Você está na página 1de 284

JOAO BATISTA

LIBANIO
TU..ç()I
1 r-,.... L;,e· -;
- 'A
-Gi<.L.).

Publicações de Teologia, sob a responsabilidade da


Faculdade de Teologia
CES - Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus
C.P. 5024 (Venda Nova)
31611-970 - Belo Horizonte - MG
� (0**31) 3499-1608 - � (0**31) 3491-7421
<isices.bhz@zaz.com.br>

Coleção Theologica
/. Eu creio, nós cremos. Tratado da fé
J. B. Libanio, SJ
2. As lógicas da cidade
J. B. Libanio, SJ
3. lnculturação da fé. Uma abordagem teológica
Mario de França Miranda, SJ
4. Nas fontes da vida cristã. Uma teologia do batismo-crisma
Francisco Taborda, SJ
5. Crer no amor universal. Visão histórica, social e
ecumênica do "Creio em Deus Pai"
Carlos Josaphat, OP
6. Igreja, povo santo e pecador
Álvaro Barreiro, SJ
7. Jesus e a Política da Interpretação
Elisabeth Schüssler Fiorenza
8. A Religião no início do milênio
J. B. Libanio, SJ
JOÃO BATISTA
LIBANIO

A RELIGIAO NO
INÍCIO DO MILÊNIO

fdkõesloyola
Direção
Fidel García Rodríguez, SJ
Edição
Marcos Marcionilo
Preparação
Maurício Balthazar Leal
Diagramação
Teima dos Santos Custódio
Revisão
Sandra Garcia Custódio

Edições Loyola
Rua 1822 nº 347 - lpiranga
04216-000 São Paulo, SP
Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP
eh: (0**11) 6914-1922
�: (0**11) 6163-4275
Home page e vendas: www.Ioyola.com.br
Editorial: loyola@Ioyola.com.br
· Vendas: vendas@loyola.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra
pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma
e/ou quaisquer meios /eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema
ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN: 85-15-02567-1
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002
Ao Padre Lauro,
pároco, irmão e companheiro nas lides
pastorais,
e à maravilhosa comunidade eclesial
Nossa Senhora de Lourdes, Vespasiano,
em sinal de gratidão, estima e esperan­
ça sempre maior.
Sumário

Introdução............................................................................................................ 11

Capítulo I: O fato do ressurgimento religioso ................................................. 15


1. A,11xc10 D:\ MORTE DA RELIGIÃO............................................................... 15
II. At:GE DA SECUI.AR.12:\ÇÃO .......................... ................................................ . 15
III. CO!\\'ERGÉKCI.-\ PARA O SILÉKCIO DA RELIGIÃO ............................................. 16
IV. REAÇÃO TEOLÓGIC.-\ . .................................................................................. 17
V. ANúKCIOS DA EXPLOSÃO RELIGIOSA ............................................................. 21
VI. Sl'RTO Fl'NDAMENTALISTA .......................................................................... 22
VII. CEXARIO RELIGIOSO BRASILEIRO .................................................................. 24
VIII. ÜS NOVOS MOVIME:s!TOS RELIGIOSOS............................................................ 31
IX. RENOVAÇÃO C.-\RISMATICA CATÓLICA ......................................................... 33
X. MOVIMENTOS DE VIDA COMUNITAR!A .......................................................... 35
XI. NovA ERA .................................................... .............................................. 36
XI. PESQUISA ENTRE UNIVERSITAR!OS ................................................................. 39
XII. SECULARIDADE SAGR..\DA ............................................................................. 41
Co:sic1..usAo ........ ................................................. ......... ...................................... 42
BIBLIOGRAFIA . • ................... ................................................................................. 44

Capítulo II: Compreensão do fenômeno religioso .......................................... 45


l. INDICA<,:OES METODOLÓGICAS ............................... ........... ........................... 45
II. CAt:SAS CO:s!TEXTUAIS ECO!\Ó�·IIC:\S E POLiTIC:\S ...................... , ................... 47
III. CAt.:S.-\S coNTEXTU:\IS cn.n:R.-\1.-FILOSóFic:\s ............................................. 59
IV. CAt·s.-\S C:ONTEXTl'AIS RELIGIOSAS............................................................... 64
V. CAl ·s,-\S PSICOUXilC.-\S ................................................................................ 77
VI. C.-\l'S:\S ESTRLTCR.\IS FTI.OSÓFICO-TEOLOG.\IS .............................................. 79
CoNcLt:sAo ........................................................................................................ 83
BIBLIOGRAFI.\ ..................................................................................................... , 84

Capítulo III: Delimitação dos campos semânticos.......................................... 87


I. TRFA� C\MPOS SE�IÀ.\:TICOS: �1ICR<.lCU.Tl'RA ................................................ 87
II. NECJ::SSll):\OE l>A l>ISTI:-.:ÇÃO: R.\ZAO METOIXlLÚGICA. ................................... 88
III. ÜEFl!',;1<,:Ao IX)S CA�!POS SE�1/\KTICOS E SCAS REL-\ÇÔES ................................ 89

7
Religião como instituição e ação na sociedade........................................... 89
Religiosidade, espiritualidade, mística....................................................... 91
Fé e teologia .............................................................................................. 98
IV. Fu:s:DA.\IE:S:To D.-\ DISTIM;.-\o ........... ...................................... ............. ........ 99
V. REL:\ÇAO ENTRE AS TRÉS RE:\LIDADES ........................................................... 100
Religião e religiosidade .......................... .................................................... 100
Religião efé ............................... ............................................................... 1 O1
Fé e religiosidade....................................................................................... 104
Co:s:cr..cs:\o ........................................................................................................ 105
BIBLIOGR:\FIA ......................................................................... ............... .............. 10 ()

Capítulo IV: Religião como instituição. Desafios e respostas ........................ 111


l. CONSIDERI\ÇÔES METODOLÓGICAS .......................... ................................... . 111
II. PRESENÇ:\ DA RELIGIAO E!'-.! Mm1E:S:TOS D:\ HISTORI.\ .................................... 114
III. MOMENTO DO TRADICIONAL S1:-JCRÉTICO ..................................... ........ ....... 115
IV. M0t--.1ENTO DA MODER"s!DADE ECLESl."8TICA:
Pt:RIFICAÇ:\O D:\ IDENTIDADE POPCLAR PEL.:\ TRILJE:S:TI:S:IZ:\<_;.-\O ..................... 119
.
V. MoME�TO DA �IODER..\;ID1\DE PÓS-CRISTA: PRI\ :\TIZ:\Ç.-\0 D:\ RELIGI:\o ········· 122
A modernidade social destrona a religião ......... ......................................... 123
A onda recente de secularização ............................................................... 125
A modernidade científica e tecnológica desqualifica a religião................... 127
A modernidade filosófica abala os alicerces da Transcendência ................. 129
VI. Mo�!E�TO D.\ DESPRl\'.\- TIZ.-\ÇAO D.\ RELIGL-\0 ............................................. 134
Significado geral ....................................................................................... 134
Projeto europeu .......................................................................................... 13b
Projeto latino-americano........................................................................... 137
VII. MO'.!E:S.:TO DE REPRl\:\TIZ:\<,:ÃO DA RELIGIAO........... ..................................... 139
VIII. N:\o H.-\ RET01:1.:s:o 1 );\ RELIGJ.\o ................................................... ................ 151
IX. RJ.:,PoST:\S Tl:\ RELIGl.-\0 lll.-\:--.,E DA SIIT.\ÇÃO .-\TC:\L ................................... 152
X. .A,. RELK;J:\O SE F.'\Z :-.:EOLIBER-\L E O �EOLIBER-\LIS�10 SE FAZ RELIGIÃO ............ 152
Neoconservadorismo americano ................................................................ 152
Teologia da prosperidade ........................................................................... 155
Lingual{em pseudo-relil{iosa do sistema...................................................... 157
XI. .A.. RELl(,IAO .-\SSl�IIL-\ A CL:LTUR..o\ POS-MODER..'IA ........................................... 160
Globalização sem identidade: nova era como expressão
relil{iosa da cultura pós-moderna ............................................................... 160
XII. .A.. RELila:\o FECH:\-SE Dl:\.'ITE DA cu:ruRA MODEKNA
E PóS-�!ODER'\:\ NL:M.". :\TITUDE DEFE!'IISIVA .................................................. 162
Budismo no Ocidente ................................................................................ 162
Minoria cognitiva ..................................................................................... 165
Identidade com pseudo-abertura à globalização (inclusivismo) ................. 166
XIII. .A,. RELIGIÃO NÃOS() SE CER!I.J\ DIANTE DA CULTUR,\ MODERN,o\ E POS-MODERN,o\,
MAS TAMBÉM TOMA CMA ATITCDE AGRESSIVA CONTRA EL-\ ............................ 167
Fundamentalismos .................................................................................... 167

8
Nconmsc•rt•adorismo ,·atólico .................................................................... 170
Pentecostalismo e neopentecostalismo ........................................................ 170
XIV. A RELIGIAO ENFREKT:\ Ü SISTEM1\ 1'EOLIBER:\L,
A CULTCR:\ �10f)ER..'-.-\ E PÚS-�1om:RK\ ......................................................... 171
Concentração católica ............................................................................... 171
Igreja da libertação ...................... ............................................................. 175
XV. O Ft.:TL.RO f).-\ RELIL;J:\U ........ ...................................................................... 182
O futuro ambíguo da religião diante da fraqueza da razão pós-moderna .. 182
A união das religiões em torno das causas éticas ....................................... 184
As religiões e o diálogo entre si ................................................................... 189
As religiões e as ciências .... .. .. ...... ... . ........ .................................................. 198
A religião, a ciência e o feminismo ............................................................ 202
As religiões na conjuntura política atual ................................................... 204
O futuro das igrejas pentecostais ................................................................ 208
Religião como futuro dos pobres................................................................. 211
CO!'-:CLL'SAO ........................................................................................................ 215
BIBLIOGR-\FI:\ ······································································································ 216

Capítulo V: A religiosidade e a fé cristã ............................................................ 219


1. QL:E�I É O SUJEITO QL'E BllSC.-\ NA SCA INQUIETL:DE
:\LGUM .-\Ll�IE:-:TO RELIGIOSO? ..................................................................... 219
II. O QL'E SE BUSC.-\? ........................................................................................ 227
III. QVEM OFERECE? ......................................................................................... 234
Qualquer religião ou igreja ........................................................................ 234
Nova era ................................................................................................... 236
Renovação Carismática ............................................................................ 236
Neopaganismo .......................................................................................... 237
Religiosidade do simulacro ........................................................................ 246
IV. COMO COMPORTAR-SE EVA1'GELIZADOR,\�1EI\TE
DIANTE no FENÜMENO RELIGIOSO? .............................................................. 247
Momento de autocrítica ............................................................................ 247
Evangelizar a religião das necessidades e do milagre ................................. 248
Evangelizar a religião do consolo .............................................................. 251
C( >:-:CLLTSÀO ........................................................................................................ 264
BIBLIOL,Ri\FIA ...................................................................................................... 265

Conclusão ............................................................................................................. 26 7

Bibliografia .......................................................................................................... 273

lndice de nomes ................................................................................................... 277

9
Introdução
A travessia da questão do crer pelas
águas sociológicas não existe por si
mesma, mas trata-se de conduzir o bar­
co conceituai às águas teológicas.
PEDRO RUBENS F. ÜUVEIRA

As evidências impõem-se. "O religioso é, de agora em diante, um com­


ponente essencial da cena geopolítica mundial. " 1 Mais o fato que sua expli­
cação. O fenômeno religioso está aí a explodir para qualquer um ver. As
explicações multiplicam-se conforme as óticas.
Três preocupações movem-nos a estudar tal surto religioso: ver, explicar e
evangelizar. Antes de tudo, vê-lo bem. Teilhard de Chardin chamava-nos a
atenção para a importância de ver. Ato humano de maravilhar-se diante dos
fatos e buscar suas explicações. Ajudamo-nos de diferentes perspectivas para
entender melhor. Cada saber é um lugar epistemológico. Cada lugar possibilita
e interdita. A experiência física de ver ensina-nos que cada posição nos abre um
ângulo de visão, mas, ao mesmo tempo, fecha outros. Assim conhecemos a
realidade a partir de ângulos limitados. Quantos mais olhares, mais visões.
Depois de ver o fenômeno em sua pluralidade estonteante, nos debruça­
remos sobre as interpretações dos diversos saberes. Pediremos emprestadas
explicações e compreensões para empreender melhor a tarefa principal de
evangelizar a realidade.
A descrição do fenômeno ocupará o primeiro capítulo. De dentro do
anúncio da morte da religião e da secularização em avanço, brota o rebento
robusto e cheio de vida das mais diferentes expressões religiosas. Para uns foi
surpresa inesperada. Outros já o anteviam. Hoje todos já se deram conta
dessa realidade que nos envolve. A pluralidade das formas revela bastante de
sua natureza. Aponta para interpretações diferenciadas.

1. M. Clévenot, L'état des religions dans le monde, Paris, La Découverte, 1987, p. 4, cit. por J. M.
Velasco, EI ma/estar religioso de nuestra cultura, Madrid, Paulinas, 1993, 16.

11
No segundo capítulo, as aproximações explicativas encontram luzes no
contexto sociopolítico, econômico, cultural e religioso. Aí os fatores são
muitos. A queda do socialismo, a regência solitária do neoliberalismo, o can­
saço da militância, a crise da secularização, o enfraquecimento da razão ilu­
minista, a decepção com os mitos da modernidade - progresso, ciência,
tecnologia, razão instrumental dominadora-, o enfraquecimento das reli­
giões institucionais, reação à repressão do registro religioso pessoal, a indo­
mável dimensão transcendente do ser humano etc. Tudo converge para pro­
piciar um clima de eclosão religiosa.
A fim de encontrar maior clareza a respeito desse fenômeno, o capítulo
terceiro delimita três campos semânticos: religião, religiosidade e fé. A reli­
gião diz respeito ao aspecto institucional que estrutura ritos, símbolos, dou­
trinas, mitos e que os transmite para serem vividos por uma comunidade de
fiéis. A religiosidade é vista antes como a dimensão subjetiva das pessoas,
que busca satisfazer-se com os produtos religiosos à disposição. A fé relacio­
na-se principalmente com uma Revelação, com uma Palavra Transcendente
que pede conversão e prática. No concreto da vida das pessoas, esses três
universos entremesclam-se. Mas uma certa clareza conceituai ajuda a inter­
pretar melhor a realidade.
O quarto capítulo, mais longo, dedica-se à religião enquanto instituição.
Além de breves considerações metodológicas sobre a relação entre religião e
sociedade, um primeiro momento concentra a atenção sobre o percurso da
religião, entenda-se principalmente catolicismo, na realidade brasileira. Não
se trata de nenhum estudo histórico, mas de pinceladas de situações diversas
do catolicismo. A sucessão histórica não implica um revezamento completo
do período anterior, mas assinala a predominância de um aspecto, embora
vários coexistam. O catolicismo viveu um momento tradicional marcado pela
influência lusa, já ela sincrética, em contato com a cultura afro-indígena.
Chocou-se com ele uma modernidade eclesiástica que tentou "purificá-lo",
clericalizando-o e trazendo-o para dentro de parâmetros definidos na iden­
tidade tridentina. Embate mais violento é o que a religião trava com a mo­
dernidade pós-cristã que a destrona, seculariza, destradicionaliza, desquali­
fica, lhe abala os alicerces, privatizando-a e subjetivizando-a. Em contra­
reação, desencadeia-se um processo eclesial e teológico de desprivatização
com preocupações crítico-sociais tanto na Europa quanto em nossas plagas.
Sobrepõe-se ultimamente um revigoramento da subjetivação e privatização
da religião. Hoje freqüentam nossa realidade religiosa todas essas correntes
num pot-pourri único. Debruçamos finalmente sobre esse último fenômeno
perguntando-nos se, de fato, houve ou não um retorno da religião e como ela

12
se situa diante de tal situação marcada pela cultura pós-moderna e pelo sis­
tema neoliberal. Indicaremos cinco posições que vão desde a defesa e promo­
ção do atual sistema até sua crítica radical passando por atitudes de isola­
mento defensivo ou agressivo.
Fechando o ciclo das reflexões, o capítulo quinto submete o fenômeno
religioso, sob a forma de religiosidade, à crítica da fé cristã. Tipifica-se o
sujeito que busca sequiosamente expressões religiosas. Pessoas freqüente­
mente desconectadas de instituições religiosas, ou insatisfeitas existencial­
mente nessa sociedade hedonista e consumista, ou à busca de experiências
diferentes até mesmo de um sagrado selvagem, ou nas situações humanas
mais diversas. E as ofertas também são plurais, das mais místicas e espiri­
tuais às mais próximas de grupos psicodélicos. Quem oferece não tem im­
portância. Sejam elas instituições tradicionais ou denominações religiosas
autônomas. Importa é o produto oferecido que satisfaça a demanda pessoal.
Nesse clima vicejam movimentos carismáticos, neopentecostais, nova era,
neopaganismo. E que impacto tal situação causa na fé cristã e o que ela tem
a dizer? Com reflexões que respondam a tais perguntas conclui-se o percurso
teórico do livro 2 •

2. /\presento algumas idéias desse livro no artigo: O paradoxo do fenômeno religioso no início do
milênio, in Perpectiva teológica 34 (2002), pp. 63-88.

13
CAPITULO I

O fato do ressurgimento religioso


Uma chuva de deuses cai dos céus nos
ritos funerais do único Deus que sobre­
viveu.
l. KOLAKOWSKI

1. ANÚNCIO DA MORTE DA RELIGIÃO

A Ilustração, com sua forte crítica à religião, anunciava seu lento,


mas constante e implacável desaparecimento. Movimento que se pro­
cessava a partir das classes letradas em direção às classes populares tradicio­
nais, passando pela rápida e forte secularização das classes operárias. Não se
tornara proverbial a frase de Pio XI: "A grande desgraça da Igreja no século
XIX é ter perdido a classe operária"? Enfim, era uma questão de tempo o
ateísmo atingir os últimos rincões religiosos.
Tal onda cresceu ainda mais depois da Segunda Guerra Mundial, que
mexeu profundamente com os valores da cultura européia, afetando direta­
mente a prática religiosa. O avanço espetacular da tecnologia, o bem-estar
social promovido pelos "milagres econômicos" arrematavam um processo de
desgaste das instituições religiosas, que pareciam ancoradas no mundo da
pré-modernidade.

II. AUGE DA SECULARIZAÇÃO

No auge do fenômeno da secularização na década de 1960 e inícios de


1970, retomou-se com toda a força o grito de "o louco" de F. Nietzsche:
Deus morreu. Seus textos voltaram à baila. Releram-se textos de Heine,
que ouve os sinos tocarem finados para o enterro de Iahweh 1•

1. H. de Lubac, Le drame de l'humanisme athée, Paris, Éditions Éditions du Cerf, ;1983, pp. 45s.

15
Agonia de lahweh
"Nosso coração... está cheio de um frêmito de compaixão: pois é o pró­
prio velho lahweh que se prepara para a morte.. . Não escutais o repicar
dos sinos? De joelhos! Levam-se os sacramentos a um Deus que morre. " 2

Recordou-se de Jean Paul, que sofreu do pesadelo ateu de destruírem


"todos os sentimentos favoráveis à existência de Deus". Mas acordara ain­
da com a alegria de poder adorar de novo a Deus\ Heidegger interpretou
mais longe ainda a "morte de Deus" como o destino da metafísica oci­
dental. Esta distinguia na esteira de Platão um mundo sensível e supra­
sensível. Considerava o mundo supra-sensível como verdadeiro, real, sus­
tentando e determinando o mundo sensível, fixando-lhe o horizonte. Era
o mundo dos ideais, da medida, dos valores, do verdadeiro, do bem e do
belo, o qual cumpria a função de fim que tudo iluminava e determinava.
Morte de Deus significava que a estrutura fundamental de tudo quanto
existia se quebrara 4 .
Programática tornou-se a carta de D. Bonhõffer de 30 de abril de 1944.
Do fundo da prisão nazista, anunciava que "passou o tempo da religião" e
que "marchamos para uma época sem religião alguma" e questionava o "a
priori religioso" sobre o qual se baseara nossa evangelização\ Texto que fez
escola, vindo de um mártir da repressão nazista.

III. CONVERGÊNCIA PARA O SILÊNCIO DA RELIGIÃO

Enfim, era uma convergência gigantesca que vinha de todas as ciências


- ciências naturais, antropologia, psicologia, sociologia política, da prática
das pessoas (ateísmo prático e indiferentismo), das cosmovisões circulantes
para reduzir a religião ao silêncio e Deus a um retiro afastado de nossa rea-

2. H. Heine, De l'Allemagne depuis Luther, in Revue des Deux Mondes 4 (1834), p. 468, cit. por
H. de Lubac, op. cit., p. 46.
3. Jean Paul, Sãmtliche Werke, I. Abt./6 Bd. Org.: K. Schreinert, Weimar (1928), pp. 247ss., cit.
por H. Zahrnt, Die Sache mit Gott. Die protestantische Theologie im 20. ]ahrhundert, München, R. Piper,
1968, p. 158.
4. H. Zahrnt, op. cit., p. 159.
5. D. Bonhõffer, Resistência e Submissão, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, pp. 130s.

16
tidade. A secularização impunha-se como evidência. Discutia-se-lhe a
interpretação 11 •

Consenso anti-religioso
• Os cientistas de hoje podem no máximo imaginar sob uma interpretação
religiosa das leis naturais uma opinião pessoal aduzida do próprio pensa­
mento, provavelmente de caráter mítico, certamente sem qualquer relação
de necessidade lógica com a noção da lei da natureza mesma. Não há boa
vontade nem zelo religioso que possam fazer retroceder este processo. " 7
• Quase todos os antropólogos da minha geração - creio - sustentariam
que a fé religiosa é uma ilusão. um curioso fenômeno que logo será extinto
e que poderá ser explicado com expressões tais como 'compensação' e
'projeção', ou, como estabelecem algumas interpretações sociológicas,
algo que diz respeito à manutenção da solidariedade social. "8 "(As idéias
religiosas) são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes
desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses
desejos. "9 ·o homem é o mundo dos homens, o estado, a sociedade.
Esse estado, essa sociedade produzem a religião, uma consciência inver­
tida do mundo, porque são um mundo invertido ... A abolição da religião
enquanto felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real."'º

IV. REAÇÃO TEOLÓGICA

Diante desse anúncio da morte de Deus, reinterpretado na perspectiva


da secularização, vasta literatura teológica tomou posição. Duas linhas fun­
damentais demarcavam os extremos das interpretações:

6. S. Martelli, A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995: aí ele faz o elenco
de várias posições interpretativas da secularização, que são indicadas no texto: pp. 271-321. Mais à
frente, voltaremos a essa questão.
7. C. F. Weizsãcker, Die Tragweite der Wissenschaft, t. I, Stuttgart, 1964, p. 128, cit. por H. Zahrnt,
op. cit., p. 173.
8. E. E. Evans-Pritchard, A religião e os antropólogos, in Religião e sociedade, 1986, março, 13/
1. p. 11.
9. S. Freud, O futuro de uma ilusão, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas
de S. Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1969, v. XXI, p. 43.
1O. K. Marx, Contribución a la crítica de la filosofia dei derecho de Hegel. in K. Marx-F. Engels,
Sobre la religión, ed. por H. Assmann-Reyes Mate, Salamanca, Sígueme, 21979, pp. 94s.

17
Uma tendência de cunho apologético identificava secularização, secula­
rismo e ateísmo. A modernidade manifestava-se então na sua clareza atéia, ab­
solutamente irreconciliável com qualquer religião e fé cristã. Surge como sua
negação. O debate consistia em desocultar-lhe as raízes atéias para evitar que
elas avançassem mais sobre terrenos virgens e para arrancá-las enquanto possível.
Numa outra atitude, F. Gogarten tomava distância dos juízos descon­
fiados da secularização. Movido pelo "princípio de honestidade intelectual",
procurava "manter seu pensamento de acordo com a realidade" 11• Ora, a reali­
dade estava marcada pela secularização, iniciada nos princípios da modernidade.
Nessa atitude positiva, F. Gogarten e outros teólogos não opunham a
secularização à fé cristã. Introduziram uma distinção fundamental entre se­
cularização e secularismo. O secularismo é uma degeneração da seculariza­
ção. Em suas formas de ideologia e niilismo, contradiz à fé cristã. Mas a
secularização encontrava na tradição bíblico-cristã a verdadeira explicação.
As primeiras páginas do Gênesis são como uma carta magna em oposição à
deificação da natureza cósmica, animal e de personagens humanas das reli­
giões circunvizinhas. "Deus nos liberta das mãos dos deuses ... O mundo foi
desdivinizado por Deus." 12 As atitudes de Jesus em conflito crescente com
os poderes religiosos de sua época inspiram um cristianismo de seguimento,
de prática, a-religioso. Numa palavra, "a secularização segue ligada à fé cris­
tã e a desdivinização do mundo provém da revelação de Cristo" 1 .!. O cristia­
nismo se torna a "religião da saída da religião" 1 4. Nessa onda embarcaram
muitos teólogos católicos, invocando o espírito do Concílio Vaticano II.

Cristão secularizado
• Desta maneira orientados pelo Concílio Vaticano li (e creio que houve
suficiente abertura e passividade para deixar-nos guiar), temos agora em
nossas mãos os elementos necessários para entender e tentar viver o
ideal de um 'cristão secularizado', ao mesmo tempo fiel a Deus e Seu
Reino e aos homens e sua Cidade ... Não haverá força capaz de sustar
o atual processo histórico chamado 'secularização', que deseja ser e de
fato é um processo geral de libertação do homem e das instituições
humanas... É neste instante, o mais decisivo dos momentos da história

11. H. Zahrnt, op. cit., p. 167.


12. C. F. Weizsãcker, Die Tragweile der Wissenschaft, t. 1, Stuttgart, 1964, p. 93, cit. por H. Zahrnt,
op. cit., p. 185.
13. H. Zahrnt, op. cit., p. 192s.
14. M. Gauchet, Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard,
1985, p. 133.

18
humana, que deverá estar presente o Apóstolo de Cristo com seu fermento, o
Evangelho, para formar o 'cristão secularizado'. Poderá até ajudar no aceleramento
do processo de secularização, mas sob a condição de, enquanto seculariza,
deixar nos sulcos o divino fermento que transforma a massa. O santo cristão
secularizado será então o providencial apóstolo da cidade secular." 15

P. Berger exprimia bem o clima desse momento. Seu livro The Sacred
Canopy16 permitiu, como ele mesmo reconhece, ser interpretado "como um
conselho de desespero na busca de uma religião no mundo moderno", soan­
do como "um tratado sobre o ateísmo" 1•. Dois anos depois, escrevia outro
livro, de caráter mais simples e de divulgação, onde conjugava a tese de que
houve uma "evasão do sobrenatural do mundo moderno" 18 e que persistiam
rumores de Deus no mundo. "Se os sinais de transcendência se tornaram
rumores em nossa época, então nos podemos lançar na exploração destes
rumores- e talvez segui-los até sua fonte." 1�
P. Berger não conseguiu prever que os "rumores de anjos" au­
mentariam nas décadas seguintes seus decibéis a ponto de tornarem­
se um alarido, um gigantesco clamor religioso. Passamos da evidência
afirmada por Th. Altizer de que "devemos nos dar conta de que a morte de
Deus é um evento histórico, de que Deus morreu em nosso cosmos, em
nossa história, em nossa existência" 2 º para um contexto extremamente reli­
gioso. O cenário teológico, especialmente saxônico, fora dominado durante
alguns anos pelo "Movimento da Morte de Deus", com seus principais
corifeus: Th. Altizer, W. Hamilton, G. Vahanian, P. van Buren21• O bispo
anglicano J. Robinson ocupara em 1963 a lista dos mais vendidos com seu
livro Honest to God 22, uma espécie de ouverture da nova sinfonia teológica da
secularização, cujas partituras foram compostas por teólogos de grande peso:
P. Tillich, F. Gogarten, R. Bultmann e outros.
Quase quatro décadas depois, outro bispo anglicano, J. Shelby Spong
proclama-se discípulo e continuador de J. Robinson e prossegue numa
linha mais radical de desmitização, de secularização de seu anteces-

15. B. Kloppenburg, O cristão secularizado, Petrópolis, Vozes, :19;1, p. 2i9.


16. P. Berger, The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion, l\'ew York, Anchor
Books, 1969, trad. bras.: O dossel sagrado, São Paulo, Paulinas, 1985.
17. P. Berger, Um rumor de anjos, Petrópolis, Vozes, 19i3, p. 7.
18. P. Berger, op. cit., p. 13.
19. P. Berger, op. cit., p. 125.
20. Th. Altizer-W. Hamilton, Radical Theology and the Death of God, lndianapolis, Bobbes­
Merrill, 1966, p. 11. cit. por P. Berger, op. cit., p. 13.
21. Ch. Bent, O movimento da morte de Deus, Lisboa/Rio de Janeiro, Livraria Moraes, 1968.
22. J. Robinson, llonest to God, Bloombury, SCM Press, '-'1963, trad. port.: Um Deus diferente,
Lisboa, Moraes, 1967.

19
sor. Isso mostra que aquele processo de desmonte do cristianismo tradicio­
nal, embora obscurecido pelo surto religioso, ainda continua. Ele pretend�
levá-lo até o final. Os títulos de duas de suas obras já marcam esse objetivo:
Why Christianity Must Change or Die: A Bishop Speaks to Believers in Exile,
"Por que o cristianismo deve mudar ou morrer? Um bispo fala a fiéis no
exílio" (1998) e, mais recentemente, A New Christianity for a New World,
"Um novo cristianismo para um novo mundo" 23•

Reforma radical
"Estou quase certo de que a reavaliação do cristianismo que pretendo
desenvolver deve ser tão completa, a ponto de levar algumas pessoas a
temer que o Deus que elas adoraram tradicionalmente está, de fato, morren­
do. A reforma necessária hoje deve, na minha opinião, ser tão total que,
comparada com a Reforma do século XVI, esta pareceria uma festa de
criança. Retrospectivamente, aquela Reforma tratou primariamente dos
temas da autoridade e da ordem. A nova reforma será profundamente
teológica, com a necessidade de desafiar cada aspecto de nossa fé. Por­
que o cristianismo não pode continuar como uma irrelevante peça religiosa
de teatro, a que tem sido reduzido, procuro engajar as melhores mentes
do novo milênio nessa reforma. Espero que nós, cristãos, não temamos
diante da audácia do desafio. Enfrentamos hoje, como documentarei, uma
mudança total na maneira de as pessoas modernas perceberem a realida­
de. Esse desafio proclama que o modo com que o cristianismo foi tradi­
cionalmente formulado já não tem mais credibilidade. Por isso o cristianis­
mo, que conhecemos, manifesta crescentes sinais da rigidez de morte. " 24

O itinerário teológico de H. Cox reflete o deslocamento do secular


para o religioso. O livro The Secular City 25, de 1965, rodou o mundo nas
suas mais diversas traduções 26 • Texto também programático da seculariza­
ção. Antes de se findar o milênio, Cox escrevia outro livro no pólo oposto:
Fire Jrom Heaven: The Pentecostal Spirituality and the Reshaping of Religion

23. J. S. Spong, Why Christianity Must Change or Die: A Bishop Speaks to Believers in Exile, San
Francisco, HarperSanFrancisco, 1998; id., A New Christianity for a New World, San Francisco,
HarperSanFrancisco, 2000.
24. J. S. Spong, A New Christianity... , p. 8.
25. H. Cox, The Secular City: Secularization and Urbanization in Theological Perspective, New
York, Macmillan, 1965.
26. H. Cox, A cidade do homem: a secularização e a urbanização na perspectiva teológica, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1968.

20
in the Twenty-first Century - "Fogo do céu: a espiritualidade pentecostal e
a reconfiguração da religião no século XXl" 27•
A relevância da religião depois do longo período de marginalização, a
que a submeteu a razão ilustrada, já vinha sendo vislumbrada também no
campo da política. "Ouso afirmar", observava já nos inícios da década de
1970 W. Hennis, "que o grande tema político a ser oferecido ao resto deste
século não é o da linguagem, nem o das 'relações materiais", nem mesmo o
do comportamento, mas o da religião." 28

V. ANúNCIOS DA EXPLOSÃO RELIGIOSA

Verdadeiramente surpreendente é o emergir do fenômeno religio­


so. Também ele encontrou algumas vozes que o detectavam e o anunciavam
como uma onda crescente para o terceiro milênio. A citação mais recorrente
vem de K. Rahner: "Já se disse que o cristão do futuro ou será um
místico ou não o será". Para que não se entendesse "mística" de um modo
equivocado e hoje muito em moda, acrescenta: "Desde que não se entendam
por mística fenômenos parapsicológicos raros, mas uma experiência de Deus
autêntica que brota do interior da existência. Pois essa frase é realmente
correta e se tomará na sua verdade e no seu peso mais claramente a espi­
ritualidade do futuro" 29•
Entra na lista dos anunciadores do século XXI, como marcado pela reli­
giosidade, o literato francês A. Malraux. Esse testemunho soa mais estra­
nho porque não se trata de nenhum teólogo espiritual, mas de alguém que se
debateu entre a escuridão do agnosticismo e os lampejos de esperança no ser
humano. Em sua juventude, Malraux recusara terminantemente aderir à fé
cristã. Via nela um apaziguamento a que não aspirava. Em vez da fé tranqüi­
lizante, solução de conveniência, preferia a ávida lucidez. Levantou-se a
pergunta do absurdo, embora não tenha desposado a resposta niilista. Lu­
tando ao lado de muitos sistemas, não aderiu a nenhum. Percebia que o
século XX entrara em terrível crise espiritual. Ironicamente se perguntava:

27. H. Cox, Fire from lleaven: The Pentecostal Spirituality and the Reshapi ng of Religion in the
Twenty-first Century, New York, Addison-Wesley Publishing Company, 1995.
28. W. Hennis, Ende der Politik? Zur Krisis der Politik in der Neuzeit, in idem, Politik und
praktische Philosophie. Schriften zur politischen Theorie, Stuttgart, 197i, cit. por C.-F. Geyer,
Religionsphilosophie der Neuzeit. Klassische Texte aus Philosophie, Soziologie und Politischer Theorie,
Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999, p. 3.
29. K. Rahner, Elemente der Spiritualitat in der Kirche der Zukunft, in SchzTh, Einsiedeln,
Benzinger, 19110. vol. 14, pp. ]i5s.

21
"Para que ir à lua, se é para suicidar-se lá?". Pospõe para o século XXI o
tempo religioso, já que o século XX não amadurecera a ponto de produzir
uma resposta espirituaPº . De fato, aos 26 anos, escrevia: "Nossa civilização,
desde que perdeu a esperança de encontrar nas ciências o sentido do mundo,
viu-se privada de todo fim espiritual".1 1•

Malraux e o religioso século XXI


"O século XXI será o mais religioso da história." Malraux contesta ter dito
essa frase, por não saber nada disso. O que ele diz é mais incerto: "Não
excluo a possibilidade de um evento espiritual em escala planetária" (Le
Point - 1 O de novembro de 1975). "O problema capital do fim do século
será o problema religioso" (Preuves, março de 1955). "Trata-se exatamen­
te de reintegrar os deuses em face da mais terrível ameaça que a huma­
nidade jamais conheceu" CL 'Express, 21 de março de 199 D. A. Frossard
testemunha: "Em seu escritório, Malraux me confiou: este próximo século
será místico ou não será. Para ele como para mim, o estado místico é o
que permite ter acesso direto a Deus pela experiência" (Paris Match, 29
de agosto de 1991)32 •

Nos inícios da década de 1990, dois autores americanos esboçavam, a


partir de dados levantados por inúmeras pesquisas, as dez principais tendên­
cias do próximo século. A nona tendência reza: "Com a proximidade do ano
2000, há sinais de um redespertar religioso mundial em todas as frentes"·u.

VI. SURTO FUNDAMENTALISTA

No início deste milênio, assistimos ao trágico combate entre


fundamentalismos religiosos. Por causa da ação que destruiu as Torres
Gêmeas, tem-se travado enorme debate na imprensa. Não levando em consi­
deração os discursos nitidamente ideológicos e de visão míope, as análises
direcionam a interpretação a perceber a imbricação entre os fatores religiosos

30. L. Dantas Mota, Malraux. No caminho das tentações, São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 99.1OI.
]t. A. Malraux, [)'une jeunesse européenne, in Écrits, Grassei, 1927, p. 145, cit. por Ch. Moeller,
Literatura do século XX e Cristianismo. III. Esperança dos homens, São Paulo, Flarnboyant, 1959, p. 39.
32. Fonte de todas estas citações: J. Vemeth:, Nouvelles spiritualités et nouvelles sagesses. Les vaies
de !'aventure spirituelle aujourd'hui, Paris, Bayard/Centurion, 1999, p. 25.
3]. J. Naisbitt P. Abur<lene, Megatendências: as dez transformações ocorrendo na sociedade moder­
na, São Paulo, Abril/Círculo do Livro, 1983.

22
e políticos. ( �- F. Ci eyer constata que, depois da superação do conflito Oriente­
Ocidente, a religião se tomou um fator político a ser seriamente considerado 34.
Afirmação até certo sentido óbvia. A ideologia marxista assumira o lugar
de uma religião secular com seus dogmas, ritos, promessas, milagres, devo­
ções, liturgias, hierarquia, cultos, sacrifícios, escatologia. A ela milhões e
milhões se devotaram até a entrega de sua vida. Ima gine-se o abismo in­
sondável que surgiu de repente com o desmoronamento da ideolo gia
marxista, gi gantesco arcabouço substitutivo da religião. Haja religião
para preencher tal vácuo!
O neoliberalismo sobrou sozinho desse naufrágio dantesco. O pen­
samento único parecia não necessitar de nenhum fundamentalismo para so­
brepor-se ao nada. Em sua hegemonia solitária, sentia o gosto do triunfo
total sem opositor. Os Estados Unidos visibilizavam e simbolizavam, em
grau máximo, tal vitória e senhorio. Eis que, porém, o seu coração simbólico
foi atingido de cheio pela derrubada das Torres e pelo ataque ao Pentágono.
Embora a absoluta hegemonia americana não tenha sido atingida nem física
nem economicamente, simbolicamente apareceu um adversário à altura: o
terrorismo diluído. Formiga que ameaça e inquieta o leão e o obriga a
coordenar forças para destruir a infiltração sutil desses pequeninos inimigos.
Parodiando Th. Luckmann, que falava de uma religião invisível na sociedade
secularizada, acontece na sociedade neoliberal monopolista um "terrorismo
invisível" que a ameaça radicalmente.

Rede terrorista
"Nestes últimos anos, especialmente após o fim da guerra fria, o terroris­
mo transformou-se numa rede sofisticada de conluios políticos. técnicos e
econômicos, que ultrapassa as fronteiras nacionais e se estende até abran­
ger o mundo inteiro. Trata-se de verdadeiras organizações, dotadas fre­
qüentemente de enormes recursos financeiros, que elaboram estratégias
em vasta escala, atingindo pessoas inocentes, de forma alguma envolvidas
nos objetivos que se propõem os terroristas. " 35

Nesse momento, emergem os fundamentalismos em todo o seu vi­


g or. O ataque à potência americana se revestiu de um colorido religioso no

.H. C. F. Geyer. Religionsphilosophie der Neuzeit. Klassische Texte aus Philosophie, Soziologie und
Politischer Theorie, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999, p. 3.
35. Mensagem do Papa João Paulo II para a Celebração do Dia Mundial da Paz, 1" de janeiro de
2002, n. 4.

23
discurso de líderes talebãs. Ai aparece de maneira transparente o fundamen­
talismo religioso. Não encerra nenhuma novidade. Já desde o final da década
de 1970, com a revolução religiosa islâmica do aiatolá Imam Khomein.i no
secularizado Irã, o fundamentalismo vem crescendo e ganhando força nos
países muçulmanos. uma célebre entrevista de Khomein.i à famosa jorna­
lista italiana Oriana Fallaci, ele, ao referir-se à revolução com seus milhares
de mortos, acentua o caráter islâmico de sua motivação.

Fundamentalismo islAmico
"Pelo Islã. O povo lutou pelo Islã. E o Islã significa tudo: até mesmo aquilo
que no mundo de vocês é definido como liberdade. democracia. Sim. o Islã
contém tudo. O Islã engloba tudo. O Islã é tudo. " 36

o entanto, o que não era de esperar é que uma das nações mais secu­
larizadas do mundo se vestisse da túnica fundamentalista cristã para
enfrentar o novo adversário do terrorismo. Os discursos do presidente
americano W. Bush apelam para a "justiça infinita", que é só de Deus, por­
tanto extremamente religiosa. Ele convoca a humanidade para uma guerra
que define como a do bem contra o mal. Tem dito várias vezes que quem
"não está com os EUA de modo eficiente, dando apoio concreto de pessoas,
armas, logística, está contra eles e contra a causa do bem. E pagará por isso".
Temos um simulacro da frase evangélica com a ameaça do castigo para quem
não seguir o chamado vindo da potência considerada encarnação do bem.
Atitude tipicamente religiosa.

VII. CENÁRIO RELIGIOSO BRASILEIRO

A explosão religiosa manifesta-se, entre nós, por uma multiplica­


ção exuberante de novas denominações religiosas. O Censo do IBGE
de 1991-1995 apontou para o surgimento de 4 mil que o Censo de 1980 não
identificara. Entre 1990-1992, 627 novas igrejas foram criadas somente no
Estado do Rio de Janeiro, numa média de cinco novas igrejas por semana,
uma por dia útil. A imensa maioria são pentecostais (91,27%) 37•
º
36. Oriana Fallaci, L Intervista aJl'ayatollah Khomeini, www.edicola/redazioni.shtml.
37. !BCE/Censo de I 991 André de Mello. Panorama Religioso Brasileiro, mimeo.. Rio de Janeiro.
I 996. cit. por C. James, Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças. in Perspec­
tiva teológica 28 (1996), pp. 157-182.

24
Mais recentemente, observa A. Antoniazzi, o Censo 2000 do IBGE à
pergunta: qual é a sua religião? "Encontrou cerca de 35 mil respostas diver­
sas, que reduziu a 5 mil, eliminando repetições e equívocos, e, f inalmente,
agrupadas em 144 respostas". Antoniazzi conclui que "a grande tendência
das últimas décadas ou da modernidade, no campo religioso, é a diversificação
e a fragmentação"38.
O ISER (Instituto de Estudos da Religião) e o CEDI (Centro Ecumênico
de Documentação e Informação) traçaram um mapa da diversidade reli­
giosa do país. Qualquer olho analítico, embora não o queira, contém um
mínimo que seja de juízo, de pressupostos anteriores, de a. prioris. O quadro
religioso presente vê-se povoado de grupos religiosos. Quem e que são eles?
O termo "seita" surge espontaneamente na Unguagem pastoral e po­
pular. A academia sente-se mal diante dele, apondo-lhe, pelo menos, aspas
para tirar-lhe qualquer odiosidade ou conotação negativa. Outros preferem
falar de "denominações religiosas", "minorias religiosas", "movimen­
tos religiosos" aos quais se acrescentam muitos adjetivos: livres, autôno­
mos, independentes, para-religiosos, pseudo-religiosos, pseudo-espirituais,
estrangeiros etc. 39 Seja como for, a proliferação de tais grupos impressiona e
pede-nos um mínimo de classificação, a fim de ser entendidos em suas dife­
renças e semelhanças.

Seita
"Seita é um grupo de tendência religiosa e filosófica que une seus adeptos
em tomo de um mestre reverenciado. Hoje, ela tende para tomar aspecto
paracientífico e, muitas vezes. terapêutico e se caracteriza também por
comportamento elitista, muito particularista e fechado. Demonstra intole­
rância mais ou menos marcante e proselitismo vigoroso, empregando pro­
cessos próximos da propaganda. " 4º

Em vez de descer a uma cartografia detalhada das expressões religiosas,


classificamo-las em grandes blocos com suas divisões internas. Há um res­
surgir das Grandes Tradições religiosas monoteístas, especialmente da

38. A. Antoniazzi, O Brasil ficou menos religioso? ln Vida Pastoral 43 (2002), n. 226, p. 32.
39. Para ver as classificações: L. Landim, Quem são as "seitas'"?, in L. Landim, org., Sinais dos
tempos. Igrejas e seitas no Brasil. Caderno do ISER, n. 21, Rio de Janeiro. ISER, 1989, pp. 11-21. Nesse
texto ela se refere à classificação feita pelo CELMI no seu texto sobre seitas na América Latina e pelo
Dossié do CEDI.
40. A. amuei, As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997. p. 302.

25
religião muçulmana41 • Embora se afirme uma desinstitucionalização das gran­
des religiões42 , um deslocamento da "religião perdida" para um "religioso
por todas as partes" 4 3, nas últimas décadas as estatísticas apontam para au­
mento das religiões. Outra coisa é saber se os membros dessas religiões as
freqüentam numa fidelidade institucional ou simplesmente encontram nelas
espaço para suas vivências religiosas até mesmo em choque doutrinal com
elas. Mais adiante, este ponto merecerá reflexão.
Outras grandes tradições religiosas do Oriente penetram lentamente
o espaço religioso, principalmente o budismo. As obras do Dalai Lama re­
cebem excelente acolhida. A sobriedade, a serenidade e o domínio sobre a
agitação dos desejos humanos atraem ao budismo os habitantes da sociedade
de consumo e ativismo. Sem ímpetos proselitistas, o budismo penetra lenta
e suavemente os corações perturbados de segmentos sociais de poder aquisi­
tivo mais alto.

Mundo religioso de matriz oriental


"O interesse pela religiosidade oriental não é novo. Desde o século pas­
sado, cresceu a fascinação - o feitiço da Ásia - pelo mundo religioso
oriental. O que então foi uma moda que circulava nos meios intelectuais
- lembremo-nos de Schopenhauer, Nietzsche - transformou-se nas
décadas de 1960 e 1970 num fenômeno amplamente difundido entre os
jovens, ansiosos por experiências religiosas novas. A peregrinação à Índia,
o contato com os 'gurus' começaram a atrair personagens famosos da
canção, mas também inúmeras pessoas. O resultado foi a presença de
grupos ou comunidades de inspiração oriental no Ocidente. De novo, a
visão unitária e uniforme do universo religioso ocidental rompe-se e estamos.
se não diante de um bazar religioso, ao menos diante de um certo
experimentalismo e contaminação religiosa oriental. " 44

41. R. Bartholo A. E. M. Campos, O Islã no Brasil, in L. Landim, org., Sinais dos tempos. Diver­
sidade religiosa no Brasil, Cadernos do !SER n. 23, Rio de Janeiro, !SER, 1990, pp. 159-116: o islamismo
é fundamentalmente de migração, desde os negros malês no século XVIII até migrações recentes e uma
onda de conversões, atraídas pela mística sufista.
42. M. Gauchet, La Religion dans la démocratie. Parcours de la laicité, Paris, Gallimard, 1998, p.
11: "O abandono da religião não significa abandono da crença religiosa, mas abandono de um mundo
no qual a religião é estruturante, no qual ela comanda a forma política das sociedades e no qual ela
define a economia do vínculo social", p. 11.
43. D. Hervieu-Léger, l,e Pelerin et le converti. ta religion en mouvement, Paris, Flammarion,
1999, p. 16.
44. J. M. Mardones, Para comprender las nuevas formas de la religión, Estella (Navarra), Verbo
Divino, 1994, pp. 118.120.

26
O tronco cri■tio esgalha-se em inúmeras igrejas e denominações reli­
giosas: Igreja Católica Romana, Igrejas orientais (em plena ou sem plena
comunhão com Roma), Igreja católica apostólica brasileira e suas dissidências,
Igrejas da Reforma (luteranos, reformados), protestantismo de missão (ba­
tista, congregacionais, episcopais, metodistas, presbiterianos), pentecostais
(Assembléia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Igreja de Deus, Igreja
Pentecostal), pentecostais autônomos (Casa da Bênção, Deus é Amor, Evan­
gelho Quadrangular, Maranata, Nova Vida, Brasil para Cristo, Universal do
Reino de Deus, outros), carismáticos (batistas de renovação, cristã
presbiteriana, metodistas wesleyanos, outros), pseudoprotestantes
(adventistas, mórmons, testemunhas de Jeová)45 .
Sob o epíteto de neopaganismo, que compreende práticas de "magia",
"ocultismo" e "gnosticismo", são citados: "astrologia, tarô, quiromancia, 1-
ching, budismo zen, maharishi, sufismo, magia negra, ufologia, hare krishna,
moon (Igreja da Unificação), cientologia, baha'i, Jim Jones, sinanon, família
Manson, meditação transcendental" 46• Acrescentem-se aos não citados a Seicho­
no-iê, Centro de Meditação Rajneesh dos sannyasins, Instituição Religiosa
Perfeita Liberdade, Ananda Marga. Fala-se também de neocristianismo para
designar pessoas que se sentem ligadas aos princípios fundamentais de Cristo,
sem, no entanto, vincular-se a nenhuma denominação cristã institucionalizada.
Elas buscam vivenciar em suas vidas novas formas cristãs.
Outra tipologia refere-se a práticas para-religiosas (teosofia, antropo­
sofia, rosa-crucianismo, maçonaria, magia, ocultismo, gnosticismo, astrolo­
gia, adivinhação, cultos esotéricos). Incluem-se aí expressões religiosas elen­
cadas acima como neopaganismo. Talvez esse termo caiba melhor no
reavivamento de deuses e expressões sagradas de religiões pré-cristãs.

Conhecer e dominar o destino humano


"O destino do ser humano é um dos lugares onde o jogo da fascinação
e do temor do obscuro se dá. A pergunta mais ou menos explícita sobre
o que será de mim, de meu futuro desconhecido, pôs-se sempre em
relação com o insondável da vida ... Confinando com a questão do destino
e unidos a sua fascinante e temível obscuridade, estão a sorte e o azar ...
Ao redor da obscuridade misteriosa do destino teceram-se desde anti­
gamente várias estratégias que hoje são redescobertas ou revividas como

45. Classificação apresentada por CEDI, Aconteceu, Suplemento especial. n. 548, Rio de Janeiro,
1990, p. 2.
46. L. Landim, op. cit., p. 15.

27
modo de dar uma resposta: vão do tarô aos horóscopos; das cartas
astrais à leitura do destino nas linhas da mão (quiromancia); da visão/
adivinhação à bruxaria e às tentativas de torcer o destino. Sobretudo os
horóscopos e sua presença generalizada até nos jornais sérios são um
indício dessa espécie de 'mana' 47 cotidiano que rodeia a vida de nossos
contemporâneos. " 48

As religiões mediúnicas (espiritismo, religiões afro-brasileiras) têm dois


tipos de presença no cenário religioso brasileiro. Uma explícita, clara e cres­
cente, sobretudo na forma afro. Outra mais profunda, menos identificável.
Permeia estratos subterrâneos da religiosidade, de modo que certo sincretis­
mo se torna conatural ao cristianismo brasileiro. Crenças na reencarnação, a
relação com os mortos, a ação dos espíritos na terra e outros fenômenos de
natureza espírita freqüentam a agenda cultural de nosso povo. Uma série de
fenômenos, tidos pelos cientistas como parapsicoló gicos, passam corno
expressões religiosas.
A influência religiosa indígena, xamanista é mais forte em outros paí­
ses da América Latina. No entanto, crescem no Brasil o Santo Dairne de
raízes indígenas e outras e a União do Vegetal, que usam em seus ritos a
bebida da ayahuasca (resultado da infusão de um cipó- jagube- e de uma
folha - chacrona) de efeitos alucinógenos.
Há formas religiosas ecléticas que não se enquadram em nenhuma
tipologia, já que se fazem, refazem e desfazem ao sabor dos indivíduos que
compõem sua própria religião com elementos tomados das mais diversas
expressões religiosas, de maneira seletiva, sem nenhuma preocupação com a
coerência doutrinal de seus elementos internos. Tal fenômeno reflete a atual
privatização da esfera religiosa.
Ao lado da fragmentação do campo religioso, gerando um pluralismo es­
tonteante, produziu-se um crescimento de templos, de lugares de culto, da
freqüência dos fiéis. A Assembléia de Deus ocupa o primeiro lugar em nível
de expansão. Os dados dos últimos anos confirmam um movimento crescente.
A expansão da I greja Universal do Reino de Deus é prototípica do
caráter pentecostal sincrético ou autônomo. Exemplo expressivo do atual rner-

4i. Expressão usada por C. Auclair, Le 'mana' quotidien. Structures etfonctions de la chronique des
faits diverses, Paris, Anthropos, lt 982. Mana é um termo religioso usado pelos melanésios, cujo sentido,
segundo o Dicionário Aurélio, é o conjunto de forças sobrenaturais provenientes dos espíritos e que
operam num objeto ou numa pessoa.
48. J.M. Mardones, Para comprender las nuevas formas de la religión, Estella (Navarra), Verbo
Divino, 1994, pp. 1.Bs.

28
cado religioso. A Universal alcança ampla difusão mundial por sua inserção
na globalização. Os números de seu crescimento espantam. Fundada em
1977, no Rio de Janeiro, possui uns 1. 700 templos e conta no Brasil com um
público flutuante de uns cinco milhões de fiéis, com mais de 3.000 pastores
numa faixa etária jovem (entre 25 e 40 anos) 49. Possui 30 emissoras de rádio,
além da Rede Record. Seu jornal oficioso indica uma tiragem de mais de um
milhão de exemplares 50•

Igreja Universal do Reino de Deus


"Embora pequena. genealogicamente pertencente ao deuteropentecosta­
lismo, a Igreja de Nova Vida desempenhou destacado papel como forma­
dora e provedora de quadros de liderança das duas maiores igrejas
neopentecostais do país: Universal do Reino de Deus e Internacional da
Graça de Deus ... Embora nascida de uma 'costela' da Nova Vida, a
Igreja Universal é seu oposto em matéria de expansão denominacional e
freqüência nas manifestações de poder divino e demoníaco na vida co­
tidiana dos fiéis. Inaugurando um templo por dia em média, a Universal
constitui o grande fenômeno atual do pentecostalismo nacional. Seu
crescimento, sobretudo a partir de meados dos anos 1980, quando co­
meça a adquirir as primeiras rádios, tem sido impressionante. O número
de templos chega a três mil, o de países atingidos supera cinco dezenas,
o de fiéis ultrapassa um milhão. Sua forte inserção na mídia e na política
partidária, sua competência administrativa, sua vertiginosa expansão no
Brasil e no exterior, bem como sua capacidade de mobilizar miríades de
fiéis em diversos Estados não encontram paralelo na história de nenhuma
outra grande denominação protestante brasileira. Em duas décadas de
existência, conseguiu a proeza de estar entre as maiores igrejas evangé­
licas do país. " 51

Estamos já no campo da "igreja eletrônica" 52, que cumpre um duplo


papel nesse contexto religioso. Potencializa as possibilidades de igrejas e de-

49. Outra fonte fala de 7.000 pastores: C. James, Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde
andam as forças, in Perspectiva teológica 28 (1996), p.165.
50. As informações foram tomadas de J. Edênio dos Reis Valle, A "Universal": um fenômeno
mercadológico-religioso brasileiro, in REB 58 (1998), pp. 350-384.
51. R. Mariano, Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo, Loyola,
1999, pp. 51.53s.
52. H. Assmann, A Igreja eletrônica e o seu impacto na América Latina, Petrópolis, Vozes/WACC/
ALL, 1986.

29
nominações religiosas aumentarem o clima religioso dominante. Além disso,
atravessa a vida humana de todas as pessoas que têm acesso aos programas de
rádio, às TVs, à Internet, tingindo-as com as cores religiosas das emissões. Tudo
fica religioso. Tanto mais forte ela se torna, quanto mais se vincula à "mercan­
tilização e marquetização da religião" com enormes implicações ideológicas.
Sua importância cresce à medida que o mercado da informação e o marketing
dilatam seus espaços. Embora tal "igreja eletrônica" só seja possível por causa
das condições socioculturais, econômicas e ideológicas do capitalismo avança­
do, ela se vincula, na imaginação do fiel, a figuras de pastores ou locutores de
excelente desempenho midiático. No Brasil, a pessoa do padre Marcelo Rossi
exprime tal fenômeno em grau elevado no mundo católico. Como pano de
fundo temos a "sociedade do espetáculo" em que vivemos. Sua expressão mais
ordinária - no duplo sentido de "ordem usual" e "má qualidade" - são os
programas de auditório dos domingos, nos quais, aliás, personagens religiosos
fazem aparições. Soldam-se aí os dois elementos do religioso e do espetáculo.
A matriz criadora de tal igreja é, sem dúvida, os Estados Unidos.
Qualquer reflexão sobre ela começa por lá. A política externa americana
realiza o casamento entre a exportação religiosa e a ideológica, de tal modo
que esse fenômeno religioso tem íntimas conexões com a dominação
economicocultural dos Estados Unidos 53 • Sem cair no exagero de uma teoria
conspirativa da história, há nele um "imperialismo religioso" 54. Existe dife­
rença importante da atuação dessa Igreja nos Estados Unidos e no Brasil. Lá
a via comunicativa principal é a TV e aqui são as emissoras de rádio que se
multiplicam ao infinito.

Igreja eletr6nica
"Igreja eletrônica é o nome que muitos vêm dando às características
próprias que foi adquirindo, nos últimos anos, determinado tipo de pro­
grama religioso nos meios eletrônicos, especialmente na TV. Não cabe
dúvida de que o fenômeno é de proporções cada vez mais gigantescas,
não apenas nos Estados Unidos da América, onde teve sua origem e
mais explosiva expansão, mas também nos países latino-americanos, onde
se faz presente tanto mediante programas importados como através de
programas gerados na região ... É fácil questionar o caráter de 'Igreja' da
assim chamada igreja eletrônica, porque predomina geralmente a figura
central de um manipulador espetacular que se esmera em cultivar aspec-

53. D. M. de Lima, Os demônios descem do norte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, •t989.
54. H. Assmann, op. cit., p. 18.

30
tos singulares do 'seu programa', procurando assegurar, em forma com­
petitiva com os demais, a sua própria clientela e até o seu próprio 'im­
pério televisivo' " 55•

vm. os NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS


Inscrevem-se no conjunto desse fenômeno os novos movimentos religio­
sos, que surgiram nas últimas décadas na esteira da agitação contracultural
desencadeada no pós-guerra, especialmente nos Estados Unidos 56• Dizem-se
novos cronológica e qualitativamente. Situados no momento presente, rom­
pem com formas religiosas representadas pelas religiões estabelecidas, embora
nem sempre sejam renovadores. Há aqueles que representam volta às origens
ou restauração de formas passadas. No entanto, reivindicam identidade nova,
exigem conversão. Não configuram nenhuma igreja, nem seita, nem denomi­
nação, nem culto. Organizam-se em grupos, mesmo sem elementos
organizativos, institucionais, dogmáticos, cúlticos. Evidentemente a religião
determina-lhes o universo unificativo. A tipologia abaixo indicada faz-nos
perceber sua relação ambígua com a modernidade e a pós-modernidade.
Os novos movimentos religiosos, embora se entrecruzem, deixam-se
classificar sob tipologias diversas. Cada uma oferece uma nuance nova para
entender essa explosão religiosa.
Analisando-os na sua manifestação nos Estados Unidos, na virada da
década de 1960-1970, D. Hervieu-Léger usa tipologia que tem também
pertinência em nosso meio. Distingue quatro tipos de movimentos. 1 º
tipo : movimentos evangélicos, fundamentalistas e pentecostais fervorosos,
tanto no seio da Igreja Católica e protestante quanto sob a forma de novas
seitas. 2 º tipo: religiões orientais (hinduísmo, budismo, sufismo etc.). 3 ° tipo:
grupos e movimentos orientados para a maximização do " potencial huma­
no" (Grupo Est, cientologia, meditação transcendental etc.). Esses grupos
desenvolvem potencialidades inexploradas da personalidade individual, uti­
lizando diversas técnicas de conscientização, de desinibição. Combinam aqui­
sições de uma psicologia vulgarizada e simbologias, práticas de ascese, de
meditação e de contemplação, hauridas nas mais diversas místicas orientais
e diversamente interpretadas. Enxertam-se nesses sincretismos psico-orien-

55. H. Assmann, A Igreja eletrônica, in L. Landim, org., Sinais dos tempos. Diversidade religiosa
no Brasil, Cadernos do !SER n. 23, Rio de Janeiro, !SER, 1990, p. 65.
56. Nessa apresentação apoiamo-nos nas considerações de J. M. Velasco, El malestar religioso de
nuestra cultura, Madrid, Paulinas, �1993, pp. 53-i9.

31
tais outros elementos de correntes higienistas, mais ou menos antigas, de
saberes e práticas naturopáticas. 4 º tipo: seitas ou cultos autoritários, centra­
dos freqüentemente na pessoa de um líder carismático, dotado de poder
considerável sobre os adeptos e fortemente contestados socialmente, como
foi o caso do reverendo Jim Jones em 1979 na Guiana 57 •
A mesma autora refere-se a T. Robbeins e D. Anthony, que propõem
uma distinção entre movimentos dualistas e monistas. Distinção bem
pertinente. Os movimentos dualistas acentuam o aspecto de protesto contra
a modernidade permissiva e relativista que tolera ou mesmo defende a por­
nografia, o aborto, o homossexualismo, os cultos não-cristãos. Comungam
com teses rigoristas, fundamentalistas. Os grupos monistas entram na onda
pós-moderna de uma "consciência universal". Afinam com a nova era, de
que se falará mais abaixo 58 •
R. Wallis estuda tais movimentos sob a ótica da relação com o mundo.
Assim tipifica atitudes fundamentais características de três classes de gru­
pos: movimentos que se acomodam ao mundo, mas rejeitam o formalismo
das instituições religiosas e sua cumplicidade com a sociedade secular. Há
aqueles que rejeitam o mundo, condenando a sociedade e seus valores, o
materialismo e o engodo do lucro. E um terceiro grupo que assume as rea­
lidades mundanas, tornando os indivíduos mais capazes de desbloquear seu
potencial psíquico, mental e espiritual, sem ter necessidade de retirar-se do
mundo. O seu mote é a libertação de si 59 •
J. Martin Velasco, a quem seguimos nessa exposição, cria sua própria
tipologia. Distingue três grupos. Um tipo surge das religiões auctótones do
Terceiro Mundo. Manifesta reação à cultura e religião mais avançada dos
colonizadores. Um segundo grupo se caracteriza como movimentos de reno­
vação no interior das grandes tradições religiosas pelo contato destas com
novas condições socioculturais modernas. E um terceiro grupo procede de
raízes filosófico-religiosas: gnósticas, esotéricas, ocultistas 60 •
Em relação à modernidade e pós-modernidade, os novos movimentos
apresentam, portanto, um tríplice movimento ora pendular, ora exclusivo.
Rejeitam a modernidade ou acomodam-se a ela e a aceitam ou fecham-se
diante dela, isolando-se.
Num esforço sintético, com o risco de generalizações rápidas, distinguem­
se em quase todos eles um conjunto de características. Respondem a novas

5 7. D. Hervieu-Léger, Vers un nouveau christiani=? lntroduction à la sociologie du christianisn'U1


occidental, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1986, pp. 14 ls.
58. D. Hervieu-Léger, op. cit., p. 169: aí indica a obra dos autores estudados.
59. D. Hervieu-Léger, op. cit., p. 171.
60. J. M. Velasco, op. cit., pp. 58-67.

32
necessidades da atual situação, o que as instituições religiosas não fazem.
Mantêm consciência aguda nos membros da situação de indigência por causa
da marginalização social, solidão, falta de comunicação, enfermidade, carência
de horizonte para a vida. Apresentam oferta de salvação presente de forma
renovada ao indivíduo concreto, devolvendo-lhe cura, alegria, segurança, com­
panhia, entusiasmo. Sua qualidade religiosa é garantida pela verdadeira busca
de salvação e a referência a um mais-além do humano como fonte única de
salvação. Buscam contato com o outro mundo pela via da experiência de si ou
transmitida por outros. A comunidade aconchegante ocupa lugar central com
ou sem a presença de líder carismático. Alguns conservam a sede proselitista.
Nem sempre perdem a vinculação com o grupo religioso de onde vieram.

IX. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA

O clima religioso no espaço católico tem sido marcado nas últimas


décadas pelo forte emergir dos novos movimentos religiosos, especialmen­
te da Renovação Carismática Católica. Caracterizam-se pela pluralidaJe,
variedade, crescimento rápido, ora integrados na instituição eclesiástica, ora
à margem dela. Mesmo quando integrados, o grau de verdade institucional
não parece claro.
Refletem e reforçam o clima religioso, numa tentativa de recuperar uma
dimensão sagrada perdida - têm caráter fundamentalista, tradicionalista -­
ou de empapar de nova religiosidade o cenário cultural. No primeiro caso,
exprimem crítica velada ou explícita à renovação que a Igreja Católica em­
preendeu a partir do Concílio Vaticano II e segundo seu espírito inegavel­
mente de corte modernizante e secularizante. O cardeal J. Ratzinger não
temeu mostrar sua decepção diante dos anos pós-conciliares quanto à reali­
dade da Igreja Católica.

Crepúsculo do Concílio Vaticano li


"O Vaticano li encontra-se hoje em uma luz crepuscular. Pela chamada 'ala
progressista·, há muito tempo ele é considerado superado e, por conse­
guinte, um fato do passado, sem importância para o presente. Pela parte
oposta, a ala 'conservadora', ele é julgado responsável pela atual decadên­
cia da Igreja Católica, e até se lhe atribui a apostasia em relação ao
Concílio de Trento e ao Vaticano 1: de tal forma que alguns chegaram a
pedir sua anulação ou uma revisão que equivaleria a uma retirada. É in­
contestável que os últimos vinte anos foram decididamente desfavoráveis

.B
à Igreja Católica. Os resultados que se seguiram ao Concílio parecem
cruelmente opostos às expectativas de todos. inclusive às de João XXIII
e. a seguir, do papa Paulo VI" Cibid., p.16). "Esperava-se um novo entu­
siasmo. e. no entanto, muito freqüentemente chegou-se ao tédio e ao
desencorajamento. Esperava-se um impulso para a frente, e, no entanto,
o que se viu foi um progressivo processo de decadência que veio se
desenvolvendo, em larga medida, sob o signo de um pretenso 'espírito do
Concílio' e. que. dessa forma, acabou por desacreditá-lo. " 61

E, por sua vez, no segundo caso, os novos movimentos apresentam-se


como verdadeiro Pentecostes para a Igreja. Não foram previstos por nin­
guém. Brotaram espontaneamente da vitalidade interior da fé. Despertam o
zelo missionário, a vida de oração, a alegria de uma fé contagiante. Suscitam
vocações sacerdotais e religiosas. Não surgiram de planejamento prévio, mas
por si, e não conflitam com a hierarquia h2•
Fazem-se presentes nos setores médios da sociedade, polarizam a atenção
pastoral. Possuem uma "densidade emocional e comunitária"h·1 • Sofrem uma
tensão no seu interior em relação à dimensão comunitária, gerando dois tipos
de vivência comunitária.
Na Renovação Carismática, predominam encontros comunitários
que valem por si mesmos. Alguns são bem esporádicos e em momentos
privilegiados. São megaencontros. Lotam estádios. Celebrações litúrgicas
de seus corifeus agrupam considerável número de pessoas. Outras pessoas
freqüentam regularmente os encontros semanais ou mensais dos grupos de
oração ou as celebrações eucarísticas. São tempos fortes de oração, de
experiência espiritual e de emoção. Não se criam necessariamente víncu­
los entre as pessoas, mas entre elas e o ato litúrgico. É questionável se
a celebração litúrgica cria um espírito comunitário ou se é simplesmente uma
prolongação do individualismo moderno e pós-moderno. O estar-junto não
implica, em muitos casos, nenhum compromisso com o irmão, mas simples­
mente um prazer e gozo individual. Isso reforça o individualismo do sistema
capitalista dominante, sendo-lhe mais um apoio que uma possível crítica. E
mesmo a dimensão espiritual não se faz instância questionadora nem do
materialismo nem do consumismo do sistema. Antes deixa-o intocado. Chega
até mesmo a espiritualizá-lo.

61. J. Ratzinger/V. Messori, Afé em crise. O cardeal Ratzinger se interroga, São Paulo, EPU, 1985.
pp.15-li.
62. J. Ratzingcr/V. Messori, op. cit., pp. 2is.
63. D. Hcrvieu-Léger, op. cit., p. 144.

34
Muitos orientadore■ percebem a fluidez doutrinal e pastoral de encon­
tros carismáticos que se restringem unicamente aos momentos de fervor es­
piritual, de revival. Tentam corrigir tal limitação insistindo em obrigações da
prática católica tradicional: confissão individual e comunhão eucarística, de
modo que o grupo de oração não seja o começo e o fim da experiência caris­
mática. Há então um toque de eclesialidade que vincula as pessoas à Igreja
institucional pela via dos sacramentos. Há outros grupos que promovem
cursos, "escola", "oficinas", retiros que exigem conversão, aprofundamento
e engajamento de seus membros numa verdadeira vida cristã e em prática
pastoral no campo social. Alguns grupos carismáticos assumem tarefa per­
manente na vida paroquial, como o curso de batismo, monitoria na formação
dos crismandos e outras atividades pastorais. Não faltam aqueles que se
entusiasmam e se transformam em evangelizadores no seu meio, sem natu­
ralmente a competência da antiga Ação Católica.

Renovação Carismática Católica


"A Renovação Carismática é um acontecimento religioso que já não se
pode desconhecer. Nascido na Igreja e para a Igreja, em apenas vinte anos
assumiu proporção tão expressiva que se estendeu ao mundo inteiro.
Pretender defini-la é, ao mesmo tempo, fácil e difícil. Fácil, porque seus
pontos fundamentais estão bem definidos: eles nada têm de complexos, a
partir do momento em que são compreendidos em suas linhas essenciais.
Difícil, porque sua riqueza, como tudo o que está enraizado no Evangelho,
na sua palavra divina, ultrapassa qualquer coisa que possa caber numa
definição, por mais exata que possa ser. " 64

X. MOVIMENTOS DE VIDA COMUNITÁRIA

Outros movimentos já desenvolvem verdadeira vida comunitária


entre seus associados com vinculação até jurídica. Provoca-se uma idcn -
tificação dos membros com o movimento. Nesses casos, a figura de um líder
ou guru ou guia espiritual congrega em torno de si os participantes, favore­
cendo a realização de verdadeiras experiências espirituais. Tendem natural­
mente, como diria M. Weber, a institucionalizar o carisma e a tornarem-se
movimentos organizados, regulamentados, diminuindo a carga carismática e
o fervor espiritual por atitudes voluntaristas, práticas.

li4. H. Juancs. Que é a renovação carismática católica?, São Paulo, Loyola. 1994. p. li.

35
Mais que teologia, eles cultivam uma espiritualidade e um planeja­
mento de ação. Às vezes desconfiam da teologia, sobretudo moderna euro­
péia e a da libertação, que são para o seu gosto "secularizantes", " politizantes"e
"pouco espirituais". Temem as reflexões críticas sobre o movimento, sua na­
tureza e suas próprias motivações de adesão. Quando o braço do emocional
pesa muito, o lado racional e institucional se esfuma. Daí certa resistência à
frieza institucional da Igreja e a sua reflexão teológica.
Sua força vem da organização, centralização, uniformidade de coman­
dos. Eles alimentam vocações próprias entre bispos, padres e leigos. Ex­
pressão máxima é a criação de prelazias individuais à margem das dioceses
e conferências.
Esses movimentos conseguem conjugar dois aspectos antinômicos, per­
mitindo-lhes responder ao momento atual. Transmitem uma doutrina teológi­
ca e moral freqüentemente tradicional - entram em choque com a moderni­
dade-, mas incorporam os progressos tecnológicos da modernidade mais
avançada. Nisso, conseguem a eficiência e a eficácia própria da tecnologia h '.

XI. NOVA ERA

Fechando o quadro religioso, a modo de síntese ou de clima envolvente,


excele a nova era. Muita tinta se verteu em livros e artigos, a fim de elucidar
o fenômeno. Tornou-se fator principal na criação do atual clima religioso.
Casa bem com a psicologia e a cultura do brasileiro que tolera e pratica com
facilidade o sincretismo, o ecletismo. Pouco habituado a posições tranchãs,
convive bem com esse novo clima religioso.

New Age no Brasil


"Brasileiros são experts em combinar elementos dessa cultura enorme­
mente desorganizada. De acordo com nossas expectativas, é de esperar
que a New Age interagirá de modo crescente com uma variedade de
plataformas culturais. " 66

65. J. Comblin, Os "movimentos" e a pastoral latino-americana, in REB 43 (1983), pp. 227-262:


neste artigo o autor analisa esses movimentos, citando entre outros: Opus Dei, Cursilhos de Cristanda­
de, Focolares, Renovação Carismática, Encontro Matrimonial, l\eocatecumenato, Schõnstatt, Comu­
nhão e Libertação.
66. P. Heelas L. Amaral, Notes on the "nova era", Rio and Environs, Religion, n. 24, pp. 173-
80, cit. por A. D' Andrea, O Self perfeito e a nova era. Individualismo e reflexividade em religiosidades
pós-tradicionais, São Paulo, Loyola, 2000, p. 115.

36
P. Sanchis, ao estuJar o campo religioso contemporâneo no Brasil, constata
uma estrutura virtualmente ■incrética do catolicismo brasileiro. Refere­
se "a um habitus (história feita estrutura) de porosidade de identidades. Desde
que se entenda bem, essa porosidade pode ser vista como 'sincretismo'" h7•
A New Age cria uma atmosfera religiosa. Desperta dupla busca espi­
ritual. Uma vai em direção à própria interioridade, a outra visa a uma comu­
nhão com a natureza. Nesse movimento a fé, enquanto verdade e ensinamen­
to, a razão, enquanto luz crítica, não desempenham praticamente nenhum papel.
Recorre-se antes a outro universo de experiências, que se nutrem de elementos
da psicologia, especialmente transpessoal, de tradições e práticas religiosas
orientais, de exercícios mentais orientados a um encontro com a profundidade
do próprio eu ou a um envolvimento totalizante com a natureza.
No horizonte maior está a aspiração a uma harmonia consigo, que
tem, além do mais, excelente poder curativo. Responde à tensão entre a
massificação e a supervalorização do indivíduo da sociedade moderna avan­
çada, que está na origem de muitos desequilíbrios psíquicos. O individualis­
mo se percebe, de um lado, como o maior valor e a quintessência da ideologia
da modernidade 68 . Portanto, toda experiência que gira em torno dele atrai.
De outro lado, esse mesmo indivíduo experimenta-se fragmentado, impo­
tente. A psicologia profunda analisa-o como ego, id e superego, a ponto de
deixá-lo perplexo diante de suas ações e responsabilidades. Além do mais,
uma sociedade centrada no consumismo termina por esvaziar-lhe a vida de
sentido, relegando-o ao mundo das necessidades e desejos sem referência
transcendente. Nesse vazio de si, o ser humano busca uma integração e har­
monia interior. E nesse momento, as experiências religiosas cumprem papel
senão terapêutico ao menos compensatório.

Aspecto terapêutico da harmonia do corpo e cosmos


"Curar significa, neste caso, harmonizar as energias do corpo de maneira
que elas ressoem com as mais amplas forças e leis da natureza. As
técnicas de cura se constituem, assim, de manipulações, isto é, de inter­
venções do ·curador', através do trabalho sutil. no nível físico-energético,
com a finalidade de remover obstruções que impedem a operação da lei
harmonia!. Os corpos devem vibrar para renovar as forças naturais de

6i. P. Sanchis. O campo religioso contemporâneo no Brasil, in A. P. Oro - C. A. Steil, orgs.,


Globalização e religião, Petrópolis, Vozes, 199i, pp. 105.112.
68. L. Dumont, O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de
Janeiro. Rocco, 1985, pp. 20s.

