ação básica em C aná com o histórica, caracterizam o
diálogo en tre Jesus e M aria com o a criação d o evangelista inserida p ara
p ropósitos teológicos (assim M. Bourke, CBQ 24 [1962], 212-13, e seu alu-
no, R. D illon, p p. 288-90). O u tro s exegetas preferirão a sugestão d e que
o diálogo era tam bém p arte d a tradição prim itiva, m as q u e o evangelista
nos d e u som ente aqueles fragm entos d o d iálogo q u e serviam ao seu p ro -
pósito teológico, deixando-nos assim com u m relato incom pleto e inade-
q u ad o q u a n d o tentam os en trev er algo m ais q u e u m m ero nível teológico.

Motivos teológicos na narrativa

A q u i, n o sso p ro b le m a n ã o é com a p o b re z a d e d e ta lh e , e sim co m


o e m b a raç o d ia n te d a s riq u e z as. C o m o d e sc o b rire m o s c o m fre q u ê n c ia
6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia-Transformação da água em vinho 297

n o u s o jo a n in o d e sím b o lo s, o e v a n g e lista m o stra m u ita s d ife ren te s fa-


c etas d e s u a teo lo g ia a tra v é s d e u m a só n a rra tiv a . F elizm en te, o p rin -
cip al te o r d o re la to e stá e x p re sso p a ra n ó s n o v. 11. A í so m o s infor-
m a d o s q u e C a n á foi o início d o s sin a is d e Jesus. A ssim , a d e sp e ito de
to d a s as te n ta tiv a s d a e ru d iç ã o d e e n fa tiz a r a s in g u la rid a d e d e ste m i-
la g re e s u a a fin id a d e co m m isté rio s d io n ísico s, João o relacio n a espe-
c ifica m en te co m os o u tro s m ilag re s d e Jesus e com u m lu g a r concreto
n o m in is té rio d e Jesus. E n tão João n o s in fo rm a q u a l o sin al realizad o :
a tra v é s d e le Je su s rev e lo u su a g ló ria e se u s d isc íp u lo s c re ra m nele.
A ssim , o p rim e iro sin a l tev e o m esm o p ro p ó sito q u e to d o s os sinais
s u b s e q u e n te s terão , a sa b er, revelação da pessoa de Jesus. A o co n trário ,
p a ra as in te rp re ta ç õ e s d o s e stu d io so s, João n ã o p ô s ên fase primária so-
b re a s u b s titu iç ã o d a á g u a p a ra as p u rific a ç õ es ju d aic as, n e m so b re a
ação d e tra n s fo rm a r á g u a e m v in h o (q u e n ã o foi d e scrita com d etalh e),
n e m m e s m o so b re o v in h o re su lta n te . João n ã o p õ e a ên fase p rim á ria
so b re M aria o u su a in te rce ssão , n e m so b re p o r q u e ela in sistiu em
su a so licitação , n e m so b re a reação d o chefe d o s se rv e n te s o u noivo.
O foco p rim á rio está, co m o em to d o s os relato s d e João, em Jesus com o
a q u e le e n v ia d o p e lo Pai a tra z e r salvação ao m u n d o . O q u e resp lan d ece
é sua glória, e a ú n ica reação q u e se e n fa tiz a é a fé d o s d iscíp u lo s.
M ais q u e a m a io ria d o s c o m e n ta rista s, Schnackenburg tro u x e a
lu m e c la ra m e n te a c e n tra lid a d e d a cristo lo g ia n a n a rra tiv a d e C an á,
s e g u n d o as c la ras d ire triz e s d o e v a n g elista . M as tem o s d e fo rm u la r
p e rg u n ta s a d ic io n ais. D e q u e m o d o a tra n sfo rm a ç ã o d a á g u a em vi-
n h o faz a g ló ria d e Jesu s re lu z iu so b re se u s d isc íp u lo s? E p a ra os leito-
res d o e v a n g e lh o a q u e m o e v a n g elista d á e ste relato n u m a seq u ên cia
fixa, co m o a n a rra tiv a d e C a n á se relacio n a com o q u e p re c e d e e o q u e
seg u e? V o ltem o s a re s p o n d e r estes p o n to s u m a p ó s o o u tro .
(1) C o m o C a n á re v e lo u a g ló ria d e Jesus? - su b stitu iç ã o e ab u n -
d â n c ia m essiân icas. P o d e m o s re s p o n d e r a e sta q u e stã o p rim e iro em
relação ao leito r d o e v a n g e lh o q u e tem to d a a se q u ên c ia d o m in isté rio
d ia n te d e le , e e n tã o p o d e m o s v o lta r ao sig n ific a d o d o rela to d e C aná
p a ra os d isc íp u lo s q u e v ira m o m ilag re. João in fo rm a o leito r q u e este
foi o in ício d o s sin ais e co m isso in d ic a c la ra m e n te q u e C a n á d e v e ser
c o n e cta d a co m o q u e se g u e n o L ivro d o s Sinais. C o m o já ressa lta m o s
ao d isc u tir o e sb o ço d o Livro (p. 161), u m d o s te m a s d a P arte II (caps.
2-4) é a s u b s titu iç ã o d a s in stitu içõ e s e d o s p o n to s d e v ista religiosos
ju d aico s; e P a rte III (caps. 5-10) é d o m in a d a p e la s ações e d isc u rso s de
298 O Livro dos Sinais

Jesus p o r o casião d a s festas ju d aic as, com re ite ra d a fre q u ê n c ia à m o d a


d e s u b s titu ir o m o tiv o d a s festas. Jesu s é o v e rd a d e iro te m p lo ; o E spí-
rito q u e ele d á su b stitu irá a n e c e ssid a d e d e c u ltu a r em Je ru sa lé m ; su a
d o u trin a e su a c a rn e e s a n g u e d a rã o v id a d e u m a m a n e ira q u e o m a n á
a sso ciad o co m o ê x o d o d o E gito n ã o fez; n a festa d o s ta b e rn á c u lo s,
n ã o a c e rim ô n ia d e p e d ir c h u v a s, m a s Jesu s m e sm o s u p re a á g u a v iv a;
n ão a ilu m in a ç ã o d o á trio d o tem p lo , m a s Jesu s m esm o é a v e rd a d e ira
luz; n a festa d a D edicação, n ã o o a lta r n o tem p lo , m a s Je su s m e sm o
é c o n sa g ra d o p o r D eus. E m v ista d e ste tem a c o n siste n te d e s u b stitu i-
ção, p a re c e ó b v io q u e, ao in tro d u z ir C a n á co m o o p rim e iro d e u m a
série d e sin a is a se g u ir, a in te n ç ão d o e v a n g e lista é c h a m a r a a te n ç ã o
p a ra a s u b s titu iç ã o d a á g u a p re sc rita p a ra a p u rific a ç ã o ju d a ic a p e lo
m ais seleto d o s v in h o s. E sta su b stitu iç ã o é u m sin a l d e q u e m é Jesu s,
a sab er, o e n v ia d o p e lo Pai q u e a g o ra é o ú n ic o c a m in h o p a ra o Pai.
T o d as as su b stitu iç õ es, c o stu m e s e festas relig io sas a n te rio re s e m su a
p rese n ç a p e rd e ra m o sig n ificad o .
D e ix a n d o a g o ra o p o n to d e v ista d o le ito r d o e v a n g e lh o p a r a a
d o s d is c íp u lo s a q u e m João a p re s e n ta c o m o te s te m u n h a s d o m ila g re ,
e trataremos de trabalhar com 0 cenário histórico tencionado pelo evange-
lista, v e m o s q u e o s d isc íp u lo s sã o im a g in a d o s c o m o te n d o v is to a
g ló ria d e Je su s n a p r ó p ria c e n a d e C a n á , se m a v a n ta g e m d e p r e v e r
o tem a d e s u b s titu iç ã o e la b o ra d o em to d o o m in is té rio . C o m o ? P o-
d e m o s in tr o d u z ir n o ssa re s p o s ta , o b s e rv a n d o q u e a lg u n s d o s sim -
b o lo s em C a n á sã o fa m ilia re s e sig n ific a tiv o s sím b o lo s b íb lic o s q u e
te ria m sid o c la ra m e n te c o n h e c id o s d o s d isc íp u lo s. A a ç ão d ra m á tic a
é p o s ta n o c o n te x to d e u m c a sa m e n to ; n o A T (Is 54,4-8; Lc 4-5), isto é
u s a d o p a ra s im b o liz a r o s d ia s m e ssiâ n ic o s, e a m b o s, o c a s a m e n to e o
b a n q u e te , sã o sím b o lo s q u e Je su s u s o u (M t 8,11; 22,1-4; Lc 22,16-18).
O c a sa m e n to a p a re c e c o m o u m sím b o lo d o c u m p rim e n to m e ssiâ -
nico e m o u tra o b ra jo a n in a , A p 19,9. O u tr o sím b o lo e m C a n á é a
s u b s titu iç ã o d a á g u a p e lo v in h o seleto , m e lh o r q u e o v in h o q u e os
c o n v iv a s já tin h a m b e b id o . N a tra d iç ã o sin ó tica , a p a re n te m e n te n o
c o n te x to d e u m a festa n u p c ia l (M c 2,19), e n c o n tra m o s Je su s u s a n d o
o s im b o lism o d e u m v in h o n o v o e m o d re s v e lh o s a fim d e c o m p a r a r
se u n o v o e n s in o co m os c o s tu m e s d o s farise u s. (N o te q u e e ste inci-
d e n te o c o rre n o in ício d o re la to sin ó tic o d o m in is té rio ju s ta m e n te
co m o C a n á e stá n o in ício d o re la to jo an in o ). A ssim , a d e c la ra ç ã o d o
m e stre -sa la n o fin a l d a c en a, " G u a rd a s te o v in h o se le to a té a g o ra " ,
6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da água em vinho 299

p o d e s e r e n te n d id a c o m o a p ro c la m a ç ã o d a c h e g a d a d o s d ia s m es-
siâ n ic o s. À lu z d e s te tem a , a d e c la ra ç ã o d e M a ria , "E les n ã o têm
v in h o " , se to rn a u m a p u n g e n te reflex ã o so b re a e s te rilid a d e d a s p u -
rificaçõ es ju d a ic a s , tão d o e stilo d e M c 7,1-24.
A a b u n d â n c ia d e v in h o (450 litro s - v e r n o ta so b re o v. 8) ag o ra
se to rn a in telig ív el. U m a d a s fig u ra s c o n sisten te s d o A T p a ra a alegria
d o s d ia s fin ais é a a b u n d â n c ia d e v in h o (A m 9,13-14; O s 14,7; Jr 31,12).
1 Enoque 10,19 p r e d i z q u e a v id e ir a p r o d u z i r ía v in h o c o m a b u n -
d â n c ia ; e e m 2 Baruque 29,5 (u m ap ó crifo ju d a ic o q u a se c o n te m p o râ -
n eo d o Q u a rto E v an g elh o ) e n c o n tra m o s u m a d escrição e x u b e ra n te -
m e n te fan tá stica d e sta a b u n d â n c ia : a te rra p ro d u z irá seu fru to d ez
m il v e z e s m ais; c a d a v id e ira terá 1.000 ram o s; c a d a ram o 1.000 cachos;
cad a cach o 1.000 u v a s; e c a d a u v a cerca d e 450 litro s d e v in h o . (I rineu
Contra Heresia 5, 33:3-4; PG 7:1213-14, a trib u i esta p a ssa g e m a P apias
d e H ie rá p o lis, o q u a l está in tim a m e n te asso c ia d o com as a n tig a s tra-
d içõ es so b re João).
A tra v é s d e s se sim b o lism o , o m ila g re d e C a n á p ô d e se r e n te n d i-
d o p e lo s d isc íp u lo s co m o u m sin a l d o s te m p o s m essiân ico s e a n o v a
d isp e n sa ç ã o , e m g ra n d e m e d id a d a m esm a m a n e ira q u e teriam en-
te n d id o a d e c la ra ç ã o d e Jesu s so b re o n o v o v in h o n a tra d iç ã o sinótica.
A re fe rê n c ia n o v. 11 ao a to d e Jesu s re v e la r su a g ló ria se a d e q u a a
este tem a, p o is a rev e laç ã o d a g ló ria d iv in a h av ia d e ser a m arca d o s
ú ltim o s tem p o s. E m SI 17,32 o u v im o s q u e o M essias fará com q u e a
g ló ria d o S e n h o r seja v ista p o r to d o s so b re a terra. O 49,2 fala d a gló-
ria d o E sco lh id o (Jo 1,34), o F ilho d o H o m e m ; e o 102,6 p ro m e te q u e o
S en h o r a p a re c e rá em S ua g ló ria (ta m b ém o SI 97,6; Is 60,1-2 etc.).
(2) Como Caná completou 0 chamado dos discípulos? O evangelista não
só in d ica q u e o m ilag re d e C an á d e v e ser conectado aos sinais qu e se-
guem ; tam b é m (v. 1) o relaciona com o q u e p recede, d a ta n d o -o em refe-
rência ao c h a m a d o d o s discípulos. A o en fatizar a relação d e fé d a p arte
dos d iscíp u lo s, o evangelista m o stra q u e n ão se esqueceu d o tem a da
evolução d o d isc ip u la d o q u e foi e lab o rad o n o cap ítu lo 1. Seguir a Jesus é
u m p ro cesso , q u e com eçou e m 1,37 q u e c u lm in a n a fé; o q u e veem agora
em C a n á c u m p re a p ro m e ssa d e 1,50 (e 51). Veja nota sobre o v. 11.
A lg u n s e s tu d io so s p ro p õ e m u m a co n ex ão a in d a m ais elab o ra-
d a d e C a n á co m o c a p ítu lo 1. B ernard , B oismard, Strathmann , e n tre
o u tro s, c re e m q u e e m su a fre q u e n te m en ç ã o d e d ias, em 1 e 2,1, o
Q u a rto E v a n g e lh o deseja re p re s e n ta r u m a se m a n a d e sete d ia s p a ra a
300 O Livro dos Sinais

a b e rtu ra d o m in isté rio - u m a se m a n a c o m e ç a n d o a n o v a criação p re-


c isam en te co m o G n 1-2,3 e s tru tu ra a o b ra d a p rim e ira criação d e n tro
d e u m a se m a n a d e sete dias. A p re se n ta m o s ab aix o u m a e sq u e m a tiz a -
ção disto:

Q u arta-F eira P rim e iro Dia: O te s te m u n h o d e Jo ão B atista acerca


1,19-28 - d o se u p ró p rio p a p e l
Q u in ta-F eira S e g u n d o Dia: O te ste m u n h o d e João B atista acerca
1,29-34 - d e Jesus
Sexta-Feira T erceiro Dia: O s p rim e iro s d o is d isc íp u lo s se g u e m
1-35-39 - a Jesus
S áb ad o a Q u a rto Dia: S im ão P e d ro v ai a Jesus
d o m in g o à 1 ,4 0 -4 2 -
n o ite
S eg u n d a-F eira Q u in to Dia: F ilipe e N a ta n a e l; início d a v ia g e m
1 ,4 3 -5 0 - p a ra G alileia
T erça-Feira Sexto Dia: u m dos dois dias im plícitos em 2,1 para
a viagem p a ra G alileia
T erça-Feira a S étim o Dia: Jesus na festa n u p c ia l d e C a n á
q u a rta -fe ira à 2 ,1 - 1 1 -
n o ite

T em os q u e fazer alg u m as precisões n a avaliação d este esq u em a. Se


deixarm os d e lad o a identificação d o s dias sem anais (quarta a q u arta), a
sim ples diferenciação d e dias tem a seu favor o fato d e q u e cad a d ia que
ela p ressu p õ e é indicado em João - so m en te o Dia 4 é u m tan to especula-
tivo. Preferim os este cálculo ao d e Boismard que, sem evidência, in tro d u z
u m d ia e n tre 1,46 e 47 (veja acim a, p p . 274-275). E n tre ta n to , o e s q u e m a
se to rn a b e m e sp ec u lativ o , se id en tific a rm o s os d ia s se m a n a is - veja
n o ta so b re 1,39 e 2,1 p a ra a su a justificação. T o d a v ia, é im p o rta n te
o fato d e q u e a se m a n a , assim re c o n stru íd a , com eça na q u a rta -fe ira ,
co m o sa lie n ta d o p o r P. S kkhan, CB Q 20 (1958), 197-98; p o is n o an ti-
go c a le n d á rio so la r (se g u id o n o s Jubileus e em Q u m ra n ), a se m a n a
se m p re co m eçav a n a q u a rta -fe ira . C o m o o b se rv a S kehan , C a n á m ar-
ca, re sp e c tiv a m e n te , o fim d a p rim e ira se m a n a d o m in isté rio (sétim o
d ia) e, com o u m a quarta-feira, o início d a sem ana seg u in te (oitavo dia).
A m ística d o oitavo dia, o g ru p o d e oito, é b em atestad o n o C ristianism o
6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia- Transformação da água em vinho 301

p rim itiv o d o 2“ sé cu lo ( Barnabé 15,8-9; J ustino Trifo XLI 4; PG 6:565).


P a ra ap lic aç ã o a C a n á , veja M. B alagué, Cultura Bíblica 19 (# 187,1962),
365ss. E sta m e sm a re c o n stru ç ã o e sp e c u la tiv a co n firm aria n o sso p o n to
d e v ista d e q u e C a n á ta n to c o m p le ta a se q u ên c ia n o c a p ítu lo 1 com o
in tro d u z a se q u ê n c ia em 2-4.
A ap lic aç ã o d a teo ria d e sete d ia s a Jo 1,19-2,11 é m u ito a tra en te ,
m as co m o é p o ssív e l e sta rm o s certo s d e q u e n ão e sta m o s le n d o no
e v a n g e lh o a lg o q u e n u n c a n e m m esm o foi im a g in a d o p e lo e v a n g elista
o u p e lo re d a to r? H á u m p e rig o real d e q u e a q u i tem o s m ais u m exem -
p io d o d esejo d e e n c o n tra r setes n o Q u a rto E v a n g e lh o (veja acim a,
p. 161). O e v a n g e lh o em si co n ta a festa e m C an á co m o o c o rre n d o n o
terceiro d ia , e n q u a n to q u e o d ia c o rre s p o n d e n te em 1,40-42 só é indica-
d o in d ire ta m e n te . Q u e a referên cia a sete d ia s se a d e q u a b em com os
claro s p a ra le lo s co m G ên esis n o P ró lo g o (e com o tem a d a " m u lh e r"
d e C a n á , co m o v isto abaixo) n ão existe d ú v id a , m a s isto n ã o c o n trib u i
se n ão p a ra faz e r a teo ria d e sete d ia s u m a in te rp re ta ç ã o possível.
O u tro tem a q u e relaciona C an á ao cap ítu lo 1 é a p resen ça do
tem a d e S ab ed o ria q u e v im o s no c h a m a d o d o s d iscíp u lo s (veja acim a,
p. 267). Isto foi b e m d e s e n v o lv id o em D illon, art. cit. P r 9,5 d escrev e
co m o a S a b e d o ria p r e p a ra u m b a n q u e te p a ra os h o m e n s, co n v id a n -
d o -o s a c o m e re m d e se u p ã o e beberem de seu vinho. E m Is 55,1-3 e
S ira q u e 15,3 e 24,19.21, tem o s h o m e n s re c e b e n d o à c o m id a e b e b id a
d a S a b e d o ria . O a to d e ja n ta r à m esa d a S a b ed o ria e b e b e r seu v in h o
é u m sím b o lo d a aceitação d e su a m en sa g e m . O tem a d a S ab ed o ria
será cla ro n o c a p ítu lo 5, o n d e Jesu s é o p ã o d a v id a q u e a lim e n ta os
h o m e n s co m d o u trin a - u m a cena p o sta n a G alileia p re c isa m e n te an-
tes d a P ásco a (6,4). A q u i, em C a n á d a G alileia, p re c isa m e n te a n te s da
P áscoa (2,13), tem o s Jesu s d a n d o ao s h o m e n s v in h o com a b u n d â n c ia
p a ra b e b e re m , e isto leva se u s d isc íp u lo s a c re re m nele. S obre u m a
b ase c o m p a ra tiv a , p a re c e q u e o tem a d a S a b e d o ria está em foco em
C aná. Isto p o d e ta m b é m asso ciar-se ao tem a d a su b stitu iç ão , p o is, na
S ab ed o ria d e S ira q u e , ela é d e m u ita s m a n e ira s e q u iv a le n te à Lei. N ão
é o p ã o e o v in h o d a Lei q u e a lim e n ta m os h o m en s, m as Jesus m esm o ,
a e n c a rn a ç ã o d a S a b e d o ria d iv in a.
O te m a d a S a b e d o ria ecoa n o v. 9 o n d e so m o s in fo rm a d o s q u e
o m estre -sala n ã o sa b e d e o n d e v e io o v in h o ? A ig n o râ n c ia d e o n d e
v em a S a b e d o ria eco a p o e tic a m e n te e m Jó 28,12-20. B a ru q u e 3,14-15
d esafia o h o m e m a a p re n d e r o n d e está a S a b ed o ria em se u s v ário s
302 O Livro dos Sinais

asp ecto s. Q u a n d o e n c o n tra m o s em João a q u e stã o d e o n d e Je su s v em ,


a sso ciarem o s isto com o tem a d e o n d e v e m a S ab ed o ria; Schnacken -
burg, p p . 2 8 2 9 ‫־‬, ap lica esta a b o rd a g e m ao v in h o d e C a n á . T a lv ez a
a lu sã o seja u m ta n to sutil.
(3) O simbolismo da Mãe de Jesus, a "mulher", em Caná. Se C a n á d iz
resp e ito p rim a ria m e n te ao tem a cristo ló g ico d a m an ifestaç ã o d a gló-
ria d e Jesus, ta m b é m tem , co m o m u ito s d o s rela to s jo an in o s, te m a s
teo ló g ico s su b o rd in a d o s. A p re s e n te d isc u ssã o se c e n tra e m to rn o d o
teo r sim b ó lico d o d iá lo g o e n tre Jesus e su a m ãe. T alv ez e m n e n h u m
lu g a r em João a d iferen ça d e p re d isp o siç ã o teológica e n tre cató lico e
p ro te s ta n te seja m ais d o lo ro sa m e n te e v id e n te q u e n a ex eg ese d e 2,4.
H á u m a e n o rm e q u a n tid a d e d e lite ra tu ra católica so b re e ste v e rsíc u lo ,
m u ito d e la n ã o se e le v a n d o acim a d o n ív el d e eiseg ese p ia; n o e n ta n to ,
a m aio ria d o s c o m e n ta rista s p ro te s ta n te s p a ssa p o r so b re o v e rsíc u lo
co m o se fosse im p e n sá v e l q u e M aria exercesse u m p a p e l na teo lo g ia
jo a n in a . Q u e e sta m o s v e n d o a a u ro ra d e d ia s m e lh o re s é te s te m u -
n h a d o n a a b o rd a g e m m ais só b ria à m ario lo g ia d a cena e n c o n tra d a em
Schnackenburg, Braun, e n tre o u tro s, e m e d ia n te refe rê n c ia s m esm o
q u e rá p id a s n o s círcu lo s p ro te s ta n te s à im p o rtâ n c ia d e M aria n a cena
jo an in a, p o r e x em p lo , B ultmann, p. 81, o q u a l p e n sa q u e o re la to p o d e
ter v in d o d o s círcu lo s fav o rá v e is a M aria. O e s tu d o d e T hurian é n ã o
só a m e lh o r a v aliação p ro te s ta n te d a q u e stã o m ario ló g ica , m a s m u ito
m elh o r q u e m u ito s d o s e s tu d o s católicos.
D ev em o s co m eçar a a n á lise d o sim b o lism o d e M aria e m C an á,
re c o rre n d o a A p 12; isto, u m a v e z m ais, p re s u m e q u e A p o c a lip se
p o d e se r u s a d o co m o u m te s te m u n h a a a lg u m d o s p a d rõ e s e inte-
resses d o p e n s a m e n to d a escola jo an in a. (P ara su b sta n c ia r o q u e
seg u e, veja A. F euillet, “Le Messie et as Mère d'après le Chapitre xii de
VApocalypse", RB 66 [1959], 55-86; em inglês em JohSt, p p . 257-92). Em
A p 12 h á u m a m isterio sa e sim bólica fig u ra d e " u rn a m u lh e r" q u e
é u m a fig u ra c h a v e n o d ra m a d a salvação. N ã o p o d e h a v e r d ú -
v id a d e q u e o A p o c a lip se está d a n d o u m a a tu a liz a ç ã o c ristã d o
d ra m a p re fig u ra d o e m G n 3,15, o n d e se p õ e in im iz a d e e n tre a ser-
p e n te e a mulher, e n tre a se m e n te d a se rp e n te e su a sem en te, e m q u e
a se m e n te d a m u lh e r se p õ e em co n flito a se rp e n te . N o A p o c a lip se ,
a m u lh e r co m d o re s d e p a rto d á à lu z u m m e n in o q u e é o M essias
(1 2 ,5 //S I 2,9) e é a rre b a ta d o p a ra o céu. O g ra n d e d ra g ã o , especifi-
c a m e n te id en tifica d o co m o a a n tig a s e rp e n te d e G ên esis p o r m eio d o
6 · O prim eiro sinal em Caná da G a lile ia - Transformação da água em vin h o 303

Ap 12,9, frustrado pela ascensão da criança, se volta contra a mulher


e o resto de sua descendência (12,17).
Em geral se concorda que a mulher do Apocalipse é um símbolo
do povo de Deus. Amiúde Israel é descrito no AT como uma mu-
lher. O próprio Apocalipse (19,7) descreve a Igreja como uma noiva.
O drama da mulher, o povo de Deus, se estende aos dois Testamentos:
como Israel, ela dá à luz ao Messias que não pode ser derrotado pela
serpente; como a Igreja, ela continua sobre a terra após a ascensão,
perseguida, porém protegendo seus filhos.
Não obstante, amiúde na Bíblia figuras coletivas são baseadas em
personagens históricos. Assim, o fato de que a mulher representa o
povo de Deus não exclui absolutamente uma referência a uma mulher
individual que é a base do simbolismo. Visto que a mulher é descri-
ta como a mãe do Messias, muitos comentaristas sugerem que Maria
está em pauta. A figura de Eva, em Gn 3,15, é o pano de fundo para a
descrição da mulher em Ap 12; e é importante que desde os primeiros
dias do Cristianismo Maria foi vista tanto como um símbolo da Igreja
quanto a Nova Eva (Justino, T r y p h o 100,5; PG 6:712; e I rineu C o n tr a
H e r e s ia 3, 22:4; PG 7:959). Para uma lista completa de referências, veja
H. de L ubac, T h e S p l e n d o u r o f th e C h u r c h (Nova York: Sheed and Ward,
1956), Ch. IX. Para uma exaustiva discussão sobre a mulher do Ap 12,
tanto como o povo de Deus como Maria, veja B. L eF rois, T h e W o m a n
C lo t h e d w i t h th e S u n (Roma: "Orbis Catholicus", 1954).
Retornando a João, descobrimos que a mãe de Jesus aparece em
Caná e em um outro incidente, a saber, quando ela se põe aos pés da
cruz e recebe o Discípulo Amado como seu filho (19,25-27) - veja co-
mentário no volume II). Um número de importantes paralelos é parti-
lhado por Ap 12 e estas cenas em João. (a) A figura em Ap 12 é descrita
como "uma mulher"; em ambas as cenas joaninas, Jesus se dirige à sua
mãe como "Mulher", o que, como vimos na respectiva nota, é uma for-
ma peculiar de falar que carece de explicação. O termo seria inteligível
em todos estes casos se a intenção de João é apresentar Maria como
Eva, a "mulher" de Gn 3,15. (b) Ap 12 é inquestionavelmente posto
contra o pano de fundo de Gn 3; já vimos quantos ecos há dos primei-
ros capítulos de Gênesis em Jo 1-2. Um pano de fundo em Gênesis
para Jo 19,25-27 é mais difícil de discernir, mas certamente a morte de
Jesus está na estrutura da grande luta com Satanás predita em Gn 3,
ao menos como aquela passagem foi interpretada pela teologia cristã
304 O Livro dos Sinais

(veja Jo 13,1.3; 14,30). A s d o re s d e p a rto m e n c io n a d a s em G n 3,16 e


A p 12,2 p o d e m se r a sso c ia d a s co m a m o rte d e Je su s, c o m o sa lie n -
tam o s n o c o m e n tá rio so b re Jo 16,21-22 (no v o lu m e II). (c) A p 12,17
m e n c io n a o re s ta n te d a d e s c e n d ê n c ia d a m u lh e r c o n tra q u e m o d ra -
g ão faz g u e rra ; assim , a s e m e n te d a m u lh e r (G n 3,15) é n ã o só o
M essias, m a s in clu i u m g ru p o m a is a m p lo , os c ristã o s. Em a m b o s os
se u s a p a re c im e n to s em João, M a ria está a sso c ia d a a o s d is c íp u lo s d e
Jesus. Em C a n á , s u a ação está n o c o n te x to d o té rm in o d o c h a m a d o
d o s d isc íp u lo s. (A lg u n s e x e g eta s têm tra ç a d o o p a ra le lo e n tr e se u
p e d id o co m o a o c asião d a p rim e ira m a n ife sta ç ã o g lo rio sa d e Je su s
ao s se u s d is c íp u lo s e o p e d id o d e Eva c o m o a o c a siã o d o p rim e iro
p e c a d o . E sta p ro b a b ilid a d e p õ e m ais ê n fa se so b re a c a u s a lid a d e d o
p e d id o d e M aria d o q u e a in te n ç ã o d o d isc íp u lo ). A os p é s d a c ru z ,
M aria v e m a s e r a m ã e d o D isc íp u lo A m a d o , o c ristã o m o d e lo , e as-
sim lh e d a d a u m a p ro g ê n ie a p ro te g e r.
T e n d o v isto a re la ç ã o d a s trê s c e n a s n o corpus jo a n in o e m q u e
a m u lh e r (M aria, a m ã e d o M e ssia s, c o m o s ím b o lo d a Ig reja) a p a -
rece, p o d e m o s a g o ra in te r p r e ta r o d iá lo g o e m C a n á . E m u m n ív e l
teo ló g ico , p o d e -s e v e r o p e d id o d e M a ria q u e , p o r s u a in te rv e n ç ã o
o u n ão , le v a ria a Je su s re a liz a r u m sin al. A n te s d e r e a liz a r e s te si-
n a l, Je su s d e ix a ria c la ro su a re c u s a d a in te rv e n ç ã o d e M a ria ; ela n ã o
p o d e e x e rc e r q u a lq u e r p a p e l e m se u m in isté rio ; s e u s s in a is re fle ti-
ria m a s o b e ra n ia d e se u P ai, e n ã o d e q u a lq u e r in stâ n c ia h u m a n a
o u fam iliar. M as, se M a ria n ã o d e v e te r n e n h u m p a p e l d u r a n t e se u
m in is té rio , ela h a v e rá d e re c e b e r u m p a p e l q u a n d o c h e g a r a hora d e
su a g lo rific aç ã o , a h o ra d a p a ix ã o , m o rte , re s s u rre iç ã o e a sc e n sã o .
João v ê M a ria c o n tra o p a n o d e f u n d o d e G n 3: ela é a m ã e d o M es-
sias; seu p a p e l e stá n a lu ta c o n tra a s e rp e n te s a tâ n ic a , e e ssa lu ta
a tin g e se u clím ax n a h o ra d e Jesu s. E n tã o ela a p a re c e rá a o s p é s d a
c ru z a re c e b e r a in c u m b ê n c ia d a p ro g ê n ie a q u e m d e v e p r o te g e r n a
c o n tín u a lu ta e n tre S a ta n á s e o s s e g u id o re s d o M e ssias. M a ria é a
N o v a E va, o sím b o lo d a Igreja; a Igreja n ã o ex e rc e p a p e l d u r a n t e o
m in is té rio d e Je su s, m a s s o m e n te a p ó s a h o ra d e su a re s s u rre iç ã o
e asce n sã o .
A p la u s ib ilid a d e d e sta s su g e stõ e s so b re o sim b o lism o jo a n in o
q u e cerca M aria tem sid o d e fe n d id a p o r p ro te s ta n te s co m o H oskyns
(p. 530) e T hurian, e p o r católicos co m o B raun e F euillet. S erá n o ta d o
q u e esta in te rp re ta ç ã o seria m a n tid a c la ra m e n te d istin ta d e s d e u m a
6 · O prim eiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da água em vin h o 305

mariologia tardia que granjeará importância para a própria pessoa de


Maria; cremos que a ênfase joanina está sobre Maria como um símbo-
lo da Igreja. Tanto em Lucas como em João‫ ׳‬a mariologia é incipiente
e é expressa em termos de personalidade coletiva.
(4) O v i n h o s e l e t o e m C a n á e a e u c a r i s t i a . Possivelmente, outro
tema teológico subordinado na cena joanina é o sacramental; nossas
advertências gerais sobre a sacramentalidade joanina (veja Introdu-
ção, Parte VIII:B) deve levar-nos, todavia, a insistir que, se há simbo-
lismo eucarístico, ele é incidental e não deve ser exagerado. Quanto
a outro sacramentalismo, em Theological Studies 23 (1962), 199200‫־‬,
argumentamos contra a tentativa da parte de alguns escritores cató-
licos (V awter, Stanley, J.-P. C harlier, G alot ) de ver na narrativa de
Caná uma referência ao matrimônio como sacramento. Sugerir que
a festa nupcial de Caná é uma prefiguração das núpcias do Cordeiro
(Ap 19,9), no sentido que Maria simboliza a Igreja como a esposa
de Cristo é não só confundir simbolismo (Maria e Jesus não estão se
casando em Caná), mas também dar ênfase exagerada a um episódio
incidental. Da mesma forma, rejeitamos a tentativa (p. ex., N iewalda,
p. 166) de ver em Caná simbolismo batismal. Ainda que a água para
as purificações judaicas seja substituída, não é substituída pelas
águas do batismo cristão, e sim pelo vinho.
A sugestão (C lemente de Alexandria, C irilo de Jerusalém, C 1-
PR1AN0) de que o "vinho seleto" do relato de Caná possa ter tido o
propósito de lembrar aos leitores do evangelho o vinho eucarístico
merece consideração mais séria. Tal simbolismo seria secundário,
pois o significado primário do vinho é claramente o dom da salva-
ção procedente de Jesus, do qual a luz, água e alimento são outros
símbolos joaninos. Quais são os critérios externos e internos usados
para estabelecer a possibilidade desta interpretação? E x t e r n a m e n t e ,
um afresco do 2“ ou 3L>século em uma catacumba alexandrina une
Caná e a multiplicação dos pães, portanto pão e vinho (N iewalda ,
p. 137); e em João a multiplicação dos pães tem inegáveis matizes
eucarísticos. I rinku (C o n t r a H e r e s i a 3, 16:7), falando de Caná, men-
ciona que Maria queria participar antes do tempo de "o cálice da
recapitulação"; e isto parecer ser uma referência ao cálice eucarísti-
co (S agnard , SC 34: 295-97). I n t e r n a m e n t e , o próprio evangelho traça
uma conexão entre a cena de Caná e a hora que está para começar
formalmente na última ceia (13,1). Igualmente, a datação da cena de
306 O Livro dos Sinais

C a n á (2,13), d a m u ltip lic a ç ã o d o s p ã e s (6,4) e d a ú ltim a ceia n o p e -


río d o a n te s d a P á sc o a p a re c e lig a r a s trê s c e n a s e a ju d a a a s so c ia r o
v in h o d e C a n á co m o p ã o d a m u ltip lic a ç ã o c o m o u m a a n te c ip a ç ã o
sim b ó lic a d o p ã o e v in h o e u c a rístic o s. O u tr o s a s so c ia m a p re s e n ç a
d e M a ria e m C a n á e su a p re s e n ç a a o s p é s d a c ru z , q u a n d o sangue
flu iu d o la d o d e C risto (K ilmartin, art. cit.). O fa to d e q u e v in h o é
o s a n g u e d a u v a (G n 49,11; D t 32,14; S ira q u e 50,15) ta m b é m te m
sid o e v o c a d o . E é v e r d a d e q u e " v in h o s e le to " e m lu g a r d e á g u a s
p a ra a p u rific a ç ã o ju d a ic a p o d e ria e s ta r p a r a o v e r d a d e ir o a g e n te
p u r if ic a d o r d a d is p e n s a ç ã o c ristã - " o s a n g u e d e Je su s, S eu filh o ,
n o s p u rific a d e to d o p e c a d o " ( l j o 1,7). E n tre ta n to , m u ita s d e s ta s
in d ic a ç õ e s in te r n a s d e in te n ç ã o s a c ra m e n ta l sã o e m g r a n d e m e d id a
a lu s õ e s p o é tic a s q u e n ã o fa z e m m a is d o q u e to r n a r possível u m a
in te rp re ta ç ã o e u c a rístic a .

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6 · O primeiro sinal em Caná da Galileia - Transformação da água em vinho 307

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7. JESUS VAI PARA CAFARNAUM
2 12)
( ,

Uma passagem de transição

2 12D ep o is d isto ele d e sce u a C a fa rn a u m , ju n ta m e n te com su a m ãe


e irm ão s fe se u s d iscíp u lo s], e eles p e rm a n e c e ra m ali s o m e n te u n s
p o u c o s dias.

NOTAS

2.12. Depois disto. Isto não é a vaga expressão meta tanta, e sim a mais precisa
meta touto. B ernard, I, p. 83, e Lagrange, p. 63, tomam o segundo termo para
significar sequência cronológica real; B ui.tm ann , p. 85‫״‬, e Barrett, p. 162, afir-
mam que não há diferença entre as duas expressões, e que ambas são vagas.
irmãos. Os m anuscritos recentes trazem "seus"; os papiros Bodmer favo-
recem a om issão do possessivo. A tradição sinótica dá nom es (Tiago,
José ou Joses, Simão, Judas - Mt 13,55; Mc 6,3) a um grupo de irm ãos
de Jesus, João, porém , não dá nomes. São estes adelphai, irm ãos de san-
gue de Jesus? O grego adelphos norm alm ente se refere a um irm ão real.
O hebraico 'ah cobre parentes m asculinos de graus variados (irmão,
meio irmão, prim o, cunhado), e a LXX usa adelphos para traduzir todas
essas nuanças de significado - veja BAG, p. 15; J. J. C ollins, TS 5 (1944),
484-94. Os cristãos que aceitam a antiga tradição de que Maria perm ane-
ceu virgem consideram estes adelphoi como sendo supostos meio irm ãos
(filhos de José por um casam ento anterior - teoria de E itfânio ) o u pri-
mos (filhos do irm ão de José - ou da irmã de Maria: teoria de Jerônimo ).
O anglicano B ernard , I, p. 85, comenta: "É difícil entender como a dou-
trina da virgindade de Maria podería ter se desenvolvido já no 2Üséculo,
7 · Jesus vai para Cafarnaum 309

se seus quatro reconhecidos filhos eram cristãos proeminentes, e um deles


bispo de Jerusalém". Veja nota sobre 19,25, no volume II.
[e seus discípulos]. Esta frase é om itida no Codex Sinaiticus e nas versões
antigas. A lguns têm sugerido que os "irm ãos" originalm ente se referiam
aos discípulos (como em 20,17), e que algum copista, interpretando-o
mal como um a referência aos parentes de Jesus, anexaram os discípulos
como um terceiro partido. Como endosso a isto, é curioso encontrar os
"irm ãos" de Jesus seguindo-o juntam ente com sua mãe e seus discípulos
que criam nele. Os "irm ãos" aparecem como incrédulos (7,5) na tradição
evangélica do ministério.
eles permaneceram. Um mss. antigo trás "ele perm aneceu". Talvez o original
"eles" pareceu a um copista como subentendendo que mais tarde todos
estes seguidores foram para Jerusalém , e assim ele o m udou para "ele"
com o intuito de adaptar a sentença ao que segue em 2,13, onde Jesus
sobe para Jerusalém.
uns poucos dias. Bultmann , p. 855, trata isto como uma harmonização com 2,13.

COMENTÁRIO

O n ú m e ro d e v a ria n te s tex tu a is, n e ste v e rsíc u lo , in d ic a su a c o n fu sã o


d e s u a red a ç ã o . P ara u m a d isc u ssã o c o m p le ta , veja n o ssa s o b serv a-
ções e m C B Q 24 (1962), 11-13, o u N TE, p p . 1 5 6 5 8 ‫־‬. D e n tro d a tra d iç ã o
jo a n in a n ã o h á a tiv id a d e p ro lo n g a d a d e Jesu s ju n to ao M ar d a G ali-
leia (só o cap . 6), e n q u a n to p a ra os sin ó tico s C a fa rn a u m é o q u a rte l
g e n e ra l d e Je su s e seu lar d u r a n te o m in isté rio inicial. E difícil tra ta r
este v e rs íc u lo co m o u m co n e ctiv o real e n tre C a n á e a cena se g u in te
em J e ru sa lé m , p o is u m a v ia g e m p a ra C a fa rn a u m ex ig iría u m lo n g o
d e sv io d o tra jeto d e s d e a e s tra d a p a ra Je ru sa lé m .
E ste v e rsíc u lo te m ecos n a tra d iç ã o sinótica. Lc 4,31 m en cio n a a
d e scid a d e Jesu s p a ra C a fa rn a u m a p ó s seu fracasso inicial em N a-
z a ré (veja ta m b é m M t 4,13). T o d o s os sin ó tico s (Mc 3,31 e p ar.) sa-
b e m q u e a m ã e d e Jesu s e se u s irm ã o s d e sc e ra m (de N azaré) p a ra v er
o q u e ele e s ta v a fa z e n d o em C a fa rn a u m , q u e m sabe p o r cau sa d as
n o tícias h o s tis so b re s u a s a tiv id a d e s (Mc 3,21). T em -se s u g e rid o q u e
o re d a to r d e João to m o u a in fo rm a ç ã o n o v. 12 d e u m a m iscelânea
d e ssa in fo rm a ç ã o sin ó tica a fim d e h a rm o n iz a r João com os sinóticos.
E n tre ta n to , o v o c a b u lá rio n o v. 12 n ã o é o m e s m o q u e n o s v á rio s
p a ra le lo s s in ó tic o s. E assim , e n q u a n to o v e rsíc u lo p o d e b e m ser a
310 O Livro dos Sinais

a d içã o d o re d a to r, é p o ssív el qu e ten h a fo rm a d o o v e rsícu lo d e tra-


d içã o in d ep en d en te, talv e z a té m e sm o d e a n tig a tra d iç ã o joan in a
qu e até en tã o n ã o tinha sid o in c o rp o ra d a n a n a rra tiv a (veja D odd,
Tradition, p p . 3 5 5 -5 6 ).
Em q u a lq u e r caso, se o v ersíc u lo re s u lto u d e u m a te n ta tiv a d e
h a rm o n iz a r as c ro n o lo g ias jo an in a s e sin ó ticas, isso n ã o foi b e m su-
ced id o . T u d o o q u e aco n tece em C a fa rn a u m , n o s sin ó tico s, o c o rre de-
p o is d a p ris ã o d o B atista (M c 1,14; M t 4 ,1 2 ). Em João, e ste v e rsíc u lo
p re c e d e a p ris ã o d o B atista, q u e está a tiv o em 3 ,2 3 e 4,1.
8. A PURIFICAÇÃO DO
TEMPLO EM JERUSALÉM
(2 , 13 - 22 )

2 13V isto q u e a P áscoa d o s ju d e u s e sta v a p ró x im a , Jesus su b iu p a ra


Jeru salém . 14N o s rec in to s d o te m p lo , ele e n c o n tro u p e sso a s en cu m b i-
d a s a v e n d e r b o is, o v e lh a s e p o m b a s, e o u tra s a sse n ta d a s, tro c a n d o
m o ed a s. 15E n tã o ele fez u m [tip o d e] chicote d e c o rd a s e lan ç o u fora d a
á re a d o te m p lo to d a a súcia d e le s com s u a s o v e lh a s e b ois, e d e rru b o u
as m esa s d o s c a m b ista s, d e rra m a n d o su a s m o ed a s. 16Ele d isse aos qu e
e sta v a m v e n d e n d o p o m b as: "T irai-o s d aqui! P arai d e c o n v e rte r a casa
d e m e u Pai em u m m erc ad o !" 17S eus d isc íp u lo s se le m b ra ra m d a s pa-
la v ra s d a E scritu ra: "O zelo p o r tu a casa m e c o n su m irá " .
18N is to o s ju d e u s re sp o n d e ra m : "Q u e sin al p o d e s m o stra r-n o s, qu e
te a u to riz e a fazer e sta s co isas?" 19Jesus lh e re sp o n d e u : " D e stru í este
te m p lo " , "e e m três d ia s e u o le v a n ta re i" . 20E n tão os ju d e u s retru ca -
ram : "A c o n s tru ç ã o d e ste te m p lo tem le v a d o q u a re n ta e seis an o s, e
p re te n d e s e rg u ê -lo em três d ia s? " 21N a v e rd a d e , ele e sta v a fala n d o
so b re o te m p lo d e seu co rp o . 22O ra, d e p o is d e su a ressu rre içã o d e n tre
os m o rto s s e u s d isc íp u lo s se le m b ra ra m d e q u e d isse ra isto, e en tã o
c re ra m n a E sc ritu ra e n a p a la v ra q u e ele h a v ia dito.

NOTAS

2.13. "dos judeus"; esta expressão modifica Páscoa em 6,4 e 11,55, e Taberná-
culos em 7,2. Pode indicar hostilidade para com estas festas que haviam
de ser substituídas por Jesus. Para a possibilidade de um a Páscoa cristã,
veja capítulo 6.
312 O Livro dos Sinais

Páscoa. Esta é a prim eira das três Páscoas m encionadas em João (6,4; 11,55).
Alguns estudiosos as consideram como tendo m ero valor simbólico; ou-
tros as aceitam como indicações de tem po e propõem que Jesus exerceu
um m inistério que durou ao m enos dois anos. A localização sinótica des-
ta cena antes da últim a Páscoa da vida de Jesus seria correta, e a presente
posição da cena em João seria o resultado de transposição redacional;
todavia, é possível que a tradição joanina preservasse a m em ória de um a
viagem de Jesus a Jerusalém em um a prim eira Páscoa em seu m inistério,
e que originalm ente este foi o cenário para o capítulo 3.
lesus. O nome pessoal aparece em diferente sequência nas várias testem u-
nhas. Talvez, antes que o v. 12 fosse anexado, o sujeito original fosse
sim plesm ente "ele", um sujeito que não fosse am bíguo depois do v. 11.
A inserção do v. 12 poderia ter levado copistas a inserirem o nom e, mo-
tivados pela clareza.
subiu. Este é o verbo norm al para um a viagem à cidade santa situada sobre
um monte.
14. recintos do templo. O hieron significa o átrio externo do tem plo, o Átrio dos
Gentios. O tem plo propriam ente dito, o edifício ou santuário (naos), é
m encionado nos vs. 19-21.
bois, ovelhas e pombas. Os anim ais eram vendidos para serem sacrificados;
as pom bas ou pom bos eram os sacrifícios dos pobres (Lv 5,7), e isto po-
deria explicar o tratam ento mais brando aos vendedores de pom bas. So-
m ente João m enciona os anim ais maiores.
trocando moedas. Por causa das im agens im periais ou pagãs que elas porta-
vam, o uso dos denários rom anos e das dracm as áticas não era perm itido
em pagam ento do im posto do tem plo de meio estáter (Mt 17,27; meio
estáter era igual a dois denários ou um a dracma). Os cam bistas trocavam
estas m oedas pela m oeda legal tíria e na transação tiravam um pequeno
proveito.
15. \tipo de]. Os papiros Bodmer endossam a evidência de versões antigas em
prol desta redação.
chicote de cordas. Nem bastões nem arm as eram perm itidos nos recintos
do templo. E possível que Jesus tenha fabricado seu chicote de fibras de
plantas usadas como leito para os animais. Somente João m enciona isto.
lançou fora toda a súcia deles. Aparentem ente, Jesus usou o chicote nos m er-
cadores.
com suas ovelhas e bois. B u it m a n n , p. 86'°, considera esta frase como um a
adição secundária; ele sugere que o resto deste versículo, bem como o
início do 16, foi em prestado de Mc 11,15 ou Mt 21,12. O conectivo te, in-
comum em João, ocorre nesta frase.
8 · A purificação do templo em Jerusalém 313

derramando. As testem unhas textuais variam entre diversos verbos gregos,


provavelm ente refletindo um a harm onização com os sinóticos.
16. a casa de meu Pai. Com frequência, o tem plo é descrito no AT como "a casa
de Deus"; assim tam bém Mc 2,26. Em Lc 2,49, temos a mesma ideia que
em João.
mercado. Literalm ente, "um a casa de m ercado"; note o jogo de palavras
com "casa".
17. se lembraram. Neste m omento, ou após a ressurreição, como no v. 22?
H aenchen , art. cit., pensa que este versículo é um a adição redacional.
consumirá. O futuro é a leitura correta, em bora alguns m anuscritos e ver-
sões antigas a conform em com o "tem consum ido" do TM e da LXX (?)
do SI 69,9.
18. os judeus. Este é um bom exem plo de uso joanino, pois o paralelo sinó-
tico (Mc 11,27 e par.) fala de principais sacerdotes, escribas e os anciãos
do povo.
sinal. Para o uso joanino usual de sinal, veja Apêndice III, p. 831 ss; toda-
via, aqui significa um a prova m iraculosa apologética para os incrédu-
los, como nas solicitações sinóticas de sinais form uladas pelos escribas,
fariseus, saduceus e Herodes (Mt 12,38-39; 16,1-4; Lc 23,8). É provável
que este uso venha do uso ocasional do AT de "sinal", como um a prova
divina como credencial. Jesus nunca cede a tal solicitação.
que te autorize a fazer estas coisas. C om pare Mc 11,28 e par. (após a purifica-
ção do templo): "Por qual autoridade fazes estas coisas?"
19. Destruí. D o d d , Interpretation, p. 3021, nota que o uso de um imperativo
para um a condição (se destróis) é um semitismo que poderia significar
que a forma de João deste dito é bem antiga. Mas, como B ultmann , p. 88,
insiste, este im perativo expressa algo mais que um a sim ples condição; é
o im perativo irônico encontrado nos profetas (Am 4,4; ls 8,9); significa:
"Vá em frente, faça isto e veja o que acontece".
templo. Naos; veja nota sobre o v. 14.
20. quarenta e seis anos. Josefo , Ant. 15.11.1; 380, diz que a reconstrução do
tem plo começou no décim o oitavo ano de H erodes o G rande (20/19
a.C. - esta data é m ais confiável do que o décim o quinto ano de Hero-
des d ad o em War 1.21.1; 401). C om putando a partir disto, chegam os a
um a data de 27/28 a.C., ou m ais exatam ente, a Páscoa de 28. Os riscos
de estabelecer um a cronologia exata para o m inistério de Jesus são bem
notórios, m as esta data concorda com a de Lc 3,1, que fixa o ministé-
rio do Batista no décim o quinto ano de Tibério (27 a 28 de outubro,
segundo o calendário sírio). Em João, obviam ente o núm ero se refere
ao tem plo; todavia, porque João diz que o tem plo é o corpo de Jesus,
314 O Livro dos Sinais

e por causa de 8,57 ("A inda não tens cinquenta anos"), Loisy e outros
aceitam 46 como a idade de Jesus, sugerindo que ele m orreu no Jubileu
de 50. O fato de que as letras gregas no nom e de A dão têm o valor de
46, serviu de base para a interpretação de m uitos Padres, especialm ente
A gostinho , que via este núm ero com o um a referência à natureza hu-
m ana de Jesus; veja V ogels. Em bora não considerem os "quarenta e seis
anos" como um a referência à idade de Jesus, de m odo algum excluímos
a possibilidade de que Jesus fosse consideravelm ente m ais velho do
que a aproxim ação de Lucas, de "cerca de trinta anos de id ad e" (3,23),
poderia indicar.
tem levado. Literalm ente, aoristo "levou". O tem plo não foi com pletado
até 63 d.C. sob o P rocurador A lbinus (Josefo , Ant. 20.9.7; 219). A lguns
veriam aqui um chocante erro do evangelista retratando a construção
como estando com pletada em 28 a.D. Temos tom ado o aoristo como
complexo, resum indo todo o processo de construção que ainda não es-
tava com pletada. Um paralelo perfeito se encontra na LXX em Esd 5,16:
"... desde aquele tem po até agora [o tem plo] esteve em construção [ao-
risto; m esm o verbo] e ainda não term inou". Veja tam bém Jo 4,3 (nota),
20 ("adorado").
21. estava falando. O im perfeito pode ser modal: "queria referir-se".
0 templo de seu. Há algum a evidência patrística para a om issão destas pa-
lavras, propiciando assim a redação: "ele estava falando sobre o corpo"
(assim Τ ατιλνο , Irineu, T ertuliano, O rígenes).
22. depois de sua ressurreição. Literalmente, "quando ele foi ressuscitado [i.e.,
pelo Pai]" ou "quando tiver ressuscitado". Egerthê é passivo na forma,
mas pode ser ou passivo ou intransitivo no significado (ZCB, § 231;
C. F. D. M oule ,Idiom Book of New Testament Greek [2 ed.; Cam bridge, 1963],
p. 26). Nos evangelhos mais antigos, provavelm ente o passivo deva ser
preferido, em consonância com as dezenove vezes que o NT diz que
Deus o Pai ressuscitou Jesus dentre os m ortos. Mas no Q uarto Evangelho
se fez claro que o poder do Pai é tam bém o poder de Jesus (veja comen-
tário sobre 10,30), e João insiste que Jesus ressuscitou por seu próprio
poder (10,17-18).
na Escritura. N ão fica claro se isto é um a referência ao AT, em geral, ou a
um a passagem particular, p. ex., SI 16,10, ou, talvez, ao SI 69,9, citado no
v. 17. Na pregação, os apóstolos encontraram bem depressa testem unhos
veterotestam entários à ressurreição (IC or 15,4: "... ele ressuscitou ao ter-
ceiro dia de conform idade com as Escrituras").
8 · A purificação do templo em Jerusalém 3J5

COMENTÁRIO

Comparação dos relatos joaninos e sinóticos

A cena q u e João n a rra tem p aralelo s em três n a rra tiv a s sinóticas dis-
tin tas. (1) O s sinóticos d escrev em u m a purificação sim ilar d o s re-
cin to s d o tem p lo so m e n te d u ra n te o m in istério d e Jesus em Jerusa-
lém , p rec isam e n te a n te s d e su a m orte. Em M t 21,10-17 e Lc 19,45-46,
Jesu s faz isto n o d ia em q u e ele e n tra triu n fa n te m e n te em Jerusalém ;
em M c 11,15-19, ele faz isto n o d ia a p ó s su a e n tra d a triu n fa n te em Jeru-
salém . (2) P o r o casião d a p u rific a ç ão , a ação d e Jesus n ã o é d esafiad a;
m as a lg u m te m p o d e p o is os p rin c ip a is sa ce rd o te s, escrib as e anciãos
in d a g a ra m : " P o r q u a l a u to rid a d e fazes e sta s coisas?" (Mc 11,27-28 e
p ar.). Jesu s se re c u sa a re s p o n d e r, a m en o s q u e eles se d efin issem com
re sp e ito a João Batista. (3) N o ju lg a m e n to d e Jesus p e ra n te o S inédrio,
falsas te s te m u n h a s se r e p o rta ra m d iz e n d o q u e Jesus a m e a ç o u d e s tru ir
o te m p lo e rec o n stru í-lo em três d ias (M c 14,58; M t 26,61). O u v im o s
o u tro s ecos d e s ta am e a ç a a trib u íd a a Jesus p e lo s tra n s e u n te s ao p é d a
c ru z (M c 15,29; M t 27,40). R eap arece no ju lg a m e n to d e E stêvão em
A t 6,14 (ú n ica refe rê n c ia lucana).
O s re la to s sin ó tico s, a in d a q u e n ã o em p e rfe ita h a rm o n ia e n tre si,
a p re s e n ta m a lg u m a s m a rc a n te s d ife ren ç a s d e João. P o d e m o s d isc u tir
estas d ife re n ç a s sob os tó p ico s d a cro n o lo g ia e d a p ro b a b ilid a d e de
João c o n te r tra d iç ã o in d e p e n d e n te e confiável.
Cronologia: no início ou no final do ministério? P o s te rio rm e n te d is-
c u tire m o s a q u e s tã o d e se a a ção a trib u íd a a Je su s é u m a p ro b a b ili-
d a d e h istó ric a . S u p o n d o , p o r u m m o m e n to , q u e seja, q u e localização
c ro n o ló g ic a é a m a is p la u sív e l? Q u e n ã o p o d e m o s h a rm o n iz a r João
e o s s in ó tic o s, p r o p o n d o d u a s p u rific a ç õ e s d o s re c in to s d o tem p lo ,
p a re c e ó b v io . A s d u a s tra d iç õ e s d e sc re v e m b a s ic a m e n te n ã o só as
m e s m a s a çõ es, m a s ta m b é m n ã o é p ro v á v e l q u e tã o sé ria a fro n ta
p ú b lic a a o te m p lo fosse p e rm itid a d u a s v ezes. V isu a liz e m o s os ar-
g u m e n to s q u e fa v o re c e m a d a ta ç ã o d e Jo ão e a q u e le s q u e fav o re c em
a d a ta ç ã o sin ó tica .
M u ito s e s tu d io so s (J. W eiss, L agrange, M c N eile, Brooke, J. A. T.
Robinson, V. T aylor) p e n s a m q u e a d a ta ç ã o jo an in a é a m ais p lau sív el.
S a lien tam q u e n a tra d iç ã o sin ó tica há so m e n te u m a v ia g e m a Jerusa-
lém , a v ia g e m q u e p re c e d e a m o rte d e Jesus; e, v isto q u e o tem p lo está
316 O Livro dos Sinais

em Jeru salém , os trê s p rim e iro s e v a n g elista s n ã o tiv e ra m o p ç ã o so b re


o n d e c o lo car a cena. O e s q u e m a jo a n in o , q u e in c lu i v á ria s v ia g e n s
a Je ru sa lé m , foi m ais liv re e m c o lo car a cen a ju s ta m e n te o n d e real-
m e n te a c o n te c eu . A rg u m e n ta -s e ta m b é m q u e os p r ó p rio s sin ó tic o s
rev e lam a lg u n s tra ç o s d e u m c e n á rio m u ito m a is a n tig o p a ra a cen a.
P o r e x e m p lo , v im o s q u e , e m re s p o s ta a o d e sa fio so b re se u d ire ito
d e fazer e sta s co isas, Jesu s su scita a q u e s tã o d o B atista. A caso isto
n ã o in d ic a q u e o m in isté rio d o B atista fosse u m a m e m ó ria re c e n te ,
u m a in d ic a ç ã o d e q u e a lo ca liz a ç ão d e João se a d e q u a m e lh o r? R eite-
ra n d o , n o ju lg a m e n to d e Je su s, su a a firm a ç ã o so b re o te m p lo é co m
d ific u ld a d e e v o c a d a p e la s te s te m u n h a s c o m o se fo sse p r o n u n c ia d a
m u ito a n te s; n a c ro n o lo g ia d e João, ela teria sid o p ro n u n c ia d a ao m e-
n o s d o is an o s an tes.
O u tro s e s tu d io so s (B ernard, H oskyns, D odd, B arrett, L ightfoot)
a rg u m e n ta m e m p ro l d a cro n o lo g ia sinótica. A firm a m q u e u m a tão
séria a fro n ta ao c u lto d o tem p lo teria fo rç a d o os sa c e rd o te s a to m a re m
ação im e d ia ta c o n tra Jesus. N a c ro n o lo g ia sin ó tica, e n tre g a ra m -n o
im e d ia ta m e n te à m o rte; m as em João lh e é p e rm itid o a fu n çã o ao m e-
n o s d o is a n o s d e p o is d o e v e n to e v isita r o tem p lo e m d iv e rs a s oca-
siões s u b se q u e n te s. A rg u m e n ta -se ta m b é m q u e ao e s ta r n u m a p o si-
ção d e p u rific a r o s recin to s d o tem p lo , Jesus tin h a d e te r status p ú b lic o
co m o p ro fe ta e u m n u m e ro so séq u ito . Tal status e sé q u ito se a ju sta m
à se q u ên cia sin ó tica, o n d e Jesus e n tro u triu n fa lm e n te e m Je ru sa lé m
n o final d e seu m in isté rio , e n ã o a se q u ên cia d e João o n d e Jesu s está
a p e n a s c o m e ç a n d o a a g ir e m público.
T alv ez se p o ssa oferecer u m a so lu ção q u e r e s p o n d a aos a rg u m e n -
tos m ais d ecisiv o s d e c a d a p o n to d e v ista. Se João oferece p a ra le lo s às
v á ria s c en as sin ó ticas, n ão é p o ssív e l q u e João esteja d a n d o a se q u ê n -
cia co rreta d e u m a d e ssa s cenas, m a s n ã o d a s o u tra s? O s m e lh o re s
a rg u m e n to s p a ra a se q u ên c ia jo an in a é a se n ten ça so b re a d e stru iç ã o
d o tem p lo ; os m elh o re s a rg u m e n to s p a ra a se q u ên c ia sin ó tica sã o os
q u e se o c u p a m d a p u rific a ç ão v ig e n te d o s rec in to s d o tem p lo . S uge-
rim o s co m o u m a h ip ó te se p la u sív e l q u e em su a p rim e ira v ia g e m a
Jeru salém e ao tem p lo , n o início d e seu m in isté rio , Jesu s p r o n u n c io u
u m a a d v e rtê n c ia p ro fé tic a so b re a d e stru iç ã o d o sa n tu á rio . O s sin ó ti-
cos d ã o e v id ên cia d e q u e p o ste rio rm e n te esta a d v e rtê n c ia foi lem b ra-
d a e u s a d a c o n tra Jesus, e m b o ra n u n c a n o s d ig a m e m q u e m o m e n to
p reciso a a d v e rtê n c ia foi o rig in a lm e n te e n u n c ia d a . E m c o n tra p a rtid a ,
8 · A purificação do templo em Jerusalém 317

p a re c e p ro v á v e l q u e a ação d e Jesus, d e p u rific a r os recin to s d o tem -


p io , o c o rre u n o s ú ltim o s d ia s d e su a v ida.
P o r q u e a p u rific a ç ão a p a re c e n o início d o rela to d e João? S ugeri-
m o s q u e o lab o r re d a c io n a l d o e v a n g e lh o le v o u à tra n sp o siç ã o d a cena
d a se q u ê n c ia o rig in a l q u e a rela cio n o u com os ú ltim o s d ia s a n te s da
p ris ã o d e Jesus. V erem o s q u e o rela to d e L ázaro, q u e p ro v a v e lm e n te
seja u m a a d iç ã o p o s te rio r à se q u ên c ia d e João, veio a se r em João o
p rin c ip a l m o tiv o p a ra a p risã o d e Jesus, d e slo c a n d o to d o s os o u tro s
fato res q u e c o n trib u íra m p a ra a tra g é d ia . Se a in serção d a n a rra tiv a
d e L ázaro c a u so u u m d e slo c a m e n to d a cena d e p u rificação , o q u e há
d e m a is n a tu ra l d o q u e ju n tá -la a u m a a firm a ç ão a n ti-te m p lo q u e foi
e n c o n tra d a n o início d a n a rra tiv a jo an in a? O fato d e q u e a p rim eira
v ia g e m d e Jesu s a Je ru sa lé m o c o rre u n a P áscoa p o d e te r sid o o u tro
fato r a p ro p ic ia r a n o v a localização d e u m a cena q u e, o rig in a lm en te ,
e sta v a a sso c ia d a com a ú ltim a P áscoa d a v id a d e Jesus. A n o v a se-
q u ê n c ia tev e a in d a u m a a tra tiv id a d e teológica. O B atista, p ro e m in e n te
n o p rim e iro c a p ítu lo d e João, c u m p riu a p rim e ira clá u su la d e M l 3,1:
"E n v io o m e u m e n sa g e iro p a ra p r e p a r a r o c a m in h o d ia n te d e m im ".
A s e g u n d a c lá u su la é: "O S e n h o r a q u e m b u sc ais d e re p e n te v irá ao
se u te m p lo " , u m a c lá u su la q u e acha c u m p rim e n to na p re se n te se-
q u ê n c ia e m João. T u d o isso é h ip o té tic o , p o ré m faz sen tid o .
Independência e confiabilidade do relato Joanino. C om o ressaltam os, os
relato s sin ó tico s d a s v á ria s cenas d iferem e n tre si e m d etalh es. Q u al de-
les é m ais confiável? N a o p in iã o d e B raun, é M ateus; na d e H ähnchen,
é M arcos; n a d e M endner, é L ucas. E n fre n tam o s u m a d isc o rd â n cia
sim ila r q u a n d o in d a g a m o s se o re la to d e João é u m a a d a p ta ç ã o d e u m
o u o u tro re la to sin ó tico (assim M endner), o u u m a tra d iç ã o in d e p e n -
d e n te s im ila r ao re la to sin ó tico (H aenchen, D odd), o u e x tra íd o d e u m
re la to p ré -c a n ô n ic o u s a d o tam b é m p e lo s sin ó tico s (B ush). D evem os
e x a m in a r isto d e ta lh a d a m e n te .
(1) A p u rific a ç ão d o s rec in to s d o te m p lo (2,13-17). H á d iv erso s
a sp ec to s p e c u lia re s a João: a p rese n ç a d o s b o is e o v elh as, a confecção
d o ch ico te, as p a la v ra s a trib u íd a s a Jesus. M endner, p. 104, p e n sa qu e
a p re se n ç a d e b o is e o v e lh a s n o s rec in to s d o te m p lo n ã o é h istó rica, já
q u e a s fo n te s ju d a ic a s n ã o m e n c io n a m tal p rática. O T ra ta d o M ish n ah ,
Shekalim 7:2, re a lm e n te n ã o é claro so b re o n d e ficavam as b a ia s d o
g a d o co m e rcia liz ad o ; m as E pstein, art. cit., ressa lta q u e a p resen ça d e
q u a is q u e r a n im a is n o s rec in to s d o tem p lo e ra e x tra o rd in á ria , p o rq u e,
318 O Livro dos Sinais

se ficassem so lto s, p o d e ría m e n c o n tra r su a v ia ao s a n tu á rio e o v io -


lar. Ele s u g e re q u e o lu g a r n o rm a l p a ra as feiras d e a n im a is e ra n o
v ale C e d ro n o u n o s d ecliv es d o M o n te d a s O liv eiras (o Hanüth o u
m ercad o ). Ele sa lie n ta q u e n o a n o 30 o S in é d rio m u d o u se u lu g a r d e
reu n iõ e s d a á re a d o te m p lo p a ra o m erc ad o . E i>stein su g e re q u e esta
era u m reflexo d e u m a lu ta e n tre o su m o sa c e rd o te C aifás e o S in éd rio ,
e q u e, p a ra se v in g a re m d o s m e rc a d o re s d o Hanüth p o r o fere c ere m
h o s p ita lid a d e ao s se u s in im ig o s, C aifás p e rm itiu q u e o s m e rc a d o re s
riv ais e stab elecessem a s b a ia s d o s a n im a is n o s lim ites d o tem p lo . Essa
teo ria re m o v e a objeção à falta d e e x a tid ã o d e João.
P ara o chicote, veja n o ta so b re v. 15. Q u a n to à citação n o v. 17, d o
SI 69,9, este Salm o é u m d o s q u e m ais fre q u e n te m en te u sa d o s n o s teste-
m u n h o s em p ro l d e Jesus e a referência p o d e m u ito b e m ter sid o d a d a
p o r João com o u m a in te rp re ta ç ã o d a cena. A afirm ação n o v. 16 é, com o
verem o s, u m a a lu sã o im plícita a Zc 14,21, ju sta m e n te co m o as p a la v ra s
d e Jesus n o s sinóticos são u m a a lu são a in d a m ais clara a Is 56,7 e Jr 7,11.
T u d o o q u e se p o d e d e m o n stra r d isto é q u e as d u a s trad içõ es se a p o ia m
em u m a d ife ren te com binação d e teste m u n h o s, u m fato q u e a rg u m e n ta
em p ro l d a fo rm ação in d e p e n d e n te (assim D odd , Tradition, p. 160).
Em c o n tra p a rtid a , os a sp ec to s q u e João p a rtilh a co m o s re la to s
sin ó tico s são m u ito s: recintos do templo; expulsão dos vendedores de pom-
bos; tombamento das mesas dos cambistas; referência ao templo como uma
casa. H á ta m b é m m u ita s d a s m e sm a s p a la v ra s g re g a s p ro p o n d o sim i-
la rid a d e s a c id e n ta is d a s d u a s trad içõ es. Se c o n sid e ra rm o s q u e os d e-
talh es p e c u liare s a João p o d e m se r a u tê n tic o s, e n tã o a so lu ç ã o lógica
é q u e o s d istin to s rela to s se in sp ira ra m e m u m a fo n te c o m u m q u e foi
a d a p ta d a e e x p a n d id a com in fo rm a ç ã o a d ic io n al em c a d a tra d içã o .
(2) O d esafio d a s a u to rid a d e s ju d a ic a s (2,18). A s u g e stã o acim a
é a p o ia d a q u a n d o n o s v o lv em o s ao v. 18 e m João. C o m o sa lie n ta m o s,
a in te rp e la ç ã o d irig ia a Je su s, n o s sin ó tic o s (M c 11,27-28) e a d a p u -
rificação é s e p a ra d a d o p ró p rio ato d e p u rific a ç ão (M c 11,15-17); con-
tu d o , a in te rp e la ç ã o p a re c e referir-se à p u rific a ç ã o d a á re a d o tem p lo .
C o m o B use e D odd su g e re m , é b e m p o ssív e l q u e o m a te ria l p ro v e -
n ie n te em M arco s te n h a s e p a ra d o o q u e o rig in a lm e n te e ra u m a ú n ic a
cena. Se isto é a ssim , a p re s e n te se q u ên c ia d e João é b e m p a re c id a c om
a s u p o s ta se q u ên c ia p ré-m a rc a n a .
(3) A p re d iç ã o d a d e stru iç ã o d o te m p lo (2,19). N e ste p o n to n o s
a c h am o s em d e s v a n ta g e n s ao c o m p a ra rm o s e ste d ito co m o o c o rre e m
8 · A purificação do templo em Jerusalém 319

João e n o s sin ó tico s, p o rq u e , n estes, ele e stá se m p re n o s láb io s d o s


in im ig o s d e Jesu s, e ao m e n o s e m u m caso h á falsas te ste m u n h a s. Al-
g u m a s d a s d ife re n ç a s d a fo rm a q u e João d á ao d ito p o d e ría m ser atri-
b u ív e is a falsificação. V ejam os as v á ria s fo rm a s d o dito:

F alsas te s te m u n h a s n o ju lg a m e n to :
M c 14,58: " N ó s o u v im o s-lh e d izer: Eu d e rrib a re i este tem p lo ,
c o n s tru íd o p o r m ã o s d e h o m en s, e em trê s d ia s ed ificarei ou-
tro , n ã o feito p o r m ão s d e h o m e n s" .
M t 26,61: "E d isse ram : Este disse: E u p o sso d e rrib a r o tem p lo
d e D eu s, e reed ificá-lo em trê s d ias".
O s tra n s e u n te s n a cru cifix ão (Mc 15,29; M t 27,40):
"E d izen d o : T u, q u e destróis o tem plo, e em três d ias o reedificas".
F alsas te s te m u n h a s a trib u e m a E stêv ão o s e g u in te (A t 6,14):
"E ste Jesu s d e N a z a ré d e s tru irá e ste lu g a r" .
O p ró p rio Jesu s (Jo 2,19):
" D e s tru í e ste te m p lo , e e m trê s d ia s eu o lev a n ta re i" .

P a ra " d e s tru ir" , to d as as referências n ã o jo an in as u sa m katalyein,


e n q u a n to João u sa lyein. P a ra "em três d ia s" , a cena d o ju lg a m e n to
u sa d ia triõn hêmerõn-, a cena d a crucifixão e João u sa m en trisin
h em era is, u m a e x p re ssã o m e n o s e leg an te. (N e n h u m a ex p re ssã o é
e x c essiv am e n te in flu e n c ia d a p e lo s rela to s d a ressu rre içã o , p o is a ex-
p re ssã o u s u a lm e n te c o n e cta d a com a re ssu rre iç ã o é " ao terceiro d ia "
ou " a p ó s trê s d ias").
U m a im p o rta n te d iferen ça n as fo rm as d o d ito é q u e João usa
egeirein , " le v a n ta r" , e n q u a n to o s sinóticos u sa m oikod om ein , "recons-
tru ir" . E ste ú ltim o v e rb o é ap licáv el so m e n te a u m edifício; o p rim e iro
é u m te rm o p ró p rio p a ra c o n stru ção , m as p o d e tam b é m referir-se à
ressu rre içã o d e u m c orpo. A escolha q u e João faz d a p a la v ra se a d e q u a
à in te rp re ta ç ã o teológica q u e o e v an g elista faz d o d ito. O u tra diferença
é o u s o d e João d o im p e rativ o , " D e stru í" , o q u a l p õ e o fard o d a d e stru i-
ção d o te m p lo so b re as a u to rid a d e s ju d aicas. T o d o s os o u tro s relatos
têm o p ró p rio Jesus d e s tru in d o o tem p lo , e esta, in d u b ita v e lm e n te , foi
a m a n e ira co m o os in im ig o s d e Jesus e n te n d e ra m su a s p alav ras.
T o d o s os e v a n g e lista s têm d e e n fre n ta r a d ific u ld a d e d e q u e Je-
su s n ã o c u m p riu lite ra lm e n te a p ro m e ssa e n v o lv id a n e ste d ito . Em
relação às fo rm a s n ã o jo a n in a s d o d ito , Jesu s n ã o d e s tru iu o tem plo;
320 O Livro dos Sinais

em relação a to d a s as fo rm a s d o d ito , Jesus n ã o re c o n s tru iu o tem -


pio. T alvez esta seja a ra z ã o p o r q u e L ucas o m ite in te ira m e n te o d ito .
A so lu ção d e M a te u s se e n c o n tra n o v e rb o m a tiz a d o , "E u so u c a p az "...
M arcos e João b u sc a m u m sig n ificad o fig u ra tiv o n a p ro m e ssa . M arco s
in tro d u z u m a d istin çã o e n tre u m tem p lo c o n s tru íd o p o r m ã o s e o u tro
n ão c o n s tru íd o p o r m ãos; João re in te rp re ta a a firm a ç ão p a ra se refe rir
a m o rte e ressu rre içã o d e Jesus. A ssim , e n q u a n to M arco s fala d e d o is
tem p lo s d ife ren te s, João p a re c e su g e rir q u e está im p líc ito o m e sm o
tem p lo em a m b a s as c lá u su las. D odd, Tradition, p p . 90-91, está certo
q u a n d o d iz q u e n ã o há e v id ê n c ia rea l d e q u e a fo rm a jo an in a d o d ito
d e p e n d e d a fo rm a sinótica.
O teo r g eral d e sta s o b se rv a ç õ e s é q u e o m a te ria l e m Jo 2,13-22
n ão é to m a d o d o s e v a n g e lh o s sin ó tico s, m as re p re se n ta u m a tra d iç ã o
in d e p e n d e n te c o rre n d o p a ra le la m e n te à tra d içã o sin ó tica. C a d a tra-
d ição tem se u s p ró p rio s d e se n v o lv im e n to s teológicos; e a lg u m a s d a s
sim ila rid a d e s estre itas e n tre as d u a s p o d e m ser m ais b e m e x p lic a d a s
se a m b a s são d e p e n d e n te s d a fo rm a m ais a n tig a d o relato .

Interpretação joanina da cena

O e v a n g e lis ta foi m u ito c u id a d o s o e m a d v e rtir-n o s n o v. 22


(e talv e z 17) d e q u e s u a c o m p re e n s ã o teo ló g ica d a cen a e x c e d e m u ito
ao q u e foi e n te n d id o q u a n d o a c e n a o c o rre u . A ssim , d e v e m o s in-
v e s tig a r o q u e a cen a sig n ific a v a à q u e le s q u e a v ira m e o q u e a cen a
sig n ific a v a n a teo lo g ia n e o te s ta m e n tá ria p o s te rio r.
O alcance original da Cena. A a ção d e Je su s e m p u rific a r o s re-
cin to s d o te m p lo p a re c e sig n ific a r a m e sm a co isa p a ra os sin ó ti-
cos e p a ra Jo ão , a sa b er, u m p ro te s to co m o a q u e le d o s p ro fe ta s d e
o u tro ra c o n tra a p ro fa n a ç ã o d a casa d e D e u s e u m sin a l d e q u e a
p u rific a ç ã o m e ssiâ n ic a d o te m p lo e ra im in e n te . E m Jo ão , isto se
a d e q u a co m os te m a s já v isto s e m C an á: s u b s titu iç ã o d a s in stitu i-
ções ju d a ic a s e u m a a b u n d â n c ia d e v in h o p ro c la m a n d o o s te m p o s
m essiân ico s. N o s sin ó tico s, a p u rific a ç ã o é p o s ta e n tre u m c o n ju n to
d e cen as q u e c h a m a a a te n ç ã o p a ra a rejeição d e Israel; p o r e x em -
p io , Lc 19,41-44, q u e p re c e d e im e d ia ta m e n te a p u rific a ç ã o , p r e d iz
a d e s tru iç ã o d e Je ru sa lé m ; e m M t 21,18-22, a p u rific a ç ã o é se g u i-
d a d a m a ld iç ã o so b re a fig u e ira e a p a rá b o la d o s a rr e n d a tá rio s
p e rv e rs o s (21,33-41).
8 · A purificação do templo em Jerusalém 321

A caso os q u e v ira m a p u rific a ç ão p o d e ria m ter a p re e n d id o este


sig n ificad o ? Se a ação d e Jesus foi v ista co m o a rem o ç ão d e u m abu-
so, te ria m tid o o e x e m p lo d o s p ro fe ta s v e te ro te sta m e n tá rio s p a ra in-
te rp re ta r o q u e Jesu s e sta v a fazen d o . M as h a v ia a b u so en v o lv id o ? Já
m e n c io n a m o s a tese d e EreTEiN d e q u e a p rese n ç a d o s a n im a is n os
rec in to s d o te m p lo e ra u m a in o v aç ã o d e C aifás. N ã o é tão fácil v e r a
troca d e m o e d a s c o m o u m ab u so , a m en o s q u e os cam bistas estivessem
e x e rc e n d o u m a c o m issão in ju sta o u s u b o rn a n d o os sacerd o tes. A cor-
ru p ç ã o d a casa sa c e rd o ta l d e A n á s e ra n o tó ria , m as q u a lq u e r su g e stã o
d e s u b o rn o v a i além d o s rela to s e v an g élico s. O s e v a n g elista s p a recem
to m a r p o r a d m itid o q u e a ação d e Jesu s foi re q u e rid a sem ex p licar
ju sta m e n te o q u e a m o tiv o u .
Se a tra d iç ã o é c o rre ta , e n tã o a ação d e Je su s tev e p re c e d e n te s
n o AT. U m p ro fe ta c o m o Je re m ia s, a q u e m Je su s se a sse m e lh a v a d e
d iv e rs a s m a n e ira s (M t 16,14), a d v e rtiu os sa c e rd o te s d e se u te m p o
q u e o te m p lo se c o n v e rte ra em co v il d e la d rõ e s (Jr 7,11 - o m es-
m o tex to q u e M a rc o s e M a te u s re g is tra m p a ra e x p lic a r a ação d e
Jesu s). Ele p ro fe tiz o u q u e D e u s d e s tru iría o s a n tu á rio d e Je ru sa lé m
e x a ta m e n te c o m o d e s tr u iu o d e Silo. A s e g u n d a p a rte d e Z a c arias
(14,21), e s c rita c o n tra o p a n o d e fu n d o d o te m p lo p ré-ex ílico , p ro -
m e te u q u e n o d ia d o S e n h o r to d o s se ria m sa n to s e m Je ru sa lé m e
nenhum mercador se ria e n c o n tra d o n o te m p lo , e e ste p a re c e se r o tex-
to d o A T im p líc ito n o re la to d e João (2,16). Em M l 3,1, o q u a l, co m o
v im o s, p o d e ta m b é m e n tr a r n o re la to d e João, a in te rv e n ç ã o d o Se-
n h o r n o te m p lo se g u e u m fo rte c a stig o d o s a b u so s n o c u lto levítico.
Is 56,7 c ita d o e m M arco s e M a te u s, s u s te n ta o id ea l p ro fé tic o d e q u e
o te m p lo se to rn a ria u m a p e rfe ita casa d e o ra ç ã o so b re o s a n to m o n -
te, a tr a in d o to d a s a s n a ç õ es d o m u n d o . A ssim , u m a ação d a p a r-
te d e Je su s p u rific a n d o a á re a d o te m p lo , c o rrig in d o a b u so s, teria
sid o p e rfe ita m e n te c o m p re e n sív e l à lu z d a re iv in d ic a ç ã o d e q u e ele
era p ro fe ta e in c lu siv e o M essias. (P ara o u tro s tex to s, veja A g 2,7-9;
M q 3,12; Sr 36,13-14). A lg u n s a n o s d e p o is (62 d.C .), o u tro Jesu s, Je-
su s b a r A n a n ia s, a ta c a ria p u b lic a m e n te o te m p lo e a d v e rtiría p a ra
su a d e s tru iç ã o (Josefo, War 6.5.3; 300ss.). H á u m a tra d iç ã o rab ín ica
(T alB ab Gittin, 56a; Midrásh Rabbah em Lam 1,5, 31) d e q u e o Rabi
Z a d o c c o m e ç o u a je ju a r cerca d o a n o 30 p a ra a n te c ip a r a d e stru iç ã o
d e Je ru sa lé m ; isto sig n ific a ria q u e n o te m p o d e Jesu s h a v ia te m o re s
so b re a d e s tru iç ã o d o tem p lo .
322 O Livro dos Sinais

A lg u n s têm s u g e rid o q u e o re la to q u e João faz d a p u rific a ç ã o com


su a im p e tu o s a v io lên cia m o stra o p o siç ã o a in d a m ais f u n d a m e n ta l ao
tem p lo d a p a rte d e Jesus, u m a o p o siç ã o q u e te n d e a a b o lir o tem p lo
em v ez d e refo rm á-lo . P o r e x em p lo , ao e x p u ls a r o s a n im a is, e sta ria
Jesu s a p e n a s p ro te g e n d o c o n tra su a p rese n ç a e m u m lu g a r sacro , ou
está ele reje ita n d o to ta lm e n te o sacrifício d e a n im a l? Em M a te u s (9,13;
12,7) há p a s sa g e n s q u e têm im p licaçõ es d a s e g u n d a a titu d e ; n o en-
tan to , p ro v a v e lm e n te isto seja u m a p e rc e p ç ã o c ristã p o ste rio r, v isto
q u e os p rim e iro s cristã o s n ã o v ia m d ific u ld a d e e m o fere c er sacrifício
n o tem p lo . Q u e João p o d e ria te r a p ro fu n d a d o a o p o siç ã o ao tem p lo ,
a n u n c ia n d o a p u rific a ç ão é p e rfe ita m e n te p o ssív el, p o is João p e rte n -
ce à q u e le ra m o d o s escrito s n e o te sta m e n tá rio s (ta m b ém H e b re u s; o
d isc u rso d e E stêv ão em A t 7,47-48) q u e era fo rte m e n te a n ti-te m p lo .
C ullmann, art. cit., relacio n a isto com o m o v im e n to h e le n ista (A t 6) e
a p o n ta p a ra s e n tim e n to s sim ila re s e n tre o u tro s g ru p o s e m Israel co m o
os essên io s d e Q u m ra n e os sa m a rita n o s. A o in d a g a r-s e se p o d e m o s
re tro c e d e r a Jesu s a lg u m a d e sta o p o siç ã o fu n d a m e n ta l a o te m p lo , p o -
d e m o s n o ta r q u e ele foi c h a m a d o d e s a m a rita n o (Jo 8,48).
A s e g u n d a p a rte d a cena d e João d iz re sp e ito à a firm a ç ão d e Jesu s
so b re d e s tru ir e le v a n ta r o te m p lo (vs. 18-22); isto p o d e ria te r s id o en-
te n d id o p e lo s o u v in te s e m te rm o s d a reconstrução m essiân ic a d o tem -
pio. T em os s u g e rid o q u e o d ito so b re a rec o n stru ç ã o d o te m p lo e a
ação d e p u rific a r os rec in to s d o tem p lo u m a v ez fo ra m s e p a ra d o s ; p o r-
tan to , h isto ric a m e n te n ã o p o d e ria te r h a v id o ju sta p o siç ã o d o tem a d e
p u rific a r o tem p lo e a d e rec o n stru í-lo c o m p le ta m e n te . T o d a v ia , m es-
m o sem esta crítica literá ria , a cena jo an in a n ã o é a u to -c o n tra d itó ria .
O a to d e Jesu s p u rific a r a á re a d o te m p lo é só u m p a sso n a d ire ç ã o cer-
ta, e os sa ce rd o te s teriam q u e fazer m u ito m ais se q u ise re m d e s v ia r a
ira d e D eu s. C o m o v im o s n a n o ta so b re o v. 19, Jesu s está in sis tin d o q u e
estão d e s tru in d o o tem p lo , ju sta m e n te co m o a d e so b e d iê n c ia d e se u s
a n c estra is p ro v o c o u a d e stru iç ã o d o ta b e rn á c u lo e m Silo e d o te m p lo
d e S alom ão. Se d e stro e m o tem p lo , Jesu s aleg a q u e ele o s u b s titu irá
e m b re v e co m o te m p lo m essiân ico d e n a tu re z a n ã o e sp ecificad a.
A ssim co m o o A T o fereceu u m p a n o d e fu n d o p a ra a p u rific a ç ã o
d o tem p lo , assim ta m b é m ele fala d e re c o n stru ir o tem p lo . Ez 40-46
d e scre v e co m d e ta lh e a re c o n stru ç ã o d o tem p lo ; Tb 13,10(12) e 14,5(7)
fala d a re c o n stru ç ã o d o ta b e rn á c u lo o u casa d e D eus; a c o m u n id a -
d e d e Q u m ra n tin h a c ó p ia s d e u m a D escrição A ra m a ica d a N o v a
8 · A purificação do templo em Jerusalém 323

J e ru sa lé m (5Q15), b a s e a d a e m E zequiel, a q u a l d e scre v e u m tem p lo


id eal. C o m o S imon, art. cit., sa lie n ta , a e sp e ra n ç a d e u m n o v o tem p lo
s o b re v iv e u à d e s tru iç ã o d o te m p lo d e H e ro d e s, p o is a d é c im a q u a rta
d a s Dezoito Bênçãos (veja p. 72ss) u n e a e x p e cta tiv a d a rec o n stru ç ã o do
te m p lo e a v in d a d o M essias.
E m n o ssa visão, p o is, o v. 19, o rig in alm en te, era u m a proclam ação
escatológica referin d o -se ao tem p lo d e Jeru salém e teria sid o c o m preen-
sível co m o tal àq u eles q u e co n h eciam o p a n o d e fu n d o d o AT. A ideia
q u e se referiu ao c o rp o d e Jesus era u m a in te rp re ta ç ã o p ós-ressurreição.
A lg u n s e s tu d io s o s, to m a n d o o v. 21 lite ra lm e n te ("ele esta v a falan d o
so b re o te m p lo d e se u c o rp o "), tê m p e n s a d o q u e Jesus n ã o e sta v a se
r e p o rta n d o ao te m p lo d e Je ru sa lé m , e sim ao se u c o rp o e q u e ele in-
d ic o u isto , talv e z a p o n ta n d o p a ra si m esm o q u a n d o d isse " e ste tem -
p io ". D ubarle, art. cit., p e n sa q u e a p rim e ira m e ta d e d o v. 19 referia
ao te m p lo d e Je ru sa lé m , e a se g u n d a m e ta d e ao c o rp o d e Jesus. L éon-
D ufour, art. cit., está p e rfe ita m e n te certo q u a n d o in siste q u e a chave
p a ra o p ro b le m a n ã o está n a s d u a s m e ta d e s d a afirm ação , e sim em
d o is n ív e is d o sig n ificad o . O s q u e in tro d u z e m a re ssu rre iç ã o d o co rp o
d e Jesu s a o sig n ific a d o b á sic o d o d ito têm in sistid o so b re a m en ção de
" trê s d ia s " co m o u m a e x p re ssã o a c re sc e n ta d a p e lo e v a n g elista p a ra
facilitar a in te rp re ta ç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o d a p a ssa g e m . E n tre tan to ,
n ão d e v e m o s e s q u e c e r q u e ela a p a re c e n a s v á ria s fo rm a s sin ó ticas do
d ito o n d e n ã o h á te n ta tiv a clara d e in te rp re ta r as p a la v ra s d e Jesus
co m o u m a referên cia à re ssu rre içã o . T alv ez a m e lh o r so lu ç ã o esteja
em re c o n h e c e r q u e " trê s d ia s" e ra u m a e x p re ssã o q u e sig n ificav a u m
te m p o c u rto , p o ré m in d e fin id o . É a ssim u s a d o em Ex 19,11; O s 6,2;
Lc 13,32 - v eja B rack, p p . 151-52. A o p ro m e te r q u e o te m p lo m essiâ-
nico seria re c o n s tru íd o e m te m p o tão c u rto , Jesus p o d e ria e sta r insi-
n u a n d o so b re su a n a tu re z a m iracu lo sa.
Q u e " o s ju d e u s " e n te n d e ra m q u e Jesu s e sta v a se re fe rin d o ao
te m p lo d e Je ru sa lé m fica claro em João à lu z d e su a re sp o sta . Q u e en-
te n d e ra m s u a s aleg açõ es so b re a rec o n stru ç ã o d o tem p lo co m o u m a
refe rê n c ia a u m a rec o n stru ç ã o m essiân ica p a re c e ser e v id e n te n o rela-
to sin ó tico d o ju lg a m e n to . Q u a n d o as falsas te s te m u n h a s ev o c ara m a
d e c la ra ç ã o d e Jesu s so b re a rec o n stru ç ã o d o tem p lo , o su m o sa ce rd o te
lh e p e rg u n to u : "É s tu o M essias?" (Mc 16,61).
A ssim , co m o o tem o s in te rp re ta d o , a p u rific a ç ão d o s rec in to s d o
te m p lo e a d e c la ra ç ã o so b re a d e stru iç ã o e rec o n stru ç ã o d o tem p lo
324 O Livro d o s S inais

que João junta à purificação são inteligíveis no nível histórico da com-


preensão prevalecente durante o ministério de Jesus. Vejamos agora
como o tema se tornou um veículo da teologia joanina.
A T e o lo g ia J o a n in a d a c e n a . No v. 17, João usa as palavras da Escri-
tura para interpretar a purificação do templo; provavelmente, ele tem
em vista que os discípulos vieram a entender a purificação em termos
do SI 69,9 após a ressurreição. A interpretação das ações de Jesus em
termos do cumprimento veterotestamentário provavelmente começou
com o próprio Jesus; mas os escritos do NT concordam que só foi após a
ressurreição que os discípulos viram no AT a chave para entender Jesus
(Lc 24,27). É importante citar ambos os vs. 8 e 9 do Salmo:

8Tenho-me tomado como um estranho para com meus irmãos,


um desconhecido para com os filhos de minha mãe.
9 Pois o zelo de tua casa me devora,
e as afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim.

João cita somente 9a, mas o Salmo era conhecido dos primeiros
cristãos e é possível que o contexto do versículo estivesse claramente
em pauta. A separação dos irmãos em 8 pode ser significativa em re-
lação a Jo 2,12; Jesus deixou seus irmãos para ir a Jerusalém, e teriam
se separado dele movidos pela incredulidade durante o ministério.
O v. 9b do Salmo é também apropriado, posto que em João a purifica-
ção do templo vai unida com a interpelação de "os judeus".
Ao citar o v. 9a, João o adapta à ação de Jesus, traduzindo-o como
futuro (veja nota sobre v. 17) e, assim, fazendo dele uma profecia. Ser
"consumido" já não é uma simples referência à intensidade do ardor do
zelo; João interpreta o Salmo no sentido de que o zelo pelo templo des-
truirá Jesus e acarretará sua morte. Assim, mesmo que João não coloque
a purificação dos recintos do templo imediatamente antes da morte de
Jesus como fazem os sinóticos, seu relato ainda preserva a memória que
a ação acarretou sua morte. Na presente sequência, a interpretação da
purificação em referência à morte de Jesus prepara para a interpretação
do dito sobre o templo em referência à sua ressurreição.
Retornando agora ao v. 21, descobrimos que João assumiu uma
interpretação ligeiramente diferente do dito de Jesus sobre a re-
construção do templo daquela encontrada em Mc 14,58. Ao buscar
explicar o que Jesus tinha em mente por um templo reconstruído,
8 · A p u rificação d o te m p lo em Jerusalém 325

Marcos agrega "não feito por mãos" (certamente um vocabulário


teológico cristão mais recente, como em Hb 9,11) - uma indicação
de que o templo é de caráter espiritual. No NT, em adição à inter-
pretação joanina do templo como o corpo de Jesus, encontramos ao
menos três diferentes fios do pensamento cristão sobre o templo es-
piritual: (a) O templo ou casa de Deus é a I g r e ja - Ef 2,19-21; lPd 2,5;
4,17. (b) O templo é 0 c r i s t ã o i n d i v i d u a l - ICor 3,16; 6,19; veja I nácio
P h ila 7,2; I I C i e m 4,3. Uma passagem como 2Cor 6,16 paira entre (a)
e (b). (c) O templo está n o c é u - esta é a tradição das palavras apo-
calípticas (II Bar 4.5), onde o templo terreno e Jerusalém são ape-
nas cópias do celestial. Ap 11,19 e Hb 9,11-12 têm esta interpretação.
Hb 9,11-12 é importante para interpretar Marcos: "Através do maior
e mais perfeito tabernáculo (não feito por mãos, isto é, não desta
criação) entrou uma vez para sempre no Santo Lugar". Se o taber-
náculo é a humanidade de Cristo (A gostinho , C alvino , W estcott),
então a mesma frase que é usada em Marcos para descrever o novo
templo é usada em Hebreus para descrever o corpo de Cristo. Entre-
tanto, note bem que, para Hebreus, Jesus não é o Santo Lugar, pois
aquele está no céu.
Qual dessas concepções do templo original Marcos mantém não
fica claro; mas, depois de tudo, são apenas aspectos ligeiramente dife-
rentes da mesma realidade. A ênfase sobre o Jesus ressurreto como o
templo é mais clara nas obras joaninas; à presente passagem podemos
acrescentar Ap 22 (e também Jo 1,14, onde Jesus é o Tabernáculo).
Todavia, se Marcos entendeu o templo como sendo a Igreja, e João o
entende como sendo o corpo de Jesus, ainda estas concepções não estão
muito separadas uma vez que compreendamos que a mesma comuni-
dade efesina que é tida como sendo o auditório de João ouvira que a
Igreja é o corpo de Cristo (Ef 1,23; Cl 1,18). Como uma indicação de que
a interpretação que João faz de Jesus como o novo templo não é estranha
na estrutura da teologia do evangelho, podemos evocar o dito atribuído
a Jesus em Mt 12,6: "Eis aqui quem é maior que o templo".
Além do mais, tem-se sugerido uma ênfase teológica para Jo 2,13-22.
V an den B ussche, a r t . c i t . , tem destacado o contraste entre a cena em
Caná, onde os discípulos reagem com fé e a cena em Jerusalém, onde
"os judeus" reagem a Jesus com incompreensão e hostilidade. D ubarle
e C ullmann , ECW, p. 74, sugerem um simbolismo eucarístico, sacra-
mental, no "corpo" de Jesus após a referência ao vinho (= sangue)
326 O Livro dos Sinais

d e Jesu s e m C an á. N ã o o b sta n te , a co m b in a çã o e u c arístic a e m João


é c a r n e /s a n g u e (6,51ss.), n ã o c o r p o /s a n g u e ; e n ã o v e m o s a b s o lu -
ta rn e n te n a d a n o rela to jo a n in o d a cen a d o te m p lo q u e e n d o s se u m a
referên cia eu carística. D ubarle e C ullmann ta m b é m c o n e cta ria 2,21,
o n d e o c o rp o d e Jesus é o tem p lo , c o m 1,51, o n d e Jesu s s u b s titu i Betei,
a "casa d e D eu s". Esta su g e stã o g ira e m to rn o d a in te rp re ta ç ã o m u i-
to d is p u ta d a d e 1,51. F in a lm en te , Jo 2 ,1 8 2 2 ‫ ־‬o ferece u m in te re s s a n te
p a ra le lo a M t 12,38-40. E m a m b o s os casos, as a u to rid a d e s ju d a ic a s
p e d ira m u m sinal; em M a te u s, Jesus lh es re s p o n d e , re p o rta n d o -s e a
Jonas; e m João, ele re s p o n d e e m te rm o s d a d e stru iç ã o e re c o n stru ç ã o
d o tem p lo . C a d a e v a n g e lista in te rp re ta a re sp o sta d e Je su s e m te rm o s
d a re ssu rre iç ã o ao terceiro d ia (cf. M t 12,40 com 16,4 e Lc 11,29-30).

BIBLIOGRAFIA

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EPSTEIN, V., "TRhe Historicity of the Gospel Account of the Cleansing of the
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HAENCHEN, E., "Johanneische Probleme", ZTK 56 (1959), especialm ente
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VOGELS, H., "Die Tempelreinigung und Golgotha (Joh 2:19-22)", BZ 6
(1962), 102-7.
9. REAÇAO A JESUS EM JERUSALEM

Transição e introdução à cena de Nicodemos


2 23E n q u a n to e sta v a em Je ru sa lé m d u r a n te a festa d a P áscoa, m u ito s
c re ra m e m se u n o m e , p o is p o d ia m v e r o s sin ais q u e ele e sta v a reali-
z a n d o . 24D e su a p a rte , Jesus n ã o co n fiav a n eles, p o rq u e conhecia to-
d o s eles. 25Ele n ã o carecia d e n in g u é m p a ra testificar so b re a n a tu re z a
h u m a n a , p o is e s ta v a b e m cien te d o q u e e ra o co ração d o h o m em .

NOTAS

2.23. durante a festa da Páscoa. Literalmente, "na Páscoa na festa". Barrett, p. 168,
interpreta a última expressão como uma referência à multidão congregada
para a festa, citando 7,14, o que ele interpreta da mesma maneira. Histórica-
mente, a festa da peregrinação tem sido a do Pão Azimo, mas a Páscoa lhe era
combinada para formar uma só festa. João não fala da Festa do Pão Azimo
como fazem os sinóticos; Lc 22,1 toma os dois nomes como equivalentes.
creram em seu nome. Esta expressão em 1,12 descreve um a fé que é adequa-
da; aqui, aparentem ente, não faz isso.
ver. Theõrein (veja Apêndice 1:3, p. 794ss); a tradução "notar", sugerida por
Bernard, I, p. 99, parece casual demais.
sinais. N unca somos inform ados em que estes consistiam, mas, obviamen-
te, eram miraculosos. Em 4,45 ouvirem os outra vez sobre tudo o que
Jesus fizera em Jerusalém durante a festa; todavia, 4,54 parece ignorar
estes sinais quando conta da cura do filho do oficial régio como sendo o
segundo sinal que Jesus fizera.
24. confiava. Este é o m esm o verbo, pisteuein (Apêndice 1:9, p. 794ss), que
significa "creram " no versículo anterior; ao pisteuein deles Jesus não res-
ponde com pisteuein.
25. sobre a natureza humana... no coração do homem. Literalmente, "sobre o
homem... no hom em ".
328 O Livro dos Sinais

COMENTÁRIO

E stes v e rsíc u lo s p re p a ra m o c a m in h o p a ra a c o n v e rsa com N ic o d e m o s,


q u e será a p re s e n ta d o co m o u m d o s m u ito s em Je ru sa lé m q u e se tor-
n a ra m c re n tes e m Jesus. D odd, Tradition, p. 235, d iz q u e e sta p a ssa g e m
n ão é tra n sic io n al n o se n tid o q u e 2,12, p o r e x em p lo , é tran sicio n al;
p o is esta p a s sa g e m p a re c e ser, e m g ra n d e p a rte , m ais a fo rm u la ç ã o do
p ró p rio e v a n g elista d o q u e e x tra íd a d e m a te ria l tra d icio n a l. O q u e fica
claro é q u e a p a ssa g e m c o n té m b o a p a rte d o v o c a b u lá rio jo an in o , u m
fato q u e, to d a v ia , d eix a e m a b e rto a p o ssib ilid a d e d e q u e a essência
d o q u e é n a rra d o seja d e c a rá te r trad icio n al.
O s vs. 24-25 nos m o stra m q u e a fé p ro d u z id a p elo s sin ais d e Jesus,
n o v. 23, n ão é satisfatória. C o m o v erem o s n o A p ê n d ic e III, p. 831ss,
a reação d e scrita a q u i é in te rm e d iá ria . E m e lh o r q u e a c e g u e ira h o stil
d e "os ju d e u s " n a cena d o te m p lo , m a s n ã o é ig u a l à fé d o s d isc íp u lo s
e m C an á, em 2,11, os q u a is são lev a d o s, a tra v é s d o sin al, a v e r a g ló ria
d e Jesus. A q u i e m Je ru sa lé m h á u m a d isp o siç ã o d e v e r o sin a l e se
d eix ar c o n v e n ce r p o r ele, m a s tu d o o q u e se ch eg a a c o n h e c e r a tra v é s
d o sinal é q u e Jesus é c a p a z d e re a liz a r m ilag res.
A ra z ã o q u e João evoca p a ra a re c u sa d e Jesu s d e a c e ita r tal fé
é q u e "ele co n h ecia to d o s eles" e q u e " e sta v a cien te d o q u e e sta v a
n o co ração d o h o m e m " . B ernard , I, p. 9 9 , n ã o está c e rto d e q u e João
q u e r q u e e n te n d a m o s q u e o c o n h e c im e n to esp ec ial d e Jesu s e ra di-
feren te d a q u e le d e o u tro s g ra n d e s h o m en s. B ultmann, p . 714, p e n sa
q u e n o c o n h e cim e n to e x tra o rd in á rio re iv in d ic a d o p e lo s " h o m e n s di-
v in o s" d o m u n d o h e le n ista , p o r e x em p lo , A p o llo n iu s d e T y a n a , q u e
co n h ecia o p e n s a m e n to d o p o v o . O c a sio n a lm e n te , o s rab is p o s s u ía m
este p o d e r e e ra a trib u íd o ao e sp írito sa n to d e D e u s o p e ra n d o e m seu
in terio r. E m b o ra estes p a ra le lo s sejam in te re ssa n te s, re a lm e n te n ã o se
p o d e d u v id a r q u e p a ra João a ra z ã o d e Jesu s p o s s u ir este p o d e r n ã o
era p o rq u e ele lh e fosse d a d o , m a s e m v irtu d e d e q u e m ele é. Ele v eio
d e D eus; p e rm a n e c e u n id o a D eu s; e p o r isso tem o p o d e r d e D e u s d e
co n h ecer os p e n s a m e n to s ín tim o s d o h o m e m (Jr 17,10).
A c o n o tação ex ata d e Je su s n ã o c o n fia r n o s h a b ita n te s d e Je ru sa -
lém q u e c ria m n e le é m ais difícil. C risóstomo s u g e riu q u e Je su s n ã o
lh es c o n fiav a o s e g re d o d e su a p e sso a o u d o u trin a , m a s Jo ão d á p o u c a
ên fase às rev elaçõ es se cre ta s d e Je su s d u r a n te o m in isté rio . P a ra Jo ão a
falh a d e cre r p le n a m e n te d e v e re m o n ta r à in d isp o siç ã o d o s o u v in te s,
9 · Reação a Jesus em Jerusalém 329

n ã o a q u a is q u e r se g re d o s d a p a rte d e Jesus. É p o ssív el q u e se tra te


a q u i a p e n a s d e n ã o te r co n fian ça n o e n tu sia sm o d e le s n e sta p a ssa -
g em . E n tre ta n to , E. Stauffer q u e r v e r n a e x p re ssã o alg o a m ais no
v. 24; p o is em " Agnostos Christos, Joh. ii 24 und die Eschatologie des vierten
Evangeliums ", BNTE, p. 292, ele v ê a q u i u m eco d o tem a d o M essias
o cu lto . E ste M essias, m e sm o d e p o is d e o p e ra r sin a is e a tra ir seg u id o -
res, p e rm a n e c e u m incognitus - u m a sp e c to q u e p e rsistirá a té o fim d o
seu m in is té rio (14,9; 16,12ss.).
10. DIÁLOGO COM
NICODEMOS EM JERUSALÉM
(3, 1 ‫־‬2 1 )

3 1O ra , h a v ia u m fa rise u c h a m a d o N ic o d e m o s, m e m b ro d o S in é d rio
ju d e u , 2q u e v e io a ele d e n o ite. "R a b i" , d isse e le a Je su s, " sa b e m o s
q u e és m e s tre e q u e v ie ste d e D eu s; p o rq u e , a m e n o s q u e D e u s esteja
com ele, n in g u é m p o d e re a liz a r o s sin a is q u e re a liz a s " . 3Je su s lh e
re s p o n d e u :
" S o le n e m en te e u te a sse g u ro ,
n in g u é m p o d e v e r o re in o d e D eu s
se n ã o for g e ra d o d e cim a".

4"C o m o p o d e u m h o m e m n a sce r o u tra v e z se n d o já v e lh o ? ", re tru -


co u N ico d em o s. " P o d e ele e n tra r n o v e n tre d e su a m ãe e n a sc e r o u tra
v ez?" 5R ep lico u Jesus:
"S o le n e m en te te a sse g u ro ,
n in g u é m p o d e e n tra r n o rein o d e D eu s
se n ã o for g e ra d o d a á g u a e d o E spírito.
6A c a rn e g era carn e,
e o E sp írito g e ra esp írito .
7N ã o te s u rp re e n d a s d e e u te dizer:
te n s d e se r g e ra d o d e cim a.
8O v e n to so p ra o n d e q u e r;
o u v e s o so m q u e ele faz,
m a s n ã o sab es a o n d e v ai e d o n d e v em .
A ssim se d á co m to d o s os g e ra d o s d o E sp írito ".

4: retrucou: no tempo presente histórico.


10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 331

9N ic o d e m o s rep lico u : "C o m o p o d e m e sta s coisas aco n tecer?" 10Je-


su s re s p o n d e u : "T u exerces o ofício d e m e stre d e Israel, e a in d a n ão
sab es e n te n d e r e sta s coisas?
11E u so le n e m e n te te a sse g u ro ,
fala m o s d o q u e sab em o s,
e e sta m o s testific a n d o d o q u e tem o s visto;
m a s v ó s n ã o aceitas n o sso te ste m u n h o .
12Se n ã o crês
q u a n d o e u te falo d e coisas terren a s,
co m o p o d e rá s crer
q u a n d o e u te fala r d e coisas celestiais?
13O ra, n in g u é m tem s u b id o ao céu,
ex ceto a q u e le q u e d e sce u d o céu -
o F ilh o d o H o m e m [que está n o céu].
14E a ssim c o m o M o isés le v a n to u a s e rp e n te no d e serto ,
A ssim o F ilh o d o H o m e m d e v e se r le v a n ta d o ,
15p a ra q u e to d o o q u e n e le crê
te n h a n ele a v id a e te rn a.
16S im , D e u s a m o u o m u n d o ta n to , q u e d e u se u ú n ico Filho,
p a ra q u e to d o a q u e le q u e n e le crê n ã o p ereça,
m a s te n h a a v id a e te rn a.
17P o rq u e D e u s n ã o e n v io u o F ilho a o m u n d o
p a ra c o n d e n a r o m u n d o ,
m a s q u e o m u n d o seja sa lv o a tra v é s dele.
18M as q u e m crê n ele n ã o é ju lg a d o ;
T o d o a q u e le q u e n ele n ã o crê já se rá c o n d e n a d o
q u e m se re c u sa a cre r já está ju lg a d o , p o r n ã o h a v e r crid o no
n o m e d o ú n ic o F ilho d e D eus.
19O ra, o ju lg a m e n to é este:
a lu z v eio ao m u n d o ,
m a s os h o m e n s p re fe rira m as tre v a s à lu z,
p o rq u e se u s feitos e ra m m au s.
20P o is to d o a q u e le q u e p ra tic a a p e rv e rs id a d e
o d e ia a lu z, e n ã o se a p ro x im a d a lu z,
p o is tem e q u e su a s ações sejam ex p o stas.
21M as a q u e le q u e ag e e m v e rd a d e
v e m p a ra a luz,
a fim d e q u e se co n h eça
q u e s e u s a to s são feitos em D eu s".
332 O Livro d o s Sinais

NOTAS

3.1. O ra . Isto parece ligar o início do capítulo 3 a 2,23-25.


u m fa r ise u . Literalmente, "um hom em dos fariseus"; é possível que este uso
de "hom em " se destine a evocar o final do últim o versículo (2,25), onde
ouvim os que Jesus tinha ciência do que estava no coração do homem.
Note aqui como Jesus conhecia o que está no coração de Nicodemos.
N ic o d e m o s. M encionado som ente em João (tam bém em 7,50 e 19,39), ele
representa um grupo entre os líderes judaicos que hesitantem ente veio
a crer em Jesus (veja 12,42). Não há razão para considerá-lo como mera-
m ente simbólico. "Nicodem os" era um nom e grego que não era com um
entre os judeus como "N aqdim on". TalBab T a a n ith 20a m enciona Naqdi-
mos ben Gurion (ou Bunai), que era um hom em rico e generoso em Jeru-
salém, nos anos anteriores a 70; provavelm ente ele não seja o Nicodem os
de João.
m e m b ro d o S in é d r io ju d a ic o . Literalm ente, "um líder". N icodem os quase
certam ente pertenceu ao corpo governante m ais elevado d o povo judeu
com posto de sacerdotes (saduceus), escribas (fariseus) e anciãos lei-
gos da aristocracia. Seus setenta m em bros eram presididos pelo sum o
sacerdote.
2. de n oite. João lembra consistentemente deste detalhe (19,39) em razão de sua
importância simbólica. Trevas e noite simbolizam a esfera do mal, a menti-
ra e ignorância (veja 9,4; 11,10). Em 13,30, Judas abandona a luz para aden-
trar a noite de Satanás; Nicodemos, em contrapartida, sai das trevas para a
luz (vs. 19-21). Em um nível m eram ente natural, a visita noturna pode ter
sido um expediente solerte "por m edo dos judeus" (19,38); ou pode refletir
o costume rabínico de aproveitar a noite para estudar a Lei (StB, II, p. 420).
sabem os. Há outro exemplo do uso do plural em discurso coletivo pelos
fariseus (9,24; Mc 12,14). D odd, T r a d itio n , p. 329, ressalta que a abertu-
ra do diálogo de Nicodem os tem algum as características; ele sugere ser
possível term os aqui um escasso rem anescente de um diálogo da forma
sinótica elaborada em João para introduzir o corpo do discurso que con-
siste de m aterial joanino. Entretanto, se alguém reconhece um substrato
histórico no corpo do diálogo com Nicodemos, então tal introdução tra-
dicional podería ter sido sem pre parte da narrativa.
3. n in g u é m pode. Jesus, no versículo 2, pega a expressão de Nicodemos; o verbo
d y n a s th a i, "poder", aparece seis vezes nos vs. 2-10.
v e r. Isto significa "experim entar, encontrar, participar de", como, p. ex., em
"ver a m orte" (8,51), "ver a vida" (3,36). Note a expressão paralela sinô-
nima "entrar" no v. 5; talvez "ver" realce mais claram ente a relação do
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 333

reino com a revelação trazida por Jesus, revelação que tem de ser vista,
percebida, crida.
0 reino de Deus. Esta expressão, tão frequente nos sinóticos, aparece em João
som ente aqui nos vs. 3, 5 (sinal de que há m aterial tradicional no diálogo
com Nicodemos?). Veja pp. 339-340.
gerado. O passivo do verbo gennan pode significar ou "nascer", como de
um particípio fem inino, ou "ser gerado", como de um particípio mascu-
lino; os dois significados são possíveis para a raiz hebraica yld. As ver-
sões antigas tom aram gennan, aqui, no sentido de "ser nascido", e, mais
precisam ente, no AT, "ser renascido" (renasci=anagennan - há vestígios
desta interpretação tam bém na OSsin, na Vulgata, nos Padres gregos).
A despeito do fato de que o Espírito, m encionado no v. 5 como o agente
deste nascim ento ou geração, no hebraico é fem inino (em grego, neu-
tro), tu d o indica que o significado prim ário é "gerado". Nos evangelhos
não há nenhum a atribuição ao Espírito de característicos femininos; e
há paralelos joaninos que se referem claram ente ao ser gerado, em vez
de ser nascido (1,12; ljo 3,9). Não é impossível que o significado "ser
[rejnascido" seja a intenção de João em um nível secundário e sacramen-
tal - veja com entário.
de cima. O grego anõthen significa tanto "outra vez" como "de cima", e o
significado du p lo é usado aqui como parte de m al-entendido técnico.
Embora no v. 4 Nicodem os tome Jesus como a dizer "outra vez", o signifi-
cado prim ário de Jesus, no v. 3, era "de cima". Isto é indicado do paralelo
em 3,31, tam bém dos outros dois usos joaninos de anõthen (19,11.23).
Tal m al-entendido só é possível em grego; não conhecemos nenhum a
palavra hebraica ou aram aica de significado similar que teria esta am-
biguidade espacial e tem poral. Uma vez mais, não é impossível que o
significado "outra vez" seja a intenção de João em nível secundário e
sacram ental.
5. reino de Deus. O Codex Bezae e algum as outras testem unhas trazem "reino
do céu", e Lagange aceita isto com base em que "Deus" é um a harm oni-
zação com o v. 3. Bui.tmann, p. 98', todavia, sugere que "céu" foi intro-
duzido no m odelo de Mt 18,3, "a não ser que vos converteis e vos torneis
como crianças, não entrareis no reino do céu".
da água e do Espírito. Os dois substantivos são governados pela mes-
m a preposição. Para um paralelo de ser gerado do Espírito temos
Mt 1,20, em relação a Jesus: "O que é gerado nela [Maria] é de um Espí-
rito santo".
6. Carne gera carne. Literalm ente, "O que é gerado de carne é carne". O AT
e o OS [siríaco antigo] agregam cláusulas explicativas: "O que é gerado
334 O Livro dos Sinais

de carne é carne porque é gerado da carne". Para João, "carne" enfatiza


a fraqueza e m ortalidade da criatura (não a pecam inosidade com o em
Paulo); Espírito, como oposto a carne, é o princípio do poder e vida divi-
na operando na esfera hum ana.
7. Não te surpreendas. Este é o uso rabínico característico (B ultmann, p. 1012).
tu. O pronom e em "eu te" é singular; o de "todos têm de ser gerados" é
plural. N icodem os veio falando como "nós"; assim, através dele, Jesus
fala a um auditório mais amplo.
8. vento. O grego pneuma, bem como sua contraparte hebraica rüah, significa
ambos, "vento" e "espírito"; e há um perspicaz jogo de palavras em ambos
os significados aqui, um jogo de palavras que não pode ser reproduzido.
"Vento" parece ser o significado prim ário na comparação, embora as ver-
sões latinas o traduzam por "Spiritus",
mas não sabes. Para os antigos sem um profundo conhecim ento de mete-
reologia, o m ovim ento invisível do vento tinha um a qualidade divina e
misteriosa. No pensam ento prim itivo, o vento era descrito como o fôlego
de Deus. Na apocalíptica judaica tardia, entre os m istérios revelados ao
vidente, em sua inspirada trajetória dos céus estava o lugar de habitação
dos ventos (2 Enoque 41,3; 60,12; 2 Baruque 48,3-4). Inácio Phila 7.7 Λ pare-
ce evocar este versículo de João: "O Espírito [pessoal ou impessoal?] não
se engana; sendo de Deus, ele sabe de onde vem e para onde vai".
gerado do Espírito. Note o artigo ausente no v. 5 .0 codex sinaiticus, OL [La-
tim antigo] e OS [Siríaco antigo] inserem "da água e" em im itação do v. 5.
9. Nicodemos. Esta é a últim a vez que ouvim os sua m enção na cena.
10. Tu exerces 0 ofício. L agrange, entre outros, sugere um contraste implícito:
Tu te presum es ser m estre, não eu. Isto é incerto, m as parece haver aqui
um a alusão ao título "m estre" no v. 2.
ainda não sabes. Evidentemente, um conhecim ento do AT teria capacitado
Nicodemos a entender. B ultmann, p. 103, rejeita esta interpretação em
favor de um a ênfase geral sobre a incapacidade do erudito rabínico de
d ar a resposta verdadeira. No entanto, o v. 12 faz distinção entre o que
teria sido entendido e o que é dem asiadam ente profundo.
11. Eu solenemente te asseguro. Este "te" é singular; nos vs. l l d e 12 é plural.
falamos. Em João, esta é a prim eira vez que o verbo lalein aparece nos lá-
bios de Jesus. E a palavra do grego koinê "falar"; no grego clássico, tem
o significado de "palavrório", porém é infrequente; não obstante, foi
usada na LXX para a transm issão da palavra revelada pelos profetas.
Em Atos, é m uito frequente para a transm issão do evangelho, enquanto
em João é o verbo por excelência para a revelação que Jesus faz da ver-
dade de Deus.
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 335

falamos do que sabemos. Para a mesma ideia expressa na primeira pessoa


singular, veja 8,38 e 12,50. Há m uitas tentativas para explicar o uso que
Jesus faz do plural aqui: um plural de majestade; uma associação do
testem unho do Pai com o do Filho; uma referência a Jesus e seus disci-
pulos [estão presentes?]. Não obstante, qualquer sugestão de que Jesus
está associando outros, fracassa em pôr a ênfase na unicidade de Jesus
no v. 13. Há quem pense que no v. 11 João está introduzindo um diálo-
go entre a Igreja ("nós") e a sinagoga (plural "vós"). Certamente, algum
pensam ento de João é dirigido, apologeticamente, à sinagoga; contudo,
deve-se lem brar que o evangelista volta ao "eu", no v. 12, m uito embora
ele m antenha o plural "vós"; e, assim, se a Igreja está falando, ela faz
isso somente neste versículo. Talvez a resposta mais satisfatória esteja no
v. 11 como a continuação da réplica de Nicodemos em suas palavras ini-
ciadas em 10. Precisamente como no v. 10 Jesus retoma o tema do "mestre"
proveniente das palavras de Nicodemos no v. 2, assim no v. 11 Jesus reto-
ma o "sabem os" proveniente do v. 2 e o dirige contra Nicodemos. Assim,
o uso de "nós" é um a paródia da insinuação de Nicodemos de ignorância.
12. coisas terrenas... coisas celestiais. O dualism o joanino tende a ser espa-
ciai em suas imagens; veja D. M ollat, "Remarques sur le vocabulaire
spatial du quatrième évangile", StEv, I, pp. 510-15. É difícil determ inar a
que estes dois tem as se referem. A explicação mais sim ples é que o que
Jesus já havia dito pertence a "terreno", e o que ainda dirá pertence a
"celestial". Neste caso, o dualism o não é como carne/E spírito, pois o
que Jesus já disse inclui um tema majestoso como gerar de cima pelo
Espírito; e, portanto, "terreno" não é depreciativo. Antes, o contraste é
entre dois tipos de ação divina, um mais celestial e misterioso do que o
outro. Por que as coisas expressas nos vs. 3-8 são designadas como "ter-
renas"? Talvez seja porque foram ilustradas p or analogias terrenas como
nascim ento e vento; talvez seja porque ocorreram na terra, enquanto o
que vem a seguir diz respeito a subir ao céu ou ser elevado. Os outros
exem plos neotestam entários do contraste terreno/celestial (IC or 15,40;
2Cor 5,1; F1 2,10; 3,19-20; Tg 3,15) são de pouca utilidade aqui. Um inte-
ressante paralelo a João se encontra em um a declaração do Rabi Gamaliel
ao im perador (TalBab Sanhedrin 39a): "Se não conheces o que jaz sobre a
terra, como conhecerás o que jaz no céu?" T hüsing, p. 255ss., argum enta
energicam ente em prol de um a interpretação bem diferente da que aca-
ba de ser apresentada: as "coisas terrenas" abrange todo o ministério de
Jesus na terra; as "coisas celestiais" não se reportam ao conteúdo dos vs.
13-15, m as às palavras de Jesus pós-ascensão ditas através do Parácleto.
Há pouco na presente passagem em apoio de seu ponto de vista.
336 O Livro dos Sinais

13. tem subido. O uso do tem po perfeito traz um a dificuldade, pois parece
im plicar que o Filho do H om em já subiu ao céu. Pois os estudiosos
que creem que quem está falando aqui é o evangelista, e não Jesus,
afirm am que o evangelista está sim plesm ente retrocedendo à ascensão
de Jesus. O utros, com o Lagrange e Bernard, pensam que o pretérito
está im plícito som ente para negar que até aquele tem po ninguém nun-
ca subira ao céu para conhecer as coisas celestiais, e que o que espe-
cialm ente se refere ao Filho do H om em é a descida, e não a subida.
É possível que este fosse o significado original, m as que no curso da
pregação pós-ressurreição a cláusula veio a ser entendida com o um a
referência à ascensão. N as referências joaninas a Jesus há um a estra-
nha d escontinuidade ou indiferença à sequência do tem po norm al que
deve ser considerada (4,38).
Filho do Homem. E. M. Sidebottom, " The Ascent and Descent of the Son of Man
in the Gospel of St. John", ATR 39 (1957), 115-22, ressalta que som ente em
João o Filho do Hom em é retratado como descendo. 1 Enoque (p. ex.,
48.2-6) retrata o Filho do Hom em como preexistente no céu (e isto parece
estar implícito em João), porém não fala de sua descida. Sidebottom des-
cobre a falta de paralelos supostam ente helenistas e gnósticos. Ef 4,9 faz
referência à descida e subida de Jesus, m as aparentem ente em referência
à sua descida às regiões inferiores após a morte. Todo o propósito do v.
13 em João é enfatizar a origem celestial do Filho do Hom em.
[que está no céu]. Esta frase se encontra em uns poucos m anuscritos gregos,
latinos e em algum as versões siríacas. A evidência textual não é forte,
m as a frase é tão difícil que é bem provável ter sido om itida na maio-
ria dos m anuscritos para evitar dificuldade. Lagrange, Boismard e W ire-
nhauser estão entre os que a aceitam. O Filho, em João, perm anece junto
ao Pai m esm o quando esteja na terra (1,18).
14. Moisés levantou a serpente. Tanto no TM como na LXX de Nm 21,9ss. ou-
vimos que Moisés colocou a serpente em um a haste bem visível; m as os
Targuns (Neof. I; Pseudo-Jonathan) dizem que ele "colocou a serpente
sobre um lugar elevado" ou que a "suspendeu". Boismard, RB 66 (1959),
378, ressalta ser possível que Jesus esteja citando o Targum (veja tam-
bém 7,38). Em ambos, TM e LXX, a palavra para "haste", literalm ente,
é a palavra para "sinal". (Este podería ter sido um dos fatores que le-
varam ao uso joanino de "sinal" para os m ilagres de Jesus?) Mt 24,30
menciona o "sinal do Filho do Homem" como a parousia. Em Sb 16,6-7,
temos um a midrásh (i.e, um a explicação popular para propósitos didáticos)
do relato da serpente: "Tinham um símbolo de salvação como m emorial
do preceito de vossa lei. Pois aquele que se volvia para ela era salvo,
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 337

não pelo que via, m as por ti, o Salvador de todos". Isto se adequa bem
ao pensam ento joanino de que o Jesus levantado veio a ser a fonte de
salvação para todos (12,32), e todo aquele que vê Jesus vê o Pai (14,9).
O Targum também interpreta o significado de olhar para a serpente: sig-
nifica volver o coração para a memra de Deus (veja Apêndice II, p. 823ss).
O Targum Pseudo-Jonathan menciona 0 nome da memra, justamente
como Jo 3,18 menciona 0 nome do Unigênito de Deus. A Epístola de Bar-
nabé 12,5-6 usa a tipologia da serpente, talvez em dependência de João
- veja Braun, JeanThéol, I, pp. 83-85; tam bém G lasson, pp. 33-39.
15. crê/tenha a vida eterna. C om pare N úm ero 21,8: "aquele que olhar para ela
[a serpente] viverá".
vida eterna. Este é o prim eiro uso da expressão em João; veja Apêndice 1:6,
p. 794ss.
nele. Esta palavra pode ser posta com "crê"; contudo, a m elhor leitura é en
auto (P75; Vaticanus), não eis auton, que é comum na frase "crer nele".
Para a ideia de ter vida em Jesus, veja 20,31; 16,33 |Vol. 2],
16. amou. O aoristo implica um ato suprem o de amor. Cf. ljo 4,9: "desta ma-
neira foi o am or de Deus revelado em nosso meio: Deus enviou Seu Filho
unigênito ao m undo para que tivéssemos vida através dele". Note que
em 1 João o am or é direcionado para os cristãos ("nós"), enquanto em
Jo 3,16 Deus am a o m undo. Em todos os dem ais casos em João, o am or de
Deus é dirigido aos discípulos, pois em seu dualism o João não menciona
o am or de Deus para com os injustos, como faz Mt 5,45. Veja Barrossr,
art. cit. Aqui, o verbo é agapatv, e se Spicq está certo (veja Apêndice 1:1,
p. 794ss), tem os um exemplo perfeito de agapan se expressando em ação,
pois o v. 16 se reporta ao am or de Deus que se expressa na Encarnação e
na m orte do Filho.
tanto/que. A cláusula, na sequência seguinte, está no indicativo - o único
tem po em João. O uso clássico desta construção tem o propósito de enfa-
tizar a realidade do resultado: "que ele deu realmente o Filho unigênito".
deu. Aqui, o verbo didonai se reporta não só à Encarnação (Deus enviou o
Filho ao m undo; v. 17), mas tam bém à crucifixão (entregou à m orte - a
ideia encontrada em ser "levantado" nos vs. 14-15). E sim ilar ao uso de
paradidonai em Rm 8,32; G1 2,20; e didonai em Cl 1,4. O pano de fun-
do pode ser o do Servo Sofredor de Is 53,12 (LXX): "ele foi entregue
[paradidonai] pelos pecados deles".
o Filho unigênito. Esta é a leitura mais bem atestada, embora posteriorm en-
te copistas, provocados pela estranheza da frase, a m udaram para "Seu
Filho unigênito". Veja nota sobre "único Filho" em 1,14; tam bém NtooDY,
art. cit.
338 O Livro dos Sinais

pereça. As alternativas são ou perecer ou ter vida eterna; o m esm o contraste


está em 10,28 (veja 17,12 - Vol. 2). Apollynai é um term o característica-
m ente joanino, ocorrendo dez vezes; intransitivam ente, tem dois signifi-
cados: (a) estar perdido; (b) perecer, ser destruído.
Encontramos Jesus falando tam bém sobre não perder nenhum daqueles a
quem o Pai lhe deu (6,39; 18,9).
17. enviou. Este é paralelo a "deu" no v. 16; encontram os o m esm o par, "en-
viar" e "dar" usado para o Parácleto em 14,16 e 26. "Enviar" com refe-
rência à m issão de Jesus é expresso em João por dois verbos sem qual-
quer aparente distinção de significado: pempein (26 vezes) e apostellein
(18 vezes). Os sinóticos usam apostellein para a m issão de Jesus (exceto
Lc 20,13); Paulo usa pempein. Para João, Jesus é enviado ao m undo; para
os sinóticos, Jesus é enviado a Israel (Mt 15,24; Lc 4,43).
0 Filho. O uso absoluto de "o Filho", como contrastado com "o Pai", aparece
somente em dois ditos sinóticos (em Mc 13,32 e no "logion joanino" de
Mt 11,27 e Lc 10,22). O uso absoluto é frequente em João, a maioria com uso
paralelo a "Filho do Hom em" na tradição sinótica. Provavelmente, João
grafou com maiuscula um uso antigo porém ocasional atribuído a Jesus.
condenar. A raiz grega envolvida em krinein e krisis significa tanto "julgar"
como "condenar"; teremos que escolher de forma alternativa entre estes
dois significados de acordo com o contexto. No comentário sobre 8,15, da-
remos um estudo da relação de Jesus com julgamento, segundo João.
para que 0 mundo seja salvo. Uma com paração com o v. 16 m ostra que "ser
salvo" significa receber vida eterna. Cf. ljo 4,14: "O Pai enviou o Filho
como Salvador do m undo"; tam bém Jo 12,47 (veja comentário). A lguns
m anuscritos de Lc 9,56 dizem: "O Filho do Hom em não veio para des-
truir as alm as dos hom ens, e sim para salvá-las.
18. mas. Embora isto seja om itido em testem unhas im portantes, as redações
dos papiros Bodmer agregadas à evidência o favorecem.
quem se recusa a crer. Literalmente, "porque ele não tem crido"; o perfeito
indica um a incredulidade contínua.
19.0 julgamento é este. Esta não é um a referência à sentença, m as ao que a ação
judicial consiste.
preferiram. Literalmente, "am aram mais do que"; o hebraico não traz a pa-
lavra que expressa a nuança de significado em "preferir", e assim "am ar"
e "odiar" são am iúde contrastados para com unicar a ideia. Veja nota
sobre 12,25; tam bém Mt 6,24; Lc 14,26.
20. pratica a perversidade. O uso de um verbo "fazer, praticar" com o "bem " ou
a "verdade" ou o "m al" (aqui phaula prassein; no v. 21 "agir em verdade"
literalm ente é "fazer a verdade" - tên alêtheian poiein) é um semitismo.
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 339

O em prego no NT é peculiar a João (veja 5,29); Ap 22,15 tem "agir com


falsidade" - p o ie in p s e u d o s . Veja abaixo para paralelos em Qumran.
e x p o s t a s . O grego e le n k e in significa "expor, convencer, repreender" e, as-
sim, é m uito difícil de captar numa versão inglesa [igualmente em portu-
guês]. Sua contraparte positiva, no v. 21, é p h a n e r o u n , "m ostrar". Vemos
linguagem similar nos Rolos do Mar Morto, pois CDC 20, 2-4 fala das
obras do perverso sendo expostas a luz e objeto de reprovação.
21. a g e e m v e r d a d e . Literalmente, "faz a verdade"; veja nota sobre v. 20. No AT,
"fazer a verd ade" (‘a s ã h ' e m e t ) significa "m anter a fé". Todavia, nos Ro-
los do M ar Morto, os adeptos são instados a praticar a verdade; e isto tem
um a conotação muito parecida com o em prego de João, a saber, o de per-
petração da vida (1QS 1,5; 5,3; 8,9). Notemos que a expressão grega ocorre
na LXX também nesta forma (Is 26,10; Tb 4,6; 13,6). Veja Z erwick, a r t . c i t . ;
também Apêndice 1:2, p. 794ss sobre a "verdade".

COMENTÁRIO: GERAL

A cen a d e N ic o d e m o s é n o ssa p rim e ira in tro d u ç ã o ao d isc u rso joani-


no. É a p rim e ira e x p o sição o ra l e m João d a rev elação tra z id a p o r Jesus,
e n o s d á d e u m a fo rm a sin té tic a os p rin c ip a is tem a s d e ssa revelação.

Historicidade

Q u a n d o te n ta m o s im a g in a r esta cena o c o rre n d o n o m in isté rio de


Jesus, h á m u ito s p ro b le m a s q u e d e v e m se r e n c a ra d o s, p o r m en o res
q u e sejam . A a firm a ç ão inicial d e N ic o d e m o s n o v. 2 im p lica q u e Je-
su s o p e ro u m u ito s m ilag re s e m Je ru sa lé m , e e sta é ta m b é m a ideia
d e 2,23 e 4,45. T o d a v ia, o fato d e q u e João n ã o ter n a rra d o n e n h u m
m ilag re feito e m Je ru sa lé m tem le v a d o m u ito s a s u g e rir q u e a histó-
ria d e N ic o d e m o s su rg iu p o s te rio rm e n te n o e v a n g e lh o d e p o is q u e os
m ilag res e m Je ru sa lé m fo ra m d escrito s. M endnek, art. cit., su g e re q u e
o c e n ário a u tê n tic o p a ra a h istó ria d e N ic o d e m o s está em 7,51. M end-
ner p re s u m e q u e , d e p o is q u e N ic o d e m o s falo u em fav o r d e Jesus, ele
foi in v estig á-lo . E m se u Diatessaron (C odex F u ld en sis), u m a h a rm o n ia
d o s e v a n g e lh o s d o 2“ sécu lo , T aciano colocou a cena d e N ico d em o s
n a S e m an a S an ta, u m a rra n jo q u e L agrange acha te n ta d o r. U m a p re-
d ição d a m o rte , tal co m o a e n c o n tra d a n o v. 14, e sta ria e m m ais h ar-
m o n ia co m a S em an a S anta. G ourbillon, art. cit., reco lo caria 3,14-21
340 O Livro dos Sinais

e n tre 12,31 e 32, p o n d o a ssim p a rte d a cena d e N ic o d e m o s e m u m


c e n ário já n o final d a v id a d e Jesus. T ais exercícios d a e n g e n h o sid a d e
são s e m p re in te re ssa n te s, m as n o final re su lta d e se n c o ra ja d o ra pela
falta d e p ro v a .
O b v ia m e n te , a in te n ç ã o d e Jo ão é ilu s tra r q u e u m a fé p a rc ia l
d e N ic o d e m o s em Je su s te m p o r b a se os sin a is e p r e p a r o u o cam i-
n h o p a ra isto co m 2,23-25. L o g ic am e n te , ta l ilu s tra ç ã o v e m d e p o is
d e e x e m p lo s d e fé m ais s a tisfa tó rio s (os d isc íp u lo s em C a n á ) e de
c o m p le ta falta d e fé ("o s ju d e u s " n o te m p lo ). A ssim , a s e q u ê n c ia é
p e lo m e n o s ló g ica. B uscar e m João s e q u ê n c ia c ro n o ló g ic a p e rfe ita
é u m e sfo rço fú til, p o is o p ró p rio e v a n g e lista n o s a d v e rtiu q u e esse
n ã o era se u in te re s s e (20,30).
A q u e stã o d o v a lo r h istó ric o afeta n ã o só o lu g a r d a c en a, m as
tam b é m o s e u c o n te ú d o . N a s resp e c tiv a s n o ta s, já sa lie n ta m o s as nu-
m ero sa s d ific u ld a d e s: n o s vs. 3-4, u m p o ssív e l jogo d e p a la v ra s p erce-
b id o so m e n te em g rego; n o v. 11, Jesu s fala n o p lu ra l c o m o se a Igreja
estiv esse falan d o ; n o v. 13, é co m o se o F ilho d o H o m e m já h o u v e s-
se su b id o . E stes p ro b le m a s lev am a lg u n s a c o n s id e ra re m to d a a cena
co m o u m a criação jo an in a, o u a in d a a c o n sid e ra re m so m e n te a in tro -
d u ç ã o co m o a ex ib ir sin a is d a o rig e m d e tra d iç ã o m ais a n tig a (veja
n o ta so b re v. 2). M u ito s e stu d io so s su g e re m q u e ao m e n o s a lg u m a
p a rte d o s vs. 12-21 é u m a h o m ília d e a u to ria d o p ró p rio e v a n g e lista , e
n ão p a la v ra s d e Jesus. A referên cia ao b a tism o , n o v. 5, tem le v a d o até
m esm o u m e s tu d io so c o n se rv a d o r, co m o L agrangh, p. 72, a o b se rv a r
q u e to d a esta ex p o sição p a re c e ría m ais n a tu ra l n o s láb io s d e u m cate-
q u ista cristão m u ito d e p o is d a fu n d a ç ã o d a Igreja d o q u e n o s láb io s de
Jesu s co m o su a s p a la v ra s n o início d e seu m in isté rio .
C o m o o b se rv a m o s na In tro d u ç ã o , a relação d o s d iá lo g o s joani-
n o s com a tra d içã o p rim itiv a so b re Jesus d e N a z a ré e se u s d ito s n ã o é
u m a q u e stã o q u e se p re s ta a so lu çõ es fáceis. C e rta m e n te h o u v e rees-
tru tu ra ç ã o d o m a te ria l p e lo e v a n g elista n o s vs. 1-21, u m a m u d a n ç a
d e p e rsp e c tiv a , u m d e se n v o lv im e n to d e te m a s m ais recen tes. M as há
n estes v e rsíc u lo s p a ra le lo s sin ó tico s p a ra m u ita s d a s a firm a ç õ es iso-
lad a s a trib u íd a s a Jesus, e p a re c e p ro v á v e l q u e u m só lid o n ú c le o de
m ate ria l tra d icio n a l foi e la b o ra d o ao estilo h o m ilético p a ra a p re se n te
fo rm a d o d iálo g o . A te n ta tiv a d e a trib u ir c erto n ú m e ro d e v e rsíc u lo s
a Jesu s e certo n ú m e ro ao e v a n g elista é, e m n o ssa o p in iã o , im p o ssí-
vel. N ão há d ife ren ç a s estilísticas n o s vs. 12-21 a in d ic a r-n o s o n d e tal
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 341

d iv isã o d e v e s e r m a rc a d a . A o c o n trá rio , to d o s os elos d a tra d içã o e


d o d e s e n v o lv im e n to h o m ilético estã o d e tal m o d o e n tre te c id o s, qu e
im p e d e m q u a lq u e r se p a ra ç ã o p recisa.

A estrutura do diálogo

C o m o os vs. 1-21 d e v e m se r su b d iv id id o s? C o m b ase n a form a,


n o ta m o s q u e N ic o d e m o s faz três afirm a ç õ es em 2, 4 e 9; as d u a s últi-
m as são p e rg u n ta s explícitas, a p rim eira é tra ta d a com o u m a p e rg u n ta
im p lícita. À s trê s Jesu s d á u m a re sp o sta q u e com eça "S o len em en te eu
te a s se g u ro " (3, 5, 11 - a ú ltim a é p re c e d id a p o r u m a o b se rv a ç ã o ad
hominetn). A s três re sp o sta s d e Jesus são p ro g re ssiv a m e n te m ais lon-
g as e m seu d e s e n v o lv im e n to . A ssim , com b ase n o p o n to d e v ista ex-
c lu s iv a m e n te d a fo rm a, a seção n ã o é tão h e te ro g ê n e a co m o a lg u m a s
d a s te n ta tiv a s d e re o rg a n iz a ç ã o p o d e ría m in d icar.
H á ta m b é m u m d e se n v o lv im e n to em p e n sa m e n to . R oustang sa-
lien ta u m a refe rê n c ia ao s três a g e n te s d iv in o s q u e p o d e m , ao m enos,
fo rm a r u m tem a se cu n d á rio : as p a la v ra s d e Jesus nos vs. 3 8 ‫ ־‬d izem
re sp e ito ao p a p e l d e 0 Espírito ; a q u e la s e m 11-15 d iz e m re sp e ito a 0
Filho do Homem; a q u e la s em 16-21 d iz e m re sp e ito a D eus 0 Pai. T alvez
o p a d rã o d e u m a co m b in a çã o d e fo rm a e p e n s a m e n to n o s d ê a m elh o r
d iv isã o (veja R oustang , p. 341; D e la P otterie, p p . 430-31). A p ó s o
p rim e iro v e rsíc u lo in tro d u tó rio q u e se g u e 2,23-25 e situ a a cena com
m ais p rec isão , tem os:

1. Vs. 2-8. A g e ra ç ã o d o alto, a tra v é s d o E spírito, é necessária p a ra ter


acesso a o rein o d e D eus; o n a sc im e n to n a tu ra l é insuficiente.
(a) 2-3: P rim e ira p e rg u n ta e resp o sta: o fato d a g eração p a rtir de
cim a.
(b) 4-8: S e g u n d a p e rg u n ta e resp o sta: o co m o d a g eração - a tra v és
d o E spírito.
2. Vs. 9-21. T u d o isto se to rn a p o ssív e l u n ic a m e n te q u a n d o o Filho
h o u v e r s u b id o p a ra o Pai, e só é o ferecid o ao s q u e creem
e m Jesus.
9-10: A terceira p e rg u n ta e re sp o sta in tro d u z to d a esta seção.
(a) 11-15: O F ilho tem d e su b ir ao Pai (a fim d e d a r o E spírito).
(b) 16-21: A fé e m Je su s é n e c e ssá ria p a ra b e n e fic ia r-se d e ste
dom .
342 O Livro dos Sinais

C re m o s q u e o e v a n g elista d e ix o u a lg u n s sin ais d e q u e e ste era


a p ro x im a d a m e n te o p la n o q u e ele se g u iu n a o rg a n iz a ç ã o d o d isc u rso .
A D iv isão 1 com eça com a c erteza d e N ico d em o s: "S a b em o s q u e tu és
m estre"; isto se c o n tra p õ e no início d a D iv isão 2 p e la a firm a ç ão d e Je-
sus: "T u exerces o ofício d e mestre d e Israel... e sta m o s fa la n d o d o q u e
sabemos". A lém d o p a d rã o sim ila r n as d u a s d iv isõ es, to d o o d isc u rso
p a re c e ser u n ific a d o p o r u m a in clu são . A cena com eça co m N ico d e-
m o s v in d o p a ra Jesu s d e noite; ele te rm in a n o tem a d e q u e os h o m e n s
têm d e d e ix a r as tre v a s e v ir p a ra a luz. N ic o d e m o s a b re o d iá lo g o
e lo g ia n d o Jesu s co m o u m mestre q u e veio de Deus; a ú ltim a p a rte d o
d iálo g o m o stra q u e Jesu s é o U n ig ê n ito d e D eu s (v. 16) a q u e m D e u s
e n v io u ao m u n d o (17) co m o a lu z p a ra o m u n d o (19). Se c o n sid e ra r-
m o s 2,23-25 co m o a in tro d u ç ã o à cena d e N ic o d e m o s, a in d a h á o u tra
inclusão: em 2,23 o u v im o s d o s q u e "cre e m e m seu n o m e " , m a s su a fé
era in satisfató ria, p o rq u e n ã o v ie ra m p a ra v e r q u e m ele era; e m 3,18
e n c o n tra m o s u m a in sistên cia d e q u e a sa lv a ç ão só p o d e v ir a o s q u e
"creem n o n o m e d o U n ig ên ito d e D eu s".

COMENTÁRIO: DETALHADO

Divisão 1. O significado básico de 3,2-8

N o sso p rim e iro in te resse será o sig n ificad o b ásico d a c o n v e rsa q u e o


e v a n g elista in fo rm a co m o te n d o o c o rrid o e n tre Jesu s e N ic o d e m o s,
isto é, o sig n ificad o q u e N ic o d e m o s teria sid o a p to a c o m p re e n d e r na
cena tal como é re tra ta d a . E ntão, n u m a d isc u ssã o s e p a ra d a d isc u tire -
m o s a o rie n taç ã o b a tism a l d a cen a tal co m o p o d e ría te r sid o se c u n d a -
ria m en te re in te rp re ta d a n a p re g a ç ã o litú rg ic a jo an in a.
N ico d em o s é u m d o s m en cio n ad o s em 2,23-25 q u e creem em Je-
su s em razão d o s sinais q u e viram ; se u "n ó s" q u a se faz d ele seu p o rta -
voz. Em 2,24-25, Jesus reag iu d esfa v o rav e lm e n te p a ra com a fé deles,
e esta m esm a reação acolhe a sa u d a ç ã o d e N icodem os. T u d o o q u e os
sinais e n sin a ram a N ico d em o s é q u e Jesus é u m rab in o d istin to , u m
d e n tre os m u ito s rab in o s p a ra q u e m os m ilag res são a trib u íd o s nos
escritos judaicos. A lg u n s e stu d io so s in te rp re ta ria m " u m m estre q u e
veio d e D eu s" co m o u m a referência ao P rofeta-sem elhante-a-M oisés
d e D t 18,18. E n tretan to , seria difícil explicar a reação d e sfa v o ráv e l de
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 343

Jesus se a fé d e N ic o d e m o s fosse m ais p ro fu n d a ; além d o m ais, o artigo


in d e fin id o a n te s d e "m e stre " p arece excluir u m a referência tão precisa.
P o rta n to , em n o ssa in te rp re ta ç ã o , a a b o rd a g e m d e N ic o d e m o s a
Je su s é b e m in te n c io n a d a , p o ré m teo lo g ic a m en te in a d e q u a d a . D e um
la d o p o d e m o s n o ta r q u e , n o s te m p o s a n tig o s, a visita d e N ico d em o s
seria v ista c o m o p a rte d o e sq u e m a farisaico p a ra e n re d a r Jesus. Dis-
c u tire m o s o P a p iro E g e rto n 2 ab aix o (p. 458); esta o b ra c o m b in a Jo 3,2
(+ 10,25) co m a cap cio sa q u e stã o so b re o trib u to a C é sa r (M t 2 2 ,1 5 2 2 ‫)־‬:

C h eg an d o -se a ele, ten ta ra m -n o com u m a astuciosa p e rg u n ta , di-


zen d o : "M estre Jesus, sabem os q u e v ieste d e D eus, p ois o q u e estais
faz e n d o d á teste m u n h o acim a d e to d o s os profetas. Então, dize-nos,
é lícito o u n ão p a g a r aos reis o q u e p erten ce ao seu governo?"

A re s p o s ta d e Jesu s e m 3,3 p a re c e a c o lh e r a sa u d a ç ã o d e N icode-


m o s co m o u m a ex ig ên cia im p lícita so b re o acesso ao rein o d e D eus.
Isso n o s re c o rd a o caso d e o u tro m e m b ro d o S in éd rio (Lc 18,18) q u e
v eio e se d irig iu a Jesu s co m o "M e stre " e lh e p e rg u n to u o q u e se d ev e
fazer p a ra h e rd a r a v id a e te rn a. N o fin al d o d iálo g o Jesus o b se rv o u
q u ã o d ifícil é q u e os h o m e n s ricos " e n tre m n o rein o d e D e u s" (veja
Jo 3,5). N ã o h á ra z ã o p a rtic u la r p a ra id en tifica r as cen as lu ca n a s e
jo an in a s, m a s o p a ra le lo é ú til p a ra m o stra r q u e a cena d e João n ão é
tão e s tra n h a co m o p o d e p a re c e r à p rim e ira vista. Em a m b o s os casos,
a a p ro x im a ç ã o a Jesus, co m o fé, é e x p lic ad a co m o o desejo d e e n tra r
n o rein o q u e Jesu s e sta v a p ro c la m a n d o .
A re s p o s ta d e Jesus se d e stin a a m o stra r a N ic o d e m o s q u e Jesus
n ão v e io d e D eu s n o se n tid o e m q u e N ic o d e m o s p e n sa v a (u m h o m em
a p ro v a d o p o r D eus), m as n o se n tid o ú n ico d e h a v e r d e scid o da p re-
sen ça d e D e u s p a ra e le v a r ao s h o m e n s a té D eus. O s co m e n tarista s
têm n o ta d o q u e Jesu s n ã o re s p o n d e à in d a g a ç ã o d e N ic o d e m o s di-
re ta m e n te . N ã o o b sta n te , a tática d o d isc u rso jo an in o é se m p re q u e a
re s p o s ta tra n s p o n h a o tem a a u m n ív el m ais e lev ad o ; o q u e stio n a d o r
fica n o n ív el d o sen sív el, m a s d e v e elev ar-se ao n ív el d o e sp iritu a l.
U m a a p re c ia ç ã o d a d iferen ça ra d ic a l e n tre a c a rn e e o E sp írito é a ver-
d a d e ira re s p o s ta a N ico d em o s.
N a s re sp e c tiv a s n o tas, te m o s re ssa lta d o q u e há d iv e rso s m al-en-
te n d id o s e n v o lv id o s n a rea ç ã o d e N ic o d e m o s à s p a la v ra s d e Jesus. Es-
tes m a l-e n te n d id o s - u m e s tra ta g e m a fre q u e n te n o d isc u rso jo an in o -
344 O Livro dos Sinais

lev am Jesu s a ex p licar m ais p le n a m e n te . A o in te rp re ta rm o s o q u e Je-


su s d iz a N ic o d e m o s, e sta re m o s e q u iv o c a d o s se d e ix a rm o s d e reco-
n h ecer a s im p lic id a d e básica d a s id éia s e n v o lv id a s. U m h o m e m se
rev este d e c a rn e e p e n e tra a esfera d o m u n d o p o rq u e se u p a i o gera;
u m h o m e m só p o d e e n tra r n o rein o d e D eu s q u a n d o fo r g e ra d o pelo
Pai celestial. A v id a só p o d e v ir a u m h o m e m a tra v é s d e se u p a i; a
v id a e te rn a v em d o Pai celestial a tra v é s d o F ilho a q u e m ele capaci-
to u p a ra d a r v id a (5,21). O ru d e rea lism o d a g era ç ã o d a v id a e te rn a é
s e m p re m ais b ru ta l e m l j o 3,9, o n d e lem o s q u e a q u e le q u e é g e ra d o
p o r D eu s p o s s u i a semente d e D eu s p e rm a n e n te nele. A im a g e m d e ge-
rar, re g e n e raç ã o e se m e n te d iv in a a p a re c e m e m o u tra s o b ra s jo an in a s,
lP d 1,23 e T t 3,5. O u tra im a g e m u s a d a p e lo s p rim e iro s c ristã o s p a ra
ex p licar co m o se to rn a ra m filhos d e D e u s foi a a d o ç ã o re a liz a d a p o r
D eu s e q u e a p a re c e n a s p rin c ip a is o b ra s p a u lin a s (G1 4,5; R m 8,23).
N ic o d e m o s n ã o e n te n d e o q u e Jesus d isse so b re u m g e ra r d o alto
e p e n sa q u e significa sa ir d o v e n tre o u tra vez. N ã o h a v ia n a d a no
p e n s a m e n to ju d a ic o q u e o p re p a ra ss e p a ra e n te n d e r o te m a d e Jesus,
d a n e c e ssid a d e d e se to rn a re m filhos d e D e u s a tra v é s d e se r g e ra d o
p elo Pai? N o s p rim e iro s e stá g io s d a teo lo g ia d o AT, to d o o Israel foi
tra ta d o co m o filho p rim o g ê n ito d e D eu s (Ex 4,22; D t 32,6; O s 11,1).
E n tre tan to , n ã o p o d e m o s d iz e r q u e a filiação seja u m tem a d e su m a
im p o rtâ n c ia n a re d a ç ã o e n tre Israel e Iah w e h ; a lém d o m ais, o n d e se
m en cio n a filiação, esse é o re s u lta d o d e esco lh a p a c tu a i - n ã o h á id eia
clara d e g eração p o r D eus. C o m o e sta b e le c im e n to d a m o n a rq u ia d a-
v íd ica, o rei u n g id o (m essias) d o p o v o d e D eu s foi s a u d a d o c o m o o
filho d e D eu s (2Sm 7,14; SI 2,7; 89,27). E m b o ra a im a g e m p o ssiv e lm e n -
te tiv esse su a s ra íz e s n o s p a ra le lo s p a g ã o s (egípcios) o n d e se p e n sa v a
q u e u m d e u s g e ra sse se x u a lm e n te u m rei d e u m a m u lh e r h u m a n a ,
o co n ceito israelita específico asso ciav a a filiação co m a u n ç ã o q u e
to rn a v a u m h o m e m rei. E im p o rta n te q u e o te rm o " g e ra r" a p a re c e no
SI 2 p a ra d e sc re v e r a u n ção . (C o m p are l j o 2,20.27, q u e fala d o c ristã o
se n d o u n g id o p o r D eu s e se n d o g e ra d o p e la se m e n te d e D eus).
S o m en te n o e stá g io pós-exílico d o p e n s a m e n to isra e lita é q u e
e n c o n tra m o s p ie d o so s isra e lita s in d iv id u a is se n d o d e s ig n a d o s filh o s
d e D eus. E m d e te rm in a d a s p a ssa g e n s, isto é c la ra m e n te c o n sid e ra -
d o co m o u m a re c o m p e n sa fu tu ra , isto é, n o s ú ltim o s te m p o s o ho-
m em ju sto será c o n ta d o co m o filho d e D eu s (Sb 5,5; SI d e S a lo m ão
17,30). O u tra s p a ssa g e n s c o n sid e ra m o h o m e m ju sto e m s u a v id a
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 345

a tu a l co m o filho d o A ltíssim o q u e é concebido com o Pai (Siraque 4,10;


23,1.4; Sb 2,13.16.18). O m esm o fe n ô m e n o d e a sp ira ç õ e s d a filiação
a tu a l e fu tu ra , v ice jan d o la d o a lad o , se e n c o n tra n o N T. O s sinóticos
p a re c e m c o n s id e ra r a filiação co m o u m a p ro m e ssa a se r co n c re tiz a d a
s o m e n te a p ó s a m o rte (Lc 20,36; e 6,35, c o m p a ra d o com M t 5,44-45).
P ara João, a filiação se co n c re tiz a n e sta v id a assim q u e Jesus ressu r-
re to d á o E sp írito (veja c o m e n tá rio so b re 20,17.22, no v o lu m e II).
A teo lo g ia cristã tem co n c ilia d o estes p o n to s d e v ista, rec o n h e c en d o
q u e a v id a fu tu ra n a p rese n ç a d e D eus é d ife re n te na m a n e ira e in ten -
s id a d e d a v id a q u e o ra p o ssu ím o s, p o ré m n ã o d ife re n te em gênero.
S o m o s filh o s d e D e u s a g o ra , m u ito e m b o ra a p ó s a m o rte sejam os fi-
lh o s d e u m a m a n e ira m u ito m ais p e rfe ita . E p rec iso n o ta r b e m o u tra
d ife ren ç a e n tre a p e rsp e c tiv a sin ó tica e a d e João: p a ra os sinóticos, os
a to s b o n s fazem a lg u é m se m e lh a n te a D eu s e, assim , m em b ro d e Sua
fam ília; João fala d e g e ra ç ã o re a liz a d a p o r D eus.
E a ssim h o u v e , ao m en o s, u m a lim ita d o p a n o d e fu n d o vetero-
te s ta m e n tá rio q u e teria c a p a c ita d o N ic o d e m o s a e n te n d e r q u e Jesus
e sta v a p ro c la m a n d o a c h e g a d a d o s te m p o s escato ló g ico s, q u a n d o os
h o m e n s se ria m filh o s d e D eus. E ste co n ceito e ra c o n h e cid o d o Judaís-
m o a in d a q u e o tem a d a g eração d iv in a até e n tã o n ã o tivesse recebí-
d o m u ita ên fase. E p re c isa m e n te no tem a d a g era ç ã o q u e N ico d em o s
tro p eça; e su a in c o m p re e n sã o leva Jesu s a e s te n d e r su a explicação nos
vs. 5ss. Já v im o s q u e 1 João u sa a m etá fo ra d a se m e n te d e D eus p a ra
ex p licar co m o D eu s gera filhos; João, ao c o n trá rio , rec o rre ao conceito
d o E sp írito . H á u m b o m n ú m e ro d e e s tu d o s so b re a n o ção h eb raica d e
e sp írito o u fô leg o d a v id a (as p a la v ra s são in te rca m b iá v e is) n o s artig o s
d e P. van I mschoot, RB 44 (1935), 481-501, e J. G oitia, EstBib 15 (1956),
147-85, 341-80; 16 (1957), 115-59. H oje, u m d o s testes m ais sim p les da
v id a é v e r se u m a p e sso a a in d a está re sp ira n d o ; assim ta m b é m p a ra o
a n tig o h e b re u o fôlego ou e sp írito e ra o p rin c íp io d e v id a. O h o m em
é, re s p e c tiv a m e n te , c a rn e e e sp írito , m a s seu e sp írito é p erecível; e ele
é o c a ta liz a d o r d o e sp írito d e D e u s q u e m a n té m o h o m em vivo. D eus
d e u v id a ao h o m e m q u a n d o n a criação s o p ro u n e le o fôlego d e v id a
(Gn 2,7); a m o rte o co rre q u a n d o D eus retira Seu e sp írito ou fôlego
(Gn 6,3; Jó 34,15; Ec 12,7).
Se a v id a n a tu ra l é a trib u íd a ao a to d e D eu s d a r e sp írito aos ho-
m en s, a ssim a v id a e te rn a com eça q u a n d o D eus d á ao s h o m en s seu
E sp írito S anto. A g era ç ã o a tra v é s d o E sp írito d e q u e fala o v. 5 p arece
346 O Livro dos Sinais

ser u m a referên cia ao d e rra m a r d o E sp írito a tra v é s d e Jesu s q u a n d o


ele foi e le v a d o n a c rucifixão e re ssu rre iç ã o (veja c o m e n tá rio so b re 7,39;
19,30.3435‫)־‬. O Jesus re s s u rre to se refere ao s d isc íp u lo s c o m o se u s ir-
m ão s e lh es d iz q u e seu Pai é ag o ra o Pai d e le s, p o rq u e ele s o p ra sobre
eles e são rec ria d o s p e lo E sp írito S an to q u e receb em (veja c o m e n tário
so b re 20,17.22, n o v o lu m e II).
O d o m d o E sp írito d e D eu s p a re c e ser a id eia p rin c ip a l n o v. 5;
c o n tu d o , h á u m a a n tig a in te rp re ta ç ã o p a trístic a d e " g e ra ç ã o d o espí-
rito " em term o s d e a c eita r a rev e laç ã o d e Jesu s p e la fé e v iv e r a v id a
e s p iritu a l - a ssim , n ã o ta n to o E sp írito d e D eus, m a s u m n o v o e sp írito
n o in te rio r d o in d iv íd u o . D e la P otterie, p p . 420-22, cita o Pastor de
Hermas, J ustino, I rineu e A gostinho p a ra este p o n to d e v ista , e su g e re
q u e esta é a referên cia p rim á ria n o v. 5. N ã o a c eita m o s e sta referên cia
co m o p rim á ria , m a s n a d a há n e sta in te rp re ta ç ã o d o v. 5 q u e p o r-
v e n tu ra c o n tra d ig a n o sso p o n to d e v ista. A d o a ç ã o d o E sp írito d e
D eu s c o rre s p o n d e u m a aceitação d a p a rte d o c re n te p e la fé e u m a
n o v a fo rm a d e v id a. M as o d o m d o E sp írito d e D eu s é p rim á rio , p o is
ele é a q u e le E sp írito , o E sp írito d a v e rd a d e , q u e ca p ac ita os h o m e n s a
co n h ecer e a cre r n a rev elação d e Jesu s (14,26; 16,14-15).
A caso N ic o d e m o s p o d e ria ter e n te n d id o este g e ra r d o E spírito?
O d e rra m a m e n to d o e sp írito d e D e u s e ra u m im p o rta n te a sp e c to na
im a g e m v e te ro te s ta m e n tá ria d o s ú ltim o s d ias. P a ra Is 22,15, a v in d a
d a q u e le s te m p o s é d e scrita co m o q u a n d o "o e sp írito for d e rra m a d o
d o alto so b re n ó s". Em J1 2,28-29, o u v im o s a p ro m e ssa d e q u e n a-
q u eles d ia s " d e rra m a re i m e u e sp írito so b re to d a a c a rn e " . E m v á ria s
p a ssa g e n s, os tem a s d e á g u a e e sp írito são a sso c ia d o s c o m o e m Jo
3,5; p o r ex em p lo , e m Ez 36,25-26, d isse Iah w eh : " A sp e rg ire i á g u a
p u ra so b re vós... d a r-v o s-e i u m co ração n o v o e u m e s p írito n o v o
p o rei d e n tro d e vós... p o re i o m e u e sp írito d e n tro d e v ó s" (ta m b ém
Is 44,3). A co n ex ão e n tre o d o m d o e sp írito e to rn a r-se filhos d e D eu s
se e n c o n tra e m Jubileus 1,23-25 d o 2a sécu lo a.C.: "E u c riarei n e le s u m
e sp írito s a n to e os p u rificarei... serei seu P ai e eles se rã o m e u s filhos".
N o p ró p rio te m p o d e N ic o d e m o s, to d o s o s q u e e n tra sse m n a c o m u -
n id a d e essên ia d e Q u m ra n o u v ia m esta d escrição d o d ia d a v isitaç ã o
d iv in a , q u a n d o D eus e rra d ic a sse d o h o m e m o e sp írito d e falsid a d e :
"E le o p u rific a rá d e to d o s os a to s p e rv e rso s p o r m eio d e u m e sp írito
san to ; co m o á g u a s p u rific a d o ra s, Ele e s p a rg irá so b re ele o e s p írito d a
v e rd a d e " (1QS 4,19-21). A ssim , e n q u a n to n ã o se p o d ia e s p e ra r q u e
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 347

N ic o d e m o s e n te n d e s s e o a sp e c to p a rtic u la r d o E sp írito q u e é p ró p rio


ao e n s in o d e Jesu s, ao m e n o s as p a la v ra s d e Jesu s teriam se n tid o p a ra
q u e m o d e rra m a m e n to escato ló g ico d o E sp írito era im in en te, p re p a -
ra n d o o h o m e m p a ra a e n tra d a no rein o d e D eus.
C o n tin u a n d o co m João, o v. 6 fo rn ece o u tro a sp ec to d o d u a lism o
jo a n in o . C o n tra s ta m -s e c a rn e e e sp írito , ju sta m e n te co m o se co n tras-
ta v a g e ra r e m u m s e n tid o te rre n o com o g e ra r d e cim a. O c o n tra ste
e n tre c a rn e e E sp írito n ã o tem n a d a a v e r com o c o n tra ste e n tre cor-
p o e a lm a o riu n d o d o d u a lis m o a n tro p o ló g ic o greg o ; ta m p o u c o tem
a lg o a v e r co m u m c o n tra ste e n tre m a te ria l e e s p iritu a l, p o is em João
n ã o h á d e s c o n fia n ç a g n ó stic a acerca d a m a té ria co m o tal. "C a rn e "
se re fe re ao h o m e m co m o é n a sc id o n e ste m u n d o ; e n e ste e sta d o ele
tem a lg o ta n to d o m a te ria l q u a n to d o e s p iritu a l, co m o in siste G n 2,7.
O c o n tra s te e n tre c a rn e e E sp írito é a q u e le e n tre h o m e m m o rta l (na
e x p re s s ã o h e b ra ic a , " u m filh o d e h o m e m " ) e u m filho d e D eu s, e n tre
h o m e m co m o é e h o m e m co m o Je su s p o d e tra n sfo rm á -lo , d a n d o -lh e
o E sp írito S anto.
O s vs. 7-8 a d m ite m q u e existe alg o m isterio so so b re este g e ra r d e
cim a a tra v é s d o E spírito. N ã o h á n a d a d e e stra n h o nisso, p o is tu d o o
q u e v ê m d e D eu s têm u m elem en to d e m istério. Fornece-se u m sím i-
le, n ã o p a ra ex p licar o c a rá te r p reciso d o m istério, m as p a ra m o strar
q u e o fato d o m istério d e m o d o a lg u m rem o v e a rea lid a d e d a ação do
E spírito. N ão s u rp re e n d e q u e ser g e ra d o a tra v és d o pneuma (Espírito)
é m isterio so ; p o is, e m b o ra p o ssam o s v e r os efeitos d o pneuma (vento
- veja n o ta so b re v. 8) so b re to d o s nós, n in g u é m p o d e realm en te v er o
pneuma (vento) q u e cau sa tais efeitos. A ssim tam b ém é p o ssív el ver os
q u e são g e ra d o s d e cim a a tra v é s d o pneuma (E spírito), os q u e têm acei-
tad o Jesus, sem v e r p rec isam e n te q u a n d o ou com o este pneuma (Espí-
rito) os g era, e sem sab er p o r q u e u m h o m e m aceita Jesus e o u tro , não.
P o d e m o s acrescer q u e a in c a p a c id a d e d o s h o m en s d e sab erem d o n d e
o pneuma v em o u p a ra o n d e ele v ai n ã o é d iferen te d a ignorância dos
h o m en s so b re d o n d e Jesus v e m e p a ra o n d e ele está in d o (p. ex., 7,35).
O E sp írito é o E spírito d e Jesus; o E spírito e Jesus, resp ectiv am en te, são
d e cim a, e p o r isso são m isterio so s p a ra os h o m e n s d e baixo.
O sím ile d o v e n to n ã o é o rig in a l e m João. E n c o n tra m o s algo
sim ila r e m Ecl 11,5: "A ssim co m o tu n ã o sab es q u a l o c a m in h o d o
v e n to , n e m co m o se fo rm a m os o sso s n o v e n tre d a q u e está g ráv id a ,
a ssim ta m b é m n ã o sab es as o b ras d e D eu s, q u e faz to d a s as coisas".
348 O Livro dos Sinais

N ão está claro se e m E clesiastes significa " e sp írito " o u " v e n to " , m as


n ão é d ife ren te d a a m b ig u id a d e d e Jo 3,8. D odd , Tradition, p p . 364-65,
c o m p a ra o sím ile n o v. 8 com u m a frase n a p e q u e n a p a rá b o la d e
M c 4,26-29: "a se m e n te b ro ta sse e crescesse, n ã o s a b e n d o ele c o m o ".
A m b o s são d ito s p a ra b ó lic o s b a se a d o s no re c o n h e c im e n to d a e sp o n -
ta n e id a d e e in e s c ru ta b ilid a d e d o p ro ce sso n a tu ra l. Esta é o u tra in d i-
cação d e q u e o d iálo g o com N ic o d e m o s tem v e rsíc u lo s q u e p a re c e m
refletir tra d iç ã o p rim itiv a .

Adendo à Primeira Divisão. A interpretação batismal do v. 5

A té a q u i, in te rp re ta m o s o d isc u rso d e Jesus a N ic o d e m o s e m u m


n ív el q u e o p ró p rio N ic o d e m o s p u d e s s e ter e n te n d id o c o n tra u m p a n o
d e fu n d o v e te ro te sta m e n tá rio d a s id éia s so b re filiação, e s p írito etc.
E n tre tan to , p o d e h a v e r certa d ú v id a d e q u e os leito res c ristã o s d e João
teriam in te rp re ta d o o v. 5, " se r g e ra d o d a á g u a e d o E sp írito ", c o m o
u m a referên cia ao b a tism o cristão; e assim tem o s u m n ív el s e c u n d á rio
d e referên cia sa cra m e n tal. D esn ecessário d ize r, se p e n s a rm o s e m Jo
3 co m o b a s e a d o em u m a cena h istó rica, N ic o d e m o s n ã o p o d e ria ter
e n te n d id o n a d a d o b a tism o c ristã o o u d a teo lo g ia d o re n a sc im e n to
asso ciad a a ele. Q u a n d o m u ito , se fosse b e m n o tó rio q u e Je su s era
b a tiz a d o r co m o João B atista (3,26), N ic o d e m o s p o d e ria te r e n te n d id o
a referên cia à á g u a em term o s d e ste tip o d e b a tism o . O u p o d e ria ter
v in d o à su a m e n te o b a tism o ju d aic o d e p ro sé lito , c o stu m e n o q u a l
o p ro sé lito b a tiz a d o era c o m p a ra d o a u m a crian ça re n a sc id a (o cos-
tu m e d o b a tis m o d e p ro sé lito p a re c e te r tid o in g re sso n o Ju d a ísm o
em a lg u m m o m e n to d o 1“ sécu lo d.C .). M as n e n h u m d e ste s b a tism o s
se e q u ip a ra ao b a tism o cristão , d a í te rm o s d e in v e stig a r u m n ív el d e
c o m p re en sã o q u e v ai além d a cena h istó rica v isu a liz a d a na n a rra tiv a .
V isto q u e a a lu sã o a o b a tism o g ira em to rn o d a frase " d a á g u a " ,
n o v. 5, su rg e a q u e stã o se d e v e m o s c o n sid e ra r e sta frase c o m o p e rti-
n e n te à tra d içã o m ais a n tig a d a cena ou co m o u m a a d iç ã o p o ste rio r.
A lg u n s in d a g a m se foi d ito p o r Jesus o u a d ic io n a d o p e lo e v a n g elista .
O u tro s (a m iú d e os q u e to m a m p o r a d m itid o q u e to d o o d isc u rs o é
u m a m era co m p o sição jo an in a e q u e n a d a nele foi d ito p e lo Jesus
d e N a z a ré ) in d a g a m se a frase era p a rte d a o b ra d o e v a n g e lista ou
foi a d ic io n a d a p e lo red a to r. P ara Bultmann , p o r e x e m p lo , a frase é a
c o n trib u iç ã o d o R e d a to r E clesiástico q u e e stav a te n ta n d o in tro d u z ir
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalem 349

s a c ra m e n ta lism o n o e v a n g elh o . E n tre os q u e a c o n sid e ra m co m o u m a


a d iç ã o p o s te rio r n u m a fo rm a o u n o u tra estã o K. L ake, W ellhausen,
Lohse e u m cre sc e n te n ú m e ro d e católicos, p o r e x em p lo , Braun, Léon -
D ufour, V an den Bussche, F euillet, L eal, D e la P oterie, q u e p ro p õ e m
a te o ria d a a d iç ã o com g ra u s d iv e rso s d e p ro b a b ilid a d e .
V isto q u e n ã o h á n e n h u m a e v id ê n c ia tex tu a l c o n tra to d a a a u ten -
tic id a d e d a frase " d a á g u a " , o q u e leva os e stu d io so s a p e n s a r q u e esta
é u m a a d iç ã o p o s te rio r à tra d iç ã o jo an in a? Primeiro, a frase n ão p arece
a d e q u a r-s e às id é ia s e p a la v ra s n o contexto. Esta é a ú n ica referên cia a
á g u a e m to d o o d isc u rso . Se o m itirm o s esta e x p re ssã o , e n tã o o v. 5 lê
" se m se r g e ra d o d o E sp írito "; e este é u m p a ra le lo m e lh o r em exten-
são e fo rm a ao v. 3, " se m ser g e ra d o d e c im a", d o q u e a re d a ç ã o a tu al
d o v. 5. A s id é ia s d o v. 5 são d e se n v o lv id a s n o s vs. 6-8, m as n aq u eles
v e rsíc u lo s só h á m en ç ã o d o E sp írito , e n ã o d a á g u a . A liás, o v. 8 q u ase
re p e te o v. 5 q u a n d o fala d e " to d o o q u e é g e ra d o d o E sp írito ", e não
m en c io n a á g u a . H á d e se a d m itir-se q u e e sta s objeções p o ssu e m peso.
U m segundo a rg u m en to u sad o contra a auten ticid ad e da expressão
"d a á g u a " é teológico. É fraca a objeção d e qu e N icodem os não podería
ter en te n d id o a frase e que, p o rtan to , ela não era p arte d a tradição original.
Já m o stram o s acim a q u e m uitas d a s p assagens veterotestam entárias que
m en cio n am o d erra m a m en to d o espírito tam bém m encionam água; assim
ág u a e espírito v ão juntos. A lém d o m ais, diversas o u tras passagens nas
obras joaninas u n e m á g u a e Espírito (7,38-39; ljo 5,8), e assim o v. 5 não
é u m caso isolado. Se a expressão "d a ág u a" era p arte d a form a original
d o discurso, en tão teria sido en ten d id a p o r N icodem os contra o p an o de
fu n d o v eterotestam entário, ain d a qu e não em term os d o batism o cristão.
O terceiro a rg u m e n to se baseia no p re ssu p o sto anti-sacram enta-
lism o d o ev an g elista; isto significa q u e to d as as referências aos sacra-
m en to s têm d e ser a trib u íd a s ao R ed ato r Eclesiástico. N a In tro d u ç ão já
rejeitam o s este p o n to d e vista, e aq u i não o ach am o s p a rticu la rm e n te
co n v in cen te. A e x p ressão "d a á g u a " n ã o é a única referência ao ba-
tism o n e sta cena, e assim su a p resen ça n ão p o d e ser explicada com o
u m ato iso la d o d a censura. O d iálo g o com N ico d em o s é se g u id o im e-
d ia ta m e n te p o r u m relato em q u e se enfatiza, resp ectiv am en te, q u e o
Batista e Jesu s esta v a m batizando. V erem os q u e este relato não é um a
seq u ên cia cronológica real ao d iscu rso d e N icodem os, e u m a d as ra-
zões m ais p lau sív e is p a ra ser colocado o n d e o ra está é precisam en-
te p o rq u e seu tem a b atism al faz p a ra lelo ao d a cena d e N icodem os.
350 O Livro dos Sinais

O u tra su g estão d e u m a referência ao b atism o se en co n tra n o v e rb o "ser


g erad o " n o s vs. 3 e 5; com o v im os n a respectiva nota, este v erb o p o d e ria
tam b ém ter sid o e n te n d id o p elos p rim eiro s cristãos no sen tid o d e "ser
nascido". (Bultmann, p. 96, inclusive su g ere q u e este era o significado
p rete n d id o p elo evangelista). O tem a d e "ser n ascid o [outra vez]" é de
caráter b atism al em lP d 1,23 (cf. "ren ascer" em Tt 3,5). O fato d e q u e as
versões an tig as tra d u z ire m Jo 3,3 e 5 e m term o s d e ser n ascid o o u tra vez
significa q u e, d e sd e os d ias m ais antigos, esta p assag em foi co n sid erad a
em u m contexto batism al. P ara o a n tig o u so batism al d e 3,5 n a a rte e
inscrições n as catacum bas, veja F.-M. Braun, R T hom 56 (1956), 647-48.
Q u a n d o to d o s estes a rg u m e n to s são a v a lia d o s, n ã o c h e g a m o s a
n e n h u m a c e rteza co n clu siv a. O tem a b a tism a l q u e se ach a e n tre te c id o
n o texto d e to d a a cena é se c u n d á rio ; a e x p re ssã o " d a á g u a " , n a q u a l o
tem a b a tism a l se e x p re ssa com to d a c lareza p o d e ter sid o s e m p re p a r-
te d a cen a, e m b o ra o rig in a lm e n te n ã o tiv esse u m a referên cia específi-
ca ao b a tis m o cristão ; o u p o d e se r q u e a frase te n h a sid o a d ic io n a d a à
tra d içã o ta rd ia a fim d e p ô r e m relev o o tem a b atism al.
Em fav o r d a a lte rn a tiv a a n te rio r, p o d e m o s a g re g a r o exem -
p io d e u m d ito sin ó tico d e Jesu s q u e p a re c e ter sid o re in te rp re ta -
d o co m o u m a referên cia ao b a tism o . F alam o s d e M t 18,3 (M c 10,15;
Lc 18,17): "se n ã o v o s c o n v e rte rd e s e n ã o v o s fiz e rd e s co m o m en in o s,
d e m o d o a lg u m e n tra re is n o rein o d o s céu s". E ste v e rsíc u lo e stá tão
u n id o ao q u e tem o s em Jo 3,3 e 5 (to rn a r-se filh o s = se r g e ra d o ; e m
a m b o s os v e rsíc u lo s, este é o re q u isito p a ra e n tra r n o rein o d o céu),
q u e Bernard e J. J eremias p e n s a m q u e são v a ria n te s d o m e sm o d ito d e
Jesus. D odd , Tradition, p p . 3 5 8 5 9 ‫־‬, é in c lin a d o a c o n c o rd a r; e p e n sa q u e
a fo rm a d o d ito d e João v e m d e u m a fo rm a d e tra d iç ã o m a is a n tig a e
in d e p e n d e n te , e n ã o d e a lg u m a a d a p ta ç ã o d e M ateu s. J. D upont , Les
Béatitudes (L ouvain: N a u w e la e rts, 1954), p p . 150-58, a rg u m e n ta q u e o
sig n ificad o o rig in a l d o d ito m a te a n o foi u m a exigência p a ra to rn a r-se
u m d o s anaivim, isto é, os h u m ild e s q u e são d e p e n d e n te s d e D eu s, o
rem a n esc e n te q u e h a v ia m se p re p a r a d o p a ra a in te rv e n ç ã o m essiân i-
ca d e D eu s e q u e são re p re s e n ta d o s n o N T p e lo s p o b re s, os p ro sc rito s,
os d o e n te s e os p e q u e n in o s. A d isp o siç ã o d e d e p e n d ê n c ia d e D eu s,
sim b o liz a d a p o r to rn a r-se p e q u e n in o s, p re d is p o s to s a a c e ita r Je su s e
assim e n tra r n o rein o . E n tre tan to , o d ito m a te a n o foi re in te rp re ta d o
em term o s d e b a tism o , d e m o d o q u e " to rn a r-se p e q u e n in o s " significa
ser b a tiz a d o s; p a ra p ro v a s, veja J. J eremias, Infant Baptism in the First
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 351

Four Centuries (L ondres: SC M , 1960), p p . 48-52. É in te re ssa n te n o tar


q u e J ustino Apologia 161 (PG 6:420) p a re c e c ita r u m a fo rm a c o m b in a d a
d o s d ito s m a te a n o s e jo an in o s: "A m en o s q u e v o s ren asceis, n ã o en tra-
reis n o re in o d o c éu ". As Constituições Apostólicas d o 4“ sécu lo a d a p ta m
João liv re m e n te : "A m e n o s q u e u m h o m e m seja b a tiz a d o d a á g u a e d o
E sp írito , n ã o e n tra rá n o rein o d o c é u " (VI 3:15).
M a is u m p r o b le m a te m d e s e r d is c u tid o . N o n ív e l d a in te r-
p r e ta ç ã o b a tis m a l, q u e re la ç ã o Jo 3,5 faz e n tr e á g u a e E sp írito ? A
g e ra ç ã o d o E s p írito se c o n c re tiz a a tr a v é s d a g e ra ç ã o d a á g u a ? O u
as d u a s c o n s titu e m a m e s m a a ç ã o (o g re g o te m a p e n a s u m a p re p o -
sição )? O u a s d u a s sã o g e ra ç õ e s s e p a r a d a s e ig u a is? Em s u m a , há
d iv e r s a s p o s s ib ilid a d e s : id e n tific a ç ã o , s u b o rd in a ç ã o , c o o rd e n a ç ã o .
P a ra u m a h is tó ria c o m p le ta d a in te r p re ta ç ã o , veja D e la P otterie ,
p p . 418-25. U m a c o m p lic a ç ã o a n e x a te m e n tr a d o n a d isc u s s ã o d o
u s o d e s te te x to n a s d is p u ta s e n tr e p r o te s ta n te s e c a tó lic o s so b re a
n e c e s s id a d e q u e a s a lv a ç ã o te m d o b a tis m o p o r m e io d e á g u a . P o r
e x e m p lo , C alvino m a n tin h a q u e a á g u a re a l n e c e s s a ria m e n te n ã o
e s ta v a e n v o lv id a , s e n ã o q u e " á g u a " in d ic a a a ção p u r if ic a d o ra d o
E s p írito . E ste p o n to d e v ista , c o m b a tid o p e lo a n g lic a n o W estcott
em se u c o m e n tá r io (p. 49), foi c o n d e n a d o p e la S e ssão VII d o C o n -
cílio d e T re n to (DB, § 858).
F e liz m e n te p a ra n o sso s p ro p ó sito s a q u i, tais d isp u ta s teológicas
so b re a n e c e s s id a d e u n iv e rsa l d o b a tism o p o r m eio d e á g u a e a exis-
tência c o rre s p o n d e n te d o lim b o p a ra os in fa n tes n ã o b a tiz a d o s, vão
além d o e sco p o d ire to d o texto, o q u a l é o q u e in te ressa ao exegeta.
A c e ita n d o a " á g u a " em se u v a lo r e x te rn o , n ão crem o s q u e haja bas-
tan te e v id ê n c ia n o p ró p rio e v a n g e lh o p a ra d e te rm in a r a relação e n tre
g e ra r d a á g u a e g e ra r d o E sp írito n o n ív el d a in te rp re ta ç ã o sacram en -
tal. G e ra r d o E sp írito , e n q u a n to in clu i ac eita r Jesus p e la fé, p rim a ria -
m en te é a c o m u n ic aç ã o d o E sp írito S anto. Se to m a rm o s o v. 5 com o
u m a refe rê n c ia ao b a tism o e a d o a ç ã o d o E sp írito (n o te q u e João m en-
ciona o E sp írito d e p o is d e á g u a ), e n tã o João p o d e ría e sta r p e n sa n d o
na c o m u n ic aç ã o d o E sp írito a tra v é s d o b atism o .

Segunda Divisão (a). O Filho deve ascender ao Pai (3,9-15)

A té a q u i, N ico d em o s tem o u v id o q u e o acesso ao reino d e D eus


req u e r o d e rra m a m e n to escatológico d o E spírito e é algo q u e o h o m em
352 O Livro dos Sinais

n ão p o d e c u m p rir p o r si p ró p rio . N o v. 9 ele faz o u tra p e rg u n ta ; d e sta


v ez su a p e rg u n ta n ã o d iz re sp e ito ao p a p e l d o h o m e m c o m o fez o
v. 4, m a s a ação d e D eu s d e cim a e a tra v é s d o E spírito. Q u e haja u m ele-
m en to d e in c re d u lid a d e na p e rg u n ta p o d e ex p lic ar a p o n ta d e sarcas-
m o n a re sp o sta d e Jesus n o v. 10 (veja n otas). C o m e sta p e rg u n ta , N i-
co d em o s ex erceu seu p a p e l n a cena; co m o ta n to s o u tro s p e rso n a g e n s
n o s d isc u rso s jo an in o s, ele se rv iu d e a n ta g o n ista cuja in c o m p re e n sã o
o u falha e m e n te n d e r faz com q u e Jesu s e x p o n h a su a rev e laç ã o d e ta -
lh a d a m e n te . C o m o Jesu s p ro ss e g u e n a lo n g a e x p o sição d o s vs. 11-21,
N ic o d e m o s d e sa p a re c e n a s tre v a s d o n d e veio. O d iá lo g o se c o n v e rte
em m o n ó lo g o ; e Jesus, so z in h o , m a n té m -se n o p alco , su a lu z re sp la n -
dece n a s tre v a s e a tra i os h o m e n s a ire m a ele e a se to rn a re m filh o s d e
D eus (vs. 19-21).
N a m en ç ã o d o te s te m u n h o n o v. 11, o e le m e n to ju ríd ic o d e q u e
falam o s acim a (p. 223) rea p a rec e . A in c re d u lid a d e d e N ic o d e m o s se
a p re se n ta co m o u m e x e m p lo d e u m a rejeição m ais a m p la e m a c eita r
o te s te m u n h o d e Jesus. Jesus falara d a g era ç ã o d o alto; o ra, ele está
n u m a p o sição d e c o n h e ce r isto, p o rq u a n to v e m d e cim a. A d e sp e ito
d a falha d e N ic o d e m o s d e c o m p re e n d e r o q u e s u c e d e ría a u m h o m e m ,
a fim d e cap acitá-lo a e n tra r n o rein o d e D e u s ("co isas te rre n a s" ; veja
n o ta so b re v. 12), Jesus re s p o n d e rá à p e rg u n ta d e N ic o d e m o s acerca
d e co m o tais coisas o co rrem , fa la n d o d a s o rig e n s celestiais d e s ta g era-
ção a tra v é s d o E sp írito. E Jesus in siste q u e ele é o ú n ico q u e p o d e fazer
isso, já q u e n e n h u m o u tro jam ais s u b iu ao céu.
C o m o re s sa lta m o s n a resp e c tiv a n o ta , h á v á ria s in te rp re ta ç õ e s d o
v. 13, m as significa ao m e n o s q u e Jesus é o ú n ico q u e s e m p re e ste v e n o
céu, p o rq u e ele d e sce u d o céu. O q u e d iz e r d a s le n d a s c o n c e rn e n te s
aos v á rio s v id e n te s ap o c alíp tico s q u e s u p o s ta m e n te e ra m a rre b a ta -
d o s ao céu em v isã o (D aniel, E n o q u e, B aruque)? P o d e m o s le m b ra r-
n o s tam b é m d e q u e M oisés era c o n sid e ra d o co m o te n d o v isto coisas
celestiais n o M o n te Sinai e te r sid o a d m itid o ao céu a p ó s s u a m o rte.
E v id en tem en te, Jesus se rec u sa se r p o sto n o m esm o p la n o com estes
p e re g rin o s celestiais; su a asso ciação com o céu é m u ito m ais p ro fu n -
d a d o q u e a q u e d a d a p o r m eio d e visão. A lg u n s tex to s d o A T são
in te re ssa n te s n e ste resp e ito . Em P r 30,3-4 o a u to r n e g a q u e p o ssu ísse
c o n h e cim e n to d iv in o : " N e m a p re n d í a sa b e d o ria , n e m te n h o o co n h e-
cim en to d o S anto. Q u e m su b iu a o céu e d esceu ? q u e m e n c e rro u os
v e n to s em se u s p u n h o s ? " (N o te a colocação d o s e g re d o d o v e n to e a
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 353

a sce n sã o ao céu). Sb 9,16-18 c o n té m u m a id eia sim ilar: "D ificilm ente


p o d e m o s s o n d a r as coisas so b re a terra... m a s q u a n d o as coisas estão
n o céu , q u e m p o d e p e rsc ru tá -la s... a n ã o se r q u e d ê s sa b e d o ria e en-
v ies te u s a n to e sp írito d a s a ltu ra s? " Baruque 3,29 in d ag a: " Q u e m su-
b iu ao céu e lh e d e u [S abedoria] e a fez d e sce r d a s n u v e n s? " (T am bém
D t 30,12). A ssim fica b e m claro q u e o p riv ilé g io q u e Jesu s está reivin-
d ic a n d o n o v. 13 v a i além d a c a p a c id a d e d o s h o m en s. E ste v ersícu lo é
o u tro m o d o d e a firm a r o q u e se ach a em o u tro lu g a r em João, a saber,
q u e s o m e n te Jesu s tem v isto a D e u s (1,18; 5,37; 6,46; 1 4 ,7 9 ‫)־‬. Veja 6,62,
o n d e Jesu s re s p o n d e o u tra objeção a o m istério d e seu en sin o , falan d o
d a a sc e n sã o d o F ilho d o H o m e m ao céu.
N o s vs. 14-15, Jesu s c o n tin u a a re s p o n d e r à p e rg u n ta a tu a l de
N ico d em o s: "C o m o p o d e m e sta s coisas aco n tecer?" G e ra r a tra v és
d o E sp írito só p o d e s u c e d e r co m o re s u lta d o d a crucifixão, ressu rrei-
ção e a sce n sã o d e Jesus. O v. 14 é a p rim e ira d e três afirm açõ es em
João se re fe rin d o a Jesu s co m o q u e " su b in d o " (8,28; 12,32-34). A fra-
se " s e r le v a n ta d o " se refere à m o rte d e Jesus na cru z. Isto é óbvio
n ão só à lu z d a c o m p a ra ç ã o com a s e rp e n te n u m a h aste, n o v. 14,
m as ta m b é m d a exp licação em 12,33. Bernard, I, p. 114, a rg u m e n ta
q u e este é o ú n ico sig n ificad o d a frase. N ão o b sta n te , o v erb o hyp-
soun, " se r le v a n ta d o " , é u s a d o em A tos (2,33; 5,31) p a ra referên cias à
a sce n sã o d e Jesus. Em h e b ra ico h á u m d u p lo u so d e n a sã h ("levan-
tar") q u e p o d e c o b rir a m b o s os sig n ificad o s d e m o rte e glorificação,
co m o em G n 11,13 e 19; o a ra m a ic o z?qap significa am b o s, "crucifi-
car, p e n d e r" e "le v a n ta r". A ssim , em João "se r lev a n tad o " se refere a
u m a ação c o n tín u a d e subir: Jesus com eça su a v o lta a seu Pai q u a n d o
se a p ro x im a d a m o rte (13,1) e só a co m p leta com sua ascensão (20,17).
E o b ala n ç o p a ra cim a d o g ra n d e p ê n d u lo d a E ncarnação co rresp o n d en -
d o à d escid a d a P alav ra q u e se fez carne. O p rim e iro p a sso na su b id a é
q u a n d o Jesus se e leva à cruz; o s e g u n d o p a sso é q u a n d o ele ressu rg e da
m orte; o p a sso final é q u a n d o ele é elev ad o ao céu. Esta co m p reen são
m ais a m p la d e "se r lev a n tad o " explica a afirm ação d e 8,28: " Q u a n d o
lev a n ta rd e s o Filho d o h o m em , e n tã o c o m p re en d e re is q u e EU SOU".
A justiça d a reiv in d icação d e Jesus ao n o m e d iv in o , "EU SO U " (veja
A p ê n d ic e IV, p. 841ss) dificilm ente se to rn aria e v id e n te n a crucifixão;
ela só foi reco n h ecid a a p ó s a ressu rre içã o e ascen são (20,28). Tam -
p o u c o a reiv in d ic a çã o em 12,32 foi verificad a so m e n te na crucifixão:
" Q u a n d o e u fo r le v a n ta d o d a terra, a tra ire i to d o s os h o m e n s a m im ".
354 O Livro dos Sinais

Já m en c io n am o s q u e em João há três a firm a ç õ es c o n c e rn e n te s ao


"le v a n ta r-se " d o F ilho d o H o m e m . T em h a v id o u m a fo rte te n d ê n c ia
e n tre os e s tu d io so s d e s u p o r q u e e sta s afirm açõ es, com se u fra se a d o
p e c u liarm en te joanino, são as criações d o evangelista. E n tre tan to , estas
afirm açõ es c o n stitu e m os e q u iv a le n te s jo an in o s d a s três p re d iç õ e s
d a p aix ão , m o rte e re ssu rre iç ã o e n c o n tra d a s e m to d o s o s sin ó tico s
(M c 8,31; 9,31; 10,33-34 e par.). A m en ç ã o d o F ilho d o H o m e m é co-
m u m a a m b o s os g ru p o s d e d ito s. Se c o m p a ra rm o s M c 8,31 e Jo 3,14,
d e sco b rire m o s e m a m b o s o " d e v e " q u e im p lica a v o n ta d e d iv in a :
"A ssim o Filho d o H o m e m seria le v a n ta d o " ; "o F ilho d o H o m e m d e v e
sofrer m u ito ... ser m o rto e d e p o is d e três d ia s re ssu sc ita ria " . A sim ila-
rid a d e d e ste s g ru p o s d e d ito s é o u tra ra z ã o p a ra in sistir q u e " se r le-
v a n ta d o " , em João, in clu i m ais d o q u e a crucifixão. N ã o h á ra z ã o p a ra
p e n s a r q u e o q u a rto e v a n g e lista é d e p e n d e n te d o s sin ó tico s p a ra su a
form a d o s d ito s; aliás, so b re u m a b a se c o m p a ra tiv a , os d ito s jo an in o s
são m u ito m en o s d e ta lh a d o s e p o d e ría m se r m ais a n tig o s. A p rin c ip a l
in flu ên cia q u e a p a re c e n o s d ito s jo a n in o s p a re c e se r o tem a d o Ser-
v o S o fred o r (Is 52,13): "E is q u e o m e u se rv o o p e ra rá com p ru d ê n c ia ;
será e n g ra n d e c id o , e e le v a d o [hypsoun], e m u i su b lim e " . A a firm a ç ão
d e q u e o F ilho d o H o m e m seria le v a n ta d o reflete o tem a d e q u e se u
le v a n ta r foi p re d ito n a E scritu ra (esp e c ia lm e n te Is 52-53) e, a ssim , e ra
p a rte d a v o n ta d e d e D eus.
O v. 15 m o stra p o r q u e Jesus in tro d u z iu n o d isc u rso o tem a d e ser
lev an tad o , a sab er, q u e o ato d e se r le v a n ta d o g u ia rá ao d o m d a v id a
etern a a to d o s os q u e creem em Jesus. Esta v id a e te rn a é a v id a d o s fi-
lhos d e D eus, a v id a g e ra d a d e cim a, a v id a g e ra d a d o E spírito. Q u a n d o
Jesus for le v a n tad o em crucifixão e ascensão, su a co m u n icação d o Es-
p írito c o n tin u aria a fluir d a fonte d a v id a aos q u e creem n ele (7,37-39).

Segunda Divisão (b). A necessidade de fé em Jesus, ou de chegar-se à luz (3,16-21)

O v. 16 d e m a rc a u m a su b d iv isã o na s e g u n d a p a rte d o d isc u rso ; e,


co m o R oustang ressa lta , o p a p e l d e D eus, o P ai, a g o ra se to rn a p ro e -
m in e n te . T o d av ia, n ã o d e v e m o s e x a g e ra r n e sta m u d a n ç a . O te m a d a
m o rte d e Jesu s, in tro d u z id o e m 14-15, a p a re c e o u tra v e z e m 16 (veja a
resp ectiv a nota). J u sta m e n te co m o essa m o rte foi re tra ta d a so b o sím -
b o lo v e te ro te s ta m e n tá rio d a se rp e n te em 14-15, a ssim p o d e m o s d etec-
ta r u m a referên cia im p lícita ao A T n a lin g u a g e m d e 16. A A b ra ã o se
10 · Diálogo com Nicodemos em Jerusalém 355

o rd e n a q u e to m a sse se u filho " ú n ic o " , Isaq u e, a q u e m ele amava, e o


o ferecesse ao S e n h o r (G n 22,2.12); m u ito s e stu d io so s (W estcott, Ber-
nard , Barrett, G lasson) p e n s a m q u e isto jaz p o r trás: " D e u s amou o
m u n d o d e tal m a n e ira q u e d e u se u F ilho unigênito". In clu siv e a m en-
ção d e "o m u n d o " se a d e q u a b e m a este p a n o d e fu n d o , p o is a d is-
p o siç ã o d e A b ra ã o e m sacrificar se u u n ig ê n ito v isa v a a se r benéfica
a to d a s a s n açõ es d o m u n d o (G n 22,18; Siraque 44,21; Jubileus 18,15).
Veja 19,17 p a ra a p o ssib ilid a d e d e m ais tip o lo g ia d e Isaque.
M as o v. 16 n ã o só faz p a ra le lo s com 14-15, ta m b é m c o n d u z ao 17.
Se o v. 16 n o s a s se g u ra q u e o p ro p ó sito d o P ai em d a r o F ilho em en-
c a rn a ç ão e m o rte era a v id a e te rn a p a ra o c re n te, o v. 17 p a ra fra se ia
isto e m te rm o s d e sa lv a ç ão p a ra o m u n d o . C o m e ç a n d o com o v. 17,
e n tra m o s n o d o m ín io teo ló g ico jo a n in o d a escato lo g ia re a liz a d a (veja
In tro d u ç ã o , P a rte VIII:C). A p ró p ria p re se n ç a d e Jesu s n o m u n d o é
u m ju lg a m e n to n o se n tid o d e q u e ela o b rig a os h o m e n s a ju lg a r a si
m esm o s, d e c id in d o o u p o r Jesu s o u c o n tra ele.
Boismard, "Involution", fez u m a c o m p a ra ç ã o m u ito in teressan -
te d o te m a escato ló g ico co m o se e n c o n tra e m 3,16-19 e e m 12,46-48.
C o m o p ro p o re m o s n a d isc u ssã o d e 12,44-50, essa p a ssa g e m co n stitu i
u m fra g m e n to in d e p e n d e n te , d e slo c a d o d o d isc u rso jo an in o , m ate ria l
q u e, p o r ra z õ e s d e c o n v en iên cia, foi in se rid o (veja s u p ra , p. 23ss.) em
seu a tu a l lu g a r, n o final d o m in isté rio p ú b lico . A o m e n o s e m p a rte , ele
p a re c e s e r u m a fo rm a v a ria n te d o q u e tem o s n o c a p ítu lo 3.

12 3
46. E u v im ao m u n d o co m o lu z 19. A lu z v eio ao m u n d o
p a ra que, aquele qu e crê em m im 15. p a ra q u e to d o o q u e n ele crê
te n h a n ele a v id a etern a.
16. p a ra q u e to d o a q u e le q u e n ele
n ã o p e rm a n e ç a n a s trevas. crê n ã o p ereça.
47. E u n ã o v im p a ra c o n d e n a r o 17. D eu s n ã o e n v io u o F ilho p a ra
m undo condenar o m undo,
m as p a ra q u e o m u n d o seja
m a s p a ra sa lv a r o m u n d o . sa lv o a tra v é s dele.
48. T o d o a q u e le q u e m e rejeita, e 18. Q u e m se recu sa a crer
n ã o aceita m in h a s p a la v ra s, já já e stá ju lg a d o (krinein ).
te m s e u ju iz (krinein).
356 O Livro dos Sinais

H á d ife ren ç a s estilísticas n o tá v e is (12 está n a p rim e ira p e sso a ); e


B oism a rd p e n s a q u e 3 se a p ro x im a m ais d o estilo d e 1 João (veja n o ta
so b re v. 16). A ssim , a m esm a tra d iç ã o b ásica d a s p a la v ra s d e Jesus
foi p re s e rv a d a p o r d ife re n te s d isc íp u lo s n a escola jo an in a. P o ré m , a
m ais im p o rta n te d ife ren ç a é teológica. A o m e n o s em p a rte , a escato-
logia e m 12 é escato lo g ia final·, 1 2 ,4 8 d iz d o h o m e m q u e rejeita Jesus:
" Q u e m m e rejeitar a m im , e n ã o receb er m in h a s p a la v ra s , já te m q u e m
o ju lg u e; a p a la v ra q u e te n h o p re g a d o , essa o h á d e ju lg a r no último
dia”. E assim , e m d o is rela to s jo an in o s d a s p a la v ra s d e Jesu s, u m n o
cap. 3, ressa lta o a sp ec to re a liz a d o d e su a escato lo g ia; u m n o cap . 12,
o a sp ec to final. E n c o n tra re m o s o m esm o fe n ô m e n o e m 5 , 1 9 2 5 ‫ ־‬e 2 6 -3 0 .
Podem os e stu d a r 3,18 ju n to com as m esm as linhas: "Q u e m crê nele
não é co n d en ad o , m as q u em n ão crê já está julgado". D odd, Tradition,
pp. 357-58, ressalta qu e esta é u m a form a varian te d o d ito q u e tem os no
final m ais longo d e M arcos (16,16): "Q u em crer (e for batizado) será sal-
vo; m as q u em n ão crer será co n d en ad o ". Em M arcos, é u m a afirm ação se
referindo ao juízo futuro; e m João, está n o contexto d a escatologia realiza-
da. R eiterando, tem os u m dito tradicional d e Jesus in te rp re ta d o d e d u a s
m aneiras. (Podem os adicionar q u e ljo 5,10, o q u al se assem elha a Jo 3,18
em v ários detalhes, p arece ser tam b ém b asea d o n este dito). E interessan-
te q u e o tem a d o batism o aparece na form a m arcana d o dito, e n q u an to ,
com o tem os insistido, u m tem a batism al perm eia todo o cap. 3 d e João.
D eve-se n o ta r q u e o v o cab u lário d u alístico d o s vs. 19-21 ( lu z /
trevas; p ra tic a r a p e rv e rs id a d e /re a liz a r a v e rd a d e ) tem n o táv e is se-
m elh an ças n o s R olos d o M ar M orto, e sp ecialm en te 1QS 3,4. T em os
c o m p a ra d o o d u a lism o jo an in o e o q u m ra n ia n o em CB Q 17 (1955),
405-18, 559-61 (agora NTE, p p . 105-23), e rem e te m o s o leito r p a ra lá
p a ra m ais d etalh es. A qui, citam o s so m e n te a b e m co n h ecid a d iv isã o
q u m ra n ian a e n tre os filhos d a lu z e os filhos d a s trevas, e ig u a lm e n te
o texto d e 1QS 4,24: "À m esm a m e d id a q u e a h e ra n ç a d o h o m e m está
n a v e rd a d e e justiça, assim ele o d e ia o m al; m as, n a m e d id a e m q u e su a
h eran ça está na p o rção d a p e rv e rsid a d e , assim ele a b o m in a a v e rd a -
d e". A o c o m p a ra r isto com o p e n sa m e n to m u ito sim ilar em Jo 3,20-21,
é d ig n o d e n o ta q u e esta p a ssa g e m q u m ra n ia n a oco rre so m e n te u m a s
p o u cas Unhas ap ó s a p a ssa g e m so b re o p a p e l d a á g u a e e sp írito q u e
citam o s acim a (p. 345ss.) e m referência a Jo 3,5.
Se h á e m João u m a d u p la reação d ia n te d e Jesus, d e v e m o s enfati-
z a r q u e a reação é b a sta n te d e p e n d e n te d a p ró p ria escolha d o h o m em ,
10 · D iá lo g o co m N ic o d e m o s em Jerusalém 357

escolha que é influenciada por seu modo de vida, ou se suas obras


são más, ou são feitas em Deus (vs. 20-21). Há certa consistência nos
dois extremos do dualismo: os malfeitores são incrédulos, enquanto
que as boas obras e a fé vão juntas. Assim, em João não há determi-
nismo como parece haver em algumas passagens dos rolos qumra-
nianos. B ultmann , p. 114, ressalta que as frases finais, que terminam
em 20 e 21, não devem ser entendidas como a dar a razão subjetiva
pela qual os homens vêm ou não vêm para a luz, isto é, um homem
realmente não vem para Jesus a fim de se confirmar que seus atos são
bons. Ao contrário, a ideia é que Jesus põe em relevo o que um ho-
mem realmente é e a verdadeira natureza de sua vida. Jesus é uma luz
penetrante que provoca juízo, tornando evidente o que um homem é.
Aquele que se desvia não é um pecador ocasional, e sim alguém que
" p r a t ic a a perversidade"; não significa que ele não possa ver a luz, e
sim que ele odeia a luz. Como S. Lyonnet insiste em seu artigo sobre o
pecado em João (VD 35 [1957], 271-78): é uma questão de mal radical.

A d e n d o à S e g u n d a D i v i s ã o . A id e n t i d a d e d o q u e f a la

Já mencionamos o ponto de vista de muitos estudiosos de que so-


mente alguns versículos desta divisão do capítulo 3 pertencem ao diá-
logo de Jesus com Nicodemos, e o restante é um comentário adicionado
pelo evangelista. Aqui daremos em detalhe nossas razões para rejeitar-
mos tal ponto de vista. Os dois principais lugares sugeridos dentro des-
tes versículos para a mudança da pessoa que fala são o v. 13 (T illmann,
Belser, S chnackenburc ) e o v . 16 (W estcott, L agrange, B ernard, V an
den B ussche, B raun , Lightfoot).
S chnackenburc argumenta energicamente que ο v. 12 é o último
versículo do verdadeiro diálogo. Ele tem o último "vós" nesta seção; o
13 trata da ascensão como pretérita (veja a respectiva nota). Entretanto,
este ponto de vista enfrenta muitas dificuldades. O v. 13 começa com
um conectivo (k a i ), como se fosse relacionado com o que precedeu; não
há a mais leve indicação de uma mudança da pessoa que fala. Caso se
argumente com base no tempo em 13, dizendo que a ascensão já ocor-
reu, o que dizer da referência obviamente futura à morte, ressurreição
e ascensão em 14? O v. 14 é uma das três afirmações joaninas sobre o
levantar do Filho do Homem; devemos atribuir esta ao evangelista e
as duas seguintes a Jesus? E verdade que nos vs. 13ss. há uma mudança
358 O Livro dos Sinais

p a ra a terceira p esso a, m as isto n ã o é in co m u m e m João; n o s d e m a is lu-


g ares o n d e isso o corre n ã o há a m ais leve e v id ên cia d e q u e Jesu s p a ro u
d e falar. N a in v estig ação so b re o A T se d escarta a m u d a n ç a d e p esso a
e n ú m e ro co m o u m critério p a ra d e te rm in a r a m u d a n ç a d o re d a to r;
os ex eg etas d e João d e v e ría m o b se rv a r u m a p ru d ê n c ia se m e lh an te .
N ã o e n c o n tra m o s n o v. 16 a rg u m e n to s m ais c o n v in c e n te e m p ro l
d e u m a m u d a n ç a d e o ra d o r d o q u e os a p re s e n ta d o s e m p ro l d a m u -
d a n ç a d e u m a p e sso a q u e fala n o v. 13. O p re té rito d e " d e u " co n sti-
tu i u m a d ific u ld a d e , caso se refira à crucifixão; m a s é p ro v á v e l q u e
n o s láb io s d e Jesu s se d e stin a sse a p e n a s a in d ic a r a E n c a rn a ç ã o , e é
o e v a n g elista q u e in clu iu to d a a c a rre ira d e Jesu s (veja a re sp e c tiv a
nota). Já v im o s q u e o v. 16 n ã o d e v e se r c o m p le ta m e n te d isso c ia d o
d o s 14-15 em tem a; e u m a v ez m ais o v. 16 com eça com u m c o n ectiv o
(gar) q u e se o p õ e c o n tra q u a lq u e r teo ria d e u m a n o v a p e sso a q u e fala.
A s ú ltim a s c lá u su la s d o 15 e 16 são as m esm a s, e n ã o p a re c e a rb itrá rio
a trib u í-la s a d ife re n te s p esso as.
E stes a rg u m e n to s d e ta lh a d o s e n d o ssa m n o ssa s o b se rv a ç õ e s ge-
rais (p p . 341-342) d e h o m o g e n e id a d e d e estilo e d e in clu sõ e s q u e m an -
têm to d a a p a s sa g e m u n id a . N a tu ra lm e n te , o e v a n g e lista e ste v e e m
ação n e ste d isc u rso , m as s e u tra b a lh o n ã o é d o tip o q u e co m eça e m u m
v ersícu lo p a rtic u la r. T o d as as p a la v ra s d e Jesu s n o s v ê m a tra v é s d o s
can ais d a c o m p re e n sã o e d o r e p e n s a r d o e v a n g e lista , m a s o e v a n g e lh o
a p re s e n ta Jesu s fala n d o , e n ã o o e v a n g elista .

[A B ibliografia p a ra e sta seção está in clu sa n a B ibliografia n o fi-


n al d o § 12.]
1 1.0 TESTEMUNHO FINAL DO BATISTA
(3,22 -30)

3 22D e p o is d is to foi Je su s c o m s e u s d is c íp u lo s p a ra o te rritó rio


d a J u d e ia , e p a s s o u a lg u m te m p o ali c o m e le s, b a tiz a n d o . 23O ra,
Jo ão ta m b é m e s ta v a b a tiz a n d o e m E n o n , ju n to a S alim , o n d e a
á g u a e ra a b u n d a n te ; e o p o v o c o n tin u a v a v in d o p a r a s e r b a tiz a -
d o . (24P o is Jo ão a in d a n ã o fo ra la n ç a d o n a p ris ã o ). 25Isto le v o u a
u m a c o n tr o v é rs ia a c e rc a d a p u rific a ç ã o e n tre os d is c íp u lo s d e João
e c e rto ju d e u . 26E n tã o v ie ra m a Jo ão , d iz e n d o : " R a b i, o h o m e m q u e
e s ta v a c o n tig o d a lé m d o J o rd ã o - a q u e le s o b re q u e m te n s testi-
fic a d o - , p o is a g o ra e le e stá b a tiz a n d o , e to d o s v ã o te r co m ele".
27Jo ã o re s p o n d e u :

" N in g u é m p o d e receb er algo,


a m e n o s q u e d o céu lh e seja d a d o .

28V ós m e s m o s so is m in h a s te ste m u n h a s d o q u e e u disse: 'E u n ão so u


o M essias, m a s so u e n v ia d o a d ia n te d e le .'

29O n o iv o é q u e m tem a n o iv a.
M as o m e lh o r h o m e m d o n o iv o ,
q u e o assiste e o o u v e,
se reg o zija a ssim q u e o u v e a v o z d o noivo.
Eis m in h a aleg ria, e ela é co m p leta.
30E n e c essá rio q u e
Ele cresça,
e n q u a n to e u d im in u a " .
360 O Livro dos Sinais

NOTAS

3.22. Depois disto. Um conectivo vago sem qualquer precisão cronológica real.
Todo este versículo é um a fórm ula itinerária como aquelas que Marcos
usa para elaborar um a narrativa. D odd, Tradition, p. 279, sugere que ele
tem por base um a tradição pré-canônica.
território da judeia. Jesus já estava na Judeia, em Jerusalém. Bultmann,
p. 1238, argum enta que a inferência real é que Jesus saiu da cidade rum o
a distritos rurais da Judeia; e cremos que este poderia ser o significado
adaptado no presente contexto. Entretanto, é bem provável que gê sig-
nifique, originalm ente, "território", e não "distrito rural", traduzindo o
hebraico ’eres ; em 4,3, que só pode referir-se à Judeia como um território,
a tradição ocidental adicionou gê. O lugar não é dado, porém m uitos
pensam que seja o vale do Jordão.
passou algum tempo. Este não é o menein joanino usual, e sim diatribein. Que
esta é a única ocorrência do verbo em João, pode ser endossado pela teo-
ria pré-canônica form ulada por D odd.
batizando. Os verbos são imperfeitos, fato que indica ação reiterada. Em-
bora este versículo diz que Jesus batizava, 4,2 agrega, à m oda de modifi-
cação, que ele m esm o não batizava. A tentativa usual em harm onização
m antém que a afirmação de que Jesus batizava era no sentido de que os
discípulos batizavam em seu nom e. N aturalm ente, João não dá a enten-
der isto. Provavelm ente, não se deve im aginar que este batism o fosse o
batism o cristão que no NT recebe sua eficácia da crucifixão e ressurrei-
ção; este é sem elhante ao batism o do Batista.
23. Enon. O nom e provém do plural aram aico da palavra para "nascente",
enquanto "Salim" reflete a raiz semítica para "paz". Há três im portantes
tradições para a localização destes sítios, (a) N a Pereia, a Transjordânia.
Sabemos que o Batista era atuante nesta região (1,28), e a referência à
Judeia, no v. 22, poderia im plicar que ele ficava nas proxim idades (Pe-
reia é justam ente dalém do rio). O m apa mosaico M adeba do 6“ século
(BA 21 [1958], No. 3] traz um Enon justam ente a nordeste do M ar M orto,
oposto a Bethabara (veja nota sobre 1,28); há indicações de peregrinos
contem porâneos para o m esm o sentido. (b) Ao norte do vale do Jordão,
à m argem ocidental, a uns 13 km ao sul de Scythopolis (Bethshan). No 4a
século, Eusébio (Onomasticon, em GCS l l 1, p. 40:1-4; p. 153:6-7) tem esta
tradição, como a peregrina Aetheria. O m apa M edeba tem outro Enon
nesta vizinhança. Eusébio fala de Salim em referência a Salumias, e há
na área um nom e árabe m oderno de Tell Sheikh Salim. Não há rem anes-
cente do nom e Enon na área. Um a objeção a ambos estes locais no vale
11 · O testemunho final do batista 361

do Jordão é que, com o rio Jordão nas proxim idades, a menção que João
faz da disponibilidade de água parece supérflua, (c) Em Samaria. Uns 7
km a leste-sudeste de Siquém há um a cidade de Sâlim conhecida desde
os tem pos antigos; a 13 km a nordeste de Sâlim fica a m oderna ‘Ainün
(1:100,000 m apa: 187190). Na vizinhança geral há m uitas nascentes, em-
bora a ‘Ainün m oderna não tenha água. W. F. A lbright defende esta lo-
calização em HTR 17 (1924), 193-94. Ela concordaria m uito bem com os
fortes laços tradicionais que conectam o Batista com Samaria.
Aqui se faz a tentativa usual de descartar a informação geográfica pecu-
liarm ente joanina como m ero simbolismo. K rieger, ZNW 45 (1954), 122,
fala de nascentes fictícias (Enon) junto à salvação (Salim). É bem possível
que se pergunte por que João teria associado o batism o do Batista, e não
o de Jesus, com o local simbólico da salvação. Se somos inform ados que
o Batista estava junto à salvação, isto é, junto a Jesus, então podem os in-
dagar por que Jesus não é posto em Salim, em vez da Judeia. Bultmann,
p. 1245, crê que os nom es são reais, m as que possivelm ente teve um
significado simbólico para o evangelista.
25. controvérsia acerca da purificação. A relação dessa controvérsia com o que
segue no v. 26 não é clara. Devemos pensar sobre o valor relativo dos
batism os do Batista e de Jesus? Ou, visto que a palavra "purificação" nos
lem bra a água "prescrita para as purificações judaicas" em 2,6, talvez de-
vam os pensar num a disputa sobre o valor relativo do batism o do Batista
e das lavagens-padrão judaicas de purificação? Estaria este judeu pro-
pon d o questões acerca do batism o do Batista como aquelas apresentadas
pelos fariseus em 1,25? Ou havia um a controvérsia geral sobre o valor
de todos os tipos de purificação por meio de água (os vários batismos; as
lavagens dos fariseus; as purificações essênias)?
certo judeu. Há boa evidência, inclusive P66, para a leitura "os judeus"; mas
as m elhores testem unhas, inclusive P75, leem o singular que é a leitura
m ais difícil. O plural podería introduzir-se por analogia com Mc 2,13 e
par. que associa os fariseus e os discípulos do Batista sobre a questão legal
do jejum. (B oismard , contudo, aceita o plural, sugerindo que o singular
Ioudaiou é por analogia com Iõanou). Se lerm os o singular, a conexão
do versículo com o que segue não é totalm ente clara. Loisy, p. 171, jun-
tam ente com outros (B auer , G oguel), pensa que o texto originalm ente
trás "Jesus", m as que piedosas razões levaram copistas a expurgar uma
referência a um a disputa entre os discípulos do Batista e Jesus. Não há
endosso textual para essa leitura, m as daria excelente sentido.
26. Rabi. João reflete a m em ória de que o Batista era visto como mestre, e
igualm ente como profeta (Lc 11,1).
362 O Livro dos Sinais

sobre q u e m . Aqui e em 28 m a r t y r e i n assum e o dativo de pessoa, um a sintaxe


encontrada em Lucas; outras dezenove vezes em João o verbo assum e
p e r i . No comentário, salientarem os que estas cláusulas em 26 e 28 são
redacionais.
e to d o s v ã o t e r c o m e le . Os sinóticos nos dão um quadro deste sucesso duran-
te o m inistério galileu (Mc 1,45; 3,7). A universalidade do apelo de Jesus
se encontra em outras partes de João, p. ex., 11,48: "todos crerão nele".
27. a m e n o s q u e d o c éu lh e se ja d a d o . Com pare com as palavras ditas a Pilatos
em 19,11: "N ão terias sobre m im nenhum poder, se não te fosse dado do
alto... aquele que me entregou a ti tem m aior culpa de pecado".
28. m a s s o u e n v ia d o a d i a n t e d e le . Esta não é um a citação exata do que o Batista
disse. Em 1,20 ele disse: "Eu não sou o Messias"; porém não disse: "Eu sou
enviado [ a p o s t e ll e in ] adiante dele [o Messias]". Em 1,6, ouvimos: "H ou-
ve um hom em enviado [ a p o s t e l l e i n ] por Deus cham ado João"; e em 1,33,
ouvim os que Deus enviou [ p e m p e i n ] João Batista para batizar. Q uanto à
frase "adiante de m im ", disse o Batista: "Aquele que v e m a p ó s m im tem
ascendência sobre m im ". Assim, enquanto a segunda cláusula na citação
do v. 28 está no espírito do Batista, realm ente ela é apenas um com posto
do que ele disse. Identifica aquele que vem após o Batista como sendo o
Messias, algo que o Batista jam ais faz em outro lugar. Dodd, T r a d i t i o n ,
p. 271, sugere que "eu sou enviado adiante dele" é um eco Ml 3,1: "Eu en-
viei meu anjo adiante de m inha face" (veja Mt 11,10; Lc 7,27). Se isto fosse
verdade, originalm ente era sim plesm ente um a designação do próprio
papel do Batista, sem realm ente im plicar m uito sobre a n atureza daquele
que lhe havia de seguir.
29. m e lh o r h o m e m . Literalmente, "o amigo do noivo"; veja V an S elms, a r t . c i t .
Isto é o s h o s h b e n do costum e judaico, o am igo mais íntim o do noivo que
cuida do arranjo para as núpcias. Paulo reivindica este papel em 2Cor
11,2; e a Moisés foi dado este papel pelos rabinos no casam ento entre
Deus e Israel. Por causa desta confiança especial, qualquer im proprie-
dade entre o m elhor hom em e a noiva era considerada particularm ente
hedionda (donde a ira de Sansão ante a injustiça em Jz 14,20). Assim o
Batista, como o m elhor hom em , nunca poderia casar a noiva; sua única
função era prepará-la para Jesus.
o u v e a v o z d o n o i v o . Não está claro o que quer dar a entender. Há quem pen-
se no m elhor hom em como estando na casa da noiva, m antendo guarda
e esperando ouvir a ruído da procissão do noivo quando vem para apa-
nhar a noiva. O utros retratam o m elhor hom em como estando na casa
do noivo após a noiva ser levada para lá; ele se regozija ao ouvir o noivo
falando com a noiva.
11 · O testemunho final do batista 363

Nesta pequena parábola e no aforism o que a segue Black, p. 109, encon-


trou vestígios de um núm ero de jogos de palavras aram aicas que indica
um original semítico, p. ex., "noiva" é kalletâ; "voz" é qâlâ; "ser comple-
to" é kelal ; "decrescer" é qelal.
30. é necessário. O tem a im perativo divino que vimos em 3,14.
cresça... diminua. Este versículo tem exercido um im portante papel na tra-
dição concernente ao Batista. Justam ente como o aniversário de Jesus foi
fixado em 25 de dezem bro, o tem po do solstício de inverno após o qual
os dias se tornam mais longos (a luz tem penetrado o m undo; ela deve cres-
cer), assim o aniversário do Batista foi fixado em 24 de junho, o tempo
do solstício de verão após o qual os dias se tornam mais curtos (ele não era
a luz; então deve decrescer). Os dois verbos gregos no v. 30 são também
usados para a intensidade e ofuscação da luz dos corpos celestes.
diminua. O verbo grego elattoun se relaciona com elassõn, o adjetivo "in-
ferior" usado para descrever o vinho comum em Caná (2,10). Portanto,
há três paralelos entre 3,22-30 e a cena de Caná: (a) "purificação" em 25;
(b) o tema de casam ento; e (c) a semelhança de vocabulário. Entretanto,
parece arriscado considerar estes paralelos mais incidentals como teolo-
gicam ente significativos. No entanto, são interessantes em vista da pos-
sibilidade (que será m encionado no comentário) de que o material em
3,22-30 em outro tem po precedeu im ediatam ente a cena de Caná.

COMENTÁRIO: GERAL

Esta é u m a cena difícil, p o rq u e, e x tem am en te, su a sequência é deficiente


e, in te rn a m e n te , a lógica d o re la to n ã o é clara (veja n o ta so b re v. 25).
C o n sid erem o s aq u i os p ro b lem as d e sequência cau sad o s pelo contexto.
Jesus tem e s ta d o em Je ru sa lé m d a Ju d e ia se g u n d o o c a p ítu lo 2; to d a-
via, a g o ra ele e n tra n a Ju d eia. O v. 24 m en cio n a q u e o B atista ain d a
não fo ra p reso ; e o v ersíc u lo é u m a a d iç ã o d o re d a to r in se rid a p a ra
e v ita r objeções b a s e a d a s e m u m a cro n o lo g ia co m o a q u e la d o s si-
nóticos. D e a c o rd o com M c 1,14 (M t 4,12), Jesu s só foi p a ra G alileia
a fim d e c o m e ç a r se u m in isté rio d e p o is q u e o B atista foi preso; em
João, p o ré m , Jesu s já foi p a ra a G alileia e p a ra Je ru sa lé m e o Batista
a in d a n ã o foi p reso . É v e rd a d e q u e os sin ó tico s n ã o n o s n a rra m exa-
tam e n te q u a n d o o B atista foi p re so , d e m o d o q u e tu d o o q u e João
tem n a rra d o p o d e ria ter o c o rrid o a n te s d a a b e rtu ra oficial d o m inis-
tério g a lile u (João n ã o d e scre v e p le n a m e n te u m m in isté rio galileu).
364 O Livro dos Sinais

N ão o b stan te, a im p re ssã o q u e se o b tém d o s sin ó tico s é q u e o m inis-


tério g alileu tev e início im e d ia ta m e n te a p ó s o b a tism o d e Jesus, e que
a p risã o d o Batista tam b é m e stav a e stre ita m e n te asso ciad a ao b atism o
(esp ecialm en te Lc 3,19-20). U m a d ific u ld a d e so b re a se q u ên c ia ain d a
m aio r é su scitad a p e lo v. 26. O s d isc íp u lo s d o B atista o u v ira m seu m es-
tre testifican d o e lo q u e n te m e n te d e Jesus n o c a p ítu lo 1: Jesus é o Cor-
d e iro d e D eus; to d o o p ro p ó sito d o B atista em b a tiz a r e ra q u e Jesus
fosse rev e la d o a Israel. T o d av ia, a g o ra n ã o p o d e m e n te n d e r p o r que
o p o v o se d irig e a Jesus e se resse n te m . N o te-se q u e isto n ã o p o d e ser
a te n u a d o sim p lesm en te d iz e n d o q u e estes são o u tro s d isc íp u lo s além
d a q u e le s d o c a p ítu lo 1, p o is o v. 28 os id en tifica esp ec ific am e n te com o
os d iscíp u lo s q u e tin h a m o u v id o a m en sa g e m d o B atista so b re Jesus.
A lg u n s e stu d io so s, co m o W ellhausen e G oguel, têm p e n s a d o q u e
3.22- 30 é u m a d u p lic a ç ã o d a cena n o c a p ítu lo 1, o n d e o B atista iden-
tificou Jesu s co m o a q u e le q u e v e m a p ó s ele. C e rta m e n te os te m a s em
b o a m e d id a são os m esm os.
(a) 1,19-21: João B atista n ã o é o M essias, n e m Elias, n e m o p ro fe ta
3,28: João B atista n ã o é o M essias
(b) 1,30: João Batista p rep ara o cam inho p ara aquele q u e vem após ele
3,28: João B atista é e n v ia d o a d ia n te d ele
(c) 1,30: A q u e le q u e v em a p ó s o B atista tem a sce n d ê n c ia so b re o
Batista
3,30: Ele d e v e crescer, e n q u a n to o B atista d e v e d im in u ir
(d ) 1,31: A o B atista foi d a d o o p a p e l d e rev e lá-lo a Israel
3,29: O B atista é o m elh o r h o m e m [am igo] p a ra p r e p a r a r o ca-
sarn en to d a n o iv a e o n o iv o
N ão o b sta n te , c o n q u a n to os tem a s sejam os m esm o s, o d iá lo g o
é rea lm e n te m u ito d ife ren te . E m v ez d e v a ria n te s d a m e sm a cen a, é
com o se tiv éssem o s a q u i fra g m e n to s d e u m a tra d iç ã o jo a n in a m a io r
acerca d o B atista, tra d iç ã o q u e se d e c o m p õ e n a s cen as n o s c a p ítu lo s 1
e 3. Boismard, "L es tra d itio n s, p e n sa q u e esta cena n o v. 3 e ra o p rin c í-
p io o rig in al d o e v a n g e lh o a n te s d e se r d e slo c a d a p e la p re s e n te ab er-
tu ra (veja s u p ra , p. 253ss.). E sta teo ria p rec isa m ais d o q u e a e v id ê n c ia
p erm ite; m as Boismard p a re c e e sta r na trilh a certa q u a n d o a firm a q u e
3.22- 30 p e rte n c e às relaçõ es iniciais e n tre o B atista e Jesu s, e n ã o na
seq u ên cia em q u e a cena ag o ra ap arece.
V ejam os a g o ra c o m o se so lu c io n a as d ific u ld a d e s d e se q u ê n c ia ao
colocar 3,22-30 n o m esm o c e n ário d o c a p ítu lo 1 q u e já m e n c io n a m o s.
Π · O testem u n h o final d o b atista 365

(Segundo esta teoria a frase começada no v. 26 "aquele sobre quem


tens testificado" e a totalidade do v. 28 deve ser tida como adições
feitas pelo redator para adaptar a cena ao cenário final no qual ele a
colocou - veja respectivas notas). Jesus vai para o território da Judeia
(v. 22), não depois de ter estado em Jerusalém com Nicodemos, mas
em direção ao início da narrativa do evangelho. Ouvimos afirmações
similares na tradição sinótica em relação ao tempo do batismo de Je-
sus: "Então veio Jesus da Galileia, junto do Jordão" (Mt 3,13); "E toda
a província da Judeia e os de Jerusalém iam ter com ele [João Batista]"
(Mc 1,5). A embaraçosa hostilidade dos discípulos do Batista para com
Jesus pode ser entendida se Jesus acaba de entrar em cena e o Batista
ainda não dera a todos os discípulos o testemunho em prol de Jesus do
qual já ouvimos no capítulo 1. Os vs. 27,29-30 pertencem ao mesmo tipo
geral de testemunho inicial em prol de Jesus que aparece em 1,29-34.
Se formos levados a reconstruir ainda mais as relações entre 1,19-34
e 3,22-30, podemos sugerir que a cena em 3,22-30, originalmente, se-
guiu logo depois a de 1,19-34. O Batista já não está em Betânia dalém
do Jordão, e sim em Enon perto de Salim. Jesus, que foi batizado pelo
Batista, está agora no vale do Jordão conduzindo seu próprio ministério
de batismo e seguido pelos discípulos (3,22) os quais o Batista lhe enviara.
Em 3,22-30 temos o testemunho do Batista em Enon a outro grupo de
seus discípulos. Tudo isto ocorre no ministério de Jesus na Galileia,
onde abandonará o ministério de batizador e começará a concentrar-
se no ensino. É precisamente essa mudança de atuação por parte de
Jesus (uma mudança que ocorreu após o Batista ser preso) que levou
o Batista a enviar da prisão a pergunta se, depois de tudo, Jesus real-
mente era aquele que havia de vir (Lc 7,20). Assim, cremos que 3,22-30,
se entendido com propriedade, nos dá informação mui confiável sobre
os primeiros dias de Jesus, material não preservado nos sinóticos, mas
que D odd , T r a d it io n , pp. 279-87, classifica corretamente como muito an-
tigo. Não há razão teológica plausível por que alguém teria inventado
a tradição de que Jesus e seus discípulos batizaram. Certamente que a
prática do batismo cristão não carecia de tal apoio; e, como questão de
fato, a informação de que Jesus uma vez imitou o Batista em batizar
teria sido uma perigosa arma nas mãos dos adeptos do Batista (e daí
provavelmente a modificação em 4,2).
Por que esta cena tem sido transferida do início do evangelho para
seu presente lugar e adaptada (nos vs. 26 e 28) para melhor adequar-se?
366 O Livro dos Sinais

P o d e ser q u e a ree lab o ra ç ão d o c a p ítu lo 1 p a ra q u e a fo rm a ç ã o teo-


lógica d o tre in a m e n to d o s d isc íp u lo s n u m a série d e d ia s re su lta sse
n o d e slo c a m e n to d o q u e o ra tem o s e m 3,22-30. M as ta m b é m é b e m
p ro v á v e l q u e a p re s e n te lo calização reflita o d esejo d e rea lç a r o tem a
b a tism a l d o d iá lo g o com N ic o d e m o s. A c h a re m o s o u tro e x e m p lo em
6,51-59 d e co m o o desejo d e s u b lin h a r o tem a sa c ra m e n ta l d e u m a
cena (já p re s e n te , p o ré m a p e n a s su tilm e n te ) le v o u à c o lo car e m u m
p o n to d e te rm in a d o o u tro fra g m e n to d e slo c a d o d a tra d iç ã o jo an in a .

