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Forte, Bruno.
F841j Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história:
ensaio de uma cristologia como história / Bruno Forte;
[tradução Luiz João Gaio; revisão João Anibal Garcia
Soares Ferreira], — São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
(Coleção teologia hoje)
Bibliografia.
ISBN 85-05 00239-3
1. Jesus Cristo 2. Jesus Cristo — Paixão 3. Jesus Cristo
— Ressurreição I. Título. II. Título: Ensaio de uma cris
tologia como história.
CDD-232
-232.96
85-0237 -232.97
JESUS DE NAZARÉ,
HISTÓRIA DE DEUS,
DEUS DA HISTÓRIA
E n s a io d e u m a c ris to lo g ia
c o m o h is tó ria
2ã edição
E d içõ es P a u lin a s
Título original
Gesü di Nazaret, storia di Dio, Dio delia storia
Tradução
Luiz João Gaio
Revisão
João Aníbal Garcia Soares Ferreira
5
para a sua transform ação. Por isso, esta cristologia é pensada a
partir do hoje concreto das gritantes contradições do nosso povo,
da sua miséria, da opressão política e econôm ica sob a qual vive,
mas tam bém a partir da sua tradição, das suas esperanças e da
sua fé. Deus vem unir-se a esta nossa história no Espírito do
Ressuscitado, e é tam bém no coração dele que Deus deve ser
reconhecido. Por isso indagamos: Jesus é o Cristo: o que signi
fica isso para nós?
O livro está articulado em três partes. Na primeira, colo-
cando-nos dentro dessa realidade concreta, da m aneira mais
am pla e solidária possível com a “condição humana”, procura
m os responder à pergunta: que sentido tem falar de Jesus Cristo
hoje? Na segunda, entram os em diálogo com o passado da fé:
com o esperaram , encontraram e testemunharam Cristo aqueles
que nos precederam ? Procuramos identificar esse fato a partir
da história de Israel e a partir da palavra da com unidade primi
tiva, palavra que ê normativa e fonte para quem crê. Na terceira
parte, por fim, nos esforçam os em apresentar com o o Crucifica-
do-Ressuscitado p od e dar sentido, esperança e força aos homens
d e hoje, cuja cruz muitas vezes parece insuportável.
Esse sentido, essa esperança e essa força, nós os encontra
m os em Jesus, que é a história de Deus e o Deus da história.
Digo isso desde já, porqu e este livro é “parcial” : fo i escrito por
alguém qu e crê para servir de ajuda aos que também crêem e de
“p rovocação” aos que não conseguem crer. N este sentido, desti
na-se a todos: evita-se uma linguagem d e iniciados (sem contu
d o renunciar aos termos “técnicos” indispensáveis, apresentados
num lista colocada no fim do livro). Isso para que o diálogo
com o leitor — qualquer que seja a sua história — possa ser
entabulado sem grandes dificuldades. O que não quer dizer
renúncia ao rigor crítico, mas um diálogo com os entendidos no
assunto sem dificultar aos dem ais a com preensão da mesma fé
que pertence a todos. Ê provável qu e am bos fiquem insatisfeitos:
algumas páginas serão dem asiado sim ples para os críticos; outras
serão muito críticas para os simples. Mas, a uns e a outros se
p ede que com preendam a intenção d e fundo: uma teologia que
não falasse ao hom em de h oje seria muda, da mesma form a que
é vazia uma teologia que não se constrói através de rigorosa pes
quisa dos “dados” da fé.
Bruno Forte
6
PR IM EIR A PARTE
CRISTOLOGIA E HISTÓRIA
1
A CRISTOLOGIA NA HISTÓRIA
Q ue sentido tem falar de Jesus Cristo hoje?
9
mundo feito adulto” (D. Bonhoeffer); no segundo, “Cristo e o
mundo das não-pessoas”.
Todavia, dentro do mundo das estruturas culturais, sociais
e políticas está o homem. Não é só dessas estruturas que surge
a interrogação sobre o sentido do discurso cristão. É também
das profundezas do humano, da tensão entre experiência e espe
ra, entre amor e laceração, da abertura para o futuro e do escân
dalo da dor que nasce a provocação para a fé no Deus crucifi
cado e ressuscitado. Que sentido tem Jesus Cristo para a espe
rança do homem? Que sentido tem para tantos sofrimentos, em
que todos os dias se realiza a paixão do mundo?
Por fim — isso parece paradoxal! — é o próprio Deus
anunciado pelas Igrejas que provoca essa “pretensão”. Ele não
se deixa prender pela palavra humana; ele afasta a certeza pre
sunçosa de quem pretende já possuí-lo; ele incentiva, na obediên
cia da fé, a uma perene busca de sua face, a uma explicação
sempre nova da esperança que existe em nós.
Diante dessa tríplice provocação, a cristologia — como
reflexão crítica da fé da Igreja em Jesus Cristo — deve, antes
de mais nada, empreender o caminho que justifique a “preten
são cristã. Somente através disso, aceitando o desafio da escuta
e do diálogo com o mundo, com o homem e com Deus, tal
pretensão poderá perceber o sentido e a forma do serviço,
que é chamada a prestar na Igreja para os homens de hoje.
3
1. 1. A PROVOCAÇÃO DO MUNDO SECULAR
E DA PRAXIS DE LIBERTAÇÃO
1U
Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15,34)...
Com Deus e diante dele, vivemos sem Deus. Deus se deixa
expulsar do mundo, sobre a cruz; Deus é impotente e fraco no
mundo e assim, e somente assim, pode permanecer conosco e
nos ajudar” .1 D. Bonhoeffer, a corajosa “testemunha de Cristo
entre os seus irmãos”, morto vítima da barbárie nazista, sinteti
zava dessa forma os termos em que se coloca o problema de
Deus no mundo feito “adulto”. São os termos de uma dialética
de ausência e de presença. O homem secular , que experimen
tou a autonomia do mundano em todos os campos do pensamen
to filosófico e científico, levou até às últimas conseqüências o
processo de “emancipação” iniciado pelo iluminismo. Esse ho
mem chegou a captar, com relação a Deus, a autonomia da pró
pria existência crente, chamada a viver no mundo como se
Deus não existisse. O ateísmo moderno “não tem mais o sentido
de oposição a Deus e de polêmica contra Deus, de antiteísmo,
mas de ausência e radical carência intencional da fuga de
Deus’ com relação ao homem e da ‘fuga do homem com relação
a Deus”.2 “Os deuses e seus pálidos filhos, símbolos da metafí
sica, estão desaparecendo. O mundo está cada vez mais se tornan
do apenas mundo. É privado de seu caráter sagrado e religioso.
0 homem se torna sempre mais apenas hom em e perde os signi
ficados místicos e os reflexos cúlticos que o distinguiam duran
te o estágio religioso da história, estágio que já se aproxima do
fim. Agora, o homem deve assumir a responsabilidade pelo
11
mundo. Não pode descarregar essa responsabilidade nos ombros
de algum poder religioso”.3
Todavia, é nessa mesma ausência que surge o mistério de
uma presença. A experiência dos totalitarismos, das atrocidades
da guerra, da ambigüidade da técnica, mostrou que a história da
emancipação pode tornar-se tragicamente história de novos ído
los, de novas e mais cruéis alienações. Inicia-se uma autocrítica
da crítica moderna, uma dialética do iluminismo”,4 que procura
mostrar os limites da racionalidade, prisioneira de si mesma,
que, de organizadora e manipuladora, com freqüência se torna
organizada e manipulada. Enquanto assim se esboça uma “sauda
de do totalmente outro”, como “saudade da perfeita e consuma
da justiça”,5 redescobre-se a presença de um Deus que não con
corre com o homem, mas que, ao contrário, está a seu lado, de
modo especial no sofrimento, pregado que se acha na cruz do
mundo. Cristo se torna “o objeto de um grande amor, de uma
imensa piedade, porque aceitou indicar através da morte a pre
sença de Deus no mundo mediante o sinal doloroso e opaco de
uma ausência conturbadora”.6 Aqui está a contradição do
homem secular: com Deus e na presença de Deus, ele vive
sem Deus.
A raiz profunda dessa dialética do divino no mundo moder
no deve ser procurada nos fatores que presidiram o advento da
idade adulta e que caracterizam, de maneira significativa, a
tecnópolis : o maquinismo, a ciência e a ideologia.7 O maqui-
nismo consiste, antes de mais nada, no espaço cada vez maior
que se dá ao instrumento técnico no mundo contemporâneo: a
automação crescente subtrai ao trabalho do homem setores sem
pre mais vastos de atividade, condiciona fortemente outros, redu
zindo a presença humana a uma ação repetitiva e mecânica, e
modifica profundamente os ritmos e as condições da vida. A
“máquina” entra cada vez mais amplamente na esfera da rea-
12
lidade pública e privada: deslocamo-nos, nos comunicamos e
agimos por seu intermédio. Quase imperceptivelmente, a inva
são da técnica entra na mentalidade e se torna critério de ava
liação e forma de pensamento: a fabrilidade, que estabelece o
produto como fim de todas as coisas, e a resultante interior do
tecnicismo. O “homem faber”, o homem artífice de produção,
inserido precisamente na gigantesca linha de montagem da socie
dade onde vive, torna-se então o protótipo da “civilização das
máquinas” . É o homem programado, que produz como máqui
na e que, como ela, já não sabe parar sozinho, a menos que algo
o faça parar ou pare nele. Ao homem reduzido a coisa corres
ponde a verdade coisificada, própria da ciência no mundo mo
derno. É a verdade que se coloca sob o signo do verificável. É
o saber constantemente provocado pelo fenômeno e relacionado
com ele.
Quando o fenômeno se torna horizonte exclusivo do conheci
mento científico, considera-se verdadeiro apenas o que coin
cide com o exato, isto é, com o verificado. A terapia da suspei
ta é imposta a tudo o que não é verdade factual, justificando
um amplo agnosticismo, como também uma confiança absoluti-
zante no saber científico. Essa confiança é garantida, aparente
mente, pelas extraordinárias conquistas por ele alcançadas em
nossos dias. Além disso, deve-se acrescentar que essa mentali
dade, freqüentemente sob forma de simplificação e divulgação
absolutamente contrastantes com o alto nível de especialização
tio trabalho autenticamente científico, vai plasmando sempre
mais as novas gerações, cuja preparação é marcada de maneira
crescente por uma orientação técnico-positiva. Nessa terapia da
suspeita diante do não imediatamente verificável, a ideologia do
“regnum hominis” encontra o seu caminho mais adequado. Ela
se apresenta como visão humana do mundo, como projeto e com
promisso para a edificação de uma sociedade na qual o homem
seja o centro, a norma e a medida de todas as escolhas. Ultra
passando esquemas idealistas e abstrações totalizantes, privadas
de autêntica força crítica, essa ideologia parte de uma análise
da sociedade que evidencia as relações concretas de produção
r exploração em que o homem está colocado e que o determinam
rssencialmente. Somente quebrando a cadeia de dependências iní
quas, somente desmascarando e modificando os interesses reais
das classes opressoras que dominam o sistema, será verdadei
13
ramente possível humanizar o mundo. O homem “em abstrato”
não existe. Existe somente o homem concreto nas suas relações
sociais, opressor ou oprimido; escravo e inerte diante da explo
ração, ou ativamente combativo por um amanhã diferente; alie
nado, porque outros se apossam e usufruem de maneira exclu
siva dos frutos do seu trabalho, ou emancipado, porque sujeito e
medida das relações sociais.8 Nesse empenho de libertação do
homem concreto, como passagem revolucionária da alienação
para a emancipação, consiste a força e o fascínio que a ideolo
gia do “regnum hominis” exerceu e continua exercendo sobre as
mais variadas camadas da sociedade moderna. Nesta, o mito
iluminista da emancipação do homem parece tornar-se final
mente possibilidade real, embora árdua para ser alcançada. E a
paixão daquilo que é possível” (Kierkegaard) é esperança capaz
de sustentar a luta.
Concorrem, portanto, para caracterizar o mundo feito
adulto , maquinismo e fabrilidade, ciência e verificabilidade,
ideologia e luta pela emancipação do homem. Como se coloca
tudo isso frente ao problema de Deus? Inicialmente, cada um
desses fatores oferece uma provocação negativa: Deus, estando
fora da cadeia terrena de produção, não encontra lugar na ati
tude de fabrilidade. O “deus ex machina”, o “deus tapa-bura-
cos” da religiosidade pré-secular é expulso pelo “deus machina”,
pelo maquinismo guindado a ser estrutura de pensamento e de
vida. Da mesma forma, a verificabilidade desterra o divino para
o campo do falso, ou pelo menos do insensato: “ninguém viu a
Deus , portanto Deus não existe. O discurso sobre Deus soa
absurdo e não científico. Por fim, a ideologia do “regnum ho
minis” protesta contra um Deus que reduz o homem, ou pior
ainda, que o aliena do seu processo terreno de libertação, à espe
ra de um futuro prometido: a religião é o ópio que impele os
oprimidos à resignação, à espera do prêmio futuro, e que, “por
amor de Deus”, os torna vítimas inertes e resignadas dos seus
senhores. Desse deus e do seu céu, um militante comprometido
em transformar a terra não sabe o que fazer! Fabrilidade, veri-
8 “Alie Emanzipation ist Zurückfiirung der menschlichen Welt, der
Verhãltnisse auf den Menschen selbst” : K. Marx, Zur Judenfrage in Karl-
-Marx-Studienausgabe, I. 1971, 2? ed., p. 497. Sobre a importância do
conceito de emancipação” para a compreensão do mundo moderno e
para o- desafio que ele constitui para a fé cristã, cf. Redenzione ed
emancipazione, Bréscia, 1975.
14
I icabilidade e ideologia da emancipação parecem assim procla
mar unissonamente a morte de Deus 9 e um novo evangelho, a
hua nova do homem feito adulto e senhor de si.101 O louco de
que fala Nietzsche já pode gritar na praça do mundo: “Deus
está morto! E nós o matamos!’’ 11
Mas é neste ponto que se insinua a dúvida na consciência
do homem moderno. Os mestres da suspeita tornam-se vítimas
dos seus próprios discípulos! Isto é, as pessoas indagam: o
produto — exaltado pela fabrilidade — , o exato — característi
ca da ciência — e a práxis terrena — lugar exclusivo do proces
so de emancipação — são verdadeiramente o horizonte absoluto?
A constatação histórica da imperfeição da civilização tecnológi
ca e da ideologia do “regnum hominis” para garantir a qualida
de da vida, ou seja, não apenas melhores condições de vida eco
nômica e social, mas também, e de maneira mais profunda, o
próprio sentido do existir, acabam gerando a dúvida. Assim
ocorreu na contestação dos jovens de 68, com a invocação de
uma criatividade utópica (“a fantasia no poder”).12 Assim tam
bém ocorreu na dissensão amadurecida no seio do marxismo
ortodoxo.13 Os anos 70, com a crise energética, questionaram o
próprio modelo desenvolvimentista em que se baseia a “socieda
de opiilenta”,14 modelo fundado na ilimitada disponibilidade de
energia barata. As conseqüências dessa passagem — verificáveis
na economia e nas relações sociais e políticas de muitos países
15
já^ fazem entrever o surgimento de uma "‘sociedade pós-opu-
lenta , caracterizada certamente por uma confiança mais crítica
nas possibilidades do humano. Assim, nos próprios fatores que
caracterizam a idade adulta do mundo vêm delineando-se, ainda
que em meio a contradições e obscuridades, uma perturbação e
uma espera: brota na fabrilidade e nostalgia de uma atividade
que tenha a si mesma (e não o produto) por finalidade, com o
jogo e o amor; insinua-se na verificabilidade a dúvida sobre um
além das coisas, sobre um sentido maior, que ilumine as contra
dições insolúveis da realidade concreta, as contradições de uma
beleza e de um sentido irredutíveis ao positivo científico; na
ideologia do homem emancipado delineia-se a angústia de uma
liberdade continuamente frustrada pelo imponderável, de um
limite constantemente ameaçador e inevitável, a morte, enquanto
aflora a nostalgia de uma “perfeita e consumada justiça” (Hor-
kheimer), que dê razão aos injustiçados e não esqueça o sofri
mento dos vencidos. No tecido mais profundo dos fatores que
presidem o advento da sociedade secular se delineia assim uma
provocação nova, positiva, com relação a Deus: uma saudade
de amor, de beleza, de sentido, um profundo desejo de esperan
ça fundada e de justiça realizada. Das profundezas da idade
adulta do mundo volta a emergir a interrogação sobre o funda
mento: o homem secular se reabre a possibilidade de falar de
Deus. Ouve-se, novamente, o “frufru dos anjos”; 15 constata-se
a atual e presumivelmente futura “persistência da religião”.16
O homem secular não encontra Deus nas experiências limitadas,
mas no limite de toda experiência, quando percebe a prisão
do imanente, do semelhante, do interesse penúltimo, e co
meça a ter sede de uma palavra que rompe o silêncio da
morte, e sustente, na esperança, a luta de hoje. Vai abrindo
caminho o sonho do sétimo dia, de um “domingo da vida”
(HegeL), que não pode mais ser o dia de uma filosofia presun-
16
çosamente absolutizante, que se revelou prenhe de possibilidades
de alienação.
Neste ponto os cristãos sentem que podem propor o “dia”
de seu Deus crucificado e ressuscitado: neste mundo seculariza-
do, que tantos vêem como única pátria e único destino, eles
sentem, na fidelidade ao presente, que podem anunciar uma
outra pátria, outro destino. Este seu anúncio, que assume a for
ma de cântico dos exilados de Sião, “o cântico do Senhor em
terra estranha” (SI 137,1), é denúncia de que toda experiência,
tem limite, e é esperança, fundada no Ressuscitado, de que a
“pátria, sempre vislumbrada e nunca possuída” (Bloch), será
um dia a terra do homem. Enquanto os mensageiros do nada se
aproximam da sociedade pós-opulenta, enquanto o contra-senso
e o medo justificam a fuga e a renúncia de muitos, a “pretensão”
cristã afirma que somente a palavra da Cruz, como palavra de
um amor maior e de uma maior esperança, que vencem o poder
da morte, pode dar a coragem de existir.17 Onde está o cadáver
do homem prisioneiro de si, aí se reúnem os abutres. Mas onde
o Vivente é proclamado e tornado presente, aí se liberta a vida,
libertam-se as forças ocultas, recomeça a festa das flores dos
campos e das aves do céu, o homem se levanta e, de cabeça
erguida, enfrenta o suor do dia. Por isso, diante da cidade secu
lar e de suas vicissitudes, os cristãos continuam a falar de
Jesus, o Cristo.
17
soai de cada um nessa situação, quanto o empecilho que ela
representa para a realização plena de todos os homens, explo
rados e exploradores”.18
Essas palavras de G. Gutiérrez, o teólogo latino-americano
que contribuiu de maneira decisiva para o nascimento e desen
volvimento de uma “teologia da libertação”,19 resumem os ter
mos em que se encontra hoje a “pretensão” cristã diante do sis
tema de opressão. São os termos da miséria e alienação que
constituem ofensa ao homem e, conseqüentemente, a Deus, e
que portanto desafiam a responsabilidade de quem tem cons
ciência de ser homem, especialmente quando se professa cristão.
A situação descrita por G. Gutiérrez pode ser indicada como
aquela do ‘mundo das não-pessoas” : 20 é o mundo daqueles a
quem na realidade não se reconhece o direito de serem homens,
isto é, de serem sujeitos conscientes da própria história na liber
dade. Esse mundo é regido por uma lei de “dependência”, pela
qual alguns países e classes sociais (os países e classes “domi
nantes”), se tornam sempre mais ricos e poderõsos, enquanto
outros (os países e as classes “dependentes”) ficam sempre mais
pobres.21 É a dependência externa, que se estabelece entre os
países muito desenvolvidos e os subdesenvolvidos, através da
ação das multinacionais. Os “equilíbrios” políticos mundiais se
baseiam no imperialismo das grandes potências. As formas de
neocolonialismo, através de “ajudas” a países pobres, cria neles
necessidades futuras, para cuja satisfação o preço é altíssimo no
18
plano econômico e político. A essa dependência externa corres
ponde a dependência interna, que se verifica entre os detentores
do poder e as classes que são exploradas mediante o “livre mer
cado”, orientado pelo interesse de poucos, em cujas mãos se con
centra o capital. É para isso que a escola e a educação seleti
vas” visam a perpetuar a situação existente, manipulando a infor
mação e mantendo ausentes as garantias sociais e a liberdade po
lítica. O sistema de dependência configura-se, pois, do ponto de
vista das massas “dependentes”, como sistema de opressão: o
poderoso tende a conservar a sua posição de privilégio, de um
lado, pelo exercício da força (poder militar), e, do outro, pela
fraqueza e medo dos oprimidos. Tal sistema teme a conscienti
zação das massas, que abriria caminho para a denúncia da ordem
social injusta. Por isso, controla e censura o pensamento e a
informação: com freqüência se professa servidor do Altíssimo,
mas na verdade se serve de Deus e da realidade religiosa para
manter os pobres acorrentados à promessa de um futuro conso
lador na outra vida. O sistema de dependência e opressão é um
sistema que procura manter os atuais privilégios das forças domi
nantes e o radical fechamento e defesa diante de tudo o que possa
ser verdadeiramente novo. Para as massas oprimidas, é o sistema
do medo e da resignação fatalista diante da condição presente.
Mas não é só. Nos países do “Terceiro Mundo’, a lógica do lucro,
alma dos processos que constituem as dependências, revela o
seu poder desumanizante; mas ela se revela não menos alienan-
te nas contradições da sociedade opulenta e pós-opulenta. Em
muitos países de avançada economia industrial, são inúmeros
os sinais que demonstram que a sociedade burguesa e o sistema
capitalista são incapazes de promover autenticamente o homem.
Alguns desses sinais são: as condições de vida dos desemprega
dos e subempregados, dos marginalizados e emigrantes; a desa
gregação moral, evidente no crescimento da delinqüência e da
violência, na difusão da droga, na crise de muitas formas tradi
cionais (família, instituição religiosa); a deterioração ecológica
em dimensões sempre mais alarmantes.
Da profundeza dessas tensões nascem, então, a aspiração à
justiça e a luta pela libertação; aspiração e luta que constituem,
antes de tudo, o grito dos oprimidos, o lamento, freqüente-
mente inarticulado, diante da iniqüidade presente. E se tradu
zem, depois, no compromisso daqueles que, conscientes da de
19
sumanidade do sistema, lutam contra ele de várias maneiras:
através da denúncia dos poderosos e da conscientização das
massas, e até da resistência não-violenta ou mesmo do "uso das
armas e dos métodos de guerrilha revolucionária. Assim, vai se
delineando uma práxis da libertação, carregada de valores posi
tivos e, ao mesmo tempo, de ambigüidades. Essa práxis é carac
terizada pela recusa unânime do atual sistema social e político.
Mas não é caracterizada pela identidade de pontos de vista
quanto ao modelo de sociedade futura e quanto às moralidades
para atingi-la. O não” ao presente não se traduz num mesmo
tipo de sim ao futuro. Dessa forma, o modelo do "desenvol
vimento , típico dos anos 50, parece sempre mais amplamente
superado, porque toma como medida os países opulentos, mas
não dá suficiente importância aos fatores políticos nem analisa
a fundo as dependências. Ao mesmo tempo, a “teoria da depen
dência , que veio se firmando sempre mais nas análises, a par
tir dos anos 60, sobre o pano de fundo genérico da avaliação
mais crítica e mais pessimista da situação econômica, social e
política, entra em choque com a complexidade real das relações
entre países e entre classes, e se exprime numa multiplicidade
concreta de diagnósticos e terapias. Contra qualquer simplismo,
é preciso reconhecer que a “práxis de libertação” é um fenôme
no muito bem articulado e se caracteriza por uma dialética, não
redutível a esquemas fáceis.
Nesse contexto, como deve ser proposto o discurso cristão
sobre Deus? Tem algum sentido a palavra da Cruz e da Ressur
reição para a libertação dos oprimidos deste mundo?
A pretensão cristã, como é expressa em muitas teologias
atuais,22 responde a essa questão sublinhando, antes de mais
nada, que o Deus cristão é um Deus subversivo. A história de
Israel é a história do Êxodo, isto é, a história das intervenções
20
divinas na denúncia contra a miopia das presunções presentes
e no anúncio da salvação futura, diante do hoje cheio de triste
za e iniqüidade. Jesus de Nazaré proclamou ter sido enviado
“para evangelizar os pobres, para proclamar a remissão aos pre
sos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade
aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor
(Lc 4,18; cf. Is 61,1-2). O “titulus crucis”, o motivo da conde
nação, identificou em Jesus um perigoso subvertedor da ordem
constituída. Mas é sobretudo a Ressurreição que traz em si a
força inaudita da libertação: ela é a manifestação plena da inter
venção de Deus no tempo dos homens, do Deus que liberta da
prisão da morte e introduz no horizonte do Reino. Ela abre
radicalmente para o futuro e inicia o tempo penúltimo, como esta
ção onde se supera o passado de iniqüidade rumo à justiça de
Deus. Contra toda tentação de reduzir a história a simples ordem
estática, o poder e a novidade do Espírito do Ressuscitado ape
lam para uma história sempre aberta, num futuro em que a
“nova criação” e o “homem novo” se exprimem na solidarie
dade nova entre os homens. É desses caracteres fundamentais
que derivam as duas principais tarefas que a “pretensão cris
tã é chamada a realizar na práxis da libertação: a denúncia e o
anúncio.
Vista na linha dos profetas e sobretudo da obra e destino
de Jesus Cristo, a denúncia é certamente antes de tudo denún
cia da “ordo potestatis”. À luz do único Senhor proclamado a
partir da Ressurreição, ela refuta a mediocridade e a fragilida
de de todo poder deste mundo. Em primeiro lugar, daquele
poder que presume ser absoluto, para se tornar ídolo e árbitro
dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e à dignidade hu
mana, dons inalienáveis de Deus a toda pessoa. Para o cristão,
a denúncia da injustiça e da opressão, como também do poder
econômico fundado no lucro, que está por trás delas, tem uma
dimensão mais profunda: é a denúncia contra a ordo peccati ,
contra a realidade trágica do egoísmo, que alicerça os sistemas
de dependência e neles encontra as suas concretizações sociais
e políticas. A opressão exercida pelas classes dominantes é mal
que brada diante de Deus, assim como a dor de quem sofre injus
tiça é também dor do Deus cristão. A denúncia profética do
cristão não se detém nas dimensões visíveis da opressão: ela as
atinge, mas através delas vai até a mentalidade perversa que as
21
inspira, até a lógica do lucro, que é a lógica do príncipe deste
mundo.
À denúncia junta-se o anúncio. Antes de tudo, ele é o anún
cio criativo e operante de um novo e diferente “regnúm homi-
nis”, de uma sociedade em que são reconhecidos a cada um os
direitos inalienáveis do ser humano; nesta sociedade cada um
passa a exprimir-se de acordo com as suas capacidades e a rece
ber conforme as suas necessidades. Em resumo, uma sociedade
onde o homem seja fim e não meio. Entretanto, para o cristão
essa “cidade futura” não pode se restringir ao horizonte do
Reino: “Desenvolver o homem todo em todos os homens” é a
tarefa de que são incumbidos os cristãos por sua fé na Ressur
reição. E “o homem todo”, o homem “integral” é o homem
aberto às dimensões da história, o homem que não adora nenhu
ma realidade deste mundo, porque vê tudo com relação aó
absoluto de Deus. Para a “pretensão” cristã, libertação não quer
dizer substituir o sistema atual por um outro análogo, puramen
te terreno, no qual simplesmente é trocado o papel das partes. A
injustiça antiga não deve ser substituída por uma nova. Por isso,
é necessário tender a uma sociedade que, no plano das relações
internacionais e nacionais, reconheça a todos o espaço para
serem e viverem livremente o próprio patrimônio de tradições
com relação ao passado e de opções diante do futuro. Para a
“pretensão” cristã, isto só é possível desde que a pessoa não
fique prisioneira do horizonte penúltimo e possa estar aberta
à esperança maior, estando disponível, assim, para uma contí
nua tensão crítica e uma perene superação.
Como se situa essa presença de denúncia e anúncio em
relação às outras componentes, que agem na práxis da liberta
ção? Apesar de todas as dificuldades que se podem encontrar
na prática, •o tender para o horizonte último deve tornar o cris
tão corajosamente livre de qualquer proposta terrena absoluti-
zante e de qualquer ideologia. O cristão poderá encontrar-se
lado a lado com homens das mais diversas esperanças na con
cretização das opções histórico-políticas. Mas deverá ser vigilan
te com relação a todas, conservando perante elas a consciência
crítica em nome de sua “reserva escatológica”. Aqui está a difi
culdade de sermos cristãos na práxis da libertação. Totalmente
fiel ao mundo presente, o cristão deve ser sempre e totalmente
fiel também ao mundo que há de vir e que lhe foi manifestado
22
na Ressurreição de Jesus Cristo. Somente assim poderá dar ao
mundo em que vive uma contribuição original e criativa, auten
ticamente libertadora. Nesta sua liberdade frente a todo poder
deste mundo, o cristão atuará eficazmente para a libertação do
homem. Assim mostrará, com os fatos, o sentido do seu anún
cio sobre Jesus Cristo e tornará presente, nas diversas situações,
a força do Espírito do Ressuscitado: porque, “onde se acha o
Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17).
23
ateísmo trágico. “Para Deus, a única desculpa é que ele não
existe” (Stendhal e Nietzsche). “Se Deus existe, o mundo é a sua
reserva de caça” (palavras de um ateu num romance de L. San-
tucci). “Os olhos que viram Auschwitz e Hiroshima não pode
rão contemplar a Deus” (Hemingway). Na realidade, porém,
reduzir tudo a este mundo e às suas leis significa implicitamen
te render-se diante do problema da dor e da morte. Outros resol
verão o conflito mediante a fé num Deus que tudo regula em
vista do bem, segundo desígnios que a mente humana não pode
compreender. É a solução de Jó, sustentada pela espera tormen
tosa de uma justiça futura: “Eu sei que o meu Defensor está
vivo e que no fim se levantará do pó: depois do meu despertar,
levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus. Aque
le que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contem
plarem não será um estranho” (Jó 19,25-27). Mas é preciso reco
nhecer: “Uma fé em Deus que justifique o sofrimento e a injus
tiça do mundo sem protestar contra elas é uma fé desumana e
produz frutos satânicos”.24 A resignação é, no fundo, a abdica
ção diante da tarefa de mudar a injustiça do mundo. Outros,
enfim, identificam a sede de justiça com a raiz última da dor
diante do mal do mundo, e por isso traçam um caminho de
renúncias que leva a extinguir qualquer sede e por isso qual
quer capacidade de amar e sofrer. É a solução de algumas místi
cas orientais, que hoje parecem despertar um fascínio singular
nos países da opulência. Tal solução reduz a história humana a
uma transitoriedade vazia, fazendo da vida uma fuga para algum
nirvana e deixando intactas as dilacerações e feridas do sofri
mento do mundo.24*
Diante do caráter incompleto dessas propostas se encontra
a pretensão cristã de salvação, “pretensão” que se apóia no
Deus crucificado. Que sentido tem o evento da Cruz para o
sofrimento do mundo? Para a história do mundo, o que acon
teceu naquela sexta-feira santa? O evangelho de Marcos, que
provavelmente relata a tradição mais fiel à crônica dos fatos,
apresenta como palavras de Jesus agonizante o grito do Salmo
22: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc
24 Ibid, p. 1075.
24a Cf. H. Cox, La svolta al Oriente. Promesse e pericoli dei nuovo
Onentalismo, Bréscia, 1978.
24
15,34; cf. Mt 27,46). É a “derilictio Jesu”, o abandono de Jesus
na cruz, abandono que sempre constituiu uma pedra de escân
dalo na interpretação cristã do “mysterium crucis” e que hoje
c o centro das “teologias do sofrimento de Deus : essas teolo-
gias buscam, na compreensão mais profunda do Crucificado o
sentido último da paixão do mundo.25 O salmo 22 é o salmo da
confiança. Nesse grito, a exegese tradicional captou a confiança
incondicional de Jesus no Pai. Todavia, o evangelista Lucas a
exprime em termos bem diferentes: “Pai, em tuas mãos entrego
o meu espírito” (Lc 23,46). Por isso, é necessário aproximar-se
da experiência de Jesus agonizante, levando em consideração as
duas tradições, em sua diversidade real e não só aparente. No
texto de Marcos e de Mateus, o Crucificado se dirige a Deus
com o apelativo E li: não é a invocação cálida e afetuosa, que
seria expressa pelo termo A bbá, mas o nome divino pronuncia
do com “temor e tremor” . A esse Deus soberano, o agonizante
pergunta: “Por quê? (eis ti = para que fim?). A pergunta encer
ra o tormento próprio da dor de não compreender o sentido. Na
interrogação do Filho ressoa a angústia de todos os sofredores da
história: também para o Crucificado, o sofrimento é um misté
rio! A interrogação nasce da experiência de um abandono real,
da ausência e do silêncio daquele Deus do qual o Nazareno mais
esperava e desejava a presença na hora da Cruz e a garantia de
sua confirmação messiânica. Sentindo-se abandonado, Jesus é
atingido em sua consciência de Filho e está no pólo oposto do
salmista, para quem o justo tem direito à proteção de Deus. O
Crucificado se sente o mais desolado dos desolados e oprimidos
da terra! Ao abandono doloroso, porém, ele responde com a ofe
renda: é o abandonado, mas não o desesperado. As palavras de
Lucas deixam -transparecer esta última dimensão da dor de
25
Jesus: ele se dirige a Deus chamando-o de “Pai”, e não mais de
Eli. A pergunta atormentada do texto de Marcos e Mateus tor
na-se o brado confiante: “Nas tuas mãos”. A experiência de sen-
tir-se abandonado pelo Pai torna-se o abandono confiante de
Jesus nos braços dele. Jesus abandonado na cruz vive a sua dor
em profunda comunhão com todos os crucificados da terra e, ao
mesmo tempo, em oblação confiante a seu Pai, por amor ao
mundo.
E o Pai? Permaneceu indiferente, prisioneiro de um “divi
no egoísmo” diante do sofrimento do Filho? Ou não há também
um profundo sofrimento do Pai, apesar de oculto pela discrição
do amor que sofre? Na realidade, o Filho foi enviado pelo Pai:
nesse envio já há um desapego do Pai: “Restava-lhe ainda
alguém: o filho amado. Enviou-o por último, dizendo: ‘Eles
respeitarão o meu Filho’ ” (Mc 12,6: parábola dos vinhateiros
homicidas). O Filho “só faz aquilo que vê o Pai fazer” (Jo 5,19):
se o Filho sofre, é porque o Pai sofre, precedendo-o na via
dolorosa. Entre eles há uma relação de recíproca doação (“o
que é meu.é teu. . Jo 17,10), de recíproca imanência (“o Pai
está em mim e eu no Pai” : Jo 10,38) e de comunhão (“o Pai está
comigo”: Jo 16,32). Essa relação chega ao ápice na hora da
dor, quando o Filho sofredor revela o mistério do sofrimento
do Pai. O Pai “não poupou seu próprio Filho, mas o entregou
por todos nós” (Rm 8,32); ele “tanto amou o mundo que entre
gou seu Filho único” (Jo 3,16). O sofrimento do Pai correspon
de ao sofrimento do Filho, “que me amou e entregou a si mesmo
por mim ’ (G1 2,20). Deus sofre na cruz como Pai que oferece,
como Filho que se oferece, como Espírito que é o amor perma
nente de Jesus sofredor. A cruz é a história do amor trinitário
de Deus pelo mundo: um amor que não se limita a suportar o
sofrimento, mas o escolhe. A mentalidade grego-ocidental não
sabe conceber mais do que o sofrimento passivo, suportado e por
tanto imperfeito, postulando por isso a impassibilidade de Deus.
Contra essa mentalidade, o Deus.cristão revela uma dor ativa,
livremente escolhida, perfeita na perfeição do amor: “Ninguém
tem amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos”
(Jo 15,13). O Deus cristão não está fora do sofrimento do mun
do, como espectador impassível diante dessa dor, lá no alto de
sua imutável perfeição: ele a assume e a vive da maneira mais
intensa, como sofrimento ativo, como dom e oferenda da qual
26
jorra a vida nova para o mundo. Por aquela sexta-feira santa,
nós ficamos sabendo que a história dos sofrimentos humanos é
também a história do Deus cristão: ele está presente nela, sofren
do com o homem e fazendo que o homem participe do valor
imenso do sofrimento oferecido por amor. Deus não é “a oculta
parte contrária”, a quem se eleva o grito do sofredor e do deso
lado. Mas é, “num sentido mais profundo, o Deus humano, que
grita no sofredor e com ele, e que intervém a favor dele com a
própria cruz, quando o sofredor em seus tormentos emudece .2j
É o Deus que dá sentido à dor do mundo, porque a assumiu de
tal maneira que fez dela o seu próprio sofrimento. Este é o sen
tido do amor.
Contra a resignação fideísta e a rebelião atéia, o Deus cru
cificado torna o homem capaz de um sofrimento ativo, de um
sofrimento vivido na comunhão com todos os desolados da terra
e em oblação ao Pai, que o acolhe e lhe confere o valor. Assim,
a história dos sofrimentos do mundo é transformada na história
do amor do mundo. Por isso o Deus crucificado é a única ver
dadeira novidade do viver humano. O homem de hoje é provado
pelo sofrimento de sempre, é deixado sozinho no silêncio do
Deus que foi declarado “morto”, é oprimido pela injustiça e pela
iniqüidade. Esse homem tem necessidade do sofrimento, tanto
quanto o homem de sempre. Daí a necessidade da “theologia
crucis”, da teologia do Deus crucificado, que responda ao grito
do Deus agonizante e capte nele, abandonado, o sentido das do
res do mundo. Diante da interrogação da dor, diante da tragici-
dade do nada que dela emerge, a palavra da cruz ressoa como
“evangelho” também para os homens de hoje: “A dolor contra
dolorem é o amor de Deus, o amor que tira a nossa dor. Por
isso, a mensagem da dor de Deus é a alegre nova”.2627 Por isso, os
cristãos não cessam de proclamá-la.
27
realidade que contradiz a insuprimível aspiração à justiça —
como bem para cada um no bem de todos — determina-se a
tomada de posição do homem frente ao seu futuro. Qualquer
que seja essa escolha, ela condiciona de maneira decisiva o senti
do e o valor da vida: o futuro coloca-se assim como a pedra
de toque dos humanismos. Em certo sentido, o homem é o futuro
que ele mesmo escolhe. A verdade da vida, a verdade que envol
ve profundamente a existência, não é a adequação do intelecto
à realidade presente (“adaequatio intellectus et rei praesentis”).
Mas é a adequação ao futuro, sempre procurada e nunca plena
mente alcançada. É a abertura ao porvir, que se torna contesta
ção do presente; o futuro é “a qualidade do ser” (Bloch).
Na contradição entre o hoje e o amanhã, entre a experiên
cia e a espera, determinam-se as várias possibilidades do homem
diante do seu futuro: o desespero, a presunção ou a esperança.
O desespero é a atitude daquales que negam o futuro, porque
o identificam com o mal presente. Para eles nada é possível, a
história já está acabada e o transcorrer do tempo não é mais do
que a trágica renovação dos sofrimentos do mundo, diante dos
quais a única atitude possível seria ‘‘pensar com clareza e não
esperar mais” (Camus). Se o desespero é a recusa do futuro, a
presunção é a recusa do presente: é a atitude daqueles que ava
liam falsamente a si mesmos e as capacidades do mundo, e não
aceitam considerar o bem futuro como algo difícil de ser con
quistado. Eles identificam o presente com o bem que deve vir,
e perdem de vista a tragicidade do real. Sentem-se senhores da
história, e esquecem a lei do sofrimento e da finitude do ser
humano, com a progressividade e as resistências que tal lei com
porta. Em lugar do “tédio” dos desesperados, eles colocam a
néscia idolatria da hora, o engano da falsa esperança. Desespero
e temeridade; respectivamente entendidos como antecipação do
não-cumprimento e antecipação do cumprimento,28 ambas con
tradizem a realidade, porque destroem o caráter de “caminho”
da existência humana. Ambos, o pessimismo trágico e o otimis
mo néscio, afastam o homem do seu compromisso diante dos
sofrimentos do mundo. Ambos, de forma oposta, são a “doença
mortal” : “Estas duas coisas matam a alma: o desespero e a falsa
esperança” (Agostinho, Serm o 87,8).
28
Diante do desespero e da presunção está a esperança. Ela
6 a espera vigilante de um bem futuro, árduo mas possível de
ser alcançado; ela é “a paixão daquilo que é possível” (Kier-
kegaard); ela é o correlativo do sofrimento diante da injustiça
do mundo, em relação à qual se coloca como superação e pro
messa. Neste sentido, é o mais inato dos sentimentos humanos.
Mais ainda: é o sentido profundo e a estrutura da existência hu
mana no mundo. Esperar é a estrutura originária do homem no
seu posicionar-se diante da vida. Ao mesmo tempo, é estrutura
originante, que qualifica a existência diante do futuro. É o “so
nho diurno”, que projeta para o futuro e ao mesmo tempo sub
verte a ordem atual.29 Conseqíientemente, o homem vive na me
dida em que espera, o homem “ é ” a esperança.
Mas qual é o futuro da esperança humana? Para respon
der adequadamente a essa pergunta, é preciso distinguir o duplo
sentido de futuro. Há um futuro “relativo” e um futuro “abso
luto”.30 O futuro relativo é aquele que nós podemos hoje razoa
velmente prever e amanhã realizar: é o futuro como projeto,
fundado nas possibilidades do real, o futuro que já está em
nossas mãos, mesmo que ainda não esteja realizado e sua efeti
vação seja árdua. No fundo, não é mais do que a dilatação do
presente, a expectativa das grandes e pequenas coisas que o ho
mem pode fundamentalmente esperar de si mesmo. Esse tipo de
futuro podería ser representado com a torre de Babel, erguida
pelo esforço humano pedra sobre pedra, até o céu das esperan
ças humanas. O futuro absoluto é exatamente o oposto: ele
“não é a meta do nosso caminhar, mas aquilo que por si o con
traria... É o não-evolutivo, o não-projetado, o não-disponível,
com a incompreensibilidade e a infinitude que lhe são ineren
tes... É o imponderável sempre ignorado, que não vem do nosso
poder, porque é poderoso”.31 Em resumo, é o futuro que vem a
29 Cf. E. Bloch, Das Prinzip Hofjnung (1959), 3 vols., Frankfurt
a. M., 1978, 5? ed. A primeira parte intitula-se precisamente “Kleine Tag-
traume”: l,19ss; de um ponto de vista teológico, cf. J. Moltmann, Teolo
gia delia speranza, op. cit., especialmente o Apêndice, pp. 349-73: “ ‘O
princípio esperança’ e a ‘teologia da esperança’. Diálogo com Ernst
Bloch”. A edição brasileira Teologia da esperança, foi citada na n. 22.
30 A este propósito, cf. Karl Rahner, “Utopia marxista e avvenire
cristiano delFuomo” in Nuovi Saggi I, Roma, 1968, pp. 119-34, e “ II
concetto di futuro: considerazioni frammentarie di un teologo” in Nuovi
Saggi III, Roma, 1969, pp. 619-26.
31 Ibid, pp. 621-22.
29
nós, o “adventus”, não aquele que nós projetamos edificar. É o
futuro em sentido próprio, a Jerusalém do céu, que desce de
modo imprevisível e inesperado em direção à fadiga humana.
O futuro relativo é hoje apresentado ao homem de muitas
maneiras. Basta pensar na esperança marxista, que vê a luta
revolucionária do presente como a força imanente do futuro
prometido. Todavia, o futuro relativo, enquanto projeto a ser
realizado, é um futuro que precede o presente. Neste sentido, o
futuro já pertence ao passado, não está verdadeiramente aberto
ao novo, é destituído de fantasia e de admiração, e portanto não
tem verdadeira criatividade. É por isso que as ideologias do
futuro relativo acabam sendo — em suas realizações históricas
— repetições freqüentes do passado, sem audácia e sem liberda
de. Além disso, essas propostas são absolutamente mudas diante
do problema do futuro absoluto, precisamente porque no fundo
não escapam da prisão do presente. A morte, que é a sentinela
do futuro absoluto, a mais forte não-utopia da existência (Bloch),
continua sendo, para eles, insensata.32 Por isso no âmbito da
ideologia surgem sempre novas tentativas de interpretar o futuro
absoluto, tentativas que freqüentemente assumem uma coloração
utópica, pois são construídas sobre a denúncia do presente e
sobre o anúncio do bem futuro irracionalmente garantido. Contra
a astúcia conservadora da ideologia, incapaz de pensar num
futuro verdadeiro, “a autêntica mediação utópica tem o cuidado
de deixar indeterminado ou de ir determinando aos poucos o
projeto de uma totalidade histórica, que procura a concretização
sobretudo negativamente. Com efeito, o futuro traz consigo um
futuro ulterior, quando se coloca como não-ser efetivo do presen
te. Por isso, a primeira determinação desse futuro passa pelas
deficiências, contradições e contra-sensos abertos na atualida
de histórica. A mediação utópica é assim, antes de mais nada,
intervenção crítica a respeito do presente”.33 Mas a essa função
crítica da utopia não corresponde a sua capacidade de garantir
ao futuro absoluto um sentido fundado. Com freqüência tal
utopia acaba sendo integrada na ideologia, como o “por-vir” que
30
justifica e relativiza a limitação das realizações presentes.34 É a
parábola que se realizou significativamente na contestação “utó
pica” de 68. No lugar da prometida “sociedade não repressi
va”,35 penetrou, em quase todos os protagonistas da época, uma
integração no sistema, confessada mais ou menos abertamente.
A ideologia acabou triunfando sobre a utopia, que ao lado da
função crítica não teve condições de colocar uma esperança fun
dada no futuro absoluto. Além disso, por não sair da imanên-
cia histórica, o futuro absoluto continua sendo a interrogação
sem resposta, que põe em discussão todo o humanismo, e denun
cia o limite inelutável de todas as esperanças humanas. A fini-
tude do homem é incapaz de fundar a esperança absoluta do ho
mem. A certeza de um futuro absoluto, como futuro de bem,
só pode vir de quem transcende a história, ainda que ingres
sando nela. Segundo a “pretensão” dos cristãos, tal como se
exprime de modo particular em nosso século graças à recupera
ção da dimensão escatológica do cristianismo,36 esse ingresso
na história daquilo que transcende a história é capaz de dar sen
tido e fundamento ao futuro absoluto: tal ingresso se deu na
ressurreição de Jesus Cristo.37
O que significa a ressurreição de Jesus Cristo para o futuro
do homem? Também aqui é necessário fazer uma leitura trini-
tária do evento vivido pelo Crucificado. Jesus morre abandona
do, porque na hora da Cruz o Pai não pronunciou aquele “sim”
no qual Jesus tinha empenhado toda a sua missão: o Pai não
testemunhou a seu favor (cf. Jo 8,18 e 5,32). Mas Jesus não
morre “desesperado”; nas horas entre a sexta-feira santa e o
raiar do dia da ressurreição, ele assumiu todas as esperanças
humanas, com a pesada obscuridade que as caracteriza e, espe
rando, as recolocou nas mãos do Pai: “Pai, em tuas mãos entre
go o meu espírito” (Lc 23,46). Nos evangelhos transparece, vá
rias vezes, a confiança que Jesus tem no futuro que lhe foi pre
parado. O sinal de Jonas, que ele promete, é o sinal de sua espe
31
rança, da certeza com que espera, em seu favor, o testemunho
do Pai (cf. Mt 12,40). É na noite do abandono, porém, que a
esperança do Nazareno alcança a maior profundidade: “Nos dias
de sua vida terrestre, (Cristo) apresentou pedidos e súplicas,
com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da
morte; e foi atendido por causa da sua submissão” (Hb 5,7).
Essas palavras do autor da Carta aos Hebreus sublinham a arden
te súplica e espera, a paixão por tudo aquilo que o Filho crê
posível ao Pai, a esperança que Jesus alimenta de vencer a
morte. No seu “clamor e lágrimas” ressoam as invocações de
todos os que foram, são e serão escravos da morte. Na esperan
ça do Filho do Homem vibra a esperança de todos os mortos,
de todos os derrotados da terra, a esperança dos vencidos. Mas
o Filho é a revelação do Pai: por força da recíproca imanência
e pertença, e da comunhão que os une, a esperança do Filho
revela a esperança do Pai, Como o pai da parábola (cf. Fc 15,11-
32, especialmente 20), o Deus de Jesus espera ardentemente a
reconciliação com os seus filhos na glorificação do Filho. Contra
a estática inentalidade greco-ocidental, que vê a esperança como
sinal de carência, como esperança passiva, sofrida pela pobreza
do ser humano diante da paixão do mundo, a esperança do Deus
cristão não nasce da privação, mas da plenitude do amor. É a
esperança ativa, a condescendência e a comunhão do Deus tri-
nitário com a sua criatura. O Espírito da esperança, o Consola
dor de toda verdadeira esperança, provém da esperança que tem
o Filho de ser glorificado na humanidade assumida e que abran
ge todas as esperanças humanas, e provém da esperança que
que tem o Pai de glorificar o Filho e nele a humanidade que está
à espera. Assim, o evento da Páscoa se apresenta, para a “pre
tensão” cristã, como história da esperança trinitária de Deus. No
Espírito, toda «esperança humana é assumida pelo Deus cristão:
onde quer que um homem espere, a Trindade está presente
para sustentar o empenho vigilante da esperança que transforma
a vida.
Mas qual é o futuro da esperança de Deus revelada em
Jesus Cristo? É o futuro que o Filho espera nos braços da
cruz: a ressurreição, isto é, o testemunho que o Pai lhe dá ao
julgar o mundo. A ressurreição é precisamente a glorificação
que o Pai dá ao Filho no Espírito Santo (cf. Rm 1,4;8,11; Ef
1,18-20 etc.). É a proclamação gloriosa de que o Pai aceitou o
32
sacrifício do Filho. É a certeza de que o sacrifício da cruz nãc
foi um dos muitos sacrifícios humanos — mera “confissão da
impotência que espera” — , mas foi o sacrifício agradável. O
Filho se oferece, o Pai o acolhe, e do seu recíproco dar-se pro-
mana o Espírito Santo. A leitura trinitária da ressurreição, como
história do Pai, do Filho e do Espírito, manifesta a razão por
que, “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé” (ICor 15,14-16).
Cristo ressuscitado é o “sim” definitivo do Pai à humanidade que
espera. É a garantia de que o futuro do mundo não é a morte,
mas a vitória sobre a morte. O futuro absoluto do mundo, aque
le futuro que vem do além de toda expectativa possível, é garan
tido como o bom futuro no Ressuscitado dos mortos. E o futuro
relativo? Ele também é iluminado pela glória do Ressuscitado?
Existe alguma relação entre a grande esperança aberta pela res
surreição e as tantas esperanças da condição humana? À luz
da esperança trinitária de Deus é preciso sublinhar que, antes
de mais nada, onde quer que o homem espere, a Trindade está
presente para sustentar o empenho vigilante da esperança. Dian
te das obscuridades e dos fracassos, o Consolador faz que não
naufrague a esperança de quem o acolhe. O testemunho supre
mo do cristão se torna assim o testemunho de quem pode afirmar
com a vida: “Creio no futuro da esperança que morre”. É o
testemunho do mártir que, diante da injustiça do mundo, reco
nhece na contradição da esperança a “contradição da ressurrei
ção com relação à cruz”.35 Todavia, a esperança absoluta, aberta
pelo Ressuscitado, coloca-se como “reserva escatológica” crítica
e subversiva, com relação a todas as esperanças relativas. Isto é,
essa esperança se abre constantemente para o mais amplo hori
zonte prometido e provoca a denúncia das limitações e ambigüi-
dades de todas as realizações humanas. A esperança da ressur
reição se ■ apresenta, assim, como a ressurreição da esperança em
duplo sentido; garante a comunhão fortalecedora do Deus cristão
na luta da esperança, e faz superar constantemente qualquer
redução e traição frente à verdadeira meta do caminho humano,
que o Ressuscitado abriu definitivamente para o horizonte da
história. É por isso que a esperança fundada na “pretensão”
cristã não aliena da luta na aventura humana. Ao contrário, na
tensão entre o “já” e o “ainda não”, entre a realização e a espe-38
33
ra, encerrados no evento da Páscoa, ela sustenta o compromisso
vigilante de entrar sempre mais na glória do Ressuscitado que
há de vir. Nesse tempo penúltimo, que vai do alvorecer da
Ressurreição ao entardecer do tempo, nessa estação — “entre a
primavera e o verão” — se coloca a esperança dos cristãos como
consciência crítica da história, em nome da reserva escatológica.
Assim, o futuro absoluto do homem, tenebroso e prenhe de inter
rogações angustiantes, torna-se, na Ressurreição de Cristo, uma
certeza e uma espera do bem que há de vir. Para esse futuro se
dirige o compromisso vigilante e suplicante de quem crê e espe
ra. E o próprio futuro de bem vem ao encontro da aventura
humana, irrompendo com imprevisível liberdade. Todo cristão
vive sempre o mistério do Advento no coração de sua vida e da
história.
“Maran atha” — “Maranathà” : “O Senhor vem” — “Vem,
Senhor!” Essa antiquíssima profissão de fé e invocação da co
munidade cristã encerra a promessa e a certeza, da qual tam
bém o homem de hoje necessita para esperar diante do futuro
absoluto da sua própria existência e do mundo. A teologia do
Ressuscitado, que dá sentido e valor à esperança no futuro, não
é menos necessária para os homens do nosso tempo do que a
“theologia crucis”, que interpreta e alicerça a paixão do mundo
na paixão de Cristo. Ora, a paixão do mundo é a paixão daque
le que assumiu o mundo. Assim também, a ressurreição do Cru
cificado é o fundamento e a promessa da vindoura ressurreição
do mundo. Por isso, diante dos sinais de desespero ou de falsa
esperança de nossos dias, os cristãos julgam sensato, ou melhor,
indispensável, falar do seu Senhor crucificado e ressuscitado.
34
te forte demais para mim, tu me dominaste” (Jr 20,7). Para
superar as resistências e temores, a fé de quem crê está sempre
em luta. Mas também o amor do seu Deus é inexaurivelmente
novo: irrompendo no tempo, necessariamente o subverte, ^aba
te, encanta e consola”, porque a história é incapaz de suportar
a novidade desse amor. É por isso que, embora se revelando, o
Deus cristão permanece o Deus oculto, que seduz quem o aco
lhe na liberdade, atraindo-o a si nas profundezas do seu mistério,
contagiando-o no seu dinamismo, na inexaurível novidade do seu
ser. Assim, Deus, fazendo-se história, suscita a perene inquie
tação da fé e da esperança, desperta no crente a condição de
quem não pode sentir-se possuidor da verdade, mas possuído por
ela numa relação pessoal e dinâmica, peregrino sem descanso
em direção à luz. A estrutura do ato de fé evidencia essa perene
tensão do crente e se configura na forma de um chamamento e
de uma resposta.39
Deus chama o homem, oferecendo-se a ele e dando-lhe par
ticipar da sua comunhão: “Aprouve a Deus, na sua bondade e
sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério de
sua vontade (cf. Ef 1,9), mediante o qual os homens, por meio
de Cristo, Verbo encarnado, têm, no Espírito Santo, acesso ao
Pai, e se tornam participantes da natureza divina” (Verbum
Dei, 2). Essa revelação, da qual Jesus Cristo é a plenitude e o
mediador, acontece mediante palavras e eventos intimamente
relacionados (ibid.). Ao Deus que revela, o homem responde com
a obediência da fé (o termo obediência, em latim ob-audire, signi
fica “escutar atentamente”). “Com a fé o homem se entrega total
e livremente a Deus, oferecendo ‘a Deus revelador o obséquio
pleno da inteligência e da vontade’ e prestando voluntário assen
timento à sua Revelação” (Verbum Dei, 5). Portanto, o “amém”
da fé envolve o homem todo, no plano duplo de um abandono:
abandono de si mesmo nas mãos daquele em quem crê (“a fé
com a qual o homem se entrega todo, livremente, a Deus”) e o
35
abandono de uma conseqüente aceitação reflexa daquilo que
Deus lhe comunica (“obséquio da inteligência e da vontade”).
Em outros termos, o “amém” é o agarrar-se do náufrago ao esco
lho e o “sim” da reflexão crente.40 Na origem do “amém” da fé
está a Palavra proclamada, à qual se dá o consentimento (“fides
ex auditu” : Rm 10,17). Mais profundamente, está nessa origem
“a graça divina que se antecipa e continua a ajudar, como tam
bém está o auxílio interior do Espírito Santo, auxílio requerido
para mover e converter a Deus os corações, abrir os olhos da
alma e dar ‘a todos a suavidade, no assentimento e na adesão à
verdade’ ” (Verbum Dei, 5). Portanto, o “amém” da fé é presta
do a Deus pela mediação dos eventos e palavras de que se cons
titui a revelação, sob o impulso do Espírito. Aqui está a razão
profunda da estrutura tensional do ato de fé. O termo último
desse ato é sempre o Deus que se revela na insondabilidade do
seu mistério; assim também a mediação do assentimento é a Pala
vra, à qual se adere, necessariamente precária e insuficiente. Se
gue-se disso a força com que a fé tende a ir além da fórmula,
da imagem, do conceito da revelação e do dogma, para uma per
cepção menos imperfeita do seu Deus. Em outras palavras, reve
lando-se, Deus faz com que a profundidade insondável do seu
mistério seja percebida pelo homem. Revelando-se com amor,
Deus faz com que ele deseje penetrar sempre mais nesse mistério.
Assim, quanto mais Deus se revela, mais parece oculto. E o
encontro do desejo aceso com a realidade possuída se torna uma
febre e uma busca: justamente a febre da fé que ama e espera,
a “inquietudo sancta”. O Deus cristão, o Deus que falou ao ho
mem muitas vezes e de diversas maneiras por meio dos profetas,
e na plenitude dos tempos por meio de seu próprio Filho (cf. Hb
1,1-2) é o “mestre do desejo”. Ele “não dirige, mas atrai; não
ordena, mas-chama... ensina o desejo e atrai a si”.41 Quem encon
tra a Deus não pode deixar de sentir em si o dinamismo da
fé que impele a conhecer, e do conhecer que dinamiza a fé:
“crede ut intelligas, intellige ut credas”.42 Crer no Deus que se
36
revelou em Jesus Cristo significa estar continuamente em estado
de tensão entre o repouso do já possuído e a sede do ainda não
possuído: “credere est cum assensione cogitare”.43 Fazendo aderir
a um dado da revelação, o assentimento é sempre percorrido por
uma tensão “cogitativa”, por um pensamento que se move para
Aquele que, em se revelando, se oculta. Sto. Tomás sublinha
com insistência a relatividade da fórmula e a conseqüente ten
dência do crer: “O artigo (de fé) é uma percepção da verdade,
que tende a ela” — “O ato do crente não pára naquilo que é
enunciável, mas vai à realidade”.44 Capta-se assim o dinamismo
da sua definição da fé, “hábito da mente, pelo qual tem início
em nós a vida eterna, levando o intelecto a assentir naquilo
que não vê”.45 Por outro lado, essa definição traduz a expressão
da Carta aos Hebreus 11,1: “Fé é substância de coisas espera
das, e argumento das não aparentes”.40
Desse dinâmico “amen fidei” diante do Deus que se revela
nasce assim um conhecimento de Deus que, partindo da fé e
explorando os conteúdos dela, tende, mediante o esforço ativo
do homem, a perceber sempre melhor o que se oculta nos enun
ciados da própria fé.47 Esse esforço de percepção sempre mais
profunda do Objeto do anúncio cristão realiza-se por diversos
caminhos, na força do Espírito “que guia para a verdade... e
anuncia as coisas futuras” (Jo 16,13): “O conhecimento tanto
das coisas como das palavras que fazem parte da Tradição cres
ce graças à contemplação e ao estudo dos crentes, que as medi
tam no seu coração (cf. Lc 2,19.21), como também devido à ínti
ma compreensão que experimentam das coisas espirituais, e ainda
devido à pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado,
receberam um carisma seguro da verdade” (Verbum Dei, 8). O
serviço do Magistério evidencia não só a função de guardar o
“já ”, mas também a de anunciar o “ainda não”. Além disso, o
citado texto sublinha dois caminhos do processo dogmático: o
caminho da contemplação sobrenatural, na base de uma união
37
efetiva com Deus, a modo de experiência, na qual não é tanto o
homem que contempla o mistério, quanto Deus que trabalha no
homem; o segundo caminho é o da reflexão teológica, fundada
na atividade crítica, isto é, analítica e examinadora, à modo de
busca ativa e intencional movida pelo amor, mas articulada
segundo as formas do compreender. A esta ordem do conheci
mento pertence a teologia, que por isso se coloca como expressão
e instrumento crítico da sede, suscitada no fiel pelo Deus que
se revela. Ambos os caminhos estão abertos ao fiel pelo Espírito,
segundo o carisma que a cada um é dado, em vista da utilidade
comum, numa profunda conexão e correspondência entre si
(“contemplata aliis tradere”). Nessa luz, a reflexão crítica da fé
sobre Jesus Cristo se apresenta, antes de tudo, como graça e
serviço. Segundo a “pretensão” cristã, essa reflexão é fruto de
um carisma, e por isso intrinsecamente orientada para servir a
uma compreensão sempre mais profunda da própria fé por parte
dos que crêem. Ela é chamada a manter sempre desperto o dese
jo, a negar qualquer pretensão de posse definitiva e de fcondição
estática: é uma resposta à provocação do Deus cristão, que está
sempre adiante e além dos horizontes que nos é dado captar, e
por isso nos incentiva, também no conhecer, a estarmos sempre
em estado de êxodo. Ao mesmo tempo, visto que todos os crentes
receberam o Espírito, a reflexão crítica sobre Jesus não pode ser
patrimônio de uma “elite”. “Pertencer à massa e possuir a pala
vra” (Milani) é “cultura”. Então a teologia, como momento
reflexo e criticamente estruturado da fé da Igreja, não pode cons
tituir-se prescindindo desta Igreja e sem uma finalidade última
de serviço com relação a ela. Portanto, a provocação de Deus
possibilita aos que crêem falar de Jesus Cristo ainda e sempre
de novo. E isso no interior daquela transmissão viva e sempre
nova da fé, transmissão que é, no seu significado mais profundo,
a Igreja cristã.
38
injustiça e da dor, como diante da obscuridade do futuro —
revelam-se, portanto, em seu âmago, como caminhos interrom
pidos: eles apelam para um sentido, para uma justiça, para uma
esperança maiores. Surge neles, de maneira velada ou expressa,
a consciência de uma finitude, que com freqüência se torna uma
inquietante “nostalgia da perfeita e consumada justiça”. Esta
nunca pode ser realizada na história. Com efeito, mesmo que
uma sociedade melhor viesse a substituir a atual desordem so
cial, não será reparada a injustiça passada e não será eliminada
a miséria da natureza ao derredor”.48 Nostalgia, portanto, de
algo mais do que história, ou melhor, de algo totalmente outro,
que garanta a obscuridade do futuro absoluto e possa valorizar,
com seu poder, o humilde sofrer do homem. Mas, ao mesmo
tempo, a partir da práxis da libertação e das inauditas contradi
ções da realidade, essa inquietação se apresenta como nostalgia
de um além da vida humana. Nostalgia que também esteja total
mente dentro da vida, que sustente conosco o peso da dor e da
luta contra a injustiça do mundo, e impeça que sejamos derrota
dos no embate com a tragédia do tempo.
A esses caminhos interrompidos da paixão e da luta hu
manas, a essa dupla nostalgia que neles se oculta, a comunida
de cristã é chamada a dar resposta em força de sua pretensão
de ser anunciadora da salvação em Jesus Cristo. Essa comuni
dade anuncia que o Deus da cruz está presente onde quer
que exista dor, como Aquele que sofre no homem e com o ho
mem, e que faz seu o grito dilacerante das dores do mundo,
por Ele assumidas em sua paixão. Ao mesmo tempo, ela anun
cia que o Deus da esperança palpita com a esperança do mundo
e está presente onde quer que um homem espere, para sustentar
a sua luta vigilante contra a injustiça e a dor. Assim, o Deus da
Igreja se oferece, antes de tudo, como o Totalmente Dentro, o
grande companheiro e o invencível apoio do vigiar e do pade
cer humano. Segue-se daí o dever, para a Igreja cristã, de prestar
contas a seu Senhor, colocando-se antes de tudo em comunhão
e solidariedade profunda com os sofrimentos dos homens e com
a práxis orientada pela esperança, que é a práxis da libertação.
Se o Deus da Igreja é Totalmente Dentro, a Igreja de Deus deve
rá estar totalmente dentro da angústia dos desolados, oprimidos
39
e explorados desta terra. Ao mesmo tempo, ela deverá estar total
mente dentro da luta diária pela libertação do homem; ela é uma
Igreja em com unhão com a paixão e a esperança dos homens, e
a serviço da libertação deles.
Mas, ao mesmo tempo, a comunidade crente anuncia que as
feridas dos homens, assumidas pelo Deus crucificado, foram por
ele oferecidas ao Pai. O sentido do “sofrer” de Jesus Cristo está
exatamente em seu livro “oferecer-se” por amor Àquele que o
precedeu nc caminho doloroso em nosso favor. O Deus cristão é
o Pai que acolhe a oferenda e lhe dá valor, fazendo de todo
sofrimento, até do mais humilde e oculto, um poderoso meio de
redenção, recuperando assim o valor de todas as vidas, mesmo
daquelas consideradas “inúteis” aos olhos do mundo. Ao mesmo
tempo, a Igreja anuncia o Ressuscitado como Aquele que garan
te o futuro absoluto do homem como futuro de bem, sustentan
do a esperança humana e examinando as muitas esperanças dian
te da esperança maior. O Deus dos cristãos se oferece assim
como o Totalmente Outro, isto é, Aquele que acolhe e valoriza a
dor transformada em amor, e, ao mesmo tempo, assegura que
a vocação do mundo não é a morte, mas a vida. Conseqüente-
mente, a Igreja de Jesus Cristo deverá ser testemunha do Pai,
que acolhe e salva, e testemunha da esperança maior, que con
forta e responde às esperanças do homem. Uma Igreja empenha
da no testemunho é a voz do Pai e a voz da verdadeira espe
rança, é a contestação e crítica de todas as míopes realizações
das esperanças do homem.
Qual é o lugar da teologia nessa Igreja em comunhão, teste
munho e serviço, nessa Igreja que procura assumir, na palavra
da Cruz e da Ressurreição, os caminhos interrompidos da pai
xão e da luta dos homens? A teologia representa o momento
crítico, isto'é, o momento reflexo e operante no discernimento
e no juízo, desse caminhar da Igreja em direção ao mundo. Por
isso, a teologia vive como consciência crítica da comunidade
cristã nas três dimensões: comunhão (“koinonia”), testemunho
(“martyria”) e serviço (“diakonia”). Como consciência crítica de
uma Igreja em comunhão com os homens (“koinonia”), a Igre
ja deve colocar-se como reflexão intensiva que parte das feridas
da história e do compromisso de libertação vivido em favor do
homem. Ela deve ser uma teologia que escuta o mundo, uma
consciência reflexa da oração do pobre brotada da história, onde
40
Deus fala através dos sinais dos tempos. Enquanto consciência
crítica de uma Igreja que dá testemunho (“martyria”), a teologia
deve ser memória do Crucificado-Ressuscitado e memória do
Pai, na força do Espírito, ou seja, deve ser uma teologia que atua
lize a mensagem da fé cristã e a testemunhe diante das expectati
vas do tempo, anunciando e denunciando corajosamente, livre
diante dos sistemas deste mundo, subversiva da subversão da Cruz
e da alvorada pascal. Finalmente, enquanto consciência crítica de
uma Igreja chamada ao serviço dos homens (“diakonia”), a teolo
gia deve verificar e orientar continuamente a práxis, visto que não
basta interpretar teologicamente o mundo, mas é preciso transfor
má-lo “teologicamente”. É preciso que seja uma teologia profé
tica, que seja uma palavra para o hoje da Igreja e do mundo,
uma consciência crítica da história: que seja, portanto, no sen
tido mais amplo, uma teologia política, uma teologia da liberta
ção, uma teologia que vive na luta. A reflexão crítica da fé cris
tã sobre Jesus Cristo saberá situar-se no presente e nele repre
sentar com fidelidade a novidade e a força crítica da Cruz e da
Ressurreição. Se assim fizer, conseguirá também orientar de
maneira eficaz a práxis da comunidade cristã e da sociedade.
Demonstrará, então, no seu efeito crítico-prático, a sensatez da
palavra cristã, mesmo que esta fosse rejeitada como oferta da
“possibilidade impossível” que Deus ofereceu aos homens em
Cristo.
41
2
A HISTÓRIA NA CRISTOLOGIA
Com o falar de Jesus Cristo aos hom ens de hoje?
42
A partir do iluminismo, através do idealismo e de seus diversos
desenvolvimentos, desde o marxismo até o pensamento existen
cial, até a hodierna superação dialética do próprio iluminismo,
uma nova concepção da realidade provoca a reflexão dos teólo
gos. O mundo antigo e medieval, assimilado na alma patrística e
nas grandes sistematizações escolásticas, é o mundo do ser e de
sua estruturação ordenada, é o “cosmo” e a “ordo” que se refle
te no sistema que o pensa. Assim, o mundo moderno se auto-
concebe sob o signo do devir e de sua dialética complexidade;
ele é evolução, processo, história, com suas subjetividades irre
dutíveis, com suas relações de dependência e conflito, mas susce
tíveis de transformação, graças à ação do homem. A aceleração
dos processos históricos, que caracteriza o nosso século, assina
lado por transformações tão profundas quão impensáveis num
passado ainda recente, torna agudo esse sentimento do devir, e
parece questionar qualquer ancoradouro seguro. A sedução do
novo, relacionada com o ritmo frenético da vida, parece tornar
inconcebível toda idéia de verdades eternas e imutáveis. Desse
ponto de vista, também a “theologia perennis” é algo “no espa
ço”, fora de lugar e de tempo, sem possibilidade de incidir so
bre a práxis. Então nos indagamos: Quais são os novos cami
nhos, cujo impacto com a consciência histórica provoca os teó
logos? Para responder a essa pergunta é preciso explicitar os
diversos níveis pelos quais o pensamento moderno entrou na
teologia, condicionando-a a partir de dentro e, às vezes, pare
cendo decretar-lhe a morte (como no episódio da “teologia atéia”
ou “da morte de Deus”). Pode-se falar de três influências da
“história” no labor teológico do nosso tempo: influências que
se situam, respectivamente, no plano dos conteúdos da pesqui
sa, no plano da forma do pensamento e no plano da práxis.
43
O prim eiro fator de influência verifica-se no plano dos con
teúdos ou, para dizer o mesmo com terminologia escolástica,
segundo o “cbiectum materiale”. Sob a influência das ciências
positivas, que mostram como o saber nos múltiplos campos vitais
deve ser cada vez mais diferenciado e circunscrito, e também por
reação às abstrações e presunções sistematizantes do idealismo
e do liberalismo do século X IX , assiste-se a uma volta às fontes
da teologia cristã, como redescoberta do dado originário e origi-
nante desta. Expressões de uma teologia que quer regenerar-se a
partir das fontes são ainda as seguintes: a denúncia da “teologia
dialética”, bem como as fases e as formas de utilização do mé
todo histórico-crítico na exegese; a interpretação existencial
bultmaniana, como também a nova hermenêutica pós-bultmania-
na; e o estudo renovado dos Padres e também dos teólogos me
dievais. É um verdadeiro “ressourcement”, uma lufada de ar
fresco, que sem tardar mostrará a aridez e a pobreza dos ma
nuais escolásticos, onde a tese anunciada se apoia nos “dieta
probantia”, tirados, sem nenhuma metodologia histórica, da
Escritura, da Tradição e de argumentos de razão, silogisticamen-
te formulados. É evidentemente a-histórica a estrutura desse pro
cedimento por meio de teses. Uma posição atual a ser defendi
da se justifica com o recurso ao passado, que não permite à sua
novidade falar, mas o lê com os olhos já orientados para o inte
resse' atual. A volta às fontes põe então em crise a metodolo
gia de trabalho teológico tradicional, levando a uma reflexão
que seja escuta fiel do passado, a começar pelo passado norma
tivo da Escritura, através de uma abordagem que permita cap
tar a novidade e a força subversiva também do nosso presente.
O Vaticano II sanciona, para a teologia católica, a validade de
semelhante metodologia histórica (cf. Optatam Totius 16).
O segundo fator de influência da história no pensamento
teológico moderno coloca-se no plano da forma do pensamento,
do “objectum formale” . Acha-se estritamente relacionado com o
primeiro: a abordagem de conteúdos históricos, a prática de me
todologias histórico-críticas, o problema hermenêutico não pode
deixar indiferente a “ratio” do teólogo. Esta se dispõe a tornar-
-se, cada vez mais, uma “razão histórica”. Em vez de pensar o
tempo das várias estações teológicas no horizonte do ser (deno
minador comum, no pensamento teológico tradicional, da redu
ção a sistema), passa-se a pensar o ser no horizonte do tempo.
44
É a virada heideggeriana que influencia fortemente a teologia
do século X X , sobretudo a alemã. Pensar o ser não mais apenas
na perspectiva de essência, substância, natureza, idéia, mas na
do tempo e da história, significa, no fundo, renunciar a forçar
a realidade, para reduzi-la às sínteses e aos sistemas especula
tivos do sujeito pensante. Significa acolher o ser que se revela
no existir, num conhecer que dê lugar à admiração, ao impensa
do, ao inesperado, ao mistério. A “razão teológica” como “razão
histórica” configura-se assim como “razão aberta”, que não apri
siona o tempo na estaticidade do ser, mas se deixa alcançar pelo
imprevisível revelar-se do ser na perene novidade do tempo;
por isso, atribui ao futuro uma ulterioridade de sentido, que é
permanente crítica de toda idolatria do presente. Isso leva os
teólogos à redescoberta da escatologia; esta, de apêndice da dog
mática cristã, assume sempre mais um papel decisivo, até ser
reconhecida como dimensão imprescindível de todo pensar teo
lógico. A mesma “abertura” da razão leva à rejeição de qual
quer sistema totalizante e à identificação entre método histórico
e método sistemático. Este último processo é realizado não no
sentido da redução do primeiro ao segundo (como acontecia nas
argumentações dos manuais), mas graças ao reconhecimento de
uma circularidade hermenêutica. Ou seja, descobre-se que o
compreender histórico só é possível dentro de um anterior com
preender sistemático (pré-compreensão e horizonte de pensa
mento). Este, por sua vez, é redimensionado à experiência, está
aberto à possibilidade de um contínuo devir. Isto é, a história é
compreendida num horizonte, que faz continuamente a história
e é feito por ela. Por isso, conhecer histórico e conhecer siste
mático são inseparáveis,2 e, conseqüentemente, em teologia a dis
tinção clássica entre positiva e sistemática é superada sempre
mais (pense-se na tentativa representada, nesta direção, pela
“dogmática como teologia da história da salvação” : Mysterium
Salutis). Não há outro caminho para compreender a Palavra (o
que é tarefa da teologia sistemática) a não ser compreendendo-
-a na história e pela história. Este compreender questionando
respeita o dado tal como se apresenta, não o violenta para sujei
tá-lo ao presente, mas se deixa provocar por ele. Neste sentido,
2 Cf. H. G. Gadamer, Verità e método, com introdução de G. Vat-
timo, Milão, 1972 e Ermeneutica e metódica universale, com nota-ensaio
de V. Margiotta, Turim, 1973,
45
a “razão histórica’’ rejeita as interpretações puramente funcio
nais, existenciais, não menos do que as sistematizações escoiás-
ticas. Em ambos os casos, o presente se faz árbitro do passado,
enquadrando-o respectivamente no horizonte das expectativas e
da decisão do sujeito, ou no horizonte do rigor do sistema pré-
-constituído. Em ambos os casos, a Palavra acaba por se tornar
muda, enquanto o sujeito não faz mais do que celebrar a si
mesmo, üom isso não se quer negar a pré-compreensão do sujei
to, que e sempre suposta. U que se quer é simplesmente inseri-la
no já acenado círculo hermenêutico, pelo qual ela assume, inte
grando-os, os novos dados que lhe são oferecidos; mas, ao mes
mo tempo, é modificada mais ou menos profundamente por
eles. Somente no reconhecimento de semelhante circularidade e
possível evitar, de um lado, a radical subjetivização de um pen
samento histórico fechado em si mesmo, e, de outro, a presumi
da objetivação em verdades eternas, intemporais, de um pensa
mento a-histórico, não “situado”.
