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JESUS DE NAZARÉ

H ISTÓ RIA DE DEUS


DEUS DA H ISTÓ RIA
ensaio de uma crístología como história
CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP

Forte, Bruno.
F841j Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história:
ensaio de uma cristologia como história / Bruno Forte;
[tradução Luiz João Gaio; revisão João Anibal Garcia
Soares Ferreira], — São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
(Coleção teologia hoje)
Bibliografia.
ISBN 85-05 00239-3
1. Jesus Cristo 2. Jesus Cristo — Paixão 3. Jesus Cristo
— Ressurreição I. Título. II. Título: Ensaio de uma cris­
tologia como história.
CDD-232
-232.96
85-0237 -232.97

Índices para catálogo sistemático:

1. Jesus Cristo: Paixão e morte: Cristologia 232.96


2. Jesus Cristo: Ressurreição: Cristologia 232.97
3. Jesus Cristo: Teologia dogmática cristã 232

Coleção TEOLOGIA HOJE

Antropologia teológica, B. Mondin


Os grandes teólogos do século XX — vol. 1: Os teólogos católicos,
B. Mondin
Os grandes teólogos do século XX — vol. 2: Os teólogos protestantes
e ortodoxos, B. Mondin
O culto a Maria hoje, Diversos
Teologia da Revelação, René Latourclle, s)
As novas eclesiologias, B. Mondin
Jesus de Nazaré, História de Deus, Deus da história, Bruno Forte
O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré — 3 vols., Juan Luis Segundo
Novos caminhos da moral, Marciano Vidal
Ensaio de ética sexual, Jaime Snoek
A doutrina tradicional da Providência, implicações sociopolíticas, Roque
Frangiotti
Vida e reflexão — Contributo da Teologia da Libertação ao pensamento
teológico, VV. AA.
O sacramento do amor, Paulo Evdokimov
Como fazer teologia hoje, Claude Gcffré
Por uma Igreja mais humana, Edward Schillebeeckx
Uma Igreja de batizados — Para superar a oposição clérigos/leigos,
Rémi Parent
B ru n o F o r te

JESUS DE NAZARÉ,
HISTÓRIA DE DEUS,
DEUS DA HISTÓRIA
E n s a io d e u m a c ris to lo g ia
c o m o h is tó ria

2ã edição

E d içõ es P a u lin a s
Título original
Gesü di Nazaret, storia di Dio, Dio delia storia

© Edizioni Paoline, Roma, 1981 (2‘ ed.)

Tradução
Luiz João Gaio

Revisão
João Aníbal Garcia Soares Ferreira

eç> EDIÇÕES PAULINAS


TELEX (11) 39464 (PSSP BR)
Rua Dr. Pinto Ferraz, 183
04117 SÃO PAULO — SP
END. TELEGR.: PAULINOS

Com aprovação eclesiástica

© EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1985


ISB N 85-05-00239-3
INTRODUÇÃO

O título deste livro resume sua mensagem: Jesus de Nazaré,


hom em entre os hom ens da sua época, hum ilde servo de Deus,
que nos últimos tem pos de sua vida anunciou a vinda do Reino,
falou com autoridade sem igual, realizou prodígios e sinais e foi
condenado à m orte com o agitador político-religioso. Este Jesus
fo i ressuscitado pelo Pai e constituído Senhor e Cristo, de sorte
que em nenhum outro nome, a não ser no seu, é dada salvação
ao mundo. A Ressurreição perm ite reconhecer nele, mediante a
fé, a história de Deus e o Deus da história: nas obras e nos dias
da vida terrena d e Jesus, Deus se fez presente entre os homens,
narrando-lhes a sua própria história de Pai, de Filho e de Espí­
rito. Vivente no Espírito Santo, o Senhor Jesus é o critério de
acordo com o qual se deve julgar e orientar todo o cam inho
do tem po; ele é a presença de libertação e vida para todos os
que o acolhem na própria história. A partir da experiência que
a com unidade cristã das origens fez do Ressuscitado, tal com o
se encontra registrada no testemunho do N ovo Testamento, e,
de maneira análoga, a partir da progressiva reflexão da fé nas­
cente, este livro procura registrar tal experiência originária, para
depois “reler” nesse registro o passado pré-pascal de Jesus e o
tem po da salvação antes e depois dele, e assim captar o signifi­
cad o que Jesus p od e ter para os hom ens de hoje.
O subtítulo — Ensaio de uma cristologia como história —
indica, inicialmente, a consciência de que uma reflexão assim
estruturada é histórica do início ao fim. D e fato, parte de uma
história real (história das origens cristãs que nos é transmitida
no evento eclesial) e reflete sobre outra história real (aquela mes­
ma história e a nossa) para suscitar história. Em segundo lugar,
exprim e a convicção d e que as reflexões aqui desenvolvidas estão
“situadas” no tem po e no espaço, enquanto consciência crítica
da f é e da práxis de um povo concreto d e crentes.
Na história real d e um povo é possível o encontro para­
doxal do A bsoluto e da história, de Deus e d o fato humano.
Quem se colocar na linha desta tradição será naturalmente leva­
d o a pensar historicam ente: e isso não só partindo dos fatos posi­
tivos com o matéria do seu pensar, mas tam bém inserindo-se na
realidade viva e histórica, a fim de interpretá-la e contribuir

5
para a sua transform ação. Por isso, esta cristologia é pensada a
partir do hoje concreto das gritantes contradições do nosso povo,
da sua miséria, da opressão política e econôm ica sob a qual vive,
mas tam bém a partir da sua tradição, das suas esperanças e da
sua fé. Deus vem unir-se a esta nossa história no Espírito do
Ressuscitado, e é tam bém no coração dele que Deus deve ser
reconhecido. Por isso indagamos: Jesus é o Cristo: o que signi­
fica isso para nós?
O livro está articulado em três partes. Na primeira, colo-
cando-nos dentro dessa realidade concreta, da m aneira mais
am pla e solidária possível com a “condição humana”, procura­
m os responder à pergunta: que sentido tem falar de Jesus Cristo
hoje? Na segunda, entram os em diálogo com o passado da fé:
com o esperaram , encontraram e testemunharam Cristo aqueles
que nos precederam ? Procuramos identificar esse fato a partir
da história de Israel e a partir da palavra da com unidade primi­
tiva, palavra que ê normativa e fonte para quem crê. Na terceira
parte, por fim, nos esforçam os em apresentar com o o Crucifica-
do-Ressuscitado p od e dar sentido, esperança e força aos homens
d e hoje, cuja cruz muitas vezes parece insuportável.
Esse sentido, essa esperança e essa força, nós os encontra­
m os em Jesus, que é a história de Deus e o Deus da história.
Digo isso desde já, porqu e este livro é “parcial” : fo i escrito por
alguém qu e crê para servir de ajuda aos que também crêem e de
“p rovocação” aos que não conseguem crer. N este sentido, desti­
na-se a todos: evita-se uma linguagem d e iniciados (sem contu­
d o renunciar aos termos “técnicos” indispensáveis, apresentados
num lista colocada no fim do livro). Isso para que o diálogo
com o leitor — qualquer que seja a sua história — possa ser
entabulado sem grandes dificuldades. O que não quer dizer
renúncia ao rigor crítico, mas um diálogo com os entendidos no
assunto sem dificultar aos dem ais a com preensão da mesma fé
que pertence a todos. Ê provável qu e am bos fiquem insatisfeitos:
algumas páginas serão dem asiado sim ples para os críticos; outras
serão muito críticas para os simples. Mas, a uns e a outros se
p ede que com preendam a intenção d e fundo: uma teologia que
não falasse ao hom em de h oje seria muda, da mesma form a que
é vazia uma teologia que não se constrói através de rigorosa pes­
quisa dos “dados” da fé.
Bruno Forte

6
PR IM EIR A PARTE

CRISTOLOGIA E HISTÓRIA
1

A CRISTOLOGIA NA HISTÓRIA
Q ue sentido tem falar de Jesus Cristo hoje?

Que sentido tem falar de Jesus Cristo hoje?


Ksta é a pergunta radical que o mundo secularizado parece
Inzer à reflexão e à fé dos cristãos. No “crepúsculo dos deuses”,
riu que se destaca a figura do homem feito adulto, ressoando o
m> titânico, às vezes zombeteiro, às vezes compassivo, dos pro-
leltis da morte de Deus, paira a interrogação: ainda tem senti­
do falar daquele Cristo de quem o homem de hoje não teria
u i idade nem necessidade? Desafio semelhante parece brotar do
'Terceiro Mundo” e, em geral, das situações de injustiça e de
lula social e política: as condições sub-humanas de opressão,
miséria e dor em que vive a maior parte da humanidade e a
lógica do lucro, que estabelece como fim de todas as coisas o
Inlrrcsse de poucos, sacrificando o interesse da maioria, dão
origem à pergunta: que significado pode ainda ter o homem de
Nazaré, crucificado num tempo longínquo, ressuscitado segundo
a fé cristã, mas aparentemente sem fruto para a justiça do mun-
■ lii? A “pretensão” das Igrejas cristãs de serem portadoras do
iiiumcio de salvação em Jesus Cristo se defronta com a provoca-
çfto do mundo “adulto” da sociedade opulenta e dos países so-
i inlisliis, de um lado, e de outro, com o mundo da fome, do sub­
desenvolvimento e das contradições sociais. Desses dois mun­
do», que às vezes se entrelaçam num único sistema complexo,
surge uma outra questão para a reflexão da fé cristã: se o pri-
tiiriro denuncia a insensatez de Deus diante da maturidade do
...... . moderno, o segundo condena o silêncio de Deus diante
da injustiça presente. A “pretensão” cristã deve, assim, ser justi-
líi inlii em duas frentes: de um lado, em relação com a “cidade
serulíti de outro, em relação com os sistemas de dependên-
< ia c opressão. No primeiro caso, o problema é: “Cristo e o

9
mundo feito adulto” (D. Bonhoeffer); no segundo, “Cristo e o
mundo das não-pessoas”.
Todavia, dentro do mundo das estruturas culturais, sociais
e políticas está o homem. Não é só dessas estruturas que surge
a interrogação sobre o sentido do discurso cristão. É também
das profundezas do humano, da tensão entre experiência e espe­
ra, entre amor e laceração, da abertura para o futuro e do escân­
dalo da dor que nasce a provocação para a fé no Deus crucifi­
cado e ressuscitado. Que sentido tem Jesus Cristo para a espe­
rança do homem? Que sentido tem para tantos sofrimentos, em
que todos os dias se realiza a paixão do mundo?
Por fim — isso parece paradoxal! — é o próprio Deus
anunciado pelas Igrejas que provoca essa “pretensão”. Ele não
se deixa prender pela palavra humana; ele afasta a certeza pre­
sunçosa de quem pretende já possuí-lo; ele incentiva, na obediên­
cia da fé, a uma perene busca de sua face, a uma explicação
sempre nova da esperança que existe em nós.
Diante dessa tríplice provocação, a cristologia — como
reflexão crítica da fé da Igreja em Jesus Cristo — deve, antes
de mais nada, empreender o caminho que justifique a “preten­
são cristã. Somente através disso, aceitando o desafio da escuta
e do diálogo com o mundo, com o homem e com Deus, tal
pretensão poderá perceber o sentido e a forma do serviço,
que é chamada a prestar na Igreja para os homens de hoje.

3
1. 1. A PROVOCAÇÃO DO MUNDO SECULAR
E DA PRAXIS DE LIBERTAÇÃO

a) “O cântico do Senhor em terra estranha” (SI 137,4):


a “pretensão” cristã diante da cidade secular

A conquista da idade adulta leva-nos a um verdadeiro reco-


n,lfn da nossa situação diante de Deus. Ele nos faz saber
qtír devemos viver como homens que se arranjam sem Deus. E o

1U
Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15,34)...
Com Deus e diante dele, vivemos sem Deus. Deus se deixa
expulsar do mundo, sobre a cruz; Deus é impotente e fraco no
mundo e assim, e somente assim, pode permanecer conosco e
nos ajudar” .1 D. Bonhoeffer, a corajosa “testemunha de Cristo
entre os seus irmãos”, morto vítima da barbárie nazista, sinteti­
zava dessa forma os termos em que se coloca o problema de
Deus no mundo feito “adulto”. São os termos de uma dialética
de ausência e de presença. O homem secular , que experimen­
tou a autonomia do mundano em todos os campos do pensamen­
to filosófico e científico, levou até às últimas conseqüências o
processo de “emancipação” iniciado pelo iluminismo. Esse ho­
mem chegou a captar, com relação a Deus, a autonomia da pró­
pria existência crente, chamada a viver no mundo como se
Deus não existisse. O ateísmo moderno “não tem mais o sentido
de oposição a Deus e de polêmica contra Deus, de antiteísmo,
mas de ausência e radical carência intencional da fuga de
Deus’ com relação ao homem e da ‘fuga do homem com relação
a Deus”.2 “Os deuses e seus pálidos filhos, símbolos da metafí­
sica, estão desaparecendo. O mundo está cada vez mais se tornan­
do apenas mundo. É privado de seu caráter sagrado e religioso.
0 homem se torna sempre mais apenas hom em e perde os signi­
ficados místicos e os reflexos cúlticos que o distinguiam duran­
te o estágio religioso da história, estágio que já se aproxima do
fim. Agora, o homem deve assumir a responsabilidade pelo

t Bonhoeffer, “Lettera dei 16-7-44”, in Resistenza e resa, Milão, 1969,


p. 265 (ed. bras.: Resistência e submissão Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1980, 207 p.). Sobre Bonhoeffer e a secularização, cf. S. Sorrentino, La
teologia delia secolarizzazione in D. Bonhoeffer, Roma, 1974. Sobre a
'.teularização, cf. sobretudo: La secolarizzazione, sob a orientação de
S. S. Acquaviva e G. Guizzardi, Bolonha, 1972 (ensaios dos responsá­
veis e coletânea de textos); "Sacralizzazione e secolarizzazione nella
storia delia chiesa” in Concilium n. 7, 1969; E. L. Mascall, The Secula-
risation of Christianity. An Analysis and Critique, Londres, 1965; Les
dcux visages de la théologie de la sécularisation, Tournai, 1970; como
imnbém os artigos de A. Milano in Nuovo Dizionario di Teologia, Roma,
1978, pp. 1.438-68, e P. Vanzan in Dizionario Teologico lnterdisciplinare,
1 iirim, 1977, III, pp. 220-31. Para a hipótese teológica do fenômeno da
secularização, continua fundamental, apesar das necessárias reservas, a
obra de F. Gogarten, Destino e speranza delTepoca moderna. La seco­
larizzazione come problema teologico, Bréscia, 1972 (a 1? ed. alemã e
de 1953).
2 C. Fabro, Introduzione alVateismo moderno, II, Roma, 1969, 2* ed.
1970.

11
mundo. Não pode descarregar essa responsabilidade nos ombros
de algum poder religioso”.3
Todavia, é nessa mesma ausência que surge o mistério de
uma presença. A experiência dos totalitarismos, das atrocidades
da guerra, da ambigüidade da técnica, mostrou que a história da
emancipação pode tornar-se tragicamente história de novos ído­
los, de novas e mais cruéis alienações. Inicia-se uma autocrítica
da crítica moderna, uma dialética do iluminismo”,4 que procura
mostrar os limites da racionalidade, prisioneira de si mesma,
que, de organizadora e manipuladora, com freqüência se torna
organizada e manipulada. Enquanto assim se esboça uma “sauda­
de do totalmente outro”, como “saudade da perfeita e consuma­
da justiça”,5 redescobre-se a presença de um Deus que não con­
corre com o homem, mas que, ao contrário, está a seu lado, de
modo especial no sofrimento, pregado que se acha na cruz do
mundo. Cristo se torna “o objeto de um grande amor, de uma
imensa piedade, porque aceitou indicar através da morte a pre­
sença de Deus no mundo mediante o sinal doloroso e opaco de
uma ausência conturbadora”.6 Aqui está a contradição do
homem secular: com Deus e na presença de Deus, ele vive
sem Deus.
A raiz profunda dessa dialética do divino no mundo moder­
no deve ser procurada nos fatores que presidiram o advento da
idade adulta e que caracterizam, de maneira significativa, a
tecnópolis : o maquinismo, a ciência e a ideologia.7 O maqui-
nismo consiste, antes de mais nada, no espaço cada vez maior
que se dá ao instrumento técnico no mundo contemporâneo: a
automação crescente subtrai ao trabalho do homem setores sem­
pre mais vastos de atividade, condiciona fortemente outros, redu­
zindo a presença humana a uma ação repetitiva e mecânica, e
modifica profundamente os ritmos e as condições da vida. A
“máquina” entra cada vez mais amplamente na esfera da rea-

3 H. Cox, La città secolare, Florença, 1968, p. 217 (ed. bras.: A


cidade do homem, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2? ed. 1971, 303 p.).
4 Cf. M. Horkheimer — T. W. Adorno, Dialettica delVilluminismo,
Turim, 1971. *
5 M. Horkheimer, La nostalgia dei totalmente altro, Bréscia, 1972,
p. 82.
6 I. Mancini, “Introduzione” a D. Bonhoeffer, Resistenza e resa,
cit*, P- 42 (Introdução a Resistência e submissão, op. cit. in n. 1).
7 Para o que se segue, cf. P. Vanzan, La catechesi di Dio in un
mondo secolarizzato, Roma, 1974.

12
lidade pública e privada: deslocamo-nos, nos comunicamos e
agimos por seu intermédio. Quase imperceptivelmente, a inva­
são da técnica entra na mentalidade e se torna critério de ava­
liação e forma de pensamento: a fabrilidade, que estabelece o
produto como fim de todas as coisas, e a resultante interior do
tecnicismo. O “homem faber”, o homem artífice de produção,
inserido precisamente na gigantesca linha de montagem da socie­
dade onde vive, torna-se então o protótipo da “civilização das
máquinas” . É o homem programado, que produz como máqui­
na e que, como ela, já não sabe parar sozinho, a menos que algo
o faça parar ou pare nele. Ao homem reduzido a coisa corres­
ponde a verdade coisificada, própria da ciência no mundo mo­
derno. É a verdade que se coloca sob o signo do verificável. É
o saber constantemente provocado pelo fenômeno e relacionado
com ele.
Quando o fenômeno se torna horizonte exclusivo do conheci­
mento científico, considera-se verdadeiro apenas o que coin­
cide com o exato, isto é, com o verificado. A terapia da suspei­
ta é imposta a tudo o que não é verdade factual, justificando
um amplo agnosticismo, como também uma confiança absoluti-
zante no saber científico. Essa confiança é garantida, aparente­
mente, pelas extraordinárias conquistas por ele alcançadas em
nossos dias. Além disso, deve-se acrescentar que essa mentali­
dade, freqüentemente sob forma de simplificação e divulgação
absolutamente contrastantes com o alto nível de especialização
tio trabalho autenticamente científico, vai plasmando sempre
mais as novas gerações, cuja preparação é marcada de maneira
crescente por uma orientação técnico-positiva. Nessa terapia da
suspeita diante do não imediatamente verificável, a ideologia do
“regnum hominis” encontra o seu caminho mais adequado. Ela
se apresenta como visão humana do mundo, como projeto e com­
promisso para a edificação de uma sociedade na qual o homem
seja o centro, a norma e a medida de todas as escolhas. Ultra­
passando esquemas idealistas e abstrações totalizantes, privadas
de autêntica força crítica, essa ideologia parte de uma análise
da sociedade que evidencia as relações concretas de produção
r exploração em que o homem está colocado e que o determinam
rssencialmente. Somente quebrando a cadeia de dependências iní­
quas, somente desmascarando e modificando os interesses reais
das classes opressoras que dominam o sistema, será verdadei­

13
ramente possível humanizar o mundo. O homem “em abstrato”
não existe. Existe somente o homem concreto nas suas relações
sociais, opressor ou oprimido; escravo e inerte diante da explo­
ração, ou ativamente combativo por um amanhã diferente; alie­
nado, porque outros se apossam e usufruem de maneira exclu­
siva dos frutos do seu trabalho, ou emancipado, porque sujeito e
medida das relações sociais.8 Nesse empenho de libertação do
homem concreto, como passagem revolucionária da alienação
para a emancipação, consiste a força e o fascínio que a ideolo­
gia do “regnum hominis” exerceu e continua exercendo sobre as
mais variadas camadas da sociedade moderna. Nesta, o mito
iluminista da emancipação do homem parece tornar-se final­
mente possibilidade real, embora árdua para ser alcançada. E a
paixão daquilo que é possível” (Kierkegaard) é esperança capaz
de sustentar a luta.
Concorrem, portanto, para caracterizar o mundo feito
adulto , maquinismo e fabrilidade, ciência e verificabilidade,
ideologia e luta pela emancipação do homem. Como se coloca
tudo isso frente ao problema de Deus? Inicialmente, cada um
desses fatores oferece uma provocação negativa: Deus, estando
fora da cadeia terrena de produção, não encontra lugar na ati­
tude de fabrilidade. O “deus ex machina”, o “deus tapa-bura-
cos” da religiosidade pré-secular é expulso pelo “deus machina”,
pelo maquinismo guindado a ser estrutura de pensamento e de
vida. Da mesma forma, a verificabilidade desterra o divino para
o campo do falso, ou pelo menos do insensato: “ninguém viu a
Deus , portanto Deus não existe. O discurso sobre Deus soa
absurdo e não científico. Por fim, a ideologia do “regnum ho­
minis” protesta contra um Deus que reduz o homem, ou pior
ainda, que o aliena do seu processo terreno de libertação, à espe­
ra de um futuro prometido: a religião é o ópio que impele os
oprimidos à resignação, à espera do prêmio futuro, e que, “por
amor de Deus”, os torna vítimas inertes e resignadas dos seus
senhores. Desse deus e do seu céu, um militante comprometido
em transformar a terra não sabe o que fazer! Fabrilidade, veri-
8 “Alie Emanzipation ist Zurückfiirung der menschlichen Welt, der
Verhãltnisse auf den Menschen selbst” : K. Marx, Zur Judenfrage in Karl-
-Marx-Studienausgabe, I. 1971, 2? ed., p. 497. Sobre a importância do
conceito de emancipação” para a compreensão do mundo moderno e
para o- desafio que ele constitui para a fé cristã, cf. Redenzione ed
emancipazione, Bréscia, 1975.

14
I icabilidade e ideologia da emancipação parecem assim procla­
mar unissonamente a morte de Deus 9 e um novo evangelho, a
hua nova do homem feito adulto e senhor de si.101 O louco de
que fala Nietzsche já pode gritar na praça do mundo: “Deus
está morto! E nós o matamos!’’ 11
Mas é neste ponto que se insinua a dúvida na consciência
do homem moderno. Os mestres da suspeita tornam-se vítimas
dos seus próprios discípulos! Isto é, as pessoas indagam: o
produto — exaltado pela fabrilidade — , o exato — característi­
ca da ciência — e a práxis terrena — lugar exclusivo do proces­
so de emancipação — são verdadeiramente o horizonte absoluto?
A constatação histórica da imperfeição da civilização tecnológi­
ca e da ideologia do “regnum hominis” para garantir a qualida­
de da vida, ou seja, não apenas melhores condições de vida eco­
nômica e social, mas também, e de maneira mais profunda, o
próprio sentido do existir, acabam gerando a dúvida. Assim
ocorreu na contestação dos jovens de 68, com a invocação de
uma criatividade utópica (“a fantasia no poder”).12 Assim tam­
bém ocorreu na dissensão amadurecida no seio do marxismo
ortodoxo.13 Os anos 70, com a crise energética, questionaram o
próprio modelo desenvolvimentista em que se baseia a “socieda­
de opiilenta”,14 modelo fundado na ilimitada disponibilidade de
energia barata. As conseqüências dessa passagem — verificáveis
na economia e nas relações sociais e políticas de muitos países

9 Sobre a história e a problemática deste conceito, cf. M. Heideg-


ger, “La sentenza di Nietzsche ‘Dio è morto’ ” in Sentieri interrotti, Flo-
rença, 1968, pp. 191-246.
10 Na interpretação do “ateísmo cristão” cf. uma apresentação de
conjunto de G. Gozzelino, I vangeli delUateismo cristiano, Turim, 1969.
11 F. Nietzsche, La gaia scienza, Milão, 1978, 2“ ed., aforismo 125.
I leidegger interpreta com acerto: “ ‘Deus está morto’ significa que o
mundo ultra-sensível não tem força real, não dá vida alguma. A metafí­
sica, ou seja — segundo Nietzsche — a filosofia ocidental, entendida
como platonismo, está no fim”, op. cit., p. 198. Fabrilidade, verificabili-
dade, ideologia da práxis cortaram as pontes com o além das coisas!
12 Cf. os textos de H. Marcuse, em cujas idéias se inspirou a revol-
ia estudantil dos anos 60: Ragione e rivoluzione, Turim, 1966; L ’uomo
(í una dimensione, Turim, 1967; Eros e civiltà, Turim, 1968; Controrivo-
luzicme e rivolta, Milão, 1973.
13 Cf., por exemplo, M. di Giovanni, “Un dibattito attuale: la po­
lemica tra Schaff e Althusser sul giovane Marx”, in Asprenas 19, 1972,
|>l>. 88-96.
14 A expressão é do economista J. K. Galbraight, The Affluent So-
i-icly, Londres, 1958.

15
já^ fazem entrever o surgimento de uma "‘sociedade pós-opu-
lenta , caracterizada certamente por uma confiança mais crítica
nas possibilidades do humano. Assim, nos próprios fatores que
caracterizam a idade adulta do mundo vêm delineando-se, ainda
que em meio a contradições e obscuridades, uma perturbação e
uma espera: brota na fabrilidade e nostalgia de uma atividade
que tenha a si mesma (e não o produto) por finalidade, com o
jogo e o amor; insinua-se na verificabilidade a dúvida sobre um
além das coisas, sobre um sentido maior, que ilumine as contra­
dições insolúveis da realidade concreta, as contradições de uma
beleza e de um sentido irredutíveis ao positivo científico; na
ideologia do homem emancipado delineia-se a angústia de uma
liberdade continuamente frustrada pelo imponderável, de um
limite constantemente ameaçador e inevitável, a morte, enquanto
aflora a nostalgia de uma “perfeita e consumada justiça” (Hor-
kheimer), que dê razão aos injustiçados e não esqueça o sofri­
mento dos vencidos. No tecido mais profundo dos fatores que
presidem o advento da sociedade secular se delineia assim uma
provocação nova, positiva, com relação a Deus: uma saudade
de amor, de beleza, de sentido, um profundo desejo de esperan­
ça fundada e de justiça realizada. Das profundezas da idade
adulta do mundo volta a emergir a interrogação sobre o funda­
mento: o homem secular se reabre a possibilidade de falar de
Deus. Ouve-se, novamente, o “frufru dos anjos”; 15 constata-se
a atual e presumivelmente futura “persistência da religião”.16
O homem secular não encontra Deus nas experiências limitadas,
mas no limite de toda experiência, quando percebe a prisão
do imanente, do semelhante, do interesse penúltimo, e co­
meça a ter sede de uma palavra que rompe o silêncio da
morte, e sustente, na esperança, a luta de hoje. Vai abrindo
caminho o sonho do sétimo dia, de um “domingo da vida”
(HegeL), que não pode mais ser o dia de uma filosofia presun-

15 Cf. P. L. Berger, II brusio degli angeli, Bolonha, 1969 (ed. bras •


Um rumor d ea n ,o s, Vozes, Petrópolis, 1973, 127 p .), Do mesmo autor,
ct também The Sacred Canopy. Elements of a Sociological Theory of
eligion, Nova York, 1969 (ed. bras.: O dossel sagrado; elementos de
uma H orw socl°lógica da religião; Edições Paulinas, São Paulo 1984)
r °w ' L ’uom° non secolare. La persistenza delia religio-
ne, Brescia, 1975. Concilium dedicou o n. 1 de 1973 ao tema “A persis­
tência da religião . r

16
çosamente absolutizante, que se revelou prenhe de possibilidades
de alienação.
Neste ponto os cristãos sentem que podem propor o “dia”
de seu Deus crucificado e ressuscitado: neste mundo seculariza-
do, que tantos vêem como única pátria e único destino, eles
sentem, na fidelidade ao presente, que podem anunciar uma
outra pátria, outro destino. Este seu anúncio, que assume a for­
ma de cântico dos exilados de Sião, “o cântico do Senhor em
terra estranha” (SI 137,1), é denúncia de que toda experiência,
tem limite, e é esperança, fundada no Ressuscitado, de que a
“pátria, sempre vislumbrada e nunca possuída” (Bloch), será
um dia a terra do homem. Enquanto os mensageiros do nada se
aproximam da sociedade pós-opulenta, enquanto o contra-senso
e o medo justificam a fuga e a renúncia de muitos, a “pretensão”
cristã afirma que somente a palavra da Cruz, como palavra de
um amor maior e de uma maior esperança, que vencem o poder
da morte, pode dar a coragem de existir.17 Onde está o cadáver
do homem prisioneiro de si, aí se reúnem os abutres. Mas onde
o Vivente é proclamado e tornado presente, aí se liberta a vida,
libertam-se as forças ocultas, recomeça a festa das flores dos
campos e das aves do céu, o homem se levanta e, de cabeça
erguida, enfrenta o suor do dia. Por isso, diante da cidade secu­
lar e de suas vicissitudes, os cristãos continuam a falar de
Jesus, o Cristo.

b) “O nde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade”


(2Cor 3,17): a “pretensão” cristã frente aos sistemas de
opressão

“Há muito que se fala, no mundo cristão, do ‘problema


social’ ou da ‘questão social’. Mas somente nos últimos anos se
tornou clara a consciência de como é extrema a miséria e, sobre­
tudo, de que existe uma situação de opressão e alienação em que
vive a imensa maioria da humanidade. Esse estado de coisas
representa uma ofensa ao homem e, conseqüentemente, a Deus.
Mais ainda, percebem-se melhor tanto a responsabilidade pes-

17 Cf. P. Tillich, II coraggio di esistere, Roma, 1968 (ed. bras.: A


coragem de ser, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1972, 2- ed., 146 p .).

17
soai de cada um nessa situação, quanto o empecilho que ela
representa para a realização plena de todos os homens, explo­
rados e exploradores”.18
Essas palavras de G. Gutiérrez, o teólogo latino-americano
que contribuiu de maneira decisiva para o nascimento e desen­
volvimento de uma “teologia da libertação”,19 resumem os ter­
mos em que se encontra hoje a “pretensão” cristã diante do sis­
tema de opressão. São os termos da miséria e alienação que
constituem ofensa ao homem e, conseqüentemente, a Deus, e
que portanto desafiam a responsabilidade de quem tem cons­
ciência de ser homem, especialmente quando se professa cristão.
A situação descrita por G. Gutiérrez pode ser indicada como
aquela do ‘mundo das não-pessoas” : 20 é o mundo daqueles a
quem na realidade não se reconhece o direito de serem homens,
isto é, de serem sujeitos conscientes da própria história na liber­
dade. Esse mundo é regido por uma lei de “dependência”, pela
qual alguns países e classes sociais (os países e classes “domi­
nantes”), se tornam sempre mais ricos e poderõsos, enquanto
outros (os países e as classes “dependentes”) ficam sempre mais
pobres.21 É a dependência externa, que se estabelece entre os
países muito desenvolvidos e os subdesenvolvidos, através da
ação das multinacionais. Os “equilíbrios” políticos mundiais se
baseiam no imperialismo das grandes potências. As formas de
neocolonialismo, através de “ajudas” a países pobres, cria neles
necessidades futuras, para cuja satisfação o preço é altíssimo no

18 G. Gutierrez, Teologia delia liberazione. Prospettive, Bréscia,


1972, p. 69 (ed. bras.: Teologia da libertação: perspectivas, Vozes, Pe-
trópolis, 1975, 274 p.).
19 A bibliografia, já muito vasta, está em crescimento contínuo; há
um bom catálogo em K. Lehmann, “Methodisch-hermeneutische Pro-
blem der Theôlcgie der Befreiung”, in internationale Theologenkommis-
sion, Theologie, der Befreiung, Einsiedeln, 1977, pp. 38-39.
20 Cf. o uso da expressão que R. McAffee Brown faz em seu Rela­
tório à V Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas: Breaking Barriers.
Nairóbi, 975, Genebra, 1976, p. 13.
21 Sobre o complexo conceito de “dependência”, cf. G. Gutierrez,
op. cit., pp. 86ss.; F. H. Cardoso — E. Faletto, Dipendenza e sviluppo in
America Latina, Milão, 1972 (ed. bras.: Dependência e desenvolvimen­
to na América Latina: ensaio de interpretação sociológica, Zahar, Rio
de Janeiro, 1974, 4- ed., 144 p .); T. dos Santos, La nuova dipendenza,
Milão, 1971. Cf. também as Atas da Conferência dos Bispos Latino-
-americanos em Puebla: Puebla, comunione e partecipazione, sob a dire­
ção de P. Vanzan, Roma, 1979.

18
plano econômico e político. A essa dependência externa corres­
ponde a dependência interna, que se verifica entre os detentores
do poder e as classes que são exploradas mediante o “livre mer­
cado”, orientado pelo interesse de poucos, em cujas mãos se con­
centra o capital. É para isso que a escola e a educação seleti­
vas” visam a perpetuar a situação existente, manipulando a infor­
mação e mantendo ausentes as garantias sociais e a liberdade po­
lítica. O sistema de dependência configura-se, pois, do ponto de
vista das massas “dependentes”, como sistema de opressão: o
poderoso tende a conservar a sua posição de privilégio, de um
lado, pelo exercício da força (poder militar), e, do outro, pela
fraqueza e medo dos oprimidos. Tal sistema teme a conscienti­
zação das massas, que abriria caminho para a denúncia da ordem
social injusta. Por isso, controla e censura o pensamento e a
informação: com freqüência se professa servidor do Altíssimo,
mas na verdade se serve de Deus e da realidade religiosa para
manter os pobres acorrentados à promessa de um futuro conso­
lador na outra vida. O sistema de dependência e opressão é um
sistema que procura manter os atuais privilégios das forças domi­
nantes e o radical fechamento e defesa diante de tudo o que possa
ser verdadeiramente novo. Para as massas oprimidas, é o sistema
do medo e da resignação fatalista diante da condição presente.
Mas não é só. Nos países do “Terceiro Mundo’, a lógica do lucro,
alma dos processos que constituem as dependências, revela o
seu poder desumanizante; mas ela se revela não menos alienan-
te nas contradições da sociedade opulenta e pós-opulenta. Em
muitos países de avançada economia industrial, são inúmeros
os sinais que demonstram que a sociedade burguesa e o sistema
capitalista são incapazes de promover autenticamente o homem.
Alguns desses sinais são: as condições de vida dos desemprega­
dos e subempregados, dos marginalizados e emigrantes; a desa­
gregação moral, evidente no crescimento da delinqüência e da
violência, na difusão da droga, na crise de muitas formas tradi­
cionais (família, instituição religiosa); a deterioração ecológica
em dimensões sempre mais alarmantes.
Da profundeza dessas tensões nascem, então, a aspiração à
justiça e a luta pela libertação; aspiração e luta que constituem,
antes de tudo, o grito dos oprimidos, o lamento, freqüente-
mente inarticulado, diante da iniqüidade presente. E se tradu­
zem, depois, no compromisso daqueles que, conscientes da de­

19
sumanidade do sistema, lutam contra ele de várias maneiras:
através da denúncia dos poderosos e da conscientização das
massas, e até da resistência não-violenta ou mesmo do "uso das
armas e dos métodos de guerrilha revolucionária. Assim, vai se
delineando uma práxis da libertação, carregada de valores posi­
tivos e, ao mesmo tempo, de ambigüidades. Essa práxis é carac­
terizada pela recusa unânime do atual sistema social e político.
Mas não é caracterizada pela identidade de pontos de vista
quanto ao modelo de sociedade futura e quanto às moralidades
para atingi-la. O não” ao presente não se traduz num mesmo
tipo de sim ao futuro. Dessa forma, o modelo do "desenvol­
vimento , típico dos anos 50, parece sempre mais amplamente
superado, porque toma como medida os países opulentos, mas
não dá suficiente importância aos fatores políticos nem analisa
a fundo as dependências. Ao mesmo tempo, a “teoria da depen­
dência , que veio se firmando sempre mais nas análises, a par­
tir dos anos 60, sobre o pano de fundo genérico da avaliação
mais crítica e mais pessimista da situação econômica, social e
política, entra em choque com a complexidade real das relações
entre países e entre classes, e se exprime numa multiplicidade
concreta de diagnósticos e terapias. Contra qualquer simplismo,
é preciso reconhecer que a “práxis de libertação” é um fenôme­
no muito bem articulado e se caracteriza por uma dialética, não
redutível a esquemas fáceis.
Nesse contexto, como deve ser proposto o discurso cristão
sobre Deus? Tem algum sentido a palavra da Cruz e da Ressur­
reição para a libertação dos oprimidos deste mundo?
A pretensão cristã, como é expressa em muitas teologias
atuais,22 responde a essa questão sublinhando, antes de mais
nada, que o Deus cristão é um Deus subversivo. A história de
Israel é a história do Êxodo, isto é, a história das intervenções

22 Basta recordar as “teologias da libertação” para o contexto lati­


no-americano e as teologias políticas e da esperança para o contexto das
sociedades opulentas: cf. por exemplo, para o que se segue, G. Gutierrez,
op. cit., pp. 147ss; J. Moltmann, Teologia delia speranza, Bréscia, 1971*
2? ed., pp. 93ss e 141ss (ed. bras.: Teologia da esperança, Herder, São'
Ía è íw J971, 450 ’ f- Metz< Sulla teologia dei mondo, Bréscia,
1969 1 (ed. pcrt.: Teologia do mundo, Moraes, Lisboa, 1969, 161 p .);
Teologia política” in Sacramentum Mundi 8, pp. 307-17. Cf. também as
obras em colaboração: Una nuova teologia política, Assis, 1971- Dibat-
tito sulla “teologia política”, Bréscia, 1971; Bibattito sulla teologia delia
rivoluzione, Bréscia, 1971.

20
divinas na denúncia contra a miopia das presunções presentes
e no anúncio da salvação futura, diante do hoje cheio de triste­
za e iniqüidade. Jesus de Nazaré proclamou ter sido enviado
“para evangelizar os pobres, para proclamar a remissão aos pre­
sos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade
aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor
(Lc 4,18; cf. Is 61,1-2). O “titulus crucis”, o motivo da conde­
nação, identificou em Jesus um perigoso subvertedor da ordem
constituída. Mas é sobretudo a Ressurreição que traz em si a
força inaudita da libertação: ela é a manifestação plena da inter­
venção de Deus no tempo dos homens, do Deus que liberta da
prisão da morte e introduz no horizonte do Reino. Ela abre
radicalmente para o futuro e inicia o tempo penúltimo, como esta­
ção onde se supera o passado de iniqüidade rumo à justiça de
Deus. Contra toda tentação de reduzir a história a simples ordem
estática, o poder e a novidade do Espírito do Ressuscitado ape­
lam para uma história sempre aberta, num futuro em que a
“nova criação” e o “homem novo” se exprimem na solidarie­
dade nova entre os homens. É desses caracteres fundamentais
que derivam as duas principais tarefas que a “pretensão cris­
tã é chamada a realizar na práxis da libertação: a denúncia e o
anúncio.
Vista na linha dos profetas e sobretudo da obra e destino
de Jesus Cristo, a denúncia é certamente antes de tudo denún­
cia da “ordo potestatis”. À luz do único Senhor proclamado a
partir da Ressurreição, ela refuta a mediocridade e a fragilida­
de de todo poder deste mundo. Em primeiro lugar, daquele
poder que presume ser absoluto, para se tornar ídolo e árbitro
dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e à dignidade hu­
mana, dons inalienáveis de Deus a toda pessoa. Para o cristão,
a denúncia da injustiça e da opressão, como também do poder
econômico fundado no lucro, que está por trás delas, tem uma
dimensão mais profunda: é a denúncia contra a ordo peccati ,
contra a realidade trágica do egoísmo, que alicerça os sistemas
de dependência e neles encontra as suas concretizações sociais
e políticas. A opressão exercida pelas classes dominantes é mal
que brada diante de Deus, assim como a dor de quem sofre injus­
tiça é também dor do Deus cristão. A denúncia profética do
cristão não se detém nas dimensões visíveis da opressão: ela as
atinge, mas através delas vai até a mentalidade perversa que as

21
inspira, até a lógica do lucro, que é a lógica do príncipe deste
mundo.
À denúncia junta-se o anúncio. Antes de tudo, ele é o anún­
cio criativo e operante de um novo e diferente “regnúm homi-
nis”, de uma sociedade em que são reconhecidos a cada um os
direitos inalienáveis do ser humano; nesta sociedade cada um
passa a exprimir-se de acordo com as suas capacidades e a rece­
ber conforme as suas necessidades. Em resumo, uma sociedade
onde o homem seja fim e não meio. Entretanto, para o cristão
essa “cidade futura” não pode se restringir ao horizonte do
Reino: “Desenvolver o homem todo em todos os homens” é a
tarefa de que são incumbidos os cristãos por sua fé na Ressur­
reição. E “o homem todo”, o homem “integral” é o homem
aberto às dimensões da história, o homem que não adora nenhu­
ma realidade deste mundo, porque vê tudo com relação aó
absoluto de Deus. Para a “pretensão” cristã, libertação não quer
dizer substituir o sistema atual por um outro análogo, puramen­
te terreno, no qual simplesmente é trocado o papel das partes. A
injustiça antiga não deve ser substituída por uma nova. Por isso,
é necessário tender a uma sociedade que, no plano das relações
internacionais e nacionais, reconheça a todos o espaço para
serem e viverem livremente o próprio patrimônio de tradições
com relação ao passado e de opções diante do futuro. Para a
“pretensão” cristã, isto só é possível desde que a pessoa não
fique prisioneira do horizonte penúltimo e possa estar aberta
à esperança maior, estando disponível, assim, para uma contí­
nua tensão crítica e uma perene superação.
Como se situa essa presença de denúncia e anúncio em
relação às outras componentes, que agem na práxis da liberta­
ção? Apesar de todas as dificuldades que se podem encontrar
na prática, •o tender para o horizonte último deve tornar o cris­
tão corajosamente livre de qualquer proposta terrena absoluti-
zante e de qualquer ideologia. O cristão poderá encontrar-se
lado a lado com homens das mais diversas esperanças na con­
cretização das opções histórico-políticas. Mas deverá ser vigilan­
te com relação a todas, conservando perante elas a consciência
crítica em nome de sua “reserva escatológica”. Aqui está a difi­
culdade de sermos cristãos na práxis da libertação. Totalmente
fiel ao mundo presente, o cristão deve ser sempre e totalmente
fiel também ao mundo que há de vir e que lhe foi manifestado

22
na Ressurreição de Jesus Cristo. Somente assim poderá dar ao
mundo em que vive uma contribuição original e criativa, auten­
ticamente libertadora. Nesta sua liberdade frente a todo poder
deste mundo, o cristão atuará eficazmente para a libertação do
homem. Assim mostrará, com os fatos, o sentido do seu anún­
cio sobre Jesus Cristo e tornará presente, nas diversas situações,
a força do Espírito do Ressuscitado: porque, “onde se acha o
Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17).

1. 2. O PROBLEMA DA DOR E DA OBSCURIDADE DO FUTURO

a) O problem a da dor: a “pretensão” cristã diante do


sofrim ento humano

Nunca valorizaremos suficientemente o sofrimento do


mundo. Parece que a história progride através da dor, no con­
flito de interesses, de classes, de raças, de indivíduos e povos...
Poder-se-ia falar da história como história das dores do mun­
do”. A dor é verdadeiramente a categoria universal em que
todos se encontram reunidos: “Os homens se distinguem uns
dos outros na posse, mas são solidários na pobreza”.23 Das pro­
fundezas da injustiça do mundo eleva-se a pergunta angustiante
sobre o sentido de tudo isso e sobre a aspiração à justiça, cuja
ausência e nostalgia é o ferrão supremo da dor. É o problema
de Deus: “Si Deus justus, unde malum?”, se há um Deus justo,
por que existe o mal? E se o mal existe, como poderá haver um
Deus justo? Das chagas da história nasce assim a rejeição ou a
invocação do totalmente outro.
Diante da inconciliabilidade de Deus e do mal, alguns su­
primem o primeiro dos dois termos: é a solução oferecida pelo

23 J. Moltmann, “II ‘Dio crociflsso’. II problema moderno di Dio e


la storia trinitaria di Dio” in Concilium 1972 (1073-1087). Para o que se
segue, cf. também do mesmo autor: II Dio crocifisso. La croce di Cristo,
fondamento e critica delia teologia cristiana, Bréscia, 1973, especialmente
pp. 229ss.

23
ateísmo trágico. “Para Deus, a única desculpa é que ele não
existe” (Stendhal e Nietzsche). “Se Deus existe, o mundo é a sua
reserva de caça” (palavras de um ateu num romance de L. San-
tucci). “Os olhos que viram Auschwitz e Hiroshima não pode­
rão contemplar a Deus” (Hemingway). Na realidade, porém,
reduzir tudo a este mundo e às suas leis significa implicitamen­
te render-se diante do problema da dor e da morte. Outros resol­
verão o conflito mediante a fé num Deus que tudo regula em
vista do bem, segundo desígnios que a mente humana não pode
compreender. É a solução de Jó, sustentada pela espera tormen­
tosa de uma justiça futura: “Eu sei que o meu Defensor está
vivo e que no fim se levantará do pó: depois do meu despertar,
levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus. Aque­
le que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contem­
plarem não será um estranho” (Jó 19,25-27). Mas é preciso reco­
nhecer: “Uma fé em Deus que justifique o sofrimento e a injus­
tiça do mundo sem protestar contra elas é uma fé desumana e
produz frutos satânicos”.24 A resignação é, no fundo, a abdica­
ção diante da tarefa de mudar a injustiça do mundo. Outros,
enfim, identificam a sede de justiça com a raiz última da dor
diante do mal do mundo, e por isso traçam um caminho de
renúncias que leva a extinguir qualquer sede e por isso qual­
quer capacidade de amar e sofrer. É a solução de algumas místi­
cas orientais, que hoje parecem despertar um fascínio singular
nos países da opulência. Tal solução reduz a história humana a
uma transitoriedade vazia, fazendo da vida uma fuga para algum
nirvana e deixando intactas as dilacerações e feridas do sofri­
mento do mundo.24*
Diante do caráter incompleto dessas propostas se encontra
a pretensão cristã de salvação, “pretensão” que se apóia no
Deus crucificado. Que sentido tem o evento da Cruz para o
sofrimento do mundo? Para a história do mundo, o que acon­
teceu naquela sexta-feira santa? O evangelho de Marcos, que
provavelmente relata a tradição mais fiel à crônica dos fatos,
apresenta como palavras de Jesus agonizante o grito do Salmo
22: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc

24 Ibid, p. 1075.
24a Cf. H. Cox, La svolta al Oriente. Promesse e pericoli dei nuovo
Onentalismo, Bréscia, 1978.

24
15,34; cf. Mt 27,46). É a “derilictio Jesu”, o abandono de Jesus
na cruz, abandono que sempre constituiu uma pedra de escân­
dalo na interpretação cristã do “mysterium crucis” e que hoje
c o centro das “teologias do sofrimento de Deus : essas teolo-
gias buscam, na compreensão mais profunda do Crucificado o
sentido último da paixão do mundo.25 O salmo 22 é o salmo da
confiança. Nesse grito, a exegese tradicional captou a confiança
incondicional de Jesus no Pai. Todavia, o evangelista Lucas a
exprime em termos bem diferentes: “Pai, em tuas mãos entrego
o meu espírito” (Lc 23,46). Por isso, é necessário aproximar-se
da experiência de Jesus agonizante, levando em consideração as
duas tradições, em sua diversidade real e não só aparente. No
texto de Marcos e de Mateus, o Crucificado se dirige a Deus
com o apelativo E li: não é a invocação cálida e afetuosa, que
seria expressa pelo termo A bbá, mas o nome divino pronuncia­
do com “temor e tremor” . A esse Deus soberano, o agonizante
pergunta: “Por quê? (eis ti = para que fim?). A pergunta encer­
ra o tormento próprio da dor de não compreender o sentido. Na
interrogação do Filho ressoa a angústia de todos os sofredores da
história: também para o Crucificado, o sofrimento é um misté­
rio! A interrogação nasce da experiência de um abandono real,
da ausência e do silêncio daquele Deus do qual o Nazareno mais
esperava e desejava a presença na hora da Cruz e a garantia de
sua confirmação messiânica. Sentindo-se abandonado, Jesus é
atingido em sua consciência de Filho e está no pólo oposto do
salmista, para quem o justo tem direito à proteção de Deus. O
Crucificado se sente o mais desolado dos desolados e oprimidos
da terra! Ao abandono doloroso, porém, ele responde com a ofe­
renda: é o abandonado, mas não o desesperado. As palavras de
Lucas deixam -transparecer esta última dimensão da dor de

25 Para o que se segue, além dos textos de Moltmann já citados,


cf. o artigo de Jacques Maritain, “Quelques réflexion sur le savoir
théologique” in Revue Thomiste 69 (1969) pp. 5-27; como também os
trabalhos de K. Kitamori, Teologia dei dolore di Dio, Bréscia, 1975 (em
japonês a obra apareceu pouco depois da segunda guerra mundial); J.
Kamp, Souffrance de Dieu, vie du monde, Paris, 1971; H. Kiing, “Può
Dio patire?” in Incarnazione di Dio, Bréscia, 1972, pp. 619-26; J. Galot,
II mistero delia sofferenza di Dio, Assis, 1975; J. Y. Lee, God Suffers for
Us. A systematic Inquery into a Concept of Divine Passibility, La Haye,
1974; F. Varillon, La souffrance de Dieu, Paris, 1975. Para uma exposi­
ção mais aprofundada deste problema, cf. mais adiante a reflexão sobre
a história de Jesus Cristo como história de finitude.

25
Jesus: ele se dirige a Deus chamando-o de “Pai”, e não mais de
Eli. A pergunta atormentada do texto de Marcos e Mateus tor­
na-se o brado confiante: “Nas tuas mãos”. A experiência de sen-
tir-se abandonado pelo Pai torna-se o abandono confiante de
Jesus nos braços dele. Jesus abandonado na cruz vive a sua dor
em profunda comunhão com todos os crucificados da terra e, ao
mesmo tempo, em oblação confiante a seu Pai, por amor ao
mundo.
E o Pai? Permaneceu indiferente, prisioneiro de um “divi­
no egoísmo” diante do sofrimento do Filho? Ou não há também
um profundo sofrimento do Pai, apesar de oculto pela discrição
do amor que sofre? Na realidade, o Filho foi enviado pelo Pai:
nesse envio já há um desapego do Pai: “Restava-lhe ainda
alguém: o filho amado. Enviou-o por último, dizendo: ‘Eles
respeitarão o meu Filho’ ” (Mc 12,6: parábola dos vinhateiros
homicidas). O Filho “só faz aquilo que vê o Pai fazer” (Jo 5,19):
se o Filho sofre, é porque o Pai sofre, precedendo-o na via
dolorosa. Entre eles há uma relação de recíproca doação (“o
que é meu.é teu. . Jo 17,10), de recíproca imanência (“o Pai
está em mim e eu no Pai” : Jo 10,38) e de comunhão (“o Pai está
comigo”: Jo 16,32). Essa relação chega ao ápice na hora da
dor, quando o Filho sofredor revela o mistério do sofrimento
do Pai. O Pai “não poupou seu próprio Filho, mas o entregou
por todos nós” (Rm 8,32); ele “tanto amou o mundo que entre­
gou seu Filho único” (Jo 3,16). O sofrimento do Pai correspon­
de ao sofrimento do Filho, “que me amou e entregou a si mesmo
por mim ’ (G1 2,20). Deus sofre na cruz como Pai que oferece,
como Filho que se oferece, como Espírito que é o amor perma­
nente de Jesus sofredor. A cruz é a história do amor trinitário
de Deus pelo mundo: um amor que não se limita a suportar o
sofrimento, mas o escolhe. A mentalidade grego-ocidental não
sabe conceber mais do que o sofrimento passivo, suportado e por­
tanto imperfeito, postulando por isso a impassibilidade de Deus.
Contra essa mentalidade, o Deus.cristão revela uma dor ativa,
livremente escolhida, perfeita na perfeição do amor: “Ninguém
tem amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos”
(Jo 15,13). O Deus cristão não está fora do sofrimento do mun­
do, como espectador impassível diante dessa dor, lá no alto de
sua imutável perfeição: ele a assume e a vive da maneira mais
intensa, como sofrimento ativo, como dom e oferenda da qual

26
jorra a vida nova para o mundo. Por aquela sexta-feira santa,
nós ficamos sabendo que a história dos sofrimentos humanos é
também a história do Deus cristão: ele está presente nela, sofren­
do com o homem e fazendo que o homem participe do valor
imenso do sofrimento oferecido por amor. Deus não é “a oculta
parte contrária”, a quem se eleva o grito do sofredor e do deso­
lado. Mas é, “num sentido mais profundo, o Deus humano, que
grita no sofredor e com ele, e que intervém a favor dele com a
própria cruz, quando o sofredor em seus tormentos emudece .2j
É o Deus que dá sentido à dor do mundo, porque a assumiu de
tal maneira que fez dela o seu próprio sofrimento. Este é o sen­
tido do amor.
Contra a resignação fideísta e a rebelião atéia, o Deus cru­
cificado torna o homem capaz de um sofrimento ativo, de um
sofrimento vivido na comunhão com todos os desolados da terra
e em oblação ao Pai, que o acolhe e lhe confere o valor. Assim,
a história dos sofrimentos do mundo é transformada na história
do amor do mundo. Por isso o Deus crucificado é a única ver­
dadeira novidade do viver humano. O homem de hoje é provado
pelo sofrimento de sempre, é deixado sozinho no silêncio do
Deus que foi declarado “morto”, é oprimido pela injustiça e pela
iniqüidade. Esse homem tem necessidade do sofrimento, tanto
quanto o homem de sempre. Daí a necessidade da “theologia
crucis”, da teologia do Deus crucificado, que responda ao grito
do Deus agonizante e capte nele, abandonado, o sentido das do­
res do mundo. Diante da interrogação da dor, diante da tragici-
dade do nada que dela emerge, a palavra da cruz ressoa como
“evangelho” também para os homens de hoje: “A dolor contra
dolorem é o amor de Deus, o amor que tira a nossa dor. Por
isso, a mensagem da dor de Deus é a alegre nova”.2627 Por isso, os
cristãos não cessam de proclamá-la.

b) O problem a do futuro: a “pretensão” cristã diante


do futuro do hom em

Do mesmo sulco traçado pelo sofrimento nasce o futuro do


mundo, como espera e projeção para a frente. Diante de uma

26 J. Moltmann, art. cit.„ p. 1086.


27 K. Kitamori, op. cit., p. 34.

27
realidade que contradiz a insuprimível aspiração à justiça —
como bem para cada um no bem de todos — determina-se a
tomada de posição do homem frente ao seu futuro. Qualquer
que seja essa escolha, ela condiciona de maneira decisiva o senti­
do e o valor da vida: o futuro coloca-se assim como a pedra
de toque dos humanismos. Em certo sentido, o homem é o futuro
que ele mesmo escolhe. A verdade da vida, a verdade que envol­
ve profundamente a existência, não é a adequação do intelecto
à realidade presente (“adaequatio intellectus et rei praesentis”).
Mas é a adequação ao futuro, sempre procurada e nunca plena­
mente alcançada. É a abertura ao porvir, que se torna contesta­
ção do presente; o futuro é “a qualidade do ser” (Bloch).
Na contradição entre o hoje e o amanhã, entre a experiên­
cia e a espera, determinam-se as várias possibilidades do homem
diante do seu futuro: o desespero, a presunção ou a esperança.
O desespero é a atitude daquales que negam o futuro, porque
o identificam com o mal presente. Para eles nada é possível, a
história já está acabada e o transcorrer do tempo não é mais do
que a trágica renovação dos sofrimentos do mundo, diante dos
quais a única atitude possível seria ‘‘pensar com clareza e não
esperar mais” (Camus). Se o desespero é a recusa do futuro, a
presunção é a recusa do presente: é a atitude daqueles que ava­
liam falsamente a si mesmos e as capacidades do mundo, e não
aceitam considerar o bem futuro como algo difícil de ser con­
quistado. Eles identificam o presente com o bem que deve vir,
e perdem de vista a tragicidade do real. Sentem-se senhores da
história, e esquecem a lei do sofrimento e da finitude do ser
humano, com a progressividade e as resistências que tal lei com­
porta. Em lugar do “tédio” dos desesperados, eles colocam a
néscia idolatria da hora, o engano da falsa esperança. Desespero
e temeridade; respectivamente entendidos como antecipação do
não-cumprimento e antecipação do cumprimento,28 ambas con­
tradizem a realidade, porque destroem o caráter de “caminho”
da existência humana. Ambos, o pessimismo trágico e o otimis­
mo néscio, afastam o homem do seu compromisso diante dos
sofrimentos do mundo. Ambos, de forma oposta, são a “doença
mortal” : “Estas duas coisas matam a alma: o desespero e a falsa
esperança” (Agostinho, Serm o 87,8).

28 Cf. J. Pieper, Sulla speranza, Bréscia, 1960, capítulos III e IV.

28
Diante do desespero e da presunção está a esperança. Ela
6 a espera vigilante de um bem futuro, árduo mas possível de
ser alcançado; ela é “a paixão daquilo que é possível” (Kier-
kegaard); ela é o correlativo do sofrimento diante da injustiça
do mundo, em relação à qual se coloca como superação e pro­
messa. Neste sentido, é o mais inato dos sentimentos humanos.
Mais ainda: é o sentido profundo e a estrutura da existência hu­
mana no mundo. Esperar é a estrutura originária do homem no
seu posicionar-se diante da vida. Ao mesmo tempo, é estrutura
originante, que qualifica a existência diante do futuro. É o “so­
nho diurno”, que projeta para o futuro e ao mesmo tempo sub­
verte a ordem atual.29 Conseqíientemente, o homem vive na me­
dida em que espera, o homem “ é ” a esperança.
Mas qual é o futuro da esperança humana? Para respon­
der adequadamente a essa pergunta, é preciso distinguir o duplo
sentido de futuro. Há um futuro “relativo” e um futuro “abso­
luto”.30 O futuro relativo é aquele que nós podemos hoje razoa­
velmente prever e amanhã realizar: é o futuro como projeto,
fundado nas possibilidades do real, o futuro que já está em
nossas mãos, mesmo que ainda não esteja realizado e sua efeti­
vação seja árdua. No fundo, não é mais do que a dilatação do
presente, a expectativa das grandes e pequenas coisas que o ho­
mem pode fundamentalmente esperar de si mesmo. Esse tipo de
futuro podería ser representado com a torre de Babel, erguida
pelo esforço humano pedra sobre pedra, até o céu das esperan­
ças humanas. O futuro absoluto é exatamente o oposto: ele
“não é a meta do nosso caminhar, mas aquilo que por si o con­
traria... É o não-evolutivo, o não-projetado, o não-disponível,
com a incompreensibilidade e a infinitude que lhe são ineren­
tes... É o imponderável sempre ignorado, que não vem do nosso
poder, porque é poderoso”.31 Em resumo, é o futuro que vem a
29 Cf. E. Bloch, Das Prinzip Hofjnung (1959), 3 vols., Frankfurt
a. M., 1978, 5? ed. A primeira parte intitula-se precisamente “Kleine Tag-
traume”: l,19ss; de um ponto de vista teológico, cf. J. Moltmann, Teolo­
gia delia speranza, op. cit., especialmente o Apêndice, pp. 349-73: “ ‘O
princípio esperança’ e a ‘teologia da esperança’. Diálogo com Ernst
Bloch”. A edição brasileira Teologia da esperança, foi citada na n. 22.
30 A este propósito, cf. Karl Rahner, “Utopia marxista e avvenire
cristiano delFuomo” in Nuovi Saggi I, Roma, 1968, pp. 119-34, e “ II
concetto di futuro: considerazioni frammentarie di un teologo” in Nuovi
Saggi III, Roma, 1969, pp. 619-26.
31 Ibid, pp. 621-22.

29
nós, o “adventus”, não aquele que nós projetamos edificar. É o
futuro em sentido próprio, a Jerusalém do céu, que desce de
modo imprevisível e inesperado em direção à fadiga humana.
O futuro relativo é hoje apresentado ao homem de muitas
maneiras. Basta pensar na esperança marxista, que vê a luta
revolucionária do presente como a força imanente do futuro
prometido. Todavia, o futuro relativo, enquanto projeto a ser
realizado, é um futuro que precede o presente. Neste sentido, o
futuro já pertence ao passado, não está verdadeiramente aberto
ao novo, é destituído de fantasia e de admiração, e portanto não
tem verdadeira criatividade. É por isso que as ideologias do
futuro relativo acabam sendo — em suas realizações históricas
— repetições freqüentes do passado, sem audácia e sem liberda­
de. Além disso, essas propostas são absolutamente mudas diante
do problema do futuro absoluto, precisamente porque no fundo
não escapam da prisão do presente. A morte, que é a sentinela
do futuro absoluto, a mais forte não-utopia da existência (Bloch),
continua sendo, para eles, insensata.32 Por isso no âmbito da
ideologia surgem sempre novas tentativas de interpretar o futuro
absoluto, tentativas que freqüentemente assumem uma coloração
utópica, pois são construídas sobre a denúncia do presente e
sobre o anúncio do bem futuro irracionalmente garantido. Contra
a astúcia conservadora da ideologia, incapaz de pensar num
futuro verdadeiro, “a autêntica mediação utópica tem o cuidado
de deixar indeterminado ou de ir determinando aos poucos o
projeto de uma totalidade histórica, que procura a concretização
sobretudo negativamente. Com efeito, o futuro traz consigo um
futuro ulterior, quando se coloca como não-ser efetivo do presen­
te. Por isso, a primeira determinação desse futuro passa pelas
deficiências, contradições e contra-sensos abertos na atualida­
de histórica. A mediação utópica é assim, antes de mais nada,
intervenção crítica a respeito do presente”.33 Mas a essa função
crítica da utopia não corresponde a sua capacidade de garantir
ao futuro absoluto um sentido fundado. Com freqüência tal
utopia acaba sendo integrada na ideologia, como o “por-vir” que

32 Cf. a “denúncia” de A. Schaff, II marxismo e la persona umana,


Milão, 1966, p. 41.
33 V. Melchiorre, “Storia (punto di vista filosofico) ” in Dizionario
Teologico Interdisciplinare III, p. 335.

30
justifica e relativiza a limitação das realizações presentes.34 É a
parábola que se realizou significativamente na contestação “utó­
pica” de 68. No lugar da prometida “sociedade não repressi­
va”,35 penetrou, em quase todos os protagonistas da época, uma
integração no sistema, confessada mais ou menos abertamente.
A ideologia acabou triunfando sobre a utopia, que ao lado da
função crítica não teve condições de colocar uma esperança fun­
dada no futuro absoluto. Além disso, por não sair da imanên-
cia histórica, o futuro absoluto continua sendo a interrogação
sem resposta, que põe em discussão todo o humanismo, e denun­
cia o limite inelutável de todas as esperanças humanas. A fini-
tude do homem é incapaz de fundar a esperança absoluta do ho­
mem. A certeza de um futuro absoluto, como futuro de bem,
só pode vir de quem transcende a história, ainda que ingres­
sando nela. Segundo a “pretensão” dos cristãos, tal como se
exprime de modo particular em nosso século graças à recupera­
ção da dimensão escatológica do cristianismo,36 esse ingresso
na história daquilo que transcende a história é capaz de dar sen­
tido e fundamento ao futuro absoluto: tal ingresso se deu na
ressurreição de Jesus Cristo.37
O que significa a ressurreição de Jesus Cristo para o futuro
do homem? Também aqui é necessário fazer uma leitura trini-
tária do evento vivido pelo Crucificado. Jesus morre abandona­
do, porque na hora da Cruz o Pai não pronunciou aquele “sim”
no qual Jesus tinha empenhado toda a sua missão: o Pai não
testemunhou a seu favor (cf. Jo 8,18 e 5,32). Mas Jesus não
morre “desesperado”; nas horas entre a sexta-feira santa e o
raiar do dia da ressurreição, ele assumiu todas as esperanças
humanas, com a pesada obscuridade que as caracteriza e, espe­
rando, as recolocou nas mãos do Pai: “Pai, em tuas mãos entre­
go o meu espírito” (Lc 23,46). Nos evangelhos transparece, vá­
rias vezes, a confiança que Jesus tem no futuro que lhe foi pre­
parado. O sinal de Jonas, que ele promete, é o sinal de sua espe­

34 Cf. K. Mannheim, Ideologia e utopia, Bolonha, 1975 (Bonn,


1929). Sobre a utopia como “rosto atual da queda”, cf. I. Mancini, Teo­
logia ideologia utopia, Bréscia, 1974, pp. 285-466.
35 Cf. as obras de Marcuse citadas na nota 12.
36 Sobre a história dessa recuperação, cf. J. Moltmann, Teologia
delia speranza, pp. 31-91 (cap. I: “Escatologia e rivelazione”) , cf. n. 22.
37 Cf. especialmente os textos de W . Pannenberg, Cristologia. Linea-
menti fondamentali, Bréscia, 1974.

31
rança, da certeza com que espera, em seu favor, o testemunho
do Pai (cf. Mt 12,40). É na noite do abandono, porém, que a
esperança do Nazareno alcança a maior profundidade: “Nos dias
de sua vida terrestre, (Cristo) apresentou pedidos e súplicas,
com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da
morte; e foi atendido por causa da sua submissão” (Hb 5,7).
Essas palavras do autor da Carta aos Hebreus sublinham a arden­
te súplica e espera, a paixão por tudo aquilo que o Filho crê
posível ao Pai, a esperança que Jesus alimenta de vencer a
morte. No seu “clamor e lágrimas” ressoam as invocações de
todos os que foram, são e serão escravos da morte. Na esperan­
ça do Filho do Homem vibra a esperança de todos os mortos,
de todos os derrotados da terra, a esperança dos vencidos. Mas
o Filho é a revelação do Pai: por força da recíproca imanência
e pertença, e da comunhão que os une, a esperança do Filho
revela a esperança do Pai, Como o pai da parábola (cf. Fc 15,11-
32, especialmente 20), o Deus de Jesus espera ardentemente a
reconciliação com os seus filhos na glorificação do Filho. Contra
a estática inentalidade greco-ocidental, que vê a esperança como
sinal de carência, como esperança passiva, sofrida pela pobreza
do ser humano diante da paixão do mundo, a esperança do Deus
cristão não nasce da privação, mas da plenitude do amor. É a
esperança ativa, a condescendência e a comunhão do Deus tri-
nitário com a sua criatura. O Espírito da esperança, o Consola­
dor de toda verdadeira esperança, provém da esperança que tem
o Filho de ser glorificado na humanidade assumida e que abran­
ge todas as esperanças humanas, e provém da esperança que
que tem o Pai de glorificar o Filho e nele a humanidade que está
à espera. Assim, o evento da Páscoa se apresenta, para a “pre­
tensão” cristã, como história da esperança trinitária de Deus. No
Espírito, toda «esperança humana é assumida pelo Deus cristão:
onde quer que um homem espere, a Trindade está presente
para sustentar o empenho vigilante da esperança que transforma
a vida.
Mas qual é o futuro da esperança de Deus revelada em
Jesus Cristo? É o futuro que o Filho espera nos braços da
cruz: a ressurreição, isto é, o testemunho que o Pai lhe dá ao
julgar o mundo. A ressurreição é precisamente a glorificação
que o Pai dá ao Filho no Espírito Santo (cf. Rm 1,4;8,11; Ef
1,18-20 etc.). É a proclamação gloriosa de que o Pai aceitou o

32
sacrifício do Filho. É a certeza de que o sacrifício da cruz nãc
foi um dos muitos sacrifícios humanos — mera “confissão da
impotência que espera” — , mas foi o sacrifício agradável. O
Filho se oferece, o Pai o acolhe, e do seu recíproco dar-se pro-
mana o Espírito Santo. A leitura trinitária da ressurreição, como
história do Pai, do Filho e do Espírito, manifesta a razão por
que, “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé” (ICor 15,14-16).
Cristo ressuscitado é o “sim” definitivo do Pai à humanidade que
espera. É a garantia de que o futuro do mundo não é a morte,
mas a vitória sobre a morte. O futuro absoluto do mundo, aque­
le futuro que vem do além de toda expectativa possível, é garan­
tido como o bom futuro no Ressuscitado dos mortos. E o futuro
relativo? Ele também é iluminado pela glória do Ressuscitado?
Existe alguma relação entre a grande esperança aberta pela res­
surreição e as tantas esperanças da condição humana? À luz
da esperança trinitária de Deus é preciso sublinhar que, antes
de mais nada, onde quer que o homem espere, a Trindade está
presente para sustentar o empenho vigilante da esperança. Dian­
te das obscuridades e dos fracassos, o Consolador faz que não
naufrague a esperança de quem o acolhe. O testemunho supre­
mo do cristão se torna assim o testemunho de quem pode afirmar
com a vida: “Creio no futuro da esperança que morre”. É o
testemunho do mártir que, diante da injustiça do mundo, reco­
nhece na contradição da esperança a “contradição da ressurrei­
ção com relação à cruz”.35 Todavia, a esperança absoluta, aberta
pelo Ressuscitado, coloca-se como “reserva escatológica” crítica
e subversiva, com relação a todas as esperanças relativas. Isto é,
essa esperança se abre constantemente para o mais amplo hori­
zonte prometido e provoca a denúncia das limitações e ambigüi-
dades de todas as realizações humanas. A esperança da ressur­
reição se ■ apresenta, assim, como a ressurreição da esperança em
duplo sentido; garante a comunhão fortalecedora do Deus cristão
na luta da esperança, e faz superar constantemente qualquer
redução e traição frente à verdadeira meta do caminho humano,
que o Ressuscitado abriu definitivamente para o horizonte da
história. É por isso que a esperança fundada na “pretensão”
cristã não aliena da luta na aventura humana. Ao contrário, na
tensão entre o “já” e o “ainda não”, entre a realização e a espe-38

38 Moltmann, Teologia delia speranza, p. 12, op. cit. in n. 22.

33
ra, encerrados no evento da Páscoa, ela sustenta o compromisso
vigilante de entrar sempre mais na glória do Ressuscitado que
há de vir. Nesse tempo penúltimo, que vai do alvorecer da
Ressurreição ao entardecer do tempo, nessa estação — “entre a
primavera e o verão” — se coloca a esperança dos cristãos como
consciência crítica da história, em nome da reserva escatológica.
Assim, o futuro absoluto do homem, tenebroso e prenhe de inter­
rogações angustiantes, torna-se, na Ressurreição de Cristo, uma
certeza e uma espera do bem que há de vir. Para esse futuro se
dirige o compromisso vigilante e suplicante de quem crê e espe­
ra. E o próprio futuro de bem vem ao encontro da aventura
humana, irrompendo com imprevisível liberdade. Todo cristão
vive sempre o mistério do Advento no coração de sua vida e da
história.
“Maran atha” — “Maranathà” : “O Senhor vem” — “Vem,
Senhor!” Essa antiquíssima profissão de fé e invocação da co­
munidade cristã encerra a promessa e a certeza, da qual tam­
bém o homem de hoje necessita para esperar diante do futuro
absoluto da sua própria existência e do mundo. A teologia do
Ressuscitado, que dá sentido e valor à esperança no futuro, não
é menos necessária para os homens do nosso tempo do que a
“theologia crucis”, que interpreta e alicerça a paixão do mundo
na paixão de Cristo. Ora, a paixão do mundo é a paixão daque­
le que assumiu o mundo. Assim também, a ressurreição do Cru­
cificado é o fundamento e a promessa da vindoura ressurreição
do mundo. Por isso, diante dos sinais de desespero ou de falsa
esperança de nossos dias, os cristãos julgam sensato, ou melhor,
indispensável, falar do seu Senhor crucificado e ressuscitado.

1. 3. A SEDUÇÃO DO DEUS REVELADO E OCULTO

Para a “pretensão” cristã, a provocação do seu Deus se


acrescenta a uma provocação do mundo e do homem. Na reali­
dade, toda história de fé é história de amor, de busca e de luta:
“Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir; tu te tornas­

34
te forte demais para mim, tu me dominaste” (Jr 20,7). Para
superar as resistências e temores, a fé de quem crê está sempre
em luta. Mas também o amor do seu Deus é inexaurivelmente
novo: irrompendo no tempo, necessariamente o subverte, ^aba­
te, encanta e consola”, porque a história é incapaz de suportar
a novidade desse amor. É por isso que, embora se revelando, o
Deus cristão permanece o Deus oculto, que seduz quem o aco­
lhe na liberdade, atraindo-o a si nas profundezas do seu mistério,
contagiando-o no seu dinamismo, na inexaurível novidade do seu
ser. Assim, Deus, fazendo-se história, suscita a perene inquie­
tação da fé e da esperança, desperta no crente a condição de
quem não pode sentir-se possuidor da verdade, mas possuído por
ela numa relação pessoal e dinâmica, peregrino sem descanso
em direção à luz. A estrutura do ato de fé evidencia essa perene
tensão do crente e se configura na forma de um chamamento e
de uma resposta.39
Deus chama o homem, oferecendo-se a ele e dando-lhe par­
ticipar da sua comunhão: “Aprouve a Deus, na sua bondade e
sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério de
sua vontade (cf. Ef 1,9), mediante o qual os homens, por meio
de Cristo, Verbo encarnado, têm, no Espírito Santo, acesso ao
Pai, e se tornam participantes da natureza divina” (Verbum
Dei, 2). Essa revelação, da qual Jesus Cristo é a plenitude e o
mediador, acontece mediante palavras e eventos intimamente
relacionados (ibid.). Ao Deus que revela, o homem responde com
a obediência da fé (o termo obediência, em latim ob-audire, signi­
fica “escutar atentamente”). “Com a fé o homem se entrega total
e livremente a Deus, oferecendo ‘a Deus revelador o obséquio
pleno da inteligência e da vontade’ e prestando voluntário assen­
timento à sua Revelação” (Verbum Dei, 5). Portanto, o “amém”
da fé envolve o homem todo, no plano duplo de um abandono:
abandono de si mesmo nas mãos daquele em quem crê (“a fé
com a qual o homem se entrega todo, livremente, a Deus”) e o

39 Cf. G. Ebeling, Das Wesen des christlichen Glauben, Munique,


1967, 3? ed., e Parola e fede, Milão, 1974; R. Aubert, Le problème de
Vact de foi, Lovaina, 1958, 3’ ed.; J. Mouroux, Io credo in te, Bréscia,
1961, 2‘ ed.; J. Pieper, Sulla fede, Bréscia, 1963; J. Alfaro, "L a fede
come dedizione personale delPuomo a Dio e come accettazione dei mes-
saggio cristiano” in Concilium, 1967, 1, pp. 66-79. Cf. também W. Kas-
per, Introduzione alia fede, Bréscia, 1973 (ed. port.: Introdução à fé,
Telos, Porto, 1973, 193 p.).

35
abandono de uma conseqüente aceitação reflexa daquilo que
Deus lhe comunica (“obséquio da inteligência e da vontade”).
Em outros termos, o “amém” é o agarrar-se do náufrago ao esco­
lho e o “sim” da reflexão crente.40 Na origem do “amém” da fé
está a Palavra proclamada, à qual se dá o consentimento (“fides
ex auditu” : Rm 10,17). Mais profundamente, está nessa origem
“a graça divina que se antecipa e continua a ajudar, como tam­
bém está o auxílio interior do Espírito Santo, auxílio requerido
para mover e converter a Deus os corações, abrir os olhos da
alma e dar ‘a todos a suavidade, no assentimento e na adesão à
verdade’ ” (Verbum Dei, 5). Portanto, o “amém” da fé é presta­
do a Deus pela mediação dos eventos e palavras de que se cons­
titui a revelação, sob o impulso do Espírito. Aqui está a razão
profunda da estrutura tensional do ato de fé. O termo último
desse ato é sempre o Deus que se revela na insondabilidade do
seu mistério; assim também a mediação do assentimento é a Pala­
vra, à qual se adere, necessariamente precária e insuficiente. Se­
gue-se disso a força com que a fé tende a ir além da fórmula,
da imagem, do conceito da revelação e do dogma, para uma per­
cepção menos imperfeita do seu Deus. Em outras palavras, reve­
lando-se, Deus faz com que a profundidade insondável do seu
mistério seja percebida pelo homem. Revelando-se com amor,
Deus faz com que ele deseje penetrar sempre mais nesse mistério.
Assim, quanto mais Deus se revela, mais parece oculto. E o
encontro do desejo aceso com a realidade possuída se torna uma
febre e uma busca: justamente a febre da fé que ama e espera,
a “inquietudo sancta”. O Deus cristão, o Deus que falou ao ho­
mem muitas vezes e de diversas maneiras por meio dos profetas,
e na plenitude dos tempos por meio de seu próprio Filho (cf. Hb
1,1-2) é o “mestre do desejo”. Ele “não dirige, mas atrai; não
ordena, mas-chama... ensina o desejo e atrai a si”.41 Quem encon­
tra a Deus não pode deixar de sentir em si o dinamismo da
fé que impele a conhecer, e do conhecer que dinamiza a fé:
“crede ut intelligas, intellige ut credas”.42 Crer no Deus que se

40 Sobre o “amén”, cf. H. Schlier in Grande Lessico dei Nuovo


Testamento I, pp. 909-16.
41 F. Dolto, Psicanalisi dei Vangelo, Milão, 1978, 45.14. (ed. bras.:
O Evangelho à luz da Psicanálise, Imago, Rio de Janeiro, 1979, 160 p.).
42 A expressão é encontrada com freqüência em Agostinho, cf.
Epist. 120,1,3: PL 33,453; Serm. 43,7,9: PL 38,258. Cf. também o tema

36
revelou em Jesus Cristo significa estar continuamente em estado
de tensão entre o repouso do já possuído e a sede do ainda não
possuído: “credere est cum assensione cogitare”.43 Fazendo aderir
a um dado da revelação, o assentimento é sempre percorrido por
uma tensão “cogitativa”, por um pensamento que se move para
Aquele que, em se revelando, se oculta. Sto. Tomás sublinha
com insistência a relatividade da fórmula e a conseqüente ten­
dência do crer: “O artigo (de fé) é uma percepção da verdade,
que tende a ela” — “O ato do crente não pára naquilo que é
enunciável, mas vai à realidade”.44 Capta-se assim o dinamismo
da sua definição da fé, “hábito da mente, pelo qual tem início
em nós a vida eterna, levando o intelecto a assentir naquilo
que não vê”.45 Por outro lado, essa definição traduz a expressão
da Carta aos Hebreus 11,1: “Fé é substância de coisas espera­
das, e argumento das não aparentes”.40
Desse dinâmico “amen fidei” diante do Deus que se revela
nasce assim um conhecimento de Deus que, partindo da fé e
explorando os conteúdos dela, tende, mediante o esforço ativo
do homem, a perceber sempre melhor o que se oculta nos enun­
ciados da própria fé.47 Esse esforço de percepção sempre mais
profunda do Objeto do anúncio cristão realiza-se por diversos
caminhos, na força do Espírito “que guia para a verdade... e
anuncia as coisas futuras” (Jo 16,13): “O conhecimento tanto
das coisas como das palavras que fazem parte da Tradição cres­
ce graças à contemplação e ao estudo dos crentes, que as medi­
tam no seu coração (cf. Lc 2,19.21), como também devido à ínti­
ma compreensão que experimentam das coisas espirituais, e ainda
devido à pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado,
receberam um carisma seguro da verdade” (Verbum Dei, 8). O
serviço do Magistério evidencia não só a função de guardar o
“já ”, mas também a de anunciar o “ainda não”. Além disso, o
citado texto sublinha dois caminhos do processo dogmático: o
caminho da contemplação sobrenatural, na base de uma união

da “docta ignorantia”, como posse e pobreza do conhecimento da fé, por


exemplo, Ad Probam 130,15,28: PL 33,505.
43 Id., De praedestinatione sanctorum, 2,5: PL 44,963.
44 Summa Theologica II-II, q. 1, a. 6 sed contra; q. 1, a. 2, ad 2.
45 Ibid., q. 4, a. 1 c.
46 É a tradução feita por Dante, Paraíso X X IV , 64-65.
47 Cf. Y. Congar, “Théologie” in Dictionnaire de Théologie Catho-
lique XV 1, Paris, 1946, p. 450. Cf. pp. 448-50.

37
efetiva com Deus, a modo de experiência, na qual não é tanto o
homem que contempla o mistério, quanto Deus que trabalha no
homem; o segundo caminho é o da reflexão teológica, fundada
na atividade crítica, isto é, analítica e examinadora, à modo de
busca ativa e intencional movida pelo amor, mas articulada
segundo as formas do compreender. A esta ordem do conheci­
mento pertence a teologia, que por isso se coloca como expressão
e instrumento crítico da sede, suscitada no fiel pelo Deus que
se revela. Ambos os caminhos estão abertos ao fiel pelo Espírito,
segundo o carisma que a cada um é dado, em vista da utilidade
comum, numa profunda conexão e correspondência entre si
(“contemplata aliis tradere”). Nessa luz, a reflexão crítica da fé
sobre Jesus Cristo se apresenta, antes de tudo, como graça e
serviço. Segundo a “pretensão” cristã, essa reflexão é fruto de
um carisma, e por isso intrinsecamente orientada para servir a
uma compreensão sempre mais profunda da própria fé por parte
dos que crêem. Ela é chamada a manter sempre desperto o dese­
jo, a negar qualquer pretensão de posse definitiva e de fcondição
estática: é uma resposta à provocação do Deus cristão, que está
sempre adiante e além dos horizontes que nos é dado captar, e
por isso nos incentiva, também no conhecer, a estarmos sempre
em estado de êxodo. Ao mesmo tempo, visto que todos os crentes
receberam o Espírito, a reflexão crítica sobre Jesus não pode ser
patrimônio de uma “elite”. “Pertencer à massa e possuir a pala­
vra” (Milani) é “cultura”. Então a teologia, como momento
reflexo e criticamente estruturado da fé da Igreja, não pode cons­
tituir-se prescindindo desta Igreja e sem uma finalidade última
de serviço com relação a ela. Portanto, a provocação de Deus
possibilita aos que crêem falar de Jesus Cristo ainda e sempre
de novo. E isso no interior daquela transmissão viva e sempre
nova da fé, transmissão que é, no seu significado mais profundo,
a Igreja cristã.

1 .4 . UMA TAREFA: TEOLOGIA-IGREJA-MUNDO

Os caminhos do homem no mundo — tanto daqueles que


se tornaram “adultos”, como das “não-pessoas”, tanto diante da

38
injustiça e da dor, como diante da obscuridade do futuro —
revelam-se, portanto, em seu âmago, como caminhos interrom­
pidos: eles apelam para um sentido, para uma justiça, para uma
esperança maiores. Surge neles, de maneira velada ou expressa,
a consciência de uma finitude, que com freqüência se torna uma
inquietante “nostalgia da perfeita e consumada justiça”. Esta
nunca pode ser realizada na história. Com efeito, mesmo que
uma sociedade melhor viesse a substituir a atual desordem so­
cial, não será reparada a injustiça passada e não será eliminada
a miséria da natureza ao derredor”.48 Nostalgia, portanto, de
algo mais do que história, ou melhor, de algo totalmente outro,
que garanta a obscuridade do futuro absoluto e possa valorizar,
com seu poder, o humilde sofrer do homem. Mas, ao mesmo
tempo, a partir da práxis da libertação e das inauditas contradi­
ções da realidade, essa inquietação se apresenta como nostalgia
de um além da vida humana. Nostalgia que também esteja total­
mente dentro da vida, que sustente conosco o peso da dor e da
luta contra a injustiça do mundo, e impeça que sejamos derrota­
dos no embate com a tragédia do tempo.
A esses caminhos interrompidos da paixão e da luta hu­
manas, a essa dupla nostalgia que neles se oculta, a comunida­
de cristã é chamada a dar resposta em força de sua pretensão
de ser anunciadora da salvação em Jesus Cristo. Essa comuni­
dade anuncia que o Deus da cruz está presente onde quer
que exista dor, como Aquele que sofre no homem e com o ho­
mem, e que faz seu o grito dilacerante das dores do mundo,
por Ele assumidas em sua paixão. Ao mesmo tempo, ela anun­
cia que o Deus da esperança palpita com a esperança do mundo
e está presente onde quer que um homem espere, para sustentar
a sua luta vigilante contra a injustiça e a dor. Assim, o Deus da
Igreja se oferece, antes de tudo, como o Totalmente Dentro, o
grande companheiro e o invencível apoio do vigiar e do pade­
cer humano. Segue-se daí o dever, para a Igreja cristã, de prestar
contas a seu Senhor, colocando-se antes de tudo em comunhão
e solidariedade profunda com os sofrimentos dos homens e com
a práxis orientada pela esperança, que é a práxis da libertação.
Se o Deus da Igreja é Totalmente Dentro, a Igreja de Deus deve­
rá estar totalmente dentro da angústia dos desolados, oprimidos

48 M. Horkheimer, La nostalgia dei totalmente altro, op. cit., p. 82.

39
e explorados desta terra. Ao mesmo tempo, ela deverá estar total­
mente dentro da luta diária pela libertação do homem; ela é uma
Igreja em com unhão com a paixão e a esperança dos homens, e
a serviço da libertação deles.
Mas, ao mesmo tempo, a comunidade crente anuncia que as
feridas dos homens, assumidas pelo Deus crucificado, foram por
ele oferecidas ao Pai. O sentido do “sofrer” de Jesus Cristo está
exatamente em seu livro “oferecer-se” por amor Àquele que o
precedeu nc caminho doloroso em nosso favor. O Deus cristão é
o Pai que acolhe a oferenda e lhe dá valor, fazendo de todo
sofrimento, até do mais humilde e oculto, um poderoso meio de
redenção, recuperando assim o valor de todas as vidas, mesmo
daquelas consideradas “inúteis” aos olhos do mundo. Ao mesmo
tempo, a Igreja anuncia o Ressuscitado como Aquele que garan­
te o futuro absoluto do homem como futuro de bem, sustentan­
do a esperança humana e examinando as muitas esperanças dian­
te da esperança maior. O Deus dos cristãos se oferece assim
como o Totalmente Outro, isto é, Aquele que acolhe e valoriza a
dor transformada em amor, e, ao mesmo tempo, assegura que
a vocação do mundo não é a morte, mas a vida. Conseqüente-
mente, a Igreja de Jesus Cristo deverá ser testemunha do Pai,
que acolhe e salva, e testemunha da esperança maior, que con­
forta e responde às esperanças do homem. Uma Igreja empenha­
da no testemunho é a voz do Pai e a voz da verdadeira espe­
rança, é a contestação e crítica de todas as míopes realizações
das esperanças do homem.
Qual é o lugar da teologia nessa Igreja em comunhão, teste­
munho e serviço, nessa Igreja que procura assumir, na palavra
da Cruz e da Ressurreição, os caminhos interrompidos da pai­
xão e da luta dos homens? A teologia representa o momento
crítico, isto'é, o momento reflexo e operante no discernimento
e no juízo, desse caminhar da Igreja em direção ao mundo. Por
isso, a teologia vive como consciência crítica da comunidade
cristã nas três dimensões: comunhão (“koinonia”), testemunho
(“martyria”) e serviço (“diakonia”). Como consciência crítica de
uma Igreja em comunhão com os homens (“koinonia”), a Igre­
ja deve colocar-se como reflexão intensiva que parte das feridas
da história e do compromisso de libertação vivido em favor do
homem. Ela deve ser uma teologia que escuta o mundo, uma
consciência reflexa da oração do pobre brotada da história, onde

40
Deus fala através dos sinais dos tempos. Enquanto consciência
crítica de uma Igreja que dá testemunho (“martyria”), a teologia
deve ser memória do Crucificado-Ressuscitado e memória do
Pai, na força do Espírito, ou seja, deve ser uma teologia que atua­
lize a mensagem da fé cristã e a testemunhe diante das expectati­
vas do tempo, anunciando e denunciando corajosamente, livre
diante dos sistemas deste mundo, subversiva da subversão da Cruz
e da alvorada pascal. Finalmente, enquanto consciência crítica de
uma Igreja chamada ao serviço dos homens (“diakonia”), a teolo­
gia deve verificar e orientar continuamente a práxis, visto que não
basta interpretar teologicamente o mundo, mas é preciso transfor­
má-lo “teologicamente”. É preciso que seja uma teologia profé­
tica, que seja uma palavra para o hoje da Igreja e do mundo,
uma consciência crítica da história: que seja, portanto, no sen­
tido mais amplo, uma teologia política, uma teologia da liberta­
ção, uma teologia que vive na luta. A reflexão crítica da fé cris­
tã sobre Jesus Cristo saberá situar-se no presente e nele repre­
sentar com fidelidade a novidade e a força crítica da Cruz e da
Ressurreição. Se assim fizer, conseguirá também orientar de
maneira eficaz a práxis da comunidade cristã e da sociedade.
Demonstrará, então, no seu efeito crítico-prático, a sensatez da
palavra cristã, mesmo que esta fosse rejeitada como oferta da
“possibilidade impossível” que Deus ofereceu aos homens em
Cristo.

41
2

A HISTÓRIA NA CRISTOLOGIA
Com o falar de Jesus Cristo aos hom ens de hoje?

Duas ordens de fatores parecem influenciar de maneira


profunda a reflexão crítica da fé em nossos dias: de um lado, o
impacto com a ciência histórica, que caracteriza o pensamento
moderno; de outro, as mudanças ocorridas nestes últimos
anos na situação da Igreja. A história, como pensamento e
como ação, entra na teologia, propondo-lhe problemas novos
e abrindo-a para perspectivas muitas vezes ainda não explo­
radas. Portanto, para se compreender como a Cristologia
poderia ser estruturada em relação à sensibilidade do nosso tem­
po, é necessário examinar, antes, o ingresso da consciência his­
tória na evolução teológica contemporânea e focalizar as instân­
cias que emergem das rápidas transformações eclesiais em anda­
mento.

2 .1 . CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E TEOLOGIA CRISTÃ

O desenvolvimento da teologia cristã em sua relação com


o pensamento moderno caracteriza-se pelo impacto com as
expressões da consciência histórica. Poder-se-ia dizer que a histó­
ria é o problema que o mundo moderno propõe à teologia.11

1 Cf., para o que se segue, W. Kasper, Fede e storia, Bréscia, 1975,


especialmente pp. 43ss. (Igreja e teologia sob a lei da história), como
também Introduzione alia fede, cp cit. in n. 39, especialmente pp. 164ss
(a historicidade da fé ); A. Vanel, “L’impact des méthodes historiques

42
A partir do iluminismo, através do idealismo e de seus diversos
desenvolvimentos, desde o marxismo até o pensamento existen­
cial, até a hodierna superação dialética do próprio iluminismo,
uma nova concepção da realidade provoca a reflexão dos teólo­
gos. O mundo antigo e medieval, assimilado na alma patrística e
nas grandes sistematizações escolásticas, é o mundo do ser e de
sua estruturação ordenada, é o “cosmo” e a “ordo” que se refle­
te no sistema que o pensa. Assim, o mundo moderno se auto-
concebe sob o signo do devir e de sua dialética complexidade;
ele é evolução, processo, história, com suas subjetividades irre­
dutíveis, com suas relações de dependência e conflito, mas susce­
tíveis de transformação, graças à ação do homem. A aceleração
dos processos históricos, que caracteriza o nosso século, assina­
lado por transformações tão profundas quão impensáveis num
passado ainda recente, torna agudo esse sentimento do devir, e
parece questionar qualquer ancoradouro seguro. A sedução do
novo, relacionada com o ritmo frenético da vida, parece tornar
inconcebível toda idéia de verdades eternas e imutáveis. Desse
ponto de vista, também a “theologia perennis” é algo “no espa­
ço”, fora de lugar e de tempo, sem possibilidade de incidir so­
bre a práxis. Então nos indagamos: Quais são os novos cami­
nhos, cujo impacto com a consciência histórica provoca os teó­
logos? Para responder a essa pergunta é preciso explicitar os
diversos níveis pelos quais o pensamento moderno entrou na
teologia, condicionando-a a partir de dentro e, às vezes, pare­
cendo decretar-lhe a morte (como no episódio da “teologia atéia”
ou “da morte de Deus”). Pode-se falar de três influências da
“história” no labor teológico do nosso tempo: influências que
se situam, respectivamente, no plano dos conteúdos da pesqui­
sa, no plano da forma do pensamento e no plano da práxis.

cn théologie du X V Ie au X X e siècle” in Le déplacement de la théolo-


gie, Atas do Colloque Métodologique de fevereiro de 1976, Institut Ca-
tholique de Paris, Paris, 1977, pp. 15-44; C. Geffré, “Du savoir à 1’inter-
pretation”, ib., pp. 51-64; G. Angelini, “La vicenda delia teologia catto-
lica nel secolo X X ” in Dizionario Teologico Interdisciplinare III, Turim,
1977, pp. 585-648. Cf. também Bilancio delia teologia dei X X secolo, II,
La teologia dei X X secolo, Roma, 1972; Correnti teologiche post-conci-
liari, sob a direção de A. Marranzini, Roma, 1974. P. S. Vanzan, “Cam-
pione PFTIM nel trapasso culturale dei decennio 1969-1979”, in Teologie
e progetto-uomo in Italia, Atas do VIII Congresso Nazionale ATI, Assis,
1980, pp. 49-72, levou em consideração as reflexões aqui expostas (cf.
49 n. 1).

43
O prim eiro fator de influência verifica-se no plano dos con­
teúdos ou, para dizer o mesmo com terminologia escolástica,
segundo o “cbiectum materiale”. Sob a influência das ciências
positivas, que mostram como o saber nos múltiplos campos vitais
deve ser cada vez mais diferenciado e circunscrito, e também por
reação às abstrações e presunções sistematizantes do idealismo
e do liberalismo do século X IX , assiste-se a uma volta às fontes
da teologia cristã, como redescoberta do dado originário e origi-
nante desta. Expressões de uma teologia que quer regenerar-se a
partir das fontes são ainda as seguintes: a denúncia da “teologia
dialética”, bem como as fases e as formas de utilização do mé­
todo histórico-crítico na exegese; a interpretação existencial
bultmaniana, como também a nova hermenêutica pós-bultmania-
na; e o estudo renovado dos Padres e também dos teólogos me­
dievais. É um verdadeiro “ressourcement”, uma lufada de ar
fresco, que sem tardar mostrará a aridez e a pobreza dos ma­
nuais escolásticos, onde a tese anunciada se apoia nos “dieta
probantia”, tirados, sem nenhuma metodologia histórica, da
Escritura, da Tradição e de argumentos de razão, silogisticamen-
te formulados. É evidentemente a-histórica a estrutura desse pro­
cedimento por meio de teses. Uma posição atual a ser defendi­
da se justifica com o recurso ao passado, que não permite à sua
novidade falar, mas o lê com os olhos já orientados para o inte­
resse' atual. A volta às fontes põe então em crise a metodolo­
gia de trabalho teológico tradicional, levando a uma reflexão
que seja escuta fiel do passado, a começar pelo passado norma­
tivo da Escritura, através de uma abordagem que permita cap­
tar a novidade e a força subversiva também do nosso presente.
O Vaticano II sanciona, para a teologia católica, a validade de
semelhante metodologia histórica (cf. Optatam Totius 16).
O segundo fator de influência da história no pensamento
teológico moderno coloca-se no plano da forma do pensamento,
do “objectum formale” . Acha-se estritamente relacionado com o
primeiro: a abordagem de conteúdos históricos, a prática de me­
todologias histórico-críticas, o problema hermenêutico não pode
deixar indiferente a “ratio” do teólogo. Esta se dispõe a tornar-
-se, cada vez mais, uma “razão histórica”. Em vez de pensar o
tempo das várias estações teológicas no horizonte do ser (deno­
minador comum, no pensamento teológico tradicional, da redu­
ção a sistema), passa-se a pensar o ser no horizonte do tempo.

44
É a virada heideggeriana que influencia fortemente a teologia
do século X X , sobretudo a alemã. Pensar o ser não mais apenas
na perspectiva de essência, substância, natureza, idéia, mas na
do tempo e da história, significa, no fundo, renunciar a forçar
a realidade, para reduzi-la às sínteses e aos sistemas especula­
tivos do sujeito pensante. Significa acolher o ser que se revela
no existir, num conhecer que dê lugar à admiração, ao impensa­
do, ao inesperado, ao mistério. A “razão teológica” como “razão
histórica” configura-se assim como “razão aberta”, que não apri­
siona o tempo na estaticidade do ser, mas se deixa alcançar pelo
imprevisível revelar-se do ser na perene novidade do tempo;
por isso, atribui ao futuro uma ulterioridade de sentido, que é
permanente crítica de toda idolatria do presente. Isso leva os
teólogos à redescoberta da escatologia; esta, de apêndice da dog­
mática cristã, assume sempre mais um papel decisivo, até ser
reconhecida como dimensão imprescindível de todo pensar teo­
lógico. A mesma “abertura” da razão leva à rejeição de qual­
quer sistema totalizante e à identificação entre método histórico
e método sistemático. Este último processo é realizado não no
sentido da redução do primeiro ao segundo (como acontecia nas
argumentações dos manuais), mas graças ao reconhecimento de
uma circularidade hermenêutica. Ou seja, descobre-se que o
compreender histórico só é possível dentro de um anterior com­
preender sistemático (pré-compreensão e horizonte de pensa­
mento). Este, por sua vez, é redimensionado à experiência, está
aberto à possibilidade de um contínuo devir. Isto é, a história é
compreendida num horizonte, que faz continuamente a história
e é feito por ela. Por isso, conhecer histórico e conhecer siste­
mático são inseparáveis,2 e, conseqüentemente, em teologia a dis­
tinção clássica entre positiva e sistemática é superada sempre
mais (pense-se na tentativa representada, nesta direção, pela
“dogmática como teologia da história da salvação” : Mysterium
Salutis). Não há outro caminho para compreender a Palavra (o
que é tarefa da teologia sistemática) a não ser compreendendo-
-a na história e pela história. Este compreender questionando
respeita o dado tal como se apresenta, não o violenta para sujei­
tá-lo ao presente, mas se deixa provocar por ele. Neste sentido,
2 Cf. H. G. Gadamer, Verità e método, com introdução de G. Vat-
timo, Milão, 1972 e Ermeneutica e metódica universale, com nota-ensaio
de V. Margiotta, Turim, 1973,

45
a “razão histórica’’ rejeita as interpretações puramente funcio­
nais, existenciais, não menos do que as sistematizações escoiás-
ticas. Em ambos os casos, o presente se faz árbitro do passado,
enquadrando-o respectivamente no horizonte das expectativas e
da decisão do sujeito, ou no horizonte do rigor do sistema pré-
-constituído. Em ambos os casos, a Palavra acaba por se tornar
muda, enquanto o sujeito não faz mais do que celebrar a si
mesmo, üom isso não se quer negar a pré-compreensão do sujei­
to, que e sempre suposta. U que se quer é simplesmente inseri-la
no já acenado círculo hermenêutico, pelo qual ela assume, inte­
grando-os, os novos dados que lhe são oferecidos; mas, ao mes­
mo tempo, é modificada mais ou menos profundamente por
eles. Somente no reconhecimento de semelhante circularidade e
possível evitar, de um lado, a radical subjetivização de um pen­
samento histórico fechado em si mesmo, e, de outro, a presumi­
da objetivação em verdades eternas, intemporais, de um pensa­
mento a-histórico, não “situado”.
A consideração do círculo hermenêutico leva-nos a falar
do terceiro fator de influência da história na teologia moder­
na: aquele que ocorre no plano da práxis. De fato, a pré-com­
preensão do sujeito nunca é uma construção individual. É uma
experiência vital, compartilhada com os outros, com os quais a
pessoa entra em comunhão, e articulada na linguagem e, de certa
forma, estruturada por ela. Sem dúvida, pertence sempre a um
mundo, a um horizonte intencional, onde estamos colocados,
que podemos modificar e pelo qual somos continuamente modi­
ficados. Este mundo vital é a práxis, a história que se faz atra­
vés das relações de conflitos entre indivíduos e entre classes,
através de dependências e rupturas. Nesse reconhecimento da
práxis como horizonte hermenêutico, o pensamento marxista faz
sentir a sua. influênciá sobre o mundo contemporâneo: ele não
considera o sujeito abstrato, mas o homem concreto, inserido
em relações precisas de produção, que determinam de fato a
sua vida. Assim, a teoria marxista articula-se na análise das
estruturas econômicas dependentes das diversas situações histó­
ricas, na denúncia das fugas da história — que freqüentemente
se consumam nas expressões superestruturais da cultura e da
religião, e que de fato são pagas com alienação sempre maior
das classes oprimidas — e no esforço por desenvolver um pro­
cesso não somente de interpretação, mas também de transforma­

46
ção da realidade. Nesta, a práxis é ponto de partida e de chega­
da da teoria; é, para esta, fonte e critério de verdade. Dessa re-
descoberta da práxis surge uma tríplice provocação para o pen­
samento teológico. Antes de mais nada, a teologia repensa o
círculo hermenêutico vivo em que é colocada, isto é, a Igreja,
comunidade na qual a linguagem da fé é transmitida e sempre
novamente rearticulada, e na qual é de fato acolhida e atuali­
zada a perene normativa do evento fontal registrado no teste­
munho bíblico. O situar-se eclesial da teologia é, pois, a condi­
ção de sua própria compreensão a respeito do dado. Ao mesmo
tempo, é o espaço em que a reflexão teológica pode, antes de
tudo, fazer que tenha valor a sua eficácia prático-crítica. Sem a
viva “traditio ecclesiae”, que lhe transmite vitalmente a “norma
normans” da fé cristã, o teólogo não poderia evitar o risco de um
pensamento puramente subjetivo, nem poderia falar uma lingua­
gem de fé compreensível aos outros. Permanecería como aven­
tureiro da inteligência, condenado à incomunicabilidade. Mas a
Igreja está no mundo, situada nas circunstâncias históricas con­
cretas que a condicionam e que são condicionadas por ela. Por­
tanto, não somente a práxis eclesial, mas nela e através dela e
mesmo :prescindindo dela, também a práxis social é que estru­
tura a compreensão pré-constituída da razão teológica. Os siste­
mas econômicos e políticos, as relações de dependência e as
situações de alienação — aceitos ou rejeitados de maneira mais
ou menos consciente — não deixam de entrar no horizonte do
pensamento de quem faz teologia. “Cada um de nós está situado
não apenas com relação a um sistema de referência, do qual
depende a lógica do seu discurso, mas também com relação a um
sistema de poder que torna possíveis algumas coisas e impede
outras”.3 Conseqüentemente, o discurso teológico será verdadei­
ramente crítico, antes de tudo, quando se configurar como
crítica da teologia, análise objetiva das condições materiais (eco­
nômicas, sociais, políticas) nas quais a palavra cristã é produzida
e encontra convalidação concreta.4 Uma teologia que ignore
esse condicionamentos torna-se funcional com relação ao siste­
ma; portanto, não será inócua, mas perigosa. Finalmente, a nova

3 J. Audinet, “Théologie pratique et pratique théologique” in Le


déplacement de la théologie, op. cit., p. 95.
4 Cf. A. Fierro, "Coscienza dei mutamento e interrogativi posti alia
teologia” in Concilium, 1978, p. 868.

47
atenção à práxis leva a razão teológica a redescobrir o círculo
existente entre teoria e práxis. É tarefa da teologia levar a prá­
xis à palavra. E essa tarefa está relacionada com a outra: levar
a Palavra à práxis. Somente assim a razão teológica se torna
consciência crítica eficaz de uma concreta situação histórica
eclesial e terrena, capaz de julgar o presente e orientar o futuro.
Portanto, práxis e teoria relacionam-se em estreita circularidade.
Uma teoria teológica que não se abeberar na práxis será vazia,
porque é no horizonte hermenêutico vivo da comunidade situada
na história que a verdade da Palavra se manifesta e pode ser
vivida concretamente. Mas uma práxis que não for orientada
pela teoria será cega, sem discernimento, e, por isso, sem meta
nem sentido. Por isso mesmo, também na teologia, a práxis é
o início e o fim da teoria. A práxis oferece a experiência vital, a
partir da qual a teoria se constrói e na qual se verifica. Sem
chegar à identificação de ortodoxia com ortopráxis, deve-se reco­
nhecer que a abertura para a verdade teológica não se coloca
apenas a nível de reflexão crítica; tal abertura é captada ao mes­
mo tempo num agir crente, num ser para Deus e para o homem
na realidade viva das tensões históricas, num estilo de vida de
fé esperançosa e apaixonada. A práxis entra assim no próprio
ato de abertura para a verdade que se manifesta, tornando-se o
“lugar” por excelência da teologia. Por outro lado, a uma refle­
xão crítica que capte a Palavra no ato de se situar numa prática
eclesial e social deve corresponder uma eficácia sobre a práxis
por parte da própria reflexão, eficácia capaz de modificar e
orientar a ação na Igreja e na sociedade. Portanto, a uma teoria
da práxis deve corresponder uma práxis da teoria.5 Talvez esteja
aqui o desafio mais radical que a entrada da história no pensa­
mento teológico lhe provoca, “a verdadeira questão hermenêu­
tica fundamental que a teologia deve suscitar”.6
Portanto; na elaboração da teologia do nosso tempo, os três
fatores de influência da consciência histórica — no plano dos
conteúdos, da razão teológica e da práxis — convergem no sen­
tido de provocar o teólogo a “situar-se” consciente e responsa­

5 Um exemplo desta bipolaridade em teologia pode ser percebido


na vida e obra de K. Barth: cf. B. Forte, “Gesü Cristo, il Signore come
Servo, il Servo come Signore. Cristologia e política in Karl Barth” in
Asprenas 25 (1978), pp. 397-430.
6 E. Schillebeeckx, Intelligenza delia fede, Alba, 1976, 2? ed., p. 103.

48
velmente. Em outras palavras, o teólogo deve discernir as estru­
turas de ordem eclesial, social, política, econômica e cultural
em que age e pelas quais é condicionado; mas não só: deve tam­
bém elaborar seu pensamento nessas estruturas e a partir delas,
confrontando-as criticamente com a Palavra fontal. Somente
assim esta pode ser atualizada e tornar-se força subversiva e
transformadora da história.

2 .2 . MUDANÇAS DA PRÁXIS ECLESIAL E TEOLOGIA

Nos recentes acontecimentos da Igreja e da teologia, diver­


sos fatores contribuiram para evidenciar a necessidade de se
desenvolver uma reflexão teológica “situada”, aberta para a histó­
ria, no tríplice plano dos conteúdos, da forma e da práxis. Pode­
mos distinguir duas fases significativas: a hora da “renovação”
e a hora da “expansão”.
A “hora” do Concilio e do imediato pós-concílio é dominada
pelas “renovações”,7 decorrentes de movimentos de pesquisas e
ação, na maioria dos casos iniciados quase clandestinamente cer­
ca de trinta anos antes do Vaticano II. Tais movimentos per­
passam os diversos campos da reflexão teológica e da atividade
pastoral e convergem para um ponto: determinar a renovação
geral — “aggiornamento” — da consciência eclesial (também
teológica) e das suas estruturações históricas, renovação que pode
ser descrita como “primavera conciliar”. A passagem das “reno­
vações” para a “renovação” da Igreja é obra própria do Conci­
lio. Este fez convergirem múltiplas energias que estavam se pre­
parando em vários campos: no movimento bíblico, patrístico,
litúrgico, missionário, ecumênico, no crescimento do laicato e no
desenvolvimento da espiritualidade e da moral. E orientou essas
energias para um profundo exame de consciência da Igreja dian­
te da interrogação sobre a sua própria identidade e importância

7 Cf. J. P. Jossua, “Gli spostamenti attuali e Tavvenire delia teolo­


gia” in Concilium, 1978, pp. 908ss.

49
histórica. A renovação bíblica fornecia os dados normativos, re-
descobertos com novo vigor. Assim, para dar resposta a essas
questões, a renovação patrística e litúrgica ofereciam a ima­
gem viva e concreta de uma Igreja empenhada em resolver desa­
fios semelhantes em contextos históricos diferentes, mas arrai­
gada na inexaurível riqueza do mistério anunciado e celebrado.
A renovação da missão estimulava a consciência do relaciona­
mento entre o cristianismo e a multiplicidade das culturas e
situações históricas, geralmente bastante distantes do modelo
ocidental. Por sua vez, a renovação ecumênica impelia para a
redescoberta recíproca das riquezas — por longo tempo desco­
nhecidas — entre as diversas tradições cristãs. Característica da
história eclesial dos nossos tempos, o crescimento da consciên­
cia e do empenho do laicato solicitava uma nova reflexão sobre
o povo de Deus e sobre a co-responsabilidade na Igreja, e, por
outro lado, levava a repensar o significado do mundo “profa­
no”, das “realidades terrenas”, que- estavam tradicionalmente
associadas ao conceito do leigo. Finalmente, as orientações da
espiritualidade contemporânea — marcadas por uma Teresa
de Lisieux e por um Charles de Foucauld, para mencionar apenas
dois nomes — traçavam o programa de uma contemplação na
ação. Enquanto isso, os desenvolvimentos da moral vinham evi­
denciando o primado da caridade, como saída de si mesmo, pri­
mado que tem sua raiz em Cristo e na relação vivificadora com
os outros. O efeito desses múltiplos estímulos pode ser reconhe­
cido no duplo esforço desenvolvido nas sessões conciliares: de
um lado, assiste-se ao repensamento da identidade da Igreja a
partir da iniciativa trinitária, que a funda como comunhão, arti­
culada na variedade dos dons e dos serviços (Lumen Gentium);
de outro, percebe-se a busca orientada no sentido de “situar” a
Igreja .como “saóramento da salvação” no contexto do mundo
contemporâneo (Gaudium et Spes). Assim, a redescoberta da
identidade eclesial e a reflexão sobre a sua relevância como
“comunhão” e “serviço” caracterizam a renovação conciliar, fru­
to de múltiplas renovações do nosso século na teologia e na
Igreja.
Nestes últimos anos, o desenvolvimento dessas duas pistas
devia levar à segunda fase da vida eclesial: o “deslocamento” .
A passagem da “renovação” para o “deslocamento” realiza-se de
acordo com dois momentos, gradualmente relacionados. Inicial­

50
mente, na denominada etapa dos comentários, a tendência é
voltar, de maneira quase exclusiva, ao Vaticano II, a fim de
expor e debater as suas idéias e fazer a “primavera do Concilio”
passar para o raio de incidência mais amplo possível. No plano
das estruturas, o início de aplicação da eclesiologia conciliar
comporta o processo de valorização das Igrejas locais e a criação
e desenvolvimento de estruturas colegiais, em nível de comunhão
local, regional e universal de Igrejas. De maneira análoga, a inspi­
ração da Gaudium et Spes se traduz numa nova atenção aos
componentes pluralistas da sociedade — é a hora do diálogo! —
e ao pluralismo das sociedades em que a Igreja está colocada.
Essa práxis de “aplicação” do Concilio faz emergir, com toda
a sua gravidade, questões apenas acenadas pelo Vaticano II, ou
que ele havia elaborado insuficientemente, ou que simplesmente
não havia considerado. No entanto, tais questões devem ser re­
solvidas pela teologia. Para citar apenas alguns exemplos, lem­
bremos: a elaboração de uma reflexão pneumatológica (apenas
incipiente no Concilio), impulsionada por novas formas de expe­
riência cristã, como o movimento carismático; o desenvolvimen­
to de uma teologia dos carismas e dos ministérios, necessária
para orientar concretamente a renovação das comunidades cris­
tãs; a ampla guinada antropológica no horizonte teológico, esti­
mulada pelo diálogo com o mundo contemporâneo; as teologias
da práxis política e da libertação. A descentralização eclesioló-
gica e a nova atenção aos diferentes contextos em que a Igreja
se faz presente suscita inúmeros problemas, que abalam a eufo­
ria da renovação, colocando-a frente a frente com a realidade
histórica. A conseqüência desse impacto se destaca no conjunto
das inquietações e tensões não resolvidas da Igreja pós-conciliar.
Em teologia, a sensação é de se estar “deslocado”.
A fase da “deslocação” — em que ainda nos encontramos!
— está relacionada com três características da elaboração teoló­
gica, surgidas no último decênio.
A prim eira consiste no aparecimento de novos lugares geo­
gráficos de elaboração teológica, ao lado dos tradicionais. Na
América Latina, na África, no Extremo Oriente já se começa a
delinear na comunidade cristã uma consciência criticamente ela­
borada em contextos e com instrumentos culturais totalmente
diferentes daqueles em que o cristianismo foi pensado durante
séculos. As conseqüências de tal passagem ainda não são calcu­

51
láveis. Sinais de imaturidade podem às vezes ser encontrados
nesse processo, dado o profundo arraigamento das relações tra­
dicionais de dependência, mas não devem justificar reações alar­
mistas e paralisadoras. É um processo irreversível, que suscita
a problemática de um “situar-se” da teologia, que saiba conser­
var a unidade da fé e da comunhão eclesial. Entretanto, os teó­
logos, que até um decênio atrás monopolizavam a reflexão cris­
tã, começam a sentir-se redimensionados, contestados, “desloca­
dos”. Nesse panorama está, no Terceiro Mundo, subdesenvolvi­
do e oprimido, a teologia da libertação. Com base na ação de
Iahweh que liberta o povo de Israel e na missão libertadora de
Jesus, os povos latino-americanos, a partir de sua dura realida­
de, “vivem” a sua teologia, procurando torná-la uma prática
libertadora. É uma teologia vivenciada especialmente através
das comunidades eclesiais de base. Estas analisam a palavra de
Deus confrontada com a vida de cada dia, em todos os aspectos:
eclesial, familiar e social.
A segunda característica da teologia dos últimos anos está
no surgimento de novos temas da elaboração teológica. A cons­
cientização dos batizados, deslanchada pelo despertar do laica-
to antes do Concilio e por este incentivada na eclesiologia da
comunhão, faz com que muitos sintam a necessidade de partici­
par do saber teológico e, conseqiientemente, de produzi-lo. Não
só se multiplicam as iniciativas de formação teológica dos leigos,
mas também emerge sempre mais a reivindicação de um direito
da palavra para todos, de uma “teologia popular” exercida nas
formas mais variadas de participação na vida eclesial. Essa “teo­
logia fora da teologia” faz com que os profissionais da teologia
se sintam “deslocados”. Tal realidade não pode ser ignorada ou
qualificada como simples moda ou expressão-superficial. Muitas
vezes, ela está, carregada daquela força crítica da práxis, que
falta na teologia “oficial” e que deriva do fato de estar “situada”,
o que com freqüência não ocorre com a reflexão dos teólogos.
Finalmente, a evolução da teologia na Igreja dos últimos
anos evidencia o emergir de novos processos de elaboração do
pensamento. Não é no ambiente muitas vezes asséptico e rare-
feito das salas de aula, mas na realidade viva das tensões histó­
ricas e políticas que se pede aos teólogos para expor a razão da
esperança que vive neles. Descobre-se que a teologia dominante
é, freqüentemente, apenas a teologia das classes dominadoras,

52
que fazem dela uma ideologia. Acaba-se compreendendo que “na
reflexão teológica, ignorar que o chamado ‘espírito moderno’ —
interlocutor da teologia progressista — é em boa parte reflexo
da ideologia capitalista e burguesa, permite apenas fazer algu­
mas escaramuças de retaguarda com os restos de um mundo em
decomposição". Procura-se desideologizar a teologia. Para fazê-
-lo, percebe-se a necessidade de elaborá-la “a partir de baixo” —
o que “não significa partir do homem para ir a Deus... mas
partir do universo de opressão e de aspiração à liberdade em
que vivem os pobres, partir da fé vivida e pensada na situação
das classes exploradas, das raças desprezadas, das culturas mar­
ginalizadas”. Em resumo, uma teologia “que tome como ponto
de partida a outra parte, o reverso da história”.89 Mais uma
vez, o teólogo clássico sente-se “deslocado”, superado por aque­
les que, na comunidade de fé, são mais operantes no plano da
caridade social e política e da esperança vivida. Somente “situan­
do-se” de maneira crítica poderá o teólogo evitar esse risco de
alienação e prestar um serviço eficaz de discernimento e de
orientação para a práxis.