COMENTÁRIO: DETALHADO

A m en sag em básica d a cena se e n c o n tra n o q u e o B atista d iz d e Jesus


n o s vs. 27,29-30 (que d e v e m ser Udos co m o u m a u n id a d e sem o v. 28).
O v. 27 é u m a fo rism o m ais e n ig m ático ju stifican d o o m a io r êxito d e Je-
sus. N o ssa p rim e ira p e rg u n ta co n cern en te ao v. 27 é se o p o v o é rep re -
se n ta d o co m o in d o ao Batista o u a Jesus. O v. 27 significa q u e, se a p e n a s
u m a s p o u c a s p e sso a s v ão ao B atista, isso é tu d o o q u e D eu s lh e d e u ? O u
significa q u e, se m u ita s p e sso a s v ã o a Jesus, isso se d e v e ao fato d e D eu s
o rd en á-lo assim ? A d iferen ça n ã o é m u ito significativa, m a s a se g u n d a
[alternativa] p arece m ais p ro v áv el. T o d av ia, m esm o q u e o v. 27 se refira
em geral à id a d o p o v o a Jesus, a in d a h á d u a s variações, co m o salien ta
Boismard, " L'ami", p. 290: (a) o beneficiário q u e se a lu d e e m 27 é o cren-
te; o "benefício" é o p riv ilég io d e ir a Jesus. N in g u é m p o d e ir a Jesus, a
m en o s q u e D eu s o c o n d u za. Fé o u ir a Jesus é o d o m d e D e u s ao crente.
Isto lem b ra 6,65: " N in g u é m p o d e v ir a m im , se n ã o lh e for c o n c ed id o
p elo P ai", (b) o "beneficiário" d e 27 é Jesus; o "lh e" é o crente. N in g u é m
p o d e ir a Jesus, a m en o s q u e D eus o d ê a Jesus. O c ren te é d o m d e D eus
a Jesus. Isto lem b ra 6,37: "T o d o o q u e o Pai m e d á v irá a m im " (note: o
n e u tro se refere aos crentes). O tem a d e q u e o Pai tem d a d o c re n tes a
Jesus é fre q u e n te em João (3,35; 6,39; 10,29; 17,2.9.11.24).
P o sto q u e o v. 27 v isa a c o n tra sta r os d ife re n te s p a p é is d o B atista
e d e Jesu s, u m a referên cia d ire ta a Jesus, (b) p a re c e m ais p la u sív e l,
co m o s u s te n ta Boismard.
O fato d e q u e D eu s te m d a d o a Jesus to d o s e ste s c re n te s lev a o
B atista a e s tim a r se u p ró p rio p a p e l n o v. 29 p o r m eio d e u m d ito pa-
rab ó lico (D odd , Tradition, p p . 282-83). O u so d e lin g u a g e m fig u rativ a
é a trib u íd o ao B atista ta m b é m nos sin ó tico s (M t 3,10.12) e d e v e ra s se
Π · O testemunho final do batista 367

e s p e ra ria d e u m a fig u ra pro fética. A c h a m o s este m esm o tem a p a ra b ó -


lico d o n o iv o n o s p ró p rio s láb io s d e Jesus n a p rim itiv a tra d içã o sinótica
(b em co m o n a s p a rá b o la s d e M t 22,1; 25,1). Q u a n d o in d a g a d o p o r q u e
os d isc íp u lo s d o B atista jeju am e n q u a n to q u e os seu s, n ão , Jesus res-
p o n d e : " P o d e m os c o n v id a d o s p a ra as b o d a s jeju ar e n q u a n to o no iv o
está com eles?" (Mc 2,18-19 e par.). A m b a s estas refe rê n c ia s p a ra b ó li-
cas ao n o iv o p o d e ría m ter s id o d ito s sa p ie n c ia is tra d icio n a is an te s qu e
fo ssem u s a d o s n o c o n tex to d o e v a n g e lh o (veja n o ta so b re v. 29 p a ra
a ra m a ísm o s). A m b a s as p a rá b o la s, co m o a p a re c e m n os ev an g elh o s,
c o m p a ra m a situ a ç ã o d e Jesus e a d o n o ivo; e a m b a s p a re c e m refletir
o b e m c o n h e c id o tem a v e te ro te sta m e n tá rio d o c a sa m e n to e n tre D eus
e Israel (O s 1-2; Jr 2,2; Is 61,10; C a n ta re s d e S alom ão). C o m o T aylor,
p. 210, reco n h eceu em seu e stu d o so b re M arcos, Jesus é o no iv o m essiâni-
co d e Israel. E ste tem a se to rn a e xplícito e m o u tra o b ra d a escola jo an in a
(A p 19,7; 21,2) sob a im a g e m d a s b o d a s d o C o rd e iro , m as já está an-
te c ip a d o e m Jo 3,29. A g o ra q u e o B atista já p re p a ro u a n o iv a p a ra a
v in d a d e Jesu s (1,31), e n tã o v a i d e s a p a re c e n d o d o contexto.
Q u e a o b ra d o B atista está n o fim e seu d e stin o é d e c re sc er cons-
titu i u m a n o ta q u e n ã o e n c o n tra m o s n o c a p ítu lo 1, e sim em 3,30 (e
já n o p a rê n te s e s d o v. 24), é m u ito e v id e n te. A ú ltim a lin h a d o v. 29
n o s in fo rm a q u e o B atista aceito u com aleg ria seu p a p e l e d estin o , a
m esm a a le g ria q u e A p 19,7 associa com as n ú p c ia s d o C o rd e iro . A s
p a la v ra s d o v. 30, co m o as ú ltim a s p a la v ra s d ita s p e lo B atista neste
e v a n g elh o , são m u ito a p ro p ria d a s . N ã o é im p ro v á v e l q u e sua p rese r-
v ação fosse à m a n e ira d e re sp o sta aos a d e p to s d o Batista. O v. 30, com
seu c o n tra s te e n tre d im in u ir e crescer, n ã o está tão a fa sta d o d o relato
sin ó tico d a e stim a q u e Jesu s n u tria p e lo rela tiv o m érito d o B atista
(M t 11,11; Lc 7,28): "E n tre os n a sc id o s d e m u lh e re s, n e n h u m é m aio r
q u e João; to d a v ia , o m e n o r n o rein o d o céu é m a io r q u e João".
É A gostinho, com se u b e lo e p ig ra m á tic o (In ] 0. 8,12; PL 35:1498),
q u e m e lh o r c a p to u o c o n tra ste jo a n in o e n tre o B atista e Jesus:

E u ouço; é ele q u e m fala; (3,29)


E u so u ilu m in a d o ; ele é a lu z; (1,6-9)
E u s o u o o u v in te ; ele é a P alav ra. (3,29)

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia n o fi-


nal d o § 12.]
12. A CONCLUSÃO DO DIÁLOGO
(3,31 -36)

3 31"A q u e le q u e v e m d e cim a está acim a d e todos;


a q u e le q u e é d a te rra é terren o ,
e fala em u m p la n o terren o .
A q u e le q u e v e m d o céu [(que) está acim a d e to d o s]
32testifica d o q u e tem v isto e o u v id o ,
m as n in g u é m aceita seu te ste m u n h o .
33T o d o s q u a n to s ac eita m seu te ste m u n h o
tem certificad o d e q u e D e u s é fiel.
34Pois a q u e le a q u e m D e u s e n v io u
fala as p a la v ra s d e D eus;
v e rd a d e ira m e n te se m lim ite é seu d o m d o E spírito.
35O Pai am a o Filho
e lh e e n tre g o u to d a s as coisas.
36Q u e m crê n o F ilho
tem a v id a e te rn a.
Q u e m d e so b e d e c e ao F ilho
n ã o v ê a v id a,
m as d e v e s u p o rta r a ira d e D eu s".

NOTAS

3.31. Aquele que vem. João Batista usa isto com o título para aquele a quem
ele está esperando; veja nota sobre 1,30. Também Mt 11,3; Lc 7,19: "É s tu
aquele que havia de vir?"
de cima. Aqui, anõthen (veja nota sobre 3,3) obviamente significa "d e cim a",
visto formar paralelo com "d o céu " no mesmo versículo.
12 · A conclusão do diálogo 369

está acima de todos. Rm 9,5 fala de "Cristo [que é?l Deus sobre todos, bendito
para sem pre". É difícil decidir se o "tod os" em João é masculino (acima
de todos os mestres) ou neutro (acima de todas as coisas). Provavelmen-
te, João quer dizer "acim a de toda esfera hum ana".
da terra. "T erra", em João, usualmente não tem sentido pejorativo que
implica o termo "m undo" (veja Apêndice 1:7, p. 794ss). Refere-se ao ní-
vel natural da existência do homem (Deus criou o homem do pó da ter-
ra - LXX de Gn 2,7) com o contrastado com o sobrenatural ou celestial.
O "m undo" tem em si a ideia de hostilidade satânica (ljo 5,19). Para ilustrar
a diferença (que nem sempre é preservada), podemos contrastar "aquele
que é da terra", em nossa passagem atual, com os falsos profetas e anticristos
de ljo 4,5, que são "do mundo e falam em um plano mundano". Como pa-
ralelo a Jo 3,31, podemos citar 4 Esdras 4,21: "Os que habitam na terra podem
compreender somente o que está sobre a terra, enquanto os que estão acima
dos céus podem compreender o que está acima das alturas celestiais".
em um plano terreno. Literalmente, "d a terra".
](,que) está acima de todos], Há duas leituras possíveis para o final do v. 31 e
início do 32: (a) "Aquele que vem do céu está acima de todos; o que ele
tem visto e ouvido, é disto que ele testifica", (b) "Aquele que vem do
céu testifica do que tem visto e ouvido". As testemunhas em prol das
duas leituras estão uniformemente divididas, com o os papiros Bodmer
(com P75, bastante curiosamente, do lado das testemunhas ocidentais).
Há bons argum entos lógicos em prol de ambas as redações.
32. visto e ouvido. "V isto" é de tempo perfeito, enquanto "ouvido" é aoristo;
BDF, § 3422, diz que tal com binação de tempos põe a ênfase em "ver".
Temos um interessante paralelo em ljo 1,3, "O que temos visto e ouvido
por nossa vez vos proclam am os", onde ambos os tempos são perfeitos.
Em 1 João estão envolvidas testemunhas humanas, e "v er" e "ouvir" es-
tão em um mesmo plano.
33. certificado. Literalmente, "selado"; a metáfora é a de pôr um selo indicando
aprovação em um documento legal. Veja 6,27, onde "posto um selo" signifi-
ca creditar. Este uso de "selo" pode ser mais semítico (hãtam ) do que grego.
34. sem limite. Literalmente, "não por m edida"; embora ek metrou não se en-
contre em outro lugar nos escritos gregos, a expressão equivalente, "por
m edida", não é incomum na literatura rabínica. Na Midrásh Rabbah sobre
Lv 15,2, o rabino Aha diz: "O Espírito Santo repousava sobre os profetas
por m edida". Se um a ideia similar jaz por detrás da afirmação em João,
então Jesus está sendo contrastado com os profetas (com o em Hb 1,1).
Entretanto, a afirmação pode simplesmente significar que com Jesus te-
mos o transbordam ento escatológico definitivo do Espírito.
370 O Livro dos Sinais

seu dom. Literalmente, "concede [tempo presente] não por m edida". Al-
guns manuscritos posteriores identificam o sujeito da concessão: "Deus
d á"; mas é bem provável que isto seja uma tentativa de um copista para
dar clareza. No com entário discutiremos o problema de se o "sujeito" é
o Pai ou o Filho. Entretanto, podem os notar que os dons do Pai e do Fi-
lho normalmente são expressos em João pelo perfeito (17 vezes) ou pelo
aoristo (8 vezes), e somente uma vez pelo tempo presente (6,37). Assim,
aqui o uso do tempo presente sugere que o Filho é o doador. Para um es-
tudo do verbo "d a r" (didonai), em João, veja C.-J. P into de O liveira, RSPT
49 (1965), 81-104.
do Espírito. Esta frase é omitida no original do Codex Vaticanus e no OSsin;
Bui.tmann, p. 1191, pensa que a omissão pode ser original.
35. ama. O verbo é agapan, enquanto em 5,20 é philein.
entregou-lhe todas as coisas. Literalmente, "deu em sua m ão"; tam bém em
13,3 com o plural, "m ãos".
36. desobedece. A tradição latina traz "d escrê" na analogia de 3,18 e porque
isto dá um melhor contraste com "crê " na primeira linha do v. 36. "De-
sobedece", a redação mais difícil, ocorre somente aqui em João; sua in-
trodução por copistas não é facilmente explicado, e assim provavelm ente
seja o original.
vê a vida. Em 3,3 ouvimos de "v e r" o reino de Deus; para João, vida eterna
e reino de Deus são estreitam ente conceitos aliados.
deve suportar a ira de Deus. Literalmente, "a ira de Deus perm anece sobre
ele"; o tempo presente indica que a punição já com eçou e durará. Os si-
nóticos usam a frase "a ira por vir" na predição do Batista do que aconte-
cerá quando vem aquele para quem ele está preparando. Para João, este
tema escatológico é realizado aqui e agora.

COMENTÁRIO: GERAL

O p ro b le m a m ais im p o rta n te , n e ste s v ersícu lo s, d iz re sp e ito a q u e m


fala. V isto q u e o B atista foi o ú ltim o q u e falou (vs. 27-30) e n ã o se in-
d ica n e n h u m a m u d a n ç a d e q u e m fala, a lg u n s e stu d io so s (B auer , B ar -
rett) creem q u e ele a in d a está falan d o . S e g u n d o esta in te rp re ta ç ã o , o
Batista está se c o n tra sta n d o com Jesu s no v. 31; e a referên cia ao " d o m
d o E sp írito ", e m 34, p ro v a v e lm e n te d e scre v e Jesu s b a tiz a n d o d o q u e
o u v im o s em 22 (veja ta m b é m o c o n tra ste e n tre o b a tism o d o B atista e
o d e Jesu s im p lícito em 1,26 e 33). B lack , p. 109, sa lie n ta q u e há traços
12 · A conclusão do diálogo 371

a ra m a ic o s e m 31 ss., p re c isa m e n te co m o h o u v e em 29-30 (veja n o ta


so b re v. 29); isto p o d e im p lic a r u m a c o n tin u id a d e e n tre as d u a s pas-
sa g en s. T o d a v ia , os a ra m a ísm o s q u e ele e n c o n tra em 31ss. n ão são
m a rc a n te s e d e p e n d e m d e e m e n d a s g re g a s (veja B arrett, p. 188).
U m a rg u m e n to a in d a m ais fo rte p o d e se r e v o c ad o em p ro l de
Jesus co m o o q u e fala (Schnackenburg, art. cit.). A lg u n s d o s q u e acei-
tam Jesus co m o o q u e fala tran sp õ em 3,31-36 p a ra q u e se torne p arte
d o d iálo g o com N icodem os e v e m antes d e 3,22-30 (assim B ernard e
B ultmann ). N o en tan to , com o D odd, Interpretation, p. 309, salienta, ain-
d a q u a n d o os vs. 31-36 sejam colocados d e p o is d e 1-21, a conexão entre
21 e 31 p e rm a n ec e confusa; o tem a d e 31-36 é m ais afim ao d e 11-15 do
q u e o d e 21. G ourbillon, art. cit., p e n sa q u e 31-36 o rig in alm en te seguia
3,13, e q u e foi d eslo cad o q u a n d o 14-21 foi in tro d u z id o e a n ex ad o ao 13.
L agrange , p. 96, e n te n d e q u e o e v a n g e lista é o q u e fala em 31-36;
p e n s a q u e p re c is a m e n te co m o 16-21 foi o c o m e n tá rio d o e v a n g elista
n a cen a d e N ic o d e m o s, a ssim 31-36 é o c o m e n tá rio d o e v a n g elista na
cena c o n c e rn e n te ao B atista (22-30).
E m m eio a e sta s teo rias, d e v e -se o b se rv a r com clareza q u e o dis-
cu rso e m 31-36 se a sse m e lh a b e m d e p e rto ao estilo d e lin g u a g e m atri-
b u íd a a Jesu s n o e v a n g e lh o , e e m p a rtic u la r tem estre ito s p a ra lelo s
n as p a la v ra s d e Jesu s a N ico d em o s:

• " d e c im a ", em 3,7 e 31.


• " a q u e le q u e v e m [veio! d o c é u ", em 13 e 31.
• c o n tra s te s d u a lístic o s co m o c a rn e /E s p írito , em 6 (te rre n o /c e -
lestial, em 12), e " d e c im a /d a te rra " , em 31.
• te stific a n d o d o q u e tem sid o v isto , em 11 e 32.
• fracasso e m a c eita r este te ste m u n h o , em 11 e 32.
• " a q u e le IFilho] a q u e m D e u s e n v io u " , em 17 e 34.
• o tem a d o E sp írito , em 5-8 e 34.
• " to d o o q u e crê no F ilho tem a v id a e te rn a " , em 15,16 e 36.
• d u a lis m o e n tre "o s q u e c re e m " e " to d o o q u e n ã o crê (desobe-
d e ce]", em 18 e 36.

N e n h u m d e sse s e stre ito s p a ra le lo s p o d e ser co lo cad o e n tre os vs.


31-36 e as p a la v ra s d o B atista. S u g e rim o s q u e em 31-36 p o d e m o s m u i-
to b e m te r a in d a u m a terceira v a ria n te d o d isc u rso d e Jesus e n co n tra-
d o e m 11-21 e ta m b é m em 12,44-50 (veja s u p ra , p. 355).
372 O Livro dos Sinais

Se os vs. 31-36 re p re se n ta m u m d isc u rso d e Jesus, p o r q u e u m


re d a to r o teria in se rid o o n d e a g o ra se e n c o n tra , a p ó s p a la v ra s d ita s
p elo B atista e sem u m a in tro d u ç ã o ? Q u e u m d isc u rso d e Je su s p o d e
ser a n e x a d o sem u m a in tro d u ç ã o e x ten sa se p o d e v e r c la ra m e n te no
caso d e 12,44-50; c o n tu d o , ali Jesus ao m en o s é id e n tific a d o co m o o
o rad o r. A lg u n s têm s u g e rid o q u e u m re d a to r v iu a e stre ita relação
d e 31-36 com a cena d e N ic o d e m o s e d esejo u co lo car isso p o r p erto ;
m esm o assim , o caso n ã o explica p o r q u e ele foi a n e x a d o a p ó s 3,30,
e n ão a p ó s 3,21. A m e lh o r so lu ç ã o p a re c e ser a d e D odd , a sa b er, q u e
o re d a to r d esejo u u s a r 31-36 p a ra re c a p itu la r a to ta lid a d e d e 3,1-30 e
s u m a ria r a m b a s as cenas, d e N ic o d e m o s e a d o Batista. Se o re d a to r
c o n sid e ro u as p a la v ra s co m o tam b é m p e rtin e n te s à cena d o B atista,
e n tã o su a falh a em in d ic a r u m a in te rru p ç ã o e n tre os vs. 30 e 31 p o d e -
ria ser u m ta n to m ais inteligível.
A ssim , c re m o s q u e o q u e u m a v e z e ra u m d isc u rs o iso la d o d e
Jesu s (tra ta n d o em b o a m e d id a os m e sm o s te m a s co m o e m 3,11-21 e
12,44-50), foi a n e x a d o às c e n a s d o c a p ítu lo 3 c o m o u m a in te rp re ta ç ã o
d a q u e la s cen as. M u ito s p ro b le m a s so b re a in te rp re ta ç ã o d e v e rsíc u -
los in d iv id u a is em 31-36 p o d e m se r re so lv id o s, se re c o n h e c e rm o s
d o is n ív eis d e sig n ific a d o c o rre s p o n d e n te s a o s d o is e stá g io s e m q u e
se d iv id e a h istó ria d e s te d isc u rso .

COMENTÁRIO: DETALHADO

O p a ra lelo real p a ra o d u a lism o d o v. 31 é o c o n tra ste e n tre c a rn e


e e sp írito n o v. 6, p o is o v. 31 é o u tra referên cia à in c a p a c id a d e ra d i-
cal d o n a tu ra l elev ar-se. O ú n ico au x ílio p ro v é m d a q u e le q u e v e m d e
cim a, isto é, Jesus. E n tre tan to , se o v. 31 era o rig in a lm e n te u m con-
tra ste g eral e n tre terre n o e celestial, teria a s su m id o u m sig n ific a d o
ad ic io n al e m ais p reciso em seu p re se n te co n tex to ? H á u m a a n tig a
d isp u ta q u a n to a se "a q u e le q u e v em d e cim a" e " a q u e le q u e é d a
te rra " se d e s tin a v a m a c o n tra sta r Jesus e o B atista. O rígenes d iz {In Jo.
Frag. 49; GCS 10:523-24) q u e os h e re g e s criam q u e o B atista era " a q u e -
le q u e é da terra"; ao m esm o te m p o , C risóstomo n ão h e sita v a em fazer
essa m esm a id en tificação {In Jo. Horn. 30; PG 59:171). Schanckenburg
d ú v id a q u e n o p e n s a m e n to jo an in o o B atista seria d e s ig n a d o co m o
" d a te rra ", p o sto q u e ele era u m h o m e m e n v ia d o p o r D e u s (1,6).
12 · A conclusão do diálogo 373

N ã o o b s ta n te , co m o sa lie n ta m o s n a re sp e c tiv a n o ta, n ã o há n a d a de


h o stil so b re " d a te rra " . E sta c o m p a ra ç ã o n ã o seria m ais d e sfa v o ráv e l
ao B atista d o q u e a lg u m a s d a s o u tra s q u e já v im o s (precursor daquele
que vem; indigno de desatar as correias de sua sandália; batizando com água
em contraste com batizando com um Espírito santo; 0 melhor homem lamigo]
do noivo; destinado a crescer enquanto ele diminui).
S eria to ta lm e n te c o n siste n te ta n to com a co n cep ção d e João so b re
o B atista q u a n to c om a p o lêm ic a c o n tra os a d e p to s d o B atista, insistin-
d o q u e o B atista e se u b a tism o e ra m ra d ic a lm e n te im p o te n te s em d a r
v id a e te rn a . Eis p o r q u e l j o 5,6 in siste q u e Jesu s n ã o veio so m e n te p o r
á g u a ; o p o d e r d e g e ra r d e cim a só p o d e v ir a tra v é s d a á g u a e do Espí-
rito (Jo 3,5), e o E sp írito é o d o m d a q u e le d e cim a. João B atista, com o
os p ro fe ta s d e o u tro ra , p o d e ter sid o e n v ia d o p o r D eus; m as ele não
é " d e c im a ", p o is esse te rm o se ap lica e x c lu siv am e n te a Jesus (3,13).
A ssim , n ã o h á o bjeção real à su g e stã o d e q u e, ao co lo car os vs. 31-36
o n d e o ra e stã o , o re d a to r p re te n d ia c o n tra s ta r Jesus e o B atista e seus
resp e c tiv o s b a tism o s.
O tem a d o v. 32 é o m esm o q u e o d o 11: o fracasso d o s ouvintes
d e Jesus e m aceitar seu teste m u n h o , ain d a q u a n d o viesse d e cim a e
so u b esse d o q u e fala. O "n in g u é m " n ão é categórico, com o o próxi-
m o v ersícu lo (33) m ostra. O v. 33 a d q u ire significação extra contra o
p a n o d e fu n d o d e 26, o q u a l relato u q u e to d o s q u a n to s são arreb an h a-
d o s a Jesu s d e v e m ser b atizad o s. Se a cena d e N ico d em o s justificasse
o p essim ism o d e 32, e n tã o o êxito rela ta d o n a cena d o Batista justifi-
ca o c a rá te r afirm ativ o d e 33. O v. 33 tam b é m salienta a relação que
d elim ita a id e n tid a d e e n tre o teste m u n h o d e Jesus e a v e rd a d e d o Pai.
ljo 5,9-10 afirm ará q u e o p ró p rio D eus tem testificado d e Seu Filho, e
to d o s os q u e n ão creem fazem Deus m entiroso. Eis p o r q u e Jesus p o d e
dizer, e m 14,6, "e u sou a v e rd a d e " , e p o d e insistir q u e é atrav és dele q u e
o Pai é co n h ecid o p elo s h o m en s (14,91). Este tem a p ro sse g u e no v. 34.
A ú ltim a p a rte d o v. 34 in tro d u z o tem a d o E spírito. Isto d ev e
ser s u b e n te n d id o ta n to c o n tra o p a n o d e fu n d o d a g eração a tra v é s
d o E sp írito , n o v. 5, co m o n o b a tiz a r d e D eu s e m 22. (U m a v ez m ais,
e n fa tiz a m o s q u e tal referên cia relacio n a o b a tism o d e Jesus com a doa-
ção d o E sp írito o riu n d a d o c o n te x to n o q u a l o s vs. 31-36 fo ram colo-
cad o s; n ã o im p lic a a b s o lu ta m e n te q u e n o p e n s a m e n to jo an in o o m i-
n isté rio in icial d e Jesu s, d e b a tiz a r, re a lm e n te c o m u n ic av a o E spírito
- veja 7,39). A p re s e n te p o siç ã o d a p e ríc o p e, se re fe rin d o ao E spírito,
374 O Livro dos Sinais

cap acita o re d a to r a su b lin h a r u m a v ez m ais, c o n tra os a d e p to s do


B atista, a s in g u la r d istin çã o e n tre o b a tism o c ristã o e o b a tism o d e seu
m estre (A t 19,2-6).
N o v. 34, q u e m é o d o a d o r d o E spírito? M u ito s c o m e n ta rista s m o-
d e rn o s (B ernard , B ultmann , C ullmann , B arrett) c o n c o rd a m com os
a n tig o s escrib as (veja a resp e c tiv a n o ta) d e q u e D eu s é a q u e le q u e dá
o E spírito; o u tro s, com o L agrange e T hüsing, p e n s a m q u e o su jeito é
"aq u e le a q u e m D e u s e n v io u " , isto é, Jesus. D e u m lad o , se 34c for tid o
com o p a ra le lo a 35, e n tã o o d o m d o Pai, o E sp írito , ao F ilho é p a rte
d o e n tre g a r-lh e to d a s as coisas. D o o u tro , co m o sa lie n ta T hüsing ,
p p . 154-55,6,63 ("A s p a la v ras q u e eu v os ten h o d ito são E sp írito e v id a")
é u m b o m p a ra le lo ao v. 34, e ali é Jesus q u e m fala as p a la v ra s e assim
d á o E sp írito . In d ag a -se se é c ru cial d e c id ir se João q u e r d iz e r q u e m dá
o E sp írito , o Pai o u Jesus; as d u a s id éia s se e n c o n tra m em João (14,26;
15,26). N o p re s e n te co n tex to , o E sp írito q u e g e ra e o E sp írito q u e é
c o m u n ic a d o n o b a tism o v êm d e cim a o u d o Pai, m a s s o m e n te a tra v é s
d e Jesus.
O tem a d o v. 35 - q u e o Pai e n tre g o u ao F ilho to d a s as co isas - é
u m d o s fav o rito s em João. E n tre as coisas q u e João m en c io n a co m o
te n d o sid o d a d a s p e lo P ai ao Filho estão: ju lg a m e n to (5,22.27); te r v id a
em si m esm o (5,26); p o d e r so b re to d a ca rn e (17,2); os s e g u id o re s (6,37;
17,6); o q u e falar (7,49; 17,8); o n o m e d iv in o (17,11.12); e g ló ria (17,22).
O p a ra lelo sin ó tico m ais p ró x im o d o v. 34 está n a p a s sa g e m assim
c h a m a d a jo an in a (M t 11,27; Lc 10,22): "T o d a s as coisas fo ra m e n tre -
g u e s a m im p o r m e u P ai". T ais a firm açõ es fin a lm e n te le v a m o s teólo-
gos cristã o s a rec o n h e c ere m q u e o F ilho faz o q u e o Pai faz, e p o r isso
ag em co m o m esm o p o d e r e p o ssu e m u m a só n a tu re z a .
O d isc u rs o te rm in a n o v. 36 sob o tem a d a d u p la rea ç ã o p e ra n te
Jesus, o m esm o tem a q u e c o n c lu iu o d isc u rso a N ic o d e m o s n o s vs.
18-21. N o te os tem p o s p re se n te s, "crê ", " d e so b e d e c e " ; João n ã o está
p e n s a n d o em u m ú n ico a to , e sim em p a d rã o d e v id a . N o te a in d a q u e
o c o n tra ste ao cre r é d e so b ed e c e r; e m 18-21 v im o s a fo rte co n e x ão en-
tre a m a n e ira co m o u m h o m e m v iv e, ag e e g u a rd a os m a n d a m e n to s
e su a co n fian ça e m Jesus. O s a to s m a u s e a d e so b e d iê n c ia ao s m a n d a -
m en to s d e D eu s se e x p re ssa m n a rec u sa a c re r e m Jesus; e v isto q u e os
m a n d a m e n to s d e D e u s sig n ificam v id a e te rn a (12,50 - o ú ltim o v ersí-
cu lo d a o u tra v a ria n te d e ste d isc u rso ), " to d o s q u a n to s d e so b e d e c e m
ao F ilho não verão a vida". D eso b ed iên cia se faz m e re c e d o ra e a g o ra d a
12 · A conclusão do diálogo 375

e te rn a ira d e D eu s, ju sta m e n te co m o o v. 18 e n fa tiz o u q u e o h o m em


q u e se rec u sa a cre r já está julgado. O la d o p o sitiv o d e sta escatologia
re a liz a d a é v isto n a a firm a ç ão d e q u e to d o a q u e le q u e crê n o F ilho tem
a v id a e te rn a.

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13. JESUS DEIXA A JUDEIA
(4 , 1 -3 )

Uma passagem de transição

4 ’O ra, q u a n d o Je su s e n te n d e u q u e os fa rise u s o u v ira m q u e ele


e sta v a c o n q u is ta n d o e b a tiz a n d o m ais d isc íp u lo s d o q u e Jo ão (2en-
tre ta n to , n a v e rd a d e n ã o e ra o p r ó p rio Je su s q u e m b a tiz a v a , e sim
se u s d isc íp u lo s ), 3ele d e ix o u a Ju d e ia e u m a v e z m a is p a r tiu d e v o lta
à G alileia.

NOTAS

4 1. Jesus. Importantes manuscritos do Egito trazem "Q uando o Senhor enten-


deu que os fariseus ouviram que Jesus estava"...; im portantes testemu-
nhas ocidentais dizem "Q uando Jesus entendeu que os fariseus ouviram
que Jesus estava"... Provavelm ente, o original "Q uando ele entendeu"; e
as redações supra representam tentativas de copistas de clarificar o sujei-
to pronominal. Temos transferido o sujeito "Jesus" da cláusula subordi-
nada para a cláusula principal com o intuito de suavizar a leitura.
2. não era 0 próprio Jesus. Obviamente, esta é um a tentativa de m odificar 3,22,
onde lemos que Jesus batizava, e quase serve com o indiscutível evidên-
cia da presença de várias m ãos na com posição de João. Talvez o redator
final temesse que os adeptos do Batista usassem o batizar de Jesus com o
um argum ento de que ele era apenas um imitador do Batista. A palavra
incomum para "entretanto" (kaitoi ge) pode ser outra indicação de uma
mão distinta.
3. Judeia. Há alguma evidência para ler-se "território da Judeia", a mesma
expressão encontrada em 3,22 (veja a respectiva nota).
13 · Jesus deixa a Judeia 377

partiu de volta à. Literalmente, "voltou para"; um aoristo complexo para toda


a ação ainda não completada, como em 2,20 (veja a respectiva nota). Há
quem sugira, sobre a força deste tempo, que 4,43-45 fosse uma vez unido a
1-3, e que o incidente em Samaria fosse mais tarde interpolado no conjunto.

COMENTÁRIO

A e s tra n h e z a d e sta p a ssa g e m d e tra n siç ã o sa lie n ta d a s n a s resp e c tiv a s


n o ta s to rn a p ro v á v e l q u e u m fra g m e n to d o m a te ria l itin e rá rio jo an in o
foi u s a d o p a ra faz e r u m e n q u a d ra m e n to p a ra o in c id e n te em S am aria.
Isto n ã o significa n e c e ssa ria m e n te q u e o in c id e n te em S am aria não
o c o rre u d e c a m in h o d a J u d e ia p a ra a G alileia, ju sta m e n te com o João o
d e screv e, m a s sim p le sm e n te q u e a d escrição d a jo rn a d a ora en co n tra-
d a em 1-3 n e m s e m p re foi p a rte d a n a rra tiv a so b re S am aria.
C o m o a n a rra tiv a o ra se e n c o n tra, n ã o é c lara a ra z ã o p a ra a sú b ita
p a rtid a d e Jesu s d a Ju d e ia . H av ia farise u s ta m b é m n a G alileia, e assim
su a m u d a n ç a d e a tiv id a d e s n a G alileia n ã o p o ria fim à sua oposição.
O fato d e q u e os fa rise u s a g o ra v o lv em su a a te n ç ã o d o Batista (1,24)
p a ra Jesu s significa q u e o B atista fora p re so p o r H e ro d e s (3,24 - veja
p. 363). Se esse é o caso e Jesus d eseja e v ita r ser p reso , se u s m o v im en -
tos a in d a n ã o são ex p lic ad o s, p o is a G alileia ficava ta n to n o te rritó rio
d e H e ro d e s co m o n a P ereia (a T ra n sjo rd ân ia ), o n d e o B atista esteve
a p rin c íp io b a tiz a n d o (1,28). T alv ez a c e n traliza ç ã o d a a te n ç ã o sobre
Jesus d e v a ser e x p lic a d a s im p le sm e n te p elo fato d e q u e o B atista já se
v ira fo rç a d o a sa ir d a Ju d e ia ru m o ao E non, e ag o ra os fariseu s esta-
v am te n ta n d o fazer Jesu s p a rtir tam b ém . Em q u a lq u e r caso, a p a rtid a
de Jesu s d a J u d e ia p a re c e sig n ificar o fim d e seu m in isté rio d e b atizar;
d o ra v a n te , se u m in isté rio será o d a p a la v ra e sinal.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia no fi-


nal d o § 15.]
14. DIÁLOGO COM A MULHER
SAMARITANA JUNTO AO POÇO DE JACÓ
(4 ,4 ‫־‬42 )

Introdução

4 4E ele tin h a q u e p a s sa r p o r S am aria; 5e foi a ssim q u e ele c h e g o u


a u m a c id a d e sa m a rita n a c h a m a d a S iquém , ju n to d a p o rç ã o d e terra
q u e Jacó d e ra a se u filho José. 6E ste e ra o local d o p o ç o d e Jacó; e e n tã o
Jesus, c a n sa d o d a v iag e m , a sse n to u -se ju n to ao poço.

Cena 1

E ra q u a s e m eio d ia; 7e q u a n d o u m a m u lh e r s a m a rita n a v e io tira r


á g u a , Jesu s lh e disse: "D á -m e d e b e b e r". (8S eus d isc íp u lo s h a v ia m id o
à c id a d e c o m p ra r su p rim e n to s). 9M as a m u lh e r s a m a rita n a lh e disse:
"T u és ju d e u - co m o p o d e s p e d ir-m e , u m a m u lh e r s a m a rita n a , d e be-
b e r? " (p o rq u e os ju d e u s n a d a u s a m em c o m u m co m os sa m a rita n o s).
10Jesu s rep lico u :

"Se co n h ecesses o d o m d e D eu s
e q u e m é q u e te p e d e d e b eb er,
p o r tu a v e z lh e p e d iria s
e ele te d a ria á g u a v iv a".

11"Senhor", ela lhe falou, "n em m esm o tens u m a vasilha, e este poço
é fundo. O n d e, pois, estás indo obter esta ág u a corrente? 112S eguram ente,

5: trouxe; 7: veio, disse: 9: disse; 11: se dirigiu. No tempo presente histórico.


14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 379

n ã o p re te n d e s se r m a io r q u e n o sso a n c e stra l Jacó q u e n o s d e u este


p o ço e b e b e u d e le com se u s filhos e reb a n h o s!" ' 3Jesu s replicou:

" T o d o a q u e le q u e b e b e r d e sta á g u a
terá s e d e o u tra vez.
14M as to d o a q u e le q u e b e b e r d a á g u a q u e eu lhe d e r
n u n c a m ais terá sede.
A o c o n trá rio , a á g u a q u e e u lh e d e r
se to rn a rá n ele u m a fo n te d e á g u a
q u e salte p a ra a v id a e te rn a " .

15A m u lh e r lhe disse: "D á-m e d e sta á g u a, sen h o r, p a ra q u e e u não


m ais te n h a se d e e n ão te n h a q u e c o n tin u a r v in d o a q u i p a ra tirar água".

16Ele lh e falou: "V ai, c h a m a te u m a rid o e v o lta a q u i" . 17"E u n ão


te n h o m a rid o " , re p lic o u a m u lh e r. Jesu s exclam ou: "E stás certa em
d iz e re s q u e n ã o ten s m a rid o . ' 8D e fato, já tiv este cinco m a rid o s, e o
h o m e m q u e a g o ra ten s n ã o é teu m a rid o . N isso d isse ste a v e rd a d e !"
19"S en h o r", re s p o n d e u a m u lh e r, "Vejo q u e tu és p rofeta. 20N ossos
an cestrais a d o ra ra m n este m o n te, m as teu p o v o alega q u e o lu g ar o n d e
os h o m e n s d e v e m a d o ra r a D eus é em Jeru salém ". 2'Jesus lhe disse:

" C reia s-m e , m u lh e r,


está v in d o a h o ra
q u a n d o a d o ra rá s o Pai
n ã o n e ste m o n te
n e m em Jeru salém .
22V ós a d o ra is o q u e n ã o conheceis;
e n q u a n to q u e n ó s a d o ra m o s o q u e conhecem os;
a lé m d o m ais, a sa lv a ç ão é d o s ju d e u s.
23T o d a v ia , é v in d o a h o ra e a g o ra está a q u i
q u a n d o os v e rd a d e iro s a d o ra d o re s
a d o ra rã o o P ai em E sp írito e v e rd a d e .
E d e v e ra s é ju sta m e n te tais a d o ra d o re s
q u e o P ai b u sca.

15: disse; 16: falou; 17: exclamou; 19: respondeu; 21: falou; 25: disse; 26: declarou;
28: disse. No tempo presente histórico.
380 O Livro dos Sinais

24D e u s é E spírito,
e os q u e O a d o ra m
d e v e m a d o ra r em E sp írito e v e rd a d e " .

2‫יי‬A m u lh e r lhe disse: "E u sei q u e h á d e vir o M essias. Q u a n d o ele vier,


nos explicará to d as estas coisas". (Este term o "M essias" significa "U ngi-
do"). 26Jesus lhe declarou: "Sou eu, o q u e fala contigo - eu sou ele".

Cena 2

27O ra, ju sta m e n te e n tã o se u s d isc íp u lo s c h e g a ra m ju n to s. F icaram


c h o cad o s v e n d o q u e ele c o n v e rsa v a com u m a m u lh e r; c o n tu d o , n in -
g u ém p e rg u n ta v a : "O q u e desejas?", o u " P o r q u e e stá s fa la n d o com
ela?" 28E n tão , d e ix a n d o su a v asilh a d 'á g u a , a m u lh e r c o rre u p a ra a
cid ad e. Ela d isse ao p o v o : 24"V in d e e v e d e a lg u é m q u e m e d isse tu d o
q u e eu te n h o feito! E p o ssív e l q u e este seja o M essias?" 30[E ntão] saí-
ram d a c id a d e a e n c o n trar-se com ele.
31E n tre m en te s, os d isc íp u lo s p a s sa ra m a in sistir com ele: "R abi,
co m e a lg u m a coisa". 32M as ele lh es disse:

"E u te n h o u m a c o m id a p a ra co m er
d a q u a l n a d a co n h eceis".

33N isto , os d isc íp u lo s d iz ia m u n s aos o u tro s: " N ã o im a g in a is q u e


a lg u é m lhe tro u x e sse alg o p a ra c o m er?" 34Jesu s lh es explicou:

"F azer a v o n ta d e d a q u e le q u e m e e n v io u
e lev ar Sua o b ra à co n clu são -
eis m e u alim en to .
35V ós n ã o te n d e s u m dito:
'[m ais] q u a tro m eses
e a ceifa e sta rá a q u i'?
Eis q u e e u vos digo:
A b ri v o sso s olh o s
e v e d e os cam p o s;
já estã o m a d u ro s p a ra a ceifa!

34: e x p lic o u . No tempo presente histórico.


14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 381

36O ceifeiro já está re c o lh e n d o se u s salário s


e a ju n ta n d o o fru to p a ra a v id a e te rn a,
d e m o d o q u e o sem ead o r e o ceifeiro p o d e m regozijar-se juntos.
37P o is a q u i tem o s o d ito verificado:
'U m h o m e m sem eia; o o u tro ceifa.'
38Eis q u e e u v o s e n v iei a ceg ar
alg o p e lo q u a l n ã o tra b a lh a ste s.
O u tro s fiz e ra m o tra b a lh o d u ro ,
e v ó s v ieste s p a ra [colher] o fru to d o tra b a lh o d eles".

Conclusão

39O ra , m u ito s s a m a rita n o s d a q u e la c id a d e c re ra m n e le p e lo im -


p u ls o d a s p a la v ra s d a m u lh e r. "E le m e d isse tu d o q u e tin h a feito",
testifico u ela. 41’C o n s e q u e n te m e n te , q u a n d o estes sa m a rita n o s vie-
ra m a ele, ro g a ra m -lh e q u e ficasse com eles. E a ssim ele ficou ali d o is
d ias, 41e a tra v é s d e su a p ró p ria p a la v ra m u ito s o u tro s v ie ra m à fé.
42C o m o d is s e ra m à m u lh e r: " N o s s a fé já n ã o d e p e n d e d o q u e d isses-
te. P o is n ó s m e s m o s tem o s o u v id o , e sa b e m o s q u e e ste é re a lm e n te
o S a lv a d o r d o m u n d o " .

NOTAS

4.4. tinha que passar. Esta não é um a necessidade geográfica; porque, embora
a rota principal da Judeia para a Galileia fosse através de Samaria (Josefo,
Ant. 20.6.1; 118), se Jesus estava no vale do Jordão (3,22), poderia facil-
mente ter ido rum o ao norte através do vale e então subir para a Galileia
através da garganta de Bethshan, evitando Samaria. Em outro lugar do
evangelho (3,14), a expressão de necessidade significa que estava envoi-
vida a vontade ou o plano de Deus.
5. Siquém. Quase todos os manuscritos trazem "Sychar"; uma testemunha si-
ríaca traz Siquém, e J erônimo identificou Sychar com Siquém. E plausível
um equívoco que pode ter corrom pido o grego Sychem (= Shechem) em
Sychar, talvez sob a influência do som ar em Samaria. A leitura "Sychar"
cria um problema; porque, embora haja alguns vestígios nas antigas no-
tícias da existência de uma Sychar, nenhum vestígio de tal cidade foi en-
contrado na correspondente área de Samaria. A identificação de Sychar
com a m oderna 'Askar, cerca de 1,5 km a nordeste do poço de Jacó,
382 O Livro dos Sinais

provavelm ente seja errônea em vários cálculos: (a) o local é um povoado


medieval; (b) a duvidosa sim ilaridade de nom es não serve pra nada, vis-
to que o nom e árabe 'A skar não reflete um a designação antiga do local,
mas sim plesm ente que o lugar tem servido como acam pam ento militar;
(c) 'A skar tem um bom poço de sua propriedade, fato que torna inexpli-
cável a longa viagem da m ulher até o poço de Jacó. Em contrapartida,
se realm ente se prefeir a leitura Siquém, tudo se encaixa, pois o poço
de Jacó fica apenas a 100 m etros de Siquém. Provavelm ente, na época
Siquém não passava de um povoado bem pequeno.
Jacó. Para as referências a Jacó e Siquém, veja Gn 33,18 e 48,22; Js 24,32.
6. poço de Jacó. Um poço de cerca de 31 m etros de profundidade é menciona-
do pela prim eira vez nesta área nas fontes de peregrinos cristãos do 4“
século; o poço de Jacó, no sopé do m onte Garizim, pode ser aceito com
confiança. As descrições do capítulo 4 m ostram um bom conhecim ento
do cenário da palestina.
assentou-se. No m elhor m anuscrito grego, o verbo é seguido do advér-
bio houtõs, "assim, então", o qual não temos traduzido explicitamente.
É bem provável que ele m odifique o verbo, p. ex., "ele assentou-se direto"
ou "ele assentou-se sem barulho". Mas poderia m odificar o adjetivo
"cansado", p. ex., "de tão cansado que estava".
junto ao poço. Literalmente, "sobre o poço"; o poço era vertical e tam pado
por um a pedra. P66 diz "no chão", leitura que Boismard , RB 64 (1957), 397,
pensa que pode ser original.
meio dia. Literalmente, "a hora sexta". A escolha do tem po que a m ulher
escolheu para dirigir-se ao poço não é natural; essa escolha tinha de ser
de m anhã e à tardinha. Há pouca probabilidade na sugestão (L ichtfoot,
p. 122) de que a cena visa deliberadam ente relacionar-se com a crucifi-
xão, onde meio dia é tam bém a hora (19,14) e Jesus é levado outra vez a
expressar sua sede (19,28). Entretanto, o grande hino m edieval o Dies Iree
parece ter feito esta conexão: "Quaerens me sedisti lassus; redem isti cru-
cem passus". A sugestão de que as horas seriam contadas a partir da meia
noite, e não das 6 da m anhã (veja nota sobre 1,39) m udaria a contagem do
tempo, neste versículo, para as seis da manhã. Esse horário se adequaria à
cena junto ao poço, m as não se adequaria a "as seis horas" de 19,14.
7. veio tirar água. Para cenas similares junto a poços no AT, veja Gn 24,11;
29,2; Ex 2,15.
9. judeus... samaritanos. Os sam aritanos são os descendentes de dois gru-
pos: (a) o rem anescente dos israelitas nativos que não foram deportados
na queda do reino do norte em 722 a.C.; (b) colonos estrangeiros trazi-
dos de Babilônia e da M édia pelos conquistadores assírios de Samaria
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 383

(2Rs 17,24ss. dá um relato anti-sam aritano disto). Havia oposição teoló-


gica entre estes "nortistas" e os judeus do sul, em virtude da recusa sarna-
ritana ao culto em Jerusalém. Isto foi agravado pelo fato de que, depois do
exílio babilônico, os samaritanos puseram obstáculos no caminho da res-
tauração judaica de Jerusalém, e que no 2e século a.C. os samaritanos aju-
daram os monarcas sírios em suas guerras contra os judeus. Em 128 a.C.,
o sum o sacerdote judeu queim ou o tem plo samaritano sobre o Garizim.
nada usam em comum. D. Daube, JBL 69 (1950), 137-47, aponta para este signi-
ficado e sugere que o pano de fundo é a pretensão geral de que os sarna-
ritanos eram ritualm ente impuros. Uma regulamentação judaica de 65-66
d.C. advertia que jamais podería ser incluída na pureza ritual as mulhe-
res sam aritanas, visto que já m enstruavam desde o berço! - veja Levíticos
15,19. Provavelmente, esta regulamentação visava simplesmente a cano-
nizar um a atitude m uito antiga para com as mulheres samaritanas. Há
respeitável evidência ocidental para a omissão de toda esta cláusula no
v. 9, um ponto de vista partilhado por BDF, § 193‫\־‬
10. dom de Deus. Alguns com entaristas (Osty, V an den Bussche) entendem
o dom como sendo o próprio Jesus (3,16); outros, mais plausivelm ente,
pensam em algo que Jesus daria aos hom ens (sua revelação, o Espírito -
veja comentário).
te pede de beber. Literalmente, "dizendo a ti, 'Dá-me de beber'".
10-11. água viva... água corrente. Temos aqui um perfeito exemplo mal-enten-
dido joanino. Jesus está falando da água da vida; a m ulher está pensando
em água corrente, tanto mais desejável do que a água parada das cister-
nas. A palavra para "poço", em 11-12, é phrear, enquanto nos versículos
anteriores foi pêgê. No uso da LXX, há pouca diferença entre os dois
term os; m as phrear (heb. be 'êr) chega bem perto de "cisterna", enquanto
pêgê (heb. "ayin) chega bem perto de "fonte". A ideia pode ser que no
diálogo anterior que versava sobre a água natural do poço de Jacó fosse
a fonte (pegê) com água fresca e corrente; mas quando o diálogo m uda
para o tem a da água viva de Jesus, agora ele é a fonte (pêgê, no v. 14), e o
poço de Jacó se torna um a mera cisterna (phrear).
11. Senhor. O grego kyrie significa ambos, "senhor" e "Senhor"; m ui prova-
velm ente há um a progressão de um para o outro significado quando a
m ulher o usa com crescente respeito nos vs. 11,15 e 19.
da lhe falou. A m aioria das testem unhas tem "a m ulher" como o sujeito do
verbo. Seguimos P75, Vaticanus, Cópta, OSsin.
12. maior que... Jacó. Este é um perfeito exemplo de ironia joanina (veja Intro-
dução, p. 154), pois a m ulher, inconscientemente, está dizendo a verdade.
ancestral. Literalm ente, "pai".
384 O Livro dos Sinais

que nos deu este poço. Embora não haja no AT referência a este evento, tal-
vez tenham os aqui um eco do relato de Jacó e ο ροςο de Harã. J. Ramón
Diaz, " Palestinian Targum and the New Testament", NovT 6 (1963), 76-77,
cita o Targum Palestinense de Gn 28,10 concernente ao ροςο de Harã:
"Depois que «osso ancestral)acó levantou a pedra da boca do ροςο, elevou
sua superfície e transbordou, e esteve transbordante vinte anos". N ote que
em João Jesus fornece água viva (corrente) que é eterna.
14. que salte. O verbo hallesthai é usado para m ovim ento rápido por seres
vivos, como saltadores; este é o único caso de sua aplicação na ação da
água, embora sua contraparte latina, salire, tenha am bos os usos. N a LXX,
hallesthai é usado para o "espírito de Deus", como ocorre em Sansão, Saul
e Davi, que é o pano de fundo para a tese de que em João a "água viva" é
o Espírito. Inácio, Romanos 7,2, parece evocar este versículo em João: "...
água viva e falando em m im e dizendo-m e em m eu interior: 'V inde ao
Pai'"; tam bém J ustino, Trifo 69,6 (PG 6:637): "Com o um a fonte de água
viva procedente de Deus... nosso Cristo a tem jorrado".
16. chama teu marido. Seria inútil indagar o que teria acontecido se ela voltasse
com seu companheiro.
18. cinco maridos. Aos judeus se permitia somente três casamentos (StB, II,
p. 437); se o mesmo padrão era aplicável entre os samaritanos, então a vida
da m ulher fora m arcantemente imoral. Não há razão particular por que
a conversação entre Jesus e a m ulher, sobre sua vida, tenha mais de uma
implicação óbvia. Entretanto, desde os tempos mais remotos, m uitos têm
visto um simbolismo nos maridos. O rícenes (In ]0 . 13,8; GCS 10:232) viu
uma referência ao fato de que os samaritanos m antinham como canônicos
somente os cinco livros de Moisés. Hoje, outros pensam em 2Rs 17,24ss.,
onde lemos que os colonizadores estrangeiros introduzidos pelos conquis-
tadores assírios vieram de cinco cidades e trouxeram consigo seus cultos
pagãos. (Na verdade, 17,30-31 menciona sete deuses que eles cultuavam ,
mas Josefo, Ant. 9.14.3; 288 subentende um a simplificação para cinco deu-
ses). Visto que a palavra hebraica para "esposo" (ba'al, "mestre, senhor")
era também usada como um nome para uma divindade pagã, a passagem
em João é interpretada como um jogo de palavras: a m ulher representan-
do Samaria teve cinco be'ãlim (os cinco deuses previam ente cultuados), e
o ba'al (Iahweh) que ela agora tem na realidade não é seu ba'al (porque
o javismo dos samaritanos era im puro - v. 22). Essa tentativa alegórica é
possível; porém João não fornece evidência de que essa fosse sua intenção,
e não estamos certos de que tal alegoria era um fato bem conhecido na
época, a qual teria sido reconhecida sem explicação. Buch , pp. 335-36, tem
um a interpretação curiosa. Ele crê que, ao alegar que não tinha nenhum
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 385

marido, a mulher estava mentindo para Jesus porque ela tinha intenções
matrimoniais sobre ele; ele salienta que nas cenas paralelas no AT, de ho-
mens e mulheres junto ao poço (veja nota sobre v. 7) há uma situação ma-
trimonial, e que Jesus foi descrito como um noivo em 3,29.
19. Senhor. Veja nota sobre "senhor" no v. 11.
profeta. Esta identificação de Jesus se origina do conhecimento especial que
ele exibia, mas pode também referir-se ao desejo óbvio da mulher de
transform ar sua vida. Os sam aritanos não aceitavam os livros proféti-
cos do AT, então a imagem do profeta provavelm ente tenha sua origem
em Dt 18,18 (veja supra, p. 228s.), uma passagem que no Pentateuco
Samaritano, bem com o no material de Qumran, vem após Ex 20,21b.
Este profeta-sem elhante-a‫־‬Moisés teria sido esperado para estabelecer
questões legais, donde a lógica da questão implícita no v. 20. Também
Bowman, "Eschatology'', p. 63, diz que os sam aritanos esperavam que o
Taheb (veja nota sobre o v. 25) restaurasse o culto legítimo.
20. neste monte. No Pentateuco Samaritano lemos em Dt 27,4 a instrução mi-
nistrada a Josué para erigir um santuário sobre o Garizim, o monte sa-
grado dos sam aritanos. E bem provável que esta leitura seja correta, pois
a leitura "Ebal" no TM bem que pode ser uma correção anti-samaritana.
Os sam aritanos incluíam também no Decálogo a obrigação de cultuar
sobre o Garizim. Em contrastar cf. 2Cr 4,6.
0 lugar. O Codex Sinaiticus omite isto. Ele se refere ao tempo (11,48).
21. mulher. Normalmente, Jesus usa esta forma de falar ao se dirigir as mulhe-
res (ver nota sobre 2,4). "M ulher" não é uma tradução inteiramente feliz e
é um tanto arcaica. Todavia, na linguagem moderna é deficiente como um
título cortês ao dirigir-se a uma mulher que já não é uma "senhorita". Tan-
to "senhora" com o "m adam e" têm assumido um tom desprazeroso quan-
do usado com o uma abordagem sem um nome próprio o acompanhe.
a hora. No original vai sem o artigo ou um possessivo, em João "h ora" não
é necessariamente a hora da glória (ver Apêndice 1:11, p. 794ss); contudo,
é bem provável que aqui tenha esse significado.
22. não conheceis. Neste versículo, a antítese é expressa na forma semítica tipi-
cam ente forte, sem nenhum significado entre ignorância e conhecimento.
conhecemos. B ultmann , p. 139h, toma o "nós" implícito como sendo os cristãos
em oposição tanto a samaritanos quanto a judeus; naturalmente, esse tipo
de exegese não toma seriamente o cenário histórico dado ao episódio.
além do mais. Literalmente, "porque".
a salvação é dos judeus. Cf. SI 76,1: "Em Judá Deus é conhecido". Bui.tmann re-
duziria isto a uma glosa, visto que não se adequa à hostilidade que João
aplica a "os judeus". Entretanto, os judeus contra quem Jesus, em outro
386 O Livro dos Sinais

lugar, fala asperamente se refere àquele setor do povo judeu que é hostil
a Jesus, e especialmente aos seus líderes. Aqui, falando a um a estrangeira,
Jesus dá aos judeus um a significação diferente, e o term o se refere a todo o
povo judeu. Este verso é um a clara indicação de que a atitude joanina para
com os judeus não implica um antissemitismo ao estilo m oderno nem um
ponto de vista que rejeita a herança espiritual do judaísmo.
23. é vindo a hora e agora está aqui. Q uando contrastam os isto com o v. 21,
descobrimos em João a m esm a tensão escatológica que se percebe nas
referências sinóticas ao reino - é futuro, e todavia é eminente. A ideia
parece ser que está presente aquele que, na hora da glorificação, tom ará
possível a adoração em Espírito por seu dom do Espírito.
em Espírito e verdade. Ambos os substantivos são sem artigo, e há um a só
preposição.
24. Deus é Espírito. Esta não é um a definição essencial de Deus, e sim um a
descrição do trato de Deus com os homens; significa que Deus é Espírito
para com os hom ens, porque Ele dá o Espírito (14,16) que os gera de
novo. Há outras duas descrições como esta nos escritos joaninos: "Deus
é luz" (ljo 1,5), e "Deus é am or" (ljo 4,8). Estes tam bém se referem ao
Deus que age; Deus dá ao m undo Seu Filho, a luz do m undo (3,19; 8,12;
9,5) como sinal de Seu amor (3,16).
25. 0 Messias. Ver nota sobre 1,41. Os sam aritanos não esperavam um Mes-
sias no sentido de um rei ungido da casa davídica. Esperavam um Taheb
(T a’eò=verbo hebraico s/i&=aquele que retorna), aparentem ente o profe-
ta sem elhante a Moisés. Esta crença era o quinto artigo no credo samari-
tano. Bowman, " Studies", p. 299, mostra que a conversação em Jo 4,19-25
se adequa ao conceito sam aritano do Taheb como um m estre da Lei (ver
nota sobre "profeta" no v. 19), ainda quando a designação judaica m ais
familiar do Messias é posto nos lábios da m ulher.
explicará. OSsin e T aciano leem "dá". Black, p. 183, e Boismard, Evjean, p. 46,
sugerem a possibilidade de um aram aico original com confusão entre as
raízes fn3, "anunciar", e ntn, "dar".
26. Sou eu. Para ego eimi, ver Apêndice IV, p. 841ss; não é impossível que
este uso seja proposital com ressonância de divindade. É interessante
que Jesus, que não aceita sem matizações ao título de Messias, quando
lhe é dado pelos judeus, aceita -0 de um a sam aritana. Talvez a resposta
esteja nas conotações nacionalistas régias, que tivesse o term o no judaís-
mo, enquanto o Taheb sam aritano (embora não destituído de m atizes
nacionalistas) tivesse mais o aspecto de um m estre e legislador. J. M a-
c donald, The Theology of the Samaritans (Londres: SCM, 1964), p. 362, diz
que os sam aritanos não esperavam que o Taheb fosse um rei.
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 387

27. ficaram chocados. Tem po imperfeito, indicando mais que surpresa momen-
tânea. Siraque 9,1-9 descreve o cuidado de alguém não se deixar enredar
por um a m ulher; e docum entos rabínicos (Pirqe Aboth I 5; TalBab 'Erubin
53b) adverte que não se deve falar com m ulheres em público.
ninguém perguntava. Para um a hesitação similar à pergunta de Jesus, ver 16,5.
O que desejas? Isto foi dirigido à m ulher (assim Bernard, I, p. 152)? Algu-
m as testem unhas antigas veem isto desta forma: como variantes, indi-
ca, p. ex., "o que ela queria?". Todavia, estas variantes poderíam vir de
T aciano que, como um encratista, fizesse igualm ente parecer que Jesus
não tom ou a iniciativa de conversar com um a m ulher. Q uase certamente,
como sugerido em v. 34, a questão diz respeito a Jesus, com a implica-
ção de que, talvez, lhe pedisse alim ento depois de já ter obtido algum.
É curioso, como Bultmann salienta, que eles se sentissem mais chocados
em razão de Jesus estar falando com um a m ulher do que se estivesse
falando com um a sam aritana.
28. deixando sua vasillm. Não devemos buscar uma razão prática para isto (p. ex.,
que ela a deixou para Jesus beber; que ela se apressou em voltar à cidade).
Este detalhe parece ser o m odo de João enfatizar que aquela vasilha seria
inútil para o tipo de água viva que Jesus tinha interesse que ela bebesse.
povo. Literalmente, "hom ens"; todavia, qualquer sugestão maliciosa de
que os homens estavam interessados em descobrir a vida pregressa da
m ulher está fora de questão.
29. É possível que este seja 0 Messias? Literalmente, "o Ungido", como no v. 25.
A pergunta em grego, com mêti, implica um a im probabilidade (BDF,
§ 42T ); portanto, a fé da m ulher não parece estar completa. Todavia, ela
expressa um a nuança de esperança. Bultmann, p. 142, sugere que a per-
gunta está form ulada a partir do ponto de vista do povo.
30. [Então] Isto tem boa atestação, incluindo P66; e Bernard, I, p. 153, mostra
como poderia ter-se perdido na transm issão do texto. O utros preferem
a leitura mais bem atestada e mais abrupta sem um conectivo, com base
no princípio de que a redação mais difícil usualm ente é a m ais original.
32. comida. A parentem ente, há pouca distinção entre o brõsis do v. 32 e o
brõm a do 34, em bora Simcq, Dieu et 1'homme, p. 9 T, alegue que o último
tem um a conotação especial de nutrição. É possível que o uso de brõma,
no v. 34 deva ser explicado sim plesm ente por um desejo de assonância
com thelêma, "vontade", no m esm o versículo. Brõma nunca é usado ou-
tra vez em João, enquanto brõsis aparece em 6,27.55.
34. fazer a vontade daquele que me enviou. Tanto esta frase (como "realizar as
obras") (cf. 5,30; 6,38) e "levar Sua obra à conclusão" (cf. 5,36; 9,4; 17,4)
são descrições joaninas da natureza do m inistério de Jesus. Nos sinóticos,
388 O Livro dos Sinais

"fazer a vontade de Deus" tem um a conotação mais geral (Mc 3,35;


Mt 7,21). O tema do v. 34 não é m uito diferente do de Dt 8,3: "O homem
não vive somente de pão, mas de toda a palavra de Deus" - um a citação
atribuída a Jesus em Mt 4,4.
35. Não tendes um dito. Literalmente, "não dizeis vós"; para um exem plo de
tal expressão usada para introduzir tal provérbio, veja Mt 16,2. Tem-se
observado que o provérbio, em João, é um trimétrico iâmbico (para exa-
me atento, veja D odd, Tradition , p. 394), e assim há quem pense que Jesus
está citando um provérbio grego. Isto não é impossível, porém é mais
provável que devam os atribuir um provérbio grego ao evangelista. To-
davia, a maioria dos com entaristas crê que a métrica iâmbica é acidental;
pois, como salienta B ligh, p. 343, a métrica iâmbica se aproxim a m ais dos
padrões ordinários do discurso. Pode-se descobrir no NT um a série de
trimétricos iâmbicos acidentais e abruptos (Mc 4,24; At 23,5).
[Mais] quatro meses e a ceifa estará aqui. Temos considerado o dito em João
como um provérbio, e sua brevidade e construção favorecem este ponto
de vista. Nessa interpretação os quatro meses é sim plesm ente um perío-
do de tem po convencional. O calendário Gezer do 10“ século a.C. põe
exatam ente quatro meses entre a sem eadura e a ceifa; e há contagens ra-
bínicas antigas no m esm o sentido (Barrett, p. 202). Não obstante, alguns
estudiosos têm tom ado o v. 35 não como um provérbio, m as como um a
observação atual feita pelos discípulos; neste caso, teríam os um a refe-
rência cronológica datando a cena em Samaria como ocorrendo quatro
meses antes da ceifa. A ceifa na planície de M ahneh, oriente de Siquém,
transcorrería de m eado de m arço (cevada) a m eado de junho (trigo) e,
consequentem ente, a cena junto ao poço deve ser datada em janeiro ou
princípio de fevereiro. Com essa contagem, a festa sem nom e no capí-
tulo seguinte (5,1) provavelm ente seria a Páscoa, ocorrendo no final de
março ou princípio de abril. Bernard, I, p. 155, objeta com base no fato
de que janeiro e fevereiro transcorrem na estação chuvosa, quando Jesus
podería ter encontrado água ao longo do cam inho em vez de esperar só
encontrá-la no poço.
[mais]. Isto é om itido pelos m anuscritos ocidentais OScur e P75- um a combi-
nação forte. Todavia, a om issão podería ter sido por homoioteleuton, i.e.,
o erro de escrever eti ("mais") depois de hoti.
abri vossos olhos. Literalmente, "levanta vossos olhos"; sugere olhar fixo
deliberado.
vede. Theasthai; ver Apêndice 1:3, p. 794ss.
campos... maduros para a ceifa. Esta pode ser m eram ente um a ceifa simbóli-
ca como em Mt 9,37. Todavia, se há algum a indicação real de tem po na
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 389

cena sam aritana, isto seria m uito mais provável do que os quatro meses
m encionados acima. A ceifa se refere prim ariam ente aos cidadãos que
estão vindo a Jesus, m as a m etáfora pode ter sido sugerida à vista das la-
vouras m aduras nas proxim idades de Siquém. Então o tem po seria maio
ou junho. Se a sequência das narrativas em João for cronológica, então o
interlúdio sam aritano tam bém não se deu m uito tem po depois da Pás-
coa (março ou abril) m encionado no capítulo 2; certam ente, 4,43-45 tenta
criar esse efeito.
36. já. A lguns colocam esta palavra com a últim a cláusula do v. 35: "já estão
m aduros para a ceifa". C om parar ljo 4,3.
recolhendo seus salários. O grego misthos significa tanto "salário" quanto
"galardão".
colhendo fruto para a vida eterna.Tosephta Peah 4,18, citado por Dodd, Inter-
pretation, p. 146, é um paralelo interessante: "M eus pais colheram tesou-
ros nesta era; eu tenho garantido tesouros na era futura".
semeador e ceifeiro. T hüsinc, p. 54, conectando isto de volta ao v. 34, sugere
que o Pai é o sem eador e Jesus é o ceifeiro. Isto significaria, porém , que as
identificações do sem eador e o ceifeiro, no v. 36, são diferentes daquelas
em 37-38, pois em 38 os ceifeiros obviam ente são os discípulos.
38. Eu vos enviei. O "Eu" é expresso e talvez enfático: "fui eu quem os enviei".
vós. Na tradição prim itiva das parábolas do evangelho am iúde há uma
aplicação da parábola a um auditório e situação particulares.
0 fruto de seu trabalho. Literalmente, "seu trabalho"; m as o contexto deixa
claro que a intenção é o p roduto do trabalho.
39. das palavras da mulher. Há um contraste entre esta fé com base na palavra
da m ulher e a fé com base na palavra de Jesus (v. 41) - seria isto um es-
boço do conceito de logos que aparece no Prólogo?
40. ficasse. Menein; ver Apêndice 1:8, p. 794ss.
42. disseste. Aqui, a palavra grega é latia, não o logos dos vs. 39,41.
Salvador. No AT (SI 24,5; Is 12,2; tam bém Lc 1,47), Iahweh é a salvação
de Israel e do israelita individual. O rei Messias não é cham ado salva-
dor (ver, porém , Zc 9,9, onde a LXX traz "salvando" para "vitorioso".
1 Enoque 48,7 fala do Filho do Hom em que salva os homens. Qual seria o
significado do título nos lábios dos sam aritanos? Talvez para a Samaria
helenizada buscaríam os o significado do term o no m undo grego onde
era aplicado aos deuses, im peradores (Adriano era cham ado "Salvador
do m undo") e heróis. O term o "Salvador" era um título comum pós-res-
surreição para Jesus, particularm ente nas obras lucanas e paulinas, mas
este é o único caso nos evangelhos de sua aplicação a Jesus durante o
m inistério público.
390 O Livro dos Sinais

COMENTÁRIO: GERAL

P o d e m o s co m eçar com a q u e stã o d a p la u s ib ilid a d e h istó rica d a cena.


S o m en te e m João se m en c io n a u m m in isté rio d e Jesus em S am aria.
O d isc u rso m issio n á rio e m M t 10,5 p ro íb e os d isc íp u lo s d e e n tr a r em
c id a d e s a m a rita n a . D os sin ó tico s, L ucas m o stra o m a io r in te re sse nos
sa m a ritan o s: em 10,29-37 tem o s a p a rá b o la d o B om S a m arita n o ; em
17,11-19, a q u e le lep ro so q u e re n d e g raç a s é u m sa m a rita n o . T o d a v ia,
m esm o L ucas, em 9,52-53, reflete certa h o stilid a d e e n tre o s sa m a ri-
tan o s e Jesu s, em ra z ã o d e Jesus in sistir em ir a Je ru sa lé m . D ep o is
d o m in isté rio d e Jesus, A t 8,1-25 re la ta q u e, q u a n d o os c ristã o s hele-
n ista s fo ra m d isp e rso s d e Je ru sa lé m a p ó s a m o rte d e E stêv ão , F ilipe,
u m d o s se te líd e res h e le n ista s, p ro c la m a v a C risto e m u m a c id a d e d e
S am aria, o n d e e n c o n tro u S im ão M ago. O m in isté rio d e F ilipe le v o u ao
b a tism o d e m u ito s sa m a rita n o s, e P e d ro e João d e sc e ra m d e Je ru sa lé m
p a ra im p o re m as m ão s so b re os n o v o s c o n v e rso s a fim d e re c e b e re m o
E sp írito S anto.
A h istó ria d a d ifu sã o d o c ristia n ism o e m S am aria, a lg u n s a n o s
d e p o is d o m in isté rio d e Jesus, ta lv e z n o s a ju d e a e x p lic ar a lg u n s d e-
talh es n o re la to d e João; to d av ia , d e v e m o s n o ta r q u e A to s n ã o d á in-
d ício d e q u e Jesus já tiv esse se g u id o re s em S am aria a p ó s a c h e g a d a
d e F ilipe ali, co m o o Q u a rto E v a n g e lh o in d icaria. A d ific u ld a d e p o d e
ser so lu c io n a d a , in sistin d o q u e Jo 4,39-42 significa s im p le sm e n te q u e
u m a p e q u e n a v ila v e io a cre r em Jesus. N ã o o b sta n te , o re la to jo a n in o
c o n tin u a sem s u p o rte o u c o rro b o raç ã o d o re s ta n te d o N T.
M as n ã o d e v e m o s d e s c a r ta r os in d íc io s d e c re d ib ilid a d e in te r-
n a. O mise en scène é u m d o s m a is d e ta lh a d o s e m Jo ã o e o e v a n g e lis ta
m a n ife s ta c e rto c o n h e c im e n to d o c o lo rid o e d a s c re n ç a s s a m a r ita n a s ,
o q u e im p re s s io n a m u ito . P o d e m o s m e n c io n a r: o p o ç o n o s o p é d e
G a riz im ; a q u e s tã o d a p u r e z a leg a l n o v. 9; a d e fe sa a p a ix o n a d a d o
p o ç o p a tria rc a l n o v. 12; a c re n ç a s a m a r ita n a n o G a riz im e o p ro fe ta
s e m e lh a n te a M o isés. E se a n a lis a rm o s a c e n a ju n to ao p o ç o , d e sc o -
b rire m o s a c a ra c te riz a ç ã o d o a m o r à v id a d a m u lh e r c o m o a fe ta d o e
fu rtiv o , co m c e rto te o r d e g ra ç a (L agrange , p . 101). A in d a q u e p e r-
s o n a g e n s c o m o N ic o d e m o s, e s ta m u lh e r , o p a ra lític o d o c a p ítu lo 5 e
o ceg o d o c a p ítu lo 10 sã o - a té c e rto p o n to - c o n tra s te s u s a d o s p e lo
e v a n g e lis ta q u e p e rm ite m a Je su s m a n ife s ta r s u a re v e la ç ã o , to d a v ia
c a d a u m te m s u a s id é ia s o u s u a s c a ra c te rís tic a s p e s s o a is n o d iá lo g o .
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 391

O u e s ta m o s t r a ta n d o c o m u m m e s tre d e ficção, o u in c lu siv e e sta s


h is tó ria s tê m u m fu n d a m e n to real. B lich , p . 332, se in clin a p a ra a
s e g u n d a d ire ç ã o , ao m e n o s e m p a r te d o re la to . Ele s u g e re q u e os
vs. 1-8 p o d e ría m ter s id o u m p r o n u n c ia m e n to d o re la to p ré -jo a n in o
(u m re la to r e le m b r a d o e m ra z ã o d e te r s id o o c e n á rio d e u m so le n e
p ro n u n c ia m e n to d e Jesu s). A fra se em q u e s tã o p o d e ría te r tid o o
in tu ito d e a s s e g u r a r o c a rá te r u n iv e rs a l d o p la n o d e D e u s n a salv a-
ção , in c lu in d o s a m a r ita n o s e ju d e u s , tem a n ã o d is tin to d a q u e le d o s
vs. 19-26.
O so le n e d isc u rs o d e Jesu s p a re c e ser o p rin c ip a l o b stá c u lo à
p la u s ib ilid a d e h istó ric a . A d m itin d o q u e este d iá lo g o ten h a sid o m ol-
d a d o p e la técn ica jo a n in a d e p a ra d o x o , jo g o s d e p a la v ra s etc., to d av ia
p o d e m o s p e rg u n ta r se é p o ssív e l e s p e ra r q u e u m a m u lh e r sa m a rita-
na e n te n d e s s e m esm o as id é ia s m a is b á sic a s d o d iálo g o . A resp o sta
a esta q u e s tã o é im p e d id a p o r n o sso lim ita d o c o n h e c im e n to d o p e n -
s a rn e n to s a m a rita n o d o l e século. N o ju d a ís m o , d u a s d a s e x p re ssõ e s
u s a d a s p o r Jesu s, " o d o m d e D e u s" e " á g u a v iv a " , e ra m u s a d a s p a ra
d e s c re v e r a T o rá. Se o u so s a m a rita n o e ra o m esm o , a m u lh e r p o d e ria
ter e n te n d id o q u e Je su s e sta v a r e p re s e n ta n d o a si e à su a d o u trin a
co m o a s u b s titu iç ã o d a T o rá em q u e os s a m a rita n o s criam . C o m o sa-
lie n ta m o s n a s n o ta s so b re os vs. 19 e 25, a m u lh e r p a re c e e n te n d e r a
a firm a ç ão d e Jesu s c o n tra o p a n o d e fu n d o d a e x p e c ta tiv a sa m a rita -
n a d o T ah eb . P o rta n to , n ã o é a b s o lu ta m e n te im p o ssív e l q u e m esm o
n o d iá lo g o tem o s ecos d e u m a tra d iç ã o h istó ric a d e u m in c id e n te no
m in isté rio d e Jesus. V erem o s q u e o d iá lo g o com os d isc íp u lo s tem
p a ra le lo s sin ó tico s.
Se, co m o s u sp e ito , h á u m s u b s tra to d e m a te ria l tra d icio n a l, o
e v a n g elista o to m o u e com seu h a b ilid o so se n so d e d ra m a e as v árias
técnicas d e m o n ta r o p alco , o fo rm o u p a ra u m c e n ário teológico es-
p lê n d id o . P a ra d o x o (v. 11), iro n ia (12), a rá p id a m u d a n ç a d e a n te d e
u m te m a e m b araço so (19), os p rim e iro s e se g u n d o s p lan o s (29), o efeito
d o coro g re g o d o s h a b ita n te s d a v ila (39-42) - to d o s e stes to q u e s d ra-
m ático s fo ra m h a b ilm e n te a p lic a d o s p a ra fazer d isto u m a d a s m ais
v iv id a s c e n as d o e v a n g e lh o e m in istra r a m ag n ífica d o u trin a d a ág u a
v iv a e m u m c e n ário p erfeito . M u ito m ais q u e n a cena d e N ico d em o s,
o d isc u rs o d e Jesu s é e la b o ra d o e m u m d iá lo g o e u m p a n o d e fu n d o
p a ra q u e lh e d e sse to d o o se u sig n ificad o .
392 O Livro dos Sinais

COMENTÁRIO: DETALHADO

Cena I: O diálogo com a mulher samaritana (4 ,4 2 6 ‫)־‬

É m u ito im p o rta n te e n te n d e r a a n á lise lite rá ria d a s d u a s su b d iv isõ e s


d a cen a, p o is tal a n á lise ilu m in a as p rin c ip a is id é ia s e se u d e se n v o lv í-
m en to . A q u i, se g u im o s R oustang b e m d e p e rto .
Cena la: A á g u a v iv a (vs. 6-15). Isto c o n siste e m d o is d iá lo g o s
cu rto s, cad a u m com três jogos d e p e rg u n ta e resp o sta:

P rim eiro , vs. 7-10:


v. 7. ]esus p e d e á g u a à s a m a rita n a , v io la n d o os c o stu m e s so-
ciais d e se u tem p o .
9. A mulher z o m b a d e Jesu s p o r e sta r tã o n e c e ssita d o , q u e
n e m m esm o o b se rv a os deco ro s.
10. Jesus m o stra q u e o v e rd a d e iro m o tiv o p a ra su a a ção n ão
p ro v é m d e su a in fe rio rid a d e o u n e c e ssid a d e , e sim se u
s ta tu s su p e rio r.
Ele lança u m desafio em duas partes:
i. Se ela reco n h ecesse q u e m lh e e stá p e d in d o ,
ii. ela lh e p e d iria á g u a viva.
Portanto, o desafio e as p erg u n tas e respostas neste prim eiro diálogo
serve p ara intro d u zir o tem a d a ág u a viva e a reivindicação d e Jesus.

S e g u n d o , vs. 11-15:
vs. 11-12. A mulher c o n fu n d e a á g u a e m u m n ív el m a te ria l e ter-
reno; d a í c o n fu n d ir Jesu s co m o m e n o r q u e Jacó.
13-14. Jesus esclarece q u e ele e stá fa la n d o d a á g u a celestial
d a v id a e te rn a.
15. A mulher, in trig a d a , pede essa água, assim c u m p rin d o
u m a p a rte d o desafio d e Jesus m en c io n ad o n o v. 10.
E n tre ta n to , re sta a re sp o sta à o u tra p a rte d o d esafio , p o is a m u -
lh e r a in d a n ã o re c o n h e c e u q u e m é Jesus. Ela e n te n d e q u e ele
está fa la n d o d e u m tip o in c o m u m d e á g u a , m a s su a s a sp ira çõ e s
a in d a e stã o n o n ív el terren o .

Cena lb: O v e rd a d e iro culto ao Pai (vs. 16-26). Isto tam b é m consiste
d e dois diálogos curtos, cada u m com três jogos d e p e rg u n ta e resposta:
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 393

P rim e iro , vs. 16-18:


v. 16. Jesus to m a a iniciativ a, le v a n d o a m u lh e r a reco n h ecer
q u e m ele é, re p o rta n d o -s e à su a v id a pessoal.
17. A mulher d á u m a resp o sta a m b íg u a e d e sd en h o sa , em rea-
ção in stin tiv a d ia n te d o teste m o ral q u e é su b m etid a.
18. Jesus se se rv e d a q u e la re sp o sta p a ra d e s v e n d a r se u s atos
no civos.

E m 3,19-21, se d iz q u e a q u e le s cujas o b ra s são m ás n ã o se ap ro -


x im a m d a lu z a fim d e q u e s u a s o b ra s n ã o sejam expostas.
O d iá lo g o em 16-18 c o n stitu i o m o m e n to cru cial d o ju lg am en to :
ela v o lta rá su a s co stas à luz?

S e g u n d o , vs. 19-26:
vs. 19-20. A mulher o lh a p a ra a lu z, a in d a q u e d esejaria d e sv ia r
os raio s p a ra alg o m e n o s p esso al. A o a b o rd a r o tem a
d o cu lto , ela está c o m e ç a n d o , com h esitação , a p en -
sa r e m u m n ív el e sp iritu a l e celestial, e m b o ra ain d a
haja m u ito d e te rre n o e m se u s conceitos.
21-24. Jesus ex p lica q u e o v e rd a d e iro c u lto só p o d e v ir da-
q u e le s q u e fo ram g e ra d o s p e lo E sp írito d a v e rd a d e .
S o m en te a tra v é s d o E sp írito é q u e o Pai g era v e rd a -
d e iro s a d o ra d o re s.
25-26. A mulher, fin alm en te, reconhece quem é jesus (o q u a n to
lh e é p o ssív el) e Jesus a ssim o afirm a.

A o u tra p a rte d o desafio, feita no v. 10, foi ag o ra resp o n d id a.


A se g u n d a p a rte d a C ena l a levou a m u lh e r a p e d ir a água; a se-
g u n d a p a rte d a C ena lb levou a m u lh e r a reconhecer q u e m é aque-
le q u e lhe p e d iu d e beb er - a saber, egõ eim i (ver n o ta sobre v. 26).

N e s ta cen a, João n o s tem d a d o o d ra m a d e u m a a lm a q u e lu ta


p a ra e rg u e r-s e d a s coisas d e ste m u n d o à fé em Jesus. N ão só a m u -
lh er s a m a rita n a , m a s cad a h o m em d e v e c h e g ar ao rec o n h e c im e n to d e
q u e m é q u e fala, q u a n d o Jesus fala, e d e v e ro g a r p e la á g u a viva.

P a s s a n d o d a an á lise literá ria d o d e se n v o lv im e n to da cena p a ra


seu c o n te ú d o , e n c o n tra m o s d o is te m a s q u e d e v e m se r an alisad o s:
394 O Livro dos Sinais

na C en a l a , o tem a d a á g u a v iv a, e na C ena lb , o tem a d o c u lto em


E sp írito e v e rd a d e .
a. "Água Vida (4,10-14). A q u e Jesu s se referia q u a n d o falo u d e
d a r à m u lh e r " á g u a v iv a"? E v id e n te m e n te , a á g u a v iv a n ã o é Jesus
m esm o , e sim alg o e sp iritu a l q u e ele o ferece ao c re n te q u e p o d e reco-
n h e c er o d o m d e D eus. A á g u a v iv a n ã o é a v id a e te rn a , p o ré m lev a
a ela (v. 14). O p ró p rio u so d o sím b o lo d a á g u a m o stra com q u a n to
realism o João p e n sa v a n a v id a etern a: a á g u a é à v id a n a tu ra l o q u e a
á g u a v iv a é à v id a e te rn a.
M c C ool , art. cit., c h a m a a a te n ç ã o p a ra m u ita s su g e stõ e s q u e os
ex eg etas têm a p re s e n ta d o à ten ta tiv a d e in te rp re ta r " á g u a v iv a". P o r
ex em p lo , d e s d e os te m p o s m ed ie v ais, tem sid o p o p u la r e n tre os teó-
lo gos sistem ático s tra ta r a " á g u a v iv a " co m o u m sím b o lo d a graça
san tifican te. D e n tro d o esco p o d a teologia jo an in a re a lm e n te h á d u a s
p o ssib ilid a d es: á g u a v iv a significa a rev elação q u e Jesus d á a o s ho-
m en s, o u sig n ifica o E sp írito q u e Jesu s d á aos h o m en s. C o m o sa lie n ta
W iles, p p . 46-47, a m b a s e sta s in te rp re ta ç õ e s rec u a m ao 2U século; e
a c h are m o s a rg u m e n to s c o n v in c e n te s p a ra am b as.
(1) "A g u a v iv a" é a rev elação o u en sin o d e Jesus. O AT u s a o sim -
b o lism o d a á g u a p a ra a sab ed o ria d e D eus q u e o u to rg a v id a. P r 13,14
diz: "O e n sin o d o sábio é u m a fo n te d e v id a p a ra q u e o h o m e m ev ite
os laços d a m o rte"; tam b é m 18,4: "A s p a la v ra s d a boca d e u m h o m e m
são á g u a p ro fu n d a ; a fonte d e sa b ed o ria é u m rib eiro c o rre n te ". Em
Is 55,1, em u m contexto o n d e Iah w e h co n v id a os h o m e n s a o u v ire m
p a ra q u e su a s alm as v iv am (v. 3), Iah w eh diz: "T o d o s q u a n to s têm
sed e, v e n h a m à á g u a ". O m elh o r p a ra lelo v e te ro te sta m e n tá rio p a ra
Jo 4,14 (e 6,35) p a re c e ser S iraq u e 24,21, o n d e a S ab ed o ria can ta se u s
p ró p rio s louv o res: "A q u e le q u e c o m er d e m im a in d a terá fom e; a q u e le
q u e b e b e r d e m im terá m ais sed e a in d a " . E m João, Jesus diz: " A q u e le
q u e b e b e r d a á g u a q u e eu lhe d e r jam ais terá sed e".
V isto q u e n o c írculo d o s e scrib as a S a b ed o ria era id e n tific a d a com
a T orá, n ã o s u rp re e n d e q u e S ira q u e 24,23-29 n o s in fo rm a q u e a T orá
en ch e os h o m e n s com sa b e d o ria co m o os rio s tra n s b o rd a m so b re s u a s
rib an ceiras. O s rab in o s faziam fre q u e n te u so d a á g u a e m refe rê n c ia
à Lei, e m b o ra só ra ra m e n te a le g o riz a sse m a " á g u a viva”. E n tre ta n to ,
a g o ra tem o s clara e v id ê n c ia d e Q u m ra n p a ra o u so d e " á g u a v iv a "
p a ra d e sc re v e r a Lei (C D C 19,34; v e r ta m b é m 3,16 e 6,4-11). P o d e-
m o s m e n c io n a r a in d a q u e a e x p re ssã o " d o m d e D e u s", q u e a p a re c e
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 395

e m Jo 4,10, e ra u s a d o n o ju d a ísm o rab ín ico p a ra d e sc re v e r a Lei


(B arrett , p. 195).
É p e rfe ita m e n te p la u sív e l a referên cia q u e Jesus faz à su a p ró p ria
re v e laç ã o co m o " á g u a v iv a " te n d o este p a n o d e fu n d o e m m en te , pois
em João é a p re s e n ta d a co m o a sa b e d o ria d iv in a e co m o a su b stitu iç ão
d a Lei. O v islu m b re d e c o m p re e n sã o q u e a m u lh e r recebe d e sta á g u a
v iv a p a re c e r e s ta r n e sta d ire ç ão , p o is e m se g u id a lh e v e m à m en te o
P ro feta-co m o -M o isés q u e a n u n c ia ria to d as as coisas (ver n o tas sobre
vs. 19 e 25). O u s o d e " á g u a v iv a" p a ra a rev elação d e Jesus faria p a ra -
leio e m o u tro lu g a r em João p e lo u so d o s sím b o lo s d a lu z e d o p ã o da
v id a p a ra a re v e laç ã o d e Jesus.
(2) " A g u a v iv a " é o E sp írito c o m u n ic a d o p o r Jesus. C o m o v im os
na d isc u s s ã o d e 3,5 (p. 346ss.), a co n ex ão e n tre á g u a e e sp írito é fre-
q u e n te n o AT. E sp e c ia lm e n te a q u i, p o d e m o s ev o car 1QS 4,21: "C o m o
á g u a s p u rific a d o ra s, a s p e rg irá so b re ele o e sp írito d a v e rd a d e " . A lém
d o m ais, p a ra a id en tifica ç ã o d a " á g u a v iv a " , co m o se n d o o E spírito,
tem o s a e v id ê n c ia específica d e Jo 7,37-39. Em 4,10-14 h á m u ita s in-
d icaçõ es c o rro b o ra n te s p a ra esta in te rp re ta ç ã o . Se a á g u a salta p a ra
a v id a e te rn a (14), em o u tro lu g a r (6,63) o u v im o s q u e ela é o E spírito
q u e d á v id a. V er ta m b é m n o ta so b re " q u e sa lta " n o v. 14. A expres-
são " d o m (d e D e u s" n o v. 10 era u m term o cristão m u ito a n tig o p a ra
o E sp írito S an to , n ã o só e m A to s (2,38); 8,20; 10,45; 11,17), m as tam -
b é m e m E leb reu s (6,4), u m a o b ra q u e tem m u ita s a fin id a d e s c om João.
A s e g u n d a p a r te d a cen a com a m u lh e r s a m a rita n a in tr o d u z expli-
c ita m e n te o tem a d o E sp írito (vs. 23-24). O d o m d o E sp írito era u m a
m arc a d o s d ia s m essiân ico s, e o d iá lo g o com Jesu s leva a m u lh e r sa-
m a rita n a a falar d o M essias (v. 25). P o d e m o s a c re sc en ta r, fin alm en te,
q u e a c o m p re e n s ã o d a " á g u a v iv a " co m o se n d o o E sp írito q u e levou
os teó lo g o s m e d ie v a is a p e n s a r nela co m o s e n d o a graça; a ob serv ação
d e T omás de A quino , e m se u c o m e n tá rio so b re João, é d ig n a d e nota:
"A g ra ç a d o E sp írito S an to é d a d a ao h o m em , c o n q u a n to o p ró p rio
m an a n c ia l d a g raç a é d a d o , isto é, o E sp írito S an to ".
N ã o v e m o s r a z ã o p a ra ter q u e e s c o lh e r e n tr e e s t a s d u a s in te r -
p r e t a ç õ e s d a " á g u a v iv a " , e M c C o o l , art. cit., a r g u m e n t o u c o n v in -
c e n t e m e n t e q u e a m b o s o s s ig n if ic a d o s e s t ã o e m p a u ta . O s im b o lis m o
jo a n in o c o s t u m a se r a m b iv a le n te , e s p e c ia lm e n t e o n d e e s t ã o e n v o lv i-
d o s d o is c o n c e it o s tã o e s t r e ita m e n te r e la c io n a d o s c o m o r e v e la ç ã o e
E sp ír ito . E m ú lt im a in s tâ n c ia , o E sp ír ito d a v e r d a d e é o a g e n te q u e
396 O Livro dos Sinais

in te rp re ta a rev elação o u o e n sin o d e Jesus ao s h o m e n s (14,26; 16,13).


E n c o n tra re m o s u m a d ific u ld a d e sim ila r d e ter c e rte z a se e m l j o 2,27
está e n v o lv id o o E sp írito o u a p a la v ra d e D eu s, e n tã o há b o a razão
p a ra cre r cjue a in te n ç ão d o e v a n g elista era n ã o criar u m a r u p tu r a
e n tre eles. É in te re ssa n te q u e n a p a ssa g e m c ita d a d e T omás de A quino ,
ele tam b é m in siste q u e a d o u trin a d e Jesus é a á g u a viva.
H a v e ria n e sta p a ssa g e m u m a referên cia s a c ra m e n ta l se c u n d á ria
ao b a tism o , tan to q u a n to h a v ia n a m en ção d e á g u a e E sp írito em 3,5
(tam b ém 1,33)? A q u i, o sim b o lism o é diferen te: n ã o u m n a scim en to
a tra v é s d a á g u a , e sim o beber d a á g u a viva. N ã o o b sta n te , u m a vez
s u p rim id a q u a lq u e r e q u iv a lên c ia d ire ta (ág u a v iv a é a á g u a d o ba-
tism o), tem o s a q u e stã o m ais a m p la d e se a in te n ç ão d o a u to r e ra ou
n ão le m b ra r e e n sin a r aos leito res cristã o s a q u e la p a ssa g e m so b re o
b a tism o e se os efeitos d o b a tism o era a d o a ç ã o d o E sp írito . N o ta m o s
q u e este d isc u rs o e a q u e le a N ic o d e m o s são p o sto s q u a s e ju n to s, se-
p a ra d o s p e lo in cid e n te d e b a tiz a r d e 3,22-30. P o r o u tro lad o , a tra n si-
ção ao in c id e n te s a m a rita n o em 4,1-3 ta m b é m o ferece u m a a lu s ã o ao
m in istério b a tism a l d e Jesus. Estes in d ício s fa v o re c ería m fo rte m e n te
u m a re sp o sta a firm a tiv a à q u e stã o p ro p o sta . O fato d e q u e a á g u a tem
d e ser b e b id a n ã o é o p rin c ip a l o b stá c u lo se e v o c a rm o s IC o r 12,13:
" P o rq u e , p o r u m só E sp írito , to d o s n ó s fom os b a tiz a d o s e m u m só
c o r p o ,... e a to d o s foi d a d o beber d e u m só E sp írito ". U m d o s sím b o lo s
cristão s p rim itiv o s asso c ia d o s ao b a tism o é o ato d o c e rv o b e b e n d o
á g u a c o rre n te (viva) (SI 42); e, d e v e ra s, a cena com a s a m a rita n a ju n to
ao p o ço ap a re c e n a a rte d e a n tig a c a ta c u m b a co m o sím b o lo d o ba-
tism o (N iewalda, p. 126). A ssim , h á u m a b o a possibilidade d e q u e u m
tem a b a tism a l e stav a a lu d id o n e ste d iscu rso .
b. Adoração ,,em Espírito e verdade" (4,23-24). N o v. 23, o p o n to
p a rtic u la r em q u e stã o m u d a d o lu g a r d e c u lto (20-21) p a ra a form a
d e culto. H oje, a m aio ria d o s e x eg etas c o n c o rd a q u e, ao p ro c la m a r o
cu lto em E sp írito e v e rd a d e , Jesu s n ã o está c o n tra s ta n d o o c u lto exter-
n o co m o in tern o . Sua a firm a ç ão n a d a tem a v e r com c u ltu a r a D eus
n o s recesso s ín tim o s d o p ró p rio e sp írito d e a lg u é m ; p o is o E sp írito
é o E sp írito d e D eus, n ã o o e sp írito d o h o m em , co m o o v. 24 deixa
b e m claro. De fato, q u a se se p o d e ria c o n sid e ra r "E sp írito e v e rd a d e "
co m o u m a h e n d ía d is (veja n o ta so b re v. 23) e q u iv a le n te a " E sp írito d a
v e rd a d e " . U m c u lto id eal d e p u re z a in te rio r se a d e q u a m al n o con-
texto n e o te s ta m e n tá rio com se u s a ju n ta m e n to s e u c arístic o s, e n to a ç ã o
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 397

d e h in o s, b a tis m o e m á g u a etc. (a m en o s q u e se a ssu m a q u e a teologia


d e João é m a rc a n te m e n te d ife ren te d a q u e la d a Igreja e m geral).
O co n traste e n tre culto em Jerusalém ou sobre o G arizim e o culto
em E sp írito e v e rd a d e faz p a rte d o fre q u e n te d u a lism o jo an in o e n tre
te rre n o e celestial, " d e b aix o " e " d e c im a", ca rn e e E spírito. Jesus está
fa la n d o d a s u b s titu iç ã o escato ló g ica d e in stitu içõ e s te m p o ra is com o
o te m p lo , r e s u m in d o o tem a d e 2 ,1 3 2 2 ‫־‬. E m 2,21 foi Jesus m esm o q u e
e sta v a a s s u m in d o o lu g a r d o tem p lo , e a q u i é o E sp írito d a d o p o r Je-
su s q u e e stá p a ra a n im a r o c u lto q u e s u b s titu i o cu lto d o tem p lo . N o te
q u e e sta é u m a q u e stã o d e c u ltu a r 0 Pai em E spírito. D e u s só p o d e
ser a d o ra d o co m o Pai p o r a q u e le s q u e p o ssu e m o E sp írito q u e os faz
filh o s d e D e u s (v er R m 8,15-16), o E sp írito p e lo q u a l D e u s os gera de
cim a (Jo 3,5). E ste E sp írito elev a o s h o m e n s acim a d o n ív el terren o , o
n ív el d a c a rn e , e os c a p acita a c u ltu a r a D eus co m o co nvém .
O v. 24 u n e E spírito e v e rd a d e . Em 17,17-19, o u v ire m o s q u e a ver-
d a d e é u m a g e n te d e co n sag ração e santificação, e assim a v e rd a d e
tam b é m cap acita o h o m e m a c u ltu a r a D eus com o convém . O s tem as
jo an in o s estã o e stre itam e n te en trelaçados: Jesus é a v e rd a d e (14,6) no
se n tid o d e q u e ele revela a v e rd a d e d e D eus aos h o m e n s (8,45; 18,37);
o E sp írito é o E sp írito d e Jesus e é o E spírito d a v e rd a d e (14,17; 15,26),
q u e v ai g u ia r os h o m en s n a v e rd a d e . A ssim , seria p o u co sen sato p er-
g u n ta r q u a l a c o n trib u ição d o E spírito n o culto com o d istin to d o qu e a
v e rd a d e c o n trib u i. "E sp írito d a v e rd a d e " explicitam sim p lesm en te o
q u e já v im o s ao d isc u tirm o s a " á g u a v iv a" com o revelação e Espírito.
N ão a p e n a s n o n ív el literário, m as tam b ém em seu s tem as teológicos, o
d iálo g o co m a m u lh e r sa m a rita n a é u m to d o p e rfe ita m e n te entrelaçado.
Schnackenburg, " A n b e tu n g " , tem m o stra d o co m o a estreita cone-
xão e n tre e sp írito e v e rd a d e , n os escrito s d e Q u m ra n , oferece a lg u n s in-
tere ssa n tes p a ra le lo s com o p e n sa m e n to d e João. E m Q u m ra n , em u m
co n tex to escato ló gico, D eu s d e rra m a seu e sp írito so b re os a d e p to s e
assim os p u rific a p a ra se u serviço. Este e sp írito é o e sp írito d a v e rd a d e
n o s e n tid o d e q u e ele in stru i os a d e p to s n o c o n h e cim e n to d iv in o , isto
é, a o b se rv â n c ia d a Lei q u e ta n to se in sistia em Q u m ra n (1QS 4,19-22).
A p u re z a a ssim o b tid a c o n v erte a c o m u n id a d e n o tem p lo d e D eus,
" u m a casa d e s a n tid a d e p a ra Israel, e assem b léia d o E sp írito d e San-
tid a d e p a ra A rã o " ( 8 , 5 9 , 3 - 5 ;6‫)־‬. E b e m p ro v á v e l term o s a q u i o p a n o
d e fu n d o q u e to m a in telig ív eis as ob serv açõ es d e Jesus so b re o cul-
to e m E sp írito e v e rd a d e q u e su b stitu i o cu lto n o tem p lo . E n tretan to ,
398 O Livro dos Sinais

o c u lto n o s e n tid o jo an in o n ã o e n v o lv e p u re z a ritu a l, e a v e rd a d e não


d iz resp e ito a u m a in te rp re ta ç ã o d a Lei; e a ssim aí p e rm a n e c e m dife-
ren ç a s ó b v ias e n tre João e Q u m ra n .
A n tes d e en cerrarm o s a d iscu ssão d o d iálo g o com a m u lh e r sa-
m aritan a, é p reciso e n fatizar q u e nesta cena João rev iv e u e e x p a n d iu
tem as tra ta d o s a n te rio rm e n te no e v a n g elh o (tem p lo d e 2,13-22; á g u a e
E spírito n o d iscu rso a N icodem os). Este m éto d o d e v o lta r so b re u m de-
term in a d o tem a a p ó s u m in terv alo será e n c o n tra d o o u tra v ez e m João.

Segunda Cena: O diálogo com os discípulos (4,27-38)

Esta cena é c o n stru íd a com o m áx im o d e c u id a d o . A p rim e ira cena


n o s in fo rm o u co m o Jesus se a p ro x im o u d a m u lh e r e a le v o u à fé; m a s a
b re v e in tro d u ç ã o à S e g u n d a C en a, n o s vs. 27-30, c o n c lu íd a n o s b a stid o -
res d a vila, in d ica q u e esta cena se o c u p a rá d a v in d a d o s h o m e n s a Jesus.
E assim , e n q u a n to Jesus a b ria o d iá lo g o n a P rim e ira C en a, os d isc íp u -
los a b re m o d iálo g o n a S e g u n d a C ena.
O m a l-e n te n d id o so b re a lim e n to n a s p rim e ira s lin h a s (vs. 31-33)
d o d iálo g o se a sse m e lh a ao m a l-e n te n d id o so b re á g u a n o s vs. 7-11.
Em cad a caso Jesus e stá fa la n d o e m u m nível e sp iritu a l, e n q u a n to q u e
seu s in te rlo c u to re s e stã o fa la n d o em u m n ív el m ate ria l. (B ligh, p. 334,
su g e re q u e assim co m o o tem a d e á g u a , na P rim e ira C e n a , conecta-se
ao s e p isó d io s d e N ic o d e m o s e d o B atista n o c a p ítu lo 3, a ssim o tem a
d e a lim e n to d a S e g u n d a C en a a p o n ta p a ra o sim b o lism o d e p ã o /c o -
m id a d o c a p ítu lo 6). Em c a d a caso, o m a l-e n te n d id o lev a Je su s a escla-
recer o q u e ele tem em m en te. A exp licação d e q u e o a lim e n to d e Jesus
é su a m issão (v. 34) lev a m ais n a tu ra lm e n te à e x te n sã o d a m etá fo ra
e m term o s d e ceifa (v. 35), isto é, o fru to d e su a m issã o é re p re s e n ta d o
p e lo s s a m a rita n o s q u e e stã o v in d o a ele.
A im a g e m d a ceifa e x p o sta n o s vs. 35-48 te m claro s p a ra le lo s na
tra d içã o sin ó tica d a s p a rá b o la s re la c io n a d a a a g ric u ltu ra , especial-
m en te em v o c a b u lá rio co m o " se m e a r" , "ce ifa r", " fru to " , " tra b a lh o " ,
"sa lá rio s". D o d d sa lie n ta q u e o v o c a b u lá rio teo ló g ico q u e é a m arca
re g is tra d a d o Q u a rto E v an g elh o n ã o é m u ito fre q u e n te n e ste s versí-
cu lo s (so m en te " v id a e te rn a " n o v. 36; "v erific ad o " n o 37); ele infere
(Tradition, p p . 391-99) q u e a e sp in h a d o rsa l d e ste b re v e d isc u rso cons-
titu i u m g ru p o d e d ito s tra d icio n a is in d e p e n d e n te s d e Jesu s q u e têm
sid o u n id o s. C o m o a g o ra e stão , estes v e rsíc u lo s in c o rp o ra m o tem a da
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 399

escato lo g ia re a liz a d a . Se n a s p a rá b o la s d a ceifa d e M t 13 a im ag em


d e scre v e u m ceifar d e h o m e n s n o fim d o s tem p o s, em João a ceifa já
está e m a n d a m e n to n o m in isté rio d e Jesu s (e d a Igreja).
A su b s tâ n c ia d o s vs. 35-38 co n siste d e d o is d ito s p ro v erb iais: Je-
su s n e g a o p rim e iro e a firm a o se g u n d o . Q u e Jesu s c ito u p ro v érb io s
p o p u la re s , v e m o s n a tra d iç ã o sinótica. E m Lc 4,23 Jesus c o n tra d iz u m
p ro v é rb io ju s ta m e n te co m o ele faz em n o sso p rim e iro caso em João.
O p ro v é rb io e m M t 16,2-3 tem p o r b a se os p ro ce sso s d a n a tu re z a , ou-
tra v e z c o m o e m Jo 4,35. C o n sid e re m o s d e ta lh a d a m e n te os d o is p ro -
v érb io s e m Jo ão e a e x p o sição q u e Jesu s faz deles.
(1) O primeiro provérbio e seu c o m en tário se e n co n tram n os vs. 35-36;
d iz re s p e ito ao in te rv a lo q u e a n a tu re z a estab eleceu e n tre a se m e a d u ra
e a ceifa. Jesu s a n u n c ia q u e n a o rd e m escatológica q u e ele tem intro-
d u z id o o p rin c íp io p ro v e rb ia l já n ã o é v álid o , p o is já n ã o existe tal in-
terv alo . Essa id eia h a v ia sid o p re p a ra d a já n o AT. Lv 26,5 p ro m e te u , à
m a n e ira d e g a la rd ã o ideal, à q u e le s q u e g u a rd a sse m os m an d a m en to s:
"e a d e b u lh a se v o s c h e g ará à v in d im a e a v in d im a se c h e g ará à sem en-
teira" - em o u tra s p a la v ra s, a a b u n d â n c ia d a s co lh eitas seria tão gran-
d e q u e os in te rv a lo s d e d e sca n so e n tre as estações ag ríco las d e sap a re -
ceriam . O s s o n h o s q u e A m ó s tev e d o s d ia s m essiân ico s re tra ta v a m o
a ra d o r so b re p u ja n d o a cega (9,13). A ssim ag o ra na p reg a ç ã o d e Jesus a
ceifa e stá m a d u ra n o m esm o d ia em q u e a se m e n te for lan çad a, p o is os
s a m a rita n o s já estã o a b a n d o n a n d o a vila e v in d o a Jesus.
O m e lh o r p a ra le lo sin ó tico p a ra a se g u n d a p a rte d o v. 35 se en-
c o n tra e m M t 9,37-38 (Lc 10,1-2), o n d e , q u a n d o Jesus v ê as m u ltid õ e s
v in d o e m s u a d ire ç ão , diz: "A se ara é re a lm e n te g ra n d e , m a s p o u -
co s os ceifeiros. R ogai ao S e n h o r d a se a ra q u e m a n d e ceifeiros p a ra
s u a se a ra ".
O v. 36 c o m e n ta so b re o tem a d a ceifa e d e se n v o lv e a im agem : a
s e a ra n ã o só está m a d u ra , m a s o ceifeiro já está em ação. (E p o ssív el
q u e o v. 36 fosse u m d ito in d e p e n d e n te a n te s d e ser in c o rp o ra d o no
p re s e n te co n tex to). O tem a se m o v e d a ra p id e z com q u e tem chega-
d o o m o m e n to d a ceifa se p a ssa a a le g ria d e c o lh e r a safra. C o n v é m
le m b ra r o SI 126,5-6: " Q u e os q u e se m e iam com lá g rim a s c o lh am com
g rito s d e jú b ilo ". H á ta m b é m a p a rá b o la d o rein o e m M c 4,26-29, o n d e
te m q u e d e ix a r q u e a se m e n te cresça p o r si m esm a e e n tã o , q u a n d o o
g rão e stá m a d u ro , o a g ric u lto r p a ssa a foice " p o rq u e a colheita ehe-
g o u " . P a ra João, o ceifeiro já está re c o lh e n d o se u s salários.
400 O Livro dos Sinais

(2) O segundo provérbio e seu com entário se en co n tram nos vs. 37-38.
A d istin çã o e n tre o s e m e a d o r e o ceifeiro tem m u ito s a n te c e d e n te s n o
A T (Dt 20,6; 28,30; Jó 31,8); m a s a refe rê n c ia ali é p e ssim ista , a sa b er,
q u e u m a c a tá stro fe in te rv é m a im p e d ir o h o m e m d e c o lh e r o q u e h a-
via se m ead o . M q 6,15 é u m exem plo: "S em earás, p o ré m n ã o colhe-
rás". P o rta n to , é b e m p ro v á v e l q u e o p ro v é rb io q u e Jesu s cita, " u m
sem eia, o o u tro co lh e", o rig in a lm e n te fosse u m a reflex ão p e ssim ista
so b re a in ju stiça da v id a . (Barrett, p. 203, cita p a ra le lo s g re g o s q u e
em su a estim a são m u ito se m e lh a n te s à fo rm a jo a n in a d o p ro v é rb io ;
to d av ia , é b e m p ro v á v e l q u e esse a fo rism o fosse a reflex ão c o m u m d e
m u ito s p o v o s an tig o s). É in te re ssa n te n o ta r q u e u m c o n tra ste e n tre
se m e a r e c o lh er a p a re c e em M t 25,24: "É s u m h o m e m sev ero ; ceifas
o n d e n ã o sem easte".
N o v. 38, Jesus aplica o p ro v é rb io em u m se n tid o o tim ista. Q u e os
d isc íp u lo s são e n v ia d o s a ceifar o n d e n ã o se m e a ra m é o u tra reflexão
d e a b u n d â n c ia escatológica. H á d iv e rsa s d ific u ld a d e s n e ste v ersícu lo .
Jesu s d iz ao s discípulos: "E u v o s enviei jaoristo] a ceifar"; q u a n d o ele
fez isso? P o u co co n sisten te a su g e stã o d e Bligh d e q u e esta é u m a alu -
são ao fato d e q u e fo ram e n v ia d o s à c id a d e a b u sc a r a lim en to . O texto
n ão só d iz q u e foram e n v ia d o s a ceifar, m as ta m b é m n ã o há n a d a na
d escrição d e s u a id a à c id a d e (v. 8) q u e d iz q u e foram enviados. A o con-
trário , a m issão m e n c io n a d a n o v. 38 p a re c e ser d e c a rá te r relig io so .
H á d u a s p ro v á v e is p o ssib ilid a d es. Primeira, h á q u e m s u g ira q u e
d e v e m o s co lo car-n o s n a p e rsp e c tiv a p ó s-re ssu rre iç ã o d o e v a n g elista .
O en v io é a g ra n d e m issã o p ó s-re ssu rre iç ã o d e 20,21 q u e c o n v e rte u
os d isc íp u lo s em ap ó sto lo s, isto é, os e n v ia d o s (v er n o ta so b re 2,2).
P arece q u e, p o r an te c ip a ç ã o , esta m issão se re p o rta a 17,18 ta m b é m
n o p reté rito : "E u os e n v ie i ao m u n d o " . Segunda, h á a p o s s ib ilid a d e
d e q u e 4,38 seja u m a referên cia a u m a m issã o d o s d isc íp u lo s d u r a n te
o m in isté rio d e Jesus, u m a m issã o q u e n ã o foi n a rra d a . A tra d iç ã o
sin ó tica relata essas m issõ es d o s d isc íp u lo s n a s c id a d e s a d ja c e n te s a
p re g a r e a c u ra r (Lc 9,2; 10,1). N a tu ra lm e n te , é se m p re u m risco ex-
p lic a r João m e d ia n te alg o p ro v e n ie n te d a tra d iç ã o sin ó tica; c o n tu d o ,
o fato d e q u e o v. 38 p o d e ter sid o u m a v ez u m d ito in d e p e n d e n te , ao
m en o s to rn a esta in te rp re ta ç ã o p o ssív el. C itam o s a n te rio rm e n te u m
p a ra le lo lu c a n o (Lc 10,1-2) com Jo 4,35 so b re ceifa a b u n d a n te e a es-
cassez d o s tra b a lh a d o re s; n o te m o s q u e o v e rsíc u lo se g u in te em L ucas
tem estas p a la v ras: "E is q u e e u v o s en v io "... É p o ssív e l q u e João n o s
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 401

esteja d a n d o u m d ito sim ila r tra n sfe rid o ao p a ssa d o ? D o d d , Tradition,


p. 398, cita u m g r u p o d e d ito s sin ó tico s q u e são sim ilares, n o fo rm ato ,
a ]o 4,38.
A ú ltim a p a rte d o v ersíc u lo 38 é m u ito difícil. Q u e m são os "ou-
tro s" q u e têm feito o tra b a lh o difícil? N o c o n tex to a tu a l d o relato po-
d e m o s p e n s a r e m Jesu s co m o h a v e n d o se m e a d o a se m e n te d a fé na
m u lh e r s a m a rita n a e, a ssim h a v e n d o feito o tra b a lh o ; os d isc íp u lo s
e stã o s e n d o a g o ra so lic ita d o s a a ju d á -lo a c o lh er o fru to d a q u e la se-
m e n te c o m o re p re s e n ta d a p e la g e n te d o p o v o dela. M as e n tã o p o r
q u e u m p lu ra l ("o u tro s" )? É m e ra m e n te u m a g en eralização ? O u Jesus
e s ta ria a sso c ia n d o o P ai co n sig o n o tra b a lh o (v. 34)? O u tra su g e stã o é
q u e os " o u tro s " n ã o se refe re m a Jesus, e sim ao s q u e p re p a ra ra m os
s a m a rita n o s p a ra rec e b e re m a m e n sa g e m d e Jesus. T êm -se m encio-
n a d o fig u ra s d o A T, m a s esta in te rp re ta ç ã o fica lim ita d a p elo fato de
q u e os s a m a rita n o s a c eita v a m so m e n te o P e n tateu co . J. A. T. R o b in so n ,
art. cit., te m p ro p o s to q u e os " o u tro s " c o n stitu e m u m a referên cia ao
B atista e se u s d isc íp u lo s q u e h a v ia m p re g a d o em S am aria, em Enon,
p ró x im o a S alim (ver n o ta so b re 3,23). N ã o o b sta n te , os d iscíp u lo s
d o B atista se ria m a p re s e n ta d o s p o r João co m o h a v e n d o p re p a ra d o o
c a m in h o p a ra Jesus? T alv ez a o b ra c o m b in a d a d o B atista e d e Jesus
se ria m u m a v a ria n te p refe rív e l d e sta teoria.
In d e p e n d e n te d e q u a l seja o sig n ificad o d e " o u tro s " , n e ste con-
texto a tu a l, n o q u a l o rela to é co lo cad o , to d a a p a ssa g e m a ssu m e n o v o
sig n ificad o q u a n d o p e n sa m o s ser ela n a rra d a n o s círcu lo s jo an in o s
fa m ilia riz a d o s com a h istó ria d a c o n v e rsã o d e S am aria com o notifi-
cad a e m A t 8. C u l l m a n n , art. cit., tem sa lie n ta d o q u e h a v ia u m a dis-
tinção e n tre s e m e a d o re s e ceifeiros na c ristia n iz a ç ão d e S am aria: o
s e m e a d o r d a fé cristã foi F ilipe, u m h e le n ista co m o E stêv ão e, p resu -
m iv e lm e n te , u m o p o n e n te d o cu lto n o te m p lo d e Jeru salém ; m as os
ceifeiros fo ram P e d ro e João q u e d e sc e ra m a co n ferir o E spírito. Esta
d ife ren ç a d e fu n çã o p o d e b em ter lev a d o a a lg u m a riv a lid a d e , com o
se d e u e m C o rin to - v e r IC o r 3,6, o n d e P a u lo rec o rre a u m sím bo-
lo agrícola: "E u p lan te i; A p o io reg o u ; m as D eus d e u o crescim en to ".
O q u e h á d e m ais n a tu ra l d o q u e c o m e n ta r so b re tal situ ação , evocan-
d o o d ito d e Jesu s q u e d a v a c erteza d e q u e tal d iferen ça e n tre sem ea-
d o r e ceifeiro e ra p re v ista n a ceifa escatológica.
D e fato , essa teo ria lan ç a lu z a d ic io n a l so b re to d o o c a p ítu lo 4.
A a firm a ç ã o so b re a c a d u c id a d e d o c u lto em Je ru sa lé m p o d e ter sid o
402 O Livro dos Sinais

p re s e rv a d a c o m o u m a rg u m e n to c o n tra a q u e le s n a ig reja e m J e ru sa lé m
q u e re p ro v a ra m a a titu d e d o s h e le n is ta s c o n tra o te m p lo e in c lu siv e
p o d e ría m te r p re te n d id o q u e os c o n v e rso s s a m a rita n o s m u d a s s e m
se u c o m p ro m is so p a ra J e ru s a lé m co m o p a rte d a p rá tic a c ristã (v er
A t 2,46 so b re a p rá tic a c ristã n o c u lto d iá rio n o te m p lo ). O v. 21 m o stra -
ria q u e tal a titu d e e a q u e la s d is p u ta s n ã o o c o rre ra m n a n o v a e ra q u e
Jesu s c o m eçara. A rica ceifa d o v. 35 re fle tiría o ê x ito d a m issã o d e F ilip e
e m S a m aria, e o " e u e n v ie i" d e 38 re fe riría a u m a faceta p a rtic u la r d a co-
m issã o p ó s -re s s u rre iç ã o , a sa b e r, q u e a o g u ia r o d e s tin o d a Igreja Je su s
u s a ra a p e rs e g u iç ã o p a ra e n v ia r s e u s d isc íp u lo s n a m issã o s a m a rita n a .
A ên fa se so b re a im p o rtâ n c ia d o E sp írito (nos vs. 2 3 2 4 ‫ ־‬e so b a im a -
g e m d a " á g u a v iv a " e m 10-14) a s su m iría n o v o sig n ific a d o à lu z d a
v in d a d e P e d ro e João p a ra o u to rg a r o E sp írito a S a m a ria e a c o n tro -
v e rs a co m S im ão M ag o , q u e q u e ria p a ra si p o d e r p a ra d a r o E sp írito .
Se o c o n te x to d a c o n v e rsã o d e S a m a ria e x p lica m u ito d a c e n a q u e
e stiv e m o s e s tu d a n d o em Jo 4, n ã o se p o d e fa z e r ju stiç a a o s e le m e n -
to s d e a u te n tic id a d e q u e te m o s v isto a s u g e rir q u e to d o o re la to é
p u r a m e n te im a g in a tiv a e c o m p o siç ã o fictícia ad hoc. A s o lu ç ã o a d e -
q u a d a p a re c e se r q u e o m a te ria l tra d ic io n a l co m u m a b a se h istó ric a
tem sid o re p e n s a d o e f o rm u la d o p a ra u m a sín te se d ra m á tic a co m
p ro p ó s ito teo ló g ico .

Conclusão: A conversão da população (vs. 39-42)

João é u m d ra m a tu rg o b o m d e m a is p a ra d e ix a r a h istó ria se m


u m a c o n clu são em q u e se fu n d ira m os te m a s d a s d u a s cen as. A m u -
lh er q u e foi tão im p o rta n te n a C en a I é e v o c ad a em ra z ã o d e q u e foi
p o r s u a p a la v ra q u e a p o p u la ç ã o creu. M as a c o n c lu sã o d a o b ra d o
P ai (v. 34), a ceifa d o s sa m a rita n o s, tem d e te r m a io r d u ra b ilid a d e ;
p o is a p o p u la ç ã o v eio a c re r n a p ró p ria p a la v ra d e Jesu s d e q u e ele é
o S a lv ad o r d o m u n d o . Se n o sso rela to n o c a p ítu lo 4, p a rtic u la rm e n te
a cena I, tem r e tra ta d o os p a sso s p e lo s q u a is a alm a v e m a c re r em
Jesus, ta m b é m re tra ta a h istó ria d o a p o sto la d o , p o is a ceifa v e m d e
fo ra d a Ju d e ia , e n tre e stra n g eiro s. D ificilm en te é p o ssív e l c re rm o s q u e
o e v a n g elista n ã o p re te n d e s s e c o n tra sta r a fé in sa tisfa tó ria d o s ju d e u s
em 2,23-25 b a s e a d a n u m a a d m ira ç ã o su p e rfic ia l d e m ila g re s co m a fé
m ais p ro fu n d a d o s sa m a rita n o s b a s e a d a n a p a la v ra d e Jesus. N ico d e-
m o s, o ra b in o d e Jeru salém , n ã o p ô d e e n te n d e r a m e n sa g e m d e Jesus
14 · Diálogo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó 403

d e q u e D e u s e n v io u o F ilho ao m u n d o p a ra q u e o m u n d o fosse salvo


p o r ele (3,17); to d a v ia , os h o m e n s d e S am aria p ro n ta m e n te v iera m a
c o n h e ce r q u e Jesu s re a lm e n te é o S a lv ad o r d o m u n d o .

[A B ib lio g rafia d e sta seção está in clu sa n a B ibliografia e n co n tra-


d a n o final d o § 15.]
15. JESUS ENTRA NA GALILEIA
(4 ,43‫־‬45 )

Uma passagem de transição

4 43P a ssad o a q u e le s d o is d ias, ele p a rtiu d a li p a ra a G alileia. (44P ois


o p ró p rio Jesu s tin h a testific a d o q u e u m p ro fe ta n ã o tem h o n ra em
su a p ró p ria p á tria). 45E q u a n d o c h e g o u na G alileia, os g a lile u s o re-
c e b eram p o rq u e , te n d o eles m e sm o s id o à festa, v ira m tu d o o q u e ele
fizera em Jeru salém n a q u e la ocasião.

NOTAS

4.43. partiu. Em grego, a construção é um tanto áspera, e algum as testemu-


nhas têm adotado outro verbo para abrandar a construção: "ele partiu e
saiu de lá para a Galileia".
44. tinha testificado. O mais-que-perfeito indica que se trata de uma observa-
ção a modo de parênteses.
45. receberam. O verbo dechesthai ocorre somente aqui nas obras de João.
tudo 0 que ele fizera em Jerusalém. Presumivelmente, isto se refere aos sinais
mencionados em 2,23.

COMENTÁRIO

E stes três v ersícu lo s c o n stitu e m u m a c ru z p a ra os c o m e n ta rista s d o


Q u a rto E v an g elh o . N o início d o 3a século, O rígenes (In ) 0. X III53; GCS
10:283) d isse d o v. 44: "E ste d ito p a re c e ro m p e r c o m p le ta m e n te a se-
q u ê n c ia ". N o início d o sécu lo 20, L a g r a n g e , p. 124, c o n fe sso u q u e n ã o
15 · Jesus entra na Galileia 405

h a v ia m eio s su fic ie n tes d e ex p lic ar esta p a ssa g e m d e a c o rd o com as


re g ra s d a lógica estrita.
C o m o o v. 43 ora está, faz m e lh o r se n tid o co m o u m a tra n siç ã o d o
in te rlú d io sa m a rita n o . E n tre tan to , ele lem b ra b e m 4,3b (" p a rtiu d ali
p a ra a G alileia"), e já m e n c io n a m o s a teo ria d e q u e o q u e u m a v ez era
u m a v ia g e m c o n tín u a d a Ju d e ia p a ra a G alileia foi in te rro m p id o pela
in se rç ão d o in c id e n te sa m a rita n o . E n tre tan to , se o v. 43 c o n tin u a o 40
o u 1-3, a in d a se relacio n a com o q u e p rec e d e u .
O v . 4 5 , em c o n tra p a rtid a , in tro d u z o q u e segue. D o d d , Tradition,
p. 238, o b s e rv a q u e ele se rv e d e a p re se n ta ç ã o a n a d a n o v o , m as isto
n ão p a re c e p ro c e d e n te . A m en ç ã o d a recep ção d a d a a Jesus p elo s qu e
tin h a m v isto o q u e ele fizera em Je ru sa lé m su g e re p o r q u e o oficial
rég io (vs. 46ss.) se d irig iu a ele e s p e ra n d o u m m ilag re.
O p ro b le m a se c e n tra n o vs. 44, u m a in te rru p ç ã o q u e p a re c e con-
tra d iz e r o 45. E m 44, Je su s c o m p a ra su a situ a ç ã o à d e u m p ro fe ta q u e
n ão tem h o n ra em se u p ró p rio p aís; to d a v ia , e m 45 su a G alileia n a tiv a
lhe d á e n tu s iá s tic a s b o a s-v in d a s. P ara so lu c io n a r isto, há q u e m sugi-
ra q u e " s e u p ró p rio p a ís " , n o v. 44, é u m a a lu sã o , n ã o a G alileia, m as
a Ju d e ia . E ste é u m p o n to d e v ista q u e re m o n ta ao m e n o s a O rígenes
(In Jo. X III54; G C S 10:284). A id eia, p o is, é q u e, n ã o h a v e n d o receb id o
n e n h u m a h o n ra n a Ju d e ia , c o m o e x e m p lific a d o p o r su a rejeição no
tem p lo , Je su s v a i p a ra a G alileia, o n d e é b e m receb id o . Essa inter-
p re ta ç ã o re la c io n a ria 4,43-45 com 1-3; p o is co m o os v e rsíc u lo s ora
e stã o , Je su s e stá d e ix a n d o S am aria, n ã o a Ju d e ia . E n tre ta n to , m esm o
q u e c o n s id e re m o s to d o o in c id e n te s a m a rita n o co m o u m a inserção,
a s u g e s tã o d e q u e a te rra d e Je su s é a Ju d e ia e n fre n ta objeções. João
está c o n s ta n te m e n te a e n fa tiz a r as o rig e n s g alileias d e Jesus (1,46;
2,1; 7,42.52; 19,19); e ste e v a n g e lh o n e m m esm o n o s in fo rm a q u e Je-
su s n a sce u n a Ju d e ia . E v e rd a d e q u e em João Jesu s g a sta m u ito tem -
p o n a J u d e ia , m a s isto d ific ilm e n te faz d a Ju d e ia su a p ró p ria terra.
A lém d o m ais, h á u m a im p lic a ç ão n e sta ex p licação d e q u e Jesu s ficou
d e s a p o n ta d o co m a rec e p ç ão q u e receb era na Ju d e ia , e re g re ssa ra à
G alileia co m o fim d e re c e b e r a h o n ra q u e lh e fora n e g a d a n a Ju d eia.
Essa b u s c a d e lo u v o r h u m a n o e stá em p le n a c o n tra d iç ã o ao s id eais
d o Q u a rto E v a n g e lh o (2,24-25; 5,41-44).
A m e lh o r so lução p a ra o p ro b le m a g e ra d o p elo v. 44 é considerá-lo
co m o u m a a d iç ã o p e lo re d a to r, e x a ta m e n te com b a se no m esm o pa-
d rã o co m o 2,12. A p a rtir d e u m a tra d iç ã o afim à q u e la d o s e v a n g elh o s
406 O Livro dos Sinais

sinóticos, o re d a to r tin h a u m d ito n o se n tid o d e q u e Jesus e ra p ro p ria -


m en te p o u c o e s tim a d o n a G alileia. Ele an e x o u este d ito ao e v a n g e lh o
ju sta m e n te a n te s d e u m rela to q u e ilu stra ria a fé in sa tisfa tó ria d o s ga-
lileus, u m a fé b a se a d a u n ic a m e n te n a d e p e n d ê n c ia d e sin a is e p ro -
d íg io s (v. 48). Em su a av aliação , a recep ção d a d a a Jesu s n a G alileia
(v. 45) é n ã o m en o s frívola q u e a reação com q u e Jesu s foi s a u d a d o e m
Jeru salém (2,23-25). P o rta n to , a in se rç ão d o v. 44 n ã o c o n tra d iz o 45,
u m a v ez c o m p re e n d a m o s q u e u m a recep ção su p e rfic ia l b a s e a d a no
e n tu s ia sm o p o r m ilag re s n ã o é n e n h u m a honra real.
C o m o se d e u com 2,12, os p a ra le lo s com a tra d iç ã o sin ó tica são
m u ito estreito s. P rim eiro , p o d e m o s n o ta r q u e to d a a cena sin ó tica
(M c 6,1-6; M t 13,53-58; Lc 5,22ss.) q u e e n v o lv e a a firm a ç ã o p a ra le la a
Jo 4,44 tem ecos e m João. M arco s e João o ferecem os p o n to s m a is in te-
ressa n te s d e co m p aração :

M arco s 4,2: muitos ficam atônitos ante 0 conhecimento que Jesus pos-
sui, Jo 7,15
3: Jesus é uma figura local cujos parentes são conhecidos,
Jo 6,42
6: Jesus se aborrece pela falta de fé, Jo 4,48

C o m p a re m o s a g o ra as d ife re n te s fo rm a s d o d ito so b re o p ro feta:

M arco s 6,4: U m p ro fe ta só é d e s p re z a d o em su a p ró p ria p á tria .


L ucas 4,24: N e n h u m p ro fe ta é b e m rec e b id o em su a p á tria .
João 4,44: U m p ro fe ta n ã o tem h o n ra em su a p ró p ria p á tria .

João p a re c e com L ucas n a fo rm u la ç ã o n e g a tiv a d a se n te n ç a, m as


p arece m ais a M arcos em v o ca b u lá rio (em b o ra o " b em rec e b id o " luca-
n o se e n co n tra n o v ersícu lo se g u in te em João - v e r a resp e c tiv a nota).
P arece p referív el classificar o d ito d e João co m o u m a fo rm a v a ria n te
d e u m a afirm ação trad icio n al, e n ã o co m o u m e m p ré stim o seletiv o d e
M arcos e Lucas. O re d a to r n ão a d a p to u o d ito ao estilo jo a n in o d o res-
tan te d o ev an g elh o . A p a la v ra " h o n ra " (time) é e m p re g a d a em v e z da
m ais u su a l, " g ló ria " (doxa). O a rtig o é tam b é m o m itid o a n te s d o n o m e
p ró p rio , "Jesu s" - s e g u n d o Bernard, I, p p . 42-43, tal o m issã o n ã o é carac-
terístico d e João, m as R. C. N evius, N TS 12 (1965-66), 81-85, a rg u m e n ta
15 · Jesus entra na Galileia 407

q u e o u s o sem a rtig o , co m o testificad o n o C o d e x V atican u s d e João, é


o v e rd a d e iro e stilo joanino.
A cen a sin ó tica o n d e e n c o n tra m o s estes p a ra le lo s é a d a rejeição
d e Jesu s e m N a z a ré , u m a cena q u e L ucas situ a n o com eço d o m inis-
tério g a lile u , e M arco s-M ateu s, n o final d o m in isté rio na G alileia p ro -
p ria m e n te d ita . A s se m e lh a n ç a s e n c o n tra d a s e m Jo 4,44-45 com esta
cen a n o s a ju d a m a e stab elecer u m a sin c ro n iz a ç ão cro n o ló g ica e n tre
o s re la to s jo a n in o s e sin ó tico s? E m p a rtic u la r, é a s e g u n d a e n tra d a ,
e m Jo ão , d e Jesu s n a G alileia q u e d e v e se r c o m p a ra d a com Lc 4,16ss.,
o n d e Je su s foi reje ita d o e m N a z a ré q u a n d o v o lto u à G alileia d e p o is
d e s e u b a tis m o p e lo B atista e a p risã o d o B atista (Lc 3,19-20)? D iscu-
tim o s a cim a as d ific u ld a d e s e n c o n tra d a s e m q u a lq u e r sin cro n ização
b a s e a d a n a o c a siã o d a e n tra d a d e Jesu s n a G alileia (ver p . 363) e, neste
caso, as d ife ren ç a s d e n tro d a tra d iç ã o sin ó tica acerca d o te m p o d a re-
jeição e m N a z a ré . P o d e m o s n o ta r q u e, e n q u a n to em João a afirm ação
so b re o p ro fe ta q u e n ã o recebe h o n ra e m su a p ró p ria p á tria é se g u id a
im e d ia ta m e n te p e lo re la to d a c u ra d o m e n in o em C a fa rn a u m , ta n to
M a te u s co m o L u cas tê m esta c u ra s e p a ra d a p o r v á rio s c a p ítu lo s da
a firm a ç ão so b re o p ro fe ta m a l recebido.
Já v im o s q u e e m su a e n tu sia sta av a liaç ã o b a s e a d a em m ilag res,
4,44-45 e 2 ,2 3 2 5 ‫ ־‬têm m u ito em c o m u m . E stas d u a s p a ssa g e n s têm
ta m b é m u m a fu n ç ã o sim ila r n o e sq u e m a d e João. D ep o is d a descrição
e m 2,23-25 d o s q u e em Je ru sa lé m c re ra m e m Jesu s p o r c a u sa d e seu s
sin ais, u m d e sse s " c re n te s" , N ic o d e m o s, p ro c u ro u Jesu s com su a ina-
d e q u a d a c o m p re e n sã o d o s p o d e re s d e Jesus. E ste tev e q u e ex p licar a
N ic o d e m o s q u e n a re a lid a d e ele era a q u e le q u e veio d e cim a p a ra d a r
a v id a e te rn a . A ssim ta m b é m , a p ó s a d e scriçã o e m 4,44-45 d o s g alileu s
q u e re c e b e ra m a Jesu s p o r c a u sa d e su a s o b ras, u m oficial rég io da
G alileia v e m a Jesu s com u m a in a d e q u a d a c o m p re e n sã o d e seu po-
d er. Jesu s le v a rá o h o m e m a u m a c o m p re e n sã o m ais p ro fu n d a d e sua
fu n çã o c o m o o d o a d o r d a v id a.

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1 6 .0 SEGUNDO SINAL EM CANA DA
GALILEIA - A CURA DO FILHO DO OFICIAL
(4 ,46- 54)

4 46E e n tã o ele c h e g o u o u tra v ez em C a n á d a G alileia o n d e tran s-


fo rm a ra a á g u a em v in h o . O ra, em C a fa rn a u m h a v ia u m oficial do
rég io cujo filh o e s ta v a d o e n te . 47Q u a n d o ele o u v iu q u e Jesus v o ltara
d a J u d e ia p a ra a G alileia, foi a ele e lh e ro g o u q u e descesse e restau -
rasse a s a ú d e d e se u filho q u e e sta v a m o rre n d o . 48Jesus replicou: "Se
n ão v ird e s sin a is e p ro d íg io s, jam ais crereis". 49"S e n h o r", ro g o u -lh e o
oficial rég io , " d e sc e a n te s q u e m eu m e n in o m o rra ". 30Jesus lh e disse:
"V o lta p a ra casa, teu filho v iv e". O h o m e m c re u n a p a la v ra q u e Jesus
lhe falara e p a rtiu p a ra casa.
51E, e n q u a n to e sta v a c a m in h o abaixo, se u s serv o s o e n co n tra-
ra m co m n o tíc ia s d e q u e seu filho vivia. 52Q u a n d o [lhes] p e rg u n to u
a q u e te m p o ele m o stra ra m e lh o ra , lh e d isseram : "A febre o dei-
x o u o n te m à ta rd e cerca d a u m a " . 53O ra, o p a i c o m p re e n d e u q u e
foi e x a ta m e n te n a q u e la h o ra q u e Jesus lh e d issera: "T eu filho vive".
E ele, e to d a s u a casa, se to rn a ra m cren tes. 54E ste foi o se g u n d o sinal
q u e Jesu s re a liz o u em seu re to rn o d a Ju d e ia p a ra a G alileia.

49: p le ite o u . No tempo presente histórico.

NOTAS

4.46. Ora, e m C a fa r n a u m . Boismakd pensa que isto foi a abertura original do


relato, com o em 3,1; ele considera a primeira sentença do v. 46 como obra
de um redator, ponto de vista partilhado por muitos outros estudiosos.
410 O Livro dos Sinais

oficial régio. A palavra basilikos pode designar um a pessoa de sangue real


(Codex Bezae e a tradição latina o tom am como sendo um rei insignifi-
cante) ou um servo do rei. A segunda alternativa está implícita aqui; o
rei a quem ele serve é H erodes, o tetrarca da Galileia, a quem o NT re-
gularm ente denom ina de rei (Mc 6,14.22; Mt 14,9). Não é im possível que
fosse um soldado (os sinóticos falam de um centurião [romano]), pois
Josefo usa basilikos em referência às tropas herodianas (Life 72; 400). En-
tretanto, Cafarnaum era um a cidade fronteiriça, e provavelm ente havia
ali m uitos tipos de oficiais adm inistrativos régios.
48. se não virdes. O oficial é considerado como representando os galileus dos
vs. 44-45. No relato sinótico (Mc 7,27) da cura da filha de um a siro-fení-
cia, um relato de m uitas m aneiras paralela à narrativa de João aqui (ver
comentário), Jesus, ao repelir a m ulher, trata-a como representante de
um grupo nacional.
sinais e prodígios. Em João, este é o único uso de "prodígios [maravilhas]"; ob-
viamente, consentido desfavorável, pois no pensam ento joanino um a ênfa-
se excessiva sobre o assombroso cega os olhos à capacidade de um milagre
revelar quem é Jesus (ver Apêndice III, p. 831 ss). Um interessante paralelo
a este versículo é Ex 7,3-4, onde Deus diz a Moisés: "Ainda que eu multipli-
que m eus sinais e maravilhas na terra do Egito, Faraó não te ouvirá".
49. Senhor. Kyrios significa tanto "senhor" como "Senhor"; talvez o segundo
esteja implícito aqui. No relato da m ulher siro-fenícia (Mc 7,28), a respos-
ta da m ulher à censura de Jesus em prega kyrios.
menino. Paidion, um dim inutivo de pais (ver v. 51); em outro lugar, João usa
huios, "filho".
50. vive. O semítico não tem palavra exata para "recobrar"; "viver" cobre
tanto a recuperação da enferm idade (2Rs 8,9: "eu viverei desta doença")
como voltar à vida após a m orte (lRs 17,23: "Teu filho vive" a um a m u-
lher cujo filho estava morto). O duplo significado é conveniente para os
propósitos teológicos de João.
creu. Pisteuein com o dativo; isto não é um com prom isso religioso tão firme
como pisteuein eis (ver Apêndice 1:9, p. 794ss).
na palavra. No relato sinótico do centurião: "Dize apenas a palavra e meu
m enino será restaurado à saúde".
51. caminho abaixo. Esta descrição concorda im plicitam ente com o v. 46a. Em
sua ida a Cafarnaum , desde Caná, alguém tem de atravessar as colinas
orientais da Galileia e então descer ao Mar da Galileia. A viagem de 30
km não era realizada em um dia, então foi no dia seguinte que os servos
encontraram o oficial que já começara a descer. Estas indicações sugerem
que o autor tinha bom conhecimento da Palestina.
16 · O segundo sinal em Caná da Galileia: A cura do filho do oficial 411

servos. O u "escravos" (douloi); estes tam bém aparecem no relato sinótico do


centurião, pois ele tem douloi às suas ordens (Mt 8,9).
que seu ß h o vivia. A lguns bons m anuscritos, inclusive P66, apresentam um
discurso direto.
menino. Ver nota sobre v. 49. Esta é a única ocorrência de pais em João, e mes-
mo aqui alguns textos importantes trazem huios. Kirkpatrick, art. cit., aceita
huios sobre as bases de que pais é um a harmonização de copistas com os si-
nóticos. Não obstante, a inserção de huios em vez de pais pode ser explicada
como um a tentativa de copista para tom ar o uso uniforme no relato.
52. perguntou. O verbo pynthanesthai ocorre som ente aqui em João. É mais
frequentem ente lucano no NT, e Boismard o usa como um a indicação de
que Lucas redigiu esta cena em João.
[lhes]. A palavra é om itida no Vaticanus e P75; os m uitos textos que o tra-
zem variam quanto à posição; é bem provável que seja um esclarecimen-
to de copista.
tempo. Literalmente, "hora", como no v. 53.
A febre 0 deixou. Para a mesma expressão, ver Mc 1,31; Mt 8,15.
ontem à tarde cerca da uma. Literalmente, "ontem, à hora sétima". Alguns objetam
que, se o oficial deixou Caná à 1:00 da tarde, no dia seguinte estaria em casa
e não ainda de caminho. Mas há muitos fatores desconhecidos. Ele saiu
imediatamente? Como o dia seguinte é computado? Segundo uma forma
da computação judaica, o dia seguinte começou naquela tarde, e assim ele
podería ter viajado apenas um as poucas horas. Ver nota sobre 1,39.
53. se tornaram crentes. Literalmente, "creram" = pisteuein, usado absolutamente.
54. segundo... Galileia. Literalm ente, "O utra vez, este segundo sinal Jesus rea-
lizou ao vir da Judeia para a Galileia". Ainda quando m udarm os "outra
vez" para mais perto do verbo, a expressão de João é pleonástica. Ela se
encontra em 21,16; m as, com a devida vênia a R uckstuhl, Die literarische
Einheit, p. 201, dificilmente é indicador do estilo joanino, pois um a ex-
pressão sim ilar é usada em Mt 26,42; At 10,15. Tal pleonasm o é atestado
no grego secular (BAG, p. 611).

COMENTÁRIO

R e la ç ã o c o m o s s i n ó t i c o s

O V isto q u e n a ép o ca d e I ri-
r e la to d a c u r a d o m e n i n o d o c e n tu r iã o .
neu (C o n t r a H e r e s ia , II 22:3; PG 7:783), os e stu d io so s s u g e rira m q u e
o rela to q u e João faz d o filh o d o oficial é u m a terceira v a ria n te d o
412 O Livro dos Sinais

rela to d o c ria d o o u se rv o d o c e n tu riã o d o q u a l com fo rm a s v a ria n te s


m en o re s a p a re c e m em M t 8,5-13 e Lc 7,1-10. C o m p a re m o s o s d eta-
lhes: (a) O n o m e C a fa rn a u m a p a re c e n o s três. E m João, Jesu s e stá em
C an á, e o oficial rég io d e C a fa rn a u m v em p a ra C an á. E m M a te u s, o
c e n tu riã o e n c o n tra Jesus n a e n tra d a d e C a fa rn a u m . E m L ucas, o cen-
tu riã o está em su a casa em C a fa rn a u m e en v ia a Jesu s d u a s d eleg a-
ções. M u ito s e s tu d io so s creem q u e, o rig in a lm e n te , o re la to jo a n in o foi
lo calizad o e m C a fa rn a u m , e se u desejo e ra c h a m a r a a te n ç ã o p a ra o
p a ra lelism o e n tre esta c u ra e o (p rim eiro ) m ila g re e m C a n á q u e le v o u
a u m a tra n sfe rê n cia d a cena (ver n o ta so b re v. 46). Schnackenburg ,
p p . 63-64, se m o stra fav o rá v e l à su g e stã o fre q u e n te m e n te feita d e q u e
este m ilag re o rig in a lm e n te era a seq u ên cia d e 2,12, na q u a l Je su s foi
a C a fa rn a u m . E n tre ta n to , co m o ele n o ta, a teo ria d e q u e a c u ra foi
tira d a d e u m c e n ário em C a fa rn a u m p o s tu la ria o c a rá te r se c u n d á rio
d e to d a s as in d icaçõ es d e lo c a lid a d e n o s vs. 47 e 51 (‫ ״‬d e c a m in h o "),
52 ("o n te m ") e 54 - n ã o m e ra m e n te 46. (b) U m a p e sso a d e p o sição
ro g a u m fav o r a Jesus. Em am b o s, João e L ucas (7,3), esta p e sso a ou-
vira falar d e Jesus; a m b o s u s a m o v e rb o erõtan , " p e d ir" . E m M a te u s
e L ucas, a p e sso a é u m c e n tu riã o , d e fin itiv a m e n te u m g e n tio , e p ro -
v a v e lm e n te ro m a n o . Em João, ele está a serv iço d e H e ro d e s, e n a d a é
d ito q u e in d iq u e q u e ele n ã o é u m ju d e u . A qui, a tra d iç ã o sin ó tica é a
m ais teo lo g ic a m en te d e se n v o lv id a , p o is o rela to está c o n e c ta d o a u m
d ito so b re a fé fora d e Israel. M a te u s d e s e n v o lv e u o p o n to a in d a m ais
d o q u e L ucas, a d ic io n a n d o os vs. 11-12 acerca d a sa lv a ç ão d e m u ito s
d e s d e o o rie n te ao o c id e n te (= Lc 13,28-30). E n tre ta n to , m e sm o q u e o
relato d e João n a d a ten h a a v e r d e específico com a sa lv a ç ão d o s gen-
tios, v e re m o s q u e este tem a p o d e e sta r re p re s e n ta d o p o r a lu sõ e s su tis,
(c) O fav o r so licitad o se refere a u m m e n in o n a casa d e ste h o m e m . E m
M ateus, é o pais d o c e n tu riã o , p a la v ra q u e significa " m e n in o " , seja no
se n tid o d e "filh o " o u n o se n tid o d e " se rv o m en in o , e scra v o ". L ucas
tam b ém fala d e u m pais (7,7), p o ré m m ais a m iú d e d e u m doulos
(7,2.3.10), q u e c la ra m e n te significa " se rv o m e n in o " . João fala d o huios
d o oficial q u e significa "filh o ", a in d a q u a n d o paidion a p a re ç a n o v. 49,
e talv ez pais em 51 (ver as resp e c tiv a s notas). T em -se s u g e rid o q u e
u m pais o rig in a l e sta v a s u b e n te n d id o d e u m a m a n e ira e m João (com o
"filh o ") e d e o u tra m a n e ira em L ucas ("se rv o m en in o " ). Tal su g e stã o
p re s s u p õ e d e p e n d ê n c ia jo an in a d e u m a fo rm a g re g a d a tra d iç ã o sinó-
tica. M ais p ro v a v e lm e n te , o re la to o rig in a l tiv esse " filh o ", o q u a l na
16 · O segundo sinal em Caná da Galileia: A cura do filho do oficial 413

fo rm a d o re la to u s a d o p o r M a te u s foi v e rtid a em g re g o co m o pais, e


n a fo rm a d o re la to u s a d o p o r João, co m o huios. Foi L ucas ou u m pre-
c u rs o r lu c a n o q u e , n o e stá g io g re g o d a tra d iç ã o , e n te n d e u pais com o
m e n in o s e rv o e co m eço u a falar d e u m doulos. Q u e o u so q u e L ucas
faz d e doulos é s e c u n d á rio é s u g e rid o p e lo fato d e q u e ele a p a re c e
n a q u e le s v e rs íc u lo s (2, 3, 10), o n d e o re la to lu ca n o d ife re d a q u e le d e
M ateu s, (d) O m e n in o está d o e n te . E m M a te u s, o pais jaz p a ra lisa -
d o e m te rrív e l so frim e n to . E m L ucas, o doulos está d o e n te à b eira d a
m o rte . Em João, o huios e stá m al e à b e ira d a m o rte com febre. A q u i,
o re la to d e João é p e rfe ita m e n te p la u sív e l, já q u e a febre explicaria
a c rise m a is fac ilm e n te d o q u e a p a ra lisia d e M ateu s. C o m o salien ta
S o !N a c k e n b u r g , p. 74, M a te u s tem u m a te n d ê n c ia p a ra e n fe rm id a d e
esp ecífica, (e) A re s p o s ta d e Jesus. Em L ucas, Jesu s n a d a d iz, p o rém
se g u e a d e le g a ç ão . E m João, Je su s está in sa tisfe ito com o d esejo ge-
ral p e lo m ira c u lo s o , e a p a re n te m e n te re c u sa o p e d id o . Em M a te u s, o
sig n ific a d o d e 8,7 é in certo : a re s p o s ta d e Je su s p o d e se r a firm a tiv a ,
" eu ire i e o c u ra re i" ; o u p o d e se r u m a p e rg u n ta sarcástica, "T en h o eu
a o b rig a ç ã o d e ir e c u rá -lo ? " Se é a s e g u n d a [h ip ó tese], M a te u s não
está tão lo n g e d e Jo ão q u a n to à id eia. (f) A rép lica d e Jesus. Em João,
o oficial re ite ra s u a sú p lic a com m a is v e e m ê n c ia , p e d in d o q u e Jesus
d esça à su a casa. E m M a te u s, ele re ite ra su a sú p lic a , p o ré m se n te q u e
é in d ig n o d e ter Je su s d e b a ix o d e seu teto. Em L ucas, ele e n v ia u m a
s e g u n d a d e le g a ç ã o in fo rm a n d o a Jesu s d e su a in d ig n id a d e . V er n o ta
so b re " p a la v ra " n o v. 50. ( g ) O m e n in o é c u ra d o à d istâ n c ia . Isto é
a b s o lu ta m e n te c la ro e m João, o n d e o oficial o u v e d e se u s se rv o s so-
b re a c u ra (v er n o ta so b re v. 51), e n q u a n to e stá d e c a m in h o p a ra casa.
Em M a te u s, a in d a q u e n ã o se m e n c io n e a v o lta d o c e n tu riã o à casa,
o m e n in o é c u ra d o e n q u a n to o c e n tu riã o está fa la n d o com Jesus. Em
L ucas, a d e le g a ç ã o e n c o n tra o e sc ra v o b e m , q u a n d o v o lta m à casa d o
c e n tu riã o . (h) A m b o s, João e M a te u s, m e n c io n a m q u e o m e n in o foi
c u ra d o " n a q u e le e x a to n a q u e la h o ra " .
Q u a n d o a n a lisa m o s estes p o n to s, d e sco b rim o s, resp e c tiv a m e n -
te, d ife re n ç a s e sim ila rid a d e s. E n tre tan to , a m a io r p a rte d a s diferen-
ças é su sce tív e l d e exp licação lógica, seja e m term o s d a s v a ria n te s
d e tra d içõ e s in d e p e n d e n te s , o u co m o u m reflexo d a s p e c u lia rid a d e s
d o s e v a n g e lis ta s in d iv id u a is. A s s im ila rid a d e s p a re c e m in d ic a r q u e
o m esm o in c id e n te jaz p o r d e trá s d o s três relato s. Em d e ta lh e s (a , c,
h) e talv e z (e), João se a p ro x im a m ais d e M a te u s d o q u e d e Lucas;
414 O Livro dos Sinais

em (b) e (d), João se ap ro x im a m ais d e Lucas; a in d a em o u tro s d eta-


lhes, João n ão se ap ro x im a d e n e n h u m . Isto n o s lev aria a c o n c o rd a r
com H aenchen e D odd ( Tradition, p p . 194-95) d e q u e o relato d e João
é in d e p e n d e n te d o s d o is relato s sinóticos. O n d e os v ário s relato s dife-
rem , n e m se m p re é possível d e te rm in a r q u a l é a tra d içã o m ais antiga.
Relação c om 0 relato da cura da filha da mulher siro-fenícia. D odd tem
ressaltad o q u e h á m u ito s paralelo s e n tre o relato d e João e o relato en-
co n trad o em M c 7,24-30 e M t 15,21-28 (os paralelo s com a se g u n d a form a
são m en o s notáveis). Estes paralelo s afetam p a rticu la rm e n te os elem en-
tos n o relato d e João q u e n ão foram co m b in ad o s no relato d o filho d o
centurião. P o d em o s salientar os seg u in tes d etalh es relev an tes n o relato
d a m u lh e r siro-fenícia (ver tam b ém n o tas sobre vs. 48,49):

• A m u lh e r o u v e falar d e Jesus q u a n d o ele e n tra e m se u te rritó rio


e sai ao se u e n co n tro .
• Sua filha jaz d e ita d a e m casa (p o ssessa d e d em ô n io ).
• Seu p e d id o p o r so co rro e n c o n tra u m a re sp o sta a v ilta n te d a
p a rte d e Jesu s, ela p o ré m insiste.
• Jesu s lhe fala: " A n d a , vai, q u e o d e m ô n io já d e ix o u tu a filh a".
• Ela v o lta à casa e d e sco b re q u e o d e m ô n io já d e ix o u a m en in a.

O s p a ra le lo s n ã o são b a s ta n te estre ito s p a ra faz e r-n o s cre r qu e


João to m o u d o rela to sin ó tico d a m u lh e r siro-fenícia os d e ta lh e s acres-
cid o s n o rela to d o filho d o oficial régio; m a s ao m esm o te m p o , ap re -
se n ta a lg u m a s se m e lh an ç a s fazer-n o s p e n s a r so b re a p re ssu p o siç ã o
d e q u e o q u a rto e v a n g elista in v e n to u os d e ta lh e s acrescid o s.
A n te s d e te rm in a rm o s e sta d isc u s s ã o d o s p a ra le lo s , d e v e m o s
m e n c io n a r o re la to e m T alB ab Berakoth 34b, q u e re g is tra c o m o G a-
m aliel e n v io u ao R abi H a n in a b e n D o sa a p e d ir so c o rro p e lo filh o
d e G a m a liel q u e e s ta v a d o e n te co m febre. O R abi H a n in a d iss e ao s
e m issário s: "Id e , a feb re já o d e ix o u " ; e o m e n in o foi c u ra d o n a q u e le
ex a to m o m e n to .

Similaridade com 0 primeiro milagre em Caná

A lg u m a s d a s p e c u lia rid a d e s n o re la to d e João d a c u ra d o filh o d o


oficial rég io p o d e m te r su rg id o d o fato d e q u e este re la to d o m ila g re
seg u e m u ito d e p e rto o e sq u e m a d o re la to em 2,1-11. O e v a n g e lista
16 · O segundo sinal em Caná da Galileia: A cura do filho do oficial 415

c h a m a n o ssa a te n ç ã o p a ra a sim ila rid a d e , le m b ra n d o -n o s d u a s v ezes


d o p rim e iro m ila g re e m C a n á (vs. 4 6 ,54), ta n to n o com eço com o n o fi-
n a l d e s te s e g u n d o re la to e m C an á. O e sq u e m a geral d o s d o is m ilag res
é o m esm o : Je su s a c ab a ra d e v o lta r à G alileia; a lg u é m a p a re c e com u m
p e d id o ; in d ire ta m e n te , Jesu s p a re c e re c u sa r o p e d id o ; o in d a g a d o r
p e rsiste ; Jesu s a te n d e ao p e d id o ; isto leva a o u tro g ru p o d e p esso as
(os d isc íp u lo s; os d o m éstico s) a cre r nele. Em n e n h u m rela to so m o s
in fo rm a d o s co m o e x a ta m e n te o m ila g re foi rea liz a d o . H á sim ilarid a-
d e s a té m e s m o n o co n tex to ; p o is, co m o T emple, p. 170, sa lie n ta , os d o is
m ila g re s d e C a n á são os ú n ico s d o is sin a is jo an in o s q u e n ã o ca u sa m
u m d is c u rs o im e d ia to . D ep o is d e c a d a m ilag re em C an á, Jesus sobe
p a ra Je ru s a lé m e e n tra n o tem p lo .
T ais s im ila rid a d e s têm le v a d o os e stu d io so s a su g e rir q u e os dois
re la to s d e C a n á se o rig in a m d e u m a ú n ica trad ição . 4,54 fo rnece u m
s u p o rte p a ra isto , o q u a l c a ra c te riz a a c u ra d o filho d o oficial com o o
s e g u n d o sin al q u e Jesu s rea liz o u . T alv ez tu d o o q u e esta afirm ação
sig n ifica é q u e e ste é o s e g u n d o sin al re a liz a d o sob a co n d ição pe-
c u lia r d e v ir d a Ju d e ia p a ra a G alileia. M as se a afirm a ç ão fo r tom a-
d a a b s o lu ta m e n te , p a re c e ig n o ra r o s sin ais o p e ra d o s e m Je ru sa lé m e
m e n c io n a d o s e m 2,23 e 4,45. (O ú n ico co n h e cim e n to d o s m ilag re s na
G alileia p a re c e e s ta r im p líc ito ta m b é m e m 7,3; v e r tam b é m 6,2). Esta
o b se rv a ç ã o é a e s p in h a d o rsa l d a teo ria d e u m a coleção d e sin ais com o
u m a d a s fo n te s p a ra João (v er In tro d u ç ã o , p. 13ss). Em tal fonte, o
s e g u n d o m ila g re em C a n á teria s e g u id o im e d ia ta m e n te ao p rim e iro ,
in d e p e n d e n te m e n te se 2,12 in te rm e d ia ria o u n ã o e C a fa rn a u m foi o
local o rig in a l d a c u ra . S pitta, Bultmann , Schweizer, W ilkens, Boismard,
T emple e Schnackenburg são os ú n ico s q u e aceitam tal solução.
E ssa teo ria c e rta m e n te é p o ssív el. N ã o a c eitam o s u m a teoria
d a fo n te d a c o m p o siç ão d e João, ao m en o s n o s e n tid o b u ltm a n ia -
no. T o d a v ia , é ra z o á v e l s u p o r q u e h o u v e sse coleções d e m ilag res
n o corpus d o m a te ria l jo a n in o q u e foi re d ig id o p a ra p ro p ic ia r-n o s o
e v a n g elh o . E m u m d o s e stá g io s red a c io n a is, d o is m ilag re s estreita-
m e n te re la c io n a d o s p o d e ría m ter-se s e p a ra d o p a ra fo rm a r o início
e o fim d a S e g u n d a P a rte d o L ivro d o s Sinais, "D e C a n á a C a n á ",
n o e v a n g e lh o (v er E sboço, p. 162-163). Tal p ro cesso p o d e ria ter sid o
m o tiv a d o ta m b é m p o r raz õ e s teológicas; p o is o p rim e iro m ilag re
em C a n á tem u m g ra n d e sig n ific a d o em su a a tu a l p o siç ã o co m o a
c u lm in a ç ã o d o tre in a m e n to d o s d isc íp u lo s, e v e re m o s ab aix o q u e o
416 O Livro dos Sinais

se g u n d o m ilag re e m C an á a d ic io n o u significação à lu z d e s u a a tu a l
p o sição s e g u in d o as a tiv id a d e s d e Jesu s na Ju d e ia e S am aria. O p re -
sen te a rra n jo d e ste s d o is m ilag re s p o d e e sta r re la c io n a d o co m o re-
lato d e 3,22-30. Se, co m o tem o s su g e rid o , e sta cena final p e rte n c e n te
ao B atista foi em o u tra o casião e stre ita m e n te a sso c ia d a co m o m a te ria l
d o c a p ítu lo 1, e n tã o p ro v a v e lm e n te p e rd e u a q u e la asso ciação q u a n d o
a p rim e ira cena em C a n á foi in tro d u z id a p a ra c o m p le ta r o c h a m a d o
d o s d isc íp u lo s e in tro d u z iu a S e g u n d a P arte. N a tu ra lm e n te , tu d o isto
é h ip o tético , e n ã o d e v e d e sv ia r-n o s d e b u sc a r o sig n ific a d o n a a tu a l
seq u ên cia d o ev an g elh o .

O processo redacional de 4,46-54

O s vs. 48-49 oferecem d iv e rsa s d ific u ld a d e s. Eles n ã o se en c o n -


tra m n o rela to sin ó tico d o filho d o c e n tu riã o (n ão o b sta n te , v e r M t 8,7
em e , e o rela to d a m u lh e r siro-fenícia). A reação d e Jesu s ao p e d id o
p o r so co rro p a re c e in d e v id a m e n te a b ru p ta e n ã o se h a rm o n iz a com
seu tra ta m e n to d e o u tro s casos d e d o en ça; aliás, e m 5,6 e 9,6 Jesus
to m a a in iciativ a na o p e ra ç ã o d e u m sinal. A lém d o m ais, n ã o fica
m u ito claro p o r q u e Jesus to m o u a d ia n te ira e o p e ro u o m ila g re a p ó s
esta a p a re n te recu sa. U m a exp licação é q u e Jesus q u e ria e le v a r o ho-
m em d e u m a fé b a se a d a em sin ais v isív eis p a ra u m a fé b a s e a d a na
p a la v ra d e Jesu s, e a ú ltim a p a rte d o v ersíc u lo 50 é c ita d a e m a p o io
d isto . E n tre tan to , o oficial n ã o c h e g o u a c o n so lid a r su a fé n a força d a
p a la v ra d e Jesu s, m as so m e n te d e p o is q u e d e sc o b riu q u e o sin a l real-
m en te foi c o n c re tiz a d o (v. 53). P o rta n to , p a ra ser p reciso , a p e d a g o g ia
n ão v isa v a a c o n d u z ir o oficial a p a rtir d e u m a fé b a se a d a e m sinais;
ao c o n trá rio , v isa v a a g u iá-lo a u m a fé q u e n ã o tiv esse p o r b a se o as-
p ecto p ro d ig io so d o sin al, e sim o q u e o sin al lh e rev e lav a so b re Jesus.
O h o m e m foi g u ia d o , a tra v é s d o sinal, à fé e m Jesu s co m o o d o a d o r d a
v id a (A p ê n d ic e III, p. 831ss).
A ssim , os vs. 48-49 têm u m lu g a r n a teo lo g ia jo an in a d a cen a e se
h a rm o n iz a co m 44-45 em e x p re ssa r a d e sv a lo riz a ç ã o d e u m a fé q u e
tem p o r b a se a su p e rfic ia lid a d e d o m iracu lo so . N ã o o b sta n te , p reci-
sa m e n te p o rq u e estes v ersícu lo s refletem a teo lo g ia jo an in a , tem -se
fo rm u la d o a q u e stã o se p e rte n c e m o u não ao c o n te ú d o o rig in a l d a
cena. Schweizer, H aenchen e Schnackenburg c o n c o rd a m em a v a lia r
os vs. 48-49 co m o u m a ad iç ã o feita p e lo e v a n g elista a u m re la to m ais
16 · O segundo sinal em Caná da Galileia: A cura do filho do oficial 417

g en érico , a q u al, sem estes versículos, seria to talm en te sim ilar ao relato
sin ó tico d o m e n in o d o cen tu rião . C e rta m en te , se 50 se g u iu 47, a n arra-
tiva fluiría m u ito su a v e m e n te e n u n c a p e rd e ría 4 8 4 9 ‫־‬. E n tretan to , o fato
d e term o s u m p a ra lelo à rejeição d e u m p e d id o (48) na n a rra tiv a sinóti-
ca d a [m u lh er] siro-fenícia nos acau tela a ir com m en o s pressa.
B oismard te m o u tra a b o rd a g e m p a ra estes v ersícu lo s. Ele crê q u e
os vs. 4 8 4 9 ‫ ־‬e 51 53‫ ־‬r e p re se n ta m a re d a ç ã o lu can a d o rela to jo an in o ori-
g in al. E ste é o u tro e x e m p lo d e su a teoria: q u e L ucas foi o re d a to r final
d e João, u m a teo ria q u e n ã o a c h am o s c o n v in c e n te q u a n d o ap licad a
e m o u tro lu g ar. U m d e se u s a rg u m e n to s é q u e 48 é o ú n ico ex em p lo
em Jo ão d a c o m b in a çã o "sin a is e p ro d íg io s " , e n q u a n to o c o rre n o v e
v e z e s e m A tos. N ã o o b sta n te , esse a rg u m e n to v o lta-se c o n tra si, p o r-
q u e to d o s o s caso s em A to s e m p re g a m a c o m b in ação fav o ra v e lm en te ,
e n q u a n to João o e m p re g a d e sfa v o ra v e lm e n te . B oismard tam b é m usa
o a rg u m e n to d e q u e e m João Jesus ra ra m e n te ch a m a se u s m ilag res de
" sin a is " , co m o faz n o v. 48 (Jesus m esm o fala d e "o b ras"). E n tretan to ,
ta n to a q u i c o m o em 6,26, as p a la v ra s d e Jesus refletem n ão su a s p ró p ria s
id éias, m a s a m e n ta lid a d e d e seu a u d itó rio . Em referên cia aos vs. 5 1 5 3 ‫־‬,
Boismard e n c o n tra o ato d e fé (53) tau to ló g ico , v isto q u e o oficial já
c re u n o v. 50; m as, co m o já ex p licam o s acim a, isto n ã o p ro ce d e , pois
a fé n o v. 53 é p ro g re ssiv a - a g o ra o oficial c h eg o u , a tra v é s d o sinal, a
crer e m Je su s co m o o d o a d o r d a v id a. A lém d o m ais, a trib u ir 5 1 5 3 ‫ ־‬a
L u cas é n e g lig e n c ia r o fato d e q u e em 53 ("e ta m e n te n a q u e la h o ra")
João c o n c o rd a m ais com a fo rm a m a te a n a d o q u e com a lu can a no
re la to d o c e n tu riã o .
V ale a p e n a c o n sid e ra r a tese q u e B oismard e la b o ra, a sab er, q u e a
co n fissão d e fé n o v. 53 seria m ais n a tu ra l e m u m estág io p o ste rio r d o
C ris tia n is m o d o q u e n o c o n te x to v is u a liz a d o n a n a rra tiv a d o ev a n -
g elh o . Q u a s e se p o d e ria tra d u z i-lo "E le e to d a su a casa se c o n v e rtera m
ao C ristia n ism o " . O s m elh o re s p a ra le lo s se e n c o n tra m em A tos, o n d e
tem o s u m a série d e in d iv íd u o s q u e se to rn a m c re n tes ju n ta m e n te com
(to d as) s u a s casas (10,2; 11,14; 16,15.31.34, e sp ec ialm en te 18,8). T odos
estes in d iv íd u o s são g en tio s, e d isc u tire m o s ab aix o a im p o rtâ n c ia teo-
lógica d isto . N ã o o b sta n te , d ific ilm e n te isto seria b a s ta n te p a ra p ro v a r
q u e L u cas re d ig iu a cena em João; d e fato, há u m a p e q u e n a , p o rém
sig n ificativ a, d ife ren ç a e n tre João e A tos, m esm o a q u i, p o is João usa
oikia p a ra "casa [fam ília]", e n q u a n to A to s u sa oikos. B oismard d iz que,
ao u s a r oikia, L u cas está a d a p ta n d o su a re d a ç ã o ao estilo jo an in o , m as
418 O Livro dos Sinais

tal ex p licação n ã o é v á lid a , já q u e a m b o s, oikos e oikia, a p a re c e m em


João e m ais o u m en o s com a m esm a freq u ên cia.

A implicação teológica da Cena

O s e g u n d o m ila g re e m C a n á te m u m a d u p la sig n ific a çã o : p ri-


m eiro , e n fa tiz a a fé, e a ssim é u m a c u lm in a ç ã o d a s c e n a s p re c e d e n -
tes n a S e g u n d a P a rte d o L iv ro d o s S inais; s e g u n d o , e n fa tiz a o p o d e r
d e Je su s em d a r v id a e a ssim in tr o d u z u m d o s m a is im p o r ta n te s
te m a s d a T erceira P a rte .
O tem a d a Fé. N a p. 164s., sa lie n ta m o s q u e o tem a m a io r n o s ca-
p ítu lo s 2-4 foi a reação d e in d iv íd u o s a Jesus e m te rm o s d e fé. U m
relan ce n o esb o ço q u e d e m o s ali m o stra os d ife re n te s tip o s d e fé exi-
b id o s p e lo s p rin c ip a is p e rso n a g e n s d e ste s relato s. A o d isc u tirm o s a
c o n v e rsã o d o s sa m a rita n o s, v im o s q u e, e n q u a n to Je su s e n c o n tro u
em Jeru salém d escren ça o u fé in a d e q u a d a , ao d e sce r p a ra S a m aria,
os s a m a rita n o s c re e m n a força d e su a p a la v ra . N a G a lile ia , ta n to n o
p rim e iro q u a n to n o se g u n d o re la to e m C an á, u m a c o m p re e n sã o d o s
sin ais d e Jesu s c o n d u z à fé os d isc íp u lo s e a casa d o oficial. É difícil
traçar a tra v é s d e ste s c a p ítu lo s u m a p ro g re ssã o lin e a r n a p e rfe iç ã o d a
fé. Já e x p re ssa m o s d ú v id a s d e q u e a in te n ç ão d e João e ra u m a p ro -
g ressã o n a fé d o s ju d e u s, d e 2-3, a tra v é s d o s sa m a rita n o s (m eio ju-
d e u s) ao s g e n tio s em C aná.
B oismard, com se u s in te resse s lu can o s, vê n e ste s c a p ítu lo s u m a
p ro g re ssã o g eo g ráfica, u m a c o n d e n sa ç ã o d o e sq u e m a d a d ifu sã o d o
C ristian ism o d e A t 1,8 ("V ós sereis m in h a s te s te m u n h a s e m Je ru sa lé m
e em to d a a Ju d e ia e S am aria e a té os c o n fin s d a terra"). V im o s q u e a
cen a sa m a rita n a e m João tev e ecos d a c o n v e rsã o d o s s a m a rita n o s em
A t 8; e n ã o é im p o ssív e l q u e a frase "ele e to d a su a casa se to rn a ra m
cre n tes" seja u m a a lu sã o ao triu n fo d o C ristia n ism o n o s d ia s p o ste -
riores, e sp ec ialm en te e n tre os g en tio s. Se João c o n d e n so u o d e se n v o l-
v im e n to d o s d isc íp u lo s na P rim e ira P a rte d o L ivro d o s S inais, n ã o há
objeção a priori à c o n d e n sa ç ã o sim bólica d a h istó ria d a m issã o cristã
n a S e g u n d a P arte. T o d a v ia, p o d e -se a d m itir q u e as a lu sõ e s so b re em
q u e esta in te rp re ta ç ã o se b aseia são su tis e incertas.
O tem a d a Vida. N a S e g u n d a P a rte h á ta m b é m refe rê n c ia s q u e p o -
d e m ser u m a p re p a ra ç ã o p a ra o tem a d a v id a e n c o n tra d o n o s e g u n d o
m ilag re em C an á. N o d isc u rso com N ic o d e m o s, Jesu s d isse q u e D eu s
16 · O segundo sinal em Caná da Galileia: A cura do filho do oficial 419

d e u o F ilh o ú n ico p a ra q u e to d o o q u e n ele crê te n h a a v id a e te rn a


(3,16.36); n o d iá lo g o co m a m u lh e r sa m a rita n a Jesu s fala d a á g u a q u e dá
v id a . F in a lm en te , n a p re s e n te cena, Jesu s rea liz a u m sin al q u e d á v id a.
O e v a n g e lis ta e n fa tiz a isto, sa lie n ta n d o a p a la v ra "v iv e " n o s vs. 50,51
e 53. N a tu ra lm e n te , n o p e n s a m e n to jo a n in o a v id a (i.e., re sta u ra ç ã o à
s a ú d e - v e r n o ta so b re v. 50) d a d a ao m e n in o p e rm a n e c e n o n ív el d e
u m sin al d a v id a e te rn a q u e Jesu s d a rá d e p o is d e su a ressu rreição . H á
q u e m p e n s e q u e está in sin u a d o n a n a rra tiv a p e la in d icação d e tem p o
em 4,43, " p a s s a d o a q u e le s d o is d ia s" . O p rim e iro m ilag re em C a n á foi
d a ta d o " ao terceiro d ia " , u m a in d icação q u e a lg u n s, com excesso de
im a g in a ç ã o , to m a m co m o u m a a lu sã o à re ssu rre iç ã o ao terceiro dia;
co m u m p o u c o m ais d e ju stificativ a, sa lie n ta -se q u e no s e g u n d o m ila-
g re e m C a n á a " v id a " é re s ta u ra d a ao terceiro dia. E n tre tan to , suspei-
ta m o s q u e este é u m e x e m p lo o n d e o in té rp re te se m o stra m ais enge-
n h o s o d o q u e o e v a n g elista ; p o is, p a ra se r p reciso , " p a s s a d o aq u eles
d o is d ia s " é d a d o p e lo e v a n g elista co m o a in d icação d a p a rtid a de
S am aria, e n ã o p rim a ria m e n te co m o a d a ta d a c u ra d o m en in o .
Se n a S e g u n d a P arte h o u v e a lg u m a p re p a ra ç ã o p a ra o tem a vida
d o s e g u n d o m ilag re em C aná, a p rin c ip al tensão d a q u e le tem a n ão é
co m o u m a cu lm in ação d o q u e p rec e d e u , m as com o u m a p re p a ra ç ã o d o
q u e está p o r vir. F euillet, art. cit., tem a p re se n ta d o a rg u m e n to s fortes
p a ra fazer 4,46-54 a in tro d u ç ã o à T erceira P arte n o Livro. Ele salienta
q u e a S e g u n d a P arte, a b erta n o cap ítu lo 2 com d u a s ações, u m a em
C an á, a s e g u n d a em Jerusalém , a q u al form o u o tem a e p ro p ic io u as-
s u n to s p a ra os d isc u rso s q u e se g u ira m n o s cap ítu lo s 3-4,42. A ssim , no
início d a T e rce ira P a rte , F euillet ju n ta o se g u n d o m ilag re em C aná à
c u ra d o p aralítico em Jeru salém p a ra fo rm a r o u tro p a r C aná-Jerusalém
q u e fo rm a o tem a d o d iscu rso n o resta n te d o cap ítu lo 5. Ele n o ta qu e
o tem a d a v id a e m 4,50.51.53 é re to m a d o no d iscu rso em 5,21 ss. A lém
d o m ais, c a d a m ilag re em C an á q u e a tin g e u m clím ax na fé (3,11; 4,53)
oferece u m d ram á tic o co n traste p o r p a rte d o s ju d e u s (2,18; 5,16).
A p a rte p o sitiv a d a a rg u m e n ta ç ã o d e F euillet é c o n v in cen te. Bom
p e d a g o g o q u e ele é, o e v a n g e lista in tro d u z iu n e ste se g u n d o m ilag re
em C a n á o tem a d a v id a , n ã o só p o rq u e ele se rá o tem a d o c a p ítu lo 5,
m as ta m b é m p o rq u e a p a re c e rá n o s c a p ítu lo s s u b se q u e n te s d a P arte
T rês (0 pão da vida, e m 6; a água viva, e m 7,37-39; a luz da vida, em
8,12; ta m b é m 8,51; 10,10.28). T o d av ia, crem o s q u e, e s tru tu ra lm e n te ,
o e v a n g e lis ta p re te n d ia q u e 4,46-54 se rv isse p rim a ria m e n te com o a
420 O Livro dos Sinais

conclusão à T e rce ira P a rte . A forte ên fase d e q u e este é o s e g u n d o m i-


lag re em C an á e as sim ilarid ad es q u e ele tem com o p rim e iro m ilag re
em C aná faz d ele u m a inclusão óbvia com 2,1-11, e in clu são é o m eto-
d o jo an in o d e d e lim itar as d istin tas seções. Já ex p la n a m o s com o a m es-
m a cena p o d e serv ir com o a conclusão d e u m a p a rte e a in tro d u ç ã o d a
seg u in te (ver p. 164s.).

BIBLIOGRAFIA

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()η. IV, 46-54)", RB 69 (1962), 185-211.
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TEMPLE, S., "The Two Signs in the Fourth Gospel", JBL 81 (1962), 169-74.
O LIVRO DOS SINAIS

T erceira P arte: J e s u s e a s p rin c ip a is fe s ta s d o s ju d e u s


ESBOÇO
TERCEIRA PARTE: JESUS E AS PRINCIPAIS FESTAS DOS JUDEUS
(caps. 5-10, introduzidos por 4,46-54)

(4,46-54: Jesus dá vida ao filho do oficial em Caná)

A. 5: JESUSE O SÁBADO
Jesus realiza obras que som ente Deus pode fazer no Sábado.

(1-15) O dom da vida [cura] ao homem no tanque de Betesda (§17)


(16-47) Discurso explicando os dois sinais precedentes que
deram vida:

16-18: Introdução - direito de Jesus de trabalhar no sá-


bado. (§ 18)
19-25: Primeira Divisão - O trabalho duplo de Jesus no
sábado, a saber, dar vida e julgar - escatologia
realizada (§ 18)
26-30: Duplicata da Prim eira Divisão - escatologia final
(§ 18)
31-47: Segunda Divisão - Jesus defende sua reivindica-
ção diante dos judeus (§ 19):
(a) 31-40: Lista de testem unhas em prol da rei-
vindicação de Jesus.
(b) 41 -47: A taque à raiz da incredulidade judaica
e apelo a Moisés.

B. 6: JESUS NA FESTA DA PÁSCOA


Jesus dá um pão que substitui o m aná do Êxodo.

(1-15) A multiplicação dos pães. (§ 20)


(16-21) C am inhando sobre o Mar da Galileia. (§ 21)
(22-24) Transição para o Discurso do Pão da Vida - A m ultidão
vai a Jesus. (§ 22)
(25-71) Discurso sobre o Pão da Vida, explicando a multiplicação:
25-34: Prefácio - Pedido por p ão /m an á. (§ 23)
Esboço 423

35-50: Corpo do Discurso - O Pão da Vida é primaria-


mente revelação de Jesus; secundariamente, insi-
nuações eucarísticas. (§ 24)
51-58: Duplicata do Discurso - O Pão da Vida é a
Eucaristia. (§ 25)
59: Nota geográfica sobre o cenário do Discurso. (§ 25)
60-71: Epílogo - Reações ao Discurso. (§ 26)

C. 7-8: JESUS N A FESTA DOS TABERNÁCULOS


Figurativam ente, Jesus substitui as cerimônias da água e da luz
na festa;
disputas entre Jesus e os judeus.

7 (1-13) Introdução - Jesus subirá à festa? (§ 27)

(14-36) Cena I - Discurso enunciado durante a festa (§ 28):


14-24: Direito de Jesus ensinar:
retom ada da questão sabática.
25-36: Origens de Jesus;
seu retom o ao Pai.

(37-52) Cena II - Jesus no último dia da festa (§ 29):


37-39: Jesus se proclam a a fonte de água.
40-52: Reações da multidão e do Sinédrio.

[7.53-8.11: A Mulher Adúltera - uma interpolação


joanina. (§ 30)1

8 (12-59) Cena III - Miscelâneas de discursos:

(a) 12-20: Um discurso junto a sala do tesouro do templo:


Jesus a luz do mundo e o testemunho que ele dá
de si mesmo. (§ 31)
(b) 21-30: Ataque à incredulidade dos judeus e a questão
de quem é Jesus. (§ 32)
(c) 31-59: Jesus e A braão (§ 33):
31-41a: Abraão e os judeus.
41b-47: O verdadeiro pai dos judeus.
48-59: As reivindicações de Jesus; com paração
com Abraão.
424 O Livro dos Sinais

9-10 21: CLÍM AX NA FESTA DOS TABERNÁCULOS

9 (1-41) Com o um sinal de que ele é a luz, Jesus dá vista a um


cego de nascença. (§ 34)

1-5: Cenário.
6-7: Cura milagrosa.
8-34: Interrogatórios ao cego:
8- 12: Interrogando vizinhos e familiares.
13- 17: Interrogatório preliminar da parte dos
fariseus.
18-23: Parentes do homem interrogados pelos
judeus.
24-34: Segundo interrogatório ao hom em pelos
judeus.
35-41: Jesus leva o cego àquela visão espiritual que é a fé;
os fariseus estão em pedernidos em sua cegueira.

10 (1-21) Jesus como a porta das ovelhas e o pastor - um ataque


figurativo aos fariseus. (§ 35)

1-5: Parábolas extraídas da vida pastoril:


I- 3a: Parábola do correto acesso às ovelhas.
3b-5: Parábola da intimidade de pastor e ovelhas.
6: Reação às parábolas.
7-18: Explicação das parábolas:
(a) 7-10: Jesus é a porta:
7-8: a porta pela qual o pastor se aproxim a das
ovelhas.
9- 10: a porta pela qual as ovelhas saem à pasta-
gern.
(b) 11-18: Jesus é o bom pastor:
II- 13: o pastor que dá sua vida pelas ovelhas.
14- 16: o pastor que conhece intimamente suas
ovelhas.
17-18: o tema da doação de sua vida.
19-21: Reação às explicações.
Esboço 425

D. 10,22-39: JESUS NA FESTA DA DEDICAÇÃO (§ 36)


Jesus com o o Messias e Filho de Deus;
Jesus é consagrado no lugar do altar do templo.

(22-31) Jesus com o o Messias:


22-24: Cenário; a pergunta: "Jesus é o M essias?"
25-30: A resposta de Jesus.
31: Reação - tentativa de apedrejar Jesus.

(32-39) Jesus com o o Filho de Deus:


32-33: Transição; a pergunta se Jesus está se fazendo Deus.
34-48: A resposta de Jesus.
39: Reação - tentativa de prender Jesus.

APAREN TE CON CLUSÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE JESUS (§ 37)

10,40-42: Jesus se retira ao outro lado do Jordão onde seu minis-


tério começou.
17. JESUS E O SÁBADO:
- A CURA EM BETESDA
(5, 1 ‫ ־‬15 )

O dom da vida [cura] ao homem no tanque

5 1M ais ta rd e , p o r o c a siã o d e u m a festa d o s ju d e u s , Je su s s u b iu a


Je ru sa lé m . 2O ra , e m J e ru sa lé m , ju n to ao T a n q u e d a s O v e lh a s, h á u m
lu g a r e m h e b ra ic o c h a m a d o B etesd a. S eu s cin co a lp e n d r e s 3e s ta v a m
a p in h a d o s d e p e s so a s d o e n te s q u e e s ta v a m d e ita d a s ali, c eg o s, co x o s e
in v á lid o s [e s p e ra n d o p e lo m o v im e n to d a s á g u a s]. 141 5E n c o n tra v a -s e
u m h o m e m q u e ali v iv e u d o e n te h á trin ta e o ito a n o s. 6Je su s sa b ia
q u e ele v iv e ra e n fe rm o p o r lo n g o te m p o ; a ssim , q u a n d o o v iu d e i-
ta d o ali, lh e d isse: " T u q u e re s se r c u ra d o ? " 7" S e n h o r" , r e s p o n d e u o
h o m e m e n fe rm o , " n ã o te n h o n in g u é m q u e m e faça m e r g u lh a r no
ta n q u e , q u a n d o a á g u a é a g ita d a . M as, e n q u a n to e u v o u , d e sc e o u tro
a n te s d e m im " . 8Je su s lh e d isse: " L e v a n ta -te , to m a te u le ito e a n d a " .
9O h o m e m foi c u ra d o im e d ia ta m e n te , e to m o u seu le ito e p a s s o u
a a n d a r.
O ra, a q u e le d ia era sá b ad o . 10P o rta n to , os ju d e u s p a s sa ra m a in d a -
g a r d o h o m e m q u e h a v ia sid o c u ra d o : "É sá b a d o , e n ã o te é p e rm itid o
c a rre g a r e sse leito p o r aí". 11Ele e xplicou: "Foi o h o m e m q u e m e c u ro u
q u e m e disse: T o m a teu leito e a n d a '" . 12"E sta p e sso a q u e te d isse q u e
a to m a sse e a n d a sse ," p e rg u n ta ra m , " q u e m é ela?" 13M as o h o m e m
cuja s a ú d e fora re s ta u ra d a n ã o tin h a id eia d e q u e m era, p o is, g raç a s à
m u ltid ã o d a q u e le lu g a r, Jesu s se retiro u .

6,8: d is s e ; 14: e n c o n tr o u . No tempo presente histórico.


17 · Jesus e o Sábado: A cura em Betesda 427

14M ais ta rd e , Jesu s o e n c o n tro u n o s rec in to s d o te m p lo e lh e disse:


" L e m b ra -te a g o ra q u e fo ste c u ra d o . N ã o p e q u e s m ais, m a s tem as qu e
alg o p io r te su c e d a " . 15O h o m e m se foi e in fo rm o u ao s ju d e u s q u e foi
Je su s q u e m o c u ro u .

NOTAS

5.1. uma festa dos judeus. O Codex Sinaiticus diz "a festa", o que provavelmente
era um a referência ou à festa dos Tabem áculos (B ernard ) ou à Páscoa
(L agrange ); m as a evidência para a om issão do artigo é esmagadora.
Uma tradição antiga na igreja grega identifica esta festa sem nome como
sendo o Pentecoste, um ponto de vista aceito por alguns estudiosos mo-
dernos (ver F.-M. B raun , RThom 52 [1952], 263-65). Isso explicaria as
referências a Moisés no discurso (5,46-47); pois, naquele processo que
conectava as festas originalmente agrícolas a eventos na história de Israel,
a Festa das Sem anas (Pentecoste) era identificada com a celebração da
entrega da Lei a Moisés no M onte Sinai. Não estam os certos quão antiga
é esta identificação; para um a discussão completa que favorece um a data
antiga, ver B. N oack , "The Day of Pentecost in jubilees, Qumran, and Acts",
Annual of the Swedish Theological Institute 1 (1962), 72-95. Não obstante, a
única identificação dada em João é que a festa foi num sábado (5,9); ou-
tras identificações já não são de interesse senão secundário.
a jerusalém. Os judeus eram obrigados a ir a Jerusalém para as três principais
festas: a Páscoa, Pentecoste e Tabemáculos, daí as sugestões acima. Jesus es-
teve a última vez em Jerusalém para a Páscoa (2,13); e se ele voltou em maio
para Galileia através de Samaria (ver nota sobre 4,35: "campos... maduros"),
identificar esta festa como Pentecoste implicaria uma estada muito curta em
Galileia. Naturalmente, esta é uma questão aberta: a de averiguar até que
ponto a sequência cronológica foi preservada nestas narrativas.
2. junto ao Tanque das Ovelhas. A evidência m anuscrita é m uito confusa; os
m elhores m anuscritos trazem estas palavras, mas com duas possíveis
interpretações: (a) Em Jerusalém, junto a Ovelhas, há um tanque com o
nom e hebreu... (b) Em Jerusalém , junto ao Tanque das Ovelhas, há um
tanque que se chama "em hebreu"... Cada redação parece exigir que su-
pram os a palavra que foi deixada subentendida. Nós optam os pela se-
gunda, suprindo o substantivo geral "lugar". Os que optam pela primeira
interpretação costum eiram ente suprem "porta", pois temos conhecimen-
to de um a Porta das Ovelhas junto ao templo. Haveria m enos violência
428 O Livro dos Sinais

ao grego em ambas as interpretações suprir "tanque", indicando assim


dois tanques: o Tanque das Ovelhas e o Tanque de Betesda. Em qualquer
caso, joão está falando da área a nordeste do templo, por onde as ovelhas
eram conduzidas a Jerusalém para o sacrifício; e o nome desta região e /
ou seu tanque era Betesda.
chamado. No original, "em hebraico". Os escritos joaninos frequentemente
mencionam os nomes semíticos de lugares (inclusive em Ap 9,11; 16,16).
"H ebreu" é usado livremente, às vezes para nomes que são aram aicos.
Betesda. Na tradição manuscrita, o nome aparece em várias formas:
(a) "Betesda" tem a atestação mais forte, m as isto pode ser um a confusão
de copista com a cidade de Betsaida junto ao M ar da Galileia. (b) "Be(t)
zatha" se encontra nos Códices Sinaiticus e Bezae. Josefo ( War 2.15.5;
328) fala de uma quadra da cidade Bezetha, junto à esquina nordeste da
área do templo. Igualmente E usébio Onomasticon (GCS 11', p. 58:21-26 -
"Bezatha). (c) "Bethesda", encontrada no Codex Alexandrinus, tem
a atestação mais fraca. O fato de que ela pode ter o significado simbó-
lico de "casa da misericórdia" tem levado a suspeitar com o um a con-
jetura de copista. Adicionamos agora a evidência do rolo de cobre en-
contrado em Qumran (3Q15 11,12-13; 57) e publicado por J. T. M ilik
em Discoveries in the Judean Desert, III (1962), p. 271. Segundo a tradu-
ção de M ilik, na área geral do templo, sobre a colina oriental de Jeru-
salém, um tesouro (imaginário) foi enterrado "em Bet 'Esdatayin, no
tanque à entrada para sua bacia m enor". O nom e da região ou tanque
parece então ter sido "Bet ,E sdâ” ("casa da corrente" - raiz 'sd); apa-
rece no dual no rolo por haver duas nascentes. "B ethesda" parece ser
uma versão grega acurada da forma singular do nome, enquanto M ilik
sugere que "B ezatha" é a versão do plural aram aico enfático do nome
("Bet 'Esdãtâ"). Tudo isto é plausível, mas, infelizmente, a leitura não é
inteiramente certa (ver CBQ 26 [1964], 254).
Neste século, o tanque descrito em João foi descoberto e escavado em
Jerusalém na propriedade dos White Fathers perto da Igreja de Santa
Ana (ver Jfremias, B agatti). O tanque era de forma trapezoidal, 50-70 me-
tros de largura por 96 m etros longitudinal, dividido por um a partição
central. Havia colunas dos quatro lados e na partição - assim, as "cinco
partições" de João. Escadas nos cantos permitiam descer para os tanques.
Nesta área íngreme, a água de drenagem do subsolo; um pouco dela,
provavelmente, de nascentes intermitentes.
3. inválidos. Isto é, com membros atrofiados. O fato de que as pessoas jazem
deitadas do lado de fora dos pórticos indica que esta não é uma cena que
tinha lugar no inverno.
17 · Jesus e o Sábado: A cura em Betesda 429

[esperando... águas]. Esta cláusula se encontra na tradição ocidental (Bezae,


Koridethi, OS, Vulgata), e poderia ser original. B ernard sugere que sua
adição foi propiciada pelo v. 7, m as isso parece improvável.
[41. O C odex A lexandrinus e o m anuscrito grego posterior têm um versí-
culo om itido por todas as prim eiras testem unhas, inclusive as que têm
a cláusula adicional no v. 3. Ele diz: "Porque [de tem po em tempo]
um anjo do Senhor costum ava descer no tanque, e a água era agitada.
Por conseguinte, o prim eiro que entrasse [após a agitação da água] era
cu rad o de toda e qualquer enferm idade que tivesse". No ocidente, T er-
tuliano (c. de 200 d.C.) e C risóstomo (cf. de 400) são os prim eiros dos
escritores gregos, que dão indícios de haver conhecido esse versículo.
Q ue é um a glosa, indica-se não só pela pobre atestação textual, mas
também pela presença de sete palavras não joaninas em um a só sen-
tença. Esta antiga glosa, contudo, pode refletir com bastante exatidão
um a tradição popular sobre o tanque. O borbulho da água (v. 7), talvez
causado por um a corrente interm itente, supunha-se que tivesse poder
cu rad or; e é bem provável que isto foi atribuído, na im aginação popu-
lar, a poderes sobrenaturais. Os m aom etanos da Palestina, nos tempos
m odernos, têm tradições acerca dos jinni [entidade maléfica[ de uma
determ inada fonte.
5. doente há trinta e oito anos. Não se diz que ele estivesse no tanque todo esse
tempo. A sugestão de que o número é simbólico, p. ex., os 38 anos de
peregrinação em Dt 2,14, é desnecessária. Que uma doença não era tem-
porária é am iúde indicado nos milagres neotestamentários: a mulher de
Lc 13,11 perm aneceu doente por 18 anos (também At 4,22; 9,33); era uma
das maneiras de sublinhar o desespero do caso.
6. Jesus sabia. O conhecimento extraordinário que Jesus tinha dos homens é
um tema joanino (2,25).
0 viu. Os sinóticos também usam a descrição de Jesus vendo alguém (e
explícita ou implicitamente se apiedando dele) como um meio de intro-
duzir um milagre (Lc 7,13; 13,12).
7. agitada. Talvez pelo fluir de uma corrente intermitente.
8. Levanta-te... anda. A ordem de Jesus é a mesma que aquela dada ao paralí-
tico descido através do teto em Mc 2,11.
leito. Tanto João com o M arcos (na cena do paralítico) usam krabbatos, a
palavra do koinê vulgar para estrado ou colchão usado pelos pobres
com o leito; na m esm a cena sinótica, M ateus e Lucas usam kliríê ou
klinidion.
9. imediatamente. Ênfase sobre o efeito imediato do poder de Jesus não é in-
com um na tradição sinótica; é explícita em Lc 13,13, implícita em Lc 7,15.
430 O Livro dos Sinais

10. os judeus. Um caso óbvio onde este termo (ver Introdução, p. 75s.) não
significa o povo judeu, visto que o (ex) paralítico certam ente era ele mes-
mo um judeu.
carregar esse leito. C arregar coisas de um lugar para outro é a última das 39
obras proibidas no tratado da Mishnah sobre o Sábado 7:2; carregar leitos
vazios é implicitamente proibido em 10:5.
12. te disse que a tomasse. A cura m aravilhosa foi perdida de vista; para as
autoridades, só é importante a violação do sábado.
13. Jesus se retirou. Especialmente em M arcos, é característico de Jesus evitar
cham ar a atenção pública para seus milagres (7,33; 8,23).
14. recintos do templo. O tanque ficava justamente na parte noroeste da área
do templo - outra indicação do conhecimento que o evangelista tinha de
Jerusalém nos dias anteriores à destruição romana.
Não peques mais. Em outro lugar, Jesus não aceita a ideia de que, só porque
um homem estava enfermo ou sofrendo, era um sinal de que havia co-
metido pecado (Jo 9,3; Lc 13,1-5). N ão obstante, num nível mais geral, ele
indica uma conexão entre pecado e sofrimento. (Mais tarde a teologia di-
ria que o sofrimento é uma consequência do pecado original e que alguns
sofrimentos são a pena do pecado concreto e pessoal). Os milagres de
cura de Jesus nos evangelhos sinóticos eram parte de seu ataque ao reino
pecaminoso de Satanás (ver nosso artigo "The Gospel Miracles", BCCT,
pp. 184-201). No relato sinótico do paralítico baixado pelo teto, o poder
de perdoar pecados é o ponto primordial da narrativa.

COMENTÁRIO

V er p. 422 p a ra a d iv isão d o c ap ítu lo 5. E m bora sinal e d isc u rso ten h a m


a q u i co m o tem a u n ificad o r o S ábado, a u n id a d e n ã o é tão rig o ro sa a
p o n to d e g a ra n tir q u e sin al e d iscu rso estiv essem se m p re u n id o s.

A v a li a ç ã o d a tr a d iç ã o

E x eg eticam en te, a q u e stã o d a p o ssib ilid a d e d o m ira c u lo so não


n o s co n cern e aq u i. In d a g a m o s a p e n a s se o re la to jo a n in o é o u não
u m a v a ria n te d e u m a n a rra tiv a sinótica; e se n ã o é, se lev a a m arc a da
tra d içã o p rim itiv a .
C o m o já in d icam o s n a s n o tas so b re os vs. 8 e 14, o relato jo an in o
tem a lg u n s p aralelo s v erb ais com o relato sinótico d a c u ra d o p aralítico
17 · Jesus e o Sábado: A cura em Betesda 431

em C a fa rn a u m , e sp e c ia lm e n te co m o se e n c o n tra em Mc 2,1-12. N ão
o b sta n te , a p a rte o fato b ásico d e q u e a p e sso a e n fe rm a é u m h o m em
q u e n ã o p o d e c a m in h a r e q u e Jesus lhe m a n d a q u e se lev an te, p e g u e
seu leito e a n d e (u m a o rd e m n ã o in e s p e ra d a p a ra u m p a ra lític o cura-
do), os d o is re la to s são b em d iferen tes:

• em cen ário : C a fa rn a u m vs. Jeru salém ;


• e m d e ta lh e s locais: u m h o m e m lev a d o a u m a casa p o r seus
a m ig o s e a b a ix a d o p e lo teto vs. U m h o m e m d e ita d o ao lad o d e
u m tan q u e ;
• e m ênfase: u m m ila g re ilu stra tiv o d o p o d e r d e Jesus d e c u ra r o
p e c a d o vs. u m a c u ra com a p e n a s u m a referên cia in cid e n ta l ao
p e c a d o (14).

É v e rd a d e q u e e m M a te u s a c u ra d o p a ra lític o (9,1-8) se g u e logo


a p ó s a c u ra d o m e n in o d o c e n tu riã o (8,5-13), ju sta m e n te co m o a cu ra
em B etesd a, em João, se g u e o in c id e n te d o filho d o oficial régio; m as
isto re a lm e n te n ã o é sig n ificativ o , u m a v ez q u e M arco s e L ucas têm
u m a o rd e m p a ra estes rela to s b e m d ife re n te d a d e M ateu s. P o rta n to ,
o e s tu d o m in u c io so d o p ro b le m a , d e H aenchen, p ro v a v e lm e n te esteja
certo em s u s te n ta r q u e o re la to jo an in o n ã o se refere ao m esm o inci-
d e n te q u e o re la to sinótico.
O relato q u e João faz d a cu ra é plausível com o tradição prim itiva
sobre Jesus? O cenário nos vs. 1-3 é u m p o u q u in h o m ais elab o rad o do
que o u s u a l p a ra relatos d e cura; to d av ia, os sinóticos, com o em Mc 2,1-2,
não h e sita m d a r in tro d u ç õ es m ais e la b o rad a s q u a n d o se faz necessário
p a ra o d e se n v o lv im e n to d a n a rra tiv a . R ealm ente, a in tro d u ç ã o joanina
é d e im p o rtâ n c ia p a ra a tram a, com o v em o s na referência ao ta n q u e no
v. 7. O s d e ta lh e s factuais e n c o n tra d o s n a in tro d u ç ão , com o já salienta-
m os n a s n o tas, são m u ito exatos. R evelam u m co n h ecim en to d e Jerusa-
lém q u e m ilita c o n tra u m a o rig em ta rd ia n ão p alestin a d o relato.
A fo rm a e m q u e se p r o d u z a c u ra , n o s vs. 5-9, lem b ra a n a rra tiv a
sin ó tica o rd in á ria d e c u ra (p ara d e ta lh e , v e r D odd, Tradition, p. 175
- n o ssa s n o ta s so b re vs. 5, 6, 9); e h á ta m b é m p a ra le lo s sin ó tico s nos
vs. 13 e 14. D iscu tirem o s abaixo o p ro b le m a p ro p o sto p o r 9b-13; m as
em g eral n a d a h á q u e n o s p e rs u a d a d e q u e a n a rra tiv a básica q u e subjaz
os vs. 1-15 seja u m a criação d o e v a n g elista . O re la to d a c u ra p arece
o rig in a r-se d a tra d iç ã o p rim itiv a so b re Jesus.
432 O Livro dos Sinais

É v e rd a d e q u e o h o m e m aleijad o o u p a ra lític o se a p re s e n ta co m o
u m a p e sso a m ais d e sta c a d a q u e o c o stu m e iro n a s n a rra tiv a s sin ó ti-
cas. T o d av ia, d ificilm en te se p o d e falar d e u m e ste re ó tip o jo an in o ;
em su a o b tu sid a d e , este h o m e m é, p o r ex em p lo , m u ito d ife re n te d o
cego p e rsp ic a z a q u e m Jesu s cu ra n o c a p ítu lo 9. O s tra ç o s d e p e rso -
n a lid a d e q u e ele rev ela n ã o se rv e m a p ro p ó sito s teo ló g ico s p a rtic u -
lares e são tão v e ro ssím e is q u e p o d e ría m ta m b é m te r sid o p a rte d a
tra d içã o p rim itiv a . Se a d o e n ç a d o p a ra lític o n ã o fosse tão trág ica,
p o d e ría q u a se d iv e rtir-se a n te a falta d e im a g in a ç ã o d o h o m e m em
a p ro x im ar-se d a s á g u a s c u ra tiv a s. Seu a m u a d o re s m u n g o so b re os
" e s p e rta lh õ e s" q u e o p re c e d ia m à á g u a trai u m a crô n ica in c a p a c id a -
d e d e a sse n h o re a r-se d a o p o rtu n id a d e , u m a p e c u lia rid a d e refletid a
o u tra v ez em su a re sp o sta in d ire ta à o ferta d e c u ra d a d a p o r Jesus.
O fato d e q u e d e ix a ra se u b e n fe ito r e sc a p a r sem n e m m esm o p e rg u n -
tar seu n o m e é o u tro e x em p lo d e o b tu sid a d e . N o v. 14, é Jesu s q u e m
to m a a in iciativ a d e e n c o n tra r o h o m em , e n ã o vice-versa. F in a lm en -
te, ele p a g a seu b e n fe ito r n o tific a n d o -o a "o s ju d e u s" . Isto n ã o é u m
ex em p lo d e traição (com o T eodoro d e M o p su éstia su g e riu : In Jo. [Si-
ríaco]; C SC O 116:73) se n ão d e traço d e in g e n u id a d e a to d a a p ro v a .
U m c a rá te r tal co m o este p o d e ria ter sid o in v e n ta d o , p o ré m se e sp e ra -
ria v e r m o tiv aç ã o m ais clara d e tal criação.

A questão do tema do sábado

Q u e a v io lação d o s á b a d o é o p rin c ip a l tem a d o m ila g re c o m o se


acha re g is tra d o a g o ra é ó b v io ta n to à lu z d o d isc u rso q u e se g u e q u a n -
to d o lu g a r d o c a p ítu lo 5 na T erceira P a rte d o L ivro d o s S inais, p a rte
q u e tra ta d a s festas ju d aicas. In d a g u e m o s se este tem a d o s á b a d o p e r-
ten ceu à n a rra tiv a o rig in al d a c u ra , o u se foi p o sto a í m ais ta rd e p a ra
fazer a n a rra tiv a d a cu ra u m a in tro d u ç ã o a p ro p ria d a a o d isc u rso .
N ã o se chega a u m a re sp o sta fácil p a ra a q u e stã o . Q u e Je su s vio-
lou as re g ra s d o s escrib as so b re a o b se rv â n c ia d o sá b a d o , é u m d o s
m ais certo s d e to d o s os fatos h istó rico s so b re se u m in isté rio . A lu z d a
ev id ên cia sin ó tica p a re c e ría q u e ele o p e ro u m ilag re s d e lib e ra d a m e n te
n o sá b a d o co m o os casos c o m p ro v a m fo rn e c e n d o -lh e u m a o p o rtu n i-
d a d e d e p ro c la m a r su a relação com a Lei. P o rta n to , n ã o h á d ific u ld a d e
a priori so b re a p re se n ç a d o tem a sa b á tic o n a fo rm a o rig in a l d a n a rra -
tiva d e João so b re a cu ra. M as há u m a d ific u ld a d e n a m a n e ira c o m o o
17 · Jesus e o Sábado: A cura em Betesda 433

re la to e m João é c o n ta d a . O s vs. l-9 a c o n tê m to d o o rela to d o m ila-


gre; e n tã o , n o fin al d o v. 9, o tem a sab ático é in tro d u z id o q u a se com o
u m a reflex ão p o ste rio r. (N os m ilag re s sin ó tico s n o sá b ad o , o fato de
o s á b a d o s e r m e n c io n a d o n o com eço d a n a rra tiv a - Mc 3,2; Lc 13,10;
14,1). P o d e se r q u e e ste seja u m caso d e técnica jo an in a p e c u liar, p o is o
m esm o p ro c e d im e n to é s e g u id o em 9,14, o n d e so m o s in fo rm a d o s qu e
é s á b a d o s o m e n te m ais ta rd e n o relato.
N ã o obstan te, H aenchen d iscute q u e todo o p arág rafo d os vs. 9b-13
c o n stitu i u m a a d iç ã o se cu n d á ria à n a rra tiv a d a cura. É v e rd a d e q u e a
p rim e ira p a rte d o v. 9 se v in cu la u n ifo rm e m e n te com o v. 14, e a his-
tó ria seria b e m co m p leta sem os vs. 9b-13. E n tretan to , q u e significado
esta n a rra tiv a d e c u ra teria sem os vs. 9b-13, e p o r q u e a p assag em
seria p re s e rv a d a n a trad ição ? N a rra tiv a s sinóticas sim ilares q u e não
têm tem a sab ático g e ra lm e n te ilu stra m a fé d o h o m em e n ferm o ou d os
e sp ec tad o re s, u m a fé q u e su scita o p o d e r m iracu lo so d e Jesus. M as não
h á tal fé ex ib id a n o relato d e João. Ele p o d e ria serv ir a p e n a s com o um a
m an ifestação d a p ie d a d e d e Jesus, talv ez le m b ra n d o a ressu rreição do
filho d a v iú v a em Lc 7,11-17; m as, g e ra lm e n te, n este tipo d e relato, a
co m p aix ão d e Jesus é m ais exp licitam en te expressa. D iriam os quase
q u e o tem a sab ático é necessário p a ra d a r significação a este relato.
A e stre ita a n a lo g ia d e ste rela to jo an in o com a n a rra tiv a lu can a da
cu ra d a m u lh e r p a ra lític a (Lc 13,10-17) ta m b é m su g e re q u e o tem a sa-
b ático era p a rte d o re la to o rig in al. E m L ucas, Jesus c u ra u m a m u lh e r
q u e e stiv e ra e n fe rm a d u r a n te d e z o ito an o s, sem q u a lq u e r ex p ressão
d e fé d e su a p a rte . A p ó s a c u ra , o chefe d a sin a g o g a ficou in d ig n a d o
só p o rq u e Jesus v iolara o sábado. Isto leva a u m a sentença de Jesus sobre
o sáb ad o , ju stam en te com o o relato d e João leva a u m discurso sobre o
sábado. N ã o o b sta n te , m esm o q u e e stas raz õ e s n o s lev em a crer no
c a rá te r o rig in a l d o tem a sabático, H aenchen p o d e e sta r em p a rte cor-
reto em q u e os vs. 9b-13 p o d e ría m ser u m a expansão p o ste rio r d o tem a
sabático.

A possibilidade de uma referência batismal

D e sd e a p a trístic a (T ertuliano, C risóstomo), tem -se su g e rid o u m


tem a b a tis m a l p a ra este relato: este h o m em , a q u e m as á g u a s d o ju-
d a ísm o n ã o p u d e ra m c u ra r, foi c u ra d o p o r C risto. J u n ta m e n te com
o re la to d e N ic o d e m o s n o c a p ítu lo 3 e d o h o m e m cego no 9, esta foi
434 O Livro dos Sinais

u m a d a s três g ra n d e s le itu ra s jo an in a s u s a d a s n a p re p a ra ç ã o d o s ca-


tec ú m en o s p a ra o b a tism o na Igreja p rim itiv a . E stu d io so s m o d e rn o s
co m o C uixmann e N iewalda p ro p õ e m u m a in te rp re ta ç ã o sim ilar.
B ijgh , p. 122, s u g e re q u e o ta n q u e (ag itad o p o r u m anjo) é sím b o lo
d a lei d a d a p o r u m anjo; h á q u e m veja em se u s cinco p ó rtic o s u m
sím b o lo d o P e n tateu co . "B etesd a" v eio a se r u m a v e rd a d e ira "casa d e
m ise ric ó rd ia ", u m a v e rd a d e ira "casa d a g raç a ". B alagué, p. 108, v ê na
p e rg u n ta fo rm u la d a p o r Jesus n o v. 6, "T u q u e re s se r c u ra d o ? " , u m
e x em p lo d a p e rg u n ta e re sp o sta técnicas u s a d a n o b a tism o p rim itiv o .
C e rta m e n te , alg o d e ste sim b o lism o é p o ssív el; to d a v ia , é extre-
m a m e n te difícil d e te rm in a r q u e isso fosse te n c io n a d o p e lo e v a n g elis-
ta e n ã o se tra ta s im p le sm e n te d e u m a eisegesis. O p rin c ip a l a rg u m e n -
to c o n tra a in te rp re ta ç ã o b a tism a l é a falta d e in d ic a çã o in te rn a (ver
n o sso critério , p. 124s.). O tem a d a á g u a é in c id e n ta l ao relato ; n a d a
tem a v e r co m a cu ra; a ên fase p rim á ria está m ais n o c e n á rio sa b ático
d o q u e n a c u ra co m o tal. A te n ta tiv a d e T ertuliano (De Bap. V 5-6; SC
35:74) d e a c h a r significação b a tism a l n o fato d e q u e o anjo a g ita v a as
á g u a s e, assim , lh es d a v a p o d e r c u ra d o r, é e s tra n h a à in te rp re ta ç ã o d e
João. N ã o só as á g u a s n ã o c u ra m o h o m em , m as ta m b é m o v. 4 p ro v a -
v e lm e n te n ã o fosse p a rte d o texto d e João. A ssim , co m o já a firm a m o s
com m ais d e ta lh e s e m TS 23 (1962), 195-97, a b a se p a ra u m a in te rp re -
tação b a tism a l d e 5,1-15 p a re c e frágil d e m a is p a ra tal p a ssa g e m .

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 5, n o fin al d o § 19.]
18. JESUS E O SÁBADO:
- DISCURSO SOBRE SUA ATUAÇÃO
NO SÁBADO
(5, 16 -30)

Introdução e Primeira Divisão

In tro d u ç ã o

5 16E a ssim , p o rq u e fazia este tip o d e coisa n o sá b a d o , os ju d e u s co-


m e ç a ra m a p e rse g u i-lo . 17M as ele lh es resp o n d e u :

" M e u P ai se g u e tra b a lh a n d o a té ag o ra,


e a ssim e u ta m b é m e sto u tra b a lh a n d o " .

18P o r e sta raz ã o , os ju d e u s b u s c a v a m a in d a m ais m a tá -lo - n ã o só esta-


va q u e b ra n d o o sá b ad o ; p io r a in d a , e sta v a fa la n d o d e D eu s com o seu
p ró p rio P ai, faz e n d o -se assim , ig u al a D eus.

P r im e ir a D iv is ã o : A d u p l a a tu a ç ã o d e J e s u s n o S á b a d o

19E n tã o Je su s re to m a n d o a p a la v ra lh es disse:
" S o le n e m en te v o s a sse g u ro ,
o F ilh o n ã o p o d e fazer n a d a
p o r si m e sm o -
s o m e n te o q u e v ê o P ai fazen d o .
P o is tu d o o q u e Ele faz,
o F ilh o ig u a lm e n te faz.
436 O Livro dos Sinais

21’Pois o Pai a m a o Filho,


e tu d o o q u e faz Ele lh e m o stra.
Sim , se v ó s a d m irais,
Ele lhe m o stra rá o b ras a in d a m a io re s q u e estas.
21D ev eras, assim co m o o Pai ressu sc ita os m o rto s e c o n c ed e v id a,
assim tam b é m o F ilho concede v id a àq u eles a q u e m q u er.
22D e fato, n ã o é o P ai q u e ju lg a a lg u é m ;
n ão , Ele e n tre g o u ao F ilho to d o ju lg a m e n to ,
23p a ra q u e to d o s h o n re m o F ilho
assim co m o h o n ra m ao Pai.
A q u ele q u e se rec u sa a h o n ra r o Filho,
se rec u sa a h o n ra r o P ai q u e o en v io u .
24S o len em en te e u v o s a sse g u ro ,
o h o m e m q u e o u v e a m in h a p a la v ra
e tem fé n a q u e le q u e m e e n v io u
p o ssu i v id a e te rn a.
Esse n ã o sofre c o n d e n aç ã o ;
n ão , esse já p a sso u d a m o rte p a ra a v id a.
2:,S o len em en te em v os a sse g u ro ,
v e m a h o ra, e já e stá aq u i,
q u a n d o os m o rto s o u v irã o a vo z d o F ilho d e D eus,
e os q u e a o u v ire m v iv erão .

26D ev eras, assim co m o o Pai p o ssu i v id a em Si m esm o ,


A ssim concedeu que o Filho tam bém possua vida em si m esm o.
27E Ele lhe d e u p o d e r d e m in is tra r juízo,
p o rq u e ele é o F ilho d o H o m e m -
28n ã o há n e c e ssid a d e d e q u e v o s a d m ire is n isto
p o rq u e a h o ra está c h e g a n d o
q u a n d o to d o s os q u e se a c h am nos tú m u lo s o u v irã o s u a v o z
29e sairão.
O s q u e tiv e rem feito o q u e é ju sto ressu sc ita rã o p a ra a v id a;
os q u e tiv e rem p ra tic a d o o q u e é m a u re ssu sc ita rã o p a ra ser
c o n d e n a d o s.
30D e m im m esm o n ão p o sso fazer n a d a .
Ju lg o co m o ouço;
e m e u ju lg a m e n to é justo,
p o rq u e eu n ã o esto u b u sc a n d o m in h a p ró p ria v o n ta d e ,
e sim a v o n ta d e d a q u e le q u e m e en v io u .
18 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado 437

NOTAS

5.16-18. Consideram os estes versículos com o uma Introdução ao discurso,


posto que haja um dito lapidário no v. 17 que apresenta o tema para o
que segue. Outros conectariam estes versículos ao que precede.
este tipo de coisa. Evidentemente, devem os pensar nas outras curas sabáti-
cas de que não temos informação (ver 20,30); todavia, 7,21 fala de Jesus
com o tendo realizado apenas uma obra. A cura no capítulo 9 também se
dará no sábado.
perseguí-lo. Esta é a primeira hostilidade ativa contra Jesus notificada em
João; em 4,1, ela está apenas implícita.
17. respondeu. Aqui e no v. 19 são as únicas vezes, em João, que este verbo
grego aparece na voz média, quando com parado a uns 50 usos do pas-
sivo. A bbott, JG, § 2537, sugere que a voz média implica uma resposta
mais formal.
18. fazendo-se assim, igual a Deus. "Os judeus" acusam à Jesus de rebelião e
orgulho semelhantes ao intento pecaminoso de Adão de ser igual a Deus
(Gn 3 ,5 6 ‫)־‬. Talvez, com o Buch , p. 125, sugere, sua acusação não fosse
baseada simplesmente em cham ar ele a Deus de "m eu Pai", mas também
por fazer assim em um contexto no qual ele reivindica estar acima da lei
sabática. O que o evangelista deseja que seu leitor pense sobre a acusação
- que Jesus é igual a Deus e os judeus recusam admiti-lo, ou que a acusa-
ção não passa de um mal-entendido de Jesus? O evangelista apresentaria
Jesus com o igual a Deus? Os cristãos que aceitam o credo "atanasiano"
do 5“ século creem que o Filho "é igual ao Pai segundo a divindade, me-
nos que o Pai segundo a hum anidade". Entretanto, o ponto de vista neo-
testam entário da relação é primariamente pela ótica da humanidade do
Filho (ver supra, pp. 199-200). Paulo diz (F1 2,6) que Jesus não considerou
"ser igual a Deus" com o algo que devesse apegar-se. Jo 14,28 registra as
palavras: "O Pai é maior que eu".
19. 0 Filho... 0 Pai. Se isto foi originalmente um dito parabólico (ver comen-
tário), os artigos refletem as referências genéricas encontradas no estilo
parabólico, p. ex., "0 sem eador", em Mc 4,3. Ver, porém, nota sobre 3,17,
"o Filho".
0 Filho não pode fazer nada por si mesmo. Este versículo não é diferente de
Nm 16,28: "O Senhor me enviou a fazer todas estas obras, e nada fiz
de mim m esm o". Estaria Jesus lançando de volta as palavras de Moisés
contra os legalistas? I nácio Magnesians 7,1 parece revelar conhecimento
desta passagem de João: "C om o, pois, o Senhor estava unido ao Pai e
nada fazia sem Ele"... (ver B raun , JeanThéol, 1, p. 275).
438 O Livro dos Sinais

vê 0 Pai fazendo. Há alusão a uma visão (preexistente?) do Pai em 6,46 e 8,38.


Jesus é o único que sem pre viu o Pai.
20. ama. Philein; embora os dois verbos "a m a r", agapan e philein, sejam quase
intercambiáveis em João (ver Apêndice 1:1, p. 794ss), esta é a única vez,
em João, que philein é usado para o am or entre Pai e Filho. (Agapan é usa-
do seis vezes para isto). G àchter, art. cit., aponta para este uso incom um
como uma prova em prol de uma parábola pré-joanina.
se vós admirais. Literalmente, "p ara que vos sintais adm irados"; o "v o s" é
enfático e talvez depreciativo ("pessoas com o vós"). Isto é evocado em
7,21: "Eu realizei uma obra, e todos vós adm irais".
obras ainda maiores. A cura física ("vid a") é meram ente um sinal do poder
de dar vida eterna.
21. assim como. João usa hõsper somente aqui e no v. 26; evidentem ente, os
versículos são paralelos.

22. Ele entregou ao Filho todo julgamento. Ver com entário sobre 8,15 para o
quadro completo de Jesus e o juízo em João. Se a festa anônima de 5,1 é
o Pentecostes, então o tema do juízo se deveria à relação existente entre
esta festa e a entrega da lei no Sinai.
23. para que todos honrem 0 Filho. Bligh, p. 128, insiste que ambos os versícu-
los, 20 e 21, formam a base desta cláusula: a honra flui tanto do poder
de dar vida quanto do poder de juízo. Isto é certo, mas crem os que sua
crítica da versão NEB é injustiçada. "Julgam ento", no v. 22, é julgamen-
to salvífico que inclui o poder de dar vida; e assim, gram aticalm ente, a
cláusula final em discussão pode ser deixada dependente som ente do
v. 22 e ainda que reflete as duas idéias.
Aquele que se recusa. Esta sentença é uma variante do dito encontrado em
Lc 10,16 (cf. Mt 10,40): "Aquele que me rejeita, rejeita aquele que me en-
viou". Em Jo 15,23, temos "Aquele que me odeia, odeia também a meu
Pai"; ver ljo 2,23. Talvez estes ditos joaninos sejam parte de uma apoio-
gética contra alguns cristãos da época do evangelista que recusavam dar
a devida honra ao Filho.
24. Solenemente eu vos asseguro. Que ambos os versículos, 24 e 25, com eçam
assim é um sinal de que ditos isolados foram reunidos. Há uma inclusão
com o v. 19.
que ouve... e tem fé... possui vida eterna. A m esma prom essa é dada a todos os
que creem no Filho, em 3,16.36.
não sofre condenação. O tema do livrar-se da condenação se encontra em
3,18. Isto não é só um tema joanino, pois Rm 8,1 diz: "A gora já nenhum a
condenação há para os que estão em Cristo Jesus".
18 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado 439

passou da morte para a vida. 1J0 3,14: "Sabemos que já passam os da morte
para a vida".
25. vem a hora, e já está aqui. Ver nota sobre 4,23; tam bém Apêndice 1:11,
p. 794ss.
mortos. A referência é prim ariam ente aos espiritualm ente m ortos (Ef 2,1:
"Ele vos deu vida, quando estáveis m ortos através de delitos e peca-
dos".) Entretanto, os vs. 26-30 m ostram que os fisicamente m ortos não
são esquecidos.
ouvirão... ouvirem. O m esm o verbo grego com duas conotações, como tam-
bém em M t 13,13.
26. possui vida. A posse comum da vida, por meio do Pai e do Filho, era usa-
da nos tem pos patrísticos como um argum ento anti-ariano. Entretanto,
"vida", aqui, não se refere prim ariam ente à vida eterna da Trindade, mas
a um poder criativo de dar vida, exercido para com os homens. SI 36,9:
"Contigo está a fonte da vida; em tua luz vemos a luz". Q uanto ao Filho
possuindo vida, Ap 1,18 chama Jesus Cristo "aquele que vive".
27. porque ele é 0 Filho do Homem. A expressão "Filho do H om em " é sem ar-
tigo; é a única vez, nos evangelhos, que não há artigo antes de qualquer
substantivo. Há quem sugira que a expressão, aqui, significa simples-
m ente "hom em ", assim: "passar juízo que [ho ti por hoti] hom em é".
Em nossa opinião, o contexto torna isto improvável. Não há artigo no
grego de Dn 7,13 (ver comentário). No quadro sinótico do juízo final e da
separação dos bons e dos m aus, o Filho do Homem exerce um im portan-
te papel (Mc 13,26; Mt 13,41; 25,31; Lc 21,36).
28. não há necessidade de que vos admireis nisto. Isto podería ser um a questão
negativa: "N ão estais surpresos nisto, estais?" (BDF, § 4271), mas o impe-
rativo fica bem.
nisto. C risóstomo (In ]0. 39,3; PG 59:223) entendeu a surpresa como se
referindo ao que precede (ele é o Filho do Homem); a maioria dos estu-
diosos m odernos o tom am como um a referência ao que segue (seu papel
na ressurreição dentre os mortos). Ao encerrar a sentença assim, tenta-
m os preservar a am biguidade, pois o evangelista pode ter visto a surpre-
sa como um a referência a todo o complexo de idéias.
porque. A palavra podería ser traduzida "que", e toda a sentença se conver-
teria em um a explanação aposicional "disto" na linha precedente.
29. para a vida... ser condenados. Q ue os hom ens serão recom pensados ou pu-
nidos de acordo com seus feitos é com um em João, Paulo (Rm 2,6-8) e nos
sinóticos (Mt 25,31-46); isto é com plem entar à recom pensa ou punição de
acordo com a fé (Mc 16,16).
praticado 0 que é mau. Ver p. 357s. e nota sobre 3,20.
440 O Livro dos Sinais

30 como ouço. A saber, do Pai, na analogia do v. 19 (vendo o que o Pai faz).


justo. Dikaios; cf. 7,16: "Ainda que eu julgue, meu julgamento é verdadeiro
(alêthês)".
Eu não estou buscando minha própria vontade. Também 6,38: "... não fazer
minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou". Se
com pararm os isto com o dito em Mc 14,36; Mt 26,39; Lc 22,42, é a forma
mais próxima de Lucas: "N ão faças minha vontade, e sim a tua".

COMENTÁRIO

O d isc u rso q u e se g u e a c u ra é u m d o s m ais e x a lta d o s em João. Real-


m en te , a q u i Jesu s é re tra ta d o co m o q u e fa z e n d o reiv in d ic a çõ e s d istin -
tas d a q u e la s d e q u a lq u e r h o m e m m o rta l, reiv in d ic a çõ e s e q u iv a le n te s
à d iv in d a d e . A te n d ê n c ia crítica é a v a lia r tal d isc u rso co m o o p r o d u to
d a teo lo g ia cristã p o ste rio r ao 1“ século, com p o u c o o u n e n h u m fun-
d a m e n to n a tra d iç ã o p rim itiv a d a s p a la v ra s d e Jesus. N ã o o b sta n te ,
o d isc u rso ev id e n c ia certo c o n h e cim e n to d a teo lo g ia e re g ra s d o s es-
cribas c o n c ern e n te s ao sá b a d o , b em co m o d a s leis d o te s te m u n h o e
d o s escrito s m osaicos. E stes tem a s são tão e n tre te c id o s n o d isc u rso ,
q u e é m u ito difícil c o m p re e n d ê -lo sem esse p a n o d e fu n d o rab ín ico .
A lém d o m ais, in c o rp o ra d o s n o d isc u rso e stã o d ito s q u e , c o m m u ita
raz ã o , são tid o s co m o g e n u ín o s d ito s tra d ic io n a is d e Jesus. P o rta n to ,
n ão é a b s o lu ta m e n te im p o ssív e l q u e p a rte s d e ste d isc u rso te n h a m
fu n d a m e n to s só lid o s n a s c o n tro v é rsia s com os farise u s q u e fo ra m
p a rte d o m in isté rio d e Jesus, m esm o q u e o e v a n g e lista te n h a d a d o no
p r o d u to final u m a o rg an iz aç ã o e p r o fu n d id a d e teológica q u e reflete m
u m a p e rsp e c tiv a final e m ais m a d u ra . V er Bu c h , p. 131.
A P rim eira D ivisão d o d isc u rso c o m e n ta tem a s q u e têm sid o
fo calizad o s n o s ú ltim o s d o is m ilag re s (assim co m o os d isc u rso s nos
c a p ítu lo s 3-4 c o m e n ta d o s n a s p rim e ira s d u a s cen as d a S e g u n d a P ar-
te). N o s e g u n d o m ilag re em C an á h o u v e ên fase so b re o tem a d a v id a
(4,50.51.53) e h o u v e u m e x e m p lo d e fé na p a la v ra d e Je su s (4,49); este
d isc u rso en fa tiz a o p o d e r d e Jesu s em c o n c e d e r v id a (5,21.26) e a im -
p o rtâ n c ia d e o u v ir su a p a la v ra e crer (24, 28). O tem a sab ático foi do-
m in a n te n a c u ra em Jeru salém ; e no d isc u rso ele a s su m e o p rim e iro
p lan o , n ão só e x p lic ita m e n te no v. 17, m as im p lic ita m e n te n a referên -
cia ao p o d e r d e d a r v id a e ju lg a r, n o s vs. 19-25.
18 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado 441

Introdução. Jesus defende sua atuação no sábado (5,16-18)

Q u a n d o Jesu s é a c u sa d o d e v io lar o sáb ad o , a trad ição sinótica re-


g istra d u a s fo rm as em q u e ele se defende: ( a ) so b re b ases h u m an itá -
rias. Jesu s a rg u m e n ta q u e no sá b ad o u m h o m em p o d e d a r á g u a a u m
an im a l o u levá-lo p a ra fora d e seu aprisco; p o rta n to , p o r q u e ele não
p o d e fazer u m b e m m aior, c u ra n d o u m h o m em (Lc 13,15; 14,5)? A lgo
a p ro x im ad o , a este a rg u m e n to p o d e ser e n c o n tra d o em Jo 7,23: se um
h o m em p o d e ser c irc u n cid a d o n o sáb ad o , p o r q u e no sá b ad o não se
p o d e fazer b e m a u m h o m em integral? (b) so b re b ases teológicas. Na
trad ição sinótica, Jesus a rg u m e n ta q u e n o AT aos sacerd o tes d o tem p lo
se p e rm itia rea liz a r tra b a lh o no sáb ad o ; to d av ia, ag o ra está p resen te
algo m aio r q u e o tem p lo (M t 12,5-6). " O Filho d o H o m e m é S enhor do
sá b a d o " (12,8). Este tip o d e a rg u m e n to leva a reiv in d icação m ajestática
d a p a rte d e Jesus, e n o ssa p rese n te p a ssa g e m em João é m u ito sim ilar.
O v. 17 d e v e se r p o sto c o n tra o p a n o d e fu n d o d a relação d e D eus
com o d e s c a n so sabá tico. N o m a n d a m e n to c o n c ern e n te ao sá b ad o
(Ex 20,11, m a s c o m p a re D t 5,15) tem o s esta se n te n ç a explicativa: "E m
seis d ia s o S e n h o r fez os céu s e a terra... m a s n o sé tim o d e sca n so u . Eis
p o r q u e o S e n h o r a b e n ç o o u o s á b a d o e o sa n tific o u ". E n tre tan to , os
teó lo g o s d e Israel c o m p re e n d e ra m q u e D e u s re a lm e n te n ã o cesso u de
tra b a lh a r d u r a n te o sá b ad o . H á to d a u m a série d e afirm açõ es rabíni-
cas (B ernard, I, p. 236; B arrett, p. 213; D odd, Interpretation, p p . 321-22)
ao p ro p ó s ito d e q u e a P ro v id ê n c ia d iv in a p e rm a n e c e u a tiv a d u ra n te o
sá b ad o , p o is d e o u tro m o d o , e n te n d e ra m os rab in o s, to d a a n a tu re z a
e v id a c e ssa ria m d e existir.
Em particular, n o qu e d iz respeito aos hom ens, a ativ id ad e divina era
visível d e d u a s m aneiras: h o m en s nasciam e h om ens m orriam n o sábado.
Já q u e so m en te D eus p odia lidar com o destino d os m ortos em juízo, isto
significa q u e D eus era ativo no sábado. C om o o R abino Johanan (TalBab
Taanith 2a) o expressa, D eus tem m an tid o em Sua m ão três chaves q ue Ele
não confia a n e n h u m agente: a chave d a chuva, a chave d o nascim ento
(Gn 30,22) e a chave d a ressurreição d o s m ortos (Ez 36,13). E p a ra os ra-
binos era óbvio q u e D eus u sava estas chaves m esm o d u ra n te o sábado.
E m 5,17, Jesu s justifica su a o b ra d e c u ra d u ra n te o sá b ad o , cha-
m a n d o a a te n ç ã o d e "o s ju d e u s " p a ra o fato d e q u e a d m itia m q u e
D eu s tra b a lh a v a n o sá b ad o . Q u e as im p licaçõ es d e ste a rg u m e n to
e ra m im e d ia ta m e n te c a p ta d a s, é testific a d o p e la violência d a reação.
442 O Livro dos Sinais

P ara os ju d e u s , o p riv ilé g io sab ático era p e c u lia r a D eu s, e n in g u é m


era ig u al a D e u s (Ex 15,11; Is 46,5; SI 89,8). A o re iv in d ic a r o d ire ito d e
tra b a lh a r a ssim co m o seu Pai tra b a lh a v a , Jesu s e sta v a re iv in d ic a n d o
u m a p re rro g a tiv a d iv in a.
A n tes d e v o lta rm o s à re sp o sta d e Jesu s a "o s ju d e u s " , n o v. 19,
p o d e m o s sa lie n ta r o u tra faceta d a teo lo g ia q u e im p lic a a a firm a ç ã o d e
Jesus, n o v. 17. N a a firm a ç ão d e q u e o P ai c o n tin u a e m ação, C ullmann ,
a r t. c i t ., v ê u m reflexo d e u m p e n s a m e n to q u e a p a re c e a m iú d e e n tre os
P a d re s d a Igreja: D eu s n ã o d e sc a n so u a p ó s a criação, m a s s o m e n te a p ó s
a m o rte d e Jesus. Jesu s tra b a lh o u d u r a n te o m in isté rio (9,4), p o ré m ,
a p ó s su a m o rte , v e io o d e sc a n so sab ático p ro m e tid o a o p o v o d e D eu s
(H b 4,9-10). Esta teo ria a tu a lm e n te receb e in te re ssa n te s u p o rte n o
tra ta d o g n ó stico d o 2‫ ט‬século, o e v a n g e lh o d a V e r d a d e . A li (32,18ss.),
o u v im o s q u e m esm o n o s á b a d o Jesu s tr a b a lh o u , p o is ele m a n tin h a vi-
v as as o v e lh a s q u e c a íram n a cova. C o m o M énard, V É v a n g i l e d e V é r i t é
(Paris: L eto u zey , 1962), tem re c o n h e c id o , o e v a n g e lh o d a V e r d a d e , aq u i,
co m b in a o tem a m a te a n o d a o v elh a q u e cai e m u m cova (12,11) com
Jo 5. A id eia d e q u e Jesus tra b a lh o u é to m a d a d e 5,17 (a m esm a p ala-
v ra có p tica e n c o n tra d a e m to d a s as v e rsõ e s c ó p tic as d e ste v e rsíc u lo é
u s a d a n o e v a n g e lh o d a V e r d a d e ); a id eia d e q u e Jesu s m a n te v e a o v e lh a
v iv a é to m a d a d o v. 21, o n d e lem o s q u e Je su s p o d e c o n c e d e r v id a
(o u tra v ez, o có p tico d o e v a n g e lh o d a V e r d a d e e d o E v a n g e lh o d e João
é o m esm o ). A lu z d isto , é in te re ssa n te ler o q u e se g u e n o e v a n g e lh o d a
V e r d a d e : Jesu s fez isto " p a ra q u e e n te n d a is... o q u e o s á b a d o significa,
a sab er, q u e n ele n ã o é a d e q u a d o q u e a sa lv ação seja o cio sa". A ssim ,
a salv ação d e v e ser o p e ra d a in clu siv e n o sá b a d o . F in a lm e n te , o e v a n -
g e lh o d a V e r d a d e fala d a q u e le d ia p e rfe ito em cuja a ltu ra n ã o h á n o ite,
com a im p licação d e q u e e ste é o v e rd a d e iro s á b a d o d a e te rn id a d e .