A consideração do círculo hermenêutico leva-nos a falar
do terceiro fator de influência da história na teologia moder
na: aquele que ocorre no plano da práxis. De fato, a pré-com
preensão do sujeito nunca é uma construção individual. É uma
experiência vital, compartilhada com os outros, com os quais a
pessoa entra em comunhão, e articulada na linguagem e, de certa
forma, estruturada por ela. Sem dúvida, pertence sempre a um
mundo, a um horizonte intencional, onde estamos colocados,
que podemos modificar e pelo qual somos continuamente modi
ficados. Este mundo vital é a práxis, a história que se faz atra
vés das relações de conflitos entre indivíduos e entre classes,
através de dependências e rupturas. Nesse reconhecimento da
práxis como horizonte hermenêutico, o pensamento marxista faz
sentir a sua. influênciá sobre o mundo contemporâneo: ele não
considera o sujeito abstrato, mas o homem concreto, inserido
em relações precisas de produção, que determinam de fato a
sua vida. Assim, a teoria marxista articula-se na análise das
estruturas econômicas dependentes das diversas situações histó
ricas, na denúncia das fugas da história — que freqüentemente
se consumam nas expressões superestruturais da cultura e da
religião, e que de fato são pagas com alienação sempre maior
das classes oprimidas — e no esforço por desenvolver um pro
cesso não somente de interpretação, mas também de transforma
46
ção da realidade. Nesta, a práxis é ponto de partida e de chega
da da teoria; é, para esta, fonte e critério de verdade. Dessa re-
descoberta da práxis surge uma tríplice provocação para o pen
samento teológico. Antes de mais nada, a teologia repensa o
círculo hermenêutico vivo em que é colocada, isto é, a Igreja,
comunidade na qual a linguagem da fé é transmitida e sempre
novamente rearticulada, e na qual é de fato acolhida e atuali
zada a perene normativa do evento fontal registrado no teste
munho bíblico. O situar-se eclesial da teologia é, pois, a condi
ção de sua própria compreensão a respeito do dado. Ao mesmo
tempo, é o espaço em que a reflexão teológica pode, antes de
tudo, fazer que tenha valor a sua eficácia prático-crítica. Sem a
viva “traditio ecclesiae”, que lhe transmite vitalmente a “norma
normans” da fé cristã, o teólogo não poderia evitar o risco de um
pensamento puramente subjetivo, nem poderia falar uma lingua
gem de fé compreensível aos outros. Permanecería como aven
tureiro da inteligência, condenado à incomunicabilidade. Mas a
Igreja está no mundo, situada nas circunstâncias históricas con
cretas que a condicionam e que são condicionadas por ela. Por
tanto, não somente a práxis eclesial, mas nela e através dela e
mesmo :prescindindo dela, também a práxis social é que estru
tura a compreensão pré-constituída da razão teológica. Os siste
mas econômicos e políticos, as relações de dependência e as
situações de alienação — aceitos ou rejeitados de maneira mais
ou menos consciente — não deixam de entrar no horizonte do
pensamento de quem faz teologia. “Cada um de nós está situado
não apenas com relação a um sistema de referência, do qual
depende a lógica do seu discurso, mas também com relação a um
sistema de poder que torna possíveis algumas coisas e impede
outras”.3 Conseqüentemente, o discurso teológico será verdadei
ramente crítico, antes de tudo, quando se configurar como
crítica da teologia, análise objetiva das condições materiais (eco
nômicas, sociais, políticas) nas quais a palavra cristã é produzida
e encontra convalidação concreta.4 Uma teologia que ignore
esse condicionamentos torna-se funcional com relação ao siste
ma; portanto, não será inócua, mas perigosa. Finalmente, a nova
47
atenção à práxis leva a razão teológica a redescobrir o círculo
existente entre teoria e práxis. É tarefa da teologia levar a prá
xis à palavra. E essa tarefa está relacionada com a outra: levar
a Palavra à práxis. Somente assim a razão teológica se torna
consciência crítica eficaz de uma concreta situação histórica
eclesial e terrena, capaz de julgar o presente e orientar o futuro.
Portanto, práxis e teoria relacionam-se em estreita circularidade.
Uma teoria teológica que não se abeberar na práxis será vazia,
porque é no horizonte hermenêutico vivo da comunidade situada
na história que a verdade da Palavra se manifesta e pode ser
vivida concretamente. Mas uma práxis que não for orientada
pela teoria será cega, sem discernimento, e, por isso, sem meta
nem sentido. Por isso mesmo, também na teologia, a práxis é
o início e o fim da teoria. A práxis oferece a experiência vital, a
partir da qual a teoria se constrói e na qual se verifica. Sem
chegar à identificação de ortodoxia com ortopráxis, deve-se reco
nhecer que a abertura para a verdade teológica não se coloca
apenas a nível de reflexão crítica; tal abertura é captada ao mes
mo tempo num agir crente, num ser para Deus e para o homem
na realidade viva das tensões históricas, num estilo de vida de
fé esperançosa e apaixonada. A práxis entra assim no próprio
ato de abertura para a verdade que se manifesta, tornando-se o
“lugar” por excelência da teologia. Por outro lado, a uma refle
xão crítica que capte a Palavra no ato de se situar numa prática
eclesial e social deve corresponder uma eficácia sobre a práxis
por parte da própria reflexão, eficácia capaz de modificar e
orientar a ação na Igreja e na sociedade. Portanto, a uma teoria
da práxis deve corresponder uma práxis da teoria.5 Talvez esteja
aqui o desafio mais radical que a entrada da história no pensa
mento teológico lhe provoca, “a verdadeira questão hermenêu
tica fundamental que a teologia deve suscitar”.6
Portanto; na elaboração da teologia do nosso tempo, os três
fatores de influência da consciência histórica — no plano dos
conteúdos, da razão teológica e da práxis — convergem no sen
tido de provocar o teólogo a “situar-se” consciente e responsa
48
velmente. Em outras palavras, o teólogo deve discernir as estru
turas de ordem eclesial, social, política, econômica e cultural
em que age e pelas quais é condicionado; mas não só: deve tam
bém elaborar seu pensamento nessas estruturas e a partir delas,
confrontando-as criticamente com a Palavra fontal. Somente
assim esta pode ser atualizada e tornar-se força subversiva e
transformadora da história.
49
histórica. A renovação bíblica fornecia os dados normativos, re-
descobertos com novo vigor. Assim, para dar resposta a essas
questões, a renovação patrística e litúrgica ofereciam a ima
gem viva e concreta de uma Igreja empenhada em resolver desa
fios semelhantes em contextos históricos diferentes, mas arrai
gada na inexaurível riqueza do mistério anunciado e celebrado.
A renovação da missão estimulava a consciência do relaciona
mento entre o cristianismo e a multiplicidade das culturas e
situações históricas, geralmente bastante distantes do modelo
ocidental. Por sua vez, a renovação ecumênica impelia para a
redescoberta recíproca das riquezas — por longo tempo desco
nhecidas — entre as diversas tradições cristãs. Característica da
história eclesial dos nossos tempos, o crescimento da consciên
cia e do empenho do laicato solicitava uma nova reflexão sobre
o povo de Deus e sobre a co-responsabilidade na Igreja, e, por
outro lado, levava a repensar o significado do mundo “profa
no”, das “realidades terrenas”, que- estavam tradicionalmente
associadas ao conceito do leigo. Finalmente, as orientações da
espiritualidade contemporânea — marcadas por uma Teresa
de Lisieux e por um Charles de Foucauld, para mencionar apenas
dois nomes — traçavam o programa de uma contemplação na
ação. Enquanto isso, os desenvolvimentos da moral vinham evi
denciando o primado da caridade, como saída de si mesmo, pri
mado que tem sua raiz em Cristo e na relação vivificadora com
os outros. O efeito desses múltiplos estímulos pode ser reconhe
cido no duplo esforço desenvolvido nas sessões conciliares: de
um lado, assiste-se ao repensamento da identidade da Igreja a
partir da iniciativa trinitária, que a funda como comunhão, arti
culada na variedade dos dons e dos serviços (Lumen Gentium);
de outro, percebe-se a busca orientada no sentido de “situar” a
Igreja .como “saóramento da salvação” no contexto do mundo
contemporâneo (Gaudium et Spes). Assim, a redescoberta da
identidade eclesial e a reflexão sobre a sua relevância como
“comunhão” e “serviço” caracterizam a renovação conciliar, fru
to de múltiplas renovações do nosso século na teologia e na
Igreja.
Nestes últimos anos, o desenvolvimento dessas duas pistas
devia levar à segunda fase da vida eclesial: o “deslocamento” .
A passagem da “renovação” para o “deslocamento” realiza-se de
acordo com dois momentos, gradualmente relacionados. Inicial
50
mente, na denominada etapa dos comentários, a tendência é
voltar, de maneira quase exclusiva, ao Vaticano II, a fim de
expor e debater as suas idéias e fazer a “primavera do Concilio”
passar para o raio de incidência mais amplo possível. No plano
das estruturas, o início de aplicação da eclesiologia conciliar
comporta o processo de valorização das Igrejas locais e a criação
e desenvolvimento de estruturas colegiais, em nível de comunhão
local, regional e universal de Igrejas. De maneira análoga, a inspi
ração da Gaudium et Spes se traduz numa nova atenção aos
componentes pluralistas da sociedade — é a hora do diálogo! —
e ao pluralismo das sociedades em que a Igreja está colocada.
Essa práxis de “aplicação” do Concilio faz emergir, com toda
a sua gravidade, questões apenas acenadas pelo Vaticano II, ou
que ele havia elaborado insuficientemente, ou que simplesmente
não havia considerado. No entanto, tais questões devem ser re
solvidas pela teologia. Para citar apenas alguns exemplos, lem
bremos: a elaboração de uma reflexão pneumatológica (apenas
incipiente no Concilio), impulsionada por novas formas de expe
riência cristã, como o movimento carismático; o desenvolvimen
to de uma teologia dos carismas e dos ministérios, necessária
para orientar concretamente a renovação das comunidades cris
tãs; a ampla guinada antropológica no horizonte teológico, esti
mulada pelo diálogo com o mundo contemporâneo; as teologias
da práxis política e da libertação. A descentralização eclesioló-
gica e a nova atenção aos diferentes contextos em que a Igreja
se faz presente suscita inúmeros problemas, que abalam a eufo
ria da renovação, colocando-a frente a frente com a realidade
histórica. A conseqüência desse impacto se destaca no conjunto
das inquietações e tensões não resolvidas da Igreja pós-conciliar.
Em teologia, a sensação é de se estar “deslocado”.
A fase da “deslocação” — em que ainda nos encontramos!
— está relacionada com três características da elaboração teoló
gica, surgidas no último decênio.
A prim eira consiste no aparecimento de novos lugares geo
gráficos de elaboração teológica, ao lado dos tradicionais. Na
América Latina, na África, no Extremo Oriente já se começa a
delinear na comunidade cristã uma consciência criticamente ela
borada em contextos e com instrumentos culturais totalmente
diferentes daqueles em que o cristianismo foi pensado durante
séculos. As conseqüências de tal passagem ainda não são calcu
51
láveis. Sinais de imaturidade podem às vezes ser encontrados
nesse processo, dado o profundo arraigamento das relações tra
dicionais de dependência, mas não devem justificar reações alar
mistas e paralisadoras. É um processo irreversível, que suscita
a problemática de um “situar-se” da teologia, que saiba conser
var a unidade da fé e da comunhão eclesial. Entretanto, os teó
logos, que até um decênio atrás monopolizavam a reflexão cris
tã, começam a sentir-se redimensionados, contestados, “desloca
dos”. Nesse panorama está, no Terceiro Mundo, subdesenvolvi
do e oprimido, a teologia da libertação. Com base na ação de
Iahweh que liberta o povo de Israel e na missão libertadora de
Jesus, os povos latino-americanos, a partir de sua dura realida
de, “vivem” a sua teologia, procurando torná-la uma prática
libertadora. É uma teologia vivenciada especialmente através
das comunidades eclesiais de base. Estas analisam a palavra de
Deus confrontada com a vida de cada dia, em todos os aspectos:
eclesial, familiar e social.
A segunda característica da teologia dos últimos anos está
no surgimento de novos temas da elaboração teológica. A cons
cientização dos batizados, deslanchada pelo despertar do laica-
to antes do Concilio e por este incentivada na eclesiologia da
comunhão, faz com que muitos sintam a necessidade de partici
par do saber teológico e, conseqiientemente, de produzi-lo. Não
só se multiplicam as iniciativas de formação teológica dos leigos,
mas também emerge sempre mais a reivindicação de um direito
da palavra para todos, de uma “teologia popular” exercida nas
formas mais variadas de participação na vida eclesial. Essa “teo
logia fora da teologia” faz com que os profissionais da teologia
se sintam “deslocados”. Tal realidade não pode ser ignorada ou
qualificada como simples moda ou expressão-superficial. Muitas
vezes, ela está, carregada daquela força crítica da práxis, que
falta na teologia “oficial” e que deriva do fato de estar “situada”,
o que com freqüência não ocorre com a reflexão dos teólogos.
Finalmente, a evolução da teologia na Igreja dos últimos
anos evidencia o emergir de novos processos de elaboração do
pensamento. Não é no ambiente muitas vezes asséptico e rare-
feito das salas de aula, mas na realidade viva das tensões histó
ricas e políticas que se pede aos teólogos para expor a razão da
esperança que vive neles. Descobre-se que a teologia dominante
é, freqüentemente, apenas a teologia das classes dominadoras,
52
que fazem dela uma ideologia. Acaba-se compreendendo que “na
reflexão teológica, ignorar que o chamado ‘espírito moderno’ —
interlocutor da teologia progressista — é em boa parte reflexo
da ideologia capitalista e burguesa, permite apenas fazer algu
mas escaramuças de retaguarda com os restos de um mundo em
decomposição". Procura-se desideologizar a teologia. Para fazê-
-lo, percebe-se a necessidade de elaborá-la “a partir de baixo” —
o que “não significa partir do homem para ir a Deus... mas
partir do universo de opressão e de aspiração à liberdade em
que vivem os pobres, partir da fé vivida e pensada na situação
das classes exploradas, das raças desprezadas, das culturas mar
ginalizadas”. Em resumo, uma teologia “que tome como ponto
de partida a outra parte, o reverso da história”.89 Mais uma
vez, o teólogo clássico sente-se “deslocado”, superado por aque
les que, na comunidade de fé, são mais operantes no plano da
caridade social e política e da esperança vivida. Somente “situan
do-se” de maneira crítica poderá o teólogo evitar esse risco de
alienação e prestar um serviço eficaz de discernimento e de
orientação para a práxis.
53
criticamente, o teólogo não deve aventurar-se em terra estranha,
embora possa ser essa a impressão que cause a ausência de di
mensão histórica da teologia escolástica predominante do pas
sado recente. Na realidade, a exigência de pensar historicamente
funda-se na própria estrutura da teologia cristã, sobretudo da
cristologia, chamadas a refletir criticamente e de maneira siste
mática sobre o “mistério” presente no fragmento de história
que foi a vida do Nazareno, conhecida através do testemunho
pascal da Igreja nascente. É à obra e ao destino de }esus Cristo
que o teólogo deve dirigir-se para investigar o fundamento e a
matéria do seu próprio pensamento. Por sua vez, esse voltar-se
para o passado fontal é vivido em vista de um agir sobre o pre
sente, para criar o futuro de maneira sempre nova. Assim, a cris
tologia, por sua natureza, situa-se na história e, como vimos,
é provocada por ela. Ao mesmo tempo, a história se coloca no
próprio coração da cristologia, como “forma” na qual se pode
desenvolver, de maneira mais fiel, o discurso cristão sobre Deus.
Em outras palavras, coerentemente com a “pretensão” cristã,
deve-se afirmar: dado que Deus se fez história, os termos histó
ricos, concretos e terrenos, são os únicos nos quais é possível
falar dele com menor infidelidade. O lugar da epifania da Pala
vra é a história, e não o indivíduo em suas experiências místi
cas ou na lucidez de sua razão “pura”.101
Para considerar as implicações da aceitação da “razão histó
rica” na metodologia do discurso cristológico, é necessário escla
recer preliminarmente o que se entende por “história” .11 O con
ceito de história que aqui empregamos não é o positivista, que
■a reduz a simples sucessão de fatos, a um devir sem sentido da
matéria bruta, a uma soma de “bruta facta”. À base de tal con
cepção está uma teoria acrítica do conhecimento, o “realismo
ingênuo”, que, identificando o conhecimento com o registro dos
fatos, não reconhece que o “fato” é o que se evidencia num
54
juízo de experiência, onde a compreensão do sujeito desempe
nha papel determinante.12 “História” é sempre condição de exis
tência, pela qual o sujeito, radicado no seu passado, toma posi
ção diante dele e se projeta na liberdade para o futuro. “Histó
ria” é o “situar-se” do espírito, na consciência e na liberdade, o
seu pôr-se no hoje diante do ontem e o seu pro-por-se diante do
amanhã. Neste sentido, só há história onde há espírito, isto é,
onde existe capacidade de situar-se consciente e livremente no
devir. Neste mesmo sentido, o objeto da história é “interno” (cf.
o “Erlebnis” em Dilthey), isto é, captado na própria experiência
com a qual o homem compreende a si mesmo. Contra uma redu
ção idealista, na qual a história vivida é absorvida na história
conhecida,13 é preciso sublinhar: não há história sem consciên
cia, mas isso não torna vã a objetividade da própria história. O
“situar-se” do espírito se realiza sempre em relação a um “dado”,
ao “extra nos” já pronto, que no presente é assumido e julgado
para inventar o futuro. Esse “dado” é a soma das condições eco
nômicas, sociais, políticas, culturais, espirituais, objetivas e sub
jetivas, e das codificações lingüísticas, nas quais cada um está
situado. E aqui as análises marxista e estruturalista corrigem uma
colocação puramente existencial. “História”, portanto, é conhe
cimento e juízo desse “dado” — o “já disponível”, o passado — ,
e, ao mesmo tempo, é livre construção do futuro (“assumptio
praeteriti” e “inventio futuri”). Em outras palavras, a totalidade
existencial do viver a história, o situar-se vivo no devir, abrange
ao mesmo tempo a relação com o “já ” dado, revisto e critica
mente assumido, e a relação com o “ainda não”. Aqui está o
fundamento da clássica distinção entre a história como reencon
tro do passado, como saber histórico, e história como vida, toma
da de posição presente com relação ao “já”, que, neste mesmo
ato, é criadora do futuro. E ao mesmo tempo aqui está a exi
gência de uma profunda e contínua conexão entre os dois pólos
do “saber” histórico e do “existir” histórico. O primeiro é visto
em função do segundo, como o segundo é criticado e fundado
pelo primeiro (cf. o que dissemos antes sobre o círculo herme
55
nêutico, teoria e práxis). A história como “assumptio praete-
riti” implica o conhecimento histórico, a compreensão do passa
do, revivendo e reproduzindo a experiência dos outros. Nesse
sentido, a essência do método histórico está no “compreender
indagando” (Droysen), e a sua operação fundamental é a com
preensão como “reencontro do eu no tu” (Dilthey). A natureza
do objeto do saber histórico será então o concreto, o individual,
enquanto oposto ao caráter genérico, uniforme e repetitivo dos
objetos do conhecimento natural. Assim entendido, o método
histórico implica, de um lado, a abordagem respeitosa do dado,
e, de outro, nunca prescinde do presente. A compreensão históri
ca do passado está sempre carregada de significado existencial,
interpelada pelo hoje e interpelante do hoje, e nisto criativa do fu
turo. Mas isso não quer dizer que só possamos conhecer do passa
do o que está em analogia com o presente: se a “razão históri
ca é verdadeiramente razão aberta”, ela conhece o radical
mente novo, mesmo que seja na forma da admiração ou da rup
tura dialética. Na sua capacidade de conhecimento dialético, a
razão histórica se abre também para o radicalmente novo, que,
segundo a pretensão cristã, é dado na ressurreição de Jesus
Cristo.14
O que comportam essas indicações, quando aplicadas à
reflexão cristológica? Pode-se dizer, fundamentalmente: em teo
logia, a história exige que a reflexão crítica da fé cristã sobre
Jesus Cristo seja situada precisamente, isto é, se refira, segundo
a forma própria do método histórico, ao passado, ao presente
e ao futuro; ou seja, no presente assuma o passado para orien
tar o futuro.
Em relação ao presente, uma cristologia historicamente si
tuada exige que s.e parta do hoje e que seja significativa para
ele. Em"cristologia, partir do hoje significa, antes de mais nada,
partir da fé contemporânea em Jesus Cristo, como é professada
na pregação, na liturgia e na práxis das Igrejas cristãs.15 Foi nes
56
sa viva “traditio ecclesiae” que nos chegou a memória viva de
Jesus, e é nela que o fiel aprende vitalmente a articular a pró
pria fé. A comunidade eclesial constitui, como vimos, o círculo
hermenêutico no qual a fé cristã se torna comunicável e recep-
tível. Ora, a cristologia assume criticamente essa fé e a relacio
na com o dado fontal e normativo da Palavra feita carne em
Jesus Cristo. É nessa medida que a reflexão teológica se torna
consciência crítica da própria comunidade eclesial, e por isso
mesmo carregada de força existencial — embora não puramen
te funcional e relativa, precisamente porque fundada no “extra
nos” já dado pela revelação. O assumir o presente não se limi
ta, é claro, à comunidade eclesial. Mas exige ser historicamente
responsável com relação à situação mais ampla em que a pala
vra cristã é chamada a se fazer ouvir. Isto requer, por um lado,
atenção às interrogações dos contextos humanos e às estruturas
lingüísticas atuais, a fim de que a mensagem possa verdadeira
mente atingir o homem; por outro, exige o discernimento dos
dados evangélicos na história terrena atual — os “signa tempo-
rum” — , nela presentes por força da dimensão crística de toda
a criação (“Todas as coisas foram criadas por meio dele e em
vista dele” : Cl 1,16; cf. Jo 1,3) e da dimensão cósmica da Encar
nação (“O que não é assumido não é salvo” : Gregório Nazian-
zeno, Ep. 101: PG 37, 181s). Em outros termos, o presente do
mundo é lugar da teologia. Por isso é necessário ler a história
no Evangelho, mas é também necessário ler o Evangelho na his
tória. Uma cristologia historicamente pensada não pode descu-
rar o presente, nas suas expressões reflexas e nas relações de
dependência social, econômica e política que o caracterizam,
ainda que essa cristologia dele se ocupe apenas do ponto de
vista do significado de Jesus Cristo diante de tudo isso.
Mas não é só nos conteúdos que incide a referência ao pre
sente, que a razão histórica exige da cristologia. Há também uma
existencialidade “formal”, de mentalidade, linguagem e valor prá
ticos, que a história coloca como exigência no interior do discurso
cristológico. A unidade do saber histórico e do viver histórico,
isto é, da história como pensamento e como ação, a recíproca15
57
“conversio” do “verum” e do “factum” (Vico), a circularidade
teoria-práxis, postulam para a teologia cristã sobre Cristo um
caráter narrativo-dinâmico. Por meio desse caráter, a teologia
não só narra o evento, mas o provoca, ou seja, é contagiante no
seu efeito prático-crítico.16 Embora reconhecendo a existência
de um esforço de formulação,17 isto é, que elabore as fórmulas
de expressão da fé cristã, é preciso admitir, em cristologia, o
papel determinante da narração dos “mistérios” da vida de
Jesus, prenhes da força contagiante que falta nas sistematizações
escolásticas.18 Essa dimensão narrativo-dinâmica foi expressa
com rara eficácia na parábola do rabino, contada por M. Buber
e não por acaso citada por E. Schillebeeckx na conclusão de seu
livro sobre Jesus: “Meu avô era paralítico. Certo dia, lhe pedi
ram que contasse uma história sobre seu mestre, o grande Baal
Shem. Então ele contou como o santo Baal Shem tinha o costu
me de pular e dançar enquanto orava. Meu avô levantou-se e
contou. A história o empolgou a tal ponto que ele mostrou, sal
tando e dançando, como o mestre tinha agido. A partir desse
momento ele ficou curado. Essa é a maneira de contar histó
rias” .19 Essa é a maneira de fazer teologia!
Em relação ao passado, uma cristologia histórica deve com
preender indagando o objeto concreto e individual da fé cris
tã; isso envolve o problema da acessibilidade histórica desse
objeto,- que se articula nos termos da relação entre o Jesus da
história e o Cristo da fé. Remetendo tal exposição às reflexões
sobre a história da cristologia, aqui é preciso simplesmente evi
denciar o primado absoluto que a narração bíblica tem para a
reflexão crítica da fé cristã sobre Jesus Cristo, tanto em força
dos conteúdos históricos que transmite, quanto devido ao regis
tro do testemunho pascal da comunidade das origens. Contra
uma cristologia sob o signo da metafísica, como foi a cristologia
dos manuais do passado, isso significa prestar a maior atenção
ao “concretissimum” da ação revelativo-salvífica, criticamente
58
abordada segundo as exigências do método histórico. Biblicida-
de da cristologia não significa apenas assumir materialmente
os conteúdos bíblicos, mas também reencontrar uma experiên
cia, adquirir uma pista de reflexão. A comunidade nascente co
meçou a refletir sobre Jesus Cristo relendo retrospectivamen
te, à luz da Páscoa, a história do Nazareno e a de Israel, e
visualizando, em perspectiva, o tempo da Igreja. Assim também
uma cristologia historicamente pensada partirá da Ressurreição
para reler a história do homem Jesus como revelação da histó
ria trinitária de Deus, e a história da humanidade inteira na sua
relação com Cristo, o Deus da história. Dessa forma, supera-se
a contraposição artificial entre uma cristologia do alto e uma
cristologia de baixo.20 Enquanto parte do evento da Ressurrei
ção, que é o evento da proclamação gloriosa realizada pelo Pai
no Espírito Santo sobre Jesus como Senhor, a cristologia histo
ricamente pensada é “do alto”, porque aborda as obras e os
dias do Nazareno, sabendo encontrar nelas a história de Deus
na carne do mundo, a humanidade de Deus. Mas, ao mesmo
tempo, essa cristologia parte de um evento histórico (na sua for
ma própria), como é o evento pascal, relê os “mistérios” da
vida de Jesus como eventos da história, e se coloca do lado dos
homens, indagando que sentido tem para eles a história de
Jesus Cristo. Assim considerada, é uma cristologia “de baixo”,
que se aproxima do mistério de maneira ascendente e econômica,
partindo dos eventos concretos da história de Deus com o ho
mem. Portanto, da mesma forma que na reflexão fontal da Igreja
das origens e na fé eclesial hoje confessada, é ao mesmo tempo
a cristologia da Luz que vem e a cristologia da evolução histó
rica do Nazareno e da fé dele para a luz. É ao mesmo tempo a
cristologia da absoluta liberdade do Deus trinitário e a cristolo
gia da liberdade situada de Jesus frente à sua vida e morte. É a
cristologia do dom ilimitado, da alegre e libertadora plenitude
dos tempos, e a cristologia da finitude, da dor e da cruz. É a cris
tologia da divindade que se revela na humanidade, da luz que
brilha nas trevas, da infinita liberdade no amor que se mani
festa nas opções da liberdade concreta do homem de Nazaré. É
59
o alto que se manifesta naquilo que é baixo, é o humano que se
oferece como rosto de Deus.
A referência primária e normativa ao passado fontal do
testemunho bíblico não acarreta uma subestima da reflexão cren
te no tempo, e em particular do dogma. O recurso ao passado,
a “assumptio praeteriti”, própria do método histórico, e a fé
no Espírito que age em qualquer estação da vida eclesial, exigem
rigorosa atenção à história da fé cristã e das suas expressões
reflexas. Todavia, essa história deve ser constantemente con
frontada com os dados fundamentais da Escritura. Em outras
palavras, o problema suscitado pelo dogma não é simplesmente
a sua tradução em categorias contemporâneas, ao menos em ter
mos prioritários; é a sua hermenêutica no tecido concreto do
momento histórico em que foi expresso e de sua avaliação críti
ca com relação ao testemunho bíblico.
Em relação ao futuro, uma cristologia historicamente pen
sada sublinhará o caráter escatológico da fé cristã. Refletindo
sobre a “historia salutis”, ela é chamada a captar no “já ” a força
oculta do “ainda não”, a prestar atenção às dimensões dq êxodo
e do Reino, do provisório e do definitivo, presentes na história
de Deus para o homem e do homem para Deus. Em conseqiiên-
cia disso, no plano da forma do pensamento, urge uma cristolo
gia aberta para o futuro, crítica e estimulante com relação à
Igreja; que é por natureza “semper reformanda”; urge uma cris
tologia que abale o presente para abri-lo, na força do Espírito,
para uma “forma futuri”, fermentando o hoje para o futuro pro
metido em Cristo. E, ao mesmo tempo, urge uma cristologia pe
regrina, sempre incompleta, “theologia viatorum”, ciente de que
pode apenas balbuciar algo sobre Aquele que certamente é capaz
de entrever, mas jamais de possuir plenamente. A verdade da
fé cristã, da qual a teologia é consciência criticamente estru
turada, fundamentando-se no evento da Ressurreição, não pode
reduzir-se a adequar o intelecto à realidade. A verdade cristã é
sobretudo um esforço para adequar a realidade atual à realidade
que há de vir. Assim, o próprio futuro, como dimensão e pro
messa, é fonte de cristologia, é horizonte aberto para Cristo,
que liberta da prisão do presente, subvertendo-o e orientando-o.
Essa abertura para o futuro, essa sempre esperada superação de
sentido, impede que se reduza a mensagem a um gueto, forçan-
do-a a acentuar esta ou aquela teologia, e coloca, sob a única
60
norma verdadeira, a Palavra na história e na Igreja, para apelar
à conversão não de uma ideologia para outra, não de uma Igreja
para outra, não de uma teologia para outra, mas de todas elas
para o Cristo vivo na força do seu Espírito. Por acaso, não con
siste nisso a dimensão ecumênica de uma teologia historicamen
te pensada?
Portanto, em cristologia a história leva à superação de uma
colocação metafísica, conceituai e abstrata, a favor de uma
perspectiva bíblica, existencial e dinâmica. Esta, no caminho do
tempo, revive a experiência fontal da reflexão e do anúncio da
Igreja nascente, emprega uma linguagem narrativa e contagian-
te, e é corajosamente profética na denúncia do presente e na
abertura para o futuro. Tal reflexão crítica da fé sobre Jesus
Cristo poderá realmente ajudar a Igreja a ser a viva “sequentia
sancti Evangelii”, que narra e escreve na história do mundo o
diálogo de libertação do homem e da glória de Deus, diálogo
que se tornou possível no Senhor Jesus.
61
SEGUNDA PARTE
HISTÓRIA DA CRISTOLOGIA
3
A ESPERANÇA DE ISRAEL
3 .1 . O DEUS DA PROMESSA
65
a tipológico-alegórica; entre os dois Testamentos se estabelece
um paralelismo representativo, mediante o qual já está presente
no Antigo, sob forma de tipo e de alegoria, aquilo que é narra
do no Novo. A origem desse modo de interpretar parece remon
tar a um fato: quando o cânon neotestamentário ainda não
estava redigido nem fixado, os cristãos se esforçavam para
captar, no único cânon à sua disposição, o veterotestamentário,
a história de Jesus, centro e fundamento de sua fé. Por esse
caminho, chegou-se a presumir que todos os sinais e eventos do
anúncio evangélico deviam encontrar-se como que velados sob
as palavras das Escrituras de Israel. Daí para a interpretação
apologética do Antigo Testamento a passagem foi breve: julgou-
-se que a narração antecipada dos eventos da história de Jesus
de Nazaré, encontrados sob o véu das palavras proféticas e histó
ricas das antigas Escrituras, era motivo indiscutível de credibili
dade da revelação cristã. Mas essa interpretação, querendo pro
var demais, se tornou muito fraca: de um lado, elimina a real
progressividade histórica da revelação; de outro, não dá espaço
suficiente para a novidade neotestamentária, para a absoluta
indedutibilidade do que acontece em Jesus Cristo, tornando-se
até mesmo supérfluos os escritos do Novo Testamento. “Assim
fica abolida... não apenas a história da salvação contida no
66
Antigo Testamento, mas perdem seu valor de acontecimentos
históricos também o fato único da encarnação de Jesus Cristo
e o da pregação dessa encarnação por parte dos apóstolos” .3 O
pressuposto de tal concepção consiste em julgar que o desenvol
vimento histórico não pode atingir as verdades “atemporais” con
tidas na revelação. Mas esse pressuposto é insustentável para
quem leva a sério a encarnação de Deus, o fazer-se-homem do
Verbo, e não confunde a verdade-fidelidade do Deus bíblico
com a verdade imutável e atemporal do pensamento grego.
Por isso, a preparação veterotestamentária para o Novo
Testamento deve ser procurada em outra direção, não no senti
do de alegoria, mas no de história. Ou seja, no sentido de um
devir da revelação, de uma história da Palavra, que não pres
cinde da progressividade concreta e contraditória do caminho de
Israel, mas que se realiza nela e através dela, não segundo ante
cipações harmônicas do futuro, mas segundo as duras leis do êxo
do diário para o futuro. De acordo com essa perspectiva, as
Escrituras não são símbolos ou alegorias daquilo que acontecerá
mais tarde na obra e no destino de Jesus Cristo, não contêm
verdades atemporais. Mas conservam todo o seu peso e a sua
densidade de testemunhos de uma história vivida: a história de
um povo único e das intervenções do seu Deus nela, o devir da
salvação, o desenvolvimento atormentado da relação entre a his
tória de Israel e seu Deus. Nesta luz, o evento de Jesus Cristo,
conforme é anunciado no Novo Testamento, como evento do
novo e inaudito encontro entre a história de Deus e dos homens,
encontra, naquilo que o precede em Israel, a sua chave de leitu
ra mais apropriada. Além disso, ilumina de maneira nova o
caminho precedente, dando sentido e alcance às várias etapas
da promessa e da espera. Se não for possível indicar antecipa
ções precisas e isoladas das obras e dias de Jesus na história
veterotestamentária, frustrando as expectativas da apologética
tradicional, encontrar-se-á muito mais amplamente, em todo
Israel e na sua originalíssima história de promessa e esperança,
o pano de fundo no qual o Nazareno se forma e se situa, e que
ao mesmo tempo subverte e reinterpreta. Lida nessa perspectiva
histórica, a expressão neotestamentária “segundo as Escrituras”
indica uma dupla relação: de um lado, a relação do passado com
67
o presente, no sentido de que as categorias e esperanças do Anti
go Testamento são o horizonte no qual Jesus Cristo deve ser,
antes de tudo, compreendido; 4 de outro lado, a relação do pre
sente com o passado, no sentido de que o evento Jesus Cristo
tem um caráter de novidade absoluta e indedutível frente ao que
o precede, e por isso ilumina, de maneira nova, a própria espe
rança de Israel. Este segundo aspecto ficará mais claro quando
tratarmos da atitude de Jesus frente à tradição do Antigo Testa
mento. Por ora, o que nos interessa é a primeira relação: Como
a história de Israel prepara e permite interpretar a história de
Jesus de Nazaré? Qual o horizonte próximo ou remoto, em
que se situa o evento anunciado no Antigo Testamento?
“O povo de Deus, no qual Jesus Cristo nasceu e do qual
é a flor suprema e... o fruto que ultrapassa a promessa das
flores, é o povo da Palavra”.5 "Onde outros não perceberam
mais do que um silêncio infinito, Israel ouvia uma voz. Israel
pôde descobrir que o Deus único é audível e interpelável, que
vai para o meio dos homens, dizendo Eu e fazendo-se Tu para
eles: é o Tu que fala e a quem se pode falar”.6 A história de
Israel é a história do diálogo ininterrupto e sempre novo com
o seu Deus. Chamado por Deus para a terra da promessa, esse
68
povo nômade jamais perdeu a sua religiosidade originária, liga
da ao movimento e aberta ao futuro, nem mesmo quando se
estabeleceu na terra já conquistada. O seu Deus permaneceu o
Deus dos nômades, o Deus da migração, da promessa, da inter
venção sempre nova, sem se deixar prender, como os deuses
dos povos vizinhos, no ciclo da semeadura e da colheita, no
ritmo sempre igual das estações que se repetem.7 Prova disso
são as festas cíclicas anuais, próprias da civilização agrícola
sedentária: quando foram acolhidas por Israel, receberam a car
ga de um novo significado, relacionado com os eventos históri
cos da promessa: isto é, foram “historicizadas”.8 Assim, o Deus
de Israel nunca se tornou um Deus que sanciona o presente,
vinculado aos lugares e ao ritmo inalterável da realidade cósmi
ca. Ele sempre permaneceu o Deus que impele para o futuro,
que inquieta a fartura suscitando fome, que sustenta o desenca-
minhamento suscitando esperança, que liberta da prisão do pre
sente suscitando o futuro. E faz tudo isso através da Palavra.
Não é o Deus das teofanias, que sacralizam um tempo ou
lugar, mas o Deus que fala, que entra em diálogo com o seu
povo, que julga, promete e consola. É o Deus da aliança (cf.
Ex 19ss) e do encontro nupcial (cf. Os 2). O Deus que sabe
amar e repudiar, alegrar-se e sofrer, decidir-se e arrepender-se.
O Deus zeloso, que se ira, que sente pesar, que se enternece. Ser
“patético” é uma característica sua.9 Interpretar as formas, em
que se exprime o patético, como puros “antropomorfismos”,
como se fossem simples projeções do homem sobre Deus, signi
fica não compreender o Deus de Israel.10 Através desses carac
teres ele se revela como o Deus vivo, cuja história se entrelaça
com a do homem e a subverte e renova. E o faz precisamente
graças à pureza de sua transcendência, fortemente sentida pelo
69
rígido monoteísmo hebraico e que não significa fria imutabili
dade ou árida impossibilidade do ser divino. Ao contrá
rio, essa transcendência é a total liberdade e gratui
dade do amor de Iahweh por Israel, a sua absoluta
fidelidade a si mesmo e às suas promessas, razão por
que ele pode compartilhar a história do seu povo e correspon
der a ela, sem perder a sua identidade (cf. SI 102,28), sem rene
gar as suas palavras (cf. Is 31,2). A sua inalterabilidade é, por
tanto, a fidelidade viva do seu amor: “A sua salvação dura para
sempre e a sua justiça não será aniquilada” (Is 5,6). O seu plano
“permanece para sempre e os projetos de seu coração duram de
geração em geração” (SI 33,11). “Seca-se a erva, murcha a flor,
mas a palavra do nosso Deus subsiste para sempre” (Is 40,8). A
escolha feita por Deus é irrevogável: ele é o vivente para sempre
fiel, que “não muda”; é sempre novo na fidelidade para com
a sempre nova vicissitude do seu povo.11
Se quisermos agora procurar, entre as palavras desse Deus
vivo, o termo que anuncia e promete densamente tudo isso,
encontraremos uma espécie de “verbum abbreviatum” da fé de
Israel no nome de Deus: “Eu sou Iahweh”.1112 Esta expressão de
certa forma engloba tudo o que Iahweh tem a dizer a seu povo.
Esse Nome não deve ser interpretado no sentido de uma afirma
ção de caráter filosófico, como se quisesse definir a essência
divina — o que estaria muito longe da mentalidade semita e do
espírito do Antigo Testamento. O contexto da narração (Moisés
enviado a realizar uma libertação humanamente impensável)
também evidencia que Iahweh não pretende revelar o que é,
mas dizer que vai se revelar na realização das promessas. “Eu
sou” (hayâ) deve ser entendido no sentido de “existir”, “estar
presente”, “ser para...” Além disso, a proposição relativa “aque
le que sou” (’aser ’ehyeh) carrega a expressão anterior de certa
indeterminação e mistério, de modo que “a promessa da pre
sença eficaz de Iahweh permanece na esfera do vago, do incom
preensível. É a liberdade de Iahweh, que não se determina, não
70
se delimita” .13 Portanto, o nome divino, revelado em Ex 3,14,
não significa “Eu sou aquele que sou”, no sentido de um ser
perfeito, fechado num divino egoísmo. Ao contrário! “Eu sou
aquele que é para vós”, o Deus que é e será sempre fiel e novo
pela sua presença salvífica na variedade das situações humanas.
Assim Iahweh é o “nome do Deus que antes de tudo promete a
sua presença e o seu Reino e os coloca na perspectiva do futuro .
Por isso, indica “o Deus que tem ‘o futuro como característica
essencial’, o Deus da promessa e de uma partida do presente
para o futuro, o Deus de cuja liberdade brotam as coisas vivas e
novas. O seu nome não é uma sigla que significa ‘eterno pre
sente’... O seu nome é nome de um itinerário, de uma promessa
que descerra um novo futuro”.14 O inefável Nome divino, que
a ninguém era lícito pronunciar em Israel, exprime por isso
tanto a incompreensível realidade que é significada, como a
imprevisível novidade do futuro que é prometido. Iahweh não
se deixa prender pelo conceito, mas supera-o em profundidade
e em sua tendência para o futuro. Israel vive sua relação com
Iahweh, e por isso é continuamente arrancado do presente e pro
jetado para o futuro do seu Deus. Enquanto povo de Iahweh,
é o povo da espera e da promessa, o Israel da esperança. Essa
contínua e implacável abertura para o futuro, que jorra da rela
ção com o seu Deus, põe em discussão o presente, perturba a
presunção dos grandes e inquieta a paciência dos humildes na
casa de Jacó. Assim, do encontro-choque entre experiência e
promessa nasce a expressão mais profunda da alma veterotesta-
mentária: o messianismo.15 Essa “espinha dorsal da Bíblia ,l0
71
essa tensão que perpassa toda a história de Israel, é o anseio
pela realização das promessas de Iahweh e pela vigilante espera
do futuro por elas garantido. Esse futuro, animando as estrutu
ras concretas em que se articula a vida do povo, constantemen
te as subverte e as abre para o “além” e para o “novo”. Então
nascem as diferentes expressões da espera messiânica: o messia
nismo profético, do encontro entre o pensamento, que é a cons
ciência reflexa do caminhar do povo, e a Promessa. O messia
nismo real, da relação com o poder, que é a guarda daquilo
que já foi alcançado, mas com muita freqüência também é a rude
defesa da obscuridade do “ainda não”. Do encontro com o culto,
que é confissão do limite do homem e invocação da fidelidade
divina, se produz o messianismo sacerdotal. Da relação com a
consciência utópica, que é expressão libertadora das energias
contidas pela tristeza presente, brota o messianismo apocalíptico.
A característica comum desses confrontos está na tensão que
revelam entre a história dos homens e a história de Deus, entre
o presente de Israel e o futuro da promessa de Iahweh.
a) O messianismo profético
72
dos homens para Deus (cf. Dt 5,5ss). Em Moisés se torna tão
densa a vocação de Israel como povo da Palavra, que todo o
futuro e conseqüentemente a espera e a esperança de Israel são
lidos em chave mosaica: “Iahweh teu Deus suscitará um profe-
ta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos, e vós o ouvi
reis... Vou suscitar para eles um profeta como tu, do meio dos
seus irmãos. Colocarei as minhas palavras na ju a boca e ele lhes
comunicará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt 18,15.18: texto redi
gido provavelmente no século V III, como legitimação teológica
de um profetismo já existente). Essas afirmações têm, antes de
tudo, sentido distributivo, como se dissessem: Israel será sempre,
enquanto existir, o povo que nasce da Palavra e vive sob o juízo
dela, e por isso mesmo será o povo no meio do qual sempre ha
verá profetas (cf. Am 2,11; Jr 7,25s). Além disso, têm um senti
do próprio e pessoal, como expressão da espera do novo Moisés,
que há de caracterizar os tempos do novo êxodo e da nova
aliança.17
A “sucessão mosaica” se desenvolverá no sentido de um
fracionamento da experiência total de Moisés. Por isso, as fun
ções sacerdotais e reais, inicialmente, encerradas no profeta, aos
poucos irão se delineando de maneira diferente da função pro
fética. Esta terá como tarefa própria a revelação carismática da
Palavra. Precisamente nisso estará a força do profeta, porque
a Palavra, segundo a concepção vétero-oriental do Antigo Testa
mento, é viva e eficaz, produz o que significa, julga, abate e
ergue: “Como a chuva e a neve descem do céu e para lá não vol
tam, sem terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo-a
germinar, dando semente ao semeador e pão ao que come, tal
ocorre com a palavra que sai de minha boca: ela não torna a
mim sem fruto; antes, ela cumpre a minha vontade e assegura
o êxito da missão para a qual a enviei” (Is 55,10-11). Assim,
mesmo na fundamental unidade da tradição de Israel,18.njgrofe-
ta será uma força crítica em relação à realeza e ao sacerdócio:
Elias (século IX ) será a “carruagem de Israel e o seu cocheiro”
(2Rs 2,12); Jeremias (século V II) será constituído “sobre as
73
nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para
exterminar e para demolir, para construir e para plantar” (Jr
1,10); Isaías lançará na face dos poderosos as infidelidades à
aliança: “Ouvi vós, da casa de Davi! Parece-vos pouco o fati-
gardes os homens, e quereis fatigar também a Deus?” (Is 7,13).
Ele protestará também contra o vazio de um culto ao qual não
corresponde o compromisso da vida: “Basta de trazer-me oferen
das vãs: elas são para mim um incenso abominável. Lua nova,
sábado e assembléia, não posso suportar iniqüidade e solenidade!
As vossas luas novas e as vossas festas, a minha alma as detesta:
elas são para mim um fardo; estou cansado de carregá-lo” (Is
1.13- 14ss). “Porque é amor que eu quero e não sacrifício, conhe
cimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6; cf. também
as invectivas de Jeremias contra o templo: Jr 7).
A presença vigilante da Palavra profética não se extinguirá
com a queda do reino (585: destruição de Jerusalém) e o exílio,
na extinção temporária também do sacerdócio. Mas será ela que
alimentará a esperança de Israel. A função profética encontra,
nessa época, no Dêutero-Isaías, uma expressão maravilhosa nos
Cânticos do Servo sofredor de Iahweh (Is 4 2,l-9;49,l-6;50,4-9;
52.13- 53,12). Nesses Cânticos, pela primeira vez, a espera mes
siânica é expressa “em termos claramente profético-mosaicos”,19
que o Noyo Testamento, sobretudo nos estágios cristôlógicos
mais antigos, usará amplamente para interpretar o destino e a
obra de Jesus. Esses Cânticos estão profundamente arraigados
na história do exílio e exprimem a esperança de Israel: na dor
presente se prepara a prometida salvação futura, a realização da
espera messiânica. Eles apresentam o Servo de Iahweh, inocen
te e por Ele escolhido e formado, por Ele enviado e sustentado
para desenvolver a missão profética em Israel a favor de todas
as nações. O Servo de Iahweh proclamará a justiça e guiará o
povo num novo êxodo/Ele se colocará em pessoa como aliança
entre Deus e os homens. Esse Servo deverá sofrer muito, expe
rimentará até mesmo o abandono do seu Deus e morrerá de
morte violenta. Mas aceitará tudo com paciência e doçura, sem
perder a sua confiança incondicional em Iahweh.; O seu sofri
mento, querido por Deus como conseqüência dos pecados dos
outros, se tornará para eles causa de salvação. Sofrendo em favor
74
de muitos e em lugar deles, obter-lhes-á a cura e a salvação. Ele
mesmo receberá de Iahweh um triunfo que não terá fim. É
muito problemática a identificação do Servo de Iahweh: pode-
-se ver nele uma figura da comunidade de Israel. De fato, outras
passagens do Dêutero-I saias dão a essa comunidade o título de
“servo”. Pelas marcantes características individuais e pela dis
tinção com relação ao povo, pode-se também ver no Servo um
indivíduo isolado, talvez o próprio profeta. Provavelmente está
compreendido nele um indivíduo que incorpora os destinos do
povo (segundo a forma da “corporate personality”, típica de
Israel).20 Esta última interpretação explica melhor também as
experiências de desilusão, frustração e espera do Israel do exí
lio, que estão claramente projetadas e expressas na figura do
Servo. Assim, a vicissitude do Servo torúa-se resposta à interro
gação lacerante do porquê da dor presente, uma espécie de
comentário à história do momento, história capaz de vencer o
desespero e suscitar a esperança.
Essa subversão pela esperança será ainda exercida pelo mes
sianismo profético do judaísmo veterotestamentário mais recen
te: enquanto o profetismo dará a impressão de se extinguir, não
se apagará a nostalgia de uma Palavra que rompa o silêncio do
sofrimento e realize a promessa de Deus: “Oxalá que fendesses
o céu e descesses!” (Is 63,19). Esperar-se-á a restauração esca-
tológica de um profetismo universal, quando Iahweh “derrama
rá o seu espírito sobre todo homem e se tornarão profetas os
vossos filhos e as vossas filhas...” (J1 2,28). Esperar-se-á um
profeta dos últimos tempos, um Elias redivivo, que prepare “o
dia grande e terrível do Senhor” (Ml 3,23; cf. também entre os
cxtracanônicos 4Esd 6,26 e o Apocalipse de Elias), ou um novo
Moisés, que renove os prodígios do Êxodo, segundo a palavra
rabínica: “Como o primeiro redentor (Moisés), assim o último
(o Messias)” .21
A linha do messianismo profético é traçada, portanto, pelo
encontro entre a Palavra da P ro m essa^^co nfiãda na brigem a
75
Moisés e mantida sempre viva e eficaz nos profetas — e as dife
rentes situações históricas de Israel. A consciência do povo será
assim constantemente questionada e subvertida pela força da
Promessa. Nas épocas de segurança, a Palavra será crítica em
relação a toda presunção humana míope; nas épocas de fraque
za e de dor, como durante o exílio e no frágil pós-exílio, ela se
tornará o cântico da esperança de Israel e alimentará a espera
de um profeta aue irá restaurar o povo sob oju ízo e a misericór
dia de Iahweh. O oráculo de I_s 6 1 ,1-3, lido por Jesus na sina
goga de Nazaré e aplicado a si próprio (segundo Lc 4,18-19),
exprime com singular eficácia esta espera na comunidade pós-
-exílica: “O espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque
íahweh me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres,
a curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos
cativos, a libertação aos que estão presos, a proclamar um ano
aceitável a Iahweh, e um dia de vingança do nosso Deus, a fim
de consolar todos os enlutados, a fim de alegrar os aflitos de
Sião, a fim de dar-lhes um diadema em lugar de cinta e óleo de
alegria em lugar de luto, uma veste festiva em lugar de um espí
rito abatido. Chamar-lhes-ão terebintos de justiça, plantação de
Iahweh para a sua glória” (Is 61,1-3).
b) O m essianism o régio
76
lhe construirá uma casa (v. 11), uma descendência que não
terá fim: “A tua casa e o teu reino estarão firmes para sem
pre diante de mim, e o teu trono será tornado estável para
sempre” (v. 16). Assim, à promessa feita aos pais segue a pro
messa a Davi; ao pacto do Sinai segue o pacto com ele: no
germe (zera’ = “sêmen”) de Davi (2Sm 7,12), através do “ger
me” de Abraão (Gn 12,7), concretiza-se a promessa feita à huma
nidade no “germe” da mulher (Gn 3,15). A partir deste mo
mento, a esperança de Israel estará sempre estreitamente rela
cionada com o destino da dinastia davídica. Essa esperança volta
a aparecer nos chamados Salmos régios, ligados à entronização
do novo rei e talvez à sua celebração anual. Tais Salmos tinham
uma carga de espera muito profunda, e aguardava-se que o novo
rei a realizasse (cf. SI 2172:110: são os Salmos mais citados no
Novo Testamento). Neles há expressões semelhantes às que se
encontram, por exemplo, nos mitos régios da Mesopotâmia e do
Egito, que apresentam o rei como filho de Deus: ele fará triun
far a justiça, salvará o seu povo e estenderá o seu poder até
os extremos confins da terra. O seu reino não terá fim. Mas, ao
contrário dos outros povos, o rei é visto subordinado a Iaínygh, A
é o seu “Ungido” (m esiah = messias).22 Rigorosamente falando,
nenhum dos Salmos citados (nem outros, igualmente do gênero
“régio”, como, por exemplo, SI 89 e 132) contém a espera de um
futuro rgj_ escatológico: mas a inclusão desses cânticos no salté-
rio e o seu uso mesmo depois, da queda da monarquia farão
com aue alimentem a esperança messiânica régia.
Entretanto, a força do Nome divino, fonte da identidade
e da esperança de Israel, ilumina o poder, mostrando não so
mente os seus_valores, pelos quais pode apresentar-se como por
tador de espera messiânica, mas também a sua profunda relati
vidade, se comparado com o Senhor, que é o único soberano do
povo eleito. Desse ponto de vista torna-se compreensível não só
a dupla tradição profética.\de aversão; e de\consenti mento/ regis-
trada nos primórdios da monarquia (cf. ISm 8), mas também a
função crítica que o próprio messianismo régio exerce_com rela
ção à realeza concreta de Israel. Assim os profetas, apelando
para as promessas do passado e a fidelidade de Deus em relação
77
à dinastia davídica, tecem sua crítica à infidelidade atual da mo
narquia./No final do século V III, Isaías opõe aos cálculos hu
manos do rei Acaz, ameaçado pelo rei da Assíria, a confiança
incondicional em Iahweh, prometendo um sinal: “Eis que a
jovem concebeu e dará à luz um filho e por-lhe-á o nome de
Emanuel...” (Is 7,14). O profeta, em contraposição ao mesqui
nho Acaz, deixa entrever um senhor ideal: ele irá inaugurar um
novo início, em que o próprio Deus intervirá, servindo-se de uma
“jovem” ligada de alguma forma à dinastia davídica. Embora se
refiram ao nascimento de um filho do rei, o tom do oráculo e o
nome simbólico dado ao menino têm um alcance mais amplo
com relação à situação contingente. Da mesma forma Isaías, no
capítulo 9, ao celebrar a libertação de alguns territórios ao norte
de Israel, ocupados pelos assírios em 733, parece vislumbrar,
através das imagens típicas do cerimonial de entronização, um
rei davídico ideal (também aqui é bastante provável a referên
cia a um filho de Acaz, Ezequias): “O povo que andava nas
trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam
numa terra sombria como a da morte... Porque um menino nos
nasceu, um filho se nos deu; a ele caberá o domínio e o seu
nome será: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Prín-
cipe-da-paz, para que se multiplique o domínio, assegurando o
estabelecimento de uma paz sem fim sobre o trono de Davi e
sobre o seu reino, firmando-o e consolidando-o sobre o direito
e sobre a justiça. Desde agora e para sempre, o zelo de Iahweh
dos Exércitos fará isto” (Is 9,1.5-6). Por fim, temos o texto de
Is 11,1-9, que parece inserir-se no contexto da situação poste
rior à invasão assíria de 701: naquele momento, a linhagem de
Davi parece estar reduzida a um simples rebento. Nessa passa
gem, a esperança messiânica régia se torna em Isaías contesta
ção do presente, anúncio de um renascimento revolucionário:
“Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas
raízes. Sobre ele repousará o espírito de Iahweh... No temor de
Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a apa
rência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, jul
gará os fracos com justiça, com eqüidade pronunciará uma sen
tença em favor dos pobres da terra. Ele ferirá a terra com o bas
tão de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio...
Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará
com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão
78
juntos e um menino pequeno os guiará...” (Is 11,1-4.6: cf. todo
o vaticínio até o v. 9). No mesmo contexto da ameaça assíria
situa-se a promessa messiânica do profeta Miquéias, que vê sur
gir da pequena e insignificante Belém o novo Davi da esperan
ça de Israel: “Mas tu, (Belém), Éfrata, embora pequena entre os
clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será dominador
em Israel. Suas origens são de tempos antigos, de dias imemorá-
veis. Por isso ele os entregará até o tempo em que a parturiente
dará à luz. Então o resto dos seus irmãos voltará para os filhos
de Israel. Ele se erguerá e apascentará o rebanho pela força de
Iahweh, pela glória do nome de Iahweh, seu Deus. Eles se esta
belecerão, pois então ele será grande até os confins da terra.
E este será a paz!” (Mq 5,1-4).
A ação de Jeremias se dá nos anos que precedem imedia
tamente a destruição de Jerusalém. Totalmente desanimado com
a classe dominante de seu tempo, que mal suporta a sua incô
moda pregação, ele sonha, de maneira crítica em relação aos
atuais detentores do poder, com uma nova aliança (cf. Jr 31,31-
34) e com um novo “rebento de Davi”. Esse rebento, ao contrá
rio do atual, “reinará como verdadeiro rei, será sábio e exercerá
o direito e a justiça sobre a terra” (Jr 23,5). Em tempos de fra
queza e de prostração, como o exílio e o pós-exílio, a tensão mes
siânica régia se exprimirá no anúncio do rei futuro, visto como
força e consolação para o presente. Ezequiel, profeta do tempo
dojpulio, embora atribua, na sua esperança messiânica, um papel
central ao novo templo e ao novo culto (cf. capítulos 40-48),
não deixa de esperar um novo D avL(cf. 37,24s; 34,23 e 17,22-
24) ,23 No pós-exílio essa esperança se tornará espera iminente do
tempo escatológico (assim, por exemplo, em Ageu e Zacarias) e
do reino ideal do Messias futuro: “Exulta muito, filha de Sião!
Grita de aleg?ia, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti:
ele é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento,
sobre um jumentinho, filho da jumenta. Ele eliminará os carros
de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será
eliminado. Ele anunciará paz às nações. O seu domínio irá de
mar a mar e do rio às extremidades da terra” (Zc 9,9-10); a com-
79
posição deste texto do chamado Dêuterq-Zacarias pode ser situa
da no fim do século IV; cf. também a alegoria do pastor em
Zc 11,4-17 e 13,7-9 e a figura do “transpassado” em 12,10-13,1).
A espera messiânica régia deságua, por fim, nos textos intertes-
tamentários, especialmente nos Salmos de Salomão (63 a.C.: so
bretudo SI 17) e nos textos de Qumran. Nestes, além de um
Messias sacerdotal, se espera um Messias davídico (cf., por
exemplo, lQ s 9,11), com um evidente caráter político-nacional,
comum à expectativa davídica da origem zelote e farisaica (cf.
também os apócrifos da época neotestamentária: 4Esd 7,37-12,3;
13,31-38; etc.).
O messianismo régio apresenta-se, portanto, como o fruto
da tensão sempre viva entre o “mais”, o “além”, significado pelo
Nome divino e continuamente evocado por sua Palavra, e o
menos, o aquém das diversas situações histórico-políticas, refu
tadas pela esperança davídica, ora no sentido da denúncia da
miopia dos poderosos, ora no sentido do anúncio consolador da
realização das promessas por parte de Iahweh.
H
c) O m essianism o sacerdotal
80
dote para sempre à maneira de Melquisedec” . Essa função sa
cerdotal, que se encontra também nos mitos régios do Egito e da
Mesopotâmia (nos quais, porém, o rei, em última análise, se
identifica com a divindade),25 é exercida^por Davi: por exem
plo, quando transfere a arca da aliança para Jerusalém (2Sm 6);
é exercida também por Salomão, que consagra o templo (lR s 8);
por Ezequias, que dele retira a serpente de bronze (2Rs 18.4):
por Josias, que renova solenemente a aliança com uma celebra
ção extraordinária da Páscoa (2Rs 23). Sob esse aspecto expli
ca-se também a estreitíssima relação existente entre esperança
davídica e santuário de Terusalém. Fruto dessa relação é a “teolo
gia de Sião”. amplamente presente no Antigo Testamento (cf.
por exemplo SI 4 6 ;4 8 ;7 6;87; Is 2,1-5; Mq 4,í-3), que engloba
no desejo messiânico templo e sacerdócio com a realeza.
Na época pós-exílica, depois do decepcionante fim da mo-
narquia, o sacerdócio polarizará em si a realeza e determinará
uma tensão messiânica sacerdotal, contestadora do presente na
força da esperança. Dessa forma, por volta do ano 573, o profe-
ta Ezequiel apresenta a visão de um templo escatológico (capí
tulos 40-48), onde fica o trono do Senhor, que nele habitará
para sempre: “E a casa de Israel, o povo e os seuspxis não pro-
fanarão mais o meu santo nome„. e £u_habitarei no meio deles
para sempre” (43,7.9). Zacarias (por volta de 520) apigsenta
a figura do sumo sacerdote Josué, que representa o povo peca
dor e arrependido, a quem o anjo do Senhor declara: “Vê! Tirei
de ti a tua iniqüidade; reveste-te de roupas de festa”. Depois de
mandar que lhe coloquem na cabeça um diadema puro, promete:
“Assim diz Iahweh dos Exércitos: Se andares pelos meus cami
nhos e guardares os meus preceitos, então tu governarás a minha
casa e administrarás os meus pátios e eu te darei acesso entre os ;
que estão aqui de pé” (Zc 3,1-7). A fu n çã o ja cerdotal tem uma
importância fundamental quer no escrito sacerdotal do Penta-
teuco (fim do século V ). quer na obra do cronista (1 e 2 Crôni
cas: início do período helenístico, antes de 300 a.C.), como
também no livro de Jesus Sirac (original hebraico, de cerca de
180 a.C.). Mas falta nesses escritos a tensão escatológica, porque
a salvação — concebida de maneira acentuadamente cultuai —
c pensada em termos puramente intra-históricos. Será nos textos
81
intertestamentários imediatamente anteriores ao Novo Testa
mento que a esperança de um messias sacerdotal dos últimos
tempos se reavivará, ainda que como reação ao fracasso dos vá-
rios mediadores humanos (lembremo-nos do caso dos Macabeus).
Assim, por exemplo, nos textos de Qumran fala-se dos dois Mes
sias, de Aarão e de Israel.20
Portanto, também para a tensão messiânica sacerdotal vale
a consideração de que o confronto entre a Palavra da Promessa
e as estruturas de Israel se torna força subversiva do presente.
Diante da pretensão de auto-suficiência do sacerdócio polarizado
na estrutura régia do pré-exílio, a contestação procura mostrar a
miopia de todas as realizações humanas e a necessidade de espe
rar naquele que realmente é o único poderoso (recordemos os
Hvaticínios de Isaías contra Acaz e as críticas dos profetas aos
sacrifícios exteriores do templo). Em vista de um presente cheio
i de desilusão e de dor, a contestação tende a reavivar a confian
ça na Promessa e, conseqüentemente, a despertar a esperança.
É o que faz Ezequiel no anúncio do templo novo, ou a escatolo-
gíà sacerdotal reavivada pelos escritos intertestamentários. -
d) O m essianismo apocalíptico
82
espera da intervenção divina por excelência, que justifica as
expectativas mais radicais e, nesse sentido, mais contraditórias
com relação ao presente.
Na época pré-exílica, essa intervenção celeste é figurada
pelo anjo de Iahweh (m al’ak ihwh), às vezes identificado, às
vezes distinto de Deus. Através dele o próprio Senhor intervém
na história para orientá-la. Essa figura, que algumas vezes de-
sempenha um papel de revelação e de salvação, e outras de inter-
cessão, torna-se objeto de espera messiânica na reflexão escato-
logizante do pós-exílio: “Eis, que vou enviar o meu mensageiro
para que prepare um caminho diante de mim. Então, de repen
te, entrará em seu templo o Senhor que vós procurais; o Anjo
da Aliança, que vós desejais, eis que ele vem, diz Iahweh dos
Exércitos. Quem poderá suportar o dia de sua chegada?” (Ml
3,1-2, texto escrito cerca de 470 a.C.).
O contato com o mundo grego leva a.uma redução da ten
são escatológica, que se exprime na reflexão sapiencial: me
diante a Sabedoria, a salvação pode ser alcançada aqui e agora.
Todavia, seria insensato ver nas descrições da Sabedoria uma
espécie de Deus epifânico de cunho grego: ela é antes a forma
em que se condensa a tensão utópica de Israel, numa época em
que as desilusões do presente fazem aspirar a um caminho de
salvação imediata e eficaz. Essa Sabedoria, que tem caracteres
proféticos (cf. Pr 1,20-33), sacerdotais (cf. Pr 9,1-6) e régios (cf.
Pr 8,12-36), desempenha também uma mediação criadora e tem
uma função cósmica (cf. Pr 3,19; Sb 7,22ss; Pr 8,22-31; Sb
8,6), aproximando-se assim das figuras do messianismo celeste.
Tal soteriologia imediata, desescatologizadaL é abandonada tão
logo voltam a florescer as esperanças messiânicas escatológicas, \
por ocasião da crise macabaica (século II a.C.). É nesse contexto
que a apocalíptica atinge a sua maturidade:27 este tipo de \
83
pensamento messiânico combina elementos proféticos e sapien-
ciais na tentativa de fazer uma leitura teológica da história à
luz da fé veterotestamentária. Empregando amplamente o sim
bolismo e um estilo evocativo-envolvente, usando pseudônimos
para dar autoridade sacral às revelações anunciadas, os autores
apocalípticos procuram interpretar as vicissitudes históricas do
presente em relação a um desígnio divino superior. Por isso eles
captam o embate atual entre o bem e o mal (forças empregadas
na luta: o dualismo apocalíptico é histórico, e não mítico ou de
caráter metafísico!) 'como momento de um processo cósmico,
povoado de anjos e demônios, que se encerra com o combate
final, caracterizado pelo julgamento divino, pela ressurreição e
pela renovação da criação.^ O Messias, escolhido por Deus, filho
de Deus, vencedor escatológico, é o protagonista desse combate
que instaura o Reino, de Deus. Está relacionada com o Messias
a figura do Filho do Homem: expressão da “personalidade cor
porativa”, ela assume cada vez mais um caráter pessoal, acen
tuando a dimensão humana do próprio Messias, o seu enraiza
mento na história dos homens. Essa enigmática figura aparece
no capítulo 7 do livro de Daniel, escrito por volta de 165 a.C.:
“Eu continuava contemplando nas minhas visões noturnas, quan-
do notei, vindo sobre as nuvens do Céu, um como Filho de Ho
mem. Ele adiantou-se até o Ancião e foi introduzido à sua pre
sença. A ele foi outorgado o império, a honra e o reino, e todos
os povos, nações è línguas o serviram. Seu poder é um poder
eterno que jamais passará, e o seu reino jamais será destruído”
(Dn 7,13-14). Nesse texto, “Filho do Homem” não é tanto um
título já fixado, quanto um .conceito que serve para exprimir a
entidade coletiva dos “santos do Altíssimo” (vv. 18.21.27), e não
indica propriamente um mediador soteriológico (o julgamento
sobre os reinos da terra é proferido por Deus antes da entroni-
zação do Filho de Homem). Pelo contrário, o caráter individual
e a atividade escatoíógica e soteriológica do Filho dõ Homem
são bastante sublinhados na apocalíptica extracanônica, que
exerce uma influência determinante no mundo do Novo Testa-
84
mento. Assim, por exemplo, o Livro de Henoc ‘(escrito em ara-
maico, mas que nos chegou completo só numa versão etiópica
do grego) menciona explicitamente o Filho do Homem em qua
tro capítulos (46,2ss; 48,2ss; 62,5-14; 69,26ss); mas fala dele
também em outras passagens, mencionando-o como o Justo e o
Eleito, que preexiste a todas as coisas, vem do alto, realiza o jul
gamento e reina na ressurreição de todos os eleitos.29 Esses temas
da apocalíptica constituem o horizonte de pensamento mais
imediato em que se situa a formação e a pregação de Jesus de
Nazaré (basta pensar no uso que ele faz do título Filho do Ho
mem!) Embora seja exagerado dizer que a apocalíptica é “a
mãe de toda teologia cristã”,30 é preciso reconhecer que o cristia
nismo apocalíptico desempenha um papel decisivo nas origens
do cristianismo. Fruto do encontro crítico e subversivo da pro
messa divina com o presente histórico, esse messianismo —
que acentua mais do que qualquer outro a ação divina não de-
dutível -de esquemas humanos na realização da própria pro
messa — é a preparação mais imediata para o anúncio, contido
no Novo Testamento da intervenção nova e definitiva de Deus
na história do homem.
O messianismo veterotestamentário exprime, portanto, a ten
são constante que há entre a história de Israel e a de seu Deus,
que nela intervém como Senhor da promessa e do futuro. Nessa
linha, ele se abre a uma intervenção mais plena, a uma hora
escatológica, na qual a promessa se realize de maneira adequa-
85
da, na qual a Msíoria_-do homem seja apropriada por Deus de
modo inaudito, e o Deus da esperança de Israel se revele a todos
oa Dovos -Como o Deus da história.
À espera dessa hora, Israel apresenta-se entre os povos
como o povo da esperança. Israel exercerá, em relação a eles e
a seus ídolos, uma função crítica (lembremos o embate entre
Elias e os falsos profetas no Monte Carmelo: lR s 18). Mas ao
mesmo tempo constituirá a recordação viva do verdadeiro Deus
para os homens e dos homens para o verdadeiro Deus; será o
povo (’am) que é a memória viva do Eterno entre os povos
(goim) que prepara a nova e definitiva “memória Aeterni” con
fessada pela fé cristã: o Deus na carne do mundo. Essa vigorosa
consciência de sua unicidade, derivada da eleição divina, está
unida, em Israel, à consciência de que a espera e a esperança,
enquanto inexaurível tensão para o “mais” e o' “além”, carac
terizam a história como história do “fracasso” : fracasso dos pro
fetas, fracasso da monarquia e do sacerdócio, fracasso até mes
mo do Esperado, como atestam os Cânticos do Servo sofredor.
O Deus dé Israel, como Deus da promessa, parece ser “parado
xalmente o Deus dos seis dias,- que não consegue realizar o sá
bado”.31 Na realidade, o Antigo Testamento está consciente de
que é um tempo incompleto, uma tensão não resolvida. Contudo,
é precisamente dele que surge sempre nova a esperança, suscitada
pela Promessa, de que finalmente virá um tempo no qual, superado
o fracasso, Deus irá vencer para sempre: nesse sentido, tornan
do sua a esperança de Israel, os cristãos interpretaram a ressur
reição depois da sexta-feira santa como a grande realização das
expectativas messiânicas, em que o “mais” que está na frente
não aparece mais como distante e fugidio, mas é dado sob a
forma de um início novo e definitivo.
86
4
A PLENITUDE DO TEMPO 1
87
agonia e morte da sexta-feira santa. Sao Paulo já o atesta num
texto antiquíssimo (escrito na altura da Páscoa de 57): “Se Cris
to não ressuscitou, então é vã a nossa pregação e é vã também a
nossa fé (ICor 15,14). A fé e o anúncio dos cristãos se susten
tam ou caem com a Ressurreição! O evento da Ressurreição de
Jesus por parte de Deus é a virada decisiva que, apesar da con
tinuidade, separa com originalidade absoluta o movimento cris
tão das preparações e expectativas da esperança de Israel, sobre
tudo das expectativas apocalíptico-messiânicas que influenciam,
mais do que todas, o mundo do Novo Testamento.2 Compreen-
88
demos então porque o conteúdo das mais antigas proclamações e
confissões de fé cristã tenha sido a afirmação simples e original:
89
Jesus é o Senhor!3 Nós o depreendemos de algumas fórmulas
empregadas nos momentos centrais da vida da comunidade das
origens: assim, provavelmente situa-se num contexto batismal,
ou talvez de acolhida e preparação de novos membros, a “pala
vra da fé que nós pregamos” (Rm 10,8) de Rm 10,9: “Se confes
sares com a tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu cora
ção que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. No
contexto da eucaristia proclama-se a morte daquele que é o Se
nhor: Todas as vezes que comeis desse pão e bebeis desse
cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha” (ICor
11,26). A antiquíssima invocação da comunidade cristã aramai-
co-palestina (que podemos julgar nos tenha sido transmitida com
absoluta fidelidade, porque é atestada em sua formulação origi
nária num texto enviado a uma comunidade de língua grega)
dirige-se^ ainda àquele que é o Senhor: “Maranatha: vem, ó
Senhor!” (ICor 16,22; pode-se ler também: “Maran atha: o Se
nhor vem! ) O hino pré-paulino de F1 2,6-11 se encerra com a
profissão: “Toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai (F1 2 ,1 1).4 Mas não é só nos momentos
catequético-culturais da vida comunitária que os primeiros cris
tãos compreendiam sua fé na fórmula “Jesus é o Senhor”: subs
tancialmente, o anúncio (querigma) tem, na sua origem, a mesma
formulação: Saiba, portanto, toda a casa de Israel: Deus cons
tituiu Senhor e Cristo, a esse Jesus que vós crucificastes” (At
2,36; cf. também 10,36). “Com efeito, não pregamos a nós mes
mos, mas Jesus Cristo Senhor” (2Cor 4,5). Conseqüentemente,
acolher ou recusar o anúncio cristão é o mesmo que aceitar ou
negar que Jesus seja o Senhor, o Cristo: “Ninguém pode dizer:
‘Jesus é Senhor’ senão no Espírito Santo” (IC or 12,3). E “quem
é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?” ( ljo
2,22). Essas fórmulas tem uma estrutura bipolar: elas unem dois
90
termos, e, neles, duas histórias: a história de Jesus, o Crucifica
do, e a do Ressuscitado por Deus, constituído por ele Senhor
e Cristo. Por isso tais fórmulas correspondem ao anúncio igual
mente originário da Ressurreição, que mostra de maneira mais
difusa como se articula a passagem do primeiro para o segundo
momento: “Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mes
mo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escri
turas. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escri
turas” (ICor 15,3-4).5 “Jesus de Nazaré... que fora entregue
segundo o desígnio bem determinado e a presciência de Deus,
vós o entregastes, crucificando-o por mãos de ímpios. Deus, po
rém, o ressuscitou, livrando-o das dores do Hades. Não era
mesmo possível que fosse retido em seu poder (At 2,22-24, cf.
também 32). Em outras palavras, o homem de Nazaré, que falou
com autoridade e fez prodígios e sinais, foi entregue nas mãos
dos poderosos de Israel e condenado à morte na cruz. Mas Deus
o ressuscitou e constituiu Senhor e Cristo (cf. os discursos de
Pedro na redação de At 2 , 14-36;3,12-26;4,8-12; 10,34-43; cf. o
discurso de Paulo como é apresentado em At 13,16-41).6 Note
mos, em todos esses textos dos Atos, como a ressurreição é atri
buída à ação de Deus,567 e como a confissão do Senhor ressusci
tado está relacionada com a obra do Espírito (cf. ICor 12,3 e
também At 5,32), no qual Jesus foi ressuscitado (cf. Rm 1,4;8),
II). Assim, o evento proclamado no anúncio mais antigo da fé
5 Cf. sobre este texto J. Kremer, Das àlteste Zeugnis von der
Aujerstehung Christi. Eine bibeltheologische Studie zur Aussage und Be-
deutung von 1 Kor 15,1-11, Stuttgart, 1967, 2‘ ed.
6 Sobre as primitivas fórmulas de confissão de fé, cf. O. Cullmann,
"Le prime confessioni di fede cristiana” in La fede e il culto delia chie-
sa primitiva, Roma, 1974, pp. 98-99. Cf. também R. Deichgráber, Got-
tcsliymnus und Christushymnus in der frühen Christenheit, Góttingen,
1967; K. Wengst, Christologische Formeln und Lieder des Urchristentums,
op. cit. „
7 Cf. também lTs 1,10; ICor 6,14; 15,15; 2Cor 4,14; G1 1,1; Rm
4,24; 10,9; lPd 1,21. Em outros textos diz-se que o próprio Jesus ressur
ge dos mortos: Mc 16,6; Mt 27,64;28,67; Lc 24,6.34; lTs 4,14; ICor
15,3-5; Rm 8,34; Jo 21,14 etc. Discute-se qual é a forma mais antiga; os
lextos parecem depor a favor da que indica a ressurreição de Jesus por
ação de Deus. Mas há quem sustente que esta formulação teria sido
assumida num segundo momento para não contrastar o rígido monoteís-
niü hebraico, que reconhecia em Deus o senhor exclusivo da vida e da
morte. Cf. sobre esta questão, por exemplo, X . Léon-Dufour, Risurrezio-
ne di Gesú e messaggio pasqwle, op. cit., pp. 37ss.