2 .3 . POR UMA CRISTOLOGIA COMO HISTÓRIA

Para a metodologia de uma reflexão crítica da fé cristã sobre


Jesus Cristo, quais são as conseqüências derivadas da aceitação
da “razão histórica” e o conseqüente desafio a “situar-se” criti­
camente nas mudanças atuais? Como falar de Jesus Cristo aos
homens de hoje, marcados pela sensibilidade histórica na men­
talidade e na práxis? Como resposta a essas questões, antes de
mais nada é preciso enfatizar que para assumir ciente e coeren­
temente a “razão histórica”, para aceitar o desafio do “situar-se”

8 O que acontece com a teologia não passa de um aspecto do pro­


cesso mais geral, que hoje com freqüência se denomina “inculturação” :
cf. A. A. Roest-Crcllius, “ What is so new about Inculturation?” in Gre-
gorianum 59 (1978), pp. 721-37.
9 G. Gutiérrez, “I limiti delia teologia moderna. Un testo di Bon-
hoeffer” in Concilium, 1978, pp. 786.789.790.

53
criticamente, o teólogo não deve aventurar-se em terra estranha,
embora possa ser essa a impressão que cause a ausência de di­
mensão histórica da teologia escolástica predominante do pas­
sado recente. Na realidade, a exigência de pensar historicamente
funda-se na própria estrutura da teologia cristã, sobretudo da
cristologia, chamadas a refletir criticamente e de maneira siste­
mática sobre o “mistério” presente no fragmento de história
que foi a vida do Nazareno, conhecida através do testemunho
pascal da Igreja nascente. É à obra e ao destino de }esus Cristo
que o teólogo deve dirigir-se para investigar o fundamento e a
matéria do seu próprio pensamento. Por sua vez, esse voltar-se
para o passado fontal é vivido em vista de um agir sobre o pre­
sente, para criar o futuro de maneira sempre nova. Assim, a cris­
tologia, por sua natureza, situa-se na história e, como vimos,
é provocada por ela. Ao mesmo tempo, a história se coloca no
próprio coração da cristologia, como “forma” na qual se pode
desenvolver, de maneira mais fiel, o discurso cristão sobre Deus.
Em outras palavras, coerentemente com a “pretensão” cristã,
deve-se afirmar: dado que Deus se fez história, os termos histó­
ricos, concretos e terrenos, são os únicos nos quais é possível
falar dele com menor infidelidade. O lugar da epifania da Pala­
vra é a história, e não o indivíduo em suas experiências místi­
cas ou na lucidez de sua razão “pura”.101
Para considerar as implicações da aceitação da “razão histó­
rica” na metodologia do discurso cristológico, é necessário escla­
recer preliminarmente o que se entende por “história” .11 O con­
ceito de história que aqui empregamos não é o positivista, que
■a reduz a simples sucessão de fatos, a um devir sem sentido da
matéria bruta, a uma soma de “bruta facta”. À base de tal con­
cepção está uma teoria acrítica do conhecimento, o “realismo
ingênuo”, que, identificando o conhecimento com o registro dos
fatos, não reconhece que o “fato” é o que se evidencia num

10 Cf. os posicionamentos do “círculo de Heidelberg” : W. Pannen-


berg, R. Rendtorff, T. Rendtorff, U. Wilckens, Rivelazione come síoria,
Bolonha, 1969.
11 Cf. A. Darlap, J. Splett, “Storia e storicità” in Sacramentum
Mundi V III, Bréscia, 1977, pp. 70-87; V. Melchiorre, “Storia (punto di
vista filosofico”) in Dizionario Teologico Interdisciplinare III, Turim,
1977, pp. 323-37; P. Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, Turim,
1971; L. Aliei, Tempo e storia. II “divenire” delia filosofia dei ’900,
Roma, 1978.

54
juízo de experiência, onde a compreensão do sujeito desempe
nha papel determinante.12 “História” é sempre condição de exis­
tência, pela qual o sujeito, radicado no seu passado, toma posi­
ção diante dele e se projeta na liberdade para o futuro. “Histó­
ria” é o “situar-se” do espírito, na consciência e na liberdade, o
seu pôr-se no hoje diante do ontem e o seu pro-por-se diante do
amanhã. Neste sentido, só há história onde há espírito, isto é,
onde existe capacidade de situar-se consciente e livremente no
devir. Neste mesmo sentido, o objeto da história é “interno” (cf.
o “Erlebnis” em Dilthey), isto é, captado na própria experiência
com a qual o homem compreende a si mesmo. Contra uma redu­
ção idealista, na qual a história vivida é absorvida na história
conhecida,13 é preciso sublinhar: não há história sem consciên­
cia, mas isso não torna vã a objetividade da própria história. O
“situar-se” do espírito se realiza sempre em relação a um “dado”,
ao “extra nos” já pronto, que no presente é assumido e julgado
para inventar o futuro. Esse “dado” é a soma das condições eco­
nômicas, sociais, políticas, culturais, espirituais, objetivas e sub­
jetivas, e das codificações lingüísticas, nas quais cada um está
situado. E aqui as análises marxista e estruturalista corrigem uma
colocação puramente existencial. “História”, portanto, é conhe­
cimento e juízo desse “dado” — o “já disponível”, o passado — ,
e, ao mesmo tempo, é livre construção do futuro (“assumptio
praeteriti” e “inventio futuri”). Em outras palavras, a totalidade
existencial do viver a história, o situar-se vivo no devir, abrange
ao mesmo tempo a relação com o “já ” dado, revisto e critica­
mente assumido, e a relação com o “ainda não”. Aqui está o
fundamento da clássica distinção entre a história como reencon­
tro do passado, como saber histórico, e história como vida, toma­
da de posição presente com relação ao “já”, que, neste mesmo
ato, é criadora do futuro. E ao mesmo tempo aqui está a exi­
gência de uma profunda e contínua conexão entre os dois pólos
do “saber” histórico e do “existir” histórico. O primeiro é visto
em função do segundo, como o segundo é criticado e fundado
pelo primeiro (cf. o que dissemos antes sobre o círculo herme­

12 Sobre o positivismo histórico, cf. J. Hours, Valore delia storia,


Roma, 1966, pp. 63-74.
13 Sobre a concepção idealista da história, cf., por exemplo, B.
Croce, Teoria e storia delia storiograjia, Bari, 1948, 6; ed., e La storia
come pensiero e come azione, Bari, 1952, 5* ed.

55
nêutico, teoria e práxis). A história como “assumptio praete-
riti” implica o conhecimento histórico, a compreensão do passa­
do, revivendo e reproduzindo a experiência dos outros. Nesse
sentido, a essência do método histórico está no “compreender
indagando” (Droysen), e a sua operação fundamental é a com­
preensão como “reencontro do eu no tu” (Dilthey). A natureza
do objeto do saber histórico será então o concreto, o individual,
enquanto oposto ao caráter genérico, uniforme e repetitivo dos
objetos do conhecimento natural. Assim entendido, o método
histórico implica, de um lado, a abordagem respeitosa do dado,
e, de outro, nunca prescinde do presente. A compreensão históri­
ca do passado está sempre carregada de significado existencial,
interpelada pelo hoje e interpelante do hoje, e nisto criativa do fu­
turo. Mas isso não quer dizer que só possamos conhecer do passa­
do o que está em analogia com o presente: se a “razão históri­
ca é verdadeiramente razão aberta”, ela conhece o radical­
mente novo, mesmo que seja na forma da admiração ou da rup­
tura dialética. Na sua capacidade de conhecimento dialético, a
razão histórica se abre também para o radicalmente novo, que,
segundo a pretensão cristã, é dado na ressurreição de Jesus
Cristo.14
O que comportam essas indicações, quando aplicadas à
reflexão cristológica? Pode-se dizer, fundamentalmente: em teo­
logia, a história exige que a reflexão crítica da fé cristã sobre
Jesus Cristo seja situada precisamente, isto é, se refira, segundo
a forma própria do método histórico, ao passado, ao presente
e ao futuro; ou seja, no presente assuma o passado para orien­
tar o futuro.
Em relação ao presente, uma cristologia historicamente si­
tuada exige que s.e parta do hoje e que seja significativa para
ele. Em"cristologia, partir do hoje significa, antes de mais nada,
partir da fé contemporânea em Jesus Cristo, como é professada
na pregação, na liturgia e na práxis das Igrejas cristãs.15 Foi nes­

14 Neste sentido, parece restrita a perspectiva de um conhecer ana­


lógico e não dialético uma posição como a seguinte: “Nous ne pouvons
comprendre que ce qui, dans une assez large mesure, est déjà nôtre, fra-
ternel, si 1 autre était complètement dessemblable, étranger à cent pour
cent, on ne voit pas comment sa compréhension serait possible”: H. I.
Marrou, De la connaissance historique, Paris, 1966, 5? ed., p. 89 (ed.
bras.: Sobre o conhecimento histórico, Zahar, Rio de Janeiro, 1978
265 p .).

56
sa viva “traditio ecclesiae” que nos chegou a memória viva de
Jesus, e é nela que o fiel aprende vitalmente a articular a pró­
pria fé. A comunidade eclesial constitui, como vimos, o círculo
hermenêutico no qual a fé cristã se torna comunicável e recep-
tível. Ora, a cristologia assume criticamente essa fé e a relacio­
na com o dado fontal e normativo da Palavra feita carne em
Jesus Cristo. É nessa medida que a reflexão teológica se torna
consciência crítica da própria comunidade eclesial, e por isso
mesmo carregada de força existencial — embora não puramen­
te funcional e relativa, precisamente porque fundada no “extra
nos” já dado pela revelação. O assumir o presente não se limi­
ta, é claro, à comunidade eclesial. Mas exige ser historicamente
responsável com relação à situação mais ampla em que a pala­
vra cristã é chamada a se fazer ouvir. Isto requer, por um lado,
atenção às interrogações dos contextos humanos e às estruturas
lingüísticas atuais, a fim de que a mensagem possa verdadeira­
mente atingir o homem; por outro, exige o discernimento dos
dados evangélicos na história terrena atual — os “signa tempo-
rum” — , nela presentes por força da dimensão crística de toda
a criação (“Todas as coisas foram criadas por meio dele e em
vista dele” : Cl 1,16; cf. Jo 1,3) e da dimensão cósmica da Encar­
nação (“O que não é assumido não é salvo” : Gregório Nazian-
zeno, Ep. 101: PG 37, 181s). Em outros termos, o presente do
mundo é lugar da teologia. Por isso é necessário ler a história
no Evangelho, mas é também necessário ler o Evangelho na his­
tória. Uma cristologia historicamente pensada não pode descu-
rar o presente, nas suas expressões reflexas e nas relações de
dependência social, econômica e política que o caracterizam,
ainda que essa cristologia dele se ocupe apenas do ponto de
vista do significado de Jesus Cristo diante de tudo isso.
Mas não é só nos conteúdos que incide a referência ao pre­
sente, que a razão histórica exige da cristologia. Há também uma
existencialidade “formal”, de mentalidade, linguagem e valor prá­
ticos, que a história coloca como exigência no interior do discurso
cristológico. A unidade do saber histórico e do viver histórico,
isto é, da história como pensamento e como ação, a recíproca15

15 Cf., para o que se segue, W . Kasper, Gesü il Cristo, Bréscia,


1975, pp. 25ss; também K. Rahner, “Linee fondamentali di una cristolo­
gia sistemática” in K. Rahner, W . Thüsing, Cristologia. Prospettiva siste­
mática ed esegetica, Bréscia, 1974, p. 18.

57
“conversio” do “verum” e do “factum” (Vico), a circularidade
teoria-práxis, postulam para a teologia cristã sobre Cristo um
caráter narrativo-dinâmico. Por meio desse caráter, a teologia
não só narra o evento, mas o provoca, ou seja, é contagiante no
seu efeito prático-crítico.16 Embora reconhecendo a existência
de um esforço de formulação,17 isto é, que elabore as fórmulas
de expressão da fé cristã, é preciso admitir, em cristologia, o
papel determinante da narração dos “mistérios” da vida de
Jesus, prenhes da força contagiante que falta nas sistematizações
escolásticas.18 Essa dimensão narrativo-dinâmica foi expressa
com rara eficácia na parábola do rabino, contada por M. Buber
e não por acaso citada por E. Schillebeeckx na conclusão de seu
livro sobre Jesus: “Meu avô era paralítico. Certo dia, lhe pedi­
ram que contasse uma história sobre seu mestre, o grande Baal
Shem. Então ele contou como o santo Baal Shem tinha o costu­
me de pular e dançar enquanto orava. Meu avô levantou-se e
contou. A história o empolgou a tal ponto que ele mostrou, sal­
tando e dançando, como o mestre tinha agido. A partir desse
momento ele ficou curado. Essa é a maneira de contar histó­
rias” .19 Essa é a maneira de fazer teologia!
Em relação ao passado, uma cristologia histórica deve com­
preender indagando o objeto concreto e individual da fé cris­
tã; isso envolve o problema da acessibilidade histórica desse
objeto,- que se articula nos termos da relação entre o Jesus da
história e o Cristo da fé. Remetendo tal exposição às reflexões
sobre a história da cristologia, aqui é preciso simplesmente evi­
denciar o primado absoluto que a narração bíblica tem para a
reflexão crítica da fé cristã sobre Jesus Cristo, tanto em força
dos conteúdos históricos que transmite, quanto devido ao regis­
tro do testemunho pascal da comunidade das origens. Contra
uma cristologia sob o signo da metafísica, como foi a cristologia
dos manuais do passado, isso significa prestar a maior atenção
ao “concretissimum” da ação revelativo-salvífica, criticamente

16 Cf. a este respeito E. Schillebeeckx, Gesú, la storia di un vivente,


Bréscia, 1976, pp. 71ss. Cf. também G. Baudler, Wahrer Gott ais wahrer
Mensch. Entwürfe zu einer narrativen Christologie, Munique, 1977.
17 Cf. J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, Florença, 1977, p. 20.
18 Cf. A. Grillmeier, “Considerazione storica sui misteri di Gesü
in generale”, in Mysterium Salutis VI, Bréscia, 1971, pp. 12-35.
19 M. Buber, Werke, III, Munique, 1963, p. 71, citado em É. Schil­
lebeeckx, Gesú, la storia di un vivente, op. cit., p. 714.

58
abordada segundo as exigências do método histórico. Biblicida-
de da cristologia não significa apenas assumir materialmente
os conteúdos bíblicos, mas também reencontrar uma experiên­
cia, adquirir uma pista de reflexão. A comunidade nascente co­
meçou a refletir sobre Jesus Cristo relendo retrospectivamen­
te, à luz da Páscoa, a história do Nazareno e a de Israel, e
visualizando, em perspectiva, o tempo da Igreja. Assim também
uma cristologia historicamente pensada partirá da Ressurreição
para reler a história do homem Jesus como revelação da histó­
ria trinitária de Deus, e a história da humanidade inteira na sua
relação com Cristo, o Deus da história. Dessa forma, supera-se
a contraposição artificial entre uma cristologia do alto e uma
cristologia de baixo.20 Enquanto parte do evento da Ressurrei­
ção, que é o evento da proclamação gloriosa realizada pelo Pai
no Espírito Santo sobre Jesus como Senhor, a cristologia histo­
ricamente pensada é “do alto”, porque aborda as obras e os
dias do Nazareno, sabendo encontrar nelas a história de Deus
na carne do mundo, a humanidade de Deus. Mas, ao mesmo
tempo, essa cristologia parte de um evento histórico (na sua for­
ma própria), como é o evento pascal, relê os “mistérios” da
vida de Jesus como eventos da história, e se coloca do lado dos
homens, indagando que sentido tem para eles a história de
Jesus Cristo. Assim considerada, é uma cristologia “de baixo”,
que se aproxima do mistério de maneira ascendente e econômica,
partindo dos eventos concretos da história de Deus com o ho­
mem. Portanto, da mesma forma que na reflexão fontal da Igreja
das origens e na fé eclesial hoje confessada, é ao mesmo tempo
a cristologia da Luz que vem e a cristologia da evolução histó­
rica do Nazareno e da fé dele para a luz. É ao mesmo tempo a
cristologia da absoluta liberdade do Deus trinitário e a cristolo­
gia da liberdade situada de Jesus frente à sua vida e morte. É a
cristologia do dom ilimitado, da alegre e libertadora plenitude
dos tempos, e a cristologia da finitude, da dor e da cruz. É a cris­
tologia da divindade que se revela na humanidade, da luz que
brilha nas trevas, da infinita liberdade no amor que se mani­
festa nas opções da liberdade concreta do homem de Nazaré. É

20 Cf., por exemplo, W. Pannenberg, Cristologia, lineament fon-


damentali, Bréscia, 1974, pp. 21ss; J. Moítmann, li Dio crocifisso, Brés-
cia, 1973, p. 108; C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, pp. 7ss.

59
o alto que se manifesta naquilo que é baixo, é o humano que se
oferece como rosto de Deus.
A referência primária e normativa ao passado fontal do
testemunho bíblico não acarreta uma subestima da reflexão cren­
te no tempo, e em particular do dogma. O recurso ao passado,
a “assumptio praeteriti”, própria do método histórico, e a fé
no Espírito que age em qualquer estação da vida eclesial, exigem
rigorosa atenção à história da fé cristã e das suas expressões
reflexas. Todavia, essa história deve ser constantemente con­
frontada com os dados fundamentais da Escritura. Em outras
palavras, o problema suscitado pelo dogma não é simplesmente
a sua tradução em categorias contemporâneas, ao menos em ter­
mos prioritários; é a sua hermenêutica no tecido concreto do
momento histórico em que foi expresso e de sua avaliação críti­
ca com relação ao testemunho bíblico.
Em relação ao futuro, uma cristologia historicamente pen­
sada sublinhará o caráter escatológico da fé cristã. Refletindo
sobre a “historia salutis”, ela é chamada a captar no “já ” a força
oculta do “ainda não”, a prestar atenção às dimensões dq êxodo
e do Reino, do provisório e do definitivo, presentes na história
de Deus para o homem e do homem para Deus. Em conseqiiên-
cia disso, no plano da forma do pensamento, urge uma cristolo­
gia aberta para o futuro, crítica e estimulante com relação à
Igreja; que é por natureza “semper reformanda”; urge uma cris­
tologia que abale o presente para abri-lo, na força do Espírito,
para uma “forma futuri”, fermentando o hoje para o futuro pro­
metido em Cristo. E, ao mesmo tempo, urge uma cristologia pe­
regrina, sempre incompleta, “theologia viatorum”, ciente de que
pode apenas balbuciar algo sobre Aquele que certamente é capaz
de entrever, mas jamais de possuir plenamente. A verdade da
fé cristã, da qual a teologia é consciência criticamente estru­
turada, fundamentando-se no evento da Ressurreição, não pode
reduzir-se a adequar o intelecto à realidade. A verdade cristã é
sobretudo um esforço para adequar a realidade atual à realidade
que há de vir. Assim, o próprio futuro, como dimensão e pro­
messa, é fonte de cristologia, é horizonte aberto para Cristo,
que liberta da prisão do presente, subvertendo-o e orientando-o.
Essa abertura para o futuro, essa sempre esperada superação de
sentido, impede que se reduza a mensagem a um gueto, forçan-
do-a a acentuar esta ou aquela teologia, e coloca, sob a única

60
norma verdadeira, a Palavra na história e na Igreja, para apelar
à conversão não de uma ideologia para outra, não de uma Igreja
para outra, não de uma teologia para outra, mas de todas elas
para o Cristo vivo na força do seu Espírito. Por acaso, não con­
siste nisso a dimensão ecumênica de uma teologia historicamen­
te pensada?
Portanto, em cristologia a história leva à superação de uma
colocação metafísica, conceituai e abstrata, a favor de uma
perspectiva bíblica, existencial e dinâmica. Esta, no caminho do
tempo, revive a experiência fontal da reflexão e do anúncio da
Igreja nascente, emprega uma linguagem narrativa e contagian-
te, e é corajosamente profética na denúncia do presente e na
abertura para o futuro. Tal reflexão crítica da fé sobre Jesus
Cristo poderá realmente ajudar a Igreja a ser a viva “sequentia
sancti Evangelii”, que narra e escreve na história do mundo o
diálogo de libertação do homem e da glória de Deus, diálogo
que se tornou possível no Senhor Jesus.

61
SEGUNDA PARTE

HISTÓRIA DA CRISTOLOGIA
3

A ESPERANÇA DE ISRAEL

Antigo Testamento e cristologia

3 .1 . O DEUS DA PROMESSA

Por que indagar sobre a relação entre Antigo Testamento


e cristologia? O Deus de Israel tem algo a dizer à fé dos cristãos?
E a história deste povo singular contribui de alguma forma para
iluminar o evento de Jesus Cristo, anunciado pela comunidade
do Novo Testamento? Justifica-se dizer, como são Jerônimo, que
“ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo”?
A resposta a essas perguntas pode parecer evidente; Jesus
é um hebreu que nasceu e se formou no seio de seu povo. O
Deus que ele anuncia não é outro senão o de Israel. Portanto,
para compreendê-lo, é necessário compreender a terra e o povo
do qual ele veio. Foi o que fez a própria comunidade das ori­
gens, esforçando-se por ler a história do Nazareno “segundo as
Escrituras”, isto é, na tradição da fé e da esperança de Israel.1
Contudo, essas considerações “óbvias” deram ensejo, no desen­
volvimento da reflexão cristã, a interpretações bastante diferen­
tes. A relação entre Antigo e Novo Testamento foi entendida
ora de acordo com uma orientação “tipológica”, pela qual o
Antigo prefiguraria o Novo (Novum in V etere latet), ora de
acordo com a chamada plenitude de sentido, pela qual o Novo
manifestaria plenamente o que no Antigo é apenas implicita­
mente significado (Vetus in N ovo patet), ora ainda de acordo
com a relação de correspondência-realização, inerente à estrutu­
ra da promessa.12 Na tradição cristã a tendência dominante foi

1 Cf. Mc 14,49; Mt 1,22; Lc 24,44; Jo 12,38; ICor 15,3s.


2 Cf., sobretudo, as teologias do Antigo Testamento (também para
o que se segue): por exemplo, W. Eichrodt, Theologie des Alten Testa-

65
a tipológico-alegórica; entre os dois Testamentos se estabelece
um paralelismo representativo, mediante o qual já está presente
no Antigo, sob forma de tipo e de alegoria, aquilo que é narra­
do no Novo. A origem desse modo de interpretar parece remon­
tar a um fato: quando o cânon neotestamentário ainda não
estava redigido nem fixado, os cristãos se esforçavam para
captar, no único cânon à sua disposição, o veterotestamentário,
a história de Jesus, centro e fundamento de sua fé. Por esse
caminho, chegou-se a presumir que todos os sinais e eventos do
anúncio evangélico deviam encontrar-se como que velados sob
as palavras das Escrituras de Israel. Daí para a interpretação
apologética do Antigo Testamento a passagem foi breve: julgou-
-se que a narração antecipada dos eventos da história de Jesus
de Nazaré, encontrados sob o véu das palavras proféticas e histó­
ricas das antigas Escrituras, era motivo indiscutível de credibili­
dade da revelação cristã. Mas essa interpretação, querendo pro­
var demais, se tornou muito fraca: de um lado, elimina a real
progressividade histórica da revelação; de outro, não dá espaço
suficiente para a novidade neotestamentária, para a absoluta
indedutibilidade do que acontece em Jesus Cristo, tornando-se
até mesmo supérfluos os escritos do Novo Testamento. “Assim
fica abolida... não apenas a história da salvação contida no

ments, I-IIF, Gõttingen, 1957-1961; E. Jacob, Théologie de VAncien Tes-


tament, Neuchâtel, 1968, 2* ed.; G. von Rad, Teologia delVAntico Testa­
mento, I-II, Bréscia, 1972 (cf. especialmente II vol., pp. 385-494) (ed.
bras.: Teologia do Antigo Testamento, ASTE, São Paulo, 1974, 2 vols.).
Cf., além disso, J. Coppens, “II problema dei sensi biblici” in Concilium
1967, 10, pp. 135-50; F. Festorazzi, "Antico Testamento” in Nuovo Dizio-
nario di Teologia, Roma, 1978, pp. 1-12; G. Fohrer, “Das Alte Testament
und das Thema ‘Christologie’ ” in Evangelische Theologie 30 (1970),
pp. 281-98; N. Füglister, “Fondamenti veterotestamentari delia cristolo-
gia dei Nuov© Testamento” in Mysterium Salutis V, Bréscia, 1971, pp.
139-287; P. Grelot, Sens chrétien de VAncien Testament, Paris, 1962, e
La Bible Parole de Dieu, Paris, 1965; H. Gross, “Zum Problem der Ver-
heissung und Erfüllung” in Biblische Zeitschrijt 3 (1959), pp. 3-17; A. T.
Flanson, Jesus Christ in the Old Testament, Londres, 1965; N. Lohfink,
“L ’interpretazione storica e 1’interpretazione ‘cristiana’ dei Vecchio Testa­
mento” in Esegesi biblica in cambiamento, Bréscia, 1973, pp. 159-83; C.
Westermann, L ’Antico Testamento e Jesu Cristo, Bréscia, 1976 (ed. bras.:
O Antigo Testamento e Jesus Cristo, Edições Paulinas, São Paulo, 1979,
82 p .); E. Zenger, Der Gott der Bibel. Éin Sachbuch zu den Anfüngen
des alttestamentlichen Gottesglauben, Stuttgart, 1979. A expressão “Quod
in Vetere Testamento latet, in Novo patet” encontra-se em Agostinho,
D e spiritu et littera 7.

66
Antigo Testamento, mas perdem seu valor de acontecimentos
históricos também o fato único da encarnação de Jesus Cristo
e o da pregação dessa encarnação por parte dos apóstolos” .3 O
pressuposto de tal concepção consiste em julgar que o desenvol­
vimento histórico não pode atingir as verdades “atemporais” con­
tidas na revelação. Mas esse pressuposto é insustentável para
quem leva a sério a encarnação de Deus, o fazer-se-homem do
Verbo, e não confunde a verdade-fidelidade do Deus bíblico
com a verdade imutável e atemporal do pensamento grego.
Por isso, a preparação veterotestamentária para o Novo
Testamento deve ser procurada em outra direção, não no senti­
do de alegoria, mas no de história. Ou seja, no sentido de um
devir da revelação, de uma história da Palavra, que não pres­
cinde da progressividade concreta e contraditória do caminho de
Israel, mas que se realiza nela e através dela, não segundo ante­
cipações harmônicas do futuro, mas segundo as duras leis do êxo­
do diário para o futuro. De acordo com essa perspectiva, as
Escrituras não são símbolos ou alegorias daquilo que acontecerá
mais tarde na obra e no destino de Jesus Cristo, não contêm
verdades atemporais. Mas conservam todo o seu peso e a sua
densidade de testemunhos de uma história vivida: a história de
um povo único e das intervenções do seu Deus nela, o devir da
salvação, o desenvolvimento atormentado da relação entre a his­
tória de Israel e seu Deus. Nesta luz, o evento de Jesus Cristo,
conforme é anunciado no Novo Testamento, como evento do
novo e inaudito encontro entre a história de Deus e dos homens,
encontra, naquilo que o precede em Israel, a sua chave de leitu­
ra mais apropriada. Além disso, ilumina de maneira nova o
caminho precedente, dando sentido e alcance às várias etapas
da promessa e da espera. Se não for possível indicar antecipa­
ções precisas e isoladas das obras e dias de Jesus na história
veterotestamentária, frustrando as expectativas da apologética
tradicional, encontrar-se-á muito mais amplamente, em todo
Israel e na sua originalíssima história de promessa e esperança,
o pano de fundo no qual o Nazareno se forma e se situa, e que
ao mesmo tempo subverte e reinterpreta. Lida nessa perspectiva
histórica, a expressão neotestamentária “segundo as Escrituras”
indica uma dupla relação: de um lado, a relação do passado com

3 O Culmann, Cristo e il tempo, Bolonha, 1969, 4? ed., p. 163.

67
o presente, no sentido de que as categorias e esperanças do Anti­
go Testamento são o horizonte no qual Jesus Cristo deve ser,
antes de tudo, compreendido; 4 de outro lado, a relação do pre­
sente com o passado, no sentido de que o evento Jesus Cristo
tem um caráter de novidade absoluta e indedutível frente ao que
o precede, e por isso ilumina, de maneira nova, a própria espe­
rança de Israel. Este segundo aspecto ficará mais claro quando
tratarmos da atitude de Jesus frente à tradição do Antigo Testa­
mento. Por ora, o que nos interessa é a primeira relação: Como
a história de Israel prepara e permite interpretar a história de
Jesus de Nazaré? Qual o horizonte próximo ou remoto, em
que se situa o evento anunciado no Antigo Testamento?
“O povo de Deus, no qual Jesus Cristo nasceu e do qual
é a flor suprema e... o fruto que ultrapassa a promessa das
flores, é o povo da Palavra”.5 "Onde outros não perceberam
mais do que um silêncio infinito, Israel ouvia uma voz. Israel
pôde descobrir que o Deus único é audível e interpelável, que
vai para o meio dos homens, dizendo Eu e fazendo-se Tu para
eles: é o Tu que fala e a quem se pode falar”.6 A história de
Israel é a história do diálogo ininterrupto e sempre novo com
o seu Deus. Chamado por Deus para a terra da promessa, esse

4 Esta compreensão de Jesus a partir de Israel encontra uma expres­


são interessantíssima na literatura hebraica sobre Jesus: cf., entre as
obras recentes,' M. Buber, Zwei Glaubensweisen, Zurique, 1950, e Der
Jude und sein Judentum, Colônia, 1963; J. Carmichael, La morte di Jesú,
Roma, 1971; S. Ben Chorin, Bruder Jesus. Der Nazarener in judischer
Sicht, Munique, 1970; H. Cohen, Trial and death of Jesus, Tel Aviv,
1968; A. Finkel, The Teacher of Nazareth, Leiden, 1964; D. Flusser,
Jesus in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten, Hamburgo, 1968; J. Isaac,
Gesu e Israele, Florence, 1976; J. Krausner, Jesus von Nazareth, Jerusa­
lém, 1952; P. Lapide, Jesus in Israel, Gladbeck, 1970; D er Rabbi von
Nazaret. Wandlungen des jüdischen Jesusbildes, Trier, 1974, Ist das
nicht Josephs Sahn? Jesus im heutigen Judentum, Stuttgart-Munique,
1976, e Auferstehung. Ein jüdisches Glaubenserlebnis, Stuttgart-Muni­
que, 1977; S. Sandmel, We Jews and Jesus, Londres, 1965; S. Schwartz,
La réhabilitation juive de Jésus, Martizay, 1969; G. Vermes, Jesus the
Jew. A historian’s reading of the Gospel, Londres, 1973. Cf. também:
M. Goldstein, Jesus in the Jewish Tradition, Nova York, 1950, e R.
Pesch, “Christliche und jüdische Jesusforschung” in Jesus in den Evan-
gelien, Stuttgart, 1970, pp. 10-37. Cf. finalmente H. Küng — P. Lapide,
Gesú, segno di contradizione, Bréscia, 1980.
5 L. Bouyer, II Figlio eterno. Teologia delia Parola di Dio e cris-
tologia, Alba, 1977, p. 38.
6 H. Küng, Essere cristiani, Milão, 1976, p. 338 (ed. bras.: Ser cris­
tão, Imago, Rio de Janeiro, 1976, 570 p .).

68
povo nômade jamais perdeu a sua religiosidade originária, liga­
da ao movimento e aberta ao futuro, nem mesmo quando se
estabeleceu na terra já conquistada. O seu Deus permaneceu o
Deus dos nômades, o Deus da migração, da promessa, da inter­
venção sempre nova, sem se deixar prender, como os deuses
dos povos vizinhos, no ciclo da semeadura e da colheita, no
ritmo sempre igual das estações que se repetem.7 Prova disso
são as festas cíclicas anuais, próprias da civilização agrícola
sedentária: quando foram acolhidas por Israel, receberam a car­
ga de um novo significado, relacionado com os eventos históri­
cos da promessa: isto é, foram “historicizadas”.8 Assim, o Deus
de Israel nunca se tornou um Deus que sanciona o presente,
vinculado aos lugares e ao ritmo inalterável da realidade cósmi­
ca. Ele sempre permaneceu o Deus que impele para o futuro,
que inquieta a fartura suscitando fome, que sustenta o desenca-
minhamento suscitando esperança, que liberta da prisão do pre­
sente suscitando o futuro. E faz tudo isso através da Palavra.
Não é o Deus das teofanias, que sacralizam um tempo ou
lugar, mas o Deus que fala, que entra em diálogo com o seu
povo, que julga, promete e consola. É o Deus da aliança (cf.
Ex 19ss) e do encontro nupcial (cf. Os 2). O Deus que sabe
amar e repudiar, alegrar-se e sofrer, decidir-se e arrepender-se.
O Deus zeloso, que se ira, que sente pesar, que se enternece. Ser
“patético” é uma característica sua.9 Interpretar as formas, em
que se exprime o patético, como puros “antropomorfismos”,
como se fossem simples projeções do homem sobre Deus, signi­
fica não compreender o Deus de Israel.10 Através desses carac­
teres ele se revela como o Deus vivo, cuja história se entrelaça
com a do homem e a subverte e renova. E o faz precisamente
graças à pureza de sua transcendência, fortemente sentida pelo

7 Cf. V. Maag, “Malküt Ihwh” in Vetus Testamentum, Supl. VII,


1960, p. 137. Cf., também, J. Moltmann, Teologia delia speranza, Brés-
cia, 1971, 2? ed., pp. 95ss. (ed. bras.: Teologia da esperança, Herder,
São Paulo, 1971, 450 p.).
8 Cf. R. De Vaux, Les sacrifices de VAncien Testament, Paris, 1964,
p. 12.
9 Cf. F. Varillon, La souffrance de Dieu, Paris, pp. 29s., e L ’unità
di Dio, Alba, 1978.
10 Sobre os antropomorfismos, cf., por exemplo, W. Eichrodt,
Theologie des Alten Testaments, op. cit., vol. I, 134-41; E| Jacob, Theo-
logie de VAncien Testament, op. cit., pp. 28-32; G. von Rad, Teologia
deWAntico Testamento, vol. I, pp. 217s, op. cit. in n. 2.

69
rígido monoteísmo hebraico e que não significa fria imutabili­
dade ou árida impossibilidade do ser divino. Ao contrá­
rio, essa transcendência é a total liberdade e gratui­
dade do amor de Iahweh por Israel, a sua absoluta
fidelidade a si mesmo e às suas promessas, razão por
que ele pode compartilhar a história do seu povo e correspon­
der a ela, sem perder a sua identidade (cf. SI 102,28), sem rene­
gar as suas palavras (cf. Is 31,2). A sua inalterabilidade é, por­
tanto, a fidelidade viva do seu amor: “A sua salvação dura para
sempre e a sua justiça não será aniquilada” (Is 5,6). O seu plano
“permanece para sempre e os projetos de seu coração duram de
geração em geração” (SI 33,11). “Seca-se a erva, murcha a flor,
mas a palavra do nosso Deus subsiste para sempre” (Is 40,8). A
escolha feita por Deus é irrevogável: ele é o vivente para sempre
fiel, que “não muda”; é sempre novo na fidelidade para com
a sempre nova vicissitude do seu povo.11
Se quisermos agora procurar, entre as palavras desse Deus
vivo, o termo que anuncia e promete densamente tudo isso,
encontraremos uma espécie de “verbum abbreviatum” da fé de
Israel no nome de Deus: “Eu sou Iahweh”.1112 Esta expressão de
certa forma engloba tudo o que Iahweh tem a dizer a seu povo.
Esse Nome não deve ser interpretado no sentido de uma afirma­
ção de caráter filosófico, como se quisesse definir a essência
divina — o que estaria muito longe da mentalidade semita e do
espírito do Antigo Testamento. O contexto da narração (Moisés
enviado a realizar uma libertação humanamente impensável)
também evidencia que Iahweh não pretende revelar o que é,
mas dizer que vai se revelar na realização das promessas. “Eu
sou” (hayâ) deve ser entendido no sentido de “existir”, “estar
presente”, “ser para...” Além disso, a proposição relativa “aque­
le que sou” (’aser ’ehyeh) carrega a expressão anterior de certa
indeterminação e mistério, de modo que “a promessa da pre­
sença eficaz de Iahweh permanece na esfera do vago, do incom­
preensível. É a liberdade de Iahweh, que não se determina, não

11 Cf. a propósito H. Mühlen, La mutabilità di Dio, Bréscia, 1974,


e W. Maas, Unverãndlichkeit Gottes. Zum Verhãltnis von griechisch-
-philosophischer und christlicher Gotteslehre, Munique-Paderborn-Viena,
1974.
12 Cf. W. Zimmerli, Gottes Offenbarung. Gesammelte Aufsãtze zum
Alten Testament, Munique, 1963, p. 20.

70
se delimita” .13 Portanto, o nome divino, revelado em Ex 3,14,
não significa “Eu sou aquele que sou”, no sentido de um ser
perfeito, fechado num divino egoísmo. Ao contrário! “Eu sou
aquele que é para vós”, o Deus que é e será sempre fiel e novo
pela sua presença salvífica na variedade das situações humanas.
Assim Iahweh é o “nome do Deus que antes de tudo promete a
sua presença e o seu Reino e os coloca na perspectiva do futuro .
Por isso, indica “o Deus que tem ‘o futuro como característica
essencial’, o Deus da promessa e de uma partida do presente
para o futuro, o Deus de cuja liberdade brotam as coisas vivas e
novas. O seu nome não é uma sigla que significa ‘eterno pre­
sente’... O seu nome é nome de um itinerário, de uma promessa
que descerra um novo futuro”.14 O inefável Nome divino, que
a ninguém era lícito pronunciar em Israel, exprime por isso
tanto a incompreensível realidade que é significada, como a
imprevisível novidade do futuro que é prometido. Iahweh não
se deixa prender pelo conceito, mas supera-o em profundidade
e em sua tendência para o futuro. Israel vive sua relação com
Iahweh, e por isso é continuamente arrancado do presente e pro­
jetado para o futuro do seu Deus. Enquanto povo de Iahweh,
é o povo da espera e da promessa, o Israel da esperança. Essa
contínua e implacável abertura para o futuro, que jorra da rela­
ção com o seu Deus, põe em discussão o presente, perturba a
presunção dos grandes e inquieta a paciência dos humildes na
casa de Jacó. Assim, do encontro-choque entre experiência e
promessa nasce a expressão mais profunda da alma veterotesta-
mentária: o messianismo.15 Essa “espinha dorsal da Bíblia ,l0

13 G. von Rad, Teologia dei Antigo Testamento, I, p. 212, op. cit.


in n. 2) cuja exposição segui neste ponto.
14 J. Moltmann, Teologia delia speranza, pp. 23-24, op. cit. in n. 7.
15 Sobre o messianismo cf., entre outras coisas, as seletas de estudos
UAttente du Messie, Paris, 1954, e La Venue du Messie, Bruxelas, 1962
(encontros de Lovaina); II Messianismo (Atas da X V III Semana Bí­
blica), Bréscia, 1966; J. Coppens, Le Messianisme royal, Paris, 1968, e
Le Messianisme et sa relève prophétique: Les antécipations vétéro-testa-
mentaires: Leur accomplissement en Jésus, Gembloux, 1974; R. Fa­
bris, “Messianismo escatologico e apparizicne di Cristo” in Dizionario
Teologico Interdisciplinare, Turim, 1977, voi. II, pp. 519-32; N. Füglis-
tcr, “Fondamenti veterotestamentari delia cristologia dei Nuovo Testa­
mento”, art. cit.; H. Gaubert, L ’attesa dei Messia, Turim, 1970; A.
Gelin, Les Idées maitresses de VAncien Testament, Paris, 1959, 6“ ed.;
U. Kellermann, Messias und Gesetz: Grundlinien einer alttestamentli-
chen Heilserwartung-. eine traditionsgeschichtliche Einjührung, Neukir-

71
essa tensão que perpassa toda a história de Israel, é o anseio
pela realização das promessas de Iahweh e pela vigilante espera
do futuro por elas garantido. Esse futuro, animando as estrutu­
ras concretas em que se articula a vida do povo, constantemen­
te as subverte e as abre para o “além” e para o “novo”. Então
nascem as diferentes expressões da espera messiânica: o messia­
nismo profético, do encontro entre o pensamento, que é a cons­
ciência reflexa do caminhar do povo, e a Promessa. O messia­
nismo real, da relação com o poder, que é a guarda daquilo
que já foi alcançado, mas com muita freqüência também é a rude
defesa da obscuridade do “ainda não”. Do encontro com o culto,
que é confissão do limite do homem e invocação da fidelidade
divina, se produz o messianismo sacerdotal. Da relação com a
consciência utópica, que é expressão libertadora das energias
contidas pela tristeza presente, brota o messianismo apocalíptico.
A característica comum desses confrontos está na tensão que
revelam entre a história dos homens e a história de Deus, entre
o presente de Israel e o futuro da promessa de Iahweh.

3 .2 . FORMAS MESSIÂNICAS DA ESPERA

a) O messianismo profético

Nascido da Palavra — o inefável Nome prenhe de futuro


— , Israef vive em todos os momentos de sua história sob o juízo
da Palavra. Mais do que ver, ele ouve o seu Deus. Esta sua
vocação é impressa de maneira indelével na figura extraordiná­
ria de Moisés, a quem foi confiado o Nome (Ex 3,14). Moisés é
aquele que fala “face a face com Deus” (Dt 5,4), e, estando
entre o Senhor e o povo, é voz de Deus para os homens e voz

chen, 1971; D. Lauenstein, D er Messias. Eine biblische Untersuchung,


Stuttgart, 1971; S. Mowinckel, H e that cometh, Oxford, 1956.
16 A. Gelin, “Messianisme” in Dictiormaire de la Bible, V, pp. 1.166
(cf. todo o art. pp. 1.165-1.212).

72
dos homens para Deus (cf. Dt 5,5ss). Em Moisés se torna tão
densa a vocação de Israel como povo da Palavra, que todo o
futuro e conseqüentemente a espera e a esperança de Israel são
lidos em chave mosaica: “Iahweh teu Deus suscitará um profe-
ta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos, e vós o ouvi­
reis... Vou suscitar para eles um profeta como tu, do meio dos
seus irmãos. Colocarei as minhas palavras na ju a boca e ele lhes
comunicará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt 18,15.18: texto redi­
gido provavelmente no século V III, como legitimação teológica
de um profetismo já existente). Essas afirmações têm, antes de
tudo, sentido distributivo, como se dissessem: Israel será sempre,
enquanto existir, o povo que nasce da Palavra e vive sob o juízo
dela, e por isso mesmo será o povo no meio do qual sempre ha­
verá profetas (cf. Am 2,11; Jr 7,25s). Além disso, têm um senti­
do próprio e pessoal, como expressão da espera do novo Moisés,
que há de caracterizar os tempos do novo êxodo e da nova
aliança.17
A “sucessão mosaica” se desenvolverá no sentido de um
fracionamento da experiência total de Moisés. Por isso, as fun­
ções sacerdotais e reais, inicialmente, encerradas no profeta, aos
poucos irão se delineando de maneira diferente da função pro­
fética. Esta terá como tarefa própria a revelação carismática da
Palavra. Precisamente nisso estará a força do profeta, porque
a Palavra, segundo a concepção vétero-oriental do Antigo Testa­
mento, é viva e eficaz, produz o que significa, julga, abate e
ergue: “Como a chuva e a neve descem do céu e para lá não vol­
tam, sem terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo-a
germinar, dando semente ao semeador e pão ao que come, tal
ocorre com a palavra que sai de minha boca: ela não torna a
mim sem fruto; antes, ela cumpre a minha vontade e assegura
o êxito da missão para a qual a enviei” (Is 55,10-11). Assim,
mesmo na fundamental unidade da tradição de Israel,18.njgrofe-
ta será uma força crítica em relação à realeza e ao sacerdócio:
Elias (século IX ) será a “carruagem de Israel e o seu cocheiro”
(2Rs 2,12); Jeremias (século V II) será constituído “sobre as

17 Dt 18,18 é referido a Jesus em At 3,22s; 7,37 (cf. Jo 1,21 ;6,14;


7,40); nos textos de Qumran (4Qtest 5-7) é aduzido como testemunho
sobre o profeta escatológico.
18 Como sublinha acertadamente L. Bouyer, II Figlio eterno, op. cit.,
pp.43ss, seguindo a escola escandinava.

73
nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para
exterminar e para demolir, para construir e para plantar” (Jr
1,10); Isaías lançará na face dos poderosos as infidelidades à
aliança: “Ouvi vós, da casa de Davi! Parece-vos pouco o fati-
gardes os homens, e quereis fatigar também a Deus?” (Is 7,13).
Ele protestará também contra o vazio de um culto ao qual não
corresponde o compromisso da vida: “Basta de trazer-me oferen­
das vãs: elas são para mim um incenso abominável. Lua nova,
sábado e assembléia, não posso suportar iniqüidade e solenidade!
As vossas luas novas e as vossas festas, a minha alma as detesta:
elas são para mim um fardo; estou cansado de carregá-lo” (Is
1.13- 14ss). “Porque é amor que eu quero e não sacrifício, conhe­
cimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6; cf. também
as invectivas de Jeremias contra o templo: Jr 7).
A presença vigilante da Palavra profética não se extinguirá
com a queda do reino (585: destruição de Jerusalém) e o exílio,
na extinção temporária também do sacerdócio. Mas será ela que
alimentará a esperança de Israel. A função profética encontra,
nessa época, no Dêutero-Isaías, uma expressão maravilhosa nos
Cânticos do Servo sofredor de Iahweh (Is 4 2,l-9;49,l-6;50,4-9;
52.13- 53,12). Nesses Cânticos, pela primeira vez, a espera mes­
siânica é expressa “em termos claramente profético-mosaicos”,19
que o Noyo Testamento, sobretudo nos estágios cristôlógicos
mais antigos, usará amplamente para interpretar o destino e a
obra de Jesus. Esses Cânticos estão profundamente arraigados
na história do exílio e exprimem a esperança de Israel: na dor
presente se prepara a prometida salvação futura, a realização da
espera messiânica. Eles apresentam o Servo de Iahweh, inocen­
te e por Ele escolhido e formado, por Ele enviado e sustentado
para desenvolver a missão profética em Israel a favor de todas
as nações. O Servo de Iahweh proclamará a justiça e guiará o
povo num novo êxodo/Ele se colocará em pessoa como aliança
entre Deus e os homens. Esse Servo deverá sofrer muito, expe­
rimentará até mesmo o abandono do seu Deus e morrerá de
morte violenta. Mas aceitará tudo com paciência e doçura, sem
perder a sua confiança incondicional em Iahweh.; O seu sofri­
mento, querido por Deus como conseqüência dos pecados dos
outros, se tornará para eles causa de salvação. Sofrendo em favor

19 N. Füglister, “Fondamenti...”, art. cit., p. 195.

74
de muitos e em lugar deles, obter-lhes-á a cura e a salvação. Ele
mesmo receberá de Iahweh um triunfo que não terá fim. É
muito problemática a identificação do Servo de Iahweh: pode-
-se ver nele uma figura da comunidade de Israel. De fato, outras
passagens do Dêutero-I saias dão a essa comunidade o título de
“servo”. Pelas marcantes características individuais e pela dis­
tinção com relação ao povo, pode-se também ver no Servo um
indivíduo isolado, talvez o próprio profeta. Provavelmente está
compreendido nele um indivíduo que incorpora os destinos do
povo (segundo a forma da “corporate personality”, típica de
Israel).20 Esta última interpretação explica melhor também as
experiências de desilusão, frustração e espera do Israel do exí­
lio, que estão claramente projetadas e expressas na figura do
Servo. Assim, a vicissitude do Servo torúa-se resposta à interro­
gação lacerante do porquê da dor presente, uma espécie de
comentário à história do momento, história capaz de vencer o
desespero e suscitar a esperança.
Essa subversão pela esperança será ainda exercida pelo mes­
sianismo profético do judaísmo veterotestamentário mais recen­
te: enquanto o profetismo dará a impressão de se extinguir, não
se apagará a nostalgia de uma Palavra que rompa o silêncio do
sofrimento e realize a promessa de Deus: “Oxalá que fendesses
o céu e descesses!” (Is 63,19). Esperar-se-á a restauração esca-
tológica de um profetismo universal, quando Iahweh “derrama­
rá o seu espírito sobre todo homem e se tornarão profetas os
vossos filhos e as vossas filhas...” (J1 2,28). Esperar-se-á um
profeta dos últimos tempos, um Elias redivivo, que prepare “o
dia grande e terrível do Senhor” (Ml 3,23; cf. também entre os
cxtracanônicos 4Esd 6,26 e o Apocalipse de Elias), ou um novo
Moisés, que renove os prodígios do Êxodo, segundo a palavra
rabínica: “Como o primeiro redentor (Moisés), assim o último
(o Messias)” .21
A linha do messianismo profético é traçada, portanto, pelo
encontro entre a Palavra da P ro m essa^^co nfiãda na brigem a

20 Sobre o conceito de "corporate personality”, cf. J. De Fraine,


Adamo e la sua discendenza. La concezione de la “personalità corpora­
tiva” nella dialettica biblica delVindividuale e dei collettivo, Roma,
1968.
21 Cf. J. Jeremias, “Moyses”, in Grande Lessico dei Nuovo Testa­
mento V I1, p. 796. Pense-se também no profeta dos últimos tempos,
como aparece nos textos de Qumran: lOs 9,11, por exemplo.

75
Moisés e mantida sempre viva e eficaz nos profetas — e as dife­
rentes situações históricas de Israel. A consciência do povo será
assim constantemente questionada e subvertida pela força da
Promessa. Nas épocas de segurança, a Palavra será crítica em
relação a toda presunção humana míope; nas épocas de fraque­
za e de dor, como durante o exílio e no frágil pós-exílio, ela se
tornará o cântico da esperança de Israel e alimentará a espera
de um profeta aue irá restaurar o povo sob oju ízo e a misericór­
dia de Iahweh. O oráculo de I_s 6 1 ,1-3, lido por Jesus na sina­
goga de Nazaré e aplicado a si próprio (segundo Lc 4,18-19),
exprime com singular eficácia esta espera na comunidade pós-
-exílica: “O espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque
íahweh me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres,
a curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos
cativos, a libertação aos que estão presos, a proclamar um ano
aceitável a Iahweh, e um dia de vingança do nosso Deus, a fim
de consolar todos os enlutados, a fim de alegrar os aflitos de
Sião, a fim de dar-lhes um diadema em lugar de cinta e óleo de
alegria em lugar de luto, uma veste festiva em lugar de um espí­
rito abatido. Chamar-lhes-ão terebintos de justiça, plantação de
Iahweh para a sua glória” (Is 61,1-3).

b) O m essianism o régio

Em Israel o poder sempre teve — negativa ou positiva­


mente — uma dimensão religiosa: quando, no século X , o escri­
tor javista redige a história do passado em sentido davídico,
desde o “protoevangelho” (cf. Gn 3,15) até a promessa de
Abraão (cf. Gn 12,1-3), a bênção de Jacó (cf. Gn 48,8-12), os
oráculos de Balaao (cf. Nm 24,15-19), ele o faz com a intenção
precisa de enraizar o presente numa tradição teológica/A histó­
ria é lida (como no SI 78) na sua convergência para o rei Davi/
E este é visto ao mesmo tempo como realização das promessas
feitas aos pais e promessa de uma realização nova e maior.
Aliás, é esse o conteúdo da promessa davídica de 2Sm 7, que
pode ser considerada a raiz histórica da espera messiânica régia.
Davi quer construir uma casa para a arca de Deus (v. 5). Mas
Iahweh lhe comunica, através do profeta Natã, que ele é que

76
lhe construirá uma casa (v. 11), uma descendência que não
terá fim: “A tua casa e o teu reino estarão firmes para sem­
pre diante de mim, e o teu trono será tornado estável para
sempre” (v. 16). Assim, à promessa feita aos pais segue a pro­
messa a Davi; ao pacto do Sinai segue o pacto com ele: no
germe (zera’ = “sêmen”) de Davi (2Sm 7,12), através do “ger­
me” de Abraão (Gn 12,7), concretiza-se a promessa feita à huma­
nidade no “germe” da mulher (Gn 3,15). A partir deste mo­
mento, a esperança de Israel estará sempre estreitamente rela­
cionada com o destino da dinastia davídica. Essa esperança volta
a aparecer nos chamados Salmos régios, ligados à entronização
do novo rei e talvez à sua celebração anual. Tais Salmos tinham
uma carga de espera muito profunda, e aguardava-se que o novo
rei a realizasse (cf. SI 2172:110: são os Salmos mais citados no
Novo Testamento). Neles há expressões semelhantes às que se
encontram, por exemplo, nos mitos régios da Mesopotâmia e do
Egito, que apresentam o rei como filho de Deus: ele fará triun­
far a justiça, salvará o seu povo e estenderá o seu poder até
os extremos confins da terra. O seu reino não terá fim. Mas, ao
contrário dos outros povos, o rei é visto subordinado a Iaínygh, A
é o seu “Ungido” (m esiah = messias).22 Rigorosamente falando,
nenhum dos Salmos citados (nem outros, igualmente do gênero
“régio”, como, por exemplo, SI 89 e 132) contém a espera de um
futuro rgj_ escatológico: mas a inclusão desses cânticos no salté-
rio e o seu uso mesmo depois, da queda da monarquia farão
com aue alimentem a esperança messiânica régia.
Entretanto, a força do Nome divino, fonte da identidade
e da esperança de Israel, ilumina o poder, mostrando não so­
mente os seus_valores, pelos quais pode apresentar-se como por­
tador de espera messiânica, mas também a sua profunda relati­
vidade, se comparado com o Senhor, que é o único soberano do
povo eleito. Desse ponto de vista torna-se compreensível não só
a dupla tradição profética.\de aversão; e de\consenti mento/ regis-
trada nos primórdios da monarquia (cf. ISm 8), mas também a
função crítica que o próprio messianismo régio exerce_com rela­
ção à realeza concreta de Israel. Assim os profetas, apelando
para as promessas do passado e a fidelidade de Deus em relação

22 Cf. L. Bouyer, II Figlio eterno, op. cit., pp. 93ss, e S. Mowin-


ckcl, H e that cometh, op.-cit., pp. 48-55.

77
à dinastia davídica, tecem sua crítica à infidelidade atual da mo­
narquia./No final do século V III, Isaías opõe aos cálculos hu­
manos do rei Acaz, ameaçado pelo rei da Assíria, a confiança
incondicional em Iahweh, prometendo um sinal: “Eis que a
jovem concebeu e dará à luz um filho e por-lhe-á o nome de
Emanuel...” (Is 7,14). O profeta, em contraposição ao mesqui­
nho Acaz, deixa entrever um senhor ideal: ele irá inaugurar um
novo início, em que o próprio Deus intervirá, servindo-se de uma
“jovem” ligada de alguma forma à dinastia davídica. Embora se
refiram ao nascimento de um filho do rei, o tom do oráculo e o
nome simbólico dado ao menino têm um alcance mais amplo
com relação à situação contingente. Da mesma forma Isaías, no
capítulo 9, ao celebrar a libertação de alguns territórios ao norte
de Israel, ocupados pelos assírios em 733, parece vislumbrar,
através das imagens típicas do cerimonial de entronização, um
rei davídico ideal (também aqui é bastante provável a referên­
cia a um filho de Acaz, Ezequias): “O povo que andava nas
trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam
numa terra sombria como a da morte... Porque um menino nos
nasceu, um filho se nos deu; a ele caberá o domínio e o seu
nome será: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Prín-
cipe-da-paz, para que se multiplique o domínio, assegurando o
estabelecimento de uma paz sem fim sobre o trono de Davi e
sobre o seu reino, firmando-o e consolidando-o sobre o direito
e sobre a justiça. Desde agora e para sempre, o zelo de Iahweh
dos Exércitos fará isto” (Is 9,1.5-6). Por fim, temos o texto de
Is 11,1-9, que parece inserir-se no contexto da situação poste­
rior à invasão assíria de 701: naquele momento, a linhagem de
Davi parece estar reduzida a um simples rebento. Nessa passa­
gem, a esperança messiânica régia se torna em Isaías contesta­
ção do presente, anúncio de um renascimento revolucionário:
“Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas
raízes. Sobre ele repousará o espírito de Iahweh... No temor de
Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a apa­
rência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, jul­
gará os fracos com justiça, com eqüidade pronunciará uma sen­
tença em favor dos pobres da terra. Ele ferirá a terra com o bas­
tão de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio...
Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará
com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão

78
juntos e um menino pequeno os guiará...” (Is 11,1-4.6: cf. todo
o vaticínio até o v. 9). No mesmo contexto da ameaça assíria
situa-se a promessa messiânica do profeta Miquéias, que vê sur­
gir da pequena e insignificante Belém o novo Davi da esperan­
ça de Israel: “Mas tu, (Belém), Éfrata, embora pequena entre os
clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será dominador
em Israel. Suas origens são de tempos antigos, de dias imemorá-
veis. Por isso ele os entregará até o tempo em que a parturiente
dará à luz. Então o resto dos seus irmãos voltará para os filhos
de Israel. Ele se erguerá e apascentará o rebanho pela força de
Iahweh, pela glória do nome de Iahweh, seu Deus. Eles se esta­
belecerão, pois então ele será grande até os confins da terra.
E este será a paz!” (Mq 5,1-4).
A ação de Jeremias se dá nos anos que precedem imedia­
tamente a destruição de Jerusalém. Totalmente desanimado com
a classe dominante de seu tempo, que mal suporta a sua incô­
moda pregação, ele sonha, de maneira crítica em relação aos
atuais detentores do poder, com uma nova aliança (cf. Jr 31,31-
34) e com um novo “rebento de Davi”. Esse rebento, ao contrá­
rio do atual, “reinará como verdadeiro rei, será sábio e exercerá
o direito e a justiça sobre a terra” (Jr 23,5). Em tempos de fra­
queza e de prostração, como o exílio e o pós-exílio, a tensão mes­
siânica régia se exprimirá no anúncio do rei futuro, visto como
força e consolação para o presente. Ezequiel, profeta do tempo
dojpulio, embora atribua, na sua esperança messiânica, um papel
central ao novo templo e ao novo culto (cf. capítulos 40-48),
não deixa de esperar um novo D avL(cf. 37,24s; 34,23 e 17,22-
24) ,23 No pós-exílio essa esperança se tornará espera iminente do
tempo escatológico (assim, por exemplo, em Ageu e Zacarias) e
do reino ideal do Messias futuro: “Exulta muito, filha de Sião!
Grita de aleg?ia, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti:
ele é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento,
sobre um jumentinho, filho da jumenta. Ele eliminará os carros
de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será
eliminado. Ele anunciará paz às nações. O seu domínio irá de
mar a mar e do rio às extremidades da terra” (Zc 9,9-10); a com-

23 A obra histórica deuteronomista — mais ou menos da época


de Ezequiel — atribui notável significado à promessa davídica de 2Sm
7, c parece abrir-se à possibilidade de uma futura retomada da dinastia.

79
posição deste texto do chamado Dêuterq-Zacarias pode ser situa­
da no fim do século IV; cf. também a alegoria do pastor em
Zc 11,4-17 e 13,7-9 e a figura do “transpassado” em 12,10-13,1).
A espera messiânica régia deságua, por fim, nos textos intertes-
tamentários, especialmente nos Salmos de Salomão (63 a.C.: so­
bretudo SI 17) e nos textos de Qumran. Nestes, além de um
Messias sacerdotal, se espera um Messias davídico (cf., por
exemplo, lQ s 9,11), com um evidente caráter político-nacional,
comum à expectativa davídica da origem zelote e farisaica (cf.
também os apócrifos da época neotestamentária: 4Esd 7,37-12,3;
13,31-38; etc.).
O messianismo régio apresenta-se, portanto, como o fruto
da tensão sempre viva entre o “mais”, o “além”, significado pelo
Nome divino e continuamente evocado por sua Palavra, e o
menos, o aquém das diversas situações histórico-políticas, refu­
tadas pela esperança davídica, ora no sentido da denúncia da
miopia dos poderosos, ora no sentido do anúncio consolador da
realização das promessas por parte de Iahweh.
H

c) O m essianism o sacerdotal

Em Israel, o sacerdócio está relacionado com a tradição


levílica (cf. D t_ 3 3 ^ -ll: bênção de Moisés a Levi), à qual são
confiadas a transmissão e a interpretação da revelação divina e
a celebração do sacrifício: os levitas “ensinam os teus decretos
a Jacó e a tua lei a Israel, colocam incenso sob as tuas narinas
e um sacrifício no teu altar” (Qt 33,10). Além dessa casta sacer­
dotal, exercem funções sacerdotais o chefe da família (por exem­
plo, no banquete pascal) e os chefes carismáticos (como Moisés,
Josué e Samuel). Com o surgimento da monarquia davídica. a
realeza tenderá a polarizar em si o sacerdócio. “O verdadeiro
sacerdote de Israel é, na qualidade de chefe do povo, o rei da­
vídico ainda que no Antigo Testamento o título sacerdotal lhe
seja atribuído apenas uma vez, e em termos muito acentuados e
bastante significativos” : 24 trata-se da ostensiva proclamação do
Salmo 110,4; “O Senhor jurou e não se arrepende: Tu és sacer­

24 N. Füglister, “Fondamenti...”, p. 177.

80
dote para sempre à maneira de Melquisedec” . Essa função sa­
cerdotal, que se encontra também nos mitos régios do Egito e da
Mesopotâmia (nos quais, porém, o rei, em última análise, se
identifica com a divindade),25 é exercida^por Davi: por exem­
plo, quando transfere a arca da aliança para Jerusalém (2Sm 6);
é exercida também por Salomão, que consagra o templo (lR s 8);
por Ezequias, que dele retira a serpente de bronze (2Rs 18.4):
por Josias, que renova solenemente a aliança com uma celebra­
ção extraordinária da Páscoa (2Rs 23). Sob esse aspecto expli­
ca-se também a estreitíssima relação existente entre esperança
davídica e santuário de Terusalém. Fruto dessa relação é a “teolo­
gia de Sião”. amplamente presente no Antigo Testamento (cf.
por exemplo SI 4 6 ;4 8 ;7 6;87; Is 2,1-5; Mq 4,í-3), que engloba
no desejo messiânico templo e sacerdócio com a realeza.
Na época pós-exílica, depois do decepcionante fim da mo-
narquia, o sacerdócio polarizará em si a realeza e determinará
uma tensão messiânica sacerdotal, contestadora do presente na
força da esperança. Dessa forma, por volta do ano 573, o profe-
ta Ezequiel apresenta a visão de um templo escatológico (capí­
tulos 40-48), onde fica o trono do Senhor, que nele habitará
para sempre: “E a casa de Israel, o povo e os seuspxis não pro-
fanarão mais o meu santo nome„. e £u_habitarei no meio deles
para sempre” (43,7.9). Zacarias (por volta de 520) apigsenta
a figura do sumo sacerdote Josué, que representa o povo peca­
dor e arrependido, a quem o anjo do Senhor declara: “Vê! Tirei
de ti a tua iniqüidade; reveste-te de roupas de festa”. Depois de
mandar que lhe coloquem na cabeça um diadema puro, promete:
“Assim diz Iahweh dos Exércitos: Se andares pelos meus cami­
nhos e guardares os meus preceitos, então tu governarás a minha
casa e administrarás os meus pátios e eu te darei acesso entre os ;
que estão aqui de pé” (Zc 3,1-7). A fu n çã o ja cerdotal tem uma
importância fundamental quer no escrito sacerdotal do Penta-
teuco (fim do século V ). quer na obra do cronista (1 e 2 Crôni­
cas: início do período helenístico, antes de 300 a.C.), como
também no livro de Jesus Sirac (original hebraico, de cerca de
180 a.C.). Mas falta nesses escritos a tensão escatológica, porque
a salvação — concebida de maneira acentuadamente cultuai —
c pensada em termos puramente intra-históricos. Será nos textos

25 Cf. S. Mowinckel, H e that cometh, op. cit., pp. 48-56.

81
intertestamentários imediatamente anteriores ao Novo Testa­
mento que a esperança de um messias sacerdotal dos últimos
tempos se reavivará, ainda que como reação ao fracasso dos vá-
rios mediadores humanos (lembremo-nos do caso dos Macabeus).
Assim, por exemplo, nos textos de Qumran fala-se dos dois Mes­
sias, de Aarão e de Israel.20
Portanto, também para a tensão messiânica sacerdotal vale
a consideração de que o confronto entre a Palavra da Promessa
e as estruturas de Israel se torna força subversiva do presente.
Diante da pretensão de auto-suficiência do sacerdócio polarizado
na estrutura régia do pré-exílio, a contestação procura mostrar a
miopia de todas as realizações humanas e a necessidade de espe­
rar naquele que realmente é o único poderoso (recordemos os
Hvaticínios de Isaías contra Acaz e as críticas dos profetas aos
sacrifícios exteriores do templo). Em vista de um presente cheio
i de desilusão e de dor, a contestação tende a reavivar a confian­
ça na Promessa e, conseqüentemente, a despertar a esperança.
É o que faz Ezequiel no anúncio do templo novo, ou a escatolo-
gíà sacerdotal reavivada pelos escritos intertestamentários. -

d) O m essianismo apocalíptico

Em Israel nunca faltou a tensão utópica, como expressão


das energias represadas pela tristeza do presente: mas, ao con­
trário de outros povos, essa tensão confrontou-se e foi subver­
tida pela força daquele que no seu próprio Nome já se havia
apresentado como Deus do futuro e da Promessa. Neste sentido,
todo o messianismo até aqui examinado é expressão da consciên­
cia utópica de Israel, constantemente replasmada pela interven­
ção de Iahweh. No entanto, são sempre tiradas da história desse
povo as figuras que ele utiliza, as estruturas e formas do pen­
samento, do poder e do culto, prenhes de força contestadora
do presente no impacto com a fé na promessa. Vamos examinar
agora a espera messiânica de um mediador que vem exclusiva­
mente do alto, além e contra toda barreira do tempo e do espa­
ço: o messianismo das figuras da esperança pura, absoluta, a26

26 Cf. lQs 9,11; Cd 12,23s; 14,19;19,10s; 20,1.

82
espera da intervenção divina por excelência, que justifica as
expectativas mais radicais e, nesse sentido, mais contraditórias
com relação ao presente.
Na época pré-exílica, essa intervenção celeste é figurada
pelo anjo de Iahweh (m al’ak ihwh), às vezes identificado, às
vezes distinto de Deus. Através dele o próprio Senhor intervém
na história para orientá-la. Essa figura, que algumas vezes de-
sempenha um papel de revelação e de salvação, e outras de inter-
cessão, torna-se objeto de espera messiânica na reflexão escato-
logizante do pós-exílio: “Eis, que vou enviar o meu mensageiro
para que prepare um caminho diante de mim. Então, de repen­
te, entrará em seu templo o Senhor que vós procurais; o Anjo
da Aliança, que vós desejais, eis que ele vem, diz Iahweh dos
Exércitos. Quem poderá suportar o dia de sua chegada?” (Ml
3,1-2, texto escrito cerca de 470 a.C.).
O contato com o mundo grego leva a.uma redução da ten­
são escatológica, que se exprime na reflexão sapiencial: me­
diante a Sabedoria, a salvação pode ser alcançada aqui e agora.
Todavia, seria insensato ver nas descrições da Sabedoria uma
espécie de Deus epifânico de cunho grego: ela é antes a forma
em que se condensa a tensão utópica de Israel, numa época em
que as desilusões do presente fazem aspirar a um caminho de
salvação imediata e eficaz. Essa Sabedoria, que tem caracteres
proféticos (cf. Pr 1,20-33), sacerdotais (cf. Pr 9,1-6) e régios (cf.
Pr 8,12-36), desempenha também uma mediação criadora e tem
uma função cósmica (cf. Pr 3,19; Sb 7,22ss; Pr 8,22-31; Sb
8,6), aproximando-se assim das figuras do messianismo celeste.
Tal soteriologia imediata, desescatologizadaL é abandonada tão
logo voltam a florescer as esperanças messiânicas escatológicas, \
por ocasião da crise macabaica (século II a.C.). É nesse contexto
que a apocalíptica atinge a sua maturidade:27 este tipo de \

27 Cf., sobre a apocalíptica: H. H. Rowley, The Relevance of Apo-


calyptic. A Study of fewish and Christian Apocalypses from Daniel to
Revelation, Londres-Nova York, 1964, (ed. bras.: A importância da lite­
ratura apocalípticas um estudo da literatura apocalíptica judaica e cris­
tã de Daniel ao Apocalipse, Edições Paulinas, São Paulo, 1980); W.
Schmithals, L ’Apocalittica. Introduzione e Interpretazione, Bréscia, 1976;
J. Schreiner, Alttestamentlich-jüdische Apokalyptik. Eine Einführung,
Münster, 1969. Os textos podem ser encontrados em W. G. Kümmel — C.
Habicht — O. Kaiser — O. Píõger — J. Schreiner, Jüdische Schriften
sus hellenistischer Zeit, V, Apokalypsen, Güttersloh, 1974 e M. Erbetta,

83
pensamento messiânico combina elementos proféticos e sapien-
ciais na tentativa de fazer uma leitura teológica da história à
luz da fé veterotestamentária. Empregando amplamente o sim­
bolismo e um estilo evocativo-envolvente, usando pseudônimos
para dar autoridade sacral às revelações anunciadas, os autores
apocalípticos procuram interpretar as vicissitudes históricas do
presente em relação a um desígnio divino superior. Por isso eles
captam o embate atual entre o bem e o mal (forças empregadas
na luta: o dualismo apocalíptico é histórico, e não mítico ou de
caráter metafísico!) 'como momento de um processo cósmico,
povoado de anjos e demônios, que se encerra com o combate
final, caracterizado pelo julgamento divino, pela ressurreição e
pela renovação da criação.^ O Messias, escolhido por Deus, filho
de Deus, vencedor escatológico, é o protagonista desse combate
que instaura o Reino, de Deus. Está relacionada com o Messias
a figura do Filho do Homem: expressão da “personalidade cor­
porativa”, ela assume cada vez mais um caráter pessoal, acen­
tuando a dimensão humana do próprio Messias, o seu enraiza­
mento na história dos homens. Essa enigmática figura aparece
no capítulo 7 do livro de Daniel, escrito por volta de 165 a.C.:
“Eu continuava contemplando nas minhas visões noturnas, quan-
do notei, vindo sobre as nuvens do Céu, um como Filho de Ho­
mem. Ele adiantou-se até o Ancião e foi introduzido à sua pre­
sença. A ele foi outorgado o império, a honra e o reino, e todos
os povos, nações è línguas o serviram. Seu poder é um poder
eterno que jamais passará, e o seu reino jamais será destruído”
(Dn 7,13-14). Nesse texto, “Filho do Homem” não é tanto um
título já fixado, quanto um .conceito que serve para exprimir a
entidade coletiva dos “santos do Altíssimo” (vv. 18.21.27), e não
indica propriamente um mediador soteriológico (o julgamento
sobre os reinos da terra é proferido por Deus antes da entroni-
zação do Filho de Homem). Pelo contrário, o caráter individual
e a atividade escatoíógica e soteriológica do Filho dõ Homem
são bastante sublinhados na apocalíptica extracanônica, que
exerce uma influência determinante no mundo do Novo Testa-

Gli Apocrifi dei Nuovo Testamento, III, Lettere Apocalissi, Turim,


1969.
28 Como se vê, trata-se de uma interpretação escatoíógica e histó­
rica do cosmo e não, como às vezes se pensa, de uma interpretação
cósmica da escatologia: cf. J. Moltmann, Teologia delia speranza, (op.
cit. in n. 7 ), 135ss, especialmente p. 138.

84
mento. Assim, por exemplo, o Livro de Henoc ‘(escrito em ara-
maico, mas que nos chegou completo só numa versão etiópica
do grego) menciona explicitamente o Filho do Homem em qua­
tro capítulos (46,2ss; 48,2ss; 62,5-14; 69,26ss); mas fala dele
também em outras passagens, mencionando-o como o Justo e o
Eleito, que preexiste a todas as coisas, vem do alto, realiza o jul­
gamento e reina na ressurreição de todos os eleitos.29 Esses temas
da apocalíptica constituem o horizonte de pensamento mais
imediato em que se situa a formação e a pregação de Jesus de
Nazaré (basta pensar no uso que ele faz do título Filho do Ho­
mem!) Embora seja exagerado dizer que a apocalíptica é “a
mãe de toda teologia cristã”,30 é preciso reconhecer que o cristia­
nismo apocalíptico desempenha um papel decisivo nas origens
do cristianismo. Fruto do encontro crítico e subversivo da pro­
messa divina com o presente histórico, esse messianismo —
que acentua mais do que qualquer outro a ação divina não de-
dutível -de esquemas humanos na realização da própria pro­
messa — é a preparação mais imediata para o anúncio, contido
no Novo Testamento da intervenção nova e definitiva de Deus
na história do homem.
O messianismo veterotestamentário exprime, portanto, a ten­
são constante que há entre a história de Israel e a de seu Deus,
que nela intervém como Senhor da promessa e do futuro. Nessa
linha, ele se abre a uma intervenção mais plena, a uma hora
escatológica, na qual a promessa se realize de maneira adequa-

29. Cf. L. Bouyer, II Figlio eterno, op. cit., pp. 131-137.


30 E. Kásemann, "Die Anfãnge christlicher Theologie” in Zeitschrift
für Theologie und Kirche 57 (1960), p. 180. W. Pannenberg, Cristologia.
Lineamenti fondamentali, Bréscia, 1974, escreve: “Se a espera apo­
calíptica tivesse que ser absolutamente inconcebível para nós, não
seria mais concebível para nós nem mesmo a fé cristã primitiva em
Cristo” : p. 90. Cf. também L. Audet, “L ’influence de 1’apocalyptique
sur la pensée de Jésus e de 1’Eglice primitive. Quelques pistes de réfle-
xion” in Science et Esprit 25 (1973), pp. 51-74; H. Balz, “Escatologie
und Christologie. Modelle apokalyptischer und urchristlicher Heilser-
wartung” in Das Wort und die Wõrter, Festschrift G. Friedrich, Stutt-
gart-Bonn, 1973, pp. 101-12; B. Corsani, “L ’Apocalittica fra Antico e
Nuovo Testamento” in Protestantesimo 27 (1972), pp. 15-22; E. Lohse,
“Apokalyptik und Christologie” in Zeitschrift für die neutestamentliche
Wissenschaft und die Kunde der ülteren Kirche 62 (1971), pp. 48-67;
A. Strobel, Kerygma und Apokalyptik. Ein religionsgeschichtlicher und
theologischer Beitrag zur Christus-frage, Gõttingen, 1967. Cf. também
U. Vanni, “Apocalittica come teologia” in Dizionario Teologico Interdi-
sciplinare, I, pp. 388-401.

85
da, na qual a Msíoria_-do homem seja apropriada por Deus de
modo inaudito, e o Deus da esperança de Israel se revele a todos
oa Dovos -Como o Deus da história.
À espera dessa hora, Israel apresenta-se entre os povos
como o povo da esperança. Israel exercerá, em relação a eles e
a seus ídolos, uma função crítica (lembremos o embate entre
Elias e os falsos profetas no Monte Carmelo: lR s 18). Mas ao
mesmo tempo constituirá a recordação viva do verdadeiro Deus
para os homens e dos homens para o verdadeiro Deus; será o
povo (’am) que é a memória viva do Eterno entre os povos
(goim) que prepara a nova e definitiva “memória Aeterni” con­
fessada pela fé cristã: o Deus na carne do mundo. Essa vigorosa
consciência de sua unicidade, derivada da eleição divina, está
unida, em Israel, à consciência de que a espera e a esperança,
enquanto inexaurível tensão para o “mais” e o' “além”, carac­
terizam a história como história do “fracasso” : fracasso dos pro­
fetas, fracasso da monarquia e do sacerdócio, fracasso até mes­
mo do Esperado, como atestam os Cânticos do Servo sofredor.
O Deus dé Israel, como Deus da promessa, parece ser “parado­
xalmente o Deus dos seis dias,- que não consegue realizar o sá­
bado”.31 Na realidade, o Antigo Testamento está consciente de
que é um tempo incompleto, uma tensão não resolvida. Contudo,
é precisamente dele que surge sempre nova a esperança, suscitada
pela Promessa, de que finalmente virá um tempo no qual, superado
o fracasso, Deus irá vencer para sempre: nesse sentido, tornan­
do sua a esperança de Israel, os cristãos interpretaram a ressur­
reição depois da sexta-feira santa como a grande realização das
expectativas messiânicas, em que o “mais” que está na frente
não aparece mais como distante e fugidio, mas é dado sob a
forma de um início novo e definitivo.

31 F. Festôrãzzi, Antico Testamento, op. cit., p. 4.

86
4

A PLENITUDE DO TEMPO 1

Cristologia do N ovo Testamento

4 .1 . O PONTO DE PARTIDA: A RESSURREIÇÃO

O ponto de partida da fé e da reflexão cristã é a ressurrei­


ção do Crucificado. A “história cristã nasce na Páscoa, ela
certamente foi preparada pelas obras e pelos dias anteriores de
Jesus de Nazaré. Mas essas obras e esses dias, até a hora supre­
ma e obscura da cruz, teriam permanecido ambíguos e, em últi­
ma análise, destituídos do significado que lhes foi reconhecido,
se a história do Nazareno se tivesse encerrado para sempre na1

1 Cf G1 4,4; Ef 1,10 e o anúncio com que Jesus Cristo inaugura


u sua pregação:’ Mc 1,15. Sobre a cristologia do Novo Testamento cf.:
J. Caba, El Jesus de los evangelios, Madri, 1977; Christ and Spiritin the
New Testament, org. por B. Lindars e S. S. Smalley, Londres, 1973; H.
Conzelmann, Theologia dei Nuovo Testamento sob a direção de R.
Pcnna, Bréscia, 1972; O. Cullmann, Cristologia dei Nuovo Testamento,
Bolonha, 1970; C. H. Dodd, II fondatore dei cristianesimo, Turim, 1975
(ed. bras.: O fundador do cristianismo, Edições Paulmas, Sao Paulo,
1977 195 p ) ; J. Ernst, Anfãnge der Christologie, Stuttgart, _1972; E.
Fuchs, Glaube und Erfahrung. Zum christologischen Problem im Neuen
Testament, Tübingen, 1965; J. Gnilka, Jesus Christus nach jruhen Zeug-
nissen des Glaubens, Munique, 1970; L. Goppelt T/ieo/ogie des Neuen
Testaments, sob a direção de J. Roloff, Gõtingen, 1976 (ed bras.: Teolo­
gia do Novo Testamento I vol., Sinodal-Vozes, Sao Leopoldo-Petropolis,
1976 300 p ) ; P. Grech, “Sviluppo delia cristologia dei Nuovo Testa­
mento” in Problemi attuali di cristologia, org. por A. Amato, Roma,
1975 pp 59-74' F Hahn, Christologische Hoheitstitel. Ihre Geschichte
im frühen Christentum, Gõttingen, 1966, 3? ed.; M. Hengel, Der Sohn
Gottes. Die Entstehung der Christologie und die judisch-hellenistische
Religionsgeschichte, Tübingen, 1977, 2? ed.; J. Jeremias, Teologia dei
Nuovo Testamento, I: “La predicazione di Gesu , Bréscia, 1972 (ed.
bras.: Teologia do Novo Testamento: a pregação de J e s u s , Edições
Paulinas, São Paulo, 1980, 469 p.); E. Jüngel, Paolo e Gesu. Alie ongi-
ni delia cristologia, Bréscia, 1978; W. G. Kümmel, La teologia dei Nuo-

87
agonia e morte da sexta-feira santa. Sao Paulo já o atesta num
texto antiquíssimo (escrito na altura da Páscoa de 57): “Se Cris­
to não ressuscitou, então é vã a nossa pregação e é vã também a
nossa fé (ICor 15,14). A fé e o anúncio dos cristãos se susten­
tam ou caem com a Ressurreição! O evento da Ressurreição de
Jesus por parte de Deus é a virada decisiva que, apesar da con­
tinuidade, separa com originalidade absoluta o movimento cris­
tão das preparações e expectativas da esperança de Israel, sobre­
tudo das expectativas apocalíptico-messiânicas que influenciam,
mais do que todas, o mundo do Novo Testamento.2 Compreen-

v° Testamento: Gesü, Paolo, Giovanni, Bréscia, 1976 (ed. bras.: Síntese


teológica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais■
Jesus, Paulo e Joao, Sinodal, São Leopoldo, 1974, 379 p .); P. Lamarche,
Christ vivant. Essai sur la christologie du Nouveau Testament, Paris,
1966; I. Marshall, The Origins of New Testament Christology, Dow-
n®rs Grove, 1976; A. Polag, Die Christologie der Logienquelle, Neukir-
chen-Veuyn, 1977; L. Sabourin, Les noms et les titres de Jésus, Bruges-
Pans, 1963; K. H. Schelkle, Teologia dei Nuovo Testamento, II: “Dio
era in Cristo”, Bolonha, 1980 (ed. bras.: Teologia do Novo Testamento,
•Loyola São Paulo, 1977-79, 5 vols.); F. J. Schierse, Christologie, Düssel-
■ SchilIebceckx- Gesü- la storia di un vivente, Bréscia,
1976 e II Cristo, la storia di una nuova prassi, Bréscia, 1980; R. Schna-
ckenburg, “Cristologia dei Nuovo Testamento” in Mysterium Salutis V
Bréscia 1971, pp. 289-491; G. Schneider, Cristologia dei Nuovo Testa­
mento, Bréscia, 1975; E. Schweizer, Cristologia neotestamentaria: il mis-
tero pasquale, Bolonha, 1969, e Jesus Christus im vielfãltigen Zeugnis des
NPuen Testaments, Munique-Hamburgo, 1968; G. Segalla, “Cristologia
ciei Nuovo Testamento” in II problema cristologico oggi, Assis, 1973, pp
ÍüÍ142W ° t Í Spinetoli, Itinerário spirituale di Cristo, 3 vols., Ássis^
1974; W. Thusing, "Approcci neotestamentari a una cristologia dialoei-
co-trascendentale” in K. Rahner — W. Thüsing, Cristologia. Prospettiva
sistemática e esegetica, Bréscia, 1974, pp. 95-378; B. Vawter, Un uomo
chiamato Gesu. Cristologia dei Nuovo Testamento, Bréscia, 1978- K
Wengst, Christologische Formeln und Lieder der Urchristentums, Güt-
inr-7£ Z,mmermann> Gesü ^ is t o . Storia e annuncio, Turim,
1976. Cl. também o rico instrumento bibliográfico Index to periodical
Lite?ature on Christ and the Gospel, compilato sob a direção de B M
Metzger, Leiden, 1966.
n u -u $ k/b! j ° F afia sobre a ressurreição de Jesus é vastíssima: cf. G.
Crtnberti, Bibliografia sulla resurrezione di Gesü” in Resurrexit. Actes
du tyZ‘P°*lu,m lntemational sur la résurrection de Jésus, Roma, 1974
pp. 643-764 (encontram-se ali arrolados mais de 1.500 títulos, ordenados
em 25 seções, relativos aos últimos 50 anos). Cf. também F. Neirynck,
Bibltographia de Resurrectione, Leuven, 1971. Além das obras citadas
sobre a cristologia do Novo Testamento, cf. entre outras: A. Ammassari
La resurrezione, 2 vols., Roma, 1976; P. Benoit, Passione e resurrezione
aei bignore. il mistero pasquale nei quattro evangeli, Turim, 1967 (ed
Vq7 Sc : 6 ressurreição do Senhor, Edições Paulinas, São Paulo,'
19/5, 386 P -); K. Berger, Die Auferstehung des Propheten und die

88
demos então porque o conteúdo das mais antigas proclamações e
confissões de fé cristã tenha sido a afirmação simples e original:

Vrhõhung des Menschensohnes: traditionsgeschichtliche Untersuchung


,-ur Deutung des Geschickes Jesu in jrühchristlichen Texten, Gottmgen,
1976- R. E. Brown, La concezione verginale e la resurrezione corporea
di Gesú Bréscia, 1977; J. Daniélou, La resurrezione, Turim, 1970; J
Delorme, “La Résurrection de Jésus dans le langage du Nouveau Testa
ment” in Le langage de la foi dans TEcriture et dans le monde actuel
paris 1972 pp. 101-82; Dibattito sulla risurrezione di Gesu, com con
trib. de J. Kremer, J. Schmitt, H. Kessler, Bréscia, 1969; F. X . Durrwell
la risurrezione di Gesu, mistero di salvezza. Teologia bíblica delia risur
rezione Roma, 1962 (ed. bras.: A ressurreição de Jesus: mistério de
salvação, Herder, São Paulo, 1969, 409 p .); G. Giavini, La risurrezione
di Gesu Milão, 1973; H. Grass, Ostergeschehen und Osterberichte,
Gòttingen, 1964, 3? ed.; P. Grelot, “La résurrection de Jesus et son
arrièreplan biblique et juif”, in La résurrection de Jésus et exegese mo-
derne, Paris, 1969, pp. 17-54; J. Jeremias, “Die ãlteste Schicht der Oster-
íiberlieferungen” in Resurrexit, op. cit., pp. 185-97; W. Kasper V er
Giaube an die Auferstehung Jesu vor dem Forum historischer Kritik
in Theologische Quartalschrift 153 (1973) 229-41; G. Kegel, Auferste­
hung Jesu-Auferstehung von den Toten. Eine traditionsgeschichtliche
Untersuchung zum Neuen Testament, Gütersloh, 1970; J. Kremer, Die
( ísterbotschaft der vier Evangelien, Stuttgart, 1969, 3- ed.; X . Lcon-
I Kifour, Resurrezione di Gesú e messaggio pasquale, Roma, 1973; L~ M.
Mfutini í “Risurrezione di Cristo” in Nuovo Dizionano di Teologia,
Roma, 1977, pp. 1.307-320; W. Marxsen, Alie origini delia cristologia,
Bolonha 1969, e La resurrezione di Gesú di Nazaret, Bolonha, 1970; F.
Mussner, Die Auferstehung Jesu, Munique, 1969; R. R. Niebuhr, Reswr-
rcction and Historical Reason, Nova York, 1957; G. 0 ’Collms, 11 Gesu
nasquale Assis, 1975; C. Porro, La risurrezione di Cristo, Roma 1973
r "Risurrezione di Cristo” in Dizionario Teologico Interdisciplmare,
Turim 1977 vol. III, pp. 102-18; A. M. Ramsey, La risurrezione di
i nsto’ Saggio di teologia biblica, Turim, 1969; K. H. Rengstorf, Die
Auferstehung Jesu, Witten, 1967; 5? ed.; Résurrection, por J. Audet, M.
Domais e outros, Tournay, 1972; La résurrection de Jésus et l’exegese
moderne, sob a direção de P. Du Surgy, op. cit.; La resurrezione di
i'listo. Avvenimento, mistero, catechesi, Bolonha, 1970; La risurrezione
<h Gesú, com contrib. de G. Giavini, G. Moioli, A. Locatelli, Milão,
11)/4 Resurrexit. Actes du Symposium International sur la Résurrection
de i j a u s _ Roma, 1970, org. por E. Dhanis, op. cit.; B. Rigaux Dio lha
risuscitato. Esegesi e teologia biblica, Milão, 1976; L. Scheffczyk, Au/er-
sft’hwi#. Prinzip des christlichen Glãubens, Einsiedeln, 1976; E. Schille-
iim kx, Pie Auferstehung Jesu ais Grund der Erlósung. Zwischenbericht
iibrr die Prolegomena zu einer Christologie, Friburgo-Basiléia-Viena, 1969;
II R Schlette, Epifania come storia, Bréscia, 1966; H. Schlier, La risur-
ir ume di Gesú Cristo, Bréscia, 1971; P. Seidensticker, La resurrezione
di Gesú nel messaggio degli evangelisti, Bréscia, 1978; U. Wilkens, Risur-
Bréscia, 1975; P. Zarrella, La risurrezione di Gesú. Storia e mes-
■saugio, Assis, 1973. Dedicaram números monográficos a este tema, entre
n t i h m i , nr. siguintes revistas: Concilium 1970, 10; Lumière et vie 21
(I<172), fase. 107; La Scuola Cattolica 101 (1973), fase. 2.

89
Jesus é o Senhor!3 Nós o depreendemos de algumas fórmulas
empregadas nos momentos centrais da vida da comunidade das
origens: assim, provavelmente situa-se num contexto batismal,
ou talvez de acolhida e preparação de novos membros, a “pala­
vra da fé que nós pregamos” (Rm 10,8) de Rm 10,9: “Se confes­
sares com a tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu cora­
ção que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. No
contexto da eucaristia proclama-se a morte daquele que é o Se­
nhor: Todas as vezes que comeis desse pão e bebeis desse
cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha” (ICor
11,26). A antiquíssima invocação da comunidade cristã aramai-
co-palestina (que podemos julgar nos tenha sido transmitida com
absoluta fidelidade, porque é atestada em sua formulação origi­
nária num texto enviado a uma comunidade de língua grega)
dirige-se^ ainda àquele que é o Senhor: “Maranatha: vem, ó
Senhor!” (ICor 16,22; pode-se ler também: “Maran atha: o Se­
nhor vem! ) O hino pré-paulino de F1 2,6-11 se encerra com a
profissão: “Toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai (F1 2 ,1 1).4 Mas não é só nos momentos
catequético-culturais da vida comunitária que os primeiros cris­
tãos compreendiam sua fé na fórmula “Jesus é o Senhor”: subs­
tancialmente, o anúncio (querigma) tem, na sua origem, a mesma
formulação: Saiba, portanto, toda a casa de Israel: Deus cons­
tituiu Senhor e Cristo, a esse Jesus que vós crucificastes” (At
2,36; cf. também 10,36). “Com efeito, não pregamos a nós mes­
mos, mas Jesus Cristo Senhor” (2Cor 4,5). Conseqüentemente,
acolher ou recusar o anúncio cristão é o mesmo que aceitar ou
negar que Jesus seja o Senhor, o Cristo: “Ninguém pode dizer:
‘Jesus é Senhor’ senão no Espírito Santo” (IC or 12,3). E “quem
é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?” ( ljo
2,22). Essas fórmulas tem uma estrutura bipolar: elas unem dois

„ ^ Cf. P.-E. Langevin, La Seigneurie de Jésus dans quelques textes


prepauhniens du Nouveau Testament, Montréal, 1965, que, através de
uma pesquisa sobre textos pré-paulinos, demonstra que “o anúncio de
Jesus como kyrios constitui a própria mensagem da pregação querigmáli-
ca (p. 12) e que, mesmo quando o título “Kyrios” não é explicitamente
declarado, la Seigneurie de Jésus est au coeur de la pensée christologi-
que primitive” (p. 15).
4 As fórmulas de fé usadas no interior da comunidade podem disti
guir-se em dois grupos: catequético (ICor 15,3-8; Lc 24,35; Rm 1 3-5)
e liturgico (F1 2,6-11; Ef 5,14; lTm 3,16).

90
termos, e, neles, duas histórias: a história de Jesus, o Crucifica­
do, e a do Ressuscitado por Deus, constituído por ele Senhor
e Cristo. Por isso tais fórmulas correspondem ao anúncio igual­
mente originário da Ressurreição, que mostra de maneira mais
difusa como se articula a passagem do primeiro para o segundo
momento: “Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mes­
mo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escri­
turas. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escri­
turas” (ICor 15,3-4).5 “Jesus de Nazaré... que fora entregue
segundo o desígnio bem determinado e a presciência de Deus,
vós o entregastes, crucificando-o por mãos de ímpios. Deus, po­
rém, o ressuscitou, livrando-o das dores do Hades. Não era
mesmo possível que fosse retido em seu poder (At 2,22-24, cf.
também 32). Em outras palavras, o homem de Nazaré, que falou
com autoridade e fez prodígios e sinais, foi entregue nas mãos
dos poderosos de Israel e condenado à morte na cruz. Mas Deus
o ressuscitou e constituiu Senhor e Cristo (cf. os discursos de
Pedro na redação de At 2 , 14-36;3,12-26;4,8-12; 10,34-43; cf. o
discurso de Paulo como é apresentado em At 13,16-41).6 Note­
mos, em todos esses textos dos Atos, como a ressurreição é atri­
buída à ação de Deus,567 e como a confissão do Senhor ressusci­
tado está relacionada com a obra do Espírito (cf. ICor 12,3 e
também At 5,32), no qual Jesus foi ressuscitado (cf. Rm 1,4;8),
II). Assim, o evento proclamado no anúncio mais antigo da fé

5 Cf. sobre este texto J. Kremer, Das àlteste Zeugnis von der
Aujerstehung Christi. Eine bibeltheologische Studie zur Aussage und Be-
deutung von 1 Kor 15,1-11, Stuttgart, 1967, 2‘ ed.
6 Sobre as primitivas fórmulas de confissão de fé, cf. O. Cullmann,
"Le prime confessioni di fede cristiana” in La fede e il culto delia chie-
sa primitiva, Roma, 1974, pp. 98-99. Cf. também R. Deichgráber, Got-
tcsliymnus und Christushymnus in der frühen Christenheit, Góttingen,
1967; K. Wengst, Christologische Formeln und Lieder des Urchristentums,
op. cit. „
7 Cf. também lTs 1,10; ICor 6,14; 15,15; 2Cor 4,14; G1 1,1; Rm
4,24; 10,9; lPd 1,21. Em outros textos diz-se que o próprio Jesus ressur­
ge dos mortos: Mc 16,6; Mt 27,64;28,67; Lc 24,6.34; lTs 4,14; ICor
15,3-5; Rm 8,34; Jo 21,14 etc. Discute-se qual é a forma mais antiga; os
lextos parecem depor a favor da que indica a ressurreição de Jesus por
ação de Deus. Mas há quem sustente que esta formulação teria sido
assumida num segundo momento para não contrastar o rígido monoteís-
niü hebraico, que reconhecia em Deus o senhor exclusivo da vida e da
morte. Cf. sobre esta questão, por exemplo, X . Léon-Dufour, Risurrezio-
ne di Gesú e messaggio pasqwle, op. cit., pp. 37ss.

91
cristã tem uma significativa estrutura trinitária. Jesus é Senhor
e Cristo porque Deus o ressuscitou no Espírito!
Portanto, é evidente o vínculo entre os títulos de Senhor
e Cristo e o evento da Ressurreição. Conseqüentemente, pode­
mos aceitar que as primitivas fórmulas de fé transmitem o sig­
nificado da ressurreição do Crucificado para a comunidade das
origens. Para compreendermos qual seja esse significado, deve­
mos esclarecer o que ela queria dizer ao afirmar que Jesus é o
Senhor e Cristo. O termo Senhor (Kyrios), em ambiente aramai-
co, evoca a entronização do Filho do Homem e a sua majestade
régia no fim dos tempos (cf. Mt 7,21-22;24-42;25,l 1-12.31-45).
O apelativo aramaico mari (equivalente a “Senhor”), é usado
com referência ao rei messiânico (cf. Mc 12,36-37 e paralelos
em relação ao SI 110,1). Portanto, o título tem um significado
escatológico-soteriológico: isto é, refere-se àquele que há de vir
na plenitude dos tempos para trazer julgamento e salvação. Mas
no título “Senhor” há também um valor teológico; ou seja é um
nome divino que mostra a condição divina daquele ao qual é
atribuído. Nós o deduzimos do fato de que o nome divino he­
braico adonai, usado no lugar do inefável tetragrama Iahw eh, era
traduzido no grego da diáspora por Kyrios. Esse significado di­
vino é bastante evidente nas passagens do Novo Testamento em
que o título é relacionado com a invocação e a confissão de fé
(cf. At 2,Z1; Rm 10,9; ICor 1,2; 2Tm 2,22; e, ainda na forma
aramaica originária Maranatha, ICor 16,22 e Ap 22,20).8 Da
mesma forma, o título “Cristo” ( = Messias, Ungido), que evoca
a espera messiânica de Israel, está carregada de um significado
ao mesmo tempo teológico (particularmente acentuado nos tex­

8 A própria referência ao nome adoni-adonai e a presença dessas


formulações aramaicas excluem uma origem helenística do título, relacio­
nada com os cultos mistéricos e o culto prestado ao imperador, susten­
tada por exemplo por W. Bousset, Kyrios-Christòs. Geschichte des Chris-
tusglaubens von dem Anfüngen des Christentums bis Irenãus, Gõttingen,
1913, 1965, 5“ ed. Defendem uma origem palestina entre outros: O. Cull-
mann, Cristologia dei N .T., op. cit., pp. 301ss e E. Schweizer, Jesus
Christus im vielfãltigen Zeugnis..., op. cit., pp. 145ss, 172ss. Cf. também
W. Kramer, Christos-Kyrios-Gottessohn. Untersuchungen zu Gebrauch
und Bedeutung der christologischen Bezeichnungen bei Paulus und den
vorpaulinischen Gemeinden, Zurique-Stuttgart, 1963, especialmente pp.
61ss; F. Hahn, Christologische Hoheitstitel, op. cit., pp. 67-132; G. Quell
— W. Foerster, kúrios, in Grande Lessico dei Nuovo Testamento V,
Bréscia, 1969, pp. 1.341488.

92
tos intertestamentários, sobretudo apocalípticos) e soteriológico-
-escatológico: ele evoca a intervenção suprema de Deus na histó­
ria para realizar as suas promessas.9 Proclamar então que Jesus
é o Senhor e o Cristo é o mesmo que afirmar que ele é o Viven-
te, no qual: a) chegou a plenitude dos tempos e está aberto
para o homem o futuro de Deus; b ) é dada aos homens a salva­
ção, com a realização das promessas e c) Deus está presente de
maneira única e definitiva. É este, pois o significado da ressur­
reição, tal como é transmitido pelas fórmulas de anúncio e de
confissão de fé da comunidade das origens.
A esta altura surge o problema central da comunidade das
origens: como foi que a comunidade primitiva chegou a atribuir
ao humilde Crucificado o título de Senhor? Como se passou de
um Jesus que anuncia a um Jesus que é anunciado? Como a
testemunha da fé se tornou o fundamento da fé? 101 O que per­
mitiu unir Jesus e Senhor como sujeito e predicado respectiva­
mente? Em outras palavras — já que vimos como as fórmulas de
anúncio e de fé correspondem à proclamação da Ressurreição
de Jesus — qual a realidade transmitida pela linguagem da Res­
surreição que permite reconhecer no humilhado o Vivente dos
últimos tempos, de condição divina e salvador?
Não há dúvida de que, para exprimir essa realidade, o
Novo Testamento se serve de uma linguagem metafórica; ou me­
lhor, devemos falar de uma diversidade de linguagens metafóri­
cas. Todavia, elas podem reduzir-se a duas formas fundamen­
tais: a linguagem da Ressurreição, que raciocina de acordo com
o esquema do antes e do depois, para a qual aquele que estava
morto acordou, levantou-se, ressurgiu, vive; e a linguagem da
exaltação, que raciocina de acordo com um movimento de baixo
para cima, para a qual aquele que fora humilhado foi elevado,
exaltado.11 Já encontramos a primeira linguagem nas fórmulas

9 Cf. O. Cullmann, Cristologia dei N.T. op. cit., pp. 183ss; F. Hahn,
('liristologische Hoheitstitel, op. cit., pp. 133-225; W . Kramer, Christos-
kyrios-Gottessohn, op. cit., pp. 203-214; J. Obersteiner — H. Gross —
W Koester — J. Schmid, “Messias”, in Lexikon für Theologie und Kir-
che, VII, 2? ed., 335-42.
10 Cf. por exemplo, para estas duas últimas perguntas, G. Ebeling,
Wort und Glaube, 1960, pp. 203ss, 300ss, e J. Moltmann, 11 Dio croci-
fisso, Bréscia, 1973, p. 136.
11 X . Léon-Dufour, Risurrezione di Gesú, op. cit., pp 93ss, cha-

93
citadas; a segunda, que provavelmente se relaciona com a idéia
da entronização do rei messiânico (cf. SI 2,7 e 110,1), está pre­
sente em textos não menos antigos, como por exemplo o hino
pré-paulino da Carta aos Filipenses: Cristo Jesus “humilhou-se e
foi obediente até a morte e morte de cruz! Por isso Deus o so-
breexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre
todo o nome” (F1 2,8-9; cf. At 2,33;5,31: Deus o elevou à sua
direita; cf. também Lc 24,26; Ef 4,8ss; lTm 3,16; Hb 12,12;
2Pd 1,11; Ap 5,6). Em outras passagens, as duas linguagens
parecem combinadas, como, por exemplo, na chamada “cristolo-
gia dos dois estágios” — “segundo a carne” e “segundo o espí­
rito”. Ao invés de mostrar as duas naturezas da reflexão cristo-
lógica posterior, elas indicam os momentos ou estágios da vida
de Cristo, distintos e ao mesmo tempo unidos pela ressurreição-
exaltação.12 Assim, por exemplo, em Rm 1,1 ss Paulo fala do
Evangelho de Deus anunciado por ele, “que diz respeito a seu
Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido
Filho de Deus no poder por sua ressurreição dos mortos” (Rm
1,3-4; cf. 1-Pd 3,18: “condenado à morte na carne, mas tornado
vivo no espírito”; lTm 3,16: “Ele se manifestou na carne, foi
justificado no Espírito”). A combinação das duas linguagens
pode ser claramente percebida em textos como At 5,30-31: “O
Deus dos nossos pais ressuscitou a Jesus que vós matastes, sus­
pendendo-o ao madeiro. Deus o exaltou por sua direita, fazen-
do-o Chefe e Salvador” (cf. também lT s 1,10; Ef 1,20-21; lPd
1,21;3,22 etc.). Portanto, as duas linguagens da ressurreição e
da exaltação não se excluem mutuamente, mas manifestam o
esforço por exprimir de maneira diferente a riqueza da mesma
realidade significada. Além disso, a unidade entre ressurreição e
exaltação é amplamente atestada nos escritos do Novo Testa­
mento, até à “teologia pascal” do quarto evangelho, que fala de
elevação tanto em relação à cruz quanto em relação à ida ao
Pai, dando a entender que com um único ato o Nazareno é ele­
vado sobre a cruz e à glória do Pai (cf. Jo 3,14;8,28;12,32.34).13

ma-os respectivamente de “esquema” R e “esquema” E. Sobre a cristo-


logia da exaltação, cf. R. Schnackenburg, Cristologia dei N .T., op. cit.,
pp. 326-36.
12 Cf. ibid, 336-45.
13 Cf. I. de La Potterie, “L ’exaltation du Fils de 1’homme (Jn 12,
31-36)” in Gregorianum 49 (1968), pp. 460-78.

94
A única exceção à representação unitária entre ressurreição e
exaltação parece ser a narração de Lucas, que coloca entre os
dois eventos um intervalo de 40 dias (cf. At 1,3.9).14 Se conside­
rarmos, porém, que em outro lugar o mesmo evangelista parece
indicar esta unidade (cf. Lc 23,42-43 e 24,26) e recordarmos o
significado veterotestamentário da nuvem, veículo e sinal da pre­
sença de Deus, compreenderemos então que a ascensão de Jesus
na nuvem (em At 1,9) é apenas um modo diferente de atestar
o seu ingresso na glória do Pai, equivalente ao que é expresso
por ressurreição e exaltação. Por isso, os quarenta dias de At
1,3 têm apenas a função teológica de sublinhar a continuidade
entre o tempo do Ressuscitado e o tempo da Igreja (aliás, o nú­
mero 40 indica sempre tempos de denso significado teológico: cf.
os dias da permanência de Moisés no monte, Ex 34,28 e 24,18,
c os de Jesus no deserto, Mt 4,2; cf. também os anos do Êxodo:
Dt 8,2.4; cf. Nm 14,34). Portanto, ressurreição, exaltação, ascen­
são são instrumentos lingüísticos que procuram exprimir substan­
cialmente a mesma realidade. A própria pluralidade de formas
üngüísticas mostra a complexidade do dado que se quer comu­
nicar, a sua irredutibilidade à linguagem, e, conseqüentemente,
a inadequação de qualquer forma expressiva. É evidente que a
analogia com experiências semelhantes, de que se serve o pen­
samento para narrar a história,15 aqui não funciona. Devemos,
então, renunciar a aceitar a Ressurreição como um fato histori­
camente admissível?
Para responder a esta pergunta é necessário examinar outro
meio expressivo utilizado — juntamente com as fórmulas e as
confissões de fé e de anúncio — pela comunidade das origens
para veicular a realidade do que aconteceu ao Crucificado, que
o constituiu Senhor e Cristo: os relatos das aparições. Podemos
distinguir cinco grupos de narrações: a) o texto de ICor: depois

14 Cf., sobre esta questão, G. Lohfink, Die Himmelfahrt Jesu. Unter-


suchungeri zu den Himmelfahrts- und Erhõhungstexten bei Lukas, Mu­
nique, 1971, e Die Himmelfahrt Jesu. Erfindung oder Erfahrung?, Stutt-
gart, 1972. Cf. também J. Heuschen, L ’Ascensione nella Biblia, Bari,
1969.
15 Cf. E. Troeltsch “Uber historische und dogmatische Methode
(18 9 8 )” in Gesammelte Schrijten, II, Aalen, 1962, pp. 729-53; o meio
que se torna possível a compreensão da história é a analogia: “A analo­
gia com aquilo que acontece sob os nossos olhos... é a chave da crí­
tica” (p. 729).

95
das palavras já citadas, relativas à morte e ressurreição de
Cristo, o relato acrescenta que ele “apareceu a Cefas e depois aos
Doze. Em seguida apareceu a quinhentos irmãos de uma só vez,
a maior parte dos quais ainda vive, ao passo que alguns já
morreram. Além disso, apareceu a Tiago e depois a todos os
apóstolos. Por último, apareceu também a mim, como a um
aborto” (ICor 15,5-8); b) o final “longo” de Marcos (16,9-20),
que apesar de controvertido na tradição manuscrita, parece ser
uma mera recapitulação do que dizem os outros evangelistas so­
bre as aparições; c) os textos de Mateus, com as aparições às
mulheres (28,9-10) e aos Onze na Galiléia (vv. 16-20); d) o ca­
pítulo 24 de Lc, com as aparições aos discípulos de Emaús (vv.
13-35) e aos Onze, estando presentes também outros (vv. 36-53:
no v. 33 fala-se também de uma aparição do Ressuscitado a
Simão); e) as aparições em Jerusalém, narradas no capítulo 20
de João (a Maria Madalena: 14-18; aos discípulos na ausên­
cia de Tomé: 19-23; a Tomé em companhia dos discípulos:
24-29) e aparição a sete discípulos, na Galiléia, durante uma
pesça, contida no capítulo conclusivo que foi acrescentado (Jo
21). Diante de tal variedade de material podemos convir, sem
mais, que “somente uma harmonização forçada daria a aparên­
cia de esquema completo e coerente a todas essas aparições na
Galiléia e em Jerusalém; e as faria combinar sem dificuldade
com o esquema do querigma completado por Paulo”.10 Entre­
tanto, é possível encontrar em várias narrações uma estrutura
caracterizada por três momentos: com relação ao presente, é
sublinhada a iniciativa do Ressuscitado; com relação ao passado,
focaliza-se o reconhecim ento de Jesus de Nazaré naquele que se
apresenta Vivo; com relação ao futuro, evidencia-se a missão,
que brota do encontro com o Ressuscitado (cf. as aparições a
Pedro e aos Onze).
O primeiro momento é o da iniciativa por parte do Senhor
Jesus: “Ele mesmo se apresentou vivo” (tradução literal de At
1,3). É ele em pessoa que se mostra ou que aparece: certamente
o verbo ójde, usado em ICor 15,3-8 e Lc 24,34 (cf. At 9,17;
13,31 ;2 6 ,16), pode ter três interpretações: “foi visto”, “foi feito
ver (por Deus)” (como forma passiva), “fez-se ver, apareceu”16

16 L. Bouyer, II Figlio eterno. Teologia delia Parola di Dio e cris


logia, Alba, 1977.