P r im e ir a D i v i s ã o . A d u p l a o b r a d e J e s u s n o s á b a d o , a s a b e r , d a r v i d a e j u l g a r -
e s c a to lo g ia r e a liz a d a (5,19-25)

N o v. 19, Jesu s fala às a u to rid a d e s ju d a ic a s q u e n a d a h á d e ar-


ro g a n te n o q u e ele d isse. Ele n ã o é u m filho re b e ld e se p o n d o co m o
u m riv al ao Pai; a n te s, ele é c o m p le ta m e n te d e p e n d e n te d o P ai e n a d a
reiv in d ic a p a ra si p ró p rio . Q u e Je su s n ã o faz n e n h u m a d e su a s o b ras
v isa n d o a se u s p ró p rio s in te resse s, reflete u m tem a fa v o rito e m João
(tam bém , 9,4). João tam b é m n o s fala q u e n a d a d o q u e Jesus d iz p ro v ém
18 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado 443

d e si p ró p rio (3,34; 8,26; 12,49), e q u e o F ilho n ã o v eio p o r su a p ró -


p ria in ic ia tiv a (7,28; 8,42). T u d o isto é re s u m id o em 10,30: "O Pai e eu
so m o s u m " . C o m o sa lie n ta G iblet, " T rin ité " , u m a p a ssa g e m joanina
co m o o v. 19 fin a lm e n te le v o u os teó lo g o s c ristã o s a u m a co m p re en -
são d e q u e o P ai e o F ilho p o s s u e m u m a só n a tu re z a , u m só p rin c íp io
d e o p e ra ç ã o . P o rta n to , c e rta m e n te o vs. 19-20a p o rta m to d a s as m ar-
cas d a p e rs p e c tiv a teo ló g ica jo an in a; to d a v ia , n in g u é m seria te n ta d o
a a v a lia r e ste s v e rsíc u lo s co m o m e ra s fo rm u laçõ es d o ev an g elista. In-
d e p e n d e n te m e n te , D odd e G ächter fiz e ra m a v alio sa su g e stã o d e q u e
estes v e rsíc u lo s u m a v e z e ra m u m a p a rá b o la n o se g u in te form ato:

Negação: Um filho não pode fazer nada de si mesmo - somente o que ele
vê seu pai fazer.
Afirmação: Tudo o que o pai faz, o filho igualmente faz.
Explicação: Pois o pai [ama a seu filho e] mostra a seu filho tudo o que
ele está fazendo.

D odd, art. cit., indica q u e este m esm o form ato se encontra em um a


p aráb o la co m o M t 5,15. A p aráb o la q u e D odd encontra em João podería
ser p o sto em u m a oficina d e ap ren d izes, o n d e u m jovem está ap ren d en -
d o u m a profissão. Ele cita u m a série d e referências d o p a p iro O xyrhyn-
chus (do Egito d o s tem p o s d o NT), o n d e se insiste q u e o a p re n d iz deve
fazer o q u e o m estre faz; e tu d o o q u e ele faz o a p re n d iz igualm ente
faz. E m u m a so cied ade sim ples com o a d a Palestina, u m a profissão se-
ria e n sin ad a n o seio d e u m a fam ília, e o filho teria q u e im itar o trabalho
do pai. Jesus era conhecido com o filho d o carp in teiro (M t 13,55) e com o
carp in teiro (Mc 6,3). Inclusive o a m o r d o p a i pelo filho m en cio n ad o no v.
20a se a d e q u a ria a tal p aráb o la, p o is S iraque 30,1 tem u m a frase p a ra este
p ro p ó sito n u m a p a ssag em q u e trata d a educação dos filhos.
A ssim , p o d e b e m se r q u e Jesus ev o casse u m p ro v é rb io p a ra ex-
p lic a r a rela çã o d e se u tra b a lh o co m o d o Pai celestial. E ntão, n o res-
tan te d o v e rsíc u lo 20 ele com eça e x p o n d o a n a tu re z a d a s o b ra s q u e ele
tem v isto o P ai fazer e as q u a is ele está a im itar. São as m e sm a s o b ras
q u e, s e g u n d o a teo lo g ia ju d a ic a , e ra m lícitas ao P ai fazer no sáb ad o .
N o v. 21, m en c io n a-se a primeira d e sta s obras: Jesu s co n ced e v id a.
O ra, e n te n d e m o s q u e a v id a q u e Jesus c o n c ed e u ao filho d o oficial
rég io e ra a p e n a s u m sin al d a v id a d o a lto q u e ele re a lm e n te p o d e d a r,
p o rq u a n to o P ai o c a p a c ito u a fazer isso. A c o n ex ão e n tre a c u ra d o
p a ra lític o e m B etesd a e a o rd e m d e n ã o c o n tin u a r p e c a n d o (v. 14) se
444 O Livro dos Sinais

to rn a m ais clara. A os q u e e stã o n a esfera d a q u e la m o rte q u e é p e c a d o ,


o F ilho tem o p o d e r d e c o n c e d e r v id a , e a ú n ica a m e a ç a à v id a q u e ele
co n ced e é c o n tin u a r p e c an d o .
N o s vs. 22-23, m en cio n a-se a s e g u n d a d e ssa s obras: Je su s é o juiz,
p o is o Pai p a sso u ao Filho o p o d e r d o ju lg a m e n to . E ste " ju lg a m e n to "
d ev e ser to m a d o n o se n tid o v e te ro te sta m e n tá rio c o m u m d e v in d ic a r o
b em (Dt 32,36; SI 43,1) e isto é c o m p le m e n ta r à d o a ç ão d a v id a . E ste jul-
g a m e n to salvífico q u e n o A T é p re rro g a tiv a d e Iah w e h lev a os h o m e n s
a h o n ra re m o F ilho e a rec o n h e c ere m su a relação com o Pai. T o d av ia,
com o em 3,19-21, o ju lg a m e n to e m fav o r d o s q u e creem tem tam b é m
se u lad o n eg ativ o ; ao m esm o tem p o , é u m a c o n d e n aç ã o d o s q u e rejei-
tam o F ilho e n v ia d o p e lo Pai. U m a v ez m ais, a escato lo g ia rea liz a d a
d este e v a n g elh o p a ssa a o p rim e iro p lan o : ju lg a m e n to , co n d e n aç ã o ,
p a ssa r d a m o rte p a ra a v id a (v. 24) são p a rte d e sta h o ra q u e já está
aqui. A ssim co m o o oficial rég io o u v iu a p a la v ra d e Jesu s e creu nela,
receb en d o assim a v id a d e seu filho (4,50), assim ta m b é m o s q u e se
p õ em d ia n te d e Jesus e o u v e m su a s p a la v ra s n o d isc u rso d o c a p ítu lo 5
têm a o p o rtu n id a d e d e receb er v id a. E stas p a la v ra s são a fonte d e v id a
p a ra os q u e e sta v a m e sp iritu a lm e n te m o rto s (v. 25).

D u p l i c a t a d a P r im e ir a D i v i s ã o . O s m e s m o s te m a s e m te r m o s d e e s c a t o lo g i a
fin a l (5,26-30)

De a c o rd o com a teo ria p ro p o s ta n a In tro d u ç ã o (p. 24), te m o s n o s


vs. 26-30 o u tra v e rsã o d o d isc u rso re g is tra d o em 19-25, v in d o d e u m
estág io d ife re n te d a tra d iç ã o jo an in a. C a ta lo g u e m o s as s im ila rid a d e s
d e p a la v ra e p e n s a m e n to e n tre as d u a s fo rm a s d o d iscu rso :

vs. 26-30 vs. 19-25


26 O poder de vida partilhado pelo Pai e 0 Filho (ver nota
sobre hõsper no v. 21) 21
27 O poder de julgamento partilhado pelo Pai e 0 Filho 22
28 Reação de surpresa 20
Está chegando a hora (e já está aqui) quando os mortos
ouvirão a voz do Filho 25
29 Os que tiverem agido certo (ter ouvido) viverão 25
30 De si mesmo, 0 Filho nada faz 19
O Filho vê ou ouve 0 que deve fazer 19
18 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado 445

N o ta r-s e -á q u e a se q u ên c ia d a s id é ia s p rin c ip a is é a p ro x im a d a -
m e n te as m e s m a s e m a m b a s as fo rm a s d o d isc u rso , se n d o a ú n ica
ex ceção o p a ra le lism o e n tre 30 e 19. Esta exceção p o d e se r ex p licad a
co m o u m a te n ta tiv a re d a c io n a l d e p r o d u z ir u m a in clu sã o q u e unifi-
q u e a p a s s a g e m co m o u m to d o . L éon -D ufour, art. cit., v ê u m p a d rã o
lig e ira m e n te d ife re n te d a q u e le q u e tem o s su g e rid o . Ele faz d o v. 24 o
v e rsíc u lo m é d io e m u m q u ia sm a (v er s u p ra , p. 153s.); to d a v ia , seus
p a ra le lo s n ã o re s u lta m c o n v in c e n te s, e se d e p a ra com a d ific u ld a d e d e
te r os vs. 25 e 28 d o m esm o la d o d a d iv isão .
Se as p a la v r a s e p e n s a m e n to s d a s d u a s fo rm a s d o d isc u rs o são
n o ta v e lm e n te a s m e sm a s, a ê n fa se teo ló g ic a d ife re m a rc a n te m e n te .
N o s v s. 26-30, ex c eto o v. 26, n ã o e n c o n tra m o s a te rm in o lo g ia pecu -
lia r F ilh o -P a i q u e é tã o c a ra c te rístic a d e João. A n tes, e n c o n tra m o s o
"F ilh o d o H o m e m " , títu lo b e m n o tó rio n a tra d iç ã o sin ó tica , m as n ão
tã o fre q u e n te e m Jo ão (v er n o ta so b re 1,51). C o m o o títu lo a p a re c e
n o v. 27, p a re c e e c o a r o locus classicus d o A T, D n 7,13, o n d e a fig u ra
d e " u m filh o d e h o m e m " a p a re c e n o c o n te x to d o ju íz o d iv in o final.
E tu d o in d ic a q u e é o ju íz o final q u e está n a m e n te d e Jo 5,26-30.
N o v. 28 o u v im o s q u e "a h o ra e stá c h e g a n d o " , m a s o "e já e stá a q u i"
d o v. 25 se p e rd e u . R e ite ra n d o , e m 28, q u a n d o o u v im o s d e re ssu r-
reiç ão , n ã o é u m a q u e s tã o d o s e s p iritu a lm e n te m o rto s co m o em 25,
m a s d o s q u e já a c h a m n o tú m u lo . E sta é a re s s u rre iç ã o d o s fisica-
m e n te m o rto s , e su a sa íd a d o tú m u lo à v o z d e Je su s é u m a cena
a p o c a líp tic a d a v isã o d e E z eq u iel d a v iv ific a ç ão d o s o sso s m o rto s
(37,4: "O h! o sso s secos, o u v i a p a la v ra d o S e n h o r"). O s re s u lta d o s
d o ju íz o , n o v. 29, é u m eco c la ro d e D n 12,2, a p rim e ira p a ssa g e m
v e te ro te s ta m e n tá ria a p ro c la m a r c la ra m e n te u m a re s s u rre iç ã o p a ra
o p ó s -v id a : " M u ito s d o s q u e d o rm e m n o p ó d a te rra se d e s p e rta -
rão : a lg u n s p a ra a v id a e te rn a ; o u tro s , p a ra a v e rg o n h a e d e sg ra ç a
e te rn a s " . E m n o s so c o m e n tá rio so b re o c a p ítu lo 11, sa lie n ta re m o s
q u e o re la to d e L á z aro , em q u e u m h o m e m m o rto c o n c re ta m e n te sai
d o tú m u lo à p a la v ra d e Jesu s, ecoa m u ito d a s p a la v ra s e id é ia s d o s
vs. 26-30.
P o rta n to , o c o n tra ste e n tre a escato lo g ia final d o s vs. 26-30 e a
escato lo g ia re a liz a d a d e 19-25 é m u ito m arc an te . P ara Bultmann, o Re-
d a to r E clesiástico se o c u p o u d e 26-30, e sp ecificam en te d o 28-29, ten-
ta n d o c o n fo rm a r a escato lo g ia re a liz a d a d e João à escato lo g ia oficial
d a Igreja. E n tre ta n to , co m o tem o s in sistid o (p. 129ss.), tal d ico to m ia
446 O Livro dos Sinais

e n tre as d u a s e scato lo g ias n ã o tem b a se co n sisten te; e Boismard, art.


cit ., a rg u m e n ta c o n v in c e n te m e n te , c o n s id e ra n d o os vs. 26-30 co m o
se n d o a fo rm a m ais a n tig a d o d isc u rso e m q u e a p e rsp e c tiv a escato-
lógica se a sse m e lh a à q u e la d a m aio ria d a s p a ssa g e n s jo an in a s. Se este
é o caso, 19-25 re p re se n ta ria u m a ree lab o ra ç ão d o s m e sm o s d ito s d e
Jesu s n u m m o m e n to p o ste rio r, q u a n d o a escato lo g ia re a liz a d a h a v ia
p a s sa d o ao p rim e iro p la n o co m o re sp o sta à d e m o ra n a s e g u n d a v in -
da. Boismard sa lie n ta os p a ra le lo s e n tre 19-25 e 1 João (v er n o ta s so b re
vs. 23, 24) co m o u m sin al d o a tra so , e ressa lta q u e as rela çõ e s e n tre o
Pai e o F ilh o são m ais d e se n v o lv id a s e m 19-25 d o q u e e m 26-30.
T u d o isto tem sid o u m a an álise d o s vs. 19-30 com o o ra se en co n -
tram . E n tretan to , G ächthr tem ressa lta d o q u e p ro v a v e lm e n te a p ré-h is-
tória d a p a s sa g e m seja a in d a m ais co m p lex a. É b e m p ro v á v e l q u e te-
n h a m o s a q u i u m a coleção d o q u e e m p rin c íp io fo ra m d ito s iso la d o s
(ver n o ta so b re v. 24). E in te re ssa n te n o ta r o u so d o s p ro n o m e s p e s-
soais. Fora d a s afirm a ç õ es in tro d u tó ria s "E u so le n e m e n te v o s asse-
g u ro " (19, 2 4 ,2 5 ) e d a referên cia a " v ó s a d m ir a is /v o s a d m ire is n isto "
(20,28), p ra tic a m e n te , to d o o d isc u rso está n a terceira p e sso a . (Em 24,
h á u m " m e "; 30 está na p rim e ira p esso a). G ächter faz esta d istin ç ã o
d e p ro n o m e s p e sso a is u m c ritério ex cessiv o a o s d iv e rso s e x tra to s d o
d iscu rso ; a lé m d o m ais, a terc eira p e sso a é a m iú d e a sso c ia d a co m o Fi-
lh o d o H o m e m tam b é m na tra d iç ã o sin ó tica (cf. Lc 12,8 c o m M t 10,32).
N ã o o b sta n te , a m u d a n ç a d e p e sso a s p o d e in d ic a r a té c erto p o n to di-
feren te p ro c e d ê n c ia d o s ditos.
G ächter p e n s a q u e 19 e 30 fo ra m o s v e rsíc u lo s o rig in a is d a p a s-
sa g em . O v. 19(20a) e ra u m a p a rá b o la , c o m o já e x p lic a m o s; e o v. 30,
q u e s e g u iu im e d ia ta m e n te o 19, e ra a a p lic a ç ã o d a p a rá b o la . C e rta -
m e n te o v. 30 e stá e s tre ita m e n te re la c io n a d o co m o v. 19, c o m o já
v im o s e m n o s s a a n á lise d o s p a ra le lo s a n te rio rm e n te ; e se o v. 30 foi
a e x p licação p e sso a l d a p a rá b o la , o s u rg im e n to d a p r im e ira p e s so a
n o v. 30 se ria ju stific a d o . E n tão , p r o p o ría m o s q u e o u tro s d ito s in d e -
p e n d e n te s fo ra m a n e x a d o s à p a rá b o la à m a n e ira d e a p lic a ç ã o u lte -
rio r (boa m e d id a c o m o Lc 15,9-13 se d e s e n v o lv e u ), u m p ro c e s s o q u e
d e u o rig e m a u m p e q u e n o d isc u rso . R e a lm e n te , a tra d iç ã o jo a n in a
p re s e rv o u d u a s fo rm a s d o d isc u rs o e m 21-25 e 26-29. A fase fin al
n a h is tó ria d a p a s sa g e m se ria q u a n d o u m r e d a to r ju n to u a s fo rm a s
d u p lic a d a s d o d isc u rs o , e e n tã o fra g m e n to u a u n id a d e o rig in a l d o s
vs. 19(20a) e o v. 30, in s e rin d o o d isc u rs o c o m b in a d o e n tre eles.
18 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado 447

M u d a n d o o v. 30 p a ra o final, n ã o só p ro p ic io u u m a in clu sã o , m as
ta m b é m p e rm itiu q u e o v. 30 fosse c o m o u m a e sp éc ie d e re s u m o
d o s v á rio s te m a s d o d isc u rso . E a ssim o r e d a to r re a liz o u u m a ex p o -
sição c o m p le ta d a o b ra q u e o Pai d e u a Je su s p a ra fazer, ta n to em
seu m in is té rio c o m o n o fu tu ro , o b ra q u e e x c e d e u a im p o rtâ n c ia d o
d e s c a n s o sa b ático .

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 5, n o final d o § 19.]
19. JESUS E O SÁBADO:
- DISCURSO SOBRE SUA ATUAÇÃO
NO SÁBADO (C o n tin u a ç ã o )
(5, 31 ‫־‬4 7 )

Segunda Divisão

a. T e s te m u n h o s e m f a v o r d e J e su s

5 31"Se e u so u m in h a p ró p ria te ste m u n h a ,


m e u te s te m u n h o n ã o p o d e ser v álid o .
32M as h á O u tro q u e e stá te stific a n d o em m e u fav o r,
e o te s te m u n h o q u e ele d á d e m im
sei q u e p o d e se r a v e rig u a d o .

33V ós e n v ia ste a João,


e ele testificou d a v e rd a d e .
(34N ão q u e e u m esm o aceito tal te s te m u n h o h u m a n o -
s im p le s m e n te m en c io n o estas coisas p a ra v o ssa salvação).
35Ele era a lâ m p a d a q u e a rd ia e a lu m ia v a ,
e p o r a lg u m te m p o v ó s m esm o s d e b o m g ra d o e x u lta ste s em
su a luz.

36T o d av ia, eu ten h o u m teste m u n h o ain d a m aio r d o q u e o d e João,


a sab er, as o b ras q u e o Pai m e d e u p a ra realizar.
E stas m e sm a s o b ras q u e e u te n h o feito
testificam em m e u fav o r
d e q u e o Pai m e en v io u .
19 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado (c o n tin u a ç ã o ) 449

37E o Pai q u e m e e n v io u
Ele m e sm o te m d a d o te ste m u n h o em m eu favor.
N u n c a o u v iste s S ua voz;
ta m p o u c o te n d e s v isto q u e a p a rê n c ia Ele tem ;
38e s u a p a la v ra n ã o tem p e rm a n ê n c ia em v o sso s corações,
p o r q u e n ã o c re d e s
n a q u e le q u e Ele en v io u .

39V ós e x a m in a is as E scritu ras


n a q u a l c re d e s ter a v id a e te rn a -
ela s ta m b é m testificam e m m e u favor.
40C o n tu d o , n ã o q u e re is v ir a m im
p a ra te rd e s essa v id a.

b. A t a q u e à I n c r e d u lid a d e J u d a ic a

41N ã o q u e e u aceito o lo u v o r h u m a n o -
42E n tre ta n to e u sei q u e vós, p o v o
e e m v o sso s corações n ã o te n d e s v ó s o a m o r d e D eus.
43E u v im n o n o m e d e m e u Pai;
to d a v ia , n ã o m e aceitais.
M as q u e a lg u m o u tro v e n h a e m seu p ró p rio n o m e,
e o aceitareis.
44C o m o p o d e c re r p e sso a s co m o vós,
q u a n d o aceitais lo u v o r u n s d o s o u tro s,
p o ré m n ã o b u sc a is a q u e la g ló ria q u e p ro c e d e d o Ú nico [D eus]?
45N ã o p e n s e is q u e eu serei v o sso a c u sa d o r d ia n te d o Pai;
o q u e v o s ac u sa é M oisés
e m q u e m d e p o sita ste s v o ssas e sp eran ças.
46P o is se crésseis em M oisés,
crerieis em m im ,
v isto q u e é a m eu re sp e ito q u e ele escrev eu .
47M as, se n ã o c re d e s n o q u e ele escrev eu ,
co m o p o d e is c re r n o q u e eu d ig o ?"
450 O Livro dos Sinais

NOTAS

5.31. minha própria testemunha. A m esm a m áxim a se encontra em 8,17, onde


se afirm a que ela se está na Lei. O princípio legal tem sua origem em
Dt 19,15, onde se declara que um hom em não pode ser condenado
de um crim e sobre o testem unho de um a só testem unha. Dt 17,6 e
Nm 35,30 exigem diversas testem unhas para um consenso no caso de
crime capital. Provavelm ente em razão de Jesus haver evocado o prin-
cípio, ele era am plam ente citado na Igreja prim itiva. Mt 18,16 especifica
que deve haver diversas testem unhas para confirm ar um a advertência
dada a um cristão recalcitrante antes de ser expulso da Igreja (ver tam-
bém 2Cor 13,1; 1 Tm 5,19; Hb 10,28). Não obstante, todos estes outros
exem plos no AT e no NT são diferentes do uso que João faz do princí-
pio, como J.-P. C harlier já observou, "Uexégèse johannique d'un précepte
legal: Jean 8,17", RB 67 (1960), 503-15. João não está tratando de testem u-
nhas necessárias para se condenar um hom em , e sim das testem unhas
para confirm ar o testem unho de alguém . Encontram os um a am pliação
sim ilar do princípio legal nos docum entos rabínicos; no tratado m ish-
naico Kethuboth 2:9, cita-se como um princípio de que ninguém pode
d ar testem unho em favor de si mesmo.
não pode ser válido. Há um a contradição formal deste versículo em 8,14:
"Ainda que eu fosse m inha própria testem unha, m eu testem unho pode
ser válido". Como verem os, não há contradição real; m as é possível ter
dúvida se o m esm o redator escreveu am bas as frases.
32. Outro. Como reconhecido desde o tem po de C ipriano (Epist. 46[2], 2; CSEL
32:727), este é o Pai. C risóstomo {In Jo. 40,1; PG 59:230) cria que estava im-
plícito o Batista; m as isto parece ser excluído pelo contraste entre o v. 32,
onde aparentem ente Jesus aceita este testem unho dado por outro, e o
v. 34, onde ele não aceita testem unho hum ano. Que o Pai está envolvido,
é confirm ado por 8,17-18.
33. enviaste a João. Uma referência à m issão de 1,19.
ele testificou. O tem po perfeito aparece aqui como em 1,32-34 e 3,26; o teste-
m unho ainda tem valor.
da verdade. Por causa da possível relação do Batista com os essênios de
Q um ran, é digno de nota que em 1QS 8,6 os essênios se qualificam como
sendo "testem unhas da verdade no julgam ento".
34. Não... aceito tal testemunho hutnano. ljo 5,9: "Se aceitam os testem unho hu-
mano, o testem unho de Deus é m uito m aior".
35. a lâmpada que ardia. Isto pode ser um eco da descrição de Elias em Siraque
48,1, onde lemos que sua palavra "ardia como um a tocha". Ao falar dos
19 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado (c o n tin u a ç ã o ) 451

dois castiçais, Ap 11 usa claram ente imagem extraída da vida de Elias.


Assim, isto podería representar a forma joanina do testem unho de Jesus
ao Batista como Elias (ver Mt 17,12-13 com parado com Mc 9,13). Na cena
sinótica, Jesus ressalta que o povo realm ente não com preendeu o Batista
e o que ele era. F. N eugebauer, ZNW 52 (1961), 130, relaciona esta ma-
neira de designar o Batista com o SI 132,17: "Eu preparei um a lâm pada
para o m eu ungido", no sentido de que ele era um a lâm pada diante do
M essias (mas que não foi o significado original do Salmo).
exultastes em sua luz. Josefo (Ant. 18.5.2; 118) diz que os hom ens ficaram
m uitíssim o eufóricos com a luz do Batista, e é a esse entusiasm o passa-
geiro que o nosso versículo se refere. Boismard, Evjean, pp. 56-57, vê na
expressão joanina o reflexo de um original aramaico. Em vez de "exul-
tar, regozijar-se", a tradição siríaca diz "gloriar-se, recebeu glória"; e o
único verbo aram aico (raiz bhr), em suas diferentes conjugações, tem os
dois significados. Ele pensa que o "em " de "em sua luz" reflete a prepo-
sição semítica be, significando "em, por".
36. maior do que 0 de joão. Presum ivelm ente, isto significa "m aior que o tes-
tem unho que João deu", em vez de "m aior que o testem unho que João
tinha", ainda quando o segundo seja preferível sintaticam ente. Há ou-
tra redação mais bem atestada (Vaticanus, P66) na qual "m aior" está no
nom inativo: "Eu que sou m aior que João, tenho um testem unho". Esta
antítese não se adequa à sequência de idéias.
obras que 0 Pai rne deu para realizar. Há outra forma em que isto podería ser
traduzido: "obras que o Pai me capacitou para realizar". Vanhoye, art.
cit., deu prova exaustiva que favorece a tradução que escolhemos, ver,
porém , o versículo associado a 17,4. Como insistirem os no Apêndice III,
p. 831 ss, a própria designação de Jesus para seus milagres é "obras", não
"sinais". Em 4,34, Jesus fala de levar a obra (singular) do Pai à conclusão.
As obras (milagres) são parte daquela obra que é a economia da salvação
confiada pelo Pai a Jesus.
obras que... testificam em meu favor. Reiterado em 10,25: "As obras que estou
fazendo no nom e de m eu Pai dão testem unho a m eu respeito"; também
14,10-11.
37. O Pai que me enviou/Ele mesmo tem dado testemunho. Reiterado em 8,18 no
tem po presente: "O Pai que me enviou dá testem unho a m eu respeito".
Nunca ouvistes Sua voz. Tudo isto pode ser um a referência implícita à cena
no sopé do Sinai, onde (Ex 19,9) Deus falou a Moisés: "Eu estou vindo
a ti num a nuvem espessa para que o povo ouça quando eu falar a ti".
O povo ouviu os trovões (literalmente, "as vozes") quando Deus veio
sobre o monte.
452 O Livro dos Sinais

tampouco tendes visto que aparência Ele tem. Uma vez mais, o pano de fundo
pode ser o Sinai. Ex 19,11 prometeu: "Ao terceiro dia, o Senhor descerá
sobre o Monte Sinai à vista de todo o povo"; e a Midrásh Mekilta comenta so-
bre isto: "Ensina que naquele momento viram o que Isaías e Ezequiel nunca
viram". Assim, parece ter havido um a tradição popular sobre ouvir e ver a
Deus no Monte Sinai, e João apresenta Jesus como a argum entar contra isto.
(A apresentação de João parece mais em harmonia com Dt 4,12.15, onde se
afirma que o povo não viu a Deus, embora ouvissem Sua voz; o que se nega
esse privilégio em Dt 5,23-27). O argum ento seria particularm ente adequa-
do se a festa não especificada de 5,1 fosse o Pentecostes, quando a doação
da Lei no Sinai havia de ser celebrada. Para o tema de que ninguém (exceto
Jesus) realmente jamais viu a Deus, ver 1,18; 6,46; ljo 4,12).
38. e sua palavra não tem permanência em vossos corações. E possível que as duas
últim as linhas do v. 37 sejam um parêntese, e que esta prim eira linha do
v. 38 começasse com um "todavia" e continue a linha dois do v. 37: "O
Pai... Ele m esm o deu testem unho em m eu favor; todavia não tendes a
Sua palavra perm anente em vossos corações". Neste versículo, a impli-
cação é que o crente tem a palavra de Deus perm anente em seu coração;
o mesm o se diz da palavra de Jesus em 15,7.
39. Vós. Isto é dirigido a "os judeus" (v. 18). No Papirus Egerton 2 (ver abai-
xo, p. 458) é dirigido a "os líderes do povo" - um a interessante confirma-
ção do que João tem em m ente quando fala de "os judeus".
Vós examinais. O rígenes, Tertuuano, Irineu e a Vulgata tom am o verbo
como um im perativo, desafiando os judeus a exam inarem as Escrituras.
Entretanto, o indicativo se ajusta m elhor a linha de argum ento, e a maio-
ria dos com entaristas m odernos o prefere. M.-E. Boismard dedicou um
artigo a este versículo em RB 55 (1948), 5-34, rem ontando a duas tra-
dições textuais, am bas oriundas do m esm o suposto original aramaico:
(a) "Vós examinais as Escrituras porque pensais ter a vida eterna";
(b) "Examinais as Escrituras nas quais credes ter vida". Em sua opinião,
o presente texto é um a combinação de ambas. O verbo "exam inar" repre-
senta o verbo hebraico técnico daras usado para o estudo da Escritura.
Escrituras/nas quais credes ter a vida eterna. No pensam ento hebraico, a Lei
era p or excelência a fonte de vida. No tratado Pirqe Aboth 2,8 diz: "Aque-
le que tem adquirido as palavras da Lei tem adquirido para si a vida do
m undo por vir"; 6,7: "G rande é a Lei para dar aos que a praticam vida
neste m undo e no m undo p or vir". Em G13,21; Rm 7,10, Paulo argum en-
ta contra tal concepção. Uma vez mais, este versículo de João teria signi-
ficado especial se a festa em que o discurso é enunciado for tida como o
Pentecostes, a festa da Lei.
19 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado (c o n tin u a ç ã o ) 453

eterna. Isto é omitido em algumas versões (OL, OS, Armênia) e no Papirus


Egerton 2.
40. não quereis. A recusa é deliberada. C om parar Mt 23,37, onde o julgamento
se dirige contra Jerusalém incrédula: "C om o eu gostaria de reunir vossos
filhos; todavia, não o quisestes".
41. louvor. A mesma palavra grega, doxa, abarca o "lou vor" dos homens e
a "glória" que se recebe de Deus; ver o contraste no v. 44. A inutilida-
de do louvor e vangloria humanos são reafirmados em 7,18; 8,50; 12,43.
Barrossk descreve este amor em TS 18 (1957), 549, assim: "A m or pela glória
dos homens é am or de um homem por uma (falsa) grandeza, grandeza
desfrutada à parte de Deus. ... Este am or de algo independentemente de
Deus impede a oferta que Deus faz de si mesmo em Cristo".
42. eu sei que vós, povo/e em vossos corações... Isto tem sido traduzido um tanto
literalmente para preservar a palavra grega que equilibra as duas linhas. A
sintaxe reflete uma frequente construção aramaica na qual o sujeito da sen-
tença subordinada é atraída para a principal sentença como um predicado:
"Eu sei que vós, povo, em vossos corações não possuís o amor de Deus".
amor de Deus. O genitivo pode ser possessivo, significando amor de Deus pe-
los homens (W ikenhauser, SB), ou objetivo, significando o amor do homem
por Deus (L agrange , Bernard , L ightfoot, Barrett, Bültmann ). O primeiro
significado é o encontrado no restante do evangelho; ele parece mais pro-
vável com base na analogia do v. 38, i.e., o amor de Deus como a palavra
de Deus deve permear alguém, caso reconheça e aceite Jesus. Todavia, po-
de-se formular a tese em prol do último significado com base na analogia
de 3,19, i.e., a falha do homem em am ar a Deus é um traço de ele preferir
as trevas. Alguns sugeriríam que o evangelista deixou a frase ambígua
para abarcar ambos os significados. O amor de Deus era a essência da Lei
(Lc 10,27); quando Jesus fala de "os judeus" que não a possuíam, ele está
conduzindo ao tema de que eles têm traído Moisés (vs. 4 5 4 7 ‫ ;־‬também 7,19).
43. que algum outro venha em seu próprio nome. Provavelmente, esta é uma
observação geral similar às predições sinóticas de "os falsos messias" que
haviam de vir em o nome de Jesus (Mc 13,6.22). P. W. S chmiedel em Encyclo-
pedia Bíblica (1902), 2551, tomou isto com o uma referência a Simon Bar-
kochba (ben Kosiba), o líder da Segunda Revolta Judaica (d.C. 132-135),
e assim usou este versículo para datar o evangelho em meados do 2“
século. Os Padres da Igreja costum avam tom ar o versículo com o uma
referência específica ao Anticristo.
44. quando aceitais louvor uns dos outros. A mesma razão é fomentada pela in-
credulidade do Sinédrio em 12,43. E característico da literatura rabínica
de dar a m aior deferência a rabinos famosos.
454 O Livro dos Sinais

não buscais aquela glória... É provável que aqui tam bém Jesus esteja impli-
citamente apresentando-lhes o exemplo de Moisés, pois este buscava a
glória de Deus e recebia a glória de Deus (Ex 34,29).
[Dews], Isto é omitido pelas testemunhas mais importantes, inclusive no Vati-
canus e ambos os papiros Bodmer. Não obstante, Bernard, I, p. 256, mostra
como isso podería ter sido facilmente perdido por omissão de algum copista.
45. 0 que vos acusa. Literalmente, um particípio presente: "alguém vos acu-
sando". Não é impossível que o evangelista pensasse em Moisés como já
havendo começado sua acusação; entretanto, BDF, § 3392b, salienta que
tal particípio tem a m esm a função futura como o verbo anterior: "Eu
serei vosso acusador".
Moisés. No final de Deuteronôm io (31,19.22), lemos que Moisés escreveu
um cântico que serviría como testem unha contra os israelitas se violas-
sem a aliança; e deveras todo o Livro Mosaico da Lei visava a servir de
testem unha (31,26).
46. a meu respeito que ele escreveu. Isto poderia ser um a referência a um a passa-
gern específica como Dt 18,18; ou poderia ser um a referência m ais geral
ao cum prim ento de Jesus de toda a Lei.

COMENTÁRIO

S e g u n d a D iv is ã o (a ). J esu s e n u m e r a a s te s te m u n h a s q u e e n d o s s a m su a
r e i v in d i c a ç ã o (5,31-40)

A p ó s Jesus fazer su a reiv in d icação d e a tu a r n o sá b a d o e ex p licar esta


d u p la atu ação , p o d e m o s s u p o r u m a tácita objeção d a p a rte d e "o s ju-
d e u s", objeção com o aq u ela q u e se to m a ex p ressa em 8,13: "V ós sois
vossa p ró p ria teste m u n h a , e v o sso te ste m u n h o n ã o p o d e se r verifica-
d o ". Q u em p o d e d a r teste m u n h o d a reiv in d icação d e Jesus d e q u e sua
obra d e d a r v id a e d e ju lg a r é a p e n a s o q u e ele v iu o P ai fazer? Jesus
re sp o n d e a esta d ific u ld a d e legal com u m a rg u m e n to q u e reco n h ece as
p rescrições d a Lei (ver n o ta so b re v. 31). Ele tem o te ste m u n h o d e vá-
rias teste m u n h a s co m o exigido p e la Lei, e e n u m e ra estas te ste m u n h a s
em q u a tro "estro fes" d isc u tid a s abaixo. É im p o rta n te e n fa tiz a r q u e as
q u a tro teste m u n h a s são, n a m e n te d e Jesus, a p e n a s q u a tro d iferen tes
asp ecto s d o te ste m u n h o d e " O u tro " , isto é, o Pai, e m se u favor.
(1) Vs. 33-35. O p rim e iro a a p re s e n ta r o te s te m u n h o é João Ba-
tista, q u e reflete o te s te m u n h o d o P ai p o rq u e ele é " u m h o m e m
19 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado (c o n tin u a ç ã o ) 455

e n v ia d o p o r D eu s" 0 ,6 ). Q u e Jesus u s o u o B atista e m se u s a rg u m e n -


tos co m as a u to rid a d e s d e Je ru sa lé m é v isto em M c 11,27-33. P a ra o
c o n te ú d o d o te s te m u n h o d o B atista, o leito r tem a p e n a s q u e refletir a
riq u e z a d e su a d o u trin a so b re a q u e le q u e v e m em 1,19-34 e 3,27-30.
(2) V. 36. A se g u ir, os m ilag re s q u e rea liz a Jesus são a p re se n ta d o s
co m o te s te m u n h o . E stes ta m b é m re p re s e n ta m o te ste m u n h o d o Pai,
p o is fo ra m d a d o s ao F ilho p e lo Pai. O a p e lo às o b ras d e Jesus tam b é m
tem u m p a ra le lo na tra d iç ã o sin ó tica, e, é a in d a m ais in te ressa n te , em
c o n ex ão co m o B atista. O B atista n a p risã o o u v iu d e as obras d e Jesus
(M t 11,2), e e n tã o ele e n v ia se u s d isc íp u lo s a in q u irir se Jesu s é aq u ele
q u e v em . Jesu s lhe re s p o n d e , a p e la n d o p a ra os m ilag re s q u e ele tem
re a liz a d o (11,5).
(3) Vs. 37-38. T erceiro, Jesus m en cio n a q u e o p ró p rio P ai tem d a d o
teste m u n h o . N ã o está claro se Jesus está p e n s a n d o em u m a ocasião
p a rtic u la r. H á q u e m su g ira a cena b atism al; m as rec o rd a m o s q u e em
João, d ife ren te d o s sinóticos, n e n h u m a v o z falo u d e sd e o céu. Se u m a
teo fan ia está im p lícita, é m ais p ro v á v e l u m a cena v e te ro te sta m e n tá ria
(ver 12,41); aliás, co m o se in d ic o u n a resp e c tiv a n o ta, m u ito d o q u e é
d ito n o v. 37 se a d e q u a à cen a d o Sinai. É p o ssív el q u e a id eia seja qu e
no Sinai D eu s d e u te ste m u n h o acerca d e Jesus n o se n tid o d e q u e Ele
d e u a Lei, e esta Lei m osaica testifica acerca d e Jesus (ver v. 46). M as a Lei
já n ã o p e rm a n e c e v iv a n o s corações d e "o s ju d e u s" e p o r isso eles não
creem . T o d as estas ob serv açõ es são b a se a d a s na p o ssib ilid a d e d e qu e
está im p lícita u m a ocasião p a rtic u la r d o te ste m u n h o d o Pai, u m a teofania
ex tern a. M as é a in d a m ais p ro v á v e l q u e tem o s aq u i u m a referência
m ais g eral ao te s te m u n h o in te rn o d o P ai no in te rio r d o s corações d o s
h o m e n s (v. 38). O te ste m u n h o d e D eus, p o is, consistiría n a q u a lid a d e
a u to -a u te n tic a d o ra d e S ua v e rd a d e , u m a v e rd a d e im e d ia ta m e n te reco-
n h ecív el ao s c h a m a d o s a crer. C o m c erteza, esta é a id eia e m l jo 5,9-10:
"E ste é o te s te m u n h o q u e D eu s tem d a d o so b re Seu Filho. A q u ele qu e
crê n o F ilho d e D eu s tem este te ste m u n h o e m seu ín tim o " (ver tam b ém
l jo 2,14). A m aio ria d o s c o m e n tarista s m o d e n o s (B ernard, B arrett,
D odd) se in clin a p a ra tal in te rp re ta ç ã o . Bligh, p. 132, u n e n o ssa ter-
ceira e q u a rta te s te m u n h a s co m o u m só, p o n d o a p rim e ira p a rte do
v. 37 co m o 36 e a ú ltim a p a rte d o v. 37 m ais 38 com o 39.
(4) V. 39. A q u a rta te s te m u n h a são as E scritu ras (em p a rtic u la r,
p ro v a v e lm e n te a Lei) q u e e v id e n te m e n te p ro c e d e m d e D e u s e assim
c o n s titu e m o u tro a sp ec to d o te ste m u n h o d o Pai. Q u e Jesus u s o u as
456 O Livro d o s S inais

Escrituras para desafiar as autoridades e provar sua reivindicação por


certo que é evidente na tradição sinótica (Mc 12,10.35-37). A Igreja pri-
mitiva logo reuniu uma coleção de testemunhos, ou passagens vetero-
testamentárias cumpridas por Jesus, como um reflexo da perspectiva
cristã de que as Escrituras veterotestamentárias têm o dom da vida,
porquanto apontam para Jesus.
Estas são as testemunhas que apresentam Jesus; e, todavia, o do-
loroso resultado da prova (v. 40) é que "os judeus" não estão dispôs-
tos a crerem em Jesus. Temos salientado acima que as testemunhas
evocadas em João têm paralelos nos argumentos que Jesus apresenta
contra as autoridades judaicas na tradição sinótica. Portanto, é piau-
sível que as raízes deste discurso joanino possam ser encontradas na
tradição primitiva das palavras de Jesus. Mas é óbvio que em nenhum
lugar dos evangelhos sinóticos encontramos uma apologética lógica
e completamente desenvolvida em prol das reivindicações de Jesus.
Portanto, podemos supor que o que temos em João é o produto da
apologética baseada nos próprios argumentos de Jesus, porém agora
sistematizados. A totalidade do capítulo 5 se adequa muito bem com
o propósito do evangelho para persuadir os judeus-cristãos a deixa-
rem a sinagoga e professarem abertamente sua fé em Jesus.

Segunda Divisão(b). Jesus ataca diretamente a incredulidade de "os judeus"


(5,41-47)

A incredulidade em face destas testemunhas seria motivada pelo


orgulho; é uma incredulidade deliberada. Jesus é agora retratado como
a atacar as raízes desta incredulidade com vigor. Se ela era um proble-
ma intelectual, poderia ser combatida por meio de explicação; mas real-
mente é um problema da orientação moral da vida e do amor de Deus,
e assim ela é combatida por acusação profética. O que "os judeus" estão
rejeitando não é um enviado de Deus - aceitam de bom grado os mes-
sias auto-proclamados (v. 43). Na verdade estão rejeitando a doação ou
dedicação da vida de alguém a Deus ("o amor de Deus" em 42; buscan-
do a glória de Deus em 44) que é a exigência implícita da mensagem de
Jesus. A negação de aceitar Jesus é realmente obrar por orgulho.
Se Jesus reage energicamente contra "os judeus" por não irem a
ele, é porque ele vê isto como uma rejeição à Deus, não porque esteja
interessado em seu próprio louvor (v. 41). Jesus não está interessado
19 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado (c o n tin u a ç ã o ) 457

em q u a lq u e r g ló ria p e sso a l q u e n ão seja co m o a g ló ria d o Pai (44).


A ssim , p o r in clu são , o fim d o d isc u rso re to m a o tem a com q u e com e-
çou. N o v. 18, os ju d e u s p ro te s ta ra m q u e Jesus in co rria e m arro g ân cia
ao fazer-se ig u a l a D eu s; m a s a re iv in d ic a ç ã o d e Jesus só é u m reflexo
d a g ló ria d o Pai. S ua g ló ria é a g ló ria d o U n ig ê n ito d o P ai (1,14); é o
P ai (17,1.5) q u e m glorifica o Filho. O v. 43 e x p re ssa esta m esm a ideia
d e o u tra m an e ira : Jesus n ã o v eio em se u p ró p rio n o m e, e sim no n o m e
d e se u P ai, o n o m e q u e o Pai lh e d e u (17,11.12) e o q u a l ele m an ifesta
ao s h o m e n s (17,6.26).
O s ú ltim o s v e rsíc u lo s d o d isc u rso (45-47) a ta c a m "o s ju d e u s " em
seu p o n to m ais sen sív el. Justificam su a rec u sa d e cre r em Jesus
em n o m e d e su a le a ld a d e a M oisés (9,29), e, n o e n ta n to , M oisés os
c o n d e n a rá p o r se u fracasso em crer. N o p e n s a m e n to ju d aico (StB, II,
p. 561), a fu n çã o d e M oisés foi o d e in te rce sso r d ia n te d e D eu s p elos
ju d e u s; a g o ra ele se to rn a rá o a c u sa d o r deles.
O a ta q u e d e Jesus a "o s ju d e u s " é forte, m a s n ã o m ais forte d o
q u e os a ta q u e s d e Jesus aos farise u s n a tra d iç ã o sinótica. Se o d isc u rso
em João é u m a c o n d e n a ç ã o d o tra d ic io n a lism o d o s escrib as e a h o n ra
p re s ta d a ao s g ra n d e s m e stre s ju d e u s (ver n o ta so b re v. 44 - a situ a-
ção rab ín ica é p o s te rio r a o te m p o d e Jesus, m as é h e rd e ira d o p e n sa-
m e n to d o s e scrib as e fariseu s), e n c o n tra m o s c o n d e n aç õ e s sim ilares d a
tra d iç ã o estéril e a b u sc a d e lo u v o r e m M t 23. N ã o é a c id e n ta l q u e a
c o n d e n a ç ã o m ais v io le n ta d a s a u to rid a d e s ju d aic as a p a re ç a n o s d o is
e v a n g e lh o s, João e M a te u s, asso c ia d a m ais e stre ita m e n te com a ques-
tão ju d aic o -c ristã. A h o s tilid a d e aos cristão s q u e se to rn a ra m política
a b e rta d a sin a g o g a d e p o is d a d e stru iç ã o d o te m p lo le v o u estes d o is
e v a n g elista s a e n fa tiz a r esta ten sã o n a s p a la v ra s d e Jesus e aplicá-la
aos se u s p ró p rio s tem p o s.
N ã o o b sta n te , Bultmann , p. 204, in d ica q u e esta p a ssa g e m em
João é p a ssív e l d e u m a a p licação m ais a m p la . A b u sc a p o r lo u v o r hu-
m a n o é u m tem a u n iv e rsa l, p o is g ra n je a r a e stim a d o s se m e lh an te s é
u m m eio d e g a ra n tir se g u ra n ç a em si m esm o . M as o d esafio ap re se n -
ta d o p o r Jesu s s e m p re ab ala a se g u ra n ç a . S o m en te q u a n d o a se g u ra n -
ça p e sso a l d e u m h o m e m é a b a la d a , ele se p ro n tific a a fazer u m ato de
fé q u e e x p re sse su a d e p e n d ê n c ia d e D eus. A reb elião d e "o s ju d e u s"
c o n tra isto é u m a reb e liã o c o m u m a to d o o m u n d o .
D esejam o s n o ta r q u e, p o r raz õ e s q u e d isc u tire m o s ao tra ta rm o s
d o c a p ítu lo 7, m u ito s e stu d io so s ju n ta m u m a p a rte d o d iálo g o em
458 O Livro dos Sinais

7 a 5,47. B ernard, B ultmann, Schnackenburg uniríam 7,15-24 aqui;


B lich vincularia 7,19-24 ao anterior.

A d e n d o : P a p y r u s E g e r to n 2

E m 1935, d o is e s tu d io s o s b ritâ n ic o s , Η . I. B ell e T. C. S keat,


p u b lic a ra m a lg u n s F r a g m e n t o s d e u m e v a n g e l h o d e s c o n h e c i d o d e u m
p a p iro d o M u s e u B ritân ico q u e é d a ta d o d e m e a d o d o 2Q sé cu lo
A .D . B raun , J e a n T h é o l, 1, p p . 404-6, a p re s e n ta o te x to g re g o , e, n a s
p p . 87-94, u m a d isc u s s ã o e x a u stiv a d a re la ç ã o d e s te " e v a n g e lh o d e s-
c o n h e c id o " co m João. T êm -se c o n s id e ra d o trê s p o s s ib ilid a d e s : (a) O
e v a n g e lh o n e s te p a p y r u s E g e rto n é u m a d a s fo n te s d e João. D ev e-se
le m b ra r q u e a d a ta a s s in a la d a cim a é p a ra a c ó p ia d o p a p ir o , n ã o
p a ra a c o m p o siç ã o o rig in a l d a o b ra. (b) T a n to e ste e v a n g e lh o c o m o
João e x tra íra m d e u m a fo n te c o m u m , (c) E ste e v a n g e lh o e x tra i os
v e rs íc u lo s d e Jo ão q u e c o m b in a m co m o s v e rs íc u lo s d o s sin ó tic o s e
o u tro m a te ria l. É o ú ltim o p o n to d e v ista q u e te m os m a io re s se g u i-
d o re s h o je (L agrange , J eremias, D odd , B raun ). P o d e -se d e b a te r se o
a u to r d o e v a n g e lh o d e s c o n h e c id o u s a E g e rto n 2 c o m o u m a im p o r-
ta n te te s te m u n h a p rim itiv a d o tex to d e João. A q u i e s tá u m e x c e rto
d o F ra g m e n to 1, v e rso , lin h a s 5-19:

E v o lta n d o ao s líd e res d o p o v o , ele falo u e sta p a la v ra :


"E x a m in ais as E sc ritu ra s
Jo 5,39 n a s q u a is c re d e s te r v id a -
elas testificam a m e u resp e ito .
N ã o p e n se is q u e e u v im p a ra se r v o sso a c u sa d o r
d ia n te d e m e u Pai;
Jo 5,45 u m q u e v o s a c u sa é M oisés
em q u e m te n d e s d e p o s ita d o v o ssas e sp e ra n ç a s" .
Jo 9,29 M as então disseram : "Bem, sabem os q u e D eus falou a M oisés,
m a s n e m m e sm o sa b em o s d e o n d e tu v e n s" . Je su s lh es
re s p o n d e u :
"A g o ra v o ssa in c re d u lid a d e v o s a c u sa "...

N o tar-se-á q u e h á so m e n te d iferen ças m ín im a s d e João, com exce-


ção d a ú ltim a linha, q u e p o d e ser u m re su m o d e 5,46-47. D em o s o u tra
p o rção d o P a p y ru s E gerto n 2 acim a, n a p. 343, e m relação c o m 3,2.
19 · Jesus e o Sábado: Discurso sobre sua atuação no Sábado (c o n tin u a ç ã o ) 459

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20. JESUS NA PÁSCOA:
- A MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES
(6, 1 ‫ ־‬15 )

6 1D ep o is d isto Jesu s a tra v e sso u o M ar d a G alileia [p ara a m arg e m ]


d e T ib eríad es, 2m as u m a g ra n d e m u ltid ã o c o n tin u o u s e g u in d o -o p o r-
q u e v ira m os sin ais q u e ele e sta v a re a liz a n d o so b re o s d o e n te s. 3A ssim
Jesu s su b iu ao m o n te e a sse n to u -se ali com se u s d isc íp u lo s. 4E stav a
p ró x im a a P áscoa, a festa d o s ju d e u s.
5Q u a n d o Jesus le v a n to u o s o lh o s, ele a v isto u u m a g ra n d e m u ltid ã o
v in d o p a ra ele; e n tã o d isse a Filipe: " O n d e c o m p ra re m o s p ã o p a ra
to d as estas p e sso a s c o m e rem ? " (6N a tu ra lm e n te , n a v e rd a d e e le e stav a
p le n a m e n te cônscio d o q u e esta v a p a ra fazer, to d a v ia fez esta p e rg u n -
ta p a ra te sta r a reação d e F ilipe). 7Ele rep lico u : " N e m m e sm o co m os
salário s d e d u z e n to s d ia s p o d e ria m o s c o m p ra r p ã e s su fic ie n tes p a ra
d a r a cad a u m d eles u m b o c a d o ".
8U m d o s discípulos d e Jesus, A ndré, irm ão d e Sim ão P edro, disse-lhe:
4"H á aq u i u m m oço q u e tem cinco p ã e s d e c e v a d a e u m p a r d e peixes
secos, m as o q u e é isso p a ra tan to s?" 10D isse Jesus: "D izei ao p o v o q u e
se asse n te m ". O ra, o n ú m e ro d e h o m e n s era cerca d e cinco m il, m as
h av ia ah a b u n d â n c ia d e g ram a p a ra q u e e n c o n trasse m a s s e n to .1,Jesus
en tã o to m o u os p e d a ç o s d e p ão , d e u g raças e p a sso u -o s ao re d o r, aos
q u e e sta v a m a sse n ta d o s ali; e fez o m esm o com o p eix e seco - ta n to o
q u a n to q u eriam . 12Q u a n d o ficaram satisfeitos, ele d isse aos d iscípulos:
"A ju n tai os p e d a ço s q u e so b ra ra m p a ra q u e n a d a p e re ç a ". 13E assim
re u n ira m d o z e cestos cheios d e p e d a ç o s d e ix a d o s p e lo s q u e h a v ia m se
a lim e n ta d o com os cinco p ã e s d e cev ad a.

5: d iss e ; 8: o b servo u ; 12: fa lo u . No tempo presente histórico.


20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 461

14O ra , q u a n d o o p o v o v iu o[s] sinal[s] q u e ele rea liz a ra , co m eçaram


a d izer: "E ste, se m d ú v id a , é o P ro feta q u e h a v ia d e v ir ao m u n d o ".
15À v ista d isso , Jesus c o m p re e n d e u q u e v iria m e o a rre b a ta ria m p a ra
fazê-lo rei, e n tã o re tiro u -se ao m o n te so zin h o .

NOTAS

6.1. Depois disto. Uma vaga referência sequencial (meta tauta - ver nota sobre
2,12). N ão se explica como Jesus regressou à Galileia.
[para a m argem]. Esta frase, encontrada no Códices Bezae e Koridethi, C ri-
sóstomo e a versão Eth, pode ser original (ver Boismard, RB 64 [1957],
369). O problem a sobre o lugar onde a multiplicação ocorreu será dis-
cutido abaixo sobre o v. 23. Se o relato joanino originalm ente situou a
multiplicação nas proxim idades do Tiberíades na praia sudeste do lago, a
om issão da frase indicando esta localização pode representar um a tenta-
tiva do copista de conform ar João com Lc 9,10, que situa a localização em
Betsaida, no litoral nordeste. Marcos não partilha da tradição de Lucas,
pois em Mc 6,45 só depois da multiplicação que os discípulos atravessam
o lago para Betsaida. A invenção de um a segunda Betsaida se harm oniza
com Marcos e Lucas, de m odo que a multiplicação podería ter ocorrido
em Betsaida e os discípulos poderíam subsequentem ente rem ar para o
outro lado, é docum entado em C. M cC own, JPOS 10 (1930), 32-58. Anti-
gas fontes peregrinas, começando com Aetheria, associam a multiplica-
ção com H eptapegon ("Sete Fontes") ou a m oderna et-Tabgha no litoral
noroeste (ver H. Sknès, Estúdios Eclesiásticos 34 [1960], 873-81).
de Tiberíades. Sem a frase entre colchetes temos dois genitivos em sequên-
cia, d an d o am bos o nome do lago. Marcos e M ateus falam de "o Mar
da Galileia"; Lc 5,1 fala de "o Lago de Genesaré (do nom e hebraico
Chinnereth; Josefo e 1 Macabeus falam de "o Lago [ou água] de Gennesar");
no NT, som ente João (também 21,1) lhe dá o nom e de Tiberíades. Visto
que H erodes acabara de com pletar a construção da cidade de Tiberíades
nos anos 20, provavelm ente só foi depois do tem po de Jesus que o nome
"Tiberíades" veio a ser com um para o lago. O nom e se encontra na lite-
ratura judaica do 1“ século (Josefo; Oráculos Sibilinos).
2. viram os sinais. O im perfeito do verbo theorem parece ser a m elhor reda-
ção; este verbo foi usado em 2,23, onde a visão dos milagres de Jesus
pro d u ziu um entusiasm o que não m ereceu a aprovação de Jesus. Na ver-
dade, som ente um sinal realizado sobre o enferm o foi registrado como
462 O Livro dos Sinais

ocorrendo na Galileia (4,46-54). Os estudiosos que favorecem um a Fonte


de Sinal para João considerariam este versículo como oriundo daquela
fonte e indicando um a coleção m aior de sinais dos quais o evangelista
apenas selecionou alguns.
3. ao monte. Este "m onte" na Galileia, sem pre com o artigo definido, aparece
am iúde na tradição sinótica e é associado a im portantes eventos teoló-
gicos (Sermão do Monte, Mt 5,1; cham ado dos Doze, Mc 3,13; aparição
pós-ressurreição, Mt 28,16). Não há como localizá-lo, embora a tradição o
associe ao litoral noroeste do lago e a um a colina cham ada "o M onte das
Beatitudes". Os evangelhos poderíam ter sim plificado diversas localida-
des em um a que, como "o m onte", pensava-se ser um Sinai cristão. Jo 6
tem o mesmo tema que o Sermão de M ateus sobre o M onte, a saber, um
contraste entre Jesus e Moisés.
assentou-se ali. Jesus, como os rabinos, usualm ente assentava-se para ensi-
nar (Mc 4,1; 9,35; Mt 5,1; Lc 4,20). Nesta cena, contudo, João não mencio-
na ensino, como faz Mc 6,34.
com seus discípulos. Estes foram os últim os adm itidos em Samaria, em 4,33.
No relato sinótico da multiplicação para 5.000 estão envolvidos os Doze
(Mc 6,30 - "os apóstolos" que são os Doze de 6,7). Os Doze são os "disci-
pulos" de João? Ver nota sobre v. 60 abaixo.
4. Páscoa. Na presente sequência, parece ter transcorrido tem po considerável
desde a festa de 5,1, se for Pentecostes, dos Tabem áculos, ou a Páscoa
precedente. Esta é a segunda Páscoa m encionada em João (ver #5 no grá-
fico, p. 472ss do comentário).
5. levantou os olhos... avistou. Mesmos verbos que em 4,35.
uma grande multidão. A falta de um artigo é estranha, especialm ente se
esta for a mesma m ultidão m encionada no v. 2. Em #2 do gráfico (ver
p. 472ss) vemos que a tradição sinótica não é harm oniosa em am bas as
multiplicações, pois há referência tanto a um a m ultidão que o está se-
guindo com ele ou como a um a m ultidão que vem a ele. Provavelm ente,
estas não devem ter sido as m ultidões dos peregrinos pascais, visto que
o lago não era a rota dos peregrinos da Galileia para Jerusalém; além do
mais, os peregrinos estariam portando alimento.
vindo para ele. Nos vs. 2-3, a m ultidão parece já estar com ele. Isto pode ser
um reflexo do tema teológico de ir a Jesus (ver p. 267).
Filipe. Ver nota sobre 1,43. Aqui, ele é estreitam ente associado com André
(v. 8), como tam bém em 12,21-22. Se a cena se dá em Betsaida, como em
Lucas, um a abordagem a Filipe é lógica, um a vez que ele era de Betsaida.
Onde compraremos pão para todas estas pessoas comerem? Uma pergunta similar
se encontra no relato mateano da multiplicação para 4.000 (ver gráfico, #7a,
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 463

p. 472ss). Ele é reminiscente de Nm 11,13 e da pergunta feita por Moisés a


Iahweh (Mateus é mais próximo): “Onde vou obter comida para dar a todas
estas pessoas?" Outros paralelos entre Jo 6 e Nm 11 incluem:
N m 11,1: pessoas m urm urando (Jo 6,41-43);
N m 11,7-9: descrição do m aná (Jo 6,41);
N m 11,13: "Dá-nos carne para com erm os" (Jo 6,51ss. - m as na LXX Nú-
m eros não usa sarx como faz João);
Nm 11,22: "ajuntar-se-ão [synagein| para eles todos os peixes [opsos] do
m ar, que lhes bastem ?" (Jo 6,9 usa opsarion; 0 12 usa synagein).
6. testar a reação de Filipe. Em outro lugar nos evangelhos, este verbo peirazein
tem um sentido pejorativo de tentação, provação, trapaça. Este versícu-
lo é um parênteses que constitui um a tentativa redacional de antecipar
qualquer implicação de ignorância da parte de Jesus.
7. salários de duzentos dias. Literalmente, "duzentos denários"; em Mt 20,2,
um denário vale o salário de um dia.
9. moço. Paidarion é um dim inutivo duplo de pais, do qual paidion é dim inu-
tivo norm al (4,49). Em 2 Reis, paidarion é usado para designar Geazi, o
servo de Eliseu (4,12.14.25; 5,20).
pães de cevada. Pão de trigo era mais comum; pães de cevada eram mais
baratos e serviam para os pobres. Lc 11,5 parece indicar que os três pães
eram considerados como a refeição de um a pessoa. Literalmente, "bolos"
é "pães".
peixes secos. Opsarion é um diminutivo duplo de opson (alimento cozido comido
com pão); o significado se tomou mais especificamente "peixe", especialmen-
te "peixe seco ou em conserva". Ver o uso de opsos citado sob o v. 5 acima.
10. se assentem. Literalmente, "se deitem , reclinem".
homens. Em todos os relatos das m ultiplicações (ver gráfico, #9, p. 472ss), só
os hom ens são num erados, como M ateus especifica.
11. Para variantes menores neste versículo, ver Boismard, RB 64 (1957), 367-69.
deu graças. Em ambos, o grego clássico e o koinê secular, eucharistein tem este
significado; é distinguido de eulogein, "abençoar" (o verbo da multiplica-
ção sinótica para 5.000; ver gráfico, # llc , p. 472ss). E óbvia a relação com
o pensam ento de que a eucaristia é um ato de ação de graças. Entretanto,
J.-P. A udet, RB 65 (1958), 371-99, ressalta que o uso de eucharistein-eucharistia
no NT reflete o uso judaico de bãrak-berãkãh, "bendizer, abençoar". Ele
m antém que só foi no 2“ século d.C. que o tema "ação de graças" começou
a dom inar os círculos cristãos quando as antigas raízes foram esquecidas.
Portanto, embora por conveniência tenham os traduzido eucharistein e
eulogein diferentem ente, não enfatizam os diferença no significado no que
diz respeito à ação de Jesus na multiplicação. Podem os ver que ambos
464 O Livro dos Sinais

termos são intercambiáveis em Mc 8,6-7. O tratam ento que D odd dá a eu-


charistein em Tradition, p. 205, é prejudicado por não ter em conta a contri-
buição de A udet. Em geral, João prefere eucharistein m esm o onde não haja
nuanças sacramentais, p. ex., 11,41. Jesus poderia ter falado em d ar graças
ou abençoar; era um a benção judaica típica sobre o pão: "Abençoado és
tu, ó Senhor, rei do universo, que faz brotar o pão da terra".
passou-os ao redor. Jesus m esm o distribui os pães justam ente como ele faz
na última ceia (Gráfico, #1 le); o núm ero da m ultidão, contudo, sugere
que isto é um a simplificação e que os sinóticos são corretos em envolver
os discípulos na ação.
12. ficaram satisfeitos. Este é o único uso de empimplasthai em João (ver D odd,
Tradition, p. 2042). Tanto ela como a palavra sinótica chortazesthai ("ficar
satisfeito, cheio" - gráfico, #12, p. 472ss) são usadas na LXX para traduzir
o hebraico áb'. O term o sinótico tem um a m atiz que lem bra m ais clara-
m ente as prom essas divinas de abundância no AT (S 37,19; 81,16; 132,15).
Chortazesthai aparece pejorativam ente em Jo 6,26: "Estais olhando para
mim... porque comestes dos pães e vos saciastes".
Ajuntai. Synagein, que nos relatos da multiplicação é usada som ente em
João (gráfico, #13, p. 472ss), aparece no relato veterotestam entário para
colher o m aná (Ex 16,16ss.). Uma palavra da mesma raiz, synaxis, serviu
como o nome da prim eira parte da reunião eucarística cristã.
pedaços. A palavra grega klasma é usada na Didaquê (9,3.4) para o pão eu-
carístico.
sobraram. Léon-D ufour, p. 492w, adverte a não confundir isto com "o rema-
nescente" do pensam ento veterotestam entário, pois a raiz grega perissl
nunca traduz a raiz hebraica s’r que é usada para "rem anescente". Te-
mos aqui um a questão não de rem anescente, e sim de excedente.
13. doze. Há quem sugira que havia um cesto para cada um dos Doze, mas
esta seria a prim eira vez que os discípulos, em João, se identificariam
com os Doze. Ver nota sobre v. 67, § 26.
alimentado com os cinco pães de cevada. João presta pouca atenção ao peixe, di-
ferentemente de Marcos (gráfico, #13, p. 472ss), porque somente o pão será o
sujeito do discurso. O verbo "alimentar-se" (bibrõskein) é usado para prepa-
rar o caminho para a discussão de "alimento" (brõsis ) em 6,27.55.
14. sinalls]. Há forte evidência, inclusive no Vaticanus e P75, para se ler um
plural. Entende-se que o plural poderia ter sido m udado em singular
para tornar clara a referência à multiplicação; enquanto que o oposto é
difícil de explicar. Todavia, o plural poderia ser um eco do v. 2.
0 Profeta que havia de vir ao mundo. Mais provavelm ente, esta é um a refe-
rência à expectativa do Profeta-como-Moisés (ver p. 228s.), pois no v. 31
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 465

estas pessoas estabeleciam um a conexão entre o alimento suprido por Jesus


e o m aná dado por Moisés. Entretanto, se os vs. 14-15 foram em algum mo-
m ento independentes da narrativa da multiplicação, um a referência mais
geral a um profeta é possível. Em 9,17, milagres se associam a um profeta;
tam bém Lc 7,16; 24,19. Ainda se sugere outra possibilidade pela qualifica-
ção "que havia de vir ao m undo". Como temos ressaltado (na nota sobre
1,27), "aquele que há de vir" é uma descrição do profeta Elias; aqui, Jesus
m ultiplicou pão de cevada como fez Eliseu seguidor de Elias (2Rs 4,42-44).
Em lR s 19, um claro paralelo foi traçado entre Elias e Moisés, e a expec-
tativa popular, neste versículo de João, pode representar um amálgama
dos dois personagens.
15. viríam. Isto pode refletir o uso pleonástico semita de "vir"; ver ZGB, § 363.
0 arrebatariam. Esta é um a palavra violenta com conotações de força.
para fazê-lo rei. Em certos setores do judaísm o, esperava-se que o Messias
ou o ungido rei davídico viesse na Páscoa. A aparente identificação do
Profeta e o rei (messiânico) é difícil, pois 1,21 e 7,40-41 distingue entre o
Profeta (-como-Moisés) e o Messias. Em Q um ran, a vinda de um profeta
precedia a do Messias (ver p. 228s.). Lacrange, p. 166, e G lasson, p. 29,
ressaltam que as passagens que distinguem Profeta e Messias são loca-
lizadas na Judeia e contra o pano de fundo do ensino dos fariseus, que
teriam idéias m ais precisas do que os galileus ignorantes. G lasson, p. 31,
m enciona que F ilo (Life of Moses 1 158) se refere a Moisés como rei.
retirou-se. A m aioria das testem unhas lê "voltou para cima", talvez num a
tentativa do copista de suavizar um a fuga embaraçosa por Jesus. "Re-
tirou-se" é atestado no Codex Sinaiticus, o latino, e os Padres latinos.
Bligh, p. 16, vê na "subida" de Jesus ao monte uma prefiguração de sua
exaltação, m as o verbo usado não dá evidente apoio a isto.
ao monte. Tinha ele afastado do m onte m encionado no v. 37? Ou devemos
im aginar sua posterior subida ao monte, enquanto seus discípulos des-
ceram? Ver a sugestão no com entário de que os vs. 14-15 originalm ente
não pertenciam à cena da multiplicação.

C O M EN TÁ R IO

A ordem dos capítulos

Em p a rte a lg u m a a teoria d a re o rd e n a ç ã o d o s c a p ítu lo s em João


(v er In tro d u ç ã o p. 8s.) tev e m ais se g u id o re s d o q u e n a in v ersã o d os
466 O Livro dos Sinais

c a p ítu lo s 5 e 6. N ão só os q u e a c re d ita m n a re d istrib u iç ã o n u m a g ran -


d e escala (Bernard, Buetmann), m as in clu siv e os q u e fazem com m aio r
m o d eração a reo rd e n a çã o em geral (W íkenhauser, Schnackenburg)
m u d a a o rd em d esses capítulos. A s razõ es p a ra a re o rd e n a çã o são pa-
tentes. N o cap ítu lo 5, Jesus estev e em Jerusalém ; m as n o início d o 6 ele
está n a G alileia e n u n c a so m o s in fo rm a d o s com o ele cheg o u ali. N o en-
tanto, se in v ertéssem o s 5 e 6 terem o s u m a m elh o r sequência geográfica:
final d o 4: Jesus está em C an á d a G alileia
6: Jesu s está n o lito ral d o M ar d a G alileia
5: Jesus so b e a Je ru sa lé m
7: Jesus já n ão p o d e tra n s ita r p ela Ju d e ia , e n tã o p e rc o rre
G alileia
T o d av ia, a se q u ên c ia n ão é p e rfe ita , m esm o com a red istrib u iç ã o .
N ã o h á tra n siç ã o e n tre a cena e m C a n á e a cena n o M ar d a G alileia, tal
co m o v im o s em 2,12.
O utros arg um entos são apresentados em prol da reordenação.
A referência aos "sinais" em 6,2 não é clara (ver a respectiva nota). Há
q uem m an ten h a qu e tal referência faria m elhor sentido se seguiu um a
cura na Galileia, a saber, aquela em C aná no capítulo 4; todavia, lem bra-
m os q u e aquela cura foi o p erad a à distância e não vista p o r u m a m ultidão.
A referência em 6,2 provavelm ente deva ser explicada com o u m a obser-
vação geral com o a descrição d o entusiasm o d os galileus em 4,45. O utro
arg u m en to ap resentado p ara p ô r 6 antes d e 5 é que a Páscoa, q u e está pró-
xima em 6,4, p o d eria então ser u m a festa anônim a qu e ocasiona a viagem
d e Jesus a Jerusalém em 5,1. T odavia, isto não se ad eq u a bem com a indica-
ção d o tem p o d e 4 (ver notas sobre 4,35) q u e ap aren tem en te ocorreu pouco
depois da Páscoa; se for seguido p o r 6, então transcorreu quase u m a n o e
não p o d e h aver m uita sequência entre a cura em 4 e o entusiasm o em 6.
O u tro s a rg u m e n ta m em p ro l d a in v e rsã o d o s c a p ítu lo s com b ase
na p ro x im id a d e e n tre 5 e 7. O c a p ítu lo 5 tra ta d e u m a c u ra n o sá b a d o
em Jeru salém , e, na cen a d e Je ru sa lé m d e 7,21, Jesus se refe re a isto
com o se fosse algo recen te. P o r o u tro lad o , 5,18 se refere ao desejo
d o s ju d e u s d e m a ta r Jesus, e este tem a com eça o 7. N ã o o b sta n te , em
c o n tra p a rtid a , p o d e -se a rg u m e n ta r q u e 7,3 im p lic a q u e n o p a s sa d o
recen te Jesu s n ã o e ste v e em Je ru sa lé m o p e ra n d o m ilag re s, e esta im -
plicação é e s tra n h a , se 7 se g u e im e d ia ta m e n te a p ó s 5.
A re o rd e n a ç ã o p r o p o s ta é a tra e n te em a lg u n s a sp e c to s, p o ré m
n ã o c o n v in c e n te ao to d o . N ã o h á e v id ê n c ia d e m a n u s c rito p a ra ela,
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 467

e n ã o d e v e m o s e sq u e c e r q u e h á o u tra s in d icaçõ es q u e fav o recem a


o rd e m a tu a l. P o r e x e m p lo , e m n o sso c o m e n tá rio so b re 7,37-39, indi-
c a re m o s q u e a s e q u ên c ia d o m a n á e m 6 e o tem a d a á g u a e m 7 p arece
ser u m a re fe rê n c ia d e lib e ra d a a p a ssa g e n s v e te ro te sta m e n tá ria s com
a m e sm a se q u ên c ia. N e n h u m a re o rd e n a ç ã o p o d e reso lv e r to d o s os
p ro b le m a s g eo g ráfico s e cro n o ló g ico s em João, e re o rd e n a r com base
n a g e o g ra fia e c ro n o lo g ia é d a r ên fa se in d e v id a a alg o q u e n ã o p arece
ter sid o d e m a io r im p o rtâ n c ia p a ra o e v an g elista.

Relação com os sinóticos

A m u ltip licação d os p ães é o ú nico m ilagre d o m inistério público de


Jesus q u e é n a rra d o n os q u a tro evangelhos. O s relatos são m arcantem en-
te sim ilares, e n o s d e p a ra m o s u m a vez m ais com o problem a se o relato
d e João é o u n ão d e p e n d e n te d o s relatos sinóticos. A lguns, com o M end-
ner, p ro cla m a m com insistência q u e a d ep en d ên cia é óbvia; o utros, com o
D odd e E. D. Johnston, n eg am a dep en d ên cia. H aenchen pensa qu e a
tradição in d e p e n d e n te é bem p o sterio r e veio ao evangelista n u m a form a
que ev o lu iu co n sideravelm ente e a q u al ele retocou ligeiram ente; Bult-
mann v ê a m ão d o evangelista so m en te nos vs. 4 ,6 ,1 4 ,1 5 ; W ilkens insiste
que a obra d o ev angelista p o d e ser vista em q u ase cada versículo e qu e é
im possível se p ara r u m a tradição original com pleta d a re-elaboração do
evangelista. W ilkens p en sa q u e o p o n to d e vista d o evangelista é intei-
ram en te q u erig m ático e não histórico. A q u estão é b astante im p o rtan te
p ara a u to riz a r u m tratam en to com pleto, pois realm ente o pro b lem a da
d ep en d ên cia e d o v alo r d a tradição d e João acarreta u m tópico aqui.
A o c o m p a ra r João e os sinóticos, p a re c e q u e tem o s q u e ap licar u m
p rin c íp io d e ju lg a m e n to co rreto , a saber: se o q u a rto e v an g elista é có-
pia d e u m o u d e v á rio s d o s rela to s sinóticos, p o is a m aio r p a rte d o qu e
ele re g istra d e v e rá a c h ar-se n a s p a la v ra s d o s rela to s sinóticos. Se h á di-
feren ças e m João, e n tã o n a teo ria d a có p ia h a v e ria a lg u m m o tiv o , teo-
lógico o u literário , q u e p o d e ex p licar p o r q u e se in tro d u z iu u m a m u-
d an ça. É v e rd a d e q u e n u n c a p o d e m o s e sta r certo s d e q u e, ao copiar, o
e v a n g elista n ã o fez m u d a n ç a s p o r m ero c a p rich o e sem q u a lq u e r razão
a p a re n te ; m a s a ceitar esta p o ssib ilid a d e co m o u m p rin c íp io e xplicativo
é re d u z ir an á lise à irra cio n a lid a d e. Se e n c o n tra rm o s u m co n sid eráv el
n ú m e ro d e d ife ren ç a s e m elab o ração , seq u ên cia e d e ta lh e, e tais di-
feren ças n ã o têm a p a re n te explicação, o m ais lógico será s u p o r q u e o
468 O Livro dos Sinais

relato d e João n ã o foi c o p ia d o d o s sinóticos, p o ré m re p re se n ta tra d içã o


in d e p e n d e n te . N esse caso, tere m o s q u e p e s a r o v a lo r e a n tig u id a d e da
trad ição jo an in a c o n tra os d a tra d içã o sinótica.
A co m p aração e n tre João e os sinóticos é com plexa p e lo fato d e q u e
M arcos e M ateu s terem d o is relatos d a m u ltip licação d o s p ã e s e peixes,
u m p a ra cinco m il h o m en s e u m se g u n d o p a ra q u a tro m il h o m en s, en-
q u a n to Lucas tem a p e n as u m relato. T em -se a rg u m e n ta d o d e sd e a m ui-
to tem p o se a se g u n d a m u ltip licação é rea lm e n te u m in cid en te se p a ra d o
ou sim p lesm en te u m a form a v a ria n te d o m esm o incidente. N o s e g u n d o
caso, teríam o s em M arcos e M ateu s u m fen ô m en o sim ilar ao q u e se encon-
tra n o P en tateu co, o n d e se reg istram d iv erso s relato s d o m esm o evento,
a m iú d e lad o a lado. H á v ário s a rg u m e n to s p a ra se c o n sid e rar os d o is re-
latos e m M arcos e M ateu s com o reg istra d o s v a ria n te s d a m esm a m ulti-
plicação. (a) O p rim e iro relato se en co n tra e m M c 6,30-44; o se g u n d o , em
8,1-9. Em geral, L ucas seg u e M arcos m ais d e p e rto , p o ré m L ucas n a d a
tem q u e c o rre sp o n d a àq u ela seção em M arcos q u e se d e sen ro la e n tre
6,45 e 8,26. Em o u tra s p alav ras, Lucas se se p ara d e M arcos d e p o is d o
p rim eiro relato d a m u ltip licação e se ju n ta ao b re v e esboço m a rc a n o de-
po is da s e g u n d a m ultiplicação. D elib erad am en te, L ucas teria o m itid o
esta seção, p o r a c re d ita r q u e a s e g u n d a m u ltip licação fosse rep etitiv a?
O u L ucas u sa u m a v ersão m ais a n tig a d e M arcos q u e n ã o c o n tin h a este
m aterial? (b) N o se g u n d o relato d a m u ltip licação n ão há a m ais leve su-
g estão d e q u e os d iscíp u lo s esta v a m v e n d o alg o q u e já tin h a m visto. Sua
p e rp le x id a d e so b re o n d e a m u ltid ã o recebería a lim en to é m ais difícil
d e explicar se já tivesse te ste m u n h a d o u m a m ultiplicação. (c ) M c 6,30-
8,37 co n stitu i u m a p assag em m u itíssim o p arecid a com 8,1-26. N ã o só
am b as com eçam com u m a m ultiplicação, m as tam b é m os in cid e n te s su-
cessivos são em g ra n d e m e d id a os m esm o s em seu s tem a s (ver T aylor,
Mark, p p . 628-32). É possível q u e ten h a m o s aq u i d u a s exposições de
m aterial com plexo, cada u m a b a sea d a n a m u ltip licação d o s p ães, a ago-
ra am b as são p re se rv a d a s em M arcos e M ateus.
N ão p o d e m o s p re te n d e r reso lv er este p ro b le m a co m p licad o , m as
p o d e m o s tra b a lh a r com o q u e p a re c e se r a h ip ó te se m ais p ro v á v e l,
a sab er, q u e M arcos e M a te u s n o s d ã o d o is rela to s d a m esm a m u i-
tiplicação. D ev em o s in d a g a r q u a l d e le s é m ais a n tig o , o p rim e iro
relato (M arco s-M ateus-L ucas) o u o se g u n d o (M arco s-M ateu s)? A m -
bos, H ähnchen e D odd se in clin am p a ra a h ip ó te se d e q u e o se g u n d o
é o m ais an tig o ; u m d o s p o n to s em q u e se a p o ia se u a rg u m e n to é q u e
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 469

o n ú m e ro m e n o r d e p e sso a s está e n v o lv id o no s e g u n d o relato . T oda-


v ia, p o d e -s e a rg u m e n ta r q u e o u so d e eucharistein, n o se g u n d o relato,
in d ica u m a m a io r c o n fo rm id a d e com a litu rg ia e u carística e, p o rta n to ,
u m e stá g io p o s te rio r d a tra d içã o , d o q u e o eulogein d o p rim e iro relato
(v er g ráfico , # l l c , p. 472ss). Se tem o s d e tra ta r com tra d içõ e s v arian -
tes, p a re c e p ro v á v e l q u e n e n h u m rela to p o d e ser d e sig n a d o in toto
co m o m ais a n tig o d o q u e o o u tro ; os d e ta lh e s in d iv id u a is d e cad a u m
terá d e se r a v a lia d o , e a lg u m a s v ezes d e ta lh e s q u e p arecem se r m ais
a n tig o s se e n c o n tra rã o em u m relato , a lg u m a s v ezes n o o u tro .
D e v e m o s c o m p a ra r João com to d o s os rela to s sin ó tico s e não
m e ra m e n te com M arcos, a in d a q u a n d o M arcos a m iú d e seja to m a d o
co m o a fo n te d o s o u tro s rela to s sinóticos. O co rre, p o r e x em p lo , q u e no
p rim e iro re la to d a m u ltip lic a ç ão , M ateu s e L ucas c o n c o rd a m em m ui-
tos d e ta lh e s c o n tra M arcos, e sp ec ia lm e n te à m a n e ira d e o m issão ; e L.
C erkaux a rg u m e n ta q u e h á d u a s fo rm a s d a p rim e ira m u ltip licação ,
M ateu s-L u cas e M arcos, n ã o d e p e n d e n te s u m a d a o u tra , m as a m b a s
d e p e n d e n te s d e u m a fo n te c o m u m {,1La section des pains", Synoptische
Studien [W id e n h a u se r F estschrift; M u n iq u e: 1954], p p . 64-77; tam b ém
RecLC, I, p p . 471-85). N o se g u n d o re la to d a m u ltip lic a ç ão , ele p en sa
q u e M a te u s é m ais o rig in a l d o q u e M arcos e m m u ito s d etalh es.

Sequência ern João comparada com a de Marcos

C o m eçarem o s nossa co m p aração com a sequência geral d o s eventos


que seg u em a m ultiplicação. C om o já m encionam os, Lucas om ite m uito
do q u e está em M arcos; aq u i M ateu s é ap ro x im ad a m en te o m esm o que
M arcos; p o rta n to , será suficiente co m p a rar João e M arcos. M uitos anos
antes, J. W eiss n o to u a lg u n s paralelo s in teressan tes na sequência entre
M arcos e João; e estes têm sido ex p a n d id o s p o r G ärtner, p p . 6-8. D esen-
v o lv en d o isto a in d a m ais, p o d e m o s estabelecer esta com paração:

Multiplicação para 5.000 Jo 6,1-15 M c 6,30-44


Caminhando sobre 0 mar 16-24 45-54
(E n tão s a lta n d o p a ra o fim d o se g u n d o relato d a M u ltip licação
q u e se e n c o n tra e m M c 8,1-10)
Pedido por um sinal 25-34 8,11-13
Observações sobre 0 pão 35-59 14-21
Fé de Pedro 60-69 27-30
Tema da paixão; traição 70-71 31-33
470 O L ivro d o s Sinais

Agora, obviamente, esta tabela de paralelos esconde importan-


tes diferenças. Por exemplo, as observações sobre o pão, em joão,
constituem um discurso completo, e isto não se dá em Marcos. Mas,
admitindo que cada tradição desenvolveu diferentemente o conteúdo
das partes do mesmo esquema, cremos que a similaridade geral da se-
quência dificilmente pode ser fortuita. A ordem em João parece muito
de perto à reconstrução que T aylor (Mark, p. 631) faz da ordem do ma-
terial pré-marcano atualmente dispersos pelos capítulos 6-8 de Mar-
cos. É possível que, ao copiar a tradição sinótica, o quarto evangelista
reconhecesse a similaridade do primeiro e segundo relatos da multi-
plicação em Marcos-Mateus e, por um processo de eliminação, encon-
trou a sequência que estudiosos modernos consideram mais original.
Mas seria muito menos complicado assumir que o quarto evangelista
reservasse para si esta sequência mais primitiva (assim G ärtner, p. 12).
Teria ele a cópia de uma forma pré-canônica de Marcos que continha
somente uma multiplicação? Tal sugestão foi feita acima para explicar
a ordem de Lucas; mas se ambos, Lucas e João, eram dependentes de
um Marcos pré-canônico, deve-se notar que Lucas e João n ã o têm a
mesma sequência de eventos. Talvez uma possibilidade mais frutífera
seja que o quarto evangelista recorreu a uma tradição independente
que tinha a mesma sequência geral como Marcos pré-canônico.
Isso é tudo o que podemos dizer sobre a sequência de eventos.
Comparemos então os detalhes dos relatos atuais da multiplicação.
Fazemos isto em um gráfico comparativo (pp. 472-475) o qual solid-
tamos ao leitor que estude cuidadosamente antes de prosseguirmos
com nossas observações.

O r e la to d e J o ã o d a m u l t i p l i c a ç ã o e o s r e l a to s s i n ó t i c o s I e I I

Em #1,5(?), 7b, 8 ,9 ,1 0 (grama) e 13, bem como ao ser seguido pelo


relato do caminhar sobre o mar, o relato de João parece mais semelhan-
te ao relato sinótico I. Em contrapartida, em # 3 ,4 ,6 ,7a, 10 (a s s e n t a r - s e )
e 11c, o relato de João parece mais semelhante ao relato sinótico II.
Assim, é difícil defender a teoria de que João representa uma cópia di-
reta de ambos os relatos sinóticos. Mesmo que se proponha que o evan-
gelista amalgamou detalhes de I e II, deve-se admitir que não há es-
quema ou padrão reconhecível ao que copia. Um dos poucos itens que
poderíam ser explicados como empréstimo misto é #10.0 que importa
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 471

e s p e c ia lm e n te é q u e João tem u m n ú m e ro d e d e ta lh e s q u e não se


e n c o n tra e m n e n h u m re la to sin ó tico , co m o v isto e m #1, 5, 7, 8, l i e ,
12, 13. E m b o ra a lg u n s d e ste s d e ta lh e s p o ssa m se r ex p lic ad o s com o
teo lo g ic a m e n te m o tiv a d o s, n e m to d o s p o d e m . A lém d o m ais, é extre-
m a m e n te difícil, se p re s s u p o rm o s co m o có p ia, c o n sid e ra r a o m issão
d e João d e d e ta lh e s sin ó tico s q u e p u d e s se m ter c o rro b o ra d o os tem as
teo ló g ico s jo an in o s. A o m issã o d e " lu g a r d e s e rto " em #1 é curiosa,
v isto q u e te ria p re p a r a d o o c a m in h o p a ra o tem a d o m a n á em Jo 6,31.
A d e m a is, v isto q u e o re la d o jo an in o tem m a tiz e s eu carísticas, p o r q u e
o e v a n g e lis ta o m itiria o p a rtir d o p ã o em #11 d? A su g e stã o d e q u e o
e v a n g e lista está p e n s a n d o n o c o rd e iro p a sca l cujos o ssos n ã o p o d ia m
ser q u e b ra d o s (Ex 12,46; N m 9,12; Jo 19,36) n ão é co n v in cen te. João
ta m b é m o m ite o o lh a r p a ra o céu em #1 lb , e esta ação p o d e ria ter sido
ta m b é m p a rte d o a n tig o rito eu carístico . H á u m a ex plicação lógica
p a ra to d o s e ste s asp ecto s, o m issõ es, a d içõ es e p a ra lelo s, a sab er, q u e
o e v a n g e lista n ã o c o p io u d o s sin ó tico s, m a s tin h a u m a tra d iç ã o inde-
p e n d e n te d a m u ltip lic a ç ã o q u e e ra p a re c id a , p o ré m n ã o id ên tica q u e
as tra d iç õ e s sin ó ticas.
A ép o ca re la tiv a d a tra d iç ã o d e João, q u a n d o c o m p a ra d a com o
Sinótico I e II é difícil d e fixar. Em a lg u n s d e ta lh e s, co m o o d o d in h ei-
ro e m #7b, o re la to d e João p a re c e ser p o s te rio r ao sinótico #1 (para
M arcos, 200 d e n á rio s são su ficien tes; p a ra João, a so m a é in a d e q u a d a
- c o n tu d o , isto p o d e se r m ais u m a q u e stã o d e ex ag ero e sp o n tâ n e o
d o q u e d e d e s e n v o lv im e n to real). T o d av ia, e m o u tro d e ta lh e , com o
#7a, o re la to d e João p a re c e se r b e m m ais an tig o ; p o is é difícil cre r q u e
u m a tra d iç ã o p o s te rio r re g istra ria u m a a firm a ç ão q u e p o d e p arecer
a trib u ir ig n o râ n c ia a Jesus. (O u o a u to r o u o re d a to r final d e João re-
vela q u e ele é in c o n fo rm a d o com e sta a p a re n te ig n o râ n c ia d a p a rte de
Jesus, e in se re o v. 6 c o m o p a rê n te se s p a ra a te n u a r a d ific u ld a d e ). Por-
tan to , p ro v a v e lm e n te a so lu ç ã o é a m esm a a q u e c h e g am o s a v a lia n d o
as ép o c as re la tiv a s d o sin ó tico I e II: em c a d a u m a d a s trê s tra d içõ e s há
m u ito s d e ta lh e s a n tig o s, e e m c a d a u m a h á d e ta lh e s q u e fo ram elabo-
ra d o s n o c u rs o d a tra n sm issã o . T a m p o u c o a p ró p ria tra d iç ã o d e João
é in te ira m e n te h o m o g ê n e a , co m o m o stra u m e s tu d o d e #2. P o rtan to ,
cad a d e ta lh e teria d e se r a v a lia d o sob se u s p ró p rio s m érito s.
472 O Livro dos Sinais

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Todos: Os discípulos tomam a iniciativa. Jesus toma a iniciativa, preocupado em Jesus toma a iniciativa, preocupado em
Mc-Mt: preocupados com a última höra. alimentar a multidão que tem estado alimentar a multidão. -

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20 · Jesus na Páscoa: A m u ltip lica çã o d o s p ã e s

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(Somente Lc, como João, menciona o m u lh e r e s e c ria n ç a s
número neste ponto; Mc-Mt o men- (Ambos mencionam o número no fim
cionam no fim do relato). do relato).
473
474 O Livro dos Sinais

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20 · Jesus na Páscoa: A m u ltip lic a çã o d o s p ã e s 475

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476 O Livro dos Sinais

O relato de João e a multiplicação nos evangelhos sinóticos individualmentes

O b se rv a m o s q u e, a o fala rm o s d o s re la to s sin ó tico s I e II, po-


d e m o s e sta r sim p lific a n d o d em ais; p o r e x em p lo , a lg u n s e stu d io so s
e n c o n tra m d u a s tra d iç õ e s e m I, a sa b er, a d o E v a n g e lh o d e M arco s e a
d e M ateu s-L u cas. P o rta n to , c o m p a re m o s João e c a d a e v a n g e lh o sinó-
tico a fim d e e sta b e le c e rm o s a q u e stã o a in d a m ais m e tic u lo sa m e n te .
E m a lg u n s d e ta lh e s, João, in d isc u tiv e lm e n te , se a p ro x im a de
M arcos I, p o r e x em p lo , a fig u ra d e 200 d e n á rio s e m #7b. João se asse-
m elh a com M arcos I e II em #1 l g ao m e n c io n a r a d istrib u iç ã o d o s pei-
xes. T o d av ia, m esm o n e ste s casos, n ã o h á id e n tid a d e : o v o c a b u lá rio é
d ife ren te e m # l l g , e o m o n ta n te d a so m a su ficien te d ife re e m #7b. Em
p a ssa g e n s o n d e M arco s te m m a te ria l q u e M a te u s-L u ca s n ã o tem , p o r
ex em p lo , # 3 ,1 0 , João n ã o rev ela a fin id a d e com M arcos.
E m #4, 7a, João te m a sp ec to s p e c u lia re s q u e tê m a fin id a d e com
M a te u s II, e m b o ra o u tra v e z co m d ife ren ç a s d e v o c a b u lá rio . N ã o há
n a d a em João se g u e ig u al aos a sp ec to s d e M a te u s II e m #8, 9 ("além
d e m u lh e re s e crian ças"). João d ife re d e M a te u s I a in d a m ais d o q u e
d e M arcos I.
L ucas e João são p a re c id o s e m q u e a m b o s tê m s o m e n te u m rela-
to d a m u ltip lic a ç ão , p o ré m n ã o p a rtilh a m d e m u ita sim ila rid a d e de
d e ta lh e (ver #2, 9). O s característico s n o tá v e is q u e João p a rtilh a com
M arcos I n ã o se e n c o n tra m em L ucas.
A ssim , n o ssa c o m p a raç ã o d e João e os sin ó tico s in d iv id u a is con-
firm a a c o n c lu sã o a q u e c h e g a m o s n a s d isc u ssõ e s m ais g e ra is n a In-
tro d u ç ã o , a sab er, q u e o re la to jo an in o n ã o foi c o p ia d o d e n e n h u m
d o s e v a n g elh o s sin ó tico s n e m c o lig id o d e d iv e rso s e v a n g e lh o s. N ão
é im p o ssív e l q u e o re d a to r final te n h a a g re g a d o a o re la to jo a n in o ba-
sicam en te in d e p e n d e n te d e ta lh e s d e M arcos, p o r e x e m p lo , 200 d e n á -
rios. E n tre tan to , é ig u a lm e n te p o ssív e l q u e tais d e ta lh e s fo ssem p a rte
d a tra d içã o jo an in a d e s d e seu e stá g io id en tificá v e l m ais a n tig o .

Avaliação de detalhes peculiares a João

N o relato d e João, d a m ultiplicação, h á u m a o rien tação teológica


ex atam en te com o h á nos relatos sinóticos. A lg u n s estu d io so s, especial-
m en te os q u e p e n sam q u e o relato d e João foi c o p ia d o d a tra d içã o sinóti-
ca, u sa m esta o rien tação p a ra explicar to d o s os d e ta lh es p ró p rio s a João,
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 477

d e ta lh es q u e c o n sid e ram com o adições criativas, em vez d e u m eco da


trad ição p rim itiv a . Esta é u m a q u e stã o delicada. T u d o o q u e p o d e m o s
fazer é e s tu d a r os d e ta lh es p e c u liare s a João e salien tar a m otivação
teológica o n d e ela existe. N ã o crem o s q u e to d o s os d e ta lh es peculiares
p o ssu a m o tiv ação teológica; m as, m esm o o n d e existem , não p o d e m o s
a priori co n clu ir qu e, p o r isso, foram in v e n ta d o s pelo evangelista p a ra
a d e q u a r s u a teologia. D eve-se e n fatizar ser p e rfe ita m e n te lógico p e n sar
q u e a teo lo g ia cristã p rim itiv a foi erig id a so b re o q u e realm en te estava
co n tid o n a trad ição , e q u e essa é a raz ã o p o r q u e os d e ta lh es se ajustam
b em à teologia. O s se g u in te s d e ta lh es im p o rta n te s são p ecu liares a João.
(1) O cenário da Páscoa em #5. O relato sinótico I parece fixar im-
p licitam en te o tem p o d a m ultiplicação na p rim av era, q u a n d o havería
relva v e rd e no solo. A liás, n a sequência q u e segue o relato sinótico II
p o d e h a v e r u m a referência im plícita à Páscoa na p assag em em qu e Jesus
a d v e rte co n tra o ferm en to d o s fariseus (Mc 8,14-21). Tal alu são seria m ui-
to a p ro p ria d a à Páscoa, q u a n d o se a d q u iria p ão sem ferm ento. E ntretan-
to, a in tro d u ç ã o explícita q u e João faz d o tem a da Páscoa p o d e ser de-
sig n ad a a p re p a ra r p a ra o d iscu rso q u e seg u irá n o cap ítu lo 6. Bultmann,
p. 1566, p e n sa q u e a referência pascal foi ad icio n ad a pelo R edator que
ad icio n o u ao cap ítu lo os vs. 51-59. P ode-se d izer em favor d e sua teoria
que, co m o v im o s n as respectivas notas, há d iv erso s aspectos peculiares
na in tro d u ç ã o à m ultiplicação (T iberíades no v. 1; sinais no v. 2; m ulti-
d ão n o s vs. 2 e 5) q u e su g erem u m a história com plexa p a ra os vs. 1-4.
E ntretanto, o tem a pascal e n q u a d ra não só os vs. 51-59, m as tam bém a
m enção d o m a n á n o v. 31, pois o m an á é p ro em in en te m e n te m encio-
n ad o n a litu rg ia d a refeição pascal. Esta liturgia tam bém m enciona a
travessia d o M ar V erm elho q u e pode ser associada com o c am in h ar sobre
as ág u a s em 6,16-21 (ver d iscu ssão abaixo).
Se as o bservações d e A ilehn G uildinc; sobre as leituras na sinagoga
são co rretas (ver p. 518 abaixo), en tão entrelaçadas na p ró p ria estru tu ra
d o d iscu rso d e Jesus, são m u ito s d o s m otivos q u e estavam sen d o lidos
nas sin ag o g as d u ra n te o p erío d o d a Páscoa. Ela indicaria qu e o evan-
gelista elab o ro u artificialm ente o discurso sobre as bases d e tais tem as
to m ad o s d a s leitu ras na sinagoga; m as, ao m enos em princípio, se há
alg u m a b ase histórica p a ra a cena no capítulo 6, en tão Jesus estaria sim -
p lesm en te se rep o rta n d o em seu discurso a idéias veterotestam entárias
que b em sabia estavam frescas na m en te d o p o v o nesta ocasião d o ano.
Para m ais p ossíveis reflexões sobre o ritual judaico d a Páscoa, ver 6,28ss.,
478 O Livro dos Sinais

com o d iscu tid o abaixo (p. 501ss.)· A ssim , a m enção d a Páscoa certam ente
e n q u a d ra to d a a p erspectiva teológica d o capítulo. Sua presença n ão é
u m ato isolado d o redator; e n a d a há qu e co n trad ig a a p o ssib ilid ad e de
q u e a cena foi o riginalm ente conectada à Páscoa.
(2) A identificação de Filipe e André em #7, 8. E stu d io so s re p e te m
categ o ricam en te q u e a in tro d u ç ã o d e n o m es p e sso a is n u m a n a rra tiv a
é fre q u e n te m en te o sin al d e u m im ita d o r ta rd io te n ta n d o d a r à su a
obra u m a r d e a u te n tic id a d e . Se isto é ap licáv el a João, e n tã o se a d m iti-
ria, p o rém , q u e o e v a n g elista o esco lh eu e stra te g ic a m en te , p o is F ilipe e
A n d ré estão e n tre os m em b ro s m ais o b sc u ro s d o s D oze. O fato d e q u e
am b o s estes d isc íp u lo s e ra m h o n ra d o s n a Á sia M en o r, o locus trad icio -
nal d o E v an g elh o d e João (ver n o ta so b re 1,43) é d ig n o d e c o n sid e ra-
ção. A lg u n s p e n sa m q u e esses n o m e s fo ram in tro d u z id o s p a ra fazer o
e v a n g elh o m ais aceitável n a Á sia M enor; o u tro s são m ais in clin a d o s
a p e n s a r d e q u e esses d isc íp u lo s e sta v a m o rig in a lm e n te e n v o lv id o s
n a n a rra tiv a e a m em ó ria d isto foi p re s e rv a d a so m e n te n a tra d iç ã o d e
u m a c o m u n id a d e q u e tin h a especial d e v o ç ão p a ra co m eles.
(3) Os detalhes especiais de #8. João especifica q u e u m moço (paidarion)
tin h a cinco p ã e s d e ce v ad a e p eix es (opsarion ) secos. N a d a h á d e im -
p la u sív e l so b re q u a lq u e r d e ste s d e ta lh e s, m a s o "m o ç o " e o s " p ã e s
d e c e v a d a " ev o cam o rela to d e E liseu e m 2Rs 4,42. R e c o rd am o s q u e o
N T estab elece u m p a ra le lism o e n tre Jesus e as fig u ra s e stre ita m e n te
c o n e cta d as d e E lias e E liseu. Bultmann , p. 1573, q u e stio n a as conexões
d o re la to d e João com o re la to e m 2 Reis, m a s os p a ra le lo s são su r-
p re e n d e n te s . U m h o m e m v e m a E liseu com v in te pães de cevada (um
d o s q u a tro u so s d e " c e v a d a " co m o u m a d je tiv o n a LXX). E liseu diz:
"D á ao s h o m e n s p a ra q u e c o m a m ". H á u m se rv o p re s e n te (aq u i de-
sig n a d o c o m o leitourgos, m a s co m o paidarion cinco v e rsíc u lo s a n te s, e a
ú ltim a é su a d e sig n a ç ã o n o rm a l - v e r n o ta so b re v. 9). O se rv o in d a g a
"C o m o v o u p ô r isto d ia n te d e cem h o m e n s? " - u m a q u e s tã o sim ila r
ao v. 9 d e João. E liseu re p e te a o rd e m d e d a r o a lim e n to ao s h o m e n s,
e co m em e a in d a so b ra algo.
O u tro p a n o d e fu n d o p a ra a m en ção d e João d e p ã o d e c e v ad a foi
p ro p o sta p o r D aubh, p. 42, e G ärtner, p. 21. Em R t 2,14, Boaz d á a R ute
a lg u m g rão to sta d o p a ra com er; ela co m e u e se sacio u e alg o sobrou.
E m bora o g rão u su a lm e n te seja tid o com o d e trigo, n o m o m e n to a ação
se d á n a colheita d e cevada; e estes e stu d io so s su g e re m q u e o q u e estav a
en v o lv id o era o p ã o d e cevada. O teor teológico esta ria n a in te rp re ta ç ã o
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 479

rab ín ica d a cen a d e R u te co m o u m a a n te c ip a ç ã o d o b a n q u e te m essiâ-


nico. E m n o sso ju ízo , esta asso ciação com R u te é tê n u e dem ais.
U m terc eiro item q u e m en c io n a João é o "p eix e seco". A qui, os
ichthys d a tra d iç ã o sin ó tica p o d e m ser c o n sid e ra d o s o te rm o m ais
teo ló g ico , v isto q u e , n o C ristia n ism o p rim itiv o (2y século, p o ré m com
ra íz e s m a is a n tig a s?), su a s letras fo rm a ra m u m acró stico p a ra C risto.
C o m o sa lie n ta m o s n a s n o ta s so b re vs. 9 e 5, o opsarion d e João p o d e ría
ec o ar N m 11; m a s isto p a re c e fo rç a d o d e m a is. M endner a rg u m e n ta
q u e e s ta p a la v ra n ã o é im p o rta n te em João, p o is foi a d ic io n a d a p elo
m e sm o r e d a to r q u e a d ic io n o u o c a p ítu lo 21, o n d e ela a p a re c e n os vs.
9 ,1 0 e 13. E n tre ta n to , o a rg u m e n to seria o inverso: q u e m foi resp o n sá -
vel p e lo 21 n ã o foi re sp o n sá v e l p e lo u so d e opsarion em 6; p o is em 21 a
p a la v ra é u s a d a p a ra p eix e p e sc a d o re c e n te m e n te , e n q u a n to e m 6 tem
o m e s m o s e n tid o clássico d e a lim e n to e m co n serv a.
(4) Os aspectos eucarísticos em #11,12,13. A p a re n te m e n te , em to d o s
os rela to s d a m u ltip licação h á u m forte m o tiv o eucarístico. Este m ilagre
n ão se aju sta ao e sq u em a n o rm a l d o s m ilag res d e Jesus n a trad ição sinó-
tica (v er n o sso e stu d o , "The Gospel Miracles", BCCT, p p . 184-2001), o n d e
in clu siv e o s m ilag res so b re a n a tu re z a é tra ta d a com o ato s d e p o d e r es-
tab elecen d o o rein o d e D eu s co n tra o d o m ín io d e S atanás. S e g u n d o os
ev an g elistas, p o r q u e Jesus o p e ra este m ilagre? O m otivo d e com paixão
n ão p a re c e ser a p rin c ip al explicação; p o is os e v an g elh o s enfatizam qu e
os d iscíp u lo s n ã o e n te n d e ra m a im plicação d a m ultiplicação (Mc 6,52;
8,14-21), e n ão teria tid o n e n h u m a d ificu ld ad e em e n te n d e r a p a rtir d a
com paixão. A ssim , m esm o na trad ição sinótica, este m ilagre p arece se
a p ro x im ar d o conceito d e u m m ilagre com o sinal, com o algo d e sig n a d o a
e n sin a r ao s q u e o p resen cia vam acerca d a p esso a d e Jesus. A p aren tem en te,
os ev an g elistas sinóticos o v iam com o u m sinal m essiânico cu m p rin -
d o as p ro m e ssa s v etero testam en tárias d e q u e n os d ias fu tu ro s D eus ali-
m en taria seu p o v o com a b u n d â n cia (ver n o ta sobre v. 12). P or exem plo,
ao p ro m e te r ao s exilados em B abilônia u m n o v o êxodo, D euteroisaías
(49,9ss.) ecoa as p a la v ra s d o Senhor: "eles p a sta rão n os cam inhos, e em
to d o s os lu g ares altos terão o seu pasto. N u n ca terão fom e n em sede".
O ra , c o m o o rela to d a m u ltip lic a ç ão foi tra n sm itid o n a tra d içã o
d o e n s in o d a c o m u n id a d e cristã, su a co n ex ão com o a lim e n to especial
d o p o v o d e D eu s, a e u c aristia , foi rec o n h ecid a. U m rela n ce n o gráfico
p a ra #11 m o stra os e stre ito s p a ra le lo s n o g e sto e re d a ç ã o e n tre os re-
lato s sin ó tico s I e II e as d escriçõ es d a ú ltim a ceia. A exp licação m ais
480 O Livro dos Sinais

p lau sív e l é q u e a re d a ç ã o d o s rela to s d a m u ltip lic a ç ão foi c o lo rid a pe-


las litu rg ia s e u c arístic a s fam iliares às v á ria s c o m u n id a d e s . G. Boobyer
(JTS 3 [1952], 161-71) te m a rg u m e n ta d o c o n tra a in flu ê n c ia e u c a rís-
tica so b re os rela to s sin ó tico s d a m u ltip lic a ç ão , p o ré m d u v id a m o s se
os p a ra le lo s e m n o sso gráfico p o d e m ser e x p lic ad o s d e o u tro m o d o .
E. G oodenough (JBL 64 [1945], 156ss.), em c o n tra p a rtid a , v a i lo n g e
d e m a is q u a n d o m a n té m q u e o re la to I d a m u ltip lic a ç ã o e ra a n a rra -
tiv a eu c arístic a o rig in al. C o m o u m e x e m p lo final d o to m e u carístico ,
p o d e m o s m e n c io n a r q u e a m u ltip lic a ç ão foi u s a d a na a rte d a s cata-
c u m b a s n o 2“ sécu lo p a ra sim b o liz a r a E u caristia, e e p itá fio p o s te rio r
ao 2a sécu lo , d e A bercius em H ie ró p o lis, m e n c io n a os p e ix e s ( ichthys ),
sig n ifican d o C risto , e o p ã o e o v in h o d a E u caristia, to d o s ju n to s.
N ão su rp re e n d e, pois, q u e o relato q u e João faz d a m ultiplicação
tam b ém ap resen ta u m a certa a d a p ta ç ão à cena d a instituição d a Euca-
ristia. A in d a q u e João n ão registre a cena d e instituição (ver 6,51), não
v em os razão p a ra su sp eitar q u e as igrejas d a Á sia M enor, p resu m ív el-
m ente o a u d itó rio d o Q u a rto E vangelho, não estivessem fam iliarizadas
com u m a litu rg ia eucarística p rim itiv a tal com o a p rese rv a d a e m P aulo
-Lucas e M arcos-M ateus. A s a d ap taçõ es eucarísticas n o relato jo an in o d a
m ultiplicação são diferentes d a s ad ap taçõ es nos relatos sinóticos (#11 d),
com o p o d eriam o s esp erar se a tradição joanina d a m ultiplicação fosse in-
d ep en d en te. U m a exceção é #1 lc, o n d e tan to João com o o relato sinótico
II u sam eucharistein. U m aspecto p ecu liarm en te joanino se e n co n tra em
# l le , o n d e Jesus m esm o d istrib u i os p ães sobre os q u a is ele d e u graças,
precisam en te com o fez na últim a ceia (ver n o ta so b re v. 11). P o d e ser
tam b ém q u e a frase d e João, " Q u a n d o estav am saciados"... (#12), ecoe
a liturgia eucarística, p o sto q u e tam b ém aparece n o relato d a refeição
eucarística n a Didaquê. Ali, d e p o is q u e o cap ítu lo 9 reg istra a oração
eucarística so b re o cálice e o p ão, 10,1 com eça: "E d e p o is d e satisfeitos"...
A in d a m a is c la ra m e n te , h á n o s d e ta lh e s jo a n in o s e m #13 u m eco
e u c arístic o , o n d e Je su s d iz a o s s e u s d isc íp u lo s: "R e c o lh e i [synagein ]
os p e d a ç o s [klasma ] q u e s o b ra ra m p a ra q u e n a d a p e re ç a " . C o m o C.
F. D. M oule , "A N o te o n D id a c h e ix 4 ", JTS 6 (1955), 240-43, tem
re s s a lta d o , a q u i João é m u ito p a re c id o co m a o ra ç ã o e u c a rís tic a d a
Didaquê so b re o pão: "A c e rc a d o p ã o [klasma] fra g m e n ta d o , 'D a m o s
g raç a s [eucharistein] a ti, n o sso P a i . ... c o m o e ste p ã o f ra g m e n ta d o foi
d is p e rs o sobre os montes, p o ré m foi re c o lh id o [synagein] e se fez u m ,
assim seja a Igreja recolhida d o s q u a tro can to s d a terra e m teu reino'".
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 481

A lé m d o s p a ra le lo s ó b v io s com o re la to d e João n o u so d e klasma,


eucharistein, synagein (a ú ltim a d e la s é p e c u lia r ao re la d o q u e João faz
d a m u ltip lic a ç ã o ), d e v e m o s n o ta r q u e so m e n te João e n fa tiz a q u e a
m u ltip lic a ç ã o o c o rre u so b re u m m o n te , e so m e n te João m e n c io n a o
te m a d e Je su s c o m o rei (v. 15). O v e rso d a Didaquê s u p ra c ita d o tam -
b é m te m p a ra le lo s e m Jo 11,52.
C o n tin u a n d o n o ssa d isc u ssã o d o s d e ta lh e s eu carístico s jo an in o s
e m #13, n o ta m o s q u e a lg u n s e stu d io so s ta m b é m v eem u m eco euca-
rístico n a frase "... p a ra q u e n a d a p e re ç a ". P en sam n o c u id a d o q u e
e ra m tra ta d o s os fra g m e n to s eu c arístic o s n a Igreja p rim itiv a . Entre-
tan to , a frase p o d e sim p le sm e n te ser u m a p re p a ra ç ã o p a ra o v. 27,
o n d e Je su s d iz q u e o p o v o e n te n d e u m al o m ilag re d o s pães: d e v e m
tra b a lh a r p e lo a lim e n to q u e d u ra p a ra a v id a e te rn a, e n ã o p o r 0 ali-
mento que perece. João p o d e e sta r e n fa tiz a n d o q u e m esm o os p ã e s m i-
ra c u lo s a m e n te m u ltip lic a d o s p o d e m p erecer. Barrett, p. 231, v ê o u tro
p o ssív e l sig n ific a d o , a sab er, q u e e sta é u m a referên cia p o ética à u n ião
d o s d isc íp u lo s p a ra q u e n ã o p e re ç a m . E ste tem a é re c o rre n te e m 17,12;
e a Didaquê, co m o su p ra c ita d a , u sa o re c o lh im e n to d o s fra g m e n to s eu-
carístico s c o m o u m sím b o lo d a u n iã o d a Igreja. O s d o z e cestos, com o
sím b o lo s d o s D o ze A p ó sto lo s, c a d a u m a ju n ta n d o p a ra C risto, têm
sid o ta m b é m p ro p o sto . P o d e-se m e n c io n a r u m a refe rê n c ia eu carística
m ais possível, a sa b er, q u e n a Igreja p rim itiv a o p ã o d e cevada era usa-
d o p a ra a e u c a ristia (v er J. M c H ugh, V D 39 [1961], 222-39).
A ssim , m esm o q u e n ão p o ssam o s ter certeza d e cada detalhe, o co-
lorido eucarístico d o relato joanino d a m ultiplicação p arece estar além d e
toda d ú v id a . E n tretanto, é possível a hesitação sobre a alegação d e q u e o
relato d e João é m ais eucarístico d o q u e os relatos sinóticos. O s elem entos
eucarísticos n o s relatos d a m ultiplicação são m ais o u m en o s d o m esm o
n ú m ero , a in d a q u e diferentes em detalhe. Q u e to d as as tradições teriam
colorido eucarístico, significa q u e se p ercebeu na relação d a m ultiplica-
ção e a ação n a ú ltim a ceia teria sido g ranjeada na tradição d a pregação
prim itiv a. A liás, está longe d o im possível q u e o p ró p rio Jesus conectou a
alim entação d a m u ltid ã o com os p ães e a instituição d a eucaristia (am bas
n u m contexto pascal), p o r m eio d e u m a u n ifo rm id ad e d elib erad a no es-
q u em a d e su as ações. V erem os a im portância destas observações q u an d o
tratarm o s a p rete n são d e Bultmann d e q u e foi som ente a adição dos vs.
51-59 q u e in tro d u z iu u m tem a eucarístico no capítulo 6 d e João. A ntes, a
adição d a q u eles versículos realçou u m tem a eucarístico q u e já estava lá.
482 O Livro dos Sinais

(5) A conclusão da cena nos vs. 14-15. A p ó s o re la to sin ó tico I, Jesus


o rd e n a se u s d isc íp u lo s a p a rtir e m u m b a rc o p a ra o o u tro la d o d o m ar;
e n tã o d e s p e d e a m u ltid ã o e sobe ao m o n te p a ra o ra r. (A se q u ên c ia
d e p o is d o re la to II é d e m en o s im p o rtâ n c ia , v isto q u e n a p ró x im a cena
d e João - o c a m in h a r so b re as á g u a s - João se a p ro x im a d o re la to I).
N ã o se d á n e n h u m a ra z ã o p a ra o a b ru p to e n v io d o s d isc íp u lo s e a
d e s p e d id a d a m u ltid ã o .
M as n o rela to d e João h á u m a ra z ã o p a ra este c o m p o rta m e n to
en ig m ático , a sab er, o p e rig o d e u m a m an ifestaç ã o p o lític a p o r p a r-
te d a m u ltid ã o . T o d av ia, esta in fo rm a ç ã o n o s vs. 14-15 n ã o d e ix a de
c a u sa r d ific u ld a d e s. N o s vs. 25ss., Jesu s e n c o n tra n o d ia s e g u in te a
m esm a m u ltid ã o . N ã o só n ã o existe n e n h u m a refe rê n c ia d e fazê-lo rei,
m as a m u ltid ã o têm d ú v id a s so b re ele. P o d e m o s p re s s u p o r q u e e ste é
u m e x e m p lo d a le v ia n d a d e d a s m u ltid õ e s, m as a ilação é difícil. A lém
d o m ais, se o p lu ra l, "sin a is", for lid o n o v. 14, e n tã o 14-15 sã o a p e n a s
a n e x a d o s liv re m e n te à m u ltip lic a ç ão d o s p ã e s e se refe re m a to d o s os
m ilag res d o m in isté rio galileu.
A in d a q u e os sin ó tico s n ã o n a rre m o in c id e n te e n c o n tra d o n o s
vs. 14-15 d e João, p o ssu e m in fo rm a ç ã o q u e é ú til n a a v a liaç ã o d e ste s
versícu lo s. O c a p ítu lo 6 d e M arcos, q u e c o n té m o re la to I d a m u lti-
plicação , m arc a u m a d a s d iv isõ e s m a io re s d o e v a n g e lh o . N o início
d e ste c a p ítu lo , Jesus é reje ita d o e m N a z a ré . Isto é v in c u la d o o re la to
d a m o rte d o B atista p o r o rd e m d e H e ro d e s. E stas d u a s q u e stõ e s, a
s e g u n d a d a s q u a is p a re c e c o n stitu ir u m a am e a ç a a Jesu s, o leva
a co n clu ir se u m in isté rio g a lile u e a sa ir d o te rritó rio h e ro d ia n o .
A ra z ã o p a ra a am e a ç a h e ro d ia n a c o n tra Jesus se faz e v id e n te p o r
Josefo, Ant. 18.5.2; 118: " H e ro d e s tem ia q u e a g ra n d e in flu ên cia q u e
João fBatista] exercia so b re o p o v o in ce n tiv a sse su a força e d esejo d e
su scitar u m a reb e liã o ". Se Jesus c o n tin u a sse a a tra ir g ra n d e s m u lti-
d õ e s n a G alileia, p o d e ría facilm en te a to rn a r-se o p ró x im o a lv o d a ira
d e H ero d es. E ste, p o is, é o a m b ie n te q u e M arcos p ro p ic ia e m se u p ri-
m eiro re la to d a m u ltip lic a ç ão ; e tal c e n ário n o s a d v e rte se r to ta lm e n te
p la u sív e l q u e João esteja a trib u in d o u m a reação p o lític a às m u ltid õ e s
n o v. 14 e u m a p ro fu n d a d esco n fian ç a e te m o r d a q u e la rea ç ã o c o n tra
Jesu s n o v. 15.
T em os in d ic a d o n a s resp ectiv as n o tas q u e a relação n o s vs. 14-15
en tre a o p eração d e sinais e a aclam ação d e Jesus co m o " o P ro feta"
n ão é clara e é su scetível d e v á ria s explicações. D odd , Tradition, p. 214,
20 · Jesus na Páscoa: A multiplicação dos pães 483

in d ic a q u e e m q u a se to d a s as n a rra tiv a s d e Josefo c o n c ern e n te s às


in su rre iç õ e s p o lític a s d o I a sécu lo , p o r su p o s to s lib e rta d o re s (p. ex.,
T e u d a s; o E gípcio; e n tre o u tro s), a p a re c e m os tem a s d o p ro fe ta e a
o p e ra ç ã o d e sin ais. E sta é m ais u m a c o n firm a ç ão p a ra a a trib u iç ã o de
João d o to m p o lític o ao c o m p o rta m e n to d o p o v o .
A ssim , se os v e rsíc u lo s 14-15 fo ram ou n ã o se m p re p a rte d a cena
d a m u ltip lic a ç ã o , c re m o s q u e n e ste s v e rsíc u lo s João n o s d e u u m item
d a c o n firm a ç ã o h istó rica c o rreta. O m in isté rio d e m ilag re s n a G ali-
leia, c u lm in a n d o na m u ltip lic a ç ão (q u e e m João, co m o e m M arcos, é
o ú ltim o m ila g re d o m in isté rio g alileu ), su scito u u m ferv o r p o p u la r
q u e g e ro u o risco d e u m le v a n te q u e d a ria às a u to rid a d e s , secu lares
e relig io sas, u m a c h an ce d e p r e n d e r Jesus leg alm en te. A ép o ca desta
in fo rm a ç ã o jo a n in a p o d e se r ju lg a d a p e la te n d ê n c ia c o n trá ria d e re-
m o v e r d o s e v a n g e lh o s alg o q u e p o d e ria d a r su b stâ n c ia à acu sação ju-
d a ic a d e q u e Jesu s era u m a fig u ra p o lítica p e rig o sa . Se João foi escrito
já n o final d o sé cu lo q u a n d o a p e rse g u iç ã o ro m a n a aos cristão s sob
D o m icia n o e ra a in d a m ais p a te n te , e n tã o a in v en ç ã o d a in fo rm ação ,
n o s vs. 14-15, p a re c e fo ra d e q u e stã o .
F in a lm en te , p o d e m o s n o ta r q u e os vs. 14-15 ex ercem u m im p o r-
ta n te p a p e l d e n tro d o e sq u e m a d o c a p ítu lo 6. A crassa d a reação d o s
g a lile u s ao s sin a is p re p a ra o c a m in h o p a ra a p ro fu n d a in co m p ree n sã o
d a m u ltip lic a ç ã o e d e fato d e to d o o d isc u rso d o p ã o d a v id a q u e ve-
re m o s n o s vs. 26 e se g u in te s.
T e rm in a m o s a g o ra d e d isc u tir to d o s os d e ta lh e s p e c u lia re s ao
re la to q u e João faz d a m u ltip licação . C o m o já v im o s, a lg u n s d eles
p o d e m se r e x p lic ad o s co m o p o ssiv e lm e n te o riu n d o s d a p e rsp e c tiv a
teo ló g ica d o e v a n g elista . Em geral, p o ré m , q u a n d o estes d e ta lh e s são
p ro p ria m e n te c o m p re e n d id o s , n a d a há q u e seja re a lm e n te im p lau sí-
vel o u q u e p e s a ria c o n tra o v a lo r in d e p e n d e n te d a tra d içã o joanina.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 6, n o final d o § 26.]
21. JE SU S N A P Á S C O A :
- C A M I N H A N D O SO BRE O M A R D A G A L IL E IA
(6, 16- 21 )

6 16A o e n ta rd e c e r, se u s d isc íp u lo s d e sc e ra m ao m ar. 17E, u m a vez


e m b a rca d o s, c o m e ç a ra m a a tra v e ssa r o m a r p a ra C a fa rn a u m . P o r esse
tem p o , já e ra escu ro , e Jesu s a in d a n ã o h a v ia se ju n ta d o a eles; 18a lém
d o m ais, so p ra u m v e n to forte; o m a r fica e n c a p e la d o . 19Q u a n d o ha-
v iam a v a n ç a d o cerca d e u n s 4 o u 5 k m , a v is ta ra m Je su s c a m in h a n -
d o so b re o m ar, a p ro x im a n d o -se d o b arco. F icaram a te m o riz a d o s,
20p o ré m ele lh es disse: "S ou eu! N ã o tem a is". 21Q u e ria m e n tã o re-
cebê-lo n o b arco , e d e re p e n te o b a rc o alc a n ç o u a p ra ia p a ra o n d e
e sta v a m in d o .

19: a v is ta r a m ; 20: d is s e . No tempo presente histórico.

NOTAS

6.16. ao entardecer. Talvez o tem po seja à tardinha, pois o v. 17 indicaria que


não era ainda escuro quando saíram para o mar.
ao mar. Ou "à praia". A mesma expressão grega é usada em 21,1: "Jesus apa-
receu aos discípulos tio mar de Tiberíades". Ali, ele se pôs em pé na praia.
17. embarcados. Literalmente, "entraram em um barco". Uma vez que Marcos
e M ateus m encionaram um barco no início no relato sinótico í, aqui falam
0 barco; as testem unhas gregas tardias põem o artigo tam bém em João.
começaram a atravessar. Literalmente, "foram indo"; provavelm ente, o im-
perfeito seja conativo (BDF, § 326).
Jesus ainda não havia se juntado a eles. A sequência da ação indica que já ha-
via adentrado ao mar. Como, pois, havia Jesus de juntar-se a eles? Talvez
21 · Jesus na Páscoa: Caminhando sobre o Mar da Galileia 485

estivessem velejando perto da terra à espera de encontrar Jesus na praia.


B ultm ann , p. 159, vê esta frase como obra do Redator, pois os discípulos
não tinham razão para esperar Jesus, um a vez que estavam m ar adentro.
W1KEN1 iaushr, p. 121, pensa na sentença como a expressar a razão pela
qual haviam em barcado, e assim a últim a m etade do v. 17 se torna um
parêntese que explica a prim eira m etade.
18. além do mais. O grego te é um forte conectivo, infrequente em João.
19. quatro ou cinco km. Literalmente, "25 ou 30 estádios"; um estádio media
uns 6 ou 7 km, aproxim adam ente duzentos metros. Josefo, War, 3.10.7;
506, dá as m edidas do "Lago de Genesaré" como 40 estádios de largura
por 140 de com prim ento; atualm ente, em sua m aior extensão é de 61
estádios (11,2 km) de largura e 109 estádios (19,3 km) de comprimento.
Mc 4,47 m enciona que o barco está "no meio do m ar". Fosse isso tomado
literalm ente, significaria que o barco estava de 20 a 30 estádios ao lar-
go da praia, um a distância que concordaria com a informação de João.
Mas a designação de Marcos sim plesm ente significa "no m ar", pois em
Mc 6,47, lemos ainda que Jesus pode vê-los da terra.
avistaram. Seria o presente histórico um reflexo de tradição ocular?
sobre 0 mar. Esta é a mesma expressão grega "ao m ar" no v. 16 (ali, epi com
o acusativo; aqui, com o genitivo). B ernard , I, p. 186, sugere que isto
significa "perto da praia" e que a narrativa joanina, originalm ente, não
era o relato de um m ilagre. Não obstante, então o relato parece sem
sentido. Além do mais, em 6,25 está implícito que Jesus atravessou o m ar
de um a m aneira inesperada. Mc 6,49 usa a m esm a expressão vaga como
João; Mas o uso que M ateus faz da preposição com o acusativo em 14,25
m ostra claram ente que o prim eiro evangelista pensava em Jesus como a
cam inhar sobre a água.
20. Sou eu. Para ego eime, ver Apêndice IV, p. 841 ss. Este é um caso am bíguo
em que não se pode ter certeza se está implícita uma fórm ula divina.
não temais. OS‫ ״‬r om ite isto, e podería ser um a adição redacional em vista à
tradição sinótica.
21. queriam. Com o este verbo é usado em 7,44 e 16,19, ele se refere a um de-
sejo não concretizado; como é usado em 1,43 e 5,35, se refere a um desejo
concretizado. João não deixa claro se entraram ou não no barco. Torrey
sugeriu que a raiz das consoantes aram aicas b'1v foram m al interpretadas
por alguém que traduziu João para o grego e que o significado original
era: "eles se regozijaram grandem ente"; m as esta é um a solução m uito
exagerada.
de repente 0 barco alcançou a praia. M iraculosamente?
para onde estavam indo. Om itido em C risóstomo e N onnos.
486 O Livro dos Sinais

C O M E N T Á R IO

Relação com 0 relato sinótico

Em am b o s, M a rco s-M ateu s e em João (p o rém , in e x p lic a v e lm e n te , n ão


em L ucas) a m u ltip lic a ç ão d o s p ã e s p a ra os cinco m il é s e g u id a p elo
c a m in h a r so b re o m ar. N o rela to sin ó tico , esta n a rra tiv a está in tim a -
m e n te lig a d a ao q u e se g u e a n te s e c o n stitu i a c o n c lu sã o d a cena da
m u ltip licação ; o q u e se g u e o c a m in h a r so b re o m a r é sim p le s m e n te u m
g ru p o d e in cid e n te s com n e n h u m a co n ex ão a p a re n te . E m João, o s vs.
14-15 c o n s titu e m a c o n clu são d a cena d a m u ltip lic a ç ão , e a ssim o cam i-
n h a r so b re o m a r e m ais b e m o a sp ec to d e u m a n a rra tiv a in d e p e n d e n -
te. Isso se rv e co m o u m a tra n siç ã o e n tre a m u ltip lic a ç ão e a cena q u e se
d á n o d ia se g u in te , q u a n d o a m u ltid ã o v e m a Jesu s e o u v e o D iscu rso
d o P ão d a V ida. V isto q u e teria sid o m ais sim p les p a ra o q u a rto
e v a n g elista , se fosse sim p le sm e n te u m a rtista c ria tiv o , te r colo cad o
o d isc u rs o so b re o p ã o im e d ia ta m e n te d e p o is d a m u ltip lic a ç ã o , sua
in clu são d o c a m in h a r so b re o m a r in d ica q u e ele foi d irig id o p o r u m a
tra d içã o m ais a n tig a em q u e a m u ltip lic a ç ão e o c a m in h a r so b re o m ar
já e s ta v a m re u n id o s.
A o c o m p a ra r os re la to s sin ó tic o s e jo a n in o s, se n o ta im e d ia ta -
m e n te q u e a q u i há m u ito m ais sim ila rid a d e s d e v o c a b u lá rio d o qu e
h o u v e n o s rela to s d a m u ltip lic a ç ão , p o r ex em p lo : ao entardecer, em-
barcar, barco, atravessar, mar, vento, remar, estádio, caminhar sobre 0 mar,
"Sou eu; não temais". N a tu ra lm e n te , a m a io ria d e sta s sim ila rid a d e s
está n o s term o s n á u tic o s, e n in g u é m p o d e c o n ta r u m a h istó ria sobre
u m in c id e n te n o m a r sem certo v o c a b u lá rio n á u tic o básico.
H á tam b é m d ife ren ç a s - tão im p re ssio n a n te s, co m o u m a q u e stã o
d e fato, q u e C risóstomo (In ] 0. 43,1; PG 59: 246) p e n s a v a q u e os sinó-
ticos e João se d e stin a v a m a d e sc re v e r e v e n to s d istin to s! E m geral, o
rela to d e João é m u ito m ais b rev e. M ais se d iz d o p o n to d e v ista dos
d isc íp u lo s q u e estã o e s p e ra n d o p o r Jesus, e n q u a n to o re la to sinótico
é d o p o n to d e v ista d e Je su s q u e e stá s o z in h o e m te rra e v ê o s dis-
c íp u lo s e n fre n ta n d o d ific u ld a d e s etc. O e le m e n to d o m a ra v ilh o so é
m ais p ro e m in e n te no rela to sinótico, e sp e c ia lm e n te e m M a te u s (ver
n o ta so b re v. 19), o n d e Jesus v em p e lo m a r ru m o a u m b a rc o q u e está
a m u ito s e stá d io s d ista n te d a terra. T am b ém , n o re la to sin ó tico , Jesus,
p a ra o to tal e s p a n to d o s d isc íp u lo s, a calm a a te m p e sta d e .
21 · Jesus na Páscoa: Caminhando sobre o Mar da Galileia 487

V o ltan d o a u m a co m p a raç ã o m ais d e ta lh a d a , p o d e m o s distin g u ir:

Cenário:
sinóticos: Jesus faz os discípulos em barcar enquanto ele despede a multi-
dão e perm anece no m onte em oração.
João: Jesus foi para o m onte fugindo da m ultidão. Os discípulos descem à
praia e em barcam por sua própria iniciativa.

Tempo:
sinóticos: À tard in h a, saem ao m ar - Mt 14,15 inclusive fixa a hora
p ara a m ultiplicação, no m om ento em que vem chega a tardinha
(Mc 6,35: q u an d o a hora já estava avançada)! A m bos os evangelhos
trazem Jesus in do aos discípulos p erto da qu arta vigília da noite (3 da
m anhã).
João: Ao entardecer, eles descem à praia. Provavelm ente, escurece depois
que em barcam (ver nota sobre v. 17); Jesus só vai a eles depois que rema-
ram até certa distância.

Tempo climático:
sinóticos: O vento lhes é contrário. M ateus acrescenta que estão sendo açoi-
tados pelas ondas; Marcos acrescenta que estão rem ando com dificuldade.
João: Sopra um vento forte; o m ar fica encapelado.

Posição:
sinóticos: M arcos diz que saem ao m ar, porém Jesus pode vê-los da terra.
M ateus diz que estão a m uitos estádios longe da terra.
João: C hegaram a rem ar vinte e cinco ou trinta estádios, m as a distância da
terra não é especificada.

Jesus vem:
sinóticos: Ele anda sobre o mar; Marcos acrescenta que sua intenção era
passar p o r eles.
João: Não esclarece se o veem andando sobre o m ar ou pela praia.

Reação:
sinóticos: Pensam ser um fantasm a e ficam aterrorizados. Jesus lhes reasse-
gura: "Sou eu; não temais".
João: Ficam atemorizados, porém Jesus lhes tranquiliza: "Sou eu! não temais".
488 O Livro dos Sinais

Conclusão:
Somente Mateus: O relato de Pedro indo ao encontro de Jesus.
sinóticos: Jesus entra no barco e o vento se acalma. M ateus acrescenta que
os discípulos adoram a Jesus, glorificando-o como o Filho de Deus.
João: Não fica claro se Jesus entra no barco; o barco chega na praia de re-
pente e talvez m iraculosam ente.

A o a v a lia rm o s estes d e ta lh e s in d iv id u a is , d e sc o b rim o s a situ a ç ã o


u m tan to a n o rm a l. O re la to d e João c o n té m e le m e n to s e v id e n te s p a ra
ser c o n s id e ra d o co m o u m a fo rm a m ais p rim itiv a d o relato . A b rev i-
d a d e d e João e falta d e ên fase so b re o m ira c u lo so são q u a se im p o ssí-
veis d e ex p licar em term o s d e u m a d e lib e ra d a a lte ra ç ã o d a n a rra tiv a
m arcan a. M elh o r, p a re c e ría q u e na fo rm a m a rc a n a d o re la to fo ra m
in tro d u z id o s ali e le m en to s d e o u tro s relato s, p o r e x e m p lo , o a c alm a r
d a te m p e s ta d e (Mc 4 ,3 5 4 1 ‫)־‬. E ste p ro c e sso d e a m á lg a m a p a re c e a in d a
m ais d e s e n v o lv id o n a fo rm a m a te a n a d o re la to o n d e h á u m a p ro fis ‫־‬
são d e fé co m o a q u e la em o u tro lu g a r a trib u íd a a P e d ro (M t 16,16), e
o n d e h á u m in cid e n te d e P e d ro sa in d o d o b a rc o e c a m in h a n d o so b re
a á g u a e m d ire ç ão a Jesus. P o d e m o s c o m p a ra r o s e g u n d o ao rela to
p ó s-re ssu rre iç ã o d e P e d ro em Jo 21,7; p o is, co m o D odd tem in d ic a d o ,
h á e le m en to s a p ro p ria d o s à fo rm a lite rá ria d a n a rra tiv a p ó s-re ssu rre i-
ção n o rela to d o c a m in h a r so b re o m a r - "The Appearances of the Risen
Christ", Studies in the Gospel, ed. D. E. N ineham (L ig h tfo o t vol.: O xford:
Blackw ell, 1957), p p . 23-24. A ssim , o re la d o q u e João faz d o c a m in h a r
so b re a á g u a p a re c e re p re s e n ta r u m a fo rm a re la tiv a m e n te n ã o d e sen -
v o lv id a d e sse ep isó d io .

O significado da cena

N a v e rsã o m a rc a n a -m a te a n a , o n d e Jesus a c alm a o m a r e e n tra


n o b arco , este rela to d o m ilag re a ssu m e o a sp e c to d e u m m ila g re na
n a tu re z a n o q u a l os d isc íp u lo s são re sg a ta d o s. E n tre ta n to , e m João,
o n d e tais e le m e n to s se p e rd e m , a s u b s tâ n c ia d o m ila g re é sig n ifica-
tiv a m e n te d iferen te. (T o m am o s p o r a d m itid o q u e o e v a n g e lista p re-
te n d e re tra ta r u m m ilag re; v e r n o ta so b re v. 19). A ex p licação m ais
p la u sív e l é q u e João tra ta a cena co m o u m a e p ifa n ia d iv in a cen trad a
n a e x p re ssã o egõ eim i, n o v. 20. U m a v ez q u e esta e x p re ssã o ocorre
em a m b a s as fo rm as, sin ó tica e jo an in a, d o relato , p o d e -se c o n sid e rar
21 · Jesus na Páscoa: Caminhando sobre o Mar da Galileia 489

co m o p e rtin e n te s à fo rm a p rim itiv a d a tra d içã o . M as o q u a rto ev an -


g elista to m o u a e x p re ssã o , e m si m esm a n e u tra (ver A p ê n d ic e IV,
p. 841ss), e fez d e la u m m o tiv o c o n d u to r d o e v a n g e lh o co m o aq u ela
fo rm a d o n o m e d iv in o q u e o P ai d e u a Je su s e p e lo q u a l ele se iden-
tifica. P ro v a v e lm e n te , n a fo rm a p rim itiv a d o relato , este foi u m m ila-
g re q u e d e u e x p re ssã o à m a je sta d e d e Jesu s, n ão d ife re n te d a T rans-
fig u ração . E m João, a ên fa se e sp ecial so b re egõ eim i, n o re sta n te d o
e v a n g e lh o , p a re c e d a r a este re la to u m se n tid o m ais p reciso , isto é, a
m a je sta d e d e Jesu s é q u e ele p o d e o s te n ta r o n o m e divino. A fo rm a qu e
M ateu s d á ao re la to p a re c e te r to m a d o u m a d ire ç ão in d e p e n d e n te ,
co m o testific a d o n a a d o ra ç ã o re n d id a a Jesus p e lo s d isc íp u lo s e sua
co n fissão q u e fazem d e le co m o o F ilho d e D eus.
Q u a l o p a p e l q u e este m ilagre exerce em relação à m ultiplicação e ao
restan te d o cap ítu lo ? A té certo p o n to , o evangelista o u sa com o o correti-
vo d a in a d e q u a d a reação d a m u ltid ã o à m ultiplicação. Im p ressio n ad o s
pelo m arav ilh o so caráter d a q u e le sinal, estav am d isp o sto s a aclam á-lo
com o u m m essias político. M as ele está longe d e deixar-se c a p tu ra r pe-
los títu lo s trad icio n ais com o os d e "o P rofeta" e "rei"; o cam in h ar sobre
a á g u a é u m sinal d e q u e ele in te rp re ta a si m esm o, u m sinal d e q u e ele
só p o d e ser p le n a m e n te e xpresso pelo n o m e d iv in o "E u sou".
A c a so h á u m sim b o lism o p a sc a l n o c a m in h a r so b re o m a r à m a-
n eira d e u m a referência à travessia d o M ar V erm elh o n o tem p o d o Exo-
do? (Isto seria p ró p rio a u m m ila g re no co n tex to geral d o c a p ítu lo 6).
A Haggadah d a p á sco a , a n a rra tiv a litú rg ica re c ita d a n a refeição p as-
cal, co m o n o s é p re s e rv a d a d e u m p e río d o lig e ira m e n te p o ste rio r,
asso cia e s tre ita m e n te a tra v e ssia d o m a r e a d á d iv a d o m an á. Visto
q u e o s e g u n d o tem a a p a re c e em 6,31, é p o ssív el q u e João esteja fazen-
d o a m e sm a asso ciação. Será v isto ab aix o q u e Jo 6,31 p a re c e ev o car o
SI 78,24. E ste m esm o S alm o m en cio n a n o v. 13 co m o os israelitas pas-
sa ra m p e lo m ar. P e n s a n d o na cena jo an in a com o u m a ep ifa n ia divi-
na, n o ta m o s q u e a Midrásh Mekilta so b re Ê xodo (citada p o r G ärtner,
p. 17) m en c io n a q u e D e u s a b riu c a m in h o p a ra Si a tra v é s d o m ar,
q u a n d o o h o m e m n ã o p o d e ría fazê-lo. G ärtner, p. 28, conecta a fór-
m u la egõ eim i co m a ação d iv in a , lib e rta n d o Israel d o Egito; a fórm u la
"E u s o u o S e n h o r", d e Ex 12,12, é in sistid a na Haggadah pascal.
N o SI 77,20, n u m a d escrição p o ética d a trav essia d o Êxodo,
lem o s d e D eus: "T eu c a m in h o foi sobre [ou em] 0 mar, e tu a s vere-
d a s p e la s g ra n d e s á g u a s; e n ão se c o n h e ce ram te u s cam in h o s".
490 O Livro dos Sinais

Isto ecoa u m a d escrição m ais g eral d e Iah w e h , a q u e m o SI 29,3 d es-


crev e co m o "o S en h o r so b re as m u ita s á g u a s". A ileen G uilding (ver
p. 518ss) ressa lta q u e u m a d a s le itu ra s (u m a haphtarah ) d a sin a g o g a
p a ra o ciclo p a sca l e ra Is 51,6-16, o n d e há refe rê n c ia s a co m o o re-
d im id o p a s sa v a p e lo c a m in h o p ro fu n d o d o m a r (v. 10) e o S e n h o r
D eu s a g ita o m a r d e m o d o q u e as á g u a s b ra m e m (15); a lé m d o m ais, o
v. 12 é u m a d a s p a ssa g e n s egõ eim i m ais im p o rta n te s n o AT. T alv ez
u m a c o n stru ç ã o m ais c o m p le ta d o s p a ra le lo s v e te ro te s ta m e n tá rio s
com os te m a s d e Jo 6 p o ssa se r e n c o n tra d a n o SI 107: e m 4-5 o u v im o s
d o p o v o p e re g rin a n d o fa m in to p e lo s e rm o s d esértico s; n o v. 9 so m o s
in fo rm a d o s q u e o S en h o r sacia [empimplasthai d e João] estes fam in to s
com co isas b oas; no v. 23 a lg u n s d e sce m ao m a r e m n a v io s; n o v. 25 o
S en h o r su scita u m v e n to te m p e stu o so q u e elev a as o n d a s d o m a r; em
27-28 são a to rm e n ta d o s e cla m am ao S enhor; em 28-30 Ele os lib e rta ,
a c a lm a n d o o m a r e c o n d u z in d o -o s ao seu p o rto .
A ssim , h á p a ssa g e n s n o A T, p a rtic u la rm e n te e n tre as q u e tra ta m
d o Ê xodo, q u e a ju d a m a ex p licar p o r q u e o e p isó d io d e Jesu s cam i-
n h a n d o so b re o m a r teria sid o o p o rtu n o n u m tem a p a sc a l g e ra l d o
c a p ítu lo 6 d e João e, assim , ter p e rm a n e c id o e m e stre ita asso ciação
com a m u ltip licação . N a tu ra lm e n te , é difícil p ro v a r q u e o e v a n g e lista
tiv esse a lg u m a d e ssa s p a ssa g e n s e m m e n te , p o ré m são b a s ta n te n u -
m ero sa s p a ra to m a r p la u sív e l q u e ele q u e ria q u e o m ila g re refletisse o
sim b o lism o g eral d a tra v e ssia d o m a r n o te m p o d o Ê x o d o e a p re rro -
g ativ a d e Iah w e h fazer u m c a m in h o so b re o u n a s á g u a s.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa na B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 6, n o final d o § 26.]
2 2 . JE SU S N A P Á S C O A :
- A M U L T ID Ã O V A I A T É JE SU S
(6,22-24)*

Transição ao discurso do Pão da Vida

6 22N o d ia seg u in te, a m u ltid ã o q u e p e rm a n ec e ra d o o u tro lad o do


m ar o b se rv o u q u e ali n ão h av ia sen ão u m barco, e q u e Jesus não par-
tira co m seu s d iscíp u lo s n aq u e le barco, pois seus d iscíp u lo s p a rtira m
sozinhos. 23E ntão a lg u n s barco s saíram d e T iberíades p ró x im o d o lu g ar
o n d e h a v ia m c o m id o o p ão [depois q u e o S enhor d e ra graças]. 24Então,
assim q u e a m u ltid ã o v iu q u e n em Jesus n em seus d iscíp u lo s estav am
ali, e m b a rca ra m tam b ém e foram p a ra C a fa m a u m em busca d e Jesus.

NOTAS

6.22. No dia seguinte. Isto não precisa ser entendido como um a indicação cro-
nológica real; mas, como os "dias" do capítulo 1, pode ter sido usado
sim plesm ente para dar ao capítulo um a estrutura literária unificada.
observou. Com o construída, esta afirmação é ilógica. O que está implícito
é que no dia seguinte se lem braram de que no dia anterior tinham visto
som ente um barco ali.
barco. Ploiarion, literalm ente "um pequeno barco", dim inutivo de ploion;
porém é dúbio se tal dim inutivo designa um tipo diferente de barco,

* Nota: Há um grande núm ero d e variantes textuais nestes p oucos versículos.


O C odex Sinaiticus (m ão original) tem uma forma notavelm ente anômala d o texto,
e ainda há m ais variantes no Diatcssaron, em C risóstomo e nas versões primitivas.
Para um estu do com pleto, ver Boismard, RB 60 (1953), 359-70.
492 O Livro dos Sinais

como pensa Bernard, I, p. 188. Nos vs. 17, 19, 21, João usou ploion para
o barco dos discípulos. Ploiarion descreve o m esm o barco, cuja m udança
do term o indica um a diferente m ão joanina em 22-24? As testem unhas
textuais para o v. 22 variam entre ploiarion e plorion, a segunda redação
revelando o desejo dos copistas de harm onizar. Depois de "barco" algu-
m as das testem unhas textuais ocidentais e o Sinaiticus acrescentam para
clarificar: "aquele em que os discípulos de Jesus haviam em barcado".
23. Tiberíades, próximo do lugar. Deliberadam ente, temos deixado o texto obs-
curo. Enquanto as m elhores testem unhas do texto parecem im plicar que
os barcos vieram de Tiberíades a o lugar próxim o da m ultiplicação (uma
descrição um tanto estranha), outras testem unhas dizem : "Tiberíades,
que ficava próxim a ao lugar". A segunda redação fixa Tiberíades na vizi-
nhança da multiplicação (ver nota sobre v. 1).
[depois que 0 Senhor dera graças]. Esta sentença não se encontra em Bezae, OL
e OS. O uso absoluto de eucharistein aqui é quase litúrgico, e o uso de "o
Senhor" não é joanino. Algum as testem unhas da Vulgata têm a m ultidão
dando graças, em vez de Jesus.
24. embarcaram. Literalmente, "entraram no barco" (o qual viera de Tiberíades).

C O M E N T Á R IO

A s v a ria n te s tex tu ais, n e ste s v ersícu lo s, su g e re m u m a h istó ria m u ito


com p lex a. Boismard p ro p õ e q u e a fo rm a d o texto q u e tem o s tra d u z id o
é u m a m á lg a m a d e d u a s tra d içõ e s tex tu a is d ife ren te s. E m u m a d e sta s
há u m a m u ltid ã o q u e estev e com Jesu s no m o m e n to d a m u ltip lic a -
ção; n a o u tra , a m u ltid ã o co n siste d e p e sso a s q u e e sta v a m p e rto do
local o n d e os d isc íp u lo s a p o rta ra m d e p o is d e a tra v e s s a r o lag o a p ó s a
tem p e sta d e . (Em a p o io à s e g u n d a in te rp re ta ç ã o d a m u ltid ã o , p o d e -se
m en c io n ar q u e se g u n d o a lg u n s m a n u sc rito s có p tico s e e tío p e s os dis-
cíp u lo s e a m u ltid ã o fo ram ju n to s p a ra C a fa rn a u m ). Boismard ressa lta
q u e n o s v e rsíc u lo s q u e se g u em , p a re c e m a n te r esta m esm a c o n fu sã o
acerca d a m u ltid ã o . N o s vs. 26-27, Jesus se d irig e a u m a m u ltid ã o q u e
já co m e u com ele n o d ia a n te rio r; em 30-31, a m u ltid ã o p e d e u m sin al
co m o se n u n c a v isse m u m (c o m p a ra r com v. 14) e e x ig em q u e ele re-
p ita o m ilag re d o m a n á , su p rin d o -o s d e pão.
Se a d m itirm o s q u e h á a lg u m a c o n fu sã o n o tex to d o s vs. 22-24,
q u e v a lo r te m a p a s s a g e m c o m o tr a d iç ã o h is tó ric a ? N ã o h á n e-
n h u m v e r d a d e ir o p a ra le lo n a tra d iç ã o sinótica. N o re la to sin ó tico 1,
22 · Jesus na Páscoa: A multidão vai até Jesus 493

q u a n d o Je su s e se u s d isc íp u lo s a p o rta m , e stã o em G e n e sa ré (Mc 6,53;


M t 14,34). O p o v o d e sta reg iã o o reco n h ece e tra z se u s e n fe rm o s p a ra
se re m c u ra d o s . D e p o is d o re la to II, Jesus e se u s d isc íp u lo s v ã o d e b ar-
co p a ra D a lm a n u ta /M a g a d a n (M c 8,10; M t 15,39 - u m a c o n fu sã o geo-
g ráfica, a m e n o s q u e seja u m a fo rm a d e tu r p a d a d e M a g d ala , v izin h a
a G en esaré); e, a p a re n te m e n te , q u a n d o ele a p o rta , os farise u s v ê m e
lhe p e d e m u m sin al. M as em n e n h u m d o s d o is casos a m u ltid ã o q u e
te s te m u n h o u a m u ltip lic a ç ão se g u e a Jesus. Se n o re la to d e João há
u m a in sin u a ç ã o d a p rese n ç a d e u m a n o v a m u ltid ã o no lu g a r o n d e
Jesus a p o rta , isto p o d e fo rm a r u m p a ra le lism o com o rela to sinótico I.
O s d e ta lh es q u e João n a rra são difíceis d e in terp retar. A caso faze-nos
p e n s a r q u e cin co m il h o m e n s c ru z a ra m o m a r com o in tu ito d e arreb a-
tar Jesu s? Se a m u ltip lic a ç ão o c o rre u n a s p ro x im id a d e s d e T ib eríad es
(ver n o ta s so b re vs. 23 e 1), a p re se n ç a d e b a rc o s v in d o s d e Tibería-
d es n ã o é d ifícil d e explicar; m as se o c o rre u em B etânia o u n a T rans-
jo rd â n ia p ró x im a ao m a r, e n tã o existe u m a d ific u ld a d e . Bultmann,
p. 160, p e n s a q u e n o re la to a m u ltid ã o e stav a o rig in a lm e n te e m C afar-
n a u m , m a s q u e o e v a n g e lista c o n fu n d iu esta m u ltid ã o com a m u ltid ã o
que te s te m u n h o u a m u ltip lic a ç ão e e n tã o criou u m m eio d e tra n sfe rir
a s e g u n d a m u ltid ã o p a ra C a fa rn a u m . T o d av ia, se o e v a n g elista real-
m en te e stá d a n d o in fo rm a ç ã o fictícia, p o r q u e ele in tro d u z T iberíades?
A in tro d u ç ão d e b arcos d e C a fa rn a u m teria sido a solução óbvia. A ssim ,
não p a re c e e n v o lv e r aí n e n h u m a so lu ção fácil p a ra as d ific u ld a d e s.
P o d e m o s faz e r a te n ta tiv a d e h a rm o n iz a r com certa p lau sib ilid a d e : a
m u ltip lic a ç ão o c o rre u n a s p ro x im id a d e s d e T ib eríad es; n o d ia se g u in -
te, b a rc o s d e T ib e ríad e s a p a n h a ra m u n s p o u c o s d o s q u e v ira m a m ui-
tiplicação e os le v a ra m p a ra C a fa rn a u m e foi este g ru p o q u e ao q u al
Jesus falo u n o s vs. 26-27; m as ta m b é m h a v ia p e sso a s d e C a fa rn a u m
que se re u n ira m p a ra v e r Jesus e foi esta a o u tra p a rte d a m u ltid ã o
m ista q u e falo u a Je su s n o s vs. 30-31. O u , talv ez, cab eria im a g in a r q u e
d u a s ce n as fo ra m c o m b in a d as: u m a q u e foi o clím ax d a m u ltip lic a ç ão
e e n v o lv ia p e s so a s q u e v ira m a q u e le sinal; a o u tra q u e foi u m a in tro -
d u ção ao D isc u rso d o P ão d a V ida e e n v o lv ia p e sso a s n a sin a g o g a d e
C a fa rn a u m : a e s tra n h e z a n o s vs. 22ss. refletiría a q u e la te n ta tiv a d e
ligar e sta s d u a s cenas.
P o d e m o s n o ta r q u e n o s vs. 22-24 h á u m a p ro fu n d a m e n to d o s
tem as teo ló g ico s q u e e n c o n tra m o s n a cen a d a m u ltip licação . Se a
sen ten ça e n tre p a rê n te se s, e m 23, for o rig in a l, e n tã o o fato d e q u e o
494 O Livro dos Sinais

S en h o r d e ra g raç a s (eucharistein ) se to m o u m u ito im p o rta n te , ên fa se


q u e reflete a in te rp re ta ç ã o eu c arístic a d a cena. Já n ã o é u m a q u e s tã o
d o s p ã e s (p lu ra l), e sim d o pão, o q u e p a re c e o u tra v e z u m a c o n c essã o
à lin g u a g e m e u carística d o NT.

[A B ibliografia p a ra esta seção e stá in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 6, n o final d o § 26.]
2 3 . JE SU S N A P Á S C O A : - I N T R O D U Ç Ã O
A O D IS C U R S O SO B R E O P Ã O D A V I D A
(6,25-34)

6 23E q u a n d o o e n c o n tra ra m n o o u tro lad o d o m a r, lhe disseram :


"R abi, q u a n d o c h e g aste a q u i? " 26Jesus lh es resp o n d e u :

" N a v e rd a d e v o s a sse g u ro ,
n ã o m e b u sc a is p o rq u e v iste s sinais,
m a s p o rq u e co m e stes d o s p ã e s e v o s saciastes.
27N ã o tra b a lh e is p e la c o m id a p erecív el,
e sim p e la c o m id a q u e d u ra p a ra a v id a e te rn a,
c o m id a q u e o F ilho d o H o m e m v o s d a rá ;
p o is é n e le q u e o P ai tem p o sto Seu selo".

28N isto , eles lh e d isse ram : " Q u e d e v e m o s fazer, p o is, p a ra 'tra b a lh a r'
n as o b ra s d e D eu s?"
29Jesu s rep lico u :

"E sta é a o b ra d e D eus:


q u e te n h a is fé n a q u e le q u e Ele e n v io u " .

30" P a ra q u e d e p o site m o s fé e m ti", lh e p e rg u n ta ra m , " q u e sin al es-


tais fa z e n d o p a ra lev a r-n o s a ver? Q u e sin al rea liz a tu? 31N o sso s
a n c estra is tin h a m m a n á p a ra c o m e r n o d e serto ; se g u n d o a E scritura,
'E le lh es d e u p ã o d o céu p a ra c o m e re m 32 ."‫ ׳‬Jesus lh es disse:

" N a v e rd a d e , e u v o s a sse g u ro ,
n ã o foi M o isés q u e m v o s d e u o p ã o d o céu,
m a s é m e u P ai q u e m v o s d á o v e rd a d e iro p ã o d o céu.
496 O Livro dos Sinais

33P o is o p ã o d e D eu s d esce d o céu


e d á v id a ao m u n d o " .
34"S e n h o r", ro g a ra m eles, " d á -n o s se m p re d e ste p ã o ".

NOTAS

6.25. no outro lado do mar. L ite ra lm en te, " a lém d o m ar". O lu g a r o n d e o e n -


con traram era C a fa r n a u m (v s. 24, 5 9 ), lito ra l n o r te d o la g o , u m p o u c o
a o e ste . A d e sc r iç ã o n e s te v e r s íc u lo p a r e c e fa v o r e c e r a lo c a liz a ç ã o da
m u ltip lic a ç ã o n a p raia o r ien ta l, e m v e z d e T ib e r ía d e s, n a p ra ia o c id e n ta l;
c o n tu d o , n ã o é im p o s s ív e l q u e " a lém d o m ar" p u d e s s e in d ic a r u m a v ia -
gern d e T ib e ría d e s a C a fa r n a u m .
Rabi. N ic o d e m o s se d ir ig iu a J esu s c o m e s te títu lo e m 3 ,2, q u a n d o e le v e io
c o m o p o r ta -v o z d a q u e le s d e J er u sa lém q u e fica ra m im p r e s s io n a d o s c o m
o s s in a is d e Jesu s (2,23); a situ a ç ã o , s e g u in d o o in c id e n te n o v . 14, é b e m
sim ila r a q u i. O títu lo r e fle te u m a a titu d e geral p a ra c o m J e su s c o m o m e s -
tre, p o is n o rela to d e João J esu s n ã o tin h a e n s in a d o e m c o n e x ã o c o m a
m u ltip lic a ç ã o c o m o fiz e r a n o r e la to d e M a r c o s (g r á fic o n o § 2 0 a c im a , # 3 ),
v er, p o r é m , n o ta so b re v . 3: " a sse n to u -se " .
quando chegaste aqui? L ite r a lm e n te , " Q u a n d o te n s e s ta d o a q u i? " - u m a
p e r g u n ta q u e c o m b in a id é ia s e n tr e " Q u a n d o c h e g a s te a q u i? " e " A
q u a n to te m p o te n s e s ta d o aq u i? " T e m o s t r a d u z id o o p e r fe ito d o v e r b o
ginesthai (a q u i q u a s e c o m o s e n t id o d e paraginesthai, " c h e g a r" ) c o m o
u m a o risto .
26. não me buscais. E ste tem a é to m a d o d o v. 24.
comestes... e vos saciastes. Chortazesthai; v e r n o ta s o b r e v . 12, " fic a r a m
s a tis fe ito s " .
27. trabalheis pela. N ã o n o s e n tid o d e q u e q u a lq u e r d á d iv a e te rn a p o d e se r
g a n h a p e lo m e r o e s fo r ç o h u m a n o ; a n te s, o s e n tid o d e e m p e n h a r -s e p o r
o u trab alhar p ara. B A G , so b ergazesthai, 2 e (p. 3 07), s u g e r e o p o s s ív e l s ig -
n ific a d o d e " d ig erir, a ssim ila r" ; m a s to d o s o s jo g o s d e p a la v r a s so b r e
"trabalhar" n o s p o u c o s v e r s íc u lo s s e g u in t e s to rn a m is s o d u v id o s o .
comida perecível. Isto p o d e se r u m e c o d o v . 12, o n d e o s p e d a ç o s fo r a m re-
c o lh id o s para q u e n a d a perecesse. Inácio p o d e refletir a ideia d o v. 27 em
R m 7,3: " N ã o te n h o p ra ze r e m n u tr iç ã o c o r r u p tív e l... d e se jo o 'p ã o d e
D e u s', o q u a l é a ca r n e d e J esu s C risto ... e p ela b e b id a e u d e s e jo s e u sa n -
g u e , q u e é o a m o r in c o r r u p tív e l" . A s e g u n d a p a rte d a c ita ç ã o é r e m in is-
c e n te d e Jo 6,53 ss.
23 · Jesus na Páscoa: Introdução ao discurso sobre o pão da vida 497

comida que dura. E ste é o v e r b o jo a n in o fa v o r ito , menein (v er A p ê n d ic e I:8‫׳‬


p . 794ss). A id eia n ã o é q u e a c o m id a d u ra p ara se m p r e , m a s q u e a co m id a
é im p e r e c ív e l, p o r q u e ela d á a v id a etern a. C o m p a ra r 4,14: "A á g u a q u e
e u lh e d er s e to m a r á n e le u m a fo n te d e á g u a q u e sa lte para a v id a eterna".
0 Filho do Homem vos dará. E m 4 ,1 4 , "eu d er". A s m u ltid õ e s e n te n d e r ía m
e s te term o ? N ã o o c o r r e a ssim c o m a m u ltid ã o h ie r o so lim ita n a , e m 12,34.
dará. U m t e m p o p r e s e n te é b e m a te sta d o , m a s P75 in c lin a m a b a la n ç a d e-
c is iv a m e n te e m fa v o r d o fu tu r o . O s q u e rejeitam o fu tu r o p e n sa m q u e
e s ta é u m a a d a p ta ç ã o te o ló g ic a a o tem a d a e u c a r istia q u e será d a d a m a is
a d ia n te; c o n tu d o , o p r e s e n te é p r o v a v e lm e n te u m a a d a p ta ç ã o d e c o p ista
a o v. 32.
posto Seu selo. E m 3 ,3 3 , o u v im o s q u e , p o r a c e ita r o t e s t e m u n h o d e J e su s,
o c r e n te te m c e r t if ic a d o (p ô r s e u s e lo d e a p r o v a ç ã o ) q u e D e u s é fiel.
A q u i, D e u s p õ e S e u s e lo s o b r e o F ilh o , n ã o ta n to à m o d o d e a p r o v a -
ç ã o , p o r é m m a is à m o d o d e c o n s a g r a ç ã o (1 0 ,3 6 ). O v e r b o e s tá n o a o -
r is to d e m o d o q u e o s c o m e n t a r is ta s p e n s a m e m u m a a ç ã o p a r tic u la r ,
c o m o a E n c a r n a ç ã o (S picq ) o u o b a tis m o (B ernard ). W estcott s u g e r e
q u e e s ta é u m a c o n s a g r a ç ã o a o s a c r ifíc io . O u tr o s p e n s a m n o F ilh o
c o m o a p o r ta r o s e lo - im a g e m d o P a i (C l 1 ,1 5 ), p r e c is a m e n t e c o m o e le
p o r ta o n o m e d iv in o . T e m - s e p r o p o s t o a in d a q u e e s ta s e la g e m d e Je-
s u s p e lo P a i é c o n tr a s ta d a c o m a t e n ta tiv a d a m u lt id ã o n o v. 15 p ara
f a z e r rei a J e s u s.
28. 'trabalhar' nas obras. E sta tr a d u ç ã o p r e s e r v a o jo g o d e p a la v r a s e m g r e g o ,
m a s "trabalhar" , a q u i, n ã o sig n ific a " tra b a lh eis p ela " c o m o n o v. 27, m a s
"realizar" . B ultm ann , p. 1628, n ã o crê s e e x p liq u e b e m n e sta p a ssa g e m
q u e a m u ltid ã o c h e g a s s e a e n te n d e r a s p a la v r a s d e J esu s, p o is n o v . 3 4 pa-
r ecem m o stra r n e n h u m a p e r c e p ç ã o q u e e le e stá fa la n d o d a ob ra d e D eu s.
as obras de Deus. A s o b ra s q u e D e u s q u e r d o s h o m e n s .
29. a obra de Deus. A q u i a e x p r e s s ã o p o d e ter o m e s m o s ig n ific a d o , m a s tam -
b é m p o d e s ig n ific a r a ob ra q u e D e u s r e a liz a n o s h o m e n s.
tenhais fé. E ste é u m su b je tiv o p r e s e n te c o m u m teo r d e d u r a çã o .
30. que sinal realiza tu? O "tu" é en fá tic o : tu q u e e s tá s d iz e n d o q u e o u tr o s
façam .
31.ancestrais. L ite ra lm e n te , "pais".
maná. A p r o v is ã o d o m a n á era c o n sid e r a d a c o m o s e n d o u m d o s m a io r e s
m ila g r e s d e M o isé s; a s n a r r a tiv a s b á sic a s s ã o Ex 16 e N m 11. Joshfo, Ant.
III.1.6; 30, fala d e le c o m o u m a lim e n to " d iv in o e m ira cu lo so " .
Escritura. A cita ç ã o e m João n ã o é u m a tra d u ç ã o e x a ta d e n e n h u m a p a ssa -
g e m d o A T . P o d e m o s n o ta r o se g u in te :
498 O Livro dos Sinais

Ex 16,4: Eu farei c h o v e r so b r e v ó s p ã e s d o céu.


Ex 16,15: E ste é o p ã o que 0 Senhor vos tem dado a comer.
SI 78,24: E f iz e s s e c h o v e r so b r e e le s o m a n á para comerem.
e d e u -lh e s o pão do céu.
Sb 16,20: A lim e n ta s te teu p o v o c o m a c o m id a d o s a n jo s,
e lh es e n v ia ste do céu pão q u e n ã o cu sto u n e n h u m trabalho.

32. não foi Moisés. Borgen , "Observations", p p . 2 3 3 -3 4 , te m m o s tr a d o q u e


e s te é u m b o m e x e m p lo d e e x e g e s e tip ic a m e n te ju d a ic a . A m u lt id ã o
c ito u a E scritura: "E le lh e s d e u p ã o d o c é u p a ra c o m e r e m " . N o e s q u e m a
d a e x e g e s e ju d a ic a , o in té r p r e te d iz: " N ã o l e d e s ______, e s i m ______ ".
E n tã o J esu s d iz: 'N ã o in te r p r e te is o 'e le ' c o m o s e n d o M o is é s e n ã o le d e s
n o p r e té r ito 'd e u '; m a s in te r p r e ta i o ‫׳‬e le ' c o m o s e n d o o P a i e le d e s 'd á '" .
O t e m p o d a co r r e ç ã o é b a s e a d o e m u m a v o c a liz a ç ã o h e b r a ic a d ife r e n te
n a q u a l a s c o n s o a n te s ntn s ã o lid a s c o m o nõtên, e m vez de nãtan. C om
e s ta s m u d a n ç a s , J e su s in d ic a q u e o A T e s tá s e c u m p r in d o a g o r a e m su a
p ró p ria ob ra. O m a n á d a d o p o r M o is é s n ã o era o v e r d a d e ir o p ã o d o c é u
d o q u a l fala o AT; é o e n s in o d e J e su s. S e n o s le m b r a r m o s d e q u e n o
p e n s a m e n t o r a b ín ic o p ã o era u m s ím b o lo d a T orá (StB, II, p . 4 8 3 ), p o -
d e m o s ter a q u i u m c o n tr a ste e n tr e M o is é s e J e s u s, e n tr e a L ei e o e n s in o
d e J esu s, c o m o e m 1,17.
deu. A e v id ê n c ia te x tu a l é d iv id id a e n tre ler u m a o r isto o u u m p e r fe ito
(" tem d a d o " ). A lg u n s su g e r e m q u e o a o r isto v e m d o u s o d a q u e le te m p o
n o v . 31. N o te o c o n tr a ste e n tr e o te m p o p re té r ito (a o r isto o u p e r fe ito )
e o te m p o p r e s e n te n a lin h a fin a l n o v . 32: a d o a ç ã o d o P ai c o m e ç o u e
co n tin u a rá . A te n ta tiv a d e T orrey d e ler e sta se n te n ç a c o m o u m a p er-
g u n ta (" N ã o foi M o isé s q u e v o s d e u o p ã o d o céu ?" ) é d e sn e c e s s á r ia . V er
c o m e n tá rio .
0 verdadeiro pão. A q u i " verd a d eiro " tem v a lo r en fá tico . E sta a firm a çã o a d q u i-
riria u m n o v o a lc a n c e s e já s e h a v ia fo r m u la d o a a r g u m e n ta ç ã o ra b ín ica
fo s s e co rren te s e o m a n á foi o u n ã o r e a lm e n te a c o m id a c e le s tia l d o s a n -
jo s (StB, II, p. 482).
33. 0 pão de Deus desce. L ite ra lm en te, "o p ã o d e D e u s é a q u e le q u e [ou quem]
d esc eu " . O s e s tu d io s o s e s tã o d iv id id o s so b r e s e o p r e d ic a d o é p e s s o a l o u
im p e s s o a l. T a lv e z a m b o s e ste ja m im p líc ito s , p o is a a m b ig u id a d e jo a n in a
a m iú d e é in te n c io n a l. O p o v o o to m a im p e s s o a lm e n te n o v . 34, m a s a
c o n o ta ç ã o p e s s o a l p rep a ra para a s id é ia s d o s v s. 3 5 ss. A fra se "o q u a l
[ou q u e m [ d e s c e d o céu " o co r re s e te v e z e s n e s te d isc u r s o . F o i a ssu m id a
n o c r e d o n ic e n o p ara re p o r ta r-se a Jesus: "F oi p ara n ó s, h o m e n s , e para
n o s s a s a lv a ç ã o q u e e le d e s c e u d o céu".
23 · Jesus na Páscoa: In trodu ção ao d iscu rso sob re o p ã o da vid a 499

C O M E N T Á R IO

O p ro b le m a d a d iv isã o d o g ra n d e d isc u rso so b re o P ão d a V ida é di-


fícil, e q u a s e to d o s os c o m e n ta rista s têm su a p ró p ria d iv isão . C rem o s
q u e seria m ais p ro v e ito so d isc u tir este p ro b le m a e m u m a d e n d o (ver
§ 25, p. 537) a p ó s o c o m e n tá rio so b re to d o o d iscu rso .
O s vs. 25.34 s e rv e m c o m o u m p re fá c io o u in tro d u ç ã o ao d isc u r-
so d o P ão d a V id a , e a ssim o a rra n jo se a s se m e lh a à q u e le d o c a p ítu lo
5, o n d e o s v s. 16-18 a p re s e n ta o te m a p a ra o lo n g o d is c u rs o q u e se-
g u iu . O s vs. 25-34 n ã o só s e rv e m a e ste p ro p ó s ito n o c a p ítu lo 6, m as
ta m b é m s e rv e m (u m ta n to a rtific ia lm e n te ) p a r a c o n e c ta r o d isc u rso
ao q u e v e m a n te s (assim c o m o e m 5,16-18). R e m e te m o s o le ito r à
b re v e tá b u a d e s e q u ê n c ia d e p a ra le lo s e n tre João e M a rc o s n a p. 469.
M c 6,34 d iz q u e Je su s e n s in a v a p o r o c a siã o d a m u ltip lic a ç ã o (re-
lato I); e m Jo ão , Je su s e n s in a n o d ia s e g u in te . Em M c 8,14-21, d e-
p o is d o re la to II d a m u ltip lic a ç ã o , h á u m p e d id o p o r u m sin a l e
a lg u m a s b re v e s o b se rv a ç õ e s d e Je su s so b re p ã o , in d ic a n d o a falh a
d o s d is c íp u lo s e m e n te n d e r as m u ltip lic a ç õ e s. T o d o s e ste s te m a s
a p a re c e m e m Jo 6,25-34, p o ré m n u m a re la ç ã o c ro n o ló g ic a e g e o g rá -
fica m u ito m a is e s tre ita . V er ta m b é m o u so fig u ra tiv o d e p ã o em
Mc 7,24-30 n a s e q u ê n c ia d o e n s in o q u e se g u e o re la to I d a m u lti-
plicação. E stes p a ra le lo s n o s lev am ao g ên io o rg a n iz a d o r d o q u a rto
e v a n g elista (co m o m u ito d o S erm ão d o M o n te reflete o g ên io d o pri-
m eiro e v a n g e lis ta ), n ã o o b s ta n te c o m p o s to d e e le m e n to s d e m a te ria l
tra d ic io n a l.

Versículos 24-27

C o m o tem o s d ito e m n o ssas o bservações so b re os vs. 14-15 e sobre


22-24, h á m u ita s d ific u ld a d e s so b re a identificação d a m u ltid ã o à q u al é
d irig id o o d isc u rso d o Pão d a V ida com a m u ltid ã o q u e teste m u n h o u a
m u ltip licação . N o v. 25, Jesus já n ão é tid o com o "o P rofeta" e lhe que-
rem fazer rei (14-15); ele é a b o rd a d o com o m o d esto título d e "R abi".
A e stra n h a p e rg u n ta em 25, " Q u a n d o ch eg aste aq u i?" (ver a respectiva
nota), p o d e ter u m significado teológico m ais p ro fu n d o se aq u i o evan-
g elista está p e n s a n d o n a q u e stã o d a s o rig en s d e Jesus, q u e é d e seus te-
m as fav o rito s (7,28 etc.). Em term o s d esse tem a, a m enção d e o Filho do
H o m e m e o p ã o do céu co n stitu iría u m a resp o sta teológica a com o Jesus
500 O Livro dos Sinais

c h eg o u aq u i: ele é o F ilho d o H o m e m q u e d e sce u d o céu (3,13). N o


n ível factu al, to d av ia , a q u e stã o p a re c e p e rm a n e c e r se m re sp o sta .
O u tra v ez n o nível factu al, o v. 26 é difícil. C o m o p o d e Jesu s d iz e r
à m u ltid ã o q u e n ã o o estã o b u s c a n d o p o r tere m v isto sin ais, q u a n d o
n o s vs. 14-15 fo m os in fo rm a d o s q u e o p o v o q u e ria v ir e a rre b a ta r Jesu s
p re c isa m e n te p o r tere m v isto os sin ais q u e ele rea liz a v a ? E n q u a n to
tal d ific u ld a d e reflete a c o m p lex a h istó ria q u e su b faz esta cen a, ela
n ão oferece d ific u ld a d e n o n ív el teológico d o d isc e rn im e n to q u e o
e v a n g elista tin h a d o s sinais. O e n tu sia sm o d e 14-15 tin h a p o r b a se
a v isão física d o m a ra v ilh o so a sp e c to d o sin al, m a s se m q u e isso se
acrescen ta u m c o n h e cim e n to p ro fu n d o d o q u e o sin a l e n s in a v a so b re
Jesu s - o c o n ceito q u e tin h a m d e le c o m o o rei d a v íd ic o e ra p o lítico . E a
c o m p re e n sã o m ais p ro fu n d a d o sin al d e q u e fala o v. 26, c o n tra s ta n d o
-o co m o c o m er d o s p ã e s m iracu lo so s. R e q u e rerá u m lo n g o d isc u rso
d a p a rte d e Jesu s p a ra ex p licar q u e a m u ltip lic a ç ã o foi u m sin al d e
seu p o d e r p a ra d a r v id a a tra v é s d o p ã o d e se u e n sin o e d e s u a carn e,
p o d e r este q u e ele p o ssu i p o r h a v e r d e sc id o d o céu. A m e sm a in co m -
p re e n sã o d o p ã o (e d o ferm en to ) em u m n ív el m e ra m e n te n a tu ra l se
e n c o n tra em M c 8,14-21; M t 16,5-12; e e sp e c ia lm e n te em M t 16,12 fica
claro q u e Jesu s estev e fa la n d o d o ensino.
N o v. 27, Jesus e n fa tiz a a lição em te rm o s d o fam iliar d u a lism o
joanino: o a lim e n to p ere c ív e l e o a lim e n to q u e d u r a p a ra a v id a e te rn a.
N o c a p ítu lo 4, o c o n tra ste foi e n tre á g u a q u e p o d ia m a ta r a se d e tem -
p o ra ria m e n te e a á g u a p a ra a v id a e te rn a q u e sa tisfa ria a se d e e te rn a -
m en te. E m b o ra a e x p re ssã o seja jo an in a, tais sím b o lo s são fre q u e n te s
n a Bíblia. Is 55,1 c o n v id a a to d o o q u e está s e d e n to q u e v e n h a às á g u a s
e a to d o o q u e n ão tem d in h e iro q u e c o m p re e com a. E sta b e b id a e co-
m id a n ã o é alg o q u e o d in h e iro p o ssa c o m p ra r; é a p a la v ra d e D eu s à
q u al d e v e m o u v ir. O p a ra le lo em João, "N ã o tra b a lh e is p e lo a lim e n to
q u e p e re c e ", o u v im o s Lc 12,29, "N ã o b u sq u e is o q u e h a v e is d e com er,
o u o q u e h a v e is d e beber... em v ez d isso , b u scai Seu rein o ".
N o v. 27, Jesus id en tifica o a lim e n to q u e d u ra p a ra a v id a eterna
co m o o d o m d o Filho do Homem. F re q u e n te m e n te , este é u m títu lo es-
catológico (ver n o ta so b re 1,51), e o u so a q u i p ro v a v e lm e n te reflita a
escato lo g ia rea liz a d a jo an in a. Se lerm o s " d a rá " o u " d á " , o alim ento
q u e d u ra p a ra a v id a e te rn a em p a rte é u m d o m a tu a l, ju stam en te
com o a p ró p ria v id a e te rn a é u m d o m atu al. E stas re a lid a d e s celestiais
são c o n c re tiz a d as n o m in isté rio d e Jesus.
23 · Jesus na Páscoa: Introdução ao discurso sobre o pão da vida 501

Versículos 28-31

N o s vs. 28ss. h á u m jogo d e p a la v ra s so b re o tem a "tra b a lh o "


q u e já foi in tro d u z id o em 27, e este tem a p a re c e q u a se c o n stitu ir u m a
ap lic aç ã o s e p a ra d a n a d isc u ssã o m a io r d e a lim e n to e p ão . Bultmann ,
p. 164, p e n s a q u e isto p e rte n c e a u m d iá lo g o p e rd id o em referên cia às
o b ras, alg o d o q u a l é p re s e rv a d o em 8,39-41. T o d av ia, se o d isc u rso
so b re o P ão d a V ida d iz re sp e ito à rev elação d e Jesus, en tão , já q u e
a fé é a re s p o s ta essen cial à rev elação d e Jesus, 28-29 têm u m lu g ar
na in tro d u ç ã o ao d isc u rso no se n tid o q u e fo rn ecem o c o n tra ste trad i-
cio n al e n tre fé e o b ras. A m u ltid ã o se v iu lev a d a p o r Jesus a p e n e tra r
além d o n ív el su p e rfic ial e m ate ria l d o a lim en to , m a s su a resp o sta
(28) é em te rm o s d e o b ra s q u e p o d e m rea liz a r. Jesus, p o r su a v ez (29),
p õ e a ê n fa se n a fé. P a u lo e T iago são os n o m es n e o te sta m e n tá rio s qu e
asso ciam o s ao p ro b le m a d e fé e o b ras, a q u i, p o ré m , tem o s a solução
jo an in a. O b te r v id a e te rn a n ã o é u m a q u e stã o d e o b ras, co m o se a fé
n ão im p o rta sse ; n e m é u m a q u e stã o d e fé sem o b ras. A o c o n trá rio , ter
fé é u m a o b ra; aliás, é a m ais im p o rta n te d e to d a s as o b ras d e Deus.
T o d av ia, co m o Bultmann o b se rv o u , este cre r n ã o é ta n to u m a obra
feita p e lo h o m e m q u a n to u m a su b m issã o à o b ra d e D eus em Jesus.
A t 16,30-31 m o stra u m a cena na v id a da Igreja p rim itiv a q u e nos ilus-
tra a situ a ç ã o ex isten cial em q u e os vs. 28-29 d e Jo 6 teriam tid o plen o
sig n ificad o e teriam sid o p re se rv a d o s.
A m en ç ã o d e fé faz a m u ltid ã o h o stil e co m eçam a q u e stio n a r as
reiv in d ic a çõ e s d e Jesus (v. 30). Im p õ e m -lh e u m a exigência p o r u m
sinal s im ila r ao q u e o u v im o s d a s a u to rid a d e s no tem p lo em 2,18; e,
com o já m e n c io n a m o s, há u m p a ra le lo sin ó tico a p ó s o relato d a se-
g u n d a m u ltip lic a ç ã o em Mc 8,11. O v ersíc u lo 31 in d icaria q u e o sinal
q u e a m u ltid ã o e sp e ra é a p ro v isã o d e p ã o ; v e r s u p ra (p. 492s.) p ara
a d ific u ld a d e d e co n ciliar isto com a in d icação d e q u e esta é a m esm a
m u ltid ã o q u e v iu a m u ltip lic a ç ão n o d ia a n te rio r. O im p o rta n te é a
p ró p ria m u ltid ã o q u e in tro d u z o tem a d o m a n á co m o m o d elo d e si-
nal. O d e safio a Jesus d e p r o d u z ir m a n á o u seu e q u iv a le n te com o u m
sinal é m u i c o m p re en sív e l, se p e n s a v a m ser ele o P rofeta-com o-M oi-
sés (v er n o ta so b re v. 14).
T em o s n o s d o c u m e n to s ju d aic o s p o ste rio re s e v id ên cia d e u m a
e x p e cta tiv a p o p u la r d e q u e n o s ú ltim o s d ia s D eu s p ro v e ria o u tra
v ez o m a n á - u m a e x p e cta tiv a c o n e cta d a com as e sp e ra n ç a s d e u m
502 O Livro dos Sinais

s e g u n d o Ê xodo. O apócrifo d o 2“ século d.C ., 2 Baruque 29,8, traz: "O


teso u ro d o m an á d escerá o u tra v ez d a s a ltu ra s, e c o m e rã o d e le n a q u e -
les an o s". A Midrásh Mekilta so b re Ex 16,25 diz: "N ã o o e n c o n tra rá s
fo m an á] n e sta era, m as o e n c o n tra rá s n a era q u e está v in d o " . A Mi-
drásh Rabbah so b re Ecl 1,9, traz: "C o m o o p rim e iro re d e n to r fez des-
cer o m an á , co m o se afirm a: 'P o rq u e eu farei c h o v e r p a ra v ó s p ã o
d o céu (Ex 16,4)', assim o s e g u n d o re d e n to r fará d escer m a n á " .
A Midrásh h o m ilética Tanhuma (Beshallah 21:66) é d e p a rtic u la r inte-
resse q u a n d o fala d o m a n á d e u m a m a n e ira sapiencial: "E le te m sid o
p re p a ra d o p a ra os ju sto s na e ra p o r vir. T o d o a q u e le que crê é d ig n o e
com e d e le " (citad o p o r H oskyns, p p . 293-94). V erem o s co m o o tem a d e
crer é e la b o ra d o n o d isc u rso d e Jesus so b re o P ão d a V ida. A lém d a
ex p ectativ a e scatológica geral d o m an á , p a re c e q u e o m a n á era p a rtic u -
larm en te asso ciad o ao te m p o d a P áscoa, e assim a referên cia ao m an á ,
n o v. 31, se aju sta b e m a o c e n ário d e João p a ra a cena d a m u ltip licação .
A Midrásh Mekilta so b re Ex 16,1 d iz q u e o m a n á caiu p e la p rim e ira v ez
n o d ia 15 d o s e g u n d o m ês, u m a d a ta a sso ciad a à celeb ração d a P áscoa
p o r aq u e le s q u e p e rd e ra m a d a ta re g u la r (N m 9,11). Js 5,10-12 d iz q u e
o m a n á caiu p ela ú ltim a v ez n a v é sp e ra d a P áscoa. A u m e n to u -se a
ex p ectativ a d e q u e o M essias viria n a P áscoa, e q u e o m a n á co m eçaria
a cair o u tra v ez n a P áscoa (G ärtner, p. 19). E m b o ra to d o s estes textos
ilu m in em a p a ssa g e m em João, d e v e m o s e n fa tiz a r q u e as referên cias
rab ín icas v ê m d e u m p e río d o p o ste rio r, e n ão p o d e m o s te r c erteza
q u ã o im p o rta n te era o tem a d o m a n á n o s d ia s d e Jesus. E n tre tan to ,
D odd, Interpretation, p. 335, cita u m fra g m e n to d e u m o rác u lo sib ilin o
q u e p o d e ser p ré-cristão: "O s q u e tem e m a D eu s h e rd a rã o a v e rd a d e ira
v id a eterna... so b re o d o ce p ã o d o céu e stre la d o ".

Versículos 32-34

A g o ra Jesu s in fo rm a à m u ltid ã o q u e su a s e x p e c ta tiv a s escato ló -


gicas já se c u m p rira m . Já cita m o s o m a n á d a d o p o r M oisés, m a s isto
é a p e n a s u m a p re fig u ra ç ã o d o v e rd a d e iro p ã o v in d o d o céu q u e é o
p ró p rio e n sin o d e Jesus. Tal c o n tra ste e n tre m a n á , co m o c o m id a físi-
ca, e o p o d e r d e D e u s d e c o n c e d e r o a lim e n to e s p iritu a l n ã o é novo.
H á u m p a n o d e fu n d o p a ra ele e m D t 8,3, o n d e M oisés in fo rm a ao
povo: D eu s "v o s a lim e n to u com m a n á q u e n ã o co n h ecestes, n e m vos-
sos a n c estra is co n h e ce ram , p a ra q u e Ele v o s faça c o m p re e n d e r q u e o
23 · Jesus na Páscoa: Introdução ao discurso sobre o pão da vida 503

h o m e m n ã o v iv e só d e p ã o , se n ão q u e ele v iv e d e tu d o q u a n to [ou de
to d a p a la v ra que] p ro ce d e d a boca d o S enhor". Esta in terp retação do
m an á ecoa e m Sb 16,20 (ver nota so b re v. 31) q u e fala d o m an á e 16,26
q u e diz: "P ara q u e v ossos filhos, aos q u a is a m aste, a p re n d a m , ó Senhor,
q u e n ão são os d iv erso s tip o s d e fru to s q u e alim en tem o h o m em , m as
é tu a p a la v ra q u e p rese rv a os q u e creem em ti". T alvez a m esm a ên-
fase é co n seg u id a no equilíbrio d a s sentenças em N e 9,20: "D este teu
b o m e sp írito p a ra instruí-los, e n ão su b traíste teu m an á d e sua boca, e
lhes d e s te á g u a p a ra sua sed e". F ilo aleg o rizo u o m an á com o u m a re-
ferência à sab ed o ria. A ssim , h av ia certa p re p a ra ç ã o p a ra o sim bolism o
q u e Jesu s iria u s a r na aplicação d o m an á ou p ão d o céu à sua revela-
ção. (N a tu ra lm e n te , Jesus vai além d e to d o o p a n o d e fu n d o vetero-
te sta m e n tá rio ao falar d e si m esm o com o o p ã o d o céu e, assim , iden-
tifican d o -se co m o a revelação e n carn ad a). M as, com o m o stra o v. 34,
a m u ltid ã o falha c o m p le ta m en te em e n te n d e r o sim bolism o e fica com
u m a c o m p re en sã o m era m e n te m aterialista d o p ão. Esta in co m p reen são
leva Jesu s a co m eçar o g ra n d e d iscu rso so b re o P ão d a V ida.
R e c e n te m en te , e stu d io so s, tais co m o G ärtner e K ilmartin, têm
v isto u m a ap lic aç ã o p a sco a l a d ic io n a d a ao s vs. 25-34, p o is creem q u e
e n c o n tra ra m n o e sq u e m a p e rg u n ta e resp o sta d e ste s e v e rsíc u lo s su-
cessiv o s u m eco d a P áscoa ju d aic a, Haggadah. D u ra n te a litu rg ia da re-
feição p a sca l, q u a tro m e n in o s p e rg u n ta m o q u e está se n d o o rd e n a d o ;
e G ärtner e n c o n tra p a ra le lo s p a ra estas q u a tro p e rg u n ta s n o s vs. 28,
32, 42, 52. (P o d e m o s n o ta r q u e a a n á lise d a s p e rg u n ta s d a Haggadah
p o r D aube, p p . 158-69, é lig e ira m e n te d ife re n te d a d e G ärtner). Por
e x em p lo , n a p rim e ira p e rg u n ta d u r a n te a refeição o ju d icio so m eni-
n o p e rg u n ta so b re as o rd e n a n ç a s d e D eus; assim no v. 28 a m u ltid ã o
p e rg u n ta so b re a o p e ra ç ã o d a s o b ra s d e D eus. A u m m en in o ten ro
d e m a is p a ra fo rm u la r p e rg u n ta s é in stru íd o so b re u m a p a ssa g e m da
E scritu ra; assim , no v. 32, Jesu s in te rp re ta a p a ssa g e m d a E scritura
c o n c ern e n te ao m an á . A p e rg u n ta z o m b e te ira n o v. 42 é e q u ip a ra d a
à p e rg u n ta p ro p o s ta na refeição p e lo m e n in o ím p io . P re su m e -se que
u m a q u a rta p e rg u n ta d u ra n te a refeição é u m a p e rg u n ta p rática so-
b re o v iv e r feita p o r u m m e n in o sincero; fo rç a n d o u m ta n to a im a-
g in ação , isto se e n c o n tra n o v. 52. T o d a esta co rrelação p a re c e artifi-
ciai e fo rç a d a d e m a is, e d u v id a m o s q u e a e sp in h a d o rsa l d o rela to d e
João fo sse s u p rid a p e la s p e rg u n ta s ritu a is d a refeição pascal (em bora
os te m a s p a sc a is estejam p re se n te s em to d o o cap ítu lo ). T em os q u e
504 O Livro dos Sinais

ressa lta r q u e a teo ria c ita d a acim a tem q u e p a s s a r p o r a lto n ecessária-


m en te a lg u m a s p e rg u n ta s p a ra q u e p o ssa s u s te n ta r essa id en tifica ç ã o
(cf. o b serv açõ es so b re vs. 25, 34) p a ra to rn a r a d e q u a d o .
A té o n d e p o d e m o s v er, o e sq u e m a d e p e rg u n ta e re s p o s ta d o s
vs. 2 5 3 4 ‫ ־‬é p a rte d a técnica d o m a l-e n te n d id o jo an in o . Isto tem u m
p a ra lelo p e rfe ito n o c a p ítu lo 4, o n d e n ã o h á q u e stã o d a in flu ê n cia d o
ritu a l pascal:

João 6 João 4
P: 25 "R abi, q u a n d o c h e g astes P: 9 "T u és ju d e u , c o m o p o d e s,
aq u i?" p e d ir-m e , u m a s a m a rita n a , d e
b e b er?"
R: 27 " N ã o tra b a lh e is p e la c o m id a R: 13 "T o d o a q u e le q u e b e b e d e sta
p erecív el". á g u a terá s e d e o u tra v ez".
P: 30-1 "Q u e sin al e stá s fa z e n d o P: 11-2 " A o n d e e stá s in d o p a ra
p a ra lev arm o s? N o sso s ances- o b te r esta á g u a c o rre n te ? Se-
trais tin h a m o m an á p a ra c o m e r g u ra m e n te , n ã o p re te n d e s se r
n o d e serto ". m a io r q u e n o sso a n c e stra l Jacó
q u e n o s d e u este p o ç o ? "
R: 32-3 "M eu Pai v o s d á o p ã o d o R: 14 "A á g u a q u e e u lh e d e r se rá
céu. Pois o p ã o d e D eu s d esce to rn a rá n ele u m a fo n te d e á g u a
d o céu e d á v id a ao m u n d o " . q u e salta p a ra a v id a e te rn a " .
Reação: 34 "S en h o r, d á -n o s sem - Reação: 15 "D á -m e , d e sta á g u a ,
p re d e ste p ã o ". S en h o r, p a ra q u e e u n ã o te n h a
m ais se d e".

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


ca p ítu lo 6, n o final d o § 26.]

P = Pergunta
R = Resposta
24. JE SU S N A P Á S C O A :
- D IS C U R S O SO B R E O P Ã O D A V ID A
(6,35-50)

6 35Jesu s lh es d eclaro u :

"E u so u o p ã o d a v ida.
T o d o a q u e le q u e v em a m im jam a is terá fom e,
e to d o a q u e le q u e crê em m im jam ais terá se d e o u tra vez.
36M as, co m o v o s te n h o d ito ,
a in d a q u e |m e] te n d e s visto, c o n tu d o n ã o credes.
37T o d o s q u a n to s o Pai m e d á v irã o a m im ;
e to d o s os q u e v êm a m im jam ais lan ç a re i fora,
38p o rq u e n ão é p a ra fazer m in h a p ró p ria v o n ta d e
q u e d escí d o céu,
m a s p a ra fazer a v o n ta d e d a q u e le q u e m e en v io u .
39E a v o n ta d e d a q u e le q u e m e en v io u
é q u e eu n a d a p e rc a d o q u e Ele m e d e u ;
ao c o n trá rio , e u o re ssu sc ita re i n o ú ltim o dia.
40A liás, esta é a v o n ta d e d e m eu Pai:
q u e to d o a q u e le q u e vê o Filho
e crê n ele
te n h a a v id a e te rn a.
E e u o ressu sc ita re i no ú ltim o d ia".

41N isto os ju d e u s m u rm u ra v a m c o n tra ele, p o rq u e ele alegava:


"Eu so u o p ã o q u e d e sce u d o céu ". 4142E c o n tin u a ra m d ize n d o : "N ã o é
este Jesu s o filho d e José? N ã o c o n h ecem o s seu p a i e a su a m ãe? C om o
p o d e ele a le g a r h a v e r d e sc id o d o céu ?" 43"C essai d e m u rm u ra r e n tre
v ó s", lh es d isse Jesus.
506 O Livro dos Sinais

44" N in g u é m p o d e v ir a m im ,
a n ã o se r q u e o Pai, q u e m e e n v io u , o atraia.
E eu o ressu sc ita re i n o ú ltim o dia.
4-1E stá escrito n o s p ro fetas:
Έ to d o s se rã o e n sin a d o s p o r D e u s.'
T o d o a q u e le q u e tem o u v id o o Pai
e a p re n d id o d ele
v e m a m im .
46N ã o q u e a lg u é m haja v isto o Pai -
so m e n te a q u e le q u e é d e D eus
tem v isto ao Pai.
47D eix ai-m e a s se g u ra r-v o s firm em en te:
o c re n te p o s su i a v id a e te rn a.
48Eu so u o p ã o d a v id a.
49V ossos ancestrais com eram o m an á n o deserto, p o ré m m o rreram .
?üE ste é o p ã o q u e d esce d o céu
p a ra q u e o h o m e m q u e o co m e jam ais m o rra ".

NOTAS

6.35. Eu sou. Embora tenham os traduzido o "Eu" enfaticam ente como exi-
ge o contexto, este é um tipo frequente da expressão egõ eimi em João
(ver Apêndice IV, p. 841 ss). O egõ eimi com um predicado não revela a
essência de Jesus, m as reflete sua relação com os hom ens; neste caso,
sua presença é alim ento para os hom ens. Borgen , "Observations", p. 238,
ressalta que as palavras de Jesus, aqui, são ilustrativas da exegese judaica
(ver nota sobre v. 32). Jesus está se identificando como o pão m encionado
na citação bíblica de Êxodo citado no v. 31, justam ente como o Batista se
identificou como a voz m encionada em Is 40,3 (Jo 1,23). Borgen fornece
im pressionantes paralelos judaicos.
0 pão da vida. Isto significa o pão que dá vida. Com parar 6,51: "o pão vivo".
vem a mim... crê em mim. Estes estão em paralelism o, como tam bém em
7,37-38; significam a mesma coisa (ver supra, p. 267). Estas duas linhas
do vs. 35 ecoa Siraque 24,21: "Aquele que come de m im [a Sabedoria]
ainda terá fome; aquele que bebe de mim terá mais sede". Embora a pri-
meira vista as palavras de Jesus pareçam negar Siraque, o significado
de ambos é o mesmo. Siraque quer dizer que os hom ens nunca terão
tanta Sabedoria e sem pre desejarão mais; as palavras de Jesus de que os
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 507

h o m e n s n u n c a terã o fo m e o u s e d e d e n a d a m a is a lé m d a p ró p ria re v e-
la ç ã o d e Jesu s. J o ã o ta m b é m p o d e e c o a r Is 4 9,1 0 (" n ã o terã o fo m e , n e m
terã o s e d e " ), p a s s a g e m su p r a c ita d a (p. 4 7 9 s.) c o m o p a n o d e fu n d o v e te -
r o te sta m e n tá r io p ara a m u ltip lic a ç ã o .
36. como vos tenho dito. A bbott, JG, § 2 1 89-90, e n fa tiz a q u e o hoti q u e in tr o d u z
o d is c u r s o é fr e q u e n te m e n te u s a d o e m João q u a n d o J esu s está cita n d o
s u a s p r ó p r ia s p a la v ra s; à s v e z e s n ã o fica cla ro s e está in tr o d u z in d o d is-
c u r s o d ir e to o u in d ir e to . N a v e r d a d e , p r e s s u p õ e -s e q u e a s p a la v r a s q u e
J esu s tem d ito n ã o s e e n c o n tr a m c o m o tais n o q u e p r e c e d e . N o v e r síc u lo
2 6 , o u v im o s : " N ã o me b u sc a is p o r q u e vistes sinais"; m a s is s o está a in d a
m u ito lo n g e d o q u e le m o s n o v . 36. Bultm ann , p. 163, p õ e 36-40 d e p o is
d e 41 -4 6 , o b te n d o a ssim u m a m e lh o r se q u ê n c ia . O u tra p o s s ib ilid a d e é o
V. 36 d e p o is d o v . 40. E n tretan to, e m n e n h u m a d e sta s tr a n sp o siç õ e s su -
g e r id a s s ã o as p a la v r a s d o v . 3 6 e n c o n tr a d a s n o q u e J esu s d isse . Borgern,
"Observations", p . 239, s u g e r e o u tra tra d u ç ã o p ara 36: "M as e u te n h o d ito ,
'Vós', p o r q u e [hoti c a u sa tiv o , n ã o c o n s e c u tiv o !, a in d a q u e te n d e s v isto ,
c o n tu d o n ã o cred es" . Ele p e n s a n o v. 3 6 c o m o p a rte d a e x e g e s e técn ica já
d is c u tid a na n o ta so b r e v . 32. J esu s sig n ific a q u e , q u a n d o e m 3 2 e le d e u a
e x e g e s e d a E scritura cita d a p e lo s g a lile u s e m 31, e le d is s e "vos" e m v e z d e
" lhes" (v. 31 - E scritura citad a: "Ele lh e s d e u p ã o d o c é u para co m erem " ;
v . 32 - " n ão é M o isé s q u e m vos d e u o p ã o d o céu" ). A r a z ã o p o r q u e e le
a p lic o u a E scritura a s e u s o u v in te s fo i su a falta d e fé.
ainda que... não. Para esta tr a d u ç ã o d e kai... kai, v e r A bbott, JG, § 2169; BDF,
§444\
[me]. O s d o is p a p ir o s B o d m e r a c u m u la m n o v a s p r o v a s p ara esta leitura;
a o m is s ã o p o d e r e p r esen ta r u m d e se jo d e c o p ista d e d e ix a r o v. 36 m a is
v a g o p ara q u e s e u a n te c e d e n te f o s s e e n c o n tr a d o n o v. 26.
37. todos os que. E m a m b o s, João (ta m b é m v . 39; 17,2.24) e 1 João (5,4), e n c o n -
tr a m o s o sin g u la r n e u tr o o n d e e sp e r a r ía m o s o p lu r a l m a sc u lin o . BDF,
§ 138', o fe r e c e u m a e x p lic a ç ã o p la u sív e l: " a lg u m a s v e z e s , o n e u tr o é
u s a d o c o m referê n c ia a p e s s o a s , s e n ã o a in d iv íd u o s , m a s b e m e m u m a
q u a lid a d e g er a l é q u e d e v e se r e n fa tiz a d a " . Z erwick (Analysis Philologien)
s u g e r e in flu ê n c ia se m ític a ; p o is kol de , " to d o a q u e le q u e " , n ã o d istin -
g u e g ê n e r o o u n ú m e r o . E n treta n to , p o d e -s e in d a g a r s e o e v a n g e lis ta (q u e
sa b e m u ito b e m c o m o d iz e r " to d o a q u e le q u e" n o v. 40) n ã o p o d e r ia q u e -
rer d a r u m a m a io r força c o le tiv a a q u i. B ernari), I, p. 200, cita o e x e m p lo
d o e m p r e g o e m 17,21: "para q u e to d o s seja m u m [n eu tro]" .
me dá. C o n tra sta r o p e r fe ito , " tem d a d o " , n o v. 39; a a çã o d e D e u s n ã o está
a tre la d a p e la s c a te g o r ia s d e te m p o . Q u e o s c r e n te s sã o d a d o s a J esu s p e lo
P ai, m e n c io n a -s e e m 10,29; 17 passim; 18,9.
508 O Livro dos Sinais

38. minha própria vontade... a vontade daquele que me enviou. O m esm o contraste
se encontra na descrição sinótica da agonia no jardim (Mc 14,36; espe-
cialmente Lc 22,42). Para a relação de João à cena da agonia, ver abaixo,
pp. 765-766.
desci. Este é um dos poucos ecos do tem a do pão do céu (v. 33) que se en-
contram nos vs. 36-40.
39. último dia. Aqui, como em 11,24 e 12,48, faz-se referência ao dia do juízo.
Este versículo fala da ressurreição do justo; com parar com a dupla res-
surreição de m aus e bons em 5,28-29.
40. vê. Theorem (ver Apêndice 1:3, p. 794ss) - não só fisicamente, m as o co-
nhecim ento espiritual.
0 Filho... nele. Nestes dois versos, Jesus de repente passa a falar de si mesmo
na terceira pessoa, enquanto o resto dos vs. 36-40 está na prim eira pes-
soa. Pode ser que tenham os um a coleção de ditos de estrato diferente da
tradição joanina, embora a diferença de pessoa não seja necessariam ente
um critério absoluto.
E eu. A últim a frase do v. 40 parece constituir um a sentença independente,
diferente a sentença sim ilar na últim a linha do v. 39, que é explicativa da
vontade de Deus. No v. 40, a m udança de pessoa para a prim eira pessoa
é abrupta, e o "Eu" é enfático.
41. os judeus. Esta é a prim eira vez em João que o povo da Galileia é reporta-
do como "os judeus", um term o que geralm ente se refere aos que eram
hostis a Jesus em Jerusalém. Não se pode supor que estes são dirigentes
judeus de Jerusalém (como em Mc 7,1), porque conhecem os detalhes
locais da vida da vila de Nazaré. Pode ser que esta objeção tenha sido
introduzida aqui de outra cena.
Murmuravam. A m esm a palavra aparece no relato que a LXX tem da mur-
m uração dos israelitas durante o êxodo (Ex 16,2.7.8); IC or 10,10 tam bém
a usa para descrever esta situação. A im agem é a de um crítico compla-
cente mais que um a hostilidade franca.
porque alegava. Borgen , ,,Observations'', pp. 235-37, ressalta que este tipo de
objeção tem paralelos na exegese judaica contem porânea. Pensando na
objeção de Ex 16 que propuseram no v. 31, estão objetando à exegese
radical proposta por Jesus nos vs. 32, 35.
42. este. Há neste pronom e um elemento de depreciação: "este indivíduo".
Jesus, 0 filho de José. O paralelo nos sinóticos se encontra na rejeição de Jesus
de Nazaré:•

• Mc 6,3: "N ão é este o carpinteiro, filho de Maria e irm ão de Tiago, José,


Judas e Simão? E não vivem aqui entre nós suas irm ãs?"
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 509

• M t 13,55: “N ã o é e s te o filh o d o c a r p in teiro ? E n ã o é su a m ã e ch a m a d a


M aria, e n ã o v iv e m s e u s ir m ã o s T iago...?"
• Lc 4,22: “ N ã o é e s te o filh o d e José?"

O b v ia m e n te , João s e a p r o x im a m a is d e L u cas, em b o ra João m e n c io n e a


m ã e, c o m o fa z e m M a r co s e M a te u s. Já v im o s o u tr o s p a r a le lo s jo a n in o s
a e sta c e n a s in ó tic a e m N a z a r é , n o c o m e n tá r io so b r e 4 ,4 3 -4 5 (em § 15).
e sua mãe. Isto é o m itid o p o r a lg u m a s te s te m u n h a s a ss o c ia d a s a o g r u p o
o c id e n ta l e p e lo OS.
como. A lg u m a s te s te m u n h a s tr a z e m “A s s im c o m o [oun]"; o u tr a s tra zem
“C o m o a g o ra [nyn]". P a re ce m a is p r o v á v e l q u e a s p a r tíc u la s fo s s e m a g re-
g a d a s a u m o r ig in a l m a is b r e v e . B orgen , “ Observations", p. 235, a p o n ta
p ara o u s o d e kêsad, " C o m o [en tã o ]" , a o in tr o d u z ir o b je ç õ e s ra b ín ica s
co n tra u m a in te r p r e ta ç ã o d a E scritura. C o m p a ra r ta m b é m a o b je çã o d e
N ic o d e m o s q u e c o m e ç a c o m " C o m o " e m 3,4.
44. atraia. A s f o n te s r a b ín ic a s u s a m a e x p r e s s ã o 'a p r o x im a r -s e [d a T orá]'
p ara d e s c r e v e r c o n v e r s ã o . Pirqe Abotli i 12, d iz: "O d e s e jo n a tu r a l d e
q u e m s e s e n t e a s s im [ter a m o r] p ara c o m s e u s c o m p a n h e ir o s é 'a p r o x i-
m á -lo s d a T o rá ', p o is is to s ig n ific a f a z ê -lo s p a r tic ip a n te s d o m a is p le n o
c o n h e c im e n t o d e D e u s" . Para J oão, o q u e fa z o s h o m e n s p a r tic ip a n te s
d o c o n h e c im e n t o d e D e u s é tr a z ê -lo s p ara m a is p e r to d e J esu s. O tem a
d e atrair re a p a r e c e r á e m 12,32: "E q u a n d o e u fo r le v a n ta d o d a terra,
a tra ir ei t o d o s o s h o m e n s a m im " . B ernard , 1, p. 2 0 4 , s u g e r e q u e u m
p a n o d e fu n d o p a ra is to p o d e se r e n c o n tr a d o na LXX d e Jr 38 ,3 (TM ,
XX XI), o n d e D e u s d iz d e Israel: "Eu v o s te n h o tr a íd o c o m b e n ig n id a -
d e" . A lg u n s n e g a m q u e a LXX d ê u m a tr a d u ç ã o co rreta d o h eb ra ic o
d e s t e v e r s íc u lo ; v e r , p o r é m , A . F euillet, VT 12 (1 9 6 2 ), 122 -2 4 . N o t e q u e
u m p a r a le lo a o v. 4 4 e m J o ã o s e e n c o n tr a n o v. 65, o n d e , e m v e z d e "a
n ã o se r q u e o P a i o tra g a " , o u v im o s "a n ã o se r q u e lh e seja c o n c e d id o
p e lo Pai".
45. nos profetas. É p r o v á v e l q u e e s te p lu r a l seja u m a g e n e r a liz a ç ã o , e m b o r a
a lg u n s te n h a m p e n s a d o n u m a c o le ç ã o d e t e s t e m u n h o s p r o fé tic o s u sa -
d o s p e la igreja p r im itiv a . T o d a v ia , o u tr a p o s s ib ilid a d e é e x ib id a p e lo
p a d r ã o h o m ilé t ic o d e s c o b e r to p o r Borgen ; is to p o d e r e p r e se n ta r a n o ta
d e q u e a c ita ç ã o s u b o r d in a d a d o p r o fe ta e s tá s e n d o in tr o d u z id a (v er
c o m e n tá r io ).
Έ todos serão ensinados por Deus.' Esta é u m a c ita ç ã o liv r e d e Is 54,13:
o TM: " T o d o s o s v o s s o s filh o s se r ã o e n s in a d o s p e lo S en h or" .
A LXX: "E e u farei c o m q u e v o s s o s filh o s sejam e n s in a d o s p o r D eu s" .
ouvido 0 Pai/e aprendido dele. L ite ra lm en te, " o u v id o d o Pai e a p r e n d id o " .
510 O Livro dos Sinais

46. Não que alguém haja visto 0 Pai. E ste é o m e s m o tem a q u e e m 1,18; e o c o n -
traste c o m M o is é s s u g e r id o a li (p. 213) p r o v a v e lm e n te ta m b é m esteja e m
m e n te a q u i, e m v ista d o v. 32. V er ta m b é m n o ta so b r e 5,37.
49. Vossos ancestrais. L itera lm en te, "pais". E ste é u m d o s e x e m p lo s d e " v o sso "
in d ic a n d o a c is ã o m a is p r o fu n d a q u e e x is te e n tr e Igreja e S in a g o g a n o
te m p o e m q u e o e v a n g e lis ta e stá e s c r e v e n d o ; v e r " v o ssa Lei" e " v o s so
p a i A b raão" e m 8,56.
morreram. N o v . 49, está im p líc ita a m o r te física; n o v. 5 0 , a m o r te e s p ir itu a l.
C o m p a ra r 11,25-27.
50. Este é 0 pão. A fr a se o lo g ia s e a p r o x im a m a is d e Ex 16,15; v e r n o ta so b r e
v. 31.

C O M E N T Á R IO : G E R A L

O significado de "O Pão da Vida"

A n tes d e c o m e n ta rm o s o d isc u rso p ro p ria m e n te d ito , a b o rd e m o s an-


tes a q u e stã o d o q u e Jesu s tem em m e n te q u a n d o fala d e p ão . Já m en-
cio n am o s acim a (p. 501ss.) q u e o m a n á era in te rp re ta d o , e m a lg u n s
círcu lo s ju d aic o s, co m o sig n ific a n d o a p a la v ra o u in stru ç ã o d iv in a;
assim h o u v e p re p a ra ç ã o p a ra se c o m p re e n d e r "o p ã o d o cé u " o u "o
p ã o d a v id a " d e q u e Jesus falav a co m o revelação divina d a d a ao s ho-
m en s p o r e e m Jesus. E n tre ta n to , n o s vs. 51-58, "o p ã o d a v id a " é id en -
tificad o com a c a rn e d e Jesus, e ali p a re c e q u e Jesu s está fa la n d o do
pão eucarístico. (N o q u e v em a se g u ir, d isc u tire m o s n ã o só o s vs. 35-50,
m as tam b é m 51-58).
M esm o n a a n tig u id a d e , n ã o h o u v e c o n co rd ân cia. A lg u n s d o s Pa-
d re s d a Igreja p rim itiv a , co m o C lemente d e A le x a n d ria , O rígenes e
E usébio, e n te n d e ra m e s p iritu a lm e n te to d o o d isc u rso (vs. 35-58): p a ra
eles, a ca rn e e s a n g u e d e 53ss. sig n ificav am n ã o m ais q u e o p ã o d o céu -
u m a referên cia a C risto , p o ré m n ão e m te rm o s eu carístico s. P a ra A gos-
tinho , a ca rn e se referia à im o lação d e C risto p a ra a sa lv a ç ão d o s ho-
m en s. N o cern e d o p e río d o p a trístic o , C risóstomo, G regório d e N issa,
os G rilos d e Je ru sa lé m e d e A le x a n d ria d e ra m p ro e m in ê n c ia à teo-
ria eu carística. S a lta n d o p a ra a R efo rm a, d e sc o b rim o s q u e m u ito s d o s
re fo rm a d o re s n ã o a c eita ra m a in te rp re ta ç ã o e u carística, e coisa q u e
ta m p o u c o fez o c a m p e ã o católico C aetano . O C oncilio d e T re n to , ap ó s
lo n g a d isc u ssã o , n ã o to m o u p o sição , m u ito m en o s fo rn e c e u m u n iç ã o
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 51 ‫ו‬

ao s h u s s ita s q u e u s a v a m Jo 6,53 p a ra ex ig ir c o m u n h ã o sob am b as


as esp écies.
Em te m p o s m o d e rn o s, p o d e m o s d istin g u ir as seg u in te s teorias:
(a) T o d o o d isc u rso (vs. 3 5 5 8 ‫ )־‬se refere à rev elação p o r e em Jesus, ou
ao se u en sin o . Esta in te rp re ta ç ã o "sap ien cial" d e 35-58 é aco m p a n h a d a
p o r G oedt, B. W eiss, Bornhäuser, O deberg, Schlatter, S trathmann .
(b) S o m en te a p rim e ira p a rte d o d iscu rso (35-50 o u 35-51 tem este tem a
sa p ie n c ia l, m as em 51-58 o p ã o se refere à carn e eu carística d e Jesus.
E ste p o n to d e v ista a tra iu m ais ou m en o s a L agrange, E. Schweizer,
M enoud , M ollat, M ussner, Bultmann . (O s p o n to s d e v ista d e D odd e
Barrett tam b é m p arecem im p licar d o is tem as sucessivos no discurso).
M u ito s d e s te s c o n sid e ra ria m 51-59 co m o u m a ad ição p o sterio r.
(c) T o d o o d isc u rso (35-58) se refere ao p ã o eu carístico . D iferentes
n u a n ç a s d e s te p o n to d e v ista são e n d o s sa d a s p o r Loisy, T obac, Buzy,
C ullmann , V an den Bussche. (d) O p ã o se refere ta n to à revelação
q u a n to à c a rn e e u carística d e Jesus. L éon -D ufour v ê estes tem as p er-
c o rre n d o to d o o d isc u rso (35-58). N o sso p o n to d e v ista , q u e é tam b é m
o d e F euillet, v ê os d o is tem a s n a p rim e ira p a rte d o d isc u rso (35-50)
co m o se r e fe rin d o p rim a ria m e n te à rev elação , m as se c u n d a ria m e n te à
E u caristia; a s e g u n d a p a rte (51-58) se refere so m e n te à eu caristia.
O tema sapiencial em 6,35-50. C o m ecem o s ju stifica n d o n o ssa afir-
m aç ã o d e q u e o te m a sa p ie n c ia l e stá p rim a ria m e n te n o d isc u rs o p ro -
p ria m e n te d ito (vs. 35-50). A reação fu n d a m e n ta l à a p re se n ta ç ã o q u e
Je su s faz d e si m esm o co m o p ã o em 35-50 é a d e fé (35, 36, 40, 47) ou
d e ir a ele, o q u e é sin ô n im o d e fé (35, 37, 44, 45). U m a vez m ais (50),
n e s ta seção é d ito q u e a lg u é m te m d e c o m e r o p ã o d a v id a; é em 51-58
q u e " c o m e r" a p a re c e m ais e m ais. A citação q u e Jesus u sa (45) p a ra
ilu s tra r o q u e está a c o n te c e n d o às p e sso a s q u e o o u v e m e v êm a ele
é: "e to d o s se rã o ensinados por Deus" - u m a clara referên cia ao sim bo-
lism o s a p ie n c ia l d o p ão . O p a ra le lo m ais p ró x im o d o p ã o d a v id a é o
tem a d a á g u a v iv a n o c a p ítu lo 4, e o d a á g u a é tam b é m u m sím bolo
p a ra rev e laç ã o (ver p. 394 su p ra ).
Já d esco b rim o s q u e a m aio r p a rte d o s d ito s d e Jesus em João tem
a lg u m a citação d o A T o u p a n o d e fu n d o ju d aico q u e os faz p arcialm en-
te in telig ív eis ao a u d itó rio re tra ta d o n a cena. Isto é p ro ce d e n te tam b ém
n o c a p ítu lo 6, p o is a p a la v ra e sab ed o ria d iv in as são freq u en tem en te
a p re s e n ta d a s n o A T sob o sim b o lism o d e alim en to ou pão. A o d iscu tir
a referên cia ao m an á , n o v. 31, a q u a l in tro d u z o tem a d o p ã o d a v id a,
512 O Livro dos Sinais

já v im o s este p a n o d e fu n d o sim bólico. A s p a la v ra s d e A m 8 ,1 1 1 3 ‫־‬


são in te ressa n te s à lu z d a fom e d a s m u ltid õ e s e su a b u sc a p o r Jesus:
"Eis q u e v ê m d ias, q u a n d o en v ia rei fom e so b re a terra, n ã o fo m e d e
p ã o o u se d e d e á g u a , e sim d e o u v ir a p a la v ra d o S e n h o r .... C o rre rã o
d e u m lad o p a ra o o u tro em b u sc a d a p a la v ra d o S en h o r, p o ré m n ã o a
ach arão ". A lite ra tu ra sap ien cial d o A T o ferece o m a io r n ú m e ro d e p a -
ralelos. Já v im o s n a n o ta so b re o v. 35 q u e as lin h as iniciais d o d isc u rso
so b re o P ão d a V ida p a re c e m e co ar S iraq u e 24,21. N e ste d isc u rso , Jesus
se assem elh a à S ab ed o ria q u e em P r 9,5 e n u n c ia u m convite: "V in d e,
com ei d o m eu p ão; b eb ei d o v in h o q u e e u m esm o m istu re i" . A d escri-
ção em S iraq u e 15,3 d o q u e a S ab ed o ria fará p elo s q u e te m e m a D eus
e p ratica m a Lei é tam b é m o p o rtu n a : "Ela o a lim e n ta rá com o p ã o d e
e n te n d im e n to e lhe d a rá a á g u a d e e ru d iç ã o p a ra b e b e r".
M ais o p a n o d e fu n d o n o A T p a ra o d iscu rso so b re o P ão d a V ida
se en co n tra n as descrições d o b a n q u e te m essiânico, co m o F euillet,
p p . 814-22, tem ressaltad o . N o p e n sa m e n to israelita, as a leg rias d o s d ias
m essiânicos e ra m às v ezes re tra ta d a s sob a im a g e m d e u m b a n q u e te ín-
tim o com Iah w eh o u com Seu M essias. Is 65,11-13 a d v e rte os q u e ab an -
d o n a ra m o S en hor e Seu sa n to m o n te q u e teriam fom e e se d e e n q u a n to
os serv o s d e Iah w eh co m eríam e b eb eriam . N o s ev a n g elh o s sinóticos,
este b a n q u e te é re tra ta d o com o o c o rre n d o n o a p ó s v id a o u se g u n d a
v in d a (M t 8,11; 26,29), m as e m João Jesus a n u n c ia q u e este b a n q u e te
é im in en te. Jesus é o p ã o d a v id a p a ra aq u eles serv o s d e Iah w e h q u e
creem n aq u e le q u e Iah w eh en viou. N este contexto d a escatológia (rea-
lizada) Jesus fala d e si m esm o com o o Filho d o H o m e m (v. 27).
A m e lh o r p re p a ra ç ã o p a ra a re o rie n ta ç ã o sa p ie n c ia l d o b a n q u e -
te m essiân ico se e n c o n tra e m Is 55. A o c o m e n ta rm o s o m a n d a m e n to
n o v. 27 d e n ã o tra b a lh a r p ela c o m id a p erecív el, já c ita m o s a á g u a e
a lim e n to d e Is 55,1, os q u a is n ã o se c o m p ra m com d in h e iro . O v. 3 d a
p a ssa g e m isaian a d eix a claro q u e este é o c o n v ite d e Ia h w e h p a ra co-
m e r co m o p a rte d e su a s p ro m e ssa s d e re n o v a ç ã o d o p a c to co m D av i
e, p o rta n to , u m b a n q u e te m essiân ico . É n e sta a tm o sfe ra q u e Ia h w e h
diz: "In clin ai v o sso o u v id o e v in d e a m im ; o u v i p a ra q u e te n h a is v id a "
- p a la v ra s b e m rem in isc en te s d e Jo 6,35-50. D e p a rtic u la r in te re sse é
Is 55,10-11: "P o rq u e , assim co m o desce a chuva e a neve dos céus... e a fa-
zem p ro d u z ir, e b ro ta r, e d a r se m e n te ao se m e a d o r, e pão ao que come,
assim será a minha palavra, q u e sa ir d e m in h a b o ca". A fru tifica ç ã o d o s
d ias m essiân ico s é a q u i a sso ciad a com a p a la v ra d e D e u s q u e d esce d o
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 513

céu e d á a lim e n to aos h o m en s. Q u e Is 55 e stav a e m m en te na com po-


sição d o d isc u rs o d e João so b re o P ão d a V ida é s u g e rid o pela citação
d ire ta d o c a p ítu lo p re c e d e n te d e Isaías (54,13) em 6,45.
P o d e m o s a c re s c e n ta r q u e , p o s to q u e a v in d a d o M essias às ve-
z e s e ra a s so c ia d a à P ásco a, a refeição p a sc a l tin h a c e rta s caracterís-
ticas d e u m a a n te c ip a ç ã o d o b a n q u e te m essiân ic o . N a P ásco a final
d e s u a v id a [te rre n a ], Je su s in s titu irá a e u c a ris tia co m o su a p ró p ria
a n te c ip a ç ã o d o b a n q u e te m essiân ic o . M as n o c a p ítu lo 6, n o c e n ário
g a lile u , e le d e seja m o s tra r q u e o b a n q u e te d a d o ao s cin co m il jus-
ta m e n te a n te s d a P ásco a e ra m e ssiâ n ic o d e u m a m a n e ira q u e n ão
h a v ia m re c o n h e c id o : e ra u m sin al d e q u e a S a b e d o ria v eio p a ra d a r
a lim e n to a to d o s o s q u e a b u sc a v a m .
O tema sacramental em 6,35-50. Se " p ã o d a v id a " , n e sta p a rte do
d isc u rso , se refere p rim a ria m e n te à rev elação e m e p o r Jesu s, h á tam -
b é m in d ic a ç õ e s d e a lu sõ e s eu c arístic o s se cu n d á rio s. A liás, ficaríam os
su rp re s o s se n ã o h o u v esse, p o is João relaciona este d isc u rso à m u ltip li-
cação d o s p ã e s, o q u a l tem p a s s a d o p o r a d a p ta ç ã o eu carística. A lém
d o m ais, c o m o ressa lta m o s, a tra n siç ã o e n tre as d u a s cen as (v. 23)
realça o im p a c to e u c arístic o d a m u ltip licação . N o p ró p rio d iscu rso , é
sig n ific a tiv o q u e Je su s se id e n tifiq u e co m o o p ã o d a v id a . R eco rd am o s
q u e n o c a p ítu lo 4 Jesu s falou em d a r a á g u a v iv a, p o ré m n ã o se iden-
tifica co m a á g u a ; to d a v ia , ele é o p ã o d a v id a. E n q u a n to tal identifi-
cação n ã o é im p o ssív e l n a in te rp re ta ç ã o m e ra m e n te sa p ien cial d o s vs.
35-50, c e rta m e n te se a d e q u a m u ito b e m ao tem a eucarístico.
A ju sta p o s iç ã o d e fom e e se d e, n o v. 35, p a re c e e s tra n h a em u m
d isc u rs o so b re p ã o q u e n u n c a m en c io n a ág u a. U m a vez m ais, tal jus-
tap o siç ão n ã o é im p o ssív e l se o p ã o se refere so m e n te à rev elação (ver
S ira q u e 24,21, c ita d o na n o ta so b re v. 35); m as faz m ais se n tid o se há
ta m b é m u m a referên cia à e u c aristia , a q u a l e n v o lv e c a rn e e sa n g u e e
são ig u a lm e n te p a ra ser c o m id o s e b eb id o s.
A m e n ç ã o d e m a n á q u e in tro d u z o d isc u rso teria tid o associa-
ções e u c a rístic a s p a ra os a u d itó rio s cristãos. Em IC o r 10,1-4, P au lo
in tro d u z su a a d v e rtê n c ia so b re o cálice e p ã o e u carístico s ev o c an d o
o e x e m p lo d e to d o s a q u e le s ancestrais q u e c o m e ram o alimento so-
b re n a tu ra l (m an á) no deserto e b e b e ra m d a b e b id a s o b re n a tu ra l qu e
e m a n a d a ro ch a. S u sp e ita m o s ta m b é m q u e a p e tição na o ração d o Se-
n h o r, " d á -n o s hoje n o sso p ã o d e a m a n h ã " , ecoa os te m a s com bina-
d o s d o m a n á e d a e u c aristia (ver TS 22 [1961], 198). A ssim , há séria
514 O Livro dos Sinais

e v id ê n c ia s p a ra se m a n te r q u e h á u m a referên cia s e c u n d á ria e eu ca-


rística em 3 5 5 0 ‫־‬, e esta referên cia p a ssa rá a o p rim e iro p la n o e m 51-58.

O valor do discurso como tradição histórica

Já v im o s q u e a co n ex ão q u e João estab elece e n tre o d isc u rs o so b re


o P ão d a V id a e a m u ltip lic a ç ão p o d e b e m re p re s e n ta r u m a c o n s tru -
ção literária. D e ig u al m o d o , d e v e m o s a s su m ir q u e n o p ró p rio d isc u r-
so as resso n â n c ia s eu c arístic a s são m ais p ro v a v e lm e n te o p r o d u to d e
in te rp re ta ç õ e s cristãs. E n tre ta n to , n a d a h á q u e s u p rim iria a u to m a ti-
c a m en te a p o s sib ilid a d e d e q u e d ito s sa p ie n c ia is a trib u íd o s a Jesu s,
n esta seção, n ã o re p re se n ta m a tra d iç ã o p rim itiv a . A co leção d e ste s
d ito s em u m só d isc u rso p ro v a v e lm e n te reflete u m p ro c e sso re d a -
cional (v er n o ta s so b re vs. 36-40); e n tre ta n to , o c o n ju n to d o d isc u rso ,
ju n ta m e n te com a se q u ên c ia d e id éias, p o d e m u ito b e m te r s id o su -
p rid o p e la tra d içã o , co m o su g e re m os p a ra le lo s m a rc a n o s d a d o s n a
p. 469. A o c o m p a ra r M c 8,14 e 16, a lg u n s in té rp re te s tê m e n c o n tra d o
u m p a ra lelo p a ra id en tifica r Jesu s co m o p ã o (i.e., o ú n ic o p ã o é Jesu s
m esm o , em v ez d o p ã o físico; p o is a in d a q u e te n h a m u m ú n ic o p ã o ,
d iz e m q u e n ã o têm pão). Em M c 16,11-12, Jesu s d eix a claro q u e ele
n ã o está fala n d o d o p ã o n a tu ra l, e sim d o en sin o . O u tro s p a ra le lo s
sin ó tico s ao s v e rsíc u lo s in d iv id u a is se rã o sa lie n ta d o s n o c o m e n tá rio
abaixo. A ssim , o d isc u rso so b re o P ão d a V ida n ã o d e v e ser a v a lia d o
s im p le sm e n te co m o a criação d o e v a n g e lista , m e sm o q u e ele te n h a
c o n trib u íd o m u ito p a ra su a fo rm a a tu al.