91
cristã tem uma significativa estrutura trinitária. Jesus é Senhor
e Cristo porque Deus o ressuscitou no Espírito!
Portanto, é evidente o vínculo entre os títulos de Senhor
e Cristo e o evento da Ressurreição. Conseqüentemente, pode
mos aceitar que as primitivas fórmulas de fé transmitem o sig
nificado da ressurreição do Crucificado para a comunidade das
origens. Para compreendermos qual seja esse significado, deve
mos esclarecer o que ela queria dizer ao afirmar que Jesus é o
Senhor e Cristo. O termo Senhor (Kyrios), em ambiente aramai-
co, evoca a entronização do Filho do Homem e a sua majestade
régia no fim dos tempos (cf. Mt 7,21-22;24-42;25,l 1-12.31-45).
O apelativo aramaico mari (equivalente a “Senhor”), é usado
com referência ao rei messiânico (cf. Mc 12,36-37 e paralelos
em relação ao SI 110,1). Portanto, o título tem um significado
escatológico-soteriológico: isto é, refere-se àquele que há de vir
na plenitude dos tempos para trazer julgamento e salvação. Mas
no título “Senhor” há também um valor teológico; ou seja é um
nome divino que mostra a condição divina daquele ao qual é
atribuído. Nós o deduzimos do fato de que o nome divino he
braico adonai, usado no lugar do inefável tetragrama Iahw eh, era
traduzido no grego da diáspora por Kyrios. Esse significado di
vino é bastante evidente nas passagens do Novo Testamento em
que o título é relacionado com a invocação e a confissão de fé
(cf. At 2,Z1; Rm 10,9; ICor 1,2; 2Tm 2,22; e, ainda na forma
aramaica originária Maranatha, ICor 16,22 e Ap 22,20).8 Da
mesma forma, o título “Cristo” ( = Messias, Ungido), que evoca
a espera messiânica de Israel, está carregada de um significado
ao mesmo tempo teológico (particularmente acentuado nos tex
92
tos intertestamentários, sobretudo apocalípticos) e soteriológico-
-escatológico: ele evoca a intervenção suprema de Deus na histó
ria para realizar as suas promessas.9 Proclamar então que Jesus
é o Senhor e o Cristo é o mesmo que afirmar que ele é o Viven-
te, no qual: a) chegou a plenitude dos tempos e está aberto
para o homem o futuro de Deus; b ) é dada aos homens a salva
ção, com a realização das promessas e c) Deus está presente de
maneira única e definitiva. É este, pois o significado da ressur
reição, tal como é transmitido pelas fórmulas de anúncio e de
confissão de fé da comunidade das origens.
A esta altura surge o problema central da comunidade das
origens: como foi que a comunidade primitiva chegou a atribuir
ao humilde Crucificado o título de Senhor? Como se passou de
um Jesus que anuncia a um Jesus que é anunciado? Como a
testemunha da fé se tornou o fundamento da fé? 101 O que per
mitiu unir Jesus e Senhor como sujeito e predicado respectiva
mente? Em outras palavras — já que vimos como as fórmulas de
anúncio e de fé correspondem à proclamação da Ressurreição
de Jesus — qual a realidade transmitida pela linguagem da Res
surreição que permite reconhecer no humilhado o Vivente dos
últimos tempos, de condição divina e salvador?
Não há dúvida de que, para exprimir essa realidade, o
Novo Testamento se serve de uma linguagem metafórica; ou me
lhor, devemos falar de uma diversidade de linguagens metafóri
cas. Todavia, elas podem reduzir-se a duas formas fundamen
tais: a linguagem da Ressurreição, que raciocina de acordo com
o esquema do antes e do depois, para a qual aquele que estava
morto acordou, levantou-se, ressurgiu, vive; e a linguagem da
exaltação, que raciocina de acordo com um movimento de baixo
para cima, para a qual aquele que fora humilhado foi elevado,
exaltado.11 Já encontramos a primeira linguagem nas fórmulas
9 Cf. O. Cullmann, Cristologia dei N.T. op. cit., pp. 183ss; F. Hahn,
('liristologische Hoheitstitel, op. cit., pp. 133-225; W . Kramer, Christos-
kyrios-Gottessohn, op. cit., pp. 203-214; J. Obersteiner — H. Gross —
W Koester — J. Schmid, “Messias”, in Lexikon für Theologie und Kir-
che, VII, 2? ed., 335-42.
10 Cf. por exemplo, para estas duas últimas perguntas, G. Ebeling,
Wort und Glaube, 1960, pp. 203ss, 300ss, e J. Moltmann, 11 Dio croci-
fisso, Bréscia, 1973, p. 136.
11 X . Léon-Dufour, Risurrezione di Gesú, op. cit., pp 93ss, cha-
93
citadas; a segunda, que provavelmente se relaciona com a idéia
da entronização do rei messiânico (cf. SI 2,7 e 110,1), está pre
sente em textos não menos antigos, como por exemplo o hino
pré-paulino da Carta aos Filipenses: Cristo Jesus “humilhou-se e
foi obediente até a morte e morte de cruz! Por isso Deus o so-
breexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre
todo o nome” (F1 2,8-9; cf. At 2,33;5,31: Deus o elevou à sua
direita; cf. também Lc 24,26; Ef 4,8ss; lTm 3,16; Hb 12,12;
2Pd 1,11; Ap 5,6). Em outras passagens, as duas linguagens
parecem combinadas, como, por exemplo, na chamada “cristolo-
gia dos dois estágios” — “segundo a carne” e “segundo o espí
rito”. Ao invés de mostrar as duas naturezas da reflexão cristo-
lógica posterior, elas indicam os momentos ou estágios da vida
de Cristo, distintos e ao mesmo tempo unidos pela ressurreição-
exaltação.12 Assim, por exemplo, em Rm 1,1 ss Paulo fala do
Evangelho de Deus anunciado por ele, “que diz respeito a seu
Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido
Filho de Deus no poder por sua ressurreição dos mortos” (Rm
1,3-4; cf. 1-Pd 3,18: “condenado à morte na carne, mas tornado
vivo no espírito”; lTm 3,16: “Ele se manifestou na carne, foi
justificado no Espírito”). A combinação das duas linguagens
pode ser claramente percebida em textos como At 5,30-31: “O
Deus dos nossos pais ressuscitou a Jesus que vós matastes, sus
pendendo-o ao madeiro. Deus o exaltou por sua direita, fazen-
do-o Chefe e Salvador” (cf. também lT s 1,10; Ef 1,20-21; lPd
1,21;3,22 etc.). Portanto, as duas linguagens da ressurreição e
da exaltação não se excluem mutuamente, mas manifestam o
esforço por exprimir de maneira diferente a riqueza da mesma
realidade significada. Além disso, a unidade entre ressurreição e
exaltação é amplamente atestada nos escritos do Novo Testa
mento, até à “teologia pascal” do quarto evangelho, que fala de
elevação tanto em relação à cruz quanto em relação à ida ao
Pai, dando a entender que com um único ato o Nazareno é ele
vado sobre a cruz e à glória do Pai (cf. Jo 3,14;8,28;12,32.34).13
94
A única exceção à representação unitária entre ressurreição e
exaltação parece ser a narração de Lucas, que coloca entre os
dois eventos um intervalo de 40 dias (cf. At 1,3.9).14 Se conside
rarmos, porém, que em outro lugar o mesmo evangelista parece
indicar esta unidade (cf. Lc 23,42-43 e 24,26) e recordarmos o
significado veterotestamentário da nuvem, veículo e sinal da pre
sença de Deus, compreenderemos então que a ascensão de Jesus
na nuvem (em At 1,9) é apenas um modo diferente de atestar
o seu ingresso na glória do Pai, equivalente ao que é expresso
por ressurreição e exaltação. Por isso, os quarenta dias de At
1,3 têm apenas a função teológica de sublinhar a continuidade
entre o tempo do Ressuscitado e o tempo da Igreja (aliás, o nú
mero 40 indica sempre tempos de denso significado teológico: cf.
os dias da permanência de Moisés no monte, Ex 34,28 e 24,18,
c os de Jesus no deserto, Mt 4,2; cf. também os anos do Êxodo:
Dt 8,2.4; cf. Nm 14,34). Portanto, ressurreição, exaltação, ascen
são são instrumentos lingüísticos que procuram exprimir substan
cialmente a mesma realidade. A própria pluralidade de formas
üngüísticas mostra a complexidade do dado que se quer comu
nicar, a sua irredutibilidade à linguagem, e, conseqüentemente,
a inadequação de qualquer forma expressiva. É evidente que a
analogia com experiências semelhantes, de que se serve o pen
samento para narrar a história,15 aqui não funciona. Devemos,
então, renunciar a aceitar a Ressurreição como um fato histori
camente admissível?
Para responder a esta pergunta é necessário examinar outro
meio expressivo utilizado — juntamente com as fórmulas e as
confissões de fé e de anúncio — pela comunidade das origens
para veicular a realidade do que aconteceu ao Crucificado, que
o constituiu Senhor e Cristo: os relatos das aparições. Podemos
distinguir cinco grupos de narrações: a) o texto de ICor: depois
95
das palavras já citadas, relativas à morte e ressurreição de
Cristo, o relato acrescenta que ele “apareceu a Cefas e depois aos
Doze. Em seguida apareceu a quinhentos irmãos de uma só vez,
a maior parte dos quais ainda vive, ao passo que alguns já
morreram. Além disso, apareceu a Tiago e depois a todos os
apóstolos. Por último, apareceu também a mim, como a um
aborto” (ICor 15,5-8); b) o final “longo” de Marcos (16,9-20),
que apesar de controvertido na tradição manuscrita, parece ser
uma mera recapitulação do que dizem os outros evangelistas so
bre as aparições; c) os textos de Mateus, com as aparições às
mulheres (28,9-10) e aos Onze na Galiléia (vv. 16-20); d) o ca
pítulo 24 de Lc, com as aparições aos discípulos de Emaús (vv.
13-35) e aos Onze, estando presentes também outros (vv. 36-53:
no v. 33 fala-se também de uma aparição do Ressuscitado a
Simão); e) as aparições em Jerusalém, narradas no capítulo 20
de João (a Maria Madalena: 14-18; aos discípulos na ausên
cia de Tomé: 19-23; a Tomé em companhia dos discípulos:
24-29) e aparição a sete discípulos, na Galiléia, durante uma
pesça, contida no capítulo conclusivo que foi acrescentado (Jo
21). Diante de tal variedade de material podemos convir, sem
mais, que “somente uma harmonização forçada daria a aparên
cia de esquema completo e coerente a todas essas aparições na
Galiléia e em Jerusalém; e as faria combinar sem dificuldade
com o esquema do querigma completado por Paulo”.10 Entre
tanto, é possível encontrar em várias narrações uma estrutura
caracterizada por três momentos: com relação ao presente, é
sublinhada a iniciativa do Ressuscitado; com relação ao passado,
focaliza-se o reconhecim ento de Jesus de Nazaré naquele que se
apresenta Vivo; com relação ao futuro, evidencia-se a missão,
que brota do encontro com o Ressuscitado (cf. as aparições a
Pedro e aos Onze).
O primeiro momento é o da iniciativa por parte do Senhor
Jesus: “Ele mesmo se apresentou vivo” (tradução literal de At
1,3). É ele em pessoa que se mostra ou que aparece: certamente
o verbo ójde, usado em ICor 15,3-8 e Lc 24,34 (cf. At 9,17;
13,31 ;2 6 ,16), pode ter três interpretações: “foi visto”, “foi feito
ver (por Deus)” (como forma passiva), “fez-se ver, apareceu”16
96
(como forma média). Todavia, já era usado no Antigo Testa
mento em grego para descrever as teofanias (cf. Gn 12,7; 17,1;
18,1;26,2). Por isso, se as aparições são organizadas de acordo
com o modelo das teofanias, como parece, o primeiro significado
deve ser excluído. Portanto, é o Ressuscitado que aparece, se
mostra vivo e toma a palavra. Esta experiência de vê-lo e ouvi-
lo, cuja iniciativa parte de fora dos destinatários das aparições,
parece sublinhar que a realidade experimentada é captada como
diferente, externa, “objetiva”. Sob este aspecto, parecem insu
ficientes para interpretar a realidade veiculada por essas narra
ções tanto a hipótese das visões subjetivas — que depois de D.
F. Strauss foi sustentada por vários autores, e que transfere as
visões para o íntimo dos discípulos, interpretando-as como um
produto de sua fé — quanto a das visões objetivas, segundo a
qual o que acontece no íntimo dos discípulos deve-se a uma
intervenção objetiva de Deus.17 Nos relatos, a “visão”, como
experiência subjetiva do ver, não ocupa o primeiro lugar. Ao
contrário, este é reservado ao “mostrar-se vivo” do Ressuscita
do.18 O Ressuscitado é visto porque “aparece”, e não aparece
porque “é visto” . “As aparições pascais não devem ser explica
das a partir da fé pascal dos discípulos, mas ao contrário: as
aparições é que motivam a fé pascal dos discípulos”.19
À iniciativa do Ressuscitado segue-se o reconhecim ento por
parte dos destinatários. No Vivente que aparece é reconhecido
Jesus de Nazaré; no Ressuscitado, o Crucificado; no Exaltado
por Deus, o Humilhado. O. reconhecimento evidencia, ao mesmo
tempo, a continuidade e a novidade do Vivente com relação ao
abandonado da Cruz: “O evento fundamental das aparições da
Páscoa consiste... na revelação da identidade e continuidade de
Jesus na contradição total entre Cruz e Ressurreição, entre aban
97
dono por parte de Deus e proximidade de Deus”.20 A novidade
é logo evidenciada pelo fato de o Crucificado ressuscitar “no ter
ceiro dia segundo as Escrituras” (cf. ICor 15,4). Ou seja, no dia
que — segundo a concepção judaica — é o dia decisivo, o dia
da salvação (cf. Os 6,2: “Depois de dois dias nos fará reviver,
no terceiro dia nos restabelecerá”; cf. também Gn 22,1, evocado
por Mt 12,40), e que por isso, ao invés de ser uma indicação
temporal, exprime a dimensão última e definitiva, escatológica,
do evento que se realizou. A novidade é transmitida também
pelas características imateriais atribuídas ao Ressuscitado: por
exemplo, ele vem para junto dos discípulos “enquanto estavam
fechadas as portas do lugar onde se encontravam” (Jo 20,19),
ou desaparece de vista (cf. Lc 24,31). A continuidade do Res
suscitado com relação ao Humilhado é sublinhada pelo próprio
ato do reconhecimento: “Então abriram-se-lhes os olhos e o
reconheceram” (Lc 24,31), e é marcada estilisticamente pela
dúvida, superada só depois de uma palavra ou um sinal do
Senhor Jesus (cf. Lc 24,30-31.35.37.39-43; Jo 20,14.16-20;21,4.
6-7; cf. Mt 28,17), dissolvendo-se então na alegre confissão: “É
o Senhor!” (Jo 21,7). Essa continuidade exclui qualquer inter
pretação redutiva da realidade da ressurreição em relação à pes
soa de Jesus: não é apenas a sua causa que prossegue (“Die
Sache Jesus geht weiter”),21 nem se trata unicamente de um
Cristo Senhor que simboliza o novo início,22 a virada do mun
do; 23 mas é justamente aquele Jesus que foi crucificado que
agora é glorificado pelo Pai. “O ponto decisivo... está no fato de
que a identidade de Jesus consiste na diferença qualitativa entre
cruz e ressurreição. Essa identidade na infinita contradição é
teologicamente entendida como um fato de identificação, como
um ato da fidelidade de Deus. Nesta base se alicerça a promes
98
sa do futuro de Jesus Cristo ainda por vir”.24 Sem essa “identi
dade na contradição” entre Crucificado e Ressuscitado a fé cris
tã se reduziría a uma nova interpretação da existência humana,
mas não estaria fundada no ato excepcional da fidelidade de
Deus, que, glorificando o Crucificado, reconhece a sua “preten
são” e a sua “luta”, e justifica a esperança aberta por sua men
sagem e por seu comportamento para os pobres, para os últimos,
para os oprimidos.
Essa identidade implica também uma dimensão corpórea da
ressurreição: esta, certamente, não pode ser entendida como
reanimação material de um cadáver, retorno à condição mortal
de existência (como, por exemplo, no caso de Lázaro), mas se
situa num plano diferente, que “escapa à experiência do homem,
que vive aquém da morte”.25 Ela já pertence à nova criação do
tempo escatológico (recordemos o que Paulo diz em ICor 15,
35-44 sobre, o corpo “espiritual” dos ressuscitados). Entretanto,
devemos sublinhar que num contexto como o hebraico, que des
conhecia o dualismo grego entre corpo e alma, a ressurreição
não teria abarcado a totalidade pessoal do Crucificado nem teria
tido significado para as suas relações com o mundo, se não se
referisse à sua unidade psicossomática concreta. Aliás, é o que
afirmam os textos que falam do Ressuscitado que é tocado e
come com os seus (cf. Lc 24,38ss; Jo 20,26ss): “Contemplai as
minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo! Tocai-me e vede:
um fantasma não tem carne e ossos como vedes que eu tenho”
(Lc 24,39). “A corporeidade da ressurreição significa que Jesus
Cristo, que ressuscitou e foi exaltado, agora não só vive intei
ramente na dimensão de Deus, mas também está inteiramente
e de nova maneira presente no mundo, no meio de nós... Com
a ressurreição e elevação de Jesus um ‘fragmento do mundo’
chegou definitivamente até Deus e foi por ele definitivamente
acolhido”.26 Novidade e continuidade, contradição e identida
de caracterizam, então, o reconhecimento do Crucificado no
99
Ressuscitado por parte dos discípulos aos quais ele aparece. Essa
tensão confirma mais uma vez como a experiência do Ressusci
tado rompe a analogia do conhecimento histórico, e exige dispo
nibilidade para um acolhimento na fé por parte do destinatário.
Neste sentido, é típica a passagem já mencionada da dúvida e da
prostração para a fé e a adoração, que caracterizam os relatos
das aparições. A fé, suscitada por Aquele que se mostra vivo,
consegue ver, ao passo que o conhecimento “histórico” queda
mudo: neste sentido, as aparições são um evento de graça.27
Este caráter revelador e gratuito da experiência do Ressuscitado
é enfatizado por Paulo em relação à sua própria experiência (cf.
G1 1,15-16), e é também testemunhado nos Atos dos Apóstolos,
quando Pedro afirma que “Deus o ressuscitou ao terceiro dia e
fez que se manifestasse, não a todo o povo, mas às testemu
nhas, que Deus havia escolhido de antemão, a nós que come
mos e bebemos com ele, após a ressurreição dentre os mortos”
(At 10,40-41).
No encontro com o Ressuscitado nasce e se funda a missão:
o Senhor envia os discípulos para que sejam suas testemunhas
(cf. Mt 28,18-20; Mc 16,15-20; Lc 24,48; cf. Jo 20,19ss). O
anúncio da Ressurreição une-se assim ao testemunho de quem
teve a experiência do Ressuscitado: “Deus o ressuscitou da
morte, e disto nós somos testemunhas” (At 3,15). “Deus... o
exaltou... e destes fatos somos testemunhas” (At 5,31-32; cf.
também At 2,32 e 10,40-41). O próprio Paulo sente a necessi
dade de ligar o seu anúncio com o das primeiras testemunhas:
“Eu vos transmiti, antes de tudo, o que eu mesmo recebi: Cristo
morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, ressuscitou
ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas e de
pois aos Doze” (ICor 15,3-5). E, para substituir a Judas, pro
cura-se alguém que tenha estado com Jesus durante a sua vida
até o dia em que nos foi arrebatado”, para que se torne, “jun
tamente conosco, testemunha de sua ressurreição” (At 1,22).
Do encontro com o Ressuscitado surge assim a missão da Igreja.
100
Ou melhor: pode-se supor que o interesse da comunidade pri
mitiva pelos relatos das aparições se baseava justamente no fato
de que estes fundavam essa missão, e a fundavam na sua estru
turação hierárquica (observemos como as palavras das mulhe
res e dos viajantes de Emaús não são acreditadas até que surja
o testemunho apostólico “oficial”)-28 Em todo caso, o testemu
nho corajoso é inaudito do Crucificado apresentado por aqueles
mesmos discípulos que, pouquíssimo tempo antes, o tinham aban
donado e haviam fugido de medo, testemunho que não recuará
nem mesmo diante do sacrifício da própria vida, é o fato que
inegavelmente será admitido até pelo historiador profano como
sinal de “algo” inexplicável, que se verificou entre a sexta-feira
santa e o novo e maravilhoso início do fenômeno cristão.
Este início excepcional, irredutível a motivações religiosas,
psicológicas, sociais ou políticas, foi explicitamente relaciona
do por aqueles que o viveram com a ressurreição de Jesus. Cer
tamente, os relatos da Ressurreição “estão diretamente situados
num horizonte especial de expectativas proféticas e apocalípticas,
de esperanças e de interrogações sobre aquilo que, segundo as
promessas..., deve acontecer”. Mas a revelação de Jesus Cristo
“faz explodir o quadro do pensamento apocalíptico do judaísmo
tardio. Com efeito, de acordo com o que é afirmado nas narra
tivas pascais, Deus não mostrou o curso da história, ou os misté
rios do mundo celeste superior, ou o resultado do julgamento
final, mas o futuro do Cristo crucificado em favor do mundo”.29
Sem este evento, que as testemunhas representam como encontro
com o Ressuscitado, não seria compreensível o nascimento e a
difusão do movimento cristão. É aqui que a analogia, caracterís
tica do conhecimento histórico, pode ajudar a interpretar as ori
gens do cristianismo: a partir do seu desenvolvimento, que é
“futuro” sempre novo do Crucificado na sua comunidade, ela se
abre à possibilidade de um dado originário que escapa aos esque
mas do nosso conhecer. “A Ressurreição de Cristo não se apre
senta como uma analogia daquilo que, de alguma forma, sempre
se pode experimentar, mas como analogia daquilo que há de vir”.30
A Ressurreição pertence ao mundo do advento, não ao da repe-
101
tição do que sempre existiu: ela provoca a “razão histórica” a
ser “razão aberta”, capaz de admiração e de estupor. A “razão
aberta” consegue ler no “novo início” do fato cristão algo da
quela experiência que os relatos de aparições pretendem trans
mitir: os discípulos anunciam a mensagem com uma coragem
surpreendente e uma inexplicável segurança, porque se sentem
enviados e sustentados por Jesus em pessoa, aquele Jesus que eles
evidentemente reconheceram como Vivente de uma nova vida,
oriunda de Deus, e como Vivificador, aquele Jesus que lhes per
doou por o terem abandonado, e lhes deu vida e força do alto.
Nesta força, que é o Espírito do Ressuscitado, eles compreen
dem que Deus, ao ressuscitar Jesus dos mortos, tomou posição:
a) sobre seu passado, confirmando os seus dias terrenos como
história na qual é dada a revelação de Deus; b) sobre seu pre
sente, atestando que ele está vivo e age com poder no hoje da
Igreja e do mundo; c) sobre seu futuro, indicando nele o Senhor
do tempo futuro, aquele que há de vir na glória e é o funda
mento da esperança que não desilude. Por isso eles, na força do
mesmo Espírito, sentem-se capazes de desafiar aqueles mesmos
poderosos que fizeram morrer o seu Senhor, e de enfrentar co
rajosamente o futuro, que para eles já está prenhe da promessa
dada em Jesus Cristo. Os medrosos fujões da sexta-feira santa
tornaram-se testemunhas cheias de esperança: a “contradição
na identidade”, que caracteriza o Crucificado-Ressuscitado, tor
na-se também a característica daqueles aos quais ele se mostrou
Vivo, contagiando-os evidentemente com a sua força de vida.
Novos, apesar de serem os mesmos, são os homens em cujo
testemunho se funda a fé cristã.
Chegamos a estas conclusões sem examinar os relatos
d o sepulcro vazio, que tiveram tanta importância na pie
dade -cristã como também na tradição teológica. Isso não
deve causar admiração. Tais relatos (Mc 16,1-8; Mt 28,1-
10; Lc 24,1-10; Jo 20,1-10 e 11-18), que parecem ter algum
conteúdo histórico (o testemunho das mulheres não tinha
nenhum valor no ambiente judaico, e por isso é difícil
pensar que tenha sido totalmente inventado), já não exer
cem nenhuma influência na pregação de Paulo (somente
em ICor 1,4-8 se faz um aceno à sepultura, mas no con
texto de uma fórmula que o próprio Paulo diz ter rece
bido de outros). Além disso, as incongruências históricas
102
desses relatos são muito numerosas e traem um acentuado
trabalho redacional do evangelista.31 Estas narrativas cer
tamente têm um profundo significado teológico, que “con
siste no inegável interesse cristão pela absoluta identidade
entre o Jesus de Nazaré crucificado e o Cristo ressuscita
do”.32 Todavia, não parece ilegítimo considerá-las, do pon
to de vista da história das formas, uma “lenda etiológica”,
isto é, que visava a motivar o culto prestado em Jerusalém,
ao lugar da sepultura de Jesus.33 Seja como for, mesmo
que se admita a necessidade de uma referência ao sepul
cro vazio na pregação feita em Jerusalém, lugar onde ocor
reu a crucificação e o sepultamento do Nazareno,34 per
siste o fato de que o simples dado do túmulo vazio é
ambíguo, susceptível de várias interpretações (por exem
plo, que o corpo tivesse sido roubado, segundo a tese dos
judeus, lembrados por Mt 28,11-15), e por isso mesmo
totalmente incapaz de fundamentar a fé na ressurreição.
É esta fé que, quando muito, pode interpretar o sepulcro
vazio: ele, por si só, não acrescenta nem tira nada da
experiência que fez os apóstolos confessarem: “Jesus é o
Senhor!” 35
31 Isso é evidente para a narração mais antiga de Mc 16,1-8, da qual
dependem os outros evangelistas (Mt 28,1-10 é a história de Mc trans
plantada para o contexto da polêmica entre judeus e cristãos; Lc 24,1-12
é o mesmo relato inserido no modelo judaico-grego do “rapto”) ; o mo
tivo da visita ao sepulcro — ungir um cadáver tanto tempo depois da
morte — parece inverossímil; também a pergunta sobre a pedra que
deve ser removida tem toda a aparência de um artificio estilístico visan
do a criar expectativa diante da palavra decisiva do anjo: “Ressuscitou,
não está aqui. Eis o lugar onde o tinham colocado” (16,6). Cf. M. Brán-
dle, “Die synoptischen Grabeserzãhlungen” in Orientierung 31 (1967),
179-84; J. Delorme, “Résurrection et tombeau de Jésus: Mc 16,1-8 dans
la tradition évangélique” in La résurrection du Christ et Vexégèse mo-
derne, op. cit., pp. 105-51.
32 E. Schillebeeckx, Gesü, op. cit., p. 349.
33 Cf. G. Schille, “Das Leiden des Herrn” in Zeitschrift für Theo-
logie und Kirche 52 (1955), 161-205; L. Schenke, Aujerstehungsverkün-
digung und leers Grab, Stuttgart, 1969, 2" ed.
34 Como sustenta, por exemplo, P. Althaus, Die Wahrheit des christ-
lichen Osterglaubens, Gütersloh, 1940, p. 25.
35 Entre outros, R. Brown, La concezione verginale e la resurre-
zione corporea di Gesü, Bréscia, 1977, p. 10, dá um destaque diferente
no sepulcro vazio: “Tendo visto ressuscitado, (os discípulos) compreen
deram que o sepulcro estava vazio porque ele tinha ressuscitado dos
mortos. Assim, os cristãos confessaram tanto que Cristo havia ressusci-
tmlo, quanto que ele tinha aparecido (ICor 15,4-5; Lc 2 4 ,3 4 )”.
103
4 .2 . O PROBLEMA HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE O JESUS
PRÉ-PASCAL E O CRISTO PÓS-PASCAL
104
a) Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), profes
sor de línguas orientais em Hamburgo, tinha escrito um
conjunto de estudos, não publicados, nos quais distinguia
e opunha a doutrina de Jesus à de seus discípulos e da
Igreja. A divulgação desses escritos é mérito de Gotthold
Efraim Lessing, bibliotecário em Wolfenbüttel, que os pu
blicou entre 1774 e 1778 sob o título Fragmente eines
W olfenbüttelschen Ungenannten (Fragmentos de um Anô-
pp. 293-317; J. Baird, Audience. Criticism and the Historical Jesus, Fila
délfia, 1969; G. Bornkamm, Gesü di Nazareth, Turim, 1977, 2- ed. (ed.
bras.: Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1976, 194 p .); J. Caba, Dai
Vangeli al Gesü storico, Roma, 1974; L. Cerfaux, Gesü alie origini delia
tradizione, Turim, 1971; N. A. Dahl, “Der historische Jesus ais geschicht-
liches und theologisches Problem” in Kerygma und Dogma 1 (1955),
pp. 104-32; C. Dodd, Storia ed evangelo, Bréscia, 1976; P. Fiedler — L.
Oberlinner, “Jesus von Nazareth. Ein Literaturbericht”, in Bibel und
Leben 13 (1972), pp. 52-74; H. Fischer, “Die ‘geschichtliche Christolo-
gie’ und das Problem des historischen Jesus” in Zeitschrift für Theolo-
gie und Kirche 65 (1968), pp. 348-70; E. Fuchs, Zur Frage nach dem
historischen Jesus, Túbingen, 1965, 2? ed.; R. H. Fuller, The Foundations
of New Testament Christology, Londres, 1965; J. R. Geiselmann, Gesü
il Cristo: I, II Gesü storico, Bréscia, 1967; J. Jeremias, II problema dei
Gesü storico, Bréscia, 1964; W. G. Kümmel, “Jesusforschung seit 1950”,
in Theologische Rundschau n. F. 31 (1965-66), 15-46, 289-315, “Ein
Jahrzehnt Jesusforschung (1965-1975)”, ibid. 40 (1975), pp. 289-336, e
41 (1976) pp. 197-258, e II Nuovo Testamento. Storia delTindagine scien-
tifica sul problema neotestamentario, Bolonha, 1976; R. Latourelle, A
Gesü attraverso i Vangeli. Storia ed ermeneutica, Assis, 1979; X . Léon-
Dufour, I Vangeli e la storia di Gesü, Roma, 1969; W. Marxsen, Alie
origini delia cristologia, op. cit.; J. Michl, Questioni su Gesü. Dal Gesü
delia storia al Cristo delia fede, Assis, 1968; C. L. Mitton, Jesus. The
Fact behind the Faith, Grand Rapids, 1974; C. F. D. Moule, The Origin
of Christology, Cambridge, 1977; S. Neill, The Interpretation of the New
Testament, Oxford, 1966; R. Pesch — H. A. Zwergel, Kontinuitãt in
Jesus. Zugãnge zu Leben, Tod und Auferstehung, Freiburg i. Br., 1974;
). Reumann, Jesus in the Church’s Gospels: Modern Scholarship and
the Earliest Sources, Filadélfia, 1968; J. M. Robinson, Kerygma e Gesü
storico, Bréscia, 1977; J. Roloff, Das Kerygma und der irdische Jesus.
Historische Motive in den Jesus Erzãhlungen der Evangelien, Gõttingen,
1970; E. Schillebeeckx, Uapproccio a Gesü di Nazaret, Bréscia, 1972, e
Gesü, la storia di un vivente, op. cit., pp. 35-100; H. Schürmann, La
tradizione dei detti di Gesü, Bréscia, 1966; W . Triíling, Fragen zur Ge-
schichtlichkeit Jesu, Düsseldorf, 1966; E. Trocmé, Gesü di Nazaret visto
dai testimoni delia sua vita, Bréscia, 1975; E. Troeltsch, Die Bedeutung
der Geschichtlichkeit Jesu für den Glauben, Tübingen, 1971; H. Zahrnt,
Cominciò con Gesü di Nazaret. II problema dei Gesü storico, Bréscia,
1975, 2* ed.; S. Zedda, I Vangeli e la critica oggi. Dal Cristo delia fede
al Gesü delia storia, 2 vol., Treviso, 1970.
105
nimo de Wolfenbüttel).38 Embora as hipóteses de Rei-
marus sejam mais filosófico-racionalistas do que histórico-
críticas, pode-se reconhecer nele o iniciador da pesquisa
crítica moderna sobre a vida de Jesus (Leben-Jesu-Fors-
chung). Esta se desenvolverá sobretudo na Alemanha, atra
vés de grande número de trabalhos, cuja característica
comum é o programa de escrever a vida do Nazareno,
narrando da melhor maneira possível “como as coisas
realmente aconteceram” (“wie es eigentlich gewesen ist”,
segundo a expressão do historiador L. Ranke, 1795-1886),
prescindindo por isso da pregação da Igreja primitiva.39
De H.E.G. Paulus40 a F. Schleiermacher,41 de D. F.
Strauss42 a B. Bauer43, de E. Renan44 a W. Wrede,45
para citar apenas alguns nomes, assiste-se a um gigantesco
esforço para se voltar ao homem Jesus de Nazaré. O prin
cípio do qual nasce essa interpretação, o pressuposto her
menêutico dessa crítica e teologia “liberal” é a concepção
da história como soma de fatos (bruta jacta), de modo que
apenas seria história verdadeira a história exata, o registro
106
“fotográfico” do passado. Partindo desse pressuposto, afir
ma-se que, para alcançar Jesus como ele verdadeiramente
foi, é preciso que haja o despojamento de qualquer ingerên
cia da fé eclesial; somente assim seria possível apurar o
dado na sua consistência originária. Dessa forma, dos dois
termos da fórmula pascal “Jesus é o Senhor”, o segundo
é visto em absoluta descontinuidade com o primeiro, como
elaboração da primitiva comunidade cristã, que oculta o
autêntico rosto do homem de Nazaré. Já mostramos —
falando da “história da cristologia” — como um pressu
posto interpretativo que, na busca da objetividade históri
ca, queira prescindir do círculo hermenêutico vivo em que
cada um está inevitavelmente situado, acaba produzindo
frutos bem pouco objetivos. É o que acontece no caso da
“Leben-Jesu-Forschung” : a multiplicidade de imagens
“autênticas” de Jesus, resultantes dessas pesquisas, revela
por si mesma a subjetividade das interpretações propostas.
A personagem dessas Vidas acaba sempre assemelhando-se
muito com o autor; assim, fica evidente que “o Jesus de
um protestante liberal é sempre apenas um protestante
liberal”.46 Deste fracasso, que no campo católico encon
tra uma severa denúncia na reação antimodernista, surge
a exigência da busca de outra pista de pesquisa.
107
Cristo real é o Cristo pregado”.48 Quanto menor for a certeza
histórica sobre Cristo, tanto mais pura será esta fé, livre
da presunção das certezas humanas: a “sola fides” é toma
da, portanto, como princípio hermenêutico. A virada assim
anunciada será radicalizada e prosseguida com inflexível
coerência por Rudolf Bultmann (1884-1976) 49 Ele rejeita,
inicialmente, a redução da história aos “bruta facta” : his
tória é sempre história humana, carregada de significado
para o hoje, mesmo quando é história do passado. Em
outras palavras, o que realmente conta não é o fato bruto,
definitivamente passado e morto (historisch), mas o fato
histórico, o evento carregado de sentido (geschichtlich),
solidário com o homem do presente. Isso vale também
para a história de Jesus. Não são os traços judaicos do
Nazareno que interessam existencialmente o crente de hoje,
mas o evento de salvação realizado em Jesus Cristo, como
nos é anunciado pelo querigma: é o querigma, o anúncio,
que transforma o fato definitivamente passado num evento
prenhe de significado para todos os tempos. “No querig
ma o fato bruto se torna evento”.50 Por isso, o importante
48 Ibid, p. 44.
49 Entre as muitas obras desse extraordinário autor, cf.: Storia dei
vangeli sinottici, Bolonha, 1969 (Giessen 1925); Gesú, com introdução
de I. Mancini, Bréscia, 1972 (Tübingen, 1926); Nuovo Testamento e
mitologia, Bréscia, 1971, 3? ed. Das Problem der Entmythologiesierung
der neutestamentlichen Verkündigung (1941) in Kerygma und Mythos,
I, org. por H. W. Bartsch, Hamburgo, 1948, pp. 15-53; a resposta de
Bultmann às observações críticas, publicada em 1952 com o título “Zur
Frage der Entmythologisierung”, in Kerygma und Mythos, III, Hambur
go, 1952, pp. 179-208; e o trabalho enviado ao encontro romano sobre
a desmitização, em 1961, com o título Zum Problem der Entmythologi
sierung: Theologie des Neuen Testaments, Tübingen, 1948, 1977, D ed.;
Credere e comprendere, Bréscia, 1977 (Tübingen, 1967, 2? ed .); “II ra-
porto fra il 'messaggio di Cristo dei cristianesimo primitivo e il Gesü
storico” irr Exegetica, Turim, 1971, pp. 159-188 (Tübingen, 1967). Sobre
Bultmann cf. entre outras obras: Capire Bultmann, Turim, 1971, com a
contribuição, entre outros, de K. Barth e O. Cullmann; R. Marlé, Bult
mann e Vinterpretazione dei Nuovo Testamento, Bréscia, 1958; W. Schmi-
thals, La teologia di Bultmann. Una introduzione, Bréscia, 1972. Sobre o
conceito de história em Bultmann, cf. G. Greshake, Historie, wird Ge-
schichte, Bedeutung und Sinn der Unterscheidung von Historie und Ge-
schichte der Theologie R. Bultmanns, Essen, 1963.
50 “Im Kerygma wird Historie zur Geschichte”: G. Greshake, op.
cit., p. 64. Cf. A. Rizzi, Cristo verità delPuomo. Saggio di cristologia
jenomenologica, Roma, 1972, pp. 228-38 (Bultmann e a consciência his
tórica) .
108
não é remontar ao tempo anterior ao querigma, como quis
fazer a “Leben-Jesu-Forschung”, para chegar a um “Cris
to segundo a carne” (cf. 2Cor 5,16), que para nós não tem
interesse algum e nem mais é “cristão”, pertencendo ine
xoravelmente ao passado e à morte. O importante é encon
trar o Cristo da fé, pregado pelo anúncio eclesial. Em
outras palavras, o que podemos conhecer e que nos inte
ressa existencialmente não é o evangelium Christi, realida
de já passada e sem futuro, mas o evangelium d e Christo,
o evento proclamado pelo hoje da comunidade de fé. To
davia, Bultmann não quer com isso separar o querigma
da figura histórica de Jesus: o fato de que Jesus tenha
existido (dass) é o fundamento do apelo à decisão salvífi-
ca, é o “extra nos” da salvação. Mas não é esse fato em
seus conteúdos e modalidades (was und wie) que é rele
vante para a fé; ao contrário, é o próprio apelo, o signifi
cado para nós do Cristo anunciado no querigma, enquanto
revelador definitivo de Deus, que nele chama o homem à
obediência da fé e lhe oferece a possibilidade de uma
existência nova. A busca desse significado para nós é a
chamada “interpretação existencial” de Bultmann, cujo
reverso crítico negativo é a tarefa de “demitização”. “De-
mitizar” quer dizer eliminar do Novo Testamento tudo o
que reflete uma visão mítica do mundo — isto é, funda
mentada na confusão entre humano e divino e por isso,
totalmente inacessível para a mentalidade moderna — ,
para captar na mensagem evangélica o que nela pode haver
de significativo para o homem de hoje. Interpretação exis
tencial e demitização, portanto, são os momentos positi
vos e negativos de um mesmo processo. À base de ambos
está a convicção dc que existe um corte entre o que Jesus
foi e o que é para nós. Mas, ao contrário dos teólogos libe
rais, Bultmann afirma essa descontinuidade não a favor
do primeiro termo da fórmula “Jesus é o Senhor”, mas a
favor do segundo, considerando o primeiro momento como
fáto irrelevante para nós (a história de Jesus de Nazaré).
Todavia, esse unilateralismo contrasta com o próprio anún
cio neotestamentário, que é sempre anúncio da vinda his
tórica de uma pessoa concreta, e cuja força e originalida
de consiste precisamente em atribuir o título de Senhor e
109
Cristo àquele humilde Nazareno, condenado e morto no
madeiro ignominioso da cruz. Perdendo-se de vista a força
dessa “identidade na contradição”, esvazia-se o conteúdo
do querigma naquilo que ele tem de mais próprio e origi
nal: dessa forma, “a antropologia que interroga se torna
a constante e a cristologia que é interpelada, a variável”,51
e “a palavra da Cruz” torna-se impotente e muda. Compre-
ende-se assim a exigência de uma superação de Bultmann,
que, sem negligenciar o aspecto positivo de uma atenção
existencial, consiga manter-se fiel à estrutura originária do
anúncio cristão.
110
voltar ao Jesus histórico a partir do Cristo da fé pascal. No
âmbito dessa orientação porém, há, uma notável varieda
de de posições. Para alguns, o problema é o “da continui
dade do evangelho na descontinuidade dos tempos e na
variação do querigma”,55 e por isso a orientação perma
nece voltada antes de tudo para o anúncio, na convicção
de que a fé cristã se define sempre em relação ao Cristo
glorioso. Para outros, “os discípulos proclamaram mais
tarde a mensagem própria de Jesus, num duplo sentido:
conservaram suas palavras e ações e as interpretaram. Sem
o fundamento dos ipsissima verba e dos ipsissima facta
isso teria sido impossível”.56 Nesta linha, alguns enfatizam
até exageradamente a continuidade entre o Nazareno e o
querigma da Igreja, acentuando que a tradição apostólica
não nasce do nada, mas da pregação e da obra de Jesus.
E toda a comunidade estava interessada em conservá-las,
controlando reciprocamente a fidelidade das recordações.57
Com efeito, é necessário sublinhar a continuidade entre o
Jesus da história e o Cristo da fé eclesial, porque o sujeito
do predicado (ou dos predicados) pascal é um só e sempre
o mesmo: Jesus de Nazaré. Ele é a constante, cujos títulos
são a variável, ele, o homem concreto cuja história é nar
rada nos evangelhos, ainda que à luz da experiência do
Ressuscitado. É precisamente essa estrutura narrativa dos
evangelhos, anúncio de fatos, embora densos de significa
do pascal, que garante a continuidade fundamental entre
o Nazareno e o Cristo proclamado. O evangelho de João
o confirma: captando mais do que os Sinóticos o valor
teológico desses fatos, João sente a necessidade de escrever
de forma narrativa a história do Jesus terreno como histó
ria do Senhor glorificado. Uma vez estabelecida a continui
111
dade, parece justificada a “desforra da necessidade de uma
história narrativa pós-cristã” de Jesus, e parece fundada
a atitude de uma segunda inocência” na abordagem dos
evangelhos.58 Este programa de interpretação, embora su
gestivo, podería revelar-se acentuadamente ambíguo se não
se sublinhasse, juntamente com a continuidade, também a
profunda descontinuidade que há entre o que aconteceu
antes e depois da Páscoa. Essa descontinuidade deve ser
enfatizada. Quem não o fizesse negaria a grande novidade
da Ressurreição, sem a qual, como recordávamos no
início, seria vã a pregação cristã e vã a fé (cf. ICor 15,14).
Se alguém acentuasse exclusivamente a continuidade (como
fazia inocentemente a exegese pré-cristã e por muito tempo
continuou a fazer certa exegese “ortodoxa”), esvaziaria
a força da Ressurreição, tanto quanto Bultmann parece
esvaziar a palavra da Cruz. Os dois termos da fórmula, as
duas histórias, Jesus e os seus predicados pascais, devem
ser considerados na relação de “identidade na contradi
ção”, de continuidade descontínua, de unidade diferen
ciada, pois só ela respeita o escândalo da sexta-feira santa
e a alegria surpreendente do dia da Páscoa. Essa relação
“dialética” pode ser pensada enquanto movimento do pas
sado para o futuro, ou, ao invés, de ação do futuro sobre
o passado. No primeiro caso, se sublinhará a cristologia
implícita nas palavras e nas obras do Jesus histórico, que
a Ressurreição explicitou e completou plenamente.5960 No
segundo, se evidenciará, à luz do futuro patenteado na
Páscoa, a estrutura “proléptica” da pretensão pré-pascal
de Jesus.é0 Portanto, história de Jesus e fé pascal susten
tam-se e se iluminam reciprocamente: a primeira sem a
segunda seria cega; a segunda sem a primeira seria vazia.
‘Se a fé cristã é uma fé em Jesus de Nazaré confessado
com o o Cristo, Filho unigênito, Nosso Senhor, então o
conhecimento e a confissão de fé são efetivamente limita
dos pelo nosso conhecimento do Jesus histórico e, de outro
lado, o conhecimento histórico de Jesus é limitado, ou
112
seja, colocad o no seu lugar, mantido dentro dos seus limi
tes, pela interpretação de fé”.61
A concepção da história, que está por trás desta ma
neira de pensar a relação entre o Jesus terreno e o Cristo
glorificado, afasta-se tanto do positivismo histórico dos
críticos liberais quanto da visão puramente existencialis
ta de Bultmann. Ela é reconduzida, então, àquela propos
ta de que falamos na “história na cristologia”: 62 a Res
surreição é vista como um “situar-se no devir” com rela
ção ao passado e ao futuro por parte de Deus e por parte
da comunidade das origens. Deus, na sua absoluta liber
dade, se posiciona com relação ao Crucificado e Humilha
do, e, ressuscitando-o e exaltando-o, reconhece no seu pas
sado a revelação de sua própria história, o torna vivo e
poderoso para o presente, o faz Senhor da promessa e do
futuro. A comunidade, a partir da experiência do Ressusci
tado, confessa-o em relação ao passado de humilhação, ao
presente e ao futuro como Senhor e Cristo, ou seja, como
aquele que é a revelação pessoal de Deus, o Vivente doa
dor de Vida e Aquele que vem do futuro, agora e plena
mente na hora final da glória. Mas também a comunida
de de hoje, impelida pelo anúncio que a suscita, anúncio
fundado no testemunho dos apóstolos, é chamada a posi
cionar-se de maneira análoga, reconhecendo ainda e nova
mente no Crucificado da sexta-feira santa o Ressuscitado
por Deus, e por isso o Senhor e Cristo. Mas para que
esse conhecimento seja fundamentado, é necessário que a
comunidade atual atinja, na medida do possível, não só
a experiência da comunidade nascente que testemunhou o
Ressuscitado, mas nela' e através dela a história de Jesus
de Nazaré: também esta, à luz da Páscoa, é revelação de
Deus. Por isso é preciso indagar: como é possível ir do
Cristo anunciado ao Jesus da história? Como, através do
querigma e da redação evangélica por ele influenciada, é
possível chegar até as situações vitais originárias de Jesus
e da comunidade de vida com os seus discípulos?
Para percorrer esse caminho no sentido inverso, par
tindo da história da redação dos evangelhos (Redaktions-
113
geschichte), passando pela história das formas (atenta às
situações vitais em que as várias perícopes foram cristali
zadas: Form geschichte) e finalmente chegando ao Jesus
histórico, foram elaborados, nos últimos anos, alguns crité
rios. Graças à combinação desses critérios, podemos apu
rar com suficiente rigor histórico muito do que foi a vida
do Nazareno, e ao mesmo tempo distinguir a nova luz
projetada pela Páscoa sobre ela. Aqui vamos apenas men
cionar alguns desses critérios, inclusive para esclarecer o
uso que deles fazemos na nossa exposição. Entre os que
se baseiam no princípio de dessemelhança ou diferença,
basta recordar os critérios histórico-redacional (por ele po
demos considerar autênticas as tradições refratárias às in
tenções do evangelista, como por exemplo a “derelictio
Jesu” de Mc 15,34) e crítico-formal (por este “podemos
considerar autêntico o que não se adapta nem ao pensa
mento judaico nem às concepções da comunidade poste
rior” : 63 por exemplo, o uso do A bbá por parte de Jesus).
Dos'.critérios que se baseiam no princípio de semelhança
ou conformidade, basta citar o histórico tradicional, ou da
múltipla atestação por ele (“o encontro do mesmo material
em mais de uma tradição é no mínimo indício de uma con
sistência fundamental na tradição proto-cristã”) 64 e o cha
mado .critério da consistência do conteúdo (pelo qual po
demos considerar autêntico o que está de acordo com as
características gerais da mensagem e da ação de Jesus).65
O uso combinado dessa criteriologia permite-nos atingir,
de maneira suficientemente segura, alguns dados pré-pas-
cais que, com sua consistência, impedem que se reduza o
Cristo pascal a uma idéia ou a uma nova interpretação da
existência humana, construída com base nas expectativas
do momento.
114
A unidade da fórmula “Jesus é o Senhor” deve, portanto,
ser entendida no sentido pleno e respeitando-se os dois termos:
o homem de Nazaré, que abandonando o silêncio de trinta hu
mildes ancs pregou o Evangelho do Reino, mostrou uma gran
de autoridade, realizou prodígios e sinais, compartilhou a vida
com os seus discípulos e foi condenado à morte pelos poderosos,
é o mesmo que Deus ressuscitou e constituiu Senhor e Cristo.
Quando não se compreende essa “identidade na contradição”
entre o Humilhado e o Exaltado, entre o Crucificado e o Ressus
citado, esvazia-se também a palavra da Cruz, torna-se vã a no
vidade da Ressurreição, perde-se a força escandalosa do para
doxo cristão.
115
cialmente no universo intertestamentário, uma exaltação do
Humilhado ou uma glorificação vinda do alto. Mas dificilmente
se conciliavam com um Deus encarnado, apesar da sensibilidade
de Israel à relação entre a história humana e Iahweh. Nesse con
texto surgem as primeiras “heresias” cristológicas, isto é, as pri
meiras interpretações da mensagem que a comunidade acabará
julgando parciais, insuficientes e, em última análise, falsas: de
um lado, o docetismo , que já na era neotestamentária quer sal
vaguardar a permanente condição divina de Cristo reduzindo a
sua humanidade a uma pura aparência do&éo = “parecer, apa
recer”); de outro, õ "ebionismo” (de ebionim = “pobres”), mo
vimento difundido desde o século I, que, a partir da necessida
de de salvaguardar a transcendência da divindade, reduz Cristo a
um homem, no qual Deus quis manifestar sua glória. Contra
riando essas interpretações, a comunidade das origens saberá
conservar ciosamente a força da “identidade na contradição”
que se manifestou na experiência pascal. Ela intui que, se ‘‘Jesus
é o Senhor”, o segundo termo, com tudo o que ele significa, é
atribqído ao primeiro entendido na sua globaiidade. Ora, quan
do nas fórmulas culturais-querigmáticas se diz “Jesus”, pensa-
-se no Nazareno com toda a sua história, e portanto no filho de
Maria, no carpinteiro de Nazaré, no pregador do Reino, no rea
lizador de sinais, no humilhado e crucificado. É a ele, na intei
reza de suas vicissitudes, que são atribuídas a condição divina
e a função salvífico-escatológica significadas nos títulos Senhor
e Cristo. Em outras palavras, Jesus foi Senhor e Messias desde
o primeiro instante de sua história, embora apenas a Ressurrei
ção venha a manifestar plenamente a sua unidade com Deus,
que antes da Páscoa era só antecipada e prolepticamente signi
ficada na autoridade de sua pretensão.^6
A interpretação que apresentamos é confirmada por inúme
ros mistérios da vida do Senhor presentes nos evangelhos
(narrações de eventos densos de significado revelativo-salvífico).
Assim: a concepção por obra do Espírito Santo (Mt 1,18-20);
Lc 1,35); ^ o batismo com a atestaçao gloriosa: “Tu és o meu67
116
filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,9-11; cf. Mt 3,13-17 e
Lc 3,21-22); 68 a transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-
36).69 O conteúdo desses relatos é, sob muitos aspectos, contrá
rio à mentalidade judaica e contrário também à mentalidade da
primitiva comunidade oriunda do judaísmo: A história da con
cepção de Jesus assumiu uma forma que não tem, pelo que sa
bemos, paralelos ou antecedentes precisos que pudessem estar à
disposição dos cristãos do século I que dela falam ; ,0 o batis
mo foi sentido pela comunidade “como um ‘pudendum’: dificil
mente ter-se-ia inventado tal fato se ele não representasse um
dado rigorosamente imposto pelo passado ; 71 os testemunhos
gloriosos por ocasião do batismo e da transfiguração, com suas
atribuições da condição divina a um homem, conflitavam com o
monoteísmo hebraico. Isso parece depor a favor de um núcleo
histórico de tais “mistérios (mais difícil de ser determinado
para a transfiguração), confirmado por múltiplas atestações (ao
menos para o batismo e a transfiguração). Em todo caso, o tra
balho redacional desses textos é evidente. Por isso, além de
transmitir-nos um dado pré-pascal mais ou menos amplo, são
um precioso testemunho da fé da comunidade primitiva, que
releu esse dado à luz do Crucificado. Portanto é possível atra
vés desses “mistérios”, determinar esta fé, e o núcleo histórico
que lhe serve de fundamento, no sentido de uma clara profis
são da permanente identidade (na diversidade) de Jesus com
Deus, desde o instante de sua concepção.
117
Chega-se a uma conclusão análoga examinando outros tes
temunhos neotestamentários: trata-se especificamente dos tex
tos típicos da “cristologia descendente” e da “missão do Filho”.
“Quando chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho,
nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que
estavam sob a Lei, a fim de que recebéssemos a adoção filial”
(G1 4,4-5: a carta foi escrita por volta de 57). No hino pré-
-paulino de F1 2,6ss diz-se: “(Cristo Jesus) tinha a condição
divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se
apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a
condição de servo, tomando a semelhança humana...” (F1 2,6-7).
A Carta aos Hebreus (posterior a 63 porque o autor utiliza as
cartas da prisão, mas anterior a 70 porque não faz nenhuma
referência à destruição do Templo, que para ele tinha grande
importância; expressão de ambientes judeu-cristãos) proclama
com solenidade o ingresso do Filho de Deus na existência hu
mana: Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora,
aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos,
falou-nos por meio do seu Filho, a quem constituiu herdeiro
de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplen-
dor de sua glória e a expressão do seu Ser; sustenta o universo
com o poder de sua palavra” (FIb 1,1-3). O evangelho de João,
depois, afirma (no auge do desenvolvimento da cristologia neo-
testamentária): “O Verbo (que estava junto de Deus e era
Deus, e por meio do qual tudo foi feito: cf. vv. 1-3) fez-se
carne e veio habitar no meio de nós” (Jo 1,14). Esses textos
(juntamente com muitos outros: cf. Rm 1,3;8,3; Jo 5,23.37;
6,38-39.4 4 ;7 ,28-29.33; etc.) pertencem aos diversos estágios da
evolução da cristologia do Novo Testamento e por isso atestam
com suficiente clareza a resposta que desde o início a comuni
dade cristã deu e manteve à pergunta: em que momento se
constituiu-, a unidade de Jesus com Deus? Eles veiculam uma
teologia da preexistência do Filho. Essa teologia, portanto, não
é um fruto tardio, e por isso podemos considerá-la mais ligada
ao universo veterotestamentário (cf. as especulações sobre a Sa
bedoria) 72 do que a outras possíveis fontes. Ela não responde
118
a um interesse especulativo-metafísico, estranho ao pensamento
dos primórdios cristãos, mas nasce da fé pascal no alcance últi
mo e definitivo do que aconteceu em Jesus Cristo: “O motivo
da preexistência e da missão mostra que a pessoa e o destino
de Jesus não se originam no contexto de um acontecimento
intramundano; ao contrário, eles constituem o lugar em que o
próprio Deus operou de um modo que não é deductível nos
esquemas da realidade intramundana. Essa liberdade absoluta
rompe os limites do nosso destino e nos dá a liberdade dos filhos
de Deus. Os enunciados da preexistência do Filho unigênito de
Deus constituem o fundamento da nossa filiação e da nossa
salvação” .73 Eles indicam, em outras palavras, a plenitude esca-
tológico-salvífica do que aconteceu em Jesus Cristo, a suprema e
definitiva autocomunicação de Deus que se realizou na sua
vida, morte e ressurreição.
A reflexão sobre a preexistência relaciona-se com o uso do
título Filho de Deus: raramente encontrado nos Sinóticos (cf.
Mc 1,1; 15,39; Mt 4,3 .6;14,33;16,16;26,63;27,40.43.54; Lc 1,
35;4,3;4,*41;22,70) e nunca posto diretamente na boca de Jesus,
é freqüente em João e Paulo.74 Certamente, por isso, ele trans
mite uma linguagem catequética pós-pascal, e acabará impondo-
-se como o título mais apropriado, segundo a fé cristã, para indi
car a pessoa de Jesus. No horizonte do Antigo Testamento ele
era empregado para conotar tanto Israel (Ex 4,22; Os 11,1; Jr
31,9), quanto o rei (SI 2,7;89,27-28), o Messias (cf. 2Sm 7,14),
e — num uso mais tardio — os justos (SI 73,15; Sb 5,5). A idéia
de uma filiação própria e exclusiva está totalmente ausente no
AT: ela se refere sempre à eleição por parte de Deus. Talvez
119
seja por isso que Jesus nunca a tenha utilizado diretamente.
Entretanto, em algumas de suas palavras e em alguns traços do
seu comportamento, especialmente no uso do termo A b b á P
pode-se encontrar o fundamento pré-pascal desse título que a
luz pascal fez com que lhe fosse atribuído sem reservas e com
significado inaudito. Ele indica não tanto a geração intemporal
e eterna, alheia ao interesse histórico-salvífico da comunidade
das origens, mas sobretudo a relação única e exclusiva que há
entre a obra e o destino de Jesus Cristo e o Pai, a plenitude da
intervenção de Deus nele, intervenção que envolve toda a sua
história, antes e depois da Páscoa, embora só na Ressurreição
seja proclamado sem sombras que “Deus estava em Cristo”
(2Cor 5,19).
Portanto, a fé da comunidade das origens, a partir da
experiência do Ressuscitado e não sem fundamento na história
pré-pascal do Nazareno, proclama que o homem Jesus foi, desde
o primeiro instante de sua vida terrena, o Filho de Deus que
veio a este mundo, que assumiu na humildade uma história
verdadeiramente humana, que manifestou plenamente na ressur
reição o seu rosto divino e fundou a esperança que não desi
lude o viver humano. Por essa plenitude da presença divina, o
Crucificado-Ressuscitado coloca-se como o critério e a luz sob a
qual se pode reler o passado e o futuro, a realização da espera
e a promessa de uma nova e definitiva realização.
120
sos níveis: de um lado, volta-se para a história de Jesus de
Nazaré, suas palavras e obras; de outro, olha-se para Israel, a
fim de captar a sua relação com a Páscoa do Senhor e toda a
sua vicissitude; por fim, abraça-se a história da Igreja e do mun
do até a sua realização escatológica.
A releitura pascal das obras e dos dias de Jesus de Naza
ré caracteriza os evangelhos sinóticos.76 Entre eles, o de Marcos
é em geral considerado pela crítica moderna como o mais anti
go.77 A característica da sua teologia e da sua composição reside
na concepção designada, a partir de Wrede, com o nome de
“segredo messiânico” : 78 consiste na tensão, que o evangelista
sublinha constantemente, entre as manifestações de poder de
Jesus (cf. o ensinamento que causa admiração: Mc 1,22.27 etc.;
a expulsão dos demônios: 1,34.39;3,11-12 etc.; os milagres de
cura: 1,40-45; cap. 5;7,31-37;8,22-26; os gestos “messiânicos”,
como a multiplicação dos pães: 6,34-44;8,l-10; o ingresso em
Jerusalém 11,1-11; a purificação do templo: 11,15-19; as epifa-
nias: 6,45-52;9,2-10) e a sua reserva. A esta devemos acrescen
tar a incompreensão dos discípulos e dos ouvintes (Jesus se afas
ta da multidão: 1,38;6,31; manda que se guarde segredo sobre
os sinais pfodigiosos que realiza: l,43-44;5,43;7,36; ordena aos
demônios que não o manifestem: 3,12 etc.; é incompreendido:
121
(6,52;7,17-18). Como explicar tal contradição? A hipótese mais
provável é que “toda a apresentação de Marcos é determinada
pelo olhar retrospectivo que parte do evento da ressurreição e
vai para a vida terrena de Jesus, e da sua atenção com a comu
nidade crente’'.'9 Em outras palavras, Marcos narra os eventos
da vida do Nazareno deixando transparecer neles os sinais da
glória que se revelou na Páscoa como numa revelação progressi
va, que culmina no drama “recusa-exaltação”: rejeitado pelos
homens, Jesus foi acolhido por Deus. Assim, o seu caminho para
a Cruz se torna compreensível, como momento necessário deste
processo, que se desenrola sobretudo na história da paixão. Por
isso é que Marcos reserva muito espaço aos relatos da paixão, o
que fez com que o seu evangelho (como também os outros
Sinóticos) fosse definido como “uma história da paixão com
uma introdução detalhada”.7980 Esse procedimento de releitura
pascal não justifica, porém, uma interpretação como de Wre-
de: 81 de acordo com ela, a conduta pré-pascal de Jesus não
teria tido nada de messiânico e teria sido interpretada messia-
nicamente só à luz da Páscoa. Se assim fosse, não se explicaria
por que Jesus foi rejeitado e condenado pelos poderosos do seu
tempo: deve ter havido nele uma pretensão, que, desacreditada
pelos homens, foi avalizada por Deus, que o ressuscitou da morte.
Basta-nos recordar a excepcional autoridade do seu ensinamento,
que suscita admiração e escândalo (cf. Mc 1,22.27 etc.). Essa
pretensão pré-pascal pode ser vista no título Filho do Homem,
denso de significado messiânico sobretudo nas expectativas inter-
testamentárias. De acordo com o evangelho de Marcos; Jesus
usa muito esse título: com relação à sua autoridade presente
(cf. Mc 2,10.28), ao seu caminho para a cruz (cf. 8,31;9,9.12.
31; 10,33.45; 14,21.41), à sua condição gloriosa (cf. 8.38;13,26;
14,62). Mesmo que quiséssemos interpretar algumas dessas
expressões exclusivamente como releituras pascais (assim, por
exemplo, as três profecias da paixão seriam “vaticinia ex even-
tu”), no conjunto não parece possível contestar um uso pré-
pascal do título por parte de Jesus: 82 “Não é sustentável a afir
79 R. Schnackenburg, La cristologia..., op. cit. 349.
80 M. Kãhler, D er sogenannte..., op. cit., nota 60.
81 Cf. W. Wrede, Das Messiasgeheimnis, op. cit., pp. 209-29, espe
cialmente pp. 227ss.
82 Em sentido contrário, por exemplo R. Bultmann, Theologie des
Neuen Testaments, op. cit., pp. 29s.
122
mação muito simples e sumária de que somente os evangelistas
é que o teriam posto na boca de Jesus, com base na teologia da
comunidade, para designar a si mesmo. Porque, deixando de lado
outras razões, no cristianismo primitivo o título de Filho do
Homem, dado a Jesus, não é de uso corrente... Se realmente esse
título tivesse sido introduzido pelos evangelistas, como se expli
ca que eles o usem só onde fazem o próprio Jesus falar?” 83 Por
tanto, é com base na pretensão pré-pascal do Nazareno que
Marcos faz a leitura pascal da sua vida: assim, ao título pré-
-pascal Filho do Homem, ele acrescenta o título pós-pascal Filho
de Deus, que, pertencendo à fé da comunidade, pôde ser apli
cado ao humilde Nazareno com base nos elementos objetivos de
sua conduta anterior à Páscoa, e, naturalmente, à luz desta.
Podemos dizer que Marcos emoldura o seu evangelho com este
título, pois o inicia com as palavras: “Início do Evangelho de
Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1) e, diante de Jesus morto,
põe na boca do centurião as palavras: “Verdadeiramente este
era o Filho de Deus” (Mc 15,39; cf. as confissões dos demô
nios: 3 ,1 1;5,7; a teofania do batismo: 1,11; a transfiguração:
9,7; a parábola dos vinhateiros: 12,1-11). Se não há no evange
lista uma “cristologia da preexistência”, contudo não resta dú
vida de que é próprio dele este aprofundamento teológico da
mensagem pascal, escandalosa e inaudita no ambiente judaico:
o Filho de Deus fala e age no meio dos homens, ainda que oculte
a sua glória!
A releitura que Marcos faz especialmente da vida terrena
de Jesus é estendida por Mateus particularmente à vicissitude de
Israel: 84 o caráter judaico deste evangelho é bem nítido, ainda
que não se possa negar sua abertura universalista. Ou melhor,
este segundo aspecto está relacionado com o primeiro: a dimen
são messiânica de Jesus, enraizada na história de Israel e conti
nuamente acentuada por Mateus, abre-se à salvação de todos os
povos. Mateus cita ao menos 41 vezes o Antigo Testamento,
relendo-o à luz de Cristo; 85 o material é estruturado em cinco
123
grandes unidades literárias (“discursos” : Mt 5-7; 10; 13; 18,24-
25), à imitação dos cinco livros do Pentateuco, como diversos
críticos ainda sustentam. Mateus toma como linha mestra de
seu evangelho o “reino dos céus”, que se vincula com o senho
rio de Iahweh sobre o povo da antiga aliança e com as expecta
tivas messiânicas; apresenta Jesus sobretudo como Messias pro
metido, que procede da estirpe de Davi, representa o povo eleito
e é, ao mesmo tempo, a esperança dos pagãos (cf. os capítulos
1-2, com a genealogia, a concepção do Emanuel e a visita dos
magos). O significado de Cristo para Israel é acentuado, além
disso, pelo uso do título Filho de Davi (9 vezes em Mt; 3 em
Mc; 3 em Lc), que mostra o cumprimento das esperanças de
Israel no Nazareno, enfatizando, porém, em relação àquelas, a
não-violência e a mansidão do Messias (cf. Zc 9,9 citado em
21,5: rei da paz, e Is 42,1-4 citado em 12,18ss: o servo). Jesus
é “aquele que deve vir” (11,3), como demonstram as suas pala
vras e as suas obras: “Os cegos recuperam a vista, os coxos
andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mor
tos ressuscitam e os pobres são evangelizados. E bem-aventurado
aquele que não ficar escandalizado por causa de mim!” (11,5-6;
cf. Is 26,19;29,18-19;35,5-6;61,1). Mas Israel se escandaliza,
rejeita Jesus e quer a sua condenação (cf. 27,25); por isso “ser-
-lhes-á tirado o reino de Deus e será dado a um povo que pro
duza-frutos” (21,43; cf. 42-44). Assim nasce o novo Israel, fun
dado na nova aliança no sangue de Jesus (cf. Mt 26,28), povo
de Deus do qual nenhum pagão pode ser excluído: “Mas eu
vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se assen
tarão à mesa no Reino dos Céus, com Abraão, Isaac e Jacó,
enquanto os filhos do Reino serão postos para fora, nas trevas,
onde haverá choro e ranger de dentes” (8,11-12: cf. a parábola
dos vinhateiros homicidas: 21,33-44, e a do banquete nupcial:
22,1-10). O esforço de uma leitura pascal da história de Israel
explica também o destaque que Mateus dá ao povo da nova
aliança, à Igreja (cf. entre outros textos 16,16-19 e 18,15-18),
comunidade do Senhor Ressuscitado: “Eis que estou convosco
todos os dias até o fim do mundo” (28,20). Muitos sinais dei
xam evidente que essa leitura do destino de Israel é feita a partir
da luz pascal: os traços messiânicos do Nazareno são claramente
124
acentuados (pense-se no uso do termo Senhor — 19 vezes — e
no de Filho de Deus: por exemplo 4,3-10;27,40-43. “Mateus pen
sa a partir de Jesus Cristo, de sua figura única e incomparável,
olha-o com os olhos da fé, mas usa todos os motivos disponí
veis e utilizáveis do Antigo Testamento e da cultura judaica
para dar ao seu Cristo mais luz e definição”.86 Ele realiza uma
“concentração cristológica”, fazendo de Jesus “a nova chave
hermenêutica, o critério de leitura dos fatos e das palavras da
antiga revelação”.87 Entretanto, continuam a alicerçar essa “re-
leitura” as obras e os dias concretos do Nazareno, particular
mente a sua relação dramática com o Israel do seu tempo, a his
tória dolorosa de sua recusa e da sua condenação, que, seja dito
mais uma vez, não se explicariam sem alguma inaudita preten
são pré-pascal do Crucificado. A Ressurreição aparece assim em
plena luz como o ato do Deus de Israel, que, reconhecendo no
Humilhado o Messias e Senhor, assinada a virada decisiva da
história da salvação, a abertura do Reino e da promessa a todos
os povos.
Uma leitura pascal da espera veterotestamentária pode ser
reconhecida também na Carta aos H ebreus (que, como já foi
dito, se situa entre 63 e 70 e reflete um ambiente judeu-cris-
tão): 88 sua atenção está centrada no messianismo sacerdotal,
com forte acento escatológico. Se se pode reconhecer no prólogo
uma “cristologia da pré-existência do Filho” (1,1-4), correspon
dente a temas paulinos e joaninos, logo emerge o tema central,
o do sacerdócio de Cristo (2,16-18), para ser plenamente desen
volvido nos capítulos 4-10 (exatamente 4,14-10,18), nos quais
sc sublinha a realização e a superação da espera de Israel no
“grande sumo sacerdote, que atravessou os céus, Jesus Filho de
Deus” (4,14). A superioridade de Jesus sobre os sacerdotes leví-
ticos c delineada no capítulo 7; nos capítulos 8-9 mostra-se, ao
125
contrário, a superioridade do culto, do santuário e da mediação
do Cristo sacerdote. Por fim, à ineficácia dos sacrifícios antigos
(10,1-10) é contraposta a eficácia definitiva do sacrifício de Cris
to, que “tendo oferecido um só sacrifício pelos pecados uma
vez para sempre, assentou-se à direita de Deus... porque com
uma única oblação ele tornou perfeitos para sempre os que
foram santificados” (10,12.14). A origem bíblica veterotesta-
mentária dos conceitos é evidente, como é também clara a luz
pascal da qual nasce a afirmação da superioridade e do caráter
absoluto do que se realizou em Cristo. Israel — nas suas insti
tuições culturais e na sua espera messiânica sacerdotal — en
contra no Ressuscitado a sua realização suprema, mas também o
fim inexorável do seu universo de preparação e de espera.
Na obra de Lucas,89 a abertura da promessa a todos os
povos é posta em evidência não mais a partir da “releitura:" de
Israel, mas atendendo ao tempo da Igreja. Ela se caracteriza por
uma marcante concepção histórico-salvífica e pela sensibilidade
ao mundo helenista dos destinatários, provenientes do paganis
mo. A arquitetura que une o seu evangelho aos Atos, verificá
vel pela conclusão do primeiro e pelo início dos segundos, quer
exprimir o desígnio histórico da salvação, que, tendo partido
de Nazaré e culminado em Jerusalém, estende-se agora de Jeru
salém para todos os povos. Jesus é visto, neste evangelho, como
“o centro.do tempo”, em quem, de um lado, se cumpra a espera
de Israel (cf. 4,21: depois de ter lido a promessa messiânica de
Is 61,1-2, Jesus acrescenta: “Hoje realizou-se essa Escritura que
acabastes de ouvir” ; cf. também 16,16: “A Lei e os Profetas
até João! Daí em diante é anunciado o Reino de Deus...”),
e, do outro, se inaugura o tempo da Igreja, qualificado, na pers
pectiva lucana, como tempo do Espírito, a força que vem do
alto para que os discípulos sejam testemunhas “até os últimos
confins da terra” (At 1,8; cf. Lc 24,47-48). A própria apresen
tação da obra e do destino de Jesus é situada nesse quadro his-
tórico-teológico: a sua vida pública, depois dos inícios na Gali-
126
léia, consiste numa grande viagem para Jerusalém (9,51-18,14),
para que ali se cumpra nele o destino do profeta (Jesus é o pro
feta: cf. Lc 5,1 ;7,16;24,19; rejeitado e perseguido como os pro
fetas: cf. 13,33; cf. também a aproximação com Moisés em At
7,37 e 3,22-23) e Deus possa glorificá-lo. Todavia, os traços des
sa subida para a cidade onde morrem os profetas (cf. 13,33)
são régios: Aquele em quem se realiza a promessa davídica (cf.
1,26-38), Aquele que somente em Lucas fala do “seu” Reino
(22,30), convida soberanamente para o seu seguimento (9,57-
62), envia os seus com autoridade (10,lss), entra na cidade santa
como um rei (19,28-40). Ele sabe que no acolhimento ou na
recusa de sua pessoa está em jogo a salvação eterna do homem:
“Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens, o
Filho do Homem também se declarará por ele diante dos anjos
de Deus; aquele, porém, que me houver renegado diante dos
homens, será renegado diante dos anjos de Deus” (12,8-9). E,
contudo, essa sua grandeza — sem dúvida marcada pela luz da
releitura pascal — é combinada com traços de singular humani
dade, que falam de modo especial ao coração dos destinatários
helenistas do Evangelho: Jesus é aquele que passa fazendo o
bem aos homens (At 10,38), que tem compaixão deles (cf. Lc
7,13), que anuncia com traços únicos a misericórdia do Pai
(Lc 15,11-32), que está sempre atento aos “pobres, coxos, estro-
piados, cegos” (Lc 14,12), que reconhece às mulheres uma
dignidade impensável para o seu tempo (cf. Lc 8,1-3; 10,38-42;
23,27-31), que ora (3,21 ;9,18.28; 11,1;22,31-32;23,34-46; cf.
20,40.46), ele, o “autor da vida” (At 3,15), o “Salvador” em pes
soa (Lc 2,11: título de sabor helenista). Esse olhar retrospecti
vo ao Jesus terreno à luz da Páscoa alicerça, por fim, a certeza
de que aquele Jesus é “hoje” 50 o Senhor da sua Igreja, vivo e
presente nela pelo Espírito: os discursos dos Atos, acima men
cionados, que o anunciam ressuscitado por Deus, têm valor e
força para todo agora do tempo da Igreja. Por isso, mais do que
“centro do tempo” em sentido cronológico, Jesus é para Lucas
“centro de todo tempo” em sentido escatológico-salvífico, na for
ça por ele possuída e transmitida: o Espírito Santo.90
127
A “releitura pascal” é posteriormente aprofundada (apesar
desse aprofundamento ser cronologicamente anterior à redação
dos evangelhos como chegaram até nós) na obra de Paulo.91
Nesta, como vimos, encontram-se muitos testemunhos do primi
tivo anúncio da fé (cf. o texto já mencionado de ICor 15,3ss,
“o mais antigo testemunho da ressurreição de Cristo”).92 Entre
estes, o hino a Cristo de F1 2,6-11 já contém uma expressão com
pleta da visão cristológica. Quase certamente pré-paulino pela
diversidade literária do contexto em que se encontra, pela forma
poética e por diversas locuções inusitadas em Paulo e únicas em
todo o Novo Testamento,93 ele apresenta em três estrofes a pre
existência (vv. 6-7a), o caminho terrestre (7b-8) e a exaltação
de Cristo (9-11).94 Com densidade e concisão surpreendentes, é
delineada a história de Cristo Jesus, que é ao mesmo tempo “o
Senhor como Servo” e “o Servo como Senhor” (K. Barth). O
hino testemunha como “a Igreja das origens chegou relativa
mente depressa a uma forma plena da cristologia, a uma verda
deira cristologia bíblico-histórico-salvífica, que não dá atenção
ao ser ou' às duas naturezas de Cristo, mas aos dois modos de
existência, ao caminho de Cristo desde a preexistência, passan
do pela humilhação da sua peregrinação terrena, até a exalta
ção e glorificação, até a soberania cósmica, e a celebra com
hinos cultuais como caminho salvífico para aqueles que crêem
no kyrios 'Jesus Cristo” .95 Paulo experimentou esse Cristo na
hora de Damasco (cf. At 9,3-19;22,5-16;26,9-18; G1 1,12.15-16;
Ef 3,2-3), e foi por ele “agarrado” (F1 3,12): a partir daquele
91 Entre a bibliografia amplíssima cf. (além dos comentários): F.
Amiot, Uenseignement de Saint Paul, Tournai, 1968; L. Cerfaux, Cristo
nella teologia di San Paolo, Roma, 1969 (ed. bras.: Cristo na teologia de
São Paulo, Edições Paulinas, São Paulo, 1977, 440 p .); O. Kuss, Paolo,
Roma, 1976; f . Jüngel, Paolo e Gesú, op. cit.; R. Penna, “Paolo” in
Dizionario Teologico Interdisciplinare, II, pp. 645-60; F. Pratt, La Théo-
logie de saint Paul, II, Paris, 1949, pp. 131-89; R. Schnackenburg, Cristo
logia, op. cit., pp. 392-425; cf. também La cristologia in S. Paolo. Atti
delia X X III Settimana Biblica, Bréscia, 1976.