96
(como forma média). Todavia, já era usado no Antigo Testa­
mento em grego para descrever as teofanias (cf. Gn 12,7; 17,1;
18,1;26,2). Por isso, se as aparições são organizadas de acordo
com o modelo das teofanias, como parece, o primeiro significado
deve ser excluído. Portanto, é o Ressuscitado que aparece, se
mostra vivo e toma a palavra. Esta experiência de vê-lo e ouvi-
lo, cuja iniciativa parte de fora dos destinatários das aparições,
parece sublinhar que a realidade experimentada é captada como
diferente, externa, “objetiva”. Sob este aspecto, parecem insu­
ficientes para interpretar a realidade veiculada por essas narra­
ções tanto a hipótese das visões subjetivas — que depois de D.
F. Strauss foi sustentada por vários autores, e que transfere as
visões para o íntimo dos discípulos, interpretando-as como um
produto de sua fé — quanto a das visões objetivas, segundo a
qual o que acontece no íntimo dos discípulos deve-se a uma
intervenção objetiva de Deus.17 Nos relatos, a “visão”, como
experiência subjetiva do ver, não ocupa o primeiro lugar. Ao
contrário, este é reservado ao “mostrar-se vivo” do Ressuscita­
do.18 O Ressuscitado é visto porque “aparece”, e não aparece
porque “é visto” . “As aparições pascais não devem ser explica­
das a partir da fé pascal dos discípulos, mas ao contrário: as
aparições é que motivam a fé pascal dos discípulos”.19
À iniciativa do Ressuscitado segue-se o reconhecim ento por
parte dos destinatários. No Vivente que aparece é reconhecido
Jesus de Nazaré; no Ressuscitado, o Crucificado; no Exaltado
por Deus, o Humilhado. O. reconhecimento evidencia, ao mesmo
tempo, a continuidade e a novidade do Vivente com relação ao
abandonado da Cruz: “O evento fundamental das aparições da
Páscoa consiste... na revelação da identidade e continuidade de
Jesus na contradição total entre Cruz e Ressurreição, entre aban­

17 Cf. neise sentido recentemente H. Grass, Ostergeschehen und


Osterberichte, op. cit., pp. 233-49.
18 Diversamente W. Marxsen, “La resurrezione. Problema storico e
tcologico” in Alie origini delia cristologia, op. cit., pp. 135ss, que con­
clui: “Historicamente pode-se estabelecer apenas (mas isso com certeza)
que alguns homens, depois da morte de Jesus, foram convencidos de
que haviam visto Jesus, e que a reflexão sobre isso cs levou a interpre­
tar que Jesus havia ressuscitado” (p. 141). Em outras palavras, “ressur­
reição” seria um “modo de interpretar” ([Interpretament) a “experiência
do ver”.
19 W. Pannenberg, Cristologia. Lineamenti fondamentali, Bréscia,
1974, p. 109.

97
dono por parte de Deus e proximidade de Deus”.20 A novidade
é logo evidenciada pelo fato de o Crucificado ressuscitar “no ter­
ceiro dia segundo as Escrituras” (cf. ICor 15,4). Ou seja, no dia
que — segundo a concepção judaica — é o dia decisivo, o dia
da salvação (cf. Os 6,2: “Depois de dois dias nos fará reviver,
no terceiro dia nos restabelecerá”; cf. também Gn 22,1, evocado
por Mt 12,40), e que por isso, ao invés de ser uma indicação
temporal, exprime a dimensão última e definitiva, escatológica,
do evento que se realizou. A novidade é transmitida também
pelas características imateriais atribuídas ao Ressuscitado: por
exemplo, ele vem para junto dos discípulos “enquanto estavam
fechadas as portas do lugar onde se encontravam” (Jo 20,19),
ou desaparece de vista (cf. Lc 24,31). A continuidade do Res­
suscitado com relação ao Humilhado é sublinhada pelo próprio
ato do reconhecimento: “Então abriram-se-lhes os olhos e o
reconheceram” (Lc 24,31), e é marcada estilisticamente pela
dúvida, superada só depois de uma palavra ou um sinal do
Senhor Jesus (cf. Lc 24,30-31.35.37.39-43; Jo 20,14.16-20;21,4.
6-7; cf. Mt 28,17), dissolvendo-se então na alegre confissão: “É
o Senhor!” (Jo 21,7). Essa continuidade exclui qualquer inter­
pretação redutiva da realidade da ressurreição em relação à pes­
soa de Jesus: não é apenas a sua causa que prossegue (“Die
Sache Jesus geht weiter”),21 nem se trata unicamente de um
Cristo Senhor que simboliza o novo início,22 a virada do mun­
do; 23 mas é justamente aquele Jesus que foi crucificado que
agora é glorificado pelo Pai. “O ponto decisivo... está no fato de
que a identidade de Jesus consiste na diferença qualitativa entre
cruz e ressurreição. Essa identidade na infinita contradição é
teologicamente entendida como um fato de identificação, como
um ato da fidelidade de Deus. Nesta base se alicerça a promes­

20 J. Moltmann, Teologia delia speranza, Bréscia, 1970, p. 204 (ed.


bras.: Teologia da esperança, Herder, São Paulo, 1971, 450 p.).
21 Cf. W. Marxsen, Die Sache Jesu geht weiter, Güttersloh, 1976.
22 Cf. R. Bultmann, Das Verhãltnis der urchristlichen Christusbot-
schaft zum historischen Jesus (Sitzungsberichte der Heidelberger Akade-
mie der Wissenschaften), Heidelberg, 1960, p. 27.
23 Cf. a obra de F. Gogarten, Gesú Cristo svolta dei mondo. Pre-
liminari di una cristologia, Turim, 1970. Sobre essas interpretações
“existenciais” da ressurreição, cf. I. Bertén, in Revue de Sciences Phi-
losophiques et Théologiques 55 (1971) 510s (Bulletin). Cf. também C.
Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, pp. 410-477, e A. Geense, Auferste-
hung und Offenbarung, Gõttingen, 1971.

98
sa do futuro de Jesus Cristo ainda por vir”.24 Sem essa “identi­
dade na contradição” entre Crucificado e Ressuscitado a fé cris­
tã se reduziría a uma nova interpretação da existência humana,
mas não estaria fundada no ato excepcional da fidelidade de
Deus, que, glorificando o Crucificado, reconhece a sua “preten­
são” e a sua “luta”, e justifica a esperança aberta por sua men­
sagem e por seu comportamento para os pobres, para os últimos,
para os oprimidos.
Essa identidade implica também uma dimensão corpórea da
ressurreição: esta, certamente, não pode ser entendida como
reanimação material de um cadáver, retorno à condição mortal
de existência (como, por exemplo, no caso de Lázaro), mas se
situa num plano diferente, que “escapa à experiência do homem,
que vive aquém da morte”.25 Ela já pertence à nova criação do
tempo escatológico (recordemos o que Paulo diz em ICor 15,
35-44 sobre, o corpo “espiritual” dos ressuscitados). Entretanto,
devemos sublinhar que num contexto como o hebraico, que des­
conhecia o dualismo grego entre corpo e alma, a ressurreição
não teria abarcado a totalidade pessoal do Crucificado nem teria
tido significado para as suas relações com o mundo, se não se
referisse à sua unidade psicossomática concreta. Aliás, é o que
afirmam os textos que falam do Ressuscitado que é tocado e
come com os seus (cf. Lc 24,38ss; Jo 20,26ss): “Contemplai as
minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo! Tocai-me e vede:
um fantasma não tem carne e ossos como vedes que eu tenho”
(Lc 24,39). “A corporeidade da ressurreição significa que Jesus
Cristo, que ressuscitou e foi exaltado, agora não só vive intei­
ramente na dimensão de Deus, mas também está inteiramente
e de nova maneira presente no mundo, no meio de nós... Com
a ressurreição e elevação de Jesus um ‘fragmento do mundo’
chegou definitivamente até Deus e foi por ele definitivamente
acolhido”.26 Novidade e continuidade, contradição e identida­
de caracterizam, então, o reconhecimento do Crucificado no

24 J. Moltmann, Teologia delia speranza, p. 82, op. cit. in n. 20.


25 W. Pannenberg, Cristologia, op. cit., p. 79.
26 W. Kasper, Gesú il Cristo, Bréscia, 1975, p. 208; cf. Duqouc,
Cristologia, pp. 563-76. A recente hipótese de uma fusão do cadáver de
Jesus, com o cosmo formulada por X . Léon-Dufour no fim de seu livro
l.a risurrezione di Gesú, pp. 400ss, tornou-se, e com razão, objeto de
muitas observações críticas.

99
Ressuscitado por parte dos discípulos aos quais ele aparece. Essa
tensão confirma mais uma vez como a experiência do Ressusci­
tado rompe a analogia do conhecimento histórico, e exige dispo­
nibilidade para um acolhimento na fé por parte do destinatário.
Neste sentido, é típica a passagem já mencionada da dúvida e da
prostração para a fé e a adoração, que caracterizam os relatos
das aparições. A fé, suscitada por Aquele que se mostra vivo,
consegue ver, ao passo que o conhecimento “histórico” queda
mudo: neste sentido, as aparições são um evento de graça.27
Este caráter revelador e gratuito da experiência do Ressuscitado
é enfatizado por Paulo em relação à sua própria experiência (cf.
G1 1,15-16), e é também testemunhado nos Atos dos Apóstolos,
quando Pedro afirma que “Deus o ressuscitou ao terceiro dia e
fez que se manifestasse, não a todo o povo, mas às testemu­
nhas, que Deus havia escolhido de antemão, a nós que come­
mos e bebemos com ele, após a ressurreição dentre os mortos”
(At 10,40-41).
No encontro com o Ressuscitado nasce e se funda a missão:
o Senhor envia os discípulos para que sejam suas testemunhas
(cf. Mt 28,18-20; Mc 16,15-20; Lc 24,48; cf. Jo 20,19ss). O
anúncio da Ressurreição une-se assim ao testemunho de quem
teve a experiência do Ressuscitado: “Deus o ressuscitou da
morte, e disto nós somos testemunhas” (At 3,15). “Deus... o
exaltou... e destes fatos somos testemunhas” (At 5,31-32; cf.
também At 2,32 e 10,40-41). O próprio Paulo sente a necessi­
dade de ligar o seu anúncio com o das primeiras testemunhas:
“Eu vos transmiti, antes de tudo, o que eu mesmo recebi: Cristo
morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, ressuscitou
ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas e de­
pois aos Doze” (ICor 15,3-5). E, para substituir a Judas, pro­
cura-se alguém que tenha estado com Jesus durante a sua vida
até o dia em que nos foi arrebatado”, para que se torne, “jun­
tamente conosco, testemunha de sua ressurreição” (At 1,22).
Do encontro com o Ressuscitado surge assim a missão da Igreja.

27 Cf. E. Schillebeeckx, Gesú, la storia di un vivente, Bréscia, 1976,


por exemplo: pp. 379-410. Este papel da graça parece não ser sublinha­
do na interpretação de W . Pannenberg, Cristologia, op. cit., pp. 98ss,
que parece-insistir demasiadamente na “historicidade” em sentido técni­
co da ressurreição; cf. a crítica de J. Moltmann, Teologia delia speran-
za, pp. 79s, op. cit. in n. 20.

100
Ou melhor: pode-se supor que o interesse da comunidade pri­
mitiva pelos relatos das aparições se baseava justamente no fato
de que estes fundavam essa missão, e a fundavam na sua estru­
turação hierárquica (observemos como as palavras das mulhe­
res e dos viajantes de Emaús não são acreditadas até que surja
o testemunho apostólico “oficial”)-28 Em todo caso, o testemu­
nho corajoso é inaudito do Crucificado apresentado por aqueles
mesmos discípulos que, pouquíssimo tempo antes, o tinham aban­
donado e haviam fugido de medo, testemunho que não recuará
nem mesmo diante do sacrifício da própria vida, é o fato que
inegavelmente será admitido até pelo historiador profano como
sinal de “algo” inexplicável, que se verificou entre a sexta-feira
santa e o novo e maravilhoso início do fenômeno cristão.
Este início excepcional, irredutível a motivações religiosas,
psicológicas, sociais ou políticas, foi explicitamente relaciona­
do por aqueles que o viveram com a ressurreição de Jesus. Cer­
tamente, os relatos da Ressurreição “estão diretamente situados
num horizonte especial de expectativas proféticas e apocalípticas,
de esperanças e de interrogações sobre aquilo que, segundo as
promessas..., deve acontecer”. Mas a revelação de Jesus Cristo
“faz explodir o quadro do pensamento apocalíptico do judaísmo
tardio. Com efeito, de acordo com o que é afirmado nas narra­
tivas pascais, Deus não mostrou o curso da história, ou os misté­
rios do mundo celeste superior, ou o resultado do julgamento
final, mas o futuro do Cristo crucificado em favor do mundo”.29
Sem este evento, que as testemunhas representam como encontro
com o Ressuscitado, não seria compreensível o nascimento e a
difusão do movimento cristão. É aqui que a analogia, caracterís­
tica do conhecimento histórico, pode ajudar a interpretar as ori­
gens do cristianismo: a partir do seu desenvolvimento, que é
“futuro” sempre novo do Crucificado na sua comunidade, ela se
abre à possibilidade de um dado originário que escapa aos esque­
mas do nosso conhecer. “A Ressurreição de Cristo não se apre­
senta como uma analogia daquilo que, de alguma forma, sempre
se pode experimentar, mas como analogia daquilo que há de vir”.30
A Ressurreição pertence ao mundo do advento, não ao da repe-

28 Cf. E. Schillebeeckx, Gesú..., op. cit., p. 362.


29 J. Moltmann, Teologia delia speranzà, op. cit., pp. 196.197.198.
30 Id., ibid., p. 185.

101
tição do que sempre existiu: ela provoca a “razão histórica” a
ser “razão aberta”, capaz de admiração e de estupor. A “razão
aberta” consegue ler no “novo início” do fato cristão algo da­
quela experiência que os relatos de aparições pretendem trans­
mitir: os discípulos anunciam a mensagem com uma coragem
surpreendente e uma inexplicável segurança, porque se sentem
enviados e sustentados por Jesus em pessoa, aquele Jesus que eles
evidentemente reconheceram como Vivente de uma nova vida,
oriunda de Deus, e como Vivificador, aquele Jesus que lhes per­
doou por o terem abandonado, e lhes deu vida e força do alto.
Nesta força, que é o Espírito do Ressuscitado, eles compreen­
dem que Deus, ao ressuscitar Jesus dos mortos, tomou posição:
a) sobre seu passado, confirmando os seus dias terrenos como
história na qual é dada a revelação de Deus; b) sobre seu pre­
sente, atestando que ele está vivo e age com poder no hoje da
Igreja e do mundo; c) sobre seu futuro, indicando nele o Senhor
do tempo futuro, aquele que há de vir na glória e é o funda­
mento da esperança que não desilude. Por isso eles, na força do
mesmo Espírito, sentem-se capazes de desafiar aqueles mesmos
poderosos que fizeram morrer o seu Senhor, e de enfrentar co­
rajosamente o futuro, que para eles já está prenhe da promessa
dada em Jesus Cristo. Os medrosos fujões da sexta-feira santa
tornaram-se testemunhas cheias de esperança: a “contradição
na identidade”, que caracteriza o Crucificado-Ressuscitado, tor­
na-se também a característica daqueles aos quais ele se mostrou
Vivo, contagiando-os evidentemente com a sua força de vida.
Novos, apesar de serem os mesmos, são os homens em cujo
testemunho se funda a fé cristã.
Chegamos a estas conclusões sem examinar os relatos
d o sepulcro vazio, que tiveram tanta importância na pie­
dade -cristã como também na tradição teológica. Isso não
deve causar admiração. Tais relatos (Mc 16,1-8; Mt 28,1-
10; Lc 24,1-10; Jo 20,1-10 e 11-18), que parecem ter algum
conteúdo histórico (o testemunho das mulheres não tinha
nenhum valor no ambiente judaico, e por isso é difícil
pensar que tenha sido totalmente inventado), já não exer­
cem nenhuma influência na pregação de Paulo (somente
em ICor 1,4-8 se faz um aceno à sepultura, mas no con­
texto de uma fórmula que o próprio Paulo diz ter rece­
bido de outros). Além disso, as incongruências históricas

102
desses relatos são muito numerosas e traem um acentuado
trabalho redacional do evangelista.31 Estas narrativas cer­
tamente têm um profundo significado teológico, que “con­
siste no inegável interesse cristão pela absoluta identidade
entre o Jesus de Nazaré crucificado e o Cristo ressuscita­
do”.32 Todavia, não parece ilegítimo considerá-las, do pon­
to de vista da história das formas, uma “lenda etiológica”,
isto é, que visava a motivar o culto prestado em Jerusalém,
ao lugar da sepultura de Jesus.33 Seja como for, mesmo
que se admita a necessidade de uma referência ao sepul­
cro vazio na pregação feita em Jerusalém, lugar onde ocor­
reu a crucificação e o sepultamento do Nazareno,34 per­
siste o fato de que o simples dado do túmulo vazio é
ambíguo, susceptível de várias interpretações (por exem­
plo, que o corpo tivesse sido roubado, segundo a tese dos
judeus, lembrados por Mt 28,11-15), e por isso mesmo
totalmente incapaz de fundamentar a fé na ressurreição.
É esta fé que, quando muito, pode interpretar o sepulcro
vazio: ele, por si só, não acrescenta nem tira nada da
experiência que fez os apóstolos confessarem: “Jesus é o
Senhor!” 35
31 Isso é evidente para a narração mais antiga de Mc 16,1-8, da qual
dependem os outros evangelistas (Mt 28,1-10 é a história de Mc trans­
plantada para o contexto da polêmica entre judeus e cristãos; Lc 24,1-12
é o mesmo relato inserido no modelo judaico-grego do “rapto”) ; o mo­
tivo da visita ao sepulcro — ungir um cadáver tanto tempo depois da
morte — parece inverossímil; também a pergunta sobre a pedra que
deve ser removida tem toda a aparência de um artificio estilístico visan­
do a criar expectativa diante da palavra decisiva do anjo: “Ressuscitou,
não está aqui. Eis o lugar onde o tinham colocado” (16,6). Cf. M. Brán-
dle, “Die synoptischen Grabeserzãhlungen” in Orientierung 31 (1967),
179-84; J. Delorme, “Résurrection et tombeau de Jésus: Mc 16,1-8 dans
la tradition évangélique” in La résurrection du Christ et Vexégèse mo-
derne, op. cit., pp. 105-51.
32 E. Schillebeeckx, Gesü, op. cit., p. 349.
33 Cf. G. Schille, “Das Leiden des Herrn” in Zeitschrift für Theo-
logie und Kirche 52 (1955), 161-205; L. Schenke, Aujerstehungsverkün-
digung und leers Grab, Stuttgart, 1969, 2" ed.
34 Como sustenta, por exemplo, P. Althaus, Die Wahrheit des christ-
lichen Osterglaubens, Gütersloh, 1940, p. 25.
35 Entre outros, R. Brown, La concezione verginale e la resurre-
zione corporea di Gesü, Bréscia, 1977, p. 10, dá um destaque diferente
no sepulcro vazio: “Tendo visto ressuscitado, (os discípulos) compreen­
deram que o sepulcro estava vazio porque ele tinha ressuscitado dos
mortos. Assim, os cristãos confessaram tanto que Cristo havia ressusci-
tmlo, quanto que ele tinha aparecido (ICor 15,4-5; Lc 2 4 ,3 4 )”.

103
4 .2 . O PROBLEMA HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE O JESUS
PRÉ-PASCAL E O CRISTO PÓS-PASCAL

O primeiro anúncio cristão de Jesus como Senhor e


Cristo funda-se na Ressurreição; e é nela também que se
baseia o posterior desenvolvimento da cristologia do Novo Tes­
tamento. À luz da experiência pascal, veiculada nas fórmulas
de fé e nos relatos das aparições, se relê para trás e para frente,
retrospectiva e prolepticamente, a história do Nazareno, a histó­
ria de Israel e a da Igreja e do mundo. Passado e futuro são
interpretados com base no que aconteceu na Páscoa. Coloca-se
então, preliminarmente, o problema da relação que há entre a
experiência pascal e o passado de Jesus de Nazaré: em que
relação estão os dois momentos expressos na fórmula “Jesus é
o Senhor”, isto é, a história do Humilhado e a condição do Res­
suscitado por Deus? O Cristo da fé pascal está em continuida­
de ou em descontinuidade com o Jesus da história? Se “a verda­
de da existência da fé se funda na verdade de fato das coisas
que devem ser cridas”,36 compreende-se como tal questão envol­
va o próprio fundamento da fé cristã: é o problema crítico dela.
Não é de se estranhar, pois, que em torno dessa questão tenha
gravitado apaixonadamente a reflexão cristã dos últimos dois
séculos, a idade da crítica! Podemos identificar três etapas, cro­
nologicamente sucessivas, que constituem também três tipos de
resposta.37

36 J. Moltmann, Teologia delia speranza, op. cit., p. 193.


37 A bibliografia sobre o problema do Jesus histórico é vastíssima.
Além dos textos citados nas notas seguintes, cf. as obras em colaboração
Christ, Faith and History, org. por S. W. Sykes e J. P. Clayton, Cam-
bridge, 1972; Conoscenza storica di Gesú. Acquisizioni esegetiche e uti-
lizzazione nelle cristologie contemporanee, Bréscia, 1978; Da Gesú ai
Vangeli, sob a direção de I. De La Potterie, Assis, 1972; Der historische
Jesus und der kerygmatische Christus. Beitráge zum Christusverstándnis
in Forschung und Verkündigung, org. por H. Ristow e K. Matthiae, Ber­
lim Oriental 1960; Jésus aux origines de la Christologie, org. por J. Du-
pont, Louvain-Gembloux, 1975; Jesus Christus in Historie und Theologie,
Festschrift H. Conzelmann, org. por G. Strecker, Tübingen, 1975; Jé­
sus: de Thistoire à la foi, por L. Audet e outros, Montreal, 1974; Jesus
von Nazaret, org. por F. J. Schierse, Mainz, 1972; Rückfrage nach
Jesus. Zur Methcdik und Bedeutung der Frage nach dem historischen
Jesus, org. por K. Kertelge, Friburgo-Basiléia-Viena, 1974. Cf. A. Amato,
“II Gesü storico. Problemi e interpretazioni” in Salesianum 39 (1977),

104
a) Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), profes­
sor de línguas orientais em Hamburgo, tinha escrito um
conjunto de estudos, não publicados, nos quais distinguia
e opunha a doutrina de Jesus à de seus discípulos e da
Igreja. A divulgação desses escritos é mérito de Gotthold
Efraim Lessing, bibliotecário em Wolfenbüttel, que os pu­
blicou entre 1774 e 1778 sob o título Fragmente eines
W olfenbüttelschen Ungenannten (Fragmentos de um Anô-

pp. 293-317; J. Baird, Audience. Criticism and the Historical Jesus, Fila­
délfia, 1969; G. Bornkamm, Gesü di Nazareth, Turim, 1977, 2- ed. (ed.
bras.: Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1976, 194 p .); J. Caba, Dai
Vangeli al Gesü storico, Roma, 1974; L. Cerfaux, Gesü alie origini delia
tradizione, Turim, 1971; N. A. Dahl, “Der historische Jesus ais geschicht-
liches und theologisches Problem” in Kerygma und Dogma 1 (1955),
pp. 104-32; C. Dodd, Storia ed evangelo, Bréscia, 1976; P. Fiedler — L.
Oberlinner, “Jesus von Nazareth. Ein Literaturbericht”, in Bibel und
Leben 13 (1972), pp. 52-74; H. Fischer, “Die ‘geschichtliche Christolo-
gie’ und das Problem des historischen Jesus” in Zeitschrift für Theolo-
gie und Kirche 65 (1968), pp. 348-70; E. Fuchs, Zur Frage nach dem
historischen Jesus, Túbingen, 1965, 2? ed.; R. H. Fuller, The Foundations
of New Testament Christology, Londres, 1965; J. R. Geiselmann, Gesü
il Cristo: I, II Gesü storico, Bréscia, 1967; J. Jeremias, II problema dei
Gesü storico, Bréscia, 1964; W. G. Kümmel, “Jesusforschung seit 1950”,
in Theologische Rundschau n. F. 31 (1965-66), 15-46, 289-315, “Ein
Jahrzehnt Jesusforschung (1965-1975)”, ibid. 40 (1975), pp. 289-336, e
41 (1976) pp. 197-258, e II Nuovo Testamento. Storia delTindagine scien-
tifica sul problema neotestamentario, Bolonha, 1976; R. Latourelle, A
Gesü attraverso i Vangeli. Storia ed ermeneutica, Assis, 1979; X . Léon-
Dufour, I Vangeli e la storia di Gesü, Roma, 1969; W. Marxsen, Alie
origini delia cristologia, op. cit.; J. Michl, Questioni su Gesü. Dal Gesü
delia storia al Cristo delia fede, Assis, 1968; C. L. Mitton, Jesus. The
Fact behind the Faith, Grand Rapids, 1974; C. F. D. Moule, The Origin
of Christology, Cambridge, 1977; S. Neill, The Interpretation of the New
Testament, Oxford, 1966; R. Pesch — H. A. Zwergel, Kontinuitãt in
Jesus. Zugãnge zu Leben, Tod und Auferstehung, Freiburg i. Br., 1974;
). Reumann, Jesus in the Church’s Gospels: Modern Scholarship and
the Earliest Sources, Filadélfia, 1968; J. M. Robinson, Kerygma e Gesü
storico, Bréscia, 1977; J. Roloff, Das Kerygma und der irdische Jesus.
Historische Motive in den Jesus Erzãhlungen der Evangelien, Gõttingen,
1970; E. Schillebeeckx, Uapproccio a Gesü di Nazaret, Bréscia, 1972, e
Gesü, la storia di un vivente, op. cit., pp. 35-100; H. Schürmann, La
tradizione dei detti di Gesü, Bréscia, 1966; W . Triíling, Fragen zur Ge-
schichtlichkeit Jesu, Düsseldorf, 1966; E. Trocmé, Gesü di Nazaret visto
dai testimoni delia sua vita, Bréscia, 1975; E. Troeltsch, Die Bedeutung
der Geschichtlichkeit Jesu für den Glauben, Tübingen, 1971; H. Zahrnt,
Cominciò con Gesü di Nazaret. II problema dei Gesü storico, Bréscia,
1975, 2* ed.; S. Zedda, I Vangeli e la critica oggi. Dal Cristo delia fede
al Gesü delia storia, 2 vol., Treviso, 1970.

105
nimo de Wolfenbüttel).38 Embora as hipóteses de Rei-
marus sejam mais filosófico-racionalistas do que histórico-
críticas, pode-se reconhecer nele o iniciador da pesquisa
crítica moderna sobre a vida de Jesus (Leben-Jesu-Fors-
chung). Esta se desenvolverá sobretudo na Alemanha, atra­
vés de grande número de trabalhos, cuja característica
comum é o programa de escrever a vida do Nazareno,
narrando da melhor maneira possível “como as coisas
realmente aconteceram” (“wie es eigentlich gewesen ist”,
segundo a expressão do historiador L. Ranke, 1795-1886),
prescindindo por isso da pregação da Igreja primitiva.39
De H.E.G. Paulus40 a F. Schleiermacher,41 de D. F.
Strauss42 a B. Bauer43, de E. Renan44 a W. Wrede,45
para citar apenas alguns nomes, assiste-se a um gigantesco
esforço para se voltar ao homem Jesus de Nazaré. O prin­
cípio do qual nasce essa interpretação, o pressuposto her­
menêutico dessa crítica e teologia “liberal” é a concepção
da história como soma de fatos (bruta jacta), de modo que
apenas seria história verdadeira a história exata, o registro

38 Foi feita somente em 1972 a edição crítica completa daqueles


estudos: H. S. Reimarus, Apologie oder Schutzeschrift für die vernünf-
tigen Vereher Gottes, sob a direção de G. Alexander, 2 vol., Frank­
furt, 1972. Há uma tradução italiana: 1 frammenti delFAnonimo de
Wolfenbüttel pubblicati da G. E. Lessing, sob a direção de P. Parente,
Nápoles, 1977.
39 A história dos desenvolvimentos da “Leben-Jesu-Forschung” é
exposta e avaliada na obra fundamental de A. Schweitzer, Von Reima­
rus zu Wrede. Eine Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, de 1906, que,
a partir da segunda edição (Tübingen, 1913) se intitulará simplesmente
Geschichte der Leben-Jesu-Forschung. Citação da Taschenbuchausgabe,
2 vol., Tübingen, 1977, 3? ed.
40 Das Leben Jesu ais Grundlage einer reinen Geschichte des Ur-
christentums, Heidelberg, 1828 (2 Bande): cf. Schweitzer, op. cit., I,
pp. 88s.
41 Das Leben Jesu, 1864: cf. Schweitzer, op. cit., I, pp. 97ss.
42 Das Leben Jesu, 1835-1836 (2 Bande): cf. Schweitzer, I, pp.
115ss. Cf. U. Regina, La vita di Gesú e la filosofia moderna. Uno studio
su D. F. Struss, Bréscia, 1979.
43 Cf. bibliografia das obras e apresentação em Schweitzer, I, pp.
171ss.
44 La vie de Jésus, Paris, 1863; cf. Schweitzer, I. pp. 207ss.
45 Das Messiasgeheimnis in den Evangelien. Zugleich ein Beitrag
zum Verstandnis des Markusevangelium, Gõttingen, 1901: cf. Schweit­
zer, II, pp. 382ss.

106
“fotográfico” do passado. Partindo desse pressuposto, afir­
ma-se que, para alcançar Jesus como ele verdadeiramente
foi, é preciso que haja o despojamento de qualquer ingerên­
cia da fé eclesial; somente assim seria possível apurar o
dado na sua consistência originária. Dessa forma, dos dois
termos da fórmula pascal “Jesus é o Senhor”, o segundo
é visto em absoluta descontinuidade com o primeiro, como
elaboração da primitiva comunidade cristã, que oculta o
autêntico rosto do homem de Nazaré. Já mostramos —
falando da “história da cristologia” — como um pressu­
posto interpretativo que, na busca da objetividade históri­
ca, queira prescindir do círculo hermenêutico vivo em que
cada um está inevitavelmente situado, acaba produzindo
frutos bem pouco objetivos. É o que acontece no caso da
“Leben-Jesu-Forschung” : a multiplicidade de imagens
“autênticas” de Jesus, resultantes dessas pesquisas, revela
por si mesma a subjetividade das interpretações propostas.
A personagem dessas Vidas acaba sempre assemelhando-se
muito com o autor; assim, fica evidente que “o Jesus de
um protestante liberal é sempre apenas um protestante
liberal”.46 Deste fracasso, que no campo católico encon­
tra uma severa denúncia na reação antimodernista, surge
a exigência da busca de outra pista de pesquisa.

b) Precursor de uma virada frente à “Leben-Jesu-


Forschung”, Martin Káhler publicou em 1892 a obra Der
sogertannte historische Jesus und der geschichtliche, bi-
blische Christus (O chamado Jesus “dos fatos brutos” e o
Cristo bíblico “da história”) 47 Tomou como ponto de parti­
da para a pesquisa sobre Jesus a fé da Igreja, a única reali­
dade que conta para o conhecimento crente de Cristo: “O

46 J. Dupont, “A che punto è la ricerca sul Gesü storico” in Cono-


scenza storica di Gesü, op. cit., p. 9. É esta também a observação crítica
de fundo movida por Schweitzer, cujo juízo, porém, foi em parte revisto
por R. Slenczka, Geschichtlichkeit und Personsein Jesu Christi, Gõttingen,
1967. Este autor procurou demonstrar que o fim da " Leben-Jesu-Fors­
chung” não era a destruição crítica do dogma cristológico, mas uma
nova fundamentação história, cristológica, hermenêutica e apologética do
cristianismo: cf. pp. 118-37;296-302 etc.
47 M. Kahler, Der sogenannte historische Jesus und der geschicht­
liche, biblische Christus, reeditado por E. Wolf, Munique, 1969, 4- ed.

107
Cristo real é o Cristo pregado”.48 Quanto menor for a certeza
histórica sobre Cristo, tanto mais pura será esta fé, livre
da presunção das certezas humanas: a “sola fides” é toma­
da, portanto, como princípio hermenêutico. A virada assim
anunciada será radicalizada e prosseguida com inflexível
coerência por Rudolf Bultmann (1884-1976) 49 Ele rejeita,
inicialmente, a redução da história aos “bruta facta” : his­
tória é sempre história humana, carregada de significado
para o hoje, mesmo quando é história do passado. Em
outras palavras, o que realmente conta não é o fato bruto,
definitivamente passado e morto (historisch), mas o fato
histórico, o evento carregado de sentido (geschichtlich),
solidário com o homem do presente. Isso vale também
para a história de Jesus. Não são os traços judaicos do
Nazareno que interessam existencialmente o crente de hoje,
mas o evento de salvação realizado em Jesus Cristo, como
nos é anunciado pelo querigma: é o querigma, o anúncio,
que transforma o fato definitivamente passado num evento
prenhe de significado para todos os tempos. “No querig­
ma o fato bruto se torna evento”.50 Por isso, o importante

48 Ibid, p. 44.
49 Entre as muitas obras desse extraordinário autor, cf.: Storia dei
vangeli sinottici, Bolonha, 1969 (Giessen 1925); Gesú, com introdução
de I. Mancini, Bréscia, 1972 (Tübingen, 1926); Nuovo Testamento e
mitologia, Bréscia, 1971, 3? ed. Das Problem der Entmythologiesierung
der neutestamentlichen Verkündigung (1941) in Kerygma und Mythos,
I, org. por H. W. Bartsch, Hamburgo, 1948, pp. 15-53; a resposta de
Bultmann às observações críticas, publicada em 1952 com o título “Zur
Frage der Entmythologisierung”, in Kerygma und Mythos, III, Hambur­
go, 1952, pp. 179-208; e o trabalho enviado ao encontro romano sobre
a desmitização, em 1961, com o título Zum Problem der Entmythologi­
sierung: Theologie des Neuen Testaments, Tübingen, 1948, 1977, D ed.;
Credere e comprendere, Bréscia, 1977 (Tübingen, 1967, 2? ed .); “II ra-
porto fra il 'messaggio di Cristo dei cristianesimo primitivo e il Gesü
storico” irr Exegetica, Turim, 1971, pp. 159-188 (Tübingen, 1967). Sobre
Bultmann cf. entre outras obras: Capire Bultmann, Turim, 1971, com a
contribuição, entre outros, de K. Barth e O. Cullmann; R. Marlé, Bult­
mann e Vinterpretazione dei Nuovo Testamento, Bréscia, 1958; W. Schmi-
thals, La teologia di Bultmann. Una introduzione, Bréscia, 1972. Sobre o
conceito de história em Bultmann, cf. G. Greshake, Historie, wird Ge-
schichte, Bedeutung und Sinn der Unterscheidung von Historie und Ge-
schichte der Theologie R. Bultmanns, Essen, 1963.
50 “Im Kerygma wird Historie zur Geschichte”: G. Greshake, op.
cit., p. 64. Cf. A. Rizzi, Cristo verità delPuomo. Saggio di cristologia
jenomenologica, Roma, 1972, pp. 228-38 (Bultmann e a consciência his­
tórica) .

108
não é remontar ao tempo anterior ao querigma, como quis
fazer a “Leben-Jesu-Forschung”, para chegar a um “Cris­
to segundo a carne” (cf. 2Cor 5,16), que para nós não tem
interesse algum e nem mais é “cristão”, pertencendo ine­
xoravelmente ao passado e à morte. O importante é encon­
trar o Cristo da fé, pregado pelo anúncio eclesial. Em
outras palavras, o que podemos conhecer e que nos inte­
ressa existencialmente não é o evangelium Christi, realida­
de já passada e sem futuro, mas o evangelium d e Christo,
o evento proclamado pelo hoje da comunidade de fé. To­
davia, Bultmann não quer com isso separar o querigma
da figura histórica de Jesus: o fato de que Jesus tenha
existido (dass) é o fundamento do apelo à decisão salvífi-
ca, é o “extra nos” da salvação. Mas não é esse fato em
seus conteúdos e modalidades (was und wie) que é rele­
vante para a fé; ao contrário, é o próprio apelo, o signifi­
cado para nós do Cristo anunciado no querigma, enquanto
revelador definitivo de Deus, que nele chama o homem à
obediência da fé e lhe oferece a possibilidade de uma
existência nova. A busca desse significado para nós é a
chamada “interpretação existencial” de Bultmann, cujo
reverso crítico negativo é a tarefa de “demitização”. “De-
mitizar” quer dizer eliminar do Novo Testamento tudo o
que reflete uma visão mítica do mundo — isto é, funda­
mentada na confusão entre humano e divino e por isso,
totalmente inacessível para a mentalidade moderna — ,
para captar na mensagem evangélica o que nela pode haver
de significativo para o homem de hoje. Interpretação exis­
tencial e demitização, portanto, são os momentos positi­
vos e negativos de um mesmo processo. À base de ambos
está a convicção dc que existe um corte entre o que Jesus
foi e o que é para nós. Mas, ao contrário dos teólogos libe­
rais, Bultmann afirma essa descontinuidade não a favor
do primeiro termo da fórmula “Jesus é o Senhor”, mas a
favor do segundo, considerando o primeiro momento como
fáto irrelevante para nós (a história de Jesus de Nazaré).
Todavia, esse unilateralismo contrasta com o próprio anún­
cio neotestamentário, que é sempre anúncio da vinda his­
tórica de uma pessoa concreta, e cuja força e originalida­
de consiste precisamente em atribuir o título de Senhor e

109
Cristo àquele humilde Nazareno, condenado e morto no
madeiro ignominioso da cruz. Perdendo-se de vista a força
dessa “identidade na contradição”, esvazia-se o conteúdo
do querigma naquilo que ele tem de mais próprio e origi­
nal: dessa forma, “a antropologia que interroga se torna
a constante e a cristologia que é interpelada, a variável”,51
e “a palavra da Cruz” torna-se impotente e muda. Compre-
ende-se assim a exigência de uma superação de Bultmann,
que, sem negligenciar o aspecto positivo de uma atenção
existencial, consiga manter-se fiel à estrutura originária do
anúncio cristão.

c) Em 1953, durante uma reunião de ex-alun


Marburgo, de formação e convicções bultmanianas, Ernst
Kàsemann faz, na presença do mestre, uma conferência
intitulada Das Problem des historischen Jesus (O proble­
ma do Jesus histórico) 5253Três anos mais tarde, Günter Born-
kamm inicia seu livro sobre Jesus com uma introdução
', sobre Fé e história nos evangelhos,53 na qual insere a frase
programática: “A tarefa que se nos impõe é procurar no
querigma dos evangelhos a história, mas é também pro­
curar nessa história o querigma” .54 Entre a absolutização
do primeiro termo das fórmulas querigmáticas mais anti­
gas — Jesus — , feita por teólogos liberais, e a do segundo
termo — Senhor, Cristo — , resultante da teologia de Bult­
mann, procura-se recuperar a relação entre os dois mo­
mentos, dando valor pleno a ambos e ao verbo de ligação.
Essa orientação, designada como pós-bultmanniana, quer

51 J. Moltmann, II Dio crocifisso, op. cit., p. 141.


52 Publicada antes em Zeitschrift für Theologie und Kirche 51
(1954), p"p. 125-53, agora em E. Kàsemann, Exegetische Versuche und
Besinnungen, I, Gõttingen, 1970, 6- ed., pp. 187-214 (essa compilação
compreende um segundo volume, de 1964). Entre os escritos de Kãse-
mann cf.: “Das Problem des historischen Jesus” in Wer war Jesus von
Nazareth?, Munique, 1972, pp. 261-96 e “Die neue Jesu-Frage” in Jésus
aux origines de la christologie, op. cit., pp. 47-57. Cf., sobre o “novo
problema de Jesus histórico”, especialmente as obras de Bornkamm,
Dahl, Fuchs, Robinson, Fuller citadas na nota 37. Cf. também L. Ran-
dellini, “II problema di Gesü nella reazione dei discepoli di R. Bult­
mann” in Sacra Doctrina 16 (1971), 343-431.
53 G. Bornkamm, Gesü di Nazaret, pp. 9-20, op. cit in n. 37.
54 Ibid., p. 16. Cf. a observação do próprio Bornkamm na resposta
a L. E. Keck: Ibid, p. 210.

110
voltar ao Jesus histórico a partir do Cristo da fé pascal. No
âmbito dessa orientação porém, há, uma notável varieda­
de de posições. Para alguns, o problema é o “da continui­
dade do evangelho na descontinuidade dos tempos e na
variação do querigma”,55 e por isso a orientação perma­
nece voltada antes de tudo para o anúncio, na convicção
de que a fé cristã se define sempre em relação ao Cristo
glorioso. Para outros, “os discípulos proclamaram mais
tarde a mensagem própria de Jesus, num duplo sentido:
conservaram suas palavras e ações e as interpretaram. Sem
o fundamento dos ipsissima verba e dos ipsissima facta
isso teria sido impossível”.56 Nesta linha, alguns enfatizam
até exageradamente a continuidade entre o Nazareno e o
querigma da Igreja, acentuando que a tradição apostólica
não nasce do nada, mas da pregação e da obra de Jesus.
E toda a comunidade estava interessada em conservá-las,
controlando reciprocamente a fidelidade das recordações.57
Com efeito, é necessário sublinhar a continuidade entre o
Jesus da história e o Cristo da fé eclesial, porque o sujeito
do predicado (ou dos predicados) pascal é um só e sempre
o mesmo: Jesus de Nazaré. Ele é a constante, cujos títulos
são a variável, ele, o homem concreto cuja história é nar­
rada nos evangelhos, ainda que à luz da experiência do
Ressuscitado. É precisamente essa estrutura narrativa dos
evangelhos, anúncio de fatos, embora densos de significa­
do pascal, que garante a continuidade fundamental entre
o Nazareno e o Cristo proclamado. O evangelho de João
o confirma: captando mais do que os Sinóticos o valor
teológico desses fatos, João sente a necessidade de escrever
de forma narrativa a história do Jesus terreno como histó­
ria do Senhor glorificado. Uma vez estabelecida a continui­

55 E. Kãsemann, Das Problem des historischen Jesu, op. cit., p. 152.


56 F. Hahn, in Rückfrage nach Jesus, op. cit., p. 28.
57 Cf. por exemplo L. Cerfaux, Gesü alie origini delia tradizione,
op. cit. Mas Kümrnel talvez exagere ao definir esta obra “eine star apo-
lngcstische Darstellung” e mesmo “em Rückschritt”: Theologische Rund-
chau 41 (1976), 238.240. Também a escola escandinava insiste no papel
da transmissão oral de Jesus aos discípulos de forma quase “escolástico-
mbíniia”, como fundamento da continuidade entre o Jesus histórico e o
Cristo da fé: cf. B. Gerhardson, Memory and Manuscript, Uppsala,
1961, c Tradition and Transmission in Early Christianity, Lund, 1964.

111
dade, parece justificada a “desforra da necessidade de uma
história narrativa pós-cristã” de Jesus, e parece fundada
a atitude de uma segunda inocência” na abordagem dos
evangelhos.58 Este programa de interpretação, embora su­
gestivo, podería revelar-se acentuadamente ambíguo se não
se sublinhasse, juntamente com a continuidade, também a
profunda descontinuidade que há entre o que aconteceu
antes e depois da Páscoa. Essa descontinuidade deve ser
enfatizada. Quem não o fizesse negaria a grande novidade
da Ressurreição, sem a qual, como recordávamos no
início, seria vã a pregação cristã e vã a fé (cf. ICor 15,14).
Se alguém acentuasse exclusivamente a continuidade (como
fazia inocentemente a exegese pré-cristã e por muito tempo
continuou a fazer certa exegese “ortodoxa”), esvaziaria
a força da Ressurreição, tanto quanto Bultmann parece
esvaziar a palavra da Cruz. Os dois termos da fórmula, as
duas histórias, Jesus e os seus predicados pascais, devem
ser considerados na relação de “identidade na contradi­
ção”, de continuidade descontínua, de unidade diferen­
ciada, pois só ela respeita o escândalo da sexta-feira santa
e a alegria surpreendente do dia da Páscoa. Essa relação
“dialética” pode ser pensada enquanto movimento do pas­
sado para o futuro, ou, ao invés, de ação do futuro sobre
o passado. No primeiro caso, se sublinhará a cristologia
implícita nas palavras e nas obras do Jesus histórico, que
a Ressurreição explicitou e completou plenamente.5960 No
segundo, se evidenciará, à luz do futuro patenteado na
Páscoa, a estrutura “proléptica” da pretensão pré-pascal
de Jesus.é0 Portanto, história de Jesus e fé pascal susten­
tam-se e se iluminam reciprocamente: a primeira sem a
segunda seria cega; a segunda sem a primeira seria vazia.
‘Se a fé cristã é uma fé em Jesus de Nazaré confessado
com o o Cristo, Filho unigênito, Nosso Senhor, então o
conhecimento e a confissão de fé são efetivamente limita­
dos pelo nosso conhecimento do Jesus histórico e, de outro
lado, o conhecimento histórico de Jesus é limitado, ou

58 Cf. E. Schillebeeckx, Gesü, op. cit., pp. 71-74.


59 Na verdade, também Bultmann fala de uma cristologia implícita:
cf. Theologie des Neuen Testaments, op. cit. p. 44.
60 Cf. a posição de W . Pannenberg, Cristologia, op. cit., pp. 49ss.

112
seja, colocad o no seu lugar, mantido dentro dos seus limi­
tes, pela interpretação de fé”.61
A concepção da história, que está por trás desta ma­
neira de pensar a relação entre o Jesus terreno e o Cristo
glorificado, afasta-se tanto do positivismo histórico dos
críticos liberais quanto da visão puramente existencialis­
ta de Bultmann. Ela é reconduzida, então, àquela propos­
ta de que falamos na “história na cristologia”: 62 a Res­
surreição é vista como um “situar-se no devir” com rela­
ção ao passado e ao futuro por parte de Deus e por parte
da comunidade das origens. Deus, na sua absoluta liber­
dade, se posiciona com relação ao Crucificado e Humilha­
do, e, ressuscitando-o e exaltando-o, reconhece no seu pas­
sado a revelação de sua própria história, o torna vivo e
poderoso para o presente, o faz Senhor da promessa e do
futuro. A comunidade, a partir da experiência do Ressusci­
tado, confessa-o em relação ao passado de humilhação, ao
presente e ao futuro como Senhor e Cristo, ou seja, como
aquele que é a revelação pessoal de Deus, o Vivente doa­
dor de Vida e Aquele que vem do futuro, agora e plena­
mente na hora final da glória. Mas também a comunida­
de de hoje, impelida pelo anúncio que a suscita, anúncio
fundado no testemunho dos apóstolos, é chamada a posi­
cionar-se de maneira análoga, reconhecendo ainda e nova­
mente no Crucificado da sexta-feira santa o Ressuscitado
por Deus, e por isso o Senhor e Cristo. Mas para que
esse conhecimento seja fundamentado, é necessário que a
comunidade atual atinja, na medida do possível, não só
a experiência da comunidade nascente que testemunhou o
Ressuscitado, mas nela' e através dela a história de Jesus
de Nazaré: também esta, à luz da Páscoa, é revelação de
Deus. Por isso é preciso indagar: como é possível ir do
Cristo anunciado ao Jesus da história? Como, através do
querigma e da redação evangélica por ele influenciada, é
possível chegar até as situações vitais originárias de Jesus
e da comunidade de vida com os seus discípulos?
Para percorrer esse caminho no sentido inverso, par­
tindo da história da redação dos evangelhos (Redaktions-

61 E. Schillebeeckx, Gesú, op. cit., p. 64.


62 Cf. supra, 2.3.

113
geschichte), passando pela história das formas (atenta às
situações vitais em que as várias perícopes foram cristali­
zadas: Form geschichte) e finalmente chegando ao Jesus
histórico, foram elaborados, nos últimos anos, alguns crité­
rios. Graças à combinação desses critérios, podemos apu­
rar com suficiente rigor histórico muito do que foi a vida
do Nazareno, e ao mesmo tempo distinguir a nova luz
projetada pela Páscoa sobre ela. Aqui vamos apenas men­
cionar alguns desses critérios, inclusive para esclarecer o
uso que deles fazemos na nossa exposição. Entre os que
se baseiam no princípio de dessemelhança ou diferença,
basta recordar os critérios histórico-redacional (por ele po­
demos considerar autênticas as tradições refratárias às in­
tenções do evangelista, como por exemplo a “derelictio
Jesu” de Mc 15,34) e crítico-formal (por este “podemos
considerar autêntico o que não se adapta nem ao pensa­
mento judaico nem às concepções da comunidade poste­
rior” : 63 por exemplo, o uso do A bbá por parte de Jesus).
Dos'.critérios que se baseiam no princípio de semelhança
ou conformidade, basta citar o histórico tradicional, ou da
múltipla atestação por ele (“o encontro do mesmo material
em mais de uma tradição é no mínimo indício de uma con­
sistência fundamental na tradição proto-cristã”) 64 e o cha­
mado .critério da consistência do conteúdo (pelo qual po­
demos considerar autêntico o que está de acordo com as
características gerais da mensagem e da ação de Jesus).65
O uso combinado dessa criteriologia permite-nos atingir,
de maneira suficientemente segura, alguns dados pré-pas-
cais que, com sua consistência, impedem que se reduza o
Cristo pascal a uma idéia ou a uma nova interpretação da
existência humana, construída com base nas expectativas
do momento.

63 R. Conzelmann, in Die Religion in Geschichte und Gegenwart


III, 3? ed„ p. 623.
64 E. Schillebeeckx, Gesu, op. cit., p. 91; cf. pp. 75-98.
65 Cf., por exemplo, J. Caba, Dai Vangeli... op. cit., pp. 441-42, e
toda a exposição sobre os critérios de histcricidade” : pp. 432-45. Cf.
também H. Zimmermann, Neutestamentliche Methodenlehre. Darstellung
der historich-kritischen Methode, Stuttgart, 1978.

114
A unidade da fórmula “Jesus é o Senhor” deve, portanto,
ser entendida no sentido pleno e respeitando-se os dois termos:
o homem de Nazaré, que abandonando o silêncio de trinta hu­
mildes ancs pregou o Evangelho do Reino, mostrou uma gran­
de autoridade, realizou prodígios e sinais, compartilhou a vida
com os seus discípulos e foi condenado à morte pelos poderosos,
é o mesmo que Deus ressuscitou e constituiu Senhor e Cristo.
Quando não se compreende essa “identidade na contradição”
entre o Humilhado e o Exaltado, entre o Crucificado e o Ressus­
citado, esvazia-se também a palavra da Cruz, torna-se vã a no­
vidade da Ressurreição, perde-se a força escandalosa do para­
doxo cristão.

4 .3 . O PROBLEMA TEOLÓGICO DA RELAÇÃO ENTRE O JESUS


PRÉ-PASCAL E O CRISTO PÓS-PASCAL

Surge então a pergunta: se na Páscoa Jesus foi constituído


Senhor e Cristo, devemos afirmar que ele não o era antes? Ou a
“identidade na contradição” significa que a condição divina e ao
mesmo tempo salvífico-escatológica atribuída ao Crucificado
nas fórmulas pascais já estava presente, ainda que sob o sinal
da contradição, nas obras e nos dias do Nazareno?
O problema fora naturalmente levantado em ambiente ju-
daico-cristão. O rígido monoteísmo de Israel não podia deixar de
suscitar a pergunta: qual a relação existente entre este homem
Jesus, proclamado Senhor e Messias, e o Deus dos Pais? Afir­
mar que o Humilhado só havia atingido a condição divina do
Cristo esperado com a Páscoa era certamente mais tolerável para
a mentalidade hebraica do que reconhecer essa condição divina
no humilde Nazareno. Mais ainda porque ele fora conhecido e
rejeitado por muitos preeisamente por se apresentar como um
entre tantos”, numa hora em que não eram poucos os que se
proclamavam Messias. A entronização do rei messiânico, por
exemplo, ou a espera do Pilho do Homem, ou o tema do Servo
profeta sofredor por fim glurificado, tornavam admissível, espe­

115
cialmente no universo intertestamentário, uma exaltação do
Humilhado ou uma glorificação vinda do alto. Mas dificilmente
se conciliavam com um Deus encarnado, apesar da sensibilidade
de Israel à relação entre a história humana e Iahweh. Nesse con­
texto surgem as primeiras “heresias” cristológicas, isto é, as pri­
meiras interpretações da mensagem que a comunidade acabará
julgando parciais, insuficientes e, em última análise, falsas: de
um lado, o docetismo , que já na era neotestamentária quer sal­
vaguardar a permanente condição divina de Cristo reduzindo a
sua humanidade a uma pura aparência do&éo = “parecer, apa­
recer”); de outro, õ "ebionismo” (de ebionim = “pobres”), mo­
vimento difundido desde o século I, que, a partir da necessida­
de de salvaguardar a transcendência da divindade, reduz Cristo a
um homem, no qual Deus quis manifestar sua glória. Contra­
riando essas interpretações, a comunidade das origens saberá
conservar ciosamente a força da “identidade na contradição”
que se manifestou na experiência pascal. Ela intui que, se ‘‘Jesus
é o Senhor”, o segundo termo, com tudo o que ele significa, é
atribqído ao primeiro entendido na sua globaiidade. Ora, quan­
do nas fórmulas culturais-querigmáticas se diz “Jesus”, pensa-
-se no Nazareno com toda a sua história, e portanto no filho de
Maria, no carpinteiro de Nazaré, no pregador do Reino, no rea­
lizador de sinais, no humilhado e crucificado. É a ele, na intei­
reza de suas vicissitudes, que são atribuídas a condição divina
e a função salvífico-escatológica significadas nos títulos Senhor
e Cristo. Em outras palavras, Jesus foi Senhor e Messias desde
o primeiro instante de sua história, embora apenas a Ressurrei­
ção venha a manifestar plenamente a sua unidade com Deus,
que antes da Páscoa era só antecipada e prolepticamente signi­
ficada na autoridade de sua pretensão.^6
A interpretação que apresentamos é confirmada por inúme­
ros mistérios da vida do Senhor presentes nos evangelhos
(narrações de eventos densos de significado revelativo-salvífico).
Assim: a concepção por obra do Espírito Santo (Mt 1,18-20);
Lc 1,35); ^ o batismo com a atestaçao gloriosa: “Tu és o meu67

66 Cf. W. Pannenberg, Cristologia, op. cit., pp. 49ss.


67 Cf. a ^propósito R. Brown, “II problema delia concezione vergi-
nale^ di Gesü in La concezione verginale e la risurrezione corporea di
Gesu, op. cit., pp. 37ss; J. M. Alonso, “La concezione verginale di Gesü.
Storra o leggenda? Un dialogo teologico” in Rassegna di Teologia, 1972,

116
filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,9-11; cf. Mt 3,13-17 e
Lc 3,21-22); 68 a transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-
36).69 O conteúdo desses relatos é, sob muitos aspectos, contrá­
rio à mentalidade judaica e contrário também à mentalidade da
primitiva comunidade oriunda do judaísmo: A história da con­
cepção de Jesus assumiu uma forma que não tem, pelo que sa­
bemos, paralelos ou antecedentes precisos que pudessem estar à
disposição dos cristãos do século I que dela falam ; ,0 o batis­
mo foi sentido pela comunidade “como um ‘pudendum’: dificil­
mente ter-se-ia inventado tal fato se ele não representasse um
dado rigorosamente imposto pelo passado ; 71 os testemunhos
gloriosos por ocasião do batismo e da transfiguração, com suas
atribuições da condição divina a um homem, conflitavam com o
monoteísmo hebraico. Isso parece depor a favor de um núcleo
histórico de tais “mistérios (mais difícil de ser determinado
para a transfiguração), confirmado por múltiplas atestações (ao
menos para o batismo e a transfiguração). Em todo caso, o tra­
balho redacional desses textos é evidente. Por isso, além de
transmitir-nos um dado pré-pascal mais ou menos amplo, são
um precioso testemunho da fé da comunidade primitiva, que
releu esse dado à luz do Crucificado. Portanto é possível atra­
vés desses “mistérios”, determinar esta fé, e o núcleo histórico
que lhe serve de fundamento, no sentido de uma clara profis­
são da permanente identidade (na diversidade) de Jesus com
Deus, desde o instante de sua concepção.

supl. ao n. 2, pp. 8-40, e P. Schoonenberg, “Una risposta”, in ibid, pp.


41-48. Seria necessário remeter à ampla bibliografia sobre os evange­
lhos da infância”: cf. entre outras obras, C. Duquoc, Cristologia, op. cit.,
pp 27-45- R Schulte, “I misteri delia preistoria di Gesü” in Mysterium
Salutis VI, Bréscia, 1971, pp. 36-79; O. da Spinetoli, Introduzione al
Vangeli delVinfanzia, Bréscia, 1976.
68 Cf. C. Duquoc, Cristologia, op. cit., pp. 48-56; A. Feuiilet, Le
baptême de Jésus” in Revue Biblique 71 (1964) pp. 321-52; F. Lentzen-
-Deis D is Taufe ]esu nach den Synoptikérn, Frankfurt a.M., 1970; b.
Schillebeeckx, Gesü, op. cit., pp. 134ss; C. Schütz, “ I misteri delia vita
pubblica e delPattività di Gesü” in Mysterium Salutis VI, op. cit., pp.
80-160 (sobre o batismo, pp. 80-101); P. Zarrella, “II battesimo di Gesu
nei Sinottici” in La Scuola Cattolica 97 (1969), pp. 9-29.
69 Cf. H. Baltensweiler, Die Verklãrung Jesu, Zurique,^ 1959; C.
Duquoc, Cristologia, op. cit., pp. 94ss; C. Schütz, “ I misteri... , op. cit.,
pp. 121-29; M. Sabbe, “ La rédaction du récit de la Transfiguration m
La venue du Messie, Bruges-Paris, 1962, pp. 65-100.
70 R. Brown, “II problema..., op. cit., p. 89.
71 C. Schütz, “I misteri...”, op. cit., p. 80.

117
Chega-se a uma conclusão análoga examinando outros tes­
temunhos neotestamentários: trata-se especificamente dos tex­
tos típicos da “cristologia descendente” e da “missão do Filho”.
“Quando chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho,
nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que
estavam sob a Lei, a fim de que recebéssemos a adoção filial”
(G1 4,4-5: a carta foi escrita por volta de 57). No hino pré-
-paulino de F1 2,6ss diz-se: “(Cristo Jesus) tinha a condição
divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se
apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a
condição de servo, tomando a semelhança humana...” (F1 2,6-7).
A Carta aos Hebreus (posterior a 63 porque o autor utiliza as
cartas da prisão, mas anterior a 70 porque não faz nenhuma
referência à destruição do Templo, que para ele tinha grande
importância; expressão de ambientes judeu-cristãos) proclama
com solenidade o ingresso do Filho de Deus na existência hu­
mana: Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora,
aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos,
falou-nos por meio do seu Filho, a quem constituiu herdeiro
de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplen-
dor de sua glória e a expressão do seu Ser; sustenta o universo
com o poder de sua palavra” (FIb 1,1-3). O evangelho de João,
depois, afirma (no auge do desenvolvimento da cristologia neo-
testamentária): “O Verbo (que estava junto de Deus e era
Deus, e por meio do qual tudo foi feito: cf. vv. 1-3) fez-se
carne e veio habitar no meio de nós” (Jo 1,14). Esses textos
(juntamente com muitos outros: cf. Rm 1,3;8,3; Jo 5,23.37;
6,38-39.4 4 ;7 ,28-29.33; etc.) pertencem aos diversos estágios da
evolução da cristologia do Novo Testamento e por isso atestam
com suficiente clareza a resposta que desde o início a comuni­
dade cristã deu e manteve à pergunta: em que momento se
constituiu-, a unidade de Jesus com Deus? Eles veiculam uma
teologia da preexistência do Filho. Essa teologia, portanto, não
é um fruto tardio, e por isso podemos considerá-la mais ligada
ao universo veterotestamentário (cf. as especulações sobre a Sa­
bedoria) 72 do que a outras possíveis fontes. Ela não responde

72 Cf. sobre este tema: P. Benoit, “Préexistence et incarnation” in


Reyue Biblique 77 (1970), 5-29; R. G. Hamerton-Kelly, Pre-Existence,
Wisdom and the Son of Man\ A Study of the Idea of Pre-Existence in
the New Testament, Londres, 1973; W. Pannenberg, Cristologia, op. cit.,

118
a um interesse especulativo-metafísico, estranho ao pensamento
dos primórdios cristãos, mas nasce da fé pascal no alcance últi­
mo e definitivo do que aconteceu em Jesus Cristo: “O motivo
da preexistência e da missão mostra que a pessoa e o destino
de Jesus não se originam no contexto de um acontecimento
intramundano; ao contrário, eles constituem o lugar em que o
próprio Deus operou de um modo que não é deductível nos
esquemas da realidade intramundana. Essa liberdade absoluta
rompe os limites do nosso destino e nos dá a liberdade dos filhos
de Deus. Os enunciados da preexistência do Filho unigênito de
Deus constituem o fundamento da nossa filiação e da nossa
salvação” .73 Eles indicam, em outras palavras, a plenitude esca-
tológico-salvífica do que aconteceu em Jesus Cristo, a suprema e
definitiva autocomunicação de Deus que se realizou na sua
vida, morte e ressurreição.
A reflexão sobre a preexistência relaciona-se com o uso do
título Filho de Deus: raramente encontrado nos Sinóticos (cf.
Mc 1,1; 15,39; Mt 4,3 .6;14,33;16,16;26,63;27,40.43.54; Lc 1,
35;4,3;4,*41;22,70) e nunca posto diretamente na boca de Jesus,
é freqüente em João e Paulo.74 Certamente, por isso, ele trans­
mite uma linguagem catequética pós-pascal, e acabará impondo-
-se como o título mais apropriado, segundo a fé cristã, para indi­
car a pessoa de Jesus. No horizonte do Antigo Testamento ele
era empregado para conotar tanto Israel (Ex 4,22; Os 11,1; Jr
31,9), quanto o rei (SI 2,7;89,27-28), o Messias (cf. 2Sm 7,14),
e — num uso mais tardio — os justos (SI 73,15; Sb 5,5). A idéia
de uma filiação própria e exclusiva está totalmente ausente no
AT: ela se refere sempre à eleição por parte de Deus. Talvez

pp. 140-42; 185-93; G. Schneider, “Prâexistenzs Christi. Der Ursprung


einer neutestamentlichen Vorstellung und das Problem ihrer Auslegung
in Neues Testament und Kirche, Friburgo, 1974, pp. 399412; G. Segal-
la “Preesistenza, incarnazione e divinità di Cristo in Giovanni (Vange-
lo e 1 G v )” in Revista Biblica 22 (1974), 155-81; E. Schweitzer, “Zur
Erkunft der Práexistenzvorstellungen bei Paulus” in Neotestamentica,
Zurique-Stuttgart, 1963, pp. 105-09.
73 W. Kasper, Gesú il Cristo, cp. cit., p. 239.
74 Cf. A. Descamps, “Pour une histoire du titre ‘Fils de Dieu’. Les
antécédents par rapport à Marc” in L ’Évangile selon Marc. Tradition et
rédaction, org. por M. Sabbe, Gembloux, 1974, pp. 529-71; F. Hahn,
Christolgoische Hoheitstitel, op. cit., pp. 280-333; M. Hengel, Der Sohn
Gottes, op. cit.; W . Kasper, Gesú il Cristo, op. cit., pp. 147ss e 223ss;
W. Kramer, Christos-Kyrios-Gottessohn, op. cit., especialmente pp. 105-
25; 183-93.

119
seja por isso que Jesus nunca a tenha utilizado diretamente.
Entretanto, em algumas de suas palavras e em alguns traços do
seu comportamento, especialmente no uso do termo A b b á P
pode-se encontrar o fundamento pré-pascal desse título que a
luz pascal fez com que lhe fosse atribuído sem reservas e com
significado inaudito. Ele indica não tanto a geração intemporal
e eterna, alheia ao interesse histórico-salvífico da comunidade
das origens, mas sobretudo a relação única e exclusiva que há
entre a obra e o destino de Jesus Cristo e o Pai, a plenitude da
intervenção de Deus nele, intervenção que envolve toda a sua
história, antes e depois da Páscoa, embora só na Ressurreição
seja proclamado sem sombras que “Deus estava em Cristo”
(2Cor 5,19).
Portanto, a fé da comunidade das origens, a partir da
experiência do Ressuscitado e não sem fundamento na história
pré-pascal do Nazareno, proclama que o homem Jesus foi, desde
o primeiro instante de sua vida terrena, o Filho de Deus que
veio a este mundo, que assumiu na humildade uma história
verdadeiramente humana, que manifestou plenamente na ressur­
reição o seu rosto divino e fundou a esperança que não desi­
lude o viver humano. Por essa plenitude da presença divina, o
Crucificado-Ressuscitado coloca-se como o critério e a luz sob a
qual se pode reler o passado e o futuro, a realização da espera
e a promessa de uma nova e definitiva realização.

4 .4 . A “RELEITURA PASCAL” E OS DESENVOLVIMENTOS DA


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

A partir da experiência pascal, aprofundando a fé cristo-


lógica e desenvolvendo a sua pregação, a comunidade cristã das
origens procedeu à “releitura” da história para trás e para frente.
À luz do “fim” e ao mesmo tempo do “novo início” reconheci­
dos em Jesus Senhor, essa “releitura pascal” foi feita em diver-75

75 Cf. o que diremos a esse respeito no capítulo 7, também com


referência a textos como Mt 11,27; Mc 13,32 etc.

120
sos níveis: de um lado, volta-se para a história de Jesus de
Nazaré, suas palavras e obras; de outro, olha-se para Israel, a
fim de captar a sua relação com a Páscoa do Senhor e toda a
sua vicissitude; por fim, abraça-se a história da Igreja e do mun­
do até a sua realização escatológica.
A releitura pascal das obras e dos dias de Jesus de Naza­
ré caracteriza os evangelhos sinóticos.76 Entre eles, o de Marcos
é em geral considerado pela crítica moderna como o mais anti­
go.77 A característica da sua teologia e da sua composição reside
na concepção designada, a partir de Wrede, com o nome de
“segredo messiânico” : 78 consiste na tensão, que o evangelista
sublinha constantemente, entre as manifestações de poder de
Jesus (cf. o ensinamento que causa admiração: Mc 1,22.27 etc.;
a expulsão dos demônios: 1,34.39;3,11-12 etc.; os milagres de
cura: 1,40-45; cap. 5;7,31-37;8,22-26; os gestos “messiânicos”,
como a multiplicação dos pães: 6,34-44;8,l-10; o ingresso em
Jerusalém 11,1-11; a purificação do templo: 11,15-19; as epifa-
nias: 6,45-52;9,2-10) e a sua reserva. A esta devemos acrescen­
tar a incompreensão dos discípulos e dos ouvintes (Jesus se afas­
ta da multidão: 1,38;6,31; manda que se guarde segredo sobre
os sinais pfodigiosos que realiza: l,43-44;5,43;7,36; ordena aos
demônios que não o manifestem: 3,12 etc.; é incompreendido:

76 Cf. sobre a cristologia: Orientierung an Jesus. Zur Theologie


der Synoptiker, org. por W. Pesch, Freiburg i. Br., 1972; B. Papa, La
cristologia dei Sinottici e degli Atti degli Apostoli, Bari, 1972: R. Schna-
ckenburg, “La cristologia dei sinottici nel campo di tensione del_ ‘Gesü
terreno’ e dei ‘Cristo glcrificato’ ” in Mysterium Salutis V, op. cit., pp.
346-91; G. Segalla, “Gesü rivelatore delia volontà dei Padre nella tradi-
zione sinottica” in Rivista Biblica 14 (1966), 467-508; Id., “Teologia dei
sinottici” in Dizionario Teologico Interdisciplinare, III, pp. 370-87; W.
Trilling, Christusverkündigung in den synoptischen Evangelien. Leipzig,
1968 (ed. bras.: O anúncio de Cristo nos evangelhos sinóticos, Edições
Paulinas, São Paulo, 1981, 224 p.).
77 Cf. sobre a cristologia de Marcos (além das obras citadas na
nota 1 e na seguinte): T. A. Burkili, Mysterious Revelation. An Examina-
tion of St. Marc’s Gospel, Ithaca, 1963; J. Delorme, “Aspetti dottrinali
dei secondo Vangelo” in Da Gesü ai Vangeli, op. cit., pp. 97-128; B.
Rigaux, Testimonianza dei vangelo di Marco, Pádua, 1968; R. Schna-
ckenburg, La cristologia dei sinottici, op. cit. pp. 346-62; H. Weinacht,
Die Menschwerdung des Sohnes Gottes im Markusevangelium. Studien
zur Christologie des Markusevangeliums, Tübingen, 1972.
78 Cf. W. Wrede, Das Messiasgeheimnis in den Evangelien. Zugleich
ein Beitrag zum Verstãndnis des Markusevangelium (1901), Gõttingen,
1963, y ed. Cf. recentemente G. Minette De Tillesse, Le secret messia-
nique dans Vévangile de Marc, Paris, 1968.

121
(6,52;7,17-18). Como explicar tal contradição? A hipótese mais
provável é que “toda a apresentação de Marcos é determinada
pelo olhar retrospectivo que parte do evento da ressurreição e
vai para a vida terrena de Jesus, e da sua atenção com a comu­
nidade crente’'.'9 Em outras palavras, Marcos narra os eventos
da vida do Nazareno deixando transparecer neles os sinais da
glória que se revelou na Páscoa como numa revelação progressi­
va, que culmina no drama “recusa-exaltação”: rejeitado pelos
homens, Jesus foi acolhido por Deus. Assim, o seu caminho para
a Cruz se torna compreensível, como momento necessário deste
processo, que se desenrola sobretudo na história da paixão. Por
isso é que Marcos reserva muito espaço aos relatos da paixão, o
que fez com que o seu evangelho (como também os outros
Sinóticos) fosse definido como “uma história da paixão com
uma introdução detalhada”.7980 Esse procedimento de releitura
pascal não justifica, porém, uma interpretação como de Wre-
de: 81 de acordo com ela, a conduta pré-pascal de Jesus não
teria tido nada de messiânico e teria sido interpretada messia-
nicamente só à luz da Páscoa. Se assim fosse, não se explicaria
por que Jesus foi rejeitado e condenado pelos poderosos do seu
tempo: deve ter havido nele uma pretensão, que, desacreditada
pelos homens, foi avalizada por Deus, que o ressuscitou da morte.
Basta-nos recordar a excepcional autoridade do seu ensinamento,
que suscita admiração e escândalo (cf. Mc 1,22.27 etc.). Essa
pretensão pré-pascal pode ser vista no título Filho do Homem,
denso de significado messiânico sobretudo nas expectativas inter-
testamentárias. De acordo com o evangelho de Marcos; Jesus
usa muito esse título: com relação à sua autoridade presente
(cf. Mc 2,10.28), ao seu caminho para a cruz (cf. 8,31;9,9.12.
31; 10,33.45; 14,21.41), à sua condição gloriosa (cf. 8.38;13,26;
14,62). Mesmo que quiséssemos interpretar algumas dessas
expressões exclusivamente como releituras pascais (assim, por
exemplo, as três profecias da paixão seriam “vaticinia ex even-
tu”), no conjunto não parece possível contestar um uso pré-
pascal do título por parte de Jesus: 82 “Não é sustentável a afir­
79 R. Schnackenburg, La cristologia..., op. cit. 349.
80 M. Kãhler, D er sogenannte..., op. cit., nota 60.
81 Cf. W. Wrede, Das Messiasgeheimnis, op. cit., pp. 209-29, espe­
cialmente pp. 227ss.
82 Em sentido contrário, por exemplo R. Bultmann, Theologie des
Neuen Testaments, op. cit., pp. 29s.

122
mação muito simples e sumária de que somente os evangelistas
é que o teriam posto na boca de Jesus, com base na teologia da
comunidade, para designar a si mesmo. Porque, deixando de lado
outras razões, no cristianismo primitivo o título de Filho do
Homem, dado a Jesus, não é de uso corrente... Se realmente esse
título tivesse sido introduzido pelos evangelistas, como se expli­
ca que eles o usem só onde fazem o próprio Jesus falar?” 83 Por­
tanto, é com base na pretensão pré-pascal do Nazareno que
Marcos faz a leitura pascal da sua vida: assim, ao título pré-
-pascal Filho do Homem, ele acrescenta o título pós-pascal Filho
de Deus, que, pertencendo à fé da comunidade, pôde ser apli­
cado ao humilde Nazareno com base nos elementos objetivos de
sua conduta anterior à Páscoa, e, naturalmente, à luz desta.
Podemos dizer que Marcos emoldura o seu evangelho com este
título, pois o inicia com as palavras: “Início do Evangelho de
Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1) e, diante de Jesus morto,
põe na boca do centurião as palavras: “Verdadeiramente este
era o Filho de Deus” (Mc 15,39; cf. as confissões dos demô­
nios: 3 ,1 1;5,7; a teofania do batismo: 1,11; a transfiguração:
9,7; a parábola dos vinhateiros: 12,1-11). Se não há no evange­
lista uma “cristologia da preexistência”, contudo não resta dú­
vida de que é próprio dele este aprofundamento teológico da
mensagem pascal, escandalosa e inaudita no ambiente judaico:
o Filho de Deus fala e age no meio dos homens, ainda que oculte
a sua glória!
A releitura que Marcos faz especialmente da vida terrena
de Jesus é estendida por Mateus particularmente à vicissitude de
Israel: 84 o caráter judaico deste evangelho é bem nítido, ainda
que não se possa negar sua abertura universalista. Ou melhor,
este segundo aspecto está relacionado com o primeiro: a dimen­
são messiânica de Jesus, enraizada na história de Israel e conti­
nuamente acentuada por Mateus, abre-se à salvação de todos os
povos. Mateus cita ao menos 41 vezes o Antigo Testamento,
relendo-o à luz de Cristo; 85 o material é estruturado em cinco

83 O. Cullmann, Cristologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 244.


84 Cf. L ’Évangile selon Matthieu. Rédaction et Théologie, sob a
direção de M. Didier, Gembloux, 1972; P. Bonnard, UÊvangile selon
Matthieu, Neuchâtel, 1970, 2? ed.; B. Rigaux, Testimonianza dei Van-
gelo di Matteo, Pádua, 1969; R. Schnackenburg, La cristologia, op. cit.,
pp. 362-76.
85 Cf. J.M . Van Cangh, “La Bible de Matthieu: les citations

123
grandes unidades literárias (“discursos” : Mt 5-7; 10; 13; 18,24-
25), à imitação dos cinco livros do Pentateuco, como diversos
críticos ainda sustentam. Mateus toma como linha mestra de
seu evangelho o “reino dos céus”, que se vincula com o senho­
rio de Iahweh sobre o povo da antiga aliança e com as expecta­
tivas messiânicas; apresenta Jesus sobretudo como Messias pro­
metido, que procede da estirpe de Davi, representa o povo eleito
e é, ao mesmo tempo, a esperança dos pagãos (cf. os capítulos
1-2, com a genealogia, a concepção do Emanuel e a visita dos
magos). O significado de Cristo para Israel é acentuado, além
disso, pelo uso do título Filho de Davi (9 vezes em Mt; 3 em
Mc; 3 em Lc), que mostra o cumprimento das esperanças de
Israel no Nazareno, enfatizando, porém, em relação àquelas, a
não-violência e a mansidão do Messias (cf. Zc 9,9 citado em
21,5: rei da paz, e Is 42,1-4 citado em 12,18ss: o servo). Jesus
é “aquele que deve vir” (11,3), como demonstram as suas pala­
vras e as suas obras: “Os cegos recuperam a vista, os coxos
andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mor­
tos ressuscitam e os pobres são evangelizados. E bem-aventurado
aquele que não ficar escandalizado por causa de mim!” (11,5-6;
cf. Is 26,19;29,18-19;35,5-6;61,1). Mas Israel se escandaliza,
rejeita Jesus e quer a sua condenação (cf. 27,25); por isso “ser-
-lhes-á tirado o reino de Deus e será dado a um povo que pro­
duza-frutos” (21,43; cf. 42-44). Assim nasce o novo Israel, fun­
dado na nova aliança no sangue de Jesus (cf. Mt 26,28), povo
de Deus do qual nenhum pagão pode ser excluído: “Mas eu
vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se assen­
tarão à mesa no Reino dos Céus, com Abraão, Isaac e Jacó,
enquanto os filhos do Reino serão postos para fora, nas trevas,
onde haverá choro e ranger de dentes” (8,11-12: cf. a parábola
dos vinhateiros homicidas: 21,33-44, e a do banquete nupcial:
22,1-10). O esforço de uma leitura pascal da história de Israel
explica também o destaque que Mateus dá ao povo da nova
aliança, à Igreja (cf. entre outros textos 16,16-19 e 18,15-18),
comunidade do Senhor Ressuscitado: “Eis que estou convosco
todos os dias até o fim do mundo” (28,20). Muitos sinais dei­
xam evidente que essa leitura do destino de Israel é feita a partir
da luz pascal: os traços messiânicos do Nazareno são claramente

d’accomplissement” in Revue Théologique de Louvain 6 (1975), 205-211.

124
acentuados (pense-se no uso do termo Senhor — 19 vezes — e
no de Filho de Deus: por exemplo 4,3-10;27,40-43. “Mateus pen­
sa a partir de Jesus Cristo, de sua figura única e incomparável,
olha-o com os olhos da fé, mas usa todos os motivos disponí­
veis e utilizáveis do Antigo Testamento e da cultura judaica
para dar ao seu Cristo mais luz e definição”.86 Ele realiza uma
“concentração cristológica”, fazendo de Jesus “a nova chave
hermenêutica, o critério de leitura dos fatos e das palavras da
antiga revelação”.87 Entretanto, continuam a alicerçar essa “re-
leitura” as obras e os dias concretos do Nazareno, particular­
mente a sua relação dramática com o Israel do seu tempo, a his­
tória dolorosa de sua recusa e da sua condenação, que, seja dito
mais uma vez, não se explicariam sem alguma inaudita preten­
são pré-pascal do Crucificado. A Ressurreição aparece assim em
plena luz como o ato do Deus de Israel, que, reconhecendo no
Humilhado o Messias e Senhor, assinada a virada decisiva da
história da salvação, a abertura do Reino e da promessa a todos
os povos.
Uma leitura pascal da espera veterotestamentária pode ser
reconhecida também na Carta aos H ebreus (que, como já foi
dito, se situa entre 63 e 70 e reflete um ambiente judeu-cris-
tão): 88 sua atenção está centrada no messianismo sacerdotal,
com forte acento escatológico. Se se pode reconhecer no prólogo
uma “cristologia da pré-existência do Filho” (1,1-4), correspon­
dente a temas paulinos e joaninos, logo emerge o tema central,
o do sacerdócio de Cristo (2,16-18), para ser plenamente desen­
volvido nos capítulos 4-10 (exatamente 4,14-10,18), nos quais
sc sublinha a realização e a superação da espera de Israel no
“grande sumo sacerdote, que atravessou os céus, Jesus Filho de
Deus” (4,14). A superioridade de Jesus sobre os sacerdotes leví-
ticos c delineada no capítulo 7; nos capítulos 8-9 mostra-se, ao

8b R. Schnackenburg, La cristologia, op. cit., pp. 372-73.


87 R. Fabris, “Nuovo Testamento”, in Nuovo Dizionario di Teolo­
gia, p. 981.
88 Sobre a cristologia da Carta aos Hebreus, cf. Teodorico da Cas-
tr l S. Pietro, “ II sacerdozio celeste di Cristo nella lettera agli Ebrei” in
( aegarianum 39 (1958), 319-34; R. Schnackenburg, La cristologia, op.
I i t , pp, 454-62; H. Zimmermann, Die Hohepriester-Christologie des
llrbi,i,'rhri<’lcs, Paderborn, 1964; A. Stadelmann, “Zur Christologie des
I irlu.ii i PikTi": in der neueren Diskussion” in Theologische Berichte 2,
Zurique, 1973, 135-221.

125
contrário, a superioridade do culto, do santuário e da mediação
do Cristo sacerdote. Por fim, à ineficácia dos sacrifícios antigos
(10,1-10) é contraposta a eficácia definitiva do sacrifício de Cris­
to, que “tendo oferecido um só sacrifício pelos pecados uma
vez para sempre, assentou-se à direita de Deus... porque com
uma única oblação ele tornou perfeitos para sempre os que
foram santificados” (10,12.14). A origem bíblica veterotesta-
mentária dos conceitos é evidente, como é também clara a luz
pascal da qual nasce a afirmação da superioridade e do caráter
absoluto do que se realizou em Cristo. Israel — nas suas insti­
tuições culturais e na sua espera messiânica sacerdotal — en­
contra no Ressuscitado a sua realização suprema, mas também o
fim inexorável do seu universo de preparação e de espera.
Na obra de Lucas,89 a abertura da promessa a todos os
povos é posta em evidência não mais a partir da “releitura:" de
Israel, mas atendendo ao tempo da Igreja. Ela se caracteriza por
uma marcante concepção histórico-salvífica e pela sensibilidade
ao mundo helenista dos destinatários, provenientes do paganis­
mo. A arquitetura que une o seu evangelho aos Atos, verificá­
vel pela conclusão do primeiro e pelo início dos segundos, quer
exprimir o desígnio histórico da salvação, que, tendo partido
de Nazaré e culminado em Jerusalém, estende-se agora de Jeru­
salém para todos os povos. Jesus é visto, neste evangelho, como
“o centro.do tempo”, em quem, de um lado, se cumpra a espera
de Israel (cf. 4,21: depois de ter lido a promessa messiânica de
Is 61,1-2, Jesus acrescenta: “Hoje realizou-se essa Escritura que
acabastes de ouvir” ; cf. também 16,16: “A Lei e os Profetas
até João! Daí em diante é anunciado o Reino de Deus...”),
e, do outro, se inaugura o tempo da Igreja, qualificado, na pers­
pectiva lucana, como tempo do Espírito, a força que vem do
alto para que os discípulos sejam testemunhas “até os últimos
confins da terra” (At 1,8; cf. Lc 24,47-48). A própria apresen­
tação da obra e do destino de Jesus é situada nesse quadro his-
tórico-teológico: a sua vida pública, depois dos inícios na Gali-

89 Cf. UÊvangile de Luc. Problèmes littéraires et théologiques, sob


a direção de F. Neirynck, Gembloux, 1971; H. Conzelmann, Die Mitte
der Zeit. Studien zur Theologie des Lukas, Tübingen, 1964, 5? ed.; J.
Dupont, Studi sugli Atti degli Apostoli, Roma, 1972, 2‘ ed.; B. Rigaux,
Testimonianza dei vangelo di Luca, Pádua, 1974; R. Schnackenburg, La
cristologia, op. cit., pp. 377-91; G. Voss, Die Christologie der lukani-
schen Schriften in Crundzügen, Paris, 1965.

126
léia, consiste numa grande viagem para Jerusalém (9,51-18,14),
para que ali se cumpra nele o destino do profeta (Jesus é o pro­
feta: cf. Lc 5,1 ;7,16;24,19; rejeitado e perseguido como os pro­
fetas: cf. 13,33; cf. também a aproximação com Moisés em At
7,37 e 3,22-23) e Deus possa glorificá-lo. Todavia, os traços des­
sa subida para a cidade onde morrem os profetas (cf. 13,33)
são régios: Aquele em quem se realiza a promessa davídica (cf.
1,26-38), Aquele que somente em Lucas fala do “seu” Reino
(22,30), convida soberanamente para o seu seguimento (9,57-
62), envia os seus com autoridade (10,lss), entra na cidade santa
como um rei (19,28-40). Ele sabe que no acolhimento ou na
recusa de sua pessoa está em jogo a salvação eterna do homem:
“Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens, o
Filho do Homem também se declarará por ele diante dos anjos
de Deus; aquele, porém, que me houver renegado diante dos
homens, será renegado diante dos anjos de Deus” (12,8-9). E,
contudo, essa sua grandeza — sem dúvida marcada pela luz da
releitura pascal — é combinada com traços de singular humani­
dade, que falam de modo especial ao coração dos destinatários
helenistas do Evangelho: Jesus é aquele que passa fazendo o
bem aos homens (At 10,38), que tem compaixão deles (cf. Lc
7,13), que anuncia com traços únicos a misericórdia do Pai
(Lc 15,11-32), que está sempre atento aos “pobres, coxos, estro-
piados, cegos” (Lc 14,12), que reconhece às mulheres uma
dignidade impensável para o seu tempo (cf. Lc 8,1-3; 10,38-42;
23,27-31), que ora (3,21 ;9,18.28; 11,1;22,31-32;23,34-46; cf.
20,40.46), ele, o “autor da vida” (At 3,15), o “Salvador” em pes­
soa (Lc 2,11: título de sabor helenista). Esse olhar retrospecti­
vo ao Jesus terreno à luz da Páscoa alicerça, por fim, a certeza
de que aquele Jesus é “hoje” 50 o Senhor da sua Igreja, vivo e
presente nela pelo Espírito: os discursos dos Atos, acima men­
cionados, que o anunciam ressuscitado por Deus, têm valor e
força para todo agora do tempo da Igreja. Por isso, mais do que
“centro do tempo” em sentido cronológico, Jesus é para Lucas
“centro de todo tempo” em sentido escatológico-salvífico, na for­
ça por ele possuída e transmitida: o Espírito Santo.90

90 O hoje da realização da promessa de Jesus (Lc 4,21) pode ser


interpretado como uma palavra dirigida aos homens de todos os tempos:
cf. 11. Flender, Heil und Geschichte in der Theologie des Lukas, Muni­
que, 1965, p. 136.

127
A “releitura pascal” é posteriormente aprofundada (apesar
desse aprofundamento ser cronologicamente anterior à redação
dos evangelhos como chegaram até nós) na obra de Paulo.91
Nesta, como vimos, encontram-se muitos testemunhos do primi­
tivo anúncio da fé (cf. o texto já mencionado de ICor 15,3ss,
“o mais antigo testemunho da ressurreição de Cristo”).92 Entre
estes, o hino a Cristo de F1 2,6-11 já contém uma expressão com­
pleta da visão cristológica. Quase certamente pré-paulino pela
diversidade literária do contexto em que se encontra, pela forma
poética e por diversas locuções inusitadas em Paulo e únicas em
todo o Novo Testamento,93 ele apresenta em três estrofes a pre­
existência (vv. 6-7a), o caminho terrestre (7b-8) e a exaltação
de Cristo (9-11).94 Com densidade e concisão surpreendentes, é
delineada a história de Cristo Jesus, que é ao mesmo tempo “o
Senhor como Servo” e “o Servo como Senhor” (K. Barth). O
hino testemunha como “a Igreja das origens chegou relativa­
mente depressa a uma forma plena da cristologia, a uma verda­
deira cristologia bíblico-histórico-salvífica, que não dá atenção
ao ser ou' às duas naturezas de Cristo, mas aos dois modos de
existência, ao caminho de Cristo desde a preexistência, passan­
do pela humilhação da sua peregrinação terrena, até a exalta­
ção e glorificação, até a soberania cósmica, e a celebra com
hinos cultuais como caminho salvífico para aqueles que crêem
no kyrios 'Jesus Cristo” .95 Paulo experimentou esse Cristo na
hora de Damasco (cf. At 9,3-19;22,5-16;26,9-18; G1 1,12.15-16;
Ef 3,2-3), e foi por ele “agarrado” (F1 3,12): a partir daquele
91 Entre a bibliografia amplíssima cf. (além dos comentários): F.
Amiot, Uenseignement de Saint Paul, Tournai, 1968; L. Cerfaux, Cristo
nella teologia di San Paolo, Roma, 1969 (ed. bras.: Cristo na teologia de
São Paulo, Edições Paulinas, São Paulo, 1977, 440 p .); O. Kuss, Paolo,
Roma, 1976; f . Jüngel, Paolo e Gesú, op. cit.; R. Penna, “Paolo” in
Dizionario Teologico Interdisciplinare, II, pp. 645-60; F. Pratt, La Théo-
logie de saint Paul, II, Paris, 1949, pp. 131-89; R. Schnackenburg, Cristo­
logia, op. cit., pp. 392-425; cf. também La cristologia in S. Paolo. Atti
delia X X III Settimana Biblica, Bréscia, 1976.
92 Cf. J. Kramer, Das ãlteste Zeugnis von der Auferstehung Chri-
sti, op. cit.
93 Tem outra opinião, por exemplo, L. Cerfaux, Cristo, pp. 315ss,
op. cit. in n. 91.
94 Cf. J. Jeremias, “Zu Phil 2,7” in Novum Testamentum 4 (1963),
pp. 182-88; acréscimos paulinos seriam somente: “até a morte de cruz”
(8c); “no céu, na terra e debaixo da terra” (10c) e “para glória de
Deus Pai” (11c).
95 R. Schnackenburg, Cristologia, op. cit., p. 408.

128
momento a sua vida esteve totalmente a serviço do Senhor Je­
sus (cf. G1 2,20; 2Cor 4,5; F1 1,21-24: “Para mim viver é Cris­
to...”). A partir desse encontro com o Ressuscitado desenvolve-
-se também a sua cristologia. Embora confronte o seu evangelho
com o pregado pelos apóstolos (cf. G1 2,2), e transmita o que
recebeu (ICor 11,23; 15,3), ele não parece estar interessado na
vida terrena de Jesus (cf. 2Cor 5,16). Ao contrário, aprofunda o
anúncio pascal numa dupla direção: para a preexistência (apro­
fundamento “teológico”) e para domínio cósmico (aprofunda­
mento “histórico-salvífico”). Visto que a primeira direção obe­
dece nele a um interesse igualmente salvífico-escatológico, e cer­
tamente não metafísico, pode-se dizer que ele tem em vista subs­
tancialmente uma leitura cristológica de toda a história e da
criação na sua totalidade. Exemplos do primeiro tipo de aprofun­
damento são, além do hino de F1 2,6-11, o uso do título Filho
de Deus (que nele aparece 16 vezes: cf. por exemplo Rm 1,3-4 e
Cl l,13.15ss) e os textos da missão do Filho: “Quando chegou
a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho...” (G1 4,4; cf. Rm
8,3: Deus “enviou o seu próprio Filho numa carne semelhante
à do pecado...”. O significado escatológico-salvífico da preexis­
tência é particularmente claro no hino de Ef l,3ss: “Bendito seja
Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com
toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele, ele
nos escolheu antes da fundação do mundo...” Ef 1,3-4). Este
texto se relaciona com a segunda direção do aprofundamento
paulino da “releitura pascal”, aquela que afirma o domínio cós­
mico de Cristo, inserindo-o na história total da humanidade e
reconhecendo nele o ponto de virada da relação entre Deus e o
mundo, vértice e novo início da história da salvação, cabeça da
humanidade que caminha para a realização escatológica. São
exemplos desta segunda orientação: o uso do título Senhor (47
vezes, incluindo Ef e Cl), que indica a soberania universal do
Ressuscitado (cf. Rm 14,9: “Com efeito, Cristo morreu e revi­
veu para ser Senhor dos mortos e dos vivos”) e em particular
o seu senhorio na comunidade cristã (recordemos a “Ceia do
Senhor”: ICor 10,16-22 e 11,20-34; a “obra do Senhor” : ICor
15,58; a organização da vida de cada um e da comunidade: cf.
ICor 7,10ss); a idéia de Cristo como novo Adão, antecessor e
doador de vida (cf. ICor 15,20ss; Rm 5,12-21); as perspectivas
dc hinos como Cl 1,15-20 e Ef l,3ss: “Porque nele foram cria-

129
das todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisí­
veis... Ele é a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo. Ele é o
Princípio, o Primogênito dos mortos, tendo em tudo a primazia”
(Cl 1,16.18). O Pai derramou sobre nós a sua graça, na remis­
são dos pecados, para realizar o “mistério de sua vontade” (isto
é, o seu plano salvífico): “recapitular em Cristo todas as coi­
sas, as do céu como as da terra” (Ef 1,10; cf. 7-10). O domínio
cósmico de Cristo expressa, no plano salvífico, a eficácia uni­
versal da obra de salvação nele realizada: esta idéia está na base
da posição de Paulo com relação à Lei e à sua teologia da salva­
ção por meio da fé (cf. Rm 1,6-7; capítulos 5-7 e 8-11; cf. tam­
bém G1 capítulos 3-4). A visão paulina da história e do cosmo
está centralizada, portanto, na ressurreição: mas nele este mis­
tério é inseparável do mistério da Cruz. A Cruz dá densidade
histórico-concreta à cristologia cósmica paulina: Cristo não é
uma idéia, uma força indeterminada, mas é o Messias concreto
crucificado, que no mesmo tempo realiza e subverte as expecta­
tivas judaicas e com o qual a sabedoria dos pagãos entra em
choque:'/‘Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para
os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas, para
aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo,
poder de Deus e sabedoria de Deus” (ICor 1,23-24). A cruz
é o lugar do nosso resgate (cf. G1 3,13-14), lugar onde “aquele
que não tinha conhecido pecado” foi tratado por Deus “como
pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos
justiça de Deus” (2Cor 5,21). Mas esta só pode ser assim inter­
pretada porque é seguida da Ressurreição: Jesus nosso Senhor
“foi entregue por nossas faltas e ressuscitado para a nossa
justificação” (Rm 4,25). Em outras palavras, se a Cruz com o
seu escândalo (G1 5,25) torna concreto e consistente o anúncio
pascal, fazendo com que nos confrontemos com Aquele que se
ofereceu em nosso lugar e por nós, a Ressurreição, com a sua
luz, permite embasar esse valor salvífico e libertador da Cruz.
É a Ressurreição que nos faz saber que por aquele que se tor­
nou para nós maldição no lenho da cruz, a bênção de Abraão
passou aos povos e nós recebemos a promessa do Espírito me­
diante a fé (cf. G1 3,13-14). Também a “theologia crucis” é, pois,
uma teologia pascal!” 96
96 Do ponto de vista cristológico, as “cartas pastorais” (1 e 2Tm
Tt) estão próximas da teologia paulina pela idéia da preexistência do

130
A “releitura pascal” estrutura, por fim, a reflexão cristoló-
gica de Jo ão.97 A cristologia joanina é um fruto maduro, como
o demonstra a fórmula de Jo 1,14, o texto neotestamentário
que exerceu maior influência na teologia do dogma.98 Mas isso
poderia distorcer a perspectiva com que se aborda a teologia de
João: na realidade, mesmo que forneça o fundamento para o
posterior desenvolvimento da reflexão sobre a doutrina das duas
naturezas e unicidade de pessoa em Cristo, o pensamento joani-
no está voltado para o evento salvífico, e não se preocupa com
uma especulação conceituai sobre o ser. João organiza de ma­
neira unitária e completa as diferentes “releituras pascais” feitas
antes dele: assim, vida de Jesus, história de Israel, Igreja e
mundo, passado e futuro são abrangidos numa visão cristológi-
ca global. Essa visão inclui um descer e um subir: “Ninguém
subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do

Cristo, mas contêm também elementos de proveniência judeu-cristã (des­


cendência davídica de Jesus: 2Tm 2,8) e categorias helenísticas (cf. a
idéia de “epifania”: lTm 6,14; Tt 2,13; 2Tm 1,10 etc.; o título de “sal­
vador”: 2Tm 1,10; Tt 1,4 etc.) Nelas são sublinhados os caracteres glo­
riosos do Cristo (jamais se fala da paixão, do escândalo da cruz, do san­
gue); isso não é contradito pela afirmação: “Pois há um só Deus, e um
mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu
em resgate por todos” (lTm 2,5-6). Assim é enfatizada a unicidade da­
quele que “manifestando-se na carne”, e por isso solidário com os ho­
mens, “foi justificado no Espírito... e assumido na glória” (lTm 3,16).
Por isso, tem-se a impressão de que na cristologia das cartas pastorais
“é oferecida ao mundo helenístico uma figura gloriosa de Cristo, no
qual ele podia ver realizada a sua aspiração de salvação, de vida e de
imortalidade”: R. Schnackenburg, Cristologia, op. cit., p. 454; cf. pp.
449-54: Cf. também H. Windisch, “Zur Christologie der Pastoralbriefe”
in Zeitschrift für Neutestamentliche Wissenschaft 34 (1935), pp. 213-38.
97 Além dos comentários, cf. também, para a cristologia: J. Blank,
Krisis. Untersuchungen zur Johanneischen Christologie und Eschatolo-
gie, Freiburg, 1964; E. F. Braun, Jean le Théologien. L e Mystère de Jésus
Christ, Paris, 1966, e Jean le Théologien. Le Christ notre Seigneur, hier,
aujourd’hui, toujours, Paris, 1972; I. De La Potterie, Gesú Verità. Studi
di cristologia giovannea, Turim, 1973; C. H. Dodd, Uinterpretazione dei
quarto Vangelo, Bréscia, 1974 (ed. bras.: A interpretação do quarto evan­
gelho, Edições Paulinas, São Paulo, 1977, 625 p .); A. Feuillet, Le mystè­
re de Vamour divin dans la théologie johannique, Paris, 1972; F. Muss-
ner, II vangelo di Giovanni e il problema dei Gesú storico, Bréscia,
1968; T. E. Pollard, Johannine Christology and the Early Church, Cam-
bridge, 1970; R. Schnackenburg, Cristologia, op.cit., pp. 425-42; G. Se-
galla, “Rassegna di cristologia giovannea” in Studia Patavina 18 (1971),
pp.693-732.
98 Cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus im Glauben der Kirche,
Band I, Friburgo-Basiléia-Viena, 1979, p. 123.

131
Homem” (Jo 3,13). Entre esses dois pólos coloca-se a vida do
Jesus terreno, lida como um conjunto de sinais que, de um lado,
revelam a glória da condição preexistente, e, de outro, antecipam
a glorificação pascal. O momento da preexistência e da descida
está presente na chamada “cristologia da encarnação” (cf. Jo
1,14; l jo 1,2;3 ,5 ;4 ,2 ): “No princípio era o Verbo e o Verbo
estava com Deus e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio
dele e sem ele nada foi feito de tudo o que existe. Nele estava
a vida e a vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas,
mas as trevas não a apreenderam... E o Verbo se fez carne, e
habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, como a glória do
Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,1-5.14).
Esta teologia do Verbo que se faz “carne [sarx] significa o âmbi­
to humano, a história e o sujeito concreto dela), embora seja
influenciada pela teologia da Palavra e do ensinamento sapien-
cial do Antigo Testamento (cf. Gn l,ls s ; SI 107,20; Sb 18,14-
16 por um lado, e Pr 8 e Eclo 24 por outro), como também por
fórmulas neotestamentárias já elaboradas (por exemplo Cl 1,15
ss; 2Cor 4,4 etc.), além da especulação grega sobre o Logos
(especialmente dos estóicos e de Fílon), revela uma indiscutível
originalidade, que consiste justamente em identificar o Verbo
com o homem Jesus de Nazaré (idéia inverossímil no Antigo
Testamento), sem com isso diminuir a transcendência divina
(como acontece no pensamento estóico). Poder-se-ia então dizer
que a originalidade está em capturar na profundeza mais radi­
cal a antítese entre Deus e o mundo e a síntese inaudita que se
realizou em Jesus Cristo. Dessa forma, João aplica a identidade
na contradição, que vimos presente no anúncio pascal do Cruci-
ficado-Ressuscitado, a toda a relação Deus-mundo como é reve­
lada no Deus encarnado. O “mundo” torna-se assim, na lingua­
gem joanina, um conceito “dialético” : é o objeto do amor de
Deus (cf. Jo 3,16) e a realidade que odeia Cristo e os seus dis­
cípulos (cf. 15,18), cujo Príncipe (cf. 12,3) se opõe àquele que
é a “luz do mundo” (Jo 9,5; cf. 1,5). Nessa perspectiva, a pre­
sença de Jesus entre os homens é interpretada como a “crise”,
o julgamento que se realiza na luta entre a Luz e as Trevas: a
Luz resplandesce na relação entre Jesus e o Pai, feita de recípro­
ca pertença (cf. 17,10), mútua imanência (14,10-11) e comu­
nhão (cf. 8,29; 10,30); nos sinais que ele realiza (cf. 2,11;11,4.40

132
etc .);99 nos títulos que lhe são atribuídos (Senhor: 25 vezes, como
apelativo de veneração; Filho de Deus: cf. 1,34;3,18 etc.; o Filho:
19 vezes; Filho do Flomem: 13 vezes, usado de maneira diferente
dos Sinóticos para indicar a missão do Filho que procede do Pai,
com exceção de Jo 5,27, que parece conservar o sentido tradi­
cional). O Nazareno é “o cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo” (Jo 1,29.36), o pão da vida descido do céu (cap. 6),
a luz do mundo (cf. 8,12;9,5), a porta para a vida (cf. 10,9), o
pastor (cf. 10,27), a ressurreição e a vida (cf. 11,25), “o cami­
nho, a verdade e a vida” (14,6), a verdadeira videira (cf. 15,
1.5). Rejeitado pelos seus (cf. 11,45-54; 12,37ss) e condenado à
morte, é glorificado pelo Pai (cf. o tema da glorificação no
cap. 17), exaltado (cf. os textos já citados sobre a elevação”).
Desse estado glorioso, ele continua a agir na força do Espírito,
que torna presente a sua obra, faz penetrar na verdade dela,
faz com que ela frutifique, e dá prosseguimento ao processo do
mundo (cf. os cinco ditos sobre o Paráclito nos discursos de
adeus: Jo 14,16-17.20; 16,8-11.13-14): o Espírito é o Paráclito
que, substituindo o Jesus terreno (cf. 16,7), o torna presente
como glorificado (cf. 14,18-20). Dessa forma, toda a história do
mundo e da Igreja é envolvida pela luz pascal. O A pocalipse 100
não faz outra coisa senão celebrar, dir-se-ia liturgicamente, a
vitória de Deus em Cristo na sua relação com o mundo. Esta
vitória é vista no futuro, como o triunfo final de Cristo “o Pri­
meiro e o Ültimo, o Vivente” (Ap 1,18). Mas ela já está deci­
dida desde muito tempo, e assim é força de consolação e de
esperança para as presentes provações da comunidade: Cristo
segue com amor os seus fiéis; mesmo suas intervenções de con­
denação são sinal de uma amorosa proximidade de seu povo
peregrino (cf. as cartas às sete igrejas da Ásia Menor; 1,4-3,22).
A idéia da vitória final de Cristo e da sua presença atual na
comunidade está certamente enraizada na Ressurreição, mas não
descura a história do Nazareno: Cristo é “a testemunha fiel, o
primogênito dos mortos e o príncipe dos reis da terra” (1,5). A

99 Cf. o estudo de O. Cullmann, “I sacramenti nel vangelo giovan-


nni" in La fede e il culto delia chiesa primitiva, op. cit.
100 Cf. J. Comblin, Le Christ dans VApocalypse, Paris, 1965; A.
Friiillii, 1,'Apocalypse. Êtat de la question, Paris, 1963; H. Schlier,
••• 'i Cristo e la storia secondo 1’Apocalisse di Giovanni” in Riflessio-
(ii sul Nuovo Testamento, Bréscia, 1969; R. Sehnackenburg, Cristologia,
■ M’ cit., pp. 463-473.

133
expressão, densíssima, mostra o testemunho prestado por Jesus
até à morte, o novo início marcado pela Ressurreição e a dig­
nidade cósmica e a força salvífica do Ressuscitado: portanto, é
um compêndio da cristologia da descida e da ascensão. E a idéia
central da “identidade na contradição” entre Crucificado e Res­
suscitado é apresentada plasticamente com a imagem do Cordei­
ro imolado, mas de pé (5,6). Assim, transparece no Apocalipse
a consciência que tem a Igreja de estar colocada entre o “já”
da vitória pascal e o próximo triunfo final. A leitura pascal do
presente e do futuro já confere substância ao culto da comuni­
dade, vivificando a esperança e a espera. “Vem, Senhor Jesus...
Sim, virei logo” (2,20). O mistério proclamado já; é o mistério
celebrado para a vida e para a história.101
O caminho percorrido mostrou como, a partir do evento
da Ressurreição do Crucificado, fundamento e conteúdo essen­
cial do anúncio e da fé das origens, a comunidade cristã primi­
tiva releu, por um lado, retrospectivamente, a história de Jesus
de Nazaré e a, espera de Israel, e por outro, prolepticamente, a
história do mundo e da Igreja. Portanto, o princípio que unifica
em sua origem os diversos desenvolvimentos da cristologia neo-
testamentária, na variedade dos seus estágios e das suas expres­
sões, é um princípio vivente: é o Ressuscitado e a experiência

101 Situa-se também num contexto litúrgico, o da preparação para


o batismo, a teologia da T carta de Pedro, que, embora não apresente
uma cristologia original, compendia para a catequese algumas idéias
fundamentais, com vistas a exortar os cristãos da diáspora à perseveran­
ça nas provações: Cristo é o cordeiro pascal (1,18-19: cf. Is 53 e SI
118), cujo sangue precioso nos obteve a libertação; “predestinado desde
a fundação do mundo” (1,20), anunciado pelos profetas (cf. 1,10-12),
manifestado nos últimos tempos (cf. 1,20), ele é a “pedra angular” que
sustenta toda a construção da comunidade (cf. 2,3-8). Olhando para
o seu sofrimento os cristãos reconhecem a própria vocação e encontram
forças para suportarias provações (cf. 2,18-25). Cristo é o pastor (2,25;
5,4), que dará a coroa da glória àqueles que guiam sobre a terra o
rebanho de Deus. A sua morte e ressurreição, que libertam dos peca­
dos, têm uma eficácia central na história (cf. o texto de 3,18 e o anúncio
“aos espíritos... na prisão”; esta passagem “quer afirmar que o poder
redentor e régio de Cristo tem valor para todos os tempos... e se esten­
de a todas as partes... Ele vence e redime também a culpa mais grave.
Dessa forma, lPd 3,18-20 esclarece qual é a afirmação da fé da história
mítica de uma descida de Cristo aos infernos”: K. H. Schelkle, Teologia
dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 154). Cf. também, sobre a cristologia
de lPd: L. Bouyer, II Filho eterno, op. cit., pp. 260-64 e R. Schnacken-
burg, Cristologia, op. cit., pp. 44349.

134
que dele fizeram as testemunhas nas quais se apóia a fé cristã. A
origem da cristologia do Novo Testamento não é o querigma
ou o conjunto das expectativas existenciais da comunidade (Bult-
mann e sua escola), nem é o Jesus histórico que precede a con­
clusão pascal de sua vicissitude, mas é esse Jesus enquanto reli­
do à luz da Ressurreição, ou seja, é a mensagem da Páscoa na
sua relação com o passado do Ressuscitado. Foi nessa inaudita
“identidade na contradição” entre o Humilhado e o Exaltado,
entre o Nazareno e o Senhor e Cristo, que a fé cristã buscou luz
para interpretar o tempo de Israel como história da espera já
realizada, o destino e a obra de Jesus de Nazaré como história
humana de Deus, o futuro da Igreja e do mundo como história
da promessa última e definitiva. Na Páscoa nascem, ao mesmo
tempo, a fé e a esperança dos cristãos.102

102 Essas reflexões sobre o princípio unificador da cristologia do


Novo Testamento explicam também a metodologia seguida: entre as
várias possibilidades — o método dos títulos cristológicos, empregado
por exemplo nas obras citadas de Cullman, de Fuller, de Hahn, de Kra-
mer; o método que pesquisa os esquemas subjacentes aos títulos (por
exemplo, morte-ressurreição em relação a Cristo; exaltação em relação a
Senhor; preexistência em relação a Filho de Deus: cf. especialmente as
obras de Fuller e Kram er); e o método histórico-querigmático, que se
esforça por descrever a cristologia neotestamentária nos vários estágios
de sua evolução (cf. os trabalhos de Gnilka e de E. Schweizer, por
exemplo) — as reflexões apresentadas se aproximam desse terceiro,
l-ste método parece representar melhor o processo hermenêutico que, a
partir da “identidade na contradição” entre o Crucificado e o Ressusci-
lado, refletiu cristologicamente o passado e o futuro . Cf. H. R. Balz,
Mrtitodische Probleme der neutestamentlichen Christologie, Neukirchen,
1')«>/. S Cipriani, “Problemi di metodologia nello studio delia Cristolo-
Hin ui oic slamentaria” in Asprenas 20 (1073), pp. 297-321; F. Hahn,
Mriliodrupioblcme einer Christologie des Neuen Testaments” in Ver-
AIimligutig and Vorschung 15 (1970), pp. 3-41; e especialmente a densa
, M... „ ,1,- t;. Segala, “Cristologia dei Nuovo Testamento”, in G. Se-
yiilln ' l) ( anlnlomessa — G. Moioli, II problema cristologico oggi,
A is, 1973, pp. 13-142.

135
5

DO QUERIGMA AO DOGMA

A jé cristológica da Igreja

O Cristo do querigma é o Cristo do dogma? O Cristo do


Novo Testamento é o Cristo da Igreja? Essa pergunta é de
importância decisiva: dependendo da resposta que se lhe der,
sustentar-se-á ou cairá a pretensão da comunidade cristã de ser
a Igreja do Senhor Jesus. Se o Cristo do anúncio originário fos­
se distinto do Cristo da fé eclesial, séculos de cristianismo ter-se-
-iam fundado numa invenção humana, e -não na revelação pes­
soal de Deus, apresentada definitivamente nas palavras e nos
eventos do Novo Testamento, como crêem os cristãos. Portanto,
o que está em jogo é a própria identidade da Igreja e, conse-
qiientemente, visto que através dela ressoa no tempo o anún­
cio cristão, a identidade daqueles que deram fé a esse anúncio.
Para impostar corretamente a resposta, é necessário ter cla­
ramente presentes os termos a que se refere a pergunta: de
um lado, o querigma, isto é, o anúncio da comunidade das ori­
gens; de outro, o dogma cristológico, isto é, a formulação madu­
ra da fé cristã sobre Cristo no Concilio de Calcedônia (451),
que ainda hoje é acolhido como síntese do que a Igreja crê com
relação ao Senhor Jesus, além de ser vínculo fundamental entre
as Igrejas do Oriente e do Ocidente. Entre estes dois termos
desenVolve-se o processo histórico da verdade cristã, a história
de Jesus Cristo na fé da sua Igreja. Este desenvolvimento dog­
mático foi descrito muitas vezes, chegando a resultados freqüen-
temente diferentes.1 Por isso, mais do que uma descrição por-

1 Para a história e interpretação do dogma cristológico, cf. princi­


palmente: A. Adam, Lehrbuch der Dogmengeschichte, I (Die Zeit der
alten Kirche), Gütersloh, 1965; W. Bousset, Kyrios-Christos. Geschichte
des Christusglaubens von den Anfüngen des Christentums bis Irenaus
(1913), Gõttingen, 1965, 5? ed.; R. Cantalamessa, “Dal Cristo dei Nuovo

136
menorizada, queremos oferecer aqui uma interpretação: através
da “releitura” de alguns dados fundamentais, procuraremos cap­
tar as “linhas constantes, que perpassam toda a história da cris-
tologia patrística e que permitem compreender a sua estrutura
íntima, o seu devir e significado profundo”.2 O dado funda-

Testamento al Cristo delia Chiesa: tentativo di interpretazione delia cris-


tologia patristica” in II problema cristologico oggi, Assis, 1973, pp. 143-
197; A. Gilg, Weg und Bedeutung der altkirchlichen Christologie (1936),
Munique, 1955; A. Grillmeier, Jesus der Christus im Glauben der Kir-
che. 1. Von der Apostolischen Zeit bis zum Konzil von Chalkedon (451),
Friburgo-Basiléia-Viena, 1979 (ed. aumentada com relação à mesma
segunda ed. de Christ in Christian Tradition, Londres, 1975, 2? ed.;_ o
estudo do qual essas edições, primeiro em inglês e agora em alemão,
partem é “Die theologische und sprachliche Vorbereitung der christolo-
gischen Formei von Chalkedon” in Das Konzil von Chalkedon, cit. em
1, 5-202); Id„ Ermeneutica moderna e cristologia antica, Bréscia, 1973
(ed. alemã em Theologische Berichte 1, Einsiedeln, 1972, pp. 68-169);
A. V. Harnack, Lehrbuch der Dogmengeschichte, I (Die Entstehung des
kirchlichen Dogmas), Tübingen, 1931, 5? ed.; J. P. Jossua, Le Salut.
Incarnation ou mystère pascal. Chez les Pères de 1’Eglise de saint Irénée
ã saint Léon le Grand, Paris, 1968; J.N.D. Kelly, II pensiero cristiano
delle origini, Bolonha, 1972; W . Kõhler, Dogmengeschichte ais Geschich-
/<• des christlichen Selbstbewusstseins, I (Von den Anfàngen bis zur Re-
formation), Zurique, 1951, 3? ed.; Das Konzil von Chalkedon, org. por
A. Grillmeier e H. Bacht (1951), 3 vol., Würzburg, 1979, 5? ed.; J. Lié-
bacrt, Christologie. Von der apostolischen Zeit bis zum Konzil von
Chalkedon (451), intr. de P. Lamarche, Freiburg i. Br., 1965; F. Loofs,
l.citfaaen zum Studium der Dogmengeschichte, Tübingen, 1959, 6? ed.;
G. Moioli, “Appunti per una ‘Cristologia’ patrística” in La Scuola Catto-
lica 98 (1970), pp. 175-214; J. Plagnieux, Heil und Heiland. Dogmenge­
schichte Texte und Studien, Paris, 1969; G. L. Prestige, Dio nel pensiero
dei Padri, Bolonha, 1969 (Londres, 1936); H. Schlier, “Die Anfange des
c liristolcgischen Credo” in Zur Friihgeschichte der Christologie, org. por
B. Welte, Freiburg i. Br., 1970, pp. 13-58; R. Seeberg, Lehrbuch der
Dogmengeschichte, 1. (Die Anfange des Dogmas im nachapostolischen
und altkatholischen Zeitalter), Leipzig-Erlangen, 1920, 3? ed.; R. V.
Sellers, Two Ancient Christologies. A Study in the Christological Thought
i I the School cf Alexandria und Antioch in the Early History of Chris-
iian Doctrine, Londres, 1940; P. Smulders, “Sviluppo delia cristologia
m lla storia dei dogmi e nel magistero” in Mysterium Salutis V, Bréscia,
1971, pp. 493-597; B. Studer — B. Daley, Soteriologie. In der Schrift und
Patristik, Freiburg i. Br., 1978; H. E .W . Turner, The Patristic Doctrine
o/ Redemption. A Study in the Development of Doctrine during the
First Five Centuries, Londres, 1952; M. Werner, Die Entstehung des
christlichen Dogmas, Bern-Leipzig, 1941. B. M. Xiberta, Enchiridion de
Verbo lncarnato, Madri, 1957, recolheu as fontes para o estudo cristoló-
gico (limitadas ao magistério para a Idade Média Moderna). R. J. Tapia,
Tlic 1'heology of Christ: Commentary, Nova York, 1971, oferece uma
antologia de textos de numerosos autores recentes sobre o desenvolvi-
incnto da cristologia da era apostólica até o presente.
2 R. Cantalamessa, "Dal Cristo dei Nuovo Testamento...”, op. cit.,
P 143. Nesse estudo inspiraram-se muitas das idéias que seguem.