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Versículo 35

N a s q u e stõ e s q u e p re c e d e ra m o d isc u rso , Jesu s falo u d o p ã o d e D e u s


d e scid o d o céu p a ra d a r v id a ao m u n d o . U m a v e z q u e o le ito r já te n h a
lid o em 3,13 q u e o F ilho d o H o m e m é o ú n ico q u e d e sc e u d a p a rte
d o Pai, e n tã o se p o d e a s su m ir q u e Jesu s esteja fa la n d o d e sim m e sm o
co m o o p ão . M as a m u ltid ã o n ã o e n te n d e , e Jesu s d e v e id e n tific a r-se es-
p e c ific a m e n te c o m o o p ã o q u e d á v id a . Já v im o s q u e is to s ig n ific a
q u e ele é o re v e la d o r d a v e rd a d e , o m e stre d iv in o q u e v e m a lim e n ta r
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 515

os h o m e n s. A o re iv in d ic a r ser a rev elação d iv in a p e rso n ific ad a , Jesus


a v a n ç a p a ra além d a s p e rsp e c tiv a s v e te ro te sta m e n tá ria s na litera tu -
ra sa p ien cial. Q u a n d o Jesus d iz q u e os q u e c reem nele n u n c a terão
fo m e o u se d e, ele está e x p re ssa n d o a m esm a id eia q u e p ro cla m a rá
e m 11,25-27: "E u so u a v id a... a q u e le q u e crê e m m im d e m o d o a lg u m
m o rre rá " . Sob to d a s e sta s m e tá fo ra s d e p ã o , á g u a e v id a , Jesus está
sim b o lic a m e n te se re fe rin d o à m esm a re a lid a d e , u m a re a lid a d e que,
q u a n d o u m a v e z p o s s u íd a , faz o h o m e m v e r fom e, se d e e m o rte n a tu -
rais c o m o in sig n ifican tes.

Versículos 36-40

N a s n o tas s a lie n ta m o s q u e e stes v e rsíc u lo s n ã o têm e stre ita co-


n ex ão co m o tem a d o p ã o d a v id a e p o d e m ter u m a o rig e m in d e p e n -
d e n te . M e d ia n te c u id a d o sa an álise, Léon -D ufour e n c o n tro u neles u m
q u iasm a :

36: v isto e n ã o c red es 40: v ê e crê


37: n ã o la n ç a r fora o q u e 39: n a d a p e rc a d o q u e
o P ai te m d a d o Ele m e d e u
38: Eu desci do céu.

E nq u an to estes versículos têm sua p ró p ria organização, L éon-D ufour


p e n s a q u e a o bjeção d o s ju d e u s n o v. 41 p re s s u p õ e q u e 35 foi se g u id o
p o r 36-40. A trib u e m a Jesu s a afirm ação : "E u sou o p ã o q u e d esceu
d o c é u "; e L éon -D ufour p e n sa q u e esta é u m a a firm a ç ão co m p o sta
e la b o ra d a d e "E u so u o p ã o " d e 35 e "E u desci d o céu " d e 38. E ntre-
tan to , s u p o n d o q u e o v. 35 foi s e g u id o im e d ia ta m e n te p o r 41-43, e n tã o
o d e sc e r d o céu p o d e ría ter e c o ad o o v. 33. A ssim , o a rg u m e n to em
s e q u ên c ia n ã o é co n v in cen te.
E stes v e rsíc u lo s e x p re ssa m a n e c e ssid a d e d e crer em Jesus e a
v o n ta d e d o P ai d e q u e os h o m e n s te n h a m v id a a tra v é s dele. A escato-
lo g ia é in te re ssa n te . N o v. 37, Jesus fala jam a is lançarei fora a lg u é m q u e
vai a ele. Esta é a e x p re ssã o q u e os sin ó tico s u sa m n o c o n tex to d o juízo
final, q u a n d o os h o m e n s fo rem e x p u lso s d o rein o (M t 8,12; 22,13). P ara
João, o c o n te x to é o d a escato lo g ia rea liz a d a . T o d av ia, n o v. 39, q u e se
a sse m e lh a ao v. 37, o c o n tex to se d e sv ia p a ra a escato lo g ia final ("o
ú ltim o d ia " ). E o v. 40 te m a m b o s os aspectos: to d o o q u e crê n o Filho
516 O Livro dos Sinais

tem a v id a e te rn a a g o ra , e, n o e n ta n to , será re ssu sc ita d o n o ú ltim o d ia.


N a tu ra lm e n te , Bultmann rec o rre ao R e d a to r E clesiástico p a ra ex p lic ar
a escato lo g ia final, m as p a re c e m ais ob jetiv o re c o n h e c er q u e a m b a s as
ten sõ es escato ló g icas e stã o p re se n te s n a o b ra d o e v a n g elista .
N o v. 37, a ênfase d e q u e D eu s d e stin a h o m e n s a ire m a Jesus d e
m o d o a lg u m a te n u a , em ú ltim a in stân cia, a c u lp a , d o s q u e n ã o c reem
n o v. 36. P o d e ría se c o n je tu ra r d e q u e a raz ã o d e n ã o c re re m é p o rq u e
D eus n ão os " d e u " a Jesus. T o d av ia, seria in ju sto a co n cep ção n eo tes-
tam e n tá ria e la b o ra r isto co m o u m a explicação p sico ló g ica d a rec u sa
a crer. O N T fre q u e n te m e n te d á su a p ró p ria ex p licação em u m nível
sim p lificad o e n q u a n to to d o s os aco n tecim en to s são a trib u íd o s à cau -
s a lid a d e d iv in a sem q u a lq u e r d istin çã o incisiva e n tre a c a u sa lid a d e
p rim á ria e se cu n d á ria . T a m p o u co estes v ersícu lo s reso lv e m as d isp u -
tas so b re p re d e stin a ç ã o q u e têm sid o o tem a d e d e b a te teológico d e s d e
os tem p o s d a R eform a. C o m to d a a in sistên cia d e João so b re a escolha
q u e os h o m en s fazem e n tre lu z e trev as, seria sem se n tid o in d a g a r se o
ev an g elista cria na re sp o n sa b ilid a d e h u m a n a . Seria u m ta n to sem sen-
tid o d u v id a r q u e, co m o os d e m a is a u to re s bíblicos, ele via a so b e ra n a
eleição d e D eu s se n d o o p e ra d a n a q u e le s q u e v ã o a Jesus.

Versículos 41-43

C o m a " m u rm u ra ç ã o " n o v. 41 (v er n o ta), v o lta m o s à a tm o sfe ra


d o s isra e lita s n o d e se rto e ao m an á. E m b o ra as c o n ex õ es h istó ric a s
e n tre a m u ltip lic a ç ão e o d isc u rso n ã o p o d e ría m ter sid o tão e stre ita s
co m o o ra re tra ta d a s , o e v a n g e lista n ã o p e rd e a o p o r tu n id a d e d e m os-
tra r co m o em a m b a s se a c h am c o n sta n te m e n te e m jo g o os m e sm o s
tem as. A q u e s tã o já tão c o n h e cid a d a s o rig e n s d e Jesu s rev e la o u s u a l
m a l-e n te n d id o q u e s a ú d a Jesu s c o m o o R ev elad o r. Se e le é p ã o d o céu,
se ele é o F ilho d o H o m e m (27), q u e h á d e v ir so b re as n u v e n s , co m o é
p o ssív e l q u e ele te n h a crescid o n u m a fam ília e m N a z a ré ?

Versículos 44-50

Jesus n u n c a re sp o n d e à p e rg u n ta so b re su a s o rig en s e m u m p la n o
h u m a n o ; su a s p a la v ra s n o s vs. 44-46 c o n stitu e m u m a re sp o sta , p o -
ré m em u m p la n o teológico. Ele é e n v ia d o p o r D e u s (44) e p ro c e d e d e
D eu s (46) e é p o r isso q u e p o d e a le g a r q u e d e sce u d o céu. Se os ju d e u s
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 517

d e sistisse m d e su a m u rm u ra ç ã o , a q u a l é in d ic a çã o d e u m a recusa de
crer, e se a b risse m à ação d e D eu s, Ele os a tra iría a Jesus. Esta é a era
in d ic a d a p e lo p ro fe ta Isaías, q u a n d o estã o se n d o e n sin a d o s p o r D eus,
se a p e n a s o u v ire m . E ste e n sin o tem seu a sp e c to e x te rn o n o se n tid o de
q u e é in c o rp o ra d o e m Jesu s q u e a n d a e n tre eles, m as é tam b é m inter-
n o n o s e n tid o d e q u e D eu s age em se u s corações. É o c u m p rim e n to
d o q u e Jr 31,33 p ro m e te u : "P o rei n eles m in h a lei, e em se u s corações a
in sc re v ere i" (John Bright, T he A n c h o r Bible, vol. 21). E ste m o v er inte-
rio r d o co ração , d a p a rte d o Pai, os c a p acitaria a cre r no F ilho e, assim ,
a p o s s u ir a v id a e te rn a.
O s vs. 48-50 c o n stitu e m u m a in clu são , p o is re su m e m a in tro d u ç ã o
ao d isc u rs o e se u s v ersícu lo s iniciais. O v. 48 é u m a in clu são com o 35;
os vs. 49-50 c o m p õ e m os tem as d e 31-33. A m u ltid ã o tin h a ap re se n ta -
d o a Jesu s o e x e m p lo d e se u s a n cestrais q u e co m e ram d o m an á no de-
serto, m as Jesu s (49) a d v e rte q u e isto n ã o sa lv o u seu s a n te p a ssa d o s da
m o rte. E e n tã o (50), to m a n d o u m a v ez m ais a citação d a E scritura d o
v. 31 ("E le lh es d e u p ã o d o céu a co m er"), Jesus d iz q u e o p ã o realm en-
te q u e v e m d o céu é u m p ã o q u e n ã o p e rm ite q u e o h o m e m m orra.

O pano de fundo judaico por detrás da técnica e temas do discurso

Técnica homilética no discurso. P eder Borgen tem c o n trib u íd o com


a lg u m a s in te re s s a n te s p e rc e p ç õ es p a ra a c o m p o sição d e ste d iscu rso .
R e alm en te Borgen aplica su a teo ria a to d o o d isc u rso , in clu siv e os vs.
51-58, m a s tu d o o q u e ele d iz é ig u a lm e n te v á lid o , e se n ão m ais, apli-
c a n d o -o e x c lu siv a m e n te d o s vs. 35-50 (ver p. 538ss abaixo). Borgen
tem e s tu d a d o c u id a d o s a m e n te o m o d e lo h o m ilético em F ilo e n o mi-
dráshim p a le s tin e n se , e d isto ele tem d e d u z id o a lg u n s d o s asp ecto s
d a p re g a ç ã o ju d aic a n o s d ia s d e Jesus. Já n o ta m o s a lg u m a s d e su as
o b se rv a ç õ e s so b re p a d rõ e s exegéticos n a s n o ta s so b re vs. 32, 36, 42;
a q u i, p o ré m , e s ta m o s in te re ssa d o s n o e sq u e m a geral.
O esq u em a d ev e com eçar com u m a citação d a Escritura (usualm en-
te o Pentateuco) q u e alg u m as vezes é parafraseada. O corpo d a hom ília
com enta o texto bíblico q u ase p alav ra p o r palavra, em bora u m cuidado-
so escrutínio às vezes m ostrará que os com entários p ressu p õ em não só o
versículo prin cip al q u e tem sido citado, m as tam bém outros versículos
d e n tro d o contexto. U sualm ente, a afirm ação q u e abre a hom ília é reitera-
d a n o final d a hom ília, talvez não textualm ente, m as ao m enos evocando
518 O Livro dos Sinais

su a s p a la v ra s p rin c ip ais. N o midráshim p a le stin ia n o , a citação b íblica é


re ite ra d a n o final d a h o m ília. C o m u m e n te , d e n tro d a h o m ília h á u m a
citação se c u n d á ria (a m iú d e d o s E scritos ou d o s P ro fetas) à q u a l u m a s
p o u c a s lin h a s d e c o m e n tá rio são d e v o ta d a s. Esta citação se c u n d á ria
aju d a a d e s e n v o lv e r o c o m e n tá rio p rin c ip al.
Jo 6 é s u rp re e n d e m e n te p ró x im o a este e sq u em a. A citação ini-
ciai foi feita n o v. 31, e p ro c e d e d o P en tateu co . E m b o ra se a sse m e lh e
a Ex 16,4, tam b é m tem e lem en to s d e 16,15 (ver a resp e c tiv a n o ta), em
co n co rd ân cia com a p rática d e e m p re g a r to d o o contexto. O s vs. 32-33
co n stitu e m a p a rá fra se d a citação feita p o r Jesus: "E le lh es d e u p ã o d o
céu a co m er" v e m a ser "M eu Pai vos d á o v e rd a d e iro p ã o d o céu ". En-
tão, em 49-50, e n c o n tra m o s a hom ília so b re e sta citação bíblica: p rim e i-
ro se d iscu te o tem a d e "p ã o " ; en tã o , o tem a " d o céu"; e, fin alm en te,
em 49-50, o tem a d e "co m er". A citação se c u n d á ria d o s P ro fe ta s a p a -
rece em 45 (ver a resp ectiv a nota) com u m b re v e c o m e n tário . S e g u n d o
as reg ra s h o m iléticas, a afirm ação q u e a b riu a h o m ília (35) é re ite ra d a
e x a ta m e n te n o fim (48); e d e fato in clu siv e a citação bíblica e su a p a -
ráfrase (31-33) são re fo rm u la d a s em 49-50. A ssim , p a re c e q u e 35-50
rep re sen ta u m a h o m ília so b re o texto d a e scritu ra c ita d o em 31.
Q u e lu z estas o b se rv a ç õ e s p ro je ta m so b re o v a lo r h istó ric o d o
d iscu rso ? Borgen crê q u e, co m o ag o ra se e n c o n tra m , o d isc u rs o é u m a
c o n stru ç ão ju d aico -cristã s e g u in d o o típico e sq u e m a h o m ilético d a
ép o ca. P o sto q u e Borgen in clu a os vs. 51-58 n o d isc u rso , te ría m o s q u e
c o n co rd ar; p o rq u e , co m o e x p lic are m o s abaixo, c o n sid e ra m o s 51-58
co m o u m a c o n stru ç ã o p o ste rio r. E n tre tan to , c o n c e n tra d o -n o s a p e n a s
n o s vs. 35-50 e a d m ita q u e e m p a rte (talv ez 36-40, 42) ela é u m a m á l-
g a m a d e d ito s q u e u m a v e z fo ram in d e p e n d e n te s , h á u m a ra z ã o a
priori p e la q u a l o e sq u e m a d a p a rte p rin c ip a l d e sta seção p o d e ria n ã o
ter p ro c e d id o d e Jesus? Ele é a p re s e n ta d o co m o q u e fa la n d o n u m a
sin ag o g a em C a fa rn a u m (59). A caso ele n ã o teria se c o n fo rm a d o ao
estilo h o m ilético o rd in á rio d o s p re g a d o re s d a sin a g o g a ? N ã o p o d e ria
ter e x tra íd o a citação bíblica, c o m o fez e m Lc 4,17-19, e a to m a d o c o m o
tex to d e se u serm ão ? A o m en o s, p a re c e -n o s q u e o rec o n h e c im e n to d o
e sq u em a h o m ilético , n e ste d isc u rso jo an in o , n ã o reso lv e, e m se n tid o
n e g a tiv o , a q u e stã o d a h isto ric id a d e e d e fato d á c erta p la u s ib ilid a d e
à a p re s e n ta ç ã o q u e João faz d a cena.
O lecionário da sinagoga e 0 discurso. D ev e m o s ta m b é m le v a r e m
co n ta, a q u i, as in te re ssa n te s o o b se rv a ç õ e s d e A ileen G uilding so b re
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 519

o ciclo d e le itu ra s b íb licas u s a d a s n a s sin ag o g as. Jo 6,4 situ a o tem p o


d e ste c a p ítu lo co m o p ró x im o d a Páscoa; e in clu siv e, se c o n sid e rar-
m o s co m o artificial a c o n ex ão d e u m d ia e n tre a m u ltip lic a ç ão e o
d isc u rso , o te m p o d a P áscoa p o d e ria ter sid o o c e n ário d o d iscu rso .
Se to m a rm o s as seis se m a n a s em to rn o d a P áscoa com o se refe rin d o
as n o ssa s c o n sid e raç õ e s, se g u n d o a teoria d e Miss G uilding, as p assa-
g en s s e g u in te s te ria m se rv id o co m o le itu ra s d a sin a g o g a (sedarim ) de
a c o rd o co m o ciclo d e três anos:

A n o I: G n 1-8, com G n 2 e 3 se n d o lid o s aos sá b a d o s m ais próxi-


m o s d a festa.
A n o II: Ex 11-16, com Ex 16, se n d o lid o s cerca d e q u a tro sem an as
a p ó s a festa.
A n o III: N m 6-14, com N m 11, se n d o lid o s no se g u n d o sá b ad o
a p ó s a festa.

O ra, o d isc u rso q u e a c ab a m o s d e d isc u tir o b v ia m e n te e stá centra-


d o em to rn o d e Ex 16, o seder [heb. serv iço litúrgico] d o A n o II. M as
tam b é m ecoa o sedarim d o s o u tro s d o is an o s. Em n o ssa n o ta sobre
v. 5, sa lie n ta m o s u m a série d e p a ra le lo s e n tre N m 11 e Jo 6. Miss G uil-
d in g , p. 62, c a ta lo g a a lg u n s p a ra le lo s e n tre G n 3 e Jo 6, p a rtic u la rm e n -

te c e n tra n d o a á rv o re d o c o n h e cim e n to d o b e m e d o m al n o Ja rd im
d o P araíso :

G n 3,3 reitera a a d v e rtê n c ia d e D eus d e 2,17: "N ã o c o m erás d o


fru to d e s ta árv o re... p a ra q u e n ã o m o rra s" . Isto p o d e ser con-
tra s ta d o co m Jo 6,50: "E ste é o p ã o q u e d esce d o céu, p a ra q u e
o q u e d e le c o m e r jam a is m o rra ".
G n 3,22 c o n té m a d ecisão d e D e u s d e e x p u lsa r o h o m e m d o jar-
d im , "... p a ra q u e n ã o e ste n d a su a m ão e to m e ta m b é m d a árvo-
re d a v id a e co m a e v iv a p a ra se m p re ". Isto p o d e se r c o n trasta-
d o co m o c o n v ite a c o m e r o p ã o d a v id a d e q u e fala Jo 6,51: "Se
a lg u é m c o m e r este p ã o , esse v iv erá p a ra se m p re ".
G n 3,24: "E n tã o , ele e x p u lso u o h o m e m " . Jo 6,37: "A q u e le q u e
v e m a m im jam ais o lan ç a re i fora".

O s P a d re s d a Igreja rec o n h e c era m este c o n tra ste e n tre o p ã o da


v id a e o fru to p ro ib id o e m G ênesis; p o r e x em p lo , G rkgório d e N issa
520 O Livro dos Sinais

(Great Catechism XXXVII; PG 45:93) a p re s e n to u o p ã o e u c a rístic o co m o


u m a n tíd o to ao fru to p ro ib id o . E se o p ã o d a v id a , n o s vs. 35-50 re p re -
se n ta p rim a ria m e n te a rev e laç ã o e o c o n h e c im e n to q u e Jesu s tra z d o
alto , e n tã o ele n ã o é d ife re n te d o c o n h e cim e n to d o b e m e d o m al q u e
o p rim e iro h o m e m p a s so u a desejar.
Miss G uilding ta m b é m a rg u m e n ta q u e u m a le itu ra d o s P ro fe ta s
(haphtarah) a c o m p a n h a v a cad a leitu ra d o P e n tate u co . N o A n o I, a
haphtaroth q u e a c o m p a n h a v a as le itu ra s d e G ê n e sis p a re c e te r in-
c lu íd o Is 51,6ss. co m o u m a haphtarah a G n 2,4, e Is 54-55 co m o
u m a haphtarah a G n 6,9 (G uilding p p . 67, 63). E n c o n tra m o s p a ra -
lelos e m Is 61 ao c a m in h a r so b re o m a r em Jo 6 (v er p . 489 s u p ra ),
e e m Is 54-55 ao d isc u rso so b re o P ão d a V ida (ver p. 51 ls . - Is 54
é c ita d o e m Jo 6,45). N o A n o II, ls 63,1 ls s . serv ia co m o haphtarah a
Ex 15,22, e tem o s ali o u tra v ez o tem a d a tra v e ssia d o m ar.
E stes p a ra le lo s são im p re ssio n a n te s, e p a re c e le g ítim o m a n te r
q u e Jo 6 reflete u m m isto d e te m a s e x tra íd o s d a s le itu ra s n a sin a g o g a
n o p e río d o d a P áscoa. P a ra Miss G uilding, o c e n ário e m Jo 6 é fictício,
e foi u m a u to r c ristã o q u e c o m p ô s o d isc u rso p e la c o m b in a çã o d e te-
m as. E n tre tan to , u m a vez m ais, se Jesu s falo u n u m a sin a g o g a (v. 59),
co m o p o d e m o s e sta r certos, a priori, q u e ele n ã o foi a q u e le q u e e x tra iu
os tem as d o d isc u rso d a s le itu ra s d a sin a g o g a ? P o d e -se o b jeta r q u e
o d isc u rso reflete le itu ra s d e to d o s os trê s an o s; to d a v ia , n u m a tra-
d ição litú rg ica, co m o u m ciclo é re p e tid o v e z es e m ais v e z es, a lg u é m
se to rn a fa m ilia riz a d o com to d a s as le itu ra s p a ra as g ra n d e s festas.
A ssim , Jesu s p o d e ría ter ilu s tra d o se u tó p ico g e ra l e x tra íd o d o seder
d e u m a n o (Ex 16) com frase p e rtin e n te ao sedarim e haphtaroth p a sca l
d e o u tro s an o s. P o d e m o s n o ta r q u e o a lin h a m e n to ex ato d e sedarim e
haphtaroth c o rre sp o n d e n te s é u m d o s a sp ec to s m a is in c e rto s d a tese
d e Miss G uilding . E sta tese tem sid o su je ita d a a u m a crítica in cisiv a d e
L eon M orris, The New Testament and the feioish Lectionaries (L ondres:
T y n d a le, 1964), e so m o s re lu ta n te s em fazer n o ssa a b o rd a g e m a Jo 6
d e p e n d e n te s d e alg o m ais a lé m d a im p lic a ç ão g e ra l d e q u e os tem as
em João reflete m p la u siv e lm e n te os tem a s fam iliares n a sin a g o g a no
p e río d o p ascal.
A s o b serv açõ es d e Borgen e Miss G uilding p o d e m se r u sa d a s,
ao m en o s em p a rte , p a ra c o m p le m e n ta r u m a s às o u tra s. P arece-n o s
q u e a m b o s ilu m in a m a possibilidade d e q u e p o r d e trá s d e Jo 6,35-50
tem o s u m a h o m ília p re g a d a p o r Jesu s so b re u m tex to se le c io n a d o de
24 · Jesus na Páscoa: Discurso sobre o pão da vida 521

u m seder lid o n a sin a g o g a d e C a fa rn a u m n o p e río d o d a P áscoa (em -


b o ra , p a ra se r ex ato , n e n h u m d e sse s e stu d io so s c h e g am a esta conclu-
são). T e m o s q u e e n fa tiz a r o u tra v ez q u e rec o n h e c em o s q u e a p rese n te
fo rm a d o d isc u rs o foi e x p a n d id a p o r c o m b in açõ es red a c io n a is d e ou-
tro m a te ria l, tu d o isso à lu z d a s reflexões teo ló g icas jo an in as.

IA B ib lio g rafia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 6, n o fin al d o § 26.]
25. JE SU S N A P A S C O A : - D IS C U R S O
SO B R E O P Ã O D A V I D A (C o n tin u a ç ã o )
(6,51-59)

Duplicata do discurso precedente na qual 0 Pão da Vida


é agora a eucaristia

6 ^1"E u s o u o p ã o v iv o
q u e d esceu d o céu.
Se a lg u é m co m e e ste p ã o , 152
v iv e rá p a ra sem p re.
E o p ã o q u e eu d a re i
é m in h a p ró p ria ca rn e p a ra a v id a d o m u n d o " .

521531N isto , os ju d e u s co m e ç a ra m a d is p u ta r e n tre si, d iz e n d o : "C o m o


p o d e ele d a r-n o s [sua] c a rn e p a ra c o m er?" 531541P o rta n to , Jesu s lh es
disse:

"E u v o s a sse g u ro com to d a firm eza,


se n ã o c o m e rd e s a c a rn e d o F ilho d o H o m e m ,
e n ã o b e b e rd e s seu sa n g u e ,
n ã o te n d e s v id a em vós. *

* Os n úm eros d o s versícu lo s na V ulgata. A n um eração d o s v er síc u lo s na V ulgata


latina d ifere d aqu ela d o g rego n o s vs. 51ss. - um a d iferença refletida nas tradu-
çõ es da Bíblia católica e protestante. T odas as n o ssa s referências sã o à n um era-
ção grega, m as para co n v en iên cia a d icio n a m o s a num eração da V u lgata en tre
colchetes.
25 · Jesus na Páscoa: d iscu rso sob re o p ã o da v id a (c o n tin u a ç ã o ) 523

155]
54Aquele que come de minha carne
e bebe do meu sangue
tem vida eterna.
E eu o ressuscitarei no último dia.
[56]
55Pois minha carne é verdadeira comida,
e meu sangue é verdadeira bebida.
[57]
,6Quem se alimenta de minha carne
e bebe do meu sangue
permanece em mim e eu nele.
158]
57Assim como o Pai que tem vida me enviou,
e eu tenho em por causa do Pai,
assim o homem que se alimenta de mim
terá vida em virtude de mim.
[591
,8Este é o pão que desceu do céu.
Diferente daqueles ancestrais que comeram e ainda morreram,
o homem que se alimenta deste pão viverá para sempre".

591601Ele disse isto numa instrução da sinagoga em Cafarnaum.

NOTAS

6.51. pão vivo. Q uanto a alternativa entre "pão da vida" (vs. 35, 48) e "pão
vivo", com parar tam bém entre "água da vida" (Ap 21,6; 22,1.17) e "água
viva" (Jo 4,10). Entretanto, Jesus nunca se identifica com a água viva.
desceu. Aqui, o aoristo pode ser com parado com o presente "desce", no
V. 50; vim os a m esm a variação concernente a "dá" e "tem dado", nos vs.
37, 39. Provavelm ente, nos cansaríam os de pôr tanta ênfase sobre o uso
do aoristo, m as o "descer" inclui a Encarnação.
come... viverá para sempre. Pode haver um eco disto em Barnabé 11,10. Citan-
do a passagem de Ez 42,1-12, onde um rio flui do tem plo e belas árvores
crescendo à sua m argem , Barnabé interpreta estas como sendo árvores da
vida e diz: "Todos quantos com erem delas viverão eternam ente". Barna-
bé pode estar associando o pão da vida e a árvore da vida de João, uma
associação que, como temos visto, pode ter sido inspirada pelas leituras
pascais da sinagoga.
eu der... minha própria carne. C om parar a descrição da m orte voluntária em
IC or 13,3: "Se entregar m eu próprio corpo para ser queim ado"... Assim,
524 O Livro dos Sinais

pode bem ser que a conexão entre a eucaristia e a morte de Jesus esteja
sendo sugerida em João.
para a vida do mundo. O Codex Sinaiticus coloca esta frase com o verbo
"dar", e não com "carne". Esta leitura "eu darei pela vida do mundo"
pode ser uma tentativa de conformar mais estreitamente a uma fórmula
eucarística como a de Lc 22,19: "m eu corpo que é dado por vós".
52. Disputar. O grego sugere uma disputa violenta.
ele. Literalmente, "este [um]" - provavelmente com uma nota de menos-
prezo, como no v. 42.
[sMfl]. Há boas testemunhas para inclusão e para omissão, respectivamente.
53. comerdes... beberdes. Em 6,26.50, o verbo "com er" (esthiein, phagein) toma
e k e o genitivo antes de seu objeto; ele é usado com o acusativo direto em
6,23.49.53. J. J. O'R ourke, CNQ 25 (1963), 126-28, vê uma diferença sig-
nificativa nesta variação, como também faz entre pinein ("beber") usado
com e k e o genitivo no capítulo 4, e com o acusativo aqui. A diferenciação
parece sutil demais.
carne... sangue. No estilo hebraico, "carne e sangue" significa o homem por
inteiro. Nos dias da Reforma, os vs. 53-55 se tornaram o centro de uma
disputa teológica sobre se era necessário receber a eucaristia sob ambas
as espécies. Tudo o que se pode decidir à luz deste texto é que é neces-
sário receber Cristo por inteiro. F euillet, p. 82 2 , sugere que, se o maná
era o pano de fundo do AT para o tema pão/carne, a menção do sangue
da aliança no Sinai (Ex 24,8) inspirou o tema do sangue à maneira da
fórmula eucarística "meu sangue da [nova] aliança" ou "a nova aliança
em meu sangue".
0 Filho do Homem. Ver o v. 27. Este é o único versículo, nesta seção, em que
Jesus fala de si mesmo na terceira pessoa; contudo, isto não é estranho
nas passagens sobre o Filho do Homem.
não tendes vida em vós. A universalidade e incondicionalidade desta afir-
mação têm levado algumas igrejas a adotar a prática de dar a eucaristia
às criancinhas. Põem esta afirmação em pé de igualdade com a incon-
dicionalidade da exigência de ser gerado da água e o Espírito (batismo)
em 3,5.
54. come. No grego secular, este verbo trõgein era originalmente usado para
animais; mas, ao menos desde o tempo de Heródoto, era também usado
para a alimentação humana. Ele tinha uma conotação rude (ver Mt 24,38)
refletida nas traduções como "roer, mascar". Alguns estudiosos negam
isto, mantendo que João simplesmente o usa no tempo presente de
esthiein, o verbo normal "com er". Entretanto, parece mais provável que
o uso de trõgein seja parte da tentativa de João de enfatizar o realismo
25 · Jesus na Páscoa: discurso sobre o pão da vida (c o n tin u a ç ã o ) 525

da carne e sangue eucarísticos. As outras únicas vezes que ele aparece


em João fora desta seção é em 13,18, onde, no contexto da últim a ceia,
é deliberadam ente introduzido em um a citação veterotestam entária,
provavelm ente como um a recordação eucarística.
E eu 0 ressuscitarei. W ilkens, “abendmahlzeugnis", pp. 358-59, pensa que a
ênfase sobre a ressurreição dentre os mortos pode ser anti-docética.
55. verdadeira. Aqui a palavra não é alêthinos, e sim alêthês (embora haja
im portantes testem unhas na tradição ocidental que tragam alêthõs, um
advérbio que, provavelm ente, represente um a interpretação, especial-
m ente nas versões). Alêthinos ("o único verdadeiro"), que é usado para
distinguir a realidade celestial de sua contraparte natural, ou distinguir a
realidade neotestam entária de sua contraparte veterotestam entária (ver
A pêndice 1:2, p. 794ss), seria fora de lugar aqui, pois Jesus não está con-
trastando sua carne e sangue com algo natural ou sua contraparte vetero-
testam entária. Antes, Jesus está insistindo sobre o valor genuíno de sua
carne e sangue com comida e bebida. A leitura ocidental de um advérbio
capta o significado deste versículo. Ver R uckstuhl, pp. 235-42.
56. permanece em mim. Para menein, ver Apêndice 1:8, p. 794ss. Esta afirma-
ção parece m uito aproxim ada do que será dito da videira verdadeira em
15,3-7, e, provavelm ente, a videira seja tam bém um símbolo eucarístico.
nele. Aqui o Codex Bezae e alguns m anuscritos da Vetus Latin adicionam:
"com o o Pai em mim e eu no Pai [10,38; 14,10]. Solenemente eu vos as-
seguro, a m enos que recebais o corpo do Filho do Hom em como o pão
da vida, não tereis vida nele". Note o uso de "receber", um a redação que
Bezae tam bém tem em lugar de "com er" no v. 53. Alguns estudiosos (ver
L a g r a n g e , p. 185) pensam que esta redação pode ser genuína, omitida

em outras testem unhas por homoioteleuton. Mais provavelm ente, é um a


adição homilética ocidental.
57. 0 Pai que tem vida. Literalmente, "o Pai vivo". Este é o único caso desta ex-
pressão no NT, embora "o Deus vivo" ocorra em ambos os Testamentos.
Talvez o em prego seja determ inado por "o pão vivo" no v. 51. Com pare
5,26: "Assim como o Pai possui vida em Si mesmo, assim Ele concedeu
que o Filho tam bém possua vida em si m esmo".
por causa do Pai. A preposição é dia com o acusativo. Significa "através de,
por m eio de" (source: BAG, p. 180, B II, 4; BDF, § 222) ou "por causa de"
(finalidade: o significado mais norm al do acusativo)? L a c r a n g e favore-
ce a causalidade final, mas realm ente não se adequa ao contexto, visto
que Jesus parece estar falando da sucessão de fontes da vida. Para Jesus
como a fonte de nossa vida, temos ljo 4,9: "Deus enviou seu único Filho
ao m undo para que tenham os vida através dele [dia, com genitivo que
526 O Livro dos Sinais

significaria fonte]". O paralelo supracitado de Jo 5,26 tam bém sugere que


fonte está subentendida.
alimenta. Depois do v. 56 não mais se menciona beber. Precisamente como
a última parte dos vs. 35-50 constituiu um a inclusão com os tem as ini-
ciais do discurso, assim tam bém na duplicata do discurso sobre o Pão da
vida em 5 1 5 8 ‫־‬. Portanto, ali os últimos versículos se concentram no pão.
58. Este é 0 pão. A fraseologia é a mesma que no v. 50, exceto que não há
propósito na sentença seguinte. Embora o antecedente de "este" não seja
expresso, é claram ente a carne de Jesus.
daqueles ancestrais. Não "vossos ancestrais", como no v. 49.
morreram. Isto certam ente quase significa m orte física como contrastada
com vida espiritual. No entanto, há um a tradição judaica posterior de
que a geração no deserto m orreu tam bém espiritualm ente e não teria
nenhum lugar no m undo por vir.
59. Isto. Literalmente, "estas coisas".
instrução numa sinagoga. Literalmente, "ensinando num a sinagoga". A falta
de artigo definido antes de synagõgê leva alguns a pensar m ais em um a
reunião pública (ver Tg 2,2) do que na sinagoga. Entretanto, a sinagoga
de C afarnaum nos é conhecida à luz da tradição sinótica (Lc 4,31; 7,5), e
o hábito de Jesus de ensinar nas sinagogas é bem atestado (Mt 4,23; 9,35;
12,9; 13,54).
em Cafarnaum. O Codex Bezae, alguns m anuscritos OL e A gostinho acres-
centam "num sábado". Isto pode representar um a conjectura correta e
até plausível. A objeção de que todo o m ovim ento nos barcos descri-
to nos vs. 22-24 não podería ter ocorrido no sábado realm ente é apenas
mais um argum ento provando a artificialidade da conexão de João no
dia seguinte entre m ultiplicação e discurso. Se a teoria de que os vs. 51-58
constituem um a adição posterior prova ser procedente, então o v. 59 per-
tence ao discurso original que subjaz aos vs. 35-50.

C O M E N T Á R IO : G ER A L

O significado de "0 Pão Vivo" nos vs. 51-58

N e sta seção, o tem a eu carístico q u e foi a p e n a s se c u n d á rio n o s vs. 35-50,


p a ssa ag o ra ao p rim e iro p la n o e se to rn a o tem a exclusivo. N ã o m ais
so m o s in fo rm a d o s q u e a v id a e te rn a é o re su lta d o d e c re r e m Jesus; ela
v e m d o co m er su a carn e e b eb er se u sa n g u e (54). O p a p e l d o P ai em
25 · Jesus na Páscoa: discurso sobre o pão da vida (c o n tin u a ç ã o ) 527

c o n d u z ir h o m e n s a Jesus o u d á-lo s a ele já n ã o é o refletido; Jesus m es-


m o d o m in a co m o o a g e n te e fonte d a salvação. M esm o q u a n d o os ver-
sícu lo s 51-58 são n o ta v e lm e n te com o os 35-50, u m n o v o v o cab u lário
co rre a tra v é s deles: " co m e r", " a lim e n ta r", "b eb e r", "ca rn e ", "san g u e".
H á d u a s in dicações c h a m a tiv a s d e q u e a eu caristia está em m ente.
A p rim e ira in d ic a çã o é a ên fase so b re c o m er (alim e n ta r-se de) a carn e
d e Je su s e b e b e r seu sa n g u e. E im p o ssív e l q u e isto seja u m a m etáfo-
ra d e a c eita r su a rev elação . " C o m e r a ca rn e d e a lg u é m " a p a re c e na
Bíblia co m o u m a m etá fo ra p a ra ação h o stil (SI 27,2; Zc 11,9). De fato,
n a tra d iç ã o a ra m aic a tra n s m itid a a tra v é s d o Siríaco, "co m e r d a car-
n e " é o títu lo d o d ia b o , o c a lu n ia d o r e a d v e rsá rio p o r excelência. Be-
b e r o s a n g u e e ra v isto co m o alg o h o rro ro so p ro ib id o p e la lei d e D eus
(G n 9,4; Lv 3,17; D t 12,23; A t 15,20). Seu sig n ificad o sim bólico transfe-
rid o foi o d e b ru ta l m a ta n ç a (Jr 46,10). N a v isã o d a carn ificin a apoca-
líp tica d e E zeq u iel (39,17), ele c o n v id a as a v e s d e ra p in a a q u e v iessem
à festa: " c o m e re is c a rn e e b e b e re is sa n g u e " . A ssim , se as p a la v ra s de
Jesu s, em 6,53, d e v e m ter u m sig n ific a d o fav o ráv el, d e v e m referir-se
à e u c aristia . R e p ro d u z e m sim p le sm e n te as p a la v ra s q u e o u v im o s no
relato sin ó tico d a in stitu ição d a eucaristia (M t 26,26-28): "T om ai, comei;
isto é o meu corpo ; ... bebei... isto é o meu sangue".
A s e g u n d a in d ic a çã o d a E u caristia é a fó rm u la e n c o n tra d a no
v. 51: " O p ã o q u e eu d a re i é m in h a p ró p ria ca rn e p e la v id a d o m u n -
d o ". Se c o n s id e ra rm o s q u e João n ã o re g istra as p a la v ra s d o S enhor
so b re o p ã o e o cálice n a ú ltim a ceia, é p o ssív e l q u e ten h a m o s p re-
s e rv a d a e m 6,51 a fo rm a d a s p a la v ra s d a in stitu içã o . Em p a rtic u la r,
se a sse m e lh a à fo rm a lu ca n a d a in stitu ição : "Isto é o m e u c o rp o q u e
é d a d o p o r v ó s" (v er n o ta so b re v. 51). A d ife ren ç a im p o rta n te é qu e
João fala d e " c a rn e " , e n q u a n to os rela to s sin ó tico s d a ú ltim a ceia fa-
lam d e " c o rp o " . E n tre tan to , n o h e b ra ico o u no a ra m aic o , rea lm e n te
n ã o ex iste p a la v ra p a ra " c o rp o " , com o e n te n d e m o s o term o ; e m u ito s
e s tu d io s o s m a n tê m q u e n a ú ltim a ceia o q u e Jesu s re a lm e n te d isse era
o e q u iv a le n te a ra m a ic o d e "Isto é a m in h a c a rn e ". U m d o s escritores
eclesiástico s m ais a n tig o s, I nácio d e A n tio q u ia (cid ad e o n d e a trad ição
sem ítica d a s p a la v ra s d e Jesus p o d e m te r sid o p re se rv a d a s), u sa "car-
n e " em n u m e ro s a s refe rê n c ia s à e u c aristia (Rom 7,3; Phila 4,1; Smyr
7,1). Isso se d á ig u a lm e n te com J ustino, Apol. 1,66 (PG 6:428). E ntão,
é p o ssív e l q u e, n e ste a sp ec to , João seja o m ais ex ato d o s ev a n g elh o s
à lin g u a g e m eu c arístic a o rig in a l d e Jesus. Q u e Jo 6,51 lem b ra u m a
528 O Livro dos Sinais

fó rm u la eu carística, isso foi n o ta d o n o s te m p o s p rim itiv o s, p o is a m -


b as as te s te m u n h a s , a O L e S iríaca, leem e ste versícu lo : "E ste p ã o , q u e
d arei, é m e u corpo p a ra a v id a d o m u n d o " .

A relação dos vs. 51-58 com 0 restante do capítulo

Se a d m itirm o s q u e o sig n ificad o p rim á rio d e " o p ã o d a v id a "


m u d a n o s vs. 5 1 5 8 ‫ ־‬d o sig n ificad o q u e já v im o s e m 35-50, as d u a s p a r-
tes d o d isc u rso p e rte n c e m ao m esm o e ú n ico d isc u rso ? P rim e iro , d is-
c u ta m o s e sta q u e stã o n o n ív el literário: 51-58 é sim p le sm e n te u m bloco
e stra n h o d e m a te ria l n ã o jo a n in o o u é u m a p a rte in te g ra l d o c a p ítu lo ?
(N o m o m e n to d e ix a re m o s a q u e stã o histórica d e se o rig in a lm e n te era
p a rte d o d iscu rso ). C o m o o c a p ítu lo o ra está, d e v e -se rec o n h e c e r q u e há
m u ito s a sp ec to s em 51-58 q u e c o m b in a m m u ito b e m c o m o o c o n te ú d o .
P o r ex em p lo , 51-58 reto m a a lg u n s te m a s q u e já v im o s n a in tro d u ç ã o
(25-34) q u e n ã o se e n c o n tra m e m 35-50, p. ex., dar o p ã o (51-52; 31-32);
o Filho d o H o m e m (53, 27). A lém d o m ais, co m o v e re m o s, 51-58 é no-
tav e lm e n te se m e lh a n te a 35-50 e m c o m p o siç ão e afirm ação . R uckstuhl
tem e s tu d a d o a lin g u a g e m d e 51-58 com o m áx im o d e c u id a d o , e p e n -
sa q u e há b a s ta n te ev id ê n c ia p a ra c a ra c te riz a r a seção co m o g e n u in a -
m en te jo an in a. S eus a rg u m e n to s c o n v e n ce ram J. J eremias; m a s E duard
Schweizer, o u tro especialista e m estilo jo an in o , n ã o crê q u e h aja b as-
tan te e v id ê n c ia lin g u ística p a ra d e c id ir p o r u m d o s d o is se n tid o s. En-
tre os asp ecto s jo an in o s m ais ó b v io s n e ste s v e rsíc u lo s são: " e u v o s
a sse g u ro firm e m e n te " (53); " v id a e te rn a " (54); " c o m e r" (v er 13,18);
" p e rm a n e c e r" (56). H á o u tra s p e c u lia rid a d e s jo an in a s n o u so d e p a r-
tículas g reg a s m en o res.
E stas o b serv açõ es, em n o ssa o p in iã o , m o stra m q u e os vs. 51-58
p e rte n c e m ao c o rp o g e ra l d a tra d iç ã o jo a n in a ; n ã o e x clu i a p o ssib ili-
d a d e d e q u e 51-58 foi a d ic io n a d o n u m e stá g io p o s te rio r d a re d a ç ã o d o
ca p ítu lo 6. Q u a lq u e r re d a to r q u e a d ic io n asse e stes v e rsíc u lo s, n a tu ra l-
m en te faria u m esforço p a ra p ô -lo s em h a rm o n ia com se u n o v o con-
texto. E n tre tan to , as o b serv açõ es acim a m e n c io n a d a s d ific u lta m cre r
na teo ria d e Bultmann d e q u e u m R e d a to r E clesiástico a d ic io n o u e stes
v ersícu lo s p a ra corrigir o c a p ítu lo , in tro d u z in d o u m tem a sa c ra m e n ta l
n ão jo an in o q u e faria o d isc u rso m ais aceitáv el à igreja e m geral. H á
ev id ên cia d e q u e estes v e rsíc u lo s c o n tê m m a te ria l tra d ic io n a l g e n u ín o
(p. ex., fó rm u la eu carística) e q u e re p re s e n ta m v e rd a d e iro p e n s a m e n to
25 · Jesus na Páscoa: d iscu rso so b re o p ã o da vid a (c o n t i n u a ç ã o ) 529

jo a n in o e n ã o u m a co rreção dele. A lém d o m ais, u m a objeção in su -


p e rá v e l à teo ria d e Bultmann é a e v id ê n c ia d e m a tiz e s eucarísticas
s e c u n d á ria s n a m u ltip lic a ç ão , os v e rsíc u lo s d e tra n siç ã o (22-24), a in-
tro d u ç ã o ao d isc u rso e o c o rp o d o d isc u rso (35-50). E ste c a p ítu lo seria
e u c arístic o se os vs. 51-58 n ã o fossem p a rte d ele; e se os vs. 51-58 cons-
titu e m u m a a d iç ã o p o ste rio r, fo ra m a d ic io n a d o s n ã o p a ra in tro d u z ir
u m tem a e u carístico , m as p a ra rea lça r m a is c la ra m e n te os elem en to s
e u c arístic o s q u e já e sta v a m ali.
N ã o o b sta n te , o p ró p rio fato d e q u e o e le m e n to eu carístico é pri-
m á rio n o s vs. 51-58, e n q u a n to é s e c u n d á rio n o re sta n te d o cap ítu lo ,
s u g e re q u e os vs. 51-58 teve u m a p ro c e d ê n c ia d ife re n te d o re sta n te d o
c a p ítu lo . O d isc u rso so b re o P ão d a V id a e m 35-50 é em si m esm o com -
p le to , co m o v im o s em n o sso e s tu d o d e técnica h o m ilética; ele term i-
n a c o m u m a in clu sã o c u id a d o s a m e n te o rd e n a d a . P arece ilógico p a ra
u m d isc u rs o rec o m eç a r c o n fu sa m e n te n o v. 51. U m a su g e stã o m u ito
m a is p la u s ív e l é q u e tem o s a q u i d u a s fo rm a s d ife re n te s d e u m d iscu r-
so so b re o p ã o d a v id a , a m b o s jo an in o s, p o ré m o riu n d o s d e estágios
d ife re n te s d a p re g a ç ã o jo an in a.
V o ltem o s a g o ra à q u e s tã o histórica d e se o tem a d ire ta m e n te eu-
carístico d o s vs. 51-58 e ra o rig in a lm e n te p a rte d a s p a la v ra s d e Jesus à
m u ltid ã o . P ois os q u e c o n sid e ra m to d o o c e n ário d o d isc u rso so b re o
P ã o d a V id a, em Jo 6, co m o fictício, n ã o p o d e h a v e r d ú v id a histórica.
E n tre ta n to , co m o te m o s m o stra d o com b a se n o s p a ra le lo s d e seq u ên -
cia n o s sin ó tico s, p a re c e q u e a tra d iç ã o p ré-e v a n g élic a tin h a u m a cena
o n d e Jesu s e x p lic o u a se u s d isc íp u lo s a s im p licaçõ es d a m u ltip licação .
A lu z d e u m a a n á lise d e Jo 6, v im o s q u e n ão é im p la u sív e l q u e Jesus
falasse n a sin a g o g a , fa z e n d o u m d isc u rso so b re e le m en to s su g e rid o s
p e la s le itu ra s p a sca is n a sin a g o g a , e q u e h o u v e p a n o d e fu n d o vetero-
te s ta m e n tá rio p a ra e n te n d e r su a o b se rv a ç ã o em 35-50, o n d e se referiu
à su a rev e laç ã o sob o sim b o lism o d o p ão . C ie n tificam en te falan d o ,
d e tu d o isso n a d a p o d e m o s estab elecer além d o p lau sív e l. T odavia,
isto é su ficien te p a ra su sc ita r a se g u in te q u estão : se Jesus falou do
p ã o d a v id a n a sin a g o g a d e C a fa rn a u m , a d o u trin a so b re a eu caristia,
co m o re g is tra d a e m 51-58, p o d e ría ter sid o p a rte d a q u e le discurso.
Léon -D ufour te m te n ta d o re so lv e r o p ro b le m a d e co m o a m u ltid ã o
p o d e ría te r e n te n d id o estes v e rsíc u lo s, a firm a n d o q u e, sim u ltâ n e a-
m en te, o sig n ific a d o sa p ien cial d o p ã o se m a n te m ao lo n g o d e 51-58 e
q u e e ste sig n ific a d o p o d e ría ter sid o e n te n d id o . E n tre tan to , existe aí
530 O Livro dos Sinais

u m a leve e v id ê n c ia d e q u e o p ã o viv o , em 5 1 5 8 ‫־‬, se refe re a a lg o m ais


além d a e u caristia? Se re s p o n d e rm o s n e g a tiv a m e n te , e p a re c e q u e d e-
v e m o s fazê-lo, e n tã o tu d o in d ic a ser im p o ssív e l q u e a s p a la v ra s d e
51-58, as q u a is se refe re m e x c lu siv am e n te à e u c aristia , fo ssem e n te n -
d id a s p e la m u ltid ã o o u in clu siv e p e lo s d isc íp u lo s. R e a lm e n te e stã o
fora d e lu g a r em q u a lq u e r p a rte d u ra n te o m in isté rio , exceto n a ú lti-
m a ceia. M esm o tal crítica u s u a lm e n te c o n se rv a d o ra , co m o L agrange
tem re c o n h e c id o isto, e tem sid o s e g u id o p o r m u ito s e s tu d io s o s q u e
d e o u tro m o d o n ã o m o stra m m u ita in clin ação p a ra d e s m a n te la r os
d isc u rso s jo an in o s. C o m b in a n d o , p o is, n o sso s ju lg a m e n to s co m as
q u e stõ e s literá ria s e h istó ric a s so b re 51-58, su g e rim o s q u e 35-50 e
51-58 são d u a s fo rm a s d ife re n te s d o d isc u rso so b re o P ão d a V ida,
a m b a s jo an in a s n o se n tid o d e q u e são e la b o ra d a s d o s d ito s tra n sm iti-
d o s n a tra d iç ã o d a p re g a ç ã o jo an in a. A fo rm a d o d isc u rso re p re s e n ta
u m a fo rm a sa p ien cial m u ito m ais p rim itiv a d o d isc u rso . S eu s m a tiz e s
eu carístico s s e c u n d á rio s p ro v ê m d e u m re p e n s a r c ristã o d o d isc u rso
em q u e o tem a e u carístico p a s so u ao p rim e iro p lan o . Foi a c re sc id o a
35-50 em u m estág io p o sitiv a m e n te p o s te rio r n a re d a ç ã o d o Q u a rto
E v an g elh o , p ro v a v e lm e n te n a re d a ç ã o final.

A possível origem do material nos vs. 51-58

D esejam o s p r o p o r a q u i a h ip ó te s e d e q u e a e s p in h a d o rs a l d o s
vs. 51-58 é e la b o ra d a d e m a te ria l d a n a rr a tiv a jo a n in a d a in stitu iç ã o
d a e u c a ris tia q u e o rig in a lm e n te se s itu a v a na cen a d a ú ltim a ceia, e
q u e este m a te ria l foi re fu n d id o e m u m a d u p lic a ta p a ra fa z e r d e le s
u m a d u p lic a ta d o d isc u rs o so b re o P ão d a V ida. E sta h ip ó te s e ex-
p lica d iv e rs o s fatos: (a) A a u sê n c ia d e u m re la to d a in stitu iç ã o n o
c a p ítu lo 13, a cen a d a ú ltim a ceia o n d e to d o s o s d e m a is e v a n g e lh o s
co lo cam a in stitu iç ã o . O d e s lo c a m e n to d o m a te ria l in s titu c io n a l te m
d e ix a d o s u a s m a rc a s em 13, p o r e x e m p lo , a re fe rê n c ia a c o m e r o p ã o ,
com o u s o d o v e rb o trõgein em 13,18. ( b) A e s tre ita s im ila rid a d e d e
6,51 com u m a fó rm u la in stitu c io n a l, (c) A clara re fe rê n c ia à e u c a ris-
tia, n o s vs. 51-58, teria sid o c o m p re e n s ív e l n a ú ltim a ceia. À m a n e i-
ra d e s u p o rte , d o q u e d isse m o s p o d e m o s n o ta r q u e já e n c o n tra m o s
u m p o ssív e l e x e m p lo d e u m a c e n a o rig in a lm e n te a sso c ia d a à ú ltim a
P ásco a d a v id a d e je s u s se n d o tra n s p o s ta p a ra o c o rp o d o m in is té rio
e u m a P ásco a a n te rio r, a s a b e r, a p u rific a ç ã o d o te m p lo .
25 · Jesus na Páscoa: d iscu rso sob re o p ã o da v id a (c o n tin u a ç ã o ) 531

U m im p o rta n te aspecto em nossa hipótese é q u e o m aterial tom ado


d a ú ltim a ceia foi reelaborado com base no m odelo d o discurso d o Pão da
V ida, q u a n d o foi acrescentado ao capítulo 6. Eis p o r qu e ele se adequa
tão b em ao cap ítu lo 6. A baixo, d a m o s u m d iag ra m a p o n d o os vs. 35-50
e 51-58 lad o a lado, d e m o d o q u e o leitor p o ssa v e r q u ã o estreitam ente
as d u a s seções fo rm am u m paralelo. C o m b in an d o os tem as d o 6 com o
m aterial d a ú ltim a ceia, o red a to r final criou u m se g u n d o d iscurso sobre
o P ão d a Vida. Seu p ro p ó sito em tu d o isso p arece ter sido ressaltar os
m atizes eucarísticos já im plícitos n o capítulo. Ele d e u a 51-58 o m esm o
início e o m esm o final q u e d e u a 35-50; o m esm o tipo d e in terru p ção onde
os ju d e u s p ro testam ; a m esm a pro m essa d e vida eterna. M as o n d e o dis-
cu rso o riginal en fatizou a necessidade d e crer em Jesus, o novo discurso
en fatiza a n ecessid ad e d e com er e b eb er a carne e san g u e eucarísticos.
A té a q u i fala m o s d a fo rm a çã o d o s vs. 51-58 co m o u m a o b ra red a -
cio n al, m a s b e m q u e p o d e m o s s u s p e ita r q u e o re d a to r estiv esse ap e-
n a s c o m p le ta n d o e a p e rfe iç o a n d o u m p ro ce sso d e assim ilação q u e já
h a v ia c o m e ç a d o . E n fa tiza m o s u m a v ez m ais q u e o p ro cesso d e inter-
p r e ta r e ste c a p ítu lo e u c a ristic a m e n te já está p re s e n te d e u m a fo rm a
m en o s esp ecífica n a m u ltip lic a ç ão . A p re se n ç a d e m atiz e s eu carísticas
n as n a rra tiv a s sin ó ticas d a m u ltip lic a ç ã o su g e re q u e a c o m u n id a d e
cristã a sso cio u a m u ltip lic a ç ão e a e u c aristia em estág io p rim itiv o .
D aube , Z ien er , G ä rtner e K ilm artin têm e s tu d a d o a Haggadah pascal
e e x traíd o m u itas analogias a Jo 6, com o já m encionam os (p. 476ss.). Su-
g e re m a in d a q u e a p o ssib ilid a d e d e q u e u m a P áscoa cristã era a si-
tu aç ã o v ita l (Sitz-im-Leben) na Igreja q u e d e u o rig e m à p re se n te form a
d e Jo 6. A s c e n as d o c a p ítu lo 6 (m u ltip licação d o s p ã e s, m en ção d o
m a n á n a in tro d u ç ã o ao d isc u rso so b re o Pão d a V ida e a fo rm a ori-
g in al d o d isc u rs o e m 35,50), co m e ç a d as n a P áscoa, teriam feito u m a
le itu ra a d m ira v e lm e n te a d a p ta d a p a ra esse cu lto p a sca l cristão. N a-
tu ra lm e n te , n e s te cu lto , o cern e d a refeição p a sca l cristã co n sistiría na
re a p re se n ta ç ã o d a refeição e u carística q u e o S e n h o r co m eu na v é sp era
d a P ásco a, a n o ite a n te s d e m o rre r. A ssim , a p ró p ria litu rg ia p o d e ría
ter in tr o d u z id o u m a e stre ita ju sta p o siç ã o ao d isc u rso so b re o Pão d a
V ida e o re la to jo a n in o d a in stitu iç ã o e u carística q u e, p o r h ip ó tese,
a g o ra se e n c o n tra re fu n d id a n o s vs. 51-58. Se o tem a d o m an á d o le-
c io n á rio p a sc a l n a sin a g o g a e a Haggadah p ascal estã o p o r d e trá s d a
a p re s e n ta ç ã o q u e Jesu s faz d e si m esm o co m o o p ã o q u e d e sc e u d o
céu , o te m a s d a c a rn e e sa n g u e n ã o te ria m sid o fam iliares e m m eio às
532 O Livro dos Sinais

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25 · Jesus na Páscoa: discurso sobre o pão da vida ( c o n tin u a ç ã o ) 533

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534 O Livro dos Sinais

m em ó ria s p a sca is d a c a rn e d o c o rd e iro p ascal e d o s a n g u e n a s v e rg a s


d a s p o rta s (H oskyns, p. 281ss.)?
Isto é a p e n a s u m a h ip ó tese, m as d e v e m o s ter em m e n te q u e a jus-
tap o sição d o s tem as sap ien ciais e sa cra m e n tais é tão a n tig a co m o o
p ró p rio C ristian ism o . A s d u a s fo rm as d o d isc u rso so b re o P ão d a V ida
re p re se n ta m u m a ju sta p o siç ã o d a d u p la form a em q u e a p rese n ç a d e
C risto aos cren tes na palavra pregada e no sacramente d a eu caristia. Esta
d u p la p resen ça é o e sq u ele to e s tru tu ra l d a L itu rg ia D iv in a O rien ta l,
d a m issa ro m a n a e to d o s os serviços litú rg ico s p ro te s ta n te s q u e têm
se e v o lu íd o h isto ric a m e n te a p a rtir d e m od ificaçõ es d a m issa ro m a n a .
F in alm en te, n o tam o s q u e esta h ip ó tese tem m u ito em c o m u m com
os p o n to s d e vista d e V. T aylor, F euillet e J. Jeremias. É a p e n a s u m a ten-
tativa, m as é u m a séria ten tativ a d e sa n a r as seg u in te s d ific u ld a d e s q u e
q u a lq u e r teoria so b re os vs. 5 1 5 8 ‫ ־‬tem d e ser lev a d a em conta:

• H á m atiz e s eu c arístic a s p o r to d o o ca p ítu lo .


• O s vs. 35-50 têm p rim a ria m e n te , p o ré m n ã o e x c lu siv a m e n te
u m tem a sapiencial.
• O s vs. 51-58 têm u m a referên cia eu c arístic a m u ito m ais c lara d o
q u e o re s ta n te d o c a p ítu lo , u m a referên cia ra ra m e n te in telig í-
vel n o c e n ário e m q u e a tu a lm e n te se e n c o n tra.
• O s vs. 35-50 p a re c e m c o n stitu ir em si m e sm o s u m d isc u rs o si-
m étrico , e a m u d a n ç a d e ên fa se e n tre 35-50 e 51-58 é n o tá v e l-
m e n te a b ru p ta .
• O s vs. 51-58 têm m u ito s traço s em c o m u m com o re s ta n te d o
c a p ítu lo 6, e d e v e ra s p a ra le lo s e x tre m a m e n te e stre ito s e m es-
tru tu ra co m 35-50.
• O s vs. 60ss., co m o v e re m o s, se refe re m m ais d ire ta m e n te a
35-50 d o q u e a 51-58.
• N ão há instituição d a eucaristia na narrativa joanina d a últim a ceia.
• P o d e ser o re su lta d o d e u m a influência d a litu rg ia pascal cristã
so b re Jo 6.

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

O v. 51 é p aralelo ao v. 35, o qual é o início d a p rim eira form a d o d iscu rso


sobre o Pão d a V ida, exceto qu e n o v. 51 Jesus fala com o "o p ã o vivo",
25 · Jesus na Páscoa: discurso sobre o pão da vida (c o n t i n u a ç ã o ) 535

e m v e z d e " o p ã o d a v id a " . E m b o ra os d o is sejam sin ô n im o s, "o p ã o


v iv o " é m ais a p ro p ria d o à e u caristia. E in te re ssa n te q u e n e ste v ersícu-
lo, o n d e ele fala rá d o p ã o d e s u a carne, Jesus e n fa tiz a q u e ele d e sce u d o
céu. E m Jo 1,14, o acesso d o V erbo ao m u n d o foi e x p re sso em term o s
d e to rn a r-s e carn e; e é esta m esm a ca rn e q u e a g o ra d e v e se r d a d a aos
h o m e n s co m o o p ã o vivo. Se o v. 51 ecoa o tem a d a E n carn ação , tam -
b é m p a re c e fo car a m o rte d e Jesus, u m tem a tra d ic io n a lm e n te associa-
d o à e u c aristia ; p o is Jesu s teve d e dar su a ca rn e p e la v id a d o m u n d o
(v er n o ta s so b re v. 51 e 3,16 c o n c e rn e n te a o " d a r" ). N o v. 32, o u v im o s
q u e é o P ai q u e m d á o p ã o celestial no se n tid o d e q u e o F ilho v e m d o
Pai; m a s q u a n d o o p ã o a g o ra vem a ser id en tifica d o com a carn e de
Jesu s, ele a d a ria d e si m esm o . Jesus e n tre g a su a v id a p o r su a p ró p ria
in ic ia tiv a (10,18), e q u e a m o rte v o lu n tá ria faz p o ssív el a p a rticip a çã o
e u carística d e su a carn e. N o início d o e v a n g e lh o o u v im o s Jesus ser
a c la m a d o co m o o C o rd e iro P ascal q u e tira o p e c a d o d o m u n d o (1,29);
a g o ra , n o c o n te x to d e u m d isc u rso a tin e n te ao te m p o d a P áscoa ouvi-
m o s q u e Jesu s d á su a c a rn e p e la v id a d o m u n d o .
V im o s q u e o u so d e " c a rn e ", no v. 51, p o d e eco ar as p a la v ra s
a tu a is d e Jesu s so b re o p ã o d a e u c aristia . N ã o o b sta n te , o term o tem
c erta r u d e z a e re a lid a d e ; e e sta co n o tação , m ais o fato d e q u e ele evoca
a E n c a rn a ç ã o , p o d e ria ter sid o e m p re g a d o p e lo e v a n g elista com
in te n ç ã o a n ti-d o cética. Jo 6 n ão ch eg a ao ferv o r an ti-d o cético de
l j o 4,2 ("T o d o e sp írito q u e reco n h ece Jesus C risto v in d o em carn e é
d e D e u s" ), p o ré m resiste a q u a lq u e r h ip e r-e sp iritu a liz a ç ã o d a h u m a-
n id a d e d e Jesus.
N o v. 52 en co n tram o s u m equívoco q u e form a paralelos com 41-42.
M u ito e s tra n h a m e n te , Jesu s n ã o se p re o c u p a m u ito em a te n u a r a re-
p u g n â n c ia ju d a ic a a n te o p e n s a m e n to can ib al d e c o m er su a carne; an-
tes, e m 53 ele e n fa tiz a a re a lid a d e d e " c o m e r" (v er n o ta) su a carn e e
acre sc en ta a n o ta a in d a m ais re p u g n a n te d e b e b e r seu sa n g u e. Jo 6
n ã o só resiste a q u a lq u e r h ip e r-e sp iritu a liz a ç ã o d a h u m a n id a d e d e
Jesus; ta m b é m resiste a q u a lq u e r h ip e r-e sp iritu a liz a ç ã o d a re a lid a d e
da c a rn e e s a n g u e eu carístico s. A objeção e re sp o sta n o s vs. 52-53 p o d e
refletir u m a d is p u ta d a p ró p ria ép o ca d o e v a n g elista , p o is a ap o lo g é-
tica ju d a ic a c o n tra o c ristia n ism o ataca a eu caristia. O rígenes, Celsus
27 (GCS 3:97), a lu d e às a c u saçõ es ju d a ic a s d e q u e os cristã o s com iam
ca rn e h u m a n a . K ilmartin, "Chalice Dispute", su g e re q u e a co n sisten te
ên fase so b re o b e b e r o sa n g u e é d irig id a c o n tra u m círculo gnóstico
536 O Livro dos Sinais

ju d aico q u e se o p u n h a ao u so d o cálice na p rá tic a e u c arístic a p o r cau -


sa d e m e d o p ro fu n d a m e n te ra d ic a l d e sa n g u e. E n tre ta n to , se o Q u a r-
to E v a n g e lh o n ã o faz co n cessão às se n sib ilid a d e s ju d a ic a s e in siste
o b s tin a d a m e n te n a re a lid a d e d a ca rn e e sa n g u e , ele n ã o v ai ao o u tro
ex trem o d e a trib u ir p o d e r m ág ico à recep ção d a c a rn e e sa n g u e d e Je-
su s e, assim , e q u ip a ra n d o o sa c ra m e n to c ristã o com o m isté rio p a g ã o .
O s vs. 53-56 p ro m e te m o d o m d a v id a ao h o m e m q u e c o m e r o c o rp o
d e Jesu s e b e b e r seu sa n g u e , m as esta p ro m e ssa e u c arístic a se g u e n o
co rp o p rin c ip a l d o d isc u rso so b re o P ão d a V ida em 35-50 q u e in sistia
n a n e c essid ad e d e cre r e m Jesus. A ju sta p o siç ã o d a s d u a s fo rm a s d o
d isc u rso e n sin a q u e o d o m d a v id a v e m a tra v é s d e u m a rec e p ç ão com fé
d o sa c ra m e n to (cf. 54 e 47).
N o v. 54 e n c o n tra m o s o u tra v e z fu n d id o s os d o is tip o s d e esca-
tologia. A q u e le q u e c o m e r a ca rn e d e Jesus tem a v id a e te rn a a q u i
em b aix o (escato logia rea liz a d a ); m a s ta m b é m se p ro m e te q u e Je su s o
re ssu sc ita rá n o ú ltim o d ia (escato lo g ia final). A e scato lo g ia fin al e stá
tam b é m im p lícita n a referên cia d e c o m e r a c a rn e d o F ilho d o H o m e m
(53) q u e é u m a fig u ra escatológica. N a tu ra lm e n te , sa b e m o s q u e o u tro s
a u to re s n e o te s ta m e n tá rio s asso ciam in tim a m e n te a E u caristia co m a
escato lo g ia final. IC o r 11,26 d e scre v e a e u c a ristia co m o u m a p ro cla-
m ação d a m o rte d o S e n h o r até que ele venha ; e ta m b é m se a p re s e n ta
com o u m p e n h o r d o b a n q u e te celestial n o re in o d e D e u s (M c 14,25;
Lc 22,18).
U m a c o m p a raç ã o d o s vs. 54 e 56 m o stra q u e te r a v id a e te rn a
é e sta r em ín tim a c o m u n h ã o com Jesus; é u m a q u e s tã o d e o c ristã o
p e rm a n e c e r ( menein) em Jesu s e a p e rm a n ê n c ia d e Jesu s n o cristão . N o
v. 27, Jesus falou d a com ida q u e p erm an ece (menein) p a ra a v id a etern a,
isto é, u m a c o m id a im p e rec ív el q u e é a fo n te d a v id a e te rn a . N o v. 56,
o menein se ap lica n ã o à c o m id a , e sim à v id a q u e ele p r o d u z e a lim e n ta .
C o m u n h ã o co m Jesus é re a lm e n te u m a p a rtic ip a ç ã o n a c o m u n h ã o ínti-
m a q u e ex iste e n tre Pai e Filho. O v. 57 sim p le sm e n te m e n c io n a a c o m u -
n h ã o e n tre P ai e F ilho ao m e sm o te m p o d á p o r s u p o s to d e q u e o leito r
o e n te n d e rá . D odd, Interpretation, p. 340, a rg u m e n ta q u e tal su p o siç ã o
só faz s e n tid o se o c a p ítu lo 6 se g u ir o c a p ítu lo 5 (v er s u p ra , p. 465ss),
p o is foi em 5,17-30 q u e o u v im o s q u e Jesu s n ã o era u m a fo n te in d e-
p e n d e n te d e v id a , m as era em u m a id e n tid a d e in q u e b rá v e l d e ação
com o Pai. Seja co m o for, e m su a b re v id a d e o v. 57 é u m a e x p re s-
são m u i forçosa d a tre m e n d a reiv in d ic a çã o q u e Je su s d á ao homem
25 · Jesus na Páscoa: discurso sobre o pão da vida ( c o n tin u a ç ã o ) 537

uma participação na própria vida de Deus, u m a e x p re ssã o m u ito m ais


d o q u e u m a fo rm u la ç ã o a b stra ta d e 2P d 1,4. E assim é q u e, e n q u a n to
os e v a n g e lh o s sin ó tico s re g istra m a in stitu iç ã o d a e u c aristia , é João
q u e m ex p lica o q u e a e u c aristia faz p e lo cristão. Ju sta m e n te com o
a p ró p ria e u c aristia ecoa o tem a d a alian ça ("sa n g u e d a alian ça" -
M c 14,24), a ssim ta m b é m a m ú tu a h a b ita çã o d e D eus (e Jesus) e o cris-
tão p o d e ria se r u m reflexo d o tem a p a c tu a i. Jr 24,7 e 31,33 a b o rd a m a
p ro m e s s a p a c tu a i: "V ós sereis o m eu p o v o e eu serei o v o sso D eus",
e lh e d iz d a in tim id a d e d a o p e ra ç ã o d e D eu s n o coração h u m a n o . Em
Q u m ra n (1QS l.ló s s .) a c o m u n h ã o d a q u e le s sectário s com D eus era
v ista co m o u m a m arca d a n o v a aliança.

Adendo à divisão do discurso do Pão da Vida

O leitor já viu a divisão que tem os proposto para o discurso do pão


da vida. E apenas um a dentre muitas. G achthr, p. 438, quando escreveu
em 1935, deu um a lista das divisões propostas por comentaristas cató-
licos até seu tempo. Aqui estão exem plos de propostas mais recentes:

F. J. L henhardt p ro p õ e três d iv isõ e s d o d isc u rso , c o rre sp o n d e n te s aos


três e stá g io s d a ação n o s vs. 1-21:

1-21 26-70
(a) Multiplicação dos pães =(a) 26-35: A natureza do pão
(b) Tentativa de fazer jesus rei - (b) 36-47: O Pai deve trazer homens a Jesus
(c) Travessia do mar =(c) 48-70: Necessidade de uma compreensão
espiritual (Jesus vem em outra
forma)

J. Schneider e C. Barrett tam b é m p ro p õ e m u m a tríplice divisão: (a)


27(28)-40, (b) 41-51, (c) 52-58. P a ra Schneider , o v . 51 ta n to en cerra
o s e g u n d o e stá g io co m o a b re o terceiro. U m p rin c íp io p o r d e trá s
d e s ta d iv is ã o é o d e u m a p e rg u n ta fo rm u la d a p e la m u ltid ã o q u e
v e m logo d e p o is d a a firm a ç ão inicial d e c a d a estágio. C a d a u m d os
três e stá g io s ta m b é m tem a afirm ação: "E u so u o p ã o " , b e m com o
u m a referên cia ao s a n c e stra is n o d eserto .
S. T emple vê três níveis d e m ateriais qu e p ercorrem o discurso: (a) u m nú-
cleo d e tradição antiga: 24-35,41-43,45,47,60,66-70; (b) a am plificação
538 O Livro dos Sinais

q u e o e v a n g elista faz d e ste núcleo: 36-40, 44, 46, 61-65; (c) u m a ho-
m ília eu carística: 48-59. Ele v ê d ife re n te s a sp ec to s lite rá rio s e teoló-
gicos e m cad a u m d o s níveis.
P. Borgen , Bread, p p . 59-98, p ro p õ e u m a d iv isã o b a s e a d a n o m o d e lo
m id rá sh ic o hom ilético: (a) 31-33, a citação b ásica d o p e n ta tê u c o ,
c o rrig id a p o r Jesus; (b) 34-40, ex p o sição siste m á tic a d o s te rm o s d a
citação; (c) 41-48, d isc u ssã o exegética; (d) 49-58, m ais e x p o siç ã o d e
term o s d a citação.
J. Bligh p ro p õ e u m a d u p la q u e ab arca 26-65: (a) 26-47, (b) 48-65. Em
c a d a u m a d e s ta s Jesu s faz u m a o ferta (p ão , carne); os o u v in te s são
in c ré d u lo s e m u rm u ra m (41-42, 60-61); e n fa tiz a -se a fé c o m o u m
d o m d e D eu s (43-47, 61-65).
T. W orden e n c o n tra d o is n ív eis b ásico s d e m a te ria l e m 26-59, q u e
c o n stitu e m d isc u rso s p aralelo s: D isc u rso A: 26, 30-35, 37-39, 41-44,
48-50, 58-59. D iscurso B: 27-29, 36, 40, 45-47, 51-57.
H . Schürmann re p a rte o m esm o m a te ria l em d u a s d iv isõ es: (a) 26-52,
(b) 53-58. Ele crê q u e 51c se refere p rim a ria m e n te à m o rte n o C al-
v ário , e n ão à e u c aristia , e assim ele com eça a p a rte e u c arístic a d o
d isc u rso com 53.
E. G albiati com eça o d isc u rso com 32: (a) 32-50, (b) 48-58. N o te q u e
48-50 são lista d o s e m a m b o s os e stág io s, fec h a n d o u m e a b rin d o o
o u tro . O v. 50 fo rm a u m a in clu sã o com 32; 48 c o m b in a 58.
X. L éon-D ufour e D. M ollat co m eçam o d isc u rso com 35, m a s p õ e m
a d iv isã o d e p o is d e 47: (a) 35-47, (b) 48-58. O s u p o rte p a ra e sta di-
v isão é e x tra íd o d a sim ila rid a d e d e 35 e 48. O s te m a s d e " d a r " e
"co m e r" m a rc a m a se g u n d a m eta d e.
A m aio ria d o s e stu d io so s q u e d iv id e m , c o m o fazem os, e m 35-50 e 51-58
com eça a d iv isã o n a ú ltim a se n te n ç a d e 51 (51c). C o m e ç a m o s a di-
v isão co m o início d e 51.

O b v ia m e n te, n ã o p o d e m o s te n ta r d isc u tir to d o s os a rg u m e n to s


p ro l e c o n tra c a d a u m a d e sta s d iv isõ es. C re m o s q u e o s e s tu d o s d e
Borgen d a técnica m id rá sh ic a são m ais c o n v e n ie n te s, m e sm o q u a n -
d o p ro p o m o s u m a d iv isã o u m ta n to d ife ren te . Em n o ssa o p in iã o , os
vs. 25-34 p ro p ic ia m u m c e n ário p a ra o d isc u rso , com 31-33 se rec o lh e
a p a ssa g e m e as c o rre sp o n d e n te s p a rá fra se s p e n ta tê u tic a s e m q u e a
h o m ília se baseia. Borgen su p õ e q u e o v. 34 faz p a rte d a ex plicação ho-
m ilética, p o ré m p a re c e se rv ir d e tran sição . O d isc u rs o p ro p ria m e n te
25 · Jesus na Páscoa: discurso sobre o pão da vida (c o n t i n u a ç ã o ) 539

d ito co m e ç a n o v. 35. O a rg u m e n to m ais c o n v e n ie n te e m p ro l d a di-


v isã o em 3 5 5 0 ‫ ־‬e 51-58 p o d e ser e n c o n tra d o n o s p a ra le lo s d e e stru tu ra
e v id e n te s q u a n d o as d u a s p a rte s são p o sta s la d o a la d o co m o o dia-
g ra m a n a s p p . 532-533. N o te o m esm o início, o m esm o final, o m esm o
tip o d e o bjeção q u e o in te rro m p e m . N as p p . 532-533 ressa lta m o s com o
os vs. 48-50 fo rm a m u m a in clu são , e assim o p ro v á v e l té rm in o p a ra o
d isc u rs o o rig in a l p ã o d a v id a. A s d ife ren ç a s in te rn a s d e v o cab u lário
e tem a q u e ex istem e n tre os vs. 35-50 e 51-58 são n o v o s a rg u m e n to s
p a ra c o n s id e ra r e stas p a ssa g e n s co m o re fle tin d o d o is d isc u rso s p a ra -
lelos q u e fo ram p o sto s la d o a lad o p o r u m re d a to r.
E p o ssív el q u e surja a objeção d e q u e o p ró p rio Borgen considera
51-58 co m o p a rte d o m esm o d isc u rso co m o 35-50; e n q u a n to 34-40 ex-
p lica a p rim e ira p a rte d a citação bíblica e n c o n tra d a em 31, "Ele lhes deu
pão do céu p a ra c o m e r", 49-58 explica a ú ltim a p a rte d a citação, a saber,
"para comer". E n tre tan to , v isto q u e o tem a d e c o m e r a p a re c e e m 49-50,
a in d a q u e c o n s id e ra m o s q u e 35-50 tem to d o o d isc u rso co m p leto te-
ría m o s q u e e n c o n tra r a b o rd a d a s to d a s as p a rte s d a citação bíblica.
D e fato , c o n tu d o , n a fo rm a final d o e v a n g e lh o o n d e 35-50 e 51-58 fo-
ram a m a lg am a d o s, existe certa u n id a d e ao todo. M as o a rg u m e n to de
Borgen n ã o p ro v a n e c e ssa ria m e n te q u e 51-58 e ra o rig in a lm e n te u n id o
a 35-50.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 6, n o final d o § 26.J
2 6 . JE SU S N A P Á S C O A : - R E A Ç Õ E S
A O D IS C U R S O SO B R E O P Ã O D A V I D A
(6,60-71)

6 6°l61)‘Ora, após ouvir isto, muitos de seus discípulos disseram: "É


duro de ouvir esse discurso. Como pode alguém prestar atenção a
isto?" 611621Jesus estava bem ciente de que seus discípulos estavam
murmurando em protesto a isto. Então lhes disse: "Acaso isto abala
vossa fé?"

62"Se, pois, virdes o Filho do Homem


subindo para onde estava antes...? 1631
63É o Espírito que dá vida;
a carne é sem valor. 1641
As palavras que eu tenho falado
são ambos Espírito e vida.
64Mas entre vós há alguns que não creem". 1651

(De fato, Jesus sabia desde o início quem se recusava a crer, e também
quem o entregaria). 6",1661Então ele passou a dizer:

"Eis por que eu vos disse


que ninguém pode vir a mim,
a menos que lhe seja concedido pelo Pai".

661671Nisto muitos de seus discípulos se apartaram e não mais o acom-


panharam. 671681E por isso Jesus disse aos Doze: "Acaso vós também
26 · Jesus na Páscoa: Reações ao discurso sobre o pão da vida 541

q u e re is ir e m b o ra ? " 681691S im ã o P e d ro re s p o n d e u : " S e n h o r, p a ra


q u e m ire m o s n ó s? És tu q u e te n s as p a la v ra s d e v id a e te rn a ; 69171)1
e n ó s te m o s c rid o e e s ta m o s c o n v e n c id o s d e q u e tu és o S an to de
D e u s " . 701711Je su s lh e s rep lico u : "A c a so n ã o esco lh i D oze p a ra m im ?
E, n o e n ta n to , u m d e v ó s é u m d ia b o " . (711721Ele falav a d e Ju d a s, filho
d e S im ã o o Isc a rio tes; p o rq u e , a in d a q u e u m d o s D o ze, e sta v a p a ra
e n tr e g a r Jesu s).

NOTAS

6.60. ouvir... disseram. O m esm o verbo, akouein, e stá e n v o lv id o ; na p rim eira


p a rte d o v e r s íc u lo , sig n ific a o u v ir s e m aceitar; n o fin a l d o v e r síc u lo , sig -
n ifica o u v ir c o m a ce ita ç ã o . A ú ltim a c o n o ta ç ã o , c o m u m q u a n d o akouein
g o v e r n a o g e n it iv o , s e a sse m e lh a a o sarna' h e b r a ic o , " o u v ir , o b ed ece r" .
seus discípulos. A s in d ic a ç õ e s p r é v ia s tê m s id o q u e o d is c u r s o fo i d ir ig id o
à m u ltid ã o m e n c io n a d a n o v. 24 e d e n o m in a d a d e " o s ju d e u s" n o v. 41.
E v id e n te m e n te , te m o s d e p e n sa r q u e o s d is c íp u lo s d e J esu s era m tam -
b é m p a rte d o a u d itó r io . S ã o e s te s o s d is c íp u lo s q u e a tr a v e ssa r a m o m ar
d e n o ite (16-21)? O s v s. 6 6 -6 7 in d ic a m q u e o s d is c íp u lo s c o n stitu e m u m
g r u p o m a io r q u e o s D o z e . D e Lc 10,1 s o m o s in fo r m a d o s d e se te n ta (e
d o is ) d is c íp u lo s .
duro de ouvir. L ite r a lm e n te , " se v e r o , rísp id o " ; há u m a d u p la c o n o ta ç ã o d e
se r fa n tá stic o e o fe n s iv o .
atenção a isto. O u "para ele" .
61. estava bem ciente. L ite ra lm en te, " sabia e m si m e sm o " ; isto n ã o é u m gre-
g o e le g a n te , p o r é m re flete o u s o se m ític o . Está im p líc ito c o n h e c im e n to
so b re n a tu r a l.
abala vossa fé. L ite r a lm e n te , " v o s e sc a n d a liz a " .
62. Se, pois. E sta se n te n ç a é e líp tic a , c o n s is tin d o a p e n a s d e p ró ta se. E stú d io -
s o s têm p r o p o s to v á r io s tip o s p o s s ív e is d e a p ó d o se : (a ) A q u e le s o n d e a
a p ó d o s e e s tá c o n e c ta d a c o m o e s c â n d a lo m e n c io n a d o n o v . 61: - "en tão
v o s s o e s c â n d a lo r e a lm e n te será g ra n d e" (B ultmann ) [e ste é u m a rg u -
m e n to a fortiori (v e r 1,50; 3,12)]; - " e n tã o v o s s o e s c â n d a lo será r e m o v id o "
(B auer) [esta s u g e s tã o im p lic a q u e a m a n ife s ta ç ã o d a a sc e n s ã o d o F ilh o
d o H o m e m o s le v a r á a crer]; (b) a q u e le s o n d e a a p ó d o s e e stá rela cio n a -
d a c o m o q u e fo i d ito e m 48-50: - " e n tã o e n te n d e r e is q u e o p ã o d a v id a
d e s c e u d o céu " (T hüsing , p. 261); (c) a q u e le s o n d e a a p ó d o s e está relacio-
n a d a c o m 51-58: - " en tã o ju lg a r eis m in h a carn e p o r u m â n g u lo diferente" .
542 O Livro dos Sinais

virdes. Theõrein; ver nota sobre v. 40. Note que Jesus não diz categórica-
m ente que veríam esta ascensão; isso é deixado como hipotético.
subindo para onde estava antes. Isto significa para o Pai (17,5). Há um a im-
plicação de que o Filho do Hom em desceu, um a noção que já vim os (ver
nota sobre 3,13) ser m uito incomum. Esta ascensão ao Pai é através da
crucifixão e ressurreição.
63. £ 0 Espírito. B ui.tmann, pp. 341-42, m enciona a possibilidade de que a
prim eira parte deste versículo seja um a proposição defendida pelos ou-
vintes: "Vós dizeis: Έ o Espírito que dá vida; a carne é sem proveito'; eu,
porém , digo: 'As palavras que eu vos falei são ambos: Espírito e vida"'.
Entretanto, o versículo como um todo é perfeitam ente inteligível como
sendo o próprio ensino de Jesus.
dá vida. Este verbo foi usado em 5,21; aparece sete vezes nos escritos pauli-
nos. Os seguintes são de particular interesse: 2Cor 3,6: "A letra m ata, m as
o Espírito dá vida"; IC or 15,45: "O últim o A dão veio a ser um Espírito
que dá a vida".
carne. O contraste entre a carne que é sem proveito e as p alav ras de
Jesus que têm o p o d er do Espírito que dá vida não é um contraste
diferente en co ntrado em Is 40,6-8: "Toda carne é erva... A erva m ur-
cha; a flor fenece; m as a palavra de nosso Deus d u rará p ara sem pre".
Esta passagem de Isaías foi usada nos círculos cristãos p rim itivos
(lP d 1,24-25).
palavras. A lguns dos que conectam os vs. 60ss aos vs. 51-58 e ao tem a da eu-
caristia se sentem confusos pela referência a "palavras" como a fonte de
vida aqui e no v. 68. E como se Jesus voltasse ao tema sapiencial de 35-50,
e não ao tema sacram ental de 51-58. Para evitar esta dificuldade, estes
intérpretes recorreríam a um a exegese do grego à luz do hebraico dãbãr,
que significa ambos, "palavra" e "coisa"; assim, traduzem : "As coisas
[i.e., a eucaristia - carne e sangue] das quais eu tenho falado". Dodd,
Interpretation, p. 342\ adm ite que isto é temerário.
eu tenho falado. O "eu" é enfático. Recordando a menção do m aná dado
por Moisés (31-32) e rem em orando que Dt 8,3 relaciona o m aná com
as palavras de Deus, alguns m antêm que Jesus está enfatizando o va-
lor de suas próprias palavras como contrastadas com as de Moisés.
Jesus poderia estar desafiando o tipo de pensam ento judaico que en-
contramos exemplificado posteriorm ente na Midrásh Mekilta sobre
Ex 15,26: "As palavras da Lei que eu vos tenho dado vos são vida". Neste
mesmo padrão de contraste, compare Jo 6,68 que atribui as palavras de
vida a Jesus com a afirmação em At 7,38, onde é Moisés quem recebeu as
palavras vivas a fim dá-las ao povo.
26 · Jesus na Páscoa: Reações ao discurso sobre o pão da vida 543

são ambos Espírito e vida. Literalmente, "são Espírito e são vida". Todavia,
Dodd, Interpretation, p. 342, está certo em ver "Espírito e vida" como uma
hendíadis. Ver comentário.
64. Jesus sabia. C om pare 2,25: "Pois estava bem ciente do era o coração do
hom em ".
desde 0 início. Literalm ente, "desde o princípio". Este não é o princípio
m encionado em 1,1, onde está envolvida a preexistência da Palavra, e
sim o princípio do m inistério ou da vocação dos discípulos (ver 16,4).
Um a vez m ais, com o em 6.6, esta é um a tentativa redacional de preve-
nir q u alq u er concepção equivocada que pudesse im plicar que Jesus co-
m etera um equívoco. C elso u s o u o exem plo da escolha de Judas como
argum ento de que Jesus não tinha conhecim ento divino (O rígenes,
Celsus I I 11; GCS 2:138).
0 entregaria. Um particípio futuro, um a forma gram atical que é rara no NT
fora dos escritos lucanos. O verbo grego paradidonai significa "entregar,
ceder"; não tem necessariam ente um a conotação de traição, ou insídia.
Em Mc 9,31 e 10,33, é usado na segunda e terceira predições da paixão.
65. Eis por que. Presum ivelm ente, o "eis" se refere à falta de fé m encionada
na prim eira parte do v. 64.
eu vos disse. Uma vez m ais (ver nota sobre v. 36), o que segue não é um a
citação exata de algo que Jesus teria dito, em bora seja quase um a combi-
nação do que é dito nos vs. 44 e 37. Podem os contrastar isto com os casos
em João onde Jesus cita suas próprias palavras com exatidão (8,24 citan-
do 21; 13,33 citando 8,21; 15,20 citando 13,16; 16,15 citando 14).
66. Nisto. Literalmente, "disto". Estaria João exibindo a noção de que os dis-
cípulos o abandonaram porque o Pai não os havia escolhido, em cujo
caso "isto" se refere ao térm ino do v. 65? Ou "isto" se refere à totalidade
do diálogo e a dificuldade do ensino de Jesus.
se apartaram. Literalmente, "voltaram atrás"; Bui tmann, p. 3435, aponta para
a expressão idiomática hebraica nãsõg 'ãhõr, "retroceder" (ver Is 1,5).
acompanham. Literalmente, "andar com" - outro semitismo. Embora o alvo
im ediato deste versículo diga respeito à situação histórica do ministério
de Jesus, João poderia tam bém estar pensando nos apóstatas do final do
l u século (ljo 2,19).
67. aos Doze. Esta é a prim eira vez que são m encionados em João.
quereis vós também? A fraseologia da pergunta implica uma resposta negativa.
68. palavras de vida eterna. Ver nota sobre v. 63.
69. nós. O "nós" é enfático: os Doze contrastados com aqueles discípulos cuja
fé tem provado ser insuficiente. No v. 67, Jesus se dirigira aos Doze, e
então Pedro fala por eles; no v. 70, Jesus continua falando aos Doze.
544 O Livro dos Sinais

temos crido e estamos convencidos. Literalmente, o segundo [termo] é "sabe-


m os". Esta é um a combinação joanina encontrada na ordem inversa em
17,8 e IJo 4,16. Os dois verbos são praticam ente sinônim os; todavia, é
digno de nota que, enquanto lemos que o próprio Jesus conhece a Deus,
nunca lemos que ele cria nele.
0 Santo de Deus. Algum as testem unhas gregas, o OS e a Vulgata harm o-
nizaram isto com Mt 16,16, lendo "o Messias, o Filho do Deus [vivo]".
A frase "o santo de Deus" ou "o santo do Senhor" é usada no AT como
um a referência a hom ens consagrados a Deus, p. ex., Jz 13,7 e 16,17, em
referência a Sansão (LXX; TM traz nazireu); SI 106,16 em referência a
Arão. O paralelo mais estreito com esta expressão em outro lugar em
João é em 10,36, onde Jesus fala de si m esm o como "aquele a quem o Pai
consagrou [santificou]" - um a referência posta contra o pano de fundo
da dedicação do altar no templo. A lguns ainda veríam aqui em 6,69 um a
referência ao sacerdotal ou sacrifical; p. ex., Bultmann, p. 345, em vista
da subsequente referência à morte, vê um a possível referência a Jesus
como a vítima. Na véspera de sua m orte, Jesus dirá de seus discípulos:
"É por eles que me consagro [me santifico]" (17,19). Nos sinóticos, o títu-
lo "o Santo de Deus" aparece nos lábios de um espírito im undo (Mc 1,24
- é interessante que em João, em resposta ao uso deste título por Pedro,
Jesus diga que um dos Doze é um diabo). "Santo" aplica-se a Jesus nos
discursos de Pedro em At 3,14; 4,27.30.
70. escolhí Doze. Essa escolha dos Doze não está registrada em João. Ver
Mc 3,14: "Ele designou [fez] Doze para estar com ele"; Mt 10,1: "Ele cha-
mou a si seus Doze discípulos"; Lc 6,13: "Ele convocou seus discípulos e
escolheu Doze dentre eles". Que Jesus escolheu seus próprios seguidores
é reiterado em Jo 13,18 e 15,16.
um diabo. Em 13,2 ouvim os que "o diabo induziu Judas", e em 13,27, "Sa-
tanás entrou em seu coração". Portanto, para João, Judas era definitiva-
m ente o instrum ento de Satanás ou diabo. J. Jeremias, The Parables of Jesus
(2“ ed.; Nova York: Scribnere's, 1963), p. 8149, afirm a que a designação "ο
diabo" pertence a um extrato posterior da tradição evangélica, em vez de
"Satanás". Assim, ele m anteria que na cena em Cesareia de Filipe, que
é o paralelo sinótico para esta cena em João: "A rreda de m im , Satanás"
(Mc 8,33) é mais antigo que a forma joanina do dito.
71. judas, filho de Simão 0 Iscariotes. Judas é m encionado nom inalm ente oito ve-
zes em João: {a) quatro vezes sim plesm ente como Judas; (b) em 12,4 como
Judas o Iscariotes; (c) aqui e em 13,26, as m elhores testem unhas favorecem
"Judas, filho de Simão o Iscariotes, um a leitura onde "Iscariotes" con-
corda com Simão; (d) em 13,2, onde "Iscariotes" concorda com Judas,
26 · Jesus na Páscoa: Reações ao discurso sobre o pão da vida 545

a redação parece ser: "Judas, filho de Simão, o Iscariotes". Talvez a flu-


tuação no grego reflita a expressão idiomática aramaica original, onde o
apelido tende a seguir o patronímico, de m odo que, na frase aramaica,
"X, filho de Y, o Iscariotes"; o adjetivo "Iscariotes" modifica tanto Simão
como Judas. Somente João menciona Simão, o pai de Judas; nos sinóticos,
o próprio Judas é "o Iscariotes" ou "Iscariothe". Têm-se feito m uitas su-
gestões para o significado de "Iscariotes". A melhor parece ser a que refle-
te o hebraico ‘is Çfíriyyõt, "hom em de Kerioth [uma cidade a sudeste da
Judeia]". Esta é um a antiga interpretação, e é refletida na redação "de Ke-
rioth" encontrada em algum as testem unhas para este versículo em João.
Isso faria Judas um judeu [da Judeia] discípulo de Jesus (ver 7,3), enquan-
to os outros m em bros dos Doze, dos quais bem sabemos, eram galileus.
um dos Doze. Usa-se o núm ero cardinal; todavia, visto que algum as vezes o
núm ero cardinal "um " pode ser usado como ordinal (= "prim eiro"; BDF,
§ 247), tem-se sugerido que João está se referindo a Judas como "o pri-
m eiro dos Doze". Isto é inverossímel; Mt 10,2 usa o ordinal para Pedro.
A posição de Judas junto a Jesus na últim a ceia não foi necessariamente
o resultado de prim azia em posição, e sim de sua posição como aquele
que levava a bolsa.
estava para entregar Jesus. A traição de Judas tem um ar de inevitabilidade;
isto não constitui um a negação do livre-arbítrio, porém reflete o caráter
inexorável do plano de salvação.

C O M E N T Á R IO

D ev e m o s co m e ç a r p e rg u n ta n d o so b re a relação d o s vs. 60-71 com o


d isc u rs o d o p ã o d a v id a. R efere-se a to d o o d isc u rso , in clu siv e a seção
e u c arístic a (5 1 5 8 ‫)־‬, o u se refere so m e n te ao q u e tem o s c a ra c te riz a d o
co m o o d isc u rs o " o rig in a l" (35-50)? O v. 63 é cru cial p a ra esta ques-
tão. S u a ex a ltaç ã o d o E sp írito e d e p re c ia ç ã o d a c a rn e é u m a referência
à c a rn e e u c arístic a m e n c io n a d a e m 51-58? Z uínglio p e n sa v a assim e
to m o u o v. 63 co m o a ch av e m estra d e seu a rg u m e n to c o n tra a p resen-
ça real, v isto q u e ela p a re c ia im p lic a r q u e Jesu s q u e ria q u e su a p re-
sen ça n a e u c a ristia fosse in te rp re ta d a d e u m a m a n e ira e sp iritu a l (ver
G ollwitzer, art. cit.). E n tre ta n to , essa in te rp re ta ç ã o d o v. 63 n o se n tid o
d e p re c ia tiv o d a im p o rtâ n c ia d a c a rn e eu carística é difícil d e conciliar
co m a ê n fa se e m 53-56 so b re a n e c e ssid a d e d e c o m e r a carn e eu carís-
tica p o r s u a c o n d iç ã o d e fo n te d e v id a.
546 O Livro dos Sinais

H oje h á m a io r c o n c o rd â n c ia e n tre os e stu d io so s d e q u e a m e n ç ã o


d e carn e n o v. 63 não d iz re sp e ito à c a rn e eu c arístic a d e 5 1 5 8 ‫־‬. Em
n o sso juízo, Bornkamm , art. cit., tem m o stra d o c o n c lu siv a m e n te q u e
6 0 7 1 ‫ ־‬se re fe re n ã o a 5 1 5 8 ‫־‬, e sim a 3 5 5 0 ‫ ;־‬Schürmann te m a r g u m e n ta -
d o c o n tra Bornkamm , m as in clu siv e ele a d m ite q u e , ao in te rp re ta rm o s
60-71, d e v e m o s c o n sid e ra r 5 3 5 8 ‫ ־‬com o u m p a rê n te se s. P o r e n q u a n to ,
s u p o n h a m o s q u e o v. 60 u m a v ez se g u iu im e d ia ta m e n te 50 a fim d e
ficar clara a ex celen te seq u ên cia. N o v. 50, Jesu s re iv in d ic o u se r o p ã o
q u e d e sce u d o céu; em 60, os d isc íp u lo s ficam in d ig n a d o s co m isto e
m u rm u ra m e m u n ísso n o com a m u ltid ã o q u e m u rm u ro u sob a m esm a
aleg ação d e 41. O s d isc íp u lo s n ão p o d e m s u p o rta r ouvir - n o te q u e to-
d a s as referên cias em 60-71 d iz e m resp e ito ao o u v ir o u c re r n a d o u tri-
n a d e Jesus; n ã o h á u m a ú n ica referên cia à rec u sa d e c o m e r s u a c a rn e
o u b e b e r seu sa n g u e. V isto q u e se q u e ix a m d e q u e n ã o p o d e m o u v ir
su a reiv in d ic a çã o d e ter d e sc id o d o céu (katabainein ), n o v. 62 Jesu s lh es
p e rg u n ta o q u e p e n s a rã o se o v issem su b ir (anabainein ) p a ra o n d e esta-
v a a n tes. Ele u sa o te rm o F ilho d o H o m e m p a ra id en tifica r-se c o m u m a
fig u ra a q u e m a m b o s, D aniel e 1 Enoque, c a ra c te riz a m co m o celestial.
(O leito r sab e q u e esta asce n sã o só se rá c o n c re tiz a d a a tra v é s d a m o rte
e ressu rre içã o , e é in te re ssa n te q u e os sin ó tico s u se m o títu lo "F ilh o
d o H o m e m " n a s p re d iç õ e s d e Jesus d a p aix ão , m o rte e re ssu rre iç ã o ,
p. ex., M c 8,31; 9,31; 10,33).
Tem os n o capítulo 3, até certo ponto, u m paralelo com os vs. 62-63.
Q u a n d o N ico d em o s n ão c o n seg u e e n te n d e r com o u m h o m e m p o d e
ser g e ra d o d e cim a, d a á g u a e d o E spírito, à m o d a d e explicação,
Jesus ch am a a atenção p a ra a ascensão ao céu d o F ilho d o H o m e m
(3,13); p o is é o Filho d o H o m e m a sce n d id o q u e p o d e d a r o E spírito.
A ssim tam b ém em 6,63 o Espírito é m en cio n ad o im e d ia ta m e n te a p ó s
a referência à ascensão d o Filho d o H om em . O co n traste e n tre Es-
p írito e carne, em 63, é o m esm o co n traste q u e e n c o n tram o s e m 3,6.
Jesus n ão está falan d o d a carn e eucarística, e sim com o fala d a carne
n o cap ítu lo 3, a saber, o p rin cíp io n a tu ra l no h o m em q u e n ão p o d e d a r
v id a eterna. O E spírito é o p rin cíp io d iv in o d o alto, q u e é o ú n ico qu e
p o d e d a r vid a. Este co n traste e n tre carn e e E spírito ap arece tam b ém
em P aulo, p o r exem plo, Rm 8,4: "... q u e n ão a n d a se g u n d o a carne, e
sim s e g u n d o o E spírito" (G1 5,16; 6,8). O p aralelo sinótico n a cena d e
C esareia d e Filipe com "a c arn e é sem p ro v eito " se e n co n tra em M t 16,17:
"C arn e e sa n g u e n ão vos rev elo u isto, e sim m eu Pai q u e e stá n o céu".
26 · Jesus na Páscoa: Reações ao discurso sobre o pão da vida 547

Se " c a m e ", em 63, n a d a tem a v er com a e u caristia, e n tã o n e n h u m a


ê n fa se so b re o E sp írito tem q u a lq u e r relação com u m a in te rp re ta ç ã o
e s p iritu a l d a p re se n ç a d e Jesu s n a E u caristia. A m en ç ã o d o Espírito,
o p rin c íp io g e ra d o r d e v id a a ser d a d o p e lo C risto re ssu rre to , seg u e a
d a a sce n sã o p o rq u e , co m o v e re m o s em 7,38-39 e 20,22, João enfatiza
q u e o E sp írito só é d a d o q u a n d o Jesus for ressu sc ita d o . O c o m en tário
so b re o E sp írito é p e rtin e n te ao d isc u rso d o p ã o d a v id a, p o rq u e o
v. 32 c a ra c te riz o u o p ã o d o céu co m o verdadeiro (a lêth in o s ). Isto signi-
fica q u e o p ã o p e rte n c e à esfera celestial e e te rn a , co m o o p o sto ao m e-
ra m e n te n a tu ra l e fo rtu ito ; e esta esfera d o real é a esfera d o E spírito
d a v e rd a d e (a le th e ia ).
A ssim , n o v. 63, Jesu s e stá u m a v ez m ais a firm a n d o q u e o h o m em
n ã o p o d e c o n s e g u ir a v id a p o r su a p ró p ria in iciativ a. Se Jesus é a re-
v e la ç ã o d iv in a q u e d esce d o céu co m o p ã o p a ra a lim e n ta r os h o m en s,
s e u p ro p ó s ito é c o m u n ic ar-lh e s o p rin c íp io d e v id a e te rn a. O h o m em
q u e aceita as p a la v ra s d e Jesu s receb erá o E sp írito g e ra d o r d e v id a. N o
c a p ítu lo 4, q u a n d o d isc u tim o s se a á g u a viva o ferecid a p o r Jesus era
s u a re v e laç ã o o u o E sp írito , v im o s q u e o sim b o lism o tev e q u e in clu ir
a m b o s. T a m b é m a q u i, as p a la v ra s d e Jesus (68) e o E sp írito (63) são
m e n c io n a d o s la d o a lad o co m o g e ra d o re s d e v id a , a ssim com o o v. 40
m en c io n a a fé e su a in d isp e n sá v e l c o n ex ão com v id a e te rn a. João não
d e s v e n d a as in te r-rela ç õ es d e ste s v á rio s fato res g e ra d o re s d e vida;
essa é a tare fa d a teo lo g ia m ais recente.
O v. 64 é c la ra m e n te rem in isc e n te d a q u e la p a rte d o d isc u rso do
p ã o d a v id a (35-50), o n d e p ã o se refere p rim a ria m e n te à rev elação de
Jesu s q u e d e v e se r c rid a. Jesus reitera aos d isc íp u lo s a a d v e rtê n c ia qu e
ele fez e m 36 so b re o n ã o crer. E sta a d v e rtê n c ia foi s e g u id a em 37, 40,
44, co m refe rê n c ia s à ação d a v o n ta d e d o Pai - so m e n te os a tra íd o s
p e lo P ai c reem e m Jesus. T em o s n o v. 65 e x a ta m e n te a m e sm a seq u ên -
cia. N o te q u e u m a v ez m ais, em 64 e 65, tem o s crer em Jesus e ir a ele
co m o e x p re ssõ e s p a ra lela s; c o m p a ra r 3 5 ,3 7 , 45.
O v. 66 m o stra q u e a reação final d o s d isc íp u lo s é a d e in cred u li-
d a d e . N a p. 482, e m d isc u ssã o d e 6,14-15, re ssa lta m o s o p a ra le lo e n tre
a fu g a d e Jesu s d a co ro ação m essiân ica e o rela to sin ó tico d o fim d o m i-
n isté rio g a lile u , o n d e Jesus p a re c e d e ix a r a G alileia p a ra q u e H e ro d e s
n ão o e n v o lv e sse em a lg u m a cilad a política. R essaltam o s a in d a os p a-
ralelo s e n tre a cena sin ó tica d a rejeição d e Jesu s em N a z a ré e a rejei-
ção d e Je su s e m Jo 6,42 (ver a resp e c tiv a nota). Isso n ã o s u rp re e n d e ,
548 O L ivro d o s S in ais

pois, encontrar este mesmo tom em Jo 6,66, visto que o relato sinóti-
co do ministério na Galileia terminou em um tom de incredulidade.
Os Doze creem, mas a maioria das pessoas, não. Depois deste capí-
tulo, Jesus irá para Jerusalém a fim de ensinar, e em 12,37 descobrire-
mos que o ministério hierosolimitano termina no mesmo tom: ainda
quando haja uns poucos no Sinédrio que creem, a maioria dos líderes
e o povo, não.
É interessante comparar Jo 6,65-66 com Mt 11,20-28. Em Mt 11,20-24,
Jesus emite um juízo sobre as cidades galileias que se recusaram a crer
em seus poderosos feitos; mesmo assim, em Jo 6,66 os discípulos não
creem nele. Em Mt 11,27, que é parte do "logion joanino" encontrado
em Mateus e Lucas, ouvimos: "Todas as coisas me foram entregues
por meu Pai. Ninguém conhece o Filho exceto o Pai, e ninguém co-
nhece o Pai exceto o Filho e aquele a quem o Filho escolhe para revelá
-Lo"; isto é bem parecido com Jo 6,65.
A reação de incredulidade e a recusa de ir a Jesus se adequa bem
com o que conhecemos do tema da Sabedoria personificada que ma-
tiza a apresentação joanina de Jesus e, em particular, oferece um pano
de fundo para o aspecto sapiencial do discurso do pão da vida. Os con-
vites da Sabedoria de vir para comer e beber (p. ex., Siraque 24,19-20)
não são aceitos por todos; há sempre o néscio que rejeita a Sabedoria
e segue outro caminho.
Os vs. 67-71 volvem nossa atenção para a diferente reação dos
Doze que creem em Jesus. Pode haver pouca dúvida de que este
é o paralelo joanino com a cena sinótica em Cesareia de Filipe
(Mc 8,27-33 e par.) que é parte da sequência seguindo a segunda
multiplicação dos pães (ver supra, p. 469). João tem paralelos não só
com a forma marcana mais breve da cena, mas também com a forma
mateana mais longa:

• Mc 8,27-28 (Mt 16,13-14): vários títulos são propostos para


identificar Jesus, inclusive o de profeta. Jo 6,14: Este é o profeta.
• Mc 8,29 (Mt 16,15): Jesus pergunta aos Doze: " V ó s , porém,
quem dizeis que eu sou?" Jo 6,67: Jesus aos Doze: " V ó s também
quereis ir embora?"
• Mc 8,29 (Mt 16,16): (Simão) Pedro responde: "Tu és o Messias
[Mateus: o Filho do Deus vivo]". Jo 6,69: Simão Pedro respon-
de: "Tu és o Santo de Deus".
26 · Jesus na Páscoa: Reações ao discurso sobre o pão da vida 549

• M t 16,17: " C a rn e e sa n g u e n ão te re v e lo u isto, e sim m e u Pai


q u e está n o céu ". Jo 4,63: "A c a rn e é sem p ro v e ito "; 6,65: "N in -
g u é m p o d e v ir a m im , a m en o s q u e lh e seja c o n c ed id o pelo
P ai".
• M c 8,31 (M t 16,21): P rim eira p re d iç ã o d a paixão. Jo 6,71: a pri-
m e ira referên cia à traição d e J u d a s c o n tra Jesus.
• M c 8,33 (M t 16,23): P e d ro p ro te s ta e Jesu s o rep re e n d e : "P ara
trá s d e m im , S atan ás". Jo 6,70: Jesus fala d e Judas: "U m d e vós
é u m d ia b o " . N e ste caso, h á q u e m su g ira q u e u m a sen ten ça ás-
p e ra d irig id a o rig in a lm e n te a P e d ro foi a d a p ta d a e rea p lic a d a
a Ju d as.

P o d e s e r q u e u m a o b jeção d e v e r o p a ra le lis m o e n tre as c en as


s in ó tic a s e jo a n in a s seja b a s e a d a n a g e o g ra fia . É c o m o se Jo ão co-
lo c a sse a c o n fis sã o d e P e d ro e m C a fa rn a u m , e n q u a n to M a rc o s e
M a te u s a c o lo c a m e m C e sa re ia d e F ilip e, 48 k m ao n o rte . (Lc 9,18,
s e g u in d o 9,10, prima facie p a ra c o lo c a r e m B e tsaid a , m a s a o m issã o
d e L u cas, n e s ta c e n a, d im in u i o v a lo r d e s sa s c o n c lu sõ e s g e o g rá fi-
cas). Já v im o s q u e , c ro n o lo g ic a m e n te , Jo 6 c o m b in a as c e n a s q u e
o rig in a lm e n te e s ta v a m s e p a ra d a s ; p o d e m o s te r o m e s m o fe n ô m e n o
em q u e s tõ e s g e o g rá fic a s.
N a lista d e p a ra le lo s acim a m e n c io n a d o s c o n c en tra m o s nestes
e le m en to s d a cena d e C esareia e n c o n tra d a e m Jo 6. E d ig n o d e n o ta
q u e q u a s e to d o e le m e n to d a p e c u lia rid a d e d o m ate ria l m ate an o , na
cena d e C e sa re ia, se e n c o n tre e m algum lugar em João: •

• M t 16,16: S im ão diz: "T u és o M essias, o F ilho d o D e u s v iv o ".


Jo 1,41 asso cia a d e sig n a ç ã o d e Jesus co m o M essias com o cha-
m a d o d e S im ão. Jo 11,27 tem e sta co n fissão n o s láb io s d e M ar-
ta: "T u és o M essias, o F ilho d e D eus".
• M t 16,17: Jesus a S im ão: " C a rn e e sa n g u e"...; v e r q u a rto p a ra -
leio acim a.
• M t 16,18: Jesu s a S im ão filho d e Jo n as (assim c h a m a d o em
17): "T u és P e d ro e so b re esta ro ch a"... Jo 1,42: "T u és Sim ão,
filh o d e João; te u n o m e será C efas" (q u e é tra d u z id o com o
" P e d ro " ).
• M t 16,18: Je su s faz P e d ro a ro ch a so b re a q u a l a Igreja h a v ia de
se r e d ifica d a . Jo 21,15-17: Jesus faz P e d ro o p a s to r d o reb an h o .
550 O Livro dos Sinais

• M t 16,19: Jesu s a P e d ro (em 18,18 aos d iscíp u lo s): " T u d o o q u e


lig a res n a te rra se rá lig a d o n o céu, e tu d o o q u e d e s lig a rd e s n a
terra será d e slig a d o n o céu ". Jo 20,23: Jesus a o s d isc íp u lo s: "Se
a b s o lv e rd e s os p e c a d o s d o s h o m e n s, se u s p e c a d o s são ab so lv i-
do s; se os re tiv e rd e s, são retid o s" .

P o rq u e este m a te ria l a d ic io n al n a cena d e M a te u s e m C e sa re ia d e


Filipe n ã o se a ch a p re se n te n a cena m a rc a n a e lu ca n a , e p o rq u e e le n ã o
se h a rm o n iz a in te ira m e n te com o co n tex to , e s tu d io s o s têm su g e rid o
q u e M a te u s re u n iu m a te ria l p e trin o d e o u tro s c o n te x to s e o ju n to u e
o a d ic io n o u à cena d e C esareia d e F ilipe. Se esse fo r o caso, a im a g e m
q u e n o s d á João, o n d e o m a te ria l p e trin o está d isp e rso , p o d e se r m ais
p rim itiv o d o q u e a im a g e m m a te a n a , e m b o ra n ã o p o ssa m o s, n a tu ra l-
m en te, e s ta r c erto s d e q u e a lo calização q u e João faz d e ste s d ito s in d i-
v id u a is seja s e m p re o rig in al. P a ra d isc u ssã o u lte rio r, v e r c o m e n tá rio
so b re 21,15-17.

T em o s in te rp re ta d o o s vs. 60-71 co m o se estes v e rsíc u lo s n ã o ti-


v e sse m relação com os 51-58; d e a c o rd o com n o ssa teo ria d e q u e os
vs. 51-58 é u m a in serção re d a c io n a l p o s te rio r d e m a te ria l jo a n in o q u e
in te rro m p e a u n id a d e q u e u m a v e z e x istiu e n tre 35-50 e 60-71. M as é
p o ssív el q u e se p e rg u n te : m esm o q u e esta teo ria seja c o rre ta , a caso a
fo rm a final d o c a p ítu lo , o n d e 60-71 ora se g u e 51-58, n ã o r e q u e r q u e
60-71 h o u v e sse a lg u m a referên cia se c u n d á ria à e u c aristia ? N ã o esta-
m o s co n v icto s d e q u e ten h a; p o is c re m o s q u e o r e d a to r final a n e x o u
51-58 p a ra sa lie n ta r as im p licaçõ es e u c arístic a s s e c u n d á ria s e m 35-50,
m as n ã o fez q u a lq u e r te n ta tiv a rea l d e d a r u m a n o v a o rie n ta ç ã o a
60-71 à lu z d e sta adição.
N ã o o b sta n te , ao m e n o s lista ría m o s a lg u m a s d a s su g e stõ e s q u e
têm sid o feitas p a ra lig a r o s vs. 60-71 ao tem a e u carístico . H á q u e m
veja n o tem a d a asce n sã o d o F ilho d o H o m e m , n o v. 62, u m a in d ic a ç ã o
aos d isc íp u lo s d e q u e s o m e n te d e p o is d e sta a sce n sã o é q u e c o m e ç a rã o
a receb er o p ã o v iv o d a E u caristia. O v. 27 é c ita d o n e sta conexão: "...
a c o m id a q u e 0 Filho do Homem v o s d a rá " . A m en ç ã o d o E sp írito n o
v. 63 tem ta m b é m rec e b id o u m a referên cia eu c arístic a , p o is W ilkens,
" Abendmahlzeugnis", p. 363, p ro p õ e q u e o E spírito d e sp e rta rá aq u ela fé
26 · Jesus na Páscoa: Reações ao discurso sobre o pão da vida 551

n e c essá ria p a ra v e r a e u c a ristia co m o a c a rn e e sa n g u e d o F ilho d o


H o m e m . O u tro s v e e m n o v. 63 a id eia d e q u e a e u c aristia só p o d e ser
re c e b id a p ro v e ito sa m e n te p o r a lg u é m q u e p o ssu i o E spírito, u m a in-
te rp re ta ç ã o q u e rejeita u m a a p ro x im aç ã o m a te ria lista d o sacram en to ,
o u u m a a p ro x im a ç ã o m ág ica a n á lo g a à q u e la d a s religiões d e m istério.
T o d a v ia , o u tra s u g e stã o é q u e n o v. 63 significa q u e n ã o é o co rp o ou
c a rn e m o rta d e Jesus q u e será p r o v e ito s o /a na e u c aristia , m as seu
c o rp o re s s u rre to ch eio d o E sp írito d e v id a . C raig, JBL 58 (1939), 39^,
p e n s a e m u m p a ra le lo p rim itiv o à epiklesis o u in v o cação d o E spírito,
a sso c ia d a a tu a lm e n te com o rito eu c arístic o n a s litu rg ia s o rien tais.
Boismard s u s te n ta q u e o s vs. 70-71 fazem p a rte , com 51-58, d o m a-
terial e u c arístic o d e slo c a d o d a ú ltim a ceia. Ele ressa lta q u e o tem a da
traição d e Jesu s teria sid o p e rfe ita m e n te fam iü ar em relação a 13,18-30.
Ele s u g e riría q u e ela foi in tro d u z id a n o c a p ítu lo 6 co m o u m a su b sti-
tu ição p e la re p re e n sã o o rig in a l d irig id a a P e d ro e n c o n tra d a n a cena
sin ó tica e m C esa ria d e Filipe.
T o d a s e sta s são p ro p o sta s e n g e n h o sa s, m as seria m ais desejável
q u e a p re s e n te m m ais e v id ên cia. A m a io r p a rte d e la s re a lm e n te não
ex p lica co m o a co n c lu sã o a b so lu ta , "A c a rn e é sem p ro v e ito " , p o d e ria
ter sid o d ito d a c a rn e e u carística d e Jesus.

B IB L IO G R A F IA

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27. JE SU S N A F E S T A D O S T A B E R N Á C U L O S :
- IN T R O D U Ç Ã O
(7,1‫ ־‬13)

Jesus subirá à festa?

7 'ÍO ra J d e p o is d isto , Jesu s se m o v ia p e lo in te rio r d a G alileia, p o rq u e ,


com os ju d e u s b u s c a n d o u m a ch an ce d e m atá-lo, ele d e c id iu n ã o via-
jar p ela Ju d eia. 2E n tre tan to , v isto q u e a festa ju d aic a d o s T a b e rn á c u lo s
e stav a p ró x im a , 3se u s irm ã o s lhe d isse ram : "Sai d a q u i e v a i p a ra a
Ju d eia p a ra q u e teu s d isc íp u lo s ta m b é m v ejam as o b ra s q u e e stá s rea-
lizan d o . 4P ois n in g u é m m a n té m s u a s ações o c u lta s e a in d a e s p e re ser
p u b lic a m e n te c o n h ecid o . Se v ais c o n tin u a r re a liz a n d o tais coisas, m a-
n ifesta-te ao m u n d o " . (6N a re a lid a d e , n e m m esm o se u s irm ã o s criam
nele). 6E n tão Jesu s resp o n d e u -lh e s:

" A in d a n ã o é c h e g a d o m eu tem p o ,
p a ra vós, p o ré m , está se m p re d isp o n ív e l.
7O m u n d o n ã o v o s p o d e o d ia r, m a s o d e ia -m e
p o rq u e d o u te ste m u n h o c o n tra ele
p o rq u a n to su a s o b ras são m ás.

8S ubi v ó s à festa. Eu n ã o s u b o p a ra esta festa p o r q u e m e u te m p o a in -


d a n ã o tem c h e g a d o " . 89T e n d o d ito isto , ele p e rm a n e c e u a in d a n a G a-
lileia. 10E n tre ta n to , a ssim q u e s e u s irm ã o s s u b ira m à festa, e n tã o ele
ta m b é m s u b iu , p o ré m [p o r a ssim d iz e r] em se cre to , p a ra q u e n e m
to d o s v issem .

6: r e s p o n d e u . No tempo presente histórico.


27 · Jesus na festa d o s tabernáculos: In trod u ção 555

11Ora, os judeus o procuravam durante a festa, indagando: "Onde


está esse homem?" 12E entre as multidões havia muito debate acirra-
do sobre ele. Alguns mantinham: "Ele é bom", enquanto outros insis-
tiam: "Absolutamente não - ele não passa de um enganador da mui-
tidão". 13Entretanto, ninguém falava abertamente sobre ele por medo
dos judeus.

NOTAS

7.1. [Ora]. Um im portante grupo de m anuscritos relacionados à tradição oci-


dental om ite o kai inicial.
depois disto. A festa dos Tabernáculos é aproxim adam ente seis meses após
a Páscoa, a festa do capítulo precedente.
os judeus. Aqui são tidos como sendo mais ativos na Judeia, e isto concorda
com a ideia de que são as autoridades hierosolimitanas. Todavia, 6,41
e 52 m encionaram "os judeus" em um cenário galileu. Provavelmente,
o significado é que som ente na Judeia eles tinham bastante poder para
executar Jesus.
matá-lo. Ver 5,18.
ele decidiu não. Ou "não ousou". Um a redação mais difícil, "não podendo",
conta com o apoio de OL, OS, A g o s t i n h o e C r i s ó s t o m o .
2. Tabernáculos. A festa da colheita no outono recebeu o nom e de Sukkôt
("cabanas", m as tam bém traduzido "barracas, tendas, tabernáculos"),
porque o povo a celebrava do lado de fora das vinhas onde faziam caba-
nas de ram os de árvores. M ediante adaptação teológica, isto foi associa-
do com a habitação dos israelitas em tendas durante suas peregrinações
pelo deserto depois do êxodo. Lv 23,39 fixa o dia em que a festa teria
com eçado como o 15‫ ט‬de Tishri (setembro-outubro). Embora Dt 16,13
m encione um a celebração no sétim o dia, Levítico fala de um oitavo dia
adicional de descanso solene.
3. irmãos. Ver notas sobre "irm ãos" e "discípulos" em 2,12, a últim a menção
prévia destes parentes. Ali, estavam em Cafarnaum.
e vai. Há algum a leve evidência para a omissão destas palavras, produ-
zindo a ru d e construção "Sai daqui para a Judeia" (ver nota sobre 4,43).
B o i s m a r d , R B 58 (1951), 166, prefere a omissão.

discípulos. Isto parece im plicar que os discípulos de Jesus se encontrassem


na Judeia; todavia, o capítulo 6 os colocou claram ente na Galileia. (Se os
Doze estão implícitos, a maioria deles era de galileus). Teriam alguns
556 O Livro dos Sinais

daqueles que se apartaram (6,66) ido (de volta) para a Judeia? O u esta é
uma referência aos crentes de 2,23 e 4,1?
as obras. Até este m om ento no relato joanino, os m ilagres mais im pressivos
foram realizados na Galileia (água em vinho; cura à distância; multiplica-
ção dos pães; caminhar sobre a água).
4. publicamente. Este convite ao profeta provincial de buscar publicidade na
m etrópole esconde um desafio mais teológico à Luz para que se mani-
feste ao m undo.
5. seus irmãos. Aparentem ente, os irm ãos se tornaram crentes depois da res-
surreição, pois são m encionados em At 1,14 juntam ente com os Doze.
Tiago e Judas vieram a ser em inentes figuras na Igreja.
6. tempo. Esta palavra, kairos, em geral tem um teor teológico m ais profundo
como um m om ento salvífico decisivo do que a palavra chronos, que sig-
nifica tem po ordinário do calendário. "Tem po" é um a alternativa joanina
para a "hora" (com parar 2,4); encontram os exatam ente a m esm a alter-
nância em Mt 26,18 e 45. Aqui, no v. 6, há diferentes significados nos dois
usos de "tem po"; o prim eiro é um a referência à hora salvífica da m orte
de Jesus; a segunda é mais geral.
7. O mundo. Em 7,1 ouvim os do ódio de "os judeus" da Judeia para com
Jesus; aqui é o m undo que odeia Jesus. Embora sejam um g rupo histórico
no m inistério de Jesus, "os judeus" são tam bém os porta-vozes de um a
oposição mais am pla da parte do m undo, um a oposição bem evidente no
tem po do evangelista.
8. Eu não subo para esta festa. As m elhores testem unhas agregam "ainda"; é
om itido no Codex Sinaiticus e Bezae, o latino e a OS. Provavelm ente,
"ainda" foi inserido por um copista para solucionar a dificuldade de que,
após declarar absolutam ente que ele não estava subindo, depois Jesus
subiu. Ver comentário.
chegado. Literalmente, "cum prido". O tem a do cum prim ento escatológico
do AT ou do plano divino é com um no NT, especialm ente com respeito
à paixão (19,24.36).
9. tendo dito. A lgum as im portantes testem unhas, incluindo P75, trazem
"com eles".
permaneceu. Um aoristo complexivo; ver nota sobre 2,20 para reflexões so-
bre sua qualidade incompleta.
10. [por assim dizer]. Om itido em im portantes testem unhas relacionadas à
tradição ocidental, esta frase pode ter sido inserida por um copista para
evitar a im pressão de decepção da parte de Jesus.
11. esse homem. C risóstomo entendeu este pronom e (ekeinos) de um a m aneira
m arcantem ente hostil ("esse indivíduo", como o uso hostil de houtos);
27 · Jesus na festa dos tabernáculos: Introdução 557

e s s a in te r p r e ta ç ã o te m p o r b a se o fa to d e q u e a q u e stã o está s e n d o for-


m u la d a p o r " os ju d eu s" .
12. muito debate acirrado. E sta é a m e s m a e x p r e s s ã o g r e g a c o m o a " m u rm u ra-
ção" d e 6,41-61. H a v ia h o s tilid a d e co n tra Jesus; a q u i é m a is o c a s o d e in -
d a g a r se c r e ta m e n te . " M u ito" é e n c o n tr a d o e m d ife r e n te s s e q u ê n c ia s e m
d ife r e n te s m a n u sc r ito s e p o d e ser u m a a d iç ã o d e c o p ista . E n co n tra re m o s
o u tr o s d e b a te s p o s it iv o s - n e g a tiv o s c o m o e s te e m Jo 7,40-41 e 10,20-21;
tê m u m p a r a le lo n o s d e b a te s ju d a ic o -c r istã o s p o ste r io r e s.
enganador da multidão. Esta era u m a a c u sa ç ã o a p r e s e n ta d a p e lo s ju d e u s em
s e u s d e b a te s c o m o s c r istã o s (Justino , Trypho 69,7; PG 6:640). Lc 23,2 faz
d e la u m a a c u sa ç ã o fo rm a l co n tra J esu s n o ju lg a m e n to d ia n te d e P ila to s
(" p erv ertia o p o v o " ), e n q u a n to e m M t 2 7 ,6 3 o s fa r ise u s s e r e fere m a Jesu s
com o u m enganador.
13. medo dos judeus. Isto é u m a clara in d ic a ç ã o d e q u e " o s ju d e u s" sã o a s au -
t o r id a d e s h ie r o s o lim ita n a s , p o is a s p r ó p r ia s m u ltid õ e s c e r ta m e n te eram
fo r m a d a s p o r ju d e u s e , n o e n ta n to , te m e m o s ju d e u s.

C O M E N T Á R IO

O s d is c u rs o s d e Je su s n o te m p lo p o r o casião d a festa d o s T ab ern ácu -


los e n c o n tra ra m h o s tilid a d e a c e n tu a d a d a p a rte d e "o s ju d e u s" . João
p re p a ra o a m b ie n te p a ra isto m o stra n d o q u e a n te s d a festa Jesus vivia
e v ita n d o a Ju d e ia , p o rq u e tin h a ciência d e sta h o stilid a d e . Ele já h av ia
se d e p a ra d o co m te n ta tiv a s d e tira r-lh e a v id a em su a ú ltim a e sta d a
em Je ru s a lé m n a rra d a n o c a p ítu lo 5. O fato d e q u e o c a p ítu lo 7 evoca
o c a p ítu lo 5 te m sid o u s a d o p o r a lg u n s co m o u m a rg u m e n to em p ro l
d a re o rg a n iz a ç ã o d o s c a p ítu lo s em q u e 7 se g u iría im e d ia ta m e n te o 5
(ver a cim a, p . 466ss.). E n tre ta n to , se Jesu s a p e n a s tiv esse o p e ra d o em
J e ru sa lé m o m ila g re n a rra d o e m 5,1-15, o p e d id o d e 7,3, d e q u e ele
fosse p a ra a J u d e ia e o p e ra sse ali a lg u n s m ilag res, p a re c e ría e stran h o .
O v. 1 ta m b é m se rv e p a ra s itu a r o d iá lo g o e n tre Jesu s e seu s p a-
re n te s in c ré d u lo s . E ste d iá lo g o ilu stra o fato d e q u e m ilag re s, e m si
m esm o s, n ã o c o n d u z e m à fé. O s " irm ã o s" a d m ite m q u e Jesus p o d e
re a liz a r feito s e sp a n to so s; c o n tu d o , n ã o creem , p o rq u a n to n ã o v eem
o sig n ific a d o rea l p o r d e trá s d e ste s sinais. N o c a p ítu lo 6 v im o s q u e
a in c re d u lid a d e d o s ju d e u s g a lile u s tin h a m u ito em c o m u m com a
cena sin ó tica d a rejeição d e Jesu s e m N a z a ré (ver n o ta so b re 6,42).
558 O Livro dos Sinais

E ste é o u tro p a ra le lo jo a n in o à q u e la cena (n o te q u e e m M c 6,3 os


irm ã o s d e Jesu s são m en c io n ad o s).
O s irm ã o s q u e ria m q u e Jesus exibisse se u p o d e r m ira c u lo so em
Jeru salém . E m C B Q 23 (1961), 152-55, re ssa lta m o s q u e trê s p e d id o s
feitos a Jesu s em Jo 6 e 7 se a sse m e lh a m e s tre ita m e n te às ten ta çõ e s
d e Jesu s e m M t 4 ,1 1 1 ‫ ־‬e Lc 4,1-13:

João Tentações
6,15: O p o v o q u e r fazê-lo rei - S a tan á s lh e oferece o s re in o s d o
m undo
6,31: O p o v o b u sc a u m p ã o m ira- - S a tan á s o c o n v id a a tra n s fo rm a r
cu lo so p e d ra s e m p ã o
7,3: O s irm ã o s q u e re m q u e Jesus - S atanás leva Jesus ao te m p lo em
v á a Je ru sa lé m e exiba ali Jeru salém e o c o n v id a a exibir
seu p o d e r seu p o d e r, sa lta n d o d o p in ác u lo

A ssim , p a re c e q u e M a te u s e L ucas e stã o d a n d o u m a fo rm a d ra -


m ática ao tip o d e ten ta çõ e s q u e Jesu s re a lm e n te e n fre n to u d e u m a
m a n e ira m ais p ro sa ic a d u r a n te seu m in isté rio .
A resp o sta q u e Jesus d á a seus irm ãos n os vs. 6-10 é u m clássico
ex em p lo d o s d o is n ív eis d e sig n ific a d o e n c o n tra d o s m u ita s v e z e s em
João. N o n ív el m e ra m e n te n a tu ra l, ao s irm ã o s p a re c e q u e Je su s acha
q u e este m o m e n to n ã o é o p o rtu n o p a ra s u b ir à festa e m Jeru sa lé m .
O s u b s e q u e n te c o m p o rta m e n to d e Jesu s d e s u b ir à festa n o s m o stra ,
c o n tu d o , q u e isto re a lm e n te n ã o é o q u e ele tin h a e m m en te . Jo ão p re-
p a ro u o leito r p a ra e n te n d e r a rea l in te n ç ã o d e Jesu s p e la referên cia
à m o rte n a s m ão s d e "o s ju d e u s " n o v. 1. Q u a n d o Jesu s fala d e seu
" te m p o " , ele e stá fa la n d o n o n ív el d o p la n o d iv in o . S eu " te m p o " é
su a " h o ra " , a h o ra d a p a ix ã o , m o rte , re ssu rre iç ã o e a sc e n sã o ao Pai;
e este te m p o d e n ã o ir à festa d o s T a b e rn á c u lo s - está re s e rv a d o p a ra
u m a P áscoa su b se q u e n te . "O s ju d e u s " te n ta rã o m a tá -lo n a festa d o s
T a b e rn á c u lo s (8,59), co m o u m e x e m p lo d o ó d io d o m u n d o d o q u al
Jesu s fala n o v. 7; m a s fracassarão . N e sta festa ele n ã o subirá (v. 8), isto
é, su b ir ao Pai. João e stá fa z e n d o u m jogo d e p a la v ra s co m o v erb o
anabainein, q u e p o d e sig n ificar s u b ir em p e re g rin a ç ã o ao m o n te Sião
e Jeru salém , e p o d e ta m b é m sig n ificar " a sc e n d e r" . E m 20,17, Jesus
u s a este v e rb o q u a n d o fala d e a s c e n d e r a o P ai, e q u e é o se n tid o m ais
p ro fu n d o aq u i. N o v. 8, ele d iz q u e se u te m p o a in d a n ã o te m ch e g ad o
27 · Jesus na festa dos tabernáculos: Introdução 559

(ou c u m p rid o - v e r a resp e c tiv a n o ta), p o is as E sc ritu ra s e o p la n o d e


D e u s p e rtin e n te s à su a m o rte e ressu rreição ainda não estão no ponto
exato p a ra cum prir-se. O s dois níveis d e sig n ificad o fo ram reconhecí-
d o s p e lo s c o m e n ta rista s a n tig o s. E pifànio ( Haer. LI 25; GCS 31:295)
d iz: "E le fala a se u s irm ã o s e s p iritu a lm e n te e em m istério , e não en-
te n d e ra m o q u e ele dizia. P ois lhes in fo rm o u q u e n ã o su b iría à festa,
n e m ao céu n e m à c ru z p a ra c u m p rir o p la n o d e seu so frim e n to e o
m isté rio d a salv ação "...
E sta v ia g e m a Jeru salém p a ra a festa d o s T a b e rn á c u lo s d e v e ser
id e n tific a d a com a ú n ica v ia g e m a Je ru sa lé m na tra d içã o sinótica do
m in isté rio , a q u e la n o final d a v id a d e Jesus? Em João, n u n c a o u v im o s
d e Jesu s re to rn a r à G alileia d e p o is d e sta v iag em a Jeru salém . O uvi-
m o s a p e n a s q u e ele foi p a ra a T ra n sjo rd ân ia (10,40) e q u e p a sso u al-
g u m te m p o e m E fraim na reg ião p ró x im a ao d e se rto (11,54). A ssim ,
sc a c ro n o lo g ia jo a n in a é c o m p le ta , esta é a ú ltim a v iag e m d e Jesus a
J e ru sa lé m a p a rtir d a G alileia. N a d escrição sin ó tica d a v iag em a Jeru-
salém , M c 9,30-33 n o s in fo rm a q u e Jesus p a sso u p e la G alileia, d eten -
d o -se e m C a fa rn a u m (ver n o ta so b re v. 3, " irm ã o s"); e n tã o foi p a ra a
Ju d e ia e a T ra n sjo rd â n ia (Mc 10,1) d e c a m in h o p a ra Jeru sa lé m (10,32).
U m p a ra le lo in te re ssa n te é q u e su a v ia g e m é m a rc a d a em M c 9,30 p o r
sigilo, e x a ta m e n te co m o em João; ta m b é m o tem a d e su b ir a Jeru salém
com o fim d e m o rre r a p a re c e em Mc 10,33 (anabainein ). E n tre tan to , o
fato d e q u e a v iag e m sinótica a Jeru sa lé m é e m si m esm a co m p o sta e,
e sp e c ia lm e n te em Lucas, u m a c o n stru ç ã o com p ro p ó sito s teológicos
d e fin id o s to rn a m u ito difícil q u a lq u e r c o m p a raç ã o h istó rica com João.
S im p le sm e n te d iz e m o s q u e o q u a d ro d e João em q u e Jesu s p e rm a n ec e
u m lo n g o p e río d o n a á re a h ie ro so lim ita n a e n tre a festa d o s T aberná-
cu lo s e a P áscoa s e g u in te p o d e m u ito b e m ser m ais a c u ra d a d o q u e a
d escrição sin ó tica, em q u e os a c o n te c im e n to s se a c u m u la m até ch eg ar
em J e ru sa lé m p o u c o s d ia s a n te s d e su a m o rte. M u ito d o m ate ria l, p ar-
tic u la rm e n te à m o d a d e acu sa ç ã o e ju lg a m e n to , q u e os sin ó tico s resu-
m em n e ste s d ia s finais, se e n c o n tra em João n o s c a p ítu lo s q u e cobrem
o p e río d o d o s T a b e rn á c u lo s e P áscoa (ver n o ta so b re v. 12; o b serv e
ta m b é m ab aix o so b re 10,24.33; 11,47-53).

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa na B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 7, n o final d o § 29.]
28. JE SU S N A F E S T A D O S T A B E R N A C U L O S :
- CENA I
(7,14-36)

Discurso enunciado em meio à festa

a. O direito de Jesus de ensinar; continuação da questão do sábado

7 '4A festa já e sta v a a o m eio q u a n d o Jesu s su b iu a o s re c in to s d o tem -


p io e co m eço u a e n sin a r. 15O s ju d e u s fic a ra m s u rp re s o s co m isto, di-
zen d o : "C o m o este o b tev e su a e d u c a ç ã o q u a n d o n e m tev e m e stre ? "
16E n tão Jesu s lh es re sp o n d e u :

"M in h a d o u trin a n ã o é p ro p ria m e n te m in h a ,


m as v em d a q u e le q u e m e en v io u .
17Se a lg u é m d e c id e fazer a v o n ta d e dele,
Ele sa b erá so b re tal d o u trin a -
se v e m d e D eus,
o u se e u e s to u fa la n d o d e m im m esm o .
18T o d o a q u e le q u e fala d e si m esm o
b u sc a su a p ró p ria glória.
M as a q u e le q u e b u sc a a g ló ria d a q u e le q u e o e n v io u -
ele é v e rd a d e iro
e n ã o h á in ju stiça em se u coração.
19N ã o d e u -v o s a Lei M oisés?
C o n tu d o n e n h u m d e v ó s g u a rd a a Lei.
P o r q u e estais p ro c u ra n d o u m a c h an ce p a ra m a ta r-m e ? "

20"T u és lo u co ", re to rq u iu a m u ltid ã o . " Q u e m q u e r m a ta r-te ? "


28 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena I 561

21Je su s lh es d e u esta resp o sta:

"E u só rea liz e i u m a o b ra,


e to d o s v ó s a d m ira is
22p o r c a u sa d isso .
M o isés v o s d e u a circu n cisão
(realm ente, ela não se o riginou d e M oisés, e sim d o s Patriarcas);
e a ssim c irc u n c id a is u m h o m e m m esm o n o sáb ad o .
23Se u m h o m e m p o d e rec e b e r a circu n cisão em u m sá b a d o
a fim d e im p e d ir a v io lação d a lei m osaica,
v o s irais co m ig o
só p o rq u e c u rei d e to d o u m h o m e m n o sáb ad o ?
24N ã o ju lg u e is p e la s a p a rê n c ia s,
m a s ju lg a i se g u n d o a reta ju stiça".

b. Origens de Jesus; seu retorno ao Pai

25Isto lev o u a lg u n s d o p o v o d e Jeru salém a dizerem : "N ã o é este o


h o m e m q u e q u e re m m atar? 26M as, ei-lo a q u i falan d o em p ú b lico e não
lhe d izeis s e q u e r u m a palavra! A caso as a u to rid a d e s têm reconhecido
q u e este é re a lm e n te o M essias? 27N ós, to d av ia, sab em o s d e o n d e vem
este h o m em . Q u a n d o o M essias vier, n in g u é m saberá d e o n d e ele vem ".
25N isso, Jesus, q u e estav a e n sin a n d o n a área d o tem p lo , clam ou:

"E n tã o , m e co n h eceis e sab eis d e o n d e eu sou?


T o d a v ia , eu n ã o v im d e m in h a p ró p ria iniciativa.
N ão , h á v e rd a d e ira m e n te U m q u e m e e n v io u ,
e v ó s não O conheceis.
24E u O co n h eço ,
p o rq u e é d a p a rte d e le q u e e u v im
e ele m e e n v io u " .

3,1E n tã o eles te n ta ra m p re n d ê -lo , m as n in g u é m lhe p ô s se q u e r u m


d e d o , p o rq u e su a h o ra a in d a n ão h a v ia c h e g ad o . 31D e fato, m u ito s
d e n tre a m u ltid ã o v iera m a cre r nele. C o n tin u a ra m d ize n d o : " Q u a n d o
o M essias v ier, p o d e -se e s p e ra r q u e ele realize m ais sin ais d o q u e este
h o m e m tem rea liz a d o ? 32O s farise u s o u v ira m esta m u rm u ra ç ã o so b re
ele e n tre a m u ltid ã o , e n tã o eles (a sab er, os p rin c ip a is sa ce rd o te s e os
562 O Livro d o s S inais

fariseus] e n v ia ra m a g u a rd a d o te m p lo p a ra p re n d ê -lo . 33P o r co n se-


g u in te , Jesu s disse:

" P o r p o u c o te m p o e sto u convosco;


e n tã o e u m e v o u p a ra A q u e le q u e m e e n v io u ,
34V ós m e b u sc are is, e n ã o m e achareis;
e o n d e e u v o u v ó s n ã o p o d e is ir".

35Isso le v o u os ju d e u s a e x c la m a re m u n s a o s o u tro s : " A o n d e e ste


p r e te n d e ir q u e n ã o o a c h a re m o s ? A c a so irá e le p a r a a D iá s p o ra
e n tre o s g re g o s a e n s in a r a o s g re g o s? 36D e q u e m e s m o e le e s tá fa-
la n d o : 'V ó s m e b u s c a r e is e n ã o m e a c h a r e is ', e 'O n d e e u v o u v ó s
n ã o p o d e is ir'? "

NOTAS

7.14. ao meio. Este é o terceiro ou quarto dia da festa ao longo da semana.


Pode bem ser um sábado, daí a referência nos vs. 22ss.
recintos do templo. No relato sinótico da (única) estada de Jesus em Jerusa-
lém, ele ensina nos recintos do tem plo (Mc 11,27).
15. Como... Uma reação sim ilar se acha registrada em Mc 1,22, em Cafar-
naum , e 6,2, em N azaré (ver com entário sobre 4,44).
obteve sua educação. Literalmente, "conhece as letras". O conhecim ento de
como ler e escrever estava centrado no conhecimento das Escrituras, pois
era por esse meio que as crianças eram treinadas a ler. N ão obstante, isto
é mais que um a questão sobre a instrução de Jesus; é um a questão sobre
seu ensino. Antes que um hom em se tornasse rabino norm alm ente tinha
que estudar diligentem ente sob outro rabino; m uito da cultura rabínica
consistia em conhecer as opiniões de m estres famosos do passado. To-
davia, Jesus não passara por nenhum treinam ento do tipo. A lguns co-
nectariam esta questão com 5,46, onde Jesus exibiu conhecim ento das
Escrituras ao alegar que Moisés escrevera a seu respeito.
16. vem daquele. Literalmente, "é de"; ver vs. 27ss. e a discussão sobre de onde
é Jesus.
18. glória. Este tema é evocado de 5,41-47. E bem provável que aqui tenham os
a resposta ao desafio lançado sobre Jesus por seus irm ãos em 7,3-5.
ele é verdadeiro. Em 3,33 e 8,26 ouvim os que Deus é verdadeiro; aqui quem
é verdadeiro é Jesus.
28 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena I 563

injustiça. A p a la v r a adikia o c o r r e s o m e n te a q u i e m João (B ultmann c o n si-


d era e s t e ú ltim o v e r s o d o v . 18 c o m o r e d a c io n a l). N a LXX, m u ita s v e z e s
adika tr a d u z seqer, " m en tira " ; tal c o n o ta ç ã o c o n tin u a r ia a r e fle x ã o so b r e
se r f id e d ig n o . É in te r e s s a n te c o m p a r a r e s te v e r s íc u lo c o m 2S m 14.32:
"Se h o u v e r adikia, e n tã o q u e seja e n tr e g u e à m o rte" ; J e su s a r g u m e n ta
q u e , já q u e n ã o há adikia e m s e u c o r a ç ã o , e n tã o q u e n ã o b u s q u e m m a-
tá -lo (19).
19. deu-vos a Lei. Jesu s, u m ju d e u , a p a r e n te m e n te s e d isso c ia d a h eran ça
d a L ei. N a tra d içã o sin ó tic a , o q u e e le d is s o c ia d e si era a in te rp re ta ç ã o
q u e o s fa r ise u s d a v a m d a L ei, a q u a l, na o p in iã o d e J esu s, a n u la v a a Lei
(M t 23,23). Em João, p o r é m , ta is a ta q u e s s e v in c u la v a m à d isp u ta en tre
a S in a g o g a e a Igreja, e a d is s o c ia ç ã o é m a is a b so lu ta (v e r " v o ssa Lei"
e m 8 ,1 7 e 10,34; "sua Lei e m 15,25). Em Diálogo com Trifo d e J ustino e ste
m e s m o " v o sso " é u s a d o p e lo a p o lo g is ta c r istã o a o d ir ig ir -se a o s ju d eu s.
nenhum de vós guarda a Lei. L ite r a lm e n te , "faz a Lei" - u m b o m se m itism o .
E sta a fir m a ç ã o a b so lu ta é d ir ig id a a "os ju d e u s" (15) na m u ltid ã o . V er
G1 2 ,1 4 , o n d e P a u lo d iz p r a tic a m e n te a m e sm a c o isa a P ed ro .
20. Es louco. L ite ra lm e n te , "tu te n s u m d e m ô n io " ; a in s a n id a d e era v ista
c o m o u m c a s o d e p o s s e s s ã o . O u v im o s a m e sm a a c u sa ç ã o e m M c 3,22
("E le tem B elzeb u " ); n ã o m u ito d e p o is , d e s e n v o lv e -s e u m a ce n a d e u m a
cu ra n o s á b a d o (3,1-6).
21. uma obra. P r e s u m iv e lm e n te , e sta é a cu ra d e 5 ,1-15. Bernard , I, p . 263,
p e n s a q u e a o b je çã o n ã o é ta n to b a se a d a na cu ra , m a s n o tra b a lh o acar-
r e ta d o n e s s a cu ra (Ex 31,15: " Q u a lq u e r q u e n o d ia d e sá b a d o fize r a lg u m
tra b a lh o , c e r ta m e n te morrerá").
admirais. N ã o há m e n ç ã o d e su r p r e sa d a p a rte d o s q u e te ste m u n h a r a m o
m ila g r e e m 5,1-15.
22. por causa disso. C o m o a p ró p ria v e r sific a ç ã o in d ic a , u m a tra d içã o ilu stra -
d a n a s v e r s õ e s e e n d o s s a d a p o r a lg u n s c o m e n ta r is ta s m o d e r n o s (W est-
cott, H oskyns) c o n e c ta r ia m e sta frase à lin h a se g u in te : "Por c a u sa d is s o
M o is é s v o s d e u a c irc u n cisã o " .
Patriarcas. L itera lm en te, "pais"; v e r "ancestral" e m 4,12. A o r d en a n ça q u e
p r e s c r e v e a c irc u n c isã o está na Lei d e M o isé s (L v 12,3), m a s a alia n ça da
c ir c u n c is ã o p r o c e d e d o te m p o d e A b r a ã o (G n 17,10; 21,4). V er R m 4.
mesmo no sábado. A c ir c u n c is ã o s e d a v a n o o ita v o d ia a p ó s o n a sc im e n -
to; s e o n a s c im e n to o c o r r e sse n u m sá b a d o , e n tã o s e fa zia a circ u n cisã o .
A M ish n á Nedarim 3:11: "R. J o sé d iz: 'G r a n d e é a c ir c u n c isã o , p o r q u a n to
ig n o ra o in e x o r á v e l sá b a d o '" .
23. curei. E sta p a la v r a g r e g a (hygiês) s ó o co r re e m o u tr o lu g a r e m João n o
c a p ítu lo 5 (5 v e z e s ).
564 O L ivro d o s S inais

de todo. Este é um argum ento a minori ad maius (do m enor para o maior),
m uito comum na lógica rabínica. A circuncisão afeta somente um a parte
do corpo; se isso é perm itido, seria perm itida um a ação que afeta o bem de
todo o corpo. Realmente, os rabis perm itiam práticas de cura no sábado,
quando houvesse perigo im ediato à vida. Mas, no presente caso, no capí-
tulo 5, o homem fora doente por m uito tem po (5,6), e eles argum entariam
que Jesus podería ter adiado até o dia seguinte para curá-lo (Lc 13,14).
24. julgueis... reta justiça. Temos tentado preservar a nuança do im perativo
presente na prim eira linha, e o im perativo aoristo na segunda. Um ape-
lo similar por reto juízo se encontra no AT: Is 11,3 (do rei messiânico);
Zc 7,9; Dt 16,18.
25 .0 povo de Jerusalém. Estes parecem com por um grupo especial na m ultidão
m aior (v. 12) que conteria tam bém visitantes. Tabernáculos era a festa
judaica mais im portante e assistida por inúm eras pessoas. N ote que João
apresenta estes hierosolim itanos plenam ente cientes de que há um com-
plô para m atar Jesus da parte das autoridades.
26. não lhe dizeis sequer uma palavra. Há um a expressão rabínica sem elhante,
que reflete aprovação tácita.
as autoridades. Literalmente, "governantes", palavra usada para descrever
Nicodemos em 3,1. Estes são "os judeus", mas particularm ente os m em -
bros do Sinédrio.
27. de onde vem este homem. Em um a civilização prim itiva, sem nom es fami-
liares, o lugar de origem é equivalente a um nom e identificador, p. ex.,
José de Arimateia, Jesus de Nazaré. Este é não só o uso bíblico (Jz 13,6;
Gn 29,4), m as tam bém o uso corrente entre os beduínos que costum am
perguntar pela identidade de um a pessoa, indagando: "De onde você é?"
ninguém saberá de onde ele vem. Ver pp. 233-234 para a teoria do Messias
oculto. Os hierosolimitanos pensam que o fato bem notório de que Jesus
é de Nazaré milita contra ser ele identificado como o Messias oculto.
28. verdadeiramente. Alêthinos, tom ado adverbialm ente. O Codex Sinaiti-
cus e o P* dizem: "Aquele que me enviou é verdadeiro [ou fidedigno -
Alêthês[”; esta redação pode vir sob a influência de 7,26.
Um que me enviou. Aqui o verbo "enviar" é pempein; no v. 29, é apostellein,
um indício de que os dois verbos são intercambiáveis.
29. é da parte dele que eu vim. Literalmente, "Eu sou dele [para com genitivo]".
O Sinaiticus diz "com [para com dativo] Ele", um a redação endossada por
OS, Sah. B o i s m a r d , Prologue, p. 91, prefere isto como a leitura mais difícil.
30. eles tentaram prendê-lo. Ao que parece, o "eles" se refere ao povo de Je-
rusalém, pois esta tentativa parece ser distinta daquela das autoridades
no v. 32.
28 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena I 565

31. mais sinais. N ã o há in d ic a ç ã o n o A T d e q u e se e s p e r a s s e m m ila g r e s da


p a rte d o M e ssia s; p a s s a g e n s c o m o Is 2 5 ,5 -6 (" o s o lh o s d o s c e g o s s e abri-
rão" ) tin h a m u m a sig n ific a ç ã o fig u r a tiv a . T o d a v ia , a id e ia d e u m a o p e -
ra çã o d e m ila g r e s d a p a rte d o M e ssia s p o d e ter s e d e s e n v o lv id o n o s d ia s
d o N T ; v e r M c 13,22. N o t e q u e e m 6,15, a p ó s a m u ltip lic a ç ã o , a m u ltid ã o
s e p ro n tific a a co r o a r J esu s c o m o o rei m e ssiâ n ic o . E n tretan to, há o u -
tra p o s s ib ilid a d e : s e g u n d o M t 12,22-23 p a r e c e q u e o s m ila g r e s le v a v a m
a s p e s s o a s à c o m p r e e n s ã o d e q u e a lg u é m e x tr a o r d in á r io e sta v a d ia n te
d e le s , e co m e ç a r a m a in d a g a r s e esta p e s s o a ex tr a o rd in á r ia n ã o seria o
M e ssia s . A in d a o u tr a p o s s ib ilid a d e é q u e a c o n c e p ç ã o d o M e s s ia s foi in-
flu e n c ia d a p e la s im a g e n s d o P r o fe ta -c o m o -M o isé s e d e E lias, p o is a m b o s,
M o is é s e E lias, o p era r a m m ila g r e s.
32. murmuração. V er n o ta so b r e v. 12.
[a saber...\ A fra se e n tre c o lc h e te s falta e m a lg u m a s d a s v e r s õ e s m a is an ti-
g a s (O S, O L ) e c ita ç õ e s p a tr ístic a s (C risóstomo); ela a p a r e c e na m a io ria
d o s m a n u sc r ito s g r e g o s , m a s c o m o r d e n s d ife r e n te s d a p a la v r a . T a lv e z
o tem a o r ig in a l fo s s e "eles"; m a s u m c o p ista , e n te n d e n d o q u e n ã o es-
ta v a co r re to ter o s fa r ise u s n o c o m a n d o d a g u a r d a d o te m p lo , in tr o d u -
z iu n o te x to "os p r in c ip a is sa c e r d o te s" , b e m c o m o "os fa riseu s" . O v. 45
p o d e ter g u ia d o a in se r ç ã o . V is to q u e o s s a c e r d o te s e o s fa r ise u s sã o d e s-
cr ito s c o m o a g in d o ju n to s, o a u to r d a fra se e n tr e p a r ê n te se s está p e n sa n -
d o n o S in é d r io c o m o r e s p o n s á v e l (18,3; v e r n o ta so b re 3,1).
guarda do templo. Bunzler, Trial, p p . 62-63, d istin g u e d o is gru p os: («) o s levitas
d o tem p lo , e m p r e g a d o s d en tr o d o s recin tos d o te m p lo e, o ca sio n a lm en te,
fora d u ra n te u m a crise; ( b) a força p o licia l d o S in éd rio co stu m a v a m anter
a o rd em p ú b lica na cid a d e e n o ca m p o . Ele afirm a q u e n o N T a p alavra
hypêretai, u sad a n este v ersícu lo d e João, sem p re se refere à últim a [hipótese].
A d istin ç ã o é artificial, c o m o o indicará u m e s tu d o c u id a d o so da própria
ev id ê n c ia d e B unzler. N e ste m e s m o cast), a p risã o é ord en a d a p e lo s sa d u -
c e u s e fariseu s (portan to, p e lo S in éd rio) e d e d en tr o d o s recin tos d o tem plo;
p ortan to, ela tem e le m e n to s d e a m b a s as d iv is õ e s p ro p o sta s p o r Blinzler.
33. pouco tempo. E ste é u m tem a jo a n in o freq u en te: 12,35; 13,33; 14,19; 16,16.
34. me buscareis. D o is m a n u sc r ito s g r e g o s m e n o r e s e a V u lg a ta d e Jerônimo
tra z em o t e m p o p r e s e n te . W ordsworth e W hite o b se r v a m acerca d isto
q u e J erônimo à s v e z e s s e g u ia u m tip o d e m a n u sc r ito g r e g o d o q u a l sa b e-
m o s b e m p o u c o . V er n o ta so b r e 10,16.
não me achareis. E ste s e g u n d o "m e" é o m itid o e m m u ita s te ste m u n h a s gre-
g a s im p o r ta n te s, m a s a p a r e c e n o C o d e x V a tic a n u s e P 75.
onde eu vou. A lg u é m esp e ra r ia " A o n d e e u v o u " , c o m o e m 8,21; e a lg u n s
têm s u g e r id o q u e eimi, a q u i, p r o c e d e d o v e r b o ienai, "ir", e m v e z d e o
566 O Livro dos Sinais

eimi, "estar", m a is u su a l. N ã o o b sta n te , m a is p r o v a v e lm e n te isto reflita


o u so d iv in o d e egõ eimi - v e r A p ê n d ic e IV, p. 841 ss. É A gostinho q u e m
ca p ta a a te m p o r a lid a d e d a a fir m a ç ã o d e Jesus: "C risto s e m p r e e s t e v e n a-
q u e le lu g a r para o n d e v o lta ria " (ln )0 . 31,9; PL 35:1640). H á certa sim ila -
rid a d e n o tem a c o m Lc 17,22: "E stão v in d o d ia s e m q u e d e se ja r e is v e r u m
d o s d ia s d o F ilh o d o H o m e m , e n ã o o v e r e is" .
35. Diáspora. E ste ter m o s e refere a o s ju d e u s q u e v iv ia m fora d a Terra Santa;
a e x p r e ssã o " D iá sp o r a d e Israel" o co r re n a LXX, e m Is 4 9 ,6 e SI 147,2.
Para o u s o cristã o d o ter m o , (i.e., o s c r istã o s q u e v iv ia m n o m u n d o e lo n -
g e d e s e u lar c e le stia l), v e r lP d 1,1.
entre os gregos. L ite ra lm en te, " d o s g re g o s" . E n te n d e m o s o te r m o c o m o u m a
referên cia a o s g e n tio s p a g ã o s d o im p é r io r o m a n o q u e fo ra m in flu e n c ia -
d o s p ela cu ltu ra g r e g a , e a ssim e x tr a p o la n d o a s fr o n te ir a s d a n a c io n a li-
d a d e g reg a . E m 12,20, o ter m o é u s a d o para p r o s é lito s (ta m b é m A t 17,4).
A lg u n s e s tu d io s o s , c o m o J. A . T. R obinson (p. 76s. a c im a ), tê m s u g e r id o
q u e o g e n itiv o é e x p lic a tiv o : "a D iá sp o r a q u e c o n s is te d e g r e g o s , i.e., ju-
d e u s d e fala greg a " . T o d a v ia , p o r q u e o s ju d e u s h ie r o s o lim ita n o s su g e r i-
riam esta p o s s ib ilid a d e , a sa b er, q u e J esu s iria em b u sc a d e u m a u d itó r io
m e lh o r en tre o s ju d e u s q u e fa la v a m o u tr o id io m a ? U m c o n tr a ste m u ito
m a is p r o v á v e l é q u e e le p o d e r ía en co n tr a r u m a u d itó r io m e lh o r e n tre
o s g e n tio s. P orta n to , c o m BD F, § 166, to m a m o s o g e n it iv o c o m o d e d ire -
ção: e s tã o s u g e r in d o q u e J esu s p o d e r ía sa ir e s e torn ar u m d o s ju d e u s da
D iá sp o ra , v iv e n d o e n tr e o s g e n tio s e e n s in a n d o -o s .

COMENTÁRIO

C om o já in d ic a m o s n o Esboço (p. 423), a C ena I d o d isc u rso d e Jesus


d u ra n te a festa d o s T ab e rn á c u lo s se lo caliza n u m m o m e n to em q u e
a festa já e stav a na m e ta d e , e p o d e se r d iv id id a em d u a s p a rte s, c a d a
u m a com se u s p ró p rio s tem as. Estes tem as têm certa u n id a d e , u m
p o u co clara; e re a p a re c e rã o d e v ez em q u a n d o n as o u tra s cen as d e ste
d iscu rso . (C om o v e re m o s, tem h a v id o v á ria s te n ta tiv a s críticas d e in-
tro d u z ir u m a seq u ên cia m e lh o r p o r m eio d e reo rg a n iz a ç ão ; m as, se-
g u in d o n o sso p la n o u su a l, tra ta re m o s o m a te ria l co m o o e n c o n tra m o s
n o ev an g elh o ). D e m u ita s m an e ira s, o d isc u rso na festa d o s T aber-
n ácu lo s re p re s e n ta u m a coleção p o lêm ic a d o q u e Jesu s d isse e m res-
p o sta ao s a ta q u e s feitos p e la s a u to rid a d e s ju d a ic a s c o n tra s u a s reiv in -
dicações. H á p a ra le lo s e sp a rso s n a tra d iç ã o sin ó tica, p a rtic u la rm e n te
28 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena I 567

n o s ú ltim o s d ia s d a v id a d e Jesus. C o n q u a n to seja c o n tro v e rtid o , este


d isc u rs o d ife re, em estilo, u m p o u c o d o s d isc u rso s a n te rio re s, p o is é
c o n s ta n te m e n te in te rro m p id o p o r rép licas e objeções. N ã o o b stan te,
e n c o n tra m o s ta m b é m a q u i a técnica jo an in a h a b itu a l d o d u p lo nível
d e sig n ificad o : e n q u a n to Jesus e stá a rg u m e n ta n d o com a m u ltid ã o no
p rim e iro p la n o , ao fu n d o as a u to rid a d e s estã o p la n e ja n d o su a p risão.

Cena I: (a) 0 direito de Jesus de ensinar; reaparece a questão do sábado (7,14-24)

E sta é a p a rte d o d isc u rso com u m a relação m ais e stre ita com
o c a p ítu lo 5; co m o m e n c io n a m o s n a p. 458, m u ito s c o m e n tarista s o
tra n sfe riría m p a ra o final d o c a p ítu lo 5. N a p re se n te se q u ên cia do
e v a n g e lh o , tem tra n s c o rrid o te m p o c o n sid e rá v e l d e s d e o m ilag re re-
g istra d o e m 5 ,1 1 5 ‫( ־‬cerca d e q u in z e m eses, se a q u e la festa era P ente-
costes); to d a v ia , esse m ilag re p a re c e se r em g ra n d e m e d id a o tem a
d a c o n v e rsa ç ã o em 7,21. (V er ta m b é m n o ta s so b re v. 15, " e d u c a ç ão ",
v. 18, "g ló ria "). E n tre ta n to , e n q u a n to João fez a c u ra n o sá b a d o do
c a p ítu lo 5 o foco d a d isc u ssã o e m 7,21 ss., fazem o s b e m em su sp e ita r
q u e te m o s a q u i u m a lim itação d o tem a p a ra p ro p ó sito s d ram ático s.
O e v a n g e lis ta selecio n o u c rite rio sa m e n te u n s p o u c o s sin ais q u e ele
n a rra (20,30-31); e, a fim d e sim p lificar o q u a d ro h istó rico , ele m o stra
estes sin a is co m o as c a u sa s d ire ta s d o q u e a c o n te c eu a Jesus. A g in d o
co m o u m b o m d ra m a tu rg o , o e v a n g elista n u n c a o c u lta os fios d a tra-
m a d e s u a n a rra tiv a com ta n to s p e rso n a g e n s o u d e ta lh es. O s evan-
g elh o s sin ó tico s n o s d e m o n s tra m q u e a acu sa ç ã o d e v io la r o sá b ad o
q u e foi la n ç a d a c o n tra Jesu s n ã o tin h a p o r b a se u m a c u ra em u m só
sá b ad o , m a s e m u m a p rática c o n sta n te. A o u s a r u m m ila g re co m o o
e x em p lo esp ecífico em q u e o a rg u m e n to se b a sea v a , João co n d e n sa
em u m só a c o n te c im e n to to d o o u m m in istério . M esm o q u a n d o João
co lo q u e os a rg u m e n to s d o s c a p ítu lo s 7 a 8 em u m c o n tex to histórico
específico, a av a liaç ã o d e ste s c a p ítu lo s com o u m a coleção d e polêm ica
típ ica n o s a d v e rte c o n tra u m a d e p e n d ê n c ia tão p recisa d a s relações
cro n o ló g icas e n tre a c u ra d o c a p ítu lo 5 e a d isc u ssã o d o c a p ítu lo 7.
N ã o é n e c essá rio q u e n o s p re o c u p e m o s se "o s ju d e u s " q u e v ira m o
m ilag re m u ito te m p o a n te s a in d a e sta ria m p e n s a n d o nele; o leitor
cristão , p a ra q u e m o e v a n g e lh o foi o rg a n iz a d o (20,31) v eria facilm en-
te a rela çã o e x iste n te e n tre este d isc u rso e o m ila g re d e q u e ele lera
a n te s n u m a s m e ra s cem linhas.
568 O Livro dos Sinais

As p rim e ira s lin h a s d e sta cen a d o d isc u rso (v. 15) estã o c e n tra d a s
na acu sação d e q u e Jesus era u m m e stre irre g u la r, v isto q u e n ã o h a v ia
receb id o su a d o u trin a d e u m m e stre rec o n h ecid o . A re s p o s ta d e Jesus
(16) é q u e ele rec e b e u su a d o u trin a d e u m m e stre re c o n h e c id o , a sa-
b er, seu Pai celestial. Ele fre q u e n to u as m elh o re s d e to d a s as escolas
rabínicas. A ú n ica p ro v a q u e ele oferece em p ro l d e su a reiv in d ic a çã o
(17-18) é o m esm o tip o d e te ste m u n h o q u e ele ofereceu n o c a p ítu lo 5.
H av ia u m a q u e stã o d e ter a lg u é m o a m o r o u a p a la v ra d e D e u s n o co-
ração (5,42.38) e d e a te n ta r b em n a b u sc a d a g ló ria d e D eu s (v. 44), p o is
tais traço s ca p ac ita ria m os h o m e n s a reco n h ecerem q u e Jesus v iera no
n o m e d o Pai (5,43). Em 7,17, so m o s in fo rm a d o s q u e a q u e le q u e faz a
v o n ta d e d o Pai reco n h ecerá a q u e le q u e fala p o r D eus. F a z e r a v o n ta d e
d e D eu s é m ais d o q u e o b ed iên cia ética; e n v o lv e a aceitação, p e la fé, d e
to d o o p la n o d iv in o d a salvação, in clu siv e a o b ra d e Jesu s (5,30). P o d e-
m o s n o ta r q u e fazer a v o n ta d e d e D eu s é tam b é m m e n c io n a d o n a tra-
dição sinótica, m as ali co m o u m a co n d ição p a ra e n tra r no rein o d o céu
(M t 7,21). C o m o já o b serv am o s, a d escrição sinótica d o rein o d o
céu p a rtilh a m u ito s asp ecto s com a d escrição jo an in a d o p ró p rio Jesus.
A referên cia a M oisés e à Lei, n o v. 19, é o u tra ra z ã o p o r q u e
e s tu d io so s su g e re m q u e esta p a rte d o d isc u rso foi u m a v e z conec-
tad a ao final d o c a p ítu lo 5, o n d e M oisés é m e n c io n a d o . E n tre ta n to ,
é b e m p o ssív e l q u e o c o n tra ste e n tre a fo rm a çã o d e Jesu s e o tre in a-
m en to p a d rã o d o s m e stre s ju d aic o s p o d e ría te r lo g ic a m e n te le v a d o a
u m a referên cia a M oisés, p o is a Lei d e M oisés era a b a se d a e d u c a ç ã o
form al. Q u a l é a ra z ã o p a ra a acu sação d e Jesus d e q u e "o s ju d e u s "
não estã o g u a rd a n d o a Lei? P o d e se r q u e e sta fosse u m a d e n ú n c ia
g eral n o estilo d e Jr 5,5; 9,4-6 etc. A lg u n s têm p e n s a d o q u e Jesu s está
a cu san d o os ju d e u s d e q u e b ra re m o e sp írito d o sá b ad o , n ã o d esejan-
d o v e r u m h o m e m c u ra d o n o sá b a d o (ver v. 23). M ais p ro v a v e lm e n -
te, a lin h a fin al d o v. 19 seja a ch av e p a ra a re sp o sta . A o d e seja re m
m a ta r Jesu s (5,18; 7,1), e stã o v io la n d o u m d o s m a n d a m e n to s . E staria
João n o s d a n d o u m a rem in iscên cia h istó rica e m r e tra ta r a ssim u m a
p ro lo n g a d a h o s tilid a d e a Jesu s e m Je ru sa lé m , ao p o n to d e tira r-lh e
a v id a? N a tu ra lm e n te , os sin ó tico s n ã o n o s d ã o in fo rm a ç ã o so b re o
m in istério h iero so lim itan o , exceto n o s ú ltim o s d ia s, e c o n c e n tra m su a
d escrição d o p la n o d e m a ta r Jesu s n a q u e le p e río d o final. N ã o o b sta n -
te, Lc 4,29 reg istra u m a te n ta d o c o n tra a v id a d e Jesu s n a G alileia, re-
gião o n d e p o d e ria m o s e s p e ra r q u e o se n tim e n to relig io so fosse m e n o s
28 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena I 569

in te n s o d o q u e e m Jeru salém . E já v im o s q u e, a p ó s a m o rte d o Batista,


Jesu s s e n tiu e s ta r m ais se g u ro sa in d o d a G alileia e d o territó rio go-
v e rn a d o p o r H e ro d e s (ta m b ém Lc 18,31). A rg u m e n ta n d o a p a rtir do
q u a d ro sin ó tico d e h o s tilid a d e d u ra n te o m in isté rio g alileu, p o d e m o s
p la u s iv e lm e n te s u s p e ita r q u e João n o s está d a n d o tra d iç ã o confiável
q u e n ã o lim ita o p la n o h ie ro so lim ita n o d e m a ta r Jesus aos ú ltim o s
d ia s d o m in isté rio .
N o v. 20, a m u ltid ã o n eg a q u a lq u e r p la n o d o g ên ero . Se e sta m u i-
tid ã o é d istin ta d e "o s ju d e u s " e d e "o p o v o d e Je ru sa lé m " (25), qu e
tin h a c o n h e c im e n to d a tra m a , é b e m p la u sív e l q u e h o u v e sse m u ito s,
e s p e c ia lm e n te d e n tre os p e re g rin o s, q u e n a d a so u b e sse m so b re um
in te n to d e m a ta r Jesus. M as, a in d a q u e Jesu s esteja fa la n d o p rim a ria-
m e n te a "o s ju d e u s " , isto é, às a u to rid a d e s , p e rm a n e c e o fato d e que,
n a d e scriçã o d o s sin ó tico s já n o final d o m in isté rio h iero so lim itan o ,
a multidão teria sid o c o n tro la d a p e la s a u to rid a d e s p a ra so licitar a m or-
te d e Jesu s (M c 15,11).
A o bjeção d a m u ltid ã o leva Jesus a ser específico (22-23) e a evo-
c a r o e x e m p lo o c o rrid o d e u m a c u ra n o s á b a d o e m ra z ã o d a q u a l ha-
v iam d e c id id o m atá -lo (5,18). O a rg u m e n to q u e Jesus u sa a q u i (22-23)
e m d efesa d e su a c u ra no s á b a d o é m en o s teológico d o q u e o ap resen -
ta d o e m 5,17 e p o d e ser classificad o co m os a rg u m e n to s h u m a n itá rio s
e n c o n tra d o s n o s sin ó tico s (ver p. 440). N ão o b sta n te , é co in cid en te
q u e o c o n tra s te e n tre o c a rá te r parcial d a circu n cisão q u e p e rm itia m no
s á b a d o e a c u ra d e Jesu s em u m h o m e m p o r inteiro é b e m se m e lh an te
ao c o n tra s te e n tre M oisés e Jesus e n c o n tra d o em o u tro lu g a r em João
(1,17)? E m g eral, c re m o s q u e João tem m ais êxito d o q u e os sinóticos
e m d e s v e n d a r o p ro p ó sito d e c u ra no sá b ad o . N ã o era p rim a ria m e n te
u m a q u e s tã o d e u m a lib eração , p o r m o tiv o s se n tim e n tais, d e u m a lei
d u ra e im p ra ticá v e l. S eus m ilag re s n o s á b a d o e ram a realização do
p ro p ó s ito re d e n tiv o p e lo q u a l a Lei foi d a d a (B arrett, p. 265).

Cena 1: (b) As origens de Jesus ; seu retorno para 0 Pai (7,25-36)

N esta se g u n d a p a rte não m ais o u v im o s d e m ilagre no sábado, e o


tem a se v o lta p a ra a p esso a d e Jesus. P ode ser q u e a lógica seja que, ao
reitera r seu s d ireito s com respeito ao sábado, Jesus tenha u m a vez m ais
ex ib id o su a s reivindicações so b re q u e m ele é, o m esm o q u e em 5,17-18.
O te m a d a p e sso a d e Jesus e su a s reiv in d ic a çõ e s c o n stitu i u m a forte
570 O Livro dos Sinais

p ro v o ca ç ã o p a ra "o s ju d e u s" ; d a í a h o stilid a d e se in te n sific a r d ra m a -


ticam en te n e sta cena, e reg istra r-se a p rim e ira te n ta tiv a d e p r e n d e r Je-
sus. A s v á ria s d eclaraçõ es o u s a d a s d o p o v o d e Je ru sa lé m e d o s ju d e u s
c o n c ern e n te s a Jesus d e m o n stra , em típico estilo joanino, a ig n o râ n c ia
d a sa b e d o ria h u m a n a , q u a n d o c o n tra sta d a com a p e n e tra n te lu z d a
S ab ed o ria e n c a rn a d a .
P rim e ira m e n te , v e m o s isto na d ec la ra ç ã o d o v. 27, a sa b er, q u e
sab em d e o n d e Jesus é (N azaré) e q u e, p o rta n to , ele n ã o p o d e se r o
M essias ocu lto . Seu p e n s a m e n to está n o n ív el terren o ; e stã o d a n d o
u m p e rfe ito e x e m p lo d a q u e le ju lg a m e n to com b a se n a s a p a rê n c ia s
c o n tra o q u a l fo m o s a d v e rtid o s n o v. 24. F alav am a v e rd a d e q u a n d o
d izia m q u e n in g u é m co n h ecería d e o n d e o M essias v iria , e re a lm e n te
não sabiam q u e Jesus v em d o céu e d a p a rte d o Pai. U m a v e z m ais, n o
v. 29 tem o s u m a a firm a ç ão d a u n ic id a d e d e Jesus e d o c o n h e c im e n to
ín tim o d o Pai (1,18; 6,46; 8,25; 17,25). O p a ra le lo sin ó tico e stá n o a ssim
c h a m a d o logion jo a n in o (M t 11,27; Lc 10,22): " N in g u é m co n h e ce o Pai
sen ão o Filho e a q u e le a q u e m o F ilho esco lh e p a ra O re v e la r" .
A reiv in d icação d e Jesus a orig en s d iv in a s p ro v o ca a ten ta tiv a d e
p ren d ê-lo (30), ten tativ a q u e revela o so b e ra n o p o d e r d e Jesus. M esm o
q u a n d o ch eg ar su a h o ra, João m o strará q u e n in g u é m p o d e p ô r su a m ão
em Jesus até q u e ele o p e rm ita (18,6-8). Lc 4,29-30 re tra ta u m a incapaci-
d a d e sim ilar d o s inim igos d e Jesus q u e te n ta ra m p reju d icá-lo em N aza-
ré. A ten tativ a m ais form al co n tra Jesus p elas a u to rid a d e s d o S inédrio,
no v. 32, d e m o d o a lg u m terá êxito, com o v erem o s em 7,45ss.
Estes a te n ta d o s c o n tra su a v id a lev a m Jesus, n o s vs. 33,34, a p e n -
sa r em seu re to rn o , m e d ia n te a m o rte e ressu rre içã o , a se u Pai. O v e r-
b o " p a rtir" , u s a d o n o v. 33, se rá e n c o n tra d o em 13,3, o n d e , n o con-
texto d a h o ra, Jesus d iz q u e ele está p a rtin d o p a ra o Pai. O re to rn o ao
Pai sig n ificará p a ra os se u s o u v in te s o fim d e su a o p o r tu n id a d e d e
crer nele. E n q u a n to e stiv e r d ia n te d eles, ele e stá se d e sc o b rin d o a eles;
m as q u a n d o se for, eles se p o rã o a b u sc á-lo e n ã o o ach arã o . U m a v ez
m ais, as o b serv açõ es d e Jesus são in c o m p re e n d id a s, p o rq u a n to ele é
e n te n d id o em u m n ív el terre n o , p o is "o s ju d e u s " p e n sa m q u e ele está
falan d o d e p a rtir e m u m a v ia g e m p a ra a lg u m a o u tra terra. D esta v ez
Jesu s n ão re s p o n d e com o fim d e c o n fu n d i-lo s, p o rq u e iro n ic a m e n te
eles têm fala d o a v e rd a d e . A id eia d e le s d e q u e Jesu s p o d e ría sa ir a
e n sin a r o m u n d o g en tílico veio a ser u m a re a lid a d e n o te m p o em q u e
o Q u a rto E v a n g e lh o foi escrito. A Igreja cristã q u e o e v a n g e lista p o d e
28 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena 1 571

c o n te m p la r e x te n d id o n o im p é rio ro m a n o é g ra n d e m e n te gentílica,
e a D iá sp o ra d o s filhos d e D eu s d isp e rso s e c o n g re g a d o s p o r Jesus
(11,52) re a lm e n te te m sid o u m a D iá sp o ra d o s gregos.
A o c o n c lu irm o s n o ssas o b serv açõ es so b re esta se g u n d a p a rte da
C e n a I d o d isc u rso , tem o s d e sa lie n ta r q u e o tem a d e Jesus com o a
S a b e d o ria d iv in a é m u ito fo rte aq u i e se e n c o n tra no fu n d o d e m ui-
tas d a s s u a s afirm açõ es. A q u e stã o so b re d e o n d e Jesu s v em , n os vs.
27ss., n o s lem b ra d e Jó 28,12ss., q u e su scita a q u e stã o so b re o n d e a
S a b e d o ria p o d e se r e n c o n tra d a ; ta m b é m B a ru q u e 3,14-15: " A p ren -
d ei o n d e está a S ab ed o ria. ... Q u e m p o d e d e sco b rir su a localização?"
A ssim co m o Jesus foi e n v ia d o d e D e u s (29) p a ra e sta r com os ho-
m e n s (33), a ssim n o A T o h o m e m ro g a a D eus p a ra q u e a Sabedo-
ria seja e n v ia d a d o céu a fim d e e sta r com ele (Sb 9,10; S iraq u e 24,8).
O te m a d e b u s c a r e a c h a r (34) é fre q u e n te n o AT. Em a lg u n s d o s li-
v ro s b íb lico s, o tem a se c e n tra n u m a b u sc a p elo S en h o r, p o r exem plo,
Is 55,6: "B u scai o S e n h o r e n q u a n to se p o d e a c h a r" (ta m b ém O s 5,6;
D t 4,29). M as n a lite ra tu ra sa p ien cial o tem a é tra n sfe rid o p a ra a Sa-
b e d o ria . Em Sb 6,12, o u v im o s q u e a S a b ed o ria "é facilm en te v ista p o r
a q u e le s q u e a a m a m , e e n c o n tra d a p o r a q u e le s q u e a b u sc am ". As
p a la v ra s d e Jesu s n o v. 34 são m u ito p a re c id a s com as d a S ab ed o ria de
P r 1,28-29: "E les m e b u sc arã o , m a s n ã o m e a c h arã o , p o rq u e o d e ia m o
c o n h e c im e n to e n ã o e sco lh e ra m o te m o r d o S en h o r".

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 7, n o final d o § 29.]
29. JE SU S N A F E S T A D O S T A B E R N Á C U L O S :
- C E N A II
(7,37-52)

Jesus no último dia da festa

7 37N o ú ltim o d ia d a festa, q u e é o m ais solene, Jesu s se p ô s e m p é e


exclam ou:

"Se a lg u é m tem sed e, q u e v e n h a [a m im ];


e b eb a 38q u e m crê e m m im .
C o m o d iz a E scritura:
'D e d e n tro d e le flu irã o rio s d e á g u a v iv a '" .

(34A q u i ele se referia ao E sp írito q u e o s q u e v iesse m a cre r n ele h a v ia m


d e receber. Pois n ã o h a v ia a in d a E sp írito , já q u e Je su s n ã o h a v ia sid o
a in d a g lorificado).
40A lg u n s d a m u ltid ão q u e o u v iram [estas palavras] com eçaram a di-
zer: "Este, sem d ú v id a algum a, é o Profeta". O u tro s estav am clam ando:
"Este é o M essias". M as outras, p o rém , diziam : "P o rv en tu ra, o M essias
virá d a Galileia? 42N ão d iz a Escritura q u e o M essias, se n d o d a fam ília d e
Davi, d ev e vir d e Belém, a vila o n d e v iveu D avi?" 43A ssim , a m u ltid ã o fi-
cou incisivam ente d iv id id a p o r causa dele. 44A lg u n s deles a in d a q u e ria m
prendê-lo; todavia, n in g u ém lhe p u n h a as m ãos.
4Έ e n tã o , q u a n d o a g u a rd a d o tem p lo v o lto u , os p rin c ip a is sacer-
d o te s e os farise u s lh es p e rg u n ta ra m : " P o r q u e n ã o o tro u x e ste s? "
46"N u n c a n in g u é m falo u co m o e ste ", re p lic o u a g u a rd a . 47" N ã o n o s
d ig ais q u e tam b é m v ó s fostes e n g a n a d o s!", re tru c a ra m os fariseu s.
48"N ã o p erceb eis q u e n e n h u m d o S in éd rio crê nele? O u a lg u m d o s
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 573

farise u s? 44N ã o , a p e n a s esta p le b e q u e n a d a sab e d a Lei - e estão con-


d e n a d o s!" 50U m d e se u p ró p rio n ú m e ro , N ic o d e m o s (o h o m em qu e
v ie ra te r co m ele), retru co u : 51"D e sd e q u a n d o n o ssa Lei co n d e n a al-
g u é m se m p rim e iro o u v i-lo e c o n h e ce r os fatos?" 52" N ã o nos d ig as
q u e tu ta m b é m és g a lile u " , o in su lta ra m . "O lh a e ex am in a se desco-
b re s o P ro feta v in d o d a G alileia".

50: fa lo u . No tempo presente histórico.

NOTAS

7.37. ú ltim o d ia , ...mais solene. E ste seria o s é tim o o u o ita v o d ia (v er n o ta so -


b re 7,2)? V isto q u e o o ita v o d ia fo i u m a a d iç ã o p o ste r io r à festa , era m a is
u m d ia d e r e p o u s o a lé m d a festa . C o m o v e r e m o s n o c o m e n tá r io , a s pa-
la v r a s d e Jesu s, n e sta o c a s iã o , s e a d e q u a m à s c e r im ô n ia s d o sé tim o dia.
A d e s ig n a ç ã o " m a is so le n e " ta m b é m se e n q u a d r a m e lh o r a o s é tim o dia.
D e fa to , v is t o q u e " so len e" s e p e r d e u e m a lg u m a s te ste m u n h a s m e n o r e s,
e sta fra se p o d e r ía se r a in d a u m a a d iç ã o p o ste r io r p ara e s p e c ific a r q u e o
s é tim o d ia e s ta v a im p líc ito .
se pôs em pé. P r o v a v e lm e n te d e v a m o s p e n sa r q u e J esu s e s te v e a sse n ta d o e
e n s in a v a n o s r e c in to s d o te m p lo (v er n o ta so b r e 6,3).
exclamou. E ste v er b o foi u sa d o acerca d o Batista e m 1,15; n e ste ca p ítu lo é u sa d o
d u a s v e z e s acerca d e Jesus (7,28 e aqui; ou tra v e z e m 12,44), q u a n d o ele faz
u m a so le n e p ro cla m a çã o d e u m a v e r d a d e co n cern en te à su a p esso a e obra.
Se alguém [tem] sede... água viva. E stas q u a tro lin h a s p o é tic a s d o s v s. 37-38 têm
s id o ob jeto d e p r o lo n g a d a d is c u s s ã o e u m a im e n sa literatura. H á d o is pro-
b le m a s b á sic o s d e in terp reta çã o q u e d e v e m ser d isc u tid o s e x te n sa m en te .
Prim eiro, quem é afonte dos rios de águaviva:]esusouo crente? (a) A tra d u çã o q u e
te m o s d a d o fa v o r e c e a teo ria d e q u e J esu s é a fo n te (in ter p r eta çã o "cristo-
ló g ic a " ). C o m o tem d e m o n s tr a d o H . R ahner (ta m b é m Boismard, "De son
ventre", p p . 5 2 3 -3 5 ), e sta in te rp re ta ç ã o r e m o n ta a o 2Qs é c u lo e a o te m p o
d e J ustino. H o je p o d e m o s ter o u tr a te ste m u n h a d o 2Us é c u lo n o Evangelho
de Tomé, 13, o n d e J esu s d iz: " T en d e s b e b id o d a b o r b u lh a n te n a sc e n te q u e
te n h o d istr ib u íd o " . E n q u a n to is to r e fle te u m a m isc e lâ n e a d e v e r síc u lo s
jo a n in o s (p. e x ., 4 ,1 4 ), fa z d e J esu s a fo n te d a á g u a . (V er n o s s o a rtig o em
N T S 9 [1962 -6 3 ], 162). O u tr o a p o io a n tig o para e sta in te rp re ta ç ã o , a lg u -
m a s v e z e s c h a m a d o a in te r p r e ta ç ã o o c id e n ta l, s e en co n tra e m H ipólito,
T ertuliano, C irriano, Irineu, A fraates e E fraem. E ntre o s co m e n ta r ista s
574 O Livro dos Sinais

modernos que a aceitam estão Boismard, Braun, Bultmann, Dodd, H oskyns,


J eremias, M acgregor, Mollat, Stanley. Podem-se apresentar os seguin-
tes argum entos em prol da interpretação cristológica: (Ί) Ela dá ex-
celente paralelism o poético nos dois prim eiros versos: o hom em se-
dento no verso um vai a Jesus, e o crente no verso dois bebe de Jesus.
Que o paralelism o é quiásmico se adequa bem ao estilo joanino (ver
p. 153s.). (2) A ideia de que água fluirá de Jesus é endossada por 19,34,
onde ela flui de seu lado. (3) O utra obra joanina, Ap 22,1, m ostra um
rio de água viva fluindo do trono de Deus e do C ordeiro (i.e., Cristo).
(4) Segundo 7,39, a água é o Espírito, e para João é Jesus quem dá o Espí-
rito (19,30; 20,22).
(b) O grego pode ser traduzido de outra m aneira que favorece fazer do
crente a fonte da água:
Se alguém [tem] sede, que venha a mim e beba.
38Aquele que crê em mim (como diz a Escritura),
"De seu interior fluirão rios de água viva".
Esta pontuação foi endossada por O rígenes e percorre a m aioria dos
Padres orientais. Entre os com entaristas m odernos que a seguem estão
Barrett, Behm, Bernard, C ortés Q uirant, L igiitfoot, M ichaelis, Rengstorf,
Schlatter, Schweizer, Z ahn. É seguida pela Standart Am erican Catho-
lie (Confraternity) e as versões protestantes (RSV). O m elhor argum en-
to textual para ela é que esta pontuação se encontra em P 6 (2Uséculo).
Um argum ento gramatical para ela coloca o particípio ho pisteuõn
("aquele que crê") ao princípio de um a nova construção (um padrão en-
contrado 41 vezes em João), em vez de omiti-la na sentença condido-
nal anterior (uma prática aparentem ente ausente em João). Entretanto,
K irkpatrick, art. cit., em contrapartida, tem m ostrado que por o particípio
como sujeito antecipado da citação bíblica (como seria feito nesta inter-
pretação) tem pouco suporte no estilo joanino. BDF, § 4664, tem tentado
defender tal anacoluto, mas os exemplos oferecidos como paralelos na
realidade não são pertinentes para o caso peculiar em discussão. Assim,
os argum entos gram aticais na verdade se anulam m utuam ente. Acaso há
em João algum paralelo para a ideia de água viva fluindo do crente? (Há
um paralelo no pensam ento rabínico da época; segundo a Midrásh Sifre
sobre Dt 11,22, # 48, o Rabi Aqiba disse: "O discípulo que está iniciando
é como um poço que só pode oferece a água que ele tem recebido; o dis-
cípulo mais avançado é um a corrente que propicia água viva".) M uitos
citam Jo 4,14 (entre os tais C ortés Q uirant, pp. 293ss.), onde Jesus fala
de um a fonte de água no interior do crente que salta para a vida eterna.
Entretanto, neste versículo não há sugestão de que o crente será um a
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 575

fonte para outros. O utro texto citado, 14,12, parece geral demais para ser
probatório. Tendo em conta tudo isto, o m elhor argum ento para esta in-
terpretação é o forte endosso patrístico que ela tem tido. Todavia, muito
deste endosso flui do ím peto inicial do próprio influente O rícenes. Ele
viu em 7,37-38 um eco da doutrina de F ilo de que o perfeito gnóstico po-
deria se tornar, através de sua com preensão espiritual da Escritura, uma
borbulhante fonte de luz e conhecimento para outros. Tal entendim ento
de João não é m uito convincente.
(c) H á ainda um terceiro m odo de traduzir o grego, um que não dá indica-
ção definida quanto à identidade da fonte da água:
Se alguém [temj sede, que venha a m im e beba (i.e., que creia em mim).
Com o diz a Escritura: "De seu interior fluirão rios de água viva".
Esta tradução evita a objeção suscitada por K irkpatrick contra a tradução
anterior: o particípio ho pisteuõn não é mais longo que o sujeito antecipa-
do da citação bíblica, e sim um esclarecimento do sujeito dos verbos "vir"
e "beber". K irkpatrick mostra que o particípio pode servir como sujeito
de ambos os verbos, mas seus exemplos de tal particípio que resum e o
"alguém " indefinido são fracos. Blenkinsopp, "Crux", defende um a tradu-
ção sim ilar a esta, porém insiste que "aquele que crê em m im " não tem
nexo sintático com a sentença - é m eram ente um parênteses explicativo
extraído de "aquele que crê" no v. 39. Há algum a evidência de versão no
latim e siríaco para om itir "aquele que crê em mim"; esta evidência não é
suficientem ente forte para fazer o particípio textualm ente duvidoso, mas
pode d ar apoio para vê-lo como m eram ente o parênteses. Naturalmente,
esta tradução do grego perde o paralelism o quase perfeito que temos pro-
posto em nossa tradução. Ela nada faz para identificar o "ele" da citação
bíblica; mas parece que quando o particípio é tratado como um parênte-
ses, há pouca razão para presum ir-se que o "ele" da citação é o crente.
Segundo, que passagem da Escritura é citada no v. 38? Obviam ente, a resposta
a esta pergunta refletirá na prim eira também. As palavras citadas em
João não refletem exatam ente qualquer passagem no TM ou na LXX, e
assim os com entaristas têm que usar certa engenhosidade para rastrear
passagens que são ao m enos similares.
Os que pensam no crente como a fonte da água frequentem ente suge-
rem Pr 18,4: "As palavras da boca de um hom em são águas profundas;
a fonte da sabedoria é m anancial que jorra". Is 58,11 é digno de consi-
deração como pano de fundo; ali Deus prom ete ao israelita dos tem pos
escatológicos: "serás como um jardim regado, como um a fonte transbor-
dante, cujas águas nunca faltam ". Siraque 24,30-33 (28-31) faz do disci-
pulo da Sabedoria um canal que conduz águas da Sabedoria para outros.
576 O Livro dos Sinais

1QH 8.16 diz: “Tu, ó m eu Deus, tem posto em m inha boca, por assim
dizer, chuva para todos [os que têm sede], e um a fonte de águas vivas
que não falharão". Uma passagem que tem sido citada com frequência é
Provérbio 5,15: "Bebe água da tua cisterna, a água que jorra de teu poço";
m as a semelhança com João é apenas verbal, pois o texto de Provérbios é
um a injunção contra o adultério ("cisterna/poço" = a esposa de alguém ).
Uma orientação plausível em que buscar o pano de fundo da citação bíbli-
ca de João está nas várias descrições da cena que ocorreu d urante o êxodo,
quando Moisés feriu a rocha e água jorrou dela. Esta rocha era vista na
Igreja prim itiva como um tipo de Cristo (IC or 10,4), e por isso este pano
de fundo favorecería a interpretação cristológica da fonte na citação de
João. Bkaun, JeanThéol, 1, p. 150, m enciona que a rocha das peregrinações
no deserto era o símbolo mais frequentem ente pintado nas catacum bas
veterotestam entárias. Frequentem ente, ele era conectado com o batism o
através da interpretação de Jo 7,38. Tal sim bolismo se adequaria bem
com a predileção de João p or símbolos tom ados das narrativas do Êxodo
(1,29: o cordeiro pascal; 3,14: a serpente de bronze; 6,31: o m aná; 6,16-21:
a travessia do M ar Vermelho?) Pode ser que esteja nos com entários
poéticos encontrados nos Salmos sobre o tema da água-da‫־‬rocha os me-
Ihores paralelos para o vocabulário de Jo 7. O SI 105,40-41 diz: "Ora-
ram, e ele fez vir codornizes, e os fartou de pão do céu. A briu a penha,
e dela correram águas; correram pelos lugares secos, com o um rio".
Esta sequência de pão do céu e de água da rocha é exatam ente a se-
quência que temos nos capítulos 6 e 7 de João (incidentalm ente, um a
razão a mais para não m udar a presente sequência dos capítulos). Ou-
tras passagens que descrevem a água da rocha são Is 43,20; 44,3; 48,21;
Dt 8,15; A ileen G uilding, p. 103, tem ressaltado que m uitas das passa-
gens eram usadas como leituras na sinagoga no m ês em que [a festa dos]
Tabernáculos era celebrada. O SI 114, cujo v. 8 menciona como Deus
converteu a rocha fendida em m anancial de água, era um dos salm os
do H allel cantados pelos peregrinos nas procissões diárias d urante
a festa dos Tabernáculos.
A passagem trata da rocha no deserto que, possivelm ente, seja o mais
estreito paralelo verbal para João é o SI 78,15-16: "Fendeu as penhas no
deserto; e deu-lhes de beber como de grandes abismos. Fez sair fontes
da rocha, e fez correr as águas como rios”, (uns poucos versículos mais
adiante no Salmo, o v. 24, ouvimos: "E chovera sobre eles o m aná para
comerem, e lhes dera do trigo do céu" - ver nota sobre 6,31). Embo-
ra esta tradução do hebraico do salmo já seja como Jo 7,38, a semelhança
pode manifestar-se grandem ente se alguém aceita a tese apresentada por
29 · Jesus na festa dos tabemáculos: Cena II 577

Boismard de que Jesus realm ente está citando um a tradução do Targum


ou versão aram aica do Salmo. Segundo Boismard, é possível traduzir o
aram aico assim: "Ele extraiu m ananciais de água da rocha; e produziu,
por assim dizer, rios de água corrente". Ora, quando Jesus falava ao povo,
sem d úvida ele às vezes usava as Escrituras aram aicas para inteligibili-
dade deles (ver nota sobre 3,14), em bora pudéssem os esperar isto mais
na Galileia do que em Jerusalém. Entretanto, nem todos concordam
com a com preensão que Boismard tem do Targum (o Targum que ele
cita é bem posterior). Ver a controvérsia com G relot nos artigos citados
na Bibliografia.
O utra passagem bíblica im portante, citada como possível pano de fun-
do para Jo 7,38, provém da segunda parte de Zacarias (14,8). Esta é
um a sugestão interessante, porque, como ressaltarem os no comentário,
esta parte de Zacarias estabelece um a mística acerca da festa dos Ta-
bernáculos. F euillet tem form ado a conexão entre João e Zacarias por
meio de Ap 22,1.17. Ele salienta que Ap 22,17 oferece o mesm o tempo
de paralelism o que temos sugerido para João em nossa tradução:
"Q ue aquele que tem sede venha;
que aquele que deseja tome a água da vida sem preço".
Se agregarm os este versículo a Ap 22,1, "Ele me m ostrou o rio da vida...
fluindo do trono de Deus e do Cordeiro", temos um paralelo m uito
estreito para as idéias e palavras de Jo 7,37-38. Ora, este capítulo em
Apocalipse tem seu pano de fundo em Ezequiel e Zacarias (Ap 22,2 =
Ez 42,12; Ap 22,3 = Zc 14,11). Em particular, o rio descrito em Apocalipse,
como a fluir do trono de Deus e do Cordeiro, é reutilização do símbolo
do rio em Ez 47; e "a água da vida" ecoa Zc 14,8. F euillet argum enta que
devem os atribuir este m esm o pano de fundo, particularm ente a de Zaca-
rias, a Jo 7,37-38. Em João, isto não está fora de lugar, pois este evangelho
recorre livrem ente a Zacarias, quer im plicitam ente (ver comentário sobre
2,16), quer explicitam ente (19,37).
D aniélou, art. cit., argum enta com mais veemência do que faz F euillet
em prol da dependência de João de Ez 47,1-11, um a passagem bem co-
nhecida na literatura cristã prim itiva. Em sua visão, Jesus seria a fonte
da água no sentido que seria a rocha do templo, da qual, na imagem de
Ezequiel, o rio flui, que é a fonte da vida. Já vimos Jesus identificado em
Jo 2,21 como o tem plo; ver Daniélou para a tradição patrística que iden-
tifica Jesus com a rocha do templo.
Ao buscar-se o pano de fundo de Jesus como a fonte de água viva, deve-se
escolher entre a rocha do deserto e as passagens apocalípticas de Zacarias
e Ezequiel com seus rios escatológicos de água viva fluindo de Jerusalém
578 O Livro dos Sinais

e do templo? Em seu artigo de 1963, G relot demonstra que, nas tradições


rabínicas da Tosephta, os textos associados com a festa dos Tabemáculos
evocam ambas as implicações. Ele pensa que esta combinação de implica-
ções remonta a um período anterior à destruição do templo, e assim João
pode estar refletindo ambos os temas. Citações de duas ou mais passagens
em combinação não são incomum em joão (ver 19,36); e já vimos que o pano
de fundo para outro simbolismo joanino, como o do Cordeiro de Deus, é
também composto (cordeiro apocalíptico; servo sofredor; cordeiro pascal).
38. de seu interior. Literalmente, "de seu ventre [koilia]". Há quem alegue que
isto é equivalente a "de seu coração", já que, enquanto para os hebreus o
ventre é a sede da natureza emocional do hom em , o coração tem o mes-
mo papel no simbolismo ocidental. B ehm, TWNT, III, p. 788, m ostra que
na LXX "ventre" é às vezes em pregado no mesm o sentido de "coração";
e mesmo no NT são bastante intercambiáveis, p. ex., o Codex Alexan-
drinus traz "coração", em Ap 10,9, enquanto outros m anuscritos dizem
"ventre". Entretanto, Boismard, ‫ ״‬De son ventre", p. 541, m ostra que este
uso metafórico de "ventre" se restringe, com raras exceções, a passagens
que descrevem emoções fortes. Daniélou, p. 161, de acordo com a teoria
proposta acima, pensa em um a cavidade ou cova na rocha do tem plo da
qual flui água; e com para isto com a cavidade no lado de Jesus aberta pela
lança do centurião, em 19,34, um a cavidade da qual flui água. (A m aioria
dos autores concorda sobre a conexão entre 7,38 e 19,34). Tem-se sugerido
ainda outra possibilidade por estudiosos como Torrey, Boismard, G reeot
e F euillet: creem que "de seu ventre" é um a tradução m uito literal do
aramaico. A mesma expressão aramaica, min giwwêh, pode significar
"de dentro dele" e "de seu ventre". Esta sugestão implica que João está
tom ando a citação bíblica do Targum. Na mesma linha de pensam ento,
StB, II, p. 492, seguida por J eremias e B ui.tmann, associa koilia com o ara-
maico gãf, "corpo, pessoa, ego". Não obstante, a tradução grega norm al
desta palavra seria soma, não koilia.
39. 0 Espírito. O simbolismo no qual água está para espírito parece estra-
nho para a m ente ocidental, m as é bem atestado no hebraico, como
tem salientado A udet, art. cit. Os verbos aplicáveis a água são usados
para descrever o dom do espírito, p. ex., derram ado (Is 44,3). A alm a,
nephes (que tam bém pode ser traduzida por "espírito"), era considera-
da como a [sede] da sede, visto que nephes parece, originalm ente, ter
implícita a "garganta". Is 29,8 diz: "Um hom em sedento sonha que está
bebendo, porém acorda com um a nephes seca"; SI 43,1-2: "Com o a corça
suspira pela corrente de água... m inha nepheS tem sede de ti, ó Deus".
Como pano de fundo veterotestamentário para a justaposição de idéias em
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 579

Jo 7,38-39 (água do ventre = espírito), podem os citar Pr 20,27: "O fô-


lego [outro sinônim o para "espírito"] do hom em é a lâm pada do Se-
nhor, sondando todas as partes interiores de seu ventre", nepheè, além
de ser a [sede] da sede, é também a fonte de palavras, p. ex., ISm 1,15
afirma que Ana esteve derram ando sua nephes diante do Senhor nas pa-
lavras de sua oração (note o sim bolismo da água). Este é o pano de fundo
para nossa discussão no com entário de que a água do v. 38 está tanto
para o Espírito como para o ensino de Jesus.
que viessem a crer. Lemos o particípio aoristo, endossado por ambos os papi-
ros Bodmer, em vez do presente. Evidentem ente, o com entário entre pa-
rênteses é de um a perspectiva posterior. Interessantem ente, B ultmann,
p. 2292, atribui o v. 39 ao evangelista, e não ao redator; Bultmann conside-
ra a citação bíblica do v. 38 como a parte redacional da passagem.
não havia ainda Espírito. Alguns manuscritos e versões buscam amenizar o im-
pacto disto, p. ex., "o Espírito ainda não fora dado" ou "ainda não neles".
Provavelmente, escribas notaram uma dificuldade teológica, como se João
estivesse dizendo que a Terceira Pessoa da Trindade não existisse antes de
Jesus ser glorificado na paixão, morte e ressurreição. Mas uma afirmação
evangélica tal como esta não se preocupa com a vida interior de Deus; ela se
preocupa com a relação de Deus conosco. O Espírito não era uma realida-
de no tocante ao homem até que o Jesus glorificado comunicasse o Espírito
aos homens (20,22). Então o Espírito operaria em uma nova criação de uma
maneira até então não possível (ver artigos de Hooker e W oodhouse).
40. [estas palavras]. Há m uitas variantes nas testem unhas no registro destas
palavras, e são om itidas no OSs1n; provavelmente sejam um esclarecimento
posterior anexado por copistas.
0 Profeta. Ver p. 288s.
42. Escritura. Mt 2,5-6 é outra testem unha da crença popular no Ia século
de que o M essias havería de nascer em Belém. A passagem citada em
M ateus é Mq 5,2(1 H). Ao m encionar Belém, esta passagem , originalm en-
te, significava não mais que um a referência à origem davídica do líder
ungido, m as em séculos subsequentes ela, aparentem ente, foi tomada
literalm ente como um a predição de que o Messias realm ente nascería na-
quela vila. Entretanto, estranham ente, Mq 5,2 não aparece na literatura
rabínica sobre o Messias até bem mais tarde.
onde viveu Davi. Há algum suporte m enor nas versões para ler-se "de Davi",
ou "onde ele viveu"; estas variantes levaram a SB = [La Saint Bible] a omi-
tir a frase.
44. Alguns deles. Presum ivelm ente, da m ultidão; encontram os a mesma im-
precisão no "eles" do v. 30.
580 O Livro dos Sinais

mãos. No v. 30, o singular foi usado (traduzim os por "dedo"); aqui se usa
o plural.
45. quando a guarda do templo voltou. Segundo a cronologia do v. 37, este é o
quarto dia depois que foram enviados. Obviam ente, o arranjo é artificial.
os principais sacerdotes e fariseus. Um só artigo governa dois substantivos,
um detalhe que dá a im pressão de que eles estão m uito unidos nesta
ação.
46. falou como este. Em Mt 7,29, as m ultidões galileias exclamaram que ele os
ensinava como se tivesse autoridade, e não como os escribas.
48. Sinédrio... fariseus. Literalmente, Sinédrio equivale a "autoridades". Havia
m em bros do partido dos fariseus no Sinédrio, aqui, porém , está implícito
o partido geral dos fariseus. O v. 50 ressalta que, ironicam ente, um do
Sinédrio creu nele; ver tam bém 12,42.
49. esta plebe que nada sabe da Lei. Ver StB, II, p. 494, para passagens rabínicas
que atestam o desdém dos que eram educados na Lei para com o povo
comum sem qualquer cultura Vam hWãres, "povo da terra") que às ve-
zes eram displicentes quanto à Lei. Este "povo da terra" era contrastado
com os "estudantes dos sábios", e Pirqe Aboth, 2,6, diz que os prim eiros
não podiam ser santos. (Os pobres que eram ignorantes da Lei já tinham
tido problem a no tem po de Jeremias - ver Jr 5,4, onde ele busca escusá
-los). De fato, por certo que m uitos dos fariseus não teriam partilhado
deste desdém para com o povo.
e estão condenados. Pode ser que esta m aldição esteja associada com passa-
gens como Dt 37,26; 28,15; SI 119,21, as quais am aldiçoam os que não se
conform am com a Lei.
50. Um de seu próprio número. Esta frase está em outra ordem em alguns ma-
nuscritos, e está faltando em parte da tradição siríaca; é possível que seja
um a glosa de esclarecimento.
(0 homem que viera ter ele). Uma indicação adicional como "previam ente",
"de noite" ou "prim eiro" aparece em m uitas testem unhas, m as a varian-
te sugere que estam os tratando com esclarecim entos de copistas. Este pa-
rêntese é um caso da prática joanina com um de identificar personagens
já encontrados; ver 19,39.
51. sem primeiro ouvi-lo. (Há pouca evidência nas versões para om itirem
"prim eiro"). Ex 23,1 ad v erte contra falsas denúncias; Dt 1,16 tem
um a orientação im plícita de ouvir am bas as p artes de um caso. O
p rincípio rabínico se encontra nas p alav ras do Rabi Eleazar ben Pe-
d ath na Midrásh Rabbah sobre Ex 21,3: "A m enos que um m o rtal ouça
as alegações que um hom em tenha a ap resen tar, esse não está ap to a
em itir juízo".
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 581

52. examina. A s te ste m u n h a s d a tra d içã o o c id e n ta l a cr escen ta m "as Escritu-


ras"; é isto q u e e stá im p líc ito , m a s a frase é um e sc la r e c im e n to d e co p ista s.
0 Profeta. A v a sta m a io ria d e te s te m u n h a s lê " um P rofeta"; m a s a c e ita m o s a
r e d a ç ã o d o s d o is p a p ir o s B o d m e r (v e r Smothers, art. cit.), p o is o c o n c e ito
j o a n in o d e 0 P r o fe ta -c o m o -M o is é s p o d e r ia fa c ilm e n te ter s id o e q u iv o -
c a d o n o p r o c e s s o d e c o p ia r . A re d a ç ã o m a is c o m u m s u g e r e q u e n e n h u m
p ro feta ja m a is v ir ia d a G a lileia . Isto n ã o fo i a ssim n o p a s s a d o , p o is Jonas
era d e G a te-H e fe r , u m a v ila g a lile ia (2R s 14,25). P a rece a in d a ir con tra a
id e ia p o ste r io r d e q u e Israel n ã o tin h a c id a d e o u trib o d a q u a l n ã o v ie s s e
u m p ro feta (T alB ab Sukkah 27b).

C O M E N T Á R IO

O pano de fundo da festa dos Tabernáculos

P ara e n te n d e r o q u e Jesus d iz em 7,37-38, e d ep o is n o cap ítu lo 8, tem que


se ter u m c o n h ecim en to p ro fu n d o d a celebração da festa d o s T abernácu-
los. Esse tem a tem sido tra tad o co n v en ien te p o r G. W. M acR ak em CBQ
22 (1960), 251-76. N o tem p o d e Jesus, esta era u m a festa "especialm ente
sacra e im p o rta n te p a ra os h eb reu s" (Joskfo, Ant. 7.4.1; 100). A im por-
tância d a festa d o s T abernáculos p o d e ser traçada d o p e río d o pré-exüio;
p o is a d ed icação d o tem p lo d e S alom ão o correu n a festa d o s T abernácu-
los (lR s 8,2), e isto d e u à festa u m a relação especial com o tem plo.
A festa estav a tam b é m asso ciad a com o triu n fa n te "d ia d o Se-
n h o r". N o c o n texto d a festa d o s T ab ern ácu lo s, Zc 9-14 descreve o triu n -
fo d e Iah w eh : o rei m essiânico v e m a Jerusalém , triu n fa n te e m o n ta d o
em u m a sn o (9,9); Iah w e h d e rra m a u m esp írito d e co m p aix ão e súplica
so b re Jeru salém (12,10); Ele a b re u m a fonte p a ra a casa d e D avi p ara
p u rific a r Jeru salém (13,1); á g u a s v ivas correm d e Jeru salém p a ra o Me-
d ite rrâ n e o e o M ar M o rto (14,8); e, finalm ente, q u a n d o to d o s os ini-
m ig o s são d e stru íd o s, o p o v o sobe a n o a p ó s an o a Jeru salém p a ra ob-
se rv a r c o rre ta m en te a festa d o s T ab ern ácu lo s (14,16). N esta festa ideal
d o s T ab ern ácu lo s, em Jeru salém tu d o é san to , e n ão há m ais m erca-
d o res n o tem p lo (14,2021‫)־‬. O leitor terá n o ta d o q u e o N T se vale de
m u ito s d e ste s tem as d e Z acarias, e m en cio n am o s n a resp ectiv a nota
q u e Zc 14 é p ro v a v e lm e n te o p a n o d e fu n d o n ão só p a ra Jo 7,38, m as
tam b é m p a ra A p 22. Em u m artig o recen te, C. W. F. S mith m o stro u o
582 O Livro dos Sinais

u so im p lícito d o tem a d a festa d o s T a b e rn á c u lo s e n tre os ju d e u s cris-


tãos. O in teresse m essiân ico n a festa d o s T a b e rn á c u lo s p e rs is tiu n o s
sécu lo s p o ste rio re s d o ju d a ísm o tam b é m . U m a d e c la ra ç ã o e stá asso-
ciad a com o 4Uséculo a R abi A bba b a r K ah an a (StB, II, p . 793), d e q u e a
festa m a n té m e m si m esm a a p ro m e ssa d o M essias. O p se u d o -M e ssia s
B ar-K ochba (Ben K osiba) u so u sím b o lo s d a festa d o s T a b e rn á c u lo s em
su a s m o e d a s n a S e g u n d a R evolta Ju d a ic a (132-35 d.C.).
D e p a rtic u la r im p o rtân cia p a ra nossos p ro p ó sito s são as cerim ô-
n ias q u e su rg iram em conexão com a celebração com a festa d o s Ta-
b em áculos em Jerusalém . (Ver StB, Π, p p. 774-812; J eremias, TW N T, IV,
pp. 281-82; e o com entário d e Borni iaüserer sobre o tratad o m ishnáico
Sukkah na edição T ópelm ann). O antigo p a n o de fu n d o agrícola d a festa
dos T abernáculos com o sendo a festa d a ceifa d o o u to n o a to m o u a d ap tá-
vel a to m ar-se a ocasião d e orações p o r chuva. O s [festa dos] T abernáculos
se celebravam n o final d e setem bro ou início d e ou tu b ro ; e se a ch u v a caía
d u ran te este tem po, isso era considerado com o u m a garantia d e chuvas
iniciais ab u n d an tes, tão necessárias p ara as férteis colheitas no a n o seguin-
te. A inda hoje, tão am arg am en te com o os árabes d a Jordânia o d eiam os
israelitas, não deixam d e observar cu id ad o sam en te p a ra v er se a ch u v a cai
d u ran te a celebração israelita dos T abernáculos com o sinal d o tem p o p o r
vir. A lin h ad o com esta crença, encontram os em Zc 10,1 instruções p a ra
oração pela chuva, e em 14,17 u m a advertência d e q u e não h av erá chu-
va p ara aqueles qu e não forem a Jerusalém celebrar a festa ideal dos Ta-
bem áculos. A fonte d e ág u as qu e jorra d e Jerusalém , m encionada acim a
com o p arte d a visão d e Zacarias, p o d e ser in terp retad a contra o p a n o de
fu n d o de c h u v a a b u n d a n te e nviada p o r D eus d u ra n te os T abernáculos.
D u ra n te a festa, isto era d ra m a tiz a d o p o r u m a c e rim ô n ia so len e.
Em cad a u m a d a s sete m a n h ã s, u m a p ro cissão descia o m o n te G ion,
d o lad o s u d e ste d a colina d o tem p lo , cuja fo n te fornecia as á g u a s p a ra
o po ço d e Siloé. Ali u m sa c e rd o te en ch ia d e á g u a u m c â n ta ro d e o u ro ,
e n q u a n to o coro rep e tia Is 12,3: "C o m aleg ria tira re is á g u a d o s p o ço s
d a salv ação ". E ntão a p ro cissão su b ia ao tem p lo p e lo P o rtã o d a A g u a.
As m u ltid õ e s a c o m p a n h a n te s lev a v a m os sím b o lo s d o s T a b e rn á c u lo s,
a sab er, n a m ão d ire ita o lulab, q u e era u m ra m o d e m u rta e b ro to s d e
sa lg u e iro a ta d o s com p a lm a s (u m a rem in iscên cia d o s ra m o s u sa d o s
p a ra c o n s tru ir as te n d a s - v e r n o ta so b re v. 2), e n a m ã o e s q u e rd a o
ethrog, q u e e ra u m lim ão o u c id ra q u e se rv ia co m o sin a l d a colheita.
E n to av am tam b é m os salm o s H allel (113-118). Q u a n d o c h e g a v a m ao
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 583

a lta r d o s h o lo ca u sto s em fre n te d o tem p lo , a n d a v a m ao re d o r d o altar


a c e n a n d o os lulabs e c a n ta n d o o SI 118,25. E n tão o sa c e rd o te su b ia a
ra m p a d o a lta r p a ra d e rra m a r á g u a em u m fu n il d e p ra ta d e o n d e cor-
ria p a ra o solo. N o sé tim o d ia h a v ia u m a sé tim a c a m in h a d a em torno
d o altar.

Jesus, a Fonte de Agua Viva (i.e., da Sabedoria e do Espírito: 7,37-39

Foi n e ste m o m e n to so len e d a s ce rim ô n ia s n o sétim o d ia q u e o


m e s tre d a G alileia ficou em p é n o á trio d o te m p lo p a ra p ro c la m a r so-
le n e m e n te q u e ele era a fo n te d e á g u a viva (v er a resp e c tiv a n o ta p ara
e sta in te rp re ta ç ã o ). S u as o raçõ es p o r á g u a fo ram re s p o n d id a s d e um a
m a n e ira in e s p e ra d a ; a festa q u e c o n tin h a e m si a p ro m e ssa d o M es-
sias se c u m p riu . Zc 14,8 p re d iz ia q u e á g u a s v iv as jo rra ria m d e Jerusa-
lém , e Ez 47,1 via u m rio flu in d o d a ro ch a d eb a ix o d o tem p lo . A gora,
p o ré m , Jesu s d iz q u e estes rio s d e á g u a v iv a flu irã o d e seu p ró p rio
c o rp o , a q u e le c o rp o q u e é o n o v o tem p lo (2,21). N as p e re g rin a ç õ e s
p elo d e s e rto q u e a festa ev o cav a, M oisés saciara a se d e d o s israelitas
fe rin d o a ro ch a d a q u a l ele fez c o rre r rio s d e ág u a viva (SI 78,16 - ver
a re sp e c tiv a n o ta). O ra, os q u e têm se d e só n ecessitam d e ir a Jesus,
e p e la fé a á g u a d a v id a lhes p e rte n ce rá . A ssim com o o m an á d a d o a
se u s a n c e stra is n o d e se rto n ã o fora o p ã o v e rd a d e iro d o céu (6,32), as-
sim a á g u a d a ro ch a era a p e n a s u m a p re fig u ra ç ã o da v e rd a d e ira ág u a
d a v id a q u e e m a n a d o C o rd e iro (ver A p 7,17; 22,1).
O q u e Jesu s q u e r d iz e r p o r " á g u a v iv a"? O v. 39 identifica a ág u a
com o s e n d o o E spírito; m as o v. 39 tem u m c a rá te r d e u m p a rê n te se s
e isso n o s faz d u v id a r d e q u e ele re p re se n ta o sig n ificad o p rim á rio de
37-38. E m n o sso c o m e n tá rio , o n d e b u sc a m o s o p a n o d e fu n d o bíblico
p ro p o s to em 38, v im o s q u e u m n ú m e ro d e textos d a lite ra tu ra sap ien -
ciai d o A T p ô d e se r citad o . A b stra in d o d o fato d e q u e estes textos às
v ezes são d e fe n d id o s p e lo s q u e p e n sa m q u e o c ren te é a fonte d o s m a-
n a n c ia is d e á g u a , p o d e m o s, n ã o o b sta n te , u s a r tais textos em ap o io da
s u g e stã o d e q u e a á g u a m e n c io n a d a no v. 38 é p assív el d e u m a inter-
p re ta ç ã o sap ien cial. N a s p p . 394-395 v im o s q u e a á g u a v iv a d e 4,10-14
se referia n ã o só ao E sp írito , m as ta m b é m à rev elação o u e n sin o d e
Jesus, e cita m o s tex to s d o A T p a ra e stab elecer este p o n to . E stes textos
são a p lic áv e is ta m b é m a q u i, e n o s lev am a p e n s a r q u e a á g u a d e 7,38
p o d e ta m b é m refe rir-se à rev e laç ã o d e Jesus.
584 O Livro dos Sinais

H á u m n ú m e ro d e d e ta lh e s n o c o n tex to im e d ia to q u e co n firm a
isto. V im os q u e o tem a d e b u sc a r e a c h a r d e 7,34 era u m tem a sa p ie n -
ciai (p. 570). E p rec iso n o ta r q u e n o v. 37 João d iz q u e Jesu s se p ô s
em p é e ex clam o u . P o d e m o s c h a m a r a a te n ç ã o p a ra as p a s sa g e n s em
P ro v érb io s o n d e a S abedoria entoa seu convite aos h o m e n s (1,20; e 8,2-3,
o n d e ela se p õ e em p é e canta). Em P r 9,3ss. a S ab ed o ria c o n v id a o s sím -
plices: "V inde, com ei d e m eu a lim en to e beb ei d o v in h o q u e e u m istu -
rei" (tam b ém S iraque 51,23); tais convites se a ssem elh am ao d e Jesus e m
37-38. Som os lem b rad o s ain d a d o convite p a ra a obten ção d e sabe-
d o ria em is 55,1: "T o d o s os q u e têm sed e, v in d e às á g u a s" . Já m en -
cio n am o s o u so em Q u m ra n e círculos rabínicos d e á g u a (viva)
com o sím b o lo d a Lei. P assag en s d o A T com o Jr 2,13 p o d e m ser re-
in te rp re ta d o s à lu z d essa sim bologia: "Eles m e a b a n d o n a ra m , a fon-
te d e ág u a s v iv as e c a v ara m p a ra si cisternas, cistern as ro tas, q u e
n ão p o d e m rete r a ág u a ". (D e ac o rd o com Miss G uii.ding, p. 105, Jr 2
era u m d o s haphtaroth d a sin ag o g a p a ra a festa d o s T ab e m á c u lo s, e m u i-
tos o têm citad o em relação à citação bíblica d e Jo 7,38). O sim b o lism o
joanino o n d e a á g u a flui d o v e n tre d e Jesus (ver n o ta so b re v. 38, " d e
seu in terio r") n ão oferece d ific u ld a d e a u m a in te rp re ta ç ã o sap ien cial d a
água; p o r ex em p lo, SI 40,8 diz: "V ossa lei está em m e u v e n tre ". A ssim , a
ap resen tação q u e Jesus faz d e su a rev elação c o m o á g u a v iv a p o d e se r a
m o d o d e co n traste com o p e n sa m e n to ju d aico so b re a Lei. H á d iv e rsa s
referências à Lei n e ste m esm o c a p ítu lo d e João (7,19.49).
Se a ág u a é u m sím bolo d a revelação q u e Jesus d á aos q u e creem
nele, é tam b ém u m sím bolo d o E spírito q u e o Jesus re ssu rre to d a rá ,
com o v. 39 especifica. N o m o m e n to d e su a m orte, Jesus re n d e rá o
E spírito (19,30), p recisam en te com o á g u a fluirá d e seu lad o (19,34).
l jo 5,7 re ú n e os tem as d o E spírito, d o sa n g u e e á g u a d o lad o d e Je-
sus: "H á três testem u n h as: o E spírito, a á g u a e o sangue; e estes três
são u m só". N a p. 347 d e m o s u m n ú m e ro d e textos d o A T q u e u sa m
a im ag em d e ág u a p a ra o d e rra m a m e n to d o esp írito d e D eus. A estes
p o d e m o s an ex ar Is 44,3, que, se g u n d o Miss G uilding, p. 105, p o d e ria
ter sid o u m haphtarah d a sinagoga p a ra o m ês d a festa d o s T ab em ácu -
los: "E u d e rra m a rei á g u a sobre a terra sed en ta, e m an an ciais n o solo
seco; d e rra m a rei m eu espírito sobre vossos d e scen d en tes". E m conexão
com as cerim ô n ias d e ág u a na festa d o s T ab em ácu lo s, o T aljer (Sukkah
55a) afirm a q u e a p a rte d o s recintos d o tem p lo p e rc o rrid a s d u ra n te a
p rocissão com a ág u a era ch a m a d a "L u g a r d a E xtração", p o rq u e d ali
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 585

e x traíam 0 espírito santo" (tam b ém Midrásh Rabbah 70,8 sobre G n 29,1).


H á u m a in te ressa n te re p e rc u ssã o histórica secu n d á ria d o sim bolism o
d e q u e á g u a co m o sím bolo d o E spírito Santo. N a respectiva n o ta m en-
cio n am o s q u e a m aio ria d o s p a d re s o rien tais in te rp re ta v a v. 38 no sen-
tid o d e q u e o cren te, n ã o Jesus, era a fonte d a á gua; u m a raz ã o p a ra este
p o n to d e v ista era a c o n tro v érsia so b re as pro cessõ es n a T rin d a d e em
q u e os g reg o s m a n tin h a m q u e o E spírito S anto não p ro ce d e d o Filho.

Se a á g u a d e 7,37-39 sim b o liza ta n to a rev elação d e Jesus com o


o E sp írito (com o ta m b é m n o cap. 4), p o rv e n tu ra há u m sim b o lism o
b a tis m a l a ser d e sc o b e rto n e ste s v ersícu lo s? O b v ia m e n te , se a á g u a se
re fe re ao E sp írito , n ã o p o d e m o s s im p le sm e n te id en tifica r esta ág u a
co m a á g u a b a tism a l q u e comunica 0 Espírito. N ã o o b sta n te , n ão so-
m o s a v e sso s em v e r a q u i u m a m p lo sim b o lism o sa cra m e n tal, no sen-
tid o q u e e sta p a ssa g e m d e João teria le v a d o os leito res cristão s pri-
m itiv o s a p e n s a r n o b a tism o co m o v e m o s no c a p ítu lo 4 (ver p. 395).
C o m o m e n c io n a m o s, B raun, JeanThéol, 1, p. 150, p e n s a m q u e este
tex to ex e rc e u u m p a p e l n a a rte b a tism a l p rim itiv a d a s catacu m b as.
P ela m a n e ira d a s in d icaçõ es in te rn a s n o seio d o e v a n g elh o , há u m a
e stre ita relação e n tre 7,37-39 e 19.34; e o ú ltim o tem u m a significância
b a tis m a l tão forte, q u e Bultmann o tra ta com o u m a ad ição sacram en -
tal feita p e lo R e d a to r E clesiástico. A lém d o m ais, p a re c e q u e a tipo-
lo g ia d a ro ch a d a s p e re g rin a ç õ e s d o ê x o d o já p o r d e trá s d a citação
bíblica n o v. 39; e a Igreja p rim itiv a rec o rre a m p la m e n te a tal tipologia
d o ê x o d o p a ra ex p licar o b a tism o (ep ísto las p a u lin a s; 1 P edro).

Reações à declaração de Jesus (7,40-52)

A re iv in d ic a ç ã o d e Jesus d e d a r á g u a v iv a leva a lg u n s d e n tre a


m u ltid ã o a p e n s a r nele co m o o P rofeta-com o-M oiséis. Isto é m u ito
in telig ív el se a referên cia bíblica p a ra o v. 39 é a cena o n d e M oisés
feriu a ro ch a. V im os em 6,14 q u e a se m e lh an ç a e n tre o p o d e r d e Jesus
em m u ltip lic a r p ã e s e o d e M oisés em fazer d e sce r m a n á d o céu levou
a m u ltid ã o a id en tifica r Jesus co m o o P rofeta. O m esm o tip o d e se-
m elh a n ça está em ação a q u i. H á u m a p a ssa g e m rab ín ica p o ste rio r na
Midrásh Rabbah so b re Ecl 1,9 q u e é m u ito in te re ssa n te n este aspecto:
586 O Livro dos Sinais

"C o m o o p rim e iro re d e n to r [M oisés] fez ta m b é m re ssu sc ita r, a ssim o


ú ltim o R e d e n to r fará su b ir á g u a , c o m o se declara: Έ u m a fo n te jo rra rá
d a casa d o S e n h o r...'". (J1 3 [IVH] 18).
O u tro s id entificam Jesus com o o M essias. Esta ex p ectativ a se en-
q u a d ra b em n o colorido m essiânico q u e a festa d o s T a b e m á c u lo s ha-
via a d q u irid o (ver resp ectiv a nota). L em b ram o s q u e o im p o rta n te p a n o
d e fu n d o em Z acarias m en cio n o u u m a fonte p a ra a casa de Davi (13,1;
tam b ém 12,10). A objeção q u e é su scitad a c o n tra Jesus ser o M essias
indica q u e em Jerusalém n ão hav ia co n h ecim en to d e q u e Jesus real-
m en te n ascesse em Belém , u m a indicação q u e é difícil conciliar com
M t 2,3, o n d e "to d a Jeru salém " fica a g ita d a pelo n a scim en to d a criança.
A lg u n s co m en taristas tra n sfe riría m a ig n o rân cia d o n a scim en to d e Je-
su s em Belém d a m u ltid ã o p a ra o evangelista. M an têm q u e o silêncio
d e João em n ão oferecer u m a refu tação à objeção n o v. 42 significa q u e
o a u to r n ão conhecia a trad ição d a recolocação d o n a scim en to d e Jesus
com o e n c o n trad o em Lucas e M ateus. T odavia, este a rg u m e n to d o si-
lêncio n ão é convincente. H avia d u a s teorias so b re o M essias (ver s u p ra ,
p. 233), e a m b a s são exem plificadas no cap ítu lo 7. N o v. 27, a objeção
co n tra Jesus ser o M essias p ro v é m d a teoria d o M essias oculto. O p o v o
crê q u e sab e d e o n d e é Jesus (Galileia), m as iro n icam en te está eq u iv o -
cado; ele é d o céu, e n ã o têm tal conhecim ento. P o rtan to , Jesus é desco-
n h ecid o e p o d e b em ser o M essias oculto. N o v. 42, a objeção so b re Jesus
ser o M essias p ro v é m d a d escen d ên cia d av íd ica d o M essias. O p o v o crê
q u e sabe q u e Jesus nasceu em N azaré, m as iro n icam en te e stá equ iv o ca-
do: ele n asceu em Belém. P o rtan to , Jesus p o d e ser o e sp e ra d o M essias
davídico. P o rtan to , so b re a base d o p aralelism o e n tre 27 e 42, crem o s
q u e o ev an g elista conhecia p e rfe ita m e n te b e m a trad ição d e q u e Jesus
nasceu em Belém. V isto q u e ele e sp erasse q u e esta tra d içã o seria conhe-
cida d e seu s leitores, o equívoco d o s ju d e u s no v. 42 lh es seria a p a re n te ,
p recisam en te com o foi o eq u ív o co n o v. 27. E n tretan to , a d m ito franca-
m en te q u e as o u tra s in terp retaçõ es d o silêncio d o ev an g elista so b re a
q u estão d a recolocação d o n ascim en to d e Jesus são p o ssív eis, d e m o d o
q u e n ão se p o d e reiv in d icar com certeza n e n h u m a so lu ção definitiva.
N o s vs. 45-52 João n o s d á u m esboço literá rio d a fru stra ç ã o e im -
p o tên cia d a s a u to rid a d e s d o S in éd rio , q u a n d o se d e fro n ta ra m co m Je-
sus. Jesu s c o n s e g u iu re c ru ta r se g u id o re s e n tre as m u ltid õ e s; a g u a rd a
d o te m p lo fica a tô n ita ; e in clu siv e u m d o s m e m b ro s d o S in é d rio faz
u m a d efesa d e Jesus. A ú n ica coisa q u e resta às a u to rid a d e s e stá no
29 · Jesus na festa dos tabernáculos: Cena II 587

argumentum ad hominem e o sa rc a sm o (52) q u e e n c erra a cena. Em 1,46,


N a ta n a e l h a v ia ta m b é m e sca rn e cid o d a s o rig e n s g alileias d e Jesus; po-
ré m fora b a s ta n te sin cero e m v ir e v e r p o r si m esm o , e ele d esco b riu ,
p e la fé, o q u e e stiv e ra b u sc a n d o . E n tre tan to , q u a n d o as a u to rid a d e s
d o S in é d rio e sc a rn e c e ra m as o rig e n s g alileias d e Jesu s e são co n v id a-
d a s a o u v ir Jesu s falar d e si m esm o , fazem o u v id o m ouco. E ste é o
m e s m o tem a q u e e n c o n tra re m o s n o c a p ítu lo 9: os fariseu s são cegos
p o rq u e se re c u s a m a ver. E in te re ssa n te n o ta r q u e, e n q u a n to os a u to -
res n e o te s ta m e n tá rio s são h o stis ao S in éd rio , d e tem p o s e m tem p o s
s a lie n ta m a p re se n ç a d e h o m e n s se re n o s e h o n e sto s n esta assem bléia:
a q u i, N ic o d e m o s; em A t 5,34, G am aliel.
A n te s d e c o n c lu irm o s o c a p ítu lo 7, é n o sso d e v e r sa lie n ta r q u e a
s e g u n d a p a rte d a C en a I, isto é, 25-36, e a C en a II (37-52) p a rtilh a m
u m g ra n d e n ú m e ro d e p a ra le lo s na reação d a s m u ltid õ e s e d a s a u to -
rid a d e s c o n tra Jesus. E v id e n te m e n te , existe a q u i a lg u m a d u p licação ,
e u m a v ez m ais p o d e m o s e sta r lid a n d o com d u p lic a ta d e rela to s joa-
n in o s d a m e sm a cena.