37
acordo com as leis cósmicas e, se necessário, uma intervenção ativa
deve ocorrer para 'tomar a natureza mais natural', porque a harmonia
deve ser ajudada. " 69

Além da sintonia profunda consigo, há uma busca de harmonia com a


natureza. Esse reclamo vem de todas as partes. Tenta superar uma ecologia,
ainda de cunho antropocêntrico, enquanto se pensa em conservar e proteger
a natureza por causa do próprio ser humano. Está em jogo a criação de uma
nova consciência ecológica 7°. O ser humano imerge no mistério cósmico, num
processo de transformação de sua consciência, até realizar o divino existente
em si mesmo. As duas místicas psicológica e cósmica encontram-se e inter­
relacionam-se.
A New Age situa-se como antípoda da febricitante agitação do mundo
moderno, criando espaços de paz e felicidade. Não responde com nenhu­
ma doutrina, com verdades reveladas, nem mesmo com uma ética do com­
promisso, elementos fundamentais da fé cristã. Mas simplesmente recolhe,
lá onde houver, práticas, conhecimentos e caminhos que possibilitem essa
viagem interior de paz consigo e de harmonia com todo o cosmos. Em ter­
mos de literatura, Paulo Coelho tem tido o maior êxito com suas obras, porque
nelas oferece tal itinerário.
A concepção antropológica da nova era é monista, imanentista,
refogando toda dualidade e buscando superar os limites do próprio
ser humano em busca de uma totalidade 71 . Os confins entre espírito e
matéria diluem-se, ampliando-se para o mundo do astral e espiritual. A ten­
são entra natureza e liberdade, entre o aquém e o além, esfuma-se. As pró­
prias barreiras do tipo de conhecimento misturam-se numa indeterminação
epistemológica. Armam-se laços estreitos entre ciência e mística 72 •
A essa concepção de antropologia segue-se naturalmente uma visão de
salvação. O paraíso está no ser humano. Desaparece o mundo do pecado, da
conversão, da redenção, da graça. Ele é substituído pelo desenvolvimento
das próprias potencialidades. Verdadeira auto-salvação mediante iniciação

69. L. Amaral, Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na Nova Era, Petrópolis,
Vozes, 2001, p. 62.
70. L. Boff, Ecologia, a mundialização, espiritualidade. A emergência de um novo paradigma , São
Paulo, Ática, 199]; L. Hoff, Viver uma atitude ecológica, in N. Unger Mangabeira, O encantamento do
humano. Ecologia e espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1991, pp. 11-14; L. Boff, Nova era: a civilização
planetária. Desafios ã sociedade e ao cristianismo. São Paulo, Ática, 1994.
71. A. N. Terrin, Nova era. A religiosidade do pós-moderno, São Paulo, Loyola, 1996.
72. F. Capra, O tao da física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental, São Paulo,
Cultrix, 1993.

]8
progressiva num conhecimento de seu estado de consciência e de auto-expe­
riência de sabedoria.
Os caminhos da salvação são abertos pela psicotecnologia e pelas tradi­
ções religiosas antigas, especialmente, orientais: meditação, cura interior,
consulta a oráculos, ensinamentos de gurus, técnicas de concentração da
consciência sobre a consciência etc. Os adeptos da nova era valem-se dessas
técnicas para transformar o estado de consciência, maior consciência e con­
trole sobre o corpo, especialmente por meio da respiração, do relaxamento ;.i_
A New A ge é um resultado lógico do processo de secularização,
ainda que isso pareça paradoxal. Com efeito, a secularização desvestiu a
sociedade do uniforme da religião dominante, no caso do Brasil, do catolicis­
mo. Então as pessoas começam a coser sua roupa religiosa própria com re­
talhos tirados das mais diversas tradições religiosas, criando assim para si
urna túnica religiosa única, original, ampliando o pluralismo. É a religião
invisível no sentido institucional, mas que responde aos interesses pessoais i 4•
Dessa forma, a secularização, que demitiu a religião oficial de seu governo,
gerou milhares de experiências religiosas privatizadas em todos os rincões. É
esse clima que vivemos.
Além do mais, o desenvolvimento da forma capitalista açulou a capaci­
dade do sistema de transformar todas as coisas em mercadoria de
consumo desde que se despertem interesses e desejos nos consumidores.
Com o avanço tecnológico da mídia, o produto religioso tem chegado a
todas as prateleiras. A crise de sentido e de valor permite que facilmente se
provoquem nas pessoas necessidades e desejos religiosos. Com tal alta de­
manda as ofertas nesse campo gozam de enorme sucesso.

XI. PESQUISA ENTRE UNIVERSITÁRIOS

Surpreende-nos ainda mais que essa sede religiosa exista até mesmo nos
meios mais sofisticados e secularizados do país. Fez-se uma pesquisa entre
estudantes universitários da PUC de São Paulo, que responderam a um
questionário sobre suas experiências religiosas 75• A pesquisa desenvolveu-se
junto a 4.000 universitários. Os pesquisadores partiram de três hipóteses:

i.t Para maiores informações, ver o verdadeiro manual da nova era: M. Ferguson, The Acquarian
Conspimcy. Personal and Social Transfonnation in Our Times, Los Angeles, Tarcher, 11987.
74. Th. Luckmann, The lnvisible Religion. The problem of Religion in Modern Society, !\ew York/
London, Macmillan, 196i, p. 99.
75. J. CI. Ribeiro e equipe, Perfil da Religiosidade do jovem universitário. Um estudo de caso na
PUC-SP, mimeo., São Paulo, PUC, 2001, es pecialmente o comentário da mesma equi pe : O jovem e sua

39
1. Há, de fato, uma religiosidade em nossos alunos, que é mais intensa
em momentos de kairós e deles se nutre.
2. Sob o crivo da modernidade, as crenças e práticas religiosas tradicio­
nais encontram resistência por parte de nossos alunos e não dão conta da
religiosidade deles.
3. Tal tradição religiosa pode ser ressignificada pela nova geração à luz de
experiências fundantes, tais como a abertura ao outro, a denúncia da exclu­
são, o amadurecimento de utopias.
Numa primeira interpretação preliminar dos dados, os pesquisadores
constatam que a "religiosidade do jovem é intensa, passando atualmente por
transformações aceleradas". A religiosidade é vista como "um âmbito da
existência humana, anterior a suas formulações histórico-sociais sob forma
de religiões, e que manifesta a capacidade humana de transcender e de gerar
significados para a existência". Constatam duas características marcantes da
religiosidade do jovem: "Afastamento das tradições formais e ênfase na sub­
jetividade". Diante de um longo questionário, frases que obtiveram alta
pontuação soam: "A fé é mais importante que as crenças e religiões" (3 º
lugar: 6,44 7() ); "A verdade está acima das religiões" {9 º lugar: 5,80). "Assim,
a experiência de algum tipo de religiosidade pessoal, dotada de forte conteú­
do emocional e exigência de convicção, tem maior valor para o jovem do que
o ensinamento transmitido."
Entre as duas frases mais valorizadas pelas entrevistas estão: "Lutar pelo
que acredito é um de meus rituais" (1 º lugar: 6,79) e "Existe uma energia que
envolve toda a nossa vida" (2 º lugar: 6,51). Ambas revelam a dimensão sub­
jetiva da espiritualidade envolvente. No entanto, a primeira refere-se a ri­
tuais enquanto a segunda, a um clima geral. Sem dúvida, há uma tensão
entre ambas, a não ser que a palavra ritual para os jovens signifique algo bem
vago e genérico. Confirma a hipótese de tratar-se de um clima mais do que
do cumprimento de ritos exatos o fato de outras frases bem pontuadas serem:
"Vejo Deus na natureza" (4º lugar: 6,30), "Amor é uma forma da fé" (6º
lugar: 5,97), "A música me conduz a uma dimensão superior"(8 º lugar: 5,88).
Aparece claro, no entanto, que o lado institucional e expressões tradicio­
nais perderam relevância. Entre as últimas frases qualificadas, estão: "Tenho
medo de Deus" (antepenúltima: 2,01), "Exerço minha espiritualidade exclu­
sivamente com o grupo da minha Igreja" (penúltima: 1,92).

experiência do mistério, mimeo., J. CL Ribeiro, A juventude diante do sagrado. Pesquisa com universi­
tários, in Diálogo. Revista de Ensino Religioso 7 (2002), n. 25, pp. 38-43; J. Cl. Ribeiro, A religiosidade
do universitário, in Religião e cultura 1 (São Paulo, 2002), pp. 159-175.
76. O percentual se mediu sobre uma base de 8.

40
Essa perda de referência a uma Igreja não significa nem ateísmo, nem
niilismo, nem rendição ao consumismo. Frases pouco apontadas: "Para mim,
a vida é sem sentido" (a última: 1,89); a 6• posição a partir de baixo reza: "&>u
ateu" (2,31); a tü•a partir do fim: "Consumir preenche a minha vida" (2,62).
Um fenômeno mais comum nas classes populares não aparece de modo
relevante entre os estudantes. A proporção dos que marcaram a frase "Já
passei por várias religiões" é pequena ( 2,06). As práticas religiosas formais
estão desaparecendo. "Apelo para a religião só quando tenho algum proble­
ma" (2,42), "Rezar é uma atividade mecânica" (3,18), "Acendo uma vela
como forma de oração" (3,33). Essa pesquisa vem, portanto, confirmar o
quadro religioso geral traçado.

Religiosidade dos universitários


"É comum ouvir dizer que a juventude perdeu a crença, abandonou as
práticas religiosas e mergulhou no niilismo. no consumismo e no individua­
lismo. Entretanto. a pesquisa aponta que. ao invés de descartada, a reli­
giosidade do jovem é intensa e passa por transformações aceleradas. A
expressão 'sagrado selvagem' proposta por Bastide é aplicável ao perfil da
religiosidade do jovem. O autor se refere a um estágio primitivo da religião
no qual a intervenção da emoção predomina sobre a razão: as religiões
mais emocionais adaptam-se com maior facilidade às exigências do pre­
sente. A fase doutrinal representaria um sagrado civilizado. sistematizado
e dominado pela razão. " 77

XII. SECULARIDADE SAGRADA

Além da sacralidade religiosa que apontamos, surge algo paradoxal: uma


secularidade sagrada ou uma sacralidade de realidades seculares. Na lin­
guagem de M. Eliade, trata-se de verdadeira camuflagem da realidade sagra­
da sob veste secular. À guisa de exemplo, estão a religião do tribalismo na­
cional ou nacionalista, o culto grupal por meio da música, o esporte como
metáfora da vida, os rituais do culto do corpo, o reencantamento e o culto da
natureza78 , a batalha pelo dinheiro, o culto do sexo. Sem assumir esse caráter
secular exótico, muitos participam do religioso sob formas de grandes ideais

77. J. Cl. Ribeiro, A juventude diante ... , p. 39.


78. J. M. Mardones, Adónde va la relígión? Cristianismo y religiosídad en nuestro tíempo, Santander,
Sal Terrae, s.d., pp. 35-41.

41
e causas que requerem devoção, sacrifício incondicionado até a cegueira e
intolerância. Ou o fazem dedicando-se religiosamente a sua profissão, espe­
cialmente quando ela tem caráter altruístico, como os médicos sem fronteira.

CONCLUSÃO

O surto religioso está aí. Complexo, multicolorido. Toda realidade é um


desafio à nossa intelecção, interpretação. Busca-se maior clareza do que acon­
tece para as pessoas situarem-se melhor no quadro e responderem mais con­
seqüentemente às suas provocações.
Interessa-nos reagir à luz da fé cristã. Duas perguntas, portanto, regem
esse trabalho: como entender o atual fenômeno religioso? Como posicionar­
nos diante dele a partir da fé cristã?
P. Berger, citando psicólogos modernos, refere-se à "dissonância cogniti­
va", como esse "doloroso desacordo entre aquilo que cremos e aquilo que
outros defendem seguros de si mesmo" 79• No seio do fenômeno religioso, a fé
cristã sofre cada vez mais dessa "dissonância", já que se torna cada vez menos
plausível na sua globalidade e somente aceita em pedaços escolhidos pelos
indivíduos. Cabe, portanto, perguntar-nos pelo posicionamento crítico da fé
cristã diante de tal fenômeno para evitar a reação fácil de reduzir a dissonância
pela simples via da acomodação à situação. Na linguagem paulina, que P. Berger
recorda, seria capitular em face da "sabedoria do mundo" (1Cor 2).
Ao nos debruçar sobre a compreensão, não evitaremos totalmente a re­
petição. A própria descrição aqui feita já avançava sinais interpretativos, que
supõem a retomada de traços descritivos. No entanto, o enfoque do que se
deixou e o que se empreende é fundamentalmente diverso. Um texto de F.
Nietzsche serve para fechar o capítulo com o aguilhão da morte de Deus no
meio à ressurreição das crenças.

Deus morreu
"Não ouvistes falar daquele louco que acendeu uma lanterna numa clara
manhã, correu para a praça e pôs-se a gritar incessantemente: 'Procuro a
Deus! Procuro a Deus!'. E uma vez que aí estavam precisamente muitos que
não criam em Deus, então ele provocou um grande riso: Por acaso Ele está
perdido?, disse um. Ele se desviou como uma criança?, disse outro. Ou

79. P. Berger, Una gloria lejana. /,a búsqueda de la Je en época de credulidad, Barcelona, Herder,
1994, p. 16.

42
porventura esté bem escondido? Tem medo de nós? Foi para algum navio?
Migrou? Assim gritavam e riam numa grande confusão. O louco saltou no
meio deles e traspassou-os com seu olhar. 'Para onde foi Deus?', gritou ele,
'eu vo-lo direi! Nós o matamos-vós e eu! Nós todos somos seu assassino!
Mas como fizemos isto? Como fomos capazes de beber todo o mar? Quem
nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? O que fizemos quando
desatamos esta Terra de seu sol? Para onde ela agora se move? Para onde
nos movemos nós? Longe de todos os sóis? Não nos precipitamos desen­
freadamente? E para trás, para os lados, para frente, para todos os lados?
Existe ainda um em-cima e um em-baixo? Não andamos errantes como que
através de um infinito nada? Não nos alenta o espaço vazio? Não se fez mais
frio? Não sobrevém sempre a noite e mais noite? Não se devem acender
lanternas antes do meio-dia? Não ouvimos ainda nada do ruído dos coveiros
que enterram a Deus? Não sentimos ainda nada da putrefação divina? -
também os deuses se putrefazem. Deus está morto! Deus permanece morto!
E nós o matamos! Como nos consolamos. assassinos que somos de todos
os assassinos! O mais santo e poderoso que a Terra até então possuía, nós
o dessangramos com nossas facas - quem limpará esse sangue de nós?
Com que água poderemos purificar-nos? Que ritos de expiação, que jogos
sagrados deveremos inventar? Não é grande demais para nós a grandeza
desse ato? Não deveríamos nós mesmos tomar-nos deuses, para aparecer
dignos dele? Nunca houve um ato maior -e todo aquele que nascer depois
de nós se ligará, por causa desse ato, a uma história maior que toda a
história até este dia!' Então o louco calou-se e encarou os seus ouvintes:
também eles se calaram e olharam estranho para ele. Finalmente lançou sua
lanterna ao solo. Ela se fez aos pedaços e se apagou. 'Venho muito cedo'.
disse ele então. 'O meu tempo ainda não chegou. Esse terrível acontecimen­
to está a caminho e avança - ainda não chegou aos ouvidos dos seres
humanos. Raio e trovão precisam de tempo, a luz dos astros necessita de
tempo, ações necessitam de tempo, para que depois de feitas. sejam vistas
e ouvidas. Este ato está ainda mais longínquo do que os mais distantes
astros -e no entanto eles mesmos o fizeram( Conta-se ainda que o louco
neste mesmo dia adentrou diversas igrejas e aí entoou seu Requiem aeter­
nam deo (Descanso eterno para Deus). Conduzido para fora e trazido ao
juízo, ele, porém, sempre retrucava somente isto: ·o que são as igrejas ainda,
se elas não são os túmulos e os mausoléus de Deus?'. " 00

80. Tradução do original alemão feita pelo autor: F. Nietzsche, Die frõhliche Wissenschaft, in Wer­
ke, vai. 2, München, Carl Hanser, 1955, pp. 126-128.

43
BIBLIOGRAFIA

AM,\RAL, L., Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na nova era, Petró­
polis, Vozes, 2001.
AxTO\íl:\ZZI, A. - :M.-\RIZ, Cecília Loreto et alii, Nem anjos nem demcinios. Interpretações
sociológicas do pentecostalismo, Petrópolis, Vozes, 1994.
C.'\W,1.\:-.:, Cl., O desafio pentecostal: aproximação teológica, in Perspectiva teológica 28
(1996), pp. 295-309.
C.'\l.1:--.1.'\N, CI. (org.), A sedução do Sagrado: o fencimeno religioso na virada do milênio,
Petrópolis, Vozes, 1998.
HERVIEU-LÉGER, D., Le Pelerin et le converti. La religion en mouvement, Paris,
Flammarion, 1999.
1:-.:TROVIGNE, M., (org.), La sfida pentecostale, Turim, Elle di Ci, 1996.
M,'\RDONES, J. M., Adónde va la religión? Cristianismo y religiosidad en nuestro tiempo,
Santander, Sal Terrae, 1996.
MARIANO, R., Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo,
Loyola, 1999.
MARTELLI, S., A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995.
MuREIRA, A. - ZICMAII:, R., Misticismo e novas religiões, Petrópolis-Bragança Paulista,
Vozes/USF/IFAN, 1994.
01.IVEIR.'\, M. A., O desafio dos novos movimentos religiosos às Igrejas Cristãs, in Pers­
pectiva teológica 32 (2000), pp. 221-239.
RIIIEIRO, CI. de O., Movimentos pentecostais, carismáticos e mística cristã: desafios
teológicos e pastorais, in Perspectiva teológica 28 (1996), pp. 339-364.

Dinâmica
1 º momento: Reflexão pessoal
a) Cada um recupere na memória algum contato ou experiência com o
surto religioso.
b) Tente apontar numa folha quais as características que observou nessa
experiência.

2 ° momento: Confronto grupal


a) Em grupos, procurem trocar as experiências.
b) Anotem os pontos comuns das experiências dos membros do grupo.
c) Hierarquizem esses pontos segundo o parecer do grupo.

3° momento: Plenário
a) Os grupos relatem as características do surto religioso.
b) O plenário tente amarrar os pontos comuns.
c) Se houver tempo, algumas pessoas narrem mais detalhadamente sua
experiência e assinalem alguma característica que eventualmente não
foi indicada.

44
CAPITlJI.O II

Compreensão do
fenômeno religioso
O retorno do religioso poderia bem ser
uma ameaça mais grave que o velho
ateísmo.
M. BELLET

O fenômeno religioso está aí em sua rudeza e extensão. Como


compreendê-lo? Embora nos interesse sobremaneira a perspectiva teológi­
ca, recorreremos à ajuda de outros saberes, sem a pretensão exaustiva de
rigor de seus diferentes métodos. O conjunto das explicações permite à teo­
logia ancorar-se melhor no real para confrontá-lo com as interpelações da
tradição cristã.

1. INDICAÇÕES METODOLÓGICAS

Dois conjuntos de questões pedem uma elucidação preliminar. Um


primeiro se refere ao fato de o fenômeno religioso entrelaçar esferas
distintas, mas não sem profunda imbricação prática e teórica: a reli­
gião e a sociedade. Sobre cada uma delas debruçam-se muitos saberes es­
pecializados. Adentrar-nos por eles levar-nos-ia por territórios tão vastos e
diferenciados que nos perderíamos.
Basta para nossa reflexão guardar o núcleo da tese de O. Maduro. Reli­
gião e sociedade situam-se entre si em três posições. A sociedade exerce
com suas estruturas econômicas, políticas e culturais enorme influência sobre
a religião. Por sua vez, a religião influencia também a sociedade. E além disso,
cada uma dessas instâncias conserva um grau de autonomia em relação à outra.
Normalmente as análises feitas por sociólogos ou inspiradas por eles
acentuam a influência da sociedade sobre a religião. Vê-se o jogo a
partir de uma das equipes. E chega-se em algumas teorias, como a marxista

45
rígida, à afirmação de que a religião não passa de uma superestrutura deter­
minada pela infra-estrutura econômica. Leitura parcial. E quando absoluti­
zada, torna-se falsa, por desconhecer o papel ativo da religião na sociedade e
sua autonomia.

Tríplice relação entre religião e sociedade


"O campo religioso é uma realidade parcialmente produzida pelas relações
sociais (incluindo-se aqui as relações conflitivas entre as diversas classes
sociais) e, também, uma realidade parcialmente autônoma (isto é, com
atividade própria e específica)" ... "um terceiro aspecto das relações entre
conflitos sociais e campo religioso: o da influência do campo religioso
sobre os conflitos sociais." 1

Igualmente unilaterais foram leituras que pensavam a religião num trono


soberano, ditando os processos sociais. Vestal intocada que passeia pela
história e pela sociedade sem manchar a túnica, senhora e dona da história e
da sociedade, ditando-lhe regras, sem deixar-se contaminar por seus ares.
Hoje há clareza suficiente para saber como as relações são mútuas, mas
não iguais no tempo, no espaço e nas questões. Há momentos, há lugares, há
temas em que a religião influencia mais a sociedade. Há outros em que o
braço da balança inclina-se para a sociedade.
Dito de maneira simplificadíssima, na Idade Média a religião influ­
enciava mais a vida da sociedade do que por ela era influenciada. E na
modernidade inverte-se o processo. A economia, a política, a cultura
modernas impactam tão profundamente a religião, a ponto de teóricos inter­
pretá-la como mera ressonância da sociedade. Se antes se dizia que cada
religião era seu povo, depois valeu o aforismo "omnis regio, ibi religio" - "a
cada região, sua religião".
Na nossa análise, privilegiaremos o impacto da sociedade sobre a si­
tuação religiosa, conscientes de que a religião mantém em relação a tal
impacto uma tríplice possibilidade: deixar-se influenciar, manter-se autôno­
ma e reverter o impacto sobre a própria sociedade. Não faltarão, pois, alusões
a esses momentos dialéticos. A autonomia das regras religiosas pede atenção
analítica para não se exagerar demasiadamente o peso da sociedade sobre ela.
Um segundo bloco de questões contempla outra tensão. O fenô­
meno religioso é contextual. Significa que os fatores sociais o provocam,

1. O. Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na
América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981, pp. 151 s.


o alimentam, lhe dão inteligibilidade. O ser humano envolve-se em tal clima
que sua religiosidade explode em formas concretas. É o regime de depen­
dência. A religiosidade depende, pois, da situação sociocultural.

Influência da sociedade sobre a religião


• Assim, as estruturas em que se organiza uma sociedade constituem um
foco de inclusões e exclusões, de possibilidades e de dificuldades, de
fechamentos e de aberturas, de resistências e de fragilidades que limitam
e orientam qualquer ação que se desenvolva no seio das mesmas estru­
turas sociais" ... "A estrutura de cada sociedade, então, limita e orienta as
possibilidades de atuação de uma religião em seu interior. Assim, quando
dizemos que nenhuma religião opera no vácuo, mas é sempre uma reali­
dade socialmente situada, queremos dizer que a ação de qualquer religião
está limitada e orientada por seu contexto social (independentemente,
repito, das intenções e desejos dos agentes de tal religião. " 2

No entanto, a explicação filosófica e teológica que seguiremos reconhece


um regime de autonomia da religiosidade humana. Afastando-nos,
portanto, de todos os que reduzem a religiosidade a uma simples produção
do meio, defendemos que existe no ser humano uma dimensão existencial,
uma orientação ontológica, um dinamismo que o faz aberto e voltado para o
Absoluto, o Transcendente. Essa raiz ontológica entrelaça-se com o contex­
to, assumindo uma forma concreta. Mas sem a realidade ontológica, o con­
texto malharia sobre ferro frio.
O fato de iniciarmos com o contexto não implica nenhum esque­
cimento da dimensão estrutural ontológica do ser humano para o
religioso, o sagrado, o mistério. Sobre ela voltaremos quando pusermos a
questão em perspectiva filosófica e teológica. Enquanto predominar o olhar
sociológico, as coordenadas do contexto predominarão.

II. CAUSAS CONTEXTUAIS ECONÔMICAS E POLÍTICAS

A modernidade gerou dois sistemas econômico-políticos: o capita­


lismo e o socialismo. Cada um deles criou seu universo ideológico que
cumpriu e cumpre função para-religiosa. O cientista da religião Mircea Eliade

2. O. \laduro. op. cit.. p. i.l.

47
fala de "camuflagem"\ Estruturas religiosas arcaicas entram no mundo
urbano, fora do referencial religioso.
Há uma "coincidência dos opostos" nos símbolos, mitos, ritos e cren­
ças religiosos. Toda hierofania mostra a coexistência de duas essências opos­
tas: sagrado e profano, espírito e matéria, eterno e não-eterno. Dá-se um jogo
antinômico de significações na esfera do fenômeno religioso. Na esfera do
profano, encontramos significações sagradas, enquanto na esfera do sagrado
existem significações profanas. Está preparado o terreno para que o sistema
profano se aposse de estruturas religiosas, travestindo-as para finalidades
econômico-políticas. O sagrado sobrevive camufladamente, sem jamais ter
sido totalmente abolido da vida do homem moderno.
A categoria da "camuflagem" do sagrado serve para interpretar
certos aspectos do fenômeno religioso atual. O profano da ideologia
político-econômica se faz mediação para a manifestação do sagrado. E, por
sua vez, o sagrado reveste-se das mais diversas formas, apresentando-se sob
as mais variadas máscaras profanas. Na camuflagem há um jogo de velamen­
to e desvelamento.

Camuflagem
"O profano se toma revelador da realidade sagrada sem deixar de ser o
que é, enquanto a realidade sagrada se reveste das mais variadas formas
mundanas. camuflando-se. Assim, o jogo paradoxal entre esses pares de
opostos apontava, portanto, para um processo de camuflagem do sagra­
do. " 4 "O homem não se encontra num mundo inerte e opaco e, por outro
lado, ao decifrar a linguagem do mundo, ele é confrontado com um mis­
tério. Pois a 'natureza' desvela e camufla ao mesmo tempo o sobrenatural,
e é nisto que reside para o homem arcaico o mistério fundamental e
irredutível do ·mundo·." 5

A radicalização da camuflagem do sagrado em profano no mundo mo­


derno se liga naturalmente à aventura religiosa do Ocidente e a seu choque
com a modernidade, cujas expressões econômico-políticas são o capitalismo
e o socialismo.

3. C. Scarlatelli Rohden, A camuflagem do sagrado e o mundo moderno à luz do pensamento de


Mircea Eliade, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1998.
4. C. Scarlatelli Rohden, op. cit., pp. 74s.
5. Mefistófeles e o andrógino, São Paulo, �1artins Fontes, 1999, p. 178, cit. por C. S. Rohden, op.
cit, p. 75.

48
A seu modo, os dois sistemas afrontam a religião. O marxismo, na
esteira do jovem Marx, assumiu, nos países do socialismo real, uma
atitude de rejeição e condenação da religião, travestindo suas catego­
rias para a simbologia de seu regime. Ele apresentou-se como verdadeiro
"mito escatoló gico" com a promessa de criar a "sociedade sem classes". O
capitalismo vinculou-se mais facilmente à religião. A tese de Weber mos­
trou a sua relação com a forma cristã calvinista. E a porosidade crescente
entre expressões religiosas e o mercado revela esse conúbio.
Com a queda do socialismo, o fenômeno religioso reconfigurou-se. Ocu­
pou imediatamente o vazio deixado pela "religião secular" do marxis­
mo. A latência religiosa, recalcada pelo ateísmo militante e travestidamente
nutrida pela simbologia pseudo-religiosa do sistema marxista, eclode virulen­
tamente. Weber reconhece traços de mito escatológico no marxismo. Ele ocu­
pava, no interior das pessoas, o espaço do sagrado ou recalcava para o incons­
ciente essa dimensão religiosa e exprimia-a em termos ditos científicos.

Marxismo e mito escatológico


"Pense o que se quiser da veleidade científica de Marx, é evidente que o
autor do Manifesto comunista retoma e prolonga um dos grandes mitos
escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo, isto é a função redentora
do justo (o 'eleito', o 'ungido', o 'inocente', o 'mensageiro', hoje o prole­
tário), cujos sofrimentos têm a missão de transformar o estado ontológico
do mundo. De fato, a sociedade sem classes de Marx e o conseqüente
desaparecimento das tensões históricas encontram o seu mais exato pre­
cedente no mito da Idade de Ouro, que, segundo muitas tradições, carac­
teriza o início e o fim da história. Marx enriquece este mito venerável de
toda uma ideologia messiânica judeu-cristã: de uma parte, o papel profé­
tico e a função soteriológica que ele atribui ao proletariado, de outra, a luta
final entre o Bem e o Mal, que se pode facilmente equiparar ao conflito
apocalíptico entre Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do
primeiro. É também significativo que Marx retome a seu modo a esperança
escatológica judeu-cristã de um fim absoluto da história. " 6

A teoria do recalque, de origem freudiana e trabalhada em nível sobre­


tudo individual, ilumina fatos sociais como a explosão religiosa em países
marxistas. Não é de estranhar, portanto, que ao desabar o sistema tenha

6. M. Eliade, ,\Jiti, sogni e misteri, Milano, Rusconi. !1986, pp. 1 is.

49
explodido a sede de um imaginário religioso. E as formas religiosas, dispo­
níveis no momento cultural, vieram responder a tal desejo.
D. Hervieu-Léger, ao estudar os novos movimentos religiosos, constata
como eles atraem adeptos que vêm das antigas correntes da contestação
político-religiosa, que outrora alimentaram as comunidades de base, os gru­
pos de cristãos progressistas;. Fenômeno idêntico acontece entre nós. Incen­
diários políticos da década de 1970 bebem hoje ás águas serenas do budismo
e de outros grupos espirituais.
Na América Latina, o fracasso do sandinismo, o encurtamento da sedu­
ção do modelo cubano, a destruição violenta quase completa dos movimen­
tos revolucionários das décadas de 1960 e 1970 provocada pelos estados de
segurança nacional, a onda neoliberal desencadeada pelas administrações R.
Reagan e M. Thatcher reduziram, para não dizer neutralizaram e liquida­
ram, a esperança de mudança do sistema.
Três possibilidades abriram-se para os militantes, para os quais os
canais da revolução ou da mudança radical do sistema se tornaram inviáveis
diante do desaparecimento da alternativa socialista e do reinado solitário e
triunfante do neoliberalismo. Uns aderiram ao sistema, seja numa capitu­
lação sem mais, seja numa remota esperança de aí colocar uma pedrinha da
nova sociedade. No governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso,
ocuparam postos importantes antigos líderes estudantis e membros de gru­
pos juvenis de luta contra o sistema.
Outros partiram para movimentos sociais alternativos que encam­
param as bandeiras revolucionárias: a luta feminista, a ecologia, o combate
ao armamentismo na defesa do pacifismo, o movimento de consciência ne­
gra, a defesa das culturas autóctones, a mobilização para a demarcação das
terras indígenas, a reforma agrária, o MST, a participação política em parti­
dos ou em alas dentro deles de posição crítica ao sistema e, enfim, em muitas
formas de oposição que guardam ideais semelhantes aos defendidos na luta
contra a ditadura e contra o sistema capitalista. Tornou-se paradigmático o
exemplo de Fernando Gabeira. Tendo participado do seqüestro do embaixa­
dor americano Elbrick, foi banido do país numa troca com o cônsul japonês.
Iniciou então um processo de autocrítica que termina com a publicação do
livro O que é isso, companheiro? 8 Aí reviu criticamente a atitude revolucioná­
ria anterior, reconhecendo o que ela significara de recalque de todo o mundo
afetivo em vista de uma causa. No inferno da polícia do Exército da rua

7. D. Hervieu-Léger, Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme


occidental, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1986, pp. 150s.
8. F. Gabeira, O que é isso, companheiro?, Rio de Janeiro, Codecri, 1º1980.

50
Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, lugar tenebroso, ele observou a dife­
rença do militante que não podia dar o braço a torcer e um que outro que
para lá era levado por engano. Eram os inocentes.

O militante e o inocente
"Com o canto dos inocentes, entretanto, aprendi muita coisa. Não sei se
saberia expressar exatamente o quê. O fato é que catalogávamos as expe­
riências, comparávamos a repressão de um momento histórico à repressão
de outro momento histórico, tentávamos desmontar o mecanismo moderno
da tortura, que para nós era completamente inédito, mas possível de ser
analisado. Essas operações eram menos freqüentes entre eles. Quando
escreviam num bilhete para suas mulheres que esperavam encontrá-las em
breve, que eram inocentes, eram sinceros. Quando diziam que tinham medo
da tortura o diziam abertamente: quando ficavam desapontados por não
terem sido soltos no fim da tarde, o faziam sem nenhum mistério especial.
Eles ousavam esperar. Nós éramos prisioneiros dos militares, mas, num
certo sentido, éramos também prisioneiros de nossa lógica. Quando um
deles chorava no seu canto, todos se resignavam porque, afinal de contas,
os inocentes não tinham problemas em chorar. Nós tínhamos toda a imagem
por trabalhar; imagem diante dos companheiros, diante da repressão. Os
inocentes eram o nosso lado emocional, vivido de coração escancarado,
apesar da polícia. O que seríamos nós sem eles? O intenso processo de
racionalização a que éramos forçados pelas circunstâncias, e com base em
nossa formação política, naturalmente, nos poupava sofrimento. Mas tam­
bém nos roubava o lado inocente que, nos olhos deles, apareceria com toda
a força: o escândalo diante da violência; a saudade da vida lá fora, da
liberdade nos seus mínimos detalhes. " 9

Depois de sua volta ao Brasil, F. Gabeira não renunciou a seus ideais


libertários, mas os assumiu de modo diferente. Comprometeu-se com a luta
ambientalista, tendo participado um tempo do Partido Verde.
Um terceiro grupo migrou para o espaço religioso. Trocou a luta
política pela oração, pela contemplação, pelas experiências religiosas. Este
veio reforçar o "despertar espiritual" presente. A crise na militância política
provocou o deslocamento para o campo espiritual.
Há muita inquietação que resulta da insegurança crescente em
segmentos médios da sociedade. O desemprego é o espantalho de que o

9. F. Gabcira, op. cit., p. 1 i 1.

51
futuro de quem estuda, de quem adquire um diploma, ou mesmo de quem
já o exerce, não está garantido. Evidentemente o problema é mais profundo.
Dois fatores entrelaçam-se para produzir um mesmo efeito: o sistema
capitalista neoliberal e o avanço tecnológico.
O neoliberalismo cria uma ideologia do mais competente para que a
empresa tenha os melhores resultados e assim vença a concorrência. Para tal,
ela promove enxugamento de seu pessoal, gerando desemprego. Os postos
de trabalho são cobiçados, de modo que se introduz entre os pretendentes
terrível disputa. Assim a violenta concorrência no nível empresarial desce ao
mundo das pessoas. E a insegurança ronda a todos. Em busca de segurança,
as pessoas mergulham no mundo religioso, onde tal ansiedade recebe alívio.
Aguça a questão da insegurança o fato de a tecnologia avançar à
custa de empreg os no setor industrial e de não produzir uma compensação
proporcional em outros setores, sobretudo nos países periféricos e por causa
de suas políticas sem preocupação social. Mais um fato de instabilidade na
vida das pessoas que se compensa com incursões religiosas.
A política repugna cada vez mais por causa de seu grau de corrup­
ção e do escandaloso corporativismo dos interesses de classe. Tem deixa­
do de ser o cuidado do bem comum para tornar-se lugar de enriquecimento
rápido e, não raro, ilícito. A entrada maciça da mídia nas eleições modificou
profundamente o perfil do candidato. Ele não é medido por suas qualidades
éticas, por seu desempenho cívico, mas pelo poder econômico e de comunica­
ção. Pilantras federais e até criminosos se elegem, apoiados no domínio da mídia.
Ao fechar-se esse espaço de compromisso humano e social, o âmbito
religioso atrai mais, ampliando o clima de alienação política ou, pelo menos,
oferecendo um novo tipo de engajamento alternativo. A decepção com a
política favorece, sem dúvida, o fortalecimento do clima religioso.
O desengano e o desapontamento com a política exacerbam-se
ainda mais por causa do desempenho socialmente medíocre dos go­
vernos socialistas. Neles se punha esperança de que não sucumbiriam ao
neoliberalismo triunfante. E eis que muitos deles fizeram o ajuste neoliberal
de seus países, desmontando as estruturas sociais, fruto de lutas operárias de
mais de século. Mais: atolaram-se na corrupção. E as derrotas das lutas po­
pulares e de candidaturas de partidos populares em muitos países da Amé­
rica Latina terminaram por abater mais os ânimos, que buscaram então alen­
to e consolo em experiências espirituais ou se entregaram ao niilismo vazio
da bebida e da droga, sem falar dos que aderiram ao sistema. A questão
permanece aberta: mas que experiências espirituais, proclamadas como mís­
ticas? Em geral as que afastam as pessoas de toda política e compromisso,
esquecendo-se da força maior da verdadeira mística.

52
Sentido ■oclopolftlco da mfetlca
"A mística é, pois, o motor secreto de todo compromisso, o entusiasmo
que anima permanentemente o militante, o fogo interior que alenta as
pessoas na monotonia das tarefas cotidianas, e, por fim, permite manter
a soberania e a serenidade nos equívocos e fracassos. É a mística que nos
faz antes aceitar uma derrota com honra que buscar uma vitória com
vergonha, porque fruto da traição aos valores éticos e resultado de mani­
pulações e mentiras." 10

A teologia da libertação anunciava aos quatro ventos "a força his­


tórica dos pobres" 11• Apostava-se fortemente na sua missão de verdadeiro
sujeito histórico para a transformação da sociedade e da Igreja. A cartilha
marxista insistia no proletariado com sua função hegemônica e profética,
anunciando e realizando a nova sociedade. A versão latino-americana am­
pliava tal visão para todo o mundo dos pobres.
Os pobres estão aí, ainda mais pobres. A classe operária vem sendo der­
rotada em muitas lutas ou, pior ainda, cooptada pelo sistema, transforman­
do-se em sua mantenedora. Muitos foram presos, torturados, assassinados
por essas causas e agora vêem como todo esse esforço some ralo abaixo.
Em texto de autocrítica, H. Assmann reconhece como pressuposto ingê­
nuo o fato de "acreditar que realmente havia/haveria uma 'Igreja dos Pobres'
e de encantar-se com a miragem da 'emergência do sujeito histórico popu­
lar'". Atribui tal ingenuidade à insuficiência de "leituras sobre evolução,
etologia (ciência dos comportamentos animais e humanos) e história da es­
tupidez e da crueldade humana". Ele diz ter suposto infundadamente que se
poderia contar com uma "espécie de pendor natural dos humanos para a
convivência solidária" que permitiria então as mudanças éticas, sociais e es­
pirituais. Considera tal visão uma "antropologia equivocada", muito dife­
rente da que subjaz a todo pensamento econômico moderno. E conclui ser
hoje claro para ele que "os humanos não somos naturalmente solidários com
o conjunto da espécie. Nossa abertura solidária se restringe a um círculo
assustadoramente pequeno de pessoas" 12•

10. L. Boff, Sentido sociopolítico de mística, in L. Boff- Frei Betto, Mística e espiritualidade, Rio
de Janeiro, Rocco, 1994, p. 25.
11. G. Gutiérrez, A força histórica dos pobres, Petrópolis, Vozes, 1981.
12. H. Assmann, Por uma teologia humanamente saudável. Fragmentos de memória pessoal, in L.
C. Susin, org., O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina, São Paulo, SOTER/Loyola,
2000. p. 121.

53
Impôs-se a lógica pós-moderna da dissolução das pressões e hipertrofias
sociais sobre os níveis e áreas da cultura. Tinha-se gerado na década de 1960
uma hiperideologização asfixiante da cultura, levando a militância, os com­
promissos ao paroxismo, dramatismo e até à tragédia individual, grupal e
nacional. Diante do fracasso desse gigantesco esforço ideológico e político,
cria-se um clima que desdramatiza, desproblematiza a realidade social. Tudo
vale, tudo está bem, tudo é permitido. Viver é dimininuir o sofrimento 13 •
Por que tanta luta política e tanto sofrimento por nada, para obter efeitos
pífios? Para que continuar lutando? Melhor entregar-nos ao nosso lado espi­
ritual. Ao menos aí temos alguma satisfação e consolação.
Já que as transformações econômico-políticas não vêm do sistema, de
seus homens, então confiemos nos milagres, busquemos os cultos
neop entecostais, encharquemo-nos de mística. E a forma secular do
milagre são as loterias ou os prêmios polpudos dos programas de auditório.
Por um passe de mágica, saímos da miséria para a riqueza. Não é necessária
nenhuma transformação da realidade para resolver o problema social. Daí o
crescimento na busca desses recursos espirituais, miraculosos.
O desmoronamento de todo um arcabouço social de compromisso, de
luta política, de esperança de transformar a realidade, de libertação, da uto­
pia socialista, da libertação dos pobres deixou o espaço aberto para que a
onda religiosa o invadisse.
O capitalismo neoliberal, tanto em sua forma anticomunista quanto com
sua ideologia consumista, individualista, hedonista aguçou ainda mais o
ambiente religioso. O fenômeno religioso, p ortanto, recebeu dele um
poderoso imp ulso, ao criar o "mercado da fé". Este só se tornou possível
por obra e graça do desenvolvimento das técnicas de marketing e pelas ino­
vações tecnológicas da indústria midiática, como se viu no capítulo anterior
ao falar da Igreja eletrônica.
A lógica do mercado, no entanto, não exp lica plenamente o fenôme­
no religioso, adverte-nos o antropólogo C. James. Há uma forma de "ecume­
nismo popular" pela qual os adeptos das diferentes crenças religiosas buscam
mais o reconhecimento do outro do que a supressão da alternativa do outro,
como acontece na lógica do mercado. O mercado tende ao monopólio ou ao
oligopólio, enquanto o fenômeno religioso amplia-se em formas diferenciadas.
Esse fenômeno, apesar de seu caráter religioso e de ser uma substitui­
ção do engajamento social, preenchendo o vazio do descrédito político, tece
uma nova rede p olítica. Atento a esse fenômeno menos visível, C. James

13. J. Eduardo Fernández, Tiempos posmodernos, in SEDO/ (Buenos Aires) 19 (maio de 1993),
n. 119, Separata: pp. 7s.

54
assinala o surgimento de uma nova forma de aliança entre as classes popu­
lares. Reordena-se o campo religioso privilegiando uma relação social hori­
zontal com novas redes populares de sociabilidade.

Paradoxo do fen6meno religioso


"Talvez o fato mais fundamental desse processo seja que o pluralismo
religioso coloca os diversos grupos sociais no espaço público. como inter­
locutores forçados a exercitar constantemente a argumentação. em busca
de formas mágicas eficientes e socialmente aceitas. Ora. é este exercício
constante que habilita ao desenvolvimento de sujeitos políticos e tem
possibilitado formas de ressocialização mais igualitárias do que a democra­
cia política tem conseguido criar. Assim. se essas expressões religiosas
não tratam diretamente de propostas políticas. exercem uma ação política
direta. inclusive elegendo um número crescente de parlamentares." 14

Não foi somente a fraqueza do socialismo que provocou a reação oposta


da eflorescência religiosa. A vitalidade do capitalismo reforçou o surto
reli gioso. Nada melhor para o sistema atual do que uma religião que cumpra
um duplo papel: anestesia qualquer crítica social e abre enorme espaço co­
mercial, fazendo circular milhões de dólares. O comércio religioso prospera
e consta entre as tendências em crescimento.
Ao transformarem-se os bens religiosos quer em produtos materiais ven­
dáveis - objetos religiosos, outras mercadorias marcadas com símbolos re­
ligiosos como camisetas com rosto de Jesus, do Papa etc. - quer em ima­
gens, programas, cenas transmitidas pela mídia, a religião cai sob a lei do
mercado. Aí funciona brutalmente o jogo de oferta e demanda. Para açulá­
lo, recorre-se ao marketing. E este faz o jogo entre desejo e necessidade.

Necessidades e desejos
"As teorias econômicas liberais e neoliberais e a produção das empresas
privadas estão pensadas em termos de satisfação dos desejos dos con­
sumidores. Só que estes desejos são apresentados também como neces­
sidades, e com isso se estabelece a confusão." 15

14. C. James. Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças, in Perspectiva
leológica 28 (1996), pp. 169s.
15. J. Mo Sung, Desejo mimético, exclusão social e cristianismo, in Perspectiva teológica 26 ( 1994 ),
p. 342.

55
Teóricos de economia equiparam necessidades com desejo. Assim
falam de necessidades ilimitadas, em vez de desejos ou consideram o ser
humano, não como um ser de necessidades corpóreas, mas como reduzido
somente a desejos. Terminam por abolir o conceito de necessidade. A
visão cristã, observa J. Mo Sung, distingue necessidades de desejos na con-
cepção do ser humano. A comunidade dos Atos em sua partilha resolveu o
problema das necessidades de seus membros, mas não necessariamente dos
desejos (At 4,32-35) 16 •
Os desejos vão se transformando continuamente em necessidades por
força da propaganda, do espírito de imitação dos bem situados no status
social por parte das camadas inferiores, de uma cultura do consumismo e
hedonismo. Basta despertar nas massas desejos de experiências relig io­
sas e dentro em breve, aos poucos, elas se transformarão em necessi­
dades e terão maior força de penetração.
Tem pesado muito na difusão religiosa o fato de que personagens simbó­
licas e de alto status social, programas de grande audiência, comunicadores
extraordinariamente dotados incorporem, reproduzam e divulguem experiên­
cias religiosas. O sentido mimético arrasta multidões a fazer a mesma
experiência como al go necessário para estar na onda. Pois "estar na
onda" é uma necessidade. Leia-se o texto abaixo de F. A. Hayek na perspec­
tiva de como realidades religiosas se tornam bens necessários para as multi­
dões. Aquilo que o autor fala de bens materiais, e que precisam de uma larga
faixa de tempo para socializar-se em necessidades da massa, vale também de
bens simbólicos. Estes, porém, por causa dos recursos da mídia de hoje con­
seguem alcançar as massas mais rapidamente. Experiências religiosas de
personagens ou pequenos grupos facilmente se transformam em desejos e
necessidades de muitas pessoas. Daí esse espetáculo religioso tão vigoroso.

Desejo e necessidade
"Inicialmente, um produto novo é, em geral, 'o capricho dos poucos es­
colhidos, antes de se tomar algo desejado por todos, passando a fazer
parte das necessidades da vida. Pois o luxo de hoje é a necessidade de
amanhã." 17 "Além disso, essas novas coisas, muitas vezes, se tomarão
disponíveis para a maior parte das pessoas somente porque, por algum
tempo, foram o luxo de uma minoria" ... "somente de uma posição avan-

16. Id., ibid.


li. G. Tarde, Social Laws: An Outline of Sociology, New York, 190i, p. 194 citado por F. A.
Hayek, Os fundamentos da liberdade, Brasília/São Paulo, Universidade de Brasília/Visão, 1983, p. 43

56
çada se tornam vlalvela os novos desejos e possibilidades, de modo que
a escolha de novas metas e o esforço exigido para sua realização come­
çarão muito antes de a maioria poder lutar por elas. Para que se torne em
breve disponível aquilo que a maioria irá querer depois que seus objetivos
atuais forem realizados, será necessário que os desdobramentos que
resultarão em benefício para as massas. dentro de vinte ou cinqüenta
anos. sejam orientados pelos pontos de vista de pessoas que já se en­
contram em condição de desfrutá-los· . . . • Aquilo que hoje pode parecer
mera extravagância, ou até desperdício, porque é usufruído por uma mi­
noria e nem mesmo sonhado pelas massas, é o preço da experimentação
com um estilo de vida que, eventualmente, também se tornará acessível
à maioria." 18

A influência do capitalismo sobre o despertar religioso não se reduziu


unicamente a um processo interno de provocação do desejo e necessidade de
experiências religiosas, como vimos acima.Existem políticas orientadas
por interesses explicitamente ideológicos do capitalismo que incenti­
varam o revivescimento religioso para desfazer o impacto crítico-so­
cial da vertente libertadora das igrejas.
Não cabe aqui uma leitura enviesada da história. Entretanto, há evidên­
cias de que interesses políticos norte-americanos, em aliança com os gover­
nos militares das décadas de 1960 e de 1970, incentivaram, apoiaram logística
e economicamente o desenvolvimento de igrejas evangélicas no Brasil 19• Assim
ampliaram o quadro religioso, ocupando o espaço da política ou de grupos de
Igreja mais secularizados e envolvidos nas lutas sociais. Mais uma vez se
constata a substituição do político pelo espiritual.
A análise do CELAM, observa L. Landim, vê nos objetivos políticos da
propagação das seitas na América Latina os dedos da CIA. A infiltração
das seitas servem aos interesses da direita norte-americana. Tornam-se
"verdadeiros cavalos de Tróia, promovendo infiltrações em nome do Evan­
gelho. Fala-se de contra-insurgência religiosa da direita norte-americana na
guerra contra-revolucionária por meio dos pentecostais, Igreja do Reverendo
Moon, as Testemunhas de Jeová, o Hare Krishna, os Adventistas do Sétimo
Dia, os Meninos de Deus, entre outros. Afirma-se que as 'seitas financiadas
pelos USA conduzem ao imobilismo da população, com apoio das autorida-

18. F. A. Hayek, Os fundamentos da liberdade, Brasília/São Paulo, Universidade de Brasília/Visão,


198J, pp. 4.1s.
19. D. �1. de Lima, Os demônios descem do norte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, '1989.

57
des conservadoras e mesmo ditatoriais'. A oposição se faz sobretudo às
Igrejas comprometidas com os pobres e a sua libertação" 20•

Ajuda externa e expansão religiosa


"A ajuda externa, justamente, representa um dos pontos delicados de qual­
quer estudo com o propósito de redesenhar o panorama religioso brasileiro
nos últimos anos. Com efeito, não têm escapado ao observador mais avisado
evidências seguras da interferência de estranhos mecanismos na sustentação
do novo quadro que se vai delineando a partir do extraordinário impulso que
ganharam os movimentos ou seitas modernas surgidas no País." 21

Em 11 de setembro de 2001, o mundo viu a destruição das Torres Gêmeas


de Nova Iorque e de parte do Pentágono em Washington. Ato destrutivo de
ousadia inaudita que provocou o massacrante ataque dos americanos e seus alia­
dos ao Afeganistão. Não é este aspecto que nos interessa aqui. Será que tal fato
está tendo impacto sobre o crescimento da atual ebulição religiosa? Além da
resposta militar de vingança e revanche, própria de nossa natureza animal, será
que o lado espiritual das pessoas vai reagir de modo diferente depois que passe
a onda emocional da dor pelos milhares de mortes na tragédia terrorista? 22
O terrorismo não revela a instabilidade do sistema mais poderoso
do mundo? Não se trata de uma fragilidade militar nem mesmo da possi­
bilidade de controle rigoroso para evitar a repetição de tais atos. Mas dos
valores materiais que desaparecem de um momento para o outro, sem deixar
rastro. Como reagir diante de tal fato?
Uma primeira reação tem sido doentia. Medo, insônia, açulamento
de neuroses adormecidas com a conseqüente corrida para a química tranqüi­
lizante. Favorece a já gigantesca indústria farmacêutica que se enriquece à
custa das ansiedades e dos temores alheios.
Outra, não menos sadia, restringe-se simplesmente a aumentar a
segurança, a vigilância. Isso serve para generalizar ainda mais o clima de
medo, já que se imaginam em cada esquina sinais de permanente ameaça.
Crescem os poderosos recursos de retaliação. Continua-se naturalmente no

20. L. Landim, Quem são as "seitas"? in L. Landim, org., Sinais dos tempos. Igrejas e seitas no
Brasil. Caderno do ISER, n. 21, Rio de Janeiro, ISER, 1989, pp. 16s.
21. D. M. de Lima, op. cit., p. 8
22. Ver u interessante artigo de S. P. Rouanet, A volta de Deus, in Folha de S. Paulo, Caderno
Mais, 19/05/2002, pp. 8-11, em que o autor comenta publicações posteriores a 11 de setembro de
Rorty, Habermas e outros textos anteriores de L. Ferry e Derrida/Vattimo sobre o papel da religião na
sociedade pós-secular.

58
mesmo nível do instinto animal acuado. Azeita-se a indústria bélica. Au­
mentam-se os postos de trabalho. Só que com o terrível pormenor de convo­
car mais gente para pesquisar e fabricar artefatos de morte. Ambas soluções
são benéficas para o sistema econômico, mas não para a vida humana das
pessoas. Antes, a última é perversa.
Não haverá então realidades mais relevantes, estáveis pelas quais vale a
pena viver do que a segurança material, a defesa e o ataque bélico? Vislum­
bram-se no horizonte mudanças profundas no comportamento das
pessoas. Esse ato de extrema gravidade levou a vida humana à pergunta­
limite pelo seu sentido. É possível, é previsível que tal situação ajude ao
crescimento da atmosfera religiosa.

Resumindo:
Diante da decepção com o fracasso das lutas revolucionárias, das ideolo­
gias e da impotência em face do sistema econômico neoliberal globalizado,
é de estranhar-se que se troque a luta social pela oração?
Diante da decepção com as lutas e com os compromissos políticos e
diante do descrédito de uma política midiática e corrupta ao lado do can­
saço com o militantismo seco e duro, é de estranhar-se que se troque o
comício pelas oficinas de oração?
Diante da incapacidade humana de mudar a realidade, é de estranhar-se
que su�a uma busca por milagres?

III. CAUSAS CONTEXTUAIS CULTURAL-FILOSÓFICAS

A decepção que alimenta o surto religioso estende-se para além


do campo econômico-político. Vai mais fundo. Está em questão o
processo civilizatório que o Ocidente iniciou nos albores do século
VI a.C. na luminosa Grécia. O logos, como razão demonstrativa ou ciên­
cia, faz sua entrada gloriosa, modificando a relação com o mito, ao assumir
uma função crítica diante dele. A razão ocidental percorreu longo itinerá­
rio. A partir do século XVII, ela arroga-se papel de absoluta autonomia,
intitula-se "iluminada" para desfazer as obscuridades das tradições ante­
riores, fechando assim o ciclo da razão clássica 23 . É com essa razão da
modernidade pós-cristã que nos defrontamos nos últimos séculos e cuja
crise se acentua cada vez mais.
23. Ver a penetrante reflexão de H. C. de Lima Vaz, Transcendência e religião: o desafio das
modernidades in Escritos de filosofia, III. Filosofia e cultura, São Paulo, Loyola, 1997, p. 226.

59
Fim da modernidade p6s-crlstã?
• Ela (a modernidade pós-cristã) assinala uma nova época na civilização
ocidental do ponto de vista da reorganização do seu sistema simbólico e
seus traços começam a definir-se a partir do século XVII. São traços que
compõem um novo desenho do sistema das razões, autorizando-nos a
falar de uma nova modernidade que encerra aparentemente o ciclo das
modernidades que se desenvolveram sob a égide da razão clásssica. Ora,
a modernidade pós-cristã 1. ..1 irá refazer de modo profundo e mesmo
radical o modelo das relações até então vigentes entre filosofia e teolo­
gia ... É verdade que o advento da idade moderna, nessa significação
consagrada com que nos referimos à idade histórica que estamos vivendo
e que, talvez, esteja atingindo o seu fim.... " 24

Já é um lugar comum repetir que a eclosão religiosa tem a ver com


a crise da razão iluminista, instrumental. Ela postulara uma posição de au •
tonomia diante das tradições, da natureza, dos Estados absolutistas, das Igrejas,
dos dogmas, das doutrinas impostas, do monopólio da interpretação. No campo
da política, substituíra o lugar da religião na configuração da sociedade, reme­
tendo-a ao mundo privado, individual. Seu maior êxito expressara-se no pensa­
mento e na prática científicos. Razão observadora, analítica que desfez e refez
continuamente os objetos de sua pesquisa com resultados espantosos. Mostrou­
se senhora, conquistadora da natureza até pôr os pés na lua com pretensões de
ir ainda mais longe. Criou o espírito de um progresso ilimitado.
Mais radicalmente criticou os próprios fundamentos do real. Subs­
tituiu uma compreensão do real que se fundava no ser, do qual Deus é o
princípio e o fim, especialmente da criatura racional, como nos ensina Tomás
de Aquino no início da Suma Teológica 25 • Estabeleceu a estrutura onto-antro­
pológica, como comenta H. Lima Vaz. Isso significa que o sistema de razões
gira em torno do ser humano, que começa a ocupar o centro do universo
inteligíveF b.

Deus: fundamento do real


"O objetivo principal da doutrina sagrada está em transmitir o conhecimen­
to de Deus; não apenas o que ele é em si mesmo, mas também enquanto

24. H. Vaz, op. cit., pp. 235s.


25. Tomás de Aquino, S. Th. I q. 2 Introdução.
26. H. Vaz, op. cit., pp. 2.l6-2.l9.

60
é o principio e o fim das coisas, especialmente da criatura racional, con­
forme ficou demonstrado. " 27

Ao enfrentar o campo religioso, a razão iluminista pretende des­


montar o mistério, como se fosse uma máquina inventada pela igno­
rância e crendice das pessoas. Uma vez penetrado pela razão, ele cairia
como um castelo de cartas. Ao ser penetrado racionalmente, não sobraria
mais espaço para nenhuma realidade transcendente ou sobrenatural. Tudo é
imanente, natural, redutível à razão. Estamos diante da profanidade absolu­
ta, sem janela aberta para nenhum horizonte além do terrestre. É-se conde­
nado a viver o absurdo, o nada. A vida é uma paixão inútil (J.-P. Sartre).
Essa exacerbação da razão iluminista, onto-antropológica, instru­
mental provoca o movimento oposto da sua rejeição. Segue-se a conse­
qüente explosão das emoções, da afetividade, da busca de experiências exis­
tenciais, de gozo da realidade e do presente, da harmonia, da intuição, da
razão fruitiva e comunicativa. Nessa onda, navegam muito bem as práticas
religiosas de caráter emocional.
O descrédito da razão não lhe veio unicamente por reação de rejeição do
excesso de seu domínio na cultura ocidental moderna. Constatou-se tam­
bém a sua fraqueza e a sua monstruosidade.
A debilidade da razão manifesta-se na sua incapacidade de abar­
car um setor sequer do conhecimento. Pois este se especializa ao ex­
tremo. Cada vez se sabe mais de cada vez menos. Levando tal movimento
ao extremo, chega-se à pura contradição de saber tudo de nada. Sem chegar
lá, percebe-se a enorme insegurança que as pessoas sofrem diante do nível de
informação e conhecimento que se tem acumulado ultimamente. Saber frag­
mentado, em ritmo acelerado de crescimento, com a sua conseqüente impos­
sibilidade de uma visão global, de uma síntese. É-se provocado a saltar para
uma linguagem simbólica que não sofre desse mesmo processo. E mais uma
vez, a religião sente-se em casa nesse movimento.

Descoberta do simbólico
"Então o homem do século XX, desconcertado e impotente, procura uma
síntese que lhe tome o mundo inteligível. Reclama interpretações que sejam
mais que sinais e pictogramas. Aspira a uma cultura que lhe permita situar­
se em um universo sem referências naturais; entre a fria racionalidade dos

'!.i. Tomás de Aquino, S. Th. op. cit, na tradução: São Paulo, Loyola, 2001.

61
computadores e a linguagem estereotipada dos politocratas. E redescobre
a riqueza da linguagem simbólica, deseja a clareza aparente do sincretismo.
Técnico ou ecologista, ele se põe em marcha para a 'renovação' religiosa. " 28

A verificação mais terrível dá-se a respeito dos monstros que a


razão gerou e que ainda está a gerar. É um grito ético e religioso de
protesto. Os mais medonhos vinculam-se à indústria de morte, tão cultivada
pela razão tecnológica, alimentada por gigantescos interesses econômicos. A
irracionalidade escandalosa da construção dos campos de concentração, dos
gulags, das armas sofisticadas para matar com a maior precisão possível e
com o mínimo risco de quem as emprega. Há exércitos de pesquisadores cuja
vida é consagrada a planejar e produzir armas sempre mais perfeitas. E ou­
tros se dedicam a vendê-las ou usá-las. Todo um círculo infernal de destrui­
ção de vidas humanas.
O elenco dessas monstruosidades não pára aí. Basta citar as palavras:
poluição, destruição da natureza, droga, indústria química e farmacêutica de
morte - veja o caso do bacillu.s anthracis ---, os experimentos arriscados e
irresponsáveis no campo da genética, a forma da industrialização e urbaniza­
ção e infinitos outros exemplos.
Não é de estranhar-se que o descrédito da razão instrumental, cien­
tífica por sua terrível irresponsabilidade social leve as pessoas a
embrenharem-se por outras veredas alternativas. E a experiência religiosa
oferece campo propício para essas excursões pessoais, comunitárias e coletivas.
No mundo de valores, que afeta diretamente a prática religiosa, acompanha­
mos o crescimento do individualismo, que chegou a configurar-se como o
maior valor da modernidade. Para a compreensão do fenômeno religioso, duas
faces do individualismo produziram, por lados opostos, o mesmo resultado.
O sistema capitalista alimentou o individualismo utilitário. A. Smith não
se acanhou em defini-lo como mola do capitalismo. Na sua clássica obra A
riqueza das nações ele apela para a famosa "mão invisível" que conduz ao
bem comum o que se procura como bem individual.

Individualismo utilitário
"Todo indivíduo empenha-se continuamente em descobrir a aplicação
mais vantajosa de todo capital que possui. Com efeito, o que o indiví­
duo tem em vista é sua própria vantagem, e não a da sociedade. Toda-

28. A. Samuel, As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997, p. 15.

62
via, a procura de sua própria vantagem individual natural ou, antes,
quase necessariamente, leva-o a preferir a aplicação que acarreta as
maiores vantagens para a sociedade" ... "Orientando sua atividade de
tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a
seu próprio ganho e, neste. como em muitos outros casos. é levado
como que por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia
parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que
esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir
seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse
da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmen­
te promovê-lo. " 29

Esse individualismo provocou enjôo, desgosto, náusea de tanto ficar-se


preso a si mesmo. E como ele girava em torno sobretudo de bens materiais,
a falta de sentido foi ainda maior com o conseqüente vazio existencial. Está
aberto o espaço para a entrada do fluxo religioso.
O individualismo tem outra face que casa diretamente com a dimensão
religiosa. O anterior gestou-a por oposição. Essa o faz diretamente. Mais
ainda na pós-modernidade, o individualismo se manifesta na preocupação
com o próprio prazer, gozo, realização pessoal afetiva, amorosa. Poucas ex­
pressões são tão reveladoras desse clima como dizer: faço o que gosto. Con­
sidera-se autenticidade precisamente fazer coincidir as próprias escolhas,
ações, práticas, conduta com a satisfação individual.
É tão evidente esse traço da modernidade e pós-modernidade que nem
precisa de comprovação. Mesmo assim, basta citar a pesquisa feita nos dez
países mais ricos da Europa que apontou como o maior valor a "própria
pessoa" que busca sua auto-satisfação 30 •

Minha pessoa: valor central


"É muito claro. antes de tudo. que para muitos europeus o valor central
reside na pessoa, isto é na minha pessoa. Esse conceito e esse valor
estão talvez difundindo-se por todo o planeta. com conseqüências dificil­
mente mensuráveis ... Ora essa noção de uma pessoa que é estritamente
a minha traz consigo uma variedade de valores que lhe são unidos: a

29. A. Smith, A riqueza das nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. Vai. I., São Paulo,
Abril Cultural, 1983, pp. 3i8-380.
30. J. Stoetzel, Les valeurs du temps présent: une enquête européenne, Paris, PUF, 1983.

63
felicidade, a segurança, a liberdade de ação e de decisão, a liberdade sem
mais, o domínio do destino pessoal, a realização de si, a consideração
social, assim como atividades agradáveis à frente das quais é necessário
colocar o lazer, que já era para os gregos o selo do homem livre." 31

As ofertas religiosas do momento presente visam diretamente satisfazer


necessidades imediatas das pessoas. Respondem perfeitamente ao individua­
lismo do prazer.

Resumindo:
Diante da decepção com as promessas da razão iluminista, é de estranhar­
se que as pessoas se entreguem às emoções religiosas?

IV. CAUSAS CONTEXTUAIS RELIGIOSAS

A tese corrente associa a revivescência reli giosa à secularização.


Apresenta-a ou como uma reação a ela, ou como outra face dela. Pisando-se e
recalcando-se a dimensão religiosa, esta se vinga numa explosão. É a revanche
do sagrado32 . Ou a secularização, ao atingir o papel social da religião, modi­
ficou-lhe a presença na sociedade. Provocou-lhe a interiorização, a subjetivação
e, por isso mesmo, a multiplicação de suas formas.
Subjaz a essas teses a influência predominante dos fatores sociais
sobre a religião. No centro de sua explicação está a secularização, entendida
como fenômeno social. A religião oficial, como instituição, não conseguiu
responder às mudanças rápidas e profundas da sociedade. Esta fragmentou
sua base institucional e permitiu surgirem subculturas correspondentes e
complexas. A sociedade complexifica-se e gera especialização institucional
da religião oficial que disputa e concorre com outros universos simbólicos.
Perde sua posição de superioridadé\
A secularização é o preço que se pagou pela heteronomia do dog­
ma e da moral. Quanto mais se insistiu na autoridade externa da instância
que ditava, controlava, impunha as tradições religiosas, os ensinamentos

31.J. Stoetzel, op. cit., p. 292.


32. L. Kolakowski, A revanchc do sagrado na cultura profana, in Religião e sociedade (1977), n. 1,
pp. 153-162.
33. Th. Luckmann, La religión invisible. El problema de la religión en la sociedad moderna, Sala­
manca, Sígueme, 1973.

64
doutrinais e morais, tanto mais a secularização gestou uma autonomia, inde­
pendência e rejeição dessa autoridade normativa, constitutiva da sociedade,
substituindo-a pela razão.
A secularizaç ão impôs o reino da razão onde as religiões provoca­
vam a discórdia, a guerra. Elas já não serviam como cimento de unidade
de uma sociedade cristã, do Estado. Dividiam -no em luta fratricida, como
aconteceu nos finais do século XVI com a guerra das religiões entre católicos
e protestantes. Mostrara-se antes como fonte de discórdia, de conflito, de
guerra. A paixão religiosa destruíra a paz social3 4 .
Os juízos históricos, elaborados por pesquisadores de peso, costumam
ser matizados e ponderados. Entretanto, nos momentos de polêmica, as pon­
tas agudas das cordilheiras históricas definem o cenário. As pessoas esque­
cem-se da complexidade orográfica da trajetória histórica. A Idade Média,
com momentos de escuridão e barbaridades - Inquisição, cruzadas, tortu­
ras, massas iletradas-, marcou o imaginário de muitos divulgadores como
a era do obscurantismo. Evidentemente eles se esqueciam de todas as suas
glórias arquitetônicas de pedra - as catedrais - e de pensamento -- as
sumas, as universidades -, de espiritualidade - as grandes ordens religio­
sas - para fixar-se em suas penumbras. A razão moderna chama-se ilus­
trada, iluminada, ao pensar-se luz em oposiç ão à noite medieval. E
como tal se propõe desfazer as trevas da religião, para imperar luminosa
sozinha. A religião pa gou esse preç o por suas horas de escuridão.
A modernidade encetou sua batalha racional contra a religião.
Atacou sobretudo a expressão católica. E diante de seus ataques, a I g reja
Católica reagiu principalmente de maneira defensiva e reativa. São
conhecidos os textos de papas e outras autoridades eclesiásticas de repúdio à
modernidade, embora encerrem aspectos pertinentes. Deixam, no entanto,
uma impressão geral de rejeição.

Pio VI e a liberdade religiosa na sociedade


"Decreta-se, pois. ser um direito estabelecido que o homem constituído em
sociedade goze de omnímoda liberdade. de fonna que não deve ser natural­
mente perturbado no que respeita à religião e que está em seu arbítrio opinar,
falar, escrever e até publicar o que quiser sobre assunto da própria religião.
Monstruosidades que proclamam derivar e emanar da igualdade e da liberda­
de, direito de todos os homens. Mas o que se pode excogitar de mais

34. \V_ Pannenberg, Christentum in einer siikularisierten \\lelt, Freiburg, Herder, 1988, pp. 2.ls.

65
insensato do que estabelecer tal igualdade e liberdade entre todos, sem
levar em conta a razão com que a natureza dotou especialmente o gênero
humano?" 35 (Constituição civil do Clero: 1790.

Quanto mais fortes foram os ataques da Igreja institucional à moderni­


dade, especialmente nos pontificados de Gregório XVI, Pio IX e Pio X, tanto
mais pensadores, filósofos, escritores modernos se puseram a infamar a Igre­
ja Católica. Caminhou-se de um racionalismo deísta para um ateísmo
combativo e militante e daí até um ateísmo civilizacional irênico.
O deísmo, que floresceu entre 1650 e 1750, com raízes anteriores e des­
dobramentos posteriores, verbalmente se opõe ao ateísmo e se professa, como
diz o termo, teísta. No entanto, camufla já certo ateísmo. É uma visão mo­
derna que, por razões racionais, afirma um Deus (criador) pessoal, transcen­
dente, mas cuja ação na natureza e na história é negada. Os títulos que lhe
dedicavam refletem tal compreensão: "Relojoeiro", "Grande Arquiteto". A
criação de um Deus e uma religião da razão já lança raízes para um movi­
mento que termina no ateísmo.
A razão humana arvora-se em princípio último, terminando por rejeitar a
positividade de toda religião e a revelação de Deus. Uma laicização radical da
cultura moderna ocidental opera-se no século XIX, opondo-se à cultura tradi­
cional e axiologicamente à primordialidade do Sagrado pela via do relativismo
fundamental dos valores. Foi uma batalha ferrenha contra a fé em Deus, o
cristianismo, a Igreja Católica. Já no século XX, especialmente depois da Se­
gunda Guerra Mundial, chegou-se, em muitos países, a um ateísmo civiliza­
cional irênico. Já se consideram desaparecidos os "perigos da religião". Não se
temem cadáveres. A vida humana em todos os seus rincões é comandada por
critérios e imperativos diferentes dos religiosos. Instaura-se na modernidade,
talvez pela primeira vez na história humana, um ciclo civilizatório fora do
espaço da religião, da referência a um Sagrado primordial ·16•

Ateísmo civilizacional
"O ateísmo passa a ser, no século XX, um 'fenômeno de civilização'. Ou
seja: todas as 'formas de vida'(Lebensformen: conceito introduzido em

35. P. Zaranzai, Colección de breves e instrucciones de nuestro santo padre el papa Pio VI, Zaragoza,
1829, I. 14 7s, cit. por J. I. González faus, A autoridade da verdade. Momentos obscuros do Magistério
eclesiástico, São Paulo, Loyola, 1998, p. 143.
36. H. C. de Lima Vaz, Religião e sociedade nos últimos vinte anos (19M-/9X6), mimeo., Belo
Horizonte, IS!. 1987.

66
outro contexto por E. Spranger) que conferem especificidade à civilização
ocidental (instituições, cultura, educação, trabalho .. .) passam a se desen­
volver sem qualquer referência constitutiva à esfera do religioso. A religião
não é uma 'forma de vida' da modernidade, como foi 'forma de vida' para
as civilizações do passado. É uma herança pré-moderna. " 37

A título de exemplo, veja-se o pensador francês M. Conche. Ele alegra­


se por ter-se despojado de todos os elementos cristãos, para confessar sua
plena secularidade. Critica as filosofias que ainda mantiveram, segundo ele,
o vínculo com a religião. "Vi-me ateu, para grande satisfação da minha ra­
zão, talvez também para minha satisfação pessoal, porque, desde o surgi­
mento da minha vocação, eu desejava renunciar aos objetos culturais." Os
objetos culturais a que se refere eram as noções de "Deus", "alma", "imor­
talidade da alma", "pecado", "arrependimento", "amor ao próximo" e ou­
tros, que por "efeito da pressão e impregnação educativas haviam adquirido
uma espécie de evidência". A religião tornou-se para ele sofrimento, en­
quanto a filosofia proporcionava felicidade. Mas sua felicidade em relação à
filosofia se consumou somente quando conseguiu superar aquelas filosofias
- cartesianismo, kantismo, hegelianismo - que ainda conservavam uma
espécie de compromisso entre a razão e a religião. Para isso recorreu àquele
momento filosófico anterior ao cristianismo, a saber, ao espírito grego. Vai
buscá-lo em Homero e na figura de Heitor, que é "apenas humano", numa
atitude tipicamente estóica.i8 •
O processo de racionalização do campo religioso desencantou o
mundo. A. D' Andrea cita a afirmação de M. Weber de que "não há forças
misteriosas incalculáveis, ...podemos, em princípio dominar todas as coisas
pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado" 39• D'Andrea cha­
ma a atenção para que, em M. Weber, magia e religião são forças antagôni­
cas. Fim da magia não significa fim da religião, mas de um clima religioso de
caráter supersticioso, que satisfaz os interesses das pessoas, enquanto a reli­
gião moraliza. Nesse sentido, quem "desencantou" o mundo foi o cristianis­
mo protestante4º .

37. H. C. de Lima Vaz, ibid.


38. M. Conche, A análise do amor, São Paulo, Martins Fontes, 1998; de modo especial o capítulo:
Tornar-se grego, pp. 103-129.
39. 1\-1. Weber, Ensaios de sociologia, org. por H. Gerth - C. Wright-Mills, Rio de Janeiro, Gua­
nabara Koogan, 1982, p. 165, cit. por A. D'Andrea, O Self perfeito e a nova era. Individualismo e
reflexividade em religiosidades pós-tradicionais, São Paulo, Loyola, 2000, p. 35.
40. lbid.

67
No entanto, o fim das forças misteriosas não veio. Em países de alta
cultura tecnocientífica e em classes ilustradas, de modo surpreendente, brota
o lado mágico religioso e não tanto a religião como instituição e moralizado­
ra. É o sagrado selvagem que desponta com força em formas primitivas e
mágicas 41 •

Sagrado selvagem
"Mas esse sagrado. que se vê de novo aparecer na cultura e na socie­
dade de hoje, mostra-se um sagrado selvagem. Busca, não obstante, às
vezes, seus modelos nos transes coletivos das populações ditas primi­
tivas, nos cultos de possessão, que o cinema, a televisão, o teatro negro
popularizaram. Não certamente para copiá-los, já que por definição um
sagrado selvagem é criação pura. e não repetição - ele se situa no
domínio do imaginário, não no da memória - mas para aí haurir. apesar
de tudo, o que poderíamos chamar uma pedagogia da selvageria... ' • Mas
hoje todos esses substitutos da religião, criados pela sociedade de con­
sumo ou pela psicoterapia analgésica. são objetos de contestação cres­
cente. Então, deixai-me ver nessas experiências de sagrado selvagem,
mesmo se elas são desajeitadas, a vontade de retomar o gesto de Moisés
quando ele feria com sua vara - mesmo se os psicanalistas vêem aí
somente uma verga fálica - o solo ressequido para fazer brotar a água
que faz florir os desertos. " 42

Há uma lógica no surto do sagrado selvagem. A racionalização do


mundo, da sociedade, com suas lógicas da razão científica e técnica, devora
as alteridades, reduzindo-as ao "mesmo" do indivíduo. "O outro somos nós."
A pretensão da sociedade moderna é ser totalmente senhora de si, adquirir
de si uma transparência total pela razão. No entanto, a pura legitimação dada
pela razão iluminista tem-se mostrado insuficiente. Têm-se buscado outras:
o bem-estar de todos, a nação, a raça, a democracia e a liberdade, o desen­
volvimento moderno etc. Tais razões não resistem a uma crítica séria. Mos­
tram seu caráter ideológico no sentido de falseamento da realidade, substitu­
to da Transcendência, da religião.
Daí a sociedade viver em contínua crise. Ela é dividida por dentro, inca­
paz de possuir totalmente a si mesma, como objeto manipulável. Não reco­
nhecendo a Alteridade que não consegue dar-se, nem sua condição inacaba-

41. R. Bastide, Le sacré sauvage et autres essais, Paris, Stock, 1'1'17,


42. R. Bastide, op. cit .. pp. 210.2:?<J.

68
da, termina por criar espaço para surtos religiosos. Corroem-se as referências
e representações simbólicas religiosas tradicionais que davam à sociedade
tradicional sua unidade e que mantinham o indivíduo e a sociedade sob
dependência radical. Ao emanciparem-se o indivíduo e a sociedade dessa
dependência e submissão em face da Alteridade do Invisível, do Absoluto,
do Outro, do Fora (religioso), libera-se o imaginário desregrado, o irracional
da sociedade, permitindo o surto do sagrado selvagem, sob forma de movi­
ro.entos_religiosos irracionais ou movimentos trasvestidamente religiosos, em
que se jogam sexo, droga, dinheiro, dominação, triunfo social.
A sociedade moderna promete precisamente o de que não é ca­
paz, deixando um rastro de insatisfação no coração humano. Diz-lhe
que satisfará suas necessidades. Ora estas não podem ser nem definidas nem
realizadas. No ser humano, necessidades e desejos se imbricam e têm hori-
zonte infinito.
- - --
-

A sociedade atual promete garantir a felicidade, mantendo a segu-


rança. Nada tão violentamente ameaçador do que a insegurança. Basta ver
a neurose coletiva de segurança que se apossou dos Estados Unidos depois
de 11 de setembro de 2001. Esquece-se de que não existe nenhuma defesa
diante da angústia da morte. Protela-se sua data por inúmeros recursos,
mas ela nunca será evitada, sua angústia nunca será superada. Os conheci­
mentos científicos progridem celeremente, mas não apaziguam os apetites
humanos de crescer. Uma sociedade extremamente racionalizada não
afasta a "vingança do irracional" sob as formas de seitas, magia, astro­
logia, culto do exótico 43 .
A lógica da racionalização e a emancipação do indivíduo e da so­
ciedade desatam uma contra-lógica do religioso. Busca-se o Transcen­
dente ou de maneira sensata ou sob o aspecto negativo irracional de formas
exóticas e absurdas, como suicídio em massa 44 .
A racionalidade tecnicocientífica, ao mesmo tempo, alarga para os in­
divíduos e sociedades os horizontes utópicos e retira-lhes o principal siste­
ma de significação e referência, que é a religião. A racionalidade moderna,
ao desintegrar a religião como força de coesão da sociedade, provoca rea­
ções não racionais no ser humano. Ele não vive sem referências simbólicas.
No vazio produzido pela pretensão de destruir tais referências, cabem as
formas mais exóticas do sagrado, que os indivíduos e sociedades fabricam

4.l L'analisi di P. Paul Valadier su 'Società moderna e Religione cristiana', in ADISTA 19 (Roma,21-
23 de outubro de 1985). n. 3347-9, pp. 3-9.
44. Basta lembrar o caso de Jim Jones, mencionado no capítulo anterior.