137
mental a ser examinado é o “credo”, “o lugar de condensação e
codificação dos resultados alcançados pela teologia, o espelho
mais fiel e, por seu significado eclesial, também o mais autori­
zado da fé em Cristo”.3 Mais precisamente, essa expressão sinté­
tica e densa da confissão e da reflexão cristã será considerada
em três estágios do seu desenvolvimento: no início, no meio e no
final do processo de formulação dogmática. O confronto entre
eles permitirá não só captar algumas linhas de tendência do
desenvolvimento, mas também determinar o significado e os limi­
tes do dogma cristológico para a fé e a pesquisa cristã hoje.

5 .1 . DO QUERIGMA AO DOGMA: UMA HISTÓRIA

a) Ào ponto de partida do desenvolvimento dogmático —


o anúncio e a fé do Novo Testamento — foram dedicadas as
reflexões do capítulo anterior. Aqui basta sublinhar que o
“credo” cristológico da comunidade das origens se resume nas
fórmulas que veiculam o evento central e determinante da res­
surreição do Crucificado. A confissão “Jesus é o Senhor” teste­
munha a “identidade na contradição”, que foi experimentada
quando se reconheceu no Ressuscitado o humilde Nazareno, e
que está na base da releitura pascal da sua vida e morte, da
história de Israel antes dele e da vicissitude da Igreja e do
mundo. Assim, a partir da Ressurreição o primitivo “credo”
cristológico abrange a história da paixão, o sepultamento, as apa­
rições (cf. ICor 15,4-5), e traduz o significado teológico desses
eventos numa linguagem narrativo-concreta: o significado esca-
tológico do que aconteceu no Crucificado-Ressuscitado é trans­
mitido com a idéia da ressurreição “ao terceiro dia” (ICor 15,4),
da descida aos infernos (cf. lPd 3,19), da ascensão aos céus (cf.
At 1,9;2,33; lPd 3,22; etc.). História e significado são confes­
sados juntos, mediante um mesmo instrumento expressivo, que
é a narração de eventos, de acordo com a sensibilidade históri­

3 Ibid., p. 144.

138
co-salvífica e a mentalidade prático-concreta da comunidade das
origens. O primado da perspectiva histórica sobre a conceitual-
-metafísica, dos eventos sobre o ser é evidente: a estrutura mes­
tra do “credo” originário — a identidade na contradição entre
o Cristo terreno e o Cristo da experiência pascal — é expressa
na narração de uma história: a história da Páscoa e das mara­
vilhas então realizadas pelo Deus da promessa no seu servo —
e Filho — Jesus. Da mesma forma que para Israel, assim tam­
bém para a Igreja nascente confessar o próprio Senhor significa
narrar os seus feitos (cf. a confissão de fé do povo da antiga
aliança: “Ouve, Israel...”, em Dt 5,lss).
Este “credo” foi se consolidando na época subapostólica
"num modelo bem definido que reúne os principais eventos men­
cionados nas fórmulas bíblicas” : 4

“Este é aquele,
que se encarnou na Virgem,
que fo i erguido no lenho,
que fo i sepultado na terra,
que ressurgiu dos mortos
e fo i elevado às alturas do céu”.5

A estrutura e a forma expressiva da primitiva fé pas­


cal permanecem inalteradas. A única exceção será uma
maior acentuação da “encarnação na Virgem”, indício de
que a atenção vai se deslocando para a vida terrena de
Jesus e os seus inícios, de acordo com uma orientação
cada vez mais acentuada, que no fim culminará na gran­
de atenção dedicada pelas fórmulas posteriores ao nas­
cimento eterno do Pai. Encontramos caracteres análogos
na seção cristológica da profissão trinitária de fé, usada
no rito batismal e conhecida com o nome de “Símbolo
apostólico”. Eis a fórmula apresentada por Hipólito Ro­
mano, e que permaneceu praticamente definitiva para os
latinos:

4 Ibid., p. 145; cf. H. Schlier, Die Anfãnge, op. cit.


'i Mclitão de Sardes, Perl tou Pasca, 70; cf. também Inácio de Antio-
ipiin, Trall., 9,1-2 e Justino, DiaL, 85,2.

139
“Crês em Cristo Jesus, Filho d e Deus,
que nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo,
e fo i crucificado sob Pôncio Pilatos,
morreu e fo i sepultado,
e ressuscitou dos mortos, ao terceiro dia,
e subiu aos céus e está sentado à direita do Pai,
(e) virá julgar os vivos e os m ortos?” 6

O desenvolvimento desse texto é visivelmente histó-


rico-narrativo: da preexistência (indicada mediante o títu­
lo Filho de Deus) passa-se à encarnação, paixão, morte e
ressurreição, ao estado glorioso do Ressuscitado, ao seu
retorno definitivo. O procedimento narrativo é evidencia­
do pelo uso abundante da conjunção coordenadora, pelo
destaque dado às formas verbais e pela terminologia, que
ainda é a terminologia concreta das fórmulas bíblicas.7
Também aqui se narra uma história perfeitamente huma­
na (história de nascimento, dor e morte, num tempo e lugar
determinado: “sub Pontio Pilato”), mas que é ao mesmo
tempo a história do Filho de Deus. A identidade na con­
tradição, própria do anúncio pascal, é fielmente veiculada
através da narração dos eventos, em que se desenvolve a
vicissitude do Crucificado-Ressuscitado. É igualmente evi­
denciado o significado salvífico do Cristo para nós através
de expressões concretas: “sedit ad dexteram Patris” e “ven­
turas iudicare vivos et mortuos”. Essas expressões, ao mes­
mo tempo que afirmam a presença sempre viva e poderosa
do Ressuscitado junto ao Pai a nosso favor, sublinham o
fato de que ele é o Senhor da promessa e do futuro últi­
mo e definitivo.

6 DS 10. Cf. B. Botte, La Tradition Apostolique de saint Hippolyte.


Essai de reconstruction, Münster, 1963, p. 48.
7 Para estas e outras observações levo em consideração um semi­
nário que dirigi com os meus estudantes da Faculdade Teológica de
Nápoles, Sec. Sto. Tomás, no semestre de inverno de 1977-78, sobre o
tem a:“Des-historícização do querigma no dogma como conseqüência da
historicização do cristianismo no mundo grego: verificação crítica”. O
seminário tinha por objeto a análise lingüístico-estrutural e a compara­
ção de alguns símbolos da era patrística. Sobre a estrutura narrativa dos
símbolos, cf. G. Baudler, Wahrer Gott ais wahrer Mensch. Entwürfe zu
einer narrativen Christologie, Munique, 1977, pp. 229-51.

140
Para se perceber o reflexo dessas fórmulas “tradicio­
nais” na Igreja do século II, da qual são como que expres­
sões (a Traditio A postólica de Hipólito é do início do
século III), é necessário acenar para o contexto teológico
em que eram professadas. Não foram poucas as tentati­
vas de anular o escândalo contido na incrível identidade
na contradição, proclamada na Páscoa, e assim de “solvere
Christum” .8 Docetitas e ebionitas, aos/quais já acenamos
ao tratar da crístologia neotestamentária, embora cami­
nhando em direções opostas, partiam da mesma exigência:
salvaguardar a divindade de Deus, que para o dualismo
daqueles era a esfera não contaminada pela matéria, e para
estes, a herança preciosa de Israel. Com essa finalidade,
uns negavam a verdadeira humanidade de Cristo (doce­
titas), e outros diminuíam a sua condição divina (ebio­
nitas). 'Essas duas tendências exprimem-se também nas
cristologias “adocianista^-” e\gnósticas do século II: as pri­
meiras, sob a influência do rígido monoteísmo hebraico,
vêem no Nazareno apenas um homem, que recebeu de
Deus uma vocação totalmente particular e foi por ele assu­
m id o"'1adotado” como Filho. As segundas refletem o im­
pacto da Gnose, que nesse tempo exerce um fascínio
extraordinário: relacionada com o espírito da “paidéia”
grega,9 a Gnose é uma oferta de salvação por intermédio
de um conhecimento superior que liberta da escravidão da
matéria e reconduz o espírito humano à sua origem divi­
na. Portanto, trata-se de uma “antropologia soteriológica”
de caráter nitidamente dualista: em ambiente cristão, ela
reconhecerá em .Cristo o Redentor, mas entendido como
portador de salvação que vem do alto e que por isso
deve contaminar-se o menos possível com a negatividade
da matéria. Conseqüentemente, tende-se a diminuir o o
negar totalmente a verdadeira humanidade de Jesus-: * *
Em vista desses reducionismos opostos, compreende-se por­
que a simplicidade dos antigos símbolos parecia escandalosa e
crítica: o relato da história humana do Filho de Deus, se por um

8 Cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 184-97.


9 Cf. W. Jãger, Paideia, 3 vol., Berlim, 1933.1944.1947, e C. Colpe,
Die religionsgeschichtliche Schule. Darstellung und Kritik ihres Bildes
vom gncstischen Erlõsermyt-hos, Gõttingen, 1961.

141
Não se nega que Jesus Cristo seja Deus: afirma-se apenas
que se tornou tal quando o Pai plenificou com seu Espí­
rito esse homem único e exemplar. Também aqui nos
encontramos diante de uma forma de monarquianismo,
mas que não pensa na linha de uma manifestação divina
entre os homens, e sim na de um tornar-se Deus por parte
do homem Jesus (monarquianismo dinâmico). Relaciona-
-se — no século IV — com Paulo de Samosata, através
de Luciano de Antioquia, o discípulo deste, Ário: 12 ele
reconhece em Cristo não simplesmente um homem “adota­
do” por Deus, mas o Filho, “criado” pelo Pai antes da
criação do mundo. Chamado à existência antes de todas
as coisas, ele desempenha um papel dc mediador e instru­
mento na obra criadora! Enquanto criatura, ele c essencial­
mente diferente do Pai e lhe é dado o poder de devir, e por
isso de encarnar-se c padecer. Enquanto criatura primeira
e excelsa entre as demais, ele pode assumir a carne,
ocupando o lugar da alma humana no homem Jesus, e
assim oferecer-sc como redentor e modelo para todos os
homens. Colocando o Filho do lado das criaturas, embora
fem posição de prioridade com relação a elas e de mediação
entre Deus e o mundo, Ário satisfaz as exigências do pen­
samento médio-platônico, mas dissolve o escândalo cris­
tão da identidade na contradição entre o Nazareno cruci­
ficado e o Filho de Deus.

A fé da Igreja responde a essas várias tendências reducio-


nistas através da obra dos Padres dos séculos III-IV , que desá­
gua no solene “credo” do Concilio de Nicéia (325).13 Eis as
afirmações com relação a Cristo:

“Cremos... num só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus,


gerado com o unigênito do Pai,

12 Cf. ibid., pp. 356ss. Cf. também M. Simonetti, La crisi ariana


nel IV secolo, Roma, 1975.
13 Cf. ibid., pp. 386ss. Cf. também de I. Ortiz de Urbina, El Sím­
bolo Niceno, Madri, 1947 e N icée et Constantinople, Paris, 1963, espe­
cialmente pp. 69-92; Su Cristo. II grande dibattito nel IV secolo, sob a
direção de E. Bellini, Milão, 1978, coletânea de textos originais com
introd. e notas.

143
lado n a a recusa a eliminar um dos dois pólos da contradição
pascal, por outro confirma a identidade inaudita entre Crucifi­
cado e Ressuscitado, sem esvaziar “a palavra da Cruz”, mas
também sem anular a novidade e a força da Ressurreição. O
grande mérito dos pastores e mestres da Igreja no século II foi
ter mantido, na história de Jesus Cristo, a identidade na contra­
dição: de Inácio de Antioquia a Irineu de Lião, para citar ape­
nas dois nomes, a profundidade da antítese e o poder da síntese
entre humano e divino no Humilhado-Exaltado são afirmadas
com vigor e estendidas, especialmente por Irineu, a toda a his­
tória humana.101
b ) O século III traz consigo um desenvolvimento novo e
diferente das tendências que procuram “reduzir” a totalidade
complexa do mistério de Cristo.

Em Roma, primeiro Práxeas, depois Sabelius, desen­


volvem uma interpretação relacionada com a docetita: o
“modalismo”.11 A história humana de Jesus é interpretada
como uma teofania da divindade, ou como o “modo” pelo
qual o único Deus aparece no meio dos homens. Assim,
parece estar salvaguardado o monoteísmo (interpretado
como “monarquianismo”, isto é, como unicidade do prin­
cípio divino, que se manifesta de diferentes modos) e resol­
vido o problema da unidade de Cristo. Mais uma vez,
porém, o resultado obtido, se parece coerente com uma
lógica racional, anula o paradoxo da fé cristã. O mesmo
se pode dizer daquela que seria a forma oposta do modalis­
mo: o “adocianismo”, que se desenvolveu no séc. III e
que tem em Paulo de Samósata seu defensor mais lúcido
(ao menos de acordo com as teses dos seus adversários).

10 Cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 197-221 (Das
Zeugnis der Hirten und Lehrer der Kirche von Klemens von Rom bis
zu Irenãus), e J.N . D. Kelly, II pensiero cristiano delle origini, op. cit.,
pp. 179ss. Entre os séculos II e III, Tertuliano desempenha no Ocidente
um papel decisivo para a cristologia (especialmente para a fixação de
alguns termos-chave). Encontram-se nesse autor expressões que parecem
antecipar de séculos o desenvolvimento dogmático (assim: “proprietas
utriusque substantiae”, “duplicem statum, non confusum, sed coniunc-
tum in una persona, deum et hominem Jesu” : Adversus Praxeam 27).
Cf. R. Cantalamessa, La cristologia di Tertulliano, Friburgo, 1962.
11 Cf. também, para o que se segue, A. Grillmeier, Jesus der Chris­
tus, op. cit., pp. 283ss,

142
isto é, da substância do Pai,
Deus d e Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, gerado não criado, consubstanciai omoúsios
ao Pai, por m eio do qual todas as coisas foram criadas,
as do céu e as da terra,
qu e por nós hom ens e por nossa salvação
desceu e se encarnou, se fez hom em ,
padeceu, e ressuscitou ao terceiro dia,
subiu aos céus,
(e) virá julgar vivos e m ortos”.1415

O texto está articulado em duas seções: a primeira con­


fessa a preexistência do Senhor Jesus, a sua igualdade com
o Pai e o seu papel na criação; a segunda retoma a histó­
ria do Encarnado, crucificado e ressuscitado, que consti­
tuía a matéria exclusiva dos símbolos mais antigos/ A pri­
meira seção caracteriza-se por uma linguagem abs­
trata, por enunciados sobre a essência; a segunda
por,uma linguagem concreta, que narra os eventos. A pers­
pectiva da primeira parte é essencialista, conceituai; a da
segunda é histórica, dinâmica. Essas observações são con­
firmadas pela diferente distribuição dos verbos, que, com
seu número preponderante e sua sucessão cerrada, carac­
terizam a segunda seção com relação à primeira como
narração de um devir, de uma história.
A primeira seção — que é a inovação de Nicéia com
relação aos símbolos mais antigos, embora certamente não
seja “uma fórmula redigida ex novo” 15 — só poderá ser
compreendida em seus conteúdos e linguagem se for rela­
cionada com as questões abertas pela crise ariana: a inten­
ção que norteia os Padres nicenos consiste em esclarecer
a maneira de entender as relações entre o Pai e o Filho.
“Condenando abertamente os erros de Ário e proclaman­
do de maneira positiva a verdadeira e estreita filiação di­
vina do Verbo gerado da substância do Pai, bem como a
sua absoluta identidade de essência com o único verdadei­
ro Deus, o símbolo de Nicéia proclamou a divindade de

14 DS 125.
15 I. Ortiz de Urbina, Nicée, op. cit., p. 73; cf. as várias fontes ali
indicadas.

144
Jesus Cristo” 16 e, ao mesmo tempo, manteve a devida dis­
tância da helenização da fé cristã, representada pela tese
ariana de um Filho criado, intermediário entre Deus e o
mundo. O significado do termo Omoúsios, que caracteri­
zará daí por diante a confissão nicena, deve ser determi­
nado em tal contexto: esse termo, inexistente na Escritura
e passado do mundo gnóstico para o teológico cristão,
especialmente alexandrino, simplesmente quer dizer, con­
tra a redução ariana, que “o Filho está nõ mesmo grau de
ser do Deus transcendente”.17 Ora, esse Filho, que está do
lado de Deus, “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, é
também o sujeito da segunda seção, na qual se retoma
o esquema horizontal e histórico dos símbolos mais anti­
gos. Essa união tem um duplo valor: de um lado, mostra
como “os ‘novos’ enunciados ontológicos não têm a fina­
lidade de esvaziar as asserções salvíficas, mas ao contrário
querem confirmá-las... A instância de fundo... é de tipo
soteriológico” : 18 ainda que o “propter nos” “agora só
intervenha pela metade e diga respeito apenas a uma parte
da vicissitude cristológica, a que se inicia com a encarna­
ção”,19 o interesse salvífico refere-se também aos enuncia­
dos ontológicos. Por outro lado, porém, a conexão das
duas seções no único sujeito de ambas modifica profun­
damente a estrutura da confissão de fé tradicional: a nar­
ração dos eventos se torna um plano, ligado verticalmente
ao outro plano, o da preexistência. Ao esquema histórico-
-horizontal, caracterizado pelos antigos símbolos, sucede
um esquema metafísico-vertical, que, embora englobe a se­
ção narrativa, reduz seu peso a favor de uma acentuação
mais conceituai, ontológica. Em outras palavras, em Nicéia
o Cristo “em si”, compreendido na consubstancialidade
com o Pai, se sobrepõe ao Cristo morto e ressuscitado “por

16 [bid, p. 87.
17 F. Ricken, “Das Homoousios vcn Nikala ald Krisis des altchristli-
i hen Platonismus” in Zur Frühgeschichte der Christologie, op. cit., p.
99 (cf. todo o artigo, pp. 74-99, que é “ein Versuch, den philosophie-
Hi schlchtlichen Hintergrund des Homoousion von Nikaia... zu erhellen” :
p. 74).
18 W. Kasper, Gesü il Cristo, Bréscia, 1975, p. 245.
19 R. Cantalamessa, “Dal Cristo dei Nucvo Testamento...” op. cit.,
pp. 147-48.

145
nós”,20 ainda que este não seja excluído, como atesta —
juntamente com a presença da ação narrativa — o próprio
fato de que o símbolo é uma confissão litúrgica da fé ecle-
sial. /Portanto, contra os reducionismos opostos (moda-
lismo, adocianismo, arianismo), Nicéia conserva na sua
relação de identidade os dois pólos da “contradição pas­
cal”: o Filho consubstanciai ao Pai é aquele que viveu a
verdadeira história que vai da encarnação à ascensão, e
que de certa forma está ainda em vias de realização, até
que ele mesmo “venha julgar vivos e mortos” .
Move-se contra Ário, ainda que no âmbito do mesmo
esquema Verbo-carne, Apolinário de Laodicéia, que subli­
nha como o Filho é diferente do Pai e ao mesmo tempo
eterno com ele. Mas, diferentemente da fé expressa no
“credo” niceno, Apolinário diminui a verdadeira huma­
nidade de Cristo, porque julga que o Verbo com a encar­
nação, assumiu o lugar da alma humana (ou pelo menos
do nous, sede da consciência e da livre vontade) para
'^‘habitar” na carne. O apolinarismo é refutado pela fé
eclesial em nome do princípio da “troca” — central, por
exemplo, no pensamento do grande paladino de Nicéia,
Atanásio. De acordo com esse princípio, se o Verbo não
tivesse assumido uma natureza humana completa também
não teria salvado completamente o homem, porque “o que
não é assumido não é salvo”.21 O primeiro Concilio de
J Constantinopla (381), cujo símbolo retoma o niceno e lhe
dá a forma definitiva, com a qual é professado ainda hoje
pela fé da Igreja (símbolo niceno-constantinopolitano),22
menciona explicitamente os apolinaristas entre os hereges
condenados.23

Assim a fé de Nicéia-Constantinopla, apesar de dar uma


nova acentuação da estrutura ontológica do Cristo, não diminui
20 Cf. Ibid, 148.
21 É a formulação de Gregório Nazianzeno, Ep. 101: PG 37,181s.
Sobre o problema da doutrina da alma humana de Cristo em Atanásio,
cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 460,79; principalmen
te p. 477; J.N . D. Kelly, II pensiero cristiano, op. cit., pp. 348-59; P.
Smulders, “Sviluppo delia cristologia”, op. cit., pp. 348-59; P. Smulders,
“Sviluppo delia cristologia”, op. cit., pp. 540ss.
22 Cf. DS 150.
23 Cf. DS 151

146
u paradoxo cristão, não esvazia a palavra da cruz nem a inaudi-
i í i força da Ressurreição, mas as mantêm unidas no escândalo

tia identidade na contradição proclamada na Páscoa.

c) O século V conhece as posições extremas das duas esco


las que caracterizam o pensamento cristológico da era patrística
Alexandria e Antioquia 24 — , e a tomada de posição decisi­
va da fé eclesial em Calcedônia.

A escola de Antioquia, que se desenvolveu particular­


mente sob o signo da defesa entusiasta do símbolo niceno,
é marcada pela influência da filosofia aristotélica e por
uma exegese atenta ao dado bíblico concreto. Conseqüen-

Í temente, acentua a distinção entre a divindade e a huma­


nidade concreta do Senhor Jesus; 25 distingue-se entre Deus
e o homem, a Palavra e o templo em que ela habita. Nessa
linha, Nestório, patriarca de Constantinopla, ao afirmar,
de acordo com a fé nicena, a divindade plena e verdadei­
ra de Cristo, quer ao mesmo tempo levar a sério a sua
humanidade plena e verdadeira. Ao esquema Verbo-carne,
que se mostrou redutivo nas soluções ariana e apolina-
rista, ele contrapõe o esquema Verbo-homem, construído
simetricamente com base na autonomia dos dois pólos, o
humano e o divino. Assim, o homem Jesus é reconhecido
em toda a concretude com que o apresentam os evange­
lhos, sem que com isso se negue o fato de que Cristo seja
Deus. A “contradição” pascal é mantida; mas o que causa
problema é a unidade-identidade do Cristo. A esse respei­
to Nestório propõe uma unidade moral, fundada na total
harmonia de vontade e de ação entre as duas componentes,
ou uma unidade de inabitação, pela qual o homem Jesus
hospedaria o Verbo como um templo. Mas a sua cristologia
continua sendo uma “cristologia da separação”, que por
isso não aceita para Maria o título de “mãe de Deus”
theotókos, mas quando muito o título de “mãe de Cristo”.

24 Apresentei sinteticamente as características dessas duas escolas


cristológicas no estudo "L a dimensione cristologica, pneumatologica ed
eucaristica delia chiesa nel ‘Commentario a Giovanni’ di S. Cirillo
d’Alessandria” in Rivista di Letteratura e di Storia Ecclesiastica 7
(1975), pp. 83-113, especialmente pp. 93ss. Cf. Também R. V. Sellers,
Two Ancient Christologies, op. cit.

147
É a partir da controvérsia sobre esse título que cresce a
oposição a Nestório, sobretudo por obra de Cirilo de Ale­
xandria, que refletia o pensamento da outra grande escola
teológica da antigüidade cristã.
Os alexandrinos, filosoficamente influenciados pelo
platonismo, e, na esteira de Orígenes, praticando uma exe­
gese que procura incansavelmente captar com a “letra”
o “espírito” das Escrituras,2526 acentuam a unidade do divino
e do humano em Jesus Cristo. O Nazareno é a revelação
viva de Deus: “Como o ferro no fogo assim é esta alma...
sempre no Verbo, sempre na sabedoria, sempre em Deus.
Também o que ela faz, sente, pensa, é Deus”.27 Partindo
dessas perspectivas, não causa estranheza que Nestório
seja visto como o pior destruidor da fé cristã, e a sua con­
denação no Concilio de Éfeso, em 431,28 como o triunfo
da cristologia alexandrina “da união”. Entretanto, a expres-
são mais extremada da tendência que triunfa em Éfeso de­
ságua no “monofisismo” : Eutiques, arquimandrita dos
monges de Constantinopía favoráveis- às teses de Cirilo
contra o nestorianismo, baseando-se em textos indubita­
velmente equívocos do Patriarca de Alexandria, sublinha
a tal ponto a unidade de Cristo que fala de “uma só natu­
reza” m ia phúsis, de onde vem o nome dessa doutrina) que
haveria nele depois da união. Conseqüentemente, o termo
theotókos, atribuído a Maria, se torna o cavalo de batalha
dos monofisistas. A unidade do Senhor Jesus, sem dúvida,
é afirmada: mas a “contradição” pascal é dissolvida numa
confusão-assimilação entre humano e divino.

25 Cf. A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 506-15 (sobre
Teodoro de Tarso), pp. 614-34 (sobre Teodoro de Mopsuéstia), pp.
642ss (sobre Nestório). Cf. Também P. Smulders, "Sviluppo delia cristo­
logia” op. cit. 500ss.
26 Cf. ibid., pp. 525ss e H. Lubac, Storia e Spirito. La compren-
sione delia Scritura secondo Origene, Roma, 1969.
27 Orígenes, D e Principiis, II, 6,6; GCS 22,145.
28 Cf. DS 250-68. L. I. Scipioni, Nestorio e il concilio di Efeso,
Storia-dogma-critica, Milão, 1974, severo para com Cirilo de Alexandria,
propõe que se veja em Nestório um pioneiro da teologia especulativa,
consciente da necessidade de procurar uma solução rigorosa para o pro­
blema cristclógico levantado antes por Ario, depois por Apolinário. Nes­
tório — pensador de sensibilidade mais metafísica do que soteriológica
— seria assim um precursor de Calcedônia.

148
A fé da Igreja responde a esses vários reducionismos de
modo solene no concilio de Calcedônia (451), empregando
u i t i . i definição que, embora tenha tido mais influência na his­

t ó r i a da cristologia do que qualquer outra, nunca se tornou


uma profissão de fé litúrgica:

“Seguindo os santos Padres, todos ensinamos unanimente


que deve ser professado um só e m esm o Filho,
o Senhor nosso Jesus Cristo,
o mesmo perfeito em divindade,
e o mesmo perfeito em humanidade,
o mesmo verdadeiram ente Deus, e verdadeiram ente h o­
mem de alm a racional e de corpo,
o mesmo consubstanciai ao Pai segundo a divindade,
e consubstanciai a nós segundo a humanidade,
em tudo sem elhante a nós, menos no pecado;
o mesmo gerado p elo Pai antes dos séculos
segundo a divindade,
(gerado) nos últimos dias para nós e para a nossa salvação
por Maria Virgem, Mãe de Deus, segundo a hum anidade;
um só e mesmo Cristo Filho, Senhor, Unigênito,
reconhecido em duas naturezas sem mistura nem trans­
form ação,
sem divisão nem separação,
sem que p ela união seja elim inada a diferen ça de
naturezas,
mas salva a propriedade de cada natureza,
e concorrendo (cada uma) numa única pessoa prósopon
<■ numa só hipóstase,
não separado ou dividido em duas pessoas,
mas o único e m esm o Filho Unigênito Deus Verbo,
o Senhor Jesus Cristo,
segundo aquilo que há tem po os profetas ensinaram sobre
ele e o próprio Jesus Cristo nos ensinou,
e o sím bolo dos Padres nos transmitiu” .29

29 DS 301-302. Sobre Calcedônia cf. os três volumes da obra cole-


livu Das Konzil von Chalkedon, cit., como também T. Camelot, Ephèse
t i ( 'halcêdoine, Paris, 1962 (pp. 138-50 sobre a definição de Calcedô-
nin); A. Grillmeier, Jesus der Christus, op. cit., pp. 751ss; I. Ortiz de
Wrhlna, “Das Glaubensymbol von Chalkedon — sein Text, sein Werden,

149
Vê-se logo que esse texto é caracterizado por uma
orientação especulativo-ontológica: está totalmente ausen­
te a seção histórico-narrativa, que ainda havia em Nicéia-
-Constantinopla. A narração dos eventos é substituída pela
enunciação da estrutura metafísica do Cristo. À linguagem
concreta dos primeiros símbolos e da segunda parte da
profissão nicena sucede uma linguagem conceituai; à pers­
pectiva histórico-dinâmica dos estágios ou tempos da vi-
cissitude do Crucificado-Ressuscitado sucede uma pers­
pectiva essencialista-estática, que considera as duas natu­
rezas na unidade do sujeito. Uma confirmação dessa orien­
tação ontológico-especulativa é a falta de verbos no texto
e a abundância de substantivos: pouquíssimos deles são
termos concretos, ao passo que numerosos são tirados da
linguagem técnica, elaborada nas escolas teológicas e filo­
sóficas. O próprio desenvolvimento complicado dos pe­
ríodos deixa entrever a preocupação de precisar repetida­
mente e sob vários aspectos o conceito, e isso confirma
que òs termos usados tinham um significado indetermina­
do para os próprios padres do Concilio. A primeira parte
(que vai até a geração por Maria) apresenta um acentuado
paralelismo simétrico de quatro elementos, evidenciado
pela repetição do pronome tòu autón (o mesmo), que
exprime com eficácia em termos conceituais a estrutura
das primitivas fórmulas de fé histórico-narrativas: o único
e mesmo Jesus Cristo é afirmado como sujeito dos predi­
cados divinos e humanos. A própria “identidade na con­
tradição” está subjacente na estrutura da segunda parte,
onde, com um movimento de afirmações e negações suces­
sivas, se afirma ajunjcidade de pessoa, do “único e mesmo
Cristo” 'e a dualidade das naturezas — divina e humana
— , entre as quais não há mistura nem mútua -transforma­
ção (contra a confusão monofisista), e nem divisão ou
separação (contra o dualismo nestoriano). Dessa forma,
Calcedônia colheu os “resultados da elaboração cristo-
lógica dos primeiros séculos... Numa posição equilibrada,

seine dogmatische Bedeutung” in Das Konzil von Chalkedon, I, pp. 389-


418; R. V. Sellers, T he Council oi Chalcedon. A Historical and Doctri-
nal Survey, Londres, 1961, 2* ed. (sobre os documentos de Calcedônia,
pp. 207-53).

150
reuniu o que as duas cristologias adversárias, a de Antio-
quia e a de Alexandria, tinham de válido, mostrando que
esses dois pontos de vista deviam ser mantidos ao mesmo
tempo e em harmonia: unidade de pessoa, dualidade de
naturezas”.30 O Concilio não quis “determinar mais deta­
lhadamente o significado dessas expressões, cuja orienta­
ção geral de significado era suficientemente conhecida pela
doutrina trinitária: pessoa indica quem ele ou seja, o
Filho eterno; as naturezas indicam o que ele é, ou seja,
igual ao Pai por natureza desde a eternidade, e pelo evento
salvífico igual a nós por natureza”.31

Afirmando em Cristo a unidade (pessoal) na dualidade (de


naturezas), Calcedônia apenas traduziu em categorias estático-
conceituais a identidade na contradição, expressa de maneira
In lórico-dinâmica nas fórmulas pascais. O paradoxo cristão
uno foi dissolvido: o Cristo “em si”, apresentado a partir de
agora exclusivamente na sua estrutura metafísica, não se opõe
no Cristo nascido, morto, ressuscitado e que subiu aos céus
"para nós”.32 Se é verdade que a dimensão soteriológica doravan-
tc só é indicada na fórmula estereotipada do “para nós e para a
nossa salvação”, é preciso também observar que a definição con-
i iliur liga-se explicitamente à tradição das Escrituras e dos Pa-
iIre s, nos quais o interesse por Cristo tem sempre uma densa
inolivação soteriológica.33
Entretanto, não se pode negar que a fórmula de Calcedô-
tiin contenha as marcas de um compromisso: ela “exprimiu acer-
i mi lamente os aspectos de verdade de ambas as orientações da
i Mütologia da Igreja antiga: não se deve negligenciar nem a uni-
dmlc entre Deus e o homem Jesus, nem a verdade da sua hu­
manidade e do seu ser-Deus. Mas, com essas precisões e deli­
mitações, não se oferece uma solução teológica para as contro-
m i ias anteriores...” 34 Em outras palavras, “o concilio de Cal-

30 J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, Florença, 1977, p. 234.


3 1 P. Smulders, Sviluppo delia cristologia, op. cit., p. 586.
32 Cf. R. Cantalamessa, “Dal Cristo dei Nuovo Testamento...” op.
d l., p. 148.
33 Cf., por exemplo, o que escreve L. Bouyer, II Figlio eterno. Teo-
logm delia Parola di Dio e cristologia, Alba, 1977, pp. 409ss.
34 W. Pannenberg, Cristologia, lineamenti jondamentali, Bréscia,
1974, p. 399.

151
cedônia talvez tenha reunido os dados principais do problema
ou ao menos alguns dentre os mais importantes, mas não con­
seguiu propor uma síntese nem indicar claramente o caminho
que pudesse conduzir a ela”.35 Surge então o problema de deter­
minar o significado e os limites do dogma cristológico de Cal-
cedônia para a fé e a reflexão cristã. Isso só pode ser feito depois
de se confrontar este estágio maduro do desenvolvimento dog­
mático com os estágios precedentes, e em particular com o
querigma do Novo Testamento. Ao movimento histórico descri­
to, que vai do querigma ao dogma, é necessário seguir agora
um movimento de verificação crítica, que vá do dogm a ao
querigma, confrontando um com o outro.

5 .2 . DO DOGMA AO QUERIGMA: UM CONFRONTO

Os estágios inicial e final do processo descrito, o querigma


e o dogma, podem parecer contrapostos, se tomados isolada­
mente: o primeiro confessa uma cristologia histórico-dinâmica,
o segundo define uma cristologia estático-conceitual. Mas se
forem considerados no interior de todo o processo de desenvol­
vimento dogmático, fica evidente que eles veiculam, numa lingua­
gem diferente e com diferente horizonte de pensamento, a mesma
estrutura fundamental: a identidade na contradição, proclama­
da na Páscoa, entre o Crucificado e o Ressuscitado, e que se
tornou, em Calcedônia, a unidade (pessoal) na dualidade (de
naturezas). Entre o querigma e o dogma existe, pois, uma con­
tinuidade “estrutural”, que, contra todos os reducionismos pro­
postos na atormentada vicissitude histórica da fé cristã, soube
conservar o paradoxo próprio do cristianismo, sem esvaziá-lo
numa ou noutra forma de “sabedoria” deste mundo.
Afirmada a continuidade, é necessário mostrar também a
descontinuidade. Ela pode ser identificada de acordo com três
diretrizes fundamentais que se resumem na idéia de “desistori-

35 L. Bouyer, II Figlio eterno, op. cit., p. 399.

152
i i/.ação” do querigma, ou seja, de perda de perspectiva histó-
i ico-dinâmica na elaboração da fé cristã. As três diretrizes po­
dem ser captadas quando se situa o dogma em relação ao passa­
do, ao presente e ao futuro.
Com relação ao passado fontal, que é a história de Jesus de
Nazaré ressuscitado por Deus, a evolução dogmática faz um pro­
gressivo descolocamento de atenção dos eventos para o ser, com
Uma conseqüente perda de carga dinâmico-narrativa: do relato
das várias fases da história do Senhor Jesus, passa-se à cristolo-
gia das duas naturezas. Espírito e carne não são mais vistos
i orno dois estágios da vida do Salvador, mas como duas subs­
tancias, duas entidades.36 Os eventos dos dois estágios de humi­
lhação e de exaltação são “relidos” em chave ontológica, e refe-
i idos ao único sujeito como propriedades que qualificam as na­
turezas: assim, o Cristo sofre e morre “enquanto homem” e faz
milagres e ressurge “enquanto Deus”. Esta atribuição das ações
ttos dois princípios qualificantes, o humano e o divino, dita tam­
bém “reduplicação dos idiomas”, é típica da cristologia analítica
dns antioquenhos. A perspectiva sintética dos alexandrinos con-
liapõe a ela a “comunicação dos idiomas”, que, por força da
tmicidade do sujeito, atribui ao Filho de Deus propriedades
humanas e ao homem Jesus atributos divinos. Apesar da diver­
sidade, não é difícil perceber que essas duas soluções se mo­
vem no âmbito do mesmo horizonte de “desistoricização” do
anúncio originário, isto é, do primado do ser sobre os eventos.
Mas este primado não quer dizer que o dogma cria o que
Ialta no querigma: como mostra a própria gradualidade do pro­
cesso descrito e a manutenção da estrutura de fundo, deve-se
Ialar antes de uma acentuação diferente ou de um horizonte de
compreensão diferente. Da mesma forma que no Novo Testa-
nirnto o primado dos acontecimentos sobre o ser não excluía a
alc-nção ao outro aspecto (recordemos apenas os títulos de “aber-
tiiüi” ontológica mais acentuada, como por exemplo o Logos),
as -ini também no desenvolvimento dogmático o primado pro­
gressivo do ser sobre os acontecimentos não faz esquecer a his-
tóiia concreta do Crucificado-Ressuscitado, como atesta clara-
mriih-, por exemplo, a segunda seção do símbolo niceno-cons-
hmiinopolitano.
Mi Cf. também para o que se segue R. Cantalamessa, “Dal Cristo
ilrl Ntiovu Testamento”, op. cit., pp. 148 ss.

153
Com relação ao presente da comunidade que confessa o
Cristo, a história do dogma é assinalada por uma progressiva
perda de carga existencial-soteriológica: certamente, na fé e na
reflexão patrística cristologia e soteriologia estão sempre -ligadas
de tal maneira que convergem uma para a outra. Todos os pro­
blemas cristológicos suscitados pela heresia movem-se e encon­
tram resposta no âmbito de um horizonte soteriológico: assim,
à luz do princípio da troca, presente já no século II, pelo qual
“o que não é assumido, não é salvo”, afirma-se contra os gnós-
ticos que a carne foi realmente assumida pelo Verbo; contra
Ário, afirma-se a verdadeira e plena divindade daquele que se
faz homem; contra Nestório, o valor salvífico da unidade de
pessoa em Cristo; contra o monofisismo, a dupla e inconfusa
consubstancialidade de Jesus ao Pai e a nós. Todavia, em Cal-
cedônia e nas controvérsias com ele relacionadas, assiste-se a
uma contração ou redução dogmática do querigma, pela qual os
eventos do Cristo “para nós” não são mais mencionados na defi­
nição conciliar. Ao passo que emerge uma tendência formalista,
a qual, sendo resultado de provocação recíproca e das intolerân-
cias mútuas entre os autores do conflito cristológico, procura
fixar a fé numa fórmula sintética e conceitualmente precisa.
Acontece, assim, que a reflexão teológica e o dogma se tornam
sempre mais estranhos à massa dos fiéis e perdem a sua carga
existencial. Uma confirmação disso é o fato de que o dogma
cristológico, na sua formulação madura apresentada em Calde-
dônia, nunca entrou na práxis da Igreja como fórmula litúrgica
de profissão de fé.
Por fim, com relação ao futuro o desenvolvimento dogmá­
tico assinala uma progressiva perda de carga profético-escatoló-
gica: há um constante deslocamento do centro de gravidade da
cristologia para tr-ás. As fórmulas neotestamentárias, centradas
na Ressurreição e abertas para o horizonte da parusia, são
seguidas pelos símbolos sub apostólicos, que apresentam uma
atenção nova ao nascimento por Maria, e depois pelo símbolo
niceno, que desloca a atenção para o nascimento eterno no seio
do Pai, até se chegar à fórmula calcedônica, totalmente articula­
da com base na estrutura intemporal, metafísica do Cristo. Do
esquema histórico-horizontal dos estágios: carne —» (ressurrei­
ção —> espírito, passa-se ao esquema ontológico-vertical: espírito
—> (encarnação) carne. Essa mudança de perspectiva está

154
iHmionada com a atenção menor que se dá à ressurreição e à
>Bi aiologia: Cristo é visto muito mais como aquele que veio do
i|iit> como aquele que há de vir (pense-se no aparecimento das
h das do Natal e da Epifania e no valor que elas passam a adqui-
iii no culto e na piedade cristã). Ao mesmo tempo, atenua-se
u i Igreja o sentimento de estranheza com relação ao mundo e a
I•ii qa crítica da esperança escatológica que, se sustentou a con-
li-.sáo dos mártires, tende a desaparecer no encontro sempre mais
i si i cito entre instituição eclesiástica e sistema sociopolítico na
riu constantiniana.
Esse processo de “desistoricização” do querigma, com a sua
iiiplicc perda de carga dinâmico-narrativa, existencial-soterioló-
gim e profética-escatológica não é, naturalmente, casual: ele
i 01 responde ao clima cultural e à situação social e política dife-
i entes em que a Igreja se encontrou.
No plano ideológico-cultural, o impacto com o mundo gre­
go gera um indubitável processo de helenização do cristianis­
mo a mensagem neotestamentária é repensada nas categorias
f i.iiico-ontológicas dos gregos. O cristianismo, na formulação
■ Ir m u i fé, se torna “grego com os gregos”.37 Todavia, não é pos-
•ívr| interpretar esse processo como uma radical perda de iden­
tidade da mensagem cristã originária, como se o dogma não
I*r.M' outra coisa senão “um fruto do espírito grego, amadure-
i ido no terreno do Evangelho”.38 Junto com a helenização, ine­
gavelmente presente no processo de “desistoricização”, há uma
Mi .elenização”, ou seja, uma ação crítica e subversiva exercida
f.ohrctudo pela ortodoxia cristã com relação à cultura grega,
t >'• exemplos são numerosos. Assim, “o conceito patrístico de
I )■ us... rompe o conceito helenístico de Deus, enxertando-o na
antiga tradição judeu-cristã: T heòs pròs emãs, Ele é um Deus de
limiicns, ‘voltado para nós’ em Cristo Jesus”. Da mesma forma,
r.r a patrística adota o ideal grego da paidéia — a educação vista
como consecução da verdadeira humanidade e liberdade —
ela o alcança com base no cristianismo e o cristianiza “graças à

37 Ibid, p. 182. Cf. pp. 178ss.


18 Ê o que sustenta a história dos dogmas de cunho liberal e espe-
cinlmente A. v. Harnack, Lehrbuch der Dogmengeschichte, 1, op. cit., p.
20. A história das várias maneiras pelas quais se entendeu a helenização
iln Reforma até hoje, é apresentada por A. Grillmeier, “Helenisierung-
Jtulnísierung des Christentums ais Deuteprinzipien der Geschichet des
km-.hlichen Dogmas” in Scholastik 33 (1958), pp. 321-55; 528-58.

155
própria concepção personalista de Deus e à conseqüente ênfase
sobre a liberdade de Deus” : 39 o homem não se diviniza por si
mesmo, mas porque Deus, na liberdade do seu amor, quis hu-
manizar-se. Também em Nicéia, que com o om oúsios assinala o
ingresso de uma terminologia conceitual-ontológica na confissão
de fé cristã, assiste-se na realidade a uma crise do pensamento
grego.40 Contra uma concepção helenizante do Filho como inter­
mediário entre Deus e o mundo, situado também ontologica-
mente num plano inferior com relação ao Pai, mas superior com
relação às criaturas, como afirmavam as teses arianas, a “salva-
ção-em-fesus por parte de Deus foi... interpretada, graças à prá-
xis crente da oração dirigida a Jesus, na perspectiva da verda­
deira divindade de Jesus. Os padres conciliares deram maior
peso a essa práxis cristã de piedade do que ao pensamento filo­
sófico, e justamente por isso a Igreja conseguiu romper com
o médio-platonismo que por dois séculos tinha dominado o pen­
samento teológico”.41 Assim, valendo-se de terminologia hele-
nística, o cristianismo introduz no universo do pensamento gre­
go idéias fundamentais que lhe eram completamente estranhas,
como o conceito de pessoa, utilizado em Calcedônia para indi­
car o único sujeito em Cristo, ou a idéia de história como de­
senvolvimento linear e não cíclico, presente na fé n’Aquele que
“há de vir a julgar os vivos e os mortos”. Portanto, se a desistori-
cização é o fruto do impacto do cristianismo com o mundo
cultural greco-helenístico, ela não quer dizer, em absoluto, per­
da de identidade da fé cristã: o paradoxo pascal, conservado,
apesar de tudo, na estrutura do dogma contra todos os reducio-
nismos opostos e heréticos, produz os seus frutos críticos no
mesmo horizonte cultural em que entra. Nesse sentido, a orto­
doxia teve muitas vezes, na Igreja antiga, uma liberdade e uma
função crític'o-profética que nenhuma proposta herética, aparen­
temente “inovadora” e “moderna”, conseguiu igualar.42

39 E. Schíllebeeckx, Gesü, la storia de un vivente, Bréscia, 1976,


pp. 602 e 599.
40 Cf. F. Ricken, Das Homoousios von Nikaia ais Krisis des altchrist-
lichen Platonismus, op. cit.
41 E. Schíllebeeckx, Gesü, op. cit., p. 601.
42 Cf. R. Cantalamessa, "Dal Cristo dei Nuovo Testamento”, op.
cit., p. 184, e P. Henry, “Hellenismus und Christentum” in Lexikon für
Theologie und Kirche, V, Friburgo, 1960, 2* ed., pp. 216-17.

156
No plano sociopolítico, a desistoricização da fé cristológica
lerlamente também está relacionada com a paz constantiniana,
mm o tornar-se “sistema” da Igreja, e com a conseqüente per-
iln do vigor impetuoso e crítico das origens. Práxis eclesial e
■ i Mitologia condicionam-se reciprocamente: a Igreja em situação
i|< "cristandade” percebe muito menos a tensão escatológica, a
i rntralidade da Ressurreição, o valor existencial e provocador
dm, eventos salvíficos, o distanciamento crítico conseqüente ao
• .1nr no mundo, mas não ser do mundo. Além disso, certo
riitusiasmo apocalíptico pela realização das promessas, presen-
lr desde as origens cristãs, se prestava a um encontro com a
idria grega da presença do eterno, característica, por exemplo,
bus cultos mistéricos: o futuro prometido, no “êxtase da reali-
/ iiçiio” , é assim reconhecido como já presente na experiência do
, iilto e em espírito.43 “Assim a história perde a sua orientação
r m nlológica. Não é mais a esfera em que os homens sofrem e
( •■ pcfíim, gemem e se afadigam, enquanto aguardam o futuro de
i d:.io para o mundo, mas torna-se o âmbito no qual o domí-
ttiu celeste de Cristo se manifesta na Igreja e no sacramento”.44
I'iinilelamente a essa perda de força profético-escatológica, a
irllexao teológica perde também em interesse existencial, e se
iniiid sempre mais, como já mencionamos, teologia das escolas,
hrqiientemente instrumentalizada para fins políticos, e afasta-
b.i dii fé das massas. Entretanto, devemos ressaltar que tam-
Ih ui sob esse aspecto não se pode falar de uma dissolução radi-
<a 1 da mensagem evangélica nas condições históricas; e isso por­
q u e a transmissão viva da fé eclesial, proclamada no anúncio,
, i ídu na fé e celebrada no culto, continua sendo horizonte último
,lr compreensão do dogma, que, mesmo em sua forma mais
conceituai e abstrata, apela para a tradição viva dos profetas,
d o s evangelhos, dos padres (cf. o texto de Calcedônia). Essa
i rlação sempre viva com as fontes e a experiência do Cristo
vivo, feita na comunidade anunciante e celebrante e rica de
ir cursos imprevisíveis, se de um lado impedem — também na
I pivj a fortemente politizada e transformada em sistema da era
i onstuntiniana — a redução do paradoxo cristão a um dos hori­
zontes de pensamento e de ação do mundo, de outro saberão

43 Cf. J. Moltmann, Teologia delia speranza, Bréscia, 1970, p. 162


<r,l liras.: Teologia da esperança, Herder, São Paulo, 1971, 450 p.).
44 lbid, p. 163.

157
suscitar em todos os tempos fermentos de renovação e de refor­
ma na Igreja e na sociedade.
Se mantiver o escândalo pascal e proclamar sempre a inau­
dita identidade na contradição, do Senhor com o Servo — ou
unidade na dualidade, como se exprime Calcedônia — , o dog­
ma não trairá o querima, mesmo que o transponha e o reinter-
prete no horizonte de um universo cultural, social e político
diferente.

5 .3 . QUERIGMA E DOGMA: UM PROJETO

À luz do processo descrito — “do querigma ao dogma” —


e do confronto realizado — “do dogma ao querigma” — agora
é possível perguntar: qual o valor do dogma cristológico de
Calcedônia para a fé e reflexão cristã de hoje? Em nossos dias,
pode-se e deve-se acolher Calcedônia? Em caso afirmativo,
como?
A evolução do querigma ao dogma mostrou como a defi­
nição cristológica de 451 é o fruto de um laborioso caminho
da pesquisa crente e ao mesmo tempo se apresenta como um
modelo de encarnação da mensagem cristã num mundo diferen­
te do mundo bíblico e como um instrumento, preciso e denso,
para exprimir em categorias conceitual-ontológicas a identidade
da contradição veiculada nas primitivas fórmulas pascais. Neste
sentido, Calcedônia deve ser aceito antes de tudo como uma
espécie de “tipo” metodológico a ser imitado no esforço criativo
de traduzir a mensagem cristã para os diferentes contextos de
pensamento e de práxis em que ela se encontra. Além disso,
mais profundamente, o dogma cristológico deve ser acolhido em
sua “intenção” última, que retoma a estrutura do querima atra­
vés da negação de tentativas opostas para eliminar o paradoxo:
em Calcedônia, a fé da Igreja, dizendo não aos reducionismos
opostos, nestoriano e monofisista, que reduziam o mistério da
unidade inseparável e indivisa das duas solidariedades essen­
ciais e distintas do Cristo à condição divina e à humana, disse

158
sim ao anúncio inaudito da Páscoa, confessando o seu valor
pura todos os tempos e lugares. A obra do Concilio não foi ape­
nas negativa:4546 os não pronunciados, justamente enquanto ne­
gação de negação, têm um valor positivo, estabelecem como que
uma escala de segurança, um dique, no qual é necessário pro­
ceder a uma compreensão mais plena, a equilíbrios mais avança­
dos. “O aspecto positivo das definições cristológicas antigas
■ leve ser procurado no interior da sua intenção anti-herética. É
o mesmo tipo de positividade da teologia negativa. Com efeito,
como a linguagem apofática, assim também a definição dogmá-
lica afirma negando o limite, limite que no seu caso é constituí­
do pela heresia. O dogma, em outras palavras, é também ele
npofático, ao menos o dogma trinitário e cristológico da antigüi-
dade”.47 Através desse negar, que é um afirmar no respeito ado­
çante pela insondabilidade do mistério (apófase), através dessa
"cristologia negativa”,48 a definição dogmática se manifesta com
lodo o seu irrenunciável significado de baluarte não contra o
progresso, mas contra o regresso da teologia cristã. Definindo
um não, ela diz um sim, que não abrange a riqueza inexaurível
do dado revelado, mas, esforçando-se por de-fini-lo, por de­
li mitá-lo num aspecto fundamental, não o exaure, mas provoca
seu crescimento para uma comprensão mais ampla. O dogma se
oferece então como uma abertura ao infinito, um início do ili­
mitado: enquanto mediação histórica de transmissão da Palavra
dc Deus, ele é um instrumento, que precisa ser verificado sob
o juízo daquela mesma Palavra, e ser superado. Uma cristologia
que pretendesse deter-se nele seria uma reflexão sem vida, uma
' l istologia da morte, e não a confissão do Vivente, que está pre­
sente para o homem hoje e sempre. E uma cristologia da morte,
fechada aos novos desenvolvimentos e às novas questões, na ten-

45 A questão é atual, cómõ confirmam numerosas tentativas para


superar Calcedônia elaborando cristologias não calcedonianas: cf. a expo­
sição crítica de J. Galot, Cristo contestato. Le cristologie non calcedo-
iimne e la fede cristologica, Florença, 1979. Cf. também E. L. Mascall,
l licology and the Gospel of Christ. An Essay in Reorientation, Londres,
1977, a propósito do qual as minhas observações em Asprenas 25 (1978),
pp. 334-36.
46 Cf. T. Camelot, Ephèse et Chalcédoine, op. cit., p. 150.
47 R. Cantalamessa, “Dal Cristo dei Nuovo Testamento”, op. cit.,
pp. 190-91.
48 Cf. W. Kasper, Gesü il Cristo, op. cit., p. 330.

159
tativa de uma mal-entendida fidelidade à tradição, assinalaria
inevitavelmente a morte da cristologia.49
Portanto, Calcedônia é termo e início. “Assim, temos não
só o direito mas também o dever de considerar a fórmula de
Calcedônia como termo e início. Nos afastaremos dela não para
abandoná-la, mas para entendê-la com espírito e coração, para
aproximar-nos, por seu intermédio, do Incompreensível e do
Inatingível, do Deus sem nome, que quis que o procurássemos e
o encontrássemos em Jesus, o Cristo. Voltaremos constante­
mente a essa fórmula de Calcedônia, porque deveremos recor­
rer sempre à sua clareza modesta e sóbria, se quisermos expri­
mir em poucas palavras o que encontramos no inefável conhe­
cimento, que é fundamento da nossa salvação. Sem repeti-la,
voltaremos verdadeiramente a ela se for para nós não só ponto
de chegada, mas também de partida”.50 Trata-se, mais uma vez,
de levar a história a sério: “Quem leva a sério a historicidade...
compreende que não se pode justificar nem a superação de uma
fórmula, por anulação, nem a sua conservação petrificada”.51
Como acolher, então, a fórmula de Calcedônia? Somente
o confronto entre ela e o querigma pode indicar o caminho,
isto é, mostrar o que está vivo e o que está morto na defini­
ção dogmática. Com efeito, o problema não é traduzir a lingua­
gem do dogma em categorias modernas, mas compreender o
dogma sob a Palavra de Deus, para captar seu significado irre-
nunciável e os elementos superados.52 Dessa forma, enquanto o
passado é assumido na sua vitalidade, cria-se espaço para o futu­
ro, e a memória eficaz do passado fontal tende a suscitar o futu­
ro. No confronto-juízo com o querigma, o dogma revela o seu
conteúdo irrenunciável na conservação do paradoxo cristão ori-

49 Cf. sobre tudo isso K. Rahner, “Problemi delia cristologia d’oggi”


in Saggi di cristologia e di mariologia, Roma, 1965, pp. 3-31 (publicado
pela primeira vez com o título “Chalkedon. Ende oder Anfang?” in Das
Konzil von Chalkedon, III pp. 3-49. Cf. Também R. Marlé, “Chalcé-
doine réinterrogé in Recherches de Science Religieuse 65 (1977), pp.
14-43; L. Scheffczyk, “Calcedônia nella ricerca storico-dogmatica e nella
teologia sistemática” in Communio n. 42-43 (1978-79), pp. 45-49, e P.
Schmidt. C’é posto per Calcedônia nella vita dei cristiano?, ibid, 60-73.
50 K. Rahner, Problemi, cp. cit., p. 6.
51 Ibid, p. 5.
52 Cf. R. Cantalamessa, “Dal Cristo dei Nuovo Testamento”, op.
cit., p. 186. Cf. também W . Kasper, II dogma sotto la parola di Dio,
Bréscia, 1968.

160
ginário num contexto histórico diferente: o “vere Deus, vere
liomo” na unidade do sujeito divino, enquanto tradução da iden-
i idade na contradição, proclamada na Páscoa, entre Crucificado
r Ressuscitado, é “uma asserção inabalável da teologia cristã”.53
I , ao mesmo tempo, o tríplice aspecto do processo de “desistori-
i i/ação”, que surgiu do confronto entre dogma e querigma, de­
nuncia a tríplice carência do dogma e permite delinear a trípli­
ce direção em que ele deve ser superado.
Em relação à carência dinâmico-narrativa da fórmula dog­
mática de Calcedônia, a superação deverá ocorrer mediante uma
icílcxão que antes de tudo capte nos “mistérios” da vida verda-
driramente humana de Jesus o aparecimento de Deus na histó-
i ia do mundo. Deverá ser ao mesmo tempo uma cristologia
"do baixo”, que parta da vicissitude concreta do homem de Na­
zaré, e uma teologia “do alto”, que leia essa vicissitude à luz
pascal, como de fato acontece no testemunho do Novo Testa­
mento. Delineia-se aqui a tarefa de uma cristologia bíblico-
imrrativa.
lim relação à sua carência existencial-soteriológica, o dog-
nia deverá ser superado mediante uma reflexão que recupere sob
iodos os aspectos a dimensão existencial-salvífica da história de
Ie .us Cristo. Cristologia e soteriologia, como não são separadas
no anúncio pascal, também não devem ser separadas no apro-
Inndamento da fé eclesial (ao invés do que freqüentemente
aconteceu na teologia das escolas, tão aplicada à análise meta­
física do Cristo, quão pouco viva diante das expectativas reais
dr salvação dos homens). No Senhor Jesus tudo é obra de Deus
para nós e para a nossa salvação! Aqui se delineia o projeto
dr uma cristologia existencial-soteriológica.
Em relação à sua carência profético-escatológica, a fórmula
dr Calcedônia será superada mediante uma reflexão centraliza­
da. como a neotestamentária, na Ressurreição, e aberta, a partir
drla. para reinterpretar o passado, suscitar o futuro inquietando
a segurança do presente, e recordar incessantemente a pátria
prometida, mas ainda não possuída. Delineia-se a tarefa de uma
cristologia profético-escatológica, em que possa reviver a
lorça contagiante e crítica do espírito dos profetas, totalmente

33 W. Pannenberg, Cristologia, op. cit., p. 387. Cf. A. Grillmeier,


/ csiis iter Christus, op. cit., pp. 765ss. (“Die kerygmatische Grundgestalt
der Definition”) .

161
ausente das áridas repetições manualísticas do dogma calcedô-
nico.54
A recepção da fé de Calcedônia na superação, a sua acei­
tação na práxis e na reflexão cristã atuais, apresentam-se então
como projeto, para repensar historicamente toda a fé cristológi-
ca, a fim de superar as carências produzidas pelo processo de
des-historicização do querigma originário. Uma cristologia como
história, narrativa dos eventos na recordação atualizadora do
passado, significativa para a atual expectativa de libertação e de
salvação, aberta para o futuro e subversiva das miopias do
presente, oferece-se, portanto, como a mais fiel tradução do
querigma no tempo de hoje e como a guarda mais autêntica da
vitalidade do dogma.

54 Sobre as aporias da doutrina das duas naturezas, cfhW . Pannen-


berg, Cristologia, op. cit., pp. 385ss, e B. Sesboué, “Le procès contempo-
rain de Chalcédoine. Bilan et perspectives” in Recherches de Science Re-
ligieuse 65 (1977), pp. 45-79, que recolhe e avalia sete críticas de fundo
a Calcedônia.

162
TERCEIRA PARTE

CRISTOLOGIA DA HISTÓRIA
6

CRISTOLO GIA DA PALAVRA E DO SILÊNCIO

Introdução à cristologia da história

Jesus partiu com os seus discípulos para as aldeias de


Cesaréia de Filipe e, no caminho, perguntou-lhes: “Quem
dizem os hom ens que eu sou?” A o que replicaram : “Jo ão
Batista; outros, Elias; outros ainda, um dos profetas” .
— “E vós, perguntou ele, quem dizeis que eu sou” ? Pe­
dro respondeu: “Tu és o Messias”. Então proibiu-lhes
severam ente de falar a alguém a seu respeito. E com e­
çou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do H o­
mem sofresse muito, e fosse rejeitado pelos anciãos, ch e­
fes dos sacerdotes e escribas, e fosse m orto e, depois de
três dias, ressuscitasse. Dizia isto abertam ente. Pedro, cha-
mando-o de lado, com eçou a adverti-lo. Ele, porém , vol­
tando-se e vendo os seus discípulos, repreendeu a Pedro,
dizendo: “Afasta-te de mim, Satanás, porque não pensas
as coisas d e Deus, mas as dos hom ens".
(Mc 8,27-33; par. Mt 16,13-20; L c 9,18-21)

Segundo o relato de Marcos, Jesus faz a pergunta sobre


a sua identidade enquanto está caminhando com os seus discí­
pulos nas imediações de Cesaréia de Filipe (cf. também Mt
16,13). Essa indicação geográfica precisa, num contexto tão
doutrinai, é sinal da notável antigüidade do relato.1 O fato de

1 Cf., por exemplo, W. G. Kümmel, La teologia dei Nuovo Tes- .


Utmento: Gesú, Paolo, Giovanni, Bréscia, 1976, p. 82 (ed. bras.: Síntese
teológica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas princi­
pais-. Jesus, Paulo e João, Sinodal, São Leopoldo, 1974, 379 p .), e J.
(cremias, Teologia dei Nuovo Testamento I “La predicazione di Gesü”,
Bréscia, 1976, 2" ed., p. 293, n. 29 (ed. bras.: Teologia do Novo Testa­
mento-. A pregação de Jesus”, Edições Paulinas, São Paulo, 1980, 469 p .).
A historicidade substancial do relato de Mc 8,27-30 é aceita, por exemplo,

165
que Lucas, ao contrário, renuncie à indicação e a substitua por
uma descrição acentuadamente sugestiva (“Certo dia, ele orava
em particular, cercado dos discípulos...” : Lc 9,18), sublinha a
solenidade do momento e o significado decisivo que ele tem
para a fé da comunidade. História e significado convergem,
assim para ressaltar a importância da pergunta sobre o Naza­
reno: ela envolve o fundamento da fé e da esperança cristã e se
coloca no centro da narração pascal da vida de Jesus e no cen­
tro da fé, que responde a este anúncio. Todo aquele que, de
alguma forma, quer entrar seriamente em contato com Ele, não
pode subtrair-se à pergunta sobre a sua identidade.
Nas três redações é Jesus quem interroga: no mesmo instan­
te em que se torna objeto da pergunta, ele continua sendo o
sujeito, pois é ele quem interroga. O fato de que as três atesta-
ções evangélicas concordem neste ponto não deixa de ter signi­
ficado: núcleo histórico e fé pascal convergem também aqui
para o reconhecimento de que a reflexão sobre Cristo, qualquer
que seja o nível em que ela se coloque, se pretende adaptar-se
à realidade de.Jesus, deve subverter a ordem costumeira de uma
pesquisa. O objeto deve tornar-se sujeito: é preciso passar “do
interrogar ao ser-interrogado, do exigir uma resposta ao dar
uma resposta”.2 A matéria da cristologia, o cerne da reflexão
e da fé cristã, não é um “objeto”, uma “doutrina”, uma “fórmu­
la” : é o Vivente, que provoca e inquieta, e — como se vê pela
seqüência do relato —- não se deixa aprisionar por esquemas
que se lhe queiram aplicar. Por isso, cristologia exige abertura
ao Outro, expectativa do Novo, admiração diante daquele que
vem: “Nós, os Ültimos, te esperamos; esperar-te-emos todos os
dias, Crucificado, que foste atormentado por nosso amor e ago­
ra nos atormentas com toda a força do teu implacável amor”
(G. Papini). O teólogo cristão digno deste nome deve saber viver
o mistério do Advento no coração de sua busca!
Jesus, segundo a expressão concorde do relato dos Sinó-
ticos, faz duas perguntas: a primeira refere-se ao que os homens
dizem dele; a segunda interpela diretamente os discípulos: “E
vós, quem dizeis que eu sou?”. Parece que ele não se contenta

por R. Pesch, “Das Messiasbekenntnis des Petrus (Mk 8,27-30). Neuver-


handlung einer alten Frage” in Biblische Zeitschrijt (1973), pp. 178-95;
18 (1974), pp. 20-31.
2 f. Moltmann, II Dio crocifisso, Bréscia, 1973, p. 125.

166
- ui saber o que “os outros” dizem dele. Quer uma resposta
que eomprometa na primeira pessoa: não se lhe pode responder
porque se ouviu dizer. É preciso que a palavra esteja em har­
monia com a vida. É preciso fazer transparecer a própria histó-
■ i.i de recusa ou de aceitação. Entrar em contato com ele não
pode ser um exercício inócuo ou marginal; bem o sabe o grande
inquisidor de Dostoievski: “És Tu, és Tu?... Não respondas,
eniti. E, o que poderías dizer? Bem sei o que podes dizer. De
írsto, não tens o direito de acrescentar nada ao que já disseste
uma vez. Por que vieste perturbar-nos? Pois vieste perturbar-
nos. Tu também o sabes”.3 Procurar o seu rosto significa dei-
niir se incomodar, sair das certezas tranqüilas dos equilíbrios
ijiir não comprometem, escolher um lado, dar escândalo e ser
escandalizado: “Não é blasfêmia o escândalo que todos, de uma
lorma ou de outra, recebemos em Cristo; blasfêmia é a opinião
dr que se possa fazer alguma coisa com ele, dizer ou ouvir
alguma coisa dele sem escândalo”.4 Cristologia é envolvimento,
paixão, mente e coração que vibram fortemente na tentativa
d uma resposta autêntica à interrogação de Cristo, que com­
promete a vida.
Nas três redações, é Pedro que responde à pergunta “envol-
vente” do Nazareno: a tradição da resposta revela, de maneira
evidente, o trabalho de releitura pascal dos evangelistas. Em
Marcos, Pedro diz simplesmente: “Tu és o Cristo” (8,29). Em
Mateus e Lucas, a asserção é mais elaborada e contém uma
profissão de fé da comunidade pós-pascal: “Tu és o Cristo, o
Filho de Deus vivo” (Mt 16,16); “o Cristo de Deus” (Lc 9,20).
A concisão da resposta na redação de Marcos provavelmente
exprime de maneira mais fiel o núcleo histórico subjacente ao
relato: “Tu és o Messias”.5 O que Pedro realmente queria afir­
mar através dessa palavra torna-se compreensível por aquilo
(pie vem a seguir na redação de Marcos e Mateus: Jesus começa
a ensinar que o Filho do Homem deverá sofrer muito, ser rejei­
tado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas,
ser morto e depois de três dias ressuscitar (Mc 8,31; Mt 16,21;

3 F. Dostoievski, I fratelli Karamazov, I, Milão, 1979, V ed., p. 267


(cd. bras.: Os irmãos Karamazov, várias versões).
4 K. Barth, UEpistola ai Romani, Milão, 1974, 2‘ ed., p. 261.
3 Cf. f. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, p. 294, op. cit.
In n. 1 .

167
Lc 9,22). Pedro se escandaliza e, tomando-o de lado, comeca a
censurá-lo! (Mc 9,32; Mt 16,22). A reação de Jesus certamente
depõe a favor de um núcleo histórico do relato: “Afasta-te de
mim, Satanás! Porque não pensas as coisas de Deus mas as dos
homens” (Mc 9,33; cf. Mt 16,23).6 Com efeito, é difícil supor
que a comunidade primitiva tenha inventado semelhante cen­
sura,^ que Lucas logo se preocupa em eliminar de sua redação!
A atitude de Pedro e a reação de Jesus são, pois, indícios sufi­
cientes para deduzirmos o que Pedro pré-pascal queria dizer, ao
professar que Jesus era o Messias: certamente ele estava pen­
sando em tudo, menos num Messias sofredor, num Cristo da
dor. Provavelmente sonhava com o Messias das expectativas
judaicas apocalíptico-políticas do seu tempo: O Ungido do
Senhor no esplendor da realeza, o libertador de Israel enviado
para realizar as promessas do Deus dos Pais e acabar com a
atual humilhação. Pode-se objetar a essa interpretação que, se
Pedro verdadeiramente tivesse pretendido isso, não teria senti­
do a aprovação implícita por parte de Jesus, contida na sua
ordem ,de manter o segredo (Mc 8,30), nem o elogio solene a
Simão, na redação de Mateus, aliás extraordinariamente disso­
nante com a censura que se segue. Na realidade, esses dois ele­
mentos contêm inserções pós-pascais, que em Marcos obedecem
à lógica do “segredo messiânico”, e em Mateus à vontade de
confirmar de maneira solene a profissão de fé da Igreja das
origens, contida na resposta de Pedro. Pode-se então julgar com
fundamento que, na sua asserção pré-pascal, Pedro tenha pen­
sado no Messias como “homem divino”, extraordinariamente
poderoso e coerente com as expectativas de Israel.7 Contra essa
expectativa do seu discípulo, Jesus apresenta uma imagem “es­
candalosa” de si mesmo: depois de ter feito a pergunta sobre a
própria identidade, anuncia pela primeira vez a história da sua
paixao. Certamente, pode-se supor que em boa parte esse anún­
cio, como os outros semelhantes,8 resulte de “vaticinia ex even-

6 Ibid, p. 293, n. 29.


7 Cf- J- Moltmann — J. B. Metz, Storia delia passione, Bréscia,
especialmente a contribuição de Moltmann, “La passione dei Fi-
gho delrUomo e Pinvito alia sequela, pp. 2 2 .
8 f. Guillet, Gesú di fronte alia sua vita e alia sua morte, Assis,
1972, p. 148, apresenta um quadro dos anúncios da paixão dos Sinó-
ticos.

168
In", isto é, seja fruto de elaboração e releitura pascal: 9 todavia,
i in um núcleo originário, que se referisse ao escândalo do
Messias sofredor, não se compreendería o comportamento pos-
lei ior de Pedro e a reação de Jesus. A combinação entre a per-
P11uta sobre a própria identidade e o anúncio da paixão por parte
,|e Cristo, na redação evangélica, tem então um efeito sugestivo:
<|< um lado, parece indicar o caminho através do qual se deve
procurar a face do Filho do Homem e, ao mesmo tempo, de
outro lado, desmonta os esquemas da expectativa expressa por
Pedro. Isto é, parece que Jesus quer mostrar a sua face na dor,
i uino se o seu mistério se revelasse nas trevas de sofrimento,
i'-provação e morte da sexta-feira santa. Jesus contrapõe ao Mes-
iiis “homem-divino” do seu discípulo, o Messias Deus-ho-
iiu-m”,10 que se manifesta, contra toda expectativa, nas coisas
desprezadas e rejeitadas pelos homens. “Crux Christi unica est
eruditio verborum Dei, theologia sinceríssima (Lutero): nao
In outra ilustração das palavras de Deus fora da Cruz, teologia
em fingimentos. Somente ela põe à prova os pensamentos e
revela os que são de Deus e os que são dos homens: Crux
probat omnia” (Lutero). Todavia, o anúncio da paixão desem­
boca no de uma realização, inesperada e nova: a fé pascal da
comunidade sabe que, sem a Ressurreição, a própria Cruz seria
va. A face de Cristo revela-se plenamente na conjunção inau-
dita da sua morte ignominiosa com a sua Ressurreição: a Cruz
M-in a Ressurreição seria o derradeiro reconhecimento da impo­
tência humana; iluminada pela Ressurreição, é a Cruz do Filho
«Ir Deus, que morre em nosso lugar e por nós, solidário com o
sofrimento do mundo. A Ressurreição sem a Cruz seria a pro­
clamação de uma vitória sobre um inimigo que não se conhece,
o anúncio de um poder tão grande a ponto de ser desumano;
com a Cruz, é a Ressurreição do Crucificado dentre os mortos
c a ressurreição dos que morreram nele, é a proclamação da
vitória de Deus a esta terra de mortos e de crucificadores, que
c a nossa terra. A Ressurreição é o sim de Deus: a Cruz mostra
a Quem é dito esse sim. Sem a Ressurreição, a Cruz seria cega,
sem futuro e sem esperança; mas sem a Cruz, a Ressurreição
seria vazia, sem passado e sem concretude. O caminho da cristo-

9 Cf. K. H. Schelkle, Teologia dei Nuovo Testamento, II. Dio era


in Cristo, Bolonha, 1980, pp. 111-13.
10 Cf. o artigo de J. Moltmann citado na nota 7.

169
logia deve então manter juntas a Cruz e a Ressurreição, se
quiser procurar a face do Senhor Jesus sem falsificá-la ou redu
zi-la à medida dos horizontes do mundo. A “palavra da Cruz” e o
anúncio pascal da Ressurreição são os dois aspectos gritantes e
inseparáveis do paradoxo cristão.
Mas tudo isso não ocorre sem um grande e forte escândalo:
a expectativa de Pedro é contrariada e desfeita, e com ela todas
as expectativas que através dos séculos foram projetadas sobre o
Cristo. Ele não é a resposta às nossas expectativas, mas a sub­
versão dos nossos pedidos. Ele abala implacavelmente todos os
modos humanos de falar dele, todas as tentativas de aprisioná-
-lo nas malhas do nosso pensamento: eis por que “o critério
permanente para julgar se falamos corretamente do envio do
Filho de Deus reside nisto: se num determinado ponto não
damos a todos os métodos humanos de investigação o especial,
puro e forte escândalo que lhe é característico, certamente esta­
mos falando de algo diferente”.11 Esse “critério do escândalo”
vale tanto para as cristologias de ontem quanto para as de hoje:
também hoje é possível seguir o caminho de Pedro, o sonho de
um Messias homem-divino, que corresponde às expectativas mais
profundas da história do mundo. O Deus-humano, o Senhor
Jesus dos evangelhos subverte a imagem de um Messias que
obedeça à idéia que é possível fazer-se racionalmente de Deus,
isto é, de um Cristo incontaminado nas suas perfeições divinas,
revelador de um Deus que não sofre e não espera (como reza­
vam os manuais tradicionais de cristologia); da mesma forma,
subverte a idéia de um Messias que realize em si a abertura do
homem ao infinito, que se ofereça como resposta absoluta à
autotranscendência humana (K. Rahner), ou que até realize em
si mesmo o caminho da evolução do cosmos, como ponto ômega
do devir da própria matéria (P. Teilhard de Chardin). O Cristo
dos Evangelhos acaba também com a nostalgia de um Messias
da restaufação dos valores eternos, paladino do passado e do
status quo”, sob marcantes aparências “espiritualizantes”; como
também não se deixa identificar com um Messias da revolução
puramente social e política.12 O sonho de Pedro reaparece, sob

11 K. Bart, L ’Epistola ai Romani, op. cit., p. 259.


12 Para os manuais, cf. Y. Congar, “Cristo nella economia salvifica
e nei trattati de teologia dommatica” in Concilium 1966, pp. 18-40. De
K. Rahner cf., entre outras obras, Saggi di cristologia e di mariologia,

170
.liversas formas, nessas propostas: com muita freqüência elas
pirpam o Cristo na cruz das expectativas humanas, em vez de
pregar as expectativas dos homens na cruz de Cristo. Nelas de-
Hiiparece a novidade absoluta, improgramável e subversiva, que
é oferecida ao homem no Ressuscitado dentre os mortos, e que
r lumpimento e escândalo de todas as possíveis deduções, tira-
■ l.r. das expectativas do mundo. O Crucificado ressuscitado pelo
I’mi subverte esse modo de proceder: quem pensa de acordo com
... homens não pode atingir o cerne do seu mistério, mas so-
nicnle quem se dispõe a ouvir de modo radical e obediente à
manifestação inaudita de Deus no seu Cristo; nem pode anun-
, lar o evangelho do Deus cristão quem quer cristianizar a todo
. usto o que há de positivo no mundo, ou satisfazer os gostos
ilns seus ouvintes, mas somente quem tem a coragem de contes-
ló los e mudá-los. “Vere verbum Dei, si venit, venit contra sen-
-.iiiii e votum nostrum” (Lutero): a palavra que Deus disse aos
homens em Jesus Cristo contradiz a nossa sensatez e o nosso
, 1, jo. A face do Deus cristão deve ser procurada unicamente
onde a palavra que escandalizou a Pedro mostrou que ela está
presente: na obscuridade da sexta-feira santa e na luz da' Páscoa.
"S c quisermos saber quem é Deus, devemos ajoelhar-nos aos
pés da Cruz” (J. Moltmann): e ao mesmo tempo, devemos
ah rir-nos à impossível possibilidade que foi descerrada na Pás-
I OH. Quem procura em outra parte, não pensa de acordo com
I >cus, mas de acordo com os homens.
À cristologia da palavra da Cruz e da Ressurreição une-se
então necessariamente uma cristologia do silêncio: Uma doutri­
na sobre Cristo se inicia no silêncio... Falar de Cristo significa

Roma, 1965, e Linee fondamentali di una cristologia sistemática in K.


Riihner — W. Thüsing, Cristologia. Prospettiva sistemática ed esegetica,
Uréscia, 1974, pp. 15-93. Sobre a cristologia de Rahner, cf. I. Sanna, La
cristologia antropologica di K. Rahner, Roma, 1970. Das posições cristo-
lógicas de Rahner aproxima-se F. Malmberg, Über den Gottmenschen,
Biisiléia-Friburgo-Viena, 1960. De Teilhard de Chardin cf. Opere, Milão,
Il)(i9ss. Sobre a sua cristologia, cf. A. Amato, “La cristologia cósmica di
t eilhard de Chardin” in Problemi attuali di cristologia, Roma, 1975, pp.
‘1VI23, e P. Schellenbaum, “Die Christologie des Teilhard de Chardin
in Theologische Berichte 2, Zurique-Einsiedeln-Colônia, 1973, pp. 223-74.
A', cristoiogias conservadoras têm muito pouca força crítica para se
( xp ri mirem em trabalhos científicos dignos de nota. Sobre as cristoiogias
políticas e da revolução, cf. por exemplo as obras em colaboração Dibat-
tito sulla teologia politica, Bréscia, 1971, e Dibattito sulla teologia delia
rivoluzione, ibid.

171
calar, calar sobre Cristo significa falar. Um correto falar <ln
Igreja resultante de um correto calar é o anúncio do Cristo"
(D. Bonhoeffer). Essa cristologia do silêncio é adoração do mis­
tério e experiência contagiante de vida libertada e libertadora.
Uma cristologia que rompe com todo cálculo e projeto humano
e abre à revolução de Deus, verificada na ressurreição do Cru­
cificado. Uma cristologia “rompida”, provisória e peregrina,
antecipação militante — na luta pela justiça e no anúncio da
paz dada em Jesus Ressuscitado — do futuro nele prometido.
Uma cristologia que fala e cala; luta e contempla; “canta c
caminha (Agostinho). “Todas as deduções cristológicas tiradas
da Ressurreição de Jesus... antecipam alguma coisa que se de­
monstrará real aos olhos de todos só no futuro escatológico,
embora já tenha acontecido no passado em Jesus. Essa estrutu­
ra proléptica explica a inadequação e a provisoriedade de todo
discurso cristológico. Com efeito, é da experiência, que ainda
não é o éschaton, que tiramos as palavras que nos servem para
exprimir a realidade escatológica que apareceu em Jesus. Por­
tanto,, todas as proposições cristológicas têm um sentido figura­
do... Somente o éschaton revelará definitivamente o que de fato
aconteceu na Ressurreição de Jesus”.13
A cristologia da Palavra, sempre incompleta, remete assim
a uma cristologia pobre, ativa no silêncio denso de escuta que
muda a vida, e no serviço generoso da práxis de libertação dos
pobres e dos oprimidos, em que a vida ultrapassa infinitamente
a palavra.
Sob esta luz, as reflexões que se seguem — tentativa de
uma cristologia da Palavra que se fez história, para que a
história se tornasse, na esperança, epifania da Palavra — que­
rem ser a premissa de uma cristologia do silêncio, feito de
escuta, de.louvor e de dias gastos ao serviço dos homens. Se o
que vamos dizer não desembocasse na alegria da adoração e no
compromisso vigilante e apaixonado para abater as estruturas
de iniqüidade edificadas sobre o sangue e a carne dos últimos,
as palavras que se seguem teriam falhado em seu objetivo e traí­
do a esperança que as anima. Todas as teologias deste mundo,
efetivamente, “não valem um gesto de solidariedade autêntica

13 W. Pannenberg, Cristologia. Lineamenti fondamentali, Bréscia,


1974, p. 559.

172
i um os homens, com as classes e com os povos oprimidos. Não
valem um ato de fé, de caridade e de esperança, praticado na
pniticipação ativa para libertar o homem de tudo o que odesu-
mniiiza e o impede de viver segundo a vontade do Senhor” .14 A
t< .posta teológica à pergunta sobre Cristo é apenas o início de
mu estilo de vida, que hoje se consome entre as contradições
inauditas do presente, e se completará definitivamente amanhã
mi glória do Reino que vem.15

14 G. Gutiérrez, Teologia delia liberazione. Prospettive, Bréscia,


1972, p. 300 (ed. bras.: Teologia da Libertaçãos perspectivas, Vozes, Pe-
trópolis, 1975, 274 p.).
15 As reflexões que se seguem devem muito às numerosas propos­
ta. i ristológicas que foram apresentadas nos últimos anos; além dos ver-
ln ir1, de dicionários e das dogmáticas (entre as quais particularmente as
iIr K. Barth, E. Brunner, M. Schmaus e P. Tillich), cf. especialmente as
•rguintes obras, agrupadas segundo as diversas áreas lingüístico-culturais,
,Iiic- condicionam fortemente a sua estrutura e o seu conteúdo: área ale­
mã. K. Adam, Gesú il Cristo, Bréscia, 1947, e II Cristo delia fede, Brés-
,in, 1957; H. U. v. Balthasar, Verbum Caro, Bréscia, 1970, 2? ed.; Id.,
Mysterium Paschale” in Mysterium Salutis VI, Bréscia, 1971, pp. 171-
•II.’ ; Id., Gloria. Un’estetica teologica, III/2 : Nuovo Patto, Milão, 1978,
p i G. Marchesi, La Cristologia di Hans Urs von Balthasar — La figu-
fit di Gesú Cristo espressione visibile di Dio, Roma, 1977); H. Dem-
1'owski, Problemi fondamentali di cristologia, Bolonha, 1973 e Einführ-
ung in die Christologia, Darmstadt, 1976; F. Gogarten, Gesú ^ Cristo
M'nIta dei mondo. Preliminari di u m cristologia, Turim, 1970 e L ’annun-
, io di Gesú Cristo, Bréscia, 1978; A. Grillmeier, Mit ihm und in ihm.
i Lristologische Forschungen und Perspektiven, Freiburg i. Br., 1975;
< lituidfragen der Christologie heute, org. por L. Scheffczyk, Freiburg i.
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( In istolcgie, Graz-Viena-Colônia, 1970; H. Küng, Incarnazione di Dio.
lulroduzione al pensiero teologico di Hegel. Prolegomeni ad una futura
cristologia, Bréscia, 1972, e Essere cristiani, Milão, 1976 (ed. bras.: Ser
i iistao, Imago, Rio de Janeiro, 1976, 570 p .); W. Marxsen, Alie origini
,1,-lla cristologia, Bolonha, 1969, e Christologie praktisch, Gütersloh, 1978;
I Moltmann, Teologia delia speranza, Bréscia, 1970 (ed. bras.: Teologia
,1a esperança, Herder, São Paulo, 1971, 450 p.), e II Dio crocifisso, Brés-
, ia, 1973; K. H. Ohlig, Jesus. Entwurf zum Menschsein, Stuttgart, 1974;
W Pannenberg, Cristologia. Lineamenti fondamentali, Bréscia, 1974; K.
Uíilmer, “Cristologia oggi?” in Teologia dali’esperienza dello Spirito,
Nuovi Saggi, VI, Roma, 1978, pp. 433-52 (cf. também as obras citadas
nu nota 12); R. Schafer, Jesus und der Gottesglaube. Ein christologis-
dicr Entwurf, Tübingen, 1970; F. ). Schierse, Christologie, Düsseldorf,
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Id., 11 Cristo, la storia di u m nuova prassi, Bréscia, 1980; Id., La

173
questione cristologica. Un bilancio, Bréscia, 1980; P. Schoonenberg, Un
Dio di uomini, Bréscia, 1971; Tijdschrift voor Theologie 6 (1966)
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II Verbo incarnato e redentore, Roma, 1968; Le Christ, hier, aujourd’ hui
et demain. Colloque de christologie tenu à 1’Université Lavai, publicado
por R. Laflamme et M. Gervais, Québec, 1976; L e Christ visage de Dieu,
org. por F. Refoulé, Paris, 1975 ( = Les quatro fleuves n. 4 ); Y. Congar,
Gesú Cristo, nostro Mediatore, nostro Signore, Turim, 1966; f. De Ba-
ciocchi, Gesú di Nazaret, Bolonha, 1977; H. M. Diepen, La théologie de
VEmmanuel. Les ligues maitresses d ’una Chistologie, Bruges, 1960; J.
Dcyon, Cristologia per il nostro tempo, Bari, 1971; C. Duquoc, Cristo-
logia, Bréscia, 1972, e Gesú, uomo libero, Bréscia, 1974; P. Faynel,
Jésus Christ Seigneus. Initiation à la christologie, Paris, 1964; J. Galot,
Chi sei tu, o Cristo?, Florença, 1977; II., Gesú liberatore. Cristologia II,
ibid., 1978; Cristo contestado. Cristologia III, ibid., 1979; Jésus ou le
Christ? ( = Foi vivante 130), Paris; M. J. Le Guillou, LTnnocente,
Roma, 1976 (ed. (ed. bras.: O inocente, Edições Paulinas, São Paulo,
1973, 341 p .); B. de Bargerie, Le Christ pour le monde. Le Couer de
1’Agneau, Paris, 1971; Problèmes actuels de christologie. Travaux du
Symposium de 1’Arbresle (1961), coligido e apresentado por H. Bouêsse
e J. J. Letour, Bruges, 1965.
Área inglesa: E. L. Mascall, Theology and the Gospel of Christ. An
Essay in Reorientation, Londres, 1977; A. T. Robinson, II volto umano
di Dio, Bréscia, 1974; The Myth of God Incarnate, org. por J. Hick,
Londres, 1977; The Truth of God Incarnate, org. por M. Green, ibid.,
1977; Christ-Faith and History, Cambridge Studies in Christology, org.
por S. W. Sykes — J. P. Claytcn, Cambridge, 1978, 2? ed..
Área italiana: Gesú Cristo, Mistero e Presença, sob a direção de E.
Ancilli, Roma, 1971; I. G. Moioli, Cristologia. Proposta sistemática,
Milão 1978; P. Parente, Dio-Uomo, Roma, 1964, e Theologia di Cristo,
2 vol., Roma, 1970; II problema cristologico oggi. Atas do V Congresso
Nazionale delPAssociazione Teologica Italiana, Assis, 1973; Problemi
attuali de cristologia, sob a direção de A. Amato, Roma, 1975; A. Rizzi,
Cristo verità delFuomo. Saggio di cristologia fenomenologica, Roma,
1972; O. da Spinetoli, Itinerário spirituale di Cristo, 3 vol., Assis, 1974.
Cf. a nível de divulgação, por exemplo, F. Ardusso, Gesú di Nazaret è
figlio di Dio?, Turim, 1980, e V. Messori, Ipotesi su Gesú, Turim, 1976,
(ed. bras.: Hipóteses sobre Jesus, Edições Paulinas, São Paulo, 1980,
364 p .).
Á rea espanhola: G. Girones Guillem, Uno de nosotros es Hijo de
Dios, Valência, 1971, e Jesucristo: tratado de soteriología cristologica,
Valência, 1973; O. González De Cardedal, Jesús de Nazaret. Aprorima-
ción a la Cristologia, Madri, 1975; J. I. Gonzáles Faus, La Humanidad
nueva. Ensayo de Cristologia, 2 vol., Madri, 1974; M. M. González Gil,
Cristo, el Mistério de Dios. Cristologia y soteriología, 2 vol., Madri,
1976; J. R. Guerrero, L ’ altro Gesú, Roma, 1977.
Área latino-americana: L. Boff, Gesú Cristo liberatore, Assis, 1974
(ed. bras.: Jesus Cristo libertador, Vozes, Petrópolis, 5* ed.; ed. port.:
Perpétuo Socorro, Porto, 1976, 288 p .); Gutiérrez, Teologia delia libe-
razione, Bréscia, 1972 (ed. bras.: Teologia da Libertação: perspectivas,
Vozes, Petrópolis, 1975; 274 p .); J. Sobrino, Cristologia desde Améri­
ca Latina, México, 1976; cf. J. Espe.ja, "Cristologia latinoamericana”,
in Ciência Tomista 105 (1978), pp. 279-90.

174
Sobre as cristologias atuais, além dos boletins bibliográficos e dos
números monográficos de numerosas revistas, cf. H. Bourgeois, Libérer
Jésus. Christologies actuelles, Paris, 1977; W. Dantine, Jesus von Naza-
reth in der gegenwãatigen Diskussion, Gütersloh, 1974; J. Galot, Alia
ricerca di una nuova cristologia, Assis, 1971; R. Lachenschmid, "Cristo-
logia e soteoriologia” in Bilancio delia teologia deli X X secolo, III,
Roma, 1975, pp. 89-128; G. Moioli, “Status quaestionis” dei discorso
teologico oggi: presentazione e prime reflessioni” in II problema cristolo-
gico oggi, op. cit., pp. 198-240; B. Mondin, Le cristologie moderne,
Alba, 1979, 3- ed.; C. Porro, Cristologia in crisi? Prospettive attuali,
Alba, 1975; K. Reinhardt, “Nuove vie delia cristologia cattolica contem­
porânea” in Communio n. 31, pp. 44-60; E. Rodriguez, El problema cris-
tológico en la actual Búsqueda Teológica Latinoamericana (Diss.) Müns-
ter,1976; A. Schilson — W. Kasper, Cristologie oggi, Bréscia; 1979; B.
Sesbooé, “Essuisse d’un panorama de la recherche christologique actuel-
le” in L e Christ, hier, aujoud’hui et demain, op. cit., pp. 1-43; Id., Jésus
Christ à Timage des hommes. Brève enquête sur les déformations du
visage de Jésus dans 1’Aglise et dans la societé, Paris, 1978.

175
7

A H ISTÓ RIA HUMANA DE DEUS

Uma pessoa divina sujeito de uma história humana?

O “ponto de partida” da fé e da reflexão cristã é a Ressur­


reição de Jesus de Nazaré: assim foi para a comunidade das
origens, assim deverá ser para toda tentativa de resposta à per­
gunta central, colocada sempre de novo por aquele que quer
relacionar-se com o Cristo: e vós, quem dizeis que eu sou? As
reflexões que se seguem procuram interpretar esse “ponto de
partida”, revendo em chave sistemática as distintas formulações
que ele recebeu primeiro no querigma e depois no dogma e na
elaboração com ele relacionada, para finalmente tentar expressá-
-lo nas categorias do pensamento histórico.

7 .1 . A IDENTIDADE NA CONTRADIÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE


JESUS E DEUS NA FÉ DAS ORIGENS

A mensagem da cristologia das origens sobre a Ressurrei­


ção resumè-se na inaudita “identidade na contradição” afirma­
da pelas fórmulas pascais: Jesus é o Senhor! Jesus é o Cristo!
Aquele que pendia do madeiro, no opróbrio da cruz, agora é o
Vivente com vida nova, que vem de Deus. O Crucificado ressus­
citou! O Humilhado foi exaltado! O abandonado pelo Pai foi re­
conhecido por ele como Senhor e Cristo! A força dessas asser­
ções está na radicalidade da antítese e no escândalo da síntese
que elas propõem: os dois estágios da história da Páscoa, o
Cristo “segundo a carne” e o Cristo “segundo o Espírito”, são
efetivamente o que de mais oposto se pode conceber. “Segundo

176
a carne” é a vicissitude terrena do Nazareno, que foi conhecido
na humildade e foi morto rejeitado pelos homens, traído pelos
seus, abandonado por Deus na obscuridade da sexta-feira santa.
Jamais se sublinhará suficientemente a vergonha da cruz: “Mal­
dito todo aquele que é suspenso no madeiro!” (G1 3,13). “Ne­
nhum homem ajuizado deveria empenhar-se em exumar e chantar
o funesto madeiro do martírio, a coisa mais repugnante que há sob
o sol (Goethe). Cruz significa solidão, desprezo, fracasso, dor
e morte sem aparente futuro. Cruz é contra-senso, negação de
toda pretensão, última agonia do pobre que não teve ninguém
a defendê-lo. Não existe homem que ame a vida e ainda tenha
a coragem de existir, que possa amar ao mesmo tempo a cruz
em si mesma, saborear a dor absurda do negativo. A tremenda
angústia do Getsêmani é a prova de que Jesus também não
pôde amar a cruz em si mesma. A cruz é a soma e a representa­
ção fiel de toda dor humana, da dor humana total, o triunfo do
mal, a vitória da morte: jamais como nela a terra esteve tão lon­
ge do céu, com toda a pesada obscuridade que a caracteriza.
Sobre a cruz morre o homem, esmagado pelo peso da injustiça
e do ódio: mas morre também Deus, porque parece não haver
mais esperança nem amor que salve. O abandono dos discípulos
naquelas horas obscuras é totalmente compreensível: onde tudo
parece acabar no nada, não há mais lugar para o impulso da
esperança e para a generosidade do seguimento. É a agonia e o
estertor das possibilidades humanas...
Contra tudo isso está, na sua inaudita novidade, a glória
do Ressuscitado, o Cristo “segundo o Espírito” : o mundo de
Deus entra no mundo dos homens e o subverte. Não há analo­
gia que se sustente, não há experiência humana capaz de tradu­
zir o que aconteceu na Páscoa. É o absolutamente novo que
arremete contra o fim, e o transforma em princípio, que vence
a morte e a transforma em vida. É a confirmação reveladora
da pretensão absoluta apresentada na sua vida pelo Nazareno, e
a proclamação escandalosa de que quem morreu na cruz é o
Senhor, aquele que é de condição divina e traz a salvação aos
homens. A sua morte, então, é a morte de Deus, mas precisa­
mente por isso é também a morte da morte: Deus vive! O seu
fim insensato é loucura de Deus, mas precisamente por isso é
mais sábio do que a sabedoria dos homens. A sua fraqueza infi­
nita é a fraqueza de Deus, mas precisamente por isso é mais

177
forte do que os homens (cf. ICor 1,25): Deus vence! O Ressus­
citado por Deus é por Ele acolhido e confessado como Senhor
e Cristo: a maldição da cruz se torna assim bênção e promessa
do Espírito mediante a fé (G1 3,14). Ressurreição significa co­
munhão, glória, acolhimento, vitória, alegria e vida, promessa
que não desilude. O Pai, ressuscitando o Filho no Espírito, diz
sim à sua história de humilhação e, nela, à história do mundo, e
por isso derrama o Espírito através do Filho sobre toda carne,
para que a contagie com a vida do alto. Na Ressurreição certa­
mente não se “abre” o futuro, como se o fim já fosse todo dado
e só faltasse um tempo “entre parênteses”, já descontado para a
sua realização: se assim fosse, a história se “fecharia”.1 Na Res­
surreição, porém, enquanto dom do Espírito ao Crucificado e
nele a todo homem que geme e sofre neste mundo, é dado o
penhor e fundada assim a certeza de que o próprio Deus é, com
o homem, o artífice do futuro em Cristo no Espírito, e de que
por isso, apesar de tudo e contra tudo, o futuro último será um
futuro de bem. O Deus e Pai de Jesus se mostra na Páscoa como
“um Deus da história que tem ‘tempo’ para o homem”,2 um
Deus que se comprometeu com os crucificados e triunfa no
último dia, como triunfou em Cristo, dando assim fundamento
ao compromisso e à esperança. Em Cristo ressuscitado, a terra
não está mais longe do céu: “os dois mundos são reconciliados,
e o céu desceu à terra e nela mergulhou as raízes” (Hegel). To­
davia, essa reconciliação não significa confusão ou ausência de
escândalo: o mundo da Ressurreição continua sendo um mundo
novo e diferente, que subverte os horizontes deste mundo. A
história de Deus toca a história do homem, e nela penetra com
uma profundidade impressionante: o Espírito. Mas isso não sig­
nifica que uma história se dissolva na outra: 3 Deus continua

1 É o risco que se pode perceber na posição de W. Pannenberg,


Cristologia, lineamenti jondamentali, Bréscia, 1974; cf. a crítica de J.
Moltmann, Teologia delia speranza, Bréscia, 1970, pp. 79e81ss. (ed. bras.:
Teologia da esperança, Herder, São Paulo, 1971, 450 p.) e de A. Schil-
son in A. Schilson — W. Kasper, Cristologie oggi, Bréscia, 1979, p. 108.
2 W . Kasper, Gesú il Cristo, Bréscia, 1975, p. 258; a obra de Kas­
per coloca-se entre as contribuições mais interessantes para uma cristo­
logia pensada historicamente: cf. G. Marchesi, “La storia e il suo
compimento nell’opera teologica di W. Kasper”, in La Civiltà Cattolica
130 (1979), III, pp. 209-27, e “Gesú Cristo compimento delia storia
nclPopera teologica di W. Kasper, ibid., IV, pp. 544-61.
3 Como ocorre no “monismo do Espírito”, próprio do sistema hege-
liano: cf. H. Hiing, Incarnazione di Dio. Introduzione al pensiero teolo-

178
sendo o Novo, o improgramável, o surpreendente, livre e liber­
tador. Se não é possível enfatizar suficientemente a vergonha
da Cruz, também não será possível enfatizar bastante a novi­
dade da Ressurreição!
Todavia, entre esses dois estágios contrapostos, a experiên­
cia pascal proclama uma continuidade paradoxal: o Ressuscitado
é o Crucificado, o Humilhado é o Exaltado; Jesus é o Senhor;
Cristo é Jesus. É estabelecida uma identidade entre a história da
Páscoa e a história do Nazareno: e essa identidade reside no
mesmo e único sujeito de ambas as histórias, no mesmo Jesus,
ao qual se atribui a vergonha da cruz e a glória pascal. N ele os
dois mundos são reconciliados: nele Deus tomou posição sobre
o passado, o presente e o futuro, fez história. Em relação ao
passado, com a Ressurreição mediante o Espírito, o Pai confes­
sou a história de Jesus de Nazaré com história de seu Filho
enviado a este mundo. Jesus era o Filho e Senhor já na humilda­
de da sua vicissitude entre os homens. Em relação ao presente,
Deus atestou, ressuscitando-o, que Jesus é no Espírito o Viven-
te, o Cristo que realiza “hoje” as promessas divinas, porque é
“hoje” o Deus conosco na Igreja e na história. Em relação ao
futuro, o Deus que ressuscita o Crucificado no Espírito garante
que, no mesmo Espírito, Jesus será o Senhor do tempo futuro;
portanto, não somente Aquele que virá na glória, mas também
Aquele que vem todos os dias para fazer novas as coisas anti­
gas na novidade da vida divina. O m esm o Jesus é confessado na
Ressurreição como “Aquele que é, que era e que vem” (Ap 1,4),
“o Alfa e o Ômega” (Ap 1,8), Aquele que une em si o mundo
passado e as coisas vindouras e novas, a humilhação da Cruz
e a glória que se manifestou na Páscoa e se manifestará plena­
mente no último dia. Com a Ressurreição, Deus toma posição
no Espírito sobre esse Jesus, o mesmo que era, que é e que
será. Jesus Cristo, Crucificado-Ressuscitado, é em si mesmo o
encontro dos dois mundos, da carne e do espírito, da história
dos homens e da história de Deus. Ele foi, é e será o sujeito
dessas duas histórias; ele, que viveu entre os homens, em con­
tato com eles, e foi exaltado por Deus, que assim manifestou a
relação única e inaudita que o une a si no Espírito. Jesus Cristo
é em si mesmo a aliança, que faz da história dos homens história

gico di Hegel. Prolegomeni ad una futura cristologia, Bréscia, 1972,


passim, por exemplo, p, 550.

179
de Deus, e da história de Deus história dós homens. Por isso,
quem crê nele, como atesta a experiência dos primeiros cristãos,
sabe que é deste mundo, mas que pertence ao mundo que há de
vir, vive entre os homens amando e servindo, lutando e gemen­
do, mas com a esperança subversiva e crítica, que já antecipa
o futuro prometido. A identidade na contradição, que é a “luz
pascal” transmitida pelas primitivas fórmulas de anúncio e de
confissão de fé e pelos relatos pascais das aparições, funda assim
a identidade na contradição da Igreja com o mundo, o estilo de
vida pascal da comunidade peregrina: o sangue da Igreja dos
mártires atesta a generosidade apaixonada de homens que fize­
ram de sua vida anúncio e dom por amor dos outros, e ao mes­
mo tempo a sua liberdade crítica perante toda realidade terrena
com pretensão de realidade absoluta. Fiéis ao mundo presente,
ao qual oferecem a esperança maior, os mártires são fiéis ao
mundo que há de vir, garantido na Ressurreição de Jesus Cristo,
ao qual testemunham incodicionada confiança e obediência, na
vida e na morte, contra qualquer ídolo deste mundo.

7 .2 . A UNIDADE NA DUALIDADE: A RELAÇÃO ENTRE JESUS


E DEUS NO DOGMA CRISTOLÓGICO

O paradoxo da mensagem pascal — que fundamenta o


paradoxo cristão na história — é mantido na transmissão viva
de testemunha para testemunha que anima a história da Igreja
no tempo: a reflexão sobre a história do dogma mostrou a con­
tinuidade “estrutural” que liga as definições dogmáticas ao
querigma. Todavia, há, ao mesmo tempo, uma profunda modi­
ficação de horizonte e de linguagem: a perda de sensibilidade
histórica, relacionada com o processo de helenização do cristia­
nismo e influenciada pelo “status quo” produzido pela paz
constantiniana, se faz sentir nas formulações da fé cristã. O inte­
resse se desloca: da história do Crucificado-Ressuscitado para
a sua condição de Homem-Deus; da “identidade na contradi­
ção”, nele reconhecida na Páscoa, para a “unidade na dualida­
de” da consideração metafísica do seu ser; da “identidade na

180
contradição” experimentada pela Igreja das perseguições e dos
mártires para a “unidade na dualidade”, que vai se estabelecen­
do entre o poder político e o poder eclesiástico, vistos mutua­
mente como expressão de uma mesma autoridade, que funda a
sua recíproca harmonização. O Cristo “segundo a carne” se torna
o Cristo “enquanto homem”; o Cristo “segundo o Espírito” é
visto como o Cristo “enquanto Deus”. Aquilo que era história,
dinamismo, evento, é interpretado como condição, natureza,
qualificação do ser. Os “estágios” tornam-se “estados”. A pró­
pria força paradoxal da contradição pascal é extinta: fala-se, é
claro, de dualidade de naturezas, mas esse conceito é aplicado
tanto ao ser homem de Jesus quanto a seu ser Deus. É verdade
que em Calcedônia o termo “natureza” tem mais um valor for­
mal do que de conteúdo; isto é, ele exprime mais uma pergunta
(o que é?) do que uma afirmação. Todavia, o uso que se fará do
dogma no aprofundamento posterior, também à luz da dupla,
simétrica consubstancialidade atribuída ao Cristo (em relação
ao Pai e a nós), muitas vezes irá interpretar materialmente essa
idéia, vendo a humanidade e a divindade de Cristo não como
pólos de uma relação assimétrica, “rompida”, mas como ele­
mentos paralelos de uma simetria metafísica. Dessa forma, é
amortecido o escândalo do mundo de Deus que no Ressuscitado
entra no mundo humano e o subverte. Esse processo se reflete
na crescente assimilação da Igreja ao “sistema” do império, e
por sua vez é influenciado por ele. A contradição da Ressurrei­
ção em relação à Cruz, do mundo futuro e novo em relação às
coisas passadas, do Deus cristão em relação ao presente, é ate­
nuada na fé e na práxis dos cristãos.
Com a mudança de percepção da “contradição” pascal,
muda também a maneira de perceber a identidade inaudita pro­
clamada na Páscoa: no anúncio das origens ela proclamava que
Deus Pai, ressuscitando no Espírito a Jesus de Nazaré, o havia
reconhecido como Senhor e Cristo, e que portanto o sujeito do
estágio de humilhação era o mesmo do estágio de exaltação e da
glória nele prometida. Esse evento complexo é desmembrado
pelo “desgaste conceituai” da reflexão dogmática em dois cam­
pos de questões: de um lado, contra as heresias cristológicas,
vem-se acentuando a unidade do sujeito entre os estágios da
história de Cristo e a identidade de condição desse sujeito com
relação a Deus e aos homens; de outro, contra as heresias tri-

181
nitárias, que nas formas mais profundas apelam para a instância
monoteísta, vem-se sublinhando a distinção e a unidade entre
os três que estão presentes no evento do ressurgimento do Cru­
cificado e que operam na história por ele descerrada. O Pai, que
ressuscita, é posto em relação com o Filho, que é ressuscitado,
na unidade do Espírito, que dá vida àquele que morreu sobre
o lenho e estende a sua obra atualizando-a no tempo dos ho­
mens.4 No processo de des-historicização do querigma a identi­
dade pascal na contradição é traduzida como unidade pessoal na
dualidade das naturezas, quando se fala de Jesus Cristo; e como
trindade de Pessoas na unidade da substância, quando se fala
do Pai, do Filho e do Espírito. Nas primitivas confissões de fé
a identidade é referida a um evento, isto é, ao ressurgimento de
Jesus no Espírito por parte de Deus Pai, que assim reconheceu
no mesmo Nazareno o Senhor e Cristo, ao passo que na fórmu­
la calcedoniana o único e mesmo Jesus Cristo é visto como a
única pessoa do Filho de Deus, que “hipostatiza” as duas natu­
rezas, de um lado contra o dualismo nestoriano, e de outro con­
tra a confusão monofisista. No querigma das origens, Pai e Filho
são correlatos no Espírito num evento escatológico-salvífico, ao
passo que nos símbolos da Igreja a preocupação dominante é a
de afirmar a igual divindade dos três (consubstancialidade) —
quanto ao Filho em Nicéia (325), quanto ao Espírito em Cons-
tantinopla .(381: cf. também o Sínodo romano de 382).5 Um
quadro historio salvífico é substituído, assim, em ambos os desen­
volvimentos, por um quadro ontológico-conceitual, que, embora
não traía a estrutura do querigma originário, tende a esvaziá-la
de carga histórico-dinâmica, transpondo-a para um horizonte cul­
tural e sociopolítico completamente diferente. As perguntas fun­
damentais da reflexão teológica tornam-se então estas: O que
significa que. em Jesus’ Cristo há uma pessoa em duas nature­
zas? O que dignifica que no Deus cristão é única a substância
na trindade das Pessoas?

4. Sobre a história do dogma da Trindade, cf. J. Lebreton, Histoire


du dogma de la Trinité, Paris, 1928, 5? ed., 2 vol.; B. De Margerie,
La Trinité chrétienne dans 1’histoire, Paris, 1975: L. Scheffezyk, “Di-
chiarazioni dei Magistero e storia dei dogma delia Trinità” in Mysterium
Salutis III, Bréscia, 1979, pp. 187-278. Cf. também, para o que segue,
os artigos de A. Milano in Nuovo Dizionario di Teologia, Roma, 1979,
2 " ed., 1.782-1.808, e Dizionario Teologico Interdisciplinare, Turim, 1977,
III, pp. 472-98.
5 Cf. DS 150-78.

182
O “desgaste conceituai” da fé cristã vai-se concentrahdo
assim na idéia de “pessoa”, presente em ambas as perguntas: 6
podemos distinguir duas linhas, que se desenvolvem respectiva­
mente no âmbito dos dois contextos, originariamente compreen­
didos no anúncio pascal.

Em teologia trinitária irá se impondo sempre mais


uma idéia de pessoa, que acentua o seu sentido relacio­
nai: o próprio termo prósopon, do qual provém o termo
latino persona como transposição precisa, com seu signifi­
cado de “rosto, face, máscara do ator e papel que ele
desempenha”, evoca as diversas “partes” e o diálogo que
se desenvolve entre elas no espetáculo. Esse modo de
entender a pessoa como sujeito de relação encontra a sua
expressão madura com Basílio no Oriente e Agostinho no
Ocidente: a partir da Escritura, e precisamente da forma
dialogai com que Deus se apresenta na Bíblia, interpreta-
-se o ser pessoal como ser-para, relacionalidade, ser-em-
-referência (essere-ad). Ao se aplicar essas perspectivas à
teologia trinitária, evidencia-se como o que constitui as
pessoas em Deus é o seu mútuo relacionar-se, o ser res­
pectivamente o Pai e Filho, e Espírito da sua comunhão.
O décimo primeiro Concilio de Toledo, de 675, afirma
claramente que “as três pessoas são tais por relação”, ao
passo que “uma é a natureza ou substância” : “o que é o
Pai, não o é por si, mas pelo Filho; e o que é o Filho,
não o é por si, mas pelo Pai; e da mesma forma o Espírito
não se refere a si mesmo, mas ao Pai e ao Filho por
relação, enquanto é chamado Espírito do Pai e do Filho” .7
Essa interpretação encontra a sua formulação clássica no
princípio de que “em Deus tudo é um, onde não houver
oposição de relação”, sancionado pelo decreto para os jaco-

6 Cf. C. Andersen, “Zur Entstehung und Geschichte des trinitari-


schen Personenbegriffs” in Zeitschrift für neutestamentliche Wissen-
schajt 52 (1961), pp. 1-39; J. Galot, La persona di Cristo, Assis, 1970;
M. Nédcncelles, “Le moi du Christ et le moi des hommes à la lumière
de la réciprocité des consciences” in Problèmes actuels de Chhistologie,
Bruges, 1965, pp. 201-26; W. Pannenberg, “Person” in Die Religion in
Geschichte und Gegenwart, V. Tübingen, 1961, 3? ed., pp. 230-35; J.
Ratzinger, “II significato di persona nella teologia” in Dogma e predi-
cazione, Bréscia, 1974, pp. 173-89.
7 DS 528.

183
bitas do Concilio de Florença (1442),8 mas, já nessa for­
mulação, muito anterior a ele.9 A expressão dá a entender
que o que constitui as pessoas divinas é o seu “essere ad”,
a relação, que ao mesmo tempo as une entre si e as cons­
titui em sua singularidade (“relação subsistente”). Nessa
linha interpretativa pode-se situar também a reflexão he-
geliana sobre o conceito de pessoa em Deus: “Hegel res­
pondeu às objeções da razão sobre a impossibilidade da
unidade de uma Trindade apelando para o fato de que a
essência da pessoa está no dar-se ao outro e no ganhar a
si mesma precisamente no outro. A unidade de Deus é
assim entendida como a unidade do Amor que se realiza
no mútuo dar-se das três pessoas”.10 O moderno persona­
lismo e a filosofia do diálogo — de E. Mounier, a F. Ro-
senzweig, a F. Ebner, a M. Buber — retomam e desenvol­
vem a idéia de pessoa como relação dialogai: pessoa é o
ser que é e vive enquanto eu e tu e nós. Ela não é somente
o ser em si, de si e para si, mas também e sobretudo o ser
no ojutro, do outro e para o outro. A experiência originá­
ria e originante da pessoa é a comunicação, o poder dizer
eu, o poder chamar e ser chamado por tu.11 Essas reflexões
são conduzidas no âmbito de um interesse principalmente
antropológico; mas elas dependem do desenvolvimento
teológico do conceito, e se interessam pela relação homem-
-Deus, ainda que nem sempre evitem o risco de uma pura
transposição da relação inter-humana eu-tu para a relação
homem-Deus.1213
A outra linha de aprofundamento do conceito de pes­
soas parte do interior da problem ática cristológica, embo­
ra no princípio utilize os termos da teologia trinitária. Em
Cristo se afirma a unicidade de prósopon e hypóstasisP
Este segundo termo havia conhecido uma curiosa evolução

8 DS 1.330
9 Cf. S. Anselmo d’Aosta, D e processione Spiritus Sancti, 2; PL 158,
288 C. Cf. H. Mühlen, “Person und Appropriation. Zum Verstãndnis
des Axioms: In deo omnia sunt unum, uíú non obviat relationis oppo-
sitio” in Münchener Theologische Zeitschrift 16 (1965), pp. 37-57.
10 W. Pannenberg, "Person”, op. cií., p. 232.
11 Cf. especialmente E. Mounier, II personalismo, Roma, 1967, e
J. Endres, Personalismo, esistenzialismo, dialogismo, Roma, 1972,
12 Cf. A. Milano, op. cit., 1978.
13 Cf. a definição calcedoniana: DS 302.