92 Cf. J. Kramer, Das ãlteste Zeugnis von der Auferstehung Chri-
sti, op. cit.
93 Tem outra opinião, por exemplo, L. Cerfaux, Cristo, pp. 315ss,
op. cit. in n. 91.
94 Cf. J. Jeremias, “Zu Phil 2,7” in Novum Testamentum 4 (1963),
pp. 182-88; acréscimos paulinos seriam somente: “até a morte de cruz”
(8c); “no céu, na terra e debaixo da terra” (10c) e “para glória de
Deus Pai” (11c).
95 R. Schnackenburg, Cristologia, op. cit., p. 408.
128
momento a sua vida esteve totalmente a serviço do Senhor Je
sus (cf. G1 2,20; 2Cor 4,5; F1 1,21-24: “Para mim viver é Cris
to...”). A partir desse encontro com o Ressuscitado desenvolve-
-se também a sua cristologia. Embora confronte o seu evangelho
com o pregado pelos apóstolos (cf. G1 2,2), e transmita o que
recebeu (ICor 11,23; 15,3), ele não parece estar interessado na
vida terrena de Jesus (cf. 2Cor 5,16). Ao contrário, aprofunda o
anúncio pascal numa dupla direção: para a preexistência (apro
fundamento “teológico”) e para domínio cósmico (aprofunda
mento “histórico-salvífico”). Visto que a primeira direção obe
dece nele a um interesse igualmente salvífico-escatológico, e cer
tamente não metafísico, pode-se dizer que ele tem em vista subs
tancialmente uma leitura cristológica de toda a história e da
criação na sua totalidade. Exemplos do primeiro tipo de aprofun
damento são, além do hino de F1 2,6-11, o uso do título Filho
de Deus (que nele aparece 16 vezes: cf. por exemplo Rm 1,3-4 e
Cl l,13.15ss) e os textos da missão do Filho: “Quando chegou
a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho...” (G1 4,4; cf. Rm
8,3: Deus “enviou o seu próprio Filho numa carne semelhante
à do pecado...”. O significado escatológico-salvífico da preexis
tência é particularmente claro no hino de Ef l,3ss: “Bendito seja
Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com
toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele, ele
nos escolheu antes da fundação do mundo...” Ef 1,3-4). Este
texto se relaciona com a segunda direção do aprofundamento
paulino da “releitura pascal”, aquela que afirma o domínio cós
mico de Cristo, inserindo-o na história total da humanidade e
reconhecendo nele o ponto de virada da relação entre Deus e o
mundo, vértice e novo início da história da salvação, cabeça da
humanidade que caminha para a realização escatológica. São
exemplos desta segunda orientação: o uso do título Senhor (47
vezes, incluindo Ef e Cl), que indica a soberania universal do
Ressuscitado (cf. Rm 14,9: “Com efeito, Cristo morreu e revi
veu para ser Senhor dos mortos e dos vivos”) e em particular
o seu senhorio na comunidade cristã (recordemos a “Ceia do
Senhor”: ICor 10,16-22 e 11,20-34; a “obra do Senhor” : ICor
15,58; a organização da vida de cada um e da comunidade: cf.
ICor 7,10ss); a idéia de Cristo como novo Adão, antecessor e
doador de vida (cf. ICor 15,20ss; Rm 5,12-21); as perspectivas
dc hinos como Cl 1,15-20 e Ef l,3ss: “Porque nele foram cria-
129
das todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisí
veis... Ele é a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo. Ele é o
Princípio, o Primogênito dos mortos, tendo em tudo a primazia”
(Cl 1,16.18). O Pai derramou sobre nós a sua graça, na remis
são dos pecados, para realizar o “mistério de sua vontade” (isto
é, o seu plano salvífico): “recapitular em Cristo todas as coi
sas, as do céu como as da terra” (Ef 1,10; cf. 7-10). O domínio
cósmico de Cristo expressa, no plano salvífico, a eficácia uni
versal da obra de salvação nele realizada: esta idéia está na base
da posição de Paulo com relação à Lei e à sua teologia da salva
ção por meio da fé (cf. Rm 1,6-7; capítulos 5-7 e 8-11; cf. tam
bém G1 capítulos 3-4). A visão paulina da história e do cosmo
está centralizada, portanto, na ressurreição: mas nele este mis
tério é inseparável do mistério da Cruz. A Cruz dá densidade
histórico-concreta à cristologia cósmica paulina: Cristo não é
uma idéia, uma força indeterminada, mas é o Messias concreto
crucificado, que no mesmo tempo realiza e subverte as expecta
tivas judaicas e com o qual a sabedoria dos pagãos entra em
choque:'/‘Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para
os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas, para
aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo,
poder de Deus e sabedoria de Deus” (ICor 1,23-24). A cruz
é o lugar do nosso resgate (cf. G1 3,13-14), lugar onde “aquele
que não tinha conhecido pecado” foi tratado por Deus “como
pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos
justiça de Deus” (2Cor 5,21). Mas esta só pode ser assim inter
pretada porque é seguida da Ressurreição: Jesus nosso Senhor
“foi entregue por nossas faltas e ressuscitado para a nossa
justificação” (Rm 4,25). Em outras palavras, se a Cruz com o
seu escândalo (G1 5,25) torna concreto e consistente o anúncio
pascal, fazendo com que nos confrontemos com Aquele que se
ofereceu em nosso lugar e por nós, a Ressurreição, com a sua
luz, permite embasar esse valor salvífico e libertador da Cruz.
É a Ressurreição que nos faz saber que por aquele que se tor
nou para nós maldição no lenho da cruz, a bênção de Abraão
passou aos povos e nós recebemos a promessa do Espírito me
diante a fé (cf. G1 3,13-14). Também a “theologia crucis” é, pois,
uma teologia pascal!” 96
96 Do ponto de vista cristológico, as “cartas pastorais” (1 e 2Tm
Tt) estão próximas da teologia paulina pela idéia da preexistência do
130
A “releitura pascal” estrutura, por fim, a reflexão cristoló-
gica de Jo ão.97 A cristologia joanina é um fruto maduro, como
o demonstra a fórmula de Jo 1,14, o texto neotestamentário
que exerceu maior influência na teologia do dogma.98 Mas isso
poderia distorcer a perspectiva com que se aborda a teologia de
João: na realidade, mesmo que forneça o fundamento para o
posterior desenvolvimento da reflexão sobre a doutrina das duas
naturezas e unicidade de pessoa em Cristo, o pensamento joani-
no está voltado para o evento salvífico, e não se preocupa com
uma especulação conceituai sobre o ser. João organiza de ma
neira unitária e completa as diferentes “releituras pascais” feitas
antes dele: assim, vida de Jesus, história de Israel, Igreja e
mundo, passado e futuro são abrangidos numa visão cristológi-
ca global. Essa visão inclui um descer e um subir: “Ninguém
subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do
131
Homem” (Jo 3,13). Entre esses dois pólos coloca-se a vida do
Jesus terreno, lida como um conjunto de sinais que, de um lado,
revelam a glória da condição preexistente, e, de outro, antecipam
a glorificação pascal. O momento da preexistência e da descida
está presente na chamada “cristologia da encarnação” (cf. Jo
1,14; l jo 1,2;3 ,5 ;4 ,2 ): “No princípio era o Verbo e o Verbo
estava com Deus e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio
dele e sem ele nada foi feito de tudo o que existe. Nele estava
a vida e a vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas,
mas as trevas não a apreenderam... E o Verbo se fez carne, e
habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, como a glória do
Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,1-5.14).
Esta teologia do Verbo que se faz “carne [sarx] significa o âmbi
to humano, a história e o sujeito concreto dela), embora seja
influenciada pela teologia da Palavra e do ensinamento sapien-
cial do Antigo Testamento (cf. Gn l,ls s ; SI 107,20; Sb 18,14-
16 por um lado, e Pr 8 e Eclo 24 por outro), como também por
fórmulas neotestamentárias já elaboradas (por exemplo Cl 1,15
ss; 2Cor 4,4 etc.), além da especulação grega sobre o Logos
(especialmente dos estóicos e de Fílon), revela uma indiscutível
originalidade, que consiste justamente em identificar o Verbo
com o homem Jesus de Nazaré (idéia inverossímil no Antigo
Testamento), sem com isso diminuir a transcendência divina
(como acontece no pensamento estóico). Poder-se-ia então dizer
que a originalidade está em capturar na profundeza mais radi
cal a antítese entre Deus e o mundo e a síntese inaudita que se
realizou em Jesus Cristo. Dessa forma, João aplica a identidade
na contradição, que vimos presente no anúncio pascal do Cruci-
ficado-Ressuscitado, a toda a relação Deus-mundo como é reve
lada no Deus encarnado. O “mundo” torna-se assim, na lingua
gem joanina, um conceito “dialético” : é o objeto do amor de
Deus (cf. Jo 3,16) e a realidade que odeia Cristo e os seus dis
cípulos (cf. 15,18), cujo Príncipe (cf. 12,3) se opõe àquele que
é a “luz do mundo” (Jo 9,5; cf. 1,5). Nessa perspectiva, a pre
sença de Jesus entre os homens é interpretada como a “crise”,
o julgamento que se realiza na luta entre a Luz e as Trevas: a
Luz resplandesce na relação entre Jesus e o Pai, feita de recípro
ca pertença (cf. 17,10), mútua imanência (14,10-11) e comu
nhão (cf. 8,29; 10,30); nos sinais que ele realiza (cf. 2,11;11,4.40
132
etc .);99 nos títulos que lhe são atribuídos (Senhor: 25 vezes, como
apelativo de veneração; Filho de Deus: cf. 1,34;3,18 etc.; o Filho:
19 vezes; Filho do Flomem: 13 vezes, usado de maneira diferente
dos Sinóticos para indicar a missão do Filho que procede do Pai,
com exceção de Jo 5,27, que parece conservar o sentido tradi
cional). O Nazareno é “o cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo” (Jo 1,29.36), o pão da vida descido do céu (cap. 6),
a luz do mundo (cf. 8,12;9,5), a porta para a vida (cf. 10,9), o
pastor (cf. 10,27), a ressurreição e a vida (cf. 11,25), “o cami
nho, a verdade e a vida” (14,6), a verdadeira videira (cf. 15,
1.5). Rejeitado pelos seus (cf. 11,45-54; 12,37ss) e condenado à
morte, é glorificado pelo Pai (cf. o tema da glorificação no
cap. 17), exaltado (cf. os textos já citados sobre a elevação”).
Desse estado glorioso, ele continua a agir na força do Espírito,
que torna presente a sua obra, faz penetrar na verdade dela,
faz com que ela frutifique, e dá prosseguimento ao processo do
mundo (cf. os cinco ditos sobre o Paráclito nos discursos de
adeus: Jo 14,16-17.20; 16,8-11.13-14): o Espírito é o Paráclito
que, substituindo o Jesus terreno (cf. 16,7), o torna presente
como glorificado (cf. 14,18-20). Dessa forma, toda a história do
mundo e da Igreja é envolvida pela luz pascal. O A pocalipse 100
não faz outra coisa senão celebrar, dir-se-ia liturgicamente, a
vitória de Deus em Cristo na sua relação com o mundo. Esta
vitória é vista no futuro, como o triunfo final de Cristo “o Pri
meiro e o Ültimo, o Vivente” (Ap 1,18). Mas ela já está deci
dida desde muito tempo, e assim é força de consolação e de
esperança para as presentes provações da comunidade: Cristo
segue com amor os seus fiéis; mesmo suas intervenções de con
denação são sinal de uma amorosa proximidade de seu povo
peregrino (cf. as cartas às sete igrejas da Ásia Menor; 1,4-3,22).
A idéia da vitória final de Cristo e da sua presença atual na
comunidade está certamente enraizada na Ressurreição, mas não
descura a história do Nazareno: Cristo é “a testemunha fiel, o
primogênito dos mortos e o príncipe dos reis da terra” (1,5). A
133
expressão, densíssima, mostra o testemunho prestado por Jesus
até à morte, o novo início marcado pela Ressurreição e a dig
nidade cósmica e a força salvífica do Ressuscitado: portanto, é
um compêndio da cristologia da descida e da ascensão. E a idéia
central da “identidade na contradição” entre Crucificado e Res
suscitado é apresentada plasticamente com a imagem do Cordei
ro imolado, mas de pé (5,6). Assim, transparece no Apocalipse
a consciência que tem a Igreja de estar colocada entre o “já”
da vitória pascal e o próximo triunfo final. A leitura pascal do
presente e do futuro já confere substância ao culto da comuni
dade, vivificando a esperança e a espera. “Vem, Senhor Jesus...
Sim, virei logo” (2,20). O mistério proclamado já; é o mistério
celebrado para a vida e para a história.101
O caminho percorrido mostrou como, a partir do evento
da Ressurreição do Crucificado, fundamento e conteúdo essen
cial do anúncio e da fé das origens, a comunidade cristã primi
tiva releu, por um lado, retrospectivamente, a história de Jesus
de Nazaré e a, espera de Israel, e por outro, prolepticamente, a
história do mundo e da Igreja. Portanto, o princípio que unifica
em sua origem os diversos desenvolvimentos da cristologia neo-
testamentária, na variedade dos seus estágios e das suas expres
sões, é um princípio vivente: é o Ressuscitado e a experiência
134
que dele fizeram as testemunhas nas quais se apóia a fé cristã. A
origem da cristologia do Novo Testamento não é o querigma
ou o conjunto das expectativas existenciais da comunidade (Bult-
mann e sua escola), nem é o Jesus histórico que precede a con
clusão pascal de sua vicissitude, mas é esse Jesus enquanto reli
do à luz da Ressurreição, ou seja, é a mensagem da Páscoa na
sua relação com o passado do Ressuscitado. Foi nessa inaudita
“identidade na contradição” entre o Humilhado e o Exaltado,
entre o Nazareno e o Senhor e Cristo, que a fé cristã buscou luz
para interpretar o tempo de Israel como história da espera já
realizada, o destino e a obra de Jesus de Nazaré como história
humana de Deus, o futuro da Igreja e do mundo como história
da promessa última e definitiva. Na Páscoa nascem, ao mesmo
tempo, a fé e a esperança dos cristãos.102
135
5
DO QUERIGMA AO DOGMA
A jé cristológica da Igreja
136
menorizada, queremos oferecer aqui uma interpretação: através
da “releitura” de alguns dados fundamentais, procuraremos cap
tar as “linhas constantes, que perpassam toda a história da cris-
tologia patrística e que permitem compreender a sua estrutura
íntima, o seu devir e significado profundo”.2 O dado funda-
137
mental a ser examinado é o “credo”, “o lugar de condensação e
codificação dos resultados alcançados pela teologia, o espelho
mais fiel e, por seu significado eclesial, também o mais autori
zado da fé em Cristo”.3 Mais precisamente, essa expressão sinté
tica e densa da confissão e da reflexão cristã será considerada
em três estágios do seu desenvolvimento: no início, no meio e no
final do processo de formulação dogmática. O confronto entre
eles permitirá não só captar algumas linhas de tendência do
desenvolvimento, mas também determinar o significado e os limi
tes do dogma cristológico para a fé e a pesquisa cristã hoje.
3 Ibid., p. 144.
138
co-salvífica e a mentalidade prático-concreta da comunidade das
origens. O primado da perspectiva histórica sobre a conceitual-
-metafísica, dos eventos sobre o ser é evidente: a estrutura mes
tra do “credo” originário — a identidade na contradição entre
o Cristo terreno e o Cristo da experiência pascal — é expressa
na narração de uma história: a história da Páscoa e das mara
vilhas então realizadas pelo Deus da promessa no seu servo —
e Filho — Jesus. Da mesma forma que para Israel, assim tam
bém para a Igreja nascente confessar o próprio Senhor significa
narrar os seus feitos (cf. a confissão de fé do povo da antiga
aliança: “Ouve, Israel...”, em Dt 5,lss).
Este “credo” foi se consolidando na época subapostólica
"num modelo bem definido que reúne os principais eventos men
cionados nas fórmulas bíblicas” : 4
“Este é aquele,
que se encarnou na Virgem,
que fo i erguido no lenho,
que fo i sepultado na terra,
que ressurgiu dos mortos
e fo i elevado às alturas do céu”.5
139
“Crês em Cristo Jesus, Filho d e Deus,
que nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo,
e fo i crucificado sob Pôncio Pilatos,
morreu e fo i sepultado,
e ressuscitou dos mortos, ao terceiro dia,
e subiu aos céus e está sentado à direita do Pai,
(e) virá julgar os vivos e os m ortos?” 6
140
Para se perceber o reflexo dessas fórmulas “tradicio
nais” na Igreja do século II, da qual são como que expres
sões (a Traditio A postólica de Hipólito é do início do
século III), é necessário acenar para o contexto teológico
em que eram professadas. Não foram poucas as tentati
vas de anular o escândalo contido na incrível identidade
na contradição, proclamada na Páscoa, e assim de “solvere
Christum” .8 Docetitas e ebionitas, aos/quais já acenamos
ao tratar da crístologia neotestamentária, embora cami
nhando em direções opostas, partiam da mesma exigência:
salvaguardar a divindade de Deus, que para o dualismo
daqueles era a esfera não contaminada pela matéria, e para
estes, a herança preciosa de Israel. Com essa finalidade,
uns negavam a verdadeira humanidade de Cristo (doce
titas), e outros diminuíam a sua condição divina (ebio
nitas). 'Essas duas tendências exprimem-se também nas
cristologias “adocianista^-” e\gnósticas do século II: as pri
meiras, sob a influência do rígido monoteísmo hebraico,
vêem no Nazareno apenas um homem, que recebeu de
Deus uma vocação totalmente particular e foi por ele assu
m id o"'1adotado” como Filho. As segundas refletem o im
pacto da Gnose, que nesse tempo exerce um fascínio
extraordinário: relacionada com o espírito da “paidéia”
grega,9 a Gnose é uma oferta de salvação por intermédio
de um conhecimento superior que liberta da escravidão da
matéria e reconduz o espírito humano à sua origem divi
na. Portanto, trata-se de uma “antropologia soteriológica”
de caráter nitidamente dualista: em ambiente cristão, ela
reconhecerá em .Cristo o Redentor, mas entendido como
portador de salvação que vem do alto e que por isso
deve contaminar-se o menos possível com a negatividade
da matéria. Conseqüentemente, tende-se a diminuir o o
negar totalmente a verdadeira humanidade de Jesus-: * *
Em vista desses reducionismos opostos, compreende-se por
que a simplicidade dos antigos símbolos parecia escandalosa e
crítica: o relato da história humana do Filho de Deus, se por um
141
Não se nega que Jesus Cristo seja Deus: afirma-se apenas
que se tornou tal quando o Pai plenificou com seu Espí
rito esse homem único e exemplar. Também aqui nos
encontramos diante de uma forma de monarquianismo,
mas que não pensa na linha de uma manifestação divina
entre os homens, e sim na de um tornar-se Deus por parte
do homem Jesus (monarquianismo dinâmico). Relaciona-
-se — no século IV — com Paulo de Samosata, através
de Luciano de Antioquia, o discípulo deste, Ário: 12 ele
reconhece em Cristo não simplesmente um homem “adota
do” por Deus, mas o Filho, “criado” pelo Pai antes da
criação do mundo. Chamado à existência antes de todas
as coisas, ele desempenha um papel dc mediador e instru
mento na obra criadora! Enquanto criatura, ele c essencial
mente diferente do Pai e lhe é dado o poder de devir, e por
isso de encarnar-se c padecer. Enquanto criatura primeira
e excelsa entre as demais, ele pode assumir a carne,
ocupando o lugar da alma humana no homem Jesus, e
assim oferecer-sc como redentor e modelo para todos os
homens. Colocando o Filho do lado das criaturas, embora
fem posição de prioridade com relação a elas e de mediação
entre Deus e o mundo, Ário satisfaz as exigências do pen
samento médio-platônico, mas dissolve o escândalo cris
tão da identidade na contradição entre o Nazareno cruci
ficado e o Filho de Deus.
143
lado n a a recusa a eliminar um dos dois pólos da contradição
pascal, por outro confirma a identidade inaudita entre Crucifi
cado e Ressuscitado, sem esvaziar “a palavra da Cruz”, mas
também sem anular a novidade e a força da Ressurreição. O
grande mérito dos pastores e mestres da Igreja no século II foi
ter mantido, na história de Jesus Cristo, a identidade na contra
dição: de Inácio de Antioquia a Irineu de Lião, para citar ape
nas dois nomes, a profundidade da antítese e o poder da síntese
entre humano e divino no Humilhado-Exaltado são afirmadas
com vigor e estendidas, especialmente por Irineu, a toda a his
tória humana.101
b ) O século III traz consigo um desenvolvimento novo e
diferente das tendências que procuram “reduzir” a totalidade
complexa do mistério de Cristo.
10 Cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 197-221 (Das
Zeugnis der Hirten und Lehrer der Kirche von Klemens von Rom bis
zu Irenãus), e J.N . D. Kelly, II pensiero cristiano delle origini, op. cit.,
pp. 179ss. Entre os séculos II e III, Tertuliano desempenha no Ocidente
um papel decisivo para a cristologia (especialmente para a fixação de
alguns termos-chave). Encontram-se nesse autor expressões que parecem
antecipar de séculos o desenvolvimento dogmático (assim: “proprietas
utriusque substantiae”, “duplicem statum, non confusum, sed coniunc-
tum in una persona, deum et hominem Jesu” : Adversus Praxeam 27).
Cf. R. Cantalamessa, La cristologia di Tertulliano, Friburgo, 1962.
11 Cf. também, para o que se segue, A. Grillmeier, Jesus der Chris
tus, op. cit., pp. 283ss,
142
isto é, da substância do Pai,
Deus d e Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, gerado não criado, consubstanciai omoúsios
ao Pai, por m eio do qual todas as coisas foram criadas,
as do céu e as da terra,
qu e por nós hom ens e por nossa salvação
desceu e se encarnou, se fez hom em ,
padeceu, e ressuscitou ao terceiro dia,
subiu aos céus,
(e) virá julgar vivos e m ortos”.1415
14 DS 125.
15 I. Ortiz de Urbina, Nicée, op. cit., p. 73; cf. as várias fontes ali
indicadas.
144
Jesus Cristo” 16 e, ao mesmo tempo, manteve a devida dis
tância da helenização da fé cristã, representada pela tese
ariana de um Filho criado, intermediário entre Deus e o
mundo. O significado do termo Omoúsios, que caracteri
zará daí por diante a confissão nicena, deve ser determi
nado em tal contexto: esse termo, inexistente na Escritura
e passado do mundo gnóstico para o teológico cristão,
especialmente alexandrino, simplesmente quer dizer, con
tra a redução ariana, que “o Filho está nõ mesmo grau de
ser do Deus transcendente”.17 Ora, esse Filho, que está do
lado de Deus, “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, é
também o sujeito da segunda seção, na qual se retoma
o esquema horizontal e histórico dos símbolos mais anti
gos. Essa união tem um duplo valor: de um lado, mostra
como “os ‘novos’ enunciados ontológicos não têm a fina
lidade de esvaziar as asserções salvíficas, mas ao contrário
querem confirmá-las... A instância de fundo... é de tipo
soteriológico” : 18 ainda que o “propter nos” “agora só
intervenha pela metade e diga respeito apenas a uma parte
da vicissitude cristológica, a que se inicia com a encarna
ção”,19 o interesse salvífico refere-se também aos enuncia
dos ontológicos. Por outro lado, porém, a conexão das
duas seções no único sujeito de ambas modifica profun
damente a estrutura da confissão de fé tradicional: a nar
ração dos eventos se torna um plano, ligado verticalmente
ao outro plano, o da preexistência. Ao esquema histórico-
-horizontal, caracterizado pelos antigos símbolos, sucede
um esquema metafísico-vertical, que, embora englobe a se
ção narrativa, reduz seu peso a favor de uma acentuação
mais conceituai, ontológica. Em outras palavras, em Nicéia
o Cristo “em si”, compreendido na consubstancialidade
com o Pai, se sobrepõe ao Cristo morto e ressuscitado “por
16 [bid, p. 87.
17 F. Ricken, “Das Homoousios vcn Nikala ald Krisis des altchristli-
i hen Platonismus” in Zur Frühgeschichte der Christologie, op. cit., p.
99 (cf. todo o artigo, pp. 74-99, que é “ein Versuch, den philosophie-
Hi schlchtlichen Hintergrund des Homoousion von Nikaia... zu erhellen” :
p. 74).
18 W. Kasper, Gesü il Cristo, Bréscia, 1975, p. 245.
19 R. Cantalamessa, “Dal Cristo dei Nucvo Testamento...” op. cit.,
pp. 147-48.
145
nós”,20 ainda que este não seja excluído, como atesta —
juntamente com a presença da ação narrativa — o próprio
fato de que o símbolo é uma confissão litúrgica da fé ecle-
sial. /Portanto, contra os reducionismos opostos (moda-
lismo, adocianismo, arianismo), Nicéia conserva na sua
relação de identidade os dois pólos da “contradição pas
cal”: o Filho consubstanciai ao Pai é aquele que viveu a
verdadeira história que vai da encarnação à ascensão, e
que de certa forma está ainda em vias de realização, até
que ele mesmo “venha julgar vivos e mortos” .
Move-se contra Ário, ainda que no âmbito do mesmo
esquema Verbo-carne, Apolinário de Laodicéia, que subli
nha como o Filho é diferente do Pai e ao mesmo tempo
eterno com ele. Mas, diferentemente da fé expressa no
“credo” niceno, Apolinário diminui a verdadeira huma
nidade de Cristo, porque julga que o Verbo com a encar
nação, assumiu o lugar da alma humana (ou pelo menos
do nous, sede da consciência e da livre vontade) para
'^‘habitar” na carne. O apolinarismo é refutado pela fé
eclesial em nome do princípio da “troca” — central, por
exemplo, no pensamento do grande paladino de Nicéia,
Atanásio. De acordo com esse princípio, se o Verbo não
tivesse assumido uma natureza humana completa também
não teria salvado completamente o homem, porque “o que
não é assumido não é salvo”.21 O primeiro Concilio de
J Constantinopla (381), cujo símbolo retoma o niceno e lhe
dá a forma definitiva, com a qual é professado ainda hoje
pela fé da Igreja (símbolo niceno-constantinopolitano),22
menciona explicitamente os apolinaristas entre os hereges
condenados.23
146
u paradoxo cristão, não esvazia a palavra da cruz nem a inaudi-
i í i força da Ressurreição, mas as mantêm unidas no escândalo
147
É a partir da controvérsia sobre esse título que cresce a
oposição a Nestório, sobretudo por obra de Cirilo de Ale
xandria, que refletia o pensamento da outra grande escola
teológica da antigüidade cristã.
Os alexandrinos, filosoficamente influenciados pelo
platonismo, e, na esteira de Orígenes, praticando uma exe
gese que procura incansavelmente captar com a “letra”
o “espírito” das Escrituras,2526 acentuam a unidade do divino
e do humano em Jesus Cristo. O Nazareno é a revelação
viva de Deus: “Como o ferro no fogo assim é esta alma...
sempre no Verbo, sempre na sabedoria, sempre em Deus.
Também o que ela faz, sente, pensa, é Deus”.27 Partindo
dessas perspectivas, não causa estranheza que Nestório
seja visto como o pior destruidor da fé cristã, e a sua con
denação no Concilio de Éfeso, em 431,28 como o triunfo
da cristologia alexandrina “da união”. Entretanto, a expres-
são mais extremada da tendência que triunfa em Éfeso de
ságua no “monofisismo” : Eutiques, arquimandrita dos
monges de Constantinopía favoráveis- às teses de Cirilo
contra o nestorianismo, baseando-se em textos indubita
velmente equívocos do Patriarca de Alexandria, sublinha
a tal ponto a unidade de Cristo que fala de “uma só natu
reza” m ia phúsis, de onde vem o nome dessa doutrina) que
haveria nele depois da união. Conseqüentemente, o termo
theotókos, atribuído a Maria, se torna o cavalo de batalha
dos monofisistas. A unidade do Senhor Jesus, sem dúvida,
é afirmada: mas a “contradição” pascal é dissolvida numa
confusão-assimilação entre humano e divino.
25 Cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 506-15 (sobre
Teodoro de Tarso), pp. 614-34 (sobre Teodoro de Mopsuéstia), pp.
642ss (sobre Nestório). Cf. Também P. Smulders, "Sviluppo delia cristo
logia” op. cit. 500ss.
26 Cf. ibid., pp. 525ss e H. Lubac, Storia e Spirito. La compren-
sione delia Scritura secondo Origene, Roma, 1969.
27 Orígenes, D e Principiis, II, 6,6; GCS 22,145.
28 Cf. DS 250-68. L. I. Scipioni, Nestorio e il concilio di Efeso,
Storia-dogma-critica, Milão, 1974, severo para com Cirilo de Alexandria,
propõe que se veja em Nestório um pioneiro da teologia especulativa,
consciente da necessidade de procurar uma solução rigorosa para o pro
blema cristclógico levantado antes por Ario, depois por Apolinário. Nes
tório — pensador de sensibilidade mais metafísica do que soteriológica
— seria assim um precursor de Calcedônia.
148
A fé da Igreja responde a esses vários reducionismos de
modo solene no concilio de Calcedônia (451), empregando
u i t i . i definição que, embora tenha tido mais influência na his
149
Vê-se logo que esse texto é caracterizado por uma
orientação especulativo-ontológica: está totalmente ausen
te a seção histórico-narrativa, que ainda havia em Nicéia-
-Constantinopla. A narração dos eventos é substituída pela
enunciação da estrutura metafísica do Cristo. À linguagem
concreta dos primeiros símbolos e da segunda parte da
profissão nicena sucede uma linguagem conceituai; à pers
pectiva histórico-dinâmica dos estágios ou tempos da vi-
cissitude do Crucificado-Ressuscitado sucede uma pers
pectiva essencialista-estática, que considera as duas natu
rezas na unidade do sujeito. Uma confirmação dessa orien
tação ontológico-especulativa é a falta de verbos no texto
e a abundância de substantivos: pouquíssimos deles são
termos concretos, ao passo que numerosos são tirados da
linguagem técnica, elaborada nas escolas teológicas e filo
sóficas. O próprio desenvolvimento complicado dos pe
ríodos deixa entrever a preocupação de precisar repetida
mente e sob vários aspectos o conceito, e isso confirma
que òs termos usados tinham um significado indetermina
do para os próprios padres do Concilio. A primeira parte
(que vai até a geração por Maria) apresenta um acentuado
paralelismo simétrico de quatro elementos, evidenciado
pela repetição do pronome tòu autón (o mesmo), que
exprime com eficácia em termos conceituais a estrutura
das primitivas fórmulas de fé histórico-narrativas: o único
e mesmo Jesus Cristo é afirmado como sujeito dos predi
cados divinos e humanos. A própria “identidade na con
tradição” está subjacente na estrutura da segunda parte,
onde, com um movimento de afirmações e negações suces
sivas, se afirma ajunjcidade de pessoa, do “único e mesmo
Cristo” 'e a dualidade das naturezas — divina e humana
— , entre as quais não há mistura nem mútua -transforma
ção (contra a confusão monofisista), e nem divisão ou
separação (contra o dualismo nestoriano). Dessa forma,
Calcedônia colheu os “resultados da elaboração cristo-
lógica dos primeiros séculos... Numa posição equilibrada,
150
reuniu o que as duas cristologias adversárias, a de Antio-
quia e a de Alexandria, tinham de válido, mostrando que
esses dois pontos de vista deviam ser mantidos ao mesmo
tempo e em harmonia: unidade de pessoa, dualidade de
naturezas”.30 O Concilio não quis “determinar mais deta
lhadamente o significado dessas expressões, cuja orienta
ção geral de significado era suficientemente conhecida pela
doutrina trinitária: pessoa indica quem ele ou seja, o
Filho eterno; as naturezas indicam o que ele é, ou seja,
igual ao Pai por natureza desde a eternidade, e pelo evento
salvífico igual a nós por natureza”.31
151
cedônia talvez tenha reunido os dados principais do problema
ou ao menos alguns dentre os mais importantes, mas não con
seguiu propor uma síntese nem indicar claramente o caminho
que pudesse conduzir a ela”.35 Surge então o problema de deter
minar o significado e os limites do dogma cristológico de Cal-
cedônia para a fé e a reflexão cristã. Isso só pode ser feito depois
de se confrontar este estágio maduro do desenvolvimento dog
mático com os estágios precedentes, e em particular com o
querigma do Novo Testamento. Ao movimento histórico descri
to, que vai do querigma ao dogma, é necessário seguir agora
um movimento de verificação crítica, que vá do dogm a ao
querigma, confrontando um com o outro.
152
i i/.ação” do querigma, ou seja, de perda de perspectiva histó-
i ico-dinâmica na elaboração da fé cristã. As três diretrizes po
dem ser captadas quando se situa o dogma em relação ao passa
do, ao presente e ao futuro.
Com relação ao passado fontal, que é a história de Jesus de
Nazaré ressuscitado por Deus, a evolução dogmática faz um pro
gressivo descolocamento de atenção dos eventos para o ser, com
Uma conseqüente perda de carga dinâmico-narrativa: do relato
das várias fases da história do Senhor Jesus, passa-se à cristolo-
gia das duas naturezas. Espírito e carne não são mais vistos
i orno dois estágios da vida do Salvador, mas como duas subs
tancias, duas entidades.36 Os eventos dos dois estágios de humi
lhação e de exaltação são “relidos” em chave ontológica, e refe-
i idos ao único sujeito como propriedades que qualificam as na
turezas: assim, o Cristo sofre e morre “enquanto homem” e faz
milagres e ressurge “enquanto Deus”. Esta atribuição das ações
ttos dois princípios qualificantes, o humano e o divino, dita tam
bém “reduplicação dos idiomas”, é típica da cristologia analítica
dns antioquenhos. A perspectiva sintética dos alexandrinos con-
liapõe a ela a “comunicação dos idiomas”, que, por força da
tmicidade do sujeito, atribui ao Filho de Deus propriedades
humanas e ao homem Jesus atributos divinos. Apesar da diver
sidade, não é difícil perceber que essas duas soluções se mo
vem no âmbito do mesmo horizonte de “desistoricização” do
anúncio originário, isto é, do primado do ser sobre os eventos.
Mas este primado não quer dizer que o dogma cria o que
Ialta no querigma: como mostra a própria gradualidade do pro
cesso descrito e a manutenção da estrutura de fundo, deve-se
Ialar antes de uma acentuação diferente ou de um horizonte de
compreensão diferente. Da mesma forma que no Novo Testa-
nirnto o primado dos acontecimentos sobre o ser não excluía a
alc-nção ao outro aspecto (recordemos apenas os títulos de “aber-
tiiüi” ontológica mais acentuada, como por exemplo o Logos),
as -ini também no desenvolvimento dogmático o primado pro
gressivo do ser sobre os acontecimentos não faz esquecer a his-
tóiia concreta do Crucificado-Ressuscitado, como atesta clara-
mriih-, por exemplo, a segunda seção do símbolo niceno-cons-
hmiinopolitano.
Mi Cf. também para o que se segue R. Cantalamessa, “Dal Cristo
ilrl Ntiovu Testamento”, op. cit., pp. 148 ss.
153
Com relação ao presente da comunidade que confessa o
Cristo, a história do dogma é assinalada por uma progressiva
perda de carga existencial-soteriológica: certamente, na fé e na
reflexão patrística cristologia e soteriologia estão sempre -ligadas
de tal maneira que convergem uma para a outra. Todos os pro
blemas cristológicos suscitados pela heresia movem-se e encon
tram resposta no âmbito de um horizonte soteriológico: assim,
à luz do princípio da troca, presente já no século II, pelo qual
“o que não é assumido, não é salvo”, afirma-se contra os gnós-
ticos que a carne foi realmente assumida pelo Verbo; contra
Ário, afirma-se a verdadeira e plena divindade daquele que se
faz homem; contra Nestório, o valor salvífico da unidade de
pessoa em Cristo; contra o monofisismo, a dupla e inconfusa
consubstancialidade de Jesus ao Pai e a nós. Todavia, em Cal-
cedônia e nas controvérsias com ele relacionadas, assiste-se a
uma contração ou redução dogmática do querigma, pela qual os
eventos do Cristo “para nós” não são mais mencionados na defi
nição conciliar. Ao passo que emerge uma tendência formalista,
a qual, sendo resultado de provocação recíproca e das intolerân-
cias mútuas entre os autores do conflito cristológico, procura
fixar a fé numa fórmula sintética e conceitualmente precisa.
Acontece, assim, que a reflexão teológica e o dogma se tornam
sempre mais estranhos à massa dos fiéis e perdem a sua carga
existencial. Uma confirmação disso é o fato de que o dogma
cristológico, na sua formulação madura apresentada em Calde-
dônia, nunca entrou na práxis da Igreja como fórmula litúrgica
de profissão de fé.
Por fim, com relação ao futuro o desenvolvimento dogmá
tico assinala uma progressiva perda de carga profético-escatoló-
gica: há um constante deslocamento do centro de gravidade da
cristologia para tr-ás. As fórmulas neotestamentárias, centradas
na Ressurreição e abertas para o horizonte da parusia, são
seguidas pelos símbolos sub apostólicos, que apresentam uma
atenção nova ao nascimento por Maria, e depois pelo símbolo
niceno, que desloca a atenção para o nascimento eterno no seio
do Pai, até se chegar à fórmula calcedônica, totalmente articula
da com base na estrutura intemporal, metafísica do Cristo. Do
esquema histórico-horizontal dos estágios: carne —» (ressurrei
ção —> espírito, passa-se ao esquema ontológico-vertical: espírito
—> (encarnação) carne. Essa mudança de perspectiva está
154
iHmionada com a atenção menor que se dá à ressurreição e à
>Bi aiologia: Cristo é visto muito mais como aquele que veio do
i|iit> como aquele que há de vir (pense-se no aparecimento das
h das do Natal e da Epifania e no valor que elas passam a adqui-
iii no culto e na piedade cristã). Ao mesmo tempo, atenua-se
u i Igreja o sentimento de estranheza com relação ao mundo e a
I•ii qa crítica da esperança escatológica que, se sustentou a con-
li-.sáo dos mártires, tende a desaparecer no encontro sempre mais
i si i cito entre instituição eclesiástica e sistema sociopolítico na
riu constantiniana.
Esse processo de “desistoricização” do querigma, com a sua
iiiplicc perda de carga dinâmico-narrativa, existencial-soterioló-
gim e profética-escatológica não é, naturalmente, casual: ele
i 01 responde ao clima cultural e à situação social e política dife-
i entes em que a Igreja se encontrou.
No plano ideológico-cultural, o impacto com o mundo gre
go gera um indubitável processo de helenização do cristianis
mo a mensagem neotestamentária é repensada nas categorias
f i.iiico-ontológicas dos gregos. O cristianismo, na formulação
■ Ir m u i fé, se torna “grego com os gregos”.37 Todavia, não é pos-
•ívr| interpretar esse processo como uma radical perda de iden
tidade da mensagem cristã originária, como se o dogma não
I*r.M' outra coisa senão “um fruto do espírito grego, amadure-
i ido no terreno do Evangelho”.38 Junto com a helenização, ine
gavelmente presente no processo de “desistoricização”, há uma
Mi .elenização”, ou seja, uma ação crítica e subversiva exercida
f.ohrctudo pela ortodoxia cristã com relação à cultura grega,
t >'• exemplos são numerosos. Assim, “o conceito patrístico de
I )■ us... rompe o conceito helenístico de Deus, enxertando-o na
antiga tradição judeu-cristã: T heòs pròs emãs, Ele é um Deus de
limiicns, ‘voltado para nós’ em Cristo Jesus”. Da mesma forma,
r.r a patrística adota o ideal grego da paidéia — a educação vista
como consecução da verdadeira humanidade e liberdade —
ela o alcança com base no cristianismo e o cristianiza “graças à
155
própria concepção personalista de Deus e à conseqüente ênfase
sobre a liberdade de Deus” : 39 o homem não se diviniza por si
mesmo, mas porque Deus, na liberdade do seu amor, quis hu-
manizar-se. Também em Nicéia, que com o om oúsios assinala o
ingresso de uma terminologia conceitual-ontológica na confissão
de fé cristã, assiste-se na realidade a uma crise do pensamento
grego.40 Contra uma concepção helenizante do Filho como inter
mediário entre Deus e o mundo, situado também ontologica-
mente num plano inferior com relação ao Pai, mas superior com
relação às criaturas, como afirmavam as teses arianas, a “salva-
ção-em-fesus por parte de Deus foi... interpretada, graças à prá-
xis crente da oração dirigida a Jesus, na perspectiva da verda
deira divindade de Jesus. Os padres conciliares deram maior
peso a essa práxis cristã de piedade do que ao pensamento filo
sófico, e justamente por isso a Igreja conseguiu romper com
o médio-platonismo que por dois séculos tinha dominado o pen
samento teológico”.41 Assim, valendo-se de terminologia hele-
nística, o cristianismo introduz no universo do pensamento gre
go idéias fundamentais que lhe eram completamente estranhas,
como o conceito de pessoa, utilizado em Calcedônia para indi
car o único sujeito em Cristo, ou a idéia de história como de
senvolvimento linear e não cíclico, presente na fé n’Aquele que
“há de vir a julgar os vivos e os mortos”. Portanto, se a desistori-
cização é o fruto do impacto do cristianismo com o mundo
cultural greco-helenístico, ela não quer dizer, em absoluto, per
da de identidade da fé cristã: o paradoxo pascal, conservado,
apesar de tudo, na estrutura do dogma contra todos os reducio-
nismos opostos e heréticos, produz os seus frutos críticos no
mesmo horizonte cultural em que entra. Nesse sentido, a orto
doxia teve muitas vezes, na Igreja antiga, uma liberdade e uma
função crític'o-profética que nenhuma proposta herética, aparen
temente “inovadora” e “moderna”, conseguiu igualar.42
156
No plano sociopolítico, a desistoricização da fé cristológica
lerlamente também está relacionada com a paz constantiniana,
mm o tornar-se “sistema” da Igreja, e com a conseqüente per-
iln do vigor impetuoso e crítico das origens. Práxis eclesial e
■ i Mitologia condicionam-se reciprocamente: a Igreja em situação
i|< "cristandade” percebe muito menos a tensão escatológica, a
i rntralidade da Ressurreição, o valor existencial e provocador
dm, eventos salvíficos, o distanciamento crítico conseqüente ao
• .1nr no mundo, mas não ser do mundo. Além disso, certo
riitusiasmo apocalíptico pela realização das promessas, presen-
lr desde as origens cristãs, se prestava a um encontro com a
idria grega da presença do eterno, característica, por exemplo,
bus cultos mistéricos: o futuro prometido, no “êxtase da reali-
/ iiçiio” , é assim reconhecido como já presente na experiência do
, iilto e em espírito.43 “Assim a história perde a sua orientação
r m nlológica. Não é mais a esfera em que os homens sofrem e
( •■ pcfíim, gemem e se afadigam, enquanto aguardam o futuro de
i d:.io para o mundo, mas torna-se o âmbito no qual o domí-
ttiu celeste de Cristo se manifesta na Igreja e no sacramento”.44
I'iinilelamente a essa perda de força profético-escatológica, a
irllexao teológica perde também em interesse existencial, e se
iniiid sempre mais, como já mencionamos, teologia das escolas,
hrqiientemente instrumentalizada para fins políticos, e afasta-
b.i dii fé das massas. Entretanto, devemos ressaltar que tam-
Ih ui sob esse aspecto não se pode falar de uma dissolução radi-
<a 1 da mensagem evangélica nas condições históricas; e isso por
q u e a transmissão viva da fé eclesial, proclamada no anúncio,
, i ídu na fé e celebrada no culto, continua sendo horizonte último
,lr compreensão do dogma, que, mesmo em sua forma mais
conceituai e abstrata, apela para a tradição viva dos profetas,
d o s evangelhos, dos padres (cf. o texto de Calcedônia). Essa
i rlação sempre viva com as fontes e a experiência do Cristo
vivo, feita na comunidade anunciante e celebrante e rica de
ir cursos imprevisíveis, se de um lado impedem — também na
I pivj a fortemente politizada e transformada em sistema da era
i onstuntiniana — a redução do paradoxo cristão a um dos hori
zontes de pensamento e de ação do mundo, de outro saberão
157
suscitar em todos os tempos fermentos de renovação e de refor
ma na Igreja e na sociedade.
Se mantiver o escândalo pascal e proclamar sempre a inau
dita identidade na contradição, do Senhor com o Servo — ou
unidade na dualidade, como se exprime Calcedônia — , o dog
ma não trairá o querima, mesmo que o transponha e o reinter-
prete no horizonte de um universo cultural, social e político
diferente.
158
sim ao anúncio inaudito da Páscoa, confessando o seu valor
pura todos os tempos e lugares. A obra do Concilio não foi ape
nas negativa:4546 os não pronunciados, justamente enquanto ne
gação de negação, têm um valor positivo, estabelecem como que
uma escala de segurança, um dique, no qual é necessário pro
ceder a uma compreensão mais plena, a equilíbrios mais avança
dos. “O aspecto positivo das definições cristológicas antigas
■ leve ser procurado no interior da sua intenção anti-herética. É
o mesmo tipo de positividade da teologia negativa. Com efeito,
como a linguagem apofática, assim também a definição dogmá-
lica afirma negando o limite, limite que no seu caso é constituí
do pela heresia. O dogma, em outras palavras, é também ele
npofático, ao menos o dogma trinitário e cristológico da antigüi-
dade”.47 Através desse negar, que é um afirmar no respeito ado
çante pela insondabilidade do mistério (apófase), através dessa
"cristologia negativa”,48 a definição dogmática se manifesta com
lodo o seu irrenunciável significado de baluarte não contra o
progresso, mas contra o regresso da teologia cristã. Definindo
um não, ela diz um sim, que não abrange a riqueza inexaurível
do dado revelado, mas, esforçando-se por de-fini-lo, por de
li mitá-lo num aspecto fundamental, não o exaure, mas provoca
seu crescimento para uma comprensão mais ampla. O dogma se
oferece então como uma abertura ao infinito, um início do ili
mitado: enquanto mediação histórica de transmissão da Palavra
dc Deus, ele é um instrumento, que precisa ser verificado sob
o juízo daquela mesma Palavra, e ser superado. Uma cristologia
que pretendesse deter-se nele seria uma reflexão sem vida, uma
' l istologia da morte, e não a confissão do Vivente, que está pre
sente para o homem hoje e sempre. E uma cristologia da morte,
fechada aos novos desenvolvimentos e às novas questões, na ten-
159
tativa de uma mal-entendida fidelidade à tradição, assinalaria
inevitavelmente a morte da cristologia.49
Portanto, Calcedônia é termo e início. “Assim, temos não
só o direito mas também o dever de considerar a fórmula de
Calcedônia como termo e início. Nos afastaremos dela não para
abandoná-la, mas para entendê-la com espírito e coração, para
aproximar-nos, por seu intermédio, do Incompreensível e do
Inatingível, do Deus sem nome, que quis que o procurássemos e
o encontrássemos em Jesus, o Cristo. Voltaremos constante
mente a essa fórmula de Calcedônia, porque deveremos recor
rer sempre à sua clareza modesta e sóbria, se quisermos expri
mir em poucas palavras o que encontramos no inefável conhe
cimento, que é fundamento da nossa salvação. Sem repeti-la,
voltaremos verdadeiramente a ela se for para nós não só ponto
de chegada, mas também de partida”.50 Trata-se, mais uma vez,
de levar a história a sério: “Quem leva a sério a historicidade...
compreende que não se pode justificar nem a superação de uma
fórmula, por anulação, nem a sua conservação petrificada”.51
Como acolher, então, a fórmula de Calcedônia? Somente
o confronto entre ela e o querigma pode indicar o caminho,
isto é, mostrar o que está vivo e o que está morto na defini
ção dogmática. Com efeito, o problema não é traduzir a lingua
gem do dogma em categorias modernas, mas compreender o
dogma sob a Palavra de Deus, para captar seu significado irre-
nunciável e os elementos superados.52 Dessa forma, enquanto o
passado é assumido na sua vitalidade, cria-se espaço para o futu
ro, e a memória eficaz do passado fontal tende a suscitar o futu
ro. No confronto-juízo com o querigma, o dogma revela o seu
conteúdo irrenunciável na conservação do paradoxo cristão ori-
160
ginário num contexto histórico diferente: o “vere Deus, vere
liomo” na unidade do sujeito divino, enquanto tradução da iden-
i idade na contradição, proclamada na Páscoa, entre Crucificado
r Ressuscitado, é “uma asserção inabalável da teologia cristã”.53
I , ao mesmo tempo, o tríplice aspecto do processo de “desistori-
i i/ação”, que surgiu do confronto entre dogma e querigma, de
nuncia a tríplice carência do dogma e permite delinear a trípli
ce direção em que ele deve ser superado.
Em relação à carência dinâmico-narrativa da fórmula dog
mática de Calcedônia, a superação deverá ocorrer mediante uma
icílcxão que antes de tudo capte nos “mistérios” da vida verda-
driramente humana de Jesus o aparecimento de Deus na histó-
i ia do mundo. Deverá ser ao mesmo tempo uma cristologia
"do baixo”, que parta da vicissitude concreta do homem de Na
zaré, e uma teologia “do alto”, que leia essa vicissitude à luz
pascal, como de fato acontece no testemunho do Novo Testa
mento. Delineia-se aqui a tarefa de uma cristologia bíblico-
imrrativa.
lim relação à sua carência existencial-soteriológica, o dog-
nia deverá ser superado mediante uma reflexão que recupere sob
iodos os aspectos a dimensão existencial-salvífica da história de
Ie .us Cristo. Cristologia e soteriologia, como não são separadas
no anúncio pascal, também não devem ser separadas no apro-
Inndamento da fé eclesial (ao invés do que freqüentemente
aconteceu na teologia das escolas, tão aplicada à análise meta
física do Cristo, quão pouco viva diante das expectativas reais
dr salvação dos homens). No Senhor Jesus tudo é obra de Deus
para nós e para a nossa salvação! Aqui se delineia o projeto
dr uma cristologia existencial-soteriológica.
Em relação à sua carência profético-escatológica, a fórmula
dr Calcedônia será superada mediante uma reflexão centraliza
da. como a neotestamentária, na Ressurreição, e aberta, a partir
drla. para reinterpretar o passado, suscitar o futuro inquietando
a segurança do presente, e recordar incessantemente a pátria
prometida, mas ainda não possuída. Delineia-se a tarefa de uma
cristologia profético-escatológica, em que possa reviver a
lorça contagiante e crítica do espírito dos profetas, totalmente
161
ausente das áridas repetições manualísticas do dogma calcedô-
nico.54
A recepção da fé de Calcedônia na superação, a sua acei
tação na práxis e na reflexão cristã atuais, apresentam-se então
como projeto, para repensar historicamente toda a fé cristológi-
ca, a fim de superar as carências produzidas pelo processo de
des-historicização do querigma originário. Uma cristologia como
história, narrativa dos eventos na recordação atualizadora do
passado, significativa para a atual expectativa de libertação e de
salvação, aberta para o futuro e subversiva das miopias do
presente, oferece-se, portanto, como a mais fiel tradução do
querigma no tempo de hoje e como a guarda mais autêntica da
vitalidade do dogma.
162
TERCEIRA PARTE
CRISTOLOGIA DA HISTÓRIA
6
165
que Lucas, ao contrário, renuncie à indicação e a substitua por
uma descrição acentuadamente sugestiva (“Certo dia, ele orava
em particular, cercado dos discípulos...” : Lc 9,18), sublinha a
solenidade do momento e o significado decisivo que ele tem
para a fé da comunidade. História e significado convergem,
assim para ressaltar a importância da pergunta sobre o Naza
reno: ela envolve o fundamento da fé e da esperança cristã e se
coloca no centro da narração pascal da vida de Jesus e no cen
tro da fé, que responde a este anúncio. Todo aquele que, de
alguma forma, quer entrar seriamente em contato com Ele, não
pode subtrair-se à pergunta sobre a sua identidade.
Nas três redações é Jesus quem interroga: no mesmo instan
te em que se torna objeto da pergunta, ele continua sendo o
sujeito, pois é ele quem interroga. O fato de que as três atesta-
ções evangélicas concordem neste ponto não deixa de ter signi
ficado: núcleo histórico e fé pascal convergem também aqui
para o reconhecimento de que a reflexão sobre Cristo, qualquer
que seja o nível em que ela se coloque, se pretende adaptar-se
à realidade de.Jesus, deve subverter a ordem costumeira de uma
pesquisa. O objeto deve tornar-se sujeito: é preciso passar “do
interrogar ao ser-interrogado, do exigir uma resposta ao dar
uma resposta”.2 A matéria da cristologia, o cerne da reflexão
e da fé cristã, não é um “objeto”, uma “doutrina”, uma “fórmu
la” : é o Vivente, que provoca e inquieta, e — como se vê pela
seqüência do relato —- não se deixa aprisionar por esquemas
que se lhe queiram aplicar. Por isso, cristologia exige abertura
ao Outro, expectativa do Novo, admiração diante daquele que
vem: “Nós, os Ültimos, te esperamos; esperar-te-emos todos os
dias, Crucificado, que foste atormentado por nosso amor e ago
ra nos atormentas com toda a força do teu implacável amor”
(G. Papini). O teólogo cristão digno deste nome deve saber viver
o mistério do Advento no coração de sua busca!
Jesus, segundo a expressão concorde do relato dos Sinó-
ticos, faz duas perguntas: a primeira refere-se ao que os homens
dizem dele; a segunda interpela diretamente os discípulos: “E
vós, quem dizeis que eu sou?”. Parece que ele não se contenta
166
- ui saber o que “os outros” dizem dele. Quer uma resposta
que eomprometa na primeira pessoa: não se lhe pode responder
porque se ouviu dizer. É preciso que a palavra esteja em har
monia com a vida. É preciso fazer transparecer a própria histó-
■ i.i de recusa ou de aceitação. Entrar em contato com ele não
pode ser um exercício inócuo ou marginal; bem o sabe o grande
inquisidor de Dostoievski: “És Tu, és Tu?... Não respondas,
eniti. E, o que poderías dizer? Bem sei o que podes dizer. De
írsto, não tens o direito de acrescentar nada ao que já disseste
uma vez. Por que vieste perturbar-nos? Pois vieste perturbar-
nos. Tu também o sabes”.3 Procurar o seu rosto significa dei-
niir se incomodar, sair das certezas tranqüilas dos equilíbrios
ijiir não comprometem, escolher um lado, dar escândalo e ser
escandalizado: “Não é blasfêmia o escândalo que todos, de uma
lorma ou de outra, recebemos em Cristo; blasfêmia é a opinião
dr que se possa fazer alguma coisa com ele, dizer ou ouvir
alguma coisa dele sem escândalo”.4 Cristologia é envolvimento,
paixão, mente e coração que vibram fortemente na tentativa
d uma resposta autêntica à interrogação de Cristo, que com
promete a vida.
Nas três redações, é Pedro que responde à pergunta “envol-
vente” do Nazareno: a tradição da resposta revela, de maneira
evidente, o trabalho de releitura pascal dos evangelistas. Em
Marcos, Pedro diz simplesmente: “Tu és o Cristo” (8,29). Em
Mateus e Lucas, a asserção é mais elaborada e contém uma
profissão de fé da comunidade pós-pascal: “Tu és o Cristo, o
Filho de Deus vivo” (Mt 16,16); “o Cristo de Deus” (Lc 9,20).
A concisão da resposta na redação de Marcos provavelmente
exprime de maneira mais fiel o núcleo histórico subjacente ao
relato: “Tu és o Messias”.5 O que Pedro realmente queria afir
mar através dessa palavra torna-se compreensível por aquilo
(pie vem a seguir na redação de Marcos e Mateus: Jesus começa
a ensinar que o Filho do Homem deverá sofrer muito, ser rejei
tado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas,
ser morto e depois de três dias ressuscitar (Mc 8,31; Mt 16,21;
167
Lc 9,22). Pedro se escandaliza e, tomando-o de lado, comeca a
censurá-lo! (Mc 9,32; Mt 16,22). A reação de Jesus certamente
depõe a favor de um núcleo histórico do relato: “Afasta-te de
mim, Satanás! Porque não pensas as coisas de Deus mas as dos
homens” (Mc 9,33; cf. Mt 16,23).6 Com efeito, é difícil supor
que a comunidade primitiva tenha inventado semelhante cen
sura,^ que Lucas logo se preocupa em eliminar de sua redação!
A atitude de Pedro e a reação de Jesus são, pois, indícios sufi
cientes para deduzirmos o que Pedro pré-pascal queria dizer, ao
professar que Jesus era o Messias: certamente ele estava pen
sando em tudo, menos num Messias sofredor, num Cristo da
dor. Provavelmente sonhava com o Messias das expectativas
judaicas apocalíptico-políticas do seu tempo: O Ungido do
Senhor no esplendor da realeza, o libertador de Israel enviado
para realizar as promessas do Deus dos Pais e acabar com a
atual humilhação. Pode-se objetar a essa interpretação que, se
Pedro verdadeiramente tivesse pretendido isso, não teria senti
do a aprovação implícita por parte de Jesus, contida na sua
ordem ,de manter o segredo (Mc 8,30), nem o elogio solene a
Simão, na redação de Mateus, aliás extraordinariamente disso
nante com a censura que se segue. Na realidade, esses dois ele
mentos contêm inserções pós-pascais, que em Marcos obedecem
à lógica do “segredo messiânico”, e em Mateus à vontade de
confirmar de maneira solene a profissão de fé da Igreja das
origens, contida na resposta de Pedro. Pode-se então julgar com
fundamento que, na sua asserção pré-pascal, Pedro tenha pen
sado no Messias como “homem divino”, extraordinariamente
poderoso e coerente com as expectativas de Israel.7 Contra essa
expectativa do seu discípulo, Jesus apresenta uma imagem “es
candalosa” de si mesmo: depois de ter feito a pergunta sobre a
própria identidade, anuncia pela primeira vez a história da sua
paixao. Certamente, pode-se supor que em boa parte esse anún
cio, como os outros semelhantes,8 resulte de “vaticinia ex even-
168
In", isto é, seja fruto de elaboração e releitura pascal: 9 todavia,
i in um núcleo originário, que se referisse ao escândalo do
Messias sofredor, não se compreendería o comportamento pos-
lei ior de Pedro e a reação de Jesus. A combinação entre a per-
P11uta sobre a própria identidade e o anúncio da paixão por parte
,|e Cristo, na redação evangélica, tem então um efeito sugestivo:
<|< um lado, parece indicar o caminho através do qual se deve
procurar a face do Filho do Homem e, ao mesmo tempo, de
outro lado, desmonta os esquemas da expectativa expressa por
Pedro. Isto é, parece que Jesus quer mostrar a sua face na dor,
i uino se o seu mistério se revelasse nas trevas de sofrimento,
i'-provação e morte da sexta-feira santa. Jesus contrapõe ao Mes-
iiis “homem-divino” do seu discípulo, o Messias Deus-ho-
iiu-m”,10 que se manifesta, contra toda expectativa, nas coisas
desprezadas e rejeitadas pelos homens. “Crux Christi unica est
eruditio verborum Dei, theologia sinceríssima (Lutero): nao
In outra ilustração das palavras de Deus fora da Cruz, teologia
em fingimentos. Somente ela põe à prova os pensamentos e
revela os que são de Deus e os que são dos homens: Crux
probat omnia” (Lutero). Todavia, o anúncio da paixão desem
boca no de uma realização, inesperada e nova: a fé pascal da
comunidade sabe que, sem a Ressurreição, a própria Cruz seria
va. A face de Cristo revela-se plenamente na conjunção inau-
dita da sua morte ignominiosa com a sua Ressurreição: a Cruz
M-in a Ressurreição seria o derradeiro reconhecimento da impo
tência humana; iluminada pela Ressurreição, é a Cruz do Filho
«Ir Deus, que morre em nosso lugar e por nós, solidário com o
sofrimento do mundo. A Ressurreição sem a Cruz seria a pro
clamação de uma vitória sobre um inimigo que não se conhece,
o anúncio de um poder tão grande a ponto de ser desumano;
com a Cruz, é a Ressurreição do Crucificado dentre os mortos
c a ressurreição dos que morreram nele, é a proclamação da
vitória de Deus a esta terra de mortos e de crucificadores, que
c a nossa terra. A Ressurreição é o sim de Deus: a Cruz mostra
a Quem é dito esse sim. Sem a Ressurreição, a Cruz seria cega,
sem futuro e sem esperança; mas sem a Cruz, a Ressurreição
seria vazia, sem passado e sem concretude. O caminho da cristo-
169
logia deve então manter juntas a Cruz e a Ressurreição, se
quiser procurar a face do Senhor Jesus sem falsificá-la ou redu
zi-la à medida dos horizontes do mundo. A “palavra da Cruz” e o
anúncio pascal da Ressurreição são os dois aspectos gritantes e
inseparáveis do paradoxo cristão.
Mas tudo isso não ocorre sem um grande e forte escândalo:
a expectativa de Pedro é contrariada e desfeita, e com ela todas
as expectativas que através dos séculos foram projetadas sobre o
Cristo. Ele não é a resposta às nossas expectativas, mas a sub
versão dos nossos pedidos. Ele abala implacavelmente todos os
modos humanos de falar dele, todas as tentativas de aprisioná-
-lo nas malhas do nosso pensamento: eis por que “o critério
permanente para julgar se falamos corretamente do envio do
Filho de Deus reside nisto: se num determinado ponto não
damos a todos os métodos humanos de investigação o especial,
puro e forte escândalo que lhe é característico, certamente esta
mos falando de algo diferente”.11 Esse “critério do escândalo”
vale tanto para as cristologias de ontem quanto para as de hoje:
também hoje é possível seguir o caminho de Pedro, o sonho de
um Messias homem-divino, que corresponde às expectativas mais
profundas da história do mundo. O Deus-humano, o Senhor
Jesus dos evangelhos subverte a imagem de um Messias que
obedeça à idéia que é possível fazer-se racionalmente de Deus,
isto é, de um Cristo incontaminado nas suas perfeições divinas,
revelador de um Deus que não sofre e não espera (como reza
vam os manuais tradicionais de cristologia); da mesma forma,
subverte a idéia de um Messias que realize em si a abertura do
homem ao infinito, que se ofereça como resposta absoluta à
autotranscendência humana (K. Rahner), ou que até realize em
si mesmo o caminho da evolução do cosmos, como ponto ômega
do devir da própria matéria (P. Teilhard de Chardin). O Cristo
dos Evangelhos acaba também com a nostalgia de um Messias
da restaufação dos valores eternos, paladino do passado e do
status quo”, sob marcantes aparências “espiritualizantes”; como
também não se deixa identificar com um Messias da revolução
puramente social e política.12 O sonho de Pedro reaparece, sob
170
.liversas formas, nessas propostas: com muita freqüência elas
pirpam o Cristo na cruz das expectativas humanas, em vez de
pregar as expectativas dos homens na cruz de Cristo. Nelas de-
Hiiparece a novidade absoluta, improgramável e subversiva, que
é oferecida ao homem no Ressuscitado dentre os mortos, e que
r lumpimento e escândalo de todas as possíveis deduções, tira-
■ l.r. das expectativas do mundo. O Crucificado ressuscitado pelo
I’mi subverte esse modo de proceder: quem pensa de acordo com
... homens não pode atingir o cerne do seu mistério, mas so-
nicnle quem se dispõe a ouvir de modo radical e obediente à
manifestação inaudita de Deus no seu Cristo; nem pode anun-
, lar o evangelho do Deus cristão quem quer cristianizar a todo
. usto o que há de positivo no mundo, ou satisfazer os gostos
ilns seus ouvintes, mas somente quem tem a coragem de contes-
ló los e mudá-los. “Vere verbum Dei, si venit, venit contra sen-
-.iiiii e votum nostrum” (Lutero): a palavra que Deus disse aos
homens em Jesus Cristo contradiz a nossa sensatez e o nosso
, 1, jo. A face do Deus cristão deve ser procurada unicamente
onde a palavra que escandalizou a Pedro mostrou que ela está
presente: na obscuridade da sexta-feira santa e na luz da' Páscoa.
"S c quisermos saber quem é Deus, devemos ajoelhar-nos aos
pés da Cruz” (J. Moltmann): e ao mesmo tempo, devemos
ah rir-nos à impossível possibilidade que foi descerrada na Pás-
I OH. Quem procura em outra parte, não pensa de acordo com
I >cus, mas de acordo com os homens.
À cristologia da palavra da Cruz e da Ressurreição une-se
então necessariamente uma cristologia do silêncio: Uma doutri
na sobre Cristo se inicia no silêncio... Falar de Cristo significa
171
calar, calar sobre Cristo significa falar. Um correto falar <ln
Igreja resultante de um correto calar é o anúncio do Cristo"
(D. Bonhoeffer). Essa cristologia do silêncio é adoração do mis
tério e experiência contagiante de vida libertada e libertadora.
Uma cristologia que rompe com todo cálculo e projeto humano
e abre à revolução de Deus, verificada na ressurreição do Cru
cificado. Uma cristologia “rompida”, provisória e peregrina,
antecipação militante — na luta pela justiça e no anúncio da
paz dada em Jesus Ressuscitado — do futuro nele prometido.
Uma cristologia que fala e cala; luta e contempla; “canta c
caminha (Agostinho). “Todas as deduções cristológicas tiradas
da Ressurreição de Jesus... antecipam alguma coisa que se de
monstrará real aos olhos de todos só no futuro escatológico,
embora já tenha acontecido no passado em Jesus. Essa estrutu
ra proléptica explica a inadequação e a provisoriedade de todo
discurso cristológico. Com efeito, é da experiência, que ainda
não é o éschaton, que tiramos as palavras que nos servem para
exprimir a realidade escatológica que apareceu em Jesus. Por
tanto,, todas as proposições cristológicas têm um sentido figura
do... Somente o éschaton revelará definitivamente o que de fato
aconteceu na Ressurreição de Jesus”.13
A cristologia da Palavra, sempre incompleta, remete assim
a uma cristologia pobre, ativa no silêncio denso de escuta que
muda a vida, e no serviço generoso da práxis de libertação dos
pobres e dos oprimidos, em que a vida ultrapassa infinitamente
a palavra.
Sob esta luz, as reflexões que se seguem — tentativa de
uma cristologia da Palavra que se fez história, para que a
história se tornasse, na esperança, epifania da Palavra — que
rem ser a premissa de uma cristologia do silêncio, feito de
escuta, de.louvor e de dias gastos ao serviço dos homens. Se o
que vamos dizer não desembocasse na alegria da adoração e no
compromisso vigilante e apaixonado para abater as estruturas
de iniqüidade edificadas sobre o sangue e a carne dos últimos,
as palavras que se seguem teriam falhado em seu objetivo e traí
do a esperança que as anima. Todas as teologias deste mundo,
efetivamente, “não valem um gesto de solidariedade autêntica
172
i um os homens, com as classes e com os povos oprimidos. Não
valem um ato de fé, de caridade e de esperança, praticado na
pniticipação ativa para libertar o homem de tudo o que odesu-
mniiiza e o impede de viver segundo a vontade do Senhor” .14 A
t< .posta teológica à pergunta sobre Cristo é apenas o início de
mu estilo de vida, que hoje se consome entre as contradições
inauditas do presente, e se completará definitivamente amanhã
mi glória do Reino que vem.15
173
questione cristologica. Un bilancio, Bréscia, 1980; P. Schoonenberg, Un
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in Ciência Tomista 105 (1978), pp. 279-90.
174
Sobre as cristologias atuais, além dos boletins bibliográficos e dos
números monográficos de numerosas revistas, cf. H. Bourgeois, Libérer
Jésus. Christologies actuelles, Paris, 1977; W. Dantine, Jesus von Naza-
reth in der gegenwãatigen Diskussion, Gütersloh, 1974; J. Galot, Alia
ricerca di una nuova cristologia, Assis, 1971; R. Lachenschmid, "Cristo-
logia e soteoriologia” in Bilancio delia teologia deli X X secolo, III,
Roma, 1975, pp. 89-128; G. Moioli, “Status quaestionis” dei discorso
teologico oggi: presentazione e prime reflessioni” in II problema cristolo-
gico oggi, op. cit., pp. 198-240; B. Mondin, Le cristologie moderne,
Alba, 1979, 3- ed.; C. Porro, Cristologia in crisi? Prospettive attuali,
Alba, 1975; K. Reinhardt, “Nuove vie delia cristologia cattolica contem
porânea” in Communio n. 31, pp. 44-60; E. Rodriguez, El problema cris-
tológico en la actual Búsqueda Teológica Latinoamericana (Diss.) Müns-
ter,1976; A. Schilson — W. Kasper, Cristologie oggi, Bréscia; 1979; B.
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le” in L e Christ, hier, aujoud’hui et demain, op. cit., pp. 1-43; Id., Jésus
Christ à Timage des hommes. Brève enquête sur les déformations du
visage de Jésus dans 1’Aglise et dans la societé, Paris, 1978.
175
7
176
a carne” é a vicissitude terrena do Nazareno, que foi conhecido
na humildade e foi morto rejeitado pelos homens, traído pelos
seus, abandonado por Deus na obscuridade da sexta-feira santa.
Jamais se sublinhará suficientemente a vergonha da cruz: “Mal
dito todo aquele que é suspenso no madeiro!” (G1 3,13). “Ne
nhum homem ajuizado deveria empenhar-se em exumar e chantar
o funesto madeiro do martírio, a coisa mais repugnante que há sob
o sol (Goethe). Cruz significa solidão, desprezo, fracasso, dor
e morte sem aparente futuro. Cruz é contra-senso, negação de
toda pretensão, última agonia do pobre que não teve ninguém
a defendê-lo. Não existe homem que ame a vida e ainda tenha
a coragem de existir, que possa amar ao mesmo tempo a cruz
em si mesma, saborear a dor absurda do negativo. A tremenda
angústia do Getsêmani é a prova de que Jesus também não
pôde amar a cruz em si mesma. A cruz é a soma e a representa
ção fiel de toda dor humana, da dor humana total, o triunfo do
mal, a vitória da morte: jamais como nela a terra esteve tão lon
ge do céu, com toda a pesada obscuridade que a caracteriza.
Sobre a cruz morre o homem, esmagado pelo peso da injustiça
e do ódio: mas morre também Deus, porque parece não haver
mais esperança nem amor que salve. O abandono dos discípulos
naquelas horas obscuras é totalmente compreensível: onde tudo
parece acabar no nada, não há mais lugar para o impulso da
esperança e para a generosidade do seguimento. É a agonia e o
estertor das possibilidades humanas...
Contra tudo isso está, na sua inaudita novidade, a glória
do Ressuscitado, o Cristo “segundo o Espírito” : o mundo de
Deus entra no mundo dos homens e o subverte. Não há analo
gia que se sustente, não há experiência humana capaz de tradu
zir o que aconteceu na Páscoa. É o absolutamente novo que
arremete contra o fim, e o transforma em princípio, que vence
a morte e a transforma em vida. É a confirmação reveladora
da pretensão absoluta apresentada na sua vida pelo Nazareno, e
a proclamação escandalosa de que quem morreu na cruz é o
Senhor, aquele que é de condição divina e traz a salvação aos
homens. A sua morte, então, é a morte de Deus, mas precisa
mente por isso é também a morte da morte: Deus vive! O seu
fim insensato é loucura de Deus, mas precisamente por isso é
mais sábio do que a sabedoria dos homens. A sua fraqueza infi
nita é a fraqueza de Deus, mas precisamente por isso é mais
177
forte do que os homens (cf. ICor 1,25): Deus vence! O Ressus
citado por Deus é por Ele acolhido e confessado como Senhor
e Cristo: a maldição da cruz se torna assim bênção e promessa
do Espírito mediante a fé (G1 3,14). Ressurreição significa co
munhão, glória, acolhimento, vitória, alegria e vida, promessa
que não desilude. O Pai, ressuscitando o Filho no Espírito, diz
sim à sua história de humilhação e, nela, à história do mundo, e
por isso derrama o Espírito através do Filho sobre toda carne,
para que a contagie com a vida do alto. Na Ressurreição certa
mente não se “abre” o futuro, como se o fim já fosse todo dado
e só faltasse um tempo “entre parênteses”, já descontado para a
sua realização: se assim fosse, a história se “fecharia”.1 Na Res
surreição, porém, enquanto dom do Espírito ao Crucificado e
nele a todo homem que geme e sofre neste mundo, é dado o
penhor e fundada assim a certeza de que o próprio Deus é, com
o homem, o artífice do futuro em Cristo no Espírito, e de que
por isso, apesar de tudo e contra tudo, o futuro último será um
futuro de bem. O Deus e Pai de Jesus se mostra na Páscoa como
“um Deus da história que tem ‘tempo’ para o homem”,2 um
Deus que se comprometeu com os crucificados e triunfa no
último dia, como triunfou em Cristo, dando assim fundamento
ao compromisso e à esperança. Em Cristo ressuscitado, a terra
não está mais longe do céu: “os dois mundos são reconciliados,
e o céu desceu à terra e nela mergulhou as raízes” (Hegel). To
davia, essa reconciliação não significa confusão ou ausência de
escândalo: o mundo da Ressurreição continua sendo um mundo
novo e diferente, que subverte os horizontes deste mundo. A
história de Deus toca a história do homem, e nela penetra com
uma profundidade impressionante: o Espírito. Mas isso não sig
nifica que uma história se dissolva na outra: 3 Deus continua
178
sendo o Novo, o improgramável, o surpreendente, livre e liber
tador. Se não é possível enfatizar suficientemente a vergonha
da Cruz, também não será possível enfatizar bastante a novi
dade da Ressurreição!
Todavia, entre esses dois estágios contrapostos, a experiên
cia pascal proclama uma continuidade paradoxal: o Ressuscitado
é o Crucificado, o Humilhado é o Exaltado; Jesus é o Senhor;
Cristo é Jesus. É estabelecida uma identidade entre a história da
Páscoa e a história do Nazareno: e essa identidade reside no
mesmo e único sujeito de ambas as histórias, no mesmo Jesus,
ao qual se atribui a vergonha da cruz e a glória pascal. N ele os
dois mundos são reconciliados: nele Deus tomou posição sobre
o passado, o presente e o futuro, fez história. Em relação ao
passado, com a Ressurreição mediante o Espírito, o Pai confes
sou a história de Jesus de Nazaré com história de seu Filho
enviado a este mundo. Jesus era o Filho e Senhor já na humilda
de da sua vicissitude entre os homens. Em relação ao presente,
Deus atestou, ressuscitando-o, que Jesus é no Espírito o Viven-
te, o Cristo que realiza “hoje” as promessas divinas, porque é
“hoje” o Deus conosco na Igreja e na história. Em relação ao
futuro, o Deus que ressuscita o Crucificado no Espírito garante
que, no mesmo Espírito, Jesus será o Senhor do tempo futuro;
portanto, não somente Aquele que virá na glória, mas também
Aquele que vem todos os dias para fazer novas as coisas anti
gas na novidade da vida divina. O m esm o Jesus é confessado na
Ressurreição como “Aquele que é, que era e que vem” (Ap 1,4),
“o Alfa e o Ômega” (Ap 1,8), Aquele que une em si o mundo
passado e as coisas vindouras e novas, a humilhação da Cruz
e a glória que se manifestou na Páscoa e se manifestará plena
mente no último dia. Com a Ressurreição, Deus toma posição
no Espírito sobre esse Jesus, o mesmo que era, que é e que
será. Jesus Cristo, Crucificado-Ressuscitado, é em si mesmo o
encontro dos dois mundos, da carne e do espírito, da história
dos homens e da história de Deus. Ele foi, é e será o sujeito
dessas duas histórias; ele, que viveu entre os homens, em con
tato com eles, e foi exaltado por Deus, que assim manifestou a
relação única e inaudita que o une a si no Espírito. Jesus Cristo
é em si mesmo a aliança, que faz da história dos homens história
179
de Deus, e da história de Deus história dós homens. Por isso,
quem crê nele, como atesta a experiência dos primeiros cristãos,
sabe que é deste mundo, mas que pertence ao mundo que há de
vir, vive entre os homens amando e servindo, lutando e gemen
do, mas com a esperança subversiva e crítica, que já antecipa
o futuro prometido. A identidade na contradição, que é a “luz
pascal” transmitida pelas primitivas fórmulas de anúncio e de
confissão de fé e pelos relatos pascais das aparições, funda assim
a identidade na contradição da Igreja com o mundo, o estilo de
vida pascal da comunidade peregrina: o sangue da Igreja dos
mártires atesta a generosidade apaixonada de homens que fize
ram de sua vida anúncio e dom por amor dos outros, e ao mes
mo tempo a sua liberdade crítica perante toda realidade terrena
com pretensão de realidade absoluta. Fiéis ao mundo presente,
ao qual oferecem a esperança maior, os mártires são fiéis ao
mundo que há de vir, garantido na Ressurreição de Jesus Cristo,
ao qual testemunham incodicionada confiança e obediência, na
vida e na morte, contra qualquer ídolo deste mundo.