Cena Ib (25-36) Cena II (37-52)


25 A s d eclaraçõ es d e Jesus leva a lg u n s 40
d o p o v o o u m u ltid ã o a e m itir so-
b re ele a lg u m juízo.
26-27 A q u e stã o d e se ele é o M essias e u m a 41-42
objeção.
30 U m g ru p o v a g a m e n te d e fin id o q u e r 44
p re n d ê -lo , m a s n in g u é m p o d e dei-
tar-lh e se q u e r u m d e d o o u m ão.
31 S u as o b ras o u su a s p a la v ra s im p ac- 46
tam g ra n d e m e n te a alg u n s.
32 O p rin c íp io e a co n clu são d a te n ta tiv a 45-49
d a polícia d o te m p lo d e p ren d ê -lo .

B IB L IO G R A F IA

AUDET, J.-P., "La soif, I'eau et la parole", RB 66 (1959), 379-86.


BLENKINSOPP, J., "John vii 37-39: Another Note on a Notorious Crux", NTS
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588 O Livro dos Sinais

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W OODHOUSE, H. F., ‫ ״‬Hard Sayings - ix. John 7. 39", Theology 67 (1964),
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3 0 .0 RELATO D A M U LH ER A D U LTER A
(7,53; 8,1-11)

Uma interpolação não joanina

[7 53E n tã o c a d a u m foi p a ra su a p r ó p ria casa, 8 1e n q u a n to Jesus


s a iu p a r a o m o n te d a s O liv e ira s. 2M as d e m a n h ã b e m c e d o ele to r-
n o u a a p a re c e r n o s re c in to s d o te m p lo ; e q u a n d o to d o o p o v o co-
m e ç o u a ir te r co m ele, e n tã o a sse n to u -s e e p a s s o u a en sin á-lo s.
3E n tã o o s e s c rib a s e o s fa rise u s a p re s e n ta r a m u m a m u lh e r q u e fora
a p a n h a d a e m a d u lté rio , e a p u s e ra m e m p é ali d ia n te d e to d o s.
4" M e s tre " , d is s e ra m -lh e , " e sta m u lh e r foi a p a n h a d a n o p ró p rio a to
d e a d u lté rio . 5O ra , n a Lei M o isés o rd e n o u q u e tais m u lh e re s sejam
a p e d re ja d a s . T u , p o ré m , o q u e te n s a d iz e r a re s p e ito ? " (6P ro p u se -
ra m e s ta q u e s tã o p a ra e n re d á -lo a fim d e te re m a lg o p a ra acusá-lo).
Je su s, p o ré m , s im p le s m e n te a b a ix o u -se e p a s s o u a d e s e n h a r n o c h ão
co m s e u d e d o . 7Q u a n d o p e rs is tira m e m s e u q u e s tio n a m e n to , ele se
e rg u e u e d isse -lh e s: " O h o m e m e n tre v ó s q u e n ã o te m p e c a d o - seja
o p rim e iro a la n ç a r-lh e u m a p e d ra " . 8E a b a ix o u -se o u tra v e z e co m e-
ç o u a e s c re v e r n o ch ão . 9Eles, p o ré m , o u v in d o isto fo ra m -se re tira n -
d o u m a p ó s o o u tro , c o m e ç a n d o co m os an c iã o s; e foi d e ix a d o sozi-
n h o co m a m u lh e r a in d a ali d ia n te dele. 10E n tão Jesus, e rg u e n d o -se ,
d isse -lh e : " M u lh e r, o n d e e stã o to d o s? N in g u é m te c o n d e n o u ? "
11" N in g u é m , s e n h o r" , r e s p o n d e u ela. Je su s d isse: " N e m e u te co n d e -
no. V ai e d o r a v a n te n ã o p e q u e s m ais".]

3: apresentaram; 4: disseram. No tempo presente histórico.


590 O Livro d o s S in ais

NOTAS

7.53. cada um foi. A situação pressuposta neste relato independente em princí-


pio, parece ser uma em que Jesus esteve ensinando diariam ente nos recin-
tos do templo ("outra vez" no v. 2). Esta situação se encontra nos relatos
sinóticos dos últimos dias de Jesus em Jerusalém (Lc 20,1; 21,1.37; 22,53).
8.1. Monte das Oliveiras. Este nom e, que ocorre três ou quatro vezes em cada
sinótico, se encontra som ente aqui em João. Lc 21,37 diz que d urante os
últimos dias de sua vida Jesus buscava abrigo no M onte das Oliveiras.
2. de manhã bem cedo. Sem o artigo, ocorre em outro lugar no NT som ente em
Lucas e Atos. Lc 21,38 diz que de m anhã bem cedo todo o povo veio aos
recintos do tem plo para ouvi-lo.
assentou-se e passou a ensiná-los. Ver nota sobre 6,3.
3. os escribas. M encionados som ente aqui em João; a com binação "os escri-
bas e os fariseus" é bem com um na tradição sinótica. Não tem os que
distinguir entre os dois grupos como se estes fossem os escribas que não
pertenciam ao partido dos fariseus. Uns poucos m anuscritos dizem "os
principais sacerdotes", em vez de "os escribas" sob a influência de 7,32.
uma mulher. Uma m ulher casada, estando em pauta o adultério na Lei com
infidelidade por parte da esposa, e não com atividades entre um hom em
casado e m ulheres solteiras.
apanhada em adultério. O Codex Bezae diz "em pecado", um eco do rela-
to da m ulher no Evangelho Segundo os Hebreus; ver comentário. Com o o
v. 4 indica, a m ulher foi apanhada no próprio ato de relação sexual.
D errett, pp. 4-5, defende a tese de que, segundo Dt 19,15, tinha de haver
ao m enos duas testem unhas da ação, com exclusão do esposo. N ada se
menciona de seu am ante, que teria escapado. A história deuterocanônica
de Susana (Vulgata = Dn 13) oferece um bom paralelo para tudo isto,
p. ex., vs. 36-40.
em pé ali diante de todos. Esta é a posição para o comparecer em juízo em At 4,7.
4. Mestre. Este é a forma norm al na tradição sinótica; em João, é especifica-
m ente um a tradução de "Rabi" (1,38). D errett, p. 3, pode estar certo em
dizer que, a despeito da saldação, eles se dirigem a Jesus mais na quali-
dade de profeta do que na de rabi ou expert sobre a Lei.
5. sejam apedrejadas. Lv 20,10 ordena a pena de morte, porém deixa a for-
ma sem especificar. Dt 22,21 especifica o apedrejam ento como a punição
para a falta de castidade da parte da m ulher que está noiva, e isto tem
levado m uitos a sugerir que a m ulher no relato de João estava noiva, não
um a m ulher casada que participa da vida dom éstica com seu esposo. En-
tretanto, como Ez 16,38-40 m ostra, o apedrejam ento era a forma norm al
30 · O relato d a m u lh er adúltera 591

da pena de m orte para todos os tipos de adultério; a LXX, sobre a his-


tória de Susana (v. 62), menciona a m orte por esm agam ento em ou por
apedrejam ento. B l i n z l e r , art. cit., ao contrário, tem m ostrado conclusi-
vam ente que o apedrejam ento estava em vigor nos dias de Jesus, e que
som ente mais tarde os fariseus adotaram a estrangulam ento como a pu-
nição por adultério.
6. propuseram esta questão para enredá-lo. O texto grego é quase o mesmo de
Jo 6,6 (ver nota ali).
a fim de terem algo para acusá-lo. Q uase o m esm o grego se encontra em
Lc 6,7.
desenhar. O verbo pode significar "escrever" ou "registrar"; o verbo simples
"escrever" se encontra no v. 8. O que Jesus desenhava no chão com seu
dedo? Há m uitas sugestões: (a) Uma tradição que retrocede a Jerônimo
e que encontrou seu cam inho em um m anuscrito arm ênio do evangelho
do 10“ século é que ele escrevia os pecados dos acusadores. Isto é mais
apropriado para a escrita no v. 8, a m enos que pensem os que ele escrevia
a m esm a coisa am bas as vezes, (b) M anson, art. cit., tem cham ado a aten-
ção para o fato de que na prática rom ana legal o juiz prim eiro escrevia a
sentença em então a lia em voz alta. Assim, pode ser que na ação descrita
no v. 6 Jesus escreveu a sentença que enunciaria em 7; então, no 8, ele é
descrito como a escrever o que diria em 11. Todavia, os fariseus podiam
ler; e se ele escreveu a decisão como descrita em 6, então 7 é de difícil
explicação. S. D aniel, segundo o resum o de NTA 2 (1958), 553, também
pensa que a escrita com o dedo deve conectar-se com julgam ento e cita
o paralelo do m anuscrito na parede em Dn 5,24. (c) O utros pensam que
a ação de Jesus é a representação de Jr 17,13: "Os que se desviam de
ti serão escritos na terra, pois que abandonaram o Senhor, a fonte de
água viva", (d) D errett, pp. 16-22, pensa que, segundo o v. 6, Jesus es-
creveu as palavras de Ex 23,1b: "e não porás a tua mão com 0 ímpio (para
ser um a testem unha maliciosa)". As palavras em itálico se adequam
ao núm ero de letras que Jesus poderia ter escrito em sua posição inch-
nada sem m u dar a postura, e o texto se adequa à situação que D errett
tem conjeturado que o esposo havia tram ado para ter testem unhas que
flagrassem sua esposa. Ver abaixo sobre v. 8. (e) Aí perm anece a possi-
bilidade m uito m ais sim ples de que Jesus estava sim plesm ente traçando
linhas no chão enquanto pensava, ou quisesse m ostrar im perturbabilida-
de, ou conter seus sentim entos de desgosto ante o violento zelo exibido
pelos acusadores. P ower, Bib 2 (1921), 54-57, dá um núm ero de exem-
pios da literatura rabínica para ilustrar o costum e semítico de rabiscar no
chão quando perturbado. Para mais pontos de vista, ver D errett, p. 164.
59 2 O Livro d o s S inais

Sim plesm ente não há evidência suficiente para endossar conclusiva-


m ente qualquer destas conjeturas; e por outro lado, cabe pensar que, se
a questão fosse da máxima im portância, o conteúdo da escrita teria sido
registrado.
7. O homem. ... lançar-lhe uma pedra. Dt 17,7 reconhece que as testem unhas
contra o acusado têm a especial responsabilidade por sua m orte. O Tal-
Bab Sotah 47b cita o princípio de que o teste da água para provar a culpa
ou inocência da esposa só será eficaz se o próprio esposo está isento de
culpa. Esta passagem no v. 7 tem particular significado na conjetura de
D errett, (d) acima, onde o esposo dem onstrou cupidez e ciúm e em enre-
dar a esposa, e as testem unhas tenham consentido em apanhá-la.
8. escrever. D errett, pp. 23-25, mantém que ele escreveu outra vez de Ex 23;
desta vez, foi o v. 7a: "Não admitirás falso boato (e não m atarás o inocente e
o justo, pois não absolverei o culpado)". Ao obter a absolvição de Susana,
Daniel cita esta passagem de Êxodo (Susana 53).
9. ouvindo isto. Algum as testem unhas m enos im portantes acrescentam: "con-
vencidos por sua consciência".
começando com. Isto sim plesm ente pode significar "incluindo".
anciãos. Há várias tentativas, nas testem unhas textuais, de term inar esta
frase: "e continuando até os últim os"; "de m odo que se foram".
10. erguendo-se. Alguns m anuscritos m enos im portantes acrescentam: "e não
vendo ninguém , senão a m ulher".
onde estão todos? Surpreso? Ou sarcasm o gentil?
Ninguém te condenou? As testem unhas e os acusadores se foram; o caso cai
por terra. Aqui, o verbo "condenar" é o verbo técnico katakrinein; em ou-
tros lugares João sem pre usa o hinein mais am bíguo (ver nota sobre 3,17).
11. não peques mais. Literalmente, "não voltes a com eter mais este", como em
5,14. Mas, enquanto a diretiva era geral ali (não se m encionou nenhum
pecado particular), aqui está implícita a atividade am orosa adulterina.
O "não m ais" é um tanto tautológico depois do "doravante".

C O M E N T Á R IO

Problemas de autoria e de canonicidade

E stes p ro b le m a s d e v e m se r tra ta d o s co m o u m a série d e q u e stõ e s d is-


tin tas. A p rim e ira q u e stã o é se o re la to d a m u lh e r a d ú lte ra era p a rte
d o e v a n g elh o o rig in a l s e g u n d o João o u se foi in se rid o e m u m p e río d o
30 · O relato da m u lh er adúltera 5 93

p o s te rio r. A re sp o sta a esta q u e stã o é o b v ia m e n te q u e esta foi u m a in-


serção u lte rio r. E sta p a ssa g e m n ã o se e n c o n tra em q u a lq u e r u m a d as
im p o rta n te s te s te m u n h a s te x tu a is g reg a s p rim itiv a s d e p ro ced ên cia
o rie n ta l (p. ex.‫ ׳‬em n e n h u m p a p iro B odm er); n e m se e n c o n tra no OS
o u n a v e rs ã o C ó p tica. N ã o há n e sta p a ssa g e m n e n h u m c o m en tário
feito p o r escrito res g reg o s so b re João n o p rim e iro m ilên io cristão, e
só é a p a rtir d e 900 q u e ela com eça a a p a re c e r n o texto g reg o p a d rã o .
A e v id ê n c ia e m p ro l d a p a ssa g e m co m o p a rte d a E scritu ra, nos pri-
m e iro s sécu lo s, se re strin g e à Igreja o cid en tal. Ela a p a re c e em a lg u n s
tex to s O L d o s ev a n g elh o s. A mbrósio e A gostinho q u e ria m q u e fosse
lid a co m o p a rte d o e v a n g elh o , e J erônimo a in clu iu na V ulgata. Ela
a p a re c e n o C o d e x B ezae g rec o -la tin o d o 52 século.
N ã o o b stan te, p o d e-se a rg u m e n ta r p lau siv elm en te q u e o relato teve
su a s o rig en s n o O rien te e realm en te é antiga (ver Schilling, art. cit.). Eu-
sébio (Hist. 3,39:17; GCS 9':292) diz: " P alias relata o u tra história d e um a
m u lh e r q u e foi a cu sad a d e m u ito s p ecad o s d ian te d o Senhor, a qual está
c o n tid a n o Evangelho Segundo os Hebreus". Se esta é a m esm a história da-
q u ela a d ú lte ra , a referência a p o n ta ria p a ra origens p alestin as prim itivas;
m as n ão p o d e m o s estar certos d e q u e nosso relato é aq u ele im plícito.
A Didascalia Apostolorum d o 3Ü século (2, 24:6; F unk ed., 1, 93) d á um a
clara referência ao relato d a m u lh e r a d ú lte ra e a usa com o u m exem -
p io p re su m iv e lm e n te b em conhecido d a b ra n d u ra d e n osso Senhor; esta
o b ra é d e o rig em siríaca, e a referência significa qu e o relato era bem
co n h ecid o (p o rém não n ecessariam en te com o bíblico) na Síria no 2‫ ־‬sé-
culo. D o p o n to d e vista d a crítica in tern a, o relato é b e m p lausível e bem
se m elh an te a d e o u tro s relatos evangélicos d a s ten tativ as d e p rovocar
Jesus (Lc 20,20.27). N ão há n a d a no relato em si o u sua linguagem que
n o s p ro ib iría d e p e n sa r nele com o u m relato p rim itiv o concernente a
Jesus. B f.gker a rg u m e n ta en erg icam en te e m p ro l d esta tese.
Se o re la to d a m u lh e r a d ú lte ra foi u m a a n tig a h istó ria so b re Jesus,
p o r q u e ela n ão se to rn a ria im e d ia ta m e n te p a rte d o s e v a n g elh o s acei-
tos? R iesenfeld tem feito u m a ex plicação m ais p lau sív e l da d e m o ra na
aceitação d e s te relato . A facilid ad e com q u e Jesus p e rd o o u a a d ú lte ra
foi difícil d e co n ciliar com a o tem a d a d isc ip lin a p e n ite n cia l em voga
na Igreja p rim itiv a . S o m en te q u a n d o u m a p rática p e n ite n cia l m ais li-
b eral foi s o lid a m e n te e stab elecid a q u e este rela to recebeu a m p la acei-
tação. (R iesenfeld traça su a aceitação litú rg ica até o 5 “ sécu lo com o
u m a le itu ra p a ra a festa d e St11 Pelágia).
594 O Livro d o s S inais

A segunda q u e stã o é se o rela to é o u n ã o d e o rig e m jo an in a.


O fato d e q u e o rela to foi a n e x a d o ao e v a n g e lh o só e m u m p e río d o
p o s te rio r n ã o exclui a p o ssib ilid a d e d e q u e e sta m o s tra ta n d o d e u m a
n a rra tiv a e x tra v ia d a c o m p o sta n o s c írcu lo s jo an in o s. O tex to g re g o d o
relato exibe u m n ú m e ro d e red a ç õ e s v a ria n te s (o riu n d a s d o fato d e
q u e a p rin c íp io ela n ã o foi p le n a m e n te aceita), m as e m g e ra l o estilo
n ão é jo an in o seja n o v o c a b u lá rio , seja n a g ram á tic a. E stilisticam en te,
o rela to é m ais lu ca n o d o q u e jo an in o .
T a m p o u co é o m a n u sc rito e v id ê n c ia u n â n im e e m a sso c ia r o re-
lato com João. U m im p o rta n te g r u p o d e te s te m u n h a s coloca o re la to
d e p o is d e Lc 21,38, u m a localização q u e seria m u ito m ais a p ro p ria d a
d o q u e a p re s e n te p o siç ã o d o rela to em João, o n d e ela in te rro m p e a
seq u ên cia d o s d isc u rso s fna festa] d o s T ab ern ácu lo s.
Se o relato n ão foi d e origem joanina, e rea lm e n te está fora d e lu-
g ar, o q u e p ro p ic io u su a localização d e p o is d e Jo 7,52? (N a re a lid a d e ,
u m as p o u cas teste m u n h a s a colocam em o u tro lu g ar e m João: d e p o is
d e 7,36 o u n o final d o evangelho). H á d iv erso s p o n to s d e vista. Miss
G uildinc, p p . 110-12, 214', explica a situ ação da p a ssa g e m ta n to em
João com o em Lucas so b re a base d e su a teoria d o ciclo lecionário.
Schilling, p. 97ss., in sistin d o so b re o p a ra lelo com a h istó ria d e S u san a,
ch am a a aten ção p a ra ecos d e D aniel em João, e assim faz d e D aniel
a m o tiv ação decisiva p a ra a in tro d u ç ã o d o relato d a m u lh e r a d ú lte ra
em João. U m a explicação m ais correta p a ra a localização d o rela to no
contexto geral d e Jo 7 e 8 p o d e ser e n c o n tra d a n o fato d e q u e ele ilu stra
certas declarações d e Jesus n a q u eles c ap ítu lo s, p o r ex em p lo , 8,15: "E u a
n in g u ém julgo"; 8,46: "P o d e a lg u m d e v ós co n v en cer-m e d e p e c ad o ? "
D errett, p. I 3, o q u a l p e n sa q u e a ch av e p a ra o relato está na in d ig n i-
d a d e d o s acu sa d o re s e d a s teste m u n h a s, salienta q u e o tem a d a ad m is-
sib ilid ad e d a ev id ên cia se m o stra n o contexto im e d ia to d e 7,51 e 8,13.
H oskyns, p. 571, traz a lu m e u m a v e rd a d e q u a n d o d iz q u e, e n q u a n to o
relato p o d e estar tex tu a lm e n te fora d e lu g ar, d o p o n to d e v ista teológi-
co ele se encaixa n o tem a d o ju lg a m e n to d o c a p ítu lo 8.
A terceira q u e stã o é se o relato é o u n ão canônico. P ara a lg u n s, esta
q u e stã o já teria sid o re s p o n d id a acim a, p o sto q u e, a se u m o d o d e ver,
o fato m esm o d e q u e seja u m a ad ição p o ste rio r, d e o rig e m n ã o joani-
na, significa q u e o rela to n ã o p o d e se r can ô n ico (m esm o q u a n d o seja
u m relato a n tig o e g en u ín o ). P ara o u tro s, c a n o n ic id a d e é u m a q u e stã o
d e aceitação e u so eclesiásticos trad icio n ais. A ssim , na Igreja C atólica
30 · O relato da m u lh er adúltera 5 95

R o m a n a , o c ritério d e c a n o n ic id a d e é su a aceitação na V u lg ata, pois a


Igreja tem u s a d o a V u lg a ta co m o su a Bíblia d u ra n te séculos. O relato
d a m u lh e r a d ú lte ra foi aceito p o r J krônimo, e p o r isso os católicos o
c o n s id e ra m co m o can ô n ico . Ele e n c o n tro u ta m b é m se u c a m in h o p a ra
o tex to rec e b id o d a Igreja B izan tin a, e fin a lm e n te n a Bíblia K ing Ja-
m es. E a ssim a m aio ria d o s cristã o s n ã o católicos ro m a n o s tam b ém
aceita o re la to co m o bíblico.

O significado do Relato

N e n h u m a d e fe sa é n ecessária p a ra a in serção d e ste relato , p o r


a lg u m te m p o , o q u a l e n c o n tro u seu c a m in h o p a ra o Q u a rto E vange-
lh o e a lg u n s m a n u sc rito s d e Lucas, p o is em q u a lid a d e e b eleza ele é
d ig n o d e a m b o s. Sua e x p re ssã o su c in ta d a m ise ric ó rd ia d e Jesus é tão
d e lic a d a co m o tu d o em L ucas; o p erfil q u e ele traça d e Jesus com o
u m s e re n o ju iz p o ssu i to d a a m aje sta d e q u e e s p e ra ría m o s d e João.
O m o m e n to em q u e a m u lh e r p e c a d o ra é c o n fro n ta d a com o Jesus
im p ecáv el co n stitui u m d ram a inusitado, u m d ram a lin d am en te cap tad o
na s u c in ta fó rm u la latin a e m A gostinho : relicit sunt duo, misera et mise-
ricordia (In Jo. 33,5; PL 35:1650). E o d e lic ad o e q u ilíb rio e n tre a justiça
d e Je su s em n ã o to le ra r o p e c a d o e su a m ise ric ó rd ia em p e rd o a r o
p e c a d o r é u m a d a s g ra n d e s lições ev an g élicas.
O relato n o s a p re se n ta v á ria s q u estõ es. A m ais difícil d iz resp eito
à ra z ã o p o r q u e o s escrib as e farise u s lev a ram a m u lh e r a Jesus. Ela está
se n d o le v a d a a ele p a ra ser ju lg a d a o u a p e n a s p a ra receber a senten-
ça? J eremias, art. cit., su g e re q u e ela já fora ju lg a d a e sen te n c ia d a pelo
S in éd rio , e q u e Jesus estav a a p e n a s se n d o in te rro g a d o p a ra d ecid ir a
p u n içã o . E n tre tan to , a p e rg u n ta n o v. 10, "A lg u é m te c o n d e n o u ?", pa-
rece o p o r-se c o n tra esta explicação. E p a re c e im p ro v á v el q u e, dep o is
d e u m ju lg a m e n to re g u la r p ela s u p re m a corte d o país, a sen ten ça seria
d eix a d a p a ra u m p re g a d o r itin era n te . O u , se a sen ten ça foi p a ssa d a ,
d ificilm en te se p o d e crer q u e a Jesus se p e rm itiría ab-rogá-la.
O u tro s creem q u e a m u lh e r a in d a n ã o tin h a sid o su b m e tid a à juí-
zo p o rq u e o S in é d rio h a v ia p e rd id o su a c o m p e tên c ia em casos capi-
tais. C o m o v e re m o s n a d isc u ssã o d e 18,31, h á u m a tra d içã o q u e d a ta
d o a n o 30 q u e d iz q u e os ro m a n o s tira ra m d o S in é d rio o d ire ito d e im -
p o r p e n a cap ital. Se e ste re la to se d e u o u n ã o d e p o is d a a ção ro m a n a , e
se a tra d iç ã o é o u n ã o c o rre ta , é difícil d e d e c id ir. O Q u a rto E v an g elh o
596 O Livro d o s S inais

in d ica q u e o S in éd rio n ã o tin h a o p o d e r d e execução, m as os o u tro s


escrito s n e o te s ta m e n tá rio s n ã o são claro s so b re isso; e p o s to q u e o
rela to d a m u lh e r a d ú lte ra n ã o a p a re n te se r d e o rig e m jo an in a , n ão
p o d e m o s re c o n stru ir a situ a ç ão v isu a liz a d a n o rela to , p r o v a n d o com
b a se n a a titu d e g eral d o Q u a rto E v an g elh o . N ã o o b sta n te , se o Siné-
d rio n ã o era a p to a ju lg a r e e x e cu ta r a m u lh e r, e n tã o a ra z ã o p a ra
levá-la a Jesu s e a n a tu re z a d a tra m a e n v o lv id a se to rn a m claras. Se
ele d e c id e o caso em fav o r d a m u lh e r e a lib era, assim v io le n ta as cia-
ras p rescriçõ es d a lei m osaica; se o rd e n a q u e fosse a p e d re ja d a , e sta ria
em fran ca o p o siç ã o ao s ro m a n o s. E ste d ile m a seria sim ila r à q u e le d a
m o ed a ro m a n a em M c 12,13-17.
D errett , p p . 10-16, tem o u tra su g e stã o . Ele crê q u e , a d e s p e ito d a
p ro ib iç ão ro m a n a , os fa rise u s e a p le b e e stã o d isp o s ta s e x e rc e r a lei
d o lin c h a m e n to e a p e d re ja r a m u lh e r. E sta v a m in fla m a d o s c o m o zelo
d e F in eias (N m 25,6-18), u m a fig u ra a d m ira d a n o ju d a ís m o ta rd io
(lM c 2,26). M as h a v ia certa d ú v id a n a lei, e p o r e sta ra z ã o sa íra m
em b u sc a d e Jesus. Era n e c essá rio q u e a m u lh e r fo sse a d v e rtid a so-
b re a p u n iç ã o q u e seu p e c a d o a c a rre ta ria ? E n c o n tra m o s u m caso se-
m e lh a n te o n d e u m d is p u ta d o p ro b le m a leg al é le v a d o a Je su s em
M t 19,3. U m a re s p o s ta d ire ta p o r Jesu s, n o caso d e a m u lh e r o en-
v o lv er n u m a d is p u ta legal e p ô -lo em d ific u ld a d e com os ro m a n o s.
De a c o rd o com D errett (v er n o ta s so b re vs. 6, 8 ), Je su s e v ito u u m a
d ecisão d ire ta , c ita n d o Ex 23 e, assim , le m b ra n d o as a u to r id a d e s , d e -
m a s ia d a m e n te zelo sas, q u e se u caso irão e ra c o n fo rm e a lei. A in te r-
p re ta ç ã o q u e D errett d á d a cen a é a lta m e n te e n g e n h o sa , p o ré m n ã o
p a ssa d e u m a h ip ó tese.
U m p ro b le m a a in d a m ais p rá tic o n o re la to d a m u lh e r a d ú lte ra d iz
resp e ito ao p rin c íp io e n u n c ia d o p o r Jesus no v. 7: "O h o m e m e n tre v ós
q u e n ão tem p e c a d o - seja o p rim e iro a lan ç a r-lh e p e d ra " . A lg u n s têm
u s a d o isto p a ra p in ta r seu re tra to d o C risto lib eral e c o n v e rtê-lo em
u m a ju stificação p ieg a s pela in d ife re n ç a p a ra com os p e c a d o s sex u ais.
T o d av ia, Jesus n ã o está d iz e n d o q u e to d o m a g is tra d o d e v e se r sem
p e c a d o p a ra ju lg a r o u tro s, u m p rin c íp io q u e a n u la ria o ofício d e juiz.
A q u i ele está lid a n d o com zelo tes q u e têm to m a d o so b re si d e im p o r
p o r força o c u m p rim e n to d a Lei, e tem to d o o d ire ito d e ex ig ir q u e seu
caso seja to ta lm e n te lícito e se u s m o tiv o s sejam h o n esto s. Ele reco n h ece
q u e, e m b o ra sejam zelo so s p e la p a la v ra d a Lei, n ã o e stã o in te re ssa d o s
n o p ro p ó sito d a Lei, p o is o e s ta d o e sp iritu a l d a m u lh e r n e m m esm o
30 · O relato da m u lh er adúltera 597

e stá em q u e s tã o , ou se ela está o u n ão a rre p e n d id a . A lém d o m ais,


Jesu s sab e q u e a e stã o u s a n d o co m o u m a m a n o b ra p a ra enredá-lo.
A in d a m ais, se D erkett está certo, o m a rid o da m u lh e r p o d e ría ter
c in ic am e n te m o n ta d o tu d o p a ra a p a n h á -la , o rg a n iz a n d o c u id a d o sa -
m e n te d e a n te m ã o p a ra q u e h o u v e sse te ste m u n h a s d e seu p ecad o , em
v e z d e re c o n q u is ta r seu a m o r. O s v is m o tiv o s d o s juizes, d o m arid o e
d a s te s te m u n h a s n ã o são c o n so a n te s à Lei, e Jesus tem to d o o d ireito
d e d e s a fia r a ten ta tiv a d e le s d e g a ra n tir a c o n d e n aç ã o d a m u lh e r. En-
te n d id o à lu z d e sta s c irc u n stâ n c ia s, o v. 7 faz sen tid o . M as é preciso
p re c a v e r-se d a s te n ta tiv a s d e fazer d ele u m a n o rm a geral, p ro ib in d o a
p ro m u lg a ç ã o d a p e n a capital.

B IB L IO G R A F IA

BECKER, U., Jesus und die Ehebrecherin (Beihefte z u r ZN W , No. 28; Berlin:
T öp elm an n , 1963).
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3 1 . JE SU S N A F E S T A D O S T A B E R N Á C U L O S :
- C E N A III
( 8, 12- 20)

Discursos Mistos

a. J e s u s c o m o a l u z d o m u n d o ; 0 te s te m u n h o q u e J e su s d á d e s i m e s m o .
D i s c u r s o e n u n c ia d o j u n t o a o te s o u r o d o t e m p l o

8 12E n tão Jesu s lh es falo u o u tra vez:

"E u so u a lu z d o m u n d o .
Q u e m m e se g u e n ã o a n d a rá n a s trev as;
m as terá a lu z d a v id a " .

13Isto lev o u os farise u s a objetarem : "T u d á s te s te m u n h o d e ti m esm o ,


e teu te s te m u n h o n ã o é v á lid o " . 14Jesu s re sp o n d e u :

" A in d a q u e e u seja m in h a p ró p ria te s te m u n h a ,


m e u te s te m u n h o é v á lid o ,
p o rq u e e u sei d e o n d e v im e p a ra o n d e e s to u in d o .
Vós, p orém , não sabeis d e o n d e eu vim nem p ara o n d e estou indo.
15V ós ju lg ais s e g u n d o os p a d rõ e s h u m a n o s,
eu a n in g u é m julgo.
16T o d av ia, a in d a q u e eu ju lg asse,
esse m e u ju íz o é v e rd a d e iro ,
p o rq u e e u n ã o e sto u só -
m a s co m ig o está A q u e le [o Pai] q u e m e en v io u .
17P o rq u e em v o ssa p ró p ria Lei se d e clara
q u e o te s te m u n h o d a d o p o r d u a s p e sso a s é v e rd a d e iro .
31 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III 59 9

18E u s o u te s te m u n h o d e m im m esm o ,
e ta m b é m o Pai, q u e m e e n v io u , d á te ste m u n h o d e m im ".

14E ntão lhe p erg u n ta ra m : " O n d e está este teu 'p a i? " Je su s replicou:

"V ó s n ã o m e reco n h eceis, n e m a m e u Pai.


Se m e reco n h ecésseis, ta m b é m reco n h ecerieis a m eu Pai".

20Ele falo u e sta s p a la v ra s e n q u a n to e n sin a v a ju n to ao teso u ro d o


tem p lo . T o d a v ia, n in g u é m o p re n d e u , p o rq u e su a h o ra a in d a não
h a v ia ch e g ad o .

NOTAS

8.12. lhes falou. Esta é um a referência vaga, visto que (se visualizarm os no
relato interpolado da m ulher adúltera) Jesus não falava desde 7,38, onde
parece ter-se dirigido à m ultidão de peregrinos nos recintos do templo.
Agora ele se encontra outra vez na área do tem plo (ver v. 20), e é possível
que esteja se dirigindo m ais um a vez à m ultidão. Entretanto, m uito estra-
nham ente, "a m ultidão" que foi m encionada oito vezes no capítulo 7 já
não é m encionada no capítulo 8 (e de fato não até o cap. 11,42). É também
possível que o "lhes" se refira aos fariseus. Se 8,12 seguiu im ediatam ente
7,52, os fariseus eram o últim o grupo a ser m encionado (7,47), e serão
m encionados outra vez no versículo seguinte.
luz do mundo. Em Mt 5,14 os discípulos são informados: "Vós sois a luz do
m undo". N ão há contradição aqui, pois os discípulos são a luz do m undo
som ente enquanto refletem Jesus.
andará nas trevas... a luz da vida. Qual é o pano de fundo deste contraste
dualístico entre trevas e luz? No AT ouvim os de "luz da vida", i.e., a luz
que dá vida (SI 56,13; Jó 33,30). O SI 27,1 diz: "O Senhor é m inha luz";
Baruque 5,9 diz: "Deus guiará Israel com júbilo, pela luz de Sua glória".
Todavia, no AT luz e trevas não são opostos como princípios do bem e
do m al como o são em João; e para essa oposição dualística os Rolos do
M ar M orto oferecem um paralelo m uito m elhor para o uso joanino. Os
essênios de Q um ran são os filhos da luz; seus corações foram ilum inados
com a sabedoria da vida (1QS 2,3); e podem contem plar "a luz da vida"
(i.e., a interpretação que Q um ran faz da Lei - 1QS 3,7). O bom espírito
que guia sua vida é cham ado, entre outros títulos, "o príncipe das luzes",
600 O L ivro d o s S inais

enquanto o m au espírito que luta contra eles é "o anjo das trevas" (3,20-21),
e os hom ens andam segundo um ou outro destes espíritos de luz e trevas.
Ver H. Braun, ThR 28 (1962), 218-20, para discussão e bibliografia. Como
observação final podem os m encionar que a atual sequência nos m anus-
critos de João, onde 8,12 segue o relato da m ulher adúltera, é interessante
quando com parado com 1QS 3,6-7, que fala de "o perdão de pecados
para que vejam a luz da vida".
13. teu testemunho não é válido. Para esta objeção e a resposta de Jesus, ver as
notas sobre 5,31. A Mishná Kethuboth 3:9 reza: "N enhum hom em pode
aduzir testem unho em prol de si m esmo".
14. meu testemunho é válido. Esta é um a contradição formal de 5,31: "Se sou
minha própria testem unha, meu testem unho não pode ser válido". Toda-
via, a ideia em ambos os versículos é realm ente a mesma: seu testem unho
é válido porque seu Pai está por detrás dele (com parar 5,32 e 8,16.18).
15. julgais segundo os padrões humanos. Literalm ente, "segundo a carne"; este
é outro caso implícito do dualism o entre os m undos da carne e o espírito
que vimos em 3,16 e 6,63. Em IC or 1,26 e 2Cor 5,16, Paulo usa a expres-
são "segundo a carne" como um falso padrão de julgam ento. Lembra-
mos que em Jo 7,24 Jesus advertiu a m ultidão que não julgasse pelas
aparências.
eu a ninguém julgo. (Este versículo pode ter inspirado a inserção do relato
da m ulher adúltera em sua presente posição). W ikenhauser, p. 168, crê
que isto significa: "a ninguém julgo segundo a carne"; todavia, há um
núm ero de afirmações em que Jesus nega que é juiz, sem tais qualifi-
cações, e é duvidoso se a qualificação está implícita aqui. Uma solução
mais plausível é a sugerida por Loisy, p. 2 8 8 , de que há dois tipos dife-
rentes de julgam ento envolvidos nas duas frases do v. 15. O julgam ento
dos fariseus c o d e avaliação; enquanto que o julgam ento de Jesus é o jul-
gam ento que situa no plano de salvação e condenação. Ver comentário.
16. verdadeiro. Isto é alêthinos (que am iúde traduzim os por "verdadeiro" -
ver Apêndice 1:2, p. 794ss); nos vs. 13 e 14, a questão era de o testem unho
ser "verificado" (alethês , "verdadeiro"), e a palavra retorna no v. 17. João
nem sem pre m antém distintos alethês e alêthinos.
mas comigo está Aquele [0 Pai] que nie enviou. Literalmente, "m as eu e Aquele
que me enviou". D odd, Interpretation, pp. 94-96, salienta que a divina afir-
mação egõ eimi, "Eu sou [Ele]", que exerce um im portante papel em João
(ver Apêndice IV, p. 841 ss), frequentem ente aparece na form a hebraica
pós-bíblica "eu e ele". De fato, há evidência de que a segunda forma foi
usada na festa dos Tabernáculos na cerimônia de dar voltas em torno do
altar (ver p. 583 acima). "Eu e ele" parece sublinhar a quase identidade
31 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III 601

de Deus e Seu povo. Assim, segundo D odd , ao dizer "comigo está Aque-
le que me enviou", Jesus está usando um a forma do nom e divino e im-
plicando sua solidariedade com seu Pai.
[0 Pai]. Esta leitura (omitida em Sinaiticus*, Bezae e OS) é endossada por
testem unhas significativas, incluindo P* e P75. Bernard, I, p. 296, entre-
tanto, sugere que é um em préstim o que o copista tom ou do v. 18.
17. vossa própria Lei. Para esta aparente dissociação de Jesus da herança ju-
daica, ver nota sobre 7,19. C harlier, p. 506, insiste que a função real do
"vossa" não é expressar qualquer hostilidade ou superioridade para com
a Lei, e sim dizer a "os judeus": "É a Lei que vós m esm os aceitais". Jesus
deseja tornar seu argum ento irrefutável e, assim, levar os judeus a con-
tradizer-se. A interpretação de C harlier tem considerável validade para
tais afirmações, quando são consideradas no contexto histórico da vida
de Jesus. Mas, como estas afirmações aparecem em um evangelho poste-
rior ao l u século, contra o pano de fundo da hostilidade judaico-cristã, o
"vossa Lei" tem um a conotação hostil.
se declara. Literalm ente, "escrito"; m as a forma do verbo (gegraptai) é dife-
rente da construção perifrástica (gegrammenon + einai) que João usa seis
vezes em outra ocasião [rubrica] introdutória para citações bíblicas.
duas pessoas. Em geral isto significa duas pessoas um a colocada exatamente
ao lado da outra; todavia, no v. 18 o próprio Jesus é um a das duas teste-
m unhas, de m odo que, realmente, ele só tem um a testem unha adicional,
o Pai. (surpreende que ele não mencione o Batista, que foi enviado para
testificar da luz - 1,7). Há algum as exceções na jurisprudência rabínica
em que o testem unho de um a testem unha adicional era considerado su-
ficiente, p. ex., era suficiente o testem unho de um parente de que este era
seu filho ou filha. Mas seria estranho que Jesus citasse a lei geral de duas
ou mais testem unhas, e então provasse sua tese m ediante um a exceção.
C harlier, p. 514, sugere que Jesus é apresentado como realm ente citan-
do duas testem unhas, mesm o quando se m enciona ele m esm o no v. 18.
João apresenta Jesus, não só como um homem, mas tam bém como Filho
de Deus; portanto, não é Jesus como homem que está dando testemu-
nho de si m esmo, m as o Filho de Deus que está dando testem unho. As
d uas testem unhas são o Filho de Deus e o Pai, ou, como o expressa Loisy
(1 ed.), p. 555, a Palavra-feita-carne e o Pai que o enviou. No entanto, esta
interpretação pode ser sutil demais.
18. Eu sou. Em linha com esta interpretação, C harlier, p. 513, trata isto como
um uso divino de egõ eimi.
testemunho de mim mesmo. Em Ap 3,14, Jesus fala como "a fiel e autêntica
[alêthinos] testem unha".
602 O Livro d o s S inais

0 Pai... dá testemunho. Em 5,3139‫־‬, Jesus listou um a série de m odos como o


Pai tem dado testem unho (4,37): João Batista; as palavras de Jesus; a pa-
lavra de Deus habitando nos corações dos ouvintes e as Escrituras.
19. Onde está este teu [paij? Em 7,27 estavam tão certos de que sabiam de onde
ele era.
se me reconhecésseis. O mesm o princípio concernente ao conhecim ento do
Filho e do Pai se encontra em 14,7 e 16,3.
20. no tesouro do templo. Literalmente, "nos recintos do tem plo, no tesouro".
Até onde conhecemos, o tesouro era um a câm era para arm azenam ento,
e daí Jesus não estar dentro dela. E bem provável que o grego reflita o
vago uso de preposições de lugar no koinê; para en denotando proxi-
m idade, ver BAG, p. 257, I l c. O tesouro do tem plo levava ao Átrio das
M ulheres e tam bém foi o cenário de Jesus ensinando em Mc 12,41.

C O M E N T Á R IO : G ER A L

Análise literária

U m a an álise d a e s tru tu ra d o c a p ítu lo 8 (12ss.) talv e z seja m ais difícil


d o q u e a d e q u a lq u e r o u tro c a p ítu lo o u d isc u rso lo n g o n a p rim e ira
p a rte d o e v a n g elh o . O c o n tex to g eral p a re c e a in d a se r a festa d o s Ta-
b e rn ácu lo s, p o is o tem a d e lu z (8,12) se encaixa n a s im p lic a ç õ es d o s
T ab ern ácu lo s. A lém d o m ais, há certa u n id a d e e n tre 7 e 8 (sem o re la to
d a a d ú lte ra ), p o sto q u e o v. 7 com ece com o tem a d e Jesu s s u b in d o se-
c re ta m e n te (en kryptõ: 7,10) à festa d o s T a b e rn á c u lo s e o v. 8 te rm in a
com o tem a d e Jesus se o c u lta n d o (kryptein ).
N o ssa in te rru p ç ã o d e 8,12-59 em três d iv isõ e s (v er p. 423) se g u e as
in d icaçõ es d o p ró p rio e v a n g elh o , q u e p a re c e in d ic a r u m a in te rru p ç ã o
em 21 e 31. M as q u a n d o p e n e tra m o s n a s d iv isõ e s in d iv id u a is , d esco -
b rim o s q u e a se q u ên c ia n e la s está lo n g e d e se r c lara e q u e às v e z e s es-
tam o s lid a n d o com d u p lic a ç õ e s d e o u tro s d isc u rso s. E m b o ra c o m e n ta -
ristas co m o D odd e Barrett aceitem as m e sm a s d iv isõ e s q u e faz e m o s,
K ern, art. cit., tem te n ta d o u m a a n á lise m u ito m ais e la b o ra d a d a e stru -
tu ra p o ética d e 12-59. Ele v ê cinco d iv isõ e s, c a d a u m a co m u m p a d rã o
estró fico d e fin id o . O tem a d a v e rd a d e d o ju lg a m e n to d e Je su s [so b re si J
p e rc o rre as p rim e ira s d u a s d iv isõ e s (12-19 e 21-30) e é e q u ip a ra d o
ao tem a d a m e n tira n a s ú ltim a s d u a s d iv isõ e s (41b-47 e 49-58); e a
d iv isã o q u e co n siste d e 31b-41a se rv e co m o p a ssa g e m d e tra n siç ã o .
3 ‫ · ו‬Jesus na festa d o s tabernáculos: C en a III 60 3

H á a lg u m a s p o ssib ilid a d e s in te re ssa n te s n a a n á lise d e K ern, a qual


b a sic a m e n te se e n c o n tra na m esm a d ire ç ã o q u e o s e s tu d o s d e G ächter
(v er p. 150); n o e n ta n to , a e s tru tu ra p o ética às v ezes p a re c e ser m ais
u m tour de force d o in v e stig a d o r d o q u e as in te n ç õ es d o ev an g elista.
V o lta n d o a g o ra à n o ssa p rim e ira d iv isã o , 12-20, estes versículos
p a re c e m c o n stitu ir u m a u n id a d e e s tru tu ra l, n ã o só p o rq u e o v. 20
m arc a u m a p a u s a n a ação e o v. 21 é o u tro tópico, m as tam b é m p o rq u e
há u m a in clu sã o m e n o r e n tre 12 e 20, fo rm a d a p ela rep e tiç ã o d o verbo
" fa lo u " n a s p a la v ra s d e a b e rtu ra d e ste s d o is v ersículos.
T o d a v ia , d e n tr o d e 12-20 o p e n s a m e n to sa lta m d e u m tem a p a ra
o u tro . P o d e m o s re c o n h e c e r trê s a s su n to s b ásicos: (a) Luz. Isto é in-
tr o d u z id o n o v. 12, m a s n u n c a é m e n c io n a d o o u tra v e z a té o c a p ítu lo
s e g u in te , o n d e é re p e tid o (9,5) e d ra m a tiz a d o q u a n d o Jesu s d á a luz,
o u re s titu i a v isã o ao cego. (b) Je su s testifica d e si m esm o , isto é in tro -
d u z id o p e lo d e sa fio d o s fa rise u s n o v. 13, e é d e fe n d id o p o r Jesu s em
14a,b e e m 17-18, o n d e d e se m b o c a n o tem a d o te s te m u n h o d o Pai.
(O s v e rs íc u lo s 14c,d, 15-16 re a lm e n te in te rro m p e m a se q u ê n c ia e n tre
14b e 17 e s e rá d is c u tid o ab aix o ). O s v e rsíc u lo s q u e tra ta m d o teste-
m u n h o d e Je su s tê m paralelos q u a s e p a la v ra p o r p a la v ra em 5,31-39, e
p o d e b e m se r q u e e ste ja m o s lid a n d o co m d u a s fo rm a s d ife re n te s do
m e s m o d isc u rso . A m b o s, 8,14a,b e 5.37, e n fa tiz a m q u e o P ai d á teste-
m u n h o a re s p e ito d e Jesu s. N a tu ra lm e n te , 5,31-39 é u m a fo rm a m ais
lo n g a d o d is c u rs o e re g is tra m co m o o P ai d á este te s te m u n h o , (c) O
julgamento d e Je su s acerca d e o u tro s. Isto se e n c o n tra n o s v ersícu -
los in te rm e d iá rio s m e n c io n a d o s a c im a, a sa b e r, "14c,d, 15-16, e está
c o n e c ta d o co m o c o n h e c im e n to d o P ai d e Je su s e m 19-20. E stes v er-
síc u lo s tê m c la ro s paralelos n o c a p ítu lo 7, especialmente nos vs. 25-36
(já v im o s n a p . 587 q u e 7,25-36 tem p a ra le lo s em 7,37-52).

Capítulo 7 Capítulo 8
27-28 de o n d e Jesus veio 14c,d
33-35 p ara o n d e Jesus está indo
24 julgam ento pelas aparências, p ad rõ es hum an o s 15
28 conhecendo Jesus e A quele qu e o enviou 19
30 incapacidade de prendê-lo; ainda não chegou a hora 20

H á ta m b é m um paralelo entre 8,16 e 5,30 n u m a só frase: " m e u jul-


g a m e n to é v e rd a d e ir o /v á lid o " .
604 O Livro d o s S inais

A ssim , a ev id ê n c ia su g e re m u i fo rte m e n te q u e 8,12-20 é u m com -


p o sto e teria tid o u m a h istó ria literá ria co m p le x a a n te s a s s u m ir su a
p re s e n te form a. T e n ta tiv a s d e re c o n stru ir essa h istó ria p a re c e m esp e-
c u la tiv a s d e m a is p a ra p re sta r-lh e s c o n sid e raç ã o d e ta lh a d a .

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Jesus é a luz (8,12)

Jesus se proclam a com o sendo a luz do m u n d o , m esm o q u a n d o em 7,37-38


ele se p ro cla m a sse com o se n d o a fonte d a á g u a viva; e a m b a s e stas p ro -
clam ações p a re c e m ter sid o in sp ira d a s p e la s ce rim ô n ia s d a festa d o s
T ab ern ácu lo s. C o m o se d a v a com a cerim ô n ia d a á g u a , h a v ia u m p a n o
d e fu n d o bíblico p a ra o tem a d a lu z n a festa d o s T a b e rn á c u lo s e, d e fato,
n as m esm as p a ssa g e n s n o AT. N o v ersícu lo a n te rio r à p a ssa g e m d e Z a-
carias (14,8) q u e d e screv e a á g u a viva jo rra n d o d e Jeru salém , o u v im o s:
"E h av erá u m ú n ico dia... cem d ia e sem n oite, m as à ta rd e h a v e rá lu z".
O relato d a s p e re g rin a ç õ e s d o ê x o d o q u e p ro p o rc io n o u a im a g e m d a
ág u a q u e flui d a ro ch a ta m b é m p ro v e u a im a g e m d e u m a c o lu n a d e
fogo q u e g u iav a os israelitas e m m eio às tre v a s d a n o ite (Ex 13,21).
Q u e esta im ag em p o d e ria ter e n tra d o n o p a n o d e fu n d o d a re iv in d i-
cação d e Jesus d e ser a lu z é s u g e rid o q u a n d o n o s lem b ra m o s d e q u e
Sb 18,3-4 d á te s te m u n h o d a tra d içã o q u e id en tificav a esta co lu n a com
"a lu z im p erecív el d a Lei". A s o u tra s im a g e n s q u e Jesus u s a p a ra si são
fre q u e n te m en te im a g e n s q u e o ju d a ísm o u sa v a p a ra a Lei.
N a s c e rim ô n ia s p ró p ria s d a festa d o s T a b e rn á c u lo s, co m o d e sen -
v o lv id a s n o te m p o d e Jesus, n a p rim e ira n o ite (e talv e z ta m b é m n a s
o u tra s n oites) h a v ia u m ritu a l d e a c e n d e r q u a tro c a n d e la b ro s d e o u ro
n o Á trio d a s M u lh eres. C a d a u m d e ste s, s e g u n d o a Mishnah Sukkah
5:2-4, tin h a q u a tro glo b o s d e o u ro n o to p o q u e e ra m a lc a n ç a d o s p o r
m eio d e escad as. F lu tu a n d o n e sse s glo b o s ficav am p a v io s feitos d a s
v e stim e n ta s e cin to s d o s sacerd o tes; e q u a n d o e ra m acesos, d iz ia -se
q u e to d a a Je ru sa lé m refletia a lu z q u e a rd ia na C asa d a E x tração d e
Á g u a (aquela p a rte d o Á trio d a s M u lh e re s a tra v é s d a q u a l p a s s a v a o
cu rso d a á g u a - v e r acim a, p. 583).
N a cena q u e d e scre v e o e v a n g elh o , Jesus está em p é n e ste m esm o
Á trio d a s M u lh e re s e p ro c la m a q u e ele é a lu z, n ã o só d e Je ru sa lé m ,
31 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III 6 05

m a s d o m u n d o in te iro . A n te rio rm e n te o u v im o s Jesu s fa la n d o da


á g u a q u e d á v id a e d o p ã o q u e d á v id a ; a g o ra ele fala d a lu z q u e d á
v id a . V isto q u e as d u a s p rim e ira s m e tá fo ra s b a sic a m e n te se refe ria m
à s u a re v e la ç ã o , p o d e m o s p la u s iv e lm e n te s u s p e ita r q u e a q u i está
im p líc ita a m e sm a coisa. Isto é c o n firm a d o n a d ra m á tic a ação d o
c a p ítu lo 9, q u a n d o , co m o a lu z (9,5), Je su s a b re os o lh o s d o cego à
fé (9,35-38, ta m b é m 12,46). A ssim co m o se d á com as m e tá fo ra s da
á g u a e p ã o , as p a s sa g e n s sa p ie n c ia is d o A T o ferecem u m v alio so
p a n o d e f u n d o p a ra o u so q u e Je su s faz d a lu z c o m o sím b o lo d e su a
re v e la ç ã o . E m P r 8,22, a S a b e d o ria d iz q u e ela foi feita n o p rin c íp io
d o s c a m in h o s d o S e n h o r, e na tra d iç ã o h e b ra ic a a p rim e ira criação
foi a lu z (G n 1,3). Sb 7,26 n o s in fo rm a q u e a S a b e d o ria é u m reflexo
d a lu z e te rn a . Já na e ra p ré -c ristã a S a b e d o ria e ra id e n tific a d a com a
Lei, e v im o s a c im a q u e a Lei e ra m e n c io n a d a co m o lu z im p erecív el.
In d ic a m o s n a n o ta so b re v. 12 q u e o p e n s a m e n to jo a n in o so b re lu z e
tre v a s se a s s e m e lh a v a a o d e Q u m ra n , e ali a lu z d a v id a é u m a in te r-
p re ta ç ã o e sp e c ia l d a Lei.
N o s e v a n g e lh o s sin ó tico s ta m b é m a im a g e m a sso ciad a à luz é
u s a d a p o r Jesu s p a ra d e sc re v e r a rev elação e e n sin o q u e ele tro u x era
ao m u n d o . P e n sa m o s n a p a rá b o la d a c a n d e ia q u e d á lu z à casa. N o
c o n te x to d e Lc 11,33 este d ito é in tro d u z id o d e tal m a n e ira q u e o sig-
n ificad o p a re c e ser q u e o p ró p rio Jesus é a c a n d eia (ju stam e n te com o
Jesu s é a lu z em João); m as em M c 4,21 e Lc 8,16 a p a rá b o la d a can d eia
é u s a d a p a ra ex p lic ar p o r q u e Jesus está ensinando p o r p a rá b o las, a
sa b er, p a ra ilu m in a r ao s q u e q u e re m e n tra r.
E m o u tro lu g a r n o s escrito s jo an in o s ( ljo 1,5) o u v ire m o s qu e
D e u s é a lu z sem q u a lq u e r m escla d e trev as. Em Jesus esta lu z e a vida
e n tra ra m n o m u n d o (Jo 1,4-5; 3,19) p a ra d iss ip a r as trev as, p o is os qu e
p a s sa m a c re r n ele n ã o p e rm a n e c e m n a s tre v a s (12,46). B rilh an d o nele
co m o o re v e la d o r e n c arn a d o , a lu z d e D eu s irra d ia a existência h u m an a
e d á ao h o m e m c o n h e cim e n to d o p ro p ó sito e sig n ificad o d a v id a.

Jesus 0 juiz (8,15-16)

A o d isc u tirm o s o c a p ítu lo 5, a b o rd a m o s o tem a d e Jesus d a n d o


te s te m u n h o d e si m e sm o e d o Pai testific a n d o d e Jesus. Isto deixa p a ra
a d isc u ssã o a q u i so m e n te o tem a d o ju lg a m e n to . R e u n ire m o s em u m
só lu g a r o q u e é d ito d e Jesus e d o ju lg a r (k r i n e i n ) e m João.
60 6 O Livro d o s S inais

Primeiro, h á u m g ru p o d e a firm açõ es n o se n tid o d e q u e Je su s n ã o


veio p a ra ju lg ar, isto é, p a ra co n d e n ar:

3,17: P o rq u e D e u s n ã o e n v io u o Filho ao m u n d o p a ra c o n d e n a r
o m u n d o , m a s q u e o m u n d o seja sa lv o a tra v é s dele.
12,47: Pois eu n ã o v im p a ra c o n d e n a r o m u n d o , m a s p a ra sa lv a r
o m undo.

C re m o s q u e a tra d u ç ã o d e krin ein co m o " c o n d e n a r" , n e sta s p a s-


sag en s (ta m b ém em 8,26), é c la ra m e n te ju stifica d a p e lo c o n tra ste co m
" sa lv a r". N ão o b sta n te , a afirm a ç ão d e q u e Jesu s n ã o v eio p a ra con-
d e n a r n ã o exclui o p ró p rio ju lg a m e n to v e rd a d e iro q u e Je su s p ro v o ca .
N o co n tex to im e d ia to d a s a firm açõ es acim a (em 3,19; 12,48) so m o s
in fo rm a d o s q u e a q u e le q u e se rec u sa a c re r e m Jesu s se c o n d e n a , en-
q u a n to o q u e crê escap a d a c o n d e n a ç ã o (ta m b ém 5,24). P o rta n to , a
id eia e m João p a re c e ser q u e d u r a n te se u m in isté rio Je su s n ã o é ju iz
ap o calíp tico c o m o a q u e le e s p e ra d o n o fim d o tem p o ; to d a v ia , s u a p re -
sença leva os h o m e n s a ju lg a r a si m esm o s.
É n e ste ú ltim o se n tid o q u e d e v e m o s e n te n d e r o segundo g r u p o d e
textos n o s e n tid o d e q u e Jesu s veio p a ra julgar:

9,39: E u v im a este m u n d o p a ra juízo.


5,22: O Pai e n tre g o u ao F ilho to d o o ju lg a m e n to .

E m b o ra e ste s tex to s p a re ç a m c o n tra d iz e r o p rim e iro g ru p o , sim -


p le s m e n te a m p lific a r a n o ç ã o d e p ro v o c a r o ju íz o q u e e stá n o c o n te x -
to d o p rim e iro g ru p o . A p a s s a g e m q u e o ra e s ta m o s c o n s id e ra n d o ,
8,15-16, é u m e x e m p lo q u e a b a rc a o s d o is g r u p o s e c o n té m a s id é ia s
d e am b o s. N o v. 15, Je su s d iz q u e ele a n in g u é m ju lg a ; m a s n o v. 16
lem b ra q u e o ju íz o e stá a sso c ia d o à p re s e n ç a d e Jesu s. Q u a n d o Je su s
d iz, " a in d a q u a n d o e u ju lg u e [co n d iç ão rea l, n ã o c o n trá ria a o fato ],
esse m e u ju lg a m e n to é v á lid o " , p a re c e sig n ific a r q u e o ju lg a m e n to
q u e ele p ro v o c a e n tre o s h o m e n s é a q u e le q u e o P a i a c e ita rá . E u m
ju lg a m e n to q u e tem c o n se q u ê n c ia s e te rn a s e se rá ra tific a d o n a q u e le
ju lg a m e n to g e ra l q u a n d o os m o rto s sa íre m d e se u s tú m u lo s . O p a ra -
leio a " a q u e le m e u ju lg a m e n to é v á lid o " se e n c o n tra e m 5,30: " m e u
ju lg a m e n to é ju sto " . O c o n te x to e m 5,26-30 é o d e ju lg a m e n to n a res-
s u rre iç ã o d o s m o rto s q u a n d o , co m o o F ilh o d o H o m e m , Je su s ex e rc e
31 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III 607

a q u e le ju lg a m e n to q u e o P ai lh e e n tre g a rá (5,27), u m ju lg a m e n to q u e
é d o P ai, p o r q u e Je su s ju lg a s o m e n te co m o o u v e (5,30). A ssim tam -
b é m e m 8,16, a ra z ã o d e Je su s p o d e r a s se v e ra r q u e ele p ro v o c a u m
ju lg a m e n to v á lid o e n tre o s h o m e n s é a p re se n ç a c o rro b o ra n te d o Pai.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 8, n o fin al d o § 33.]
32. JE SU S N A F E S T A D O S T A B E R N Á C U L O S :
- C E N A III (C o n tin u a ç ã o )
(8,21-30)

Discursos mistos

b. A t a q u e a o s j u d e u s in c r é d u lo s ; q u e s t ã o s o b r e q u e m é J e s u s

8 21E n tão ele lh es d isse o u tra vez:

"E u m e v o u , e m e b u scareis,
m as m o rre re is e m v o sso p e c ad o .
P ara o n d e e u v o u v ó s n ã o p o d e is ir".

22D iz ia m e n tã o os ju d e u s : " C e rta m e n te , ele n ã o e stá in d o p a ra m a-


tar-se? - p o rq u a n to ele exclam a: 'P a ra o n d e e u v o u n ã o p o d e is ir'" .
23M as ele c o n tin u o u d ize n d o :

"V ós so is d a q u i d e baixo;
eu so u d e cim a.
V ós so is d e ste m u n d o -
eu n ã o so u d e ste m u n d o .
24Eis p o r q u e e u v o s d isse q u e m o rre rie is em v o sso s p e c a d o s.
A m en o s q u e v e n h a is a c re r q u e EU SO U,
s e g u ra m e n te m o rre re is e m v o sso s p e c a d o s".

2," O ra, p o is, q u e m és tu ? " - p e rg u n ta ra m . Jesu s re s p o n d e u :

"O q u e e u v o s te n h o d ito d e s d e o p rin c íp io .


32 · J esus na festa d o s tabernáculos: C en a III (c o n tin u a ç ã o ) 609

26M u ita s são as coisas q u e e u p o d e ria d iz e r acerca d e v ó s e vos


c o n d e n a r;
m a s as ú n ic a s coisas q u e e u d ig o a este m u n d o
é o q u e e u te n h o o u v id o dele,
A q u e le q u e m e e n v io u , q u e é v e rd a d e iro " .

27N ã o e n te n d e ra m q u e ele lh es falav a so b re o Pai. 28E n tão Jesus


c o n tin u o u :

" Q u a n d o le v a n ta rd e s o F ilho d o H o m e m ,
E n tã o c o m p re e n d e re is q u e EU SO U,
e q u e n a d a faço d e m im m esm o .
N ã o , e u só d ig o a q u e la s coisas
q u e o P ai m e e n sin o u .
29E A q u e le q u e m e e n v io u está com igo.
E le n ã o m e d e ix o u só,
p o rq u e eu faço o q u e L he a g ra d a .

30E n q u a n to falav a assim , m u ito s n ele a c re d ita ra m .

NOTAS

8.21. ele lhes disse. A forma inicial desta seção é m uitíssim o parecida com a
seção anterior (§ 31). Na divisão anterior vimos um a inclusão no "falou...
falou" dos vs. 12 e 20; há tam bém um a inclusão entre 21 e 30, m as não tão
regular: "disse... falava".
morrereis em vosso pecado. O restante das palavras de Jesus, no v. 21, é mui-
tíssim o parecido com 7,33b-34, com a exceção desta frase. Temos esta
expressão na LXX: Ez 3,18; Pr 24,9.
pecado. Aqui, no singular; no v. 24, porém , citando este versículo, usa o
plural.
Para onde eu vou. "Ir" aparece tam bém em 13,33; contrastar com "onde eu
estou" em 7,34 e ver nota ali.
23. Vós sois... eu sou. Literalmente, "ser do". Pode-se formular a pergunta
se "eu sou \egõ eimi\ do que é de cima" é um caso especial de ego eimi
(ver Apêndice IV, p. 841 ss). De um lado, a ênfase clara sobre egõ eimi,
nos vs. 24 e 28 dá apoio à sugestão; do outro, o contraste em 23 com
610 O L ivro d o s S in ais

" Vós sois do que é de baixo" faz um a ênfase especial em "eu sou" m enos
provável.
de baixo... de cima; deste mundo... [não para] este mundo. O m esm o dualism o
se encontra no "de cima... da terra" em 3,31· Em 17,16, os discípulos são
incluídos na m esm a esfera que Jesus: "não pertencem ao m undo, como
tam bém eu não pertenço ao m undo". Cl 3,1 oferece um interessante pa-
ralelo a esta terminologia: "Se fostes ressuscitados com Cristo, buscai as
coisas que são de cima".
24. crer. Algum as testem unhas im portantes acrescentam "em mim ".
seguramente. Esta é a única vez que João usa o indicativo na apódosis deste
tipo particular de condição negativa, e temos buscado indicar a ênfase
especial implícita.
25. O que vos tenho dito desde 0 princípio. Este versículo representa um a fa-
mosa dificuldade. Nossa tradução é mais branda do que o grego per-
mite. As palavras gregas realm ente não são um a sentença com pleta, e
tem havido m uitas tentativas para interpretá-las: ( a ) Como uma afirmação:
(1) "Prim ariam ente, [eu sou] o que vos digo". (2) "Antes de tudo, [eu
sou] o que vos digo". (3) "[Eu sou] desde o princípio o que vos digo".
Ao comentarm os, devem os notar que as palavras "Eu sou" não estão no
grego, m as devem ser subentendidas. O grego sim plesm ente diz "o prin-
cípio", e assim a ideia expressa por adição, "desde", realm ente é um a
interpretação. (Há um a base gram atical para esta interpretação [BDF,
§ 160], porém é mais norm al que João usasse a preposição, p. ex., 6,64;
8,44 etc.). Da m esm a forma, literalm ente, o verbo grego é "eu falo", não
"eu digo", (b) Como uma pergunta: "Como é m esm o o que eu vos falo?"
A frase traduzida "absolutam ente, de m odo algum ", aqui em (c) abaixo,
norm alm ente não significa "absolutam ente", exceto com um a negativa.
A interrogativa, "Como é isso" implica o uso de um a interrogativa grega
que não é tão frequente (BDF, § 3002). (c) Como uma exclamação: "É preci-
sam ente isso que eu vos falo!" Cada um desses três tipos de traduções
tem tido seus defensores, desde a antiguidade. N o n n u s de Panópolis
dá um a tradução sem elhante a (03); C risóstomo e C irilo de Alexandria
estão na tradição de (c). As traduções latinas dão proem inência a um a
redação equivocada que não pode ser justificada pelo grego. Tom am "o
princípio" como um norm ativo, em vez de um acusativo, e traduzem :
"[Eu sou] o princípio que tam bém vos fala" ou ["Eu sou] o princípio por-
que vos falo". A valiando as traduções possíveis, o fato de que a questão
seja form ulada na prim eira parte do v. 25 pode dar um a leve m argem
à possibilidade de que temos um a afirm ação a m odo de resposta. Para
obter um a afirmação do que ora se encontra no texto grego, há que suprir
32 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III (c o n tin u a ç ã o ) 611

algum as palavras; mas os muitos estudiosos que insistem que o grego


como ora se encontra está corrom pido ou incompleto e poderíam ter razão
neste caso. Temos agora algum suporte textual para acrescentar palavras,
pois PhKdá um texto mais longo para o qual não há outra testemunha: "Eu
vos disse no princípio o que também estou dizendo-vos [agora]". Esta é
um a leitura tentadora, a qual faz bom sentido; mas Funk e Smothers a de-
fendem, e temos feito uso parcial dela na tradução que temos feito.
26. Eu digo... 0 que tenho ouvido dele. C om parar 12,49: "Eu não tenho falado de
m im m esm o".
a este mundo. Literalm ente, "neste m undo". Para este uso am plo de eis, ver
BDF, § 207'. Temos um a ideia um tanto sim ilar em 17,13: "Enquanto ain-
da no m undo, eu digo tudo isto"; mas, no caso em pauta, D e ea P otterie,
Bib 43 (1962), 372, provavelm ente esteja certo em insistir que eis tem um
aspecto de m ovim ento. Jesus veio do Pai para falar ao m undo.
verdadeiro. Alêthês-, no v. 17 ouvim os que o testem unho dado por duas pes-
soas é alêthês ("válido"), e o Pai que enviou Jesus é um a dessas duas
testem unhas.
27. 0 Pai. A lgum as testem unhas da tradição ocidental agregam "Deus", pro-
piciando assim a leitura: "ele estava dizendo-lhes que Deus era [seu]
Pai". Este é o teor do versículo m esm o sem a adição.
28. levantardes. Na crucifixão, levando à ressurreição e ascensão (ver p. 354).
EU SOU. Este é um dos quatro exemplos relativamente claros do uso abso-
luto de egõ eimi, sem um predicado implícito (ver Apêndice IV, p. 841 ss).
A lguns têm sugerido que "Filho do H om em " é o predicado implícito,
porém , não está alinhado com as idéias de João de que o conhecimento
que ele é o Filho do Hom em seja a visão mais profunda do Jesus exaltado.
O Jesus exaltado é confessado como Senhor e Deus em 20,28, e nossa lei-
tura do uso divino de egõ eimi, aqui, se encaixa bem neste caso.
nada faço de mim mesmo. Isto com plem enta o v. 26, onde Jesus diz que nada
diz de si próprio. Este versículo pode ser evocado por Inácio, Magnesians
vii 1: "com o o Senhor nada fez sem o Pai"...
29. Ele não me deixou só. Este é o m esm o tema do v. 16.
Eu... faço 0 que Lhe agrada. Em Is 28,3, Ezequias ora: "fiz o que era reto
aos teus olhos". Inácio, Magn VIII 2 tem: "Jesus Cristo... Seu Filho que
em tu d o foi agradável Àquele que o enviara". Ver Braun, JeanThól, 1,
pp. 274-75.
30. Enquanto estava falando. Um genitivo absoluto, que é raro em João. Pode ser
que esta sentença seja um a invenção do redator para elaborar o discurso
em divisões.
612 O Livro d o s S in ais

C O M E N T Á R IO

A n á l i s e li te r á r ia

A h istó ria d a c o m p o sição d e sta d iv isã o é tã o c o m p lic a d a c o m o a di-


v isão a n te rio r (§ 31). C o m o in d ic a m o s n a n o ta so b re v. 21, esta u n i-
d a d e d o s vs. 21-30 é m a rc a d a p e lo m e sm o tip o d e in c lu sã o q u e os
vs. 12-20. P o d e se r q u e os v á rio s tem a s d o s vs. 21-30 se lig u e m m ais
lev e m en te u n s n o s o u tro s d o q u e os te m a s d e 12,20, m a s o s p a ra le lo s
e n tre os v e rsíc u lo s in d iv id u a is e os d e o u tra s p a rte s d e João sã o n ã o
m en o s ev id e n tes.
N a p. 603 v im o s q u e o terceiro tem a d o s vs. 12-20, a sa b er, o d o
ju lg a m e n to , tev e m u ito s p a ra le lo s c ru z a d o s co m 7,25-36. A ssim tam -
b é m os v e rsíc u lo s in iciais d e sta d iv isã o (8,21-22) têm p a ra le lo s com
a q u e la p a rte d o 7.

C a p ítu lo 7 C a p ít u lo 8
33b Eu m e vou 21a
34a M e b u s c a r e is 21a
34b P a r a o n d e eu v o u n ã o p o d e is ir 21c
35 In co m p reen sã o da p a rte d o s ju d e u s 22
36 Os ju d e u s r e p e te m a a firm a ç ã o d e Jesus 22

Em cad a u m a d a s in terp retaçõ es errô n eas, "o s ju d eu s", iro n icam en -


te, falam a v erd a d e . U m a n o v. 7 acerca d a p o ssib ilid a d e d e Jesus ir-se
p a ra en sin ar ao s gregos, e isto se to rn o u v e rd a d e iro na Igreja. A q u e
ap arece aqui, d iz respeito à p o ssib ilid ad e d e ele m atar-se, e, n a tu ra lm e n -
te, en treg ará v o lu n ta ria m e n te su a v id a (10,17-18). P o d e h a v e r a lg u m a
d ú v id a d e q u e João p rese rv o u d u a s form as d iferen tes d a m esm a cena?
N o s v e rsíc u lo s su b s e q u e n te s d e sta seção há o u tro s p a ra le lo s. O s
p e n s a m e n to s p a ra le lo s e n tre 8,23 e 3,31, e e n tre 8,28 e 3,14 sã o in te-
ressa n te s, p o ré m n ã o b a sta n te p ró x im o s p a ra le v a r-n o s a p e n s a r q u e
tem o s v e rd a d e ira d u p lic a çã o . Em q u a lq u e r caso, os vs. 23-24 se d e sti-
n a m a s e rv ir d e re sp o sta a 22; em 7,33-36 n ã o tiv e m o s tal te n ta tiv a d e
re s p o n d e r ao s e q u ív o c o s d o s ju d eu s.
N o v. 25 a p a re c e aí o n o v o tem a so b re q u e m é Jesus. T em -se su -
g e rid o q u e os vs. 25-28 e stã o fora d e lu g a r o n d e a g o ra se e n c o n tra m , e
q u e d e v e m se r reco lo cad o s n a p a s sa g e m so b re o ju lg a m e n to n a seção
32 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena 111 (c o n t i n u a ç ã o ) 6 13

an terio r. U m a o rd em su g erid a é 8,15.25-27.19.28-29. Isto é engenhoso,


m as tu d o o q u e é certo é a p e rd a d o s paralelos entre 26 e 17 e entre 29
e 16, com o in d icad o nas respectivas notas. N a v erd ad e, 8,25-28 não se
a d e q u a tão im p ro p ria m e n te b em o n d e está, explicando, com o faz, o v. 24.

C O M E N T Á R IO D E T A L H A D O

U m a v e z m ais, Jesu s d e safia se u s o u v in te s a to m a r u m a d ecisão an te s


q u e fo sse ta rd e d e m a is. Ele se id en tifica ra co m o a lu z (8,12), e a v in d a
d a lu z força o s h o m e n s a to m a re m a o p ç ã o d e v e r ou d e a p a rta r-se
d e la (3,19-21). M as, n e ste s d isc u rso s d a festa d o s T a b e rn á c u lo s h á u m a
n o ta d e u rg ê n c ia . O s h o m en s têm b e m p o u c o tem p o d e v e r Jesus, de
b u scá-lo e d e achá-lo; u m a o p o r tu n id a d e ú n ica lh es está se n d o d a d a e
n ã o se rá d a d a u m a s e g u n d a v ez. Jesu s tem o ferecid o a á g u a viva (7,38)
e a lu z da vida (8,12). C aso o s h o m e n s re c u se m este d o m d a v id a, m or-
re rã o e m seu p e c ad o . N o ta m o s q u e, n o v. 21, " p e c a d o " está n o sin g u -
lar, p o is n o p e n s a m e n to jo a n in o só há u m p e c a d o rad ic a l d o q u a l os
m u ito s p e c a d o s d o s h o m e n s (p lu ra l n o v. 24) são a p e n a s reflexos. Este
p e c a d o ra d ic a l co n siste em re c u sa r c re r em Jesu s e, assim , rec u sa r a
p ró p ria v id a . (V er L yonnet, V D 35 [1957J, 271-78). O s sin ó tico s tra z em
o m e s m o p e n s a m e n to fo rm u la d o d e o u tra m an e ira . Em M c 3,29 ouvi-
m o s q u e to d o s q u a n to s b lasfe m e m c o n tra o E sp írito S an to (a trib u in d o
a o b ra d o rein o d e D e u s a S atan ás) são c u lp a d o s d e p e c a d o etern o . N a
tra d iç ã o sin ó tica, a b lasfe m a rec u sa d o rein o d e D eus é o e q u iv a le n te
d a rec u sa d e v e r q u e m é Jesu s n a tra d iç ã o jo an in a.
O s v s. 23-24 e x p lic a m a u rg ê n c ia d a in sistê n c ia d e Je su s d e q u e,
u m a v e z in d o e m b o ra , n ã o h a v e rá o u tra p o s s ib ilid a d e p a ra lib e rtá -lo s
d o p e c a d o . A q u e le q u e v e m d e cim a e n tr o u n o m u n d o p a ra d a r aos
h o m e n s a p o s s ib ilid a d e d e se re m g e ra d o s d e cim a, e e n tã o e rg u ê -lo s
ao nível d a esfera d o q u e é d e baixo. Q u a n d o o p ró p rio Jesus é lev an tad o
(v. 28) n a c ru c ifix ã o , re s s u rre iç ã o e a sce n sã o , ele a tra i a si to d o s
os h o m e n s (12,32); e n a q u e le m o m e n to isso ficará c laro a to d o s os
q u e tê m os o lh o s d a fé q u e re a lm e n te ele p o rta o n o m e d iv in o ("EU
S O U "), e q u e te m o p o d e r d e e le v a r h o m e n s ao Pai. M as se os ho-
m e n s re c u s a re m c re r, re c u sa re m v e r, e n tã o n ã o h á o u tro c a m in h o
(14,6) q u e c o n d u z a ao a lto , ao P ai; e o s h o m e n s irã o p a ra se u s tú m u -
los se m o d o m d a v id a .
614 O L ivro d o s S inais

N o v. 24, ao en fatizar q u e os h o m en s creiam q u e ele v em d o alto


com o p o d e r d a v id a d a p a rte d o Pai, Jesus d iz q u e os h o m en s d e v e m
crer q u e ele p o rta o n o m e d iv in o "EU SO U " (ver A p ên d ice IV, p. 841ss.).
C o m o típ ico m a l-e n te n d id o jo an in o , "o s ju d e u s " b u s c a m u m p re d ic a -
d o q u e lh es e x p liq u e m q u e m ele é. O ra, p o is, q u e m p o d e ria e x p lic ar a
d iv in d a d e ? T u d o o q u e Jesu s p o d e faz e r é re a firm a r su a re iv in d ic a ç ã o
n o v. 25. D e sd e o início, d e s d e se u p rim e iro d isc u rso co m N ic o d e m o s,
ele a le g o u ser d o a lto e se r o ú n ico re p re s e n ta n te d o Pai. T alv ez d e v a -
m o s asso c ia r tam b é m a a firm a ç ão n o v. 25 co m a tra d iç ã o sa p ie n c ia l
(assim F euillet, N R T 82 [I960], 923), p o is e m P r 8,22 a S a b e d o ria diz:
"O S en h o r fez d e m im o p rin c íp io d e S eu s c a m in h o s". E m S ira q u e
34,9, a S a b e d o ria fala o u tra v ez d o p rin cíp io : " A n te s d e to d a s a s eras,
d e s d e o p rin c íp io , Ele m e c rio u ".
A o b s e rv a ç ã o re d a c io n a l n o v. 27 n o s a s s e g u ra q u e te m o s in-
te rp re ta d o c o rre ta m e n te a s p a la v ra s d e Jesu s, e q u e se u sig n ific a d o
p r o fu n d o d iz re s p e ito à s u a re la ç ã o s in g u la r co m a d iv in d a d e , tão
ú n ica q u e D e u s é se u P ai (v er a re s p e c tiv a n o ta). U m a v e z m a is, p o -
ré m , s u a s p a la v ra s são re c e b id a s co m u m a in te rp re ta ç ã o e rrô n e a . N o
v. 28, Je su s in siste q u e so m e n te o v ig e n te r e to rn o p a ra o P ai re v e la rá
q u e D e u s é A q u e le q u e o e n v io u , q u e ele p o r ta o n o m e d iv in o e q u e
D e u s e stá s e m p re co m ele (29). M as e n q u a n to e ste r e to r n o p a ra o
P ai n a cru cifix ão , re s s u rre iç ã o e a sc e n sã o se rá o g r a n d e m o m e n to d a
re v e la ç ã o a o s q u e cre e m , a p r ó p ria m o rte d e Je su s q u e é u m a p a r te
esse n c ial d e s te m o m e n to se rá c a u s a d a p o r a q u e le s q u e n ã o c re e m .
E a ssim ele s ju lg a rã o a si m e sm o s e re je ita rã o a p o s s ib ilid a d e d e re-
ceb er v id a . O v. 28 re p re s e n ta o s e g u n d o d e s te s trê s d ito s jo a n in o s
c o n c e rn e n te s à e le v a ç ão d o F ilho d o H o m e m , trê s d ito s q u e , c o m o
re s s a lta m o s (p. 354), tê m p a ra le lo s n a s trê s p re d iç õ e s s in ó tic a s d a
P aix ão . M c 9,30-31 p õ e a s e g u n d a d a s p re d iç õ e s s in ó tic a s n a e s tru -
tu ra d a v ia g e m d e Je su s p e la G alileia d e c a m in h o p a ra J e ru sa lé m . Já
n o ta m o s p a ra le lo s e n tre a v ia g e m d e Je su s a J e ru sa lé m , n o s sin ó ti-
cos, e su a v isita n a festa d o s T a b e rn á c u lo s e m Jo 7-8 (v e r p. 559).
O v. 30 encerra esta seção sobre a n o ta d e m u ito s q u e c h eg am a crer
em Jesus. E n q u an to o v. 30 faz u m a inclusão conveniente com o v. 21,
e a ssim se rv e p a ra in te rro m p e r o lo n g o re g istro d a s p a la v ra s d e Jesus
em u n id a d e s m ais m an ejáv eis, p o d e m o s p e rg u n ta r se ele n ã o re p re se n -
ta s im p le sm e n te u m artifício re d a c io n a l c o n v e n ie n te e m v e z d e u m a
p a rte in te g ra l d o d isc u rso . E m 2 2 ,2 5 e 27 tem o s o u v id o d a c o n siste n te
32 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III (c o n tin u a ç ã o ) 615

in c o m p re e n sã o e recu sa d e crer; isto c o n tin u a rá n a seção seguinte,


p. ex., 33, 39. E b a s ta n te s u rp re e n d e n te n o m eio d isto (30-31) ach ar
a lg u n s q u e c reem e m Jesu s, e n q u a n to faz s u a s o b serv açõ es a "judeus"
crentes (! - v e r n o ta ab aix o so b re o v. 31). E n c o n tra m o s p re v ia m e n te
p a re c e re s c o n trá rio s e n tre a m u ltid ã o , e João, c o n sisten te m e n te, dei-
x o u b e m claro q u e a lg u n s e sta v a m in clin a d o s a a c eita r Jesus, ao m e-
n o s co m o o M essias. M as Jesu s n ã o d irig iu su a s o b serv açõ es a estes,
c o m o fez n o v. 31. A ssim , p a re c e m e lh o r c o n sid e ra r o v. 30 co m o u m a
d e c la ra ç ã o s u m a ria d a , e n fa tiz a n d o u m a v e rd a d e in d u b itá v e l e ele a
in se riu p a ra u m a m e lh o r o rd e m o rg an iz ac io n a is. O in tu ito n ã o era
d a r ao s c re n te s u m p a p e l n o d isc u rso su b se q u e n te co m o a inserção
u lte rio r d a p rim e ira lin h a d o v. 31 o fez.

[A B ib lio g rafia p a ra e sta seção e stá in clu sa n a B ibliografia p a ra o


c a p ítu lo 8, n o final d o § 33.]
33. JE SU S N A F E S T A D O S T A B E R N Á C U L O S :
- C E N A III (C o n c lu sã o )
(8,31‫־‬59)

Discursos mistos

c. Jesus e Abraão

8 31E n tão Jesu s c o n tin u o u , d iz e n d o à q u e le s ju d e u s q u e h a v ia m c rid o


nele:

"Se p e rm a n e c e rd e s em m in h a p a la v ra ,
re a lm e n te sereis m e u s d iscíp u lo s;
32e co n h ecereis a v e rd a d e ,
e a v e rd a d e v o s lib e rta rá ".

33"S o m o s d e sce n d ê n c ia d e A b ra ã o ", re s p o n d e ra m , "e n u n c a fo m o s es-


crav o s d e a lg u é m . O q u e q u e re s d iz e r co m 'S ereis liv re s'? "
34‫־‬J esu s lh es res p o n d e u :

" V e rd a d e ira m e n te v o s a sse g u ro ,


to d o o q u e c o m ete o p e c a d o
é e scra v o [do p e c ad o j.
(35E n q u a n to o e scra v o n ã o te m lu g a r p e rm a n e n te n a fam ília,
O filho te m ali u m lu g a r p e rm a n e n te ).
36C o n s e q u e n te m e n te , se o Filho v o s lib ertar,
v e rd a d e ira m e n te sereis livres.
37E u sei q u e sois d e sc e n d ê n c ia d e A b raão .
T o d a v ia, v ó s p ro c u ra is m ata r-m e ,
p o rq u e m in h a p a la v ra n ã o p e n e tra em vós.
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C en a III (c o n tin u a ç ã o ) 617

38E u d ig o o q u e te n h o v isto n a p re se n ç a d o m e u Pai;


p o rta n to , d e v e rie is fazer o q u e o u v iste s d o v o sso Pai".

39" N o s s o p a i é A b ra ã o " , re sp o n d e ra m -lh e . Jesu s replicou:

"Se fô sseis re a lm e n te filh o s d e A b raão ,


esta rie is fa z e n d o as o b ra s d ig n a s d e A b raão .

40M as, n a v e rd a d e , p ro c u ra is m a ta r-m e,


p re c is a m e n te p o rq u e e u so u u m h o m e m q u e v o s tem
d ito a v e rd a d e q u e o u v i d e D eus.
Isto, A b ra ã o n ão fez.
41D e v e ras e sta is fa z e n d o as o b ra s d e v o sso pai!"

P ro te s ta ra m en tão : " N ã o tiv e m o s u m n a sc im e n to ilegítim o. M as nós


tem o s u m p a i, D e u s m e sm o ". 42Jesus lh es disse:

"Se D e u s fosse v o sso p a i,


v ó s m e a m arieis,
p o is eu saí d e D eu s e e s to u aq u i.
E u n ã o v im d e m im m esm o ,
m a s Ele m e e n v io u .
43P o r q u e n ã o e n te n d e is o q u e d igo? -
p o rq u e so is in c a p a z e s d e o u v ir m in h a p a la v ra.
44V ós so is d o d iab o , v o sso p ai,
e d e b o m g ra d o satisfazeis os desejos d e v o sso pai.
Ele foi h o m ic id a d e s d e o p rin c íp io
e n u n c a se firm o u n a v e rd a d e ,
p o is n e le n ã o há v e rd a d e .
Q u a n d o ele p ro fe re m en tira ,
fala d o q u e lh e é p ró p rio ,
p o is é m e n tiro so e o p a i d a m e n tira .
43M as, v isto q u e, d e m in h a p a rte , d ig o a v e rd a d e ,
n ã o c re d e s em m im .
46P o d e a lg u m d e n tre v ó s c o n v e n ce r-m e d e p ecad o ?
Se e sto u d iz e n d o a v e rd a d e ,
p o r q u e n ã o m e cred es?
618 O Livro d o s S inais

47Q u e m é d e D eu s
o u v e as p a la v ra s d e D eus.
A ra z ã o p o r q u e n ã o m e o u v is
é q u e v ó s n ã o sois d e D eu s".

48O s ju d e u s re s p o n d e ra m : "A caso n ã o e sta m o s c erto s e m d iz e r q u e és


sa m a rita n o e u m lo u co ?" 49Jesu s replicou:

"E u n ão so u louco,
m as h o n ro a m e u Pai,
e n q u a n to v ó s n ã o c o n se g u is h o n ra r-m e .
50E u n ã o b u sco g ló ria p a ra m im m esm o;
H á Q u e m a b u sq u e , e ju lg u e.
51S o le n em e n te vos asseg u ro :
se a lg u é m g u a rd a m in h a p a la v ra ,
esse jam a is v erá a m o rte ".

2‫ "י‬A g o ra e sta m o s certo s d e q u e és lo u co ", re p lic a ra m os ju d e u s.


" A b raã o m o rre u ; assim tam b é m os p ro fe tas. T o d a v ia, tu alegas: 'U m
h o m em jam a is e x p e rim e n ta rá a m o rte se g u a rd a r m in h a p a la v ra .'
',3S e g u ram e n te , acaso p re te n d e s se r m a io r q u e n o sso p a i A b ra ã o q u e
está m o rto ? - o u os p ro fe ta s q u e estã o m o rto s? Q u e m re a lm e n te p re -
te n d e s ser?" 54Jesus re sp o n d e u :

"Se eu glorifico a m im m esm o ,


m in h a g ló ria n a d a é.
A q u ele q u e m e glorifica é o Pai
a q u e m aleg ais se r 'n o sso D eu s',
55m esm o q u a n d o n ã o O conheceis.
Eu, p o ré m , O conheço;
e se e u d isse r q u e n ã o O conheço,
e sta rei se n d o co m o v ó s - m en tiro so !
Sim , e u O co n h eço
e g u a rd o Sua p a la v ra .
6,'‫־‬V osso p a i A b ra ã o e x u lto u -se
a n te a e sp e ra n ç a d e v e r m e u dia.
Q u a n d o ele o v iu , a le g ro u -se ".
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III ( c o n t i n u a ç ã o ) 619

57Isto lev o u os ju d e u s a o bjetarem : " A in d a n ã o ten s c in q u e n ta anos.


C o m o p o d e s te r v isto A b ra ã o ?" 58Jesu s resp o n d e u :

" V e rd a d e ira m e n te , v o s a sse g u ro ,


a n te s m e s m o d e A b ra ã o v ir à ex istên cia, EU SO U ".

59E n tã o p e g a ra m p e d ra s p a ra a tira r em Jesus, m as ele se o c u lto u e se


re tiro u d o s rec in to s d o tem p lo .

NOTAS

8.31. à q u e le s j u d e u s q u e h a v ia m c r id o n e le . Q u e a s o b se r v a ç õ e s q u e se g u e m sã o
d ir ig id a s a o s cren tes é m u ito d ifícil d e co n cilia r c o m a a g u d a d isco rd â n cia
ex p re ssa p o r e s s e s "crentes" n o v. 33 e se u d ese jo d e m atar J esu s n o v. 37.
A lg u n s têm sa lien ta d o q u e é d ito q u e e ste s "judeus" p u n h a m fé n ele (da-
tivo); n ã o é d ito q u e criam n ele (e is c o m o a cu sa tiv o , q u e é u m a ex p re ssã o
m a is d en sa ). T o d a v ia , D odd , a r t . c i t ., p. 6, in siste q u e a varia çã o n ã o tem
a q u i n e n h u m a im p ortân cia; e m e sm o q u e esteja im p lícita u m a fé parcial,
d ific ilm e n te isto p o d e ser c o n c ilia d o co m o d esejo d e m atar J esu s u m a s
p o u c a s lin h a s d ep o is. Q u a se certa m en te as p a lav ra s d e Jesus, n esta seção,
foram d ir ig id a s a o m e s m o tip o d e in c r é d u lo s q u e d e p a r a m o s a o lo n g o d e
to d o o d iscu rso . N ã o o b sta n te , q u a n d o a red a çã o d o v. 30 foi in ser id o para
in terro m p er o d isc u r so , era n ece ssá r io a crescen tar u m a frase n o v . 31 in-
tr a d u z in d o p a la v ra s d e Jesus. V isto q u e a referência n o v. 30 d e q u e h avia
a lg u n s q u e creram e m Jesus, o c o m p o sito r d o v . 31 (o red ator final?) p e n so u
ser r a z o á v el fa zê -lo s o a u d itó r io p ara o q u e se se g u ir ía e n ã o v ia m n en h u m a
co n tra d içã o e m d e sc r e v e r e ste s cren tes c o m o "judeus". H o u v e u m b lo co
d o m aterial jo a n in o o u u m e stá g io d a red a çã o joanin a na q u a l "os ju d eu s"
fo ra m u s a d o s sim p le sm e n te para d esc re v er o s h a b ita n tes d e Jerusalém o u
Ju d eia, e n ã o s e referia n ec e ssa r ia m e n te à s a u to r id a d e s h o stis a Jesus (ver
p. 85). V er em o s o u tr o s e x e m p lo s d e ste u so d o s "judeus" n o s c a p ítu lo 11-12.
p e r m a n e c e r d e s e m m in h a p a l a v r a . E m 2Jo 9 o u v im o s : " A q u e le q u e n ã o p er-
m a n e c e n o e n s in o d e C r isto n ã o te m D eu s" . Em o u tr o lu g a r , s e in v e r te m
o s te r m o s, e a p a la v r a d e D e u s p e r m a n e c e n o cr e n te (Jo 5,38). B ernard, II,
p. 3 0 5 , e s tá ce rto q u a n d o d iz q u e r e a lm e n te isto é a m e sm a c o isa q u e
p e r m a n e c e r na p a la v r a e ter a p a la v r a d e D e u s p e r m a n e n te n o cren te.
32. a v e r d a d e v o s lib e r ta r á . A "verd ad e" im p lícita é a re v ela çã o d e Jesus, c o m o v e-
m o s co m p a r a n d o isto c o m o v . 36, o n d e é o F ilh o q u e m liberta. O fre q u en te
620 O L ivro d o s S inais

u s o d e sta fra se na ora tó ria p o lític a a o a p e la r p ara a lib e r d a d e n a c io n a l o u


p e s s o a l é u m a d isto r ç ã o d o v a lo r p u r a m e n te r e lig io s o ta n to d a v e r d a d e
c o m o d a lib e r d a d e n e sta p a s s a g e m . O liv r a m e n to d o p e c a d o p o r m e io
d a força d a v e r d a d e n ã o a p a r e c e n o A T . E m Q u m r a n , lê -s e (1 Q S 4,20-21):
"E e n tã o D e u s ex p u r g a r á , p o r m e io d e S u a v e r d a d e , t o d o s o s fe ito s d o s
h o m e n s... e a sp e r g ir á so b r e e le u m e s p ír ito d a v e r d a d e c o m o á g u a q u e
p u rifica d e to d a e n g a n o s a a b o m in a ç ã o " . N ã o s e d iz q u e a v e r d a d e lib erta
d o p e c a d o , m a s e la d e str ó i o p e c a d o . N o e s c r ito r a b ín ic o ( Pirqe Aboth 3,6)
e n c o n tr a m o s a id e ia d e q u e o e s tu d o d a Lei é u m fa to r lib e r ta d o r , liv r a n -
d o a lg u é m d o c u id a d o m u n d a n o . A s s im , u m a v e z m a is podemos ter u m
co n tra ste im p líc ito e n tre o p o d e r d a r e v e la ç ã o d e J e su s e o d a Lei.
33. descendência de Abraão. A p a la v ra sperma e m g r e g o é u m s in g u la r c o le tiv o .
N a b oca d e " os ju d eu s" esta frase p o d e sign ificar: " S o m o s d a d e s c e n d ê n -
cia d e A braão". M a s n ã o é im p o s s ív e l q u e João, c o m o P a u lo e m G1 3,16,
faça u m jo g o d e p a la v r a s p ara in d ica r q u e J esu s é o d e s c e n d e n te real d e
A braão. T e m o s te n ta d o d e ix a r e sta p o s s ív e l n u a n ça e m n o ssa tra d u çã o .
nunca... escravos de alguém. "O s ju d e u s" p a r e c e m e n te n d e r e r r o n e a m e n te
a s p a la v r a s d e J esu s so b r e a lib e r d a d e e a s to m a m n u m s e n t id o p o lític o .
E n tretan to, a in d a n e s te n ív e l, su a a rr o g â n c ia é m a u fu n d a m e n ta d a , p o is
o E g ito , B a b ilô n ia e R o m a o s h a v ia m e s c r a v iz a d o . P o d e se r q u e tiv e s -
s e m e m m e n te q u e , s e n d o o s p r iv ile g ia d o s h e r d e ir o s d a p r o m e s s a fe ita a
A b ra ã o , n ã o p o d e m se r r e a lm e n te e s c r a v iz a d o s , e m b o r a o c a s io n a lm e n te
D e u s lh e s p e r m itis s e se r c a s tig a d o s a tr a v é s d e su je iç ã o te m p o r á r ia .
34. [do pecado]. A e v id ê n c ia p ara o m itir e sta fra se s e e n c o n tr a e m u m a fo rte
c o m b in a ç ã o d e te s te m u n h a s d a fa m ília o c id e n ta l e C lemente d e A le x a n -
d ria. N o c o m e n tá r io v e r e m o s q u e h á p a r a le lo s d e p e n s a m e n t o e n tr e e s te s
v e r s íc u lo s jo a n in o s e a a r g u m e n ta ç ã o d e P a u lo e m G á la ta s e R o m a n o s,
e a ssim é p o s s ív e l q u e u m c o p ista haja a n e x a d o a fra se " d e p e c a d o " d e
R m 6,17: " U m a v e z fo s te s escravos do pecado". Fora d e J o ã o e R o m a n o s a
im a g e m d e h o m e n s s e n d o e s c r a v o s d o p e c a d o s e e n c o n tr a n o N T s o m e n -
te e m 2P d 2,19: " e sc r a v o s d a co r ru p ç ã o " .
35. E ste v e r síc u lo p a r e c e se r u m p a r ê n te se in se r id o . A q u i, o e s c r a v o certa-
m e n te n ã o é e s c r a v o d o p e c a d o n o v . 34. O co n tr a ste te m m u d a d o d a q u e -
le en tre o liv r e e o e s c r a v o e m 3 4 p ara u m d e g r a d a ç ã o na fa m ília en tre
e scr a v o e filh o . A s s im , p r o v a v e lm e n te te m o s u m d ito in d e p e n d e n te da
trad ição joan in a q u e fo i in se r id o a q u i, p o r q u a n to o v . 3 4 m e n c io n a "escra-
vo " e 36 m e n c io n a "Filho". D odd , Tradition, p p . 3 8 0 -3 2 , d e fe n d e , c o m a rg u -
m e n to s c o n v in c e n te s c o n s id e r a n d o o v . 35 c o m o u m a b r e v e p a r á b o la d o
escr a v o e d o filh o. A r tig o s d e fin id o s a p a recem a n te s d o s su b sta n tiv o s p rin -
cip a is c o m o fa z e m e m e s tilo p a r a b ó lic o . E scra v o e filh o sã o p e r s o n a g e n s
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III (c o n t i n u a ç ã o ) 621

im portantes das parábolas sinóticas. Q uanto à m oral da parábola, pode-


m os pensar na parábola sinótica da vinha onde arrendatários são infor-
m ados que a vinha será tirada deles. Em João, o escravo não tem lugar
perm anente na casa. Podem os pensar ainda em Mt 17,25-26, onde lemos
que os reis terrenos não cobram im postos dos filhos por serem livres (note
a implicação de liberdade no contexto joanino). A parábola de João men-
ciona o lugar privilegiado do filho. Um paralelo final que pode lançar
luz sobre a m oral da parábola de João está em Hb 3,5-6, onde Moisés é
retratado com o um escravo dom éstico enquanto Jesus é o filho.
tem lugar permanente. Literalmente, "perdurar", o mesm o verbo que vimos
n o v . 31.
0 filho tem ali um lugar permanente. Esta cláusula é om itida no Codex Sinaiti-
cus e alguns m anuscritos m enores, talvez por causa da dificuldade deste
versículo, quando lido em presente contexto.
36. Consequentemente. A consequência é do v. 34: já que é um a questão de ser
livre da escravidão do pecado, som ente o Filho tem esse poder.
37. procurais matar-me. Este últim o tem a apareceu em 7,19.20.25. Embora es-
tes discursos [na festa] dos Tabernáculos sejam livrem ente conectados,
alguns tem as vão de um extrem o ao outro.
não penetra. O u "não têm lugar". Neste últim o sentido pode-se encontrar
um paralelo de pensam ento em 5,38: "Sua palavra não tem perm anência
em vossos corações". Também 15,7, dirigido aos discípulos: "Se minhas
palavras estiverem em vós"...
38. tenho visto. Este é um tem po perfeito, como contrastado com o aoristo
"ouvido" na linha seguinte. O tem po parece implicar que Jesus tinha
um a visão preexistente que continua no presente (ver 5,19). T hüsing,
p. 208, prefere esta solução àquela que sugeriría que de algum modo,
m esm o que ele estivesse na terra, Jesus perm anecia com o Pai no céu.
deverieis fazer 0 que ouvistes do vosso Pai. Esta frase é um tanto am bígua, e os
m anuscritos dão evidência de variantes que representam tentativas de co-
pistas para interpretar a frase. Uma variante que tem suporte na tradição
ocidental diz "visto" em vez de "ouvido"; isto faz paralelos com o "vi" na
prim eira linha do versículo. Não obstante, se a redação original tivesse
"vistes" na segunda linha, então é m uito difícil explicar como "ouvistes"
já estivesse introduzido. Mas se o original era "ouvido", a introdução de
"viste", p or imitação da prim eira linha, é facilmente explicada. O utra va-
riante se encontra em um grupo bem grande de testem unhas (porém não
no Vaticanus ou os papiros Bodmer): "meu Pai" é lido na prim eira linha
do v. 38, e "vosso pai" é lido na segunda linha. Isto cria um paralelism o
antitético onde a linha dois é entendida como um a referência sarcástica
622 O L ivro d o s S in ais

ao descendente do diabo de "os judeus" (ver 44): "Vós estais fazendo


exatam ente o que tendes ouvido de vosso pai". A inserção dos possessi-
vos é obviam ente um a tentativa de copista em prol de clareza; m as, esses
copistas entenderam corretam ente a segunda linha? B ernard, Barrett e
B ultmann estão entre os que pensam assim. Entretanto, isso parece pre-
m aturo dem ais nesta seção do discurso para a introdução do tem a do
diabo como o pai dos judeus; ele deixa sem sentido o desenvolvim ento
em 41-44. Aqui Jesus ainda está tentando convencer seu auditório a obe-
decer ao Pai verdadeiro, Deus. O "fazeis" é um a ordem im perativa, não
um indicativo sarcástico como é no v. 41.
39. Nosso pai é Abraão. A interpretação disto depende do significado da se-
gunda linha do v. 38. Se a referência ali é ao diabo, então "os judeus"
dizem isto a m odo de protesto. Se a referência ali é ao Pai de Jesus, então
aqui os judeus estão dizendo que não querem ter nada com o "pai" de
Jesus, porquanto têm a Abraão.
Se fôsseis... estarieis fazendo. O texto grego é confuso. As testem unhas estão
divididas em três leituras diferentes: (a) Condicional real: "Se fôsseis...
farieis". Codex Vaticanus e P66 leem um im perativo na apódosis. (b)
Condicional contrária ao fato: "Se fôsseis... estarieis fazendo". A tradição
bizantina endossa esta redação, a qual implica que "os judeus" não são
filhos de Abraão. Isto parece contradizer o v. 37. (c) Condicional mista,
como o tem os traduzido. Isto é endossado por P75 e Codex Sinaiticus e
Bezae. A ideia é que os judeus realm ente são filhos de Abraão, porém
estão negando-o por suas ações.
A confusão nas testem unhas é m elhor explicada quando se assum e que
(c) era a leitura original, e que (a) e (b) são tentativas de elim inar a condi-
cional mista, fazendo-a consistente em ambas, protasis e apódosis.
40. Eu sou um homem. Este uso incondicional de anthrõpos p o r Jesus, sem
qualquer implicação de unicidade, não se encontra em outro lugar no
NT (ver Bernard, II, p. 311). A lguns teólogos têm-se incom odado por
suas implicações, talvez por causa de um a tensão cripto-m onofisita em
seu pensam ento. Entretanto, na verdade este versículo não tem grande
im portância teológica, pois "um hom em ", aqui, é sim plesm ente um se-
m itism o para "alguém " (BDF, § 3012).
Isto, Abraão não fez. Q ue Abraão não m ataria um m ensageiro divino pode
ser um a inferência geral do caráter de Abraão, ou, quem sabe, um a re-
ferência específica a um a cena como a de Gn 18, onde ele recebeu com
boas-vindas os m ensageiros divinos.
41. fazendo as obras de vosso pai. Este é o prim eiro caso de sarcasm o que alguns
encontrariam acima no v. 38. Jesus se baseia sobre o princípio de que o
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III ( c o n t i n u a ç ã o ) 623

filho se com porta como seu pai; e embora “os judeus", por direito, sejam
filhos de Abraão, suas ações delatam que o diabo é seu pai (44).
Não tivemos um nascimento ilegítimo. Literalmente, "de fornicação". A inter-
pretação usual é que "os judeus" veem na insinuação, de que o diabo é o
pai deles, um a acusação de que Abraão não é seu pai e que são ilegítimos.
Nesta interpretação, seu "nós" é sim plesm ente um a resposta ao "vós [plu-
ral]" na últim a afirmação de Jesus. Mas há outra possibilidade: os judeus
poderíam ter recorrido a um argum ento ad hominem contra Jesus. Ele esti-
vera falando sobre seu Pai celestial e sobre o pai deles, mas acaso não havia
rum ores acerca de seu próprio nascimento? Não havia algum a dúvida se
ele era realmente o filho de José? (Ver nota sobre 1,45). Os judeus pode-
riam estar dizendo: " Nosso nascimento não é ilegítimo [mas o teu foi]". Há
um a testem unha antiga dos ataques dos judeus sobre a legitimidade do
nascim ento de Jesus em O r í c e n e s , Contra Celso 128 (GCS 2:79); e os Atos de
Pilatos II 3, tem os judeus acusando Jesus: "Nasceste de fomicação".
42. Eu saí de Deus. A frase "de Deus" encontrou sua via no credo niceno, na
expressão "D eus de Deus". Os teólogos têm usado esta passagem como
um descrição da vida interna da Trindade, indicando que a referência é
antes à m issão do Filho, i.e., a Encarnação. "Eu vim e estou aqui" é uma
ideia todo inclusiva. Isto é confirm ado pelo mesm o uso do aoristo de
exerchesthai em 17,8, onde o paralelism o m ostra que saí refere à missão:
"Realm ente eles têm com preendido que eu saí de ti, e têm crido que tu
me enviaste".
estou aqui. O verbo é atestado no uso religioso pagão; refere-se à vinda
de um a deidade que faz um a aparição solene. Ele aparece outra vez em
ljo 5,20: "Sabemos que o Filho de Deus estava aqui".
não vim de mim mesmo [de iniciativa própria], O mesm o vocabulário de 7,28;
note um a vez mais que estes discursos da festa dos Tabernáculos parti-
lham tem as comuns.
43. ouvir. Isto é akouein com o acusativo, um a construção que usualm ente se
refere à audição física, em vez de escutar com entendimento. Eles se torna-
ram tão obstinados que não podem nem mesmo ouvi-lo; são surdos.
44. do diabo, vosso pai. O grego tam bém pode ser lido: "o pai do diabo"; e os
gnósticos o tom aram assim em sua oposição ao Deus do AT, a quem
consideravam como sendo a fonte do mal, porque era responsável pela
existência da matéria.
vós sois. Literalmente, "vós sois de"; ver o contraste com "Quem é de Deus"
no v. 47.
Ele foi homicida desde 0 princípio. E bem provável que esta seja uma referência
ao homicídio de Abel por Caim (Gn 4,8; ljo 3,12-15). Em NovT 6 (1963),
624 O L ivro d o s S inais

79-80, J. Ramón D íaz ressaltou que no Targum palestinense de Gn 5,3


não é especificado que Caim fosse filho de Adão, m as que Eva era sua
mãe: "De Eva nasceu Caim, que não era como ele [Adão]". Isto pode ser
um exemplo prim itivo da tradição de que Caim nasceu de Eva e do anjo
m au Samael. Se esta tradição estava em m ente no v. 44, podem os ver m ui
claram ente por que Jesus diz que o diabo é o pai de "os judeus", porque
queriam m atar Jesus, precisam ente como Caim, o filho do diabo, m atou
Abel. Dahl, art. cit., oferece farta docum entação para um a referência a
Caim. Entretanto, provavelm ente ele leva a teoria longe dem ais, m an-
tendo que o pai dos judeus m encionado em 38(?), 41 e 44 é Caim, e não
o diabo. Para isso tem de explicar, como um erro ou resultado de sua
interpretação errônea da frase que estudam os.
nunca se firmou na verdade. A implicação de que o diabo era tam bém men-
tiroso desde o princípio é provavelm ente um a referência ao engano da
serpente sobre Eva em Gn 3,4-5.
fala do que lhe é próprio. O fato de que Jesus fala a verdade tem sido enfatiza-
do como um a indicação de que ele vem do Pai; assim tam bém a m entira
denuncia um a origem diabólica.
0 pai da mentira. Literalmente, "o pai dela/ele", i.e., da m entira ou do men-
tiroso.
45. não credes em mim. Aqui se usa o da ti vo em vez do eis com o acusa ti vo
(que se refere à fé profunda); a implicação pode ser que "os judeus" não
m ostram sinais mesm o da fé inicial. Este versículo tom a difícil aceitar
que estas palavras tenham sido dirigidas a "aqueles judeus que tinham
crido", como indica o v. 31.
46. Pode algum dentre vós convencer-me de pecado? Em 8,7-9, o desafio de ser
sem pecado desqualificou os escribas e fariseus de apedrejar a adúl-
tera, mas não há indício de que Jesus fosse desqualificado. Hb 4,15 é
outra testem unha da tradição neotestam entária de que Jesus era sem
pecado. O pano de fundo da tradição pode ser a do Servo Sofredor de
Is 53,9, em quem não havia engano. O Testamento de Judá 24,1 traz: "Ne-
nhum pecado se achará nele [a estrela de Jacó]"; m as não podem os estar
certos se isto foi um a interpolação cristã.
47. Quem é de Deus. Ver nota sobre v. 44.
ouve as palavras de Deus. Este critério proposto por Jesus é usado, por sua
vez, é aplicado pelos seus discípulos em ljo 4,6: "Todo aquele que conhe-
ce a Deus nos ouve, enquanto todo o que não pertence a Deus se recusa
ouvir-nos".
48. és samaritano. Bernard, II, p. 316, sugere que Jesus está sendo associado
aos sam aritanos que se recusaram reconhecer os judeus como os filhos
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C en a III (c o n tin u a ç ã o ) 625

exclusivos de Abraão. Bultmann, p. 2256, vê na expressão um a acusação


de heterodoxia. Não obstante, pode simplesmente ser equivalente a ser
"louco", i.e., ter um dem ônio de loucura (ver nota sobre 7,20). A história
de Simão o Mago, em At 8,14-24, indica que a possessão de um espírito e
poderes mágicos eram grandem ente estimados em Samaria, uma atitude
que reflete nas tradições posteriores sobre Simão e Dositheus. Em algumas
citações patrísticas do v. 48 (M ehlmann, art. cit.) acrescenta-se a acusação
de ser ilegítimo ("nascido de fomicação"); ver nota sobre v. 41.
49. honro. Uma interessante passagem que pode ser comparada com o uso de
"honra" e "glória" nos vs. 49-50 e 54 é a de 2Pd 1,17, que fala da Transfigu-
ração como o momento em que Jesus recebeu honra e glória da parte do Pai.
50. há Quem a busque, e julgue. Isto pode ser um eco de Is 16,5: "um trono se
firm ará em benignidade Ihesed], e sobre ele no tabem áculo de Davi se
assentará em verdade ['ernet] um que julgue, e busque o juízo, e se apres-
sa a fazer justiça". Em João, m esm o quando nenhum objeto é expresso
por "buscas", o que Deus busca é a glória do Filho.
51. verá a morte. Um hebraísm o para "m orrer" (SI 89,48; Lc 2,26). Q uando os
questionadores tom am as palavras de Jesus no versículo seguinte, ele é
citado como a dizer "provar a morte".
52. experimentará a morte. Literalmente, "provar a m orte"; esta expressão
idiom ática não se encontra no AT, m as equivale o mesm o que "ver a
m orte". E usada em outro lugar no NT para m orte física, e isso é como
"os judeus" interpretaram erroneam ente aqui; m as Jesus está se referin-
do à m orte espiritual. O evangelho de Tomé, dito #1, parece extrair do uso
de João: "Todo o que acha a explicação destas palavras não provará a
m orte". (Ver NTS 9 [1962-63], 159).
53. Abraão que está morto. Aqui João usa hostis, um relativo indefinido. Pode
indicar que o antecedente é tom ado como um tipo, assim: "Abraão que,
não obstante, era um hom em que m orreu" (BDF, § 2932). Isto poderia
tornar-se facilmente causai, tornando-se equivalente de "já que ele mor-
reu". Mas, no grego do NT, tais distinções baseadas no uso prático de
relativos são tênues.
pretendes ser. Literalm ente, "te fazes".
54. 'nosso Deus'. As testem unhas textuais m anifestam considerável confusão
quanto a se se deve ler "vosso Deus" em discurso indireto, ou "nosso
Deus" em discurso direto. O segundo parece m enos polido e, portanto,
m ais original; ele se encontra em ambos os papiros Bodmer.
55. não O conheceis... eu, porém 0 conheço. O primeiro "conhecer" provém de
gignõskein; o segundo, de eidenai (oid a ). Ver Apêndice 1:9, p. 794ss.
A afirm ação de que Jesus conhece o Pai é expressa tanto com eidenai
626 O Livro d o s Sinais

(7,29) como com gignõskein (10,15; 17-25). Especialmente para compa-


ração são:

7,28-29: "Aquele que não conheceis. Eu O conheço". - eidenai em am bas


as partes.
17,25: "Ainda que o m undo não te conheça, eu te conheço ".-gignõskein
em am bas as partes.

56. exultou-se... alegrou-se. E estranho que o prim eiro verbo seja mais forte do
que o segundo, pois esperaríamos o cum prim ento ser mais forte do que
a esperança. Há considerável evidência de versões e da patrística para a
leitura "desejou" em lugar de "exultou-se". Isto pode ter sua origem da in-
fluência cruzada de Mt 13,17 (= Lc 10,24): "Muitos profetas e justos têm de-
sejado ver o que vedes". Mas estudiosos como Torrey, Burrows e Boismard
sugerem que as variantes gregas de João representam um m al-entendido
de um texto aramaico original. Ver Boismard, Evjean, pp. 48-49.
a esperança de. Literalmente, esta é um a cláusula de propósito, m as há um a
ideia tácita de desejo e esperança; a cláusula de propósito assum e colori-
do do verbo principal, "regozijou-se" (ZGB, § 410). O utros pensam que o
hina que introduz a cláusula está para hote, "quando" (ZGB, § 429).
quando ele 0 viu. Até o tem po de M aldonatus (16a século), os exegetas eram
quase unânim es em assum ir que isto se referia a um a visão que ocorreu
durante a vida de Abraão. Entretanto, mais recentem ente a interpretação
que tem conquistado terreno de que João tem em m ente que, depois que
Abraão m orreu, ele viu o dia de Jesus. Bernard, II, p. 321, sugere que
isto poderia ser um a referência à alegria entre os santos veterotestam en-
tários quando as notícias chegaram no H ades de que Jesus nascera. To-
davia, a forma que João usa do AT milita contra este ponto de vista. Em
12,41, somos inform ados que Isaías viu a glória de Jesus, e a referência
é a um evento na vida de Isaías, a saber, sua visão inicial no tem plo. Se
um evento na vida de Abraão está implícito, poderia ser o nascim ento de
Isaque que era o cum prim ento inicial das prom essas de Deus a Abraão,
o prim eiro na cadeia de ações que finalm ente conduziram ao advento
de Jesus. Isto se adequa ao tema de alegria, pois em Gn 17,17 som os in-
form ados que, no anúncio do nascim ento de Isaque, Abraão caiu por
terra e riu (de incredulidade, m as os rabinos o tom aram como alegria);
ver tam bém Gn 21,6. jubileus 16,17-19 diz que Abraão foi inform ado que
seria através de Isaque que o santo povo de Deus seria descendente, e
que ambos, Abraão e Sara, se alegraram nas notícias. Há tradições rabí-
nicas posteriores de que Abraão viu toda a história de seus descendentes
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III (c o n t i n u a ç ã o ) 627

em um a visão (Midrásh Rabbah 44,22 sobre Gn 15,18); 4 Esdras 3,14 diz que
Deus revelou a Abraão o fim dos tem pos. C avaletti, art. cit., sugere em
particular a tradição de que Abraão viu o tem plo construído e conecta
8,56 com 2,19 (ver nota seguinte, sobre 8,57 e 2,20). Isto evocaria o tema
da ressurreição (Jesus ressurreto = tem plo construído) como um comen-
tário sobre a afirmação em 8,51 sobre não ver a morte.
57. ainda não tens cinquenta anos. Já vim os que a referência a quarenta e seis
anos, em 2,20, não foi interpretada plausivelm ente como um a estima da
idade de Jesus (ver nota ali). Lc 3,23 diz que Jesus tinha cerca de trinta
anos quando começou o ministério. I rineu, seguindo João, diz que Jesus
não tinha m uito m enos de cinquenta quando m orreu (Contra Heresias,
II 23:6; PG 7:785). C risóstomo e outras testem unhas leem "quarenta" no
texto de Jo 8,57, provavelm ente um a tentativa de harm onizar-se com Lu-
cas. Para um a discussão completa, veja G. O cc, " The Age of Jesus When He
Taught", NTS 5 (1958-59), 191-98.
Conto podes ter visto Abraão? Embora a maioria das testem unhas favoreça
esta leitura, há boa evidência, incluindo P75, em prol da leitura: "Como
pode Abraão ter-te visto?" Isto é endossado por B ernard, II, p. 321, e
explica como a tradução que escolhemos pode refletir um equívoco em
copiar. Entretanto, a segunda tradução parece ser um a adaptação ao vo-
cabulário do v. 56. Seria mais provável que "os judeus" dessem priorida-
de a ver Abraão em vez de ver Jesus.
58. antes de Abraão vir à existência. Algum a evidência ocidental, inclusive o
Bezae, om ite o verbo (ginesthai ) e tem sim plesm ente: "Antes de Abraão
eu sou". Neste versículo, a distinção é óbvia entre ginesthai, que é usa-
do para m ortais, e o uso divino de einai, "ser", na forma de "EU SOU".
Esta m esm a distinção foi vista no Prólogo: a Palavra era, m as através
dela todas as coisas vieram a ser. No AT, a mesma distinção é encontrada
no discurso a Iahweh no SI 90,2: "Antes que os m ontes viessem a ser... de
eternidade a eternidade tu és".
59. pegaram pedras. O tem plo de Herodes ainda não estava term inado, e te-
ria havido pedras expostas ao redor entre os m ateriais de construção.
Para um apedrejam ento nos recintos do templo, ver J osefo, Ant. 17.9.3;
216. Uma passagem como esta não lança nenhum a luz acerca da questão
se o Sinédrio tinha ou não poder de punição capital; esta era apresentada
como um ato espontâneo de indignação, e não é provável estar restringí-
da pelas provisões da lei rom ana, se tal lei existia.
recintos do templo. No fim do versículo um a tradição grega posterior acres-
centa: "passando no meio deles, e assim ele se foi". A prim eira des-
tas frases adicionadas é de Lc 4,30; a segunda representa um a divisão
62 8 O L ivro d o s Sinais

equivocada de 9,1 (que é o versículo seguinte em João) e a transferência


do verbo de m ovim ento de lá para cá. A despeito da im pressão criada
por esta adição do copista, não há indício claro aqui de que a retirada de
Jesus foi m iraculosa, como foi o caso em Lc 4,30.

C O M E N T Á R IO

Análise literária

E sta te rc e ira d iv is ã o d o c a p ítu lo 8 m o s tra m u ito m e n o s p a ra le lo s


co m as p a s s a g e n s p ré v ia s d e Jo ão d o q u e m o s tr a r a m a s d u a s p ri-
m e ira s d iv is õ e s . H á sin a is d e u m a s p o u c a s in se rç õ e s r e d a c io n a is
(v er n o ta s s o b re vs. 31 e 35), m a s e m g e ra l te m o s a q u i u m d isc u r-
so b a s ta n te h o m o g ê n e o . O te m a d e A b ra ã o o m a n té m ju n to , se n -
d o in tr o d u z id o n o v. 33, c o n tin u a n d o a tra v é s d o 37, 39, 40, 53, 56,
57 e e n c e rra n d o o d isc u rs o e m 58. A téc n ic a d o d e s e n v o lv im e n to
d o p e n s a m e n to d o d is c u rs o a tra v é s d e o b jeçõ es d a p a r te d e " o s ju-
d e u s " a lc a n ç a a q u i s u a p e rfe iç ã o , e se p o d e p r o n ta m e n te s e n tir ao
c re sc e n te e n d u re c im e n to d e a m b o s os la d o s. N a p r im e ir a p a r te d o
d is c u rs o , o s ju d e u s a rg u m e n ta m c o m Je su s; m a s, c o m o c o n tin u a m
a la n ç a r s o b re ele a c u sa ç õ e s d e se r ile g ítim o e p o s s e s s o d e d e m ô -
n io , fin a liz a m te n ta n d o m a tá -lo . N a p r im e ir a p a r te d o d isc u rs o ,
Je su s in s is te co m os ju d e u s q u e a ja m c o m o filh o s d e A b ra ã o , m as,
n a c o n tin u a ç ã o , ele fala m a is a s p e ra m e n te , in c lu s iv e a c u s a n d o -o s
d e s e re m filh o s d o d ia b o . W . K ern, art. cit., d iv id iría o d is c u r s o em
trê s e s tro fe s q u e , co m a lg u m a s a d a p ta ç õ e s , p o d e m s e rv ir-n o s d e
c o n v e n ie n te s s u b d iv is õ e s p a ra n o sso c o m e n tá rio :

(1) 31-41a: "o s ju d e u s " a le g a m te r A b ra ã o co m o Pai d eles. N o te


co m o su a s objeções e m 33 e 39 e q u ilib ra m u m a s às o u tra s.
(2) 41b-47 (K ern a v a n ça p a ra 48): Jesu s lh es d iz q u e o p a i v e rd a -
d e iro d e le s é o diabo.
(3) 48-59: as reiv in d ic a çõ e s q u e Jesu s faz p a ra si, e c o m p a ra ç ã o
co m A b raão .

E ntretanto, no m ais, estas subdivisões rep re sen ta m leves m u d an ç a s


na direção geral d a idéias, q u e a p resen tam u m a no táv el concatenação.
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III (c o n t i n u a ç ã o ) 629

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

(1) 31-41a: Abraão e os judeus

D odd , art. cit., tra b a lh o u in te n sa m e n te p a ra to rn a r claro o p a n o de


fu n d o e a fin a lid a d e d e ste d isc u rso n o e v a n g e lh o e n o co n tex to do
N T . A in sistê n c ia co m q u e o p o v o d e Israel e v o cav a A b ra ã o com o seu
p a i re m o n ta à p ro m e ssa d e D e u s a A b ra ã o d e q u e se u s d e sce n d e n -
tes se ria m u m a b e n ç ã o a o m u n d o in te iro e ao s e sco lh id o s d e D eus
(G n 22,17-18; SI 105,6). N o d e c o rre r d o tem p o , a m esm a resp o n sab ili-
d a d e q u e a c o m p a n h o u o status d e se r filho d e A b ra ã o in ev ita v e lm e n te
p e rd e s u a in te n s id a d e , e p a ra a lg u n s ela foi su b s titu íd a p o r u m sen so
d e p ro te ç ã o d iv in a a u to m á tic a . E m se u Diálogo com Trifo, J ustino acu sa
q u e o s ju d e u s , co m o se m e n te d e A b ra ã o , e sp e ra v a m receb er o rein o
d e D e u s, se m im p o rta r o q u e v iria m a se r s u a s v id a s p e sso a is (140,2;
PG 6:797; ta m b é m StB, 1, p. 117ss.). N a p a rá b o la d e L ázaro v e m o s o
reflex o d e u m a cren ça c o rre n te d e q u e to d o a q u e le q u e a p e la sse p a ra
o " p a i A b ra ã o " jam a is iria p a ra o lu g a r d e to rtu ra e te rn a (Lc 16,24),
cren ça q u e Je su s co rrig iu . E m se u m in isté rio , Jesu s re a g iu fo rte m e n te
c o n tra a reiv in d ic a çã o d e q u e se r filhos d e A b ra ã o d a v a u m status au-
to m ático d e s a n tid a d e o u p riv ilég io . João B atista a d v e rtira q u e D eus
p o d e ria d a s p e d ra s criar p a ra A b raão u m a n o v a g eração d e descen-
d e n te s (M t 3,7-10). Jesus a d v e rtiu q u e e stra n g eiro s v iria m assen tar-se
co m A b ra ã o à m esa d o b a n q u e te celestial, e n q u a n to os filhos d o reino
s e ria m la n ç a d o s fora (M t 8,11-12). T alvez M t 18,9 fosse tam b é m diri-
g id o c o n tra a p re su n ç ã o d o s filhos d e A braão: "A n in g u é m so b re a
te rra c h a m e is d e v o sso p a i, p o rq u e te n d e s u m Pai q u e está n o céu".
A ssim , ao m en o s o cern e d o a ta q u e d e Jesus c o n tra a reivindicação ju-
d aica d e serem filhos d e A b raão , com o e n c o n tra d a e m Jo 8, se ad e q u a
ao q u e sab em o s te r sid o u m tem a trad icio n alm en te associado a Jesus.
N o co n flito d a Igreja com a S in ag o g a, este tem a foi g ra n d e m e n te
d e s e n v o lv id o (e d e v e ra s este d e se n v o lv im e n to tem d e ix a d o s u a m arca
em a lg u n s d o s d ito s sin ó tico s su p ra c ita d o s). Em P a u lo e n c o n tram o s
u m a n e g a çã o d e q u e a p ro m e s s a d e A b ra ã o foi d irig id a aos ju d eu s.
G1 3,16 e x tra i u m a rg u m e n to exegético d o fato d e q u e o A T fala da
d e sc e n d ê n c ia d e A b ra ã o n o s in g u la r (sperma n o g reg o ), u m a indica-
ção p a ra P a u lo d e q u e esta a p o n ta v a p a ra Jesus C risto. A ssim P au lo
p o d e d iz e r a o s cristãos: "Se sois d e C risto , e n tã o sois d esce n d ê n c ia de
63 0 O Livro d o s S inais

A b raão (3,29)"; os cristã o s são filhos d e A b ra ã o a tra v é s d e su a e sp o sa


Sara, u m a m u lh e r livre, e n ã o a tra v é s d a jo v em e scra v a A g ar, co m o
são to d o s q u a n to s são e scra v o s d a Lei.
O s tem a s d e lib e rd a d e e e scrav id ão , b e m com o d e se r v e rd a d e iro s
d e sce n d e n te s d e A b raão , tam b é m a p a re c e m em Jo 8,31-41. C o m p re e n -
d e re m o s o alcance específico d e ste s v ersícu lo s se le m b ra rm o s q u e, ao
m en o s em p a rte , João se d irig iu a cristão s ju d e u s q u e e sta v a m h e sita n -
tes e n tre su a s o b rig açõ es p a ra com a sin a g o g a e se u s c o stu m e s ances-
trais, d e u m lad o , e s u a fé e m Jesus, d o o u tro . In clu siv e se te m s u g e rid o
q u e a e stra n h a referência a "aq u e le s ju d e u s q u e h a v ia m c rid o n e le " n o
v. 31 e stav a im p lícita u m a referência aos ju d e u s cristão s, m a s o desejo
d esses ju d e u s em 37 d e m a ta r Jesus n ã o co n c o rd a com e ssa p o ssib ilid a -
de. A n tes, p e n sa m o s m ais p re c isa m e n te q u e a su b stâ n c ia d o d isc u rso
é d irig id a a "os ju d e u s " n o sig n ificad o jo an in o o rd in á rio d a p a la v ra ,
i.e., os q u e são h o stis a Jesus, a in d a q u e m u ita s d a s se n te n ç as têm u m a
a p lic ab ilid a d e se c u n d á ria à situ a ç ão d o s cristão s ju d eu s.
Em p a rtic u la r, o v. 31 le m b ra ria c la ra m e n te ao s ju d e u s c ristã o s
q u e o q u e d istin g u e os v e rd a d e iro s d isc íp u lo s d e Je su s é a p e rm a n ê n -
cia em su a p a la v ra , n ã o q u a lq u e r le a ld a d e esp ecial à Lei. A re v e la ç ã o
q u e o Filho d e D eu s tro u x e , a q u a l é v e ra z , tem lib e rta d o a q u e le s q u e
creem n ela (32, 36). P a u lo clam o u : "C risto n o s lib erto u ... n ã o n o s su b -
m eta m o s o u tra v e z a u m ju g o d e s e rv id ã o (G15,1)". A ssim , p a ra P a u lo
a e scra v id ã o e ra a s e rv id ã o ao ju g o d a Lei, e, o q u e é m a is trág ico , a Lei
n ão p o d ia s u p rim ir o p e c ad o , a p e n a s to rn a r o p e c a d o m ais p re ju d ic ia l
(Rm 7,7ss.). O d e se n v o lv im e n to d o p e n s a m e n to d e P a u lo é re s u m id a
em Rm 8,2: "A lei d o E sp írito d e v id a em C risto Jesu s tem m e lib e rta d o
d a lei d o p e c a d o e d a m o rte ". João n ã o fala d e e sc ra v id ã o à Lei, m a s
vai d ire ta m e n te a u m a e sc ra v id ã o ao p e c a d o (34). O s ju d e u s cristã o s
q u e rec e b e ra m a m e n sa g e m e v an g élica n a tu ra lm e n te e n te n d e ría m
q u e Jesu s e sta v a fa la n d o d e lib e rd a d e e e sc ra v id ã o n o n ív el e s p iritu a l,
m as "o s ju d e u s " q u e são re tra ta d o s co m o a u d itó rio rea l d e Jesu s in-
co rre m n o m a l-e n te n d id o e p e n s a m q u e ele e stá fa la n d o e m u m nível
político. O o rg u lh o n a c io n a lista e n c o n tra d o n o v. 33 lem b ra o m ag -
n ificen te a rro u b o d e E leazar ao s ju d e u s sitia d o s em M a ssa d a (Josefo,
War 7.8.6; 323): "H á m u ito d e te rm in a m o s n ã o ser e scra v o s n e m d o s
ro m a n o s n e m n in g u é m m ais, se n ã o d e D eu s". Jesus, p o ré m , d iz q u e
n ã o são liv res, se n ã o com a ú n ica lib e rd a d e c o n c e rn e n te a ele, u m a
lib e rd a d e d o p e c ad o . E sta é a lib e rd a d e d o v e rd a d e iro d e s c e n d e n te
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C en a III ( c o n tin u a ç ã o ) 631

d e A b ra ã o (sperma n o s in g u la r; v e r n o ta so b re v. 33), e é u m a lib e rd a d e


q u e só p o d e v ir a tra v é s d o F ilho (36). Já v im o s n a resp e c tiv a n o ta qu e
o v. 35 é u m a in serção p o s te rio r ao d isc u rso , m as p o d e ser q u e sua
in tro d u ç ã o fosse tid a co m o a p ro p ria d a , p o rq u e se a d e q u a v a ao u so
d e s te d isc u rs o d e João n a p o lêm ic a com os ju d e u s. O tem a n o v. 35
d iz re s p e ito à p o s s ib ilid a d e d o s e scra v o s se re m lan ç a d o s fora d a casa.
C o m o v im o s n a s p a ssa g e n s m a te a n a s q u e cita m o s acim a: aos ju d e u s
se a p re s e n to u a p o ssib ilid a d e d e q u e p o d e ría m p e rd e r se u p riv ileg ia-
d o p o s to co m o filh o s d e A b raão . Em G1 4,30, P a u lo d e screv e com o o
filho d e A b ra ã o p e la escra v a foi la n ç a d o fora em fav o r d e seu filho
g e ra d o p e la livre.
A fraseologia d o v. 37 é m ais d iplom ática d o q u e as p alav ras de
P au lo . P a ra P a u lo , so m e n te os cristã o s são os v e rd a d e iro s d e sce n d e n -
tes d e A braão. M as o Jesus joanino a d m ite q u e "os ju d e u s" são descen-
d en tes d e A b raão com o p a rte d e seu p lan o d e levá-los a agirem com o
A braão. M u ito e stran h am en te, a q u i n ão há n e n h u m apelo a A braão
co m o h o m em d e fé, u m tem a q u e p arece ter sid o o p atrim ô n io co m u m da
Igreja p rim itiv a (G1 3,6; Rm 4,3; Tg 2,22-23; H b 11,8.17). A ntes, em João,
a ên fase está e m realizar ob ras d ig n as d e A braão, e so m en te n as breves
referências à p a la v ra d e Jesus q u e não ab re cam in h o (37) e su a m enção
d a v e rd a d e (40) é q u e há u m a referência in d ireta à su a falta d e fé.
A m en ção d o Pai d e Jesus n o v. 38 se d e p a ra com u m a rejeição im -
p lícita p o r "o s ju d e u s" em 39. Isto leva Jesus a e n d u re c e r su a p o stu ra.
N o v. 39 ele está a in d a in sistin d o q u e eles são filhos d e A b raão (condi-
cional real n a p ro tásis), m as a p a rtir d o v. 41 ele d iz q u e su a s o b ras reve-
lam u m a ascen d ên cia d em o n íaca. Esta v ariação d e p ersp ectiv a está ten-
ta n d o c a p ta r a m esm a ideia q u e P au lo d á ex p ressão e m Rm 9,7: "N em
to d o s os q u e são d e sce n d e n te s d e A b ra ã o são filhos d e A b raão ". Q u e
características e sp iritu a is se re q u e re ra m p a ra ser realm en te d ig n o d e
A b ra ã o ta m b é m se e n c o n tram no p e n sa m e n to ju d aico co n tem p o rân eo ;
Pircfe Aboth v 22 diz: "B ons olhos, u m e sp írito h u m ild e e u m a m ente
dócil são as m arcas d o s d iscíp u lo s d e A b raão n o sso pai".

(2) 41b-47: O verdadeiro pai de "os judeus" - Deus ou 0 diabo?

N o v. 41a, com a p rim e ira a lu sã o d e Jesus d e q u e o d ia b o é o p ai


d e "o s ju d e u s " , o tem a d e A b ra ã o p a ssa p a ra se g u n d o p lan o . T orna-se
c laro q u e Je su s n ã o está d e sa fia n d o a p u re z a d a o rig e m d e le s o u seja
632 O L ivro d o s S inais

d e A braão; ele está d e safian d o seu status com o p o v o d e D eus. T alvez


p o r im plicação a resp o sta d o s ju d e u s em 41b seja u m a v ilta m e n to a Je-
su s (ver a resp ectiva nota), m as su a p rin c ip al obrigação é d e fe n d e r a p u -
reza d e seu status religioso. N o AT, a in fid e lid ad e a Iah w e h às v ezes era
descrita com o p ro stitu içã o o u a d u lté rio , e os israelitas q u e p ra tic a v a m
u m falso cu lto e ra m c h a m a d o s filhos d e p ro stitu içõ es (Os 2,4). P o rta n to ,
q u a n d o n o v. 41 os ju d e u s n e g a m q u e são filhos d e fom icação, estão
n eg a n d o q u e têm se d e sv ia d o d a g e n u ín a v e re d a d o cu lto a D eus. A o
ressaltar q u e D eus é o p ai deles, estão re ite ra n d o os term o s d a aliança
com M oisés pela q u al Israel se to rn o u filho d e D eu s (Ex 4,22) e Iah w e h
se to m o u p ai d e Israel (D t 32,6) - u m tem a reitera d o c o n sta n tem e n te na
p reg ação p rofética (Is 44,8; M l 2,10). U m a p a ssa g e m q u e é p a rticu la r-
m en te aplicável a q u i é Is 63,16, d irig id o a Iahw eh: "P ois tu és n o sso p ai.
A in d a q u e A b raão n ã o n o s reconhece... tu, S enhor, és n o sso p a i".
Jesus re s p o n d e com u m a tácita negação. N o v. 39, e x p re ssa n d o -
se n u m a sen ten ça condicional com u m a p ró ta se "re a l" , ele a d m itiu a
alegação d eles d e d e sce n d e rem d e A b raão (se g u n d o a carne); e m 42,
ex p ressan d o -se n u m a sentença co n d icio n al q u e é in te ira m e n te con-
trária ao fato, Jesus n eg a term in a n te m e n te q u e D e u s seja o Pai deles.
O critério p a ra a filiação é u m a vez m ais o p rin c íp io d e q u e o filho d e v e
ag ir com o o p ai, e as ações d e "o s ju d e u s " em o d ia re m a Jesus m o stra m
q u e n ão são filhos d e D eus. E in te ressa n te q u e em G13,26.29 tem o s P au-
10 a sso cian d o a q u e stã o d e ser filhos d e D eu s com a d e se r d e sc e n d e n te s
d e A braão. P au lo a sse g u ra aos cristãos q u e são filhos d e D e u s p e la fé,
assim , p o r im plicação, c o n tra sta n d o -o s com os ju d eu s; P au lo , p o ré m ,
n ão chega ao p o n to d e d iz e r q u e os ju d e u s são filhos d o d iab o . Se a afir-
m ação q u e João reg istra p a ra este p ro p ó sito (44) p a re c e á sp era , afirm a-
ções sem elh an tes fo ram a trib u íd a s a Jesus n a tra d içã o sinótica. A o falar
aos escribas e fariseus so b re o tip o d e co n v ersão q u e eles fazem , Jesus
diz: "A o fazer-se u m p rosélito, ele se to m a d u a s v ezes m ais filho do infer-
no como vós (M t 23,15)". N a exposição d a p a rá b o la d o joio (M t 13,38-39),
so m o s in fo rm a d o s q u e as sem en tes q u e se o p õ e m aos filhos d o rein o
são os filhos do Maligno. D ev em o s n o ta r a in d a q u e o m esm o p e n sa m e n -
to se en co n tra em o u tro lu g ar na lite ra tu ra jo an in a, p o is l j o 3,8 diz:
"O h o m em q u e age p e c am in o sa m en te p e rte n ce a o d iab o , p o rq u e o dia-
b o é p e c ad o r d e sd e o p rin cíp io ".
A ên fase so b re a n a tu re z a essen cial d o d ia b o o u o q u e ele foi d es-
d e o p rin c íp io p e rm e ia o v. 44; talv e z seja p o r c o n tra ste co m o cap.
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C en a III (c o n t i n u a ç ã o ) 633

8,25 o n d e Jesu s friso u q u e ele m esm o e ra o q u e lh es d isse ra ser d e sd e


o p rin c íp io . A q u i, p e la p rim e ira v e z no e v a n g elh o , o fato d e q u e o d ia-
b o é o v e rd a d e iro a n ta g o n ista d e Jesus p a ssa ao p rim e iro p lan o . Este
te m a se to rn a rá c a d a v ez m ais in siste n te e n q u a n to a h o ra d e Jesus se
a p ro x im a , a té q u e a p a ix ã o se a p re s e n te co m o a lu ta a té a m o rte e n tre
Jesu s e S a ta n á s (12,31; 14,30; 16,11; 17,15). A ssim , ao b u sc a r concreti-
z a r a m o rte d e Jesu s, q u e é o p rin c ip a l p ro p ó sito d o d iab o , "o s ju d e u s"
e s tã o re a liz a n d o a o b ra d e S atan ás. Isto é ex em p lific a d o ao ex trem o
e m Ju d a s; p o rq u e , co m o ele tra iu Jesu s p a ra a m o rte , S atan ás e n tro u
n e le (13,2.27). A o e n fa tiz a r a n a tu re z a essen cial d o d ia b o co m o peca-
d o r, h o m ic id a e m e n tiro so , Jesu s e stá fa la n d o n a tra d iç ã o d o p e río d o
p o s te rio r d o A T q u e tra ç o u to d o p e c a d o e m o rte à o b ra d o d ia b o des-
crita n o s c a p ítu lo s in iciais d e G ênesis. Sb 2,24 trás: "P ela inveja d o dia-
b o e n tr o u a m o rte n o m u n d o " ; S ira q u e 25,24 trás: "O p e c a d o com eçou
co m u m a m u lh e r [Eva], e p o r ca u sa d e la to d o s n ó s m o rre m o s" . Pon-
tu a m o s n a s n o ta s so b re v. 44 q u e a a c u sa ç ã o específica d e m en tiro so
d e v e e s ta r c o n e c ta d a com o e n g o d o d e S a tan á s c o n tra Eva, e a acusa-
ção d e h o m ic id a à h istó ria d e C airn. E p o ssív e l q u e n o ú ltim o caso a
a c u sa ç ã o seja a in d a m ais a m p la , e q u e , c o m o n a S ab ed o ria d e S alom ão
e S ira q u e , e stá im p líc ita a p e n a d e m o rte a tra v é s d o p rim e iro p ecad o .
Q u e a s e rp e n te d e G n 3 era c o n s id e ra d a h o m ic id a é v isto n a o b ra d o
4“ sé cu lo d .C ., Constituições Apostólicas (VIII 7:5; F unk e d ., 1,482).
P o d e m o s fazer u m a p a u s a p o r u m m o m e n to p a ra a n a lisa r a ên-
fase so b re a m e n tira na ú ltim a p a rte d o v. 44. N o d u a lis m o joanino,
m e n tira é e q u iv a le n te a trev as; é p a rte d a esfera d iab ó lica q u e se o p õ e
à v e rd a d e e à lu z d e D eus. A ssim , a q u i n ã o e sta m o s p e n s a n d o em
e n g o d o o c asio n al, e sim n a p e rv e rs ã o fu n d a m e n ta l. Se Jesus C risto é
a v e rd a d e (14,6), o d ia b o é a m e n tira p o r excelência. N o e v a n g elh o , o
d u a lis m o d e l u z / tre v a s é m ais c o m u m d o q u e d e v e rd a d e /p e rv e rs ã o ;
m as e m l j o 2,22 p e rg u n ta -se : " Q u e m é o m en tiro so ? N e n h u m o u tro
se n ã o q u e m n e g a q u e Jesu s é o C risto. Este é o a n tic risto , o q u a l neg a
o P ai e o F ilh o " (ta m b é m 2Jo 7). Isto está m u ito a sso c ia d o com o p en -
sa rn e n to n a d iv isã o d e Jo 8 em c o n sid eração . U m d u a lism o sim ilar
é b e m c o n h e c id o e m Q u m ra n , o n d e o e sp írito d a v e rd a d e é o p o sto
ao e s p írito d a p e rv e rs ã o (ver ta m b é m n o ta so b re v. 32). H á n ã o só
d o is g ra n d e s líd e re s an g élico s e n tra n d o em b a ta lh a (1QS 3, 19), m as
ta m b é m d o is c a m in h o s d a v id a p e lo s q u a is os h o m e n s c a m in h am
(1QS 4, 2ss.). A ssim tam b é m n a lite ra tu ra joanina: se n o e v a n g elh o
634 O L ivro d o s S inais

v e rd a d e e m en tira são p erso n ificad a em Jesus e S atanás, em l jo 4,1-6


o e sp írito d a v e rd a d e e o e sp írito d o e rro se e n c o n tra m n o s h o m e n s; e
em 2Jo 4 e 3Jo 3, os cristã o s a n d a m n a v e rd a d e . (V er n o sso a rtig o so-
b re João e Q u m ra n em C B Q 17 [1955], 559-61). F in a lm en te , p o d e m o s
o b se rv a r q u e a ên fase so b re a m e n tira n e sta terceira d iv is ã o d o d isc u r-
so n o c a p ítu lo 8 está e m c o n tra ste com a ê n fa se so b re a v e rd a d e n a s
d u a s p rim e ira s d iv isõ es. A li o u v im o s q u e o te s te m u n h o d e Je su s p o d e
ser v e r if ic a d o (14), se u ju lg a m e n to é v e r d a d e i r o (16), o q u e e le d iz reflete
a f i d e d i g n i d a d e d a q u e le q u e o e n v io u (26).
O s vs. 45-46 a ju d a m a le m b ra r ao leito r as p rim e ira s p a la v ra s d e
Jesus c o n c ern e n te s à v e rd a d e . E m p a rtic u la r, o v. 45 a c e n tu a a o p o si-
ção rad ic al q u e existe e n tre os filh o s d o p a i d a m e n tira e os d a v e rd a -
de. P o d e ria m o s e s p e ra r q u e o v. 45 d ig a q u e, m e sm o q u a n d o Je su s d is-
se a v e rd a d e , n ã o c re ra m nele; m as João re a lm e n te d iz q u e n ã o c re ra m
p o rq u e ele falav a a v e rd a d e . Em 3,20, o u v im o s q u e os filhos d a s tre-
v as o d e ia m a luz; a q u i, os filhos d a m e n tira o d e ia m a v e rd a d e . Jesu s
p o d e rá d isc u tir com eles tu d o o q u e q u e ire m (46), m as, n ã o a d ia n ta ,
p o is são ra d ic a lm e n te in ca p a z es d e o u v ir (47 - v e r a re sp e c tiv a no ta).
O v. 47 fo rm a u m a in clu sã o com os vs. 41 e 42. O s ju d e u s aleg a-
ra m em 41 q u e D eu s era se u p ai; Jesu s te rm in a su a re s p o s ta a eles em
47 com : "V ós n ã o sois d e D eu s". E m 42, Jesu s inicia su a re s p o s ta p o n -
tu a n d o q u e eles n ã o o a m a v a m m esm o q u a n d o ele saísse d e (e k ) D eus;
em 47, ele d iz q u e a ra z ã o d e n ã o o o u v ire m é p o rq u e n ã o sã o d e (e k )
D eus. S obre este c o n tra ste , v e r B arrosse, TS 18 (1957), 557.

(3) 48-59: A s re iv in d ic a ç õ e s q u e ] e s u s f a z d e s i m e s m o e a c o m p a r a ç ã o c o m A b r a ã o

Jesus d isse q u e "os ju d e u s" n ã o são os v e rd a d e iro s filhos d e A b raão


(vs. 31-41a), n e m os v e rd a d e iro s filhos d e D eus (41b-47); n a terceira e úl-
tim a su b d iv isão d e sta seção, eles re sp o n d e m d e safian d o as reiv in d ica-
ções dele sobre q u e m e le é. Jesus d isse aos ju d e u s q u e são d o d iabo; a g o ra
d izem q u e ele é a lg u ém q u e tem d e m ô n io (48). Jesus d iz q u e ele n ã o tem
n a d a a v e r com d e m ô n io - q u e ele co m p ro v a em v irtu d e d a h o n ra q u e
ren d e ao Pai (49). A q u i n ã o estam o s m u ito lo n g e d a cena n a tra d içã o si-
nótica (Mc 3,22-25), o n d e Jesus é a c u sa d o d e ser p o ssu íd o p e lo p rín c ip e
d o s d em ô n io s. Ele resp o n d e , d iz e n d o q u e está e x p u lsa n d o d e m ô n io s
(e assim rea liz a n d o a obra d e D eus), e q u e isto n ão é o b ra d e Satanás.
N as acusações contra Jesus d e ser filho ilegítim o (vs. 41 - cf. nota),
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C en a III ( c o n tin u a ç ã o ) 6 35

d e se r s a m a rita n o e d e ser lo u co tem o s os p rec u rso re s d o s a taq u es pes-


so ais c o n tra Jesu s q u e se to m a ra m p a rte d o s a p o lo g etas judaicos contra
o C ristian ism o . (E d esn ecessário d iz e r q u e h av ia u m a v iltam en to cor-
re s p o n d e n te c o n tra os ju d e u s d a p a rte d o s ap o lo g e tas cristãos).
N a C en a I d o s d isc u rso s na festa d o s T ab ern ácu lo s (7,18), Jesus sa-
lien ta o fato d e q u e n ão estav a b u sc a n d o sua p ró p ria glória com o u m
critério d e q u e e stav a fala n d o a v e rd a d e . Isto é re p e tid o aq u i, nos vs.
50 e 54, co m o a n o ta acrescida d e q u e D eus busca a glória d e Jesus e
q u e esta glorificação d e Jesus será c o n su m a d a a tra v és d o ju lg am en to
d e v in d icação q u e o Pai fará. P or últim o, n a h o ra d a paixão, m orte,
ressu rreição e ascensão, q u e é a h o ra d o ju lg am en to d o m u n d o (12,31;
16,11), serem o s in fo rm a d o s q u e o Filho é glorificado (12,23; 13,31; 17,1).
P ara a lg u n s h o m en s, este ju lg a m e n to q u e v indica e glorifica o Filho será
u m ju lg a m e n to q u e c o n d u z à m o rte e ao reino d o m al, p o rém não para
os q u e g u a rd a m a p a la v ra d e Jesus (51). " G u a rd a r" a p alav ra o u m an-
d a m e n to d e Jesus é u m tem a jo an in o freq u en te (14,21.23-24; 15,20; 17,6;
l jo 2,5). Significa o u v ir e obedecer, e assim a p ro m essa no v. 51 é m uitís-
sim o p a re c id a com a d e 5,24: "A q u ele q u e o u v e m in h a palavra... p o ssui
a v id a eterna... p a ssa rá d a m o rte p a ra a v id a". T odavia, p o d e ser que
" g u a rd a r" sig n ifique a p e n as u m p o u co m ais q u e "o u v ir"; lem bra a no-
ção d a p a la v ra d e Jesus q u e p erm an ece no crente (ver nota sobre v. 31).
A p a la v ra d e Jesus é o a n tíd o to p a ra o p e cad o e m o rte q u e o d iab o intro-
d u z iu n o m u n d o n o Jard im d o Éden. D e m o d o a lg u m é im p ro v áv el q u e
in te rp re te m o s a p ro m e ssa d e im o rta lid a d e , n o v. 51, à luz d a s tendências
h o m icid as d o d iab o m en cio n ad as em 44. V er A. M. D ubarle, "Le péché
originei dans les suggestions de VÉvangile", RSPT 39 (1955), 603-14.
A a firm a ç ão d e Jesu s é rec e b id a p e lo s ju d e u s , n o s vs. 52-53, com
a m á -c o m p re e n sã o q u e a p a re c e tão a m iú d e n a n a rra tiv a d e João. Pen-
s a n d o s e m p re n o n ív el d e ste m u n d o a q u i d e baixo, e n te n d e m su as
o b se rv a ç õ e s em te rm o s d e liv ra m e n to d a m o rte física, ju sta m e n te
co m o tin h a m e n te n d id o , e q u iv o c a d a m e n te , su a s o b serv açõ es so b re a
lib e rd a d e e m te rm o s d e lib e rd a d e p o lítica (33). Sua objeção rein tro -
d u z o tem a d e A b ra ã o q u e d o m in a os vs. 31-41. O s ju d e u s ev o cam o
e x e m p lo d e A b ra ã o p a ra Jesus em g ra n d e m e d id a d a m esm a m an e ira
q u e a m u lh e r s a m a rita n a (4,12) ev o co u p a ra ele o e x e m p lo d e Jacó:
"És tu m a io r q u e o n o sso p a i Jacó, q u e n o s d e u o p o ço ?" E xigem co-
n h e c er q u e m ele p re te n d e ser, a ssim re ite ra n d o su a p e rg u n ta n o v. 25.
Ali Jesu s lh es re s p o n d e u em term o s d e d iv in d a d e , re -e n fa tiz a n d o no
636 O Livro d o s S inais

v. 28 o egõ eim i d iv in o d e 24; a q u i, ele n ã o p o d e fazer o u tra coisa q u e


in sistir n o m esm o se n tid o e, p o r isso, e s u a re sp o sta te rm in a rá e m 58
com o u tro egõ eim i d iv in o .
P ara c o n d u z ir a essa so le n e afirm ação , Jesu s, n o v. 54, v o lta à q u e -
le tem a d a g ló ria q u e ele p a rtilh a co m o Pai. Já o u v im o s v á ria s v e z e s
n o s d isc u rso s d a festa d o s T a b e rn á c u lo s d o fracasso d e "o s ju d e u s " d e
co n h ecer o u rec o n h e c er a D e u s (7,28-29; 8,19). N o v. 55, isto é e la b o ra-
d o h a b ilm e n te com o tem a d a m e n tira tão p ro e m in e n te e m 8,44. M as,
em su a a u to d e fe sa , Jesu s n ã o n e g lig e n cio u o p ro te s to d o s ju d e u s con-
c e rn e n te a A b raão , e assim em 56 Jesu s in siste q u e ele é o c u m p rim e n -
to real d a h istó ria d e Israel q u e c o m e ç o u co m a p ro m e ssa a A b raão .
U m p o u c o a n te s (5,46), ele d isse ra q u e , se os ju d e u s c ria m e m M oisés,
tam b é m d e v e ría m c re r n ele, p o is foi a se u re sp e ito q u e M oisés escre-
veu . A g o ra ele lhes a sse g u ra q u e foi d e le q u e A b ra ã o tev e u m a v isão .
H a v ia m in d a g a d o se ele p re te n d ia ser m a io r q u e A b raão ; ele lh e s in-
fo rm a q u e A b ra ã o foi a p e n a s se u p re c u rs o r, c o n te m p la n d o se u dia.
O p e n s a m e n to d e q u e a tra v é s d e se u s a ra u to s, o A T c o n te m p lo u Jesu s
com aleg ria, se e n c o n tra ta m b é m e m M t 13,17 (v er n o ta so b re v. 56) e
H b 11,13 ("T o d o s e stes m o rre ra m n a fé, sem te re m re c e b id o o q u e fora
p ro m e tid o , m a s te n d o -o v isto e s a u d a d o d e lo n g e").
O clím ax d e tu d o o q u e Jesu s d isse n a festa d o s T a b e rn á c u lo s
v e m n a triu n fa n te p ro cla m a ç ã o p o r Jesu s d o n o m e d iv in o : "E U S O U ",
o q u al ele p o rta (v er A p ê n d ic e IV, p. 841ss). E m 8,12, ele a b riu esta
cena III d o s d isc u rso s n a festa d o s T a b e rn á c u lo s co m "E u so u a lu z
d o m u n d o " ; o final "E U S O U " d o v. 58 re p re s e n ta u m a in clu sã o . N e-
n h u m a im p licação m ais c lara d a d iv in d a d e se e n c o n tra n a tra d iç ã o d o
e v a n g elh o , e "o s ju d e u s " rec o n h e c em esta im p licação . Lv 24,16 o rd e -
n ara: "A q u e le q u e b la sfe m a r o nome d o S e n h o r se rá m o rto ; to d a a con-
g reg ação o a p e d re ja rá " . N ã o e sta m o s c erto s q u a l era a d e fin içã o legal
d e b lasfêm ia n o s d ia s d e Jesus; m a s n o re la to d e João o u so d o n o m e
d iv in o re p re s e n ta d o p o r egõ eim i p a re c e se r su fic ie n te, p o is o s ju d e u s
b u sc am c u m p rir a o rd e m d e L evítico. E n tre ta n to , n a v isã o d o e v a n -
g elista, estã o sim p le sm e n te p ro v a n d o q u e Jesu s fala v a a v e rd a d e : são
h o m ic id a s co m o seu pai! Jesu s se o c u lta (kryptein ), e s g u e ira n d o -s e d o s
recin to s d o tem p lo . Isto p o d e ser ta m b é m u m a in c lu sã o d e s tin a d a a
m a n te r u n id o s os c a p ítu lo s 7 e 8, p o is re c o rd a m o s q u e Je su s p rim e i-
ro su b iu se cre ta m e n te ao te m p lo p a ra a festa d o s T a b e rn á c u lo s (en
kryptõ : 7,10).
33 · Jesus na festa d o s tabernáculos: C ena III (c o n tin u a ç ã o ) 637

A n te s d e e n c e rra rm o s esta d isc u ssã o , p o d e m o s in d a g a r se há al-


g u m a p ro b a b ilid a d e d e q u e Jesu s fez tal reiv in d icação , em público,
d e su a d iv in d a d e co m o a re p re s e n ta d a n o v. 58, o u a q u i esta m o s tra-
ta n d o e x c lu siv a m e n te co m a p ro fissã o d e fé d a Igreja p o ste rio r? C om o
u m p rin c íp io g eral, c e rta m e n te é p ro c e d e n te q u e a tra v é s d e su a fé os
e v a n g e lista s fo ra m a p to s p a ra a c la ra r a im a g e m d e Jesu s q u e era obs-
c u ra d u r a n te seu m in isté rio . N ã o o b sta n te , é difícil e v ita r a im p re ssã o
c ria d a p o r to d o s os e v a n g e lh o s d e q u e as a u to rid a d e s ju d aic as v iram
a lg o b la sfe m o n a c o m p re e n sã o q u e Jesu s tin h a d e si m esm o e s u a m is-
são. N ã o h á p ro v a c o n v in c e n te d e q u e a ú n ica ra z ã o real p o r q u e Jesus
foi le v a d o à m o rte é p o rq u e ele era u m re fo rm a d o r social o u ético, ou
p o rq u e ele e ra p o litic a m e n te p e rig o so . M as, co m o p o d e m o s d eterm i-
n a r c ie n tific a m en te q u a l o e le m e n to b lasfe m o jazia n a s reiv in d icaçõ es
d e c la ra d a s o u im p líc ita s d e Jesu s so b re si m esm o ? N a clareza com
q u e Jo ão a p re s e n ta a d iv in a a firm a ç ão d e Jesus, "E U S O U ", ele está
to rn a n d o ex p lícito o q u e d e a lg u m a m a n e ira era im plícito? N e n h u m a
re s p o s ta d e fin id a p a re c e p o ssív e l so b re b a ses m e ra m e n te científicas.
M e n cio n a m o s a in d a a p o ssib ilid a d e d e q u e João esteja h isto ric a m e n te
c o rre to e m m o s tra r q u e as a u to rid a d e s ju d a ic a s se se n tia m a la rm a d a s
a n te a s reiv in d ic a çõ e s d e Jesus m u ito a n te s q u e o S in éd rio julgasse,
q u a n d o , n a n o ite a n te s d a m o rte d e Jesus, o u tro egõ eim i (M c 14,62)
p ro v o c a s s e o s u m o sa c e rd o te a c la m a r blasfêm ia! e re q u e re r a m orte.
P o d e se r q u e a q u i d e v a m o s re -e n fa tiz a r q u e u m c a p ítu lo com o
Jo 8, com su a s afirm ações á sp eras sobre "os ju d eu s", d ev a ser e n ten d id o
e av aliad o co n tra a polêm ica d o p a n o d e fu n d o d o s tem pos em que ele foi
escrito. T o m ar literalm ente u m a acusação com o a d o v. 44 e p en sar que
o ev an g elh o im p õ e aos cristãos a crença d e q u e os ju d eu s são filhos do
d iab o é esq u ecer o elem ento condicionado pelo tem p o na Escritura. (Est
9 com su a v in g an ça invertida ap resen ta aos ju d eu s u m pro b lem a sim ilar
d e a titu d e s religiosas c ondicionadas p elo tem po). Para q u e o q u a d ro n ão
pareça tão escuro, reco rd em o s q u e este m esm o Q u a rto E vangelho regis-
tra o d ito d e Jesus d e q u e a salvação v em d o s ju d eu s (4,22).

B IB L IO G R A F IA

CAVALETTI, S., "La visione messiânica di Abramo (Giov. 8, 58)", BibOr 3


(1961), 179-81.
638 O L ivro d o s S inais

CHARLIER, J.-P., "Vexégèse johannique d'un précept legal: Jean VIII 17",
RB 67 (I960), 503-15.
DAHL, N. A., "Der Erstgeborene Satans und der Vater des Teufels (Polyk. 7:1
und Joh 8:44)", Apophoreta (H aenchen Festschrift; Berlin: T öpelm ann,
1964), pp. 70-84.
DODD, C. H., “A Barriere plan d'un dialogue johannique", RHPR 37 (1957),
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FUNK, R. W., "Papyrus Bodemer II (P66) and John 8, 25", H TR 51 (1958),
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M EH LM A N N , John, "John 8,48 in Some Patristic Quotations", Bib 44
(1963), 206-9.
SMOTHERS, E. R., "Two Readings in Papyrus Bodmer II", 51 (1958),
especialm ente p p. 111-22 sobre 8,25.
3 4 .0 C L IM A X Ν Α F E S T A D O S
TA BER NÁCULO S: - A C U R A DE U M CEGO
(9,1-41)

C o m o u m s in a l d e q u e e le é a lu z , J e su s d á v is ã o a u m c e g o d e n a sc e n ç a

9 1O ra , e n q u a n to ele c a m in h a v a , v iu u m h o m e m q u e fo ra cego d e sd e
o n a sc im e n to . 2S eus d isc íp u lo s lh e p e rg u n ta ra m : "R abi, q u e m p eco u
p a ra q u e ele n ascesse cego, e le o u se u s p a is? " 3" N in g u é m " , re sp o n d e u
Jesus:

" N e m ele e n e m se u s p ais.


A n tes, isso se d e u p a ra q u e se m an ifestem nele as o b ras d e Deus.
4T em o s q u e re a liz a r as o b ra s d a q u e le q u e m e en v io u
e n q u a n to é dia.
A n o ite e stá v in d o
q u a n d o n in g u é m p o d e tra b a lh a r.
5E n q u a n to e sto u n o m u n d o ,
s o u a lu z d o m u n d o " .

6E n tão , ele c u s p iu n o chão, fez lo d o com su a saliv a e u n to u os


o lh o s d o h o m e m com o lodo. 678E n tão Jesu s lh e disse: "V ai, lava-te
n o ta n q u e d e Siloé". (Este n o m e significa " a q u e le q u e foi e n v iad o ").
E e n tã o ele s a iu e lav o u -se, e v o lto u v en d o .
8O ra, se u s v iz in h o s e o p o v o q u e c o stu m a v a m a vê-lo m e n d ig a r
c o m e ç a ra m a in d a g a r: " N ã o é este a q u e le q u e c o stu m a v a se se n ta r e
m e n d ig a r? " 9A lg u n s p a s sa ra m a d iz e r q u e e ra ele; o u tro s afirm a v a m
q u e n ã o e ra, m a s sim a lg u é m q u e se p a re c ia com ele. Ele m esm o dizia:
64 0 O Livro d o s S inais

"S ou e u , com ce rtez a ". 10E n tão lh e d isse ram : "C o m o te u s o lh o s fo ra m


ab e rto s?" 11Ele r e sp o n d e u : " A q u e le h o m e m a q u e m c h a m a m Je su s fez
lo d o e u n to u m e u s olhos, d iz e n d o -m e q u e fosse ao ta n q u e d e Siloé e
m e lav asse. A ssim q u e fui e m e lavei, re c u p e re i m in h a v ista ". 12" O n d e
está ele?", p e rg u n ta ra m . " N ã o te n h o id e ia ", rep lico u .
13Eles le v a ra m aos farise u s o h o m e m q u e n a sc e ra cego. (14N o te -se
q u e foi em u m d ia d e s á b a d o q u e Jesu s fez o lo d o e a b riu se u s olhos).
15P o r seu tu rn o , os farise u s e n tã o c o m e ç a ra m a in q u irir co m o ele re-
c u p e ra ra su a v ista. Ele lh es disse: 16" A q u e le q u e p ô s lo d o e m m e u s
olhos; e m e lav ei e a g o ra vejo". Isto im p e liu a lg u n s d o s fa rise u s a asse-
v erar: "E ste h o m e m n ã o é d e D eu s, p o rq u e ele n ã o g u a rd a o sá b a d o " .
O u tro s o b jetaram : "C o m o p o d e u m h o m e m re a liz a r tais sin a is e a in d a
ser p e c a d o r? " E e sta v a m d iv id id o s. 17E n tão v o lta ra m a falar a o cego:
"V isto q u e ele a b riu te u s o lh o s, o q u e te n s a d iz e r so b re ele?" " Q u e é
p ro fe ta " , rep lico u .
18M as os ju d e u s se re c u sa v a m a c re r q u e r e a lm e n te ele n a sce ra cego
e s u b s e q u e n te m e n te re c u p e ra ra su a v ista, to d a v ia in tim a ra m os p a is
d o h o m e m [q u e re c u p e ra ra su a vista]. 19"E ste é v o sso filho?", p e rg u n -
taram . " C o n firm a is q u e ele n a sc e u cego? C aso seja sim , c o m o é p o ssí-
vel q u e ele veja a g o ra ? " 20O s p a is d e ra m esta resp o sta: "S a b em o s q u e
este é n o sso filho e q u e n a sc e u cego. 21M as n ã o sa b e m o s c o m o a g o ra
p o d e v er, n e m sa b em o s q u e m a b riu se u s olhos. [P e rg u n ta i a ele]. Ele
tem id a d e su ficien te p a ra falar d e si m e sm o ". (22S eus p a is re s p o n d e -
ra m d e sta m a n e ira p o rq u e tin h a m m e d o d o s ju d e u s , p o is o s ju d e u s
já tin h a m a c o rd a d o q u e q u a lq u e r u m q u e reco n h ecesse Jesu s c o m o o
M essias fosse e x p u lso d a S in a g o g a .23 Foi p o r isso q u e se u s p a is d isse-
ram : "E le id a d e su ficien te. P e rg u n ta i a ele).
24E assim , p e la se g u n d a v ez, in tim a ra m o h o m e m q u e n a sc e ra cego
e lhe d isseram : "D á g ló ria a D eus. N ó s sa b e m o s q u e este h o m e m é
p e c a d o r" . (25"Se ele é p e c a d o r o u n ão , e u n ã o sei". 26P e rsistiram : "O
q u e ele re a lm e n te te fez? C o m o a b riu te u s o lh o s?" 27"E u já v o s dis-
se e n ã o p re sta is a te n ç ã o ", re sp o n d e u -lh e s. " P o r q u e q u e re is o u v ir
tu d o o u tra vez? N ã o m e d ig a is q u e ta m b é m q u e re is to rn a r-v o s seu s
d iscíp u lo s!" 28R e to rq u ira m com escárnio: "T u é q u e és d isc íp u lo s
d e sse sujeito; so m o s d isc íp u lo s d e M oisés. 29S ab em o s q u e D e u s falou

13: tomou. N o tem po presente histórico.


17. se dirigiram. N o tem po presente histórico.
34 · O clím ax da festa d o s tabernáculos: A cura d e u m c e g o 641

a M o isés, m a s n e m m e sm o sa b em o s d e o n d e este su jeito v e m ". 30O


h o m e m o b jeto u : " O ra , q u e coisa estra n h a! E stais a q u i e n e m m esm o
sab eis d e o n d e ele vem ; c o n tu d o m e a b riu os olhos. 31S abem os q u e
D e u s n ã o d á o u v id o s a p e c a d o re s, m a s Ele o u v e a a lg u é m q u e é te-
m e n te e o b e d e ce à S ua v o n ta d e . 32Jam ais se tem o u v id o q u e a lg u é m já
te n h a a b e rto o s o lh o s d e u m cego d e nascença. 33Se este h o m e m n ão
fo sse d e D eu s, n a d a p o d e ría ter feito". 34" O quê!" ex clam aram . "T u
n a sce ste im p re g n a d o d e p e c ad o , e a g o ra e stá s n o s e n sin a n d o ? " E ntão
o e x p u ls a ra m .
35Q u a n d o Jesus o u v iu so b re a ex p u lsão dele, o e n c o n tro u e disse:
"C rê s tu n o F ilho d o H o m e m ? " 36Ele re sp o n d e u : " Q u e m é ele, sen h o r,
p a ra q u e e u creia n e le?" 37"T u o ten s v isto ", re p lic o u Jesus, "p o is é
a q u e le q u e e stá fa la n d o c o n tig o ". [38"E u creio, S e n h o r", ele disse e
c u rv o u -s e p a ra a d o rá -lo . 39E n tão d isse Jesus]:

" E u v im a este m u n d o p a ra juízo:


a fim d e q u e os q u e n ã o e n x e rg a m , vejam ,
e o s q u e v e e m to rn e m -se cegos".

40A lg u n s d o s farise u s q u e e sta v a m ali com ele p o r acaso o u v ira m


isto e lh e d isse ra m : " S e g u ra m e n te , tem o s d e se r c o n sid e ra d o s tam b é m
ceg o s?" 41Jesu s lh es disse:

"Se a p e n a s fôsseis cegos,


e n tã o n ã o seríeis c u lp a d o s d e p ecad o .
M as a g o ra q u e aleg ais v er,
v o sso p e c a d o p e rm a n e c e " .

NOTAS

9.1. Ora. Literalm ente, "e" - um início bastante abrupto.


enquanto ele caminhava. Esta expressão descritiva ocorre som ente aqui em
João, m as é um a form a frequente de introduzir um a cena nos sinóticos:
Mc 1,16; 2,14; Mt 9,27 (cura dos dois cegos); 20,30 (cura dos dois cegos
perto de Jerico). Há dúvida se esta cena está em sequência direta com a
cena precedente, em bora, como o evangelho ora está, se poderia pensar
em Jesus como a cam inhar para fora do templo. Todavia, certam ente ele
não está se ocultando (8,59).
642 O Livro d o s S inais

desde 0 nascimento. Esta é um a expressão grega atestada na LXX e em escri-


tos pagãos (BAG, p. 154). A expressão mais semítica parece ser "desde o
ventre da m ãe" (Mt 19,12; At 3,2).
2. discípulos. Não ouvim os dos discípulos de Jesus estando com ele desde o
capítulo 6 na Galileia. Se estes discípulos são os Doze, esta é a prim eira
indicação de que subiram a Jerusalém com Jesus. Ou seriam os discípu-
los judeus obscuros de 7,3? Ou estaríam os tratando de um a cena que era
independente e de fato ocorreu em Jerusalém em outra ocasião?
quem pecou? A despeito do Livro de Jó, a antiga teoria de um a relação causai
direta entre pecado e doença ainda estava viva nos dias de Jesus, como
indica esta questão e a sim ilar em Lc 13,2. Se um adulto ficava doente, a
culpa poderia estar em seu próprio com portam ento. O problem a de um a
criancinha nascida com um a aflição propiciava um a dificuldade m ais sé-
ria. Todavia, Ex 20,5 ofereceu um princípio para a solução: "porque eu,
o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais
nos filhos, até a terceira e quarta geração"... A lguns dos rabinos m anti-
nham que não só os pecados dos pais podiam deixar um a m arca em um
recém-nascido, m as tam bém que este podia pecar no ventre da m ãe (StB,
II, pp. 528-29). Para a atitude de Jesus para com a relação do pecado com
a enferm idade, ver nota sobre 5,14.
3. isso se deu para que. Jesus foi interrogado acerca da causa da cegueira do
homem, porém responde em term os do propósito dela.
para que se manifestem nele as obras de Deus. Os rabinos falavam de Deus
como a m inistrar nos hom ens "punições de am or", i.e., castigos que, se
um a pessoa os sofria com m uito ânim o, lhe trariam longa vida e recom-
pensas. Mas isto não parece ser o pensam ento de Jesus aqui ou em 11,4;
antes, diz respeito à intervenção na história por parte de Deus para glo-
rificar o Seu nome. Um bom exemplo seria Ex 9,16, citado em Rm 9,17,
onde Deus fala a Faraó: "Mas, deveras, para isto Eu te suscitei, para mos-
trar m eu poder em ti, e para que m eu nom e seja anunciado em toda a ter-
ra". Que as obras de Jesus são realm ente obras de Deus está im plícito em
Mt 12,28; Mc 2,7.
4. Temos... me enviou. Esta é a redação dos melhores m anuscritos, m as algu-
mas testem unhas têm tentado excluir a diferença na pessoa: "Temos... me
enviou", ou "Eu tenho... me". B ultmann, p. 2519, prefere a últim a e sugere
que "tem os" foi introduzido pela com unidade cristã. Ao contrário, é bem
provável que o "tem os" seja a forma de Jesus associar seus discípulos
com ele em sua obra. Que ele deseja esta associação, é visto em 4,35-38;
note tam bém que na introdução ao capítulo 11, a qual tem m uito em co-
m um com a introdução ao capítulo 9, o uso da prim eira pessoa plural é
34 · O clím ax da festa d o s tabernáculos: A cura d e u m ce g o 6 43

frequente. Q uanto à insistência de que "tem os" que trabalhar enquanto


é dia, em 12,36, lemos que os discípulos têm a luz e são convidados a se
tom arem filhos da luz. O utro caso de Jesus associando os discípulos com
ele em seu discurso é Mc 4,30: "A que compararemos o reino de Deus?"
temos que realizar as obras... enquanto é dia. O mesm o tipo de necessidade é
expresso em Lc 13,32. Dodd, Tradition, p. 186, sugere que um a afirmação
da sabedoria proverbial pode sublinhar o dito joanino e cita exemplos
rabínicos.
5. Sou a luz do mundo. Em Mt 5,14, os discípulos recebem esta função. A auto-
descrição de Jesus pode ter sua origem em Is 49,6, onde o Servo (Sofre-
dor) é descrito como luz para as nações.
6. Então. Na m aior parte dos relatos sinóticos da cura do cego há um a súplica
da parte do hom em aflito.
ele cuspiu. Somente João e Marcos (7,33: cura de um surdo/mudo; 8,23: cura
de um cego) registram que Jesus usou saliva. Os m ilagres m arcanos com
saliva parecem ter sido deliberadam ente om itidos por M ateus e Lucas.
O uso de saliva era parte da tradição prim itiva acerca de Jesus, porém o
deixou exposto à acusação de engajar-se na prática da magia. No trata-
do M ishnáico Sinedrin 10:1, o Rabi Aqiba (2“ século) é reportado como a
am aldiçoar alguém que pronuncia sortilégios sobre um a ferida; a Tose-
phta adiciona cuspe ao pronunciam ento de sortilégios (Barrett, p. 296).
untou. Ou "ungiu" (epichriein); esta é a redação grega mais bem atestada
e é endossada por ambos os papiros Bodmer. Alguns estudiosos, p. ex.,
Barrett, suspeitam que isto foi tirado do v. 11, e preferem a redação do
Codex Vaticanus: "ele pôs lodo nos olhos do hom em " (epitithenai). Entre-
tanto, esta redação poderia ter sido tom ada do v. 15.
lodo. Irineu, Adv. Haer v 15:2 (PG 7:1165), vê aqui um símbolo do homem
sendo criado da terra; vê o uso de "barro" ou "lodo" em Jó 4,19; 10,9.
7. lava-te no tanque. Um antecedente para essa diretriz pode ser encontrado
em 2Rs 5,10-13, onde Eliseu não cura Naam ã naquele lugar, mas o envia
a lavar-se no Jordão. Em Lc 17,12-15, Jesus não cura os leprosos ime-
diatam ente, m as os encam inha aos sacerdotes e são curados a caminho.
Q uanto à capacidade de Jesus de curar à distância, isso já foi m ostrado
na cura do filho do oficial régio em 4,46-54.
Siloé. Este tanque, conhecido em hebraico como Shiloah, estava situado no
extremo sul da colina oriental de Jerusalém, perto da conjunção dos vales
Cedron e Tiropino. Era um depósito de águas da nascente de Gion que
levava ao tanque por um canal. Mencionado em Is 8,6, a água de Siloé era
usada nas cerimônias da água e procissões na festa dos Tabernáculos. Fon-
tes rabínicas o mencionam como um lugar de purificação (StB, II, p. 583).
644 O Livro d o s S inais

"aquele que foi enviado". O nom e "Shiloh", no TM de Gn 49,10, era inter-


pretado em um sentido m essiânico na tradição judaica de um período
posterior. Tinha-se desenvolvida um a interpretação mística em torno
do nom e não m uito diferente, "Shiloah", com base em Is 8,6? "Shiloah"
parece estar relacionado com a raiz slh, "enviar"; m as é difícil dizer
se a derivação é ou não válida, pois há sim ilaridade real com o aca-
diano silihtu, um a bacia que deságua de um canal. Em qualquer caso,
"Shiloah" não é um a forma participial passiva, como seria requerido
pela etimologia de João. O evangelista está ou seguindo um a redação di-
ferente das consoantes (p. ex., sãlúah, "enviar"), ou exercendo a liberda-
de de adaptar a etimologia aos seus propósitos. Y oung, ZNW 46 (1955),
219-21, ressalta que no apócrifo Vidas dos Profetas há a m esm a etimologia,
juntam ente com um a tradição de m ilagres associada a Siloé; entretanto,
esta obra poderia ter sido influenciada pelo relato joanino.
8. costumava-se sentar e mendigar. Mc 10,46 descreve Bartimeu como um men-
digo cego que ficava sentado ao lado da estrada.
9. Sou eu. Literalmente, egõ eiml·, este é um exemplo de um uso m eram ente
secular da frase.
11. recuperei minha vista. Literalmente, o verbo anablepein significa "ver outra
vez", é usado nos vs. 11,15,18, com a conotação m ais am pla de receber
visão, pois o hom em nunca vira antes.
13. aos fariseus. Nos vs. 13,15,16 (ver tam bém 40), os interrogadores são cha-
m ados fariseus; nos vs. 18 e 22 são cham ados "judeus", a term inologia
joanina mais usual. A variação não é indicação suficiente de que as des-
crições dos interrogatórios venham de m ãos diferentes; assim tam bém
Bultmann, p. 2502, contra W ellausen e Sputa .
16. Este homem não é de Deus. O princípio por detrás deste julgam ento seria
sem elhante a Dt 13,1-5 (2-6 TM): m esm o um operador de prodígios não
deve ser crido, m as entregue à morte, se tende a afastar pessoas do cami-
nho que Deus ordenou.
ele não guarda 0 sábado. Primeiro, visto que a vida do hom em não corria
risco de morte, Jesus deveria ter esperado até o dia seguinte para curar
(ver nota sobre 7,23). Segundo, entre as trinta e nove obras proibidas no
sábado (Mishnah Shabbath 7:2) estava a de am assar, e Jesus tinha amassa-
do o barro com sua saliva para fazer lodo. Terceiro, segundo a tradição
judaica posterior (TalBab Abodah Zarah 28b) havia um a opinião de que
não era perm itido ungir um olho no sábado. Q uarto, Taljer Shabbath 14d
e 17f trás que ninguém pode no sábado passar saliva nos olhos.
Como pode um homem realizar tais sinais? O princípio de que um pecador não
pode operar milagres não é universalmente atestado na tradição bíblica.
34 · O clím ax da festa d o s tabernáculos: A cura d e u m ce g o 645

Ex 7,11 registra que os magos de Faraó foram capazes de imitar o milagre


de Arão. Em Mt 24,24, Jesus admite que falsos messias e profetas exibiriam
grandes sinais e prodígios com o intuito de desviar até mesmo o eleito.
estavam divididos. A questão de Jesus divide os fariseus, assim como divi-
d iu a m ultidão em 7,43.
17. Que é profeta. Os únicos profetas que realizaram notáveis milagres de cura
foram Elias e Eliseu (ver tam bém Is 38,21). Pode ser que esteja em m ente
a sim ilaridade com Eliseu ordenando que Naam ã se lavasse no Jordão.
Todavia, tudo isso pode significar que o hom em crê que Jesus tem poder
divino e que "profeta" é a categoria bem notória para definir esses ho-
m ens extraordinários.
18. [que recuperara sua vista]. Isto é om itido em P 6e em algum as testem unhas
m enores. Isto é repetitivo e inoportuno, m as essa pode ter sido a razão
por que os copistas o omitiram.
21. não sabemos. Isto é om itido por SB seguindo evidência de versão m enor e
citações da patrística.
[Perguntai a ele]. P75 agrega considerável força às testem unhas anteriores
que om itiram estas palavras. Talvez fossem tiradas do v. 23.
idade suficiente para falar. Literalmente, "Ele é bastante velho. Ele falará por
si m esm o".
22. expulso da Sinagoga. Lc 6,22 diz que virá o dia quando os hom ens apaga-
rão o nom e dos discípulos de Jesus como pernicioso e os excluirão; assim
a possibilidade de algum tipo de excom unhão parece considerado como
o futuro destino dos crentes em Jesus. Infelizmente, não estam os ple-
nam ente certos da legislação concernente à excom unhão no l u século;
ver E. Schürer, II, 2.59-62. Alguns estudiosos distinguiriam : (a) nezífãh:
excom unhão m enor que durava cerca de um a semana; (b) niddüy ou
sam m atâ : banim ento m ais formal d urando trinta dias - embora isto eli-
m ine associação com outros israelitas, aparentem ente não eliminava a
participação nos serviços religiosos da com unidade; (c) h êrem : a maldi-
ção ou excom unhão solene pelas autoridades judaicas, excluindo perm a-
nentem ente alguém de Israel. (Estas três categorias são distinguidas com
base na lei judaica posterior). João está se referindo à exclusão dos judeus
cristãos da sinagoga no final do 1“ século (ver comentário), e assim a ex-
com unhão implícita se associa mais ao últim o dos três tipos.
24. Dá glória a Deus. Esta era um a fórm ula de juram ento usada antes de to-
m ar o testem unho ou um a confissão de culpado (Js 7,19; lEsd 9,8). Não
obstante, não é impossível que esteja implícito um jogo de palavras, pois
o cego dará glória a Deus. Rm 4,20 diz que Abraão se tom ou forte em sua
fé quando deu glória a Deus; tam bém Ap 19,7.
646 O L ivro d o s S inais

Nós sabemos. O uvim os este "nós" de erudita autoridade judaica nos lábios
de Nicodemos em 3,2; será confrontado com o prim eiro "eu sei" do cego
no v. 25.
25. pecador ou não. O hom em parece saber que a lei do sábado tem sido que-
brada, e adm ite que os fariseus são autoridades sobre esse tema. Mas,
como m ostram suas próprias palavras em seguida, ele está se pergun-
tando se Jesus não estaria acima da Lei, visto que anteriorm ente agiu
corretam ente restaurando sua vista.
27. não prestais atenção. Literalmente, "ouvis"; algum as testem unhas leem
"credes", assim tentando interpretar o ouvir. P 6 e algum as testem unhas
ocidentais inferiores om item a negativa, dando a conotação: "Eu vos dis-
se, e m e ouvistes".
28. discípulos de Moisés. B arrett, p. 300, indica que este não era um título regu-
lar para os eruditos rabínicos, embora seja usado para os fariseus em um a
baraitah em Yoma 4a. O exemplo posterior do princípio do pensam ento en-
volvido aqui se encontra na Midrásh Rabbah 8,6 sobre Deuteronômio, onde
os judeus são advertidos que há somente um a Lei e Moisés a revelou. Não
vai haver outro Moisés que descerá do céu com um a lei diferente.
29. Deus falou a Moisés. Ex 33,11: "O Senhor costum ava falar a Moisés face
a face"; igualm ente Nm 12,2-8. O utros exemplos do argum ento con-
cernente à relação de Jesus com Moisés são vistos em 1,17; 5,45-47;
7,19-23. E interessante que os Papiros Egerton 2 associam Jo 5,45 e 9,29
(ver p. 458).
nem mesmo sabemos de onde esse sujeito vem. Em 7,27, o povo de Jerusalém,
equivocadamente, pensava que sabiam de onde Jesus veio, a saber, da Ga-
lileia (17,41). A resposta de Jesus sem pre foi insistir que ele vem de cima
e do Pai, e é esta origem celestial que "os judeus" não conhecem (8,14).
Aqui, os fariseus parecem estar questionando sua reivindicação de vir de
Deus, visto que o contrastam com a conhecida relação entre Moisés e Deus.
Acaso há também um a insinuação de ilegitimidade (ver nota sobre 7,41)?
30. nem mesmo sabeis. O espanto sarcástico do cego lem bra o de Jesus em re-
lação a Nicodem os em 3,10.
31. Sabemos. O hom em adotou o "nós" dos fariseus (v. 24), precisam ente
como em 3,11 Jesus adotou o "nós" de Nicodemos. Sem dúvida, tais pas-
sagens foram usadas nas polêm icas entre os judeus e os cristãos.
Deus não dá ouvidos a pecadores. Este é um princípio bíblico com um , p. ex.,
Is 1,15; ljo 3,21. "Pecadores" se referem àqueles indispostos a converte-
rem-se.
temente e obedece àSua vontade. "Temente", theosebês, é um term o com um nos
círculos religiosos helenistas para descrever a piedade; ocorre som ente
34 · O clím ax da festa d o s tabernáculos: A cura d e um ce g o 647

aqui no NT. "Obedece à vontade de Deus" é um a descrição hebraica da


p iedade (B ui.tm ann , p. 2562).
32. jamais se tem ouvido. Literalmente, "não ouvido desde a antiguidade" -
um a fórm ula rabínica. Não se registra nos livros protocanônicos do AT
nenhum a cura m iraculosa de um cego; a vista de Tobias foi miraculosa-
m ente restaurada (Tb 9,12-13), porém não nascera cego.
33. Se este homem não fosse de Deus. O m esm o argum ento foi usado por Nico-
dem os em 3,2.
34. nasceste impregnado em pecado. Provavelm ente, este é mais que um caso de
m enosprezo da parte de quem não conhece ou observa a Lei (ver nota
sobre 7,49). É um a atribuição da cegueira congênita do hom em ao peca-
do antes de nascer.
0 expulsaram. Isto não é um a excom unhão formal, m as sim plesm ente ex-
pulsão de sua presença.
35. 0 encontrou. Isto é contrastado com a ação dos fariseus em expulsá-lo,
e ilustra a prom essa de Jesus em 6,37: "Todo o que vem a mim jamais
o lançarei fora". Tam bém pode refletir o tema joanino de um a analo-
gia entre Jesus e a Sabedoria. Em Sb 6,16, ela é descrita como saindo
em busca dos que são dignos de sua graciosa manifestação a eles em
suas veredas.
Filho do Homem. A lgum as testem unhas gregas posteriores e o m anuscrito
latino dizem "Filho de Deus"; m as isto é claram ente um a substituição
de um a fórm ula m ais costum eira e com pleta da fé cristã, provavelm en-
te sob a influência do uso desta passagem na liturgia batism al e da
catequese. Por que Jesus se apresenta ao cego sob o título de o Filho do
Hom em ? Os vs. 39-41 têm um tem a de juízo, e juízo é um frequente ce-
nário p ara a figura do Filho do H om em (ver nota sobre 1,51). Podem os
evocar Lc 18,8: "Q uando o Filho do Hom em vier, acaso achará fé na
terra?" - em João, o Filho do H om em encontra fé no cego. Tam bém , em
M t 8,20, Jesus se apresenta como o Filho do Hom em para um possível
discípulo.
36. Quem é ele? Esta pergunta podería refletir a ignorância do homem do que
significa o título, mas, mui provavelmente, se refere à identidade do por-
tador do título (ver 12,34). A questão é curiosa, visto que o homem já sabe
que Jesus é um profeta (17), tem poder singular (32) e vem de Deus (33).
senhor. Ou, talvez, "Senhor", um a vez que kyrios contém ambos os senti-
dos. Todavia, parece apropriado indicar um desenvolvim ento do v. 36
para o v. 38 no uso do termo.
37. 0 tens visto. Para João, este é o propósito real do dom da vista; ele capacita
o hom em a ver e a crer em Jesus.
648 O Livro d o s S inais

38-39. [eu... disse Jesus], As palavras entre colchetes são om itidas no Codex
Sinaiticus, P75, o OL, Taciano, Achmimic - um a am pla difusão das tes-
tem unhas prim itivas. Como se verá abaixo, estes versículos contêm
algum as peculiaridades não joaninas. Talvez tenham os aqui um a adi-
ção oriunda da associação de Jn 9 com a liturgia batism al e a catequese.
O v. 38 descreve um gesto de caráter bem mais litúrgico.
38. ele disse. A forma grega ephe é rara em João (somente 1,23). Não obstante,
algum as testem unhas tam bém a leem no v. 36, e seu uso aqui poderia ser
copiado dali.
curvou-se para adorá-lo. Esta é a reação padrão do AT no tocante a um a teo-
fania (Gn 17,3), e João usa o mesm o verbo, proskynein, em 4,20-24 para
descrever o culto devido a Deus (tam bém 12,20). A ação de curvar-se
para adorar Jesus não é incom um nos sinóticos, especialm ente em Ma-
teus, m as em João só ocorre aqui.
39. vim a este mundo para juízo. Ver p. 606. Aqui, a atitude é m uito m ais pare-
cida com a de 3,19-21.
tornem-se cegos. Ver a passagem isaiana citada em 12,40. A linha de distin-
ção entre o resultado do m inistério de Jesus e seu propósito não é traçada
com nitidez p or causa da perspectiva sim plista que atribui tudo o que
acontece ao propósito de Deus. Mt 23,16 denom ina os fariseus de guias
cegos; igualm ente Mt 6,23: "Se, pois, a luz que há em ti são trevas, quão
grandes tais trevas serão!"
40. fariseus que estavam ali com ele. Sua presença parece um tanto forçada se
termos em conta a situação descrita no v. 35.
41. vosso pecado permanece. Em Mc 3,29, lemos que aquele que blasfem a contra
o Espírito Santo nunca recebe perdão, ljo 5,16 tem ciência de um "peca-
do para morte". Para o agravo da culpa, ver Jo 15,22 [Vol. 2], O tem a da
perm anência é com um em João, aqui, porém , é o pecado que perm anece
em vez de um dom de Deus.

C O M E N T Á R IO

C o n te x to e e s tr u tu r a

D ep o is d e in trin c a d o s e lo n g o s d isc u rso s d e 7-8, o c a p ítu lo 9 n o s ofe-


rece u m a g ra d á v e l in te rlú d io . Q u ã o e s tre ita m e n te o c a p ítu lo 9 se rela-
cio n a com o c e n ário d a festa d o s T a b e rn á c u lo s d e 7-8? E m si, o relato
é co m p le to e p o d e ria ser s itu a d o e m o u tra p a rte e m u m a d a s v isitas de
34 · O clím ax d a festa d o s tabernáculos: A cura d e u m ce g o 649

Je su s a Je ru s a lé m ; p o r e x e m p lo , h á m u ita s s im ila rid a d e s com o capí-


tu lo 3 (v e r n o ta s so b re 9,24.30.33.39). N ã o o b sta n te , a in te n s id a d e d o
ó d io d o s fa ris e u s p a ra co m Je su s cria u m c e n á rio m u ito a p ro p ria d o
p a r a a festa d o s T a b e rn á c u lo s. O ta n q u e d e Siloé (v. 17) ex erceu u m
im p o r ta n te p a p e l n a s c e rim ô n ia s d a á g u a d is c u tid a s e m relação a
7,37-38; e 9 ,4 5 ‫ ־‬d e s e n v o lv e o tem a d a lu z n a s tre v a s q u e é ta m b é m o
te m a d a festa d o s T a b e rn á c u lo s, co m o v im o s ao a n a lis a r 8,12.
N ã o o b s ta n te , a c o n e x ão imediata d o c a p ítu lo 9 com a festa e com
o q u e foi d ito e m 8 n ã o p o d e se r a s s e g u ra d a . João n ã o d á n e n h u m a
d a ta p re c is a p a ra a c u ra , e a p ró x im a in d ic a ç ã o d e te m p o s e rá a d a fes-
ta d a D e d ic aç ã o , trê s m e se s a p ó s a festa d o s T a b e rn á c u lo s, em 10,22.
A ssim , m e s m o q u e a c e ite m o s a p re s e n te o rd e m d o e v a n g e lh o e con-
c o rd e m o s q u e a c u ra e stá re la c io n a d a com a v isita d a festa d o s Ta-
b e rn á c u lo s , p o d e h a v e r u m a c o n s id e rá v e l la c u n a n o te m p o a lu d id o
e n tre 8 e 9.
A e s tr u tu r a in te rn a d o re la to m o stra c o n s u m a d o talen to ; n e n h u -
m a o u tro re la to n o e v a n g e lh o é tão in tim a m e n te e n tre la ç a d a . T em os
a q u i u m a a m o s tra d a h a b ilid a d e d ra m á tic a d e João. Já d e m o s u m es-
b o ço n a p. 424, e p o d e m o s a n a lisá-la a q u i. A n te s d e n a rr a r o m ilag re,
o e v a n g e lis ta é c u id a d o s o e m m o s tra r Je su s in d ic a n d o o sig n ificad o
d o sin a l co m o u m e x e m p lo d e lu z a d e n tr a n d o as trev as. Esta é u m a
h istó ria d e c o m o u m h o m e m q u e e sta v a n a s tre v a s foi le v a d o a v er
a lu z , n ã o só fisica m en te , m a s ta m b é m e sp iritu a lm e n te . E m co n tra-
p a rtid a , é ta m b é m u m re la to d e co m o os q u e p e n s a v a m q u e v iam
(os farise u s) se m o stra v a m ceg o s p a ra co m a lu z e m e rg u lh a v a m nas
tre v a s. O re la to te m se u in ício n o v. 1 co m u m cego q u e re c u p e ro u
su a v ista ; ele te rm in a n o v. 41 com os fa rise u s q u e se to rn a ra m espi-
ritu a lm e n te cegos.
D ep o is d e estab elecer a cena p a ra u m a c o m p re en sã o teológica do
sin al, o e v a n g e lista n a rra o m ilag re com só b ria b re v id a d e (vs. 6-7), p ois
seu in te resse p rim o rd ia l está n a s p e rg u n ta s q u e se v ão fo rm u lan d o .
Em c a d a u m a d e sta s, o cego d á v o z às afirm açõ es q u e rev e lam u m co-
n h e c im e n to p ro fu n d o d e Jesus. N a p e rg u n ta feita p elo s fariseus, tu d o
o q u e o h o m e m sabe é q u e seu b e n fe ito r era "o h o m e m a q u e m eles
c h a m a m Jesu s" (11). Sob a p re ssã o d o in te rro g a tó rio p re lim in a r m ais
m in u c io so d a p a rte d o s fariseu s, o h o m em é fo rçad o a confessar q u e
Jesu s é profeta (17). N o in te rro g a tó rio final, feito p elo s fariseu s, ele se
to rn a u m a rd e n te d e fe n so r d a c au sa d e Jesus: o q u e Jesus fez m o stra
650 O Livro d o s S inais

q u e ele é de Deus (33). E en tão , e m re sp o sta c u lm in a n te à p ró p ria p e r-


g u n ta d e Jesus, o h o m e m p a ssa a v e r Jesus com o o Filho do Homem (37).
E n q u a n to o q u e fora a n te s cego v a i g ra d u a lm e n te te n d o se u s
o lh o s a b e rto s p a ra a v e rd a d e so b re Jesus, o s fa rise u s o u "o s ju d e u s "
v ão se to rn a n d o m ais o b stin a d o s em seu fracasso d e v e r a v e rd a d e .
Em se u in te rro g a tó rio p re lim in a r, p a re c e m a c eita r o fato d a c u ra (15).
E n q u a n to a lg u n s são o fe n d id o s p e la v io lação d a s re g ra s sa b ática s,
o u tro s p a re c e m d isp o sto s a d eix a r-se c o n v e n ce r (16) e d a r o u v id o s
à p ró p ria a v aliação q u e o o u tro ra cego faz d e Je su s (17). M as, n o se-
g u n d o in te rro g a tó rio , os q u e são o s m ais h o stis (os ju d e u s) d o m in a m
a cena. P a ssam a g o ra a d u v id a r d o p ró p rio fato d o m ila g re , b u s c a n d o
m o stra r, a tra v é s d o s p a is d o h o m e m , q u e ele n u n c a fo ra cego. N o in-
te rro g a tó rio final d o h o m e m , to d o o in te resse em v e r o n d e a v e rd a -
d e jaz d e sa p a re c e u ; b u sc a m e m b a ra ç a r o h o m e m , fa z e n d o -o re p e tir
os d e ta lh e s d o m ilag re (27). N ã o im p o rta o q u e ele d isse sse so b re o
m ilag re, se re c u sa rã o a ac eita r as o rig e n s celestiais d e Je su s (29). S eu
p ro c e d im e n to legal d esce a o n ív el d o a v ilta m e n to d a te s te m u n h a (34).
N o fim d o relato , os farise u s q u e se s e n ta ra m p a ra ju lg a r o m ila g re são
p o r Jesu s ju lg a d o s c u lp a d o s (39,41).
O c u id a d o com q u e o e v a n g e lista tra ç o u su a s d e scriçõ e s d a cres-
cen te v isão e e m p e d e rn id a c e g u eira é g ra n d io so . T rês v e z e s o q u e a n -
tes fora cego, q u e re a lm e n te está c o n q u is ta n d o c o n h e cim e n to , confes-
sa h u m ild e m e n te su a ig n o râ n c ia (12, 25, 26). T rês v e z e s o s farise u s,
q u e re a lm e n te e stã o a m e rg u lh a r m ais fu n d o n a a b ism a i ig n o râ n c ia d e
Jesus, fazem afirm açõ es en fá tic a s so b re o q u e sa b e m d e le (16, 24, 29).
O cego e m e rg e d e sta s p á g in a s e m João co m o u m a d a s fig u ra s m ais
a tra en te s d o s ev an g elh o s. E m b o ra o c e n ário d o s á b a d o e a a cu sação
c o n tra Jesu s criam u m a s in g u la rid a d e e n tre este m ilag re e a c u ra d o
h o m em n o ta n q u e d e B etesda, n o c a p ítu lo 5, este cego in te lig e n te e fa-
la d o r é m u ito d ife ren te d o p a ra lític o o b tu so e sem im a g in a ç ã o d o capí-
tu lo 5 (ver p. 431). A refu tação d o cego c o n tra os farise u s n o s vs. 24-34
c o n stitu i u m d o s d iálo g o s m ais h a b ilid o sa m e n te c o m p o sto d o N T.

O valor do relato como tradição

D as o b serv ações su p ra m e n c io n a d a s, seria ó b v io q u e o e v a n g elista


c o n trib u iu e m g ra n d e m e d id a , d e su a p ró p ria m a e stria , p a ra d a r a e sta
cena se u g ra n d e v a lo r artístico . T em -se a d a p ta d o u m re la to d e m ila-
34 · O clím ax d a festa d o s tabernáculos: A cura d e u m c e g o 651

g re e m u m in s tru m e n to id ea l a serv iço d a a p o lo g é tic a cristã e n u m a


in s tru ç ã o id ea l p a ra os q u e se p re p a ra m p a ra o b a tism o (ver abaixo).
M as, m e sm o q u a n d o isto é a d m itid o , d e v e m o s a in d a p e rg u n ta r se o
re la to fu n d a m e n ta l p o d e o u n ã o re p re s e n ta r a tra d içã o histórica. O
q u e está e m p a u ta a q u i - a d a p ta ç ã o d e u m a h istó ria p rim itiv a a tra v és
d e seleção e ên fase, u m a criação p u ra m e n te im a g in a tiv a , o u refo rm u -
lação im a g in a tiv a d e m a te ria l sinótico?
A tra d iç ã o d e q u e Jesu s c u ro u o cego é b e m a te sta d a n a trad ição
sin ó tica. T al c u ra n ã o te m u m p a n o d e fu n d o n o s m ilag re s v etero tes-
ta m e n tá rio s , m a s a d e scriçã o d o (esp iritu a lm e n te ) cego, te n d o seus
o lh o s (fig u ra d a m e n te ) a b e rto s, era p a rte d o q u a d ro d o s p ro fe ta s dos
te m p o s id e a is o u m essiân ico s (Is 29,18; 35,5; 42,7). L istam o s abaixo as
c u ra s d e ceg o s n a tra d iç ã o sinótica; to d a v ia , com a co n d ição d e q u e
d u p lic a ç õ e s p o d e m e s ta r e n v o lv id o s.
(a) C u ra d e B artim eu , o q u a l se sentava e mendigava p e rto d e Jerico,
q u a n d o Jesu s e sta v a d e c a m in h o p a ra Je ru sa lé m (Mc 10,46-52;
Lc 18,35-43; M t 20,29-34 [dois cegos]).
(b) D ois ceg o s n a G alileia (M t 9,27-31 - u m a d u p lic a ç ã o d a prece-
d en te?).
(c) U m c e g o /m u d o n a G alileia (C afarn au m ?) - isto co n co rd a
co m M t 12,22-23; m as Lc 11,14 m en cio n a a p e n a s u m m u d o e
p õ e a cen a n o c a m in h o p a ra Jeru salém .
(d) U m cego c u ra d o em B etânia, e m estág io s, com o u so d e saliva
(M c 8 ,2 2 2 6 ‫)־‬. E m c irc u n stâ n c ia s sim ilares, M t 15,30 d á u m re-
s u m o q u e m e n c io n a o cego se n d o c u ra d o .
(e) Em Jerusalém, e m u m re su m o c o n e cta d o com a p u rific a ç ão d o
tem p lo , lem o s q u e Jesus c u ro u o cego (M t 21,14).
A o a v a lia rm o s a s im ila rid a d e d o re la to d e João com os d o s sinóti-
cos, d e v e m o s n o ta r q u e o a p ó c rifo Atos de Pilatos 6,2 d iz q u e u m cego,
q u e o b v ia m e n te é o B artim eu d e (a) acim a, n ascera cego, e assim , ap a-
re n te m e n te , q u e c o m b in a o re la to sin ó tico com o d e João. É tam b ém
p o ssív e l q u e J ustino, Apol. 1,22:6 (PG 6:364), esteja c o m b in a n d o as d u a s
tra d içõ e s q u a n d o d iz q u e Je su s " c u ro u os aleijados, os p a ra lític o s e os
cegos de nascença [p la u siv e lm e n te , le n d o p êrou s p o r poriêrou s]”. Na
v e rd a d e , a s s im ila rid a d e s e n tre os v á rio s rela to s sin ó tico s e o rela to d e
João sã o m u ito p o u c a s (note os itálicos acim a). C e rta m e n te , João n ão de-
p e n d e d e u m ú n ic o re la to sinótico, n e m há q u a lq u e r ev id ê n c ia convin-
cen te d e q u e João é d e p e n d e n te d e q u a lq u e r c o m b in ação d e d e ta lh es
652 O L ivro d o s S inais

d a s v á ria s cen as sinóticas. O s m ais n o tá v e is e im p o rta n te s a sp e c to s


em João n ã o se e n c o n tra m n a s ce n as sin ó ticas, p o r ex em p lo : cego de
nascença; uso de lodo; cura através da água de Siloé; interrogatório sobre 0
milagre; questionamento aos pais. N a tu ra lm e n te , estes d e ta lh e s n o tá v e l-
m e n te d ife re n te s fre q u e n te m e n te são os m esm o s p o n to s q u e se rv e m
ao s in te re sse s teológicos jo an in o s, e p o r isso se to m a difícil p ro v a r
c ien tificam en te q u e n ã o fo ram c ria d o s c om u m p ro p ó sito p e d a g ó g ic o .
A lg u n s p o n to s q u e p o d e m se r m e n c io n a d o s em fa v o r d o c a rá te r p ri-
m itiv o e a u tê n tic o d o re la to jo a n in o sã o o u so d e saliv a, a b re v id a d e
co m q u e o m ila g re é n a rra d o , a in fo rm a ç ã o local so b re o ta n q u e d e
Siloé, a fa m ilia rid a d e com os m in u c io so s p o n to s d a s re g ra s sab áticas.
P o rta n to , e m g eral p a re c e q u e a p ro b a b ilid a d e fav o rece a teo ria d e
q u e p o r d e trá s d o c a p ítu lo 9 jaz u m a h istó ria p rim itiv a d e c u ra p re -
s e rv a d a s o m e n te n a tra d iç ã o jo a n in a (assim ta m b é m D o d d , Tradition,
p p . 181-88). O e v a n g elista , com se u se n so d e d ra m a , v iu n e sta h istó -
ria u m e x e m p lo q u a se id ea l d e u m sin al q u e p o d e ria se r u s a d o p a ra
in s tru ir se u s leito res e fortalecê-los e m su a co n v icção d e q u e Je su s é o
M essias (20,31) e e la b o ro u o re la to com esse o b jetiv o e m m en te.

As lições ensinadas pelo relato

(a) Triunfo da luz sobre as trevas. A lição p rim á ria q u e o e v a n g e lista


ten c io n av a c o m u n ic a r é a q u e la q u e e n fa tiz a m o s a cim a q u a n d o d es-
c rev em o s a e s tru tu ra d o cap ítu lo : a re p re se n ta ç ã o d o triu n fo d a lu z
so b re as trev as. A ssim co m o os p ro fe ta s v e te ro te s ta m e n tá rio s acom -
p a n h a v a m su a p a la v ra e x p re ssa p o r ações sim b ó licas q u e d ra m a tiz a -
v a m su a m en sa g e m , a ssim ta m b é m Jesu s, a q u i, re p re s e n ta a v e rd a d e
q u e ele p ro c la m o u e m 8,12: "E u so u a lu z d o m u n d o " . N ã o a p e n a s
to d o o a rra n jo d o c a p ítu lo , m a s ta m b é m a p ró p ria in tro d u ç ã o esp e-
cífica, n o s vs. 2-5, to rn a e sta lição clara. D odd , Tradition, p p . 185-88,
m a n té m q u e em 2-4 h á m u ito q u e se a sse m e lh a ao q u e se e n c o n tra n a s
afirm açõ es sin ó ticas d e Jesu s (ver a s re sp e c tiv a s n o tas), e n o ta m o s q u e
o v. 5 se a sse m e lh a m u ito a M t 5,14. A ssim , o e v a n g e lista p o d e ria ter
e n c o n tra d o a c h a v e p a ra su a c o m p re e n sã o d a cena n o s d ito s tra d icio -
n a is d e Jesus.
(b) Lição apologética. Em a d iç ã o ao d ra m a lu z /tr e v a s , v is ta /c e -
g u e ira , o e v a n g elista tev e u m s e g u n d o p ro p ó sito e m a p re s e n ta r este
relato a se u s leitores: o d e c u n h o ap o lo g ético . N a p e rg u n ta p re lim in a r
34 · O clím ax d a festa d o s tabernáculos: A cura d e u m c e g o 653

d o s farise u s ao h o m e m (vs. 13-17), o u v im o s a lg u m a s d a s d ú v id a s


q u e a c o ssa v a m as a u to rid a d e s so b re Jesus d u ra n te seu m inistério. O
p ro b le m a d e su a v io lação d o s á b a d o c e rta m e n te era u m a p a rte au-
tên tica d a tra d iç ã o p rim itiv a so b re Jesus, e com b a se n o s p aralelo s
sin ó tico s, esta p e rg u n ta p re lim in a r te m to d o o d ire ito d e se r consi-
d e ra d a p a rte d o rela to d a c u ra (M c 3,1-6; Lc 13,10-17). M as, e n q u a n to
n o c a p ítu lo 5 o tem a sab ático d o m in o u o re la to d a c u ra d o p aralítico ,
isto é re a lm e n te a p e n a s in c id e n ta l n o d e se n v o lv im e n to d o cap ítu lo
9; p o is n o s in te rro g a tó rio s su b s e q u e n te s feitos aos p a is d o h o m em
(18-23,24-34), a q u e stã o d o sá b a d o d e sa p a re c e n o contexto. N estes in-
te rro g a tó rio s , a q u e stã o real é se Jesu s tin h a o u n ã o p o d e r m iracu lo so
e, se ele o tin h a , q u e m é ele.
A q u i, p a s sa m o s d o s a rg u m e n to s d o m in isté rio d e Jesus p a ra a
a p o lo g é tic a d a Igreja e d a S in ag o g a n a era d a e x p a n sã o d o C ristia-
n ism o , e o e v a n g e lista n o s m o stra o p ro lo n g a m e n to , e m seu p ró p rio
te m p o , d o d e b a te so b re Jesu s q u e já h a v ia c o m eçad o a in fla m a r q u a n -
d o Je su s a in d a v iv ia. N o s vs. 28-33 tem o s d e fo rm a sin tética a v io len ta
p o lêm ic a e n tre o s d isc íp u lo s d e M oisés e os d isc íp u lo s d e Jesus no
fin al d o 1“ sécu lo. A m esm a m e n ta lid a d e está e m p a u ta a q u i, a qual
p ro p ic io u a d e s ig n a ç ã o an a crô n ic a d a s a u to rid a d e s d o s d ia s d e Jesus
co m o " o s ju d e u s " ; p o is o " n ó s" q u e é o u v id o n o s láb io s d o s fariseu s
re a lm e n te é a v o z d e se u s d e sc e n d e n te s lógicos, isto é, os ju d e u s do
final d o I a sécu lo , o s q u a is, d e u m a v ez p o r to d as, re je ita ra m as reivin-
d icaçõ es d e Je su s d e N a z a ré , e q u e c o n sid e ra m se u s se g u id o re s com o
h e re g e s. O " n ó s" n o s láb io s d o p rim e iro cego é a v o z d o s apologe-
tas c ristã o s q u e p e n s a m n o s ju d e u s co m o cegos p o r p ró p ria v o n ta d e
e x tra v ia d a d ia n te d a ó b v ia v e rd a d e im p lícita n o s m ilag re s d e Jesus.
N o s p a rê n te s e s d o s vs. 22-23, p a re c e -n o s ter o d e sen v o lv im e n -
to fin al d o u s o a p o lo g é tic o d e ste re la to jo an in o . É b e m p ro v á v e l q u e
estes v e rsíc u lo s re p re s e n te m a in te rv e n ç ã o d e u m re d a to r q u e leva o
rela to a o se u clím ax, p o is eles são b a s ta n te in tru siv o s n a n a rra tiv a .
C o m o rea lça m o s na In tro d u ç ã o , eles n o s a ju d a m a d e te rm in a r a possí-
vel d a ta m a is a n tig a p a ra o e v a n g e lh o e m su a form a a tu a l (p. 87); pois
se re fe re m à te n ta tiv a , e m to rn o d e 90 d.C ., d e e x p u lsa r d a s sin ag o g as
os ju d e u s q u e ac eita sse m Jesu s co m o o M essias. É b e m p o ssív e l que,
d u ra n te o m in isté rio d e Jesu s e s e u s d isc íp u lo s, e n c o n trasse m opo-
sição n a s s in a g o g a s e fo ra m tra ta d o s ru d e m e n te n o calo r d o d e b a te
(Lc 4,28-29). M as é quase inacreditável q u e d u ran te a vida terrena d e Jesus
654 O L ivro d o s S inais

uma excomunhão formal fosse lançada contra os que o seguiam.


Mt 10,17 menciona o uso de açoites nas sinagogas, mas apenas como
parte do f u t u r o destino dos missionários cristãos. Atos mostra os
apóstolos entrando nas sinagogas e inclusive no próprio templo
sem qualquer sugestão de que fossem excomungados. Mesmo a des-
crição dos seguidores de Jesus, no v. 22, como os que reconheciam
que ele era o Messias, é excessivamente formal para o ministério
de Jesus. Uma vez mais, o evangelho está mostrando-nos o último
desenvolvimento da hostilidade que era incipiente na vida terrena
de Jesus. O temor que os pais revelam em falar representa o dilema
daqueles judeus praticantes que criam que Jesus é o Messias, mas
agora (i.e., no final do Ia século) descobrem que não mais podem
professar esta fé e permanecer judeus. Através do exemplo do cego,
no v. 34, o evangelho apela para eles: que permitam ser excomun-
gados, pois Jesus os procurará, como procurou o cego no v. 35, e os
conduzirá à fé perfeita.
(c) U m a liç ã o b a ti s m a l. O relato do cego de nascença aparece sete
vezes na arte primitiva das catacumbas, mui frequentemente como
uma ilustração do batismo cristão (B raun , J e a n T h é o l, I, p. 149ss.).
O capítulo 9 serviu como uma leitura na preparação dos conversos
para o batismo - veja a interessante nota em H oskyns, pp. 363-65, so-
bre o uso de Jo 9 nos lecionários ou livros litúrgicos da Igreja primi-
tiva. Em particular, quando a prática de três escrutínios ou exames
antes que o batismo fosse desenvolvido (ao menos desde o 3a século,
segundo Braun , pp. 158-59), Jo 9 era lido no dia do grande escrutí-
nio. Do que podemos reconstruir da cerimônia como a conhecemos de
um estágio levemente posterior, quando os catecúmenos passavam
no exame e eram julgados dignos do batismo, eram lidas para eles
lições do AT concernentes à água purificadora. Então vinha a aber-
tura solene do livro do evangelho e a leitura de Jo 9, com a confissão
do cego: "Eu creio, Senhor" (38), servindo de clímax. (Ver o Missal
Romano para quarta-feira após o Quarto Domingo da Quaresma). De-
pois disto, os catecúmenos recitavam o credo. E também interessante
notar que dois dos gestos de Jesus em Jo 9, a unção e o uso de saliva,
mais tarde se tornou parte das cerimônias batismais (embora o uso de
saliva se relacione mais diretamente com Mc 7,34). Já temos indicado
na respectiva nota que a inserção das palavras entre colchetes nos vs.
38-39 poderia também ser um indício do uso batismal deste capítulo.
34 · O clím ax da festa d o s tabernáculos: A cura d e u m ce g o 6 55

A ssim , n ã o há d ú v id a d e q u e a Igreja e n c o n tro u u m a lição batis-


m al n a c u ra d o cego. Q u e ev id ên cia tem o s d o p ró p rio e v a n g elh o de
q u e a in te rp re ta ç ã o b a tism a l p o d e refletir a p ró p ria in ten ção d o evan-
gelista? João d e d ic a tão so m e n te d o is v ersícu lo s ao m ilag re em si (um a
in d icação d e q u e o relato p o d e ser p rim itiv o , p o is a ten d ên cia p o ste rio r
é c h a m a r a ate n ç ã o p a ra o ele m en to m ara v ilh o so n a o p e ra ç ã o d o m ila-
gre). E m b o ra os g esto s d e Jesus sejam d escrito s, é e n fa tiz a d o q u e o ho-
m em foi c u ra d o so m e n te q u a n d o se lav o u n o ta n q u e d e Siloé. A ssim ,
d ife re n te d a c u ra d o p aralítico n o c a p ítu lo 5, o relato no cap. 9 ilu stra o
p o d e r c u ra tiv o d a á g u a. O e v a n g elh o se d e té m p a ra in te rp re ta r o no m e
d o ta n q u e , o n d e esta á g u a c u ra tiv a era o b tid a , e a explicação d e qu e
o n o m e significa "aq u e le q u e foi e n v ia d o " associa c la ram e n te a ág u a
d e s te m esm o ta n q u e com Jesus. Em João, Jesus é a q u e le q u e foi envia-
d o p e lo Pai (3,17.34.36.38 etc.). A lém d o m ais, d e v e m o s ter em m en te
q u e foi a á g u a d e ste m esm o ta n q u e d e Siloé q u e foi u sa d a na cerim ônia
na festa d o s T ab ern ácu lo s, e Jesus d isse ra p o r m eio d a su b stitu iç ão em
7,37-38 q u e ag o ra ele era a fonte d a á g u a q u e g era v id a.
O u tra in d icação d e q u e o ev an g elista tin h a e m m en te o sim bolis-
m o sa c ra m e n ta l n a n a rra tiv a é a ênfase so b re o fato d e q u e o h o m em
nascera ceg o (vs. 1, 2 3 ,1 8 ,1 9 ,2 0 , 24). Isto v e m a ser u m clím ax n o v. 32:
"Jam ais se tem o u v id o q u e a lg u é m já ten h a a b e rto os olh o s d e u m cego
d e n ascen ça". V isto q u e a ceg u eira física d o h o m em é tão o b v iam e n te
c o n tra s ta d a com o p e c a d o d a c e g u eira e sp iritu a l (39), tem o s o d ireito
d e s u s p e ita r q u e o ev an g elista esteja faz e n d o u so d a ideia d e q u e o
h o m em n ascera e m p e c a d o (2, 34) - p e c a d o q u e só p o d e ser rem o v id o
pela la v a g e m n a s á g u a s d a n a sce n te o u ta n q u e q u e flui d o p ró p rio Je-
sus. C re m o s q u e o sim b o lism o d o e v a n g elh o foi c o rre ta m e n te in terp re-
tad o p o r T ertuliano, q u a n d o a b riu se u tra ta d o so b re o B atism o, com
as p a la v ras: "A p re se n te o b ra tra ta rá d e n o sso sa cra m e n to d a á g u a qu e
lav a os p e c a d o s d e nossa ceg u eira o rig in al e n os lib erta p a ra a vida
e te rn a " (SC 34:64). A gostinho exclam a: "E ste cego re p re se n ta a raça
h u m an a ... se a c e g u eira é in fid e lid ad e , en tã o a ilu m in ação é a f é . ... Ele
lav a se u s o lh o s n a q u e le ta n q u e q u e é in te rp re ta d o 'a q u e le q u e foi en-
v ia d o ': ele foi b a tiz a d o em C risto " (In Jo. 44,1-2; PL 35:1713-14).
Q u e tal sim b o lism o seria e n te n d id o p elo s cristã o s d o p e río d o
n e o te s ta m e n tá rio é in d ic a d o p e lo fato d e q u e " ilu m in a ç ã o " era u m
te rm o u s a d o p e lo s a u to re s n e o te sta m e n tá rio s p a ra referir-se ao batis-
m o (p. ex., H b 6,4; 10,32 - H e b re u s é u m a o b ra com m u ita s a fin id ad e s
65 6 O Livro d o s Sinais

jo an in as). N o 2a século, J ustino, Apol. 1, 61:13 (PG 6:421), n o s in fo rm a


q u e a la v a g e m d o b a tism o e ra c h a m a d a ilu m in a ç ã o . T alv ez a té m es-
m o a m en ç ã o d e " u n ç ã o " (epichriein = " u n ta r " em 6 ,1 1 ), a ra iz g reg a
da q u a l se relacio n a com " c rism o " e " c rism a ", te n h a sig n ificação b a-
tism al. l jo 2,20.27 fala d e u m a u n ç ã o q u e v e m d o S a n to (B atism o?); e
2C or 1,21-22 fala d a u n ç ã o e d a d o a ç ã o d o E spírito.
M esm o a asso ciação p a u lin a d o b a tism o com a m o rte d e Jesu s
(p. ex., R m 6,3) p o d e n ã o e s ta r to ta lm e n te a u s e n te d e Jo 9. E m 9,3,
so m o s in fo rm a d o s q u e a c u ra d o cego se d e s tin a a se r u m a rev e laç ã o
d a s o b ra s d e D eus, e o v. 4 in siste q u e esta o b ra d e v e se r feita ago-
ra e n q u a n to é d ia, p o is a n o ite está v in d o . H á a q u e le s q u e p e n s a m
q u e isto significa q u e Jesu s q u e r c u ra r o h o m e m n e ste d ia p a rtic u la r
q u a n d o a in d a e ra sá b ad o . N ã o o b sta n te , a m esm a n e c e ssid a d e d e tira r
v a n ta g e m d o d ia se e n c o n tra em 9,9-10, o n d e n ã o tem n a d a a v e r com
a q u e stã o d o sá b ad o . A n tes, a n e c e ssid a d e d e c o rre d o fato d e q u e a
m o rte já está la n ç a n d o su a so m b ra so b re a v id a d e Jesus. A m esm a
id eia se e n c o n tra em Lc 13,32: "E is q u e eu e x p u lso d e m ô n io s, e e fe tu o
cu ras, hoje e a m a n h ã , e n o terceiro d ia terei c o n s u m a d o " . N o c a p ítu lo
8, o u v im o s q u e "o s ju d e u s " e sta v a m te n ta n d o m a ta r Jesus, e co m esta
am eaça d e m o rte im in e n te e m m e n te , Jesus se n te q u e n ã o p o d e a d ia r a
cu ra d o cego a tra v é s d a s á g u a s d e Siloé. N o c a p ítu lo 11, v e re m o s q u e,
co m o a m o rte d e Jesus se a p ro x im a , a u m e n ta su a a tiv id a d e d e g e ra r
v id a. Se e stiv e rm o s certo s em v e r sig n ificação b a tism a l n a c u ra d o
cego, este sim b o lism o tem co m o se u p a n o d e fu n d o a m o rte im in e n te
d e Jesus.
3 5 .0 C L IM A X Ν Α FESTA D O S T A B ER N A C U LO S:
- JESUS CO M O A PORTA D O APRISCO E 0 PASTOR
( 10, 1- 21)

Um ataque simbólico contra os fariseus

Afs) parábola(s)

10 , " V e rd a d e ira m e n te e u v o s asseg u ro :


o q u e n ã o e n tra p e la p o rta n o a p risc o d a s o v elh as,
m a s so b e p o r a lg u m a o u tra via,
é la d rã o e sa lte ad o r.
2A q u e le q u e e n tra p e la p o rta
é p a s to r d a s o v elh as;
3p a ra esse o p o rte iro a b re a p o rta .

E as o v e lh a s o u v e m su a vo z
q u a n d o ele c h a m a p e lo seu n o m e a q u e la s q u e lhe p e rte n c e m
e as lev a p a ra fora.
4Q u a n d o ele as fizer sair [todas] as su a s,
ele c a m in h a a d ia n te delas;
e as o v e lh a s o se g u em
p o rq u e rec o n h e c em su a voz.
5M as n ã o se g u irã o u m e stra n h o ;
F u g irã o d ele
p o rq u e n ã o reco n h ecem a vo z d o s e stra n h o s" .

^E m bora Jesu s lh es a p re s e n to u esta p a rá b o la , n ão e n te n d e ra m o sen-


tid o d o q u e lh es d izia.
65 8 O L ivro d o s S inais

As Explanações: a. A porta

7E n tão Jesu s d isse [a eles o u tra vez]:


" V e rd a d e ira m e n te e u v o s asseg u ro :
Eu so u a p o rta d a s o velhas.
8T o d o s q u a n to s v ie ra m [an tes d e m im ]
são la d rõ e s e sa lte ad o re s,
m as as o v e lh a s n ã o lhes d e ra m o u v id o s.
9E u so u a p o rta .
Q u e m q u e r q u e e n tre a tra v é s d e m im
será salvo;
e ele e n tra rá e sairá
e a c h ará p a sta g e m .
l(lO la d rã o v e m
so m e n te p a ra ro u b a r, m a ta r e d e stru ir.
Eu vim
p a ra q u e te n h a m v id a
e a te n h a m co m a b u n d â n c ia .

b. O pastor

11Eu so u o b o m p a sto r:
o b o m p a s to r d á su a v id a p e la s o v elh as.
12O m erc en á rio , q u e n ã o é o p a sto r,
e n ão cu id a d a s o v elh as,
v ê v ir o lobo
e foge, d e ix a n d o q u e as o v e lh a s
sejam a rre b a ta d a s e d isp e rsa s p e lo lobo.
'3E isto se d á p o rq u e ele tra b a lh a p o r salário
e n ão se p re o c u p a com as o v elh as.
14Eu so u o b o m p asto r:
C o n h eço m in h a s o v e lh a s
e elas m e co n h ecem ,
' 5assim co m o o Pai m e conhece
e e u co n h eço o Pai.
E p e la s o v e lh a s eu e n tre g o m in h a v id a.
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 659

16Eu te n h o ta m b é m o u tra s o v e lh a s
q u e n ã o p e rte n c e m a e ste aprisco.
D ev o c o n d u z ir tam b é m a estas,
e ela s o u v e m m in h a voz.
E n tã o h a v e rá u m só re b a n h o , u m só p asto r.
17Eis p o r q u e o P ai m e am a:
p o rq u e e u d o u m in h a v id a
a fim d e reto m á-la d e volta.
18N in g u é m a to m a d e m im ;
A n tes, e s p o n ta n e a m e n te a e n tre g o .
T e n h o p o d e r p a ra d á-la
e te n h o p o d e r p a ra a to m á-la d e volta.
E ste m a n d a d o e u recebi d e m eu Pai".

19P o r c a u sa d e sta s p a la v ra s, os ju d e u s fo ram o u tra v ez incisiva-


m e n te d iv id id o s. 20M u ito s d e le s p a s sa ra m a alegar: "E ste é p o ssesso
d e u m d e m ô n io - o u d em en te! P o r q u e lhe d a is aten ção ?" 21O u tro s
m a n tin h a m : "E stas n ã o são as p a la v ra s d e u m a p e sso a louca. S egura-
m e n te , u m d e m ô n io n ã o p o d e a b rir os o lh o s d o cego!"