184
de significado. Ainda em Nicéia, ele é usado no sentido
de ousía, ao qual corresponde a sua transposição literal
latina substantia, tanto que se condenam os que afirmam
que o Filho de Deus é “de outra hipóstase ou substância”
com relação ao Pai.14 Em Calcedônia, ao contrário, hipós­
tase torna-se o equivalente de pessoa prósopon, a ponto
de se afirmar a única hipóstase do Filho Jesus Cristo, que
certamente é outra com relação à do Pai! Essa diversida­
de terminológica é sinal de certa separação, que irá se
aprofundando, entre reflexão cristológica e teologia trini-
tária: ocorrerá, então, que na primeira se usarão concei­
tos totalmente inutilizáveis na segunda. É o caso da famo­
sa definição, que se encontra em Boécio, e que teve tanta
importância na elaboração conceituai da cristologia: “A
pessoa é uma substância individual de natureza racio­
nal”.1516Se for aplicada à reflexão trinitária — que confes­
sa a unidade de substância em Deus — essa idéia leva à
dissolução da Trindade pessoal.10 Por isso será ne­
cessário usar um duplo aparato conceituai: enquan­
to que para a Trindade se falará de pessoa como
“relação subsistente”,1718 em cristologia se colocará o
problema de definir em que consiste o elemento que
constitui a pessoa enquanto tal, o seu “constitutivo for­
mal”. Sto. Tomás, em contexto cristológico, fala da pessoa
como “o que há de mais perfeito em toda a natureza”, e,
sublinhando que em Deus ela não deve ser entendida “do
mesmo modo que para as criaturas”, define-a, na linha de
Boécio, como “subsistente de natureza racional”, acentuan­
do sobretudo a sua “incomunicabilidade” .1S Percebe-se a
fragilidade desse conceito, ao ser usado em teologia trini­
tária, onde única é a subsistência, num mútuo, fecundo

14 DS 126.
15 A.M.S. Boécio, Liber de persona et duabus naturis, III: PL
64, 1.343. Cf. M. Elsãsser, Das Person-Verstãndrtis des Boethius (Diss.),
Münster, 1973.
16 Cf. J. Galot, Chi sei tu, o Cristo? Florença, 1977, pp. 269ss. (Os
caminhos divergentes: trinitário e cristológico).
17 Cf. a doutrina trinitária de Sto. Tomás, por exemplo: I Sent.,
dist. 23, a. 3, in fine corp.; D e Pot., q. 9, a. 4; Summa Theol. I, q. 29,
a. 4 etc. Cf. A. Malet, Personne et amour dans la théologie trinitaire de
saint Thomas d’Aquin, Paris, 1956, p. 92.
18 Cf. Summa Theologica, I, q. 29, a. 3, espec. ad 4.

185
comunicar das Pessoas. As demais tentativas escolásticas
também não saem dessa aporia, ao procurarem determi­
nar em várias direções o constitutivo formal da pessoa: 19
Duns Scoto o indivíduo na qualidade de “independência”
e Tifânio na de “totalidade”, evidenciando dessa forma
o fato de que a pessoa é uma entidade completa, e não
parte de um todo. Mas o inconveniente dessa proposta está
em reduzir o específico pessoal a uma qualidade ou pro­
priedade da natureza, com a conseqüência de não reconhe­
cer suficientemente a plena humanidade do Cristo — cuja
natureza humana seria incompleta, faltando tal proprie­
dade — , nem a distinção das pessoas em Deus, que não pas­
sariam de simples propriedades da única natureza divina.
Outros (Caetano, Suárez) captam o “proprium” da pes­
soa num “modo substancial” da natureza: se esta explica­
ção distingue melhor entre natureza e pessoa, e pode apli­
car-se analogicamente à Trindade, contudo não esclarece o
específico da pessoa em Cristo com relação às duas natu­
rezas. Por fim, outros (Capreolo, Billot), afirmam que o
constitutivo formal da pessoa está na existência ou “esse” :
embora desse modo se evidencie a concretude existencial
do ser pessoal, não se explica a plena existência humana
do Cristo, que seria suprimida pela pessoa divina mima
espécie de “êxtase do ser” de sabor monofisista (ao menos
no plano existencial), nem, em campo trinitário, se motiva
a trindade das Pessoas, porque a unicidade de existência
divina deveria traduzir-se numa unicidade de pessoa.20
Por isso todas essas tentativas demonstram-se insuficien­
tes: não conseguem esclarecer a estrutura metafísica de
Cristo, da qual sem dúvida se ocupam prioritariamente,
nem sãQ utilizáveis na reflexão trinitária. Elas ficam pri­
sioneiras de um horizonte ontológico, ao qual escapa a

19 Cf. a exposição de P. Kaiser, Die Gott-Menschliche Einigung in


Christus ais Problem der spekulativen Theologie seií der Scholastik, Mu­
nique, 1968 (pp. lOss scbre a Escolástica; pp. 94ss sobre Suárez; pp.
157ss sobre alguns teólogos depois dele; pp. 203ss sobre os tempos
recentes). Cf. também J. Galot, La persona di Cristo, op. cit., pp. 10-24.
20^ O próprio Tomás afirma um duplo “ser” em Cristo: a admissão
é explícita num escrito que a tradição tomista se obstinava a conside-
rar não autêntico, mas cuja autenticidade foi demonstrada por P. Pelster,
La Quaestio Disputata de saint Thomas De Unione Verbi Incarnati” in
Archives de Philosophie 3 (1925), pp. 198-245.

186
originalidade histórico-concreta da pessoa. Eis por que o
pensamento cristão “não pode limitar-se a traduzir a onto­
logia aristotélica, mas deve superá-la com coragem, com
toda a audácia implicada no mistério da Encarnação”.21
À colocação metafísica tradicional reage a idade moderna,
com o seu novo interesse pela subjetividade: procura-se
desenvolver a interpretação do conceito de pessoa inde­
pendentemente do de ser. Já }. Locke se esforça por defi­
nir a pessoa a partir da autoconsciência.22 Inicia-se assim
o divórcio entre ser e consciência, que caracteriza, como
problema aberto, o pensamento moderno. Ele se reflete,
em cristologia, no debate contemporâneo sobre a consciên­
cia de Jesus, no qual todavia as posições tradicionais vol­
tam a aparecer, ainda que de forma renovada. Assim, P .
Parente, na linha da tradição tomista, vê um único centro
de atividade na pessoa divina do Cristo, e por isso afirma
também que há nele psicologicamente um único Eu divi­
no, imediatamente consciente da natureza humana; 23 P .
Galtier, ao contrário, na perspectiva antioquena e depois
escotista, sublinha a dupla consciência de Cristo, referindo
a consciência à natureza, e resolvendo o problema da uni­
dade psicológica de Jesus com a suposição da visão de
Deus por parte do Eu humano.24 Essas propostas, embora
provocadas pela sensibilidade moderna, não saem da pers­
pectiva ontológica tradicional, e por isso são incompletas
como ela.

A história do conceito de pessoa em teologia trinitária e em


cristologia chega assim ao reconhecimento de uma aporia sem
solução: a linguagem empregada é a mesma, mas tem significa­
dos diversos nos dois âmbitos. A “semântica do mistério”, isto
é, o esforço por levar o mistério à palavra, é rompida: os
“sinais lingüísticos, de que se faz uso, sofrem um penoso divór­
cio de significados. É possível superar essa situação? Muitas
são as tentativas contemporâneas nesse sentido: procura-se

21 J. Galot, La persona di Cristo, op. cit., p. 23.


22 Cf. J. Lock, Saggio sulVintelleto umano, Turim, 1971, por exem­
plo pp. 708ss.
23 Cf. P. Parente, L ’io di Cristo, Bréscia, 1955, 2? ed.
24 Cf. P. Galtier, L ’unité du Christ, Paris, 1939. Sobre toda a ques­
tão, cf. J. Galot, La coscienza di Cristo, Assis, 1971, pp. 85ss.

187
transpor os conceitos de natureza e de pessoa para a linguagem
do nosso tempo; tenta-se carregar esses conceitos com a concre-
tude do dado bíblico, redescobrindo-se sobretudo a plena huma­
nidade do Nazareno; propõe-se, nessa perspectiva, mudar o pa­
pel das partes com relação a Calcedônia, falando-se não mais
de uma pessoa divina sujeito também da natureza humana em
Jesus, mas de uma pessoa humana, que nele seria sujeito tam­
bém da pessoa divina; 25 decide-se simplesmente abandonar os
termos das formulações antigas, em busca de novas formas
expressivas, de uma diferente “semântica do mistério” . “Mas
tudo isso permanece em nível embrionário; é como água em
comparação com o forte vinho teológico oferecido pela revela­
ção. Por isso a melhor disposição crítica e obediencial de quem
crê é confiar no patois de Canaã, naquela linguagem da revela­
ção, em que estranhamente homens de todos os tempos e luga­
res conseguem estabelecer “vínculos viçosos” com o que é
proclamado. No “dialeto de Canaã” sublinham-se categorias e
termos sensatos, ainda não tornados aporéticos pela identifica­
ção com uma cultura ou com uma filosofia. E então se manifes­
tará como produtivo, diante do sentir humano, não um antropo-
morfismo qualquer, mas precisamente aquele que se realiza na
forma da realidade ontológica, ou seja, Deus na forma hu­
mana” .26

7 .3 . A HISTORIA HUMANA DE DEUS: A RELAÇÃO ENTRE


JESUS E DEUS EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

Não se trata simplesmente de repetir o que diz a comuni­


dade do Novo Testamento. Essa linguagem das origens, esse
“dialeto de Canaã”, podería ser estranho para nós. Trata-se de
estabelecer com o mundo expresso naquela linguagem, com a

25 Cf. neste sentido a proposta, sob vários aspectos estimulante, mas


insuficiente, de P. Schoonenberg, Un Dio di uomini, Bréscia, 1971, e Id.,
“L ’avventura delia cristologia” in La teologia di Piet Schoonenberg, Bres-
cia, 1974, pp. 155-96.
26 I. Mancini, "Dio” in Nuovo Dizionario di Teologia, p. 331.

188
experiência originária e originante de fé cristã, que é a expe­
riência pascal do Crucificado-Ressuscitado, “vínculos novos”,27
capazes de torná-la sensata para os homens de hoje, como o foi
para os Padres na linguagem de Nicéia e de Calcedônia. Isso
significa traduzir novamente as categorias ontológicas, que do­
minaram o “desgaste conceituai” do desenvolvimento da refle­
xão cristã, para categorias históricas, próprias do universo bíbli­
co e particularmente apropriadas à sensibilidade do mundo mo­
derno, que se compreende sempre menos como sistema ordenado
e completo, e sempre mais como devir, como processo, como
história.28

a) O ponto de partida desse pensamento histórico é o even­


to da Ressurreição do Crucificado: um evento que se subtrai à
abordagem das analogias, mas que de fato suscitou historica­
mente a “novidade” cristã. Nesse evento, como é anunciado pela
fé narrativa das origens, Deus Pai despertou dos mortos Jesus de
Nazaré na força do Espírito (cf. Rm 8,11). Assim, Deus tomou
posição com relação ao seu passado, ao seu presente e ao seu
futuro, reconhecendo na sua vida de humilhação a história do
próprio Filho, atestando o poder atual do Ressuscitado no Espí­
rito, e estabelecendo-o como Senhor do tempo futuro. Se histó­
ria é “situar-se no devir”, colocar-se diante do “já ” num ato
consciente e livre, criativo do “ainda não”,29 pode-se dizer que
na Ressurreição do Crucificado Deus Pai fez história; ele se
situou com relação ao outro, assumindo o passado, decidindo
sobre o presente, orientando o futuro. Mostrou-se assim sujeito
de história, capaz de relacionar-se na liberdade com Aquele que
havia morrido e foi feito Vivente. Páscoa é história do Pai!
Mas nesse mesmo evento de graça surpreendente e transforman-
te “situou-se” da mesma forma o Espírito: com relação ao pas­
sado, ele uniu o Abandonado da Cruz ao Pai, como Espírito da
dor, Consolador do sofrimento; com relação ao presente, ele
une o Crucificado ao Pai e aos homens, como força de ressur­
reição que torna Cristo vivo e operante no “hoje” ; com relação
ao futuro, ele unirá sempre o Pai ao porvir do mundo, tornan­

27 Cf. E. Bloch, Ateísmo nel cristianesimo, Milão, 1971, 295 (frisch


sich verbindend”) .
28 Cf. supra 2.1.
29 Cf. supra 2.3.

189
do presente neste, em todos os tempos, a reconciliação operada
pelo Ressuscitado e o poder da promessa feita por Ele. Páscoa é
história do Espírito, que nela se situa como sujeito de relações
livres e libertadoras com os homens, com o Pai, com o Filho,
crucificado e ressuscitado. Por fim, com a Ressurreição, o pró­
prio Jesus se situou; revela-o a própria tradição lingüística que
fala desse evento na forma ativa: Jesus ressuscitou! (cf., por
exemplo, Mc 16,6).30 Com relação ao passado, ele justificou a
sua “pretensão” pré-pascal; com relação ao presente, ele se colo­
ca como o Vivente, Filho do Pai e Senhor dos homens no Espí­
rito; com relação ao futuro, ele se oferece como aquele que no
Espírito será sempre o Mediador entre o mundo e o Pai, aquele
que deve vir para fazer novas todas as coisas: “Eis que eu venho
em breve” (Ap 22,7). Portanto, o Ressuscitado é sujeito de his­
tória, Vivente que toma posição com relação ao Pai e aos homens
no Espírito, no qual trava relações com um e com os outros.
Páscoa é história do Filho, Jesus de Nazaré.
Enquanto história do Pai, do Filho e do Espírito, Páscoa é
então história trinitária de Deus, que vem unir a si a história do
mundo: no evento da Ressurreição, o Deus cristão se revela
como tríplice sujeito de história. Na unidade dinâmica do ato
escatológico que se realiza ao “terceiro dia” da morte do Naza­
reno, Deus se oferece como Pai, que dá a vida ao Filho e nele
aos homens,- Filho que recebe a vida do Espírito e a derrama
sobre toda a carne, Espírito que une o Pai ao Filho e nele a toda
a história do mundo. A trindade do Deus cristão apresenta-se
assim como a exegese mais apropriada da unidade na contradi­
ção que liga Cruz e Ressurreição: a Ressurreição é a tomada de
posição dos Três, o seu recíproco situar-se; a Cruz é o já em
relação ao qual os Três se situam, e sem o qual a Ressurreição
permanecería - um ato da história intradivina, sem significado
para a história, do mundo. “ ‘Conceitos sem intuição são vazios’
(Kant). A intuição do conceito trinitário de Deus é a cruz de
Jesus. ‘Intuições sem conceitos são cegas’ (Kant). O conceito teo­
lógico da intuição do Crucificado é a doutrina trinitária. O prin­
cípio material da doutrina trinitária é a cruz de Cristo. O princí­
pio formal do conhecimento da cruz é a doutrina da Trindade”.3031

30 Cf. supra, cap. 4, nota 7.


31 J. Moltmann, II Dio crocifisso, Brésciã, 1973, p. 281.

190
A essa altura é possível captar a força originária que corres­
ponde, no querigma, ao conceito, posteriormente elaborado, de
“relação subsistente” : é no evento escatológico do Crucificado-
-Ressuscitado que os Três se revelam ao mesmo tempo sujeitos
de relações recíprocas e da relação salvífica com o mundo. Por­
tanto, falar deles como “pessoas” deverá significar reconhecê-los
como sujeitos dessas múltiplas relações reveladas na Páscoa, que
os constituem respectivamente como o Ressuscitante, o Ressusci­
tado e o Espírito de Ressurreição, que liga um ao outro, e ambos
ao mundo. Mas essas relações fazem história, situam os seus
sujeitos no devir: eis que então pessoa deverá significar concre­
tamente o sujeito de história, de uma história de relações divinas,
que unem a Fonte da vida, o Pai, Àquele que recebe vida ressus­
citando da morte, o Filho, no Espírito, que é ao mesmo tempo
vida dada e doador de vida ao Crucificado e aos homens. E
“pessoa” também significará, com um sentido infinitamente
mais fraco, os sujeitos humanos de história, que no evento da
Páscoa são unidos ao Pai pelo Filho no Espírito, e, com esco­
lha livre e consciente, são chamados a “situar-se” diante da inau­
dita oferta de vida do alto, que lhes é feita na Ressurreição do
Crucificado. Na Páscoa, a história trinitária de Deus se une à
história humana, e a torna de certo modo sua: sua, porque a
história do homem Jesus é reconhecida como história do Filho;
sua, porque o presente da Igreja e do mundo é proclamado lugar
em que o Vivente opera no Espírito, derramando a vida rece­
bida do Pai, e rompendo as iníquas cadeias da morte e do peca­
do, pessoal e social; sua, porque o futuro é garantido como tem­
po em que Deus se comprometeu pelo homem, no sentido de
que o Pai continuará, por Cristo, no Espírito, a tomar posição
em favor de todas as cruzes que forem levantadas sob o sol,
até que não haja mais cruz, isto é, injustiça, dor e morte, e o
Filho possa, no Espírito, entregar-lhe todas as coisas, e Deus
seja tudo em todos (cf. ICor 15,28). A história trinitária de
Deus, revelada na Ressurreição do Crucificado, é então o fun­
damento da esperança que não decepciona: nela, Deus confes­
sa ao homem que é verdadeiramente o seu Deus, e lhe garante,
no Espírito, levar a sério o seu futuro e nele se comprometer.
Ao mesmo tempo, o homem pode reconhecer que nessa história
de Páscoa não se trata de um mito sem consistência ou de um
jogo de conceitos sem força, mas de uma promessa que abala os

191
fundamentos da história, e é capaz de subverter o presente e
empenhar concretamente quem o acolhe em vista de um futuro
mais justo, possível de acordo com a impossível possibilidade
descerrada na Páscoa. Na ressurreição do Crucificado, a Trinda­
de que se revela e torna sua a história do mundo diz a todo
homem, especialmente aos crucificados desta terra de injustiças
e de lágrimas: “Res tua agitur!” : você está em jogo!
Assim a história humana de Deus, que se realizou na
Páscoa, revela a face do Deus cristão: “quem fala cristãmente
de Deus deve narrar a história de Jesus como história que se
verificou entre o Filho e o Pai” no Espírito.32 “O ser de Deus
como se manifestou no evento de Cristo, tem em si a dualida­
de, a tensão e a relação entre Pai e Filho”,33 no Espírito, no
qual Jesus foi ressuscitado: “Tudo o que se pode referir à reali­
dade do Ressuscitado é enchido pelo poder de vida do Espírito
Santo”.34 A partir da ressurreição de Jesus Cristo, não é mais
possível pensar em Deus como na substância estranha e distante,
como no motor imóvel ou na instância moral puríssima; nem se
pode pensar nele como numa pessoa celeste abstrata. “Com efei­
to, não existe um ‘Deus pessoal’ no sentido de uma pessoa que
se projeta no céu. Existem, ao contrário, pessoas em Deus: o
Filho, o Pai e o Espírito. Assim, não se ora simplesmente a
Deus, como se fosse um Tu celeste, mas ora-se em Deus. Não se
ora um acontecimento, mas neste acontecimento. Por meio do
Filho ora-se ao Pai no Espírito. Na fraternidade de Jesus, o
orante encontra acesso à paternidade de seu Pai e recebe o Espí­
rito da esperança. Somente assim transparecerá claramente o
impulso cristão da fé”.35 O Deus cristão é Pai, Filho e Espírito,
empenhados na história de Páscoa, e por isso na história do
mundo: o futuro patenteado na Ressurreição está fundado na
garantia, nela oferecida, de que por Cristo o Pai reconciliará
consigo o mundo no Espírito. Todas as cruzes da terra serão
alcançadas pelo Espírito do Ressuscitado, como o foi a cruz
infame do Nazareno. A contradição da ressurreição de Jesus
com relação à sua morte é a mesma contradição do Deus trini-
tário com relação à realidade negativa do mundo. Trindade

32 Ibid, p. 288.
33 W . Pannenberg, Cristologia, op. cit., p. 199.
34 Ibid., p. 216.
35 J. Mcltmann, II Dio crocifisso, op. cit., 289.

192
significa, então, compromisso em favor do homem que o Pai
assume pelo Filho no Espírito. Trindade significa evento de sal­
vação, história que funda o futuro da esperança, processo esca-
tológico iniciado na Páscoa para completar-se na glória final.35
Isso não significa que o Deus cristão se identifique com
o devir do mundo: Ressurreição é contradição e choque do
mundo novo de Deus com o velho mundo de pecado e de mor­
te. Essa contradição significa, antes de mais nada, que embora
torne sua a história humana, o Deus trinitário permanece dife­
rente do mundo e mais do que o mundo, livre e imprevisível
com relação a ele. A liberdade divina é evidenciada pela surpre­
endente novidade daquilo que aconteceu na Páscoa: Pai, Filho
e Espírito Santo não se deixam aprisionar por um horizonte
terreno, mas — na Ressurreição — rompem as analogias e se
oferecem como o plano novo e diferente, o Outro que não é
semelhante, ainda que se faça semelhante, o Vivente que faz
novas todas as coisas. Nesta sua radical novidade, que é alteri-
dade e subversão do plano humano, o Deus trinitário mostra
também a sua profunda unidade: a história do Pai que no Espí­
rito se dá ao Filho e o acolhe é história de uma realidade que
não é deste mundo, ainda que nele tenha entrado. É história de
Deus, que na sua divindade é diverso do mundo, embora o ame
e o reconcilie consigo no Crucificado-Ressuscitado. A unidade
dos Três é a sua pertença comum a esse outro “plano”, a um
“alhures”, que não se deixa reduzir aos horizontes terrenos,
ainda que neles irrompa. A história da Páscoa revela na huma­
nidade de Deus a sua absoluta divindade. Essa unidade, todavia,
precisamente porque se revela numa história que rompe a histó­
ria, não pode ser pensada em termos estáticos, e por isso de
morte (como poderia induzir a fazer um uso indiscreto do termo
“substância” aplicado à unidade de Deus): ela é desdobramen­
to, que tem sua origem na fonte da vida, o Pai, para derramar-
-se no Filho, e através dele dar-se ao homem e voltar a si,
como intuiu o Oriente; é dinamismo de relações, no qual cada
pessoa se reencontra perdendo-se na outra, na entrega de si,
que é também a mais alta forma de ganhar a si mesmo, como
acontece na especulação do Ocidente.3637 A unidade do Deus trini-

36 Cf. ibid., p. 291.


37 Cf. W . Pannenberg, Cristologia, op. cit., p. 228.

193
tário é movimento de quem sai de si para ir ao outro, Pai que
se torna outro no Filho, Filho que assumindo uma verdadeira
história humana se torna outro no mundo, para se reencontra­
rem unidos no Espírito, no ato temporal e eterno da reconcilia­
ção, que carrega ao mesmo tempo na condição de Deus o Cru­
cificado e o universo dos crucificados deste mundo. O Deus
trinitário, enquando sai inexaurivelmente de si e se dá ao outro,
é Aquele que ama, o Pai, Aquele que é amado e re-ama, o
Filho, Aquele que os une como amor, o Espírito: Deus é amor
(cf. ljo 4,8.16). A unidade trinitária, enquanto dinamismo do
pôr-se e do pro-por-se recíproco das Pessoas divinas, é portanto
uma história: a história divina eterna, que se revela na história
da Páscoa. “A Trindade econômica é a Trindade imanente” (K.
Rahner); o que Pai, Filho e Espírito realizam no evento pascal
é imagem, revelação daquilo que eles são em si mesmos, antes
que o mundo existisse. A história de Deus, revelada no parado­
xo pascal, é a Trindade de Deus, que se desdobra no interior
insondável do seu mistério, e se oferece — não sem autêntico e
forte escândalo — como salvação e vida nova no Ressuscitado
dos mortos.
Portanto, o Deus cristão é um Deus que tem história, que
se torna: é Senhor que se faz Servo e Servo que se toma Senhor;
é Pai que na carne crucificada do Filho pronuncia o seu sim,
depois do doloroso abandono da cruz; é Espírito, que ressuscita
o Vivente da morte e produz as coisas novas e que hão de vir,
na sua inexaurível novidade. Lido no evento da Páscoa, o Deus
cristão nunca poderá ser interpretado como o Altíssimo imóvel
e imutável. Foi o pensamento grego que insinuou a suspeita de
impureza num Deus que venha a ser.38 Na realidade, toda a

38 Cf. a análise histórica de W . Maas, Unverãnderlichkeit Gottes.


Zum Verhãltnis» von griechisch-philcsophischer und christlicher Gottes-
lehre, Paderborn, 1974, que evidencia 9 papel decisivo do pensamento
grego na elaboração da idéia de imutabilidade de Deus: cf. pp. 163ss.
Cf. também E. Jüngel, Gottes sein ist in Werden, Tübingen, 1967, 2?
ed. (com relação a Barth) e H. Mühlen, La mutabilità di Dio, Bréscia,
1974. Cf., por fim, H. Küng, Incarnazione di Dio, op. cit., particular­
mente os Excursus II (Può Dio patire?), pp. 619ss, IV (Immutabilità
di Dio), pp. 633ss e V (Recenti tentativi di soluzione di un’antica pro­
blemática) , pp. 642ss. Algumas afirmações do magistério da Igreja sobre
o “Deus incommutabilis” (cf. Concilio Lateranense IV: DS 800; Vatica­
no I: DS 3001) explicam-se a partir de sua intenção anti-herética (rejei­
ção de formas panteístas).

194
revelação bíblica apresenta um Deus que tem “pathos” e devir,
que caminha com seu povo na alegria e na dor, que intervém,
que reage, se arrepende e faz festa. E, ao mesmo tempo, esse
Deus não muda na livre fidelidade às promessas que fez ao ho­
mem: “Do ponto de vista histórico-salvífico, a imutabilidade
de Deus se mostra como a imutabilidade da sua fidelidade às
suas promessas como quer que ele as cumpra. No seu modo de
agir em virtude da aliança, Deus é a novidade absolutamente
imutável da sua liberdade e esta não exclui que ele reaja sobe­
ranamente ao modo de agir humano”.39 O sinal supremo e escan­
daloso dessa fidelidade sempre antiga e sempre nova do Deus
cristão, que se faz outro e venha a ser na permanência do seu
amor, é a Cruz do Senhor Jesus. “A morte do Filho de Deus,
a prova da onipotência de Deus na impotência da cruz, é a
expressão que excede a priori qualquer expectativa e qualquer
projeto prévio, da livre fidelidade de Deus às suas promessas”.40
A exegese cristã de Deus não se deixa prender nas malhas de
um sistema filosófico, mas, a partir do escândalo da cruz e da
inaudita novidade da Ressurreição, se desenvolve de maneira
subversiva e crítica: “O lugar da doutrina trinitária não é o
‘pensamento do pensamento’, mas a cruz de Cristo”.41 Portanto,
“não se pode determinar a priori um conceito de imutabilidade
de Deus, que depois se aplicaria à doutrina do mistério da Encar­
nação e manteria esse mistério dentro de certos limites. A pró­
pria Encarnação, com o compromisso divino que implica, nos
ensina que gênero de imutabilidade e de mutabilidade é preci­
so reconhecer em Deus”.42 Aos “bem-pensantes” que protestam
diante de um devir divino, que implicaria pobreza e limitação
em Deus, o Deus cristão se mostra em todo o escândalo do
abandono de Jesus na cruz e da novidade pascal de vida recon­
ciliada nele para o mundo. É um Deus dos pobres: as astúcias
da razão não se mantêm diante do estraçalhamento de toda ana­
logia, que a Ressurreição representa. Fazendo-se história, embo­
ra permaneça diferente dela, o Deus cristão aceitou unir a si o
escândalo da dor e da miséria do mundo, a história do pobre
que espera e caminha, o devir do sofrimento e da esperança

39 H. Mühlen, La mutabilità di Dio, op. cit., p. 50.


40 Ibid.
41 J. Moltmann, II Dio crocifisso, op. cit., p. 281.
42 J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, op. cit., p. 251.

195
humana. Também aqui, não é lícito aos que ouvem a sua Pala­
vra, separar o que Ele uniu!

b) É no contexto da narração dessa história, densa de pro­


messa e suscitadora de esperança e de vida, mas por isso. mes­
mo irredutível a uma fria compreensão intelectual (como tam­
bém o é a Ressurreição!), que se coloca agora a interrogação
mais determinada sobre o Crucificado-Ressuscitado: quem é
este? A resposta da história trinitária de Deus podería ser dada
com “vínculos novos” assim: este homem Jesus é o Senhor; o
sujeito da história humana, que vai do nascimento de Maria à
sombra opaca da morte na cruz, é o sujeito divino ao qual o
Pai comunica a plenitude do Espírito de vida, constituindo-o
diante do mundo Senhor e Cristo. Em outras palavras, Jesus é
o Senhor significa que o sujeito das relações humanas concretas
que tantos, entre os proclamadores e os destinatários do anún­
cio originário, tiveram com o Nazareno, o Galileu processado e
condenado à morte no madeiro da vergonha, é o sujeito da rela­
ção única e exclusiva com o Pai no Espírito, revelada na plenitu­
de da Páscoa, é o Filho de Deus, o Messias. O autêntico e forte
escândalo, que abalou os discípulos na experiência das apari­
ções e os transformou, de fujões medrosos, em testemunhas sem
medo, capazes de sacrificar a própria vida, o mesmo autêntico
e forte escândalo, que impediu a tantos dos destinatários do
anúncio cristão que cressem nele, deve ressoar no momento em
que se professa a certeza da fé pascal: Jesus é o Senhor, o Filho,
o Messias. O mesmo que viveu humaníssimas relações de amor,
de dor, de oferenda, de rejeição, é aquele que vive a relação
única e exclusiva de vida e de amor com o Pai no Espírito. O
mesmo que nasceu de Maria, cresceu em idade, sabedoria e
graça, trabalhou-com mãos de homem, sofreu com-coração de
homem, suou sangue na hora da agonia, e morreu no lenho da
maldição, é o que o Pai reconhece como Senhor no Espírito, e
que por isso é Vivente, “ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8), para
dar a vida que não acaba. O sujeito da história humana, que
vai da Galiléia a Jerusalém para acabar morrendo na Cruz,
é o sujeito da história divina, que o une eternamente ao Pai e ao
Espírito, e se revela de maneira perturbadora na Páscoa. Ele
une em si dois âmbitos de relações, dois feixes de forças entre
as quais está o abismo que separa o céu da terra: é na “forma”

196
de Deus e na “forma” de servo (cf. F1 2,6-7: m orphé, onde
“forma” quer dizer “o âmbito em que nos encontramos e que
nos envolve como um feixe de forças” (Kãsemann). É o homem
de Nazaré e é o Filho de Deus! Não é, como mostra desde as
origens da fé cristã a doutrina da preexistência e como o desen­
volvimento do dogma repetiu contra as diversas heresias, um
homem que se torna Deus: é o Filho de Deus, que se fez homem,
conservando sempre, também no estado de humilhação, a sua
inaudita relação com o Pai, a sua condição única de sujeito na
história divina, mesmo quando se tornou sujeito de uma huma­
níssima história de dor e de morte. “Não é um homem que se
torna Deus: o homem não é aqui ‘sujeito’, ‘alguém’, ‘pessoa’. É
o Filho que se faz homem. O sujeito que é Filho, existindo de
maneira divina, assume a maneira humana de existir. É sempre
o mesmo sujeito, o mesmo alguém, e é este sujeito que funda a
unidade dos dois modos de ser: o divino e o humano”.43 “Pes­
soa” em Cristo significará, portanto, de forma não diferente do
contexto trinitário, sujeito de história, “relação subsistente”, e
precisamente o sujeito da história divina com o Pai no Espírito,
Aquele que desde a eternidade foi gerado no Espírito pelo Pai,
e no tempo — de maneira que rompe todas as analogias deste
mundo — foi ressuscitado pelo Pai no Espírito. Esse sujeito de
história divina, irredutível às medidas da história deste mundo,
entrou em relação com os homens em Jesus Nazareno crucifi­
cado e ressuscitado, tornou-se “carne, sujeito de uma história
verdadeiramente humana: aí está o paradoxo pascal. Autêntico
e forte escândalo não é a divinização de um homem, mas a hu-
manização de Deus, isto é, o fato de que Deus tenha-se torna­
do homem, tenha se comprometido conosco e por nós, esteja ao
nosso lado. O paradoxo cristão é esvaziado por aquele que não
confessa o Filho de Deus, no homem que pende do madeiro da
vergonha, ou não reconhece no Senhor ressuscitado o humilde
Crucificado de Nazaré!
Verdadeiramente, portanto, em Jesus Cristo “o céu desceu
à terra e nela mergulhou suas raízes” (Hegel): os dois mundos,
o de Deus e o dos homens, são reconciliados. Torna-se possível
falar de “história” de Deus; mais ainda, a história se torna o
único horizonte em que é possível falar menos infielmente dele.

43 C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, p. 281.

197
Com efeito, Jesus Cristo, na sua escandalosa identidade de único
sujeito da história divina e da história humana, que nele se
realizam, é a aliança em pessoa: nele não se encontram, estati-
camente, duas naturezas simétricas numa única hipóstase, mas
dinamicamente duas condições, duas histórias totalmente diver­
sas e incomparáveis, das quais ele é o mesmo sujeito, num
fecundo devir de relações. Esse encontro dinâmico e desconcer­
tante é ao mesmo tempo abertura de um mundo ao outro, e
subversão do mundo humano por parte do mundo de Deus. “O
Filho, inserindo-se no mundo das relações humanas mediante o
seu ser relacionai, transforma o mundo das pessoas... Mediante
a horizontalidade estabelecida com os homens, abre-lhes o cami­
nho da horizontalidade para o Pai”.44 Essa horizontalidade, que
se consuma no Espírito Santo, é antes de tudo libertação, paz,
alegria de vida e festa de reconciliação; mas é também, e ao
mesmo tempo, contestação e perturbação da realidade humana.
Se a Ressurreição não é separável da vergonha da Cruz, o sim
que o Pai disse ao Crucificado ressuscitando-o da morte é o
mesmo sim que Ele diz no Espírito a todo crucificado da histó­
ria, e é por isso o violento e implacável não que Ele diz aos cru-
cificadores de todos os lugares e de todos os tempos. “Jesus
estará em agonia até o fim do mundo; e até então não se po­
derá mais dormir” (Pascal). O Deus trinitário tomou posição na
Páscoa também neste sentido: Ele garantiu a sua proximidade
ccroborante a todos os que estão representados no opróbrio da
cruz, soma de toda injustiça e de toda dor humana; mas tam­
bém e ao mesmo tempo relegou ao ostracismo tenebroso da
rejeição e do afastamento de si todos os que causaram e cau­
sam injustiça e produzem a tragédia desumana dos pobres cru­
cificados deste mundo. A história do Crucificado-Ressuscitado
anuncia aos pobres a alegre mensagem de que a sua agonia é ago­
nia de Deus: por isso, a vida nova daquele que foi exaltado é
refutação da injustiça e garantia de vitória para o seu sofrer. E ao
mesmo tempo anuncia aos detentores do poder iníquo que o Deus
da promessa ‘manifestou o poder de seu braço, dispersou os so­
berbos nos pensamentos do seu coração; depôs do trono os pode­
rosos e exaltou os humildes. Cumulou de bens os famintos e
despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Páscoa é recon­

44 J. Galot, Chi sei íUr o Cristo?, op. cit., p. 286.

198
ciliação e rompimento; é paz e revolução; é comunhão e sub­
versão. Aquele que é em pessoa a aliança, é também em pes­
soa o julgamento, a reprovação e a morte dos que julgam, repro­
vam e condenam à morte os crucificados, seus semelhantes. Tam­
bém deste ponto de vista, o paradoxo pascal não se deixa apri­
sionar em “acomodações” tranqüilizadoras.
Na Páscoa revela-se assim a história humana de Deus: se
o sujeito de toda ação do Nazareno é o Filho eterno, todo ato
deste homem é revelação do mistério divino. Em Jesus de Naza­
ré, nas obras e nos dias de sua vida e de sua morte, oferece-se
a face humana de Deus: todo gesto seu, todo aspecto de sua
verdadeira e plena humanidade, todo instante de sua humanís­
sima vida, é aparição de Deus entre os homens, e por isso deve
ser valorizado pela fé e pela reflexão cristã. O amor carinhoso
de tantos santos pela humanidade do Sal\ .dor, a atenção ao
“Dominus humanissimus”, que com muita freqüência pareceu
estranha à teologia e familiar somente à piedade cristã, capta um
aspecto profundo do paradoxo cristão: diminuir a humanidade
de Cristo é diminuir a sua divindade! Deus não concorre com o
homem em Jesus: o humano é plenamente assumido e radical­
mente valorizado na história do Filho do Homem, como veículo
eficaz, como “sacramento” do Filho eterno que entrou neste
mundo. Compreende-se, por isso, como são pouco cristãs aque­
la teologia e aquela piedade que negligenciam a vida histórica
concreta do Senhor Jesus, em todo seu realismo e também em
todo o seu escândalo. Ao contrário, parece uma indicação pre­
ciosa a doutrina tradicional da causalidade instrumental da hu­
manidade de Cristo,43 por força da qual Sto. Tomás dedicou à
vida concreta do Nazareno uma atenção teológica de excepcio­
nal riqueza: “Todas as coisas que foram realizadas na carne de
Cristo, foram salutares para nós em virtude da divindade uni­
da” .4546 A ação de Jesus é toda “como uma evocação ou uma
parábola viva da ação de Deus... o seu comportamento é a trans-

45 Cf. Summa Theol., III, q. 2, a. 6, ad 4; cf. também q. 18, a. 1,


ad 2; 48, a. 6, c.; etc. Cf. M. Bordini, “La strumentahtà deli azione uma-
na di Cristo: mistero di presenza delPeternità nel tempo” in II Tempo,
valore filosofico e mistero teologico, Roma, 1965, pp. 166ss.
46 Comp. Theol., 239. Aos “mysteria vitae Jesu” são dedicadas as
qq. 27-59 da III Pars da Summa Theologiae. Cf. I. Biffi,*J misteri delia
vita di Cristo in S. Tommaso d’Aquino, Varese, 1972.

199
crição humana do comportamento de Deus”;47 mais do que
“comunicação dos idiomas”, que reflete uma consideração está-
tico-metafísica do Cristo, dever-se-ia falar então, como faz a
Escritura, do mistério” dele, isto é, de uma história deste mundo
em que se revela a história eterna de Deus.
Do que dissemos derivam duas conseqüências para a refle­
xão cristclógica: em primeiro lugar, se todo ato da vida de Jesus
de Nazaré é história do Filho que montou a sua tenda no meio
de nós, todo ato de sua vida envolve a totalidade da história
trinitária, isto é, implica uma relação com o Pai no Espírito. A
Ressurreição atesta que os dois sujeitos da história divina que
não se encarnaram, a pessoa” do Pai e a do Espírito, nem por
isso são espectadores estranhos à história do Verbo feito carne:
eles a vivem com o Verbo, cada um de acordo com a particular
relação que o caracteriza como aquela pessoa e não outra. Assim,
a partir da Páscoa pode-se dizer que toda a história de Jesus é
revélação da história trinitária de Deus, transparência terrena
do pôr-se e propor-se dos Três nas várias relações que têm entre
si e nas quç têm, através do Encarnado, com o mundo. Em
Jesus revela-se ao mesmo tempo a face trinitária de Deus e a
relação do mundo com o Pai, enquanto é manifestado e dado o
Espírito da comunhão trinitária e da reconciliação entre Deus e
os homens. Compreende-se, então, como um teologia que negli­
gencie o vínculo permanente de toda asserção cristológica com
o mistério trinitário, num divórcio de horizontes que infelizmen­
te ainda deve ser lamentado, se dissolva de um lado numa cris-
tologia metafísica, bastante árida e abstrata, e de outro numa
doutrina trinitária conceituai e pouco ligada ao revelar-se con­
creto do Deus trinitário na economia da salvação. Recuperar a
dimensão trinitária da história de Jesus é a única saída que tem
o homem para abrir-se às profundezas de Deus e ter dele uma
idéia cristã e nao racional, “filosófica”, )e — com relação ao
escândalo da cruz — no fundo atéia.
A segunda conseqüência diz respeito à exigência de se
recuperar, em cristologia, a atenção à história concreta do Na­
zareno, e portanto aos chamados “mistérios” de sua vida.48 A
47 C. Duquoc, Cristologia, op. cit., pp. 634-637.
48 Cf. A. Grillmeier, “Considerazicne storica sui misteri di Gesü in
generale” in Mysterium Salutis VI, Bréscia, 1971, pp. 12-35; M. Seren-
thà, “Misteri di Cristo” in Dizionario Teologico Interdisciplinare Suppl.,
Turim, 1978, pp. 10-24.

200
própria comunidade das origens sentiu a necessidade de reler, à
luz da Páscoa, os eventos da vida terrena do Senhor, e de captar
neles a tensão já presente, que explodiu na plena revelação pas­
cal. Na sua vida humana integral, Jesus Cristo é a revelação
de Deus: 49 funda-se aqui a exigência de penetrar, através de
cada um dos “mistérios", único caminho de acesso a ele, o mis­
tério do seu ser homem, revelação de Deus. Não se trata de
narrar mais uma “história de Jesus”, na qual se projetariam, de
maneira mais ou menos ampla, as interrogações e a sensibilida­
de do presente; nem, muito menos, de tentar fazer uma análise
psicológica do Cristo, que seria totalmente arbitrária, devido
aos elementos de que dispomos. Trata-se também de estabelecer
“vínculos novos com a linguagem concreta dos “mistérios” de
Jesus, investigando nestes as dimensões do humano, que se reali­
za integralmente nele e que, como tal, é revelação do Deus trini-
tário.
Ser homem significa viver de uma profunda tensão, que se
coloca no tecido concreto de relações, em que cada um vive e
age: o homem pode ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de
história; pode programar e ser programado; manipular e ser
manipulado; dominar e ser dominado; cometer injustiça e pa­
decê-la; viver e estar sujeito à morte. A condição humana é uma
condição limite, um estar situado nos lindes da historicidade:
de um lado, estar alinhado entre os fatos “brutos”, que se suce­
dem sem sentido, envolvem e não raramente perturbam o ho­
mem; de outro, ser capaz, pela força da consciência livremente
criadora, de orientar o futuro. “Humano” significa então ao mes­
mo tempo situar-se criativamente frente ao outro na consciên­
cia e na liberdade e ser determinado pela finitude, da qual cada
um é mais ou menos prisioneiro. “Humano” é pôr-se e propor-se

49 Cf. }. Alfaro, “Cristo glorioso, rivelatore dei Padre” in Cristo-


logia e antropologia, Assis, 1973, pp. 156-204; T. Citrini, Gesú Cristo
rivelazione di Dio. II Tema negli uttimi decenni delia teologia cattolica,
Venegono Inf., 1969; J. Dijkman, Christus, Offenbarung des dreieinigen
Gottes. Historischer und eschatologischer Charakter dieser Offenbarung,
Freiburg i.B., 1959; f. Moingt, “ ‘Montre-nous le Père’. La question de
Dieu en Christologie” in Recherches de Science Religieuse 69 (1977),
pp. 305-37. L. Serenthà, Gesú Cristo rivelatore dei Padre, Roma, 1971;
S. Verges — f. M. Dalmau, Dio rivelato in Cristo, Roma, 1972. Cf. tam­
bém W. Pannenberg, R. Rendtorff, T. Rendtcrff, U. Wilckens, Rivela­
zione come storie, Bolonha, 1969, e. H. R. Schlette, Epifania come storia,
Bréscia, 1966.

201
no devir, como sujeito livre e consciente de história, e suportar
o peso da cruz do presente, com toda a concretude e brutalida­
de com que ele pode apresentar-se. “Humano” é conhecer e
amar, saber e querer, mas é também sofrer, entrar em choque
com a dureza do obstáculo ou da rejeição, sentir-se envolvido
pelo futuro obscuro e pela inquietação do crescimento e da espe­
ra. Na complexidade do “humano” entrelaçam-se assim dimen­
sões múltiplas e contrastantes: à abertura da consciência e da
liberdade contrapõe-se o horizonte determinado e condicionante
em que estamos colocados; ao pro-por-se, fruto da criatividade
consciente e livre, contrapõe-se o pôr-se, o existir num determi­
nado limite, a finitude do existir. Conseqüentemente, falar com
propriedade do homem Jesus exigirá que se preste atenção a
essas várias dimensões, como elas se manifestam nos “mistérios”
concretos da sua vida. Assim, poderemos abrir-nos ao “mistério”,
sempre mais rico do que possamos compreender, da sua huma­
nidade, revelação de Deus.
Delineia-se dessa forma a estrutura das reflexões que vêem
a seguir: partindo da luz pascal — da qual procuramos aproxi­
mar-nos neste capítulo através dos “novos vínculos” com o “dia­
leto de Canaã” — , faremos, nela, uma releitura da história hu­
mana do Nazareno. Abordá-la-emos através dos seus “misté­
rios”, nos quais se apresenta o mistério de sua humanidade, na
complexa articulação de suas escolhas conscientes e livres dian­
te da finitude em que está colocado. Esse procedimento — de
certa forma análogo ao da reflexão fontal do Novo Testamento
— , indagará, a partir dos “mistérios”, a autenticidade da histó­
ria humana de Jesus, isto é, o devir não só exterior, mas tam­
bém interior a ele (a consciência que Jesus tem de sua história:
cap. 8). Será confrontado, depois, com o problema da sua liber­
dade, tal como se revela nas opções fundamentais da sua vida e
nas escolhas concretas do seu situar-se entre os homens, na
sociedade do seu tempo (a história de Jesus com o história de
liberdade; cap. 9). Por fim, considerará a finitude do Nazareno,
nas suas formas diversas e concretíssimas (a finitude de Jesus:
cap. 10). Nessa abordagem da humanidade plena e verdadeira
de Jesus Cristo nos eventos da sua história, será possível abrir­
mos ao que nela nos foi revelado sobre o Deus trinitário, e inter­
rogarmos, conseqüentemente, sobre o apelo à decisão e ao segui­
mento que tal revelação de Deus propõe ao homem. O reconhe­

202
cimento da história divina na história humaníssima do Nazare­
no não é, efetivamente, um exercício inócuo da razão: como o
reconhecimento pascal do Crucificado no Ressuscitado, ele está
carregado de energia, de força transformadora e crítica, e se
torna urgência para uma nova práxis de vida, empenho num
caminho de libertação, que faça desta terra de crucificados e
crucificadores uma terra de ressuscitados. O resultado dessa
complexa abordagem do mistério do homem Jesus, e nele do
mistério do Deus trinitário, que liberta e provoca ao seguimen­
to, será uma espécie de “cristologia da história de Jesus”, de
releitura pascal dos “dias da sua carne” em que nos é narrada
a história de Deus. A essas reflexões deverá seguir — analoga­
mente ao que aconteceu no aprofundamento originário da fé —
a elaboração de uma “cristologia da história da Igreja e do
mundo”. Ou seja, impelindo a releitura pascal para trás, em
direção ao amplo passado, e para frente, em direção ao futuro,
tensos entre a origem e o fim, e sempre atentos à densidade do
tempo que está no meio, proporemos a questão do significado
da história de Jesus na história dos homens, que é o problema
da sua “singularidade” (cap. 11), e da maneira pela qual o
Ressuscitado se torna presente para transformar o “hoje” de
escravidão, de sangue e de lágrimas. Esta última reflexão, sobre
a obra do Cristo para nós e sobre a sua “contem poraneidade”
(cap. 12), por um lado concluirá a consideração sobre “Jesus
Cristo, Deus da história”, e por outro se ligará imediatamente
ao presente, isto é, àquilo que aqui e agora a oferta de salvação
no Crucificado-Ressuscitado pode significar para o homem. A
essa altura, a “cristologia da palavra” estará apta — como o
velho Simeão — a cantar o seu fim e o seu louvor, para tornar-
-se, ao menos na esperança, “cristologia do silêncio e da vida”.

203
JESUS DE NAZARÉ, HISTÓRIA DE DEUS
8

UMA VERDADEIRA H ISTÓ RIA

A consciência que Jesus tem de sua história

8 .1 . A HISTÓRIA DE JESUS DE NAZARÉ

Entre 7-6 a.C. e 30 d.C. desenvolve-se a história de Jesus


de Nazaré: 1 sobre ela os Evangelhos nos fornecem certo núme­
ro de informações criticamente incontestáveis. Jesus nasceu sob
o imperador Augusto (63 a.C.-14 d.C.: cf. Lc 21,1); sua cidade
de origem é Nazaré, no território da Galiléia, região semipagã e
por isso desprezada pelos israelitas puros; sua família era he-
bréia, e a língua falada era o aramaico galileu,12 o dialeto que
fará com que Pedro seja reconhecido no pátio do Sumo Sacer­
dote (cf. Mt 26,73). Jesus certamente conhecia também o anti­
go hebraico, necessário para a leitura das Sagradas Escrituras.
Não consta que falasse grego, língua bastante difundida na
Palestina de seu tempo; ele, com certeza, não revela uma men­
talidade grega. A mãe, Maria, era esposa de um carpinteiro, José.
Provavelmente este foi também o ofício do jovem galileu. Tinha
parentes que, no início de sua vida pública, se mostraram sur­
presos e escandalizados com o seu modo de proceder: “E quan­
do os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo,

1 Sobre a data do seu nascimento, cf. H. U. Instinsky, Das Jahr der


Geburt Christi. Eine geschichtswissenschaftliche Studie, Munique, 1957;
sobre a data da morte, cf., por exemplo, J. Blinzler, II processo di Gesú,
Bréscia, 1966, pp. 85ss. Cf. M. Sala, “Gesü, Cronologia delia vita di”, in
Enciclopédia delia Biblia, III, Turim, 1970, pp. 896-902.
2 Cf. J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, T. La predicazio-
ne di Gesú, Bréscia, 1976, 2‘ ed. (ed. bras.: Teologia do Novo Testa­
mento: a pregação de Jesus, Edições Paulinas, São Paulo, 1980, 469 p .);
M. Black, “Gesü Cristo, La língua di” in Enciclopédia delia Biblia, III,
op. cit., pp. 970-76. '

207
porque diziam: ‘Enlouqueceu!’ ” (Mc 3,21). Depois do batismo,
recebido através de João, iniciou sua vida pública, primeiro na
Galiléia, na região do lago de Tiberíades, depois na Judéia, em
Jerusalém. Tinha cerca de trinta anos (cf. Lc 3,23): não é certa
a duração de sua pregação. João fala de três Páscoas (2,13;
6,4; 11,55); com base nos Sinóticos, poder-se-ia supor que tudo
se passou em apenas um ano. Parece certo que no começo fizes­
se algum sucesso entre o povo; mas bem depressa foi surgindo
uma reação por parte dos poderosos, que culminou com o dra­
ma do seu processo. A sua atividade pública desenvolveu-se sob
o império de Tibério (14-37), quando Herodes era tetrarca da
Galiléia (4 a.C.-39 d.C.: Lc 3,1). Foi crucificado sob o procura­
dor romano Pôncio Pilatos. O “titulus crucis”, isto é, o motivo
da condenação escrito sobre a cruz indica-o como agitador polí­
tico: “Jesus Nazareno, rei dos judeus” . Sua morte foi, ao que
parece, um “assassínio político-religioso”, no qual estavam envol­
vidos, de diferentes maneiras os dirigentes hebreus e Pilatos.3 I
Mas não são apenas esses poucos dados que colhemos da
narração dos evangelhos. Ainda que seja, evidentemente, impos­
sível escrever uma biografia de Jesus, porque os evangelistas
“atestam a sua fé sob forma de uma história, e interpretam essa
história à luz da própria fé”, não é arbitrário afirmar que “os
traços característicos da figura e da pregação de Jesus são bas­
tante nítidos”.4 Não há dúvida de que ele passou no meio de
seu povo fazendo o bem (cf. At 10,38): “Na tradição dos mi­
lagres encontramo-nos diante de uma recordação de Jesus de
Nazaré baseada na impressão que ele causou no povo simples e
rural da Galiléia, esquecido por todos os movimentos e agrupa­
mentos religiosos”.5 Parece também certo o conteúdo central da
sua pregação e o estilo dela: Jesus anunciou o Reino de Deus
como iminente (cf. Mc 1,15 e par.: Mt 3,2;4,17; Lc 10,11) 6 e o

3 Cf. a conclusão do livro de J. Blinzler, cit., pp. 417ss, especial­


mente a p. 420, n. 2.
4 W. Kasper, Gesú il Cristo, Bréscia, 1975, pp. 82 e 81.
5 E. Schillebeeckx, Gesú, la storia di un vivente, Bréscia, 1976, 186.
6 A expressão aparece mais de cem vezes nos evangelhos sinóticos,
para depois diminuir sensivelmente sua freqüência nos outros escritos
do Novo Testamento. Ao Jesus que anuncia o Reino sucede a comuni­
dade que anuncia Jesus como Cristo. Cf. H. Kleinknecht — G. von Rad
— K. G. Kuhn — K. L. Schmidt, “Basileus, Basiléia” in Grande Lessico
dei Nuovo Testamento II, Bréscia, 1966, pp. 133-212; G. Barbaglio,

208
fez com uma autoridade e imediatez impressionantes: “Jesus
veio para a Galiléia proclamando o Evangelho de Deus: O tem­
po está realizado e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos
e crede no Evangelho... Extasiavam-se com o seu ensino, por­
que lhes ensinava com autoridade... (Mc 1,14-15 e 22; cf. tam­
bém 27). Ao contrário dos fariseus — que esperavam o Reino
de Deus como tempo de plena realização da Lei — , dos zelotes
— que projetavam uma teocracia política instaurada com as
armas — , dos apocalípticos — que sonhavam com uma nova
era, os céus novos e a nova terra que viriam do alto — , e do
Batista — que proclamava ameaçadoramente o iminente julga­
mento divino (cf. Mt 3,10-12) — , Jesus anuncia a soberania de
Deus com possibilidade próxima e definitiva de salvação, que é
oferecida através de sua palavra e de sua ação, e que deve ser
acolhida com a conversão do coração: “Convertei-vos, porque
o Reino de Deus está próximo” (Mt 4,17). A “causa” do Naza­
reno está assim estreitamente ligada à sua pessoa.7 Jesus se apre­
senta como aquele no qual o Reino de Deus vem, e que por
isso exige uma decisão por parte do homem.8 “No encontro com
Jesus não se dá mais tempo a ninguém: o passado do qual vem
não é confirmado, e o futuro com que cada um sonha para si
não é mais assegurado. Mas precisamente assim todo indivíduo
recebe o seu novo presente. Porque a vida, o mundo e a existên­
cia de cada indivíduo encontram-se agora no imprevisto feixe
de luz do Deus que vem, na luz de sua realidade e de sua
presença. Esse é o tema do anúncio de Jesus”.9 Nele se apresen­
ta a hora da inaudita oferta de salvação, e por isso também a
hora da decisão, do supremo “aut... aut”, colocado não em
alguma coisa, mas em alguém, naquele em quem os tempos se
completaram: “Segue-me, e deixa que os mortos enterrem seus

“Regno di Dio. I: Aspetto bíblico” in Nuovo Dizionario di Teologia,


Roma, 1978, pp. 1.235-1.243.
7 Cf. W. Kasper, Gesú il Cristo, op. cit., p. 133, e A. Feuillet, “Le
Règne de Dieu et la personne de Jésus d’après les Evangiles synopti-
ques” in A. Robert — A. Feuillet, Introduction à la Bible, II, Tournai,
1959, pp. 771-818 (ed. bras.: Introdução à Bíblia, Herder, São Paulo,
1967-68, 5 vol.).
8 Cf. R. Bultmann, Gesü, Bréscia, 1972 (Tübingen, 1926), por
exemplo p. 125) (“trata-se de tomar uma decisão por ele ou contra ele”) ,
p. 137 (a pregação de Jesus é “apelo à decisão e à conversão”) ; etc.
9 G. Bornkamm, Gesü di Nazareth, Turim, 1975, p. 59 (ed. bras.:
Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1976, 194 p.).

209
mortos!” (Mt 8,22). O anúncio do Reino, no seu vínculo com
a pessoa e as obras do pregador galileu e no apelo à decisão,
que acarreta, contém assim uma cristologia indireta, implícita,
que será explanada e explicitada pela Igreja nascente à luz da
experiência pascal. A pretensão do Nazareno antecipa, de ma­
neira imediata e inesperada, a convalidação que será dada pelo
futuro de Deus no evento imprevisível e perturbador da Ressur­
reição. A pregação e obra de Jesus estão, portanto, permeadas
de futuro e abertas à poderosa novidade de Deus, que ele não
hesitou em anunciar como próxima, até mesmo imediata: para
o crente, essa espera a curto prazo “não permaneceu irrealiza-
da... Ela se realizou no próprio Jesus, porque apareceu nele a
realidade escatológica da ressurreição dos mortos”.101Com efeito,
ao contrário dos apocalípticos, que também pregavam a iminên­
cia dos últimos tempos, Jesus relacionou a hora escatológica
consigo mesmo: a salvação entrou na história com a sua pes­
s o a .11 Ele não é um visionário exaltado que espera a iminente
convulsão cósmica, com a qual se instaurará o Reino.12 Todavia,
ele também não é aquele que vê o Reino entrar na história e
identificar-se com ela sem transtornos.13 O seu anúncio é denso
de tensão entre realização e promessa: as parábolas do Reino
(cf. Mt 13) sublinham que ele já está presente, e contudo ainda
não está totalmente presente. E sobretudo a imagem muito usa­
da da semente e do fruto (cf. Mc 4,1-9.13-20 e par.; Mc 4,26-29;
Mc 4,30-32 e par.) — nos quais a mentalidade oriental capta
muito melhor a surpreendente descontinuidade do que a conti­
nuidade orgânica — mostfa que as surpresas da promessa de
Deus não acabaram; ao contrário, são reavivadas pelas obras e
pelos dias de Jesus de Nazaré, e pelo sim que Deus disse à
pretensão neles contida.
Essa pretensão certamente teve um papel importante no
choque do profeta galileu com os poderosos do seu tempo: ela

10 W . Pannenberg, Cristologia, Lineamenti fondamentali, Bréscia,


p. 298.
11 Cf. Id., ibid., p. 60.
12 Cf., por exemplo, as teses do "escatologismo conseqüente” : J.
Weiss, Die Predigt Jesu vom Reiche Cottes (1892), org. por F. Hahn,
1964, e A. Schweitzer, Geschichte der Leben-Jesu-Forschung (1906),
Tübingen, 1977, 3? ed.
13 Levam a pensar assim a exegese e a teologia tradicional, que
identificam Igreja e Reino de Deus.

210
se apresentava como alternativa demasiadamente absoluta à
autoridade dos guardiões da Lei, para não suscitar neles preo­
cupação e ressentimento; ela incentivava de maneira excessiva­
mente aberta as esperanças de Israel, para que o poder polí­
tico não temesse um desvio em termos de rebelião contra o
ocupante romano, /fesus era incômodo para todos, inclusive os
zelotes, os homens da resistência armada à opressão; estes, de­
pois de um provável entusiasmo inicial, ficaram desiludidos
com õ profeta galileu e contribuíram para que a multidão pre­
ferisse Baírabás como elemento mais útil e promissor.14 Dadas
essas premissas, não é de estranhar a solidão em que morre o
Nazareno.
A história de Jesus parece, então, semelhante a tantas
outras e ao mesmo tempo singular: como toda história huma­
na, desenvolve-se num lugar e num tempo determinados, com
condicionamentos iguais aos de tantos outros contemporâneos
seus, com as possibilidades limitadas e ao mesmo tempo únicas
oferecidas pela terra de Israel. É uma história verdadeiramente
humana, construída no futuro, que vai dos obscuros anos de
Nazaré à virada decisiva assinalada pelo batismo; do início da
vida pública, através dos dias entusiasmantes e dramáticos da
pregação, à solidão total do Getsêmani e da Cruz. Um fragmen­
to de história, como tantos^ carregado de alegrias e de dores, de
fadigas e de lágrimas, de vida e de morte. Mas, ao mesmo tem­
po, a história do Nazareno foi de uma dimensão singular, des­
concertante, que se resume na sua pretensão, no seu anunciar
em palavras e obras a vinda do Reino na sua pessoa. Não é só
a singularidade de um amor, que chega a dar a vida pelos ami­
gos (cf. Jo 15,13). É o mistério de um apelo à decisão, a ansie­
dade por encontrar-se diante de uma exigência absoluta, de uma
oferta inaudita. Sem esta unicidade, dificilmente se explicaria
o processo de Jesus e sobretudo as conseqüências por ele susci­
tadas: tanto ódio e tanto amor não podem ter se originado a não
ser da singularidade de sua pessoa. Poder-se-á negar a historicida-
de deste ou daquele particular, mas não se poderá negar que o
Nazareno tenha sido, no meio dos homens, um “sinal de contra­
dição”.

14 Sobre as relações entre Jesus e os vários grupos do seu tempo,


cf. o capítulo seguinte.

211
Portanto, devem ser confrontados dois dados da história
de Jesus de Nazaré* de um lado, o devir humaníssimo em que
ela se construiu; de outro, a singularidade, o mistério _que nela
se encerra, e que na sua profundidade, foge à percepção do his­
toriador. No momento em que este segundo elemento encontra
explicação na fé pascal, e se reconhece no “filho do carpinteiro”
o “filho de Deus”, surge naturalmente a questão: como se conci­
liam a obscuridade e a progressividade próprias de toda histó­
ria humana com as prerrogativas da condição divina, que a
comunidade das origens confessou ser própria do Nazareno des­
de o primeiro instante de sua “carne”? É o problema da histó­
ria não só exterior, mas também interior de Jesus Cristo; é o
problema da sua ciência e da sua consciência.

8 .2 . A CONSCIÊNCIA QUE JESUS TEM DE SUA HISTÓRIA

a) Que consciência teve Jesus de sua história? Pode-se


falar de um verdadeiro crescimento na sua consciência e nos
seus conhecimentos, correspondente ao devir exterior da sua
vida? Há nele uma passagem da obscuridade à luz, da ignorân­
cia à consciência? Dá-se uma história da sua consciência? Viveu
ele, como nós, a inquieta obscuridade do devir ou, por causa da
divindade de sua pessoa, faltou nele essa dimensão tão humana
da existência?
A cristologia tradicional respondia a essas perguntas a par­
tir de um esquema “descendente” : se Deus se fez homem, é
necessário reconhecer nesse homem todas as perfeições possí­
veis conseqüentes à “união hipostática”. Ou seja, unicidade do
sujeito divino fundaria a exigência de reconhecer em Jesus, ao
lado do conhecimento divino, um conhecimento humano, ade­
quado o quanto possível à perfeição da pessoa que conhece. Por
força desse “princípio de perfeição”, distinguia-se uma tríplice
ciência humana do Cristo: ao lado da visão de Deus eram colo­
cadas a ciência infusa do alto e a ciência adquirida com as

212
experiências deste mundo.15 Assim, Jesus teria gozado ao mesmo
tempo da visão beatífica,10 de conhecimentos extraordinários de
ordem sobrenatural e dos conhecimentos experimentais, pró­
prios de todo homem. A imagem que disso resultava era a de
um Jesus “onisciente”, sempre absorto na beatitude da contem­
plação de Deus, que, condescendente para com o homem, e com

15 Cf., por exemplo, Summa Theol. III, qq. 9-12. H. Riedlinger,


Geschichtlichkeit und Vollendung des Wissens Christi, Friburgo-Basiléia-
Viena, 1966, traça a história da doutrina nesta matéria, do Novo Testa­
mento (pp. 24-71), aos Padres (pp. 73-83), à Idade Média e ao suces­
sivo desenvolvimento até o modernismo (pp. 83-96), às intervenções
magisteriais (pp. 101-38), até os novos caminhos da compreensão histó­
rica (pp. 139ss). O autor sublinha, de um lado, a progressiva atenção
dada por Santo Tomás à ciência adquirida de Cristo (cf. Summa Theol.
III, q. 9, a. 4: “quamvis aliter alibi scripserim”) ; de outro lado, afirma
claramente — na conclusão da sua análise histórica — que a visão de
Deus em Jesus “não deve... ser compreendida de modo tal que a su-
perabundância da glória elimine a historicidade terrena e deixe lugar
somente a uma compreensão docetista da vida espiritual humana de
Jesus” (p. 159). Sobre a questão da ciência e da consciência de Cristo
cf., além disso, entre a bibliografia recente: R. E. Brown, “Scienza e
coscienza di Cristo” in Gesú Dio e Uomo, Assis, 1970, pp. 53-121; E. F.
Crowe, Escatologia e missione terrena in Gesú di Nazaret, Catânia,
1976; J. Galot, La coscienza di Gesú, Assis, 1971; E. Gutwenger, Be-
wusstsein und Wissen Christi. Eine dogmatische Studie, Innsbruck, 1960
e “La coscienza di Cristo” in Concilium 1966, 11, pp. 107-49; M. Laconi,
“La coscienza messiânica di Gesú” in Sacra Doctrina, 16 (1971), pp.
449-83; G. Marchesi, “La coscienza ‘dialogica’ di Gesú in Rassegna di
Teologia 14 (1973), pp. 108-26; J. Maritain, Delia grazia e delVumanità
di Gesú, Bréscia, 1971 (ed. bras.: Da graça e da humanidade de Jesus,
Agir, Rio de Janeiro, 1968, 165 p .); F. Mussner, “Wege zum Selbstbe-
wusstsein Jesu” in Biblische Zeitschrift 12 (1968), pp. 161-72; J. Mou-
roux, “Propositions sur la conscience du Christ et le temps” in Problè-
mes actuels de Christologie, Bruges, 1965, pp. 179-200; N. Nédoncelle,
“ Le moi du Christ et le moi des hommes à la lumière de la réciprocité
des consciences”, in ibid., pp. 201-26; C. Nigro, II mistero delia conoscen-
za umana di Cristo nella teologia contemporânea, Rovigo, 1971; K. Rah-
ner, “Considerazioni dogmatiche sulla scienza e coscienza di Cristo” in
Saggi di cristologia e di mariologia, Roma, 1965, pp. 199-238; A. Rizzi,
“ La coscienza di Cristo” in Cristo verità delTuomo, Roma, 1972, pp. 239-
320; A. Voegtle, “Exegetische Erwãgungen über das Wissen und Selbst-
bewusstsein Jesu” in Gott in Welt (Festgabe für K. Rahner zum 60.
Geburtstag), I. Freiburg i. Br., 1964, pp. 608-67. Cf., por fim, C. Porro,
“Rassegna bibliográfica sulla psicologia di Cristo” in Theologia dei pre­
sente 1972, 6, pp. 363-78; 2, pp. 109-23.
16 O fato de que “na alma do Cristo vivo entre os homens tenha
existido a ciência que possuem cs bem-aventurados” foi considerado
ensinamento seguro por um decreto do Santo Ofício de 5 de junho
de 1918: DS 3645. Essa afirmação, todavia, refere-se à segurança do
ensinamento {tuto doceri), e não propõe diretamente uma doutrina: ela

213
intento pedagógico, fazia o papel de quem ignorava alguma coi­
sa; a sua condição humana era assim reduzida a uma “paró­
dia de humanidade”.17 Nesta linha tendia-se a identificar, na
prática, a sua consciência de homem — enquanto consciência
humana de um eu divino — com a sua consciência de Filho de
Deus: a justa rejeição de um “nestorianismo psicológico” 18 cor­
ria o risco de transformar-se — mesmo contra as intenções dos
defensores dessas teses — numa forma de “monofisismo psico­
lógico”.
Não é difícil observar que essa imagem de Jesus contrasta
com a que nos oferecem os evangelhos: um Jesus que cresce
“em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens” (Lc
2,52), que ignora o dia do julgamento (cf. Mc 13,32 e Mt 24,
36), como também fatos ordinários da vida (cf. por exemplo
Mc 5,30-33), um Jesus que com freqüência reflete em seus' co­
nhecimentos religiosos “as idéias inadequadas, até errôneas, do
seu tempo”,19 mal se concilia com um Jesus “onisciente”, que vê

se explica no contexto da refutação da tese modernista, que não reco­


nhecia em Jesus a consciência da sua divindade. A intenção positiva
do decreto é afirmar essa consciência, não impor uma teoria escolástica.
As referências à ‘‘visão beatífica” do Jesus terreno, contidas na Mystici
Corporis (1943: DS 3812) e na Haurietis aquas (193b: DS 3224), são
acidentais e não pretendem definir um ponto doutrinai. A hermenêutica
do Magistério deve esforçar-se por captar as intenções autênticas das
intervenções, para além das formulações que elas possam ter assumido:
isso liberta de uma falsa idolatria do Magistério, mas também de uma
desatenção superficial ao ensinamento autorizado da Igreja. Cf. J. Galot,
Chi sei tu, o Cristo?, Florença, 1977, p. 327, n. 33.
17 J. Maritain, Delia grazia..., p. 18, op. cit. in n. 15.
18 Pode ser encontrado, por exemplo, nas posições que atribuem
um eu humano a Cristo: cf. Déodat de Basly, com a retomada da
teoria do “Assumptus Homo” : La christiade française. Paris, 1929, e
numerosos artigos em La France Franciscaine; e P. Galtier, com a sua
análise da autonomia da psicologia humana de Jesus: Uunitê du Christ.
Être Personne — Conscience, Paris, 1939. Contra essas posições reage
vigorosamente P. Parente, L ’io di Cristo, Bréscia, 1955, sublinhando o
princípio de que não pode haver divórcio entre o plano ontológico e o
psicológico. A encíclica Sempiternus Rex (1951) rejeita a possibilidade
de se reconhecer dois indivíduos em Cristo, porque não se pode conce­
ber a natureza humana assumida como um sujeito “sui iuris”. No texto
que apareceu originalmente no Osservatore Romano esta afirmação era
acompanhada das palavras “saltem psychologice”, que desapareceram na
edição oficial dos Acta Apostolicae Sedis. Sinal evidente de que se dese­
java deixar liberdade nessa complexa questão, Cf. em tudo isso J. Galot,
La coscienza di Cristo, op. cit., pp. 87ss.
19 R. Brown, “Scienza...”, op. cit., p. 75; cf. a ampla análise dos
textos: pp. 60ss.

214
tudo em Deus. Além disso, o sofrimento real de Cristo, teste­
munhado no Novo Testamento, não se explicaria se houvesse
nele a bem-aventurança, própria da visão de Deus. A ignorância
e a finitude do Jesus dos evangelhos exigem a renúncia ao “prin­
cípio de perfeição” na explicação de sua ciência e também-de
sua consciênciâ7~Então será preciso afirmar que não há nele
nenhuma visão imediata de Deus? Será preciso negar-lhe os co­
nhecimentos extraordinários que lhe são atribuídos, especialmen­
te por João (cf. por exemplo 6 , 5s;6,71; 15,11; etc.), mas não só
por ele (cf., por exemplo, Mc 2,6-8 e par.; 11,2 e par.; 14,13-14;
Mt 17,24-27; etc.)? Será preciso afirmar que o único conheci­
mento possível no Nazareno é o adquirido pela experiência do
mundo e dos homens? E, se as coisas fossem realmente assim,
ainda se poderia reconhecer nele uma consciência da sua con­
dição divina e da sua missão? Poder-se-ia falar ainda de uma
“consciência messiânica” de Jesus, isto é, de uma consciência
de sua condição de enviado do Pai para realizar e renovar a
promessa? Como se pode facilmente intuir, são questões decisi­
vas, que dizem respeito à própria imagem de Cristo, e, conse-
qüentemente, à nossa decisão de segui-lo.
O problema é complexo, e deu origem, também em tempos
recentes, às mais diversas soluções. Ao enfrentá-lo, convém escla­
recer dois pressupostos que, se forem negligenciados, darão azo
a muitos equívocos. Em primeiro lugar, falar da consciência de
Jesus não pode significar tentar escrever uma biografia dele do
ponto de vista psicológico. Essa tentativa pode desembocar em
interpretações arbitrárias, porque contraria a própria natureza
dos evangelhos, que não são registros de crônicas, mas testemu-
nhcs de fé. Em segundo lugar, no esforço — como aconteceu na
experiência fontal da comunidade das origens — por reler a
história do Nazareno à luz da Páscoa, não se poderá ignorar o
que foi revelado rüTRessurreição; ou melhor, o problema con­
siste exatamentê em entender as relações cnüvrrr condição do
Senhor^ manifestado na Páscoa, e a precedente vida terrena- e
concreta do Nazareno. Se, como tivemos ocasião de esclarecer,
ele é ò Cristo desde o primeiro instante da sua história, que
conseqüências decorrem disso para a história de sua consciên­
cia e para o desenvolvimento dos seus conhecimentos?
A questão deve ser ulteriormente explicitada, a partir de
algumas observações antropológicas. Foi dito que “história” é

215
tomada de posição no devir, é “situar-se” no presente diante do
passado em vista do futuro; assim sendo, para que haja história
é necessário que haja consciência de si e daquilo em relação ao
qual se toma posição. Nessa luz a consciência aparece como a
primeira e fundamental condição transcendental (isto é, no sujei­
to, mas não puramente subjetiva, porque é estrutura da subje­
tividade referida constantemente ao objeto) da “história”. Pre­
cisamente por ser condição originária, a consciência abraça di­
versos níveis: ela é antes de tudo consciência não-reflexa do
originário pôr-se em relação com o que é distinto de si mesmo.
É consciência do tu, que traz consigo uma consciência indire-
ta — isto é, não refletida e não tematizada, não expressa em
conceitos — do eu: “A primeira experiência da pessoa é a expe­
riência da segunda pessoa: o tu, e depois o nós, que vem antes
do eu, ou pelo menos o acompanha”/ 0 A essa consciência não-
-reflexa, pré-conceitual de si mesmo, que é como o horizonte pri­
meiro e constantemente presente no qual se situam as sucessivas
aquisições, segue-se o nível da consciência progressivamente
reflexa, tematizada, formulada através de categorias tiradas da
experiência, que veiculam conceitualmente a originária percep­
ção não-reflexa de si mesmo. Essa passagem da consciência pré-
-categorial do pôr-se originário com relação ao outro, à cons­
ciência tematizada do pro-por-se a si e aos outros, ocorre através
da gradualidade, da obscuridade e das luzes de uma evolução
histórica, na qual o futuro se apresenta sempre com caracteres
de indedutibilidade e de novidade com relação ao já dado e ao
já conquistado. Mas é precisamente essa obscuridade que cons­
titui o espaço das possibilidades e por isso da liberdade, o hori­
zonte do risco, mas também da dignidade das escolhas, nas
quais o homem pode pôr-se e propor-se realizando-se ou alie­
nando-se, isto é, desenvolvendo ou depauperando a própria iden­
tidade originária não-reflexa, o complexo de atitudes, disposi­
ções, orientações, já dadas ou adquiridas, que constituem um
eu como aquele eu e não como um outro.
De que forma tudo isso se encontra na história de Jesus de
Nazaré? 2021 Como se configura nele a originária consciência não-

20 E. Mounier, II personalismo, Roma, 1964, p. 44.


21 A colocação do problema aproxima-se da de K. Rahner, “Con-
siderazioni...”, op. cit., A. Voegtle, “Exegetische Erwagungen...”, op. cit.,
tenta fazer uma verificação exegética das teses de Rahner, concordando

216
reflexa de si? Como vive ele a evolução da sua consciência?
Será o Nazareno alguém que caminha na noite, aclarada pela
luz de algumas certezas atematizadas e depois cada vez mais
conscientes, alguém que sofre a vida e a escolhe instante por
instante na fé, na esperança e no amor? Qual é a história da
sua consciência e dos seus conhecimentos?
A resposta a essas perguntas só pode ser procurada nos
indícios oferecidos pelo testemunho evangélico, nos “mistérios”
da vida do Senhor. Entre estes está o “mistério” de uma palavra
que Tesus usa de manelru ahsolutamente original: abbá.22 Ela
aparece, como tal, três vezes no Novo Testamento; mais preci­
samente, uma vez em Marcos (14,36) e duas em Paulo (Rm 8.15
e G1 4^6): os dois textos paulinos são um argumento decisivo
para se afirmar que esse termo é autêntico do Senhor, porque
sem a referência à sua autoridade não se- explicaria o seu uso
em comunidades gregas e latinas. O testemunho de Marcos,
além disso, embora isolado, é apresentado num momento impor­
tante da vida de Jesus: a hora obscura e tremenda do Getsêma-
ni. A autenticidade do termo na boca do Nazareno, unida à con-
sideração de que na língua por ele falada não há outra maneira
de se traduzir a expressão “pai, meu pai”, usada por ele em
todas as suas orações,23 avaliza a hinótesejde que sob os termos
gregos patér, 'pater mou, utilizados pelo Jesus dos evangelhos
não menos de 17Õ vezes em relação Jà_Deus, esteja o original
a rã m a icõ T õ iP o rta n to , o Nazareno dirige-se a Deus chaman-
do-o de ab b a; esse fato permite “entrever a originalidade da
oração de Jesus. Esta originalidade é dupla: é a primeira vez
que se encontra no ambiente palestino, uma invocação ao Pai a
título individual, e é a primeira vez que um judeu, dirigindo-se

com ele em muitos pontos fundamentais: cf., por exemplo, pp. 341-42.
B. Lonergan, no cap. “De scientia Christi” (pp. 332-416) do seu De
Verbo Incarnato, Roma, 1964, 3? ed., afirma que Jesus tem um conhe­
cimento imediato de Deus, mas que, não provindo da experiência sen­
sível, não é formulado em conceito nem figurado em imagens; para
entrar no universo do discurso ele deve sofrer um processo de tradução
na linha do dinamismo fundamental da inteligência (“intentio entis inten-
dens”) no seu movimento de pergunta e de compreensão. Este proces­
so tem analogias com o de tematização progressiva de que fala Rahner.
22 Cf. J. Jeremias, Abba, Bréscia, 1968, e W. Marchei, Abbá, Père.
La prière du Christ et ães chrétiens, Roma, 1971, 2’ ed.
23 Só constitui exceção o grito de Mc 15,34 ( = 27,46), no qual é
empregado o termo Eli, que se justifica pela citação do SI 22.

217
a Deus, o invoca sob o nome de A bbá, tirado da linguagem
familiar. Jesus dirige-se a Deus como uma criança se dirige a
seu pai 24

No Antigo Testamento, o termo “pai” referido a Deus


aparece raramente, ao todo quinze vezes: 25 ele ressalta a
soberania e a misericórdia de Iahweh (cf., por exemplo,
Dt 32,6 e SI 103,13s), e refere-se de maneira especialíssi-
ma à sua relação com Israel (cf. Dt 14,ls; Ex 4,22; Jr
31,9). Ou seja, a paternidade divina é referida à coletivi­
dade do povo eleito. Jesus, ao contrário, exprime uma
relação de filiação direta e pessoal, não unindo a si
outras pessoas na relação com o Pai, mas fazendo distin­
ção entre si mesmo, e os seus (cf., por exemplo, Mt 18,35;
25,34; Lc 2,49; etc.: “meu pai”; Mt 5,48;6,8.15.26; etc.:
“vosso pai”; cf. Jo 20,17: “meu pai e vosso pai”; a distin­
ção' é clara também no texto do “Pai-nosso” : “Vós, pois,
orai assim: Pai nosso...” : Mt 6,9).26 Além disso, “se já era
algo insólito que Jesus invocasse a Deus com as palavras
‘meu pai’, a coisa é totalmente inusitada com relação à
forma aramaica a b b á”.27 Ela nunca se encontra no antigo
j udaísmo com relação a Iahweh, porque na origem era
uma forma infantil, que parecia desrespeitosa para com a
transcendência divina; no tempo de Jesus, em que era
usada também pelos adultos com referência aos pais, pa­
recia muito familiar e cotidiana para que alguém pudesse
dirigir-se a Deus com ela.28

“Portanto, Jesus introduziu uma inovação absoluta. Ele


falou com Deus como a crianca fala com seu pai, com a mesma
simplicidade, a mesma intimidade, o mesmo abandono confian-
te. Com o vocativo a b b á Jesus manifestou a própria essência

24 W. Marchei, Abbá, Père, op. cit., pp. 122-23.


25 Cf. ibid, pp. 23ss. e J. Jeremias, Abbá, op. cit., p. 8 e todo o
cap. I, pp. 7-11,
26 Também no judaísmo palestino, “embora a comunidade ore a
Deus como pai e o indivíduo fale com freqüência de Deus como de
seu pai celeste, a invocação pessoal e ‘meu Pai’ não é documentada, até
aquele momento”, J. Jeremias, op. cit., p. 27.
27 J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, p. 79, op. cit. in n .2,
28 Cf. J. Jeremias, Teologia,.., op. cit., pp. 81-82.

218
tio seu relacionamento com Deus”.29 Relacionamento feito de
confiança infinita, mas também de “devota submissão”, como
exige o uso do termo por parte dos adultos.30 “Invocando a Deus
sob esse título, Jesus manifesta a consciência da relação pes­
soal e absolutamente única que mantém com o Pai, do vínculo
estreitíssimo que o une a Deus como a seu Pai”.31 Esse termo
— “ipsissima vox Jesu” — veicula, portanto, a consciência
espontânea e imediata que o Nazareno tinha dé seu excepcio­
nal relacionamento com Deus. Assim sendo, não se poderia
reconhecer nele um indício da experiência não-reflexa, originá­
ria, própria da esfera do vivido, do pô r-se de Jesus em relação
ao Pai e, portanto, da consciência pré-conceitual que ele tinha
de si como sujeito dessa relação única? Certamente, a pesquisa
cxegética deve ser muito sóbria nesse ponto. Todavia, é possí­
vel propor uma interpretação crítica que aprofunde o dado bíbli­
co, sem forçá-lo nem contradizê-lo. Se a consciência atematiza-
da de Jesus se identificasse com o seu pôr-se confiante e incon-
dicionado frente ao Pai, como á atestado pelo “mistério” do
a bbá, ela refletiria em termos de consciência humana (e por
isso gradual, progressiva) do eu divino a estrutura existencial
do Cristo, isto é, a sua condição de sujeito da relação única
com o Pai, feito homem ao assumir uma história verdadeira­
mente humana. Nessa mesma linha, seria possível acolher a
doutrina tradicional da “visão imediata de Deus” no homem
|esus, mas interpretando-a nos termos da consciência pré-concei­
tual, não-reflexa.32 Dessa forma, a “visão de Deus” no Nazareno
seria, antes de mais nada, despojada do caráter de bem-aventu-
rança, que contrasta de maneira gritante com a sua verdadeira
humanidade,33 e daquele atualismo pelo qual, captando todas
as coisas no ato da visão da essência divina, a consciência de
Jesus ficaria privada de toda possibilidade de crescimento e
desenvolvimento, que são típicos de uma história verdadeira­
mente humana. Com efeito, se a “visio immediata Dei do
Nazareno fosse a consciência que de maneira pré-conceitual

29 Id„ Abbá, op. cit., p. 65.


30 Id., ibid., op. cit., p. 66.
31 Marchei, op. cit., p. 167.
32 É a solução proposta por K. Rahner,, “Considerazioni”, op. cit.
33 J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, op. cit., p„ não hesita em afirmar:
“A visão beatífica do Jesus terrestre não tem fundamento, porque não
é atestada nem pela Escritura nem pela Tradição patrística”.

219
Jesus tem de si como Filho único do Pai, ela seria conciliável
"com uma genuína experiência humana, com um condiciona­
mento histórico aceito juntamente com a natureza humana, com
uma autêntica evolução espiritual e religiosa, vista como tema-
tização objetivante desse originário e perene contato imediato
com Deus, que se exterioriza no encontro com o próprio ambien­
te espiritual e religioso, como também no gradual conhecimento
experimental da própria existência”.34
À luz dessa interpretação, explicar-se-iam tanto os textos
que revelam um crescimento e uma limitação do conhecimento
de Jesus, quanto os que manifestam nele conhecimentos de
ordem superior. Estes se fundariam no relacionamento único
com o Pai, e portanto seriam hauridos através da tematização
daquilo que já estava presente no Nazareno de forma não-refle-
xa; ao passo que os outros seriam o fruto de uma experiência
normal de aprendizado humano. A um ”saber adquirido de
acordo com a cultura da sua época” se uniria nele “um conhe­
cimento profético que lhe permitia desenvolver a sua missão de
revelador” .34 Esse "conhecimento profético” teria origem na
experiência filial, absolutamente única, feita por Jesus com rela­
ção ao Pai, como parece atestar Mt 11,27 ( = Lc 10,22): “Tudo
me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão
o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem
o Filho o quiser revelar”. O caráter semítico dessas palavras —
demonstrado por J. Jeremias contra a afirmação freqüente de
que a frase seria um “meteorito caído do céu joanino” 36 —
impede de neias reconhecer o uso desenvolvido do título de
Filho” por parte de Jesus. Entretanto, ele também alicerça a
interpretação que vê na relação de conhecimento e de amor com
0 Pai — análoga à que existe entre um pai e um filho — a
origem da função reveladora de Cristo: “Assim como só um
filho conhece verdadeiramente a seu pai, só ele está em condi­
ções de proporcionar aos outros o mesmo conhecimento”.37
Por força dessas considerações, poder-se-ia afirmar que a
história de Jesus foi marcada, como toda história humana, por
34 R. Rahner, “Considerazioni”, op. cit., p. 238.
35 C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, p. 171.
36 Cf. J. Jeremias, Teologia..., p. 71, op. cit., in n. 2. A expressão
foi cunhada pelo historiador da Igreja K. v. Hase, Die Geschichte Jesu,
Leipzig, 1976, 2- ed., p. 422.
37 J. Jeremias, op. cit., p. 74.

220
um ji viinço progressivo em direção à luz de uma autoconsciên-
lliiiis clara e de um conhecimento mais mmplp.tr» Hrip nntrns
de Deus. Esse crescimento interior teria sido alimentado, de
um Indo, pela intimidade dialogai, única e exclusiva, com o
1' h í . r de outro, pelo relacionamento diário com os homens, a
t onu\ar por Maria, sua mãe, e pelo conhecimento da Escritura,
Itunlninental na formação dos filhos de Israel. Isto é, o Naza-
.. tio (cria crescido interiormente, explicitando o que já estava
«oulido na originária consciência atematizada de si mesmo e
>«<l<|iiirindo por experiência novos conhecimentos, através de
momentos e formas sucessivas de desenvolvimento. Se isso é
verdade, a “história evolutiva das afirmações feitas por Jesus
o|>ie a sua complexa personalidade não deve ser interpretada
no menos fundamentalmente — apenas como uma história
ile sua gradual adaptação pedagógica, mas pode muito bem ser
InI.i também como história da interpretação que ele dava gra-
<11mImente de si mesmo” .38 Admitida uma história da auto-in-
Inpretação de Jesus, como história da explicitação conceituai,
(.■ raças também aos estímulos externos e às categorias que lhe
nam oferecidas pela experiência, da originária consciência ate-
mali/ada de si,/deve ser igualmente admitida na consciência do
Na/areno a presença de zonas de sombra progressivamente
iluminadas. Isso se impõe sobretudo com relação ao futuroy“A
Escritura sozinha não demonstra, mas não é contrária a uma
leoria que admita um desenvolvimento psicológico do conhe-
■ uuento que Jesus podia ter daquilo que estava para lhe acon­
tecer”.3940 Isso não significa uma ausência total da “consciência
messiânica” em Jesus: “A crítica moderna poria em dúvida um
conhecimento pormenorizado, mas não devemos menosprezar o
lato de que a tradição evangélica está de acordo em afirmar a
íntima convicção de Jesus de que, enquanto a vida lhe seria
lirada, Deus no fundo o teria vingado (cf. também Lc 17,25;
Mc 10,45)” .40 Poder-se-ia dizer, então, que o profeta galileu
38 K. Rahner, “Considerazioni” op. cit., p. 232. A Voegtle, Exege-
tische Erwãgungen”, op. cit., afirma que os textos reveladores de uma
espera iminente por parte de Jesus se esclarecem mais facilmente com
(nu progresso real no seu conhecimento do plano divino do que com
nina atitude pedagógica: p. 341; ao mesmo tempo, o exegeta concor­
da com o teólogo sobre uma percepção originária de absoluta imediati-
i idade de Deus na consciência de Jesus: pp. 341-42.
39 R. Brown, “Scienza e coscienza”, op. cit., p. 84.
40 Ibid., p. 82.

221
intuiu atematicamente, mas com progressiva certeza, o seu des­
tino e o destino do mundo em relação ao Pai, mas sem que
tudo, na sua concretude, lhe tenha sido claro e evidente a cada
instante; ele deve ter percebido o salto entre o pressentimento
certo, a forte intuição do futuro, e a viva e dura realidade da
experiência. Ele, “provado em tudo como nós, com exceção do
pecado”, como dirá a Carta aos Hebreus (4,15), foi solidário
conosco também na ignorância, fazendo “a experiência da obscu­
ridade com a qual se choca o desejo de saber, sobretudo na
exploração do mistério dos planos divinos”.41
Essa interpretação, enquanto salvaguarda a condição única
da consciência humana de Filho em Jesus, explica sugestivamen-
te a sua f é e a sua esperança.42 Na teologia tradicional ficava
na penumbra “o fato de que Jesus fosse alguém que acreditava,
esperava, procurava e era tentado, alguém que cedia inevitavel­
mente diante da incompreensibilidade de Deus”.43 Por que o
homem concreto e vivo de quem nos falam os evangelistas não
deveria arriscar a cada instante a sua vida nas escolhas frente
à indeterminação do futuro? Por que negar-lhe a fé e — conse-
qüentemente — a esperança diante do futuro, como confiança
no Pai e expectativa do bem que, não obstante tudo e contra
tudo, Jesus acreditou ser possível, a seu respeito da parte de
Deus? Admitindo-se um crescimento interior do Nazareno e
reconhecendo-se nele um espaço para a obscuridade e a incerte­
za, não há dificuldade para considerá-lo um crente e um homem
de esperança. A Carta aos Hebreus o apresenta como “autor e
aperfeiçoador da fé” (12,2), isto é, como aquele que precedeu e

41 J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, op. cit., p. 335. L. Bouver, II Fi-
glio eterno, Alba, 1976, p. 406, aduz alguns testemunhos patrísticos inci­
sivos sobre o tema da ignorância de Jesus.
42 Cf. H. U. von Baithasar, “Fides Christi” in Sponsa Verbi, Brés-
cia, 1972, 2? ed., pp. 41-72; G. Ebeling, “Jesus und Glaube” in Wort und
Glaube, Tübingen, 1960, pp. 203-54; J. Guillet, La foi de Jésus-Christ,
Paris, 1980; L. Malavez, “Cristo e la fede” in Fede e impegno cristiano,
Bolonha, 1973, pp. 115-61; W. Thüsing, “Approcci neotestamentari e una
cristologia dialogico-transcendentale” in K. Rahner — W. Thüsin, Cris-
tologia. Prospettiva sistemática ed esegetica, Bréscia, 1974, pp. 251-69.
Sobre a esperança de Jesus, cf. G. Baraglio, “La speranza di Gesü”, in
Teologia dei presente, 1972, 2, pp. 67-74; P. Charles, “Spes Christi” in
Nouvelle Revue Théologique, 1934, pp. 1.009-1.021; 1937; pp. 1.051-1.075;
C. Duquoc, “La speranza di Gesü”, in Concilium, 1970, n. 9, pp. 37-48.
43 K. Rahner, “Cristologia oggi?” in Teologia dalTesperienza dello
Spirito, Nuovi Saggi VI, Roma, 1978, p. 439.

222
HttiH os crentes nos combates da fé. leva a própria fé à perfei-
,=fm i u cornará na glória.44 Ele viveu de maneira suprema a
sua l< no abandono da cruz, onde foi tomado perfeito por
uif 1" do sofrimento (cf. Hb 2,10).4546E foi também na cruz que
I- u manifestou em plenitude a sua esperança: “É ele que, nos
•Ihr dc sua vida terrestre, apresentou pedidos e súplicas, com
j mente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da
iimrlc; c foi atendido por causa de sua submissão. E embora
!i r.',r Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento;
li vado à perfeição, se tornou para todos os que lhe obede-
i cm, princípio de salvação eterna", (Hb 5,7-9). O brado relata-
.1.1 por Lucas: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc
' M b) não é um ato de suprema esperança — verdadeira “con-
ii/i Ioda esperança”? E o estilo de vida de Jesus, a sua pobreza
fraqueza, a renúncia a todo instrumento de poder, unidos ao
íinúncio do Reino iminente, não são sinal da esperança mais
profunda no poder e justiça de Deus? “Buscai em primeiro
lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos
rn i .to dadas de acréscimo. Não vos preocupais com o dia de
amanhã... Olhai as aves do céu: não semeiam, não ceifam, nem
ajuniam em celeiros; e contudo o vosso Pai celeste as alimen-
ta . Olhai como crescem os lírios do campo...” (Mt 6,33-34.26.
’K). E a rejeição das tentações messiânicas não é sustentada
por uma esperança maior, que não se funda no cálculo humano,
mas na fé em Deus? E a mensagem das bem-aventuranças não é
Um apelo de conversão à esperança, que subverte toda lógica da
M-j.urança e da posse? Certamente “Jesus experimentou até o
exlremo a dificuldade de ‘mudar de vida’... Mas tudo isso nunca
.. levou ao desespero, porque o Reino de Deus está onde não
ha volta sobre si mesmo, onde não há demonstrações de poder,
mas comunhão com Deus”.40
Um sinal particularmente evidente da fé e da esperança
de Jesus é a sua oxacão.47 Ela é amplamente atestada pelos Sinó-

44 Cf. S. Zedda, Lettera agli Ebrei, Roma, 1967, p. 104, nota ao v .2 .


41 Aparece aí o mesmo termo arkegós = “chefe, autor”, que apa-
ieco em Hb 12,2; por isso há possibilidade de aproximação dos dois
lextos.
46 C. Duquoc, “La speranza di Gesü”, op. cit., pp. 47-48.
47 Cf. J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento op. cit., pp. 215-
20; cl. também S. Cipriani, La preghiera dei Nuovo Testamento, Milão,
1970, especialmente llss.

223
ticos, especialmente por Lucas (3,21 ;5,16;6,12;9,18.28; 11,1;
22,32.34). João prefere apresentar diretamente o seu conteúdo:
o diálogo entre Jesus e o Pai (11,41-42; 12,27-28). Através des­
ses testemunhos transparecem os caracteres fundamentais da
oração do Cristo: é uma humaníssima indagação ao Pai sobre
as-ujossibilidades-do futuro (“Meu Pai, se é possível, que passe
de mim este cálice...”: Mt 26,39), relacionada com uma infinita
disponibilidade para fazer a sua vontade (“Mas não como eu
quero, e sim como tu queres”; ibid.); é um haurir luz e força
diante das reviravoltas da vida (Jesus, nos evangelhos, ora sem­
pre nos momentos decisivos de sua história: batismo: cf. Lc 3,
21-22; escolha dos apóstolos: cf. Lc 6,12-13; confissão de Pedro:
cf. Lc 9,l|ss; transfiguração: cf Lc 9,28-29; etc.); e~uma inter-
cessão pelos outros (cf., por exemplo, Lc 22,32: por Pedro;
23,34: pelos crucificadores; Jo 17,14-19: pelos seus; etc.); é
um louvor e glorificação ao Pai, mesmo diante do fracasso hu­
mano (cf. a ação de graças de Mt 11,25-26, que se coloca num
momento-chave da atividade de Jesus, quando a rejeição do seu
povo já se havia delineado: “sobre as ruínas Jesus eleva a ação
de graças”).48 Jesus ateve-se à oração litúrgica, como todo he-
breu fiel, mas ao mesmo tempo inovou essa herança espiritual,
quer dedicando longas horas à oração na solidão, quer substi­
tuindo os textos oficiais — em hebraico — pela oração expon-
tânea, expressa na língua materna, o aramaico (pense-se no
termo a b bá, no grito sobre a cruz referido por Mc 15,34 e no
Pai-nosso ensinado aos discípulos). Jesus ora, pois, como qual­
quer pobre que caminha na esperança e na fé, mas com uma
doação de si e uma obediência ao Pai verdadeiramente únicas.
É razoável pensar que “a sucessiva cristologia da filiação é ape­
nas a interpretação e tradução daquilo que se encontra oculto
na obediência e doação filiais de Jesus”,49 de que sua oração é
um testemunho transparente.

b) Admitida no Nazareno uma história da consciência, um


avanço gradual da obscuridade para a luz no conhecimento
reflexo de si, do mundo e do Pai, numa progressiva definição
de sua originária consciência atematizada, surge a pergunta: há
nos evangelhos indícios certos de uma tematização completa da

48 J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 219.


49 W, Kasper, Cesú il Cristo, op. cit., p. 150.

224
..... c ícncia de Jesus, indícios que permitam atribuir-lhe uma
i iiusi iência clara da própria condição e missão? É necessário
distinguir, como sempre, os elementos que são próprios da relei-
mi,i pascal por parte da comunidade dos que podem ser atri­
buídos ao Jesus terreno.

Aos primeiros parece pertencer a quase totalidade


dos títulos cristológicos (Senhor, Cristo, Messias, Filho de
Deus, Filho, Filho de Davi, Verbo, Salvador...), com a
única exceção do título Filho do Homem.50 É verdade
que o título Filho de Deus aparece freqüentemente como
autodesignação de Jesus no evangelho de João (Filho-
Filho de Deus: 5,25; 10,36; 11,4; cf. 17,1; Filho unigêni-
to: 3,16-18); todavia, nos Sinóticos tal uso quase nunca
aparece.51 Esse dado de fato, unido à constatação de que
no judaísmo palestino inexiste totalmente a expressão
“filho de Deus” como título messiânico, faz pensar na ori­
gem pós-pascal da fórmula.52 Quajrto aos outros, parece
que Jesus sempre se mostrou desconfiado e precavido no
uso de expressões que muitas vezes estavam carregadas de
significados pré-constituídos, e que poderíam gerar confu­
são ou equívoco sobre a verdadeira natureza da sua mis­
são. Assim, por exemplo, quando lhe é atribuído o título
de Messias, ele não hesita em corrigi-lo, sem medo de
desiludir as esperanças dos seus discípulos e de escanda­
lizá-los (cf. Mc 8,29-33), precisamente por causa da ambi-
güidade que essa expressão tinha no contexto do seu tem­
po (messias político? messias apocalíptico? messias violen­
to? messias da paz? etc.). É por isso que Jesus “nunca

50 Cf. J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 286.


Cf. o que se diz sobre cs vários títulos supra, cap. IV.
51 Em Mt 11,27 = Lc 10,22 encontramos, como já foi dito, um
uso genérico da palavra “filho”. “A presumida citação de Mt 27,43:
'Tu sou Filho de Deus’, tem um valor muito incerto e a fórmula batis­
mal triádica de Mt 28,19 não entra em questão, enquanto palavra do
Cristo glorioso à comunidade”: J. Jeremias, op. cit., p. 294, nota 2. —
Mc 13,32, em vista do uso não-palestino da expressão absoluta “o Filho”,
parece um testemunho secundário e incerto. Cf. ibid., e p. 155, nota 26.
52 A comunidade das origens desejava indicar com esse título o
caráter insuperável, último e definitivo da revelação que Deus fez de
si mesmo em Jesus de Nazaré: cf. M. Hengel, Der Sohn Gottes. Die
l.ntstehung der Christologie und die jüdisch-hellenistische Religionsge-
schichte, Tübingen, 1975.

225
identificou a sua missão com a do Messias”.53 Ele também
nunca se atribuiu o título de Filho de Davi, denso de res­
sonâncias políticas.54 Somente com a Ressurreição será
superada a possibilidade de equívoco, e a comunidade po­
derá atribuir ao Crucificado-Ressuscitado títulos próprios
da tradição hebraica, mas com o novo conteúdo da inau­
dita “identidade na contradição” proclamada na Páscoa.55
Essa cautela per parte de Jesus é.em si mesma um. sinal
— ainda que indireto — da sua autoconsciência total­
mente única.

O título que — mais do que qualquer outro 56 — pode ser


considerado uma autodesisnacão autêntica de Jesus é Filho do
H om em : o fato de ele ser muito usado nos evangelhos (69 vezes
nos Sinóticos, 15 em João) e depois desaparecer no Novo Testa­
mento (com a única exceção de três citações do Antigo Testa­
mento — Ap 1,13 e 1 4 J4 , citações de Dn 7,13, e Hb 2,6, cita­
ção de SI 8,5 — e de At 7,56 na boca de Estêvão), confirma seu
usq originário por parte de Jesus. A própria comunidade, que
evita essa expressão para impedir que os gregos a interpretem
como denominação de origem, a transmite nas palavras de
Cristo. O motivo de tal maneira de agir só pode ser um: “O
título estava inseparavelmente integrado com as palavras de
Jesus desde o início; por isso era sacrossanto e ninguém teria
ousado cancelá-lo”.57 É verdade que também nos ditos sobre o
Filho do Homem pode-se reconhecer um trabalho redacional
pós-pascal; assim, por exemplo, são freqüentes os casos de
textos paralelos que trazem, no lugar do título, o pronome
“eu” (37 casos, de 51): nesses textos, a redação com o título
parece ser secundária. Todavia, persiste um núcleo irredutível
de textos, cuja autenticidade não pode ser posta seriamente

53 R. Brown, “Scienza...”, op. cit., p. 104.


54 Cf. C. Burger, Jesus ais Davidsohn. Eine traditionsgeschichtliche
Untersuchung, Gõttingen, 1970; para uma visão sintética dos vários mo­
mentos da história da tradição deste título cf. pp. 177-78.
55 “Nenhum dos títulos e dos nomes transmitidos pelo judaísmo,
cu tirados da linguagem religiosa helenística manteve o seu significado
inalterado. Todavia, onde quer que tais nomes tenham se tornado
títulos honoríficos para este Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado,
eles assumem cm si o mistério da sua pessoa e da sua história e adqui­
rem um novo significado” : G. Bornkamm, Gesü di Nazareth, p. 186, op.
cit. in n. 9.

226
§ttt iliividii, sobretudo os textos nos quais Jesus faz distinção
(tith -i mesmo c o Filho do Homem — visto que essa distinção
(híh fiitIn inconcebível para a comunidade. Ora, se nesses textos
reconhecer o núcleo certamente autêntico da tradição
dos <lít«so b re o Filho do Homem, surge a pergunta: Por que:
Jbiüb m distinguiu do Filho do Homem? Será que esperava um
lilyttdoi diferente dele? Se for levado em consideração o valor
d llic título — expressão de glória inspirada na apocalíptica
jtiiliiii a (cf. sobretudo Dn 7,27) — , e se ao mesmo tempo se
ppiififii nos vários testemunhos seguros através dos quais é vei-
i uliida a consciência que Jesus tinha de ser o portador definiti-
v.> de salvação, não se poderá dar a essa pergunta outra resposta
•uno esta: “Quando ele fala do Filho do Homem, na terceira
p e s s o a , não distingue entre duas pessoas, mas entre a sua presen-
va atual c o status exaltationis”,s8 Em outras palavras, o título
deixa transparecer a consciência que Jesus tem de uma mani-
-.tacao gloriosa do poder de Deus no término de sua vida
icneiia: isso revela a autoconsciência do Nazareno como cons-
n ia ia histórica, _que se põe e se propõe num presente de hu­
mildade, mas que ao mesmo tempo se projeta num futuro de
« xallação garantido pelo Pai. Dessa forma, o título manifesta a
onsciência que Jesus tem da transcendência da própria condi-
plo e missão (cf. 26,64; Mc 14,62; Lc 22,69).575859
Uma confirmação dessa consciência pode ser encontrada
no conteúdo histórico dos anúncios da paixão e na tradição
•obre a última ceia. A tríplice profecia da paixão (Mc 8,51 ;9 ,5 1;
10,?5sS~e paralelos) descreve o destino do Filho do Homem com
uma precisão tão minuciosa que não se tem dificuldade em con-
:.iderá-la uma síntese elaborada “ex~ eventu”. Todavia, não há
tampouco dúvidas sérias de que o desdobramento da vida pú­
blica de Jesus o tenha colocado diante da perspectiva de uma
morte violenta (recordemos as acusações de blasfêmia, de viola­
ção do sábado, etc. e a pena de morte que elas acarretavam).
Além disso, aquele que falou e agiu como profeta só podia espe­

57 J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 303. Cf.


pp. 293-314.
58 Id., ibid., p. 314.
59 Essa atribuição do “terminus gloriae” a um homem plenamente
imerso numa situação histórica é absolutamente original e contrasta com
a tradição da apocalíptica judaica, que esperava o Filho do Homem
vindo do alto como ser celeste.

227
rar a sorte que naqueles tempos se considerava reservada aos
profetas: o martírio (cf. Lc 13,33). À luz dessas considerações
e do amplo material evangélico posterior, em que se esboça o
anúncio da paixão,’60 não se poderá negar a existência de um
núcleo histórico, subjacente à tríplice profecia, testemunhado do
modo provavelmente mais fiel pela segunda profecia,- a mais
breve _e. indeterminada (Mc 9,31). “Mas os textos vão além.
Com efeito, eles não só afirmam que Jesus previu e predisse cla­
ramente a sua jQgixão próxima, mas também acrescentam que
ele se pôs o problema da necessidade da sua morte e encontrou
a resposta na Escritura, em primeiro lugar em Is 53 — o capí­
tulo do Servo sofredor...”.61 Outra prova disso são as palavras
da última ceia, que deixam entrever a conclusão de uma nova
aliança (cf. Is 42,6;49,8; Jr 51,31), que se fará na pessoa do
Servo (cf. os textos citados do Dêutero-Isaías). Essas palavras,
enquanto evocam a imagem sacrifical do cordeiro Os 53,7),
afirmam a expiação dos pecados por substituição de uma víti-
ma jnnç.entf» (r.f Is 53,10-12), que será oferecida por muitos
(cf. Is53,l_Qs; cf—os textos da instituição da eucaristia: Mc 14,
22-25; Mt 26,20-25; Lc 22,14-23).62/Essas evocações, unidas à
observação de que a idéia da morte expiadora era familiar no
ambiente de Jesus, justificam a convicção de que ele tenha inter­
pretado a si mesmo como o Servo de Deus que vai ao encon­
tro da morte no lugar dos outros e em seu favor.63 Isso^supõe
uma consciência explícita da sua condicão-e-missão.
Entre os elementos pré-pascais que veiculam a consciência
tematizada de Jesus podemos lembrar ainda a pretensão relacio­
nada com o anúncio do Reino, a autoridade expressa por alguns
usos lingüísticos, noFquais se pode reconhecer a “ipsissima vox”
do Nazareno, e os elementos históricos da tradição^dõs mila­
gres. A pregação sobre a vinda iminente do Reino é anúncio

60 Cf. J. Jeremias, op. cit., pp. 322ss.


61 Id., ibid., 327; ali se enumeram as passagens em que se faz refe­
rência a Is 53.
62 Cf. J. Coppens, “L ’Eucharistie. Sacrament et sacrifice de la nou-
velle Alliance. Fondement de 1’Eglise” in A ux origines de VEglise, sob
a direção de J. Giblet, Paris, 1965, pp. 125-28, especialmente p. 152. Cf.
também J. Jeremias, L e parole deli’ultima cena, Bréscia, 1973, e X . Léon-
Dufour, "Jésus devant sa mort, à la lumière des textes de 1’Institution
eucharistique et des discours d’adieu” in Jésus aux origines de la chris-
tologie, org. por J. Dupont, Gembloux, 1975, pp. 141-68.
63 Cf. J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 333.

228
da proximidade de Deus. Ora, ao relacionar o Reino que vem
c om r su a p e s s o a , o Nazareno testemunha ter ntna-clara cons­
ciência da relação de imediatez única e exclusiva oue há entre
ele e o Pai. O Reino é Reino do Pai (cf. os primeiros três pedidos
do Pai-nosso: Mt 6,9s); e por ter consciência da unidade profun­
díssima que o liga ao Pai é que o profeta galileu pode anunciar
a iminência do Reino através da própria palavra e obra. “A
proximidade de Deus, que é expressa na invocação de Deus
como Pai, é idêntica à proximidade escatológica do Reino de
Deus”.64 Portanto, a pregação do Reino é transparência da
consciência filial tematizada pelo Nazareno.
A autoridade, com que Jesus fala, é outro indício pré-pas-
cal da consciência que ele tem de si e do seu destino. Além de
documentada pelas reações dos ouvintes (cf., por exemplo, Mc
1,22.27), essa autoridade inaudita é atestada por alguns usos
linguísticos cuja autenticidade histórica parece certa. Em pri­
meiro lugar, o uso do eu enfático, que não tem paralelos no
ambiente da época neotestamentária: “A consciência da própria
dignidade... encontra expressão na freqüência excepcional com
que Jesus recorre ao egó enfático, tanto no material sinótico,
quanto no joanino”.65 Recordemos apenas as seis antíteses do
discurso da montanha: “Ouvistes o que foi dito aos antigos...
Mas eu vos digo... (Mt 5,21-48). Quem pronuncia essas palavras
apresenta-se não apenas como intérprete legítimo da lei, mas

64 W. Pannenberg, Cristologia, op. cit., p. 303.


65 J. Jeremias, op. cit., p. 286; cf. pp. 285ss. Entre os títulos pós-
pascais está provavelmente o uso pré-pascal do eu enfático, o “Eu sou”,
atestado amplamente em João: cf. 4 ,25-26;8,24.28.58; 13,19; 18,5 1 T 8 m f.
também a resposta a Caifás em Mc 14,62 e Lc 22,70, bem como o “sou
eu” tranqüilizador de Jesus que caminha sobre as águas em Mc 6,50; Mt
14,27 e Jo 6,20. A expressão deriva do Antigo Testamento, onde designa
a própria identidade de Deus, énqtJáhto parece ser a trarrspOsiçao na
primeira- pessoa do significado do termo Iahweh. Colocada na boca de
Jesus, torna-se uma vigorosa afirmação cristológica, que implicada iden-
tidade com Deus: “Sem dúvida, não se pode esquecer que o eu de
'IahWêlETevelando-se, se considerava como que comprometido em rela­
ção de aliança com os homens... Mas o ego eimi de Jesus implica um
compromisso diferente, muito mais total, porque é assumido numa exis­
tência humana que lhe é própria”: J. Galot, La coscienza di Gesü, op.
cit., p. 68. Cf. também A. Feuillet, “Les ego eimi christologiques du
quatrième évangile” in Recherches de Science Religieuse, 1965, pp. 5-22,
e H. Zimmermann, “Das absolute Egó eimi ais die neutestamentliche
Offenbarungsformel” in Biblische Zeitschrift, n. F., IV, 1960, 54-69;
266-76.