180
contradição” experimentada pela Igreja das perseguições e dos
mártires para a “unidade na dualidade”, que vai se estabelecen
do entre o poder político e o poder eclesiástico, vistos mutua
mente como expressão de uma mesma autoridade, que funda a
sua recíproca harmonização. O Cristo “segundo a carne” se torna
o Cristo “enquanto homem”; o Cristo “segundo o Espírito” é
visto como o Cristo “enquanto Deus”. Aquilo que era história,
dinamismo, evento, é interpretado como condição, natureza,
qualificação do ser. Os “estágios” tornam-se “estados”. A pró
pria força paradoxal da contradição pascal é extinta: fala-se, é
claro, de dualidade de naturezas, mas esse conceito é aplicado
tanto ao ser homem de Jesus quanto a seu ser Deus. É verdade
que em Calcedônia o termo “natureza” tem mais um valor for
mal do que de conteúdo; isto é, ele exprime mais uma pergunta
(o que é?) do que uma afirmação. Todavia, o uso que se fará do
dogma no aprofundamento posterior, também à luz da dupla,
simétrica consubstancialidade atribuída ao Cristo (em relação
ao Pai e a nós), muitas vezes irá interpretar materialmente essa
idéia, vendo a humanidade e a divindade de Cristo não como
pólos de uma relação assimétrica, “rompida”, mas como ele
mentos paralelos de uma simetria metafísica. Dessa forma, é
amortecido o escândalo do mundo de Deus que no Ressuscitado
entra no mundo humano e o subverte. Esse processo se reflete
na crescente assimilação da Igreja ao “sistema” do império, e
por sua vez é influenciado por ele. A contradição da Ressurrei
ção em relação à Cruz, do mundo futuro e novo em relação às
coisas passadas, do Deus cristão em relação ao presente, é ate
nuada na fé e na práxis dos cristãos.
Com a mudança de percepção da “contradição” pascal,
muda também a maneira de perceber a identidade inaudita pro
clamada na Páscoa: no anúncio das origens ela proclamava que
Deus Pai, ressuscitando no Espírito a Jesus de Nazaré, o havia
reconhecido como Senhor e Cristo, e que portanto o sujeito do
estágio de humilhação era o mesmo do estágio de exaltação e da
glória nele prometida. Esse evento complexo é desmembrado
pelo “desgaste conceituai” da reflexão dogmática em dois cam
pos de questões: de um lado, contra as heresias cristológicas,
vem-se acentuando a unidade do sujeito entre os estágios da
história de Cristo e a identidade de condição desse sujeito com
relação a Deus e aos homens; de outro, contra as heresias tri-
181
nitárias, que nas formas mais profundas apelam para a instância
monoteísta, vem-se sublinhando a distinção e a unidade entre
os três que estão presentes no evento do ressurgimento do Cru
cificado e que operam na história por ele descerrada. O Pai, que
ressuscita, é posto em relação com o Filho, que é ressuscitado,
na unidade do Espírito, que dá vida àquele que morreu sobre
o lenho e estende a sua obra atualizando-a no tempo dos ho
mens.4 No processo de des-historicização do querigma a identi
dade pascal na contradição é traduzida como unidade pessoal na
dualidade das naturezas, quando se fala de Jesus Cristo; e como
trindade de Pessoas na unidade da substância, quando se fala
do Pai, do Filho e do Espírito. Nas primitivas confissões de fé
a identidade é referida a um evento, isto é, ao ressurgimento de
Jesus no Espírito por parte de Deus Pai, que assim reconheceu
no mesmo Nazareno o Senhor e Cristo, ao passo que na fórmu
la calcedoniana o único e mesmo Jesus Cristo é visto como a
única pessoa do Filho de Deus, que “hipostatiza” as duas natu
rezas, de um lado contra o dualismo nestoriano, e de outro con
tra a confusão monofisista. No querigma das origens, Pai e Filho
são correlatos no Espírito num evento escatológico-salvífico, ao
passo que nos símbolos da Igreja a preocupação dominante é a
de afirmar a igual divindade dos três (consubstancialidade) —
quanto ao Filho em Nicéia (325), quanto ao Espírito em Cons-
tantinopla .(381: cf. também o Sínodo romano de 382).5 Um
quadro historio salvífico é substituído, assim, em ambos os desen
volvimentos, por um quadro ontológico-conceitual, que, embora
não traía a estrutura do querigma originário, tende a esvaziá-la
de carga histórico-dinâmica, transpondo-a para um horizonte cul
tural e sociopolítico completamente diferente. As perguntas fun
damentais da reflexão teológica tornam-se então estas: O que
significa que. em Jesus’ Cristo há uma pessoa em duas nature
zas? O que dignifica que no Deus cristão é única a substância
na trindade das Pessoas?
182
O “desgaste conceituai” da fé cristã vai-se concentrahdo
assim na idéia de “pessoa”, presente em ambas as perguntas: 6
podemos distinguir duas linhas, que se desenvolvem respectiva
mente no âmbito dos dois contextos, originariamente compreen
didos no anúncio pascal.
183
bitas do Concilio de Florença (1442),8 mas, já nessa for
mulação, muito anterior a ele.9 A expressão dá a entender
que o que constitui as pessoas divinas é o seu “essere ad”,
a relação, que ao mesmo tempo as une entre si e as cons
titui em sua singularidade (“relação subsistente”). Nessa
linha interpretativa pode-se situar também a reflexão he-
geliana sobre o conceito de pessoa em Deus: “Hegel res
pondeu às objeções da razão sobre a impossibilidade da
unidade de uma Trindade apelando para o fato de que a
essência da pessoa está no dar-se ao outro e no ganhar a
si mesma precisamente no outro. A unidade de Deus é
assim entendida como a unidade do Amor que se realiza
no mútuo dar-se das três pessoas”.10 O moderno persona
lismo e a filosofia do diálogo — de E. Mounier, a F. Ro-
senzweig, a F. Ebner, a M. Buber — retomam e desenvol
vem a idéia de pessoa como relação dialogai: pessoa é o
ser que é e vive enquanto eu e tu e nós. Ela não é somente
o ser em si, de si e para si, mas também e sobretudo o ser
no ojutro, do outro e para o outro. A experiência originá
ria e originante da pessoa é a comunicação, o poder dizer
eu, o poder chamar e ser chamado por tu.11 Essas reflexões
são conduzidas no âmbito de um interesse principalmente
antropológico; mas elas dependem do desenvolvimento
teológico do conceito, e se interessam pela relação homem-
-Deus, ainda que nem sempre evitem o risco de uma pura
transposição da relação inter-humana eu-tu para a relação
homem-Deus.1213
A outra linha de aprofundamento do conceito de pes
soas parte do interior da problem ática cristológica, embo
ra no princípio utilize os termos da teologia trinitária. Em
Cristo se afirma a unicidade de prósopon e hypóstasisP
Este segundo termo havia conhecido uma curiosa evolução
8 DS 1.330
9 Cf. S. Anselmo d’Aosta, D e processione Spiritus Sancti, 2; PL 158,
288 C. Cf. H. Mühlen, “Person und Appropriation. Zum Verstãndnis
des Axioms: In deo omnia sunt unum, uíú non obviat relationis oppo-
sitio” in Münchener Theologische Zeitschrift 16 (1965), pp. 37-57.
10 W. Pannenberg, "Person”, op. cií., p. 232.
11 Cf. especialmente E. Mounier, II personalismo, Roma, 1967, e
J. Endres, Personalismo, esistenzialismo, dialogismo, Roma, 1972,
12 Cf. A. Milano, op. cit., 1978.
13 Cf. a definição calcedoniana: DS 302.
184
de significado. Ainda em Nicéia, ele é usado no sentido
de ousía, ao qual corresponde a sua transposição literal
latina substantia, tanto que se condenam os que afirmam
que o Filho de Deus é “de outra hipóstase ou substância”
com relação ao Pai.14 Em Calcedônia, ao contrário, hipós
tase torna-se o equivalente de pessoa prósopon, a ponto
de se afirmar a única hipóstase do Filho Jesus Cristo, que
certamente é outra com relação à do Pai! Essa diversida
de terminológica é sinal de certa separação, que irá se
aprofundando, entre reflexão cristológica e teologia trini-
tária: ocorrerá, então, que na primeira se usarão concei
tos totalmente inutilizáveis na segunda. É o caso da famo
sa definição, que se encontra em Boécio, e que teve tanta
importância na elaboração conceituai da cristologia: “A
pessoa é uma substância individual de natureza racio
nal”.1516Se for aplicada à reflexão trinitária — que confes
sa a unidade de substância em Deus — essa idéia leva à
dissolução da Trindade pessoal.10 Por isso será ne
cessário usar um duplo aparato conceituai: enquan
to que para a Trindade se falará de pessoa como
“relação subsistente”,1718 em cristologia se colocará o
problema de definir em que consiste o elemento que
constitui a pessoa enquanto tal, o seu “constitutivo for
mal”. Sto. Tomás, em contexto cristológico, fala da pessoa
como “o que há de mais perfeito em toda a natureza”, e,
sublinhando que em Deus ela não deve ser entendida “do
mesmo modo que para as criaturas”, define-a, na linha de
Boécio, como “subsistente de natureza racional”, acentuan
do sobretudo a sua “incomunicabilidade” .1S Percebe-se a
fragilidade desse conceito, ao ser usado em teologia trini
tária, onde única é a subsistência, num mútuo, fecundo
14 DS 126.
15 A.M.S. Boécio, Liber de persona et duabus naturis, III: PL
64, 1.343. Cf. M. Elsãsser, Das Person-Verstãndrtis des Boethius (Diss.),
Münster, 1973.
16 Cf. J. Galot, Chi sei tu, o Cristo? Florença, 1977, pp. 269ss. (Os
caminhos divergentes: trinitário e cristológico).
17 Cf. a doutrina trinitária de Sto. Tomás, por exemplo: I Sent.,
dist. 23, a. 3, in fine corp.; D e Pot., q. 9, a. 4; Summa Theol. I, q. 29,
a. 4 etc. Cf. A. Malet, Personne et amour dans la théologie trinitaire de
saint Thomas d’Aquin, Paris, 1956, p. 92.
18 Cf. Summa Theologica, I, q. 29, a. 3, espec. ad 4.
185
comunicar das Pessoas. As demais tentativas escolásticas
também não saem dessa aporia, ao procurarem determi
nar em várias direções o constitutivo formal da pessoa: 19
Duns Scoto o indivíduo na qualidade de “independência”
e Tifânio na de “totalidade”, evidenciando dessa forma
o fato de que a pessoa é uma entidade completa, e não
parte de um todo. Mas o inconveniente dessa proposta está
em reduzir o específico pessoal a uma qualidade ou pro
priedade da natureza, com a conseqüência de não reconhe
cer suficientemente a plena humanidade do Cristo — cuja
natureza humana seria incompleta, faltando tal proprie
dade — , nem a distinção das pessoas em Deus, que não pas
sariam de simples propriedades da única natureza divina.
Outros (Caetano, Suárez) captam o “proprium” da pes
soa num “modo substancial” da natureza: se esta explica
ção distingue melhor entre natureza e pessoa, e pode apli
car-se analogicamente à Trindade, contudo não esclarece o
específico da pessoa em Cristo com relação às duas natu
rezas. Por fim, outros (Capreolo, Billot), afirmam que o
constitutivo formal da pessoa está na existência ou “esse” :
embora desse modo se evidencie a concretude existencial
do ser pessoal, não se explica a plena existência humana
do Cristo, que seria suprimida pela pessoa divina mima
espécie de “êxtase do ser” de sabor monofisista (ao menos
no plano existencial), nem, em campo trinitário, se motiva
a trindade das Pessoas, porque a unicidade de existência
divina deveria traduzir-se numa unicidade de pessoa.20
Por isso todas essas tentativas demonstram-se insuficien
tes: não conseguem esclarecer a estrutura metafísica de
Cristo, da qual sem dúvida se ocupam prioritariamente,
nem sãQ utilizáveis na reflexão trinitária. Elas ficam pri
sioneiras de um horizonte ontológico, ao qual escapa a
186
originalidade histórico-concreta da pessoa. Eis por que o
pensamento cristão “não pode limitar-se a traduzir a onto
logia aristotélica, mas deve superá-la com coragem, com
toda a audácia implicada no mistério da Encarnação”.21
À colocação metafísica tradicional reage a idade moderna,
com o seu novo interesse pela subjetividade: procura-se
desenvolver a interpretação do conceito de pessoa inde
pendentemente do de ser. Já }. Locke se esforça por defi
nir a pessoa a partir da autoconsciência.22 Inicia-se assim
o divórcio entre ser e consciência, que caracteriza, como
problema aberto, o pensamento moderno. Ele se reflete,
em cristologia, no debate contemporâneo sobre a consciên
cia de Jesus, no qual todavia as posições tradicionais vol
tam a aparecer, ainda que de forma renovada. Assim, P .
Parente, na linha da tradição tomista, vê um único centro
de atividade na pessoa divina do Cristo, e por isso afirma
também que há nele psicologicamente um único Eu divi
no, imediatamente consciente da natureza humana; 23 P .
Galtier, ao contrário, na perspectiva antioquena e depois
escotista, sublinha a dupla consciência de Cristo, referindo
a consciência à natureza, e resolvendo o problema da uni
dade psicológica de Jesus com a suposição da visão de
Deus por parte do Eu humano.24 Essas propostas, embora
provocadas pela sensibilidade moderna, não saem da pers
pectiva ontológica tradicional, e por isso são incompletas
como ela.
187
transpor os conceitos de natureza e de pessoa para a linguagem
do nosso tempo; tenta-se carregar esses conceitos com a concre-
tude do dado bíblico, redescobrindo-se sobretudo a plena huma
nidade do Nazareno; propõe-se, nessa perspectiva, mudar o pa
pel das partes com relação a Calcedônia, falando-se não mais
de uma pessoa divina sujeito também da natureza humana em
Jesus, mas de uma pessoa humana, que nele seria sujeito tam
bém da pessoa divina; 25 decide-se simplesmente abandonar os
termos das formulações antigas, em busca de novas formas
expressivas, de uma diferente “semântica do mistério” . “Mas
tudo isso permanece em nível embrionário; é como água em
comparação com o forte vinho teológico oferecido pela revela
ção. Por isso a melhor disposição crítica e obediencial de quem
crê é confiar no patois de Canaã, naquela linguagem da revela
ção, em que estranhamente homens de todos os tempos e luga
res conseguem estabelecer “vínculos viçosos” com o que é
proclamado. No “dialeto de Canaã” sublinham-se categorias e
termos sensatos, ainda não tornados aporéticos pela identifica
ção com uma cultura ou com uma filosofia. E então se manifes
tará como produtivo, diante do sentir humano, não um antropo-
morfismo qualquer, mas precisamente aquele que se realiza na
forma da realidade ontológica, ou seja, Deus na forma hu
mana” .26
188
experiência originária e originante de fé cristã, que é a expe
riência pascal do Crucificado-Ressuscitado, “vínculos novos”,27
capazes de torná-la sensata para os homens de hoje, como o foi
para os Padres na linguagem de Nicéia e de Calcedônia. Isso
significa traduzir novamente as categorias ontológicas, que do
minaram o “desgaste conceituai” do desenvolvimento da refle
xão cristã, para categorias históricas, próprias do universo bíbli
co e particularmente apropriadas à sensibilidade do mundo mo
derno, que se compreende sempre menos como sistema ordenado
e completo, e sempre mais como devir, como processo, como
história.28
189
do presente neste, em todos os tempos, a reconciliação operada
pelo Ressuscitado e o poder da promessa feita por Ele. Páscoa é
história do Espírito, que nela se situa como sujeito de relações
livres e libertadoras com os homens, com o Pai, com o Filho,
crucificado e ressuscitado. Por fim, com a Ressurreição, o pró
prio Jesus se situou; revela-o a própria tradição lingüística que
fala desse evento na forma ativa: Jesus ressuscitou! (cf., por
exemplo, Mc 16,6).30 Com relação ao passado, ele justificou a
sua “pretensão” pré-pascal; com relação ao presente, ele se colo
ca como o Vivente, Filho do Pai e Senhor dos homens no Espí
rito; com relação ao futuro, ele se oferece como aquele que no
Espírito será sempre o Mediador entre o mundo e o Pai, aquele
que deve vir para fazer novas todas as coisas: “Eis que eu venho
em breve” (Ap 22,7). Portanto, o Ressuscitado é sujeito de his
tória, Vivente que toma posição com relação ao Pai e aos homens
no Espírito, no qual trava relações com um e com os outros.
Páscoa é história do Filho, Jesus de Nazaré.
Enquanto história do Pai, do Filho e do Espírito, Páscoa é
então história trinitária de Deus, que vem unir a si a história do
mundo: no evento da Ressurreição, o Deus cristão se revela
como tríplice sujeito de história. Na unidade dinâmica do ato
escatológico que se realiza ao “terceiro dia” da morte do Naza
reno, Deus se oferece como Pai, que dá a vida ao Filho e nele
aos homens,- Filho que recebe a vida do Espírito e a derrama
sobre toda a carne, Espírito que une o Pai ao Filho e nele a toda
a história do mundo. A trindade do Deus cristão apresenta-se
assim como a exegese mais apropriada da unidade na contradi
ção que liga Cruz e Ressurreição: a Ressurreição é a tomada de
posição dos Três, o seu recíproco situar-se; a Cruz é o já em
relação ao qual os Três se situam, e sem o qual a Ressurreição
permanecería - um ato da história intradivina, sem significado
para a história, do mundo. “ ‘Conceitos sem intuição são vazios’
(Kant). A intuição do conceito trinitário de Deus é a cruz de
Jesus. ‘Intuições sem conceitos são cegas’ (Kant). O conceito teo
lógico da intuição do Crucificado é a doutrina trinitária. O prin
cípio material da doutrina trinitária é a cruz de Cristo. O princí
pio formal do conhecimento da cruz é a doutrina da Trindade”.3031
190
A essa altura é possível captar a força originária que corres
ponde, no querigma, ao conceito, posteriormente elaborado, de
“relação subsistente” : é no evento escatológico do Crucificado-
-Ressuscitado que os Três se revelam ao mesmo tempo sujeitos
de relações recíprocas e da relação salvífica com o mundo. Por
tanto, falar deles como “pessoas” deverá significar reconhecê-los
como sujeitos dessas múltiplas relações reveladas na Páscoa, que
os constituem respectivamente como o Ressuscitante, o Ressusci
tado e o Espírito de Ressurreição, que liga um ao outro, e ambos
ao mundo. Mas essas relações fazem história, situam os seus
sujeitos no devir: eis que então pessoa deverá significar concre
tamente o sujeito de história, de uma história de relações divinas,
que unem a Fonte da vida, o Pai, Àquele que recebe vida ressus
citando da morte, o Filho, no Espírito, que é ao mesmo tempo
vida dada e doador de vida ao Crucificado e aos homens. E
“pessoa” também significará, com um sentido infinitamente
mais fraco, os sujeitos humanos de história, que no evento da
Páscoa são unidos ao Pai pelo Filho no Espírito, e, com esco
lha livre e consciente, são chamados a “situar-se” diante da inau
dita oferta de vida do alto, que lhes é feita na Ressurreição do
Crucificado. Na Páscoa, a história trinitária de Deus se une à
história humana, e a torna de certo modo sua: sua, porque a
história do homem Jesus é reconhecida como história do Filho;
sua, porque o presente da Igreja e do mundo é proclamado lugar
em que o Vivente opera no Espírito, derramando a vida rece
bida do Pai, e rompendo as iníquas cadeias da morte e do peca
do, pessoal e social; sua, porque o futuro é garantido como tem
po em que Deus se comprometeu pelo homem, no sentido de
que o Pai continuará, por Cristo, no Espírito, a tomar posição
em favor de todas as cruzes que forem levantadas sob o sol,
até que não haja mais cruz, isto é, injustiça, dor e morte, e o
Filho possa, no Espírito, entregar-lhe todas as coisas, e Deus
seja tudo em todos (cf. ICor 15,28). A história trinitária de
Deus, revelada na Ressurreição do Crucificado, é então o fun
damento da esperança que não decepciona: nela, Deus confes
sa ao homem que é verdadeiramente o seu Deus, e lhe garante,
no Espírito, levar a sério o seu futuro e nele se comprometer.
Ao mesmo tempo, o homem pode reconhecer que nessa história
de Páscoa não se trata de um mito sem consistência ou de um
jogo de conceitos sem força, mas de uma promessa que abala os
191
fundamentos da história, e é capaz de subverter o presente e
empenhar concretamente quem o acolhe em vista de um futuro
mais justo, possível de acordo com a impossível possibilidade
descerrada na Páscoa. Na ressurreição do Crucificado, a Trinda
de que se revela e torna sua a história do mundo diz a todo
homem, especialmente aos crucificados desta terra de injustiças
e de lágrimas: “Res tua agitur!” : você está em jogo!
Assim a história humana de Deus, que se realizou na
Páscoa, revela a face do Deus cristão: “quem fala cristãmente
de Deus deve narrar a história de Jesus como história que se
verificou entre o Filho e o Pai” no Espírito.32 “O ser de Deus
como se manifestou no evento de Cristo, tem em si a dualida
de, a tensão e a relação entre Pai e Filho”,33 no Espírito, no
qual Jesus foi ressuscitado: “Tudo o que se pode referir à reali
dade do Ressuscitado é enchido pelo poder de vida do Espírito
Santo”.34 A partir da ressurreição de Jesus Cristo, não é mais
possível pensar em Deus como na substância estranha e distante,
como no motor imóvel ou na instância moral puríssima; nem se
pode pensar nele como numa pessoa celeste abstrata. “Com efei
to, não existe um ‘Deus pessoal’ no sentido de uma pessoa que
se projeta no céu. Existem, ao contrário, pessoas em Deus: o
Filho, o Pai e o Espírito. Assim, não se ora simplesmente a
Deus, como se fosse um Tu celeste, mas ora-se em Deus. Não se
ora um acontecimento, mas neste acontecimento. Por meio do
Filho ora-se ao Pai no Espírito. Na fraternidade de Jesus, o
orante encontra acesso à paternidade de seu Pai e recebe o Espí
rito da esperança. Somente assim transparecerá claramente o
impulso cristão da fé”.35 O Deus cristão é Pai, Filho e Espírito,
empenhados na história de Páscoa, e por isso na história do
mundo: o futuro patenteado na Ressurreição está fundado na
garantia, nela oferecida, de que por Cristo o Pai reconciliará
consigo o mundo no Espírito. Todas as cruzes da terra serão
alcançadas pelo Espírito do Ressuscitado, como o foi a cruz
infame do Nazareno. A contradição da ressurreição de Jesus
com relação à sua morte é a mesma contradição do Deus trini-
tário com relação à realidade negativa do mundo. Trindade
32 Ibid, p. 288.
33 W . Pannenberg, Cristologia, op. cit., p. 199.
34 Ibid., p. 216.
35 J. Mcltmann, II Dio crocifisso, op. cit., 289.
192
significa, então, compromisso em favor do homem que o Pai
assume pelo Filho no Espírito. Trindade significa evento de sal
vação, história que funda o futuro da esperança, processo esca-
tológico iniciado na Páscoa para completar-se na glória final.35
Isso não significa que o Deus cristão se identifique com
o devir do mundo: Ressurreição é contradição e choque do
mundo novo de Deus com o velho mundo de pecado e de mor
te. Essa contradição significa, antes de mais nada, que embora
torne sua a história humana, o Deus trinitário permanece dife
rente do mundo e mais do que o mundo, livre e imprevisível
com relação a ele. A liberdade divina é evidenciada pela surpre
endente novidade daquilo que aconteceu na Páscoa: Pai, Filho
e Espírito Santo não se deixam aprisionar por um horizonte
terreno, mas — na Ressurreição — rompem as analogias e se
oferecem como o plano novo e diferente, o Outro que não é
semelhante, ainda que se faça semelhante, o Vivente que faz
novas todas as coisas. Nesta sua radical novidade, que é alteri-
dade e subversão do plano humano, o Deus trinitário mostra
também a sua profunda unidade: a história do Pai que no Espí
rito se dá ao Filho e o acolhe é história de uma realidade que
não é deste mundo, ainda que nele tenha entrado. É história de
Deus, que na sua divindade é diverso do mundo, embora o ame
e o reconcilie consigo no Crucificado-Ressuscitado. A unidade
dos Três é a sua pertença comum a esse outro “plano”, a um
“alhures”, que não se deixa reduzir aos horizontes terrenos,
ainda que neles irrompa. A história da Páscoa revela na huma
nidade de Deus a sua absoluta divindade. Essa unidade, todavia,
precisamente porque se revela numa história que rompe a histó
ria, não pode ser pensada em termos estáticos, e por isso de
morte (como poderia induzir a fazer um uso indiscreto do termo
“substância” aplicado à unidade de Deus): ela é desdobramen
to, que tem sua origem na fonte da vida, o Pai, para derramar-
-se no Filho, e através dele dar-se ao homem e voltar a si,
como intuiu o Oriente; é dinamismo de relações, no qual cada
pessoa se reencontra perdendo-se na outra, na entrega de si,
que é também a mais alta forma de ganhar a si mesmo, como
acontece na especulação do Ocidente.3637 A unidade do Deus trini-
193
tário é movimento de quem sai de si para ir ao outro, Pai que
se torna outro no Filho, Filho que assumindo uma verdadeira
história humana se torna outro no mundo, para se reencontra
rem unidos no Espírito, no ato temporal e eterno da reconcilia
ção, que carrega ao mesmo tempo na condição de Deus o Cru
cificado e o universo dos crucificados deste mundo. O Deus
trinitário, enquando sai inexaurivelmente de si e se dá ao outro,
é Aquele que ama, o Pai, Aquele que é amado e re-ama, o
Filho, Aquele que os une como amor, o Espírito: Deus é amor
(cf. ljo 4,8.16). A unidade trinitária, enquanto dinamismo do
pôr-se e do pro-por-se recíproco das Pessoas divinas, é portanto
uma história: a história divina eterna, que se revela na história
da Páscoa. “A Trindade econômica é a Trindade imanente” (K.
Rahner); o que Pai, Filho e Espírito realizam no evento pascal
é imagem, revelação daquilo que eles são em si mesmos, antes
que o mundo existisse. A história de Deus, revelada no parado
xo pascal, é a Trindade de Deus, que se desdobra no interior
insondável do seu mistério, e se oferece — não sem autêntico e
forte escândalo — como salvação e vida nova no Ressuscitado
dos mortos.
Portanto, o Deus cristão é um Deus que tem história, que
se torna: é Senhor que se faz Servo e Servo que se toma Senhor;
é Pai que na carne crucificada do Filho pronuncia o seu sim,
depois do doloroso abandono da cruz; é Espírito, que ressuscita
o Vivente da morte e produz as coisas novas e que hão de vir,
na sua inexaurível novidade. Lido no evento da Páscoa, o Deus
cristão nunca poderá ser interpretado como o Altíssimo imóvel
e imutável. Foi o pensamento grego que insinuou a suspeita de
impureza num Deus que venha a ser.38 Na realidade, toda a
194
revelação bíblica apresenta um Deus que tem “pathos” e devir,
que caminha com seu povo na alegria e na dor, que intervém,
que reage, se arrepende e faz festa. E, ao mesmo tempo, esse
Deus não muda na livre fidelidade às promessas que fez ao ho
mem: “Do ponto de vista histórico-salvífico, a imutabilidade
de Deus se mostra como a imutabilidade da sua fidelidade às
suas promessas como quer que ele as cumpra. No seu modo de
agir em virtude da aliança, Deus é a novidade absolutamente
imutável da sua liberdade e esta não exclui que ele reaja sobe
ranamente ao modo de agir humano”.39 O sinal supremo e escan
daloso dessa fidelidade sempre antiga e sempre nova do Deus
cristão, que se faz outro e venha a ser na permanência do seu
amor, é a Cruz do Senhor Jesus. “A morte do Filho de Deus,
a prova da onipotência de Deus na impotência da cruz, é a
expressão que excede a priori qualquer expectativa e qualquer
projeto prévio, da livre fidelidade de Deus às suas promessas”.40
A exegese cristã de Deus não se deixa prender nas malhas de
um sistema filosófico, mas, a partir do escândalo da cruz e da
inaudita novidade da Ressurreição, se desenvolve de maneira
subversiva e crítica: “O lugar da doutrina trinitária não é o
‘pensamento do pensamento’, mas a cruz de Cristo”.41 Portanto,
“não se pode determinar a priori um conceito de imutabilidade
de Deus, que depois se aplicaria à doutrina do mistério da Encar
nação e manteria esse mistério dentro de certos limites. A pró
pria Encarnação, com o compromisso divino que implica, nos
ensina que gênero de imutabilidade e de mutabilidade é preci
so reconhecer em Deus”.42 Aos “bem-pensantes” que protestam
diante de um devir divino, que implicaria pobreza e limitação
em Deus, o Deus cristão se mostra em todo o escândalo do
abandono de Jesus na cruz e da novidade pascal de vida recon
ciliada nele para o mundo. É um Deus dos pobres: as astúcias
da razão não se mantêm diante do estraçalhamento de toda ana
logia, que a Ressurreição representa. Fazendo-se história, embo
ra permaneça diferente dela, o Deus cristão aceitou unir a si o
escândalo da dor e da miséria do mundo, a história do pobre
que espera e caminha, o devir do sofrimento e da esperança
195
humana. Também aqui, não é lícito aos que ouvem a sua Pala
vra, separar o que Ele uniu!
196
de Deus e na “forma” de servo (cf. F1 2,6-7: m orphé, onde
“forma” quer dizer “o âmbito em que nos encontramos e que
nos envolve como um feixe de forças” (Kãsemann). É o homem
de Nazaré e é o Filho de Deus! Não é, como mostra desde as
origens da fé cristã a doutrina da preexistência e como o desen
volvimento do dogma repetiu contra as diversas heresias, um
homem que se torna Deus: é o Filho de Deus, que se fez homem,
conservando sempre, também no estado de humilhação, a sua
inaudita relação com o Pai, a sua condição única de sujeito na
história divina, mesmo quando se tornou sujeito de uma huma
níssima história de dor e de morte. “Não é um homem que se
torna Deus: o homem não é aqui ‘sujeito’, ‘alguém’, ‘pessoa’. É
o Filho que se faz homem. O sujeito que é Filho, existindo de
maneira divina, assume a maneira humana de existir. É sempre
o mesmo sujeito, o mesmo alguém, e é este sujeito que funda a
unidade dos dois modos de ser: o divino e o humano”.43 “Pes
soa” em Cristo significará, portanto, de forma não diferente do
contexto trinitário, sujeito de história, “relação subsistente”, e
precisamente o sujeito da história divina com o Pai no Espírito,
Aquele que desde a eternidade foi gerado no Espírito pelo Pai,
e no tempo — de maneira que rompe todas as analogias deste
mundo — foi ressuscitado pelo Pai no Espírito. Esse sujeito de
história divina, irredutível às medidas da história deste mundo,
entrou em relação com os homens em Jesus Nazareno crucifi
cado e ressuscitado, tornou-se “carne, sujeito de uma história
verdadeiramente humana: aí está o paradoxo pascal. Autêntico
e forte escândalo não é a divinização de um homem, mas a hu-
manização de Deus, isto é, o fato de que Deus tenha-se torna
do homem, tenha se comprometido conosco e por nós, esteja ao
nosso lado. O paradoxo cristão é esvaziado por aquele que não
confessa o Filho de Deus, no homem que pende do madeiro da
vergonha, ou não reconhece no Senhor ressuscitado o humilde
Crucificado de Nazaré!
Verdadeiramente, portanto, em Jesus Cristo “o céu desceu
à terra e nela mergulhou suas raízes” (Hegel): os dois mundos,
o de Deus e o dos homens, são reconciliados. Torna-se possível
falar de “história” de Deus; mais ainda, a história se torna o
único horizonte em que é possível falar menos infielmente dele.
197
Com efeito, Jesus Cristo, na sua escandalosa identidade de único
sujeito da história divina e da história humana, que nele se
realizam, é a aliança em pessoa: nele não se encontram, estati-
camente, duas naturezas simétricas numa única hipóstase, mas
dinamicamente duas condições, duas histórias totalmente diver
sas e incomparáveis, das quais ele é o mesmo sujeito, num
fecundo devir de relações. Esse encontro dinâmico e desconcer
tante é ao mesmo tempo abertura de um mundo ao outro, e
subversão do mundo humano por parte do mundo de Deus. “O
Filho, inserindo-se no mundo das relações humanas mediante o
seu ser relacionai, transforma o mundo das pessoas... Mediante
a horizontalidade estabelecida com os homens, abre-lhes o cami
nho da horizontalidade para o Pai”.44 Essa horizontalidade, que
se consuma no Espírito Santo, é antes de tudo libertação, paz,
alegria de vida e festa de reconciliação; mas é também, e ao
mesmo tempo, contestação e perturbação da realidade humana.
Se a Ressurreição não é separável da vergonha da Cruz, o sim
que o Pai disse ao Crucificado ressuscitando-o da morte é o
mesmo sim que Ele diz no Espírito a todo crucificado da histó
ria, e é por isso o violento e implacável não que Ele diz aos cru-
cificadores de todos os lugares e de todos os tempos. “Jesus
estará em agonia até o fim do mundo; e até então não se po
derá mais dormir” (Pascal). O Deus trinitário tomou posição na
Páscoa também neste sentido: Ele garantiu a sua proximidade
ccroborante a todos os que estão representados no opróbrio da
cruz, soma de toda injustiça e de toda dor humana; mas tam
bém e ao mesmo tempo relegou ao ostracismo tenebroso da
rejeição e do afastamento de si todos os que causaram e cau
sam injustiça e produzem a tragédia desumana dos pobres cru
cificados deste mundo. A história do Crucificado-Ressuscitado
anuncia aos pobres a alegre mensagem de que a sua agonia é ago
nia de Deus: por isso, a vida nova daquele que foi exaltado é
refutação da injustiça e garantia de vitória para o seu sofrer. E ao
mesmo tempo anuncia aos detentores do poder iníquo que o Deus
da promessa ‘manifestou o poder de seu braço, dispersou os so
berbos nos pensamentos do seu coração; depôs do trono os pode
rosos e exaltou os humildes. Cumulou de bens os famintos e
despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Páscoa é recon
198
ciliação e rompimento; é paz e revolução; é comunhão e sub
versão. Aquele que é em pessoa a aliança, é também em pes
soa o julgamento, a reprovação e a morte dos que julgam, repro
vam e condenam à morte os crucificados, seus semelhantes. Tam
bém deste ponto de vista, o paradoxo pascal não se deixa apri
sionar em “acomodações” tranqüilizadoras.
Na Páscoa revela-se assim a história humana de Deus: se
o sujeito de toda ação do Nazareno é o Filho eterno, todo ato
deste homem é revelação do mistério divino. Em Jesus de Naza
ré, nas obras e nos dias de sua vida e de sua morte, oferece-se
a face humana de Deus: todo gesto seu, todo aspecto de sua
verdadeira e plena humanidade, todo instante de sua humanís
sima vida, é aparição de Deus entre os homens, e por isso deve
ser valorizado pela fé e pela reflexão cristã. O amor carinhoso
de tantos santos pela humanidade do Sal\ .dor, a atenção ao
“Dominus humanissimus”, que com muita freqüência pareceu
estranha à teologia e familiar somente à piedade cristã, capta um
aspecto profundo do paradoxo cristão: diminuir a humanidade
de Cristo é diminuir a sua divindade! Deus não concorre com o
homem em Jesus: o humano é plenamente assumido e radical
mente valorizado na história do Filho do Homem, como veículo
eficaz, como “sacramento” do Filho eterno que entrou neste
mundo. Compreende-se, por isso, como são pouco cristãs aque
la teologia e aquela piedade que negligenciam a vida histórica
concreta do Senhor Jesus, em todo seu realismo e também em
todo o seu escândalo. Ao contrário, parece uma indicação pre
ciosa a doutrina tradicional da causalidade instrumental da hu
manidade de Cristo,43 por força da qual Sto. Tomás dedicou à
vida concreta do Nazareno uma atenção teológica de excepcio
nal riqueza: “Todas as coisas que foram realizadas na carne de
Cristo, foram salutares para nós em virtude da divindade uni
da” .4546 A ação de Jesus é toda “como uma evocação ou uma
parábola viva da ação de Deus... o seu comportamento é a trans-
199
crição humana do comportamento de Deus”;47 mais do que
“comunicação dos idiomas”, que reflete uma consideração está-
tico-metafísica do Cristo, dever-se-ia falar então, como faz a
Escritura, do mistério” dele, isto é, de uma história deste mundo
em que se revela a história eterna de Deus.
Do que dissemos derivam duas conseqüências para a refle
xão cristclógica: em primeiro lugar, se todo ato da vida de Jesus
de Nazaré é história do Filho que montou a sua tenda no meio
de nós, todo ato de sua vida envolve a totalidade da história
trinitária, isto é, implica uma relação com o Pai no Espírito. A
Ressurreição atesta que os dois sujeitos da história divina que
não se encarnaram, a pessoa” do Pai e a do Espírito, nem por
isso são espectadores estranhos à história do Verbo feito carne:
eles a vivem com o Verbo, cada um de acordo com a particular
relação que o caracteriza como aquela pessoa e não outra. Assim,
a partir da Páscoa pode-se dizer que toda a história de Jesus é
revélação da história trinitária de Deus, transparência terrena
do pôr-se e propor-se dos Três nas várias relações que têm entre
si e nas quç têm, através do Encarnado, com o mundo. Em
Jesus revela-se ao mesmo tempo a face trinitária de Deus e a
relação do mundo com o Pai, enquanto é manifestado e dado o
Espírito da comunhão trinitária e da reconciliação entre Deus e
os homens. Compreende-se, então, como um teologia que negli
gencie o vínculo permanente de toda asserção cristológica com
o mistério trinitário, num divórcio de horizontes que infelizmen
te ainda deve ser lamentado, se dissolva de um lado numa cris-
tologia metafísica, bastante árida e abstrata, e de outro numa
doutrina trinitária conceituai e pouco ligada ao revelar-se con
creto do Deus trinitário na economia da salvação. Recuperar a
dimensão trinitária da história de Jesus é a única saída que tem
o homem para abrir-se às profundezas de Deus e ter dele uma
idéia cristã e nao racional, “filosófica”, )e — com relação ao
escândalo da cruz — no fundo atéia.
A segunda conseqüência diz respeito à exigência de se
recuperar, em cristologia, a atenção à história concreta do Na
zareno, e portanto aos chamados “mistérios” de sua vida.48 A
47 C. Duquoc, Cristologia, op. cit., pp. 634-637.
48 Cf. A. Grillmeier, “Considerazicne storica sui misteri di Gesü in
generale” in Mysterium Salutis VI, Bréscia, 1971, pp. 12-35; M. Seren-
thà, “Misteri di Cristo” in Dizionario Teologico Interdisciplinare Suppl.,
Turim, 1978, pp. 10-24.
200
própria comunidade das origens sentiu a necessidade de reler, à
luz da Páscoa, os eventos da vida terrena do Senhor, e de captar
neles a tensão já presente, que explodiu na plena revelação pas
cal. Na sua vida humana integral, Jesus Cristo é a revelação
de Deus: 49 funda-se aqui a exigência de penetrar, através de
cada um dos “mistérios", único caminho de acesso a ele, o mis
tério do seu ser homem, revelação de Deus. Não se trata de
narrar mais uma “história de Jesus”, na qual se projetariam, de
maneira mais ou menos ampla, as interrogações e a sensibilida
de do presente; nem, muito menos, de tentar fazer uma análise
psicológica do Cristo, que seria totalmente arbitrária, devido
aos elementos de que dispomos. Trata-se também de estabelecer
“vínculos novos com a linguagem concreta dos “mistérios” de
Jesus, investigando nestes as dimensões do humano, que se reali
za integralmente nele e que, como tal, é revelação do Deus trini-
tário.
Ser homem significa viver de uma profunda tensão, que se
coloca no tecido concreto de relações, em que cada um vive e
age: o homem pode ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de
história; pode programar e ser programado; manipular e ser
manipulado; dominar e ser dominado; cometer injustiça e pa
decê-la; viver e estar sujeito à morte. A condição humana é uma
condição limite, um estar situado nos lindes da historicidade:
de um lado, estar alinhado entre os fatos “brutos”, que se suce
dem sem sentido, envolvem e não raramente perturbam o ho
mem; de outro, ser capaz, pela força da consciência livremente
criadora, de orientar o futuro. “Humano” significa então ao mes
mo tempo situar-se criativamente frente ao outro na consciên
cia e na liberdade e ser determinado pela finitude, da qual cada
um é mais ou menos prisioneiro. “Humano” é pôr-se e propor-se
201
no devir, como sujeito livre e consciente de história, e suportar
o peso da cruz do presente, com toda a concretude e brutalida
de com que ele pode apresentar-se. “Humano” é conhecer e
amar, saber e querer, mas é também sofrer, entrar em choque
com a dureza do obstáculo ou da rejeição, sentir-se envolvido
pelo futuro obscuro e pela inquietação do crescimento e da espe
ra. Na complexidade do “humano” entrelaçam-se assim dimen
sões múltiplas e contrastantes: à abertura da consciência e da
liberdade contrapõe-se o horizonte determinado e condicionante
em que estamos colocados; ao pro-por-se, fruto da criatividade
consciente e livre, contrapõe-se o pôr-se, o existir num determi
nado limite, a finitude do existir. Conseqüentemente, falar com
propriedade do homem Jesus exigirá que se preste atenção a
essas várias dimensões, como elas se manifestam nos “mistérios”
concretos da sua vida. Assim, poderemos abrir-nos ao “mistério”,
sempre mais rico do que possamos compreender, da sua huma
nidade, revelação de Deus.
Delineia-se dessa forma a estrutura das reflexões que vêem
a seguir: partindo da luz pascal — da qual procuramos aproxi
mar-nos neste capítulo através dos “novos vínculos” com o “dia
leto de Canaã” — , faremos, nela, uma releitura da história hu
mana do Nazareno. Abordá-la-emos através dos seus “misté
rios”, nos quais se apresenta o mistério de sua humanidade, na
complexa articulação de suas escolhas conscientes e livres dian
te da finitude em que está colocado. Esse procedimento — de
certa forma análogo ao da reflexão fontal do Novo Testamento
— , indagará, a partir dos “mistérios”, a autenticidade da histó
ria humana de Jesus, isto é, o devir não só exterior, mas tam
bém interior a ele (a consciência que Jesus tem de sua história:
cap. 8). Será confrontado, depois, com o problema da sua liber
dade, tal como se revela nas opções fundamentais da sua vida e
nas escolhas concretas do seu situar-se entre os homens, na
sociedade do seu tempo (a história de Jesus com o história de
liberdade; cap. 9). Por fim, considerará a finitude do Nazareno,
nas suas formas diversas e concretíssimas (a finitude de Jesus:
cap. 10). Nessa abordagem da humanidade plena e verdadeira
de Jesus Cristo nos eventos da sua história, será possível abrir
mos ao que nela nos foi revelado sobre o Deus trinitário, e inter
rogarmos, conseqüentemente, sobre o apelo à decisão e ao segui
mento que tal revelação de Deus propõe ao homem. O reconhe
202
cimento da história divina na história humaníssima do Nazare
no não é, efetivamente, um exercício inócuo da razão: como o
reconhecimento pascal do Crucificado no Ressuscitado, ele está
carregado de energia, de força transformadora e crítica, e se
torna urgência para uma nova práxis de vida, empenho num
caminho de libertação, que faça desta terra de crucificados e
crucificadores uma terra de ressuscitados. O resultado dessa
complexa abordagem do mistério do homem Jesus, e nele do
mistério do Deus trinitário, que liberta e provoca ao seguimen
to, será uma espécie de “cristologia da história de Jesus”, de
releitura pascal dos “dias da sua carne” em que nos é narrada
a história de Deus. A essas reflexões deverá seguir — analoga
mente ao que aconteceu no aprofundamento originário da fé —
a elaboração de uma “cristologia da história da Igreja e do
mundo”. Ou seja, impelindo a releitura pascal para trás, em
direção ao amplo passado, e para frente, em direção ao futuro,
tensos entre a origem e o fim, e sempre atentos à densidade do
tempo que está no meio, proporemos a questão do significado
da história de Jesus na história dos homens, que é o problema
da sua “singularidade” (cap. 11), e da maneira pela qual o
Ressuscitado se torna presente para transformar o “hoje” de
escravidão, de sangue e de lágrimas. Esta última reflexão, sobre
a obra do Cristo para nós e sobre a sua “contem poraneidade”
(cap. 12), por um lado concluirá a consideração sobre “Jesus
Cristo, Deus da história”, e por outro se ligará imediatamente
ao presente, isto é, àquilo que aqui e agora a oferta de salvação
no Crucificado-Ressuscitado pode significar para o homem. A
essa altura, a “cristologia da palavra” estará apta — como o
velho Simeão — a cantar o seu fim e o seu louvor, para tornar-
-se, ao menos na esperança, “cristologia do silêncio e da vida”.
203
JESUS DE NAZARÉ, HISTÓRIA DE DEUS
8
207
porque diziam: ‘Enlouqueceu!’ ” (Mc 3,21). Depois do batismo,
recebido através de João, iniciou sua vida pública, primeiro na
Galiléia, na região do lago de Tiberíades, depois na Judéia, em
Jerusalém. Tinha cerca de trinta anos (cf. Lc 3,23): não é certa
a duração de sua pregação. João fala de três Páscoas (2,13;
6,4; 11,55); com base nos Sinóticos, poder-se-ia supor que tudo
se passou em apenas um ano. Parece certo que no começo fizes
se algum sucesso entre o povo; mas bem depressa foi surgindo
uma reação por parte dos poderosos, que culminou com o dra
ma do seu processo. A sua atividade pública desenvolveu-se sob
o império de Tibério (14-37), quando Herodes era tetrarca da
Galiléia (4 a.C.-39 d.C.: Lc 3,1). Foi crucificado sob o procura
dor romano Pôncio Pilatos. O “titulus crucis”, isto é, o motivo
da condenação escrito sobre a cruz indica-o como agitador polí
tico: “Jesus Nazareno, rei dos judeus” . Sua morte foi, ao que
parece, um “assassínio político-religioso”, no qual estavam envol
vidos, de diferentes maneiras os dirigentes hebreus e Pilatos.3 I
Mas não são apenas esses poucos dados que colhemos da
narração dos evangelhos. Ainda que seja, evidentemente, impos
sível escrever uma biografia de Jesus, porque os evangelistas
“atestam a sua fé sob forma de uma história, e interpretam essa
história à luz da própria fé”, não é arbitrário afirmar que “os
traços característicos da figura e da pregação de Jesus são bas
tante nítidos”.4 Não há dúvida de que ele passou no meio de
seu povo fazendo o bem (cf. At 10,38): “Na tradição dos mi
lagres encontramo-nos diante de uma recordação de Jesus de
Nazaré baseada na impressão que ele causou no povo simples e
rural da Galiléia, esquecido por todos os movimentos e agrupa
mentos religiosos”.5 Parece também certo o conteúdo central da
sua pregação e o estilo dela: Jesus anunciou o Reino de Deus
como iminente (cf. Mc 1,15 e par.: Mt 3,2;4,17; Lc 10,11) 6 e o
208
fez com uma autoridade e imediatez impressionantes: “Jesus
veio para a Galiléia proclamando o Evangelho de Deus: O tem
po está realizado e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos
e crede no Evangelho... Extasiavam-se com o seu ensino, por
que lhes ensinava com autoridade... (Mc 1,14-15 e 22; cf. tam
bém 27). Ao contrário dos fariseus — que esperavam o Reino
de Deus como tempo de plena realização da Lei — , dos zelotes
— que projetavam uma teocracia política instaurada com as
armas — , dos apocalípticos — que sonhavam com uma nova
era, os céus novos e a nova terra que viriam do alto — , e do
Batista — que proclamava ameaçadoramente o iminente julga
mento divino (cf. Mt 3,10-12) — , Jesus anuncia a soberania de
Deus com possibilidade próxima e definitiva de salvação, que é
oferecida através de sua palavra e de sua ação, e que deve ser
acolhida com a conversão do coração: “Convertei-vos, porque
o Reino de Deus está próximo” (Mt 4,17). A “causa” do Naza
reno está assim estreitamente ligada à sua pessoa.7 Jesus se apre
senta como aquele no qual o Reino de Deus vem, e que por
isso exige uma decisão por parte do homem.8 “No encontro com
Jesus não se dá mais tempo a ninguém: o passado do qual vem
não é confirmado, e o futuro com que cada um sonha para si
não é mais assegurado. Mas precisamente assim todo indivíduo
recebe o seu novo presente. Porque a vida, o mundo e a existên
cia de cada indivíduo encontram-se agora no imprevisto feixe
de luz do Deus que vem, na luz de sua realidade e de sua
presença. Esse é o tema do anúncio de Jesus”.9 Nele se apresen
ta a hora da inaudita oferta de salvação, e por isso também a
hora da decisão, do supremo “aut... aut”, colocado não em
alguma coisa, mas em alguém, naquele em quem os tempos se
completaram: “Segue-me, e deixa que os mortos enterrem seus
209
mortos!” (Mt 8,22). O anúncio do Reino, no seu vínculo com
a pessoa e as obras do pregador galileu e no apelo à decisão,
que acarreta, contém assim uma cristologia indireta, implícita,
que será explanada e explicitada pela Igreja nascente à luz da
experiência pascal. A pretensão do Nazareno antecipa, de ma
neira imediata e inesperada, a convalidação que será dada pelo
futuro de Deus no evento imprevisível e perturbador da Ressur
reição. A pregação e obra de Jesus estão, portanto, permeadas
de futuro e abertas à poderosa novidade de Deus, que ele não
hesitou em anunciar como próxima, até mesmo imediata: para
o crente, essa espera a curto prazo “não permaneceu irrealiza-
da... Ela se realizou no próprio Jesus, porque apareceu nele a
realidade escatológica da ressurreição dos mortos”.101Com efeito,
ao contrário dos apocalípticos, que também pregavam a iminên
cia dos últimos tempos, Jesus relacionou a hora escatológica
consigo mesmo: a salvação entrou na história com a sua pes
s o a .11 Ele não é um visionário exaltado que espera a iminente
convulsão cósmica, com a qual se instaurará o Reino.12 Todavia,
ele também não é aquele que vê o Reino entrar na história e
identificar-se com ela sem transtornos.13 O seu anúncio é denso
de tensão entre realização e promessa: as parábolas do Reino
(cf. Mt 13) sublinham que ele já está presente, e contudo ainda
não está totalmente presente. E sobretudo a imagem muito usa
da da semente e do fruto (cf. Mc 4,1-9.13-20 e par.; Mc 4,26-29;
Mc 4,30-32 e par.) — nos quais a mentalidade oriental capta
muito melhor a surpreendente descontinuidade do que a conti
nuidade orgânica — mostfa que as surpresas da promessa de
Deus não acabaram; ao contrário, são reavivadas pelas obras e
pelos dias de Jesus de Nazaré, e pelo sim que Deus disse à
pretensão neles contida.
Essa pretensão certamente teve um papel importante no
choque do profeta galileu com os poderosos do seu tempo: ela
210
se apresentava como alternativa demasiadamente absoluta à
autoridade dos guardiões da Lei, para não suscitar neles preo
cupação e ressentimento; ela incentivava de maneira excessiva
mente aberta as esperanças de Israel, para que o poder polí
tico não temesse um desvio em termos de rebelião contra o
ocupante romano, /fesus era incômodo para todos, inclusive os
zelotes, os homens da resistência armada à opressão; estes, de
pois de um provável entusiasmo inicial, ficaram desiludidos
com õ profeta galileu e contribuíram para que a multidão pre
ferisse Baírabás como elemento mais útil e promissor.14 Dadas
essas premissas, não é de estranhar a solidão em que morre o
Nazareno.
A história de Jesus parece, então, semelhante a tantas
outras e ao mesmo tempo singular: como toda história huma
na, desenvolve-se num lugar e num tempo determinados, com
condicionamentos iguais aos de tantos outros contemporâneos
seus, com as possibilidades limitadas e ao mesmo tempo únicas
oferecidas pela terra de Israel. É uma história verdadeiramente
humana, construída no futuro, que vai dos obscuros anos de
Nazaré à virada decisiva assinalada pelo batismo; do início da
vida pública, através dos dias entusiasmantes e dramáticos da
pregação, à solidão total do Getsêmani e da Cruz. Um fragmen
to de história, como tantos^ carregado de alegrias e de dores, de
fadigas e de lágrimas, de vida e de morte. Mas, ao mesmo tem
po, a história do Nazareno foi de uma dimensão singular, des
concertante, que se resume na sua pretensão, no seu anunciar
em palavras e obras a vinda do Reino na sua pessoa. Não é só
a singularidade de um amor, que chega a dar a vida pelos ami
gos (cf. Jo 15,13). É o mistério de um apelo à decisão, a ansie
dade por encontrar-se diante de uma exigência absoluta, de uma
oferta inaudita. Sem esta unicidade, dificilmente se explicaria
o processo de Jesus e sobretudo as conseqüências por ele susci
tadas: tanto ódio e tanto amor não podem ter se originado a não
ser da singularidade de sua pessoa. Poder-se-á negar a historicida-
de deste ou daquele particular, mas não se poderá negar que o
Nazareno tenha sido, no meio dos homens, um “sinal de contra
dição”.
211
Portanto, devem ser confrontados dois dados da história
de Jesus de Nazaré* de um lado, o devir humaníssimo em que
ela se construiu; de outro, a singularidade, o mistério _que nela
se encerra, e que na sua profundidade, foge à percepção do his
toriador. No momento em que este segundo elemento encontra
explicação na fé pascal, e se reconhece no “filho do carpinteiro”
o “filho de Deus”, surge naturalmente a questão: como se conci
liam a obscuridade e a progressividade próprias de toda histó
ria humana com as prerrogativas da condição divina, que a
comunidade das origens confessou ser própria do Nazareno des
de o primeiro instante de sua “carne”? É o problema da histó
ria não só exterior, mas também interior de Jesus Cristo; é o
problema da sua ciência e da sua consciência.
212
experiências deste mundo.15 Assim, Jesus teria gozado ao mesmo
tempo da visão beatífica,10 de conhecimentos extraordinários de
ordem sobrenatural e dos conhecimentos experimentais, pró
prios de todo homem. A imagem que disso resultava era a de
um Jesus “onisciente”, sempre absorto na beatitude da contem
plação de Deus, que, condescendente para com o homem, e com
213
intento pedagógico, fazia o papel de quem ignorava alguma coi
sa; a sua condição humana era assim reduzida a uma “paró
dia de humanidade”.17 Nesta linha tendia-se a identificar, na
prática, a sua consciência de homem — enquanto consciência
humana de um eu divino — com a sua consciência de Filho de
Deus: a justa rejeição de um “nestorianismo psicológico” 18 cor
ria o risco de transformar-se — mesmo contra as intenções dos
defensores dessas teses — numa forma de “monofisismo psico
lógico”.
Não é difícil observar que essa imagem de Jesus contrasta
com a que nos oferecem os evangelhos: um Jesus que cresce
“em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens” (Lc
2,52), que ignora o dia do julgamento (cf. Mc 13,32 e Mt 24,
36), como também fatos ordinários da vida (cf. por exemplo
Mc 5,30-33), um Jesus que com freqüência reflete em seus' co
nhecimentos religiosos “as idéias inadequadas, até errôneas, do
seu tempo”,19 mal se concilia com um Jesus “onisciente”, que vê
214
tudo em Deus. Além disso, o sofrimento real de Cristo, teste
munhado no Novo Testamento, não se explicaria se houvesse
nele a bem-aventurança, própria da visão de Deus. A ignorância
e a finitude do Jesus dos evangelhos exigem a renúncia ao “prin
cípio de perfeição” na explicação de sua ciência e também-de
sua consciênciâ7~Então será preciso afirmar que não há nele
nenhuma visão imediata de Deus? Será preciso negar-lhe os co
nhecimentos extraordinários que lhe são atribuídos, especialmen
te por João (cf. por exemplo 6 , 5s;6,71; 15,11; etc.), mas não só
por ele (cf., por exemplo, Mc 2,6-8 e par.; 11,2 e par.; 14,13-14;
Mt 17,24-27; etc.)? Será preciso afirmar que o único conheci
mento possível no Nazareno é o adquirido pela experiência do
mundo e dos homens? E, se as coisas fossem realmente assim,
ainda se poderia reconhecer nele uma consciência da sua con
dição divina e da sua missão? Poder-se-ia falar ainda de uma
“consciência messiânica” de Jesus, isto é, de uma consciência
de sua condição de enviado do Pai para realizar e renovar a
promessa? Como se pode facilmente intuir, são questões decisi
vas, que dizem respeito à própria imagem de Cristo, e, conse-
qüentemente, à nossa decisão de segui-lo.
O problema é complexo, e deu origem, também em tempos
recentes, às mais diversas soluções. Ao enfrentá-lo, convém escla
recer dois pressupostos que, se forem negligenciados, darão azo
a muitos equívocos. Em primeiro lugar, falar da consciência de
Jesus não pode significar tentar escrever uma biografia dele do
ponto de vista psicológico. Essa tentativa pode desembocar em
interpretações arbitrárias, porque contraria a própria natureza
dos evangelhos, que não são registros de crônicas, mas testemu-
nhcs de fé. Em segundo lugar, no esforço — como aconteceu na
experiência fontal da comunidade das origens — por reler a
história do Nazareno à luz da Páscoa, não se poderá ignorar o
que foi revelado rüTRessurreição; ou melhor, o problema con
siste exatamentê em entender as relações cnüvrrr condição do
Senhor^ manifestado na Páscoa, e a precedente vida terrena- e
concreta do Nazareno. Se, como tivemos ocasião de esclarecer,
ele é ò Cristo desde o primeiro instante da sua história, que
conseqüências decorrem disso para a história de sua consciên
cia e para o desenvolvimento dos seus conhecimentos?
A questão deve ser ulteriormente explicitada, a partir de
algumas observações antropológicas. Foi dito que “história” é
215
tomada de posição no devir, é “situar-se” no presente diante do
passado em vista do futuro; assim sendo, para que haja história
é necessário que haja consciência de si e daquilo em relação ao
qual se toma posição. Nessa luz a consciência aparece como a
primeira e fundamental condição transcendental (isto é, no sujei
to, mas não puramente subjetiva, porque é estrutura da subje
tividade referida constantemente ao objeto) da “história”. Pre
cisamente por ser condição originária, a consciência abraça di
versos níveis: ela é antes de tudo consciência não-reflexa do
originário pôr-se em relação com o que é distinto de si mesmo.
É consciência do tu, que traz consigo uma consciência indire-
ta — isto é, não refletida e não tematizada, não expressa em
conceitos — do eu: “A primeira experiência da pessoa é a expe
riência da segunda pessoa: o tu, e depois o nós, que vem antes
do eu, ou pelo menos o acompanha”/ 0 A essa consciência não-
-reflexa, pré-conceitual de si mesmo, que é como o horizonte pri
meiro e constantemente presente no qual se situam as sucessivas
aquisições, segue-se o nível da consciência progressivamente
reflexa, tematizada, formulada através de categorias tiradas da
experiência, que veiculam conceitualmente a originária percep
ção não-reflexa de si mesmo. Essa passagem da consciência pré-
-categorial do pôr-se originário com relação ao outro, à cons
ciência tematizada do pro-por-se a si e aos outros, ocorre através
da gradualidade, da obscuridade e das luzes de uma evolução
histórica, na qual o futuro se apresenta sempre com caracteres
de indedutibilidade e de novidade com relação ao já dado e ao
já conquistado. Mas é precisamente essa obscuridade que cons
titui o espaço das possibilidades e por isso da liberdade, o hori
zonte do risco, mas também da dignidade das escolhas, nas
quais o homem pode pôr-se e propor-se realizando-se ou alie
nando-se, isto é, desenvolvendo ou depauperando a própria iden
tidade originária não-reflexa, o complexo de atitudes, disposi
ções, orientações, já dadas ou adquiridas, que constituem um
eu como aquele eu e não como um outro.
De que forma tudo isso se encontra na história de Jesus de
Nazaré? 2021 Como se configura nele a originária consciência não-
216
reflexa de si? Como vive ele a evolução da sua consciência?
Será o Nazareno alguém que caminha na noite, aclarada pela
luz de algumas certezas atematizadas e depois cada vez mais
conscientes, alguém que sofre a vida e a escolhe instante por
instante na fé, na esperança e no amor? Qual é a história da
sua consciência e dos seus conhecimentos?
A resposta a essas perguntas só pode ser procurada nos
indícios oferecidos pelo testemunho evangélico, nos “mistérios”
da vida do Senhor. Entre estes está o “mistério” de uma palavra
que Tesus usa de manelru ahsolutamente original: abbá.22 Ela
aparece, como tal, três vezes no Novo Testamento; mais preci
samente, uma vez em Marcos (14,36) e duas em Paulo (Rm 8.15
e G1 4^6): os dois textos paulinos são um argumento decisivo
para se afirmar que esse termo é autêntico do Senhor, porque
sem a referência à sua autoridade não se- explicaria o seu uso
em comunidades gregas e latinas. O testemunho de Marcos,
além disso, embora isolado, é apresentado num momento impor
tante da vida de Jesus: a hora obscura e tremenda do Getsêma-
ni. A autenticidade do termo na boca do Nazareno, unida à con-
sideração de que na língua por ele falada não há outra maneira
de se traduzir a expressão “pai, meu pai”, usada por ele em
todas as suas orações,23 avaliza a hinótesejde que sob os termos
gregos patér, 'pater mou, utilizados pelo Jesus dos evangelhos
não menos de 17Õ vezes em relação Jà_Deus, esteja o original
a rã m a icõ T õ iP o rta n to , o Nazareno dirige-se a Deus chaman-
do-o de ab b a; esse fato permite “entrever a originalidade da
oração de Jesus. Esta originalidade é dupla: é a primeira vez
que se encontra no ambiente palestino, uma invocação ao Pai a
título individual, e é a primeira vez que um judeu, dirigindo-se
com ele em muitos pontos fundamentais: cf., por exemplo, pp. 341-42.
B. Lonergan, no cap. “De scientia Christi” (pp. 332-416) do seu De
Verbo Incarnato, Roma, 1964, 3? ed., afirma que Jesus tem um conhe
cimento imediato de Deus, mas que, não provindo da experiência sen
sível, não é formulado em conceito nem figurado em imagens; para
entrar no universo do discurso ele deve sofrer um processo de tradução
na linha do dinamismo fundamental da inteligência (“intentio entis inten-
dens”) no seu movimento de pergunta e de compreensão. Este proces
so tem analogias com o de tematização progressiva de que fala Rahner.
22 Cf. J. Jeremias, Abba, Bréscia, 1968, e W. Marchei, Abbá, Père.
La prière du Christ et ães chrétiens, Roma, 1971, 2’ ed.
23 Só constitui exceção o grito de Mc 15,34 ( = 27,46), no qual é
empregado o termo Eli, que se justifica pela citação do SI 22.
217
a Deus, o invoca sob o nome de A bbá, tirado da linguagem
familiar. Jesus dirige-se a Deus como uma criança se dirige a
seu pai 24
218
tio seu relacionamento com Deus”.29 Relacionamento feito de
confiança infinita, mas também de “devota submissão”, como
exige o uso do termo por parte dos adultos.30 “Invocando a Deus
sob esse título, Jesus manifesta a consciência da relação pes
soal e absolutamente única que mantém com o Pai, do vínculo
estreitíssimo que o une a Deus como a seu Pai”.31 Esse termo
— “ipsissima vox Jesu” — veicula, portanto, a consciência
espontânea e imediata que o Nazareno tinha dé seu excepcio
nal relacionamento com Deus. Assim sendo, não se poderia
reconhecer nele um indício da experiência não-reflexa, originá
ria, própria da esfera do vivido, do pô r-se de Jesus em relação
ao Pai e, portanto, da consciência pré-conceitual que ele tinha
de si como sujeito dessa relação única? Certamente, a pesquisa
cxegética deve ser muito sóbria nesse ponto. Todavia, é possí
vel propor uma interpretação crítica que aprofunde o dado bíbli
co, sem forçá-lo nem contradizê-lo. Se a consciência atematiza-
da de Jesus se identificasse com o seu pôr-se confiante e incon-
dicionado frente ao Pai, como á atestado pelo “mistério” do
a bbá, ela refletiria em termos de consciência humana (e por
isso gradual, progressiva) do eu divino a estrutura existencial
do Cristo, isto é, a sua condição de sujeito da relação única
com o Pai, feito homem ao assumir uma história verdadeira
mente humana. Nessa mesma linha, seria possível acolher a
doutrina tradicional da “visão imediata de Deus” no homem
|esus, mas interpretando-a nos termos da consciência pré-concei
tual, não-reflexa.32 Dessa forma, a “visão de Deus” no Nazareno
seria, antes de mais nada, despojada do caráter de bem-aventu-
rança, que contrasta de maneira gritante com a sua verdadeira
humanidade,33 e daquele atualismo pelo qual, captando todas
as coisas no ato da visão da essência divina, a consciência de
Jesus ficaria privada de toda possibilidade de crescimento e
desenvolvimento, que são típicos de uma história verdadeira
mente humana. Com efeito, se a “visio immediata Dei do
Nazareno fosse a consciência que de maneira pré-conceitual
219
Jesus tem de si como Filho único do Pai, ela seria conciliável
"com uma genuína experiência humana, com um condiciona
mento histórico aceito juntamente com a natureza humana, com
uma autêntica evolução espiritual e religiosa, vista como tema-
tização objetivante desse originário e perene contato imediato
com Deus, que se exterioriza no encontro com o próprio ambien
te espiritual e religioso, como também no gradual conhecimento
experimental da própria existência”.34
À luz dessa interpretação, explicar-se-iam tanto os textos
que revelam um crescimento e uma limitação do conhecimento
de Jesus, quanto os que manifestam nele conhecimentos de
ordem superior. Estes se fundariam no relacionamento único
com o Pai, e portanto seriam hauridos através da tematização
daquilo que já estava presente no Nazareno de forma não-refle-
xa; ao passo que os outros seriam o fruto de uma experiência
normal de aprendizado humano. A um ”saber adquirido de
acordo com a cultura da sua época” se uniria nele “um conhe
cimento profético que lhe permitia desenvolver a sua missão de
revelador” .34 Esse "conhecimento profético” teria origem na
experiência filial, absolutamente única, feita por Jesus com rela
ção ao Pai, como parece atestar Mt 11,27 ( = Lc 10,22): “Tudo
me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão
o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem
o Filho o quiser revelar”. O caráter semítico dessas palavras —
demonstrado por J. Jeremias contra a afirmação freqüente de
que a frase seria um “meteorito caído do céu joanino” 36 —
impede de neias reconhecer o uso desenvolvido do título de
Filho” por parte de Jesus. Entretanto, ele também alicerça a
interpretação que vê na relação de conhecimento e de amor com
0 Pai — análoga à que existe entre um pai e um filho — a
origem da função reveladora de Cristo: “Assim como só um
filho conhece verdadeiramente a seu pai, só ele está em condi
ções de proporcionar aos outros o mesmo conhecimento”.37
Por força dessas considerações, poder-se-ia afirmar que a
história de Jesus foi marcada, como toda história humana, por
34 R. Rahner, “Considerazioni”, op. cit., p. 238.
35 C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, p. 171.
36 Cf. J. Jeremias, Teologia..., p. 71, op. cit., in n. 2. A expressão
foi cunhada pelo historiador da Igreja K. v. Hase, Die Geschichte Jesu,
Leipzig, 1976, 2- ed., p. 422.
37 J. Jeremias, op. cit., p. 74.
220
um ji viinço progressivo em direção à luz de uma autoconsciên-
lliiiis clara e de um conhecimento mais mmplp.tr» Hrip nntrns
de Deus. Esse crescimento interior teria sido alimentado, de
um Indo, pela intimidade dialogai, única e exclusiva, com o
1' h í . r de outro, pelo relacionamento diário com os homens, a
t onu\ar por Maria, sua mãe, e pelo conhecimento da Escritura,
Itunlninental na formação dos filhos de Israel. Isto é, o Naza-
.. tio (cria crescido interiormente, explicitando o que já estava
«oulido na originária consciência atematizada de si mesmo e
>«<l<|iiirindo por experiência novos conhecimentos, através de
momentos e formas sucessivas de desenvolvimento. Se isso é
verdade, a “história evolutiva das afirmações feitas por Jesus
o|>ie a sua complexa personalidade não deve ser interpretada
no menos fundamentalmente — apenas como uma história
ile sua gradual adaptação pedagógica, mas pode muito bem ser
InI.i também como história da interpretação que ele dava gra-
<11mImente de si mesmo” .38 Admitida uma história da auto-in-
Inpretação de Jesus, como história da explicitação conceituai,
(.■ raças também aos estímulos externos e às categorias que lhe
nam oferecidas pela experiência, da originária consciência ate-
mali/ada de si,/deve ser igualmente admitida na consciência do
Na/areno a presença de zonas de sombra progressivamente
iluminadas. Isso se impõe sobretudo com relação ao futuroy“A
Escritura sozinha não demonstra, mas não é contrária a uma
leoria que admita um desenvolvimento psicológico do conhe-
■ uuento que Jesus podia ter daquilo que estava para lhe acon
tecer”.3940 Isso não significa uma ausência total da “consciência
messiânica” em Jesus: “A crítica moderna poria em dúvida um
conhecimento pormenorizado, mas não devemos menosprezar o
lato de que a tradição evangélica está de acordo em afirmar a
íntima convicção de Jesus de que, enquanto a vida lhe seria
lirada, Deus no fundo o teria vingado (cf. também Lc 17,25;
Mc 10,45)” .40 Poder-se-ia dizer, então, que o profeta galileu
38 K. Rahner, “Considerazioni” op. cit., p. 232. A Voegtle, Exege-
tische Erwãgungen”, op. cit., afirma que os textos reveladores de uma
espera iminente por parte de Jesus se esclarecem mais facilmente com
(nu progresso real no seu conhecimento do plano divino do que com
nina atitude pedagógica: p. 341; ao mesmo tempo, o exegeta concor
da com o teólogo sobre uma percepção originária de absoluta imediati-
i idade de Deus na consciência de Jesus: pp. 341-42.
39 R. Brown, “Scienza e coscienza”, op. cit., p. 84.
40 Ibid., p. 82.
221
intuiu atematicamente, mas com progressiva certeza, o seu des
tino e o destino do mundo em relação ao Pai, mas sem que
tudo, na sua concretude, lhe tenha sido claro e evidente a cada
instante; ele deve ter percebido o salto entre o pressentimento
certo, a forte intuição do futuro, e a viva e dura realidade da
experiência. Ele, “provado em tudo como nós, com exceção do
pecado”, como dirá a Carta aos Hebreus (4,15), foi solidário
conosco também na ignorância, fazendo “a experiência da obscu
ridade com a qual se choca o desejo de saber, sobretudo na
exploração do mistério dos planos divinos”.41
Essa interpretação, enquanto salvaguarda a condição única
da consciência humana de Filho em Jesus, explica sugestivamen-
te a sua f é e a sua esperança.42 Na teologia tradicional ficava
na penumbra “o fato de que Jesus fosse alguém que acreditava,
esperava, procurava e era tentado, alguém que cedia inevitavel
mente diante da incompreensibilidade de Deus”.43 Por que o
homem concreto e vivo de quem nos falam os evangelistas não
deveria arriscar a cada instante a sua vida nas escolhas frente
à indeterminação do futuro? Por que negar-lhe a fé e — conse-
qüentemente — a esperança diante do futuro, como confiança
no Pai e expectativa do bem que, não obstante tudo e contra
tudo, Jesus acreditou ser possível, a seu respeito da parte de
Deus? Admitindo-se um crescimento interior do Nazareno e
reconhecendo-se nele um espaço para a obscuridade e a incerte
za, não há dificuldade para considerá-lo um crente e um homem
de esperança. A Carta aos Hebreus o apresenta como “autor e
aperfeiçoador da fé” (12,2), isto é, como aquele que precedeu e
41 J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, op. cit., p. 335. L. Bouver, II Fi-
glio eterno, Alba, 1976, p. 406, aduz alguns testemunhos patrísticos inci
sivos sobre o tema da ignorância de Jesus.
42 Cf. H. U. von Baithasar, “Fides Christi” in Sponsa Verbi, Brés-
cia, 1972, 2? ed., pp. 41-72; G. Ebeling, “Jesus und Glaube” in Wort und
Glaube, Tübingen, 1960, pp. 203-54; J. Guillet, La foi de Jésus-Christ,
Paris, 1980; L. Malavez, “Cristo e la fede” in Fede e impegno cristiano,
Bolonha, 1973, pp. 115-61; W. Thüsing, “Approcci neotestamentari e una
cristologia dialogico-transcendentale” in K. Rahner — W. Thüsin, Cris-
tologia. Prospettiva sistemática ed esegetica, Bréscia, 1974, pp. 251-69.
Sobre a esperança de Jesus, cf. G. Baraglio, “La speranza di Gesü”, in
Teologia dei presente, 1972, 2, pp. 67-74; P. Charles, “Spes Christi” in
Nouvelle Revue Théologique, 1934, pp. 1.009-1.021; 1937; pp. 1.051-1.075;
C. Duquoc, “La speranza di Gesü”, in Concilium, 1970, n. 9, pp. 37-48.
43 K. Rahner, “Cristologia oggi?” in Teologia dalTesperienza dello
Spirito, Nuovi Saggi VI, Roma, 1978, p. 439.
222
HttiH os crentes nos combates da fé. leva a própria fé à perfei-
,=fm i u cornará na glória.44 Ele viveu de maneira suprema a
sua l< no abandono da cruz, onde foi tomado perfeito por
uif 1" do sofrimento (cf. Hb 2,10).4546E foi também na cruz que
I- u manifestou em plenitude a sua esperança: “É ele que, nos
•Ihr dc sua vida terrestre, apresentou pedidos e súplicas, com
j mente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da
iimrlc; c foi atendido por causa de sua submissão. E embora
!i r.',r Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento;
li vado à perfeição, se tornou para todos os que lhe obede-
i cm, princípio de salvação eterna", (Hb 5,7-9). O brado relata-
.1.1 por Lucas: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc
' M b) não é um ato de suprema esperança — verdadeira “con-
ii/i Ioda esperança”? E o estilo de vida de Jesus, a sua pobreza
fraqueza, a renúncia a todo instrumento de poder, unidos ao
íinúncio do Reino iminente, não são sinal da esperança mais
profunda no poder e justiça de Deus? “Buscai em primeiro
lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos
rn i .to dadas de acréscimo. Não vos preocupais com o dia de
amanhã... Olhai as aves do céu: não semeiam, não ceifam, nem
ajuniam em celeiros; e contudo o vosso Pai celeste as alimen-
ta . Olhai como crescem os lírios do campo...” (Mt 6,33-34.26.