69
compensatoriamente para dar sentido a um cotidiano tão distante dos ide­
ais prometidos. Lança-se mão de formas irracionais, selvagens e arcaicas.

Resistência do religioso
"Um fim completo da religião é possível. Isso não significa que o religioso
'
deva cessar de falar aos indivíduos ... Ela (a experiência religiosa subjetiva)
não tem necessidade de projetar-se em representações fixas, articuladas
num corpo de doutrina e socialmente partilhadas na prática .... Pode muito
bem acontecer de investir alhures ... Mesmo encerrando definitivamente a
era das religiões devemos persuadir-nos de que entre religiosidade privada
e substitutivos da experiência religiosa nunca acabaremos com o religio­
so ... A continuidade no registro da experiência íntima (religiosa) não ces­
sou de nos reservar surpresas." 45

A religião tem certa autonomia em relação aos fatores sociais. De


dentro dela mesma, surgem explosões carismáticas e messiânicas num pro­
cesso interno de refazimento. Repete-se a dinâmica analisada por M. Weber
de que os carismas tendem a institucionalizar-se, e as instituições, no auge de
sua rigidez, terminam por explodir em surtos carismáticos. No extremo da
dureza institucional, elas entram em crise. É um fenômeno social� religiQ.so.
J. Servier distingue dois movimentos diferentes de transformação
das cidades, das sociedades. Nas tradicionais, a destruição da ordem anti­
ga não significava a geração de nenhum progresso. Antes, elas buscavam
construir novas cidades mais sólidas num eterno retorno. Voltava-se ao
mito da fundação.
A perspectiva bíblica aponta para o futuro. Israel se constitui povo
em direção à Terra Prometida. Vive a expectativa do Messias. Essa crença
original alimentou uma concepção diferente de utopia. O Ocidente vai ser
marcado pelo desejo de encontrar no futuro seu ideal de perfeição. Isso per­
mitirá surgir, ao longo de toda a sua história, uma série de messianismos, de
escatologismos que jogam com a insatisfação do presente e com a promessa
de um futuro melhor.
Por isso, toda vez que o presente se carrega de crise, de carências, de
condições insuportáveis, especialmente para os pobres e camadas populares,
explodem movimentos messiânicos.

45. M. Gauchet, Le désenchantemenl du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard,
1985, pp. 292s.

70
Bfblla e movimentos revoluclonérlos
"A Bíblia foi lida, ao longo dos séculos, não como um mito de criação do
mundo, mas como um manifesto revolucionário cheio de profecias consi­
deradas como alusões a todos os períodos de crise, a todos os exílios e
a todos os cativeiros."
"Homens, aos milhares, creram, crêem ainda viver o fim dos tempos anun­
ciado pelos profetas, saudando cada tribulação como um sinal precursor dos
últimos dias, na antecâmara sangrenta da Era nova: o Reino dos Justos."
• Ao longo dos séculos, o milenarismo permaneceu a esperança dos po­
bres neste mundo, uma esperança atiçada por guerras sem fim, fomes,
epidemias, cada vez que passavam os cavaleiros do Apocalipse."
"Messias vestidos de miséria, movidos de raiva contra a iniqüidade de
seu tempo, vestiram-se de todos os sinais da unção divina por campo­
neses sem terra, pastores sem rebanho, artesãos desempregados, mi­
neiros aprisionados num trabalho sem fim. Esses homens anunciavam um
novo Evangelho, carregavam consigo, como uma chama escondida, a
vontade de realizar o Reino dos Iguais, a promessa que o Outro não
soubera cumprir. " 45

O Ocidente viverá uma tensão permanente entre esse traço messiâni­


co, milenarista e escatoló gico bíblico-cristão e a tendência dos poderes
de acomodar-se, de manter a ordem terrestre com suas posses.
Na Idade Média, houve diversos movimentos espiritualistas e messiâ­
nicos que ora cabiam com dificuldade dentro da Igreja institucional e da
ortodoxia, ora extravasavam.
A fi gura do abade Joaquim de Fiore (1132-1202) foi emblemática.
Ele anuncia, em linguagem extremamente simbólica e matizada, uma tercei­
ra era, o tempo do Espírito, que sucederá ao do Pai (Antigo Testamento) e
ao do Filho (Novo Testamento até os seus dias). Essa nova era se manifestará
numa Igreja renovada, dotada de uma inteligência espiritual das Escrituras.
Essa Igreja será livre, espiritual, humilde, silenciosa, casta e virginal, dos
contemplativos. Igreja da caridade "que repousará no silêncio do deserto",
no ócio e no descanso.
Seu pensamento iluminará as gerações seguintes de revolucionários e
profetas escatológicos. H. de Lubac reconheceu a importância desse abade
calabrês e estudou sua posteridade espiritual até nossos dias. Subsiste até

46. J. Servier, lli.stoire de l'utopie, Paris, Gallimard, 196i, pp. 16, 20, 22.

71
hoje a espera de uma nova era, o tempo do Espírito, o tempo da liberdade
plena4 ;. O acento do pensamento de J. de Fiore cai sobre a leitura espiritual
da letra da Escritura. Dom concedido aos homens espirituais. E o tempo
dessa avalanche do Espírito está próximo.
Seu pensamento simboliza a tendência de conceber uma fé escatológica
realizada na terra, transformando a esperança em utopia 4x . Dito em termos
mais simples, é a contínua tentação de querer realizar o céu na terra. Naque­
les idos, movimentos de pobres se inspiraram no seu pensamento. Uns
perambulavam pelos subúrbios da Igrejas. Outros foram institucionalizados,
perdendo parte de sua força profética, mas contribuíram para uma renovação
da Igreja, como os franciscanos.

Joaquim de Fiore
"Assim como o sopro na tuba, assim progride a inteligência espiritual do
coração da letra." "Aparecerá a verdade manifesta procedendo do ventre
da letra e da casa do Novo Testamento." "Que é ver o céu aberto (Jo
1,51>, a não ser intuir interiormente o Antigo e o Novo Testamento, que
estão fechados aos homens carnais, se se afasta a porta da letra?" "A
letra do Antigo Testamento foi confiada ao povo judeu, a do novo ao povo
romano, e aos homens espirituais a inteligência espiritual que procede de
ambos." "Embora audaz, mas não loucamente, digo o que sinto verdadei­
ramente: o tempo está próximo." "Após os dois primeiros céus, o céu do
Antigo Testamento fundado pelos patriarcas e o do Novo Testamento
fundado pelos Apóstolos, eis o despertar da aurora do terceiro céu" (já
levantado secretamente numa linhagem de contemplativos), o céu da inte­
ligência espiritual. À sua claridade deixaremos enfim o 'Egito do século
presente' para entrar na 'via estreita do deserto' que deve conduzir-nos
até a Jerusalém espiritual." • Ao duro trabalho das mãos, depois à leitura
assídua, ou ao temor do Deus de Israel, depois à recepção submissa da
doutrina ensinada por Cristo, vem logo suceder a explosão da alegria na
inteligência, do livre júbilo... O tempo da abertura do sexto selo está
próximo." "Quando chegar o tempo (do Espírito>, a água da leitura do
evangelho se converterá em vinho." 49

47. H. de Lubac, La postérité spirituelle de }oachim de Flore, t. 1: De Joachim à Schellling ; t. 2: De


Saint-Simon à nos jours, Paris-Namur, Lethielleux, 1979-1981.
48. H. de Lubac, Exégése mediévale. Les quatre sens de l'écriture, II• parte, I, Paris, Aubier, 1961,
pp. 437-558.
49. Textos traduzidos por mim do latim ou do francês, tirados do livro de H. de Lubac, La postérité ...

72
O fenômeno de J. de Fiore e outros surtos espiritualistas à margem
da instituição revelaram o déficit carismático que atravessa toda a
história da I greja Católica. As primeiras explosões dessa natureza já acon­
teceram na Igreja de Corinto e na virada do século II, com o movimento
montanista. No primeiro caso, Paulo precisou intervir com firmeza e deixou­
nos preciosos capítulos de discernimento dos carismas na Primeira Epístola
aos Coríntios (caps. 12-14 ).
O surto montanista sig nificou ponto decisivo de retração diante
do carismatismo na I greja. O clima carismático existia nos parâmetros
traçados por Paulo. lreneu de Lião, que será o grande adversário dos mon­
tanistas, reconhece a pluralidade de carismas, recebidos por Deus, no seio
da Igreja. São os espirituais'º. Tal clima carismático transborda com
Montano que associa ao carismatismo e messianismo dose de espiritualis­
mo antiinstitucional e de desprezo da matéria. Ele encontrou na Frígia
campo fértil para tais manifestações, já que lá existiam cultos violentos,
emoções religiosas intensas. Assim Montano com duas profetisas, que logo
o acompanharam, conseguiu imitadores. Formou-se verdadeira seita. Agi­
tou toda a região. Multiplicaram-se as manifestações extáticas. Associou­
se o anúncio da descida iminente da Jerusalém celeste. Forma extrema­
mente religiosa e fanática que abalou a hierarquia da lgreja 51 . A Igreja re­
age vigorosamente na pessoa de lreneu de Lião, na França. Cria-se dora­
vante uma atitude de suspeita na Igreja que ficou traumatizada com a ex­
periência montanista. Inicia-se um enorme déficit carismático, que a onda
atual ensaia cobrir.
J. Comblin fez uma reflexão mais ampla e geral, em que contrapõe numa
dialética os pólos do judeu e do pagão 52. Tanto mais interessante é esta
reflexão quanto mais trabalhamos com a presunção de estar diante de um
recrudescimento de formas neopagãs até mesmo no seio da Igreja Católica.
O judeu simboliza a lei, a observância rí gida. Prolongando o pensa­
mento de J. Comblin, tal pólo se radicaliza ainda mais com a cultura romana
jurídica. O pagão representa a idolatria, a permissividade, o relaxa­
mento. O cristianismo apresenta-se como superação dialética, assu­
mindo do judeu a lei na liberdade e do pagão a liberdade com a lei. No centro
da superação está a liberdade.

50. lreneu de Liào, Adv. Haer. II, XXXII, 4.


51. G. Bardy, Montanisme, in Dictionnaire de Théologie Catholique, Paris, Letouzey & Ané, 1929,
X/2. col. 2355-2370.
52. J. Comblin. O Esp írito Santo e a libertação, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 81-83.

73
A dlal6tlca dos pagãos e dos judeus
• A dialética dos pagãos e dos judeus tem um alcance mais amplo que o
antagonismo de dois povos sociologicamente definidos. Pois judeu e pa­
gão são categorias universais ... Na sociedade pretensamente cristã, ainda
subsiste o judeu e subsiste o pagão. Ainda subsiste o antagonismo entre
eles. O cristão tem em si um pagão e um judeu. " 53

Acontece que nenhuma superação dialética tem o equilíbrio da perfeição.


Termina por carregar mais a positividade de um dos pólos para dentro de sua
novidade. Assim a liberdade cristã na Igreja tem mais da tradição ju­
deu-romana do que pagã.
Trazendo tal reflexão para o contexto de nosso tema, a tradição católica
manteve, sem dúvida, algo da liberdade cristã. No entanto, o peso caiu sobre
a lei. O déficit maior ficou do lado pagão da permissividade e menor do lado
judeu da lei. E esse déficit foi crescendo depois do século XI até chegar no
pontificado de Pio XII a um volume de dívida externa brasileira.
A reviravolta carismática, que se inicia na década de 1960 e se radi­
caliza nos nossos dias, inverte o movimento. Ao terminar a era piana com
a morte de Pio XII em 1958, caracterizada pelo auge do centralismo e poder
pontifício, desponta um "novo pentecostes", "uma nova primavera" na lin­
guagem do papa João XXIII. Esse movimento renovador não assumiu a forma
do atual fenômeno religioso. Pareceu, pelo contrário, ter criado um "novo
Espírito" que se manifestou em atitudes críticas, secularizantes e transforma­
doras de estruturas, de busca de experiências novas nos diversos campos da
liturgia, da vida religiosa, da participação do leigo, do compromisso social.
O jogo de causalidades, que conduziu ao momento atual de explo­
são religiosa, passou pela renovação do Concílio de modo paradoxal.
Esse clima inovador gerou, em partes da Igreja Católica, dois movimentos
que vieram aumentar o clima religioso. Ao modernizar a Igreja, o Concílio,
a contragosto, provocou as ondas fundamentalistas, conservadoras, tradicio­
nais que fizeram subir a temperatura religiosa. E também produziu
reativamente um recrudescimento institucional sob a forma de neoconser­
vadorismo clerical. Em face do clima neoconservador, a onda espiritual faz
o duplo jogo de beneficiar-se dele até onde o ajuda e de tomar distância no
restante, quando ele lhe cerceia ou limita a liberdade carismática. Por conse­
guinte, no interior do próprio movimento eclesial há razões para en­
tender o atual fluxo espiritualizante.

53. J. Comblin, op. cit., p. 112.

74
A partir de outra perspectiva, R. Stark e W. Bainbridge levaram a cabo
uma pesquisa empírica sobre o futuro da religião, analisando a relação entre a
secularização e a formação da revivescência do culto 54 • Defendem a tese de que
a secularização é um processo que acontece em todas as economias
religiosas, em todas as sociedades. Ao crescer a secularização numa parte da
sociedade, por reação acontece uma intensificação religiosa em outra; quando
cresce, num lado, o ritmo da secularização, noutro explode a religiosidade.
As organizações religiosas dominantes tendem a "mundanizar-se", a se­
cularizar-se. Mas o resultado não é o fim da religião, mas o deslocamento de
chances entre as religiões como crenças de modo que as mais "seculares" são
suplantadas pelas religiões mais vigorosas e menos seculares.
A secularização é um dos três processos fundamentais e inter-rela­
cionados que afeta constante e estruturalmente todas as economias
religiosas. O processo de secularização é autolimitante e gera dois processos
contrabalançadores. Um deles é o "reviva!", reavivamento. As organizações
religiosas, que sofrem erosão pela secularização, deixam uma parte substan­
cial de seu mercado para a demanda de uma religião menos secularizada.
Essa demanda provoca surtos de seitas. A secularização estimula a inovação
religiosa, provoca a formação de novas tradições religiosas. Sempre estão
aparecendo novas religiões nas sociedades.

Ciclo de cisma, secularização, cisma


"Entre os acontecimentos mais comuns na história das religiões, temos o
cisma - um grupo de membros insatisfeitos rompe com a organização
religiosa para fundar uma nova organização ... " "Por sua verdadeira natureza,
a religião é uma força dinâmica, sempre em mudança e em renovação. A
esperança por ajuda sobrenatural surge das necessidades insatisfeitas que
atormentam os seres humanos e estes se distinguem grandemente nessas
necessidades. Portanto, o livre supermercado religioso será uma confusão de
crenças em competição diferindo na sua tensão das instituições seculares
dominantes e no grau em que oferecem poder mágico ... Os cismas religio­
sos são inevitáveis. Porque a desigualdade é fundamental para a vida humana
organizada. Sempre existem fortes demandas por crenças terrestres e
supraterrestres... A formação das seitas é um traço inevitável da religião
organizada, um ciclo interminável de cisma, secularização, cisma. " 55

54. R. Stark W. Bainbridge, The Future of Religion. Secularization, Revival and Cult Formation.
Berkeley Los Angeles - London. University of California Press. 1985.
55. R. Stark W. Bainbridge, op. cit., pp. 99. 124s.

75
Os cientistas sociais falharam, seja por causa de seu desejo de que as
religiões desaparecessem, seja por não reconheceram o caráter dinâmico das
economias religiosas. A secularização é parte de um fenômeno religio­
so, num momento tanto de ocaso como de aurora. As fontes da religião
estão deslocando-se, mas a grandeza religiosa permanece relativamente cons­
tante. Os autores trabalham com o conceito de religião dos estudiosos do
século XIX, segundo o qual as religiões envolvem alguma concepção de se­
res, mundo e força sobrenaturais, O sobrenatural atua de modo que os even­
tos e as condições na terra são influenciados por ele. Entende a religião como
organizações humanas comprometidas primariamente em prover compensa­
ções e retribuições gerais, baseadas em crenças sobrenaturais.
As formas primárias de desvio dos movimentos religiosos são as
seitas e os cultos, distintos das instituições religiosas ou igrejas. Entre os
cultos, há os que são movimentos religiosos plenamente desenvolvidos e outros
são grupos ou atividades que representam magia e não religião.
As org anizações religiosas tendem a entrar em baixa tensão com
seu ambiente e assim são incapazes de prover compensações eficazes
para a penúria como os " grupos em alta tensão" oferecem. Assim se
entendem as circunstâncias em que os cismas religiosos se desenvolvem -
as seitas são grupos cismáticos que deixam um grupo de tensão baixa para
formar um de mais alta tensão. As seitas constituem ameaça crônica para as
igrejas monopolistas.
O surto de crenças e movimentos ocultos se deve menos a uma
nova espécie de "consciência" do que à fraqueza nas religiões conven­
cionais. Nenhum sistema secular de sentido provê explicações gerais sobre
a vida como a religião fornece. A partir de informações dos freqüentadores
de cultos, conclui-se que nas atuais conjunturas os cultos têm grande êxito
no recrutamento de pessoas que são totalmente normais.
A secularização, i.e., o enfraquecimento das organizações de muitas igre­
jas maiores, propicia inovação religiosa. O futuro não será um tempo sem
religião, mas de novas religiões. Seitas e cultos surgem no vácuo criado
pelas igrejas enfraquecidas.
Os autores mostram como crenças naturalistas são incapazes de substi­
tuir crenças sobrenaturais mesmo em contextos de movimentos políticos
radicais, de estados oficialmente ateus. Movimentos políticos transforma­
ram-se freqüentemente em movimentos religiosos bem desenvolvidos. Os
Estados totalitários e oficialmente ateus fracassaram nos esforços de erradicar
a religião. O impulso tecnológico destruidor do cosmos inverte a percepção
da natureza. "Martelar numa religião é martelar um prego. Quanto mais
forte, tanto mais ele penetra."

76
Decepçlo polftlca e llumlnaçlo rellgloea
"Esta era nova caracteriza-se por uma relação nova, feita de continuidade
e de comunhão com o cosmos, em oposição da relação de exterioridade
e de exploração estabelecida pela civilização tecnocientífica com a nature­
za. Marca o fim da história e conseqüentemente o fim da política definida
pela realização de um projeto na história: vale somente o instante e no
instante, a iluminação da consciência. " 56

Resumindo:
Diante da decepção com as instituições religiosas, é de estranhar-se que
surja uma "nebulosa religiosa" que envolve a todos os desprotegidos das
religiões institucionais?

Completa o quadro das causas um olhar sobre a psicologia das pessoas.


Esta sofre forte influência do ambiente circundante, mas tem certa autono­
mia que merece sua consideração.

V. CAUSAS PSICOLÓGICAS

Os fatores sociais influenciam diretamente a psicologia das pes­


soas, levando-as a práticas religiosas. Permanecem no ser humano "zonas
arcaicas" religiosas que se manifestam em demandas de expressões religio­
sas. Suas teclas interiores são tocadas por elementos culturais que despertam
reminiscências religiosas. Não nos referimos à estrutura antropológica de
que se falará abaixo, mas de elementos da psicologia individual de pessoas
que foram marcadas, nalgum dia, pelos traços religiosos.
Em relatos de conversão, aparecem alusões a esse passado religioso que
permanece, qual brasa sob cinzas, no coração humano. E certas festas reli­
giosas, como a Semana Santa e Natal, em nossos países de cultura cristã, têm
o condão de despertar essa saudade religiosa que, às vezes, se transforma em
sede de novas experiências religiosas 57 •

56. D. Hervicu-Léger. Vers un nouioeau christianisme ? lntroduction à la sociologie du christianisme


occidental. Paris, f:ditions Éditions du Cerf, 1986, p.163.
57. Para uma análise profunda e detalhada do processo de conversão: L. Rambo, Psicosociologia de
la cont-ersicin religiosa: coni•encimiento o seducción, Barcelona, Herder, 1996.

7i
Saudade do religioso
"Tenho um profundo desejo interior de retomar à Igreja, necessidade que
creio poder satisfazer participando do culto quando estou no estrangeiro.
Aí não consigo entender nada da mensagem, mas posso recordar-me, pelo
ambiente circundante e pelas atitudes de profunda reverência dos fiéis,
além de que pela música maravilhosa e pelos quadros de tema religioso,
da intenção que está por trás do ritual e das profundas experiências reli­
giosas que usava experimentar quando jovem. Assim me encontro fre­
qüentemente desejando nunca ter crescido" CT. S. Elliot)58•

A psicologia profunda conhece a emergência de arquétipos religiosos nos


momentos de crise. Pessoas afastadas de práticas religiosas, em dado mo­
mento, ameaçadas por alguma doença, ou pela proximidade da morte, ou por
alguma angústia maior, vêem brotar dentro de si reminiscências religiosas
antigas. A sociedade atual gera sentimento de abandono profundo, de soli­
dão insuportável, de silêncio angustiante de sentido. Está posto um clima
para o surto de busca religiosa, sobretudo por parte das pessoas em que as
camadas religiosas jazem fundo, embora encobertas pelas cinzas da secu­
laridade.

Resumindo:
Diante da presença nas pessoas da tradições religiosas profundas, é de
estranhar-se que elas emerjam numa situação de desesperança?

Todas as causas estudadas referiram-se ao contexto sociocultural


ou ao movimento interno da religião ou a realidades psicológicas. Fi­
cou ainda de fora uma questão de relevância filosófica e teológica. Não ha­
verá uma causa ainda mais profunda que se encontra no próprio coração do
ser humano, enquanto ser humano? Ou o fenômeno religioso não passa de
uma onda passageira e fugaz em momento de exacerbação psicossociológica?
Essa terrível teimosia das expressões religiosas sempre existiu. Esse fato
decorre de o ser humano ser criador de símbolos religiosos? Ou nasce de
circunstâncias de angústia e de crises provisórias? E se há nas pessoas uma
dimensão religiosa ontológica, como explicá-la?

58. Citado por S. Acquaviva, Religione e irreligione nell'età postindustriale, in S. S. Acquaviva -


G. Guizzardi, Religione e irreligione nell'età postindustriale, Roma, AVE, 1 1171, p. 1.1.

78
VI. CAUSAS ESTRUTURAIS FILOSÓFICO-TEOLOGAIS

Duas correntes divergem radicalmente na resposta, mas ambas


coincidem no ponto que nos interessa: o ser humano é um criador de religião.
A primeira vertente filosófico-teológica de corte cristão vê nessa sede
religiosa e na capacidade de o ser humano criar sinais e símbolos para unir­
se a uma realidade transcendente o fato de ter sido criado por Deus e
chamado a uma comunhão de intimidade com Ele. Outra vertente,
que encontra em L. Feuerbach sua paternidade maior, vê nessa fábrica
de símbolos religiosos um processo de compensação do ser humano que
projeta para fora de si, dando-lhe consistência de realidade, o que no fundo
ele deseja ser, é e teme reconhecê-lo.
A primeira vertente encontrou na filosofia e na teologia transcen­
dental reflexões suficientemente claras, precisas e profundas. Basta reto­
mar-lhes as teses centrais. Inspirados em Tomás de Aquino, dois nomes
marcaram esse cenário filosófico-teológico: M. Blondel e K. Rahner.
M. Blondel propôs uma apologética da imanência, na intenção de encon­
trar no ser humano sinais de abertura à Transcendência, de modo que a
revelação lhe viria, não como algo extrínseco e intervencionista, mas como
resposta quase "conatural". Esses sinais revelariam "pontos de identidade"
ou "pontos de inserção" da realidade transcendente dentro do próprio dina­
mismo espiritual do ser humano 59 •
K. Rahner desenvolve amplamente essa temática em várias de suas obras 611 •
Elabora um discurso teológico que se funda no "existencial sobrenatural",
marca ontológica no ser humano do ato de um Deus que cria e chama a sua
criatura a uma comunhão de intimidade, de graça.
Mais recentemente, J. A. Mac Dowell retoma considerações semelhan­
tes61 . Analisa a experiência transcendental do espírito humano, na sua dupla
valência reveladora, tanto do seu caráter finito quanto de sua tendência ili­
mitada para a totalidade do ser. Passa em revista três posições explicativas
que não satisfazem. A realidade no seu conjunto não tem sentido, sendo,
portanto, essa tendência pura ilusão ou absurdo. Também aquelas posições
que estabelecem desde a razão um fundamento absoluto ou o término de tal
tendência não dão conta satisfatória porque encerram a Deus nos limites da

59. Tratei desse assunto em Teologia da Revelação a partir da modernidade, São Paulo, Loyola,
'2000, pp. 54-58.
60. Ver a mesma obra, capítulo sexto: pp. 163-193.
61. J. A. Mac Dowell, A experiência à luz da experiência transcendental do espírito humano, in
Síntese. Revista de filosofia, 29(2002), pp. 5-34.

79
razão. MacDowell aponta o caminho de uma compreensão do dinamismo
peculiar do espírito como resposta à atração do espírito divino, atematicamente
captado no mistério de nossa experiência existencial.

Abertura do ser humano à Transcendência


"A esperança e o desejo de viver podem abrir-nos à fé religiosa. Em âmbitos
teológicos costuma-se destacar que a fé nos abre à esperança, e esquece­
se que também a esperança nos abre à fé. Dito de outra maneira: a espe­
rança de viver, o impulso da vida abrem-nos ao religioso de modo que se
não a fé em Deus, ao menos a pergunta por sua possível existência surge
dos anelos e esperanças mais profundos do ser humano: 'Não é que espe­
ramos porque cremos; antes, cremos porque esperamos'CM. Unamuno). A
esperança, a busca de futuro e de sentido bem poderiam desencadear o
movimento que leva à fé. Sem essa busca prévia dificilmente poderá o
homem colocar-se a questão de Deus e abrir-se a ele. " 62

Essa posição serve mais para justificar a razoabilidade da Revelação como


resposta a um ser humano apto para acolhê-la. No coração humano já existe
o ponto de engate preparado à espera de que lhe venha engrenar ajustadamente
uma mensagem, uma solicitação de Deus.
Esse ponto de inserção permite também entender que outras ofertas re­
ligiosas encontrem aí sua entrada. Essa realidade antropológica ilumina o
fato de que tantas expressões religiosas ressoem no coração humano, feito
radicalmente para acolher mensagens da transcendência. E nessa sede ele
também cria novas formas religiosas. Estabelece-se um círculo difícil de
determinar a causa e o efeito. São realidades religiosas que têm sua última
origem em Deus e que respondem aos anseios humanos ou são projeções
religiosas desse ser aberto para a transcendência.
A segunda tendência opta sem mais para a segunda parte da alter­
nativa. Não há revelações, não há manifestações da transcendência. O ser
humano é, por natureza, um ser simbólico e religioso. Ele mesmo cria os
sinais religiosos para ele mesmo consumi-los.
Evidentemente essa posição parece explicar melhor o fenômeno religio­
so, já que a abundância de expressões religiosas, algumas aberrantes, é tal
que só muita criatividade humana dá conta dela. Não se podem atribuir a
revelações de Deus formas religiosas tão abstrusas.

62. M. Gelabert, La apertura dei hombre a Dios (y a su posible manifestaci1ín), in C. lzquierdo,


org., Teologia fundamental. Temas y propuestas para el nuevo milenio, Bilbao, I>I>B, 1999, p. 115.

80
As experiência, religiosas dão sentido à vida. Tornam-na mais palatável.
Sem elas, tudo fica pesado. Daí o ser humano, para consolo seu, produzir
deuses, religiões, ritos, a fim de viver melhor. No fundo, tudo são criaturas
suas. Está aí a origem de ateísmos antigos de natureza projetiva, aos quais L.
Feuerbach deu maior consistência teórica. Na esteira feuerbachiana, a psica­
nálise de corte freudiano trabalha o discurso religioso como patologia. A
sociologia marxista vê nele alienação. São explicações do fato. Mas o fato
religioso continua persistente e desafiando essas teorias.

Deus e a essência humana


"A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo,
o conhecimento de Deus, o conhecimento que o homem tem de si mes­
mo. Pelo Deus conheces o homem e pelo homem conheces o seu Deus;
ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito,
a sua alma e o que é para o homem seu espírito, sua alma, seu coração,
isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamen­
to do Eu do homem: a religião é uma revelação solene das preciosidades
ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a
manifestação pública dos seus segredos de amor"... "A essência divina
não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do
homem abstraída das limitações do homem individual, i. é, real, corporal,
objetivada, contemplada e adorada como uma outra essência própria, di­
versa da dele - por isso todas as qualidades da essência divina são
qualidades da essência humana."63

Psicanalistas e militantes teístas e cristãos desafiam tais interpreta­


ções. Não temem reconhecer a possibilidade de manter-se a sanidade psí­
quica em aliança com a religião. E o compromisso social não refuga necessa­
riamente a religiosidade.
Há uma consideração filosófica que trabalha a dimensão do homem
como ser de linguagem, criador de símbolos 64 • E entre os símbolos que
cria estão os religiosos. Todo saber, experiência, ação, vida humanos adqui­
rem sentido para ele e para seus semelhantes mediante a linguagem.
Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, vai mais longe e afirma que sem
Deus a vida não tem sentido. E esse sentido se exprime na linguagem religiosa

63. L. feuerbach, A essência do cristianismo, Campinas, Papirus, 1988, pp. 55-Si.


64. X. Herrero, O homem como ser de linguagem, in C. Palacio, org., Cristianismo e história, São
Paulo, Loyola, 1982, pp. i3-95.

81
que ele cria, por meio de palavras, símbolos, gestos, ritos. Pela linguagem, o
homem e a mulher se expressam a si mesmos em sua universalidade de ser
humano. Só se consegue existir humanamente enquanto criador de lingua­
gem. O corpo se alimenta de comida, o espírito de símbolos.
Toda realidade natural tocada pelo ser humano se converte em simbólica.
Essa sua gigantesca e infinita capacidade de criar símbolos manifesta-se gran­
demente no espaço religioso. Aí tudo funciona no ritmo do símbolo.
Estamos vivendo uma abundância estonteante de linguagens religiosas
que circulam pela mídia, nos megaeventos, nas celebrações, nos ritos comu­
nitários ou alimentam experiências individuais. A linguagem religiosa trans­
forma-se no imenso terreno em que as pessoas comunicam suas experiências
espirituais.

Deus
"Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre
um milagre é possível. o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus. há­
de a gente perdidos no vai-vem. e a vida é burra. É o aberto perigo das
grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os
acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no
fim dá certo. Mas. se não tem Deus, então, a gente não tem licença de
coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada
- erra rumo, dá em aleijões como esses. dos meninos sem pernas e
braços ... O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo
quando não há. " 65

As duas tendências indicadas revelam os extremos de uma posi­


ção. A verdade dos fatos aproxima-se antes de uma posição intermé­
dia. De fato, há expressões religiosas que remetem à dialética da Palavra de
Deus expressa em palavras humanas, a Transcendência na imanência. Ou­
tras, porém, não passam de criações arbitrárias do ser humano e até mesmo
produzidas pelo seu lado escuro de pecado. Talvez mais exatamente as for­
mas religiosas participem, em graus diversos, de nossa orientação fun­
damental transcendente para Deus e de nossa capacidade de simula­
ção, de engano, de pecado. O discernimento consiste em distingui-las,
purificá-las na medida do possível para que nossa religião seja pura e agra­
dável a Deus (Tt 1,27).

65. J. G. Rosa, Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 101984, p. 56.

82
E quanto mais a modernidade insistiu na imanência tanto mais forte é a
explosão em busca da Transcendência num ser feito por ela e para ela.
Talvez seja possível falar de uma terceira posição intermediária. Não se
aceita que o ser humano seja aberto para uma Transcendência no sentido de
uma realidade absoluta, "quam omnes dicunt Deum" (Tomás de Aquino).
Nem tampouco que essa Transcendência seja pura projeção do ser humano (L.
Feuerbach). L. Ferry refere-se a uma Transcendência na imanência que não
chega a ser a Transcendência divina mas que também supera a imanência do
sujeito. A transcendência imanente esconde a significação última das expe­
riências vividas. Julga possível descrever a transcendência sem sair da esfera da
imanência. Há um "excesso" caracterizando as formas transcendentes situadas
"em nós" que podem pertencer a todos os domínios do espírito, da estética à
ciência passando pela ética e pela religião. O rosto humano é imediatamente
antes de todo raciocínio, fora de toda demonstração, portador de um sentido
que me supera e me chama. Desse apelo que comanda uma resposta, uma
responsabilidade, surge a ética. E por que não a religião?
Ele afirma o desaparecimento das transcendências verticais por obra da
secularização humanista, mas admite a possibilidade de pensar no coração da
imanência algo que a supera em direção a transcendências horizontais. "Esta
sacralização do humano como tal supõe a passagem do que se poderia cha­
mar de uma 'transcendência vertical' (das entidades exteriores e superiores
aos indivíduos, situadas por acima dizer acima dele) a uma 'transcendência
horizontal' (a dos outros homens em relação a mim): o ser humano como tal
constitui um apelo imediato à minha responsabilidade." 66

Resumindo:
Num ser humano feito para a transcendência, é de estranhar-se que o
excesso de imanência provoque uma reação de sua busca?

CONCLUSÃO

O mundo das causas ilumina nossa realidade. Mas é só o início. A tra­


jetória da religião na sociedade de hoje pede muitas outras explicações para
que nos situemos mais serena e lucidamente nesse cenário. Estão em jogo
realidades distintas, mas muito semelhantes, que facilmente provocam con-

66. L. Ferry, L'homme-Dieu ou le sens de la vie, Essa, Paris, Grasset, 1996, pp. 51, 124.

83
fusão: religião, fé e religiosidade. Então como esses campos se distinguem e
se relacionam? Eis o que nos espera no próximo capítulo.

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, L., Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na nova era, Petró­
polis, Vozes, 2001.
ANTONIAZZI, A. - MARIZ, Cecília Loreto et alii, Nem anjos nem demônios. Interpretações
sociológicas do pentecostalismo, Petrópolis, Vozes, 1994.
BASTIDE, R., Le sacré sauvage et autres essais, Paris, Stock, 1997.
BERGER, P., Una gloria lejana: la búsqueda de la fe en época de credulidad, Barcelona,
Herder, 1994.
CALIMAN, CL, O desafio pentecostal: aproximação teológica, in Perspectiva teológica 28
(1996), pp. 295-309.
CALIMAN, CL, org., A sedução do sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio,
Petrópolis, Vozes, 1998.
GAUCHET, M., Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris,
Gallimard, 1985.
GELABERT, M, La apertura dei hombre a Oios (y a su posible manifestación), in C.
lzquierdo, org., Teología fundamental. Temas y propuestas para el nuevo milenio,
Bilbao, 008, 1999.
HERVIEU-LÉGER, O., Le Pelerin et le converti. La religion en mouvement, Paris,
Flammarion, 1999.
HERVIEU-LEGER, O., Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du chris­
tianisme occidental, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1986.
JAMES, C, Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças, in Perspec­
tiva teológica 28 (1996), pp. 157-182.
LA:-..m�f, L., Quem são as "seitas"? in L. Landim, org., Sinais dos tempos. Igrejas e seitas
no Brasil. Caderno do ISER, n. 21, Rio, ISER, 1989, pp. 11-21.
LIMA, O. M. de, Os demônios descem do norte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 4 1989.
LUCKM:\NN, Th., La religión invisible. El problema de la religión en la sociedad moderna,
Salamanca, Sígueme, 1973.
MADURO, O., Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter­
relações na América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981.
MARIX)NES, J. M., Adónde va la religión? Cristianismo y religiosidad en nuestro tiempo,
Santander, Sal Terrae, 1996.
MARIANO, R., Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo,
Loyola, 1999.
MARTELLI, S., A Religião na Sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995.
OLIVEIRA, M. A, O desafio dos novos movimentos religiosos às Igrejas Cristãs, in Pers­
pectiva teológica 32 (2000), pp. 221-239.
RIBEIRO, CL de O., Movimentos pentecostais, carismáticos e mística cristã: desafios
teológicos e pastorais, in Perspectiva teológica 28 (1996), pp. 339-364.

84
SAMUEL, A., As r,li,fiàes hoje, São Paulo, Paulus, 1997.
STARK, R. - BAINBRIIXiE, W., The Future of Religion. Secularization, Revival and Cult
Formation, Berkeley - Los Angeles - London, University of California Press,
1985.
VAZ, H. Cl. de Lima, Transcendência e Religião: o desafio das modernidades in Escritos
de filosofia, III. Filosofia e cultura, São Paulo, Loyola, 1997, pp. 223-253.

Dinimica
Análise critica do fen6meno religioso
1 . O coordenador divida o grupo em quatro subgrupos.
2. Atribua a cada um deles um dos pontos indicados:
a. Causas contextuais econômicas e políticas:
b. Causas contextuais cultural-filosóficas:
c. Causas contextuais religiosas:
d. Causas psicológicas:
e. Causas estruturais filosófico-teologais.
3. Cada participante individualmente anote numa folha os pontos principais
de seu tema.
4. Os participantes se reúnam nos quatro grupos diferentes e confrontem
suas anotações buscando um consenso sobre os pontos.
5. No Plenário:
a. Cada grupo apresente a síntese-consenso do grupo:
b. O coordenador e os participantes façam seus comentários: pedindo
explicação, discordando, completando as exposições.

85
CAPITULO III

Delimitação dos campos semânticos


Estamos sempre inscritos numa certa
tradição de linguagem que nos precede
CL. GEFFRÉ

Seria interessante revisar a saga da


religião como uma luta constante e mais
ou menos bem-sucedida para a mani­
festação e expressão adequadas da
experiência religiosa.
J. WACH

Um primeiro olhar sobre a carga significativa dos termos principais de


nossa reflexão permite esclarecer já o campo de estudo. A semântica, en­
quanto estudo do significado das palavras, faz-se-nos mais necessária
nos dias de hoje. A mídia submete as palavras a rápido desgaste significativo.
E a língua portuguesa no Brasil tem-se mostrado de agilidade e criatividade tão
estonteantes que deixa os organizadores de dicionários perplexos. Não sabem
freqüentemente que vocábulos ou que significados incorporar à espera do tem­
po que os purificará. Muitas significações desgastam-se rapidamente. Interes­
sa-nos fixar os significados já garantidos pelo tempo e pelo uso.

1. TRÊS CAMPOS SEMÂNTICOS: MICROCULTURA

Na clássica distinção da sociedade em três níveis - econômico, político


e cultural -, a religião situa-se na esfera cultural. Ela é seu coração, sua
alma, seu íntimo, sua fonte vital. Tem no interior da cultura certa autonomia,
regras próprias de exprimir-se. Verdadeira microcultura com diversos cam­
pos semânticos que configuram essa realidade religiosa.
Um primeiro conjunto semântico refere-se ao mundo objetivo dos
ritos, dos sinais, dos símbolos, das doutrinas, das pertenças visibilizadas, das
celebrações. É a religião enquanto sistema, organização, corpo social.

87
Um segundo grupo semântico abrange mais elementos. É a face sub­
jetiva. Fala-se de religiosidade, de experiência religiosa, de mística, de espi­
ritualidade, de sentimento religioso.
E finalmente um terceiro complexo semântico deixa o campo da re­
ligião estritamente dita e situa-se diante de uma Palavra de Deus, profética
ou escrita, que pede adesão. Trata-se propriamente da fé.
O fundamento da pluralidade de campos e da sua distinção é a natureza
do ser humano como homo religiosus e a possibilidade de Deus interpelá-lo
com sua Palavra. Mais recentemente as pesquisas no campo da antropologia
religiosa vêm reforçando a tese da unidade espiritual do gênero humano.

Homo religiosus
"As descobertas feitas nos últimos vinte anos na África deslocaram os ho­
rizontes da paleoantropologia. Essa aceleração súbita no conhecimento do
passado antigo da humanidade permite-nos melhor compreender a emergên­
cia do ser humano, sua evolução, sua história e sua especificidade. Esclarece
também de modo novo e inesperado a antropologia religiosa. A evidência da
unidade de origem e da semelhança de comportamentos dos seres humanos
mostra-nos que desde seu aparecimento o ser humano assumiu um modo de
existência específico. Com efeito, o homo religiosus é reconhecível em cada
etapa de seu percurso .... Na perspectiva das descobertas recentes, a his­
tória das religiões obtém, confirma e explicita os resultados da paleoantropo­
logia a respeito da unidade do gênero humano e não hesita em falar de uma
unidade espiritual. De fato, constatamos que, nas culturas muito variadas em
que se desenrolou sua vida, o homo religiosus fez uma experiência semelhan­
te ... " "o homo religiosus tem o sentimento da presença de um poder invi­
sível e eficaz que se manifesta por meio de um objeto, de um ser, de uma
pessoa, revestidos de uma dimensão nova, a sacralidade." 1

II. NECESSIDADE DA DISTINÇÃO: RAZÃO METODOLÓGICA

A distinção faz-se tanto mais necessária quanto mais os campos se pare­


cem e se confundem na linguagem comum. Os clássicos diziam: "in distinc­
tione salus" - na distinção está a salvação. Ela antecede logicamente as

1. J. Ries, Conclusion. Les perspectives d'une anthropologie du sacré, in J. Rie■, org., TTaité
d'anthropologie du sacré. Vol. 1: Les origines et /e pmbleme de l'homo religiosus, Paris, IJaclée, 1992, pp. 333s.

88
possíveis articulaçõe■, poi■ fazê-las antes de ter claros os elementos envolvi­
dos incorre-se facilmente em equívocos.
O primeiro pUIO da distinção funda-se na autonomia dos campo■
de significado. Religião, religiosidade e fé guardam originalidade e singu­
laridade tão próprias que não se identificam. Uma não é a outra. Distinção
de nível teórico que é fundamental para entender o real momento religioso.
No nível real e concreto, há uma imbricação íntima entre essas três
realidades. Cada uma influencia a outra e é por ela influenciada. Permitem­
se várias figuras de relação.
Nesse trabalho, o enfoque principal vem da teologia com apoio das ciên­
cias da religião. E a teologia esclarece tanto a compreensão da fé cristã nesse
contexto como permite uma ação pastoral mais clarividente. Nossa reflexão
persegue esse duplo objetivo. Portanto, teoló gica e pastoral.

ill. DEFINIÇÃO DOS CAMPOS SEMÂNTICOS E SUAS RELAÇÕES

Religião como instituição e ação na sociedade

Os lingüistas permitem uma primeira aproximação do sentido de um


termo, vasculhando a etimolo gia. O termo religião permite duas etimo­
lo gias diferentes. Uma aproxima-se mais do termo do que chamamos real­
mente de "religião" e a outra denota antes a dimensão de "religiosidade".

Etimologia
Religio - religião - vem de re+ligare que significa "religação do ser
humano com Deus" (Lactâncio, Oiv. lnst., IV, 28, 2: Rouêt de Joumel.
Enchiridion Patristicum, n. 635). • Hoc vinculo pietatis obstricti Deo et re­
ligati sumus, unde ipsa religio nomen accepit, non, ut Cicero interpretatus
est, a relegendo." "Com este vínculo de piedade estamos unidos e re­
ligados a Deus: de onde a própria religião recebe o nome e não como
Cícero interpretou, isto é, de re-lendo." Aqui aparece mais a dimensão '
religiosa do ser humano que se liga com Deus.
Cícero aponta outra versão interpretativa, como Lactâncio mencionou. Reli­
gião em de re+legere, para indicar uma ·cuidadosa veneração dos deuses" 2.
Nesse caso, considera-se a dimensão objetiva, institucional da religião que

2. Cícero, De natura deorum, II 72.

89
seleciona ritos, cultos. Eis o texto de Cícero: "qui autem omnia quae ad
cultum deorum pertinerent diligenter retractarent et tanquam relegerent. <hi>
aunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo. ex diligencio diligen­
tes. ex intellegendo intelligentes; his enim in verbis omnibus inest vis legendi
eadem quae in religioso" 3: • Aqueles que tudo o que pertencia ao culto dos
deuses consideravam cuidadosamente e como que re-liam (tudo isso) são
chamados religiosos, de re-ler, como os elegantes de e-le(ge)r, os que amam
de escolher, os inteligentes de 'ler dentro' (o entendido); em todos esses
verbos está a força de 'ler' que aparece no termo religioso".

Agostinho faz remontar ora a "religentes", isto é, re-escolhendo (De Civ.


Dei, X, 3), ora a "religantes", isto é, re-ligando (De vera religione, e. 55, PL
34, 172).
Tomás de Aquino une as duas versões de Cícero - et sic religio videtur
dieta a religendo ea quae sunt divini cultus ( e assim a religião parece vir de
re-ligendo o que pertence ao culto divino) - e a de Agostinho - sicut
Augustinus dicit potest intelligi religio a religando dieta - ( como Agostinho
se pode dizer que religião vem de re-ligando): S. Th. II II q. 81, a. lc.
A religião indica o caminho da razão, da experiência humana para
li gar-se com o divino. Institui um sistema de ritos, práticas, doutrinas,
constituições, organizações, tradições, mitos, artes que possibilitam essa re­
ligação com o mundo divino.
Configura um sistema de representação, de orientação, de norma­
tividade. Traduz uma realidade objetiva, uma tradição acumulada e vivida
por uma comunidade. Mostra o lado visível da relação com o Sagrado.
D. Hervieu-Léger aponta dois traços fundamentais da religião: tradição
e comunidade. A espinha dorsal da religião é o laço particular de continui­
dade que ela estabelece sempre entre os crentes de gerações sucessivas: cria­
se uma comunidade na e pela tradição4 • Não importa muito na religião a
natureza da crença, nem sua relação com o poder sobrenatural, mas o fato de
ela encontrar a legitimidade de uma tradição. A religião é, pois, um disposi­
tivo ideológico, prático, simbólico, pelo qual se constitui, se alimenta e se
desenvolve o sentido individual e coletivo de pertença a uma linha particular
de crença. Por meio da tradição de crença, estabelece-se a identificação que
opera internamente no grupo e externamente o distingue dos outros. Cria-se
uma cadeia de memória de crenças, que se organiza, se preserva e se repro-

3. Id., ibid.
4. D. Hervieu-Léger, La religion en mouvement: /e pelerin et /e ccmveTti, Paris, Flamarion,1999, pp.
23s.

90
duz. O refrão fundamental soa: "Como nossos pais creram, nós também
cremos". M. Barros de Souza, muito pertinentemente, intitula sua obra so­
bre a tradição religiosa de Israel: Nossos pais nos contaram\
Para que se institua uma religião, torna-se essencial a invocação formal
da continuidade da tradição. É-se membro de uma comunidade espiritual
que agrupa fiéis passados, presentes e futuros. A linhagem dos que crêem
funciona como referência legitimadora da crença, cumprindo a dupla função
ad intra - incorpora os fiéis a uma comunidade - e ad extra separa-os
dos que não são6 •
O sentido-base mínimo da religião vincula-se a experiências, expres­
sões vinculadas a uma tradição e comunidade espiritual. Levada ao extremo,
não se precisa de fé nem de nenhuma revelação nem de nenhuma transcen­
dência para pertencer a uma religião. Basta o rito, o comportamento simbó­
lico que se herda de uma tradição e se cumpre no interior de uma com uni­
dade. Mas, nesse caso, a religião se anularia a si mesma, porque o último
sentido do rito é religar com o divino e o divino desapareceria.

Religião
"Religião é a realização socioindividual Cem doutrina, costume, freqüente­
mente ritos) de uma relação do homem com algo que o transcende e a seu
mundo, ou que abrange todo o mundo, que se desdobra dentro de uma
tradição e de uma comunidade. É a realização de uma relação do homem
com uma realidade verdadeira e suprema, seja ela compreendida da ma­
neira que for (Deus, o Absoluto, Nirvana, Shünyatâ, Tao). Tradição e
comunidade são dimensões básicas para todas as grandes religiões:
doutrina, costumes e ritos são suas funções básicas; transcendência (para
cima ou para dentro, no espaço e/ou no tempo, como salvação, iluminação
ou libertação) é sua preocupação básica. " 7

Religiosidade, espiritualidade, mística

Freqüentamos outro departamento. A religiosidade aproxima-se de


um vago sentimento religioso. Corresponde à necessidade afetiva pessoal

5. M. de Barros Souza, Nossos pais nos contaram. Nova leitura da história sagrada, Petrópolis,
Vozes, 1984.
6. D. Hervieu-Léger, op. cit., p. 24
i. H. Küng, Introdução: o debate sobre o conceito de religião, in Concilium 1986/1, n. 203. pp. 5-
10; aqui p. 8.

91
de estar ligado com algo distinto de si mesmo. Vem ao encontro de aspiração
confusa para estar em simpatia harmônica com todas as coisas. Revela um
afà de penetrar todos os segredos. Traduz um desejo de comunicar-se com as
forças sensíveis presentes e atuantes no universo. Casa-se com a inclinação
para o mistério. Prolonga uma afetividade sem objeto preciso, satisfaz-se
com vagas efusões, busca sensações e emoções que lhe dão a ilusão do amor
universal. A religiosidade bate bem com uma comunhão panteísta, sem pre­
cisar de doutrinas exatas. A religiosidade não se vincula necessariamente a
uma religião e, quando o faz, assume da religião os elementos que a satisfa­
zem e não enquanto são tradição e comunidade8 •
A experiência religiosa compõe esse cenário religioso. Ela define-se como
uma percepção da presença do sagrado por parte do sujeito que a faz.
Esse sagrado caracteriza-se, segundo a clássica descrição fenomenológica de
R. Otto, como fascinosum et tremendum9 • Ora mostra sua face de sedução
aliciante (fala-se hoje muito da sedução do sagrado10), ora espaventa por seu
temor misterioso. O fascinante e o horripilante provocam a experiência reli­
giosa, ao arrancar-nos do ordinário, do comum, da rotina, transportando-nos
para uma cena extraordinária, diferente. Eles a pontam para outra caracterís­
tica ainda mais profunda, fundamental. É "o totalmente outro" - das ganz
Andere, o diferente, o singular, o insólito, o extraordinário, o novo, o perfeito,
o estranho, o monstruoso, o misterioso-, que ultrapassa a experiência hu­
mana comum, que pertence a outro tipo de realidade, que vem carregado de
força e de poder etc. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas
como pedra ou como árvore, são-no justamente porque são hierofanias, por­
que "mostram" qualquer coisa que já não é pedra nem árvore, mas o sagra­
do, o ganz Andere11 • Essa experiência religiosa liga-se a certo tipo de hierofania,
· ·
manifestação do sagrado.
O sagrado, ao descentrar o ser humano, provoca a experiência antagô­
nica de presença e distância, de manifestação e ocultamento, que se funda­
menta na própria natureza da experiência transcendental de Deus feita na
existência humana 12 •
8. A. Samuel, As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997, pp. 16s.
9. R. Otto, Le sacré. L'élément non-rationnel dans l'idée du divin et sa relation awc le rationnel,
Paris, Payot, 1969, pp. 27ss., 57ss.
1O. CI. Caliman, A sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, Petrópolis, Vozes,
1998. Em especial: M. CI. L. Bingemer, A Sedução do Sagrado, pp. 79-11 S; M. CI. L. Bingemer,
Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno ,m cris,, São Paulo,
Loyola, 1993, especialmente pp. 77-91 dedicadas à sedução do sagrado.
11. M. Eliade, O sagrado e o profano. A essência das religiões, Lisboa, Livro■ do Bruil, 1.d., p. 21.
12. J. A. Mac Dowell, A experiência de Deus à luz da experiência transcendental do espírito
humano, in Perspectiva teológica 29 (2002), n. 93, p. 21.

92
Quando o ••grado •• manlfeet■
"O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como algo de absolutamente diferente do profano. A fim de in­
dicar o ato da manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania.
Esse termo é cômodo, porque não implica qualquer definição suplemen­
tar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico,
a saber, que algo de sagrado se nos mostra. Poderíamos dizer que a
história das religiões - desde as mais primitivas às mais elaboradas -
é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifes­
tações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania -
por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra
ou uma árvore - e até a hierofania suprema que é, para um cristão, a
encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuida­
de. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de
algo de 'ordem diferente' - de uma realidade que não pertence a nosso
mundo - em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo 'na­
tural'. 'profano·." 13

O sagrado guarda certa ambivalência que permite comportamen­


tos e reflexões antagônicas. Ele, na sua força e riqueza, valoriza nossas
realidades. Isso pede contato com ele. Veja-se o desejo que as pessoas têm de
tocar as coisas sagradas, sobretudo aquelas que estão cercadas de maior po­
der. Haja vista a concorrência dos fiéis aos santuários de Aparecida, de Fá­
tima, de Lourdes etc.
O sagrado é perigoso e pode destruir o ser humano. Isso leva ao
efeito contrário. Não se toca o sagrado, afasta-se dele, guarda-se respeitosa
distância. Entre o sagrado e o ser humano, estendem-se véus, cortinas, que
defendam o sagrado dos olhos humanos. Antepõem-se, entre os fiéis e o
sagrado, cordas, bancos, escadas, para que o sagrado reine soberano e distan -
te. O Antigo Testamento relata-nos o caso extremo de Oza: "Quando che­
garam à eira de Nacon, Oza estendeu a mão para a arca de Deus, porque os
animais iriam derrubá-la. Então o Senhor se inflamou de cólera contra Oza
e o prostrou ali mesmo por causa da irreverência, de modo que ele morreu
junto à arca de Deus. Davi ficou irritado pelo fato de o Senhor se ter lançado
contra Oza; por isso aquele lugar recebeu o nome de 'Investida de Oza',
nome que leva até hoje" (2Sm 6,6-8).

13. M. Eliade, O sagrado ... , p. 21.

93
Sem a tragicidade desse relato do Antigo Testamento até as renovações
litúrgicas do Concílio Vaticano II, os fiéis não tocavam a hóstia consagrada
nem o cálice com vinho consagrado.
A relevância do sagrado é de tal ordem nessa maneira do pensar reli­
gioso e teológico que ele consegue criar a partir de sua própria realidade uma
globalidade em que o ser humano, os outros homens, o mundo estão envol­
vidos. O sagrado é matriz paradoxalmente totalizante e unificante, ao criar
radical separação do profano.
A força integradora do sagrado permite que todas as realidades criadas
adquiram a partir dele seu sentido, seu valor, sua consistência. Afastar-se do
sagrado é submeter-se à anomia, à perda de sentido, ao caos. As realidades fora
do sagrado nada são. O profano nele mesmo não tem consistência. As realida­
des do mundo adquirem valor, ao serem banhadas pelo sagrado. Subjaz cons­
ciência muito forte da fraqueza e pequenez das realidades humanas em con­
traste com o sagrado, com o mistério, percebido, de certo modo, como algo
pertencente ao mundo "fora das nossas experiências cotidianas".
Nesse ambiente de sagrado e com essa concepção, a experiência religiosa se
manifesta como um absoluto, energia, fonte de valores reconhecidos, com um
ser-mais. Permite entender melhor a experiência religiosa, explicitar a própria
natureza da experiência. H. Vaz define-a como "a face do pensamento que
se volta para a presença do objeto" 14. Profundidade da presença do objeto
e sua penetração pelo ato de pensar qualificam seu grau de riqueza e irradiação.
A própria etimologia de experiência do grego - empeiria - e do latim -
experientia - reflete a natureza de um conhecimento imediato e o objetivo de
intelectualmente provar, tentar e obter determinado conhecimento. Há na
experiência uma intencionalidade de obter um saber que não está implicado na
mera natureza do espírito enquanto puro sujeito cognoscente.

Experiência religiosa
"A experiência religiosa é uma experiência do sagrado" . . . "Na experiência
do sagrado o pólo da presença define-se pela particularidade de um fenô­
meno cujas características provocam. no pólo da consci�ncia, essas for­
mas de sentimento e emoção que formam como que um halo em tomo do
núcleo cognoscitivo da experiência e que análises clássicas como as de
Rudolf Otto procuram descrever." " ... o religioso ou o sagrado resultam da
função simbolizante do homem nesse terreno que se estende entre o

14. H. CI. Lima Vaz, A linguagem da experiência de Deus, in id., f:st·riloJ ,Ú filosofia. I. Problemas
de fronteira, São Paulo, Loyola, :1998, p. 243.

94
fasclnlo e o temor do que é Incompreensível ou misterioso. Todas as zonas
de interrogaçlo e espanto Co thámbos dos gregos) do homem e do mundo
são matéria de experiências religiosas ou sacralizantes. " 15

A experiência reli giosa não diz por si se é cristã ou não. Ambas as


possibilidades se dão. A experiência religiosa cristã se faz quando o sagra­
do pertence ao universo simbólico cristão e enquanto as outras acontecem
em outros mundos religiosos. Essa análise restringe-se ao nível fenomenoló­
gico. A experiência religiosa cristã não implica necessariamente a fé e distin­
gue-se de uma experiência cristã de Deus, teologal, como se verá abaixo. Não
se discute sua autenticidade cristã. Aceita-se simplesmente o apelativo cris­
tão por suceder num campo referencial simbólico nomeadamente cristão,
mesmo que lhe faltem densidade e consistência verdadeiramente cristãs. Essa
distinção goza de relevância na interpretação do fenômeno religioso atual em
um país de imaginário predominantemente cristão.
O termo espiritualidade circula lépido pelos mais diversos espaços teóri­
cos e práticos. Inflacionou a literatura religiosa com abundante produção. Ad­
quiriu tal polissemia que apenas se consegue definir o que se entende por ela.
J. Sudbrack mapeia de maneira bastante ampla essa gama de ofertas es­
pirituais e capta seu significado religioso 16 • A nova religiosidade, que ele
estuda, coloca-se no pólo oposto a uma religião monoteísta. Reli giosidade
sem Deus. Sua palavra predileta é espiritualidade 17 • Nela a doutrina perde
autoridade e o conhecimento substitui a fé. Pende para o lado da gnose.
Embora seja de raiz profundamente cristã, o termo espiritualidade afasta-se
cada vez mais dessa origem. Coloriu-se de uma conotação antiinstitucional,
com um significado imponderável para uma religiosidade esfumada. E fre­
qüentemente espiritualidade é vista como simples dimensão antropológica.

Espiritualidade
"A espiritualidade, encarada dentro de perspectiva antropológica, é a prer­
rogativa das pessoas autênticas que, em face do ideal e da história, cons­
tataram uma escolha axiológica decisiva, fundamental e unificante, capaz
de dar sentido definitivo à existência." 18

15. H. CI. Lima Vaz, op. cit., pp. 249s.


16. J. Sudbrack, Neue Religiositãt. Herausforderung für die Christen, Mainz, Mathias-Grünewald­
Verlag, 1987, pp. 19-49.
17. Id., ibid., p. 75.
18. S. de Fiares, Espiritualidade contemporânea, in S. de Fiares - T. Goffi, Dicionário de espiri­
tualidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 347.

95
Fechando o mesmo quadro semântico, o termo mística fez sua entrada
solene na vulgarização espiritual. Enquanto a espiritualidade significa antes
o movimento, "a aspiração da alma na sua parte superior (spiritus, vouc;) em
direção ao divino", a mística "designa, ao menos, no cristianismo, a entrada
do crente no mistério (µ'UO'n:pLov) da Trindade supra-essencial". "Em ou­
tras palavras, a aspiração pelo espiritual é radicalmente inversa à irradiação
do mistério. A espiritualidade é busca do divino por parte do sujeito huma­
no, a mística é colocar-se, expor-se diretamente ao objeto divino, evidente­
mente revelado ao ser humano." 19 Não há identificação de ambas para o
cristão. O termo mística é reservado para setores seletos. H. Vaz lastima que
a "incultura" de nossa época deteriore alguns termos de significação venerá­
vel, ao lançá-los no jargão da mídia, fazendo-os perder a consistência semân­
tica. Entre eles está o termo "mística", que "acabou por designar uma espé­
cie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de
irracionalidade"2º.

Mística
"Diz respeito a uma forma superior de experiência, de natureza religiosa,
ou religioso-filosófica <Platino), que se desenrola normalmente num plano
transracional - não aquém, mas além da razão -, mas, por outro lado,
mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo. Orientadas
pela intencionalidade própria dessa original experiência que aponta para
uma realidade transcendente, essas energias elevam o ser humano às
mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe é dado alcançar
nessa vida. " 21

"Crença na possibilidade de uma união íntima e direta do espírito huma­


no com o princípio fundamental do ser, união que constitui ao mesmo tempo
um modo de existência e um modo de conhecimento estranhos e superiores
à existência e ao conhecimento normais." 22
É, porém, nesse sentido vulgarizado que mística ocupa o espaço da reli­
giosidade atualmente. Mística pertence ao mesmo campo semântico de

19. E. Falque, Mystique et modernité. Aspirations spirituelles de notre temps et mystique


chrétienne, in Études n. ]946, junho de 2001, p. 788.
20. H. C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, São Paulo, Loyola,
2000, p. 9.
21. H. C. de Lima Vaz, op. cit., pp. 9-10.
22. Misticismo, in A. Lalande, Vocabulário técnico e critico da filosofia, São Paulo, Martins Fontes,
1999, p. 686.

96
mistério. Falamo■ hoje de mística toda vez que a aura do mistério nos bafeja.
Diante do incomunicável, do caráter oculto da realidade que nos sobreexcede
o horizonte de conhecimento e de vivências, extasiamo-nos. Aí falamos de
enlevo místico.
No correr de experiências, sobretudo de forte caráter emocional, as pes­
soas percebem-se tocadas, iluminadas. Sua afetividade transborda de alegria
espiritual.
As ofertas religiosas presentes disputam entre si a capacidade de produ­
zir tais experiências. Em vários ritos, bebem-se chás com substâncias aluci­
nógenas que facilitam os enlevos "místicos", criando uma atmosfera forte­
mente religiosa.
Estamos no lado oposto da religião-doutrina, da organização jurídica,
para dar espaço à busca sôfrega de contato com o mundo divino pelos meios
que se ofereçam.
As místicas psicológica e cósmica excelem no momento atual, pro­
piciando o clima reli gioso. Elas comungam no desejo de comunhão com o
mundo divino. Divergem quanto ao movimento de busca. A mística psico­
lógica volta-se para a interioridade do sujeito, para, no mais profundo de si
mesmo, encontrar a faísca da divindade. "Somos todos parte do divino. Deus
está em cada um de nós. Não há separação entre Deus e nós", exclama Shirley
MacLaine2 ·i_ É uma mística de mergulho no próprio eu, onde se encontram
o repouso, a tranqüilidade, a paz interior em oposição ao mundo agitado,
ruidoso. A identidade profunda, a essência mais íntima de si é o mistério
com que se entra em comunhão pela mística psicológica. O mistério é o
próprio eu apreendido na sua última consistência.
Em íntima conexão com tal mística, existem técnicas espirituais, exer­
cícios de respiração, de concentração, de sensibilização corporal para
que o ser humano se perceba cada vez mais uma unidade - corpo e espírito,
imanência e transcendência. "Faze vinte minutos de meditação no oceano do
Ser, que está no teu profundo, de manhã e de tarde e adere, pois, à religião
em que crês. Em todo caso, serás transformado." 24
A mística cósmica experimenta a harmonia do universo, sua iden­
tidade com Deus. É de tendência monista e panteísta de origem oriental.
Ela aponta um caminho de comunhão com uma energia geral, com uma força
envolvente, um princípio divino criador do universo.
A imagem da Terra, como imenso seio no qual se repousa, cria a "com-

2.1. :\. :-.:. Terrin, Risveglio religioso. :-.:uove formedilaganti di religiosità, in Credereoggi 11 (1991 },
n. 61, p. 7.
24. ld., ihid.

97
posição de lugar", na linguagem de Inácio de Loyola, para essa mística. A
pessoa descobre suas raízes telúricas, unindo-se simbioticamente com o cos­
mos. Percebe-se como um grão de areia no gigantesco corpo de galáxias 25 •

Origem cósmico-divina
"Como de um fogo flamejante todas as centelhas saltam nas várias dire­
ções, assim do Atman (o Espírito Supremo, o princípio espiritual que está
dentro do ser humano) saem todas as forças vitais, cada uma segundo seu
lugar: das forças vitais saem pois os deuses e dos deuses os mundos. " 26

Fé e teologia

Fé é resposta a uma Palavra revelada. Só se fala dela em religiões que


apelam para uma revelação profética ou escrita. No início da vida pública,
Jesus é apresentado como alguém que propõe uma boa nova e pede que se
creia nela. "Ele proclamava o evangelho de Deus e dizia: 'Cumpriu-se o
tempo e o Reinado de Deus aproximou-se: convertei-vos e crede no Evange­
lho"' (Me 1, 14s).
Aí está o cerne da fé na visão cristã. Uma palavra revelada, conversão
e adesão. A acolhida implica um ato da inteligência de aderir à verdade
proposta e da vontade prática de realizar na vida o que se aceitou. Sem ade­
são e compromisso com uma Palavra revelada não há fé.
Quem adere é o ser humano na sua totalidade. O ato de fé envolve
todas as dimensões da existência humana: racional, volitivo-afetiva,
histórica, prática, escatológica. Racional porque o ser humano busca inte­
ligibilidade para o que crê. Afetiva porque ama o que crê. Histórica porque
interpreta tal verdade para o momento cultural em que vive. Prática porque
implica obras, ações, compromisso. Escatológica porque inicia já o que acon­
tecerá em plenitude para além da morte n .

Ato de fé
"O ato de fé é internamente muito complexo e implica uma multiplicidade

25. Ampliei essa reflexão em J. H. Libanio, Ser cristão em tempos de nova era, São Paulo, Paulus,
1996, pp. 49-S.t
26. A. N. Terrin, Dio e il divino. Nella storia delle religioni e nella religiosità contemporanea.
Riflessioni critiche, in C:redereoggi 11 ( 1991 ), n. 61, p. 41.
27. Para ampla trataçào da fé, ver J. B. Libanio, Eu creio nós cremos. Tratado dafé, São Paulo,
Loyola, 2000.

98
de aspectos, em cuja anélise deve ter-se diante dos olhos que eles consti-
tuem uma realidade viva e portanto não são inteligíveis a não ser unidos ,, .
entre si vitalmente. O ato de fé é o primeiro passo do ser humano em ·
direção à justificação e à salvação. Toda a atividade sobrenatural do ser
humano aqui na terra está condicionada pela fé, que determina a própria
estrutura de transformação divinizante do homem a caminho. " 28

O discurso correspondente à fé chama-se teologia. Diverge dos dis­


cursos religiosos que tecem suas reflexões sobre a experiência religiosa, pres­
cindindo e até carecendo da dimensão de fé.
Surge então a pergunta: em que se funda tal distinção se na linguagem co­
mum e ordinária freqüentemente esses grupos semânticos são entremesclados?

IV. FUNDAMENTO DA DISTINÇÃO

A inteli gência busca entender o real. Diante de sua complexidade,


recorre ao procedimento analítico, distinguindo-lhe facetas. A operação mental
das distinções propostas fundamenta-se na natureza de nosso conhecer e na
complexidade da realidade religiosa.
O lado objetivo e social da experiência religiosa leva-nos a falar de
religião. O ser humano cria ou já encontra diante de si comunidades que
vivem uma forma religiosa herdada dos antepassados e estruturada social­
mente. É a religião. Corresponde às exigências de objetividade, de sociabili­
dade, de historicidade do homo religiosus.
Diante do mesmo fenômeno, a inteligência se pergunta pela realidade
que existe no ser humano que o faz religioso, produtor e consumidor de
símbolos religiosos. É a face subjetiva, existencial, inerente ao ser hu­
mano. Fala-se então de religiosidade.
Na experiência religiosa, além da alteridade dos ritos, das tradições, in­
terfere um Absoluto, Deus. Se a figura desse Absoluto se apresenta como
alguém, uma pessoa, que interpela o ouvinte a uma acolhida de sua mensa­
gem com as exigências existenciais e práticas, falamos de fé.
O fundamento, portanto, das distinções encontra-se na estrutura da
pessoa humana, no seu caráter pessoal e social, na sua dimensão existencial
e pública, e no Outro que se apresenta como parceiro do diálogo religioso. O
ser humano é um homo religiosus (religiosidade) que vive socialmente essa
dimensão (religião) e responde a uma interpelação do Deus revelador (fé) .

.?8. J. :\)faro. Fides, spes, caritas, Roma, PLG, 1968, p. i.

99
Homo religiosus
"Ela (a antropologia religiosa) estuda o homo religiosus enquanto criador
e utilizador do conjunto simbólico do sagrado e enquanto portador das
crenças religiosas que dirigem sua vida e seu comportamento." "Nossa
pesquisa, feita por uma vintena de especialistas no campo das religiões,
mostra que o sagrado não é uma invenção dos historiadores das reli­
giões mas que o homo religiosus criou a terminologia do sagrado para
dar conta da manifestação de uma realidade 'outra' que as realidades
ambientais de sua vida ... A análise da fala do homo religiosus mostra
claramente que em sua percepção de uma hierofania. o ser humano tem
o sentimento da presença de um poder invisível e eficaz que se manifes­
ta por meio de um objeto ou um ser, se bem que este objeto ou este ser
se encontrem revestidos de uma dimensão nova, a sacralidade. Sua
descoberta faz que o ser humano assuma um modo específico de exis­
tência. " 29

Religião, religiosidade e fé existem numa microcultura. Como se relacio­


nam entre si na vida das pessoas?

V. RELAÇÃO ENTRE AS TRÊS REALIDADES

Religião e religiosidade

No espaço social estão as religiões com seus ritos, mitos, doutrinas, mis­
térios, celebrações, reuniões, comunidades, tradições. Elas existem porque
pessoas concretas, em comunidade e socialmente, as praticam. Respondem
aos desejos, anseios, expectativas, esperanças, angústias das pessoas. Rela­
cionam-se com a religiosidade como a resposta à pergunta. A religiosidade
é a pergunta. A religião é a resposta.
As respostas inadequadas tendem a desaparecer. As religiões, que já
não respondem aos desejos da religiosidade das pessoas, estão fadadas ao
silêncio da morte. A religiosidade é uma dimensão antropológica, estrutural
do ser humano. Portanto de sempre. E por isso sempre haverá religiões como
propostas a ela.

29. J. Ries, lntroduction. L'Homme et le sacré, in J. Ries, org., Traité d'anthropologie du sacré. Vol.
!: Les origines et le probleme de l'hnmn religinsu.s, Paris, Desclée, 1992, pp. lba.

100
A reli11 io1idade du pessoas, embora estrutural, assume o colorido
conjuntural du épocas e dos lugares. A cultura dominante aguça-a ou
anestia-a. Há tempos mais florescentes para as religiões que outros, para
uma religião em especial que para outra. As religiões monistas e panteístas
parecem condizer melhor com o momento atual ao tipo de religiosidade que
a cultura pós-moderna tem despertado.

Orientalização religiosa do Ocidente


"Ocorre atualmente no Ocidente um processo de 'orientalização ·, pelo
deslocamento da teodicéia tradicional (compreensão ocidental transcen­
dente de Deus) por uma outra que é essencialmente oriental na sua na­
tureza (compreensão imanente de Deus) ... O que. em essência, tem-se
como indiscutivelmente oriental é, entretanto, a adoção de uma concepção
do divino imanente e não transcendente" ... "Novo é o movimento dessas
crenças de sua posição há muito tempo estabelecida enquanto caracterís­
ticas de grupos cúlticos e excêntricos para sua posição atual na vertente
principal do credo; uma posição que permite mesmo aos membros das
igrejas estabelecidas declararem ter essas crenças [. ..l aceitação ampla
de crenças que anteriormente eram confinadas a uma minoria. " 30

A relação entre religião e religiosidade permite falar de duas faces


complementares. A religião responde à religiosidade, a religiosidade pede e
provoca religiões. Mas não há garantia de que as religiões concretas se harmo­
nizem com a religiosidade de determinado momento cultural. As religiões
nascem e morrem. A religiosidade estrutural permanece, modificando-se con­
junturalmente. Até então não se conseguiu provar que a religiosidade fosse
puramente conjuntural e pudesse um dia desaparecer totalmente, como certas
teorias da secularização pensaram. Os fatos têm desmentido tal hipótese.

Religião e fé

A relação entre religião e fé. Há três olhares possíveis. A fé olha a re­


ligião. A religião olha a fé. Um teólogo analista olha as duas. Cada olhar vê o
problema de modo diferente. Toca um aspecto da verdade, mas não a esgota.

30. C. Campbell, A orientalizaçào do Ocidente. Reflexões sobre uma nova teoclicéia para um novo
milênio, in Religião e sociedade,18/1 199i, pp. 5, 16.

101
A fé vê a religião. Duas teologias diferentes oferecem respostas. Uma
teologia tradicional distinguia entre religiões naturais e religiões reveladas..
Fora da revelação bíblico-cristã não havia nenhuma revelação. Todas as re­
ligiões fora do âmbito dessa revelação são religiões naturais. Nelas não existe
realmente fé no sentido próprio. Melhor falar de crenças. Paulo VI, na
Evangelii nuntiandi, considera as "expressões religiosas" das religiões não­
cristãs como "naturais", embora merecedoras de estima·11•
A teologia moderna, nas pegadas de K. Rahner, formula a relação
diferentemente. Todo ser humano, pelo fato de ter sido criado pela Trinda­
de e chamado a uma comunhão com ela, tem inscrito em si a Palavra reve­
lada, embora não tematizada. É sujeito de uma revelação transcendental.
Mais: o Cristo glorificado e o Espírito atuam em todas as pessoas e reli­
giões. Elas têm mais que verdades "naturais", fruto do conhecimento de
fundadores religiosos. Mais que sementes do Verbo. Há verdades que,
embora não tematizadas como reveladas, o são pela força da ação de Deus.
E nessas religiões a adesão a essas verdades constitui-se verdadeiro ato de
fé. O fundamento último é a coextensividade da história universal com a da
revelação.
O olhar da fé vê mais. Sabe que todas as realidades humanas parti­
cipam da radical contradição do ser humano: sabença e ignorância, graça e
pecado, verdade e erro. Assim nas formas religiosas, enquanto nascem de
desejos e propostas humanas impuros, há elementos que não correspon­
dem ao apelo da graça. Esses elementos não provocam verdadeiro ato de fé.
São experiências religiosas ambíguas. Não deixam, no entanto, de ter tam­
bém algum elemento divino verdadeiro que se faz presente. Sob este aspec­
to, toda religião implica um mínimo de fé, embora nem sempre explicitada
como tal.