229
também como aquele que ousa contrastá-la, por forca de uma
autoridade maior: é a pretensão de pronunciar a palavra defini-
itü ã3 e Deus, que supõe uma clara consciência da própria dig­
nidade por parte de Je_sus. A mesma pretensão — igualmente
veiculada pelo eu enfático — encontra-se nos imperativos das
curas (cf. Mc 2 ,1 1;9,25), nas palavras de envio à missão (çf._Mt
10,16), nas de conforto (cf. Lc 22,32), nas expressões de exi­
gência absoluta ^(cf. Mt 10,37) e na enunciação da condição
para se .salvar: Todo aquele que se declarar por mim diante
dos homens, também eu me_declararei por ele diante de meu
Pai que está no céu (Mt 10,32). O uso do amen, igualmente
sem analogias em toda a literatura do antigo judaísmo, como
também no resto do Novo Testamento, é por isso certamente
autêntico do Jesus terreno. Empregado antes dele exclusivamen­
te para aprovar as palavras de outra pessoa, o amen é usado
pelo Nazareno para confirmar suas próprias palavras. Conjuga­
do com a fórmula eu vos (te) digo”, ele constitui uma expres­
são análoga à utilizada pelos profetas para indicar a origem
divina''.da sua mensagem: “Assim fala o Senhor”. É traduzido
dessa forma o poder daquele que fala, e por isso a consciência
Qtte o profeta galileu tem da sua autoridade mais do que hu­
mana.”" Essa consciência é também veiculada por circunlocucões
como “Aqui está quem é mais do que Jonas!”, “Aqui está algo
mais do que Salomão!” (Mt 12,41s), nas quais “esse ‘mais’ está
indicando que a história da salvação, já passada, não só é reto­
mada, mas também superada; em outras palavras, esse ‘mais’
tem um teor escatológico: chegou o momento”.66768/Jesu s mostra
saber que nele é apresentada ao homem a oferta definitiva e
última de salvação por parte de Deus.
Por fim, é possível reconhecer a consciência explícita do
Nazareno com relação a si mesmo e à própria missão no subs­
trato historico da tradição d os milagres: 65 os evangelhos rela­

66 Cf. J. Jeremias, op. cit., pp. 47-49. Escreve H. Schlier, Amén in


Grande Lessico dei Nuovo Testamento, I, Bréscia, 1965, p. 916: “No
amén que ele coloca diante de légo umin está contida em embrião toda
a cristologia”.
67 J. Jeremias, op. cit., p. 100.
68 Cf. entre outros J. Crcssan, “La presenza dell’amore di Dio nelle
opere de potenza di Gesü” in Concilium 1969, 10, pp. 84-99 (explicita­
mente sobre a autoconsciência de Jesus e suas obras de poder); A. de
Groot, II miracolo nella Biblia, Roma, 1969; J. Jeremias, Teologia dei

230
tam numerosas curas realizadas por Jesus, ressurreições de mor­
tos e milagres sobre a natureza. Não é difícil reconhecer nesse
rico material uma tendência à enfatização (por exemplo, cura de
um cego em Mc 10,46, e de dois em Mt 20,30; sete cestos de
sobras e quatro mil pessoas no relato da multiplicação dos pães
de Mc 8,8-9; doze cestos e cinco mil homens no de Mc 6,43-44;
etc.), como também a influência do entusiasmo taumatúrgico
próprio da mentalidade oriental, que usa amplamente a fanta­
sia e gosta do extraordinário.^9 Além disso, é possível distinguir
entre uma primitiva tradição palestina (que focaliza o poder de
Jesus, no contexto de narrações muito simples: cf., por exem­
plo, a cura do cego Bartimeu em Mc 10,46-52) e uma posterior
de tipo helenística (articulada de acordo com os modelos típi­
cos do taumaturgo da antigüidade, elaborados, que prescrevem
a exposição detalhada dos antecedentes, do gesto miraculoso e
das conseqüências e reações: cf., por exemplo, a cura do cego
de Betsaida em Mc 8,22-26). Com base nessas observações críti­
cas, o núcleo histórico dos milagres revela-se notavelmente
reduzido. Todavia, persiste um conjunto de elementos irrefutá­
veis, que só podem ser relacionados com aquilo que Jesus real­
mente realizou. Assim, por exemplo, a acusação que lhe fazem
de expulsar os demônios em nome do príncipe destes (cf. Mc
3,22b par.) não se justificaria se não houvesse fatos que a pro­
vocaram; da mesma forma, a observação de que em Nazaré
Jesus não pôde realizar nenhum prodígio por causa da incredu­
lidade de seus habitantes (cf. Mc 6,5) — observação de incon­
testável historicidade, porque constituía um elemento descon­
certante para a comunidade pascal — mostra que os gestos de
poder eram normais no comportamento do profeta galileu. “Uma
análise histórico-crítica da tradição dos milagres chega à con­
clusão de que não é possível negar a existência de um núcleo

Nuovo Testamento, op. cit., pp. 104ss; K. Kertelge, Die Wunder Jesu
in der neue-Exegese” in Theologiesche Berichte V, Zurique-Coloma,
1976, pp. 71-105; R. Latourelle, “Miracolo” in Nuovo Dizionario ai
Teologia,'pp. 931-45; I miracoli di Gesü secondo il Nuovo Testamento,
org. por Léon-Dufour, Bréscia, 1980; F. Mussner, I miracoli di Gesu.
Problemi preliminari, Bréscia, 1969; L. Sabourin, “I miracoli di Gesü
in Rasegna di Teologia, Supl. 13 (1972), pp. 91-99; A. Weiser, I mira-
coli di Gesü, Bolonha, 1979 (ed. bras.: O que é milagre na Bíblia, Edi­
ções Paulinas, São Paulo, 1978, 2‘ ed., 189 p.).
69 Cf. os textos de curas, exorcismos e ressurreições do tempo e do
ambiente do Novo Testamento referidos por Weiser, op. cit.

231
histórico dessa tradiçãoé Jesus realizou obras extraordinárias que
deixaram os contemporâneos estupefatos”.7? Qual é o significa­
do dessas obras? Na tradição bíblica, os milagres não respon­
dem a um interesse científico-naturalista. Falar deles como de
suspensões inexplicáveis das leis da natureza — como costuma­
vam fazer, de pontos de vista opostos, o racionalismo ateu e a
apologética tradicional — é o mesmo que colocar-se fora do
horizonte da Escritura. Nesta ‘‘os milagres, mais do que prova
da existência de Deus, são sinais e indicações para se compreen­
der quem é Deus e o que ele quer”,7071 são gestos de revelação,
apelos e respostas à fé do homem.72 Os milagres realizados por
Jesus são sinais da salvação do Reino de Deus em ação, do. qual
exprimem a dimensão corpóreo-terrêna. e ãcTrnesrnn tempo “são
signa prognostica, uma prefiguração. a alvorada da nova cria-
ção, a antecipação do futuro que se descerrou em Cristo”.73745
Compreende-se então como “a atividade taumatúrgica de Jesus
esteja em estreita união com o seu anúncio da vinda do_ Reino
deJDeus; as suas curas mostram de maneira palpável que onde
q mensagem da proximidade de Deus foi recebida totalmente,
em pleno abandono, a própria salvação já está em ação”.7'1
Assim, o agir miraculoso do Nazareno vem a ser mais um teste­
munho de sua consciência de ser aquela pessoa pela qual a pala­
vra e a obra do poder salvífico de Deus alcança o homem e
e destrói o domínio de Satanás.
Então é possível concluir que “toda a pregação de Jesus
sobre o Rehm iminente de Deus, a sua~~vldà pública e a sua
atividade contêm uma cristologia implícita ou indireta, que só
depois da PáscoaTerá traduzida numa confissão explícita e dire-
_ta_. Se os títulos cristológicos enquanto tais são, em sua quase
totalidade, expressão da fé pós-pascal, seu fundamento está,
sem dúvida, na história de Jesus anterior à Páscoa: falta a
expressão, mas existe o conteúdo.76 “Os predicados, os títulos

70 W. Kasper, Gesú il Cristo, op. cit., p. 119.


71 J. Crcssan, “La presenza...” op. cit., p. 88 .
72 A fé não e somente resultado ou escopo do evento miraculoso
mas e fator integrante dele”, K. Kertelge, “Die Wunder Jesu”, op. cit
p. 101.
73 W. Kasper, Gesü il Cristo, op. cit., p. 126.
74 W. Pannenberg, Cristologia, op. cit. p. 302
75 Kasper, op. cit., p. 133.
76 Cf, J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 286.

232
cristológicos, podem muito bem ser conseqüência da fé; mas a
pretensão do próprio Cristo, contida implicitamente em todo o
seu agir e não somente na sua mensagem, precede à fé dos discí­
pulos”.77 Essa “çristologia implícita” funda-se, em última análi­
se, na consciência filial de Jesus, como se manifesta nas suas
palavras e obras, e como será interpretada no título que, desde
os primeiríssimos inícios,78 a comunidade aplicará ao Crucifica-
do-Ressuscitado, como o mais adaptado a evocar o, seu mistério:
Filho de Deus.'9 Pode-se então falar de uma continuidade fun­
damental no desenvolvimento que vai da autoconsciência origi­
nária não-reflexa do Nazareno até à sua consciência reflexa, até
a interpretação dada sobre ela pela comunidade das origens. Em
outras palavras, não só “a çristologia pós-pascal com os seus
nomes de dignidade para Jesus de Nazaré não levou a uma
radical alienação da autêntica autoconsciência de Jesus”, como
também “ficará suspensa no ar se não estiver fundamentada na
autoconsciência dele”.80
Trata-se, todavia, de uma continuidade descontínua, que
não exclui as diferenças entre os vários estágios: entre o momen­
to pré-pascal e o pós-pascal situa-se o evento inaudito da ressur­
reição, que só permite aplicar ao profeta galileu e à sua preten­
são aqueles títulos que, de outra forma, seriam equívocos. Mas
também entre o momento atematizado e o reflexo da consciên­
cia de Jesus é possível captar, na evolução gradual, uma vira­
da. “Quando se submeteu ao batismo de João para unir-se ao
povo de Deus escatológico que o Batista estava reunindo...sentiu
o seu chamamento”.81 O evento do batismo parece ser histori­
camente certo, porque dificilmente se pode imaginar que tenha

77 Pannenberg, op. cit., p. 50.


78 Cf. A. Descamps, “Por une histoire du titre ‘Fils de Dieu’. Les
antécédents par rapport à Marc”, in UÊvangile selon Marc. Tradition et
relación, org. por M. Sabbe, Gemblox, 1974, pp. 529-71.
79 Cf. B.M.F. Van Jersel, “D er Sohn” in den Synoptischen Jesus-
worten. Christusbezeichnung der Gemeinde oder Selbstbezeichnung Je­
sus?, Leiden, 1961, examina os elementos pré-pascais que mostram, “que
de um modo todo especial ele (Jesus) tinha consciência de ser Filho de
Deus...” e sublinha “que a comunidade primitiva estava convencida de
que Jesus era Filho de Deus (IX ) p. 183.
80 F. Mussner, Wege zum Sebstbewusstsein Jesu, op. cit., pp. 171
e 161.
81 J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 63. O
episódio do encontro de Jesus entre os doutores do templo (Lc 2,41-52)
mostra sua vivacidade e consciência de um relacionamento único com o

233
histórico dessa tradiçãoé Jesus realizou obras extraordinárias que
deixaram os contemporâneos estupefatos”.7? Qual é o significa­
do dessas obras? Na tradição bíblica, os milagres não respon­
dem a um interesse científico-naturalista. Falar deles como de
suspensões inexplicáveis das leis da natureza — como costuma­
vam fazer, de pontos de vista opostos, o racionalismo ateu e a
apologética tradicional — é o mesmo que colocar-se fora do
horizonte da Escritura. Nesta “os milagres, mais do que prova
da existência de Deus, são sinais e indicações para se compreen­
der quem é Deus e o que ele quer”,7071 são gestos de revelação,
apelos e respostas à fé do homem.72 Os milagres realizados por
Jesus são sinais da salvação do Reino de Deus em ação, do qual
exprimem a dimensão corpóreo-terrena, e ao mesmo tempo “são
signa prognostica, uma" prefiguracão. a alvorada da nova cria-
ção, a antecipação do futuro que se descerrou_ em Cristo’’,73
Compreende-se então como “a atividade taumatúrgica de Jesus
esteja em estreita união com o seu anúncio da vinda do Reino
de Deus; as suas curas mostram de maneira palpável que onde
a mensagem da proximidade de Deus foi recebida totalmente,
em pleno abandono, a própria salvação já está em ação”.7475
Assim, o agir miraculoso do Nazareno vem a ser mais um teste­
munho de sua consciência de ser aquela pessoa pela qual a pala­
vra e a obra do poder salvífico de Deus alcança o homem e
e destrói o domínio de Satanás.
Então é possível concluir que “toda a pregação de Jesus
sobre o Reino iminente de Deus, a sua vida pública e a sua
atividade contêm uma cristologia implícita ou indireta, que só
depois da Páscoa~será traduzida numa confissão explícita e dire-
Se os títulos cristológicos enquanto tais são, em sua quase
totalidade, expressão da fé pós-pascal, seu fundamento está,
sem dúvida, na história de Jesus anterior à Páscoa: falta a
expressão, mas existe o conteúdo.76 “Os predicados, os títulos

70 W. Kasper, Gesü il Cristo, op. cit., p. 119.


71 J. Crcssan, “La presenza...” op. cit., p. 8 8 .
72 A fé “não é somente resultado ou escopo do evento miraculoso,
mas é fator integrante dele”, K. Kertelge, “Die Wunder Jesu”, op. cit.,
p. 1 0 1 .
73 W. Kasper, Gesü il Cristo, op. cit., p. 126.
74 W. Pannenberg, Cristologia, op. cit. p. 302
75 Kasper, op. cit., p. 133.
76 Cf. J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 286.

232
cristológicos, podem muito bem ser conseqüência da fé; mas a
pretensão do próprio Cristo, contida implicitamente em todo o
seu agir e não somente na sua mensagem, precede à fé dos discí­
pulos”.77 Essa “çristologia implícita” funda-se, em última análi­
se, na consciência filial de }esus, como se manifesta nas suas
palavras e obras, e como será interpretada no título que, desde
os primeiríssimos inícios,78 a comunidade aplicará ao Crucifica-
do-Ressuscitado, como o mais adaptado a evocar o. seu mistério:
l ilho de Deus.79 Pode-se então falar de uma continuidade fun­
damental no desenvolvimento que vai da autoconsciência origi­
nária não-reflexa do Nazareno até à sua consciênciu reflexa ,a té
a interpretação dada sobre ela pela comunidade das origens. Em
outras palavras, não só “a çristologia pós-pascal com os seus
nomes de dignidade para Jesus de Nazaré não levou a uma
radical alienação da autêntica autoconsciência de Jesus”, como
lambém “ficará suspensa no ar se não estiver fundamentada na
autoconsciência dele”.80
Trata-se, todavia, de uma continuidade descontínua, que
não exclui as diferenças entre os vários estágios: entre o momen­
to pré-pascal e o pós-pascal situa-se o evento inaudito da ressur­
reição, que só permite aplicar ao profeta galileu e à sua preten­
são aqueles títulos que, de outra forma, seriam equívocos. Mas
também entre o momento atematizado e o reflexo da consciên­
cia de Jesus é possível captar, na evolução gradual, uma vira­
da. “Quando se submeteu ao batismo de João para unir-se ao
povo de Deus escatológico que o Batista estava reunindo., .sentiu
o seu chamamento”.81 O evento do batismo parece ser histori­
camente certo, porque dificilmente se pode imaginar que tenha

77 Pannenberg, op. cit., p. 50.


78 Cf. A. Descamps, ‘‘Por une histoire du titre ‘Fils de Dieu’. Les
antécédents par rapport à Marc”, in L ’Êvangile selon Marc. Tradition et
relación, org. por M. Sabbe, Gemblox, 1974, pp. 529-71.
79 Cf. B.M.F. Van Jersel, “Der Sohn” in den Synoptischen Jesus-
worten. Christusbezeichnung der Gemeinde oder Selbstbezeichnung Je­
sus?, Leiden, 1961, examina os elementos pré-pascais que mostram, “que
de um modo todo especial ele (Jesus) tinha consciência de ser Filho de
Deus...” e sublinha “que a comunidade primitiva estava convencida de
que Jesus era Filho de Deus (IX ) p. 183.
80 F. Mussner, Wege zum Sebstbewusstsein Jesu, op. cit., pp. 171
e 161.
81 J. Jeremias, Teologia dei Nuovo Testamento, op. cit., p. 63. O
episódio do encontro de Jesus entre os doutores do templo (Lc 2,41-52)
mostra sua vivacidade e consciência de um relacionamento único com o

233
sido criado pela comunidade, cujo Jnteresse consistia em mos­
trar a superioridade do Nazareno sobre _o Batista, e que por
isso não podia deixar de sentir certo embaraço diante da cena
em que João é aquele que batiza e Jesus é aquele que se faz
batizar. No relato há certamente elementos pós-pascais; todavia,
duas afirmações podem ser encontradas em todas as redações
(Mc 1,9-11; Mt 3,13-17; Lc 3,21s; cf. Jo 1,32-34), ou seja, a
descida do Espírito e uma proclamação. Se esses dois dados
forem interpretados, como parece possível, à luz de Is 42,1 —
“Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem
tenho_prazer. Pus sobre ele o_.meu espírito” — , pode-se com­
preender como a comunidade das origens visse no batismo de
Jesus um evento escatológico, em que se realizava a promessa
divina de efusão do_JspiritoJ_Além disso — levando em consi­
deração o núcleo histórico da cena — não se pode excluir “que
o sentido dessa passagem da Escritura, expresso agora pela
proclamação, pudesse já ser conhecido por Jesus e que ele, a
í partir do batismo, se sentisse como o servo de Deus prometido,
j por Isqías”.82 Nesse sentido poder-se-ia dizer que “no batismo)
Jesus sentiu a experiência da sua vocação”.83 “uma experiência'
de disclosure, isto é, uma experiência fontal reveladora”,84 na
qual compreendeu explicitamente que estava sendo agarrado
pelo Espírito e por isso enviado pelo Pai para realizar em si o
tempo da salvação. De fato, esta cena inaugura no relato evan­
gélico, a vida pública do profeta galileu (cf. também At 1,2 ls ) :
ela podia então ser o testemunho do momento em que o pro­
cesso de tematização da consciência de Jesus chega a uma vira­
da definitiva. Nesse caso, o batismo seria para a história exte­
rior do Nazareno, bem como para a de sua consciência, o alvo­
recer dos novos tempos. A comunidade pascal, captando seu sig­
nificado de revelação, reconhecerá nele o novo início para toda
a humanidade, no dom do Espírito, que desce sob a forma de
uma pomba. A nova criação evoca as origens: “O espírito de
Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2).

Pai, mas não desempenhou um papel importante como o batismo: cf.


R. Laurentin, Jésus au temple. Mystère de Paques et foi de Marie en Lc
2,48-50, Paris, 1956.
82 J. Jeremias, op. cit., pp. 69-70.
83 Id., ibid., p. 69.
844 E. Schillebeeckx, Cesú, la storia di un vivente, op. cit., p. 135.

234
H .3 . R E V E L A Ç Ã O E S E G U IM E N T O

Foi dito que, à luz pascal, toda dimensão da humaníssima


história de Jesus de Nazaré pode ser lida como revelação da
história trinitária de Deus, provocação e apelo ao seguimento.
"Na história de Jesus narra-se a história de Deus... E a nós, hoje,
r dirigida a pergunta se ousamos arriscar a nossa vida por ela’ .85
Então é necessário indagar: O que a história da consciência de
(csus nos revela sobre Deus? O que ela acarreta para o nosso
seguimento de Jesus?

a) Na história de Jesus de Nazaré e da sua consciência


revela-se, antes de mais nada, aJrin d ad e do Deus cristão: a cons­
tante relação dialogai entre Jesus e o Pai, única e exclusiva em
confronto com qualquer outra possível relação com Deus, deixa
transparecer que o Deus de Jesus Cristo é comunidade dialogan­
te numa profundidade totalmente inatingível para as capacida­
des humanas. As expressões tematizadas da consciência do Na­
zareno confirmam isso, que é o dado fundamental do evange­
lho: no profeta galileu Deus se fez presente à realidade humana
de maneira definitiva como Pai, cujo Reino vem, e como Filho,
o único que conhece o Pai e pode revelá-lo (cf. Mt 11,27), e
no qual por isso o Reino irrompe no mundo. A fé pascal fixará
uma multiplicidade de títulos cristológicos no esforço de expri­
mir a condição daquele que é Senhor e Cristo, Verbo e Filho de
Deus. Cada um desses títulos, enquanto explicitação da preten­
são pré-pascal do Nazareno fundada na sua consciência filial e
enquanto carregados da identidade na contradição proclamada
na Páscoa, terá uma ressonância trinitária. Jesus é constituído
Senhor e Cristo pelo Pai, é Verbo e Filho do Pai. E o Espírito?
A comunidade das origens lê a relação entre Jesus e o Pai na
luz da Páscoa sempre em relação com o Espírito; concebido por
virtude do Espírito Santo (cf. Mt 1,18), sobre ele desce o Éspí-
rito (cf. Mt 3,16; Jo 3,34; At 10,38), vivificado pelo Espírito
(cf. lPd 3,18 e Rm 1,4;8,11; etc.), é constituído Filho de Deus
(cf. Rm 1,4). Esta releitura pascal encontra fundamento na his­

85 Id., ibid., p. 159.

235
tória do Jesus terreno, que reivindicou repetidamente a posse
do Espírito. Ele não só se colocou entre os profetas (cf. Lc
13,33; Mt 2 3 ,3 ls.34-36 par.; 37-39 par.; cf. Mc 6,4 par.; Lc
4,24; Jo 4,44), cuja nota característica era a posse do Espírito
de Deus,86 mas também fez compreender muitas vezes e de ma­
neira categórica que possuía o Espírito.87 Numa época em que a
Sinagoga considerava extinto o Espírito em razão do pecado de
Israel, Jesus sabe que está inaugurando o tempo novo do Espí­
rito: O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso me consa­
grou com a unção e me enviou...” (Lc 4,18). A consciência filial
do Nazareno vive, pois, a experiência do Espírito de Deus. Sobre
este fundamento pós-pascal a comunidade das origens — à luz
da novidade da Páscoa — poderá formular a sua fé trinitária,
embora não articulada no horizonte lingüístico e cultural em
que se exprimirá no sucessivo desenvolvimento dogmático.
O paradoxo cristológico revela assim o paradoxo trinitário:
o Deus cristão, como é “narrado” na história da consciência de
Jesus de Nazaré, e como é “expresso” no esforço da fé pascal,
é Pag Filho e Espírito, que se põem e se propõem reciproca­
mente e para com os homens, cada qual na sua concreta e ori­
ginal relação com o outro. É comunidade dialogai em que —
num nível radicalmente diferente do que é pensável entre os
seres humanos — um Eu se põe e se propõe a um Tu, que O
aceita e se Lhe dá, na comunhão de um Nós, que não é um Ele
fora do diálogo, mas é precisamente o Nós divino em pessoa: o
Espírito.88 Nessa comunidade de relações profundíssimas é imer­
so o homem, que entra em contato com o Nazareno: aqui se
funda, em última análise, a exigência absoluta de decisão, que
a pregação e a obra de Jesus apresentam. Na história do profeta
galileu e da sua consciência filial, o Pai se colocou em relação
nova e transformadora com os homens, enviando-lhes, através

8 6 Cf. H. L. Strack — P. Billerbeck, Kommentar zum N. T. aus


Talmud und Midrasch, Munique, 1924, II pp. 127-38.
87 Cf. o que dissemos sobre a cena do batismo e a consciência de
Jesus com relação a Is 42,1; cf. também Mc 3,28s, onde se introduz com
o amen e o eu enfático a sentença da blasfêmia contra o Espírito Santo;
cf. Mt 12,28 = Lc 11,20, onde Jesus atribui os seus exorcismos ao Espí­
rito de Deus; em Lc 4,18-21 refere a si mesmo a profecia de Is 61,1 sobre
o Espírito; conferiu aos seus o poder sobre os espíritos impuros (cf. Mc
6,7) e promete a assistência do Espírito aos discípulos (cf. Mc 13,11);
etc. Cf. J. Jeremias, cp. cit., p. 96.
8 8 Cf. H. Mühlen, La mutabilità di Dio, Bréscia, 1974, pp. 42 e 47.

236
fj| l illio, o Espírito. No Espírito, através do Filho, o homem
j&M m csso ao Pai: a história do mundo e a história trinitária de
|»*-i«s rueontram-se na história de Jesus de Nazaré, como reve-
i|iir é ao mesmo tempo subversão dos nossos horizontes
¥ i.!* iiu inaudita de salvação naquele que é a Aliança em pessoa.
"Nruii nome tocam-se e dividem-se dois mundos... o mundo da
B=arttr' , e o mundo do Pai... O ponto da linha de interseção,
üi i <|unl esta pode ser vista, e é efetivamente vista, é Jesus de
NsíMie, o Jesus ‘histórico’...”.89

/') F.m segundo lugar, a história de Jesus e da sua cons-


i iriií jii revela a hum anidade de Deus. O pôr-se e propor-se do
l illi.» ií variedade das situações humanas, no caminho da origi-
náitu nercepcão atematizada de si do Nazareno até à clareza da
t oma H-ncia reflexa da própria condição e missão, demonstra até
i|nc ponto o Deus trinitário se empenhou com o homem, com-
piMim tendo-se com a sua história de lágrimas e de libertação.
\ ié e a esperança de Jesus narram-nos a radicalidade com a
■ pini o Deus cristão saiu de si, para fazer-se pobre e peregrino
pi a mnor dõ homem. A obscirrlda J e e a ignorância na história
rio mui conhecimento manifestam-nos a maravilhosa “condes-
. rmlrneia” de Deus para com a nossa fraqueza. O Deus absolu-
taniriitc livre e transcendente — e a relação única e exclusiva
. 1.10 lesus e o Pai, totalmente além de qualquer possibilidade
Inmi.ma, é sinal dessa liberdade e transcendência — torna-se,
.1. vii isto é, entra no movimento da história humana, compro-
iii. it- se a construir com o homem a novidade do futuro, com
pula a densidade e a resistência que isso comporta. “O Verbo
m: k z carne” significa então também isto: o Deus trinitário não
• estranho e distante com relação à história; é o Deus-conosço,
u Deus próximo, totalmcnte Outro na sua liberdade e transcen­
dência, mas ao mesmo tempo totalmente dentro no seu ámor
r na sua busca do homem. É o Pai que chama o homem a si
nn |csus, e nele lhe oferece a salvação e a libertação na história,
niilr.s dc dá-la no mundo futuro; é o Filho, que em tudo se fez
solidário com os homens, exceto no pecado, para levá-los à comu­
nhão divina já no seio das inauditas contradições do presente; é
.. Espírito, que no tempo leva à realização a promessa deseerra-

SV) K. Barth, UEpistola ai Romani, Milão, 1974, p. 5.

237
da no Crucificado-Ressuscitado, como presença do Deus trini-
tário em toda vicissitude humana, para sustentá-la e fermentá-la
na esperança. O Deus da história de Jesus é o Deus que está do
lado do homem, que se encarrega do obscuro devir e nele cons­
trói o seu Reino; é o Deus, que na sua soberana liberdade aceita
entrar nas trgvas-d.0 tempo para fazer delas a aurora da., glória
fllíura; um Deus de homens, que não compete com o^homem.
mas que se faz_humano para que o homem cresca. A história
da consciência de Jesus é, neste sentido, a história da humani-
dade-deJDeus: somente aquele que pode a n lq u T ía n s ^ ^ e só
Deus o pode, porque só ele pode aproximar-se de quem lhe é
infinitamente inferior (a “quênose” de que fãIã~FT~2,5ss) —
pode ser verdadeiramente humilde. “A virtudè~que se~~ehama
humildade está enraizada no mais profundo de Deus” (Mestre
Eckard). A história do humilde Nazareno “manifesta no tem­
po que a humildade é o centro da glória”.90

c) O que acarreta esse revelar-se do Deus trinitário e da


sua humanidade para o seguimento de Jesus de Nazaré? Qual
é o desafio que a história de Deus nele “narrada” lança à Igreja
cristã?
A história da consciência de Jesus dá origem a duas tare­
fas na imitação de Cristo” : de um lado, o ser dialogai do Deus
cristão funda a exigência de uma Igreja que seja comunhão
dialogai; de outro, a encarnação de Deus engaja a comunidade
dos crentes a se encarnar até o fundo nas situaçõgs humanas.
No seguimento de Jesus de Nazaré, a Igreja cristã é chama­
da a ser, antes de mais nada, o povo do diálogo com o Pai.
Através do Filho, na força do Espírito, ela acolherá o dom do
alto e apresentará o louvor e a necessidade dos homens. Será
povo em festéq que celebra a libertação e se enche de admiração
e alegria ao~Iizer a experiência disso; e será voz dos pobres,
oraçáo_carregada dê fome e sede de justiça dos oprimidos, inter-
cessão e grito desarticulado dos últimos. A festa, a ação de
graças de quem sabe ler a beleza no cotidiano porque, como
Jesus, se esforça por ler tudo à luz do Pai, não torna as pessoas
cegas_e surdas diante da dor de quem sofre, nem permite o _des-
còmprõmetimgnto ha luta pela justiça. Pelo contrário, o diálogo

90 F. Varillon, Uumiltà di Dio, Alba, 1978, p. 59.

238
■ In celebração cristã é diálogo de libertação, é ver o mundo com
os olhos de Deus e sofrer por causa da injustiça como Aquele
■ nu- foi injustamente-pregado na cruz. O povo que celebra auten-
liminente a eucaristia é também o povo que se sente inexora­
velmente chámãHcTã' quebrar as cadeias da iniquidade, a com-
imrlilhar o compromisso de libertação, a realizar com as obras
n íraternidade dos homens diante da única paternidade do Deus
de Jesus Cristo. O diálogo com o Pai, no seguimento do Naza­
reno, exige então que se torne comunhão fraterna. Mas para
que a Igreja suscite comunhão, deve antes de mais nada realizar
em si mesma a comunhão. “Nisto todos saberão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). Comu­
nhão implica diversidades que se acolhem e se entregam mutua­
mente, originalidades que convergem na unidade. A trindade do
Deus revelado em Jesus Cristo é profundíssima singularidade
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e é, ao mesmo tempo,
msondável união entre eles. No riquíssimo diálogo entre o Pai
e o Filho no Espírito Santo manifesta-se a natureza do amor: “O
amor é a distinção e a superação do destino” (Hegel). Esta
deveria ser a condição da Igreja do Deus trinitário: à imagem
<• semelhança dele, ela é chamada a viver na mais rica variedade
c, ao mesmo tempo, na mais profunda unidade. Uma Igreja que
sc mede no seguimento do Nazareno deve saber reconhecer e
acolher a mais ampla diversidade de dons, de presenças, de
caracterizações ligadas ao espaço e ao tempo. Todavia, essa
diversidade deve redundar em comunhão graças a um estilo de
recíproca tolerância e de diálogo. A tolerância é a paciência de
crescer juntamente com todos, sem trilhar caminhos autoritários
ou integristas, talvez mais rápidos e mais cômodos, mas abso­
lutamente incapazes de vivificar e expandir a comunhão. O diá­
logo é o encontro na palavra, a recíproca escuta e compromisso,
a possibilidade dada a todos de se exprimirem na liberdade e o
esforço por se compreenderem na diversidade. Tolerância e diá­
logo fomentam a comunhão e exigem um estilo de responsabi­
lidade e de disponibilidade e perder algo de si, a fim de que
cresça a vida em comunhão. Uma Igreja dilacerada por intple-
râncias recíprocas, uma Igreja na qual o autoritarismo matasse
a paciência da tolerância e a liberdade do diálogo, estaria radi­
calmente em contraste com a revelação do Deus trinitário, ofe­
recida na consciência dialogai de Jesus. Somente a busca cons­

239
tante da comunhão, conjugada com a promoção da variedade
dos serviços e das responsabilidades, somente a aceitação do
risco que tudo isso comporta poderão fazer resplandecer na
existência dos cristãos a luz do mundo novo, que se tornou
acessível aos homens graças ao relacionamento único vivido pelo
Filho com o Pai “nos dias de sua carne”.

d) Em segundo lugar, o seguimento do Nazareno a partir


da história de sua consciência exige da Igreja um estilo de
encarnação. Encarnação que significa entrar no tempo e no espa­
ço das situações humanas. Como o diálogo eterno dos Três
entrou na fadiga e na progressividade do tempo, assim — a for-
tiori — o diálogo na Igreja, sinal e meio de sua comunhão enrai­
zada no Deus trino, deverá desenvolver-se na fadiga e na evolu­
ção gradual próprias da realidade humana. Os tempos de Deus
revelaram-se na história da consciência de Jesus como tempos
de uma paciência ativa e esperançosa. Assim devem ser também
os tempos dos cristãos que querem viver e crescer em comu­
nhão. A Igreja descobre-se, então, privada de uma moradia
fixa neste mundo, peregrina para a luz mais intensa, não pre-
sunsosamente agarrada às suas certezas, mas pobre e servidora,
com fome e sede do futuro que lhe é prometido. Os cristãos
sentem que devem ser homens abertos ao futuro, seguidores da­
quele que acreditou e esperou contra toda esperança e os pre­
cedeu no combate da fé. E, ao mesmo tempo, a encarnação de
Deus, o seu comprometer-se com o homem e pelo homem na
história concreta do Nazareno, exige, para o seu seguimento, a
firme vontade de comprometer-se com os outros e pelos outros.
“El que ama se compromete hasta el final” (provérbio latino-
-americano). Comprometer-se implica solidariedade e participa­
ção, pão compartilhado com os outros, na comum e árdua bus­
ca da libertação e da vida em comunhão. O Deus na carne do
mundo, longe de justificar uma atitude passiva dos cristãos ou
uma fuga das responsabilidades, empenha cada um a fazer-se
companheiro de caminhada, a carregar o peso dos^outros, junta­
mente com eles. Aqui se fundamenta, da maneira mais radical,
a dimensão política do seguimento do Nazareno: a sua solida­
riedade total com a condição humana diz que nada do que é
humano é estranho ao Deus que nele se revela, e por isso que
nada do que é humano deve ser estranho à Igreja do Deus trini-

240
tário. O empenho por uma sociedade mais justa é ato de louvor
a este Deus de homens: a injustiça é ofensa e pecado que toca
profundamente o seu mistério. A vocação política — que nada
tem a ver com o cálculo egoísta e o interesse privado — corres­
ponde a uma exigência absoluta de fidelidade à história, funda­
da na encarnação de Deus. O Deus-conosco, “narrado” no cami­
nho da consciência de Jesus, contesta todo espiritualismo desen­
carnado, ao mesmo tempo que provoca e sustenta todo empenho
de amor verdadeiro pelo homem concreto. É por esse empenho
de encarnação que se mede a autenticidade da profissão de fé
cristã. É aqui que as Igrejas deveríam perceber a constante, a
implacável subversão do evangelho com relação à sua postura
de parar, de retardar e de fechar os olhos diante da dor dos
homens. Compartilhar o sofrimento, procurar todos os dias o
caminho em comunhão, prosseguir com cünfiança: 91 é nesse
estilo de vida que se constrói o seguimento do profeta galileu,
, em quem o Deus trinitário compartilhou a dor dos homens, pro­
curou com eles o caminho em comunhão, deu fundamento à
esperança para ir adiante, sem parar.

91 D. Mongillo, “Esistenza cristiana” in Nuovo Dizionario di Teolo­


gia, pp. 411-47, especialmente pp. 440ss.
9

UMA H ISTÓ RIA DE LIBERDADE

Jesus, hom em livre

Jesus foi um homem livre? A sua história foi uma história


de contínuas alternativas e escolhas, nas quais definiu a sua
vida e a sua missão? Ou — por força do mistério de sua condi­
ção, plenamente revelado na Páscoa, mas percebido por ele
cada vez mais claramente no caminho da sua consciência —
tudo foi predeterminado para ele e se desenvolveu como o fiel
reflexo de um eterno conselho divino? E, se isso aconteceu, até
que ponto se pode dizer humana” a sua vida? Será que existe
humanidade onde não há, até o extremo, o risco da liberdade,
onde não há a situação limite de se poder escolher ou suportar
a vida, dominá-la ou ser por ela dominado, dependendo das
condições em que se está colocado e das escolhas que se faz?
São questões que envolvem profundamente a imagem que faze­
mos do Nazareno, e portanto do nosso seguimento em pós dele.

A fé da Igreja deu a essas questões uma resposta


decisiva no III Concilio de Constantinopla, em 681: con­
denando os defensores da existência de uma única vonta­
de em Cristo (os monotelitas”), o Concilio afirmou que Je­
sus é dotado de vontade e liberdade humanas, isto é, tem
um ser livre.1 Portanto o homem de Nazaré escolheu livre-
, mente o seu futuro, ele se pôs e propôs no risco da liberda­
de, com todo o peso de sua verdadeira e plena humanidade.
Terá esse risco acarretado a possibilidade de conflito entre

1 Cf. DS 553-559. A doutrina da liberdade humana de Cristo é


pressuposta também pela doutrina que vê a redenção fundada na obra
meritória de Jesus: cf. Concilio de Trento, DS 1513. 1547. 1560. Com
efeito —- como sublinhará Inocêncio X contra Jansênio — para que
o ato seja meritório, é necessária a liberdade de escolha: DS 2003.

242
a condição filial de Jesus diante do Pai e a sua condição
de homem entre os homens? Poderia o profeta galileu ter
rejeitado o desígnio divino para seguir um desígnio pró­
prio, e portanto pecar? É possível dar logo uma resposta
a essas perguntas a partir da fé pascal: “Se o pecado é
essencialmente viver em oposição a Deus, no fechamento,
a unidade de Jesus com Deus, na sua comunhão de pessoa
com o Pai e na sua identidade de pessoa como Filho de
Deus, significa afastamento de todo pecado”.2 Do Naza­
reno só se pode dizer, a partir da Páscoa, “sine peccato
conceptus, natus et mortuus” :3 concebido sem pecado, ini­
ciou e concluiu a sua vida sem pecar. Assim ele rompeu a
lei de pecado da nossa história e fez irromper nela a nova
história de Deus.4 É o que a fé da comunidade das origens
exprimiu claramente: “Ele não cometeu pecado (lPd 2,
22); “ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exce­
ção do pecado” (Hb 4,15); ele, em quem “não há pecado”
e que “veio para tirar o pecado” ( ljo 3,5). O Cristo joa-
nino afirma: “Quem de vós pode convencer-me de peca­
do?” (Jo 8,46). E Paulo assevera: “Aquele que não conhe­
cera o pecado, Deus o fez pecado, por causa de nós, a fim
de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,21).
Esse dado incontestável da fé pascal não deve, todavia,
forçar a releitura do Jesus terreno. O fato de que ele não
tenha conhecido pecado não significa que tenham faltado
ao seu ser homem o risco e a fadiga da liberdade. A sua
condição humana não esteve, menos do que a nossa,
exposta à fadiga de viver, e portanto à gravidade das esco­
lhas radicais, freqüentemente árduas e difíceis. A ausên­
cia de pecado em Jesus não é uma impecabilidade abstra­
ta, uma incapacidade de fazer o mal, ligada de maneira

2 W. Pannenberg, Cristologia. Lineamenti fondamentali, Bréscia,


1974, p. 496.
3 Cf. o Decreto para os Jacobitas: DS 1347.
4 Cf H. Golhvitzer, “Zur Frage der ‘Sündlosigkeit Jesu’ ” ín Evan-
gelische Theologie 31 (1971), p. 504 (cf. todo o artigo, pp. 486-506),
crítico em relação a T. Lorenzmaeir, “Wider das Dogma von der Sun-
dlcsigkeit Jesu”, in ibid., pp. 452-71, o qual, em nome da verdade da
Encarnação e por um presumido antidocetismo, afirma que a seme­
lhança à carne de pecado” de Jesus significa participação na pecamino-
sidade do ser humano, através da qual ele teria revelado a Deus e o
teria tornado presente; cf. p. 471.

243
natural ao seu ser homem, mas “é só o resultado da tota­
lidade do seu processo de vida”.5 Em outras palavras, se
o Filho foi enviado numa carne de pecado para condenar
o pecado na carne (cf. Rm 8,3), ele escolheu, entfe as tri-
bulações e as provações da sua carne “semelhante à do
pecado (cf. ibid.), o caminho da fidelidade incondicional
ao Pai.

Portanto, pode-se falar de uma história da liberdade de


Jesus, de um caminho seu, de uma escolha, na estreita senda da
obediência a Deus. Como se configura esse caminho? Quais são
as suas etapas fundamentais? Como é que ele vai se definindo
na realidade concreta das relações humanas em que o Nazare­
no viveu?
A resposta a essas perguntas exige a narração da história
de Jesus como história de liberdade. Já dissemos mais de uma
vez que história verdadeiramente humana não é concatenação
mecânica de fatos, “brutos”, e portanto futuro dedutível sim­
plesmente do passado; mas é história aberta, tomada de posi­
ção do espírito na sua criatividade diante daquilo que já está
presente para suscitar o futuro. História verdadeiramente huma­
na é história de liberdade: a liberdade confere significado à
existência e caracteriza o agir do homem. Onde a liberdade é
espezinhada e oprimida, o homem como tal é espezinhado e
oprimido: no desafio da liberdade está em jogo a dignidade da
vida. Todavia, é preciso distinguir diversos níveis da liberdade.
Existe, antes de mais nada, uma liberdade exercida no mais pro­
fundo da consciência, que orienta de maneira radical toda deci­
são sucessiva. Ela se realiza no plano profundo da opção funda­
mental, que é a escolha radical do horizonte de vida, capaz de
dar sentido e unidade às múltiplas tomadas de posição setoriais.6

5 W. Pannenberg, op. cit., p. 509. Ê significativo que a doutrina da


impecabilidade de Cristo, como possibilidade de pecar, nunca tenha sido
objeto de definição dogmática: cf. J. Galot, Chi sei tu, o Cristo?, Floren-
ça, 1977, p. 354.
6 Cf. H. Reiners, Grundintention und sittliches Tun, Friburgo-Basi-
léia-Viena, 1966, e H. Kramer, Die sittliche Vorentscheidung, Würzburg,
1970 (expõe o pensamento filosófico e teológico moderno sobre essa ma­
téria) . Uso a expressão “opção fundamental” conforme o sentido em que
é hoje^ comumente empregada em teologia, prescindindo de particulares
conexões histórico-filosóficas (por exemplo, Blondel e o seu pensamento
sobre a op ção): cf. S. Dianich, “Opzione fondamentale” in Dizionario

244
Nessa escolha fundamental reside a motivação última e o crité­
rio unificador de tantas escolhas, em que parece fragmentar-se a
existência de todo séFhumano. Nela se exprime, para usarmos
uma expressão bíblica, o “coração” de um homem, a partir do
qual se manifesta quem ele verdadeiramente é. A opção funda­
mental é motivada, em sua origem, pelo desejo natural de reali­
zar-se em plenitude, e se exerce fundamentalmente na escolha
do fim e dos meios que garantam essa realização. Tal escolha
situa-se na realidade concreta de decisões às vezes até aparente­
mente modestas, e por sua vez influencia as sucessivas tomadas
de posição particulares. A autodeterminação fundamental se
traduz, assim, no nível das múltiplas decisões de cada momen­
to, mais ou menos conscientes: é o nível da liberdade “situada”
ou “empenhada”, isto é, da liberdade vivida na tensão entre a
amplidão transcendental da opção fundamental e a finitude das
possibilidades presentes na situação concreta. Onde a abertura
infinita do desejo, que anima a escolha radical, se choca com
a experiência e se determina a respeito dela, aí a liberdade se
situa e se torna liberdade-de e liberdade-para, tomada de posi­
ção com relação a um já concreto, projetada para o futuro que­
rido. Se a opção fundamental for adequada ao desejo natural de
realização de si, e se as escolhas determinadas sucessivas forem
fiéis a essa opção, o caminho da liberdade se configurará como
um caminho de libertação, um libertar-se daquilo que diminui
o homem, em vista do que o realiza e promove. Caso contrário,
tudo permanecerá sob o signo da alienação de si mesmo. Por­
tanto, a história de toda liberdade pode ser história de liberta­
ção ou história de alienação.
Sob essa luz, como se configura a história de Jesus de
Nazaré? Terá feito ele uma opção fundamental? E, em caso
positivo, qual foi ela? Como viveu o Nazareno as escolhas exigi­
das pelas relações concretas que teceram a sua vida? Terá sido
ele verdadeiramente, como alguns gostam de defini-lo,7 o homem
livre? E, conseqüentemente, que papel desempenha a liberdade
no seguimento de Jesus Cristo?

Enciclopédico di Teologia Morale, Roma, 1976, 4? ed., pp. 694-705, e B.


Haring, Liberi e fideli in Cristo, I, Roma, 1980, 2? ed., cap. V: “L ’Op-
zione fondamentale”, p. 198-266 (ed. bras.: Livres e fiéis em Cristo, Edi­
ções Paulinas, São Paulo, vol. I: 3* ed. 1984, vol. II: 1982, vol. III,
1974.
7 C. Duquoc intitulou seu compêndio de cristologia com a significa-

245
9.1. A O P Ç Ã O F U N D A M E N T A L D E JE S U S D E N A Z A R É

Dois mistérios da vida de Jesus — situados respectiva­


mente no inicio e no fim da vida pública — mostram-no empe­
nhado em fazer a escolha decisiva perante a sua vida e a sua
morte, e por isso permitem compreender qual foi a sua “opção
fundamental . Trata-se do “mistério” das tentações no deserto e
do da agonia no Getsêmani.8 Não se pode negar que esses rela­
tos contenham um núcleo histórico, porque é totalmente inve­
rossímil que a comunidade das origens tenha inventado cenas
tão contrastantes, à primeira vista, com o Senhorio do Ressus­
citado, proclamado na Páscoa. De fato, essas perícopes consti­
tuíram a crux interpretum” na história da reflexão cristã. A
interpretação predominante das tentações foi a exemplar-peda-
gógica: o Senhor deu aos homens o exemplo de como superar
a provação, mas sem que ele mesmo fosse na verdade. Dessa
forma, pensava-se poder esconjurar todo perigo de diminuição
da perféição de Jesus. Todavia “uma insistência unilateral no
aspecto pedagógico da tentação de Cristo corre o risco de tirar-
-lhe toda seriedade : 9 no fundo, ele apenas teria representado
um papel ainda que o tenha feito com a finalidade positiva de
instruir-nos. Certamente, o valor pedagógico não pode ser excluí­
do; todavia, ele só se mantém se a tentação é real. Diversos tes­
temunhos do Novo Testamento parecem comprovar a verdade
da tentação de Cristo: o próprio Jesus fala das suas “provações”
(Lc 22,28: o termo é o mesmo das tentações: peirasm ós. “Tendo

tiva expressão: Gesú, uomo libero, (Jesus, homem livre), Bréscia, 1974.
Entre outros, P. van Buren vê na liberdade a característica fundamental
de Cristo: II significato secolare deli’evangelo, Turim, 1960, pp. 139ss.
Cf. também R. Pesch, “Gesú, un uomo libero” in Concilium 1974, pp.
1 9 7 ^ ’ e P. Ruggini, Gesú di Nazaret, il coraggio delia libertà, Assis,

8 Cf. J. Dupont, L e tentazioni di Gesú nel deserto, Bréscia, 1970; P.


Hoffmann, “Die Versuchungsgeschichte in der Logienquelle. Zur Ausei-
nandersetzung der Judenchristen mit dem politischen Messianismus in
Biblische Zeitschrift 13 (1969), pp. 207-23. Cf. também J. Calloud, Ana-
lyse structurale du récit. Elément de méthode. Tentations de Jésus au
désert, Liãc, 1973. Sobre o Getsêmani, cf. M. Galizzi, Gesú nel Getse-
mani (Mc 14,32-42; Mt 26,36-46; L c 22,39-46), Zurique, 1972.
9 C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, p. 67. Sobre a verdade da
tentação de Jesus, cf. pp. 56ss.

246
ele mesmo sofrido pela tentação, é capaz de socorrer os que são
tentados” (Hb 2,18). Nas provações ele “aprendeu a obediên­
cia” : “(Cristo), nos dias de sua vida terrestre, apresentou pe­
didos e súplicas, com veemente clamor e lágrimas, Àquele que
o podia salvar da morte; e foi atendido por causa da sua sub­
missão. E embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência
pelo sofrimento...” (Hb 5,7).101 O próprio trabalho redacional de
Mateus e Lucas, que substituem a nudez descarnada de Marcos
(1,12-13) pela apresentação elaborada das três tentações (Mt 4,
1-11; Lc 4,1-13), paralelas às de Israel no deserto, mostra
como, para a comunidade primitiva, teve lugar neste episódio
uma escolha real, uma virada decisiva, recapituladora de toda a
história da salvação: 11 é a hora da plenitude dos tempos!

Com Israel foi verdadeiramente provado, assim Jesus


é verdadeiramente tentado. O ambiente é o mesmo: o de­
serto da tremenda solidão com Deus; igualmente denso de
sentido teológico é o tempo, os 40 dias, que evocam os 40
anos do Êxodo e a duração da permanência de Moisés no
monte (cf. Ex 24,18 e 34,28); três são as provações, cor­
respondentes às três do povo eleito. À fome de Israel e à
sua conseqüente murmuração contra Deus, à qual Iahweh
responde com o dom do maná (cf. Ex 16 e Nm 11), cor­
responde a tentação diabólica de mudar as pedras em pão
(cf. Mt 4,3 e Lc 4,3): a resposta de Jesus evoca a interpre-
taçãft teológica dessa primeira tentação de Israel, feita por
Dt 8,3: “Ele te humilhou, fez com que sentisses fome e te
alimentou com o maná que nem tu nem os teus pais co­
nheciam, para te mostrar que o homem não vive apenas de
pão, mas que o homem vive de tudo aquilo que procede
da boca de Iahweh”.12 À sede de Israel e ao seu protesto

10 Cf. os textos em que a tentação de Jesus é indicada com termi­


nologia explícita, como o citado Lc 22,28, e também Hb 2,18, e ainda
Hb 4,15, e aqueles em que é evocada implicitamente, como Mc 8,33 par.;
14,32-42 par.; 15,29-32 par.; 15,34; Lc 22,3.53 (cf. 4,13); Jo 12,27; Hb
12,2b. Cf. G. Leonardi, Le tentazioni di Gesú nel Nuovo Testamento
prescindendo da quelle sinottiche nel deserto, Pádua, 1964.
11 Cf. J. Dupont, op. cit., p. 45.
12 Observe-se como a citação deste e dos outros textos do Antigo
Testamento, retomados no relato das tentações, é feita sobre a Bíblia
grega e não sobre o original hebraico, sinal evidente de que “o relato
chegou até nós através de homens que lêem a Bíblia em grego e não

247
em Massa, que leva Moisés a pecar tentando a Deus (cf.
Ex 17,1-7), corresponde a sedução diabólica de obrigar
Deus a fazer o milagre: “...atira-te para baixo, porque
está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e
eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em
alguma pedra (Mt 4,6). A resposta de Jesus lembra a
admoestação de Dt 6,16, explicitamente referente ao episó­
dio das águas de Massa: Não tentareis o Senhor vosso
Deus como o tentastes em Massa”. Por fim, à suprema
tentação de substituir o verdadeiro Deus pelo ídolo (seja
o bezerro de ouro: cf. Ex 32, sejam os deuses de Canaã:
cf. Ex 23,20-33;34,11-14), corresponde a sugestão diabó­
lica: “Dar-te-ei todas estas coisas se, prostrando-te me ado­
rares” (Mt 4,9). Mais uma vez, a resposta de Jesus evo­
ca o ensinamento do Deuteronômio, relacionado com
a experiencia da libertação e da obtenção da terra prome­
tida: É a Iahweh teu Deus que temerás. A ele servirás e
pelo seu nome jurarás (Dt 6,13). Portanto, o Nazareno
“revive no deserto as tentações do povo eleito; mas
enquanto este havia cedido, Jesus consegue a vitória, fa­
zendo próprios os ensinamentos que o Deuteronômio tinha
tirado da experiência de Israel”.13

A comparação entre o relato elaborado de Mateus e Lucas


e a simples notícia de Marcos faz supor que, na origem, a ten­
tação foi uma só. Pode-se pensar na sugestão suprema, a mesma
que seduziu o primeiro Adão: a confiança em si próprio e no
poder do mundo, em vez da confiança em Deus e na sua “fra­
queza . É alternativa radical, “o amor de si até o esquecimento
de Deus, ou o amor de Deus até o esquecimento de si” (Sto.
Agostinho).14 Jesus percebe a sedução que vem da outra mar­
gem, o seu caráter aparentemente mais incisivo. Está no limiar:
de um lado, sente o fascínio do messianismo político e terrestre
do seu tempo, que havia respirado no meio do povo, comparti­
lhando sua dor de povo oprimido; de outro, apresenta-se-lhe o
messianismo da obediência profética, que ele tinha aprendido

em hebraico” — Dupont, op. cit., p. 13. Também aqui transparece o


trabalho redacional!
13 J. Dupont, op. cit., p. 21.
14 Cf. De Civitate Dei, X IV , 28; Enarrationes in Psalmos, 64,21.

248
a conhecer no seu colóquio com o Pai, sobretudo através da
leitura das Escrituras relativas ao Servo sofredor e aos profetas.
As três tentações poderiam então ser interpretadas como três
formas da única tentação messiânica, ecos dos diferentes mode­
los de messianismo, presentes no mundo de Jesus: o messianis­
mo dos bens temporais, relacionado com a fome de justiça dos
pobres; o messianismo apocalíptico, expressão dos movimentos
profético-penitenciais; e o messianismo político, próprio dos
grupos revolucionários.15 O Nazareno diz não às sugestões do
seu tempo: ele não busca o consenso fácil, não satisfaz às expec­
tativas dos homens, mas as subverte. Jesus escolhe o Pai: com
um ato de soberana liberdade prefere a obediência a Deus e a
abnegação de si, à obediência a si que implicaria na negação
de Deus. Ele não cede à força da evidência, à atração da eficá­
cia imediata: ele crê no Pai com certeza inabalável e pretende
realizar o seu desígnio, por mais obscuro e doloroso que este se
lhe apresente. Na hora da tentação radical, Jesus se afirma livre
de si mesmo, livre para o Pai e para os outros, livre na liberda­
de do amor: nele, Servo incondicionalmente obediente, a escala
da obediência profética atinge o ponto mais elevado.16
“O diabo”, escreve Lucas (Lc 4,12), “afastou-se dele para
voltar no témpo fixado” : indício claro de que ‘ a cena da tenta­
ção é continuamente repetida na vida de Jesus: a luta contra o
demônio perpassa toda a sua vida; ele vai conquistando, passo
a passo, o terreno de Satanás e repelindo o seu poder... Na ver­
dade, a vida de Jesus é um contínuo discernimento dos espíri­
tos”,17 até a hora suprema, em Jerusalém.18 Jesus está no Getsê-
mani, no fim de seu caminho, no momento em que lhe é apre­
sentada a conseqüência extrema de sua escolha de amor. Ele

15 Cf., por exemplo, Dupont, op. cit., pp. 130ss. Hoffmann observa
a esse respeito: “O ‘Sitz im Leben’ (situação vital) desta perícope foi
provavelmente a divergência concreta entre grupos de cristãos da comu­
nidade palestina e os diversos responsáveis pelo movimento revolucio­
nário judeu” — “Die Versuchungsgeschichte”, op. cit., p. 219.
16 Cf. H. Urs von Balthasar, Gloria, VII, Nuovo Patto, Milão, 1977,
p. 72.
17 Id., ibid., pp. 72-73.
18 Talvez seja para indicar esse fio contínuo da provação que atra­
vessa toda a existência do Nazareno que Lucas — sempre atento ao
significado teológico dos lugares — coloca em último lugar a tentação
que tem como quadro Jerusalém, lugar em que se consumará a provação
suprema: cf. J. Dupont, op. cit., p. 80.

249
sente, a ponto de suar sangue (cf. Lc 22,44), a tentação da outra
margem. Os evangelistas falam da sua angústia (cf. Mc 14,33 e
Mt 26,37), da sua tristeza (cf. Mc 14,34 e Mt 26,38), do seu
medo (Mc 14,33). Jesus sente uma necessidade imensa de pro­
ximidade amiga: “Ficai aqui e vigiai comigo” (Mt 26,38). Mas
é deixado sozinho, tremendamente sozinho diante do seu futuro,
como acontece nas escolhas fundamentais do homem: “Não fos­
tes capazes de vigiar comigo por uma hora!” (Mt 26,40). Ele
é colocado mais uma vez, da maneira mais violenta, diante da
alternativa radical: salvar a própria vida ou perdê-la, escolher
entre a própria vontade e a vontade do Pai: “Abbá, Pai! Tudo
te é possível, afasta de mim este cálice!” (Mc 14,36 e par.).
No momento em que confirma o “sim” de sua liberdade radi­
cal, agarra-se totalmente ao Pai e o chama com o nome que reve­
la a sua confiança e ternura: “Abbá!... Não o que eu quero,
mas o que tu queres” (ibid.). Não é por acaso que esta é a
única vez, em que se conserva nos Evangelhos, a forma aramai-
ca da invocação ao Pai! O “Sim” de Jesus brota do amor sem
reservas: sua liberdade é a liberdade do amor! Na hora supre­
ma ele escolhe de novo o dom de si, coloca-se nas mãos do
Pai com uma confiança infinita e vive a sua liberdade como
libertação, liberdade de si mesmo para o Pai e para os outros.
É a liberdade de quem encontra a própria vida perdendo-a (cf.
Mc 8,35), a capacidade de arriscar tudo por amor, a audácia de
quem dá tudo.
Nesses mistérios da vida de Jesus transparece a sua opção
fundamental, a escolha na qual ele joga tudo: aquela que o autor
da Carta aos Hebreus interpretou fielmente com as palavras do
Salmo 40,9: “Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade”
(Hb 10,9). “Meu alimento — diz o Cristo joanino — é fazer
a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo
4,34; cf. 8,29; 15,10). No plano mais profundo da liberdade,
Jesus se coloca como o homem totalmente livre por amor,
totalmente orientado para o Pai e para os outros. Ele dá teste­
munho de que ninguém é tão livre como aquele que está livre
da própria liberdade em razão de um amor maior. Livre de si,
ele existe para o Pai e para os outros: esta é a sua opção funda­
mental, que faz dele verdadeiramente “um homem livre”.

250
" ’ 0 l D A | R S â DR E ? A C l S S S N ¥ â LC O M O A M B I E N T E L O “

Como Jesus realizou essa opção fundamental nas múltiplas


escolhas da sua vida? Como viveu a sua liberdade no dia-a-dia
diante do provisório? Como se configurou o seu estilo de vida
a luz da escolha suprema por ele feita? Como foi que= ela msp
„»u o seu relacionamento com o mundo político, social e rei
idoso do seu tempo?

a) A liberdade d e Jesus no seu estilo de vida: o pobre

A forma em que parece traduzir-se mais intensamente a


opção fundamental do Nazareno em seu comportamento e a
Je sua p o t a » : Jesus éopo t a »
za passiva, isto é, a miséria que alguém sofre e que e vista,
cm toda a história de Israel, como escândalo e castigo de que
a pessoa deve libertar-se (cf. Dt 15,4). A sua pobreza parece
escolhida voluntariamente, como expressa de bberdaJ ra^
cal e de confiança incondicional no Pai; e pobreza 19-
espírito da tradição dos “pobres de Iahweh (cf. SI 74,19,
149 4s) amigos e servos do Senhor (cf. SI 86,ls), que nele se
L fu g tm c"m amor e temor (cf. SI 34,5-11).- Jesus e o pobre,

19 Cf. entre outros R. Batey, Gesú e i


vertà dei primi cristiam Bréscia, 1974-, . ^ i7-32; A. Gelin, II po-
du p a w re” m Lumiere et V i e n . , 8 ’ g uí 11oUj L ’’lnnocente, Roma,
vero nella Scritura, Milão, 1957» M. ). Paulo 1973 341 p.)i

de lHomme m íbid. 16 (19 ), PP_ Hella morale fondamenta-


Gesü con i poven e o diserdatx I P Evagelizarepaupe-
A u ría XX IV Settfm anf Bíblica, Bréscia, 1978, e A A<*rbt 'Po-
vertà” in Nuovo Dizionario dt Teologia, E. Valíac-
chi R“ Povertà” \n m Z Z i T Ê Z i c l o l e t i c o di Teologia Morale, op. cit.,

PP’ M Nestas passagens os tradutores gregos do Saltério não traduziram

251
porque colocou incondicionalmente a sua causa nas mãos do
Pai (cf. Jr 20,12s)t numa ilimitada liberdade de si mesmo, das
riquezas deste mundo e dos outros. Livre de si mesmo, ele é
humilde: “manso e humilde de coração’’ (Mt 11,29),21 vive
em total obediência com relação ao Pai( c f . To 4 ,3 4 i5 jg s s T etc.).
num abaixamento voluntário que o leva a ir ao encontro da
rejeição e da morte própria dos pecadores, por amor a eles. Até
mesmo na hora do seu triunfo, ele continua sendo o “rei humil­
de, sentado sobre um jumento” anunciado pelo profeta (Zc 9,9;
Mt 21,5). Livre da riqueza, ele nasceu pobre (Belém: cf. Lc
2,7)j_viveuÍ|EDmo pobre (Nazaré: cf. Mt 13,55), agiu dentro da
absoluta pobreza, sem ter sequer “onde pousar a cabeça” (Mt
8,20), e morreu pobre, livre até mesmo do último sinal de posse:
as vestes (cf. Mt 27,35). Livre dos outros, ele é o puro de cora­
ção que se aproxima deles não para possuí-los ou instrumentali­
zá-los, mas para amá-los assim como são e para dar-se a eles
desinteressadamente: “O Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos”
(Mt 20,28); ele está no meio dos seus “como aquele que ser­
ve (Lc 22,27). Um sinal particularmente evidente da pobreza
do Nazareno, como liberdade de si mesmo, das coisas e dos
homens por amor ao Pai e aos outros, é sua opção pela vida
celibatária. Certamente ela não nasce de uma forma de despre­
zo pelo amor humano ou pela mulher que, ao contrário, ele
valoriza muito; mas é fruto de uma doação maior, de uma
exigência_de entrega total e incondicional à sua missão. Por
isso o celibato de Jesus não é uma fuga ou perturbação, mas se
exprime numa extraordinária capacidade de “fazer-se tudo para
todos , de amar a cada um de acordo com a sua necessidade,
na severidade ou na ternura, de ir sempre, nas relações huma­
nas, ao coração da pessoa que lhe está perto, sem preconceitos
ou temores. A sua pobreza nunca é pessimismo ou desprezo
pelo mundo e pêlos homens: ele amou intensamente a vida, como
o demonstra o seu suor de sangue diante da aproximação da
morte; também amou ternamente esta terra, como transparece

ariaw por ptokós — indigente, ou pénes = necessitado, mas praús


= manso, calmo; compreenderam muito bem que não se trata, nestes
casos, de pobreza passiva, mas de pobreza ativamente animada pela
confiança em Deus.
21 Os dois termos correspondem a ‘anaw e ‘ani dos Salmos.

252
d, sim', palavras sobre os lírios do campo, as aves do céu e todo
8,jiir|r mundo tão vivo e palpitante que se encontra descrito
.... . 1,r parábolas; enfim, ele amou sem reservas os homens, até
mesmo o:, seus crucificadores, pelos quais pediu perdão ao Pai
nu Ih.i .i obscura e tremenda da cruz (cf. Lc 23,34).
(> mistério de sua pobreza é, pois, mistério de um amor
gMiuilo e lotai, que não se detém diante da resistência e da
l, ,, umi Ksse amor maior deu sentido, unidade e força à sua
vi.In, Ibe encheu o coração de gratidão por seu Pai, Senhor
.1.. , éu o da terra, que ocultou estas coisas aos sábios e aos inte-
i i y r n i , e as revelou aos pequenos” (Mt 11,26). Antes de anun-
0|A bis com a palavra, Jesus experimenta na vida as bem-aven-
tuiimças do Reino de Deus que está por vir: com a liberdade
il de si mesmo por amor ao Pai e aos homens, ele encar-
ii:i :i palavra anunciada: “Bem-aventurados vós, os pobres, por­
que vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, os que agora
i, ui lc, fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós que
.na chorais, porque haveis de rir...” (Lc 6,20-21 ).22 A sua
piibn /a, fruto da escolha radical de liberdade livre e libertado-
m. |nina-o homem da alegria, cheio de admiração e agradeci-
ui rt i l o pelo dom da fidelidade sempre nova do Pai. Pobre com
u liir.io ao passado, e por isso pronto para o futuro; pobre com
irlíiçno ao presente, e por isso capaz de mudá-lo com fantasia
, i natividade, mas também com extraordinário bom-senso,23
.1 piofeta galileu é pobre diante do futuro: mesmo percebendo
n :.u.i obscuridade e o seu peso, ele vai ao encontro dele, ven-
.. mIn a tentação do medo, num completo abandono nas mãos
do Pai.

22 Sobre a estrutura das bem-aventuranças (duas seções: de um


Indo, as relativas acs pobres, aflitos, famintos; de outro, a relativa aos
i» neguidos) e sobre o seu significado, cf. J. Dupont, Le Beatitudini,
Ui.mn, 1972, especialmente a parte II, pp. 509ss. A última bem-aventu-
intii,-a (Lc 6,22), dedicada aos perseguidos por_causa do Filho do Ho-
mnn, pederia ter sido tirada da catequese cristã, tendente a assegurar
nos cristãos perseguidos a recompensa que o julgamento lhes reserva ,
| Dupont, op. cit., p. 1.114.
Cf. L. Boff, Cesú Cristo liberatore, Assis, 1976, 2? ed„ pp. 81ss.
(rd. bras.: Jesus Cristo libertador, Vozes, Petrópolis, 5? ed.; ed. port.:
Perpétuo Socorro, Porto, 1976, 288 p .).

253
b) A liberdade de Jesus no seu relacionam ento com o mundo
político-social de seu tem po

Esse estilo de vida reflete-se nas relações humanas que o


Nazareno viveu: vemo-lo no seu modo de comportar-se com
relação ao mundo político e social do seu tempo e com relação
à tradição religiosa de Israel.
A Palestina da época de Jesus, no plano político-social, é
uma terra de fortes contrastes.24 Ao lado da grande massa do
povo, constituída de trabalhadores diaristas e de mendigos, mas
também pequenos artesãos, pescadores e comerciantes, situam-se
de um lado a classe dominante dos representantes do judaísmo
oficial, comprometidos com o ocupante romano, e de outro os
grupos revolucionários, os movimentos de reforma religiosa e os
participantes do judaísmo herético.
A expressão máxima do judaísmo oficial é constituída pelo
Sinédrio de Jerusalém. Embora houvesse sinédrios ( = conse­
lhos) em cada distrito, encarregados das funções jurídicas e
administrativas locais, o de Jerusalém tinha uma importância
única, sublinhada pelo fato de que o Sumo Sacerdote, que o
presidia, era nomeado pelo procurador romano. As suas com­
petências incluíam tanto as questões de ordem religiosa, quanto
as relativas ao governo da autonomia judaica; por estas últimas
era responsável perante as autoridades romanas. Constituído de
dezoito membros, abrangia “sacerdotes”, “anciãos” e “escribas”.
Os sacerdotes formavam, em Israel, uma entidade tribal estável,
em cujo âmbito a dignidade sacerdotal era transmitida por via
hereditária; a eles era confiado o culto no Templo de Jerusa­
lém, rigorosamente regulamentado de acordo com 24 turnos se­
24 Cf., scbre o que segue, G. Baumbach, Jesus von Nazareth im
Lichte der jüdischen Gruppenbildung, Berlim, 1971; J. Bligh, I tempi di
Cristo. Informazioni storiche per lo studio dei Nuovo Testamento, Roma,
1970; G. Bcrnkamm, Gesü di Nazareth, Turim, 1977, pp. 21ss. (ed.
bras.: Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1976, 194 p .); W. Dommer-
shausen, L ’ambiente di Gesü, Turim, 1980; G. Jossa, Gesü e i movimen-
ti di liberazioni delia Palestina, Bréscia, 1980; K. Schubert, Jesus im
Lichte der Religionsgeschichte des Judentums, Viena-Munique, 1973,
especialmente o capítulo sobre “Jesus und die jüdischen Religionsparteien
seiner Zeit”, pp. 227ss (ed. bras.: Os partidos religiosos hebraicos na
época neotestamentária, Edições Paulinas, São Paulo, 1979, 88 p.). G.
Theissen, Gesü e il suo movimento. Analisi sociologica delia comunità
cristiana primitiva, Turim, 1979.

254
manais. Os superintendentes dos turnos, os guardiões do tem­
plo, os tesoureiros, todos eles pertencentes à aristocracia sacer­
dotal, constituíam os “chefes dos sacerdotes” ; entre estes, a su­
prema autoridade, que em última análise era a suprema autori­
dade judaica, cabia ao sumo sacerdote. Ele era o chefe do siné-
drio e o representante máximo do povo junto a Deus e de Deus
junto aos homens. O cargo de sumo sacerdote em tempos passa­
dos era hereditário, mas a partir do século II a.C. havia-se tor­
nado apanágio de algumas famílias sacerdotais, que nele se alter­
navam. Fortemente condicionados pelo ocupante romano, os
chefes dos sacerdotes temiam qualquer novidade que pudesse
lazê-los perder aquele resíduo de poder que ainda conservavam.
Os anciãos do povo constituíam os representantes da nobreza
leiga: eram de fato os chefes das famílias economicamente mais
poderosas e influentes. Expressando os interesses da classe patro­
nal, eram contrários a qualquer perturbação do equilíbrio exis­
tente; em política, bem como em religião, suas posições eram
acentuadamente conservadoras, o que os aproximava natural­
mente das opções do partido dos saduceus. Os escribas, por fim,
eram teólogos leigos, que chegavam a essa condição através de
uma longa e minuciosa formação: cercados de discípulos, eram
tratados por todos com grande deferência. Na prática, consti­
tuíam a intelectualidade oficial do judaísmo, com possibilidade
de grande influência sobre o povo, porque deles provinha tam­
bém o corpo docente da sinagoga. Em geral pertenciam ao par­
tido dos fariseus; em religião eram mais liberais do que os
saduceus, mas em política tendiam a alinhar-se às posições de
prudência conservadora dos outros grupos no poder. No relato
evangélico, o Sinédrio aparece numa luz decisivamente negati­
va. Essa posição embora possa ter sido influenciada pela polê­
mica cristão-judaica das origens, encontra fundamento na atitu­
de real dos seus membros, prisioneiros dos próprios interesses e
dos próprios temores. Diante do Sinédrio sobressai a liberdade
de Jesus, sobretudo no embate final: enquanto os chefes dos
sacerdotes, os anciãos e os escribas se preocupam em aduzir
provas para condená-lo (cf. Mc 14,53ss e par.), o Nazareno não
teme reafirmar a sua inaudita pretensão e anunciar, mais uma
vez, a vinda do Reino, relacionada com a sua pessoa (cf. Mt
26,64 e par.). Entregue pelo Sinédrio ao ocupante romano, no
silêncio de sua liberdade soberana oferece o mistério de sua

255
presença como resposta à pergunta inquieta de Pilatos: “O que
é a verdade”? (Jo 18,38). O Pobre confunde os poderosos com
a sua liberdade: “Eis o Homem!” (cf. Jo 19,5).
Se o Sinédrio representava a instituição, Saduceus e Fari­
seus constituíam os partidos do judaísmo oficial. Os Saduceus
— cujo nome derivaria de Sadoc, sumo sacerdote na época de
Salomão, ou de “sadduqi”, que significa justo — constituíam o
partido da nobreza leiga e sacerdotal. Concentrados sobretudo
em Jerusalém, menos influentes do que os Fariseus no resto do
país, eles eram conservadores em política e em religião. Preo­
cupados, na realidade, em defender os próprios privilégios de
classe, acabavam desconfiando de qualquer possível mudança
também na interpretação da Lei. Rigidamente contrários a toda
hipótese de evolução dogmática, eram, entre outras coisas,
adversários da doutrina, considerada moderna, da ressurreição
dos mortos (cf. Mc 12,18ss; At 23,8). Compreende-se, por isso,
a sua instintiva desconfiança inicial e depois a sua clara oposi­
ção ao profeta galileu, que lhes parecia um leigo de origens
obscuras, que tinha pretensões absurdas, mas perigosas com
relação à fé tradicional e, por isso, à ordem constituída. De
outra parte, a liberdade de Jesus de todo cálculo e interesse, a
sua dedicação incondicional ao Reino de Deus, tornava-o into­
leravelmente provocante para as mentes calculistas e interessei-
ras dos saduceus, entrincheirados na defesa dos privilégios de
casta.25 Os Fariseus eram, ao invés, o partido “burguês”, expres­
são da classe média: movimento de leigos, surgido no tempo
dos Macabeus em oposição aos compromissos da aristocracia
sacerdotal e dos oportunistas do povo com o mundo helenístico
(de onde o seu nome, que significa “separados”), sua finalida­
de originária consistia em restaurar a observância escrupulosa

25 Cf. J. Le Mcyne, Les Sadducéens, Paris, 1972, que, depois de


ter examinado as fontes e as divergências com os fariseus, conclui que
os saduceus foram um grupo bem diferente destes (p. 331), concentra­
do em Jerusalém (pp. 343-44), não só sacerdotal (pp. 344-48), ao menos
em sua maioria formado por aristocratas (pp. 349-50), por homens
religiosos (pp. 349-52), que nada tinha de liberal (pp. 354-55). K. Mül-
ler, “Jesus und die Sadduzãer” in Biblische Randbemerkungen. Schüler-
festschrift für R. Schnackenburg, Würzburg, 1974, pp. 3-24, sublinha o
choque entre Jesus e cs saduceus, sobretudo com relação ao gesto da
purificação do templo, p. 18. Também Baumbach, op. cit., e Le Moyne,
op. cit., p. 404, vêem nos saduceus os principais adversários do Na­
zareno.

256
da Lei nos mínimos aspectos da vida, a fim de glorificar o Deus
de Israel. Esse admirável rigor das origens, que leva Paulo a
recordar com certo orgulho sua própria origem farisaica (cf. G1
1,13; F1 3,5), com o passar do tempo tornou-se um formalismo
exacerbado e uma casuística escravizante. Por isso, embora Jesus
sente à mesa com eles (cf. Lc 7,36ss; 11,37ss) e — segundo Lc
13,31 — eles o ponham de sobreaviso acerca das intenções de
Herodes de prendê-lo, o choque é inevitável: o profeta galileu
contesta a sua autoridade e condena a sua hipocrisia (pense-se
nos cinco conflitos narrados por Lc 5,17-26.30-32.33-39 e 6,1-
10, como também nas terríveis denúncias de Lc ll,3 7 ss e Mt
23). Ainda que estes relatos se ressintam da polêmica da comu­
nidade das origens com a Sinagoga, não se pode negar que a
liberdade do Nazareno com relação aos preconceitos e à pró­
pria Lei, a sua amizade com publicanos e pecadores e a sua
violação dos preceitos rituais (especialmente do sábado e das
várias purificações: cf. Mc 2,27 par. e 7,5ss par.), contrasta­
vam profundamente com o rigorismo puritano e soberbo desses
“leigos engajados”.20
Ao lado destes, ou melhor, contra o judaísmo oficial, colo­
cavam-se os movimentos revolucionários da Palestina do tempo
de Jesus. Eles patrocinavam, de forma mais ou menos violenta,
um programa radicalmente reformador quanto ao culto, ao tem­
plo e ao sacerdócio, e sonhavam com a libertação da opressão
romana e com a restauração do Reino de Israel.2627 Entre os

26 Cf. W . Beilner, Christus und die Pharisãer. Exegetische Unter-


suchung über Grund und Verlauf der Auseinandersetzung, Viena, 1959,
que sublinha como, para os evangelistas, os fariseus constituíam a per­
sonificação de Israel e os inimigos típicos de Jesus (pp. 239-40); J.
Bowker, Jesus and the Pharisees, Cambridge, 1973, que estuda em par­
ticular as controvérsias fariseus-saduceus e a atitude do Nazareno; A.
Finkel, The Pharisees and the Teacher of Nazareth. A Study of their
Backgrcund, their Halachic and Midrashic Teachings, the Similarities
and Differences, Leiden-Colônia, 1964. que analisa o ensinamento de
Jesus à luz das controvérsias das academias farisaicas; H. Merker, “Jesus
und die Pharisãer” in New Testament Studies 14 (1967-68) pp. 194-
208, que sublinha o antifarisaísmo de Jesus; F. Mussner, “ Jesus und
die Pharisãer” in Praesentia Salutis, Düsseldorf, 1967, pp. 97-112.
27 Cf. O. Cullmann, Gesü e i rivoluzionari dei suo tempo, Bréscia,
1974, y ed. (ed. bras.: Jesus e os revolucionários de seu tempo: culto,
sociedade, política, Vozes, Petrópclis, 1971, 55 p .). Cf. também S. G. F.
Brandon, Jesus and the Zealots. A Study of the Political Factor in Pri­
mitive Christianity, Manchester, 1967; M. Flengel, Die Zeloten. Unter-
suchungen zur jüdischen Freiheitsbewegung in der Zeit von Herodes I.

257
vários grupos sobressaem os sicários e os zelotes. Os primeiros,
assim chamados por causa do pequeno punhal com que golpea­
vam os adversários, muitas vezes atacando-os de surpresa no
meio da multidão, provêm da Galiléia e fazem prosélitos entre
os proletários e os camponeses mais pobres. Sua aspiração a
instaurar o domínio absoluto de Iahweh confunde-se com a mais
geral sede de justiça e de mudança dos oprimidos, dispostos a
tudo — até à luta no estilo “terrorista” contra os romanos e os
seus partidários judeus — contanto que se mudasse a iniqüidade
presente. Esse messianismo dos bens temporais exprimir-se-á,
com o tempo, numa quantidade de sonhos messiânicos e de
messias políticos, miseravelmente fracassados diante da prova­
ção dos fatos. Os zelotes, ao contrário, provinham especialmen­
te da nobreza sacerdotal e do baixo clero. Concentrados sobre­
tudo em Jerusalém, sonham — freqüentemente com forte colo­
ração apocalíptica — com a reconstituição da teocracia israeli­
ta, identificando-a com a purificação do Templo e a sua centra-
lidade na vida do povo libertado, segundo a visão de Ez 40-48.
Seu próprio nome mostra o “zelo” com que procuram executar
esse programa. Firmemente decididos a instaurar o Reino de
Deus, não hesitam em recorrer à violência contra os odiados
ocupantes romanos e seus sequazes, especialmente a aristocra­
cia sacerdotal. Destes movimentos revolucionários provêm
alguns dos discípulos de Jesus: Simão com certeza provém dos
zelotes, pois é chamado precisamente de Zelota (cf. Lc 6,15 e
At 1,13); Judas Iscariotes muito provavelmente era sicário (cf.
Mc 3,19 par.); mas talvez também Pedro.28 No profeta galileu
certamente há traços que o aproximam dos revolucionários do
seu tempo: assim, a pregação da proximidade do Reino e a cons­
ciência de dever desenvolver uma missão decisiva em vista
disso; a afirmação enigmática de que “o Reino de Deus sofre
violência e os violentos se apoderam dele” (Mt 11,12 e Lc
16,16), talvez relacionada com as acusações de subversão dirigi­
das contra o movimento de Jesus; a crítica a Herodes e aos de­
tentores do poder (cf. Lc 13,32;22,25ss); a ascendência sobre a

bis 70 n. Ch., Leiden-Colônia, 1976, que estuda também as diferentes


denominações dos movimentos judaicos de libertação (sicários, “bar-
-jonas,” galileus e tc.).
28 O termo “bar-jonas”, ligado ac nome de Pedro (cf. Mt 16,18),
podería efetivamente significar “terrorista”, cf. O. Cullmann, op. cit., pp.
20-21 e M. Hengel, cp. cit., pp. 58s.

258
multidão, que quer fazê-lo rei. Além disso, podiam ser inter­
pretados como sinais de opção revolucionária zelote o episódio
da purificação do templo, a entrada em Jerusalém, o fato de que
um dos discípulos estava armado no Getsêmani. Não foi por
acaso que o Nazareno foi condenado pelos romanos como agita­
dor político — como mostra o “titulus crucis”, a tabuleta com o
motivo da condenação, colocada sobre o lenho da cruz (Jesus
Nazareno R ei dos judeus), — e trocado por Barrabás, culpado
de homicídio durante uma revolta (cf. Mc 15,1 )P Todavia, a
distância e a autonomia do profeta galileu com relação aos revo­
lucionários de seu tempo são evidentes, bastando, para verificá-
-lo, considerar outras características de sua vida e obra: a recu­
sa da violência (cf. Mt 5,39ss: “Não resistais ao homem mau;
antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a
esquerda...”; 26,52ss: “Guarda a tua espada no seu lugar, pois
todos os que pegam a espada, pela espada perecerão ); o amor
para com os inimigos (cf. Mt 5,43-48; Lc 6,27-36); a bem-aven-
turança referida aos pacíficos (cf. Mt 5,9); a fidelidade à lei; a
amizade com os publicanos, odiados cobradores de taxas a servi­
ço do opressor romano; o fato de que um deles, Mateus, seja até
acolhido entre os seus discípulos; a rejeição do messianismo
político-temporal. Tudo isso não podia deixar de desiludir o na­
cionalismo exacerbado e o fanatismo violento dos zelotes e sicá-
rios.2930 Jesus não satisfaz as expectativas de quem queria uma
ação de mudança imediatamente eficaz; em sua liberdade, ele

29 Cf. J. Blinzler, II processo di Gesu, Bréscia, 1966, pp. 273ss. Cf.


também S.G.F. Brandcn, II processo a Gesu, Milão, 1974.
30 Cf. O. Cullman, op. cit., pp. 63ss. À luz das considerações feitas,
vê-se como é insustentável a tese de Brandon, op. cit., para o qual Jesus
não teria rejeitado nenhuma idéia de fundo dos zelotas, a ponto de ser
condenado como rebelde político; teriam sido os evangelistas a falsear o
caráter zelota do Nazareno, redigindo com seus escritos uma “Apologia
ad Christianos Romanos” (precisamente o evangelho de Marcos), para
assegurar, sob a impressão da vitória de Tito em 71, que os cristãos nada
tinham a ver com c levante judaico anti-romano e assim facilitar a difu­
são do cristianismo no império. Igualmente insustentáveis são as teses
de um Jesus “guerreiro” na luta de libertação anti-romana, proposta por
R. Roy, Gesu, guerriero delVindependenza, Milão, 1979, de um Jesus
“msrtyr to his Jewish patriotism”, como é apresentado por S. Sandmel,
We ]ews and Jesus, Londres, 1965, ou de uma leitura puramente polí-
tico-materialista do evangelho, como a proposta por F. Belo, Una lettura
política dei Vangelo, Turim, 1975. Cf. M. Hengel, War Jesus Revolutio-
ndr?, Stuttgart, 1970.

259
não teme colocar-se em outro plano, não confundir o Reino de
Deus com um dos tantos possíveis reinos daquele mundo.
Entre os grupos de reforma religiosa que existiam na Palesti­
na no tempo de Jesus colocam-se a comunidade dos essênios e os
m ovim entos profético-penitenciais, entre os quais o do Batista.
Os essênios, surgidos no tempo dos Macabeus, constituíam um
grupo rigidamente organizado, em posição de aberta ruptura
com o judaísmo oficial e de isolamento da sociedade. Essa atitu­
de era motivada por um legalismo rigoroso (donde talvez o
nome, relacionado com a forma aramaica hasein-hasaja, que
indica o devoto observante da lei), pela pretensão de represen­
tar o verdadeiro povo de Deus e por uma espera de coloração
apocalíptica. Ainda que não se possam excluir relações do
Nazareno com esse grupo, deve-se reconhecer que “é totalmente
estranho a Jesus o ideal essênio de uma perfeita pureza sacer­
dotal e cultuai, que considerava uma obrigação evitar qualquer
contaminação”.31 A liberdade do profeta galileu impede-o de
tornar-se escravo de qualquer sectarismo e de todo legalismo:
ele vive no meio do povo, misturado com a massa dos pobres e
dos pecadores, numa solidariedade serena e libertadora. Ao lado
dos essênios, situam-se os grupos — menos rigidamente organi­
zados — dos profetas do deserto: posicionando-se em continui­
dade com a tradição profética, eles convidavam o povo, com
palavras de fogo, à conversão e à penitência, a fim de prepará-lo
para a eminente vinda do dia de Deus, início do tempo escato-
lógico. Essa esperada “revolução de Deus” tinha tendências
acentuadamente apocalípticas: a libertação do mal presente e a
instauração do domínio de Iahweh sobre todos os povos era
concebida como a “virada dos tempos”, ocasião em que as forças
do mal seriam definitivamente aniquiladas pelo judaísmo futuro.
Nesse clima espiritual situa-se a pregação de Jo ão Batista: típico
profeta do deserto, ele anuncia a “ira iminente” e convida a pro­
duzir “dignos frutos de penitência”, porque “o machado já está
posto à raiz das árvores, e toda árvore que não produz bons
frutos será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,7-8.10). Quem aco­
lhe a sua pregação deve fazer-se batizar por ele no rio.Jordão.
Esse batismo “com água” prepara o batismo “no Espírito Santo

31 G. Bornkamm, op. cit., 40. Cf. H. Braun, Spütjüdisch-hãretischer


and jrühchristlicher Radikalismus, I-II, Tübingen, 1957, e Qumran und
N eue Testament, I-II, Tübingen, 1966.

260
e no fogo”, que será dado por aquele que vem: “A pá está na
sua mão: vai limpar a sua eira e recolher o trigo no celeiro;
mas, quanto à palha, vai queimá-la num fogo inextinguível” (Mt
3 ,1 1-12).32 Profeta do julgamento, João espera uma figura de
Juiz escatológico: a releitura cristã de sua obra, evidente nos
evangelhos, com a intenção de absorver o movimento do Batis­
ta no movimento de Jesus identificou “Aquele que deve vir”
com o Cristo. Não se diz que essa identificação tenha sido clara
para João, como demonstra o fato de que, ainda no fim de
sua vida, ele envia discípulos a Jesus para perguntar-lhe: “És
tu aquele que deve vir ou devemos esperar outro?” (Mt 11,3).
Seja como for, não se pode negar que, embora tivessem um
pano de fundo apocalíptico-penitencial comum, a pregação do
Nazareno logo se diferenciou da de João: o Batista anuncia o
julgamento e prepara o caminho para um outro, ao passo que
Jesus anuncia a si mesmo como portador da salvação de Deus.33
O profeta galileu, todavia, reconhecerá no profeta do deserto
João aquele que já pertence à plenitude dos tempos, o Elias
redivivo que prepara o caminho diante dele (Mt 11,7-14). Com
base nesse reconhecimento, o evangelista João marcará a figura
do Batista como a daquele que, antes de qualquer outro, procla­
ma o anúncio cristão: “Eis o cordeiro de Deus” (Jo 1,36). Por­
tanto, também em relação ao Batista, o Nazareno se demonstrou
profundamente livre: reconhecendo a grandeza dele a ponto de
aceitar o seu batismo, Jesus superou as suas perspectivas pessi­
mistas e apocalípticas, no anúncio feliz e sereno da misericórdia
do Pai que realiza a salvação pelo próprio Jesus.

32 A terminologia de suâ pregação é tipicamente profética: macha­


do, peneira, fogo do julgamento: cf. Is 30,2 4 ;4 1 ,15-16; fr 15,7;5 1,33 etc.
e Lc 3,7-12 ( = Mt 3,7-9.15-18). O que é novo não é tanto o batismo,
mas o fato de que seja ele a batizar, dando a seu batismo uma extraordi­
nária importância em vista do tempo escatológico.
33 Cf. J. Becker, Johannes der Táufer und Jesus von Nazareth, Neu-
kirchen, 1972. Cf. também J. Jeremias, Theologia dei Nuovo Testamento,
I, La predicazione di Gesú, Bréscia, 1976, 2‘ ed., pp. 56-63 (ed. bras.:
Teologia do Novo Testamento', a pregação de Jesus, Edições Paulinas,
São Paulo, 1980, 469 pp.). Não se pode compartilhar a tese de M. S.
Enslin, “John and Jesus” in Zeitscrift für die neutestamentliche Wissen-
schaft 6 6 (1975), pp. 1-18, o qual julga què Jesus e o Batista nunca man­
tiveram nenhum contato pessoal, e que a comunidade das origens inven­
tou a tradição desse encontro para englobar os discípulos de João e com
eles o rito do batismo.

261
Entre os grupos do judaísmo considerado “herético” devem
ser lembrados, no tempo de Jesus, os galileus e os samaritanos,
que além disso eram diferentes dos movimentos de reforma
religiosa. Os primeiros, na realidade, pertenciam à comunidade
religiosa judaica; contudo, a distância do templo fizera com que
a sinagoga assumisse entre eles um papel central, e a proxi­
midade dos povos pagãos havia produzido inevitáveis influên­
cias, de modo que os galileus eram considerados até certo ponto
impuros. O Nazareno vem da Galiléia, e isso já demonstra o
absurdo de suas pretensões aos olhos dos bem-pensantes: “Pode
sair algo de bom de Nazaré?” (Jo 2,46). Os primeiros destina­
tários de sua mensagem são precisamente os desprezados gali­
leus, “povo imerso nas trevas”, do qual virá ao mundo a luz
(cf. Mt 4,15-16). Antes de mais nada, entre os galileus ele esco­
lhe os seus discípulos (cf. Mc 1,16-20 par.). Também neste caso
Jesus revela uma liberdade que o torna provocador com relação
aos “piedosos israelitas”. Não se comporta de outra forma com
os samaritanos, que à impureza derivada de casamentos com
pagãos acrescentavam a grave heresia de só aceitar o Pentateuco
mosaico com Palavra de Deus e de substituir Jerusalém pelo
monte Garizim como legítimo lugar de culto. Jesus não evita
o seu território, como se costumava fazer por meio de longos
desvios quando se ia do Norte para Jerusalém; ele chega até a
entreter-se com eles (cf. Jo 4,20-21) e apresenta justamente um
samaritano como exemplo de verdadeiro amor (Lc 10,25-37; cf.
também 17,16). Daí a acusação: “Não dizíamos, com razão, que
és samaritano e tens um demônio?” (Jo 8,48). Mas a liberdade
do Nazareno é mais forte do que essas acusações e não se detém
diante delas, antepondo a tudo as exigências do anúncio do
Reino a todo homem.
A essa atitude com relação aos desprezados “heréticos” do
seu povo, deve-se acrescentar a predileção mais geral de Jesus
pelos marginalizados, pobres, fracos. Publicanos, pecadores e
prostitutas sentem-se acolhidos pelo Nazareno, que não teme
entrar em contato com eles e participar de seus banquetes.34 Em
Israel, comer juntos tinha um significado profundo: equivalia a

34 Cf., entre outras obras, P. Fiedler, Jesus und die Sünder, Frank­
furt a.M.-Berna, 1976, e A. Holl, Gesü in cattiva compagnia, Milão, 1971
(bastante reduzido sob o perfil teológico). Cf. também a bibliografia
da nota 19.

262
entrar numa real comunhão de vida. Aceitando sentar-se à mesa
com pecadores e marginalizados, o Nazareno mostra-se total­
mente livre dos preconceitos que afetavam as relações sociais
do seu tempo. Na realidade, não é ele que entra na comunhão
do pecado, como insinuavam os escribas do partido dos fariseus
(cf. Mc 2,16), mas são os pecadores que entram, através do ban­
quete com ele, na comunhão da graça: “Não são os sadios que
têm necessidade de médico, mas os doentes; não vim chamar os
justos, mas os pecadores” (ibid., 17). O encontro, na casa do
fariseu, com a pecadora a quem muito foi perdoado porque
muito amou (cf. Lc 7,36ss), o perdão à adúltera (cf. Jo 8,3ss), o
episódio de Zaqueu (cf. Lc 19,lss), a vocação do publicano Levi
(cf. Lc 5,27ss), o fato de que publicanos e pecadores acorram
numerosos para pôr-se à mesa com ele (cf. Mc 2,15; Mt 9,10)
são exemplos, entre outros, dessa predileção portadora de sal­
vação, que Jesus tem por esses “sem lei” e desprezados. Verda­
deiramente, a sua presença entre os homens aparece como o
banquete ao qual são trazidos “pobres, coxos, cegos e estropia-
dos” (Lc 14,21), os “sem esperança”, para fazer festa e encon­
trar a vida. Jesus será descrito como aquele “que passou fazen­
do o bem e curando todos os que estavam sob o poder do demô­
nio, porque Deus estava com ele” (At 10,38).
Nesse contexto, merece menção particular a relação entre
Jesus e as m ulheres: 3S no mundo hebraico, a mulher é colocada
em posição subordinada com relação ao homem, estando a seu
serviço como esposa e como mãe. No templo, como na sina­
goga, compete-lhe um setor limitado; nos deveres religiosos é
equiparada ao escravo, porque se pensa que, como ele, não é
senhora do seu tempo. Por isso, nem sequer é instruída na
Lei. Na vida civil não tem voz alguma, nem participa da assem­
bléia do povo (pense-se, por exemplo, no recenseamento de Nm
1,1, que exclui as mulheres, e no rito unicamente masculino da
circuncisão, que introduz no povo eleito). A mulher deve evitar
aparecer em público; sua honra está na sua casa, no respeito e
no amor dos filhos. Inserindo-se nesse contexto, Jesus apresen­

35 Cf. R. Laurentin, “Gesü e le dcnne: una rivcluzione miscono-


sciuta” in Concilium 1980, pp. 683-99, e J. Leipoldt, Die Frau in der anti-
ken Welt und im Urchristentum, Gütersloh, 1962, 2? ed. Cf. também J.
Jeremias, op. cit., pp. 255ss, e H. Wolff, Gesü, la maschilità esemplare,
Bréscia, 1979, segundo a qual é Jesus que rompe o “androcentrismo” da
antigüidade.

263
ta, com relação à mulher, uma atitude completamente nova, que
se poderia até dizer revolucionária: ele acolhe sem distinção ho­
mens e mulheres, estabelecendo entre eles uma total igualdade
de dignidade em face do Reino que vem. O seu modo de agir
desconcerta os próprios discípulos: os evangelistas Mateus e
Marcos, por exemplo, parecem bastante discretos a esse respeito,
fazendo aparecer somente no Calvário e na Ressurreição o gru­
po das mulheres que seguem a Jesus. Lucas e João, ao contrá­
rio, parecem mover-se com mais liberdade; o primeiro apresenta
sem hesitação o séquito feminino do profeta galileu (cf. Lc 8,1-3),
e somente ele narra o episódio “revolucionário” do encontro
com a pecadora, perdoada na casa do fariseu (cf. Lc 7,36ss).
As mulheres exercem uma função de primeiro plano no seu
evangelho: de Maria a Isabel (1-2); de Ana (2,36-38) à sogra de
Simao (4,38-39); da viúva de Naim (7,11) à hemorroíssa (8,43-
48); de Marta e Maria, figura, esta última, do verdadeiro discí­
pulo (10,38-42), à mulher encurvada e curada em dia de sábado
(13,10-17); da viúva importuna (18,1-8) à viúva pobre do tesou­
ro do templo (21,1-4); das mulheres de Jerusalém (23,27) às
mulheres dos relatos pascais (24,lss). João não hesita em teste­
munhar a admiração dos próprios discípulos diante do compor­
tamento de Jesus (4,27): no seu evangelho, Maria em Caná (2,1-
12), a samaritana (4,7ss), a adúltera (8,1-11), as irmãs de Lázaro
(11,30-32), Maria que unge profeticamente os pés do Nazareno
(12,1-8), a mãe e as outras mulheres junto à cruz (19,25-27),
Maria de Mágdala, que é a primeira a ver o Senhor (20,18), são
figuras diferentes, que atestam um relacionamento livre e liber­
tador de Jesus com a mulher. Diante do Reino que há de vir, o
profeta galileu anula as discriminações que recaíam sobre a con­
dição feminina de seu tempo, e a todos, homens e mulheres sem
diferença, abre as portas da nova criação.’0
No fundo da predileção de Jesus pelos marginalizados,
pelos pecadores, oprimidos e fracos — sem excluir as crianças,
que ele acolhe com alegria (cf. Mt 19,13-14 par.), tomando-as
até mesmo como modelo (cf. Mt 18,3 par.),3637 embora naqueles

36 Mas não é de forma alguma necessário que essa revalorização da


mulher tenha implicado o matrimônio de Jesus, que aliás não foi
demonstrado e é indemonstrável à luz dos textos evangélicos; uma tese
como a de W. E. Phipps, Was Jesus Married?, Nova York, 1970, que
teve vasta repercussão, carece de qualquer seriedade histórica.
37 Cf. S. Legasse, Jésus et 1’Enfant. “Enfants”, “Petits" et “Sim-

264
tempos não fosse decoroso para um “rabbi” entreter-se com
clas — enccntra-se a sua dedicação incondicional à causa do
Reino, o seu amor total pelo Pai e pelos homens, o que o deixa
livre de preconceitos e temores. A sua atitude não nasce de sim­
ples sede humana de justiça ou de reformismo social, mas da
obediência. Àquele que ama e acolhe os humildes e os pecado­
res, porque estão mais dispostos a receber o dom da graça, e
abate os soberbos, obcecados pela tentação do poder. Subver­
sivo aos olhos do imobilismo conservador do Sinédrio, inova­
dor obscuro e perigoso para os saduceus, mestre de erros para
os fariseus que não lhe perdoavam a liberdade com relação à
|,ei e a predileção pelos pobres, revolucionário, mas não sufi­
cientemente, para os zelotes e sicários, que não podiam com­
preender o seu espírito de misericórdia e de paz, impuro para
os facciosos e bem-pensantes que o tachavam de “galileu ou
“samaritano”, desconcertante para os discípulos do Batista que
esperavam o Messias do julgamento e do fogo, o Nazareno rom­
pe todos os esquemas: não é um homem da ordem constituída,
mas também não é um revolucionário político; não é alguém que
ignora a Lei, mas também não é alguém que procure observá-la
escrupulosamente; não é um asceta piedoso, ou um severo cen­
sor dos costumes, mas também não é alguém que não conheça
o deserto e não convoque à penitência. Jesus não se deixa apri­
sionar numa imagem que satisfaça às expectativas de uma fac­
ção: a sua liberdade radical o torna maior do que todas as redu­
ções nas quais se gostaria de colocá-lo. É livre no seu anúncio
do Reino, como obra gratuita e maravilhosa do Pai, ao qual o
homem é chamado a responder com a conversão do coração.
Aqui se revela a razão profunda da liberdade situada do
Nazareno no seu relacionamento com o mundo político e social
de seu tempo: ela nasce da constante referência de toda a sua
vida e de toda a sua escolha com o mundo de Deus que há
de vir, da sua “reserva escatológica”. Certamente, o profeta
galileu critica o poder injusto deste mundo, o espírito de rique­
za e de poder que aprisiona o coração: “Ai de vós, ricos (Lc
6,24ss; cf. 19,16ss e Mc 10,23-27). Mas o faz não em nome de
outro poder terreno, e por isso igualmente injusto, e sim em
nome do Reino de Deus que vem. O fundamento da liberdade

pies” dans la tradition synoptique, Paris, 1969, e H. R. Weber, Gesú e i


bambini, Roma, 1981.

265
de Jesus frente as ideologias, aos preconceitos, às posições de
poder de seu tempo, está, portanto na sua opção fundamental,
na sua pobreza de si para existir somente para o Pai e para os
outros, numa esperança e num amor que o tornam subversivo e
crítico tanto para com todo míope messianismo humano, como
para com toda cegueira diante do peso da injustiça presente. O
Nazareno, ao vivificar a presença na história como empenho no
acolhimento do Reino que há de vir, supera os esquemas e afir-
ma-se como homem verdadeiramente livre, perigoso justamente
porque contagia com a sua liberdade.

c) A liberdade de Jesus no seu relacionam ento com a tradição


religiosa de Israel

O Israel da época de Jesus é ainda o Israel do Templo:


mesmo que o Livro da Lei se revista de uma importância cen­
tral e as Sinagogas, onde ele é lido especialmente no sábado,
estejam difundidas por toda parte, a religiosidade hebraica não
se identifica ainda com o Israel do Livro, como acontecerá a
seguir na diáspora. O Templo de Jerusalém é o símbolo e o
lugar privilegiado da fé de todos os judeus. Vai-se ao Templo
em peregrinação nas grandes festas, mas diariamente nele se
celebra um rito de oferenda (o tamid ’ = perene), ao qual se
acrescentam os numerosos sacrifícios privados. Não há judeu
piedoso da diáspora que não deseje ir, ao menos uma vez na
vida, à casa do Senhor em Sião.
Jesus freqüentou e respeitou o T em plo: ainda crianca, diri­
ge-se para lá em peregrinação com a sua família, ouvindo e inter­
rogando os doutores com apaixonada inteligência (cf. Lc 2,41-
50), gosta de ficar ali ensinando (cf. 19,47); ensina a apresentar
a oferenda com retidão (cf. Mt 5,23-24) e a celebrar o sacrifício
ritual de ação de graças (cf. Mc 1,40-45 par.). O Templo, po­
rém, é superado pela missão de Jesus: “Digo-vos que aqui está
algo maior do que o Templo ’ (Mt 12,6); o Cristo joanino anun­
ciará explicitamente um culto novo, em espírito e verdade (cf.
Jo 4,23). O episódio em que essa mudança é profeticamente
indicada é o da expulsão dos mercadores e da purificação do

266
Templo: 38* “Entrando no Templo, começou a expulsar os ven­
dedores e compradores que lá estavam: virou as mesas dos cam­
bistas e as cadeiras dos que vendiam pombas, e não permitia que
ninguém carregasse objetos através do Templo. E ensinava-os
di/.endo: Não está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de
oração para todos os povos/’ Vós, porém, fizestes dela um covil
de ladrões!” (Mc 11,15-17; cf. Mt 21,12-13; Lc 19,45-46 e Jo
,M3ss). O valor profético desse gesto é demonstrado pelas cità-
ções bíblicas que a redação evangélica menciona: “A minha casa
será chamada casa de oração para todos os povos (Is 56,7. Mc
11,17); “Esta casa, onde o meu Nome é invocado, será porven­
tura um covil de ladrões a vossos olhos?” (Jr 7,11: Mc 11,17);
“Naquele dia não haverá um mercador sequer na casa do Senhor
dos exércitos” (Zc 14,21: Jo 2,16). Israel é chamado à conver­
são exigida pelo tempo final, enquanto se proclama o inicio da
hora escatológica, relacionado com a pessoa e a obra de Jesus:
“Eis que vou enviar o meu mensageiro para que prepare um
caminho diante de mim. Então, de repente, entrará em seu Tem­
plo o Senhor que vós procurais... Quem poderá suportar o dia
de sua chegada?” (Ml 3,1-2; cf. 3-4). Portanto, o Nazareno
reconhece o Templo como o lugar em que se realiza a revelação
final e a virada dos tempos; mas, anunciando como já presente
aquela hora, declara por isso mesmo concluída a economia do
Templo. Encontra-se uma confirmação dessa interpretação nas
afirmações que Jesus faz com relação à destruição do Templo
e sua reconstrução em três dias, apresentadas como acusações
por seus adversários em Mc 14,58 e Mt 26,61, como motivo de
escárnio por parte dos que estavam junto à cruz em Mc 15,29,
e como palavras do próprio Jesus em Jo 2,19. Elas mostram que
o Templo da era escatológica é a pessoa de Cristo, que substitui
a antiga economia: “Destruí este templo e eu o reedificarei em
três dias... Ele falava do templo de seu corpo. Quando ressusci­
tou dos mortos, os discípulos lembraram-se destas palavras e

38 Cf E Trccmé, “L ’expulsion des marchands du temple” in New


Testament Studies 15 (1968-69), pp. 1-22, e do mesmo, Gesú di Naza-
ret visto dai testimoni delia sua vita, B r e s c i a , 1 9 7 5 . Cf. também E Schil-
lebeeckx, Gesu, la storia di un vivente, Brescia, 1976, pp. 248ss. A hipó­
tese de S.G.F. Brandon, Jesus and the Zelots, op. cit., pp. 238-61, que ve
neste gesto uma ação militar zelota de Jesus com seus discípulos, con­
trasta com o significado profético do episódio, evidenciado pela narra­
ção evangélica.

267
acreditaram” (Jo 2,19.21-22). Portanto, o Nazareno proclama o
fim do Templo por força da liberdade que deriva de sua dedi­
cação incondicional ao Pai, pela qual vive em total obediência
a sua missão de mensageiro e de presença, ao mesmo tempo, do
Reino que vem. Isso explica por que o gesto da purificação do
templo, se por um lado suscitou o entusiasmo da multidão, que
o deve ter interpretado como um sinal de desforra contra a iní­
qua ordem constituída, por outro foi considerado pelas autori­
dades como uma provocação extrema e assinalou a virada que
levou à prisão de Jesus: 39 “Ouviram-no os chefes dos sacerdo­
tes e os escribas e procuravam uma forma de fazê-lo morrer”
(Mc 1,18).
Da mesma liberdade radical deriva a atitude do profeta ga-
lileu com relação à Lei, à T orá: 40 ela era constituída pelo Penta-
teuco e pelos outros escritos do Antigo Testamento considerados
inspirados (Torá escrita). Ao lado desta, com o tempo, assumiu
grande importância e autoridade a interpretação que dela davam
os escribas, a 7 orá oral, chamada halaká. Jesus tem um grande
respeito pela Torá escrita, um respeito fundado no conhecimen­
to profundo e amoroso: ele freqüentou a sinagoga, onde se lia o
livro da Lei (cf. Mc l,21ss par.); o seu livro de oração foi sem
dúvida o Saltério (cf., por exemplo, Mc 15,34, com citação de
SI 22,2); a sua obra e a sua pregação são alimentadas pela leitu­
ra dos profetas, particularmente Isaías (cf., por exemplo, Mc
4,12 par: e Is 6,9s; Mc 7,6s par. e Is 29,13; etc.; cf. também
a evocaçao freqüente dos Cânticos do Servo do Dêutero-Isaías)
e Daniel (cf., por exemplo, Mt 19,28 par. e Dn 7,9s; Lc 13,
32 e Dn 7,27; etc.), mas também Jeremias (cf., por exemplo, Mc
14,24 par. e Jr 31,31) e os profetas menores (cf., por exemplo, Mt
9,13; 12,7 e Os 6,6; etc.), bem como pela referência ao Pentateu-
co (cf., por exemplo, Mc 7,10 par.; 10,19 par.; 12,28-34 par.;
etc.).41 Esse grande respeito não impede o profeta galileu de sen­
tir-se livre com relação à Lei, se isso é exigido pela sua causa:
assim, ele não hesita em deixar de lado propositadamente certos

39 Cf. E. Trocmé, op. cit., e E. Schillebeeckx, cp. cit., p. 253.


40 Cf. R. Blanks, Jesus and the Law in the Synoptic Tradition,
Cambridge, 1975; J. Jeremias, op. cit., pp. 234-42; E. Schillebeeckx, op.
cit., pp. 234ss.
41 Cf. a documentação pormenorizada de J. Jeremias, op. cit., pp.

268
nspectos da T orá (por exemplo, as expressões relativas à vingan­
ça: cf. Mt 11,5s par. e Is 35,5s; 29,18s; 61,1); além disso, supri­
me aqueles preceitos que não se conciliam com a condição do
Reino que há de vir (assim, a permissão do divórcio: cf. Mt 5,32
c Dt 24,1; o juramento: cf. Mt 5,33-37; a lei do talião: cf. Mt
5,38-42); por fim, acrescenta à Lei aquilo que a leva à perfei­
ção (cf. Mt 5,17 e as antíteses de Mt 5,21ss). Portanto, a Torá
escrita é assumida, mas também definitivamente superada, por­
que levada à plenitude, no testemunho do Nazareno.
Ao contrário, radical é sua rejeição da halaká, a Torá oral
dos rabinos, com a qual entra constantemente em conflito: “O
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”
(Mc 2,17), lembra aos fariseus, rejeitando em bloco a sua ca­
suística escravizante, que catalogava todas as ações proibidas em
dia de sábado. À sua moral ele opõe o primado do amor de Deus
pelos homens, e dos homens por Deus e por seus semelhantes:
“É lícito em dia de sábado fazer o bem ou mal, salvar uma
vida ou tirá-la?” (Mc 3,4; cf. as diversas controvérsias sobre o
bem que Jesus faz em dia de sábado: Mc 3,1-6 par.; Lc 13,10-17;
14,1-6). Igualmente clara é a rejeição que o profeta galileu opõe
à minuciosa casuística, totalmente privada de amor, sobre a
pureza ritual (cf. Mc 7,1-8 par.; Lc 11,38): Nada há no exte-
rior do homem que, penetrando nele o possa tornar impuro
(Mc 7,15 par.). De todas as formas, Jesus quer afirmar que o
amor é o resumo de todos os mandamentos, “Amarás o Senhor
teu Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o enten­
dimento. Esse é o grande e o primeiro mandamento. O segundo
é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas
(Mt 22,37-40). Por isso, o Nazareno critica a hipócrita abolição
dos deveres filiais mediante a oferenda sagrada (cf. Mc 7,9-13),
e denuncia os doutores da Lei como mentirosos, devido às suas
obras, que contradizem o bem que pretendem ensinar (cf. Mt
23,3). Censura a sua presunção de serem justos (cf. Lc 18,9-14),
recordando ao homem a exigência moral de agradar ao Pai, que
vê no segredo (cf. Mt 6,lss). Essa atitude não encontra paralelo
no seu tempo: 42 manifesta a liberdade radical de quem con­

42 Materialmente, diversas tomadas de posição por parte de Jesus


com relação à Lei se aproximam da concepção grego-judaica dela; toda­
via, o espírito que as anima, sobretudo o primado do amor, levado ao

269
fronta e avalia todas as coisas com relação ao Deus que vem.
Também a posição de Jesus em seu relacionamento com a tra­
dição religiosa de Israel revela a sua opção fundamental: livre
por amor, o Nazareno é livre na mais total dedicação ao Pai,
por força da qual pode proclamar a relatividade inevitável de
tudo o que é menos do que Deus.

9 .3 . REVELAÇÃO E SEGUIMENTO

O que a história de Jesus, como história de liberdade vivi­


da neste mundo, nos revela do mundo de Deus? Quais são os
traços do rosto do Deus trinitário que se nos oferecem no Na­
zareno, homem livre? E o que essa revelação comporta para
o estilo de vida dos que se colocam no seguimento de Jesus
de Nazaré?

a) Toda dimensão autêntica da humanidade de Jesus Cri-


to é revelação de sua condição divina e das relações trinitárias.
Por, isso é possível afirmar que a plena e profunda liberdade do
profeta galileu remete à infinita liberdade do Deus trinitário.
O Deus cristão é um Deus livre: isso significa, antes de mais
nada, que cada uma das três Pessoas divinas é totalmente livre
de si mesmo para dar-se ao outro e acolhê-lo. A vida trinitária
de Deus é total pobreza de si mesmo de cada um dos Três, num
despojamento que é, ao mesmo tempo, suprema originalidade,
para dar-se incondicionalmente ao outro e assim realizar a supre­
ma comunhão. Na liberdade de si, o Pai se dá ao Filho, que

extremo de amar o próprio inimigo, é surpreendente no pano de fundo


do judaísmo tardio: cf. Schillebeeckx, op. cit., pp. 237 e 241. Por isso
dificilmente se pode aceitar a tese de fundo de f. Isaac, Jesü e Israele,
Florença, para quem qualquer distância entre fesus e o seu povo seria
fruto dc uma injustificada apresentação cristã. Acertadamente, U. Keller-
mann, Messias und Gesetz: Grundlinien einer alttestamentlichen Hilser-
wartung: eine traditionsgeschichtliche Einfürung, Neukirchen, 1971, afir­
ma na conclusão de seu estudo: “Todas as esperanças messiânicas e esca-
tológicas em geral do Antigo Testamento e do judaísmo primitivo esfa-
celam-se e falham diante da figura e missão deste único” (p. 138).

270
mima análoga liberdade acolhe o dom e se dá ao Pai, no Espí­
rito, que é como o “nós” da pobreza trinitária de Deus: ele é
.• Espírito de liberdade de si e do dom ao outro. O Deus reve-
lado cm Cristo como Deus da liberdade é então dinamismo
-,iipremo, vida inexaurível dos Três, que se tornam um no outro,
um saindo de si para fazer-se outro no outro, e no retornar a si.
Neste sentido, “Deus” quer dizer para os cristãos antes de tudo
uma história: a história do amor pobre de si e livre para o outro
de cada um dos Três, que se traduz no devir eterno do dar-se e
do acolher-se. Há um devir de Deus enquanto há um devir em
Deus: não se trata de um sujeito divino abstrato que se torna,
mas em Deus os Três, na sua incomparável liberdade, se ofe­
recem e se acolhem um ao outro na profundidade do amor, que
c distinção e superação do distinto. Essa mesma liberdade está
na origem da economia da criação e da salvação: o Deus da
liberdade, que em suas escolhas não é motivado por outra coisa
senão pela gratuidade de seu amor, por amor sai de si, suscita o
mundo e a história e se derrama neles para fermentá-los em vista
da definitiva comunhão consigo. Esse caminho para o outro não
condiciona a liberdade do Deus trinitário, que se oferece à histó­
ria sempre indedutível e improgramável em seus gestos, sempre
surpreendente e novo, subversivo com relação a toda tenta­
tiva de aprisioná-lo num esquema feito à medida da criatura:
um Deus diferente.43 E depois da primeira rejeição da sua cria­
tura, livre diante da liberdade do seu Deus, esse Deus diferente
não hesitou em procurar o homem, em fazer aliança com ele;
longe de ser o comparsa imóvel, imutável da vida do mundo, o
Deus trinitário entrou na história, caminhou com o povo, eleito
pelo mistério de sua liberdade, tornou-se carne, aceitando o
obscuro e mutável condicionamento do devir humano. A onipo­
tência se fez fraqueza por amor: o Senhor do céu e da terra
morreu no madeiro vergonhoso da cruz! O Deus cristão foi tão
livre, a ponto de ser livre da própria liberdade e entregá-la nas
mãos dos pecadores. A liberdade fez dele o Pobre, que respon­
de à rejeição do amor com a audácia de quem dá tudo; o Hu­
milde, que continua a inclinar-se sobre a sua criatura para levá-
-la à comunhão consigo; o Fiel, cuja promessa não muda no tem­

43 Cf. C. Duquoc, Un Dio diverso. Saggio sulla simbólica trinitaria,


Bréscia 1978.