’K). E a rejeição das tentações messiânicas não é sustentada
por uma esperança maior, que não se funda no cálculo humano,
mas na fé em Deus? E a mensagem das bem-aventuranças não é
Um apelo de conversão à esperança, que subverte toda lógica da
M-j.urança e da posse? Certamente “Jesus experimentou até o
exlremo a dificuldade de ‘mudar de vida’... Mas tudo isso nunca
.. levou ao desespero, porque o Reino de Deus está onde não
ha volta sobre si mesmo, onde não há demonstrações de poder,
mas comunhão com Deus”.40
Um sinal particularmente evidente da fé e da esperança
de Jesus é a sua oxacão.47 Ela é amplamente atestada pelos Sinó-
223
ticos, especialmente por Lucas (3,21 ;5,16;6,12;9,18.28; 11,1;
22,32.34). João prefere apresentar diretamente o seu conteúdo:
o diálogo entre Jesus e o Pai (11,41-42; 12,27-28). Através des
ses testemunhos transparecem os caracteres fundamentais da
oração do Cristo: é uma humaníssima indagação ao Pai sobre
as-ujossibilidades-do futuro (“Meu Pai, se é possível, que passe
de mim este cálice...”: Mt 26,39), relacionada com uma infinita
disponibilidade para fazer a sua vontade (“Mas não como eu
quero, e sim como tu queres”; ibid.); é um haurir luz e força
diante das reviravoltas da vida (Jesus, nos evangelhos, ora sem
pre nos momentos decisivos de sua história: batismo: cf. Lc 3,
21-22; escolha dos apóstolos: cf. Lc 6,12-13; confissão de Pedro:
cf. Lc 9,l|ss; transfiguração: cf Lc 9,28-29; etc.); e~uma inter-
cessão pelos outros (cf., por exemplo, Lc 22,32: por Pedro;
23,34: pelos crucificadores; Jo 17,14-19: pelos seus; etc.); é
um louvor e glorificação ao Pai, mesmo diante do fracasso hu
mano (cf. a ação de graças de Mt 11,25-26, que se coloca num
momento-chave da atividade de Jesus, quando a rejeição do seu
povo já se havia delineado: “sobre as ruínas Jesus eleva a ação
de graças”).48 Jesus ateve-se à oração litúrgica, como todo he-
breu fiel, mas ao mesmo tempo inovou essa herança espiritual,
quer dedicando longas horas à oração na solidão, quer substi
tuindo os textos oficiais — em hebraico — pela oração expon-
tânea, expressa na língua materna, o aramaico (pense-se no
termo a b bá, no grito sobre a cruz referido por Mc 15,34 e no
Pai-nosso ensinado aos discípulos). Jesus ora, pois, como qual
quer pobre que caminha na esperança e na fé, mas com uma
doação de si e uma obediência ao Pai verdadeiramente únicas.
É razoável pensar que “a sucessiva cristologia da filiação é ape
nas a interpretação e tradução daquilo que se encontra oculto
na obediência e doação filiais de Jesus”,49 de que sua oração é
um testemunho transparente.
224
..... c ícncia de Jesus, indícios que permitam atribuir-lhe uma
i iiusi iência clara da própria condição e missão? É necessário
distinguir, como sempre, os elementos que são próprios da relei-
mi,i pascal por parte da comunidade dos que podem ser atri
buídos ao Jesus terreno.
225
identificou a sua missão com a do Messias”.53 Ele também
nunca se atribuiu o título de Filho de Davi, denso de res
sonâncias políticas.54 Somente com a Ressurreição será
superada a possibilidade de equívoco, e a comunidade po
derá atribuir ao Crucificado-Ressuscitado títulos próprios
da tradição hebraica, mas com o novo conteúdo da inau
dita “identidade na contradição” proclamada na Páscoa.55
Essa cautela per parte de Jesus é.em si mesma um. sinal
— ainda que indireto — da sua autoconsciência total
mente única.
226
§ttt iliividii, sobretudo os textos nos quais Jesus faz distinção
(tith -i mesmo c o Filho do Homem — visto que essa distinção
(híh fiitIn inconcebível para a comunidade. Ora, se nesses textos
reconhecer o núcleo certamente autêntico da tradição
dos <lít«so b re o Filho do Homem, surge a pergunta: Por que:
Jbiüb m distinguiu do Filho do Homem? Será que esperava um
lilyttdoi diferente dele? Se for levado em consideração o valor
d llic título — expressão de glória inspirada na apocalíptica
jtiiliiii a (cf. sobretudo Dn 7,27) — , e se ao mesmo tempo se
ppiififii nos vários testemunhos seguros através dos quais é vei-
i uliida a consciência que Jesus tinha de ser o portador definiti-
v.> de salvação, não se poderá dar a essa pergunta outra resposta
•uno esta: “Quando ele fala do Filho do Homem, na terceira
p e s s o a , não distingue entre duas pessoas, mas entre a sua presen-
va atual c o status exaltationis”,s8 Em outras palavras, o título
deixa transparecer a consciência que Jesus tem de uma mani-
-.tacao gloriosa do poder de Deus no término de sua vida
icneiia: isso revela a autoconsciência do Nazareno como cons-
n ia ia histórica, _que se põe e se propõe num presente de hu
mildade, mas que ao mesmo tempo se projeta num futuro de
« xallação garantido pelo Pai. Dessa forma, o título manifesta a
onsciência que Jesus tem da transcendência da própria condi-
plo e missão (cf. 26,64; Mc 14,62; Lc 22,69).575859
Uma confirmação dessa consciência pode ser encontrada
no conteúdo histórico dos anúncios da paixão e na tradição
•obre a última ceia. A tríplice profecia da paixão (Mc 8,51 ;9 ,5 1;
10,?5sS~e paralelos) descreve o destino do Filho do Homem com
uma precisão tão minuciosa que não se tem dificuldade em con-
:.iderá-la uma síntese elaborada “ex~ eventu”. Todavia, não há
tampouco dúvidas sérias de que o desdobramento da vida pú
blica de Jesus o tenha colocado diante da perspectiva de uma
morte violenta (recordemos as acusações de blasfêmia, de viola
ção do sábado, etc. e a pena de morte que elas acarretavam).
Além disso, aquele que falou e agiu como profeta só podia espe
227
rar a sorte que naqueles tempos se considerava reservada aos
profetas: o martírio (cf. Lc 13,33). À luz dessas considerações
e do amplo material evangélico posterior, em que se esboça o
anúncio da paixão,’60 não se poderá negar a existência de um
núcleo histórico, subjacente à tríplice profecia, testemunhado do
modo provavelmente mais fiel pela segunda profecia,- a mais
breve _e. indeterminada (Mc 9,31). “Mas os textos vão além.
Com efeito, eles não só afirmam que Jesus previu e predisse cla
ramente a sua jQgixão próxima, mas também acrescentam que
ele se pôs o problema da necessidade da sua morte e encontrou
a resposta na Escritura, em primeiro lugar em Is 53 — o capí
tulo do Servo sofredor...”.61 Outra prova disso são as palavras
da última ceia, que deixam entrever a conclusão de uma nova
aliança (cf. Is 42,6;49,8; Jr 51,31), que se fará na pessoa do
Servo (cf. os textos citados do Dêutero-Isaías). Essas palavras,
enquanto evocam a imagem sacrifical do cordeiro Os 53,7),
afirmam a expiação dos pecados por substituição de uma víti-
ma jnnç.entf» (r.f Is 53,10-12), que será oferecida por muitos
(cf. Is53,l_Qs; cf—os textos da instituição da eucaristia: Mc 14,
22-25; Mt 26,20-25; Lc 22,14-23).62/Essas evocações, unidas à
observação de que a idéia da morte expiadora era familiar no
ambiente de Jesus, justificam a convicção de que ele tenha inter
pretado a si mesmo como o Servo de Deus que vai ao encon
tro da morte no lugar dos outros e em seu favor.63 Isso^supõe
uma consciência explícita da sua condicão-e-missão.
Entre os elementos pré-pascais que veiculam a consciência
tematizada de Jesus podemos lembrar ainda a pretensão relacio
nada com o anúncio do Reino, a autoridade expressa por alguns
usos lingüísticos, noFquais se pode reconhecer a “ipsissima vox”
do Nazareno, e os elementos históricos da tradição^dõs mila
gres. A pregação sobre a vinda iminente do Reino é anúncio
228
da proximidade de Deus. Ora, ao relacionar o Reino que vem
c om r su a p e s s o a , o Nazareno testemunha ter ntna-clara cons
ciência da relação de imediatez única e exclusiva oue há entre
ele e o Pai. O Reino é Reino do Pai (cf. os primeiros três pedidos
do Pai-nosso: Mt 6,9s); e por ter consciência da unidade profun
díssima que o liga ao Pai é que o profeta galileu pode anunciar
a iminência do Reino através da própria palavra e obra. “A
proximidade de Deus, que é expressa na invocação de Deus
como Pai, é idêntica à proximidade escatológica do Reino de
Deus”.64 Portanto, a pregação do Reino é transparência da
consciência filial tematizada pelo Nazareno.
A autoridade, com que Jesus fala, é outro indício pré-pas-
cal da consciência que ele tem de si e do seu destino. Além de
documentada pelas reações dos ouvintes (cf., por exemplo, Mc
1,22.27), essa autoridade inaudita é atestada por alguns usos
linguísticos cuja autenticidade histórica parece certa. Em pri
meiro lugar, o uso do eu enfático, que não tem paralelos no
ambiente da época neotestamentária: “A consciência da própria
dignidade... encontra expressão na freqüência excepcional com
que Jesus recorre ao egó enfático, tanto no material sinótico,
quanto no joanino”.65 Recordemos apenas as seis antíteses do
discurso da montanha: “Ouvistes o que foi dito aos antigos...
Mas eu vos digo... (Mt 5,21-48). Quem pronuncia essas palavras
apresenta-se não apenas como intérprete legítimo da lei, mas
229
também como aquele que ousa contrastá-la, por forca de uma
autoridade maior: é a pretensão de pronunciar a palavra defini-
itü ã3 e Deus, que supõe uma clara consciência da própria dig
nidade por parte de Je_sus. A mesma pretensão — igualmente
veiculada pelo eu enfático — encontra-se nos imperativos das
curas (cf. Mc 2 ,1 1;9,25), nas palavras de envio à missão (çf._Mt
10,16), nas de conforto (cf. Lc 22,32), nas expressões de exi
gência absoluta ^(cf. Mt 10,37) e na enunciação da condição
para se .salvar: Todo aquele que se declarar por mim diante
dos homens, também eu me_declararei por ele diante de meu
Pai que está no céu (Mt 10,32). O uso do amen, igualmente
sem analogias em toda a literatura do antigo judaísmo, como
também no resto do Novo Testamento, é por isso certamente
autêntico do Jesus terreno. Empregado antes dele exclusivamen
te para aprovar as palavras de outra pessoa, o amen é usado
pelo Nazareno para confirmar suas próprias palavras. Conjuga
do com a fórmula eu vos (te) digo”, ele constitui uma expres
são análoga à utilizada pelos profetas para indicar a origem
divina''.da sua mensagem: “Assim fala o Senhor”. É traduzido
dessa forma o poder daquele que fala, e por isso a consciência
Qtte o profeta galileu tem da sua autoridade mais do que hu
mana.”" Essa consciência é também veiculada por circunlocucões
como “Aqui está quem é mais do que Jonas!”, “Aqui está algo
mais do que Salomão!” (Mt 12,41s), nas quais “esse ‘mais’ está
indicando que a história da salvação, já passada, não só é reto
mada, mas também superada; em outras palavras, esse ‘mais’
tem um teor escatológico: chegou o momento”.66768/Jesu s mostra
saber que nele é apresentada ao homem a oferta definitiva e
última de salvação por parte de Deus.
Por fim, é possível reconhecer a consciência explícita do
Nazareno com relação a si mesmo e à própria missão no subs
trato historico da tradição d os milagres: 65 os evangelhos rela
230
tam numerosas curas realizadas por Jesus, ressurreições de mor
tos e milagres sobre a natureza. Não é difícil reconhecer nesse
rico material uma tendência à enfatização (por exemplo, cura de
um cego em Mc 10,46, e de dois em Mt 20,30; sete cestos de
sobras e quatro mil pessoas no relato da multiplicação dos pães
de Mc 8,8-9; doze cestos e cinco mil homens no de Mc 6,43-44;
etc.), como também a influência do entusiasmo taumatúrgico
próprio da mentalidade oriental, que usa amplamente a fanta
sia e gosta do extraordinário.^9 Além disso, é possível distinguir
entre uma primitiva tradição palestina (que focaliza o poder de
Jesus, no contexto de narrações muito simples: cf., por exem
plo, a cura do cego Bartimeu em Mc 10,46-52) e uma posterior
de tipo helenística (articulada de acordo com os modelos típi
cos do taumaturgo da antigüidade, elaborados, que prescrevem
a exposição detalhada dos antecedentes, do gesto miraculoso e
das conseqüências e reações: cf., por exemplo, a cura do cego
de Betsaida em Mc 8,22-26). Com base nessas observações críti
cas, o núcleo histórico dos milagres revela-se notavelmente
reduzido. Todavia, persiste um conjunto de elementos irrefutá
veis, que só podem ser relacionados com aquilo que Jesus real
mente realizou. Assim, por exemplo, a acusação que lhe fazem
de expulsar os demônios em nome do príncipe destes (cf. Mc
3,22b par.) não se justificaria se não houvesse fatos que a pro
vocaram; da mesma forma, a observação de que em Nazaré
Jesus não pôde realizar nenhum prodígio por causa da incredu
lidade de seus habitantes (cf. Mc 6,5) — observação de incon
testável historicidade, porque constituía um elemento descon
certante para a comunidade pascal — mostra que os gestos de
poder eram normais no comportamento do profeta galileu. “Uma
análise histórico-crítica da tradição dos milagres chega à con
clusão de que não é possível negar a existência de um núcleo
Nuovo Testamento, op. cit., pp. 104ss; K. Kertelge, Die Wunder Jesu
in der neue-Exegese” in Theologiesche Berichte V, Zurique-Coloma,
1976, pp. 71-105; R. Latourelle, “Miracolo” in Nuovo Dizionario ai
Teologia,'pp. 931-45; I miracoli di Gesü secondo il Nuovo Testamento,
org. por Léon-Dufour, Bréscia, 1980; F. Mussner, I miracoli di Gesu.
Problemi preliminari, Bréscia, 1969; L. Sabourin, “I miracoli di Gesü
in Rasegna di Teologia, Supl. 13 (1972), pp. 91-99; A. Weiser, I mira-
coli di Gesü, Bolonha, 1979 (ed. bras.: O que é milagre na Bíblia, Edi
ções Paulinas, São Paulo, 1978, 2‘ ed., 189 p.).
69 Cf. os textos de curas, exorcismos e ressurreições do tempo e do
ambiente do Novo Testamento referidos por Weiser, op. cit.
231
histórico dessa tradiçãoé Jesus realizou obras extraordinárias que
deixaram os contemporâneos estupefatos”.7? Qual é o significa
do dessas obras? Na tradição bíblica, os milagres não respon
dem a um interesse científico-naturalista. Falar deles como de
suspensões inexplicáveis das leis da natureza — como costuma
vam fazer, de pontos de vista opostos, o racionalismo ateu e a
apologética tradicional — é o mesmo que colocar-se fora do
horizonte da Escritura. Nesta ‘‘os milagres, mais do que prova
da existência de Deus, são sinais e indicações para se compreen
der quem é Deus e o que ele quer”,7071 são gestos de revelação,
apelos e respostas à fé do homem.72 Os milagres realizados por
Jesus são sinais da salvação do Reino de Deus em ação, do. qual
exprimem a dimensão corpóreo-terrêna. e ãcTrnesrnn tempo “são
signa prognostica, uma prefiguração. a alvorada da nova cria-
ção, a antecipação do futuro que se descerrou em Cristo”.73745
Compreende-se então como “a atividade taumatúrgica de Jesus
esteja em estreita união com o seu anúncio da vinda do_ Reino
deJDeus; as suas curas mostram de maneira palpável que onde
q mensagem da proximidade de Deus foi recebida totalmente,
em pleno abandono, a própria salvação já está em ação”.7'1
Assim, o agir miraculoso do Nazareno vem a ser mais um teste
munho de sua consciência de ser aquela pessoa pela qual a pala
vra e a obra do poder salvífico de Deus alcança o homem e
e destrói o domínio de Satanás.
Então é possível concluir que “toda a pregação de Jesus
sobre o Rehm iminente de Deus, a sua~~vldà pública e a sua
atividade contêm uma cristologia implícita ou indireta, que só
depois da PáscoaTerá traduzida numa confissão explícita e dire-
_ta_. Se os títulos cristológicos enquanto tais são, em sua quase
totalidade, expressão da fé pós-pascal, seu fundamento está,
sem dúvida, na história de Jesus anterior à Páscoa: falta a
expressão, mas existe o conteúdo.76 “Os predicados, os títulos
232
cristológicos, podem muito bem ser conseqüência da fé; mas a
pretensão do próprio Cristo, contida implicitamente em todo o
seu agir e não somente na sua mensagem, precede à fé dos discí
pulos”.77 Essa “çristologia implícita” funda-se, em última análi
se, na consciência filial de Jesus, como se manifesta nas suas
palavras e obras, e como será interpretada no título que, desde
os primeiríssimos inícios,78 a comunidade aplicará ao Crucifica-
do-Ressuscitado, como o mais adaptado a evocar o, seu mistério:
Filho de Deus.'9 Pode-se então falar de uma continuidade fun
damental no desenvolvimento que vai da autoconsciência origi
nária não-reflexa do Nazareno até à sua consciência reflexa, até
a interpretação dada sobre ela pela comunidade das origens. Em
outras palavras, não só “a çristologia pós-pascal com os seus
nomes de dignidade para Jesus de Nazaré não levou a uma
radical alienação da autêntica autoconsciência de Jesus”, como
também “ficará suspensa no ar se não estiver fundamentada na
autoconsciência dele”.80
Trata-se, todavia, de uma continuidade descontínua, que
não exclui as diferenças entre os vários estágios: entre o momen
to pré-pascal e o pós-pascal situa-se o evento inaudito da ressur
reição, que só permite aplicar ao profeta galileu e à sua preten
são aqueles títulos que, de outra forma, seriam equívocos. Mas
também entre o momento atematizado e o reflexo da consciên
cia de Jesus é possível captar, na evolução gradual, uma vira
da. “Quando se submeteu ao batismo de João para unir-se ao
povo de Deus escatológico que o Batista estava reunindo...sentiu
o seu chamamento”.81 O evento do batismo parece ser histori
camente certo, porque dificilmente se pode imaginar que tenha
233
histórico dessa tradiçãoé Jesus realizou obras extraordinárias que
deixaram os contemporâneos estupefatos”.7? Qual é o significa
do dessas obras? Na tradição bíblica, os milagres não respon
dem a um interesse científico-naturalista. Falar deles como de
suspensões inexplicáveis das leis da natureza — como costuma
vam fazer, de pontos de vista opostos, o racionalismo ateu e a
apologética tradicional — é o mesmo que colocar-se fora do
horizonte da Escritura. Nesta “os milagres, mais do que prova
da existência de Deus, são sinais e indicações para se compreen
der quem é Deus e o que ele quer”,7071 são gestos de revelação,
apelos e respostas à fé do homem.72 Os milagres realizados por
Jesus são sinais da salvação do Reino de Deus em ação, do qual
exprimem a dimensão corpóreo-terrena, e ao mesmo tempo “são
signa prognostica, uma" prefiguracão. a alvorada da nova cria-
ção, a antecipação do futuro que se descerrou_ em Cristo’’,73
Compreende-se então como “a atividade taumatúrgica de Jesus
esteja em estreita união com o seu anúncio da vinda do Reino
de Deus; as suas curas mostram de maneira palpável que onde
a mensagem da proximidade de Deus foi recebida totalmente,
em pleno abandono, a própria salvação já está em ação”.7475
Assim, o agir miraculoso do Nazareno vem a ser mais um teste
munho de sua consciência de ser aquela pessoa pela qual a pala
vra e a obra do poder salvífico de Deus alcança o homem e
e destrói o domínio de Satanás.
Então é possível concluir que “toda a pregação de Jesus
sobre o Reino iminente de Deus, a sua vida pública e a sua
atividade contêm uma cristologia implícita ou indireta, que só
depois da Páscoa~será traduzida numa confissão explícita e dire-
Se os títulos cristológicos enquanto tais são, em sua quase
totalidade, expressão da fé pós-pascal, seu fundamento está,
sem dúvida, na história de Jesus anterior à Páscoa: falta a
expressão, mas existe o conteúdo.76 “Os predicados, os títulos
232
cristológicos, podem muito bem ser conseqüência da fé; mas a
pretensão do próprio Cristo, contida implicitamente em todo o
seu agir e não somente na sua mensagem, precede à fé dos discí
pulos”.77 Essa “çristologia implícita” funda-se, em última análi
se, na consciência filial de }esus, como se manifesta nas suas
palavras e obras, e como será interpretada no título que, desde
os primeiríssimos inícios,78 a comunidade aplicará ao Crucifica-
do-Ressuscitado, como o mais adaptado a evocar o. seu mistério:
l ilho de Deus.79 Pode-se então falar de uma continuidade fun
damental no desenvolvimento que vai da autoconsciência origi
nária não-reflexa do Nazareno até à sua consciênciu reflexa ,a té
a interpretação dada sobre ela pela comunidade das origens. Em
outras palavras, não só “a çristologia pós-pascal com os seus
nomes de dignidade para Jesus de Nazaré não levou a uma
radical alienação da autêntica autoconsciência de Jesus”, como
lambém “ficará suspensa no ar se não estiver fundamentada na
autoconsciência dele”.80
Trata-se, todavia, de uma continuidade descontínua, que
não exclui as diferenças entre os vários estágios: entre o momen
to pré-pascal e o pós-pascal situa-se o evento inaudito da ressur
reição, que só permite aplicar ao profeta galileu e à sua preten
são aqueles títulos que, de outra forma, seriam equívocos. Mas
também entre o momento atematizado e o reflexo da consciên
cia de Jesus é possível captar, na evolução gradual, uma vira
da. “Quando se submeteu ao batismo de João para unir-se ao
povo de Deus escatológico que o Batista estava reunindo., .sentiu
o seu chamamento”.81 O evento do batismo parece ser histori
camente certo, porque dificilmente se pode imaginar que tenha
233
sido criado pela comunidade, cujo Jnteresse consistia em mos
trar a superioridade do Nazareno sobre _o Batista, e que por
isso não podia deixar de sentir certo embaraço diante da cena
em que João é aquele que batiza e Jesus é aquele que se faz
batizar. No relato há certamente elementos pós-pascais; todavia,
duas afirmações podem ser encontradas em todas as redações
(Mc 1,9-11; Mt 3,13-17; Lc 3,21s; cf. Jo 1,32-34), ou seja, a
descida do Espírito e uma proclamação. Se esses dois dados
forem interpretados, como parece possível, à luz de Is 42,1 —
“Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem
tenho_prazer. Pus sobre ele o_.meu espírito” — , pode-se com
preender como a comunidade das origens visse no batismo de
Jesus um evento escatológico, em que se realizava a promessa
divina de efusão do_JspiritoJ_Além disso — levando em consi
deração o núcleo histórico da cena — não se pode excluir “que
o sentido dessa passagem da Escritura, expresso agora pela
proclamação, pudesse já ser conhecido por Jesus e que ele, a
í partir do batismo, se sentisse como o servo de Deus prometido,
j por Isqías”.82 Nesse sentido poder-se-ia dizer que “no batismo)
Jesus sentiu a experiência da sua vocação”.83 “uma experiência'
de disclosure, isto é, uma experiência fontal reveladora”,84 na
qual compreendeu explicitamente que estava sendo agarrado
pelo Espírito e por isso enviado pelo Pai para realizar em si o
tempo da salvação. De fato, esta cena inaugura no relato evan
gélico, a vida pública do profeta galileu (cf. também At 1,2 ls ) :
ela podia então ser o testemunho do momento em que o pro
cesso de tematização da consciência de Jesus chega a uma vira
da definitiva. Nesse caso, o batismo seria para a história exte
rior do Nazareno, bem como para a de sua consciência, o alvo
recer dos novos tempos. A comunidade pascal, captando seu sig
nificado de revelação, reconhecerá nele o novo início para toda
a humanidade, no dom do Espírito, que desce sob a forma de
uma pomba. A nova criação evoca as origens: “O espírito de
Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2).
234
H .3 . R E V E L A Ç Ã O E S E G U IM E N T O
235
tória do Jesus terreno, que reivindicou repetidamente a posse
do Espírito. Ele não só se colocou entre os profetas (cf. Lc
13,33; Mt 2 3 ,3 ls.34-36 par.; 37-39 par.; cf. Mc 6,4 par.; Lc
4,24; Jo 4,44), cuja nota característica era a posse do Espírito
de Deus,86 mas também fez compreender muitas vezes e de ma
neira categórica que possuía o Espírito.87 Numa época em que a
Sinagoga considerava extinto o Espírito em razão do pecado de
Israel, Jesus sabe que está inaugurando o tempo novo do Espí
rito: O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso me consa
grou com a unção e me enviou...” (Lc 4,18). A consciência filial
do Nazareno vive, pois, a experiência do Espírito de Deus. Sobre
este fundamento pós-pascal a comunidade das origens — à luz
da novidade da Páscoa — poderá formular a sua fé trinitária,
embora não articulada no horizonte lingüístico e cultural em
que se exprimirá no sucessivo desenvolvimento dogmático.
O paradoxo cristológico revela assim o paradoxo trinitário:
o Deus cristão, como é “narrado” na história da consciência de
Jesus de Nazaré, e como é “expresso” no esforço da fé pascal,
é Pag Filho e Espírito, que se põem e se propõem reciproca
mente e para com os homens, cada qual na sua concreta e ori
ginal relação com o outro. É comunidade dialogai em que —
num nível radicalmente diferente do que é pensável entre os
seres humanos — um Eu se põe e se propõe a um Tu, que O
aceita e se Lhe dá, na comunhão de um Nós, que não é um Ele
fora do diálogo, mas é precisamente o Nós divino em pessoa: o
Espírito.88 Nessa comunidade de relações profundíssimas é imer
so o homem, que entra em contato com o Nazareno: aqui se
funda, em última análise, a exigência absoluta de decisão, que
a pregação e a obra de Jesus apresentam. Na história do profeta
galileu e da sua consciência filial, o Pai se colocou em relação
nova e transformadora com os homens, enviando-lhes, através
236
fj| l illio, o Espírito. No Espírito, através do Filho, o homem
j&M m csso ao Pai: a história do mundo e a história trinitária de
|»*-i«s rueontram-se na história de Jesus de Nazaré, como reve-
i|iir é ao mesmo tempo subversão dos nossos horizontes
¥ i.!* iiu inaudita de salvação naquele que é a Aliança em pessoa.
"Nruii nome tocam-se e dividem-se dois mundos... o mundo da
B=arttr' , e o mundo do Pai... O ponto da linha de interseção,
üi i <|unl esta pode ser vista, e é efetivamente vista, é Jesus de
NsíMie, o Jesus ‘histórico’...”.89
237
da no Crucificado-Ressuscitado, como presença do Deus trini-
tário em toda vicissitude humana, para sustentá-la e fermentá-la
na esperança. O Deus da história de Jesus é o Deus que está do
lado do homem, que se encarrega do obscuro devir e nele cons
trói o seu Reino; é o Deus, que na sua soberana liberdade aceita
entrar nas trgvas-d.0 tempo para fazer delas a aurora da., glória
fllíura; um Deus de homens, que não compete com o^homem.
mas que se faz_humano para que o homem cresca. A história
da consciência de Jesus é, neste sentido, a história da humani-
dade-deJDeus: somente aquele que pode a n lq u T ía n s ^ ^ e só
Deus o pode, porque só ele pode aproximar-se de quem lhe é
infinitamente inferior (a “quênose” de que fãIã~FT~2,5ss) —
pode ser verdadeiramente humilde. “A virtudè~que se~~ehama
humildade está enraizada no mais profundo de Deus” (Mestre
Eckard). A história do humilde Nazareno “manifesta no tem
po que a humildade é o centro da glória”.90
238
■ In celebração cristã é diálogo de libertação, é ver o mundo com
os olhos de Deus e sofrer por causa da injustiça como Aquele
■ nu- foi injustamente-pregado na cruz. O povo que celebra auten-
liminente a eucaristia é também o povo que se sente inexora
velmente chámãHcTã' quebrar as cadeias da iniquidade, a com-
imrlilhar o compromisso de libertação, a realizar com as obras
n íraternidade dos homens diante da única paternidade do Deus
de Jesus Cristo. O diálogo com o Pai, no seguimento do Naza
reno, exige então que se torne comunhão fraterna. Mas para
que a Igreja suscite comunhão, deve antes de mais nada realizar
em si mesma a comunhão. “Nisto todos saberão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). Comu
nhão implica diversidades que se acolhem e se entregam mutua
mente, originalidades que convergem na unidade. A trindade do
Deus revelado em Jesus Cristo é profundíssima singularidade
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e é, ao mesmo tempo,
msondável união entre eles. No riquíssimo diálogo entre o Pai
e o Filho no Espírito Santo manifesta-se a natureza do amor: “O
amor é a distinção e a superação do destino” (Hegel). Esta
deveria ser a condição da Igreja do Deus trinitário: à imagem
<• semelhança dele, ela é chamada a viver na mais rica variedade
c, ao mesmo tempo, na mais profunda unidade. Uma Igreja que
sc mede no seguimento do Nazareno deve saber reconhecer e
acolher a mais ampla diversidade de dons, de presenças, de
caracterizações ligadas ao espaço e ao tempo. Todavia, essa
diversidade deve redundar em comunhão graças a um estilo de
recíproca tolerância e de diálogo. A tolerância é a paciência de
crescer juntamente com todos, sem trilhar caminhos autoritários
ou integristas, talvez mais rápidos e mais cômodos, mas abso
lutamente incapazes de vivificar e expandir a comunhão. O diá
logo é o encontro na palavra, a recíproca escuta e compromisso,
a possibilidade dada a todos de se exprimirem na liberdade e o
esforço por se compreenderem na diversidade. Tolerância e diá
logo fomentam a comunhão e exigem um estilo de responsabi
lidade e de disponibilidade e perder algo de si, a fim de que
cresça a vida em comunhão. Uma Igreja dilacerada por intple-
râncias recíprocas, uma Igreja na qual o autoritarismo matasse
a paciência da tolerância e a liberdade do diálogo, estaria radi
calmente em contraste com a revelação do Deus trinitário, ofe
recida na consciência dialogai de Jesus. Somente a busca cons
239
tante da comunhão, conjugada com a promoção da variedade
dos serviços e das responsabilidades, somente a aceitação do
risco que tudo isso comporta poderão fazer resplandecer na
existência dos cristãos a luz do mundo novo, que se tornou
acessível aos homens graças ao relacionamento único vivido pelo
Filho com o Pai “nos dias de sua carne”.
240
tário. O empenho por uma sociedade mais justa é ato de louvor
a este Deus de homens: a injustiça é ofensa e pecado que toca
profundamente o seu mistério. A vocação política — que nada
tem a ver com o cálculo egoísta e o interesse privado — corres
ponde a uma exigência absoluta de fidelidade à história, funda
da na encarnação de Deus. O Deus-conosco, “narrado” no cami
nho da consciência de Jesus, contesta todo espiritualismo desen
carnado, ao mesmo tempo que provoca e sustenta todo empenho
de amor verdadeiro pelo homem concreto. É por esse empenho
de encarnação que se mede a autenticidade da profissão de fé
cristã. É aqui que as Igrejas deveríam perceber a constante, a
implacável subversão do evangelho com relação à sua postura
de parar, de retardar e de fechar os olhos diante da dor dos
homens. Compartilhar o sofrimento, procurar todos os dias o
caminho em comunhão, prosseguir com cünfiança: 91 é nesse
estilo de vida que se constrói o seguimento do profeta galileu,
, em quem o Deus trinitário compartilhou a dor dos homens, pro
curou com eles o caminho em comunhão, deu fundamento à
esperança para ir adiante, sem parar.
242
a condição filial de Jesus diante do Pai e a sua condição
de homem entre os homens? Poderia o profeta galileu ter
rejeitado o desígnio divino para seguir um desígnio pró
prio, e portanto pecar? É possível dar logo uma resposta
a essas perguntas a partir da fé pascal: “Se o pecado é
essencialmente viver em oposição a Deus, no fechamento,
a unidade de Jesus com Deus, na sua comunhão de pessoa
com o Pai e na sua identidade de pessoa como Filho de
Deus, significa afastamento de todo pecado”.2 Do Naza
reno só se pode dizer, a partir da Páscoa, “sine peccato
conceptus, natus et mortuus” :3 concebido sem pecado, ini
ciou e concluiu a sua vida sem pecar. Assim ele rompeu a
lei de pecado da nossa história e fez irromper nela a nova
história de Deus.4 É o que a fé da comunidade das origens
exprimiu claramente: “Ele não cometeu pecado (lPd 2,
22); “ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exce
ção do pecado” (Hb 4,15); ele, em quem “não há pecado”
e que “veio para tirar o pecado” ( ljo 3,5). O Cristo joa-
nino afirma: “Quem de vós pode convencer-me de peca
do?” (Jo 8,46). E Paulo assevera: “Aquele que não conhe
cera o pecado, Deus o fez pecado, por causa de nós, a fim
de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,21).
Esse dado incontestável da fé pascal não deve, todavia,
forçar a releitura do Jesus terreno. O fato de que ele não
tenha conhecido pecado não significa que tenham faltado
ao seu ser homem o risco e a fadiga da liberdade. A sua
condição humana não esteve, menos do que a nossa,
exposta à fadiga de viver, e portanto à gravidade das esco
lhas radicais, freqüentemente árduas e difíceis. A ausên
cia de pecado em Jesus não é uma impecabilidade abstra
ta, uma incapacidade de fazer o mal, ligada de maneira
243
natural ao seu ser homem, mas “é só o resultado da tota
lidade do seu processo de vida”.5 Em outras palavras, se
o Filho foi enviado numa carne de pecado para condenar
o pecado na carne (cf. Rm 8,3), ele escolheu, entfe as tri-
bulações e as provações da sua carne “semelhante à do
pecado (cf. ibid.), o caminho da fidelidade incondicional
ao Pai.
244
Nessa escolha fundamental reside a motivação última e o crité
rio unificador de tantas escolhas, em que parece fragmentar-se a
existência de todo séFhumano. Nela se exprime, para usarmos
uma expressão bíblica, o “coração” de um homem, a partir do
qual se manifesta quem ele verdadeiramente é. A opção funda
mental é motivada, em sua origem, pelo desejo natural de reali
zar-se em plenitude, e se exerce fundamentalmente na escolha
do fim e dos meios que garantam essa realização. Tal escolha
situa-se na realidade concreta de decisões às vezes até aparente
mente modestas, e por sua vez influencia as sucessivas tomadas
de posição particulares. A autodeterminação fundamental se
traduz, assim, no nível das múltiplas decisões de cada momen
to, mais ou menos conscientes: é o nível da liberdade “situada”
ou “empenhada”, isto é, da liberdade vivida na tensão entre a
amplidão transcendental da opção fundamental e a finitude das
possibilidades presentes na situação concreta. Onde a abertura
infinita do desejo, que anima a escolha radical, se choca com
a experiência e se determina a respeito dela, aí a liberdade se
situa e se torna liberdade-de e liberdade-para, tomada de posi
ção com relação a um já concreto, projetada para o futuro que
rido. Se a opção fundamental for adequada ao desejo natural de
realização de si, e se as escolhas determinadas sucessivas forem
fiéis a essa opção, o caminho da liberdade se configurará como
um caminho de libertação, um libertar-se daquilo que diminui
o homem, em vista do que o realiza e promove. Caso contrário,
tudo permanecerá sob o signo da alienação de si mesmo. Por
tanto, a história de toda liberdade pode ser história de liberta
ção ou história de alienação.
Sob essa luz, como se configura a história de Jesus de
Nazaré? Terá feito ele uma opção fundamental? E, em caso
positivo, qual foi ela? Como viveu o Nazareno as escolhas exigi
das pelas relações concretas que teceram a sua vida? Terá sido
ele verdadeiramente, como alguns gostam de defini-lo,7 o homem
livre? E, conseqüentemente, que papel desempenha a liberdade
no seguimento de Jesus Cristo?
245
9.1. A O P Ç Ã O F U N D A M E N T A L D E JE S U S D E N A Z A R É
tiva expressão: Gesú, uomo libero, (Jesus, homem livre), Bréscia, 1974.
Entre outros, P. van Buren vê na liberdade a característica fundamental
de Cristo: II significato secolare deli’evangelo, Turim, 1960, pp. 139ss.
Cf. também R. Pesch, “Gesú, un uomo libero” in Concilium 1974, pp.
1 9 7 ^ ’ e P. Ruggini, Gesú di Nazaret, il coraggio delia libertà, Assis,
246
ele mesmo sofrido pela tentação, é capaz de socorrer os que são
tentados” (Hb 2,18). Nas provações ele “aprendeu a obediên
cia” : “(Cristo), nos dias de sua vida terrestre, apresentou pe
didos e súplicas, com veemente clamor e lágrimas, Àquele que
o podia salvar da morte; e foi atendido por causa da sua sub
missão. E embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência
pelo sofrimento...” (Hb 5,7).101 O próprio trabalho redacional de
Mateus e Lucas, que substituem a nudez descarnada de Marcos
(1,12-13) pela apresentação elaborada das três tentações (Mt 4,
1-11; Lc 4,1-13), paralelas às de Israel no deserto, mostra
como, para a comunidade primitiva, teve lugar neste episódio
uma escolha real, uma virada decisiva, recapituladora de toda a
história da salvação: 11 é a hora da plenitude dos tempos!
247
em Massa, que leva Moisés a pecar tentando a Deus (cf.
Ex 17,1-7), corresponde a sedução diabólica de obrigar
Deus a fazer o milagre: “...atira-te para baixo, porque
está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e
eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em
alguma pedra (Mt 4,6). A resposta de Jesus lembra a
admoestação de Dt 6,16, explicitamente referente ao episó
dio das águas de Massa: Não tentareis o Senhor vosso
Deus como o tentastes em Massa”. Por fim, à suprema
tentação de substituir o verdadeiro Deus pelo ídolo (seja
o bezerro de ouro: cf. Ex 32, sejam os deuses de Canaã:
cf. Ex 23,20-33;34,11-14), corresponde a sugestão diabó
lica: “Dar-te-ei todas estas coisas se, prostrando-te me ado
rares” (Mt 4,9). Mais uma vez, a resposta de Jesus evo
ca o ensinamento do Deuteronômio, relacionado com
a experiencia da libertação e da obtenção da terra prome
tida: É a Iahweh teu Deus que temerás. A ele servirás e
pelo seu nome jurarás (Dt 6,13). Portanto, o Nazareno
“revive no deserto as tentações do povo eleito; mas
enquanto este havia cedido, Jesus consegue a vitória, fa
zendo próprios os ensinamentos que o Deuteronômio tinha
tirado da experiência de Israel”.13
248
a conhecer no seu colóquio com o Pai, sobretudo através da
leitura das Escrituras relativas ao Servo sofredor e aos profetas.
As três tentações poderiam então ser interpretadas como três
formas da única tentação messiânica, ecos dos diferentes mode
los de messianismo, presentes no mundo de Jesus: o messianis
mo dos bens temporais, relacionado com a fome de justiça dos
pobres; o messianismo apocalíptico, expressão dos movimentos
profético-penitenciais; e o messianismo político, próprio dos
grupos revolucionários.15 O Nazareno diz não às sugestões do
seu tempo: ele não busca o consenso fácil, não satisfaz às expec
tativas dos homens, mas as subverte. Jesus escolhe o Pai: com
um ato de soberana liberdade prefere a obediência a Deus e a
abnegação de si, à obediência a si que implicaria na negação
de Deus. Ele não cede à força da evidência, à atração da eficá
cia imediata: ele crê no Pai com certeza inabalável e pretende
realizar o seu desígnio, por mais obscuro e doloroso que este se
lhe apresente. Na hora da tentação radical, Jesus se afirma livre
de si mesmo, livre para o Pai e para os outros, livre na liberda
de do amor: nele, Servo incondicionalmente obediente, a escala
da obediência profética atinge o ponto mais elevado.16
“O diabo”, escreve Lucas (Lc 4,12), “afastou-se dele para
voltar no témpo fixado” : indício claro de que ‘ a cena da tenta
ção é continuamente repetida na vida de Jesus: a luta contra o
demônio perpassa toda a sua vida; ele vai conquistando, passo
a passo, o terreno de Satanás e repelindo o seu poder... Na ver
dade, a vida de Jesus é um contínuo discernimento dos espíri
tos”,17 até a hora suprema, em Jerusalém.18 Jesus está no Getsê-
mani, no fim de seu caminho, no momento em que lhe é apre
sentada a conseqüência extrema de sua escolha de amor. Ele
15 Cf., por exemplo, Dupont, op. cit., pp. 130ss. Hoffmann observa
a esse respeito: “O ‘Sitz im Leben’ (situação vital) desta perícope foi
provavelmente a divergência concreta entre grupos de cristãos da comu
nidade palestina e os diversos responsáveis pelo movimento revolucio
nário judeu” — “Die Versuchungsgeschichte”, op. cit., p. 219.
16 Cf. H. Urs von Balthasar, Gloria, VII, Nuovo Patto, Milão, 1977,
p. 72.
17 Id., ibid., pp. 72-73.
18 Talvez seja para indicar esse fio contínuo da provação que atra
vessa toda a existência do Nazareno que Lucas — sempre atento ao
significado teológico dos lugares — coloca em último lugar a tentação
que tem como quadro Jerusalém, lugar em que se consumará a provação
suprema: cf. J. Dupont, op. cit., p. 80.
249
sente, a ponto de suar sangue (cf. Lc 22,44), a tentação da outra
margem. Os evangelistas falam da sua angústia (cf. Mc 14,33 e
Mt 26,37), da sua tristeza (cf. Mc 14,34 e Mt 26,38), do seu
medo (Mc 14,33). Jesus sente uma necessidade imensa de pro
ximidade amiga: “Ficai aqui e vigiai comigo” (Mt 26,38). Mas
é deixado sozinho, tremendamente sozinho diante do seu futuro,
como acontece nas escolhas fundamentais do homem: “Não fos
tes capazes de vigiar comigo por uma hora!” (Mt 26,40). Ele
é colocado mais uma vez, da maneira mais violenta, diante da
alternativa radical: salvar a própria vida ou perdê-la, escolher
entre a própria vontade e a vontade do Pai: “Abbá, Pai! Tudo
te é possível, afasta de mim este cálice!” (Mc 14,36 e par.).
No momento em que confirma o “sim” de sua liberdade radi
cal, agarra-se totalmente ao Pai e o chama com o nome que reve
la a sua confiança e ternura: “Abbá!... Não o que eu quero,
mas o que tu queres” (ibid.). Não é por acaso que esta é a
única vez, em que se conserva nos Evangelhos, a forma aramai-
ca da invocação ao Pai! O “Sim” de Jesus brota do amor sem
reservas: sua liberdade é a liberdade do amor! Na hora supre
ma ele escolhe de novo o dom de si, coloca-se nas mãos do
Pai com uma confiança infinita e vive a sua liberdade como
libertação, liberdade de si mesmo para o Pai e para os outros.
É a liberdade de quem encontra a própria vida perdendo-a (cf.
Mc 8,35), a capacidade de arriscar tudo por amor, a audácia de
quem dá tudo.
Nesses mistérios da vida de Jesus transparece a sua opção
fundamental, a escolha na qual ele joga tudo: aquela que o autor
da Carta aos Hebreus interpretou fielmente com as palavras do
Salmo 40,9: “Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade”
(Hb 10,9). “Meu alimento — diz o Cristo joanino — é fazer
a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo
4,34; cf. 8,29; 15,10). No plano mais profundo da liberdade,
Jesus se coloca como o homem totalmente livre por amor,
totalmente orientado para o Pai e para os outros. Ele dá teste
munho de que ninguém é tão livre como aquele que está livre
da própria liberdade em razão de um amor maior. Livre de si,
ele existe para o Pai e para os outros: esta é a sua opção funda
mental, que faz dele verdadeiramente “um homem livre”.
250
" ’ 0 l D A | R S â DR E ? A C l S S S N ¥ â LC O M O A M B I E N T E L O “
251
porque colocou incondicionalmente a sua causa nas mãos do
Pai (cf. Jr 20,12s)t numa ilimitada liberdade de si mesmo, das
riquezas deste mundo e dos outros. Livre de si mesmo, ele é
humilde: “manso e humilde de coração’’ (Mt 11,29),21 vive
em total obediência com relação ao Pai( c f . To 4 ,3 4 i5 jg s s T etc.).
num abaixamento voluntário que o leva a ir ao encontro da
rejeição e da morte própria dos pecadores, por amor a eles. Até
mesmo na hora do seu triunfo, ele continua sendo o “rei humil
de, sentado sobre um jumento” anunciado pelo profeta (Zc 9,9;
Mt 21,5). Livre da riqueza, ele nasceu pobre (Belém: cf. Lc
2,7)j_viveuÍ|EDmo pobre (Nazaré: cf. Mt 13,55), agiu dentro da
absoluta pobreza, sem ter sequer “onde pousar a cabeça” (Mt
8,20), e morreu pobre, livre até mesmo do último sinal de posse:
as vestes (cf. Mt 27,35). Livre dos outros, ele é o puro de cora
ção que se aproxima deles não para possuí-los ou instrumentali
zá-los, mas para amá-los assim como são e para dar-se a eles
desinteressadamente: “O Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos”
(Mt 20,28); ele está no meio dos seus “como aquele que ser
ve (Lc 22,27). Um sinal particularmente evidente da pobreza
do Nazareno, como liberdade de si mesmo, das coisas e dos
homens por amor ao Pai e aos outros, é sua opção pela vida
celibatária. Certamente ela não nasce de uma forma de despre
zo pelo amor humano ou pela mulher que, ao contrário, ele
valoriza muito; mas é fruto de uma doação maior, de uma
exigência_de entrega total e incondicional à sua missão. Por
isso o celibato de Jesus não é uma fuga ou perturbação, mas se
exprime numa extraordinária capacidade de “fazer-se tudo para
todos , de amar a cada um de acordo com a sua necessidade,
na severidade ou na ternura, de ir sempre, nas relações huma
nas, ao coração da pessoa que lhe está perto, sem preconceitos
ou temores. A sua pobreza nunca é pessimismo ou desprezo
pelo mundo e pêlos homens: ele amou intensamente a vida, como
o demonstra o seu suor de sangue diante da aproximação da
morte; também amou ternamente esta terra, como transparece
252
d, sim', palavras sobre os lírios do campo, as aves do céu e todo
8,jiir|r mundo tão vivo e palpitante que se encontra descrito
.... . 1,r parábolas; enfim, ele amou sem reservas os homens, até
mesmo o:, seus crucificadores, pelos quais pediu perdão ao Pai
nu Ih.i .i obscura e tremenda da cruz (cf. Lc 23,34).
(> mistério de sua pobreza é, pois, mistério de um amor
gMiuilo e lotai, que não se detém diante da resistência e da
l, ,, umi Ksse amor maior deu sentido, unidade e força à sua
vi.In, Ibe encheu o coração de gratidão por seu Pai, Senhor
.1.. , éu o da terra, que ocultou estas coisas aos sábios e aos inte-
i i y r n i , e as revelou aos pequenos” (Mt 11,26). Antes de anun-
0|A bis com a palavra, Jesus experimenta na vida as bem-aven-
tuiimças do Reino de Deus que está por vir: com a liberdade
il de si mesmo por amor ao Pai e aos homens, ele encar-
ii:i :i palavra anunciada: “Bem-aventurados vós, os pobres, por
que vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, os que agora
i, ui lc, fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós que
.na chorais, porque haveis de rir...” (Lc 6,20-21 ).22 A sua
piibn /a, fruto da escolha radical de liberdade livre e libertado-
m. |nina-o homem da alegria, cheio de admiração e agradeci-
ui rt i l o pelo dom da fidelidade sempre nova do Pai. Pobre com
u liir.io ao passado, e por isso pronto para o futuro; pobre com
irlíiçno ao presente, e por isso capaz de mudá-lo com fantasia
, i natividade, mas também com extraordinário bom-senso,23
.1 piofeta galileu é pobre diante do futuro: mesmo percebendo
n :.u.i obscuridade e o seu peso, ele vai ao encontro dele, ven-
.. mIn a tentação do medo, num completo abandono nas mãos
do Pai.
253
b) A liberdade de Jesus no seu relacionam ento com o mundo
político-social de seu tem po
254
manais. Os superintendentes dos turnos, os guardiões do tem
plo, os tesoureiros, todos eles pertencentes à aristocracia sacer
dotal, constituíam os “chefes dos sacerdotes” ; entre estes, a su
prema autoridade, que em última análise era a suprema autori
dade judaica, cabia ao sumo sacerdote. Ele era o chefe do siné-
drio e o representante máximo do povo junto a Deus e de Deus
junto aos homens. O cargo de sumo sacerdote em tempos passa
dos era hereditário, mas a partir do século II a.C. havia-se tor
nado apanágio de algumas famílias sacerdotais, que nele se alter
navam. Fortemente condicionados pelo ocupante romano, os
chefes dos sacerdotes temiam qualquer novidade que pudesse
lazê-los perder aquele resíduo de poder que ainda conservavam.
Os anciãos do povo constituíam os representantes da nobreza
leiga: eram de fato os chefes das famílias economicamente mais
poderosas e influentes. Expressando os interesses da classe patro
nal, eram contrários a qualquer perturbação do equilíbrio exis
tente; em política, bem como em religião, suas posições eram
acentuadamente conservadoras, o que os aproximava natural
mente das opções do partido dos saduceus. Os escribas, por fim,
eram teólogos leigos, que chegavam a essa condição através de
uma longa e minuciosa formação: cercados de discípulos, eram
tratados por todos com grande deferência. Na prática, consti
tuíam a intelectualidade oficial do judaísmo, com possibilidade
de grande influência sobre o povo, porque deles provinha tam
bém o corpo docente da sinagoga. Em geral pertenciam ao par
tido dos fariseus; em religião eram mais liberais do que os
saduceus, mas em política tendiam a alinhar-se às posições de
prudência conservadora dos outros grupos no poder. No relato
evangélico, o Sinédrio aparece numa luz decisivamente negati
va. Essa posição embora possa ter sido influenciada pela polê
mica cristão-judaica das origens, encontra fundamento na atitu
de real dos seus membros, prisioneiros dos próprios interesses e
dos próprios temores. Diante do Sinédrio sobressai a liberdade
de Jesus, sobretudo no embate final: enquanto os chefes dos
sacerdotes, os anciãos e os escribas se preocupam em aduzir
provas para condená-lo (cf. Mc 14,53ss e par.), o Nazareno não
teme reafirmar a sua inaudita pretensão e anunciar, mais uma
vez, a vinda do Reino, relacionada com a sua pessoa (cf. Mt
26,64 e par.). Entregue pelo Sinédrio ao ocupante romano, no
silêncio de sua liberdade soberana oferece o mistério de sua
255
presença como resposta à pergunta inquieta de Pilatos: “O que
é a verdade”? (Jo 18,38). O Pobre confunde os poderosos com
a sua liberdade: “Eis o Homem!” (cf. Jo 19,5).
Se o Sinédrio representava a instituição, Saduceus e Fari
seus constituíam os partidos do judaísmo oficial. Os Saduceus
— cujo nome derivaria de Sadoc, sumo sacerdote na época de
Salomão, ou de “sadduqi”, que significa justo — constituíam o
partido da nobreza leiga e sacerdotal. Concentrados sobretudo
em Jerusalém, menos influentes do que os Fariseus no resto do
país, eles eram conservadores em política e em religião. Preo
cupados, na realidade, em defender os próprios privilégios de
classe, acabavam desconfiando de qualquer possível mudança
também na interpretação da Lei. Rigidamente contrários a toda
hipótese de evolução dogmática, eram, entre outras coisas,
adversários da doutrina, considerada moderna, da ressurreição
dos mortos (cf. Mc 12,18ss; At 23,8). Compreende-se, por isso,
a sua instintiva desconfiança inicial e depois a sua clara oposi
ção ao profeta galileu, que lhes parecia um leigo de origens
obscuras, que tinha pretensões absurdas, mas perigosas com
relação à fé tradicional e, por isso, à ordem constituída. De
outra parte, a liberdade de Jesus de todo cálculo e interesse, a
sua dedicação incondicional ao Reino de Deus, tornava-o into
leravelmente provocante para as mentes calculistas e interessei-
ras dos saduceus, entrincheirados na defesa dos privilégios de
casta.25 Os Fariseus eram, ao invés, o partido “burguês”, expres
são da classe média: movimento de leigos, surgido no tempo
dos Macabeus em oposição aos compromissos da aristocracia
sacerdotal e dos oportunistas do povo com o mundo helenístico
(de onde o seu nome, que significa “separados”), sua finalida
de originária consistia em restaurar a observância escrupulosa
256
da Lei nos mínimos aspectos da vida, a fim de glorificar o Deus
de Israel. Esse admirável rigor das origens, que leva Paulo a
recordar com certo orgulho sua própria origem farisaica (cf. G1
1,13; F1 3,5), com o passar do tempo tornou-se um formalismo
exacerbado e uma casuística escravizante. Por isso, embora Jesus
sente à mesa com eles (cf. Lc 7,36ss; 11,37ss) e — segundo Lc
13,31 — eles o ponham de sobreaviso acerca das intenções de
Herodes de prendê-lo, o choque é inevitável: o profeta galileu
contesta a sua autoridade e condena a sua hipocrisia (pense-se
nos cinco conflitos narrados por Lc 5,17-26.30-32.33-39 e 6,1-
10, como também nas terríveis denúncias de Lc ll,3 7 ss e Mt
23). Ainda que estes relatos se ressintam da polêmica da comu
nidade das origens com a Sinagoga, não se pode negar que a
liberdade do Nazareno com relação aos preconceitos e à pró
pria Lei, a sua amizade com publicanos e pecadores e a sua
violação dos preceitos rituais (especialmente do sábado e das
várias purificações: cf. Mc 2,27 par. e 7,5ss par.), contrasta
vam profundamente com o rigorismo puritano e soberbo desses
“leigos engajados”.20
Ao lado destes, ou melhor, contra o judaísmo oficial, colo
cavam-se os movimentos revolucionários da Palestina do tempo
de Jesus. Eles patrocinavam, de forma mais ou menos violenta,
um programa radicalmente reformador quanto ao culto, ao tem
plo e ao sacerdócio, e sonhavam com a libertação da opressão
romana e com a restauração do Reino de Israel.2627 Entre os
257
vários grupos sobressaem os sicários e os zelotes. Os primeiros,
assim chamados por causa do pequeno punhal com que golpea
vam os adversários, muitas vezes atacando-os de surpresa no
meio da multidão, provêm da Galiléia e fazem prosélitos entre
os proletários e os camponeses mais pobres. Sua aspiração a
instaurar o domínio absoluto de Iahweh confunde-se com a mais
geral sede de justiça e de mudança dos oprimidos, dispostos a
tudo — até à luta no estilo “terrorista” contra os romanos e os
seus partidários judeus — contanto que se mudasse a iniqüidade
presente. Esse messianismo dos bens temporais exprimir-se-á,
com o tempo, numa quantidade de sonhos messiânicos e de
messias políticos, miseravelmente fracassados diante da prova
ção dos fatos. Os zelotes, ao contrário, provinham especialmen
te da nobreza sacerdotal e do baixo clero. Concentrados sobre
tudo em Jerusalém, sonham — freqüentemente com forte colo
ração apocalíptica — com a reconstituição da teocracia israeli
ta, identificando-a com a purificação do Templo e a sua centra-
lidade na vida do povo libertado, segundo a visão de Ez 40-48.
Seu próprio nome mostra o “zelo” com que procuram executar
esse programa. Firmemente decididos a instaurar o Reino de
Deus, não hesitam em recorrer à violência contra os odiados
ocupantes romanos e seus sequazes, especialmente a aristocra
cia sacerdotal. Destes movimentos revolucionários provêm
alguns dos discípulos de Jesus: Simão com certeza provém dos
zelotes, pois é chamado precisamente de Zelota (cf. Lc 6,15 e
At 1,13); Judas Iscariotes muito provavelmente era sicário (cf.
Mc 3,19 par.); mas talvez também Pedro.28 No profeta galileu
certamente há traços que o aproximam dos revolucionários do
seu tempo: assim, a pregação da proximidade do Reino e a cons
ciência de dever desenvolver uma missão decisiva em vista
disso; a afirmação enigmática de que “o Reino de Deus sofre
violência e os violentos se apoderam dele” (Mt 11,12 e Lc
16,16), talvez relacionada com as acusações de subversão dirigi
das contra o movimento de Jesus; a crítica a Herodes e aos de
tentores do poder (cf. Lc 13,32;22,25ss); a ascendência sobre a
258
multidão, que quer fazê-lo rei. Além disso, podiam ser inter
pretados como sinais de opção revolucionária zelote o episódio
da purificação do templo, a entrada em Jerusalém, o fato de que
um dos discípulos estava armado no Getsêmani. Não foi por
acaso que o Nazareno foi condenado pelos romanos como agita
dor político — como mostra o “titulus crucis”, a tabuleta com o
motivo da condenação, colocada sobre o lenho da cruz (Jesus
Nazareno R ei dos judeus), — e trocado por Barrabás, culpado
de homicídio durante uma revolta (cf. Mc 15,1 )P Todavia, a
distância e a autonomia do profeta galileu com relação aos revo
lucionários de seu tempo são evidentes, bastando, para verificá-
-lo, considerar outras características de sua vida e obra: a recu
sa da violência (cf. Mt 5,39ss: “Não resistais ao homem mau;
antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a
esquerda...”; 26,52ss: “Guarda a tua espada no seu lugar, pois
todos os que pegam a espada, pela espada perecerão ); o amor
para com os inimigos (cf. Mt 5,43-48; Lc 6,27-36); a bem-aven-
turança referida aos pacíficos (cf. Mt 5,9); a fidelidade à lei; a
amizade com os publicanos, odiados cobradores de taxas a servi
ço do opressor romano; o fato de que um deles, Mateus, seja até
acolhido entre os seus discípulos; a rejeição do messianismo
político-temporal. Tudo isso não podia deixar de desiludir o na
cionalismo exacerbado e o fanatismo violento dos zelotes e sicá-
rios.2930 Jesus não satisfaz as expectativas de quem queria uma
ação de mudança imediatamente eficaz; em sua liberdade, ele
259
não teme colocar-se em outro plano, não confundir o Reino de
Deus com um dos tantos possíveis reinos daquele mundo.
Entre os grupos de reforma religiosa que existiam na Palesti
na no tempo de Jesus colocam-se a comunidade dos essênios e os
m ovim entos profético-penitenciais, entre os quais o do Batista.
Os essênios, surgidos no tempo dos Macabeus, constituíam um
grupo rigidamente organizado, em posição de aberta ruptura
com o judaísmo oficial e de isolamento da sociedade. Essa atitu
de era motivada por um legalismo rigoroso (donde talvez o
nome, relacionado com a forma aramaica hasein-hasaja, que
indica o devoto observante da lei), pela pretensão de represen
tar o verdadeiro povo de Deus e por uma espera de coloração
apocalíptica. Ainda que não se possam excluir relações do
Nazareno com esse grupo, deve-se reconhecer que “é totalmente
estranho a Jesus o ideal essênio de uma perfeita pureza sacer
dotal e cultuai, que considerava uma obrigação evitar qualquer
contaminação”.31 A liberdade do profeta galileu impede-o de
tornar-se escravo de qualquer sectarismo e de todo legalismo:
ele vive no meio do povo, misturado com a massa dos pobres e
dos pecadores, numa solidariedade serena e libertadora. Ao lado
dos essênios, situam-se os grupos — menos rigidamente organi
zados — dos profetas do deserto: posicionando-se em continui
dade com a tradição profética, eles convidavam o povo, com
palavras de fogo, à conversão e à penitência, a fim de prepará-lo
para a eminente vinda do dia de Deus, início do tempo escato-
lógico. Essa esperada “revolução de Deus” tinha tendências
acentuadamente apocalípticas: a libertação do mal presente e a
instauração do domínio de Iahweh sobre todos os povos era
concebida como a “virada dos tempos”, ocasião em que as forças
do mal seriam definitivamente aniquiladas pelo judaísmo futuro.
Nesse clima espiritual situa-se a pregação de Jo ão Batista: típico
profeta do deserto, ele anuncia a “ira iminente” e convida a pro
duzir “dignos frutos de penitência”, porque “o machado já está
posto à raiz das árvores, e toda árvore que não produz bons
frutos será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,7-8.10). Quem aco
lhe a sua pregação deve fazer-se batizar por ele no rio.Jordão.
Esse batismo “com água” prepara o batismo “no Espírito Santo
260
e no fogo”, que será dado por aquele que vem: “A pá está na
sua mão: vai limpar a sua eira e recolher o trigo no celeiro;
mas, quanto à palha, vai queimá-la num fogo inextinguível” (Mt
3 ,1 1-12).32 Profeta do julgamento, João espera uma figura de
Juiz escatológico: a releitura cristã de sua obra, evidente nos
evangelhos, com a intenção de absorver o movimento do Batis
ta no movimento de Jesus identificou “Aquele que deve vir”
com o Cristo. Não se diz que essa identificação tenha sido clara
para João, como demonstra o fato de que, ainda no fim de
sua vida, ele envia discípulos a Jesus para perguntar-lhe: “És
tu aquele que deve vir ou devemos esperar outro?” (Mt 11,3).
Seja como for, não se pode negar que, embora tivessem um
pano de fundo apocalíptico-penitencial comum, a pregação do
Nazareno logo se diferenciou da de João: o Batista anuncia o
julgamento e prepara o caminho para um outro, ao passo que
Jesus anuncia a si mesmo como portador da salvação de Deus.33
O profeta galileu, todavia, reconhecerá no profeta do deserto
João aquele que já pertence à plenitude dos tempos, o Elias
redivivo que prepara o caminho diante dele (Mt 11,7-14). Com
base nesse reconhecimento, o evangelista João marcará a figura
do Batista como a daquele que, antes de qualquer outro, procla
ma o anúncio cristão: “Eis o cordeiro de Deus” (Jo 1,36). Por
tanto, também em relação ao Batista, o Nazareno se demonstrou
profundamente livre: reconhecendo a grandeza dele a ponto de
aceitar o seu batismo, Jesus superou as suas perspectivas pessi
mistas e apocalípticas, no anúncio feliz e sereno da misericórdia
do Pai que realiza a salvação pelo próprio Jesus.
261
Entre os grupos do judaísmo considerado “herético” devem
ser lembrados, no tempo de Jesus, os galileus e os samaritanos,
que além disso eram diferentes dos movimentos de reforma
religiosa. Os primeiros, na realidade, pertenciam à comunidade
religiosa judaica; contudo, a distância do templo fizera com que
a sinagoga assumisse entre eles um papel central, e a proxi
midade dos povos pagãos havia produzido inevitáveis influên
cias, de modo que os galileus eram considerados até certo ponto
impuros. O Nazareno vem da Galiléia, e isso já demonstra o
absurdo de suas pretensões aos olhos dos bem-pensantes: “Pode
sair algo de bom de Nazaré?” (Jo 2,46). Os primeiros destina
tários de sua mensagem são precisamente os desprezados gali
leus, “povo imerso nas trevas”, do qual virá ao mundo a luz
(cf. Mt 4,15-16). Antes de mais nada, entre os galileus ele esco
lhe os seus discípulos (cf. Mc 1,16-20 par.). Também neste caso
Jesus revela uma liberdade que o torna provocador com relação
aos “piedosos israelitas”. Não se comporta de outra forma com
os samaritanos, que à impureza derivada de casamentos com
pagãos acrescentavam a grave heresia de só aceitar o Pentateuco
mosaico com Palavra de Deus e de substituir Jerusalém pelo
monte Garizim como legítimo lugar de culto. Jesus não evita
o seu território, como se costumava fazer por meio de longos
desvios quando se ia do Norte para Jerusalém; ele chega até a
entreter-se com eles (cf. Jo 4,20-21) e apresenta justamente um
samaritano como exemplo de verdadeiro amor (Lc 10,25-37; cf.
também 17,16). Daí a acusação: “Não dizíamos, com razão, que
és samaritano e tens um demônio?” (Jo 8,48). Mas a liberdade
do Nazareno é mais forte do que essas acusações e não se detém
diante delas, antepondo a tudo as exigências do anúncio do
Reino a todo homem.
A essa atitude com relação aos desprezados “heréticos” do
seu povo, deve-se acrescentar a predileção mais geral de Jesus
pelos marginalizados, pobres, fracos. Publicanos, pecadores e
prostitutas sentem-se acolhidos pelo Nazareno, que não teme
entrar em contato com eles e participar de seus banquetes.34 Em
Israel, comer juntos tinha um significado profundo: equivalia a
34 Cf., entre outras obras, P. Fiedler, Jesus und die Sünder, Frank
furt a.M.-Berna, 1976, e A. Holl, Gesü in cattiva compagnia, Milão, 1971
(bastante reduzido sob o perfil teológico). Cf. também a bibliografia
da nota 19.
262
entrar numa real comunhão de vida. Aceitando sentar-se à mesa
com pecadores e marginalizados, o Nazareno mostra-se total
mente livre dos preconceitos que afetavam as relações sociais
do seu tempo. Na realidade, não é ele que entra na comunhão
do pecado, como insinuavam os escribas do partido dos fariseus
(cf. Mc 2,16), mas são os pecadores que entram, através do ban
quete com ele, na comunhão da graça: “Não são os sadios que
têm necessidade de médico, mas os doentes; não vim chamar os
justos, mas os pecadores” (ibid., 17). O encontro, na casa do
fariseu, com a pecadora a quem muito foi perdoado porque
muito amou (cf. Lc 7,36ss), o perdão à adúltera (cf. Jo 8,3ss), o
episódio de Zaqueu (cf. Lc 19,lss), a vocação do publicano Levi
(cf. Lc 5,27ss), o fato de que publicanos e pecadores acorram
numerosos para pôr-se à mesa com ele (cf. Mc 2,15; Mt 9,10)
são exemplos, entre outros, dessa predileção portadora de sal
vação, que Jesus tem por esses “sem lei” e desprezados. Verda
deiramente, a sua presença entre os homens aparece como o
banquete ao qual são trazidos “pobres, coxos, cegos e estropia-
dos” (Lc 14,21), os “sem esperança”, para fazer festa e encon
trar a vida. Jesus será descrito como aquele “que passou fazen
do o bem e curando todos os que estavam sob o poder do demô
nio, porque Deus estava com ele” (At 10,38).
Nesse contexto, merece menção particular a relação entre
Jesus e as m ulheres: 3S no mundo hebraico, a mulher é colocada
em posição subordinada com relação ao homem, estando a seu
serviço como esposa e como mãe. No templo, como na sina
goga, compete-lhe um setor limitado; nos deveres religiosos é
equiparada ao escravo, porque se pensa que, como ele, não é
senhora do seu tempo. Por isso, nem sequer é instruída na
Lei. Na vida civil não tem voz alguma, nem participa da assem
bléia do povo (pense-se, por exemplo, no recenseamento de Nm
1,1, que exclui as mulheres, e no rito unicamente masculino da
circuncisão, que introduz no povo eleito). A mulher deve evitar
aparecer em público; sua honra está na sua casa, no respeito e
no amor dos filhos. Inserindo-se nesse contexto, Jesus apresen
263
ta, com relação à mulher, uma atitude completamente nova, que
se poderia até dizer revolucionária: ele acolhe sem distinção ho
mens e mulheres, estabelecendo entre eles uma total igualdade
de dignidade em face do Reino que vem. O seu modo de agir
desconcerta os próprios discípulos: os evangelistas Mateus e
Marcos, por exemplo, parecem bastante discretos a esse respeito,
fazendo aparecer somente no Calvário e na Ressurreição o gru
po das mulheres que seguem a Jesus. Lucas e João, ao contrá
rio, parecem mover-se com mais liberdade; o primeiro apresenta
sem hesitação o séquito feminino do profeta galileu (cf. Lc 8,1-3),
e somente ele narra o episódio “revolucionário” do encontro
com a pecadora, perdoada na casa do fariseu (cf. Lc 7,36ss).
As mulheres exercem uma função de primeiro plano no seu
evangelho: de Maria a Isabel (1-2); de Ana (2,36-38) à sogra de
Simao (4,38-39); da viúva de Naim (7,11) à hemorroíssa (8,43-
48); de Marta e Maria, figura, esta última, do verdadeiro discí
pulo (10,38-42), à mulher encurvada e curada em dia de sábado
(13,10-17); da viúva importuna (18,1-8) à viúva pobre do tesou
ro do templo (21,1-4); das mulheres de Jerusalém (23,27) às
mulheres dos relatos pascais (24,lss). João não hesita em teste
munhar a admiração dos próprios discípulos diante do compor
tamento de Jesus (4,27): no seu evangelho, Maria em Caná (2,1-
12), a samaritana (4,7ss), a adúltera (8,1-11), as irmãs de Lázaro
(11,30-32), Maria que unge profeticamente os pés do Nazareno
(12,1-8), a mãe e as outras mulheres junto à cruz (19,25-27),
Maria de Mágdala, que é a primeira a ver o Senhor (20,18), são
figuras diferentes, que atestam um relacionamento livre e liber
tador de Jesus com a mulher. Diante do Reino que há de vir, o
profeta galileu anula as discriminações que recaíam sobre a con
dição feminina de seu tempo, e a todos, homens e mulheres sem
diferença, abre as portas da nova criação.’0
No fundo da predileção de Jesus pelos marginalizados,
pelos pecadores, oprimidos e fracos — sem excluir as crianças,
que ele acolhe com alegria (cf. Mt 19,13-14 par.), tomando-as
até mesmo como modelo (cf. Mt 18,3 par.),3637 embora naqueles
264
tempos não fosse decoroso para um “rabbi” entreter-se com
clas — enccntra-se a sua dedicação incondicional à causa do
Reino, o seu amor total pelo Pai e pelos homens, o que o deixa
livre de preconceitos e temores. A sua atitude não nasce de sim
ples sede humana de justiça ou de reformismo social, mas da
obediência. Àquele que ama e acolhe os humildes e os pecado
res, porque estão mais dispostos a receber o dom da graça, e
abate os soberbos, obcecados pela tentação do poder. Subver
sivo aos olhos do imobilismo conservador do Sinédrio, inova
dor obscuro e perigoso para os saduceus, mestre de erros para
os fariseus que não lhe perdoavam a liberdade com relação à
|,ei e a predileção pelos pobres, revolucionário, mas não sufi
cientemente, para os zelotes e sicários, que não podiam com
preender o seu espírito de misericórdia e de paz, impuro para
os facciosos e bem-pensantes que o tachavam de “galileu ou
“samaritano”, desconcertante para os discípulos do Batista que
esperavam o Messias do julgamento e do fogo, o Nazareno rom
pe todos os esquemas: não é um homem da ordem constituída,
mas também não é um revolucionário político; não é alguém que
ignora a Lei, mas também não é alguém que procure observá-la
escrupulosamente; não é um asceta piedoso, ou um severo cen
sor dos costumes, mas também não é alguém que não conheça
o deserto e não convoque à penitência. Jesus não se deixa apri
sionar numa imagem que satisfaça às expectativas de uma fac
ção: a sua liberdade radical o torna maior do que todas as redu
ções nas quais se gostaria de colocá-lo. É livre no seu anúncio
do Reino, como obra gratuita e maravilhosa do Pai, ao qual o
homem é chamado a responder com a conversão do coração.
Aqui se revela a razão profunda da liberdade situada do
Nazareno no seu relacionamento com o mundo político e social
de seu tempo: ela nasce da constante referência de toda a sua
vida e de toda a sua escolha com o mundo de Deus que há
de vir, da sua “reserva escatológica”. Certamente, o profeta
galileu critica o poder injusto deste mundo, o espírito de rique
za e de poder que aprisiona o coração: “Ai de vós, ricos (Lc
6,24ss; cf. 19,16ss e Mc 10,23-27). Mas o faz não em nome de
outro poder terreno, e por isso igualmente injusto, e sim em
nome do Reino de Deus que vem. O fundamento da liberdade
265
de Jesus frente as ideologias, aos preconceitos, às posições de
poder de seu tempo, está, portanto na sua opção fundamental,
na sua pobreza de si para existir somente para o Pai e para os
outros, numa esperança e num amor que o tornam subversivo e
crítico tanto para com todo míope messianismo humano, como
para com toda cegueira diante do peso da injustiça presente. O
Nazareno, ao vivificar a presença na história como empenho no
acolhimento do Reino que há de vir, supera os esquemas e afir-
ma-se como homem verdadeiramente livre, perigoso justamente
porque contagia com a sua liberdade.
266
Templo: 38* “Entrando no Templo, começou a expulsar os ven
dedores e compradores que lá estavam: virou as mesas dos cam
bistas e as cadeiras dos que vendiam pombas, e não permitia que
ninguém carregasse objetos através do Templo. E ensinava-os
di/.endo: Não está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de
oração para todos os povos/’ Vós, porém, fizestes dela um covil
de ladrões!” (Mc 11,15-17; cf. Mt 21,12-13; Lc 19,45-46 e Jo
,M3ss). O valor profético desse gesto é demonstrado pelas cità-
ções bíblicas que a redação evangélica menciona: “A minha casa
será chamada casa de oração para todos os povos (Is 56,7. Mc
11,17); “Esta casa, onde o meu Nome é invocado, será porven
tura um covil de ladrões a vossos olhos?” (Jr 7,11: Mc 11,17);
“Naquele dia não haverá um mercador sequer na casa do Senhor
dos exércitos” (Zc 14,21: Jo 2,16). Israel é chamado à conver
são exigida pelo tempo final, enquanto se proclama o inicio da
hora escatológica, relacionado com a pessoa e a obra de Jesus:
“Eis que vou enviar o meu mensageiro para que prepare um
caminho diante de mim. Então, de repente, entrará em seu Tem
plo o Senhor que vós procurais... Quem poderá suportar o dia
de sua chegada?” (Ml 3,1-2; cf. 3-4). Portanto, o Nazareno
reconhece o Templo como o lugar em que se realiza a revelação
final e a virada dos tempos; mas, anunciando como já presente
aquela hora, declara por isso mesmo concluída a economia do
Templo. Encontra-se uma confirmação dessa interpretação nas
afirmações que Jesus faz com relação à destruição do Templo
e sua reconstrução em três dias, apresentadas como acusações
por seus adversários em Mc 14,58 e Mt 26,61, como motivo de
escárnio por parte dos que estavam junto à cruz em Mc 15,29,
e como palavras do próprio Jesus em Jo 2,19. Elas mostram que
o Templo da era escatológica é a pessoa de Cristo, que substitui
a antiga economia: “Destruí este templo e eu o reedificarei em
três dias... Ele falava do templo de seu corpo. Quando ressusci
tou dos mortos, os discípulos lembraram-se destas palavras e
267
acreditaram” (Jo 2,19.21-22). Portanto, o Nazareno proclama o
fim do Templo por força da liberdade que deriva de sua dedi
cação incondicional ao Pai, pela qual vive em total obediência
a sua missão de mensageiro e de presença, ao mesmo tempo, do
Reino que vem. Isso explica por que o gesto da purificação do
templo, se por um lado suscitou o entusiasmo da multidão, que
o deve ter interpretado como um sinal de desforra contra a iní
qua ordem constituída, por outro foi considerado pelas autori
dades como uma provocação extrema e assinalou a virada que
levou à prisão de Jesus: 39 “Ouviram-no os chefes dos sacerdo
tes e os escribas e procuravam uma forma de fazê-lo morrer”
(Mc 1,18).