Religião natural?
"A história universal do mundo significa, portanto, história da salvação.
A auto-oferta de Deus, em que ele se comunica absolutamente à tota­
lidade do homem, é per definitionem a salvação do homem. Pois ela
constitui a realização plena e acabada da transcendência do homem, na
qual este transcende para o próprio Deus absoluto" ... ; "Concretamente
existem, é claro, rejeições pecaminosas de Deus da parte do homem,
existem interpretações falsas, depravadas e insuficientes da relação entre

31. Paulo VI, Evangelii nuntiandi, a evangelização no mundo contemporâneo, São Paulo, Loyola,
19i6, n. 53.

102
Deus e o homem. Mas não existe nenhuma história religiosa que seja
fundação de religião somente por obra do homem" ... : • a história da
revelação por causa da autocomunicação de Deus, que está dada ao
homem como existencial. representa já sempre a essência verdadeira
(embora não historicamente acabada) ou a desfiguração da religio do
homem que existe na ordem sobrenatural da graça, portada por Deus,
existente na forma da acolhida ou da rejeição fundada ou tornada possí­
vel por Deus. " 32

A reli g ião vê a fé. Os fundadores e as tradições religiosas invocam, em


geral, uma experiência fundante de caráter divino, diria sobrenatural. Os
termos variam: revelações, visões, aparições, recepção de mensagens do além,
iluminação, inspiração divina, locução interior ou exterior .1 .1, Todas essas
expressões traduzem certa experiência considerada como de Deus e, portan­
to, merecedora de fé. E são comunicadas aos seguidores como ensinamentos
divinos que merecem também acolhida de fé. Muitas religiões se vêem como
instituições que merecem e exigem fé.
Há religiões que não apelam para origem divina, mas apresentam-se como
sabedoria humana. Nesse caso, já não se trataria de fé, mas de reconhecimen­
to da validez humana de certo caminho ascético, religioso ou místico, confor­
me a religião.
O teólogo analista olha a religião e a fé. Tende a distinguir mais cla­
ramente religião e fé. Levando a distinção ao extremo, o que não acontece, a
fé tenderia a ser a-religiosa e a religião a ser idólatra. K. Barth, em sua forma
radical, reflete a posição da fé em oposição à religião. O católico supersticio­
so, que vive de práticas religiosas, devoções quase materiais e físicas aos
santos, estaria quase no pólo oposto, em que sobraria apenas alguma fé no
meio dessa montanha de ritos religiosos.
Uma posição intermédia vê o processo como uma mútua crítica. A
fé faz-se instância crítica da religião, alertando-a do contínuo perigo da magia,
da idolatria, da superstição, do animismo, atribuindo a coisas, a ritos uma
força espiritual, independente da liberdade, da consciência das pessoas. K.
Rahner não se acanhou em pôr o católico de sobreaviso em relação ao "opus
operatum" do sacramento, que pode ser interpretado magicamente e pender
para o lado da religião e não da fé.

32. K. Rahner. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo, Paulinas,
1989, pp. li6, 180.
33. A. Murad, Visões e aparições. Deus continua falando?, Petrópolis, Vozes, 1997.

103
Opus operatum
Os sacramentos com o "opus operatum" "nada têm a ver com encanta­
mento mágico: não são magia, porque não pretendem constranger a Deus,
mas, pelo contrário, são ação do Deus livre em nosso favor". "E, de mais
a mais, eles nada têm a ver com magia, porque se tornam eficazes somen­
te quando se encontram com a liberdade acolhedora do homem. É claro
que o homem, ao se encontrar com essa expressão de Deus com sua
acolhida, há de confessar uma vez mais que também essa acolhida ocorre
em virtude da graça de Deus. " 34

A religião traz a fé para a realidade humana. A tendência iconoclasta


da fé termina por desprover-se de uma dimensão humana de traduzir em si­
nais externos a sua interioridade. A fé sem ritos religiosos corre o risco de
estiolar-se na pura intelectualidade ou num ato pontual de entrega sem corpo.

Fé e religiosidade

A fé e a relig iosidad� mantêm mútuas relações. A fé tem condições


de interpretar a religiosidade à luz de uma Palavra de Deus e dar-lhe o ver­
dadeiro sentido, evitando que ela se perca no torvelinho de expressões do
momento atual. A religiosidade busca satisfazer-se com sinais religiosos. A
fé lembra-lhe sua verdadeira natureza que é tender para Deus no qual encon­
tra sua plenitude. Vale aqui a exclamação de Agostinho diante dos seus an­
seios interiores no encalço de Deus: "Nosso coração vive inquieto, enquanto
não repousa em Vós"·i;_
A religiosidade aproxima-se da estética, da beleza da natureza. Pede
fruição. A fé vincula-se mais à ética. Interfere nos desejos de beleza, de
felicidade, de gozo, descobrindo aí a presença de Deus, mas também apontan­
do suas ambigüidades. A religiosidade embarca facilmente em formas religio­
sas sedutoras. A fé tem luz mais forte para discernir os elementos teologais e
a palha do engodo. A religiosidade pensa mais em si. A fé volta-se para o
Outro transcendente e o outro irmão. E a partir do outro critica o "si".
A religiosidade adapta-se facilmente à realidade presente, abelhando-lhe
o néctar gostoso. A fé grita profeticamente contra o horror de uma realidade

34. K. Rahner, Curso fundamental da fé ... , pp. 479s.


35. Agostinho, Conf 1, 1.

104
de injustiça./\ reli g iosidade gosta dos ambientes bonitos, perfumados, agra­
dáveis. A fé sente o cheiro acre do pobre com anseios de libertação. A reli­
giosidade pára no sujeito. A fé move-se pelo ímpeto questionador da Palavra
revelada.
A religiosidade amacia o caminho da fé. A apologética da imanência
e o esforço hercúleo da teologia moderna européia consistiram e consistem
em formular a fé cristã de tal modo que ela condiga à religiosidade do homem
e da mulher de hoje. A religiosidade humana revela a incompletude e a ca­
rência humanas às quais a fé cristã traz um sentido e uma satisfação. À medida,
pois, que a fé cristã souber falar à religiosidade humana, tanto mais ela será
crível e significativa. Não se trata de capitulação ou de mero ajuste, mas de
mostrar a profunda unidade entre a natureza humana criada por Deus e sua
Palavra revelada como plenificante dessa natureza. A fé necessita ter sentido
na experiência humana em sintonia com a dimensão de religiosidade.

Relação fé e religiosidade
"A experiência cristã de Deus é, portanto, a experiência da fé em Jesus
Cristo ....Ao longo da história do cristianismo, floresceram muitas formas
de experiência religiosa, alimentando-se em diversas fontes. Duas formas
sobretudo emergiram e dominam a história da espiritualidade cristã. Expe­
riência religiosa da grandeza do mundo e experiência religiosa da profun­
didade da alma, que inspiraram estilos diversos de contemplação religiosa
do cosmos e exploração dos caminhos da vida interior. Experiências ricas
e religi9samente autênticas, que foram vividas por alguns dos maiores
gênios religiosos da humanidade. Mas, se esses gênios religiosos foram
também santos cristãos (e não o foram necessariamente), não foi a gran­
deza de sua experiência religiosa que os fez tais, mas a radicalidade da sua
experiência cristã de Deus." 36

CONCLUSÃO

O passeio por campos semânticos permitiu-nos perceber várias paisa­


gens em que religião, religiosidade e fé ora se distanciavam ora se entrelaça­
vam. Uma série de frases lapidares oferecem um resumo das idéias colhidas
nessa viagem.

36. H. Cl. Lima Vaz, A linguagem da experiência de Deus, in id., Escritos de filosofia. I. Problemas
de fronteira, São Paulo, Loyola, '1998, p. 255.

105
A religião responde e não responde à religiosidade. A reli g ião, ao
institucionalizar os símbolos, os ritos, os sinais, as doutrinas, os mitos, as
estórias sagradas, enfim tantos elementos religiosos, apóia-se sobre a religio­
sidade das pessoas. Oferece-lhe alimento. Ativa-a. Nutre-a e nutre-se dela.
Mantém uma relação de mútuo enriquecimento.
Por uma doença intrínseca à instituição, a religião tende a afastar-se da
religiosidade das pessoas. Burocratiza-se. Estabelece divisão de trabalho.
Deixa a religiosidade livre e entregue às espontaneidades, enquanto vigia
pela regularidade, ortodoxia, canonicidade de suas verdades e regras. Assim
vai lentamente respondendo menos à religiosidade das pessoas. É quando a
sangria de seus membros aumenta, até que fora da religião surgem brotes
espiritualistas, carismáticos, "entusiásticos" que pouco a pouco criarão ou­
tras religiões. E lá de novo se inicia tal processo de vida e morte das religiões.
A religião vive e não vive da fé. As religiões apelam para origem di­
vina. Remontam a uma fonte revelada, mesmo que o fundador não mereça
tal credibilidade37 • Sob certo sentido as religiões vivem de uma fé, de uma
referência a um dado sobrenatural inicial.
A reli gião não vive da fé, quando já no correr dos tempos abandona
essa palavra primeira e cria suas próprias crenças, seus caminhos humanos
sem referência a uma origem sobrenatural. Em alguns casos, oferece aberra­
ções, tais como Paulo denuncia na epístola aos romanos. Acusa os pagãos de
manterem "a verdade cativa da injustiça" (Rm 1, 18), "transviando-se em
seus vãos raciocínios" e fazendo "o coração presa das trevas" (Rm 1,21). E
toda a segunda parte desse primeiro capítulo prossegue a diatribe. Esta reli­
gião não vive da fé. Semelhantemente escreveu o sábio no Antigo Testamen­
to, ao chamar de "fúteis todos aqueles homens" que trocaram Deus por ído­
los (Sb 13). Jesus aponta na sua discussão com os fariseus o risco da perver­
são da religião que termina negando a revelação de Deus.

Prescrições religiosas contra Deus


"Os fariseus e escribas perguntaram, pois, a Jesus: 'Por que teus dis­
cípulos não seguem a tradição dos antigos e comem o pão com mãos
impuras?'. Jesus lhes respondeu: 'Hipócritas, bem profetizou Isaías a
vosso respeito, quando escreveu: Este povo me honra com os lábios

37. Tornou-se paradigmático o caso de S. Rajneesh, que se disse um iluminado e uma pessoa aben­
çoada e que criou verdadeira religião. Pesam sobre ele acusações de malversação de fundos e de exploração
material dos seus discípulos. A. C. de Abreu Oliveira, Rajneesh, in L. Landim, org., Sinais dos tnnpos.
Diversidade religiosa no Brasil, Cadernos do [SER, n. 23, Rio de Janeiro, [SER, 1990, pp. 205-212.

106
mas o coraçlo eat6 longe de mim; em vão me prestam culto, ensinando
doutrinas e preceitos humanos. Deixando de lado o mandamento de
Deus, vós vos apegais à tradição dos homens·. E Jesus acrescentou:
'Na verdade, anulais o mandamento de Deus para firmar a vossa tradi­
ção. Pois Moisés disse: 'Honra teu pai e tua mãe' e 'aquele que amal­
diçoar o pai ou a mãe seja morto'. Mas vós dizeis: 'Se alguém disser ao
pai ou à mãe: tudo com que poderia ajudar-te é qorban, isto é, oferta a
Deus', já não o deixais fazer coisa alguma em favor do pai ou da mãe.
Anulais assim a palavra de Deus com a vossa própria tradição; e coisas
como estas fazeis muitas' " (Me 7, 5-13).

A experiência religiosa pode ser de Deus. A religiosidade tem sua


última origem no ato criativo e de chamado à comunhão com a Trindade.
Essa base ontoteológica permite que as pessoas a atualizem em experiências
religiosas. Tornam-se, por essa razão, verdadeiras experiências de Deus. Elas
tematizam a palavra trinitária atemática falada por Deus no ser das pessoas.
No fundo, as pessoas identificam nessas experiências religiosas o sentido
último e definitivo de sua vida: Deus, mesmo que não o nomeiem. A trans­
cendência de Deus é experimentada na imanência da experiência religiosa,
como poderia ter sido num gesto ético de compromisso com a justiça.
A experiência religiosa pode não ser de Deus. Ao citarmos acima
Paulo e o livro da Sabedoria, ficou clara a existência de formas religiosas
perversas, nas quais Deus não está. Não se tem direito de negar que sejam
formas religiosas. Com discernimento cristão, reconhecemos nelas uma de­
turpação e uma falsificação de Deus. Certos ritos pagãos consistiam em or­
gias, em banquetes desregrados. "O Reino de Deus não é questão de comida
e bebida; ele é justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rm 14, 17).
Sem chegar ao extremo de serem manifestações depravadas, há outras
que, embora inocentes, terminam por não visibilizar a presença de Deus para
determinada pessoa. Inácio de Loyola elaborou detidamente regras, chama­
das da segunda semana, que precisamente esclarecem a ilusão do menor bem.
Em vez de uma experiência do Deus exigente, alguém se detém unicamente
no gozo da experiência sem implicações de compromisso e vida comunitária.
Essa experiência religiosa pode não ser de Deus.
Há casos em que experiências religiosas são de tal modo patológicas que
dificilmente poderíamos reconhecer aí verdadeira presença do Deus da vida.
O recurso à psicologia religiosa ajuda-nos a discernir uma presença verda­
deiramente transcendente e explosões patológicas humanas.

107
O patol6glco na experllncla rellglosa
"A descoberta e o estudo científico da subjetividade psicológica deram
uma enorme contribuição ao desenvolvimento da compreensão crítica de
todo tipo de fenômenos humanos enigmáticos: doenças mentais. movi­
mentos fascistas, problema do amor sexual etc .. bem como de experiên­
cias, representações e práticas consideradas religiosas ... Esse olhar crí­
tico da psicologia difundiu-se na civilização ocidental e abalou alguns
fiéis, que podem contudo encontrar na psicologia potentes recursos para
esclarecer e purificar a religião ... No cômputo geral. a psicologia escla­
rece a recepção perturbada que o homem faz da mensagem religiosa,
animado que é por suas paixões. seus desejos, sua imaginação e sua
história pessoal." 38

A experiência de Deus pode ser religiosa. A experiência de Deus


caracteriza-se por uma percepção íntima, por uma intuição de que Deus é o
último e definitivo de nossa vida. Vale da experiência de Deus, o que P.
Tillich diz da teologia, como a que trata do "que nos concerne em última
instância".!'). Experimentamos a realidade a que estamos referidos como fim
último, realidade além da qual nada, realidade que dispõe de nós e da qual
não podemos dispor. Mistério que sempre nos escapa. A mãe-de-santo
Menininha do Gantois, na sua linguagem direta e simples, dizia: "Acima do
qual nada, abaixo do qual tudo".
O Mistério exerce sobre a pessoa uma atração sedutora quase irresistível.
J. Alfaro, nas pegadas de Tomás de Aquino, usa a bela expressão: "attractio
Veritatis primae" - a atração da Verdade primeira" 40• Há uma imediatidade
mediada de Deus. Imediatidade porque o próprio Deus atua na pessoa.
Mediada porque o faz numa realidade humana. No caso estudado, ela acon­
tece nas mediações religiosas: ritos, símbolos, sinais, sacramentos, celebra­
ções, orações etc.
Os místicos preferem, para descrever a experiência, o uso de antinomias:
presença ausente, ausência presente, palavra silenciosa, silêncio falante, pro­
ximidade distante, distância próxima. João da Cruz leva ao extremo tal jogo

38. A. Vergote, Modernidade e cristianismo. Interrogações e criticas recíprocas, São Paulo, Loyola,
2002, p. 106.
J.
39. "That which concerns us ultimately": P. Tillich, Systematic Theology, vol. I. p. 15, cit por A.
T. Robinson, Honesl to God, London, SCM Press, 1963, p. 49.
J.
40. Alfaro, Fides, spes, cantas. Adnotationes in Tractatum de virtutibus theologicis, Roma, PUG,
1968, pp. 292-321;444-458.

108
na sua hcliHNima poesia "Chama viva de amor": ternura e ferimento, cautério
suave, chaga regalada, morte e vida. E Agostinho resume genialmente a ex­
periência de Deus como algo "interior intimo meo, superior summo meo",
a saber, "mais íntimo do que a minha própria intimidade e superior ao que
há em mim de mais elevado" 41•
Aparece maior conaturalidade entre a experiência de Deus e a experiên­
cia religiosa. Lá Deus está mais em casa, já que as realidades religiosas apon -
tam espontaneamente para o sagrado, o Mistério, em que mais facilmente se
experimenta a Deus.
A experiência de Deus pode não ser reli giosa. Embora as expressões
religiosas propiciem melhor a experiência de Deus, no entanto outras reali­
dades humanas se fazem mediações dessa experiência. Sabemo-lo porque o
próprio Deus nos revelou estar presente em todo o cosmos, no irmão e, de
modo especial, no pobre. A teologia da libertação privilegiou a experiência
de Deus na luta pela libertação dos pobres. Em situações extremamente se­
culares de luta, Deus é experimentado na sua força sustentadora de tal peleja,
na sua ternura pelos pobres, na confiança na vitória final do bem.
Toda realidade humana, exceto o ato de pecar, abre espaço para a experiên­
cia de Deus. O próprio pecado, depois de feito, torna-se lugar da experiência
da misericórdia e perdão de Deus. A liturgia do Sábado Santo no Exsultet
canta: "Ó culpa tão feliz que mereceu a graça de tão grande Redentor!".
Delineamos os campos semânticos. Surgem as novas perguntas: qual é o
papel da religião enquanto instituição na sociedade de hoje, envolvida pelo
fenômeno religioso? Como as pessoas atuam religiosamente? E que a fé tem
a dizer a respeito de todas essas realidades? Iniciaremos perguntando pelo
papel da religião nesse novo cenário.

BIBLIOGRAFIA

HERVIEU-LECER, D., La religion en mouvement: le pelerin et le converti, Paris,


Flamarion, 1999.
KC'-!l;, H., Introdução: o debate sobre o conceito de religião, in Concilium 1986/1, n.
203, pp. 5-10.
S:,:--JL"El., A., As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997.
V.'IZ, H. CI. de Lima, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, São Paulo,
Loyola, 2000.
V....z, H. CI. de Lima, A linguagem da experiência de Deus, in id., Escritos de filosofia.
l. Problemas de fronteira, São Paulo, Loyola, 2 1998, pp. 241-256.

41. Agostinho, Conf III. 11.

109
Dlnlrnlca
1. Dividir o grupo em seis subgrupos com os seguintes temas:
a. Definir com clareza o conceito de religião;
b. Definir com clareza o conceito de religiosidade;
c. Definir com clareza o conceito de fé;
d. Relacionar religião e religiosidade;
e. Relacionar religião e fé;
f. Relacionar religiosidade e fé;
2. Cada grupo discuta e esclareça sua questão.
3. No plenário, depois da exposição de cada subgrupo, o coordenador
pontualize-a em diálogo com os relatores e os outros participantes cada
tema.

110
CAPÍTULO IV

Religião como instituição


Desafios e respostas
Na escala planetária, a religião não é
passado: é sempre presente.
J. DELUMEAU

Religião, religiosidade e fé no atual momento marcado pelo fenômeno


religioso: eis a trilogia que nos ocupa. A religião carrega o peso da instituição,
a religiosidade a leveza da experiência e a fé a interpelação da Palavra reve­
lada. Neste capítulo nos perguntamos corno a religião e a fé se confrontam no
coração da onda espiritualista atual.

1. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

No capítulo segundo, sobre a compreensão do fenômeno religioso,


referíarno-nos à tríplice figura da religião no interior da sociedade.
Vale da relação entre a religião e a sociedade a dialética da construção da
realidade social, estudada por P. Berger.

Relação dialética ser humano e sociedade


"Toda sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo.
A religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento ... A socieda­
de é um fenômeno dialético por ser um produto humano, e nada mais que
um produto humano, que no entanto retroage continuamente sobre o seu
produtor. A sociedade é um produto do homem. Não tem outro ser, exceto
aquele lhe é conferido pela atividade e consciência humana. Não pode
haver realidade social sem o homem. Pode-se também afirmar, no entanto,
que o homem é um produto da sociedade." 1

1. P. Berger, O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião, São Paulo, Pau­
linas. 1985, p. 15.

111
A■ e■truturas sociais marcam a religião. Ela sofre os limilcN que o
contexto social impõe a seus agentes. Reflete dentro de si os conflitos da
sociedade. Esta lhe traça campo de atuação de modo que ela se defronta
com um número possível e cambiante de alternativas segundo o momento
e o lugar. As considerações abstratas do agir da religião induzem a equívo­
cos, se não se consideram as possibilidades reais que o contexto social lhe
oferece. Cada religião dispõe de instrumentos socialmente acessíveis, que
diferem segundo o povo em que atua, segundo sua língua, segundo o esta­
do de desenvolvimento econômico, político e cultural e os recursos dispo­
níveis. A religião católica não tem as mesmas chances de falar ao imaginá­
rio do povo do Japão como fala ao povo do Brasil. Aqui a simbologia po­
pular está impregnada de arquétipos cristãos, enquanto no Japão eles estão
ausentes. Falar do seguimento de Jesus pobre numa sociedade da afluência
e do consumismo não ressoa da mesma maneira que no meio rural, simples
e pobre.
Não se faz necessário invocar nenhuma teoria marxista para perceber a
enorme diferença entre a presença da religião cristã numa sociedade em que
o modo de produção capitalista avançado se solidificou como na Europa e em
regiões do Brasil de um capitalismo fragilizado. Para alguns elementos do
Evangelho a ressonância é bem diferenciada. A sociedade traça linhas divi­
sórias do normal, do obrigatório, do permitido, do proibido, do desejável, do
plausível, do significativo, do urgente, do presumível, do relevante, do se­
cundário que não necessariamente significam um sim ou não, mas certamen­
te um mais ou menos. A religião entra no jogo dessas linhas, ora se deslocan­
do mais numa direção ora noutra, nunca prescindindo totalmente delas. Esta
foi a contribuição da sociologia das religiões.
O sistema dominante em determinada sociedade disputa todos os
espaços para exercer nele a heg emonia. A relig ião não escapa dessa
batalha. Os assédios se multiplicam. As possibilidades de reação da religião
não são infinitas. Há determinado espaço de manobra em que apoio, capitu­
lação, resistência, oposição se escalonam em graus diferentes.

A religião como fenômeno religioso


"Uma definição sociológica da religião é uma definição da religião en­
quanto parte da dinâmica social, influi sobre ela e dela recebe um impac­
to decisivo. Uma definição sociológica da religião é uma definição da
religião como fenômeno social, fenômeno social imerso numa complexa
e movimentada rede de relações sociais. Vale dizer, uma definição socio-

112
lógico d■ rellgllo � uma definição que procura recolher e expressar um
aspecto des religiões: o aspecto de fenômeno social presente em todo
fato religioso.· 2

A relig ião guarda sua autonomia. Se fosse puro reflexo da sociedade,


já não seria religião com suas regras, com sua lei interna, com suas reivindi­
cações e propostas, com suas demandas e ofertas. O espaço da autonomia
não é igual em qualquer momento e lugar. Varia conforme o jogo das forças.
Oscila entre os extremos do zero e do infinito. As análises divergem em
pontuá-la. As pessoas da instituição eclesiástica tendem a sobrevalorizá-la, e
os funcionários do Estado, a minimizá-la.
As religiões não guardam sua autonomia igualmente. Há aquelas
mais inclinadas ao sincretismo, à acomodação, à simbiose, à porosidade. Há
outras de forte identidade, de rigidez institucional, de ortodoxia de clero que
marcam mais sua independência. As religiões de minoria, as seitas mostram
maior autonomia e resistência. Carecem de unir-se solidária e solidamente
para suportar a pressão do ambiente. As religiões de massa flexibilizam-se,
já que não temem perder-se por causa de sua grandeza estatística.
A autonomia da religião funda-se no elemento irredutível do reli­
g ioso, da necessidade orig inal, da condição religiosa do ser humano.
As religiões de revelação apelam para sua última identidade inconfundível e
irredutível.
A relig ião consegue até em situações adversas, secularizantes,
manter uma pluralidade de atividades. Elas têm uma consistência pró­
pria que resiste aos impactos de fora, que não são absolutamente determi­
nantes sobre ela.

Resistência da religião
"A complexidade interna atingida pela religião-de-Igreja, na medida em que
permite exercer uma multiplicidade de funções, e de tornar mais seletivas e
personalizadas as mensagens dirigidas a um Povo de Deus sempre mais
internamente diversificado, impede considerar ser inevitável o confinamento
da religião na função marginal e privatizada, que a sociedade moderna preten­
deu assinalar-lhe (embora com indubitáveis variantes, conforme se tratasse de
sociedades democráticas ocidentais ou de regime comunista). Essa comple-
2. O. Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na
América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 41.

113
xidade interna permite à religião colher oportunidades novas que o clima
cultural 'pós-moderno', embora entre inegáveis distorções e ambigüidades,
parece oferecer-lhe, como também permite 'flutuar', com maior liberdade,
entre os fenômenos de secularização e dessecularização, que somente uma
sociologia da religião capaz de valorizar as surpresas provenientes dos even­
tos histórico-sociais contemporâneos saberá interpretar adequadamente. " 3

O reverso da medalha é também verdadeiro. A religião não se contenta


em reagir diante da sociedade, em guardar sua liberdade. Considera as rela­
ções sociais políticas, econômicas e culturais como campo de sua atuação. O
campo relig ioso comporta-se como fator ativo nos conflitos sociais.
Vale da religião em sua relação com a sociedade a dupla afirmação contradi­
tória: a religião é ópio do povo, reprodução da hegemonia dominante ou
força revolucionária. Evidentemente não cumpre essas funções ao mesmo
tempo, no mesmo lugar, no mesmo grau. Toca às análises medir-lhe a ação.

II. PRESENÇA DA RELIGIÃO EM MOMENTOS DA HISTÓRIA

Didaticamente seguiremos um movimento de presenças da relig ião


na sociedade numa linearidade histórica. Facilmente tal recurso didático
incorre no erro metodológico de imaginar a história como um fluxo dotado de
uma duração homogênea em que as fases se sucedem bem ordenadas. Uma
fase não se fecha totalmente para abrir espaço para a seguinte. A história não
segue um movimento dialético imperturbável numa perspectiva evolucionista.
Sonho teórico que a queda do socialismo desfez definitivamente.
Trata-se mais de lóg icas co-presentes em combinações variadas nas
mesmas situações. A transversalidade cultural vale da posição das reli­
g iões na sociedade. No mesmo momento cronológico entrecruzam-se mo­
mentos religiosos imensamente distantes.
Leia-se, portanto, a sucessão dos momentos como artifício didático para
perceber, sem dúvida, certo movimento, mas não necessariamente a análise
da totalidade da realidade de um dado momento. A pós-modernidade favo­
receu-nos a consciência do mosaico de tempos religiosos num mesmo espa­
ço-tempo.
Guardada a devida cautela, traçaremos um rápido itinerário do papel e
da presença da religião na sociedade com atenção especial à nossa. Partire-

3. S. Martelli, A religião na sociedaae pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, p. 468.

114
mos de uma religião tradicional, sincrética. Em seguida, veremos como o
catolicismo do Brasil sofreu três impactos diferentes da modernidade. E fi­
nalmente deter-nos-emos no atual momento religioso, que só se torna inte­
ligível levando em consideração o itinerário anterior e a simultaneidade-pre­
sença das formas religiosas anteriores.
Nesse processo linear, didático, a cautela alerta-nos para um real trans­
versal em que a complexidade, a simultaneidade dos momentos, a pluralida­
de das posições não se escalonam em ordem, mas entremesclam-se. Esse
corretivo faz-se sempre presente em exposições organizadas e estruturadas.

Razão transversal (W. Welsh>


"Transversal significa o que perpassa de través ou obliquamente Crua trans­
versal>." "Transversalidade tomou-se uma das metáforas para não-lineari­
dade." "Tipo contemporâneo de razão que não se organiza segundo es­
quemas hierárquicos, mas de forma transversal." "[A razão transversal]
mostra que a racionalidade não é algo que se organiza hierarquicamente,
mas lateralmente L. .1" • um modo de pensar e agir segundo uma raciona­
lidade-em-trânsito" ... "somente quando a razão consegue penetrar e en­
tregar-se produtivamente aos entrelaçamentos inconscientes da racionali­
dade, ela passa a ter condições de enfrentar adequadamente a solução de
problemas da atualidade." "A pedagogia deveria resgatar a sintonia com
uma racionalidade não-linear que está subjacente à própria etimologia das
palavras im-plicar, ex-plicar, com-plicar, multi-plicar. Supõem-se en-dobra­
mentos e des-dobramentos, e, portanto, multipolaridades, multirreferen­
cialidades." "A palavra latina para dobra é 'plica.·�

III. MOMENTO DO TRADICIONAL SINCRÉTICO

Este momento caracteriza-se pelo fato de a religião, entenda-se quase


sempre no Brasil o catolicismo, ocupar uma função de totalidade, de
porosidade em relação a elementos religiosos de outra valência e de certo
animismo mágico. Mais que um momento histórico determinado, trata-se de
uma forma religiosa que perdura até hoje, mas que foi predominante antes
do processo de romanização.

4. H. Assmann, Reencantar a educação. Rumo à sociedade aprendente, Petrópolis, Vozes, 1998, pp.
18:�. 94-104.

115
A religião assume função totalizante, em que indivíduo e socieda­
de estão plenamente inseridos numa ordem em que a matriz natureza
predomina. O sagrado arvora-se em categoria englobante a partir da qual
tudo se entende. Marca sua distância do "pro+fano" (diante do sagrado,
portanto profano se define a partir do sagrado). Sacraliza-se urna série de
cultos, tabus, ritos, mitos, gestas, danças, jogos, objetos, carrancas, fetiches,
amuletos, despachos, rnandingas, símbolos, cosrnogonias, teologúrnenos, pes­
soas, animais, plantas, lugares, superstições, magias etc. 5
O catolicismo criou urna quantidade enorme de tais formas religiosas. À
medida que a influência das religiões afrobrasileiras cresce, o sincretismo
religioso tradicional aumenta. Vale aqui a reflexão feita sobre a experiência
religiosa em capítulo anterior. Essa forma religiosa vê o sagrado carregado de
força e poder. Provoca reação ambivalente de busca de contato (receber flui­
do) e afastamento (tabu).
Uma primeira reflexão de fé leva-nos a distinguir o Sagrado de
Deus. Ele não é Deus. É algo mais, um Outro neutro diverso de Alguém.
Ora vela, ora desvela, revela e aponta para o Transcendente, Deus. Perma­
nece urna tensão entre Sagrado e Transcendência.
Os riscos correm por conta de sua banalização na forma de magia, simo­
nia, superstição, idolatria, comércio. O papel da fé consiste em desmascarar
tais vulgarizações sagradas e apontar para o Mistério divino trino: Alguém e
não Algo. É a batalha difícil que o cristianismo sempre travou e está a travar
com formas religiosas pagãs. O religioso penetra todas as esferas da existên­
cia. As forças divinas em questão, no fundo, não são transcendentes, mas
imanentes. Misturam-se à vida dos homens e da natureza. Associa-se, por
isso, a religião a tudo. Ser religioso significa cumprir ritos. Cria-se urna iden­
tidade entre religião e cultura. Não há espaço para a dualidade entre aquele
que crê e aquele que não crê, corno acontecerá na modernidade. A vivência
religiosa carece da dimensão pessoal, consciente e livre, para desvincular-se
da natureza.

O religioso penetra tudo


"Primeira característica do politeísmo: o religioso penetra todas as esferas
da existência. Em certo sentido, isso se aplica a toda religião autentica­
mente vivida. É isso igualmente a que visa Jesus Cristo ao dizer: rezai
sempre." "Na Grécia antiga, o divino se distribui numa disparatada multi­
plicidade de divindades. Estas [. . .1 não são pessoas singulares, mas potên-

5. M. Eliade, Traité d'histoire des religions, Paris, Payot, 1949, pp. 15-16.

116
cias mala ou menos personificadas que compõem o cosmo e a natureza
e ai se distribuem como forças em interação.· "O divino não é realmente
o Outro. As dMndades não são verdadeiramente transcendentes com
relação ao mundo dos seres humanos: elas também não são simplesmen­
te imanentes ao mundo. Os deuses são imortais, como o é a natureza: não
são entretanto infinitos, nem criadores, nem todo-poderosos. Assim como
as potências que personificam, os deuses estão de alguma maneira mis­
turados a toda vida dos homens e da natureza. ·s

Al guns sociólogos da religião estudaram corno se fez no catolicismo brasi -


leiro a transposição de tal horizonte religioso para formas católicas populares.
São estudos já muito conhecidos 7. Pedro A. Ribeiro de Oliveira classificou as
formas religiosas do catolicismo popular em quatro constelações: da devo­
ção, da promessa, da palavra e do sacramento8 • No catolicismo popular,
predominam as duas primeiras, que traduzem essa relação prirnigênia com o
sagrado. Os próprios sacramentos facilmente são contaminados com o toque
mágico, corno já se viu acima. A palavra perde freqüentemente seu caráter de
veículo nocional para transformar-se em força operativa. Está-se assim com as
quatro constelações dentro do mesmo universo religioso tradicional.
Facilitava o caráter sincrético e mítico-mágico o fato de ser um cato­
licismo fortemente leigo, popular, transmitido sobretudo por via oral e expe­
riencial (familiar ou iniciação), com acento no aspecto visual, rico em gestos
e ações, e menos expresso em palavras. Era recheado de histórias bíblicas
oralmente recitadas, de comunicações fantasiosas com o sagrado, de milagres
e da atuação do maligno até possessões diabólicas 9 •
Essa forma católica goza de relativa homogeneidade religiosa. É um
universo religioso fundamentalmente ritual (mágico-religioso, corno se diz),
em conseqüência dominado pela obrigação, e imperfeitamente ético para
nosso olhar conternporâneo 10 • Tem corte religioso tradicional de cunho
animista. Estamos diante de um catolicismo de estrutura virtualmente

6. A. Vergote, Modernidade e cristianismo. Interrogações e criticas reciprocas, São Paulo, Loyola,


2002, pp.18s.
7. J. Comblin, Situação histórica do Catolicismo no Brasil. in REB 26 (1966), pp. 574-601; J.
Comblin, Para uma tipo logia do Catolicismo Brasileiro, in REB 28 (1968), pp. 46-73; P. A. Ribeiro de
Oliveira, Religiosidade na América Latina, in REB 32 (19i2), pp. 354-364; R. Azzi, Elementos para a
história do catolicismo popular, in REB 36 (1976), pp. 95-130; E. Hoomaert, Formação do catolicismo
brasileiro. 1500-1X0O, Petrópo lis, Vozes, 1974.
8. Ver texto citado acima.
9. R. Azzi, Elementos para a história do catolicismo popular, in REB 36 (1976), pp. 95-130.
10. P. Sanchis, O cam po religioso contem po râneo no Brasil, in A. P. Oro - C. A. Steil, orgs.,
Globalização e religião, Petrópo lis, Vozes, 1997, p. 104.

117
sincrética11 • O catolicismo português, que aqui chegou, já carregava um sin­
cretismo. Era o catolicismo medieval popular que, segundo J. Comblin,
baseando-se na análise de A. Mirgeler 12 , fundira o catolicismo dos milagres
de origem germânica com o catolicismo penitencial irlandês 1 ·1• E. Hoornaert
descobre traços de um catolicismo guerreiro 1 4.
No Brasil. essa matriz sincrética, desenraizada de Portugal, aumenta
sua porosidade ao encontrar-se com duas outras identidades, também elas
desenraizadas, indígena e africana. Processa ativamente essas diferenças não
igualmente, dependendo das regiões. Na região Norte, a presença da paje­
lança se faz sentir. Mas, em geral, predomina a influência negra. Não se
criaram religiões paralelas, elas antes se influenciaram mutuamente em suas
cosmovisões e práticas 1 5. Não é de estranhar que surja no Norte, com in­
fluência sobre a classe ilustrada, especialmente artística, a religião do Santo
Daime com forte sincretismo indígena, esotérico, umbandista e católico 1b .
Atribui poder iluminativo e curativo ao chá sagrado.

Santo Daime
"O Daime fundiu a 'planta com o poder' à crença no poder da planta, o
chá à doutrina. Doutrina plástica. no duplo sentido da palavra: flexível.
frouxa. pouco integrada internamente e aberta a sincretismos vários ou a
reapropriações criativas relativamente livres; visualmente traduzida ou. ao
contrário, produzida como fluxo de imagens, revelada e misticamente in­
vestigada pela e como visão." 17

A capacidade sincrética do catolicismo popular permitiu que outras


matrizes - esotéricas, orientais, japonesas, evangelismo americano - ainda
se lhe ajuntassem, haja vista, a espírita. Há um fundo espírita muito forte no
universo religioso do país, que, aliás, diversas novelas têm explorado.
Esse pano de fundo religioso pré-moderno permanece até hoje e faz suas
simbioses na pós-modernidade atual. Antes, porém, sofreu e ainda está a
sofrer o embate de várias modernidades.

11. ld. ibid., p. 1 OS.


12. A. Mirgeler, Cristianismo e ocidente, São Paulo, Herder, 1967.
13. J. Comblin, Para uma tipologia do catolicismo brasileiro, in REB 28 (1968), pp. 46-73.
14. E. Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro. 1500-1800, Petrópolis, Vozes, 1974.
15. P. Sanchis, op. cit., pp. 105s.
16. ld., ibid.
17. L. E. Soares, O Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa in L. Landim, org.,
Sinais dos tempos. Diversidade reli!{iosa no Hrasil, Cadernos do ISER n. 23, Rio de Janeiro, !SER. 1990,
p. 268; ver também: R. Abreu, A doutrina do Santo Daime in L. Landim, op. cit., pp. 253-263;

118
Resumindo:
A tradição religiosa brasileira é de identidades porosas, de verdades sim­
bólicas (intencionalidade de sentido e não definição conceituai> e de
ambivalências éticas.

IV. MOMENTO DA MODERNIDADE ECLESIÁSTICA:


PURIF1CAÇÃO DA IDENTIDADE POPULAR PELA TRIDENTINIZAÇÃO

O termo modernidade significa aqui chamado ao juízo da raciona­


lidade dos elementos religiosos que remontam principalmente ao universo
mítico, mágico, tradicional. Apresenta-se sob a forma de purificação, sem
destruir a tradição anterior e reforçando-lhe a unidade.
É paradoxal chamar essa tridentinização do catolicismo brasileiro
de modernidade, já que o fenômeno semelhante de criação de uma forte
identidade católica tridentina na Europa tinha assumido o caráter de oposi ·
ção à Reforma, já moderna em muitos aspectos, e à crescente modernidade
racionalista. J. Delumeau estudou detalhadamente esses dois séculos seguin­
tes à Reforma e ao Concílio de Trento, como uma sobrenaturalização da
religião em oposição àquela que saía da Idade Média, fortemente animista IH.
Por mais que tenha sido uma reação à modernidade, a tridentinização lhe
assumia a necessidade de passar pelo crivo da razão o que antes se assumia
pela via da simples tradição e de uma concepção mítica do universo.
Semelhantemente no Brasil, a tridentinização do catolicismo popular,
chamado por vários autores de "romanização" 19, significou um processo
de dessincretização, de racionalidade sob a orientação da hierarquia.
É uma espécie de "modernidade eclesiástica". Essa entrada da razão de­
pura o catolicismo dos elementos que não coincidem com a sua lógica,
desmitifica muitos traços religiosos, considerados como herança de uma
cultura pré-científica.
Na análise de P. Ribeiro de Oliveira, tal fato deveu-se sobremaneira ao
implantar-se no Brasil o catolicismo romano, modificando-se o equilíbrio
do poder, que passou das mãos dos leigos para um clero adestrado.

18. Expus, baseado nas obras de J. Delumeau, parte desse fenômeno, quando tratei da formação
da identidade tridentina. em meu livro A volta à grande disciplina, São Paulo, Loyola, 21984, pp. 25-
ii. Aí cito as obras de J. Delumeau.
19. Pedro R. de ( )liveira. Catolicismo popular e romanização do catolicismo brasileiro, in REB 3h
(19i6). pp. 131- 1-11: id., Catolicismo popular no Brasil, Rio de Janeiro, CERIS, 19i0; id., Religiosidade
popular na América Latina, in REB 32 (19i2), pp. 354-364; R. Azzi, Elementos para a história do
catolicismo popular. in REB 36 (19i6), pp. 95-130.

119
Catolicismo romanizado
"Enfim, o catolicismo romano seria aquele conjunto de práticas e represen­
tações religiosas marcadas pela ênfase nos sacramentos, que, introduzido
no Brasil por agentes especializados da instituição religiosa, configura-se
um catolicismo onde a figura central é o padre, ministro dos sacramentos
e detentor do poder de falar em nome de Deus para toda a comunidade
religiosa. " 20

Aqui consideramos mais o papel de um tipo de racionalidade - o


clero - que desmitifica um catolicismo, considerado por ele, carregado de
superstição. É precisamente o que J. Delumeau analisa no processo de
tridentinização do catolicismo europeu nos séculos seguintes ao Concílio
de Trento.
Essa mesma racionalidade tocou as religiões afro-brasileiras, nas quais
alguns pais-de-santo da Bahia estão a expurgar a própria religião. Esse fenô­
meno é intrigantemente paradoxal. Ao mesmo tempo que se dessincretizam
várias realidades culturais do país, na busca de maior pureza, de mais clara
identidade, vive-se forte onda sincrética. Daí que qualquer análise demasia­
do rígida não dá conta da complexidade e contraditoriedade da realidade 21•
Essa primeira vaga de modernidade punha a exigência de definição
conscientemente identitária. Já mesmo nos inícios da evangelização os
jesuítas mostravam tal preocupação, aliás recorrente nos processos evangeli­
zadores. Os nomes variam: volta às fontes, redescoberta do carisma, fideli­
dade inicial, recepção da tradição, retorno aos inícios. Enfim, está a idéia de
que uma ganga impura ao longo da história adere à pureza inicial que precisa
sempre ser recuperada. Esse processo se faz por meio de uma reflexão crítica
da razão.
No caso do catolicismo, a racionalização passou por sua maior centrali­
zação clerical, valorização dos sacramentos e doutrina, orientação explicita­
mente para uma salvação sobrenatural.
R. Azzi refere-se diretamente ao papel dos religiosos nesse processo de
romanização em três momentos 22• Entre os anos 1840 e 1889, eles participam

20. Pedro R. de Oliveira, Catolicismo popular e romanização do catolicismo brasileiro, in REB 36


(1976), p. 141.
21. J. B. Libanio, Itinerário da fé hoje - A propósito da teologia da fé, in Geraldo Hackmann,
org., Sub umbris jideliter. Festschrift em homenagem a Frei Boaventura Kloppenburg, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 1999, pp. 203ss.
22. R. Azzi, A vida religiosa no Brasil. Enfoques históricos, São Paulo, Paulinas, 1983, pp. 15-20.

120
da reforma da l1rej1, Um dos grandes bispos da romanização, D. Antônio
Ferreira Viçoso, de Mariana, pertencia à Congregação da Missão (lazarista).
Os capuchinhos assumem a direção do seminário de São Paulo sob o bispo
reformador D. Antônio Joaquim de Melo. Desenvolvem os religiosos papel
importante na pregação de missões populares entre o povo. Religiosas, como
as vicentinas e dorotéias, expandem as atividades por amplas regiões do país
com hospitais, colégios e obras assistenciais.
Uma segunda etapa se define a partir da proclamação da República ( 1889 ).
Esta trouxe a separação da Igreja e do Estado. Produziu uma maior vincu­
lação da Igreja Católica com Roma. Tai separação abriu as portas para a
entrada de muitas congregações religiosas, incrementando a vida religiosa
em nosso país. Multiplicam-se as escolas católicas sob a direção de religiosos
e religiosas para contrapor-se ao ensino leigo oficial e ao crescimento das
escolas protestantes. Atuam também no campo da imprensa com publica­
ções doutrinais e catequéticas. O processo de "purificação" do catolicismo
avança ainda mais com as novas devoções que os religiosos traziam da Eu­
ropa. De natureza mais clerical e sacramental, substituem as antigas devo­
ções populares. Organizam-se associações religiosas leigas em detrimento
das antigas confrarias e irmandades.
Uma terceira etapa data do início da crise da velha República (1922) até
a convocação do Concílio Vaticano II. A presença dos religiosos fortifica-se
no campo do ensino com a fundação da AEC (Associação de Educação
Católica) em clara oposição aos propósitos da escola nova, protagonizada
pelo Prof. Anísio Teixeira. Nesse momento, processa-se outra tentativa
mais intelectualizada de romanizar as elites. Isso se faz por meio da criação
de universidades católicas, nas décadas de 1920 e 1930, no modelo das de
Louvaina, Milão, com o auxílio do clero formado sobretudo na Universida­
de Gregor�ana 23 • A romanização deixa-nos a herança da experiência de que
na Igreja Católica as transformações profundas passam pela formação do
clero e de estruturas de apoio para os leigos.

Elite intelectual
"A hipótese que fomos verificar, portanto, é a de que a Igreja privilegiou,
como estratégia para sua restauração e posterior desenvolvimento, a for­
mação de lideranças intelectuais católicas, voltada preferencialmente para
as camadas médias urbanas em formação e ascensão." "Constatamos
que tal projeto consistiu na tentativa de formação de uma · elite intelectual

23. A. Casali, Elite intelectual e restauração da Igreja, Petrópolis, Vozes, 1995.

121
católica'" ... "a formação dessas elites intelectuais, na fase de implantação
das universidades católicas no Brasil. correspondeu mais aos interesses
corporativos imediatos da Igreja, em seu movimento restaurador." • A Igre­
ja empregou seus melhores recursos, na época. para essa produção e
mobilização de intelectuais católicos leigos. • 2 •

Travou-se nessa onda romanizante plural um embate entre uma tradição


brasileira de identidades porosas, de pouco rigor dogmático na formulação
das verdades, ambivalências éticas e as tentativas de purificação de qualquer
aderência sincrética, permissiva, tolerante.

V. MOMENTO DA MODERNIDADE PÓS-CRISTÃ:


PRIVATIZAÇÃO DA RELIGIÃO

A primeira modernidade foi intraeclesial. Por isso chamei-a de


"modernidade eclesiástica". A religião vai sofrer a investida da "moder­
nidade moderna" na expressão de H. Vaz 25 • Mais tarde, revendo a expres­
são, ele fala de "modernidade pós-cristã" 26 . Essa modernidade trouxe em
seu bojo exigências da razão iJuminista, autônoma, já não mais preocupada
em purificar nenhuma religião de seu sincretismo, mas em destituí-la de
qualquer domínio sobre a sociedade, de expulsá-la simplesmente do mundo
da razão para reduzi-la ao âmbito da intimidade afetiva das pessoas. Em
nome da razão científica, restringe-se o âmbito da fé a realidades míticas,
pré-científicas, sem consistência teórica. Além do mais, promoveu-se uma
valorização crescente do indivíduo, de sua subjetividade, de sua intimidade.
Os setores da religião e da conduta moral especialmente sexual tornaram-se
cada vez mais uma opção pessoal e não institucional.
Se a primeira modernidade foi eclesiástica, a modernidade pós-cristã é
antieclesiástica, anti-religiosa. Produziu vários efeitos sobre a religião.
Privatizou-a, secularizou-a, racionalizou-a (deísmo), reduziu-a a um produ­
to do ser humano (L. Feuerbach), destituiu-a de valor científico (cientismo),
infamou-a (estádio teórico perempto: Comte), (alienação: Marx), (fraqueza:
Nietzsche), (infantilismo: Freud), (demissão da liberdade: Sartre).

24. A. Casali, op. cit., pp. 10, 219.


25. H. Vaz. Religião e modernidade filosófica, in Síntese N= Fase 18 (1991), p. 149.
26. H. C. de Lima Vaz. Transcendência e Religião: o desafio das modernidades in Escritos de
filorofia, Ili. Filosofia •cultura.São Paulo. Loyola, 199i, p. 231.

122
As modernidades, sob a batuta da razão clássica, levaram as religiões a
refletir sobre si mesmas. Teologizaram-se, ao buscar a inteligência de si
mesmas. A modernidade pós-cristã, pelo contrário, levará a teologia a uma
crise sem precedentes.

Modernidades e religião
"É permitido. pois. afirmar que o influxo maior das modernidades que se
sucedem sob o signo da razão clássica sobre a religião traduz-se na cons­
tituição de teologias. que chegam a formar a frente intelectual mais avan­
çada dessas modernidades... Apenas com o advento de uma modernidade
pós-cristã - a nossa - a partir do século XVIII. a teologia. como compo­
nente do sistema filosófico. conhecerá uma crise que levará ao desapare­
cimento de sua forma tradicional, sendo então substituída pela chamada
filosofia da religião. " 27

A modernidade privatizante destronou a religião do seu papel social de


referência fundamental para a sociedade nas suas diversas atividades econô­
micas, políticas e culturais.

A modernidade social destrona a religião

A religião era a força integradora das sociedades humanas. O homem,


como ser simbólico, tem necessidade de dar um sentido à vida em todas as
dimensões. Constrói sistemas simbólicos religiosos como marco último e
integrador das sociedades em que vive.
A modernidade atinge precisamente esses sistemas simbólicos religio­
sos, criando outros sistemas de significado de natureza secular. Fenômeno
muito conhecido e estudado pelos clássicos da sociologia. W. Pannenberg
atribui muita importância à guerra das religiões do final do século XVI e
inícios de XVII para a perda de credibilidade do cristianismo na sua função
de fundamento da unidade do Estado. Se o cristianismo se revelara fonte de
discórdia, de conflito, de guerra, destruindo a paz social por meio da paixão
religiosa, se ele se dividira em facções que se combatiam, como podia cum­
prir sua missão de referente único? Não há outra solução que buscar um
princípio "neutro" acima das divergências religiosas: a razão. O Estado

!.i. lJ, ihid.

123
seculariza-se e desloca a religião - no caso o cristianismo - para a
esfera do privado28.
Noutra perspectiva, K. Gabriel refere-se a um consenso de fazer recuar
não à Reforma ou à Ilustração as origens da modernidade que introduziu o
corte entre religião e sociedade. Na Alta Idade Média, já se instala um
pluralismo estrutural religioso. As guerras das investiduras do século
XII desempenham papel importante. O papa defende a autonomia da esfera
espiritual e assim se constitui necessariamente uma esfera mundana separa­
da, embora haja entre elas relação de domínio ou submissão. Superam-se os
dois caminhos do cesaropapismo ou do hierocratismo. Ao lado desse plura­
lismo, desenvolvem-se as cidades medievais e o comércio entre maiores dis­
tâncias, que permitem nascer os centros de comércio com sua racionalidade
própria e prolongam as cadeias de comércio 2Y .
X. Herrero, em claro e didático artigo, desenvolve o itinerário da socia­
lização da religião até a explosão religiosa atuaPo. Ele percorre os autores
K. Marx, E. Durkheim e C. Castoriadis, desembocando na imanentização
do significado da religião com a completa autonomia do social.
Num primeiro momento, K. Marx desvenda a falsidade da religião e a
verdade do ser humano. A reconciliação do ser humano consigo e com o mundo
fará que ele já não produza a religião. O mundo reconciliado é ateu. A verdade
da religião é incompatível com a verdade do social. Estabelecendo-se esta, a
outra desaparece. E. Durkheim leva adiante o processo da redução da religião
ao social, ao identificá-la com o fator de unidade e coesão do grupo social. Isso
aparece claro no totemismo. "Para Durkheim, a sociedade é a fonte dessa 'ação
dinamogênica que caracteriza a religião"', conclui X. Herrero citando o pró­
prio sociólogo31 • C. Castoriadis leva a grau ainda maior tal socialização da
religião. A religião cumpria até então uma função imaginária ou simbólica no
processo instituidor das sociedades. Ocultava o verdadeiro caráter da auto­
instituição da sociedade, exigido pela razão moderna. A religião deve ser supri-

28. W. Pannenberg, Christentum in einer siikularisierten Welt, Freiburg, Herder, 1988. Segundo
este autor, por causa do impacto das guerras de religião dos sécs. XVI e XVII foi crescendo a dúvida de
que a unidade da religião fosse indispensável e fosse também um fundamento eficaz da paz social. Isso
levou pensadores como Hugo Grotius e Herbert von Cherbury a buscarem a base da ordem social e da
paz entre os Estados no direito natural e na religião natural, comum a todos os seres humanos e em
conexão com tal direito. Assim no lugar da religião revelada devia tornar-se base da ordem pública e da
paz social a natureza do ser humano, elemento comum a todos eles. Este é o ponto de partida para o
desenvolvimento de uma cultura secularizada na Europa (pp. 23s.).
29. K. Gabriel, Christentum zwischen Tradition und Postmoderne, Freiburg im Breisgau, Herder,
1992, pp. 69s.
30. X. Herrero, Filosofia da religião e crise da fé, in Síntese Nova Fase 13 (1985), p. 13-39.
31. ld., ibid., p. 16.

124
mida pela sociedade moderna que se auto-institui, dando-se autonomamente
suas próprias leis e reconhecendo explicitamente essa sua natureza auto­
instituinte. A religião era o segredo do imaginário social da sociedade
heterônoma32 • Conclui-se assim o processo de "imanentização do signifi­
cado implícita na corrente de sociologização da religião que acompanha o
advento e o curso da razão política moderna. O projeto imanente de emanci­
pação da sociedade contemporânea, que implica a completa autonomia do social,
recebe aqui a sua mais nítida transcrição teórica" -1\

A onda recente de secularização

Nas décadas de 1960 e 1970, o processo de privatização da religião, já


anunciado e analisado anteriormente, recrudesceu e ampliou vastamente o
campo de influência. O eclipse do sagrado no âmbito social o conduziu para
a intimidade das pessoas. A religião muda sua função social. Em vez de
manter a unidade da sociedade, ela responde às necessidades das pessoas. Ao
desinstitucionalizar-se, não desapareceu, mas privatizou-se, individualizou­
se, tornou-se "invisível" na sociedade e muito visível na vida privada-14. Carac­
terizou-se tal processo como secularização 35 .
Em torno dela, circulam muitos sentidos diferentes e elaboram-se diver­
sas teorias. Fala-se do eclipse do sagrado. Outros referem-se ao declínio da
religião e das práticas religiosas. Para alguns, acontece a perda de plausibi­
lidade da religião, com sua conseqüente marginalização em sociedades cada
vez mais racionalizadas. Não se trata do fim da religião, mas de sua função
social. Processa-se uma subjetivação das crenças, acontece uma maior con­
formidade com este mundo num movimento de horizontalização e naturali­
zação das realidades sobrenaturais. Constata-se a prescindência da influên­
cia pública da religião por parte da sociedade. Faz-se uma transposição das
crenças e instituições religiosas para a responsabilidade e a razão humanas.
Verifica-se uma dessacralização do mundo com respeito aos encantamentos
e magias. Segue-se uma perda de significação de figuras e gestos sagrados

32. Id.. ibid., p. 17.


33. Id., ibid.
34. Th. Luckmann, La religión invisible. El problema de la religión en la sociedad nwderna, Sala­
manca, Sígueme, 1973.
35. A secularização pode ser um fato constatado, uma teoria interpretativa ou um projeto a ser
implantado. Distingue-se de "secularismo", que si gnifica antes uma ideologia que aponta para o térmi­
no do processo de secularização, uma realidade absolutamente imanente em que se negam qualquer
transcendência e dimensão religiosa.

125
tradicionais. Estabelece-se uma auto-referencialidade sistêmica da religião.
Significa que ela se refere unicamente a si mesma e aos próprios imperativos
funcionais (fechamento ao exterior), atuando seletivamente em relação aos
outros subsistemas e do mundo em geral. Ela enfrenta uma emancipação e
uma autonomia do mundo profano - ciência, política, estética, ética - em
face dela. Observa-se uma laicização das diversas instituições sociais, ao do­
tarem-se de ideologias, referências e regras de funcionamento próprias. O
cristianismo liberta-se e purifica-se de ouropéis sagrados tornando-se adul­
to. Secularização significa também a transferência dos bens da Igreja para a
propriedade civil, a laicização de um religioso ou clérigo etc. ·10

Secularização
"Qual seria, se houvesse, o futuro da religião na época da secularização,
foi o cerne do debate que se desenvolveu entre os anos 60 e 70. Para
alguns, a crise da religião era irreversível: a secularização era uma conse­
qüência do processo de racionalização que transformara o Ocidente, assi­
nalando o triunfo da racionalidade instrumental e, por isso, era um fenôme­
no que não podia ser detido, que comportava ao mesmo tempo a margi­
nalização social da religião e a dessacralização, isto é, o eclipse ou, até
mesmo, o desaparecimento do sagrado. Outros, de maneira menos pes­
simista, procuravam descobrir os aspectos positivos do processo, mos­
trando que a secularização era, na realidade, apenas uma dessacralização,
isto é, um momento de purificação dos aspectos sacrais do cristianismo
e, portanto, preliminar ao afirmar-se de uma experiência religiosa mais
autêntica. Outros ainda, como Greeley, sustentavam não apenas a possi­
bilidade de uma religião purificada na sociedade secular, mas até negavam
que a necessidade do sagrado tivesse realmente desaparecido. " 37

K. Gabriel considera a identificação entre modernização e secula­


rização como inadequada. Segue a tradição que vê a modernização como
diferenciação progressiva e racionalização das estruturas funcionais do siste-

36. S. Martelli, A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 271-321; L.
Shiner, The Concept of Secularization in Empirical Research, }oumScStRel 6 (1967), pp. 207-220 re­
tomado por A. Álvarez Bolado, Dei pluralismo de modelos sacio-teoréticos a una consideración
metasociológica de la secularización, in Instituto Fe y Secularidad, Fe y nueva sensibilidad histórica,
Salamanca, Sígueme, 1972, pp. 103-152; D. Hervieu-Léger, Vers un nouveau christianisme? lntroduction
à la sociologie du christianisme occidental, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1986, pp. 191-194; S. S.
Acquaviva, Religione e irreligione nell 'età postindustriale, in S. S. Acquaviva - G. Guizzardi, Reli­
gione e irreligione nell'età postindustriale, Roma, AVE, 1971, pp. 13-53.
37. S. Martelli, A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 271s.

126
ma no campo do poder, religião, economia e ciência. A modernização
produziu um pluralismo cultural e maior reflexividade dos conteúdos
tradicionais culturais. O modelo tradicional, relativamente unitário, dá lugar
à pluralidade de perspectivas culturalmente interpretadas. Facilitam-se as­
sim o acesso e a escolha do indivíduo diante dessa pluralidade. E a religião,
no coração da cultura, sofre impacto semelhante, ficando entregue a um
processo de individualização. A própria modernização é a forma do processo
de individualização, estruturalmente provocado e culturalmente apoiado. Os
indivíduos libertam-se de ligações de origem, de ordem (Stand), de religião
e experimentam-se como centros de ação auto-responsáveis. Substituem-se
as regras tradicionais de inserção na sociedade por um jogo conjunto de
mecanismos formalizados: direito, dinheiro, organização. Amplia-se o cam­
po de ação 38 .
P. Berger relaciona a privatização religiosa com o surgimento de
minorias que se mantêm fiéis em uma instituição religiosa de maneira mais
ardorosa para suportar a perda de plausibilidade social do conjunto da ins­
tituição. A análise sociológica não oferece explicação cabal da privatização da
religião. Há raízes mais profundas que se encontram na história das idéias.

Emancipação da sociedade diante da religião


"A sociedade moderna. nascida num longo processo de dissolução da
imagem antiga do mundo, liberta-se da religião e da hierarquia de ordem
do cosmos e da sociedade, considerada como imutável. e elabora seu
projeto imanente de emancipação. Ela visa ao advento de uma sociedade
e de uma história construídas pelos homens e em cujas obras eles se
reconhecem. A crítica da religião deixa de ser uma refutação propriamente
dita da instância religiosa considerada alienante, para voltar-se a seus ·ver­
dadeiros' pressupostos. " 39

A modernidade científica e tecnológica desqualifica a religião

As ciências empiricas e a tecnologia atuam diferenciadamente sobre


a cosmovisão religiosa. Os avanços tecnológicos comportaram-se contradi-

38. K. Gabriel. Christentum zwischen Tradition und Postmodeme, freiburg im Breisgau, Herder,
1992. Mais adiante voltaremos a esse autor, ampliando a exposição sobre sua posição da destradicio­
nalização
.l9. X. Herrero, Filosofia da religião e crise de fé, in Síntese Nova Fase 13 (1985), p. 15.

127
toriarnente em relação à religião. Alguns ajudaram-na, não interferindo em sua
concepção de mundo. Um pontífice doutrinariamente conservador, como Pio
IX, introduziu nos territórios pontifícios o telégrafo e o trem de ferro, sem que
esses progressos tecnológicos afetassem seu modo de pensar 40 • Outros desen­
volvimentos científicos e tecnológicos obrigaram a uma revisão religiosa pro­
funda da instituição porque exigiam resposta a seus questionamentos.
Afetou mais diretamente a religião o fato de a modernidade apresen­
tar a ciência como único sistema de representação criticamente fun­
dado. Ela desestrutura os universos simbólicos tradicionais, dissolve a ima­
gem do mundo antigo, dificultando ao homem moderno o acesso à fé, à
religião, à revelação. Ao criar-se a ideologia cientista, radicaliza-se ainda mais
o império das ciências exatas. Embora muitos grandes cientistas fossem pes­
soas de crença, foi-se elaborando uma visão da realidade marcada pela obje­
tividade das ciências empíricas. As ciências naturais ocupavam-se do certo e
do errado, enquanto as religiões, do bom e do valor; as ciências consideravam
o lado objetivo da realidade, enquanto a religião se interessava pela decisão
subjetiva por valores orientadores da vida.
O manifesto do Círculo de Viena de 1929 exprimiu em forma crista­
lina essa ideologia cientista. Era uma nova reação contra o pensamento
metafísico e religioso. Defendia um empirismo por métodos lógicos. Anali­
sando o significado dos conceitos e proposições, constatava-se que, em últi­
ma análise, ele era empírico. As proposições que não são claramente empí­
ricas em sua referência ou são redutíveis a proposições empíricas ou são um
sem-sentido41 • A metafísica e a religião são imprecisas porque não trabalham
com conteúdos e métodos das ciências da natureza. Estes são os únicos ca­
pazes de oferecer uma cosmovisão rigorosa, exata, científica. A religião está
do lado da arte, da poesia, do mito.

Neopositivismo vienense
Vão aqui algumas idéias retiradas do Manifesto do Círculo de Viena, 1929,
redigido por H. Hahn. O. Neurath e R. Camap.
"Propugna uma 'ciência libertada da metafísica·, a saber, de todo produto
intelectual que não se ajuste à experiência empírica." "Há superfície e por
detrás dela não há nada." "O todo é apenas superfície." "Não há misté­
rios: há problemas. E os problemas podem ser claramente formulados,

40. Sobre o impacto ambíguo da tecnologia sobre a religião, sobretudo na França, ver a excelente
obra de M. Lagrée, La bénédiction de Prométhée. Religion et technologie, com prefácio de Jean Delumeau,
Paris, Fayard, 1999.
41. J. Weinberg, Examen dei positivismo lógico, Madrid, A gu ilar, 1959, p. 47.

128
investigados e resolvidos. 'É real tudo [e somente] o que pode ser integra­
do no conjunto do edifício da experiência.' 'A concepção científica do
mundo não admite como conhecimento incondicionalmente válido a não
ser o que tenha sua fonte na razão pura... · Só existe o conhecimento
experimental que se apóia sobre o imediatamente dado. " 42

Outro fator importante desse empirismo é a redução do real aos enun­


ciados da experiência, de maneira que só têm sentido as proposições emiti­
das pelas ciências da natureza, empiricamente confrontadas com a realidade.
A conclusão ló g ica é um monismo ló g ico e ontoló g ico. Só é racional,
só pertence ao mundo da verdade, do aceitável, da linguagem significativa o
que pertence à ciência, à comprovação empírica, regida pela evidência. E,
portanto, a única realidade genuína existente é aquela sobre a qual as ciências
naturais trabalham 43 • Com isto a religião, a teologia, a fé, a mística são excluí­
das do mundo da realidade verdadeira. Toca-lhes o mundo do silêncio.

O silêncio do indizível
"O que se pode em geral dizer pode-se dizer claramente; e sobre aquilo
de que não se pode falar deve-se calar. " 44

A modernidade filosófica abala os alicerces da Transcendência

O último golpe contra a autonomia e o senhorio da religião veio natural­


mente da filosofia no sentido estrito do termo e por várias fontes. No fundo,
a filosofia neg a à relig ião a racionalidade, remetendo-a para o mundo do
irracional, do infantil, do sentimento, do mito, da intuição, do coração,
do gosto. Tira-lhe a solidez do chão, deixando-a flutuar no mundo etéreo.
Os próprios teólogos liberais humanizam-na tanto que perde sua trans­
cendência. A. Harnack afirma que "Jesus não introduziu no mundo nenhu­
ma doutrina nova [ ... ] mas carregou na sua pessoa a mensagem de uma vida
santa com Deus e diante de Deus, em força da qual deu a si mesmo para o
bem dos seus irmãos" 45•

42. J. Ruiz De La Peiia, Crisis y apología de lafe. Evangelio y nuevo milenio, Santander, Sal Terrae,
1996, pp. 30-32.
43. Ver a clara exposição que nos orientou: J. Ruiz De La Peiia, op. cit., pp. 29-40.
44. L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo, EDUSP, 1994, p. 130.
45. A. von Harnack, Manuale della storia dei dogmi, I, Edizioni Cultura Moderna, Mendrisio,
1912, p. 53, in B. Forte, Dio nel novecento: trafilosofia e teologia, Brescia, Morcelliana, 1998, p. 18.

129
F. Schleiermacher (1768-1834) encarna a teologia no espírito da mo­
dernidade, colaborando para a interiorização, individualização e privatização
da religião46 • Desenvolve uma religião romântica do sentimento, dirigida às
classes educadas. Reconcilia cultura moderna e convicção religiosa, evitando
o choque. Mas o faz à custa da acomodação da religião à subjetividade mo­
derna. A religião é pensada para a pessoa religiosa. Não é assunto de siste­
matização nem de teoria - isto é para o filósofo-, nem matéria de fórmula
de fé e provas. A vida tem a prioridade na religião e não a doutrina.
A feição peculiar da religião é a experiência do mistério, é ser movido pelo
mundo do eterno. Ela é como faíscas celestes que saltam quando uma alma
santa é tocada pelo infinito. Procura experimentar o universo, a totalidade do
que existe e do que acontece, mediadamente no ver e sentir imediato.

Religião é sentimento
"Não é nem pensar nem agir, mas intuição e sentimento. Pretende olhar
o universo como ele é. É uma atenção e submissão reverente, em passi­
vidade como criança, a ser açulada e enchida pelas influências imediatas
do Universo. " 47

A religião é do coração, "sentido e gosto pelo infinito" 4 x. Habita o mundo


da intimidade, do sentimento, da piedade, algo existencial. Não se entenda
o sentimento como puramente psicológico. É mais. É um modo compreen­
sivo, existencial, um sentido de estar encontrado no centro, uma autocons­
ciência imediata religiosa. A fé cristã de religião é sentimento de dependência
última. Opõe-se veementemente à religião estatal, fonte de corrupção. Re­
força-se a privatização e a interiorização da religião.
Outra corrente filosófica, que destitui a religião de sua força transcen­
dente e profética, reduzindo-a a uma pura antropologia, alimenta-se do corifeu
L. Feuerbach. Já nos referimos a ele em outro momento. Para o objetivo da
reflexão sobre a privatização da religião, basta recordar a sua tese fundamen­
tal. O Absoluto é simplesmente uma projeção, uma objetivação da humani­
dade. A religião engana, mascarando com toques transcendentes o conteúdo
essencialmente humano da filosofia. Ela não passa de reflexo de uma realida-

·H1. Seguimos a brilhante e dara exposição de H. Küng do papel de Schleiermacher na conciliação


com a modernidade in H. Küng. Christianity: The l�eligious Situation of Our Time, London, SCM Press
Ldt, 1995, pp. 694ss.
4 7. F. D. i-:. Schlcicrmacher, On Religion. Speeches to its Cultured Despisers (1799), l\'ew York.
1958, p. 277, cit por H. Küng, op. cit., p. 698.
48. ld .. ibid .. p. 101.

130
de puramente humana. Por ela a espécie humana chega ao conhecimento da
própria natureza essencial. O ser humano hipostasia nos atributos teológicos
as projeções dos atributos próprios. A religião, a teologia não é nada mais do
que uma antropologia esotérica. Em vez de Deus criar o homem a sua ima­
gem e semelhança, é a humanidade que criou Deus a sua imagem. A religião
dissolver-se-á na humanidade 49 • Estamos diante de uma concepção de reli­
gião que lhe subtrai toda realidade objetiva, pública para transformá-la em
pura antropologia. R. Bastide retoma, em sentido um pouco diferente, a última
frase do livro de Bergson, que considera "a função essencial do universo"
como "uma máquina de fazer deuses'"' 11, ao chamar "o ser humano, essa
máquina de fabricar deuses" 51•

Deus como projeção do ser humano


"A partir de seu Deus, tu conheces o homem, e inversamente a partir do
homem seu Deus: os dois não fazem senão um. O que Deus é para o
homem: seu espírito, sua alma, e o que é o próprio espírito humano, sua
alma, seu coração: isto é seu Deus; Deus é a interioridade manifesta, o
si (Selbst/Sem expresso do homem; a religião é o desvelamento solene
dos tesouros escondidos do homem, a confissão de seus pensamentos
mais íntimos. a confissão pública de seus secretos de amor. " 52

A modernidade filosófica pós-cristã tem, portanto, um componente


ateu. Substitui a abertura à Transcendência por um imanentismo que encerra
o sujeito em si mesmo. Ela dissolveu o sistema de expressões da religião num
horizonte utópico de seu próprio processo histórico. Substituiu o mais além
celestial por um mais além terreno em que se satisfariam ilimitadamente todas
as necessidades dos indivíduos. Ela exclui a religião da esfera pública e a produz
mais vigorosa ainda na esfera individual. Abole a religião enquanto sistema de
significações e motor dos esforços humanos, mas cria espaço-tempo de uma
utopia, que, em sua estrutura, é afim a uma problemática religiosa de consuma­
ção e salvação. Traveste em utopias humanas seus conteúdos religiosos 51 . En­
fim, anuncia-se o fim da religião como instituição e proliferação de expressões.

➔'J. I'. /\vis. Faith in lhe Fires of Criticism: Christianity in .\1odern Thought, London. I>arton,
Longman and Todd. 1995, pp. 17ss: o/\. apresenta excelente síntese do pensamento teológico de L
Fcucrbach sob o aspecto da humanização da religião, de Deus.
50. H. Bergson, .-\s duas fontes da moral e da reli}{iào, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 262.
51. R. Bastide. Le sacré saut"age el aulres essais, Paris, Stock/Payot, 1975/1997, p. 75.
52. L. Fcuerbach. /. 'Essence du christianisme, Paris, Maspero, 1968, p. 130.
5.l. !\. Castineira, .-\ experiência de Deus na pás-modernidade, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 160.

131
Entende-se nesse contexto a afirmação cortante de M. Gauchet, repe­
tida nos mais diversos contextos: "O cristianismo terá sido a religião da saída
da religiào" 54• Ele é fim do papel social da religião. Papel que definiu desde
o início o conteúdo do fato religioso. Não significa fim da crença religiosa
que não é prevista no horizonte da história. Indica a existência de crentes
num mundo do além da religião. "Os deuses sobrevivem, mas seu poder
morre. Os crentes não levam a organização religiosa da cidade. Há crentes,
mas a sociedade permanece atéia nos princípios e mecanismos." 55
M. Gauchet atribui ao cristianismo função importante no fim da reli­
gião. Ele ofereceu suporte para a autonomia terrestre. É a mesma tese fun­
damental de F. Gogarten para quem a secularização era conseqüência legíti­
ma do impacto da fé bíblica sobre a história. Autonomia do mundo não
significa sua absolutização, como explicita M. Gauchet.

Autonomia
"Autonomia quer dizer não uma sociedade que esteja de uma vez por
todas em posse de seu sentido, mas uma sociedade articulada em tomo
da deliberação sobre si mesma. Autonomia do mundo humano não quer
dizer absolutização do mundo humano, mas conflito a respeito do absoluto
no interior do mundo humano a propósito do qual os que crêem não
aparecem, no fundo, menos divididos do que os não-crentes. " 56
"O cristianismo gerou um mundo que o contesta e pode prescindir dele,
mas permanece em conivência matricial com ele. Tem chance de ficar-lhe
associado por meio de evolução e adaptação. Ele é a única religião com­
patível até o extremo com a modernidade. A Igreja é instituição típica que
a modernidade está fadada a contestar. No entanto, está insuperavelmente
enraizada na história que a contesta. " 57

Fim da religião
"Não recomecemos a profetizar a morte e os funerais de velhos que
passam." "Se há um sentido em falar de algo como um 'fim' ou como uma
'saída' da religião, não é tanto do ponto de vista da consciência dos atores

54. M. Ciauchet, Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard,
1985, p. II e pp. 1.l.hs.
55. Jd., ibid.
56. Entrevista com M. Gauchet, Un credo démocratique? in P. Colin - O Mongin, dir., Un
monde désenchanté. Débat avec Marcel Gauchet, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1988, pp. 98s.
57. Entrevista com M. Gauchet, La religion de la sortie de la religion, in op. cit., pp. 95-100.

132
quanto do ponto de vista da articulação de sua prática." "Pois a religião
foi antes uma economia geral do fato humano, estruturando indissolu­
velmente a vida material, a vida social e a vida mental. Hoje não sobram
mais que experiências singulares e sistemas de convicções, enquanto a
ação sobre as coisas, o laço entre os seres e as categorias do intelecto
funcionam de fato e em todos os casos no antípoda da lógica da depen­
dência que foi sua regra constitutiva desde o começo. É propriamente aí
que saltamos fora da idade das religiões. " 58

Em profunda análise da trajetória da relação filosofia e religião, Pe. Vaz


atribui fundamental importância à virada cartesiana. Ele observa que a
categoria weberiana de "desencantamento", recentemente utilizada por M.
Gauchet, não toca as raízes metafísicas do problema, por permanecer num
plano sociocultural. Vê a razão do choque da modernidade filosófica com a
religião no seu próprio conceito. No fundo, está a concepção e a relação com
o tempo e seu fundamento. O fundamento do tempo da religião é um Prin­
cípio transtemporal ou transcendente ao tempo. A modernidade estabelece o
ser humano como seu princípio fundamental. Princípio imanente que se faz
absoluto. Em uma página densa e difícil, o Pe. Vaz resume sua tese central.
Vale a pena conferi-la.

Choque da modernidade pós-cristã com a religião


"Nesse enjeu metafísico em torno da idéia de Deus deve ser situado,
portanto, o lugar conceptual e ideológico no qual se produz, no seu plano
mais profundo, o choque da modernidade pós-cristã sobre a religião... Se,
considerada do ponto de vista da filosofia, modernidade implica, no seu
conceito, uma avaliação pelo homem do seu tempo histórico, avaliação
que se traduz no privilégio reconhecido ao modo ou à atualidade do seg­
mento desse tempo no qual se exerce o pensamento próprio da moder­
nidade, então o problema fundamental desse pensamento é o problema do
fundamento do privilégio que advém ao tempo pelo exercício. nele, do ato
de filosofar <e dos atos de conhecimento que se exercem na órbita do
pensamento filosófico constituído em centro do espaço da razão). Ou esse
fundamento é assegurado por um Princípio transtemporal ou transcenden­
te ao tempo, quod omnes dicunt Deum segundo a expressão de Tomás de
Aquino ao termo das suas provas da existência de Deus e, nesse caso,

SR. M. Gauchet, Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard,
1985, p. 1.H.

133
a religião exercerá legitimamente no êmbito das idéias da modernidade ■ua
compreensão religiosa do tempo: assim aconteceu na história das moder­
nidades que se sucederam no curso da história da razão clássica. Ou esse
fundamento é suposto residir no próprio sujeito do ato de filosofar, em cuja
imanência se dará a suprassunção do tempo empírico na atualidade de um
saber que, finalmente, irá proclamar-se absoluto. É esse o fundamento
metafísico da modernidade pós-cristã colocada sob a égide da razão
cartesiana. Nela o exercício do conhecimento fundado na pressuposição
do Absoluto transcendente e, como tal. compatível com a crença religiosa,
não terá lugar reconhecido no universo da razão. A religião, como fato
cultural, passa a ser apenas objeto da filosofia. A theologia (no sentido
clássico, como ápice do sistema filosófico) cederá lugar às filosofias da
religião." 59

A destituição de relevância social da religião, da fé, da Igreja provocou


uma reação por parte de cristãos evangélicos e católicos, iniciando um pro­
cesso de sua desprivatização.