NOTAS

10.1. Verdadeiramente eu vos asseguro. Bernard, II, p . 3 4 8 , in siste q u e o d u p lo


" a m ém " , q u e é o q u e e sta se n te n ç a r e p r e sen ta , n u n c a é u s a d o a b ru p ta -
m e n te p ara in tr o d u z ir u m n o v o tem a . E m 3,11 e 5,1 9 , e le re p r esen ta so -
m e n te u m n o v o e s tá g io n o s c o m e n tá r io s d e J esu s so b r e o q u e p re c e d e u .
aprisco. H a v ia v á r io s tip o s. A s v e z e s o a p r isc o era u m q u a d r a d o c e r c a d o ao
la d o d e u m a c o lin a c o m m u r o s d e p ed ra ; a q u i p a r e c e se r u m p á tio em
fre n te d e u m a c a sa , c e r c a d o p o r u m m u r o d e p e d r a q u e p r o v a v e lm e n te
era c o b er to c o m e s p in h o s .
porta. E m b ora thyra seja a p a la v r a n o r m a l para a p o rta d e u m a sa la (M t 6,6),
a tra d u ç ã o "porta" p a r e c e m a is a p ro p ria d a a q u i p ara a ab ertu ra n u m
c e r c a d o d e p ed ra .
salteador. Lestes te m o s e n tid o d e "ladrão" (M c 11,17), m a s é ta m b é m u sa d o
n o s e v a n g e lh o s p ara re ferir-se a g u e r r ilh e ir o s e b a n d id o s r e v o lu c io n á -
rio s c o m o B arrab ás, q u e v iv ia e n v o lv id o e m u m a in su r r e iç ã o (Lc 23,19).
P o r q u e a lg u n s p e n s a m q u e o v. 8 s e refere a r e v o lu c io n á r io s m e ssiâ n ic o s,
a c o m b in a ç ã o " la d rõ es" e " a ssa lta n tes" a p a r e c e e m O b a d ia s 5.
660 O Livro d o s Sinais

3. pelo seu nome. P a rece q u e o s p a sto r e s p a le s tin o s fr e q u e n te m e n te d ã o n o -


m e s fam iliares às su a s o v e lh a s favoritas: "orelhas g ra n d es" , "nariz branco"
etc. (B hrnard, II, p. 350).
aquelas. L ite ra lm e n te , "as o v e lh a s" .
as leva para fora. O v e r b o exagein é u s a d o e m a lg u m a s d a s im p o r ta n te s p a s-
s a g e n s so b re p a sto r n o A T (LXX): E z 34,13; N m 27,17.
4. fizer sair. L itera lm en te, "p ôr fora" (ekballein). P r o v a v e lm e n te , is to seja a p e-
n a s u m a v a r ia n te d e exagein; a q u i, p o r é m , p o d e se r u m a in s in u a ç ã o d o
d e sa m p a r o d a s o v e lh a s . A s o v e lh a s c o s tu m a m ter d e ser p u x a d a s p ara
a p orta.
[todas]. A lg u n s m a n u sc r ito s o m ite m e sta p a la v ra ; a lg u n s a tê m n u m a or-
d e m d e r e d a ç ã o d ife r e n te .
caminha adiante delas. N o p a sto r e io h á o c a s io n a lm e n te u m a u x ilia r q u e se
p õ e na re ta g u a r d a d o re b a n h o .
5. não seguirão um estranho. Bernard, II, p . 3 5 0 , s u g e r e q u e d e v a m o s p e n sa r
q u e h o u v e s s e v á r io s r e b a n h o s e m u m s ó a p risc o , d e m o d o q u e h o u v e s s e
u m p r o c e s s o d e se p a r a ç ã o q u a n d o o p a sto r s e p u n h a a c h a m a r p a ra fora
se u p r ó p r io reb a n h o . Isto está lo n g e d e se r co r re to , e o e v a n g e lh o n u n c a
m e n c io n a a p r e se n ç a d e o u tr a s o v e lh a s n e s te a p risc o .
6. apresentou esta parábola. L ite r a lm e n te , " fa lo u e sta p a rá b o la " . A p a la v r a gre-
ga é paroitnia q u e à s v e z e s s ig n ific a " p ro v é rb io " , p . e x ., 2 P d 2,22. N a LXX,
paroimia (c o m o parabolê, q u e o s s in ó tic o s u sa m ) é u sa d a p ara tr a d u z ir
mãsãl, u m ter m o h eb ra ic o a m p lo q u e ab arca q u a s e t o d o s o s tip o s d e
d is c u r s o fig u r a tiv o . Paroimia e parabolê sã o u s a d a s c o m o s in ô n im a s e m
S ira q u e 47,17; em g er a l, e la s n ã o d ife r e m g r a n d e m e n te e m s ig n ific a d o ,
em b o ra p o ssa h a v e r m a is ê n fa s e so b r e o e n ig m á tic o e m paroimia. O u so
de paroimia te n d e a a u m e n ta r n a s v e r s õ e s g r e g a s p o ste r io r e s d o A T . V er
E. H atch , Essays in Biblical Greek (O xford : C la r e n d o n , 1889), p p . 64-71; e
F. H auck , paroimia, T W N T , V , p p . 85 2 -5 5 . E m b ora o ca p . 16,25 in d iq u e
q u e n o p e n s a m e n to jo a n in o a s p a r á b o la s d e J esu s n ã o fo ra m fa c ilm e n te
e n te n d id a s , a p a s s a g e m e m p a u ta n ã o d e ix a d ú v id a d e q u e J esu s fa lo u
d esta m a n eira para fa z e r -se e n te n d e r .
7. |<7 eles outra vez]. A tra d içã o m a n u scr ita so b r e a in c lu s ã o , o m is s ã o e o r d e m
d e sta s p a la v r a s é m u ito c o n fu sa .
a porta das ovelhas. A v e r sã o sa íd ic a trás "o p a sto r" , u m a re d a ç ã o q u e a g o ra
receb e se u p rim e ir o e n d o s s o g r e g o d e P75. Bi .ack, p . 1 9 3 1, s e g u e T orrey,
c r e n d o q u e o o rig in a l "p astor" se c o n v e r te u em "porta" m e d ia n te u m
e q u ív o c o n o p r o c e sso d e có p ia d o a ra m a ic o p r e s su p o sto . E n tretan to, real-
m e n te "porta" é a r e d a ç ã o m a is in e sp e r a d a e d ifícil; é b e m p o s s ív e l q u e
"pastor" foi in tr o d u z id o p o r c o p ista s n u m a ten ta tiv a d e fa zer a e x p lic a ç ã o
35 · O clím ax da festa d os tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 661

d a p a rá b o la u m q u a d r o c o n s is te n te . S e J esu s f o s s e a o m e s m o te m p o por-
ta e p a sto r (1 1 ,1 4 ), is s o ca u sa r ia p r o b le m a .
8. Todos. Isto é o m itid o p e lo C o d e x B e z a e e a lg u m a s v e r s õ e s e cita ç õ e s p a-
trística s. S e " v ier a m a n te s d e m im " fo i e n t e n d id o c o m o u m a referên cia
a o p e r ío d o v e te r o te sta m e n tá r io , e n tã o a a fir m a ç ã o d e q u e to d o s (n o A T )
fo ra m la d r õ e s e s a lte a d o r e s p r o v a v e lm e n te p a r e c e u d u r o d e m a is.
[antes de mim]. E n d o s s a d o p e lo C o d e x S in a itic u s e fo rte e v id ê n c ia d a s v er-
s õ e s , a o m is s ã o d e s ta s p a la v r a s a g o ra tem o a p o io d e P75. A s p a la v r a s sã o
u m a g lo s a e x p lic a tiv a in te r p r e ta n d o o p reté rito "veio" ? O u a o m is s ã o é
o u tr o r e fle x o d a d ific u ld a d e re cé m m e n c io n a d a ?
9. a porta. E s u fic ie n te m e n te cla ro q u e a q u i a im a g e m é a d a p o rta a tra v és
d a q u a l a s o v e lh a s en tra m e sa e m . Bishop, art. cit., d á u m in te r e ssa n te
e x e m p lo m o d e r n o d o p a sto r d o r m in d o b e m na en tra d a d o a p risc o e,
a s s im , s e n d o p ara a s o v e lh a s , r e s p e c tiv a m e n te , c o m o p a sto r e p orta. Em
a lg u m a s d a s r a m ific a ç õ e s d o Isla m , o títu lo Bãb ("p orta", p . e x ., para o
c o n h e c im e n to ) te m s id o a p lic a d o a o s g r a n d e s líd e r e s r e lig io so s.
10. O ladrão. A q u i, p r o v a v e lm e n te , o a r tig o d e fin id o é e s tilo p a r a b ó lic o , c o m o
"o se m e a d o r " , e m M c 4,3.
matar. Thyein n ã o é o v e r b o u s u a l p ara "m atar" ( apokteinein) u sa d o e m o u -
tro lu g a r e m João; e le te m a c o n o ta ç ã o d e sa c r ifíc io e b e m q u e p o d e r ía
se r u m a su til re ferê n c ia à s a u to r id a d e s sa c e r d o ta is. V er o su b sta n tiv o
s e m e lh a n te e m M t 9,13; 12,7.
tenham com abundância. H á a lg u m a e v id ê n c ia (P66*, B eza e) para a o m issã o
d e sta s e n te n ç a , u m a o m is s ã o p o r h a p lo g r a fia , v is to q u e a s d u a s ú ltim a s
fr a se s d o v . 10 te r m in a m a m b a s c o m o v e r b o g r e g o echousin ("ter"). Para
u m a e x p r e s s ã o sim ila r d a tr a n sb o r d a n te p le n itu d e tra z id a p o r C risto,
v e r R m 5,20.
11. bom. O u "nobre"; p o d e ser q u e "nobre" seja m a is e x a to aq u i e " m od elo"
m a is e x a to n o v. 14. O g r e g o kalos sig n ific a " b eleza b o n ito " n o se n tid o d e
u m id e a l o u m o d e lo d e p erfeiçã o ; v im o -lo u s a d o n o " v in h o seleto " d e
2,10. F ilo ( De Agric. 6,10) fala d e u m bom (agathos) p astor. N ã o há d istin ç ã o
a b so lu ta en tre kalos e agathos, p o rém p e n sa m o s q u e "nobre" o u " m od elo" é
u m a tra d u çã o m a is p rec isa d o q u e "bom " para a frase d e João. N a Midrásh
Rabbah II 2 so b re Ex 3,1, D a v i q u e era o g r a n d e p a sto r d o A T é d escrito
c o m o yãfeh rô'eh, lite ra lm en te , "o p a sto r fo rm o so " (v er IS m 16,12).
dá sua vida. E sta é u m a e x p r e s s ã o jo a n in a (13,37; 15,13; l j o 3 ,1 6 ), c o m o co n -
trastad a c o m "d ar a v id a d e a lg u é m " (M c 10,45). "D ar a v id a " é u m a
e x p r e s s ã o rara n o g r e g o se c u la r , e o u s o d e João p o d e refletir o e s tilo
h eb ra ic o ra b ín ic o , m ãsar nafsõ, " en treg ar a lg u é m su a v id a " . A s u g e s-
tã o d e q u e a q u i d e v e m o s tr a d u z ir p o r "arriscar su a v id a " (v er Jz 12,3),
662 O L ivro d o s S inais

e n q u a n to p o d e ser a p r o p r ia d o n e s te v e r s íc u lo p a rticu la r , s e to rn a d ifíc il


p ela clara referên cia à m o r te n o v s. 17-18.
12. deixando que as ovelhas. H á u m in te r e ssa n te p a r a le lo na ob ra a p o c a líp tic a
ju d a ica d o in íc io d o 1“ s é c u lo d .C ., 4 E sd (5,18): " N ã o n o s a b a n d o n e s
c o m o fa z u m p a sto r (q u e d e ix a ) se u r e b a n h o a o p o d e r d e lo b o s v o r a z e s " .
13. e isso se dá porque. E ste v e r s íc u lo p a r e c e se r u m a a d iç ã o e x p lic a tiv a .
14. minhas ovelhas. J esu s p o d e d iz e r q u e a s o v e lh a s sã o s u a s p o r q u e o P ai lh e
d e u o s h o m e n s (6,37.44.65; 17,6-7).
15. entrego minha vida. H á u m a fo rte e a n tig a e v id ê n c ia p ara a r e d a ç ã o "dar";
p o d e ser a o rig in a l. "Dar" é ta m b é m u m a v a r ia n te n o v. 11, m a s a e v id ê n -
cia é m a is fo rte a q u i.
16. aprisco. E ste ter m o a p a rec eu n o v. 1 c o m u m a n u a n ç a le v e m e n te d ife r e n te .
A li o a p risc o r e p r e se n to u a q u e le s a q u e m J esu s v e io salvar; a q u i r e p r e se n -
ta o g r u p o d e Israel q u e já crê n e le . A d istin ç ã o , c o n tu d o , n ã o p a r e c e ser
tão n ítid a o u im p o r ta n te c o m o p r e te n d e Bultmann, p. 292.
ouvem minha voz. E ste tem a s e en c o n tr a e m 8,47; 1 8 ,37 (v e r 3,29).
haverá. O u "serão"; a e v id ê n c ia é u n ifo r m e m e n te d iv id id a e n tr e a s d u a s
r e d a ç õ e s, em b o r a p o s s a se r q u e a ú ltim a seja u m a r e d a ç ã o lig e ir a m e n te
m a is d ifícil.
um só rebanho, um só pastor. E m b o ra h o je seja m a is c o m u m fa la r d e u m
rebanho d e o v e lh a s , a q u i e s t a m o s t e n ta n d o p r e s e r v a r a p r o x im id a d e
n o g r e g o e n tr e poim nê ( " g a d o o v in o , r e b a n h o " ) e poim ên (" p a sto r " ).
N ã o h á o u tr o e n d o s s o p a r a a r e d a ç ã o d e J erônimo d e " u m s ó aprisco,
u m s ó p a sto r " , e m b o r a p a r e ç a q u e e l e te n h a t r a d u z id o u m m a n u s c r it o
g r e g o q u e lê aulê, em v ez d e poim nê. B ernard (II, p . 3 6 3 ), u m a n g lic a -
n o , d iz q u e " u m s ó a p r isc o " é e r r ô n e o id e o lo g i c a m e n t e c o m o ta m b é m
te x t u a lm e n t e , v is t o q u e o q u e J e s u s q u e r ia era u m s ó r e b a n h o , m e s m o
q u e e le v i v e s s e e m m u it o s a p r is c o s . E n tr e ta n to , ta l in te r p r e ta ç ã o d a
in te n ç ã o d o e v a n g e lis t a p a r e c e a n a c r ô n ic a ; p e r t e n c e m a is à p r e o c u p a -
ç ã o m o d e r n a c o m u m C r is tia n is m o d i v id id o e a te o r ia d a Ig reja c o m
d is t in t o s " ra m o s" .
17. ama. Agapan - V er n o ta so b r e 5,20.
18. a toma. H á m u ita s te ste m u n h a s, in c lu s iv e P 6, e m p r o l d e u m t e m p o pre-
sen te; m a s o a o r isto é o m a is d ifíc il, e q u a se c e r ta m e n te a r e d a ç ã o m a is
o rig in a l. A referê n c ia p retérita p o d e se r à s te n ta tiv a s co n tra su a v id a em
5,18; 7,25; 8,59. N ã o o b sta n te , h á ta m b é m a p o s s ib ilid a d e d e q u e e s te seja
o u tr o c a s o o n d e João retrata J e su s d u r a n te o m in isté r io fa la n d o , n o p re-
térito, d e su a m o r te e r e ssu r r e iç ã o (v er n o ta so b r e 3,13).
tenho poder. B ernard, II, p. 365, interpretaria isto com o "eu tenho autorida-
de" (ver nota sobre "capacitou" em 1,12), mas isto equivale a elaborar
35 · O clím ax da festa d os tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 663

d e m a is o s ig n ific a d o té c n ic o d e exousia. A frase e q u iv a le a "eu p o sso "


(L agrange , p. 283).
20. possesso de um demônio. L ite ra lm en te, "tem d e m ô n io " - u m a frase q u e te-
m o s tr a d u z id o e m te r m o s d e e le se r " lo u co " (7,20; 8,48). A s s im , e sta acu -
s a ç ã o e a d e se r e le " lo u co " sã o d o is m o d o s d ife r e n te s d e d iz e r a m e sm a
c o isa , v is t o q u e d e m ê n c ia era tid a c o m o s e n d o o r e s u lta d o d e p o s s e s s ã o
d e m o n ía c a (v er M c 5,1-20).
21.uma pessoa louca. U m a v e z m a is, lite r a lm e n te , " u m q u e te m u m d e m ô n io " .
um demônio não pode abrir os olhos do cego. V er n o ta so b r e 9,16. T e m -se su -
g e r id o q u e n e s te c a s o p a rticu la r o a r g u m e n to g er a l so b r e a p r o v e n iê n c ia
d e m ila g r e s é re fo r ç a d o p o r u m te x to c o m o SI 146,8, o q u a l d iz q u e é o
S e n h o r q u e m ab re o s o lh o s d o s c e g o s .

C O M E N T Á R IO : G E R A L

Sequência

Já v im o s q u e o s rela to s jo an in o s, p a rtic u la rm e n te a q u e le s q u e fo rm am
a s d iv is õ e s m a io re s n o L ivro d o s Sinais, te n d e m a o lh a r p a ra fren te e
p a ra trás; re s u m e m te m a s já v isto s e a n u n c ia m tem a s q u e se rã o trata-
d o s a d ia n te . E ste p a re c e se r o caso com o d isc u rso so b re a p o rta d a s
o v e lh a s e o p a s to r q u e , a in d a q u e n ão seja u m a d iv isã o m a io r d o livro,
te rm in a os d isc u rs o s d a festa d o s T a b e rn á c u lo s e in tro d u z o d isc u rso
d a festa d a D ed icação. C re m o s q u e ao se tere m em co n ta essa d u p la
o rie n ta ç ã o d o d isc u rso a ju d a a re so lv e r m u ito s d o s p ro b le m a s n a se-
q u ê n c ia q u e te m s e m p re p re o c u p a d o os c o m e n tarista s.
P rim e iro , p a re c e b e m c la ro q u e ele d e v e re la c io n a r-se co m o q u e
p r e c e d e u n o c a p ítu lo 9. N ã o se su g e re u m n o v o a u d itó rio ; e com o
o e v a n g e lh o o ra se e n c o n tra n ã o há ra z ã o p a ra c re r q u e Jesu s n ão
e stá c o n tin u a n d o s u a s o b se rv a ç õ e s re la tiv a s a o s fa rise u s d e q u e m
ele e s ta v a fa la n d o em 8,41. A liás, e m 10,21, d e p o is d e Je su s h a v e r
fa la d o s o b re a p o r ta d a s o v e lh a s e o p a s to r, se u a u d itó r io ev o ca o
e x e m p lo d o ceg o , e n q u a n to o u tro s re p e te m as a c u sa ç õ e s d e lo u c u ra
q u e o u v im o s la n ç a d a s so b re Je su s d u r a n te os d isc u rs o s n a festa d o s
T a b e rn á c u lo s .
T o d av ia, há d u a s objeções p rin cip ais so b re conectar este d iscu rso
d a p o rta d a s o v e lh a s e o p a sto r com o anterior, (a) Em 10,1-18 há u m a
m u d a n ç a a b ru p ta d e tem a. T o d o o tem a d o cap. 9 foi o d a luz; n ão h o u v e
66 4 O Livro d o s S inais

referên cia à im ag em d a s ovelhas q u e d o m in a em 10. Esta objeção tem


considerável força e p o d e significar q u e o e vangelista tem u n id o discur-
sos in d ep e n d e n te s, m as realm en te n a d a d iz contra o p o n to d e v ista d e
q u e o evangelista visava ao m esm o a u d itó rio p a ra cap. 10 com q u e ter-
m in o u o cap. 9. E, em b o ra a im agem ten h a m u d a d o , o tem a n o início d o
cap. 10 p arece ser u m a ta q u e às a u to rid a d e s (os ladrões e bandidos; a displi-
cência dos porteiros; os estranhos que não são conhecidos das ovelhas; os saltea-
dores), e este foi tam b ém o tem a n o final d o 9. D e fato, o ex em p lo d o cego
q u e se recu so u seg u ir a orientação d o s fariseus e se c o n v e rteu a Jesus
n ão é d iferen te d o exem plo d a s ovelhas em 10,4-5 q u e n ão se g u irã o u m
estran h o , m as reconhecem a voz d e seu v e rd a d e iro d ono. (b) A se g u n d a
objeção é d e n a tu re za cronológica. A festa d o s T ab ern ácu lo s ocorre em
s e te m b ro /o u tu b ro ; a festa d a D edicação, q u e é a p ró x im a indicação d e
tem p o (10,22), o corre em d ezem b ro . A ssim , o e v an g elh o p õ e u m e spaço
d e três m eses en tre os in cid en tes d o cap ítu lo 7 e os d o 10,22ss. (Pro-
v av elm en te so m o s justificados em p re s u m ir q u e o ev an g elista deseja
q u e co n clu am o s q u e as d u a s festas são n o m esm o ano). O ra, p o d e m o s
relacio n ar 10,1-21 com a festa d o s T ab ern ácu lo s q u e acontecia m ais
cedo, q u a n d o 10,26-27, q u e é claram en te d a ta d a na festa d a D edicação,
m enciona o tem a d a s ovelhas? E m o u tra s p alav ras, 10,26-27 p re ssu p õ e o
m esm o a u d itó rio d e 10,1-21. D ificilm ente isto é p lau sív el, se as p a la v ra s
em 10,1-21 fo ram p ro n u n c ia d a s m eses a n tes em o u tra festa. N ão o b stan -
te, esta objeção n ão é tão convincente com o p o d e ría p arecer a p rim eira
vista. T em os n o ta d o q u e, e n q u a n to 9 e 10,1-21 são p o sto s n o contexto
geral na festa d o s T abernáculos, estes cap ítu lo s n ão são tão so lid am en -
te v in cu lad o s à festa com o são os cap ítu lo s 7-8. (Ver p. 648). P o rtan to ,
m esm o q u e to m em o s literalm en te a p rese n te sequência, n a d a h á q u e
in d iq u e q u e o in cid en te em 9 e o d iscu rso e m 10,1-21 n ã o te n h a oco rrid o
entre a festa d o s T abernáculos e a festa d a D edicação, e p o rta n to n ã o ha-
via u m a sep aração d a s o bservações em 10,26-27 p o r três m eses. M ais im -
p o rtan te, d ev em o s d a r a este p ro b le m a a m esm a resp o sta q u e d e m o s à
lacuna q u e se p aro u c ap ítu lo s 5 e 7, o n d e u m an o d e p o is (de aco rd o com
a cronologia d o evangelho) Jesus estav a ain d a falan d o so b re a c u ra d o
paralítico n o sáb ad o (7,21-23 em referência ao cap ítu lo 5). O evangelista
não p arece ter-se p re o c u p a d o com os p ro b le m as d e com o o au d itó rio ,
o u v in d o Jesus, teria conhecim ento d a ação o u p a la v ras anteriores.
S e g u n d o , 10,1-21 a p o n ta p a ra fre n te e se rv e d e tra n siç ã o à festa
d a D ed icação , co m o e x ib id o p e la relação d e 10,1-21 co m 26-27, recém
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 6 65

m e n c io n a d a acim a. Bruns, art. cit., tem a rg u m e n ta d o com m u ita solidez


p a ra v e r a s im p licações d a festa d a D edicação n o d iscu rso so b re a p o rta
d a s o v e lh a s e o p a sto r (em bora tal a rg u m e n to vá longe d em ais disso-
c ia n d o o d isc u rso d o c a p ítu lo 10 d o s tem as d a festa d o s T abernáculos).
O e v e n to h istó rico d a n o v a d ed icação d o tem p lo p o r Ju d a s M acabeus
(n o ta ab aix o so b re v. 22), q u e se c o m em o rav a n a q u e la festa, q u e era
u m a a d v e rtên c ia ao s su m o s sacerd o tes, com o Jason e M en elau , q u e ha-
v iam tra íd o seu ofício, c o n trib u in d o p a ra a p ro fan ação síria d o santo
lu g ar. P o d e ria m ser a lu d id o s a eles as referências aos ladrões, salteado-
res e m erc en á rio s q u e tra íra m o reb an h o . A lém d o m ais, Miss G uilding,
p p . 129-32, tem m o stra d o q u e, se sua in te rp re ta ç ã o d o ciclo d a s leituras
n a sin a g o g a for co rreta, to d as as leitu ras reg u la re s ao sá b ad o m ais fam i-
lia riz a d a s com [a festa da] D edicação se p re o c u p a v a m com o tem a d as
o v e lh a s e os p asto res. Em p a rticu la r, Ez 34, q ue, com o v erem os, é a m ais
im p o rta n te e c o n stitu i a p a ssa g e m d o AT q u e serve d e p a n o d e fu n d o
p a ra Jo 10, serv ia com o a haphtarah ou leitu ra profética no m o m e n to da
festa d a D ed icação n o s e g u n d o an o d o ciclo.
Se esta in terp retação da d u p la função d e 10,1-21 for correta, então
dificilm ente p o d e m o s crer q u e sua posição com o u m nexo entre a fes-
ta d o s T ab em ácu lo s e a festa d a D edicação seja m eram ente casual. Q ue
u m a ab o rd ag em " o u /o u " em decidir a relação desta passagem em João
com as d u a s festas m encionadas em seu contexto p o d e ser equivocada,
é su g erid a p elo fato d e q u e os p ró p rio s ju d eu s relacionavam as d u as
festas. Para eles, a festa da D edicação era outra festa d os T abem áculos,
só celebrada n o m ês d e C hislev (2Mc 1,9). A lém do m ais, nossa inter-
pretação exclui as n u m ero sas reorganizações d o capítulo 10, endossa-
d a p o r estu d io so s com o M offatt, Bernard, E. Schweizer, W ikenhauser,
Bultmann, to dos destin ad o s a d a r u m a "m elhor" sequência cronológi-
ca e lógica. Bernard, p o r exem plo, p ro p õ e esta ordem : caps. 9, 10,19-29;
10,1-18; 10,30-39 - u m a tese q u e p ressu p õ e q u e 10,19-29 constituía um a
p ág in a d o m an u scrito d e João que acidentalm ente saiu d a ordem . Esse
rearranjo traz a m enção d o cego em 10,21 p ara m ais p erto d o capítulo
9, e coloca o d iscurso sobre a p o rta d as ovelhas e d o p asto r após a in-
dicação d e tem p o sobre a festa d a D edicação em 10,22. A reconstrução
d e Bultmann é m ais elaborada; ele e x p an d e as observações qu e Jesus
faz d o s fariseus em 9,39-41, ad icio n an d o versículos d e 8 e 12, e então usa
10,19-21 com o a conclusão destas observações. A o rd em d e Bultmann
p a ra o resto d o capítulo 10 é: 22-26; 11-13; 1-10; 14-18; 27-30; 31-39.
666 O Livro d o s Sinais

E m bora tal reo rd en ação contribua p a ra facilitar a sequência, o subjetivis-


m o q u e as g o v ern a é u m sério inconveniente. A o an alisarm o s a e stru tu ra
d e p aráb o las e a explicação, verem os abaixo q u e Bultmann viola o p lan o
d elib erad o q u e g uia 10,1-21. A ssim , concordam os com D odd, F euillet,
Schneider, en tre outros, em aceitar a p resen te o rd em em João com o u m
arranjo p ro p o sital e não u m p ro d u to d e acidente o u u m a confusão.

Parábola e alegoria

H á u m a d iscussão e n tre os estu d io so s q u a n to a se d e v a m o s falar


d e p aráb o la o u alegoria (ou am bas) em Jo 10. A d istin ção e n tre parábola
(um a ilu stração sim ples, o u história ilu strativ a ten d o u m p o n to singu-
lar) e alegoria (u m a série e x p a n d id a d e m etáforas o n d e os v ário s d e ta lh es
e p esso as e n v o lv id as têm to d o s estes u m significado figurativo) foram
p ro p o sta s com o b ase d a exegese crítica d a s p a rá b o las feitas p o r A. J üli-
cher n o final d o ú ltim o século. Jülicher afirm av a q u e alegoria era u m
recurso artificial e literário, e n u n ca foi u sa d a p o r u m p re g a d o r rú stico
com o Jesus q u e falava p o r p a rá b o las sim ples. O s exegetas cristãos foram
aqueles q u e in te rp re ta ra m as p aráb o las d e Jesus m in u c io sa m en te com o
se fossem alegorias. A ssim , p o r exem plo, a explicação d a P aráb o la d o
S em ead o r (Mc 4,13-20), q u e d á u m a in terp retação d a sem en te, as aves
e os solos etc., é u m a alegorização q u e tem su a o rig em n o C ristian ism o
prim itiv o , e n ão n o p ró p rio Jesus. J ülicher traçou este p rocesso d a alego-
rização até a era patrística, o n d e ser to m o u realm en te m u ito elab o rad a.
Em " Parable and Allegory Reconsidered", N ovT 5 (1962), 36-45 (ΝΤΕ,
Ch. xiii), tem o s te n ta d o m o stra r q u e , e m b o ra a teo ria d e J ülicher con-
tin u e ter u m g ra n d e n ú m e ro d e se g u id o re s, n a v e rd a d e é faz e r u m a
g ro sseira sim p lificação. J ülicher e sta v a certo em re s s a lta r os p e rig o s
d a a leg o rização e x a g e ra d a n a ex eg ese p a trístic a , m a s e sta v a e rra d o
em e x tra ir u m a a b so lu ta d istin ç ã o e n tre p a rá b o la e a le g o ria n a p ró p ria
p reg a ç ã o d e Jesus. M. H ermaniuk, La parabole évangélique (L o u v ain ,
1947), tem m o s tra d o q u e a d istin ç ã o e n tre p a rá b o la e a le g o ria , o riu n -
d a d a s p rec isõ es d a in stru ç ã o retó ric a g reg a , n ã o tin h a fu n d a m e n to
n o p e n s a m e n to hebraico; p o is o ú n ico te rm o h e b ra ic o básico, rnãsãl,
co b ria to d a s as ilu stra ç õ es fig u ra tiv as: p a rá b o la , a le g o ria , p ro v é rb io ,
m áx im a, sím ile, m etá fo ra etc. U m a sim p le s a le g o ria e sta v a d e n tro
d a categ o ria p la u sív e l d a p re g a ç ã o d e Jesu s, co m o p o d e m o s v e r d o s
ex em p lo s c o n te m p o râ n e o d e Q u m ra n e o rab ín ico . U m Je su s q u e falou
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 667

u n ic a m e n te u tiliz a n d o o q u e m o d e rn a m e n te se e n te n d e p o r p a rá b o la
é u m a criação d a crítica d o sécu lo 19.
V o ltan d o à q u e stã o d e p a rá b o la e alegoria em Jo 10, esp eram o s
m o stra r ab aix o q u e 10,1-5 consiste d e v árias p aráb o las, en q u a n to
10,7ss. co n siste d e explicações alegóricas. Este ú ltim o asp ecto n ão é u m
in d ício a priori d e q u e o m aterial n ã o p o d ia ter v in d o d o p ró p rio Jesus.
C o m o v erem o s, alg o d o m aterial em 10,7ss. p o d e re p re se n ta r u m a ex-
p a n s ã o p o ste rio r d a s o bservações d e Jesus. T am bém nos evangelhos
sinóticos, a m aio ria d o s e stu d io so s reconhece q u e n as explicações das
p a rá b o la s (p. ex., M c 4,13-20; M t 13,37-43) tem h a v id o certa ex p an são
n o s in teresses d a cateq u ese cristã p rim itiv a; m as, com o tem os tenta-
d o p ro v a r em n o sso artig o su p ra c ita d o , sob esta am p liação e aplicação
cateq u éticas se e n co n tra vestígios d e u m a explicação q u e p o d e m u ito
b e m o rig in ar-se d o p ró p rio Jesus. A ssim tam b é m em Jo 10, en q u an -
to q u e n e m to d a a explicação d e 7ss. n ecessariam en te v en h a d e um a
ép o ca o u d e u m a situação, n ão há raz ã o p a ra excluir a p o ssib ilid ad e
d e q u e p o d e m o s e n c o n tra r e n tre eles os traços d a p ró p ria expücação
aleg ó rica sim p les d e Jesus d a s p a rá b o las em 10,1-5. É im p o rta n te n o tar
com Schneider, art. cit., q u e as explicações são c e n trad a s em três term os
q u e a p a re c em n a s p a rá b o las d o s vs. 1-5: (a) a p o rta é e xplicada em 7-10;
(b) o p a s to r é ex p licad o em 11-18; (c) as o v elh as são explicadas em 26-30.
O reco n h ecim en to d e ste p la n o no cap ítu lo 10 é o fator decisivo que,
com o vim o s, m ilita co n tra a reo rg an ização d o s versículos. U m m o d o
efetivo d e v e r q u e tem os u m a sim ples alegoria na explicação d as pará-
b o las é c o n tra sta r o q u e lem os n o e v an g elh o sobre a p o rta, o p a sto r e as
o v elh as com as e lab o rad as alegorias p atrísticas c o n stru íd a s em torno de
Jo 10 (ver Q u asten , art. cit.). C ornelius Lapide, q u e reflete a exegese pa-
trística n o 17“ século, n os inform a q u e 0 rebanho é a Igreja, 0 proprietário
d o reb a n h o é o Pai, a porta das ovelhas é o E spírito Santo etc. Este tipo de
alegoria é o q u e resu ltaria em u m an acro n ism o nos lábios d e Jesus.

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Versículos 1-5: A(s) parábola(s)

C erfaux, art. cit., tem d e sta c a d o q u e as im a g e n s e n c o n tra d a s nestes


v ersícu lo s a p a re c e m com freq u ên cia n o s sinóticos. M c 6,34 co m p ara
668 O Livro d o s S in ais

as m u ltid õ e s q u e v ã o o u v ir Jesu s com as o v e lh a s se m p a sto r. Jesu s


ataca a falta d e p re o c u p a ç ão d o s fariseus p elo s p ro scrito s com a p a rá -
bola d a O v elh a P e rd id a em Lc 1 5 ,3 7 ‫־‬. A ssim , ao u s a r Jesus a im a g e m d o
p asto reio , e te n d o em tais p a rá b o las c o n tin u a d o as o b serv açõ es d irig i-
d as aos fariseu s em 9,41, o q u a rto ev an g elista está se n d o ex tre m a m en -
te fiel ao q u a d ro trad icio n al d o m in istério d e Jesus. É ta m b é m d ig n o
d e n o ta q u e estas p a rá b o las e m João se relacio n am com o tem a d o s q u e
não podem ver em 9,40, e n q u a n to a p rim e ira p a rá b o la em M arcos ilu stra
q u e a lg u n s p o d e m v e r com se u s olhos, p o ré m rea lm e n te não percebem
(4,12 e par.). A ssim , a falta d e sequência fre q u e n te m en te e n fa tiz a d a
e n tre Jo 9 e 10 n ã o é tão óbvia com o a p rin c íp io p o d e ría p arecer.
(a) O p o n to central d a p aráb o la em 10,l-3a é relativ am en te claro: há
u m m o d o p ró p rio d e apro x im ar-se d a s ovelhas, a saber, a trav és d a p o rta
aberta pelo p orteiro. Q u a lq u e r o u tra aproxim ação é m al in ten cio n ad a.
O s vs. 1 e 2 m en cio nam e n tra r p ela porta; o v. 3a é a p rim e ira m en ção d o
guarda. O 'R ourke, art. cit., q u e r v er a q u i d u a s p a rá b o las d istin tas; m as
ele baseia seu ju lg am en to n u m a aplicação excessivam ente rigorosa d o
princípio d e q u e to d as as p aráb o las p o d e m ser re d u z id a s a d o is term o s
d e com paração. John A. T. R obinson, art. cit., trata l-3 a com o u m a ún ica
parábola, p o rém centra a im ag em e m to rn o d o p o rteiro d a p o rta . Ele n os
lem bra as p assag en s sinóticas o n d e Jesus u sa am b as as im ag en s, d o p o r-
teiro d a p o rta (Mc 13,34) e a im agem d a v in d a d e u m lad rã o (Lc 12,39)
a fim d e inculcar vigilância. R ecorrendo a estas co m parações, R obinson
p en sa q u e a p aráb o la em João constitui u m a ad v ertên cia às a u to rid a d e s
q u e c u m p ra m seu p ap el com o sentinelas d o p o v o d e D eus, u m tem a fre-
q u en te d o A T (Jr 5,17; Ez 3,17; Is 62,6). Esta a d v ertên cia c o n tém u m m atiz
d e u rgência escatológica, u m a u rg ên cia q u e é expressa em o u tro lu g ar
no N T em term o s d o ju lg am en to q u e está às p o rta s (Mc 13,29; A p 3,20).
M uito e m b o ra esta in te rp re ta ç ã o d a p a ráb o la seja p o ssív el, p arece
q u e os vs. 1 e 2 d ã o m ais ên fase à p o rta d o q u e R obinson o a d m ite .
(O artigo d e Robinson seria m odificado pelas observações d e P. M eyer,
art. cit.). A ex p licação d a p a rá b o la em 7-10 ta m b é m in d ic a ria q u e o p o n -
to c e n tral n a p a rá b o la é o d e e n tra r p e la p o rta . Se este é o caso, o a ta q u e
ao s fariseu s n ão é ta n to em term o s d e n ã o se re m p o rte iro s v ig ila n te s
(3a), q u a n to em term o s d e se re m eles la d rõ e s e sa lte a d o re s q u e n ã o se
a p ro x im a m d a s o v e lh a s p e la p o rta . O fato d e q u e a festa d a D ed icação
(im in en te, p a re c e ría à lu z d e 10,22) p o d e ria tra z e r à m e n te o ex e m p lo
dos m au s su m o s sacerdotes d os dias d os M acabeus qu e eram v erdadeiros
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 669

la d rõ e s e s a lte a d o re s su g e re q u e Jesu s p re te n d ia in clu ir em su as


o b se rv a ç õ e s os sa d u c e u s ju n ta m e n te com os fariseus. Em Mc 11,17-18
a m b o s, sa c e rd o te s e escrib as, o u v ira m a acu sa ç ã o d e Jesus d e q u e a
casa d e D e u s e sta v a se c o n v e rte n d o em covil d e ladrões.
(b ) Em 3b-5 a e stre ita relação e n tre as o v e lh a s e o p a sto r está m ais
em foco d o q u e em l-3a. A qui se p o d e su g erir u m rico p a n o d e fu n d o
v e te ro te s ta m e n tá rio . A fig u ra d o v e rd a d e iro p a s to r d o re b a n h o qu e
c o n d u z as o v e lh a s à p a sta g e m n o s lem b ra a d escrição sim bólica d e
Jo su é (q u e p o rta o m esm o n o m e h e b ra ico Jesus) em N m 27,16-17:
" D e u s d o s e s p írito s d e to d a a carn e, p o n h a u m h o m e m so b re a con-
g re g a ç ã o [LXX sy n ag og ê ], q u e saia d ia n te d eles, e q u e e n tre d ian te
d e le s, e q u e os faça e n tra r; p a ra q u e a c o n g re g a ç ão d o S E N H O R não
seja co m o o v e lh a s q u e n ã o têm p a s to r" (ver tam b é m M q 2,12-13). Po-
d e m o s n o ta r d e p a ssa g e m q u e Bruns, p p . 388-89, vê n a p a ssa g e m de
N ú m e ro s u m eco d a o rd e n a ç ã o e d o id eal sacerd o tais; su a observação
seria p ro c e d e n te , d a ria o u tra raz ã o p a ra p e n s a r q u e Jesus, estava nes-
tas p a rá b o la s, a ta c a n d o os sa ce rd o te s tan to q u a n to os fariseus. Q u e Je-
su s p e n s a v a em seu m in isté rio e m term o s d e sta p a ssa g e m d e N ú m e ro s
é s u g e rid o p o r M c 6,34, o n d e ele se n te co m p aix ão d a s m u ltid õ e s qu e
fo ram a ele em ra z ã o d e serem co m o o v e lh a s sem u m p asto r.
H á b o n s p a ra le lo s sin ó tico s q u e e m p re g a m a im a g e m d o c u id a d o
d e u m p a s to r p o r su a s o v e lh a s p a ra d e sc re v e r a relação d e Jesus p a ra
co m se u s s e g u id o re s (M t 26,31; Lc 12,32, " p e q u e n o reb a n h o "). D odd ,
Tradition, p. 384, ressa lta q u e o c o n h e cim e n to in d iv id u a l q u e o p a sto r
tem d a s o v e lh a s, q u a n d o as c h a m a u m a a u m a (Jo 10,3b), é m u ito se-
m e lh a n te ao c u id a d o in d iv id u a l p a ra com as o v elh as, ex em p lificad o
n a P a ráb o la d a O v elh a P e rd id a (Lc 15,3-7).
O s v e rsíc u lo s 3b-5 c o n stitu e m u m a p a rá b o la se p a ra d a , o u d e v e m
ser u n id a s a l-3 a co m o u m a p a rá b o la c o n tín u a ? O fato d e q u e os fari-
se u s (e os sa cerd o tes?) são a g o ra a ta c a d o s co m o p a sto re s q u e são es-
tra n h o s ao re b a n h o , e m v e z d e se re m la d rõ e s e sa lte a d o re s (ou com o
os p o rte iro s d isp lice n tes) d e l-3 a , su g e re q u e tem o s o u tra p aráb o la.
A ssim , é p o ssív e l q u e 1-5 c o n sistam d e p a rá b o la s g ê m e a s - u m aspec-
to ra z o a v e lm e n te c o m u m n a tra d iç ã o sin ó tica, p. ex., Lc 15,3-10 (ovelha
perdida; moeda perdida ); 14,28-32 (homem que constrói uma torre; rei que
vai à guerra). A a firm a ç ão d e q u e as o v e lh a s n ã o se g u irã o p a sto re s
cujas v o z e s lh es são e s tra n h a s seria u m a ta q u e p a rtic u la rm e n te eficaz
ao s farise u s d o c a p ítu lo 9, cujas a d m o e sta ç õ e s o cego rejeitou.
670 O Livro d o s S inais

Versículo 6: A reação

Q u e a reação à(s) p a rá b o la(s) é u m a in c a p a c id a d e d e c o m p re e n -


são, n ão s u rp re e n d e , p o is a u sên c ia se m e lh a n te d e c o m p re e n sã o se en-
c o n tra n a s p a rá b o la s na tra d iç ã o sin ó tica (Mc 4,13). A in c a p a c id a d e
d e c o m p re e n sã o lev a Jesu s a ex p licar esta(s) p a rá b o la(s) d a p o rta e d o
p a sto r, p re c isa m e n te co m o o lev o u a ex p licar a P a ráb o la d o S e m e a d o r
na tra d içã o sin ó tica. Essa in c a p a c id a d e n ã o c o n stitu i p rim a ria m e n te
u m p ro b le m a in telectu al; é u m a in d isp o siç ã o d e r e s p o n d e r ao d e sa-
fio im p lícito n a s p a rá b o la s. N o s e v a n g e lh o s sin ó tico s, esse d e sa fio é
c e n tra d o e m to rn o d o re in o d o s céus; em João, é c e n tra d o e m to rn o d o
p ró p rio Jesus. A fam iliar frase sin ó tica, "o re in o d o céu é se m e lh a n -
te"..., tem seu p a ra le lo jo a n in o e m "E u so u [egõ e im i ]" ... (10,7.9.11.14).

Versículos 7-10: Explicação da porta

V alen d o -se d a im a g e m d a p a rá b o la n o s vs. l-3 a , Jesu s e n tã o ex-


plica: "E u s o u a p o rta " . E n tre ta n to , esta id en tifica ç ã o m eta fó ric a é
p assív el a o m e n o s d e d u a s d ife re n te s in te rp re ta ç õ e s.
(a) A p rim e ira in te rp re ta ç ã o , e n c o n tra d a n o v. 8, v ê Je su s c o m o a
p o rta p e la q u a l o p a s to r se a p ro x im a d a s o v elh as. E sta in te rp re ta ç ã o se
a p ro x im a m u ito d a p ró p ria p a rá b o la , p o is u m a v ez m a is o u v im o s d o s
lad rõ e s e b a n d id o s q u e e v ita m a p o rta . A a firm a ç ão , "T o d o s q u a n to s
v ie ra m [an tes d e m im ] são la d rõ e s e b a n d id o s " , e sta ria se r e p o rta n d o
aos farise u s (e ao s sa ce rd o te s) d o s d ia s d e Jesus? Bultmann , p. 2864,
n eg a isto, p o is ele in siste q u e a v in d a re fe rid a seria u m a v in d a esca-
tológica e m u m d o s g ra n d e s m o m e n to s d a salvação. Ele p e n s a q u e na
fo n te g n ó stica q u e ele p ro p õ e p a ra João, esta e ra u m a c o n d e n a ç ã o d e
M oisés e d o s p ro fe tas, m as q u e n o e v a n g e lh o ela p o d e ria te r sid o rea-
p licad a ao s s a lv a d o re s d iv in o s d o m u n d o h e le n ista . O u tro s e stu d io so s
v eem u m a referên cia ao s falsos m essias d o s d ia s d e Jesu s, o u a in d a ao
M estre d e Ju stiça d e Q u m ra n . E v e rd a d e q u e , a n te s d e Jesu s, h o u v e
u m a série d e s u p o sto s lib e rta d o re s n a c io n a is (Josefo, Ant. 17.10.4-8;
269-84), m a s n ã o tem o s c erteza se re iv in d ic a v a m se r m essias. N ão
o b stan te, o term o lestes, " sa lte a d o r" , c e rta m e n te se a d e q u a ria a tais
in su rreic io n ista s (ver H. G. W ood , NTS 2 [1956], 265-66). E stas su-
g estõ es são in te ressa n te s; em n o ssa o p in iã o , p o ré m , os farise u s e sa-
d u c e u s p e rm a n e c e m os alv o s m ais p ro v á v e is ao s a ta q u e s d e Jesus.
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 671

A d e s d ito s a su c essã o d e líd e res sa ce rd o ta is e p o lítico s d o s d ias d os


M a ca b e u s a té os d ia s d o p ró p rio Jesus c e rta m e n te p o d e ria ser caracte-
riz a d o s c o m o falsos p a sto re s, la d rõ e s e sa lte a d o re s q u e v iera m an tes
d e Jesu s. E os fa rise u s tin h a m ta m b é m se in filtra d o n o p o d e r político
q u e se d ig la d ia v a m n o s p e río d o s h a sm o n e u s e h e ro d ia n o s. A forte
lin g u a g e m u s a d a n e sta ex p licação d a p a rá b o la p o d e m u ito b e m ser
c o m p a ra d a à q u e la d e M t 23, o n d e Jesus ataca o in ju sto exercício d e
a u to r id a d e so b re o p o v o p e lo s e scrib as e fariseus.
( b) A s e g u n d a in te rp re ta ç ã o d e Jesus com o a p o rta se e n co n tra nos
vs. 9-10. A q u i ele é a p o rta a b rin d o p a ssa g e m p a ra a salvação, u m a
p o rta , n ã o p a ra o p a sto r, e sim p a ra as o velhas. T odos teriam q u e pas-
sa r p e la p o rta , q u e é Jesus, a fim d e serem salvos; ele veio (10) p ara
tra z e r v id a às o velhas. Esta explicação tem p o u c o a v e r com a p a rá -
b o la d e l-3 a , e p o d e m o s ter a q u i u m d ito d e Jesus a d a p ta d o d e ou-
tro co n tex to . Se o v. 10 for c o n sid e ra d o u m d ito iso lad o , su a estru -
tu ra é m u ito se m e lh a n te ao d e Mc 2,17. A ideia no v. 10 lem b ra a de
Jo 14,6: "E u s o u o cam inho... n in g u é m v e m ao Pai se n ão p o r m im "
(v er ta m b é m A p 3,7-8). A id eia d e p o rta d a salv ação se en co n tra
e m SI 118,20: "E sta é a p o rta d o S enhor; os ju sto s p a ssa rã o p o r ela".
N o fim d o I a sécu lo d.C ., o m esm o p e río d o em q u e a form a final
d o e v a n g e lh o e sta v a se n d o escrita, C lemente d e R om a (1 Coríntios
48,3) já e sta v a a p lic a n d o a Jesus este v ersícu lo d o salm o. A liás, n ão é
tão im p ro v á v e l q u e Jesus u sa sse este salm o p a ra in te rp re ta r seu m i-
n isté rio , v isto q u e a tra d içã o sinótica o tem e m p re g a n d o o u tra com pa-
ração d o m esm o salm o (SI 118,22, "A p e d ra q u e os c o n stru to re s rejei-
ta ra m v eio a ser a p rin c ip al p e d ra d e e sq u in a " , c ita d o e m M c 12,10 e
p ar.). T o d o s os e v a n g elh o s associam o SI 118,26, "B endito aq u e le q u e
e n tra e m n o m e d o S e n h o r", com a e n tra d a d e Jesus e m Jerusalém .
E sta in te rp re ta ç ã o d e Jesu s co m o a p o rta p a ra a salv ação faz seu
a p a re c im e n to m u ito c e d o na ex eg ese p a trístic a , p o is I nácio ( Phila
9,1) d iz: "E le é a p o rta [thyra , co m o em João e A p o calip se] d o Pai,
p e la q u a l e n tra ra m A b ra ã o e Isa q u e e Jacó e os P ro fetas e A p ó sto lo s
e a Ig reja". A referên cia às fig u ra s v e te ro te sta m e n tá ria s p o d e ria ser
a fo rm a d e I nácio c o n to rn a r a d ific u ld a d e d a rad ic al c o n d e n aç ã o de
" to d o s os q u e v ie ra m a n te s d e le " em Jo 10,8. H á em M t 7,13 u m p a ra -
leio co m a im a g e m jo an in a d a p o rta p a ra a salv ação , o n d e Jesus fala
d a p o rta o u p o rtã o ipylê) e stre ito q u e c o n d u z à salvação. O Pastor de
Her mas (S im ilitu d e 9, 12:3-6), 2a século, p a re c e co n ju lg a r a im ag em
672 O L ivro d o s S inais

jo an in a e sinótica: a p o rta [pylê] p a ra o rein o d e D eu s é o F ilho d e


D eus; n in g u é m p o d e e n tra r d e o u tro m o d o se n ão a tra v é s d o Filho.
In te rp re ta m o s o tem a no v. 9 q u e, os q u e e n tra m e saem p e la p o rta ,
q u e é Jesus, en c o n tram p astag em . Já o u v im o s p re v ia m e n te q u e Jesus
fornece a ág u a v iva e o p ã o d a v id a; ag o ra ele oferece a p a sta g e m d a
v id a, p o is o v. 10 deixa claro que, ao falar d e p a sta g e m , ele rea lm e n te
está falan d o d a p le n itu d e d a v id a. Este d o m d a v id a é o p o sto à m ata n ça
q u e é asso ciad a com o ladrão. (N o d isc u rso d a festa d o s T a b e m á c u lo s
em 8,44, o u v im o s q u e o d iab o é u m h om icida, assim a o p o sição e n tre
o lad rã o e o p a s to r é u m reflexo d a o posição e n tre S atan ás e Jesus).
O lad rã o v em para destruir; em 3,16, Jesus disse q u e D eu s d e u o ú n ico
Filho p a ra q u e to d o a q u e le q u e n ele crê não seja destruído, m a s te n h a a
v id a e tern a (tam b ém 6,39). U m a vez q u e tu d o in d ica q u e os vs. 8 e 9-10
co n stitu em d u a s d iferen tes explicações d e Jesus co m o a p o rta (com 8
sen d o m ais p a re c id o com a p a rá b o la d e l-3a), n ão tem o s q u e p e n s a r
q u e os lad rõ es e b a n d id o s d o 8 (e 1), aos q u a is id en tificam o s co m o os
fariseu s e os sacerdotes, n ecessariam en te eles são o m esm o la d rã o d o
10. O lad rã o d o 10, q u e só v em p a ra ro u b a r, m a ta r e d e stru ir, p arece
m ais com "aq u ele q u e v em e m seu p ró p rio n o m e " d e 5,43, isto é, u m
rep re sen ta n te g eral d a s trevas q u e se c o n stitu i u m rival d o Filho. Este
é u m ex em p lo d a ten d ên cia d e os in im ig o s históricos d o m in isté rio d e
Jesus se to rn a rem p ersonificações d o m al, q u a n d o a m e n sa g e m e v an g é-
lica for p re g a d a em u m p e río d o p o ste rio r n u m a escala m u n d ia l.

Versículos 11-16: Explicação do pastor

A p rim e ira p a rá b o la n o s vs. l-3 a se re fe re ao m o d o d e a p ro -


x im ar-se d a s o v elh as; p o rta n to , su a ex p licação se refe re a p o rta .
A s e g u n d a p a rá b o la e m 3b-5 tra ta d a relação e n tre p a s to r e o v elh as;
p o rta n to , su a ex p licação se refere ao p a sto r. P re c isa m e n te c o m o ti-
v e m o s d u a s in te rp re ta ç õ e s d e "E u so u a p o rta " (7, 9), c a d a u m a com
n u a n ç a d ife ren te , assim tem o s d u a s in te rp re ta ç õ e s d a a firm a ç ã o "E u
sou o b o m p a s to r" (1 1,14), cad a u m a com su a p ró p ria n u a n ç a . O re-
c o n h e cim e n to d e q u e c a d a u m a d a s p a rá b o la s te m s u a p ró p ria ex-
plicação, e q u e as p ró p ria s ex p licaçõ es se g u e m d ife re n te s d ireçõ es,
n o s livra d a so lu ção p a trístic a p o r d e m a is sim p les, a q u a l faria u m a
c o n sisten te aleg o ria d e to d o s estes tem a s e teria Jesu s co m o , resp e c ti-
v a m e n te, a p o rta e o p a s to r ao m esm o tem p o .
35 · O clím ax da festa d os tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 673

(a) N a p rim e ira in te rp re ta ç ã o , e n c o n tra d a n o s vs. 11-13, Jesus é o


b o m p a s to r o u m o d e lo , p o rq u e ele está d isp o sto a m o rre r p a ra p ro te-
g e r s u a s o v e lh a s. O tem a d e m o rre r p e la s o v e lh a s a p a re c e m ais a b ru p -
ta m e n te , p o is n a p a rá b o la n a d a d isto é in sin u a d o . (M eyer, p. 234, p en -
sa q u e a p o rta d e 7-10 n ã o é ta n to a p e sso a d e Jesus q u a n to su a m o rte,
p o is isso é o q u e tra rá v id a às o v e lh a s [ver 12,24], Este p o n to d e vista,
a tra e n te co m o é, p a re c e ir a lém d o texto). A associação d a m o rte com
s e r p a s to r se e n c o n tra em o u tro s d ito s a trib u íd o s a Jesus (Mc 14,27;
Jo 21,15-19). A p a rá b o la sin ó tica d a O v e lh a P e rd id a re tra ta a p reo cu -
p a ç ã o q u e u m p a s to r e n fre n ta rá p o r u m a o v e lh a p e rd id a ; o d ito de
João n o v. 11 e s te n d e o risco d o p a s to r m esm o ao p o n to d e m orte.
N o s vs. 12-13 d e sta p e q u e n a cena, a p a re c e m d o is n o v o s perso -
n a g e n s: o m e rc e n á rio e o lobo. V isto q u e e sta s fig u ra s n ã o a p arecem
n a s p a rá b o la s d e 1-5, p a re c e ría q u e a in te rp re ta ç ã o d e "E u so u o b om
p a s to r" , e m 11-13, re a lm e n te tem feito u so d e u m a n o v a p a rá b o la. Se
e sta p a rá b o la é ta m b é m u m a ta q u e c o n tra os fariseu s, ag o ra são re-
p re s e n ta d o s p e lo p a s to r m e rc e n á rio q u e tra i seu reb a n h o . A im ag em
d o lo b o a p a re c e em M c 10,16: "E u v o s e n v io co m o o v e lh a s no m eio de
lo b o s". O sim b o lism o d o p a s to r p ro te g e n d o seu re b a n h o d o s lobos se
to rn o u tra d ic io n a l n a Igreja p rim itiv a . Em A t 20,28-29, P a u lo in stru i
o s a n c iã o s o u b isp o s d e Efeso a a p a sc e n ta r seu re b a n h o , p o rq u e lobos
fero zes e s ta v a m v in d o , os q u a is n ã o p o u p a ria m as o v elh as. O p arale-
lism o co m a p a rá b o la d e João é d u p la m e n te in te re ssa n te , se João foi
escrito e m Éfeso. V er ta m b é m l P d 2,25; 5,1-2.
(b) N a s e g u n d a in te rp re ta ç ã o , e n c o n tra d a n os vs. 14-16, Jesus é o
b o m p a s to r p o rq u e c o n h ece in tim a m e n te s u a s o v e lh a s, (o v. 15, co n tu -
d o , m o stra q u e o tem a d e m o rte n ã o e stá esq u ecid o ). V isto q u e a ín tim a
relação e n tre o v e lh a s e p a s to r é o tem a d a p a rá b o la o rig in a l em 3b-5,
e sta in te rp re ta ç ã o d e Jesu s co m o o p a s to r é m u ito m ais se m e lh an te
a u m a ex p licação d a p a rá b o la d o q u e a in te rp re ta ç ã o e n c o n tra d a em
11-13. Q u e Jesus co n h ece n o m in a lm e n te s u a s o v e lh a s (3b) e q u e elas
re c o n h e c e m su a v o z (4) é c o m e n ta d o n o v. 14: "C o n h e ç o m in h a s ove-
lh a s e ela s m e co n h e ce m ". O ín tim o c o n h e cim e n to q u e D eu s tem d e
S eu p o v o é p ro c la m a d o n o A T (p. ex., N a 1,7) e n o N T (IC o r 8,3; G14,9;
2 T m 2,19). V isto q u e a a tiv id a d e d e Jesu s é se m p re e sp e lh a d a na d o Pai
(Jo 8,28), n ã o ficam o s su rp re s o s q u e ele p o ssu a ín tim o co n h ecim en to
d e s e u s se g u id o re s. O v. 16 e n fa tiz a q u e o p ro p ó sito d e ste conheci-
m e n to é m a n te r e stes se g u id o re s em u n iã o m ú tu a (e, n a tu ra lm e n te ,
674 O L ivro d o s S in ais

com Jesus e seu P ai -17,21). Q u e há o u tra s o v elh as q u e n ão p e rte n ce m ao


aprisco in tro d u z o tem a d a m issão e n tre os gentios (ver tam b é m 11,52).
A q u e stã o d a m issã o cristã e n tre os g e n tio s era a lg o c a n d e n te n o
seio d a Igreja p rim itiv a e fazem o s b e m e m p e rg u n ta r se e sta m o s tra-
tan d o , n o v. 16, com u m tem a d o p ró p rio m in isté rio d e Je su s o u u m
tem a in tro d u z id o p o s te rio rm e n te p e lo s teó lo g o s cristão s. E ste é u m
p ro b le m a crítico co m p lex o , d isc u tid o e x c ele n te m en te p o r J. J eremias,
Jesus' Promise to the Nations (L ondres: SCM , 1958). É v e rd a d e q u e a
Igreja só c h e g o u a u m a d e c isã o a firm a tiv a so b re su a m issã o e n tre os
g en tio s d e p o is d e lab o rio sa c o n sid e ra ç ã o e d e p o is d e m u ita o p o sição .
E n tre tan to , é u m a e x a g e ra d a sim p lificação a le g a r q u e e sta s in d icaçõ es
d e lu ta e d ú v id a to rn a im p o ssív e l q u a lq u e r o rie n taç ã o d o p ró p rio Je-
su s so b re o tem a. T o d as as trad içõ es ev an g élicas in c lu e m afirm açõ es
d e Jesus p e rtin e n te s à c o n v e rsã o d o s g e n tio s (p. ex., M t 8,11; M c 11,17;
a lg u m a s d a s p a rá b o las), e n ã o é fácil ex p licar tu d o n e ssa s afirm a ç õ es
com o co m p o siçõ es p o sterio res. U m a so lu ção p la u sív e l é q u e só len ta-
m en te a Igreja c h eg o u a c o m p re e n d e r o teo r d e sse s d ito s fig u ra tiv o s
d e Jesus p e rtin e n te s a o s g en tio s - d ito s q u e, p o r serem fig u ra tiv o s, n ã o
foram c o m p re e n d id o s n o te m p o d e su a en u n ciação . O ra, p o r c erto q u e
n esse p ro cesso d e c o m p re en sã o as afirm açõ es d e Jesu s a s su m ira m es-
co p o m ais a m p lo . P o r ex em p lo , em Jo 10,16, p ro v a v e lm e n te o e v a n g e-
lista estiv esse p e n s a n d o em "d e ste ap risc o " em te rm o s a Igreja e m seu
tem p o ; m as se o d ito foi p ro n u n c ia d o o rig in a lm e n te p o r Jesu s, "d e ste
ap risco " teria tid o u m sig n ificad o m u ito m ais sim p les. E m si m esm o ,
é a referên cia a " u m a p risc o " d u ra n te o m in isté rio d e Jesus seria m ais
an acrô n ico d o q u e a a lu sã o aos se u s se g u id o re s co m o " u m re b a n h o "
(Lc 7,32; M t 26,31, e x p lic an d o a s im p licaçõ es d e M c 14,27)? O q u e acon-
teceu e m João é q u e u m a sim p les e x p ressão p a ra b ó lic a foi a p lic a d a
p elo ev an g elista a u m a situ a ç ão p o ste rio r d a Igreja; m a s e n tã o o con-
texto d e M t 18 tem feito e x a ta m e n te a m esm a coisa com a p a rá b o la d a
O v elh a P e rd id a (18,12-14).
T em o s d e d e te r-n o s b re v e m e n te p a ra c o n sid e ra r o p a n o d e fu n d o
v e te ro te s ta m e n tá rio q u e jaz p o r d e trá s d a re iv in d ic a ç ã o d e Je su s d e ser
o p a s to r (v er C. K. Barrett, JTS 48 [1947], 163-64). E m ra z ã o d e a civili-
zação p a tria rc a l e a d e Israel até b e m d e p o is d a c o n q u ista d a P a lestin a
ter s id o a m p la m e n te p a sto ril, a im a g e m d o p a sto re io é fre q u e n te n a
Bíblia. M esm o q u a n d o a a g ric u ltu ra se to rn o u d o m in a n te e m Israel, ali
p e rm a n e c e u u m a n o stálg ica v id a p a sto ril. Ia h w e h p o d ia se r re tra ta d o
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 675

co m o o g u a rd a d a v irih a e o p la n ta d o r d a se m e n te, m a s Ele p e rm a n e -


ceu , m a is fa m ilia rm e n te , se n d o o p a s to r d o re b a n h o (G n 49,24; SI 23;
78,52-53). O s P a tria rc a s, M o isés e D av i fo ra m to d o s p a sto re s, e assim
" p a s to r" se to rn o u u m te rm o fig u ra tiv o p a ra os líd e res d o p o v o d e
D eu s, u m u s o c o m u m e m to d o o a n tig o O rie n te P róxim o. O s reis ím p io s
e ra m sarcasticam ente d e n u n ciad o s com o p asto res perv erso s (1 Rs 22,17;
Jr 10,21; 2 3 ,1 2 ‫)־‬. E m p a rtic u la r, Ez 34 é u m im p o rta n te p a n o d e fu n d o
p a ra Jo 10. A li D e u s d e n u n c ia o s p a s to re s o u líd e res q u e n ã o se p reo -
c u p a v a m co m o re b a n h o (Seu p o v o ) e o tem s a q u e a d o , n eg lig en cian -
d o o s fraco s, os e n fe rm o s e os e x tra v ia d o s. " A ssim se e sp a lh a ra m , p o r
n ã o h a v e r p a s to r, e to rn a ra m -se p a s to p a ra to d a s as feras d o cam po...
m in h a s o v e lh a s a n d a m e s p a lh a d a s p o r to d a a terra, se m h a v e r q u em
p e rg u n ta s s e p o r elas, n e m q u e m as b u s q u e " (34,5-6). D e u s p ro m e -
te q u e a rre b a ta ria S eu re b a n h o d o s p a s to re s p e rv e rso s, e Ele m esm o
v iria a s e r se u p a sto r. "E is q u e eu , e u m esm o , p ro c u ra re i p o r m in h a s
o v e lh a s, e as b u sc are i. C o m o o p a s to r b u sc a o seu reb a n h o ... assim
b u s c a re i m in h a s o v elh as; e as liv ra re i d e to d o s os lu g a re s p o r o n d e
a n d a m e s p a lh a d a s... e as tra rei à su a p ró p ria terra, e as a p a sc e n ta re i
n o s m o n te s d e Israel... b u sc a re i a p e rd id a " (34,11-16). D eu s p ro m e te
q u e ju lg a ria e n tre as o v e lh a s e os b o d e s, e p o ria Seu se rv o D av i (i.e., o
rei u n g id o ) co m o p a s to r so b re as o v elh as. O c a p ítu lo term in a : "E vós,
m in h a s o v e lh a s, so is as o v e lh a s d e m e u re b a n h o , e Eu sou o v o sso
D e u s". O b v ia m e n te , m u ito d o q u e Jesu s d iz so b re p a sto re io , q u e r em
Jo ão , q u e r n o s sin ó tico s, reflete Ez 34; em p a rtic u la r, M t 18,12-13 =
Ez 34,16; M t 25,32-33 = Ez 34,20.
A d e s p e ito d e sta s s im ila rid a d e s v e te ro te sta m e n tá ria s, Bultmann,
p. 279, in siste q u e m u ito s a sp ec to s n o q u a d ro jo an in o d o p a s to r e d o
re b a n h o n ã o p o d e m se r e x p lic ad o c om b a se n o AT. Em João, Jesus não
é u m p a s to r rég io co m o o p a s to r d o sim b o lism o d o AT; h á ê n fase sobre
a p o rta , o s la d rõ e s e os b a n d id o s - fig u ra s n ã o e n c o n tra d a s n o sim bo-
lism o p a s to ra l d o AT; e, fin a lm e n te , o A T n ã o p õ e ên fa se so b re o co-
nhecimento q u e o p a s to r tem d o re b a n h o . P a ra Bultmann , a tra d içã o d a
q u a l p ro v é m o q u a d ro d e João é a d o s m a n d e a n o s. (V er In tro d u ç ã o ,
p. 47s.). A lé m d a d ific u ld a d e d e se p ro v a r a p rio rid a d e d o s p a ra lelo s
m a n d e a n o s , su g e rim o s q u e Bultmann ex ag era as d ife ren ç a s e n tre João
e o p a n o d e f u n d o v e te ro te sta m e n tá rio . E m q u a lq u e r u so q u e Jesus
faça d a s fig u ra s v e te ro te s ta m e n tá ria s h á o rig in a lid a d e ; n e g a r o p a n o
d e fu n d o d o A T só p o rq u e u m a n o v a d im e n sã o o u o rie n ta ç ã o tem
676 O Livro d o s S inais

sid o d a d a às id é ia s e sim b o lism o s d o A T e q u iv a le d e ix a r d e e n te n d e r


a relação d e Jesus com o AT. P o rta n to , a q u e stã o n ã o d e v e se r se o
sim b o lism o d e Jesu s é e x a ta m e n te o m esm o q u e o d e E zeq u iel o u d e
o u tra s p a rte s d o AT, m a s se h á b a s ta n te sim ila rid a d e p a ra s u g e rir q u e
o A T p ro p o rc io n o u o m a te ria l p a ra su a in te rp re ta ç ã o c ria tiv a e em
se g u id a essa in te rp re ta ç ã o se p ro lo n g a ria n a p re g a ç ã o d o s a p ó sto lo s.
B asicam ente, p arecería q u e o perfil q u e Ezequiel traça d e D e u s (ou
d o M essias) com o o p a sto r ideal, em co n traste com os p a sto re s p e rv e rso s
q u e d esp o jam o reb an h o e p e rm ite m q u e as o v elh as se p ercam , serv iu
com o o m o d elo p a ra o perfil q u e Jesus traça d e si m esm o co m o o p as-
tor ideal, em co n traste com os fariseus, q u e são lad rõ es q u e ro u b a m as
ovelhas e p e rm ite q u e as ovelhas se d isp ersem . Se a p o rta p a ra o ap risco
d as ov elh as n ão ap arece n as p assag en s d o AT, já m o stram o s acim a q u e
a im ag em d a p o rta p a ra a salvação tem p rec e d e n te s n o AT. Q u a n to ao
conhecimento d o reb an h o , já m en cio n am o s q u e o co n h ecim en to q u e D eus
tem d e seu p o v o é u m tem a bíblico c o m u m . E v isto q u e o co n h ecim en to
d o reb an h o em João n ã o é m era m e n te intelectual, m as im plica c u id a d o
e am o r, v erem o s q u e essa im ag em não fica m u ito d ista n te d e te m o cui-
d a d o d o reb an h o em Ez 34,16 e Is 40,11. Se o co n h ecim en to d a ovelha
in d iv id u al em João se assem elh a ao c u id a d o p ela ovelha in d iv id u a l n a
P arábola d a O v elha P e rd id a , então, d e fato, estam o s p e rto d e E zequiel,
o n d e D eus diz: "B uscarei a p e rd id a ". (E d ig n o d e nota q u e u m a rep re-
sentação p rim itiv a d o "B om P asto r" jo an in o o exibe com a o v elh a p e r-
d id a so b re seu s om bros). D e fato, o m ú tu o co n h ecim en to e n tre o p a sto r
e a o velha (Jo 10,14) vai além d o s paralelo s v etero testam en tário s; m as
este tem a p o d e ria ser e x traíd o d e u m conceito v e te ro te sta m e n tá rio d e
in tim id ad e (M t 11,27; Lc 10,22; G1 4,9), em vez d e rem o tas trad içõ es
gnósticas? A im ag em no contexto jo an in o im ed iato , com o a d a reu n iã o
d e o u tras o v elhas e a d e u m só p a sto r (10,16), vem d e Ez 34,23, 12-13
(ver tam b ém M q 2,12; Jr 23,3; Is 41,8).
O a sp ec to s in g u la r n a im a g e m jo a n in a d o p a s to r é su a d isp o siç ã o
d e m o rre r p e la s o v elh as. Isto n ã o se ach a c la ra m e n te n o A T, e m b o ra
em IS m 17,34-35 D av i arrisca su a v id a c o n tra u m u rso e u m leão em
d efesa d a s o v elh as. N ã o é im p o ssív e l q u e Je su s falasse m ais v a g a m e n -
te d e a rrisc a r a lg u é m su a v id a p e la s o v e lh a s (v er n o ta so b re v. 11) e
q u e à lu z d e s u a m o rte su a s o b se rv a ç õ e s fo ssem r e in te rp re ta d a s e m
term o s d a e n tre g a v o lu n tá ria d e su a v id a p e la s o v e lh a s (10,18). N o
ú n ico ex e m p lo n o s sin ó tico s o n d e Jesu s relacio n a p a s to re io e m o rte
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 677

(M c 14,27; M t 26,31), ele cita Zc 13,7. T aylor, Mark, p. 548, ju lg a qu e


esta citação é a u tê n tic a e q u e ela m o stra q u e Jesus refletia so b re o
efeito q u e su a m o rte teria e m se u p e q u e n o reb a n h o . Em o u tro lu g ar
n a lite ra tu ra jo an in a, e n c o n tra m o s a m o rte asso c ia d a com a im ag em
d o c o rd e iro (C o rd eiro d e D e u s m o rre u p a ra re m o v e r os p e c a d o s do
m u n d o cf. A p 5,6; Jo 1,29), o C o rd e iro d e q u e m b ro ta a p ró p ria v id a
(A p 7,17; 22,1). Isto tem m u ito em c o m u m com a im a g e m d o p a sto r
q u e e n tre g a su a v id a p a ra q u e o u tro s te n h a m v id a e m a b u n d â n cia .
A s im ila rid a d e su g e re q u e n ã o tem o s q u e sa ir fora d o A T em b u sca
d e u m p a n o d e fu n d o p a ra este a sp ec to d a im a g e m jo an in a d o p asto r:
se ria o re s u lta d o d e u m a co m b in a çã o d e e le m e n to s d a d escrição vete-
ro te s ta m e n tá ria d o p a s to r e d o S ervo S o fred o r (ver p . 242ss.).

Versículos 17-18: A entrega de sua própria vida

Estes versículos parecem u m tanto a m argem d o q u a d ro geral das pa-


rábolas e d e sua explicação, pois d ão sequência a u m breve com entário so-
b re a frase n o v. 15, "Eu entrego m inha vida", em vez d e alg u m elem ento
d o sim bolism o pastoral. N ão obstante, o fato d e qu e o evangelista ou u m
red a to r v iu ser o p o rtu n o ju n tar estes versículos ao v. 16, o qual m enciona
a reu n ião d e o u tras ovelhas, p o d e significar qu e tem os d e en ten d er que
as o u tras o velhas só v irão ao aprisco d e Jesus p o r m eio d a m orte e ressur-
reição d e Jesus. V erem os em 12,20-23 q u e a vinda dos gentios está intim a-
m en te relacionada com a glorificação d e Jesus através d e sua volta ao Pai.
M u ito s c o m e n ta rista s têm te n ta d o e n fra q u e c e r o sig n ificad o final
d o v. 17, "E u d o u m in h a v id a a fim de reassu m i-la" (p. ex., Lagrange,
p. 283); sen tem -se in co m o d a d o s q u e Jesus e n tre g asse su a v id a com o
c a lcu lad o p ro p ó sito d e retom á-la. Isto e q u iv ale d eix ar d e e n te n d e r que
n o p e n s a m e n to n e o te stam e n tá rio a ressu rreição n ão é u m a circunstân-
cia q u e seg u e a m o rte d e Jesus, e sim a c o n su m a ç ão essencial d a m o rte
d e Jesus. N o p e n sa m e n to joanino, e m p a rticu la r, a paixão, m orte, res-
su rre iç ã o e ascensão co n stitu e m u m a só ação salvífica in d isso lú v el do
re to rn o ao Pai. Se Jesus v ai d a r a v id a a tra v é s d o E spírito, ele ressus-
citaria (7,39); e assim a ressu rreição é v e rd a d e ira m e n te o p ro p ó sito de
su a m o rte. C o m o o u v ire m o s em 12,24, o g rão d e trig o tem d e m orrer,
p o ré m m o rre p a ra q u e g e rm in e o u tra v ez e p ro d u z a fru to .
N o tam o s q u e em am bos os vs., 17 e 18, é Jesus m esm o q u em retom a
su a v id a d e volta. A expressão n o rm al d o N T não é q u e Jesus ressurge
678 O Livro d o s S inais

d e n tre os m o rto s, m as q u e 0 Pai o re ssu sc ito u (A t 2,24; R m 4,24;


Ef 1,20; H b 11,19; 2P d 1,21 - v e r tam b é m n o ta so b re 2,22). V isto, p o -
rém , q u e n o p e n s a m e n to jo an in o o P ai e o F ilho p o s s u e m o m e sm o
p o d e r (1 0 ,2 8 3 0 ‫)־‬, re a lm e n te faz p o u c a d ife ren ç a se a re ssu rre iç ã o for
a trib u íd a à ação d o Pai o u d o Filho. Esta é u m a p ro fu n d a v isã o teoló-
gica à q u a l a teo lo g ia trin ita ria n a p o ste rio r d e u m a io r realce.
O v. 18 fala d a o rd e m o u m a n d a m e n to d iv in o , e e ste é o tem a
q u e é re c o rre n te n o s c a p ítu lo s su b se q u e n te s. O " m a n d a m e n to " d o Pai
ab arca a m esm a e x te n sã o q u e a " v o n ta d e " d o Pai: reflete o v ín c u lo
d e a m o r q u e ex iste e n tre o Pai e o F ilho; e n v o lv e a m issã o e m o rte
o b e d ie n te d o Filho; tra z v id a ao s h o m e n s (12,49-50; 14,31). O s q u e se-
g u e m o F ilho d e v e m ta m b é m a c eita r o m a n d a m e n to d iv in o e p e rm i-
tir q u e o a m o r q u e o reflete seja v isto e m su a s p ró p ria s v id a s (13,34;
15,12.17); se o m a n d a m e n to d o P ai le v o u o F ilho a e n tre g a r s u a v id a
p elo s h o m e n s, a aceitação d e ste m a n d a m e n to p o r m eio d o s se g u id o -
res d e Jesu s s u g e re u m a p ro n tid ã o d a p a rte d e le s e m e n tre g a re m su a s
v id a s u n s p e lo s o u tro s (15,13). O v. 18 d e scre v e a m b a s, a m o rte e a res-
su rre iç ã o d e Jesus, co m o m a n d a d o p e lo Pai; eis u m a p ro v a c o n c lu siv a
d e q u e, q u a n d o Jesus e n tre g a su a v id a a fim de retomá-la, se u m o tiv o
n ã o é o d e u m a b u sc a p esso al. E o Pai q u e q u e ria q u e a m o rte d e Jesus
lev asse à re s su rre iç ã o e re to rn o a Ele m esm o .

Versículos 19-21: Reação dos judeus

A reação à(s) p a rá b o la(s), n o s vs. 1-5, se d e u p o r falta d e com -


p ree n sã o ; a rea ç ã o à exp licação d a(s) p a rá b o la(s), n o s vs. 7-18, p ro v e io
d e d iv isão . O s v ersícu lo s q u e d e sc re v e m esta d iv isã o c o n stitu e m u m a
b o a tra n siç ã o ao q u e se g u e n a festa d a D edicação, p o is ali a lg u n s de-
safiarão as im p licaçõ es m essiân ic as d a a p re se n ta ç ã o q u e Je su s faz de
si p ró p rio co m o o p a sto r. A o m esm o tem p o , e stes v e rsíc u lo s lem b ram
as reaçõ es a n te rio re s a Jesu s a festa d o s T a b e rn á c u lo s, o n d e tam b é m
h o u v e d iv isã o (7,12.25-27.31.40-41; 9,16) e a a c u sa ç ã o d e e s ta r louco
(7,20; 8,48).

B IB L IO G R A F IA

BISHOP, E. F., " The Door of the Sheep - John x. 7-9", ET 71 (1959-60), 307-9.
35 · O clím ax da festa d o s tabemáculos: Jesus com o a porta d o Aprisco... 6 79

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SCHNEIDER, J., "Zur Komposition Von Joh. 10", Coniectanea Neotestamentica
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36. JE SU S N A F E S T A D A D E D IC A Ç Ã O :
- JE SU S C O M O M E S S IA S E F IL H O D E D E U S
(10,22-39)

Jesus é consagrado no lugar do altar do templo

10 22Era in v e rn o , e c h eg o u o te m p o p a ra a festa d a D ed icação e m Jeru -


salém . 22Jesu s c a m in h a v a p e lo s rec in to s d o tem p lo , n o P ó rtico d e Sa-
lo m ão , 24q u a n d o os ju d e u s se re u n ira m e m to rn o d e le e d isse ram -lh e :
"A té q u a n d o n o s m a n te rá em su sp e n se ? Se re a lm e n te és o M essias,
d ize -n o s co m p a la v ra s b e m claras". 25Jesus re sp o n d e u :

"E u v o s d isse, p o ré m n ã o cred es.


A s o b ras q u e e sto u re a liz a n d o em n o m e d e m e u P ai
d ã o te s te m u n h o a m eu resp e ito ,
26m as rec u sa is a crer,
p o rq u e n ã o sois m in h a s o v elh as.
27M in h as o v e lh a s o u v e m m in h a voz;
e e u as co nheço,
e elas m e conhecem .
28Eu lh es d o u a v id a e te rn a,
e jam a is p ere c e rã o .
N in g u é m as a rre b a ta rá d e m in h a m ão.
29M eu Pai, q u e m e d e u , é m a io r q u e to d o s,
E d a m ã o d o Pai n in g u é m p o d e tirar.
30O P ai e e u so m o s u m ".

31Q u a n d o os ju d e u s [o u tra vez] p e g a ra m p e d ra s p a ra a p e d re já -lo ,


32Jesu s lh es res p o n d e u : "T e n h o v o s m o stra d o m u ita s o b ra s b o as
36 · Jesus na festa da d ed icação: Jesus co m o M essia s e Filh o d e D eu s 681

p ro c e d e n te s d o Pai. P or q u a is d e sta s o b ra s p re te n d e is ap e d re ja r-m e ? "


33" N ã o é p o r q u a lq u e r 'o b ra b o a ' q u e v a m o s a p e d re ja r-te ", resp o n -
d e ra m os ju d e u s , " m a s p e la b lasfêm ia, p o rq u a n to n ão p a ssa s d e u m
h o m e m , e fazes a ti m esm o D eu s". 34Jesus resp o n d e u :

" N ã o está escrito e m v o ssa Lei,


'E u disse: "S ois d e u s e s " ? '
35Se ela c h a m a d e u s e s a h o m en s,
a q u e m a p a la v ra d e D e u s foi d irig id a -
e a E sc ritu ra n ã o se p o d e a n u la r -
36a firm a is q u e eu b lasfem ei,
q u a n d o , com o aquele a q u e m o Pai consagrou e en v io u ao m u n d o ,
e u disse: 'S o u F ilho d e D eu s'?
37Se e u n ã o faço as o b ra s d o Pai,
n ã o p o n h a is fé e m m im .
38M as se as faço,
m e sm o q u a n d o n ã o colocais fé em m im ,
p o n d e v o ssa fé n e ssa s o b ras
p a ra q u e v e n h a is a c o n h e ce r [e e n te n d e r]
q u e o Pai está em m im
e e u e sto u n o P ai".

39E ntão ten taram [outra vez] p rendê-lo, m as ele escapou d e suas m ãos.

NOTAS

10.22. Era inverno. Ou tem po invernal - o mês de dezem bro.


festa da Dedicação. H anukkah, ou "a festa dos Tabernáculos do m ês
de kislev" (2Mc 1,9), era um a festa que celebrava as vitórias maca-
beias. Por três anos, 167-164 a.C., os sírios profanaram o tem plo, eri-
gindo o ídolo de Baal Sham em (a versão oriental do Zeus Olím pio)
no altar dos holocautos (lM c 1,54; 2Mc 6,1-7). Esta contam inação do
san to lu g ar pela "abom inável desolação" (Dn 9,27; Mt 24,15) term i-
nou q u an d o Judas M acabeus expulsou os sírios, construiu novo al-
tar e reedificou o tem plo no vigésim o quinto de kislev (lM c 4,41-61).
A festa da D edicação era a celebração anual da reconsagração do altar
do tem plo.
682 O Livro d o s S in ais

Dedicação. O grego Enkainia, literalm ente "renovação" é usado para tra-


duzir Hanukkah, que significa "dedicação". Estes substantivos e verbos
relacionados são usados no TM e na LXX para a dedicação ou consagra-
ção do altar do tabernáculo dos dias do Êxodo (Nm 7,10-11), no tem plo
de Salomão (IRs 8,63; 2Cr 7,5), e no segundo tem plo (Esd 6,16). Assim, o
term o é um tanto evocativo da consagração de todas as casas de Deus ao
longo da história de Israel.
23. Pórtico de Salomão. O átrio superior do templo estava cercado por magnifi-
cas colunas ou claustros cobertos dos quatro lados. Estes pórticos eram
abertos do lado de dentro do templo, m as fechado do lado de fora.
O pórtico mais antigo, aquele do lado oriental, foi popularm ente asso-
ciado com Salomão, o construtor do prim eiro tem plo ( J o s e f o , War 5.5.1;
184-85; Ant. 15.11.3; 396-401, 20.9.7; 221). Embora form asse o limi-
te dos recintos do templo, era exterior ao próprio tem plo, como a va-
riante ocidental de At 3,11 deixa claro ("Q uando Pedro e João saíram
[do templo]... o povo se pôs atônico no pórtico que é conhecido como
de Salomão").
24. nos manterá em suspense. Literalmente, "eliminas nossa vida [psychê - fô-
lego de vida]". O uso desta expressão para m anter em suspense não é
bem atestado; pode significar, como no grego m oderno, "fastigar, des-
concertar". Não é impossível que João pretenda projetar um sentido lite-
ral ( H o s k y n s , p. 383). A ideia, pois, seria que, embora Jesus dê sua própria
vida pelos que o seguem (10,11.15), ele tam bém provoca juízo, e assim
elimina a vida dos que o rejeitam (11,48).
26. não sois minhas ovelhas. As boas testem unhas, inclusive P66, agregam:
"como vos disse".
29. Meu Pai, que me deu, é maior que todos. As testem unhas textuais estão
divididas ao m enos por causa de cinco leituras gregas diferentes, cada
um a d ando um a construção gram atical diferente. N enhum a leitura é
destituída de dificuldade; m as, além da anterior, as d u as m ais im por-
tantes são:
"Meu Pai, que (os) tem dado a mim, é m aior que todos".
"Q uanto a meu Pai, o que Ele me tem dado é m aior que todos".
As razões detalhadas para nossa escolha requereríam algum as longas ex-
plicações baseadas no texto grego; elas podem ser encontradas em B i r d -
s a l l , art. cit. As outras redações parecem ter-se desenvolvido num a ten-

tativa de am enizar a redação do original.


30. O Pai e eu somos um. Este foi um versículo-chave nas antigas controvér-
sias trinitárias (ver P o u . a r d , art. cit.). Em um extremo, os m onarquianos
(sabelianos) interpretaram -no no sentido de "um a só pessoa", em bora
36 · Jesus na festa da d ed icação: Jesus co m o M essia s e Filho d e D eu s 683

"um a" seja neutra, não masculina. No outro extremo, os arianos inter-
pretaram este texto, que era frequentem ente usado contra eles, em ter-
mos de unidade moral da vontade. O com entarista protestante B k n g e l ,
seguindo A g o s t i n h o , resum e a posição ortodoxa: "Através da palavra
'som os', S a b é l i o é refutado; através da palavra "um ", assim é Á r i o " .
31. [oMfra vez\. A lgum as testem unhas têm esta leitura "outra vez"; outras,
têm "portanto"; O utras têm ambos; ainda outras, não têm nenhuma.
"O utra vez" pode representar um a harm onização de copista com 8,59.
32. boas. Literalmente, "nobres"; kalos; seria este um eco do pastor nobre ou
bom (kalos) que dá sua vida por suas ovelhas (10,11)?
do Pai. Algum as testem unhas, inclusive aparentem ente ambos os papiros
Bodmer, dizem "m eu Pai".
33. fazes a ti mesmo Deus. Contra a evidência da vasta maioria de testemu-
nhas, P66 dá evidência de ler o artigo antes de theon ("Deus"); para ho
theos como "Deus, o Pai", ver 1,1.
34. em vossa Lei. Aqui, "Lei" se refere ao AT em geral, e não apenas ao Pen-
tateuco, pois o que está sendo citado é um salm o (mesmo uso am plo da
expressão em 12,34; IC or 14,21). Entretanto, pode ser que a interpretação
judaica do salmo como se referindo ao que Deus disse no Sinai (onde a Lei
foi dada) fosse considerada - ver comentário. O "vossa" é om itido por al-
gum as testem unhas im portantes, mas não por ambos os papiros Bodmer.
Tanto B a r r e t t , p. 319, como B u l t m a n n , p. 296‫״‬, se inclinam em favorecer a
omissão, m as tal omissão bem que poderia ter provindo de um a tentativa
de copista para abrandar a aparente aspereza da atitude de Jesus para
com o AT e sua tendência de dissociar-se da herança judaica (ver a nota
sobre 7,19). É ainda possível que o "vossa" tenha tido um a função argu-
m entativa, sendo equivalente a "a Lei que inclusive vós admitis".
35. chama deuses. Além deste exem plo onde os juizes eram cham ados deu-
ses, Jesus poderia tam bém ter citado Ex 7,1, onde Moisés foi cham ado
deus.
a palavra de Deus foi dirigida. Esta expressão conota um cham ado divino;
encontram o-la usada por hom ens como Oseias (1,1), Jeremias (1,2) e João
Batista (Lc 3,2).
a Escritura. O salmo citado no v. 34, ou Escritura em geral?
anular. Literalm ente, lyein é "interrom per, pôr de lado"; aqui é passivo. As
vezes se pressupõe que esta passagem reflete um a reverência pelos de-
talhes da Lei (Escritura) que não devem ser postos de lado (Mt 5,17-18).
J u n g k u n t z , pp. 559-60, ressalta que, em referência à Escritura, lyei

n é contrastada com plêroun, cujo passivo significa "ser cum prido", e


que por isso lyein significa "deixar de ser cum prido". No uso rabínico,
684 O L ivro d o s S inais

battel, que parece ser o equivalente aram aico de lyein, significa "anular,
invalidar". O uso de lyein em Jo 7,23 significa que um hom em recebe a
circuncisão até m esm o no sábado para que o cum prim ento da Lei não
fosse frustrado.
36. consagrou. Hagiazein, "consagrar, santificar", é usada na LXX em N m 7,1
para descrever a consagração do Tabem áculo através de Moisés, enquan-
to enkainizein (ver nota sobre v. 22 acima) é usada em N m 7,10-11 para a
dedicação do altar. Os dois verbos são sinônimos. N m 7 era um a leitura
na sinagoga para a festa da Dedicação ( G u i l d i n g , pp. 127-28). Aqui, o
Pai consagrou Jesus; em 17,19, Jesus diz: "Eu me consagrei"; 6,69 chama
Jesus "o Santo de Deus [/!agios].
37. não ponhais fé. Aqui e no versículo seguinte se usa o im perativo presente
com valor de duração.
38. mesmo quando não colocais fé em mim. O Codex Bezae e o Latino trazem
"ainda que não quereis pôr fé".
[e entender]. Esta é a leitura das m elhores testem unhas; outros substituem
"e crer"; Bezae, OL e OS têm ambos. "Conhecer e entender" representam
o aoristo e presente do mesm o verbo ginõskein; é possível que algum
copista achasse a expressão pleonástica.
39. Então. O m itido em im portantes testem unhas, m as talvez por
homoioteleuton: ezêtoun oun.
[outra vez]. Faltando em algum as im portantes testem unhas e num a dife-
rente sequência em outras. Com o o "outra vez" no v. 31, isto pode re-
presentar um a tendência para harm onizar-se com a m enção de outras
tentativas de prendê-lo (7,30.32.44; 8,20).
mãos. Literalmente, "de sua m ão [singular]"; há variantes com o plural,
provavelm ente porque, enquanto o idiom a hebraico tende a usar o sin-
guiar, o idiom a grego usa o plural. Ver nota sobre 7,44.

C O M E N T Á R IO

A tin g im o s já a ú ltim a d a s festas cuja as séries co m eçaram com o capí-


tulo 6: o S ábado, a P áscoa, os T ab em ácu lo s e ag o ra a D edicação. C o m o
en fatizam o s, ao d isc u tirm o s o cap ítu lo 10,1-21, a in te rru p ç ã o e n tre a
festa d o s T ab em ácu lo s e a festa d a D edicação n ão é tão a b ru p ta co m o a
o co rrid a en tre as o u tra s festas. N a D edicação, Jesus está n o s recintos d o
tem p lo , com o estav a n a festa d o s T ab e m á c u lo s (7,14.18); "o s ju d e u s " o
pressionam p ara qu e diga qu em ele é, o m esm o qu e ocorreu na festa dos
36 · Jesus na festa da d ed icação: Jesus c o m o M essia s e F ilho d e D eu s 685

T abem áculos (8,25-53); a questão d o M essias surge o utra vez (7,26.31.41;


9,22); e, n atu ralm ente, a tentativa d e p re n d e r Jesus e o d e apedrejar, a acu-
sação d e blasfêm ia, as triunfantes respostas em term os d e sua relação única
com o Pai - tu d o isso são ecos d o q ue aconteceu n a festa d os Tabem áculos.
E stas sim ila rid a d e s q u e o co rrem p rin c ip alm e n te n as porções da
n a rra tiv a e m 10,39 su g e re m q u e p o d e m o s e sta r lid a n d o com a lg u n s re-
lato s em d u p lic a ta d a s reações d ia n te d e Jesus. O a rran jo e q u ilib rad o
co m p rec isão d e sta seção a p o n ta p a ra u m a cena c u id a d o sa m e n te redi-
g id a. H á d u a s q u estõ es básicas: É Jesus o M essias (24)? Ele faz a si m es-
m o D eu s (33)? C a d a u m a recebe u m a resp o sta d e a p ro x im ad a m en te a
m esm a ex ten são (25-30,34-38), resp o sta q u e term in a n o tem a d a u n id a-
d e d e Jesus com se u Pai. A cad a resp o sta "os ju d e u s" reag em desfavo-
rav e lm e n te, p rim e iro te n ta n d o apedrejá-lo; então, te n ta n d o p rendê-lo.
T o d a v ia , co m o o c o rre em to d a s as c en as jo an in as, a q u i n ã o dev e-
m o s p a s s a r tão d e p re s s a p a ra u m a av aliação n e g a tiv a d a trad ição . E
difícil im a g in a r p o r q u e o c e n ário n a festa d a D ed icação teria o u p o d e -
ria se r in v e n ta d o . E ra u m a festa re la tiv a m e n te se m im p o rtâ n c ia e não
u m a festa d e p e re g rin a ç ã o . E m b o ra e n c o n tre m o s u m a conexão e n tre
o te m a d a d e d ic a ç ã o d o te m p lo o u u m a lta r e a c o n sag ra ç ão d e Jesus
(v. 36), a co n ex ão n ã o é tão ó b v ia q u e p o d e ría ter s id o resp o n sá v e l pela
criação d o cen ário. Miss G uilding su g e riu q u e o fato d e q u e as leitu ras
rela tiv a s ao p a s to r e ra m c o m u n s n a s sin ag o g as n o p e río d o d a festa d a
D ed icação se rv iu d e e stím u lo p a ra in v e n ta r essa seq u ên cia cronológi-
ca d o e v an g elista. T o d av ia, com o tem o s in sistid o , o a rg u m e n to p o d e
se r in v ertid o : se Jesus re a lm e n te falou e m Jeru salém d u ra n te a festa da
D ed icação , q u e tó p ico teria sid o m ais n a tu ra l d o q u e as le itu ra s q u e o
p o v o o u v ira re c e n te m e n te n a s sin ag o g as, o u logo o u v iria? E h á u m de-
talh e d e c o lo rid o local q u e é m u ito e lo q u e n te. N e sta estação in v em a l,
q u a n d o v e n to s frios so p ra v a m d o o rie n te a tra v é s d o g ra n d e d eserto,
e n c o n tra m o s Jesus n o p ó rtic o o rie n ta l d o tem p lo , o ú n ico d o s p órticos
cujo la d o fec h a d o o p ro te g e ria d o v e n to o rie n tal (ver n o ta so b re v. 23).
Q u a n to a o c o n te ú d o d o d isc u rso d e Jesus, isto ta m b é m exibe ele-
m e n to s tra d ic io n a is q u e n ã o p o d e m se r facilm en te d e sco n sid e ra d o .
C o m o v e re m o s, as d u a s q u e stõ e s im p líc ita s n o s vs. 24 e 33 so b re o
fato d e Jesu s se r o M essias e D eu s (ou F ilho d e D eus) são e x a ta m e n te
as q u e s tõ e s q u e os e v a n g e lh o s sin ó tico s p õ e m n o a m b ie n te d o julga-
m e n to d e Jesu s p e ra n te o S in éd rio . A s re sp o sta s d e Jesus e a acusa-
ção d e b lasfê m ia se e n c o n tra m ta m b é m na cena sin ó tica d o trib u n al.
686 O L ivro d o s S inais

Já su g e rim o s p re v ia m e n te q u e, a o d istrib u ir e sta s a c u sa ç õ e s e m u m


m in isté rio fin al m ais lo n g o em Je ru sa lé m , João p o d e ria e sta r fo rn e-
cen d o o q u a d ro m ais g e n u ín o ; p o is a cen a sin ó tica d e ju lg a m e n to tem
o a sp ecto d e se r u m re su m o e u m a sín te se d e a c u saçõ es re ite ra d a s
com freq u ên cia. Q u a n to ao a rg u m e n to d e to m q u a se rab ín ico b a sea -
d o n a E scritu ra, n o s vs. 34-36, e m b o ra c o n c eb iv e lm e n te p u d e s s e ser
o p ro d u to d o d e b a te S in a g o g a /Ig re ja , c e rta m e n te n ã o foi c ria d o e m
círcu lo s cristã o s g entílicos, e ao fo rm a tá -lo teria sid o p e rfe ita m e n te
fam iliar n o m in isté rio d e Jesus.
U m a so lu ção p la u sív e l é q u e, e n q u a n to ao a m b ie n te g eral, e no
c o n te ú d o b ásico d o d isc u rso , o e v a n g e lista está m a n e ja n d o m a te ria l
trad icio n al. M as, ao d a r à cena fo rm a e m o v im e n to , o e v a n g e lista tem
p o sto em jo g o su a im a g in a ç ã o , p ro p ic ia n d o o e s q u e m a g e ra l d a s con-
tro v é rsia s q u e tem v in d o se d e s e n v o lv e n d o n o s ú ltim o s c a p ítu lo s.

Versículos 22-31: Jesus como 0 Messias

A q u e s tã o q u e estab elece o m o tiv o p a ra a p rim e ira cen a n a festa


d a D ed icação se e n c o n tra n o v. 24: "Se re a lm e n te és o M essias, d ize -
n o s com p a la v ra s b e m claras". T o d o s os rela to s sin ó tico s d o ju lg a-
m en to p e ra n te o S in éd rio têm o su m o sa c e rd o te p e rg u n ta n d o a Jesu s
se ele é o M essias, m as Lc 22,67 é m ais p a re c id o co m João: "S e real-
m e n te és o M essias, e n tã o n o s d ig a s" . A re sp o sta d e Jesus, n o s d o is,
é p ra tic a m e n te a m esm a: em João, ele diz: "E u v o s d isse, p o ré m n ã o
c red es"; e m L ucas, ele diz: "Se e u v o s d isse r, n ã o m e cre re is".
A in sistên cia p a ra Jesu s d iz e r c la ra m e n te se ele é o u n ã o o M essias
faz p a rtic u la r s e n tid o n a p re s e n te se q u ên c ia e m João, o n d e Je su s te m
falad o d e si m esm o em term o s fig u ra tiv o s co m o p a sto r. C o m o já vi-
m o s n o p a n o d e fu n d o v e te ro te sta m e n tá rio , o p a s to r e ra u m sím b o lo
q u e serv ia fre q u e n te m e n te p a ra a lu d ir ao rei d a v íd ic o (v er Ez 34,23),
d e m o d o q u e as im p licaçõ es m essiân icas d a re iv in d ic a ç ã o d e Je su s d e
ser o p a s to r e ra m c la ra m e n te e n te n d id a s p e la s a u to rid a d e s ju d aicas.
T o d av ia, n e m a q u i, n e m n o s sin ó tico s, Jesus r e s p o n d e se m faz e r certas
p recisõ es a u m a p e rg u n ta d ire ta so b re su a m e ssia n id a d e . C o m m u ita
freq u ên cia, os q u e assim p e rg u n ta v a m a Jesus d a v a m ao te rm o "M es-
sias" re sso n â n c ia s n a c io n a lista s e p o líticas, as q u a is Jesus n ã o deseja-
v a co n firm ar. U m b o m e x e m p lo d isto é a im a g e m d o M essias g u e rre i-
ro n o SI 17,21-25: ele d isp e rsa os líd e re s in ju sto s; faz e m p e d a ç o s os
36 · Jesus na festa da dedicação: Jesus c o m o M essia s e F ilho d e D eu s 687

p e c a d o re s co m u m a v a ra d e ferro; as n açõ es fogem d e d ia n te dele. Se


a tra d içã o cristã su b se q u e n te so u b e c a p ta r a c erta d a m en te o p en sam en -
to d e Jesus, d a n d o -lh e o título d e M essias ou C risto, c o n tu d o se deve
reco n h ecer q u e su a m essia n id a d e e v id en cio u u m a o rig in a lid ad e que
m u d o u o p ró p rio c o n te ú d o d o conceito. T alvez o m elh o r com entário
so b re a a titu d e d e Jesus p a ra com a q u e stã o d e se ele é o u n ão o M essias
se e n co n tra em Jo 10,30, o n d e su a resp o sta está sin te tiz ad a na afirm a-
ção: "O Pai e e u so m o u m " - u m a resp o sta q u e é afirm ativa, p o rém não
fo rm u la d a com term in o lo g ia tradicional.
N o v. 25, Jesus com eça su a re sp o sta à p e rg u n ta so b re m essian id a-
d e, e v o c a n d o as o b ra s q u e ele está rea liz a n d o , a n te c e d e n d o o q u e seria
a c u ra d o ceg o q u e "os ju d e u s " m esm o s m en c io n ara m em 10,21. É in-
te re ssa n te q u e na tra d içã o sinótica, q u a n d o o B atista en v ia d iscíp u lo s
a p e rg u n ta r se ele é a q u e le q u e h av ia d e v ir, Jesus re sp o n d e , ev o can d o
as o b ra s q u e ele tem re a liz a d o em p ro l d o s cegos, d o s aleijados etc.
(M t 11,2-6). M as, e m b o ra p o ssa m o s s u p o r q u e a referência às o b ras de
Jesu s n ã o d e ix a ria d e d a r fru to n o caso d e B atista, em João ela deixa de
c o n v e n ce r o s ju d e u s, p o is n ã o são o v e lh a s q u e o u v e m a v o z d o pastor.
E sta a lu sã o às o velhas, n o s vs. 26-27, n os reco rd a 10,1-21 e se liga
eficazm en te as d u a s p a rte s d o ca p ítu lo 10. C om o Schneider tem res-
sa lta d o , as explicações em 10,7-10 e 11-16 da(s) parábola(s) pastoral(is)
a tra íra m a aten ção p a ra a p o rta d a s o v elh as e o p asto r, p o rém d e u p ou-
ca ate n ç ã o às ovelhas. O v. 4 a firm ara q u e as o v elh as q u e perten cem a
Jesu s o o u v iría m e o s eg u iríam , e tem o s isto exem plificado pelo contras-
te n o s vs. 26-27, o n d e "o s ju d e u s" n ão o u v e m n e m se g u em p o rq u e não
são o v e lh a s d o reb an h o . C o m o o ex p ressa tão bem C risóstomo (In Jo.
61,2; PG 59:338), se n ão se g u em Jesus, n ão é p o rq u e ele n ão seja pastor,
m as p o rq u e n ão são ovelhas. Em 10,1-21 v im o s os fariseus sen d o com -
p a ra d o s a lad rõ es, b a n d id o s e m ercenários; ag o ra so m o s in fo rm ad o s
q u e n ã o estão e n tre as o v elh as d a d a s a Jesus p elo Pai (ver n o ta sobre
14). P ara o u v ir a voz d e Jesus h á q u e ser " d e D eus" (8,47), " d a verd a-
d e " (18,37). E n q u a n to esta se p ara ç ão d u alística d o a u d itó rio d e Jesus
em d o is g ru p o s é m ais clara em João d o q u e n os sinóticos, d evem os
n o ta r q u e em M t l 6,16-170 q u e capacita P ed ro a reconhecer Jesus com o
o M essias e o Filho d e D eus (os dois títulos im plicados em Jo 10,22-39)
é a rev elação q u e P e d ro tem receb id o do Pai. N a term in o lo g ia joanina,
P e d ro e os o u tro s m em b ro s d o s D oze são o v elh as d a d a s a Jesus pelo
Pai, e p o r isso o u v e m a vo z e sab em q u e m é ele (ver tam b ém M t 11,25).
688 O Livro d o s S inais

Em João, os q u e não o u v e m são com o aq u e le s n o s sinóticos q u e o u v e m


as p aráb o las, p o ré m n ã o e n te n d e m . N o sso in teresse em d e m o n stra r,
q u e o p e n sa m e n to d e João tem p a ra lelo s sinóticos, é m o stra r a v u ln e ra -
b ilid ad e d o p o n to d e v ista d e B ultmann (pp. 276 e 284), d e q u e o reba-
nh o , aq u i, lem b ra a c o m u n id a d e d o m ito gnóstico d o s p re d e stin a d o s.
J eremias, art. cit. (ver acim a, p. 678), p arece fazer m ais justiça a to d a a
concepção n eo te stam e n tá ria , a firm a n d o q u e o re b a n h o re p re se n ta ,
aq u i to d a a c o m u n id a d e d e Jesus, a c o m u n id a d e d e se u s se g u id o re s
q u e ap ó s su a m o rte se tra n sfo rm a ra m n a c o m u n id a d e cristã p rim itiv a
(At 20,28-29; lP d 5,3; lClemente 44,3; 54,2). H á em João u m e le m en to d e
p red estin ação n o tocante àq u eles q u e p e rte n ce m ao reb a n h o , m a s n isto
João n ão p arece se a p a rta r d o e n sin o c o m u m d e to d o o NT.
A referência às o velhas, n o s vs. 26-27, in tro d u z n o 28 a id eia d o s
lo bos q u e a rre b a ta m as o v e lh a s q u a n d o os m e rc e n á rio s g u a rd a m o
reb an h o (10,12). T o d av ia, Jesus é o b o m p a sto r e n in g u é m a rre b a ta rá d e
su as m ão s as o v elh as q u e o P ai lhe d e u . Isso é assim p o rq u e Jesus age
em p ro l d o Pai, e n in g u é m a rre b a ta as o v elh as d a s m ão s d o P ai (v. 29).
A afirm ação d o s u p re m o p o d e r d o Pai so b re os h o m en s, em 29, evoca
as afirm ações v e te ro te sta m e n tá ria s d e q u e as a lm a s estã o n a s m ão s de
D eus (Is 43,13). N o ta m o s q u e os vs. 28 e 29 fazem a m esm a afirm ação
so b re Jesus e so b re o Pai: n in g u é m p o d e a rre b a ta r as o v e lh a s d a s m ão s
d e am bos. Isto n o s leva a u m a c o m p re en sã o d a u n id a d e q u e é ex p ressa
no v. 30: é u m a u n id a d e d e p o d e r e operação. Foi u m a afirm ação tal
com o a en c o n trad a n o v. 30 q u e fin alm en te levou a Igreja d o 4“ sécu lo à
d o u trin a d a n a tu re z a u n a e d iv in a n a T rin d a d e , n a tu re z a se n d o essên-
cia co n sid e rad a com o u m p rin c íp io d e operação.
P arece o p o rtu n o in te rro m p e r p o r u m m o m e n to p a ra re s u m ir o
q u e já o u v im o s a té e n tã o e m João so b re as relaçõ es e n tre P ai e Filho.
O F ilho v e m d o Pai (8,42); to d av ia , o Pai q u e o e n v io u e stá com ele
(8,29). O P ai a m a o F ilho (8,35); o F ilho co n h ece o P ai in tim a m e n te
(8,55; 10,15). Em su a m issã o na terra, o F ilho só p o d e faz e r o q u e tem
v isto o Pai fazer (5,19), só p o d e ju lg a r e falar co m o o u v e d o P ai (5,30).
O F ilh o foi in s tru íd o p e lo P ai (8,28) e tem rec e b id o d e le p o d e re s tais
co m o o d e ju lg a m e n to (5,22) e d e d a r e p o s s u ir v id a (5,21.26; 6,57).
O Filho faz a v o n ta d e d o Pai (4,34; 6,38) e tem receb id o u m m a n d a m e n to
d o Pai q u e d iz resp eito à su a m o rte e ressu rreição (10,18). D eve-se notar
q u e to d as estas relações e n tre P ai e F ilho são d escritas e m fu n ção das
q u e m ed eiam , p o r su a vez, en tre o Filho com os ho m en s. Seria o trabalho
36 · Jesus na festa da d ed icação: Jesus c o m o M essia s e F ilho d e D eu s 6 89

d o s teó lo g o s p o ste rio re s to m a r este m a te ria l ev an g élico p e rtin e n te à


m issã o d o F ilh o ad extra e e x tra ir d e le u m a teo lo g ia d a v id a íntim a
d a T rin d a d e .
V o lta n d o ao cap. 10,30, d e sco b rim o s q u e a u n id a d e p ro p o sta ali
ta m b é m d iz re s p e ito ao s h o m en s; p o is assim com o Pai e Filho são u m ,
a ssim re ú n e os h o m e n s a si co m o u m - " p a ra q u e sejam u m , assim
co m o n ó s " (17,11). E sta u n id a d e q u e é c o m u n ic a d a aos c ren tes é o q u e
im p e d e a lg u é m d e a rre b a tá -la s d o P ai o u d o Filho. P a u lo o ex p ressa
m ais liric a m e n te e m R m 8,38-39: " N e m m o rte , n e m v id a , n e m anjos...
e n e n h u m a o u tra c ria tu ra , em to d a a criação, se rá c a p a z d e se p ara r-
n o s d o a m o r d e D e u s e m C risto Jesus, n o sso S en h o r".

Versículos 32-39: Jesus como 0 Filho de Deus

A n te rio rm e n te as a firm açõ es d e Jesus, o a sso c ia n d o in tim a m e n te


co m D eu s, le v a ra m "o s ju d e u s " a p ro c u ra r m atá -lo (5,17-18; 8,58-59),
esta rea ç ã o é ta m b é m re p e tid a a q u i (v. 31). Jesus se d e p a ra com a vio-
lên cia d e le s p o r ev o c ar o u tra vez as o b ra s q u e ele tem re a liz a d o (32,
co m o e m 25); su a objeção, n ã o o b sta n te , n ã o é às su a s o b ra s (com o foi
a n te rio rm e n te ao s m ilag re s ao sá b ad o ), e sim às su a s p a la v ra s bias-
fem as. E sta é a p rim e ira v ez (33) q u e a ac u sa ç ã o oficial d e blasfêm ia
o c o rre e m João, e m b o ra já fosse p re s s u p o s to em 8,59 (p. 635). N os sinó-
ticos (M c 14,64; M t 26,65), u m a a cu sação so le n e d e b lasfêm ia é levan-
ta d a c o n tra Jesu s n o trib u n a l d e p o is q u e d e sc re v e u su a fu tu ra posi-
ção co m o F ilho d o H o m e m , a sse n ta n d o -se à d e stra d e D eus. U m a vez
m ais, e sta m o s e m d e s v a n ta g e m p ela falta d e ev id ê n c ia q u a n to ao qu e
c o n stitu ía b lasfê m ia se g u n d o a lei ju d aica d e ste p e río d o (ver B l i n z l e r ,
Trial, p p . 127-33). T u d o indica q u e os ev an g elh o s estão d e aco rd o que
a b ase d a acu sação ju d aica d e blasfêm ia c o n tra Jesus envolvia m ais do
q u e s u a reiv in d icação d e ser o M essias; João é m ais específico d o que
os o u tro s em a firm a r q u e o p ro b lem a foi ele fazer-se a si m esm o D eus
o u ig u al a D eus (5,18). S eg u ram en te, in te rv ém em g ra n d e m ed id a a vi-
são cristã p ó s-ressu rreição na avaliação joanina d a situação. Todavia,
v isto q u e n e m a q u i n em em 5,19ss. há q u a lq u e r n egação p o r Jesus da
estim a ju d aica d a im plicação d e su as p alav ras, p o d e m o s razoavelm en-
te e sta r certo s d e q u e o ev an g elista en te n d ia qu e aq u ela v aloração era
su b sta n c ia lm e n te correta. N o p e n sa m e n to joanino, o erro não estava
n a descrição d e Jesus com o d iv in o ("A P alav ra era D eus"), e sim na
690 O Livro d o s S in ais

afirm ação d e q u e ele estava se fazendo D eus. Para João, Jesus n u n c a faz
ab so lu tam en te n a d a p o r si m esm o; tu d o o q u e ele é p ro v é m d o Pai. Ele
n ão é u m h o m em q u e se fez D eus; ele é a P alav ra d e D eu s q u e se fez
ho m em . Eis p o r q u e o v. 36 realm en te re sp o n d e à acusação judaica: foi o
Pai q u e co n sag ro u Jesus. A lém d o m ais, d e v e m o s ser cautelosos e m ava-
liar a aceitação joanina d e Jesus com o d iv in o o u ig u al a D eus. C o m o ve-
rem o s abaixo ao d iscu tirm o s o v. 37, essa descrição d e Jesus não é d ivor-
ciada d o fato d e q u e ele foi en v ia d o p o r D eus e agia em n o m e d e D eu s e
n o lu g ar d e D eus. P o rtan to , em b o ra a descrição e aceitação jo an in as da
d iv in d a d e d e Jesus ten h a m im plicações ontológicas (com o N iceia reco-
n h eceu ao confessar q u e Jesus C risto, o Filho d e D eus, é em si m esm o
v erd a d e iro D eus), em si m esm a esta descrição p e rm a n ec e p rim a riam e n -
te funcional, e n ão m u ito d ista n te d a form ulação p a u lin a d e q u e "D eu s
estava em C risto reconciliando consigo o m u n d o " (2C or 5,19).
V im os q u e a q u e stã o d a m e s s ia n id a d e d e Jesu s, n o v. 24, se as-
sem e lh av a à q u e stã o fo rm u la d a a Jesu s p e lo su m o sa c e rd o te no
ju lg a m e n to sin ó tico, e em p a rtic u la r à fo rm a d a p e rg u n ta e resp o s-
ta d e Lucas. E n q u a n to M c 14,61 e M t 26,63 fo rm u la m u m a q u e stã o
q u e m en cio n a o M essias, o Filho d e D eu s (ou d o B endito), Lc 23,67,
em su a p rim e ira p e rg u n ta , m en c io n a so m e n te o M essias. Lc 22,70 tem
u m a s e g u n d a p e rg u n ta feita p e lo su m o sacerd o te: "T u és o F ilh o de
D eu s?" A ssim , u m a v ez m ais, L ucas se a p ro x im a m a is d e João o n d e
a q u e stã o d e se fazer D e u s o u o F ilho d e D eus (33, 36) é s e p a ra d a da-
q u ela d e ser o M essias. P. W inter, Studia Theologica 9 (1955), 112-15,
su g e re q u e a tra d içã o lu ca n a se a p o ia na d e João; m a s isto n ã o é im-
p o ssív el n o q u e se refere ao s d e ta lh e s, m a s o n ú m e ro d e p a ra lelo s
jo an in o s com o ju lg a m e n to sin ó tico p e ra n te o S in é d rio su g e re um a
situ a ç ão m ais co m p lex a (v er n o ssa d isc u ssã o em C B Q 23 [1961],
148-52, e a d isc u ssã o ab aix o n a p. 728ss.).
Em re s p o s ta à ac u sa ç ã o d e "o s ju d e u s " d e q u e ele está se fazen d o
D eus, Jesu s re s p o n d e com u m racio cín io e x tra íd o d o AT. Ele cita um a
frase d o SI 82,6, e m b o ra a q u i, co m o em o u tro lu g a r n o N T , n ã o só
a frase c ita d a, m as ta m b é m o resto d o v e rsíc u lo e até m e sm o o contex-
to são im p o rta n te s p a ra o a rg u m e n to . T o d o o v e rsíc u lo diz: "E u digo:
'V ós so is d e u ses, e to d o s v ó s filhos d o A ltíssim o '" . Jesu s e stá interes-
s a d o n ão só n o u so d o te rm o " d e u s e s " , m as ta m b é m n a expressão
sin ô n im a "filh o s d o A ltíssim o ", p o is n o v. 36 ele se refere a si com o 0
F ilho d e D eus.
36 · Jesus na festa da d ed icação: Jesus co m o M essia s e Filh o d e D eu s 691

O S alm o era e n te n d id o com o u m a a d v e rtên c ia aos juizes injustos:


e m b o ra receb essem o títu lo "d e u se s" e m v irtu d e d e su a função qua-
se d iv in a (o ju lg a m e n to p e rte n ce a D eus - D t 1,17), m o rre rã o com o os
d e m a is h o m en s. A m esm a altíssim a ap reciação d o ofício d e u m juiz
está im p lícita n as ex p ressõ es p e la s q u a is ao p o v o se o rd e n a v a q u e se
s u b m e te sse ao s juizes: "C o m p are c erã o p e ra n te Iah w e h " (D t 19,17), ou
" se rã o le v a d o s a D eu s" (Ex 21,6; 22,9). A gora, o a rg u m e n to q u e Jesus
ex trai p a re c e ter d o is aspectos. Primeiro, se h av ia n o A T u m a prática
c o m u m co m o u m a in d icação d e q u e h o m en s com o o s juizes e ram tidos
co m o " d e u s e s " , e isto n ão co n stitu ía b lasfêm ia, p o r q u e os ju d e u s se
o p õ e m q u a n d o se aplica a Jesus este m esm o term o? P ara u m a m ente
o cid en tal, este a rg u m e n to p arece se r u m a falácia en g an o sa. O s ju d eu s
n ã o estã o o b jetan d o q u e Jesus está se e le v a n d o ao nível d e u m d e u s no
se n tid o em q u e os juizes era m d eu ses; estão o b jetan d o q u e ele está se
fa z e n d o D eu s com "D" m aiúsculo. Em o u tra s p a la v ras, Jesus está jus-
tifican d o os d o is significados q u e " d e u s" tem em seu arg u m e n to , u m
co m o n o m e p ró p rio e o o u tro em se n tid o d e riv ad o . P arte d a solução
d e s ta d ific u ld a d e p o d e e sta r em reco n h ecer q u e Jesus estava a rg u m en -
ta n d o s e g u n d o as reg ra s rab ín icas d a h e rm e n êu tica , q u e eram b em di-
feren tes d a s lógicas m o d ern a s. A p resen ça d a p a la v ra " d e u s" no texto
era o fato r im p o rta n te , sem lev ar em conta a diferença d e significado.
A lg u n s e stu d io so s, com o B ultmann e Strathmann , p arecem in te rp re ta r
o u so q u e Jesus faz d e tal a rg u m e n to em term o s d e seu e n co n tro com os
fariseu s em seu p ró p rio nível o u faz e n d o ele u m a p a ró d ia d o m o d o de-
les d e in te rp re ta r a E scritura. N ão o b stan te, d e v e m o s p recav er-n o s de
a s su m ir q u e Jesus tin h a o u tro s p rin cíp io s h erm e n êu tico s além d aq u eles
co rre n te s em seu tem p o . O p a d rã o co n sisten te d e su a exegese não está
e m h a rm o n ia com a h erm en êu tica m o d e rn a m esm o o n d e ele não está
a rg u m e n ta n d o com os fariseus, p o r exem plo, as citações a trib u íd a s a
ele n a cena d a ten tação p elo d iab o (M t 4,1-11). A s citações u sa d as em
se u s a rg u m e n to s com os fariseu s (M t 19,4; 22,41-45) são in te rp re ta d a s
em g ra n d e m e d id a com o m esm o p a d rã o excessivam ente literal q u e en-
c o n tra m o s e m Jo 10,34-36, e p arece difícil p e n sa r q u e estav a sem p re se
a d a p ta n d o ao s p rin cíp io s q u e ele m esm o n ão aceitava. C aso se objete a
p a rtir d e u m p o n to d e v ista crítico q u e o u so d e a lg u m a s d estas citações
b íblicas rea lm e n te p o d e m ser o riu n d a s d o u so cristão tardio, é preci-
so o b se rv a r a in d a q u e a trad ição n ão m o stra sinais d e co n sid erar tal
h e rm e n êu tica com o in d ig n a d e Jesus. P o rtan to , se p arece h a v e r u m
692 O L ivro d o s S in ais

elem en to d e sofism a em Jo 10,3436‫־‬, n ã o esta m o s certos se o o ra d o r o u


o a u d itó rio teria tid o essa im p ressão .
M as h á u m s e g u n d o aspecto n o a rg u m e n to q u e p ro p icia conforto
àq u ele q u e p o rv e n tu ra p e rm an ece oscilante. H á u m asp ecto d o a m i n o r i
a d m a iu s ("d o m e n o r p a ra o m aio r") o u d o a f o r tio r i q u e era b e m conhe-
cido n o p e n sam e n to rabínico. A razão p a ra os juizes serem c h a m a d o s
d eu ses era p o rq u e se to m a ra m veículos d a p a la v ra d e D eu s (v. 35), m as,
sobre essa p rem issa, Jesus m erece tan to m ais ser c h a m a d o D eus. Ele é
aq u ele a q u e m o P ai c o n sag ro u e e n v io u ao m u n d o e, assim , u m v eículo
sin g u lar d a p a la v ra d e D eus. A ssim , h á a lg u m a razão q u e justifica o u so
d e " d e u s" em d o is sen tid o s d iferen tes n o a rg u m e n to . H á em 10,34-36
a lg u m a su g estão d e q u e Jesus é a P a la v r a d e D eus? Se o a rg u m e n to " d o
m en o r p a ra o m aio r" foi e la b o rad o com d etalh es co m pletos, p o d e ría fi-
car assim : "Se é p erm issível c h a m a r " d e u se s" a h o m en s, p o r serem veí-
culos d a p alav ra d e D eus, q u a n to m ais perm issív el é u sa r " D e u s" p a ra
aq u ele q u e é a P alavra d e Deus! Isto n os d á a in teressan te p o s s ib ilid a d e
(porém n ão m ais) d e u m a p refig u ração d o título " P a la v ra" q u e se fez tão
p ro em in en te n o h ino jo an in o q u e serve d e P rólogo ao evangelho.
O u tro s d esejariam lev ar a in d a m ais longe o a rg u m e n to em 10,34-36.
Barrett, p. 319, e D ahl, CIN TI, p. 133, reco rrem à in te rp re ta ç ã o rabínica
d o SI 82,6. A ocasião d o Salm o era tid a com o se n d o a revelação d a Lei
no Sinai; a v in d a d e sta p a la v ra d e D eus aos israelitas o s fez d e u ses o u fi-
lhos d o A ltíssim o. Sobre este p a n o d e fu n d o , o a rg u m e n to d e Jesus p o d e
ser que, visto q u e a revelação n o Sinai fin alm en te d á te ste m u n h o d ele
(Jo 5,46), q u a n to m ais ju sto v em a ser o título D eus o u Filho d e Deus!
H anson, a r t. c i t .r d á u m diferen te efeito a este p a n o d e fu n d o d a in terp re-
tação rabínica d o Salm o. Ele afirm a q u e n o p e n sam e n to jo an in o aq u ele
q u e se d irig iu aos ju d e u s no Sinai era a p reex isten te P alav ra d e D eus, e
assim p o d e m o s tra d u z ir o v. 35: "Se a Lei ch am a d e u ses à q u eles h o m en s
a q u em a P alav ra d e D eus foi d irig id a [no Sinai]"... E ntão, o a f o r t i o r i se
aplica com toda a justiça o título D e u s o u F ilh o d e D e u s ao p o rta d o r hu-
m an o d a P alav ra d e D eus. J ungkuntz, a r t. c it ., se a p o ia so b re tu d o em q u e
o v. 35c tem o significado d e q u e a E scritura n ão p o d e ser im p e d id a do
c u m p rim en to (ver a respectiva nota). O Salm o se rep o rta aos juizes que
recebiam o títu lo d e deuses; u m d o s tem as d e João é q u e Jesus é o juiz
p o r excelência (ver p. 606); e assim a E scritura en co n tra seu c u m p rim en -
to em Jesus, q u e é p o r excelência d ig n o d o título d a d o aos juizes. A lém
d o m ais, visto q u e os juizes foram os p rec u rso re s d o s reis davídicos,
36 · Jesus na festa da dedicação: Jesus c o m o M essia s e Filho d e D eu s 6 93

e u m d o s a trib u to s m ais im p o rta n tes d o rei d av íd ico era ser u m juiz jus-
to, a E scritura tam b ém tra z o conceito d e juiz ao c u m p rim e n to no Mes-
sias, o rei-juiz p o r excelência. E m bora n e n h u m a d essas sugestões seja
p assív el d e p ro v a, m o stram q u e o a rg u m e n to d e Jesus p o d ería ter sido
m ais su til e co nvincente d o q u e a p rin cíp io p arece aos olhos ocidentais.
S eg u in d o em frente, agora v o lvem os nossa atenção p a ra o uso da
p a la v ra "co n sag rar", no v. 36. N a sequência d e festas ao longo da Ter-
ceira P arte d o Livro d o s Sinais (caps. 5-10), tem os visto que, vez outra,
se m p re reap arecerá o tem a d e substituição. N a festa d o S ábado (cap. 5),
Jesu s insistiu q u e n o sáb ad o não p o d e ría haver descanso p a ra o Filho, já
q u e ele co n tin u aria a exercer até m esm o no sáb ad o os p o d e re s d e vida e
juízo co n fiad o s a ele p elo Pai. N a Páscoa (cap. 6, Jesus su b stitu iu o m aná
n o relato d a Páscoa-Exodo, m u ltip lican d o a p ã o com o sinal de qu e ele
era o p ã o d a v id a q u e desceu d o céu. N a festa d o s T abernáculos (7-9), a
cerim ô n ia d a á g u a e lu z foi su b stitu íd a p o r Jesus, a v erd a d e ira fonte das
ág u a s v iv as e a luz d o m u n d o . Então, na festa da D edicação, evocando
em p a rticu la r a d ed icação o u consagração m acabeia d o altar d o tem plo,
p o ré m m ais g eralm en te rem iniscente d a dedicação ou consagração de
to d a a série d e tem p lo s q u e foram edificados em Jerusalém (ver notas
so b re vs. 22 e 36), Jesus p ro clam a q u e ele é a q u ele q u e realm ente foi con-
sa g ra d o p o r D eus. Isto p arece ser u m exem plo d o tem a joanino de que
Jesus é o n o v o T abernáculo (1,14) e o n o v o T em plo (2,21).
A a firm a ç ão d e q u e Jesu s foi c o n sa g ra d o p o r D eu s n ão teria sido
e s tra n h a n a e s tru tu ra d o p e n s a m e n to israelita trad icio n al. N o AT, o
te rm o " c o n s a g ra r" era a p lic a d o aos h o m e n s se p a ra d o s p a ra im p o r-
ta n te o b ra o u e le v a d o ofício. Foi u s a d o com referên cia a M oisés (Si-
ra q u e 45,4), a Jerem ias (Jr 1,5), aos sa c e rd o te s (2C r 26,18) e a o u tro s.
O u s o d e s te te rm o p a ra Jesus (ver n o ta so b re v. 36) c o n stitu i u m a alu-
são jo an in a ao sacerd ó cio d e Jesus, u m tem a q u e se e n c o n tra em H e-
b re u s (u m a o b ra com p a ra le lo s em João)? H b 5,5 en fatiza q u e Jesus foi
feito s u m o s a c e rd o te p o r se u Pai, a ssim co m o João en fatiza q u e o Pai
c o n s a g ro u Jesus. N o ju d a ísm o d o s d ia s d o N T, os sa ce rd o te s e ra m os
e x e m p lo s p rim á rio s d e h o m e n s cuja c o n sag ra ç ão os h av ia se p a ra d o
co m o " sa n to s " ; Jesu s era o S an to d e D e u s p o r excelência (6,69). P ara
o u tro possível e x e m p lo d o tem a d e Jesu s co m o sa ce rd o te , v e r com en-
tá rio so b re 19,23 (no v o lu m e II).
N o v. 37, Jesu s v o lta ao tem a d a s o b ras q u e o u v im o s no v. 25.
A q u i, a refe rê n c ia às o b ras é e sp ec ia lm e n te a p ro p ria d a : Jesus acabou
694 O Livro d o s S inais

d e reiv in d ic a r se r o e n v ia d o d e D eus; p o rta n to , D eu s e sta ria p o r d e trá s


d a s o b ra s q u e Jesu s realiza. E ste é u m e x e m p lo d o co n ceito ju d a ic o d o
sãlTah o u e n v ia d o . N o p e n s a m e n to ju d aico , o e n v ia d o ou a lg u é m ofi-
cialm en te c o m issio n a d o tin h a a a u to rid a d e d e q u e m o e n v io u e era
leg a lm e n te id en tificáv el com ele. Isto n ã o só explica p o r q u e as o b ra s
d e Jesu s são as o b ra s d o Pai, m as p o d e ta m b é m te r u m p ro p ó sito em
to d o o a rg u m e n to d o s vs. 34-36, o n d e Jesus, e n v ia d o p o r D eu s, n ã o
nega a ac u sa ç ã o d e q u e ele m esm o se a p re s e n ta co m o D eus.
Ju n tam en te com 14,11, o v. 38 veio a ser u m texto básico p a ra jus-
tificar o u so apo lo gético cristão d o s m ilagres p a ra m o stra r q u e ele veio
d e Deus. O ra, n a tu ra lm e n te há u m a p ro b ab ilid a d e d e q u e os interesses
apologéticos d a Igreja p rim itiv a têm tid o certa influência so b re u m texto
com o o v. 38, e p o r isso não estam o s certos, h istoricam ente, q u a n to d a
p ró p ria p ersp ectiva d e Jesus so b re su as ações está re p re se n ta d o neste
versículo. M as, ao m esm o tem p o tem os q u e insistir m u ito q u e a ênfase
sobre m ilagres, n este versículo, é levem ente d iferen te d o d iscern im en to
d o q u e os m an u a is apologéticos p ro p õ em . A s ob ras d e Jesus e m João
(ver A p ên d ice III, p. 831ss) n u n ca co n stitu em u m critério m era m e n te
externo ev o cad o p a ra p ro v a r u m a tese. São p a rte d o m in istério d e Jesus;
são sinais q u e c o n d u z em à co m p reen são em vez d e p ro v as q u e conven-
cem; a resp o sta a elas é a d a fé, an tes q u e d o assen tim en to intelectual.
Esta s e g u n d a p a rte d o d isc u rso na festa d a D ed icação te rm in a ,
p rec isam e n te co m o fez a p rim e ira , com u m a a firm a ç ão d a u n id a d e
q u e existe e n tre P ai e Filho (v. 38, c o m p a ra d o com 30). N o v. 30, enfa-
tiz a m o s q u e a u n id a d e e ra a d e p o d e r e o p e ra ç ã o ; eis p o r q u e em 38 as
obras d e Jesu s p o d e m re v e la r esta u n id a d e , p o is são as o b ra s c o m u n s
d o Pai e d o F ilh o o riu n d a s d e u m a fo n te co m u m .

BIBLIOGRAFIA

BIRDSALL, J. N., "John x. 29", JTS 11 (1960), 342-44.


H A N SO N , A., "John's Citation of Psalm LXXXII", NTS 11 (1964-65),
158-62 on John x 33-36.
JUNGKUNTZ, R., "An Approach to the Exegesis of John 10:34-36", Concordia
Theological Monthly 35 (1964), 556-65.
POLLARD, T. E., "The Exegesis of John x.30 in the Early Trinitarian
Controversies", NTS 3 (1956-57), 334-49.
37. APARENTE C O N C LU SÃ O
D O M IN IS T É R IO P Ú B L IC O D E JE SU S
(10,40-42)

Jesus se retira ao outro lado do Jordão onde seu ministério teve início

10 40E n tão ele to rn o u a a tra v e s s a r o Jo rd ã o p a ra o lu g a r o n d e João a


p rin c íp io e stiv e ra b a tiz a n d o ; e e n q u a n to ficou ali, 41m u ita s p esso as
v ie ra m a ele. "Jo ão n u n c a rea liz o u n e n h u m sin a l", c o m e n ta v a m , "m as
tu d o o q u e João d isse so b re este h o m e m e ra v e rd a d e " . 42E m u ito s ali
c h e g a ra m a c re r nele.

NOTAS

10.40. onde João a princípio estivera batizando. Betânia, como em 1,28; ver nota ali.
ficou. Se aqui o im perfeito é a redação correta, este é o único uso de menein
em João desse tem po. Todavia, há boas testem unhas, inclusive P 6, para
o aoristo que então teria de ser tom ado em um sentido complexo, como
se dá am iúde no grego dos papiros.
41. muitas pessoas. Provavelmente se deva concluir que estes sejam os seguido-
res do Batista, que deixaram suas casas assim que ouviram que Jesus re-
gressara à área onde o Batista fora atuante. Que um a colônia dos discípulos
do Batista se estabeleceram perm anentemente na área parece menos prová-
vel, a não ser que pensemos em um grupo como a com unidade de Qumran.
nunca realizou nenhum sinal. Os sinóticos não atribuem m ilagres ao Batis-
ta, m uito em bora H erodes dissesse ter concluído que Jesus, que estava
operando milagres, era João Batista ressuscitado (Mc 6,14). A implicação
ali provavelm ente não que houvesse m ilagres associados ao Batista, mas
alguém ressuscitado possuísse poderes miraculosos.
696 O L ivro d o s S inais

tudo 0 que João disse sobre este homem era verdade. Todavia, até este m om ento
Jesus não se m ostrara como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
m undo (1,29); nem batizara com o Espírito santo (1,33), pois o Espírito
ainda não fora dado (7,39). Talvez devam os pensar nestas coisas como a
se concretizarem na hora da glória de Jesus que logo começaria.

C O M E N T Á R IO

Estes v e rsíc u lo s fo rn ecem u m a c o n clu são p a ra a T erceira P a rte d o Li-


v ro d o s Sinais, a sab er, 5-10; e d e fato, p o r su a to n a lid a d e , p a re c e m
c o n d u z ir a u m final d o m in isté rio p ú b lic o d e Jesus. A s ú ltim a s p a la -
v ras p ú b lic a s d e Jesus se ria m e n tã o o d e safio re tu m b a n te e n c o n tra d o
em 10,37-38. Se, co m o su g e rim o s, n o v e rso 11 d o P ró lo g o se d e sc re v e
o m in isté rio p ú b lic o ("E le v e io p a ra o q u e era su a [terra]; to d a v ia os
seu s n ã o o a c eita ra m "), a g o ra d eix a a te rra h o stil e o p o v o d a P ales-
tina p a ra c ru z a r o Jo rd ão . A li ele e n c o n tra a fé q u e falta v a e m su a
p ró p ria terra. A lém d o m ais, estes v e rsíc u lo s fo rm a m u m a in clu sã o
com a cena in icial d o m in isté rio em 1,19-28. O e v a n g e lh o n o s lem b ra
d e lib e ra d a m e n te d a cen a o n d e o B atista e ste v e b a tiz a n d o d a lé m d o
Jo rd ã o e o n d e ele d e ra te s te m u n h o d e Jesus.
A o d isc u tirm o s o s c a p ítu lo s 11-12, v e re m o s q u e eles a p re se n -
tem p e c u lia rid a d e s q u e s u g e re m q u e são u m a a d iç ã o re d a c io n a l ao
esboço o rig in al d o e v a n g elh o . P o r essa raz ã o , su g e rim o s q u e h o u v e
u m te m p o em q u e o e sq u e m a jo an in o d o m in isté rio p ú b lic o c h eg o u
a u m a co n clu são com 10,40-42. (N o e n ta n to , d e v e m o s n o ta r q u e ou-
tro s c o m e n tarista s, co m o B ultmann e B oismard, os q u a is c reem q u e o
c a p ítu lo 10 foi a c o n clu são o rig in a l d a p rim e ira p a rte d o e v a n g elh o ,
têm u m a teo ria d ife re n te d o p a p e l d e 10,40-42. B ultmann tra ta estes
v ersícu lo s co m o a in tro d u ç ã o ao c a p ítu lo 11; p a ra B oismard, 10,22-39
seriam se g u id o s p o r ll,4 7 s s ). A n tes q u e os c a p ítu lo s 11-12 fossem
a n e x ad o s ao esb oço d o e v a n g elh o , su g e rim o s q u e 10,40-42 fo ra m se-
g u id o s p ela a b e rtu ra d o L ivro d a G ló ria n o c a p ítu lo 13. A m u d a n ç a d e
lo calid ad e, d a T ra n sjo rd â n ia p a ra Je ru sa lé m , n ã o seria m a is v io le n ta
d o q u e a q u e la e n tre c a p ítu lo s 5 e 6. A lém d o m ais, a frase in icial do
cap. 13 c o n tém sig n ificad o e sp ecial se s e g u id o d o cap. 10,40-42 ("Jesus
estav a cien te d e q u e lh e h a v ia c h e g a d o a h o ra d e p a s s a r d e ste m u n -
d o p a ra o Pai"); q u a n d o Jesus a tra v e ssa o Jo rd ã o p e la s e g u n d a vez,
37 · A p aren te co n clu sã o d o M in istério P ú b lico d e Jesus 697

re a lm e n te e sta ria in d o p a ra su a p ró p ria terra, p o is esta ria in d o p a ra o


Pai. L e m b ra m o s q u e a d e scriçã o sin ó tica d a (ú ltim a) v iag e m d e Jesus a
Je ru sa lé m , ele a d e n tr o u as reg iõ es d a lé m d o Jo rd ã o a n te s d e su b ir a Je-
ru sa lé m p a ra m o rre r (Mc 10,1; M t 19,1). O ra, já v im o s as sim ila rid a d e s
e n tre esta v iag e m sinótica e o q u a d ro q u e João fo rm a d e Jesus su b in d o
a J e ru sa lé m p a ra a festa d o s T a b e rn á c u lo s (ver p. 559). Se 10,40-42
foi u m a v e z s e g u id o d o cap. 13, teríam o s em João u m a seq u ên cia qu e
se a sse m e lh a a o u tro a sp ec to d a v iag e m sinótica. A lg u é m n o taria qu e
a ssim co m o a m e m ó ria d o B atista é e v o c ad a a q u i e m João, assim tam -
b é m é e v o c a d a n o rela to sin ó tico d o s d ia s d e Jesus em Jeru salém , se-
g u in d o su a v ia g e m (Mc 11,27-33).
E m q u a lq u e r caso, e m b o ra o re tiro d e Jesus p a ra a reg ião d além
d o Jo rd ã o tivesse o p ro p ó sito p rático d e b u sc ar ab rig o d a h o stilid ad e
s u s c ita d a em Je ru sa lé m , ta m b é m se rv iu ao s p ro p ó sito s teológicos
d o e v a n g e lista . Jesu s n ã o h av ia d e m o rre r p ela v io lên cia d a plebe;
só m o rre ria q u a n d o estiv e sse p ro n to p a ra e n tre g a r su a v id a (10,18).
Q u a n d o v o lta sse a Je ru sa lé m , ele faria isso d e su a p ró p ria iniciativa e
co m o s e g u ro c o n h e c im e n to d e q u e esta v a s u b in d o p a ra m o rre r. Foi
so m e n te na P áscoa se g u in te q u e c h eg aria a h o ra q u e o Pai d esig n ara.
M as, n o m o m e n to , em u m lu g a r q u e a in d a ecoa o c la m o r d a s testem u -
n h a s d o B atista, e a in d a irra d ia a lu z d e su a lâ m p a d a (5,35), Jesus se
d e té m e é s a u d a d o p e la fé. A s tre v a s a in d a n ã o h a v ia m ch eg ad o .
T. F. G lasson, ET 67 (1955-56), 2 4 5 4 6 ‫־‬, tem c h a m a d o aten ção p a ra
u m p o n to in te ressa n te : as p a ssa g e n s jo an in a s q u e tra ta m d o Batista
se to rn a n d o p ro g re s s iv a m e n te m en o r: 1,19-36; 3,22-30; 5,33-35; 10,41.
A in te n ç ã o d o e v a n g e lista teria sid o ilu s tra r o p rin c íp io e n u n c ia d o em
3,30: "E le [Jesus] d e v e crescer e n q u a n to d e v o d im in u ir" ? A ên fase d e
q u e o B atista n ã o o p e ra v a m ilagres, e q u e no fim seu s seg u id o res vi-
ria m p a u la tin a m e n te a cre r em Jesus p o d e se r p a rte d a ap o lo g ética do
Q u a rto E v a n g e lh o c o n tra os se g u id o re s d o Batista.
O LIVRO DOS SINAIS

Q uarta P arte: J e s u sseg u e ru m o


à H o ra d a M o rte e G ló ria
ESBO ÇO

QUARTA PARTE: JESUS SEGUE RUMO À HORA DA MORTE E GLÓRIA


(caps. 11-12)

A. 11,1 -54: Jesus dá vida aos homens; os homens condenam Jesus à morte
(1-44) Jesus dá vida a Lázaro - um sinal de que Jesus é a
vida. (§ 38)
1-6: Cenário.
7-16: Jesus subiría para a Judeia?
7-10.16: Para morrer.
11-15: Para ajudar Lázaro.
17-33: Jesus chega em Betânia:
17-19: C hegada e cenário.
20-27: Marta sai ao encontro de Jesus.
28-33: Maria sai ao encontro de Jesus.
34-44: A Ressurreição de Lázaro:
34-40: Cenário e prelim inares.
41-44: O milagre.
(45-54) O Sinédrio condena Jesus à morte; retirada para
Efraim. (§ 39)
45-53: Sessão do Sinédrio presidida por Caifás.
54: Jesus se retira para Efraim.
11,55-57: Transição - Jesus irá a Jerusalém para a Páscoa? (§ 40)
B. 12,1-36: Cenas preparatórias para a Páscoa e Morte
(1-8) Em Betânia, Jesus é ungido para a morte. (§ 41)
(9-19) As m ultidões aclamam Jesus enquanto entra em
Jerusalém. (§ 42)
9-11: Introdução: a m ultidão saindo para ver Lázaro.
12-16: Aclamação de Jesus e sua reação.
17-19: Conclusão: a m ultidão testificando de Lázaro.
(20-36) A vinda dos gregos marca a chegada da hora. (§ 43)
3 8 . JE SU S D Á V I D A A O S H O M E N S :
- O RELATO DE LÁ ZAR O
(11,1-44)

Um sinal de que Jesus é a vida

11 'O ra , h a v ia u m h o m e m c h a m a d o L ázaro q u e e sta v a enferm o ; ele


e ra d e B etân ia, a a ld e ia d e M aria e su a irm ã M arta. (2Esta M aria, cujo
irm ã o L ázaro e sta v a e n fe rm o , e ra a q u e la q u e u n g iu o S en h o r com p er-
fu m e e e n x u g o u se u s p é s com se u s cabelos). E n tão as irm ã s m an d a -
ra m in fo rm a r a Jesus: "S en h o r, a q u e le a q u e m a m a s está en ferm o ".
4M as q u a n d o Jesu s o u v iu isso, disse:

"E sta e n fe rm id a d e n ã o p a ra te rm in a r em m orte;


a n te s, é p a ra a g ló ria d e D eu s,
p a ra q u e o F ilho [de D eus] seja g lo rificad o p o r ela".

( O r a , Je su s r e a lm e n te a m a v a a M arta à su a irm ã e a L ázaro). 6E assim ,


m e sm o q u a n d o o u v iu q u e L ázaro e sta v a e n ferm o , ele p e rm a n ec e u
o n d e e sta v a m ais d o is dias.
7E ntão, p o r fim , Jesus d isse aos d iscípulos: "V oltem os p a ra a Judeia".
8"R ab i", p ro te s ta ra m os d iscíp u lo s, "os ju d e u s acab aram d e ten tar ape-
drejar-te, e q u e re s v o lta r p a ra lá o u tra v ez?" 4Jesus resp o n d eu :

" N ã o h á d o z e h o ra s d e d ia claro?
Se u m h o m e m c a m in h a d u ra n te o d ia, ele n ão tro p eça,
p o rq u e p o d e v e r a lu z d e ste m u n d o .

7: d is s e ; 8: p r o te s ta r a m . Tem po presente histórico.


70 2 O Livro d o s S inais

10M as se c a m in h a r d u ra n te a n o ite, tro p e ç a rá ,


p o rq u e n ã o tem em si n e n h u m a lu z".

11Ele fez e sta o b se rv a ç ã o e e n tã o , a se g u ir, lh es disse: " N o sso a m a d o


L ázaro a d o rm e c e u , m a s esto u in d o lá p a ra d e sp e rtá -lo " . 12N isto os
d isc íp u lo s o b jetaram : "S en h o r, se ele a d o rm e c e u , su a v id a se rá sa lv a ".
(13N a v e rd a d e Jesu s e stav a fa la n d o d a m o rte d e L ázaro , m a s e n te n d e -
ram q u e estiv e sse fa la n d o d o so n o n o se n tid o d e e sta r e m rep o u so ).
14E ntão, fin a lm e n te Jesus lh es d isse cla ram e n te : " L á z a ro está m o rto .
15E esto u feliz p o r eu n ã o e sta r lá, p a ra q u e v e n h a is a te r fé. Seja co m o
for, v a m o s a ele". 16E n tão T om é (este n o m e significa " G ê m e o ") d isse
ao s se u s c o n d iscíp u lo s: "V am o s tam b é m p a ra m o rre rm o s co m ele".
17Q u a n d o Jesu s c h eg o u , d e sc o b riu q u e L ázaro [já] e sta v a n o tú -
m u lo h á q u a tro dias. 18O ra, B etânia n ã o ficava lo n g e d e Je ru sa lé m ,
a p e n a s cerca d e três k ilo m etro s; 19e m u ito s d o s ju d e u s sa íra m a ofe-
recer su a s c o n d o lê n c ia s a M a rta e M aria p o r c a u sa d e se u irm ão .
20Q u a n d o M arta o u v iu q u e Jesu s e sta v a c h e g a n d o , ela sa iu a en co n -
tra r-se co m ele, e n q u a n to M aria ficou se n ta d a q u ie ta m e n te e m casa.
21M arta d isse a Jesus: "S en h o r, se e stiv e ra s a q u i, m e u irm ã o n u n c a
teria m o rrid o . 22M esm o a g o ra , e sto u c e rta d e q u e tu d o o q u e p e d ire s a
D eus, D eu s te d a rá " . 23"T eu irm ã o re ssu sc ita rá " , a s se g u ro u -lh e Jesus.
24M arta rep lico u : "E u sei q u e ele re ssu rg irá n a re ssu rre iç ã o d o ú ltim o
d ia". 25Jesu s lhe disse:

"E u so u a re ssu rre iç ã o [e a vida]:


a q u e le q u e crê em m im ,
a in d a q u e m o rra , v o lta rá à v id a.
26E to d o a q u e le q u e está v iv o e crê e m m im
jam ais m o rre rá . -

C rês tu isto ?" 27"Sim , S e n h o r", rep lico u , " e u creio q u e és o M essias, o
F ilho d e D eu s, q u e h a v ia d e v ir a o m u n d o " .
28O ra, q u a n d o ela d isse isto, sa iu a c h a m a r s u a irm ã M aria. " O M es-
tre está a q u i e te c h a m a " , s u s su rro u . 29A ssim q u e M aria o u v iu isto , er-
g u e u -se d e p re s s a e sa iu ao e n c o n tro dele. (311N a v e rd a d e , Je su s ain d a
n ão h a v ia e n tra d o n a a ld e ia, m as [ainda] e sta v a n o local o n d e M arta

11: d is s e . 23: A s s e g u r o u ; 24: r e p lic o u . Tem po presente histórico.


38 · Jesus dá v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 703

o e n c o n tra ra ). 31O s ju d e u s q u e e sta v a m na casa com M aria, conso-


la n d o -a , v ira m -n a lev a n ta r-se d e p re ssa e sair; e e n tã o se g u ira m -n a,
p e n s a n d o q u e estiv e sse in d o ao tú m u lo p a ra c h o ra r ali. 34Q u a n d o
M aria c h e g o u n o lu g a r o n d e Jesu s e sta v a , e o viu, caiu a seu s p é s e
lh e disse: "S e n h o r, se e stiv e ra s a q u i, m eu irm ã o n ã o teria m o rrid o ".
33O ra , a ssim q u e Jesu s a v iu c h o ra n d o , e os ju d e u s q u e a aco m p a n h a -
v a m ta m b é m c h o ra n d o , ele se e stre m e c eu , m o v id o d a s m ais p ro fu n -
d a s em o çõ es.
34" O n d e o p u se ste s? " , p e rg u n to u . "S en h o r, v e m e v ê", lhe disse-
ram . 35Jesu s c h o ro u " , 36e isto lev o u os ju d e u s a o b serv ar: "V edes o
q u a n to o a m a v a !" 37M as a lg u n s d e le s d isseram : "Ele a b riu os olhos
d a q u e le cego. A caso n ão p o d e ria ta m b é m ter feito alg o p a ra im p e d ir
q u e este h o m e m m o rre sse ? " 38C o m isto su a s em o çõ es se a g ita ra m ou-
tra v ez, Je su s foi ao tú m u lo .
E ra u m a c a v e rn a com u m a p e d ra p o sta so b re ela. 39"T irai a p e d ra " ,
o rd e n o u Jesus. M arta, irm ã d o m o rto , disse-lhe: "S en h o r, é d e q u a tro
d ias; já c h eira m al". 40Jesu s replicou: " N ã o te a sse g u re i eu q u e, se cre-
res, v e ria s a g ló ria d e D eu s?" 41E ntão, r e m o v e ra m a p e d ra . E ntão Jesus
o lh o u p a ra o a lto e disse:

"P a i, g raç a s te d o u p o rq u e m e ou v iste.


42N a tu ra lm e n te , e u seu sei q u e s e m p re m e o u v es,
m a s e u lh e d ig o p o r c a u sa d a m u ltid ã o q u e jaz ao red o r,
p a ra q u e creiam q u e m e e n v ia ste".

43T e n d o d ito isto , c lam o u em alta voz: "L ázaro , v e m p a ra fora!"


44O m o rto sa iu , te n d o as m ão s e os p é s lig a d o s com faixas e seu rosto
e n v o lto em u m lenço. " D e sata i-o ", d isse -lh e s Jesus, "e deix ai-o ir".

NOTAS

11.1. Lázaro. O nom e L a Qzã r é um a forma abreviada de Eleazar; inscrições


ossuárias m ostram que o nom e Eleazar era com um nos tem pos neotes-
tam entários. Este hom em não aparece na tradição sinótica; mas o fato de
que o nom e significa "Deus ajuda" não é razão suficiente para se pensar

34: d is s e ; 38: v e io . 39: o r d e n o u , d is s e ; 40: re p lic o u ; 44: d is s e . Tem po presente histórico.


70 4 O L ivro d o s S in ais

que ele seja um a figura m eram ente simbólica. N otam os que o evangelis-
ta não explica o nome de Lázaro.
Betânia. Alguns sugeriríam um papel figurativo deste nome, interpretado como
a refletir Bêt-‘anyã, "Casa de aflição"; ver nota sobre a Betânia dalém do Jor-
dão em 1,28. Não obstante, a Betânia próxima a Jerusalém é bem atestada
como o lugar onde Jesus residia quando visitava Jerusalém (Mc 11,11; 14,3);
e, portanto, Betânia como o local do relato de João é bastante plausível sem
recorrer-se a simbolismo. E bem provável que Betânia seja identificada com
a Ananyah mencionada em Ne 11,32; a sequência das cidades mencionadas
antes de Ananyah (Anatote e Nobe) sugere que ela deve ser localizada justa-
mente a leste de Jerusalém. Ver W. F. A lbright, BASOR 9 (1923), 8-10. Hoje, a
cidade é chamada El 'Azariyeh, nome derivado de "Lázaro".
Maria e sua irmã Marta. Estas duas irmãs, com Marta m encionada prim eiro
(como em Jo 11,5.19), aparece na tradição sinótica somente em Lc 10,38. A
sequência geográfica em que Lucas menciona o incidente que as envolve,
como parte da viagem de Jesus a Jerusalém, sugeriría que sua aldeia ficava
na Galileia ou Samaria. Não obstante, o relato lucano da viagem a Jerusa-
lém é um amálgama de cenas, muitas das quais Lucas não podería localizar
com precisão, ou cronologicamente, ou geograficamente. E interessante que
o relato lucano segue a Parábola do Bom Samaritano que envolve a viagem
de um homem de Jerusalém a Jerico - viagem que o faria passar pela Be-
tânia descrita em João. Assim, poderia haver algum a reminiscência latente
na sequência lucana da localização da aldeia de Marta e Maria nas proximi-
dades de Jerusalém. Que João identifique Betânia como a aldeia de Maria e
Marta pode indicar que o leitor, que nada soubesse de Lázaro, esperava-se
que estivesse familiarizado com os nomes das duas irmãs. O OSsin e, talvez,
T a c i a n o trazem: "Ele era de Betânia, o irmão de Maria e Marta".

2. Aquela que ungiu 0 Senhor. Evidentem ente, este versículo é um parêntese


acrescido pelo redator: refere-se a um a cena no capítulo 12 que ainda não
fora narrada; ele usa o term o "Senhor", o qual João geralm ente não usa
para Jesus durante o ministério, ao descrevê-lo na narrativa na terceira
pessoa. B u l t m a n n , p. 302, pensa que este versículo é um a harm onização
com o relato da unção em Mc 14,3-9; todavia, quase todas as palavras
vêm do relato de Jo 12,13‫־‬.
3. Senhor. Uma vez mais, esta palavra poderia ser traduzida como "senhor"
como sim plesm ente um título de respeito, m as aqui já são crentes os que
estão falando.
aquele que amas. Esta descrição, que usa philein, "am ar", é a base para a
sugestão de que Lázaro é o anônim o "discípulo a quem Jesus am ava"
(1agapan em 13,23; 19,26; 21,7.20; philein em 20,2). Ver discussão, p. 100.
38 · Jesus dá v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 7 05

4. [de Dews]. Isto é om itido ou substituído em dois papiros prim itivos ( P 6,


P 5), a OL e as versões cópticas. Aqui e em 5,25 são os únicos lugares em
João que Jesus usa o term o "Filho de Deus" partindo diretam ente dele
(10,36 envolve a citação de um salmo; a Vulgata Clementina, em 5,28, diz
"Filho de Deus").
por ela. Presum ivelm ente, através da enferm idade; mas, gramaticalmente,
o "ela" poderia referir-se à glória de Deus.
5. amava. Aqui, o verbo é agapan, como contrastado com philein em 3,11 (philos),
36. Ali parece não haver grande diferença; ver nota sobre 5,20 e Apêndice
1:1, p. 794ss. O am or de Jesus para com Lázaro já foi afirmado no v. 3, e
realmente não se faz necessário aqui. O v. 5 parece ser um parênteses para
assegurar ao leitor que a falha de Jesus em ir ter com Lázaro (6) não reflete
indiferença. Como os vs. 5 e 6 ora estão, oferecem um paradoxo.
6. quando ouviu. Isto parece repetitivo depois do uso da m esm a expressão no
v. 4; provavelm ente seja um a retom ada.
7. Então. Depois de dois dias, Jesus age. A lguns sugerem um a conexão com o
segundo m ilagre em Caná, o qual é tam bém um milagre gerador de vida
e ocorre depois de Jesus perm anecer em Samaria por dois dias (4,40.43);
outros sugerem um a sem elhança com a própria ressurreição de Jesus
que ocorreu ao terceiro dia (IC or 15,4). Tudo isto parece m uito duvidoso.
voltemos. O palin é om itido em algum as versões antigas.
8. Rabi. Esta é a últim a vez que os discípulos se dirigem a Jesus com este
título. "Rabi" foi tam bém usado em 9,2; note as sim ilaridades entre 9,2-5
e 11,8-11.
acabaram de tentar apedrejar-te. É bem provável que a intenção é um a refe-
rência a 10,31.
9. a luz deste mundo. Isto significa o sol, m as no nível teológico é um a referên-
cia a Jesus (8,12; 9,5).
10. não tem em si nenhuma luz. O Codex Bezae diz: "ela [i.e., a noite] não tem
luz em si"; m as esta é um a tentativa de simplificar. Evidentemente, os
judeus pensavam que a luz residia nos olhos (Mt 6,22-23).
11. despertá-lo. Esta expressão não é usada no grego secular no sentido de
"despertar da m orte", segundo nosso conhecimento.
12. adormeceu. No hebraico e no grego, tanto secular como na LXX, "dorm ir"
pode ser um eufem ism o para morte, m as os discípulos não conseguem
entender essa alusão. Bultmann, p. 3046, nega que isto seja um caso de
incom preensão joanina que, por sua definição, envolve confusão do ce-
lestial com o terreno; isto parece arbitrário.
sua vida será salva. Os discípulos creem que o sono repousante significa que
a crise da enferm idade já passou. O passivo de sõzein, "salvar", pode
70 6 O Livro d o s S in ais

significar, em um nível m eram ente popular, "recuperar-se da enferm i-


dade", m as João está lidando com o tema da salvação espiritual. P75 diz
"ele se erguerá".
15. para que venhais a ter fé. Esta é um a tentativa de representar o aspecto de
um ato único implícito no aoristo.
16. Tomé. Não há m uita evidência de que o aram aico te 'õmâ ("Gêmeo"; heb.
te'õm ) fosse usado como um nom e pessoal. Tomé podería representar
um a transliteração, m as o BAG, p. 367, sugere que "Tom é" fosse um
nom e grego que, por se assem elhar ao term o semítico, foi adotado pelos
judeus nas regiões de fala grega.
(este nome significa "Gêmeo")■ A palavra grega para gêmeo é didymos, e este
é um nome grego bem atestado. Alguns até mesmo querem que entenda-
mos João como querendo dizer que o homem era cham ado Te 'õmâ em
aramaico ("Tomé", pois, seria o m odo grego de dar seu nom e semítico, e
não um nom e grego) e Didymos em grego: "Tomé, cham ado Dídimo". Não
obstante, ele é conhecido em todas as listas dos Doze como Tomé, nunca
como Dídimo. João, consistentemente, explica o nome do hom em (20,24;
21,2); para explicações similares, ver 1,38; 4,25; 20,16. Há um a interessante
tradição de que Tomé era gêmeo de Jesus, ao m enos na aparência.
morrermos com ele. A lguns veríam aqui um a verdade irônica, pois na ter-
minologia paulina todos os cristãos têm que m orrer com Cristo (Rm 6,8;
2Cor 5,14).
17. [já]. Isto é om itido em algum as testem unhas im portantes; em outras, se
encontra em diferentes posições. Pode ser um esclarecim ento de copista.
quatro dias. Este detalhe é m encionado para deixar claro que Lázaro real-
m ente havia m orrido. Havia um a opinião entre os rabinos de que a alm a
pairava perto do corpo durante três dias, m as depois disso já não havia
esperança de ressurreição (StB, II, p. 544).
18. apenas cerca de três kilometros. Literalmente, "quinze estádios" ou 3 km.
Isto concorda com a localização de El 'A zariyeh (ver nota sobre v. 1).
19. muitos dos judeus. O evangelista enfatiza o núm ero dos que seriam teste-
m unhas do milagre.
oferecer suas condolências. Ou "consolar", como tem os traduzido o v. 31. Em
um clima quente onde não se costum a em balsam ar, o sepultam ento ocor-
re no dia da morte. Isto significa que o pranto, que precede o sepultam en-
to em nossa cultura, deve seguir o sepultam ento naqueles países. Segun-
do o costum e nos dias de Jesus, os sexos cam inhavam separadam ente na
procissão fúnebre, e depois do sepultam ento as m ulheres retornavam do
túm ulo sozinhas para iniciar o pranto que durava trinta dias. Este pranto
incluía lamento em voz alta e expressão dramática de tristeza. Ver StB, IV,
38 · Jesus d á v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 707

pp. 592-607, para costum es fúnebres; tam bém E dersheim, Life and Times of
)esus (Nova York, 1897), I, pp. 554-56; II, pp. 316-20.
20. Jesus estava chegando. É hipercriticism o dizer que isto contradiz a afirma-
ção do v. 17 de que ele havia chegado; descrição de eventos simultâneos
é sem pre incômodo.
Maria ficou sentada quietamente. As m ulheres de luto sentavam-se no chão
da casa (ver Ez 8,14). Do v. 29 deduzim os que Maria não fora informada
da chegada de Jesus.
21. Senhor. Isto é om itido no Codex Vaticanus e no OSsin.
23. ressuscitará. As palavras usadas nos vs. 23-25 são anastasis e anistanai,
como em 5,29 e 6,39-45; a única vez em João que um a palavra desta raiz
é usada para a ressurreição de Jesus é em 20,9, embora esse uso seja fre-
quente em Atos. O verbo egeirein no passivo é o term o comum para a
ressurreição de Jesus nos evangelhos.
25. [e a vida]. Isto é om itido em P45, um a parte da OL e da OSsin e algumas
vezes em O rígenes e C ipriano. Na verdade, é mais difícil explicar omissão
do que adição, a m enos que a menção isolada da ressurreição no v. 24
tivesse tido algum a influência. Não obstante, por outro lado, a frase con-
corda logicam ente com o fluxo de idéias - ver comentário.
ainda que morra. O aoristo aponta para a com preensão disto como um a refe-
rência à m orte física; o que vai contra a tradução "ainda que esteja morto
[i.e., em pecado]".
26. todo aquele que está vivo. E um a referência à vida física, ou à vida espiri-
tual? B ultmann, L agrange e H oskyns pensam que o v. 26 se refere à vida
espiritual, e entendem a com paração entre 25 e 26 assim:
25: A fé, a despeito da m orte física, levará à vida eterna.
26: Vida física com binada com a fé não está sujeita à morte.
B ernard e outros m antêm que o v. 26 se refere à vida espiritual ou eterna.
Então, a com paração seria:
25: O crente, se m orrer fisicamente, viverá espiritualm ente.
26: O crente que está vivo espiritualm ente, jamais m orrerá espiritualm ente.
Um argumento para este ponto de vista é que um só artigo governa os dois
particípios "vivendo e crendo" no v. 26, uma indicação de que ambos se en-
contram no mesmo plano. Além do mais, o verbo "viver" se relaciona com
zõê, "vida", termo que em João é a palavra chave para vida etema. Então,
parece que este segundo ponto de vista é o mais convincente dos dois. Em
ambos, 25 e 26, vida é espiritual ou etema; em 25, morte é física, enquanto em
26 é morte espiritual. O mesmo uso duplo de morte se encontra em 6,49-50.
em mim. Isso acom panha "crê", m as tam bém pode estar implícito acom-
p an h ar "vivo"; para os dois particípios que governam a m esm a frase
70 8 O Livro d o s S in ais

preposicional, ver 1,51. Estar vivo em Cristo certam ente significaria estar
vivo espiritualm ente, em vez de fisicamente.
27. 0 Messias, 0 Filho de Deus. Isso é m uito sem elhante à confissão petrina em
Mt 16,16; contrastar Jo 6,69.
que havia de vir ao mundo. Jo 6,14: "Este é sem dúvida o Profeta que havia de
vir ao m undo"; ver nota ali. M arta parece associar diferentes expectati-
vas aqui; podem os com parar isto com os diferentes títulos dados a Jesus
em 1,41.45.49.
28. O Mestre. Dado como o equivalente grego de rabi em 1,38 e 20,16, "Mes-
tre" é usado para Jesus em 3,2.10; 13,13.14. Em discurso direto no presen-
te capítulo, as irm ãs se dirigem a Jesus como "Senhor".
30. ainda não havia entrado na aldeia. A perm anência de Jesus fora da cidade e
o cauteloso sussurro sobre sua presença, no v. 28, sugerem a alguns que
há um a tentativa de conservar a presença de Jesus de ser tão am plam ente
conhecida. Evocamos o elem ento de perigo m encionado no v. 8.
31. pensando. P66 e m uitos m anuscritos posteriores dizem "dizendo".
chorar ali. Isso significa lam entar; ver o com portam ento de M aria M adalena
junto ao túm ulo de Jesus em 20,11.15.
33. se estremeceu, movido das mais profundas emoções. Isso traduz duas expres-
sões gregas. A prim eira, traduzida por "m ovido com as m ais profundas
emoções", é o aoristo m édio do verbo embrimasthai, que aparece tam-
bém no v. 38; aqui, o verbo é usado com a expressão tõ pneumati, "em
espírito", enquanto em 38 é usado com en heautõ, "em si" - estes são
semitismos para expressar o im pacto interior das emoções. O significa-
do básico de embrimasthai parece im plicar um a expressão externa de
angústia. Na LXX, o verbo, juntam ente com seus cognatos, é usado para
descrever um a dem onstração de indignação (p. ex., Dn 11,30), e este uso
tam bém se encontra em Mc 14,5. O verbo descreve tam bém a reação de
Jesus para com os necessitados (Mc 1,43; Mt 9,30). Nestes últim os exem-
pios, o verbo expressa ira? Embora não pareça que Jesus teria se irado
para com os afligidos, é bem provável que se irasse com a enferm idade
deles e doenças que eram tidas como m anifestações do reino do m al de
Satanás. (Deve notar-se tam bém que o uso do verbo nessas passagens si-
nóticas está associado à severa ordem de m anter em segredo o que Jesus
fizera e o que ele é). Voltando à passagem em João, descobrim os que os
Padres gregos a entendiam no sentido de ficar irado, em bora a maioria
das versões ameniza a emoção, tornando-a em preocupação. P45, P66 e o
Codex Bezae oferecem um a redação que tam bém am eniza o impacto;
dizem "como se" antes do verbo. Tradutores m odernos oferecem inter-
pretações tais como "gem er, suspirar, im pacientar-se".
38 · Jesus dá v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 7 09

A segunda expressão grega, traduzida por "se estrem eceu", é tarassein


heauton. O verbo Tarassein, usualm ente intransitivo (14,1.27), implica
profunda perturbação; aqui, usado com o reflexivo, significa literalmen-
te "ele se perturbou". Note a expressão tarassein en pneumati em 13,21,
a qual tem elem entos de am bas as expressões gregas na presente pas-
sagem. B lack, pp. 174-78, sugere que estas duas expressões gregas são
traduções variantes da única expressão aram aica original que significava
"com over-se fortem ente". Boismard, Evjean, pp. 49-51, concorda e ofere-
ce exem plos das citações patrísticas de João onde aparece som ente um a
ou outra expressão.
34. vem e vê. Jesus usou estas palavras em 1,39. L ightfoot, p. 223, traça um
dram ático contraste entre o convite de Jesus de vir e ver a fonte de luz e
vida e o convite que os hom ens a Jesus para vir e ver a m orada de trevas e
m orte. Provavelm ente, tal contraste vai além da intenção do evangelista.
35. chorou. O pranto é causado pelo pensam ento de Lázaro estar no túm u-
lo, mas, prim ariam ente, o propósito do versículo é estabelecer o estágio
para v. 36. Em Lc 19,41, Jesus chora sobre Jerusalém; Hb 5,7 menciona
suas lágrim as no que parece ser um a referência à cena do Getsêmani.
37. abriu os olhos. Estes judeus não duvidam da realidade do m ilagre da cura
do cego, como fizeram "os judeus" do capítulo 9. E bem provável que
esta seja outra indicação de diferentes estratos da tradição joanina.
38. suas emoções se agitaram. Ver nota sobre v. 33.
uma caverna com uma pedra posta sobre ela. Túm ulos com um a abertura ver-
tical eram m ais com uns para sepultam ento privado do que túm ulos com
cavernas horizontais. A pedra afastava os animais. O local de sepulta-
m ento era fora da cidade, porque assim os vivos podiam contrastar a
im pureza ritual do contato com os cadáveres dos mortos.
39. a irmã do morto. A identificação de Marta neste ponto do relato é estranha;
sugere Bultmann e outros que o papel de Marta no relato, nos vs. 20-28,
era secundário. Este evangelho, entretanto, mostra certa tendência a iden-
tificar repetidas vezes os personagens. A identificação é omitida na OL e
no OSsin e no Codex Koridethi tardio; todavia, isto pode ser um a tentativa
de evitar a dificuldade. A palavra para "m orto", usada aqui, é diferente da
palavra usada no v. 44; para alguns este seria outro sinal de glosa.
quatro dias. Ver nota sobre v. 17.
cheira mal. A sugestão de que a decomposição teria começado não contra-
diz o quadro dos cuidadosos preparativos implícito no v. 44. Os óleos
e especiarias em pregados na prática judaica de sepultam ento preve-
niam odor desagradável por certo tem po; m as não havia embalsama-
m ento, tal como o praticado no Egito, o qual im pedia a decomposição.
710 O Livro d o s S inais

O OS'·'" adiciona um a sentença de exclamação de Marta: "Senhor, por


que estão rem ovendo a pedra?"
40. não te assegurei? As palavras que seguem não são um a citação literal de
nada que fosse dito a M arta neste capítulo, mas, antes, um a implicação
geral das observações de Jesus. Ver comentário.
41. olhou para 0 alto. O gesto de olhar para o céu é um prelúdio natural à
oração, como visto em Lc 18,13, onde o publicano não se sentiu digno de
fazer este gesto. Os sinóticos m encionam que Jesus elevou os olhos para
o céu antes de m ultiplicar os pães, João menciona isto na oração "sacer-
dotal" de 17,1. Uns poucos m anuscritos gregos dizem "ao céu" em vez
de "para o alto", no presente versículo.
42. Eu lhe digo. O verbo grego está no aoristo, m as isto provavelm ente re-
presenta um a tradução literal do perfeito no hebraico. Com verbos que
significam falar, o hebraico costum a usar o tem po perfeito para um a ação
instantânea em que é com pletado no m om ento em que a palavra tem
sido pronunciada (ver J o ü o n , Grammaire de 1'Hébreu Biblique, § 112s.). Há
um a variante escassam ente atestada, "eu o faço", que é defendida por
Bernard, II, p p . 398-99.
jaz ao redor. Este uso intransitivo é único no grego do NT, e B e r n a r d de-

fende outra redação: "fica perto de m im ". Uma vez mais, o apoio textual
para sua proposta é fraco.
43. clamou. O verbo kraugazein ocorre somente oito vezes em toda a Bíblia gre-
ga, seis das quais estão em João. Nos capítulos 18-19, ele é usado quatro
vezes para brados da m ultidão para que crucificassem a Jesus. Assim, po-
de-se traçar um contraste entre o brado da m ultidão que traz m orte a Jesus
e o brado de Jesus que traz vida a Lázaro. Todavia, que o evangelista ten-
cionava tal contraste é m uito duvidoso, pelo uso do verbo em 12,13, onde
a m ultidão entoa o louvor de Jesus, ainda que com intenções nacionalistas.
44. ligados com faixas. Esta é um a palavra grega rara, usada para a cobertura
do leito em Pr 7,16; presum ivelm ente, em João se refira a um determ ina-
do tipo de bandagem . A dúvida cética de como Lázaro sairia do túm u-
lo se suas mãos e pés estavam atados é realm ente bastante estulta em
um relato que obviam ente pressupõe o sobrenatural. Poderia haver uma
razão teológica para m encionar as indum entárias fúnebres. Em 20,6-7
somos inform ados que as vestes fúnebres de Jesus perm aneceram no tú-
mulo, talvez com a conotação de que não havería m ais utilidade para
elas, já que ele jam ais m orrería outra vez. Portanto, alguns estudiosos
sugerem que, visto que Lázaro m orrería outra vez, por isso ele saiu com
suas vestes fúnebres. Todavia, não há outra evidência de que o futuro
destino do Lázaro ressurreto entra na perspectiva do evangelista.
38 · Jesus dá v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 711

seu rosto envolto em um lenço. N o s e p u lta m e n to d e J esu s há ta m b é m m e n ç ã o


d e u m a co b ertu r a se p a r a d a p ara a ca b eç a (20,7).

C O M E N T Á R IO : G ER A L

Já tem o s m e n c io n a d o q u e em d e te rm in a d o estágio na co m p o sição do


Q u a rto E v a n g e lh o o m in isté rio p ú b lico term in o u com o q u e ag o ra é
1 0 ,4 0 4 2 ‫־‬, e q u e os c a p ítu lo s 11-12 fo ram u m a ad ição p o ste rio r ao p lan o
d o ev an g elh o . A lém d o s a rg u m e n to s oferecidos na p. 696, p o d e m o s
a g o ra c h a m a r a aten ção p a ra a lg u n s a sp ecto s em 11 e 12 q u e e n d o ssam
esta su g e stã o . N ã o há d ú v id a d e q u e o m ate ria l d o s c a p ítu lo s 11 e 12
v e m d e círcu lo s jo an in o s, p o is são ricos em asp ecto s tip ica m e n te joa-
n in o s (p e rs o n a lid a d e s com o T om é, Filipe e A n d ré; egõ eim i em 11,25;
" in c o m p re e n s ã o " em 11,11-14; o tem a d e se r "ex a lta d o " em 12,32; m ui-
tas p a la v ra s d o v o ca b u lá rio jo an in o etc.). T o d av ia, n o u so d o term o "os
ju d e u s " , estes c a p ítu lo s d ife rem n o ta v e lm e n te d o q u e tem o s visto nos
c a p ítu lo s 1-10. E m 11,19.31.33.36.45; 12,9.11, os ju d e u s n ã o são as auto-
rid a d e s ju d a ic a s hostis, e sim o p o v o c o m u m d a Ju d eia e d e Jerusalém ,
q u e fre q u e n te m e n te se m o stra m sim p á tic o s a Jesus e até m esm o creem
nele. V im os esta p a rtic u la rid a d e em 8,31, u m v ersícu lo q u e d e u todo
sin al d e se r u m a ad ição red a c io n a l, e é p o ssív el q u e os cap ítu lo s 11-12
sejam u m a a d iç ã o feita n o m esm o estág io d o p ro cesso redacional.
U m a rg u m e n to ain d a m ais convincente p o d e ser ex traíd o da se-
q u ên cia em q u e o m ilag re d e L ázaro ora aparece. E colocado en tre a
festa d a D edicação no in v ern o (10,22) e a festa d a Páscoa na p rim av era
(11,55), n esta ú ltim a referência se in sin u a q u e o m ilagre ocorreu p e rto do
final d e ste in terv alo d e três a q u a tro m eses. Se seg u irm o s esta sequência,
d e v e m o s p re s u m ir q u e Jesus d eixou seu retiro na T ransjordânia (10,40),
su b iu a B etânia e então, d ep o is d o m ilagre, retirou-se o u tra vez para
E fraim p a ra os lad o s d o d eserto (11,54). S u b seq u en tem en te, ele voltaria
a B etânia seis d ias an te s d a Páscoa (12,1), so m en te p a ra v o ltar a se ocul-
tar o u tra v ez d e p o is d e p e rm a n ec e r p re g a n d o u m único dia em Jerusa-
lém (12,36). Esta com plexa sequência é difícil d e conciliar com o q u a d ro
sinótico n o q u al an tes d a Páscoa Jesus veio d a T ransjordânia, através-
sa n d o Jerico até Jerusalém , te n d o com Betânia com o seu dom icílio. N a
p. 696 ressaltam o s q u e seria m u ito m ais fácil conciliar a sequência em
João com a d o s sinóticos se os cap ítu lo s 11-12 n ão forem considerados.
712 O L ivro d o s S inais

O p ro b le m a d e se q u ên cia se to rn a a in d a m ais difícil q u a n d o c om -


p re e n d e m o s q u e João faz d o m ilag re d e L ázaro a ca u sa d ire ta d a m o r-
te d e Jesu s, p o is ele p ro v o ca u m a sessão d o S in é d rio (11,46-53) q u e
to m a m a d ecisão d e m a ta r Jesus. O tem a d o m ila g re d e L á z aro tam -
b ém se e n c o n tra n a e n tra d a triu n fa l d e Jesu s em Je ru sa lé m (12,9-11).
O m ais s u rp re e n d e n te d e tu d o isso é q u e os sin ó tico s n a d a sa b em d e
L ázaro. D esc re v e m com m u ito m ais d e ta lh e s d o q u e Jo ão os d ia s p re -
ce d en te s à m o rte d e Jesus, os d isc u rso s q u e ele e n u n c io u n o s á trio s d o
tem p lo , e a sessão d o S inédrio; p o ré m n ã o fazem m en ç ã o d a re ssu rre i-
ção d e L ázaro. C o m o é p o ssív e l ex p lic ar tal d isc re p â n c ia , se o m ila g re d e
L ázaro su c e d e u na se q u ên c ia em q u e João a colocou?
A lg u n s e s tu d io so s reso lv e m o p ro b le m a s u g e rin d o q u e o re la to
d a ressu rre içã o d e L ázaro é u m a co m p o siç ão fictícia b a s e a d a em m a-
terial sin ó tico (ver R ichardson , p. 139). P re su m e -se q u e o re la to joa-
n in o tev e su a in sp ira ç ã o n a n a rra tiv a lu ca n a d a re ssu rre iç ã o d o filho
d a v iú v a d e N airn (7,11-16), e p e n sa -se q u e os p e rs o n a g e n s jo a n in o s
fo ram s u g e rid o s p e la n a rra tiv a lu ca n a d e M arta e M aria (10,38-42) e a
p a rá b o la lu can a d o rico e d e L ázaro (16,19-31). E m p a rtic u la r, a lin h a
final d a p a rá b o la é sig n ificativ a, p o is à s u g e stã o d e q u e L á z aro reg re s-
saria d o s m o rto s p a ra a v isa r os irm ã o s d o rico, D e u s diz: " N ã o se rã o
co n v e n cid o s n e m q u e a lg u é m ressu sc ite d o s m o rto s".
C o m o objeção g e ra l c o n tra tal p ro p o sta , n o ta m o s q u e ela p re s s u -
p õ e u m a a b o rd a g e m d o p ro b le m a d a tra d iç ã o jo a n in a q u e n ã o te m o s
v isto b e m s u c e d id a ao a p lic ar-se e m o u tro s p e rs o n a g e n s d o e v a n g e lh o ,
em co n creto , n o s re fe rim o s a teo ria d e q u e Jo ão n ã o c o n té m tra d iç ã o
h istó rica in d e p e n d e n te , m a s é d e p e n d e n te d o re m a n e ja m e n to d e de-
talh e s sin ó tico s. N o e n ta n to , p re c is a m e n te p o rq u e os c a p ítu lo s 11-12
p o d e m te r tid o u m a h istó ria p ro p ria m e n te su a , a p r o p o s ta carece d e
d isc u ssã o d e ta lh a d a . E m se u a rtig o , W. W ilkhns su je ito u o re la to d e
L ázaro a u m a p e n e tra n te a n á lise literá ria . Ele e n c o n tra n o s u b s tra to
d o re la to jo a n in o u m a b re v e n a rra tiv a d a re ssu rre iç ã o d e L á z a ro d e
B etânia q u e n ã o é m ais difícil d e c re r q u e a d a re s s u rre iç ã o d o filho
d a v iú v a d e N a im , o u a re ssu rre iç ã o d a filha d e Jairo (M c 5,22-43).
Q u e Jesu s re ss u sc ita v a m o rto s é u m a im p o rta n te p a rte d a tra d iç ã o
sin ó tica (M t 11,5), e n ã o d e v e m o s se n tir-n o s s u rp re s o s d e en co n -
tra r o m e sm o q u a d ro n a tra d iç ã o jo an in a . Q u a n to à p ro p o s ta d e q u e
a in sp ira ç ã o d o re la to jo a n in o v e io d a p a rá b o la lu c a n a d e L ázaro ,
é c o m p le ta m e n te p la u s ív e l q u e o e m p ré s tim o e stiv e sse n a d ire ç ã o
38 · Jesus dá v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 713

o p o s ta , c o m o s u g e re D unkerley, art. cit. A p a rá b o la lu ca n a p o d e ría


fa c ilm e n te te r c h e g a d o a u m a c o n c lu sã o co m 16,26, o n d e o d e stin o
d e L á z a ro é c o n tra s ta d o com o d o h o m e m rico. O tem a d o s irm ã o s
d o h o m e m rico e a re ssu rre iç ã o d e L á z aro (16,27-31) p a re c e ser u m a
reflex ã o p o s te rio r, p o is n ã o h á p re p a ra ç ã o p a ra ela n a n a rra tiv a . Já vi-
m o s m u ito s c o n ta to s e n tre a tra d iç ã o lu ca n a e jo an in a , em a lg u n s d o s
q u a is L u cas p o d e ria m u ito b e m te r sid o in flu e n c ia d o p o r u m a n tig o
e s tá g io (oral?) d a tra d iç ã o jo a n in a , e o fin al s e c u n d á rio d a p a rá b o la
p o d e ria s e r o u tro e x em p lo .
A lu z d o c o n te ú d o d o re la to jo a n in o , n ã o h á ra z ã o c o n c lu siv a
p a ra a s s u m ir q u e a e s tr u tu r a d o re la to n ã o se o rig in o u d e tra d iç ã o
p r im itiv a ac erc a d e Jesu s. O q u e c a u sa d ú v id a é a im p o rtâ n c ia q u e
Jo ão d á à re s s u rre iç ã o d e L á z a ro c o m o a c a u sa d a m o rte d e Jesus. Su-
g e rim o s q u e a q u i te m o s o u tro caso q u e m o stra o g ê n io p e d a g ó g ic o
d o Q u a r to E v a n g e lh o . O s e v a n g e lh o s sin ó tic o s a p re s e n ta m a co n d e-
n a ç ã o d e Je su s c o m o u m a rea ç ã o a to d a su a c a rre ira e às m u ita s coi-
sa s q u e ele d iss e e fez. N a e n tr a d a triu n fa l d e Jesu s e m Je ru sa lé m , em
Lc 19,37 s o m o s in fo rm a d o s q u e , em g r a n d e m e d id a p a ra o d esco n -
te n ta m e n to d o s fa rise u s, o p o v o e sta v a lo u v a n d o a D e u s p o r cau sa
" d e todos os poderosos milagres q u e p re s e n c ia v a m " . O Q u a rto E v an g e-
lh o n ã o fica s a tisfe ito com tal g e n e ra liz a ç ã o . N e m é su fic ie n te m e n te
d ra m á tic o n e m b e m c a te g ó ric o d iz e r q u e to d o s o s m ila g re s d e Jesus
d e s p e r ta v a m o e n tu s ia s m o d a p a rte d e a lg u n s e ao ó d io d a p a rte
d e o u tro s . E a s sim o a u to r d e c id iu e le g e r um milagre e fazer d e ste o
r e p r e s e n ta n te p rim á rio d e to d o s o s p o d e ro s o s m ila g re s d e q u e fala
L ucas. C o m u m m ag n ífic o s e n tid o d ra m á tic o d e d e s e n v o lv im e n to
e le e s c o lh e u u m m ila g re em q u e Jesu s re s s u s c ita u m h o m e m m o rto .
T o d o s os m ila g re s d e Je su s sã o sin a is d o q u e ele é e d o q u e v e io d a r
ao h o m e m , m a s e m n e n h u m d e le s o sin a l se a p ro x im a m ais e stre ita -
m e n te d a re a lid a d e d o q u e n o d o m d a v id a . A v id a física q u e Jesu s d á
a L á z a ro a in d a n ã o p e rte n c e à e sfe ra d a v id a lá d e cim a, m a s se a p ro -
x im a ta n to d a q u e la e sfe ra q u e se p o d e d iz e r q u e c o n s u m a o m in iste -
rio d o s s in a is e in a u g u ra o m in is té rio d a g ló ria . A ssim , a re ssu rre iç ã o
d e L á z aro o fere c e u m a tra n siç ã o id e a l, o ú ltim o sin a l n o L ivro d o s
S in ais c o n d u z in d o ao L iv ro d a G ló ria. A lém d o m a is, a s u g e stã o d e
q u e o s u p re m o m ila g re d e d a r v id a ao h o m e m lev a à m o rte d e Jesus
o fere c e u m d ra m á tic o p a ra d o x o d ig n o d e re s u m ir a c a rre ira d e Je-
su s. E, fin a lm e n te , se u m e s q u e m a d e se te s tiv e sse a lg u m a in flu ên cia
714 O L ivro d o s S inais

n a c o m p o siç ã o d e s te e v a n g e lh o (p. 161), a a d iç ã o d o m ila g re d e Lá-


z a ro c o m p le ta o sé tim o sin a l ao L iv ro d o s S inais.
S u g erim o s, p o is, q u e, e n q u a n to a h istó ria b ásica p o r d e trá s d o re-
lato d e L ázaro p o d e ria v ir d e u m a tra d iç ã o p rim itiv a , su a rela çã o c a u -
sal c o m a m o rte d e Jesu s é m ais u m a q u e stã o d e p ro p ó sito p e d a g ó g ic o
e teo ló g ico jo a n in o d o q u e d e rem in iscên cia histó rica; e isto ex p lica
p o r q u e n e n h u m a co n ex ão c a u sa i d e sse tip o se e n c o n tra n a tra d iç ã o
sinótica. U m a h istó ria d e m ilag re q u e u m a v e z foi tra n s m itid a sem
co n tex to fixo o u seq u ên cia cro n o ló g ica foi u s a d a e m u m d o s ú ltim o s
estág io s na re d a ç ã o jo an in a co m o u m final d o m in isté rio p ú b lic o d e
Jesus. C o m o m en c io n am o s n a In tro d u ç ã o (p. 24), esta a d iç ã o p o d e
ter o c o rrid o n a se g u n d a re d a ç ã o d o e v a n g e lista d e se u e v a n g e lh o o u,
m ais p ro v a v e lm e n te , n a re d a ç ã o final.
D e n tro d o p ró p rio re la to , o m ila g re foi feito p a ra s e rv ir a o s p ro p ó -
sito s d a teo lo g ia jo an in a , m a s n ã o p o d e m o s a d m itir a teo ria d e W ilkens
d e q u e , ao d e s p ir toda a teo lo g ia jo a n in a , a lg u é m p o d e c h e g a r à for-
m a o rig in a l d o re la to n a tra d iç ã o p rim itiv a . Se a te o lo g ia jo a n in a
tin h a ra íz e s n o s d ito s d e Je su s, e c re m o s q u e sim , n ã o p o d e m o s e s ta r
c e rto s d e q u e o s te m a s teo ló g ic o s q u e o ra se s o b re ssa i c la ra m e n te e m
João n ã o e ra m e m b rio n á rio s n a fo rm a m a is a n tig a d o re la to . Q u e há
in d íc io s d e u m a a tiv id a d e re d a c io n a l d e n tr o d o re la to é ó b v io n a s
a d iç õ e s e n tre p a rê n te s e s e n c o n tra d a s n o s vs. 2 e 5 e n a s d u p lic a ç õ e s
q u e re s s a lta re m o s ab aix o . N ã o o b sta n te , p e rm a n e c e m o s cético s se
tais o b se rv a ç õ e s n o s c a p a c ita m a fa z e r co m ta n to s d e ta lh e s u m a re-
c o n s tru ç ã o co m o te n to u W ilkens.
V am o s a p o n ta r fin a lm e n te u m efeito q u e a p re s e n te se q u ên cia
d o e v a n g e lh o tem p ro d u z id o . Em 11,37, os ju d e u s asso c ia m a cu ra
d o cego (cap. 9) com o rela to d e L ázaro, e s u sp e ita m o s q u e a in te n ç ão
d o a u to r era fazer tal associação. H á a lg u n s p a ra le lo s in te re ssa n te s
fo rm ais e n tre os d o is rela to s (ver n o ta so b re v. 8). N o c a p ítu lo 9, a
cu ra d o cego foi u m a d ra m a tiz a ç ã o d o tem a d e Jesus co m o a lu z; a
ressu rre içã o d e L ázaro, em 11, é u m a d ra m a tiz a ç ã o d o tem a d e Jesus
co m o a v id a (11,25). O s d o is tem a s d e lu z e v id a fo ram m e sc la d o s no
P ró lo g o ao d e sc re v e r a relação d a P a lav ra aos h o m e n s (1,4). A ssim
co m o a P a lav ra d e u v id a e lu z ao s h o m e n s na criação , a ssim Jesu s, a
P alav ra e n c a rn a d a , d á lu z e v id a ao s h o m e n s em seu m in isté rio co m o
sin ais d a v id a e te rn a q u e ele d á a tra v é s d a ilu m in a ç ã o o b tid a d e seu
e n sin o (ju n to com o b atism o ).
38 · Jesus d á v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 715

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Versículos 1-6: Cenário

O re la to tra ta d o s p e rs o n a g e n s d e q u e m so m e n te Lucas, na tra d içã o


sin ó tica , m o stra a lg u m c o n h e cim e n to . V isto q u e a tra d iç ã o sinótica
c o n té m p o u c a lem b ran ç a d o m in isté rio d e Jesus n a Ju d e ia , o fato d e
n ã o m e n c io n a r ju d e u s o rig in á rio s d a Ju d e ia co m o M arta, M aria e Lá-
z a ro n ã o é tã o s u rp re e n d e n te . H á p o u c a p ro v a co n v in c e n te d e q u e
M arta e M a ria n ã o fo ra m m e n c io n a d a s na fo rm a o rig in a l d o relato
( W il k e n s ) e q u e a relação i r m ã o /ir m ã e n tre L ázaro e as d u a s m u lh e re s
é artificial. P o r d e trá s d e tal tese fre q u e n te m e n te h á u m a q u e stio n á v el
s u p o s iç ã o d e q u e a v ag a lo calização q u e L ucas faz d a casa d a s d u a s
m u lh e re s n a G alileia é c o rre ta (ver n o ta so b re v. 1). É u m a in te ressa n te
c o in c id ên c ia q u e os n o m e s d e L ázaro , M a rta e M aria têm a p a re c id o
n o s o ssá rio s d o 1“ sécu lo d.C . e n c o n tra d o s n a á re a d e Jeru salém , e
p e lo fato to d o s os três n o m e s têm sid o e n c o n tra d o s em u m tú m u lo
b e m p ró x im o d e B etânia (BA 9 [1946], 18).
H á fre q u e n te ê n fase so b re o a m o r q u e Jesu s n u tre p o r essa fam í-
lia. Se B etânia foi o lu g a r e m q u e Jesus se alojou q u a n d o veio a Jeru-
sa lé m (e isto é a te s ta d o n a tra d iç ã o sinótica), e n tã o n ã o deix a d e ser
ra z o á v e l s u g e rir q u e foi n e sta casa q u e ele ficou e q u e seu s m o ra d o re s
e ra m n a v e rd a d e se u s a m ig o s ín tim o s. M as João to m a o q u e p o d e ser
u m a rem in isc ên c ia g e n u ín a e o u sa com p ro p ó sito teológico; p o is Lá-
z a ro , a q u e le a q u e m Jesus a m a , p ro v a v e lm e n te esteja se n d o tid o com o
o re p re s e n ta n te d e to d o s a q u e le s a q u e m Jesus a m a , a sab er, os cris-
tãos. Isto é v isto q u a n d o c o m p a ra m o s " n o sso a m a d o [philos] L ázaro"
d e 11,11 co m o títu lo " a m a d o [philoi]" q u e 3Jo 15 u sa p a ra os cristãos.
P re c isa m e n te co m o Jesus d á v id a ao seu a m a d o L ázaro, assim d a rá
v id a a o s cristão s, se u s a m a d o s.
A im p o rtân cia sim bólica d o m ilagre se faz clara d e sd e o princí-
pio. N o relato d a cu ra d o cego (9,3) fom os in fo rm ad o s q u e a ceguei-
ra foi co m o p ro p ó sito d e q u e as ob ras d e D eus fossem rev elad as nele.
A ssim , e m 11,4 so m os in fo rm ad o s q u e a e n fe rm id a d e d e L ázaro é p ara a
glória d e D eus, visto q u e a glória d e D eus só será e v id en te q u a n d o o Fi-
lh o for glorificado. Tal afirm ação tem d iv erso s jogos d e p a la v ras u sad as
p o r João. A raz ã o p o r q u e a en fe rm id a d e não termina com a morte é p o rq u e
Jesu s d a rá v id a, isto é, v id a física com o sinal d e v id a e terna. Este m ilagre
716 O Livro d o s S inais

glorificara a Jesus, n ã o ta n to n o se n tid o em q u e o p o v o o a d m ira rá e o


lo u v a rá , m as n o se n tid o em q u e ele lev a rá à su a m o rte , a q u a l é u m
p a sso n ecessário p a ra su a glorificação (12,23-24; 17,1).
O p a ra d o x o criad o p ela ad ição red acio n al d o v. 5 co m o p a rê n te se s
é in te ressa n te . P o r a m o r, Jesu s n ã o foi a ju d a r o e n fe rm o L ázaro , p o is
ele seria m ais ú til a L ázaro q u a n d o este e stiv e sse m o rto . E v id e n te m e n -
te, o a u to r deseja q u e p e n se m o s q u e L ázaro m o rre u im e d ia ta m e n te
assim q u e as irm ã s e n v ia ra m a m en sa g e m . O d ia g a sto p a ra a m en -
sag em c h e g ar a Jesus, m ais o s d o is d ia s em q u e Je su s p e rm a n e c e u ali
d e p o is d e receb er a m en sa g e m (6), m ais o d ia q u e g a sto u p a ra c h e g a r
a B etânia - estes são os q u a tro d ia s d o v. 17. P a ra os p o ssív e is m o tiv o s
teológicos e a p o lo g é tic o s p o r d e trá s d a m en ç ã o d e ste s d ia s, v e r n o tas
so b re vs. 7 e 17. P o d e m o s n o ta r q u e a m e n sa g e m d a s irm ã s a Jesus
(3) é o m esm o tip o d e su g e stã o d isc re ta q u e e n c o n tra m o s e m 2,3: a p re -
se n ta u m a situ a ç ão e m q u e Jesu s p o d e a ju d a r se m q u e fo rm a lm e n te
isso fosse e x ig id o dele. N e m em C a n á n e m a q u i é Je su s m o v id o p e la
s u g e stã o alh eia. C o m o B u l t m a n n , p. 3 0 3 , o e x p re ssa , " a s o b ra s d e Je-
su s têm su a p ró p ria h o ra".

Versículos 7-16: Jesus subiría à judeia?

A d iscu ssão se Jesus iria à Ju d e ia p a re c e c o rre r em d o is m o m e n -


tos: (a) O s vs. 7-10 e 16 se p re o c u p a m com su a su b id a p a ra m o rre r, e
n estes v ersícu lo s n ão h á m en ção d e so c o rre r L ázaro. A fu n çã o des-
tes v ersícu lo s é v in c u la r o rela to g eral ao q u e aco n te c eu n o s c a p ítu lo s
p rec e d e n te s, a saber, as d iv e rsa s ten ta tiv a s d e a p e d re ja r Jesus (espe-
cialm en te 10,31) e su a b u sca p o r refú g io , d e ix a n d o a Ju d e ia e e n tra n -
d o n a T ra n sjo rd ân ia (10,40). O tem a d e lu z e trev as, e m 11,9-10, se re-
laciona com 9,4, o n d e h á a m esm a ên fase d e tira r v a n ta g e m d a luz.
A lu z d o m u n d o m en c io n ad a em 9,9 tam b é m se e n c o n tra e m 8,12, e
cad a p a ssa g e m ex p ressa re p u lsa d e c a m in h a r n a s trev as. A u rg ên c ia
q u e a p re s e n ta m essas p a ssa g e n s n ã o é d ife re n te d a d e Jr 13,16: "D aí
glória ao S en h o r v o sso D eus, a n te s q u e v e n h a a e sc u rid ã o e a n te s q u e
tro p ecem v o sso s p é s n o s m o n te s ten eb ro so s". Se estes v e rsíc u lo s no
cap. 11, e sp ecialm en te 7-8, fo ram a n e x ad o s co m o p a rte d e u m a ten ta ti-
va red acio n al d e fazer o relato d e L ázaro a p ro p ria d o e m su a p re se n te
seq u ên cia, p o d e m o s ter a explicação d e p o r q u e "o s ju d e u s " , n o v. 8,
têm seu sig n ificado m ais u s u a l d e a u to rid a d e s h o stis, sig n ificad o qu e
38 · Jesus dá v id a a o s h om en s: O relato d e Lázaro 717

n ã o ex iste n o re s ta n te d o c a p ítu lo . O te m o r d o s d isc íp u lo s, n o v. 8, e


a s u g e stã o , em 16, d e q u e Jesu s está su b in d o p a ra m o rre r têm p a ra -
lelo s n a tra d iç ã o sin ó tica. Em M c 10,32, q u a n d o Jesu s com eça a su b ir
p a ra Je ru sa lé m , d o v a le d o Jo rd ã o , os d isc íp u lo s se g u em Jesus, m as se
a c h a m c h e io s d e te m o r acerca d o q u e e stá p a ra acontecer. Em 10,34,
Jesu s lh e s in fo rm a q u e está in d o p a ra m o rre r. A a n te c ip a ç ã o d e T om é,
d e q u e o s d isc íp u lo s p o d e m m o rre r com Jesu s (Jo 11,16), n ão é sem
p a ra le lo n a tra d iç ã o sin ó tica, p o is M c 8,34-35 c o n v id a o d isc íp u lo a
p e r d e r s u a v id a p o r a m o r a Jesus. P a ra u m p a ra le lo sin ó tico rem o to
co m Jo 11,10, v e r a resp e c tiv a n o ta.
(b) O s vs. llb - 1 5 , e n q u a n to têm o m esm o tem a d e s u b ir p a ra Jeru-
salém , in tro d u z e m a p o ssib ilid a d e d e so c o rre r L ázaro. O s d isc íp u lo s
e n te n d e m m a l a refe rê n c ia d e Jesu s ao so n o d e L ázaro (i.e., m o rte) e a
u m a jo rn a d a p a ra d e sp e rtá -lo (i.e., ressu scitá-lo ). Esse jogo d e p a la v ra s
n ã o é e s tra n h o à tra d iç ã o sinótica; p o is em M c 5,39, d e p o is q u e a filha
d e Jairo m o rre u , Je su s d iz à m u ltid ã o : " A crian ça n ã o está m o rta , m as
d o rm e " . O m a l-e n te n d id o d o s d isc íp u lo s, em João, leva Jesus a expli-
car (14) e p ro c la m a r u m a v e z m ais o p ro p ó sito teológico d o q u e está
a c o n te c e n d o (15). A exp licação é a m esm a d o v. 4; m as, e n q u a n to no
v. 4 se e n fa tiz a a relação d o m ila g re com D e u s (a glorificação), n o v. 15
se e n fa tiz a a relação d o m ila g re com os d isc íp u lo s (a fé). E ste ú ltim o
sin a l d e Jesu s tem m u ito e m c o m u m com o p rim e iro : "O q u e Jesus fez
em C an á... m a n ife sto u su a glória e se u s d isc íp u lo s creram n e le " (2,11).
O s d o is a sp e c to s d o m ilag re são u n id o s em 11,40, o n d e M a rta é infor-
m a d a q u e a fé e m Je su s a le v a rá a v e r a glória d e D eus.

Versículos 17-27: Marta sai ao encontro de Jesus

A d u p licação q u e en co n tram o s n o s vs. 7-16 p arece co n tin u a r atra-


v és d e 17-33; p o is 20-27 n o s in fo rm am com o M arta saiu d a casa p ara
e n c o n trar Jesus, e n q u a n to 28-33 nos in fo rm am com o M aria saiu d a casa
p a ra e n c o n trar Jesus. O s d o is relatos são m u ito sim ilares, e am b as as
m u lh e re s p ro n u n c ia m a m esm a sau d ação (21, 32). M uitos críticos pen-
sa m q u e o in cid en te d e M arta foi acrescido m ais tard e (assim B ultmann,
W ilkens), p o rq u e a teo lo g ia jo a n in a d o re la to d e M arta é m ais d esen -
v o lv id o . (Já m e n c io n a m o s acim a o ju lg a m e n to crítico ad ic io n al d e
q u e a m b o s o s relato s, p rim e ira m e n te M aria, e n tã o M arta, fo ram ane-
x ad o s). E n tre ta n to , a d m itin d o q u e o p a p e l d e u m a m u lh e r ag o ra se
718 O Livro d o s S inais

tem tra n s fe rid o p a ra a o u tra , já n ã o tem o s ta n ta c e rtez a d e q u e o e p isó -


d io foi p rim e iro c e n tra d o em to rn o d e M aria. D as d u a s , M aria é a m ais
b em co n h ecid a; e p o d e m o s v e r p o r q u e , se M a rta o rig in a lm e n te tin h a
u m p a p e l, u m re d a to r p o d e ria se n tir-se im p e lid o a n ã o d e s c o n s id e ra r
M aria. N ã o o b sta n te , se M aria tin h a u m p a p e l o rig in a l, p o r q u e u m
re d a to r se se n tiu im p e lid o a d a r u m p a p e l m ais lo n g o à m e n o s im p o r-
ta n te M arta? A o c o m p a ra rm o s os vs. 20-27 e 28-33, d e sc o b rim o s q u e
a p a rte d e M aria carece d e o rig in a lid a d e e m e ra m e n te re p e te o q u e
o u v im o s d a p a rte d e M arta, e isto é o q u e e sp e ra ría m o s se u m p a p e l
p a ra M aria foi u m a reflexão ta rd ia . U m e s tu d o d o v. 2, q u e e v id e n te -
m en te é u m a a d iç ã o re d a c io n a l, su g e re q u e a re d a ç ã o p o s te rio r d e u
p ro em in ên c ia a M aria. Ig u a lm e n te , se o re la to d e L ázaro u m a v e z cir-
c u la d o se p a ra d a m e n te , e n tre os a sp ec to s p o ste rio re s e s ta ria m a q u e le s
q u e o u n e m ao se u p re se n te contexto. A ê n fase so b re M aria esta b e le c e
u m a relação e n tre o re la to d e L ázaro d o cap. 11 e o re la to d a u n ç ã o
em B etânia em 12,1-9. C e rta m e n te , a teo lo g ia jo an in a , n o s vs. 20-27,
rev ela d e s e n v o lv im e n to , m as p o r q u e tal d e se n v o lv im e n to n ã o p o d ia
ter o c o rrid o , a in d a q u a n d o u m re la to b re v e d e M a rta in d o a o e n c o n tro
d e Jesu s e ra p a rte d o re la to o rig in al?
A o n o s c o n c e n tra r n o s e p isó d io s d e M arta e M aria c o m o o ra a p a -
recem n o e v a n g elh o , d e sco b rim o s q u e as d u a s m u lh e re s são fid e d ig -
n a s ao re tra to p in ta d o d e la s e m Lc 10,38-42. A li M a rta está o c u p a d a
e m serv ir, e n q u a n to M aria se se n ta aos p é s d o S e n h o r e s c u ta n d o s u a s
p a la v ras. E m João, M a rta se lança ao e n c o n tro d e Jesu s, e n q u a n to
M aria está tra n q u ila m e n te sentada e m casa. M as q u a n d o M aria o u v e
q u e o M estre c h eg o u , ela se a p re ssa e cai a seus pés. O b v ia m e n te , h á
a lg u m a in flu ên cia c ru z a d a e n tre o s p e rfis lu ca n o e jo a n in o d a s d u a s
m u lh e re s, m a s em q u e d ire ç ã o v ai a in flu ên cia n ã o é fácil d e tra ç ar.
P or to d o o e p isó d io q u e en v o lv e M arta v e m o s q u e ela crê e m Je-
su s, p o ré m in a d e q u a d a m e n te . N o v. 27, ela se lhe d irig e co m títu lo s
su b lim es, p ro v a v e lm e n te os m esm o s títu lo s u s a d o s n a s p ro fissõ e s d e
fé cristã p rim itiv as; m as o v. 39 m o stra q u e ela a in d a n ã o crê q u e e m
seu p o d e r d e d a r v id a. Ela c o n sid e ra Jesus co m o u m in te rm e d iá rio q u e
é o u v id o p o r D eu s (22), m as n ã o e n te n d e q u e ele é a p ró p ria v id a (25).
V im os q u e a m e n sa g e m e n v ia d a a Jesus p e la s d u a s irm ã s (v. 3)
e ra b e m sim ila r em estilo à d e lic a d a s u g e stã o o fere c id a a Je su s p o r s u a
m ãe n a cen a d e C a n á (2,3). A ssim ta m b é m a a firm a ç ão d e M a rta em
22, " T u d o o q u e p e d ire s a D eu s, D eu s te d a rá " , tem c erta se m e lh a n ç a
38 · Jesus dá v id a ao s h om en s: O relato d e Lázaro 7 19

co m a in s tru ç ã o d e M aria aos se rv e n te s e m 2,5: "F azei tu d o o q u e ele


v o s d iss e r" . E m c a d a u m a h á a m esm a e sp e ra n ç a a p e n a s e x p re ssa q u e
s u g e re d e q u e Jesu s a g irá , a d e sp e ito d a a p a re n te im p o ssib ilid a d e q u e
s u g e re a situ a ç ão . T o d a v ia, n ã o tem o s n e n h u m a in d icação q u e d ire-
ção a e s p e ra n ç a d e M arta o u q u e ela p e n sa sse q u e Jesus tra ria ou po-
d e ria tra z e r L ázaro d e v o lta d o tú m u lo . O alcance d e " m e sm o a g o ra "
n o v. 22 é c o n tro v e rsa ; m a s o v. 39 d eix a claro q u e M arta n ã o e sp era v a
u m re to rn o im e d ia to d o tú m u lo . B ultmann, p. 306, está certo q u a n d o
d iz q u e o v. 22 é m ais u m a c o n fissão d o q u e u m p e d id o .
A re sp o s ta d e Jesus, n o v. 23, é e rro n e a m e n te in te rp re ta d a p o r
M arta co m o u m a d a s exclam ações d e c o n fo rto q u e e ra m co stu m eiras
e n tre os ju d e u s p ro n u n c ia r n o m o m e n to d a m o rte. Ela se ju n ta a ele
e m co n fe ssa r a d o u trin a d a ressu rre içã o d o co rp o , d e fe n d id a p elo s fa-
ris e u s c o n tra os s a d u c e u s (Mc 12,18; A t 23,8). E m b o ra esta d o u trin a se
in c o rp o ra sse à teo logia israelita em u m p e río d o ta rd io (aparece pela
p rim e ira v ez n o início d o 2a sécu lo a.C., em D n 12,2), foi a m p la m e n te
aceita a té m esm o pelo p o v o c o m u m n o s d ias d e Jesus. N o l 2 século
A .D ., se to rn a ria p a rte d a s orações oficiais d o ju d a ísm o com o u m a d as
Dezoito Bênçãos: "T u , ó S en h o r, és e te rn a m e n te p o d e ro so , p o is d á s vida
ao s m o rto s". N ã o o b sta n te , o e n te n d im e n to g eral q u e M arta tin h a d a
ressu rre içã o n o ú ltim o d ia é e scassam en te a d e q u a d o na p re se n te situa-
ção, p o is na escato logia rea liz a d a jo an in a o d o m da v id a q u e vence a
m o rte é u m a re a lid a d e presente em Jesus C risto (25-26).
N a n o ta so b re v. 26 m e n c io n a m o s v á ria s m a n e ira s d e e n te n d e r os
vs. 25-26. E m n o ssa o p in iã o , a ex eg ese m ais sa tisfa tó ria é a d e D odd,
Interpretation, p. 365. H á d u a s id éias p rin c ip ais. P rim eira, Jesus diz
" e u so u a ressurreição". Esta é a re sp o sta d ire ta à confissão d e M arta
n o v. 24 e (sem ex clu ir a re ssu rre iç ã o final) lh e a sse g u ra a realização
im e d ia ta d o q u e ela e sp e ra n o ú ltim o dia. Esta afirm ação é c o m e n ta d a
n a s e g u n d a e terceira lin h a s d o v. 25. Jesus é a re ssu rre iç ã o n o se n tid o
d e q u e to d o s os q u e creem n ele, a in d a q u e v ã o p a ra o tú m u lo , irão
p a ra a v id a e te rn a. " V id a " , e m 25c, é a q u e la v id a d o a lto q u e é gera-
d a p e lo E sp írito e v en ce a m o rte física. S e g u n d a , Jesu s d iz " e u sou a
v id a " . Esta a firm a ç ão é c o m e n ta d a n o v. 26. T o d o s q u a n to s receb em o
d o m d a v id a , p e la fé em Jesus, jam ais so fre rã o a m o rte e sp iritu a l, pois
e sta v id a é vida eterna. N o ta m o s q u e, co m o g e ra lm e n te se d á com as
a firm a ç õ es " eu s o u " , as q u a is têm u m p re d ic a d o , os p re d ic a d o s "res-
s u rre iç ã o " e " v id a " d e sc re v e m o q u e Jesus é em relação com os homens -
720 O L ivro d o s S inais

são as c a u sa s q u e Jesus oferece aos h o m en s. Já v im o s os c o n ceito s d e


ressu rre içã o e v id a a n te rio rm e n te u n id o s: e m 6,40 e 54, o a sp e c to d a
ressu rre içã o q u e foi e n fa tiz a d o era o d a e scato lo g ia final; e m 5,24-25
era o d a escato lo g ia rea liz a d a .
Em resp o sta à ap resen tação q u e Jesus faz d e si com o a ressu rreição
e a v id a, M arta confessa su a fé e m Jesus m ed ia n te u m a série d e títu lo s
freq u en tes n o N T (ver n o ta s sobre v. 27). P ro v av elm en te d e v a m o s en-
ten d er su a p ersp ectiv a em b oa m ed id a d a m esm a m an eira q u e e n te n d e -
m o s a d a m u lh e r s a m aritan a n o cap ítu lo 4. Ali Jesus se a p re se n to u com o
a fonte d a ág u a viva, m as a m u lh e r só p ô d e en ten d ê-lo com o u m Profeta
(4,19). Finalm ente, Jesus teve q u e m an d á -la b u sc ar seu e sp o so a fim d e
levá-la a u m a fé m ais p ro fu n d a . A ssim a q u i em 11, p a ra fazer M arta
e n te n d e r q u e ele tem o p o d e r d e d a r v id a ag o ra m esm o , ele d a rá u m a
ex pressão m ais d ram ática a su a s p alav ras, ressu scitan d o L ázaro. Ele n ão
rejeita seu s títu lo s tradicionais, m as d e m o n stra rá a m ais p ro fu n d a ver-
d a d e q u e jaz p o r d e trá s deles. O evangelista, em 20,31, m o stra co m o os
títulos trad icio n ais d e v e m ser e n te n d id o s em term o s d o p o d e r d e Jesus
d e d a r v id a aos h om ens: "... p a ra q u e ten h ais fé d e q u e Jesus é o M essias,
o Filho d e D eus, e que, a trav és d e sta fé, ten h ais v id a em seu n o m e". Se
p o d e m o s sim plificar ao m áxim o, a d ificu ld ad e d e M arta é q u e ela n ão
reconhece a p len a força d e "aq u ele q u e está p a ra e n tra r n o m u n d o " ; ela
n ão e n te n d e p len a m en te q u e a lu z e a v id a já e n tra ra m n o m u n d o .

Versículos 28-33: Maria sai ao encontro de Jesus

C o m o tem o s o b se rv a d o , esta cena re a lm e n te n ã o a v a n ç a n a d a a


ação; o v. 34 p o d e ria facilm en te se g u ir o v. 27, e n in g u é m n o ta ria
a d iferen ça. A ú n ica d iss im ila rid a d e e n tre a s a u d a ç ã o d e M a ria a Je su s
e a d e M a rta é q u e M aria cai ao s p é s d e Jesu s (32). A lg u n s v e e m n isto a
su g e stã o d e u m a fé m ais v iv a d a p a rte d e M aria, m a s é d ig n o d e n o ta
q u e M aria d e B etânia é se m p re re tra ta d a a o s p é s d e Je su s (Lc 10,39;
Jo 12,3). P o d e m o s o b se rv a r q u e a p ro stra ç ã o ao s p é s d e Je su s é lu c a n a
(8,41; 17,16), m ais q u e u m traço jo a n in o - talv e z o u tra in d ic a ç ã o d e
q u e o e p is ó d io re la c io n a d o com M aria é se c u n d á rio .
O v. 33 exige c o m e n tário especial, p o is ta n to a q u i co m o n o v. 38
Jesus exibe u m a forte d e m o n stra ç ã o d e em oção. (É p o ssív e l q u e o
v. 33 e o 38 sejam d u p lic a ta s d o m esm o relato). T em o s fo rn e c id o u m a
lo n g a n o ta so b re a d ific u ld a d e d e tra d u z ir o texto g reg o , m a s d e v e m o s
38 · Jesus dá v id a ao s h om en s: O relato d e Lázaro 721

d isc u tir a p o s s ib ilid a d e d e q u e Jesus e stav a in d ig n a d o o u irad o , e


n ã o m o v id o d e co m p a ix ão (L agrange, B ernard ) ou tristeza. H oskyns
e B ultmann se e n c o n tra m e n tre os c o m e n tarista s q u e p e n s a m q u e ele
e sta v a ira d o , p o rq u e M aria e os ju d e u s exibiam falta d e fé. Esta suges-
tão n ã o é im p la u sív e l p a ra o v. 38, p o rq u e a q u e stã o n o v. 37 p o d e ser
to m a d a co m o u m a m an ifestação d e fé insuficiente. M as o p ra n to no
v. 33 d ific ilm e n te in d ica falta d e fé, p o sto q u e Jesus m esm o ch o ro u
(35). U m a ex p licação p refe rív e l d a ira d e Jesus n o v. 33 seria a razão
o fere c id a p a ra exibições sim ila re s d e ira n a tra d içã o sinótica (ver a res-
p e c tiv a n o ta), a sab er, q u e ele e stav a ira d o p o rq u e se e n c o n tro u face
a face co m o rein o d e S atan ás q u e, n este caso, era re p re se n ta d o pela
m o rte . E in te re s s a n te q u e o u tra s d u a s o casiões e m q u e o v e rb o tarassein
é e m p re g a d o (Jo 14,1.27) d e screv e a reação d o s d isc íp u lo s e m face d a
im in e n te morte d e Jesus; e em 13,21 o v e rb o é u sa d o p a ra d escrev er
co m o Jesu s se c o m o v e u a n te o p e n s a m e n to d e ser tra íd o p o r Ju d a s em
cujo c o ração Satanás p e n e tro u . C risóstomo (In /o. 63,2; PG 59:350) suge-
re q u e tem o s a q u i em João a m esm a em o ção q u e, s e g u n d o os sinóticos,
so b re v e io a Jesu s n o Ja rd im d e G e tsêm a n e (Mc 14,33) - a n g ú stia em o-
cio n al in s p ira d a p e la im in ên cia d a m o rte e lu ta c o n tra S atanás.

Versículos 34-44: A ressurreição de Lázaro

O s vs. 34-40 a rm a o p a lc o p a ra o m ilag re , d e s c re v e n d o a d o r de


Je su s a n te s d e c h e g a r ju n to ao tú m u lo e a o p o siç ã o à su a o rd e m d e
ab ri-lo . E ste c e n á rio d o e stá g io d á ao a u to r u m a o p o rtu n id a d e d e lem -
b ra r-n o s d o s te m a s q u e têm p e rc o rrid o o c a p ítu lo , d e m o d o q u e não
p e rd e re m o s a sig n ificação final d o m ilag re. O v. 36 re c o rd a q u e Láza-
ro é o a m a d o (cristão?). O v. 37 tra z à m e n te o cego, d e m o d o q u e Jesus
co m o a lu z e Je su s co m o a v id a q u e se rã o im a g e n s ju sta p o sta s. O v. 40
u n e o tem a d a fé d e q u e Jesu s falo u a M a rta e m 25-26, e o tem a d a glória
d e q u e o u v im o s n o v. 4. E o p o rtu n o m e n c io n a r a q u i a glória; p o is ela
n ã o só d á u m a in clu sã o d e n tro d o c a p ítu lo , m as tam b é m , co m o já m en-
c io n a m o s, fo rm a u m a in clu sã o com o m ilag re d e C a n á (11,40 e 2,11),
u n in d o assim o p rim e iro e o ú ltim o d o s sinais. A lém d o m ais, o tem a
d e g ló ria se rv e co m o u m a tra n siç ã o ao L ivro d a G lória, q u e é a seg u n -
d a m e ta d e d e s te e v a n g elh o .
A s p a la v ra s d e Jesus n o s vs. 41-42 têm c ria d o d ific u ld a d e s aos
c o m e n ta rista s. João a p re se n ta e sta s p a la v ra s co m o u m a oração, e esta
722 O L ivro d o s S inais

in te rp re ta ç ã o receb e a c o n firm a ç ão d e v á rio s d e ta lh e s. A n te s d e falar,


Jesu s elev a os o lh o s ao alto, u m g esto q u e é u m p re lú d io à o raç ã o
(v er a resp e c tiv a no ta). A p rim e ira p a la v ra d e Jesu s é " P a i" , tra d u -
ção d o aram aico . 'abbâ, q u e e ra a ca ra c te rístic a d e Jesu s, p o ré m u m
m o d o in c o m u m d e d irig ir-se a D e u s e m o ração , p o r e x e m p lo , Lc 11,2;
M c 14,36 (so b re o u so d e 'abbâ, v e r TS 22 [1961], 182-85). A o ra ç ã o d e
Jesus, n o v. 41, com eça com ação d e g raças, co m o fa z e m as o raç õ e s
ju d a ic a s clássicas. T o d a v ia, a ex p licação d e p o r q u e Je su s e stá o ra n d o
(v. 42) tem c a u sa d o m u ita p e rp le x id a d e . L oisy, p. 353, e scre v e c o m
certa ru d e z a : "O C risto jo an in o o ra p a ra e x p a n d ir as teses d o e v a n -
gelista. N a a p a rê n c ia , ele e sta ria o ra n d o p e lo g ru p o , u m a v e z q u e ele
fala a seu P ai so m e n te p a ra d e s p e rta r fé em su a p ró p ria p e s so a e e m
su a m issã o d iv in a " . P a ra a q u e le s q u e p e n s a m d e sta m a n e ira , Je su s
n ã o está o ra n d o , p o is ele n ã o p e d in d o alg o d a p a rte d o Pai. N ã o obs-
tan te, a o ração d e p e tiç ão n ã o é a ú n ic a fo rm a d e oração. Se a o raç ã o
é u m a fo rm a d e u n iã o com D eus, e n tã o o Jesu s jo a n in o e stá s e m p re
o ra n d o , p o is ele e o Pai são u m (10,30).
U m a d a s o raçõ es m ais b ásicas d e Jesu s, n a tra d iç ã o sin ó tica, é
q u e o P ai rea liz e o c u m p rim e n to d e S u a v o n ta d e (M t 6,10; M c 14,36).
A v id a d o Jesu s jo an in o é u m p e rp é tu o " q u e se faça a T u a v o n ta d e " ,
p o rq u e Jesu s n a d a faz d e si m esm o (5,19). Seu p ró p rio a lim e n to é fazer
a v o n ta d e d o Pai (4,34). É esta p o d e ro sa a titu d e q u e está re s u m id a em
11,42: "E u sei q u e se m p re m e o u v es". Ele exerce u m a s u p re m a con-
fiança n o Pai, p o rq u e se m p re faz o q u e é a g ra d á v e l ao P ai ( ljo 3,21-22).
Ele sab e q u e tu d o q u a n to p e d e é se g u n d o a v o n ta d e d o Pai e q u e , p o r
isso, é o u v id o ( ljo 5,14). Ele ex ig e q u e haja e sta m e sm a c o n fia n ça na
o ração d e se u s se g u id o re s (14,12-13; 15,16; 16,23.26).
N o s vs. 41-42, Jesu s se reg o zija p o rq u e o fato d e s u a o ra ç ã o ser
o u v id a lev a a m u ltid ã o à fé, m a s isto n ã o é a rro g â n c ia n e m exibição
pesso al. P o rq u e su a o raç ã o é o u v id a , v e rã o u m a o b ra m ira c u lo sa q u e
é a o b ra d o Pai. A tra v é s d o exercício d o p o d e r d e Jesu s q u e é o p o d e r
d o Pai, v irã o a c o n h e ce r o P ai e a ssim rec e b e r v id a e m si m esm o s.
Jesu s n a d a lu cra p a ra si; ele só deseja q u e se u s o u v in te s v e n h a m co-
n h e c er q u e o P ai q u e o e n v io u (42c; ta m b é m 17,20-21). T alv ez a m u i-
tid ã o o ra p re s e n te n e m m esm o o u v ia su a s p a la v ra s; m a s p o d e ria v e r
su a p ie d o sa a titu d e q u a n d o eleva se u s o lh o s p a ra o Pai, e a ssim a
o ração os leva a cre r n a fo n te d e se u p o d e r. N o A T, E lias h a v ia o ra d o
(lR s 18,37): "O u v e -m e , ó S en h o r, p a ra q u e este p o v o sa ib a q u e tu,
38 · Jesus d á v id a ao s h om en s: O relato d e Lázaro 72 3

ó S en h o r, és D eu s". A o ração d e Jesus a se u P ai e xpressa a m esm a ideia,


m a s co m s u p re m a confiança. "É p a ra a glória d e D eus" (11,4).
T e n d o a ssim p re p a r a d o o p o v o p a ra o c o n te ú d o d o sin al, Jesus
c h a m a L á z aro a sa ir d o tú m u lo . C o m característica b re v id a d e , João
n ã o in siste n o s d e ta lh e s d o m ila g re - este é n a rra d o e m d o is v ersícu lo s
(4 3 4 4 ‫ )־‬- , p o is o m a ra v ilh o so n ã o é im p o rta n te . O cru cial é q u e Jesus
d e u v id a (física) co m o u m sin al d e se u p o d e r d e d a r a v id a e te rn a so-
b re esta te rra (escato lo g ia re a liz a d a ) e co m o u m a p ro m e ssa d e q u e no
ú ltim o d ia ele re s su sc ita rá d e n tre os m o rto s (escatologia final). O últi-
m o m o tiv o é ó b v io n a c lara rem in iscên cia d e 5 ,2 6 3 0 ‫ ־‬q u e se e n c o n tra
n o c a p ítu lo 11. (L e m b ram o s q u e 5 ,2 6 3 0 ‫ ־‬é u m a d u p lic a ç ã o em term o s
d e e sca to lo g ia fin al d o q u e foi d ito em 5,19-25 em te rm o s d e escatolo-
gia re a liz a d a ). O s p a ra le lo s são tão estre ito s q u e a lg u n s têm su g e rid o
q u e o c a p ítu lo 5 e ra o c o n te x to o rig in a l d o re la to d e L ázaro. P o d e m o s
n o ta r os s e g u in te s p a ra le lo s (v er ta m b é m n o ta so b re v. 4):
11,17: " L á z a ro e stá no túmulo”.
43: Jesu s clam a e m alta voz: "L ázaro , vem paraforaV
25: "E u so u a ressurreição e a vida”.
5,28-29: "E stá v in d o a h o ra e m q u e to d o s o s q u e e stiv e re m nos
túmulos o u v irã o su a voz e sairão - os q u e tiv e re m feito o
q u e é ju sto , p a ra a ressurreição da vida".
A ssim , e m m u ito s d e ta lh e s, o c a p ítu lo 11 rea liz a a p ro m e ssa d o
c a p ítu lo 5.

B IB L IO G R A F IA

DUNKERLEY, R., ‫ ״‬Lazarus", NTS 5 (1958-59), 321-27.


WILKENS, W., ‫ ״‬Die Erweckung des Lazarus", TZ 15 (1959), 22-39.
39. O S H O M E N S C O N D E N A M JESU S A M O RTE:
‫ ־‬O S IN É D R IO
(11,45-54)

Jesus é condenado à morte e se retira para Efraim

11 45Isto lev o u m u ito s d o s ju d e u s q u e fo ra m v isita r M aria, e v ira m


o q u e Jesu s fizera, co lo car su a fé nele. 46M as a lg u n s d e n tre eles fo ram
aos farise u s e c o n ta ra m o q u e ele fizera. 47E n tão o s p rin c ip a is sa ce rd o -
tes e os farise u s c o n v o c ara m o S in éd rio . " O q u e h a v e m o s d e fa z e r",
d isse ram , " a g o ra q u e este h o m e m está re a liz a n d o m u ito s sin ais? 48Se
o d e ix a rm o s c o n tin u a r assim , to d o s c re rã o nele; e o s ro m a n o s v irã o e
re m o v e rã o n o sso lu g a r sa n to e a n a ç ão ".
49E n tão u m d eles, q u e era su m o sa c e rd o te n a q u e le a n o , c e rto C ai-
fás, lh es falou: "V ós n a d a sabeis! 50N ã o c o m p re e n d e is q u e c o n v é m ter
u m só h o m e m m o rto [pelo p o v o ] d o q u e te rd e s to d a a n a ç ão d e s tru í-
d a ? " (‫ וי‬Ele n ã o d isse isso d e si p ró p rio ; m as, co m o s u m o sa c e rd o te
n a q u e le an o , p ô d e p ro fe tiz a r q u e Jesu s e sta v a p a ra m o rre r p e la n ação
- 52e n ã o so m e n te p e la n ação , m a s p a ra re u n ir a té m e sm o os filh o s d e
D eu s d isp e rs o s e to m á -lo s um ). 33E ntão, d a q u e le d ia e m d ia n te , p ia-
n ejaram m atá-lo .
54P o r esta raz ã o , Jesus n ã o m ais se m o v ia a b e rta m e n te e n tre o s ju-
d e u s, m as se re tiro u p a ra u m a c id a d e c h a m a d a E fraim , n a re g iã o p ró -
xim a ao d e serto , o n d e p e rm a n e c e u com se u s d isc íp u lo s.