Da mesma liberdade radical deriva a atitude do profeta ga-
lileu com relação à Lei, à T orá: 40 ela era constituída pelo Penta-
teuco e pelos outros escritos do Antigo Testamento considerados
inspirados (Torá escrita). Ao lado desta, com o tempo, assumiu
grande importância e autoridade a interpretação que dela davam
os escribas, a 7 orá oral, chamada halaká. Jesus tem um grande
respeito pela Torá escrita, um respeito fundado no conhecimen
to profundo e amoroso: ele freqüentou a sinagoga, onde se lia o
livro da Lei (cf. Mc l,21ss par.); o seu livro de oração foi sem
dúvida o Saltério (cf., por exemplo, Mc 15,34, com citação de
SI 22,2); a sua obra e a sua pregação são alimentadas pela leitu
ra dos profetas, particularmente Isaías (cf., por exemplo, Mc
4,12 par: e Is 6,9s; Mc 7,6s par. e Is 29,13; etc.; cf. também
a evocaçao freqüente dos Cânticos do Servo do Dêutero-Isaías)
e Daniel (cf., por exemplo, Mt 19,28 par. e Dn 7,9s; Lc 13,
32 e Dn 7,27; etc.), mas também Jeremias (cf., por exemplo, Mc
14,24 par. e Jr 31,31) e os profetas menores (cf., por exemplo, Mt
9,13; 12,7 e Os 6,6; etc.), bem como pela referência ao Pentateu-
co (cf., por exemplo, Mc 7,10 par.; 10,19 par.; 12,28-34 par.;
etc.).41 Esse grande respeito não impede o profeta galileu de sen
tir-se livre com relação à Lei, se isso é exigido pela sua causa:
assim, ele não hesita em deixar de lado propositadamente certos
268
nspectos da T orá (por exemplo, as expressões relativas à vingan
ça: cf. Mt 11,5s par. e Is 35,5s; 29,18s; 61,1); além disso, supri
me aqueles preceitos que não se conciliam com a condição do
Reino que há de vir (assim, a permissão do divórcio: cf. Mt 5,32
c Dt 24,1; o juramento: cf. Mt 5,33-37; a lei do talião: cf. Mt
5,38-42); por fim, acrescenta à Lei aquilo que a leva à perfei
ção (cf. Mt 5,17 e as antíteses de Mt 5,21ss). Portanto, a Torá
escrita é assumida, mas também definitivamente superada, por
que levada à plenitude, no testemunho do Nazareno.
Ao contrário, radical é sua rejeição da halaká, a Torá oral
dos rabinos, com a qual entra constantemente em conflito: “O
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”
(Mc 2,17), lembra aos fariseus, rejeitando em bloco a sua ca
suística escravizante, que catalogava todas as ações proibidas em
dia de sábado. À sua moral ele opõe o primado do amor de Deus
pelos homens, e dos homens por Deus e por seus semelhantes:
“É lícito em dia de sábado fazer o bem ou mal, salvar uma
vida ou tirá-la?” (Mc 3,4; cf. as diversas controvérsias sobre o
bem que Jesus faz em dia de sábado: Mc 3,1-6 par.; Lc 13,10-17;
14,1-6). Igualmente clara é a rejeição que o profeta galileu opõe
à minuciosa casuística, totalmente privada de amor, sobre a
pureza ritual (cf. Mc 7,1-8 par.; Lc 11,38): Nada há no exte-
rior do homem que, penetrando nele o possa tornar impuro
(Mc 7,15 par.). De todas as formas, Jesus quer afirmar que o
amor é o resumo de todos os mandamentos, “Amarás o Senhor
teu Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o enten
dimento. Esse é o grande e o primeiro mandamento. O segundo
é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas
(Mt 22,37-40). Por isso, o Nazareno critica a hipócrita abolição
dos deveres filiais mediante a oferenda sagrada (cf. Mc 7,9-13),
e denuncia os doutores da Lei como mentirosos, devido às suas
obras, que contradizem o bem que pretendem ensinar (cf. Mt
23,3). Censura a sua presunção de serem justos (cf. Lc 18,9-14),
recordando ao homem a exigência moral de agradar ao Pai, que
vê no segredo (cf. Mt 6,lss). Essa atitude não encontra paralelo
no seu tempo: 42 manifesta a liberdade radical de quem con
269
fronta e avalia todas as coisas com relação ao Deus que vem.
Também a posição de Jesus em seu relacionamento com a tra
dição religiosa de Israel revela a sua opção fundamental: livre
por amor, o Nazareno é livre na mais total dedicação ao Pai,
por força da qual pode proclamar a relatividade inevitável de
tudo o que é menos do que Deus.
9 .3 . REVELAÇÃO E SEGUIMENTO
270
mima análoga liberdade acolhe o dom e se dá ao Pai, no Espí
rito, que é como o “nós” da pobreza trinitária de Deus: ele é
.• Espírito de liberdade de si e do dom ao outro. O Deus reve-
lado cm Cristo como Deus da liberdade é então dinamismo
-,iipremo, vida inexaurível dos Três, que se tornam um no outro,
um saindo de si para fazer-se outro no outro, e no retornar a si.
Neste sentido, “Deus” quer dizer para os cristãos antes de tudo
uma história: a história do amor pobre de si e livre para o outro
de cada um dos Três, que se traduz no devir eterno do dar-se e
do acolher-se. Há um devir de Deus enquanto há um devir em
Deus: não se trata de um sujeito divino abstrato que se torna,
mas em Deus os Três, na sua incomparável liberdade, se ofe
recem e se acolhem um ao outro na profundidade do amor, que
c distinção e superação do distinto. Essa mesma liberdade está
na origem da economia da criação e da salvação: o Deus da
liberdade, que em suas escolhas não é motivado por outra coisa
senão pela gratuidade de seu amor, por amor sai de si, suscita o
mundo e a história e se derrama neles para fermentá-los em vista
da definitiva comunhão consigo. Esse caminho para o outro não
condiciona a liberdade do Deus trinitário, que se oferece à histó
ria sempre indedutível e improgramável em seus gestos, sempre
surpreendente e novo, subversivo com relação a toda tenta
tiva de aprisioná-lo num esquema feito à medida da criatura:
um Deus diferente.43 E depois da primeira rejeição da sua cria
tura, livre diante da liberdade do seu Deus, esse Deus diferente
não hesitou em procurar o homem, em fazer aliança com ele;
longe de ser o comparsa imóvel, imutável da vida do mundo, o
Deus trinitário entrou na história, caminhou com o povo, eleito
pelo mistério de sua liberdade, tornou-se carne, aceitando o
obscuro e mutável condicionamento do devir humano. A onipo
tência se fez fraqueza por amor: o Senhor do céu e da terra
morreu no madeiro vergonhoso da cruz! O Deus cristão foi tão
livre, a ponto de ser livre da própria liberdade e entregá-la nas
mãos dos pecadores. A liberdade fez dele o Pobre, que respon
de à rejeição do amor com a audácia de quem dá tudo; o Hu
milde, que continua a inclinar-se sobre a sua criatura para levá-
-la à comunhão consigo; o Fiel, cuja promessa não muda no tem
271
po. O Deus da liberdade respeita a esse ponto a liberdade da
sua criatura! Ele conhece e aceita o risco da liberdade, porque
liberdade é apenas outro nome do seu amor: “Nisto se manifes
tou o amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho unigênito
ao mundo para que vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não
fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou...”
( l jo 4,9-10). A história da liberdade de Jesus, revelando-nos que
Deus é liberdade, nos revela que Deus é amor (cf. ibid.).
272
nho de conversão e de reforma, pronta a correr o risco e a assu
mir as conseqüências para chegar àquela liberdade crítica dian-
tc dos detentores do poder, que lhe é exigida pelo evangelho da
liberdade. Essa liberdade audaz implica vigilância constante com
relação aos condicionamentos ideológicos, políticos, sociais, eco
nômicos e também religiosos, que podem pesar — às vezes até
inconscientemente — nas escolhas que a comunidade cristã e
cada um dos batizados, vão realizando, ou já realizaram.
A essa liberdade crítica diante dos “grandes” e “pode
rosos” deve corresponder uma opção a favor dos pobres, aná
loga à que foi feita por Jesus de Nazaré: onde existem margi
nalizados e oprimidos, ali a Igreja deve antes de tudo saber
reconhecer o seu lugar, para compartilhar, para denunciar atra
vés de uma obra de conscientização dos pobres a iniqüidade pre
sente, para anunciar, por obras e palavras, o advento do Reino.
Igreja livre quer dizer então Igreja dos pobres: comunidade que,
embora sentindo-se chamada a levar a todos a graça do evange
lho, faz uma opção preferencial a favor dos últimos, porque sabe
que somente assim ela mesma se deixará evangelizar e poderá
evangelizar de maneira crível o mundo.44 Os cristãos certamente
não têm soluções mágicas a propor, nem estão em condição de
dar todo tipo de contribuição de que pode haver necessidade.
Eles reconhecem, contudo, com uma consciência humilde e vigo
rosa, que o seu lugar de pobres entre os pobres, vivido na fé,
na esperança e no amor, pode tornar-se um apelo, tanto mais
inexorável quanto mais arriscado e fiel, à libertação da injustiça
e do pecado pessoal e social. A Igreja, livre de si para servir
ao homem, entra assim no processo de libertação do mundo:
contagiando com a sua liberdade e recebendo-a sempre como
dom de seu Senhor, ela se torna libertadora no meio da família
humana. Quanto mais os cristãos forem livres de si mesmos,
livres para o Pai e para os outros, tanto mais provocarão os ho
mens à liberdade e lhe abrirão caminhos. A sua fecundidade
não deriva, por isso, da abundância dos meios de que dispõem,
ou do consenso que aparentemente conseguirão, mas precisa
mente da liberdade desses meios e desse consenso, para viver a
fidelidade ao Evangelho. Discípulos do homem livre, que, por
273
sua liberdade de amor incondicional ao Pai e aos homens, mor
reu na vergonha da cruz, os cristãos se esforçarão por incremen
tar, com a oração e com a vida, a experiência da liberdade no
mundo em que vivem, sem procurar a eficácia imediata ou o
consenso exterior. Quem está verdadeiramente livre para o Pai e
para os outros, sabe contar com o desconhecido, isto é, crê, para
além de toda possibilidade, na possibilidade impossível, aquela
que a liberdade de Deus, revelada em Jesus Cristo, prometeu à
história. Quem é verdadeiramente livre dá testemunho de que a
liberdade, mesmo quando é derrotada, merece ser vivida, e é
contagiante e libertadora, porque, como a liberdade do Nazare
no, é revelação e dom de um mistério maior. Não é apenas com
as mãos operosas do homem que se irá libertar o mundo do
mal que o oprime: não haverá libertação profunda e duradoura
se aquelas mesmas mãos não se abrirem também no louvor e na
invocação para acolher o dom que vem do alto. A emancipação
do homem moderno — como processo de libertação produzido
só pelas forças intramundanas — não cessará de produzir tota-
litarismos e manipulações de toda espécie, se não souber abrir-se
à libertação que foi oferecida em Jesus Cristo à história: a liber
tação de si mesmo, para existir, no amor e na esperança, para
o Pai e para os outros. Jesus, o homem livre, não cessa de
provocar os homens à liberdade! 45
274
10
275
vel, é o grande “não” dito à consciência e, enquanto indisponí
vel, é o grande “não” dito à liberdade. Ela resume assim, de um
lado, a obscuridade do futuro absoluto, isto é, do futuro não
edificado por nossas mãos, não programado, fugidio, desconhe
cido e sempre à espreita; de outro, a dilaceração das proximi
dades, a total solidão do abandonado, a morte à comunhão, que
é sempre vida. O futuro absoluto e a dor, entendidos respectiva
mente como limiar da consciência, cega diante do imprevisível,
e como limiar da liberdade, dobrada diante da indisponibilida-
de do abandono, se oferecem então como os confins radicais da
finitude, presente no caminho para a morte, que é toda existên
cia humana.1
Como se apresentaram na história de Jesus de Nazaré?
Terá ele, como nós, conhecido a dor do negativo, a obscura pai
xão que difunde um odor de morte por sobre toda a vida? Ou,
por força de sua condição divina, plenamente revelada na Pás
coa, o Nazareno não terá experimentado a fadiga do viver, o
peso da hostilidade das coisas e dos homens, a resistência inte
rior diante da treva e da provação? A essas perguntas já foi
dada uma primeira resposta, quando falamos da história da
consciência e da liberdade de Jesus: elas o mostram empenha
do no caminho da fé e da esperança, bom conhecedor do risco
da liberdade. Trata-se agora de reler essas constantes, focalizan
do-as de maneira particular, para aprofundar até onde for pos
sível o mistério supremo da sua morte de cruz. Devemos falar,
com a discrição e o pudor necessário diante de toda finitude, e
ainda mais necessários diante da dele, do seu caminho para a
cruz, da hora obscura da sua morte, e daquilo que ela revela
com relação à história de Deus e dos homens.1
276
10.1. O EVANGELHO DOS SOFRIMENTOS
277
Justifica-se tal releitura das obras e dos dias do Nazareno?
Os evangelhos são muito discretos sobre este ponto.4 Seu teste
munho nada tem de emotivo ou de passional: não oculta os
aspectos humaníssimos da finitude física de Jesus, a sua fome
(cf. Mt 4,2; Lc 4,2), a sede (cf. Jo 19,28), o sono (cf. Mc 5,38
e par.), mas respeita o silêncio da mais profunda finitude inte
rior por ele experimentada, interrompendo-o apenas com sinais
e evocações imprevistos, reveladores de uma secreta familiari
dade com a dor. Diante da morte do amigo, não contém o pran
to (cf. Jo 11,35), manifestando o sofrimento que só o amor co
nhece: Vede como o amava!” (11,36); ao pensar na hora pró
xima do fim, sua alma se perturba (cf., por exemplo, Jo 12,27),
triste até a morte (Mc 14,34), com uma tristeza que revela o
seu apego à vida e o obscuro peso que ele percebe diante do
obscuro e dilacerante futuro da morte. Sobre o pano de fundo
desta contínua ^discrição se revela ainda mais violento o forte
grito da cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonas
te? (Mc 15,34): sinal do abismo de uma dor infinita?
Jesus sentiu o limiar imponderável e amargo da morte: a
história da sua fé e da sua esperança, a sua vida de oração, o
caminho juncado de provações da sua liberdade são prova" cons
tante disso. Obscuridade e tentação chocaram-se na profundida
de do seu espírito, com a dedicação incondicional ao Pai, até o
sim” que o levou à morte: “Abbá, Pai! Tudo te é possível,
afasta de mim este cálice! Porém, não o que eu quero, mas o
que tu queres! (Mc 14,36). Esta experiência interior de finitu
de, esta fadiga de viver assumida na força de um amor maior
e da esperança que crê, abre Jesus à compreensão real do sofri
mento humano: a sua compaixão pela multidão (cf., por exem
plo, Mt 9,36; 15,32), a sua comoção diante dos infelizes e dos
sofredores (cf. Mc 1,41; Mt 20,34; Lc 7,13; etc.), revelam uma
sensibilidade diante da dor alheia que são próprias apenas de
quem fez a experiência da dor. O Sofredor, que compreende
e ama, dá forças a quem está oprimido pelo sofrimento: "‘Vinde
a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo
e eu vos darei o descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e
278
encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo
é suave e o meu fardo leve” (Mt 11,28-30).
À experiência da finitude interior e à compaixão que dela
deriva para o sofrimento alheio, deve-se acrescentar, na vida do
Nazareno, o impacto duríssimo da dor que lhe é provocada pelos
homens: considerado um exaltado pelos seus ('‘Enlouqueceu :
Mc 3,21), acusado de ser um endemoninhado pelos escribas
(cf. Mc 3,22 e par.), definido um impostor pelos poderosos (cf.
Mt 27,63), Jesus sente todo o peso da hostilidade que se acumula
contra ele. Não se entristece com as acusações, mas com a dureza
dos corações dos quais elas provêm (cf. Mc 3,5). Os adversários
não se cansarão de atacá-lo de todos os modos. Acusam-no pelo
comportamento dos seus discípulos que não jejuam (cf. Mc 2,
18) e não observam a Lei (cf. 2,24;7,5; etc.); procuram desa-
creditá-lo aos olhos do povo com toda espécie de calúnia (cf.
Mc 3,22, por exemplo), chegando até a expulsá-lo da sinagoga
que lhe dá fé (cf. Jo 9,22; 12,42); tentam colocá-lo em difi
culdades a respeito de questões controvertidas (cf. Mc 10,2; 12,
18-23) ou comprometedoras (cf. Mc 12,13-17). Várias vezes ten
tam prendê-lo (cf. Mc 12,12; Jo 7,30.32.44; 10,39) e procura-se
matá-lo (cf. Lc 4,29; Jo 8,59; 10,31); é tecida com cuidado a
trama iníquia da conjura para fazê-lo morrer (cf. Mc 3,6; 14,1-2.
55-59). Por que tudo isso? Os motivos da hostilidade contra o
Nazareno por parte dos grupos influentes são fáceis de com
preender: a sua inaudita pretensão os irrita (cf. 6,2-3; 11,27-28;
Jo 7,15; etc.), a sua popularidade os espanta (cf. Mc 11,18; Jo
11,48; etc.). Jesus põe em discussão, com a palavra e com a
vida, as suas certezas, e, com o seu sucesso entre o povo, põe
em risco os fundamentos da precária ordem existente. Mas ele
é demasiadamente livre para deter-se sob o condicionamento do
medo: por isso continua o seu caminho, na fidelidade ao sim
radical dito ao Pai. É claro que toma suas precauções: ^conse
gue escapar das tentativas de apedrejamento e de prisão (cf.
Lc 4,30; Jo 8,59; 10,39); evita as ocasiões de choque (cf. Mc
7,24;8,13; etc.). Mas também põe à prova, no cadinho desse
sofrimento, a opção que marcará uma virada na sua ação: a
viagem decisiva para Jerusalém.5 “A cidade do grande Rei
279
(Mt 5,35) é o lugar onde os destinos de Israel e dos seus profe
tas devem consumar-se (cf. 13,33). Jesus prevê o que o aguarda
em Jerusalém como conseqüência do radicalismo da sua vida
e da sua mensagem (cf. o conteúdo histórico dos vaticínios da
paixão: Mc 8,31;9,31; 10,33-34; e par.).ú A rejeição sofrida na
Galiléia, bem mais profunda do que os fáceis entusiasmos da
multidão, permitiu-lhe tematizar sem sombras de dúvida que
deverá beber até o fim o cálice do destino do justo.7 Neste sen
tido, é a crise que perpassa toda a “primavera galiléia” que o
leva a Jerusalém: ela é uma dolorosa experiência de finitude,
mas assumida no mais claro impulso de doação ao Pai e de fé
na vitória final da justiça e do amor. Será essa opção de obediên
cia total, mais forte do que qualquer derrota, que o levará ao
encontro da morte de cruz.
Com a ida a Jerusalém entra-se em cheio na história da
paixão: 8 Jesus dirige-se para lá “decididamente” (Lc 9,51: lite
ralmente: endureceu o rosto a fim de ir para lá), caminhando
diante dos seus que o seguem desconcertados (cf. Mc 10,32).
Na cidade de Davi o choque chega ao auge: já estão extrema-
280
mente envolvidos no caso o Sinédrio e a nobreza leiga e sacer
dotal que ele representa. O Nazareno tem consciência da ini-
qüidade que está para consumar-se com relação a ele, mas
enfrenta-a com a riqueza de sentido de quem vê a morte injus
tamente sofrida como uma doação voluntária, vivida em obe
diência ao Pai e fecunda de vida. São prova disso os relatos da
Última Ceia, nos quais o Servo confia aos seus o memorial da
nova aliança no seu sangue.9 Neste quadro de finitude, fonte de
sofrimento aceito, situa-se também o processo de Jesus: 10 é a
hora dos adversários, “o império das trevas (Lc 22,53). Quais
foram os motivos que levaram o Nazareno à condenação? Aos
olhos do Sinédrio ele é um blasfemador (cf. Mc 14,53-65 par.),
que com sua pretensão e sua ação (sobretudo a “escandalosa
purificação do templo: cf. Mc 11,15-18 e par.) mereceu a morte
segundo a Lei (cf. Dt 17,12). E contudo Jesus não sofreu a pena
reservada aos blasfemadores: a lapidação (cf. Lv 24,14); ele
foi justiçado pelos ocupantes romanos, sofrendo a pena inflin-
gida aos escravos desertores e aos instigadores contra o impé
rio: a ignominiosa morte de cruz.11 A sua condenação foi, no
final, política, como atesta o “titulus crucis”, a tabuleta com a
motivação; da condenação colocada sobre o lenho da vergonha:
“Jesus Nazareno Rei dos judeus” (Jo 19,19). A sua morte, então,
pode definir-se como um assassínio judiciário, de significado
político-religioso.12 A sexta-feira santa (7 de abril do ano 30?)
9 Cf. X. Léon-Dufour, “ Jésus devant sa mort, à la lumière des textes
de rinstitution eucharistique et des discours d’adieu” in Jésus aux ori
gines de la christologie, op. cit., pp. 141-168; R. Pesch, “Das Abend-
mahl und Jesu Todesverstándnis” in Der Tod Jesu. Deutungen im Neuen
Testament, org. por K. Kertelge, Freiburg in Br., 1966, pp. 137-87.
10 Cf., entre outras obras, R. Aron, “Quelques réflexions sur le pro-
cès de Jésus” in Lumière et Vie 20 (1971), pp. 5-17; P. Benoit, “II pro
cesso di Gesü” in Esegesi e teologia, Roma, 1964, I, pp. 216-53; J. Blinz-
ler, II processo di Gesü, Bréscia, 1966; S. G. F. Brandon, II processo a
Gesü, Milão, 1974; D. R. Catchpole, The Trial of Jesus. A Study in
the Gospels and Jewish Historiography from 1770 to the Present Day,
Leiden 1971; G. Crespy, “Recherche sur la signification politique de la
mort du Christ” in Lumière et Vie 20 (1971), pp. 89-109; J. Moltmann,
II Dio crocifisso, Bréscia, 1973, pp. 131ss. (“II processo storico di
Gesü”) ; The Trial of Jesus, org. por E. Bammel, Londres, 1971; P.
Winter,’ On the Trial of Jesus, rev. e org. por T. A. Burkill e G. Ver
mes, Berlim-Nova York, 1974, 21 ed.
11 Cf. T. M. Cícero, Pro Raibrio, cap. V (par. 16): “O conceito
de cruz deve permanecer distante não somente do corpo dos romanos,
mas também dos seus pensamentos, dos seus olhos, dos seus ouvidos”.
12 Cf. J. Blinzler, op. cit., p. 420.
281
é para a Lei o dia que morre o blasfemador e para o poder o dia
em que morre o subversivo. A fé cristã reconhecerá nele o dia
em que, no Inocente que morre, Deus morreu por nós.
1 0 .2 . A CRUZ
282
E contudo o “desgaste conceituai”, vivificado pelo amor para
com o Objeto puro da fé, não pode parar justamente aqui. Ela
deve continuar a acompanhar o Nazareno, porque o mistério de
sua morte é passagem obrigatória para entrar no mistério de
sua vida (e não será assim também para toda existência? Viver
não é aprender a morrer?). O caminho de uma teologia da cruz,
que queira evitar os riscos de um simbolismo arbitrário e não
raramente conservador,14 não pode ser senão o de narrar, pen
sando-o criticamente, o caminho de Jesus para os mortos, esbo
çando assim uma “cristologia narrativa” da paixão e morte do
Filho do Homem.1516
Por amor, livremente e consciente do passo dado, o Naza
reno foi ao encontro da morte: numa entrega total, ele deixou
que o levassem de um lado para outro.lü A traição e o abando
no dos seus entregaram-no aos adversários: “Judas Iscariot, um
dos Doze, foi aos chefes dos sacerdotes para entregá-lo a eles”
(Mc 14,10). Jesus acolheu com dor e amor o beijo de Judas, o
discípulo atormentado, talvez desiludido nos seus sonhos revo
lucionários: 17 “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?”
(Lc 22,48). “Amigo, para que estás aqui?” (Mt 26,50). O ódio
implacável dos representantes da Lei o entregou ao represen
tante de César: “Logo de manhã, os chefes dos sacerdotes fize
ram um conselho com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio.
E amarrando a Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos”
(Mc 15,1 par.). Este, embora convencido de sua inocência —
“Que mal fez ele?” (Mc 15,14) — cedeu à pressão da multidão,
instigada pelos chefes (cf. 15,11): “Depois de ter feito flage
lar Jesus, entregou-o para que fosse crucificado” (Mc 15,11).
283
Diante dessa trama de traição, de ódio e de medo, o Nazareno
não cessa de dar testemunho da verdade, até que se fecha no
silêncio, que desconcerta Pilatos (cf. Mc 15,5). Aquele silên
cio deixa falar a vitória na sua luta extrema com a finitude: o
iníquo suceder-se das “entregas” não levaria a nada se não exis
tisse — soberana — a sua “entrega” de si mesmo, o oferecimen
to livre e generoso de si ao Pai pelos homens! Isso é expresso
pelo grito relatado por Lucas: “Pai, em tuas mãos entrego o
meu espírito!” (Lc 23,46: cf. SI 31,6). O Filho do Homem
“entrega-se” a seu Pai! O abandonado pelos homens é, na reali
dade, aquele que se abandona. A comunidade das origens inter
pretará essa “auto-entrega” do Nazareno, sobre a qual os evan
gelhos se mostram discretos, como o ato do supremo dom de si
por nós: “Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no
Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim”
(G1 2,20; cf. 1,4; Ef 5,2.25; lTm 2,6; Tt 2,14). A história da
paixão aparece então como a consumação suprema da entrega de
Jesus ao Pai por nosso amor: na luz trinitária revelada plena
mente na Páscoa, mas já presente na relação filial única e exclu
siva do Nazareno com Deus, ela é a história do Filho na carne,
o seu caminho para a alteridade, ao encontro da morte do des
pojamento incondicional de si para dar-se ao Pai e levar-nos
consigo na sua vida. A agonia da cruz é a revelação, no tempo
da finitude, do eterno, infinito dom de si do Filho ao Pai,
selado pela “entrega” do Espírito, que traduz na carne da nossa
história o movimento da doação a Deus: “E inclinando a cabeça
entregou o Espírito” (Jo 19,30). A cruz é história do Filho: no
abandono supremo da morte, o Filho se dá no Espírito ao Pai.
E o Pai?
Um sinal — e na verdade o mais denso! — da finitude
experimentada por Jesus na cruz permite-nos dizer uma palavra
sobre a história do Pai na hora do abandono: é o grito transmi
tido pelos evangelhos de Marcos e Mateus: “Eloi, Eloi, lamá
sabachtháni, que, traduzido, significa: “Deus meu, Deus meu,
por que me abandonaste?” (Mc 15,34; cf. 27,46). Ele parece
contradizer violentamente todo o movimento anterior da histó
ria da paixão, que de “entrega” em “entrega” chega à “auto-
entrega” incondicional do Crucificado. Essa palavra de aban
dono por parte de Deus soa como algo escandaloso e blasfemo,
o que demonstra ao mesmo tempo a autenticidade e a dificul
284
dade de interpretação.18 A exegese tradicional — fundando-se
no fato de que a frase constitui o início do Salmo 22, oração de
confiança em Deus na provação — , viu no grito de Jesus aban
donado a expressão da sua confiança incondicional no Pai. Mas,
nessa hipótese, não se compreende por que os evangelistas Mar
cos e Mateus não formularam essa confiança com as mesmas
palavras de Lucas (23,46), que estão em consonância com o mo
tivo dominante da “entrega". Além disso, vale a observação de
que, quando o Nazareno assume uma categoria ou uma expres
são do Antigo Testamento, sempre lhe dá um cunho próprio:
“Mais do que interpretar o grito de Jesus no sentido do Salmo
22, será preciso interpretar as palavras do Salmo no sentido da
situação de Jesus”.1920 Os relatos evangélicos da paixão ocultam
com uma discrição profunda esse sentido: isso explica porque a
maioria dos intérpretes tenha se recusado a reconhecer nessas
palavras uma experiência real de abandono do Crucificado por
parte de Deus.23 Outros, ao contrário, acreditaram poder captar
na “derelictio Jesu” a autêntica revelação de um abandono de
Deus, e por isso de uma morte em Deus, na abissal laceração
que separa o Filho do Pai: “A cruz do Filho separa Deus de
Deus, até a hostilidade e diferença” mais total.21 A dificuldade
dessa interpretação reside em dever reconstruir, a partir de um
sinal extremamente discreto, uma história do Pai, que transcen
de a carne e o sangue. Por isso não é de admirar que algumas
expressões dessa tendência pareçam assumir, sem o necessário
e forte escândalo, a história humana de dor e de morte na his
tória trinitária de Deus: a Trindade aparece nela como uma
história incompleta, que vai se construindo através da imanên-
cia do Filho na história mediante o Espírito, até que seja “tudo
em todas as coisas”.22 Aqui é preciso lembrar o sentido do abis
mo que separa céu e terra e tomar consciência de que entre a
285
“paixão” do homem e a “paixão” de Deus — “Unus de Trini-
tate passus est” 23 — existe a mesma diferença que há entre a
finitude terrena e o infinito divino. A história terrena não pode
identificar-se com a divina! 24 E todavia, não se pode pensar que
o Pai tenha permanecido indiferente na hora da cruz: “Não há
um mal no universo, com relação ao qual seja mais difícil admi
tir a apatia de Deus, do que o pathos de Cristo crucificado”.25
Um conjunto de textos do Novo Testamento permitem entrever,
no mistério do grito de abandono de Jesus moribundo, uma
“entrega” ulterior e final: é a “entrega” do Pai que “não pou
pou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32).
“Pois Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho úni
co, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna” (Jo 3,16). Essa entrega extrema, esse abandono do Filho
por parte do Pai, é também significado indiretamente no uso
da forma passiva das predições da Paixão: “O Filho do Homem
está para ser entregue nas mãos dos homens que o matarão” (Mc
9,31 par.; cf. 10,33 e par.; 10,45 e par.; Mc 14,41s = Mt
26,45b-46). Por quem será entregue? Não pelos homens, que são
os destinatários da entrega, nem por si mesmo, que é o objeto,
mas por Deus, pelo Pai! “Os passivos do ‘ser entregue nas mãos
dos pecadores’ mostram-nos como é Deus quem age com a ine-
xorabilidade e irrevogabilidade de um ato de julgamento” .26
286
Então é legítimo falar de um abandono por parte do Pai:
a dor mais profunda do Crucificado não está tanto nos pregos
dos homens, em que se consumava o previsto “império das tre
vas” de sua rejeição. A sua verdadeira dor, a sua cruz, está no
lato de experimentar o abandono de Deus! Jesus tinha vivido
toda a sua vida em constante comunhão com o Pai: a opção
mais profunda da sua liberdade fora a da liberdade de si para
dar-se incondicionalmente a Deus e aos homens. “Nada faço
por mim mesmo, mas como o Pai me ensinou, assim eu falo.
Aquele que me enviou está comigo e não me deixou sozinho,
porque faço sempre as coisas que são do seu agrado” (Jo 8,31).
“Eu e o Pai somos uma só coisa” (Jo 10,30). Na cruz, esta co
munhão com o Pai parece acabada: Deus está terrivelmente dis
tante! Ao Deus, tornado estranho, o Crucificado faz a pergunta,
carregada com o eco profundo da dor humana, com o choque
mais radical com a finitude: “Por que me abandonaste?” É a
interrogação de todos os pobres, deserdados e oprimidos da ter
ra: ela traz em seu bojo o estupor ante a obscuridade do que
acontece e a dor de sentir-se abandonado. Por que o Pai, que
sempre o amparou e a quem ele deu tudo por amor, agora se
cala? Onde está seu Pai, onde está Deus? Este silêncio do Pai
diante do Filho que morre é a “morte de Deus” sobre a cruz;
ou melhor, a revelação da cruz como “morte em Deus” . O Filho
morre, dilacerado no mais profundo de seu coração pelo afasta
mento do Pai; o Pai “morre”, porque “entrega” dolorosamente
o Filho, como um dia Abraão “entregou” Isaac; 2627 o Espírito está
presente no silêncio, “entregue” pelo Filho ao Pai no instante
supremo de sua morte. A cruz é história do Filho, do Pai e do
Espírito Santo, história trinitária de Deus! Mas, por que a morte
na história do Deus trinitário? “Não era necessário que o Cristo
sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (cf. Lc 24,26). A
resposta a essa interrogação permanece em grande parte envolta
no silêncio das “profundidades de Deus” (cf. ICor 2,10). Só é
lícito indicar algumas possibilidades do pensamento, já ilumina
do pela luz da Páscoa, na qual somente “a sua morte adquire
287
aquele significado salvífico totalmente peculiar e único que, de
outra forma, não podería ter, nem mesmo à luz de sua vida
vivida”.28
O abandono do Pai e a conseqüente infinita dor do Filho
se oferecem, antes de tudo, como a revelação “sub contrario”
da insondável unidade que liga um ao outro. Jesus sofre de ma
neira única e irrepetível precisamente porque experimenta a
solidão com relação Àquele com o qual é verdadeiramente um
no amor. A cruz é “absconditas Dei sub contrario” (Lutero): na
profundidade do sofrimento de sua separação, o Pai e o Filho
revelam ao mundo a sua unidade divina. Diante de Jesus que
morre na cruz na dor do abandono do Pai poder-se-ia dizer:
Vede como o amava!” (cf. Jo 11,36). A dor revela o amor: o
abismo da dor revela a perfeição do amor. Na dor revela-se o
coração do Deus trinitário. Por isso, não é por acaso que Mar
cos, imediatamente após ter narrado a morte do Nazareno, escre
ve: “O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que
havia expirado deste modo, disse: ‘De fato, este homem era Filho
de Deus’ ”! (Mc 15,39). Essa expressão da teologia pós-pascal
— da qual apresenta o título ‘‘Filho de Deus” e a intenção de
sublinhar o sentido da cruz também para os não-judeus — é
muito significativa: afirmando que um pagão reconhece o rosto
de Deus na dor e na morte do Crucificado, ela evidencia que
no Filho do Homem que está morrendo na cruz se revela o
Filho de Deus, o Deus na alteridade, em exílio de si por amor
do mundo. Aos pés da cruz, naquele que se abandona ao Pai e
pelo Pai é abandonado por nós, a treva se faz veículo da luz, a
morte ignominiosa aparece como instrumento de vitória, a dor
manifesta o coração trinitário de Deus. A cruz justifica a audá
cia de se pronunciar a palavra escandalosa: Deus sofre! 29 Se na
288
cruz do abandono o Filho não sofresse pela distância do Pai,
não seria verdadeiramente o Filho; e se o Pai não sofresse pela
distância do Filho, não seria verdadeiramente o Pai; e se o Deus
trinitário não sofresse na cruz como Deus, não seria amor trini-
tário unidade profundíssima que une o Pai ao Filho no Espírito,
que o Filho moribundo entrega ao Pai (cf. Jo 19,30) e que o Pai
entregará ao Filho no dia da Páscoa (cf. por exemplo, Rm 1,4;8,
11; etc.). Que valor tem esse sofrimento de Deus para o próprio
Deus? Sobre a cruz Deus “se define ou se constitui” (E. Jün-
gel)? Propõe-se ou põe-se? Revela o que é ou se torna o que
não é? A cruz é a revelação “sub contrario” do ser trinitário de
Deus: isso significa que entre Deus em si e Deus revelado “in
humilitate et ignominia crucis”, entre a Trindade transcendente
e a Trindade imanente na história da paixão, há uma relação
de identidade na contradição, relação que será manifestada ple
namente na Páscoa. O dia em que Deus morreu remete assim ao
dia do Deus vivo; no reino da finitude oferece-se o infinito; na
morte, a vida; no pecado, a graça; na treva, a luz; numa histó
ria humana, a história de Deus. O exílio faz perceber a pátria:
a dor da entrega faz pressentir a alegria da doação recíproca das
Três pessoas; a humildade e a pobreza do Crucificado deixam
transparecer a liberdade do Deus trinitário, que sai de si para dar-
-se ao outro num total despojamento. Na cruz Deus se torna; mas
este tornar-se não é mais do que a historicização — a revelação
“sub contrario” — do devir eterno e perfeito da comunhão divi
na, daquele seu ser uno, “quo nihil maius fieri potest”.-0 A cruz
é a expressão finita, no sinal do contrário, do acontecimento da
vida infinita que se desenvolve no seio de Deus: por isso ela é a
humilde porta que abre aos homens o mundo de Deus, é a Porta
nazi.one di Dio, op. cit., pp. 619-26; J. Y. Lee, C od Suffers for Us. A
systematic Inquiry into a Concept of Divine Passibility, La Haye, 1974;
J. Maritain, “Quelques réflexions sur le savoir théologique” in Revue
Thomiste 69 (1969), pp. 5-27; F. Varillon, La soufjrance de Dieu, Paris,
1975. Cf. também P. A. Sequeri, “Cristologie nel quadro delia proble
mática delia mutabilità e passibilità di Dio” in La Scuola Cattolica 105
(1977), pp. 114-51. , ,
30 Sobre essa fórmula de Schelling, que transpõe em termos de de
vir a idéia anselmiana do “ens quo maius cogitari nequit”, cf. W. Kas-
per, Das Absolute in der Geschichte. Philosophie und Theologie der
Geschichte in der Spãtphilosophie Schellings, Mainz, 1965, e Id., “Crisi
e nuovo inizio delia cristologia nel pensiero di Schelling” in Aa. Vv.,
Sulla teologia delia croce, op. cit., pp. 55-83.
289
dos Humildes, que desvela, ao que se faz pobre, o mistério das
fontes eternas.
Essa revelação “sub contrario” é, ao mesmo tempo, julga
m ento e salvação do m undo: aqui entrevemos a outra direção,
segundo a qual se pode pensar o que aconteceu na sexta-feira
santa. Através da cruz o Deus cristão imobiliza sob o seu impla
cável “não” o mal do mundo, e pronuncia o “sim” libertador
sobre quem acolhe o dom. A “entrega” de Jesus à morte por
parte dos homens parecia ter sido a vitória do negativo, o triun
fo do “império das trevas; mas a “auto-entrega” do Nazareno,
o seu existir-para-os-outros 31 repele o mistério da iniqüidade. A
sua obediência incondicional ao Pai, a sua fé inabalável e a sua
esperança invencível, já constituem o julgamento do príncipe
deste mundo. O Crucificado bebe até o extremo o cálice do so
frimento humano, especialmente daquele que é fruto da injustiça
e do pecado de todos os crucificadores da história: e no entanto
ele o bebe de maneira totalmente singular. Se experimenta a
obscuridade e se entra em choque com a dureza do abandono,
sé sofre uma dor maior que qualquer outra, ele não é esmagado
por ela, não sofre passivamente o futuro obscuro e a dilaceração
do morrer. Ele os assume no abandono incondicional ao Pai,
“em cujas mãos entrega o seu espírito” (cf. Lc 23,46), numa
esperança contra toda esperança e num amor mais forte do que
toda dor. O seu sofrimento não é passivo, suportado, mas ativo,
livremente escolhido por amor e por isso libertador. Neste senti
do, ele julga o pecado do mundo, fonte de desespero e de medo,
e oferece o testemunho contagiante do amor que salva: a dor
do negativo, assumida no amor e na fé do Crucificado em soli
dariedade com o sofrimento do mundo, torna-se possibilidade
de salvação, a agonia da morte é transformada em aurora de
vida. A história dos sofrimentos do mundo pode converter-se,
com Jesus que por amor se fez solidário até o fim conosco e com
a nossa dor, na história da dor que vence a morte. A “auto-entre
ga” do Filho é a “crise” que julga e discerne as trevas da rejei
ção, fazendo surgir uma aurora de graça: “Veio para o que era
seu e os seus não o receberam. Mas a todos os que o receberam
deu o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,11-12).
290
Se o oferecimento que o Humilde faz de si mesmo julga o
orgulho dos poderosos e confunde a sua inteligência, enquanto
eleva os humildes capazes de acolher o dom de seu amor, mais
obscuro parece o julgamento do mundo presente na “entrega ’
do Filho por parte do Pai. Foi ele que abandonou o Filho nas
mãos dos pecadores: por quê? A fé pascal responde a essa per
gunta sublinhando que o Pai “o entregou por todos nós” (Rm
8,32; cf. 4,25;5,8; etc.). A intenção da “entrega” por parte do
Pai é a do amor salvífico: “Quem não poupou o seu próprio
Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agra
ciar em tudo junto com ele” (Rm 8,32)? E no entanto esse amor
passa por uma condenação: “Enviando o seu próprio Filho numa
carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou
o pecado na carne” (Rm 8,3). Como se exerceu, na morte do
Filho, a condenação do pecado por parte do Pai e a nossa sal
vação?
291
pecado (cf., por exemplo, Hb 9,1-10,18; Rm 3,25; Jo 2,
2;4,10; etc.) e do de aliança (cf. Hb 9,15-28; Ef 5,2; cf.
os textos da instituição da eucaristia: Mc 14,24; Mt 26,27;
Lc 22,20; ICor 11,25; cf. também o tema do cordeiro pas
cal em João: por exemplo, 1,29.36; 19,31-37, e no Apoca
lipse, onde aparece 28 vezes). O sacrifício consiste, de um
lado, na oferenda da obediência de Jesus ao Pai, até a efu-
são do sangue, sinal supremo do dom da vida (cf. Hb 8-10
e também 5,7-10; sobre o “sangue” de Cristo cf. At 20,28;
lPd 1,19; Ap 5,9; Rm 3,24s; Ef 1,7; etc.); de outro, no
dom que o Pai faz do próprio Filho (cf. o tema da “entre
ga ’ da parte do Pai). Longe de ser uma iniciativa humana,
o sacrifício que reconcilia é dom do alto: é Deus que esta
belecera nova e eterna aliança no sangue do Crucificado e
expia” os pecados dos homens, perdoando e oferecendo-
-se a eles.34 É justo proclamar que na obra da salvação
seja dada glória somente a Deus! Este primado divino deve
ser levado em consideração também no emprego das cate
gorias de redenção e de resgate: o tema veterotestamen-
tário de Iahweh defensor (goel) e libertador de seu povo
(cf. Ex 6,6-7) faz compreender que o resgate lútron é obra
de Deus e não do homem, a fim de realizar a libertação
do pecado e da morte e estabelecer a nova aliança (cf. Mt
20,25-28; lTm 2,6; Tt 2,14; cf. também lPd 2,9; Ef 1,14;
Ap 5,9-10; etc.). Redenção, portanto, significa libertação
do homem, realizada não por um poder deste mundo,
mesmo que esse poder fosse o mais alto e o maior, mas
pela gratuita iniciativa do amor do Pai que oferece como
dom a vida do Filho único.
Outra orientação da interpretação cristã vê na morte
do Filho “entregue” por nós pelo Pai a realização de uma
292
satisfação de justiça, que, pelo mérito infinito daquele
que morre na cruz em nosso lugar e por nós, restabelece
a ordem infringida pelo pecado. A ofensa, infinita porque
feita contra Deus infinito, é reparada pelo único que podia
fazê-lo, o próprio Deus, e assim a justiça é satisfeita. Essa
teoria, sistematizada por sto. Anselmo de Aosta, tem muitos
aspectos sugestivos: ela leva a sério a gravidade do pecado,
exalta a dignidade do homem, dando destaque à obra
humana do Nazareno, que morre solidário com os peca
dores, em seu lugar (“satisfação vicária”, como depois se
dirá) e por eles, e celebra a absoluta soberania de Deus e o
triunfo da sua misericórdia. Percebem-se esses aspectos,
por exemplo, no seguinte texto de Anselmo: O que se
poderia pensar de mais misericordioso do que Deus Pai,
que diz ao pecador, condenado à pena eterna e sem nenhu
ma possibilidade de libertar-se dela: Toma o meu Unigê-
nito e sacrifica-o por ti; e o Filho: Toma-me e redime-
-te?”.35 Mas é preciso reconhecer os riscos da teoria ansel-
miana: de um lado, sublinha a tal ponto as exigências da
ordem de justiça, que faz dela quase que um absoluto ao
qual a própria liberdade divina parece dobrar-se; de outro,
presta-se ao equívoco, seja no sentido de conceber penal
mente a justificação, de modo que se faz justiça quando
a culpa é vingada mediante a pena, seja no sentido de
interpretar o “mérito” não como relação dialogai de amor
e de liberdade com Deus (pense-se na relação entre Jesus
e o Pai: cf., por exemplo, Jo 10,17; 17,4-5; F1 2,5-11; etc.),
mas como relação de crédito-débito, que não se concilia
com o primado absoluto da iniciativa gratuita do amor
divino.
293
amor, para demonstrar-nos gratuitamente o seu amor e gratuita
mente assumir-nos nele, libertando-nos das prisões que nos
impedem de ter acesso a ele.
294
e que consiste na comunhão com Deus”.’6 A agonia da cruz
liberta os homens das potências que os tornam escravos: na for
ça do amor trinitário que a atravessa, a cruz é escândalo ,
eliminação de toda Lei de medo e de todo pecado (cf. G1 5,11).
É a paixão histórica do Nazareno que mostra “sub contrario” as
liberdades que nos são dadas e as cadeias que são rompidas pela
morte de Deus na cruz: 37 se a morte do blasfemador foi o triun
fo da Lei e a morte do subversivo a vitória do poder e da trama
de pecado que ele representa, a “morte da morte”, isto é, o amor
divino que perpassa a vergonha da cruz até nas fibras mais ínti
mas do seu escândalo, será o fim da Lei e do poder (cf. Rm 10,4,
por ex.). No Inocente que morre são, na realidade, os Princi
pados e as Potestades que morrem: os pregos do Crucificado
pregam os crucificadores (cf. Cl 2,14-15). O “não do homem
teve que tocar o fundo da sua miséria e abjeção, para que o
“não” que Deus pronuncia sobre ele anule o poder de morte que
nele se esconde: “A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde
está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?^ O aguilhão
da morte é o pecado e a força do pecado é a Lei” (ICor 15,
54-56).
Em tudo isso já resplandece a luz da Páscoa: na realidade,
é impossível pensar na cruz e tentar penetrar o seu mistério, sem
ao mesmo tempo olhar para a Ressurreição, na qual o que era a
“absconditas Dei sub contrario” da sexta-feira santa se manifes
ta no pleno fulgor do Ressuscitado. Se a dolorosa separação entre
o Filho e o Pai era a dor divina oferecida para assumir até o
fim a dor do mundo e tornar acessível à “carne” e ao "sangue”
a salvação no amor trinitário de Deus, ela não é o epílogo da
história do Filho do Homem. A cruz permanece uma questão
aberta: o “não” dos representantes da Lei e do poder, triunfo
da iniqüidade, só será aniquilado pelo não que Deus lhes diz
ressuscitando o Crucificado; a “entrega que o Filho faz do seu
Espírito ao Pai apela para outra “entrega”, a do Espírito, que
o Pai lhe fará no dia da ressurreição dos mortos; a dolorosa
“entrega” do Pai, por fim, dilaceração do coração trinitário de
Deus por amor ao mundo, espera ser superada na reconciliação
295
realizada, que no Espírito une o Filho, e nele o mundo, ao Pai.
Com^a Ressurreição o Pai diz “não” ao pecado dos homens e
sim ao amor do Filho; a efusão do Espírito sobre o prisionei
ro voluntário da morte volta a uni-lo ao Pai e estabelece nele a
aliança nova e perfeita dos homens, com os quais ele se solida
rizou até a morte. Portanto, a Ressurreição não é senão a con
tradição da cruz, na identidade daquele que foi crucificado e
depois ressuscitado: é a ressurreição do Crucificado! Na mesma
identidade, a cruz não é mais do que a “absconditas sub contra
rio” daquilo que será plenamente revelado na Páscoa: é a cruz
do Ressuscitado! No seu morrer por nós mostra-se-nos a figura
do Ressuscitado e esta nos introduz com ele na sua vida. Naque-
que por nós se fez pobre, abre-se a riqueza de Deus por
nós; naquele que por nós se tornou escravo, a liberdade de Deus
nos prende; naquele que foi feito pecado por nós, os pecadores
se tornam justiça de Deus no mundo”. S e Cristo ressuscitou,
a última palavra da história não é a dor, a reprovação e a morte:
assumida na história trinitária de Deus, a vicissitude humana
conhece a promessa, sem arrependimento, da alegria, da justiça
e da vida. A alternativa cristã no tempo consistirá, portanto, na
extensão da contradição do Ressuscitado a todas as iníquas cru
zes da história, poder de liberdade dada aos homens no seu Espí
rito. Apesar de toda derrota, apesar de todo triunfo da morte e
do pecado, o futuro da Ressurreição depois da cruz nos garante
que, mais viçosa do que a longa sexta-feira santa da dor huma
na, prepara-se e chega a aurora da Páscoa final, em que se cum
prirão plenamente as promessas de Deus. Em Jesus, o Crucifi-
o homem e com ele caminha para casa. O futuro do homem é o
seu futuro, porque o tempo do homem já é o tempo do seu
Espírito. A esperança da vida sem lágrimas e sem poente, que
enche e compromete o coração dos homens, é também a espe
rança de Deus...38
38 Ibid, p. 216.
296
10.3. REVELAÇÃO E SEGUIMENTO
297
trinitário que une o Abandonante ao Abandonado, e estes ao
mundo, vencerá a morte, apesar do seu aparente triunfo. A sur
preendente identidade do Crucificado com o Ressuscitado mos
tra abertamente o que na cruz se revelou “sub contrario” e ga
rante que aquele fim e um novo início: o cálice da paixão de
Deus encheu-se com uma bebida de vida, que brota e jorra para
sempre (cf. fo 7,37-39). Adão morreu; nasceu o novo Adão,
Cristo e o homem que, com ele e nele, vence o pecado e a mor
te. Deus morreu, mas foi oferecido a todos os homens o mis
tério do Pai, que, acolhendo o Abandonado na hora da glória,
também os acolhe com ele. O fruto da árvore amarga da cruz é
a alegre notícia da Páscoa: o dia em que Deus morreu cede o
lugar ao dia do Deus que vive. O Consolador do Crucificado é
derramado sobre toda a carne para ser o Consolador de todos
os crucificados da história e para revelar na humildade e na
ignomínia da cruz, de todas as cruzes da história, a presença
corroborante e transformadora do Deus cristão. A “palavra da
cruz (ICor 1,18) demonstra que é na pobreza, na fraqueza, na
dor e na reprovação do mundo que encontraremos a Deus; não
são os esplendores das perfeições terrenas, mas precisamente o
seu contrário, a pequenez e a ignomínia, que se tornarão o lugar
da sua presença, o deserto onde ele fala ao nosso coração e onde
primariamente toda teologia, que se queira dizer cristã, deverá
procurar dialeticamente (“sub contrario”) a sua face. A perfei
ção do Deus cristão manifesta-se nas imperfeições que ele assu
me por nosso amor: a finitude do sofrimento, a dilaceração da
morte, a fraqueza da pobreza, o cansaço e a obscuridade do
amanhã são os inúmeros lugares onde ele mostra o seu amor,
perfeito até a consumação total do dom. É nessas imperfeições
que ressoa, no Espírito, a palavra que sela o evento da cruz:
Tudo está consumado!” (Jo 19,30). Na vida de todo homem
já pode ser conhecida a cruz do Deus trinitário: no sofrimento
torna-se possível abrir-se ao Deus presente, que se oferece co
nosco e por nós, e transformar a dor em arpor, o sofrimento em
oferecimento. O Espírito do Crucificado realiza o milagre desta
revelação salvífica: ele é o Consolador da paixão do mundo,
Aquele que proclama a verdade da história dos vencidos, con
fundindo a história dos vencedores. Ele vive conosco e em nós
as agonias da vida, tornando presente no nosso sofrimento o
sofrimento do Filho e do Pai, e por isso descerrando nele uma
298
aurora de vida, revelação e dom do mistério de Deus. A “quê-
nose” do Espírito nas trevas do tempo dos homens não é mais
do que o fruto da “quênose” do Verbo na história da paixão e
morte de Jesus de Nazaré, a extrema conseqüência do maior
amor, que venceu e vencerá a morte.
299
sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Cl 1,24). Fará
isso se conseguir carregar a mais pesada de todas as cruzes, a
cruz do presente, à qual o Pai o chama, crendo mesmo sem ver,
lutando e esperando, mesmo sem perceber a germinação dos
frutos, na solidariedade com todos os que sofrem (cf. ICor 15,
26), na comunhão com Cristo, companheiro e apoio do sofri
mento humano, e na oblação ao Pai que valoriza toda a nossa
dor. Esta cruz do presente é o sofrimento da fidelidade e, ao
mesmo tempo, a perseguição causada pelos “inimigos da cruz
de Cristo (F1 3,18). A “via crucis” da fidelidade é feita pela
luta interior e pelas angústias silenciosas dos momentos de pro
vação, de solidão e de dúvida, e é sustentada pela oração perse
verante e tenaz da pobreza que espera a misericórdia do Pai. É a
mesma via crucis” da fidelidade de Jesus, com a diferença de
que ele a percorreu sozinho, ao passo que nós somos precedi
dos e acompanhados por ele! A cruz da perseguição é, ao
invés, a conseqüência do amor pela jusúça e da rélativizacão
de todo absoluto terreno, por parte dos discipulos do Crucifi
cado: sua esperança no Reino que vem os torna subversivos e
críticos diante das miopias de todos os vencedores e dominado
res da história. Eis que vos envio como ovelhas no meio de
lobos... e sereis odiados por todos por causa do meu nome”
(Mc 10,16.22; cf. 16ss). A radicalidade das escolhas de uma
Igreja verdadeiramente evangélica é intolerável para qualquer
sistema de poder e de riqueza: “Dilexi iustitiam, odivi iniquita-
tem, propterea morrior in exilio” (palavras escritas no túmulo de
Gregório V II): quem amou a justiça, quem odiou a iniqüidade,
morrerá inevitavelmente no exílio da cruz, mas confortado e
sustentado pelo Crucificado, que venceu a morte. “Basta-te a
minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o
seu poder” (2Cor 12,9).
A Igreja sob a cruz torna-se assim, por sua própria fome e
sede do novo mundo de Deus e pela graça de que é instrumen
to, um povo que ajuda a carregar a cruz e que combate as cau
sas iníquas das cruzes de todos os oprimidos: ela se confronta
com as prisões de toda espécie de Lei e com as escravidões de
toda espécie de poder, e, como o seu Senhor, apresenta-se como
alternativa humilde e corajosa em relação a eles. O Crucifica
do não hesita em identificar-se com todos os crucificados da
história: Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me des
300
tes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me ves
tistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me... Cada vez
que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim
o fizestes” (Mt 25,35-36.40). Nos perseguidos é ele que está pre
sente: “Saulo, Saulo, por que m e persegues?” (At 9,4). Quem
ama o Crucificado e o segue, não pode deixar de sentir-se cha
mado a amenizar a cruz de todos os que sofrem e a eliminar as
causas iníquas do sofrimento com a palavra e a vida. A cruz
da libertação do pecado e da morte exige a libertação de todas
as cruzes fruto de morte e de pecado: a imitatio Christi cruci-
fixi” nunca poderá ser aceitação passiva do mal presente! Ela
se consumará, pelo contrário, na dedicação ativa à causa do
Reino que vem, que é também empenho laborioso e vigilante
para fazer do Calvário da terra um lugar de ressurreição, de
justiça e de vida plena. A compaixão para com o Crucificado
traduz-se na compaixão laboriosa para com os membros do seu
corpo na história. Para uma Igreja que se debate no problema
da relação entre a sua identidade e a sua importância, entre a
fidelidade e a criatividade ousada, isso significa o reconheci
mento da possibilidade de solução. A Igreja se encontrará per
dendo-se, achará a sua identidade exatamente no fato de colo-
cá-la a serviço dos outros, para reencontrá-la no único nível
digno dos seguidores do Crucificado: o amor.
Ao discípulo, esmagado sob o peso da cruz e atemorizado
pelas exigências do seguimento, é dirigida a palavra da promes
sa, manifestada na ressurreição, contradição de todas as cru
zes da história: palavra de consolo e de empenho, que já susten
tou a vida, a dor e a morte de todos os que nos precederam no
combate da fé. “Na verdade, assim como os sofrimentos de
Cristo são copiosos para nós, assim também por Cristo é copiosa
a nossa consolação” (2Cor 1,5). “Somos atribulados por todos
os lados, mas não esmagados; postos em extrema dificuldade,
mas não vencidos pelos impasses; perseguidos, mas não abando
nados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Incessante
mente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de
Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada
em nosso corpo” (2Cor 4,8-10). Naquele que se esforça por viver
assim, a cruz de Cristo não se tornou vã (cf. ICor 1,17). nele
se manifestará também a vitória do Humilde que venceu o mun
do (cf. Jo 16,33)!
301
11
SINGULARIDADE DE CRISTO
305
mar de gratia unionis”); o reconhecimento de sua contem-
poraneidade salvífica está, ao contrário, relacionado com a sua
misteriosa ação, pela qual o Espírito torna presente e eficaz o
Cristo em todas as estações do tempo a fim de conduzi-las ao
Pai (mistério que os mesmos medievais gostavam de chamar de
‘gratia Capitis’').2 Nessa sua atenção ao Ressuscitado e ao Espí
rito, nessa sua abertura trinitária, a leitura pascal da história
feita pelo Novo Testamento se apresenta como um modelo e
uma provocação para a nossa resposta à questão sobre o signi
ficado de Jesus Cristo.
306
o justo pelos injustos, a fim de nos reconduzir a Deus” (lPd
3,18).3 Por isso em nenhum outro há salvação: “não há sob o
céu outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos
(At 4,12; cf. 2,21).
Por que razão a primeira comunidade cristã pôde afirmar
com tanta convicção a exclusividade da salvação em Jesus Cris
to? De onde nasce o tema do “solus Christus , que perpassa,
por exemplo, a teologia paulina, com um vigor que se diria mar
cado pelo “ciúme”? (cf., por exemplo, F1 3,7-11).4 A “singula
ridade” única e irrepetível do Nazareno 5 funda-se no fato de
que ele, na Páscoa, foi proclamado Senhor e Cristo, isto é, foi
ressuscitado, recebendo aquela abundância do Espírito (cf. Rm
1,4 e lPd 3,18), que constitui a realização das promessas de
Deus: “Naqueles dias derramarei o meu espírito” (J1 3,2; cf. At
2,16ss), dar-vos-ei um coração novo, porei no vosso íntimo um
espírito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos
darei um coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espí
rito e farei com que andeis de acordo com os meus estatutos e
guardeis as minhas normas e as pratiqueis (Ez 36,26-27, cf.
também Is 11,2 e Mt 3,16: o Messias portador do Espírito).
À luz do evento pascal, a comunidade relê toda a história do
Nazareno, reconhecendo nela os sinais de uma contínua presen
ça do Espírito, que faz dela verdadeiramente o lugar em que
Deus narra aos homens a sua história. Alguém ressaltou, com
acerto, que o Novo Testamento é totalmente perpassado por
uma cristologia do Espírito (ou “pneumo-cristologia ), diferente,
embora não seja alternativa, da cristologia do Verbo, segundo a
qual o Paráclito é sobretudo aquele que atualiza no tempo as
307
funções do Cristo.6* Testemunhos dessa leitura da fé, que vê em
Jesus aquele que recebe o Espírito de maneira única, são o relato
de sua concepção virginal por Maria (cf. Mt 1,18-20- Lc 1 35)
a cena do batismo (cf. Mc 1,10 e par.), a ação do Nazareno no
poder do Espirito (cf. Mc 1,12; Mt 12,28; Lc 4,14.18 e passim)
o seu entregar” o Espírito na cruz (cf. Hb 9,14), a sua ressur
reição na força do Espírito (cf., por exemplo, Rm 1,4 ;8 ,1 1),
pela qual ele mesmo se torna “Espírito vivificador” (cf. ICor
15,45)7 Mas a comunidade pascal sublinha que o Nazareno é
p enamente o Ungido (o “Cristo”) também porque é aquele que
acolheu o dom de Deus, como ninguém jamais tinha acolhido,
na historia de sua obediência incondicional e dedicação volun
tária ao Pai. A existência do Profeta galileu, Jesus o humilde
servo de Deus, foi inteiramente uma existência “acolhida”, um
espaço vazio na liberdade absoluta de si, um não querer ter
tempo para Deus.8 É por isso que nele Deus quis ter “tem
po para o homem, dando-se incondicionalmente na efusão do
spirito. É por essa presença absoluta, única do Espírito nele,
por esse seu ser Filho do Pai, no sentido divino-trinitário pro
clamado na Páscoa, que Jesus de Nazaré tem significado e valor
para toda hora da história. À pergunta de todos os tempos-
Onde encontraremos a Deus?” a comunidade das origens cris
tas nao hesita em responder de maneira paradoxal: Deus está
em Cristo! (cf., por exemplo, 2Cor 5,19; conforme o texto
grego: Deus^ estava em Cristo, reconciliando o mundo con
sigo ). Jesus é o Emanuel, o Deus conosco e do nosso lado (cf.
Mt 1,23). A história do Nazareno é o fragmento em que o Todo
se fez presente,9 é o “Universale concretum et personale”,10 o
Paradoxo originário de um Deus em carne humana, de um ver
~ * cri‘u>l08i'
8Este aspecto e fortemente sublinhado por H. U von Balthasar
entre outras obras em Teologia delia storia. Abbozzo, Bréscia, 1969 pp
23ss com rica documentação bíblica, à qual remeto juntamente com
entreaga”n0S ^ 9 6 10 S° bre 3 Uberdade de Cúst0 e a sua - W
A m if n n l U’ VOn Balthasar> 11 tutto nel frammento, Milão, 1970.
Aq in nf-"j eVZcar, ° . te™a da preexistência; para isso, cf. o cap 4
1 0 Ibid. e Teologia delia storia, op. cit., p. 69. Essa idéia poderia
308
dadeiro homem que é Filho de Deus: “Que um homem seja
Deus que diga ser Deus e se apresente como Deus, isso consti
tui o escândalo por excelência... O que é infinitamente impor
tante é o fato de que Deus viveu aqui na terra como um homem
(Kierkegaard). Esta sua singularidade dá um valor exclusivo, e
por isso universalmente inclusivo, à sua vida e à sua morte.
Assim, Cristo se torna para a comunidade nascente o critério
pelo qual toda a vicissitude humana pode ser relida e avaliada:
este indivíduo é a norma da história! Tomando posição com
relação ao passado, em vista do futuro, os primeiros cristãos
confessaram que nele se recapitula a história ja vivida e e pro
metido o cumprimento final em Deus: Ele este m m uo
com sua vida humaníssima iluminada pelos eventos da Pascoa
— é a “virada” dos tempos, o vértice e o novo início da historia
da salvação. “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre
(Hb 13,8). “Eu sou o Primeiro e o Ültimo e o Vivente (Ap
1,17; cf. também 2,8;22,13): o Primeiro na origem e no desen
volvimento do tempo passado, o Último no fim e na consuma
ção prometida, o Vivente no hoje da Igreja e do mundo,
norma absoluta do cristianismo não é, como a da filosofia, um
dado transcendente, além de toda história, mas ela mesma e
também história”.12
309
À liiz dessa norma, universal precisamente porque singu
lar, relê-se o passado: o Ressuscitado está presente no ato cria
dor originário. Aquele que inaugura o tempo último não pode
ter estado ausente no tempo das origens (a “escatologia” remete
protologia”): “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primo
gênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coi
sas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis... tudo foi
criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele sub
siste (Cl 1,15-17; cf. também Jo 1,3; ICor 8,6; Hb 1,3.10; Ap
3,14).^ Portanto, aquele que realiza o sentido da criação é tam
bém ‘história originária”. Visto que nele tudo se recapitula
(cf. Ef 1,10), nele está colocada originalmente a eleição de gra
ça da humanidade: “Nele, predestinados pelo propósito daque
le que tudo opera segundo o conselho de sua vontade, fomos
feitos sua herança...” (Ef 1,11; cf. 3-14 e Rm 8,29s). No even
to pascal revelou-se o destino originário da história: “A concep
ção israelita da verdade tem orientação escatológica: para ela, a
natureza de uma coisa não está já definida.., mas se decide
somente em conseqüência daquilo que ela se torna. Nessa pers
pectiva, a predestinação de todas as coisas para Jesus, a sua
recapitulação geral por obra de Jesus, já é idêntica à sua cria
ção em virtude de Jesus”.13 O tempo final, revelado na efusão
do Espírito sobre o Nazareno, permite reler a história de trás
para diante e reconhecer a vocação de toda a criação para
Cristo desde o início (dimensão “crística” da criação). Qualquer
oposição entre natureza e graça, entendidas respectivamente
como obras do Deus criador e do Deus salvador, revela-se caren
te de justificação no Novo Testamento. Nenhum desprezo pelo
mundo pode originar-se em Cristo, que, pelo contrário, revela o
sentido e a destinação última de todas as coisas, ainda que o
seu seguimento implique a vigilância com relação ao que há de
negativo no mundo, que ele julgou e condenou com sua morte
na cruz. Para os primeiros cristãos, criação e redenção estão
numa relação de realização e, ao mesmo tempo, de indeductível
novidade: a obra da salvação não destrói o que é naturalmente
terreno, mas o pressupõe e o aperfeiçoa através de um processo
de negação e de superação. “Gratia non destruit naturam, sed
310
supponit et perficit eam!” : a graça não destroí a natureza, mas
a supõe e a nega-supera-realiza (“perficere como o aufheben
hegeliano!).14 Todas as coisas vêm do Pai por Cristo no Espirito,
que paira sobre as águas do tempo das origens (cf. Gn 1,2), e
são destinadas no mesmo Espírito a voltar por Cristo ao Pai.
Essa “cristologia cósmica” relaciona-se com a releitura cns-
tológica do passado de Israel: Cristo é enfocado como aquele
que pela sua obediência, torna possível o que a desobediência
de Israel havia impedido: “O Filho de Deus, o Cristo Jesus...
não foi ‘sim’ e ‘não’, mas unicamente ‘sim\ E, ria realidade,
todas as promessas de Deus nele se tornaram sim (2Cor 1,
20). Através da rejeição de Israel, expressa na entrega do Naza
reno à morte, que é ao mesmo tempo o ato supremo da sua obe
diência ao Pai, ‘‘Deus realizou o que tinha anunciado pela boca
de todos os profetas” (At 3,18; cf. 26,22). Nos textos proféti
cos já se pode reconhecer a história do Humilhado-Exaltado (ct.
lPd 1 11)' para ele converge toda a história de Israel (cf. o dis
curso de Estêvão em At 7,2-53). Nele se realizam as Escrituras
(cf. as expressões “segundo as Escrituras”, por exemplo em 1Cor
15,3-4, e “para que se cumprisse a Escritura , por exemplo em
Jo 19,24.28.36; cf. também as remissões e as citações do Anti
go Testamento nas narrativas evangélicas): elas foram escritas
“para nós”, os homens dos últimos tempos (cf. Rm 15,4; ICor
9,10; 10,11). A história de Israel e toda a criação estão assim
relacionadas com a única revelação de Deus, que culmina no
envio do Filho: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus,
outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os
últimos, falou-nos por meio de seu Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os ^séculos ^ (Hb
1,1-2). O passado, a partir das origens da criação, através da
história de Israel, apresenta-se como um único movimento, que
211
tende para a unidade deste Indivíduo. Nele foi dada aos ho
mens a presença de Deus, um diálogo que, através dele e em
vista dele, se desenvolve entre os homens e o Pai, no Espírito
que falou pelos profetas (cf. Mt 22,43; At 1,16; lPd 1,10-12;
2Ed ,!’21; 2Tm 3,16^‘ Esse desi'gnio divino na história é o “mis
tério , que agora resplandece na sua realização em Cristo e é
anunciado, por meio da Igreja, a todo o universo (cf. Ef 3 3-12-
Rm 16,25s).
A comunidade nascente vê no presente, carregado de espe
rança pascal, a “plenitude dos tempos” (cf. 1,10; cf. G1 4,4); o
que aconteceu na história de Jesus de Nazaré e, através dele
ressuscitado, é plenamente revelado aos crentes, é o “centro do
tempo”, o “corte decisivo” a partir do qual será “medido” o
caminho humano.15 Em Cristo foi feita a oferta plena e definiti
va de Deus, nele foi vencida a batalha decisiva para a nossa sal
vação: Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do
alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas
coisas do alto, e não nas da terra, pois morrestes e a vossa vida
está escondida com Cristo em Deus; quando Cristo, que é a
nossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis
manifestados em glória’ (Cl 3,1-4). Ao contrário de Israel, a
Igreja não vive somente na espera do futuro: ela confessa que
a salvaçao já está presente, no Crucificado-Ressuscitado, mes
mo se ainda não plenamente realizada. Ela já está certa da vitó
ria, embora o caminho humano ainda deva prosseguir no sofri
mento de uma longa sexta-feira santa. Este já é dado na Ressur
reição do Crucificado, um dado passado e, ao mesmo tempo,
presente: Cristo, ressuscitado pelo Pai, é de fato o Vivente (cf.
At 1,3; ^Ap 1,18), “ele que vive para sempre para interceder
por nós (Hb 7,25) e para estender até nós a sua vitória. Neste
sentido, ele é não somente o centro “cronológico” do tempo,
para o qual converge a história de Israel e da humanidade e do
qual parte a última hora antes do fim (cf. ljo 2,18), mas tam
bém o centro escatológico” de todos os tempos, aquele que
está sentado à direita do Pai” (cf. Rm 8,34; ICor 15,25; Cl
3,1; Ef 1,20; Hb 1,3; etc.), exercendo a sua soberania salvífica
sobre todas as horas da vicissitude humana. O presente da sal
vação vem então unir-se ao presente da comunidade: o hoje dos
312
crentes se torna o hoje de Deus: Eis agora o tempo favorável.
Kis agora o dia da salvação” (2Cor 6,2). O Ressuscitado torna-se
a própria vida de quem vive na fé o seu presente: “Não sou
mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim (G1 2,20;^ cf. F1
1,21; Rm 6 ,3 ;8,17; etc.). Através dele todo “presente” pode
ser acolhido no Espírito como dom do Pai, e no mesmo Espí
rito ser oferecido ativamente a Deus (cf., por exemplo, Jo 14,16.
23): é feito a todo homem o alegre anúncio: “H oje a salvaçao
entrou nesta casa” (Lc 19,9).
A partir do Nazareno ressuscitado por Deus, ilumtna-se
também o futuro; a comunidade das origens interpretou, a par
tir da Páscoa, o sentido do tempo que está entre o já e o ainda
não, “entre a primavera e o verão” da salvação. É o tempo em
que o poder libertador do Ressuscitado deverá estender-se a
todas as cruzes e a todos os crucificados da história: “Cristo res
suscitou dos mortos, primícias dos que morreram. Com efeito,
visto que a morte veio por um homem, também por um homem
vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem
em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém,
em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que per
tencem a Cristo, por ocasião de sua vinda. A seguir, haverá o
fim, quando ele entregar o Reino a Deus Pai... para que Deus
seja tudo em todos” (ICor 15,20-24.28; cf. lT s 4,13-18). Cristo,
realização da promessa, é também promessa da realização última,
definitiva: 16 “Homens da Galiléia, que estais aí a contemplar o
céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado, virá do mesmo modo que
para o céu o vistes partir” (At 1,11; cf. 3,20-22; 17,31; etc.). O
já do Ressuscitado remete ao ainda não da sua volta: o tempo
intermediário é o “entretanto” da Igreja, tempo penúltimo, ca
racterizado pela espera e pela missão. A espera exprime-se na
invocação ardente: “Vem, Senhor!’ (ICor 16,22; Ap 22,17.20),
e sustenta os crentes na obscuridade às vezes dramática do pre
sente, na confiança de que “as trevas passam e já brilha a luz
verdadeira” (1 Jo 2,8). A missão é a obediência viva à tarefa
que o Senhor confiou aos seus e na qual não os deixará sozi
nhos: “Toda a autoridade sobre o céu e sobre a terra me foi
313
entiegue. Ide, portanto, e fazei que todas as gerações se tornem
discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis
que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!”
(Mt 28,18-20). O tempo descortinado pela aurora da Páscoa
não pode transformar-se num ‘‘êxtase da realização”, contem
plação descompromissada da vitória do Ressuscitado, mas deve
abrir-se ao futuro da história de libertação, que em Cristo Deus
promete edificar juntamente com os homens. Esse futuro é expe
riência da história de Deus na história dos homens e, precisa
mente por isso, é paixão, compromisso, luta: é história trinitá-
íia que assume, frustra e consola o viver humano, edificando
com o homem o Reino, dado e prometido, de modo que o mun
do possa ir ao Pai por Cristo no Espírito.
A luz da Páscoa, então, dá certeza da vitória final, mas não
exime da luta e da dor através das quais os homens, sustenta
dos pelo Espírito, deverão atingir o último dia. A promessa do
Ressuscitado é uma promissio inquieta”, que “atormenta como
um espinho na carne todo presente e o abre para o futuro” .17
A ressurreição não encerra a história na revelação antecipada
do fim, mas abre o caminho do tempo, na promessa da presen
ça consoladora do Deus trinitário, para o futuro, que ele prepara
para o homem e com o homem: “A Ressurreição não abole a
história em proveito de uma eternidade antecipada, mas a insti
tui na sua verdadeira dimensão, a de uma abertura para um
futuro sempre novo, único lugar da responsabilidade diante de
Deus”.18 À convergência dos tempos para Cristo, realização da
promessa, sucede a sua abertura a partir dele, promessa da rea
lização definitiva, para o tempo final de Deus. Foram dadas vá
rias interpretações: dessa concepção da comunidade das origens,
aberta e protendida para o futuro prometido: há quem tenha
visto nela a expectativa* do fim iminente, relacionado com a
consciência que o próprio Jesus teria tido de uma vinda triun
fal do Reino depois de sua morte (“escatologia conseqüente” :
J. Weiss, A. Schweitzer); há também os que viram nela a atitu
de existencial da decisão por Cristo diante da apresentação da
oferta de salvação (R. Bultmann); há, enfim, quem viu nela uma
314
forma de escatologia “realizada” (C. H. Dodd) ou antecipada
(C). Cullmànn). Pode-se falar, de maneira mais fiel à experiên-
i ia da comunidade nascente, de uma “escatologia iniciada , ou
melhor, “incoativa”, porque essa expressão traduz melhor a
consciência que os primeiros cristãos tinham de se encontrarem
na tensão entre o que já se havia realizado em Cristo, inaugu
rando o tempo do fim, e o que ainda não se havia realizado
e se realizaria paulatinamente até o fim dos tempos. ■ Para a
comunidade das origens o tempo iniciado na Páscoa é escatolo
gia em ato de realizar-se” ( sich realisierende Eschatologie . J.
Jeremias): as realidades últimas já estão presentes, embora ainda
não plenamente presentes. O Reino de Deus já está presente,
ainda que oculto sob o sofrimento do tempo: a glória já está
oculta sob os sinais da história, e no desenrolar sofrido e obscu
ro desta, já deixa transparecer fulgores que antecipam a grande
za do fim. A salvação, oferecida em Jerusalém, na história sin
gular do Crucificado-Ressuscitado, se estenderá de Jerusalém a
todos os confins da terra, até que volte aquele que veio (cf. ICor
11,26; cf. também a teologia lucana da história e o tema da
“pàrusia”, ou retorno do Cristo, por exemplo em Mt 24; ICor
15,23; lT s 2,19;3,13;5,15; 2Ts 2,1.8s; etc.; cf., por fim, as
parábolas do juízo final: Lc 12,42-46; 17,34s; 19,11-27; Mt 25,
1-13; etc.). A história dos homens progredirá juntamente com o
Deus cristão, sustentada e subvertida por ele, até que tudo seja
submetido ao Filho, e o Filho ao Pai, e Deus seja, finalmente,
“tudo em todos” (ICor 15,28). Então a história humana repou
sará para sempre na história trinitária de Deus: mas também
essa história divina conhecerá, num sentido que só é possível
entrever, uma hora que ela foi preparando e esperando através
do caminho da salvação, e da qual ofereceu à criação uma pro
messa por ocasião da reconciliação pascal do Crucificado com o
Pai.1920 A glória do fim, mistério relacionado com o destino supre
mo do homem, envolverá também o coração trinitário de Deus...
19 Cf. H. I. Marrou, Teologia delia. síoria, op. cit„ pp. 80ss. Cf.
também s'. Zedda, Vescatologia bíblica, I-II, Bréscia, 1972-75; e espe
cialmente R. Schnackenburg, Signoria e Regno di Dio, Bolonha, 1971.
20 Essa solidariedade da história trinitária com a historia humana,
que não significa identidade nem nivelamento, é um tema que, a partir
do Novo Testamento, perpassa incessantemente o pensamento cristão, em
transposições sempre novas, e com excessos muitas vezes reduciomstas.