VI. MOMENTO DA DESPRIVATIZAÇÃO DA RELIGIÃO

Significado geral

Evidentemente não si gnifica uma volta aos tempos sagrados em que


a religião ditava a referência fundamental à sociedade. Nem se pensa numa
identificação ingênua entre religião e Estado. A secularização e a moder­
nidade pós-cristã neste ponto vieram para ficar. A imagem tradicional
sagrada do cosmos já não resiste ao embate da ciência que continua seu per­
curso pesquisador e decifrador dos mistérios da natureza.
Permanece o reconhecimento da emancipação sociocultural da moderni­
dade. Quer-se, porém, introduzir corretivos nas tendências privatizantes da
teologia, da fé, da religião, da Igreja. Protesta-se contra uma capitulação fácil
diante da imanentização, subjetivização, individualização da religião. Em
campo cristão, recupera-se a dimensão crítico-profética da mensagem do
Evangelho, não deixando que ela seja aprisionada no universo do indivíduo.

59. H. C. de Lima Vaz, Transcendência e religião: o desafio das modernidades in Escritos de


filosofia, III. Filosofia e cultura, São Paulo, Loyola, 1997, pp. 242s.

134
Propõem-se corretórios críticos à privatização do mundo concei­
tuai teológico, da linguagem da pregação, da espiritualidade, da prá­
tica religiosa. Reivindica-se a liberdade crítica social da fé, da religião. Refaz­
se de maneira lúcida o processo histórico da destituição social da religião,
distinguindo entre a sua validez diante de obscuridades da religião e as mio­
pias históricas de não perceber a relevância histórica e social para a humani­
dade da religião. Os fatos desmentem o desterro privatizante da reli­
gião. Este foi o grito de protesto teológico da teologia política. Ela recupera
uma tradição anterior que sobretudo na Igreja Católica estava esquecida.

Teologia política
"A teologia política aparece como um corretivo crítico diante de certa
tendência de privatização na teologia atual Cem sua forma transcendental.
existencial e personalista) ..." "trata de superar com espírito crítico a
privatização tendencial do núcleo da mensagem cristã, a redução da práxis
da fé à decisão acósmica do indivíduo..." "é guiada pela intenção de
despojar o mundo conceituai teológico, a pregação e a espiritualidade de
seu caráter privado" . . . "aparece como o intento de formular a mensagem
escatológica do cristianismo nas condições de nossa sociedade, levando
em consideração a mudança de sua vida pública" ... "a vida pública não é
entendida como objeto de um trabalho cristão secundário l...1, mas prima­
riamente como meio essencial de achar a verdade teológica e pregar o
cristianismo em geral." "A Igreja [é vista] como lugar e instituição da
liberdade de crítica social." 6º

Os anos passam e a nossa memória perde as lembranças, mesmo fortes.


Além do mais, viver na sociedade da informação dificulta-nos terrivelmente
ter noção do alcance dos acontecimentos. As notícias circulam com tal rapi­
dez e numa farândola de tal modo estonteante que nos vedam reflexões mais
profundas e um armazenamento para ulterior momento de calma crítica.
Vivemos no final de junho e primeiros dias de julho de 1980 verdadeiro
tornado político-espiritual por ocasião da visita do papa João Paulo II ao
Brasil. Esta visita exprimiu plasticamente o que teoricamente a teologia po­
lítica e da libertação vinham martelando. A religião tem papel e relevância,
como instituição, no cenário da sociedade.

60. J. 8. Metz, Teologia política, in Sacramentum Mundi. Enciclopedia teológica, V, Barcelona,


Herder, 1974, col. 499-508.

135
Em análise feita ainda sob o calor vivo da visita, Pe. Vaz alertava para o
fato de ter sido uma visita de alguém que vinha em nome de uma institui­
ção61 . Não se tratava de nenhum visionário ou messias apocalíptico, mas do
representante oficial, investido com as insígnias pontifícias, da maior Igreja
do Ocidente. E como tal foi recebido, deslocando para o canto de sua peque­
nez as autoridades políticas e eclesiásticas que lhe faziam corte. Eram o povo
e o Papa e ninguém mais ocupava o cenário. Portanto, religião institucional
e presença junto ao povo.

Projeto europeu

Recordar esse fato elucida o cenário teórico que se criava com a despri­
vatização da religião. O projeto europeu de desprivatização 62 comungava
em alguns pontos básicos com o latino-americano. Ambos reivindicavam o
lugar público e crítico da religião, da fé em reação a sua privatização. No
entanto, a preocupação européia concentrava-se na elaboração teórica da fé,
da religião em registros conceituais desprivatizados. Este projeto teve in­
fluência no surgir do projeto libertador da América Latina, como observa o
próprio J. B. Metz, ao fazer um balanço daqueles anos. No entanto, a Amé­
rica Latina assumirá um caminho próprio, original e mais promissor.

Passagem da teologia política à da libertação


"Quando, em meados dos anos 60 do século passado [sic!l, esbocei uma
'teologia política·. sugeri uma determinação de Igreja que despertou a
atenção de meus amigos e colegas latino-americanos: a Igreja como ins­
tituição de liberdade crítica social da fé. " 63

A teologia da libertação latino-americana reivindicava uma atuação


pastoral, alimentada por uma reflexão teológica crítica, de alcance social
61. H. C. de Lima Vaz, Igreja e sociedade no Brasil: primeiras reflexões depois de João Paulo II,
in A. Rocha - L. A. Gómez de Souza, O povo e o Papa, Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1980,
p. 180.
62. J. B. Metz, Politische Theologie, in Sacramentum Mundi. Theologisches Lexikon für die Praxis,
III. Freiburg, Basel, München, 1969, 1232-1240; id., Les rapports entre l'Église et le monde à la lumiére
d'une théologie politique, in L. Shook - G.-M. Bertrand, La théologie du renouveau, t. II, Paris,
Éditions Éditions du Cerf, 1968, pp. 33-48; H. Peukert, org., Diskussion zur politischen Theologie,
Mainz, Mathias-Grünewald, 1969; J. B. Metz, J. Moltmann, W. Oelmuller, Una teologia politica, Assise,
Cittadella, 1971.
63. J. B. Metz, Significado da teologia latino-americana para minha teologia, in L. C. Susin, org.,
O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina, São Paulo, SOTER/Loyola, 2000, p. 149.

136
e societário pua além da esfera privada. Ela conheceu simultaneamente dois
programas. Um que visava mais diretamente à prática e que se preocupava com
a práxis da fé fechada no rincão dos indivíduos, desconhecendo o grito do pobre
(teologia da libertação) e outro que pretendia libertar os próprios conteúdos da
teologia (libertação da teologia). O primeiro tomou-se hegemônico. O segundo
foi lançado por J. L. Segundo e praticado por ele em suas obras 64.
O momento desprivatizante da teologia européia não teve muita
repercussão diante do processo da privatização que continuou forte.
Não passou de um breve sobressalto crítico na avalanche secularizante. A
pós-modernidade prosseghiu a mesma onda de subjetividade, de interioriza­
ção, de alheamento diante do político.

Projeto latino-americano

Na América Latina, o projeto teve outro destino. A teologia da li­


bertação e a pastoral dela decorrente e por ela alimentada sacudiu as estru­
turas eclesiásticas e afetou os regimes políticos militares. As reações vieram
de ambas as partes. Acusou-se mesmo de uma demasiada politização e
ideologização da fé. Falou-se de "clericalismo e messianismo de esquerda".
A Conferência Geral do Episcopado em Puebla serviu de palco para se
perceberem as tensões que a desprivatização da fé, da teologia, da religião
vinha produzindo. Assacava-se à teologia da libertação a hipertrof ia do so­
cial.Criticava-se-lhe o encurtamento ou mesmo esquecimento de elementos
fundamentais da fé, atribuíam-se-lhe reducionismos políticos e releituras
materialistas. O "punctum dolens" era a proximidade com o marxismo.
A teologia da libertação fazia questão de filiar-se à segunda Ilus­
tração da crítica da práxis e não parar na crítica da razão. Por sua
incidência na práxis da fé, da Igreja, da religião em linha revolucionária,
carregava a pecha de sofrer a contaminação marxista. Tal suspeita mereceu
reservas por parte da Congregação para a Doutrina da Fé.

A teologia da libertação e o marxismo


"A impaciência e o desejo de serem eficazes levaram alguns cristãos,
perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo

64. J. L. Segundo, Libertação da teologia, São Paulo, Loyola, 1978; id., Entrevistas sobre a teologia
da libertação, in SEDOC 14/157 (1982), col. 541-550; id., Les deux théologies de la libération en
Amérique Latine, in Études 361/3 (1984), pp. 149-161.

137
que chama de 'análise marxista'... Não é raro que sejam os aspectos
ideológicos que predominem nos empréstimos que diversos 'teólogos da
libertação' pedem aos autores marxistas." "Esta concepção Co pensamen­
to de Marx) totalizante impõe assim a sua lógica e leva as 'teologias da
libertação' a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão
cristã do homem. " 65

Este projeto atin giu vários setores eclesiásticos e civis. Engendrou


uma pastoral da libertação. Esteve na origem e na alimentação das comuni­
dades eclesiais de base 66 • Por ocasião de umas eleições, o famoso colunista
político do jornal do Brasil Carlos Castelo Branco chamou a atenção para a
importância das CEBs no quadro político e eleitoral do país. É voz corrente
que um senador muito credenciado do Norte do país, com curral eleitoral
garantido de longa data, perdeu as eleições por causa do trabalho político das
CEBs, que viam nele um opositor.
A opção pelos pobres estava no centro das acusações. Forjou-se
uma distinção entre opção evangélica e ideológica pelos pobres. A opção
evangélica pertencia à longa tradição da Igreja, com base na Escritura, es­
pecialmente na prática e pregação de Jesus. A opção ideológica pelos pobres
era atribuída à teologia da libertação por assumir a dimensão política e ideo­
lógica do pobre, identificando-o com a classe revolucionária do marxismo.
Não se trata de entrar aqui na validade ou não de tais críticas6 ;. Para
nosso propósito, interessa o aspecto histórico e estrutural de um momento de
desprivatização radical da fé, da religião, da Igreja em reação ao movimento
oposto desencadeado pela modernidade pós-cristã.
Esse interregno crítico e público da religião ajuda a entender o
atual momento de exacerbada reprivatização da reli gião. Tanto mais
vigorosa ela se dá, quanto mais na América Latina o momento desprivatizante
fora intenso. Sem o período de hegemonia da compreensão libertária, pública
e social da religião, não se entende a onda avassaladora da pós-modernidade
religiosa interiorizante.
As reações liberalizantes da modernidade contra uma religião tradicio­
nal, ordenadora da sociedade, recrudescem com novos argumentos e novo

65. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação,
São Paulo, Edições Loyola, 1984, VJl/16 e VIII/!.
66. E. Hoornaert, O catolicismo popular numa perspectiva de libertação. Pressupostos, in REB 36
(19i6), pp. 189-201.
6i. Tratei delas em meu livro Teologia da libertação. Roteiro didático para um estudo, São Paulo,
Loyola, 198i, pp. 269-280.

138
ímpeto. ( :rc11cem aa críticas e ataques da onda neoliberal contra o interstício
crítico-público da libertação, vinculada com o mundo religioso. Na primeira
vaga privatizante apelava-se para o liberalismo da primeira ilustração. Agora
é o neoliberalismo que depõe qualquer pretensão social não só da religião
como também de toda entidade pública.

Neoliberalismo e herança socialista


"A política neoliberal. em seus primórdios. instalou-se em países com forte
tradição política social-democrata ou voltada para a constituição do Estado
do Bem-Estar Social. desmontando-a em consonância com as novas exi­
gências do capital. que não só não precisa desse tipo de Estado para
acumular-se e reproduzir-se. mas ainda nele se vê um obstáculo. " 68

Nesse momento do triunfo e de uma segunda onda mais poderosa


de privatização da religião, explode o atual fenômeno religioso. Tem
muitas semelhanças com o anterior. Não goza de originalidade teórica a não
ser o tripudiar sobre o lapso de tempo social. Retoma teses liberais com
novo vigor.

VII. MOMENTO DE REPRIVATIZAÇÃO DA RELIGIÃO

Se o fim da década de 1960 foi marcado pelo eclipse do religioso, uma


década depois inicia-se, na expressão de S. Martelli, o "eclipse da seculari­
zação" concomitantemente com o despertar religioso69 . Se a religião já
sofrera na modernidade pós-cristã uma privatização, uma individualização,
tal fenômeno se acentua ainda mais.
Cria-se uma atitude diferente diante da instituição. Na religião tradicional,
os sacerdotes e pastores serviam à religião. Com a modernidade, os agentes
religiosos perdem importância. Igualam-se ou quase se identificam com os
fiéis comuns. Deixam as vestes talares no uso cotidiano e nas celebrações re­
duzem-nas ao mínimo. Em muitos momentos, ministros católicos ou evangé­
licos abandonaram totalmente os sinais distintivos. Verdadeira desvisibilização
do sagrado. A própria individualização da religião libera os agentes religiosos.
Instaura-se um regime de concorrência entre eles. Haja vista o bando de pas­
tores evangélicos que deixam suas igrejas para fundar outras.

68. M. Chaui, De alianças. atrasos e intelectuais, Folha de S. Paulo, 24 de abril 1994.


69. S. }.lartelli. A religião na soáedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, p. 416.

139
O fenômeno de reprivatização não impede reações da reliRiilo enquanto
instituição, fazendo valer seu poder institucional. É um surto institucional
real. A pergunta se faz sobre seu futuro promissor no sentido de inf luenciar
verdadeiramente a sociedade e sua estruturação, determinando-lhe o mundo
de valores. Isso veremos nas respostas a esse momento de ebulição religiosa.
O processo de privatização da religião tende a diluir no oceano
pluralista cultural e religioso atual a força institucional da religião. Faz
predominar o valor maior do individualismo, da subjetivação por força de
muitos fatores. Ao descrever o fenômeno religioso, aludíamos à passagem
de uma religião diferenciada para uma atmosfera religiosa onipresente.

O religioso vacante
"A secularização dessas sociedades (modernas) não se resume unicamen­
te, sabe-se doravante, ao encolhimento de uma esfera religiosa diferencia­
da. Ela se manifesta também na disseminação dos fenômenos de crença,
que confere pertinência inesperada à fórmula aplicada classicamente às
sociedades não modernas: 'Há o religioso por todas as partes'. Religioso
'à la carte', religioso flutuante, crenças relativas, novas elaborações
sincréticas: o religioso 'errante' L .. l é doravante situado, na sua indeter­
minação específica, no centro de toda reflexão sobre a realidade religiosa
das sociedades modernas." 10

A prática econômica da privatização, que os governos neoliberais assumi­


ram como bandeira, influencia para além do mundo dos negócios. Gera ver­
dadeira cultura da privatização, de modo que as pessoas consideram todas
as realidades, inclusive a religião, sob a ótica da privatização. Sob o aspecto da
religião, tal fenômeno favorece a efervescência religiosa que é na verdade não
o retorno da religião, mas sua metamorfose. Em lugar do edifício compacto da
religião institucional, que vale por si mesma, existem elementos religiosos.
Este momento neoliberal provoca uma religiosidade individualista, que
vem ao encontro dos anseios pessoais. Suas formas religiosas não carregam
nenhum potencial crítico-social, deixando intacto o sistema. Mais: ajudam­
no, devolvendo ânimo às pessoas para superarem o próprio ceticismo e de­
cepção. Essa religião privatizada recorre quanto pode aos meios de comuni­
cação. Veste-se de aura místico-espiritualista e carismática.
Conseqüentemente as pessoas não escolhem os elementos religiosos por
serem de uma determinada instituição, mas por responderem a seus desejos,

70. D. Hervieu-Léger, La Religion en mouvement. Le pelerin el le converti, Paris, Flammarion,


1999, p. 22.

140
gostos e aspirações. Esta é uma das características fundamentais da atual
efervescência religiosa que surge da metamorfose da religião na linha plura­
lista da modernidade pós-cristã e em contraste com o curto lapso do revigo­
ramento da sua presença crítica.
O pluralismo cultural segue o movimento de globalização,
pluralização e liberalização da modernidade e pós-modernidade. Ele
torna-se excelente campo de cultura de expressões religiosas variadas. Quanto
mais avança a modernidade, mais as pessoas de culturas e religiões, de cores e
raças, estilos de vida diversos entram em contato entre si. E esses encontros
reais - pelas viagens, migrações - e virtuais - por meio da mídia - favo­
recem o conhecimento e a possibilidade de adotar formas religiosas as mais
díspares. Já não há nenhum "hortus clausus" religioso. Tudo circula por todas
as partes com infinitas possibilidades sincréticas. Há e continuará havendo
vários modelos de compreensão do sincretismo: simples adição de elementos
ou alternância de ritos, sem nenhuma integração; acomodação e adaptação;
mera mistura superficial; concordismo com um denominador religioso comum;
tradução em outras categorias; e refundição e verdadeira inculturação; 1•
A pesquisa do CERIS matiza o conceito de sincretismo em relação à
realidade do Brasil. Vale a pena conferir a citação.

Sincretismo
"Este alto índice (77,5%) dentre os católicos que não freqüentam outras
religiões pode ajudar a perceber a complexidade do tema sincretismo, ou
ao menos serve para problematizar como estaria se constituindo tal sincre­
tismo entre os católicos ... Queremos chamar a atenção para a existência
de várias modalidades de sincretismo. Uma delas pode ser representada
pelo indivíduo que compõe seu sistema de crenças com elementos de
várias tradições religiosas e não possui uma prática institucional fixa. Outra
pode ser aquela em que o indivíduo possui uma prática institucional fixa,
mas seu sistema de crenças é plural. combinando elementos de sua reli­
gião e de outras. Uma terceira modalidade poderia ser representada pelo
indivíduo que não está de forma alguma ligado a uma prática institucional,
sendo sincrético apenas por possuir crenças de várias religiões. combinan­
do-as de maneira subjetiva, sem um critério institucional. " 72

il. L. Boff, /greja, carisma e poder. Petrópolis, Vozes, 1981, pp. 145-lil.
i 2. S. R. Alves Fernandes, Prática religiosa e participação social, in CERIS, Desafios do catolicismo
na cidade. Pesquisa em regiões metropolitanas brasileiras, São Paulo, Paulus, 2002, p. 91.

141
Pluralismo e sincretismo andam de mãos dadas. O pluralismo afeta não
só o âmbito objetivo da religião com uma oferta de muitas expressões re­
ligiosas, mas também o processo interno das pessoas. Elas sentem-se
descomprometidas com determinada religião, interpretando-a como esco­
lha reversível e relativizando todo conteúdo normativo da consciência.
Inverte-se o processo religioso. Em vez de as pessoas servirem à instituição
religiosa, dedicando-lhe sua subjetividade, servem-se dela em prol de sua
subjetividade.
O pluralismo cultural e religioso gera uma fragmentação dos edi­
ficios simbólicos monolíticos. O último baluarte de um monopólio centra­
lizado e despótico de um universo interpretativo ruiu com o socialismo de
partido único. Um especialista no Leste europeu, Y. Calvez, depois de visitá­
lo incontinenti à queda do socialismo, afirmava que não era evidente qual
rumo econômico os países iriam tomar. Uma evidência, porém, emergia de
sua visita: todos os países já não toleravam a ditadura real e simbólica do
partido único, abolindo-o de suas constituições 7 .I_
Tanto mais irreversível se torna o processo do pluralismo e da fragmenta­
ção cultural e religiosa quanto mais a cultura de massa, a cultura midiática
e a cultura virtual avançam. São formas culturais por excelência plurais, já
que globalizam qualquer expressão cultural de qualquer parte do mundo. O
mercado cultural e religioso segue as leis da oferta e da demanda a
serviço dos interesses dos colossos empresariais. E nessa luta vale o critério do
gosto e interesse do consumidor que se diversifica cada vez mais.
A ebulição religiosa continua e não continua a modernidade pós­
cristã.
Continua no sentido de que o processo de privatização, de individuali­
zação, de interiorização da religião iniciado na modernidade prossegue ainda
mais consistente.
Não continua no sentido de que a modernidade parecia também minar
o próprio sentimento religioso com sua extrema racionalização. M. Weber
via no processo de avanço da ciência o desencantamento do mundo com a
derrota definitiva das forças misteriosas incontroláveis, já que podemos, em
princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo; 4• E no bojo do avivamento
religioso voltaram as bruxas, os duendes, as crenças primitivas, enfim
um "sagrado selvagem";;_

i.l. J.-Y. Calvez. Qucl awnir pour lc marxismc. in Études .li.{ (novembro de 1990), pp. 4i5-485.
74. :M. Weber, Ensaios de sociologia, org. por H. (ierth C. Wright-Mills, Rio de Janeiro. Gua­
nabara Koogan, 1982, p. 165.
75. R. Basti<le, /.e sarni sau11age et autres essais, Paris, Stock, 1997.

142
A reli 1ilo, 10 perder ainda mais seu poder referencial, organizador e nor­
mativo da aocial, desfez-se em migalhas religiosas que invadem todos os
rincões. A torre gigantesca da religião institucional, ao desabar, fez levantar
uma onda de poeira que penetra os mínimos interstícios da construção social.
A poeira se fez ainda mais intensa porque junto com a religião ruíram outros
edifícios ideológicos, aumentando as partículas religiosas em suspensão, já que
o material que os compunha tinha muito da argamassa religiosa travestida.
Cresce a insatisfação cultural com a civilização ocidental. Obra
hercúlea que se construiu ao longo desses dois mil e seiscentos anos. Há
sinais de sua degenerescência e de que ela chega a seu fim. Rasga-se então
brecha às escâncaras, expondo a fragilidade da construção da razão e claman­
do por poderes superiores, primordiais, arquetípicos. Está pronto o terreno
para proliferar o germe religioso.

Mística e modernidade
"'Mística e modernidade': a conivência dos termos já é por si só o índice
de uma transformação. Aqueles mesmos que. ontem. identificavam 'ateís­
mo e modernidade' põem atualmente o essencial de suas aspirações menos
na recusa de Deus que na busca de novos deuses. A banalidade de tal
constatação e as falsas esperanças que, às vezes, gera não podem. po­
rém. erigir-se em regra de direito. Nada assegura, com efeito, que o des­
dobramento do sagrado, na sua dimensão simultaneamente neutra e difu­
sa. seja uma situação mais invejável para a tradição cristã que a da pura
e simples negação de Deus. A constatação gritante de um mundo enfim
tornado espiritual espera mais que simples respostas de tipo ·espiritual'. O
desafio ou a virada tão esperada. no cristianismo e alhures. não é unica­
mente mística: este combate parece às vezes vencido. Torna-se agora
intelectual e o que está em jogo (enjeu) continua existencial." 76

As sociedades humanas se estruturaram ao longo da história em torno do


sagrado e do poder político racional em medidas diferentes. Nas sociedades
tradicionais, a dose religiosa impunha-se. Nas sociedades modernas, produ­
ziu-se o efeito contrário. Reduziu-se ao mínimo a dosagem do religioso para
carregar a da racionalidade política. Com o descrédito da política, a medicina
salvadora recorre à farmacologia religiosa. Voltam os fantasmas sagrados
com novo ímpeto.

76. t-:. Falquc. '.\lystiquc et modernité. :\spirations spirituelles de notre temps et mystiquc
chrétienne, in f:rudes, n ..l'J-H,. junho de 2001. pp. 785s.

143
O pluralismo cultural vai mais fundo: afeta a própria consciência
e compreensão da realidade. Torna-se um processo subjetivo interno. Cria­
se dentro de si um conjunto de opiniões plurais, fragmentadas culturalmente
e religiosamente. Segue-se uma relativização de todo conteúdo normativo. A
religião já não se apresenta como escolha necessariamente irreversível, mas
faz parte do descartável.
As causas de tal processo são inúmeras. Nem cabe aqui analisá-las. Basta
a simples enumeração de algumas que julgamos decisivas. O pluralismo entra
pelos olhos. A tecnologia de base científica gera uma economia industriali­
zada de escala, de mercado ilimitado, de infinitas ofertas. Tudo aí plural. Os
meios de transporte rápido possibilitam encontros de culturas e religiões
distantes. A democracia favorece a diversidade de propostas políticas, cultu­
rais, religiosas. A urbanização oferece multiplicidade de opções morais e
religiosas. A mídia transforma a humanidade numa "aldeia global" em que
o fenômeno da globalização e da circulação de infinitos fragmentos culturais
e religiosos se alimentam mutuamente.
A pulverização da religião, que invade o cotidiano dos citadinos, encon­
tra momentos de maior visibilidade em acontecimentos de grande porte.
Durante a Eco-Rio 92, houve celebrações e exposições de diferentes expres­
sões religiosas. L. Amaral analisa um evanto que cada ano se repete em
Campina Grande, Paraíba. Chama-o de "carnaval da alma" 77• É um evento
em que o governo municipal decretou que nos dias de carnaval a cidade se
transforme num imenso encontro religioso das mais diversas expressões re­
ligiosas. Estas dispõem de espaço para expor seus ritos, símbolos, publica­
ções etc. As pessoas circulam por amplo recinto onde se encontram as
"butiques religiosas" com seus produtos disponíveis para compras, contatos
e experiências. Em outros momentos, há palestras e mesas-redondas em que
se discutem os temas religiosos. Experimenta-se uma atmosfera altamente
espiritual e uma aura mística perpassando pelo ambiente.
Essa reprivatização da religião atingiu de cheio na América Latina
a chamada Igreja da libertação. Esta tinha alimentado uma presença so­
cial significativa na sociedade, especialmente nos anos da repressão política.
Tinha sido a instituição mais valente em combatê-la de maneira pública e
corajosa. O desmonte do sistema repressivo e a queda do próprio regime
militar devem muito ao trabalho constante e firme da Igreja Católica e de
setores das Igrejas protestantes. Tais igrejas estavam na contramão do pro­
cesso privatizante da modernidade liberal.

Ti. L. Amaral, Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na nova era, Petrópolis,
Vozes, 2001, pp. IKi-204.

144
A rcprivatizaçlo reverteu o movimento. Recolocou-o na trilha da moder­
nidade liberal. Com isso, a linha libertadora das igrejas vem sendo 1ub1-
tituída por levas carismáticas, reforçando o clima religioso reinante. Tanto
mais êxito tem essas vagas espiritualistas quanto maior é o descrédito doa
políticos e da política. Já não há razão para crer neles. E por que então
empenhar-se aí num esforço hercúleo para nada? O desprestígio da política
colaborou para a queda do entusiasmo pela Igreja da libertação, que acredi -
tava numa transformação da realidade atuando no campo político-social.
A crítica à modernidade exprime enorme decepção com os seus
grandes mitos: razão, ciência e progresso. Já não se confia neles por cau -
sa dos monstros que eles geraram. As loucuras da razão científica, do pro­
gresso desvairado fazem a plataforma dos novos movimentos sociais que
defendem o equilíbrio da natureza, a sobriedade, a paz sem armas, a inibição
de pesquisas científicas perigosas para a sobrevivência da humanidade e de
nítida conotação antiética. Essa crise da modernidade tem nexo com a
persistência e o crescimento do fenômeno religioso. Ela lhe abre maior
espaço78 • Procede-se a verdadeiro deslocamento no mundo da razão científi­
ca que em vez de desmontar a religião, a espiritualidade, anima-a.

Inversão da razão e espiritualidade


"A ciência viria ela reforçar uma espiritualidade esgotada? No início do
século, muitos viam nela a ponta de lança da eliminação da religião: no
final, a situação parece invertida: a ciência, vetor principal da secularização,
toma-se um agente de espiritualização ... A racionalidade das ciências,
consideradas as mais 'duras', faz aliança com o que era habitualmente
rejeitado do lado do irracional." 79

Acrescente-se a falência dos grandes sistemas éticos seculares, dei­


xando enorme vazio, perigoso para a humanidade. A motivação religiosa é
chamada em socorro. Nesse vácuo, pululam "éticas" que apelam para a re­
ligião, reconhecendo o enfraquecimento de suas bases racionais.
A essa decepção com os mitos da modernidade ajunte-se uma insatisfação
com o mundo materialista e hedonista que eles construíram. Quando um
dos braços da balança - material ou espiritual - pesa muito, imediatamente
surge um movimento oposto buscando ou o equilíbrio ou mesmo invertendo
J.
78. Vernette, Nouvelles spiritualités el nouvelles sages. Les vaies de !'aventure spiriluelle aujourd'hui,
Paris, Bayard/Centurion, 1999, p. i.
79. F. Euvé, Science et mystique aprés la modernité. Un paradigme enchanté? in Études, n. 3942.
janeiro de 2001, p. 59.

145
extremadamente a tendência. É a lei da mola: quanto mais pressionada, com
tanto mais força salta. O espiritualismo religioso tem sido uma resposta, fre­
qüentemente exagerada, a seu recalque pelo peso do materialismo.
A Primeira Ilustração já foi um tempo marcado pelo liberalismo indivi­
dualista. A Segunda Ilustração tentou corrigir-lhe a rota. Com o fracasso do
socialismo, o impulso liberal retorna mais impetuoso, exacerbando os
anseios individuais e refogando as críticas sociais feitas ao sistema capitalista.
O movimento neoconservador norte-americano, como vimos acima, atinara
com a doença de um sistema individualista, hedonista, materialista, embora se
tenha equivocado com a terapia buscada na religião institucional. A atmosfera
espiritualista, criada pelo conjunto de elementos religiosos, apresenta-se como
ação terapêutica, tranqüilizando e pacificando as ansiedades e angústias exis­
tenciais das pessoas. Devolve ânimo a muita gente desanimada, decepcionada,
cética com o futuro da sociedade capitalista neoliberal. Não é uma terapia que
visa diretamente salvar o sistema capitalista, como o movimento neoconservador
norte-americano, mas simplesmente a curar as pessoas espiritualmente enfer­
mas. Termina cumprindo uma função conservadora, ao amortecer a crise. No
entanto, ameaça também o sistema, ao tirar das pessoas o entusiasmo por esse
capitalismo materialista e ao esfriar o consumismo.
A privatização da religião trouxe o crescimento do indiferentismo
religioso. Na Europa, ele é mais acentuado e afeta não só as instituições reli­
giosas, mas, em grande parte, a própria dimensão religiosa humana. Lá já
existe em segmentos sociais um radical secularismo, até mesmo em países que
até há pouco possuíam ampla prática religiosa, como Espanha, Holanda etc.

Queda da prática religiosa na Espanha


"As recentes pesquisas de campo do catolicismo espanhol e da religião
comparada em geral dizem-nos que ambas as coisas mudaram profunda­
mente, ao menos em comparação com os dados de duas décadas atrás ... "
"O primeiro fenômeno que chama a atenção é a espetacular aparição de
um grande número de indiferentes. Se comparamos os dados de 1970
com os de 1990, encontramo-nos com que as principais diferenças viriam
dadas pelas seguintes porcentagens:
Em 1970, 96% da população espanhola declaravam-se católicos: em 1990
já eram 72% (. 24%). Em 1970, 3% dos entrevistados se diziam indiferentes
ou ateus: em 1990, a porcentagem se eleva a 26% C+ 23%). Em 1970, o
número de católicos praticantes era de 64%; em 1990 é de 27% (. 37%). " 80

80. J. M. Mardones, Adónde vala religión? Cristianismo y religiosidad en nuestro tiempo, Santander,
Sal Terrae, 1996, pp. 17s.

146
Em nossa■ terras, o indiferentismo afeta diversamente as camadas sociais.
Há uma pequena elite que participa da mesma atitude européia. Cresce o nú­
mero daqueles para os quais as instituições religiosas se lhes tomam indiferen­
tes. Buscam avidamente experiências religiosas, estejam elas onde estiverem.
Tal atitude traduz também uma flexibilidade doutrinal no sentido de
uma diminuição da coerência dogmática na expressão da própria fé" 1• Gera
uma maior fluidez religiosa com conseqüente misticismo difuso e eclético.
Há um indiferentismo com relação aos universos religiosos específicos e uma
maior sensibilidade para o religioso genérico.
Dois fatores se somam para alimentar o surto religioso. De um lado,
esvaziam-se espaços seculares que foram importantes para dar significado
à vida de milhões de pessoas: razão, ciência, tecnologia, política, sistemas
ideológicos, utopias. De outro lado, a sensibilidade religiosa é aguçada
em parte por causa desse vazio criado. As pessoas voam ansiosas aos redutos
religiosos em busca de alimento. Descobrem-se as grandes tradições religio­
sas orientais e criam-se novas formas.
Reorganiza-se de modo diferente a realidade religiosa. S. Martelli resume
a tese central de D. Hervieu-Léger de que a natureza verdadeira da secu­
larização é uma reorganização permanente da religião.

Secularização: reorganização da religião


"[os novos movimentos sociais] manifestam assim que a secularização
não é o desaparecimento da religião em choque com a racionalidade, mas
é o processo de reorganização permanente do trabalho da religião numa
sociedade estruturalmente incapaz de satisfazer as expectativas que tal
processo tem de despertar nela para que exista como tal. " 82

A própria modernidade comporta-se antinomicamente com rela­


ção à religião: seculariza-a e exacerba-a. Temos insistido como ela a de­
sestrutura, seculariza, privatiza, reduz a um ambiente confinado. Isso ela o
faz no plano macrossocial. No entanto, gera expectativas e utopias de tal
amplitude que ela mesma não consegue realizar. Rasga assim espaço para

81. É o que C. James chama de "cisma branco". As pessoas permanecem na instituição, mas sem
nenhum compromisso doutrinal com ela, assumindo os elementos religiosos que lhes interessam. C.
James, Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças, in Perspectiva teológica 28
(1996), p. 173.
82. D. Hervieu-Léger, \�rs un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme
occidental, Paris, F.ditions Éditions du Cerf, 1986, p. 227.

147
surgirem, no plano microssocial, as ofertas religiosas mais variadas para ocu­
parem esse vazio criado por ela mesma.
S. Martelli, trabalhando as idéias de D. Hervieu-Léger, interliga a moder­
nidade com suas propostas e o surto religioso. A modernidade incorporava, a
seu modo, certa religiosidade a-típica, já que pertencia a seus ideais iluminados
certa fé e esperança na história, no futuro, fazendo dos sujeitos e da humani­
dade seus protagonistas. Na modernidade, a religiosidade assumia formas de
compromisso, responsabilidade, solidariedade, libertação, emancipação, sacri­
fício. Eram deveres que obrigavam o homem moderno a hipotecar o presente
em nome de um futuro melhor, em nome de uma humanidade reconcialiadora
ou do arbítrio de uma sociedade sem classes e sem injustiça 8·1.

Modernidade e religião
"A impossibilidade de a modernidade constituir horizonte completo das as­
pirações humanas e sociais repropõe a transcendência como horizonte últi­
mo de sentido, leva os significados e os símbolos da religião institucional a
serem reconsiderados pela sempre renovada interpretação dos indivíduos. " 84
"A modernidade abole a religião enquanto sistema de significados e motor
de esforços humanos, mas cria, ao mesmo tempo, o espaço-tempo de
uma utopia que, em sua própria estrutura, permanece em afinidade com
uma problemática religiosa de prática e de salvação. " 85

A pós-modernidade também vive relação oblíqua com a religião.


Ao mesmo tempo conserva, distorce e esvazia a religião. A secularização
da modernidade pós-cristã purificara muitos elementos religiosos que não
resistiam à crítica da razão, aos progressos científicos e culturais. A pós­
modernidade não faz a crítica e seleção dos elementos religiosos pelo viés
da razão, mas pelo da sensibilidade, do sentimento, da afetividade, da har­
monia com o espírito das pessoas. Na linguagem de G. Vattimo, a pós-mo­
dernidade não se relaciona com a modernidade a modo de superação, nem de
oposição, mas de derivação e anulação. É uma relação oblíqua de conserva­
ção, distorção e esvaziamento 86 •
K. Gabriel traz contribuição importante a respeito da intelecção do duplo
fato da perda do poder normativo e institucional da I greja e do surto

83. A. Castineira, A experiência de Deus na pós-modernidade, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 161.


84. S. Martelli, A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, p. 436.
85. S. Martelli, op. cit., p. 435.
86. S. Martelli, op. cit., p. 437.

148
religio10 à cu■ta da ln■tituições"7• Julga insuficiente explicá-los, como faz
a sociologia americana, pelo fenômeno da secularização, provocado pela
modernização. Pois, assim não se esclarece porque tal fato só acontece nos
anos 1970, enquanto o fenômeno de modernização já vinha sendo conduzido
há mais de um século. Não dá conta também da explosão religiosa justo
quando a modernização se radicaliza. K. Gabriel rejeita o igualamento de
modernização e secularização, marcado por componentes ideológicos e inep­
to para iluminar os acontecimentos. O autor lança mão de uma com­
preensão de pós-modernidade na direção da radicalização da moder­
nização. A modernização é um processo de longe não terminado. A pós­
modernidade o faz avançar em três níveis.
No nível das estruturas sociais, ela diferencia e racionaliza as estrutu­
ras funcionais do sistema no campo do poder, da religião, da economia, das
ciências. Dá-se uma diferenciação estruturalmente sem limite e funcional.
Valorizam-se as especializações, a complexificação, a pluralidade de perspec­
tivas, a impossibilidade de sistematização orgânica das partes por conta de
uma pessoa. A economia desenvolve um sistema próprio de racionalidade.
As ciências e a técnica põem-se a seu serviço, tornando-se produtoras de
bens. A religião assume a situação de postulado e de desiderato, necessária
para os indivíduos, para a vida de parceria e família, mas supérflua para a
economia, política e ciência.
No nivel da cultura, ela produz pluralismo como reflexividade dos
conteúdos tradicionais culturais. Assim o modelo cultural tradicional, rela­
tivamente unitário, cede lugar à pluralidade de perspectivas culturalmente
interpretadas. Facilitam-se assim o acesso e a escolha do indivíduo a essa
pluralidade. Se a sociedade moderna já era pluricultural, mas com grandes
grupos relativamente fechados em si mesmos, tais grupos se dissolvem, e o
pluralismo se torna diferente. Dá-se a homogeneização da cultura pela mí­
dia, propiciando um pluralismo cultural ainda mais radical. Tornam-se ime­
diatamente acessíveis a cada indivíduo elementos culturais de que cada um
se apropriará conforme sua escolha. A integração cultural desloca-se do pla­
no socioestrutural dos grandes grupos para a direção da escolha individual
diante das ofertas culturais com a conseqüente pluralidade de formas cultu­
rais e sua soltura diante dos determinantes socioestruturais. Gera tanto uma
experiência de libertação diante de pressões culturais quanto uma perda de
orientação e liames que garantem a identidade.

87. K. Gabriel, Christentum zwischen Tradition und Postmodeme, Freiburg im Breisgau, Herder,
1992, pp. l 5ss.

149
No nível das relações sociais, ela desperta o processo de individualiza­
ção, estruturalmente provocado e culturalmente apoiado. Os indivíduos li­
bertam-se de ligações de origem, de ordem (camada social), de religião e
experimentam-se como centro de ação auto-responsáveis. Os filhos dos ope­
rários ampliam o processo educativo, distanciam-se de sua origem, são pro­
vocados a um processo de autodescoberta e auto-reflexão com tendências ao
isolamento, adquirem maior mobilidade no trabalho, vêem no outro um
concorrente no mercado de trabalho, perdem elementos confessionais de
solidariedade, integram-se na cultura de massa por meio da mídia. Dissol­
vem-se as biografias normais de homem e mulher com enorme destradicio­
nalização da família, do trabalho, da vida corrente. Substituem-se as regras
tradicionais de inserção na sociedade por um jogo conjunto de mecanismos
formalizados: direito, dinheiro, organização. O campo de ação se amplia.
Cada vez se apela menos à tradição, mas a si mesmo.
Esse modelo de modernização permite amálgama, cruzamentos de estru­
turas modelares pré-modernas, tradicionais, modernas da vida social. Dá con­
ta das desigualdades do processo de modernização nos diferentes níveis estru­
tural, cultural e individual e da mistura de elementos no mesmo indivíduo.
Nessa consideração cabe uma referência à transversalidade da cultura.
Há um mesmo ser humano, que atravessa todas as culturas, levantando as
mesmas grandes perguntas sobre o sentido da vida, da dor, do sofrimento, da
morte, embora as respostas sejam diferentes nos diversos momentos históricos.

Transversalidade das culturas


"Nenhuma cultura, nenhuma religião são entidades fechadas. Pelas cultu­
ras, os seres humanos constroem os meios de habitar o mundo, segundo
as modalidades de uma riqueza e inventividade extraordinária; esse esfor­
ço, na base de toda cultura, lhe é comum. Em todas as partes e sempre
a humanidade encontrou e encontra os mesmos problemas de sobrevivên­
cia, do sentido da diferença dos sexos, da seqüência de gerações, do
sofrimento, da morte. As respostas, os desafios fundamentais e as inter­
rogações são os mesmos. Eis o que funda certa transversalidade entre as
culturas, uma possibilidade de compreendermo-nos nas nossas próprias
diferenças. " 88

O momento atual não cabe num único epíteto. Ele é um amassilho de


elementos tradicionais resistentes à modernidade, modernos e pós-modernos.

88. P. Valadier, La mondialisation et les cultures, in Études n. ]955, novembre, 2001, p. 512.

150
O pós-moderno caracteriza-se não por ter levado o processo moderno
a sua superação, mas a uma maior reflexividade, tornando-o capaz de
voltar-se sobre si mesmo, de se autocriticar e avançar. Com esse modelo, e
entendendo a pós-modernidade na linha da reflexividade, encontra-se uma
luz para compreender o que acontece no nível das religiões. No nível das
estruturas sociais, progressiva diferenciação e racionalização; no nível da
cultura, crescente pluralismo; e no nível das relações sociais, individualiza­
ção. Ao mesmo tempo, as religiões se tornam ainda mais racionais e plurais,
e os indivíduos mais livres para criarem suas opções religiosas.

vm. NÃO HÁ RETORNO DA RELIGIÃO


Não há retomo do religioso. M. Gauchet diz que esbarrou com esta
afirmação de Renan: "Tem-se falado muito faz alguns anos de um retorno
religioso" e isso pelos anos de 1848. Continua Gauchet, "o religioso, desde
que se foi, nunca cessou de voltar". No fundo, "não há perecimento do
domínio do religioso sem ofensivas recorrências do religioso a intervalos re­
gulares". "Mas não se trata de nenhum movimento linear e sim de uma
tendência de conjunto de retirada do religioso, mas escandida por retornos
conjunturais de amplitude considerável em alguns casos." 8"
Melhor do que falar de um conjunto religioso, vale mais constatar a dis­
paridade das formas religiosas, seu caráter planetário e heterogêneo, e de
vetor de identidade, posto diferentemente. Há fatores transversais, observa o
autor citado. Se há uma intensificação do religioso, contudo a religião não
volta a remodelar o espaço humano segundo o antigo modelo sagrado. Não
há reestruturação sagrada do universo humano fora da modernidade. "Há
uma reafirmação da identidade religiosa que é, ao mesmo tempo, adaptação
por dentro à modernidade. O fundo do retorno religioso é uma busca labo­
riosa, explosiva e sangrenta", é manter a identidade interna e a abertura ao
exterior, no caso, à modernidade90 •
Depois de ver a trajetória do destino da religião na sociedade e atual vaga
religiosa no contexto de uma reprivatização da religião, emerge a pergunta
teólogico-pastoral: quais têm sido as respostas da religião como insti­
tuição? E que perspectivas se abrem para o futuro da religião?

89. Entrevista com Y!. Ciauchet, Un credo démocratique' in P. Colin - O Mongin, orgs.. Un
monde cüsenchanté. Débat avec Marcel Gauchet, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1988, p. 96.
90. Entrevista ... , pp. %-98.

151
IX. RESPOSTAS DA RELIGIÃO DIANTE DA SITUAÇÃO ATUAL

À guisa de introdução, tecemos um mapa das reações da religião diante


do quadro anteriormente descrito, tanto nos primeiros capítulos como no
rápido esboço histórico-estrutural do movimento da religião.
A religião assume diretamente o sistema neoliberal. Torna-se sua
coluna vertebral, sua religião. Posição de identificação.
A reli gião assimila a cultura pós-moderna sem tornar nenhuma po­
sição explícita diante do sistema econômico, nem aceitação, nem rejeição.
Simplesmente conforma-se à nova cultura. Restringe-se a alimentar-se e ali­
mentar o clima religioso reinante. Termina indiretamente favorecendo o sis­
tema neoliberal. Posição de adaptação cultural.
A religião fecha-se diante da cultura moderna e pós-moderna numa
atitude defensiva. Rejeita-lhe os valores que corroem o sistema religioso.
Posição de gueto.
A reli gião não só se cerra diante da cultura moderna e pós-moder­
na, mas também toma uma atitude a gressiva contra ela. Posição de
cruzada, de fundamentalismo agressivo.
A reli gião enfrenta o sistema neoliberal, a cultura moderna e pós­
modema. Ao fazê-lo, reforça sua identidade institucional e a partir dela
discerne a realidade exterior, ora rejeitando, ora aceitando. Posição da con­
centração católica e posição da Igreja da libertação.

X. A RELIGIÃO SE FAZ NEOLIBERAL


E O NEOLIBERALISMO SE FAZ RELIGIÃO

O poder sempre tentou a reli gião. Conviveu com ele ao longo de


milênios. A modernidade européia pretendeu tirar-lhe o poder definitiva­
mente e reduzi-la ao mundo privado, corno vimos acima. Ela resistiu muito
a tal intento. E continua resistindo. Há maneiras e maneiras de fazê-lo.

Neoconservadorismo americano

Na sociedade neoliberal, a religião tem encontrado nova forma de


fazer-se valer. É a proposta do neoconservadorismo protestante norte­
americanoY1 . Visa diretamente salvar o capitalismo americano de previsível ruína
91. Citam-se entre outros os nomes de Bell, Berger, Lipset, Shils, Kristol, Novak, Podhoretz: J. }.!.
Mardones, Un debate sobre la sociedad actual: 1. Modernidad y posmodernidad, in Razón y Fe 214
(1986), n.1056, pp. 204-217; aqui p. 207.

1-)
:,�
por cauN11 Ja ■UI cri■e espiritual. Só a religião é capaz de sanar culturalmente
o capitalismo para fazer continuar seu progresso econômico. Ela cumpre des­
caradamente o papel de ser o sustentáculo espiritual do neoliberalismo.

Crise espiritual do capitalismo


• A crise da sociedade capitalista democrática é 'uma crise espiritual'. Radica
num enfraquecimento da ética cívica e, em último termo, no 'húmus· reli­
gioso que a sustenta. " 92 "O problema real da modernidade é o da crença.
Para usar uma expressão antiquada, é uma crise espiritual, pois os novos
pontos de apoio se demonstraram ilusórios e os antigos ficaram submersos.
É uma situação que nos leva de volta ao niilismo. " 93

A razão de tal apelo à religião deriva da natureza do capitalismo.


Seu sistema tecnoeconômico produtivo baseia-se no mercado da livre
concorrência com uma lógica funcional orientada à produção de bens a baixo
custo e máximo benefício. Implica uma série de valores: cálculo, rendimento,
rentabilidade, eficácia, disciplina, ordem, hierarquia, laboriosidade, poupan­
ça, austeridade, ascetismo intramundano, ação racional a longo prazo, inves­
timento para obter eficácia produtiva. Ora, tais valores só se mantêm se
sustentados por virtudes que o fazem funcionar. Estas necessitam da força
motivadora que só a religião pode dar e, de modo especial, o cristianismo.
Reflexão idêntica vale do sistema político-administrativo parlamen­
tar, democrático. Requer participação, responsabilidade, preocupação com
o bem comum, descentramento dos próprios interesses em benefício dos
demais, solidariedade, respeito à ordem legal, funcionamento segundo pro­
cedimentos administrativos legais, disciplina, hierarquia. Daí lhe vem a le­
gitimidade da ordem e do poder. Como mantê-lo sem a força religiosa?
Estamos diante de uma ordem cultural cujos valores e orientações
normativas são a "ética puritana". Ela é a estratégia humana para dar sen­
tido à vida pessoal e comunitária. As pessoas necessitam de sentido para
viver e sobreviver. Está aí a função da religião. O desaparecimento da reli­
gião ameaça todo o sistema. Logo favorecê-la ao máximo94 . Tanto mais im-
92. J. M. Mardones, Capitalismo y religión. La religión política neoconseroadora, Santander, Sal
Terrae, 1991. pp. i 2s.
9J. D. Bell. Las contradicciones culturales dei capitalismo. Madrid, Alianza, 19i7, p. J9, cit. por J. M.
Mardones. Capitalismo y religión. La religión política neoconseroadora, Santander, Sal Terrae, 1991, p. 6J.
94. Essas idéias foram hauridas em escritos de J. M. Mardones que as desenvolveu amplamente em:
J. M. Mardones, Neoconseroadurismo. La religión dei sistema, Madrid/Santander, Fe y Secularidad/Sal
Terrac. 1991; J. M. Mardones, Postmodernidad y neoconseroadurismo, Estella, Verbo Divino, 1991; J. M.
Mardones, Capitalismo y religión. La religión política neoconseroadora, Santander, Sal Terrae, 1991.

153
portante tal incentivo religioso quanto mais se percebe a falta do acicate da
concorrência dos países socialistas. Com o colapso das economias centraliza­
das, reinou a centralidade do mercado, bloqueando a esperança de transfor­
mações profundas. Só a cultura aparece como força de mudança ou conser­
vação social em lugar dos fatores socioestruturais. Isso significa que se dá
maior primazia à conversão pessoal propiciada pelo reforço do papel socio­
cultural da religião pietista sobre a da transformação das estruturas. Sem um
reavivamento do movimento religioso neoconservador dificilmente se conse­
gue tal objetivo.
A ordem político-econômica está ameaçada e minada pela mo­
dernidade e pós-modernidade com anseios libertários, com um experi­
mentalismo sem limites e coações, com um relativismo valorativo, com
um hedonismo narcisista, com a transgressão permanente de tabus, proi­
bições, regras tradicionais e cânones de estilo. Tais valores levam ao niilis­
mo. Só uma volta à religião, como integradora social, é capaz de dar às
novas gerações a vontade de continuar o sistema, de integrar-se a ele e de
salvar o indivíduo95 • Portanto, sem religião é impossível recuperar um
sentido unificador e dar solidez ao sistema moral que deve constituir o
"espírito do capitalismo democrático" 96. Só ela revaloriza o sistema cultu­
ral como força social conservadora da sociedade, reagindo contra a deca­
dência de valores da "liberação" hedonista das décadas de 1960 e 1970
com a volta dos valores capitalistas tradicionais "calvinistas" de poupan­
ça, de austeridade, de ação racional a longo prazo e de ascetismo intramunda­
no9 ;. Busca-se na religião cristã o reforço desses valores, portanto sua proximi­
dade com o capitalismo. Valorizam-se as tradições religiosas, o papel das igre­
jas na sociedade. A religião impõe limites, favorece a integração social, oferece
lar a uma cultura sem lar, cria a base da ética cívica. E o cristianismo está apto
a isso porque possui afinidades com o capitalismo98 • P. Berger vê na religião a
salvação para a sensação de orfandade, gerada pelo individualismo.

95. D. Bell, Las contradicciones culturales dei capitalismo. Madrid, Alianza Editorial, 1977, p. 40,
cit. por J. M. Mardones, Un debate sobre la sociedad actual: I. Modernidad y posmodernidad, in Razón
y Fe 214 (1986), n. 1056, p. 210.
96. M. Novak, EI espíritu dei capitalismo democrático, Buenos Aires, Tres tiempos, 1984, pp.
255ss; D. Bell, Las contradicciones culturales dei capitalismo, pp. 39, 89, 164, cit. por J. M. Mardones,
Un debate sobre la sociedad actual: II. Posmodernidad y cristianismo, in Razón y Fe 214 (1986), n.
105i, pp. 325-.H4; aqui p. 328.
97. M. Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Pioneira, 1967.
98. M. Novak, EI espírítu dei capitalismo democrático, Buenos Aires, Tres Tiempos, 1984.

154
Rellgilo: lar para o Individuo
"O capitalismo precisa de instituições que compensem os aspectos anô­
nimos da autonomia individual mediante a sociedade comunal. Entre estas
instituições contam. sobretudo. a família e a religião. " 99

Teologia da prosperidade

A religião secunda o sistema, elaborando uma teologia da prosperi­


dade 100 . Serve de fino óleo lubrificador do sistema, oferecendo-lhe justifica­
tiva e legitimação de nível maior. Ela é criada e pedida pelo sistema e tam­
b ém o reforça.
O triunfo do neoliberalismo encontra em muitas igrejas pentecostais
e neopentecostais e frações carismáticas católicas seu arrimo. Respal­
dam-no com uma visão religiosa adequada da realidade.
O individualismo neoliberal fomenta concorrência e competição em que
vencem os mais fortes, os mais preparados e competentes. Visa ao resultado.
É necessário encontrar uma religião que reforce a vitória, a prosperidade dos
melhores. Recorre-se então à teologia da bênção de Deus para os ricos e ao
castigo para os pobres, porque preguiçosos e pecadores.
Afirma-se sem nuances que Deus quer a felicidade, a riqueza, os bens
materiais, a felicidade, a saúde, aqui e agora, para seus filhos. E nada de
deixar a felicidade só para a vida eterna. Isso é que seria alienação.
Um pregador evangelista argentino, naturalizado americano, Luiz Palau,
não hesitou em dizer que o "Terceiro Mundo é pobre porque idólatra". Outro
pregador do mesmo jaez aludia à pobreza dos nordestinos por causa do culto
idolátrico que têm ao Padim Ciço. A riqueza vincula-se diretamente à fé dos
agraciados e sua falta ou algum pecado oculto impede os pobres de serem ricos.
É uma teologia feita sob medida para alimentar igrejas que sustentam o
sistema neoliberal. Evidentemente nessa religião não cabem práticas de so­
lidariedade, de opção pelos pobres. É uma religião tipicamente materialista.
A Igreja Universal do Reino de Deus talvez exprima de modo mais
transparente essa ideologia de apoio do sistema. Concebe a vida religiosa
como uma transação financeira com o céu. Recorre a ela para pedir e exigir

99. P. Berger, La m.'Olución capitalista, Barcelona, Ediciones 62, 1989, p. 140.


º
100. R. Mariano, ,\ eupentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo, Loyola,
1999, pp. Hi-186; R. Cavalcanti, A classe evangélica vai ao pa(lácio)raíso, in Contexto pastoral 5 (1995,
nov.-dez.), n. 29, p. 5.

155
que os fiéis façam ofertas sempre maiores. Assim receberão de Deus ainda
mais bênçãos e riqueza, vida longa e próspera. A Palavra de Deus é posta a
serviço de alcançar e produzir tais efeitos. Transporta para a Palavra uma
caricatura do "opus operaturn" dos sacramentos. Ela é de si eficaz. Se não
acontece, é por causa do pecado do ouvinte.
Une-se à prosperidade econômica a idéia de urna religião que busca e usa
o poder aqui no mundo. Funda-se tal opção política na idéia de que Deus
não criou seu povo para ser "cauda" do mundo, mas sua "cabeça". Não se
busca na política urna transformação social, mas instaurar o combate do bem
contra o mal, sem lugar para o pluralismo. O bem se identifica com os ideais
e interesses da própria igreja e de seus dirigentes. Volta-se à velha idéia da
batalha espiritual que transforma em inimigo tudo o que se opõe à igreja.
Divide o mundo em dois campos: o lado de Deus (o lado da igreja) e o lado
do mal, do demônio - todas as forças que divergem de sua maneira de ver
a realidade.
Esta teologia da prosperidade corresponde muito bem ao clima
dominante da cultura pós-moderna a serviço do neoliberalismo. Ela
seduz, ao oferecer um atalho para o sucesso sem passar pelo trabalho, pela
renúncia, pelo esforço. Qualquer meio justifica o êxito econômico que re­
cebe o nome de bênção de Deus. A riqueza vale por si mesma, sem nenhu­
ma hipoteca social, corno ensina a doutrina social da Igreja Católica. Ela é
vista corno privilégio e bênção de Deus para os seus prediletos. Invocam­
se textos do Antigo Testamento, corno a bênção de Abraão a Jacó, pedindo
a Deus que lhe dê "o orvalho do céu e terras gordas, trigo e vinho novo em
abundância!" (Gn 27,28). A teologia da prosperidade é materialista, pagã.
Submete-se às propostas neoliberais de consumismo, hedonismo, triunfo
pessoal à custa do social. Termina justificando e camuflando a injustiça
social, tranqüilizando a consciência com tintura religiosa com o jogo de
bênção e maldição de Deus: bênção para os ricos e maldição para os pobres
preguiçosos.

Teologia da prosperidade
"Até bem pouco tempo atrás uma fatia respeitável da igreja cristã empur­
rava todas as bem-aventuranças para o céu e para a eternidade. Dizia-se
então que era necessário suportar pacientemente o sofrimento presente
L .. l. A teologia da prosperidade está trazendo o celeste porvir para o
terrestre presente. Para comermos a melhor comida, para vestirmos as
melhores roupas, para dirigirmos os melhores carros, para termos o me-

t 56
lhor de tod11 11 coisas, para adquirirmos muitas riquezas, pare não adoe­
cermos nunca. para não sofrermos qualquer acidente. para morrermos
entre 70 e 80 anos, para experimentarmos uma morte suave - basta crer
no coração e decretar em voz alta a posse de tudo isso. Basta usar o
nome de Jesus com a mesma liberdade com que usamos nosso talão de
cheques." 101

Linguagem pseudo-religiosa do sistema

Há uma terceira maneira de ocultar a religião dentro do sistema.


O movimento é diferente. Não é a religião que serve ao sistema. O sistema
oculta em suas pretensões seculares uma lin guagem pseudo-religiosa.
Apela de maneira sutil ao inconsciente coletivo religioso. Jogada de psicolo­
gia de massa.
Elementos fundamentais da estrutura religiosa reaparecem no vocabulá -
rio econômico sob outra luz. Sacrifício, recompensa, castigo, redenção, pa­
raíso, vitória escatológica e apocalíptica. Há um grupo de teólogos da Amé­
rica Latina em Costa Rica e no Brasil que têm desmascarado a teologia
econômica do sistema capitalista 1º2 •
A teologia cristã, sobretudo depois de Anselmo, adotou um acentuado
corte sacrificalista, naturalmente numa perspectiva sobrenatural. O siste­
ma econômico abole a transcendência, mas retém a tônica sacrifical. Sacrifi­
ca-se e muito para obter a recompensa do próprio sistema, que é implacável:
condescendente e generoso para com os empreendedores, competentes, sa­
crificados e cruel para com os pobres, os ignorantes, os não-criativos. A sal­
vação está ao alcance de quem por ela batalha, na abundância de bens de
consumo, satisfazendo todas as necessidades e desejos. As promessas "trans­
cendentes" do capitalismo são vividas já neste mundo. Elas justificam o sacri-

101. Ultimato, março/1994:5, cit. por R. Mariano, Neopentecostais. Sociologia do novo pentecosta­
lismo, São Paulo, Loyola, 1999, p. 147.
102. J. Mo Sung, A idolatria do capital e a morte dos pobres. Uma reflexão teológica a partir da
dívida externa, São Paulo, Paulinas, 1989; H. Assmann, Trilateral: A nova fase do capitalismo mundial,
Petrópolis, Vozes, 21982; J. Mo Sung, Teologia e economia. Repensando a teologia da libertação e utopias,
Petrópolis, Vozes, 1994; J. Mo Sung, Deus numa economia sem coração. Pobreza e neoliberalismo: um
desafio à evangelização, São Paulo, Paulinas, 1992; J. Mo Sung, Desejo mimético, exclusão social e
cristianismo, in Perspectiva teológica 26 ( 1994 ), pp. 341-356.; F. Hinkelammert, O cativeiro da utopia.
As utopias conservadoras do capitalismo atual, o neoliberalismo e o espaço para alternativas, in REB 54
(1994), pp. 787-819; F. Hinkelammert, As armas ideológicas da morte, São Paulo, Paulinas, 1983; H.
Assmann, org., Carter y la lógica dei Imperialismo, San José (Costa Rica), Educa, 1978, v. I; H. Assmann,
Crítica à lógica da exclusão. Ensaios sobre economia e teologia, São Paulo, Paulus, 1994.

157
fício pedido para obtê-las: ajustes fiscais, contenção salarial. desemprego
"conjuntural", modernização dolorosa para os atrasados, abertura do merca­
do e retirada dos subsídios para forçar mais competitividade, evitando tam­
bém que estourem conflitos de pobres frustrados. R. Girard recorda-nos
que a "função do sacrifício é apaziguar as violências intestinas e impedir a
explosão dos conflitos" 103. Não se acanham os "teólogos" do sistema de criar
uma própria trindade idolátrica: o deus pai do capital, o deus filho do mer­
cado e o deus espírito da livre iniciativa.
A modernidade pós-cristã fez questão de ser atéia. Esbarrou com
a oposição do inconsciente religioso das populações. A pós-modernida­
de neoliberal, mais inteli gente, é profundamente reli giosa. Usa e
abusa do inconsciente religioso com uma linguagem, já não atéia, mas
religioso-idolátrica. Realiza-se o sonho religioso por meio do hedonismo
e consumismo.
O socialismo seculariza radicalmente a linguagem bíblico-religiosa
com a promessa messiânica do paraíso na terra numa sociedade sem clas­
ses. Também aí havia uma transposição de categorias bíblicas para um sis­
tema ateu. O neoliberalismo aproveita a senda messiânica do socialis­
mo, agora intransitável e obstruída definitivamente por seu fracasso, para
propor a "messianização do mercado u . O mercado resolverá com um
passo de mágica, com sua "mão invisível", todos os problemas do ser hu­
mano, possibilitando a criação do verdadeiro paraíso capitalista. O reino
do socialismo foi uma contrafação. O verdadeiro paraíso, o "fim da histó­
ria" de caráter teológico-escatológico está do lado do capitalismo em sua
forma neoliberal.
Nem faltou a tecla religiosa superarcaica do mani queísmo, dividindo
o mundo entre os bons e os maus. Todos os que aderem à modernização,
à privatização, ao mercado, enfim, ao neoliberalismo, fazem parte dos es­
clarecidos, iluminados, abençoados. Pelo contrário, os opositores são sau­
dosistas, jurássicos, dinossauros, atrasados. Devem ser exorcizados como
os demônios.
Tai maniqueísmo ressuscitou vigoroso no discurso que fez o presidente
Bush para justificar a guerra contra o Afeganistão, que albergava os terroris­
tas, filhos do mal. E os americanos, naturalmente, situavam-se do lado dos
filhos do bem. Daí a necessidade de total adesão a sua causa. Quem não está
ativamente com os Estados Unidos na guerra contra o "terrorismo" está contra
eles, juntando-se às facções do mal. Frase exaustivamente repetida, que faz
ressoar em qualquer imaginário cristão as palavras de Jesus.

103. R. Girard, A violência e o sagrado, São Paulo, Paz e Terra/UNESP, 1990, p. 27.

158
Toda e■u luta pelo bem do capitalismo contra o mal de todos os oposito­
res não se faz "de graça". Misturam-se, numa dose equilibrada, o pelagia­
nismo da obra, do esforço, da luta, do sacrifício e a bênção benfazeja de
Deus, a fim de chegar-se à posse ilimitada de bens, satisfazendo desejos
sempre despertados por uma tecno logia fantástica. Justifica-se a engrena­
gem infernal da tecno logia que está a gerar sempre novos desejos e estes,
por sua vez, forçam o desenvolvimento da tecnologia. Anima esse processo
infinito a sede indômita de satisfazer os próprios sonhos, desejos, ambições
insaciáveis do ser humano. Daí a força terrível do sistema. Tem uma base
antropológica do ser humano criado por Deus e decaído. Enquanto criado
por Deus, deseja o infinito . Enquanto caído , trasveste esse infinito em
desejos de bens materiais.

Religião do sistema neoliberal


"A última batalha contra o poder arbitrário está diante de nós. É a luta
contra o socialismo, a luta para abolir todo poder coercitivo que pretenda
dirigir os esforços individuais e distribuir deliberadamente os seus resulta­
dos." 104 "Vocês podem continuar com seus sonhos até as estrelas ... e
nós, que vivemos nesta grande catedral da liberdade, não devemos esque­
cer nunca: veremos um dia diante de nós um futuro brilhante; veremos
surgir as cúpulas da liberdade e - também podemos prever - o final da
tirania, se cremos em nossas forças maiores: nossa coragem, nosso valor,
nossa capacidade infinita de amor." 105 "A democracia liberal pode consti­
tuir o 'ponto final da evolução ideológica da humanidade' e 'a forma final
de governo humano', e como tal. constitui o 'fim da história'. Isto é, en­
quanto as formas mais antigas de governo caracterizavam-se por graves
defeitos e irracionalidades, que as levaram ao colapso final, a democracia
liberal estava aparentemente livre dessas contradições internas fundamen­
tais." "Será que no fim do século XX faz sentido falarmos novamente de
uma história coerente e direcional da humanidade que, finalmente, condu­
zirá a maior parte dessa humanidade à democracia liberal? Minha resposta
é sim, por duas razões distintas. Uma está ligada à economia, e a outra
diz respeito ao que chamamos de 'luta pelo reconhecimento'." 106

104. F. Hayek, El ideal democrático y la contención dei poder, em Estudios Públicos, n. 1, dezem­
bro, 1980, Santiago do Chile, p. i4, cit. por F. Hinkelammert, O cativeiro da utopia ... p. 791.
105. R. Reagan, à juventude alemã em Hambach: Franfurter Rundschau, 0i/05/1985, in F.
Hinkelammert, art. cit., p. i93.
106. F. Fukuyama, O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992, pp. 11, 13.

159
XI. A RELIGIÃO ASSIMILA A CULTURA PÓS-MODERNA

Globalização sem identidade:


nova era como expressão religiosa da cultura pós-moderna

A globalização cultural, no rastro da globalização econômica e viabiliza­


da pelo gigantesco desenvolvimento da tecnologia de comunicação, levantou
problemas para a identidade da religião. Em resposta, a religião tem ado­
tado entre outras estratégias a da harmonização. Desaparecem os proble­
mas da identidade e da verdade. Adota-se o sincretismo sem qualquer ati­
tude crítica, sem perguntar-se pela coerência interna do sistema religioso.
Dá-se por pressuposto que toda religião é verdadeira e igualmente
verdadeira na sua essência. Prefere-se ignorar e silenciar as diferenças e
contradições. Acredita-se que na base de toda religião existe uma experiência
mística, espiritual igual. Nivelam-se as contradições. Minimizam-se até anu­
lar as próprias diferenças internas das religiões. Não se estabelece, na verda­
de, nenhum diálogo entre elas. Deixa-se cada uma ou cada tendência interna
na sua própria "verdade". Aliás, o termo "verdade" não tem importância.
Valoriza-se o lado emocional, experiencial, fragmentário das vivências reli­
giosas. Cada experiência vale por si. A religião oferece simplesmente o espa­
ço adequado para que elas aí se realizem.
O princípio fundamental da pós-modernidade de que toca a cada
sujeito fazer suas escolhas religiosas independentemente da instituição reli­
giosa e sem preocupação com identidade alguma rege o comportamento
pós-moderno. A religião cede facilmente ao movimento de assimilar os ele­
mentos que lhe interessarem sem nenhum cuidado com alguma coerência
teórica. Nisso se adequa perfeitamente à cultura pós-moderna.
Pensa desse modo trabalhar para paz mundial. Julga que para tal é
melhor ignorar as diferenças e oposições entre as doutrinas e práticas das
religiões. Indo mais a fundo, reconhece-se, como base comum de toda
reli gião, uma pretensa experiência mística e reli giosa i gual. Fala-se de
aura, de fluido positivo, de espírito, de energia que visitam todas as religiões
igualmente. Daí justificarem-se qualquer trânsito entre elas e de uma para a
outra, ou a confecção de uma própria religião feita de fragmentos das diver­
sas tradições religiosas. Globalizam-se os elementos religiosos por si mes­
mos, sem vinculação necessária à religião de origem. Circulam fragmentados
pelos espaços midiáticos, atingindo os destinatários pós-modernos, curiosos
de novidades, de experiências diferentes, de provar todos os sabores religio-

160
sos sem a reliaiio cuidar de manter sua identidade. Aceita qualquer elemen­
to desde que os fiéis o vivam no interior delas.
De fato, a cultura pós-moderna apresenta-se fragmentada, incapaz
de oferecer visões organizadas, sistêmicas, estruturadas. Coexistem, num
pluralismo amorfo e sem mútua crítica, posições que reivindicam simples­
mente existência. Não se estabelecem entre elas nenhum processo crítico.
A nova era não se propõe defender diretamente o sistema econô­
mico vigente. Prescinde dele. Mas assimila os valores dominantes que ter­
minam indiretamente fortalecendo o sistema. É a expressão religiosa ca­
bal da cultura pós-moderna. Aceita-se tranqüilamente o fenômeno da
globalização religiosa.
Silenciam-se as perguntas fundamentais e an gustiantes da vida
humana pela verdade, pelo sentido, pelos valores, pelos critérios de discer­
nimento, pelos compromissos, pelas últimas confiabilidades. Tudo isso Sl'
considera mui "moderno". Estamos num período pós-moderno.
A religião sucumbe ao relativismo, ao igualitarismo sem contor­
nos. É a pantolerância. Os críticos de tal posição acusam-na de negar-se a
si mesma e gerar, em última análise, um niilismo religioso. No entanto, a
religião responde com suas reuniões cheias de pessoas, com seu esforço de
satisfazer às necessidades espirituais dos fiéis.
A semelhança com a estrutura do supermercado, que reúne as merca­
dorias mais díspares num espaço único e organizado dentro da lógica da sedu­
ção e do consumo, leva autores a falarem de "supermercado das religiões".
Cada religião apresenta-se na sua mais bela embalagem, a fim de atrair os
consumidores religiosos. E, para se expandir, recorrem aos mais modernos
meios de comunicação.
As i grejas eletrônicas correspondem a tal tendência sob o aspecto de
deixarem de fora o lado apologético e alimentarem simplesmente a oferta
religiosa.
A pós-modernidade reivindica o gozo sem limites. Na linguagem do
pensador francês, ela impõe uma "tirania do prazer" 107• A religião, ao aco­
modar-se o mais possível à pós-modernidade, mostra sua face prazerosa.
Promove encontros festivos, alegres, eufóricos. A beleza substitui a verda­
de, a doutrina, a moral, o compromisso.
Cumpre uma função de crítica e de apoio ao sistema dominante.
Como vimos acima, o neoconservadorismo norte-americano percebeu que
tal religião não oferece o sustentáculo necessário para o capitalismo continuar

!Oi. J. Cl. (iuillebaud, A tirania do prazer, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 1999.

161
crescendo. Faltam-lhe as virtudes da poupança, da renúncia, do 11acriffcio, do
esforço e da constância, fundamentais para manter o ritmo de crescimento.
Mina-o por dentro com o incentivo ao prazer, à beleza, à alegria, ao convívio
gostoso. Ao valorizar mais o espiritualismo que o materialismo, ao defender
certa sobriedade sadia diante do consumismo desvairado, contrapõe-se a
interesses diretos do sistema.
No entanto, termina apoiando-o indiretamente, ao desviar a atenção das
suas contradições estruturais para o lado religioso da vida. Dissolve a energia
de luta e compromisso pela transformação da realidade. E pela lei da inércia
o mais forte prossegue sua caminhada.

Nova era e capitalismo


"A atração que esse movimento (nova era) vem exercendo entre jovens
bem-sucedidos pode ser compreendida, segundo Heelas 108 , pela afinidade
do complexo de valores da se/f religiosity com a ideologia do progresso,
que dá ênfase à eficácia produtiva, pelo cultivo de qualidades interiores de
autonomia, poder, confiança e criatividade. A expansão dos serviços nova
era, nesse domínio, leva a um reinterpretação da self religiosity pelos
valores da empresa capitalista, reforçando a afinidade de sentido do par
'liberdade-poder'." 109

XII. A RELIGIÃO FECHA-SE DIANTE DA CULTURA MODERNA


E PÓS-MODERNA NUMA ATITUDE DEFENSIVA

A modernidade e a pós-modernidade estão aí com sua ação avassaladora


sobre a cultura. A religião percebe esse rolo compressor. Não consegue travar
batalha contra o Leviatã do mercado, do consumismo, da cultura dominante.
Prefere a estratégia da fortaleza defensiva, do fechamento, da avestruz.

Budismo no Ocidente

O budismo, quando transportado para nossa cultura - diferentemente


de sua posição nos países orientais -, cumpre uma posição de distância
108. P. Heelas, The Sacralization of the Self and ::-.lew Age Capitalism, in Abercrombie, W., Social
Change in Contemporary Britain, Cambridge, Polity Press, 1992.
109. L. Amaral, Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na nova era, Petrópolis,
Vozes, 2000, p. 31.

162
crítica diante doa valores modernos e pós-modernos. A mola do sistema
no nível da subjetividade é o desejo. Açula-se o desejo de consumismo de
bens cada vez mais conspícuos. E a tecnologia desenvolve-se para responder
a ele com produtos cada vez mais sedutores. E assim funciona o processo: o
desejo provoca o progresso tecnológico que produz bens para tais desejos
que, por sua vez, querem novos bens, que açulam o progresso tecnológico,
e assim por diante 11º .
O budismo corta a raiz do processo. "A verdade permanece oculta para
o que está cheio do desejo e do ódio" (Buda). Ele tem sido para muitos mais
que uma doutrina e sim uma sabedoria, uma mentalidade que afeta a visão
de mundo e o comportamento diário. Atrai nessa sabedoria a proposta de um
caminho mais sereno, mais pacífico pela libertação das aparências, da ansie­
dade da sociedade ocidental capitalista. Pratica uma contemplação pacifica­
dora que envolve o corpo.
K. Jaspers com a categoria " p eríodo axial" analisou o nascimento es­
piritual do ser humano. Situou esse "desabrochar mais rico do ser humano"
lá pelos anos 500 a.C. Foi um conjunto simultâneo de coisas extraordinárias.

Período axial
"Um eixo da história, supondo que ele exista, poderia ser encontrado
empiricamente, contanto que seja válido como tal para todos os homens.
inclusive para os cristãos. Ele se situaria no ponto de nascimento espiritual
do homem, onde se realizou de maneira convincente, tanto para o Ociden­
te como para a Ásia e para toda a humanidade em geral, para além dos
diversos credos particulares, o mais rico desabrochar do ser humano;
estaria onde esse desabrochar da qualidade humana, sem se impor como
uma evidência empírica, seria, não obstante, admitido de acordo com um
exame dos dados concretos; ter-se-ia encontrado para todos os povos
um quadro comum, permitindo a cada um melhor compreender sua reali­
dade histórica. Ora este eixo da história nos parece situar-se entre 500
a.C. no desenvolvimento espiritual que aconteceu entre 800 e 200 anos
antes de nossa era. É aí que se distingue a mais marcante cesura na
história. É então que surgiu o homem com o qual vivemos ainda hoje.
Chamamos brevemente essa época de 'período axial'." 111

11 O. J. Mo Sung, Desejo mimético, exclusão social e cristianismo, in Perspectiva teológica 26 ( 1994 ),


pp. 341-356.
111. K. Jaspers, Origine et sens de l'histoire, Paris, Plon, 1954, pp. 8s.