NOTAS

11.45. muitos dos judeus que. Bernard, II, pp. 401-2, insiste que o grego significa
"m uitos dos judeus, i.e., os que tinham vindo"... - tradução que sugere
39 · O s h o m e n s co n d en a m Jesus à m orte: O sin éd rio 725

que todos os judeus que vieram visitar M aria creram em Jesus. Essa tra-
dução provavelm ente põe exagerada confiança na exatidão da concor-
dância do particípio no grego koinê. A indicação no v. 46 é que alguns
dos judeus que estiveram ali não creram , e esta é a m aneira do Codex
Bezae in terp retar o v. 45.
Maria. O fato de que som ente Maria é m encionada aqui serve de apoio
aos que pensam que M arta foi um a adição posterior ao relato de Lázaro.
N ão é m enos plausível, contudo, que este seja um exemplo da memória
da M aria m ais famoso (que ungiu Jesus) prefigurando aquele de Marta.
viram. O verbo é theasthai, que às vezes conota visões perceptivas. Ver Apên-
dice 1:3, p. 794ss.
46. aos fariseus. Somente no v. 54 as autoridades judaicas hostis são chamadas
"os judeus", e que o versículo não tem conotação necessária com a reunião
do Sinédrio. Em 9,13 e 18, os fariseus e os judeus são expressões sinônimas.
47. os principais sacerdotes e os fariseus. Isto seria um equívoco? Os fariseus não
tinham autoridade para convencer o Sinédrio. As três classes que integra-
vam o Sinédrio eram os sacerdotes, os anciãos e os escribas. Todavia, a
maioria dos escribas eram fariseus, e bem podem os suspeitar que o Si-
nédrio não teriam agido contra Jesus se os fariseus não lhe fizessem opo-
sição a Jesus. João teria sido mais exato ao falar dos sacerdotes e escribas
(Mc 14,43.53); mas, como temos enfatizado, João não pretende ser preciso
sobre os grupos judaicos existentes antes da destruição do templo. O judaís-
mo dos fariseus sobreviveu, e foi este judaísmo que apresentou o desafio
ao cristianismo quando o Quarto Evangelho estava sendo escrito. Assim, a
referência aos fariseus é mais uma questão de simplificação do que de erro.
convocaram. O m esm o verbo é usado no v. 52, e ali pode m uito bem ser um
contraste intencional entre os dois grupos: o Sinédrio se reuniu para ma-
tar Jesus; enquanto que os filhos de Deus são congregados para que lhes
fosse dado o dom da vida. Ver tam bém 6,12-13.
0 Sinédrio. Embora tenham os tido referências implícitas a esta instituição
(p. ex., 7,45ss.), esta é a única ocorrência do nom e próprio em João.
O que havemos de fazer. Interpretam os esta pergunta em sentido deliberativo
com um raro uso do tem po presente (BDF, § 3664). Bernard, II, p. 403, e
B arrett, p. 338, estão entre os que a tomam como um a pergunta retórica:
"O que vam os fazer agora?", esperando a resposta: "Nada!" Em outras
palavras, para eles equivale "Por que não estam os fazendo nada?" En-
tretanto, Schlatter, pp. 256-57, e L agrange, p. 313, citam bons paralelos
rabínicos para a construção: "O que havem os de fazer agora que...?"
muitos sinais. Na presente cronologia joanina, Jesus havia realizado dois
sinais m agistrais em m enos de seis meses (o cego em 9 e Lázaro em 11).
72 6 O L ivro d o s Sinais

48. todos crerão nele. Há evidência patrística, p. ex., A gostinho, C risóstomo,


C irilo de A lexandria, para a om issão desta frase (Boismard, RB 60 [1953],
350-51). Pode ser relacionada com 12,11.
lugar santo e a nação. C risóstomo lê "nação... cidade", e não é im possível que
o "lugar santo" se refira a Jerusalém, o lugar escolhido por Iahw eh para
ali pôr seu nome (Dt 12,5). Não obstante, mais provavelm ente o lugar
santo seja o tem plo (Jo 4,20; At 6,13; 7,7). 2Mc 5,19 m enciona juntos a
nação e o lugar (i.e., o templo).
49. sumo sacerdote naquele ano. Esta fórm ula será encontrada outra vez no
v. 51 e 18,13. Tem sido usada por m uitos estudiosos (p. ex., Bultmann,
p. 3142) para m ostrar que o autor não conhecia os costum es palestinos,
pois o interpretam para im plicar um a crença de que o sum o sacerdote
era m udado a cada ano, como se dava com os sum os sacerdotes pagãos
na Ásia Menor. Invariavelm ente, o sum o sacerdote judaico m antinha
tradicionalm ente o ofício por toda vida (Nm 35,25), em bora nos dias de
Jesus o ofício dependia do favor romano. Caifás foi sum o sacerdote des-
de 18 a 36 a.D. A discussão de se o evangelista é ou não culpado de erro
aqui depende até certa m edida da validade da indicação em 18,13 de que
Anás era o sum o sacerdote (ver volum e II). Que a afirm ação é ou grossei-
ram ente errônea ou trai um íntim o conhecim ento de que o deposto sumo
sacerdote Anás ainda estava exercendo influência e de fato podia ainda
ser cham ado sum o sacerdote. Caso se escolha a últim a alternativa, então
dificilmente podem os im aginar que o possuidor de tal conhecim ento se
equivocasse sobre a questão elem entar do prazo que se estendia ao ofí-
cio. Aliás, aparte do problem a que apresenta 18,13, seria surpreendente
descobrir que as indicações veterotestam entárias de ofício sacerdotal fos-
se desconhecido ao escritor do evangelho, que tem dem onstrado consi-
derável conhecimento do AT. Talvez todo o problem a seja falso, como
ressaltado por Bernard, II, p. 404, e outros que veem outra implicação
em "sum o sacerdote naquele ano". A expressão genitiva assim traduzi-
da não precisa significar "para aquele ano", m as pode ser um genitivo
tem poral (BDF, § 1862) significando "naquele ano". (O fato de que a ex-
pressão genitiva é separada do substantivo que a governa pelo particípio
"ser" dá suporte a esta sugestão). A ideia, pois, seria que ele era sumo
sacerdote naquele ano fatal em que Jesus m orreu - João está sublinhando
não o limite do termo, m as seu sincronismo. Esta sugestão é tão antiga
como O rígenes (In Jo. 28,12; PG 14:708' )·
Caifás. Provavelm ente derivado de um nom e semítico como Qayyafâ, o
nom e aparece na tradição ocidental como Caifás. Este neto de Anás foi
deposto logo depois que Pilatos foi rem ovido como procurador, e é bem
39 · O s h o m e n s co n d en a m Jesus à m orte: O sin éd rio 727

provável que ele retivesse o ofício através de um acordo financeiro com


Pilatos. A m aneira casual em que ele é introduzido aqui e a aspereza
de seu discurso aos seus confrades podem indicar que esta não foi uma
sessão oficial do Sinédrio com o sum o sacerdote na presidência. Ao me-
nos, ela parece ser mais inform al do que a sessão descrita em Mc 14,55s.
na qual Jesus foi julgado. Josefo, War 2.8.14; 166, dá um a interessante
confirm ação de quão severam ente falaram os saduceus. Notam os que
nem M arcos nem Lucas m encionam Caifás no julgam ento de Jesus;
Mt 26,3 o m enciona em um a sessão prelim inar do Sinédrio, e 26,57 o
m enciona no julgam ento final (como faz Jo 18,24).
convém. Assim as m elhores testem unhas, m as há respeitável suporte em
prol de "nos convém ". É tentador reunir o Codex Sinaiticus e algum a
evidência patrística e om itir o adjetivo pronom inal, m as esta omissão
poderia estar sob a influência de 18,14.
[pelo povo]. Isto é om itido por algum a antiga evidência patrística latina,
A costinho, C risóstomo, T eodoreto e algum as testem unhas etiópicas.
N orm alm ente, isto não seria base suficiente para pô-lo entre colchetes,
m as a teologia da redenção, de que a frase parece implicar, parece es-
tranha nos lábios de Caifás. A palavra para "povo" aparece em João so-
m ente neste versículo e em sua reiteração em 18,14. O desenvolvim ento
da afirm ação de Caifás, encontrada nas observações entre parênteses nos
vs. 5 1 5 2 ‫־‬, m enciona apenas "nação". Assim, há razão para tratar a frase
como um a glosa. Por outro lado, se a frase era parte do texto original,
provavelm ente entenderiam os hyper, não no sentido de "por, em favor
de" (norm al em João), m as no sentido "em lugar de".
51. naquele ano. Há algum a evidência para om itir ou "que" (P66; Bezae) ou
toda a frase ( P 5; OSsin; OL).
52. filhos de Deus. A única outra ocorrência disto no evangelho é no Prólogo
(1,12), m as é frequente nas epístolas joaninas. Não todos os homens, mas
unicam ente aqueles a quem o Pai deu a Jesus são filhos de Deus (8,42);
e assim , os filhos dispersos de Deus são os gentios destinados a crer em
Jesus. Jr 31,8-11 associa o ajuntam ento dos dispersos (judeus) com a pa-
ternidade do Pai, e essa associação jaz por detrás da expressão de João.
e torná-los um. Literalm ente, "reunir, congregar em um". Ver "um só reba-
nho" de 10,16.
53. planejaram. A redação "planejaram juntos", em muitos manuscritos, pro-
vavelm ente reflete a influência de Mt 26,4 e mostra que os escribas asso-
ciaram os relatos m ateano e joanino das sessões preliminares do Sinédrio.
54. Efraim. Não há identificação certa desta cidade. O Codex Bezae diz
Samphourin, m as isso pode ser um a corrupção do semítico sêm ’efraylm
728 O L ivro d o s Sinais

("cujo nom e é Efraim"). P 6 om ite "cidade", e assim a região vem a ser


Efraim. A lguns a identificariam com Et-Taiyibeh, cidade a cerca de
19 km a nordeste de Jerusalém , cujo antigo nom e era Ofra (Js 18,23)
ou Efron (Js 15,9). 2Sm 13,23 menciona a cidade de Efraim, m as a lo-
calização é vaga (perto de Betei, como o Efraim de Josefo, War 4.9.9;
551? - se for, podería ser Et-Taiyibeh). W. F. A lbright, AASOR 4 (192223‫)־‬,
124-33, afirma que o Efraim de João não era Et-Taiyibeh, e sim Ain Sâmieh,
ligeiramente a nordeste e em um vale mais baixo. Et-Taiyibeh, ficando a
uns 92 metros mais alta que Jerusalém, é m uito exposta e mais fria para
uma estada em fevereiro e março, especialmente se tivermos em m ente
que Jesus não tinha um abrigo perm anente. (O argum ento de A lbright é
combinado com a cronologia joanina). Não existem vilas entre Sâmieh e o
vale do Jordão, e assim ela fica literalmente na divisa do deserto.
permaneceu. Os m anuscritos de testem unhas gregas são quase invariável-
m ente divididos entre duas redações, um a do verbo menein, "ficar", e a
outra de diatribein, "gastar algum tem po" (ver 3,22).

COMENTÁRIO

Esta sessão d o S in édrio, q u e s e g u n d o a cronologia d e João ocorria vá-


rias sem an as an te s d a P áscoa (11,55; 12,1), n ã o é a te sta d a n a trad ição
sinótica. Este fato, m ais a lg u m a s a p a re n te s in ex atid õ es so b re o p a p e l
d o s fariseus n o S inédrio e o p ra z o p a ra o ofício d o su m o sacerd o te,
têm lev ad o m u ito s críticos a c o n sid e rar 11,45-53 u m a c o n stru ç ão teo-
lógica b a sea d a em m aterial e m p re sta d o d o s sinóticos. C o m o d e cos-
tu m e, crem o s q u e se req u e ria u m ju lg a m e n to m ais m atiz a d o . T em os
in d icad o n as n o tas so b re vs. 47 e 49 q u e as " in e x a tid õ e s" n ão são tão
b em d elin e ad a s com o p o d e p a re c e r à p rim e ira vista. A lém d o m ais, a
trad ição sinótica d á a lg u m a ev id ên cia d e u m a sessão d o S in éd rio an tes
d a sessão final q u e sen ten cio u Jesus à m orte. M c 14,1-2 e Lc 2 2 ,1 2 ‫ ־‬falam
sim p lesm en te d o co m p lô d o s p rin cip ais sacerd o tes e escrib as d o is d ias
an tes d a Páscoa, m as em M t 26,1-5 isto p arece to rn a r-se u m a sessão
p relim in ar d o S inédrio. R essaltam os n as n o tas so b re vs. 49 ("C aifás")
e 53 q u e h á p o n to s d e sim ila rid a d e e n tre as cenas jo an in as e m atean as,
e n o tam o s q u e em a m b o s os casos a sessão d o S in éd rio d e c id e m a ta r
Jesus. O ra, o b v iam e n te há u m a d iferen ça cronológica, m as estam o s
sim p lesm en te c h a m a n d o a aten ção p a ra a p o ssib ilid a d e e, d e fato, da
p lau sib ilid a d e d e sessões d o S in éd rio a n te s d o ju lg a m e n to final.
39 · O s h o m e n s co n d en a m Jesus à m orte: O sin éd rio 7 29

E d e v e m o s te r e m m e n te q u e o ju lg a m e n to final d ia n te d o Siné-
d rio , c o m o d e sc rito n o s e v a n g e lh o s sin ó tico s, p ro v a v e lm e n te rep re-
s e n ta u m a coleção d e a cu sa ç õ e s q u e fo ram feitas em d istin to s m o m en -
to s (p a ra tra ç o s d e e le m en to s d isp e rso s q u e se a sse m e lh a m aos do
ju lg a m e n to , v e r d isc u ssõ e s d e Jo 1,51; 1 0 ,2 4 3 9 ‫)־‬. D e m u ita s m an e ira s
(v er C B Q 23 [1961], 148-52, o u N TE, p p . 1 9 8 2 0 3 ‫)־‬, o q u a d ro jo an in o
q u e p ro p ic ia u m a d istrib u iç ã o m ais a m p la d e sta s acu saçõ es realm en -
te é m a is p la u sív e l. E in te re ssa n te , p o r e x em p lo , q u e o tem a d a des-
tru iç ã o d o te m p lo q u e o c u p a u m im p o rta n te p a p e l no ju lg a m e n to si-
n ó tic o fin al (M c 14,57-58) ta m b é m a p a re ç a n e sta sessão em João (v. 48:
"e re m o v e rã o n o sso lu g a r sa n to " ), m as d e u m a m a n e ira d ife ren te e
m a is realista. A ssim , a sim ila rid a d e d o p re se n te m a te ria l h istó rico na
cen a d e João n ã o p o d e se r d e c id id a com b a se n a c o n fo rm id a d e com a
tra d iç ã o sin ó tica, p o is n in g u é m p o d e p r e s s u p o r q u e o m ate ria l sinóti-
co p e rtin e n te à s sessõ es d o S in é d rio é a b so lu ta m e n te confiável.
A in tro d u ç ã o à cena em João relaciona a sessão d o S inédrio com
o m ilag re d e L ázaro, e isto cria o p a ra d o x o d e q u e o d o m d a v id a pro-
c e d e n te d e Jesus c o n d u z à su a p ró p ria m orte. A qui, n a tu ra lm e n te , es-
tam o s tra ta n d o d a p e rsp ectiv a teológica d o ev an g elh o . O m ilag re de
L ázaro , co m o tan to s d o s feitos e d ito s d e Jesus, cria u m a d iv isão en tre
os h o m e n s q u e se ju lg am p o r su a reação a Jesus. O fato d e q u e alg u n s
estã o c re n d o em seu s sin ais força as a u to rid a d e s ju d aicas a agirem
(v. 47). Isto co n c o rd a com o q u e se e n co n tra e m M c 11,18, o n d e, ap ó s a
p u rific a ç ão d o tem p lo , so m o s in fo rm ad o s: "O s p rin cip ais sacerd o tes e
o s escribas... b u sc a v a m u m a m a n e ira d e d estruí-lo... p o rq u e to d a a m ui-
tid ã o esta v a a tô n ita a n te seu en sin o ". O p o n to básico q u e p arece estar
p o r d e trá s d e to d a s estas afirm ações d o e v a n g elh o é q u e o e n tu siasm o
q u e Jesu s d e s p e rto u p e rtu rb a v a as a u to rid a d e s h ierosolim itanas.
C. H. D odd, art. cit., tem a n a lisad o o c a rá te r literário d a cena em João
e tem m o stra d o c u id a d o sa m e n te q u e ele se encaixa n o fo rm ato c o m u m
d o s relato s p rim itiv o s so b re Jesus. E u m relato d e afirm ação, isto é, u m
rela to p re s e rv a d o na c o m u n id a d e cristã p o r c o n ter u m d ito com u m a
p ro fu n d a reflexão d a c o m u n id a d e . O relato em João c o n d u z ao d ito de
g ra n d e im p o rtâ n c ia no v. 50: "N ã o c o m p re en d e is q u e convém ter u m
só h o m e m m o rto [pelo povo] d o q u e terd e s to d a a nação d e stru íd a?".
L em o s n o c o m e n tário e m fo rm a d e p a rê n tese s n o s vs. 51-52 p o r q u e este
p ro n u n c ia m e n to e ra tão im p o rta n te p a ra os círcu lo s cristão s p rim iti-
v o s, a sa b er, p o rq u e ele era c o n s id e ra d o u m a p ro fecia in co n scien te
730 O L ivro d o s S inais

d a n a tu re z a salvífica d a m o rte d e Jesus. E m su a p ró p ria m e n te , C aifás


e sta v a p ro n u n c ia n d o u m a m á x im a p o p u la r d a c o n v e n iê n c ia p o lítica.
Ele esta v a an sio so e m d e s c a rta r Jesu s, p a ra q u e , co m o m a is u m n u m a
série d e re v o lu c io n á rio s, este a rru a c e iro n ã o p ro v o c a sse os ro m a n o s
a re a g ir c o n tra os ju d e u s. M as, p a ra o o u v id o p e rc e p tiv o d o teó lo g o
cristão , ele e sta v a e v o c a n d o u m a d ito tra d ic io n a l d o p ró p rio Jesus:
"O F ilho d o H o m e m veio... p a ra d a r su a v id a co m o re sg a te d e m u ito s "
(M c 10,45). C aifás e sta v a certo; a m o rte d e Je su s sa lv a ria a n a ç ã o d a
d e stru iç ã o . T o d a v ia, C aifás n ã o p o d ia s u s p e ita r q u e Je su s m o rre ría ,
n ão n o lu g a r d e Israel, m a s em fav o r d o v e rd a d e iro Israel. P o d e m o s
v e r q u e essa p ro fecia in co n scien te, n o s láb io s d e u m s u m o sa c e rd o te
ju d e u , v iría a se r u m a rg u m e n to eficaz n o s círcu lo s ju d aic o -c ristã o s,
aos q u a is (em p a rte ) o Q u a rto E v a n g e lh o se d irig ia .
O v. 52 e x p a n d e o esco p o d a p ro fecia p a ra in c lu ir ta m b é m os g en -
tios, e tem o s in sistid o q u e o Q u a rto E v a n g e lh o tin h a ta m b é m co m o
seu p ro p ó sito o e n c o ra ja m e n to d o s c ristã o s g entílicos. V isto q u e a co-
m u n id a d e c ristã é o v e rd a d e iro Israel, o g e n u ín o re b a n h o d e Jesu s
(10,16), a im a g e m v e te ro te sta m e n tá ria d e re u n ir o s filhos d isp e rs o s d e
Israel (Is 11,12; M q 2,12; Jr 23,3; Ez 34,16) p o d e a g o ra se r u s a d a p a ra
to d o s q u a n to s se to rn a m p a rte d e ssa c o m u n id a d e . E o a u to r c o n firm a
o ju ízo d e C aifás - esta c o n v e rsã o d o s g e n tio s seria o efeito u lte rio r d a
morte d e Jesus. M ais a d ia n te e m Jo 12,32, Jesu s m e sm o d irá: " Q u a n d o
eu for le v a n ta d o d a terra, a tra ire i todos a m im ". Em l j o 2,2, se re m o s
a sse g u ra d o s: "E le é a p ro p ic ia ç ã o p o r n o sso s p e c a d o s, e n ã o so m e n te
p o r n o sso s p e c ad o s, m a s ta m b é m p e lo s d o m u n d o in te iro " .
T o d av ia, d e v e m o s n o ta r q u e, se o v. 52 p re s s u p õ e a u n iv e rsa lid a -
d e d a salv ação , ao m esm o te m p o en fatiza o a sp ec to c o m u n itá rio d e ssa
salvação. M u ito s escrito res têm c o m e n ta d o so b re o in d iv id u a lism o joa-
n in o (p. ex., C. F. D. M oule, N ov T 5 [1962], 171-90), p o is João n ã o m en -
ciona a Igreja. M as acaso n ã o tem o s a q u i o g e n u ín o co n ceito d a Igreja,
u m a v e z q u e os filhos d isp e rso s se rã o re u n id o s e se farã o uno ? Eles se
to m a rã o u n o s com a q u ela v e rd a d e ira n a ç ão d e Israel, a q u e le v e rd a d e i-
ro p o v o q u e seria p o u p a d o a tra v é s d a m o rte d e Jesus. N a s p a la v ra s d e
10,16, as o u tra s o v e lh a s q u e a in d a n ã o e ra m p a rte d o re b a n h o , v irã o
e serão p a rte d o ú n ico reb a n h o . M u ito s têm c o m e n ta d o q u e o concei-
to p a u lin o d a Igreja com o o c o rp o d e C risto p ro v a v e lm e n te p ro v in h a
d o p e n s a m e n to d a u n id a d e c ria d a p e lo c o m e r o c o rp o eu c arístic o d e
C risto (IC o r 10,17). D ificilm ente é a c id e n ta l q u e a d escrição q u e João
39 · O s h o m e n s co n d en a m Jesus à m orte: O sin éd rio 731

faz d o s ju d e u s e g e n tio s re d im id o s, re u n id o s em u m , ecoa a term in o lo -


gia d a m u ltip lic a ç ã o d o s p ã e s e u c a ristic a m e n te o rie n ta d a (6,13), o n d e
os fra g m e n to s são reunidos. A p a ssa g e m d a Didaquê (9,4) citad a na
p . 480s. re ú n e ecos d e Jo 6,13 e 11,52, e assim m o stra im p lic ita m en te
q u e o s te m a s re la c io n a d o s d a eclesiologia e sa c ra m e n ta lism o jo an in o s
n ã o são ficções d a im a g in a ç ã o m o d e rn a .
A in tro d u ç ã o d o tem a d a re u n iã o d o s g e n tio s e su a u n iã o com
Israel e m u m c o n te x to re la c io n a d o com a m o rte d e Jesu s n ã o é inova-
ção jo an in a. E stá im p líc ita n a p a rá b o la d o s la v ra d o re s m a lv a d o s qu e
os três e v a n g e lh o s sin ó tico s asso ciam co m o p e río d o a n te rio r à Páscoa
fin al. A li (M c 12,7-10) a m o rte d o filho é o q u e faz com q u e a v in h a
seja d a d a a o u tro s. T a m p o u c o este tem a está fora d e lu g a r em u m a
p a s s a g e m o n d e C aifás a cab o u d e falar d o p e rig o q u e co rre o " lu g a r
s a n to " , isto é, o tem p lo . C o m o sa b em o s à lu z d e 2,19-21, a m o rte de
Je su s le v a rá à su b stitu iç ã o d o te m p lo d e Je ru sa lé m p e lo tem p lo d e seu
co rp o . N o A T , os g e n tio s às v e z e s são re tra ta d o s p e lo s p ro fe ta s com o
s u b in d o p a ra o sa n to m o n te d o te m p lo (Is 2,3; 9,6; Zc 14,16); Is 56,7
c a ra c te riz a o te m p lo c o m o " u m a casa d e o raç ã o p a ra to d a s as n ações".
Q u a n d o , a tra v é s d a m o rte d e Jesu s se u c o rp o se to rn a o n o v o tem p lo ,
n a tu ra lm e n te p a s sa rá a se r o c e n tro p a ra c o n g re g a r os g en tio s. C aifás
p re v ê a d e s tru iç ã o ro m a n a d o lu g a r san to ; p o ré m n ã o p re v ê q u e no
n o v o te m p lo q u e su b s titu irá to d o s os so n h o s p ro fé tic o s se c u m p rirá a
re u n iã o d a s n açõ es. V er B raun, art. cit.
O ú n ic o traço s in g u la r d e sse a p o te g m a em João é q u e o d ito
c h a v e n ã o está n o s láb io s d e Jesus, e sim n o s láb io s d e se u inim igo.
O p rin c íp io d e p ro fecia in co n scien te e ra aceito n o ju d a ísm o (exem -
p io s, em StB, II, p. 546). Em p a rtic u la r, o d o m d e p ro fecia e sta v a asso-
c ia d o co m o s u m o sacerd ó cio . J osefo, Ant. 13.10.7; 327, in fo rm a com o
o s u m o sa c e rd o te Ja d u a rec e b e u u m a ilu m in a ç ã o d e q u e A le x a n d re
o G ra n d e n ã o d e s tru iría a c id a d e d e Jeru salém . In clu siv e os su m o s
sa c e rd o te s, cu jas v id a s e sta v a m lo n g e d e p e rfe ita s, d e s fru ta v a m o pri-
v ilég io , p o r e x em p lo , H irca n o , e m Ant. 13.10.7; 299. P o rta n to , a vi-
são d e Jo ão so b re os p o d e re s d e C aifás e ra m u itíssim o fam iliar no
ju d a ís m o d o l u século. O a sp e c to c ristã o p a rtic u la r se e n c o n tra n a ên-
fase d a d a a C aifás p o rq u e era o su m o sa c e rd o te naquele decisivo ano
d a salv ação . N o ta m o s a in d a q u e n ã o h á n a d a d e e stra n h o em Cai-
fás te m e r a d e s tru iç ã o ro m a n a d e Jeru salém . N a tra d içã o sinótica, o
p ró p rio Je su s su g e re este d e s tin o p a ra Je ru sa lé m (Mc 13,2; Lc 21,20),
732 O Livro d o s S inais

e ao m en o s a p o ssib ilid a d e d e tal in te rv e n ç ã o ro m a n a teria sid o p ro -


p o sta com freq u ên cia.
N ã o h á n a d a n a tra d iç ã o sin ó tica q u e se a sse m e lh e com a re tira d a
d e Jesu s p a ra E fraim e m Jo 11,54. A p ró p ria o b s c u rid a d e d a refe rê n c ia
to rn a p ro v á v e l q u e e sta m o s lid a n d o c om u m a rem in isc ên c ia h istó rica.
E u m fra g m e n to d e tra n siç ã o e m João, e n ã o p o d e m o s d e p e n d e r d e
su a a tu a l p o sição co m o a re p re s e n ta r s u a se q u ên c ia cro n o ló g ica o rig i-
nal. A o m en o s e m s e u u so d e "o s ju d e u s " , c e rta m e n te o v. 54 é d istin to
d o e s q u e m a g eral d o c a p ítu lo 11. A sim ila rid a d e c o m o re tiro e m 10,39
s u g e re a p o s s ib ilid a d e d e rela to s em d u p lic a ta .

C o m o c a p ítu lo 12, João c o m eçará n a rra n d o e v e n to s q u e tê m cia-


ro s p a ra le lo s n a tra d iç ã o sin ó tica d a ú ltim a se m a n a d a v id a d e Jesus.
P o d e ser a c o n se lh áv e l q u e a n te s d e e n tra rm o s n e sse m a te ria l, a p re -
se n te m o s u m a lista d o s p a ra le lo s já v isto s n o s re la to s sin ó tico s e joa-
n in o s d o m in isté rio (final) em Jeru sa lé m . B aseam os os p a ra le lo s sinó-
ticos e m M arcos.

Marcos João
11,18 F errenha oposição dos sacerdotes e escribas 11,47
(fariseus).
11,30-33 U ltim a m enção d e João Batista. 10,40-42
12,1-11 R esponsabilidade d os líderes d e Israel pela m orte 11,46-52
d e Jesus e a escolha de D eus de u m novo povo.
12,12 T entativa de p re n d e r Jesus. 10,39
12,18-27 Jesus afirm a a ressurreição dos m ortos. 11,1-44
12,31 M an d am en to d o am or. (13,34-35)
12,38-40 A taq u e d os escribas (fariseus). 9,40-10,18
12,43 Ensino junto ao teso u ro d o tem plo. 8,20
13,1-2 D estruição do tem plo. 11,48

B IB L IO G R A F IA

BRAUN, F.-M., "Quatre 'signes' johanniques de 1'unité chrétienne", NTS 9


(1962-63), esp ecialm ente pp. 148-50 sobre 11,47-52.
DODD, C. H., "The Prophecy ofCaiaphas (John 11.47-53)", NTPat, pp. 134-43.
40. JESU S IR A A JE R U SA L E M P A R A A P A S C O A ?
(11,55‫־‬57)

Uma passagem de transição

11 55O ra , a P áscoa d o s ju d e u s e sta v a p ró x im a ; e m u ito s d a q u e la re-


g ião s u b ira m a J e ru sa lé m a fim d e se p u rific a re m p a ra a Páscoa. 56Saí-
ra m e m b u s c a d e Jesus; o p o v o q u e cercav a o tem p lo e sta v a d iz e n d o
u n s a o s o u tro s: " Q u e v o s p arece? R ealm en te há u m a ch an ce d e q u e
ele v irá p a ra a festa?" 57O s p rin c ip a is s a c e rd o te s e o s farise u s e m itiram
o rd e n s p a ra q u e , se a lg u é m so u b e sse o n d e Jesus e sta v a , o d e n u n c ia sse
p a ra q u e p u d e s s e m p re n d ê -lo .

NOTAS

11.55. Páscoa. Esta é a terceira Páscoa m encionada em João. Na prim eira


Páscoa (2,13), Jesus observara a regulam entação que tornou a Páscoa
um a festa de peregrinação (uma função originalm ente m antida pela fes-
ta do Pão Asmo, agora com binada com a Páscoa) e subiu a Jerusalém. Na
segunda Páscoa (6,4), aparentem ente ele perm aneceu na Galileia.
muitos. T udo indica que o núm ero de peregrinos para a Páscoa variava
entre 85.000 e 125.000 (J. J eremias, ZDPV 66 [1943], 24-31). Se agregarmos
isto à população hierosolim itana (25.000), havia mais de 100.000 parti-
cipantes no serviço regular da Páscoa em Jerusalém. Josefo, War 6.9.3;
422-25, apresenta a extraordinária figura de m ais de 2.500.000, derivados
do censo feito p or Cestius nos anos 60.
para se purificarem. Nm 9,10 proíbe o hom em im undo de participar no ser-
viço pascal regular (ver 2Cr 30,17-18). Em particular, teria havido a ne-
cessidade de que os que viviam em contato com gentios se purificassem.
734 O L ivro d o s S in ais

Por exemplo, os gentios às vezes sepultavam seus m ortos nas proxim i-


dades de suas casas, e isto faria seus vizinhos judeus se sujeitarem à pu-
rificação de sete dias ordenada pelas leis que orientavam a contam inação
proveniente do contato com cadáveres (Nm 19,11-12). Josefo, War 1.11.6;
229, menciona que os habitantes da zona rural se purificavam em Jeru-
salém antes de um a festa; ver tam bém o com portam ento de Paulo em
At 21,24-27.
para a Páscoa. Há respeitável evidência para a leitura no singular.
para que. A conjunção usada (hopõs ) ocorre som ente aqui nos escritos joa-
ninos.

C O M E N T Á R IO

Estes v ersícu lo s co n stitu e m u m a tran sição às c en as seg u in tes. A sim ila-


rid a d e d o s vs. 56-57 com 7,11.13 su g e re q u e u m re d a to r p o d e ría te r u ti-
lizad o m aterial trad icio n al d e u m relato v a ria n te p a ra criar a transição.
N ão o b stan te, o m aterial n o v. 55 revela u m c o n h ecim en to im e d ia to
d o s co stu m es judaicos. É b e m p ro v áv e l q u e o v. 57 d e v a se r e n te n d id o
em term o s d e u m a p risã o n u m m o m e n to e lu g a r o p o rtu n o s. A s au to -
rid a d e s c e rtam e n te co n h eciam o n d e Jesus e stav a q u a n d o e n tra v a em
Jeru salém (12,12); to d av ia, n ão o p re n d e ra m , p o is a in d a a o casião não
era p ro p ícia.
41. C E N A S P R E P A R A T Ó R IA S P A R A A P Á S C O A
E A M O RTE: - A U N Ç Ã O E M B E T Â N IA
( 12, 1- 8)

O corpo de Jesus é ungido para a morte

12 1Seis dias antes da Páscoa, Jesus veio a Betânia, a vila de Lázaro


a quem Jesus ressuscitara dentre os mortos. 2Ali lhe deram uma ceia
em que Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com
ele. 3Maria trouxe uma medida de perfume muito caro feito de nar-
do puro e ungiu os pés de Jesus. Então enxugou seus pés com seu
cabelo, enquanto a fragrância do perfume enchia a casa. 4Judas Isca-
riotes, um de seus discípulos (aquele que iria entregá-lo), protestou:
5"Por que não se vendeu este perfume por trezentas peças de prata, e
o dinheiro poderia ser dado aos pobres?" (6Ele não disse isso porque
se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão. Ele retinha a
bolsa e podia valer-se do que era posto nela). 7A isto Jesus replicou:
"Deixai-a em paz. O propósito era que ela o guardou para o dia de
meu embalsamamento. [8Sempre tereis os pobres convosco, mas nem
sempre me tereis.]"

4: protestou. No tempo presente histórico.

NOTAS

12.1. S e is d ia s a n te s da P áscoa. Visto que para João a Páscoa será da noite de


sexta para sábado, a cena em Betânia parece ser datada da noite de sá-
bado para domingo. A referência ao dia seguinte, no v. 12, aponta para
736 O L ivro d o s S inais

a noite de sábado como a ocasião da ceia. Presum iriam os que o sábado


havia term inado, ou Marta não podería estar servindo à mesa. Há quem
pense que a refeição estava conectada com o serviço Habdalah que mar-
cava o térm ino do sábado, m as sim plesm ente não sabem os o suficiente
sobre os costum es do tem po para form ar qualquer juízo. Som ente P66 diz
"cinco dias" em vez de "seis dias".
a aldeia de Lázaro. Literalmente, "onde Lázaro estava". É estranho encontrar
Betânia identificada aqui quando ela exerceu um papel tal no capítulo
anterior. Mas se, como temos sugerido, o relato de Lázaro foi trazida à
sua presente sequência cronológica mais tarde, e se num a época foi sepa-
rado do relato da unção, então podería haver a necessidade de identificar
Betânia.
a quem Jesus ressuscitara dentre os mortos. Uma glosa redacional como indica
a repetição do nom e de Jesus.
2. deram. O objeto não é identificado; pode ser equivalente a um passivo:
"um a ceia foi dada". O OSsin faz Lázaro o anfitrião, m as a descrição dele
como um dos estavam à mesa sugeriría que ele era hóspede. A tradição
sinótica (Mc 14,3) fala da casa de Simão o leproso, e Sanders, art. cit., faria
Simão o pai de Lázaro, Maria e Marta.
3. caro. Em João , polytimos; em Mc 14,3, polytelês, "valioso".
perfume. Ou "unguento"; a palavra grega myron norm alm ente se refere a
um perfum e ou unguento feito de m irra. Q uer como pó ou líquido, myron
era feito da resina gelatinosa expelida de um arbusto balsâm ico rasteiro
que cresce no centro-oeste da África do Sul e no nordeste da Somália. Era
usada para incenso, cosmético, perfum e, m edicina e em preparativos fú-
nebres. (Ver G. W. van Beek, BA 23 [1960], 70-94). Não obstante, o uso que
João faz de myron (tam bém Mc 14,3) é mais genérico, no sentido geral de
"perfum e", pois este myron não é de m irra, e sim de nardo.
feito de nardo puro. A palavra que traduzim os para "puro" é a forma adjetiva
pistikos, palavra de significado incerto que aparece no NT somente nos re-
latos marcanos e joaninos da unção. Entre traduções sugeridas estão: "ge-
nuíno"; "cravo/nardo"; "mistura com óleo de pistácia". Literalmente, pistikos
é "fiel"; em aramaico, quStâ é am iúde encontrado com "nardo" e quStâ tam-
bém significa "fé". Assim, pistikos pode ser um a tradução m uito literal - ver
R obert, Bib 29 (1948), 279. Há também a possibilidade de que pistikos seja
uma corruptela de tês staktês; estoraque é um óleo do arbusto estoraque.
nardo. Também conhecido como crav o /n ard o , sendo um óleo perfum oso
derivado da raiz e cravo (caule fino) da planta do nardo que cresce nos
montes no nordeste da índia. P66' e o Codex Bezae om item "nardo"; pode
ser que o copista sentisse dificuldade em ter myron do nardo.
41 · C en as p rep aratórias para a p á sco a e a m orte: A u n ção em Betânia 737

4. Este versículo, em várias testem unhas, é introduzido por "então" ou


"m as", m as pode ser que isso provenha de tentativas de copista para
suavizar a transição.
Judas Iscariotes. Em outro lugar (ver nota sobre 6,71), Judas é identificado
como o filho de Simão. Isto levou Sanders, art. cit., a fazer de Judas o
irm ão m ais velho na família de Lázaro, Maria e Marta (ver acima sobre
v. 2). Ele chega até a descrever-lhe (p. 218), Judas como "um a M arta no
m asculino que se perdeu".
5. valia. Suprim os estas palavras; o grego traz sim plesm ente: "vendido por
300 peças de prata".
trezentas peças de prata. Mc 14,5 fala de mais de trezentas peças de prata; isto
é precisam ente o oposto do fenôm eno encontrado na discussão de Jo 6,7,
onde M arcos (6,37) fala de 200 denários e João de mais de 200 denários.
O denário servia como o salário de um dia (Mt 20,2), então isto era real-
m ente um perfum e m uito caro.
6. não se preocupasse com os pobres. A m esm a expressão foi usada em 10,13
para descrever o m ercenário que "não se preocupava com as ovelhas".
bolsa. Originalm ente, a palavra grega descrevia algo em que se guardava
instrum entos musicais; então, veio a significar um a bolsa, baú ou cofre.
É usado como "cofre" em 2Cr 24,8.10.
e podia valer-se. Literalmente, "furtar [o que era posto nele]".
7. Deixai-a em paz. Evidentem ente, este é o significado em Mc 14,6; mas em
João poderia ser conectado com a cláusula seguinte: "o guarde para"...
O propósito era que ela 0 guardou. Nas m elhores testem unhas gregas, esta é
um a cláusula elíptica de propósito: "a fim de que ela conserve". Outra
redação com atestação mais fraca busca evitar a dificuldade: "Ela tem
conservado". Esta segunda redação, em bora não original, provavelm en-
te seja a interpretação correta. A ideia não é que ela guardasse o perfu-
me para algum uso futuro, m as que (inconscientemente) ela o esteve
g u ard an d o até agora para em balsam ar Jesus. Temos tentado indicar isto
com as palavras: "O propósito era". Esta interpretação concordaria com
a cena em Mc 14,3, onde a m ulher quebra o vaso para que não fosse
deixado nenhum perfum e, e assim não pode haver dúvida sobre conser-
var algo para uso futuro. Tam bém explica a indignação de Judas - todo
o valioso perfum e foi usado. Se João queria dizer que Maria teria que
g u ard ar algo do perfum e para o em balsam am ento futuro de Jesus, es-
peraríam os ouvir isto depois. Mas não foi assim; Maria de Betânia não
exerce nenhum papel na preparação fúnebre do corpo de Jesus; e, aliás,
a quantia extraordinária (cem arretéis) de especiarias fúnebres trazidas
p o r Nicodem os (19,39) parecería excluir qualquer papel significativo que
738 O Livro d o s S inais

as poucas gotas restantes da m edida de perfum e de M aria tivesse. Ou-


tras traduções sugeridas são:
Boismard: G uarde-o para o dia de m eu em balsam am ento. (him + subje-
tivo = imperativo)
Torrey: Ela deve guardá-lo até o dia de meu em balsam am ento?
Barrett (como um a possibilidade): Que ela o guarde na m ente no dia de
m eu embalsam am ento.
8. Este versículo é palavra por palavra idêntico com Mt 26,11; Mc 14,7 tem o
versículo, m as com um a cláusula extra: "e sem pre que quiserdes podeis
fazer-lhes o bem". Em joão, este versículo é om itido por testem unhas
do grupo ocidental (Bezae, OL, OSsin); e o fato de que ele concorda com
M ateus, em vez de Marcos, sugere que ele foi um a adição posterior de
copista tom ado do texto de M ateus mais tradicional.
sempre tereis os pobres. Dt 15,11: "N a terra nunca faltarão pobres".
nem sempre me tereis. Este contraste se ajusta bem com a teologia rabínica.
Há duas classificações de "boas obras" (a expressão em Mc 14,6): aquelas
que pertencem à m isericórdia, p. ex., sepultam ento; as que pertencem à
justiça, p. ex., esmola. As prim eiras eram tidas como m ais perfeitas que
as segundas. Ver J. J eremias, ZNW 35 (1936), 75-82.

COMENTÁRIO

Comparação com os relatos cie unção nos sinóticos

A tra d içã o sin ó tica tem ciência d e d u a s c en as o n d e u m a m u lh e r u n g e


Jesus. M c 14,3-9 e M t 26,6-13 falam d e u m a u n ç ã o d e Je su s e m Betâ-
n ia, feita p o r u m a m u lh e r a n ô n im a ju sta m e n te a n te s d e su a m o rte.
(O relato d e M a te u s é to ta lm e n te d e p e n d e n te d e M arco s e n ã o p recisa
ser lev a d o em co n ta p a ra n o sso s p ro p ó sito s). L ucas n ã o te m e sta cena,
m as em 7,36-38 ele fala d e u m a u n ç ã o d e Jesu s n a G alileia feita p o r
u m a m u lh e r p e c a d o ra . N in g u é m re a lm e n te d u v id a q u e João e M arcos
estão d e s c re v e n d o a m esm a cena; to d a v ia , m u ito s d o s d e ta lh e s em
João são co m o os d a cen a e m Lucas. T o d o s os e v a n g e lista s e sta ria m
d e sc re v e n d o o m esm o in cid e n te , o u h o u v e o u tro s in cid e n te s? João te-
ria a lg u m m a te ria l o rig in a l, o u o re la to jo a n in o é m e ra m e n te u m a ree-
lab o ração im a g in a tiv a d o m a te ria l sinótico? U m a tab ela q u e c o m p a ra
d e ta lh e s é d e valor:
41 · C en a s prep aratórias para a p á sco a e a m orte: A u n ção e m Betânia 739

Marcos 14,3-9 João 12,1-8 Lucas 7,36-38


2 d ias an tes d a Páscoa 6 d ias antes da Páscoa d u ra n te o m inistério
em Betânia em Betânia no cenário galileu
casa d e Sim ão (leproso) não especificada casa d e Sim ão (fariseu)
m u lh e r an ô n im a com M aria d e Betânia m ulher p ecadora
alab astro com u m a m edida com alabastro
valioso p erfu m e perfu m e caro perfu m e
feito d e n a rd o real feito de n a rd o p u ro
chora sobre os pés
seca-os com cabelo
d e rra m a p erfu m e u n g e os pés u n g e os pés
so b re a cabeça enxuga-os com o cabelo
alguns discípulos irados Judas irado Jesus critica Sim ão
(44ss.)■
valor: m ais d e 300 valor: 300 denários
d en ário s
Jesus d efen d e a m ulher Jesus d efen d e M aria Jesus p e rd o a a m ulher
(50)
"D eixai-a em p az" "D eixai-a em p az"
"P o b res sem p re "O g u a rd o u p ara o dia
convosco"
"T em u n g id o p ara o "S em pre tereis os
sep u ltam en to " p obres"
"Ser co n tad o no
m u n d o inteiro"

Q u a lq u e r so lu ç ã o o ferecid a p a ra as o rig e n s d o rela to jo an in o ex-


p lic a ria o s c laro s p a ra le lo s p a ra a m b a s as cen as sinóticas. D odd, Tradi-
tion, p p . 162-73 o ferece u m a v a lio sa an álise, m as p ro p õ e u m in cid en te
b á sic o p o r d e trá s d o s trê s relato s. U m a so lu ç ã o m ais v iáv el é a d e
P. B enoit co m o a p re s e n ta d a p o r L egault, art. cit., so lu ç ã o q u e p ro p õ e
d o is in c id e n te s b ásico s, a saber: (1) U m in c id e n te n a G alileia, n a casa
d e u m fariseu . U m a p e c a d o ra p e n ite n te e n tra e c h o ra n a p rese n ç a de
Jesu s. S u as lá g rim a s caem e m se u s p és, e ela se a p re ssa a en x u g á-lo s
co m s e u cabelo. N e sta c en a n ã o h á u n ç ã o c om p e rfu m e . A ação (escan-
d a lo sa ) d e s o lta r o cabelo e m p ú b lic o se a d e q u a ao c a rá te r d a m u lh e r
e a ju d a a ex p lic ar a in d ig n a ç ã o d o s fariseu s. Este in c id e n te é a e sp in h a
d o rs a l d a n a rra tiv a d e Lucas. (2) U m in c id e n te em B etânia, n a casa d e
740 O L ivro d o s S inais

Sim ão, o lep ro so , o n d e u m a m u lh e r (c h a m a d a M aria), co m o e x p re s-


são d e se u a m o r p a ra com Jesu s, u sa se u d isp e n d io s o p e rfu m e p a ra
u n g ir a cabeça d e Jesus. A p ro p o sta d e d o is in c id e n te s tem a v a n ta -
gern d e re s p e ita r to ta lm e n te a d ife re n te n a tu re z a e p ro p ó sito d a cena
lu ca n a d a q u e la d e M arco s e João. O m e sm o e le m e n to fo rte d e p e c a d o
e p e rd ã o , q u e é essen cial ao re la to lu ca n o , se p e rd e u to ta lm e n te no
rela to d e B etânia. O ra, c o m e ç a n d o com e ste s d o is in c id e n te s d ife ren -
tes, p o d e m o s v e r co m o n a tra d iç ã o o ra l p o d e m se r c o n fu n d id o s e os
d e ta lh e s d e u m p o d e ría m p a s sa r p a ra o o u tro .
L ucas, q u e n ã o n a rra a u n ç ã o e m B etânia, n o s p ro p o rc io n a u m
rela to d o p rim e iro in cid e n te , p o ré m com m u ita m is tu ra d e d e ta lh e s
d o s e g u n d o in cid e n te . A u n ç ã o foi in tro d u z id a ; e já q u e o p rim e iro
in c id e n te m e n c io n o u o s p é s d e Jesus, a u n ç ã o é a sso c ia d a co m o s pés.
Tal u n ç ã o é fo ra d e p ro p ó sito . A s p e sso a s u n g ia m o ro sto p a ra q u e
a p e sso a tiv esse u m a fra g rân c ia a g ra d á v e l, m a s a u n ç ã o d e p é s real-
m e n te é se m p a ra lelo . (L egault, p. 138, ressa lta a fra q u e z a d o s p a ra -
lelos u s u a lm e n te a p re se n ta d o s). U m d e ta lh e a d ic io n a l n o re la to de
L ucas, p a ra q u e v iesse a se r o s e g u n d o in cid e n te , é o n o m e S im ão , q u e
a p a re c e so m e n te q u a n d o Jesu s p a ssa a fala r ao s fa rise u s (Lc 7,40). A té
a q u e le m o m e n to , o a n fitriã o é s im p le sm e n te u m d o s farise u s, e isto
p o d e re p re s e n ta r a fo rm a o rig in a l d o p rim e iro in cid e n te .
M arco s (e M ateu s) p a re c e re p re s e n ta r u m a fo rm a q u a se p u ra
d o s e g u n d o in cid e n te . N ã o h á n o m e s n o re la to m a rc a n o , ex ceto o de
Sim ão. A id en tificação jo a n in a d a m u lh e r co m o M aria d e B etânia e
d o d isc íp u lo re c la m a n te co m o se n d o Ju d a s é difícil d e a v a liar. Bem
q u e p o d e ria re p re s e n ta r a in fo rm a ç ã o h istó rica p re s e rv a d a so m e n te
n o Q u a rto E v an g elh o , m a s o u tro s e stu d io so s o c o n s id e ra ria m com o
p a rte d e u m a te n d ê n c ia p o s te rio r d e id e n tific a r p e rs o n a g e n s desco-
n h e c id o s com p e rs o n a g e n s co n h ecid o s. (M as, p a ra q u e , p o is, M aria
d e B etânia p o d e ria se r c o n h e cid a , se ela n ã o u n g iu Jesus? - v e r 11,2).
A o d a r o v a lo r d o p e rfu m e co m o c u s ta n d o mais d e tre z e n ta s p e ç a s de
p ra ta , M arco s p a re c e re p re s e n ta r u m a fo rm a m ais d e s e n v o lv id a da
tra d içã o d o q u e a fixação ex a ta d e João d e tre z e n ta s p e ç a s d e p ra ta .
O re la to d e João re p re s e n ta u m a fo rm a d o s e g u n d o in c id e n te à
q u a l fo ram in c o rp o ra d o s d e ta lh e s d a forma lucana d o p rim e iro inci-
d e n te . Se a u n ç ã o d e L ucas, d o s p é s, é a n ô n im a , a ação d a m u lh e r se
to rn a a in d a m ais e x tra o rd in á ria e m João q u a n d o ela p ro ss e g u e rem o-
v e n d o o p e rfu m e q u e ela m e sm a aplicou! A d e scriçã o d e L ucas de
41 · C en a s p rep aratórias para a p áscoa e a m orte: A u n ção em Betânia 741

e n x u g a r as lág rim a s faz sen tid o ; m as, v isto q u e o relato jo an in o não


m en c io n a lá g rim a s, a ação d e e n x u g a r e n tã o foi tra n sfe rid a p a ra o p er-
fu m e. O a to d e so lta r o cabelo, n ã o in a p ro p ria d o n o p rim e iro inciden-
te, n ã o e stá d e a c o rd o c om o c a rá te r d a v irtu o sa M aria d e B etânia. U m a
tra n sfe rê n cia tão co n fu sa d e d e ta lh e s p o d e ser m ais b e m ex p licad a no
n ív el d e c o n ta to d u ra n te o está g io o ral d a tran sm issão . Já v im o s e vere-
m o s o u tro s e x e m p lo s d e in flu ên cia c ru z a d a e n tre L ucas e João in d o em
a m b a s as d ireçõ es. C o m a exceção d e d e ta lh e s q u e têm v in d o d o relato
lu can o , o rela to d e João é tão n o ta v e lm e n te p a re c id o com o d e M arcos.
Q u e a m b o s, M arcos e João, u sa m a ex p re ssã o sin g u la r " p e rfu m e feito
d o n a rd o p u r o " (ver n o ta) n ão p o d e ser p o r coincidência; m as, u m ex-
tra iu d o o u tro , o u a m b o s são d e p e n d e n te s d e u m a fo n te co m u m ? A s
p e q u e n a s d ife ren ç a s q u e e n v o lv e m os d e ta lh e s e m q u e são m ais afins
(M arcos tem p e rfu m e valioso em c o n tra ste com o p e rfu m e caro d e João;
M arco s te m mais d e 300 d e n á rio s) su g e re m a s e g u n d a [alternativa].
O ra, se am b o s, João e M arcos, re p ro d u z e m p a ra n ó s u m a fonte qu e
lh es é c o m u m , e n tã o d e m o d o a lg u m é certo q u e M arcos rep re sen ta
a q u e la fo n te n u m a fo rm a m ais o rig in a l d o q u e faz João, u m a vez qu e
os e le m en to s lu ca n o s fo ram su p rim id o s. D iscu tirem o s abaixo d etalh es
c o m p a ra tiv o s, m a s su g e rim o s q u e o relato d o in cid e n te em B etânia qu e
su b lin h a a p re s e n te n a rra tiv a jo an in a d á e v id ên cia, em a lg u n s p o n to s,
d e se r p ró x im o d a tra d içã o m ais a n tig a so b re esse incidente.
A n te s d e c o n c lu irm o s esta c o m p a raç ã o , d eseja m o s fazer d u a s
o b se rv a ç õ e s. Primeira, a d m itin d o q u e a fo rm a jo an in a final d o relato
re p re s e n ta u m a m á lg a m a u m ta n to c o n fu so d e d e ta lh e s d e d o is inci-
d e n te s o rig in a lm e n te se p a ra d o s , n ã o o b sta n te d e v e m o s c o m p re e n d e r
q u e o e s tra n h o q u a d ro d e u n ç ã o d o s pés d e Jesus foi p re s e rv a d o p o r
a lg u m a ra z ã o - co m o v e re m o s abaixo, essa ra z ã o se a d e q u a ao p ro p ó -
sito teo ló g ico jo an in o . A in d a q u a n d o ele n ã o fosse q u a se c e rtam e n te
te s te m u n h a o c u la r d a cen a, o e scrito r teria sid o tão cien te c o m o so m o s
à d istâ n c ia d e d o is m ilên io s q u e a lg u é m n o rm a lm e n te n ã o u n g iria os
p é s n e m re m o v e ría o p e rfu m e .
Segunda, as lin h a s e n tre c ru z a d a s d e d e ta lh e s d e d o is in cid en tes
d ife re n te s q u e te m o s d e sc rito n ã o c e ssa ram co m a p u b licação d os
e v a n g e lh o s escritos. N a m e n te p o p u la r, sob a in flu ên cia d o q u a d ro
lu c a n o d e u m a m u lh e r p e c a d o ra , a m u lh e r d e B etânia (M aria, seg u n -
d o João) foi lo g o c a ra c te riz a d a co m o p e c a d o ra . E ntão, em bo a m e-
d id a , esta M aria p e c a d o ra d e B etânia foi id e n tific a d a com M aria d e
742 O L ivro d o s Sinais

M a g d ala , d e q u e m fo ram e x p u lso s se te d e m ô n io s (Lc 8,2) e a q u a l foi


ao tú m u lo d e Jesus. E assim , p o r e x em p lo , a litu rg ia cató lica c h e g o u a
h o n ra r n u m a festa sin g u la r as três m u lh e re s (a p e c a d o ra d a G alileia,
M aria d e B etânia e M aria d e M a g d ala ) co m o u m a só sa n ta - u m a con-
fu sã o q u e tem e x istid o na Igreja O c id e n ta l, e m b o ra n ã o se m co n testa-
ção, d e s d e o te m p o d e G regório o G ra n d e .

O relato de João

O re la to q u e Jo ão faz d a u n ç ã o é d a ta d a seis d ia s a n te s d a Pás-


coa, e n q u a n to o re la to q u e M arco s faz d a cen a d e B e tâ n ia p a re c e es-
ta r d a ta d o d o is d ia s a n te s d a P ásco a. D iz e m o s " p a re c e " , p o r q u e ne-
n h u m a d a ta a p a re c e n o re la to m a rc a n o a tu a l d a u n ç ã o (14,3-9), m as
s o m e n te n o c o n te x to (14,1). M ais q u e p ro v á v e l, M c 14,1-2 foi, orig i-
n a lm e n te , re u n id o a 14,10, e o re la to d a u n ç ã o é u m a in te rp o la ç ã o .
N ã o o b s ta n te , m e sm o q u e a d a ta d e " d o is d ia s a n te s d a P á sc o a " n ã o
g o v e rn e a cen a d a u n ç ã o , M arco s e M a te u s co lo c a m a c e n a c o n sid e -
ra v e lm e n te d e p o is d a e n tr a d a d e Je su s e m J e ru sa lé m (M c 11,1-10),
e n q u a n to Jo ão a coloca a n te s d a e n tra d a . N e n h u m a d e c isã o so b re
q u e lo ca liz a ç ão é c o rre ta p a re c e p o ssív e l. B oismard s u g e riu q u e , ao
m e n c io n a r "se is d ia s a n te s d a P á sc o a " , Jo ão e stá e s ta b e le c e n d o u m a
s e m a n a n o fin al d o m in is té rio p a ra fo rm a r u m a in c lu s ã o co m a se-
m a n a n o in ício d o m in is té rio (v er p. 300); e B arrett , p . 342, ta m b é m
p a re c e fa v o re c e r e sta so lu ç ã o . N ã o o b s ta n te , n e s te re la to jo a n in o do
fin al d o m in is té rio d e Je su s n ã o h á in sis te n te c o n ta g e m d o s d ia s tal
co m o e n c o n tra m o s n o c a p ítu lo 1.
O re la to q u e João re g istra d a u n ç ã o em B etânia id en tifica m u ito s
d o s p a rtic ip a n te s (L ázaro, M a rta , M aria, Ju d a s), e m b o ra n ã o m encio-
n e a q u e le p e rs o n a g e m a q u e m M arco s id en tifica, S im ão o leproso.
U m a v ez q u e c o n sid e ra m o s a p re s e n te localização d o re la to d e Lá-
z a ro co m o se c u n d á ria , s u sp e ita m o s q u e a m en ç ã o d e L á z aro e M arta
re p re s e n te u m a te n ta tiv a re d a c io n a l p a ra lig a r os c a p ítu lo s 11 e 12.
E ó b v io q u e eles n ã o têm u m p a p e l im p o rta n te n a cen a d a unção.
A m en ção d e L ázaro, no v. 1, é in cô m o d a (ver nota), e a d escrição de
M arta s e rv in d o à m esa p o d e re p re se n ta r a influência d a d escrição simi-
lar d e M a rta e m Lc 10,40. H á u m a m e lh o r c h a n ce d e q u e os p e rso n a -
g en s d e M aria e Ju d a s fo ra m p a rte o rig in a lm e n te d o re la to e q u e seus
n o m es se p e rd e ra m n a tra d iç ã o sinótica.
41 · C en a s prep aratórias para a p á sco a e a m orte: A u n ção em Betânia 74 3

P o d e m o s fazer u m a b re v e p a u s a p a ra d isc u tir o p a p e l d e Ju d a s


n o re la to d e João. Q u e u m d isc íp u lo ín tim o co m o Ju d a s tra iría Jesus
exigia a lg u m a ex plicação, e os e v a n g e lh o s o ferecem d u a s so lu çõ es ge-
rais. A p rim e ira explicação, e p ro v a v e lm e n te a m ais p rim itiv a , das
m ás açõ es d e Ju d a s é q u e ele foi o in stru m e n to d o P ríncipe d o m al.
Lc 22,3 e Jo 13,2.27 n o s in fo rm a q u e S a tan á s e n tro u em Ju d as, en-
q u a n to Jo 6,70 d iz q u e Ju d a s era u m d iab o . A se g u n d a explicação,
n ã o n e c e s s a ria m e n te o p o sta à p rim e ira , é q u e Ju d a s traiu Jesus p o r
a m o r a o d in h e iro . E n q u a n to no rela to m a rc a n o d a traição (14,11; tam -
b é m Lc 22,5) a id eia d e d a r d in h e iro a Ju d a s p a re c e se r u m a p ro p o s-
ta d o s p rin c ip a is sa ce rd o te s, M t 26,15 tem Ju d a s e x ig in d o d in h eiro .
O q u a d ro d a c u p id e z d e J u d a s foi n a tu ra lm e n te p in ta d o e m to n s m ais
e m ais e sc u ro s q u a n d o o rela to foi re c o n ta d o . O p erfil d e Ju d a s traça-
d o p o r João e m 12,4-6 é a in d a m ais h o stil d o q u e o d e M ateu s, pois
João re p re s e n ta Ju d a s co m o u m lad rã o .
T o d a v ia , m esm o q u e esta a p re se n ta ç ã o su p o n h a u m certo desen -
v o lv im e n to , é b e m p ro v á v e l q u e João esteja n o s d a n d o u m a in fo rm a-
ção h istó ric a n ã o p re s e rv a d a n o s o u tro s e v a n g elh o s, re g is tra n d o que
J u d a s g u a rd a v a os fu n d o s co m u n s. Esta in fo rm a ç ã o to rn a m ais ve-
ro ssím e l o d iá lo g o em 13,27-29 e explica o lu g a r d e h o n ra q u e Ju d a s
tev e ju n to d e Jesu s na ú ltim a ceia (ver n o ta so b re 13,23 n o v o lu m e 2).
O s e v a n g e lh o s sin ó tico s p a re c e m im p lic a r q u e Ju d a s p o d e ría e sta r d e
p o s s e d e trin ta s m o e d a s d e p ra ta sem c a u sa r su sp e ita , e isto seria ex-
p lic á v el se ele tin h a os fu n d o s c o m u n s. N ã o é im p o ssív e l q u e a id en ti-
ficação jo a n in a d o d isc íp u lo rec la m a n te em B etânia com Ju d a s se d ev a
a te n d ê n c ia p o p u la r d e a p re s e n ta r Ju d a s co m o u m p e rso n a g e m sinis-
tro. T o d a v ia , ta m p o u c o é im p o ssív e l q u e p re c isa m e n te p o rq u e ele ad -
m in is tra v a o d in h e iro p e lo g ru p o , Ju d a s era o d isc íp u lo q u e su scito u
p ro te s to e m B etân ia, e q u e u m a v ez m ais essa m em ó ria se p e rd e u na
tra d iç ã o sin ó tica.
João n ã o re g istra o lo u v o r d irig id o a M aria d e B etânia q u e se en-
c o n tra e m M c 14,9: "S e m p re q u e o e v a n g e lh o for p re g a d o n o m u n d o
in te iro , o q u e ela fez será c o n ta d o em m e m ó ria d e la ". Se João era de-
p e n d e n te d e M arcos, a o m issã o d e ste lo u v o r seria difícil d e e n te n d e r,
p o s to q u e 11,2 p re s u m e q u e M aria era b em c o n h e cid a , p rec isam e n te
p o rq u e ela u n g ira a Jesus. T em -se s u g e rid o q u e o p a ra le lo jo an in o
co m o d ito m a rc a n o se e n c o n tra em 12,3, o n d e so m o s in fo rm a d o s
q u e a fra g râ n c ia d o p e rfu m e e n c h e u a casa. A Midrásh Rabbah so b re
744 O Livro d o s Sinais

Ecl 7,1 trás: "A fra g rân c ia d e u m b o m p e rfu m e se d ifu n d e d e s d e o


leito a té a sala d e jan ta r; p o rta n to , u m b o m n o m e se d ifu n d e d e u m a
o u tro e x tre m o d o m u n d o " . Se e sta c o m p a ra ç ã o rab ín ica e ra c o n h e cid a
n o te m p o em q u e o Q u a rto E v a n g e lh o foi escrito , e n tã o d e v e ra s h á u m
p a ra lelo e n tre as id é ia s m a rc a n a s e jo an in as. B ultmann , p. 317, in siste
q u e, além d e in d ic a r a q u a n tid a d e d e p e rfu m e u s a d o , a a firm a ç ã o no
v. 3 so b re a fra g rân c ia e n c h e n d o a casa tin h a u m a sig n ificação sim b ó -
lica; m a s ele v ê o sim b o lism o em te rm o s d e gnosis e n c h e n d o o m u n d o .
A im p licação teológica d a u n ç ã o e m a m b o s, João e M arco s, é
d ire c io n a d a p a ra o s e p u lta m e n to d e Jesus (Jo 12,7; M c 14,8), e n ão
há e v id ê n c ia d e q u e o re la to se m p re foi n a rra d o n o s círcu lo s cristão s
sem tal referên cia. Se tem o s c o m p re e n d id o o v. 7 c o rre ta m e n te (v er a
resp e c tiv a n o ta), a ação d e M aria c o n stitu iu u m a u n ç ã o d o c o rp o de
Jesu s p a ra o se p u lta m e n to , e assim , in co n sc ie n te m e n te , ela re a liz o u
u m a ação p ro fética. E d e fato isto p o d e e x p lic ar p o r q u e o d e ta lh e
m ais im p la u sív e l d a u n ç ã o d o s pés foi m a n tid o n a n a rra tiv a jo a n in a -
n in g u é m u n g e os p é s d e u m a p e sso a v iv a, m a s a lg u é m p o d e ria u n g ir
os p é s d e u m c a d á v e r co m o p a rte d o ritu a l d e p r e p a r a r to d o o c o rp o
p a ra o s e p u lta m e n to . N o final d o c a p ítu lo 11, o S in é d rio d e c id iu m a-
ta r Jesu s, e a g o ra a ação d e M aria o p re p a ra p a ra a m o rte . H oskyns,
p. 408, re ssa lta q u e n a p re s e n te se q u ên c ia jo an in a o d o m d a v id a a
L ázaro p ro v o ca d u a s reações. A se ssã o d o S in é d rio é a s u p re m a ex-
p re ssã o d a rec u sa d e crer; a u n ç ã o feita p o r M aria é a c u lm in a n te
e x p ressão d a fé am o ro sa . Em c a d a u m a h á u m a p ro fe c ia in co n scien te
d a m o rte d e Jesus.
B arrett, p. 341, e o u tro s têm su g e rid o q u e a u n ç ã o feita p o r M a-
ria é u m a u n ç ã o rég ia, e q u e João m u d o u e sta u n ç ã o p a ra s u a p o sição
a tu a l a fim d e q u e v iesse a c o n stitu ir u m a p re p a ra ç ã o p a ra a e n tra d a
d e Jesus em J e ru sa lé m co m o u m rei u n g id o . N ã o o b sta n te , n ã o h á no
texto d a u n ç ã o n e n h u m a in sin u a ç ã o d e tal ap licação ; e, co m o v e re m o s
n a p ró x im a cen a, Jesu s re a lm e n te n ã o a c eito u a c la m a ç õ e s ré g ia s da
m u ltid ã o . Se João p re te n d ia sig n ificar a u n ç ã o d e Je su s c o m o rei, en tão
a lg u é m teria e s p e ra d o a u n ç ã o d a cabeça, n ã o d o s pés. A lg u n s estú d io -
sos se se n te m in sa tisfe ito s c om a teo ria d e q u e a u n ç ã o e m B etânia ser-
v iu co m o o e m b a lsa m a m e n to d e Je su s (v. 7), p o rq u a n to 19,39 im plica
u m e m b a ls a m a m e n to n o d ia d o se p u lta m e n to d e Jesus. T o d a v ia , visto
q u e o e m b a ls a m a m e n to e m B etânia é a p e n a s e m u m n ív el fig u rativ o ,
ele n ão cria q u a lq u e r o b stá c u lo a u m fu tu ro e m b a ls a m a m e n to régio.
41 · C en as p rep aratórias para a p áscoa e a m orte: A u n çã o e m Betânia 745

E m M arco s, o m o tiv o d o e m b a lsa m a m e n to (fig u rativ o ) é a in d a m ais


c la ro em B etânia d o q u e em João; to d a v ia , M c 16,1 d e scre v e as m u lh e -
res in d o a o tú m u lo na m a n h ã p a sca l p a ra e m b a lsa m a r Jesus.

B IB L IO G R A F IA

LEGAULT, A., "An Application of the Form-Critique Method to the Anoitings


in Galilee and Bethany", CBQ 16 (1964), 131-41.
SANDERS, J. N ., '"Those whom Jesus loved' (John xi. 5)", NTS 1 (1954-55),
29-41 - u m a discussão do círculo fam iliar em Betânia.
4 2 . C E N A P R E P A R A T Ó R IA P A R A A P Á S C O A
E A M O R T E : - A E N T R A D A E M JE R U S A L É M
(12,9‫־‬19)

A reação de Jesus à aclamação das multidões

12 9O ra, a g ra n d e m u ltid ã o d o s ju d e u s so u b e q u e ele e sta v a ali e saiu,


n ã o só p o r c a u sa d e Jesu s, m a s ta m b é m p a ra v e r L ázaro a q u e m ele
ressu sc ita ra d e n tre os m o rto s. 10E n tre ta n to , os p rin c ip a is sa ce rd o te s
p la n e ja ra m m a ta r ta m b é m L ázaro , 11p o rq u e , p o r su a c a u sa , m u ito s
d o s ju d e u s a c u d ia m a Jesu s e criam nele.
12N o d ia se g u in te , a g ra n d e m u ltid ã o q u e v iera p a ra a festa, ten d o
o u v id o q u e Jesu s e sta v a p a ra e n tra r e m Je ru sa lé m , 13to m a ra m ram o s
d e p a lm e ira s e sa íra m a en co n trá-lo . C o n tin u a ra m c la m an d o :

"H o san a!
B en d ito é a q u e le q u e v e m n o n o m e d o S enhor!
B en d ito é o Rei d e Israel!"

14M as Jesu s e n c o n tro u u m ju m e n tin h o e m o n to u nele. C o m o d iz a


E scritura:

15" N ã o tem ais, ó filhas d e Sião!


V ede, v o sso rei v e m a vós
a s se n ta d o n u m ju m e n tin h o " .

(16A p rin c íp io , os d isc íp u lo s n ã o c o m p re e n d e ra m isto; m a s q u a n d o


Jesus foi g lo rificad o , e n tã o le m b ra ra m q u e o q u e lh e fiz e ra m foi preci-
sa m e n te o q u e e sta v a escrito so b re ele).
42 · C enas preparatórias para a páscoa e a morte: A entrada em Jerusalém 747

17E e n tã o a m u ltid ã o q u e e stiv e ra p re s e n te q u a n d o Jesu s c h a m o u


L á z a ro p a ra fo ra d o tú m u lo e o re ssu sc ito u d e n tre os m o rto s conti-
n u a v a te stific a n d o d isto . 18Eis [tam bém ] p o r q u e a m u ltid ã o sa iu ao
e n c o n tro d ele: p o rq u e o u v ira m q u e ele re a liz a ra este m ilag re. 19N isso,
o s fa rise u s d iss e ra m u n s aos o u tro s: "V ed es, n ã o estais c o n se g u in d o
co isa a lg u m a . V ed e, o m u n d o tem c o rrid o a p ó s ele".

NOTAS

12.9. a grande multidão. A construção com artigo resulta violenta, especialmen-


te a sintáxe. A dificuldade da redação tem levado m uitas testem unhas
textuais a om itir o artigo. A prim eira vista, parece haver três m ultidões
nesta seção: (a) a m ultidão (v. 17) daqueles que viram Jesus ressuscitar
Lázaro e que agora creem em Jesus; (b) a grande m ultidão (v. 9) daqueles
que ouviram falar deste milagre e partiram para Betânia antes que Jesus
saísse para Jerusalém; (c) a grande m ultidão (vs. 12, 18) dos que ouvi-
ram falar do m ilagre e saíram ao encontro de Jesus enquanto entrava
em Jerusalém . Parte desta confusão parece ter-se introduzido quando os
vs. 9-11 e 17-19 foram anexados como estrutura redacional para a nar-
rativa básica de 12-16. Esta narrativa básica tinha som ente um a "grande
m ultidão" dos judeus - um a "m ultidão" estilizada como a do cap. 6,2,
um coro grego d ando voz aos sentim entos de incom preensão. Esta mui-
tidão saiu ao encontro de Jesus. Mas as adições redacionais introduziram
outra m ultidão que acom panha Jesus. (A despeito da estranheza, [a] e
[b] aparentem ente devem ser idênticos, pois a descrição sum ariada em
17-18 inclui som ente duas multidões).
dos judeus. Aqui e no v. 11 evidentem ente os judeus distintos das autorida-
des judaicas, um fenôm eno que vim os tam bém no capítulo 11.
Lázaro. O tem a Lázaro com persistente identificação ("a quem ele ressusci-
tara dentre os m ortos") é m encionado som ente na estrutura redacional
(vs. 9-11,17-19), não na narrativa básica da entrada na cidade.
10. planejaram matar. Eco de 11,53.
11. por sua causa. A bbott, JG, § 2294a, sugere: "por causa de [serj ele". Não
obstante, aqui se tom a difícil fazer um a distinção precisa entre m otivo e
causa, como faz A bbott.
muitos dos judeus acudiam. Embora as palavras "m uitos" e "dos judeus"
no grego estão separadas, a expressão é partitiva (A bbott, JG, § 2041).
Há aqueles que preferiríam "M uitos estavam abandonando os judeus",
748 O Livro d o s S inais

entendendo um genitivo de separação. Isto é difícil de justificar gram ati-


calmente (BDF, § 180; hypagein norm alm ente toma apo), e implica um uso
diferente "dos judeus" daquele do v. 9.
acudiam. Isto poderia significar para Betânia, mais provavelm ente, porém ,
signifique passando para o lado de Jesus.
12. No dia seguinte. Daquele m encionado em 12,1, e assim, aparentem ente,
um dom ingo. É de João que obtem os am bos os elem entos no "Dom ingo
de Ramos". Quão literalm ente devem os aceitar a sequência cronológica
é difícil de julgar.
a grande multidão. Uma vez mais, muitas testemunhas textuais omitem o difícil
artigo definido. Sobre o tamanho da m ultidão festiva, ver nota sobre 11,55.
13. ramos de palmeiras. A descrição que João faz, envolvendo duas palavras
para palmeira (baton; phoinix), é precisa, a despeito de um tanto tautoló-
gica; a mesma expressão se encontra no Testamento de Naftali 5,4. A ques-
tão suscitada quanto a se as palm eiras crescidas em Jerusalém poderíam
fornecer suas folhas com tanta facilidade. L agrange, p. 325, sugere que
elas cresciam no vale ocidental mais quente por onde Jesus passava; e
lM c 13,51 parece sugerir que a palmeira estava disponível em Jerusalém
no segundo mês do ano; portanto, não m uito depois da Páscoa. Não obs-
tante, há evidência recente do contrário. Uma carta de Simão Bar-Kochba
(Ben Kosiba), escrita diretam ente de Jerusalém, ordenou a um hom em que
tirasse um a palmeira de En Gedi e a levasse para a área de Jerusalém,
provavelmente para a celebração da festa dos Tabernáculos (ver Y adin,
BA 24 [1961], 90). Ainda hoje a m aior parte das palm as para o Domin-
go de Ramos é trazida de Jerico para Jerusalém. Em virtude da menção
que João faz de palmas, alguns têm sugerido que a entrada em Jerusalém
realmente ocorreu antes da festa dos Tabernáculos, quando um a grande
quantidade de palm as foi trazida do vale do Jordão para edificar cabanas
e ser levadas em procissão (Lv 23,40; Ne 8,15). De acordo com todos os
evangelhos, o estribilho entoado pelos que testem unharam a entrada de
Jesus foi extraído do SI 118, salmo que era parte da liturgia da festa dos
Tabernáculos (mas também entoado na Páscoa e na festa da Dedicação).
Da mesma forma, Zc 9,9, citado em Mateus e João, pode estar relacionado
com o contexto da festa dos Tabernáculos de Zc 14,16. Aliás, Zc 14,4, em
um contexto da festa dos Tabernáculos, profetizou que Deus estava para
manifestar-se desde o Monte das Oliveiras, e Jesus estava fazendo sua
entrada em Jerusalém por via deste monte. Para outros argum entos, ver
J. D aniélou, MD 46 (1956), 114-36; T. W. M anson , BJRL, 33 (1951), 271-82.
E interessante a teoria de que Jesus entrou em Jerusalém durante a festa dos
Tabernáculos, e não na Páscoa, porém vai além da possibilidade de prova.
42 · C enas preparatórias para a páscoa e a morte: A entrada em Jerusalém 749

continuaram clamando. A citação bíblica que segue é a única do AT citada no


evangelho que não é prefixada ou seguida de um a fórmula de introdução
tal como "A Escritura diz"... A omissão dessa fórm ula é mais comum nos
sinóticos; m as F reed, p. 332, dificilmente esta correto em usar isto como
um argum ento para provar aqui a dependência de João dos sinóticos. Ter
a m ultidão declarando tal fórmula obviam ente teria sido estranho.
Hosana. Isto é um a transliteração do aramaico hösa'-nä, hebraico hõsTã-{n)nâ,
significando "Salve (- por favor)". Isto era usado como um a oração por
socorro; particularm ente da festa dos Tabernáculos era um a oração
p o r chuva (J. P etuschowski, VT 5 [1955], 26671‫)־‬. Mas era tam bém usada
com o um a aclamação ou saudação (2Sm 14,4). O fato de que os evan-
gelhos não traduzem o term o hebraico, como faz a LXX, provavelm en-
te indica que, neste uso, "H osana" não seja um a oração de petição, e
sim um grito de adoração. Lc 19,37 fala corretam ente de louvar a Deus.
Provavelm ente, "H osana" já fora introduzido na fórm ula de oração da
com unidade cristã. Ver F reed, art. cit., e bibliografia citada ali.
aquele que vem no nome do Senhor. A ideia original do SI 118,26 era quase
certam ente: Bendito no nom e do Senhor é aquele que vem, i.e., o peregri-
no que vem ao tem plo (ver 2Sm 6,18). Não obstante, no NT "aquele que
vem " é tom ado como um título para Jesus (Mt 11,3; 23,39; Jo 1,27; 6,14;
11,27). Em João, "aquele que vem no nom e do Senhor" tem particular
significação, visto que, segundo 17,11-12, o Pai deu a Jesus o nom e divino
(egõ eimi?).
Bendito é 0 Rei de Israel. Literalmente, "e o Rei de Israel". Isto não pertence
ao Salmo; ver nota sobre v. 15.
14. jumentinho. Ao com pararm os a term inologia usada nos evangelhos para
este anim al, devem os distinguir entre (1) a citação veterotestam entária,
Zc 9,9, que aparece em M ateus e João, e (2) a descrição do anim al na nar-
rativa geral da entrada de Jesus em Jerusalém que se encontra em todos
os evangelhos.
(1) Zc 9,9 dá duas descrições abaixo ([a] e [b]) em paralelism o poético
do anim al sobre o qual o rei entaria em Jerusalém; a tradução da LXX
é livre:
(a) TM hamõr, "jum ento"; LXX hypozygion, "anim al de carga"; Mateus
onos, "jum ento".
(b) TM "ayir ben-,atõnõt, um potro, a cria da jum enta";
LXX põlos neos, "um potro novo";
M ateus põlos huios hypozygiou, "um potro, a cria de animal de carga".
(Nota: põlos é usado para um anim al jovem, mais frequentem ente o potro
do cavalo; m as quando o contexto especifica, é tam bém usada para a cria
750 O Livro d o s Sinais

de qualquer espécie - ver W. Bauer, JBL 72 [1953], 220-29). Ao citar Zaca-


rias, M ateus em geral segue a LXX, m as a term inologia m ateana para o
anim al parece ser quase um a tradução literal do TM com algum uso de
palavras da LXX. A citação de Zacarias em Jo 12,15, em contrapartida, é
única. Para João, o rei está assentado (não cavalgando ou m ontado como
no TM, LXX, Mateus) sobre um põlos onou, "um potro do jum ento" - só
um a descrição com binando (a) e (b).
(2) Na descrição do anim al como parte da narrativa da entrada:
• Mc 11,2 e Lc 19,30 falam de um potro (põlos ) sobre o qual ninguém
jamais m ontara - portanto, novo, como na LXX de (b);
• Mt 21,2 e 7 fala de dois anim ais, "um a jum enta e com ela um potro"
(onos e põlos - vocabulário tom ado da forma m ateana da citação de
Zacarias) e diz que Jesus m ontou neles (sie);
• Jo 12,14 fala de um "jum entinho" (onarion , dim inutivo de onos - não
o vocabulário da forma joanina da citação de Zacarias).
15. Não temais, ó filhas de Sião. Diferente do restante deste versículo, isto
não é p arte da citação de Zc 9,9, a qual diz: "Regozijai-vos, ó filhas de
Sião". Este, pois, pode ser outro exem plo de um a citação com posta em
João (ver nota sobre 7,38 no § 29, p. 577s.). As palavras gregas "não te-
m ais" ocorrem frequentem ente na LXX de Isaías, p. ex., 40,9; m as a ex-
pressão com pleta que João usa parece m ais aproxim ada do TM (não da
LXX) de Sf 3,16: "N ão tem as, ó Sião ['ó filhas de São' ocorre em 3,14]".
O propósito desta passagem em Sofonias é assegurar a Jerusalém que
"0 Rei de Israel, o Senhor" (3,15) está em seu meio. É bem provável
que esta seja a fonte de "o Rei de Israel" que Jo 12,13 anexou à citação
do Salmo.
16. os discípulos. M uitas testem unhas têm "seus discípulos", m as o posses-
sivo se encontra neles em lugares diferentes e provavelm ente seja um
esclarecimento de copista.
não compreenderam. Literalmente, "sabiam " (ginõskein ); m as os Códices
Bezae e Koridethi têm o verbo quase sinônim o, noein ("entender"), que
pode ser original.
lhe fizeram. Na verdade, os discípulos não tinham feito nada que fosse parte
das profecias do AT. Somente na tradição sinótica trouxeram o jumento
e puseram Jesus sobre ele, e assim, inconscientem ente, fizeram -lhe "estas
coisas que foram escritas sobre ele". Bernard, II, p. 427, pensa que João
está im plicitam ente evocando a descrição sinótica. Todavia, pode ser que
o "lhe fizeram " fosse tom ado em term os mais gerais e entendido como
equivalente a um passivo ("foi feito a ele").
17. a multidão. Ver nota sobre v. 9.
42 · C enas preparatórias para a páscoa e a morte: A entrada em Jerusalém 751

quando Jesus chamou Lázaro. Há um sólido suporte ocidental, mais P66, para a
redação "que" em vez de "quando", assim: "A m ultidão que estava com
ele começou a testificar que ele cham ara Lázaro"... Esta redação faz sen-
tido e rem ove qualquer obstáculo de identificar a m ultidão no v. 17 com
o d o v. 9. Todavia, provavelm ente seja mais sábio optar pela redação
m ais difícil.
continuava testificando. Presum ivelm ente, devem os entender que as teste-
m unhas oculares tinham começado seu testem unho, convencendo aque-
les de quem fala o v. 9 (e que são parte desta m ultidão).
18. [também]. Esta palavra se encontra em diferentes posições ou é om itida
em algum as testem unhas gregas bem antigas. Todavia, o problem a das
várias m ultidões poderia ter sido responsável pela omissão.
19. vedes. Isto pode ser traduzido como im perativo.
0 mundo. Há boa evidência na tradição ocidental para a redação "todo o
m u ndo" ou "o m undo inteiro". "Todo o m undo" é um a expressão idio-
mática semítica, como o francês tout le monde, "todo o m undo". Lc 19,39
registra indignação entre os fariseus ante o entusiasm o com que Jesus
era aclamado.

C O M E N T Á R IO

Versículos 9-1 1 : Transição

A fim d e m a n te r v iv o o tem a d e L ázaro n o re la to d a aclam ação d e


Je su s q u a n d o e n tro u e m Je ru sa lé m , o a u to r tem c ria d o u m m arco d e
tra n siç ã o , re s p e c tiv a m e n te , a n te s e d e p o is d o re la to d a e n tra d a triu n -
fal. O r e s u lta d o n ã o é in te ira m e n te feliz. Se o v. 12 foi co lo cad o d e p o is
d o v. 8, e n tã o h a v e ría b o a seq u ên cia; e d e fato a c o n fu sã o d a s v árias
m u ltid õ e s d e s a p a re c e ría (ver n o ta so b re v. 9). H á p o u c o o u n e n h u m
m a te ria l o rig in a l n o s vs. 9 - 1 1 .0 v. 10 é u m a re-e la b o raç ã o d e 11,53 e
se rv e p a ra le m b ra r-n o s d a p e rv e rsa tra m a q u e está p ro ss e g u in d o p o r
d e trá s d a cen a. E m su a d e te rm in a ç ã o d e rejeitar o d o m d a v id a , as au -
to rid a d e s d e s tru iría m n ã o só o d o a d o r, m a s ta m b é m ao q u e a recebe.
O v. 11 p o d e se r e n te n d id o c o n tra o p a n o d e fu n d o d a lu ta e n tre a
S in a g o g a e a Igreja n o final d o I a século. E u m tácito c o n v ite à q u eles
ju d e u s q u e creem em C risto p a ra q u e sig a m o e x e m p lo d e se u s com -
p a trio ta s q u e já d e ix a ra m o ju d a ísm o p a ra se g u ir Jesus.
752 O Livro d o s S inais

Versículos 12-16: A aclamação de Jesus quando entra em Jerusalém

Relação com os relatos sinóticos. O re la to d a e n tra d a d e Je su s em


Jeru sa lé m a p a re c e n o s três sinóticos; e a lg u n s e s tu d io s o s, c o m o F reed,
art. cit., m a n tê m q u e a n a rra tiv a d e João é s im p le sm e n te u m a reelab o -
ração teo ló g ica d o re la to sin ó tico e q u e as d ife ren ç a s p o d e m s e r expli-
c a d as e m te rm o s d e a d a p ta ç ã o à teo lo g ia d e João. N o ssa te n d ê n c ia é
c o n c o rd a r com a refu taç ã o q u e D. M. S mith lança c o n tra a p o siç ã o d e
F reed; v e r ta m b é m D odd , Tradition, p p . 152-56.
A s v ersõ es sinóticas d o in cid en te se e n c o n tra m em M c 11,1-10;
M t 20,1-9; e Lc 19,28-38, e exibe variações m en o re s e n tre elas. E possível
fo rm u la r os seg u in tes p o n to s im p o rta n te s d e c o m p a raç ã o com João.
(1) O (s) A n im al(s): D ife re n te d o s sin ó tic o s, Jo ão n ã o te m u m a
in fo rm a ç ã o in tr o d u tó r ia so b re o e n v io d e d o is d is c íp u lo s a en co n -
tra r e m B etfagé u m ju m e n tin h o . Só d e p o is q u e a p ro c is s ã o c o m e ç o u
é q u e Jo ão (v. 14) n o s in fo rm a q u e Je su s e n c o n tro u u m ju m e n tin h o .
N ã o h á ra z ã o p a rtic u la r p a ra d u v id a r - s e d a d e sc riç ã o sin ó tic a , e
n e ste caso a d e sc riç ã o jo a n in a p o d e ría se r u m a a d a p ta ç ã o teo ló g i-
ca p a ra e n fa tiz a r q u e c a v a lg a r o ju m e n to re v e la a re a ç ã o d e Je su s à
a c la m a ç ã o d a m u ltid ã o . N ã o o b s ta n te , o fato d e q u e o v o c a b u lá rio
jo a n in o p a ra o a n im a l d ifira d a q u e le d o s sin ó tic o s (v e r n o ta so b re
v. 14) s u g e re a o u tra p o s s ib ilid a d e d e v a ria ç ã o d e n tr o d a s tra d iç õ e s
p rim itiv a s d o rela to .
(2) A (s) m u ltid ão (s): João fala d e d iv e rs a s (d o is o u três) m u ltid õ e s
d o s ju d e u s , com a lg u m a s a c o m p a n h a n d o -o e a lg u m a s s a in d o ao seu
en co n tro . C o m o já a firm a m o s, p a rte d e ste q u a d ro d e c o n fu so en tu -
siasm o é o riu n d a d o a to d o a u to r d e a ta r este in c id e n te ao re la to de
L ázaro. O s sin ó tico s n ã o re g istra m u m g ru p o s a in d o ao e n c o n tro de
Jesus, m a s h á d isc íp u lo s q u e e sco ltam Jesu s d e B etânia a Jerusalém .
Lc 19,37 te m u m a m u ltid ã o d e d isc íp u lo s; M c 11,9 tem a lg u n s q u e vão
a d ia n te d e le e a lg u n s q u e o se g u em ; so m e n te M t 21,9 fala d e ste s com o
m u ltid õ e s. Já c h a m a m o s a a te n ç ã o (p. 712s.) p a ra o p a ra le lo n o tem a
e n tre a ên fase d e João so b re o m ilag re d e L á z aro c o m o a c a u sa d o en-
tu sia sm o e Lc 19,37 o n d e os d isc íp u lo s lo u v a m a D e u s e m a lta v o z p or
to d a s as o b ras p o d e ro s a s q u e têm visto.
(3) A s ações d a m u ltid ã o : O s sin ó tico s m e n c io n a m q u e o s disci-
p u lo s co lo caram su a s v e ste s so b re o ju m e n tin h o e ta m b é m n a estrada;
João n ã o m en c io n a isto. Em M arco s e M a te u s, os q u e a c o m p a n h a v a m
42 · C enas preparatórias para a páscoa e a morte: A entrada em Jerusalém 753

Je su s c o rta v a m fo lh as e ra m o s e os e s p a lh a v a m so b re a e stra d a ; em
Jo ão , o p o v o q u e saía ao e n c o n tro d e Jesus tra z ia ra m o s d e p alm ei-
ra s (p re s u m iv e lm e n te c a rre g a n d o -o s em s u a s m ãos). N estes d e ta lh es,
p o is, a d e scriçã o d e João é m e n o s e sp e ta c u la r d o q u e os d o s sinóticos.
H á u m a c erta e x te n sã o , a ação d e sc rita p o r João se a sse m e lh a a u m a
d a s p ro c is s õ e s p a d rã o d a festa d o s T a b e rn á c u lo s o u d a festa d a De-
d ica ç ã o o n d e o p o v o c a rre g a v a o lulab d e m u rta , sa lg u e iro e p a lm e ira
(v er p. 582s.).
(4) O g rito d a m u ltid ã o (SI 118,25-26): (a) Hosana. E n co n trad o em
M arcos, M ateu s, João (Lucas sim p lesm en te m enciona seu louvor a
D eus). M t 21,9 acrescenta "ao filho d e D avi", q u e n ão é p a rte d o salm o,
(b) Bendito aquele que vem no nome do Senhor. A m esm a coisa em M arcos,
M ateu s, João (Lucas tem "o rei" em lu g ar d e "ele"). F reed, p. 332, de-
fe n d e a tese d e q u e "B endito" não se en co n tra em o u tro lu g ar em João.
T o d av ia, v isto q u e to d o s os ev an g elh o s e stão c ita n d o a LXX neste ponto,
esta p a la v ra n ão p ro v a a d ep e n d ên c ia joanina d o s sinóticos. (c) M ar-
cos acrescen ta o u tra benção: "B endito é o rein o q u e vem , d e nosso pai
D avi!". João acrescenta "B endito é o Rei d e Israel". M ateu s e L ucas não
têm esta p a rte essencial. N e n h u m d o s e v an g elh o s seg u e o salm o: "N ó s
v o s b e n d iz e m o s d e sd e a casa d o S enhor", (d) O s sinóticos ag reg am um
" H o s a n a " final o u "G lória n as m aiores a ltu ras" q u e João não tem .
A m o d o d e a v aliação , d e v e -se n o ta r q u e João só é m ais fam i-
lia r co m os sin ó tico s e m (a) e (b ) o n d e todos se a p ro x im a m d o salm o.
A fo rm a d e Jo ão d e (c) p o d e ria se r u m re a rra n jo im a g in a tiv o b a se a d o
e m " o re in o d e D av i" d e M arcos, o u a m en ç ã o q u e L ucas faz d e "o rei"
e m (b ), m a s esta p o ssib ilid a d e d ific ilm e n te é co n v in cen te.
(5) A citação bíblica: A m b o s, M a te u s e João, cita m Zc 9,9. M t 21,5
o cita p o r o c a siã o e m q u e Jesu s o rd e n a aos d isc íp u lo s a irem a B etfagé
e p ro v id e n c ia re m o(s) an im al(s); Jo 12,15 o cita p o r o casião d e Jesus
rec e b e r o ju m e n to . P ara a d is s im ila rid a d e e n tre as d u a s citações, v er
a re s p e c tiv a n o ta. N ã o h á e v id ê n c ia só lid a em a p o io d a c o n te n d a d e
F reed (p. 595ss.) d e q u e João está a d a p ta n d o a fo rm a d e M a te u s d a ci-
tação . O v o c a b u lá rio q u e d e scre v e o a n im a l p o d e ria co n ceb ív elm en te
s e r u m a c o m b in a çã o d a s d u a s d escriçõ es m ate a n a s, m a s p o d e ria tam -
b é m p ro v ir d e u m a tra d u ç ã o e co m b in a çã o d ire ta s d o s term o s h eb rai-
cos n o TM . C e rta m e n te , a c o m p re e n sã o q u e João tev e d a p a ssa g e m é
d ife re n te d a d e M a te u s (dois anim ais).
(6) N ã o h á n a d a n o s sin ó tico s q u e se a sse m e lh e a Jo 12,16.
754 O L ivro d o s Sinais

Q u a n d o p e sa m o s as sim ila rid a d e s e d iss im ila rid a d e s n e ste s seis


p o n to s d a c o m p a raç ã o , d e sc o b rim o s q u e em p a rte d e (1), (2), p a rte de
(3) e (6) as v a ria n te s d e João p o d e ría m se r e x p lic a d a s co m o v a ria n -
tes d e lib e ra d a s d a tra d iç ã o sin ó tica, v a ria n te s g u ia d a s p o r u m m o tiv o
teológico. M as, n e ste s casos, é ig u a lm e n te p ro v á v e l q u e Jo ão esteja
n o s d a n d o u m a a d a p ta ç ã o teológica d e u m a tra d iç ã o sim ila r à q u e la
d o s sin ó tico s, m as n ã o a m esm a . A situ a ç ã o e m (4) e (5), e as v a ria n te s
d e v o c a b u lá rio m e n c io n a d a s n a n o ta so b re v. 14 in clin a m a b a la n ç a
em fav o r d a ú ltim a su g e stã o .
Interpretação da Cena. N o s sin ó tico s, isto r e p r e s e n ta a p rim e i-
ra v e z d u r a n te se u m in is té rio q u e Je su s v a i a Je ru sa lé m ; a e n tra d a
é s e g u id a p e la p u rific a ç ã o d o te m p lo . E ste fato , c o m b in a d o c o m as
re fe rê n c ia s a D av i, ta n to e m M a rc o s c o m o e m M a te u s, p a re c e d a r à
cen a o a s p e c to d a e n tr a d a triu n fa l d o rei m e ssiâ n ic o q u e v e io p a ra
re iv in d ic a r s u a c a p ita l e s e u te m p lo (v er T aylor, Mark, p p . 4 5 1 5 2 ‫־‬,
p a ra v á ria s o u tra s in te rp re ta ç õ e s p o ssív e is). E m Jo ão , o c o n te x to é
m a rc a n te m e n te d ife re n te . Je su s e ste v e e m J e ru s a lé m m u ita s vezes;
e e n q u a n to e sta e n tr a d a p ro v o c a e n tu s ia s m o , a e x p lic a ç ã o p a ra o
e n tu s ia s m o e stá n o m ila g re d e L ázaro . A liás, p a ra se r p re c is o , n ã o se
a firm a e sp e c ific a m e n te q u e Je su s entrou e m Je ru s a lé m , e m b o ra isso
esteja im p líc ito ; e, n a tu ra lm e n te , n ã o há p u rific a ç ã o s u b s e q u e n te do
tem p lo . A ssim , d e v e m o s b u s c a r u m a in te rp re ta ç ã o d ife re n te d a cena
em João.
N o ta m o s q u e João p õ e a s a u d a ç ã o com p a lm a s e a a c la m a ç ã o do
SI 118 n a p ró p ria a b e rtu ra d a n a rra tiv a , e isto é im p o rta n te p a ra a
in te rp re ta ç ã o d o q u e Jesu s faz. E m b o ra o g e sto d a s p a lm a s p o ssa ser
a sso ciad o com a festa d o s T a b e rn á c u lo s e d a festa d a D ed ic aç ã o (ver
n o ta so b re v. 13), F armer, art. cit., tem a rg u m e n ta d o c o n v in c e n te m e n -
te q u e este g e sto e ra e v o c ativ o d o n a c io n a lism o m a c a b e u e q u e era
u m sím b o lo d o n a c io n a lism o q u e a p a lm a a p a re c ia n a s m o e d a s da
S e g u n d a R ev olta (132-135 d.C .). Q u a n d o J u d a s M a ca b e u p u rific o u
o a lta r d o te m p lo d e p o is d e s u a p ro fa n a ç ã o p e lo s sírio s (164 a.C.),
os ju d e u s tro u x e ra m p a lm a s a o te m p lo (2M c 10,7: phoinix - u m a das
d u a s p a la v ra s q u e João u sa). Q u a n d o se u irm ã o S im ão c o n q u isto u
a c id a d e la d e Je ru sa lé m (142 a.C .), os ju d e u s to m a ra m p o sse dela
c a rre g a n d o ra m o s d e p a lm e ira s (lM c 13,51: baton - a ú n ic a ocorrên-
cia n a LXX d e sta o u tra p a la v ra u s a d a p o r João). N o Testamento de
Naftali 5 ,4 , o n d e ocorre aí a m esm a e x p ressão p a ra ra m o s d e p alm eiras
42 · C enas preparatórias para a páscoa e a morte: A entrada em Jerusalém 755

q u e Jo ão u s a , os ra m o s são d a d o s a Levi co m o sím b o lo d e p o d e r so-


b re to d o o Israel. C o m b a se n e ste p a n o d e fu n d o , a ação d a m u ltid ã o ,
n a cen a d e João, p a re c e ter im p licaçõ es p o líticas, co m o se d e sse m as
b o a s -v in d a s a Jesu s co m o u m lib e rta d o r n acio n al. Esta su g e stã o p o d e
rec e b e r a lg u m a c o n firm a ç ão n a a firm a ç ão d e q u e a m u ltid ã o " sa iu ao
encontro d e le [eis hypantêsin - v. 13]". E sta e ra a e x p re ssã o g reg a nor-
m a l u s a d a p a ra d e s c re v e r a ju b ilo sa recep ção d e so b e ra n o s h elen istas
n u m a c id a d e . P o r e x e m p lo , P e rg a m u m sa iu ao e n c o n tro d e A tta lu s
III; A n tío co s a iu ao e n c o n tro d e T ito (Josefo, War 7.5.2; 100) - assim
A. F euillet, JohSt, p p . 142-43.
A frase q u e Jo 12,13 a d ic io n a à citação d o SI 118,26 ta m b é m chei-
ra a n a c io n a lism o . E v id e n te m e n te , a m u ltid ã o in te rp re ta "aquele que
vem n o n o m e d o S e n h o r" co m o o Rei de Israel. A ju sta p o siç ã o d estes
d o is títu lo s ta m b é m se e n c o n tra na cena d a m u ltid ã o d e 6,14-15. Ali o
p o v o d e s ig n a Je su s co m o "o P ro feta que há de vir ao m u n d o " , e Jesus
re c o n h e c e q u e isto significa q u e te n ta rã o fazê-lo rei. P o d e m o s recor-
d a r ta m b é m q u e o g rito d e H o sa n a p e la m u ltid ã o e m 12,13 e ra u sa d o
q u a n d o se d irig ia ao s reis (2Sm 14,4; 2Rs 6,26).
Só d e p o is q u e a m u ltid ã o e x p re s s a r a ssim s u a s co n c ep ç õ e s na-
c io n a lis ta s é q u e Je su s rec e b e o ju m e n to e o c a v alg a . A c o n ju n ç ã o
a d v e rs a tiv a q u e co m eça 12,14 su g e re q u e isto o c o rre co m o rea ç ã o à
s a u d a ç ã o e n tu s iá s tic a . A g r a n d e m u ltid ã o (v. 12) n ã o e n te n d e u b e m
o m ila g re d e L á z a ro e o d o m d a v id a , d a m e sm a fo rm a q u e o u tra
g r a n d e m u ltid ã o (6,2) n a G a lile ia n ã o e n te n d e u b e m a m u ltip lic a ç ã o
d o s p ã e s , o p ã o d a v id a e te n to u fa z e r Je su s rei. O S in é d rio rea g ira
a o m ila g re d e L á z a ro com u m a p e rv e rs a re so lu ç ã o d e m a ta r Jesus;
M a ria d e B etân ia re a g ira a ele co m g ra tid ã o e a m o r; a g o ra a m u i-
tid ã o re a g e c o m m a l-e n te n d id o n a c io n a lista . Je su s b u sc a d is p e rs a r
e s ta in c o m p re e n s ã o com u m a a ç ão p ro fé tic a q u e os d isc íp u lo s n ã o
e n te n d e rã o a té a p ó s a m o rte e re s s u rre iç ã o (v. 16).
Q u e o a to d e c a v a lg a r o ju m e n to e ra u m a ação p ro fé tic a se vê
n a c itação d e Z c 9,9. C o m o esta p ro fecia in te rp re ta a ação? E sta n ão
é u m a ação d e s ig n a d a p a ra e n fa tiz a r h u m ild a d e , p o is João o m ite a
lin h a d e Z a c arias c ita d a p o r M a te u s, a sa b er, " h u m ild e e m o n ta n d o
u m ju m e n to " . D e fato, é co m o se a p a rte d a citação q u e p e rte n c e a
Z a c a ria s só fo sse re a lm e n te v a lio sa a João, e m term o s m ate ria is, a q u e
re tra ta u m rei a s s e n ta d o so b re u m ju m e n to (ver, p o ré m , ab aix o p a ra
a re le v â n c ia d o c o n te x to e m Z acarias). O q u e é im p o r ta n te p a ra João
756 O L ivro d o s Sinais

é a p rim e ira lin h a d o v. 15 q u e a p a re n te m e n te p ro v é m d e Sf 3,16


(v er a re s p e c tiv a n o ta ). A p a s s a g e m d e S o fo n ia s in fo rm a Isra e l q u e
Ia h w e h e s tá e m se u m e io c o m o o "R ei d e Isra e l" , m a s o r e tr a to d o
rei n ã o é d e u m n a c io n a lis ta . P a ra J e ru s a lé m , s a tu r a d a d a p re s e n -
ça d e Ia h w e h , a flu irá u m p o v o de toda a terra e m b u s c a d e re fú g io
(3,19-10). Ia h w e h s a lv a rá Isra e l d e s e u s in im ig o s; e m p a rtic u la r, Ele
s a lv a rá a q u e co x eia e re c o lh e rá a q u e foi e x p u ls a (3,19). E sta p a s -
s a g e m la n ç a lu z so b re c o m o o Je su s jo a n in o q u e ria q u e a m u ltid ã o
in te rp re ta s s e o m ila g re d e L ázaro . E u m d o m d e v id a p a ra to d o o
p o v o d a te rra , n ã o u m sin a l d e g ló ria n a c io n a lis ta p a r a Isra e l. N ã o
d e v e ria m a c la m á -lo c o m o u m re i te rre n o , m a s c o m o a m a n ife s ta ç ã o
d o S e n h o r s e u D e u s q u e v e io p a ra se u m e io (Sf 3,17) a fim d e con-
g re g a r a o s d is p e rs o s.
E sta in te rp re ta ç ã o u n iv e rs a lis ta d a a ç ão d e Je su s, n o v e rs o 14,
se a d e q u a b e m ao c o n te x to d e Jo 11-12. E m 11,52, Jo ão in te r p re to u
a in c o n sc ie n te p ro fe c ia d e C aifás n o s e n tid o e m q u e Je su s s a lv a ria
n ão só Israel, m a s ig u a lm e n te o s g e n tio s. Em 12,19, os fa rise u s u s a m
u m a h ip é rb o le q u e , p o r iro n ia jo a n in a , é m a is v e rd a d e ir o d o q u e
s u s p e ita m : "O mundo te m c o rrid o a p ó s e le ". T o d a a cen a d a e n tr a d a
triu n fa l tem s u a c u lm in a ç ã o n o m o m e n to q u a n d o o s g e n tio s g re g o s
v ê m a Je su s e m 12,20. Je su s re la c io n a isto c o m su a e x a lta ç ã o p a ra
a tra ir a si todos os homens (12,32). O S in é d rio q u e ria q u e Je su s m o r-
resse n o lu g a r d e Isra e l (11,50); a m u ltid ã o g rita e m fa v o r d e le co m o
Rei d e Isra e l (v er n o ta so b re " c la m a ra m " e m 11,43). M a s a ú n ic a u n -
ção q u e Je su s rec e b e é a u n ç ã o p a ra a m o rte (12,7); a ú n ic a c o ro a q u e
ele u s a rá é a co ro a d e e s p in h o s (19,2); e a ú n ic a tú n ic a q u e ele u s a rá
é o m a n to d a z o m b a ria ; e q u a n d o u m a v e z u n g id o e v e s tid o c o m a
tú n ic a , fica e m p é d ia n te d e se u p o v o e é a p re s e n ta d o c o m o se u rei, a
m u ltid ã o g rita rá : "C ru cific a -o !" (19,14-15). A ssim , ele s o le v a n ta rã o
e ele a tra irá to d o s os h o m e n s.
V o lta n d o à c itação d o A T, q u e é a c h a v e p a ra a ê n fa se jo a n in a
n e sta cen a, e n c o n tra m o s o m e sm o u n iv e rs a lis m o n o c o n te x to d e Zc
9,9. A li, o p ró p rio v e rsíc u lo s e g u in te d iz q u e o rei q u e v e io m o n -
ta n d o o ju m e n to "... o r d e n a r á p a z a o s g e n tio s e se u d o m ín io será
d e m a r a m a r" . D e u m a m a n e ira a p ro p r ia d a , 9,11 a sso c ia tu d o isto
com o s a n g u e d a a lian ça. E, fin a lm e n te , se n o s v o lv e rm o s p a ra o u tra
o b ra d a esco la jo a n in a (A p 7,9), d e s c o b rim o s u m a d e sc riç ã o sem e-
lh a n te d e co m o Jesu s C risto d e v e se r a c la m a d o . A li n o s d e p a ra m o s
42 · C enas preparatórias para a páscoa e a morte: A entrada em Jerusalém 757

co m o u tra grande multidão de toda nação carregando palmas e c la m a n d o


em lo u v o r d a sa lv a ç ã o tra z id a p e lo C o rd e iro m o rto .
R e s u m in d o , e m b o ra p o ssa h a v e r u m e le m e n to d e n a c io n a lism o
n a d e s c riç ã o sin ó tic a d a a c la m a ç ã o d e Je su s, isto é m ais c la ro em
Jo ão ; e a e n tr a d a d e Je su s em Je ru sa lé m c a v a lg a n d o u m ju m e n to é
u m a a ç ão p ro fé tic a d e s ig n a d a a c o n tra p o r e sse n a c io n a lism o . E u m a
a firm a ç ã o d e u m a re a le z a u n iv e rs a l q u e só se rá c o n s u m a d a q u a n d o
fo r le v a n ta d o n a m o rte e re ssu rre iç ã o . A p e c u lia r o rd e m jo a n in a d e
e v e n to s (a c la m a ç ã o s e g u id a d a re a ç ã o d e Je su s e m e sco lh e r u m ju-
m e n to ) e d e ta lh e s (p a lm a s - v e r re sp e c tiv a n o ta p a ra a d ific u ld a d e )
e s tã o o r d e n a d o s p a ra e ste p ro p ó s ito teo ló g ico . Se h o u v e , co m o su s-
p e ita m o s , u m a n a rra tiv a jo a n in a in d e p e n d e n te d a e n tra d a triu n fa l,
p a ra le la co m a fo rm a sin ó tic a , n ã o o b s ta n te esta n a rra tiv a foi, em su a
o r d e m e d e ta lh e s , fo rte m e n te a d a p ta d a p a ra a d e q u a r-s e à p e rsp e c ti-
v a teo ló g ic a d o e sc rito r. Em 12,16 so m o s in fo rm a d o s q u e esta p e rs-
p e c tiv a teo ló g ic a n ã o s u rg iu n o m o m e n to d a e n tr a d a triu n fa l, m as só
d e p o is d a re s s u rre iç ã o . E in te re s s a n te q u e e m 2,22 tem o s u m a afir-
m a ç ã o s im ila r p e rtin e n te à p u rific a ç ã o d o te m p lo e a id en tifica ç ã o
q u e Je su s faz d e s e u c o rp o c o m o o te m p lo . E sta re p e tiç ã o seria u m
eco d o fato d e q u e e sta s d u a s c e n as o rig in a lm e n te fo ra m re u n id a s
e m Jo ão a ssim c o m o se e n c o n tra m n o s sin ó tico s?

Versículos 17-19: Conclusão e transição

N e s ta p a r te d a e s tr u tu r a re d a c io n a l, q u e se liga com os vs. 9-11,


o te m a s o b re L á z a ro v o lta à to n a . A m u ltid ã o a sso c ia d a com o m i-
la g re d e L á z a ro é a g o ra le v a d a ao e n c o n tro d a m u ltid ã o a sso c ia d a
c o m a e n tr a d a e m Je ru s a lé m . N o te m o s o e q u ilíb rio a rtístic o e n tre os
vs. 9-11 e 17-19: a m b o s c o m e ç a m co m o te m a d a m u ltid ã o e d o m ila-
g re d e L á z aro ; a m b o s te rm in a m e n fa tiz a n d o a h o s tilid a d e d a s a u to -
r id a d e s , p r in c ip a is s a c e rd o te s e fa rise u s. O v. 11 e n fa tiz a q u e m u ito s
ju d e u s c h e g a ra m a c re r e m Jesu s; 19 e n fa tiz a q u e o m u n d o in te iro
v a i a p ó s ele. N o v. 19, o s fa rise u s d e s fe re m a m e sm a n o ta d e d e ses-
p e ro q u e fiz e ra m s o a r ju n ta m e n te co m os s a c e rd o te s e m 11,47-48;
e c o m o C a ifá s, e m b o ra m e n o s d r a m a tic a m e n te , fala m e m p ro fe c ia .
O " m u n d o " v a i a p ó s Je su s, m a s e m u m s e n tid o m a is p r o fu n d o d o
q u e ele s e n te n d ia m .
758 O Livro d o s S inais

BIBLIOGRAFIA

FARMER, W. R., "The Palm Branches in John 12,13", JTS N.S. 3 (1952), 62-66.
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43. C E N A S P R E P A R A T Ó R IA S P A R A A P A S C O A
E A M ORTE: - A C H E G A D A D A H O R A
(12,20-36)

A vinda dos gregos marca a chegada da hora

12 20O ra , e n tre os q u e su b ira m p a ra a d o ra r d u r a n te a festa h av ia


a lg u n s g reg o s. 21A p ro x im a ra m -se d e F ilipe, q u e era d e B etsaida na
G alileia, e lh e fiz e ra m u m p e d id o : " S e n h o r" , d isse ra m , " g o sta ría m o s
d e v e r Jesu s". 22F ilipe foi e d isse a A n d ré ; e n tã o a m b o s, F ilipe e A n d ré ,
v ie ra m e in fo rm a ra m Jesus. 23Jesu s lh es re sp o n d e u :

"É c h e g a d a a h o ra
p a ra o F ilh o d o H o m e m se r g lo rificad o .
24S o le n e m e n te v o s asseg u ro :
a m e n o s q u e o g rã o d e trig o caia n a terra e m o rra ,
ele p e rm a n e c e a p e n a s u m g rã o d e trigo.
M as se ele m o rre r,
g e ra m u ito fru to .
25O h o m e m q u e a m a su a v id a ,
a p e rd e ;
e n q u a n to q u e , o h o m e m q u e o d e ia su a v id a n e ste m u n d o ,
a p re s e rv a p a ra v iv e r e te rn a m e n te .
26Se a lg u é m m e se rv ir,
q u e m e siga;
e o n d e e u e s to u
e sta rá ta m b é m m e u serv o .

22: foi, disse, disse; 23: respondeu. No tempo presente histórico.


760 O Livro d o s Sinais

O Pai h o n ra rá
à q u e le q u e m e serve.
27A g o ra m in h a a lm a está c o n tu rb a d a .
T o d a v ia, o q u e e u d iria -
'P ai, sa lv a -m e d e sta h o ra '?
N ão , esta é ju sta m e n te a ra z ã o p o r q u e e u v im p a ra e sta h o ra.
28'P ai, g lorifica o teu n o m e'!"

E n tão u m a v o z v eio d o céu:

"E u o te n h o g lo rificad o
e o g lo rificarei n o v a m e n te " .

29Q u a n d o a m u ltid ã o q u e estav a ali o u v iu isto, d isse ra m q u e e ra u m


trovão; o u tro s, p o rém , afirm av am : "Foi u m anjo q u e lh e falo u ". 30Jesus
resp o n d e u : "E ssa v o z n ão veio p o r m in h a cau sa, e sim p e la vossa.

31A g o ra é o ju lg a m e n to d e ste m u n d o .
A g o ra o P rín c ip e d e ste m u n d o será ex p u lso .
32E q u a n d o e u for le v a n ta d o d a terra,
A trairei to d o s os h o m e n s a m im ".

(33Esta su a d e c la ra ç ã o in d ic a v a q u e tip o d e m o rte ele e sta v a p a ra


m o rrer). 34A isto, a m u ltid ã o objetou: "T e m o s o u v id o d a Lei q u e o
M essias h á d e p e rm a n e c e r p a ra se m p re . C o m o d e c la ra s q u e o Filho
d o H o m e m d e v e se r le v a n ta d o ? Q u e m é e ste F ilho d o H o m e m ? "
35E n tão Jesu s lh es in fo rm o u :

"A lu z está e n tre v ós so m e n te p o r p o u c o tem p o .


A n d a i e n q u a n to te n d e s a luz,
o u as tre v a s v irã o so b re vós.
O h o m e m q u e a n d a na e sc u rid ã o
n ã o sab e p a ra o n d e está in d o .
36E n q u a n to te n d e s a luz,
m a n te n d e s v o ssa fé n a lu z,
e e n tã o v o s to rn a re is filhos d a lu z".

D ep o is d e falar isto, Jesu s os d e ix o u e sa iu p a ra o cu ltar-se.


43 · C en as p rep aratórias para a p áscoa e a m orte: A ch eg a d a da hora 761

NOTAS

12.20. Ora... havia alguns. Para este estilo na abertura da narrativa, ver 3,1.
gregos. Hellenes ou gentios (neste caso, prosélitos), não Hellênistai ou ju-
deus d e fala grega. Ver nota sobre 7,35. Somente a com preensão de que
os prim eiros gregos que foram a Jesus explica sua exclamação de que é
chegada a hora (v. 23).
21. Betsaida na Galileia. Ver nota sobre 1,44. Há quem pense que aqui se men-
ciona a Galileia em razão de sua associação com os gentios (Mt 4,15, ci-
tando Is 9,1).
ver Jesus. "Ver" pode ter o sentido de "visitar com, encontrar" (BAG,
p. 220, eidon § 6), como em Lc 8,20; 9,9. Todavia, no contexto teológico
joanino é possível que "ver" signifique "crer em".
23. lhes respondeu. O "lhes" se refere a Filipe e A ndré ou aos gregos? Na ver-
dade, a resposta de Jesus é um com entário sobre toda a cena e não uma
resposta direta a qualquer dos dois grupos.
glorificado. A m enção de "glória" im ediatam ente após a aclam ação com
palm as [ramos] tem um interessante paralelo em Lc 19,38, onde, du-
rante a en trad a em Jerusalém , a m ultidão grita: "glória nas m aiores
alturas".
24.0grão. Um uso parabólico do artigo (Lc 8,5.11: "o semeador... a semente").
trigo. Sitos pode significar "trigo", em particular, ou "grão", em geral. É
usado na parábola do trigo e do joio em Mt 13,25.
caia na terra. Literalmente, "caindo na terra, m orre"; a ênfase está em morrer.
permanece apenas um grão de trigo. Literalmente, "perm anece sozinho".
O verbo menein (ver Apêndice 1:8, p. 794ss), em João, é usado em relação
a pessoas, o Espírito, amor, alegria, ira e a palavra.
25. ama... odeia. O uso semítico favorece contrastes vividos para expressar
preferências. Dt 21,15; Mt 6,24; Lc 14,26 são m ais exemplos disto.
sua vida. Psychê às vezes tem sido traduzida por "alm a", m as a antropolo-
gia judaica não continha o dualism o de alma e corpo que esta tradução
podería sugerir. Psyche se refere à vida física; pode tam bém significar o
ego de alguém (Heb. nefes). Em 10,15 se refere à vida, e esse parece ser
tam bém o significado aqui.
a perde. Appolynai pode significar "perder" ou "destruir"; o último parece que
propicia um m elhor contraste com "preserva". Alguns manuscritos têm
um tem po futuro aqui, mas isto constitui uma harmonização com os sinó-
ticos onde se usa o futuro em sua forma desta afirmação - ver comentário.
viver eternamente. Literalm ente, "para a vida eterna"; isto é zõe, a vida que
o crente recebe do alto.
7 62 O L ivro d o s Sinais

26. se alguém. Enquanto o dito tem paralelos sinóticos (ver comentário), este
tipo particular de condição indefinida é joanino. O utros aspectos joani-
nos no grego deste versículo são o quiasm o e o uso do adjetivo possessi-
vo pronom inal.
0 Pai honrará. Temos ouvido da honra que os hom ens rendem a Jesus ou ao
Pai (5,23; 8,49), aqui, porém , tem os um exemplo da reciprocidade na vida
eterna prom etida em João.
27. alma. Psychê como no v. 25; aqui, porém , o perigo de interpretação dua-
lística equivocada não parece tão grande. Poderiam os traduzir isto "es-
tou agitado"; m as quando estão envolvidas as emoções, "alm a" ajuda a
expressar os aspectos sensitivos do homem.
salva-me. Em Hb 5,7 há um a referência à angústia de Jesus diante da morte:
"Jesus ofereceu orações e súplicas Aquele que tinha poder de salvá-lo da
m orte". Isto se assem elha à tradição encontrada em João, pois as narrati-
vas sinóticas da agonia não usam o verbo "salvar".
esta é justamente a razão. A lguns o traduziríam na forma de pergunta: "Foi
por esta razão que eu vim para esta hora [i.e., ser salvo da hora]?"
28. teu nome. Há uma evidência respeitável para a redação "teu Filho", mas,
provavelm ente, esta seja um a evidência cruzada de 17,1. Aqui, o Codex
Bezae adiciona um a cláusula de 17,5.
uma voz veio do céu. Bernard, II, p. 438, sugere que isto é um qõl ("um a filha
da voz" - um tipo de inspiração divina inferior, o produto da palavra de
Deus que outrora vinha aos profetas, mas agora já não era ouvida em Israel
em sua prístina força). Não obstante, este termo rabínico realmente não se
adequa ao quadro neotestamentário onde a voz de Deus é vista como uma
manifestação suprem a, p. ex., no batismo de Jesus. O paralelo mais estreito
seria no Testamento de Levi 18,6-7: "Os céus serão abertos e a santificação virá
sobre ele desde o templo da glória com a voz do Pai, como de Abraão para
Isaque; e a glória do Altíssimo será enunciada sobre ele".
0 tenho glorificado/e 0 glorificarei. Com nenhum tem po do verbo sendo o ob-
jeto expresso.
29. trovão. No AT, seja de forma popular ou poética, o trovão era descrito
como a voz de Deus (ISm 12,18). A intenção de João é que pensem os que
o trovão acom panhava a voz, ou que o som da voz foi confundido com
o trovão? A sugestão alternativa de que um anjo estava falando favorece
a última. N enhum a sugestão da m ultidão indica que a voz foi entendida
(ver At 9,7; 22,9).
um anjo que lhe falou. Para vozes angélicas vindas do céu, ver Gn 21,17;
22,11. A teoria de que este versículo em João form a um a inclusão com a
menção de anjos em 1,51 parece im provável.
43 · C en a s prep aratórias para a p á sco a e a m orte: A ch eg a d a da hora 7 63

31. Príncipe deste mundo. Este é um term o joanino para Satanás (14,30; 16,11),
m as talvez ocorra tam bém em IC or 2,6-8, onde Paulo fala dos príncipes
ou poderes deste m undo condenados. Em 2Cor 4,4, Paulo fala do hostil
"deus deste m undo"; Ef 2,2, fala de "o príncipe do poder do ar"; e Ef 6,12,
fala de "os dom inadores deste m undo tenebroso". Inácio de Antioquia
usa o term o joanino várias vezes em seus escritos. O equivalente hebrai-
co, sar h a ‘õlãm , se encontra em escritos rabínicos como um a referência
a Deus, não a Satanás. Barkktt, p. 355, conclui que João, aparentem ente,
não está, neste ponto, em estreito contato com o pensam ento judaico.
Entretanto, o dualism o m odificado implícito no perfil que João traça de
um a luta entre o Príncipe deste m undo e Jesus é m uito estreito com o
qu ad ro de Q um ran de um a luta entre o anjo das trevas e o príncipe das
luzes (ver CBQ 17 [1955], 409ss., ou NTE, p. 109ss.).
expulso. Há nas versões respeitável evidência em prol da leitura "lançado
fora". O fato de que "lançado fora [expulso]" é o vocabulário joanino
m ais com um (6,37; 9,34; 15,6) dá origem à possibilidade de que a redação
mais bem atestada seja o produto de um a tendência de copista para a
conform idade.
32. da terra. Há forte evidência patrística, mas praticam ente nenhum a evidên-
cia de manuscrito; para a omissão destas palavras, ver RB 57 (1950), 391-92.
atrairei. Ver nota sobre 6,44 para possível relação com Jeremias. Tal relação
fornecería um pano de fundo do am or divino pactuai para o levantam en-
to de Jesus e seus efeitos.
todos os homens. Há interessante atestação, incluindo Ρ Λ, para um a leitura
plural neutra que faria o levantam ento de Jesus eficaz sobre todas as
coisas. Não obstante, BDF, § 138', sugere que é sim plesm ente um neutro
usado para um a referência m asculina geral.
33. indicava. O verbo é sêmainein, relacionado com sêmeion, "sinal". O sinal
se encontra na expressão que Jesus usa: "levantado" é um sinal da cruci-
fixão. Nesta passagem não há nada que endossaria a tese de que a morte
de Jesus era em si um sinal; antes, como parte de ser levantado, a morte
de Jesus pertence à gloriosa realização do plano de Deus, não aos sinais
dessa realização.
tipo de morte. O parênteses explicativo relaciona ser levantado com ser cru-
cificado; isto se fará evidente em 18,31-32, que indica um a punição roma-
na. Q ue a crucifixão não exaure o conceito de ser levantado foi m ostrado
na p. 354. E possível que o redator que inseriu o v. 33 estivesse pensando
que a crucifixão não só levantaria o corpo de Jesus, mas também esten-
deria seus braços a atrair os homens. Ver um a referência sim ilar à cruci-
fixão de Pedro em 21,19.
764 O L ivro d o s Sinais

34. da Lei. Com o m encionam os na nota sobre 10,34, "Lei" pode referir-se a
todo o AT. Mas, m esm o com este sentido am plo, é difícil encontrar uma
passagem particular que diga que o Messias há de perm anecer para sem-
pre. Barrett, p. 356, parece inclinado a decidir pelo ensino messiânico
com um das Escrituras, em vez de um a passagem individual. É verdade
que há m uitas passagens que concernem ao eterno governo da linhagem
ou rei davídico (SI 89,4; 110,4; Is 9,7; Ez 32,25), e outras passagens que
concernem ao eterno governo do (ou de um) Filho do Hom em (Dn 7,14;
1 Enoque 49,1; 62,14). Mas não há texto que diga que o Messias perma-
nece para sem pre. De fato, "perm anecer para sem pre" é um a expressão
que o AT aplica a Iahweh, Sua justiça, verdade, louvor etc. V an U nnik,
art. cit., tem apresentado a m elhor sugestão feita até então. Ele aponta
para o SI 89,36, o qual diz que "a sem ente de Davi perm anece para sem-
pre". Este é um Salmo que é interpretado m essianicam ente tanto no NT
(At 13,22; Ap 1,5; 3,14) como nas fontes rabínicas (StB, IV, p. 1308;
Midrásh Rabbah 95,20 sobre Gênesis, Soncino ed., p. 901). Em bora o v. 36
fale da "sem ente", o v. 51 fala do "ungido" (messias).
quem é este Filho do Homem. Na verdade, é a m ultidão e não Jesus que men-
ciona o Filho do Hom em. Seria este um pedido para identificar o Filho
do Hom em, dando o nom e da pessoa que é o Filho do Hom em ? Ou seria
este um a solicitação sobre sua natureza e relação com o Messias? Ver
comentário
35. entre vós. Literalmente, "em vós"; em At 4,34 "em " significa "entre".
O "convosco" da texto padrão bizantino é um esclarecim ento de copista
im itando o estilo joanino.
as trevas virão sobre vós. Este verbo, katalam banein, aparece como "vencer"
em 1,5; ver nota ali.
O homem que... Este dito é quase idêntico com ljo 2,11.
36. saiu para ocultar-se. Assim tam bém após [a festa dos] Tabem áculos (8,59).

C O M E N T Á R IO

A m en ção d a festa, n o v. 20, liga esta cen a ao c o n te x to g e ra l d a Pás-


coa, a q u a l te m se rv id o d e p a n o d e fu n d o p a ra 11,55 e m d ian te . A
a m b ie n ta ç ã o se c o n se g u e co m u m m ín im o d e e le m en to s. P o d e -se su-
p o r q u e a in te n ç ão d o a u to r era s itu a r a cen a im e d ia ta m e n te depois
d a e n tra d a d e Jesus e m Jeru salém ; e, d e v e ra s, n o s re c in to s d o tem-
p io o n d e Jesu s c o stu m a v a e n sin a r. D o p o n to d e v ista d a se q u ên c ia de
43 · C en a s p rep aratórias para a p á sco a e a m orte: A ch eg a d a da hora 765

p e n s a m e n to , a cen a é u m a in clu sã o id ea l aos c a p ítu lo s 11-12. O ca-


p ítu lo 11 co m eço u a n u n c ia n d o q u e o p ro p ó sito d o m ilag re d e L ázaro
era " p a ra q u e o F ilho [de D eus] fosse g lo rificad o a tra v é s dele". A gora
c h e g o u a h o ra p a ra esta glorificação (12,23). O m ilag re d e L ázaro d e u
início à se q u ên c ia d e ações q u e a p o n ta m p a ra a m o rte d e Jesus; ag o ra
c h e g o u a h o ra p a ra Jesus se r le v a n ta d o n a crucifixão (11,32-33). O m ila-
g re d e L ázaro a p o n to u p a ra Jesus co m o a ressu rre içã o e a v id a (11,25);
a g o ra com eça co m a h o ra em q u e Jesus será le v a n ta d o n a ressu rreição
e a tra ir to d o s o s h o m e n s a si p a ra d a r-lh es v id a (12,32.24). N o s capí-
tu lo s 11-12, v im o s u m a série d e referên cias u n iv e rsa lista s sa lie n ta n d o
a in te n ç ão d e D e u s d e sa lv a r os gentios; a g o ra os g en tio s v êm a Jesus
(12,20-21) p a ra vê-lo. R ealm ente, esta é u m a cena cu lm in an te.

Versículos 20-22: A chegada dos gregos

A im p lic a ç ão teo ló g ica d e sta cena é re la tiv a m e n te clara q u a n to ao


q u e d iss e m o s so b re o u n iv ersa lism o . Jesu s d isse ra q u e d a ria su a vida
e q u e o u tra s o v e lh a s n ã o p e rte n c e n te s a o a p risc o se ju n ta ria m ao re-
b a n h o . O s u rg im e n to d e g e n tio s q u e re n d o v e r Jesu s (crer nele?) indica
q u e e ste é o te m p o d e le d a r s u a v id a. E n tre ta n to , p a re c e q u e a im plica-
ção teo ló g ica d e tal m o d o d o m in o u o in te resse d o a u to r q u e a b re v io u
s u a d e sc riç ã o d o q u e a c o n te c eu , a p o n to d e to rn á -lo en ig m ático . Po-
d e m o s c o n je tu ra r q u e estes g e n tio s se a p ro x im a ra m d e F ilipe, o q u a l
p o rta v a u m n o m e g re g o e q u e v eio d e u m a á re a p re d o m in a n te m e n te
g e n tílica, p o rq u e ele falava g reg o . P o r q u e Filipe c o n su lta ria A n d ré
n ã o fica claro , e x ceto q u e e stes d o is d isc íp u lo s tra b a lh a v a m em e q u ip e
co m João (6,5-8). A vinda d o s g e n tio s é tão im p o rta n te teo lo g icam en te,
q u e o e s c rito r n u n c a n o s in fo rm a se c h e g a ra m a v e r Jesu s, e d e fato
d e s a p a re c e m d a cen a d e m o d o m u ito se m e lh a n te co m o n o c a p ítu lo 3
N ic o d e m o s sa iu d e v ista fu rtiv a m e n te . A p ró p ria e stra n h e z a d e tu d o
isto s u g e re q u e u m in c id e n te b e m p o u c o c o n h e cid o d a tra d iç ã o pri-
m itiv a foi u s a d o co m o a b a se p a ra a d a p ta ç ã o teológica. N ã o h á n a d a
in trin s e c a m e n te im p ro v á v e l n o in c id e n te básico.

Versículo 23 (27-28): A hora da glorificação

M u ita s v ezes n e ste e v a n g elh o o u v im o s Jesus a firm a r q u e s u a hora


(ou tem p o : 7,6.8) a in d a n ão h av ia c h e g ad o (2,4; 7,30; 8,20), i.e., a h o ra
766 O Livro d o s Sinais

d a v o lta d e Jesu s p a ra seu Pai a tra v é s d a cru cifix ão e a sce n sã o (v er


A p ê n d ic e 1:11, p. 794ss.)· A g o ra, e c o n siste n te m e n te n o s p ró x im o s
c a p ítu lo s (13,1; 17,1), so m o s in fo rm a d o s q u e a h o ra h a v ia c h e g ad o .
E v id e n te m e n te , a v in d a d o s g reg o s in d ic o u isto; e Jesus, cuja v id a n ã o
p o d ia ser tira d a d e le in v o lu n ta ria m e n te (1 0 ,1 7 1 8 ‫)־‬, está p r o n to p a r a a
h o ra d e e n tre g a r su a v id a e reto m á-la. N o v. 27, ele resiste a te n ta ç ã o
d e p e d ir a seu Pai q u e o sa lv e d a h o ra; e m v e z d isso , ele se reg o zija n a
o p o rtu n id a d e d e g lo rificar a se u P ai q u e a h o ra p ro p ic ia rá .
V isto q u e os vs. 27-28 re to m a m os te m a s d a h o ra e d a g ló ria q u e
se e n c o n tra m em 23, n ã o é im p ro v á v e l q u e e m a lg u m a é p o c a 23,27-
28 e ra m u n id o s. E m CB Q 23 (1961), 143-48 (N TE, p p . 192-98), m os-
tram o s q u e, e m b o ra João n ã o d e sc re v a u m a a g o n ia n o G e tsê m a n e
tal co m o a e n c o n tra d a n a tra d iç ã o sin ó tica, h á e le m e n to s d isp e rs o s
a tra v é s d e João q u e fo rm a m p a ra le lo com a cena sin ó tica d a ag o n ia .
A lg u n s d e sse s e le m e n to s estã o p re se n te s n e sta seção d o c a p ítu lo 12
(ver ta m b é m c o m e n tá rio so b re 14,30-31; 18,11): (a) N o s sin ó tico s, é
s o m e n te n a cena d a ag o n ia q u e "a h o ra " se to rn a u m a e x p re ssã o téc-
nica p a ra a p a ix ã o e m o rte d e Jesus (Mc 14,35; M t 26,45; v e r n o ta so b re
" te m p o " e m Jo 7,6). U m p a ra le lo m a rc a n te co m Jo 12,23 se e n c o n tra
em Mc 14,41: "A h o ra já c h e g o u ", (b) Jo 12,27: " M in h a a lm a e stá an-
g u s tia d a [tarassein]" é p a ra le lo co m M c 14,34: " M in h a a lm a está con-
tu rb a d a [perilypos]". A m b a s reflete m SI 42,5: " P o r q u e e stá s p e rtu r-
b a d a [perilypos ], ó m in h a a lm a, e p o r q u e te p e rtu r b a s [syntarassein ]
d e n tro d e m im ?" (c) Jo 12,27: "P ai, sa lv a -m e d e sta h o ra ? " é p a ra le lo
com M c 14,35-36: "E le o ro u : Se p o ssív e l, p a ssa d e m in h a e sta h o ra... ó
Pai... re m o v e d e m im este cálice". Em a m b o s o s casos, Jesu s rec o n h e c e
q u e esta n ã o é a v o n ta d e d o Pai. (d) H á u m a p o ssív e l c o m p a ra ç ã o
a d ic io n al m u ito tê n u e e n tre a v o z d o céu q u e a lg u m a s p e s so a s p e n s a r
ser d e u m anjo (Jo 12,29) e o an jo n o ja rd im m e n c io n a d o e m a lg u n s
m a n u sc rito s d e L ucas (22,43).
N ã o é n ecessário q u e a n te c ip e m o s a c o n clu são , d iz e n d o q u e João
n o s a p re s e n ta u m a fo rm a d e s m e m b ra d a d a cen a sin ó tica d a ag o n ia.
E b e m p ro v á v e l q u e Jesu s a n te c ip a sse a e x p e riên c ia d a a g o n ia e m face
d a m o rte co m o d e scrita n a cen a sin ó tica, p o is isto n ã o é u m tip o de
in cid e n te q u e a Igreja p rim itiv a in v e n ta sse acerca d e se u S e n h o r glo-
rificado. T o d av ia, v isto q u e n ã o h o u v e te s te m u n h a s q u e p u d e s se m
e n d o s sa r a o ração d e Jesu s d u r a n te a a g o n ia (os d isc íp u lo s e sta v a m
a d o rm e c id o s à d istâ n c ia ), a te n d ê n c ia seria p re e n c h e r o e sq u e m a
43 · C en a s prep aratórias para a p áscoa e a m orte: A ch eg a d a da hora 767

d a cen a d o G e tsê m a n e com o raçõ es e ex p re ssõ e s v o cais d a p a rte d e Je-


s u s e m o u tro s m o m e n to s. P o rta n to , o q u a d ro jo an in o e m q u e tais o ra-
ções e e x p re ssõ e s se a c h am d isp e rs a s re a lm e n te podem se r m ais a p ro -
x im a d a s d a situ a ç ã o o rig in a l d o q u e a cena sin ó tica m ais o rg a n iz a d a .

Versículo 24: A parábola da semente que morre

O v. 23 se ach a a g o ra se p a ra d o d o s vs. 27-28 p o r u m a série d e di-


to s q u e c o n s titu e m u m m ag n ífico c o m e n tá rio so b re o tem a d a m o rte
e v id a . E m b o ra a a tu a l se q u ên c ia seja o p ro d u to d e rea rra n jo red a-
cio n al, o a u to r e m p re g o u a lg u n s d ito s d e Jesus, q u e c irc u la v a m nos
c írc u lo s jo an in o s, q u e têm u m a p la u sív e l reiv in d ic a çã o d e re p re se n ta r
a tra d iç ã o p rim itiv a .
O v. 24 te m sid o o tem a d e e s tu d o p o r R asco, art. cit., e D odd ,
Tradition, p p . 36-69. T a n to n o fo rm a to q u a n to n o sim b o lism o , ele re-
p re s e n ta u m a p e q u e n a p a rá b o la m u ito sim ila r às p a rá b o la s sinóticas.
T em s e u s a s p e c to s jo an in o s p ecu liares: (a) o d u p lo " a m é m " , ao q u a l
tra d u z im o s " S o le n e m en te v o s a sse g u ro " ["E m v e rd a d e , em v e rd a d e
v o s d ig o "]; (b ) o v e rb o menein, " p e rm a n e c e r" ; (c) o u so d e pherein na
e x p re s s ã o " d a r fru to " , c o m o c o n tra sta d o c om os v e rb o s sin ó tico s m ais
c o m u n s poiein o u dounai. T o d a v ia, p o r e x em p lo , há b o n s p a ra le lo s si-
n ó tic o s p a ra u m a p a rá b o la q u e com eça c om u m a c o n d ic io n al (M t 5,13;
M c 3,24); e c o n se g u im o s u m p a ra le lo p e rfe ito a c o n tra sta r as condi-
c io n a is d e Jo ão em M t 6,22-23. Q u a n to ao sim b o lism o , os sinóticos
tê m u m a p a rá b o la so b re um grão d e m o sta rd a (Mc 4,30-32) e d iv e rsa s
p a rá b o la s q u e tra ta m d o trig o o u g rão em geral; p o r ex em p lo , o Se-
m e a d o r e a S e m en te e m M c 4,1-9 e o g rã o q u e cresce se cre ta m en te em
M c 4,26-29.
O sig n ific a d o g e ra l d a p a rá b o la jo a n in a é claro à lu z d o contexto:
Je su s e stá fa la n d o d a m o rte co m o o m eio d e c h e g ar à v id a . A liás, em
su a a tu a l se q u ên c ia, a p ó s a v in d a d o s g reg o s, a in te n ç ão é in d ic a r a
m o rte d e Je su s co m o o m eio d e tra z e r v id a a to d o s os h o m e n s (12,32).
O s d e ta lh e s d a p a rá b o la n ã o c a recem d e se r a le g o riz a d o s; p o r exem -
p io , o ca ir n a te rra n ã o é u m a referên cia à E n carn ação . D ev em o s n o ta r
q u e o c o n tra s te d e m o rre r e d a r fru to n ã o é o d e m o rre r e e n tã o p e rm a -
n e c e r im p ro d u tiv o . P o d e ria m o s e s p e ra r u m a a lte rn a tiv a d a sem en te
a p o d re c e n d o ; to d a v ia , a p a rá b o la n ã o se p re o c u p a com o d e stin o d o
g rão , e sim co m s u a p ro d u tiv id a d e - o u p e rm a n e c e e sté ril o u p ro d u z
768 O Livro d o s S in ais

fru to . Este fru to d e v e se r e n te n d id o n o m e sm o se n tid o q u e e m 4,36,


o n d e o co n tex to d o s d ito s so b re a ceifa m o stro u q u e o fru to c o n sistia
n as p e sso a s q u e e sta v a m in d o a Jesu s e, p o rta n to , a D eus.
O a sp e c to p e c u lia r d e s ta p a rá b o la é a in sistê n c ia d e q u e é so m e n -
te a tra v é s d a m o rte q u e se p r o d u z fru to . H á q u e m sa lie n te q u e n ã o
h á m e n sa g e m s im ila r e m q u a lq u e r p a rá b o la sin ó tica , e q u e m e sm o
n as p re d iç õ e s sin ó tica s d a p a ix ã o o n d e o u v im o s q u e o F ilho d o H o -
m em deve m o rre r (M c 8,31; ta m b é m Lc 24,26), n ã o h á ê n fa se so b re os
re s u lta d o s fru tífe ro s d e ssa m o rte . M c 10,45: "... d a r s u a v id a c o m o
re sg a te p o r m u ito s " v e m à m e m ó ria , m a s c e rta m e n te isto e stá lo n g e
d o g ê n e ro p a ra b ó lic o . Q u a n to à im a g e m d e g e ra r fru to , p o d e m o s su -
g e rir u m p o ssív e l p a ra le lo sin ó tico q u e tem s u a s ra íz e s n o A T. N ã o
há n o A T b o n s p a ra le lo s p a ra a p a rá b o la d e João, e m b o ra Is 60,10-11
seja in te re ssa n te . N ã o o b sta n te , a e x p re ssã o " m u ito fru to " é u s a d a n o
g reg o d e D n 4,12 (ta n to n a LXX c o m o e m T eo d o cião ) p a ra d e s c re v e r a
g ra n d e á rv o re d o so n h o d e N a b u c o d o n o so r. E ste m e s m o v e rsíc u lo d o
A T é u s a d o n a p a rá b o la sin ó tica d a S e m en te d e M o s ta rd a (M c 4,32),
o n d e s o m o s in fo rm a d o s q u e a á rv o re q u e c resce d e u m p e q u e n o g rã o
d e m o s ta rd a fica tão g ra n d e q u e as a v e s d o céu p o d e m a n in h a r-s e
nela. T aylor , Mark, p. 270, c o m e n ta q u e , v isto q u e e m D a n ie l a á r-
v o re sim b o liz a a p ro te ç ã o q u e u m g r a n d e im p é rio d á a s e u s s ú d ito s ,
é ra z o á v e l p re s s u p o r q u e a p a rá b o la sin ó tica d o re in o c o n te m p le as
n açõ es g en tílicas. A ssim , e m João e n o s sin ó tico s te m o s d u a s p a rá b o -
las c o n c e rn e n te s à p r o d u tiv id a d e d e u m g rã o (d e trig o , d e m o sta rd a );
a m b a s c o n te m p la m a v in d a d o s g e n tio s a D eu s, e é b e m p ro v á v e l q u e
a m b a s estejam re c o rre n d o à im a g e m d e D n 4,12. Se u m a v e z m a is n o s
le m b ra rm o s q u e d e scriçã o sin ó tica d o re in o te m m u ito e m c o m u m
co m a d e scriçã o jo an in a d e Jesu s, p o d e m o s v e r q u a n ta fa m ilia rid a -
d e ex iste n a p a rá b o la jo a n in a b ásica e n tre a s p a rá b o la s tra d ic io n a is
d e Jesus.
D evem os m en cionar q u e o u tro s têm b u sc ad o n u m h o riz o n te m ais
am plo o p an o d e fu n d o desta parábola joanina. A lguns, com o H o ltzm a nn ,
traçam u m a c o m p a ra ç ã o co m as relig iõ es d e m isté rio o n d e o ciclo
a n u a l d a m o rte e re n a sc im e n to e ra d ra m a tiz a d o com u m a e sp ig a d e
trigo. T o d av ia, o c a rá te r a u to m á tic o e im u tá v e l d e ste ciclo fo rm a ria
u m p a n o d e fu n d o p o b re p a ra a co n c ep ç ã o q u e João te m d a m o rte e
re ssu rre içã o d e Jesu s n a q u a l a liv re esco lh a q u e Je su s faz d o te m p o
e co n d ição é fo rte m e n te e n fa tiz a d a . D o d d , Interpretation, p . 3721,
43 · C en a s prep aratórias p ara a p á sco a e a m orte: A ch eg a d a da hora 769

s u g e re q u e o s leito re s h e le n ista s d e João e sta ria m cien tes d e q u e o


s im b o lism o n o q u a l h á n o h o m e m u m a se m e n te d iv in a , a q u a l v e m d e
c im a e se d e s tin a a re to rn a r a essa fonte. M as isto n ã o e sta ria lo n g e da
id e ia d e Jo ão d e q u e a m o rte d e Jesu s c ap acita o u tro s a irem a D eus?
O p a ra le lo v a le n tin ia n o q u e D odd cita so b re o H o m e m C elestial q u e
m o rre ria a fim d e o u tra s se m e n te s e n c o n tre m seu c a m in h o n o Ple-
ro m a q u e p o d e ria te r sid o in flu e n c ia d o p o r João, e m v ez d e consti-
tu ir u m p a ra le lo in d e p e n d e n te . U m p a ra le lo m e lh o r se e n c o n tra em
I C o r 15,35ss., o n d e P a u lo fala d a se m e n te q u e n ã o g e ra v id a a m en o s
q u e seja se m e a d a ; ele m en c io n a a re ssu rre iç ã o d o c o rp o à lu z d e sta fi-
g u ra . A im a g e m n ã o é e x a ta m e n te a m esm a q u e a d e João, e a su g e stã o
d e LoiSY (p. 641) d e q u e João p o d e ria te r e m p re s ta d o d e P a u lo é injus-
tificad a. A q u i, co m o em o u tro lu g ar, a lin g u a g e m fig u ra tiv a d e P au lo
p o d e ria te r s id o in flu e n c ia d a p o r u m a tra d iç ã o o ra l d a s p a rá b o la s d e
Je su s (v er D. M. S tanley, CB Q 23 [1961], 26-39).

Versículo 25: Sobre amar e odiar a própria vida

F re q u e n te m e n te tem -se su g e rid o q u e este v e rsíc u lo é u m a va-


ria ç ão jo a n in a d e u m d ito sin ó tico , m a s D odd , art. cit., a g o ra tem
d e m o n s tra d o q u e a situ a ç ã o é m ais co m p lex a. H á cinco d ito s re-
g is tra d o s n o s e v a n g e lh o s sin ó tico s so b re este tem a; q u a n d o ana-
lisa d o s, o s d ito s se in c lu e m e m três categ o rias: (a) M c 8,35; Lc 9,24;
[b) M t 10,39 e, e m p a rte , 16,25; (c) Lc 17,33. C o m p a re m o s a g o ra estes
g ru p o s d e s e n te n ç a s em term o s d a s a titu d e s a lte rn a tiv a s p a ra com a
p r ó p ria v id a d e a lg u é m q u e são oferecidas:
1. P e rd e r a v ida:
(a) Q u e m d eseja sa lv a r (sõzein ) su a v id a a p e rd e rá (ap o lly n a i).
( b) O h o m e m q u e ach a {eurein) su a v id a a p e rd e rá (a p o lly n a i ).
(c) Q u e m b u sc a g a n h a r (peripoieisthai) su a v id a a p e rd e rá
[apollynai).
N o ta m o s q u e o s e sq u e m a s sin ó tico s p a ra o tem a v a ria m e n tre u m
p a rtic íp io g e ra l em [b) e o re la tiv o in d e fin id o em [a) e (c); estes p ro -
v a v e lm e n te re p re s e n te m d o is d ife re n te s m o d o s d e tra d u z ir o o rig in al
a ra m a ic o p a ra o g reg o . H á u m a v a ria çã o n o v e rb o d a p ro tá s e ("salv ar,
a c h ar, g a n h a r" ), m a s se m q u e isto im p liq u e m u ito e m u m a m u d a n ç a
d e s e n tid o . O v e rb o g reg o n a a p ó d o se é se m p re o m esm o , m as p arece
se r u s a d o e m se u s d ife re n te s sig n ific a d o s d e " p e rd e r" e " d e s tru ir" .
770 O Livro d o s S inais

2. P re se rv a r a v ida:
(a) M as q u e m p e rd e r (a p o lly n a i ) su a v id a p o r m in h a c a u sa a sal-
v a rá (sõzein ).
(b ) E o h o m e m q u e p e rd e (a p o lly n a i) su a v id a p o r m in h a c a u sa a
e n c o n tra rá (eu rein ).
(c) E q u em p e rd e [a] (apollynai) a conservará viva (zõogonein ).
N o ta m o s q u e, e n q u a n to (a) e (b ) u sa m os m e sm o s v e rb o s co m o
em 1, s im p le sm e n te in v e rte n d o -o s, (c) in tro d u z u m n o v o v e rb o n a
ap ó d o se. Em (a ) e ( b ) h á u m a frase e x p licativ a n a p ró ta se , a sa b er, " p o r
m in h a c a u sa " (ou "p elo e v a n g e lh o " e m im p o rta n te s te s te m u n h a s d e
Mc 8,35); e m (c) n ão h á essa frase e, d e v e ra s, n e n h u m o bjeto p a ra o
v erb o d a p ró ta se . Em (b) e (c), " e " in tro d u z a se n te n ç a, e n q u a n to e m
(a) u sa -se "m a s".
F az e n d o u m a c o m p a ra ç ã o geral, (a) e (b ) têm m u ito e m c o m u m ,
se n d o a d iferen ça p rin c ip a l a d e v o c a b u lá rio . O v o c a b u lá rio e m (c)
exibe eleg ân cia lu can a. Em c o n tra p a rtid a , a o m issã o d a frase e m 2 (c)
p arece m u ito p rim itiv a . N em u m ú n ico p a d rã o re p re s e n ta a fo rm a
o rig in al d o d ito .
V o ltem o s a g o ra à fo rm a q u e João d á às a titu d e s a lte rn a tiv a s p a ra
com a v id a:
1. O h o m e m q u e a m a (p h ilein ) su a v id a , a p e rd e (a p o lly n a i );
2. e o h o m em q u e od eia (m isein ) su a v id a n e ste m u n d o a p re se rv a
iphylaxein) p a ra v iv e r e te rn a m e n te .
O e sq u em a d e João, e m b o ra ta m b é m co n sista em p a ra le lism o a n ti-
tético com m e m b ro s b e m b a la n c e ad o s, é tão d ife re n te d e q u a lq u e r u m
d o s e s q u e m a s sin ó tico s co m o são d ife re n te s e n tre si. E m ais p a re c id o
com o e sq u em a sin ó tico (c) em q u e u sa m ais d e d o is v e rb o s b ásico s
- q u a tro v e rb o s, c o m p a ra d o s aos três em (c) - , to d a v ia , os v e rb o s joa-
n in o s são v e rb o s sim p les sem a eleg ân cia lu ca n a d e (c). O v e rb o " p re -
s e rv a r", d e João, é e q u iv a le n te ao " sa lv a r" d e (a). C o m o (a) e (b ), João
anexa e m 2 u m a frase e x p licativ a n a p ró ta s e (" n e ste m u n d o " ) co m o
c o m p a ra d o à sin ó tica " p o r m in h a c a u sa " , m a s João ta m b é m n iv e la isto
com a frase ex p licativ a n a a p ó d o se , " v iv e r e te rn a m e n te " . E stas frases
re p re s e n ta m o fam iliar c o n tra ste jo a n in o e n tre a v id a n e ste m u n d o e a
v id a e te rn a (v er A p ê n d ic e 1:6, p . 794ss). C o m o (b ), João u sa o p a rtic íp io
geral, em v ez d o rela tiv o in d e fin id o , p a ra o su jeito d e 1. D e tu d o isto,
tem o s d e c o n c o rd a r com D odd d e q u e n ã o h á p ro v a re a l p a ra tra ta r a
fo rm a jo an in a d o d ito co m o u m a a d a p ta ç ã o d e u m e s q u e m a sinótico.
43 · C en as p rep aratórias para a p á sco a e a m orte: A ch eg a d a da hora 771

Jo 12,25, se a p o ia e m u m a v a ria n te in d e p e n d e n te d e u m d ito a trib u íd o


a Jesu s, u m a v a ria n te c o m p a rá v e l em c a d a fo rm a às v a ria n te s rep re -
s e n ta d a s n a tra d iç ã o sinótica. D odd su g e re a in d a q u e a fo rm a d e João
é, e m c e rto s a sp ec to s, m ais p a re c id a com o d ito a ra m a ic o o rig in a l d o
q u e e m q u a lq u e r d o s p a d rõ e s sinóticos.
O co n traste básico na form a joanina d o d ito é en tre a m ar e o diar
a lg u é m a vida. Este p a r d e o postos é b em atestad o biblicam ente, com o
v em o s e m u m a com paração d e Lc 14,26: "Se a lg u ém não o d iar a seu
p a i e m ãe... e inclusive sua p ró p ria vida"..., com a form a m atean a do
m esm o dito: "A quele que am ar pai ou m ãe m ais q u e a m im "... (Mt 10,37).
João c o n d e n a o a m o r q u e a lg u ém sen te p ela v id a n este m u n d o ; em ou-
tro lu g a r e n c o n tram o s co n d en açõ es d e a m o r p e la s trev as (3,19) e de
a m o r p e la glória e n tre os h o m en s (12,43). N o d u a lism o joanino, estes
três e le m en to s - trevas, este m u n d o e glória h u m a n a - são a p e n a s dife-
re n te s facetas d o rein o d o m al; e o a m o r q u e a lg u é m sen te p a ra com eles
re p re s e n ta u m a in d isp o sição d e a m a r a Jesus acim a d e tu d o .
A o e n fa tiz a r a n e c e ssid a d e d e o d ia r a lg u é m a v id a n e ste m u n d o
a fim d e v iv e r e te rn a m e n te , o v. 25 reitera n u m a fo rm a n ão p arab ó lica
o tem a d o v. 24, isto é, a n e c e ssid a d e d e m o rre r a fim d e viv er. A qui,
e n tre ta n to , o tem a é a p lic a d o d e u m a m a n e ira d ife ren te . N o v. 24,
Je su s teria q u e m o rre r a fim d e lev a r o u tro s à v id a; a g o ra v e m o s q u e
o s e g u id o r d e Jesu s n ã o p o d e e sc a p a r d a m o rte n ão m ais q u e seu p ró -
p rio S e n h o r, se n ã o q u e tem d e p a s sa r p ela m o rte p a ra q u e ten h a a p ró -
p ria v id a e te rn a . P o d e ria m o s d iz e r q u e o v. 25 explica o m o d o com o
o n o v o g rã o p r o d u z id o p e la se m e n te d o v. 24 c o n q u ista u m a v id a
p ro p ria m e n te su a. D eve-se n o ta r q u e u m g ru p o d a s fo rm as sinóticas
n ã o m en cio n ad as d este d ito (Mc 8,35 e par.) se encontra im ediatam ente
a p ó s a p rim e ira p re d iç ã o q u e Jesus faz d e su a m o rte (Mc 8,31) e a
ê n fa se so b re a n e c e ssid a d e d e cad a u m d o s d isc íp u lo s c a rre g a r a cru z
(M c 8,34). A ssim , esta in te rp re ta ç ã o sin ó tica d o d ito é b e m p a re c id a
co m a d e João.

Versículo 26: O seguidor de Jesus

A c a b a m o s d e m e n c io n a r q u e o p a ra le lo m a rc a n o (8,35) com
Jo 12,25 so b re p re s e rv a r e d e s tru ir a v id a é im e d ia ta m e n te p rec e d í-
d o (8,34) p e la afirm ação : "Se a lg u é m deseja v ir a p ó s m im , n e g u e -se
a si m e sm o , to m e su a c ru z e sig a -m e ". E ste é o p a ra le lo p a ra Jo 12,36.
772 O Livro d o s S inais

A ssim , a m b a s as tra d içõ e s, sin ó tica e jo an in a, ju n ta m e ste s d o is d ito s,


p o ré m em o rd e m in v ersa. Em a m b a s as tra d içõ e s, o d ito so b re se g u ir
Jesus re q u e r a d isp o siç ã o d e im ita r Jesu s n o so frim e n to e n a m o rte .
A tra d iç ã o sin ó tica fala d e a lg u é m q u e q u e r ir após Jesus; João fala
d e a lg u é m q u e q u e r servir Jesus. D odd , Tradition, p. 353, p e n s a q u e o
v erb o jo an in o diakonein p o d e re p re s e n ta r u m a a d a p ta ç ã o p o s te rio r d o
d ito à situ a ç ão d a Igreja. O s e v a n g e lh o s sin ó tico s falam d o "se rv iç o "
q u e Jesu s p re s ta a o u tro s (Lc 22,27) e d a n e c e ssid a d e q u e s e u s d isc íp u -
los têm d e " se rv ir" a o u tro s h o m e n s (M c 9,35), p o ré m n ã o se refe re aos
d isc íp u lo s co m o se rv o s d e Jesus. T o d a v ia, e m b o ra seja p o ssív e l q u e
D odd esteja certo , n o ta m o s q u e as m u lh e re s q u e seguiam Je su s d iz-se
q u e o serviam (M c 15,41; v e r Lc 10,40). P o rta n to , n ã o é im p o ssív e l q u e
a fo rm a q u e João d á a esta a firm a ç ão seja an tig a.
N a ú ltim a p a rte d o v. 26, Jesu s m o stra a se u s se rv o s o q u e rece-
b e rã o p o r seg u i-lo , a sab er, e sta rã o com ele e o P ai os h o n ra rá . E ste é
o u tro m o d o d e d iz e r o q u e foi d ito n o v. 25 so b re p re s e rv a r a v id a p a ra
v iv er e te rn a m e n te , p o is a v id a e te rn a se rela cio n a com e s ta r c o m Jesu s
n o a m o r d o Pai.
Já d e c la ra m o s q u e os d ito s d o s vs. 24-26, os q u a is re p re s e n ta m
u m a in serção e n tre 23 e 27-28, su p õ e m , a p e sa r d isso , u m e s p lê n d id o
c o m e n tário so b re o sig n ific a d o q u e te rá a h o ra d a m o rte e re ssu rre i-
ção d e Jesu s p a ra to d o s os h o m en s. U m a ação d e m o n s tra tiv a q u e u n e
os tem a s d e ste s d ito s se e n c o n tra n a v id a d e I nácio d e A n tio q u ia em
cujos escrito s p a re c e te r os m ais a n tig o s ecos d o p e n s a m e n to jo an in o .
Inácio s e g u iu ru m o à m o rte d e m á rtir, d e se ja n d o o d ia r su a v id a n este
m u n d o a fim d e v iv e r e te rn a m e n te e, assim , d e u e x e m p lo d e c o m o u m
serv o d e v e se g u ir Jesus. Q u a n d o ele fez isso, clam o u : "E u so u o trig o
d e D eu s" (Romans iv 1).

Versículos 27-30: A hora da glorificação (recapitulada do v. 23) e a voz do Pai

N e sta cena tão p a ra le la com a a g o n ia n o ja rd im , v e m o s a v e rd a -


d eira h u m a n id a d e d o Jesus jo an in o . N ã o m e n o s q u e n o s sin ó tico s, o
Jesu s jo an in o se se n te tem e ro so em face d a terrív e l lu ta co m S atan ás
(v. 31) q u e a h o ra d e su a p a ix ã o e m o rte a c a rre ta . Se n a a g o n ia ele
lu ta com o d esejo h u m a n o q u e se p a sse d e le o cálice d o so frim e n to
(Mc 14,36), a ssim em João ele lu ta co m a te n ta ç ã o d e c la m a r a seu Pai
q u e o sa lv e d a h o ra. M as ele triu n fa em c a d a cen a, s u b m e te n d o -se
43 · C en a s p rep aratórias para a p á sco a e a m orte: A ch eg a d a da hora 773

à v o n ta d e o u p la n o d o Pai. A o raç ã o (28), "P ai, glorifica te u n o m e",


re a lm e n te é a sú p lic a p a ra q u e o p la n o d o P ai seja c o n su m a d o ; p o is
o n o m e q u e o Pai co n fio u a Jesu s (17,11.12) só p o d e ser g lo rificad o
q u a n d o se u p o r ta d o r for g lo rific ad o a tra v é s d a m o rte , ressu rre içã o e
a sce n sã o . S o m e n te e n tã o é q u e os h o m e n s v irã o a c o m p re e n d e r o q u e
o n o m e d iv in o , "EU S O U ", significa q u a n d o a p lic a d o a Jesus (8,28).
O v. 28 n o s d á a fo rm a jo a n in a d a p e tiç ã o na o raç ã o d o S enhor: "San-
tific a d o seja o teu n o m e " . (Esta p e tiç ão , p ro p ria m e n te tra d u z id a com o
" q u e o te u n o m e seja sa n tific a d o " n ã o é u m p e d id o p a ra q u e o s ho-
m e n s lo u v e m o n o m e d e D eu s, e sim u m p e d id o p a ra q u e D eus san-
tifiq u e S eu p ró p rio n o m e - v e r TS 22 [1961], 185-88. A s p rim e ira s três
p e tiç õ e s n a o raç ã o d o S e n h o r são sin ô n im as, e a p rim e ira p e tiç ão tem
a m e s m a im p lic a ç ão q u e a terceira: "seja feita a tu a v o n ta d e " , o u " q u e
a tu a v o n ta d e se c o n c re tiz e ". C o m o tem o s re ssa lta d o , o p a ra le lo na
a g o n ia co m a "g lo rific a d o seja o teu n o m e " d e João está n o "seja feita
a tu a v o n ta d e " d e M t 26,42).
A s u b m is s ã o d e Jesu s ao p la n o d e D eu s d e faz e r S eu n o m e glo-
rific a d o e m Je su s é sa tisfe ita co m a c o n firm a ç ão d a re sp o sta d o Pai.
E sta é a p rim e ira v ez e m João q u e o P ai falou d e s d e o céu , v isto q u e
n ã o h a v ia v o z d e s d e o céu n o re la to jo a n in o d o b a tism o d e Jesus e
n ã o h á n o re la to jo an in o d a T ra n sfig u ra ç ão . T o d a v ia, co m o salienta
Bultmann , p . 32 T , esta cen a em João in c o rp o ra a lg u n s d o s te m a s q u e
o s sin ó tico s têm in c o rp o ra d o n a cen a d a T ra n sfig u ra ç ão . N a seq u ên -
cia e m M arco s, a T ra n sfig u ra ç ã o (9,2-8) se g u e a p rim e ira p re d iç ã o q u e
Je su s faz d e su a m o rte (8,31) e se d e stin a à a n te c ip a ç ã o d a m aje sta d e
(o u " g ló ria " e m Lc 9,32) d o C risto re ssu rre to . A v o z d o Pai q u e fala
d e s d e o céu rec o n h e c e Jesu s co m o o Filho. A ssim ta m b é m e m João,
a p ó s e n fa tiz a r a m o rte d e Je su s e m 12,24-25, a v o z d o Pai d e s d e o céu
p ro m e te q u e o n o m e d iv in o será g lo rific ad o o u tra v ez, isto é, n o le-
v a n ta m e n to d e Je su s (v. 32).
O s d o is te m p o s d o v e rb o " g lo rifica r", n a re sp o sta d iv in a (v. 28),
sã o e n ig m á tic o s. Q u a l é a ex ata referên cia ao te m p o p re té rito (aoristo)
e ao fu tu ro ? P o d e m o s d istin g u ir três soluções:
(a) E im p ro v á v e l q u e te n h a m o s a q u i u m a referên cia à g ló ria p ree-
x iste n te e d o Jesu s re ssu sc ita d o . E m b o ra Jesus fale d a g ló ria q u e ele
p o s s u ía a n te s q u e o m u n d o ex istisse (17,5), d ificilm en te esta seja u m a
g lo rificação d o n o m e d iv in o . Tal glo rificação e n v o lv e u m a revelação
d a q u e le n o m e ao s h o m en s.
774 O Livro d o s S in ais

(b) O te m p o a o risto , se c o m p o sto , p o d e se r u m a refe rê n c ia a to d a


a g lo rificação p re té rita d o n o m e d iv in o a tra v é s d o s m ila g re s q u e Jesus
o p e ro u d u ra n te seu m in istério . O te m p o fu tu ro p o d e ser u m a refe rê n -
cia a to d a a g lo rificação q u e o c o rre rá a tra v é s d a m o rte , re ssu rre iç ã o
e ascen são . E sta su g e stã o e n c o n tra a p o io n a s p a s sa g e n s co m o 2,11 e
11,4 q u e m e n c io n a m a g lorificação em relação co m os sinais.
(c ) T hüsing , p p . 1 9 3 9 8 ‫־‬, a p re s e n ta o u tra su g e stã o p la u sív e l. O ao-
risto se re p o rta a to d o o m in isté rio d e Jesus, in clu siv e a hora. E n caran -
d o a h o ra q u e e n tã o c h eg a, Jesu s o ro u p a ra q u e o P ai c o n su m a sse a
g lo rificação d e seu n o m e a tra v é s d o Filho. O p re té rito u s a d o p e la v o z
celestial significa q u e D e u s o u v iu a o raç ã o e c o n su m o u a q u e la glorifi-
cação n a h o ra e n tã o c o m e ç a d a. H á u m u so sim ila r e m 17,4 o n d e , a p ó s
d iz e r q u e a h o ra é c h e g ad a , Jesu s c o n tin u a : "E u te g lo rifiq u e i [aoristo]
n a terra re a liz a n d o a o b ra q u e m e d e ste p a ra faz e r". E sta g lo rificação
se c o n s u m o u n a c ru z q u a n d o Jesu s p o d e d izer: "E stá c o n su m a d o !"
(19,30). A fu tu ra g lo rificação d o n o m e d iv in o se rá c o n s u m a d a p e lo
C risto e x a lta d o q u e , co m o n o v. 31 se n o s a sse g u ra , a tra irá a si to d o s
os h o m en s. Boismard rela cio n a esta p a ssa g e m e m João co m 13,31-32.
Se as d u a s p a s sa g e n s se m p re fo ra m o u n ã o u n id a s , o s v e rsíc u lo s em
13 c o n s titu e m u m n o tá v e l c o m e n tá rio so b re o q u e acab a d e se r d ito .
"A g o ra o F ilh o d o H o m e m foi g lo rificad o e D e u s foi g lo rific ad o nele.
D eu s, p o r su a vez, o glo rificará em Si m esm o e o g lo rific ará im e d ia ta -
m en te ". A q u i ta m b é m a p re s e n te h o ra está in clu sa n a glo rificação já
c o n s u m a d a , e a g ló ria fu tu ra está n a ex altação com o Pai.
O p ro p ó sito q u e Jesus (v. 30) co n c ed e à v o z c elestial é e n ig m ático .
Em 11,41-42 o u v im o s Jesu s fa la n d o ao Pai com o p ro p ó sito d e lev ar
os o u v in te s a crerem . T o d a v ia, se n o p re s e n te caso n ã o h á a m e n o r
in d icação d e q u e a m u ltid ã o e n te n d e u a v o z, co m o ela so o u p o r c a u sa
d eles? O v. 30 e sta ria c o n e cta d o com o 31 n o s e n tid o d e q u e o p ró -
p rio so m d o céu c o n stitu i u m a am eaça d e ju lg a m e n to ? O u s u a ób v ia
sin cro n ização co m a p re g a ç ã o d e Jesus significa p a ra a m u ltid ã o q u e
D eu s a p ro v a Jesus?

Versículos 31-34: Λ exaltação de ]esus e 0 problema do Filho do Homem

N e stas ú ltim a s p a la v ra s q u e Jesu s fala d u r a n te o m in isté rio p ú -


blico (31-32, 35-36), a a tm o sfe ra d a d iv isã o d u a lístic a v o lta o u tra vez.
A h o ra su p õ e ju ízo c o n d e n ató rio ao P rín cip e d e ste m u n d o , p o ré m v id a
43 · C en as prep aratórias para a p áscoa e a m orte: A ch eg a d a da hora 775

p a ra os q u e são atra íd o s p o r Jesus; as p o u cas ho ras q u e restam desta luz


q u e é Jesu s fazem m ais d e n sas as trevas circu n d an tes q u e se aproxim am .
H á u m in teressan te paralelo n a cena lucana d a a gonia o n d e Jesus d iz aos
q u e v iera m p ren d ê-lo (23,53): "E sta é a h o ra e o p o d e r d a s trevas".
A h o ra q u e tra z glorificação a Jesus significa a e x p u lsã o d e seu
g r a n d e in im ig o . A v a ria n te n o v. 31 (ver a resp e c tiv a n o ta) co n tras-
ta ria a e le v a ç ão d e Jesu s com o abatimento d o P rín c ip e d e ste m u n d o .
(Isto p o d e s e r c o m p a ra d o com A p 12,5.8-9, o n d e o a rre b a tarn en to d o
filh o m essiân ic o ao céu tem p a ra le lo com S a tan á s se n d o lan ç a d o
d o céu ; v e r ta m b é m Lc 10,18). N ã o o b sta n te , a le itu ra m ais c o rre ta d o
v. 31 n ã o é u m a refe rê n c ia à e x p u lsã o d e S a tan á s d o céu, e sim a p e rd a
d e s u a a u to r id a d e so b re este m u n d o . E sta in ferên cia p a re c e ser co n trá-
ria à a firm a ç ã o d e l j o 5,19: " O m u n d o in te iro jaz n o p o d e r d o M alig-
n o " . T alv ez p o ssa m o s d iz e r q u e a h o ra v ito rio sa d e Jesus co n stitu i em
p rin c íp io u m a v itó ria so b re S atanás; c o n tu d o , a realização d essa vitória
n o te m p o e e s p a ç o é a g ra d u a l o b ra d o s cristã o s cren tes. M esm o n a v id a
d o c ristã o h á u m a te n sã o e n tre u m a v itó ria já c o n q u ista d a ( ljo 2,13)
e u m a v itó ria a in d a a se r c o n q u is ta d a ( lj o 5,4-5). S u g e rir q u e o Q u a rto
E v a n g e lh o se ach a ta n to n a a tm o sfe ra d a escato lo g ia re a liz a d a q u e o
a u to r n ã o e s p e ra v itó ria u lte rio r so b re o m al q u e c o n q u isto u n a vi-
to rio s a h o ra d a v id a d e Jesu s e q u iv a le re d u z i-lo a u m ro m â n tic o so-
n h a d o r in c a p a z d e re c o n h e c er o m al e x iste n te n o m u n d o . H á n o N T
o u tra s re fe rê n c ia s à v itó ria d e Jesu s so b re o p o d e r d a m o rte (H b 2,14)
e s o b re o s p o d e re s e p rin c ip a d o s (Cl 2,15); to d a v ia , e stes n ã o excluem
a e x p e c ta tiv a d e u m a fu tu ra e x p a n sã o d e sta vitória.
N a te rc e ira re fe rê n c ia jo a n in a (v. 32) à e x a lta ç ã o d e Je su s, en -
c o n tr a m o s ta n to o a s p e c to sa lv ífic o d e s s a e x a lta ç ã o (p rim e ira re-
fe rê n c ia : 3,14-15) c o m o ta m b é m o a s p e c to d e ju íz o (s u g e rid o n a
s e g u n d a re fe rê n c ia : 8,28). Já s a lie n ta m o s (p. 354) q u e o u s o jo a n in o
d e " s e r le v a n ta d o " p r o v a v e lm e n te fo sse s u g e rid o p e la d e sc riç ã o
d o S e rv o S o fre d o r d e Is 52,13. A m b o s o s te m a s, d e m o rte e gló-
ria , q u e a p a re c e n a p r e s e n te re fe rê n c ia d e Je su s s e n d o le v a n ta d o
se e n c o n tr a m ta m b é m n a q u e le h in o d o S e rv o . O g re g o d e Is 52,13
tra z o S e rv o s e n d o e x a lta d o " e g lo rific a d o im e d ia ta m e n te " ; e Is 53
d e s c r e v e s u a m o rte .
A s trê s refe rê n c ia s à ex altação d e Jesus, esta é a ú n ica q u e não
m e n c io n a o F ilh o d o H o m e m ; m a s a m u ltid ã o , n o v. 34, p a re c e im pli-
c a r q u e Jesu s já h a v ia falad o d o F ilho d o H o m e m . B u l t m a n n , p. 269,
776 O L ivro d o s S inais

lig aria 12,34 a 8,28, d e m o d o q u e a objeção d a m u ltid ã o se g u iría a se-


g u n d a d a s três refe rê n c ia s e a q u e la q u e m en c io n a o F ilho d o H o m e m .
N ã o o b sta n te , esta su g e stã o n ã o tra z m u ito a v a n ço , p o is 8,28 n ã o d iz
q u e o F ilh o d o H o m e m seria le v a n ta d o , co m o a a firm a ç ão d a m u lti-
d ã o em 12,34 im p licaria. G ourbillon, art. cit. tem u m a so lu ç ã o a in d a
m ais im a g in a tiv a . Ele sa lie n ta q u e ela é a p rim e ira d a s trê s re fe rê n c ia s
(3.14) q u e e n q u a d ra m m e lh o r as im p lic a ç õ e s d e 12,34, p o is e la d e -
clara: "O F ilho d o H o m e m d e v e ser le v a n ta d o " . G ourbillon p e n s a q u e
a p a s sa g e m 3,14-21 co m o u m to d o se e n q u a d ra ria m u ito b e m e n tre
12,31 e 32. V isto q u e 3,19-21 tem o tem a d e lu z e tre v a s, a in tro d u ç ã o
d e ste tem a e m 12,35-36 n ã o seria tão a b ru p to . A lém d o m ais, o tem a
d o ju ízo e m 3,17-19 se g u iría 12,31 m u ito b em . Se Jesu s a p e n a s d isse sse
(3.14) q u e o F ilho d o H o m e m seria le v a n ta d o , a a b e rtu ra d e 12,32 p ro -
p iciaria u m a se q u ên c ia m u ito su av e: "E q u a n d o e u fo r le v a n ta d o " ...
E stas são o b se rv a ç õ e s in te re ssa n te s, e é p e rfe ita m e n te p o ssív e l q u e
em u m está g io n a h istó ria d a tra d iç ã o jo a n in a e sta s p a s sa g e n s consti-
tu íra m u m a u n id a d e . U m a v e z m ais, m e sm o assim , d e v e m o s h e sita r
d ia n te d a falta d e p ro v a co n clu siv a.
N o v. 34, tam b ém a m u ltid ã o faz alu são ao M essias, e m b o ra Jesus
n ã o te n h a u s a d o a té a g o ra esse títu lo . E sta é o u tra in d ic a çã o d e q u e a
aclam ação d e Jesus com p a lm a s [ram os] d e v a se r in te rp re ta d a com o
u m g esto m essiân ic o n a c io n a lista . É in te re ssa n te q u e o v. 34 estab e-
leça u m a relação e n tre o M essias e o F ilho d o H o m e m . Em o u tro lu-
g a r e m João já v im o s d u a s d ife re n te s e x p e c ta tiv a s so b re o M essias
(p. 234): u m a e m te rm o s d e u m M essias d a v íd ic o n a sc id o e m Belém
(7,42); a o u tra e m te rm o s d e u m M essias o c u lto , se m e lh a n te às expec-
tativ a s d e u m F ilho d o H o m e m o c u lto e m 1 Enoque (7,27; 1,26). E staria
a m u ltid ã o id e n tific a n d o a s d u a s e x p e c ta tiv a s a q u i, o u e sta ria fala n d o
d o M essias o cu lto ? A liás, a in d a fica difícil d e d e te rm in a r se a p ró p ria
m u ltid ã o está fa z e n d o a ju sta p o siç ã o d e M essias e F ilho d o H o m e m ,
o u está p re s s u p o n d o q u e Jesu s os id en tifica. O b te m o s u m a ju sta p o si-
ção sim ila r n o s láb io s d e Jesu s n a cena sin ó tica d o ju lg a m e n to d ia n te
d e C aifás (M c 14,61-62), q u a n d o o su m o sa c e rd o te p e rg u n ta a Jesus
se ele é o M essias, e Jesus re s p o n d o e m te rm o s d o F ilho d o H o m e m .
É im possível q u e u m a discussão com o a d o v. 34 ten h a tid o signi-
ficado p a ra certo s g ru p o s d e Jesu s d u r a n te a v id a te rre n a d e Jesus,
e sp ec ialm en te a q u e le s in flu e n c ia d o s p e lo p e n s a m e n to d e 1 Enoque.
M as o Q u a rto E v a n g e lh o p ro v a v e lm e n te te n h a e m m e n te a q u i os
43 · C en a s p rep aratórias para a p á sco a e a m orte: A ch eg a d a da hora 777

a rg u m e n to s ju d a ic o s c o n tra Jesus n o final d o 1“ século. Isto p o d e


c o n s titu ir u m a fo rm u la ç ã o p rim itiv a d o d e b a te e n c o n tra d o em J usti-
no, Trifo XXXII 1 (PG 6:541, 544). A li, T rifo objeta q u e Jesus n ã o p o d e
te r sid o o M essias o u o F ilho d o H o m e m p o rq u e n ã o e stab eleceu o
g r a n d e re in o e e te rn o g o v e rn o d o q u e fala o AT. J ustino re s p o n d e em
te rm o s d a e x altação d e Jesu s na p re se n ç a d o Pai. E stes são os m esm o s
te m a s e n c o n tra d o s e m Jo 12,32-34.

Versículos 35-36: A ponto de desaparecer a luz

Je su s n ã o re s p o n d e d ire ta m e n te à p e rg u n ta d a m u ltid ã o . E m vez


d e fala r so b re o F ilho d o H o m e m ou o M essias, ele in siste so b re a
c u rta d u ra ç ã o d e su a p ró p ria p e rm a n ê n c ia co m o a luz. Se isto p a re c e
te r p o u c a relação com o Filho d o H o m e m , p o d e m o s tra z e r à m em ó ria
a q u e la d o c a p ítu lo 9, a q u a l co m eço u com Jesu s co m o a lu z d o m u n -
d o (9,5) e te rm in o u com u m a id en tificação d e Jesus com o o F ilho d o
H o m e m (9,35-37). E d ig n o d e n o ta a in d a q u e a d escrição q u e Isaías
esb o ça d o S erv o S o fred o r, o q u a l, co m o v im o s, fo rn eceu o p a n o d e
fu n d o p a ra o co n ceito d e se r e le v a d o em g ló ria, ta m b é m o ferece u m
p a n o d e fu n d o p a ra a im a g e m d e Jesus co m o a luz. Is 49,5-6 fala d o
s e rv o c o m o a lu z d a s n açõ es, ju sta m e n te co m o João re tra ta Jesu s com o
a lu z n o c o n te x to d a v in d a d o s gregos.
A o in tr o d u z ir o tem a d e lu z e tre v a s, Jesu s d irig e su a d isc u s-
s ã o c o m a m u ltid ã o d o p la n o in te le c tu a l p a ra o p la n o m o ra l, m u ito
s e m e lh a n te ao q u e ele fez com a m u lh e r s a m a rita n a q u a n d o ela co-
m e ç o u a fa la r d o M essias. A m u ltid ã o p o n d e ra so b re a n a tu re z a e
id e n tid a d e d o F ilh o d o H o m e m ; p o ré m é m ais im p o rta n te q u e p e n -
se m n o ju lg a m e n to q u e e stá a sso c ia d o com o F ilho d o H o m e m , o jul-
g a m e n to d e ir à lu z e a n d a r n e la p a ra q u e n ã o sejam tra g a d o s p e la s
tre v a s. E isto é d e im p o rtâ n c ia im e d ia ta , p o is só p o d e rã o ir à lu z p o r
p o u c o te m p o . C o m o s a lie n ta m o s n a n o ta so b re 8,12, e m Q u m ra n h á
b o n s p a ra le lo s p a ra a e x p re s s ã o " a n d a r n a lu z ou n a s tre v a s " co m o
u m a m e tá fo ra p a ra o b o m e o m a u c a m in h o d a v id a . A e x p re ssã o "fi-
lh o s d a lu z " (36) p ro v é m d a s h a b itu a is d e scriçõ e s d e Q u m ra n p a ra
a c o m u n id a d e , ju s ta m e n te co m o João o u sa p a ra d e s c re v e r os q u e
c re e m e m Je su s (ta m b é m lT s 5,5; Ef 5,8). E sta te rm in o lo g ia era p a r-
tic u la rm e n te a p ta n o s c írc u lo s c ristã o s, o n d e " ilu m in a ç ã o " e ra um
te rm o p a ra d e s ig n a r o b a tis m o (p. 655).
778 O L ivro d o s S inais

E a ssim Jesu s te rm in a o m in isté rio ao s ju d e u s co m u m a n o ta d e


d esafio . Se a h o ra já veio, isto significa q u e este é o te m p o p a ra a lu z
p a s s a r d e s te m u n d o . O p o d e r d a s tre v a s está se a p ro x im a n d o p a ra
a lu ta final. O m o m e n to d o ju íz o já c h eg o u . P a ra ilu s tra r d ra m a tic a -
m en te o tem a d a p a ssa g e m d a lu z, Jesu s e n tã o se o cu lta. D a p ró x im a
v ez as m u ltid õ e s o b u sc a rã o , elas b u sc a rã o u m h o m e m d e so frim e n -
to (19,5.37) a q u e m rejeitaram . É d ig n o d e n o ta q u e as ú ltim a s p a la -
v ra s d o m in isté rio d e Jesu s e m Mc 13,35-37 são ta m b é m p a la v ra s d e
a p e lo u rg en te : os se rv o s d e v e m v e la r p a ra q u e o se n h o r n ã o v e n h a
d e re p e n te e os e n c o n tre d o rm in d o . João e n fa tiz a q u e o se n h o r já veio,
e eles se e s q u iv a ra m . O a to d e Jesus se o c u lta r, n e ste s e g u n d o final
d o m in istério , é p a ra le lo co m su a fu g a p a ra a lé m d o Jo rd ã o (10,40) no
p rim e iro fin al d o m in istério .

B IB L IO G R A F IA

DODD, C. H., " Some Johannine 'Hernworte' with Parallels in the Synoptic
Gospels", NTS 2 (1955), especialm ente p p. 78-81 sobre 12,25. A gora em
Tradition, p p . 338-43.
GOURBILLON, J.-G., "La parabole du serpent d'airain", RB 51 (1942), 213-26.
RASCO, A., “Christus, granum frumenti (Jo. 12, 24)", VD 37 (1959), 12-25,
65-77.
VAN U N N IK , W. C., "The Quotation from the Old Testament in John 12:34",
N ovT 3 (1959), 174-79.
O LIVRO DOS SINAIS

C o n c lu s ã o : A v a lia ç ã o e b a la n ç o d o m in isté rio d e Je s u s

12,37-43: Ministério de Jesus entre seu próprio povo (§ 44)


12,44-50: Jesus resume em um discurso sua mensagem
4 4 . U M A A V A L I A Ç Ã O D O M IN IS T É R IO
D E JE SU S E N T R E S E U P R Ó P R IO P O V O
(12,37-43)

12 37A p e sa r q u e Jesu s rea liz a sse ta n to s d e se u s sin a is d ia n te d eles,


re c u sa v a m -se a cre r nele. 38Foi a ssim p a ra c u m p rir-se a p a la v ra d e
Isaías o p ro feta:

"S en h o r, q u e m c re u o q u e tem o s o u v id o ?
A q u e m o p o d e r d o S e n h o r foi rev e la d o ? "

3gA ra z ã o d e n ã o p o d e re m c re r foi q u e , co m o e m o u tro lu g a r d isse


Isaías,

40‫ ״‬Ele tem c e g a d o se u s o lh o s


e e n to rp e c e u su a s m en te s,
p a ra q u e n ã o vejam com os o lh o s
e p e rc e b a m com su a m e n te
e se c o n v e rta m
e eu os cu re ".

41Isaías e n u n c io u estas p a la v ra s p o rq u e v ira su a g ló ria e e ra d e le qu e


ele falava.
42N ão o b sta n te , h o u v e m u ito s, m esm o e n tre o S in é d rio , q u e cre-
ram nele. T o d av ia, p o r c a u sa d o s fariseu s, re c u sa ra m a a d m iti-lo , ou
teriam s id o e x p u lso s d a sin ag o g a. 41243P re fe rira m m ais o lo u v o r d o s ho-
m en s à g ló ria d e D eus.
44 · U m a av a lia çã o d o m in istério d e Jesus en tre seu p róp rio p o v o 781

NOTAS

12.38. Foi assim para cumprir. Literalmente, um a cláusula him subordinada.


Gram aticalm ente, podería ser consecutiva; todavia, como o v. 39 deixa
claro, a ideia básica não é que a incredulidade resultou no cum prim ento
da profecia, e sim a profecia resultou em incredulidade, de acordo com
a ideia que as profecias veterotestam entárias tinham de cum prir-se, hina
tem sentido de final. Ver nota "cum priu" sobre 13,18.
0 que temos ouvido. Literalmente, "nossa notícia", i.e., a notícia que recebemos.
0 poder. Literalm ente, "o braço.
39. não poderem crer. Entre os com entaristas patrísticos gregos há um a ten-
dência de abrandar isto para "não creriam ".
40. entorpeceu. O verbo põroun, frequentem ente traduzido por "endureceu",
significa "fazer-se insensível ou obtuso" (tam bém Mc 6,52). Os dois pa-
piros Bodmer têm intensificado a evidência para ler põroun, um verbo
quase sinônimo.
mentes. Literalm ente, "coração". O coração era considerado como a sede
tanto da vida m ental como a física.
para que. Esta é um a cláusula negativa de propósito (hina mõ). Para suavizar
o impacto abrupto da visão preventiva de Deus, alguns comentaristas têm
sugerido que aqui him é causai: "porque não viam". Não obstante, a exis-
tência do hina causal no grego do NT é ainda controversa (ZGB, § 412-14),
e propô-lo aqui não parece fazer justiça ao significado geral da passagem.
percebam. Noein (LXX synienai).
se convertam. Strephein (LXX epistrephein); na realidade, isto tem o sentido
de voz média: "volver-se".
eu os cure. Os três verbos precedentes têm sido subjuntivos; agora, porém , o
m odo m uda para o futuro do indicativo (tam bém LXX). Ver BDF, § 3693.
41. porque. Hoti é a leitura m ais bem atestada, m as há considerável apoio para
hote, "quando". Neste caso, não havería m uita diferença no significado.
sua glória... dele. Evidentem ente, estes dois pronom es têm o mesm o ante-
cedente, e o segundo só pode referir-se logicamente a Jesus. Por causa
da dificuldade da afirm ação de que Isaías viu a glória de Jesus, algum as
testem unhas gregas têm corrigido a "sua" para "de Deus".
42. Sinédrio. Literalm ente, "autoridades"; ver 3,1; 7,26.48.
43. preferiram... à. Literalm ente, "am aram mais do que". A partícula com-
parativa õper, endossada por P66’, ocorre no NT som ente aqui, e, pro-
vavelm ente, deva ser preferida à leitura hyper ("sobre"), a despeito da
atestação relativam ente forte da última. Não é impossível, contudo, que
a últim a seja um semitismo Cal).
782 O Livro dos Sinais

0 louvor dos homens... à glória de Deus. Doxa é usada duas vezes, m as com
duas diferentes conotações (ver nota sobre 5,41.44). A glória de Deus,
provavelm ente, foi sugerida pela cena de Isaías no v. 41.

C O M E N T Á R IO

Versículos 37-39: Citações veterotestamentárias

Na conclusão de sua narrativa do ministério de Jesus, o autor se detém


para avaliar. A única avaliação honesta possível é a expressa no Prólo-
go (1,11): "Veio para o que era seu; todavia os seus não o aceitaram".
Mas, por quê? Que esta questão deixou perplexo o cristianismo pri-
mitivo, vemos em Rm 9-11. A resposta padrão do NT é em termos da
profecia do AT, em particular Is 6,10. Deus informara a Isaías que sua
mensagem seria rejeitada, e que tudo o que ele fizesse passaria des-
percebido por olhos que ficaram voluntariamente cegos. Os autores
do NT descobriram que isto era verdadeiro, não só no ministério de
Isaías, mas também no ministério de Jesus, o qual era o cumprimento
do ministério de Isaías. Esta expÜcação parece insatisfatória ao leitor
moderno que sabe que as mensagens proféticas do AT eram dirigidas
primariamente à situação contemporânea e não a um futuro remoto.
Mas a explicação deve ser entendida na mentalidade hermenêutica
dos tempos do NT. O conceito que as pessoas tinham de não crer ("não
puderam crer" no v. 39) na palavra e obras de Jesus em virtude do que
diz o AT, de que não creríam, não tem que se entender em uma pers-
pectiva psicológica. Esta é uma explicação no plano da história salví-
fica. Ela não destrói a liberdade humana, pois o v. 42 deixa bem claro
que os homens eram livres para aceitar Jesus. A avaliação de João não
é uma afirmação de determinismo, e sim um apelo implícito para crer.
No v. 37, o escritor introduz sua avaliação, fazendo ecoar a últi-
ma parte de Deuteronômio (29,2-4). Ali, Moisés começa seu terceiro
e último discurso, lembrando o povo que, embora o Senhor houves-
se realizado sinais diante deles no Egito, o Senhor ainda não lhes dera
mente para compreender, ou olhos para ver, ou ouvidos para ouvir.
(Este pensamento primitivo ignora a teoria de causalidade secun-
dária ou a liberdade em que Deus deixa ao homem tudo o que se
relaciona com a salvação. O Senhor causa estas coisas diretamente;
44 · U m a a valiação d o m in istério d e Jesus en tre seu p ró p rio p o v o 783

e, p o rta n to , se n ã o v ia m n e m o u v ia m , era p o rq u e o S e n h o r fizera com


q u e n ã o v isse m n e m o u v isse m ). E x a tam e n te d a m esm a m a n e ira , o
e v a n g e lh o n o s in fo rm a q u e Jesu s rea liz a ra sin a is e, n o e n ta n to , se re-
c u s a ra m a crer.
A raz ã o p a ra tal recusa está na cau salid ad e d o Senhor, pois Suas
p a la v ras n o AT tin h am d e cum prir-se. A m bos os textos d e Isaías (53,1
e 6,10) q u e João cita são citados em o u tro s lu g ares no NT, e o a u to r está
q u a se certam en te e x train d o u m rep ertó rio d e textos o u testem u n h o s usa-
d o s p elo s cristãos p a ra explicar e d e fen d er su as idéias sobre Jesus Cristo.
A citação d e Is 53,1 n o v. 38 tom a q u ase ao p é d a letra o texto d a LXX.
Já vim o s, em nosso e stu d o d e 12,2036‫־‬, q u e m u ito d a term inologia que
João u s a p a ra descrever a hora d e Jesus ser exaltado em glória tem seu
p a n o d e fu n d o nos h inos d o Servo S ofredor no D euteroisaías. É interes-
san te, pois, q u e n o v. 38 o a u to r recorra a esta m esm a fonte p a ra explicar
o fracasso d o p o v o ju d eu em aceitar Jesus, pois Is 53 é o cântico p o r ex-
celência d o Servo com o rejeitado e d esp rezad o . N o tem o s q u e a passa-
gern abarca com ex atidão to d o o m inistério d e Jesus, tan to su as palavras
("o q u e tem o s o u v id o ") com o su as obras o u sinais (o q u e tem sido efetua-
d o p elo p o d e r o u "braço" d o S enhor - esta expressão é u sad a em D t 5,15
p a ra d escrev er a in tervenção d e D eus nos sinais d o Êxodo).
N o v. 40, João cita Is 6,10, a p a ssa g e m clássica d o A T u sa d a no
N T p a ra ex p lic ar o fracasso d e Israel em c re r e m Jesus. A s ú ltim a s
p a la v ra s d e P a u lo em A to s (28,26-27) c o n sistem n e sta citação: é sua
e x p licação d a ra z ã o p o r q u e os ju d e u s n ã o têm a c eita d o o ev an g e-
lh o q u e ele p re g a v a . (A citação d e u m a p a ssa g e m sim ila r d e Is 29,10
em R m 11,8 n o s m o stra q u e L ucas em A to s n ã o in te rp re to u eq u iv o -
c a d a m e n te a m e n te d e P aulo). Is 6,10 ta m b é m a p a re c e n o s ev an g e-
lh o s sin ó tico s (im p lic ita m e n te em M c 4,12; Lc 8,10; ex p lic ita m e n te em
M t 13,13-15) co m o u m a exp licação d e p o r q u e o p o v o n ã o tem com -
p re e n d id o as p a rá b o la s d o rein o . Se e v o c arm o s u m a v ez m ais a rela-
ção e n tre o re in o n o s sin ó tico s e a p e sso a d e Jesus em João, p o d e m o s
v e r a s im ila rid a d e e n tre a falha d e e n te n d e r as p a rá b o la s d o rein o e a
falh a d e a c e ita r Jesus. E in te re ssa n te q u e , e n q u a n to os sinóticos p õ e m
a citação d e Is 6,10 n o s p ró p rio s lábios d e Jesus, João a a p re se n ta cia-
ra m e n te co m o u m a ex p licação cristã d o q u e aco n teceu .
T alv ez n e n h u m a o u tra citação d o AT em João ilu stra tão b em a
d ific u ld a d e d e d e te rm in a r se a fo n te d a s citações q u e João faz d o AT
foi o TM a LXX o u a lg u m a o u tra tra d u ç ã o g reg a d o TM . E n q u a n to as
784 O Livro d o s Sinais

o u tra s citaçõ es q u e o N T faz d e Is 6,10 se a p ro x im a m m u ito d a LXX, a


fo rm a d e João é m u ito d istin ta .
O TM : F a z e (im p e ra tiv o ) o co ração d e ste p o v o in se n sív el, e faze
se u s o u v id o s p e sa d o s, e fecha se u s o lh o s, p a ra q u e n ã o v ejam
co m se u s o lh o s, e n ã o o u ç a m com s e u s o u v id o s, e e n te n d a m
co m se u co ração e se c o n v e rta m e s e ja m c u r a d o s .
A LXX (M ateus, Atos): O coração desse p o v o te m s e to m a d o o b tu so
[passivo]; e com seus o u v id o s só o u v em com dificuldade; e têm
fechado seus olhos, p a ra q u e não vejam com os olhos e o u çam com
os o u vidos, e e n te n d a m com o coração, e se c onvertam e e u o s c u re .
João: Ele tem c e g ad o se u s o lh o s e e n to rp e c e u s u a s m e n te s, p a ra
q u e n ã o v ejam co m o s o lh o s, e p e rc e b a m co m su a m e n te , e se
c o n v e rta m e e u o s c u r e .
T em o s d e ix a d o em itálico a lg u m a s d ife ren ç a s im p o rta n te s . A tra-
d u ç ã o n a LXX e e m M a te u s te m a b ra n d a d o o im p e ra tiv o inicial d o TM
p a ra u m p a ssiv o m e n o s o fen siv o , d e m o d o q u e já n ã o é o p ro fe ta q u e
e n d u re c e os co raçõ es d o p o v o . Ig u a lm e n te , n e sta tra d u ç ã o n o final
d o v ersícu lo , D e u s e n tra d ire ta m e n te p a ra c u ra r o p o v o . N a tra d u ç ã o
d e João, é D e u s q u e m tem c e g ad o os o lh o s d o p o v o - u m a a trib u iç ã o
q u e d e v e ser e n te n d id a à lu z d o s u p ra m e n c io n a d o fracasso d e d istin -
g u ir a c a u sa lid a d e se c u n d á ria . T alv ez esta ên fa se e m João seja u m a
a d a p ta ç ã o d o tex to p a ra se u n o v o c o n te x to n o e v a n g e lh o . Jo ão o m ite
a frase "d e s te p o v o " e n c o n tra d a ta n to n o TM co m o n a LXX, e d iv e r-
sos v erb o s u s a d o s p o r João sã o d ife re n te s d a q u e le s u s a d o s n a LXX e
em M ateu s (v er n o ta so b re v. 40). M ais im p o rta n te , e m p rin c íp io João
n ão se g u e a o rd e m d e Isaías (coração, o u v id o s, olh o s) ao c a ta lo g a r os
ó rg ão s afetad o s; a o c o n trá rio , João o m ite " o u v id o s " e fala d o s o lh o s
a n te s d a m e n te (coração). N ã o é im p o ssív e l q u e, c o m o o u tra s d iv er-
sas v ezes, João está a m a lg a m a n d o citaçõ es d o A T, e q u e a c itação d e
Isaías foi in flu e n c ia d a p e la citação d e D t 29,3-4 q u e jaz p o r d e tr á s d o
v. 37. E m D e u te ro n ô m io , é D e u s q u e m ag e n o co ração , n o s o lh o s e nos
o u v id o s d o p o v o . N a s ú ltim a s p a la v ra s d a citação d e Isaías, " e u os
c u re ", João está com a LXX e o TM .

V e r s íc u lo 4 1 : A v is ã o d e I s a ía s d a g ló r ia d e j e s u s

Se o v. 40 foi u m a citação d e Is 6,10, este p ró x im o v e rsíc u lo evo-


ca a v isã o in icial q u e Isaías tev e d o S e n h o r so b re u m tro n o em 6,1-5.
44 · U m a a valiação d o m in istério d e Jesus en tre se u p ró p rio p o v o 7 85

H á d u a s co isas a n o ta r n a referên cia d e João. P rim eira, João p arece


p re s s u p o r u m tex to o n d e Isaías v ê a glória d e D eus, m as ta n to n o TM
c o m o n a LXX d e Isaías lê-se q u e Isaías v iu o p ró p rio S enhor. Isto tem
le v a d o m u ito s c o m e n ta rista s a su g e rir q u e João está se g u in d o a tra d i-
ção d o ta rg u m (o u tra d u ç ã o a ram aica) d e Isaías, o n d e , em 6,1, Isaías
v ê " a g ló ria d o S e n h o r", e e m 6,5 "a g ló ria d a shekinah d o S en h o r".
A p o s s ib ilid a d e d e João u s a r os ta rg u n s já foi d isc u tid a em relação a
1,51 (p. 282) e 7,38 (p. 321s.), e a citação jo an in a d e u m ta rg u m p a ra o
tex to d e Isaías p o d e te r sid o d e te rm in a d o p e la fre q u e n te ên fa se neste
e v a n g e lh o d e q u e n in g u é m jam a is v iu a D eus.
S e g u n d a , João su p õ e q u e foi a g ló ria de Jesus q u e Isaías viu. Isto
n ã o c o n tra ria a s u p o siç ã o em 8,56 d e q u e A b ra ã o v iu o d ia d e Jesus
(v er n o ta ali). H á d iv e rsa s fo rm a s p o ssív e is d e in te rp re ta r isto. Se acei-
ta rm o s a s u g e stã o d e u m a citação d o ta rg u m , e n tã o a a firm a ç ão d e
q u e Isaías v iu a shekinah d e D eu s p o d e ser in te rp re ta d a à lu z d a teo-
lo g ia d e 1,14, o n d e Jesus é a shekinah d e D e u s (p. 210). A crença de
q u e Jesu s e sta v a a tiv o n o s e v e n to s d o A T é a te sta d a em IC o r 10,4,
o n d e Je su s é r e tra ta d o co m o a ro ch a q u e fo rn eceu á g u a aos israelitas
n o d e s e rto (ta m b ém J ustino, Apol. 1,63 [PG 6:424], o n d e Jesu s ap a re c e
a M o isés n a sarça a rd e n te ). N a in te rp re ta ç ã o p a trístic a p o ste rio r d e
Isaías p e n s a v a -s e q u e na a clam ação d e "S an to , sa n to , sa n to " as três
p e s so a s d iv in a s e ra m s a u d a d a s (Is 6,3), e Jesus era id en tifica d o com o
u m d o s se ra fin s q u e a p a re c e ra m com Iah w eh . O u tra in te rp re ta ç ã o
p o s s ív e l d e Jo 12,41 é q u e Isaías o lh av a p a ra o fu tu ro e v iu a v id a e
g ló ria d e Jesu s. C e rta m e n te este é o p e n s a m e n to e n c o n tra d o n a seção
d a v isã o d a Ascensão de Isaías (esta p a rte d o s ap ó crifo s é d e in sp iraç ã o
c ristã d o 2“ século). S ira q u e 48,24-25 trás q u e, p o r se u p o d e ro so esp íri-
to, Isaías p re v iu o fu tu ro e p re d is s e o q u e seria a té o fim d o s tem p o s.

Versículos 42-43: a fé tímida de alguns membros do Sinédrio

Se João in te rp re to u em term o s d e Isaías o fracasso g eral d e crer, u m a


m e n ç ã o esp ecial é d a d a aos d o S in éd rio q u e creem , p o ré m n ão profes-
sa m p u b lic a m e n te s u a fé. A d e sa p ro v a ç ã o q u e o a u to r d á d o c o m p o rta-
m e n to d e le s é tão enfática q u e c la ram e n te está refletin d o u m a b u so d e
seu p ró p rio tem p o . A m en ção d a ex c o m u n h ã o d a sin ag o g a indica qu e
os vs. 42-43 são d irig id o s aos ju d e u s no final d o l ü século q u e creem
e m Jesu s, p o ré m tem e m p ro fe ssa r e sta fé. Q u a n to à in fo rm ação d e qu e
786 O Livro d o s Sinais

Jesu s tin h a s e g u id o re s e n tre o s m e m b ro s d o S in é d rio , e m o u tro lu g a r


João fala d e N ic o d e m o s (3,1; 7,50); to d o s os e v a n g e lh o s m e n c io n a m
José d e A rim a teia , q u e era m e m b ro d o S in é d rio (M c 15,43); e Lc 18,18
m en cio n a u m jo v em m e m b ro d o S in éd rio . A t 6,7 n o s in fo rm a q u e n o s
p rim e iro s d ia s d a igreja h ie ro so lim ita n a " u m g ra n d e n ú m e ro d o s sa-
c e rd o tes e ra o b e d ie n te à fé" (ta m b é m H e b re u s p a re c e se r d irig id o aos
sa ce rd o te s c o n v e rtid o s - v e r 3,1). E sta a firm a ç ão e m João so b re as au -
to rid a d e s q u e c re ra m em Jesu s é a p e n a s u m a a p a re n te c o n tra d iç ã o d e
7,48, o n d e os farise u s n e g a m q u e a lg u n s d a s a u to rid a d e s cresse nele.
E m 12,42, o a u to r d eix a claro q u e o s farise u s n ã o tin h a m c o n h e cim e n -
to d esses cren tes.
N a p re se n te o rd en a ç ã o d o ev an g elh o , o n d e os c a p ítu lo s 1 1 1 2 ‫ ־‬p a re -
cem ter sid o an e x ad o s a o m in isté rio p ú b lico , esta av aliação d e 12,37-43
c o n stitu i o fim d o L iv ro d o s S inais - u m té rm in o u m ta n to p e ssim ista ,
p o is os sin ais d e Jesus n ã o c o n d u z ira m m u ito s à fé. T o d a v ia, e sta av a-
liação co rresp o n d e à avaliação n o final d o Livro d a G lória, e m 20,30-31,
o n d e se to rn a e v id e n te q u e o s sin a is d e Jesu s, a p e s a r d e tu d o , c o n su -
m a ra m seu p ro p ó sito . Se e ste s sin a is d e ix a ra m d e c o n v e n c e r o s ju-
d e u s, a q u i são e scrito s n o e v a n g e lh o p a ra c o n firm a r a fé d o s c ristã o s e
tra z e r v id a ao s q u e creem .
45. U M D IÁ L O G O D E JESUS U S A D O C O M O
U M R E SU M O D E S U A P R O C L A M A Ç Ã O
(12,44-50)

44Je su s p ro c la m o u e m a lta voz:


" T o d o a q u e le q u e crê e m m im ,
n a v e rd a d e e stá c re n d o n ã o e m m im ,
m a s n a q u e le q u e m e e n v io u .
45E to d o a q u e le q u e m e vê,
e s tá v e n d o A q u e le q u e m e e n v io u .
46E u v im ao m u n d o co m o lu z,
p a ra q u e , a q u e le q u e crê e m m im ,
n ã o p e rm a n e ç a n a s trevas.
47E se a lg u é m o u v e m in h a s p a la v ra s se m g u a rd á -la s,
n ã o s o u e u q u e m o c o n d e n a;
p o is e u n ã o v im p a ra c o n d e n a r o m u n d o ,
m a s p a ra s a lv a r o m u n d o .
48T o d o a q u e le q u e m e rejeita, e n ã o aceita m in h a s p a la v ra s,
já tem s e u ju iz,
a sa b er, a p a la v ra q u e e u te n h o fala d o -
é isso q u e o c o n d e n a rá n o ú ltim o d ia,
49p o r q u e e u n ã o te n h o falad o d e m im m esm o ;
n ã o , o P ai q u e m e e n v io u ,
Ele m e s m o m e m a n d o u
o q u e d iz e r e co m o falar,
50e sei q u e S eu m a n d a m e n to significa v id a e te rn a.
P o r isso , q u a n d o e u falo,
falo a ssim co m o o P ai m e d isse".
788 O Livro d o s Sinais

NOTAS

Ί 2.45. vê. Theorein (ver A pêndice 1:3, p. 794ss), um verbo que às vezes impli-
ca visão com profundidade espiritual. Cf. 14,9: "Todo aquele que me tem
visto [horan] tem visto o Pai".
47. ouve minhas palavras. Aqui, rema é o objeto do verbo "escutar, ouvir",
como tam bém em 8,47. Cerca de um as dez vezes logos ou phõnê ("voz")
servem como objeto.
sem guardá-las. Há respeitável evidência (P**1; Bezae) para om itir a negati-
va. O resultante "e guardá-las" dá um arranjo louvável ao versículo.
48. rejeita. O verbo athetein ocorre som ente aqui em João. Ele ocorre cinco
vezes em Lucas - um a de três de suas ocorrências neotestam entárias.
aceita minhas palavras. Para um a expressão sim ilar nos sinóticos, ver Mt
13,20.
já tem seu juiz. Literalmente, "tem aquele que [ou quem ] o julga". Recorda-
mos as duas nuances de significado, "julgar, condenar", no uso joanino
de krinein (ver nota sobre 3,17).
49. não tenho falado de mim mesmo. Literalm ente, "de [ek] mim m esm o"; outras
treze vezes em João a preposição usada é apo.
falado. "Eu vim " é um a variante escassam ente atestada. B ultm ann , p. 263,
pensa que, originalm ente, a prim eira linha do v. 49 corria com a última
linha do 50, e que tudo entre eles é com entário do evangelista.
50. significa. Literalmente, “é".
quando eu falo. Literalmente, "tudo o que eu falo". Cf. 8,28: "Eu só digo
aquelas coisas que o Pai me ensinou".

C O M E N T Á R IO

O d isc u rso q u e Jesu s a p re s e n ta n e ste s v e rsíc u lo s e v id e n te m e n te não


se ach a em seu c o n tex to o rig in al; p o is, v isto q u e Je su s sa íra e m busca
d e refú g io (7,36), este d isc u rso carece d e a u d itó rio o u cen ário . Um a
so lu ção , a d o ta d a p o r Bernard e o u tro s, foi a d e tra n s fe rir os vs. 44-50
p a ra u m lu g a r e n tre 12,36a e 36b. Bultmann v ê 44-50 co m o p a rte de
u m lo n g o d isc u rso so b re a lu z q u e co n siste d e 8,12; 12,44-50; 8,21-29;
12,34-36; 10,19-21. N ã o h á n e c e ssid a d e d e d iz e r q u e n ã o h á p ro v a real
p a ra estas p ro p o sta s e n g e n h o sa s. Boismard, "L e c a ra c tè re " , ressalta
q u e este d isc u rs o p o ssu i a lg u m a s p e c u lia rid a d e s e m e stilo (v er a res-
p ectiv a n o ta) e su g e re q u e esta p a ssa g e m d e m a te ria l jo a n in o p odería
45 · U m d iálog o d e Jesus u sa d o corno um resu m o d e sua proclam ação 789

te r tid o s u a p ró p ria h istó ria d e tra n sm issã o . O fato d e q u e 12,46-48 é


m u itís s im o s e m e lh a n te a 3,16-19 (ver s u p ra , p . 355) to rn a b e m p lau sí-
vel q u e , e m p a rte , 12,44-50 é u m a v a ria n te d e m a te ria l e n c o n tra d o em
o u tro lu g a r e m João, p o ré m p re s e rv a d o p o r u m d isc íp u lo d iferen te.
N a re d a ç ã o final d o e v a n g e lh o , este d isc u rso in d e p e n d e n te p ro v áv e l-
m e n te fosse a c re sc e n ta d o o n d e c a u sa ria m e n o s d e sa rra n jo (ch eg am o s
a u m a so lu ç ã o s im ila r p a ra 3,31-36). R ealm en te, o c ritério d o re d a to r
e ra b o m , p o is e ste p e q u e n o d isc u rso , q u e a g o ra v e m n o final d o Livro
d o s S in ais, re s u m e com p rec isão a m e n sa g e m d e Jesus.
A s c lá u s u la s n o s vs. 44 e 45 fo rm a m u m p a r m u ito estreito: crer
e m Je su s é c re r n a q u e le q u e e n v io u Jesus; ver Jesu s é v e r A q u ele q u e
e n v io u Jesus. D e sc o b rirem o s a in d a u m a terceira a firm a ç ão com o
m e s m o p ro p ó s ito e m 13,20 (v ersícu lo e s tra n h a m e n te fora d e lugar):
" Q u e m q u e r q u e receb e a lg u é m q u e e u en v io , a m im m e recebe; e
todo 0 que recebe [lambanein] a mim, recebe Aquele que me enviou". H á
p o u c a d ife re n ç a n e sta s três afirm açõ es, já q u e c re r em , v e r e receb er
Je su s sã o to d a s , b a sic a m e n te , a m e sm a ação. H á a in d a o u tra fo rm a d a
a firm a ç ã o em M t 10,40: " Q u e m v o s recebe, a m im m e recebe; e to d o
a q u e le q u e receb e [dechesthai] a m im , receb e A q u e le q u e m e e n v io u
[apostellein - Jo ão u sa pempein]". V isto q u e este p a ra le lo m a te a n o é
m a is e s tre ito com Jo 13,20, re se rv a re m o s c o m e n tá rio d e ta lh a d o até ali
(v er V ol. 2); m a s d e v e m o s te r e m m e n te q u e já v im o s q u e M t 10,38-39
é p a ra le lo d e Jo 12,25-26.
T e n d o e n fa tiz a d o su a ín tim a relação com o Pai, Jesu s v o lta a fa-
la r n o s vs. 46ss. d e su a m issã o e n tre os h o m en s. M u ito d o q u e tem o s
d ito co m referên cia ao s v e rsíc u lo s e s tre ita m e n te p a ra le lo s em 3,16-19
é a p lic áv e l aq u i. Se o v. 46 su s te n ta a o ferta d e lu z ao s q u e creem em
Jesu s, 47-48 a p lic a m ao s q u e n ã o g u a rd a m o u aceitam su a s p a la v ra s e,
a ssim , o rejeitam . A c o n d e n a ç ã o n o v. 47 d o s q u e o u v e m as p a la v ra s
d e Je su s (akouein co m o g e n itiv o , o q u a l u s u a lm e n te im p lica e n te n d e r)
e to d a v ia n ã o as g u a rd a m (phylassein) lem b ra a crítica em M t 7,26 d e
"o q u e o u v e [akouein co m o a c u sa tiv o ] e sta s m in h a s p a la v ra s e n ã o as
p ra tic a m " . V er ta m b é m Tg 1,22. O " g u a r d a r" jo a n in o re a lm e n te n ã o é
d ife re n te d o " fa z e r" m a te a n o , p o sto q u e a m b o s os v e rb o s significam
o b s e rv a r (cf. o u so d e phylassein e m M c 10,20 p a ra o b se rv a r os D ez
M a n d a m e n to s ; o h e b ra ic o smr te m a m e sm a g a m a d e significado).
Se h á u m p a ra le lo m a te a n o p a ra a p rim e ira p a rte d e Jo 12,47, há u m
p a ra le lo p a ra a s e g u n d a p a rte d e 47 e m a lg u n s m a n u sc rito s d e Lc 9,56:
790 O Livro d o s Sinais

"P o is o F ilho d o H o m e m n ã o v eio p a ra d e s tru ir as a lm a s d o s h om ens,


e sim p a ra salv á-las".
R e ssa lta m o s n a re sp e c tiv a n o ta o c a rá te r lu c a n o d o v e rb o "re-
je ita r" q u e a p a re c e n o v. 48; p o r e x e m p lo , Lc 10,16: " T o d o o que
m e rejeita, rejeita ta m b é m A q u e le q u e m e e n v io u " . E ste é o equi-
v a le n te lu c a n o d e M t 10,40, c ita d o a c im a c o m o u m p a ra le lo d e Jo
12,44-45. A ssim , n e ste d isc u rs o tip ic a m e n te jo a n in o h á m u ito s di-
to s in d iv id u a is co m p a ra le lo s sin ó tico s. O u tr o fato d o v. 48 é que
ele tem e le m e n to s ta n to d a e sc a to lo g ia re a liz a d a c o m o d a final.
A e sca to lo g ia re a liz a d a a p a re c e n a p r im e ira p a rte d o v e rs íc u lo que
d e c la ra q u e to d o o q u e rejeita Je su s e n ã o a c eita s u a s p a la v r a s é jul-
g a d o p e la p a la v ra q u e Je su s te m fa la d o . Isto fo rm a u m in te re ssa n te
c o n tra s te co m a e sc a to lo g ia fin a l d o q u e é d ito e m M c 8,38 (Lc 9,26):
" T o d o o q u e se e n v e rg o n h a d e m im e d e m in h a s p a la v ra s ... tam b ém
o F ilh o d o H o m e m se e n v e rg o n h a rá d e le q u a n d o v ie r n a g ló ria de
se u P ai co m o s s a n to s a n jo s" . M as a e sc a to lo g ia fin a l a p a re c e em
Jo 12,48 n a re fe rê n c ia a o ú ltim o d ia n a ú ltim a lin h a d o v e rs íc u lo (o que
B ultmann , p . 2627, n a tu r a lm e n te a tr ib u i a o R e d a to r eclesiástico).
D ev e-se n o ta r q u e a ú ltim a p a rte d o v. 48 é o fe re c id a c o m o um a
ex p lic aç ã o d a p rim e ira p a rte - isso in d ic a q u e n a é p o c a d o N T não
se e sta b e le c ia u m a o p o siç ã o tã o n ítid a co m o a g o ra e n tre escato lo g ia
fin al e e sc a to lo g ia re a liz a d a .
N o s vs. 48ss. te m o s m u ito s ecos d e D e u te ro n ô m io , c o m o já foi
s a lie n ta d o p o r M . J. O 'C onnell , "The Concept of Commandment in the
Old Testament", TS 21 (1960), 352. (V im os ta m b é m e m 12,37 sim ila-
r id a d e s co m D e u te ro n ô m io ). N a tu ra lm e n te , o p e n s a m e n to d e que
D eu s p u n irá o fracasso d e Seu p o v o e m o u v ir as p a la v ra s d e Seu
m e n s a g e iro é m u ito a n tig o . E m p a rtic u la r, p o ré m , c h a m a m o s a aten-
ção p a ra D t 18,18-19, o n d e D e u s fala d o P ro feta-co m o -M o isés: " Eis
lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei minhas
palavras em sua boca, e ele lhes falará tudo 0 que eu lhe ordenar. E será que
qualquer que não ouvir minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu 0
requerei dele". P o d e m o s n o ta r v á rio s p o n to s d e c o m p a ra ç ã o e n tre João
e D e u te ro n ô m io , s e g u in d o Boismard, "L es c ita tio n s". N o s vs. 47-48,
João u sa os v e rb o s " o u v ir" e " a c e ita r" p a ra d e sc re v e r a rea ç ã o qu e os
o u v in te s te ria m a n te s as p a la v ra s d e Jesus. O TM d e D eu tero n ô m io
tem o v e rb o " o u v ir, e sc u ta r" , e n q u a n to o ta rg u m a ra m a ic o (pseudo-
Jô n atas) tem o v e rb o q ebal, q u e significa ta n to " a c e ita r" co m o "ouvir".
45 · U m d iálogo d e Jesus u sad o com o u m resum o d e sua proclam ação 791

(Boismard u s a ria isto co m o o u tra p ro v a d e q u e João cita ta rg u n s, m as


a e v id ê n c ia a q u i é tên u e). N o s vs. 47-48, João u sa rem a p a ra " p a la v ra "
(v er n o ta) c o m o faz a LXX n o texto d e D e u te ro n ô m io . A p a ssa g e m em
D e u te ro n ô m io ta m b é m p a re c e e sta r refletid a n o s vs. 49-50. D e u s p o rá
s u a s p a la v ra s n a b oca d o P ro feta-co m o -M o isés; se m e lh a n te m e n te ,
Je su s n ã o fala d e in iciativ a p ró p ria , m as so m e n te o q u e o Pai lhe tem
o r d e n a d o falar. U m a v ez m ais, o tem a d e ordenar p e rc o rre a m b a s as
p a s sa g e n s . N o TM d e D e u te ro n ô m io , é D eu s q u e m to m a v in g a n ç a so-
b re o h o m e m q u e rec u sa o u v ir; n o s ta rg u n s (Neofiti l, Pseudo-Jônatas),
é a memra o u p a la v ra d e D eu s q u e to m a v in g an ç a . A ú ltim a [alterna-
tiva] o ferece u m p a ra le lo com João (48), o n d e a p a la v ra q u e Jesus tem
fa la d o é o a g e n te d e c o n d e n aç ã o .
N e m to d o s os p a ra le lo s d e D e u te ro n ô m io estã o c e n tra d o s em
D t 18,18-19. A liás, e s te m e s m o p e n s a m e n to d e q u e as p a la v r a s d e
J e s u s c o n d e n a r ã o o s q u e re c u s a m a c e itá -la s se a s se m e lh a m u ito
c o m a s p a s s a g e n s em D e u te ro n ô m io (31,19.26), o n d e M o isé s d iz
q u e s u a s p a la v r a s e leis s e rã o te s te m u n h a s c o n tra o p o v o , se fize-
re m o m a l. Isto é e s p e c ia lm e n te in te r e s s a n te , se tiv e rm o s e m m e n te
q u e Jo 5,45, o q u a l d iss e q u e M o isé s a c u s a ria o s ju d e u s p o r n ã o
c re re m e m Je su s.
Em Jo 12,49-50, a ên fase so b re o m a n d a m e n to q u e Jesus tem rece-
b id o d o Pai se to rn a m u ito forte. Este m a n d a m e n to (ver A p ên d ice 1:5,
p. 794ss) afeta n ã o só o q u e Jesu s tem fa la d o (v. 49), m a s ta m b é m su a s
açõ es, p o is 10,18 falou d e u m a o rd e m d o P ai e m relação à m o rte e res-
s u rre iç ã o d e Jesu s. N a tu ra lm e n te , esta o rd e m n ã o é im p o sta a Jesus
d e fora; é a p e n a s o u tra face d o tem a se m p re re p e tid o d e q u e Jesus e o
Pai tê m a m e sm a v o n ta d e (5,30; 6,38). E este m a n d a m e n to q u e Jesus
te m re c e b id o d o Pai afeta os h o m en s. C o m o 12,50 d eix a claro, ele en-
v o lv e v id a e te rn a p a ra os h o m en s; e isto é p o rq u e as p a la v ra s e feitos
d e Je su s q u e o m a n d a m e n to o rie n ta são em si m esm o s a fonte d e v id a
e te rn a (6,68; 10,10). A q u i ta m b é m e sta m o s n a a tm o sfe ra d e D eute-
ro n ô m io , o n d e " m a n d a m e n to " estab elece o p a d rã o p e lo q u a l Israel
d e v e c u m p rir su a v o cação co m o o sa n to p o v o d e D eus. D t 32,46-47
d iz q u e o m a n d a m e n to d e D e u s d a d o a tra v é s d e M oisés é u m p rin cí-
p io d e v id a p a ra o p o v o ; o h o m e m v iv e d e to d a p a la v ra q u e p ro c e d e
d a b o ca d e D e u s (D t 8,3). E n c o n tra m o s ta m b é m n o s sin ó tico s u m eco
d a rela çã o d o m a n d a m e n to d iv in o com a v id a . E m Lc 10,25-28, q u a n -
d o u m escrib a p e rg u n ta a Jesu s o q u e d e v e ria fazer p a ra h e rd a r a v id a
792 O Livro d o s Sinais

e te rn a , ele é in fo rm a d o q u e, se g u a rd a r o m a n d a m e n to d e D e u s escri-
to n a Lei, e n tã o v iv erá.
E n tre tan to , e m João fica m u ito claro q u e o m a n d a m e n to d e D eus
q u e sig n ifica v id a e te rn a é m ais q u e o m a n d a m e n to d o AT. É a p a la v ra
d e D eu s falad a a tra v é s d e Jesus, q u e a g o ra re s u m e as o b rig a ç õ es que
d a a lian ça se d e riv a m p a ra o c ren te. E m 5,39, Jesu s c ritic o u a ineficácia
d o s ju d e u s d e b u sc a r as E sc ritu ra s d o AT, n a s q u a is c o n c lu íra m que
tin h a m a v id a e te rn a. A g o ra Jesu s e x p re ssa d e u m a m a n e ira p o sitiv a
q u e é e m s u a p a la v ra q u e os h o m e n s têm a v id a e te rn a . E a ssim , a seu
p ró p rio m o d o , este b re v e d isc u rso d e Jesu s, p o sto co m o u m a afirm a-
ção s u m a ria d a n o final d o m in isté rio p ú b lic o , é a fo rm a c ristã d o que
M oisés p ro c la m o u " q u a n d o te rm in o u d e fala r to d a s e sta s p a la v ra s a
Israel" (D t 32,45-47):

Aplicai vosso coração a todas as p alav ras q u e hoje testifico contra vós,
p a ra q u e as re c o m e n d e is a v o sso s filhos,
p a ra q u e te n h a m c u id a d o d e c u m p rir
to d a s as p a la v ra s d e sta lei.
P o rq u e esta p a la v ra n ã o v o s é vã,
a n te s é a v o ssa v id a;
e p o r esta m esm a p a la v ra
p ro lo n g a re is os d ia s n a te rra a q u a l,
p a s s a n d o o Jo rd ã o , id es a p o ssu ir.

BIBLIOGRAFIA

BOISMARD, M.-E., "Le caractère adventice de Jo., XII, 45-50", SacPag, II,
p p . 188-92.
__________ "Les citations targumiques dans le quatrièrne évangilc", RB 66
(1959), especialm ente p p. 376-78 sobre 12,48-49.
APÊNDICES
APÊNDICE I: VOCABULÁRIO JOANINO

Aqui, nosso propósito não é abarcar todas as palavras im portantes para o


pensam ento joanino, nem tratar com profundidade as implicações teológicas
do vocabulário joanino. Tal investigação constituiría em si m esm a um livro.
Antes, selecionamos um as poucas palavras dentre as mais cruciais, cuja impli-
cação joanina peculiar deve ser entendida caso alguém queira com preender
João, e as temos discutido com m uita brevidade para fam iliarizar o leitor com
os problem as envolvidos. Em outros termos, este apêndice é um a introdução
ao vocabulário joanino e suas ramificações teológicas. Para leitura adicional,
consulte obras como: E. A. A bbott, Johannine Vocabulary (Londres: Black, 1905),
e E. K. L he, The Religious Thought of St. John (Londres: SPCK, 1950).
As seguintes palavras são tratadas neste apêndice:
(1) agape, agapan; philein = "am or" ("am ado", "am igo")
(2) alêtheia, alêthês, alêthinos = "verdade", "verdadeiro", "real" ("legí-
timo", "válido")
(3) blepein; theasthai; théõrein; idein; horan - "ver" ("avistar", "olhar")
(4) doxa = "glória", "honra"
(5) entolê = "ordem ", "m andam ento"
(6) z õ ê - "vida" (eterna)
(7) kosmos = "m undo"
(8) menein = "perm anecer", "ficar em ", "m orar", "habitar em "
(9) pisteuein = "crer" ("ter fé", "vir à fé", "confiar") - com um a nota
sobre eidenai e ginõskein = "conhecer", "com preender"
(10) phõs; skotia = "luz"; "trevas"
(11) hõra= "hora"

(1) agape, agapan; philein = "am or" ("am ado", "am igo")

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinótico João João Apocalipse Joanino NT
agapan 26 36 31 4 71 141
agape 2 7 21 2 30 116
philein 8 13 2 15 25
A p ê n d ic e I: V ocab ulário jo a n in o 795

E m uito óbvio que João prefere o uso de verbos para expressar o concei-
to de "am ar"; e, em particular, prefere agapan a philein. A m édia do uso no
Evangelho do verbo agapan ao substantivo agape é especialm ente interes-
sante quando contrastado com o uso paulino que dá mais ênfase ao subs-
tantivo (75 vezes contra 33 para o verbo). O conceito que João tem de am or
parece d ar m ais ênfase ao elem ento ativo.
Acaso agapan e philein são sinônimos? Em seu famoso Synonyms of the New
Testament, T rench estabelece um a distinção entre os dois. Agapan (= diligere na
Vulgata) significa am or forte, mas ao mesmo é reverente e ponderado; philein
(= amare na Vulgata) se refere ao am or mais forte e íntimo. Assim, segundo
T rench, em Jo 21,15-17, Jesus pergunta a Pedro duas vezes: "Tu me amas
[agapan]?" Pedro, porém , em sua resposta, continua insistindo que ama
(philein) Jesus mais intim am ente. Q uando Jesus pergunta a Pedro, pela ter-
ceira vez, "Tu m e am as [philein]?", ele está adm itindo a alegação de Pedro de
ardente afeição. No entanto, W estcott, em bora tam bém distinga os dois ver-
bos, interpreta a cena de outra m aneira. Em sua visão, Pedro responde em
term os de philein porque não se atreve a alegar que atingira o mais elevado
am or de agapan. Evans, art. cit., pensa que o verbo agapan implica certa supe-
rioridade, pois conota o relato de um superior a um inferior. Em sua visão,
a recusa d e Pedro de usar agapan é um a expressão de hum ildade. (Natural-
m ente, visto que a diferenciação está no grego, estes escritores na verdade
estão discutindo a m entalidade do autor m ais que a das figuras históricas na
cena). Assim, m esm o os que distinguem os dois verbos não estão de acordo
sobre qual deles expressa a forma mais elevada de amor.
Em anos recentes, tem-se posto mais ênfase sobre agapan, desde que A nders
N ygren escreveu seu m agistral Agapê e Eros. N ygren enaltece agapê como o
único am or que é possível através de Jesus - am or espontâneo, imerecido,
criador, que abre a via para a com unhão com Deus e o fluxo de Deus para o
cristão e do cristão para seu semelhante. Spicq, art. cit., pensa no agapan-agapê
joanino como representante de um am or constante, generoso e fecundo. E um
am or incansável até que se revele, como na afirmação: "Deus am ou [agapan]
o m u ndo de tal m aneira que deu seu Filho unigênito" (Jo 3,16; ljo 4,9). E em
Jesus este am or alcança seu auge de eficácia em m orrer e ressuscitar pelos
homens: "como havia am ado os seus que estavam no m undo, amou-os até o
fim" (13,1). E o am or que chega ao ponto de enfrentar a m orte (15,13). Assim,
toda a relação salvífica de Deus com os hom ens pode ser expressa pela afir-
mação: "D eus é am or" (ljo 4,8.16). O cristão ideal é apresentado em termos
de am or através da figura do Discípulo Amado.
Teorias como a de Spicq são m uito atraentes; m as é preciso reconhecer
que um cuidadoso estudo dos usos joaninos de agapan e philein m ostra que
os verbos às vezes são usados intercam biavelm ente, de m odo que estudiosos
796 A p ê n d ic e s

como Bernard, Bultmann e Barrett não estão absolutam ente convencidos


de que os verbos não são sinônimos. (Podemos insistir ainda que a LXX usa
ambos os verbos para traduzir o hebraico 'ãhêb). Podem os citar os seguintes
exemplos de intercam biabilidade:
• o Pai am a o Filho: agapan em 3,35; philein em 5,20.
• o Pai ama os discípulos porque eles am am a Jesus: agapan duas vezes
em 14,23; philein duas vezes em 16,27.
• Jesus ama a Lázaro: agapan em 11,5; philein em 11,3.
• há um discípulo especial a quem Jesus ama: agapan em 13,23; philein
em 20,2.
• os cristãos são referidos como agapêtoi, "am ados", em 3Jo 2.5,11; são
cham ados philoi, "am igos", em 3Jo 15 (duas vezes).
Não é im possível que a variação nestes exem plos possam algum as ve-
zes representar diferentes tendências no m aterial joanino ou diferentes
estágios na redação joanina. Mas, certam ente não parece haver qualquer
diferença significativa quanto ao sentido. Bernard, II, pp. 702-4, exam ina
Jo 21,15-17 e não encontra nenhum a reciprocidade que T rench encontra.
Tam bém se pode notar que agapan não se refere necessariam ente ao am or
sublim e, pois ele pode ser usado para descrever um a preferência pelas tre-
vas (Jo 3,19) e pelo louvor hum ano (12,43). Philein, de m aneira sem elhante,
é usado para o am or egoísta que alguém tem pela própria vida (12,25) e por
seu próprio am or pelo m undo (15,19). Assim, devem os ser m uito cuidado-
sos em perscrutar generalizações concernentes ao uso e à diferença destes
verbos em João. O fato de haver tanto paralelism o sinoním ico na poesia
hebraica parece ter criado quase um a predisposição para o em prego de
sinônim os intercam biáveis.