Talvez o episódio mais significativo seja o do pensamento do abade
315
11.2. CONFESSAR HOJE A SINGULARIDADE DE JESUS CRISTO
316
harmônico, de progresso ou de solução antecipada dos con
flitos.21
A limitação teórica dessas colocações traduziu-se, no plano
da práxis, em duas formas opostas de reducionismo da mensa
gem cristã: o integrismo e o secularismo. O integrismo, recondu
zindo à força toda realidade humana e terrena a uma relação
explícita com Cristo, faz da antropologia uma variável^ da cris-
lologia e presume oferecer, de maneira simplista, soluções cris-
lãs” para qualquer problema humano. O secularismo, por sua
vez, fazendo da cristologia a variável e da antropologia a cons
tante, acaba reduzindo Cristo às expectativas dos homens, ao
esvaziar o seu anúncio de toda força de escândalo.22 A primeira
atitude justificou a incrível violência exercida contra indivíduos
e povos para levá-los à aceitação forçada do Evangelho cris
tão; 23 a segunda motivou a perda de identidade de inúmeros
crentes num compromisso de horizontes puramente humanos. Se
o fruto do integrismo é a intolerância, o fruto do secularismo é a
indiferença; se um tornou possível até martirizar as pessoas em
nome de Cristo, o outro não soube mais compreender o sentido
do martírio aceito por esse mesmo nome. Para não cair nesses
excessos opostos, é necessário pensar o universal, que nos é
oferecido no Crucificado-Ressuscitado, de maneira mais concre
ta, mais fiel à “singularidade” em que ele nos é dado. A norma
universal do evangelho cristão é, na realidade, uma vicissitude
humaníssima de liberdade e de finitude, de morte e de vida, na
qual a luz pascal revelou a realização da história de Deus entre
317
os homens. Levando em consideração esse dado essencial de sua
origem, os cristãos nunca deveriam esquecer o quanto ele é para
doxal, escandaloso e ambíguo. “O homem humilde e todavia
salvador e redentor da humanidade” é verdadeiramente “o sinal
do escândalo e o objeto da fé” (Kierkegaard). Por isso o convite
que ele lança “está na encruzilhada que divide a morte da vida”;
com relação a ele “abrem-se dois caminhos: um leva ao escân
dalo e o outro à fé, mas nunca se chega à fé sem passar pela
possibilidade do escândalo” (Id.).24
O escândalo esteve presente desde os primeiros passos da
quela história aparentemente banal que foi a vida do Nazareno;
para compreender o seu alcance deveriamos superar a distância
que nos separa daqueles acontecimentos e “colocar-nos na situa
ção em que se encontravam os primeiros cristãos... Deveriamos
imaginar esse Jesus que deve significar a salvação do mundo
usando roupas corriqueiras e modernas como as nossas, vivendo
como nós, na situação comum de um povoado moderno, pro
vindo de uma família de quem conhecéssemos os componentes
e, ainda, levando uma vida como a nossa de cada dia. Então po
deriamos compreender a pergunta de Natanael: ‘De Nazaré pode
sair algo de bom?’ ” (Jo 1,46).25 Então compreenderiamos muito
melhor a rejeição de Israel!
O escândalo continua para quem, como nós, se encontra a
uma distância de séculos daquela história singular. E isso não
só porque originariamente e em si mesma a singularidade do
Nazareno é paradoxal, mas também porque hoje a memória da
quele seu viver e morrer e ser ressuscitado é conservada por um
povo que carrega nos ombros o peso de tantos erros e de tanto
pecado, juntamente com a consolação de tanta graça. A ambi-
güidade que vale para o Cristo vale igualmente para a sua
Igreja! Se ela, com humilde coragem, se põe a contemplar os
séculos da sua jornada, não pode deixar de pronunciar, junta
mente com o muito obrigado, a palavra do arrependimento e a
invocação do perdão: “Que gosto amargo deixa um olhar sobre
o próprio passado! Porventura, o caminho que percorremos não
318
cmIií semeado de enganos, erros e fracassos?” 26 E é essa Igreja, a
rspcisa de Cristo que não deveria ter mancha nem ruga (cf. Ef
'>,.’2ss), e a infiel, que com muita freqüência abandonou o amor
de outros tempos (cf. Ap 2,4), essa Igreja de mártires e de per
seguidores, de inquisidores e de vítimas da inquisição, é essa
Igreja que ousa anunciar hoje o Nome fora do qual não há
salvação! Não é de admirar que haja quem lhe dirige a palavra
de censura: "‘Tu tens a fé e eu tenho as obras. Mostra-me a tua
fé sem as obras e eu te mostrarei a fé pelas minhas obras”
(Tg 2,18). Somente onde o anúncio eclesial se torna testemunho
concreto de serviço pelos outros, somente onde o evangelizador
pode lançar o convite decisivo: ‘‘Vem e vê!” (Jo 2,46), pode-
-se pensar que o escândalo seja superado no abandono de fé.
Somente o amor é digno de fé! Portanto, universalidade da men
sagem não significa, para os cristãos, um dado objetivo que
justifique a imposição, ou um privilégio que autorize a intole
rância, mas uma tarefa e uma missão, uma graça acolhida na
fé e dada no serviço.27
Tampouco diminui a possibilidade do escândalo pensar
que Cristo possa oferecer-se aos homens também por outros
caminhos, aqueles que o seu Espírito abre nos corações, sobre
tudo através do encontro com a finitude humana, na qual o
Crucificado está misteriosamente presente (cf. Mt 25,31ss):
“Quando apareceu na Judéia, o povo não acreditou que fosse o
verdadeiro Deus que falava, porque se apresentava como um
pobre, sem o uniforme das autoridades. Mas, se voltar, se apre
sentará ainda mais miserável, na pessoa de um leproso, de uma
pobre mendiga, de um surdo-mudo, de uma criança excepcio
nal...” E é por isso que os homens não deixarão de se escan
dalizar, e lhe oporão sempre a rejeição: “Eu... nunca me afastei
de vós. Sois vós que todos os dias me linchais ou, pior ainda,
caminhais sem me ver, como se eu fosse a sombra de um cadá
ver putrefeito sob a terra. Diariamente, passo perto de vós milha
res de vezes, multiplico-me para todos vós, os meus sinais
ocupam todos os milímetros do universo, e vós não os reconhe
ceis, e ficais esperando por outros sinais vulgares...28 Acreditar
319
em Cristo, reconhecer a sua singularidade absoluta, significa
então expor-se à fúria do negativo, conhecer o peso da cruz
do escândalo e das exigências do amor. Talvez tenha sido por
isso que o próprio Jesus fez a pergunta que perturba qualquer
segurança presunçosa da fé: “Mas quando o Filho do Homem
voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Crer em
Cristo, norma e salvação da história, exige o risco de uma con
quista de fidelidade sempre nova, que vence o escândalo: a fé
nele, como o amor, “se não for o compromisso de todos os dias,
será o lamento de toda a vida...” Somente quem tiver audácia
não conhecerá esse lamento.
Desse reconhecimento da possibilidade do escândalo, rela
cionada com a confissão da singularidade de Jesus Cristo deri
vam duas conseqüências. Em primeiro lugar, a consciência da
luta da fé e da dificuldade do abandono de si mesmo nas mãos
do Estranho que convida, deve tornar sempre admissível para
o cristão a possibilidade — dolorosa até que se queira — da
recusa de outrem frente ao anúncio de Jesus Cristo, e alicerçar
a exigência do respeito mais profundo por essa recusa, como por
toda posição humana, na qual sempre se recapitula uma história
de sangue e lágrimas. Acaso não consiste nisso o sentido pro
fundo da palavra evangélica: “Não julgueis para não serdes
julgados” (Mt 7,1)? Os caminhos da graça não são sempre os
do assentimento visível a Cristo. Será que não aceitariam a
Cristo aqueles índios que se deixavam matar para não aderir ao
Evangelho imposto pelas armas do conquistador espanhol? Será
que não entraria no Reino Savonarola que, por amor a Cristo,
foi ao encontro da fogueira que lhe fora preparada em nome de
Cristo? Não seria Cristo o prisioneiro desconhecido do Grande
Inquisitor de Dostoievski? “O vento sopra onde quer e ouves o
seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai.
Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo
3,8). Nenhum poder humano poderá restringir a liberdade do
Espírito de Deus que age na história e no coração dos homens!
Isso não significa que o cristão está autorizado a desinteressar-
-se pelo anúncio do evangelho. O Senhor não pedirá que os seus
lhe prestem contas do número de pessoas salvas, mas sem dú
vida lhes pedirá contas do número de pessoas evangelizadas; o
dever que é imposto aos crentes é o de anunciar, não de obri
gar; de propor, não de impor! Eles devem dar gratuitamente o
320
que gratuitamente receberam (cf. Mt 10,8), com o mesmo res
peito pela liberdade do outro que teve o Filho do Homem (re
cordemos, por exemplo, o encontro com o jovem, que Jesus fita
com amor, convidando-o à escolha radical, mas cuja triste recu
sa ele respeita: cf. Mc 10,17-22). Os cristãos devem ser pobres
com relação àquilo que dão, capazes de semear sem esperar o
fruto (cf. Jo 4,37), e até mesmo contra toda expectativa lógica:
“Mesmo que eu soubesse que o mundo iria acabar amanhã, não
hesitaria em plantar uma semente hoje” (Lutero). É a urgência
do amor (cf. 2Cor 5,14) que impele os cristãos a anunciar a pa
lavra em qualquer ocasião, “no tempo oportuno e no inoportu
no” (2Tm 4,2), é a necessidade de fazer que os outros partici
pem da vida e da alegria que encontraram (cf. ljo 1,1-4), que
os leva a dar testemunho da verdade, sem nunca querer impô-la.
O evangelizador sabe que é voz daquele que convida sem forçar,
que oferece sem impor: “Eis que estou à porta e bato: se alguém
ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cea
rei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20).
A segunda conseqüência, que deriva da possibilidade do
escândalo, sempre ínsita no Objeto puro da fé, é que a pessoa
só se abre à singularidade de Jesus Cristo por opção pessoal:
a opção é o espaço da liberdade de cada um diante da boa nova,
quando esta chega a alguém de maneira crível através da memó
ria evangélica da tradição cristã viva. Não se trata de uma opção
intimista, puramente subjetiva, que ocorra “entre a alma e
Deus” ; na realidade, ela é uma tomada de posição, consciente
e livre, diante de um dado externo ao sujeito (o “extra nos da
salvação), que lhe é apresentado na realidade viva da mediação
humana comunitária.29 “Mas como poderíam invocar aquele em
quem não creram? E como poderíam crer naquele que não
ouviram? E como poderíam ouvir sem pregador? E como podem
pregar se não forem enviados?” (Rm 10,14-15). Na comunhão
do povo de Deus ressoa a palavra, à qual consente a fé, e apren
de-se a linguagem pela qual essa palavra se torna sempre mais
compreensível e comunicável aos outros. A opção, a que convida
o anúncio, é uma escolha, cuja importância e urgência são cons
321
tantemente ressaltadas pela palavra evangélica: “Completou-se o
tempo, e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede
no evangelho” (Mc 1,15 e par.). “Conta-se que um cristo (não
importa qual, era um cristo) caminhando certa vez por uma
picada de roça, teve fome e foi colher o fruto de uma figueira.
Mas, como não era tempo de figos, a árvore não tinha frutos;
apenas folhas indigestas... E então Cristo a amaldiçoou, conde-
nando-a à esterilidade perpétua... O sentido é claro: para quem
reconhece a Cristo, quando ele passa, e sempre estação de fru
tas. E quem não o reconhece e lhe nega o próprio fruto com a
desculpa de estar fora de época ou de estação, é amaldiçoado 30
A opção por Cristo qualifica o tempo e a vida: se é verdade que
“se pode viver sem saber porque, é também verdade que não se
pode viver sem saber para quem”; essa opção é capaz de dar
sentido à existência de um homem. Para quem opta por Cristo,
o tempo não é mais o puro tempo quantificado, a sucessão
linear (isto é, aberta à surpresa do futuro, como em Israel) ou
circular (fundamentalmente repetitiva, como na concepção gre
ga) de momentos pontuais; mas se torna tempo qualificado,
espaço ocupado pela graça e pela opção a respeito da singulari
dade de Jesus Cristo.31
Essa qualificação do tempo não deve ser uma dimensão
puramente interior: quem opta por Cristo toma posição com
relação a um dado objetivo num sistema concreto de relações,
colocando-se entre o já no qual reconhece o dom e a promessa
da salvação e por isso o critério em que se basear, e o ainda
não, que deve ser construído através do “sim” ao evangelho,
expresso em escolhas de vida situadas e precisas. Isso requer, antes
de mais nada, uma “mudança de mentalidade (a m etanóia evan
gélica), que leve a reconhecer no espaço vazio do tempo (o aión
bíblico) a hora de Deus na vida dos homens, o tempo da salva
ção (o kairós, o tempo determinado pelo conteúdo: cf., por exem
plo, Mt 8,29;26,18; Mc 1,15; Lc 19,44;21,8; Jo 7,6-8; At 1,7;
lT s 5,lss; Ef 5,16; Cl 4,5; lPd 1,5; 4,17; Ap 1,3; 11,18; etc.).32
Optando por Cristo, não só o nosso “hoje” se torna hoje de
libertação e de salvação, mas também o passado e o futuro rece-
322
um sentido novo: o caminho percorrido é avaliado com
relação à “norma” que é Jesus Cristo, e aparece na sua orienta
ção profunda para a hora da graça; o futuro se apresenta como
lempo para a realização, estação de serviço e de missão, na
qual a pessoa deve tornar-se sempre mais o que é por força do
Espírito, estendendo o anúncio do Senhorio do Nazareno na cre
dibilidade do amor. Aos olhos de quem reconhece no Humil
de o centro da história e se converte a ele, a sucessão das realida
des humanas — a partir da própria vida pessoal — e a história
da salvação não se apresentam mais como dois mundos estranhos
entre si: não só se entrelaçam numa multiplicidade de pontos
(os kairoí da graça: O. Cullmann), como também, sem chegar
a identificar-se (como parece admitir W. Pannenberg), porque
permanece sempre aberta a possibilidade do negativo como recu
sa da oferta de Deus, colocam-se numa relação estreita. A histó
ria da salvação permite interpretar e avaliar a história univer
sal (K. Rahner), que por sua vez deve ser transformada, na
força do Espírito e pelo empenho humano, em história da salva
ção (J. B. Metz).33 Isso implica que “a mudança de mentalidade”
se traduza em opções operacionais em benefício dos homens: a
história de lágrimas e sangue, que devasta a terra, não se tornará
história de salvação sem um esforço de libertação da iniqüidade
pessoal e social, que causa a injustiça presente. Vê-se, então,
como a opção por Cristo se torna a opção pelo homem, “o
irmão por quem Cristo morreu” (ICor 8,11): “O processo histó
rico da libertação dos pobres e dos oprimidos é a mediação con
cretamente histórica da salvação vinda de Deus”.3435 Crer na
singularidade do Nazareno significa crer na dignidade de cada
homem e empenhar-se concretamente para que ela seja reconhe
cida e promovida.33 Então não basta confessar abstratamente a
universalidade de Cristo: é preciso afirmá-la trabalhando pela
libertação de todo homem, para que cada um — indivíduo,
povo, raça, grupo marginalizado — , tomando consciência de si
mesmo diante do próprio passado e do próprio futuro, decida
323
na liberdade o próprio presente e edifique o futuro em comu
nhão responsável com todos os homens, seus companheiros de
jornada. “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entra
rá no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de
meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21); não é aquele que confessa
com palavras a singularidade de Jesus Cristo que entrará no
Reino do Pai, mas sim aquele que realiza o seu senhorio na
justiça e na paz!
Portanto, a opção por Cristo empenha ativamente o homem
pelo homem; onde isso não ocorre, ela perde a credibilidade, a
ponto de justificar a rejeição de Cristo (do Cristo falsamente
apresentado) em nome de Cristo.36 Esse compromisso é susten
tado pela esperança: a promessa feita na Páscoa assegura que a
vida dedicada ao “seguimento de Cristo”, ainda que aparente
mente perdida, na realidade é encontrada num nível mais alto,
e que o destino da história, apesar de tudo e contra tudo, é um
destino de ressurreição e de vida: “A ressurreição de Cristo
como antecipação da nossa e a nossa ressurreição como partici
pação da ressurreição de Cristo já realizada: eis o mistério da
inclusão do destino da humanidade no destino de Cristo”.37
É esse o fundamento que a confissão da singularidade do Cru-
cificado-Ressuscitado dá ao risco da esperança, que deve carac
terizar a vida dos cristãos. Quem confessa Jesus de Nazaré
como Senhor e Cristo, norma e salvação da história, sabe que
“já começou nele a restauração prometida que esperamos... Já
chegou para nós o fim dos tempos, a renovação do mundo já foi
estabelecida irrevogavelmente e é realmente antecipada neste
mundo...” (Lumen Gentium 48). O Senhor Jesus “é o fim ao
qual tende a história... Vivifiçados e unificados no seu Espírito,
caminhamos para a plenitude da história humana” (Gaudium
et Spes 45): o que agora professamos na dureza do escândalo e
na noite da fé será então plenamente revelado a toda criatura,
e “muitos virão do Oriente e do Ocidente para sentar:se à mesa
com Abraão, Isaac e Jacó no Reino dos céus” (Mt 8,11). Então
a confissão exterior de Cristo não será suficiente para salvar
mos: só nos salvará o amor com que tivermos confessado na
vida a nossa fidelidade a ele e aos últimos, nos quais ele está
324
presente (cf. Mt 2 5 ,3 lss). Por isso a esperança cristã não é fuga
do mundo nem promessa consoladora, que faça fechar os olhos
diante da dor do presente; mas ela vive de opções na ação e de
dias gastos a serviço dos homens.
Por fim, deve-se sublinhar que a opção por Cristo nunca
é fruto apenas da carne e do sangue: é na graça que Cristo se
revela àquele que o sabe acolher. Isso deve levar os crentes a
uma incessante oração para que ao “sim” de Deus corresponda
o “sim” do homem: “Pai, santificado seja o teu nome, venha o
teu Reino...” (Lc 11,2). Todos os argumentos aduzidos a favor
do caráter absoluto do cristianismo para nada servem se não
houver o encontro da ação do Espírito com um coração sedento
de luz, disposto a lutar com Deus e a fazê-lo vencer. Os cren
tes serão os primeiros a pedir todos os dias a luz capaz e
fazer superar o escândalo: “Senhor, dá-nos olhos míopes para
todas as coisas que passam, e olhos iluminados para toda verda
de tua” (S. Kierkegaard, no cabeçalho de “A doença mortal ).
E para os que não crêem, mas procuram com coraçao sincero,
o Paradoxo originário revela-se no momento em que eles aceitam
passar do falar de Cristo ao falar com ele: “Senhor, se existes,
faze que eu conheça” (Charles de Foucauld, no tempo que
antecedeu à sua conversão). O consentimento da fe, o acolhi
mento da “possibilidade impossível”, que se realizou em Jesus
Cristo, é um mistério de graça e de liberdade que se encontram
no diálogo e no silêncio de um coração que ora, na operosidade
de uma vida densa de significado e de paixão...
325
12
CONTEMPORANEIDADE DE CRISTO
326
12.1. JESUS, VIVO E VIVIFICANTE NO ESPIRITO
327
espírito!” (ICor 12,12-13; cf. Rm 12,4-5). É no Espírito que
o homem se torna de cristo: “Se alguém não tem o Espírito de
Cristo, não lhe pertence” (Rm 8,9).
Todas essas afirmações do Novo Testamento convergem
para delinear uma cristologia do Verbo, segundo a qual o Espí
rito tem a função principal de atualizar no tempo a obra de Cris
to. Sem opor-se à cristologia do Espírito, que vê em Jesus sobre
tudo aquele que recebeu em abundância o Espírito do tempo
escatológico,2 ela a completa, iluminando o nexo que há entre
o Ressuscitado e o presente da salvação. “O verdadeiro vínculo
que existe entre Cristo e os homens é estabelecido, em última
análise, pelo Espírito Santo”.3 “O Paráclito liga o passado ao
presente e atualiza a revelação que se realizou em Jesus”.4
Aquele que recebeu o Espírito em plenitude, nessa plenitude é
tornado presente pelo Espírito a toda hora do tempo.56O único
Espírito, que plenifica a Cabeça, derrama-se também sobre o
corpo e o constitui como tal: a unção do Cristo, a “gratia unio-
nis , “não é uma graça privada, mas ao mesmo tempo uma ‘gra
tia capitis’, que de Cristo, a Cabeça, se derrama sobre o Corpo,
a Igreja, e através da Igreja é comunicada ao mundo”.0 O que
Jesus recebeu do Pai, recebeu-o por nós, isto é, ao mesmo tempo
para o nosso bem, em nosso lugar e por nosso amor (cf. o termo
úper, que aparece por exemplo nos textos eucarísticos de Mc
14,24; Lc 22,18; ICor 11,24, como também o termo antí, de
significado equivalente por exemplo em Mc 10,45).7 No Espírito
do qual nos faz participantes, Jesus é o homem-para-os-outros:
De sua plenitude todos nós recebemos graça por graça” (Cf Jo
1,16; cf. Ef 4,15s; Cl l,18s).
Compreende-se aqui o fundamento bíblico da intuição dos
Padres, especialmente gregos, que vislumbravam a divinização
328
da humanidade no contato, criado através da Encarnação, entre
o Logos divino e a “natureza” humana: essa idéia da inclusão
ontclógica dos homens em Cristo não é mais do que a transposi
ção em termos metafísico-conceituais daquilo que a comunida
de das origens confessou, falando da efusão do Espírito em nós
através do Crucificado-Ressuscitado.8 Essa “gratia Capitis”, que
da Cabeça, Cristo, passa a nós, seus membros, é o oferecimento
“objetivo” da salvação, a participação na vida divina tornada
possível ao homem, prescindindo de todo mérito seu: é a elei
ção por graça, que se opõe, no pensamento de Paulo, à presu
mida eleição alcançada pelas obras da lei; é a gratuidade do amor
divino, que salva além e até contra toda capacidade do homem
de salvar-se sozinho. A oposição não está entre o dom de Deus,
que deixaria passivo quem o acolhesse, e as obras do homem,
que o disporiam ativamente a esse dom, mas entre a eleição
libertadora do Espírito, acolhida na fé, e a presunção humana
de obter salvação (poder-se-ia também dizer: de emancipar-se)
graças apenas às suas forças: “Foi pelas obras da Lei que rece
bestes o Espírito ou pela adesão à fé?... Cristo nos remiu da
maldição da Lei, tornando-se maldição por nós... a fim de que
a bênção de Abraão em Cristo Jesus se estenda aos gentios,
e para que, pela fé, recebamos o Espírito prometido” (G1 3,2.
13-14). A lei diz ao homem: observa os preceitos e viverás; o
Evangelho da graça lhe diz: acolhe em ti a vida do Espírito e
observarás naturalmente a vontade do Pai! A reviravolta é total:
não vem em primeiro lugar a obra do homem e depois a justi
ficação” de Deus, mas antes é oferecida a “justificação” e de
pois, em quem acolhe o dom, a vida floresce. Deus quer que
todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da ver
dade” (lTm 2,3-4; cf. também 4,10; Tt 2,11; Jo 1,29;4,42; lio
4,14; Ap 21,3). Por isso, em Cristo é oferecido a todos o seu
Espírito: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações
por meio do Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5; cf. G1
3,5;4,6;5,18-25; ICor 2,10-12; etc.). Quem aceita esse dom na
fé, experimenta sua ajuda poderosa na fraqueza (cf. Rm 8,26) e
é levado a viver uma vida finalmente plena: “É o Espírito que
dá vida; a carne não adianta nada” (Jo 6,63).9
329
Portant°, o Espírito estende a toda hora do tempo a possi
bilidade, humanamente “impossível”, que a graça do Pai abriu
para o homem com a obra e o destino de Jesus Cristo. Neste
sentido, pode-se falar de uma tríplice ação do Paráclito: a pri
meira, sobre o Nazareno, para fazer dele o Ungido do Pai, o
Umco em quem é dada a salvação por Deus; a segunda, visando
a colocar Cristo em relação com a Igreja, de maneira que o seu
senhorio salvífico se exerça nela efetivamente; a terceira, sobre
cada homem, para fazê-lo participar, através da comunidade da
salvação oferecida, que é plena em Cristo. Dessa forma, o Espí
rito preenche a distância entre os tempos e o tempo da graça,
atualiza a relação (que, senão, permanecería puramente ideal)
do evento irrepetível da salvação para cada situação humana, e
assim escreve a história de Deus na história dos homens. No
Senhor Jesus, representado pelo Espírito, o Pai toma posição:
face ao passado do pecador, perdoando-o; diante do seu presen
te, unindo-o a si no dom de sua vida; e com relação ao seu
futuro, prometendo-lhe a vida eterna e empenhando-se em cons
truí-la junto com ele. No Espírito de Cristo, torna-se possível a
relação com o Pai para todo homem que a queira, seja qual for
o tempo e o lugar em que ele se encontra. O Espírito é a garan
tia de que Deus sempre terá tempo para o homem!
Pensada nessa luz trinitária e pneumatológica — que é
profundamente bíblica — , a concepção da contemporaneidade
de Cristo é libertada de possíveis mal-entendidos. O Nazareno
não pode ser reduzido a um modelo de vida moral, presente na
mente, mas estranho ao hoje de carne, de sangue e de lágrimas.
Nas seguintes palavras de Kant, sente-se a ausência da dimen
são histórica, capaz de unir vitalmente, no Espírito, o passado
de Jesus Cristo ao_nosso presente: “O ideal da humanidade agra
dável a Deus... não é concebível de nossa parte a não ser atra
vés da idéia de um homem que não só tenha se disposto a cum
prir por si mesmo todos os deveres humanos e, ao mesmo tem
po, a difundir em torno de si o bem da maneira mais intensa9
330
possível mediante a doutrina e o exemplo, mas também seja
capaz, apesar de toda tentação e engodo, de submeter-se às
maiores dores, inclusive a morte mais ignominiosa, para o bem
do mundo e mesmo para o bem dos seus inimigos .10 Cristo,
nessas palavras, é a projeção ideal da perfeita realização do
dever moral, mas não tem carne e sangue, não é o Vivente, que
hoje atinge e muda a vida de quem se decide por ele. Entre
Cristo e o presente abre-se — para usar as palavras de Les-
sing __ “o maldito e largo fosso que não consigo ultrapassar,
por mais que eu tenha tentado o pulo .n Esse fosso, na realida
de, tampouco é superado pela solução que Kierkegaard dá ao
problema: a contemporaneidade, “condição da fé ou mais exata
mente definição da fé”,12 é entendida por ele de um modo que
transfere o espírito para fora de sua história, para o eterno
presente de Deus: “Com efeito, com relação ao absoluto não ha
mais do que um tempo: o presente; para aquele que nao e con
temporâneo com o absoluto, o absoluto não existe de forma
alguma. E dado que Cristo é o absoluto, é fácil ver que, com
relação a ele, só é possível uma situação: a da contemporanei
dade”.13 É o homem que, na fé, se torna contemporâneo ao
tempo de Deus, e não esse tempo que se torna presente ao hoje
concreto do homem: 14 mas isso elimina justamente o parado
xo” cristão, que não é tanto a eternização do homem, quanto
331
a humanização de Deus! Quem não pensa de forma trinitária,
quem nao reconhece a ação do Paráclito para tornar presente a
história de Deus na história dos homens, não superará o “fosso”
de Lessing: Cristo será para ele, quando muito, um exemplo ao
qual se pode voltar, com a recordação cheia de admiração que
se tem pelos grandes do passado. Ele poderá ter memória do
Ünico, trazendo à mente o que ele foi, mas não fazer memória
no sentido bíblico de “memorial” do passado salvífico, único e
irrepetível, que no Espírito se torna contemporâneo ao presente,
de modo a contagiá-lo e transformá-lo.13 Sem o Espírito a fé não
seria mais do que uma piedosa recordação: pelo Espírito ela é
a experiência do Vivente, capaz de mudar a vida do homem no
seu presente concreto. Também neste sentido é necessário dizer
que, “se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé!” (cf. ICor
15,14).
332
dúvida corre o risco de forçar a riqueza irredutível do testemu
nho neotestamentário. Mas tem a vantagem de exprimir os
aspectos essenciais da atividade mediadora de Cristo, mostrando
como ele é aquele que conduz ao Pai (o Pastor), que revela a
verdade de Deus (o Profeta), que dá a vida (o Sacerdote sumo
e eterno): “o caminho, a verdade, a vida” (Jo l4,6). Além disso,
é possível chegar a essa tríplice abordagem relendo à luz da
Páscoa as dimensões fundamentais da plena e verdadeira hu
manidade de Cristo. Com a Ressurreição, a testemunha da fé
tornou-se o objeto da fé; se é nova a luz que a partir daí é
lançada sobre o Nazareno, idêntico, porém, é o sujeito dos dois
estágios daquela realidade absolutamente singular; se é inaudita
a mensagem da Páscoa, vários sinais pré-pascais (o uso do
“Abbá”, a “pretensão” extraordinária, etc.) já oferecem uma
antecipação daquilo que será plenamente revelado ao “terceiro
dia” da morte na cruz. As dimensões da humanidade do profe
ta galileu, a sua consciência, a sua liberdade e a sua finitude,
irradiadas pelo Espírito de Páscoa, tornam-se então o funda
mento da memória viva dele, memória que o ^Paráclito^ torna
possível para toda hora do tempo. O memorial da história da
sua consciência, da qual o Nazareno haure a luz que transmite
aos homens, torna-se a confissão de Jesus Verdade, Profeta e
Mestre escatológico; o “memorial da sua liberdade traduz-se no
reconhecimento da força contagiosa dela, e portanto de Jesus
libertador, Caminho, Pastor e Rei; a memória viva da sua
história de finitude, por fim, exprime-se na confissão de Jesus
Vida, Sacerdote que “entrega” a si mesmo ao Pai e dá aos ho
mens o Espírito da vida que não morre.
333
não repousa em ti (Agostinho). Jesus proclama a sua mensa
gem com a palavra e com a vida até o envio pascal dos seus
que deverão anunciar a boa nova do Reino a todos os povos
(cf. Mt 28,18-20; Mc 16,15-16; Lc 24,36-49; Jo 20,19-23). A
Páscoa revela sem sombras que Jesus é o Profeta escatológico
(cf. At 3,22s, que se liga a Dt 18,15; Jo 6,14; 7,40; Hb 3,1-6;
etc.): Quando a fé pós-pascal confessa no Kyrios exaltado ‘ó
Profeta’, ela efetiva a pretensão de Jesus. Por força de sua pro
ximidade com o Pai, fonte da sua autoridade peculiar, Jesus é a
absoluta, irrepetível revelação salvífica de Deus, é o ‘Profeta’
que devemos ouvir (Mt 9,7) para ter a vida (At 3,22s)”.19 Jesus
e a Palavra (cf. Jo 1,1 ss) e a luz vinda a este mundo para ilu
minar todo homem (cf. Jo 1,9): “O Prólogo de João é uma me-
ttação sobre o mistério de Jesus feito Senhor pela Ressurreição.
A luz desse acontecimento, o evangelista ilumina retrospectiva
mente toda a pregação de Jesus e funda-a na missão que rece
beu do Pai: revelar o seu desígnio definitivo”.20 Jesus glorifica-
do já é na sua vida terrena o revelador do Pai: proclama o que
ouve dele (cf. Jo 3 ,1 1;8,26.40; etc.), torna-nos participantes da
quilo que conhece (cf. 1,18) e nos convida a ter fé nele (cf. Jo
3,12-14), que tem palavras de vida eterna (cf. Jo 6,68).21 Jesus
é o mestre, que ensina com autoridade estupenda (cf. Mc 1,22),
é assim chamado pelos homens (cf. Mc 10,17; Mt 8,19), e é
confessado, à luz pascal, como único mestre dos cristãos: “Não
permitais que vos chamem Mestres, pois um só é o vosso Mestre
Cristo _(M t 23,10; cf. Jo 13,13). Profeta e mestre, Palavra é
revelação plena de Deus (cf. Hb 1,1), luz que brilha nas trevas
(cf. também Jo 8,12 e 12,46), Jesus é a V erdade (cf. Jo 14,6):
quem for fiel à sua palavra e se tornar seu discípulo “conhe
cerá a verdade e a verdade o fará livre” (cf. Jo 8,32).
Essa revelação se torna presente e é aprofundada no devir
da história por obra do Espírito Santo: Espírito de verdade (cf.
Jo 14,17; 15,26; 16,13; cf. também 1Jo 5,6), ele ensinará aos
334
crentes todas as coisas, far-lhes-á recordar todas as coisas que o
Senhor disse (cf. Jo 14,26) e conduzirá à verdade plena, porque
não falará por si, mas lhes dirá tudo o que ouve e lhes fará co
nhecer o futuro (cf. Jo 16,13). Para compreender a força dessas
afirmações é necessário recordar que na tradição semítica a pa
lavra correspondente a “verdade” (em grego aléteia = a priva
tivo pantáno: manifestação do que está oculto) é em et (de
amân = ser sólido, estável), termo que designa a fidelidade e a
confiança em alguém: se verdade é para os gregos uma realidade
objetiva e intemporal, para o mundo da Bíblia é uma relaçao
interpessoal que se experimenta no curso de uma história. O
contrário da verdade, para os gregos, é o erro ou a mentira;
para os semitas, a ruptura de um vínculo de confiança que sub
sistia no tempo. A fé pascal, designando o Espírito como Espi
rito de verdade e o próprio Jesus como verdade, quer então mos
trar que no Nazareno a fidelidade de Deus se manifestou para
os homens de uma vez por todas, e que essa fidelidade sera
estendida a toda hora do tempo pelo poder do Paráclito. Isto e,
ele tornará presente, em toda situaçao humana, o amor do Deus
trinitário revelado e dado em Jesus Cristo e fará com que os
crentes vejam sempre de novo a sua força libertadora e corro-
borante: “Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados em
saber como ou o que haveis de falar. Naquele momento vos
será indicado o que deveis falar, porque não sereis v& que
estareis falando naquela hora, mas o Espírito do vosso Pai é que
falará em vós” (Mt 10,19-20; cf. Lc 12,12). O Espírito, alem
disso, abrirá para a fidelidade da promessa, e portanto para o
futuro de Deus para o homem: nele a verdade do Profeta esca-
tológico se oferecerá como poder que abre para o futuro, sub
vertendo toda atitude de conservação e de medo, que torne o
homem escravo do próprio passado: “Com efeito, bem sabemos
que toda a criação geme e sofre as dores de parto até o presente.
E não somente ela. Mas também nós, que temos as primicias
do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção
do nosso corpo. Pois somos salvos em esperança. Assim também
o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que
pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nos
com gemidos inefáveis... (Rm 8,22-24.26).
Onde o Espírito torna presente Jesus como Verdade, Luz
e Profeta escatológico no tempo dos homens? Onde se realiza
335
para nos hoje a revelação única e irrepetível dada no Crucifica-
do-Ressuscitado? Os caminhos do Espírito certamente são mui
tos pois ele sopra onde quer (cf. Jo 3,8), com uma liberdade
soberana e inexaurível. Todavia, é possível identificar alguns
caminhos reais, nos quais a Fidelidade do Deus cristão se apre
senta a historia humana, para revelar-se e revelar o seu sentido
Esses caminhos são a Palavra de Deus na transmissão viva da
Igreja, os sinais dos tempos” e a necessidade e o testemunho
do amor.
336
Em segundo lugar, o Espírito atualiza a Verdade, que é
Cristo nos “sinais dos tempos”, acontecimentos e mensagens da
história humana em que é possível reconhecer a voz iluminado-
ra do Mestre. O próprio Jesus convidou a perscrutar esses
sinais, censurando os seus contemporâneos porque andavam
em busca de sinais impressionantes: “Ao entardecer dizeis:
vai fazer bom tempo, porque o céu está avermelhado; e de
manhã: hoje teremos tempestade, porque o céu esta de um
vermelho sombrio. O aspecto do céu, sabeis interpretar mas os
sinais dos tempos, não podeis!” (Mt 16,2s; cf. Lc 12,54-5 ).
Precisamente porque com freqüência os sinais dos tempos ,
modestos e por nada extraordinários, misturados como estão a
complexidade dos eventos históricos, são ambíguos e devem ser
objeto de um paciente trabalho de discernimento. Esse trabal o
pode ser realizado somente no confronto constante entre a vida
e a Palavra: não lerá o Evangelho na história quem nao souber
ler a história no Evangelho! Não discernirá o Espírito no tempo
quem não tiver compreendido a linguagem do Espirito na Palavra.
A Palavra é o critério que guia a Igreja na lida por essa audiçao
necessária: “Ê dever da Igreja investigar a todo o momento os
sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; assim
poderá responder, de modo adaptado a cada geração, as eternas
perguntas dos homens sobre o sentido da vida presente e da
futura, e sobre a relação entre ambas. É, por isso, necessário
conhecer e compreender o mundo em que vivemos as suas espe
ranças e aspirações, e o seu caráter tantas vezes dramáticos .
Naturalmente, a complexidade do discernimento comporta o
risco do equívoco: é sempre possível ceder a um otimismo iacil,
que abrace as propostas do tempo sem sujeitá-las ao crivo rigo
roso do escândalo cristão. A mensagem de Cristo e então redu
zida a uma das possíveis ideologias do progresso humano, e e
recebida como uma grandeza deste mundo, ainda que fosse apa
rentemente a mais ativa para o homem, o^ instrumento p rm e-
giado do Espírito; embora não cedendo a fáceis mstrumentaliza-
337
çoes, deve-se dizer que o protesto cristão contra semelhante con
tusão nunca será suficientemente radical (pense-se na Declara-
çao teologica d e Barmen, redigida por K. Barth, como confissão
de te e, ao mesmo tempo, protesto contra as pretensões absolu-
tizan es do nacional-socialismo, acolhidas pelos cristãos ale
mães). A atençao aos “sinais dos tempos” deve andar de mãos
dadas com o espírito de vigilâcia, para traduzir-se na coragem de
afirmações provisórias e críveis, sempre abertas à contestação de
338
desinteressadamente os outros (et. lio 4,7ss). Por outro lado
contudo, amar verdadeiramente o irmão não sigmftca ama-lo »
por amor a Deus: “Se o amor a Deus nao pode ser confundi
com o amor ao próximo, este último não se torna de forma algu
ma um meio para alcançar o amor a Deus: Jesus nao quer anu
lar o objeto humano desse amor ao proximo. Um amor que,
nesse sentido, não ama por amor à pessoa que Ita^esta na t a t e ,
mas por amor a Deus, não é verdadeiro amor 24 O amor umver
sal compreendido como amor abstrato pelos outros por amor a
Deus corre o risco de ser uma mentira: so quem ama concre
tamente o próximo que Deus colocou a seu lado ama como
Cristo nos amou e nos pediu que amássemos. Aquele que ama
a “todos”, facilmente não ama a ninguém; aquele que ama os
“seus” (o povo pobre e necessitado de amor ou rico de si e
fechado ao amor, que constitui o seu mundo), torna-se também
capaz de amar a “todos” . Nesse amor concreto Cristo se torna
presente e profere na nossa vida mortal as suas palavras de
vida eterna. O irmão necessitado de amor ou testemunha de
amor vivo é, no Espírito, um verdadeiro “sacramento do encon
tro com ele, lugar de revelação e de salvaçao (cf. Gn 1,26 Mt
25; Rm 8,29; Cl 3,10). Nesse sentido, sem o sacramento do
irmão, ninguém poderá salvar-se 25
339
n í ' t M C 15,2.18.26)^ rei de uma forma oposta à idéia que
n r ,
mundo tem do ser rei: O meu reino não é deste mundo; se
o meu reino fosse deste mundo, os meus súditos teriam comba
tido para eu nao ser entregue aos judeus” (Jo 18,36; cf. 37).
Jesus é o rei pacífico, sem nenhuma ambição terrena, o rei
manso, sentado numa jumenta” (Mt 21,5 e Zc 9,9; cf. Lc 19,
38; Jo 12,13.15). Com a Ressurreição ele é entronizado por Deus
como um rei (cf Mt 25,31; Mc 12,36 e par.; 16,19; At 2,30;
f 1,20,2,6, Ap 3,21; etc.) e estende o seu domínio sobre toda
a cnaçao, ate que entregue o reino ao Pai e Deus seja tudo em
dos (cf. ICor 15,24.28). Jesus é o bom pastor, que dá a vida
por suas ovelhas (cf. Jo 10,1 lss): tendo vindo em busca dos que
340
nhecimento do senhorio de Cristo é obra do Espírito: “Ninguém
pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no Espírito Santo (lCor
12 3) É o Espírito que na peregrinação do tempo presente cons
titui o penhor da glória futura no fim do Reino de Deus (ct.
Rm 8,23; 2Cor 1,22;5,5; etc.). _ , T
Onde o Espírito torna presente na história o Senhor Jesus,
caminho para ir ao Pai? De que mediações humanas se serve
para levar os homens a Deus, através do único acesso possí
vel que é o Crucificado-Ressuscitado? Também aqui e necessá
rio sublinhar a liberdade do Espírito, que não pode ser coarcta-
da- devemos, por isso, reconhecer sua ação salvífica para alem
de'todo “meio” visível de salvação: ainda que o cristão nao dei
xe de confessar a singularidade de Jesus, e portanto de indicar
nele o mediador absoluto entre Deus e os homens, nem por
isso irá se recusar a crer na possibilidade de o Espirito agir por
vias não ligadas à confissão explícita do Ressuscitado. Extra
Ecclesiam nulla salus”, a famosa expressão por força da qual
tantos atos de intolerância foram consumados, mas também vivi
dos tantos impulsos de generosidade missionária, revela aqui o
seu significado mais profundo: não há salvação fora da comu
nhão com o Espírito de Cristo, que constitui a essencia do mis
tério da Igreja; mas não se exclui que essa comunhão se realize
por vias que não passam através da mediaçao eclesial visive .
Posta essa premissa necessária, é possível afirmar que os lugares
privilegiados em que o Espírito torna Jesus livre e libertador
contemporâneo ao homem são a comunidade de salvaçao, isto e,
a Igreja na variedade dos seus carismas e ministérios, e a praxis
de libertação do homem, explícita ou implicitamente aberta ao
Reino de Deus que vem.
O Senhor glorificado reina antes de tudo na sua Igreja,
presente nela como caminho para ir ao Pai, “porta das ovelhas
(Jo 10,7.9): o Espírito de Cristo vive na comunidade eclesial (ct.
a teologia dos Atos: 2 ,4; 8, 18.39; 9,31 ; 10,19.44; 11,12; 13,2; 16, ;
19 6- 20,23.28; etc.) e a habilita a cumprir a sua missão, que
consiste na proclamação e realização do senhorio de Jesus para
a glória do Pai (cf. Mc 13,11 e par.; Jo 20,22; At 5,32, lCor
342
souber perder-se, fazendo da autoridade, que lhe deriva de Cris
to, um serviço pobre e desinteressado de salvação. No seio des
sa Igreja pobre e serva, o Espírito derrama uma variedade de
dons (carismas) e suscita os diversos ministérios, através (dos
quais os homens poderão ser conduzidos ao Pai em Cristo: Há
diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação,
mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um rece
be o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos...
(ICor 12,4-7). Nessa diversidade, é o único Espírito que opera,
tornando contemporâneo aos homens o único caminho pelo qual
se chega ao Pai: Jesus Cristo (cf. ICor 12,11). De modo parti
cular, o Pastor da Igreja torna-se presente nela como cabeça do
seu Corpo através do ministério de unidade, cujo carisma é trans
mitido pela imposição das mãos (cf. At 20,28 e 2Tm 1,6); toda
via, é na comunhão de todo o corpo eclesial em torno desse mi
nistério de discernimento e de coordenação que o Senhor Jesus
se torna presente e se oferece como caminho para ir ao Pai.
Neste sentido, pode-se dizer que a comunhão e a co-responsa-
bilidade pastoral dos crentes constituem a forma mais densa da
contemporaneidade de Cristo, Rei e Pastor, Servo e Caminho
para a Salvação.
Contagiando a liberdade do Cristo, o Espírito age também
para a libertação dos hom ens: libertação do pecado, da dor e da
morte, em suas dimensões pessoais e sociais, e portanto também
libertação do poder e da Lei, que, culpados pela crucificação do
Inocente, foram por sua vez crucificados pela sua Ressurreição;
libertação em vista da plena realização do homem e do mun o
segundo a vocação que lhes é revelada em Jesus Cristo. Se essa
libertação não se reduz a um horizonte puramente terreno, por
que está orientada para comunhão final com o Pai e é vivificada
pelo Espírito de Cristo, não pode deixar de abranger o plano da
libertação social e política: a realeza de Cristo, que é liberdade
no amor, opõe-se a toda injustiça, opressão e manipulaçao. Onde29
343
estas estão presentes, onde a dignidade do homem é espezinhada
e tolhida, também o Senhorio de Jesus é rejeitado, qualquer que
seja o mascaramento ideológico do opressor. Com relação ao
sistema de iniqüidade — que concretamente é sistema de de
pendência e de exploração do pobre pelo rico, das classes domi
nadas pelas dominantes do “Terceiro Mundo” pelos países “de
senvolvidos , sejam eles capitalistas ou comunistas, das áreas
atrasadas pelas economicamente poderosas, dos grupos e dos
indivíduos marginalizados pelos que os marginalizam — o Se
nhorio de Cristo coloca-se como força subversiva, inspiração
libertadora que compromete com a alternativa da justiça. O
Espírito torna presente o Libertador em todos os que, de cora
ção sincero e generoso, se entregam à causa da libertação, sobre
tudo através da tarefa de conscientização dos oprimidos, que
somente por esse caminho podem transformar-se de objeto em
sujeito da história. Se, contra todo otimismo ingênuo, é preciso
reconhecer que o homem nunca se libertará plenamente só com
suas forças, é preciso também admitir que Cristo — Senhor e
caminho de salvação — está presente no coração dos que ofere
cem honestamente a própria vida por uma sociedade mais huma
na, ainda que não confessem explicitamente o seu nome. Por
isso, então, se exigirá da Igreja, sacramento do Senhorio de
Jesus no tempo, que seja instituição de liberdade, corajosa na
denúncia das opressões, para anunciar de maneira crível o hori
zonte mais amplo do Reino que vem. Crise de todas as grande
zas terrenas, o Evangelho do Senhorio libertador de Cristo é
também a crise permanente do seu povo, o juízo sob o qual ele
está e a medida à qual deve conformar-se e converter-se, se qui
ser ser povo de homens livres para a liberdade do homem todo
em todo homem.30
344
c) A história de Jesus como experiência de finitude mostra
a profundidade do seu amor por Deus e por nós, pois chegou
ao ponto de aceitar a separação do Pai e o exílio de si, para levar
toda a humanidade à reconciliação pascal, fonte da nova vida do
mundo. Jesus é a Vida (cf. Jo l,4 ;5 ,2 6 ;6 ,3 5 .5 7 ;ll,2 5 s;1 4 ,6 ; ljo
1,1 s; etc.) e foi enviado para dar a vida ao mundo: “Eu vim
para que tenham a vida e a tenham em abundância (Jo 10,10,
cf. 3,15s e 10,28). Quem crê nele tem a vida, passa “da morte
para a vida” (Jo 5,24). Mas Jesus dá a vida porque oferece em
sacrifício a sua vida, porque a “entrega” livremente na hora
obscura da cruz (cf. Jo 10,15s; 15,13; 1Jo 3,18): é “o Cordeiro
de Deus, que tira os pecados do mundo” (Jo 1,29.36), o Cor
deiro pascal (cf. ICor 5,7; Jo 19,36, bem como a cronologia
joanina da paixão, que coloca a morte de Jesus no dia 14 de
Nisã, dia do sacrifício do cordeiro: Jo 18,28.39; 19,14.31), o
Inocente sacrificado pelos pecadores (cf. Is 53,7 e At 8,32).
Assim ele se torna o Cordeiro imolado, mas vivo e glorioso, que
guia o povo de Deus ao último combate e é senhor da história
(cf. Ap 5,6ss;6,lss; 7,9s; etc.). Aquele que “nos amou e se entre
gou por nós a Deus, como oferta e sacrifício de odor suave” (Ef
5,2), aquele que “por um Espírito eterno se ofereceu a si mes
mo a Deus como vítima sem mancha” (Hb 9,14), recebe nova
mente a vida (cf. Jo 10,17s) e a comunica em abundância (cf.
Jo 4 ,14;5,26;6,35.47.51.57; 10,10; ljo 5,12). Assim, a sua mor
te sacrifical liberta do pecado (cf. Rm 6,10) e prepara o seu
Senhorio: “Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o
Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9). A sua morte assume
a nossa fraqueza para levar-nos no poder da vida de Deus (cf.
2Cor 13,4): assim a morte é definitivamente derrotada e a quem
crê é dada vida nova (cf. Rm 6,8ss; G1 3,11; etc.). Portanto,
Jesus nos dá a vida mediante a oferta sacrifical de sua vida. por
isso ele ; o sumo sacerdote (cf. Hb 3,1), que como nós foi pro
vado em todas as coisas e pode participar de nossas enfermida
des (cf. Hb 4,14s), e “tornado perfeito” através da experiência
suprema da finitude, é “causa de salvação eterna para todos os
345
que lhe obedecem” (Hb 5,9; cf. 1-10). Ele é o sacerdote sumo,
“inocente, sem mancha, separado dos pecadores, elevado acima
dos céus”, que se ofereceu uma vez por todas e sempre vivo
para interceder por nós (cf. Hb 7,26s.25 e lis ) .31
À luz dessas afirmações é possível esclarecer o que se enten
de por “sacrifício” de Cristo: o sacrifício é uma “volta” a Deus,
uma oferenda exterior a ele, sinal da oferenda interior, símbolo
real que exprime louvor, reconhecimento e invocação, não só
por si mesmos, mas para todo o povo.3-2 Na sua “entrega” volun
tária à morte Jesus “retornou” a Deus, isto é, ofereceu-se incon
dicionalmente ao Pai na dor do abandono aceito por nós: “Cristo
oferece a si mesmo, e isso é significado pela sua morte... O essen
cial do sacrifício é a obediência e o amor de Cristo”.33 Por isso
ele é ao mesmo tempo sacerdote e vítima, que, solidário com os
pecadores (recorde-se o “por nós” !), traz em si o louvor, a ação
de graças e a invocação de toda a humanidade, por amor da
qual escolheu juntamente com o Pai o caminho doloroso da
cruz. Em nosso lugar, para o nosso bem e por nosso amor o
Crucificado se ofereceu a Deus no Espírito (cf. Hb 9,14): e o
Pai aceitou a oferenda, dando-lhe em plenitude o seu Espírito.
O Sacrifício de Cristo não é “mais uma confissão da importân
cia humana que espera”, mas o sacrifício agradável: a Ressur
reição é o “sim” que Deus disse ao oferecimento do Filho (cf.
2Cor 1,20), e nele à humanidade, sobre a qual derramou, por
Cristo, o Espírito, dom de vida que vence a morte. Entretanto,
toda a existência do Nazareno foi um oferecimento de si ao Pai:
nesse sentido, é possível reconhecer uma dimensão sacrifical em
toda a vida de Jesus, que por isso sempre foi sacerdote e vítima,
mesmo se realizou o oferecimento supremo de si na cruz. Se a
sua é uma existência dada, a ressurreição aparece como a respos
ta acolhedora do Pai com relação a todo o caminho sacrifical
do Filho. À vida dada por ele corresponde a vida dada por Deus,
o Espírito. O poder vital divino, no qual Jesus foi ressuscitado,
346
vem assim habilitar nos corações como num templo (cf. ICor
3,16;6,19), derrama neles o amor de Deus (cf. Rm 5,5), e dá
vida plena: “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre
os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus
dentre os mortos dará vida também aos vossos corações mortais,
mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,11). O Espí
rito vivifica (cf. Jo 6,63; 2Cor 3,6), atesta que nós somos filhos
de Deus (cf. Rm 8,16), enxerta-nos no diálogo da vida trinitá-
ria (cf. G1 4,6 e Rm 8,15), nos corrobora (cf. Ef 3,16; 2Tm 1,7).
Viver “segundo o Espírito” (cf., por exemplo, Rm 8,5) significa
conhecer os frutos de uma vida plena: “amor, alegria, paz, pa
ciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio
de si” (G1 5,22; cf. Ef 5,9). O Espírito torna assim presente em
nós Cristo Vida, Sacerdote da aliança nova e eterna, que nos
permitiu participar da vida trinitária: é daqui que nasce a Igre
ja, povo que vive a vida nova dada do alto, acolhendo sempre
o amor de Deus, que pelo Espírito foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5,5).
Como ocorre tudo isso concretamente? Através de que me
diações históricas passa a ação do Paráclito, que torna contem
porâneo o Cristo, doador da Vida? Ainda que o Espírito, na sua
liberdade, possa suscitar e de fato suscite vida em formas conti
nuamente novas, é possível identificar dois lugares privilegiados
nos quais, de formas diferentes, o Senhor vivo e vivificador se
torna contemporâneo ao hoje: de um lado, os sacramentos da
Igreja; de outro, a experiência da dor humana, implícita ou
explicitamente vivida em comunhão com o Crucificado.
A econom ia sacramental da Igreja representa no tempo o
sacramento “primordial” de Deus, Jesus Cristo. Ela representa
o seu mistério nos vários momentos e segundo as várias necessi
dades da vida humana, tornando possível o encontro vivificante
com ele no nascimento e na morte, na alegria e na dor, nas
quedas e nas doações decisivas da existência. O ponto mais alto
desse oferecimento de vida é a celebração eucarística do memo
rial da Páscoa, na qual Cristo, que sofreu e foi glorificado, se
torna realmente presente no Espírito para reconciliar os homens
com o Pai e entre si, e cumulá-los de vida divina. “Cume e fon
te” de toda a existência cristã, a eucaristia é o “sacramentum
unitatis”, pelo qual a Igreja é gerada e expressa, na memória
poderosa da aliança pascal e na contínua projeção para o ban
347
quete final do Reino.34 Nela o Espírito não só torna presente
Cristo morto e ressuscitado, mas também difunde a vida nos
membros do Corpo eclesial, para a vivificação de toda a histó
ria. Estão orientados para a eucaristia o batismo e os outros sa
cramentos, e dela nascem as várias formas da consagração e da
missão eclesial. Pode-se afirmar então que a eucaristia — e a
economia sacramental a ela ligada como a seu centro e vértice —
é o lugar mais denso da contemporaneidade de Cristo vida no
nosso presente, o “memoriale salutis”.
Todavia, há outro caminho, mais “anônimo”, mas acessí
vel a toda existência humana (inclusive à que ignora o Ressusci
tado), em que o Senhor da vida se comunica aos homens para
fortalecê-los e levá-los à comunhão com o Pai: é a história dos
sofrim entos do mundo. Desde que a cruz de Cristo foi chanta-
da na terra, não há dor humana que não seja de alguma forma
alcançada pelo Espírito e unida a ela (cf. Mt 25,3 lss). O Cruci
ficado da sexta-feira santa se torna presente na dor dos sacrifica
dos do mundo, graças à força do Paráclito, e contagia, em quem
o acolhe, a capacidade de comunhão e de oblação: um sofrimen
to, vivido em solidariedade com os outros e oferecido por amor,
é'uma presença real de Cristo na história dos homens! A paixão
do mundo é alcançada e fermentada pela paixão de Cristo, de
modo que o peso da finitude não se torna ocasião de desespero
e de condenação, mas caminho de ressurreição e de vida. Se
isso é verdade para todo homem, tanto mais o será para o cris
tão, que deverá invocar a graça do Espírito, a fim de viver a
sua dor no seguimento de Cristo e completar assim na própria
carne o que falta à paixão dele para o bem do seu corpo (cf. Cl
1,24). Então o sofrimento se tornará, como nos santos, o “sa
cramento da dor”, o lugar em que, contra toda resignação pas
siva, o mal inevitável é vencido pelo bem, a dor se torna amor,
e a morte é transformada em vida. Então o rosto de Cristo, ven
cedor da morte e senhor da vida, aparecerá nos pobres rostos
desfigurados pelo espasmo indizível da dor humana: “Hoje se
realiza um milagre neste lugar: um camelo passa pelo fundo
de um agulha” (palavra do padre Lorenzo Milani no leito de
morte).
348
A releitura pascal da história da consciência, da liberdade
e da finitude do Nazareno mostra, pois, que ele é o Profeta
escatológico, revelador do Pai, o Rei-Servo, libertador do mun
do, o Sacerdote da nova e eterna aliança, vencedor da morte e
vivificador: a verdade, o caminho, a vida! Essas três funções
estão intimamente relacionadas como três aspectos da única
obra salvífica de Jesus Cristo, que o Espírito torna presente e
eficaz na sua totalidade dinâmica em todas as horas do tempo.
Para exprimir essa unidade e totalidade fala-se, em geral, de
Jesus como m ediador entre Deus e os homens: “Pois há um
só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um ho
mem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos” (lT m 2,5s;
cf. Hb 8,6;9,14s; 12,24).35
Tal mediação — à luz do que foi dito — não pode ser
interpretada a não ser no sentido histórico-salvífico e trinitário:
Jesus é o Ungido que, através do seu humaníssimo caminho para
os mortos e da experiência inaudita da ressurreição, recebe em
abundância o Espírito do Pai e o dá em plenitude aos homens.
Por Cristo o Espírito vem do Pai aos homens (mediação descen
dente): por ele, no mesmo Espírito, os homens vão ao Pai (me
diação ascendente). Na mediação de Cristo a história trinitária
se une à história humana: o movimento do amor eterno entra
em nossa história e a leva consigo. Na sua história singular de
Humilhado-Exaltado, Jesus é a aliança: nele o mundo de Deus
e o mundo dos homens se encontram, não apenas “nos dias da
sua carne” (Hb 5,7), mas para sempre, porque ele está sempre
vivo intercedendo por nós (cf. Hb 7,25), e no Espírito está pre
sente em todas as horas do tempo. A salvação que Jesus Media
dor obtém para o homem é a participação na vida divina, a co
munhão com o Pai no Espírito Santo: a vida trinitária é partici
pada aos homens, força na fraqueza, alegria na dor, conforto
na solidão, vitória na provação, liberdade na prisão, vida na
morte. Quem acolhe a Cristo, que no Espírito se torna contempo
râneo- ao seu “hoje”, torna-se filho no Filho, pregusta a paz da
comunhão trinitária, aprende, ainda que na dureza do tempo
penúltimo e na fadiga da fé, a amar e a esperar em sintonia com
349
o coração de Deus. Sobre ele, como sobre Maria, desce a som
bra do Espírito, que um dia tornou o Verbo presente na carne
para uma história verdadeiramente humana e que o torna de
novo presente na história de cada pessoa que o acolhe; como
Maria, “protótipo do homem diante da livre graça de Deus”,30
ele não é tirado do mundo, mas chamado a caminhar, nesse mun
do, cheio de amor fiel e de esperança, para o futuro, fruto de
suas mãos e da graça do Pai. Como Maria, quem prepara o pró
prio terreno progride “de fé para a fé” (Rm 1,17), ativamente
operoso e ao mesmo tempo absorto na contemplação do misté
rio, alegre na experiência do Espírito e ao mesmo tempo prega
do à cruz do presente. Peregrino neste mundo e pobre entre os
pobres, o homem que reconhecer a contemporaneidade de Jesus
Cristo não se cansará de celebrar sua força de ressurreição e de
vida: se viver, viverá por ele; se morrer, morrerá por ele. Na vida
como na morte, não quererá outra coisa a não ser pertencer a
ele: “Pois ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo,
porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos
é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer
morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo morreu
e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,7-9).
351
futuro que nos precede, é contradição que nos abate, é liberda
de que nos supera. Qualquer palavra sobre ele, revelado na hu
maníssima história do Senhor Jesus, é muito breve e muito
obscura: é início de um caminho, limiar que inicia um amanhã
já começado. Por isso, enquanto a cristologia da palavra se con
clui, é necessário que se inicie a cristologia do silêncio e da vida,
a experiência do Cristo libertador na história diária dos homens.
É nela que, sob o peso da cruz do presente, o conhecimento
iniciado no mistério se tornará mais profundo, mais próximo do
“totalmente novo” do futuro de Deus: “Saiamos, portanto, ao
seu encontro fora do acam pam ento, carregando a sua humilha
ção. Porque não temos aqui embaixo cidade permanente, mas
estamos à procura da cidade que está para vir” (Hb 13,13-14).
Uma vida dedicada ao louvor e à esperança n’Aquele que veio
e que vem, e generosamente empregada no serviço concreto dos
pobres, em quem ele está presente, é terreno de advento, lugar em
que se prepara e se antecipa no Espírito a aliança da glória.
A segunda confissão, ao contrário, é um ato de fé naquele
que, ainda não alcançado, contudo já se deu aos homens; tam
bém aqui, o fim da cristologia da palavra dá início à cristologia
vivida e pregada. O objeto torna-se poderosamente Sujeito; o
peregrino do pensamento torna-se peregrino de toda a existência,
confortado e sustentado na comunidade dos irmãos pela alegre
certeza de estar com o Senhor, no próprio instante em que vai
ao encontro dele com o empenho de toda a vida. E a voz se une
a tantas outras vozes, para cantar com o povo dos peregrinos a
confissão do coração:
352
Sei que d e todo mal m e livrarás,
e em teu perdão viverei.
353
LISTA DE TERMOS TÉCNICOS
354
Cristo: do grego, significa “ungido”. O título exprime a plenitude de
Espírito Santo em Jesus e a realização nele das expectativas messiâ
nicas salvíficas. V. também Messias.
Cristologia: doutrina teológica que estuda a pessoa e a obra de Jesus
Cristo, como consciência crítica da fé que a Igreja tem nele. Cristo-
lógico: relativo a Cristo, à Cristologia e à reflexão sobre Cristo.
Crítico: do grego “crise”, que significa discernimento e juízo, indica
todo procedimento de análise e avaliação.
Dialética: segundo o pensamento tradicional, é a arte do raciocínio; mo
dernamente, é o procedimento pelo qual se chega a afirmações novas
e mais altas através de afirmações e negações.
Docetismo: do grego, “parecer ou aparecer”. Rejeitada pela fé da Igreja,
esta doutrina atribuía a Cristo um corpo apenas aparente, que assim
não podia “contaminar” a divindade.
Dogma: proposição que define com autoridade um aspecto da fé da
Igreja como revelado por Deus, e o afirma de maneira definitiva
quanto à intenção última e quanto à mensagem essencial, mas que
deve ser sempre interpretada em relação aos instrumentos lingüístico-
-conceituais do tempo em que foi formulada.
DS: H. Denzinzer — A. Schõnmetzer, Enchiridion Symbolorum, Defini-
tionum et Declarationum de rebus fidei et morum, ed.. 34?, Barcino-
ne, Friburgi Brisgoviae, Romae, Neo-Eboraci 1967: seleta dos prin
cipais documentos do magistério da Igreja.
Eclesiologia: doutrina teológica que estuda a origem, condição e destino
da Igreja cristã e que reflete e influencia a práxis.
Economia: do grego, “administração da casa”. Em teologia, indica a dis
posição salvadora de Deus e a realização histórica da salvação.
Emancipação: ato com que o homem, mediante as próprias forças, se
liberta de tudo o que o torna escravo e o aliena.
Epistemologia: doutrina do conhecimento humano, em sua constituição
e desenvolvimento.
Escatologia: doutrina das “últimas coisas” (em grego "escháta”), enten
didas como fim do tempo e como tempos finais ou ainda como tem
po da presença plena e definitiva de Deus na história. Neste último
sentido, é escatológico o evento de Jesus Cristo, que inaugura o
tempo do fim e é a antecipação e promessa do tempo que termina
rá em Deus.
Etiologia: “doutrina das causas”. Relato etiológico: narração que visa
a explicar em forma legendária a origem de um comportamento ou
de uma tradição.
Exegese: em teologia, é a interpretação da Sagrada Escritura, mediante
a utilização dos métodos críticos necessários e a atenção à mensa
gem global da revelação acolhida pela fé.
Extracanônico: não pertencente ao “cânon” ou catálogo dos livros que
a Igreja considera inspirados por Deus.
Filho do Homem: termo usado em Dn 7,13 e na apocalíptica para indi
car uma figura celeste; nos textos imediatamente anteriores ao Novo
Testamento, essa figura assume caracteres marcadamente pessoais e
divinos. Empregado por Jesus para indicar a si mesmo, o título cai
em desuso na comunidade primitiva; é sempre dirigido a destinatá
rios que não lhe podem compreender o sentido.
Finitude: condição da existência humana, que é limitada ou “finita” em
suas aberturas de consciência e liberdade. Peso dessa condição.
355
Gnosticismo: no seio do cristianismo, nome dado a diversas formas heré
ticas que têm em comum a afirmação de uma dualidade radical entre
matéria e espírito e a interpretação da redenção como libertação do
espírito da escravidão da matéria mediante o conhecimento (“gno-
se”) da verdade, aberta ao espírito disposto pelo Salvador, visto antes
de tudo como Mestre e Revelador.
Heresia: do grego, “escolha”. Acentuação arbitrária de um aspecto da
verdade da fé, com prejuízo de outros aspectos.
Hermenêutica: do grego, “ciência da interpretação”. A sua necessidade
deriva do contínuo modificar-se do horizonte e da formulação dos
conhecimentos humanos, exigindo um trabalho de explicação e de
tradução, a fim de permitir a comunicação entre expressões de situa
ções historicamente diversas.
Hipóstase: etimologicamente, em grego, “o que está embaixo” (latim:
“substantia”) , o termo veio a indicar o sujeito de operações, a pes
soa (v .). An-hipóstase: ausência da pessoa (em Cristo: da pessoa
humana). En-hipóstase: condição da natureza humana de Cristo,
que é personalizada pelo Verbo de Deus.
História: termo de significado complexo. Sucessão de acontecimentos
Ciência e narração dos acontecimentos do passado. Tomada de posi
ção do sujeito que consciente e livremente se situa no presente com
relação ao “já” dado para suscitar originalmente o “ainda não”.
Historia da Redação (Redaktionsgeschichte) : método que procura re
constituir a história dos Evangelhos em relação aos redatores (os
evangelistas), vistes não como simples compiladores de materiais já
prontos, mas como autores dotados de criatividade própria.
Historia das formas (Formgeschichte) : método de análise que tem como
objetivo reconstruir a história de cada um dos textos que constituem
cs^ Evangelhos, desde a situação vital” (Sitz im Leben) originária
ate a redação definitiva.
Homoúsios: termo grego, que se traduz por “consubstanciai”, de igual
substancia ou natureza, de igual dignidade no ser. Assim se diz do
Pai com o Filho (Concilio de Nicéia: 325) e também de Jesus co
nosco (Concilio de Calcedônia: 451).
lahw eh: em hebraico, “Aquele que é por (nós). Nome divino revelado
a Moisés e que designa o Deus da promessa.
Ideologia: sistema de idéias, concepção da história e projeto de ação
nela. O risco da ideologia está nas pretensões absolutizantes que ela
facilmente promove.
Justificação: ato com o qual o Pai perdoa o pecador que, mediante a fé,
se entrega a ele; com o mesmo ato o Pai lhe dá a graça do Espírito
Santo, obtida por Cristo em favor de todos.
Kairós: no grego do Novo Testamento indica o momento “qualificado”
o tempo de salvação oferecido por Deus e acolhido pelo homem.
Kyrios: ern grego, Senhor”. Usado no Antigo Testamento grego como
nome divino, o termo exprime a condição divina de Cristo e a sua
soberania salvadora sobre toda a criação
Logos: em grego, “Palavra” ou “Verbo”. Indica Jesus Cristo enquanto
preexistente junto ao Pai, de igual condição com ele, presente na ori
gem e no fim da criação, vindo a este mundo para salvá-lo (cf Jo
l,lss).
Manualística: teologia dos “manuais”, isto é, dos textos usados nas esco
las teológicas até um passado não distante; teologia que com o tem
po se tornou sempre mais repetitiva e abstrata.
356
Memorial: termo empregado para indicar a memória em sentido bíblico,
que não é simples recordação (movimento da mente do presente
para o passado), mas verdadeira reatualização, que na força do
Espírito divino torna presente o evento salvífico passado, por si
irrepetível.
Mérito: valor de uma obra que dá direito a uma recompensa. D e con
digno: em sentido escrito, é o mérito proporcional às exigências da
justiça divina (só o de Cristo). D e congruo: é o mérito de simples
conveniência, porque não é proporcional às exigências reais da jus
tiça (mérito do pecador agraciado).
Messias: em hebraico equivale a "ungido”, e portanto a “cristo” em gre
go. O termo, em suas várias formas, relaciona-se com a espera mes
siânica de Israel.
Metafísica: originariamente indica as obras aristotélicas que se seguem
às obras sobre a física (conhecimento da natureza). Ê usado como
equivalente a “ontologia” (v.).
Metáfora: procedimento pelo qual se dá a um termo o significado de
outro, que tem alguma analogia com o primeiro. Linguagem meta
fórica: maneira de falar que se serve de metáforas; é particular
mente necessária quando se procura exprimir o mistério divino.
Metanóia: do grego, “conversão, mudança de mentalidade”.
Mistério: em sentido bíblico-paulino, é o desígnio divino de salvação
que vai se realizando na história em eventos e palavras intimamente
relacionados. Cristo é a plenitude desse mistério. Mistérios da vida
de Jesus: eventos particulares da história do Nazareno, prenhes de
significado reveladcr-salvífico.
Modalismo ou monarquianismo: heresia trinitária, segundo a qual Deus
é único em si, embora aja exteriormente de três “maneiras” dife
rentes. Heresia também chamada “sabelianismo”, de Sabélio, seu
defensor no século III. Cristo seria o próprio Pai encarnado (patri-
passianismo).
Monofisismo: doutrina do monge Eutiques, condenada em Calcedônia
(451). Em oposição ao nestorianismo (v.), afirmava a “única natu
reza” (daí o termo grego) do Verbo Encarnado.
Natureza: princípio que qualifica as operações, relações e história de
um sujeito. Responde à pergunta: que coisa é? Em Cristo, que é ao
mesmo tempo homem e Deus, fala-se, por isso, de uma natureza
humana e uma divina.
Nazareno: “de Nazaré”. Termo com o qual se designa Jesus (cf. Mc
1,24; 10,47; 14,67; 16,6; Lc 4,34;24,19).
Nestorianismos doutrina de Nestório, patriarca de Constantinopla, que
reconhecia em Cristo dois sujeitos, um humano e outro divino, liga
dos entre si por uma união moral. Posição condenada por Éfeso
(431) e Calcedônia (451).
Ontologia: “doutrina do ser” enquanto tal; tudo o que se refere à rea
lidade em si, independentemente de suas determinações particula
res.
Parãclito: em grego, “defensor, advogado, consolador”. Termo usado para
designar o Espírito Santo.
Paradoxo: o que é ou parece contrário ao comum.
Parusia: termo grego que indica a “presença” ou manifestação final de
Cristo entre os seus, e portanto o retorno dele no fim do tempo.
Pessoa: sujeito de operações, relações e história. Responde à pergunta:
quem é? Em Cristo, é o sujeito divino da relação única e exclusiva
357
com o Pai; é aquele que entrou na história, fazendo-se homem me
diante a Encarnação.
Pneuma: em grego, “espírito, sopro, vento”.
Pneumatologia: doutrina sobre o Espírito Santo. Pneumatológico: tudo
o que tem relação com o Espírito Santo, o qual foi dado pelo Pai a
Cristo, e a nós por meio de Cristo.
Práxis: em grego, “ação”. Indica a ação histórica real nas relações, con
dicionamentos e efeitos que a caracterizam e na orientação dela
para a transformação da realidade.
Preexistência: existência de Cristo enquanto Verbo e Filho eterno do Pai
antes da Encarnação. A doutrina da preexistência realça a presença
total de Deus na história do Nazareno.
Pretensãok reivindicação, exigência. “Pretensão” de Jesus: autoridade
inaudita do seu falar e agir, exigência imposta por ele de que todos
se convertam à fé em sua mensagem. A ressurreição de Jesus justi
ficara plenamente a sua pretensão. “Pretensão” cristã: afirmação de
te em Cristo, o que comporta exigências altíssimas, cujo funda
mento não aparece de maneira perceptível, e só se acata no horizon
te da fe.
Prolepse: antecipação do futuro em forma de sinal e promessa
Prosopon: termo grego, equivale a pessoa.
Protologia: doutrina das “coisas primeiras” (do grego). Teologia das
origens da criação e da história.
Quênose: em grego, “aniquilamento, esvaziamento”. O termo indica o
despojamento a que o Verbo se submeteu ao fazer-se homem, des
cendo da condição de Senhor para a de servo, até à morte ignomi-
mcsa na cruz (cf. F1 2,6ss). 6
Querigma: em grego, “anúncio, proclamação do arauto”. Em teologia
indica a mensagem central da fé cristã, o anúncio do evento de sal-
vaçao realizado em Jesus Cristo.
Redenção-, obra salvadora, libertação dos homens realizada e tornada
possível para nós em Jesus Cristo.
Sacramento: termo latino equivalente ao grego “mistério” (v .). Em
teologia designa um evento que é sinal e instrumento da graça,
sinal historico da fidelidade de Deus às suas promessas.
Salvação: libertação do que torna escravo (morte, pecado, opressão) em
vista do que torna livre (vida plena, graça, realização de s i).
Seguimento: o ato de seguir a Jesus Cristo,' decidindo-se por ele, e a
condição de vida que daí deriva.
Semântica: estudo do significado das palavras e enunciados. Semântica
do mistério: estudo do sentido e conteúdo da linguagem com que se
apresenta a fé revelada; a expressão designa também o conjunto
desse aparato lingüístico.
Sinótwos (Evangelhos ) : Evangelhos de Mt, Mc e Lc que, por suas seme
lhanças, podem ser escritos em colunas paralelas e lidos num só
golpe de vista” (em grego: sinopse). O problema de tais seme-
lhanças (e dissemelhanças) constitui a questão sínótica.
Substância: “o que está embaixo”, o que uma coisa é, a sua essência.
Soteriologia: doutrina teológica referente à “salvação” (em grego: soté-
ria ). Em Cristologia é a reflexão sobre a atividade salvífica de Cris
to, sempre unida à reflexão sobre a sua pessoa (ao contrário da se
paração que fazem os manuais entre Cristo em si e Cristo para
n ós). r
358
Subordinacionismo: doutrina rejeitada pela Igreja, segundo a qual o
Verbo está subordinado ao Pai, não sendo de igual natureza com
359
ÍNDICE
5 Introdução
Primeira parte
9 1. A cristologia na história
(Que sentido tem falar de Cristo hoje?)
10 1.1. A provocação do mundo secular e da práxis de
libertação
10 a) “O cântico do Senhor em terra estranha” (SI
137,4): a “pretensão” cristã diante da cida
de secular
17 b) “Onde está o Espírito do Senhor ali há liber
dade” (2Cor 3,17): a “pretensão” cristã diante
dos sistemas de opressão
23 1.2. O problema da dor e da obscuridade do futuro
23 a) O problema da dor: a “pretensão” cristã dian
te do sofrimento humano
27 b) O problema do futuro: a “pretensão” cristã
diante do futuro do homem
34 1.3. A sedução do Deus revelado e oculto
38 1.4. Uma tarefa: Teologia-Igreja-mundo
42. 2. A história na Cristologia
(Como falar de Jesus Cristo aos homens de hoje?)
42 2.1. Consciência histórica e teologia cristã
49 2.2. Mudanças da práxis eclesial e teologia
53 2.3. Por uma cristologia como história
Segunda parte
H ISTÓRIA DA CRISTOLOGIA
65 3. A esperança de Israel
(Antigo Testamento e cristologia)
65 3.1. O Deus da promessa
72 3.2. Formas messiânicas da espera
72 a) O messianismo profético
76 b) O messianismo régio
80 c) O messianismo sacerdotal
82 d) O messianismo apocalíptico
87 4. A plenitude do tem po
(Cristologia do. Novo Testamento)
87 4.1. O ponto de partida: a ressurreição
104 4.2. O problema histórico da relação entre Jesus pré-
-pascal e o Cristo pós-pascal
115 4.3. O problema teológico da relação entre o Jesus pré-
-pascal e o Cristo pós-pascal
120 4.4. A “releitura pascal” e os desenvolvimentos da
cristologia do Novo Testamento
136 5. D o querigma ao dogm a
(A fé cristológica da Igreja)
138 5.1. Do querigma ao dogma: uma história
152 5.2. Do dogma ao querigma: um confronto
158 5.3. Querigma e dogma: um projeto
Terceira parte