163
Essa afirmação do filósofo alemão tornou-se lugar-comum. Para nosso
caso, interessa recordá-la, a fim de localizar três tendências fundamentais
que se formaram naquele período axial. No Extremo Oriente, as figuras de
Confúcio, Lao-tsé, Buda e outros marcam uma filosofia da experiência. Na
Grécia dos filósofos Parmênides, Heráclito, Platão, se forjou o logos grego.
E no Médio Oriente, os profetas Elias, Isaías, Jeremias apelam para a Pa­
lavra transcendente de Deus1 12• Experiência, razão e fé.
A originalidade do budismo distancia-o das religiões reveladas para
aproximá-lo de uma filosofia de vida que prega a fragilidade das realidades
humanas, de sua aparência. É o apego a sua aparência que dá impressão de
o ser existir. Há uma descoberta da dor humana na sua base. Fazem-nos
sofrer a vontade de viver, o desejo de existir e perpetuar-nos, o medo de
perder o que cremos ser, o que possuímos. O desejo desenfreado de busca
de felicidade provoca o contrário: infelicidade, angústia, dor. Pelo desfa­
zer-nos de tais desejos, encontramos paz, serenidade.
A grande lição do budismo propõe o caminho do desapego de todas
as coisas. Vai mais longe ainda. O desprendimento universal liberta-nos dos
sofrimentos, purifica-nos, desfazendo em nós o desejo, até mesmo de viver.
Libertamo-nos do próprio eu, que não passa de uma ilusão. A meditação
pura alcança-se pela via do desfazimento dos desejos. E o termo final é alcan­
çar o nirvana que é a abolição de toda vontade, de todo desejo, de toda sen­
sação, de toda mudança e de todo devir 113 . A prática do budismo desenvolve
nas pessoas um olhar de benevolência e compaixão sobre os demais.
Esses rápidos traços mostram a oposição dessa cosmovisão com relação à
cosmovisão ocidental. Por causa desse contraste, ele exerce sedução sobretudo
em classes mais letradas e que sofrem em grau maior das angústias e provocações
de uma sociedade do desejo, da ilusão, da posse, do domínio, do egocentrismo.
Evidentemente tal visão deixa intacta a sociedade capitalista em suas
estruturas sociais. Corrói por dentro seus valores. E, nesse sentido, tem po­
tencial crítico indireto. Mas produz antes um isolamento das pessoas que até
fisicamente se afastam para habitar regiões longe do burburinho da civiliza­
ção moderna.

Caminho do budismo
"O budismo, ao contrário, tolerante, contenta-se com anunciar a luz que viu.
Os caminhos para a iluminação são diversos e lentos. Deve-se respeitar
com benevolência a via e a diligência de cada um." "O budista, inversamen-

112. K. Jaspers, op. cit., p. 9.


113. A. Samuel. O budismo, in A. Samuel. As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997, pp. 110-13i.

164
te Ido ocldent11J, desconfia das idéias e da abstração. O mundo não é feito
mais de Idéias que de coisas ou de fenômenos. É necessário somente que
cada um encontre seu lugar nele: que se esvazie de si mesmo, para expe­
rimentar o ser. O essencial não é ter belas teorias sobre o mundo, a fim de
explicá-lo para si mesmo. Mas estabelecer o vazio em si mesmo, para viver
com o mundo. Para ser o mundo. Melhor: para contemplar o vazio do
inexistente" ... "O budismo, nascido no país do hinduísmo, procura, como
ele, livrar o homem da ilusão das aparências e da infelicidade das reencar­
nações sucessivas até a fusão com o Grande Todo. Como o hinduísmo,
tenta conseguir isso por meio de uma meditação profunda, precedida do
domínio do corpo" "...o desapego das aparências deve ser ainda mais
profundo. Nossos desejos e o próprio Deus são ilusões às quais é neces­
sário renunciar..." "o budismo insiste na libertação de todo sofrimento,
também dos sofrimentos das mortificações. Chega a isso por um desapego
total. já que a raiz de toda dor está na ligação com as coisas, com os seres
e com nós mesmos. Mas essa renúncia, longe de ser penosa, é alegre" ...
"o 'eu' já é ilusão ... É necessário desapegar-se do 'eu' ...." "O desejo é o
que toma infeliz. Para romper com o sofrimento, é necessário renunciar ao
desejo: desejo de possuir, mas também de tomar-se alguém, de ter um
papel. A suprema virtude é o desapego absoluto." "O budista, na medida
em que procura alguma coisa, o que procura é fundir-se com a natureza." 114

Minoria cognitiva

Há outras formas religiosas, que criam seu próprio mundo, inde­


pendente da sociedade em que se vive. Elaboram sua própria ortodoxia e
não se deixam influenciar pela cultura circundante. Não pretendem, porém,
modificá-la. P. Berger usa a expressão "minoria cognitiva". Forjam estru­
turas de apoio para defender-se, para manter a identidade do grupo, pressio­
nada pelas posições diferentes que o envolvem. Legitimam-se pelo fato de sua
existência, pelos "aparelhos de conversa" que desenvolvem entre os membros
da religião. Estabelecem mecanismos de controle social para evitar evasões ou
contaminações. Produzem terapias que ajudam a baixar a pressão interna vin­
da da natural insatisfação humana ou provocada por circunstâncias adversas 11 \.

114. A. Samuel. op. cit., pp. 132ss.


115. Desenvolvi, inspirado em P. Berger, esses mecanismos em: Análise de uma estrutura 11ot·ial,
in J. B. Libanio, Formação ela consciência critica, v. li. Subsídios sócio-analíticos, Rio de Janeiro/l'rtró­
polis, CRB/Vozes, '1985, pp. 61-116.

165
As religiões esotéricas respondem a esse tipo de reação. �;stão preocu­
padas com a iniciação de seus membros e pouco se interessam por desenvol­
ver atividades de alcance social transformador ou também proselitista. Exis­
tem para seus fiéis. Visam à sua perfeição pessoal, à sua realização espiritual.
Fecham-se em si mesmas para não perder sua identidade. Oferecem segu­
rança às pessoas diante de um mundo hostil e de cujos valores a religião
discorda e rejeita. Não atuam, porém, lutando contra eles, mas simplesmente
salvaguardando seus membros da contaminação do mundo perdido.

Esoterismo
"O esoterismo constitui uma unidade de pensamento específico e original.
Pretende oferecer uma chave de leitura e de interpretação da fé cristã,
paralela à interpretação corrente e oficial das Igrejas; chave que seria ante­
rior e exterior ao cristianismo e que formaria parte de uma tradição que teria
sua origem nas filosofias e religiões orientais ... O esoterismo pretende
iniciar as pessoas num ensinamento secreto que a Igreja oficial teria ocul­
tado ou falseado... Graças ao ensinamento esotérico recebido e praticado
por alguns 'iniciados', a verdadeira mensagem evangélica tem sido transmi­
tida em toda sua pureza e profundidade através dos séculos ... O esoterismo
destaca a noção de um ser humano de essência divina, único responsável
de sua salvação e que sente a nostalgia de uma origem mítica." 116

Identidade com pseudo-abertura à globalização (inclusivismo)

Há maneira mais sofisticada de fechar-se diante da cultura e das outras


religiões. É a estratégia de certo inclusivismo. Mostrar-se aberto aos elemen­
tos externos culturais ou religiosos, desde que eles sejam interpretados como
expressões diferentes daquilo que a religião já é, já possui.
No fundo, todas as religiões representam somente níveis, etapas, aspectos
parciais diversos da verdade da própria religião. Esta é universal. As outras
religiões não são falsas, mas provisórias e preparatórias. Têm parte da verdade
universal, que a religião em questão detém na sua totalidade e universalidade.
Toda religião é degradada a um reconhecimento e a um degrau mais
baixo, anterior e parcial da verdade. Perde sua identidade em relação ao que
se considera a verdadeira religião. Evidentemente nenhuma religião gostaria

116. Esoterismo, in B. Franck, Diccionario de la nueva era, Estella, Verbo Divino, 1994, pp. 112 -114.

166
de ser pcnNaJa e vista como incluída em outra em sua verdade. E os aspectos
que aí não coubessem seriam considerados errôneos.

XIII. A RELIGIÃO NÃO SÓ SE CERRA DIANTE DA CULTURA


MODERNA E PÓS-MODERNA, MAS TAMBÉM TOMA
UMA ATITUDE AGRESSIVA CONTRA ELA

Posição de cruzada, neoconservadora. Acrescenta algo mais à posi­


ção anterior. Não se contenta com a estratégia da fortaleza 11i . Adota a do
exército. Consciente de que possui a verdade e a salvação, sai em clara cru­
zada de conversão, de proselitismo, de aguerrida condenação do mundo atu­
al. Só ela é a própria religião verdadeira. Todas as outras e as ideologias são
falsas, más. Devem ser combatidas. Tem o espírito sectário, de "seita".
A salvação da sociedade virá no momento em que ela triunfar sozi­
nha sobre todas as outras fontes de valor e referência, religiosas ou civis. Iden­
tifica a própria religião com o Reino de Deus na terra. Se há ação do Espírito,
é somente nela e em nenhuma outra, nem no mundo. Implica positivo desco­
nhecimento, desprezo e rejeição de tudo o que não seja ela. Domina-a o espí­
rito de intolerância, do absolutismo de sua verdade. Em geral, é conservadora
no campo moral. Agarra-se a posições tradicionais e tradicionalistas.

Fundamentalismos

O fundamentalismo agressivo e proselitista é a sua forma mais co­


mum hoje 118 • Existe em todas as grandes religiões como facção interna. Tra­
duz a atitude de repulsa da modernidade e pós-modernidade que, com suas
mudanças, lhe soam como ameaças insuportáveis. Adquire freqüentemente
agressividade incontida.
O fundamentalismo está ligado à interpretação literal da Escritu­
ra, baseada na sua inspiração verbal e absoluta inerrância. Alguns usam o
termo no sentido estrito para designar um tipo de protestantismo norte-

117. H. Küng, Projeto de ética mundial, São Paulo, Paulinas, 1992, pp. 111s.
118. F. Galindo, O fenômeno das seitas fundamentalistas, Petrópolis, Vozes, 1995; I. P. Oro, O outro
é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo, São Paulo, Paulus, 1996. Fundamentalismo
católico: Concilium 1992/3, pp. 88-96; pp. 116-125; J. Moingt, Religiones, tradiciones y funda­
mentalismos, Selecciones de teología 31 (1992/122), pp. 176-182; LL. Duch, El alud fundamentalista,
Selecciones de teología 31 (1992/124), pp. 317-326; J. K. Locke, Reflexiones sobre el fenómeno funda­
mentalista, Selecciones de teologia 31 (1992/124), pp. 326-331; J. Van Gerwen, Cristianismo e intolerancia,
Selecciones de teología 32 (1993/125), pp. 37-50.

167
americano conservador dos inícios do século XX, embora 11ua11 ra(zes re­
montem ao século anterior ''. 11

Num sentido mais amplo, toda posição rígida, ortodoxa, que acentua
interpretações literais dos textos sagrados, cai sob esse nome. Ele tem hor­
ror à interpretação, ao pluralismo religioso, às posições baseadas em
experiências existenciais do sujeito.
A revolução islâmica recolocou o tema na pauta do dia. Mas não é
nenhuma exclusividade dos muçulmanos. O fundamentalismo atua forte­
mente no mundo judaico e cristão. Com facilidade, ele encarna o adversário
em pessoas, movimentos ou tendências religiosas.
Na Igreja Católica, tivemos depois do Concílio Vaticano II a versão
fundamentalista de dom Lefebvre, que assacou ao Concílio uma coni­
vência traidora da fé com a modernidade. Moveu-lhe então críticas e ata­
ques 120. Ele disse textualmente que a "causa próxima da crise (da fé) na qual
nos encontramos é o Concílio. Não digo que seja a interpretação do Concílio,
como se diz em demasia e facilmente. Eu vo-lo digo: é o Concílio" 1 2 1. E como
o papa Paulo VI empreendeu denodadamente a implantação do Concílio
Vaticano II na Igreja, foi alvo da mesma repulsa. Basta ver as acusações que
dom Lefebvre lhe dirigiu, ao dizer ironicamente que em vez de um sucessor
de Pedro temos o de J.-J.
Rousseau ou Teilhard de Chardin 122.

Fundamentalismo católico
"Nos últimos anos, vem-se falando de um fundamentalismo também na
Igreja Católica... Muitos autores L . .J referem-se principalmente ao caso de
dom Lefebvre ... [Lockel admite haver movimentos fundamentalistas cató-
licos que procuram 'inibir a resposta dos católicos aos problemas sociais,
obscurecer a imagem de esperança e abertura da Igreja conciliar e opor
outros setores da Igreja uns contra os outros' 123 ..• A diferença dos funda­
mentalistas católicos para os protestantes estaria no fato de substituírem
a Bíblia pelos textos dos Concílio de Trento e Vaticano 1. Esses Concílios,
antiprotestante e antimodernista respectivamente, resgatariam um rumo
certo para a Igreja, que 'se deixou invadir por inimigos como o secularismo,

119. F. Galindo, O fenômeno... , p. 167.


120. Tratei mais longamente desse caso in J. B. Libanio, A volta à grande disciplina, São Paulo,
Loyola, '1984, pp. 119-131.
121. P. Castel, Ce que croit Mgr. Lefebvre, in lnformations Catholiques lnternationales, n. 506 (15
de setembro de 1976 ), p. 26.
122. Traditionalistes: on s'achemine vers le schisme, in ICI n. 515 (15 de junho de 1977), p. 23.
123. J. Locke, Reflexiones sobre el fenómeno dei fundamentalismo, in Selecciones de teologia 31
(1992), p. 331.

168
o marxismo, o sionismo ou a maçonaria., que a levaram à ruína· 11•. Nessa
visão de fundamentalismo, enquadrar-se-ia aí o grupo de dom Marcel Le­
febvre, como 'resto fiel' disposto a preservar os textos sagrados e, em
nome deles, denunciar a hierarquia e salvar toda a Igreja." 125

Uma versão laica do fundamentalismo católico se exprime na Sociedade


Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). É
considerada "uma das expressões mais duradouras da chamada vertente
integrista do catolicismo, utilizando, para sua identidade, símbolos desta
religião". Recebe certo apoio de setores do clero. Nasceu no interior da Igreja
Católica. Apresenta-se como sua defensora. Tem membros em diversos paí­
ses do mundo, reunidos em torno do "clero tradicionalista". Tem atuado na
vida política internacional e de modo especial no Brasil 126• Como o próprio
nome já o diz, o seu programa é a defesa dos direitos fundamentais tradicio­
nais. Ela vê no comunismo, na reforma agrária, na liberalização da Igreja e
do sistema e nos valores da Revolução Francesa os maiores inimigos.
A versão popular do fundamentalismo no Brasil manifesta-se em
denominações evangélicas, criadas ou regidas por pastores autoritários e
pouco ilustrados. Atêm-se a algumas passagens da Escritura que defendem
na sua literalidade grosseira, especialmente as que entram em choque com
posições e práticas católicas: culto a Nossa Senhora, aos santos, veneração
das imagens, visita a santuários, procissões etc.

Fundamentalismo
"Por fundamentalismo entende-se comumente o movimento ultraconser­
vador e autoritário, surgido em certos meios protestantes, que, em reação
ao modernismo teológico e religioso, prega como fundamentos inabaláveis
da fé verdades tradicionais de sua confissão. A designação 'fundamen­
talismo' deriva da preocupação de manter como absolutos os fundamentos
doutrinais confessionais, aos quais se agarra literalmente. excluindo toda
interpretação crítica do texto." 127

124. P. Hebblethwaite, Um papa fundamentalista. in Concilium 1992. n. 241. p. 115.


125. 1. P. Oro. O outro é o demônio. Uma análise sociológica do fundamentalismo, São Paulo, Paulus.
1996. pp. 38-41.
126. Z. Seiblitz. Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição. Família e Propriedade (TFP), in L.
Landim, org.. Sinais dos tempos. Dii-ersidade religiosa no Brasil, Cadernos do ISER. n. 23, Rio de
Janeiro, !SER. 1990. pp. 9-li.
12i. 1. P. Oro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo, São Paulo, Paulus,
1996, p. 49. Cita a O. F. Lustosa. Fundamentalismo - uma gestão autoritária do sagrado, in Vida
Pastoral 35 (1994 ), n.176. p. 19.

169
Neoconservadorismo católico

Sem ter a rigidez do fundamentalismo, há um retorno neoconservador


católico, sem criatividade ou imaginação, aos velhos esquemas tridentinos,
anteriores ao Concílio Vaticano II. Busca-se manter a identidade antiga à
margem da modernidade e pós-modernidade. Reage-se negativamente às
modificações que se fizeram na Igreja nos últimos tempos, julgando-as sinais
de concessão e fraqueza. Recupera-se a prístina expressão conservadora já
com sabor de restauração. Nesse caso, insiste-se na importância da religião
como instituição. Não na linha do seu papel crítico-social, como o movimen­
to anterior, mas, pelo contrário, na linha da conservação dos valores tradicio­
nais do sistema eclesiástico ou político.
Na Igreja Católica, este movimento neoconservador, já amplamente es­
tudado, insiste na instituição eclesiástica nos seus três centros: romano, dio­
cesano e paroquial 1 28 • Volta-se a pôr a ênfase no poder clerical, embora se faça
um discurso do protagonismo do leigo.

Neoconservadorismo católico
"Algumas pessoas, hoje, perguntam-se se, após um parêntese conciliar, agora
terminado e bem terminado. a Igreja Católica, voltada a um intransigentismo,
que somente colocou em questão superficialmente. não confirmaria nesta
fase de 'pôr em ordem'. sua natureza profunda, seu estranhamento estrutural
diante do mundo moderno. sua alergia à mudança. A tese de uma identidade
de fundo entre o intransigentismo e o catolicismo se encontra então reforça­
da: o papa polonês, para além do estilo muito pessoal que é o seu, é um
papa tipicamente intransigente, e. portanto. inclassificável. " 129

Pentecostalismo e neopentecostalismo

Sem ter um cunho direta e necessariamente fundamentalista, mas em


reação sectária e ascética à modernidade e pós-modernidade, existe um tip o

128. J. I. González Faus, El meollo de la involución eclesial, in Razón y Fe 220 (1989), n. 1089/
90, p. 6i-84; O neoconservadorismo. Um fenômeno social e religioso, in Concilium, n. 161 (1981/1 ); F.
Cartaxo Rolim, Neoconservadorismo eclesiástico e uma estratégia política, in REB 49(1989), pp. 259-
281; J. Comblin, O ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana, in REB 50 (1990),
pp. 44-7:1; P. Blanquart, Le pape en voyage: la géopolitique de Jean-Paul II, in P. Ladriere - R.
Luneau, orgs., Le retour des certitudes. Événements et orthodoxie depuis Vatican II, Paris, Le Centurion,
1987, pp. 161-178; J. B. Libanio, A volta à grande disciplina, São Paulo, Loyola, 1984.
129. D. Her.:ieu-Lége!, Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme
occidental, Paris, E<litions f-:ditions du Cerf, 1986, p. 322.

170
de igreja■ pentecoatais e neopentecostais. Elas cumprem uma função de
ajustamento e de integração social para tantos pobres desnorteados nas re­
giões urbanas. Mantêm forte repulsa contracultural do mundo moderno,
baseada na dicotomia clássica entre espiritual e material, este mundo e ex­
pectativa escatológico-apocalíptica da proximidade do fim do mundo. Essas
igrejas recriam laços e formas de relacionamento primário que as pessoas
cultivavam antes de deixar a cultura tradicional agrária 13°. A pesar de muitos
terem vindo de estratos católicos, encontram, porém, nas igrejas evangélicas
o arrimo e a nova vida comunitária que as paróquias católicas não conseguem
oferecer por causa da gigantesca desproporção entre os ministros ordenados
e o povo. Nas igrejas evangélicas, a proximidade física e cultural do pastor
propicia aos fiéis experiência parecida à vivida em seu antigo mundo.

O pentecostalismo e os pobres
"Com o propósito de superar precárias condições de existência, organizar
a vida, encontrar sentido, alento e esperança diante de situação tão
desesperadora, os estratos mais pobres, mais sofridos, mais obscuros e
menos escolarizados da população, isto é, os mais marginalizados - dis­
tantes do catolicismo oficial, alheios a sindicatos, desconfiados de partidos
e abandonados à própria sorte pelos poderes públicos -. têm optado
voluntária e preferencialmente pelas igrejas pentecostais. Nelas, encon­
tram receptividade, apoio terapêutico-espiritual e, em alguns casos, solida­
riedade material. " 131

XIV. A RELIGIÃO ENFRENTA O SISTEMA NEOLIBERAL,


A CULTURA MODERNA E PÓS-MODERNA

Concentração católica

Ela não o faz, fechando-se num gueto. Aceita o confronto teórico e


prático. Tem consciência de que lhe cabe função imprescindível na sociedade
de hoje. Não pretende ocupar o lugar de nenhuma das instâncias econômi-

130. �I. A. de Araújo. O desafio dos novos movimentos religiosos às igrejas cristãs, in Perspecti1111
teológica 32 (2000), p. 228.
l .� 1. R. Mariano, Neopentecostais: Sociologia do oovo pentecostalismo no Brasil, São Paulo, Loyola,
1999, p. 12.

171
cas, políticas ou culturais, às quais reconhece a legítima autonomia. Percebe
que lhe cabe um espaço social próprio no mundo cultural. Detém uma mis­
são imprescindível a cumprir. Não se considera conservadora, nem restau­
racionista, antes para além da pós-modernidade.
É interpretação semelhante que D. Hervieu-Léger faz do movi­
mento protagonizado pelo papa João Paulo II. Não o considera neocon­
servador, nem restauracionista, nem tradicionalista, mas um salto original
para além do momento atual. O Papa, ao perceber a decomposição cultural
e de valores da pós-modernidade, apresenta o cristianismo, não como uma
volta, um retrocesso, mas como um passo à frente, como fonte de significado
e valor para esse vazio atual.
João Paulo II vai além da modernidade que dissolvera o universo ético,
que anulara as instâncias legitimadoras sociais e produtoras de consenso.
Enquanto os filósofos se digladiam em busca de uma ética do consenso e não
conseguem, ele apresenta o cristianismo como esse "patrimônio ético", como
o sentido para um mundo sem sentido. Recorda o ser quando se proclama
seu esquecimento. Aceita ser positivamente contracultural, bem diferente
dos movimentos de contracultura da década de 1960. É contra o culto do
individualismo capitalista, critica a inépcia do marxismo. Situa-se acima de
ambos. Nesse quadro mais amplo, suas viagens adquirem um significado
maior na defesa dos verdadeiros valores humanos, da dignidade humana a
partir da figura de Cristo. Consegue ser, ao mesmo tempo, utópico, anteci­
pador e restauracionista.
A expressão de D. Hervieu-Léger, "estratégia da concentração católica",
traduz bem a política religiosa católica. A sociedade perde ao marginalizar a
Igreja, o cristianismo, a fé. Numa palavra, "o catolicismo, entendido espe­
cialmente em sua dimensão institucional, tem a chance de usar a própria
marginalidade ao contrário, como antecipação profética de uma possível
superação da modernidade" 132•
João Paulo II tem aproveitado o movimento da unificação da Europa
para fazer ver que somente no cristianismo ela encontrará base sólida e segu­
ra para construir a unidade. O recurso à tradição cristã não é uma volta
institucional ao modelo de cristandade, definitivamente ·perempto. A Igreja
necessita mostrar-se institucionalmente coesa, compacta e consciente da rica
tradição que possui, para responder à decomposição cultural, ética e religiosa
do Ocidente. O que poderia parecer neoconservadorismo é estratégia au-

132. D. Hervieu-Léger, Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme


occidental, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1986, pp. 329ss, cit. por S. Martelli, A religião na sociedade
pós-rrwderna, São Paulo, Paulinas, 1995, p. 454.

172
dacim1a Je unidade para potencializar a ação da Igreja sobre a sociedade e a
cultura. Segue a estratégia do Evangelho: "Todo reino dividido contra si mes­
mo acaba em ruína. Nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma poderá
manter-se" (Mt 12,25). A Igreja Católica parecia, depois do Vaticano II, esse
reino dividido interiormente pelas tendências teológicas, pela liberalização
da disciplina eclesiástica, pelas experiências inovadoras em todos os campos.
Uma freada resoluta pôs o trem eclesiástico nos trilhos, não por afã conser­
vador, mas para poder trafegar mais seguramente pela modernidade e pós­
modernidade, levando sua mensagem crítica original.
A Igreja Católica não é nenhuma "diáspora" frágil, secularizada, perdida
no meio da cultura de hoje. Tem sua identidade, eficácia e força de anunciar
e antecipar uma cultura e sociedade para além da decomposição, fraquezas e
carências da pós-modernidade. Assume de modo novo a defesa dos direitos
humanos, dos pobres, da paz. O Papa dirige-se de modo entusiasta aos jo­
vens, reunindo-os aos milhões em megaeventos. Propõe-lhes bandeira de
luta contra a decadência da cultura atual. Mostra-lhes as fontes puras do
cristianismo, onde desalterar a sede de beleza, de bem e de verdade.

Concentração católica
" ... A crítica romana das autonomias política, cultural, ética, religiosa e a
reconstrução, posta em marcha forçada, da unidade intelectual, doutrinal e
disciplinar do corpo eclesiástico se inscrevem num movimento mais amplo
de concentração católica que procede muito menos de uma contemplação
nostálgica do passado que de uma consciência aguda das forças de dis­
persão que trabalham a Igreja, não somente do exterior, mas do interior,
não somente na periferia, mas em seu centro. Dispersão cultural dos
cristianismos não ocidentais, redução e fragmentação das Igrejas do Oci­
dente, minadas pelos efeitos da explosão individualista que caracteriza as
sociedades mais modernas: o Vaticano não está disposto a consentir em
tal condição "de diáspora", que, para Rahner, seria uma característica do
cristianismo no final do li milênio." 133

Ousaria dizer que H. CI. de Lima Vaz desposa tese semelhante a


partir de reflexões filosóficas que levam em conta sua postura cristã funda­
mental 134. Ele assume forte posição crítica diante da modernidade pós-cristã

133. D. Hervieu-Léger, op. cit., pp. 329s.


134. H. C. de Lima Vaz, Transcendência e religião: o desafio das modernidades in Escritos de
filosofia, III. Filosofia e cultura, São Paulo, Loyola, 199i, pp. 223-253; id., Tomás de Aquino: pensar a

173
na sua pretensão de razão autônoma, de antropocentrismo absoluto, sem
referência à Transcendência. Teme que esforços da teologia moderna de cons­
truir-se sobre os pressupostos filosóficos da modernidade pós-cartesiana seja
a tentativa de desenhar a "quadratura do círculo". Como se pode querer
conservar a tradição original e fornecer alimento para a vida cristã que re­
pousa na afirmação "não-relativizável da transcendência absoluta de Deus e
do privilégio histórico absoluto do Fato do Cristo", se se constrói uma teo­
logia "desde a centralidade ontológica e axiológica do Eu penso e da relativi­
dade imposta a todas as coisas e eventos que se manifestam no mundo dos
Jenômenos?" 135 Cumpre romper esses limites ontológicos e axiológicos
da modernidade estabelecendo uma gratuidade transcendente ante­
rior do próprio ser, que é dado e só depois se move em direção ao
Absoluto. A experiência da santidade, da mística, insinua H. Vaz, "parece
abrir na vida humana uma dimensão de insondável profundidade" diante da
qual as filosofias e ciências se calam 136•
Na linguagem da "concentração católica" significaria encontrar nas ex­
periências teologais de Deus, mediadas por excelência por Jesus, um navio
quebra-gelo do iceberg da modernidade secular, imanentista, pós-cristã.
Na construção de um projeto que ultrapasse o impasse da modernidade
pós-cristã, H. Vaz desentranha as possibilidades de continuidade criativa
do pensamento de Tomás de Aquino, tanto numa vertente gnosiológica
quanto teológica. Na vertente gnosiológica, propõe a inversão do processo da
passagem do ser à representação que terminou no niilismo pós-hegeliano para
a passagem da representação ao ser. Na vertente teológica, retoma o signifi­
cado metafísico do ato de existir como perfeição suprema do ser. Em vez de
o ser humano ficar preso ao mundo dos seres que produz - mundo da técni­
ca --- , ele descobre em si o impulso inato do espírito para o Absoluto 1 .1;_
A proximidade com o projeto do papa João Paulo II aparece tam­
bém na leitura que H. Vaz faz da encíclica Fides et ratio. Vaz traça o
périplo da "ratio" na cultura ocidental desde os inícios na Grécia até as vi­
cissitudes da razão moderna. Assinala a causa da ruptura da fé e razão na
imanentização da transcendência iniciada na leitura materialista de Aristóte-
metafisica na aurora de um novo século, in Síntese Nova Fase 23 (1996), pp. 159-207; id., Metafisica
e fé cristã: uma leitura da fides et ratio, in Síntese Revista de Filosofia 26 (1999), pp. 293-305; id.,
Esquecimento e memória do ser: sobre o futuro da metafísica, in Síntese Revista de Filosofia 27 (2000),
pp. 149-16.l.
U5. H. C. de Lima Vaz, Transcendência e religião.... , p. 251.
1.l6. ld., ibid., p. 252.
1:17. H. C. de Lima Vaz, Tomás de Aquino: pensar a metafísica na aurora de um novo século. in
Síntese Notia Fase 23 (19%), pp. 159-207.

174
les por Avcrrói1, para consumar no século XVII. Foi a passagem da estrutura
teocêntrica para a estrutura antropocêntrica da razão. Somente em outras
bases se torna possível um diálogo entre fé e razão. Estas devem ser criadas
para benefício da razão e da fé, como muito bem afirma a encíclica Fides et
ratio. O caminho éfides et ratio. Reencontra-se a filosofia na expressão mais
alta da razão. A Revelação não é o aviltamento da razão, pois, ambas -- fé
e razão - trabalham sobre um mesmo fundamento ontológico: o
Transcendente ou Absoluto real - Deus u8 .

Igreja da libertação

De modo ainda mais explicitamente crítico e libertador, em verdadeira


atitude profética, setores da Igreja Católica e da Reforma continuam a posi­
ção de desprivatização, mesmo no refluxo superprivatizante do momento
atual. É a I greja da libertação que prossegue sua caminhada, apesar de
todas as adversidades e transtornos. Sem capitular, sem fazer concessão à
pós-modernidade, setores libertadores mantêm sua atitude crítica na forma
de comunidades eclesiais de base, de pastoral social, de compromisso com os
movimentos sociais nacionais, como o MST e outros, e mundiais, como o
ecológico, o pacifista, o étnico, o feminista etc. Estes setores continuam pro­
gressivamente minoritários, já que as conjunturas eclesiásticas, políticas e
culturais lhes são fortemente adversas. Mas eles se mantêm fiéis aos princí­
pios fundamentais da teolo gia da libertação, elaborados na década de
1970: a vinculação da reflexão teológica com a práxis, a libertação dos po­
bres, o horizonte social para além do sistema vigente, uma leitura militante
da Escritura na metodologia dos círculos bíblicos, um tipo diferente de ser
povo, isto é, o povo como sujeito histórico, um tipo de ser Igreja, isto é,
Igreja dos pobres em comunidades de base. Na expressão de CI. Boff, per­
manece o "espírito da coisa"1.19_
Setores da Igreja da libertação, sem negar os princípios básicos da
opção pelos pobres e sem abdicar de uma posição crítica diante do sistema
capitalista neoliberal. percebem a diferença do momento cultural. A
insistência quase exclusiva nos elementos socioestruturais cede lugar à per­
cepção da relevância dos fatores culturais, antropológicos. Em vez de bater

138. H. C. <lc Lima \'az. �letafísica e fé cristã: uma leitura da Fides et ratio, in Síntese Re11isla ri,·
Filosofia 2h (1999), pp. 29.l-305.
1.l9. CI. Boff. :\ teologia da libertação e a crise de nossa época. in L. Boff J. Ramos Regi<lorm
- CI. Boff (orgs. ), A Teologia da libertação. Balanço e perspectivas, São Paulo, Ática, 1996, p. 98.

175
na mesma tecla, ampliam o leque de sua criticidade, unindo-se aos novos
movimentos sociais de corte étnico, feminista, ecológico, pacifista. Estabele­
cem, portanto um diálogo mais vasto com o momento atual.
Marx, de maneira mais negativa, intuíra que "a religião é o aroma espi­
ritual. A miséria religiosa é, por uma parte, a expressão da miséria real e, por
outra, o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de
uma situação carente de espírito" 140• A religião aceita essa sua função de
exprimir o "protesto contra a miséria real", "o suspiro da criatura oprimida",
já não como "ópio" ou "felicidade ilusória". Descobre sua força crítico-so­
cial, que a modernidade e pós-modernidade lhe querem negar.

Ampliação do horizonte da Teologia da libertação


"A teologia da libertação conheceu um processo de afunilamento crescen­
te. Iniciou nos anos 1960 trabalhando a divisão mais profunda das socie­
dades latino-americanas. entre a pobreza e a riqueza. a exploração e a
acumulação ... Mas as opressões têm muitos rostos. Tomamos consciên­
cia da opressão de tipo cultural e étnico. As culturas-testemunho da América
Latina (inca, maia, quíchua, aimará, tupi-guarani e outras) foram violentamen­
te submetidas e, em grande parte, destruídas. É graça de Deus que elas
ainda persistam até hoje para poder denunciar a dilaceração que padeceram
e refazer as matrizes que, apesar da opressão, guardaram.
Em razão disso, está se elaborando uma teologia da cultura de cunho
libertador que pouco tem a ver com a teologia culturalista e populista de­
senvolvida em algumas partes de nosso continente. Em seguida cresceu a
consciência da opressão de tipo racial. principalmente dos negros. Esta é
uma das opressões mais onerosas de nossa sociedade. Os negros foram
escravizados e guardam as chagas até os dias de hoje ... Primeiramente nos
Estados Unidos e hoje um pouco por todas as partes na América Latina,
está surgindo uma vigorosa e profética teologia negra da libertação." 141

A religião sabe que lhe cabe uma função utópica. E ela adquire força
ainda maior que as utopias políticas porque lhes acrescenta uma aura místi­
ca, uma motivação mais profunda, um horizonte mais amplo. Mística e com­
promisso soam para esses setores da Igreja da libertação como resposta críti-

140. K. Marx, Contribución a la critica de la filosofia dei derecho de Hegel, in K. Marx-F. Engels,
Sobre la religión, ed. por H. Assmann-Reyes �late, Salamanca, Sigueme, :19i9, pp. 94s.
141. L. Boff, Ecologia, mundialização e espiritualidade, São Paulo, Ática, 1993, pp. 132s.

176
co-social adequada 10 momento atual. Não desconhecem a mudança com a
chegada do clima religioso. Captam-no sob a chave de mística, de espiritua­
lidade. E mantêm a posição crítica, prosseguindo firmes nos compromissos
sociais de transformação da realidade.
O sagrado readquire nova força crítica, não em nome de uma tradi -
ção, de uma visão arcaica da realidade, mas enquanto fala à interioridade e à
subjetividade das pessoas, movendo-as a práticas libertadoras. A religião
vincula-se com o grito ético-crítico que atravessa a sociedade pós-moderna.
Ela tem maior poder convocatório que outras instâncias e instituições civis,
já que soma duas motivações poderosas: ética e religião.
Quando a reprivatização parecia desbancar totalmente a Igreja da liber­
tação do cenário público, assistimos no Brasil ao êxito impressionante do seu
poder convocatório em diversos atos importantes: o plebiscito da dívida ex­
terna e interna, o grito dos excluídos, o movimento ética na política, as cam­
panhas da fraternidade, o saneamento das eleições. Todas são realidades
políticas de alcance ético. A Igreja Católica e outras igrejas cristãs mos­
tram aí sua presença social ativa e significativa, forçando ações dos
políticos e do próprio governo.
Há todo um capítulo teórico da relação entre cristianismo e política que
enucleia o papel social da religião. E. Weil dedica páginas luminosas a essa
questão u2• A política pertence ao universo da técnica da eficácia que regula
a coexistência dos homens no interior da sociedade e das nações. Aí funciona
o registro da racionalidade que enfrenta o arbitrário, o capricho, o não-racio­
nal, presente em tantas realidades, a transformação sensata da natureza. Está
em jogo o progresso humano para todos e cada um. O Estado é o espaço
da liberdade de discussão dos seus princípios e ações, recorrendo à
racionalidade das pessoas. Em momentos de fragilidade consensual ou de
descontentamento com o grau de lealdade dos seus súditos ou de temor da
competição de outra ideologia, o Estado é tentado a lançar mão da religião
para fazer dela um instrumento de coesão. Em vez de contentar-se com o seu
nível próprio da ação, pretende entrar no mundo das convicções. A presen­
ça do cristianismo no Estado não pode, porém, cumprir-lhe essa fun­
ção ideológica de ser sua doutrina, sua ortodoxia. Corre-se o risco de o
Estado tornar-se totalitário. Basta recordar o regime franquista e os recentes
Estados islâmicos. E a religião perverte-se, perdendo sua verdadeira nature­
za. Ela não existe para servir ao Estado, nem para servir-se dele, mas pode
prestar-lhe serviços segundo sua própria índole autônoma.

142. E. Weil, Essais et conférences, t. II, Paris, Plon, 1971, pp. 45-79.

177
A pergunta versa sobre que tipo de serviço a religião, ou o criatianis­
mo, é capaz de oferecer ao Estado. E. Gilson dizia que a Europa ou será
cristã ou não será uma verdadeira sociedade 14 ·1• Essa tese vem sendo repetida
por João Paulo II por ocasião da criação da Comunidade Européia. Há oposi­
ções contundentes. Certamente não o será por meio da imposição de uma
doutrina, de uma ortodoxia, de uma fé. A Igreja também não dispõe de com­
petência para resolver problemas técnicos na economia e política. Essa é a
função do Estado e, nesse caso, ela o faria impondo-se à força. Seria sua ruína.
A fé não é universalizável, já que é graça feita a cada pessoa no con­
creto de sua vida.
O cristianismo pertence ao mundo da vida, da existência das pessoas e
comunidades que o escolheram. Ele tem a possibilidade de contribuir para a
educação do mundo, transmitindo algo muito seu e que cai sob a racionalidade
universal benéfica para a sociedade. Pertence à tradição cristã profunda a cons­
ciência do dever absoluto de todos servirem a todos. Aí está a dignidade huma­
na. Rejeita-se uma concepção de religião ou salvação individualista e passa-se
a compreender a salvação como intrinsecamente vinculada com a responsabili­
dade social diante dos afazeres deste mundo. O cristianismo tem a capacidade
de despertar tal responsabilidade nos cristãos e, por seu meio, nos cidadãos.
A análise sociológica, que não reconhece a relevância e a faticidade
do papel social da relig ião, enquanto instituiç ão, não dá conta dessa
atuaç ão das I g rejas cristãs no Brasil no campo sócio-político-cultural.
Há uma imprensa que lhe nega continuamente presença, mas os fatos des­
mentem essa análise, que reflete mais desejos liberais do que realidade. Basta
mais uma vez lembrar a posição destemida das Igrejas cristãs na defesa dos
direitos humanos durante os governos militares à custa de muita persegui­
ção. Elas contribuíram diretamente para o desmantelamento dos órgãos de
repressão e para o fim dos regimes de exceção.

Igreja contra repressão


"A Igreja dos oprimidos, a Igreja popular, progressista, do povo, dos humilha­
dos, dos explorados, dos ofendidos, das comunidades de base. Os nomes
são muitos, usados mais ou menos costumeiramente pelos seus milhares de
agentes e fiéis, que procuram sempre expressar uma mesma idéia, um mesmo
objetivo libertador. A Igreja da justiça, da luta, do fim da opressão, e não da
submissão, do fatalismo irreversível, da injustiça terrena inevitável. " 144

143. E. Weil, op. cit. p. 54.


144. H. lfalem, A Igreja dos oprimidos, São Paulo, Brasil Debates, 1981, pp. lls.

178
Retomemo■ o exemplo do Plebiscito da Dívida Externa promovido
pela CNHH nos dias 2 a 7 de setembro de 2001. Sem os recursos materiais
para uma mobilização nacional, mas na base da convicção e da força convo­
catória das Igrejas, mais de 1. 700 cidades participaram, envolvendo mais de
6 milhões de pessoas. Noventa e cinco por cento delas aproveitaram para
externar sua crítica ao governo brasileiro por sua posição de dependência
diante do Fundo Monetário Internacional.
A iniciativa do Grito dos Excluídos já ultrapassou as fronteiras do Hrasil,
tornando-se uma iniciativa latino-americana. Provocou até mesmo manifesta -
ções de peso no próprio centro político e financeiro mundial nos Estados Unidos.
Em 2001, o Grito dos Excluídos uniu-se à campanha contra a corrupção na
política. São ações que revelam a presença pública da Igreja institucional cm
nível nacional ou internacional. As iniciativas locais multiplicam-se.
À guisa de exemplo, a Arquidiocese de Belo Horizonte escolheu entre as
três linhas básicas do Projeto Pastoral Construir a Esperança a presença
pública da Igreja. Nos últimos anos, ela tem-se firmado e crescido. A Igreja
tem contribuído para a construção de uma cidade mais humana por meio do
despertar ético, por experimentos demonstrativos e pelo incentivo e poten­
cialização de canais de participação política 145 • Assim, por exemplo, numa
das campanhas eleitorais para prefeito, D. Serafim convidou todos os candi­
datos para um encontro no qual um assessor expôs a todos eles o pensamento
social da Igreja no campo político. A acolhida foi significativa, se não por
convicção, ao menos, por interesse eleitoral. Isso significa o reconhecimento
da força política da instituição da Igreja.
Alguém dirá que tudo isso é verdade. Mas as decisões econômicas e
políticas mais importantes se fazem à revelia da presença pública da Igreja.
É parte da verdade. Isso vale não só da religião, mas também até dos poderes
nacionais. Com efeito, a globalização da economia tem diminuído a autono­
mia nacional e transferido as decisões para os grandes centros mundiais de
poder. No entanto, no jogo de liberdade e possibilidade que sobrou para os
poderes locais, a religião ainda dispõe de força de persuasão e mobilização.
O futuro desses setores da Igreja, como instituição atuante na so­
ciedade, depende de sua articulação com a ética e com a construção
da paz. As religiões têm arsenal riquíssimo de conteúdo, mas sobretudo de
força motivadora, para construir a paz mundial, para opor-se à guerra. Na
Guerra do Golfo, a figura ímpar e singular do papa João Paulo II manteve
14 5. R. Borges I )ias, Presença da Igreja na Cidade. lnquietudes e pistas a partir da experiência do
Projeto Pastoral 'Construir a Esperança', in Perspectiva teológica 28 (1996), pp. 83-95, aqui p. 92; ai se
descrevem muitas atividades da Igreja de Belo Horizonte na sua presença pública na sociedade.

179
seu protesto solitário. Força moral que avultava por sobre todos os chefes de
Estado que se sentiam presos aos interesses econômicos e políticos dos Es­
tados Unidos. Faltava-lhes liberdade e isenção. E a religião sobreleva dentre
as demais instâncias com sua força ética e sagrada.
H. Küng formulou, de modo bem arguto, uma série de teses que se
impõem por sua clareza e evidência. "Não haverá sobrevivência sem uma
ética mundial. Não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões. Não
haverá paz religiosa sem diálogo religioso." 146 As religiões mundiais são
o Incondicionado mais forte capaz de condicionar a ética humana. Elas são a
força maior para construir a paz.

Religião: fundamento do vínculo incondicionado


"Na luta pelo humano, a religião consegue fundamentar sem subterfúgios
aquilo que a política não consegue realizar. A religião consegue evidenciar
por que a moral e a ética são mais do que uma questão de gosto pessoal
ou de oportunidade política, do julgamento individual, da convenção social ou
da comunicação. Em outras palavras: a religião consegue fundamentar cla­
ramente porque a moral, os valores éticos e as normas devem valer incon­
dicionalmente (e não somente ali onde me parece ser conveniente) e de uma
forma geral (para todas as camadas, classes e raças). Salva-se o humano
justamente na medida em que é fundamentado pelo divino. Ficou evidencia­
do que somente o próprio incondicionado pode comprometer de forma in­
condicional, somente o absoluto pode amarrar de forma absoluta." 147

A instituição religiosa tem função social insubstituível, como mobiliza­


dora ética, como consciência axiológica da sociedade moderna, como elaboradora
e agilizadora do imaginário social religioso do povo. Num país como o Brasil,
em que o imaginário social, mesmo das classes letradas e secularizadas, está
impregnado de elementos religiosos primigênios, a religião dispõe de força para
ativá-lo em tomo de grandes causas, de grandes transformações.
Já aludimos à visita de João Paulo II ao Brasil em 1980 durante o
regime militar. Sem dúvida, ele mexeu de tal modo com o imaginário do
povo, independentemente dos políticos e militares, que o país, depois de sua
partida, já não era o mesmo. É muito difícil negar que essa visita tenha tido
sua influência no desmonte final do regime militar. Muitos politólogos reco-

146. H. Küng, Projeto de ética mundial, São Paulo, Paulinas, 1992.


147. H. Küng, op. cit., p. 123.

180
nhecem que a queda do socialismo real está vinculada com a força política da
religião e, no caso, católica, representada pelo Papa.
Antes mesmo desse ciclo surpreendente de viagens de João Paulo II,
Paulo VI iniciara um percurso mais modesto, mas, nem por isso, menos
significativo. Vale recordar a visita a ONU. Analistas políticos atribuem-lhe
muita importância. Ele se apresenta como "amigo", trazendo sua homena­
gem pessoal e do Concílio Vaticano II aos membros da ONU. Considera-se
chefe de um minúsculo Estado sem pretensões temporais. Seu desejo e per­
missão é servir no que lhe é de sua competência com desinteresse, humildade
e amor. Sabe-se portador de uma mensagem para toda a humanidade em seu
nome, da família católica e dos irmãos cristãos. Alude ao mandato de Cristo
de levar a boa nova a todas nações. E apelando à tradição de vinte séculos de
cristianismo, se diz "especialista em humanidade" 148• Já estava aí delineada
a orientação do que serão as viagens do Papa. Ser uma presença institucional
da Igreja, mas na defesa dos direitos humanos. Articulação entre religião e
ética, além da liberdade no exercício de seu ministério pontifício.

Viagens do Papa
·o Papa viaja. Que quer dizer? Quer dizer, antes de tudo, uma liberdade de
movimentos readquirida, que pode ser inscrita no ativo das presentes con­
dições históricas e políticas; quer dizer ainda que a mobilidade própria do
costume moderno se insinua também nos hábitos, antes estáticos, da vida
pontifícia, não totalmente estranha, no entanto. aos ritmos das presentes
flutuações humanas; e quer dizer, e é isto que mais importa, que as vias do
mundo estão abertas, também logisticamente, ao ministério do Papa: isto é
muito significativo e importante, e talvez, com o andar do tempo, possa
produzir notáveis mudanças no exercício prático do seu ministério apostó­
lico: já percebemos os sinais ao multiplicarem-se os convites que nos che­
gam de toda parte do mundo, não sem dificuldades para a regularidade e
intensidade do nosso trabalho na Sé romana. O futuro dirá." 149

Quanto maior o vácuo que a pós-modernidade cria, quanto maior o


desprestígio das instituições, tanto maior é o espaço da religião, enquanto

148. Visita dei Sommo Pontefice Paolo VI all'Organizzazione delle Nazioni Unite. L'Allocuzione
ai Rappresentanti degli Stati, in lnsegnamenti di Paolo VI, 1965, Cidade do Vaticano, Libreria Editrice
Vaticana, 1965, vol. III, pp. 50i-516.
149. Pellegrinaggio apostolico dei Papa a Bogotá, in lnsegnamenti di Paolo VI, Cidade do Vaticano,
Libreria Editrice Vaticana, 1968, vol. VI, p. 346

181
instituição. Várias pesquisas no Brasil têm confirmado a relevância institu­
cional da Igreja Católica no campo social, relativizando assim a "reprivatização
da religião" 150•
Em todos esses casos, a religião pretende guardar sua identidade institu­
cional. A partir de sua realidade institucional marca sua presença no mo­
mento cultural e religioso atual.

XV. 0 FUTURO DA RELIGIÃO

Qual é o futuro da religião nessa sociedade e cultura de privati­


zação? Como se viu acima, a religião ou as igrejas, enquanto instituição,
ocupam ainda lugar relevante de influência pública na sociedade sobretudo
pela via da ética, do poder convocatório, de desenvolver experiências no seu
seio que se tornam modelos para a sociedade.
Apesar das afirmações comuns de que se vive o fenômeno do esfacela­
mento das religiões e de uma crescente individualização, subjetivação das
práticas religiosas, nada leva a crer que a religião como instituição vá desa­
parecer totalmente. Há uma recomposição da religião na sociedade pós­
moderna que se manifesta entre outras maneiras por novas formas religiosas
comunitárias, por uma florescência de grupos, redes e comunidades, no seio
dos quais os indivíduos estabelecem intercâmbios, revalidam mutuamente
suas experiências espirituais 151 • E também a religião assume diversas posi­
ções diante do momento sociocultural, como passaremos a analisar.

O futuro ambíguo da religião


diante da fraqueza da razão pós-moderna

Ao apontar as causas do surto religioso, constatávamos que ele crescia


na proporção em que a razão moderna mergulhava na crise. Vale dele a
máxima de quanto pior para a razão, melhor para as expressões religiosas,
que medrarão na eira vazia da razão.

150. O Instituto LUMEN da PUC-MG fez uma pesquisa sobre religiosidade e Igreja, 1998, de
alcance local, em que a Igreja aparece como a terceira instituição de maior confiabilidade. Nos dois
primeiros lugares, estavam as escolas e as universidades. Facilmente se entende essa preferência por
causa da crescente consciência da importância do estudo para o futuro das novas gerações: A. Antoniazzi,
Religiosidade e Igreja na região metropolitana de Belo Horizonte, mimeo. BH, s.d.
151. É uma das teses que se defende cm D. Hervieu - Léger, Le pelerin et le converti. La religion en
mouvement, Paris, Flammarion, 1999.

182
O meamo não vale da religião enquanto instituição, sobretudo a cristã.
Pelo contrário, ela sofre detrimento à medida que a razão se desacredita. Nin­
guém esperaria que, depois das batalhas travadas entre as ciências e a fé cristã,
acentuadas depois do caso Galileu, ela viria em defesa da razão, no momento
em que esta se vê criticada pelas próprias ciências. Mais que uma tensão com
as ciências, a idade moderna conheceu, depois da virada cartesiana, uma tensão
entre fé e razão, cujas origens remontam, na análise de H. Vaz, à interpretação
materialista de Aristóteles por Averróis, como já se disse acima 152 •
Referimo-nos anteriormente à posição de H. Vaz, que propugna uma
posição crítica da fé em relação à razão moderna. Aqui retomamos a questão
sob o prisma do futuro da religião. Discernimos uma ambigüidade nesse
futuro, já que o próprio fracasso da razão também é ambíguo.
O "pensamento débil" da pós-modernidade deixa as pessoas sem os re­
ferentes fundamentais para o pensar e o viver oferecidos pela metafísica clás­
sica na filosofia e pela religião cristã. Julga-se que a dimensão intelectual não
dá conta de traduzir o mundo existencial, no qual a dimensão religiosa ocupa
lugar de preeminência. Por isso, os defensores e propugnadores das mais
variadas expressões religiosas sentem-se em casa em tal crise. E apostam
nela. Assim rezam as previsões de futuro, analisadas nas megatendências 11·1•
A leitura pentecostal de H. Cox confirma tal prognóstico de futuro 154 . Não
é nessa direção que vai a nossa reflexão.
Pondo-nos no lado oposto, vemos o futuro da religião, especialmente
cristã, não do lado do fracasso da razão, mas na contribuição que ela oferece
para recolocar a razão no seu verdadeiro lugar.
A vitória da religião sobre a razão é de Pirro, especialmente para religião
como instituição. A força do cristianismo na história dependeu de sua capa­
cidade de ter criado robusto arcabouço teológico e institucional. As intuições
vividas pelos místicos e santos recebiam depois, como Boaventura fez com o
franciscanismo e Tomás de Aquino com o dominicanismo, uma sistematiza­
ção racional. O próprio Inácio de Loyola, que a partir de sua experiência
mística não queria outra lei a vigorar entre os membros de sua Ordem a não
ser a que o " Espírito Santo escreve e imprime nos corações", percebeu a
necessidade de escrever constituições. É a passagem do carisma para a razão.
Garante-lhes perenidade.

152. H. C. de Lima Vaz. Metafísica e fé cristã: uma leitura da Fides et ratio, in Síntese Revista de
Filosofia 26 (1999). p. 301.
153. J. Naisbitt - P. Aburdene, Megatendências: as dez transformações ocorrendo na sociedade
moderna, São Paulo, Abril/Círculo do Livro, 1983.
154. H. Cox, Fire from Heaven: The Pentecostal Spirituality and the Reshaping of Religion in thr
Twenty-first Century, New York, Addison - Wesley Publishing Company, 1995.

183
As renovações espirituais do cristianismo ao longo da história encontra­
ram em gerações seguintes quem lhes desse continuidade, transferindo para
o registro da razão o vivido. A crise atual talvez venha dos dois lados. Um
vivido religioso que não encontra racionalidade. Uma racionalidade religiosa
que não fala ao vivido. O futuro da religião institucional dependerá desse
reencontro entre vivido e razão, entre experiências significativas e tematizações
racionais. Do contrário, cair-se-á num racionalismo institucional frio e sem
futuro, ou num conservadorismo rígido também sem perspectivas ou num
emocionalismo por natureza volátil.
Somente a correta articulação entre religião e razão permite que a religião
não tema as críticas da razão e esta, por sua vez, não rejeite a priori toda
dimensão transcendente. Do contrário, as pessoas se sentirão desarmadas
diante da farândula religiosa, presente onde a religião perde a identidade
institucional.
Diante desse quadro, a religião necessita firmar sua identidade com a
clareza que só uma reflexão que faça apelo à razão, à inteligência é capaz de
fazer. Que não se deixe seduzir pela sereia do surto religioso, acreditando
mais nele que na sua verdade. E, por outro lado, cabe-lhe mostrar como ela
é capaz de falar às aspirações espirituais de hoje. Nesse jogo está seu futu­
ro 155 . Ele não se fará sem a presença valiosa da razão.

A união das religiões em torno das causas éticas

À medida que as religiões dialogarem entre si e criarem grandes


frentes éticas conjuntas em torno dos direitos humanos, dos valores
civilizacionais, das causas maiores para a humanidade, tanto mais força po­
lítico-cultural terão 1 56. A consciência de tal possibilidade levou representan­
tes das religiões a elaborarem, em 1993, a Declaração para uma Ética Mundi­
al 157 do Parlamento das Religiões do Mundo, realizado em Chicago 1 58. Algo

155. Sobre essa questão, lê-se com proveito o artigo de E. Falque, Mystique et modemité. Aspirations
spirituelles de notre temps et mystique chrétienne, in Études n. 3946, junho de 2001, pp. 785-792.
156. Ética das grandes religiões e direitos humanos, in Concilium 228 ( 1990/2).
157. Sigo a tradução brasileira usando a palavra "ética mundial". H. Küng, porém, no seu texto
explicativo disse que fez uma opção explícita de não usar a palavra "ética", mas "ethos". "Ética" denota
uma teoria filosófica ou teológica de convicções, valores e normas morais. "Ethos" significa uma con­
vicção moral humana básica. Reconhece que tal distinção em alemão não se dá em outras línguas, como
em português não foi feita: H. Küng, História, importância e método da Declaração para uma Ética
Global, in H. Küng H. Schmidt, Uma ética mundial e responsabilidades globais. Duas declarações, São
Paulo, Loyola, 2001, p. 64.
158. H. Küng - H. Schmidt, Uma ética mundial ... , pp. 11-41.

184
extraordinério. t pela primeira vez na história das religiões que se produziu
tal tipo de declaração. Aí se afirma de maneira rotunda que não há nova
ordem mundial sem uma ética mundial.

Religi6es, ordem mundial e ética mundial


"Nós. homens e mulheres provenientes de diversas religiões e regiões
deste planeta, dirigimo-nos portanto a todos os seres humanos, religiosos
ou não-religiosos. Queremos expressar a convicção que partilhamos:
* Todos nós somos responsáveis por uma ordem mundial melhor.
* Nosso posicionamento em favor dos direitos humanos, da liberdade,
justiça, paz e preservação da terra dá-se de modo incondicional.
* Nossas tradições religiosas e culturais diversas não nos devem impedir
de assumir um posicionamento ativo e comum contra todas as formas de
desumanidade e em favor de mais humanidade.
*Os princípios manifestados nesta Declaração podem ser assumidos por
todos os seres humanos que sustentem convicções éticas, sejam elas de
fundamento religioso ou não.
*Nós, no entanto, como pessoas religiosas ou de orientação espiritual -
que fundamentam suas vidas sobre uma realidade última, da qual retiram
força e esperança espiritual em uma atitude de confiança, de oração ou
meditação, em palavras e pelo silêncio -, estamos especialmente com­
prometidos com o bem da humanidade como um todo, e preocupados com
o planeta terra. Não nos consideramos melhores que outras pessoas, mas
temos confiança em que a sabedoria milenar de nossas religiões seja
capaz de apontar caminhos, também para o futuro." 159

Esse documento revela a imbricação íntima entre as religiões e a ética.


Afirma-se o axioma fundamental: "Não há nova ordem mundial sem ética
mundial". Daí decorre um desafio básico: "Todo ser humano tem de ser
tratado de forma humana". O texto prossegue estatuindo quatro preceitos
inamovíveis. "1. Compromisso com uma cultura da não-violência diante de
toda vida. 2. Compromisso com uma cultura da solidariedade e uma ordem
econômica justa. 3. Compromisso com uma cultura da tolerância e uma vida
de veracidade. 4. Compromisso com uma cultura da igualdade de direitos e
de companheirismo entre homem e mulher." Conclui com a necessidade de
uma mudança de consciência para se conseguirem tais objetivos 160 •
159. A Declaração do Parlamento das Religiões Mundiais, in H. Küng-H. Schmidt, op. cit., p. 17.
160. A Declaração .... p. 17-]9.

185
E se se trata do concerto de religiões mundiais, encontramos fundamen­
tos para uma ética mundial. Tal convergência das religiões tem vantagens
sobre os intentos éticos dos filósofos que desconhecem e negam qualquer
transcendência religiosa. Dispõe de poder de convicção muito maior, já
que apelam para um Incondicionado que fundamenta nossas opções éti­
cas que também se referem a decisões incondicionadas.
Exatamente quando se afirma o declínio da força institucional das reli­
giões, um Parlamento, como este, o desmente. Os assinantes da Declaração
representavam mais de 6. 5000 que participaram da Assembléia em Chicago
durante os dias 28 de agosto a 4 de setembro de 1993. E por trás estão os
bilhões de crentes do mundo. Estamos não no fim de um processo, mas no
início. A Declaração visa a uma melhoria na relação entre as religiões e na
tomada de consciência de suas responsabilidades sociais e públicas no mundo
de hoje em oposição a uma concepção puramente privatizante da religião. Não
se trata de nenhum nivelamento das religiões, mas de ir construindo lentamen­
te a base daquilo que as religiões já têm em comum para uma ética mundial tbt.
Max Weber opõe a uma ética que corresponde à convicção de uma pessoa
aquela que ela considera as conseqüências em vista de uma responsabilidade
social que assume na sociedade.
As religiões são tentadas a embarcar numa ética da motivação e de suces­
sos em vez da ética da responsabilidade. Esta mede as conseqüências obje­
tivas das decisões e práticas a partir da situação concreta, de suas exigências e
implicações. A ética da motivação olha a atitude subjetiva, a motivação interna
do ator e de suas possibilidades. Elas não se opõem, mas se complementam. A
primeira sem a segunda, pode ser maquiavélica (justifica qualquer meio); a
segunda sem a primeira pode ser irresponsável com um sentido de autojustiça th2.

Ética da convicção e responsabilidade


"Desembocamos, assim, na questão decisiva. Impõe-se que nos demos
claramente conta do fato seguinte: toda a atividade orientada segundo a
ética pode ser subordinada a suas máximas inteiramente diversas e
irredutivelmente opostas. Pode orientar-se segundo a ética da responsabi­
lidade ou segundo a ética da convicção... Há oposição profunda entre a
atitude de quem se conforma às máximas da ética da convicção - diria-

161 . Para maiores esclarecimentos sobre essa Declaração, seu histórico, desafios e desdobramen ·
tos, ver: H. Küng, História, importância e método da Declaração para uma Ética Global, in H. Küng
-- H. Schmidt, Uma ética mundial. .. , pp. 51-77.
162. M. Weber, Ciência e política. Duas vocações, São Paulo, Cultrix, 1970, pp. l 13ss.

186
mos, em llnguegem religiosa, 'O cristão cumpre seu dever e, quanto aos
resultados da ação, confia em Deus· - e a atitude de quem se orienta
pela ética da responsabilidade, que diz: 'Devemos responder pelas previ­
síveis conseqüências de nossos atos·." 163.

A ética oferece à religião enorme contribuição 164 • As religiões remon­


tam a uma revelação ou a uma experiência religiosa do seu fundador. Ambas
apresentam-se como instância última de verdade e de bem. Não se vê, à primei­
ra vista, que caiba outra instância constitutiva ou crítica das religiões. No entan­
to, todas elas são tanto caminho de Deus ao ser humano como deste a Deus.
Não está em questão unicamente Deus, mas o próprio ser humano. Ora a ética
tem uma palavra de humanidade sobre o ser humano. E nisso ela con­
tribui com originalidade sob a forma de instância crítica. Parafraseando
Paulo VI, em seu discurso na ONU, que citamos em outro lugar, a ética é
"especialista em humanidade" e como tal volta-se para a religião, discernindo
nela elementos de desumanidade existentes por causa das contingências de toda
experiência e revelação divina em contextos humanos. Além disso, estimula-a
a humanizar sua face. Em termos bem concretos, a ética purifica a religião de
suas alienações, obscurantismos, ilusões, superstições, ópios.
Em termos de conteúdo, a ética acumulou riquíssimo arsenal ao lon­
g o de sua história a respeito de temas fundamentais para a reli gião:
di gnidade da pessoa humana, justiç a, fraternidade, paz, direitos hu­
manos. Reconhece a inviolabilidade, a liberdade inalienável, a igualdade
fundamental, a solidariedade básica da pessoa humana. O campo da justiça
é amplíssimo, sobretudo nos dias de hoje, em que se forjou um sistema eco­
nômico extremamente injusto e desigual. A ética e a religião se interpelam
mutuamente na proclamação da justiça.
Apesar dos lugares-comuns de "aldeia global", "homem planetário",
globalização, assistimos, como nunca, ao ressurgir de discriminações ét­
nicas, econômicas, de gênero. E as religiões não raro funcionam reforçan­
do-as e criando as próprias segregações. Nesse momento a ética vem-lhe em
socorro, condenando tais marginalizações em nome dos direitos fundamen­
tais do ser humano.
A cada momento volta à baila a questão da violência e sua relação com
a religião th \ As experiências históricas são por demais evidentes para serem

163. M. Weber, Ciência ... , p. lU.


164. H. Küng, Projeto de ética mundial, São Paulo, Paulinas, 1992, pp. 98ss.
165. �I. CI. L. Hingemer, org., Violência e religião. Cristianismo, islamismo, judaísmo: três religiões
em confronto e diálogo, São Paulo, Loyola, 2001.

187
negadas. Muitas vezes as religiões não conseguem arrancar de dentro de suas
tradições elementos pacifistas suficientes para superar as divergências e até
mesmo as violências. Mais uma vez a ética se presta a oferecer-lhes ele­
mentos racionais universais que as ajudem a superar os particuJaris­
mos de suas crenças.
O reverso da medalha é também verdadeiro. A religião tem papel re­
levante para a criação de uma ética global, como já indicamos acima, ao
tratar do Parlamento das religiões. Dizíamos que no matagal crescido da
pluralidade de éticas que terminam por desorientar as pessoas, as religiões
referem-se a um Absoluto. Este é capaz de fundamentar de maneira incon­
dicionada deveres e direitos humanos.
No caso do Brasil, a Igreja Católica e outras Igrejas têm contribuído
grandemente para campanhas éticas regionais ou mundiais. Ao falar
do papel social da religião, já nos referimos a essa atuação ética da religião.
Lá víamos sob o aspecto sociopolítico. Mas é a mesma grandeza institucional
religiosa que, ao atuar politicamente, realça as razões éticas.
Para a mobilização ética das pessoas, os símbolos desempenham
papel relevante. Ora, as religiões são arsenais muito ricos de simbolismos
que reforçam as campanhas éticas. As pessoas associam a força motivadora
dos súnbolos às ações. Mais: a religião consegue falar às dimensões profun­
das do ser humano, oferecendo-lhes um horizonte abrangente de interpreta­
ção da dor, do sofrimento humano, do pecado, da existência do mal e do
pecado, da falta de sentido da vida humana. Nisso ela reforça atitudes éticas
diante de tais situações existenciais.
O enigma maior da existência humana é a morte. Não há ética que dê
conta realmente de tal situação. O estoicismo sofre de terrível voluntarismo.
A religião abre perspectivas para o enfrentamento humano e ético da
morte. E, ao dar sentido à morte, dá-o também a toda vida humana. Só ela
sabe falar da origem e do destino últimos do ser humano. Com isso, a vida
humana recebe outra luz. A religião garante valores elevados, normas
incondicionais, motivações profundas, ideais maiores que reforçam nosso
senso de responsabilidade. Usando uma imagem cara a L. Boff, a religião
fala de um Transcendente. como um útero de acolhida ao ser humano, po­
tencializando-Lhe a confiança, a fé, a certeza, a esperança na vida para além­
da-morte. E na terra, a modo de ensaio, constitui-se uma comunidade de
fraternidade onde se quer viver a verdade e o bem.
A religião municia a ética com argumentos, reflexões, ensinamen­
tos na luta contra os ídolos que nos devoram. Os falsos deuses da mo­
dernidade - razão absoluta, ciência e técnica onipotentes, progresso ilimita-

188
do, sexo desvairado, dinheiro sedutor - são denunciados pela religião em
sintonia com a ética da justiça e da solidariedade.
As conseqüências dessa dupla colaboração - ética para a religião e vice­
versa - apontam para uma atitude de humildade de ambas as partes. Nem a
ética humana nem a religião têm sempre razão. A verdade maior brota do
diálogo entre ambas. E este se faz no concreto da experiência humana e social.

As religiões e o diálogo entre si

Diante da inevitável secularização da sociedade, as religiões, como ins­


tituição, exercerão influência social, se conseguirem resolver seus conflitos
internos e se derem exemplo de atitude ecumênica contribuindo para a
pacificação e a humanização do nosso contexto social. O futuro social
das religiões dependerá da maneira como trabalharão suas relações entre si
na linha da tolerância, do diálo go, da busca da verdade sem exclusões,
exercendo efeito-demonstração.
A problemática do encontro do cristianismo com outras religiões
existe desde o seu início (At 17,19-34) e é retomada, de modo mais explí­
cito, em certos momentos da história da Igreja (M. Ricci, R. de Nobili, B.
Las Casas, os dias de hoje). O cristianismo nasceu do judaísmo e teve de
marcar sua diferença em relação a ele, ora dialogando, ora contrapondo-se.
Enfrentou o paganismo diante do qual teve também de marcar a própria
identidade, mas assumiu e assimilou elementos dele.
O diálogo entre as religiões impõe-se no contexto do pluralismo
cultural. Há uma novidade no seio da cultura ocidental. Não se trata da
simples diversidade de posições e microculturas no seu interior, corno foi o
caso na Idade Média, mas de posturas intelectuais radicalmente divergentes
e até opostas, quer surgidas no interior do Ocidente, quer vindas de fora. E
os meios de comunicação social tornaram tal fato urna evidência meridiana.
Além do pluralismo cultural, existe o religioso. Este tornou-se evi­
dente à consciência do Ocidente por causa da verdadeira invasão de tradições
religiosas e culturas de outros continentes, favorecida pelas migrações e pela
inter-relação criada pelos meios de comunicação social. O mundo transfor­
ma-se hoje em urna "aldeia global". Assiste-se ao fenômeno da "globaliza­
ção", "planetização" ou "cosmificação".
"Historicamente nova e, pela primeira vez, decisiva na história a respeito
de nossa situação é a real unidade da humanidade na terra. O planeta tornou­
se para o homem um todo único dominado pela tecnologia da comunicação;
é menor que o Império Romano foi outrora" (K. Jaspers).

189
As religiões encontram-se com um "homem planetário" num mundo
que se interligou. Esse homem reivindica não tanto a pertença a uma religião
como condição de humanidade que grita contra as ameaças de morte. Vê E.
Balducci nos místicos, prescindindo das religiões de que são membros, "as
primeiras testemunhas da unidade do gênero humano"; "diante deles, um
filósofo como Hegel é apenas um pensador genial da tribo prussiana ... Os
místicos já inventaram uma koiné, uma linguagem ecumênica na qual a es­
pécie humana se reflete em sua unidade profunda, apesar das distâncias de
tempo e de espaço e das diversas tradições" 166•
Os dados estatísticos levantam-nos, eles mesmos e por si mesmos,
sérias interrogações. Numa Índia de mais de 900 milhões de habitantes,
2,5% são cristãos. Na China, reduz-se ainda mais a proporção. Nesse contex­
to, qual o significado de Mt 28, 19?
Evidentemente essa nova percepção da presença plural das religiões não
nasce unicamente de uma constatação geográfica, já muito antiga, mas da
entrada da consciência histórica dentro da Igreja. Percebe-se melhor na
Igreja a relevância dos fatores históricos e culturais em suas concepções re­
ligiosas. Isso favorece o verdadeiro diálogo inter-religioso, pois, ao tomar
consciência da historicidade de seus fundamentos, do limite de suas expres­
sões religiosas, dos próprios preconceitos com que julgava as outras religiões
e, portanto, da riqueza de tais religiões, a Igreja torna-se capaz então de
estabelecer autêntico diálogo 16;_
H. Küng aponta ainda duas razões que colocam essa questão na primeira
linha. Trata-se de uma questão de paz e de verdade. Sem paz entre as
religiões, não há paz no mundo. A história ensinou-nos como as lutas mais
sangrentas e cruéis foram inspiradas e legitimadas pelas religiões.
Além disso, as religiões levantam com toda a agudeza o problema
da verdade. Por mais que se estudem as convergências· e divergências entre
elas, permanece sempre a pergunta se existem uma ou várias religiões verda­
deiras. Se freqüentemente a questão da verdade se vinculou à da guerra, o
desinteresse pela verdade leva à desorientação no pensar e no agir 168 •
De fato, o cristianismo sempre considerou a questão da religião ou da fé
como uma questão da verdade, já que se trata de algo tão importante e

166. E. Balducci, L'uomo planetario, S. Domenico di Fiesole, Cultura della pace, 1990; L. A.
Gómez de Souza, Secularização em declínio e potencialidade transformadora do sagrado, in Síntese
Nova Fase 14 (1986), pp. 33-49, aqui p. 45.
167. W. Thompson, The Risen Christ, Transcultural Consciousness, and the Encounter of the
World Religions, in Theological Studies 37 (1976), pp. 382-388.
168. H. Küng, Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo, São Paulo, Paulinas, 1999, pp.
315-317.

190
fundamental como a salvação. Nesse sentido, considerava uma traição à ver­
dade qualquer posição relativista. Por honestidade e transparência, ele se
tem e se afirma como unicamente verdadeiro.
Essa linguagem torna-se, porém, hoje quase insustentável, quer por
razões teológicas, quer filosóficas, quer científicas, quer práticas. Teológicas
no sentido de ter-se maior consciência do mistério salvífico, universal e in­
sondável de Deus que cada religião, de certo modo, expressa. Filosóficas no
sentido de que a linguagem religiosa sendo de natureza auto-implicativa e
existencial revela antes a verdade do sujeito que a do objeto. Científicas no
sentido de que os estudos antropológicos e sociológicos nos permitem, de um
lado, constatar a profunda relação entre as religiões e as tradições culturais
em que nascemos e vivemos e, de outro, a impossibilidade de valorizar mais
urna cultura que outra. Destarte, parece que seja mais consentâneo afirmar
que toda cultura, e, por conseguinte, todas as religiões são verdadeiras, au­
tênticas, únicas e incomparáveis entre si, desde que cumpram sua função de
mediação da Transcendência e da salvação. Práticas no sentido em que Spi­
noza dizia que a verdade de urna religião tende a resolver-se no seu caráter
moral de inspirar e comandar a conduta prática enquanto o aspecto doutrinal
cumpre a função de apoio e referência sirnbólicos 1 º9 •
De fato, mais que nunca somos tentados hoje a transferir a questão teó­
rica da verdade para uma solução pragmática. A religião seria verdadei -
ra à medida que mostrasse serviços de bem à humanidade no espírito da frase
evangélica de que se conhece a árvore pelos frutos (M t 7, 15-20) 1711• E no
nosso contexto de América Latina, o pêndulo da relação entre ortodoxia e
ortopráxis inclina-se muito mais para o lado da ortopráxis.
Além disso, vive-se no momento um movimento contraditório. De
um lado, a " globalização" de que se falava acima que, em termos religiosos,
poderia apontar para urna única grande religião mundial. Criar-se-ia urna
"mente coletiva" religiosa, um sistema mundial religioso que assumiria den­
tro de si todas as religiões, polindo-lhes as arestas e singularidades, reduzin­
do-as a um denominador comum. De outro lado, a guerra na Iugoslávia
mostra corno antigas etnias e culturas reagem para manter sua originalidade,
sua existência, a despeito das pressões unificantes. A desintegração da União
Soviética, as reivindicações de grupos étnicos na Espanha, no Reino Unido
e em outros países confirmam esse mesmo movimento, oposto a urna unifi­
cação globalizante. E no mundo religioso eclode essa pletora de seitas que
reivindicam seu espaço no universo religioso.

169. A. Gesché. El cristianismo de las demás religiones, in Selecciones de teologia 29 (1990). n. 114,
pp. 105s.
170. H. Küng, op. cit., pp. 317-319.

191
No campo teológico, a solução para a relação do cristianismo e outras
religiões à base do destino salvífico do indivíduo por meio da incorpo­
ração à Igreja pelo batismo de desejo (Pio XII, Mystici corporis Christi)
revelava o insuficiente pressuposto a-histórico de que o indivíduo se salva­
va apesar de seu contexto pagão e não nele ou por causa dele. Tal resposta
teológica fechava qualquer diálogo com as outras denominações religiosas,
considerava apenas os indivíduos e revelava insensibilidade à natureza
humana histórica. O Concílio Vaticano II foi além dessa posição, ao aceitar
o caráter salvífico universal da graça na história humana e nas tradições
religiosas. Só uma percepção positiva a respeito das outras tradições religio­
sas, enquanto lugar da experiência religiosa e salvífica para seus membros,
possibilita um diálogo. Isso significa que se reconhece em todas as religiões
um elemento de absoluto. A consciência de historicidade não se opõe a essa
percepção de absoluto das religiões 171 •
Percebe-se um movimento trifásico no questionamento levantado no meio
cristão. Parte-se de uma leitura da problemática da salvação, das religiões,
dos não-cristãos em termos do cristão anônimo de K. Rahner. Em seguida,
chega-se à perplexidade das perguntas: por que se torna necessário ser igreja
ou cristão, se a graça salvadora de Deus atinge a todos? Por que o esforço
missionário? Num terceiro momento, volta-se a perguntar pela contribuição
e pelo enriquecimento mútuos dos cristãos no diálogo com as religiões e
culturas, dado por suposto o fato do desígnio salvífico universal de Deus m .
A. Gesché prefere que se parta da base do cristianismo para perguntar
se ele tem em si mesmo elementos que permitam responder a essa pergunta
do pluralismo religioso e não ir buscar em debates sobre conceitos como
universalidade, unicidade, superioridade ou especificidade1 7 -1.
Com efeito, todo diálogo implica necessariamente uma dupla experiên­
cia de igualdade e diferença, de semelhança e estranheza. Não se dia­
loga com o mesmo nem com o totalmente diferente. Estabelece-se o diálogo
quando pessoas ou grupos começam a reconhecer elementos de comunhão,
de igualdade, de pertença comum e elementos de diferença, de diversidade.
F. Teixeira elaborou com clareza e amplidão os parâmetros para um ver­
dadeiro diálogo inter-religioso 1 74• A experiência humana do diálogo, que
implica uma dimensão integral da vida, serve de matriz para aquele que se

171. W. Thompson, art. cit., pp. 391s.


172. J. P. Schineller, Christ und Church. A Spec trum ofViews, in Theological Studies 37 (1976),
p. 545.
1 i.1. A. Gesché, art. cit., p. 5,
174. F. Teixeira, Diálogo inter-religioso: Desafio da acolhida da diferença, in Perspectiva teológica
34 (2002), pp. 155-177.