271
po. O Deus da liberdade respeita a esse ponto a liberdade da
sua criatura! Ele conhece e aceita o risco da liberdade, porque
liberdade é apenas outro nome do seu amor: “Nisto se manifes­
tou o amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho unigênito
ao mundo para que vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não
fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou...”
( l jo 4,9-10). A história da liberdade de Jesus, revelando-nos que
Deus é liberdade, nos revela que Deus é amor (cf. ibid.).

b) O que exige da Igreja tal revelação da liberdade do


seu Deus? Seguir a liberdade do amor absoluto, como se revelou
na história do Nazareno, exige que a comunidade e o indivíduo
cristão sejam livres e libertadores: o seguimento de Jesus Cristo
é “sequela libertatis”. Igreja livre quer dizer, antes de tudo,
num plano análogo ao da pessoa que se realiza na opção funda­
mental, uma comunidade que vive na obediência radical à Pala­
vra de Deus: a sua força e a sua riqueza estão na dedicação
incondicional ao seu Senhor. Qualquer outro motivo de seguran­
ça e d.e jactância seria blasfêmia e escândalo. A Igreja cristã é
o povo da Palavra, humilde virgem que se presta a ouvir, como
Maria, que sempre se deixa cobrir com a sombra do Espírito
para tornar Cristo presente na história. Essa opção fundamen­
tal de obediência ao Pai por Jesus Cristo e no Espírito exige um
estilo de vida pobre. A Igreja do Pobre será autêntica e gozará
de credibilidade se, como ele, souber ser livre de si, livre da se­
dução da riqueza e do poder deste mundo, livre e incômoda com
relação àqueles que procuram manipulá-la. Pobreza torna-se,
então, para os cristãos, compromisso de disponibilidade a servir,
de crítica rigorosa e implacável a toda presunção terrena, de
escolhas concretas e perigosas para colocar-se do lado dos ho­
mens. Frente ao poder político e social, isso impõe aos crentes
uma desconfiança natural: ser livre que dizer jamais antepor o
caminho mais fácil do compromisso e dos vários “colateralis-
mos” históricos, àquele, certamente mais difícil e obscuro, da
profecia para o Reino. A Igreja sabe que não pode se identi­
ficar com nenhum dos poderes em jogo na sociedade, embora
confesse humildemente que muitas vezes, no seu longo caminho,
tenha se identificado com os interesses das forças dominantes.
Continuamente despertada pela Palavra de Deus, a comunidade
cristã não deve ter medo de voltar sempre a trilhar um cami­

272
nho de conversão e de reforma, pronta a correr o risco e a assu­
mir as conseqüências para chegar àquela liberdade crítica dian-
tc dos detentores do poder, que lhe é exigida pelo evangelho da
liberdade. Essa liberdade audaz implica vigilância constante com
relação aos condicionamentos ideológicos, políticos, sociais, eco­
nômicos e também religiosos, que podem pesar — às vezes até
inconscientemente — nas escolhas que a comunidade cristã e
cada um dos batizados, vão realizando, ou já realizaram.
A essa liberdade crítica diante dos “grandes” e “pode­
rosos” deve corresponder uma opção a favor dos pobres, aná­
loga à que foi feita por Jesus de Nazaré: onde existem margi­
nalizados e oprimidos, ali a Igreja deve antes de tudo saber
reconhecer o seu lugar, para compartilhar, para denunciar atra­
vés de uma obra de conscientização dos pobres a iniqüidade pre­
sente, para anunciar, por obras e palavras, o advento do Reino.
Igreja livre quer dizer então Igreja dos pobres: comunidade que,
embora sentindo-se chamada a levar a todos a graça do evange­
lho, faz uma opção preferencial a favor dos últimos, porque sabe
que somente assim ela mesma se deixará evangelizar e poderá
evangelizar de maneira crível o mundo.44 Os cristãos certamente
não têm soluções mágicas a propor, nem estão em condição de
dar todo tipo de contribuição de que pode haver necessidade.
Eles reconhecem, contudo, com uma consciência humilde e vigo­
rosa, que o seu lugar de pobres entre os pobres, vivido na fé,
na esperança e no amor, pode tornar-se um apelo, tanto mais
inexorável quanto mais arriscado e fiel, à libertação da injustiça
e do pecado pessoal e social. A Igreja, livre de si para servir
ao homem, entra assim no processo de libertação do mundo:
contagiando com a sua liberdade e recebendo-a sempre como
dom de seu Senhor, ela se torna libertadora no meio da família
humana. Quanto mais os cristãos forem livres de si mesmos,
livres para o Pai e para os outros, tanto mais provocarão os ho­
mens à liberdade e lhe abrirão caminhos. A sua fecundidade
não deriva, por isso, da abundância dos meios de que dispõem,
ou do consenso que aparentemente conseguirão, mas precisa­
mente da liberdade desses meios e desse consenso, para viver a
fidelidade ao Evangelho. Discípulos do homem livre, que, por

44 Cf. a ‘‘opção preferencial” dos bispos latino-americanos em Pue-


bla: Puebla: comunione e partecipazione, sob a direção de P. Vanzan,
Roma, 1979.

273
sua liberdade de amor incondicional ao Pai e aos homens, mor­
reu na vergonha da cruz, os cristãos se esforçarão por incremen­
tar, com a oração e com a vida, a experiência da liberdade no
mundo em que vivem, sem procurar a eficácia imediata ou o
consenso exterior. Quem está verdadeiramente livre para o Pai e
para os outros, sabe contar com o desconhecido, isto é, crê, para
além de toda possibilidade, na possibilidade impossível, aquela
que a liberdade de Deus, revelada em Jesus Cristo, prometeu à
história. Quem é verdadeiramente livre dá testemunho de que a
liberdade, mesmo quando é derrotada, merece ser vivida, e é
contagiante e libertadora, porque, como a liberdade do Nazare­
no, é revelação e dom de um mistério maior. Não é apenas com
as mãos operosas do homem que se irá libertar o mundo do
mal que o oprime: não haverá libertação profunda e duradoura
se aquelas mesmas mãos não se abrirem também no louvor e na
invocação para acolher o dom que vem do alto. A emancipação
do homem moderno — como processo de libertação produzido
só pelas forças intramundanas — não cessará de produzir tota-
litarismos e manipulações de toda espécie, se não souber abrir-se
à libertação que foi oferecida em Jesus Cristo à história: a liber­
tação de si mesmo, para existir, no amor e na esperança, para
o Pai e para os outros. Jesus, o homem livre, não cessa de
provocar os homens à liberdade! 45

45 Cf. as várias contribuições do volume Redenzione ed emancipá-


zione, Bréscia, 1975. Cf., sobre Jesus Cristo e a libertação humana, o
cap. 12,

274
10

UMA HISTÓRIA DE FINITUDE

Jesus, o hom em das dores

Toda palavra sobre a finitude revela a finitude da palavra.


Se a consciência e a liberdade se apresentam ao discurso com
seu caráter positivo de aberturas transcendentais do espírito, a
finitude não se deixa prender como uma “faculdade” do ser
humano, como uma das suas possibilidades radicais de afirma­
ção de si. Finitude significa fechamento, impossibilidade, inca­
pacidade, silêncio que emudece, dureza que cria obstáculo,
obscuridade que oculta. A finitude é o aparecimento do limite,
o horizonte que se impõe à inteligência e à vontade no seu exer­
cício concreto, a coruja que anuncia o cair da noite no horizonte
do espírito. Desembarcadouro de tudo o que é positivo, ela é o
início do negativo, o limiar onde toda afirmação se nega e toda
negação se afirma. Quem fala da finitude é obrigado a fazer o
silêncio falar: sabe com certeza que o seu falar é amplamente
humano, porque lembra a cada um a história do seu sofrer e da
sua pobreza. E todavia sabe que nenhuma palavra jamais conse­
guirá traduzir a violência vivida e o tormento do negativo, a
experiência feita na própria carne da finitude humana. E é por
isso que falar da dor e da treva exige pudor e discrição...
Quais são, na experiência humana, as experiências funda­
mentais de finitude? Quais as formas em que o não-disponível
se apresenta na sua obscuridade e peso, limitando a infinita auto-
transcendência do espírito? Quais as condições em que mais
facilmente o homem se converte de sujeito em objeto de história?
O “verbum abbreviatum” da finitude, o seu compêndio e a sua
manifestação mais brutal, é dada pelo “mysterium mortis” : a
morte, “a mais forte não-utopia da existência” (E. Bloch), é o
evento-limiar, que encerra inexoravelmente e de maneira impro-
gramável a história da pessoa. A morte, enquanto imponderá-

275
vel, é o grande “não” dito à consciência e, enquanto indisponí­
vel, é o grande “não” dito à liberdade. Ela resume assim, de um
lado, a obscuridade do futuro absoluto, isto é, do futuro não
edificado por nossas mãos, não programado, fugidio, desconhe­
cido e sempre à espreita; de outro, a dilaceração das proximi­
dades, a total solidão do abandonado, a morte à comunhão, que
é sempre vida. O futuro absoluto e a dor, entendidos respectiva­
mente como limiar da consciência, cega diante do imprevisível,
e como limiar da liberdade, dobrada diante da indisponibilida-
de do abandono, se oferecem então como os confins radicais da
finitude, presente no caminho para a morte, que é toda existên­
cia humana.1
Como se apresentaram na história de Jesus de Nazaré?
Terá ele, como nós, conhecido a dor do negativo, a obscura pai­
xão que difunde um odor de morte por sobre toda a vida? Ou,
por força de sua condição divina, plenamente revelada na Pás­
coa, o Nazareno não terá experimentado a fadiga do viver, o
peso da hostilidade das coisas e dos homens, a resistência inte­
rior diante da treva e da provação? A essas perguntas já foi
dada uma primeira resposta, quando falamos da história da
consciência e da liberdade de Jesus: elas o mostram empenha­
do no caminho da fé e da esperança, bom conhecedor do risco
da liberdade. Trata-se agora de reler essas constantes, focalizan­
do-as de maneira particular, para aprofundar até onde for pos­
sível o mistério supremo da sua morte de cruz. Devemos falar,
com a discrição e o pudor necessário diante de toda finitude, e
ainda mais necessários diante da dele, do seu caminho para a
cruz, da hora obscura da sua morte, e daquilo que ela revela
com relação à história de Deus e dos homens.1

1 Cf. o que dissemos no capítulo I sobre as questões da dor e do


futuro. Uma abordagem dos problemas cristológicos a partir da finitude
é feita por G. Martelet, Uau-dela reírouvé. Christologie des fins der-
nières, Paris, 1975, especialmente pela primeira parte, “Le mystère du
Christ et notre condition d'homme”, pp. 9ss, e nela o cap. II, “Finitude
et Incarnation du Christ”, pp. 33-62.

276
10.1. O EVANGELHO DOS SOFRIMENTOS

A vida de Jesus é toda orientada para a cruz; os relatos


evangélicos não são mais do que “histórias da paixão, com uma
introdução pormenorizada” (M. Káhler). Toda a vida do Naza­
reno está sob o signo grave e doloroso da cruz: “Toda a vida
de Jesus foi cruz e martírio” .2 Desde que o anúncio cristão ecoa
no tempo, o relato da história de Deus entre os homens está
indissoluvelmente unido “àquela história; ou seja, àquela paixão-,
que é a história da sua vida” (Kierkegaard): o Evangelho dos
seus sofrimentos. Não se compreenderá a vida de Jesus sem a
cruz, como também não se compreenderá a cruz sem o caminho
para ela. É por isso que a comunidade das origens pôde reconhe­
cer no Nazareno “o homem das dores” de que fala o profeta (cf.
Is 53,3): 3 “Qual ovelha levada ao matadouro, qual cordeiro
que permanece mudo ante aquele que o tosquia, assim ele não
abre a sua boca. Em sua humilhação foi-lhe negada justiça...”
(At 8,32-33: cf. Is 53,7-8). “Cristo sofreu por vós... ele não
cometeu nenhum pecado; nenhuma mentira foi achada em sua
boca. Quando injuriado, não revidava; ao sofrer, não ameaçava;
antes, punha a sua causa nas mãos daquele que julga com justi­
ça. Sobre o madeiro, levou os nossos pecados em seu próprio
corpo... Por suas feridas fostes curados...” (lPd 2,21-25; cf. Is
53,5-6.9.12). Aquele que “sofreu na carne” (lP d 4,1) morreu
“justo pelos injustos” (3,18), “contado entre os iníquos” (Lc
22,37; cf. Is 53,12), ele, que “não procurou agradar a si mesmo”
(Rm 15,3) e “em vez da alegria que lhe foi proposta, sofreu a
cruz” (Hb 12,2). Jesus de Nazaré é o Servo, o Inocente que
sofre por puro amor sob o peso da injustiça do mundo!

2 Imitação de Christo, I, II, cap. 12. H. Urs von Balthasar, “Myste-


rium pascale” in Mysterium Salutis. VI, Bréscia, 1971, p. 178, observa:
“A vida de Cristo está sob o dei, a necessidade de ‘sofrer muito’ (Mc
8,31 par.; Lc 17,25;22,37;24.7.26.44”).
3 Cf., entre outras obras, P. Benoit, “Jésus et le Serviteur de Dieu”
in Jésus aux origines de la christologie, org. por J. Dupont, Gembloux,
1975, pp. 111-40; M. D. Hooker, Jesus and the Servant. The Influence
of the Servant Concept of Deutero-Isaiah in the New Testament, Lon­
dres, 1959 (sublinha o caráter pós-pascal da identificação Jesus-Servo);
E. Kraenkl, Jesus der Knecht Gottes. Die Heilsgeschichtliche Stellung
lesu in der Reden der Apostelgeschichte, Regensburg, 1972.

277
Justifica-se tal releitura das obras e dos dias do Nazareno?
Os evangelhos são muito discretos sobre este ponto.4 Seu teste­
munho nada tem de emotivo ou de passional: não oculta os
aspectos humaníssimos da finitude física de Jesus, a sua fome
(cf. Mt 4,2; Lc 4,2), a sede (cf. Jo 19,28), o sono (cf. Mc 5,38
e par.), mas respeita o silêncio da mais profunda finitude inte­
rior por ele experimentada, interrompendo-o apenas com sinais
e evocações imprevistos, reveladores de uma secreta familiari­
dade com a dor. Diante da morte do amigo, não contém o pran­
to (cf. Jo 11,35), manifestando o sofrimento que só o amor co­
nhece: Vede como o amava!” (11,36); ao pensar na hora pró­
xima do fim, sua alma se perturba (cf., por exemplo, Jo 12,27),
triste até a morte (Mc 14,34), com uma tristeza que revela o
seu apego à vida e o obscuro peso que ele percebe diante do
obscuro e dilacerante futuro da morte. Sobre o pano de fundo
desta contínua ^discrição se revela ainda mais violento o forte
grito da cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonas­
te? (Mc 15,34): sinal do abismo de uma dor infinita?
Jesus sentiu o limiar imponderável e amargo da morte: a
história da sua fé e da sua esperança, a sua vida de oração, o
caminho juncado de provações da sua liberdade são prova" cons­
tante disso. Obscuridade e tentação chocaram-se na profundida­
de do seu espírito, com a dedicação incondicional ao Pai, até o
sim” que o levou à morte: “Abbá, Pai! Tudo te é possível,
afasta de mim este cálice! Porém, não o que eu quero, mas o
que tu queres! (Mc 14,36). Esta experiência interior de finitu­
de, esta fadiga de viver assumida na força de um amor maior
e da esperança que crê, abre Jesus à compreensão real do sofri­
mento humano: a sua compaixão pela multidão (cf., por exem­
plo, Mt 9,36; 15,32), a sua comoção diante dos infelizes e dos
sofredores (cf. Mc 1,41; Mt 20,34; Lc 7,13; etc.), revelam uma
sensibilidade diante da dor alheia que são próprias apenas de
quem fez a experiência da dor. O Sofredor, que compreende
e ama, dá forças a quem está oprimido pelo sofrimento: "‘Vinde
a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo
e eu vos darei o descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e

... 4 J- Gonzáles-Faus, “Gesü, figura delFuomo sofferente” m Con-


cilium 12 (1976), pp. 1.519-1.533.

278
encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo
é suave e o meu fardo leve” (Mt 11,28-30).
À experiência da finitude interior e à compaixão que dela
deriva para o sofrimento alheio, deve-se acrescentar, na vida do
Nazareno, o impacto duríssimo da dor que lhe é provocada pelos
homens: considerado um exaltado pelos seus ('‘Enlouqueceu :
Mc 3,21), acusado de ser um endemoninhado pelos escribas
(cf. Mc 3,22 e par.), definido um impostor pelos poderosos (cf.
Mt 27,63), Jesus sente todo o peso da hostilidade que se acumula
contra ele. Não se entristece com as acusações, mas com a dureza
dos corações dos quais elas provêm (cf. Mc 3,5). Os adversários
não se cansarão de atacá-lo de todos os modos. Acusam-no pelo
comportamento dos seus discípulos que não jejuam (cf. Mc 2,
18) e não observam a Lei (cf. 2,24;7,5; etc.); procuram desa-
creditá-lo aos olhos do povo com toda espécie de calúnia (cf.
Mc 3,22, por exemplo), chegando até a expulsá-lo da sinagoga
que lhe dá fé (cf. Jo 9,22; 12,42); tentam colocá-lo em difi­
culdades a respeito de questões controvertidas (cf. Mc 10,2; 12,
18-23) ou comprometedoras (cf. Mc 12,13-17). Várias vezes ten­
tam prendê-lo (cf. Mc 12,12; Jo 7,30.32.44; 10,39) e procura-se
matá-lo (cf. Lc 4,29; Jo 8,59; 10,31); é tecida com cuidado a
trama iníquia da conjura para fazê-lo morrer (cf. Mc 3,6; 14,1-2.
55-59). Por que tudo isso? Os motivos da hostilidade contra o
Nazareno por parte dos grupos influentes são fáceis de com­
preender: a sua inaudita pretensão os irrita (cf. 6,2-3; 11,27-28;
Jo 7,15; etc.), a sua popularidade os espanta (cf. Mc 11,18; Jo
11,48; etc.). Jesus põe em discussão, com a palavra e com a
vida, as suas certezas, e, com o seu sucesso entre o povo, põe
em risco os fundamentos da precária ordem existente. Mas ele
é demasiadamente livre para deter-se sob o condicionamento do
medo: por isso continua o seu caminho, na fidelidade ao sim
radical dito ao Pai. É claro que toma suas precauções: ^conse­
gue escapar das tentativas de apedrejamento e de prisão (cf.
Lc 4,30; Jo 8,59; 10,39); evita as ocasiões de choque (cf. Mc
7,24;8,13; etc.). Mas também põe à prova, no cadinho desse
sofrimento, a opção que marcará uma virada na sua ação: a
viagem decisiva para Jerusalém.5 “A cidade do grande Rei

5 Cf. G. Bornkamm, Gesii di Nazareth, Turim, 1977, 2? ed., p. 150,


(ed. bras.: Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1976, 194 p.).

279
(Mt 5,35) é o lugar onde os destinos de Israel e dos seus profe­
tas devem consumar-se (cf. 13,33). Jesus prevê o que o aguarda
em Jerusalém como conseqüência do radicalismo da sua vida
e da sua mensagem (cf. o conteúdo histórico dos vaticínios da
paixão: Mc 8,31;9,31; 10,33-34; e par.).ú A rejeição sofrida na
Galiléia, bem mais profunda do que os fáceis entusiasmos da
multidão, permitiu-lhe tematizar sem sombras de dúvida que
deverá beber até o fim o cálice do destino do justo.7 Neste sen­
tido, é a crise que perpassa toda a “primavera galiléia” que o
leva a Jerusalém: ela é uma dolorosa experiência de finitude,
mas assumida no mais claro impulso de doação ao Pai e de fé
na vitória final da justiça e do amor. Será essa opção de obediên­
cia total, mais forte do que qualquer derrota, que o levará ao
encontro da morte de cruz.
Com a ida a Jerusalém entra-se em cheio na história da
paixão: 8 Jesus dirige-se para lá “decididamente” (Lc 9,51: lite­
ralmente: endureceu o rosto a fim de ir para lá), caminhando
diante dos seus que o seguem desconcertados (cf. Mc 10,32).
Na cidade de Davi o choque chega ao auge: já estão extrema-

6 Que a morte de Jesus de Nazaré seja a conseqüência lógico-histó-


rica do seu agir, e como tal tenha se apresentado também a ele, é subli-
nhado, entre outros, por W. Kasper, Gesü il Cristo, Bréscia, 1975, pp.
154ss, H. Kessler, Die theologische Bedeutung des Todes fesu. Eine tra-
ditionsgeschichtliche Untersuchung, Düsseldorf, 1970, pp. 229ss, e E.
Schillebéeckx, II Cristo, la storia di una nuova prassi, Bréscia, 1980
p. 937.
7 O tema do sofrimento do justo estava bastante difundido no
mundo espiritual e cultural em que viveu Jesus — cf. L. Ruppert, Jesus
ais der leidende Gerechte, Stuttgart, 1972, p. 28.
8 Sobre o que se segue, cf., entre outras obras, H. U. von Balthasar
“Mysterium Paschale”, op. cit., pp. 171-412; M. Basin, Jésus devant sa
passion, Paris, 1976, P. Bénoit, Passione e ressurrezione dei Signore. II
mistero pasquale nei quatro evangeli, Turim, 1967 (ed.: bras.: Paixão e
ressurreição do Senhor, Edições Paulinas, São Paulo, 1975, 386 p .); L.
Boli, Passione di Gesü — passione dei mondo. II fatto, le interpretázio-
ni e il significato ieri e oggi, Assis, 1978 (ed. bras.: Paixão de Cristo —
Paixão do mundo-, O fato, as interpretações e o significado ontem e hoje,
Vozes, Petrópolis, 1977, 170 p .); H. Cousin, II profeta assassinato.
Storia dei testi evangelici delia passione, Roma, 1977 (ed. bras.: O pro­
feta assassinado, Edições Paulinas, São Paulo, 1978, 213 p p.); E. Lohse,
La storia delia passione e morte di Gesü Cristo, Bréscia, 1975; J. Molt-
mann — J. B. Metz, Storia delia passione, Bréscia, 1974. Cf. também o
estudo clássico de K. H. Schelkle, Die Passion Jesu in der Verkundg-
ung des Neuen Testaments. Ein Beitrag zur Formgeschichte und zur
Theologie des Neuen Testaments, Heidelberg, 1949, especialmente pp.
15ss. (Die Passion Jesu in ihrem Geschehen selbst”) .

280
mente envolvidos no caso o Sinédrio e a nobreza leiga e sacer­
dotal que ele representa. O Nazareno tem consciência da ini-
qüidade que está para consumar-se com relação a ele, mas
enfrenta-a com a riqueza de sentido de quem vê a morte injus­
tamente sofrida como uma doação voluntária, vivida em obe­
diência ao Pai e fecunda de vida. São prova disso os relatos da
Última Ceia, nos quais o Servo confia aos seus o memorial da
nova aliança no seu sangue.9 Neste quadro de finitude, fonte de
sofrimento aceito, situa-se também o processo de Jesus: 10 é a
hora dos adversários, “o império das trevas (Lc 22,53). Quais
foram os motivos que levaram o Nazareno à condenação? Aos
olhos do Sinédrio ele é um blasfemador (cf. Mc 14,53-65 par.),
que com sua pretensão e sua ação (sobretudo a “escandalosa
purificação do templo: cf. Mc 11,15-18 e par.) mereceu a morte
segundo a Lei (cf. Dt 17,12). E contudo Jesus não sofreu a pena
reservada aos blasfemadores: a lapidação (cf. Lv 24,14); ele
foi justiçado pelos ocupantes romanos, sofrendo a pena inflin-
gida aos escravos desertores e aos instigadores contra o impé­
rio: a ignominiosa morte de cruz.11 A sua condenação foi, no
final, política, como atesta o “titulus crucis”, a tabuleta com a
motivação; da condenação colocada sobre o lenho da vergonha:
“Jesus Nazareno Rei dos judeus” (Jo 19,19). A sua morte, então,
pode definir-se como um assassínio judiciário, de significado
político-religioso.12 A sexta-feira santa (7 de abril do ano 30?)
9 Cf. X. Léon-Dufour, “ Jésus devant sa mort, à la lumière des textes
de rinstitution eucharistique et des discours d’adieu” in Jésus aux ori­
gines de la christologie, op. cit., pp. 141-168; R. Pesch, “Das Abend-
mahl und Jesu Todesverstándnis” in Der Tod Jesu. Deutungen im Neuen
Testament, org. por K. Kertelge, Freiburg in Br., 1966, pp. 137-87.
10 Cf., entre outras obras, R. Aron, “Quelques réflexions sur le pro-
cès de Jésus” in Lumière et Vie 20 (1971), pp. 5-17; P. Benoit, “II pro­
cesso di Gesü” in Esegesi e teologia, Roma, 1964, I, pp. 216-53; J. Blinz-
ler, II processo di Gesü, Bréscia, 1966; S. G. F. Brandon, II processo a
Gesü, Milão, 1974; D. R. Catchpole, The Trial of Jesus. A Study in
the Gospels and Jewish Historiography from 1770 to the Present Day,
Leiden 1971; G. Crespy, “Recherche sur la signification politique de la
mort du Christ” in Lumière et Vie 20 (1971), pp. 89-109; J. Moltmann,
II Dio crocifisso, Bréscia, 1973, pp. 131ss. (“II processo storico di
Gesü”) ; The Trial of Jesus, org. por E. Bammel, Londres, 1971; P.
Winter,’ On the Trial of Jesus, rev. e org. por T. A. Burkill e G. Ver­
mes, Berlim-Nova York, 1974, 21 ed.
11 Cf. T. M. Cícero, Pro Raibrio, cap. V (par. 16): “O conceito
de cruz deve permanecer distante não somente do corpo dos romanos,
mas também dos seus pensamentos, dos seus olhos, dos seus ouvidos”.
12 Cf. J. Blinzler, op. cit., p. 420.

281
é para a Lei o dia que morre o blasfemador e para o poder o dia
em que morre o subversivo. A fé cristã reconhecerá nele o dia
em que, no Inocente que morre, Deus morreu por nós.

1 0 .2 . A CRUZ

Que aconteceu na hora do “império das trevas” em Jesus


de Nazaré, na sua relação com os homens e na sua relação com
o Pai? É a interrogação sobre o mistério da sua extrema luta
com a finitude, da sua agonia e morte.13 A palavra discreta, que
a finitude sempre exige, torna-se aqui, como nunca, hesitante e
perplexa. Tentar traçar uma teologia da cruz quer dizer experi­
mentar a cruz da teologia. Theologia crucis, thelogia crucifixa!

13 Sobre a morte de Jesus, cf. entre outras obras: Zur Bedeutun


des Todes Jesu. Exegetische Beitrãge von H. Conselmann u. a., Güters-
loh, 1967; J. Carmichael, La morte di Gesú, Roma, 1971; A. George,
“Comment Jésus a-t-il perçu sa propre mort?” in Lumière et Vie 20
(1971), pp. 34-59; E. Jüngel, "La morte di Gesü Cristo. La morte come
passione di Dio” in Morte, Bréscia, 1972, pp. 137-61; H. Kessler, Die
theologische Bedeutung des Todes Jesu, op. cit.; “La mort du Chirist in
Lumière et Vie n. 101, 20 (1971); Mort pour nos péchés. Recherche plu-
ridisciplinaire sur la signification rédemptrice de la mort du Christ, Fa-
cultés Universitaires Saint-Louis, Bruxelas, 1976; H. Schürmann, Jesu
ureigener Tod. Exegetische Besinnungen und Ausblick, Freiburg i. Br.,
1976; Der Tod Jesu. Deutungen in Neuen Testament, org. por K. Kertel-
ge, op. cit.
Sobre o tema da cruz, cf. por exemplo: P. Beauchamp, “ Jésus-
Christ n’est pas seul. L ’accomplissement des Écritures dans la Croix” in
Recherches de Science Religieuse 65 (1977), 241-77; M. Flick — Z.
Alszeghy, II mistero delia croce, Bréscia, 1978 (com rica bibliografia,
pp. 441-61); B. Gherardini, Theologia crucis. L ’eredità di Lutero nel-
Tevoluzione teologica delia Riforma, Roma, 1978; B. Klappert, Diskus-
sion um Kreuz und Auferstehung, Wuppértal, 1968, 3“ ed. (antologia
crítica de textos de autores recentes); W. von Lõwenich, Theologia cru­
cis. Visione teologica di Lutero in una prospettiva ecumenica, Bolonha,
1975; J. Moltmann, II Dio crocifisso, op. cit.; La Sapienza delia Croce
oggi. Atti do Congresso Internazionale, Roma, 13-18 de outubro de 1975,
3 vol., Turim-Leumann, 1976; Sulla teologia delia croce, Bréscia, 1974
( = Evangelische Theologie 4, -1973); H. R. Weber, Kreuz, Überliefer-
ung und Deutung der Kreuzigung Jesu im neutestamentliche Kultur-
raum. Stuttgart-Berlim, 1975; E. Zenger. “L ’abbandono di Gesü in
croce” in Interrogativi di fronte a Gesú, Bari, 1973, pp. 97-122.

282
E contudo o “desgaste conceituai”, vivificado pelo amor para
com o Objeto puro da fé, não pode parar justamente aqui. Ela
deve continuar a acompanhar o Nazareno, porque o mistério de
sua morte é passagem obrigatória para entrar no mistério de
sua vida (e não será assim também para toda existência? Viver
não é aprender a morrer?). O caminho de uma teologia da cruz,
que queira evitar os riscos de um simbolismo arbitrário e não
raramente conservador,14 não pode ser senão o de narrar, pen­
sando-o criticamente, o caminho de Jesus para os mortos, esbo­
çando assim uma “cristologia narrativa” da paixão e morte do
Filho do Homem.1516
Por amor, livremente e consciente do passo dado, o Naza­
reno foi ao encontro da morte: numa entrega total, ele deixou
que o levassem de um lado para outro.lü A traição e o abando­
no dos seus entregaram-no aos adversários: “Judas Iscariot, um
dos Doze, foi aos chefes dos sacerdotes para entregá-lo a eles”
(Mc 14,10). Jesus acolheu com dor e amor o beijo de Judas, o
discípulo atormentado, talvez desiludido nos seus sonhos revo­
lucionários: 17 “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?”
(Lc 22,48). “Amigo, para que estás aqui?” (Mt 26,50). O ódio
implacável dos representantes da Lei o entregou ao represen­
tante de César: “Logo de manhã, os chefes dos sacerdotes fize­
ram um conselho com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio.
E amarrando a Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos”
(Mc 15,1 par.). Este, embora convencido de sua inocência —
“Que mal fez ele?” (Mc 15,14) — cedeu à pressão da multidão,
instigada pelos chefes (cf. 15,11): “Depois de ter feito flage­
lar Jesus, entregou-o para que fosse crucificado” (Mc 15,11).

14 Cf. o que escreve sobre estes riscos C. Duquoc, “Croce dei


Cristo e sofferenza umana” in Concilium 12 (1976), pp. 1.534-1.545.
15 Um exemplo dessa "cristologia narrativa” é oferecido por H.
U. von Balthasar, Mysterium Paschale, op. cit. Cf. também J. B. Metz,
“Breve apologia dei narrare” in Concilium 9 (1973), 5/80-98, e Id.,“Re-
denzione ed emancipazione” in Aa. Vv., Redenzione ed emancipazione,
Bréscia, 1975, pp. 152-77.
16 Sobre o tema da “entrega” (o verbo grego que aparece em vários
textcs é paradídomi, cf. W. Popkles, Christus traditus. Eine Untersuchung
zum Begriff der Dahingabe im Neuen Testament, Zurique, 1967, e Hans
Urs von Balthasar, “Mysterium paschale”, op. .cit., pp. 254ss.
17 Recordamos que possivelmente “Iscariotes” se refira ao fato de
Judas pertencer ao movimento dos “sicários”. Sobre as várias interpre­
tações da traição de Judas, cf. J. Blinzler, op. cit., pp. 70-71.

283
Diante dessa trama de traição, de ódio e de medo, o Nazareno
não cessa de dar testemunho da verdade, até que se fecha no
silêncio, que desconcerta Pilatos (cf. Mc 15,5). Aquele silên­
cio deixa falar a vitória na sua luta extrema com a finitude: o
iníquo suceder-se das “entregas” não levaria a nada se não exis­
tisse — soberana — a sua “entrega” de si mesmo, o oferecimen­
to livre e generoso de si ao Pai pelos homens! Isso é expresso
pelo grito relatado por Lucas: “Pai, em tuas mãos entrego o
meu espírito!” (Lc 23,46: cf. SI 31,6). O Filho do Homem
“entrega-se” a seu Pai! O abandonado pelos homens é, na reali­
dade, aquele que se abandona. A comunidade das origens inter­
pretará essa “auto-entrega” do Nazareno, sobre a qual os evan­
gelhos se mostram discretos, como o ato do supremo dom de si
por nós: “Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no
Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim”
(G1 2,20; cf. 1,4; Ef 5,2.25; lTm 2,6; Tt 2,14). A história da
paixão aparece então como a consumação suprema da entrega de
Jesus ao Pai por nosso amor: na luz trinitária revelada plena­
mente na Páscoa, mas já presente na relação filial única e exclu­
siva do Nazareno com Deus, ela é a história do Filho na carne,
o seu caminho para a alteridade, ao encontro da morte do des­
pojamento incondicional de si para dar-se ao Pai e levar-nos
consigo na sua vida. A agonia da cruz é a revelação, no tempo
da finitude, do eterno, infinito dom de si do Filho ao Pai,
selado pela “entrega” do Espírito, que traduz na carne da nossa
história o movimento da doação a Deus: “E inclinando a cabeça
entregou o Espírito” (Jo 19,30). A cruz é história do Filho: no
abandono supremo da morte, o Filho se dá no Espírito ao Pai.
E o Pai?
Um sinal — e na verdade o mais denso! — da finitude
experimentada por Jesus na cruz permite-nos dizer uma palavra
sobre a história do Pai na hora do abandono: é o grito transmi­
tido pelos evangelhos de Marcos e Mateus: “Eloi, Eloi, lamá
sabachtháni, que, traduzido, significa: “Deus meu, Deus meu,
por que me abandonaste?” (Mc 15,34; cf. 27,46). Ele parece
contradizer violentamente todo o movimento anterior da histó­
ria da paixão, que de “entrega” em “entrega” chega à “auto-
entrega” incondicional do Crucificado. Essa palavra de aban­
dono por parte de Deus soa como algo escandaloso e blasfemo,
o que demonstra ao mesmo tempo a autenticidade e a dificul­

284
dade de interpretação.18 A exegese tradicional — fundando-se
no fato de que a frase constitui o início do Salmo 22, oração de
confiança em Deus na provação — , viu no grito de Jesus aban­
donado a expressão da sua confiança incondicional no Pai. Mas,
nessa hipótese, não se compreende por que os evangelistas Mar­
cos e Mateus não formularam essa confiança com as mesmas
palavras de Lucas (23,46), que estão em consonância com o mo­
tivo dominante da “entrega". Além disso, vale a observação de
que, quando o Nazareno assume uma categoria ou uma expres­
são do Antigo Testamento, sempre lhe dá um cunho próprio:
“Mais do que interpretar o grito de Jesus no sentido do Salmo
22, será preciso interpretar as palavras do Salmo no sentido da
situação de Jesus”.1920 Os relatos evangélicos da paixão ocultam
com uma discrição profunda esse sentido: isso explica porque a
maioria dos intérpretes tenha se recusado a reconhecer nessas
palavras uma experiência real de abandono do Crucificado por
parte de Deus.23 Outros, ao contrário, acreditaram poder captar
na “derelictio Jesu” a autêntica revelação de um abandono de
Deus, e por isso de uma morte em Deus, na abissal laceração
que separa o Filho do Pai: “A cruz do Filho separa Deus de
Deus, até a hostilidade e diferença” mais total.21 A dificuldade
dessa interpretação reside em dever reconstruir, a partir de um
sinal extremamente discreto, uma história do Pai, que transcen­
de a carne e o sangue. Por isso não é de admirar que algumas
expressões dessa tendência pareçam assumir, sem o necessário
e forte escândalo, a história humana de dor e de morte na his­
tória trinitária de Deus: a Trindade aparece nela como uma
história incompleta, que vai se construindo através da imanên-
cia do Filho na história mediante o Espírito, até que seja “tudo
em todas as coisas”.22 Aqui é preciso lembrar o sentido do abis­
mo que separa céu e terra e tomar consciência de que entre a

18 Cf. o que se disse no cap. I a esse respeito.


19 J. Moltmann, II Dio crocifisso, op. cit., p. 177.
20 Por exemplo, E. Schillebeeckx, II Cristo, op. cit., p. 975, escre­
ve: “A tese do abandono de Deus carece de qualquer fundamento escri-
turístico”. Uma resenha das interpretações da “derelictio Jesu” é ofere­
cida por B. Carra de Vaux Saint Cyr, “L ’abandon du Christ en Croix”
in Problèmes actuels de christologie, crg. per H. Bouêssé — J. J. La-
tour, Bruges-Paris, 1965, pp. 295-316.
21 J. Moltmann, op. cit., p. 180.
22 Cf. ibid., pp. 298-99.

285
“paixão” do homem e a “paixão” de Deus — “Unus de Trini-
tate passus est” 23 — existe a mesma diferença que há entre a
finitude terrena e o infinito divino. A história terrena não pode
identificar-se com a divina! 24 E todavia, não se pode pensar que
o Pai tenha permanecido indiferente na hora da cruz: “Não há
um mal no universo, com relação ao qual seja mais difícil admi­
tir a apatia de Deus, do que o pathos de Cristo crucificado”.25
Um conjunto de textos do Novo Testamento permitem entrever,
no mistério do grito de abandono de Jesus moribundo, uma
“entrega” ulterior e final: é a “entrega” do Pai que “não pou­
pou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32).
“Pois Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho úni­
co, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna” (Jo 3,16). Essa entrega extrema, esse abandono do Filho
por parte do Pai, é também significado indiretamente no uso
da forma passiva das predições da Paixão: “O Filho do Homem
está para ser entregue nas mãos dos homens que o matarão” (Mc
9,31 par.; cf. 10,33 e par.; 10,45 e par.; Mc 14,41s = Mt
26,45b-46). Por quem será entregue? Não pelos homens, que são
os destinatários da entrega, nem por si mesmo, que é o objeto,
mas por Deus, pelo Pai! “Os passivos do ‘ser entregue nas mãos
dos pecadores’ mostram-nos como é Deus quem age com a ine-
xorabilidade e irrevogabilidade de um ato de julgamento” .26

23 Cf. f. Chéné, “Unus de Trinitate passus est” in Recherches de


Science Religieuse 53 (1965), pp. 545-88 (análise crítica dos testemu­
nhos patrísticos).
24 Não é talvez esse o risco sempre inserido no desenvolvimento do pro­
blema hegeliano do Deus vivo? Quem pensa Deus historicamente não
pode deixar de sentir o fascínio do monismo do Espírito, para o qual a
sexta-feira santa da vida humana é a sexta-feira santa do próprio Abso­
luto: Deus se torna a si mesmo no movimento dialético da história! Mas,
se racionalmente se pode objetar a Hegel que tal monismo fecha, no
fim de contas, o devir na fixidez moral de um sistema, cristãmente se
deve protestar, em nome da liberdade e da transcendência do Deus
revelado, contra essa tentativa de aprisionar o mistério nas leis da dialé­
tica. Cf. H. Küng, Incarnazione di Dio. Introduzione al pensiero teolo-
gico di Hegel. Prolegomeni ad una futura cristologia, Bréscia, 1972, por
exemplo pp. 207ss, e E. Bloch, Soggetto — Oggetto. Commento a Hegel,
sob a direção de R. Bodei, Bolonha, 1975. Com isso a “questão” hegelia-
na não deixará de provocar o teólogo: cf., por exemplo, Aa. Vv., Hegel
et la theologie contemporaine. L ’absolu dans 1’histoire, Neuchâtel-Paris,
1977, especialmente as contribuições de W. Pannenberg, J. Moltmann
e A. Chapelle (pp. 169ss), e E. Brito, Hegel et la tache actuelle de la
christologie, Paris, 1979.
25 M. Flick — Z. Alszeghy, II mistero delia croce, op. cit., p. 76.

286
Então é legítimo falar de um abandono por parte do Pai:
a dor mais profunda do Crucificado não está tanto nos pregos
dos homens, em que se consumava o previsto “império das tre­
vas” de sua rejeição. A sua verdadeira dor, a sua cruz, está no
lato de experimentar o abandono de Deus! Jesus tinha vivido
toda a sua vida em constante comunhão com o Pai: a opção
mais profunda da sua liberdade fora a da liberdade de si para
dar-se incondicionalmente a Deus e aos homens. “Nada faço
por mim mesmo, mas como o Pai me ensinou, assim eu falo.
Aquele que me enviou está comigo e não me deixou sozinho,
porque faço sempre as coisas que são do seu agrado” (Jo 8,31).
“Eu e o Pai somos uma só coisa” (Jo 10,30). Na cruz, esta co­
munhão com o Pai parece acabada: Deus está terrivelmente dis­
tante! Ao Deus, tornado estranho, o Crucificado faz a pergunta,
carregada com o eco profundo da dor humana, com o choque
mais radical com a finitude: “Por que me abandonaste?” É a
interrogação de todos os pobres, deserdados e oprimidos da ter­
ra: ela traz em seu bojo o estupor ante a obscuridade do que
acontece e a dor de sentir-se abandonado. Por que o Pai, que
sempre o amparou e a quem ele deu tudo por amor, agora se
cala? Onde está seu Pai, onde está Deus? Este silêncio do Pai
diante do Filho que morre é a “morte de Deus” sobre a cruz;
ou melhor, a revelação da cruz como “morte em Deus” . O Filho
morre, dilacerado no mais profundo de seu coração pelo afasta­
mento do Pai; o Pai “morre”, porque “entrega” dolorosamente
o Filho, como um dia Abraão “entregou” Isaac; 2627 o Espírito está
presente no silêncio, “entregue” pelo Filho ao Pai no instante
supremo de sua morte. A cruz é história do Filho, do Pai e do
Espírito Santo, história trinitária de Deus! Mas, por que a morte
na história do Deus trinitário? “Não era necessário que o Cristo
sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (cf. Lc 24,26). A
resposta a essa interrogação permanece em grande parte envolta
no silêncio das “profundidades de Deus” (cf. ICor 2,10). Só é
lícito indicar algumas possibilidades do pensamento, já ilumina­
do pela luz da Páscoa, na qual somente “a sua morte adquire

26 H. U. von Balthasar, “Mysterium paschale”, op cit., p. 255. Cf.


ibid., p. 258: “A teologia da entrega só pode ser entendida até o fundo
em sentido trinitário”.
27 Cf. f. Galot, II mistero delia sofferenza di Dio, Assis, 1975, p.
93, n. 29; o verbo da “entrega” evoca o gesto sacrifical de Abraão.

287
aquele significado salvífico totalmente peculiar e único que, de
outra forma, não podería ter, nem mesmo à luz de sua vida
vivida”.28
O abandono do Pai e a conseqüente infinita dor do Filho
se oferecem, antes de tudo, como a revelação “sub contrario”
da insondável unidade que liga um ao outro. Jesus sofre de ma­
neira única e irrepetível precisamente porque experimenta a
solidão com relação Àquele com o qual é verdadeiramente um
no amor. A cruz é “absconditas Dei sub contrario” (Lutero): na
profundidade do sofrimento de sua separação, o Pai e o Filho
revelam ao mundo a sua unidade divina. Diante de Jesus que
morre na cruz na dor do abandono do Pai poder-se-ia dizer:
Vede como o amava!” (cf. Jo 11,36). A dor revela o amor: o
abismo da dor revela a perfeição do amor. Na dor revela-se o
coração do Deus trinitário. Por isso, não é por acaso que Mar­
cos, imediatamente após ter narrado a morte do Nazareno, escre­
ve: “O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que
havia expirado deste modo, disse: ‘De fato, este homem era Filho
de Deus’ ”! (Mc 15,39). Essa expressão da teologia pós-pascal
— da qual apresenta o título ‘‘Filho de Deus” e a intenção de
sublinhar o sentido da cruz também para os não-judeus — é
muito significativa: afirmando que um pagão reconhece o rosto
de Deus na dor e na morte do Crucificado, ela evidencia que
no Filho do Homem que está morrendo na cruz se revela o
Filho de Deus, o Deus na alteridade, em exílio de si por amor
do mundo. Aos pés da cruz, naquele que se abandona ao Pai e
pelo Pai é abandonado por nós, a treva se faz veículo da luz, a
morte ignominiosa aparece como instrumento de vitória, a dor
manifesta o coração trinitário de Deus. A cruz justifica a audá­
cia de se pronunciar a palavra escandalosa: Deus sofre! 29 Se na

28 J. Moltmann, II Dio crocifisso, op. cit., p. 211.


29 Sobre o tema do “sofrimento de Deus”, cf. entre outras obras:
J. Chéné, “Unus de Trinitate passus est”, op. cit., W. Elert, Der Aus-
gang der altkirchlichen Christologie, Berlim, 1957 (pp. 71-132 sobre o
Cristo sofredor, “imagem e dogma”) ; J. Galot, II mistero delia sofferen-
za di Dio, op. cit.; E. Jüngei, "Vom Tod des lebendigen Gottes. Ein
Plakat” in Zeitschrift für Theologie und Kirche 65 (1968), pp. 93-116; J.
Kamp, Soufjrance de Dieu, vie du monde, Paris, 1971; K. Kitamori,
Teologia dei dolore di Dio, Bréscia, 1975 (a propósito do qual cf. “Teo­
logia tragica o teologia delia tragédia? Simposio su ‘Teologia dei dolo­
re di Dio’ di Kazoh Kitamori”, sob a direção de G. Segalla, in Studia
Patavina 23 (1976), pp. 231-69); H. Küng, “Può Dio patire?” in Incar-

288
cruz do abandono o Filho não sofresse pela distância do Pai,
não seria verdadeiramente o Filho; e se o Pai não sofresse pela
distância do Filho, não seria verdadeiramente o Pai; e se o Deus
trinitário não sofresse na cruz como Deus, não seria amor trini-
tário unidade profundíssima que une o Pai ao Filho no Espírito,
que o Filho moribundo entrega ao Pai (cf. Jo 19,30) e que o Pai
entregará ao Filho no dia da Páscoa (cf. por exemplo, Rm 1,4;8,
11; etc.). Que valor tem esse sofrimento de Deus para o próprio
Deus? Sobre a cruz Deus “se define ou se constitui” (E. Jün-
gel)? Propõe-se ou põe-se? Revela o que é ou se torna o que
não é? A cruz é a revelação “sub contrario” do ser trinitário de
Deus: isso significa que entre Deus em si e Deus revelado “in
humilitate et ignominia crucis”, entre a Trindade transcendente
e a Trindade imanente na história da paixão, há uma relação
de identidade na contradição, relação que será manifestada ple­
namente na Páscoa. O dia em que Deus morreu remete assim ao
dia do Deus vivo; no reino da finitude oferece-se o infinito; na
morte, a vida; no pecado, a graça; na treva, a luz; numa histó­
ria humana, a história de Deus. O exílio faz perceber a pátria:
a dor da entrega faz pressentir a alegria da doação recíproca das
Três pessoas; a humildade e a pobreza do Crucificado deixam
transparecer a liberdade do Deus trinitário, que sai de si para dar-
-se ao outro num total despojamento. Na cruz Deus se torna; mas
este tornar-se não é mais do que a historicização — a revelação
“sub contrario” — do devir eterno e perfeito da comunhão divi­
na, daquele seu ser uno, “quo nihil maius fieri potest”.-0 A cruz
é a expressão finita, no sinal do contrário, do acontecimento da
vida infinita que se desenvolve no seio de Deus: por isso ela é a
humilde porta que abre aos homens o mundo de Deus, é a Porta

nazi.one di Dio, op. cit., pp. 619-26; J. Y. Lee, C od Suffers for Us. A
systematic Inquiry into a Concept of Divine Passibility, La Haye, 1974;
J. Maritain, “Quelques réflexions sur le savoir théologique” in Revue
Thomiste 69 (1969), pp. 5-27; F. Varillon, La soufjrance de Dieu, Paris,
1975. Cf. também P. A. Sequeri, “Cristologie nel quadro delia proble­
mática delia mutabilità e passibilità di Dio” in La Scuola Cattolica 105
(1977), pp. 114-51. , ,
30 Sobre essa fórmula de Schelling, que transpõe em termos de de­
vir a idéia anselmiana do “ens quo maius cogitari nequit”, cf. W. Kas-
per, Das Absolute in der Geschichte. Philosophie und Theologie der
Geschichte in der Spãtphilosophie Schellings, Mainz, 1965, e Id., “Crisi
e nuovo inizio delia cristologia nel pensiero di Schelling” in Aa. Vv.,
Sulla teologia delia croce, op. cit., pp. 55-83.

289
dos Humildes, que desvela, ao que se faz pobre, o mistério das
fontes eternas.
Essa revelação “sub contrario” é, ao mesmo tempo, julga­
m ento e salvação do m undo: aqui entrevemos a outra direção,
segundo a qual se pode pensar o que aconteceu na sexta-feira
santa. Através da cruz o Deus cristão imobiliza sob o seu impla­
cável “não” o mal do mundo, e pronuncia o “sim” libertador
sobre quem acolhe o dom. A “entrega” de Jesus à morte por
parte dos homens parecia ter sido a vitória do negativo, o triun­
fo do “império das trevas; mas a “auto-entrega” do Nazareno,
o seu existir-para-os-outros 31 repele o mistério da iniqüidade. A
sua obediência incondicional ao Pai, a sua fé inabalável e a sua
esperança invencível, já constituem o julgamento do príncipe
deste mundo. O Crucificado bebe até o extremo o cálice do so­
frimento humano, especialmente daquele que é fruto da injustiça
e do pecado de todos os crucificadores da história: e no entanto
ele o bebe de maneira totalmente singular. Se experimenta a
obscuridade e se entra em choque com a dureza do abandono,
sé sofre uma dor maior que qualquer outra, ele não é esmagado
por ela, não sofre passivamente o futuro obscuro e a dilaceração
do morrer. Ele os assume no abandono incondicional ao Pai,
“em cujas mãos entrega o seu espírito” (cf. Lc 23,46), numa
esperança contra toda esperança e num amor mais forte do que
toda dor. O seu sofrimento não é passivo, suportado, mas ativo,
livremente escolhido por amor e por isso libertador. Neste senti­
do, ele julga o pecado do mundo, fonte de desespero e de medo,
e oferece o testemunho contagiante do amor que salva: a dor
do negativo, assumida no amor e na fé do Crucificado em soli­
dariedade com o sofrimento do mundo, torna-se possibilidade
de salvação, a agonia da morte é transformada em aurora de
vida. A história dos sofrimentos do mundo pode converter-se,
com Jesus que por amor se fez solidário até o fim conosco e com
a nossa dor, na história da dor que vence a morte. A “auto-entre­
ga” do Filho é a “crise” que julga e discerne as trevas da rejei­
ção, fazendo surgir uma aurora de graça: “Veio para o que era
seu e os seus não o receberam. Mas a todos os que o receberam
deu o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,11-12).

31 H. Schürmann, Jesu Ureigêner Tod., õp. cit., pp. 64-65 e 121ss.,


fala de “pro-existência” de Jesus.

290
Se o oferecimento que o Humilde faz de si mesmo julga o
orgulho dos poderosos e confunde a sua inteligência, enquanto
eleva os humildes capazes de acolher o dom de seu amor, mais
obscuro parece o julgamento do mundo presente na “entrega ’
do Filho por parte do Pai. Foi ele que abandonou o Filho nas
mãos dos pecadores: por quê? A fé pascal responde a essa per­
gunta sublinhando que o Pai “o entregou por todos nós” (Rm
8,32; cf. 4,25;5,8; etc.). A intenção da “entrega” por parte do
Pai é a do amor salvífico: “Quem não poupou o seu próprio
Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agra­
ciar em tudo junto com ele” (Rm 8,32)? E no entanto esse amor
passa por uma condenação: “Enviando o seu próprio Filho numa
carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou
o pecado na carne” (Rm 8,3). Como se exerceu, na morte do
Filho, a condenação do pecado por parte do Pai e a nossa sal­
vação?

O pensamento cristão elaborou, através do tempo,


diversas interpretações do mistério aqui revelado.32 Uma
primeira orientação capta na morte de Cristo o sacrifício
d e redenção para a humanidade pecadora.33 Muitos textos
do Novo Testamento parecem sufragar essa leitura: a mor­
te de cruz é aproximada do sacrifício de expiação pelo

32 Sobre o que se segue, cf. G. Aulén, Christus Victor. An Hista-


rical Study of the three Main Types of the Atonement, Londres, 1975; 2?
ed. J. Galot, La Rédemption, mystère dfalliance, Bruges, 1965; G. Gre-
shake, “La trasformazione delle concezioni soteriologiche nella storia dei-
la teologia” in Aa. Av., Redenzione e emancipazione, op. cit., pp. 89-
130; J. P. Jcssua, Le Salut. lncarnation et mystère pascal. Chez les Pères
de 1’Eglise de saint Irénée à saint Léon le Grand, Paris, 1968 (que tem
o mérito de superar a tradicional oposição entre uma soteriologia da
encarnação, atribuída aos Padres gregos, e uma soteriologia pascal, atri­
buída aos latinos); G. Moioli, Cristologia, Milão, 1978, especialmente
pp. 129-66; J. Plagnieux, Heil und Heiland, Dogmengeschichte Texte und
Studien, Paris, 1969 (cf. pp. 71ss sobre Anselmo e pp. 105ss sobre Tren-
to ); B. Studer — B. Daley, Soteriologie. In der Schrift und Patristik
(Handbcuch der Dogmengeschichte III/2 ? ), Freiburg i. Br. 1978; D. Wie-
derkehr, Glaube an Erlõsung, Konzepte der Soteriologie yom Neuen
TerMment bis heute, Friburgo-Basiléia-Viena, 1976; B. A. Willems, Sote­
riologie. Von der Reformation bis zur Gegenwart, (HDG II I/2 c ), Frei­
burg i. Br., 1972. ,
33 A proximidade entre os conceitos de sacrifício e de redenção
permite falar de uma “redenção sacrifical” : cf. L. Sabourin, Rédemption
sacrificielle, Bruges, 1961, e S. Lyonnet — L. Sabourin, Sin, Rédemption,
Sacrifice, Roma, 1970, pp. 293-94.

291
pecado (cf., por exemplo, Hb 9,1-10,18; Rm 3,25; Jo 2,
2;4,10; etc.) e do de aliança (cf. Hb 9,15-28; Ef 5,2; cf.
os textos da instituição da eucaristia: Mc 14,24; Mt 26,27;
Lc 22,20; ICor 11,25; cf. também o tema do cordeiro pas­
cal em João: por exemplo, 1,29.36; 19,31-37, e no Apoca­
lipse, onde aparece 28 vezes). O sacrifício consiste, de um
lado, na oferenda da obediência de Jesus ao Pai, até a efu-
são do sangue, sinal supremo do dom da vida (cf. Hb 8-10
e também 5,7-10; sobre o “sangue” de Cristo cf. At 20,28;
lPd 1,19; Ap 5,9; Rm 3,24s; Ef 1,7; etc.); de outro, no
dom que o Pai faz do próprio Filho (cf. o tema da “entre­
ga ’ da parte do Pai). Longe de ser uma iniciativa humana,
o sacrifício que reconcilia é dom do alto: é Deus que esta­
belecera nova e eterna aliança no sangue do Crucificado e
expia” os pecados dos homens, perdoando e oferecendo-
-se a eles.34 É justo proclamar que na obra da salvação
seja dada glória somente a Deus! Este primado divino deve
ser levado em consideração também no emprego das cate­
gorias de redenção e de resgate: o tema veterotestamen-
tário de Iahweh defensor (goel) e libertador de seu povo
(cf. Ex 6,6-7) faz compreender que o resgate lútron é obra
de Deus e não do homem, a fim de realizar a libertação
do pecado e da morte e estabelecer a nova aliança (cf. Mt
20,25-28; lTm 2,6; Tt 2,14; cf. também lPd 2,9; Ef 1,14;
Ap 5,9-10; etc.). Redenção, portanto, significa libertação
do homem, realizada não por um poder deste mundo,
mesmo que esse poder fosse o mais alto e o maior, mas
pela gratuita iniciativa do amor do Pai que oferece como
dom a vida do Filho único.
Outra orientação da interpretação cristã vê na morte
do Filho “entregue” por nós pelo Pai a realização de uma

34 Toda idéia de "expiação penal”, isto é, de uma ira divina que se


abate implacavelmente sobre o Filho “feito pecado” (cf. 2Cor 5,21),
para consumar nele, que mcrre em nosso lugar, o rigor da pena, parece
contrastar com a revelação do primado do amor de Deus: o Pai con­
dena o pecado demonstrando o amor maior de seu perdão e assim supe­
rando na misericórdia toda exigência de justiça penal abstrata, paga­
mento de um preço, especialmente se esse pagamento é feito ao demô­
nio!_ Essa imagem mítica serviu, na época patrística e escolástica, para
significar a dramaticidade da "crise” que se desenrola sobre o Calvário:
cf. G. Aulén, Christus Vicíor, op. cit., pp. 16-60, e J. Plagnieux, Heil
und Heiland, op. cit., pp. 36-39.

292
satisfação de justiça, que, pelo mérito infinito daquele
que morre na cruz em nosso lugar e por nós, restabelece
a ordem infringida pelo pecado. A ofensa, infinita porque
feita contra Deus infinito, é reparada pelo único que podia
fazê-lo, o próprio Deus, e assim a justiça é satisfeita. Essa
teoria, sistematizada por sto. Anselmo de Aosta, tem muitos
aspectos sugestivos: ela leva a sério a gravidade do pecado,
exalta a dignidade do homem, dando destaque à obra
humana do Nazareno, que morre solidário com os peca­
dores, em seu lugar (“satisfação vicária”, como depois se
dirá) e por eles, e celebra a absoluta soberania de Deus e o
triunfo da sua misericórdia. Percebem-se esses aspectos,
por exemplo, no seguinte texto de Anselmo: O que se
poderia pensar de mais misericordioso do que Deus Pai,
que diz ao pecador, condenado à pena eterna e sem nenhu­
ma possibilidade de libertar-se dela: Toma o meu Unigê-
nito e sacrifica-o por ti; e o Filho: Toma-me e redime-
-te?”.35 Mas é preciso reconhecer os riscos da teoria ansel-
miana: de um lado, sublinha a tal ponto as exigências da
ordem de justiça, que faz dela quase que um absoluto ao
qual a própria liberdade divina parece dobrar-se; de outro,
presta-se ao equívoco, seja no sentido de conceber penal­
mente a justificação, de modo que se faz justiça quando
a culpa é vingada mediante a pena, seja no sentido de
interpretar o “mérito” não como relação dialogai de amor
e de liberdade com Deus (pense-se na relação entre Jesus
e o Pai: cf., por exemplo, Jo 10,17; 17,4-5; F1 2,5-11; etc.),
mas como relação de crédito-débito, que não se concilia
com o primado absoluto da iniciativa gratuita do amor
divino.

Portanto, é necessário — qualquer que seja a tentativa de


leitura do mistério — reconhecer no amor trinitário o motivo
da dolorosa “entrega” do Filho por nós: o Deus trinitário morre
na cruz não para satisfazer a uma ordem abstrata de valores,
nem devido a alguma “necessidade”, mas unicamente por nosso

35 Cur Deus homo, II, 20. As categorias de satisfaçao e de mento


são também empregadas pelo Magistério da Igreja: cf. Trento: DS 1529,
Decreto Lamentabili: DS 3438; Encíclica Humani G enens: DS 3891 etc.

293
amor, para demonstrar-nos gratuitamente o seu amor e gratuita­
mente assumir-nos nele, libertando-nos das prisões que nos
impedem de ter acesso a ele.

(i a dor do Pai e do Filho na hora do abandono — hora


da “entrega” do Espírito! (cf. Lc 23,46 e Jo 19,30) — revela
a profundidade de seu amor recíproco, revela também a “loucu­
ra de seu amor por nós: “Ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). O que aos
olhos do mundo e tolice e escandalo , aos olhos de quem crê
no amor é “poder de Deus e sabedoria de Deus” (cf. ICor 1,23-
24). A entrega dolorosa é o supremo inclinar-se dos Três para
o homem: é o sinal “finito” do despojamento “infinito” de seu
amor por nós. Deus morre para dar-se: o Filho se oferece à
morte em solidariedade com os mortos, para que a última ini-
miga, a morte, assumida por ele, Senhor da vida, morra para
sempre (cf. ICor 15,26); o Pai morre no silêncio do abandono
do Filho, para que onde quer que chegue o silêncio da morte
se saiba que ele está presente na treva luminosa da sua fideli­
dade, que vencerá todo fim; o Espírito é “entregue” na extrema
laceração da morte, para que onde quer que um homem “entre­
gar o Espírito” se possa confessar que Deus está a seu lado,
percorrendo com ele o caminho que através da morte conduz à
vida. A dor da cruz é a quênose do amor trinitário de Deus, o
aniquilamento de si que é dom de si, para que a glória da graça
e da liberdade triunfe sobre a morte do pecado e do medo. Na
morte, como última saída de si para o outro, alienação suprema,
a história de Deus revela a sua característica paradoxal de his­
tória de pobreza, que é riqueza; de fim, que é início; de treva,
que é luz; de morte, que é vida. Abre-se a “impossível possibili­
dade , rasga-se o véu do templo, abrem-se as sepulturas (cf. Mt
27,51-52 e par.): também a nossa morte a cada dia, a dor e a
escuridão dos dias do homem, poderão tornar-se com Jesus
Cristo “verbum abbreviatum passionis Dei”, fragmento de fini-
tude em que se oferece intensamente a presença do amor sofre­
dor e salvífico de Deus. Por meio de Jesus moribundo “foi
vencido, a favor de todos os homens o abandono divino na mor­
te: ninguém, doravante, sofrerá sozinho e sem esperança a pró­
pria morte; funda-se na comunhão com Jesus a esperança da par­
ticipação pessoal na nova vida futura, que já apareceu em Jesus

294
e que consiste na comunhão com Deus”.’6 A agonia da cruz
liberta os homens das potências que os tornam escravos: na for­
ça do amor trinitário que a atravessa, a cruz é escândalo ,
eliminação de toda Lei de medo e de todo pecado (cf. G1 5,11).
É a paixão histórica do Nazareno que mostra “sub contrario” as
liberdades que nos são dadas e as cadeias que são rompidas pela
morte de Deus na cruz: 37 se a morte do blasfemador foi o triun­
fo da Lei e a morte do subversivo a vitória do poder e da trama
de pecado que ele representa, a “morte da morte”, isto é, o amor
divino que perpassa a vergonha da cruz até nas fibras mais ínti­
mas do seu escândalo, será o fim da Lei e do poder (cf. Rm 10,4,
por ex.). No Inocente que morre são, na realidade, os Princi­
pados e as Potestades que morrem: os pregos do Crucificado
pregam os crucificadores (cf. Cl 2,14-15). O “não do homem
teve que tocar o fundo da sua miséria e abjeção, para que o
“não” que Deus pronuncia sobre ele anule o poder de morte que
nele se esconde: “A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde
está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?^ O aguilhão
da morte é o pecado e a força do pecado é a Lei” (ICor 15,
54-56).
Em tudo isso já resplandece a luz da Páscoa: na realidade,
é impossível pensar na cruz e tentar penetrar o seu mistério, sem
ao mesmo tempo olhar para a Ressurreição, na qual o que era a
“absconditas Dei sub contrario” da sexta-feira santa se manifes­
ta no pleno fulgor do Ressuscitado. Se a dolorosa separação entre
o Filho e o Pai era a dor divina oferecida para assumir até o
fim a dor do mundo e tornar acessível à “carne” e ao "sangue”
a salvação no amor trinitário de Deus, ela não é o epílogo da
história do Filho do Homem. A cruz permanece uma questão
aberta: o “não” dos representantes da Lei e do poder, triunfo
da iniqüidade, só será aniquilado pelo não que Deus lhes diz
ressuscitando o Crucificado; a “entrega que o Filho faz do seu
Espírito ao Pai apela para outra “entrega”, a do Espírito, que
o Pai lhe fará no dia da ressurreição dos mortos; a dolorosa
“entrega” do Pai, por fim, dilaceração do coração trinitário de
Deus por amor ao mundo, espera ser superada na reconciliação

36 W. Pannenberg, Cristologia. Lineamenti jondamentali, Bréscia,

37 Cf„ a propósito, a exposição de J. Moltmann, II Dio crocifisso,


op. cit., pp. 149ss.

295
realizada, que no Espírito une o Filho, e nele o mundo, ao Pai.
Com^a Ressurreição o Pai diz “não” ao pecado dos homens e
sim ao amor do Filho; a efusão do Espírito sobre o prisionei­
ro voluntário da morte volta a uni-lo ao Pai e estabelece nele a
aliança nova e perfeita dos homens, com os quais ele se solida­
rizou até a morte. Portanto, a Ressurreição não é senão a con­
tradição da cruz, na identidade daquele que foi crucificado e
depois ressuscitado: é a ressurreição do Crucificado! Na mesma
identidade, a cruz não é mais do que a “absconditas sub contra­
rio” daquilo que será plenamente revelado na Páscoa: é a cruz
do Ressuscitado! No seu morrer por nós mostra-se-nos a figura
do Ressuscitado e esta nos introduz com ele na sua vida. Naque-
que por nós se fez pobre, abre-se a riqueza de Deus por
nós; naquele que por nós se tornou escravo, a liberdade de Deus
nos prende; naquele que foi feito pecado por nós, os pecadores
se tornam justiça de Deus no mundo”. S e Cristo ressuscitou,
a última palavra da história não é a dor, a reprovação e a morte:
assumida na história trinitária de Deus, a vicissitude humana
conhece a promessa, sem arrependimento, da alegria, da justiça
e da vida. A alternativa cristã no tempo consistirá, portanto, na
extensão da contradição do Ressuscitado a todas as iníquas cru­
zes da história, poder de liberdade dada aos homens no seu Espí­
rito. Apesar de toda derrota, apesar de todo triunfo da morte e
do pecado, o futuro da Ressurreição depois da cruz nos garante
que, mais viçosa do que a longa sexta-feira santa da dor huma­
na, prepara-se e chega a aurora da Páscoa final, em que se cum­
prirão plenamente as promessas de Deus. Em Jesus, o Crucifi-
o homem e com ele caminha para casa. O futuro do homem é o
seu futuro, porque o tempo do homem já é o tempo do seu
Espírito. A esperança da vida sem lágrimas e sem poente, que
enche e compromete o coração dos homens, é também a espe­
rança de Deus...38

38 Ibid, p. 216.

296
10.3. REVELAÇÃO E SEGUIMENTO

“Se os homens soubessem... que Deus ‘sofre’ conosco e


muito mais do que nós por todo o mal que devasta a terra,
muitas coisas sem dúvida mudariam, e muitas almas seriam
libertadas” (J. Maritain). Os traços da face trinitária de Deus,
revelados na história da paixão e morte de Jesus de Nazaré,
chamam o homem à liberdade no seguimento da cruz.
a) A cruz é o lugar em que Deus fala no silêncio: aquele
silêncio da finitude humana, que por amor se tornou a sua fini-
tude! O mistério oculto nas trevas da cruz é o mistério da dor
de Deus e d e seu amor. Um aspecto exige o outro: o Deus cris­
tão sofre porque ama, e ama enquanto sofre. Ele é o Deus com­
passivo”,39 porque é o Deus por nós, que se dá a ponto de sair
totalmente de si, na alienação da morte, para acolher-nos plena­
mente em si, na doação da vida. Morrendo na cruz o Filho aden­
trou no “fim” do homem, no abismo de sua pobreza, de sua
tristeza, de sua solidão, de sua obscuridade. E somente ah,
bebendo o cálice amargo, experimentou até o fundo a nossa con­
dição humana: na escola da dor, tornou-se homem até a possibi­
lidade extrema. Mas também o Pai conheceu a dor: na hora da
cruz, enquanto o Filho se oferecia em incondicional obediência
a ele e em infinita solidariedade com os pecadores, também o
Pai fez história! Ele sofreu pelo Inocente entregue injustamente
à morte; e no entanto aceitou oferecê-lo, para que na humildade
e na ignomínia da cruz se revelasse aos homens o amor trinitá-
rio de Deus por eles e a possibilidade de se tornarem partici­
pantes desse amor. E o Espírito, entregue ao Pai^ por Jesus
moribundo, não esteve menos presente na ocultação daquela
hora: Espírito do silêncio extremo, ele foi o espaço divino da
dilaceração dolorosa e amorosa, que se realizou entre o Senhor
do céu e da terra e Aquele que se fez pecado por nós, de modo
que se abrisse uma passagem no abismo e aparecesse o cami­
nho do Pobre. Mas essa morte em Deus não significa a morte de
Deus, que o “louco” de Nietzsche sai gritando pelas praças do
mundo: não existe, nem nunca existirá um tempo em que se
possa cantar na verdade o “Requiem aeternam Deo ! O amor
39 Cf. Trattato delia povertade, 17; cit. in S. Battaglia, Grande Di-
zionario delia lingua italiana, 3, Turim, 1967, p. 395.

297
trinitário que une o Abandonante ao Abandonado, e estes ao
mundo, vencerá a morte, apesar do seu aparente triunfo. A sur­
preendente identidade do Crucificado com o Ressuscitado mos­
tra abertamente o que na cruz se revelou “sub contrario” e ga­
rante que aquele fim e um novo início: o cálice da paixão de
Deus encheu-se com uma bebida de vida, que brota e jorra para
sempre (cf. fo 7,37-39). Adão morreu; nasceu o novo Adão,
Cristo e o homem que, com ele e nele, vence o pecado e a mor­
te. Deus morreu, mas foi oferecido a todos os homens o mis­
tério do Pai, que, acolhendo o Abandonado na hora da glória,
também os acolhe com ele. O fruto da árvore amarga da cruz é
a alegre notícia da Páscoa: o dia em que Deus morreu cede o
lugar ao dia do Deus que vive. O Consolador do Crucificado é
derramado sobre toda a carne para ser o Consolador de todos
os crucificados da história e para revelar na humildade e na
ignomínia da cruz, de todas as cruzes da história, a presença
corroborante e transformadora do Deus cristão. A “palavra da
cruz (ICor 1,18) demonstra que é na pobreza, na fraqueza, na
dor e na reprovação do mundo que encontraremos a Deus; não
são os esplendores das perfeições terrenas, mas precisamente o
seu contrário, a pequenez e a ignomínia, que se tornarão o lugar
da sua presença, o deserto onde ele fala ao nosso coração e onde
primariamente toda teologia, que se queira dizer cristã, deverá
procurar dialeticamente (“sub contrario”) a sua face. A perfei­
ção do Deus cristão manifesta-se nas imperfeições que ele assu­
me por nosso amor: a finitude do sofrimento, a dilaceração da
morte, a fraqueza da pobreza, o cansaço e a obscuridade do
amanhã são os inúmeros lugares onde ele mostra o seu amor,
perfeito até a consumação total do dom. É nessas imperfeições
que ressoa, no Espírito, a palavra que sela o evento da cruz:
Tudo está consumado!” (Jo 19,30). Na vida de todo homem
já pode ser conhecida a cruz do Deus trinitário: no sofrimento
torna-se possível abrir-se ao Deus presente, que se oferece co­
nosco e por nós, e transformar a dor em arpor, o sofrimento em
oferecimento. O Espírito do Crucificado realiza o milagre desta
revelação salvífica: ele é o Consolador da paixão do mundo,
Aquele que proclama a verdade da história dos vencidos, con­
fundindo a história dos vencedores. Ele vive conosco e em nós
as agonias da vida, tornando presente no nosso sofrimento o
sofrimento do Filho e do Pai, e por isso descerrando nele uma

298
aurora de vida, revelação e dom do mistério de Deus. A “quê-
nose” do Espírito nas trevas do tempo dos homens não é mais
do que o fruto da “quênose” do Verbo na história da paixão e
morte de Jesus de Nazaré, a extrema conseqüência do maior
amor, que venceu e vencerá a morte.

b) Como se configuram a Igreja e cada um dos discípulos


do Deus trinitário, que sofre por nosso amor? Eles constituem
o povo da “sequela crucis”, a comunidade e o indivíduo sob a
cruz” : 43 precedidos por Cristo no abismo da provação, através
do qual passa o caminho da vida, os cristãos sabem que devem
viver no sinal da cruz as obras e os dias de sua jornada. Fui
crucificado junto com Cristo. Eu vivo, mas já não sou eu que
vivo, pois é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na
carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se
entregou a si mesmo por mim” (G1 2,20). “Ainda peregrinos
na terra, enquanto seguimos os seus passos na tribulação e na
perseguição, somos associados, como o corpo à cabeça, aos seus
sofrimentos e sofremos com ele, para sermos com ele glorificados
(cf. Rm 8,17)” (Lumen Gentium, 7). Nada é mais alheio à imagem
do discípulo do Crucificado do que uma Igreja tranqüila e segura,
forte por seus próprios meios e influências. A cristandade estabe­
lecida, onde todos são cristãos, mas na interioridade secreta, não se
assemelha à Igreja militante mais do que o silêncio da morte à
eloqüência da paixão” (Kierkegaard). A Igreja sob a cruz é o
povo daqueles que, com Cristo e no seu Espírito, se esforçam
por sair de si mesmos e entrar no caminho doloroso do amor:
uma comunidade de pobres a serviço dos pobres, capaz de refu­
tar com a vida os sábios e poderosos desta terra. Uma Igreja sob
a cruz quer dizer também uma comunidade fecunda na dor dos
seus membros: o seguimento do Nazareno, fonte de vida que
vence a morte, exige que se percorra com ele o caminho obscuro
da paixão: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mes­
mo, tome a sua cruz e siga-me. Pois, aquele que quiser salvar
a sua vida, vai perdê-la; mas, o que perder a sua vida por causa
de mim e do Evangelho, vai salva-la (Mc 8,34-35 e par.).
“Quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de
mim” (Mt 10,38 e Lc 14,27). O discípulo deverá “completar na40*

40 Cf. M. Flick — Z. Alszeghy, II mistero delia croce, op. cit., pp.


357ss. (“A cruz e o discípulo”) , e 391ss (“A cruz e a Igreja ).

299
sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Cl 1,24). Fará
isso se conseguir carregar a mais pesada de todas as cruzes, a
cruz do presente, à qual o Pai o chama, crendo mesmo sem ver,
lutando e esperando, mesmo sem perceber a germinação dos
frutos, na solidariedade com todos os que sofrem (cf. ICor 15,
26), na comunhão com Cristo, companheiro e apoio do sofri­
mento humano, e na oblação ao Pai que valoriza toda a nossa
dor. Esta cruz do presente é o sofrimento da fidelidade e, ao
mesmo tempo, a perseguição causada pelos “inimigos da cruz
de Cristo (F1 3,18). A “via crucis” da fidelidade é feita pela
luta interior e pelas angústias silenciosas dos momentos de pro­
vação, de solidão e de dúvida, e é sustentada pela oração perse­
verante e tenaz da pobreza que espera a misericórdia do Pai. É a
mesma via crucis” da fidelidade de Jesus, com a diferença de
que ele a percorreu sozinho, ao passo que nós somos precedi­
dos e acompanhados por ele! A cruz da perseguição é, ao
invés, a conseqüência do amor pela jusúça e da rélativizacão
de todo absoluto terreno, por parte dos discipulos do Crucifi­
cado: sua esperança no Reino que vem os torna subversivos e
críticos diante das miopias de todos os vencedores e dominado­
res da história. Eis que vos envio como ovelhas no meio de
lobos... e sereis odiados por todos por causa do meu nome”
(Mc 10,16.22; cf. 16ss). A radicalidade das escolhas de uma
Igreja verdadeiramente evangélica é intolerável para qualquer
sistema de poder e de riqueza: “Dilexi iustitiam, odivi iniquita-
tem, propterea morrior in exilio” (palavras escritas no túmulo de
Gregório V II): quem amou a justiça, quem odiou a iniqüidade,
morrerá inevitavelmente no exílio da cruz, mas confortado e
sustentado pelo Crucificado, que venceu a morte. “Basta-te a
minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o
seu poder” (2Cor 12,9).
A Igreja sob a cruz torna-se assim, por sua própria fome e
sede do novo mundo de Deus e pela graça de que é instrumen­
to, um povo que ajuda a carregar a cruz e que combate as cau­
sas iníquas das cruzes de todos os oprimidos: ela se confronta
com as prisões de toda espécie de Lei e com as escravidões de
toda espécie de poder, e, como o seu Senhor, apresenta-se como
alternativa humilde e corajosa em relação a eles. O Crucifica­
do não hesita em identificar-se com todos os crucificados da
história: Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me des­

300
tes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me ves­
tistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me... Cada vez
que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim
o fizestes” (Mt 25,35-36.40). Nos perseguidos é ele que está pre­
sente: “Saulo, Saulo, por que m e persegues?” (At 9,4). Quem
ama o Crucificado e o segue, não pode deixar de sentir-se cha­
mado a amenizar a cruz de todos os que sofrem e a eliminar as
causas iníquas do sofrimento com a palavra e a vida. A cruz
da libertação do pecado e da morte exige a libertação de todas
as cruzes fruto de morte e de pecado: a imitatio Christi cruci-
fixi” nunca poderá ser aceitação passiva do mal presente! Ela
se consumará, pelo contrário, na dedicação ativa à causa do
Reino que vem, que é também empenho laborioso e vigilante
para fazer do Calvário da terra um lugar de ressurreição, de
justiça e de vida plena. A compaixão para com o Crucificado
traduz-se na compaixão laboriosa para com os membros do seu
corpo na história. Para uma Igreja que se debate no problema
da relação entre a sua identidade e a sua importância, entre a
fidelidade e a criatividade ousada, isso significa o reconheci­
mento da possibilidade de solução. A Igreja se encontrará per­
dendo-se, achará a sua identidade exatamente no fato de colo-
cá-la a serviço dos outros, para reencontrá-la no único nível
digno dos seguidores do Crucificado: o amor.
Ao discípulo, esmagado sob o peso da cruz e atemorizado
pelas exigências do seguimento, é dirigida a palavra da promes­
sa, manifestada na ressurreição, contradição de todas as cru­
zes da história: palavra de consolo e de empenho, que já susten­
tou a vida, a dor e a morte de todos os que nos precederam no
combate da fé. “Na verdade, assim como os sofrimentos de
Cristo são copiosos para nós, assim também por Cristo é copiosa
a nossa consolação” (2Cor 1,5). “Somos atribulados por todos
os lados, mas não esmagados; postos em extrema dificuldade,
mas não vencidos pelos impasses; perseguidos, mas não abando­
nados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Incessante­
mente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de
Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada
em nosso corpo” (2Cor 4,8-10). Naquele que se esforça por viver
assim, a cruz de Cristo não se tornou vã (cf. ICor 1,17). nele
se manifestará também a vitória do Humilde que venceu o mun­
do (cf. Jo 16,33)!

301
11

SINGULARIDADE DE CRISTO

Jesus, o Ungido do Espírito

A comunidade cristã das origens, que fez a releitura da his­


tória terrena de Jesus de Nazaré, à luz da experiência da Páscoa
também estendeu o poder iluminador da sua ressurreição à inter­
pretação de toda a vida humana, antes e depois dele. Esse pro­
cesso de “releitura pascal” da história desenvolveu-se segundo
um duplo movimento: de um lado, partiu do presente da comu­
nidade em direção a Cristo, interrogando-se sobre a razão por
que ele constitui o objeto de um interesse supremo; de outro, foi
do Ressuscitado ao hoje dos crentes, para reconhecer os sinais
e os instrumentos de sua presença. O primeiro movimento, do
presente para o passado, do homem para a história de Jesus
Cristo, chega no Novo Testamento à confissão da unicidade
absoluta e exclusiva do Humilhado-Exaltado, centro do tempo
e norma da história; o segundo, do passado, para o presente,
do Cristo para a história atual dos homens, culmina no reco­
nhecimento da sua contemporaneidade ao “hoje” (a todo
“hoje!”) na força do Espírito. Singularidade e contemporanei­
dade do Crucificado-Ressuscitado constituem, assim, as duas di­
mensões fundamentais, segundo as quais se exprime o alcance
do evento pascal para todo o caminho do tempo.1 A confissão da
singularidade de Jesus Cristo, para a comunidade das origens,
está relacionada com o fato de que ele é o Ungido do Pai, cheio
do Espírito Santo (plenitude que os medievais irão depois cha-1

1 Poder-se-ia aplicar essa distinção àquela outra redenção objetiva


— onde a tônica é posta na ação eficaz de Cristo sobre nós, em sua
contemporaneidade ao nosso tempo e redenção subjetiva — onde, ao
contrário, se insiste na exemplaridade de Cristo e na eficácia da decisão
do homem diante de sua singularidade: cf., por exemplo, M. Flick — Z.
Alszeghy, II mistero delia croce, Bréscia, 1978, pp. 342ss.

305
mar de gratia unionis”); o reconhecimento de sua contem-
poraneidade salvífica está, ao contrário, relacionado com a sua
misteriosa ação, pela qual o Espírito torna presente e eficaz o
Cristo em todas as estações do tempo a fim de conduzi-las ao
Pai (mistério que os mesmos medievais gostavam de chamar de
‘gratia Capitis’').2 Nessa sua atenção ao Ressuscitado e ao Espí­
rito, nessa sua abertura trinitária, a leitura pascal da história
feita pelo Novo Testamento se apresenta como um modelo e
uma provocação para a nossa resposta à questão sobre o signi­
ficado de Jesus Cristo.

11. 1. A CONFISSÃO ORIGINARIA DA SINGULARIDADE


DE JESUS CRISTO

A comunidade das origens respondeu à questão suscitada


pelo anúncio originário — isto é, por que Cristo é “interessan­
te e, mais ainda, “importante” para o homem — no próprio ato
das suas confissões pascais de fé: Jesus é o Cristo, o Senhor!
Nele o acesso a Deus foi oferecido aos homens de uma vez por
todas: Cristo veio como sumo sacerdote dos bens vindouros...
Ele entrou uma vez por todas no Santuário... com o próprio san­
gue, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,11-12; cf. também
7,27;9,28; 10,10; Rm 6,10). Ele “morreu uma vez pelos pecados,•

• 2c CfÃW - Kasper’ “Spirito-Cristo-Chiesa” in Uesperienza dello Spi-


nto. Em honra de E. Schillebeeckx por ocasião do seu 605 aniversário,
Bréscia, 1974, p. 76. Sobre a relação cristologia-pneumatologia, decisiva’
na reflexão sobre a singularidade e sobre a contemporaneidade de Cris-
to, cf. entre outros: Christ and Spirit in the New Testament, org. por B.
Lindars e S. S. Smalley, Londres, 1973; Y. Congar, “Pneumatologie ou
chnstomomsme dans la tradition latine?” in Ecclesia e Spirito Sancto
edocta, Gembloux, 1970, pp. 41-63; J. D. Dunn, Jesus and the Spirit: a
study of the religious and charismatic experience of Jesus and the first
Christians as rejlected in the New Testament, Londres, 1975- L ’espe-
nenza dello Spirito, op. cit.; G. W. Lampe, “The Holy Spirit’ and the
Person of Christ” in Christ, Faith and History. Cambridge Studies in
Chnstology Cambridge, 1972, pp. 111-30; E. Mühlen, “Uevento di Cristo
come atto dello Spirito Santo” in Mysterium Salutis 6 , Bréscia, 1971,
pp. 645-84 (com bibliogr.); R. Penna, Lo Spirito di Cristo, Bréscia, 1976.’

306
o justo pelos injustos, a fim de nos reconduzir a Deus” (lPd
3,18).3 Por isso em nenhum outro há salvação: “não há sob o
céu outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos
(At 4,12; cf. 2,21).
Por que razão a primeira comunidade cristã pôde afirmar
com tanta convicção a exclusividade da salvação em Jesus Cris­
to? De onde nasce o tema do “solus Christus , que perpassa,
por exemplo, a teologia paulina, com um vigor que se diria mar­
cado pelo “ciúme”? (cf., por exemplo, F1 3,7-11).4 A “singula­
ridade” única e irrepetível do Nazareno 5 funda-se no fato de
que ele, na Páscoa, foi proclamado Senhor e Cristo, isto é, foi
ressuscitado, recebendo aquela abundância do Espírito (cf. Rm
1,4 e lPd 3,18), que constitui a realização das promessas de
Deus: “Naqueles dias derramarei o meu espírito” (J1 3,2; cf. At
2,16ss), dar-vos-ei um coração novo, porei no vosso íntimo um
espírito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos
darei um coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espí­
rito e farei com que andeis de acordo com os meus estatutos e
guardeis as minhas normas e as pratiqueis (Ez 36,26-27, cf.
também Is 11,2 e Mt 3,16: o Messias portador do Espírito).
À luz do evento pascal, a comunidade relê toda a história do
Nazareno, reconhecendo nela os sinais de uma contínua presen­
ça do Espírito, que faz dela verdadeiramente o lugar em que
Deus narra aos homens a sua história. Alguém ressaltou, com
acerto, que o Novo Testamento é totalmente perpassado por
uma cristologia do Espírito (ou “pneumo-cristologia ), diferente,
embora não seja alternativa, da cristologia do Verbo, segundo a
qual o Paráclito é sobretudo aquele que atualiza no tempo as

3 A expressão "uma vez (para sempre) ” encontra-se na forma &phâ-


pax em Rm 6,10; Ef 7,27;9,12;10,10; e na forma ápax em Hb 9,28; lPd
3,18. Cf. O. Cullmann, Cristo e il tempo. La concezione dei tempo e delia
storia nel cristianesimo primitivo, Bolonha, 1969, 4* ed., pp. 15lss. Lum -
cità delPavvenimento centrale di Cristo”. . , .
4 Cf. E. Schillebeeckx, Cristo, la storia di una nuoya prassi, Brescia,
1980, p. 196, que conclui: “Esta é simplesmente a teoria paulina da gra­
ça. Nenhum outro princípio de salvação fora de Jesus Cristo .
5 Sobre a "singularidade” de Cristo, cf. o fascículo de Scuola Cat-
tolica 103 (1975), dedicado a esse tema, e especialmente o artigo de O.
Mcioli, “Per 1’introduzione al tema delia singolarità di Gesü nella tratta-
zione cristclogica”, ibid, pp. 725-77. Do mesmo autor cf. Cristologia.
Proposta sistemática, Milão, 1978, passim.

307
funções do Cristo.6* Testemunhos dessa leitura da fé, que vê em
Jesus aquele que recebe o Espírito de maneira única, são o relato
de sua concepção virginal por Maria (cf. Mt 1,18-20- Lc 1 35)
a cena do batismo (cf. Mc 1,10 e par.), a ação do Nazareno no
poder do Espirito (cf. Mc 1,12; Mt 12,28; Lc 4,14.18 e passim)
o seu entregar” o Espírito na cruz (cf. Hb 9,14), a sua ressur­
reição na força do Espírito (cf., por exemplo, Rm 1,4 ;8 ,1 1),
pela qual ele mesmo se torna “Espírito vivificador” (cf. ICor
15,45)7 Mas a comunidade pascal sublinha que o Nazareno é
p enamente o Ungido (o “Cristo”) também porque é aquele que
acolheu o dom de Deus, como ninguém jamais tinha acolhido,
na historia de sua obediência incondicional e dedicação volun­
tária ao Pai. A existência do Profeta galileu, Jesus o humilde
servo de Deus, foi inteiramente uma existência “acolhida”, um
espaço vazio na liberdade absoluta de si, um não querer ter
tempo para Deus.8 É por isso que nele Deus quis ter “tem­
po para o homem, dando-se incondicionalmente na efusão do
spirito. É por essa presença absoluta, única do Espírito nele,
por esse seu ser Filho do Pai, no sentido divino-trinitário pro­
clamado na Páscoa, que Jesus de Nazaré tem significado e valor
para toda hora da história. À pergunta de todos os tempos-
Onde encontraremos a Deus?” a comunidade das origens cris­
tas nao hesita em responder de maneira paradoxal: Deus está
em Cristo! (cf., por exemplo, 2Cor 5,19; conforme o texto
grego: Deus^ estava em Cristo, reconciliando o mundo con­
sigo ). Jesus é o Emanuel, o Deus conosco e do nosso lado (cf.
Mt 1,23). A história do Nazareno é o fragmento em que o Todo
se fez presente,9 é o “Universale concretum et personale”,10 o
Paradoxo originário de um Deus em carne humana, de um ver­

6 Sobre a segunda tendência, cf. o capítulo seguinte. Sobre todo

c á E ü ' - . T g 0^ ' documentada de w - Kasper’ " spirit°

~ * cri‘u>l08i'
8Este aspecto e fortemente sublinhado por H. U von Balthasar
entre outras obras em Teologia delia storia. Abbozzo, Bréscia, 1969 pp
23ss com rica documentação bíblica, à qual remeto juntamente com
entreaga”n0S ^ 9 6 10 S° bre 3 Uberdade de Cúst0 e a sua - W
A m if n n l U’ VOn Balthasar> 11 tutto nel frammento, Milão, 1970.
Aq in nf-"j eVZcar, ° . te™a da preexistência; para isso, cf. o cap 4
1 0 Ibid. e Teologia delia storia, op. cit., p. 69. Essa idéia poderia

308
dadeiro homem que é Filho de Deus: “Que um homem seja
Deus que diga ser Deus e se apresente como Deus, isso consti­
tui o escândalo por excelência... O que é infinitamente impor­
tante é o fato de que Deus viveu aqui na terra como um homem
(Kierkegaard). Esta sua singularidade dá um valor exclusivo, e
por isso universalmente inclusivo, à sua vida e à sua morte.
Assim, Cristo se torna para a comunidade nascente o critério
pelo qual toda a vicissitude humana pode ser relida e avaliada:
este indivíduo é a norma da história! Tomando posição com
relação ao passado, em vista do futuro, os primeiros cristãos
confessaram que nele se recapitula a história ja vivida e e pro­
metido o cumprimento final em Deus: Ele este m m uo
com sua vida humaníssima iluminada pelos eventos da Pascoa
— é a “virada” dos tempos, o vértice e o novo início da historia
da salvação. “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre
(Hb 13,8). “Eu sou o Primeiro e o Ültimo e o Vivente (Ap
1,17; cf. também 2,8;22,13): o Primeiro na origem e no desen­
volvimento do tempo passado, o Último no fim e na consuma­
ção prometida, o Vivente no hoje da Igreja e do mundo,
norma absoluta do cristianismo não é, como a da filosofia, um
dado transcendente, além de toda história, mas ela mesma e
também história”.12

ser encontrada também em Tomás de Aquino, segundo M. Seckler, Das


Heil in der Geschichte. Geschichtstheologisches Denken bei Thomas von
A.qum, Munique^ 1 9 ^ Pg altjiasar> “Mysterium paschale” in Mysterium
Salutis 6 , op. cit., p. 309: “Para que a morte de Cristo possa ser ínclu-
siva, deve ser ao mesmo tempo exclusiva . „ ,
12 O. Cullmann, Cristo e il tempo, op. cit p. 44. Sobre a leitura
“cristã” da história cf. entre outros: H. U. von Balthasar Teologia delia
storia op. cit. e II tutto nel frammento, op. cit.; M. Bordom, II tempo.
Valore filosofico e mistero teologico, Roma, 1955; Y. Congar Pneuma-
tologie et théologie de 1’histoire” in Hermeneutique et eschatologie. Actes
du colloque “La théologie de 1’histoire” — Rome 5-11 janvier 1 g71’
ris 1971 pp- 71-80; Id„ “Propos en vue d une theologie de 1 Econo
mie’ dans k tradition latine” in Irénikon 45 (1972), pp. 155-206. O.
CuUmann, Cristo e il tempo, op. c it, Id„ II mistero delia redenzione
nella storia, Bolonha, 1966; W. Kasper, Lmee fondamentali di una^eo-
loaia delia storia” in Fede e storia, Brescia, 1975, pp. 62-96, H. 1. M r
Teologia delia storia, Milão, 1979, 2» e d , J. Mouroux, // mistero dei
tempo, Bréscia, 1967; L. Rubio Moran,
Assis 1969- G Ruggieri, Saptenza e storia, Mtlao, 1971; Sptrito banto e
stolià sob a direção0 de L. Sartori, Rema, 1977. Cf. também as teses de
K. Lôwith, Significato e fine delia storia, Milao_, 2? ed. 1965, que subli
nha a derivação teológica da filosofia da historia.

309
À liiz dessa norma, universal precisamente porque singu­
lar, relê-se o passado: o Ressuscitado está presente no ato cria­
dor originário. Aquele que inaugura o tempo último não pode
ter estado ausente no tempo das origens (a “escatologia” remete
protologia”): “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primo­
gênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coi­
sas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis... tudo foi
criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele sub­
siste (Cl 1,15-17; cf. também Jo 1,3; ICor 8,6; Hb 1,3.10; Ap
3,14).^ Portanto, aquele que realiza o sentido da criação é tam­
bém ‘história originária”. Visto que nele tudo se recapitula
(cf. Ef 1,10), nele está colocada originalmente a eleição de gra­
ça da humanidade: “Nele, predestinados pelo propósito daque­
le que tudo opera segundo o conselho de sua vontade, fomos
feitos sua herança...” (Ef 1,11; cf. 3-14 e Rm 8,29s). No even­
to pascal revelou-se o destino originário da história: “A concep­
ção israelita da verdade tem orientação escatológica: para ela, a
natureza de uma coisa não está já definida.., mas se decide
somente em conseqüência daquilo que ela se torna. Nessa pers­
pectiva, a predestinação de todas as coisas para Jesus, a sua
recapitulação geral por obra de Jesus, já é idêntica à sua cria­
ção em virtude de Jesus”.13 O tempo final, revelado na efusão
do Espírito sobre o Nazareno, permite reler a história de trás
para diante e reconhecer a vocação de toda a criação para
Cristo desde o início (dimensão “crística” da criação). Qualquer
oposição entre natureza e graça, entendidas respectivamente
como obras do Deus criador e do Deus salvador, revela-se caren­
te de justificação no Novo Testamento. Nenhum desprezo pelo
mundo pode originar-se em Cristo, que, pelo contrário, revela o
sentido e a destinação última de todas as coisas, ainda que o
seu seguimento implique a vigilância com relação ao que há de
negativo no mundo, que ele julgou e condenou com sua morte
na cruz. Para os primeiros cristãos, criação e redenção estão
numa relação de realização e, ao mesmo tempo, de indeductível
novidade: a obra da salvação não destrói o que é naturalmente
terreno, mas o pressupõe e o aperfeiçoa através de um processo
de negação e de superação. “Gratia non destruit naturam, sed

19741^> ^ g 0Pannenber®« Cristología. Lineammti fondamentali, Bréscia,

310
supponit et perficit eam!” : a graça não destroí a natureza, mas
a supõe e a nega-supera-realiza (“perficere como o aufheben
hegeliano!).14 Todas as coisas vêm do Pai por Cristo no Espirito,
que paira sobre as águas do tempo das origens (cf. Gn 1,2), e
são destinadas no mesmo Espírito a voltar por Cristo ao Pai.
Essa “cristologia cósmica” relaciona-se com a releitura cns-
tológica do passado de Israel: Cristo é enfocado como aquele
que pela sua obediência, torna possível o que a desobediência
de Israel havia impedido: “O Filho de Deus, o Cristo Jesus...
não foi ‘sim’ e ‘não’, mas unicamente ‘sim\ E, ria realidade,
todas as promessas de Deus nele se tornaram sim (2Cor 1,
20). Através da rejeição de Israel, expressa na entrega do Naza­
reno à morte, que é ao mesmo tempo o ato supremo da sua obe­
diência ao Pai, ‘‘Deus realizou o que tinha anunciado pela boca
de todos os profetas” (At 3,18; cf. 26,22). Nos textos proféti­
cos já se pode reconhecer a história do Humilhado-Exaltado (ct.
lPd 1 11)' para ele converge toda a história de Israel (cf. o dis­
curso de Estêvão em At 7,2-53). Nele se realizam as Escrituras
(cf. as expressões “segundo as Escrituras”, por exemplo em 1Cor
15,3-4, e “para que se cumprisse a Escritura , por exemplo em
Jo 19,24.28.36; cf. também as remissões e as citações do Anti­
go Testamento nas narrativas evangélicas): elas foram escritas
“para nós”, os homens dos últimos tempos (cf. Rm 15,4; ICor
9,10; 10,11). A história de Israel e toda a criação estão assim
relacionadas com a única revelação de Deus, que culmina no
envio do Filho: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus,
outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os
últimos, falou-nos por meio de seu Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os ^séculos ^ (Hb
1,1-2). O passado, a partir das origens da criação, através da
história de Israel, apresenta-se como um único movimento, que

14 Cf. para a história do axioma: J. Beumer, ^ supponit ?õ


turam Zur Geschichte eines theologischen Pnnzips m Gregorianum 2Q
(1939), pp. 281-406.535-552; B. Stoekle, Gratia supponit naturam. Ges­
chichte und Analyse eines theologischen Axioms, Roma, 1962. Fara
T nmfnretacão cf E. Przywara, “Der Grundsatz ‘Gratia non destruit,
sed suppordt et perficit naturam’. Eine ideengeschichtliche Interpreta-
t o ," StoÜ
to 17 (1942), pp 178-86; I - A l f . , o ‘ G r» .,. P W
ponit natural” in Lexikon für Theologie und Kirche, IV, 14694.171
(bibl.); J. Ratzinger, “Gratia praesupponit naturam m Dogma e predica-
zione, Bréscia, 1974, pp. 137-54.

211
tende para a unidade deste Indivíduo. Nele foi dada aos ho­
mens a presença de Deus, um diálogo que, através dele e em
vista dele, se desenvolve entre os homens e o Pai, no Espírito
que falou pelos profetas (cf. Mt 22,43; At 1,16; lPd 1,10-12;
2Ed ,!’21; 2Tm 3,16^‘ Esse desi'gnio divino na história é o “mis­
tério , que agora resplandece na sua realização em Cristo e é
anunciado, por meio da Igreja, a todo o universo (cf. Ef 3 3-12-
Rm 16,25s).
A comunidade nascente vê no presente, carregado de espe­
rança pascal, a “plenitude dos tempos” (cf. 1,10; cf. G1 4,4); o
que aconteceu na história de Jesus de Nazaré e, através dele
ressuscitado, é plenamente revelado aos crentes, é o “centro do
tempo”, o “corte decisivo” a partir do qual será “medido” o
caminho humano.15 Em Cristo foi feita a oferta plena e definiti­
va de Deus, nele foi vencida a batalha decisiva para a nossa sal­
vação: Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do
alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas
coisas do alto, e não nas da terra, pois morrestes e a vossa vida
está escondida com Cristo em Deus; quando Cristo, que é a
nossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis
manifestados em glória’ (Cl 3,1-4). Ao contrário de Israel, a
Igreja não vive somente na espera do futuro: ela confessa que
a salvaçao já está presente, no Crucificado-Ressuscitado, mes­
mo se ainda não plenamente realizada. Ela já está certa da vitó­
ria, embora o caminho humano ainda deva prosseguir no sofri­
mento de uma longa sexta-feira santa. Este já é dado na Ressur­
reição do Crucificado, um dado passado e, ao mesmo tempo,
presente: Cristo, ressuscitado pelo Pai, é de fato o Vivente (cf.
At 1,3; ^Ap 1,18), “ele que vive para sempre para interceder
por nós (Hb 7,25) e para estender até nós a sua vitória. Neste
sentido, ele é não somente o centro “cronológico” do tempo,
para o qual converge a história de Israel e da humanidade e do
qual parte a última hora antes do fim (cf. ljo 2,18), mas tam­
bém o centro escatológico” de todos os tempos, aquele que
está sentado à direita do Pai” (cf. Rm 8,34; ICor 15,25; Cl
3,1; Ef 1,20; Hb 1,3; etc.), exercendo a sua soberania salvífica
sobre todas as horas da vicissitude humana. O presente da sal­
vação vem então unir-se ao presente da comunidade: o hoje dos

15 Cf. O. Cullmann, Cristo e il tempo, op. cit., pp. 106ss.

312
crentes se torna o hoje de Deus: Eis agora o tempo favorável.
Kis agora o dia da salvação” (2Cor 6,2). O Ressuscitado torna-se
a própria vida de quem vive na fé o seu presente: “Não sou
mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim (G1 2,20;^ cf. F1
1,21; Rm 6 ,3 ;8,17; etc.). Através dele todo “presente” pode
ser acolhido no Espírito como dom do Pai, e no mesmo Espí­
rito ser oferecido ativamente a Deus (cf., por exemplo, Jo 14,16.
23): é feito a todo homem o alegre anúncio: “H oje a salvaçao
entrou nesta casa” (Lc 19,9).
A partir do Nazareno ressuscitado por Deus, ilumtna-se
também o futuro; a comunidade das origens interpretou, a par­
tir da Páscoa, o sentido do tempo que está entre o já e o ainda
não, “entre a primavera e o verão” da salvação. É o tempo em
que o poder libertador do Ressuscitado deverá estender-se a
todas as cruzes e a todos os crucificados da história: “Cristo res­
suscitou dos mortos, primícias dos que morreram. Com efeito,
visto que a morte veio por um homem, também por um homem
vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem
em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém,
em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que per­
tencem a Cristo, por ocasião de sua vinda. A seguir, haverá o
fim, quando ele entregar o Reino a Deus Pai... para que Deus
seja tudo em todos” (ICor 15,20-24.28; cf. lT s 4,13-18). Cristo,
realização da promessa, é também promessa da realização última,
definitiva: 16 “Homens da Galiléia, que estais aí a contemplar o
céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado, virá do mesmo modo que
para o céu o vistes partir” (At 1,11; cf. 3,20-22; 17,31; etc.). O
já do Ressuscitado remete ao ainda não da sua volta: o tempo
intermediário é o “entretanto” da Igreja, tempo penúltimo, ca­
racterizado pela espera e pela missão. A espera exprime-se na
invocação ardente: “Vem, Senhor!’ (ICor 16,22; Ap 22,17.20),
e sustenta os crentes na obscuridade às vezes dramática do pre­
sente, na confiança de que “as trevas passam e já brilha a luz
verdadeira” (1 Jo 2,8). A missão é a obediência viva à tarefa
que o Senhor confiou aos seus e na qual não os deixará sozi­
nhos: “Toda a autoridade sobre o céu e sobre a terra me foi

16 Esta dialética funda-se no fato de que já para Jesus o futuro


senhorio de Deus está em ação no seu presente: cf., por exemplo, W. O.
Kümmel, Verheissung und Erffüllung. Untersuchungen zur eschatologi-
schen Verkündigung Jesu, Zurique, 1956, 3? ed., p. 146.

313
entiegue. Ide, portanto, e fazei que todas as gerações se tornem
discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis
que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!”
(Mt 28,18-20). O tempo descortinado pela aurora da Páscoa
não pode transformar-se num ‘‘êxtase da realização”, contem­
plação descompromissada da vitória do Ressuscitado, mas deve
abrir-se ao futuro da história de libertação, que em Cristo Deus
promete edificar juntamente com os homens. Esse futuro é expe­
riência da história de Deus na história dos homens e, precisa­
mente por isso, é paixão, compromisso, luta: é história trinitá-
íia que assume, frustra e consola o viver humano, edificando
com o homem o Reino, dado e prometido, de modo que o mun­
do possa ir ao Pai por Cristo no Espírito.
A luz da Páscoa, então, dá certeza da vitória final, mas não
exime da luta e da dor através das quais os homens, sustenta­
dos pelo Espírito, deverão atingir o último dia. A promessa do
Ressuscitado é uma promissio inquieta”, que “atormenta como
um espinho na carne todo presente e o abre para o futuro” .17
A ressurreição não encerra a história na revelação antecipada
do fim, mas abre o caminho do tempo, na promessa da presen­
ça consoladora do Deus trinitário, para o futuro, que ele prepara
para o homem e com o homem: “A Ressurreição não abole a
história em proveito de uma eternidade antecipada, mas a insti­
tui na sua verdadeira dimensão, a de uma abertura para um
futuro sempre novo, único lugar da responsabilidade diante de
Deus”.18 À convergência dos tempos para Cristo, realização da
promessa, sucede a sua abertura a partir dele, promessa da rea­
lização definitiva, para o tempo final de Deus. Foram dadas vá­
rias interpretações: dessa concepção da comunidade das origens,
aberta e protendida para o futuro prometido: há quem tenha
visto nela a expectativa* do fim iminente, relacionado com a
consciência que o próprio Jesus teria tido de uma vinda triun­
fal do Reino depois de sua morte (“escatologia conseqüente” :
J. Weiss, A. Schweitzer); há também os que viram nela a atitu­
de existencial da decisão por Cristo diante da apresentação da
oferta de salvação (R. Bultmann); há, enfim, quem viu nela uma

17 J. Moltmann, Teologia delia speranza, Bréscia, 1970, p. 85 (ed.


bras.: Teologia da esperança, Herder, São Paulo, 1971, 450 p.).
18 C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, p. 551.

314
forma de escatologia “realizada” (C. H. Dodd) ou antecipada
(C). Cullmànn). Pode-se falar, de maneira mais fiel à experiên-
i ia da comunidade nascente, de uma “escatologia iniciada , ou
melhor, “incoativa”, porque essa expressão traduz melhor a
consciência que os primeiros cristãos tinham de se encontrarem
na tensão entre o que já se havia realizado em Cristo, inaugu­
rando o tempo do fim, e o que ainda não se havia realizado
e se realizaria paulatinamente até o fim dos tempos. ■ Para a
comunidade das origens o tempo iniciado na Páscoa é escatolo­
gia em ato de realizar-se” ( sich realisierende Eschatologie . J.
Jeremias): as realidades últimas já estão presentes, embora ainda
não plenamente presentes. O Reino de Deus já está presente,
ainda que oculto sob o sofrimento do tempo: a glória já está
oculta sob os sinais da história, e no desenrolar sofrido e obscu­
ro desta, já deixa transparecer fulgores que antecipam a grande­
za do fim. A salvação, oferecida em Jerusalém, na história sin­
gular do Crucificado-Ressuscitado, se estenderá de Jerusalém a
todos os confins da terra, até que volte aquele que veio (cf. ICor
11,26; cf. também a teologia lucana da história e o tema da
“pàrusia”, ou retorno do Cristo, por exemplo em Mt 24; ICor
15,23; lT s 2,19;3,13;5,15; 2Ts 2,1.8s; etc.; cf., por fim, as
parábolas do juízo final: Lc 12,42-46; 17,34s; 19,11-27; Mt 25,
1-13; etc.). A história dos homens progredirá juntamente com o
Deus cristão, sustentada e subvertida por ele, até que tudo seja
submetido ao Filho, e o Filho ao Pai, e Deus seja, finalmente,
“tudo em todos” (ICor 15,28). Então a história humana repou­
sará para sempre na história trinitária de Deus: mas também
essa história divina conhecerá, num sentido que só é possível
entrever, uma hora que ela foi preparando e esperando através
do caminho da salvação, e da qual ofereceu à criação uma pro­
messa por ocasião da reconciliação pascal do Crucificado com o
Pai.1920 A glória do fim, mistério relacionado com o destino supre­
mo do homem, envolverá também o coração trinitário de Deus...

19 Cf. H. I. Marrou, Teologia delia. síoria, op. cit„ pp. 80ss. Cf.
também s'. Zedda, Vescatologia bíblica, I-II, Bréscia, 1972-75; e espe­
cialmente R. Schnackenburg, Signoria e Regno di Dio, Bolonha, 1971.
20 Essa solidariedade da história trinitária com a historia humana,
que não significa identidade nem nivelamento, é um tema que, a partir
do Novo Testamento, perpassa incessantemente o pensamento cristão, em
transposições sempre novas, e com excessos muitas vezes reduciomstas.
Talvez o episódio mais significativo seja o do pensamento do abade

315
11.2. CONFESSAR HOJE A SINGULARIDADE DE JESUS CRISTO

A confissão da singularidade de Jesus Cristo continuou a


ressoar no tempo através da fé e do anúncio dos cristãos; assu­
miu diferentes formas, permeando sempre, como presença in-
quietante e iluminativa, as várias concepções do mundo e da
vida com que o cristianismo entrava em contato.
A cristologia cósmica dos Padres viu no Logos o funda­
mento da ordem e da harmonia da criação, presente e adorável
em tudo, através de um processo de elevação (anagogia), que se
move da 'letra” (seja ela a Escritura ou a história) para o “espí­
rito do mistério (“Universa pertingens, universa pertransiens”):
o mundo inteiro pôde assim ser sacralizado, oferecendo-se como
templo da glória divina, numa harmonia traduzida pela unida­
de entre Igreja e império. A cristologia antropológica, emergen­
te na idade moderna, viu em Cristo a suprema autocomunicação
de Deus aos homens e por isso a realização última da profunda
abertura (ou autotranscendência) do humano; a cristologia histó­
rica, por fim, viu no Crucificado-Ressuscitado a chave de com­
preensão do devir, seja em sentido idealista, como no sistema
hegeliano, seja em sentido evolucionista, como no pensamento
de Teilhard de Chardin, seja em sentido escatológico, como nas
teologias que vêem no evento de Páscoa a revelação antecipada
da realização final. Em todas essas interpretações evidencia-se
o significado universal de Cristo; mas o risco inerente a elas é o
de fazer de Cristo uma categoria ou estrutura abstrata, eliminan­
do a absoluta concretude da singularidade do Nazareno. Dessa
forma, sacrifica-se a inaudita novidade da encarnação, que não
pode ser deduzida de nenhuma espera terrena, bem como de
nenhuma lei do devir, ao se negligenciar a complexidade da
história humana, que, com todas as suas fases obscuras e as
suas quedas, é forçada a entrar num esquema de equilíbrio

Joaquim de Fiore, que tenta fazer uma leitura trinitária da história na


sucessão das eras do Pai, do Filho e do Espírito. A grandeza da intuição,
apesar da pobreza às vezes simplista dos instrumentos conceituais per-
mue lobrigar uma permanente herança espiritual de Joaquim que vem
a culminar no idealismo alemão: cf. H. De Lubac, La postérité spirituelle
de Joachim de Fiore. I, De Joachim à Schelling, Paris, 1979

316
harmônico, de progresso ou de solução antecipada dos con­
flitos.21
A limitação teórica dessas colocações traduziu-se, no plano
da práxis, em duas formas opostas de reducionismo da mensa­
gem cristã: o integrismo e o secularismo. O integrismo, recondu­
zindo à força toda realidade humana e terrena a uma relação
explícita com Cristo, faz da antropologia uma variável^ da cris-
lologia e presume oferecer, de maneira simplista, soluções cris-
lãs” para qualquer problema humano. O secularismo, por sua
vez, fazendo da cristologia a variável e da antropologia a cons­
tante, acaba reduzindo Cristo às expectativas dos homens, ao
esvaziar o seu anúncio de toda força de escândalo.22 A primeira
atitude justificou a incrível violência exercida contra indivíduos
e povos para levá-los à aceitação forçada do Evangelho cris­
tão; 23 a segunda motivou a perda de identidade de inúmeros
crentes num compromisso de horizontes puramente humanos. Se
o fruto do integrismo é a intolerância, o fruto do secularismo é a
indiferença; se um tornou possível até martirizar as pessoas em
nome de Cristo, o outro não soube mais compreender o sentido
do martírio aceito por esse mesmo nome. Para não cair nesses
excessos opostos, é necessário pensar o universal, que nos é
oferecido no Crucificado-Ressuscitado, de maneira mais concre­
ta, mais fiel à “singularidade” em que ele nos é dado. A norma
universal do evangelho cristão é, na realidade, uma vicissitude
humaníssima de liberdade e de finitude, de morte e de vida, na
qual a luz pascal revelou a realização da história de Deus entre

21 Cf. W. Kasper, Gesu il Cristo, Bréscia, 1975, pp. 263ss.


22 Sobre a complexa relação cristologia-antropologia, cf. entre outros
autores: J. Alfaro, Cristologia e antropologia, Assis, 1973 e Speranza
cristiana e liberazione delCuomo, Bréscia, 1972; V. Çaporale Dimensio-
ni antropologiche delia cristologia moderna Nápoles 19/ . ; . V' -
Leeuwen, Christologie en Antropologie. Studie over de christologische
fundering van de theologisch anthropologie, Gravenhage, 1959 (tese de
doutorado da autora em Amsterdã); J. B. Metz, Chnsthche Antropozen-
trik. Über die Denkform des Thomas von Aquin, Munique, 1969 ( l o-
más é precursor da consciência histórica moderna, porque nele o ensto-
centrismo grego estala sob a pressão do antropocentnsmo bibhco-cristao);
W Pannenberg, “II fondamento cristologico delPantropologia cristiana
in Concilium 9 (1973), pp. 113-35; P. H. Welte, Die Heilsbedurftigkeit
des Menchen. Anthropologische Vorfragen zur Soteriologie, Friburgo
Basiléia-Viena, 1976. •
23 Cf. C. Duquoc, “II cristianesimo e la pretesa all universalita in
Concilium 16 (1980), pp. 842-57.