BIBIOGRAFIA

BARROSSE, T., "The Relationship of Love to Faith in St. John", TS 18 (1957),


538-59.
CERFAUX, L., "La charité fraternelle et le retour du Christ (Jo., xiii 33-38)", ETL
24 (1948), 321-32. RecLC, II, pp. 27-40.
EVANS, T. E., "The Verb 'agapan' in the Fourth Gospel", SFG, pp. 64-71.
SPICQ, C , "Notes d'exégèse johannique. La charité est amour manifeste", RB 65
(1958), 358-70.
__________ Agape (Paris: Gabalda, 1959), especialmente ΙΠ, pp. 111-357 sobre
os escritos joaninos.
Sustar, A., “De caritate apud Joannem", VD 28 (1950), 110-19,129-40,193-213,
257-70, 321-40.
A p ê n d ic e I: V ocab ulário joan in o 797

(2) aletheia, alethes, alethinos = "verdade",


"verdadeiro", "real" ("legítim o", "válido")

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinótico João João Apocalipse Joanino NT
aletheia 7 25 20 45 109
alêthês 2 14 3 17 26
alethinos 1 9 4 10 23 28

Evidentem ente, estes são term os joaninos favoritos, e os adjetivos são


quase exclusivam ente de João.
Bultmann, TWNTE, I, p. 232ss., e Dodd, Interpretation, p. 170ss., distin-
guem criteriosam ente entre um conceito hebraico de verdade e o conceito
grego. No hebraico do AT, ’emet se relaciona com a raiz 'mn, "ser firme,
sólido"; e assim 'emet é a solidez essencial de um a coisa, ou aquilo que a faz
fidedigna ou confiável. Deus é absolutam ente verdadeiro neste sentido de
ser digno de confiança e de ser fiel às suas promessas. As palavras são verda-
deiras se são solidam ente fundam entadas. A vida de um hom em é verdadei-
ra se é fiel aos cam inhos de Deus. Assim, há um elem ento moral no conceito
hebraico de "verdade". O grego aletheia tem o significado básico de não
ocultar; descreve o que não é velado. Assim, a verdade é um fato ou um esta-
do de ocorrências à m edida que é visto ou expresso; e, para o grego, verdade
e realidade estão estreitam ente relacionadas. Em particular, em um sistema
platônico de pensam ento, "verdade" descreve o m undo de realidade última
em contraste com o m undo das sombras. Em F ilo, o term o se relaciona com
a gnosis. O conceito grego, pois, é mais intelectual do que moral. Embora a
LXX use aletheia para traduzir 'emet, algum as vezes os tradutores viam ser
aprop riad o em pregar pistis, "fé", "fidelidade", como sendo mais aproxima-
do ao significado de 'emet.
Ambos, D odd e Bultmann, m antêm que o uso joanino de "verdade" é
m ais próxim o à ideia grega. Bultmann, TWNTE, I, p. 245, diz que em João
aletheia denota "realidade divina" e isto pode relacionar-se ao dualism o
grego. Visto, porém , que esta realidade divina é revelada aos hom ens e ofe-
rece a possibilidade de vida, o uso joanino de "verdade" é mais próxim o ao
m ito gnóstico do redentor. Dodd, p. 177, diz: "o uso do term o aletheia, neste
evangelho, repousa sobre o uso helenista com um em que paira entre os sig-
nificados de 'realidade', ou 'a realidade últim a', e 'conhecim ento do real'".
Ao avaliar esta alegação, devem os notar que todos reconhecem que algu-
m as passagens em João refletem o uso hebraico. Na nota sobre 1,14, vimos
que charts e aletheia ecoam a frase veterotestam entária que envolve hesed
798 A p ê n d ic e s

e 'emet. Expressões como "age em verdade" (ver nota sobre 3,21; também
ljo 1,6) e "andar na verdade" (2Jo 4; 3Jo 3) refletem o uso hebraico. O pró-
prio Dodd (pp. 17475‫ )־‬aponta para paralelos do AT com Jo 4,23-24 e 17,17.
O pano de fundo semítico tem sido grandem ente am pliado pelas desco-
bertas de Qum ran; e, como verem os no Apêndice V (no vol. 2), estes rolos
nos dão os prim eiros exemplos extra joaninos de "o espírito da verdade"
(Jo 14,17; 15,26; 16,13; ver com entário sobre 4,24).
Levando em conta estas passagens, nos convém agora perguntar se o uso
joanino mais característico de aletheia para realidade celestial é um reflexo
de influência helenista direta. D e la P otterie, “L'arrière-fond", tem argu-
m entado insistentem ente contra a tese de D odd e Bultmann. Ele indica que,
enquanto na literatura apocalíptica e sapiencial do AT "verdade" costum a
referir-se sim plesm ente ao estado coração e com portam ento m oral corre-
to, "verdade" tam bém serve como sinônim o de sabedoria. Pr 23,23 coloca o
m andam ento de com prar a verdade em paralelism o com o m andam ento de
com prar a sabedoria; em Eclo 4,28 o sábio diz a seus discípulos que lutem
até a m orte pela verdade. Além do mais, "verdade" é associada com "misté-
rio" ou o plano oculto divino da salvação, de m odo que conhecer a verdade
equivale a conhecer os planos de Deus (Sb 6,22). O "livro da verdade", em
Dn 10,21, é um livro em que estão registrados os desígnios de Deus para os
tem pos da salvação. Sb 3,9 prom ete aos que confiam em Iahweh um enten-
dim ento da verdade. Também em Q um ran, além de um tom m oral, "verda-
de" está vinculada com mistérios. "O m istério [su>d] da verdade" aparecem
(1QH 1,26-27,10,4-5,11,4) como fazem "os mistérios \rzy\ de Sua Sabedoria"
(lQ pH ab 7,8). O salmista de Q um ran (1QH 7,26-27) agradece a Deus porque,
"Tu me tens dado um a com preensão de tua verdade e me tens feito conhecer
teus m aravilhosos mistérios". A equação de v erdade com sabedoria e misté-
rios significa que no pano de fundo semítico do NT há um a tensão em que
a verdade se refere à realidade celestial como faz a sabedoria. Não é preciso
que avancemos para além deste pano de fundo semítico para descobrir a
verdade usada em referência ao plano divino da salvação que é revelado
aos homens.
Assim, D e la Potterie pensa que m uitas das passagens joaninas que Dodd
e Bultmann relacionam a um pano de fundo grego ou gnóstico realm ente
são herdeiras da associação apocalíptica e sapiencial da verdade com sabe-
doria e mistérios. Por exemplo, Jo 17,17 diz: "A tua palavra é a verdade";
a expressão "palavra de verdade" ocorre nas passagens sapienciais do AT,
p. ex., SI 119,43; Ecl 12,10. No am biente joanino, a verdade não é vista por
meio de contem plação, como é no helenista, m as é ouvida (Jo 8,40). No AT, a
Sabedoria fala aos hom ens, e Deus ou os anjos falam m istérios aos hom ens,
para que os hom ens escutem a verdade.
A p ê n d ic e I: V ocab u lário joan in o 7 99

B lank , art. cit., m antém que o aspecto essencial da verdade, em joão, é


que ela é associada com o revelador. A afirmação de que Jesus é a verdade
(14,6) pode m uito bem ser um reflexo do tema de que Jesus é a Sabedoria
encarnada (Introdução VIII:D). Além do mais, se tivermos em m ente que no
pensam ento paulino Jesus é a expressão do mistério, i.e., o m isterioso plano
divino da salvação (Cl 1,27; Ef 3,4), a identificação joanina de Jesus como a
verdade podería refletir um a herança que une m istério e verdade. Portanto,
no geral pensam os que a teoria de D l: i.a P otterie merece consideração. Ela
se adequa m uito bem com nossa tese de que a influência prim ária sobre João
foi o judaísm o, e não o pensam ento helenista ou gnóstico (Introdução, IV).
Devem os com entar ainda, sucintam ente, sobre o uso joanino dos dois
adjetivos, alêthês e alêthinos. A lêthinos implica exclusividade no sentido de
"o único real", quando com parado com o suposto ou pseudo. Ele é usado em
um contraste entre o celestial e o terreno, ou entre a realidade do NT e o tipo
do AT. Assim, em 1,9, Jesus é a verdadeira luz, enquanto o Batista não o é.
Em 6,32, a revelação de Jesus é o verdadeiro pão do céu, quando contrastado
com o m aná no deserto que as m ultidões pensam ser o pão do céu. Em 15,1,
Jesus, e não o Israel do AT, é a videira verdadeira.
A lêthês significa "verdadeiro, a despeito das aparências", e não implica
necessariam ente um contraste com algo suposto. Assim, em 6,55, a despeito
das aparências, a carne de Jesus é realm ente comida. No sentido de "fiel",
"autêntico", alêthês é aplicado ao testem unho que contém afirmações difí-
ceis de crer (10,4; 19,35; 21,24). Em 5,32 e 7,14, somos inform ados que o tes-
tem unho de Jesus é verdadeiro, a despeito da circunstância de que ele é sua
própria testem unha.

BIBLIOGRAFIA

BLANK, J., ,'Der johanneische Wahrheits-Begriff", BZ 7 (1963), 164-73.


DE LA POTTEIRE, I., "L'arriere-fond du thème johannicjue de vérité”, StEv, I,
pp. 277-94.
__________ "La verità in S. Giovanni", RivBib 11 (1963), 3-24.

(3) blepein; theasthai; theorem·, idein; horan = "ver"


("avistar", "olhar para", "notar", "observar")

Cinco verbos são usados em João para expressar visão [óticaj, m as é di-
fícil decidir quantas destas form as representam verbos distintos no pensa-
m ento do evangelista. Blepein é usado som ente no futuro e no perfeito; idein
(eidon) é usado som ente no aoristo. Podería se pensar que estes três verbos
80 0 A p ê n d ic e s

estejam proporcionando expressões de tem po diferente do único conceito


de "ver"? A maioria dos autores reconhece que ao m enos horan e idein repre-
sentam a mesma ideia.

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1, 2, 3 Total
João João Apocalipse NT
blepein 17 1 13
theasthai 6 3 22
theorem 24 1 2 58
idein feidon] 36 3 56
horan 31 8 7 114

Somente com os verbos indicados, o em prego joanino representa um a


im portante porcentagem do em prego do NT.
Na tradução, não temos feito nenhum a tentativa de descobrir um ver-
bo português diferente que corresponda a cada um destes verbos gregos.
Entretanto, P hillips, art. cit., seguindo A bbott, Vocabulary, § 1597-1611, pen-
sa que se pode estabelecer para cada verbo um a gam a mais consistente de
significado. Com eçando da forma mais m aterial de ver e prosseguir rum o
à forma mais elevada de percepção, ele organizaria os verbos gregos assim:
blepein, theorem, horan {idein), theasthai; o últim o verbo seria seguido por
pisteuein, "crer", verbo que descreve o conhecim ento pleno da realidade
que é a verdade celeste. Vejamos o significado sugerido para cada verbo.
(a) blepein. Ambos, A bbott e P hillips, caracterizam este como o verbo que
significa a visão ocular ou material. Ele é usado no capítulo 9 para descrever
a cura da vista ao cego. Em 13,22, os discípulos olham uns para os outros
confusos; em 20,1, Maria vê que a pedra fora rem ovida do túm ulo (tam bém
21,9). Assim, em m uitos casos, blepein não tem um significado especial.
C ontudo, em 9,39 blepein assum e um a dim ensão espiritual: Jesus veio ao
m undo para juízo: "a fim de que os que não enxergam , vejam". Aqui o Evan-
gelho está falando de visão espiritual; todavia, o verbo podería ter sido esco-
lhido a m odo de contraste com seu uso para visão física por todo o capítulo.
Em 5,19, blepein é usado para a própria forma exaltada da visão, a saber, o
Filho vendo o que o Pai está fazendo. Assim, há exceções na tese de P hillips
de que blepein é o verbo inferior da visão na escala de verbos.
(b) theorem. Segundo P hillips e A bbott, isto significa visualizar com con-
centração, atentar bem. Implica mais gasto de tem po do que blepein. Esta
maior intensidade de visão acarreta certa profundidade de com preensão,
mas não em grau extraordinário. Esta interpretação de theorem parece vá-
lida para um núm ero de casos em que o verbo é usado para descrever a
A p ê n d ic e I: V ocab ulário joan in o 801

visão de sinais - um a visão que leva à aceitação de Jesus como um operador


de prodígio ou um hom em m aravilhoso, m as que não constitui fé plena.
(Ver Ap. III). O bviam ente, Jesus não fica satisfeito com a fé que nasce do ver
(theorem ) em 2,23; 4,19; 6,2. Em 6,19 fica claro que ver Jesus sobre as águas
não leva à com preensão verdadeira.
Todavia, há outros casos em que theorem parece representar a visão mais
p ro fu n d a e m ais perceptiva. Este verbo é usado em 6,40, o qual prom ete vida
eterna a todos os que buscam o Filho e creem nele. Em 17,24, ele é usado para
a visão plena da glória de Jesus, presum ivelm ente no céu.
Todavia, em outros casos, theorem parece significar não mais que visão
física, em grande m edida como blepein. Em 20,12, Maria observa os dois an-
jos junto ao túm ulo, e em 20,14 ela vê Jesus em pé ali - m as em nenhum dos
casos se p ro d u z um a visão espiritual. Que o m undo não pode ver o Parácleto
(14,17) é um a incapacidade que provém particularm ente da invisibilidade
física do Espírito. Ver tam bém ljo 3,17.
(c) horan, juntam ente com idein. Tem-se sugerido que estes verbos descre-
vem visão acom panhada de com preensão genuína. P hillips sugere a tradu-
ção "percebe", pois está envolvida inteligência intuitiva. Alega-se que estes
verbos são usados para ver o Jesus ressurreto onde o resultado é a fé verda-
deira (20,8.25). Um exemplo é a afirmação na últim a ceia (16,16): "Um pouco,
e não m e vereis [theorem = visão física]; e outra vez um pouco, e me vereis
[horan, i.e., com os olhos da fé após a ressurreição]". Temos outros bons
exem plos de visão perceptiva em 1,50.51; 3,11.32; 11,40; 14,7.9; 19,35.37;
20,29. A prim eira vista, outro exemplo pode ser 1,34, o qual usa horan para
descrever como o Batista viu o Espírito descer sobre Jesus; mas, quase a mes-
ma afirm ação se encontra em 1,32, o qual usa theasthai. Seriam estes verbos
apenas sinônim os em diferentes redações da m esm a cena?
Além do mais, há claros exemplos em que horan é usado para visão sem
qualquer percepção real. Em 4,45, ele é usado para ver sinais e reconhecer
Jesus como operador de prodígio (= theorem). Em 6,36 indica-se percepção
ainda m enor. Idein (eidon) é usado para visão m eram ente física em 1,39; 5,6;
6,22.24; 7,52; 12,9; ljo 5,16; 3Jo 14. E usado para um a visão inadequada dos
sinais (= theorem) em 4,48; 6,14.30.
(d) theasthai. A raiz do significado deste verbo sugere conexão com o tea-
tro, e assim A bbott, Vocabulary, § 1604, o traduz por "contem plar". P hillips
pensa que ele significa visualizar algum espetáculo dram ático e em certa
m edida tom ar-se parte dele. Este significado pode ser assim em 1,14, "temos
visto sua glória"; e talvez em 4,35, "vede os campos; estão m aduros para
a ceifa". Em ljo 1,1 parece haver um a progressão de horan para theasthai:
"O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos [horan] com
nossos olhos, o que temos contem plado [theasthai]".
80 2 A p ê n d ic e s

Todavia, em outros casos como 1,38 e 6,5, theasthai parece referir-se à


mera visão física. Em 11,45, theasthai é usada para ver um sinal e chegar (apa-
rentemente) à fé (= heran) adequada; e, como salientam os acima sob (c), horan
e theasthai, em 1,34 e 1,32, respectiva m ente, parecem ser intercam biáveis.
A mesma intercam biabilidade se encontra na afirmação de que ninguém
jamais viu a Deus em Jo 1,18 e ljo 4,12.
Para concluir, podem os dizer que certam ente há em João diferentes mo-
dos de ver. Na maioria dos casos pode haver um a tendência para o uso de
um verbo em vez de outro para um a forma específica de visão, m as a consis-
tência não é notável. Os estudiosos que pensam que os verbos são sinônim os
têm quase tantos textos para provar sua tese quantos têm os estudiosos que
atribuiríam significados específicos aos verbos.

BIBLIOGRAFIA (ver tam bém pisteuein)

PHILLIPS, G. L., "Faith and Vision in the Fourth Gospel", SFG, pp. 83-96.

(4) doxa = "glória", "honra"

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
doxa 23 18 17 35 165

Das ocorrências sinóticas, 13 são em Lucas; assim, entre os evangelhos,


Lucas e João partilham de um a predileção por esta palavra. No uso joanino
há um a doxa, "louvor", "honra", que pode ser conquistada em um nível me-
ram ente natural, mas Jesus despreza isto (5,41; 7,18). A única doxa que tem
valor real é aquela que é dada a Deus (7,18; 12,43). E esta doxa ou louvor que
os hom ens dão a Deus é apenas um reconhecim ento da doxa ou glória que
Deus possui.
O conceito da glória de Deus no pensam ento veterotestam entário oferece
im portante pano de fundo para o uso joanino. No AT há dois im portantes
elementos na com preensão da glória de Deus: um é a m anifestação visível
de sua m ajestade em atos de poder. Enquanto Deus é invisível, de tem pos em
tem pos Ele se manifesta aos hom ens p or meio de um a ação extraordinária, e
isto é sua kãbõd ou glória. A lgum as vezes a ação está no reino da natureza,
p. ex., um a tem pestade. A lgum as vezes se dá na história. Em Ex 16,7-10,
Moisés prom ete ao povo: "De m anhã vereis a glória de Deus". Ele está se
referindo ao m ilagre do m aná a ser realizado por Deus. A glória de D eus está
A p ê n d ic e I: V ocab ulário jo a n in o 803

na nuvem através da qual sua presença se torna visível aos israelitas em suas
peregrinações pelo deserto (Ex 16,10) e tam bém no fogo (Ex 24,17).
Visto que Jesus é a Palavra de Deus encarnada, ele é a incorporação da
glória divina (1,14). Os dois elem entos da kãbõd estão presentes nele. Ele re-
presenta a presença divina visível em atos poderosos. Mais que os sinóticos,
João insiste que esta doxa era visível durante seu m inistério e não só depois
da ressurreição. É verdade que João não descreve a Transfiguração que para
os sinóticos é realm ente a única m anifestação de glória durante o ministério
público (Lc 9,32). Todavia, João enfatiza que a doxa divina resplandeceu atra-
vés dos sinais m iraculosos de Jesus (2,11; 11,40; 17,4).
Todo o NT concorda que o Jesus ressurreto foi o veículo da doxa, posto
que a ressurreição foi o poderoso ato de Deus por excelência. Visto que João
concebe da paixão, m orte e ressurreição como sendo aquela "hora", João vê
o tem a da glória como sendo a totalidade daquela hora. De fato, a hora é o
tem po de o Filho do Hom em ser glorificado (12,23.28; 13,32; 17,1). Jesus ora
ao Pai no meio da hora: "Agora, glorifica-me, ó Pai, em tua presença com
aquela glória que eu tive contigo antes que o m undo existisse" (17,5).

(5) entolê = "ordem ", "m andam ento"

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1, 2, 3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
entolê 16 11 18 2 31 68

O verbo relacionado entellesthai ocorre três vezes em João.


Para Paulo, entolê é a marca característica da Lei mosaica, como vemos
em Rm 7. Em 7,8, Paulo diz que o pecado descobriu um a oportunidade no
"entolê”. Todavia, tanto Paulo (Rm 13,9-10) como os sinóticos (Mt 22,36-40)
reconhecem que Jesus, sem prescindir dos m andam entos essenciais da Lei
veterotestam entária, subm eteu-os a um entolê, ou m andam ento do amor.
Cinco vezes (4 singular; 1 plural) João usa entolê em referência à ordem do
Pai a Jesus. Outras cinco vezes (2 singular; 3 plural) entolê é pertinente à ordem
de Jesus aos discípulos. A mesma variação se encontra no verbo entellesthai;
com pare 14,31 com 15,14.17. A frequência do termo entolê no último discurso
pode ser explicada pelo reconhecimento de que esta é a porção do evangelho
onde Jesus fala intimam ente com seus discípulos. Além do mais, o último dis-
curso de despedida m uito parecido com os discursos dos patriarcas finais no
AT que tam bém levam consigo um m andam ento (ver também Mt 28,20).
Discutam os prim eiro o uso de entolê para a ordem do Pai a Jesus. Em
12,49-50, o Pai ordenou a Jesus o que dizer e como falar; em 14,31, o Pai
804 A p ê n d ic e s

ordenou a Jesus o que fazer, especialm ente em face de sua aproxim ação da
morte quando luta com o príncipe deste m undo; em 10,18, a ordem que Jesus
recebeu do Pai abrange a entrega de sua vida e de tomá-la de volta. Assim,
todo o ministério de Jesus é de submissão à ordem do Pai - suas palavras; seus
atos; e especialmente o mais im portante de seus atos: sua paixão, m orte e res-
surreição. E porque Jesus cum priu este m andam ento, ele perm anece no am or
do Pai (10,17). É óbvio, pois, que o m andam ento dado a Jesus diz respeito à
sua relação com os homens, i.e., sua missão. E este m andam ento tem um efeito
sobre os homens: "Eu sei que o seu m andam ento significa vida eterna" (12,50).
Voltemos agora ao uso de entolê por m andam ento por parte de Jesus a seus
discípulos. Precisamente como a própria vida de Jesus está sob o m andam ento
do Pai, um m andam ento dado em am or e que se cum pre em aceitação amoro-
sa, assim também o crente que vai a Jesus e quer ser seu discípulo deve viver
sua vida sob o m andam ento de Jesus. Uma vez mais, a obrigação deste man-
damento é a de amor, cujo padrão é o am or que une Pai e Filho: "Permanece-
reis em meu amor, se guardardes m eus m andam entos, assim como eu guardei
os m andam entos de meu Pai e perm aneço em seu am or" (15,10). Aliás, o cerne
do m andam ento que Jesus dá encontra sua expressão no am or de seus segui-
dores, uns para com os outros (13,34; 15,12.17). O que é novo sobre este man-
dam ento não é a substância dele nem a intensidade exigida, mas, antes, sua
motivação cristológica que o eleva a uma maneira de vida m odelada na vida
de Jesus. A ordem que Jesus recebeu do Pai diz respeito especificamente à sua
morte pelos homens; o am or exigido entre os cristãos tem de ser m odelado
neste exemplo (15,12-13). E o entolê é não só m odelado no exemplo de Jesus,
mas inclusive é em preendido em um espírito de am or para com ele (14,15.21).
Como devem os interpretar esta ordem de am ar uns aos outros? Signi-
fica que não há outra obrigação na vida cristã, ou significa que as m uitas
obrigações m orais da vida cristã devem ser im pregnadas com am or como
sua inspiração e elem ento unificador (como em Mt 19,18-19)? Talvez a
variação entre plural e singular no uso de entolê indique que o últim o se
aproxima mais da intenção de Jesus. (Esta variação é discutida m ais deta-
lhadam ente no com entário sobre 1 João). As ordens (plural em 15,10) que
Jesus recebeu do Pai concernia a todo o m odo de vida. Assim tam bém o
m andam ento dado por Jesus constitui um m odo de vida pelo qual a es-
sência do m andam ento é o espírito de am or que se irradia nessa vida. Ao
enfatizarm os a relação entre m andam ento e m odo de vida, podem os no-
tar que 14,21 e 23 equiparam claram ente guard ar os m andam entos de Je-
sus e guardar sua palavra (Têrein , "guardar", rege entolas [sem pre plural]
9 vezes nos escritos joaninos, enquanto rege logon e logous "palavra[s]"8 ‫׳‬
vezes). Se a ordem que abrange o m inistério de Jesus significa vida eterna
para os hom ens (12,50), assim tam bém as palavras que ele fala aos hom ens
A p ê n d ic e I: V ocab u lário jo a n in o 805

significa vida para eles (6,63). É interessante que o m esm o verbo didonai,
"d ar", que é constantem ente usado para os dons salvíficos neste evangelho
(água viva, pão da vida, palavra de Deus), é usado em 13,34 em relação à doação
do m andam ento de Jesus a seus discípulos. Em sum a, podem os dizer que
em João o entolê de Jesus a seus discípulos abarca um a forma de vida que
leva à salvação dos hom ens; é dada am orosam ente, aceita em am or e vivida
com am or em imitação ao de Jesus.
Em um artigo em CBQ 25 (1963), 77-87, intitulado "The Ancient Near
Eastern Background of the Love of God in Deuteronomy", W. L. M oran tern mos-
trado que o am or está intim am ente relacionado com o conceito de aliança
em D euteronôm io. Em um estilo sem elhante, em seu artigo " The Concept
of Commandment in the Old Testament", TS 21 (1960), 351-403, artigo desti-
n ad o a ser um prolegôm eno ao estudo de entolê em João, M. J. O 'C onnell
salientou quão p rofundam ente o conceito joanino de m andam ento se acha
rad icad o no AT, especialm ente em D euteronôm io, que é o "últim o dis-
curso" de M oisés ao seu povo. “Entolê expressa o fato de que a vontade
g erad o ra de vida do Deus pessoal apresenta um a exigência à totalidade
da existência do hom em , cuja exigência o hom em deve cum prir para si
tanto com am or íntim o e reverência quanto com conform idade externa
aos preceitos de Deus. Entolê tem como sua significação m áxim a unir o
hom em a D eus a ponto de levá-lo a 'seguir Iahw eh‫"׳‬. Com o O 'C onnell
salienta, o AT oferece notável pano de fundo para os conceitos joaninos
de entolê com o um a revelação do que Deus é, da íntim a associação de
entolê e am or e a identificação de entolê com palavras dadas p o r Deus
p ara serem ditas a outros.

(6) zoe = "vida ("vida eterna")

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
16 36 13 17 66 135

Obviam ente, "vida" é um term o teológico joanino favorito; e, como


F ilson, art. cit., tem salientado, o Q uarto Evangelho pode ser cham ado o
evangelho da vida, pois 20,31 enuncia como propósito prim ordial para
o qual o evangelho foi escrito: "para que tenham vida em seu nom e". Em
particular, a expressão zõê aiõnios, "vida eterna", ocorre dezessete vezes em
João e seis vezes em 1 João. (Aiõn "era", "aeon", "segm ento do tem po", na
tradução grega do hebraico ‘õlãm , um período de tem po sem princípio ou
fim visível).
806 A p ê n d ic e s

Mesmo sem o adjetivo qualificativo, aiõnios, em João zõê não se refere à


vida natural. Antes, usa-se psychê para aquela vida para a qual a m orte é um
term inus (13,37; 15,13). Todavia, isso não significa que não fora a vida natural
que originalm ente teria sugerido o uso de "vida" como um símbolo para um
dom especial de Deus. A vida natural é para o hom em a mais rica das posses-
sões; portanto, "vida" é um bom símbolo para indicar os mais preciosos dons
divinos que subsistem além do alcance do homem. Visto que o hom em pensa
em Deus analogicamente, seria apropriado falar da "vida" de Deus pela ana-
logia da vida do homem; e o m aior ato da am izade de Deus com o hom em foi
descrito em termos do hom em recebendo participação da vida de Deus. É ób-
via a relação deste simbolismo com aquele de nos tornarm os filhos de Deus.
Bultmann, TWNTE, II, pp. 870-72, vê forte influência gnóstica no conceito
joanino de vida. D odd, Interpretation, pp. 144-50, dá a João paralelos do AT
e rabínicos, mas tam bém cita paralelos platônicos e herm éticos como exem-
pios do m undo do pensam ento filosófico grego para o qual João trouxe o
conceito semítico de vida eterna. F euili.et, art. cit., insiste mais fortem ente so-
bre as diferenças entre o conceito que João tinha da vida e aquele encontrado
em Platão e a Hermética. Estes pontos de vista refletem diferentes teorias de
origens joaninas como discutidas na Introdução, IV.
A expressão hebraica que ao subjacente ao grego zõê aiõnõs ocorre pela
prim eira vez em um livro protocanônico do AT, em Dn 12,2, onde lem os que
os justos que m orreram despertarão para hayyê ‘õlãrn , "a vida da era eter-
na". A raridade da expressão é explicada pelo fato de que som ente em épo-
ca mais tardia do pensam ento veterotestam entário há atestação explícita de
uma crença num a vida que transcende a m orte (embora as raízes do conceito
na teologia israelita podem ser m ais antigas do que se cria até então). Isto
foi expresso de duas m aneiras nos livros do 2a e Ia séculos a.C.: em Daniel e
2Mc 12,43-44 (e na teologia farisaica) foi expressa em term os da ressurreição
dentre os mortos; em Sb 3,2-4 e 5,15, foi expressa em term os da im ortalidade
da alma após a m orte física.
Qual era a atitude dos sectários de Q um ran? Josefo, War 2.8.11; 154, diz
que os essênios criam na im ortalidade da alma, m as esta crença não é clara
nos textos de Qum ran. Antes, como parte de sua expectativa de um a imi-
nente intervenção divina, os teólogos de Q um ran baseavam suas esperanças
na Nova Jerusalém que seriam concretizadas em seus dias. 1QS 4,7 diz que
na visitação divina todos os filhos da luz que andam no espírito da verdade
terão "alegria eterna na vida sem fim [hayyê nêsah - um a forma m ais bíblica
de hayyê ‘õlãm]". Em outras palavras, os sectários parecem entender que os
dias messiânicos continuarão etem am ente sobre a terra. CDC 3,20 diz: que os
que perm anecem fiéis à com unidade são destinados à "vida sem fim". Não
obstante, as expectativas em Q um ran não eram exclusivam ente futurísticas,
A p ê n d ic e I: V ocab ulário joan in o 807

pois os adeptos pensavam na com unidade como já de posse de algum dos


benefícios desta benção por vir. Os docum entos de Q um ran ensinam clara-
m ente que a com unidade partilha da com unhão com os anjos (1QS 11,7) que
são os filhos de Deus. H. Ringgren, The Faith of Qumran (Filadélfia: Fortress,
1963), pp. 85,128, com enta sobre a vida desta com unhão celestial/terrena e
a com para com m uita propriedade com a abordagem joanina sobre a vida
eterna em term os de escatologia realizada.
Em outros escritos judaicos, o conceito de hayyê ‘õlãm se desenvolveu de
diferentes m aneiras. No pensam ento rabínico, "vida eterna" é contrastada
com "vida tem poral", e o princípio de distinção é o de duração. G radual-
m ente, hayyê ‘õlãm no Talm ude chegou a significar "vida duradoura", i.e.,
vida não só de duração indefinida, m as que não tem fim; ver D odd, Interpre-
tation, pp. 144-45. Em contrapartida, em escritos apocalípticos como 1 Enoque
e 4 Esdras havia a tendência de distinguir duas eras: "esta era" e "a era por
vir". Vida nestas duas eras diferiría não só quantitativam ente (duração), mas
qualitativa mente. Havería certo tipo diferente de vida no hayyê ‘õlãm.
Com este pano de fundo em m ente, volvam o-nos ao que em João significa
"vida eterna". Esta é a vida pela qual Deus m esm o vive, e a qual o Filho de
Deus possui da parte do Pai (5,26; 6,57). O Filho tem um a orientação específica
para com os hom ens, pois ele é a Palavra divina falada com o propósito de dar
vida eterna aos hom ens (1,4; ljo 1,1-2) e é para este propósito que o Filho veio
aos hom ens e vive entre os hom ens (10,10; ljo 4,9). No que diz respeito aos
hom ens, Jesus é a vida (11,25; 14,6; Ap 1,18); suas palavras são espírito e vida
(Jo 6,63). C rer nele é a única forma que os hom ens têm para receber a vida de
Deus (3,16; 5,24; 20,31). Como esta vida é com unicada? A vida natural é dada
q uando Deus sopra seu espírito ou fôlego no pó da terra (Gn 2,7); assim a vida
eterna é dada quando Jesus sopra o Espírito Santo de Deus sobre os discípulos
(Jo 20,22). O Espírito é a força geradora de vida (6,63), e o Espírito só pode
ser d ad o depois que Jesus venceu a m orte (7,39). A comunicação deste dom
do Espírito às futuras gerações está associada com as águas vivas do batismo
que gera de novo um hom em (3,5; 4,10.14; 7,37-39) e que tem seus afluentes
na água que fluiu do lado do Jesus crucificado (19,34). Esta vida eterna dada
aos hom ens pelo Espírito gerador de vida é nutrida pelo corpo e sangue de
Jesus na eucaristia (6,51-58).
Não pode haver dúvida, pois, que para João "vida eterna" é qualitativa-
m ente diferente da vida natural ipsychê), pois esta é um a vida que a morte não
pode destruir (11,26). Aliás, o verdadeiro inimigo da vida eterna não é a mor-
te, e sim o pecado (ljo 3,15; 5,16). Em linha com o pensam ento apocalíptico es-
boçado anteriorm ente, para João "vida eterna" é a vida da Era Vindoura dada
aqui e agora. Na Introdução, VIII:C, indicamos que o interesse dom inante em
João é o da escatologia realizada. Há um a sim ilaridade real entre a vida eterna
808 A p ê n d ic e s

que Jesus oferece na terra através das águas vivas do batism o e a vida no fim
dos tem pos quando a Nova Jerusalém descer do céu e através de suas ruas
corre a água da vida que sai do trono do C ordeiro (Ap 22,1). No evangelho,
vida eterna e filiação divina são dons já de posse do cristão (em bora haja
lugar para futura perfeição quando a própria m orte física não m ais existir
5,28-29).
Visto que a diferença entre vida divina e vida n atu ral seja p rim aria-
m ente qualitativa, a m elhor tradução de zõê aiõnios é "vida eterna", em
vez de "vida d u radoura", tradução que colocaria a ênfase na duração. No
entanto, não negam os que não haja conotação de "eterno" na com preensão
que João tem desta vida. Se a m orte não pode destruí-la, obviam ente não
tem um térm ino definido. Em 6,58, ouvimos: "Aquele que se alim enta deste
pão viverá eternamente". Mas, diferente dos conceitos platônicos e herm éticos
da vida, o conceito joanino de vida eterna não exclui a relação de tempo.
A vida eterna do cristão chegou através da ação do Filho de Deus que se fez
homem no tempo. Só se pode possuir esta vida eterna quando se é um ram o
da videira que é Jesus (15,5). M esmo a afirmação mais "gnóstica" no evange-
lho, "a vida eterna consiste nisto: que te conheçam como o verdadeiro Deus,
e aquele a quem enviaste, Jesus Cristo" (17,30), tem suas raízes em um even-
to histórico de um a m aneira em que o pensam ento gnóstico não está. Aqui,
"conhecer" significa viver em um a relação vital e íntim a com o Pai e com
Jesus, e tal relação vem através da fé em Jesus e de ouvir suas palavras. João
nunca sugere que esta relação pode vir através de contem plação estática da
divindade, como na Hermética, nem através de visão mística de Deus, como
nas religiões de mistério.
A ênfase sobre a vida é m uito mais clara em João do que nos sinóticos.
Todavia, um a vez mais podem os suspeitar que o quarto evangelista não está
inventando um tema, e sim destacando um tem a que fazia parte da tradição
das palavras do próprio Jesus, a julgar pelos dados que temos. Em Mc 9,43
(também Mt 25,46), Jesus fala de entrar na vida depois da ressurreição do
corpo. Em um a passagem encontrada em Mc 10,17, e em um a forma variante
em Mt 19,16 (que pode representar "Q"), um hom em pergunta a Jesus o que
fazer para herdar a "vida eterna". A linguagem de "entrar na vida", "herdar
a vida" é sim ilar à linguagem que os sinóticos usam para o reino (Mt 19,24;
25,34). Lc 18,29-30 associa claram ente vida eterna com o reino de Deus.
O quarto evangelista, que diz pouco sobre o reino, parece ter tom ado um a
expressão associada com o reino, a saber, "vida" ou "vida eterna", e fez dela
o principal tem a do evangelho. A m aior adaptabilidade do tem a da vida em
sua ênfase sobre a escatologia realizada, sem dúvida foi um fato na esco-
lha. O fato de que o AT retrata a Sabedoria como a guiar os hom ens à vida
(Pv 4,13; 8,32-35; Siraque 4,12; Baruque 4,1) e im ortalidade (Sb 6,18-19)
A p ê n d ic e I: V ocab u lário jo a n in o 809

provavelm ente era outro fator, pois os tem as da Sabedoria são im portantes
neste evangelho (Introdução, VIII:D).

BIBLIOGRAFIA

FEUILLET, A., "La participation actuelle à la vie divine d'après le quatrième évan-
gile ", StEv, I, pp. 295-308. Agora em inglês em JohSt, pp. 169-80.
FILSON, F. V., "The Gospel of Life", CINTI, pp. 111-23.
MUSSNER, F., ZOE, Die Anschauung vom "Leben" im vierten Evangelium unter
Berücksichtigung der lohantiesbriefe (Munique: 1952 - Theologische Studien 15).
SIMON, U. E., "Eternal Life in the Fourth Gospel", SFG, pp. 97-109.

(7) kosmos = "m undo"

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
kosmos 14 78 24 3 105 185

O que cham aríam os "o universo" em hebraico é descrito como "céu e


terra"; som ente no hebraico tardio ‘õlãm , "era", veio a significar "m undo".
N ão obstante, o grego encontrou em kosm os, "m undo", um a palavra para
d a r expressão ao conceito helenista da ordem do universo. Se a LXX ado-
tou este term o, p o de ser pelo desejo de fidelidade ao pensam ento hebraico
en contrado em Gênesis de que no princípio Deus pôs ordem aos céus e à
terra. Em 1,3.10; 17,5.24, João é o herdeiro do pensam ento bíblico ao reco-
nhecer a criação do m undo p or Deus e, em particular, pela palavra de Deus
(ver A pêndice II).
Mas "o m undo" pode significar mais do que o universo físico, pois às
vezes ele se refere ao universo à m edida que se relaciona com o homem.
A lgum as vezes "o m undo" tem com frequência a nuança de um a criação
capaz de resposta. Gn 1,26 descreve o hom em como a culminação da criação
de Deus; Gn 2 exibe a criação anim ada colocados a serviço do homem; Sira-
que 17,2 diz que Deus concedeu aos hom ens autoridade sobre as coisas na
terra. Assim, o m undo alcança seu sentido pleno no hom em que foi criado
à im agem e sem elhança de Deus. Ela recebe do hom em sua orientação - ou
através dele louva a Deus, ou através de seu pecado é orientado para o mal.
O pensam ento bíblico não hesita em atribuir bênçãos naturais à observância
do hom em dos m andam entos de Deus, e as catástrofes naturais aos pecados
do hom em (Dt 28,39-40).
810 A p ê n d ic e s

Além de referir-se ao universo sob a diretriz do hom em , "o m undo" pode


referir-se ainda mais diretam ente à sociedade dos hom ens (ver nota sobre
1,10). O que cham am os "hum anidade" pode ser cham ado "o m undo".
O ra, ao e stu d arm o s estes usos de " m u n d o ", o q u al envolve o hom em ,
devem os ter em m ente que no p en sam en to bíblico o p ecado de A dão
exerceu um m au efeito sobre o m u ndo. As trevas não p o d em v en cer a
luz, m as antes da v in d a de Jesus as trevas prev aleceram no am b ien te
do m u n d o (Jo 1,5). Em Rm 8,22, G1 4,3, P aulo vê a criação em grilhões
que anela p o r libertação. S atanás é o P ríncipe d este m u n d o (Jo 12,31;
14,30; 16,11).
Todavia, no pensam ento joanino é óbvio que o m undo não tem ven-
cido o m al por si m esm o, m as, antes, é orientado e dom inado pelo mal.
Jo 3,16 diz que Deus am ou o m undo e não quis que ele perecesse. Especial-
m ente na prim eira m etade do evangelho (caps. 1-12) há m uitas referências
que m ostram a benevolência de Deus e sua intenção salvífica para com o
m undo. Jesus foi enviado pelo Pai para salvar o m undo (3,17; 10,36; 12,47)
e dar a sua vida pelo m undo (6,33.51). Ele é o Salvador do m u n d o (4,42;
ljo 4,14; ver tam bém Jo 6,14; 11,27) e o C ordeiro de D eus que tira o peca-
do do m u ndo (1,29). Ele veio ao m undo com o a luz do m u n d o (8,12; 9,5)
para d ar testem unho da verdade (18,37). Ocultos nas trevas houve alguns
eleitos por Deus que saíram das trevas para a radiante luz em Jesus. Mas,
para os dem ais que preferiram as trevas, a vinda da luz ao m undo apenas
endureceram sua orientação para o m al e assim provocaram sua auto-con-
denação (3,19-20).
A reação dos que se afastaram de Jesus não foi sim plesm ente a de re-
jeição, m as tam bém de oposição. E assim , à m edida que seu m inistério
avança, e particularm ente na segunda m etade do evangelho, "o m undo"
é mais consistentem ente identificado com os que se voltaram contra Jesus
sob a liderança de Satanás, e um a forte nota de hostilidade acom panha o
uso de "o m undo". A vinda de Jesus se tornou juízo sobre o m u n d o (9,39;
12,31) e sobre os filhos do Príncipe deste m undo que ljo 5,19 declara que
o m undo inteiro está sob o po d er do M aligno. Jesus e seus seguidores não
podem pertencer ao m undo, pois o m undo se tornou então incom patível
com a fé em Jesus e o am or para com ele (Jo 16,20; 17,14.16; 18,36; ljo 2,15).
O Espírito que Jesus envia é tam bém incom patível com o m u n d o e hostil
a ele (Jo 14,17; 16,8-11). Em sum a, o m undo odeia Jesus e seus seguidores
(7,7; 15,19; 16,33; ljo 3,13).
Na luta entre Jesus e o m undo, Jesus vence o m undo em seu m om ento de
paixão, m orte e ressurreição (16,33) e destrona o Príncipe deste m undo (12,31).
Não obstante, o desenvolvim ento desta vitória contra o m undo continuaria
depois da partida de Jesus. Jesus envia seus seguidores ao m undo (17,18),
A p ê n d ic e I: V ocab ulário jo a n in o 811

e sua fé nele há de vencer o m undo (ljo 5 ,4 5 ‫)־‬. Seu propósito é levar o m undo
a crer em Jesus e reconhecer que ele é enviado da parte do Pai (Jo 17,21.23).
Diante d o desafio deles, o m undo, com todos os seus atrativos, há de passar
(1J0 2,17).

BIBLIOGRAFIA

BENOIT, P., "Le monde peut-il être sauvé?", La Vie lntellectuelle 17 (1949), 3-20.
BRAUN, F.-M., "Le 'monde' bon et mauvais de 1'Evangile johannique’', La Vie
Spirituelle 88 (1953), 580-98; 89 (1953), 15-29.

(8) menein = "perm anecer", "continuar", "estar em", "habitar em"

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
menein 12 40 27 1 68 118

João gosta de usar o verbo menein para expressar a perm anência da re-
lação entre Pai e Filho e entre Filho e o cristão. Não obstante, João não faz
uso dos m uitos com postos de menein (epimenein aparece no relato da m ulher
adúltera) que são frequentes nos outros escritos do NT (55 vezes).
No AT, perm anência é um a característica de Deus e o que lhe pertence,
q u an d o contrastado com o aspecto tem porário e transitório do homem. Nas
palavras de Dn 6,26, "Ele é o Deus vivo que perm anece [menõn ] para sem-
pre". A Sabedoria tam bém é em si m esm a perm anente e renova todas as coi-
sas (Sb 7,27). No NT, citando o AT, a palavra de Deus perm anece para sem-
pre (lP d 1,25). Esta atm osfera da perm anência do divino teve sua influência
na predileção joanina por menein. As m ultidões em 12,34 citam como um
axiom a "o Messias há de perm anecer para sem pre"; e visto que João apre-
senta Jesus como o Messias e como o Filho de Deus, tudo o que pertence a
Jesus tem de ser perm anente e persiste para sempre. O Espírito foi dado aos
profetas por certo tem po, m as o Espírito perm anece em Jesus (1,32). O ho-
m em que im ita Jesus, fazendo a vontade de Deus, perm anece para sempre
(ljo 2,17). Ver tam bém Jo 6,27; 15,16.
M as o uso joanino de menein é m ais complexo; pois o estudo deste verbo,
especialm ente na fórm ula menein en, nos introduz à totalidade do proble-
m a da teologia joanina da im anência, i.e., um a m aneira de perm anecer um
no o u tro que une Pai, Filho e o crente. Em João, ouvim os que assim como
o Filho está no Pai, e o Pai, no Filho (14,10-11), tam bém o Filho estaria nos
81 2 A p ê n d ic e s

hom ens, e os hom ens estariam no Pai e no Filho (17,21, 23). Aqui, o verbo é
einai en, "estar em ", m as este é sinônim o de menein en, com a exceção que
menein tem a nota anexa de perm anência. Menein é usado nas epístolas
mais frequentem ente para esta perm anência. O uso de menein para habi-
tação recíproca propicia a possibilidade de um significado secundário e
espiritual pelo uso m ais ordinário de menein, p. ex., Jo 1,39, onde os dis-
cípulos ficam com Jesus. Antes de analisar o conceito joanino de habitação
recíproca, podem os indagar sobre o pano de fundo de tal ideia. O q uadro
veterotestam entário da habitação de Deus no tabernáculo ou no tem plo, no
meio de Israel, na verdade não ajuda, pois em João esta é um a questão de
Deus habitar em um indivíduo. Talvez o m elhor paralelo possa ser achado
nas inúm eras passagens do AT, onde o espírito ou a palavra de Deus são
dados a um profeta. Há tam bém um a passagem , como Sb 7,27, onde somos
inform ados que a Sabedoria é em si m esm a perene, habita entre os ho-
m ens e transform a as alm as santas. A ideia de estar "em D eus" se encontra
no m undo helenista. Dodd, Interpretation, pp. 187-92, discute a união com
Deus em F ilo e na Hermética, distinguindo em particular casos onde estar
em Deus implica êxtase ou um a visão panteísta. N enhum a das passagens
joaninas parece ser um a referência à experiência extática, e a união de João
não é a de identidade entre Deus e o hom em . Os cristãos perm anecem um
no outro seguindo o m odelo da unidade de Pai e Filho (17,21), todavia João
nunca pressupõe que se tornam o Pai e o Filho.
O paralelo neotestam entário m ais aproxim ado com a im anência joanina
é a frequente fórm ula paulina "em C risto" e sua fórm ula correspondente
"Cristo em nós". Os exegetas não concordam sobre a im plicação precisa da
fórm ula paulina; todavia, m uitos a associariam com o conceito que Paulo
tinha do corpo de Cristo. A fórm ula paulina de u n id ad e não tem o m esm o
m odelo na relação P ai/F ilh o que é característico da teologia joanina da
imanência. Entretanto, há um paralelo parcial entre o pensam ento paulino
de que o Espírito de Deus habita (oikein - Rm 8,9) no cristão e o pensa-
m ento joanino de que o Parácleto perm anece com ou no discípulo de Jesus
(14,16-17).
Talvez não seja possível encontrar um pano de fundo com pleto para o
conceito joanino de imanência sem a vincular a outros pontos teológicos já
discutidos, p. ex., vida eterna, escatologia realizada. Isto é pressuposto pelo
fato de que os escritos joaninos usam menein e seus sinônim os não só para a
habitação do Pai e o Filho no cristão, m as tam bém para a habitação dos atri-
butos, dons e poderes divinos. Note os seguintes equivalentes:
A p ê n d ic e I: V ocab ulário joan in o 813

D iz - s e q u e e s te s m o ra m ou
O c r is tã o m o ra em ou p e r te n c e a :
p e rm a n e c e m n o c ristã o :
a(s) palavra(s) de Deus ou de a palavra de Jesus: 8,31·
Jesus: 5,38; 15,7; ljo 2,14.24.
vida eterna: ljo 3,15. luz: ljo 2,10; ver Jo 12,46.
am or divino: ljo 3,17. amor: Jo 15,9-10; ljo 4,16.
verdade: ljo 1,8; 2Jo 2. verdade: ljo 3,19.
testem unho divino: ljo 5,10. ensino de Cristo: 2Jo 9.
unção divina: ljo 2,27.
sem ente divina: ljo 3,9.

V oltando agora ao uso joanino de m e n e i n para a habitação divina, po-


d em o s n o tar que P ecorara, pp. 162-64, analisou cuidadosam ente os sete
d iferen tes significados de m e n e i n em João, porém se concentra nos dois
significados dom inantes: "perm anecer em algo" e "estar intim am ente
u n id o com alguém ". É o últim o o que particularm ente nos interessa aqui.
P assagens com o Jo 6,56 e 15,4-5 tratam da persistência ou perm anência
d e Jesus no cristão e do cristão em Jesus, ljo 4,16-16 (3,24?) fala da habi-
tação m ú tu a d e D eus o Pai e do cristão, en q u an to Jo 14,23 e ljo 2,24 falam
d o Pai, d o Filho e do cristão. E isto é m uitíssim o com preensível, porque,
com o vim os na p. 688, o que João diz sobre a relação e u n id ad e do Pai e
d o Filho é sem p re o rien tad o para os hom ens. A habitação m ú tu a do Pai e
d o Filho não é estática, e sim um a relação dinâm ica (D odd, I n t e r p r e t a t i o n ,
p. 194).
O fato de que a relação entre Jesus e seus discípulos tem seu m odelo na
relação P a i/F ilh o tam bém é dada expressão no que João diz sobre vida e
am or (ver nossa discussão acim a). Aliás, habitação, vida e am or com uns
são ap en as d iferentes facetas da u n id ad e que une Pai, Filho e o crente
(17,11.21). H abitação divina é um a união íntim a que se expressa em um
m o d o de vida vivida em am or. Se com preenderm os esta v erdade, evita-
rem os a equivocada identificação do conceito que João tem de habitação
com um m isticism o exaltado com o o de um a T eresa de Á vila ou de um
J oão da C ruz. Perm anecer em Jesus, ou no Pai, ou em um dos atributos
ou do n s div in o s está intim am ente associado com g u a rd a r os m andam en-
tos em um esp írito de am or (Jo 15,10; ljo 4,12.16), com um a luta contra o
m u n d o ( ljo 2,16-17), e com a pro d u ção de fruto (Jo 15,5) - todos deveres
cristãos básicos. A ssim , habitar não é a experiência exclusiva das pessoas
escolhidas no seio da com unidade cristã; é o princípio constitutivo essen-
ciai d e toda a vida cristã.
814 A p ê n d ic e s

BIBLIOGRAFIA

PECORARA, G. "De verbo ‘mattere' apud Joannem", Divus Thomas 40 (1937),


159-71.
SCHNACKENBURG, R., "Zu den joh. Immanenzformula", Die Johannesbriefe
(2 ed.; Freiburg: H erder, 1963), pp. 105-9.

(9) pisteuein = "crer" ("ter fé", "vir à fé", "pôr fé") -


com um a nota sobre eidenai; ginõskein = "conhecer", "com preender"

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
pisteuein 34 98 9 107 241

É digno de nota que o substantivo para "fé", pistis, nunca ocorre no


Evangelho de João (uma vez em 1 João; 4 vezes em Apocalipse); este é outro
exemplo da preferência joanina por verbos e ação que vim os com agapan.
No restante do NT, pistis ocorre 243 vezes, e assim m ais que o verbo. No
Apêndice III, "Sinais e O bras", discutirem os os vários estágios na gênesis da
fé em João, bem como a relação existente entre crer e ver; aqui nos preocupa-
mos prim ariam ente com o uso e significado de pisteuein.
Frases envolvendo a expressão participial ho pisteuõn, "o crente" ou
"aquele que crê", são quase próprias de João (p. ex., 3,15.16.18) quando com-
paradas com o restante do NT - um a exceção é At 13,39. Para João, ser crente
e ser discípulo na verdade são sinônim os, pois fé é o fato prim ário de tor-
nar-se cristão. A frequência de pas, "todo, cada", na construção é também
indicativo disto. Q ue João prefere o verbo pisteuein ao substantivo mostra
que o evangelista não está pensando em fé como um a disposição interna, e
sim como um com prom etim ento ativo. O "Am ém " duplo (ver nota sobre
1,51) com que Jesus prefacia suas im portantes afirmações é um cham ado
para um a confiança do crente nele e em sua palavra.
A nuança particular do conceito joanino de crer é vista na predileção pela
proposição eis depois de pisteuein, "crer em[a]" (36 vezes em João; 3 em
1 João; 8 em outros lugares no NT). Não há verdadeiro paralelo para este uso
na LXX ou no grego secular. A lguns têm encontrado um paralelo semítico
nos Rolos do M ar M orto (lQ pH ab 8,2-3) onde um a palavra da raiz ,mn,
"fidelidade, fé", é seguida da preposição be para descrever a relação que os
observadores da Lei (a com unidade) têm com o M estre de Justiça (o líder
deles). Mas não se determ ina se a passagem está falando da "fidelidade deles
para com ele" ou de "sua fé nele".
A p ê n d ic e 1: V ocab ulário jo a n in o 815

Com a exceção de ljo 5,10,pisteuein é usado nos escritos joaninos para


confiar em(a) um a pessoa: duas vezes a expressão determ ina o Pai; 31 vezes,
determ ina Jesus; 4 vezes, determ ina o nom e de Jesus. Há a m esm a exigência
de crer em Jesus como há de crer em Deus (Jo 14,1). Um sinônimo frequente é
"ir a" Jesus (paralelism o em 6,35; 7,37-38), e este sinônim o nos propicia outra
prova da natureza dinâm ica do conceito joanino de crença. Assim, pisteuein
eis pode ser definido em term os de um com prom etim ento ativo com uma
pessoa e, em particular, com Jesus. Envolve m uito mais que fé em Jesus ou
confiança nele; é um a aceitação de Jesus e do que ele reivindica ser e um a de-
dicação da vida de alguém a ele. O com prom etim ento não é emocional, mas
envolve a disposição de responder às exigências de Deus como são apresen-
tadas em e por Jesus (ljo 3,23). Eis por que em João não há conflito entre a
prim azia da fé e a im portância das boas obras. Ter fé em Jesus a quem Deus
enviou é a obra exigida por Deus (6,29), pois ter fé implica perm anecer na
palavra e nos m andam entos de Jesus (8,31; ljo 5,10).
Embora haja vários estágios no desenvolvimento da fé (ver Ap. III), em ge-
ral João usa pisteuein eis para fé verdadeira e salvífica. Em 2,23-24 e 12,42-43
encontram -se exceções, e estas nos advertem que não devem os traçar uma
distinção incisiva dem ais entre as várias construções com pisteuein. Em um
artigo do qual só vim os um sum ário, T. C amelot, RSPT (1941-42), 149-55,
estuda estas construções e m inimiza a distinção entre pisteuein eis e uma
construção rival, pisteuein com o dativo, que ocorre um as vinte vezes no
evangelho e duas vezes em 1 João. Não obstante, esta últim a construção tem
diferenças em ênfase. Pisteuein com o dativo é usado para crer tanto em al-
guém (Moisés, Jesus, o Pai) como em algo (a palavra, a Escritura). Aqui fica
m enos óbvio o com prom etim ento com um a pessoa, e a sim ples aceitação
de um a m ensagem parece ser a ideia dom inante. Portanto, algum as vezes
pisteuein com o dativo é usado pelo evangelista para descrever um a fé que em
seu juízo não é satisfatória (6,30; 8,31?). Pisteuein também ocorre com dia, "crer
por causa de". Esta expressão abrange as bases da fé, p. ex., as palavras ou
obras de Jesus (4,41.42; 14,11). Ver a nota sobre 3,15 para outro possível uso.
N aturalm ente, m uitas vezes pisteuein é usado absolutam ente sem qualquer
objeto, e esta construção tem várias nuanças de significado. Para excelentes
tabelas gráficas que ilustram quase todo aspecto do uso joanino de pisteuein,
ver G affney, art. cit.
E digno de nota que no Evangelho de João a maioria dos usos de pisteuein
(74 de 98) ocorre nos capítulos 1-12 ou o Livro dos Sinais. Esta divisão de fre-
quência concorda com a tese de que no Livro dos Sinais Jesus está apresen-
tando aos hom ens a escolha de crer, enquanto no Livro da Glória (caps. 13-20)
ele está falando aos que já creem e, assim, está pressupondo fé. É verdade que
em 14,10 Jesus censura a inadequação da fé dos discípulos e tenta intensificar
816 A p ê n d ic e s

o comprom etim ento deles (14,1), m as os fundam entos da fé já estão postos.


A ênfase sobre a resposta dos discípulos, no Livro da Glória, é em term os de
am or que é a perfeição do com prom etim ento do crente.

Até certo ponto, "conhecer" e "crer" são intercam biáveis em João. As últi-
m as linhas de 17,8 introduzem paralelism o ao conhecimento ("com preender"
= ginõskein) de que Jesus veio do Pai e a convicção de que Jesus foi enviado
pelo Pai. Uma com paração de 14,7 e 10 m ostra as sim ilaridades entre os dois
verbos, "conhecer" (ginõskein e eidenai) e o verbo "crer". Se "ir a" é sinô-
nimo com o elem ento ativo no conceito de crer, "conhecer" é parcialm ente
sinônim o com o elem ento receptivo em crer. Enfatizam os que a área semân-
tica coberta por estes verbos só é parcialm ente a mesma; pois enquanto se
pode dizer que Jesus conhece o Pai (10,15), nunca lemos que ele crê no Pai.
Diretamente, só Jesus conhece o Pai, m as através dele esse conhecim ento é
oferecido aos hom ens (14,7).
Os dois verbos "conhecer" ocorrem com a seguinte frequência:

1 ,2 ,3
João João Apocalipse
ginõskein 56 26 4
eideinai [oida] 85 16 12

Uma vez mais, m ostrando certa preferência pelos verbos, os escritos joa-
ninos nunca usam o substantivo gnõsis, "conhecim ento". D e la P otterie, art.
cit., tem feito grande esforço para distinguir entre os dois verbos. Em sua
visão, ginõskein se refere à aquisição de conhecimento; ele abrange o campo
do conhecimento experim ental que um hom em tem que ganhar através de
longo esforço. Em contrapartida, eidenai (oida) não significa "vir a conhe-
cer", m as sim plesm ente "conhecer"; refere-se à certeza im ediata possuída
com segurança. Spicq, Dieu et l'homme, p. 991, m antém o m esm o tipo de dis-
tinção: ginõskein se refere ao conhecimento através da instrução, enquanto
eidenai se refere ao conhecimento através da visão (oida e eidon, "eu vi", se
relacionam). Basicamente, a mesma ideia se encontra em A bbott, Vocabulary,
§§ 1621-29, que traduz ginõskein como "adquirir conhecim ento sobre", e
eidenai como "conhecer tudo sobre".
Há algum a base para a distinção. Ginõskein é preferido por João para o
conhecimento que Jesus adquire por meios hum anos, p. ex., 5,1; 6,15. Entre-
tanto, nem sem pre é fácil certificar-se de que o evangelista quer que pense-
mos que Jesus adquiriu conhecim ento por meios hum anos. Por exemplo,
A p ê n d ic e I: V ocab ulário joan in o 817

em 5,5 Jesus sabe que o paralítico fora doente por m uito tem po; em 16,19, ele
sabe que os discípulos queriam interrogá-lo. Estes são exemplos de conhe-
cim ento ordinário, ou da capacidade divina de ler os corações dos homens
(2,25)? Devem os ser cuidadosos com raciocínio circular, quando estuda-
m os tais usos de ginõskein. Um bom exemplo de conhecim ento espiritual
profu n d o adquirido pela experiência se encontra no uso que Pedro faz de
ginõskein em 6,69: "Estam os convencidos de que tu és o Santo de Deus".
Podem os conceder ainda que eidenai é frequentemente usado para o co-
nhecim ento intuitivo que Jesus tem do Pai e das coisas de Deus. Não obstante, a
distinção cai por terra quando compreendem os qu e ginõskein é usado em mui-
tos dos mesmos casos onde se usa eidenai. Notemos os seguintes exemplos:
• Jesus conhece o Pai: eidenai em 7,29 e 8,55; ginõskein em 10,15 e 17,25.
• Jesus conhece todas as coisas ou todos os homens: eidenai em 16,30 e
18,4·,ginõskein em 2,24.
• "Se me conhecésseis, conhecerieis tam bém a meu Pai: eidenai em am-
bas as partes de 8,19; ginõskein e eidenai em 14,7.
• O m undo ou os pecadores não conhecem o Pai ou Jesus: eidenai em
7,28; 8,19; 15,21·, ginõskein em 1,10; 16,3; 17,25; ljo 3,1.6.
Os partidários da distinção têm elaborado várias explicações para os
exem plos quando um ou o outro verbo é usado de um a m aneira que parece
violar o significado proposto para ela. Contudo, há tantas exceções que pro-
vavelm ente seja preferível chegar à m esm a decisão aqui que alcançamos so-
bre as tentativas de distinguir os vários verbos "am ar" e "ver". Pode ser que
João tenda usar um verbo de um a m aneira e o outro de outra m aneira, mas
é realm ente um a questão de ênfase e não de distinção incisiva. O evangelista
não é tão preciso como querem seus comentaristas.

BIBLIOGRAFIA

BARRISSEM, T. - Ver sob (1) agapê...


BONNINGUES, M., La Foi dans l'Evangile de saint Jean (Brussels: Pensés
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GAFFNEY, JL, "Believing and Knowing in the Fourth Gospel", TS 26 (1965),


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-Evangelium", Kerygma und Dogma 6 (1960), 131-54.
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LEAL, J., "El clima de la fe en la Redaktionsgeschichte del IV Evangelio", EstBib
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VANHOYE, A., "Notre foi, oeuvre divine, d'apres le quatrième évangile", NRT 86
(1964), 337-54.

(10) phos; skotia = "luz"; "trevas"

FREQUÊNCIA DE OCORRÊNCIA
1 ,2 ,3 Total Total
Sinóticos João João Apocalipse Joanino NT
phos 15 23 6 4 33 73
skotia 3 8 6 14 17

Nos outros escritos neotestam entários que tendem a usar skotos para "tre-
vas" - das 30 vezes som ente 2 correspondem aos escritos joaninos. Muitos
dos usos que o NT faz de "luz" e "trevas" se referem sim plesm ente a fenô-
meno físico; aqui não nos interessa o uso simbólico. O contraste dualista
entre luz e trevas é preponderantem ente joanino, em bora apareça ocasional-
mente em outras obras do NT (Lc 11,35; 2Cor 6,14; Ef 5,8; lT s 5,4; lP d 2,9).
Luz é um fenômeno natural que em si tende para o simbolismo. Com sua
claridade e calor, obviam ente ela é algo desejável e bom , enquanto as tre-
vas são espontaneam ente tem idas como más. Com o E. A chtemeier, art. cit.,
tem dem onstrado, o AT fez bom uso deste sim bolismo (jó 30,26). A vida era
associada com a luz solar, enquanto que o reino da m orte era retratada como
trevas lúgubres (Jó 10,21; SI 143,3). O SI 49,19 diz que o hom em que m orre
nunca mais verá a luz. Todavia, no AT luz e trevas não passam de símbolos
poéticos para o bem e o mal.
À luz dos escritos de Q um ran, agora sabem os que nos tem pos que pre-
cedem o NT este sím bolo assum iu novas dim ensões, pois nos Rolos do Mar
M orto luz e trevas se converteram em dois princípios m orais atracados
em um a luta ferrenha pelo dom ínio da raça hum ana. Para cada princípio
há um líder angélico pessoal criado por Deus, a saber, o príncipe da luz
A p ê n d ic e I: V ocab u lário joan in o 819

(presum ivelm ente Miguel) e o anjo das trevas (Belial). Luz é o equivalente
de verdade; trevas, de perversão; e os hom ens cam inham em um ou outro
desses princípios, segundo sua aceitação ou rejeição da interpretação que
a com unidade faz da Lei, se tornam filhos da luz ou filhos das trevas. Em
últim a análise, Deus destruirá o mal e, então, a perversidade desaparecerá
diante da justiça, como as trevas diante da luz. Este dualism o modificado
("m odificado" porque os princípios são criados) se aproxim a m uito mais da
atm osfera do Q uarto Evangelho do que qualquer outro texto no AT.
No pensam ento joanino, Deus é luz e nele não há nenhum as trevas (ljo 1,5).
A Palavra, que é Deus (Jo 1,1), vem ao m undo como a luz do m undo (8,12;
9,5), trazendo aos hom ens vida e luz (1,4; 3,19). A vinda desta luz se fez
necessária em virtude do pecado do hom em que trouxe trevas sobre o mun-
do, trevas que tudo fizeram para vencer a luz que foi deixada ao hom em
pecam inoso (Jo 1,5). Assim, para João o líder das forças da luz é a Palavra
incriada - um a significativa diferença da teologia de Q um ran -, enquan-
to o líder das forças das trevas é o Príncipe deste m undo (Lc 22,53 fala de
"o poder das trevas").
À m aneira de resposta à vinda da luz, os hom ens se alinham como fi-
lhos da luz ou filhos das trevas, d ependendo se vão para a radiante luz em
Jesus, ou fogem dela. Tudo isto tem sido docum entado pelas referências ci-
tadas acim a, q u an d o discutim os sobre o kosmos. Aqui devem os apenas no-
tar que, en q u an to em Q um ran a aceitação da Lei separava os filhos da luz
e os filhos das trevas, para João é a aceitação ou a rejeição de Jesus. Como
já m encionam os, m ais para o final do m inistério e nos últim os dias da vida
de Jesus, o term o "m undo" é crescentem ente em pregado para aqueles que
se afastam de Jesus, e então "m undo" e "trevas" se tornam praticam ente
sinônim os. As trevas se tornam m ais intensas no m om ento em que Jesus é
en tregue à m orte por Judas por instigação de Satanás (13,27); então João,
dram aticam ente, com enta: "E era noite" (13,30). Estava ainda escuro na
m anhã pascal q u an do M aria foi ao túm ulo (20,1), m as tudo isto foi m udado
pela ressurreição de Jesus.
Com o a fé em Jesus começa a vencer o m undo (1Jo 5,4), ljo 2,8 exclama:
"porque vai passando as trevas, e já a verdadeira luz alum ia". Os cristãos
devem andar na luz m ediante um a vida pura e com am or uns pelos outros
(ljo 1,6-7; 2,9-10). Finalmente, na Jerusalém celestial, virá o dia em que a luz
terá triunfando completam ente e nunca mais haverá trevas. "E a cidade não
necessita de sol nem de lua, para que nela resplandeçam , porque a glória de
Deus a tem ilum inado, e o Cordeiro é sua lâm pada. E as nações dos salvos
andarão em sua luz; e os reis da terra trarão para ela sua glória e honra. E suas
portas não se fecharão de dia, porque ali não haverá noite" (Ap 21,23-25).
82 0 A p ê n d ic e s

BIBLIOGRAFIA

ACHTENNEIER, E., “Jesus Christ, the Light of the World. The Biblical
Understanding of Light and Darkness", Interp 17 (1963), 439-49.
FENASSE, J. M., “La lumière de vie”, BVC 50 (1963), 24-32.
WEISENGOFF, J. P., “Light and Its Relation to Life in Saint John", CBQ 8 (1946),
448-51.

Nota: M uito da literatura sobre os Rolos do M ar M orto discute o dualis-


mo entre luz e trevas, e sua relação com João. Ver a discussão deste escritor
em CBQ 17 (1955), 405-19 (tam bém em NTE, pp. 105-20).

(11) hora = "hora"

Embora a frequência desta palavra em João (26 vezes) não seja extraordi-
nária tratando-se de um evangelho, a conotação especial dada a "a hora", em
João, é digna de nota. Nos outros evangelhos, hora quase sem pre se refere à
hora do dia, m as João usa a palavra com frequência para designar um perío-
do particular e significativo na vida de Jesus. Podem os determ inar preferi-
velmente o conteúdo de "a hora", alinhando (a) as passagens que dizem que
a "hora" ainda não chegou ou que ainda está vindo; e (b) as passagens que
dizem que ela já chegou.

(a) 2,4: "M inha hora ainda não chegou" - em Caná.


4,21: "Está vindo a hora quando adorarás o Pai não neste m onte nem
em Jerusalém " - à m ulher sam aritana.
4,23: "Todavia, é vindo a hora e agora está aqui, quando os verdadei-
ros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade".
5,25: "Vem a hora, e já está aqui quando os m ortos ouvirão a voz do
Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão".
5,28-29: "Porque a hora está chegando quando todos que se acham nos
túm ulos ouvirão sua voz [do Filho do Homem]... e sairão".
7,30; 8,20: O fracasso na tentativa de prender Jesus "porque ainda não era
chegada a hora".
16,2: "Vem mesm o a hora em que qualquer que vos m atar cuidará de
fazer um serviço a Deus".
16,25: "Chega, porém , a hora em que não vos falarei mais por parábo-
las, m as vos falarei abertam ente acerca do Pai".
16,32: "Eis que chega a hora, e já se aproxim a, em que vós sereis dis-
persos cada um para seu lado".
A p ê n d ic e I: V ocab ulário joan in o 821

db) 12,23: "É chegada a hora em que o Filho do hom em há de ser glorifi-
cado" - em Jerusalém. Antes disto o Sinédrio delineou o plano
de matá-lo (11,53); ele foi ungido por Maria com perfum e para
o dia de seu em balsam am ento (12,7); e os gentios pediram para
vê-lo (12,21).
12,27: "Pai, salva-me desta hora? Mas para isto vim para esta hora".
13,1: A últim a ceia começa com Jesus - "Sabendo Jesus que já era ehe-
gada sua hora de passar deste m undo para o Pai".
17,1: "Pai, é chegada a hora; glorifica teu Filho para que tam bém teu
Filho te glorifique".

Podem os começar distinguindo os casos em que "hora" é usada com o


artigo definido ou um adjetivo possessivo pronom inal ("a hora; m inha hora;
sua hora [de JesusJ") daqueles [casos] em que "hora" não tem artigo ("uma
hora"). Os prim eiros casos se reportam claram ente a um período especial na
vida de Jesus, um período mais bem definido em 13,1 - a hora de voltar para
o Pai. Este retorno é concretizado na paixão, m orte e ressurreição; se estende
do dom ingo de ram os ao dom ingo da páscoa. Recebemos a advertência de
que esta hora há de incluir a prisão e m orte de Jesus em 7,30 e 8,20. A pri-
m eira vez que Jesus diz que a hora chegou (12,23) foi depois de sua entrada
triunfal em Jerusalém. Neste m om ento, o Sinédrio já havia decidido matá-lo;
ele foi ungido para a morte; e a vinda dos gentios indica a Jesus que o plano
divino de salvação está para concretizar-se. Visto que esta salvação não pode
ser consum ada, a não ser através de sua m orte e ressurreição, Jesus sabe com
certeza que a hora é iminente. Que a hora tam bém inclui a ressurreição e
ascensão para o Pai, vê-se em 12,23 e 17,1, que põem a glorificação como o
alvo da hora.
Voltando agora às passagens que falam de "um a hora", podem os indagar
se estas se relacionam com "a hora" de Jesus. Parece que estas passagens
aplicam os efeitos da hora de Jesus aos que creem nele. Por exemplo, há
quatro passagens que dizem: "um a hora está vindo". Em 4,21, a vinda desta
hora verá um a m udança de prestar culto a Deus, com Jerusalém e Gerizim,
respectivam ente, perdendo sua importância; em 5,28-29, ela trará a ressur-
reição do corpo; em 16,2, envolverá perseguição; em 16,25, trará um a clara
com preensão das palavras de Jesus (através do Parácleto?). Evidentemente,
a referência da hora que vem é ao período após a ressurreição, quando di-
fundir-se a crença em Jesus. Os efeitos a serem produzidos nesta hora que
vem não tem a mesma iminência, m as então nenhum a das afirmações de
Jesus sobre os eventos futuros tem claras perspectivas cronológicas.
H á m ais três referências a "um a hora" que falam tanto da que vem quanto
da que "já chegou" ou "quase chegou". A combinação das duas indicações
822 A p ê n d ic e s

tem porais sugeriría um efeito incipiente ou antecipado da hora de Jesus so-


bre os discípulos. Em 4,23, esta hora p or vir ou já presente é a de adorar o Pai
em Espírito e em verdade; em 5,25, ela envolve o dom da vida eterna para
os espiritualm ente m ortos. Embora o dom do Espírito e daí o dom da vida
ainda não estivesse disponível até após a ressurreição (7,39; 20,22), a obra de
Jesus durante seu m inistério já oferecia aos que criam nele um a antecipação
desses dons celestiais. O Jesus ressurreto, além de tudo, agia em continui-
dade com o que ele já começara durante o ministério. E assim , d urante o
ministério, podia-se dizer que os efeitos da hora tanto haviam de vir quanto
já estavam presentes. A terceira passagem e um a expressa na últim a ceia é
16,32, a qual diz respeito à dispersão dos discípulos, presum ivelm ente na
m orte de Jesus. Visto que esta ceia é parte da hora, João pode dizer com pro-
priedade: "Eis que a hora... já chegou". Todavia, visto que o efeito particular
de ser disperso ocorrerá após a ceia e em um m om ento após "a hora", João
pode dizer com propriedade: "Eis que a hora está vindo".
Este conceito de "a hora" de Jesus é exclusivam ente joanino? Os sinó-
ticos usam "a hora" para o tem po em que os discípulos enfrentarão per-
seguição (Mc 13,11 e par.) e para a hora da vinda do Filho do Hom em
(Mt 24,44; 25,13 - ver Jo 5,28-29). Estas passagens têm paralelos na referência
joanina a "uma hora". Mais im portante é o uso sinótico absoluto de "a hora"
para a paixão de Jesus. No Jardim do Getsêm ane, em Mc 14,35, Jesus ora ao
Pai para que, "se possível, passar dele a hora" (cf. Jo 12,27); e em Mc 14,41
(Mt 26,45), ele informa os discípulos que "a hora veio", porque seu traidor já
chegou. Assim, há um vestígio na tradição sinótica de um conceito de hora
de Jesus m uito parecido com o conceito de João. Todavia, aqui, como em
outro lugar, o Q uarto Evangelho form ou um tem a prim ordial de algo que
aparece só incidentalm ente nos outros evangelhos.
Em duas passagens, João usa kairos, "tem po [designado]", como sinôni-
mo para "hora". Em 7,6.8, Jesus anuncia: "ainda não é chegado m eu tem po",
e "m eu tem po ainda não tem chegado". Estes versículos lem bram o uso de
"hora" em 2,4; 7,30; 8,20. E extrem am ente interessante que em Mt 26,18, em
um cenário pouco antes da últim a ceia, Jesus diz: "M eu tem po [kairos] está
próxim o".
A P Ê N D IC E II: A " P A L A V R A "

A dificuldade de determ inar o pano de fundo para o prim eiro versículo do


Q uarto Evangelho, "No princípio era a Palavra", é ilustrada dram aticam ente
no Fausto de Goethe (Pt. I, linhas 1224-37). Q uando Fausto começa a traduzir
o NT para o alem ão, ele começa com o Prólogo, e então descobre que "Pala-
vra" é um a tradução inadequada. Suas sugestões alternativas vêm de uma
estranha com binação de filosofia grega e alemã: "No princípio era o Pensa-
m ento [der Sinn 1"; ou "N o princípio era o Poder [força] [die Kraft]". No final,
ilum inado pelo espírito, Fausto proclam a triunfalm ente a tradução genuína:
"N o princípio era o Ato [die Tat]". As investigações m odernas para o pano de
fundo do uso joanino de "a Palavra" são tão variadas, se não tão românticas.
Para referências no que se segue, a atenção dos leitores deve voltar-se para a
Bibliografia dada para o Prólogo.
Podem os começar, salientando que "a palavra" era um nom e usado pe-
los protocristãos para as boas novas pregadas pelos apóstolos (Mc 4,14.15;
At 8,25), pregação que era um a extensão do m inistério de Jesus. Nosso pro-
blem a é explicar a evolução do uso de "Palavra" em sentido pessoal como
um título para Jesus no Prólogo. Duas outras passagens devem ser consi-
deradas nos escritos joaninos. Em Ap 19,11-16, o guerreiro divino cham ado
Fiel e V erdadeiro, e que porta um nom e divino que ninguém conhece senão
ele só, desce para ferir as nações. Este Rei dos reis e Senhor dos senhores é
cham ado "a Palavra de Deus". O pano de fundo para a cena se encontra em
Sb 18,15, onde o anjo destruidor do Êxodo é descrito como a poderosa pala-
vra de Deus que desce do céu. Ao descrever o portador do juízo como a pa-
lavra de Deus, tanto Apocalipse como Sabedoria de Salomão estão fazendo
uso do tem a de que a palavra de Deus é um a espada do julgam ento sobre
os hom ens. A outra passagem que se encontra no Prólogo de ljo 1,1: é "era
desde o princípio" é "a palavra da vida da qual estam os falando". Aqui, Je-
sus é visto como a palavra reveladora que dá vida aos hom ens, palavra que
alcança os hom ens através daqueles a quem ela foi enviada. N enhum desses
exem plos do Apocalipse e de 1 João é suficiente para explicar a personifica-
ção de "a Palavra" no Prólogo de João; mas é possível que possam guardar-nos
de irm os longe de dem ais em nossa busca pelo pano de fundo, como se o uso
no Prólogo fosse inteiram ente único na herança judaico-cristã.
824 A p ê n d ic e s

A. O suposto pano de fundo helenístico

O m undo grego foi a fonte da teologia do logos exposto no Prólogo?


Devemos distinguir entre duas possibilidades: prim eira, que a ideia do
logos é oriunda do m undo do pensam ento helenista; segunda, que os com-
ponentes básicos da ideia de "a Palavra" são oriundos de um pano de fundo
semítico, e quando esta ideia foi traduzida para o grego, logos foi escolhido
para expressá-la em virtude das conotações que este term o tinha no m undo
helenista. J. A. T. Robinson se inclina para a segunda possibilidade, como fa-
zem m uitos outros. Entretanto, visto que a intenção subjetiva na escolha que
o autor faz de palavras é sem pre difícil de provar, nos concentrarem os na
fonte da ideia de um a Palavra de Deus personificada. Os seguintes exemplos
do uso de logos no m undo helenista são significativos: (1) Foi em Éfeso, o local
de origem tradicional do Evangelho de João, que H eráclito, no 6Qséculo a.C.,
introduziu logos no pensam ento filosófico grego. Esforçando-se por explicar
a continuidade em meio a todo o fluxo que é visível no universo, H erácuto
recorreu ao logos como o princípio eterno da ordem do universo. O logos é o
que faz o m undo um kosmos. (2) Para os estoicos, o logos era a m ente de Deus
(um Deus mais panteístico que penetrou todas as coisas), guiando, controlan-
do e dirigindo todas as coisas. (3) F ilo usou o tema logos (mais de 1200 vezes
em suas obras) em sua tentativa de reunir os m undos do pensam ento grego
e hebraico. Para F ilo, o logos, criado por Deus, era o interm ediário entre Deus
e suas criaturas; o logos de Deus foi o que deu sentido e plano ao universo.
Era quase um segundo deus, o instrum ento de Deus na criação, e o espécime
da alma hum ana. Não obstante, nem a personalidade nem a preexistência do
logos estão claras em F ilo (ver B ernard, I, p. 140), e o logos filoniano não estava
conectado à vida. (4) Na literatura hermética tardia, o logos era a expressão
da mente de Deus, ajudando a criar e a ordenar o m undo. (5) N as liturgias
m andeanas ouvim os de "a palavra da vida", "a luz da vida" etc. Estes po-
dem ser ecos distantes de em préstim os do pensam ento cristão. (6) Quanto
ao campo geral do gnosticismo, "a Palavra" ocorre no Evangelho da Verdade
recém-descoberto, p. ex., em 16,34-47: "A Palavra que veio do plêrõm a que
está no pensam ento e m ente do Pai, a Palavra que é cham ada o Salvador".
É plausível que este uso gnóstico valentiniano fosse influenciado por João,
visto que o Evangelho da Verdade é consideravelm ente mais recente que João.
Ao avaliar alguns destes exemplos, deve-se ter em m ente que o Evange-
lho de João e algum as destas obras helenistas tiveram um a herança comum
na literatura sapiencial do AT (as quais, certam ente, influenciaram F ilo e
algum as das Odes Gnósticas), e que, portanto, paralelos podem ser traçados
de volta a raízes semíticas. Reiterando, os paralelos entre o Prólogo e a lite-
ratura helenista estão frequentem ente num nível superficial, p. ex., o logos se
A p ê n d ic e II: A "palavra 825

relaciona com a criação. A profunda fusão no Prólogo de tem as oriundos de


Gn 1-3 ("No princípio", criação, luz, vida, trevas versos a luz) e da teofania
do Sinai (tenda ou tabernáculo, glória, am or perene) sugerem que a imagem
básica do hino vem do AT. A atividade de "a Palavra" na criação, no m undo
e acima de tudo na história da salvação indica que seu conceito é mais estrei-
to às dinâm icas implicações do hebraico dãbãr do que à abstração intelectual
im plícita nos usos filosóficos do logos grego. Q uando se lê o hino do Prólogo
e o com para aos paralelos helenistas sugeridos acima, então com preende a
veracidade da observação de A gostinho (Confissões 7.9; CSEL 33:154), a saber,
enquanto ele encontrou o equivalente da maioria das doutrinas cristãs nos
autores pagãos, havia um a coisa que nunca fora lida neles - que a Palavra se
fez carne. O tem a básico do Prólogo é estranho aos paralelos helenistas que
têm sido oferecidos; e então vejamos se um m elhor pano de fundo pode ser
achado no pensam ento bíblico e judaico.

B. Sugestões para um pano de fundo semita

N ão existe nen h um paralelo sem ítico que explique com pletam ente o
uso que o Prólogo faz de "a Palavra", m as tom ados juntos em conjunto, os
seguintes pontos que oferecem considerável pano de fundo contra a qual
tal uso torna-se bem m ais inteligível.
(1) "A palavra do Senhor" (debar YHWH; logos kyrioü). Já mencionamos o he-
braico dãbãr. Isto significa mais do que "palavra falada"; significa também "coi-
sa", "atividade", "evento", "ação". E porque ela abrange ambos, palavra e ato,
no pensam ento hebraico dãbãr tinha inerentemente certa energia e poder dinâ-
micos. Quando nos livros proféticos do AT ouvimos que "a palavra do Senhor"
veio a um profeta particular (Os 1,1; J1 1,1), não temos de pensar simplesmente
em revelação informativa. Esta palavra desafiava o próprio profeta; e, quando
ele a aceitava, a palavra o impelia a avançar e a passar a outros. Esta era uma
palavra que julgava os homens. Para o Deuteronomista, a palavra é um fator
gerador de vida (Dt 32,46-47); e, para o salmista (107,20), a palavra de Deus tem
o poder de curar o povo. Sb 16,26 diz que a palavra (rema) do Senhor preserva
os que creem nele, assim como a palavra (logos) de Deus curou os picados por
serpentes no deserto (16,12 - Jo 3,14). Vemos aqui muitas das funções atribuídas
à Palavra no Prólogo: "A palavra do Senhor" do AT também veio, foi aceita,
aparecia dotada de força e comunicava vida. Além do mais, a palavra de Deus
foi também descrita no AT como a luz dos homens (SI 119,105; 130; 19,8). Que
outros autores do NT viram a similaridade entre a palavra profética e Jesus Cris-
to pode ser visualizado em Hb 1,1-5, um pequeno hino não destituído de seme-
lhanças com o Prólogo: "De muitas e de várias maneiras Deus falou outrora aos
pais pelos profetas; nestes últimos dias, porém, Ele nos falou por meio do Filho".
826 A p ê n d ic e s

A "palavra do Senhor" tinha tam bém um a função criativa no AT, assim


como tem a Palavra do Prólogo. Vimos que o Prólogo im ita Gn 1, e ali a
criação se dá quando Deus diz: "Haja luz"... Segundo o SI 33,6, "pela pa-
lavra do Senhor os céus foram estabelecidos"; e em Sb 9,1 Salomão come-
ça: "Ó Deus de m eus pais... que fizeste todas as coisas por tua palavra".
E assim há um bom pano de fundo veterotestam entário para a afirmação
de Jo 1,3 de que através da Palavra todas as coisas vieram à existência.
Enquanto o pensam ento no hebraico não personificava a "palavra do Se-
nhor", devem os ter em m ente que, na perspectiva hebraica, um a palavra
um a vez dita, tinha existência própria. Há no AT várias passagens em que
a palavra de Deus exerce funções independentes que são quase pessoais.
A prim eira é Is 55,11 (este capítulo de Isaías forma o pano de fundo para o
discurso sobre o Pão da Vida em Jo 6): usando a com paração da chuva e da
neve que desce do céu e faz a terra frutífera, Deus diz: "Assim será a palavra
[dãbãr; rem a ] que sair de m inha boca; não voltará para m im vazia. Antes,
ela cum prirá o que quero e proponho nas coisas para que as designei". Te-
mos aqui o m esm o ciclo consistente de ir e voltar que encontram os no Pró-
logo. Uma segunda passagem é Sb 18,15, citada acima como pano de fundo
para o uso de "a Palavra de Deus" como título em Ap 19,13. E interessante
que o anjo destruidor fosse m encionado como a palavra de Deus, pois as
atividades do anjo tocavam as raias do pessoal. A últim a passagem que pode
ser citada como a atribuir atividades pessoais à palavra de Deus é Habacu-
que 3,5 [na LXXj. Na grande teofania, como Deus vem de Temã, um logos (a
tradução da LXX reflete o hebraico dãbãr, m as o TM lê deber, "praga") sai de
diante de sua face para a terra; e m uito da ação que segue pode ser entendido
como a obra desta palavra.
Talvez devam os acrescentar que, enquanto temos nos concentrado na dou-
trina bíblica da palavra divina, este conceito de um a palavra criadora de Deus
não se restringe ao pensam ento hebraico. Ele se encontra no O riente Próximo à
m edida queretrocedeao3Bm ilênioa.C. Ver W.F. A lbright, From the Stone Age to
Christianity (Anchor ed., 1957), pp. 195, 371-72.
(2) Sabedoria personificada. Em Interpretation, pp. 274-77, Dodd fomece
duas listas de paralelos para o uso que o Prólogo faz de "a Palavra", uma
da literatura sapiencial do AT, a outra de F ilo. A prim eira é m uito m ais elo-
quente, ainda que deixemos de lado a probabilidade de que paralelos entre
João e F ilo sejam o resultado de dependência com um da Literatura Sapien-
ciai. Uma vez que o Q uarto Evangelho apresenta Jesus como a Sabedoria que
veio cham ar hom ens, revela-lhes a verdade e lhes dá vida (ver Introdução
VIII), não surpreende encontrar no Prólogo um eco deste pensam ento. Aliás,
o Prólogo combina os estilos tanto da literatura profética como da literatura
sapiencial do AT. O título "a Palavra" se aproxim a m ais da profética "palavra
A p ê n d ic e II: A "palavra 827

do Senhor"; m as a descrição da atividade da Palavra é m uitíssim o parecida


com a da Sabedoria. Além do mais, as discussões em torno da Sabedoria
personificada em Provérbios, Siraque e Sabedoria de Salomão são transfor-
m adas em unidades poéticas ou hinos (Pv 1,20-33; 8-9; Siraque 24; Sb 7,22ss.;
Baruque 3,9ss.), e estes poem as sapienciais propiciam um paralelo na forma
literária geral com o hino joanino à Palavra.
Spicq, a r t . c i t . , estudou cuidadosam ente as introduções que m arcam as
cinco divisões dos provérbios selecionados de Siraque, introduções que tra-
tarn da Sabedoria. Este autor adverte ser notável que não só as funções da
Sabedoria e da Palavra são m uitíssim o similares, m as tam bém a ordem em
que as funções são apresentadas é aproxim adam ente a mesma.
Ao com pararm os a Sabedoria e a Palavra, podem os começar observan-
do que a Sabedoria nunca é cham ada a palavra de Deus. Não obstante,
em Siraque 24,3, a Sabedoria diz: " D a b o c a do Altíssimo eu saí... nos mais
elevados céus eu habitei"; e Sb 9,1-2 põe a palavra de Deus e a Sabedoria
de Deus em paralelism o. Pr 8,22-23 diz da Sabedoria: "O Senhor me pos-
suiu n o p r i n c í p io de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras. Des-
de a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra".
Assim, diferente da Palavra, a Sabedoria foi criada, aquela existiu desde
o princípio, antes da criação do m undo. Siraque 1,1 afirma que a Sabedo-
ria vem do Senhor e perm anece com ( m e t a ) Ele para sem pre, assim como
o Prólogo declara que a Palavra que estava com ( p r o s ) Deus está sempre
ao lado do Pai (1,18). A relação da Sabedoria com Deus é difícil de definir.
Se Provérbios e Siraque 24,9 dizem que Deus criou a Sabedoria, Sb 7,25-26
diz que a Sabedoria é um a aura do poder de Deus, um a m era e fu s ã o d a g l ó -
r ia d o O n i p o t e n t e (com parar Jo 1,14), a refulgência da l u z eterna. Assim, en-
quanto o pensam ento hebraico não diria que a Sabedoria era Deus, como
o Prólogo diz que a Palavra era Deus, não obstante a Sabedoria é divina.
O Prólogo não especula sobre como a Palavra procede do Pai, nada mais faz
além de identificar a Palavra como o Filho unigênito ( m o n o g e n ê s ) de Deus.
É interessante que Sb 7,22 aplica o adjetivo m o n o g e n ê s à Sabedoria no sen-
tido de "unicidade". O hino em Hb 1,1-5, que já vim os ter afinidades com
o Prólogo, descreve em algum a m edida como o Filho procede do Pai. Este
hino não pode encontrar m elhor linguagem para o propósito do que extrair
das descrições da Sabedoria no AT, particularm ente no Livro de Sabedoria,
pois em H ebreus se diz que o Filho é o reflexo da glória de Deus e a repre-
sentação de seu ser.
A Sabedoria, como a Palavra, foi um agente ativo na criação. Sb 9,9
nos inform a que a Sabedoria estava presente quando Deus fez o m undo,
e 7,22 cham a a Sabedoria "o artífice de tudo". Em Pr 8,27-30, a Sabedo-
ria descreve como ela ajudou Deus na criação, servindo de artífice de Deus.
828 A p ê n d ic e s

A Sabedoria é também similar à Palavra, sendo ela luz e vida para os homens.
Ecl 2,13 diz: "Eu vi que a sabedoria é mais proveitosa que a loucura, assim
como a luz é mais proveitosa do que as trevas". (Ver tam bém Pv 4,18-19).
Em Pr 8,35, a Sabedoria diz: "Aquele que me encontra, encontra a vida"; e
Baruque 4,1 prom ete que todo aquele que aderir à Sabedoria viverá.
O Prólogo diz que a Palavra veio ao m undo, som ente para ser rejeitada
pelos hom ens, especialm ente pelo povo de Israel. A Sabedoria tam bém veio
aos homens; p. ex., Sb 9,10 registra a oração de Salomão para que a Sabedoria
fosse enviada do céu para estar com ele e agir com ele. Provérbios afirm a que
a Sabedoria se deleitou em estar com os hom ens. H ouve hom ens insensatos
que rejeitaram a Sabedoria (Siraque 15,7); e 1 Ettoque 42,2 afirm a com toda
clareza: "A Sabedoria veio para fazer-se um lugar habitável entre os filhos
dos hom ens e não encontrou nenhum lugar perm anente". Baruque 3,12 se
dirige a Israel em particular: "Tu rejeitaste a fonte da sabedoria".
A Palavra arm ou sua tenda ou tabernáculo entre os hom ens; então Si-
raque 24,8ss. diz que a Sabedoria arm ou seu tabernáculo em Jacó (Israel).
Se alguém viu a glória (doxa) da Palavra cheia de am or pactuai (charts), a
Sabedoria é como um a árvore que estende seus ram os de doxa e charts (Si-
raque 24,6).
Assim, na apresentação que o AT faz da Sabedoria, há bons paralelos
para quase cada detalhe da descrição que o Prólogo faz da Palavra. O Pró-
logo efetua mais personificação do que fez o AT ao descrever a Sabedoria,
m as esse desenvolvim ento se origina da Encarnação. Se indagarm os p or que
o hino do Prólogo escolheu falar da "Palavra" em vez da "Sabedoria", deve-
se considerar o fato de que, no grego, a prim eira é m asculina, enquanto a
segunda é feminina. Além do mais, a relação da "Palavra" com o querigm a
apostólico constitui um a consideração relevante.
(3) A especulação judaica sobre a Lei (Torá). Ver G. F. M oore, Judaism
(Harvard, 1927), I, pp. 264-69; StB, II, pp. 353-58; Boismard, Prologue, pp. 97-98.
Em escritos rabinicos posteriores, a Lei é retratada como tendo sido criada
antes de todas as coisas e servido de m odelo na criação do m undo por Deus.
O "no princípio" de Gn 1,1 era interpretado no sentido de "na Torá". Esta
idealização da Lei provavelm ente tivesse seu princípio nos últim os séculos
pré-cristãos. Siraque 24,23ss. dá evidência da identificação da Sabedoria com
a Torá. Baruque 4,1, tendo falado da Sabedoria personificada, diz: "Este é
o livro dos m andam entos de Deus, e a Lei que durará para sem pre". Em
m uitos casos, a Torá e "a palavra do Senhor" são quase intercambiáveis,
p. ex., no paralelism o de Is 2,3, "De Sião sairá a Lei, e de Jerusalém , a pa-
lavra do Senhor". Assim, a especulação sobre a Lei tem m uito em comum
com os outros tem as que temos citado como pano de fundo para o uso de
"a Palavra" no Prólogo.
A p ê n d ic e II: A "palavra 829

Em particular, podem os notar os seguintes paralelos com o Prólogo.


Pr 6,23 diz que a Torá é um a luz. A passagem em SI 119,105, a qual diz que
a palavra de Deus é um a luz está posta no contexto de louvor à Lei; e de fato
alguns m anuscritos da LXX leem "Lei" em lugar de "Palavra". O Testamento
de Levi 14,4, em um a passagem m uitíssim o sem elhante a Jo 1,9, fala de "a
Lei que foi d ada para ilum inar todo hom em ". (Todavia, há interpolações
cristãs no Testamento de Levi). Enquanto o Prólogo diz que a Palavra era a
fonte de vida, os rabinos afirmam que o estudo da Lei conduziría alguém
à vida para sem pre (Pirqe Aboth 7,6). Enquanto o Prólogo enfatiza que Je-
sus Cristo é o único exemplo do eterno am or de Deus (hesed e 'emet), os
rabinos ensinavam que a Lei era o suprem o exemplo (D odd, Interpretation,
p. 82). Jo 1,17, com seu contraste entre a Lei e Jesus Cristo, podería indicar
que, em parte, a doutrina joanina da Palavra foi form ulada como um a res-
posta cristã à especulação judaica sobre a Lei (ver tam bém Jo 5,39).
(4) O uso targúm ico de Memra. Q uando João cita a Escritura, como já vi-
mos, algum as vezes a citação não é tom ada do hebraico nem da LXX, e sim
dos targuns ou traduções aramaicas. Nestes targuns, memra, palavra aramai-
ca para "palavra", tem um a função especial. (As advertências expressas por
G. F. MooKK em "Intermediaries in Jewish Theology", HTR 15 11922], especial-
m ente pp. 41-55, são ainda im portantes). A Memra do Senhor nos targuns
não é sim plesm ente um a tradução do que temos dito como "a palavra do
Senhor"; antes, é um substituto para o próprio Deus. Se em Ex 3,12 Deus
diz "Eu estarei convosco", no Targum Onkelos Deus diz "M inha Memra será
vosso sustento". Se em Ex 19,17 somos inform ados que Moisés conduziu o
povo para fora do acam pam ento ao encontro com Deus, no Targum Onkelos
som os inform ados que foram conduzidos à Memra de Deus. Se Gn 28,21 diz
"Iahw eh será o m eu Deus", o Targum Onkelos fala da Memra de Iahweh. Isto
não é um a personificação, m as o uso de Memra serve como um recurso para
assegurar a transcendência divina. Se a expressão aramaica para "palavra"
era usada nos targuns como um a paráfrase para Deus em seus tratos com os
hom ens, o autor do hino do Prólogo de João viu ser oportuno usar este título
para Jesus que preem inentem ente incorporou a presença de Deus entre os
hom ens. A personificação da Palavra, naturalm ente, seria parte da inovação
teológica cristã.
Em sum a, parece que a descrição que o Prólogo faz da Palavra é muito
m ais estreita com as tensões do pensam ento bíblico e judaico do que com
algo m eram ente helenista. No pensam ento que compôs o Prólogo, a palavra
criadora de Deus, a palavra do Senhor que veio aos profetas, se tornou pes-
soai em Jesus que é a incorporação da revelação divina. Jesus é a Sabedoria
divina, preexistente, m as agora vem para o meio dos hom ens a ensiná-los e
dar-lhes vida. Não a Torá, e sim Jesus Cristo é o criador e fonte de luz e vida.
830 A p ê n d ic e s

Ele é a Memra, a presença de Deus entre os homens. E, todavia, ainda que


todas estas tensões estejam entretecidas com o conceito joanino da Palavra,
este conceito perm anece a singular contribuição do cristianismo. Ela se man-
tém além de tudo o que veio antes, do m esm o m odo que Jesus está mais
além de todos quantos o precederam .
Antes de concluirmos, podem os abordar mais um ponto: a revelação de
Deus na Palavra é form ulada contra um pano de fundo do silêncio ante-
rior de Deus, como J eremias, art. cit., (ver Bibliografia ao Prólogo), pp. 88-90,
tem sugerido? Hb 1,1-2 contrasta o falar de Deus através do Filho com seu
falar através dos profetas; m as devem os ter em m ente que na estim ativa ju-
daica nenhum profeta havia m anifestado no país à séculos. O SI 74,9 diz:
"Já não há nenhum profeta". Passagens como lM c 4,41-50; 14,41; e o Testa-
mento de Benjamim 9,2, m ostram um anseio nostálgico por um novo profeta.
Na exegese rabínica de Gn 1,1-3 m antinha-se que antes de Deus falar existia
o silêncio. O Prólogo está apresentando a Palavra de Deus como um a vez
mais saindo do silêncio divino? C ertam ente tal quadro apela para o m undo
helenista onde, como sabem os do papiro mágico e dos hinos ao "silêncio",
o silêncio era um a m arca do Deus absconditus. Há várias indicações relevan-
tes. Na quase personificação da palavra divina em Sb 18,14, discutida acima
como parte do pano de fundo para o uso joanino de "a Palavra", a poderosa
palavra de Deus saltou do céu "quando o silêncio envolvia todas as coisas".
Segundo, Inácio de A ntioquia, que parece oferecer um eco prim itivo do pen-
sarnento joanino, fala em Magn 8,2 de Deus, "que Se m anifestou através de
Jesus Cristo seu Filho, que é sua Palavra procedente do silêncio". Entretan-
to, a ênfase sobre o silêncio pode ser um a contribuição do próprio Inácio, e
não oriundo de João, pois Inácio insiste do m esm o m odo no silêncio que se
realizou na encarnação relatada em sua carta aos Ef 19,1. Assim, a sugestão
de que Palavra quebrou o silêncio de Deus é um a hipótese atraente, porém
destituída de prova adequada.
A P Ê N D IC E III: S IN A IS E O B R A S

Q uando com param os a apresentação dos milagres de Jesus no Quarto Evan-


gelho com a apresentação nos sinóticos, há algum as diferenças óbvias. Al-
gum as destas diferenças são relativamente superficiais. Primeiro, há um a di-
ferença no núm ero de milagres, pois João narra menos milagres do que os
sinóticos. Por exemplo, uns 200 dos 425 versículos dos capítulos 1-9 de Marcos
tratam direta ou indiretam ente de milagres, estatística que significa que qua-
se m etade da narrativa marcana do ministério público de Jesus se ocupa do
miraculoso. João descreve somente sete milagres (ver p. 161), cada um cui-
dadosam ente escolhido para confirmar a fé do leitor (20,30-31). Segundo, há
um a diferença nas circunstâncias que acom panham os milagres. Na tradição
sinótica há m uito mais atenção ao aspecto miraculoso dos milagres e o entu-
siasm o que produzem - as m ultidões se comprimem ao redor de Jesus com
seus enfermos e suplicando por socorro; a reverência à vista do milagre; as
notícias excitadas do que foi feito, passando de cidade a cidade. Este vivido
colorido do milagre se desvanece em João. João, por consequente, não com-
partilha com os sinóticos como os milagres são narrados em comum com as
histórias pagãs de milagres atribuídas aos taum aturgos do m undo helenista.
Q uando consideram os os tipos de m ilagres narrados em João, encontra-
m os pouca diferença das narrativas sinóticas. Três dos sete m ilagres joaninos
são tam bém encontrados na tradição sinótica, a saber, a cura do filho do ofi-
ciai régio (4,46-54), a m ultiplicação dos pães (6,1-15), Jesus cam inhando sobre
o m ar (6,16-21). O utros três dos m ilagres joaninos são do mesm o tipo de mi-
lagres encontrado na tradição sinótica, a saber, a cura do paralítico (5,1-15),
a cura do cego (9), a ressurreição de um m orto (11). Somente a transforma-
ção da água em vinho (2,1-11) não tem paralelo na tradição sinótica (ver o
com entário sobre a cena de Caná no § 6).
E quando chegam os à questão da função dos m ilagres que encontra-
mos diferença m ais acentuada entre os sinóticos e João. Comecemos com
os evangelhos sinóticos, onde os m ilagres são prim ariam ente atos de poder
(1dynameis) que acom panham a irrupção do reino de Deus no tempo. Os mi-
lagres operados por Jesus não são sim plesm ente provas externas de suas
reivindicações, são, porém , mais fundam entalm ente atos pelos quais ele
estabelece o dom ínio de Deus e derrota o dom ínio de Satanás. Muitos dos
m ilagres atacam Satanás diretam ente m ediante a expulsão de demônios.
83 2 A p ê n d ic e s

M uitas enferm idades que estão associadas com o pecado e o mal. O ato de
ressuscitar pessoas à vida constitui um ataque à m orte que é o reino peculiar
de Satanás. M esmos os m ilagres na natureza, como o acalm ar da tem pesta-
de, constituem um ataque às desordens introduzidas na natureza por Sata-
nás. Para detalhes, ver nosso artigo citado na bibliografia, pp. 186-99.
A função dos milagres como atos de poder que acom panham o reinado
de Deus dom ina a perspectiva sinótica, m as há uns poucos m ilagres que
não parecem ajustar-se a este quadro. Nestes casos, o propósito prim ário
do milagre parece ser o de simbolismo. A m ultiplicação dos pães parece ser
um eco pedagógico de tem as veterotestam entários, p. ex., Deus alim entando
Israel no deserto; a prom essa de Ezequiel de que Deus m esm o pastorearia o
rebanho (cf. Ez 34,11; Mc 6,34). Assim, este m ilagre sim boliza o cum prim en-
to das profecias do AT. A pesca m iraculosa em Lc 5,1-11 é sím bolo do grande
núm ero de pessoas a serem pescadas pelos discípulos como pescadores de
homens. A figueira que m urcha de repente (Mc 11,12-14.20-21) é um símbolo
profético da rejeição do judaísmo.
Há mais m ilagres que são prim ariam ente atos de poder, m as secundaria-
m ente exercem um papel simbólico. E possível que a cura de enferm os e a
ressurreição de m ortos tenham um sim bolismo secundário de cum prim ento
do quadro profético do AT do dia em que o Senhor confortaria seu povo,
dando vida aos mortos, vista aos cegos etc. (Is 26,19; 35,5-6; 61,1-3). Em sua
resposta aos emissários do Batista (Mt 11,2-6), Jesus denom ina este simbo-
lismo de cum prim ento para m ostrar que ele é aquele que havia de vir. Em
Mc 8 (cf. 22-26 no cenário de 11-21 e 27-30), o ato de abrir os olhos ao cego é
usado para sim bolizar o desenvolvim ento da fé. O sim bolismo da conversão
dos gentios dá colorido à cura do filho do centurião em Mt 8,5-13 e a cura da
filha da m ulher siro-fenícia em Mt 15,21-28.
Passando dos evangelhos sinóticos para João, encontram os um a ênfase di-
ferente na função dos milagres. João não fala muito do reinado ou reino de
Deus, e por isso não apresenta os milagres como atos de poder (dynameis) que
ajudam a estabelecer o reino. Talvez o mais perto que João chega do concei-
to sinótico de milagre como dynamis seja em 5,19: "O Filho não pode fazer
[dynamis] nada por si mesmo - somente o que vê o Pai fazer" - esta afirmação
se encontra na explicação do milagre de cura do paralítico feito no sábado. Em
harmonia implícita com a tradição sinótica, João pensa no Filho agindo com
o poder do Pai na realização de seus milagres, e João considera estes milagres
como sendo parte integral do ministério ou "obra" de Jesus. Entretanto, que a
ênfase é diferente, vê-se no fato de que João não faz aparente conexão entre os
milagres e a destruição do poder de Satanás. A completa ausência de exorcis-
mos em João chama a atenção. Naturalm ente, João fala de um a hostilidade en-
tre Jesus e Satanás (14,30; 15,33); aliás, o pensam ento joanino é mais dualístico
A p ê n d ic e III: S inais e obras 833

do que o dos sinóticos, m as os milagres não são vistos como armas que servem
para essa luta. Uma exceção possível é o milagre de Lázaro, no qual a emoção
de Jesus em face da morte (ver nota e comentário sobre 11,33) pode represen-
tar ira ante o poder de Satanás.
Em João, a função prim ária dos m ilagres parece ser a de simbolismo, fun-
ção esta que percebem os ser prim ária para uns poucos m ilagres nos sinóti-
cos, e secundária para m uitos outros. Talvez a m elhor abordagem para se
com preender o conceito joanino da função dos m ilagres seja através do voca-
bulário usado para os m ilagres de Jesus. Jesus m esm o se refere consistente-
m ente a eles como "obras" (17 vezes, Jesus em prega o singular ou o plural de
ergon; som ente em 7,3 os outros falam de suas "obras"). O utros personagens
no evangelho e o redator se referem aos milagres de Jesus como "sinais", um
term o que Jesus não usa em referência aos seus milagres.

As obras de Jesus

O term o "obras" é usado em duas ocasiões nos sinóticos para descrever


os m ilagres de Jesus (Mt 11,2; Lc 24,19). Assim, se o term o for autêntico nos
lábios de Jesus, este é outro caso do vocabulário enfático de João só preserva-
do incidentalm ente na tradição sinótica. O pano de fundo do AT para o uso
do term o pode ser encontrado na obra ou obras de Deus realizadas em favor
de seu povo, com eçando com a criação e continuando com a história da sal-
vação. O uso de ergon para criação é m uito proem inente na LXX (Gn 2,2); e
na história da salvação o Êxodo oferece um exemplo especial das obras de
Deus (Ex 34,10; SI 66,5; 77,12; tam bém Dt 3,24 e 11,3, onde "obras" é uma
leitura variante). É interessante contra este pano de fundo do Êxodo que em
At 7,22 Estêvão cham e Moisés "hom em poderoso em palavras e obras". Me-
diante o uso do term o "obras" para os milagres, Jesus estava associando seu
m inistério com a criação e as obras salvíficas de seu Pai no passado: "Meu
Pai segue trabalhando até agora, e assim eu tam bém estou trabalhando"
(Jo 5,17). Tão estreita é a união de Jesus e o Pai nas obras no seu ministério,
que se pode dizer que o próprio Pai realiza as obras de Jesus (14,10).
O conceito de "obra" em João é mais am plo do que o de milagres; em 17,4,
Jesus pode sum ariar todo o seu m inistério como um a obra. Os milagres de
Jesus não são apenas obras; suas palavras são também obras: "As palavras que
eu vos digo, não as digo por m im mesmo; é o Pai, perm anecendo em mim,
que realiza as obras" (14,10). Que em João palavras e obras possuem relações
estreitas, pode-se ver à luz do costum e joanino de ter um a obra miraculosa
seguida de um discurso interpretativo. (As grandes obras de Deus no AT com
frequência são tam bém seguidas de um a interpretação, p. ex., o cântico de
Ex 15 após a travessia do mar). Palavra nos lem bra que o valor do m ilagre
834 A p ê n d ic e s

não está em sua forma, e sim em seu conteúdo; a obra m iraculosa nos lembra
que a palavra não é vazia, e sim um a palavra ativa, enérgica, designada para
transform ar o m undo.

Os sinais de Jesus

A palavra "sinal" é usada para m ilagre nos evangelhos sinóticos, porém


não da mesma m aneira como em João. Podem os distinguir dois em pregos
de "sinal" nos sinóticos e um terceiro em prego em Atos. ( a ) "Sinal" é em-
pregado num cenário escatológico, em referência aos sinais dos últimos
tem pos e da parousia (Mt 24,3.24.30). Em Mt 24,24, a combinação "sinais e
prodígios" é em pregada para referir-se aos prodígios dos falsos profetas (ver
também 2Ts 2,9; Ap 19,20). O em prego escatológico de "sinais" tem sua ori-
gern nos livros proféticos e nos videntes apocalípticos do AT (Dn 4,2[3.99H];
6,28), e é frequente no Apocalipse. Josefo, War 6.5.3; 288-309, faz referência
aos eventos m iraculosos vinculados com a queda de Jerusalém como "si-
nais e prodígios", (b) "Sinal" é em pregado quando os não crentes pedem a
Jesus um m ilagre como um a prova apologética (Mt 12,38-39; 16,1-4; Lc 23,8;
IC or 1,22). É bem provável que este uso tenha sua origem no em prego oca-
sional que o AT faz de "sinal" como m arca divina de credibilidade; p. ex.,
Tb 5,2 (Sinaiticus): "Que sinal posso eu dar-lhe [para que creia que m e en-
viastes como vosso representante]?" De um a m aneira similar, os fariseus pe-
dem de Jesus suas credenciais. Este em prego de sinal, nos sinóticos, tem uma
conotação pejorativa, pois Jesus se recusa a dar tais sinais, um a vez que são
exigidos por um a geração má e incrédula, (c) Em Atos, "sinais e prodígios"
chegam a ser um a sim ples descrição dos m ilagres de Jesus e dos apóstolos.
Este em prego pode refletir a influência da linguagem septuagíntica em Lu-
cas; contudo, a expressão aparece tam bém em Paulo (Rm 15,19; 2Cor 12,12).
(Para um a história desta descrição com binada, ver M cC asland, art. cit.). Em
At 2,22, Jesus é cham ado um hom em atestado por "obras poderosas, prodí-
gios e sinais" - texto que equaciona o term o sinótico padrão para m ilagre,
dynamis ("obra poderosa") com teras ("prodígio") e sêmeion ("sinal"). A ex-
pressão "sinais e prodígios", bem como "sinais" isolado, é em pregado para
os milagres dos apóstolos em At 2,43; 4,30; 5,12; 6,8 etc.
Como o em prego joanino de sinal se equipara aos três usos de sinal dado
acima? Comecemos com o em prego em (b). Em Jo 2,18 e em 6,30, os que não
creem pedem um sinal, e estes casos são aproxim adam ente os m esm os que
dos sinóticos. Parcialm ente sem elhante ao em prego em (b) estão os casos
em João em que o povo chega a crer em Jesus por causa dos sinais, mas
este crer não é satisfatório (2,23-25; 4,48; 6,26). E um crer em sinais como
credenciais do sobrenatural, porém não exibe com preensão do que o sinal
A p ê n d ic e III: S inais e obras 835

inform a sobre Jesus e sua relação com o Pai. Não obstante, esses crentes im-
perfeitos deram um passo adiante no cam inho da salvação; são totalmen-
te diferentes dos voluntariam ente cegos que se recusam term inantem ente
a ver os sinais (3,19-21; 7,37-41). Os que pedem sinais, na tradição sinótica
(Mt 16,1-4), estão próxim os dos voluntariam ente cegos.
O em prego joanino mais característico de "sinal" é como um a designa-
ção favorável para um milagre, e este em prego não é diferente de (c) acima.
O evangelista se refere ao que aconteceu em Caná como o prim eiro dos si-
nais de Jesus (Jo 2,11), e à cura do filho do oficial em Caná no segundo dos
sinais (4,54). Ele diz que o Batista não operou nenhum sinal (10,41), enquanto
Jesus realizou m uitos (20,30). É interessante, contudo, que João não demons-
tre favorecer a combinação "sinais e prodígios". Ela aparece somente em
4,48: "Se não virdes sinais e prodígios, jamais crereis". Essa afirmação reflete
a suspeita joanina quanto ao elem ento prodigioso no milagre.
Sêmeion, "sinal", é um term o m enos am plo que ergon, "obra"; enquan-
to am bos são em pregados para milagres, sêmeion não é em pregado para
a totalidade do m inistério de Jesus. Todavia, inclusive palavras podem ser
sinais; p. ex., em 12,33 (18,32) e 21,19 há um a afirmação que serve como sinal
(sêm ainein ) de como Jesus ou Pedro hão de morrer. De m odo semelhante,
F ilo usa o verbo sêmainein para o significado simbólico de passagens ve-
terotestam entárias, embora, certam ente, em João um elem ento de profecia
esteja incluso em tais afirm ações simbólicas. Exceto para a afirm ação sinté-
tica em 20,30, o em prego que João faz de "sinal" se limita aos capítulos 1-12,
d onde a designação "O Livro dos Sinais". Com o capítulo 13 e "a hora", João
passa do sinal para a realidade.
Em João existem sinais não miraculoso? Cada em prego de sêmeion se re-
fere a um feito m iraculoso; mas, por exemplo, D odd sugere que o evangelista
considerava como sinais ações tais como a purificação do templo. E possível
que ele, sim; todavia os judeus, não (2,18). O fato de que a purificação do
tem plo seja seguida de 2,23, o qual menciona que Jesus não fez m uitos si-
nais em Jerusalém , na realidade não prova que a purificação fosse um sinal.
Vimos que 2,23-25 é sim plesm ente um a transição redacional para o capítulo 3.
Além do mais, 4,54 parecería indicar que não houve sinal no período entre
os dois m ilagres em Caná. O utro possível sinal não m iraculoso podería ser
3,14-15, onde a ressurreição do Filho do Hom em é com parada à elevação
da serpente no relato do Êxodo. A com paração é extraída de N m 21,9, onde
(LXX) lem os que Moisés fixou a serpente em um sêmeion.
Ainda não discutimos a relação do sinal joanino com o emprego no grupo
sinótico (a), o emprego escatológico de sinal. João não usa sinal para referir-se
a m ilagres ou prodígios fazendo a intervenção final de D eus no fim dos tem-
pos ou na segunda vinda do Filho do Hom em. Talvez o próprio fato de que
836 A p ê n d ic e s

o evangelista use sinal para designar os m ilagres operados p or Jesus durante


seu m inistério seja um reflexo da teologia da escatologia realizada que domi-
na este evangelho. Já havia sinais dos últim os tem pos no m inistério de Jesus.
Este pensam ento não está tão longe daquele enunciado em Mt 12,38.41, i.e.,
que nenhum sinal será dado, senão o sinal da própria pregação de Jesus.
Mt 16,3 diz que os sinais dos tem pos já estão presentes, se os fariseus pelos
menos pudessem interpretá-los.
Qual é o pano de fundo para o uso que João faz de "sinal", já que o uso é
um tanto diferente do uso nos sinóticos e em Atos? R. F ormesyn, art. cit., de-
monstra que há pouco em comum entre João e os escritos pagãos helenistas
no em prego de sêmeion, e que João se aproxima m uito mais da terminologia
da LXX. Em particular, sugerimos que, assim como o relato do Êxodo for-
neceu um pano de fundo para o em prego joanino de ergon, assim também
fornece um pano de fundo para o em prego joanino de sêmeion. Esta sugestão
recebe confirmação da frequência de temas do Êxodo em João: o tabernáculo
(1,14); o cordeiro pascal (1,29; 19,36; comentário sobre 19,14.29, no volum e II);
a serpente de bronze (3,14); Jesus e Moisés (1,17; 5,45-47); o m aná (6,31ss.);
a água da rocha (7,38-39). No relato do Êxodo, somos inform ados que Deus
multiplicou os sinais através de Moisés (Ex 10,1; N m 14,22; Dt 7,19); todavia,
o povo recusou-se a crer. Em N m 14,11, Deus pergunta: "Até quando não cre-
rão em mim, a despeito de todos os sinais que tenho realizado entre eles?"
Isto é muitíssimo parecido com Jo 12,37: "Apesar que Jesus realizasse tantos
de seus sinais diante deles, recusavam-se a crer nele". No versículo seguinte,
João responde ao problema com um a referência ao braço ("poder") do Senhor
(Is 53,1) que esteve em ação nestes sinais. Dt 7,19 fala de "sinais, maravilhas
e mão poderosa e braço estendido". Jo 20,30 conclui o evangelho com a nota
dos sinais que Jesus realizou diante de seus discípulos, precisam ente como
Dt 34,11 termina com a nota dos sinais e prodígios que Moisés realizou diante
de Israel. Nm 14,22 vincula a glória de Deus com seus sinais; assim tam bém os
sinais de Jesus exibiram sua glória (2,11; 12,37.41).
Em suma, os dois term os joaninos para milagres, "obras" e "sinais", par-
tilham do pano de fundo que a descrição do AT faz de Deus que age em
favor do homem. Enquanto ambos, ergon e sêmeion, ocorrem no relato que a
LXX faz do Êxodo, o term o sinótico dynamis é raro (uma variante em Ex 9,16;
tam bém Dt 3,24 - em outro lugar dynamis se refere a um exército ou hoste).
O termo "obra" expressa mais a perspectiva divina sobre o que é realizado, e
assim é um a descrição apropriada para o próprio Jesus aplicar aos milagres.
O termo "sinal" expressa o ponto de vista psicológico hum ano, e é um a des-
crição apropriada para outros aplicarem aos m ilagres de Jesus.
A p ê n d ic e III: S inais e obras 837

Após esta discussão do vocabulário joanino para os milagres, podemos


voltar à questão da função que os milagres exercem no pensam ento joani-
no. João apresenta os milagres como um a obra de revelação que está inti-
m am ente vinculada com a salvação. No relato do Êxodo, o livramento físico
realizado pela obra de Deus em favor de seu povo é o foco prim ário (natu-
ralm ente, um livram ento com implicações espirituais). Em João, a referên-
cia a livram ento espiritual é prim ário, e o elem ento simbólico é mais forte.
E, como já dissem os, esta ênfase prim ária sobre as possibilidades simbóli-
cas do milagre diferencia João dos sinóticos. Isto não significa que a ação
m aterial, como cura, possa ser prescindida, mas sim plesm ente que há pou-
ca ênfase sobre os resultados materiais do milagre e grande ênfase sobre
o sim bolismo espiritual. Se Jesus cura o filho do oficial e lhe concede vida
(4,46-54), a explicação que segue este milagre e o de Betesda deixa claro que a
vida que Jesus comunica é vida espiritual (5,21.24). Se Jesus restaura a vista ao
cego, o diálogo que segue (9,35-41) m ostra que Jesus lhe deu vista espiritual
enquanto os fariseus ficam reduzidos à cegueira espiritual. Se Jesus dá vida a
Lázaro, as observações de Jesus (11,24-26) m ostram que a restauração da vida
física só é im portante como um sinal do dom da vida eterna.
O sinal joanino com seu sim bolismo não é diferente da ação profético-
simbólica do AT, como M ollat, art. cit., tem indicado. As vezes o profeta
realizava um a ação que expressava graficam ente a vinda do juízo de Deus
ou a intervenção de Deus na vida de Israel; p. ex., Is 20,3; Jr 18,1-11; Ez 12,1-
16. A ação profética, entretanto, era m eram ente um sinal, já que ele nada
realizava de si m esm o (embora na com preensão hebraica do dinam ism o
profético houvesse mais de um a conexão entre a ação profética e os eventos
que seguiam do que adm ite a m ente m oderna). Na escatologia realizada de
João, os sinais de Jesus não só profetizam a intervenção de Deus, mas já a
contêm . A saúde física, a vista e a vida são dons que contêm um a antecipa-
ção da vida e fé espirituais. O aspecto profético dos sinais de Jesus consiste
nisto: a vida e vista espirituais que foram anexadas aos m ilagres físicos serão
derram ados sem tal intervenção, um a vez que tenha Jesus sido glorificado e
o Espírito tenha sido outorgado. Assim, o milagre é um sinal, não só quali-
tativam ente (um a ação m aterial apontando para a realidade espiritual), mas
tam bém tem porariam ente (o que sucede antes de a hora, profetizando o que
ocorrerá depois da hora que já chegou). Eis por que, como temos explicado,
os sinais de Jesus são encontrados somente no prim eiro livro do evangelho
(caps. 1-12).
O elem ento profético no sinal miraculoso é o que perm ite a narrativa joa-
nina do m ilagre portar tão frequentem ente um significado sacram ental se-
cundário (ver introdução, VI1I:B). Uma vez que tenha Jesus voltado para seu
Pai na crucifixão, ressurreição e ascensão, os sacram entos são o grande meio
83 8 A p ê n d ic e s

de derram ar a vida espiritual, pois do lado do Senhor crucificado brotaram


a eucaristia e o batism o (19,34; 7,38-39). Estes sacram entos são os sinais efi-
cazes do período pós-ascensão, assim como os m ilagres foram os sinais efi-
cazes e proféticos do período anterior à chegada da hora. Bem faz F itzer, art.
cit., pp. 171-72, em observar: "O milagre deve ser entendido como o sinal da
presença de Deus em Cristo. O sacram ento deve ser entendido como o sinal
da presença de Cristo na Igreja".

As várias reações dos homens diante dos sinais

No Apêndice 1:9, quando discutim os o conceito joanino de crer, posterga-


mos o tratam ento dos vários estágios da fé até tratarm os dos sinais de Jesus.
Estes estágios da fé estão estreitam ente relacionados com as reações dos ho-
mens aos sinais de Jesus. P. R iga, art. cit., com para os sinais em João às pará-
bolas dos evangelhos sinóticos. Ambos, sinais e parábolas, têm um elemento
enigmático que divide os ouvintes. Alguns são im pulsionados pelo dom da
fé a penetrar este enigm a e alcançar a revelação por detrás do sinal ou da
parábola; outros aderem cegam ente a um a com preensão exclusivam ente ma-
terialista. Há diversas m aneiras de apresentar os vários estágios de reação
(ver os artigos de G rundmann e C ullmann na Bibliografia do Apêndice 1:9);
mas parece conveniente distinguir quatro estágios, os prim eiros dos quais
são insatisfatórios, e os dois últimos, satisfatórios, (a) A reação dos que se re-
cusam ver os sinais com algum a fé; p. ex., Caifás que aconselha os fariseus a
m atarem Jesus m esm o que adm itam que Jesus esteja realizando m uitos sinais
(11,47). Esta é a reação do povo que se recusa a chegar-se para a luz (3,19-20);
teria sido preferível que eles tivessem seus olhos físicos incapazes de ver
(9,41; 15,22). Sua cegueira voluntária só pode ser explicada como o cumpri-
mento da falta de fé predita no AT. (b) A reação dos que veem os sinais como
prodígios e creem em Jesus como operador de m aravilhas enviado por Deus.
Jesus, norm alm ente, se recusa a aceitar o tipo de fé que tem por base os sinais
(2,23-25; 3,2-3; 4,45-48; 7,3-7); aliás, o Evangelho de João parece indicar que
certa aceitação de sinais não é fé verdadeira (7,5). O que é insatisfatório sobre
esta aceitação de sinais? G rundmann parece m anter que toda fé em sinais é
insuficiente, porque a fé deve ter a palavra como sua verdadeira base. Contu-
do, esta opinião não faz justiça à frequente correlação entre palavra e obra ou
sinal miraculoso; nem resolve os casos a serem citados em (c), a seguir, onde
fé em sinais parece receber aprovação. H ähnchen, art. cit., parece chegar mais
perto da solução do problem a, quando distingue entre sinais como provas
do poder divino de Jesus e os sinais como revelação do Pai agindo através
de Jesus. (H aenchen sugere que na tradição usada pelo evangelista os mila-
gres foram sinais no prim eiro sentido; e que o evangelista os em pregou no
A p ê n d ic e III: S inais e obras 839

segundo sentido). Em outras palavras, não é suficiente ficar impressionado


pelos m ilagres como m aravilhas operadas pelo poder de Deus; devem tam-
bém ser vistos como um a revelação de quem Jesus é e sua unicidade com o
Pai. (c) A reação dos que veem o verdadeiro significado dos sinais, e assim
vêm a crer em Jesus e saber quem ele é e sua relação com o Pai. Tal fé, que
parece ser satisfatória, é a culminação de diversas das narrativas dos mila-
gres de Jesus (4,53; 6,69; 9,38; 11,40). É esta com preensão de um sinal que
capacita o crente a ver que Jesus é a manifestação da glória de Deus (2,11).
Neste sentido, as obras que Jesus realiza dão testem unho dele (5,36), e Jesus
pode desafiar os hom ens a crerem em suas obras (10,38 - note que este ver-
sículo não é sim plesm ente um desafio a crer nos milagres como credenciais
de Jesus, e sim crer nas obras como manifestação da unicidade do Pai e o
Filho). No m ilagre de Lázaro, Jesus agradece ao Pai (11,41-42) este sinal que
levará o povo a crer nele como a ressurreição e a vida. Podemos notar que há
sub-estágios dentro desta reação satisfatória aos sinais; os discípulos que
crerem em Caná (2,11) ainda estão crescendo na fé em 6,60-71 e 14,5-12. En-
cher-se de fé salvífica em Jesus é um dom de Deus que, como o dom do Es-
pírito, só pode vir após a ressurreição. Isto é visto na mais plena confissão
de fé no evangelho (20,28). (d) A reação dos que creem em Jesus mesmo sem
ver sinais. Isto é louvado por Jesus (17,20), e Jesus os abençoa e ora para que
vejam sua glória (17,24). Não tem sentido especular se os que viram os sinais
de Jesus e vieram à fé através deles eram inferiores aos que viriam à fé sem
sinais. Uma fé não baseada em sinais se tom ou um a necessidade quando o
período em que Jesus operou sinais chegou ao fim. Que João não pretendia
excluir os milagres dos Doze (ver Atos) e sua utilidade para a difusão da
fé é sugerido por 14,12, onde Jesus promete: "Aquele que tiver fé em mim
realizará as m esm as obras que realizo. De fato, realizará maiores que estas".
O versículo seguinte indica que estas obras realizadas pelo crente se relacio-
nam com a glorificação do Pai e do Filho. Não obstante, ao exaltar um a fé
que não depende do sinal miraculoso, João está apontando para a situação da
vida da Igreja de seu tempo, onde o sacram ento em grande m edida substituiu
o m ilagre como o veículo de revelação simbólica.

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Ver também pisteuein, "crer", no Apêndice 1:9.
APÊNDICE IV: E G O E IM I - ‫ ״‬EU SOU‫״‬

Emprego Joanino

O grego egõ eim i, “Eu sou", pode ser sim plesm ente um a frase de lingua-
gem com um , equivalente a "sou eu" ou "eu sou ele". Todavia, a frase tem
tido um em prego solene e sacro no AT, no NT, no gnosticismo e nos escritos
religiosos d o paganism o grego. Bultmann, p. 1672, classificou quatro diferen-
tes em pregos da fórmula: (a) Präsentationsformel, ou um a introdução, respon-
dendo à pergunta: "Quem é você?" Assim: "Eu sou Sócrates"; ou em Gn 17,1:
"Eu sou El Shaddai". (b) Qualifikationsformel, ou como um a descrição do sujei-
to, respondendo à pergunta: "O que você é?" Assim: "Eu sou um filósofo"; ou
em Ez 28,2, o rei de Tiro diz: "Eu sou um deus", (c) Identißkationsformel, onde
o orador se identifica com outra pessoa ou coisa. Bultmann cita um dito de
Isis: "Eu sou tudo o que já foi que é e que será". O predicado resum e a iden-
tidade do sujeito, (d) Rekognitionsformel, ou um a fórmula que separa o sujeito
dos demais. Responde à pergunta: "Quem é aquele que...?" com a resposta:
"Sou eu". Este é um caso em que o "Eu" realmente é um predicado.
Ora, m antendo em m ente esta gama de uso, estendendo do banal ao sa-
cro, considerem os o uso de egõ eim i em João. Gram aticalm ente, podem os
distinguir três tipos de uso:
( 1 ) 0 uso absoluto sem predicado. Assim:
8,24: "a m enos que venhais a crer que EU SOU, seguram ente m orrereis
em vossos pecados".
8,28: "Q uando levantardes o Filho do Hom em, então com preendereis
que EU SOU".
8,58: "antes m esm o de Abraão vir à existência, EU SOU".
13,19: "quando acontecer, creiais que EU SOU".
Há um a tendência natural de sentir que estas afirmações são incompletas;
p o r exemplo, em 8,25 os judeus respondem com um a pergunta: "Quem és
tu?" Visto que este em prego vai além do linguajar ordinário, todos reconhe-
cem que o egõ eim i absoluto tem em João um a função revelatória especial.
Segundo D aube, art. cit., p. 325, T. W. M anson tem proposto que a fórmula
realm ente significa: "O Messias está aqui". O significado é pressuposto por
Mc 13,6 (Lc 21,8): "M uitos virão em m eu nome, dizendo: Eu sou" - aqui,
842 A p ê n d ic es

Mt 24,5 fornece um predicado: "Eu sou o Messias". Entretanto, não há mui-


to no contexto das passagens joaninas que nos inclinem a pensar que Jesus
estivesse falando da m essianidade. Uma explicação mais com um , como ve-
remos abaixo, é associar o uso joanino com egõ eimi em pregado como um
nome divino no AT e no judaísm o rabínico.
(2) O uso em que um predicado pode ser subentendido m esm o quando
não seja expresso. 6,20: Os discípulos no barco se acham am edronta-
dos porque percebem alguém vindo ao seu encontro sobre a água. Je-
sus lhes assegura: egõ eimi; não temais". Aqui, a expressão pode sim-
plesm ente significar: "Sou eu, i.e., alguém a quem conheceis, e não um
ser sobrenatural ou um fantasma". Entretanto, salientarem os que as
teofanias divinas no AT frequentem ente têm esta fórmula: N ão temais;
eu sou o Deus de vossos ancestrais. Como já disse no com entário sobre
§ 21, em 6,20 João pode m uito bem ter-nos dado um a cena epifânica, e
assim fazendo uso tanto do ordinário como do sacro de egõ eimi.
18,5: Os soldados e a guarda do tem plo foram ao jardim atravessando o
Cedrom para prender Jesus anunciam que estão buscando a Jesus,
e Jesus responde: "egõ eimi". Isto significa "Sou eu"; m as o fato
de que, os que o ouviram caíram por terra quando ele responde,
pressupõe um a forma de teofania que deixa os hom ens prostrados
trem endo diante de Deus. Uma vez mais, João parece estar fazen-
do um duplo uso de egõ eimi.
(3) O uso com um predicado nom inativo. Em sete casos, Jesus fala de si
mesm o figurativam ente.
6,34.51: "Eu sou o pão da vida [pão vivo]".
8,12 (9,5): "Eu sou a luz do m undo".
10,7.9: "Eu sou a porta das ovelhas".
10,11.14: "Eu sou o bom pastor".
11,25: "Eu sou a ressurreição e a vida".
14,6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida".
15,1.5: "Eu sou a videira [verdadeira]".
(Muito próxim o deste grupo de afirmações "Eu sou" estariam outros
dois: 8,18: "Eu sou o que testifica de mim mesmo"; e 8,23: "eu sou de cima".
Ver as notas sobre ambos os versículos). Ao discutir estas afirmações "Eu
sou" à luz das quatro fórm ulas possíveis dadas acima, B ui.tmann pensa que,
como agora se encontram no evangelho, cinco das sete pertencem a este gru-
po (d). Isto significa que Jesus está dizendo: "Eu sou o pão, o pastor etc., e
este predicado não é verdadeiro no tocante a algum a outra pessoa ou coisa.
Z immermann, p. 273, concorda que o uso é exclusivo; o acento está no "Eu" e
o predicado só é um desenvolvim ento - assim, este tipo de sentença de "Eu
sou" se relaciona com o uso absoluto em (1). Os que pensam que a sentença
A p ê n d ic e IV: e g o e i m i - "eu sou 843

de "Eu sou" com um predicado veio de fontes proto-m andeanas mantêm


que no evangelho Jesus está contrastando sua reivindicação de ser o pão, o
pastor etc., com a dos reivindicantes apresentados pelos proto-m andeanos.
Um contraste mais óbvio é sugerido pelo contexto do evangelho. "Eu sou o
pão" se encontra em um contexto em que a m ultidão sugere que o m aná dado
por Moisés era o pão do céu (6,31). A afirmação na festa dos Tabemáculos, "Eu
sou a luz", provavelm ente foi à maneira de contraste com as festivas luzes ar-
dendo com esplendor no átrio das mulheres no templo. A dupla reivindicação,
"Eu sou a porta" e "Eu sou o bom pastor" foi provavelmente para estabelecer
um contraste com os fariseus m encionados no final do capítulo 9 (ver p. 663s.).
Bultmann pensa que duas das afirmações "Eu sou", 11,25 e 14,6, perten-
cem ao grupo (c) da fórmula "Eu sou" em que o predicado identifica o su-
jeito. Assim, estas afirmações não são prim ariam ente um contraste com a
reivindicação de ser a ressurreição, a vida, o cam inho e a verdade da parte
de outro. Em nossa opinião, isto é não só correto, m as é tam bém provável
que as cinco afirmações que Bultmann atribui a (d) têm tam bém aspectos que
pertencem a (c). A ênfase em todas estas afirmações "Eu sou" não está exclu-
sivam ente no "Eu", pois Jesus tam bém deseja dar ênfase ao predicado que
inform a algo de seu papel. O predicado não é um a definição ou descrição es-
sencial de Jesus propriam ente dito; é mais um a descrição do que Jesus é em
sua relação com o hom em . Em sua missão, Jesus é a fonte da vida eterna para
os hom ens ("videira", "vida", "ressurreição"); ele é o meio através do qual
os hom ens acham a vida ("cam inho", "porta"); ele guia os hom ens à vida
("pastor"); ele revela aos hom ens a verdade ("verdade") que nutre sua vida
("pão"). Assim, estes predicados não são títulos estáticos de auto-doxologia,
e sim de revelação do com prom etim ento divino envolvido no envio que o
Pai faz do Filho. Jesus é estas coisas para os hom ens porque ele e o Pai são
um (10,30) e ele possui o poder gerador de vida do Pai (5,21). A afirmação de
Jesus, "Eu sou a verdade, a luz, "... se relacionaria com afirmações similares
sobre a relação do Pai com os homens: "Deus é Espírito" (4,24); "Deus é luz"
(ljo 1,5); "D eus é am or" (ljo 4,8.16).
Há outras indicações de que, nestas afirmações, o predicado não pode
ser negligenciado. Os discursos associados com as afirmações "Eu sou" ex-
plicam o predicado; isto é óbvio nas explicações do pão, da porta, do pastor
e da videira. Além do mais, há m uito a ser dito do paralelism o que alguns
estudiosos estabeleceram entre esta classe de afirmações "Eu sou" e as pa-
rábolas sinóticas que começam com "o reino do céu [Deus] é como"... (ver
J. J eremias, TWNT, V, p. 495; L. C erfaux, RecLC, II, pp. 17-26). Indicamos ao
leitor a discussão acima nas páginas 120ss. Certam ente, nas parábolas sinó-
ticas a força da com paração está centrada em torno de um a explicação do
símbolo a que o reino é com parado.
84 4 A p ê n d ic e s

Finalmente, deve-se notar que há afirmações "Eu sou" com um predicado


nominal tanto em Apocalipse como em João. Mas, enquanto em João os pre-
dicados são adaptações do simbolismo do AT (pão, luz, pastor e videira são
todos usados simbolicamente em descrever as relações de Deus com Israel), os
predicados no Apocalipse são frequentem ente tom ados diretam ente de passa-
gens do AT. Note os seguintes exemplos: Ap 1,8: "Eu sou o Alfa e o Omega";
1,17: "Eu sou o prim eiro e o último, e aquele que vive" (cf. Is 41,4; 44,6; 48,12);
2,23: "Eu sou aquele que sonda a m ente e o coração" (cf. Jr 11,20).

O pano de fundo do uso Joanino

Há m uitos exemplos pagãos de um uso sacro de "Eu sou"; p. ex., na fór-


mula mágica de Isis, o corpus Hermético e na liturgia do mitraísmo. Se pode
encontrar exemplos pertinentes em Bernard, I, p. 69; Barrett, p. 242. Já men-
cionamos a existência de paralelos m andeanos. M uitos estudiosos, como
N orden e W etter, têm sugerido que o pano de fundo da fórm ula joanina se
encontra nesse uso religioso pagão - um uso que passou do m undo oriental
para o m undo grego. Todavia, como Z immermann tem salientado, é difícil
encontrar paralelos pagãos para o uso absoluto joanino de egõ eimi, uso esse
que é muitíssim o im portante para se com preender esta fórm ula em João. Os
textos mágicos que dizem sim plesm ente "Eu sou" não são exemplos de um
uso absoluto, pois um nom e tem de ser suprido pelo que se utiliza do texto.
Certamente, a questão do pano de fundo do egõ eimi joanino é apenas uma
pequena faceta da questão m aior das influências no pensam ento religioso do
Quarto Evangelho que já discutim os na Introdução, IV. Os paralelos gnósti-
cos e helenistas para a fórmula do "Eu sou" não são tão convincentes para
alterar a posição geral adotada ali, a saber, que o lugar mais provável para se
buscar o pano de fundo joanino é no judaísm o palestino.
O AT oferece excelentes exemplos do uso de "Eu sou", inclusive os únicos
bons exemplos do uso absoluto. Z immermann começa seu estudo das fórmu-
las do AT com um a discussão das passagens que contêm a afirmação "Eu sou
lahw eh", ou "Eu sou Deus", pois o uso absoluto de "Eu sou" é um a variante
desta expressão. Em hebraico, a afirmação contém sim plesm ente o pronom e
"Eu" (’‫״‬rci) e o predicado "Iahw eh" ou "D eus" (’ê/; Hõhim), sem um verbo
conectivo. A LXX usa egõ kyrios, egõ theos, m as às vezes supre o verbo co-
nectivo eimi. A expressão tem vários usos. Pode ser usada quando Deus in-
forma o que Ele é, em um sentido m uito sem elhante ao de Bultmann (a) das
fórm ulas "Eu sou" (Gn 28,13; Ex 20,5). Estes casos onde Deus se apresenta ao
hom em frequentem ente são designados para tranquilizar o hom em , e assim
pode ser acom panhado de um diretivo "não tem as" (Gn 26,24). O utro uso de
"Eu sou Iahw eh" ocorre quando Deus deseja oferecer um fundam ento para a
A p ê n d ic e IV: e g o e i m i - "eu sou ‫׳‬ 845

aceitação de suas palavras (Ex 6,6; 20,1.5; Lv 18,5). A fórm ula assegura o ou-
vinte de que o que é afirm ado tem autoridade divina e vem de Deus. Assim,
este uso tem um valor revelatório, ainda que limitado.
Um uso que é m ais estreitam ente associado com revelação é onde Deus
prom ete: "Saberás que eu sou Iahweh". Este conhecimento de Iahweh será
conquistado através do que Ele faz (Ex 6,7; 7,5). M uitas vezes o que Deus
faz ajudará ou salvará; outras vezes é o juízo punitivo de Deus que levará os
hom ens a saberem que Ele é o Senhor. Este uso do AT oferece interessantes
paralelos para a classe (1) das afirmações joaninas "EU SOU". Ali Jesus diz
que os hom ens virão a conhecer ou a crer que "EU SOU". Em Jo 8,24, isto se
relaciona com o juízo punitivo de Deus; em 8,28 se relaciona com a grande
ação salvífica da m orte, ressurreição e ascensão.
O uso m ais im portante da fórmula veterotestam entária "Eu sou Iahweh"
enfatiza a unicidade de Deus: Eu sou Iahweh e não há outro. Este use ocor-
re seis vezes no Deuteroisaías, bem como em Os 13,4 e J1 2,27. O hebraico
’αη ϊ YHW H, em Is 45,18 é traduzido na LXX sim plesm ente como egõ eimi.
Neste uso que enfatiza unicidade, um a alternativa hebraica para ’anT YHWH
é ,anT hü ("Eu (sou] Ele"), e a últim a expressão é sem pre traduzida na LXX
como egõ eimi. Ora, como a fórm ula está no texto hebraico de Isaías, eviden-
tem ente se propõe a enfatizar que Iahweh é o único Deus. Ao discutirm os o
uso banal de egõ eimi, salientam os que norm alm ente ele significa "Eu sou
ele" ou "Eu sou esse", e assim é mui apropriado como um a tradução para
'anT hü. Não obstante, visto que o predicado "Ele" não está expresso no gre-
go, como a fórm ula está na LXX, houve um a tendência para enfatizar não
só a unicidade de Deus, m as tam bém sua existência.* Vemos esta mesma
tendência em ação na tradução que a LXX fez de Ex 3,14, o im portantíssim o
texto para o significado de "Iahw eh". Se entenderm os "Iahw eh" como de-
rivado de um a forma causativa (ver F. M. C ross, J r ., HTR 55 [1962], 225-59),
o hebraico lê "Eu sou 'quem causa o ser'"; ou, talvez mais originalm ente
na terceira pessoa, "Eu sou 'Aquele que faz existir"'. Mas a LXX lê: "Eu sou
o Existente", usando um particípio do verbo "ser", e assim enfatizando a
existência divina.
Há ainda evidência de que o uso de egõ eimi na LXX de Deuteroisaías
chegou a ser entendido não só como um a afirmação da unicidade e existência

* Toda esta d iscu ssão está pressuposta no p onto d e vista m ais usual d e que hü no
hebraico 'anT hü é o pronom e "ele", d e m od o que, literalm ente, tem os no hebraico
"Eu Ele" com a cópula subentendida. O grego egõ eimi então neste caso teria um
alcance ligeiram ente diferente do hebraico. Mas alguns estu diosos pensam que hü
tinha sim p lesm en te a função copulativa, e que o hebraico significava exatam ente o
m esm o que o grego. Ver W. F. A lbright, VT 9 ( 1959), 342.
846 A p ê n d ic e s

divinas, m as tam bém como um nom e divino. O texto hebraico de Is 43,25 lê:
"Eu, Eu sou Aquele que apaga as transgressões". A LXX traduz a primeira parte
desta afirmação, usando egõ eimi duas vezes. Isto pode significar "Eu sou
Ele, Eu sou Aquele que apaga as transgressões"; m as pode tam bém ser inter-
pretado: "Eu sou 'EU SOU‫ ׳‬quem apaga tuas transgressões", tradução que
faz de egõ eimi um nome. Temos o m esm o fenôm eno no texto da LXX de
Is 51,12: "Eu sou 'EU SOU' quem vos conforta". Em Is 52,6, o paralelism o
sugere um a interpretação similar: "M eu povo conhecerá meu nome; naquele
dia (conhecerão) que eu sou Aquele que fala". A LXX pode ser lida: "o egõ
eimi é aquele que fala"; e assim egõ eimi se torna o nom e divino a ser conhe-
cido no dia do Senhor. D odd, Interpretation, p. 94, cita evidência rabínica do
2“ século d.C. onde a passagem é tom ada neste sentido: "N aquele dia conhe-
cerão que 'EU SOU' lhes está falando". D odd fornece outras passagens para
m ostrar que não só a forma grega egõ eimi, m as tam bém a form a hebrai-
ca 'anl hü serviram como o nom e divino na liturgia. Uma forma variante,
'anl wehõ, "Eu e ele", foi tam bém usada, e Dodd pensa que ela indicava a
estreita associação ou quase identificação de Deus e Seu povo. (Para possível
relevância em João, ver nota sobre 8,16). D aube, art. cit., aponta para a ênfase
na fórmula "Eu sou" na Páscoa Haggadah, onde Deus está dizendo que Ele, e
não outro, libertou Israel: "Eu, e não um anjo... Eu, e não um m ensageiro; Eu
Iahweh - isto significa EU SOU, e não outro".
Contra este pano de fundo, o uso absoluto joanino de egõ eimi se torna
m ui inteligível. Jesus é apresentado como a falar da mesma m aneira como
Iahweh fala em Deuteroisaías. Em 8,28, Jesus prom ete que, quando o Filho do
Hom em for levado (de volta para o Pai), "então conhecereis que egõ eimi".
Em Is 43,10, Iahweh diz que Ele escolheu seu servo Israel, "para conhecerdes
e crerdes em mim e entendais que egõ eimi". João chama a atenção para as
implicações da divindade no uso de egõ eimi da parte de Jesus. Após o uso
em 8,58, os judeus tentaram apedrejar Jesus; após o uso em 18,5, os que o
ouvem caem por terra.
O uso de "EU SOU" como um nom e divino no judaísm o tardio pode
explicar as m uitas referências joaninas ao nom e divino que Jesus porta. Em
seu ministério, Jesus fez conhecido e revelou a seus discípulos o nom e do
Pai (17,6.26). Ele veio no nom e do Pai (5,43) e fez suas obras no nom e do Pai
(10,25); aliás, ele diz que o Pai lhe deu seu nom e (17,11.12). A hora que traz a
glorificação de Jesus significa a glorificação do nom e do Pai (12,23.28). Após
a vinda desta hora, os crentes podem pedir coisas em nom e de Jesus (14,13;
15,16; 16,23). No nom e do Jesus glorificado, o Pai envia o Parácleto (14,26).
O grande pecado consiste em recusar crer no nom e do unigênito Filho de
Deus (3,18). Qual é este nom e que foi dado a Jesus e o qual ele glorifica atra-
vés de sua morte, ressurreição e ascensão? Em Atos e em Paulo (p. ex., F1 2,9)
A p ê n d ic e IV: e g o e i m i - "eu sou 847

o nom e dad o a Jesus ante o qual todo joelho se dobrará é o nom e kyrios ou
"Senhor" - o term o usado na LXX para traduzir "Iahw eh" ou "Adonai".
M uito em bora João tam bém use o título kyrios para Jesus (20,28; ver também
nota sobre 4,11), é bem possível que João esteja pensando em egõ eimi como
o nom e divino dado a Jesus. Se este nom e tem de ser glorificado através da
hora da m orte e ressurreição, Jo 8,28 diz: "Q uando levantardes o Filho do
H om em , então sabereis que 'EU SOU'".
Já vim os que o uso absoluto de "Eu sou", em João, é a base para outros
usos, em particular para o uso na classe (3) com um predicado nominal. Se o
pano de fundo do uso na classe (1) é o judaísm o veterotestam entário e pales-
tino, som os justificados em suspeitar o m esm o para a classe (3). Já menciona-
m os que a m aioria dos predicados nom inais usados em João são adaptações
de sim bolism o veterotestam entário. O AT oferece exemplos onde Deus usa a
fórm ula "Eu sou" com um predicado nom inal descritivo da ação de Deus em
favor dos hom ens; p. ex., "Eu sou a tua salvação" (SI 35,3); "porque eu sou
o Senhor que te sara" (Ex 15,26). Ver tam bém os paralelos no AT supracita-
dos p ara as afirm ações d o "Eu sou" encontrados no Apocalipse. Ocasional-
m ente, um a fórm ula verbal oferece um paralelo semântico a um a afirmação
joanina de "Eu sou"; p. ex., "Eu m ato e faço viver" (Dt 32,39) com parado
com João "Eu sou a vida". Com o pano de fundo adicional do AT para o uso
joanino, podem os m encionar os discursos na prim eira pessoa da Sabedoria
em Provérbios e Siraque. Embora a Sabedoria não fale na fórm ula "Eu sou",
o costum e da Sabedoria falar no estilo "Eu" (Pv 8; Sir 24) em parte pode ex-
plicar a preferência que Jesus tem em dizer "Eu sou a videira", em vez de "o
reino de Deus é sem elhante a um a vinha".

O uso sinótico

A frase "Eu sou", nos lábios de Jesus, é um a criação joanina, ou há exem-


pios deste uso tam bém na tradição sinótica? Estamos interessados prim aria-
m ente nos ditos "Eu sou" sem um predicado.
Há três passagens sinóticas onde "Eu sou" é usado de um a m aneira muito
sem elhante aos exemplos que vimos sob a classe (2) do em prego joanino, i.e.,
o predicado não é expresso, embora ele possa estar subentendido; e o evan-
gelista parece fazer uso de ambos os usos de egõ eimi, o profano e o sagrado.
Mc 14,62; Lc 22,70: Q uando Jesus é interrogado pelo sum o sacerdote se
ele é o Messias, o filho do Bendito, ele responde: "Egõ eimi". Isto pode
ser sim plesm ente um a afirm ativa "Eu sou". Todavia, sua resposta pro-
voca a acusação de blasfêmia - acusação que seria mais compreensível
se Jesus estivesse reivindicando um nom e divino do que sim plesm ente
afirm ando m essianidade.
848 A p ê n d ic e s

Mt 14,27 (Mc 6,50): Q uando Jesus vem cam inhando sobre a água, ele
diz aos discípulos no barco: "Egõ eim i ; não temais". Este é o m esm o
uso que vimos em Jo 6,20. Que M ateus tenciona mais que um sim ples
"sou eu" é pressuposto pela confissão de fé que fazem os discípulos
(Mt 14,33): "Verdadeiram ente, tu és o Filho de Deus!"
Lc 24,36 (alguns manuscritos): Após a ressurreição, Jesus aparece a seus
discípulos e diz: "Egõ eim i ; não tem ais". Um a vez mais, isto poderia
sim plesm ente significar "sou eu" (ver 24,39); m as o contexto pós-res-
surreição pressupõe um a revelação do Senhorio de Jesus.
Há um exemplo de um a afirmação "Eu sou" nos evangelhos sinóticos que
se aproxima m uito do uso joanino absoluto da classe (1). Ao falar dos sinais
dos últimos dias, Jesus adverte: "Muitos virão em meu nome, dizendo egõ
eimi" (Mc 13,6; Lc 21,8). Alguns supriríam um predicado; p. ex., "Eu sou ele,
i.e., Jesus ou o Messias". Mt 24,5 supre o predicado: "Eu sou o Messias". Não
obstante, o contexto não pressupõe claramente o predicado; e a justaposição
de egõ eimi e "meu nome" nos deixa m uito perto do em prego joanino.
Assim, o uso absoluto de João de "Eu sou", nas classes (1) e (2), podem ser
um a elaboração de um uso de "Eu sou" atribuído a Jesus tam bém na tradi-
ção sinótica. Uma vez mais, em vez de criar do nada, a teologia joanina pode
ter revalorizado um tem a válido da tradição prim itiva. Não há paralelos si-
nóticos explícitos com a classe (3) dos ditos de Jesus "Eu sou", m as esta cias-
se, como temos visto, é um a possível variação do tem a parabólico sinótico.

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507, 747, 794, 800, 801, 816 Bauer, W. 45,112,185, 206, 361,
Achtemeier, E. 818 370, 541, 750
Agostinho 325,593,595,726,727,825 Baur, F. C. 81
A land, K. 84 Becker, H. 17
Albright, W. F. 29, 361, 704, 728, Beek, G. W. van 736
826, 845 Behm 574,578
Alexandria, C. de 91, 95,106, 189, Bell, Η. I. 458
305,510, 620 Belser 262,357
Allegro 243 Benoit, P. 142, 739
Allen 74 Bernard 9, 11, 91, 93, 104, 178-181,
A m brósio 175,593 183, 186, 188, 189, 204, 222, 237,
A ndrew s, M. 81 239, 250, 263, 271, 281, 299, 308,
Argyle 52 316, 327, 328, 336, 350, 353, 355,
Atanásio 185,189 357, 371, 374, 387, 388, 406, 427,
Aucoin, Μ. A. 191 441, 453, 454, 455, 458, 466, 485,
A udet, J.-P. 463, 464, 578 492, 497, 507, 509, 563, 574, 601,
Bacon, B. W. 66 619, 622, 624, 626, 627, 659, 660,
Bagatti 428 662, 665, 707, 710, 721, 724, 725,
Bailey 33,35 726, 750, 762, 788, 796, 824, 844
Balagué, Μ. 301 Billerbeck 56
Baldensperger 64 Birdsall, J. N. 149,682
Ball 245 Black 146, 147, 177,186, 187, 197,
Balmforth 29 323, 363, 370, 386, 660, 709
Barrett, C. K. 2,10, 29, 46, 80, 81, Blank 134,799
82, 91, 111,114,122,182, 188, 239, Blass 182
241, 273, 308, 316, 327, 355, 370, Blenkinsopp 575
371, 374, 388, 395, 400, 441, 453, Bligh, J. 384, 388, 391, 398, 400,
455, 481, 511, 537, 569, 574, 602, 434, 437, 438, 440, 455, 458, 465,
622, 643, 646, 674, 683, 692, 738, 538
742, 744, 763, 764, 796, 844 Blinzler 565, 591,689
850 ín d ice d o s P rincipais A u to re s C ita d o s

Boaz 478 Bultmann 2,9,10,11,13-19, 24,31,


Bücher, O. 58 37, 45-49, 64, 78, 82, 100, 114, 117,
Bodmer 148 122,123,127,131,132,134,135,146,
Boismard, M.-E. 9, 18, 19, 22, 33, 147,151,152,176,177,179,180-182,
36, 82, 132, 135, 146, 147,149, 161, 185,187,188,195,197,200,202,206,
174, 176, 177, 179, 181, 182, 183, 208,209,212,239,253,254,256,257,
185, 187, 189, 190, 195, 197, 200, 262,268,272,275,282,290,294,302,
201, 203, 204, 222, 237, 238, 239, 308,309,312,313,328,333,334,348,
243, 245, 253, 254, 256, 257, 260, 350,357,360,361,370,371,374,385,
261, 263, 267, 271, 272, 275, 278, 387,415,445,453,457,458,466,467,
290, 291, 299, 300, 336, 356, 361, 477,478,481,485,493,497,501,507,
364, 366, 382, 386, 409, 411, 415, 511,516,528,529,541-544,563,574,
417, 418, 446, 451, 452, 461, 463, 578,579,585,622,625,642,644,647,
491, 492, 551, 555, 573, 574, 577, 662,665,670,675,683,688,691,696,
578, 626, 696, 709, 726, 738, 742, 704,705,707,709,716,717,719,721,
774, 788, 790, 791, 828 726,744,773,775,788,790,796,797,
Bonsirven 291 798,806,841,842,843,844
Boobyer, G. 479 Bum ey, C. F. 112,146,147,150-152,
Borgen, P. 33, 57, 498, 506, 507, 508, 177,179,182, 187,197, 245
509, 517, 518, 520, 538, 539 Burrows 146,626
Bom häuser 511 Buse, I. 33,34,256,317, 318
Bornkamm 37,122,123,546 Bussche, Van den 290, 325, 349,
Bourke, M. 296 357,383,511
Bousset 45 Buzy 511
Bouyer, L. 122,211 Calvino 325
Bowman 385,386 Cam elot, T. 815
Braun, F.-M. 46, 50, 52, 53, 55, Carm ignac, J. 243
56, 58, 81, 82, 83, 93,176,179, 182, Carrol 73
185, 235, 239, 251, 290, 302, 304, Cavaletti 627
317, 337, 349, 350, 357, 427, 437, Cerfaux, L. 469, 667,843
458, 574, 576, 585, 611, 654, 731 Charlier, J.-P. 290, 305, 450, 601
Braun, H. 230, 600 C ipriano 179,707
Brawn, F.-M. 58 Collins 2,308
Bresolin 291,292 Colpe, C. 49
Bright, J. 517 C onzelm ann 37
Brooke 315 Corell 122
Broomfield 111 Craig 551
Brown, R. E. 58, 228 Crisóstomo, J. 94,149,328,433,
Brownlee 230 450, 485, 486, 491, 510, 610, 627,
Bruns 94,102, 665, 669 687, 721, 726, 727
Büchsei 45,206 Cross, F. M. Jr. 845
ín d ic e d o s P rincipais A u to re s C ita d o s 851

C ullm ann, O. 50, 114, 122, 124, 125, Eckhardt 101


234, 243, 245, 248, 262, 322, 325, Edersheim 707
374, 401,434,442,511,838 Enz 55
D 'A ragon 115 Eoyang, Mr. Eugene XII
Dahl 624,692 Epstein 317
Dahood 59 Estius 125
Daniélou, J. 577, 578, 748 Eusébio 88, 91 -96,104, 106,112,
Daube, D. 57, 274, 383, 478, 503, 531, 175, 179, 193, 271, 306, 360, 428,
841, 846 510, 593
Davies, W. D. 73,140 Evans 795
De Ausejo 180, 183,184,188, 189, Farmer 754
193,196,197,199, 207 Faure 12
De G oedt 277 Festugière 53
De la Potterie 172, 174, 190, 243, 245, Feuillet, A. 117, 139, 239, 302, 304,
341, 346, 351, 611, 798, 799, 816 349, 419, 509, 511, 512, 524, 534,
De Z w aan 146 577, 578, 614, 666, 7855, 806
Delafosse, H. 80 Filo 50-52,57,111,188,262,
D errett 295, 590, 591, 592, 594, 596, 465, 503, 517, 575, 661, 797, 812,
597 824, 826, 835
Dillon, R. 296 ,301 Filson 101,805
Dodd, C. H. 2, 10, 15,16, 29, 33, 34, Fitzer 838
48, 52, 53, 107, 129, 132, 134, 161, Fitzmyer, J. 75, 240
180, 198, 206, 222, 223, 231, 233, Fócio 149
235, 237, 238, 241, 243, 245, 256, Formesyn, R. 836
268, 310, 313, 316, 317, 318, 320, Freed 749, 752, 753
328, 332, 348, 350, 356, 360, 362, Fridrichsen, A. 142
365, 366, 371, 372, 388, 389, 398, Funk 611
401, 405, 414, 431, 441, 443, 455, Gächter, P. 109, 150, 151,178,181,
458, 464, 467, 468, 482, 488, 502, 195,290,292,438,443,446,537,603
511, 536, 542, 543, 574, 600, 601, Gaffney 815
602, 619, 620, 629, 643, 652, 666, Galbiati, E. 538
669, 719, 729, 739, 752, 767, 768, Galot 305
769, 770, 772, 797, 798, 806, 807, G ärtner 469, 470, 478, 489, 502, 503,
812, 813, 826, 829, 835, 846 531
Drower, L. 48 Giblet, J. 230, 443
Dubarle, A. M. 323,325, 326,635 Glasson, T. F. 55, 229, 247, 337, 355,
D uhm 243 465,697
D unkerley 713 Godet 511
Dupont, J.177,179,182,185,290,350 Goedt, M. de 240, 511
D upont-Som m er 243 Goethe 823
Easton 11 Goguel 361, 364
852 ín d ic e d o s P rincipais A u to re s C ita d o s

Goitia, J. 345 Iersel, Van 253,256


Gollwitzer 545 Imschoot, P. van 239,345
Goodenough, E. 81, 85, 86,480 Inácio 76,611
Goodwin, C. 20, 33, 56 Inge, W. R. 50
Gorrey 146 Irineu 74, 75, 81, 88, 91-94, 96, 97,
Gourbillon 339, 371, 776 182, 185, 189, 299, 303, 305, 314,
Grässer 68 346, 411,452, 573, 627, 643
Green 180,181 Jeremias, J. 16, 181, 243, 245, 249,
Grelot 577, 578 273, 350, 428, 458, 528, 534, 544,
Griffiths 55 574, 578, 582, 595, 674, 738, 830,
Grossouw 2 843
G rundm ann 838 Johnston, E. D. 467
Guilding, A. 477, 490, 518, 520, 576, Josefo 50, 57, 224, 271, 272, 289, 308,
684 313, 314, 321, 381, 384, 410, 428,
Haenchen 2,173,174,180,181, 451, 461, 482, 483, 485, 497, 581,
186, 190, 195, 317, 414, 416, 431, 627, 630, 670, 682, 727, 728, 731,
433,467,468, 838 733, 734, 755, 806, 834
Haible 292 Joüon 188,710
Ham arfolus, G. 93 Jülicher, A. 666
H anson 692 Jungkuntz 683,692
Ham ack, A. 206 Kacur 184
Hartings veld, Van 132 Käsemann 2,17,178,181,183,186,
Hatch, E. 660 188,195, 201, 206, 208, 209,212
Hendriksen, W. 188 Kern 602
Heráclito 824 Kern, W. 628
Herm aniuk, M. 666 Kilmartin 306,503,531,535
Higgins 29 Kirkpatrick 53,54,411,574, 575
Hilário 175 Klausner, J. 226
Hipólito 97,573 Köbert 736
Hirsch 12 Köster 123
Hoare, F. R. 11 K ragerud 100
Holtzm ann 768 Krieger 223,361
Holzmeister, U. 272 Kselman, Mr. John XII
Hooker, M. 243, 579 Kuhn 58
Hoonacker, Van 175 Kuyper 186
Hoskyns 2,10, 55,122, 188, 304, Lacan 175,188
316, 502, 534, 563, 574, 594, 654, Lagrange 176, 179, 185, 188, 221,
682, 707, 721, 744 239, 290, 308, 315, 334, 336, 339,
H ow ard 2 340, 357, 371, 374, 390, 404, 427,
H unt, G. 221 453, 458, 465, 511, 525, 530, 663,
H unt, S. Ill 677, 707, 721, 725, 748
índice dos Principais Autores Citados 853

Lake, K. 349 Molin, G. 226


Leal 29, 349 Mollat, D. 151,152, 175, 182, 335,
Lee, E. K. 21, 32, 794 511,538, 574, 837
Leenhardt, F. J. 537 M ongomery, J. A. 186
LeFrois, B. 303 M oody, D. 184, 337
Legault 739, 740 Moore, G. F. 828, 829
Léon-Dufour, X. 323, 349, 445, 464, M opsuestia, T. de 291
511,515, 529, 538 M oran, W. L. 805
Licht, J. 133 M orris, L. 40, 520
Lidzbarski 48 Moule, C. F. D. 273, 314, 480, 730
Lightfoot 2, 122, 182, 282, 316, 357, Mowinckel, S. 234, 279
382, 453, 574, 709 Munck, J. 45
Loewenich, Von 82 M ussner 511
Lohse 122, 349 Nagel 177
Loisy, A. 80, 100, 175, 314, 361, 511, Naveh, J. 274
600, 601, 722, 769 Neugebauer, F. 451
Lubac, H. de 303 Nevius, R. C. 406
Lund 197, 200 N iew alda 122,124, 305,396, 434
Lyonnet, S. 357, 613 Nissa, Gregório de 291, 510,519
M acdonald, J. 386 Noack, B. 12, 20,427
M acgregor 12,146,179, 574 Nock, A. D. 49,53
M acgregor-M orton 17 Nonnos 485
MacRae, G. W. 581 N orden 844
M anson, T. W. 591, 748, 841 N unn 91
M ark 470 Nygren, A. 795
M ártir, J. 82 O'Connell, M. J. 790, 805
M aurer 82 O 'Rourke, J. J. 524, 668
M cCasland 834 O deberg 282, 511
McCool 394,395 Ogg, G · 627
M cCown, C. 461 Origenes 175, 190, 269, 271, 314,
M cHugh, J. 481 372, 405,452, 535, 543, 574, 707
McNeile 315 Osty 33, 35,383
M ehlm ann 174, 625 Parker, P. 16,18,19, 33, 35,102, 222
M énard 442 Pecorara 813
M endner 317, 339, 467,479 Percy 45
M enoud, P.-H. 2,16,294,511 Petuschowski, J. 749
Meyer, P. 668, 673 Phillips 800
Michaelis 123,125, 574 Pinto de Oliveira, C.-J. 370
M ichaud 291 Plínio 199
Miss Guilding 520,584,594,665,685 Policrates 93
Moffatt 173,177, 665 Pollard 29,173, 682
85 4 ín d ic e d o s P rincipais A u to re s C ita d o s

Quirant, C. 574 Schwartz, E. 17


Quispel 46, 282 Schweitzer, A. 129
Rahner, H. 573 Schweizer, E. 16, 26, 45, 114, 116,
Reicke, Bo 212 118, 119, 120, 122, 415, 416, 511,
Reitzenstein 45 528, 574, 665
Rengstorf 574 Seims, Van 362
Reuss 291,292 Senès, H. 461
Richardson 712 Shanks, H. 261
Richter 226, 229 Sidebottom, E. M. 336
Riesenfeld 593 Silberman, L. H. 228
Rieu, E. V. 155 Skeat, T. C. 458
Riga, P. 838 Skehan, P. 228, 300
Ringgren, H. 244, 807 Smith, C. W. F. 13,14, 55, 131,581
Roberts, C. H. 84 Smith, D. M. 151, 752
Robinson, J. A. T. 3, 72, 76, 77, 180, Smith, M. 12, 94
181, 188, 192, 193, 204, 213, 228, Smothers 581,611
248, 315, 401, 566, 668, 824 Speiser, E. A. 172
Robinson, J. M. 194 Spicq, C. 142, 337, 497, 795, 816, 827
Roma, Clemente de 82, 244, 671 Spitta 12, 201, 415
Romanides 82 Stanks 244
Roustang 341 Stanley, D. M. 122, 305, 574, 769
Ruckstuhl 16, 26,193,411, 525,528 Starchy, J. 240
Rudolph, K. 48 Stauffer, E. 29, 132, 230, 234,
Sagnard 305 272, 329
Sahlin, Η. 204, 227 Strack 56
Sanders, J. N. 40, 81, 82, 92, 101, Strathm ann 299,511,691
102,111,736,737 Sukenik, E. L. 261
Schaeder 177 Taciano 8,149, 184, 189, 339,
Schenke, Η. M. 49 386, 387, 704
Schilling 593,594 Tarelli 82
Schlatter 56,177,179, 511, 574, 725 Tatiano 314,339
Schmid, J. 182 Taylor, V. 34, 199, 315, 367, 468,
Schmiedel, P. W. 453 470,534, 677, 754, 768
Schnackenburg, R. 2, 63, 64, Teeple, Η. M. 6, 59, 228
72, 77, 117, 123,179,180,181,183, Temple, S. 415, 537
188, 193, 195, 205, 225, 228, 274, Tenney 154
295, 296, 297, 302, 357, 371, 372, Teodoreto 727
397, 412, 413, 415, 416, 458,466 Teodoro 289,291,432
Schneider, J. 537, 666 Tertuliano 97, 179, 182, 314, 429,
Schürer, E. 645 433,434,452, 573,655
Schürm ann, H. 538, 546 Thurian 302, 304
ín d ice d o s P rincipais A u to res C itad os 855

Thüsing 190, 335, 374, 389, 542, W etter 844


621, 774 W hite 565
Tillm ann 357 W ieder, N. 226
Tobac 511 W ikenhauser 9, 177,179, 181,182,
Töpelm ann 582 336, 466, 485, 600, 665
Torrey 146, 147, 485, 498, 578, 626, Wiles 394
660,738 Wilkens, W. 9, 18, 22, 24, 75, 415,
Trench 795,796 467, 525, 551, 712, 714, 715, 717
Unnik, Van 72, 76, 78, 764 Wilson 52
Valentino 46, 75,111 W indisch 190,281
Vanhoye 451 W inter, P. 690
Vaw ter 56,122,175, 201, 305 W ood, H. G. 670
Via 120 W oodhouse 579
Virgulin 241 W orden, T. 538
Vogels 314 W ordsw orth 565
W alker, N. 262 W oude, A. S. van der 229, 230
Weiss, B. 201,511 Yadin 748
Weiss, J. 315,469 Zahn 96, 201, 290, 574
W ellhausen 17,102, 254, 349, 364 Zerwick 339,507
W endt 12 Ziener 531
W estcott 54, Zim m erm ann 842,844
177, 179, 185,204, 262, 292, 325, Zuinglio 545
351, 355, 357, 497, 563, 795
ÍN D IC E D E C IT A Ç Õ E S B ÍB L IC A S

ANTIGO TESTAMENTO

Gênesis 17.3 648


17.5 268
1,1 171 17.10 563
1,1‫־‬3 830 17.17 626
1,2 239 21.17 762
1-2,3 300 21.4 563
1.3 202, 605 21.6 626
1,20.24 202 22,2 247
1,26 809 22, 2.12 355
2,2 833 22,2.12.16 185
2.4 520 22,6 247
2.7 134, 345, 347, 369, 807 22,8 247
2,9 202 22.11 762
2,17 519 22,17-18 629
3.3 519 22.18 355
5 -3.4 624 22,28 268
6 -3.5 437 24.11 382
3.15 202, 203, 302, 303, 304 26,24 844
3.16 304 27,35 278
3,22 202, 519 28,10 384
3,24 519 28.12 281, 282
4.8 623 28,13 282,844
6.3 345 28,18 283
6.9 520 28,21 829
9.4 527 29.1 585
11,13 353 29.2 382
15 268 29.4 564
17,1 841 30,22 441
ín d ic e d e C itações B íblicas 857

32,27-30 278 16,7‫ ־‬10 802


32,28-30 278 16,10 803
33,18 382 16,15 498,510
41,55 292 16,16ss 464
48,20 248 16,25 502
48,22 382 19,5 180
49,10 644 19,9 451
49,11 306 19,11 323,452
49,24 675 19,17 829
20,1.5 845
Êxodo 20,5 642,844
20,11 441
1,15 247 20,21b 385
1,29 576 21,3 580
2,15 382 21,6 691
3,1 661 22,9 691
3,12 829 23,1 580
3,14 576, 845 23,1b 591
4,22 344, 632 24,8 524
6,16-21 576 24,10 211
6,31 576 24,15-16 211
6,6 845 24,17 803
6,7 116, 845 25,8 210
7,1 683 25,8-9 209
7,3-4 410 29,38-46 247
7,5 845 31,15 563
7,11 645 33,11 646
7,19 292 33,18 213
9,16 642, 836 34,6 186
10,1 836 34,10 833
12,5 246 34,29 454
12,12 489 40,34 211
12,22 245
12,46 245, 471 Levítico
13,21 604
15,11 442 3,17 527
15,22 520 5,7 312
15,26 542, 847 11,29-38 292
16,1 502 12,3 563
16,2.7.8 508 14,4 829
16,4 498, 502, 518 15,2 369
85 8 índice de Citações Bíblicas

15,19 383 4,29 571


18.5 845 5,15 441, 783
20,10 590 5,23-27 452
23.39 555 7,19 836
23.40 748 8,3 388,502, 542, 791
24.16 636 8,15 576
26.5 399 11,3 833
26,12 116 11,22 574
12,5 210, 726
Números 12,23 527
13,1-5 644
5.22 274 15,11 738
7.1 684 16,13 555
7,10-11 682, 684 16,18 564
9.11 502 17,6 450
9.12 471 17,7 592
11.1 463 18,15-18 277
11,7-9 463 18,18 342, 385,454
11,13 463 18,18-19 790, 791
11.22 463 19,15 450, 590
12, 2-8 646 19,17 691
14,11 836 20,6 400
14,22 836 21,15 761
16,28 437 22,21 590
19,11-12 734 27,4 385
21,8 337 28,15 580
21,9 835 28,30 400
21,9ss 336 28,39-40 809
25,6-18 596 29,2-4 782
27,16-17 669 29,3-4 784
27.17 660 30,12 353
35,25 726 31,19.22 454
35,30 450 32,6 344, 632
32,11 239
Deuteronômio 32,14 306
32,36 444
1,16 580 32,39 847
1.17 691 32,45-47 792
2,14 429 32,46-47 791, 825
3,24 833, 836 34,11 836
4,12.15 452 37,26 580
índice de Citações Bíblicas 859

Josué 7,14 279,344


13,23 728
5,10‫ ־‬12 502 14,4 749,755
7,19 645 14,32 563
15,9 728 16,10 291
18,23 728
19,8 241 1 Reis
24,32 382
8,2 581
Juizes 8,10-11 211
8,63 682
11,12 291 17,1-16 294
12,3 661 17,18 291
13,2 203 17,18-24 227
13,6 564 17,23 410
13,7 544 18,37 722
14,12 289 18,38 227
14,20 362 19,8 229
16,17 544 22,17 675
16,18 228
17,14 228 2 Reis
18,1 228
1,8 226
R ute 4,42 478
2,11 225, 227
2,14 478 3,13 291
4,1-7 294
1 Sam uel 4,12.14.25 463
4,42-44 294,465
1,1 203 5,10-13 643
1,15 579 5,20 463
9,17 241 6,26 755
12,18 762 8,9 410
15,25 237 12,49 227
16,12 661 14,25 581
17,34-35 676 17,24ss 383
25,28 237
2 Crônicas
2 Sam uel
4,6 385
6,18 749 7,5 682
860 índice de Citações Bíblicas

21,12 226 24,5 389


24,8.10 737 25,10 186
26,18 693 27,1 59, 599
30,17-18 733 27,2 527
35,21 291 29,3 490
32,5 273
Esdras 33,6 826
35,3 847
5.16 314 36,9 439
6.16 682 40,8 584
41,7 186
Neemias 42 396
42,5 766
8.15 748 43,1 444
9,20 503 43,1-2 578
11.32 704 49,19 818
56,13 599
Jó 66,5 833
69,9 313, 314, 318, 324
4,19 643 74,9 830
10.9 643 76,1 385
11.6- 7 137 77,12 833
28 137 77,19 489
28,12-20 301 78,15-16 576
28,12ss 571 78,16 583
33.30 599 78,24 489, 498
34.15 345 78,52-53 675
30,26 818 80,14-15 118
31.8 400 82,6 690, 692
86,15 186
Salmos 89,4 764
89,27 279,344
2.6- 7 279 89,36 764
2,7 279, 344 89,48 625
2.9 302 89,8 442
16,10 314 90,2 627
17,21-25 686 97,6 299
17.30 344 105,6 629
17.32 299 105,40-41 576
19.8 825 106,16 544
23 675 107 490
ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas 861

107,20 825 8,31 137


110,4 764 8,32-33 138
114 576 8,32-35 137, 808
118 748 8,35 828
118,20 671 9,2-5 138
118,22 671 9,3ss 584
118,25 583 9,5 301,512
118,25-26 753 13,14 394
118,26 671 18,4 575
118,26 755 20,27 579
119,21 580 20,28 186
119,43 798 23,23 798
119,105 825, 829 24,9 609
126,5-6 399 30,3-4 352
130 825
132,17 451 Eclesiastes
143,3 818
146,8 663 1,9 502, 585
147,2 566 2,13 828
7,1 744
Provérbios 11,5 347
12,7 345
1-9 137 12,10 798
1,20-21 138
1,20-28 267 Isaías
1,20-33 827
1,24-25 138 1,5 543
1,28 138 1,15 646
1,28-29 571 2,3 731, 828
4,13 137,808 4,1-3 138
4,18-19 828 4,3-5 278
5,15 576 4,4 239
6,23 829 6,1 785
7,16 710 6,1-5 784
8,1-4 138 6,3 785
8,3-36 138 6,5 213, 785
8,7 137 6,10 783, 784
8,17 138 8,6 644
8,22 605,614 8,9 313
8,22-23 137, 827 8,28 846
8,27-30 827 9,1 761
862 índice de Citações Bíblicas

9.2 204 48,21 576


9.6 731 49,1-6 243
9.7 764 49,5-6 777
Π ,2 251 49,6 249, 566, 643
11.3 564 49,9ss 479
11,12 730 49,10 507
12.2 389 50,4-9 243
16.5 625 51,6ss 520
20.3 837 51,6-16 490
26,10 339 51,12 846
26.19 832 52,6 846
29.8 578 52,13 354, 775
29.10 783 52,13-53 243
29.13 54 52-53 354
29.18 651 53,1 244, 783, 836
31.3 51 53,4 244
32,15 346 53,4.12 244
35.5 651 53,5-12 246
35.5- 6 565, 832 53,7 244, 246, 247
38.3 611 53,9 278, 624
38,21 645 53,12 244, 245, 337
40.3 226,230, 506 54,4-8 298
40.6- 8 542 54,13 509, 513
40.9 750 54-55 520
40.11 676 55,1 394, 512, 584
41.4 844 55,1-2 51
41,8 676 55,1-3 301
42,1 244,251, 252 55,6 571
42,1-4 243 55,10-11 512
42.6 204 55,11 826
42.7 651 56,7 318, 321, 731
43.10 846 58,11 575
43.13 688 60,1-2 204, 299
43.20 576 60,10-11 768
43,25 846 61,1 244
44,3 346, 576, 578, 584 61,1-3 832
44,6 844 61,10 367
44.8 632 62,6 668
45.18 845 6 3 ,llss 520
46.5 442 63,16 632
48.12 844 65,11-13 512
ín d ice d e C itações Bíblicas 863

Jerem ias 34,16 675, 676, 730


34,20 675
1,2 683 34,23 676, 686
1.5 693 36,13 441
2,2 367 36,25-26 231, 346
2.13 584 37,4 445
5.17 668 39,17 527
5.5 568 42,1-12 523
7,11 318, 321 42,12 577
9,4-6 568 44,4 211
10,21 675 47,1 583
11.19 247 47,1-11 577
11.20 844
13,16 716 D aniel
17.10 328
17.13 591 4,12 768
18,1-11 837 5,24 591
23.1- 2 675 6,26 811
23.3 676, 730 7,13 274, 439, 445
24.7 537 7,14 764
31,8-11 727 9,27 681
31.12 299 10,21 798
31,33 517, 537 11,30 708
38.3 509 12,2 445, 719
46.10 527
O seias
Ezequiel
1,1 683, 825
I, 4ss 282 1-2 367
3.17 668 2,4 632
3.18 609 5,6 210, 571
8,14 707 6,2 323
I I , 23 211 11,1 344
12.1- 16 837 13,4 845
12-13 676 14,7 299
16,38-40 590 14,8 291
18.7 210
28,2 841 Joel
32,25 764
34.11 832 1,1 825
34.13 660 2,27 845
864 ín d ic e d e C ita çõ es Bíblicas

2,28-29 346 3,17 756


3,17 209
Ageu
Amós
2,7-9 321
4,4 313
8,11-13 512 Zacarias
9,13-14 299
2,10 210, 273
O badias 3,13 278
3,16 750
5 659 7,9 564
8,4 226
M iqueias 9,9 389,748, 749,750, 753,755,756
9-14 581
2,12 676, 730 10,1 582
2,12-13 669 11,9 527
3,12 321 13,1-3 231
4,4 273 13,7 6 77
5,2 579 14,4 748
6,15 400 14,8 577, 583
14,11 577
Naum 14,16 731, 748
14,21 318, 321
1,7 673
M alaquias
H abacuque
2,10 632
3,5 826 3,1 222, 226, 227, 248, 317, 321, 362
3,2 248
Sofonias 4,1 248
4,5 226
3,16 756

N O V O TESTAM ENTO

M ateus 2,5 233


2,5-6 579
1,20 333 3,1-12 65
2,3 586 3,7 222
ín d ic e d e C ita çõ es Bíblicas 865

3, 7-10 225, 629 8,11 298, 512, 674


3 , 10.12 366 8, 11-12 629
3,11 232 8,12 515
3.12 242, 248 8,15 411
3.13 365 8,17 244
3.14 237 8, 18-22 261
3, 14-15 249 8,20 647
3,16 250 8,22 266
4 , 1-11 558, 691 9 , 1-8 431
4,4 388 9,13 322, 661
4,11 283 9,27 641
4.12 310, 363 9 ,27-31 651
4 , 12-13 276 9,30 708
4.13 309 9,35 526
4.15 761 9,37 388
4.16 204 9, 37-38 399
4,19 272 10,1 544
4,23 526 10,2 262, 545
5,1 462 10,4 272
5,9 181 10,5 390
5-7 40 10,17 654
5.13 767 10,23 132
5.14 599, 643, 652 10,32 446
5.15 443 10,37 771
5, 17-18 683 10, 38-39 789
5,37 274 10,39 769
5 ,44-45 345 10,40 438, 789, 790
5,45 337 11,2 260, 455, 833
6,6 659 11, 2-6 687, 832
6,10 722 11,3 368, 749
6, 22-23 705, 767 11,5 712
6,23 648 11,9 229
6,24 338, 761 11,10 362
7,13 671 11,11 67, 367
7,21 388, 568 11,14 222, 227
7,24 140 11,18 225
7,26 789 11,19 140
7,29 580 11, 20-24 548
8,5-13 412, 431, 832 11, 20-28 548
8,7 416 11,25 687
8,9 411 11, 25-27 140
86 6 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

11, 25-30 35 16,3 836


11,27 338, 374, 548, 570, 676 16,4 326
11,28-30 140 16, 5-12 500
12,5-6 441 16,12 500
12,6 325 16, 13-14 548
12,7 322, 661 16,14 225, 321
12,9 526 16,15 548
12,22-23 565, 651 16,16 488, 544, 549, 708
12,28 642 16, 16-17 687
12,38.41 836 16, 16-18 268
12, 38-39 313, 834 16,17 183, 263, 547,549
12, 38-40 326 16,18 115, 263, 268, 549, 550
12,40 326 16,19 550
12,42 140 16,21 549
13,13 439 16,23 549
13, 13-15 783 16,27-28 280
13,17 626, 636 17, 10-13 228
13,20 788 17,12 227
13,25 761 17, 12-13 451
13.37- 43 667 17,25-26 621
13. 38- 39 632 17,27 312
13,41 439 18,3 333, 350
13,53-58 406 18, 8-9 130
13.54 526 18,9 629
13.55 308, 443, 509 18, 12-13 675
14,9 410 18,16 450
14,15 487 18,17 115
14,25 485 18,34 70
14,27 848 19,1 697
14.33 848 19,3 596
14.34 493 19,4 691
15, 21-28 414, 832 19,12 642
15,24 206, 338 19,16 808
15,25-27 296 19, 18-19 804
15,28 290 19,21 266
15,30 651 19,24 808
15,32 290 19,29 295
15,39 493 20, 1-9 752
16, 1-4 313, 834,,835 20,2 463, 737
16,2 388 20, 29-34 651
16, 2-3 399 20,30 641
ín d ic e d e C itações Bíblicas 867

21,2 750 26,18 556, 822, 823


21,10-17 315 26,20 103
21,12 312 26,26-28 527
21.14 651 26,29 512
21,18-22 320 26,31 669, 674, 677
21,32 225 26,39 440
21,33-41 320 26,42 411,773
21.42 269 26,45 766, 822, 823
21.43 121 26,61 315,319
22,1 367 26,6-13 738
22.1- 4 298 26,63 690
22.13 515 26,64 132, 274, 280, 284
22,15-22 343 26,65 689
22,36-40 803 27,40 239, 315, 319
22,41-45 691 27,63 557
23,8 261 28,15 70
23.15 632 28,16 462, 123
23.16 648 28,19 125
23.23 563 28,20 803
23.34 140
23,39 749 Marcos
24.3.24.30 834
24,5 842, 848 1,2 226, 227
24.15 681 1,4 249
24.24 645, 834 1,4-5 254
24.30 336 1,5 365
24,38 524 1,6 226
24.44 822, 823 1,7-8 232
25,1 367 1,10 250
25.13 822, 823 ‫ ו‬, 11 244, 279
25.24 400 1,14 310,363
25.31 439 1,14-16 276
25.31- 46 439 1,16 641
25.3 lss 130 1,16-20 e par. 260
25.32- 33 675 1,18 266
25.34 808 1,21.29 271
25,46 808 1,22 562
26.1- 5 728 1,24 291, 544
26.4 727 1,31 411
26,11 738 1,43 708
26.15 743 1,45 362
868 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

2,1-2 431 4,35-41 488


2,1-12 431 4,47 485
2,7 642 5,1-20 663
2,11 429 5,7 291
2,13 361 5,22 238
2,14 266, 641 5,22-43 712
2,17 140, 671 5,39 717
2,18 e par. 260 6,1-6 406
2,18-19 e par. 367 6,3 272, 308, 443, 508, 557
2,19 298 6,4 406
2,19-20 115 6,7ss 116
2,26 313 6,10 261
3,1-6 653 6,14 695
3,2 433 6,14.22 410
3,7 362 6,14-15 228
3,13 462 6,15 225
3,13ss 116 6,30 462
3,14 544 6,30-44 468
3,16 268 6,30-8,37 468
3,18 260, 272 6,34 462, 499, 667, 669, 832
3,21 309 6,35 487
3,22 563 6,37 35, 737
3,22-25 634 6,45 468
3,24 767 6,47 485
3,29 648 6,49 485
3,31 e par. 309 6,50 848
3,33-35 295 6,52 479, 781
3,35 388 6,53 493
4,1 462 7,1 508
4,1-9 767 7,1‫־‬24 299
4,2 406 7,3-4 292
4,3 437, 661 7,6 54
4,12 154, 783 7,24-30 414, 499
4,13 670 7,27 410
4,13-20 666, 667 7,28 228, 410
4,21 605 7,33 643
4,24 388 8,2 290
4,26-29 348, 399, 767 8,6-7 464
4,30 643 8,10 493
4,30-32 767 8,11 501
4,32 768 8,14 514
índice de Citações Bíblicas 869
8,14-21 477, 499, 500 10,46 644
8,17 291 10,46-52 651
8,22-26 651 11,1-10 742, 752
8,23 643 11,2 750
8,26 468 11,9 752
8.27- 28 548 11,11 704
8.27- 30 234 11,12-14.20-21 832
8.27- 33 e par. 548 11,15 312
8,28 226 11,15-17 318
8,29 e par. 268 11,15-19 315
8,29 265, 548, 549 11,17 659, 674
8,31 354, 546, 549, 768, 771 11,17-18 669
8.33 544, 549 11,18 729
8.34 771 11,27 e par. 313,562
8,34-35 717 11,27-28 e par. 69,315, 318
8,35 769, 770, 771 11,27-33 e par. 455,697
8,38 790 11,28 e par. 313
9,1 132 11,30-32 225
9,2-8 773 11,32 229
9.4 229 12,7-10 731
9.5 212 12,10 e par. 671
9,11 226 12,10.35-37 456
9,13 227, 249, 451 12,13-17 596
9,30 559 12,14 332
9.30- 31 614 12,18 719
9.30- 33 559 12,41 602
9,31 354, 543, 546 13,2 731
9,35 462, 772 13,6 841, 848
9,43 808 13,6.22 453
10,1 559, 697 13,11 e par. 822, 823
10.15 350 13,22 565
10.16 673 13,26 439
10.17 808 13,29 668
10.18 199 13,30 132
10,20 789 13,32 338
10,24 140 13,32-33 132
10,30 130 13,34 668
10,32 717 13,35-37 778
10,33 543, 546, 559 14,1-2 728, 742
10,33-34 e par. 354 14,3 35, 704,736, 737
10,45 661, 730, 768 14,3-9 704, 738
870 índice de Citações Bíblicas

14,5 35, 708, 737 1,47 389


14,6 737, 738 1,68-79 203
14,7 738 1,80 250
14,8 744 2,8 178
14,9 743 2,26 625
14,13-14 31 2,49 295,313
14,17 103 3,1 313
14,24 116,537 3,2 239,683
14,25 536 3,7 242
14,27 673, 674, 677 3,9 242
14,33 721 3,15 225
14,34 766 3,15-16 220
14,35 292, 766,822,823 3,16 232
14,35-36 766 3,17 242
14,36 440, 508, 722, 772 3,19-20 364,407
14,41 766, 822,823 3,21 283
14,43.53 725 3,22 250
14,49 178 3,23 627
14,55s 727 4,1-13 558
14,57-58 729 4-5 298
14,58 315,319,324 4,16ss 407
14,61 690 4,17-19 518
14,61-62 776 4,20 462
14,62 637, 847 4,22 272,509
14,64 689 4,23 399
15,1 69 4,24 406
15,11 569 4,24-26 227
15,29 315,319 4,28-29 653
15,41 772 4,29 568
15,43 786 4,29‫־‬30 570
16,1 745 4,30 627,628
16,4 281 4,31 309,526
16,11-12 514 4,43 338
16,16 356, 439 5,1 461
16,61 323 5,1-11 832
5,4-9 36
Lucas 5,22ss 406
5,33 260
1,5 220 6,7 591
1,17 227 6,13 544
1,39 105 6,14 262
ín d ic e d e C itações Bíblicas 871

6,22 645 10,21‫ ־‬22 35,140


6,35 130, 345 10,22 338, 374, 570, 676
6,47 140 10,24 626
7, 1-10 412 10, 25-28 791
7,3 412 10,27 453
7,5 526 10,32 220
7, 11-17 227, 433 10,38 704
7,13 429 10, 38-42 32, 718
7,15 429 10,39 720
7,16 465, 260 10,40 742, 772
7,19 368 11,1 260,361
7,20 365 11,2 722
7,27 362 11,5 463
7,28 67, 367 11,14 651
7, 29-33 260 11,27-28 295
7,32 674 11,29-30 326
7, 33-34 290 11,31 140
7,35 140 11,33 605
7,40 740 11,35 818
8,2 742 11,49 140
8,5.11 761 12,8 446
8,10 783 12,29 500
8,16 605 12,32 669
8,20 761 12,39 668
9,1 628 13, 1-5 430
9,2 400 13,2 642
9,9 761 13,10 433
9,10 461, 549 13, 10-17 433,653
9,18 549 13,11 429
9,24 769 13,12 290,429
9,26 790 13,13 429
9,32 212, 773 13,14 564
9,32 803 13,15 441
9 .52 - 53 390 13,28-30 412
9. 52 - 56 248 13,32 323, 643, 656
9,56 338, 790 13,34 31
9, 57-60 261 14,1 433
10,1 95 , 400, 541 14,5 441
10, 1-2 399, 400 14,26 338, 761, 771
10,16 438, 790 15,3-7 668,669
10,18 775 15,3-10 669
872 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

15, 9-13 446 22,18 536


16,24 629 22,19 524
16, 27-31 36 22,27 772
16,31 32 22,42 440, 508
17, 12-15 643 22,43 766
17.22 132 22,53 590,819
17.22 566 22,67 686
17,33 769 22, 67,70 36
18,8 647 22,70 690, 847
18,13 710 23,2 557
18,17 350 23,8 313, 834
18,18 343, 786 23,19 659
18, 29-30 808 23,67 690
18,31 569 24,12 36
18,35 239 24,19 465 , 833
18, 35-43 651 24,26 768
19,5 261 24,27 277, 324
19, 28-38 752 24,36 848
19,30 750
19.37 713, 749, 752 Jo ã o
19.38 761
19.39 751 1,1 47 , 137, 173, 192, 543, 683, 819
19,41 709 1, 1.18 199
19,41-44 320 1, 1-18 170
19,45-46 315 1, 1- 2,10 55
20,1 590 1-2 303
20,13 338 1,3 74, 826
20, 20.27 593 1-3 117, 405
20,36 130, 345 1, 3.10 809
21, 1.37 590 1,4 714, 807, 819
21,8 841, 848 1, 4.9 192
21,15 140 1,4-5 58 , 137, 605
21,20 133, 731 1,5 192, 205, 764, 810, 819
21.36 439 1,6 67, 239, 362, 372, 455
21.37 590 1, 6- 7 (8 ?) 257
21,38 590, 594 1, 6-9 367
22,1 327 1, 6- 9,15 66
22, 1-2 728 1,7 192, 264, 601
22,3 743 1,8-9 65
22,5 743 1,9 47 , 77 , 178, 799, 829
22, 16-18 298 1,10 205, 810, 817
ín d ic e d e C ita çõ es Bíblicas 873

1,11 78, 205, 782 364, 368


1, 11-12 159 1,30‫־‬31 247
1,12 119, 130, 205, 327, 333, 1,31 67, 71, 249, 278, 364, 367
662, 727 1,32 250, 801, 802,811
1, 12-13 78, 134 1,32-33 250
1,13 119, 295 1,32-34 244, 450
1,14 47 , 55, 75, 127, 130, 137, 137, 1,33 177, 362, 396, 696
159, 186, 192, 207, 325, 337, 1,34 251, 299, 801, 802
457, 535, 693, 785, 797, 801, 1,35 94, 289
803, 827, 836 1, 35- 37 .47-51 241
1, 14.18 192 1, 35-39 266
1,15 192, 573 1,35-42 259, 275
1,17 55, 70, 189, 498, 569, 646, 1,35-49 13
829, 836, 844 1,35-50 116, 263
1,18 184, 192, 336, 353, 452, 510, 1,35-51 265, 266
570, 802, 827 1,35-52 265
1, 19- 2,11 161,301 l ,35s s . 271
1,19 160, 192, 203, 231, 450 1,36 237, 263
1, 19-21 224, 364 1,36- 38.43 138
1, 19-28 275, 696 1,37 299
1, 19-34 19, 23, 252, 254, 256, 257, 1,37-42 98
263, 365, 455 1,38 71, 263, 706, 708, 802
1, 19-36 697 1,38.42 154
1,20 65, 362, 584 1,39 263, 289, 300, 382, 411, 709,
1,20-21 230 801,812
1,21 225, 465 1,40 271
1,22-23 230 1,40-42 267, 289, 301
1,23 506,648 1,41 67, 386, 549
1,24 106, 377 1,41.45 267
1, 24-28 231 1,41 .45.49 708
1,25 361 1,41-42 35, 280,283
1,26 224, 234, 370, 776 1,42 268, 269, 549
1,26-27 232, 234 1,43 260, 267, 289, 478, 485
1,27 248, 465, 749 1,43-44 276
1,28 153, 178, 360, 377, 695, 704 1,43-51 270
1,29 67, 77, 153, 237, 240- 243, 1,44 260, 761
535, 677, 696, 810, 836 1,45 188,623
1, 29.34 67 1,45-50 276
1, 29.35 223 1,46 300, 405, 587
1, 29-34 7, 236, 240, 289, 365 1,47 71,119
1,30 65, 153, 186, 192, 213, 248, 1,49 67
874 ín d ic e d e C ita çõ es Bíblicas

1,50 273, 280, 299, 541 2, 24-25 342,405


1,50.51 801 2,25 332, 429, 543, 817
1,51 708, 152, 278, 280, 284, 326, 3,1 409, 564, 565, 761, 781, 786
445, 500, 647, 729, 762, 785 3, 1-6 563
2,1 262, 271, 300, 405 3, 1-21 9, 330
2, 1- 4,42 161 3, 1-30 372
2, 1-11 15, 160, 164, 265, 288, 414, 3,2 343, 458, 496, 646, 647
420, 831 3, 2-3 838
2,2 400 3, 2-8 342
2, 2.11 164 3, 2.10 708
2,3 718 3,3 78,, 182, 183, 343, 350, 368,370
2,4 128, 291, 302, 385, 556, 765, 3, 3.5 205
820, 822, 823 3, 3.31 127
2,5 719 3,4 509
2,6 71, 361 3- 4,42 419
2,6.13 68 3,5 14, 58, 119, 126, 131, 209, 343 ,
2,10 363, 661 346, 350, 351, 356, 373, 395,
2,11 7, 13, 153, 159, 265, 267, 273, 396, 397, 524, 807
279, 328, 717, 721, 774, 803, 3, 5.34 251
835, 836, 839 3,6 51, 127, 183, 546
2,12 308, 324, 328, 405, 406, 412, 3,7 371
415, 461, 466, 555 3,8 182, 348
2,13 40, 160, 301, 306, 309, 427,733 3,9-15 351
2, 13-17 317 3,10 646
2, 13-22 18, 32, 311, 320, 325, 397, 398 3,11 150, 205, 419, 646, 659, 705
2,16 321, 577 3, 11.32 801
2,18 69, 318, 419, 501, 834, 835 3, 11-21 372
2, 18-22 326 3,12 541
2,19 318, 319, 627 3,13 127, 137, 190, 373, 500, 514,
2, 19-21 731 542, 546, 662
2, 19-22 154, 210 3,14 55, 56, 125, 188, 274 , 354,
2,20 377, 556, 627 363, 381, 577, 612, 750, 776,
2,21 154, 192, 326, 397, 577, 583, 693 825, 836
2,22 266, 678, 757 3, 14-15 775 , 835
2, 22-25 246 3, 14-21 339, 776
2,23 7, 160, 181, 339, 342, 404, 3,15 152, 153, 750, 815
415, 461, 496, 556, 801, 835, 844 3, 15. 16.18 814
2, 23-24 815 3, 15-17 185
2,23-25 165, 332, 340, 342, 402, 3,16 55, 152, 192, 201, 247, 383,
406, 407, 834, 835, 838 386, 394, 600, 672, 795, 807, 810
2,24 817 3, 16.18 184,189
ín d ic e d e C itações Bíblicas 875

3, 16.36 419,438 4,1 260,310, 437, 556


3. 16- 17 209 4,1-3 376, 396
3. 16- 19 355,789 4,2 65,154, 360, 365
3 . 16- 21 354 4,3 314, 360
3.17 77, 403, 437, 592, 606, 788,810 4,3b 405
3 , 17.34 .36.38 655 4,4-26 392
3. 17- 19 776 4,5 201
3.18 130, 150, 181, 337, 342, 356, 4,5ss. 55
370, 438, 846 4,6 262
3.19 127, 130, 176, 178, 179, 192, 4,6.12 56
205, 386, 605, 606, 756, 771, 4,10 395, 523
796,819 4,10-11 154
3. 19- 10 756 4,10.14 394, 807
3 . 19- 20 810,838 4,10-14 127, 395, 583
3 . 19- 21 58, 393, 444, 613, 648, 776,835 4,10ss 154
3.20 150, 439, 634 4,11 847
3. 20- 21 153,356 4,12 e par. 668
3.21 267,372 4,12 154, 563, 635
3.22 7, 365, 376, 381,728 4,13-14 126,138
3. 22.26 65 4,14 51, 394,497, 573, 574
3, 22-30 9, 254, 359, 363- 366, 371, 4,14-16 289
396, 416, 697 4,19 720, 801
3.23 64 , 65, 235, 310, 314, 401 4,19-25 386
3.24 25, 154, 377 4,20 726
3 .24.26 254 4,20-24 648
3.25 260 4,21 290, 291, 820, 821
3.26 348,450 4,21-23 128
3. 26- 30 7 4,22 68,187, 637
3. 27 - 30 455 4,23 114, 439, 820, 822, 823
3.28 65, 177, 220, 237,364 4,23-24 396, 798
3.29 67, 115, 119, 364, 367, 385, 4,24 798, 843
630, 662 4,25 67, 263, 706
3.30 66, 266, 364, 367, 372, 697 4,27-38 398
3.31 51, 137, 369, 610,612 4,29 165
3. 31- 36 8, 23, 368, 371, 789 4,33 462
3 .32 - 33 206 4,34 451,688, 722
3.33 497,562 4,35 77, 399, 400, 427,462,466, 801
3.34 443 4,35-38 120,128, 642
3.35 366,796 4,36 150
3.36 332 4,37 602
3,47 606 4,38 336,400,401
876 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

4.38- 5,11 264 5,16-18 441, 499


4.39- 42 390 5,17 441, 442, 569, 833
4,40.43 705 5,17.21 199
4.41.42 815 5,17-18 569, 689
4.42 77,165, 810 5,17‫־‬30 536
4.43 289, 419, 555 5,18 173,466,555,568,569,662,689
4.43- 45 165, 377, 389, 404, 405, 509 5,19 621,659,688, 722,832
4.44 205, 406, 562 5,19-25 8,135, 356,442, 723
4.4- 42 376 5,19ss 689
4.44- 45 407 5,20 370, 662, 705, 796
4.45 160, 327, 339, 415, 466, 801 5,20-21 279
4.45- 48 838 5,21 344, 542, 843
4.46- 5,47 161 5,21.24 837
4.46-54 16, 32,160,164,409, 416, 5,21.26 440, 688
419, 462, 643, 831, 837 5,21 ss 419
4.46- 54,6 29 5,22 606, 688
4.47- 50 296 5,22.27 374
4.48 406, 801, 834,8355,23 762
4.49 440,463 5,24 130, 606, 635, 807
4.50 444 5,24-25 720
4.50.51.53 419,440 5,25 705, 820, 822, 823
4.53 419,839 5,26 374,525,526, 807
4.54 7,13,15,153, 327, 415, 835 5,26-30 8,135, 444, 445, 606, 723
4,63 549 5,27 274, 607
4.9 71 5,28 705
43-50 275 5,28-29 131, 508, 723, 808, 820-823
47 300 5,29 339, 707
49,2 299 5,29-29 14
5.1 388, 438,452, 462, 466, 816 5,30 387, 568, 603, 607, 688, 791
5,1-15 160,426,434,557,563,567,831 5,31 600
5.2 223 5,31-39 602, 603
5.3 198 5,31-40 67, 224, 454
5.5 817 5,31-47 448
5.5- 7 295 5,3 lss. 68
5.6 416, 564, 801 5,32 600, 799
5.9 427 5,33-35 251, 697
5-10 40 5,35 67,178, 221, 485, 697
5.14 138, 271, 592,6425,36 387, 839
5.15 69 5,37 213,353,510,603
5.16 419 5,38 619,621
5,16-17 209 5,39 277, 458, 792, 829
ín d ice d e C itações B íblicas 877

5,40 140, 201,267 6,25 485


5,41 802 6,25-34 495, 499
5,41.44 782 6,26 417, 464, 834
5,41-44 405 6,26.50 524
5,41-47 456, 562 6,27 127,369,811
5,42.38 568 6,27.51 131
5,43 205, 568, 672, 846 6,27.55 387, 464
5,45 458,646, 791 6,28 834
5,45-47 646,836 6,28ss 477
5,46 55,71, 139,188, 562,636,692 6,29 815
5,46-47 427, 458 6,30 815, 834
5,47 458 6,31 471, 489, 576, 843
6,1-15 160, 460, 831 6,3 lss 55, 836
6,2 415, 466, 562, 747, 755, 801 6,32 51,126, 583, 799
6,3 573, 590 6,32ss 154
6,4 40, 160, 301,306,311,312, 6,33.51 810
466, 519, 733 6,34,51 842
6,5 802 6,35 150,152, 394,815
6,5-7 271 6,35.37.45 267
6,5.9 295 6,35.45 140
6,5-9 260 6,35.5 lss 138
6,6 154,543, 591 6,35-50 8, 505,511-513, 520
6,6.8.30 292 6,36 801
6,7 25, 462, 737 6,36-40 154
6,9 463 6,37 150, 192, 366, 370, 374,519,
6,9-11,14-16.24 12 647, 763
6,10 783 6,37.44.65 662
6,12 267 6,37.65 182
6,12-13 725 6,38 137, 387, 440, 688, 791
6,13 267, 731 6,39 338, 366, 672
6,14 228, 548, 585, 708, 749, 810 6,39-40.44.54 131
6,14.30 801 6,39-45 707
6,14-15 547, 755 6,40 720, 801
6,15 565, 816 6,40.47 267
6,16 267 6,41 463,555
6,16-21 38,160, 477, 484, 831 6,41.61 557
6,19 801 6,4-11 394
6,20 842, 848 6,41-43 463
6,22.24 801 6,42 272, 406, 548,557
6,22-24 491 6,44 763
6,23.49.53 524 6,45 277, 513, 520
878 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

6,46 185,192, 213, 353, 438, 452, 570 7,6 766


6.50 519 7,6.8 765, 822, 823
6.51 480, 506, 519, 527, 530 7,7 412, 726, 810
6.51 -58 8,14 ,1 8 , 23, 24, 76, 81, 7,9 292
86,123, 125, 209, 807 7-8 161
6,51-59 208,366,523 7,10 602, 636
6.51 ss 326, 463 7,11.13 734
6.53 511,527 7,11-16 712
6.54 131 7,12.25-27.31.40-41 678
6.55 799 7,14 327, 799
6.56 813 7,14.18 684
6.57 126,688,807 7,14-24 567
6,5-8 765 7,14-36 560
6.58 808 7,15 406
6.59 235 7,15.27.41 277
6,60-71 540,839 7,15-24 458
6.62 353 7,16 440
6.63 51,127,131,138,183, 374, 7,17 568
395, 546, 600, 805, 807 7,18 453, 635, 802
6.64 610 7,19 453,601,683
6.65 366, 548, 549 7,19.20.25 621
6.65- 66 548 7,19.49 584
6.66 548,556 7,19-23 209,646
6.66- 71 265 7,19-24 458
6.67 138, 264, 548 7,20 625,663, 678
6.68 791 7,21 437,438, 466, 567
6,68-69 35 7,21-23 664
6.69 67, 239, 269, 544, 549, 684, 7,21 ss 567
693, 708, 817, 839 7,22 827
6.70 116,549,743 7,23 441, 644, 684
6.71 549,737 7,24 600
7.1 556,568 7,25 662
7.1- 10 295 7,25-36 569, 603, 612
7.1- 13 554 7,26 564
7.2 68,311,573 7,26.31.41 685
7,2.3.10 412 7,26.48 781
7.3 415,466, 545, 557, 642, 833 7,27 233, 602, 646, 776
7.3- 5 7,562 7,28 443,499, 573, 623, 817
7.3- 7 838 7,28.37 138
7.4 160 7,28-29 626, 636
7.5 309,838 7,29 172,185, 626,817
ín d ic e d e C ita çõ es Bíblicas 879

7,30 291, 765, 820, 821, 822, 823 7,53-8,11 6


7,30.32.44 684 8,1-9 468
7,31 290 8,1-11 589
7,32 590 8,1-26 468
7,33 430 8,2-3 584
7,33-36 612 8,6-8 296
7,33b-34 609 8,7 413
7,34 138,150, 584, 609 8,7-9 624
7,35 71, 77, 347, 761 8,10 290
7,35.42 154 8,12 9, 47,137, 176,178,192,266,
7,36 594, 788 386, 419, 599, 600, 602, 604,
7,36-38 738 613, 636, 649, 652, 705, 716,
7,37 267 777, 788, 810, 819, 842
7,37-38 56, 58, 506, 575, 577, 581, 8,12-17.34 209
604, 649, 655, 815 8,12-20 598, 604
7,37-39 126, 354, 395, 419, 467, 8,12-59 602
583, 585, 807 8,13 69, 454, 594
7,37-41 835 8,14 450, 646
7,37-52 572,603 8,14-21 479
7,38 55, 56, 269, 336, 576, 578, 8,14a,b 603
581,583, 584, 599,613 8,15 183, 338, 438, 594
7,38-39 76,131,251, 349,547, 8,15.25-27. 19.28-29 613
579, 836, 838 8,15-16 605, 606
7,39 64,131, 293, 346, 373, 574, 8,16 190, 603, 607, 846
677, 696, 807, 822, 823 8,16.18 600
7,40 228 8,17 30, 68, 70, 450, 563
7,40-41 465, 557 8,17-18 450
7,40-52 585 8,18 451, 842
7,41 646 8,18ss. 69
7,42 86,233, 776 8,19 636, 817
7,42.52 405 8,20 128, 235, 291, 292, 684,
7,43 645 765, 820-823
7,44 138, 485, 684 8,21 138, 543, 565
7,45ss 570 8,21-22 612
7,47 599 8,21-29 788
7,48 786 8,21-30 608
7,49 374, 647 8,22 154
7,50 154, 332, 786 8,23 127,430, 612, 842
7,51 339,594 8,24 543, 841, 845
7,52 228, 272, 594, 599, 801 8,25 570, 632, 841
7,53 589 8,25-28 613
880 índice de Citações Bíblicas

8,25-53 684 9,5 137, 178,192, 205, 386, 603,


8,26 443, 562, 606 605, 705, 777, 810, 819
8,26.28 274 9,6 416
8,28 131, 274, 353, 612, 673, 688, 9,7 30
773, 775 776, 788, 841, 845, 847 9,9 581, 716
8,29 688 9,9-10 656
8,31 68, 773, 815 9-12 68
8,31-41 630 9,11 756
8,31-59 616 9,13 399, 725
8,31 ss. 55 9,14 433
8,32 150,192 9,16 185, 663, 678
8,33 138 9,17 465
8,34 771 9,22 69, 74, 685
8,35 150, 688, 771 9,24 332
8,38 335,438 9,24.30.33.39 649
8,39-41 501 9,28 68, 71
8,40 798 9,29 277, 457, 458, 646
8,41 663, 720 9,34 763
8,42 443, 688, 727 9,35 138, 271
8,44 150, 202, 610, 672 9,35-37 777
8,44-47.54-55 68 9,35-38 605
8,45 397 9,35-41 837
8,46 138,594 9,38 839
8,47 662, 687, 788 9,39 150, 606, 800, 810
8,48 322, 663, 678 9,39-41 665
8,49 762 9,40 668
8,50 137, 453 9,41 9, 277, 668, 838
8,51 332, 419, 627 9,61 227
8,55 688, 817 10,1 480
8,56 139, 510, 627, 785 10,Iss 55,150
8,57 314, 627 10,l-3a 668
8,58 238, 247, 841, 846 10,1-5 667
8,58-59 689 10,1-18 663, 665
8,59 558, 641, 662, 683, 764 10,1-21 657, 664-666, 684, 687
9,1-10,21 161 10,2 417
9,1-41 639 10,3b 669
9,2 705 10,4 799
9,2-5 705 10,4-5 664
9,3 430, 656, 715 10,4.27 266
9,4 332, 387, 442, 443, 716 10,7ss 667
9,4-5 649 10,7.9 842
ín d ic e d e C itações Bíblicas 881

10,7.9.11.14 670 10,34‫־‬36 68, 691, 692


10,7-10 687 10,35 55
10,8 671 10,36 166, 497, 544, 705, 810
10,10 201, 791, 807 10,37-38 696
10,10.28 419 10,38 525, 839
10,11 683 10,38-42 712
10,11.14 269, 842 10,39 732
10,11.15 682 10,40 153,235, 559, 711,716, 778
10,12 688 10,40-42 7, 24, 695-697, 711
10,13 737 10,41 65, 697,835
10,14 676 11,2 154,740,743
10,15 626, 688, 761, 816, 817 11,3 796
10,16 77, 78,115,119,128, 565, 11,3.11.36 101
674, 676, 727, 730 11,4 137, 642, 715, 774
10,17 804 11,4.40 159
10,17-18 314, 612, 766 11,5 101, 455, 796
10,18 535, 676, 688, 697, 791, 804 11,5.19 704
10,19-21 665, 788 11,8-11 705
10,19-29 665 11,9-10 716
10,20-21 557 11,10 332, 717
10,21 663, 665, 687, 818 11,11 280, 715
10,22 649, 664, 665, 668, 711 11,11-14 711
10,22-23 23, 30 11,14 417
10,22-39 161, 680, 687, 696 11,16 717
10,22ss 664 11,17 723
10,24.33 559 11,18 222
10,24-25.33 36 11,19.31.33.36.45 711
10,24-39 729 11,21 295
10,25 138, 343, 451, 846 11,24 508
10,26-27 664 11,24-26 837
10,28 338 11,25 127,131, 173, 711,714,765,
10,28-29 199 807, 842, 843
10,28-30 678 11,25-26 51
10,29 366, 507 11,25-27 510,515
10,30 314, 443, 687, 689, 722 11,26 807
10,30-39 665 11,27 549, 749, 810
10,31 705, 716 11,1-53 161
10,32 559 11,32-33 765
10,33 173 11,33 833
10,33-36 198 11,37 714
10,34 30, 70, 563, 717, 764 11,40 273, 717, 721, 801, 803, 839
882 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

11,41 464, 723 12,12 734


11,41-42 774, 839 12,12-19 278
11,42 599, 722 12,13 710, 750, 755
11,43 756 12,14 750, 755,756
11,45 802 12,15 750, 753
11,45-53 728 12,16 266, 753, 757
11,45-54 724 12,17 303
11,46-53 712 12,19 756
11,47 838 12,19-50 159
11,47-48 757 12,20 77, 566, 612, 648, 756
11,47-53 559 12,20-21 77, 765
ll,4 7 ss 696 12,20-23 206, 677
11,48 362, 385, 682 12,20-36 759, 783
11,49 30 12,21 271, 821
11,50 154,756 12,21-22 260, 271,462
11,52 77, 119,181,206, 481,571, 12,23 128, 293, 635, 765, 766, 821
674, 731, 756 12,23.27-28 105
11,53 747, 751, 821 12,23.28 803, 846
11,54 235, 559, 711, 732 12,23-24 716
11,55 40,160,311,312, 711,728, 12,24 152, 673,677
748, 764 12,24-25 773
11,55-57 733 12,25 338, 771, 796
12,1 711,728,748 12,25-26 789
12,1-3 704 12,26 152, 266, 267
12,1-7 36,108 12,27 14, 292, 766, 821-823
12,1-8 122,735 12,28 251
12,1-9 718 12,29 766
12,1-36 161 12,31 340, 633, 635, 776, 810
12,3 35, 720, 743 12,32 77,127, 337, 353, 509, 613,
12,3.5 25 711,730,756,767,776
12,4 35, 544 12,32.24 765
12,4-6 743 12,32-34 282, 353, 777
12,5 302 12,33 154, 353, 835
12,7 744, 756, 821 12,34 274, 497, 647, 683, 776, 811
12,8 441 12,34-36 788
12,9 801 12,35 565
12,9.11 711 12,35-36 776
12,9-11 712 12,36 8,643, 711, 771
12,9-19 746 12,37 13,160, 205, 548, 790, 836
12,10 581,586 12,37.41 836
12,11 442, 726 12,37-43 7,159, 779, 780, 786
ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas 883

12,38 244 13,30 332, 819


12.40 648 13,31 159, 274, 635
12.41 56,139, 192, 282, 455, 626, 785 13,31-32 774
12.42 74, 332, 580, 786 13,32 803
12,42-43 74,815 13,33 138, 543, 565, 609
12.43 453, 771, 796, 802 13,34 58, 678, 804, 805
12.44 9,573 13,36 7,266
12.44- 45 790 13,37 661, 806
12.44-50 8, 23,159, 355, 371, 372, 13-17 274
779, 787, 788, 789 14a,b 603
12.46 179, 205,605 14c,d 603
12,46-48 355,789 14,1 742, 815, 816
12.47 338, 789, 810 14,1-10 150
12.48 14,131, 356, 508, 606, 790 14,1.27 709, 721
12.49 443,611 14,1-31 8
12,49-50 678, 791, 803 14,2-3 131
12.50 160,335,374,791,804 14,2.28 159
13.1 159,159, 305, 353, 581,586, 14,3-9 742
766, 795, 821 14,5 7
13,1.3 304 14,5-12 839
13.1- 3 159 14,6 47, 58, 173, 373, 397, 613,
13.1- 7 18 633, 671, 799, 807, 842, 843
13.1- 11 125 14,7 205, 602,816,817
13.2 205, 544,545 14,7.9 801
13,2.27 633,743 14,7-9 353
13.3 370,570 14,8 581,604
13,7 266 14,8-9 271
13,13.14 708 14,9 265, 329, 337, 788
13,16 150,543 14,10 525, 742, 815,833
13,16.20 35 14,10-11 451,811
13.18 116, 525, 528, 530, 544, 781 14,11 694, 743, 815
13,18-30 551 14,12 279, 575, 839
13.19 841 14,12-13 722
13.20 120,150, 789, 789 14,13 846
13.21 709,721 14,15.21 804
13.22 800 14-16 251
13.23 704, 743, 796 14,16 386, 581
13,23-26 99 14,16-17 812
13.26 545 14,17 397, 582, 798, 801, 810
13.27 544,819 14,19 565
13,27-29 743 14,20-21 581
884 ín d ic e d e C ita çõ es Bíblicas

14,21 150,804 16,5 7,387


14,21.23-24 635 16,7 131
14,23 139, 796, 813 16,7.28 159
14,26 346, 374, 396, 846 16,8 128
14-28 199 16,8-11 810
14,28 437 16,11 633, 635, 763, 810
14,28-32 669 16,12 825
14,30 304, 633, 763, 810, 832 16,12ss 329
14,30-31 766 16,13 396, 798
14,31 7, 678, 803 16,14 159
14,91 373 16,14-15 346
15,1 799 16,15 518, 543
15,1.5 842 16,15.31.34 417
15,3 138 16,16 565, 801
15,3-7 525 16,19 485,817
15,4-5 813 16,19-31 712
15,5 200, 808, 813 16,20 150, 810
15,6 119,763 16,21-22 304
15,7 452, 621 16,23 846
15,10 804, 813 16,23.26 722
15,12 58,119 16,25 769, 820, 821
15,12.17 678, 804 16,26 503, 713
15,12-13 804 16,27 138,185, 796
15,13 661, 678, 795, 806 16,27-31 713
15,14.17 803 16,28 137,190
15,15 138 16,30 817
15,16 116,266,371,544,722,811,846 16,32 820, 822, 823
15,18ss 35 16,33 337, 810
15,19 796,810 16,34-47 824
15,20 543, 635 17,1 635, 710, 716, 762, 766, 803, 821
15,21 817 17,1.5 457
15,22 648, 838 17,1.5.24 159
15,23 438 17,2 374
15,25 70, 563 17,2.24 507
15,26 159, 374, 397, 798 17,2.9.11.24 366
15,31 24 17,3 53,199
15,33 832 17,4 387, 451, 774, 803, 833
16,2 74, 820, 821 17,5 137, 172, 192, 247, 542, 762,
16,3 205, 602, 817 773, 803
16,4 543 17,5.11 159
16,4-33 8,24 17,5.22.24 137
índice de Citações Bíblicas 885

17,5.24 809 18,14 727


17,6 374, 635 18,15-16 99,100,104
17,6.26 457, 846 18,18 550
17,6-7 662 18,23-26 99
17,8 374, 544, 623, 816 18,24 727
17,11 689 18,28-19,16 154
17,11.12 374, 457, 773, 846 18,28-31 69
17,11.21 813 18,31 595
17,11-12 181, 749 18,31-32 763
17,11-19 390 18,31-33.37-38 84
17,12 338, 481 18,32 835
17,13 611 18,33.35 68
17,14 241 18,36 279, 810
17,14.16 810 18,37 397, 662, 687, 810
17,15 633 19,1 203
17,16 610, 720 19,2 756
17,17 138, 798 19,5.37 778
17,17-19 397 19,11 362
17,18 116, 400, 810 19,11.23 333
17,19 544, 684 19,13 30
17,20 128, 839 19,1-3,19-22 77
17,20-21 722 19,14 245, 262,382
17,21 507, 674, 812 19,14.29 836
17,21.23 811 19,14-15 756
17,22 118,185, 374 19,17 247, 355
17,24 131,293, 801, 839 19,19 405
17,25 570, 626, 817 19,23 693
17-25 626 19,24 253
17,30 808 19,24.36 556
17,41 646 19,24-27 241
18,1 7 19,25 104, 289, 309
18,3 565 19,25-27 99,104, 303
18,4 394, 817 19,25-30 55
18,5 842, 846 19,26 100, 290, 704
18,6-8 570 19,26-27 98
18,8 417 19,27 180
18,9 154, 338, 507 19,28 382
18,11 766 19,29 245
18,12 69 19,30 131, 574, 584, 774
18,12-14 674 19,30.34-35 346
18,13 726 19,31 245
886 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

19,34 75, 76,117,126, 578, 578, 21,1 461, 484


584, 585, 807, 838 21,1-11 116
19,34-35 208 21,2 264, 289, 706
19,34b-35 14 21,3 210
19,35 60, 97, 98, 799 21,5-11 36
19,35.37 801 21,7 99,101,488
19,36 153, 245, 471, 578, 836 21,7.20 704
19,37 577 21,8-9 271
19,38 74, 332 21,9 800
19,39 332, 580, 737, 744 21,15-17 35,120,121,128, 269,
19,40 71 550, 795, 796
20,1 800, 819 21,15-19 673
20,2 99,100,103, 704, 796 21,16 411
20,2-10 99,100 21,18-19 87,125
20,6-7 710 21,19 835
20,7 711 21,19.22 266
20,8.25 801 21,20 60,154,260
20,9 707 21,20-24 88
20,11.15 708 21,22-23 87,106,133
20,12 801 21,2-23 99
20,13 290 21,23 103
20,14 801 21,24 98, 99,110, 799
20,15 261 21,25 7,253
20,16 706, 708 21,52 128
20,17 116,159,199, 309, 353, 558 23,53 775
20,17.22 345, 346 24,39 848
20,21 116,128, 400 26,57 727
20,22 131, 134, 251, 547, 574, 579, 26-30 356
807,822,823 29,36 254
20,23 120, 550 29-34 275
20,24 264, 706 29-34 275
20,25.28 159 31 371
20,28 131,173,199, 279, 353,611, 31,26 454
839, 847 31-36 9
20,29 801 32 340
20,30 7, 13,18,41,159,160,340, 32,33 253
437, 835, 836 34,11-16 675
20,30.31 159 34,5-6 675
20,30-31 7,40, 567, 786, 831 35,50 531
20,31 73, 77, 78, 337,567,652, 36 371
720, 805, 807 50,19 800
ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas 887

53.1 783 7,22 833


7,38 543
Atos 7,47-48 322
8,1-25 390
1,8 418 8,14 92
1.13 260 8,14-24 625
1.14 556 8,20 395
2,17s 133 8,32 244
2, 21-22 265 9,7 762
2,22 834 9,33 429
2,24 678 10,15 411
2.33 353 10,34-43 29
2,38 395 10,45 395
2,43 834 11,17 395
2,46 402 12,2-3 72
3.1 92 12,12 94,102
3.2 642 13,22 764
3.11 682 13,25 232
3.14 544 13,39 814
4,1-3 72 15,14 262
4.7 590 15,20 527
4.11 269 15,22ss 72
4,13 105 16,30-31 501
4,22 429 17,4 566
4.27.30 544 18,5-19,7 64
4.30 834 19,1-6 232
4.34 764 19,1-7 112
4.36 102, 220 20,18ss 92
5.12 834 20,28-29 673, 688
5,17-18 72 21,18ss 73
5.31 353 21,24-27 734
5,33-40 72 22,9 762
5.34 587 23,5 388
5.37 272 23,8 719
6,1 50 28,26-27 783
6.2 651
6,5 271 Romanos
6.7 786
6.8 834 1,3 207
6.13 726 1,19-20 200
6.14 315, 319 2,6-8 439
888 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

4.3 631 10,1-4 513


4.20 645 10,4 269,576, 785
4,24 678 10,10 508
5.20 661 10,17 730
6.3 656 11,26 536
6,8 706 12,13 396
.
6 17 620 13,3 523
7.3 496 14,21 683
7,7ss 630 15,4 314, 705
7.8 803 15,35ss 769
7,10 452 15,40 335
8,1 438 15,45 542
8,2 630 15,50 183
8.3 207
8.4 546 2 Coríntios
8.9 812
8,15-16 397 1,19 274
8,22 810 1,21-22 656
8,23 344 3,6 542
8.32 337 4,4 763
8,38-39 689 5,1 335
9.5 199, 369 5,14 706
9.6 277 5,16 600
9.7 631 5,19 690
9.17 642 6,14 818
9.33 269 6,16 325
11,8 783 11,2 362
11,36 200 12,12 834
13,9-10 803 13,1 450
15.19 834 13,13 173

1 Coríntios Gálatas

1,22 834 1,4 337


1,26 600 2,9 92,104
2, 6-8 763 2,14 563
3.6 401 2,20 337
3,16 325 3,6 631
5.7 246 3,16 620, 629
6.19 325 3,21 452
8,3 673 3,26 181
ín d ice d e C itações Bíblicas 889

3,26.29 632 1,18 325


4.3 810 1,27 799
4,30 631 2,15 775
4.5 344 3,1 610
4.9 673, 676 3,16 193
5.1 630 4,10 102
5,16 546
6,8 546 1 Tessalonicenses

Efésios 5,4 818


5,5 777
1,20 678
1,23 325 1 Timóteo
2.1 439
2,2 763 3,16 194,206, 207
2.19- 21 325 5,19 450
3.4 799
4.5- 6 199 2 Timóteo
4.9 336
5.8 777, 818 2,9 834
5,19 193 2,19 673
6,12 763 4,11 94
19,1 830
Tito
Filipenses
3,5 344, 350
2.6 437
2.6- 7 200 Filemon
2.6-11 193, 206
2,7 207 24 102
2.9 846
2.10 335 Hebreus
3.19- 20 335
1,1 188,189, 369
Colossenses 1,1‫־‬2 830
1,1-5 825,827
1,5-20 206 1,2-5 194
1.15 497 1,8 199
1,15-20 194 2,14 775
1.16 200 3,5-6 621
1,17 175 4,9-10 442
890 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

4,12 194 1,4 537


4,15 624 1,16-17 212
5,5 693 1,16-18 212
5,7 709, 762 1,17 625
6,4 395, 655 1,21 678
9,11 325 2,19 620
9,11-12 325 2,22 660
9,28 244 3,3-4 87
10,28 450 3,4 133
10,32 655
11,8.17 631 1 João
11,13 636
11,17 185 1,1 184, 801
11,19 678 1,1‫־‬2 807
1,2 172,173,176
Tiago 1,3 369
1,5 137,386, 605, 819, 843
1,22 789 1,6 798
2,2 526 1,6-7 819
2,22-23 631 1,7 306
3,15 137, 335 2,2 730
2,5 635
1 Pedro 2,8 819
2,9-10 819
1,1 566 2,11 764
1,18-19 246 2,13 775
1,23 344, 350 2,14 455
1,24-25 542 2,15 810
1,25 811 2,16-17 813
2,5 325 2,17 811
2,9 818 2,19 119,543
2,25 673 2,20.27 344, 656
4,7 87,133 2,22 633
4,17 325 2,23 438
5,1-2 673 2,24 120, 813
5,3 688 2,27 396
5,13 102 3,1 205
3,1.6 817
2 Pedro 3,2 181
3,5 237, 242
1,1 199, 262 3,8 242,632
índice de Citações Bíblicas 891

3,9 182,183, 205, 333, 344 5,19 369, 775, 810


3,12-15 623 5,20 623
3,13 810
3,14 439 2 João
3,15 807
3,16 661 4 798
3,17 801
3,21 646 3 João
3,21-22 722
3,23 815 3 798
3,24 813 14 801
4,1-6 634
4,2 535 Apocalipse
4,2-3 74,208
4,3 389 1,5 764
4,5 369 1,8 844
4,6 624 1,9 92
4,7 182 1,18 439, 807
4,8 386 2,9 72,112
4,8.16 795,843 3,7-8 671
4,9 185,189, 337, 525, 795, 807 3,9 7 2 , 112
4,12 452, 802 3,14 274, 601, 764
4,12.16 813 3,20 668
4,14 338, 810 4-11 133
4,16 544 5,6 245,677
4,16-16 813 5,9 245
5,1 182 7,9 756
5,1-4 182 7,15 210
5,4 819, 507 7,17 241, 245, 583, 677
5,4-5 775,811 8,1 164
5,6 65, 373 9,11 428
5,7 584 10,9 578
5,8 349 ll,3 s s 249
5,9 450 11,19 325
5,9-10 373,455 12,2 304
5,10 356, 815 12,5.8-9 775
5,13 181 12,9 303
5,14 722 12,17 304
5,16 648, 801,807 12-22 134
5,18 182 15,3 245
5,18a 182 16,16 428
892 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

17,14 243 21,6 523


18,20 92 21,14 92,120
19,6-8 119 21,23 137
19,7 303, 367, 645 21,23-25 819
19,9 298, 305 22,1 245, 577, 583, 677, 808
19,11-13 186 22,1.17 523, 577
19,13 193, 826 22,2 202, 577
19,20 834 22,3 577
21,2 119, 367 22,15 339
21,3 119,184 22,17 577

OUTRAS FONTES CITADAS


5,19 726
1 Clemente 6,1-7 681
10,7 754
44,3 688 12,43-44 806
54,2 688
Baruque
1 Esdras
3,9ss 827
9,8 645 3,9-4,11-19 137
3,12 138, 828
4 Esdras 3,37 137
3,14-15 301,571
3,14 627 3,29 137, 353
4,21 369 4,1 137,139, 808, 828
5,18 662 5,9 599
6,18-31 137
1 Macabeus 14,20-15,10 137

1,54 681 2 Baruque


2,26 596
4,41-50 228, 830 29,5 299
4,41-61 681 29,8 502
13,51 748, 754 48,3-4 334
14,4 228
14,41 830 1 Enoque

2 Macabeus 10,19 299


10c,31 226
1,9 665, 681 41,3 334
ín d ic e d e C itações B íblicas 893

42,2 137,138, 206, 828 9,1 826


48,7 389 9,1-2 827
49,1 764 9,9 827
60,12 334 9,9-10 137
62.14 764 9,10 137, 571,828
89,52 226 9,16-17 137
90,38 241 9,16-18 137,353
13,1 200
Jubileu 16,6-7 336
16,20 498, 503
1,23-25 346 16,26 825
16.17- 19 626 18,3-4 604
18.15 355 18,14 830
18,15 826
Sabedoria
Siraque
2,13.16.18 345
2.24 633 1,1 827
3,2-4 806 1,29 137
3,9 798 4,10 345
5,5 344 4,11 138
5.15 806 4,12 137,138, 808
6-10 137 4,28 798
6,12 138, 571 6,18 138
6.16 138, 647 6,20-26 138
6.17- 18 138 6,27 138
6.17- 19 138 9,1-9 387
6.18- 19 137, 809 15,3 301,512
6.22 137, 798 15,7 828
7,10.29 137 17,2 809
7.14.27 138 23,1.4 345
7.22 827 24 138, 827
7,22ss 827 24,3 827
7.24.27 139 24,6 828
7.25 137 24,8 137, 571
7,25-26 827 24,8ss 828
7.26 137, 605 24,9 137, 827
7.27 811, 812 24,19 140
7,29-30 177 24,19.21 301
8,4 137 24,19-21 138
8,35 267 24,19-20 548
894 ín d ic e d e C ita çõ es B íblicas

24.21 394,506,512, 513 48,24-25 785


24.23 139 50,15 306
24,23ss 828 51,23 584
24,23-29 394 51,23-27 140
24,30-33 575
25.24 633 T obias
30.1 443
32.1 293 4,6 339
34.9 614 5,2 834
44.21 355 9,12-13 647
45,4 693 11,19 289
47,17 660 13,6 339
48.1 248, 450 13,10(12) 322
48.10 226, 249 14,5(7) 322

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