192
estabelece entre 11 religiões. O Secretariado Para os Não-Crentes define-o
como "conjunto das relações inter-religiosas positivas e construtivas com
pessoas e comunidades de outras confissões religiosas, para um mútuo co­
nhecimento e um recíproco enriquecimento" m. Ao analisar as condições
fundamentais para esse diálogo, F. Teixeira assinala a humildade, a própria
convicção religiosa, a abertura à verdade, superando todo etnocentrismo que
impede de perceber a verdade do outro. Na trilha dos teólogos de ponta
nesse campo 17 \ defende o "pluralismo de princípio". Não se trata do simples
fato evidente do pluralismo das religiões, mas da sua natureza, já não vista
como desvio, falha ou pecado, mas no seu significado positivo no único
desígnio salvífico de Deus. Só na perspectiva de uma eclesiologia dialógica a
Igreja tem possibilidade de assumir essa tarefa do diálogo inter-religioso.
Para isso, ela se compreende como realidade viva cuja sacramentalidade não
é exclusiva nem exaustiva, mas relacional.
O momento atual parece paradoxal se não contraditório em relação
à possibilidade do diálogo religioso. De um lado avança uma avassaladora
onda de massificação, de nivelamento geral de tudo e de todos. A ciência, a
tecnologia, a razão instrumental instalam o mundo da homogeneidade. Os
computadores reconhecem em qualquer parte do mundo os mesmos sinais,
lêem os mesmos impulsos. Parece que isso possibilita um macrodiálogo, já
que se fala a mesma linguagem da koiné tecnológica.
De outro lado, um movimento, não menos impressionante, penetra até
os rincões mais profundos das pessoas, a saber, a consciência e a defesa da
própria individualidade diante das incursões externas. Campeia o mais fer­
renho individualismo. O mundo da afetividade, do sexo, da religião, da
família exime-se de todo comando externo do Estado, das instituições reli­
giosas. Nesse sentido, o diálogo religioso se inviabiliza.
Nesse fenômeno de extrema individualização religiosa, cada um colhe
elementos religiosos de diferentes origens e fabrica seu ingrediente religioso
próprio, sem se interessar pela religião do outro. O diálogo parece acontecer
mais em nível institucional que pessoal. Entretanto, a sede religiosa que se
manifesta na vendagem gigantesca de livros religiosos mostra, por sua vez,
um desejo de ampliar o próprio horizonte religioso e entrar, ainda que só
lendo, em diálogo com outras confissões religiosas.

1i5. Secretariado para os :--;ão-Crentes, A Igreja e as outras religiões, São Paulo, Paulinas, 2001, n . .l.
1 i6. t'. Teixeira cita E. Schillebeeckx, História humana: revelação de Deus, São Paulo, Paulus,
1994, pp. 212 e 216; J. Dupuis, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, São Paulo, Paulinas,
1999, pp. 526-521!; (i. (;effré, Croire et interpréter, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 2001, pp. 93-100;
M. Amaladoss, Rinnovare tutte le cose: dialogo, pluralismo ed evangelizzazione in Asia, Roma, Arkcios,
199.l, pp. 123- HU; R. Pannikar. Entre Dieu et le cosmos, Paris, Albin Michel, 1998, p. 166.

193
Em nível de sistema, processa-se uma planetização. Em termos de
subjetividade, de convicções religiosas e morais, inverte-se o processo,
refluindo para dentro do indivíduo. Se ele não é submetido à pressão forte da
situação, se não é abalado pela força mobilizante de causas comprometedoras
de sua própria sobrevivência, se não é exposto a experiências impactantes,
dificilmente deixará a concha protetora do individualismo e se engajará num
diálogo religioso. O sistema é planetário. Processa uma internacionalização
do capital, do poder, das agências de notícias, das instâncias criadoras de
cultura de massa. Mas será que o homem está sendo planetário, como pensa
E. Balducci? Ou, pelo contrário, numa desesperada defesa de sua subjetivi­
dade encaramuja-se cada vez mais num individualismo compensado por
extremo consumismo e exacerbado hedonismo?
Mário de França Miranda chama de " pluralismo inédito" o fato tão antigo
da multiplicidade de religiões atingir realmente nosso país 1 ;, , questionando a
hegemonia até então absoluta da Igreja Católica. O pluralismo hoje faz parte
da agenda católica. CI. Geffré afirma que "o pluralismo religioso se tornou
destino inevitável de nossa fé e de nossa teologia. Ao contrário da visão inge­
nuamente otimista do século XIX e do início deste século, que correspondia à
epopéia missionária, o cristianismo não conquistou o conjunto do planeta e, as
grandes religiões do mundo dão prova de crescente vitalidade" 1 ,x.
O interesse pelo diálogo inter-religioso faz parte do fenômeno re­
ligioso de nossos dias. É sabido que na década de 1970 se anunciava uma
"era secularizada". No entanto, mais que uma secularização houve uma in­
teriorização e privatização da religião com o conseqüente pluralismo. A pre­
sença pública da religião tomou outra feição. Nesse contexto, entende-se a
importância do diálogo entre as religiões em busca de um novo tipo de pre­
sença mundial das religiões, condenadas pelos imperativos da modernidade
ao mundo da privacidade.
O diálogo entre as religiões dá-se, portanto, num contexto cultural e
religioso extremamente plural. O pluralismo constitui-se hoje fato tão im­
portante quanto a secularização o foi nas décadas de 1960 e 1970. No seio de
uma única sociedade, as religiões são desafiadas a viver em paz cidadã 17 1• E
1

as religiões desenvolverão um diálogo coerente se conjugarem a clare­


za da própria identidade com a abertura ao diferente das outras reli-

1ii. M. França de Miranda, Um catolicismo desafiado. Igreja e pluralismo religioso no Brasil, São
Paulo, l'aulinas, 14%, p. 12
1i8. A. (iesché, A fé na era do pluralismo religioso, in F. Teixeira, org., Diálogo de pássaros. Nos
caminhos dn diálogo inter-religioso, São Paulo, Paulinas, 1993, p. 61.
1i9. P. Berger, 1/na gloria lejana: la búsqueda de la fe en época de credulidad, Barcelona. Herder.
1444, p. 53.

194
giões 1 "". SiRnifica firmar-se na identidade criticamente de maneira que resis­
ta ante tentações e pressões dos poderosos, das seduções com valentia, cons­
tância, parrésia (At 4,13). A firmeza dinâmica se testa no processo, evitando
ser rígida e estática.
Nem tudo é igualmente bom e verdadeiro na religião em doutrinas
de fé e moral, em ritos religiosos e costumes, em instituições e autoridades.
A fronteira entre o verdadeiro e o falso não se identifica com a da própria
religião e uma outra. Toda religião tem seus pecados a confessar. Há déficit
nas religiões no que se refere à educação das pessoas para o humanismo,
pacifismo. A linha divisória entre o verdadeiro e o falso passa também por
dentro da própria religião. A crítica à outra posição só se faz legítima com
base numa autêntica autocrítica.
Uma religião se aperfeiçoa ao ver-se no espelho crítico de outras
religiões. Nem tudo é permitido em nome da religião. Não existe liberdade
religiosa diante de todos os compromissos e obrigações. Ela se exercita no
compromisso responsável para com as pessoas, o meio ambiente, o Absolu­
to. Ninguém tem o monopólio da verdade. Ninguém pode renunciar ao tes­
temunho da verdade.
Dois extremos espreitam as religiões: a intolerância, o fanatismo, a
intransigência, de um lado, e o indiferentismo, o relativismo, o sin­
cretismo, de outro. Não ao indiferentismo diante de tudo e sim à rejeição a
qualquer pretensa ortodoxia absolutista. Não ao relativismo de todo absoluto
e sim à maior sensibilidade para a relatividade de todos os absolutismos hu­
manos que bloqueiam uma coexistência criativa entre as diferentes religiões.
As religiões são tessitura de relações. Não ao sincretismo no qual tudo, o
possível e o impossível, é misturado, fundido e sim à síntese que supera
contradições e antagonismos dolorosos. Não a uma atitude de pura negação
do outro e sim à aceitação deliberada do contexto plural como valor. Numa
palavra, saber compor: abertura e verdade, pluralidade e identidade, dispo·
sição ao diálogo e firmeza de posição
O diálogo entre as religiões pauta-se por objetivos e critérios. H.
Küng insiste na centralidade da pessoa humana, ao pôr a dignidade humana,
o respeito aos direitos humanos, como base 181 • As religiões devem promover
e não impedir a identidade humana, o sentido e o sentimento de valor das
pessoas com as suas doutrinas de fé, ética, ritos, instituições.

180. :\s idéias que se seguem se basearam em: H. Küng, Projeto de ética mundial. São Paulo.
l'aulinas. 1991, pp. 11 Sss. U2ss.
181. H. Küng, op. cit., pp. 5.l s.

195
Está em jogo não simplesmente o futuro de uma religião, mas o de
toda a humanidade. Salvá-la da barbárie e da destruição é o pressuposto
mínimo para uma verdadeira religião. De modo positivo, significa trabalhar
na realização da verdadeira humanidade. Tarefa complexa que implica assu­
mir responsabilidade pela paz, pela defesa do meio ambiente presente e fu­
turo, pela realização do projeto humano da nova ordem mundial. É um hu­
manismo radicado no Absoluto. As armas teológicas de luta religiosa, na
linguagem do profeta, devem converter-se em arado. "Eles forjarão de suas
espadas arados e de suas lanças, podadeiras" {Is 2,4).
Esquece-se freqüentemente que as pessoas de hoje têm direito de herdar
as riquezas de sua religião e de todas as outras. As tradições religiosas são
patrimônio da humanidade que não deve ser negado às gerações subse­
qüentes. Cabe compará-las com as grandes obras de arte que já não perten­
cem a nenhum país determinado, posto situadas num deles, mas são herança
de todos. As tradições religiosas são riquezas para todos.

Diálogo entre as religi6es


"Reconhecer que há 'verdade e santidade' nas demais religiões significa,
direta e imediatamente, que os homens e mulheres que as praticam se
salvam nelas e por elas: e não a simples título individual, nem muito menos
à margem ou apesar delas. O que, por sua vez, supõe uma guinada de
cento e oitenta graus na perspectiva. pois isso equivale a dizer que Deus
está se revelando e exercendo a sua salvação em todas e cada uma das
religiões, sem que jamais algum homem ou mulher tenham sido privados
da oferta de sua presença amorosa." 182 "A preservação deste fundamental
espírito de abertura constitui a grande tarefa teológica para este novo
milênio que se inicia. Uma abertura que possa suscitar o encorajamento
teológico necessário para ampliar a compreensão dos desígnios misterio­
sos de Deus e dos caminhos que os realizam." 183

Nesse contexto do diálogo inter-religioso, insere-se a grave e ampla pro­


blemática da inculturação que apenas mecionamos. Toda religião, por
natureza, enquanto vivida por um indivíduo e uma comunidade, é
inculturada. Toda encontro entre religiões provoca alguma inculturação de

182. A. Torres Queiruga, Do terror de Isaac ao Abba de Jesus: por uma nova imagem de Deus, São
Paulo, Paulinas, 2001, pp. 31 Hs
183. F. Teixeira, Diálogo inter-religioso: O desafio da acolhida da diferença, in Perspectiva teoló­
gica 34 (2002), p. 17i.

196
uma na outra. A esse processo A. Torres Queiruga deu o nome de "in­
religionação"184. Tem-se de fazer com a religião o que se faz com a cultura.
Uma religião assume as riquezas da outra, sem perder sua identidade. Assi­
mila-as no seu organismo religioso.

ln-religionação
"No contato entre as religiões. o movimento espontâneo a respeito dos
elementos que lhe chegam de outra religião há de ser o de incorporá-los
no próprio organismo, que. deste modo, não desaparece. mas sim que.
pelo contrário, cresce." ' 85

Dessa maneira, uma religião cresce, aprofunda a si mesma com elemen­


tos ou perspectivas de outra religião. Evidentemente essa in-religionação não
se faz sem critério. Há elementos inassimiláveis, como seria a reencarnação
numa visão bíblica da ressurreição dos mortos; ou um Deus livre, criador e
amoroso e um deus sujeito ao destino implacável.
O influxo de categorias de outra religião sobre a própria provoca uma
volta dessa categoria modificada à religião de onde veio. Acontece mútua
"contaminação". Assim a categoria de nirvana, ao confrontar-se com a con­
cepção judeu-cristã de Deus, purifica-a de certa antropomorfização, mas,
por sua vez, volta com uma cara mais amorosa e pessoal para dentro do
budismo hynayana 186 •
A perspectiva do diálogo inter-religioso ultrapassa a simples feno­
menologia da religião. Esta prescinde de qualquer juízo teológico de ver­
dade, de valor. Vê cada religião na sua condição única, diferente, original. No
diálogo, por sua vez, cada religião esclarece e aperfeiçoa a própria identidade
em confronto com as riquezas das outras. Liberta-se de penduricalhos inú­
teis ou supérfluos, repensa a hierarquia das próprias verdades, sem abrir mão
de sua identidade. Mantém a honestidade e a verdade de sua fé. Nesse diá­
logo levanta-se necessariamente o problema do sincretismo.
Em vários momentos referimo-nos a ele. Apesar da ambigüidade do ter­
mo e das diversas conotações que recebe nos diferentes autores, tem-se pro­
curado mostrar seu aspecto positivo e sua presença no processo de incultu­
ração da fé e não simplesmente como um produto final religioso. O critério

184. A. Torres Queiruga, Diálogo das religiões, São Paulo, Paulus, 199i, pp. i0-73.
185. A. Torres Queiruga, Cristianismo y religiones: "inreligionación" y cristianismo asimétrico, in
Sal Terrae 85 (janeiro de 1997), n. 997, p. 11.
186. A Torres Queiruga, Diálogo ... , p. 72.

197
de discernimento, enquanto produto, depende de sua compatibilidade ou
não com a identidade irrenunciável da religião em questão. Enquanto pro­
cesso, é um " fenômeno temporário e não permanente", cujo desenlace resul­
ta de sua real assimilação pelo organismo unitário da religião 1 x7 •
Conclui-se que o futuro das religiões dependerá da maneira de dialoga­
rem entre si, da capacidade de inculturarem-se nas diferentes culturas e na
cultura atual em profundas modificações, do modo legítimo de lidarem com
o sincretismo, da capacidade de articularem criticamente a própria identida­
de com as diferenças culturais e religiosas em circulação no atual momento
de pluralismo e pulular religioso. Trava-se verdadeiro diálogo intercultural e
inter-religioso com as outras religiões e culturas.

As religiões e as ciências

Nenhuma força se delineia tão decisiva no futuro para a sociedade


quanto as ciências e a tecnologia. Apesar de a pós-modernidade questionar
radicalmente a ideologia cientista e a pretensão das ciências a respeito da ver­
dade, nada leva a crer que a tecnociência perderá sua posição central.
A preocupação central é construir pontes entre a religião e a ciência tanto
na sua relação geral quanto no interior de determinadas tradições religiosas 18x .
Ao explorar os diversos modelos de relações entre religião e ciência, con­
seguimos desenvolver nossa capacidade de criar "pontes entre ambas" 189• Não

18i. M. de França Miranda, lnculturaçào da fé. Uma abordagem teológica, São Paulo, Loyola,
2001, pp. 10i-12i, aqui p. 120.
188. Está no prelo das Edições Loyola uma excelente obra que desenvolve este programa da relação
da religião e ciência na sua natureza geral e estuda tambêm as relações entre o cristianismo ocidental.
islamismo, budismo. hinduísmo e judaísmo com as ciências. Algumas considerações, que se seguem,
inspiram-se nessa obra. T. Peters -- G. Bennett, Bridging Science and Religion, Berkeley (California),
Center for Theology and the Natural Sciences, 2002, edição brasileira no prelo.
189. O livro citado na nota anterior elenca vários tipos de modelos de relação entre religião e
ciência. Citando a tipologia de I. Barbour, menciona: conflito, independência, diálogo e integração. Em
seguida. retoma a tese de A. Peacocke que lista as diferenças e semelhanças entre ambas quanto aos
cam pos, aproximações, linguagens e atitudes. J. Haught inclui conflito, contraste, contato e confirma­
ção. T. Peters amplia a tipologia de Barbour. Para estabelecer tal relação, I. Barbour e A. R. Peacocke
desenvolvem um quadro teórico de visão da ciência que eles chamam de "realismo crítico", que toca
aspectos de epistemologia, linguagem e metodologia. Contrapõem o realismo crítico ao realismo ingê­
nuo, às teorias científicas instrumentalistas e idealistas (R. J. Russel - K. Wegter-McNelly, Science
and Theology: Mutual Interaction, in op. cit, pp. 2-23). Num texto seguinte, N. Murphy levanta ob­
jeções ao realismo crítico, apresentando novo modelo de ciência que permite melhor diálogo com a
religião a partir de considerações da sua concepção na pós-modernidade, pois o realismo crítico respo n­
de a uma visão moderna da ciência. Ela postula uma investigação das semelhanças no método entre
religião e ciência, usando elementos da filosofia pós-moderna das ciências (N. Murphy, Bridging Theo­
logy and Science in a Postmodern Age, in op. cit., pp. 24-39).

198
se trava tal Jiálu110 aem riscos para ambas. As religiões, enquanto institui­
ção, e as ciênciu estabelecem entre si mútua crítica. É conhecido o
itinerário que a fé cristã no Ocidente percorreu no seu confronto com as
ciências. O percurso foi desde a submissão da ciência à teologia, enquanto
expressão refletida da fé, passando pelos conflitos que se agravaram na
modernidade e por uma seguinte etapa intermédia de harmonização apolo­
gética até chegar a ruptura radical com o positivismo da ciência. Hoje sl'
tenta superar tal momento com uma compreensão hermenêutico-crítica {k
ambas as partes 190 •
As ciências criticam a religião. Continuarão seu papel de desmitizar,
de purificar as religiões de resquícios animistas, má gicos ou de uma
visão pré-científica da realidade.
A religião aceita submeter seus pressupostos ao crivo da crítica científica
e captar as contribuições científicas para aperfeiçoar-se. As ciências oferecem
mediações para que a religião processe sua autocrítica. As ciências humanas,
já de longa data, alertam as religiões para o risco da alienação. As ciências
naturais desvendam-lhes as simplificações e confusões da ação de Deus com
eventos puramente naturais.
As ciências decidem muito sobre os comportamentos religiosos dos fiéis,
ora de maneira clara ora sutil. À guisa de exemplo, descobertas científicas
como a da eletricidade, dos meios de transporte e outras influenciaram pro­
fundamente a prática religiosa das pessoas. E continuam influenciando 191 .
A religião oscilou freqüentemente entre os extremos da rejeição da ciên­
cia e da submissão ao seu fascínio, assumindo acriticamente afirmações cien­
tíficas. Até hoje sente-se tentada a fazer leituras concordistas entre afirma­
ções ou fatos tidos como religiosos e constatações científicas.
A religião critica as ciências. Elas necessitam da crítica das reli­
giões para não se perderem na desumanidade, na ideologia. Admitem ques­
tionar muitas de suas pretensões, de seus pressupostos, por força da crítica
da religião e alimentar-se de impulsos vindos da religião.
Para além das críticas há uma mútua influência. Há cientistas, como F.
Capra, que mostram como intuições importantes de tradições de religiões
antigas batem com as científicas. Assim a física moderna reviu seus con­
ceitos sobre matéria, espaço, tempo, causa, efeito aproximando-se de uma

190. Explicitei tal percurso em J. B. Libanio - A. Murad, Introdução à teologia. Perfil, enfoques,
tarefas, São Paulo, Loyola, 1996, pp. i9-89.
191. O autor francês M. Lagrée estudou o impacto das ciências e especialmente do desen volvimen­
to tecnológico na mental idade e no comportamento do católico francês sobretudo no período entre 1830
e 1960. Constatou a oscilação entre a rejeição e o fascínio: La bénédiction de Prométhée. Religion et
technologie, com prefácio de Jean Delumeau. Paris, Fayard, 1999.

199
visão do mundo semelhante à existente no misticismo oricntal"' 1. M. Lagrée
refere-se na história das descobertas científicas a casos em que a religião
esteve na sua origem, tais como a invenção da eletricidade e do sistema de
propulsão para os navios 193 • M. Gauchet vê o cristianismo como agente da
modernidade 194 • Embora as posições oficiais da Igreja até os albores do
Concílio Vaticano II tenham sido de rejeição da modernidade filosófica,
não foi o caso a respeito de frutos das ciências e da tecnologia, que são
como a alma da modernidade. Daí o paradoxo de uma distância e proximi­
dade com o cristianismo. Pio IX introduziu nos territórios pontifícios o te­
legrama e o trem de ferro. Pio XII era extremamente curioso no referente aos
inventos e descobertas da ciência e tecnologia. Chegou a gravar programa de
TV. Além disso, a religião e a tecnologia encontram-se num toque de esoterismo
que ambas revelam. Diante das invenções tecnológicas, as pessoas simples sen­
tem-se maravilhadas como em face de uma força superior, religiosa.
A ciência favorece uma nova sensibilidade e atração por grandes tradi­
ções religiosas e estas, por sua vez, desmascaram a ideologia cientista, sua
pretensão de única instância da verdade.
Em certo sentido, já se deixaram para trás os tempos em que as ciências
humanas consideravam a religião como alienação ou obscurantismo, as ciên­
cias da natureza a viam como pertencendo ao mundo da emoção e da pura
subjetividade. Hoje já se lhe reconhece, enquanto instituição, uma proximi­
dade com as ciências e uma força heurística.
No que se refere à emergência do novo paradigma científico, as
religiões têm oferecido sua contribuição com sua visão de mundo. Elas
estabelecem verdadeira aliança com as ciências, sobretudo nas suas formas
da astrofísica, da cosmologia moderna, da teoria quântica 1 95•
Os avanços científicos, sobretudo a partir do começo do século, com a
teoria da relatividade, com a física quântica passando pela teoria do caos,
opõem-se às teses positivistas, que eram altamente hostis à filosofia e à re­
ligião. As novas ciências abrem espaço para a imaginação, para maior proxi -
midade com o mundo da vida, recorrendo a intuição, símbolos, mitos 1 96• Há
192. F. Capra, O tao da física: um paralelo entre a fisica moderna e o misticismo oriental, São Paulo,
Cultrix, 1993, pp. 21s.
193. M. Lagrée, La bénédiction de Prométhée. Religion et technologie, com prefácio de Jean Delu­
meau, Paris, Fayard, 1999, p. 346.
194. Entrevista com M. Gauchet, Un credo démocratique? in P. Colin - O Mongin, orgs., Un
monde désenchanté. Débat avec Marcel Gauchet, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1988, p. 95.
195. I. Prigogine - I. Stengers, A nova aliança: metamorfose da ciência, Brasília, UNB, 1984.
196. A. Foerst desenvolve original tese sobre o diálogo entre religião e ciência. Faz ambas remon­
tarem ao mito que as precede, as alimenta e a partir daí entabula frutífero diálogo. O mito é a realidade

200
mudança Je atmosfera. Tanto as ciências quanto a religião colaboram para o
estabelecimento de um clima de reconciliação ecumênica. Fala-se de religião
cósmica, chegando ao limiar de um neopaganismo. Na expressão de Eins­
tein, "a religião do futuro será uma religião cósmica. Deverá transcender a
idéia de um Deus como pessoa e evitar o dogma e a teologia" 197•
Ao estabelecer os princípios fundamentais dessa nova aproximação glo­
bal, holística e ecumênica, criada pelas novas ciências, F. Euvé indica carac­
terísticas que respondem muito bem às exigências das religiões. Caminha-se
na linha da unidade em vez da oposição clássica que distinguia, separava,
delimitava. Propugna uma fusão entre sujeito e objeto. Assume-se uma pos­
tura heraclitiana do movimento e da circularidade 198 • Nessa linha de refle­
xão, está a consistente e ampla publicação de L. BofP 99 •

Ciência e religião
"Discutirei as leis da natureza - particularmente seu estatuto ontológico
- que reputo como um assunto fundamental que deve ser resolvido por
um progresso autêntico em direção à integração e por uma rearticulação
frutuosa da ação divina em confronto com o pano de fundo da nossa
descrição científica da natureza e seu processo." "O modo como interpre­
tamos a Escritura hoje e o modo como fazemos filosofia e teologia hoje
indiretamente depende em grande parte dos avanços em muitas outras
disciplinas, incluindo as ciências naturais e humanas. " 200

primeira que antecede às duas enquanto sistematização. Em ambas há a dialética do mitos e do logos:
A. Foerst, The Stories We Tel1: The Mythos-Logos Dialect as New Method for the Dialogue between
Religion and Science, in T. Kelly - H. Regan, God, Life, lntelligence and the Universe, Adelaide,
Australian Theological Forum, 2002, pp. 1-35.
197. M. Ricard & Trinh Xuan Thuan, L'in.fini dans la paume de la main. Du Big Bang à l'éveil,
Nil/Fayard, 2000, note 5, p. 414, in F. Euvé, Science et mystique aprés la modernité. Un paradigme
enchanté? in Études n. 3942, janvier, 2001, p. 60.
198. F. Euvé, art. cit.
199. Para uma rápida visão, ver: L. Boff, O pobre, a nova cosmologia e a libertação. Como enri­
quecer a Teologia da Libertação, in L. C. Susin, Sarça ardente. Teologia na América Latina: Prospecti­
vas, São Paulo, Paulinas/SOTER. 2000, pp. 189-207; id., Dignitas terrae. Ecologia. Grito da terra e
grito dos pobres, São Paulo, Ática, 199 5.
200. Uma preocupação da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião foi estabelecer tal diálogo
em uma de suas Assembléias nacionais, cujos trabalhos foram publicados em L. C. Susin, org., Mys­
terium creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo, São Paulo, SOTER/Paulinas, 1999. Ver
também: W. R. Stoeger, The Laws of Nature, the Range of Human Knowledge and Divine Action,
Tarnów, Biblos, 1996, p. 7, 60, cit. por M. B. Ribeiro -A. A. Passos Videira, Problema da criação na
cosmologia moderna, in L. C. Susin, org., Mysterium creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o uni­
verso, São Paulo, SOTER/Paulinas, 1999, pp. 78s.

201
A religião, a ciência e o feminismo

Continente novo a ser explorado. Aqui somente alguns toques. O feminis­


mo afeta tanto a concepção de religião quanto a de ciência. A teoria feminista,
observam R. J. Russel, K. Wegter-McNelly, desde a década de 1960, produz
profundo efeito sobre nossa concepção de ciência, particularmente usando o
novo conceito de "gênero" como constituição social da masculinidade e
feminidade. Servindo-se da chave analítica de gênero a respeito do conteúdo
e da prática da ciência, o feminismo advoga a erradicação das distorções
do viés sexista no campo da epistemologia, metafisica, metodologia e
filosofia da ciência 2º1 •
As críticas à religião não são menos contundentes. A ampla biblio­
grafia publicada entre nós aponta diversas direções dessa relação crítica entre
feminismo e religião.
De maneira extremamente sumária, indicamos três direções. Uma pri­
meira consiste na recuperação do papel da mulher na religião. No mundo
bíblico-cristão, a presença e ação das mulheres no Primeiro e no Segundo
Testamento ocuparam atenção de muitos estudos. Essa orientação parte da
preocupação pela mulher como objeto de pesquisa no campo religioso 202 .
Uma segunda direção vai mais longe. Institui uma releitura da teo­
logia, feita predominantemente por cléri gos homens, sob a ótica da
mulher. Esse empreendimento tem duas faces. Uma de natureza formal em
que se investigam os pressupostos epistemológicos e metodológicos da teolo­
gia, apontando-lhes o traço androcêntrico e elaborando outros que levem em
consideração o gênero 211 ·i_ Outra face avança e retoma os conteúdos mesmos da
201. R J. Russel K. Wegter-1k:-.!elly, op. cit., p.1 i; referem-se eles à antologia Feminism and
Science, de Evelyn Fax Keller e Helen E. Longino (Oxford, Oxford University Press, 1996).
202. 1\. t--1. Tepedino, As discipulas de Jesus, Petrópolis, Vozes, 1990; id., Jesus e a recuperação do
ser humano mulher, in REB 48 (1988), pp. 273-282; T Cavalcanti, Mulheres e profetismo no Antigo
Testamento, in VV.AA., Curso de Verão. li, São Paulo, Paulinas, 1988, pp. 49-61; id., O profetismo das
mulheres no Antigo Testamento. Perspectivas de atualização, in REB 46 (1986), pp. 38-59; id., Jesus,
a pecadora pública e o fariseu, in M. Brandão, org., Teologia na ótica da mulher, Rio de Janeiro, PUCRJ,
1990, pp. 1:15-162; L. Weiler, A mulher na Bíblia, in Vida Pastoral 31 (1990), n. 150, 2-9; M. Corrêa
Pinto. A mulher e o anúncio do Reino, in Vida Pastoral 28 (1987), n. 135, pp. 21-35.
20.l M. CI. L Bingemer, ... E a mulher rompeu o silêncio. A propósito do segundo Encontro
sobre a produção teológica feminina nas Igrejas cristãs, in Perspectiva teológica 18 (1986), pp. 371-381;
A. M. Tepedino, A mulher: aquela que começa a "desconhecer seu lugar". Comunicado do Encontro
sobre a Questão da Mulher nas Igrejas Cristãs, in Perspectiva teológica 17 (1985), pp. 375-3i9; I.
Gebara M. CI. L. Bingemer, A mulher faz teologia, Petrópolis, Vozes, 198i; VV.AA., A mulher pobre
na história da Igreja, São Paulo, Paulinas, 1984; J. M. Tierny, A mulher na Igreja: Presença e ação hoje,
Petrópolis, Vozes, 1975; E. Támez, Teólogos da libertação falam sobre a mulher, São Paulo, Edições
Loyola, 1990; A. M. Tepedino � - M. L. R. Brandão, Teologia de la mujer en la teologia de la liberación,
in I. Ellacuría J. Sobrino, org., Mysterium liberationis. Conceptos fundamentales de la teologia de la
liberación, I, Madrid, Trotta, 1990, pp. 287-298.

202
teologia e rcpen■a-01 sob a ótica do gênero. Trabalho apenas iniciado e que
promete transformações profundas na teologia no referente à imagem de Deus,
à compreensão da Encarnação, à eclesiologia, aos sacramentos, aos ministérios
na Igreja etc. Grandes teólogas européias, norte-americanas e latino-america­
nas têm-se dado a esta tarefa. Seria longo citar-lhes as obras e nomes 211\
Descortina-se tendência ainda mais radical. Considera-se que todo o
esforço da segunda tendência é pôr remendos novos em veste velha. É o pró­
prio teologar estruturante, as próprias fontes da teologia que estão visceralmentc
contaminados pelo patriarcalismo. Toda a produção bíblica, patrística e teoló­
gica fez-se sob a égide da cultura patriarcal. Os tempos matriarcais não nos
deixaram escritos. A cultura escrita, acadêmica, como as religiões do li­
vro, são profundamente masculinas. Faz-se necessário um começar
diferente. O próprio do feminino é a escuta da vida, sua gestação, seu acom­
panhamento para que as pessoas sejam pessoas. Só lentamente se construirá
um pensar religioso na perspectiva do feminismo radical. Culturalmente tem­
se que superar o modelo hierárquico, patriarcal, kiriárquico e dualista. O modelo
feminino é diferente. Dentro dele se pensa a religião diversamente, especial­
mente como fonte e geradora de vida. O traço feminino por excelência vincula­
se à geração e ao sustento da vida. Se a mulher não a gera sozinha, é ela, porém,
que a nutre, a carrega, a acompanha e cujo corpo e psicologia existem voltados
para ela. A partir daí se pensará uma relação nova com a religião.
Esse é um discurso tipicamente programático. Suas bases teóricas e suas
possibilidades históricas ainda não foram testadas nem julgadas. Está em
jogo uma antropologia que parece exagerar o corte entre o intelectual e o
intuitivo, de tal modo que todo esforço racional. sistêmico seja identificado
com o masculino, patriarcal enquanto se reservam à mulher a acolhida, a
captação pelas vias afetivas. Ambos são realidades humanas do homem e da
mulher. Há muito mito e encurtamento no delinear as linhas divisórias do
masculino e feminino, sem que não se possa negar a verdade de um império
masculino opressor na civilização da letra, da história. É difícil, porém, apon­
tar-lhe as bases antropológicas com as conseqüências epistemológicas, meta­
físicas, metodológicas e outras.
Tal discurso feminista radical surge como uma inquietação provocado­
ra que nasce à margem das instituições acadêmicas e religiosas. Brota da

204. Para a teologia do primeiro mundo, ver a apresentação do panorama feita por F. Taborda,
Feminismo e teologia feminista no Primeiro Mundo. Breve panorâmica para uma primeira informação,
in Perspectiva teológica 22 (1990), pp.311-337. Para uma rápida visão da produção teológica na Amé­
rica Latina: A. Antoniazzi J- B. Libanio, 20 anos de teologia na América Latina e no Brasil, Petró­
polis, Vozes, 1994, pp. 71-75_

203
angústia e da inquietação diante da incapacidade de se atingir todo um
mundo feminino que já não suporta viver num universo de pensamento, de
academia e de instituições religiosas marcadamente patriarcais, hierárqui­
cas e kiriárquicas.

As religiões na conjuntura política atual

As religiões, enquanto instituição, não perderam sem mais sua pre­


sença pública. Modificaram-na. Uma única religião já não tem no Ocidente
o monopólio da interpretação da verdade e do bem, como teve o cristianismo
durante séculos. Estamos numa sociedade e cultura pluralista. Sua força
vem agora de novas funções, mas sobretudo de seu diálogo entre elas, da
criação de uma consciência comum de valores éticos fundamentais da huma­
nidade aos quais oferecerão sua motivação e força convocatória.
Seu futuro e sua presença vão depender enormemente da maneira como
elas conduzirão esta dupla tarefa de dialogarem entre si e de oferece­
rem à humanidade valores éticos respaldados na sua qualidade de media­
ções do Absoluto, da Última Realidade. Unem-se ao conteúdo a força da
motivação e o poder de convocação pela sua natureza transcendente.
Na seqüência do atentado de 11 de setembro, J. Habermas reflete sobre
o papel da religião numa sociedade moderna secularizada. Considera supe­
rada a oposição radical entre ambas. Tanto uma posição religiosa que rejeita
a modernidade quanto uma modernidade que desacredita a religião como se
seu papel já tivesse caducado totalmente.
A consciência religiosa, observa, deve saber conviver com outras confis­
sões e religiões, ajustar-se à autoridade de ciências que detêm o monopólio
social de conhecimento do mundo e responder às condições de um Estado
constitucional regido por uma moral profana. Sem isso, os monoteísmos
desenvolvem, de maneira irresponsável, potencial destrutivo em sociedades
modernizadas. Sua contribuição para a discussão pública consiste em tradu­
zir em linguagem leiga suas convicções religiosas. A transposição para a pauta
dos direitos humanos de concepções que as religiões haurem de suas tradi­
ções e revelação significa excelente contribuição para a existência das socie­
dades seculares.
Tal esforço das religiões implica da parte da sociedade secular e do Es­
tado uma capacidade de captar essa reserva de sentido que as religiões con­
servam e de que a vida humana tanto necessita. Por isso, a religião oferece à

204
sociedade civil pós-secular fonte de sentidos que não se encontram facilmen­
te alhures, sem que isso implique necessariamente vincular-se a ela !º \
Deixarei para o capítulo seguinte a sua função de consolo, de referência
transcendente para as subjetividades. Aqui nos concentraremos na sua fun­
ção de caráter diretamente social.
A religião e, de modo especial. a Igreja cristã, é chamada a não recuar a
tempos antes da modernidade, nem a soldar aliança indissolúvel com a moder­
nidade, nem a sucumbir aos encantos da pós-modernidade, mas a ir além
sem perder as riquezas de alianças anteriores.
O recuo a tempos culturais pré-modernos sabe a fundamentalismo, a
fanatismo, a rigorismo ortodoxo, a reacionarismo sem futuro para o conjunto
da Igreja. Haverá sempre grupos que se satisfarão com tal solução. Encherão
igrejas e seminários, mas são profetas do passado e do caduco.
O Concílio Vaticano II, em seu otimismo, firmou a aliança com o
mundo moderno, expressa sobretudo na Constituição Pastoral Gaudium
et spes. Na base estavam as grandes teses da modernidade, lidas com olhos
otimistas da visão cristã. A emancipação pela razão era sancionada pela
convicção de que o mesmo Deus da revelação é o da razão. Por que temê­
la? A humanização pela técnica respondia a reflexões de longa data que
viam no desenvolvimento tecnológico o cumprimento da ordem divina dos
inícios de subjugar a Terra. Muita tinta teológica derramou-se harmoni­
zando tecnologia e projeto humanizador de Deus. A justiça promovida
pelo desenvolvimento recebeu na expressão de Paulo VI na Populorum
progressio o nome de Paz.
A teologia da secularização, do cristão anônimo, do existencial sobre­
natural consagrava as estruturas crísticas do mundo, da história humana.
O cristianismo emergia realmente como a religião da história. Só ele
era capaz de dar conta positivamente da presença de Deus, da cristificação,
da tendência para o ponto ômega do processo evolutivo da natureza e da
história. Numa palavra, o Concílio Vaticano II consagrara a conver­
gência fundamental entre os ideais dos direitos humanos, do huma­
nismo moderno, da modernidade em geral com os valores básicos
do cristianismo. Basta lembrar-se das discussões entre evangelização e
humanização com a tendência de identificar toda humanização com evan­
gelização, ao menos incoativa.

205. J. Habermas, !-'é e conhecimento, in Folha de S. Paulo, Caderno Mais. 6 de janeiro de 2002,
pp. 4-11.

205
Humanização e evangelização
"Em numerosas igrejas cristãs, polarizações paralelas se produziram entre
aqueles que vêem a essência da Igreja na evangelização e a salvação das
almas e aqueles que a encontram na ação social para salvar e libertar a
vida real. Mas para um cristão não há alternativa entre evangelização e
humanização. Não há alternativa entre conversão interior e transformação
das relações e condições de vida. Não há alternativa entre a dimensão
assim dita vertical da fé e da oração e a dimensão assim dita horizontal do
amor do próximo e da mudança política. Não há alternativa entre jesulogia
e cristologia, entre humanidade e divindade de Jesus. Todas duas coinci­
dem na sua morte na cruz. Quem faz aqui divisões põe alternativas e
advoga pela separação, divide a unidade de Deus e do homem na pessoa,
na imitação e no futuro de Cristo. " 206

Esse namoro romântico rompeu-se por vários lados. Pelo lado conser­
vador, atribuindo-lhe os estragos que a Igreja Católica sofrera nos anos pós­
conciliares. Tese assaz conhecida para ser mais uma vez repetida. Basta ler
alguns comentários do Cardeal Ratzinger sobre essa face dos tempos pós­
conciliares na sua entrevista ao jornalista italiano V. Messori 20 ;_ Pelo lado do
mundo dos pobres, a teologia da libertação desvelou a face obscurecida e
sofrida do Terceiro Mundo e a conexão entre sua situação e o processo de
desenvolvimento do capitalismo moderno.
Desde as grandes contestações da década de 1960 até a pós-modernidade
presente, os ideais principais da modernidade - desenvolvimento ilimi­
tado, progresso tecnológico assombroso, democracia e liberdade, melhoria
das condições sociais da humanidade etc. - são criticados como mitos.
Acentuam-se os avatares de tal modelo de desenvolvimento. Nessa onda de
protestos, explode uma pós-modernidade fragmentada, ultra-subjetivista,
sôfrega de prazer e gozo, decepcionada com as grandes causas e temas, de­
sejosa de uma harmonia sem tocar as causas sociais de injustiça, produto
sofisticado do mesmo sistema que condena.
A religião e as Igrejas terão futuro se souberem reter da pré-mo­
dernidade os grandes valores da tradição, sobretudo a consciência da Trans­
cendência, do Sagrado, do Mistério como fonte última e absoluta dos valo­
res; da modernidade as suas grandes conquistas da liberdade-autonomia e

20ó. J. �loltmann, Le Dieu crucifié. Lacroix du Christ, fondement et critique de la théologie chTétienne,
Paris, Cerf/Mame, 19i4, pp . .lOs.
20i. V. Messuri, ;\ fé em crise?() Cardeal Ratzinger se interroga, São Paulo, EPC, 1985, p. ló.

20ó
do pluralismo: da pós-modernidade a percepção da vacuidade de uma vida
dedicada aos ideais modernos do puro trabalho em vista de enriquecer-se à
custa das relações humanas e afetivas. Para tal, é necessário elaborar uma
síntese baseada na Transcendência, na identidade e autonomia das
pessoas e nas grandes causas da humanidade e do planeta terra. Num
esforço gigantesco de superar os seus interesses corporativos, na realidade
altamente ameaçados, a religião e as I grejas, enquanto instituições, encon­
trarão chance de presença significativa se mostrarem a relevância insubsti­
tuível do Sagrado, do Mistério para que os valores fundamentais da moder­
nidade não naufraguem e os desejos imprecisos da pós-modernidade não se
percam por trilhas erráticas.
A Transcendência, o Sa grado, o Mistério têm força de reor ganizar
tanta desordem que a pós-modernidade aumentou, ao querer corrigir os
desmandos da modernidade. Evidentemente não se trata de um Sagrado
arcaizante, "selvagem", que vem surgindo nas ondas pós-modernas. Tam­
pouco é na linha da desintegração, da fragmentação, da subjetivação, das
contestações irracionais e confusas que se opõem aos excessos da modernida­
de tecnológica. Só os caminhos da ética e da reli gião conseguem trazer
respostas para a humanidade. Mas não paralelamente e sim integradamente.
A religião oferece motivações e fundamentos que dificilmente a ética sozi­
nha consegue. E a ética aponta para razões que se dirigem às pessoas para
além de suas próprias religiões e descortina causas humanitárias.
Analisando a primeira viagem de João Paulo II ao Brasil, Pe. Vaz vislum­
brava, a partir daquele gigantesco terremoto popular que ela produzira, um
papel futuro para a Igreja institucional. Não se trata de legitimar nenhum
Estado de qualquer cor que ele seja. À I greja, como parte da sociedade civil,
desde sua experiência popular, caberia cumprir uma função de mediação
entre a sociedade política organizada como Estado e a vida concreta
do povo. Isso implica de sua parte crescente comunhão com o ethos popular,
de cujos valores e interesses ela se faz portadora na sua ação e linguagem
segundo sua gramática e semântica cristã 208 •
Desde 11 de setembro de 2001, vive a humanidade novos tempos. As
religiões cristãs, de modo especial a Igreja Católica, ficaram perplexas diante
dos fatos. Foram firmes em condenar o terrorismo no seu ato concreto. Mas
não tiveram a mesma lucidez ou possibilidade política de fazer o mesmo a
respeito da retaliação americana. Aí os juízos permaneceram num nível gené-

208. H. C. de Lima \"az, Igreja e sociedade no Brasil: primeiras reflexões depois de João Paulo li,
in :\. 1.. Rocha - 1.. :\. Gómez de Souza, O povo e o Papa. Balanço crítico da visita de }c,àc, Paulo li
ao Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1980, pp. 183s.

207
rico, que, bem entendido, condenavam a ação desproporcional, indiscrimi­
nada da resposta. O peso do episcopado americano, tolerando e até mesmo
justificando a ação de seu país, por sentir não poder afastar-se da sua opinião
pública, dificultou uma tomada de posição forte do resto da Igreja Católica,
especialmente de suas autoridades maiores.
Entre os dois pólos opostos da religião islâmica, que assume em alguns
países forte presença política e que sustentou, num de seus ramos, o regime
talibã, e uma religião desfibrada profeticamente, perdida nas ondas da reli­
giosidade de tipo nova era, abre-se o verdadeiro lugar para a religião cristã.
Sem o retrocesso pré-moderno e sem a capitulação diante da vaguidade re­
ligiosa, cabe-lhe um papel profético que a teologia da libertação até hoje
defende. Em dado momento, ser profeta é anunciar o perdão. Termo que os
poderosos desconhecem.

Não há paz sem justiça - Não há justiça sem perdão


"Testemunhando unanimemente a verdade moral de que o assassínio do
inocente é sempre um pecado grave. em toda a parte e sem exceções. os
líderes religiosos do mundo favorecerão a formação de uma opinião públi­
ca moralmente correta. Este o pressuposto necessário para a edificação
de uma sociedade internacional capaz de procurar a tranqüilidade da ordem
na justiça e na liberdade. Um compromisso nesta linha por parte das
religiões não deixará de conduzir à estrada do perdão. que leva à recíproca
compreensão, ao respeito e à confiança. O serviço que as religiões podem
prestar em prol da paz e contra o terrorismo consiste precisamente na
pedagogia do perdão, porque o homem que perdoa ou pede perdão enten­
de que existe uma Verdade maior do que ele e. acolhendo-a. consegue ele
mesmo transcender-se a si mesmo. " 209

O futuro das igrejas pentecostais

O censo de 2000, que retrata as religiões no Brasil, "dá a pensar", diria


P. Ricoeur. Os números são símbolos que pedem um mínimo de racionali­
dade de interpretação.
A. Antoniazzi, um dos teólogos mais perspicazes para interpretar dados
estatísticos, situando-se diante do evidente e expressivo crescimento das igre-

209. Mensagem do Papa joão Paulo li para a Celebração do Dia }.fondial da Paz • 1" de janeiro
de 2002, n. 1.1.

208
jas evangélica■ apraentado pelos diversos censos, constata que elas se mos­
tram "mais dinâmicas e agressivas na procura de novos fiéis, enquanto a
organização da I greja Católica parece ter agido com bastante lentidão diante
das mudanças socioculturais"nu_
Em 1890, a proporção entre católicos e protestantes era de 98,8% para
1%. Em 1950, já era de 93,4% para 3,3%; em 1980 já se reduzira de 88,9%
para 6,6% e agora em 2000 temos 73,8% para 15,4%. Aí está o silêncio <los
números dizendo que em vinte anos os protestantes mais que dobraram. Sú
nos últimos dez anos, os protestantes passaram, em números absolutos, <lc
13 milhões para 26 milhões. Sem descer a pormenores de análise da pesquisa,
interessa-nos sondar as causas que têm acenado com futuro promissor aos
evangélicos. Por outras fontes, sabe-se que no mundo protestante a imensa
maioria - certamente não menos de dois terços - são pentecostais.
O futuro anuncia um crescimento desse tipo de religião. Como entender
esse fenômeno? Bastam as explicações gerais dadas para o surto do fenômeno
religioso ou há razões específicas na América Latina que anunciam um cres­
cimento do fenômeno especificamente pentecostal evangélico?
Dentro do fenômeno religioso, o pentecostalismo e o neopentecostalismo
na América Latina ocupam espaço original e não respondem às mesmas
explicações que têm provocado o surto espiritualista. A leitura mais comum,
que corresponderia à análise do fenômeno religioso, relaciona o crescimento
de ambas expressões evangélicas às mudanças globais da sociedade, reagindo
à secularização exagerada.
Nem parece suficiente dizer que as pessoas encontram nessas religiões
promessas para a solução material de seus problemas. Nem se trata simples­
mente de uma aplicação do espírito empresarial moderno à fabricação e dis­
tribuição dos produtos religiosos, usando os recursos da telemática. Há parte
de verdade. Esse movimento religioso tem mostrado uma capacidade única
de responder psíquica e religiosamente ao imaginário dos pobres, dos deser­
dados da sociedade, elaborando formas sincréticas. Nos países de predomi­
nância indígena, assume elementos religiosos dessa tradição, tais como certo
tipo de cura e de liderança 211• No caso do Brasil, como observa A. Antoniazzi,
os pentecostais retomam traços tradicionais católicos, deixados de lado por
nós depois dos ferveres do Vaticano II. Entre eles, estão a figura do demônio,
as curas, os milagres, o corte nítido entre o mundo do bem e do mal, Deus

210. A. Antoniazzi. As religiões no Brasil segundo o Censo de 2000, in Jornal de Opinião U


(2002), n. 678, pp. 6-i.
211. Nessa reflexão, assumimos muitos elementos de F. Damen, Religión de los desheredados, in
Revista Cuarto lntermedio n. 30, febrero, 1994, pp. 53-il.

209
como poder, a busca de certeza apoiando-se na autoridade do pastor etc. m
Dito de um modo geral, eles conseguem realizar um sincretismo com a cul­
tura popular, respondendo a suas demandas mais profundas.
Com uma estrutura mais ágil, permitem que os pobres façam profunda
experiência de vida e de salvação, num mundo de morte e de condenação, de
maneira imediata, direta, perceptível, espontânea, pessoal, sem sofisticações
teóricas, teológicas. Cria-se um ambiente religioso de acolhida, de oração, de
ambiente espiritual, de "força imediata e direta de Deus", de modo que to­
das as experiências negativas psíquicas, físicas, espirituais - degradação
humana, bebida, prostituição, miséria, alcoolismo, drogas, desprezo, desper­
sonalização, massificação, fracassos etc. - são reinterpretadas, não teorica­
mente, mas existencialmente, experiencialmente para um mundo de digni­
dade humana, de recuperação, de autovalorização, de reconhecimento, numa
palavra, de vida e salvação, expressão da vitória de Deus sobre o mal. Os
evangélicos reinterpretam toda sua vida, até então sem sentido, massacrada
por tantos sofrimentos físicos, psíquicos e espirituais, como uma verdadeira
conversão para o Deus que os acolhe e salva. Com isso, criam uma identida­
de clara num mundo fragmentado e fragmentante. Nada há de tão sedutor
quanto saber quem se é - salvo por Deus - e para onde se vai - para a
salvação de Deus-, tendo experimentado de onde se veio - do mundo do
pecado e do mal. Transforma-se a maneira de ser no mundo.
Enquanto as outras religiões não conseguem oferecer as mesmas possibi­
lidades, com estruturas e teologias complexas, os pentecostais penetram os
interstícios do cotidiano das pessoas, levando aí essa nova aura espiritual de
salvação. Daí o entusiasmo contagiante, espontâneo que desperta o zelo
missionário, proselitista até as raias do fanatismo. Qualquer evangélico arvo­
ra-se em evangelizador, rompendo a tradicional barreira entre os agentes
especializados e o povo, entre o produtor de bens religiosos e o consumidor,
tão comum nas igrejas mais institucionalizadas. Todos se sentem envolvidos
como sujeitos da mesma experiência religiosa, salvífica. Não é de estranhar
que as massas pobres se desloquem para esse tipo de igreja.
Evidentemente nessa proposta salvífica, há muitas contradições. O cho­
que cultural com a modernidade e pós-modernidade, em muitos aspectos,
levará a desgastes enormes. À medida que a cultura popular se modificar por
influência das mudanças econômicas e sociais, muitos elementos desse pro­
grama ''salvífico'' sofrerão corrosão.
212. A. Antoniazzi, As Igrejas dos "crentes". Uma oportunidade para repensar a ação pastoral,
mimeo. INP, 1990.

210
No entanto, ainda por muito tempo tal proposta tem futuro, pois a situa­
ção social do mundo dos pobres nesse modelo neoliberal não parece melhorar
nem material, nem psicológica nem espiritualmente. Antes, os pobres degra­
dam-se ainda mais sob o peso da força opressora do modelo econômico he­
gemônico.

Religião como futuro dos pobres

O futuro das i grejas pentecostais levanta-nos a grave questão para


a América Latina: tem a religião um papel de esperança e de futuro
para os pobres? As classes letradas comportam-se ambiguamente diante da
religião. A religião institucional perde cada vez mais força. Formas religiosas
soltas respondem à busca de sentido por uma vida materialmente confortá­
vel, mas vazia de consistência existencial.
Para os pobres, a questão é bem diferente. No parágrafo anterior já se
indicavam pontos em que as igrejas pentecostais cumpriam um papel "salva­
dor para os pobres". W. Cesar e R. Shaull defendem "a tese de que a expe­
riência religiosa do poder do Espírito Santo é feita na vida cotidiana das
pessoas que não têm nenhum projeto, pois a vida não reserva nada para
elas" 213• A reli gião vai assumir assim um papel fundamental na vida
dos pobres, oferecendo esperança num mundo em que, numa pers­
pectiva material realista, só caberia o desespero.
Uma leitura positivista, reducionista e progressista não consegue captar
essa dimensão de futuro que os pobres encontram na religião, tanto pentecostal
evangélica, quanto nas comunidades eclesiais de base de corte católico.
Embora haja enorme distância entre ambas, não é, porém, tão fora de pro­
pósito aproximá-las, como o fez o CERIS em sua pesquisa 21 4.
Cabe aqui apontar o futuro da religião à medida que consiga oferecer
futuro aos pobres. Esses dois futuros estão imbricados. São milhões de pes­
soas que se alimentam dela para construir a vida com sentido em meio às
maiores ameaças e flagelos. O anúncio da morte da religião institucional tem
pertinência, se se fixa no universo letrado, secularizado e modernizante de
muitas pessoas e no desconhecimento do mundo dos pobres. Infelizmente
num horizonte perceptível por nós nada leva a pensar que este mundo dos

213. W. Cesar - R. Shaull, Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Promessas e desafios, Petró­
polis/São Leopoldo. Vozes/Sinodal, 2001, p. 11.
214. Cadernos CERIS, Pentecostalismo, Renovação Carismática Católica e Comunidades Eclesiais
de Base, Rio de Janeiro, CERIS, 2001, n. 2.

211
pobres desapareça, nem mesmo diminua. Antes parece estar crescendo, tor­
nando-se sua situação cada vez pior. A religião, bem para além das análises
de psicologias ou sociologias de corte secularista, marxista, retém uma forç·a
mística que lhe garante uma presença certa e crescente no meio dos pobres.
O pentecostalismo, que aqui inclui também o neopentecostalismo,
representa a religião dos pobres. Isso aparece aos olhos de quem freqüen­
ta os templos de celebração pentecostal. A mais vigorosa no Brasil é a Igreja
Universal do Reino de Deus. Por isso, tem sido mais estudada m. Todas têm
um caráter de liberdade, espontaneidade, criatividade que desafia as religiões
institucionais tradicionais.

Liberdade e criatividade pentecostal


"Apesar de se reconhecer que essas novas expressões do campo religio­
so cristão mantêm o arcabouço doutrinário da fé cristã, elas se manifestam
com muita criatividade, rompendo esquemas e fórmulas predeterminadas,
e não se enquadram em modelos únicos. Podem mesmo ser chamadas de
'transgressoras', com inovações que vão se multiplicando. Reagem ao que
definem como 'um enquadramento de Deus' ou a 'domesticação do sagra­
do'. A busca de canais mais livres e diretos de acesso ao sagrado, com
manifestações espontâneas repletas de emoção, é marca dessas novas
expressões e representa busca de liberdade de formas de adoração e
culto. São desafios que precisam ser respeitados e compreendidos. Natu­
ralmente essas manifestações podem ser desvirtuadas, manipuladas por
lideranças inescrupulosas e usadas para fins ideológicos e políticos. " 216

Há um efeito que o pentecostalismo produz diretamente no fiel,


dando-lhe sentido para existir. Está aí sua maior força. Nas celebrações
vive-se um clima de entrega de si que é simbolizado fortemente nas ofertas
em dinheiro. As críticas, que a imprensa e os setores católicos e protestantes
tradicionais, não sem razão, fazem a respeito da exploração da credulidade
popular por parte de pastores gananciosos, cobrem parte da verdade. A TV e
215. J. Edênio dos Reis Valle, A "Universal": um fenômeno mercadológico-religioso brasileiro, in
REB 58 (1998), pp. 350-384; M. N. Barros, A batalha de Armagedom. Uma análise do repertório mágico­
religioso proposta pela Igreja Universal do Reino de Deus, mimeo. Belo Horizonte, 1995; M. Justino, Nos
bastidores do Reino. A vida secreta na Igreja Universal do Reino de Deus, São Paulo, Geração Editorial,
1995; R. Mariano, Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo, Loyola,
1999, pp. 53-98
J.
216. P.Ramalho, Desafios no campo religioso brasileiro, in Cadernos CERIS, Pentecostalismo, Reno­
vação Carismática Católica e Comunidades Eclesiais de Base, Rio de Janeiro, CERIS, 2001, n. 2, p. 5.

212
artigos de revista mostraram cenas vergonhosas de tal cobiça pecuniária. No
entanto, os fiéis, ora atribuem tais críticas às perseguições previstas pelo
Evangelho aos seus obreiros, ora à fraqueza humana que eles sabem relevar.
Experiências fundamentais do ser humano encontram na religião
pentecostal seu significado convincente. O mal é incorporado pelo de­
mônio e contra ele se fazem os exorcismos e se travam as lutas na certeza da
vitória pela força de Jesus. Tal percepção dá coragem e sentido para enfrentar
as situações adversas. O milagre completa o quadro de esperança no poder
de Deus. O momento do culto leva essa experiência de vitória a seu paroxis­
mo. O elevado clima de emocionalidade, de alegria contagiante potencializa
a vivência espiritual. Consegue mais. Faz que ela atravesse o cotidiano das
pessoas. A articulação entre o momento cúltico e o dia-a-dia permite
que as pessoas consigam suportar com destemor as realidades contrá­
rias. De fato, elas dizem sair animadas, nunca frustradas, sempre surpresas
do poder espiritual produzido nelas, embora o ritual seja repetitivo na sua
estrutura de cantos, apelos, mensagens e coletas. Os decibéis de entusiasmo
variam, os milagres e exorcismos acontecem sempre com alguém de modo
que todos se sentem envolvidos pelo clima. Mesmo que o ambiente assuste
a quem o visita pela primeira vez, termina, no entanto, tocando em profun­
didade as pessoas, aliviando-as e, mais ainda, dando-lhes um sentido maior
para a vida, tão dura e pesada. Esse ponto merece relevo. Na profunda trans­
formação de vida está grande parte da força do pentecostalismo. A experiên­
cia com as pessoas, que possuem uma fé firme e compacta, evidencia como
a presença da Transcendência no imanente de suas vidas torna suportáveis as
imensas contrariedades, antagonismos, frustrações do cotidiano.
Outra dimensão da força do pentecostalismo lhe vem do espírito
de solidariedade, de comunidade, onde se recebem e se oferecem as
ajudas. Contribui indiretamente para superar as estruturas injustas da atual
sociedade, ao combater a violência, a fome, as situações inumanas e degra­
dantes de muitos pobres. Muitos elementos no culto pentecostal permitem
que as pessoas se sintam protegidas pela comunidade. A liberdade de movi­
mento no interior do tempo, a riqueza gestual, a espontaneidade de qualquer
um e aceita por todos, a facilidade como um se dirige ao outro para impor­
lhe a mão e rezar sobre ele, a interpelá-lo em nome de Jesus produzem um
ambiente de fraternidade, de responsabilidade de todos por todos.
W. Cesar, recorrendo a reflexões de J. Freire Costa e O. Lewis, descobre
até no ato de dar esmola uma dimensão social libertadora. O ato de genero­
sidade permite que o ofertante experimente um gesto de grandeza espiritual
de dom num mundo interesseiro e individualista.

213
V'tt6ria sobre a pobreza pela solidariedade
"Qualquer movimento, seja religioso, pacifista ou revolucionário, que orga­
nize e dê esperança aos pobres e promova efetivamente solidariedade e
um sentido de identificação em grupos grandes, destrói o coração social
e psicológico da pobreza" 1. .. 1 "ou Cos pobres) quando adotam um ponto
de vista internacionalista sobre o mundo, deixam de pertencer à cultura da
pobreza ainda que sigam sendo desesperadamente pobres. " 217

O pentecostalismo cria nos fiéis a vocação de missão. A configura­


ção externa do templo permite perceber a transição fácil entre ele e a rua.
Entra-se e sai-se com a maior naturalidade, de modo que se tem a impressão
de que o mundo entra no templo e o templo sai para o mundo numa conti­
nuidade espontânea. A ruptura tradicional sagrado/ profano adquire outra
conotação. Não se faz na simbologia externa, mas na intencionalidade inter­
na das pessoas. Ao entrar o mundo no templo, ele converte-se. Ao sair o
templo para o mundo, ele se faz evangelizador. Com a mesma espontaneida­
de pecadores, bêbados, prostitutas penetram o templo para aí serem tocados
por Jesus, saem os fiéis para levar ao exterior a mensagem evangélica de
conversão. O zelo missionário assume enorme potencial de sentido para as
vidas das pessoas.
Fala-se de um novo paradigma interpretativo do cristianismo e de
sua emergência no mundo dos pobres 218• Trata-se um fato de massa 219• O
batismo no Espírito exprime visivelmente a novidade da vida que se assume,
cheia da força do Espírito. Rompe-se com a anterior e encontra-se nova for­
ma de viver com sentido a fé. O dom das línguas traduz freqüentemente a
confirmação dessa presença do Espírito, como os exorcismos, a força das
bênçãos, os milagres, a coragem de testemunhar a fé. Todo esse conjunto

217. O. Lewis, La cultura de la pobreza, Barcelona, Anagrama, 1972, p. 19, citado por: W. Cesar
- R. Shaull, Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Promessas e desafios, Petrópolis/São Leopoldo,
Vozes/Sinodal, 2001, p. 56.
218. W. Cesar R. Schaull, Pentecostalismo e futuro das Igrejas cristãs. Promessas e desafios,
Petrópois/São Leopoldo, Vozes/Sinodal, 2001, p. 33.
219. Com muita pertinência, Pedro Rubens F. Oliveira analisa, na sua monumental tese doutoral.
esse "pentecostalismo de massa" como um fluxo de mar em três ondas: o batismo no Espírito e a nova
linguagem da fé, a fé às voltas com o exorcismo e a cura divina, e a fé na mídia e na cultura do imediato.
Analisa-o em quatro eixos: a continuidade na fragmentação, os deslocmentos pentecostais no espaço e
no tempo, a tensão entre carisma e instituição, e a insurreição emocional dos pobres. Tal fato põe,
segundo a tese, promessas e desafios à fé cristã no nível da experiência, linguagem, modernidade e
religiosidade popular. P. R. Oliveira, l.a foi vécue au pluriel. Penser avec Paul Tillich. Un discernement
théologique du croire en contexte brésilien, tese de doutorado, Paris, Centre Sévres - Faculté de Théo­
logie, 2001, pp. 129-165.

214
religioso aponta para uma nova maneira de viver com sentido a fé e enfrentar
com esperança e destemor os problemas da dura vida dos pobres.
Aqui não se trata de fazer uma interpretação sociológica e teológica do
fato, mas simplesmente de apontar tendências e constatar realidades. Quan­
do se afirma que a religião pentecostal anuncia ser a "religião dos pobres",
não se quer entrar no mérito da questão: alienação? Consciência possível?
Verdadeira libertação pela fé? No capítulo seguinte, ao tratarmos da evange­
lização desse universo pentecostal, recorreremos à teologia que reconhece na
certeza salvífica que os pobres percebem tanto um verdadeiro sentido teolugal
quanto também possíveis ilusões. Há um espaço de discernimento a ser feito.

CONCLUSÃO

Nem na euforia do triunfalismo de uma religião ocupando os espaços


vazios abertos pela crise do sistema dominante, nem na demissão diante de
qualquer função pública nas pegadas dum carismatismo fluido, mas na lu­
cidez crítica enquanto instituição, respaldada na tradição e memória de seus
valores, na capacidade de motivação e mobilização dos corações está o seu
futuro. Os seus coveiros de ontem já estão sepultados. Os de hoje vêem-na
mais sadia que candidata à sepultura.
Se tal função parece difícil de ser cumprida em países avançados do Pri­
meiro Mundo, ela mostra-se real e existente em nosso continente. Estamos
acostumados a olhar para o Primeiro Mundo como um "para onde cami­
nhar". Em muitos pontos, as ondas inovadoras vieram de lá e inundaram
nossas plagas. No entanto, o papel da religião, em especial das Igrejas cristãs
em nossos países, parece apontar para vias outras e originais. O laicismo que
corroeu profundamente a força pública da religião em países da Europa não
chegou aqui a não ser à cabeça de diminutas elites alienadas da cultura po­
pular. Aposta-se na sanidade espiritual e humana das imensas maiorias que
confundem na sua fraqueza a presunção ilustrada de análises policopiadas de
países primeiro-mundistas.
Corroborando essa conclusão, está a recente pesquisa publicada pelo
CERIS sobre Desafios do Catolicismo na cidade 220 • Confirma em termos a
tendência geral da individualização e da subjetivação da prática religiosa e a
perda normativa das Instituições religiosas. No campo moral, onde aparece
uma maior autonomia do sujeito diante das instituições, as pesquisas obri-

220. CERI�. Desafios do catolicismo na cidade. Pesquisa em regiões metropolitanas, Rio/São Paulo,
CERIS/Paulus, 2002.

215
gam-nos a uma interpretação matizada. Em questões como planejamento
familiar, uso de métodos contraceptivos, divórcio, segundo matrimônio, sexo
antes do matrimônio, celibato religioso, há uma tomada maciça de posição de
católicos, divergindo do ensinamento oficial da Igreja. Em outros campos,
como aborto, homossexualidade, adultério, eutanásia, manipulação genética,
a maioria segue a posição oficial da Igreja. Só por esses dados é difícil saber
a real influência da Igreja na formação dessas opiniões.
Fica mais clara a presença social da Igreja nas perguntas sobre o que se
espera dela. Surpreendentemente grandes maiorias de católicos manifestam
a posição de que a Igreja deveria debater, orientar, sem impor, mesmo na­
quelas questões em que a maioria mostrou divergir dos ensinamentos ofi­
ciais: planejamento familiar, métodos contraceptivos etc. E nas questões mais
graves como aborto, homossexualidade, adultério, a maioria se inclina para
a posição de que a Igreja deveria impor sua visão. Por esses dados, o fenô­
meno de secularização institucional não está acontecendo nos mesmos mol­
des que muitos analistas, sobretudo europeus, descreveram. Há um peso
institucional ainda consistente no papel de debater e orientar, sem impor, em
questões da vida moral íntima das pessoas. E em alguns casos, quer-se mais:
uma imposição de sua posição. Talvez esteja aqui uma das maiores surpresas
da pesquisa que contradiz a propalada onda de perda de força institucional
da Igreja no campo da moral, da bioética.
Abre-se assim para a Igreja, enquanto instituição, campo maravilhoso
pedagógico de diálogo com a sociedade e com a cultura. A maneira de con­
duzi-lo deve levar em consideração a nova sensibilidade pós-modernidade:
sem arrogância, sem privilégios, aberta e livre. Sem omitir, no entanto, as
próprias convicções, propondo-as, justificando-as com razões éticas, huma­
nas e deixando-se também questionar. Numa palavra: verdadeiro diálogo.

BIBLIOGRAFIA

Azz1, R., Elementos para a história do catolicismo popular, in REB 36 (1976), pp. 95-130.
BERGER, P., O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião, São Paulo,
Paulinas, 1985.
MADURO, O., Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter­
relações na América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981.
RIBEIRO DE ÜLIVEIRA, P. A., A posição do leigo nas comunidades eclesiais de base, in
SEDOC 9 (1976) n. 95: 286-295.
____, P. A., Catolicismo popular e Romanização do Catolicismo Brasileiro, in REB
36 (1976), pp. 131-141.

216
RIIIElkll Ili': 01.1v1itM,._, P. A., Catolicismo popular no Brasil, Rio, CERIS, 1970.
SANt:111s, P., () campo religioso contemporâneo no Brasil, in A. P. Oro C. A. Stcil,
orgs., Globalização e religião, Petrópolis, Vozes, t 997, pp. 103-1 t 5, aqui p. 105.
VERGOTI•:, A., Modernidade e cristianismo. Interrogações e críticas recíprocas, São Paulo,
Loyola, 2002, aqui pp. 18s. 30.

Dinâmica
1 . Distribuir para cada participante individualmente uma das afirmações
abaixo e dar-lhe um tempo para preparar a breve explicação:
1. As estruturas sociais influenciam as religiões.
2. As religiões influenciam a sociedade e a cultura.
3. As religiões têm certa autonomia em relação à sociedade e à cultura.
4. O catolicismo brasileiro tradicional tem traços sincréticos.
5. A evangelização tridentina tentou "purificar" o catolicismo popular de
seus traços sincréticos.
6. A modernidade política e social destrona a religião.
7. A modernidade destradicionaliza a cultura e a religião.
8. A modernidade científica e tecnológica questiona as raízes da religião.
9. A modernidade filosófica pós-cristã abala os alicerces da Transcendência.
1 O. O cristianismo é a religião da saída da religião.
11. A religião reage a sua privatização, desprivatizando-se.
12. A teologia da libertação colaborou na desprivatização da religião.
13. A reprivatização pós-moderna tem semelhanças e diferenças em rela­
ção à privatização da religião da modernidade.
14. Há um despertar do "sagrado selvagem".
15. A reprivatização pós-moderna afetou o papel social da teologia da
libertação.
16. A religião assume no seu universo elementos do programa neoliberal.
20. A religião assimila a cultura pós-moderna, favorecendo mais a dimen­
são de religiosidade.
21. A religião cria quistos fundamentalistas que reagem à cultura pós-mo­
derna.
22. A religião assume uma posição crítica diante da pós-moderna.
23. Cada participante explique sua afirmação. Dê-se um breve momento
para que outros participantes opinem sobre ela, se houver tempo. O
coordenador pontualize a questão, se for o caso.

217
CAPITULO V

A religiosidade e a fé cristã
Desde as origens e ao longo dos milê­
nios, o homo religiosus é um criador da
cultura.
JUUEN R1ES

O fenômeno religioso envolve um pulular de religiões que marcam pre­


sença na sociedade e na cultura. É o que chamamos de reprivatização da
religião. Há mais. Há um clima religioso vago, sem a precisão e a organiza­
ção da religião, que cria uma onda de religiosidade vaga. Ocupa o centro
nenhuma organização religiosa como tal, mas o ser humano em sua qualida­
de de homo religiosus.
A novidade consiste num duplo movimento. Há busca sôfrega de expe­
riências religiosas e uma oferta abundante de possibilidades de satisfazê-la.
E levanta-se a pergunta do significado de tal jogo de demanda e oferta sob
a luz da fé cristã. Em capítulo anterior, descrevemos o fenômeno e aponta­
mos algumas causas explicativas. Aqui interessa analisá-lo sob o ângulo da
evangelização.

1. QUEM É O SUJEITO QUE BUSCA NA SUA INQUIETUDE


ALGUM ALIMENTO RELIGIOSO?

São fundamentalmente indivíduos, pessoas isoladas, fora de gru­


pos religiosos estáveis. Não se comprometem com nenhum sistema insti­
tucionalizado, ético ou religioso definido. Portanto, sem religião ou Igreja no
sentido institucional. Ontem talvez tenham freqüentado uma Igreja ou reli­
gião. Mas hoje já não se sentem vinculados a ela. São pessoas que se afasta­
ram das práticas religiosas convencionais. Cada vez se lhes torna menos acei­
tável um conceito de salvação mediado pelo clero. Consideram-se um corpo
solto no espaço em busca de algum ponto luminoso que lhes diminua a noite
do sem-sentido da existência.

219
Rejeição da instituição religiosa
"A prática religiosa cai por uma série de razões ... Recordarei uma só: o
fato de que o conceito de salvação, mediada pelo clero, é sempre menos
aceito. Nos limites do possível o homem contemporâneo tende sempre
mais a gerir toda coisa na primeira pessoa, a querer ser ele mesmo. Como
justamente observa Bellah, assiste-se à queda da estruturação hierárquica
deste e do outro mundo; com efeito, a religião de um tempo era o produto
de uma maneira hierárquica global de conceber a realidade e, por conse­
guinte, de crer. Tende-se a identificar vida e religião em função de uma
simbiose de uma com a outra, o que faz tudo um com a recusa do ritual
e da liturgia. Além do mais, ...uma religião estruturada termina na rejeição
religiosa do mundo; as religiões históricas fundavam-se sobre o interesse
pelo além, hoje há a tendência sempre mais acentuada em ver no mundo,
na sociedade, no modo de ser respeito ao mundo, o essencial do nosso
ser religioso. Em conclusão, a religião muda em qualidade, quantidade,
difusão e intensidade." 1

Nunca se insiste demasiadamente no forte caráter individualista, de au­


tonomia, de liberdade da busca religiosa atual. É a ideologia predominante
no Ocidente. No centro está o indivíduo ao qual se associa a sua função
determinante de consumidor. Indivíduo consumidor em tudo. Também em
relação aos sinais e símbolos religiosos.
São filhos de uma geração sem formação religiosa que começaram
a sentir enorme vazio e insatisfação existencial. As estrelas que brilha­
ram até faz pouco em seu céu se apagaram. Vieram do campo da política a
que se entregaram de corpo e alma. A frustração teve o tamanho do idealis­
mo dos anos dourados das revoluções e esperanças utópicas. Outros tinham
acampado na vida frívola sob a tirania do prazer. Passou-lhes o encanto.
Ficou-lhes o amargor do gosto da ressaca. E agora buscam uma festa com
mais sabor.
Outros acreditaram na trilogia sagrada da modernidade capitalista: estu­
do apurado, trabalho rentável e muito dinheiro. Filhos da festa do progres­
so econômico. Aqueles que a IstoÉ descreveu numa de suas entrevistas 2 :
"Ser feliz é ganhar muito dinheiro na profissão escolhida". Seu destino é ser
"star". "Viver bem, muito prazer dentro do capitalismo, respeitando a famí-
1. S. Acquaviva, Religione e irreligione nell'età postindustriale, in S. S. Acquaviva- G. Guizzardi,
Religione e irreligione nell'età postindustriale, Roma, AVE, 1971, pp. 18s.
2. Pesquisa da Isto É (janela), 21 de abril de 1993, n. 1229, pp. 34-36.

220
lia e a propriedade". "A vida é um interminável videoclipe, uma mistura
alucinante de dinheiro, sucesso e fama com uma pitada de romantismo e
quase nenhum idealismo". "Eles não se sentem responsáveis pela miséria
social, não se angustiam por não responder às expectativas dos pais. Vivem
a própria vida e pronto". "Não seguem líder nem cartilha". " Não têm gurus,
apenas modelos que pautam as aspirações". É uma geração "pronta para
viver sem culpa", "sem conflito existencial, mais superficial, hiperativa, pouco
rebelde, irreverente e contestadora da hierarquia". "Ela não quer romper
com nada nem criar novos padrões". Jovens que "têm ambição e querem
fazer sucesso", preocupados "com a carreira profissional, para ganhar di­
nheiro, ter sucesso, fama". E de repente, "a festa acabou, a luz apagou, o
povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?" (Carlos Drummond de Andrade)
Lá vão eles à busca de algum arrimo espiritual.
A partir de pesquisas antropológicas, L. E. Soares descreve, com as de­
vidas cautelas, os indivíduos que encarnam o que ele chama de "nova cons­
ciência religiosa".

Nova consciência religiosa


"Indivíduos de camadas médias urbanas, em geral com acesso a bens
culturais razoavelmente sofisticados, representativos de trajetórias identi­
ficadas, em boa medida, com o programa eticopolítico moderno típico -
não raro com passagens pelo divã psicanalítico e pela militância partidária
- e com experiências existenciais que 1968 consagrou e resumiu. no
imaginário histórico; indivíduos. portanto. 'liberados'. 'libertários', 'abertos·
e críticos da tradição - sobretudo do 'fardo representativo' das tradições
religiosas -, sujeitos exemplares do modelo individualista-laicizante, sinto­
nizados com o cosmopolitismo 'de ponta' das metrópoles mais 'avança­
das·, sentem-se crescentemente atraídos pela fé religiosa, pelos mistérios
do êxtase místico, pela redescoberta da comunhão comunitária, pelos
desafios de saberes esotéricos, pela eficácia de terapias alternativas e da
alimentação 'natural'. " 3

Outros vêm de outra fonte de vida. Pessoas sofridas em todos os sen­


tidos. Situação material precária. Pobreza, desemprego, marginalização das
benesses da sociedade. São gentes desprezadas, sem voz nem vez, que voam

3. L. E. Soares, O Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa, in L. Landim, org.,


Sinais dos tempos. Diversidade religiosa no Brasil, Cadernos do ISER, n. 23, Rio de Janeiro, !SER, 1990,
p. 265.

221
para o espaço religioso à espera de aí encontrar algum alívio material, psico­
lógico e/ou espiritual. Muitas dessas gentes migraram para as cidades, seja
fugindo da miséria da vida na roça, seja atraídas pela sedução da cidade. Aí
são humilhadas, desfazendo-se seus sonhos de vida melhor. Perdem a iden­
tidade cultural e religiosa, ficando-lhes a memória e saudade cada vez mais
longínqua das práticas regulares tradicionais. Sentem-se desligadas e soltas
de uma determinada religião tradicional, que a distância física e cultural, a
dispersão urbana e a mídia, com infinitas propostas de novos sentidos e
valores, terminam por demolir. Recorrem então a certas celebrações em que
recebem um reconhecimento que não encontram em parte nenhuma, um
consolo e alívio que lhes são negados no cotidiano da marginalização. Não
querem voltar a vincular-se de modo permanente a nenhuma igreja, pois já
perderam os vínculos com instituições religiosas e talvez já não creiam nelas.
Mas sentem prazer nas celebrações, nos ritos entusiásticos, independente­
mente dos cânones e obrigações que a religião ou igreja lhes impõem. Inte­
ressa somente o ato nele mesmo.
A sociedade moderna avançada estressa e agita as pessoas. Barulho exte­
rior e interior a ferir os tímpanos e a alma. Espraia-se um cansaço continuado
e latente. O ar poluído não oxigena o sangue nem revigora o cérebro. Into­
xica sempre mais. A desarmonia interior inquieta. E então acende o desejo de
meditação espiritual nalgum lugar de silêncio e de beleza. Pessoas envolvi­
das pelo barulho buscam o silêncio do espaço religioso.