317
os homens. Levando em consideração esse dado essencial de sua
origem, os cristãos nunca deveriam esquecer o quanto ele é para­
doxal, escandaloso e ambíguo. “O homem humilde e todavia
salvador e redentor da humanidade” é verdadeiramente “o sinal
do escândalo e o objeto da fé” (Kierkegaard). Por isso o convite
que ele lança “está na encruzilhada que divide a morte da vida”;
com relação a ele “abrem-se dois caminhos: um leva ao escân­
dalo e o outro à fé, mas nunca se chega à fé sem passar pela
possibilidade do escândalo” (Id.).24
O escândalo esteve presente desde os primeiros passos da­
quela história aparentemente banal que foi a vida do Nazareno;
para compreender o seu alcance deveriamos superar a distância
que nos separa daqueles acontecimentos e “colocar-nos na situa­
ção em que se encontravam os primeiros cristãos... Deveriamos
imaginar esse Jesus que deve significar a salvação do mundo
usando roupas corriqueiras e modernas como as nossas, vivendo
como nós, na situação comum de um povoado moderno, pro­
vindo de uma família de quem conhecéssemos os componentes
e, ainda, levando uma vida como a nossa de cada dia. Então po­
deriamos compreender a pergunta de Natanael: ‘De Nazaré pode
sair algo de bom?’ ” (Jo 1,46).25 Então compreenderiamos muito
melhor a rejeição de Israel!
O escândalo continua para quem, como nós, se encontra a
uma distância de séculos daquela história singular. E isso não
só porque originariamente e em si mesma a singularidade do
Nazareno é paradoxal, mas também porque hoje a memória da­
quele seu viver e morrer e ser ressuscitado é conservada por um
povo que carrega nos ombros o peso de tantos erros e de tanto
pecado, juntamente com a consolação de tanta graça. A ambi-
güidade que vale para o Cristo vale igualmente para a sua
Igreja! Se ela, com humilde coragem, se põe a contemplar os
séculos da sua jornada, não pode deixar de pronunciar, junta­
mente com o muito obrigado, a palavra do arrependimento e a
invocação do perdão: “Que gosto amargo deixa um olhar sobre
o próprio passado! Porventura, o caminho que percorremos não

. ,^4 Essas citações kicrkegaardianas foram tiradas de “Esercizio dei


f o f ™ ™ 0 ’ ’ in °P ere’ sob a direção de C. Fabro, Florença, 1972, pp.
Ò93-822, e talvez constituam a exposição mais profunda que a época
moderna tenha elaborado sobre a singularidade de Cristo.
25 O. Cullmann, Cristo e il tempo, op. cit. pp. 153-54.

318
cmIií semeado de enganos, erros e fracassos?” 26 E é essa Igreja, a
rspcisa de Cristo que não deveria ter mancha nem ruga (cf. Ef
'>,.’2ss), e a infiel, que com muita freqüência abandonou o amor
de outros tempos (cf. Ap 2,4), essa Igreja de mártires e de per­
seguidores, de inquisidores e de vítimas da inquisição, é essa
Igreja que ousa anunciar hoje o Nome fora do qual não há
salvação! Não é de admirar que haja quem lhe dirige a palavra
de censura: "‘Tu tens a fé e eu tenho as obras. Mostra-me a tua
fé sem as obras e eu te mostrarei a fé pelas minhas obras”
(Tg 2,18). Somente onde o anúncio eclesial se torna testemunho
concreto de serviço pelos outros, somente onde o evangelizador
pode lançar o convite decisivo: ‘‘Vem e vê!” (Jo 2,46), pode-
-se pensar que o escândalo seja superado no abandono de fé.
Somente o amor é digno de fé! Portanto, universalidade da men­
sagem não significa, para os cristãos, um dado objetivo que
justifique a imposição, ou um privilégio que autorize a intole­
rância, mas uma tarefa e uma missão, uma graça acolhida na
fé e dada no serviço.27
Tampouco diminui a possibilidade do escândalo pensar
que Cristo possa oferecer-se aos homens também por outros
caminhos, aqueles que o seu Espírito abre nos corações, sobre­
tudo através do encontro com a finitude humana, na qual o
Crucificado está misteriosamente presente (cf. Mt 25,31ss):
“Quando apareceu na Judéia, o povo não acreditou que fosse o
verdadeiro Deus que falava, porque se apresentava como um
pobre, sem o uniforme das autoridades. Mas, se voltar, se apre­
sentará ainda mais miserável, na pessoa de um leproso, de uma
pobre mendiga, de um surdo-mudo, de uma criança excepcio­
nal...” E é por isso que os homens não deixarão de se escan­
dalizar, e lhe oporão sempre a rejeição: “Eu... nunca me afastei
de vós. Sois vós que todos os dias me linchais ou, pior ainda,
caminhais sem me ver, como se eu fosse a sombra de um cadá­
ver putrefeito sob a terra. Diariamente, passo perto de vós milha­
res de vezes, multiplico-me para todos vós, os meus sinais
ocupam todos os milímetros do universo, e vós não os reconhe­
ceis, e ficais esperando por outros sinais vulgares...28 Acreditar

26 H. I. Marrou, Teologia delia sioria, op. c it, p. 52.


27 Cf. E. Schillebeeckx, Cristo, op. cit., p. 197.
28 E. Morante, La Storia, Turim, 1974, p. 591.

319
em Cristo, reconhecer a sua singularidade absoluta, significa
então expor-se à fúria do negativo, conhecer o peso da cruz
do escândalo e das exigências do amor. Talvez tenha sido por
isso que o próprio Jesus fez a pergunta que perturba qualquer
segurança presunçosa da fé: “Mas quando o Filho do Homem
voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Crer em
Cristo, norma e salvação da história, exige o risco de uma con­
quista de fidelidade sempre nova, que vence o escândalo: a fé
nele, como o amor, “se não for o compromisso de todos os dias,
será o lamento de toda a vida...” Somente quem tiver audácia
não conhecerá esse lamento.
Desse reconhecimento da possibilidade do escândalo, rela­
cionada com a confissão da singularidade de Jesus Cristo deri­
vam duas conseqüências. Em primeiro lugar, a consciência da
luta da fé e da dificuldade do abandono de si mesmo nas mãos
do Estranho que convida, deve tornar sempre admissível para
o cristão a possibilidade — dolorosa até que se queira — da
recusa de outrem frente ao anúncio de Jesus Cristo, e alicerçar
a exigência do respeito mais profundo por essa recusa, como por
toda posição humana, na qual sempre se recapitula uma história
de sangue e lágrimas. Acaso não consiste nisso o sentido pro­
fundo da palavra evangélica: “Não julgueis para não serdes
julgados” (Mt 7,1)? Os caminhos da graça não são sempre os
do assentimento visível a Cristo. Será que não aceitariam a
Cristo aqueles índios que se deixavam matar para não aderir ao
Evangelho imposto pelas armas do conquistador espanhol? Será
que não entraria no Reino Savonarola que, por amor a Cristo,
foi ao encontro da fogueira que lhe fora preparada em nome de
Cristo? Não seria Cristo o prisioneiro desconhecido do Grande
Inquisitor de Dostoievski? “O vento sopra onde quer e ouves o
seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai.
Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo
3,8). Nenhum poder humano poderá restringir a liberdade do
Espírito de Deus que age na história e no coração dos homens!
Isso não significa que o cristão está autorizado a desinteressar-
-se pelo anúncio do evangelho. O Senhor não pedirá que os seus
lhe prestem contas do número de pessoas salvas, mas sem dú­
vida lhes pedirá contas do número de pessoas evangelizadas; o
dever que é imposto aos crentes é o de anunciar, não de obri­
gar; de propor, não de impor! Eles devem dar gratuitamente o

320
que gratuitamente receberam (cf. Mt 10,8), com o mesmo res­
peito pela liberdade do outro que teve o Filho do Homem (re­
cordemos, por exemplo, o encontro com o jovem, que Jesus fita
com amor, convidando-o à escolha radical, mas cuja triste recu­
sa ele respeita: cf. Mc 10,17-22). Os cristãos devem ser pobres
com relação àquilo que dão, capazes de semear sem esperar o
fruto (cf. Jo 4,37), e até mesmo contra toda expectativa lógica:
“Mesmo que eu soubesse que o mundo iria acabar amanhã, não
hesitaria em plantar uma semente hoje” (Lutero). É a urgência
do amor (cf. 2Cor 5,14) que impele os cristãos a anunciar a pa­
lavra em qualquer ocasião, “no tempo oportuno e no inoportu­
no” (2Tm 4,2), é a necessidade de fazer que os outros partici­
pem da vida e da alegria que encontraram (cf. ljo 1,1-4), que
os leva a dar testemunho da verdade, sem nunca querer impô-la.
O evangelizador sabe que é voz daquele que convida sem forçar,
que oferece sem impor: “Eis que estou à porta e bato: se alguém
ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cea­
rei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20).
A segunda conseqüência, que deriva da possibilidade do
escândalo, sempre ínsita no Objeto puro da fé, é que a pessoa
só se abre à singularidade de Jesus Cristo por opção pessoal:
a opção é o espaço da liberdade de cada um diante da boa nova,
quando esta chega a alguém de maneira crível através da memó­
ria evangélica da tradição cristã viva. Não se trata de uma opção
intimista, puramente subjetiva, que ocorra “entre a alma e
Deus” ; na realidade, ela é uma tomada de posição, consciente
e livre, diante de um dado externo ao sujeito (o “extra nos da
salvação), que lhe é apresentado na realidade viva da mediação
humana comunitária.29 “Mas como poderíam invocar aquele em
quem não creram? E como poderíam crer naquele que não
ouviram? E como poderíam ouvir sem pregador? E como podem
pregar se não forem enviados?” (Rm 10,14-15). Na comunhão
do povo de Deus ressoa a palavra, à qual consente a fé, e apren­
de-se a linguagem pela qual essa palavra se torna sempre mais
compreensível e comunicável aos outros. A opção, a que convida
o anúncio, é uma escolha, cuja importância e urgência são cons­

29 “Todo apelo às fontes ou à própria origem encontra-se num


circulo hermenêutico, onde o presente e o que se encontra entre o passa­
do e o presente (toda a tradição cristã) já desempenha uma função
mediadora”: E. Schillebeeckx, Cristo, op. cit., p. 73.

321
tantemente ressaltadas pela palavra evangélica: “Completou-se o
tempo, e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede
no evangelho” (Mc 1,15 e par.). “Conta-se que um cristo (não
importa qual, era um cristo) caminhando certa vez por uma
picada de roça, teve fome e foi colher o fruto de uma figueira.
Mas, como não era tempo de figos, a árvore não tinha frutos;
apenas folhas indigestas... E então Cristo a amaldiçoou, conde-
nando-a à esterilidade perpétua... O sentido é claro: para quem
reconhece a Cristo, quando ele passa, e sempre estação de fru­
tas. E quem não o reconhece e lhe nega o próprio fruto com a
desculpa de estar fora de época ou de estação, é amaldiçoado 30
A opção por Cristo qualifica o tempo e a vida: se é verdade que
“se pode viver sem saber porque, é também verdade que não se
pode viver sem saber para quem”; essa opção é capaz de dar
sentido à existência de um homem. Para quem opta por Cristo,
o tempo não é mais o puro tempo quantificado, a sucessão
linear (isto é, aberta à surpresa do futuro, como em Israel) ou
circular (fundamentalmente repetitiva, como na concepção gre­
ga) de momentos pontuais; mas se torna tempo qualificado,
espaço ocupado pela graça e pela opção a respeito da singulari­
dade de Jesus Cristo.31
Essa qualificação do tempo não deve ser uma dimensão
puramente interior: quem opta por Cristo toma posição com
relação a um dado objetivo num sistema concreto de relações,
colocando-se entre o já no qual reconhece o dom e a promessa
da salvação e por isso o critério em que se basear, e o ainda
não, que deve ser construído através do “sim” ao evangelho,
expresso em escolhas de vida situadas e precisas. Isso requer, antes
de mais nada, uma “mudança de mentalidade (a m etanóia evan­
gélica), que leve a reconhecer no espaço vazio do tempo (o aión
bíblico) a hora de Deus na vida dos homens, o tempo da salva­
ção (o kairós, o tempo determinado pelo conteúdo: cf., por exem­
plo, Mt 8,29;26,18; Mc 1,15; Lc 19,44;21,8; Jo 7,6-8; At 1,7;
lT s 5,lss; Ef 5,16; Cl 4,5; lPd 1,5; 4,17; Ap 1,3; 11,18; etc.).32
Optando por Cristo, não só o nosso “hoje” se torna hoje de
libertação e de salvação, mas também o passado e o futuro rece-

30 E. Morante, La Storia, op. cit., p. 591.


31 Cf. W . Kasper, “Linee fcndamentali di una teologia delia storia ,
op. cit., especialmente pp. 78ss.
32 Cf. O. Cullmann, Cristo e il tempo, op. cit., pp. 61ss.

322
um sentido novo: o caminho percorrido é avaliado com
relação à “norma” que é Jesus Cristo, e aparece na sua orienta­
ção profunda para a hora da graça; o futuro se apresenta como
lempo para a realização, estação de serviço e de missão, na
qual a pessoa deve tornar-se sempre mais o que é por força do
Espírito, estendendo o anúncio do Senhorio do Nazareno na cre­
dibilidade do amor. Aos olhos de quem reconhece no Humil­
de o centro da história e se converte a ele, a sucessão das realida­
des humanas — a partir da própria vida pessoal — e a história
da salvação não se apresentam mais como dois mundos estranhos
entre si: não só se entrelaçam numa multiplicidade de pontos
(os kairoí da graça: O. Cullmann), como também, sem chegar
a identificar-se (como parece admitir W. Pannenberg), porque
permanece sempre aberta a possibilidade do negativo como recu­
sa da oferta de Deus, colocam-se numa relação estreita. A histó­
ria da salvação permite interpretar e avaliar a história univer­
sal (K. Rahner), que por sua vez deve ser transformada, na
força do Espírito e pelo empenho humano, em história da salva­
ção (J. B. Metz).33 Isso implica que “a mudança de mentalidade”
se traduza em opções operacionais em benefício dos homens: a
história de lágrimas e sangue, que devasta a terra, não se tornará
história de salvação sem um esforço de libertação da iniqüidade
pessoal e social, que causa a injustiça presente. Vê-se, então,
como a opção por Cristo se torna a opção pelo homem, “o
irmão por quem Cristo morreu” (ICor 8,11): “O processo histó­
rico da libertação dos pobres e dos oprimidos é a mediação con­
cretamente histórica da salvação vinda de Deus”.3435 Crer na
singularidade do Nazareno significa crer na dignidade de cada
homem e empenhar-se concretamente para que ela seja reconhe­
cida e promovida.33 Então não basta confessar abstratamente a
universalidade de Cristo: é preciso afirmá-la trabalhando pela
libertação de todo homem, para que cada um — indivíduo,
povo, raça, grupo marginalizado — , tomando consciência de si
mesmo diante do próprio passado e do próprio futuro, decida

33 Cf. E. Schillebeeckx, Cristo, op. cit., pp. 876ss.


34 Ibid, 895.
35 Esse tema é frequente no magistério de João Paulo II: cf., por
exemplo, a encíclica Redemptor Hominis. Cf. também M. Bordoni,
“L ’annuncio di Cristo ‘Uomo Nuovo’ come proposta cristiana per un
progetto di promozione umana” in In libertatem vocati estis. Miscella-
nea B. Haring, Roma, 1977, pp. 735-58.

323
na liberdade o próprio presente e edifique o futuro em comu­
nhão responsável com todos os homens, seus companheiros de
jornada. “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entra­
rá no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de
meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21); não é aquele que confessa
com palavras a singularidade de Jesus Cristo que entrará no
Reino do Pai, mas sim aquele que realiza o seu senhorio na
justiça e na paz!
Portanto, a opção por Cristo empenha ativamente o homem
pelo homem; onde isso não ocorre, ela perde a credibilidade, a
ponto de justificar a rejeição de Cristo (do Cristo falsamente
apresentado) em nome de Cristo.36 Esse compromisso é susten­
tado pela esperança: a promessa feita na Páscoa assegura que a
vida dedicada ao “seguimento de Cristo”, ainda que aparente­
mente perdida, na realidade é encontrada num nível mais alto,
e que o destino da história, apesar de tudo e contra tudo, é um
destino de ressurreição e de vida: “A ressurreição de Cristo
como antecipação da nossa e a nossa ressurreição como partici­
pação da ressurreição de Cristo já realizada: eis o mistério da
inclusão do destino da humanidade no destino de Cristo”.37
É esse o fundamento que a confissão da singularidade do Cru-
cificado-Ressuscitado dá ao risco da esperança, que deve carac­
terizar a vida dos cristãos. Quem confessa Jesus de Nazaré
como Senhor e Cristo, norma e salvação da história, sabe que
“já começou nele a restauração prometida que esperamos... Já
chegou para nós o fim dos tempos, a renovação do mundo já foi
estabelecida irrevogavelmente e é realmente antecipada neste
mundo...” (Lumen Gentium 48). O Senhor Jesus “é o fim ao
qual tende a história... Vivifiçados e unificados no seu Espírito,
caminhamos para a plenitude da história humana” (Gaudium
et Spes 45): o que agora professamos na dureza do escândalo e
na noite da fé será então plenamente revelado a toda criatura,
e “muitos virão do Oriente e do Ocidente para sentar:se à mesa
com Abraão, Isaac e Jacó no Reino dos céus” (Mt 8,11). Então
a confissão exterior de Cristo não será suficiente para salvar­
mos: só nos salvará o amor com que tivermos confessado na
vida a nossa fidelidade a ele e aos últimos, nos quais ele está

36 Cf. o que afirma a Constituição Gaudium et Spes 19, sobre as


causas do ateísmo moderno.
37 J. Alfaro, Speranza e liberazione delVuomo, op. cit., p. 133.

324
presente (cf. Mt 2 5 ,3 lss). Por isso a esperança cristã não é fuga
do mundo nem promessa consoladora, que faça fechar os olhos
diante da dor do presente; mas ela vive de opções na ação e de
dias gastos a serviço dos homens.
Por fim, deve-se sublinhar que a opção por Cristo nunca
é fruto apenas da carne e do sangue: é na graça que Cristo se
revela àquele que o sabe acolher. Isso deve levar os crentes a
uma incessante oração para que ao “sim” de Deus corresponda
o “sim” do homem: “Pai, santificado seja o teu nome, venha o
teu Reino...” (Lc 11,2). Todos os argumentos aduzidos a favor
do caráter absoluto do cristianismo para nada servem se não
houver o encontro da ação do Espírito com um coração sedento
de luz, disposto a lutar com Deus e a fazê-lo vencer. Os cren­
tes serão os primeiros a pedir todos os dias a luz capaz e
fazer superar o escândalo: “Senhor, dá-nos olhos míopes para
todas as coisas que passam, e olhos iluminados para toda verda­
de tua” (S. Kierkegaard, no cabeçalho de “A doença mortal ).
E para os que não crêem, mas procuram com coraçao sincero,
o Paradoxo originário revela-se no momento em que eles aceitam
passar do falar de Cristo ao falar com ele: “Senhor, se existes,
faze que eu conheça” (Charles de Foucauld, no tempo que
antecedeu à sua conversão). O consentimento da fe, o acolhi­
mento da “possibilidade impossível”, que se realizou em Jesus
Cristo, é um mistério de graça e de liberdade que se encontram
no diálogo e no silêncio de um coração que ora, na operosidade
de uma vida densa de significado e de paixão...

325
12

CONTEMPORANEIDADE DE CRISTO

Jesus, o Vivente no Espírito

Quando, no movimento que vai do presente para Cristo,


um homem supera a prova do escândalo e se decide a reconhecer
no humilde Nazareno o Salvador do mundo, centro e medida
da história, os seus olhos se “abrem” (cf. Lc 24,31) e se tor­
nam capazes de captar, mais profundamente do que é “visível”,
a presença e a força do movimento inverso, que vem de Cristo
e de sua história irrepetível para o nosso “hoje”, fazendo dele
um “hoje” de salvação na irrupção do dom libertador de Deus.
A confissão da singularidade de Jesus Cristo abre-se então à
experiência atual, vivificante e alegre, da graça que nele foi
dada aos homens, e vive o encontro, transformador e exigente,
com aquele cujo caminho seguimos. “Hoc est Christum cognos-
cere, beneficia eius cognoscere” (Melanchton). O verdadeiro
conhecimento de Cristo é a experiência do bem que ele é para
nós, e dos frutos de vida plena que, dele, glorificado pelo Pai,
promanam para aqueles que o acolhem na audácia da fé. O reco­
nhecimento da singularidade de Jesus traduz-se assim na expe­
riência de sua contemporaneidade: Jesus, humilde e redentor,
faz-se presente a nós, aqui e agora, em todo poder contagiante
de seu caminho de libertação.1

1 Sobre o tema da contemporaneidade de Cristo cf. G. Cristaldi,


Contemporaneità di Cristo, Roma, 1973.

326
12.1. JESUS, VIVO E VIVIFICANTE NO ESPIRITO

Como é possível que o Nazareno se torne contemporâneo


do nosso presente? Como pode ser superado o abismo do tem­
po que nos separa daquela longíqua história que transcorreu na
obscuridade de uma remota porção do império romano? Como
pode alguém, que conheceu a morte, ser o Vivente para nós?
A comunidade das origens respondeu a essas perguntas
mostrando no Espírito o princípio e a força da contemporanei-
dade de Cristo: aquele que recebeu o Espírito em plenitude está
para sempre “vivo no Espírito” (lPd 3,18), e derrama seu
Espírito sobre toda carne (cf. Jo 1,33;7,37-39; 14,16.26; 16,7;
20,22; Lc 24,49; At 1,8;2,17): “Exaltado pela direita de Deus,
recebeu do Pai o Espírito Santo, objeto da promessa, e o derra­
mou” (At 2,33). O Paráclito é o Espírito de Cristo (cf. Rm 8,9;
F1 1,19), o Espírito do Filho (cf. G1 4,6), numa relação tão
profunda com ele que se pode até afirmar: “O Senhor é o Espí­
rito” (2Cor 3,17). O Espírito molda o homem ao destino de
Jesus Cristo. Graças a ele pode-se confessar que a contradição
que há entre a morte e a ressurreição do Senhor é a mesma que
existe entre o nosso sofrer e morrer e o futuro, que Deus pre­
para para nós e conosco: “Se o Espírito daquele que ressuscitou
Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou
Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também aos vossos cor­
pos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós (Rm
8,11). O Espírito nos faz participar da condição filial do Naza­
reno: nele ousamos proferir, nós, também a palavra pela qual
Jesus transmitiu a sua excepcional experiência do Pai: “Abbá!”
(Rm 8,15; G1 4,6). Mediante o Espírito tornamo-nos filhos do
Filho: “Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são
filhos de Deus” (Rm 8,14; cf. 16). O Espírito habita nos cren­
tes (cf. ICor 3,16;6,19; Rm 8,9) e age na Igreja inteira (cf., por
exemplo, At 2;9 ,3 1 ;2 0,28; etc.), fazendo dela o Corpo de Cris­
to: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos mem­
bros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos,
formam um só corpo. Assim também acontece com Cristo. Pois
fomos todos batizados num só Espírito para ser um só corpo,
judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só

327
espírito!” (ICor 12,12-13; cf. Rm 12,4-5). É no Espírito que
o homem se torna de cristo: “Se alguém não tem o Espírito de
Cristo, não lhe pertence” (Rm 8,9).
Todas essas afirmações do Novo Testamento convergem
para delinear uma cristologia do Verbo, segundo a qual o Espí­
rito tem a função principal de atualizar no tempo a obra de Cris­
to. Sem opor-se à cristologia do Espírito, que vê em Jesus sobre­
tudo aquele que recebeu em abundância o Espírito do tempo
escatológico,2 ela a completa, iluminando o nexo que há entre
o Ressuscitado e o presente da salvação. “O verdadeiro vínculo
que existe entre Cristo e os homens é estabelecido, em última
análise, pelo Espírito Santo”.3 “O Paráclito liga o passado ao
presente e atualiza a revelação que se realizou em Jesus”.4
Aquele que recebeu o Espírito em plenitude, nessa plenitude é
tornado presente pelo Espírito a toda hora do tempo.56O único
Espírito, que plenifica a Cabeça, derrama-se também sobre o
corpo e o constitui como tal: a unção do Cristo, a “gratia unio-
nis , “não é uma graça privada, mas ao mesmo tempo uma ‘gra­
tia capitis’, que de Cristo, a Cabeça, se derrama sobre o Corpo,
a Igreja, e através da Igreja é comunicada ao mundo”.0 O que
Jesus recebeu do Pai, recebeu-o por nós, isto é, ao mesmo tempo
para o nosso bem, em nosso lugar e por nosso amor (cf. o termo
úper, que aparece por exemplo nos textos eucarísticos de Mc
14,24; Lc 22,18; ICor 11,24, como também o termo antí, de
significado equivalente por exemplo em Mc 10,45).7 No Espírito
do qual nos faz participantes, Jesus é o homem-para-os-outros:
De sua plenitude todos nós recebemos graça por graça” (Cf Jo
1,16; cf. Ef 4,15s; Cl l,18s).
Compreende-se aqui o fundamento bíblico da intuição dos
Padres, especialmente gregos, que vislumbravam a divinização

2 Cf. o que foi dito no cap. 11.


3 C. Duquoc, Cristologia, Bréscia, 1972, p. 239.
4 E. Schillebeeckx, Cristo, la storia di una nuova prassi, Bréscia,
1980, p. 625. Cf. também H. Mühlen, “L/evento di Cristo come atto dello
Spirito Santo” in Mysterium Salutis, VI, Bréscia, 1971, pp. 645-84, e a
bibliografia apresentada na nota 2 do cap. 1 1 .
5 Cf. W. Kasper, “Spirito-Cristo-chiesa” in L ’esperienza delo Spirito.
Em homenagem a E. Schillebeeckx por ocasião do seu 605 aniversário,
Bréscia, 1974, p. 78: “O Espírito atualiza Jesus na sua plenitude de Espí­
rito e operosidade de Espírito".
6 Id., Gesú il Cristo, Bréscia, 1975, p. 356.
7 Cf. ibid. p. 302.

328
da humanidade no contato, criado através da Encarnação, entre
o Logos divino e a “natureza” humana: essa idéia da inclusão
ontclógica dos homens em Cristo não é mais do que a transposi­
ção em termos metafísico-conceituais daquilo que a comunida­
de das origens confessou, falando da efusão do Espírito em nós
através do Crucificado-Ressuscitado.8 Essa “gratia Capitis”, que
da Cabeça, Cristo, passa a nós, seus membros, é o oferecimento
“objetivo” da salvação, a participação na vida divina tornada
possível ao homem, prescindindo de todo mérito seu: é a elei­
ção por graça, que se opõe, no pensamento de Paulo, à presu­
mida eleição alcançada pelas obras da lei; é a gratuidade do amor
divino, que salva além e até contra toda capacidade do homem
de salvar-se sozinho. A oposição não está entre o dom de Deus,
que deixaria passivo quem o acolhesse, e as obras do homem,
que o disporiam ativamente a esse dom, mas entre a eleição
libertadora do Espírito, acolhida na fé, e a presunção humana
de obter salvação (poder-se-ia também dizer: de emancipar-se)
graças apenas às suas forças: “Foi pelas obras da Lei que rece­
bestes o Espírito ou pela adesão à fé?... Cristo nos remiu da
maldição da Lei, tornando-se maldição por nós... a fim de que
a bênção de Abraão em Cristo Jesus se estenda aos gentios,
e para que, pela fé, recebamos o Espírito prometido” (G1 3,2.
13-14). A lei diz ao homem: observa os preceitos e viverás; o
Evangelho da graça lhe diz: acolhe em ti a vida do Espírito e
observarás naturalmente a vontade do Pai! A reviravolta é total:
não vem em primeiro lugar a obra do homem e depois a justi­
ficação” de Deus, mas antes é oferecida a “justificação” e de­
pois, em quem acolhe o dom, a vida floresce. Deus quer que
todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da ver­
dade” (lTm 2,3-4; cf. também 4,10; Tt 2,11; Jo 1,29;4,42; lio
4,14; Ap 21,3). Por isso, em Cristo é oferecido a todos o seu
Espírito: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações
por meio do Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5; cf. G1
3,5;4,6;5,18-25; ICor 2,10-12; etc.). Quem aceita esse dom na
fé, experimenta sua ajuda poderosa na fraqueza (cf. Rm 8,26) e
é levado a viver uma vida finalmente plena: “É o Espírito que
dá vida; a carne não adianta nada” (Jo 6,63).9

8 C f, por exemplo, A. Grillmeier, “Gli affetti delPazione salvifica


di Dio in Cristo” in Mysterium Salutis, VI, op. cit., pp. 413-93, espe­
cialmente pp. 468ss.

329
Portant°, o Espírito estende a toda hora do tempo a possi­
bilidade, humanamente “impossível”, que a graça do Pai abriu
para o homem com a obra e o destino de Jesus Cristo. Neste
sentido, pode-se falar de uma tríplice ação do Paráclito: a pri­
meira, sobre o Nazareno, para fazer dele o Ungido do Pai, o
Umco em quem é dada a salvação por Deus; a segunda, visando
a colocar Cristo em relação com a Igreja, de maneira que o seu
senhorio salvífico se exerça nela efetivamente; a terceira, sobre
cada homem, para fazê-lo participar, através da comunidade da
salvação oferecida, que é plena em Cristo. Dessa forma, o Espí­
rito preenche a distância entre os tempos e o tempo da graça,
atualiza a relação (que, senão, permanecería puramente ideal)
do evento irrepetível da salvação para cada situação humana, e
assim escreve a história de Deus na história dos homens. No
Senhor Jesus, representado pelo Espírito, o Pai toma posição:
face ao passado do pecador, perdoando-o; diante do seu presen­
te, unindo-o a si no dom de sua vida; e com relação ao seu
futuro, prometendo-lhe a vida eterna e empenhando-se em cons­
truí-la junto com ele. No Espírito de Cristo, torna-se possível a
relação com o Pai para todo homem que a queira, seja qual for
o tempo e o lugar em que ele se encontra. O Espírito é a garan­
tia de que Deus sempre terá tempo para o homem!
Pensada nessa luz trinitária e pneumatológica — que é
profundamente bíblica — , a concepção da contemporaneidade
de Cristo é libertada de possíveis mal-entendidos. O Nazareno
não pode ser reduzido a um modelo de vida moral, presente na
mente, mas estranho ao hoje de carne, de sangue e de lágrimas.
Nas seguintes palavras de Kant, sente-se a ausência da dimen­
são histórica, capaz de unir vitalmente, no Espírito, o passado
de Jesus Cristo ao_nosso presente: “O ideal da humanidade agra­
dável a Deus... não é concebível de nossa parte a não ser atra­
vés da idéia de um homem que não só tenha se disposto a cum­
prir por si mesmo todos os deveres humanos e, ao mesmo tem­
po, a difundir em torno de si o bem da maneira mais intensa9

9 Sobre a convergência da dogmática católica e da protestante a


respeito do primado da iniciativa salvífica de Deus, à qual corresponde
o acolhimento ativo do homem, cf. a obra significativa de H. Kiing
La gmstificazione, Bréscia, 1969 (sobre o pensamento de K. Barth con-
frontado com o Concilio de Trentol. Da parte protestante cf., por exem-
pio, v . bubilia, La giustificazione per fede, Bréscia, 1976.

330
possível mediante a doutrina e o exemplo, mas também seja
capaz, apesar de toda tentação e engodo, de submeter-se às
maiores dores, inclusive a morte mais ignominiosa, para o bem
do mundo e mesmo para o bem dos seus inimigos .10 Cristo,
nessas palavras, é a projeção ideal da perfeita realização do
dever moral, mas não tem carne e sangue, não é o Vivente, que
hoje atinge e muda a vida de quem se decide por ele. Entre
Cristo e o presente abre-se — para usar as palavras de Les-
sing __ “o maldito e largo fosso que não consigo ultrapassar,
por mais que eu tenha tentado o pulo .n Esse fosso, na realida­
de, tampouco é superado pela solução que Kierkegaard dá ao
problema: a contemporaneidade, “condição da fé ou mais exata­
mente definição da fé”,12 é entendida por ele de um modo que
transfere o espírito para fora de sua história, para o eterno
presente de Deus: “Com efeito, com relação ao absoluto não ha
mais do que um tempo: o presente; para aquele que nao e con­
temporâneo com o absoluto, o absoluto não existe de forma
alguma. E dado que Cristo é o absoluto, é fácil ver que, com
relação a ele, só é possível uma situação: a da contemporanei­
dade”.13 É o homem que, na fé, se torna contemporâneo ao
tempo de Deus, e não esse tempo que se torna presente ao hoje
concreto do homem: 14 mas isso elimina justamente o parado­
xo” cristão, que não é tanto a eternização do homem, quanto

10 I Kant, "La religione nei limiti delia semplice ragione m Scnt-


ti morali (trad. it. de P. Chiodi, Turim, 1969 p : « 2 ) . Cf W . Metz
"Christologie bei Immanuel Kant” in Theologisçhe Z e its c h n jtjl (1971)
325-46, ccmo também I. Mancmi, Kant e la teologia Assis, 1975. A i
gem de Cristo, protótipo do homem religioso e ideal de P e r f ^ o moral,
é partilhada pela teologia romântica e liberal: cf., por exemplo, E. .
Bowman L eC h rist romantique, Genebra, 1973. Aliás e um tema anti­
go ligado à teologia da redenção como “paideia” de Cristo no quadro
da antiga concepção cosmológica grega: cf G. Greshake, "L a trasfor-
mazione delle concezioni soteriologiche nella storia delia teologia
Redenzione ed emancipazione, Bréscia, 1975, pp. 93ss. Houve uma trans­
posição desse tema também, por exemplo, no pensamento de Fausto So-
cino no séc. X V I: cf. DS 1880. . . , ,, f ,_ » tr
11 G. E. Lessing, "Sopra la prova dello Spirito e delia forza , tr.
B. Bianco in Grande Antologia Filosoftca, X V , Milão, 1968, pp. 1.557-

12 “Esercizio dei cristianesimo” in Opere sob a direção de C. Fabro,


Florença, 1972, p. 695.
14 Cf! á crítica de O. Cullmann, Cristo e il tempo, Bolonha, 1969,
4? ed., p. 177, a essa posição de Kierkegaard.

331
a humanização de Deus! Quem não pensa de forma trinitária,
quem nao reconhece a ação do Paráclito para tornar presente a
história de Deus na história dos homens, não superará o “fosso”
de Lessing: Cristo será para ele, quando muito, um exemplo ao
qual se pode voltar, com a recordação cheia de admiração que
se tem pelos grandes do passado. Ele poderá ter memória do
Ünico, trazendo à mente o que ele foi, mas não fazer memória
no sentido bíblico de “memorial” do passado salvífico, único e
irrepetível, que no Espírito se torna contemporâneo ao presente,
de modo a contagiá-lo e transformá-lo.13 Sem o Espírito a fé não
seria mais do que uma piedosa recordação: pelo Espírito ela é
a experiência do Vivente, capaz de mudar a vida do homem no
seu presente concreto. Também neste sentido é necessário dizer
que, “se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé!” (cf. ICor
15,14).

1 2 .2 . JESUS CRISTO, VERDADE, CAMINHO E VIDA

Como se realiza a memória eficaz de Cristo na vida dos


homens? Através de que mediações históricas o Espírito torna
presente Jesus, que o acolhe e o dá, que é o Ungido e o Senhor?
As funções salvíficas do Ressuscitado, vivo no Espírito,
foram muitas vezes pensadas segundo a tríplice forma do Cristo
revelador do Pai, sacerdote e Senhor.lu Esse esquema, que de
Calvino 17 ao Vaticano I I 18 é comum na tradição cristã, sem

„ 1 5 Procurei interpretar a missão evangelizadora da Igreja à luz do


memorial” eucarístico no artigo “Eucaristia ed evangelizzazione. L ’Ulti-
ma Cena fra il Cristo evangelizzatore e la chiesa evangelizzatrice” in
Asprenas 24 (1977), pp. 365-372.
16 Cf. J. Alfaro, Le tunzioni salvifiche di Cristo quale rivelatore,
sacerdote e Signore” in Mysterium SaLutis, V, Bréscia, 1971, pp. 811-89
\í?OIri bibliografia). Para uma crítica à doutrina das três funções, cf.
W. Pannenberg, Cristologia. Lineamenti fondamentali, Bréscia, 1974, pp.
f 77®s- c t - tamoém G. Moioli, Cristologia. Proposta sistemática, Milão,
1978, pp. 94ss.
17 A partir de 1536, Calvinc usou essa doutrina no Catecismo de
Genebra e nas diversas redações da sua Institutio christianae religionis
18 Cf., por exemplo, Lumen Gentium 10.12.13.21.25.31.32.34; Unita-
tis Redintegratio 2 ; A d Gentes 15.39; Optatam Totius 4; Presbyterorum
Ordinis 1 ; Apostolicam Actuositatem 2 . 1 0 .

332
dúvida corre o risco de forçar a riqueza irredutível do testemu­
nho neotestamentário. Mas tem a vantagem de exprimir os
aspectos essenciais da atividade mediadora de Cristo, mostrando
como ele é aquele que conduz ao Pai (o Pastor), que revela a
verdade de Deus (o Profeta), que dá a vida (o Sacerdote sumo
e eterno): “o caminho, a verdade, a vida” (Jo l4,6). Além disso,
é possível chegar a essa tríplice abordagem relendo à luz da
Páscoa as dimensões fundamentais da plena e verdadeira hu­
manidade de Cristo. Com a Ressurreição, a testemunha da fé
tornou-se o objeto da fé; se é nova a luz que a partir daí é
lançada sobre o Nazareno, idêntico, porém, é o sujeito dos dois
estágios daquela realidade absolutamente singular; se é inaudita
a mensagem da Páscoa, vários sinais pré-pascais (o uso do
“Abbá”, a “pretensão” extraordinária, etc.) já oferecem uma
antecipação daquilo que será plenamente revelado ao “terceiro
dia” da morte na cruz. As dimensões da humanidade do profe­
ta galileu, a sua consciência, a sua liberdade e a sua finitude,
irradiadas pelo Espírito de Páscoa, tornam-se então o funda­
mento da memória viva dele, memória que o ^Paráclito^ torna
possível para toda hora do tempo. O memorial da história da
sua consciência, da qual o Nazareno haure a luz que transmite
aos homens, torna-se a confissão de Jesus Verdade, Profeta e
Mestre escatológico; o “memorial da sua liberdade traduz-se no
reconhecimento da força contagiosa dela, e portanto de Jesus
libertador, Caminho, Pastor e Rei; a memória viva da sua
história de finitude, por fim, exprime-se na confissão de Jesus
Vida, Sacerdote que “entrega” a si mesmo ao Pai e dá aos ho­
mens o Espírito da vida que não morre.

a) A história da consciência de Jesus permite intuir como


ele vê a si mesmo e a historia dos homens em relação ao Pai
numa forma progressivamente tematizada; haurindo dessa cons­
ciência, ele proclamou de maneira inaudita o advento do Reino
na sua pessoa e revelou — até a luz plena das afirmações pas­
cais — a. história do Deus trinitário, que se ofereceu à história
do mundo. A profundidade do amor divino, que sai de si no
exílio de finitude humana por nosso amor, revela também o sen­
tido da vida e da história: a verdade da vida é o amor, e a voca­
ção do mundo é a comunhão com Deus trinitário: “Fizeste o
nosso coração para ti, e- inquieto esta o nosso coração enquanto

333
não repousa em ti (Agostinho). Jesus proclama a sua mensa­
gem com a palavra e com a vida até o envio pascal dos seus
que deverão anunciar a boa nova do Reino a todos os povos
(cf. Mt 28,18-20; Mc 16,15-16; Lc 24,36-49; Jo 20,19-23). A
Páscoa revela sem sombras que Jesus é o Profeta escatológico
(cf. At 3,22s, que se liga a Dt 18,15; Jo 6,14; 7,40; Hb 3,1-6;
etc.): Quando a fé pós-pascal confessa no Kyrios exaltado ‘ó
Profeta’, ela efetiva a pretensão de Jesus. Por força de sua pro­
ximidade com o Pai, fonte da sua autoridade peculiar, Jesus é a
absoluta, irrepetível revelação salvífica de Deus, é o ‘Profeta’
que devemos ouvir (Mt 9,7) para ter a vida (At 3,22s)”.19 Jesus
e a Palavra (cf. Jo 1,1 ss) e a luz vinda a este mundo para ilu­
minar todo homem (cf. Jo 1,9): “O Prólogo de João é uma me-
ttação sobre o mistério de Jesus feito Senhor pela Ressurreição.
A luz desse acontecimento, o evangelista ilumina retrospectiva­
mente toda a pregação de Jesus e funda-a na missão que rece­
beu do Pai: revelar o seu desígnio definitivo”.20 Jesus glorifica-
do já é na sua vida terrena o revelador do Pai: proclama o que
ouve dele (cf. Jo 3 ,1 1;8,26.40; etc.), torna-nos participantes da­
quilo que conhece (cf. 1,18) e nos convida a ter fé nele (cf. Jo
3,12-14), que tem palavras de vida eterna (cf. Jo 6,68).21 Jesus
é o mestre, que ensina com autoridade estupenda (cf. Mc 1,22),
é assim chamado pelos homens (cf. Mc 10,17; Mt 8,19), e é
confessado, à luz pascal, como único mestre dos cristãos: “Não
permitais que vos chamem Mestres, pois um só é o vosso Mestre
Cristo _(M t 23,10; cf. Jo 13,13). Profeta e mestre, Palavra é
revelação plena de Deus (cf. Hb 1,1), luz que brilha nas trevas
(cf. também Jo 8,12 e 12,46), Jesus é a V erdade (cf. Jo 14,6):
quem for fiel à sua palavra e se tornar seu discípulo “conhe­
cerá a verdade e a verdade o fará livre” (cf. Jo 8,32).
Essa revelação se torna presente e é aprofundada no devir
da história por obra do Espírito Santo: Espírito de verdade (cf.
Jo 14,17; 15,26; 16,13; cf. também 1Jo 5,6), ele ensinará aos

260 19 Cf‘ F' Schnider’ Jesus der Prophei, Friburgo-Gõttingen, 1973, p.


20 C. Duquoc, Cristologia, op. cit., p. 270.
21 Cf. J. Alfaro “Cristo glorioso, riveiatore dei Padre” in Cristolo-
gm e antropologia, Assis, 1973, pp. 156-204. Cf. também J. Dijkman,
C/znsíus, Offenbarung des dreieinigen Gottes. Historischer und eschato-
logischer Charakter dieser Offenbarung, Friburgo, 1957.

334
crentes todas as coisas, far-lhes-á recordar todas as coisas que o
Senhor disse (cf. Jo 14,26) e conduzirá à verdade plena, porque
não falará por si, mas lhes dirá tudo o que ouve e lhes fará co­
nhecer o futuro (cf. Jo 16,13). Para compreender a força dessas
afirmações é necessário recordar que na tradição semítica a pa­
lavra correspondente a “verdade” (em grego aléteia = a priva­
tivo pantáno: manifestação do que está oculto) é em et (de
amân = ser sólido, estável), termo que designa a fidelidade e a
confiança em alguém: se verdade é para os gregos uma realidade
objetiva e intemporal, para o mundo da Bíblia é uma relaçao
interpessoal que se experimenta no curso de uma história. O
contrário da verdade, para os gregos, é o erro ou a mentira;
para os semitas, a ruptura de um vínculo de confiança que sub­
sistia no tempo. A fé pascal, designando o Espírito como Espi­
rito de verdade e o próprio Jesus como verdade, quer então mos­
trar que no Nazareno a fidelidade de Deus se manifestou para
os homens de uma vez por todas, e que essa fidelidade sera
estendida a toda hora do tempo pelo poder do Paráclito. Isto e,
ele tornará presente, em toda situaçao humana, o amor do Deus
trinitário revelado e dado em Jesus Cristo e fará com que os
crentes vejam sempre de novo a sua força libertadora e corro-
borante: “Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados em
saber como ou o que haveis de falar. Naquele momento vos
será indicado o que deveis falar, porque não sereis v& que
estareis falando naquela hora, mas o Espírito do vosso Pai é que
falará em vós” (Mt 10,19-20; cf. Lc 12,12). O Espírito, alem
disso, abrirá para a fidelidade da promessa, e portanto para o
futuro de Deus para o homem: nele a verdade do Profeta esca-
tológico se oferecerá como poder que abre para o futuro, sub­
vertendo toda atitude de conservação e de medo, que torne o
homem escravo do próprio passado: “Com efeito, bem sabemos
que toda a criação geme e sofre as dores de parto até o presente.
E não somente ela. Mas também nós, que temos as primicias
do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção
do nosso corpo. Pois somos salvos em esperança. Assim também
o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que
pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nos
com gemidos inefáveis... (Rm 8,22-24.26).
Onde o Espírito torna presente Jesus como Verdade, Luz
e Profeta escatológico no tempo dos homens? Onde se realiza

335
para nos hoje a revelação única e irrepetível dada no Crucifica-
do-Ressuscitado? Os caminhos do Espírito certamente são mui­
tos pois ele sopra onde quer (cf. Jo 3,8), com uma liberdade
soberana e inexaurível. Todavia, é possível identificar alguns
caminhos reais, nos quais a Fidelidade do Deus cristão se apre­
senta a historia humana, para revelar-se e revelar o seu sentido
Esses caminhos são a Palavra de Deus na transmissão viva da
Igreja, os sinais dos tempos” e a necessidade e o testemunho
do amor.

Antes de mais nada, a Palavra na Igreja: de acordo com a


mentalidade oriental, palavra e realidade estão indissoluvelmen-
te ligadas. A palavra é força, dinamismo, ação que vai ao cora­
ção das coisas e dos homens. A Palavra de Deus, por isso, pro­
duz aquilo que diz (cf, SI 33,9; Sb 9,1; Is 55,10s): ela “é viva
e ícaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes'
penetra ate dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga
as disposições e as intenções do coração” (Hb 4,12). A Palavra
de Deus é “palavra de salvação” (At 13,26), é Deus mesmo que
çe comunica no sinal de sua palavra. Essa identificação de Deus
com a Palavra realiza-se de maneira suma na Palavra feita
carne (cf. Jo 1,14), Jesus. Ele é “aquele que Deus enviou, que
ala as palavras de Deus e dá o Espírito sem medida” (Jo 3 34-
cf por exemplo 17,14). A palavra de Jesus, pregada ao mundo
6 P °der de Deus Para a salvação de todo aquele que
Cre V A ’6 )- Na PregaÇã° da Igreja ressoa essa palavra pode­
rosa de Cristo (cf. Rm 10,17; Lc 10,16 e par.: “Quem vos ouve,
a mim ouve ). Diante dela, os homens dividem-se inexoravel­
mente em inimigos e enamorados do Crucificado (cf F1 3 18) O
apóstolo, por meio do qual se difunde o conhecimento daquele
que triunfou sobre a morte, é “para Deus o bom odor de Cristo
entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem; para uns,’
odor que da morte leva à morte; para outros, odor que da vida
leva a vida (2Cor 2,14-16). Portanto, é antes de tudo na Pala­
vra, transmitida eficazmente na tradição viva da Igreja que o
Ressuscitado se torna contemporâneo aos homens para subverter
e salvar a sua vida. A Palavra é o lugar normativo e fontal em
que se nos oferece a revelação de Deus: por isso é antes de
tudo ao ouvi-la com perseverança que a história de Deus irrom­
pe em nosso “hoje” para fazer dele um “hoje” de salvação.

336
Em segundo lugar, o Espírito atualiza a Verdade, que é
Cristo nos “sinais dos tempos”, acontecimentos e mensagens da
história humana em que é possível reconhecer a voz iluminado-
ra do Mestre. O próprio Jesus convidou a perscrutar esses
sinais, censurando os seus contemporâneos porque andavam
em busca de sinais impressionantes: “Ao entardecer dizeis:
vai fazer bom tempo, porque o céu está avermelhado; e de
manhã: hoje teremos tempestade, porque o céu esta de um
vermelho sombrio. O aspecto do céu, sabeis interpretar mas os
sinais dos tempos, não podeis!” (Mt 16,2s; cf. Lc 12,54-5 ).
Precisamente porque com freqüência os sinais dos tempos ,
modestos e por nada extraordinários, misturados como estão a
complexidade dos eventos históricos, são ambíguos e devem ser
objeto de um paciente trabalho de discernimento. Esse trabal o
pode ser realizado somente no confronto constante entre a vida
e a Palavra: não lerá o Evangelho na história quem nao souber
ler a história no Evangelho! Não discernirá o Espírito no tempo
quem não tiver compreendido a linguagem do Espirito na Palavra.
A Palavra é o critério que guia a Igreja na lida por essa audiçao
necessária: “Ê dever da Igreja investigar a todo o momento os
sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; assim
poderá responder, de modo adaptado a cada geração, as eternas
perguntas dos homens sobre o sentido da vida presente e da
futura, e sobre a relação entre ambas. É, por isso, necessário
conhecer e compreender o mundo em que vivemos as suas espe­
ranças e aspirações, e o seu caráter tantas vezes dramáticos .
Naturalmente, a complexidade do discernimento comporta o
risco do equívoco: é sempre possível ceder a um otimismo iacil,
que abrace as propostas do tempo sem sujeitá-las ao crivo rigo­
roso do escândalo cristão. A mensagem de Cristo e então redu­
zida a uma das possíveis ideologias do progresso humano, e e
recebida como uma grandeza deste mundo, ainda que fosse apa­
rentemente a mais ativa para o homem, o^ instrumento p rm e-
giado do Espírito; embora não cedendo a fáceis mstrumentaliza-

22 Gaudium et Spes 4; cf. também 11 s A P ^ ^ T c o n c Z

íàsrssssstt m rn rn . 15), » ^ ,o U 6 o do,


leigos (Apostolicam Actuosituícin !)•

337
çoes, deve-se dizer que o protesto cristão contra semelhante con­
tusão nunca será suficientemente radical (pense-se na Declara-
çao teologica d e Barmen, redigida por K. Barth, como confissão
de te e, ao mesmo tempo, protesto contra as pretensões absolu-
tizan es do nacional-socialismo, acolhidas pelos cristãos ale­
mães). A atençao aos “sinais dos tempos” deve andar de mãos
dadas com o espírito de vigilâcia, para traduzir-se na coragem de
afirmações provisórias e críveis, sempre abertas à contestação de

Por fim, a verdade do profeta escatológico revela-se no pre­


sente dos homens através da necessidade e do testemunho do
am or: Cristo se oculta realmente nos pobres, nos famintos, nos
que tem sede, nos marginalizados e sofredores, nas criancas
exploradas nas^ mulheres espezinhadas, nos últimos (cf. Mt
25,3 lss). Um so ato de solidariedade para com eles, uma só
hora gasta com generosidade desinteressada no serviço às clas­
ses oprimidas revela mais a respeito de Cristo do que toda refle­
xão abstrata e sem amor. Os pobres são, neste sentido, o rosto
do Senhor crucificado na história! E quem responde à fome e
sede dos últimos com amor livre e libertador, torna-se ele mes­
mo o evangelho vivo, a Palavra escrita não sobre tábuas de
pedra, mas na carne dos homens (cf. 2Cor 3,3): “Cristo não
tem maos, tem somente as nossas mãos para fazer o seu traba-
o hoje; Cristo nao tem pés, tem apenas os nossos pés para ir
aos homens hoje; Cristo não tem lábios, tem apenas os nossos
lábios para anunciar o seu evangelho hoje. Nós somos a única
Btoha que todos os homens ainda lêem. Nós somos o último
apelo de Deus, escrito em palavras e em obras” (de uma oração
do século X IV ). A presença de Cristo no hoje de dor e de lágri­
mas torna-se reconhecível onde há alguém que ama em seu nome:
isto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns
aos outros (Jo 13,35). No amor ao próximo revela-se o amor
de Deus (cf. Mc 12,28-31 e par.): “Quem não ama o próprio
irmão que ve, não pode amar a Deus que não vê” ( l jo 4,20).
sso na° quer dizer que o amor ao próximo torne supérfluo o
amor a Deus; pelo contrário, é somente a experiência desse amor
que nos precede e nos invade que nos torna capazes de amar23

23 Cf. o meu estudo sobre “Gesü Cristo, il Signore come Servo il


(1978) “ pp6 3 9 7 .4 3 0 .' Crlstolo«ia e Política in K. Barth” in Asprenas 25

338
desinteressadamente os outros (et. lio 4,7ss). Por outro lado
contudo, amar verdadeiramente o irmão não sigmftca ama-lo »
por amor a Deus: “Se o amor a Deus nao pode ser confundi
com o amor ao próximo, este último não se torna de forma algu­
ma um meio para alcançar o amor a Deus: Jesus nao quer anu­
lar o objeto humano desse amor ao proximo. Um amor que,
nesse sentido, não ama por amor à pessoa que Ita^esta na t a t e ,
mas por amor a Deus, não é verdadeiro amor 24 O amor umver
sal compreendido como amor abstrato pelos outros por amor a
Deus corre o risco de ser uma mentira: so quem ama concre­
tamente o próximo que Deus colocou a seu lado ama como
Cristo nos amou e nos pediu que amássemos. Aquele que ama
a “todos”, facilmente não ama a ninguém; aquele que ama os
“seus” (o povo pobre e necessitado de amor ou rico de si e
fechado ao amor, que constitui o seu mundo), torna-se também
capaz de amar a “todos” . Nesse amor concreto Cristo se torna
presente e profere na nossa vida mortal as suas palavras de
vida eterna. O irmão necessitado de amor ou testemunha de
amor vivo é, no Espírito, um verdadeiro “sacramento do encon­
tro com ele, lugar de revelação e de salvaçao (cf. Gn 1,26 Mt
25; Rm 8,29; Cl 3,10). Nesse sentido, sem o sacramento do
irmão, ninguém poderá salvar-se 25

b) A história da liberdade de Jesus mostra como ele é


livre de si, livre por amor ao Pai e aos outros, o homem livre.
Considerada à luz da Páscoa, essa liberdade manifesta plena­
mente a realeza do Senhor Jesus, bem como sua liberdade sobe­
rana com relação a toda criatura e seu senhorio cosmico: ■ ele
é o “Bendito e único Soberano, o Rei dos reis e o Senhor dos
senhores” (lTm 6,15; cf. Ap 19,6). Ao mesmo tempo, visto que
a liberdade do Nazareno é liberdade no amor, a sua realeza se
apresenta como serviço e como dom. Ele é o rei crucificado por

24 G Bcrnkamm, Gesü di Nazareth, Turim, 1977, p. 107 (ed. bras.:


Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis 1 9 7 6 194 p.).
25 L. Boff, Gesü Cristo hberatore, Assis, 1976, 2- ed., p. z i t
bras.: Jesus Cristo libertador, Vozes, Petropolis, 5- ed.; ed. p o rt. Perpe

“ ° Í r S ' “; „ « r o » Z \ Z S ; I. Bosc, V o r n e royal du S .im e u , ,i-


± ppnpKrn 1Q57* O Cullmann, La. royciute du Chnst et de
reg/S^N euSiT tel, 1972; J. Leclerq, Uidée de la royauté du Christ au
Moyen Age, Paris, 1959.

339
n í ' t M C 15,2.18.26)^ rei de uma forma oposta à idéia que
n r ,
mundo tem do ser rei: O meu reino não é deste mundo; se
o meu reino fosse deste mundo, os meus súditos teriam comba­
tido para eu nao ser entregue aos judeus” (Jo 18,36; cf. 37).
Jesus é o rei pacífico, sem nenhuma ambição terrena, o rei
manso, sentado numa jumenta” (Mt 21,5 e Zc 9,9; cf. Lc 19,
38; Jo 12,13.15). Com a Ressurreição ele é entronizado por Deus
como um rei (cf Mt 25,31; Mc 12,36 e par.; 16,19; At 2,30;
f 1,20,2,6, Ap 3,21; etc.) e estende o seu domínio sobre toda
a cnaçao, ate que entregue o reino ao Pai e Deus seja tudo em
dos (cf. ICor 15,24.28). Jesus é o bom pastor, que dá a vida
por suas ovelhas (cf. Jo 10,1 lss): tendo vindo em busca dos que

Z Z T m r \ LC 15/ ' 7 = Mt 18’12' 14: Paráb0la da °velha


perdida) esta cheio de compaixao pela multidão, desgarrada
como ovelhas sem pastor (cf. Mc 6,34; Mt 9,36), e quer reunir
?nf laS perdl_das da casa de Israel (cf. Mt 10,6; 15,24; Lc
,10). Na paixão será o pastor ferido (cf. Mc 14,27s = Mt
26,3 ls) mas na glória do último dia será o pastor que separa
as ovelhas dos cabritos (cf. Mt 25,31s): a comunidade pascal
confessa-o como o grande Pastor das ovelhas” (Hb 13 20)
pastor e guardião de nossas almas” (1 Pd 2,25), “pastor supre-’
t”? , v n 7 qUe guia os seus as fontes das águas da vida” (Ap
^ e' 6 Pastor’ Iesus e o Senhor que se fez Servo (cf. F1
e f tá no meio dos seus como aquele que serve (cf.’ Lc
^2,27); ele veio nao para ser servido, mas para servir (cf. Mc
10,45 e par. e o lava-pés em Jo 13,1-20) e dar a sua vida em
resgate por muitos, como o Servo inocente de que fala o profe­
ta (cf. os cânticos do Servo: Is 4 2 ,l-4 ;4 9 ,l-6 ;5 0 ,4 -l 1 -52 13-53 12
e por exemplo At 8,34; IPd 2,22-25). O seu serviço régio (ou
pastoral) e conduzir os homens ao Pai: por isso Jesus é o Cami­
nho (cf. Jo 14,4-7), verdadeiro caminho que leva à vida, cami­
nho vivo que abre para a verdade (cf. 14,6; cf. também o “Ca­
minho de Cristo” .em At 9,2; 18,25s; 19,9,23;22,4;24,14.22).
Essa soberania de Jesus, na qual os homens são conduzidos
ao Pai, e estendida até os extremos confins da terra pelo Espí­
rito que torna presente, onde é acolhido, a liberdade real de
Cristo: O Senhor é o, Espírito e, onde se acha o Espírito do
Senhor, ai está a liberdade” (2Cor 3,17). O Nazareno, tornado
Senhor no Espirito, exerce no Espírito, a sua realeza: “Quem não
tem o Espírito de Cristo não pertence a ele” (Rm 8,9). O reco­

340
nhecimento do senhorio de Cristo é obra do Espírito: “Ninguém
pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no Espírito Santo (lCor
12 3) É o Espírito que na peregrinação do tempo presente cons­
titui o penhor da glória futura no fim do Reino de Deus (ct.
Rm 8,23; 2Cor 1,22;5,5; etc.). _ , T
Onde o Espírito torna presente na história o Senhor Jesus,
caminho para ir ao Pai? De que mediações humanas se serve
para levar os homens a Deus, através do único acesso possí­
vel que é o Crucificado-Ressuscitado? Também aqui e necessá­
rio sublinhar a liberdade do Espírito, que não pode ser coarcta-
da- devemos, por isso, reconhecer sua ação salvífica para alem
de'todo “meio” visível de salvação: ainda que o cristão nao dei­
xe de confessar a singularidade de Jesus, e portanto de indicar
nele o mediador absoluto entre Deus e os homens, nem por
isso irá se recusar a crer na possibilidade de o Espirito agir por
vias não ligadas à confissão explícita do Ressuscitado. Extra
Ecclesiam nulla salus”, a famosa expressão por força da qual
tantos atos de intolerância foram consumados, mas também vivi­
dos tantos impulsos de generosidade missionária, revela aqui o
seu significado mais profundo: não há salvação fora da comu­
nhão com o Espírito de Cristo, que constitui a essencia do mis­
tério da Igreja; mas não se exclui que essa comunhão se realize
por vias que não passam através da mediaçao eclesial visive .
Posta essa premissa necessária, é possível afirmar que os lugares
privilegiados em que o Espírito torna Jesus livre e libertador
contemporâneo ao homem são a comunidade de salvaçao, isto e,
a Igreja na variedade dos seus carismas e ministérios, e a praxis
de libertação do homem, explícita ou implicitamente aberta ao
Reino de Deus que vem.
O Senhor glorificado reina antes de tudo na sua Igreja,
presente nela como caminho para ir ao Pai, “porta das ovelhas
(Jo 10,7.9): o Espírito de Cristo vive na comunidade eclesial (ct.
a teologia dos Atos: 2 ,4; 8, 18.39; 9,31 ; 10,19.44; 11,12; 13,2; 16, ;
19 6- 20,23.28; etc.) e a habilita a cumprir a sua missão, que
consiste na proclamação e realização do senhorio de Jesus para
a glória do Pai (cf. Mc 13,11 e par.; Jo 20,22; At 5,32, lCor

07 rf sobre essa complexa questão, a teoria, de origem rahneria-


I o , 3 S CW,, • ■ ■ w .g a .thnt
1966 (na introdução de A. Marranzim encontra-se a bibliograha
riana sobre o tem a).
341
12,11; etc.). Mas a Igreja não se identifica com o Reino de Deus,
do qual é apenas o germe e o início, a presença “in mysterio”
(Litmen Gentium 3): entre a Igreja e o Reino existe a mesma
continuidade na contradição que há, segundo a mentalidade
oriental, entre a semente e a árvore (cf. as parábolas do Reino:
Mt 13 e par.). “Pode-se afirmar que o Senhor glorificado reina
desde já na sua Igreja (como também no mundo) e é reconhe­
cido pelos cristãos como Senhor (ao contrário do que faz o
mundo); mas a plena participação dos cristãos no Reino de
Cristo se dará apenas no futuro”.28 A condição da Igreja é ser
sinal e instrumento, que ao mesmo tempo oculta e revela o
senhorio de Cristo: Reino já revelado, e contudo ainda coberto
pela cruz (“regnum revelatum, sed tectum cruce”). A consciên­
cia desse estatuto de peregrina deve tornar a Igreja pobre e
serva entre os homens; ela não pode procurar o domínio para
si, ainda^que anuncie aquele que é o “Rei dos reis e Senhor dos
senhores (lT m 6,15). Aberta ao futuro prometido, a Igreja
não identificará o Reino do seu Senhor com alguma das míopes
formais de poder deste mundo: se no curso da história não raro
os cristãos quiserem tirar conseqüências políticas do Reino de
Cristo,^chegando até a erigi-lo, de maneira terrena, em “Estado
cristão , deveríam ter aprendido por essas experiências que em
tal caso facilmente se dá o escamoteamento ideológico, com inte­
resses bem diferentes dos evangélicos. O fato de ser peregrina
exige da Igreja a forma de uma permanente instituição crítica
da sociedade, que, no anúncio do Reino que há de vir e no teste­
munho de um empenho de amor pelas classes oprimidas, lem­
bre aos homens a ambigüidade e a transitoriedade de toda ordem
política, especialmente da que se julga absoluta. A realeza de
Cristo realiza-se também na Igreja na forma do serviço, da hu­
mildade e do amor: ‘Sabeis que aqueles que vemos governar as
nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós
na° deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser
ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o pri­
meiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir...” (Mc 10,42-45 e
par.). A Igreja realizará na sociedade, bem como em si mesma,
a presença do Rei humilde se não procurar afirmar-se, mas

28 W. Pannenberg, Cristologia, op, cit„ p. 521.

342
souber perder-se, fazendo da autoridade, que lhe deriva de Cris­
to, um serviço pobre e desinteressado de salvação. No seio des­
sa Igreja pobre e serva, o Espírito derrama uma variedade de
dons (carismas) e suscita os diversos ministérios, através (dos
quais os homens poderão ser conduzidos ao Pai em Cristo: Há
diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação,
mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um rece­
be o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos...
(ICor 12,4-7). Nessa diversidade, é o único Espírito que opera,
tornando contemporâneo aos homens o único caminho pelo qual
se chega ao Pai: Jesus Cristo (cf. ICor 12,11). De modo parti­
cular, o Pastor da Igreja torna-se presente nela como cabeça do
seu Corpo através do ministério de unidade, cujo carisma é trans­
mitido pela imposição das mãos (cf. At 20,28 e 2Tm 1,6); toda­
via, é na comunhão de todo o corpo eclesial em torno desse mi­
nistério de discernimento e de coordenação que o Senhor Jesus
se torna presente e se oferece como caminho para ir ao Pai.
Neste sentido, pode-se dizer que a comunhão e a co-responsa-
bilidade pastoral dos crentes constituem a forma mais densa da
contemporaneidade de Cristo, Rei e Pastor, Servo e Caminho
para a Salvação.
Contagiando a liberdade do Cristo, o Espírito age também
para a libertação dos hom ens: libertação do pecado, da dor e da
morte, em suas dimensões pessoais e sociais, e portanto também
libertação do poder e da Lei, que, culpados pela crucificação do
Inocente, foram por sua vez crucificados pela sua Ressurreição;
libertação em vista da plena realização do homem e do mun o
segundo a vocação que lhes é revelada em Jesus Cristo. Se essa
libertação não se reduz a um horizonte puramente terreno, por­
que está orientada para comunhão final com o Pai e é vivificada
pelo Espírito de Cristo, não pode deixar de abranger o plano da
libertação social e política: a realeza de Cristo, que é liberdade
no amor, opõe-se a toda injustiça, opressão e manipulaçao. Onde29

29 Sobre a Igreja como comunidade eucarística e pneumatologica,


no seio da qual se coloca a variedade de carismas e de ministérios,
remeto às posições que exprime no livro La chiesa nell eucanstau
una ecclesiologia eucaristica alia luce dei Vaticano II, Nápoles W 5 e
no artigo “Laicato” in Dizionario Teologico Interdisciplinare, II, Turim,
1977, pp. 333-45.

343
estas estão presentes, onde a dignidade do homem é espezinhada
e tolhida, também o Senhorio de Jesus é rejeitado, qualquer que
seja o mascaramento ideológico do opressor. Com relação ao
sistema de iniqüidade — que concretamente é sistema de de­
pendência e de exploração do pobre pelo rico, das classes domi­
nadas pelas dominantes do “Terceiro Mundo” pelos países “de­
senvolvidos , sejam eles capitalistas ou comunistas, das áreas
atrasadas pelas economicamente poderosas, dos grupos e dos
indivíduos marginalizados pelos que os marginalizam — o Se­
nhorio de Cristo coloca-se como força subversiva, inspiração
libertadora que compromete com a alternativa da justiça. O
Espírito torna presente o Libertador em todos os que, de cora­
ção sincero e generoso, se entregam à causa da libertação, sobre­
tudo através da tarefa de conscientização dos oprimidos, que
somente por esse caminho podem transformar-se de objeto em
sujeito da história. Se, contra todo otimismo ingênuo, é preciso
reconhecer que o homem nunca se libertará plenamente só com
suas forças, é preciso também admitir que Cristo — Senhor e
caminho de salvação — está presente no coração dos que ofere­
cem honestamente a própria vida por uma sociedade mais huma­
na, ainda que não confessem explicitamente o seu nome. Por
isso, então, se exigirá da Igreja, sacramento do Senhorio de
Jesus no tempo, que seja instituição de liberdade, corajosa na
denúncia das opressões, para anunciar de maneira crível o hori­
zonte mais amplo do Reino que vem. Crise de todas as grande­
zas terrenas, o Evangelho do Senhorio libertador de Cristo é
também a crise permanente do seu povo, o juízo sob o qual ele
está e a medida à qual deve conformar-se e converter-se, se qui­
ser ser povo de homens livres para a liberdade do homem todo
em todo homem.30

30 Cf., sobre este ponto, f. Alfaro, Speranza cristiana e liberazione


delluomo, Bréscia, 1972 (especialmente cap. 1 2 ) ; H. Assmann, Teologia
delia prassi di liberazioner, Assis, 1974; L. Boff, Jesus Cristo libertador,
op cit. in n. 25; G. Gutiérrez, Teologia delia liberazione, Bréscia, 1972’
(ed. bras.: Teologia da Libertação: perspectivas, Vozes, Petrópolis,
1975 274 p .); M. Hengel, Christus und die Macht, Stuttgart, 1974- h ’
Kessler, Erlõsung ais Befreiung, Dusseldorf, 1972; H. De Lavallette, “Son
Royaume est aussi de ce monde. Christologie et théologie politique” in
Recherches de Science Religieuse 65 (1977), pp. 207-26; J. B Metz
La fede nella storia e nella società, Bréscia, 1978 (ed. bras.: A fé em
história e sociedade, Edições Paulinas, São Paulo, 1981, 291 p .); J.
Moltmann, La chiesa nella forza dello Spirito, Bréscia, 1976; J. Roílet,

344
c) A história de Jesus como experiência de finitude mostra
a profundidade do seu amor por Deus e por nós, pois chegou
ao ponto de aceitar a separação do Pai e o exílio de si, para levar
toda a humanidade à reconciliação pascal, fonte da nova vida do
mundo. Jesus é a Vida (cf. Jo l,4 ;5 ,2 6 ;6 ,3 5 .5 7 ;ll,2 5 s;1 4 ,6 ; ljo
1,1 s; etc.) e foi enviado para dar a vida ao mundo: “Eu vim
para que tenham a vida e a tenham em abundância (Jo 10,10,
cf. 3,15s e 10,28). Quem crê nele tem a vida, passa “da morte
para a vida” (Jo 5,24). Mas Jesus dá a vida porque oferece em
sacrifício a sua vida, porque a “entrega” livremente na hora
obscura da cruz (cf. Jo 10,15s; 15,13; 1Jo 3,18): é “o Cordeiro
de Deus, que tira os pecados do mundo” (Jo 1,29.36), o Cor­
deiro pascal (cf. ICor 5,7; Jo 19,36, bem como a cronologia
joanina da paixão, que coloca a morte de Jesus no dia 14 de
Nisã, dia do sacrifício do cordeiro: Jo 18,28.39; 19,14.31), o
Inocente sacrificado pelos pecadores (cf. Is 53,7 e At 8,32).
Assim ele se torna o Cordeiro imolado, mas vivo e glorioso, que
guia o povo de Deus ao último combate e é senhor da história
(cf. Ap 5,6ss;6,lss; 7,9s; etc.). Aquele que “nos amou e se entre­
gou por nós a Deus, como oferta e sacrifício de odor suave” (Ef
5,2), aquele que “por um Espírito eterno se ofereceu a si mes­
mo a Deus como vítima sem mancha” (Hb 9,14), recebe nova­
mente a vida (cf. Jo 10,17s) e a comunica em abundância (cf.
Jo 4 ,14;5,26;6,35.47.51.57; 10,10; ljo 5,12). Assim, a sua mor­
te sacrifical liberta do pecado (cf. Rm 6,10) e prepara o seu
Senhorio: “Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o
Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9). A sua morte assume
a nossa fraqueza para levar-nos no poder da vida de Deus (cf.
2Cor 13,4): assim a morte é definitivamente derrotada e a quem
crê é dada vida nova (cf. Rm 6,8ss; G1 3,11; etc.). Portanto,
Jesus nos dá a vida mediante a oferta sacrifical de sua vida. por
isso ele ; o sumo sacerdote (cf. Hb 3,1), que como nós foi pro­
vado em todas as coisas e pode participar de nossas enfermida­
des (cf. Hb 4,14s), e “tornado perfeito” através da experiência
suprema da finitude, é “causa de salvação eterna para todos os

Libération sociale et salut chrétien, Paris, 1974; R. Schaull, Oltre le rego-


le dei gioco. Trasformazione sociale e liberazione umana, Turim, 19/z.
Cf., também, a imagem do Cristo presente em algumas tradições popu­
lares: A Nesti, Gesü socialista. Una tradizione populare italiana (18KU-
1920), Turim, 1974, 2? ed.

345
que lhe obedecem” (Hb 5,9; cf. 1-10). Ele é o sacerdote sumo,
“inocente, sem mancha, separado dos pecadores, elevado acima
dos céus”, que se ofereceu uma vez por todas e sempre vivo
para interceder por nós (cf. Hb 7,26s.25 e lis ) .31
À luz dessas afirmações é possível esclarecer o que se enten­
de por “sacrifício” de Cristo: o sacrifício é uma “volta” a Deus,
uma oferenda exterior a ele, sinal da oferenda interior, símbolo
real que exprime louvor, reconhecimento e invocação, não só
por si mesmos, mas para todo o povo.3-2 Na sua “entrega” volun­
tária à morte Jesus “retornou” a Deus, isto é, ofereceu-se incon­
dicionalmente ao Pai na dor do abandono aceito por nós: “Cristo
oferece a si mesmo, e isso é significado pela sua morte... O essen­
cial do sacrifício é a obediência e o amor de Cristo”.33 Por isso
ele é ao mesmo tempo sacerdote e vítima, que, solidário com os
pecadores (recorde-se o “por nós” !), traz em si o louvor, a ação
de graças e a invocação de toda a humanidade, por amor da
qual escolheu juntamente com o Pai o caminho doloroso da
cruz. Em nosso lugar, para o nosso bem e por nosso amor o
Crucificado se ofereceu a Deus no Espírito (cf. Hb 9,14): e o
Pai aceitou a oferenda, dando-lhe em plenitude o seu Espírito.
O Sacrifício de Cristo não é “mais uma confissão da importân­
cia humana que espera”, mas o sacrifício agradável: a Ressur­
reição é o “sim” que Deus disse ao oferecimento do Filho (cf.
2Cor 1,20), e nele à humanidade, sobre a qual derramou, por
Cristo, o Espírito, dom de vida que vence a morte. Entretanto,
toda a existência do Nazareno foi um oferecimento de si ao Pai:
nesse sentido, é possível reconhecer uma dimensão sacrifical em
toda a vida de Jesus, que por isso sempre foi sacerdote e vítima,
mesmo se realizou o oferecimento supremo de si na cruz. Se a
sua é uma existência dada, a ressurreição aparece como a respos­
ta acolhedora do Pai com relação a todo o caminho sacrifical
do Filho. À vida dada por ele corresponde a vida dada por Deus,
o Espírito. O poder vital divino, no qual Jesus foi ressuscitado,

31 “Sob o ponto de vista do conteúdo, encontramos a afirmação de


que Jesus é sacerdote em todo o Novo Testamento, mas só a Carta aos
Hebreus faz menção explícita disso”, porque o seu Autor, “em toda a
exposição (sobretudo em Hb 7 ), dissociou a figura do sacerdote da pre­
tensão essencialmente judaica de uma derivação levítica”: E. Schille-
beeckx, Cristo, op. cit., p. 294.
32 Cf. o que escreve Agostinho in D e Civitate Dei, X, 4-6.
33 C. Duquoc, Cristoíogia, op. cit., pp. 525-26.

346
vem assim habilitar nos corações como num templo (cf. ICor
3,16;6,19), derrama neles o amor de Deus (cf. Rm 5,5), e dá
vida plena: “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre
os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus
dentre os mortos dará vida também aos vossos corações mortais,
mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,11). O Espí­
rito vivifica (cf. Jo 6,63; 2Cor 3,6), atesta que nós somos filhos
de Deus (cf. Rm 8,16), enxerta-nos no diálogo da vida trinitá-
ria (cf. G1 4,6 e Rm 8,15), nos corrobora (cf. Ef 3,16; 2Tm 1,7).
Viver “segundo o Espírito” (cf., por exemplo, Rm 8,5) significa
conhecer os frutos de uma vida plena: “amor, alegria, paz, pa­
ciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio
de si” (G1 5,22; cf. Ef 5,9). O Espírito torna assim presente em
nós Cristo Vida, Sacerdote da aliança nova e eterna, que nos
permitiu participar da vida trinitária: é daqui que nasce a Igre­
ja, povo que vive a vida nova dada do alto, acolhendo sempre
o amor de Deus, que pelo Espírito foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5,5).
Como ocorre tudo isso concretamente? Através de que me­
diações históricas passa a ação do Paráclito, que torna contem­
porâneo o Cristo, doador da Vida? Ainda que o Espírito, na sua
liberdade, possa suscitar e de fato suscite vida em formas conti­
nuamente novas, é possível identificar dois lugares privilegiados
nos quais, de formas diferentes, o Senhor vivo e vivificador se
torna contemporâneo ao hoje: de um lado, os sacramentos da
Igreja; de outro, a experiência da dor humana, implícita ou
explicitamente vivida em comunhão com o Crucificado.
A econom ia sacramental da Igreja representa no tempo o
sacramento “primordial” de Deus, Jesus Cristo. Ela representa
o seu mistério nos vários momentos e segundo as várias necessi­
dades da vida humana, tornando possível o encontro vivificante
com ele no nascimento e na morte, na alegria e na dor, nas
quedas e nas doações decisivas da existência. O ponto mais alto
desse oferecimento de vida é a celebração eucarística do memo­
rial da Páscoa, na qual Cristo, que sofreu e foi glorificado, se
torna realmente presente no Espírito para reconciliar os homens
com o Pai e entre si, e cumulá-los de vida divina. “Cume e fon­
te” de toda a existência cristã, a eucaristia é o “sacramentum
unitatis”, pelo qual a Igreja é gerada e expressa, na memória
poderosa da aliança pascal e na contínua projeção para o ban­

347
quete final do Reino.34 Nela o Espírito não só torna presente
Cristo morto e ressuscitado, mas também difunde a vida nos
membros do Corpo eclesial, para a vivificação de toda a histó­
ria. Estão orientados para a eucaristia o batismo e os outros sa­
cramentos, e dela nascem as várias formas da consagração e da
missão eclesial. Pode-se afirmar então que a eucaristia — e a
economia sacramental a ela ligada como a seu centro e vértice —
é o lugar mais denso da contemporaneidade de Cristo vida no
nosso presente, o “memoriale salutis”.
Todavia, há outro caminho, mais “anônimo”, mas acessí­
vel a toda existência humana (inclusive à que ignora o Ressusci­
tado), em que o Senhor da vida se comunica aos homens para
fortalecê-los e levá-los à comunhão com o Pai: é a história dos
sofrim entos do mundo. Desde que a cruz de Cristo foi chanta-
da na terra, não há dor humana que não seja de alguma forma
alcançada pelo Espírito e unida a ela (cf. Mt 25,3 lss). O Cruci­
ficado da sexta-feira santa se torna presente na dor dos sacrifica­
dos do mundo, graças à força do Paráclito, e contagia, em quem
o acolhe, a capacidade de comunhão e de oblação: um sofrimen­
to, vivido em solidariedade com os outros e oferecido por amor,
é'uma presença real de Cristo na história dos homens! A paixão
do mundo é alcançada e fermentada pela paixão de Cristo, de
modo que o peso da finitude não se torna ocasião de desespero
e de condenação, mas caminho de ressurreição e de vida. Se
isso é verdade para todo homem, tanto mais o será para o cris­
tão, que deverá invocar a graça do Espírito, a fim de viver a
sua dor no seguimento de Cristo e completar assim na própria
carne o que falta à paixão dele para o bem do seu corpo (cf. Cl
1,24). Então o sofrimento se tornará, como nos santos, o “sa­
cramento da dor”, o lugar em que, contra toda resignação pas­
siva, o mal inevitável é vencido pelo bem, a dor se torna amor,
e a morte é transformada em vida. Então o rosto de Cristo, ven­
cedor da morte e senhor da vida, aparecerá nos pobres rostos
desfigurados pelo espasmo indizível da dor humana: “Hoje se
realiza um milagre neste lugar: um camelo passa pelo fundo
de um agulha” (palavra do padre Lorenzo Milani no leito de
morte).

34 Para o aprofundamento desses pontos, remoto à exposição deta


lhada da terceira parte de meu livro La chiesa nell’eucaristia, op. cit.

348
A releitura pascal da história da consciência, da liberdade
e da finitude do Nazareno mostra, pois, que ele é o Profeta
escatológico, revelador do Pai, o Rei-Servo, libertador do mun­
do, o Sacerdote da nova e eterna aliança, vencedor da morte e
vivificador: a verdade, o caminho, a vida! Essas três funções
estão intimamente relacionadas como três aspectos da única
obra salvífica de Jesus Cristo, que o Espírito torna presente e
eficaz na sua totalidade dinâmica em todas as horas do tempo.
Para exprimir essa unidade e totalidade fala-se, em geral, de
Jesus como m ediador entre Deus e os homens: “Pois há um
só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um ho­
mem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos” (lT m 2,5s;
cf. Hb 8,6;9,14s; 12,24).35
Tal mediação — à luz do que foi dito — não pode ser
interpretada a não ser no sentido histórico-salvífico e trinitário:
Jesus é o Ungido que, através do seu humaníssimo caminho para
os mortos e da experiência inaudita da ressurreição, recebe em
abundância o Espírito do Pai e o dá em plenitude aos homens.
Por Cristo o Espírito vem do Pai aos homens (mediação descen­
dente): por ele, no mesmo Espírito, os homens vão ao Pai (me­
diação ascendente). Na mediação de Cristo a história trinitária
se une à história humana: o movimento do amor eterno entra
em nossa história e a leva consigo. Na sua história singular de
Humilhado-Exaltado, Jesus é a aliança: nele o mundo de Deus
e o mundo dos homens se encontram, não apenas “nos dias da
sua carne” (Hb 5,7), mas para sempre, porque ele está sempre
vivo intercedendo por nós (cf. Hb 7,25), e no Espírito está pre­
sente em todas as horas do tempo. A salvação que Jesus Media­
dor obtém para o homem é a participação na vida divina, a co­
munhão com o Pai no Espírito Santo: a vida trinitária é partici­
pada aos homens, força na fraqueza, alegria na dor, conforto
na solidão, vitória na provação, liberdade na prisão, vida na
morte. Quem acolhe a Cristo, que no Espírito se torna contempo­
râneo- ao seu “hoje”, torna-se filho no Filho, pregusta a paz da
comunhão trinitária, aprende, ainda que na dureza do tempo
penúltimo e na fadiga da fé, a amar e a esperar em sintonia com

35 Cf., entre outros autores, Y. Congar, Gesú Cristo, nostro Me-


diatore, nostro Signore, Turim, 1966; W. Kasper, Gesú il Cristo, op. cit.,
pp. 318ss; K. Rahner, Der eine Mittler und die Vielfalt der Vermittlun-
gen, Wiesbaden, 1967.

349
o coração de Deus. Sobre ele, como sobre Maria, desce a som­
bra do Espírito, que um dia tornou o Verbo presente na carne
para uma história verdadeiramente humana e que o torna de
novo presente na história de cada pessoa que o acolhe; como
Maria, “protótipo do homem diante da livre graça de Deus”,30
ele não é tirado do mundo, mas chamado a caminhar, nesse mun­
do, cheio de amor fiel e de esperança, para o futuro, fruto de
suas mãos e da graça do Pai. Como Maria, quem prepara o pró­
prio terreno progride “de fé para a fé” (Rm 1,17), ativamente
operoso e ao mesmo tempo absorto na contemplação do misté­
rio, alegre na experiência do Espírito e ao mesmo tempo prega­
do à cruz do presente. Peregrino neste mundo e pobre entre os
pobres, o homem que reconhecer a contemporaneidade de Jesus
Cristo não se cansará de celebrar sua força de ressurreição e de
vida: se viver, viverá por ele; se morrer, morrerá por ele. Na vida
como na morte, não quererá outra coisa a não ser pertencer a
ele: “Pois ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo,
porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos
é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer
morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo morreu
e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,7-9).

36 W. Pannenberg, Cristologia, op. cít., p. 178.


EPÍLOGO
Uma conclusão que é um início...

Este livro começou com a pergunta: que sentido tem falar


de Jesus hoje? A fé cristã responde com a sua inaudita “preten­
são” : falar dele não só tem sentido, mas tem o máximo sentido
e importância, porque nele, no homem de Nazaré pobre e des­
prezado pelos poderosos, mas glorificado pelo Pai, Deus se ofe­
receu em carne humana. Jesus é a aliança dos mundos: o mun­
do que nos é desconhecido, do Senhor do céu e da terra, e o
nosso mundo, feito de suor, de esperança e de lágrimas. Nele
a história trinitária de Deus se faz presente de modo único e
pleno na história dos homens, e esta entra na história divina:
nele, o vivente pelo Espírito, é dada aos homens para sempre
a “memória Aeterni”, a presença eficaz de Deus em nosso tem­
po e nossá no “tempo” de Deus. Só Jesus é o Santo, aquele sobre
quem o Espírito desceu e repousou em plenitude, o Cristo de
Deus, realização de suas promessas: Tu solus Sanctus! Só Jesus
é Senhor, aquele que derramou o seu Espírito sobre toda a cria­
tura, o Filho do Homem, promessa da realização definitiva: Tu
solus Dominus! Só Jesus é o Altíssimo, aquele que está além das
palavras que tentam expressar a inexprimível profundidade do
mistério, o Filho de Deus que a mente não pode conter e o cora­
ção não cessa de desejar: Tu solus Altissimus! Justificar criti­
camente essa “pretensão” que, em última análise, é “dar a razão
da esperança” que existe no coração dos cristãos (cf. lPd 3,15)
foi o objetivo deste livro: seja qual for o resultado alcançado,
ele não pode deixar de ser concluído com uma dupla confissão.
A primeira é uma confissão de impotência e de finitude:
no final de tudo o que foi dito, emerge ainda mais forte a certe­
za de que o Deus que se fez história, o Deus que é história, no
insondável dinamismo das relações trinitárias, não é aprisiona­
do ou aprisionável pela nossa história, e portanto pela nossa pa­
lavra. Ele está sempre além, longe dos limites que gostaríamos
de estabelecer para ele a fim de defini-lo e possuí-lo. Ele é o

351
futuro que nos precede, é contradição que nos abate, é liberda­
de que nos supera. Qualquer palavra sobre ele, revelado na hu­
maníssima história do Senhor Jesus, é muito breve e muito
obscura: é início de um caminho, limiar que inicia um amanhã
já começado. Por isso, enquanto a cristologia da palavra se con­
clui, é necessário que se inicie a cristologia do silêncio e da vida,
a experiência do Cristo libertador na história diária dos homens.
É nela que, sob o peso da cruz do presente, o conhecimento
iniciado no mistério se tornará mais profundo, mais próximo do
“totalmente novo” do futuro de Deus: “Saiamos, portanto, ao
seu encontro fora do acam pam ento, carregando a sua humilha­
ção. Porque não temos aqui embaixo cidade permanente, mas
estamos à procura da cidade que está para vir” (Hb 13,13-14).
Uma vida dedicada ao louvor e à esperança n’Aquele que veio
e que vem, e generosamente empregada no serviço concreto dos
pobres, em quem ele está presente, é terreno de advento, lugar em
que se prepara e se antecipa no Espírito a aliança da glória.
A segunda confissão, ao contrário, é um ato de fé naquele
que, ainda não alcançado, contudo já se deu aos homens; tam­
bém aqui, o fim da cristologia da palavra dá início à cristologia
vivida e pregada. O objeto torna-se poderosamente Sujeito; o
peregrino do pensamento torna-se peregrino de toda a existência,
confortado e sustentado na comunidade dos irmãos pela alegre
certeza de estar com o Senhor, no próprio instante em que vai
ao encontro dele com o empenho de toda a vida. E a voz se une
a tantas outras vozes, para cantar com o povo dos peregrinos a
confissão do coração:

Tu és minha Vida, outra coisa não tenho.


Tu és meu Caminho, minha V erdade:
na tua Palavra cam inharei
enquanto eu respirar, enquanto tu quiseres.
N ão terei m edo, se estiveres com igo:
peço-te, fica comigo.

Tu és minha Força, outra coisa não tenho.


Tu és m inha Paz, minha Liberdade.
N ada na vida nos separará:
sei que tua m ão forte não m e deixará.

352
Sei que d e todo mal m e livrarás,
e em teu perdão viverei.

Creio em ti, Senhor, nascido de Maria,


Filho eterno e Santo, hom em com o nós,
m orto por am or, vivo no m eio d e nós,
uma só coisa com o Pai e com os teus:
até que vieres, tendo certeza,
para abrir-nos o Reino de Deus.

Pai da Vida, nós crem os em ti!


Filho Salvador, esperam os em ti!
Espírito d e Amor, vem para junto de nós:
D e mil caminhos nos reúnes na unidade,
e por mil estradas, depois, on de quiseres,
serem os a sem ente de Deus.1

1 Letra de um canto bastante difundido nas comunidades cristãs


da Itália, intitulado: Symbolum 7 7 , de P. Sequeri.

353
LISTA DE TERMOS TÉCNICOS

Adocianismo: doutrina do século II que via em Jesus um homem "ado­


tado” por Deus como Filho, em razão de suas qualidades morais.
O adocianismo espanhol dos séculos VIII e IX ensinava que Jesus,
ccmo Verbo, é filho natural de Deus, e como homem, é filho ado­
tivo.
Analogia: relação de semelhança entre dois ou mais termos.
Antropologia: doutrina sobre o homem. Antropologia teológica: é a ma­
neira de conceber o homem tal como brota da revelação quanto à
sua origem, condição e destino.
Antropomorfismo: representação de Deus em forma humana.
Apocalíptica: gênero literário, florescente no judaísmo pré e pós-cristão,
constituído por "revelações” (apocalipses) ou visões relativas aos
últimos tempos e aos sinais que os precederão.
Apófase: proposição negativa. Teologia apofática: é a teologia "nega­
tiva”, que evidencia, através de negações, a transcendência e a ine-
fabilidade de Deus.
Apolinarismo: de Apolinário, bispo de Laodicéia (século IV ). Doutrina
segundo a qual o Verbo teria assumido o^lugar da alma espiritual
em Jesus; assim, a humanidade de Cristo não seria completa.
Aporia: do grego, significa “caminho interrompido” : beco sem saída,
situação limite. Aporia do humano: finitude constitutiva da condi­
ção humana.
Arianismos: de Ário, padre de Alexandria (século IV ). Segundo esta con­
cepção, o Verbo foi criado pelo Pai e é inferior a ele, embora sendo
superior a toda criatura, por ter sido gerado antes do tempo. Essa
doutrina, fortemente influenciada pelo neoplatonismo, foi rejeitada
pelo Concilio de Nicéia (325), que afirmou a paridade de substân­
cia entre o Pai e o Filho (“homousía”) .
Atematizado: não explicitado, não focalizado, não formulado conceitual-
mente.
Bruta facta: os fatos que são “brutos” por si, tais como existem, abstrain­
do-se hipoteticamente de qualquer interpretação do sujeito.
Calcedônia: sede do IV Concilio Ecumênico (451), que formulou o dog­
ma cristológico: Jesus Cristo, Verbo Encarnado, é uma pessoa (di­
vina) em duas naturezas (divina e humana), unidas sem confundir-
-se ou mudar (contra o mcnofisismo) e sem separação ou divisão
(contra o nestorianismo).
Carisma: dom concedido gratuitamente pelo Espírito Santo, em vista do
crescimento da pessoa que o recebe e da utilidade comum.
Categoria: conjunto de objetos que têm caracteres comuns; forma de
organização do conhecimento segundo agrupamentos gerais.
Círculo hermenêutico: circularidade existente entre sujeito e objeto, pela
qual todo conhecimento de um objeto supõe a compreensão preli­
minar do sujeito (pré-compreensão); este, por sua vez, é modifica­
do por novas aquisições cognoscitivas. A pré-compreensão é, sob
muitos aspectos, fruto do contexto lingüístico-existencial em que
alguém está situado.
Consubstanciai: da mesma substância; v. “homoúsios”.

354
Cristo: do grego, significa “ungido”. O título exprime a plenitude de
Espírito Santo em Jesus e a realização nele das expectativas messiâ­
nicas salvíficas. V. também Messias.
Cristologia: doutrina teológica que estuda a pessoa e a obra de Jesus
Cristo, como consciência crítica da fé que a Igreja tem nele. Cristo-
lógico: relativo a Cristo, à Cristologia e à reflexão sobre Cristo.
Crítico: do grego “crise”, que significa discernimento e juízo, indica
todo procedimento de análise e avaliação.
Dialética: segundo o pensamento tradicional, é a arte do raciocínio; mo­
dernamente, é o procedimento pelo qual se chega a afirmações novas
e mais altas através de afirmações e negações.
Docetismo: do grego, “parecer ou aparecer”. Rejeitada pela fé da Igreja,
esta doutrina atribuía a Cristo um corpo apenas aparente, que assim
não podia “contaminar” a divindade.
Dogma: proposição que define com autoridade um aspecto da fé da
Igreja como revelado por Deus, e o afirma de maneira definitiva
quanto à intenção última e quanto à mensagem essencial, mas que
deve ser sempre interpretada em relação aos instrumentos lingüístico-
-conceituais do tempo em que foi formulada.
DS: H. Denzinzer — A. Schõnmetzer, Enchiridion Symbolorum, Defini-
tionum et Declarationum de rebus fidei et morum, ed.. 34?, Barcino-
ne, Friburgi Brisgoviae, Romae, Neo-Eboraci 1967: seleta dos prin­
cipais documentos do magistério da Igreja.
Eclesiologia: doutrina teológica que estuda a origem, condição e destino
da Igreja cristã e que reflete e influencia a práxis.
Economia: do grego, “administração da casa”. Em teologia, indica a dis­
posição salvadora de Deus e a realização histórica da salvação.
Emancipação: ato com que o homem, mediante as próprias forças, se
liberta de tudo o que o torna escravo e o aliena.
Epistemologia: doutrina do conhecimento humano, em sua constituição
e desenvolvimento.
Escatologia: doutrina das “últimas coisas” (em grego "escháta”), enten­
didas como fim do tempo e como tempos finais ou ainda como tem­
po da presença plena e definitiva de Deus na história. Neste último
sentido, é escatológico o evento de Jesus Cristo, que inaugura o
tempo do fim e é a antecipação e promessa do tempo que termina­
rá em Deus.
Etiologia: “doutrina das causas”. Relato etiológico: narração que visa
a explicar em forma legendária a origem de um comportamento ou
de uma tradição.
Exegese: em teologia, é a interpretação da Sagrada Escritura, mediante
a utilização dos métodos críticos necessários e a atenção à mensa­
gem global da revelação acolhida pela fé.
Extracanônico: não pertencente ao “cânon” ou catálogo dos livros que
a Igreja considera inspirados por Deus.
Filho do Homem: termo usado em Dn 7,13 e na apocalíptica para indi­
car uma figura celeste; nos textos imediatamente anteriores ao Novo
Testamento, essa figura assume caracteres marcadamente pessoais e
divinos. Empregado por Jesus para indicar a si mesmo, o título cai
em desuso na comunidade primitiva; é sempre dirigido a destinatá­
rios que não lhe podem compreender o sentido.
Finitude: condição da existência humana, que é limitada ou “finita” em
suas aberturas de consciência e liberdade. Peso dessa condição.

355
Gnosticismo: no seio do cristianismo, nome dado a diversas formas heré­
ticas que têm em comum a afirmação de uma dualidade radical entre
matéria e espírito e a interpretação da redenção como libertação do
espírito da escravidão da matéria mediante o conhecimento (“gno-
se”) da verdade, aberta ao espírito disposto pelo Salvador, visto antes
de tudo como Mestre e Revelador.
Heresia: do grego, “escolha”. Acentuação arbitrária de um aspecto da
verdade da fé, com prejuízo de outros aspectos.
Hermenêutica: do grego, “ciência da interpretação”. A sua necessidade
deriva do contínuo modificar-se do horizonte e da formulação dos
conhecimentos humanos, exigindo um trabalho de explicação e de
tradução, a fim de permitir a comunicação entre expressões de situa­
ções historicamente diversas.
Hipóstase: etimologicamente, em grego, “o que está embaixo” (latim:
“substantia”) , o termo veio a indicar o sujeito de operações, a pes­
soa (v .). An-hipóstase: ausência da pessoa (em Cristo: da pessoa
humana). En-hipóstase: condição da natureza humana de Cristo,
que é personalizada pelo Verbo de Deus.
História: termo de significado complexo. Sucessão de acontecimentos
Ciência e narração dos acontecimentos do passado. Tomada de posi­
ção do sujeito que consciente e livremente se situa no presente com
relação ao “já” dado para suscitar originalmente o “ainda não”.
Historia da Redação (Redaktionsgeschichte) : método que procura re­
constituir a história dos Evangelhos em relação aos redatores (os
evangelistas), vistes não como simples compiladores de materiais já
prontos, mas como autores dotados de criatividade própria.
Historia das formas (Formgeschichte) : método de análise que tem como
objetivo reconstruir a história de cada um dos textos que constituem
cs^ Evangelhos, desde a situação vital” (Sitz im Leben) originária
ate a redação definitiva.
Homoúsios: termo grego, que se traduz por “consubstanciai”, de igual
substancia ou natureza, de igual dignidade no ser. Assim se diz do
Pai com o Filho (Concilio de Nicéia: 325) e também de Jesus co­
nosco (Concilio de Calcedônia: 451).
lahw eh: em hebraico, “Aquele que é por (nós). Nome divino revelado
a Moisés e que designa o Deus da promessa.
Ideologia: sistema de idéias, concepção da história e projeto de ação
nela. O risco da ideologia está nas pretensões absolutizantes que ela
facilmente promove.
Justificação: ato com o qual o Pai perdoa o pecador que, mediante a fé,
se entrega a ele; com o mesmo ato o Pai lhe dá a graça do Espírito
Santo, obtida por Cristo em favor de todos.
Kairós: no grego do Novo Testamento indica o momento “qualificado”
o tempo de salvação oferecido por Deus e acolhido pelo homem.
Kyrios: ern grego, Senhor”. Usado no Antigo Testamento grego como
nome divino, o termo exprime a condição divina de Cristo e a sua
soberania salvadora sobre toda a criação
Logos: em grego, “Palavra” ou “Verbo”. Indica Jesus Cristo enquanto
preexistente junto ao Pai, de igual condição com ele, presente na ori­
gem e no fim da criação, vindo a este mundo para salvá-lo (cf Jo
l,lss).
Manualística: teologia dos “manuais”, isto é, dos textos usados nas esco­
las teológicas até um passado não distante; teologia que com o tem­
po se tornou sempre mais repetitiva e abstrata.

356
Memorial: termo empregado para indicar a memória em sentido bíblico,
que não é simples recordação (movimento da mente do presente
para o passado), mas verdadeira reatualização, que na força do
Espírito divino torna presente o evento salvífico passado, por si
irrepetível.
Mérito: valor de uma obra que dá direito a uma recompensa. D e con­
digno: em sentido escrito, é o mérito proporcional às exigências da
justiça divina (só o de Cristo). D e congruo: é o mérito de simples
conveniência, porque não é proporcional às exigências reais da jus­
tiça (mérito do pecador agraciado).
Messias: em hebraico equivale a "ungido”, e portanto a “cristo” em gre­
go. O termo, em suas várias formas, relaciona-se com a espera mes­
siânica de Israel.
Metafísica: originariamente indica as obras aristotélicas que se seguem
às obras sobre a física (conhecimento da natureza). Ê usado como
equivalente a “ontologia” (v.).
Metáfora: procedimento pelo qual se dá a um termo o significado de
outro, que tem alguma analogia com o primeiro. Linguagem meta­
fórica: maneira de falar que se serve de metáforas; é particular­
mente necessária quando se procura exprimir o mistério divino.
Metanóia: do grego, “conversão, mudança de mentalidade”.
Mistério: em sentido bíblico-paulino, é o desígnio divino de salvação
que vai se realizando na história em eventos e palavras intimamente
relacionados. Cristo é a plenitude desse mistério. Mistérios da vida
de Jesus: eventos particulares da história do Nazareno, prenhes de
significado reveladcr-salvífico.
Modalismo ou monarquianismo: heresia trinitária, segundo a qual Deus
é único em si, embora aja exteriormente de três “maneiras” dife­
rentes. Heresia também chamada “sabelianismo”, de Sabélio, seu
defensor no século III. Cristo seria o próprio Pai encarnado (patri-
passianismo).
Monofisismo: doutrina do monge Eutiques, condenada em Calcedônia
(451). Em oposição ao nestorianismo (v.), afirmava a “única natu­
reza” (daí o termo grego) do Verbo Encarnado.
Natureza: princípio que qualifica as operações, relações e história de
um sujeito. Responde à pergunta: que coisa é? Em Cristo, que é ao
mesmo tempo homem e Deus, fala-se, por isso, de uma natureza
humana e uma divina.
Nazareno: “de Nazaré”. Termo com o qual se designa Jesus (cf. Mc
1,24; 10,47; 14,67; 16,6; Lc 4,34;24,19).
Nestorianismos doutrina de Nestório, patriarca de Constantinopla, que
reconhecia em Cristo dois sujeitos, um humano e outro divino, liga­
dos entre si por uma união moral. Posição condenada por Éfeso
(431) e Calcedônia (451).
Ontologia: “doutrina do ser” enquanto tal; tudo o que se refere à rea­
lidade em si, independentemente de suas determinações particula­
res.
Parãclito: em grego, “defensor, advogado, consolador”. Termo usado para
designar o Espírito Santo.
Paradoxo: o que é ou parece contrário ao comum.
Parusia: termo grego que indica a “presença” ou manifestação final de
Cristo entre os seus, e portanto o retorno dele no fim do tempo.
Pessoa: sujeito de operações, relações e história. Responde à pergunta:
quem é? Em Cristo, é o sujeito divino da relação única e exclusiva

357
com o Pai; é aquele que entrou na história, fazendo-se homem me­
diante a Encarnação.
Pneuma: em grego, “espírito, sopro, vento”.
Pneumatologia: doutrina sobre o Espírito Santo. Pneumatológico: tudo
o que tem relação com o Espírito Santo, o qual foi dado pelo Pai a
Cristo, e a nós por meio de Cristo.
Práxis: em grego, “ação”. Indica a ação histórica real nas relações, con­
dicionamentos e efeitos que a caracterizam e na orientação dela
para a transformação da realidade.
Preexistência: existência de Cristo enquanto Verbo e Filho eterno do Pai
antes da Encarnação. A doutrina da preexistência realça a presença
total de Deus na história do Nazareno.
Pretensãok reivindicação, exigência. “Pretensão” de Jesus: autoridade
inaudita do seu falar e agir, exigência imposta por ele de que todos
se convertam à fé em sua mensagem. A ressurreição de Jesus justi­
ficara plenamente a sua pretensão. “Pretensão” cristã: afirmação de
te em Cristo, o que comporta exigências altíssimas, cujo funda­
mento não aparece de maneira perceptível, e só se acata no horizon­
te da fe.
Prolepse: antecipação do futuro em forma de sinal e promessa
Prosopon: termo grego, equivale a pessoa.
Protologia: doutrina das “coisas primeiras” (do grego). Teologia das
origens da criação e da história.
Quênose: em grego, “aniquilamento, esvaziamento”. O termo indica o
despojamento a que o Verbo se submeteu ao fazer-se homem, des­
cendo da condição de Senhor para a de servo, até à morte ignomi-
mcsa na cruz (cf. F1 2,6ss). 6
Querigma: em grego, “anúncio, proclamação do arauto”. Em teologia
indica a mensagem central da fé cristã, o anúncio do evento de sal-
vaçao realizado em Jesus Cristo.
Redenção-, obra salvadora, libertação dos homens realizada e tornada
possível para nós em Jesus Cristo.
Sacramento: termo latino equivalente ao grego “mistério” (v .). Em
teologia designa um evento que é sinal e instrumento da graça,
sinal historico da fidelidade de Deus às suas promessas.
Salvação: libertação do que torna escravo (morte, pecado, opressão) em
vista do que torna livre (vida plena, graça, realização de s i).
Seguimento: o ato de seguir a Jesus Cristo,' decidindo-se por ele, e a
condição de vida que daí deriva.
Semântica: estudo do significado das palavras e enunciados. Semântica
do mistério: estudo do sentido e conteúdo da linguagem com que se
apresenta a fé revelada; a expressão designa também o conjunto
desse aparato lingüístico.
Sinótwos (Evangelhos ) : Evangelhos de Mt, Mc e Lc que, por suas seme­
lhanças, podem ser escritos em colunas paralelas e lidos num só
golpe de vista” (em grego: sinopse). O problema de tais seme-
lhanças (e dissemelhanças) constitui a questão sínótica.
Substância: “o que está embaixo”, o que uma coisa é, a sua essência.
Soteriologia: doutrina teológica referente à “salvação” (em grego: soté-
ria ). Em Cristologia é a reflexão sobre a atividade salvífica de Cris­
to, sempre unida à reflexão sobre a sua pessoa (ao contrário da se­
paração que fazem os manuais entre Cristo em si e Cristo para
n ós). r

358
Subordinacionismo: doutrina rejeitada pela Igreja, segundo a qual o
Verbo está subordinado ao Pai, não sendo de igual natureza com

Tematizar: tratar como tema, explicitar, formular conceitualmente, foca­


lizar o que está implicitamente presente na consciência.
Teofania: “aparição de Deus”, o tornar-se visível da divindade.
Tetragrama: as quatro letras do nome hebraico de Deus, Iahweh que
eram escritas mas nunca deviam ser pronunciadas, em sinal de ve­
neração para com a transcendência inatingível. Em seu lugar lia-se
a expressão Adonai (Senhor). . .
Torá' nome hebraico da Lei divina, contida no Pentateuco (os primei­
ros cinco livros da Bíblia: Torá escrita), comentada e explicada pelos
doutores da Lei (Torá oral). . . .
Transcendental: o que está no sujeito como estrutura objetiva indepen­
dente dele no seu constituir-se.
Transcendente: o que está fora do sujeito.
União hipostática ou pessoal: união das duas naturezas de Cristo —-
divina e humana — no único sujeito ou pessoa (hipostase), que e
o Verbo.
Verbo: Palavra do Pai, Logos (v.).

359
ÍNDICE

5 Introdução
Primeira parte

CRISTOLO GIA E HISTÓRIA

9 1. A cristologia na história
(Que sentido tem falar de Cristo hoje?)
10 1.1. A provocação do mundo secular e da práxis de
libertação
10 a) “O cântico do Senhor em terra estranha” (SI
137,4): a “pretensão” cristã diante da cida­
de secular
17 b) “Onde está o Espírito do Senhor ali há liber­
dade” (2Cor 3,17): a “pretensão” cristã diante
dos sistemas de opressão
23 1.2. O problema da dor e da obscuridade do futuro
23 a) O problema da dor: a “pretensão” cristã dian­
te do sofrimento humano
27 b) O problema do futuro: a “pretensão” cristã
diante do futuro do homem
34 1.3. A sedução do Deus revelado e oculto
38 1.4. Uma tarefa: Teologia-Igreja-mundo
42. 2. A história na Cristologia
(Como falar de Jesus Cristo aos homens de hoje?)
42 2.1. Consciência histórica e teologia cristã
49 2.2. Mudanças da práxis eclesial e teologia
53 2.3. Por uma cristologia como história

Segunda parte

H ISTÓRIA DA CRISTOLOGIA
65 3. A esperança de Israel
(Antigo Testamento e cristologia)
65 3.1. O Deus da promessa
72 3.2. Formas messiânicas da espera
72 a) O messianismo profético
76 b) O messianismo régio
80 c) O messianismo sacerdotal
82 d) O messianismo apocalíptico
87 4. A plenitude do tem po
(Cristologia do. Novo Testamento)
87 4.1. O ponto de partida: a ressurreição
104 4.2. O problema histórico da relação entre Jesus pré-
-pascal e o Cristo pós-pascal
115 4.3. O problema teológico da relação entre o Jesus pré-
-pascal e o Cristo pós-pascal
120 4.4. A “releitura pascal” e os desenvolvimentos da
cristologia do Novo Testamento
136 5. D o querigma ao dogm a
(A fé cristológica da Igreja)
138 5.1. Do querigma ao dogma: uma história
152 5.2. Do dogma ao querigma: um confronto
158 5.3. Querigma e dogma: um projeto

Terceira parte

CRISTOLO GIA DA H ISTÓ RIA


165 6. Cristologia da palavra e d o silêncio
(Introdução à cristologia da história)
176 1. A história humana de Deus
Uma pessoa divina sujeito de uma história humana?
176 7.1. A identidade na contradição: a relação entre Jesus
e Deus na fé das origens
180 7.2. A unidade na dualidade: a relação entre Jesus e
Deus no dogma cristológico
188 7.3. A história humana de Deus: a relação entre Jesus
e Deus em perspectiva histórica

JESUS DE NAZARÉ, H ISTÓ RIA DE DEUS

207 8. Uma verdadeira história


(A consciência que Jesus tem de sua história)
207 8.1. A história de Jesus de Nazaré
212 '*fc>8.2. A consciência que Jesus tem de sua história
235 8.3. Revelação e seguimento
242 9. Uma história d e liberdade
(Jesus, homem livre)
242 9.1. A opção fundamental de Jesus de Nazaré
251 9.2. A liberdade do Profeta galileu no seu estilo de
vida e no relacionamento com o ambiente
251 a) A liberdade de Jesus no seu estilo de vida: o
pobre
254 b) A liberdade de Jesus no seu relacionamento
com o mundo político-social de seu tempo
266 c) A liberdade de Jesus no seu relacionamento
com a tradição religiosa de Israel
270 9.3. Revelação e seguimento
275 10. Uma história de finitude
(Jesus, o homem das dores)
277 10.1. O Evangelho dos sofrimentos
282 10.2. A cruz
297 10.3. Revelação e seguimento

JESUS DE NAZARÉ, DEUS DA HISTÓRIA

305 11. Singularidade de Cristo


(Jesus, o Ungido do Espírito)
306 11.1. A confissão originária da singularidade de Jesus
Cristo
316 11.2. Confessar hoje a singularidade de Jesus Cristo
326 12. C ontem poraneidade de Cristo
(Jesus, o Vivente no Espírito)
327 12.1 Jesus, vivo e vivificante no Espírito
332 12.2. Jesus Cristo, Verdade, Caminho e Vida
351 Epílogo
(Uma conclusão que é um início...)
354 Lista de termos técnicos
. 1990
BR 116' Km 1 4 5 T 9 5 5 ^ — ^ 7 7 ^
“A cristologia de Bruno Forte se distingue por três as- <
pectos: é eclesial, é científica e é aberta aos proble- I
mas do tempo. Representa autêntica promessa e con- i
tribuição notável aos debates teológicos, que merecem «
atenção também na discussão teológica internacional. S
Digna de destaque sobretudo a profundidade espiri­
tual e o alento pastoral que emerge de cada capítulo.
Fazemos votos que este estudo original chegue quanto
antes à mesa de todo estudioso de teologia e de todo t
agente de pastoral, e chegue também às mãos do
maior número de leigos cristãos engajados” (W alter
K asper ).
‘‘Bruno Forte apresenta-nos uma cristologia de consi­
derável interesse sistemático e, ao mesmo tempo, em
consonância profunda com a vida concreta da Igreja.
É uma cristologia verdadeiramente ecumênica, porque
não se limita apenas a escutar os teólogos pertencen­
tes às diversas Igrejas, mas funda solidamente em Cris­
to, homem e Deus, uma reflexão sobre o Corpo ecle­
sial, colaborando para a reconciliação das Igrejas di­
vididas” ( F r . M ax T hurian).

B runo F o r t e , 3 6 anos, é doutor em teologia e em filosofia. Ensina cris­


tologia na Faculdade Teológica da Itália meridional. É responsável pela
Associação Teológica Italiana. Publicou vários livros e numerosos arti­
gos em dicionários e revistas especializadas.
IS B N 8 5-0 5 -0 0 2 3 9 -3

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