Meditação superior
"Enquanto desfrutava a bela paisagem costeira ... , a beleza do lugar me fez
aceder a um nível superior de compreensão: então me encontrei com o
Amor, com o Pai-Mãe Amor que habita em mim, em todos e em tudo...
Senti pela primeira vez a alegria da liberdade, porqu� ao descobrir, ao
experimentar que Deus habita em mim e que em certa forma Ele e eu
somos um, soube que em mim mesmo estava a fonte de todo conheci­
mento: em mim estavam todas as verdades, não mais nos livros, não mais
em mestres externos, já não mais. Assim nasci para uma vida nova. " 4

Religião diz tradição e comunidade. Religiosidade pede experiência pre­


sente. Na pós-modernidade, exacerbam-se a subjetividade, a sede de expe­
riências momentâneas, tópicas, sem passado nem futuro, sem referência fora

4. E. Barrios, Mensaje de Acuario. Voz dei Dios Amor, Buenos Aires, Errepar, 1991, p. i.

222
delas meam11. Cresce o número de pessoas que vivem de emoção em emo­
ção, de sensação em sensação. Aproximam-se das formas religiosas que
oferecem excelente campo para satisfazer-lhes a sofreguidão afetiva.
Não se vinculam a nenhuma tradição, mas destacam dela aquelas pepitas
preciosas para seu gosto espiritual.
O aguçamento do desejo de emoções cada vez mais violentas tem levado,
especialmente jovens, a redescobrirem formas selvagens e primitivas do
sagrado em forte contraste com a sofisticação cultural em que vivem. Para­
doxo estranho. Em nível social eles conhecem os requintes da modernidade
e em termos religiosos embrenham-se literalmente em florestas tropicais atrás
de experiências religiosas arcaicas. Recorrem a bebidas e drogas que facili­
tem e reforcem a atmosfera religiosa.
Se ontem isso era uma raridade, hoje o fenômeno espraiou-se. Não me
refiro ao grave problema da droga, mas à busca da experiência do divino, de
uma meditação mais silenciosa e penetrante pela via de ervas e chás dotados
de substâncias que provocam "mirações", alucinações e um reforço da per­
cepção. É sintomático que se denomine ecstasy ("êxtase", palavra vinda de
um contexto religioso ou estético) a uma droga que faz sucesso nas festas e
noitadas. Uma jornalista, após experimentá-la, exclamou: "É como estar no
céu". Nesse clima a experiência religiosa responde a emoções violentas. O
extremo é a própria morte. E houve casos que isto aconteceu, como na Guiana.

Droga e religião
"Desde tempos imemoriais o ser humano tem usado substâncias entorpe­
centes ou estupefacientes com várias finalidades. Como artifícios para
lidar com o próprio corpo (contra a insônia, a depressão ou a dor, por
exemplo), favorecer a sociabilidade (o álcool para desinibir os convidados
no início da festa), ou propiciar experiências religiosas (a ayahuasca, be­
bida usada por certos povos amazônicos). Em alguns casos, elas ajudam
a realizar sonhos legítimos, sendo seus efeitos nocivos atenuados pela
delimitação imposta pelo procedimento médico, pelo controle social ou
pelo ritual. " 5

O ser humano distingue-se do animal por sua curiosidade de novida­


de. O instinto é repetitivo. Domestica-se, circunscreve-se aos limites ensina­
dos. A inteligência e a afetividade estão a ultrapassar as fronteiras do visto,

5. CNBB, Campanha da Fraternidade 2001. Vida sim, Drogas não! Manual, São Paulo, Salesianas,
2001, p. 64.

223
do já experimentado. A globalização cultural, propiciada de modo inimagi­
nável pela Internet, tem açulado esse lado da curiosidade que se casa com o
desejo-valor de experiências da pós-modernidade.
No mundo jovem, associa-se o desejo da novidade ao de sentimento grupal.
Fazer experiências novas, que um grupo vivencia, provoca ainda mais a curio­
sidade. Sentem-se desenturmados, alienados, "cafonas", se se abstêm de expe­
rimentar o que seus colegas fizeram. Grupos religiosos de jovens atraem a
curiosidade de outros. Provoca-se um movimento de difusão por contágio.
Há um cansaço com as figuras institucionais mediadoras dos sacerdotes
e pastores, sobretudo quando estes se reservam o direito exclusivo do exer­
cício da função religiosa. É o constitutivo da religião institucional ou da Igre­
ja. Quando suas figuras se apagam ou se transformam simplesmente em
guru, mestre espiritual, facilitador de experiências pessoais e autônomas, as
pessoas se sentem atraídas por eles. Há uma sede de experiências imedia­
tas de salvação, de reconforto espiritual sem ter de cumprir ritos pres­
critos autoritativamente.

Acesso livre e direto ao sagrado


"A busca de canais mais livres e diretos de acesso ao sagrado, com mani­
festações espontâneas repletas de emoções, é marca dessas novas expres­
sões e representa uma busca de liberdade de formas de adoração e culto. " 6

Há aquelas pessoas que reproduzem no mundo religioso o hábito


comercial. Os produtos religiosos funcionam a modo de auto-serviço. A
tendência do mercado é deixar a mercadoria facilmente exposta para que
cada um pegue e pague. As pessoas preferem ficar de longe vendo o desen­
rolar dos gestos programados pela instituição e aproximar-se dos ritos aces­
síveis sem precisar de pedir, de esperar, de depender da anuência do seu
administrador. Se antes o vendedor das casas comerciais era importante, hoje
quase desapareceu nos centros mais modernos. O marketing já não se faz no
corpo-a-corpo mas midiaticamente, com maior raio de influência.
Os vendedores religiosos transformaram-se em caixeiros-viajantes. Eles
funcionam nas religiões de conquista e conversão, mas perdem importância
para aqueles que não querem religião, mas somente experiência religiosa. O
crescimento de muitas igrejas pentecostais induz-nos a equívocos. Muitas

6. J. Pereira Ramalho, Desafios no campo religioso brasileiro, in Cadernos CERIS, Pentecostalis­


mo, Renovação Carismática Católica e Comunidades Eclesiais de Base, Rio de Janeiro, CERIS, 2001, n.
2, p. 5.

224
não crescem como igreja ou religião, mas como espaço livre para experiências
religiosas. A pesar da figura, às vezes, autoritativa do pastor, ela não tem a
importância que se lhe atribui. Há uma ilusória influência. Atrai as pessoas
o fato de elas entrarem diretamente em contato com Jesus, com a salvação,
sem precisar de nenhuma mediação. No fundo, estamos diante mais de ex­
periências religiosas e menos de prática de uma religião. Daí as formas sei -
vagens das demonstrações religiosas em certos cultos. Pouco adaptadas a
uma instituição como tal. A instituição, como tal, existe para domesticar,
enquadrar, normalizar a vida da comunidade e não para provocar experiên­
cias extravagantes, desregradas, espontâneas.
As pessoas reprimidas explodem em dado momento. Realidades
recalcadas eclodem. A modernidade ocidental tecnológica, secularizada,
atéia recalcou o lado religioso. E eis que pessoas que viveram esse longo
inverno secularizado aspiram a uma primavera religiosa florida. Cansaram­
se do silêncio imposto pela racionalidade e vibram com o frescor novo das
experiências religiosas.
Há pessoas que vêm de movimentos alternativos, especialmente o
ecológico. Procuram na sacralidade de símbolos religiosos uma resposta a
seus anseios por desenvolver uma consciência ecológica ampla. Pretendem
superar o excessivo individualismo atual com uma visão holística. Sonham
com integrar numa compreensão de totalidade os aspectos diversos da vida,
tendo como base a dimensão religiosa, mística.

O resgate do Sagrado
"Uma dimensão síne qua non para inaugurar uma nova aliança com a Terra
reside no resgate da dimensão do sagrado. Sem o sagrado, a afirmação
da dignidade da Terra e do limite a ser imposto ao nosso desejo de
exploração de suas potencialidades permanece uma retórica sem efeito. O
sagrado constitui uma experiência fundadora. É ele que subjaz às grandes
experiências sobre as quais se construíram as culturas no passado e a
própria identidade profunda do ser humano. Todos os estudiosos do sagra­
do revelam um dado de consenso: sempre o sagrado possui uma ligação
essencial com o cosmos. É ali o seu lugar de nascimento. O universo se
transforma num sacramento, num espaço e num tempo de manifestação
da energia que pervade todos os seres, na oportunidade da revelação do
mistério que habita a totalidade de todas as coisas." 7

7. L. Boff, Dign ita.s terrae. Ecologia. Grito da terra e grito dos pobres, São Paulo, Ática, 1995, pp. l 79s.

225
A sociedade moderna, tecnológica, eficiente, produtiva 10b o im­
pério da razão instrumental, tem produzido uma geração cada vez
maior de pessoas que buscam uma "alternativa" a ela. Para tal as pes­
soas freqüentam os campos da estética e da religião. Ao afastarem-se das
religiões institucionais, elas vagueiam atrás de ritos, cerimônias, celebrações
bonitas e religiosas, onde existam.
Alguns conseguem um difícil equilíbrio. Não se afastam do mundo da
modernidade tecnológica, onde ganham a vida. Permanecem aí dentro com
maior ou menor satisfação. Presença funcional, prática, necessária, mas tam­
bém sem rejeição, sem busca de alternativa.
Voltam-se para experiências religiosas como complementares. Elas
cumprem um papel de satisfazer a gama mais ampla de desejos, sem desalo­
jar outros. Nunca colocam em contato crítico as experiências profissionais e
as religiosas. Navegam paralelamente. Enquanto conseguirem isso, sem cur­
to-circuito, serão pessoas religiosas e modernas. A religiosidade manifesta-se
na execução de alguns rituais sagrados. A modernidade prossegue no dia-a­
dia da vida profissional e de família.
É verdade que se anuncia por todos os lados a morte da utopia. Já de
longa data x. E se confirmou mais recentemente 9 • Mas utopistas teimam em
reafirmá-la'º. Discute-se se a utopia é uma dimensão fundamental do ser
humano e, portanto, nunca deletável. Hiberna algum tempo, mas sempre
eclode. Ou esconde-se num campo e desponta noutro. Hoje parece que os
utopistas abandonaram o mundo da política, deixando infelizmente entregue
aos homens do sistema e migraram para as causas humanitárias e religiosas.
Assim essa nova geração de utopistas visita as áreas religiosas à cata de
material que lhes encha o coração de coragem, de ânimo.

Mística e compromisso libertador


"Um dos fenômenos mais originais das sociedades latino-americanas é a
proliferação dos movimentos sociais, entendidos como os grupos que se
formam ao redor de alguma reivindicação concreta não implementada pelo
Estado ou não reconhecida pela sociedade organizada, a fim de conseguir
seu atendimento. Geralmente se trata de luta por um direito fundamental
violado ou não realizado... É neste contexto que cabe falar de mística do
engajamento e da luta, sem constrangimentos ou pruridos motivados pelas

8. H. Marcusc, O fim da utopia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.


9. F. Fukuyama, O fim da histária e o último homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992.
10. B. de Sousa Santos, /'ela mào de Alice. O social e o político na pós-modernidade, São Paulo,
Cortez, 1995, pp. 2Xl-.l4X.

226
ressonAnclas religiosas desta palavra... Nesse contexto, ganha sentido falar­
se de espiritualidade e de Deus, não como realidades pensadas em si
mesmas, mas como referências presentes nos embates, nas grandes
decisões, nos avanços e recuos, enfim, no drama humano e histórico ...Falar
então de mística não significa despistar a resposta às questões formula­
das, nem mistificar a realidade, mas colher seu lado mais luminoso, aquela
dimensão que alimenta as energias vitais para além do princípio do interes­
se, dos fracassos e sucessos. Espiritualidade e mística pertencem à vida
em sua integralidade e em sua sacralidade. Daí nascem o dinamismo da
resistência e a permanente vontade de libertação." 11

Há uma geração de pessoas que vieram de um catolicismo tradi­


cional que nunca o enfrentou criticamente. Vivem na inércia religiosa do
movimento que receberam na infância. Não se entusiasmam pela religião
nem pela Igreja. Vêem nos ritos religiosos um tabu a ser respeitado. Cum­
prem os principais sem convicção e liberdade interior. Essas práticas religio­
sas pertencem de fato à Igreja institucional. No entanto, ao segui-las, essas
pessoas não demonstram nenhuma fidelidade a ela, mas a um inconsciente
religioso de que temem afastar-se.
Entretanto a tendência desse tipo de católico é desaparecer. Pesquisas fei­
tas na Arquidiocese de Belo Horizonte por conta do Projeto Pastoral Constru­
ção da Esperança já apontavam que os rapazes começam a abandonar as prá­
ticas religiosas lá pelos 14 anos enquanto as moças ainda mais cedo. Esses vão­
se e não voltam normalmente. Reterão algumas práticas religiosas de oração ou
eventuais celebrações, cujo sentido é mágico e/ ou de conveniência social.
A religiosidade dessas pessoas mantém-se como brasas sob cinzas. Golpes
de vento reacendem algumas em certos momentos da vida. Não fazem parte
dessa eclosão entusiasta do fenômeno religioso. Não escapam, porém, de sua
influência. Alguns redescobrem as experiências religiosas reinterpretadas no
horizonte carismático e cerram fileira com os grupos espiritualistas.

II. 0 QUE SE BUSCA?

Conforme a variedade das pessoas as buscas são diferentes. Mas em to­


das elas há um desejo de satisfação de uma dimensão pessoal de espi­
ritualidade, de religiosidade. As pessoas percebem que lateja no seu inte-

11. L. Boff frei Bcttu . .\1istica e espiritualidade, Rio de Janeiro, Rocco, 1994, pp. 9-11.

__
n­,
rior um desejo de algo mais, de uma Realidade maior. Os nomes variam, mas
há algo ou Alguém.

Busca de transcendência
"Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais secreto e escondido
do ser humano. Porque nós, seres humanos. homens e mulheres, na
verdade, somos essencialmente seres de protest-ação, de ação de protes­
to. Protestamos continuamente. Recusamo-nos a aceitar a realidade na
qual estamos mergulhados porque somos mais, e nos sentimos maiores
do que tudo o que nos cerca. Desbordamos todos os esquemas, nada nos
encaixa ... Usando uma metáfora, eu diria que somos seres de enraizamen­
to e seres de abertura... Temos raiz, como uma árvore. E a raiz nos
limita ... Mas somos simultaneamente seres de abertura. Ninguém segura
os pensamentos, ninguém amarra as emoções... Rompemos tudo, nin­
guém nos aprisiona... Então possuímos essa dimensão de abertura. de
romper barreiras. de superar interditos. de ir para além de todos os limites.
É isso que chamamos de transcendência. Essa é uma estrutura de base
do ser humano." 12

Em outros casos, o desejo permanece em nível superficial. Não se aspira


a um encontro real. Sente-se a necessidade de consolo, de reconheci­
mento, de acolhida. O rito ou a forma religiosa é a ocasião dessa satisfação
afetiva, sensível. Acontece com mais freqüência com adolescentes e jovens
cuja sensibilidade é mais aguda e cuja carência afetiva costuma ser maior.
A identidade das pessoas, sua biografia pede uma confirmação significa­
tiva maior. Um momento de encontro com o "divino" parece suficiente para
nutrir-las a fim de enfrentar o caminho áspero e ameaçador. Amacia-se a
existência com o gozo da experiência religiosa. Mistura-se freqüentemen­
te uma busca profunda de si com um mistério que se percebe no mais
íntimo de si. Aí se reflete altamente o individualismo das experiências es­
pirituais procuradas. Entrelaçam-se numa experiência confusa o auto-reco­
nhecimento, a presença de um Deus interior, a conquista de um Eu superior,
o auto-aperfeiçoamento, o crescimento harmônico interno, as práticas de cul­
tivo da subjetividade e do ideal de um self perfeito e deificado, a maestria
humana sobre a natureza interna e externa. Trata-se de verdadeiro culto do

12. L. Boff, Tempo de transcendência. O ser humano como um projeto infinito, Rio de Janeiro,
Sextante, 2000, pp. 22.2is.

228
eu, da 11ubjdividade autônoma. Reflete o processo de psicologização e valo­
rização do aspecto terapêutico'\
Os símbolos, os ritos religiosos são combinados segundo o critério da
conveniência pessoal em vista do aperfeiçoamento do eu total, com recurso
à psicologia, especialmente transpessoal, ao alargamento da consciência, 11
técnicas nesse sentido.
Há uma identificação, mesmo que superficial, com descrições de mí11ti­
cos ou místicas. Sem alcançar o verdadeiro sentido de um João da Cruz ou
Teresa de Ávila ou Agostinho, seus textos parecem ser captados como res­
posta do que se busca. Isso explica por que esses autores estão em alta.
Frei Betto dizia numa conferência que anos atrás a simples citação de
Marx ou de algum corifeu maior do marxismo produzia sussurro de aprova­
ção nos auditórios jovens. Hoje fenômeno semelhante se dá, ao ouvirem os
nomes dos grandes místicos e gurus orientais. Nova sensibilidade!

Sucesso dos místicos


"Nos últimos anos tem havido uma emergência da mística no âmbito in­
ternacional. No Brasil, além do êxito dos livros de Paulo Coelho, nas
últimas bienais (Rio de Janeiro e São Paulo) os livros mais procurados e
vendidos, junto com os infantis, foram os esotéricos, aí incluídos os de
espiritualidade. A espiritualidade é uma experiência mística, mistérica, que
adquire uma conotação normativa na nossa vida. A mística é experiência
fundante no ser humano desde que ele existe na face da terra, mas há
diferentes espiritualidades e diferentes modos de vivenciá-las. Na tradição
cristã, são bem acentuadas as diferentes espiritualidades: beneditina, do­
minicana, jesuítica, franciscana." 14

A busca do êxtase pela via psicodélica. Há uma proximidade já ana­


lisada por sociólogos entre a busca do religioso e o psicodelismo com alucina­
ções visuais provocado por drogas. No fenômeno hippy, A. Greeley apontava
uma conexão entre o Sagrado e o psicodelismo 15. "O novo movimento
psicodélico representa, por uma parte, o ressurgir da necessidade do sagrado
que o ser humano experimenta diante de uma sociedade secularizada", "a

13. A. D' Andrea, O Self perfeito e a nova era. Individualismo e reflexividade em religiosidades pós­
tradicionais, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 24s.
14. L. Boff - Frei Betto, Mística e espiritualidade, Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 28.
15. A. Greeley, Le psychodélisme et !e sacré, in lnformations Catholiques lnternationales n. 345 -
1 º de outubro de 1969, pp. 26ss.

229
vontade de escapar deste mundo para virar o botão e partir" 11'. O autor citado
entende por psicodélico uma série de fenômenos associados às drogas aluci­
nógenas, à música de rock and roll, às comunidades beat, à arte da dissociação
na música, na pintura e na literatura e ao novo interesse pelas religiões esotéricas
orientais. Ele emprega o termo sagrado num sentido mais amplo: outro mun­
do, êxtase, transcendente, aquilo que impele o ser humano para fora de si e o
põe em contato com as forças vitais do universo 17• Há uma volta ao irracional
primário, instintivo e extático que a sociedade moderna recalcara ou esquece­
ra em prol de um indivíduo racional, urbano, otimista, individualista, preso
na engrenagem work-war-wed - trabalho-guerra-casamento.
Nesse fenômeno, além de elementos estritamente religiosos, misturam­
se fatores como a influência dos homossexuais, de conceitos psicanalíticos,
de ingredientes psicopatológicos e também de interesses econômicos. Mas
nas camadas profundas está o fator religioso que revela essa sede "mística"
e a incapacidade de as religiões institucionais saciarem-na. E a natureza da
busca é sobretudo extática.
Alcança-se tal vivência seja pela via da droga, da música ou de ambas
simultaneamente. É uma fuga do cotidiano prosaico, tedioso e estúpido de
uma sociedade burguesa. E recorde-se que nos Estados Unidos a estupidez
chegava ao máximo, obrigando jovens a fazerem a guerra no Vietnã sem
nenhum sentido para eles. O jovem de 19 anos Stanley Dembowsky, morto
no Vietnã, escrevia na sua última carta a seu pai em março de 1966: "Sinto­
me mal com o cheiro que vem dos mortos".
Ao escapar da realidade, sonha-se com a comunhão e intuição transpa­
rente de um mundo de maior clareza, beleza, harmonia, que a droga e/ ou a
música parecem oferecer para além da racionalidade lógica ou instrumental.
No fundo, há um desejo da natureza na sua pureza antes de ter sido conta­
minada pela racionalidade humana. Junta-se facilmente a esses desejos a
idealização da vida primitiva do mito do "bon sauvage".
Era ou ainda é um grupo relativamente restrito nos Estados Unidos, mas
cuja irradiação atinge longe. A peça Hair simbolizou o anúncio dessa nova
era de Aquário tão ligada ao movimento psicodélico.
As pessoas viveram longo tempo de recalque da dimensão espiritual de
suas vidas pelo peso da sociedade moderna materialista, tecnológica, atéia. A
explosão de formas religiosas se faz sem controle. As pessoas não se detêm
em nenhum tipo de experiência religiosa, desde as mais selvagens e primiti-

16. !d., ibid.


17. !d., ibid., p. 27.

230
vas até a11 mai■ ■ofisticadas e elevadas. São formas tradicionalistas, profé­
ticas, apocalípticas, neomísticas, esotéricas, travestidas.
Quem mergulha nessa nova onda religiosa recebe dela a promessa segura
da solução de seus problemas materiais, psicológicos e espirituais. Oferta
fascinante. Recorre-se até a rituais mágicos, macabros para garantir ao fiel a
eficácia do remédio.
Multiplicam-se os lugares de oferta de milagres. E imediatamenk
acorrem aí multidões. Basta o rumor de que alguma imagem ou alguma pessoa
realizou um milagre, uma cura física ou espiritual para que aí se crie um
centro de atração religiosa.
Engana-se ao pensar-se que tal busca incentive e fortaleça a reli­
gião como instituição. Embora o lugar de oferta dos milagres seja uma
igreja determinada, não se acorre a ela por ser de determinada denominação
religiosa. Esta serve de simples cobertura "física" de um outro espaço signi­
ficativo mais importante: o lugar do milagre. Este não precisa de nenhuma
validação institucional. Vale por ele mesmo e é buscado nele mesmo e en­
quanto fonte de curas e graças. A vinculação se faz com o objeto ou a pessoa
milagreira e não com a igreja. Cabe mais falar de religiosidade do que de
religião nesses casos.
Pessoas culturalmente mais sofisticadas deixam-se atrair já não tanto
pela fisicidade do milagre, mas sim pela sedução de conhecimentos esotéri­
cos, embora eles também exerçam força terapêutica psico-espiritual. Unem­
se gnosticismo e esoterismo. Atrações religiosas de todos os tempos. Acom­
panharam o cristianismo desde seu nascer sob diversas formas culturais.
Misturam-se desejos de salvação, de sentido radical de vida e de solução
de problemas junto com a crença em conhecimentos (gnose) secretos e res­
tritos aos iniciados (esoterismo). As formas esotéricas seduzem pelo mistério
encoberto, pela promessa velada, pela novidade suspeitada, pelas respostas
sonhadas e pela salvação antevista.

Gnosticismo
"A 'gnose· pretende ser um conhecimento e um conhecimento esotérico
que se distingue fundamentalmente de todos os outros caminhos ou meios
de conhecimento (por exemplo: o experimental, o racional>, considerados
ou qualificados incompletos e imperfeitos, comuns aos não iniciados. aos
exotéricos (os que não captam as coisas por dentro. mas se detêm na
camada externa das realidades, das verdades). Trata-se de um conheci­
mento ou de um saber acessível a um pequeno número, àqueles que se

231
deixam iniciar na captação da face oculta e secreta das coisas, graças a
uma iluminação que vem de cima. Este conhecimento não tem necessida­
de de provas ou demonstrações, já que se baseia em uma experiência
iniciática que assegura e garante a certeza da salvação. Somente a pessoa
espiritual ou 'pneumática' (habitada pelo espírito) é capaz dessa 'ilumina­
ção'. dessa 'compreensão, desse 'saber'." 18

No reino cartesiano das idéias claras e distintas, o esoterismo não emplaca.


No momento atual de desnorteio, desconfia-se da razão transparente. Prefe­
re-se a linguagem alusiva, simbólica, embaçada do esoterismo. A própria
confusão e incompreensão aumentam a sedução. A nudez totalmente desve­
lada da verdade atrai menos do que o jogo de velamento e desvelamento. O
esoterismo joga com esse corte antropológico cultural. P. Ricreur recorda-nos
que "o símbolo dá o que pensar".
No cardápio espiritual, existem expressões reli giosas de corte ecoló­
g ico, hauridas tanto na tradição cristã como em outras tradições religiosas.
Na sua base está uma experiência mística de totalidade, superando uma es­
fera puramente individual e intimista que predomina nos ambientes das re­
ligiões pós-tradicionais. Ela aponta para uma mística de comunhão com todo
o cosmos. Integra uma compreensão do processo evolutivo que recapitula os
bilhões de anos de história do cosmos, marca o sentimento de coexistência
com ele e espera uma continuidade para além desse cosmos terrestre.
Teilhard de Chardin oferece, com sua ampla obra, muitas intuições e
reflexões que alimentam tal mística cósmica. Há por isso um ressurgir de sua
obra nessa perspectiva espiritual 19.
A sede religiosa une-se, em muitos momentos, com o desejo da
beleza. As ofertas religiosas incorporam em seus produtos essa dupla di­
mensão. Temos ritos cada vez mais belos nos sons e nas cores. A coreografia
esmera-se em lindeza.
Nas incertezas do futuro, fragmentos religiosos despegados de suas tra­
dições baloiçam no ar com lampejos de utopia. Não são nenhuma utopia
política constituída, mas carregam dentro de si o toque religioso. E como
toda religião apresenta perspectivas de salvação, ela impregna os seus ele­
mentos constitutivos de aspectos escatológicos. A tradução secular da esca­
tologia é a utopia. E então os utopistas encontram aí alimento para sua fome
utópica. Mais. As Escrituras biblico-cristãs carregam enorme carga apoca-

18. Gnosis (gnóstico), in H. Franck, Diccionario de la nueva e-ra, Estella, Verbo Divino, 1994, p. 136.
19. Frei Betto, Teilhard de Chardin: sinfonia universal, São Paulo, Letras & Letras, 1992.

232
líptica. 1 >urante quatro séculos, viveu-se um clima fortemente apocalíptico
no qual foram escritos livros do Antigo e Novo Testamento. Eles oferecem
repertório abundante para sonhos e visões apocalípticas da realidade.
Basta ver o pulular de seitas apocalípticas no momento atual.
Evidentemente a religião simplesmente oferece ingredientes. Não é a
instituição que os críticos julgam ter sido e ser ainda fonte de violência t'
causa de muitos males atuais. Por isso, é preferível falar de nova espiritua­
lidade do que de religião. Responde ao que chamamos de religiosidadt>.
Sonha-se com nova era de harmonia, paz, amor, sem violência, sem ódio,
sem segregação. A religiosidade genérica cimenta-a. Inclina-se antes para
um monismo panteísta que para um monoteísmo. A própria figura histó­
rica de Cristo se dilui numa espiritualização, cosmificação, gnostificação,
despersonalização.

Síntese das buscas individuais


"Meditação, contemplação, busca de · equilíbrio consigo mesmo, com a
natureza e com o cosmos' encontram ênfase inusitada e contrastam com
o declínio de posturas rebeldes ativas, antes valorizadas. O 'holismo· mís­
tico-ecológico substitui, para esses indivíduos - errantes do novo século.
como provavelmente gostariam de ser chamados -, o clamor das 'revo­
luções' social e sexual... O ideal de unidade cósmica suplantou projetos
passionais, restritos ao 'século'. O sexo passa a ser tematizado a partir de
uma categoria mais ampla, capaz de conectá-lo à estrutura cosmológica:
energia; a igualdade social cede lugar à fraternidade comunitária; a liberda­
de converte-se em libertação espiritual transcendente. A própria idéia de
conservação retoma dignidade, dado que a devastação predatória é o
inimigo e o equilíbrio ecológico, o alvo - como lembra Octavio Paz. O
corpo e a saúde assumem posição de absoluto destaque ... Corpo articula­
se de modo inextricável ao psicológico espiritualizado e saúde supõe quali­
dades extrínsecas ao funcionamento autônomo da máquina humana. como a
adesão a valores. o padrão de atitudes, a relação com os outros e com
a natureza. com a própria espiritualidade e com a alimentação. Saúde é o
índice de 'integração cósmica· ou de 'equilíbrio com a unidade harmônica
do todo'. Virtude, beleza, verdade e saúde superpõem-se. " 20

20. L. E. Soares. O Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa, in L. Landim, org.,
Sinais dos tempos. Diversidade religiosa no Brasil. Cadernos do ISER n. 23, Rio de Janeiro, ISER, 1990,
pp. 265s.

233
Ao lado das buscas individuais, há também uma religiosidade ao encalço
de "comunidades emocionais", ora no interior de uma religião, ora por
elas mesmas21 • Os membros constituem-nas a partir de decisão pessoal e não
necessariamente de uma conversão, como acontece em igrejas pentecostais.
Freqüentemente giram em torno de personagens carismáticas que impactam
pela liberdade, originalidade, força espiritual. As pessoas mantêm distância
da instituição de que se originam ou a que ainda permanecem nominalmente
vinculadas. Sendo a escolha individual predominante e não o vínculo insti­
tucional, entra-se e sai-se facilmente. O tempo de permanência mede-se pela
intensidade de ligação afetiva e pela percepção da validez da experiência.
Quando ambas cessam, os participantes deixam a comunidade. Os jovens
flutuam mais facilmente. Se o número permanece estável, não é devido à
constância dos membros e sim graças ao revezamento. Tendem tais comuni­
dades a maximizar a afetividade dos laços interpessoais e minimizar as im­
plicações sociais de eventuais compromissos.
À medida que as instituições religiosas perdem coesão e atrativo, tais comu­
nidades proliferam à margem delas. Têm desconfiança respeito a formulações
dogmáticas e doutrinais. Revelam certo antiintelectualismo próprio dessas bus­
cas afetivas. A sua regulamentação interna favorece a intensidade emocional
com ritos, cantos, danças, festas. Substituem os compromissos pela convivência
interna, espiritual. Se pensam numa mudança social, fazem-no a partir da cons­
ciência de que iniciam com sua vida comunitária a sociedade desejada, alterna­
tiva. Quando são cristãos, os membros espelham-se no exemplo da comunidade
dos Atos dos Apóstolos na dimensão de partilha afetiva de vida, de sentimentos
e menos no sentido de ser uma célula viva de uma Igreja maior.

Ili. QUEM OFERECE?

Qualquer religião ou igreja

Uma determinada instituição não tem importância. Qualquer igre­


ja ou reli gião serve. Já na década de 1970, S. Acquaviva observava que o
fenômeno religioso se manifestava "por meio de uma subjetivação dos mo­
delos de crença, da neutralização parcial dos esquemas das religiões of iciais
e da reconstrução individual do modelo religioso cultural, sobre base de uma
21. D. Hervieu-Léger, Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme
occidental, Paris, Éditions du Cerf, 1986, pp. 349-354.

234
síntcHc ou Je uma seleção dos modelos religiosos que 'o mercado' oferece"·'-'.
Hoje tal situação se reforçou.
Interferem na oferta dos bens religiosos principalmente dois ele­
mentos. Pessoas dotadas de capacidade de transmissão espiritual - gurus,
mestres espirituais, carismáticos, comunicadores excelentes, gente com alto
astral e com aura positiva e outras qualidades - e o produto oferecido. E
quando somam os dois a atração é irresistível.
Cada vez mais pastores ou outros ministros se adestram na arte de
veicular os bens religiosos. Não o fazem necessariamente como membros
de uma igreja, mas fundamentalmente como pessoas dotadas de carisma
especial de comunicação. Sabedores disto muitos se esmeram na capacidade de
comunicação com os recursos da midiática moderna, aproveitando do jogo
de sons, cores, imagens, ambiente sugestivo. Há cursos especializados para
preparar tais pessoas. E colocam-se à sua disposição os fantásticos recursos
da tecnologia moderna de comunicação.

O novo clero
"O que chama a atenção numa visão de sobrevôo [refere-se a instrumen­
tos de trabalho dos Encontros Nacionais de Presbíteros e à análise de
questionários feitos a ex-alunos do Instituto de Teologia e Ciências Religio­
sas da PUC-Campinasl - sem levar em conta os detalhes e correndo o
risco de generalização - é o gosto dos padres novos pelos sinais distin­
tivos de sua condição - festas, vestes, poderes -, ausência de inquie­
tação com relação ao destino da sociedade (e da Igreja), pouco amor
(nenhum?) aos estudos, nenhuma paixão pelo ecumenismo, pela justiça
social. Presbíteros mais preocupados com seu caráter e poder sagrados
do que com uma presença significativa no mundo, com o diálogo com a
sociedade, com serviço competente ao homem de hoje. No meio de tudo
isso há os presbíteros high-tech, uma espécie de sacralização pós-moder­
na: combinação de um discurso mágico-fundamentalista (apologético) com
os recursos mercadológicos da comunicação de massa. " 23

As técnicas são as mesmas que a propaganda comercial usa para


vender seus produtos. Aqui elas embalam a mercadoria, no duplo sentido
do verbo de acondicionar o bem vendável e de encantar o freguês.

22. S. Acquaviva, Religione e irreligione nell' età postindustriale, in S. S. Acquaviva - G. Guizzardi,


Religione e irreligione nell'età postindustriale, Roma, AVE, 1971, p. 20.
23. L. R. Benedetti, O "novo clero": arcaico ou moderno?, in REB 49 (1999), p. 89.

235
Nova era

A sigla Nova Era encarna o movimento ou fenômeno que oferece


às pessoas expressões religiosas pós-tradicionais. Isso aparece no seu
conteúdo e na maneira de assumi-las. São espiritualidades que conseguem
entrelaçar formas primitivas, arcaicas com outras inventadas na mais avan­
çada modernidade no pacote único da ideologia individual. O pós-tradicio­
nal vem da natureza como essas manifestações religiosas são trabalhadas pelas
pessoas numa espontaneidade e liberdade sem peias. Não importa de onde
vieram os elementos religiosos nem seu caráter arcaico ou moderno, mas se
respondem ou não aos anseios da subjetividade dos indivíduos.
A Nova Era assemelha-se a aspectos da arquitetura e decoração pós­
moderna. Com materiais antigos, constroem-se ambientes supermodernos.
Os significantes vêm de fazendas antigas. O significado é dado pelo espaço
novo de uma mansão moderníssima. Assim a Nova Era ressemantiza para os
gostos do agora e do presente significantes religiosos arrancados de tradições
antigas e primitivas ou fabricados para compor o novo quadro. Museu mo­
derno na arquitetura com objetos antigos expostos para que o visitante
supermoderno teça a nova rede de significado.
Desloca-se assim a fonte geradora de significado da instituição para os
sujeitos. E a Nova Era responde a essa transferência significativa, já que ela
não se apresenta como nenhuma instituição portadora de sentido, mas como
precisamente esse pot-pouri religioso.
Não lhe cabe bem o termo de religião invisível. Porque não é nem
religião nem invisível. Não é religião porque não se apresenta como um su­
jeito social portador de ritos, símbolos, doutrina, tradições, comunidades.
Nem é invisível, porque invade com sua mentalidade, cosmovisão os mais
diversos espaços. Ela exprime precisamente esse momento atual de religio­
sidade dispersa, plural, dinâmica, flexível, individualista.

Renovação Carismática

Em termos católicos, a Renovação Carismática entra plenamente nes­


se movimento oferecendo a seus adeptos um espaço maravilhoso de expe­
riências do Espírito. Embora se considere distante e até em oposição à Nova
Era, ela participa de certas características de tal tendência religiosa.
Não cabe aqui repetir o que se disse no primeiro capítulo sobre tal fenô­
meno. Ele tem enorme potencial de religiosidade. Acorda nas pessoas sua

236
dimen11ão espiritual, muitas vezes adormecida por uma vida entregue ao tra­
balho, às exigências pesadas da realidade urbana e da sobrevivência. Cansa­
das de tais tensões, as pessoas terminam por ser despertadas espiritualmente
pela Renovação carismática.
A proposta mais comum na RCC são os grupos de oração. E o tipo de
oração predominante é o de louvor, adoração, ação de graças. São experiên­
cias que as pessoas fazem de muita paz, serenidade e alegria interior durante
a oração de louvor. Essa atitude de louvor a Deus atravessa, como fio con­
dutor principal, toda a experiência carismática. A forma externa predileta <ll·
louvar são os cantos ou murmúrios a modo de cantochão, não faltando natu­
ralmente os tempos de silêncio contemplativo. Valorizam-se os momentos de
intercessão com os inúmeros pedidos 24 • Em alguns casos extraordinários,
acontece o "repouso no Espírito". Trata-se de "um fenômeno de queda in­
voluntária, normalmente para trás, em conexão bastante freqüentemente com
algum ato religioso de cura ou de oração" com profundas repercussões espi­
rituais na pessoa que o experimenta 2 \

Neopaganismo

O neopaganismo merece neste contexto da religiosidade atenção espe­


cial. Ele rejeita tanto a religião como a instituição, sobretudo a cristã, quanto
o sistema racionalista iluminista dominante. Muitos fazem-no recuar à pro­
posta fundamental de Nietzsche de uma religiosidade "para além" de tudo o
que está posto na cultura ocidental.

Neopaganismo do mais além" 11

"Há uma corrente que escolheu a fórmula apreciada por Nietzsche: não
apenas "além" da morte, da ressurreição, .. além" da história, do Reino,
"além" dos homens e das múltiplas culturas. do Deus único. mas: "para
além" (par delà) do monoteísmo e do ateísmo, "para além" do bem e do
mal. "para além" da santidade de Deus e da dessacralização do universo:
esta corrente procura um novo sagrado capaz de curar o homem de todos
esses venenos que se chamam igualitarismo e universalismo. dualismo e
totalitarismo. Uma nova corrente anseia respirar de tal forma como se

24. B. Juanes. As formas e os frutos de lournr, São Paulo, Loyola, 2000; B. Juanes, Que é a renouaçào
carismática católica� Fundamentos, São Paulo, Loyola, 1994.
25. Cardinal Suenens, Un phénoméne controversé: "Le repos dans l'Esprit", Paris, DDB, 1986.

237
Jesus e Marx, e acrescento mesmo Descartes e Hegel, jamais tivessem
existido, para nossa grande infelicidade, dizem. Verifica-se a sedução de
uma volta ao paganismo. " 26

As explicações seguem as reflexões feitas anteriormente de uma decep­


ção com as forças até então dominantes no Ocidente: idealismo revolu­
cionário, cultura tecnológica e religião institucional dominante, especialmen­
te o cristianismo.
Há outra linha de explicação que parece plausível. O surto religioso
atual tem antes um colorido pagão natural. A religiosidade pagã ficara
submersa ao longo de todo o processo histórico do Ocidente, marcado pela
presença cristã, quer na sua positividade, quer nas posições que se opuseram
a ela. O ponto capital de intelecção da trajetória do ateísmo ao retorno
do sagrado é dado pelo cristianismo. Sem ele, não se entende tal processo.
Toda vez e em todo lugar onde o cristianismo presente se retira, abre espaço
para a religiosidade natural pagã.
O cristianismo e o secularismo ateu, que nasceu de uma compreensão do
cristianismo, mantiveram a religiosidade pagã soterrada por razões diferen­
tes. A forma moderna do humanismo ateu mais impressionante e de maior
extensão geográfica e populacional foi o marxismo. Com a derrocada do
marxismo e com o enfraquecimento crescente do cristianismo, carcomido
pela luta iluminista atéia e por um processo interno de secularização, rasga­
se espaço para o homem natural, religioso, pagão. Esta nova religiosidade,
que chamei de neopagã, é radicalmente incompatível com o cristianismo
histórico e com o secularismo atual, mas casa muito bem com um cristianis­
mo gnóstico, fluido, neopaganizado 2 '.
Apesar de seu fundamento religioso, esse movimento veste-se da ca­
misa ideológica escandalosamente de direita. Faz-se a defesa descarada
das desigualdades, não no sentido de diferença, mas em oposição ao discurso
igualitário das esquerdas. Vê no discurso das igualdades reivindicação, inve­
ja, impotência dos fracos contra os mais capazes.

Neopaganismo e a nova direita


"Na verdade, os pagãos estão na ordem do dia. Retorno à "cultura
engolida", tal é o primeiro artigo de fé. A nova direita não incrimina a razão,
como o fazem os novos filósofos e a Escola de Frankfurt: pelo contrário,

26. A. 1 )umas, A nova sedução do neopaganismo. fenômeno ou epifenômeno político, cultural e


espiritual, in Concilium 1lJi(1485/1), p. 84.
27. D. Lecomptc. Do ateísmo ao returno da religião: sempre Deus?, São Paulo, Loyola, 2000.

238
defende o • espírito científico" contra o • espírito messiânico·. Surpresa:
esperava-se a defesa clássica do Ocidente cristão contra os novos bárba­
ros marxistas. É o cristianismo que é denunciado, ou mais exatamente o
monoteísmo judeo-cristão... Eis uma direita que não é a favor nem da
colonização nem da nação nem do Ocidente - mas da Europa, sem
dúvida. uma Europa que voltaria às suas fontes, que não se situam nessa
Ásia de onde veio o cristianismo, mas no Norte de onde desembarcaram
os bárbaros hierárquicos e poéticos: celtas. vikings e germanos. A civili­
zação que vem do frio." 28

Religiosamente rejeitam-se as promessas cristãs. É o oposto da teologia


da esperança. O vazio interior das pessoas não se preenche com esperanças.
Resgatam-se o trágico da realidade, o mito de enraizamento cósmico, a mís­
tica da superação da razão reducionista, o pluralismo em face do monoteísmo
do monopólio interpretativo religioso. Substituem-se, no fundo, a fé e as
ideologias pelo mito religioso que é desenterrado lá nas religiões pré-cristãs.
A razão, que persistia ainda em formas religiosas, dá lugar à sedução 29 •
Na Europa, o conflito se trava entre as camadas religiosas arcaicas pré­
cristãs das hordas germânicas, celtas, vikings e o cristianismo.iº. O neopaganis­
mo pretende resgatar aquela religiosidade ancestral, misturada com muitos
elementos atuais. Encontramo-nos, de novo, com o individualismo, o sincre­
tismo, o esoterismo de formas religiosas, que se estruturam conforme o gosto
dos indivíduos. É o ser humano bem pós-moderno que se pensa como ser de
desejo, de sentimento e sedento de experiências e, no caso, religiosas.
O termo neopaganismo quer marcar o caráter de oposição à tra­
dição judeo-cristã, denunciando-lhe o espírito pernicioso e desastroso para
o Ocidente e retornando então às fontes pagãs originais. Doura-se o sagrado
pagão de uma inocência, naturalidade e alegria de viver que o cristianismo
teria desfeito. Critica-se o dualismo Deus e mundo do cristianismo, profes­
sando uma continuidade monista e panteísta entre ambos 11•
Não faltam grupos que se reúnem para praticar ritos e celebrações em
honra de deuses e deusas pagãos da Antigüidade em plena Europa da moder­
nidade avançada. Outros adentram-se teoricamente pelo estoicismo, pelas
religiões indo-européias, pelo gnosticismo esotérico. Pensam até mesmo en-

28. J.-�I. l>omcnach, l: nq uête sur les idées contemporaines, Paris, Seuil,1981, pp. 78.80.
29. .'\. Dumas, art. cit., pp. 84-93.
. \O. J.-�I. I>omcnach, op. cit.. pp. 80s.
31. J. \"ernettc, :'\éo-paganisme. in P. l'oupard, org., Dictionnaire des Religions, Paris, PUF, '199. l ,
li. pp. 1420- 1423.

239
contrar aí fundamento religioso para a União Européia, rejeitando a proposta
de João Paulo II de fundá-la na fé cristã. Há formas sincréticas que dificul­
tam distinguir se se trata de um cristianismo paganizado ou de um paganis­
mo com elementos cristãos. Outras expressões situam-se na linha-limite entre
o religioso e o desenvolvimento do potencial humano por meio de práticas
paracientíficas, parapsicológicas, para-religiosas, alargamento de consciên­
cia, técnicas de meditação e de respiração, culto do corpo.
O neopaganismo confessa, em outros momentos, menos anti­
cristão e mais pós-cristão. Retoma a linha pagã subjacente ao longo da
história antiga, medieval e mais evidente na Idade Moderna no humanis­
mo, em Montaigne, em Hume e nos tratadistas de moral. Até então era
mais um paganismo cristianizado e atualmente no final da cristandade surge
o neopaganismo explícito. O adversário maior do neopaganismo é a cris­
tandade e não o cristianismo, entendendo a primeira como a fase em que o
cristianismo se apresentava detentor da verdade absoluta e em força dela
julgava com o direito e o dever de impô-lo ao mundo. Nesse sentido, o
neopaganismo oferece uma sabedoria de vida e de felicidade, alternativa ao
cristianismo 32•

Filosofia de vida neopagã


"Com efeito, o neopaganismo pode ser entendido diversamente [de
anticristianismo), a saber, como uma re-proposta de uma ética do finito.. . Ele
mantém tudo o que existe de transitório, certamente, mas suficiente em si
mesmo enquanto existe ... O neopaganismo explícito pôde emergir somen­
te agora que estamos no fim da cristandade... Se é possível uma sabe­
doria de viver não cristã, então o cristianismo não é tudo... O neopaganis­
mo não é niilista, precisamente porque não nutre esperanças absolutas e,
no entanto. não defende que tudo seja possível. Acima de tudo, ele enten­
de altamente improvável que a dor e a morte desapareçam do mundo.
Vive-se bem, se elas são enfrentadas, se as pessoas se comportam à
altura da própria morte. Para o neopagão a caducidade não é motivo de
objeção nos confrontos da vida, a dor é natural como a alegria e é a
mesma natureza que gera e abate. " 33

Estas considerações valem mais para um mundo realmente pós-cristão,


cujo imaginário social já se despojou em profundidade dos significantes cris-

32. S. :-.Jatoli, Dizionario dei vizi e delle virtú, Milano, Feltrinelli, 1996, pp. 94-97.
33. S. Natoli, op. cit. pp. 94-96.

240
tãos. Já citei no capitulo segundo o exemplo do filósofo francês M. Conchc.
Ele é lidimo exemplar da secularidade moderna européia que se vangloria de
ter-se despojado de todo elemento cristão para encontrar-se com a raiz pagã,
simbolizada na figura de Heitor por ser "apenas humano" numa atitude ti­
picamente estóica 34 • Volta-se ao mundo pagão.
No Brasil, torna-se mais difícil diagnosticar tal processo. Há formas
nitidamente pagãs que emergem hoje vindas das religiões afro-brasileira11
e introduzem-se no imaginário religioso do povo e da elite. Ritos, letras r
ritmos de música, cultos, terminologia de caráter religioso afro-brasileiro
adquirem cada vez mais cidadania na cultura brasileira. E, em muitos casos,
com toda a sua pureza pagã.
Com menos freqüência isso acontece com ritos e símbolos das religiões
indí genas. Eles atravessam algumas expressões religiosas ou a título indivi­
dual ou em religiões institucionalizadas, como o Santo Daime.
A novidade, porém, e mais questionadora teológica e pastoralmen­
te, é uma forma aparentemente cristã e até católica de uma atitude
neopa gã em alta na visibilidade midiática.
O povo brasileiro teve e tem ainda uma ampla socialização católica.
Impregnam-lhe o imaginário social religioso os ritos católicos. Aí estão dis­
poníveis significantes religiosos de Cristo, cruzes, ostensórios, hóstia, Maria,
os santos, que podem ser resgatados a qualquer momento. Os significantes,
a parte sensível do signo, sua "imagem acústica" (F. de Saussure) ou visual,
trazem sempre um significado. Sem ele, seriam simplesmente objetos, que
existem, mas não significam nada. E a significação se percebe pela relação
que os significantes e significados entretecem. O significado não existe nem
antes, nem depois, nem fora do significante35 •

Signo, significante e significado


"Definir-se-á, pois, com prudência, o signo como uma entidade que 1)
pode tomar-se sensível, e 2) para um grupo determinado de usuários
assinala uma ausência nessa entidade. A parte do signo que pode tomar­
se sensível chama-se, para Saussurre, significante; a parte ausente, sig­
nificado, e a relação que eles entretêm, significação. " 36

34. M. Conche, A análise do amor, São Paulo, Martins Fontes, 1998, de modo especial o capítulo:
Tornar-se grego, pp. 103-129.
3j. O. Ducrot - T. Todorov, Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Seuil, 1972,
pp. 131s.
36. ld., ibid.

241
As pregações e celebrações religiosas articulam os significantes e
significados, sem que um não possa ser pensado sem o outro. No seio
desse sistema religioso de sinais se entendem os significados dos significan­
tes. Os usuários, inseridos nesse sistema, percebem-nos.
Para esclarecer melhor a relação entre significante e significado, analise­
mos o exemplo da eucaristia. Numa celebração eucarística, quando o sa­
cerdote apresenta a hóstia, o católico catequizado entende que se trata da
presença real de Jesus sob as espécies do pão. E quanto mais longa e profun­
da for a catequese, mais o significado do significante hóstia é amplo e teoló­
gico. É fundamental para a intelecção dos significantes o meio social e cul­
tural em que ele aparece.
Acontece com freqüência um fenômeno de transignificação de um
significante por obra das mudanças culturais e sociais. O mesmo signi­
ficante - hóstia - levantado numa celebração de massa, num contexto social
já menos católico, embora religioso, continua significando um mistério do
mundo divino. Distancia-se, porém, do significado da eucaristia, como en­
tende a catequese católica, de celebração da memória do Jesus ressuscitado
por uma comunidade de fé. A hóstia é significante, juntamente com outros
signos, de uma realidade sacramental que constrói a Igreja, compromete os
fiéis com a prática de Jesus.
Pode suceder que o conjunto dos significantes duma celebração eucarís­
tica continue idêntico na sua materialidade. Contudo por razões culturais de
compreensão, os significados podem variar e algum significante esvaziar-se
do seu sentido originário. Um significante não passa de um objeto quando
perde seu significado originário. O sentido não é uma substância que mar­
que um significante independentemente da relação do usuário com ele. Por­
tanto, o sentido eucarístico só existe pelas relações de compreensão dos que
participam da celebração.
O católico médio tem dificuldade de entender o significado teológico
mais profundo do significante da hóstia. Por uma doutrinação tradicional da
presença real de Jesus na eucaristia "ex ope operato", isto é, pela força das
palavras consecratórias independentemente da fé do sacerdote e dos fiéis, ele
é tentado a considerar a hóstia como uma "coisa" sagrada de onde pode
emanar força divina.
Uma correta intelecção da presença real considera a questão a partir de
dois lados. Da parte de Deus, a oferta eucarística é independente de nós. Não
somos nós que damos o sentido eucarístico. Recebemo-lo pela promessa e
realização de Jesus. Aí se entende o "opus operatum" do sacramento. De
nossa parte, este "opus operatum" só adquire sentido quando reconhecido,

242
como ceia, comunhão, memória da vida de Jesus, compromisso com Ele. Í�
disso que se trata.

Sentido da liturgia
"Não faz muito tempo, a televisão mostrou cenas de um popular padre
'pop-star' carregando o ostensório com a hóstia consagrada no meio da
multidão de seus fiéis que se aglomeravam e erguiam as mãos para tocar
na custódia ou aproximar dela suas carteiras de trabalho (ou as de seus
filhos ou maridos). Espetáculo de fé na eucaristia ou incompreensão gro­
tesca do sentido do sacramento? O Santíssimo Sacramento é um 'santo
milagreiro', quem sabe mais poderoso que os outros?" "A eucaristia não
nos traz para o recinto da Igreja para simplesmente congregar-nos por uma
hora; ela nos remete à missão, ao mundo que é entregue ao cristão como
tarefa. Não se trata de unir-nos ao 'doce hóspede das almas' para consolo
e sossego íntimo, mas de celebrar a memória de seu mistério pascal para,
entrando nele e dele participando, realizá-la na vida de cada dia, unindo-nos
aos que sofrem como Cristo e descobrindo e ajudando-os a descobrir a
ressurreição e o Ressuscitado em seu meio. " 37

Mas alguém perguntará: que tem a ver todo esse arrazoado com o tema
do neopaganismo? E como evangelizar celebrações que se neopaganizaram?
Num país sociologicamente católico, é normal que os significantes cató­
licos sejam os que mais facilmente ocupam o espaço da publicidade. Talvez
esteja aí a razão por que a sociedade continua pedindo celebrações sacramen­
tais para uma série enorme de cerimônias sociais e políticas como: formatu -
ras, comemorações de datas cívicas, matrimônios sociais etc. Para muitos
elas exprimem a compreensão e vivência da fé de maneira verdadeira e au­
têntica. Em seu juízo prudencial, a Igreja acredita que por causa dos que as
entendem e pelo resquício religioso de muitos participantes, compensa o ris­
co de uma interpretação errônea e distante das intenções de Jesus.
À medida que a sociedade se torna indiferente à religião católica, com
outras preferências religiosas, ou mesmo se seculariza - a secularização
prossegue nas camadas letradas-, cresce o questionamento a respeito das
celebrações sacramentais em muitas cerimônias.
Para complicar a questão surge outro fenômeno. Fazem-se celebrações
nitidamente católicas diante de massas enormes de pessoas. Às vezes se lhes

37. Editorial: Eucaristia- voltemos à Sacrossanctum Concilium in Perspectiva teológica 32 (2000),


pp. 149s.154s.

243
juntam, a modo de acréscimo, outras finalidades. Têm caráter carismático,
festivo e até de marketing publicitário. Será que elas não refletem a seu modo
essa onda neopagã?
De início, fica dito que certamente para muitos se trata realmente de uma
celebração católica com os significados corretos da catequese. A questão se
levanta quando os significantes católicos são percebidos por pessoas que vivem
fora desse contexto religioso ou que estão em busca de outras realidades
espirituais. Nesse caso, os significantes católicos, como a hóstia, adquirem
um significado bem diverso. Transformam-se para muitos numa força quase
física do mundo divino interferindo em nossa realidade terrestre:
J. Delumeau nos seus estudos sobre a religiosidade popular nos anos do
pós-concílio Tridentino observava o esforço da catequese católica de transfe­
rir para uma fé sobrenatural as devoções que visavam diretamente à solução
de problemas materiais imediatos. Consideravam-se resquícios do paganis­
mo ainda não evangelizado nem tridentinizado.

Fogueira de S. João
"Enquanto o fogo está aceso, um encarregado leigo atice a brasa para que
arda e se consuma mais rapidamente, e um clérigo fique junto ao fogo para
conter o povo no seu papel e para impedir as pessoas de pegarem e
levarem brasa ou carvão, por pouco que seja, para usá-los como supers­
tição e assim todo outro tipo de desordem. Enfim, tendo tudo terminado,
jogue-se um balde de água para apagar o que sobrou de fogo, e retirem­
se as cinzas imediatamente, limpe-se o lugar, guardem-se o estandarte e
o quadro de S. João, tudo a cuidado de quem se encarrega do fogo. " 38

Precisamente é essa busca de solução de problemas materiais ime­


diatos que des perta a suspeita de que se trata de relí q uias pagãs anti­
gas - não esquecer a forte camada sincrética do catolicismo brasileiro
- ou do ressurgir dessas formas. Em certas celebrações, o sacerdote cir­
cula com a hóstia no meio do povo. Este procura tocá-la para haurir um
poder divino que solucione seu problema. Haja vista os gestos de encostar na
hóstia ou noutro símbolo sagrado a carteira de trabalho, a chave do automó­
vel, ou outros objetos. Relaciona-se a espera de solução imediata de proble­
mas reais e concretos com a força divina da hóstia.
A busca de uma solução imediata de problema concreto afeta
princi p almente duas classes de p essoas. Os pobres e os que se encon-

38. J. Delumeau, Le catholicisme entre Luther et Voltaire, Paris, PUF, 1971, p. 260.

244
tram nalpma ■ituação angustiante inesperada -doença grave, desem­
prego, falência etc. Na celebração religiosa ou no contato com um objeto
sagrado procura-se o milagre. Esta palavra explica muito da religiosidade
atual. Continua tão atual como outrora. Há aí um toque pagão? Os milaRres
não acompanharam o desenrolar da história do povo de Israel e da vida de
Jesus? Por que essa onda sôfrega pelo milagre reflete, a meu ver, não uma
verdadeira fé cristã, mas sim relíquias do paganismo e emersões neopagàH?
Porque, em última análise, se atribui a uma "coisa" um poder mágico <ll·
cura ou proteção e não à pessoa de Deus. Desconhece-se a maneira como
Deus atua na história da salvação. O próprio Jesus diante dos pedidos doH
milagres fazia a devida correção, provocando a fé.

Magia
"Todas as práticas de magia ou de feitiçaria com as quais a pessoa pre­
tende domesticar os poderes ocultos para colocá-los a seu serviço e obter
um poder sobrenatural sobre o próximo - mesmo que seja para propor­
cionar a este a saúde - são gravemente contrárias à virtude da religião.
Essas práticas são ainda mais condenáveis quando acompanhadas de uma
intenção de prejudicar a outrem, ou quando recorrem ou não à intervenção
dos demônios. " 39

A sociedade materialista, tecnocrata, competitiva, estressante está a


gerar muita angústia, tédio. É o sentimento diante de um cotidiano sem
sentido, anódino, aborrecido. As surpresas e emoções dão-se num nível super­
ficial. A exacerbação erotizante e sexualizante da mídia tem feito aumentar o
desgosto da vida. É a tirania do prazer que subjuga seus asseclas 40 • Dessa geo­
grafia cultural emigram grupos em direção às ofertas religiosas. Celebrações
católicas ou não, ritos e símbolos cumprem a função de consolo, de terapia. Os
significantes religiosos assumem nessa nova relação e contexto cultural,
não o significado de sua origem religiosa, mas de fatores terapêuticos,
de consoladores, de apaziguadores. A força origina-se do maior poder
motivador e sugestionável dos elementos religiosos. Permanece-se no nível
psicológico, antropológico, sem necessária abertura à Transcendência.
Se, por acaso, estivéssemos numa sociedade em que outros signos religio­
sos fossem significativos e motivadores, estes seriam empregados e não os
católicos. Se a hóstia levantada toca a multidão e não a estátua de Buda, é

39. Catecismo da Igreja Católica, Petrópolis/São Paulo, Vozes/Loyola, 1993, n. 2117.


40. J. Cl. Guillebaud, A tirania do prazer, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.

245
porque ela pertence ao imaginário religioso social do povo. Os símbolos não
são arbitrários. T êm ancoragem na cultura, embora esfumados nos seus ver­
dadeiros significados. Isso permite que facilmente se transignifiquem num
contexto sociopolítico cultural de busca de resultados práticos no nível ma­
terial ou psicoespiritual.

Religiosidade do simulacro

J. Baudrillard tem estudado substancialmente a cultura do simulacro41 que


ele associa intimamente à sociedade do consumo. Esta é o ponto alto do simu­
lacro. Nesse contexto, surge a pergunta: não se está criando também uma re­
ligiosidade do simulacro? E ela não necessita ser evangelizada pela fé cristã?
A fé cristã afirma a presença de um real, mesmo que no mistério. Toda
presença de Deus é real. A cultura do simulacro finge uma presença ausente.
E gera a ilusão da presença do objeto na sua simulação. Atua sobre a fé de
maneira duplamente negativa. Ou faz que se creia no que não existe - te­
ríamos uma espécie de idolatria, acreditando na realidade divina de uma
ficção. Ou esvazia o papel sacramental das realidades da fé. O sacramento é
que estabelece a possibilidade de uma articulação entre a "res" e o "signum",
a graça e o seu sinal visível.
A cultura do simulacro deturpa a compreensão do sacramento. Atribui
sacramentalidade a realidades que não a têm. Pensa que é sacramento o que
não o é. Ou não valoriza o sacramento, quando ele é, porque banaliza os
sinais. Esvazia-se uma realidade por excesso ou por falta. Excesso de sinais
perturbam a percepção daqueles que verdadeiramente significam a presença
de Deus. Ou produzem o efeito contrário de rejeitar todo sinal, por ser ele
uma ameaça de engodo. Teme-se, neste caso, desvelar os sinais para não
encontrar no seu final o sem-sentido, a vacuidade.
A religiosidade do simulacro dificulta o discernimento teologal.
Embaralha os sinais com a realidade de tal modo que já não se distinguem
entre si. A fé cristã repousa sobre a certeza de que os sinais significam o que
realizam e realizam o que significam. Rompendo tal relação, rui a estrutura
sacramental da salvação. A simulação é a negação dessa relação, já que o
sinal, neste caso, não realiza o que significa, nem significa o que realiza.
Essa relação não é dada por nenhuma evidência simbólica, mas pela fé na
ação do Espírito Santo e pela aceitação da raiz última da salvação - o misté-

41. H. H. de Melo, A cultura do simulacro. Filosofia e modernidade em ]. Baudrillard, São Paulo,


Loyola, 1988, onde se encontram elencadas as principais obras do filósofo francês.

246
rio da Encarnação. No sinal da humanidade de Jesus revela-se-nos o seu arr
Deus.
A religiosidade, ao freqüentar o mundo da mídia e ao tornar-se produto
de consumo, incorre gravemente no risco de transformar-se em simulacro de
um real esvaziado. Não encosta em nenhuma verdadeira experiência de 1 )eu11,
mas se alimenta de fantasias, metáforas vazias, símbolos provocadorcH de
emoção, imagens fantasmagóricas. Finge ser o que não é, a saber, uma me­
diação experiencial de Deus.
Há um dito sobre a cultura midiática: "encher os olhos para esvaziar a11
cabeças". Aqui seria "encher a religiosidade para esvaziar a fé". A fé ni11lil
estabelece relação muito clara entre o interior - a adesão existencial eo
exterior - o compromisso -, entre o privado - o sujeito que crê e
o público - no seio de uma comunidade. A cultura do simulacro dissolve tal
tensão com a conseqüência de uma extrema privatização da religiosidade ou de
uma total exteriorização superficial em ritmos coloridos e festivos. Tudo não
passa de uma hiperrealidade em que o poder simulador da mídia produz uma
realidade poderosa, mais "real" que a configurada por objetos e sujeitos 42•

IV. COMO COMPORTAR-SE EVANGELIZADORAMENTE


DIANTE DO FENÔMENO RELIGIOSO?

Momento de autocrítica

Evangelizar na atual situação implica reconhecer os limites e falhas da


maneira como a evangelização vem sendo feita ao longo de nossa história.
Por ocasião dos 500 anos do início da Evangelização, seja da América Latina
(1992), seja do Brasil (2000), escreveu-se muito sobre os erros e desvios no
processo do anúncio do Evangelho em nossas terras. Repetiram-se gestos de
reparação a exemplo do Papa João Paulo II. Não cabe retomar aqui o que foi
fortemente repisado a respeito de uma evangelização colonizadora, que não
respeitou as alteridades culturais e religiosas 43 .
Persistem ainda traços negativos na evangelização que, por reação, pro­
vocam mais ainda a exacerbação do fenômeno religioso 44 . A burocratização,

42. J. Eduardo Fernandez. Tiempos posrnodemos, in SEDO! (Buenos :\ires). 19 (maio de 199.l),
n. 119, Separata: p. 10.
43. L. Hoff. América Latina: da conquista à nova evangelização, São Paulo, Atica, 1992: J. O. Beozzo.
F.vangelizaçào e 5' Centenário: passado e futuro na Igreja da América Latina, Petrópolis, Vozes, 1991.
44. Retomamos aqui observações pertinentes feitas por J. Martin Velasco, El malestar religioso de
nuestra cultura. Madrid, Paulinas, '1991, p. 78s.

247
a institucionalização, o esfriamento do sagrado nas Igrejas, ao lado da pouca
atenção às necessidades religiosas do fiel, levam as pessoas à busca de ex­
pressões emocionais legítimas fora das mediações oficiais. A falta de espírito
comunitário com excesso de hierarquia, a carência de relações interpessoais,
a ausência de sensibilidade utópica, a rotinização da prática religiosa impe­
dem as religiões institucionais atingirem as pessoas. As religiões oficiais não
se preocupam com o processo de iniciação ao mistério. Não é de estranhar
que surjam fundamentalismos, certo fanatismo e proselitismo com métodos
ilegítimos, a absolutização de determinadas mediações, o abuso da emoção e
do sentimentalismo, ao lado de excessiva acomodação ao mundo com esque­
cimento do profetismo.

Evangelizar a religião das necessidades e do milagre

Nunca se evangeliza uma religião e uma cultura em abstrato. As pessoas,


que vivem tal religião e tal cultura, são evangelizadas. Elas são os sujeitos
concretos e reais das culturas e religiões. São elas que criam as relações, os
valores, as atitudes que por meio da evangelização são transformadas. Evan­
gelizar a religião das necessidades e do milagre significa aproximar-se das
pessoas que vivem tal perspectiva religiosa e apresentar-lhes outra maneira
de vivê-la, iluminada pelo evangelho45 .
Já aludi à prática de Jesus diante das multidões que buscavam o milagre.
S. João retoma explicitamente esse problema quando Jesus, depois do mila­
gre da multiplicação dos pães, percebe que o povo o procurava e diz-lhe: "Na
verdade eu vos digo: vós me procurais, não porque vistes os sinais, mas
porque comestes o pão e ficastes saciados. Esforçai-vos, não pelo alimento
que se estraga, e sim pelo alimento que permanece até à vida eterna. É este
o alimento que o Filho do homem vos dará, porque Deus Pai o marcou com
seu selo". Então lhe perguntaram: "O que devemos fazer para trabalhar nas
obras de Deus?" Jesus respondeu: "A obra de Deus é que acrediteis naquele
que ele enviou" (Jo 6,26-29).
A evangelização do maravilhoso, da busca do milagre desloca a
atenção da sua materialidade para o sentido. O saciar-se do pão multi­
plicado não é o importante para Jesus. Mas alimentar-se do pão que perma­
nece. É a fé na sua pessoa. No milagre está em questão não a fisicidade do
45. M. Azevedo, Cristianismo, uma experiência multicultural, in Cl. Caliman - J. E.Pinheiro,
orgs., O Evangelho nas culturas. América em missão. V Congresso Missionãrio Latino-americano, Petró­
polis, Vozes, 1996, p. 161.

248
feito, mas o seu caráter de sinal. É o lado visível - o significante -- de um
significado salvífico: Deus está próximo e de maneira salvadora.
Aconteça ou não aconteça o milagre físico, o sentido mais profundo per­
manece. Deus está sempre ao nosso lado em qualquer situação que seja.
Não é mau buscar o milagre tisico. É um sinal de nossa carência,
impotência, fragilidade. E nesse momento, voltamo-nos para Deus. l )iantc
do impossível dos homens só resta o possível de Deus. É um ato de fé e dl·
esperança. Isso é salutar. Já está a graça atuando, independentemente de Me
a "graça" pedida foi alcançada ou não. Assim no caso de doença grave pedir
o milagre da cura revela a nossa situação de fragilidade. O milagre não i:
necessariamente a cura. Pode ser simplesmente aceitar a morte.

Aceitar a morte
"Quando um paciente não dá mais sinal de esperança, geralmente é pre­
núncio de morte iminente. É possível ... que assuma a atitude daquele
paciente que sempre acreditou num milagre, e nos recebeu um dia com
estas palavras: 'Creio que o milagre é este: estou pronto, e agora não
tenho mais medo'. " 46

Na ordem normal, Deus não intervém sobre as leis tisicas que fa­
zem parte do seu ato criativo. As leis existem para o nosso bem. Eventual­
mente produzem efeitos opostos não queridos nem permitidos por Deus.
Sofridos por ele, já que não as suspende a cada caso. Estaria brincando co­
nosco, com a história, com a sua criação. Ele não o faz.
O impossível de Deus é o contraditório, porque ele não pode ser feito. A
simples experiência mostra que viver à cata de milagre ou é algo absoluta­
mente contraditório ou algo desrespeitoso até para o próprio Deus. Basta o
exemplo de pedir a vitória de seu time no campeonato. Os dois lados rezam.
Que pode fazer Deus? Os dois não podem ganhar o campeonato. O vito­
rioso foi ouvido por Deus? E o derrotado, não? Vê-se que fazemos de Deus
um joguete de nossos interesses. Não cabe na santidade e majestade de Deus.
Que pensar de um acidente grave em que algumas pessoas morreram e
outras não? Milagre de Deus para as que se salvaram? E para as outras?
Responde mais à fé cristã dizer que Deus atuou e atua nos dois casos. Tem
direito de ser grato a Deus quem escapou com vida. Deus se alegra que
naquele caso as leis da natureza não lhe tiraram a vida. Para isso elas existem.

46. E. Kübler-Ross, Sobre a morte e o morrer, São Paulo, Martins Fontes, 41991, p. 147.

249
No caso das vítimas fatais ou não, Deus se faz presente no consolo, na
presença amorosa a quem precisa dela - à família da vítima ou àquelas que
ficaram feridas. Deus sofre que as leis, que ele fizera para a vida, causaram,
por outras razões, a morte. E algumas vezes essas leis causarão inexoravel­
mente a morte. Aí também Deus está com seu amor, sua misericórdia, sua
assistência, sofrendo as nossas dores.
Numa compreensão mais profunda da misericórdia e do amor de
Deus não necessitamos estar correndo atrás de mila gres. Ele está a
fazer o máximo que pode por nós. Se algo de mau nos acontece, Ele não o
quer nem permite, mas sofre. E vai mais longe. Põe-se ao nosso lado com sua
graça, lutando conosco contra o mal. Esta nunca nos falta, como ensina São
Paulo. Essa certeza é a melhor notícia, o evangelho, a Boa Nova de Deus.
Não precisamos de outra. Toda outra notícia de cura ou não, de vida ou
morte, de "graça alcançada" ou não, de "milagre" ou não, são notícias segun­
das, que confirmam e nunca contradizem a primeira.

Deus e o mal
"Se Deus cria o mundo sabendo todo o mal que ele necessariamente
comporta, é porque, definitivamente. vale a pena ... Se cria, só pode fazê­
lo para o bem da criatura: isto supõe a impossibilidade de que o mal tenha
a última palavra... Se Deus cria, não pode criar-se a si próprio: tem de criar
um mundo finito. Mas, se o mundo é finito, comporta necessariamente o
mal: ao conceito de mundo finito pertence na história a presença do mal...
Deus cria com vistas à realização máxima da criatura. . . Toda sua força vai
estar aplicada em ajudá-la para que, dentro do possível, o consiga... Deus
está do lado da criatura e em posição contrária aos limites que tendem a
frear sua expansão: está lutando nela e com ela contra tudo o que a oprime,
a fere, a distorce ... Deus está do lado da criatura e contra o mal. " 47

Uma evan gelização do mila gre arranca o desejo dos atos reli giosos
de seu nível pagão do maravilhoso, das intervenções arbitrárias e ca­
prichosas dos deuses, da bar ganha insistente com eles para o plano da
liberdade, do amor, da presença de Deus à criatura desejosa de expe­
rimentá-la. Os pedidos e as corridas aos lugares, atos e objetos sagrados não
têm o sentido de mover a Deus - Ele está sempre do e ao nosso lado contra

47. A. Torres Queiruga, Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena do humano. São
Paulo, Paulinas, 1993, pp. 1.17s.

250
o mal físico, moral e espiritual - mas de dar-nos a sensibilidade, o discer­
nimento de perceber a diligência de Deus junto a sua criatura.
Os ensinamentos de Jesus sobre a importância de insistir na oração (Mt
7, 7-11), de perseverar nos pedidos não dizem respeito a Deus seu Pai -- poia
Ele sabe o de que precisamos (Mt 6,8) - mas a nossa atitude de vigilância
"escatológica". Abertura a Deus agindo aqui e agora na esperança do encon­
tro definitivo para além da morte.
O olhar desviado da coisa pedida, da necessidade imediata a ser satisfci -
ta, do milagre impetrado para a pessoa de Deus em diálogo com minha lihcr ·
dade evangeliza essa camada pagã e neopagã da religião. A verdadeira ima -
gem de Deus é a do Pai misericordioso diante do qual não cabe nenhuma
reivindicação, nem pressão, nem barganha, nem "um dou para que me dês".

Evangelizar a religião do consolo

O ser humano sofre na alma. Suas enfermidades multiplicam-se na


sociedade moderna. As terapias pululam. As pessoas secularizadas, que con­
seguem com as ajudas terapêuticas psicológicas resolver suas angústias, pro­
blemas interiores, tédios, neuroses, cansaços do coração, náuseas e tantos
outros sentimentos desagradáveis, terminam aí seu itinerário de busca. Saem
conciliadas e restauradas dos gabinetes psicanalíticos. Ou permanecem fir­
mes no seu ciclo de sessões na expectativa de melhora continuada.
Há outras, porém, que não têm acesso a tais recursos da terapia moderna,
ou se desiludiram dela, ou atingiram um grau muito grande de angústia, ou
querem tentar outra via de cura. Pessoas assim atormentadas voltam-se
para as experiências religiosas.
Mariposeiam em torno dos focos luminosos religiosos. Interessa-lhes o
consolo e o alívio que sentem. As experiências religiosas não valem por elas
mesmas, pela tradição onde se assentam, pela fé teologal que as informa.
Está em jogo sua força de cura interior, de pacificação do coração, de alívio
das angústias. E muitas vezes as formas religiosas das tradições orientais
possuem maior eficácia. Isso explica a sua explosão.
A psicologia ensina-nos a importância dos outros significativos nas
terapias. Pessoas, que possuem carisma e força espiritual, operam curas
interiores. E em torno delas giram as outras sedentas de cura. As "medici­
nas" religiosas adquirem tanto mais poder curativo quanto maior for o poder
espiritual da pessoa carismática e a disposição de quem a procura.
Essas práticas não requerem nenhuma fé teologal. Basta a sugestão,
a impressão sensível. Não atingem o limiar do evangelho. Por isso, situei-as

251
nesse contexto do neopaganismo. Tal reflexão vale inclusive quando as pes­
soas que exercem tal influência pertencem à Igreja Católica. Não é por essa
causa que são procuradas. Porque outras da mesma Igreja que não tenham
carisma não produzem nenhum atrativo nem poder terapêutico. A própria
Nova Era apresenta-se como terapia.

Nova Era e terapia


"É palpável que a Nova Era é, entre outras coisas, um movimento terapêu­
tico que pretende curar, sanar e salvar as pessoas enfermas, física e
moralmente. Pode inclusive dizer-se que carrega consigo uma terapêutica
holística que propõe um conjunto de práticas e de técnicas novas -
chamadas comumente alternativas -, que pretendem ser medicinas sua­
ves capazes de regenerar as pessoas na totalidade e integridade de seu
ser composto de corpo, alma e espírito. Ao lado dos métodos de desen­
volvimento das potencialidades humanas, muito de moda entre os new
agers, estes últimos propõem um cuidado distinto do enfermo, uma terapia
nova. Esta respeita as interações entre o corpo (soma), a alma (psyche)
e o espírito Cnous), a relação entre a pessoa e o ambiente, sua relação
com as esferas superiores e com o divino. Assim, pois, não se intenta
somente conhecer e curar os sintomas, mas também as causas. " 49

Mais delicada é a questão no caso de as práticas sugeridas ou vi­


venciadas serem sacramentos ou sacramentais da Igreja. Não é fácil
discernir se a motivação principal é a de uma fé esclarecida no sentido do
sacramento ou sacramental ou um início de fé ou simplesmente uma atitude
neopagã. No primeiro caso, se ela se aproxima buscando paz interior, é, porém,
consciente de que tal busca faz parte de um processo espiritual de conversão,
de disposição melhor para os demais, de compromisso com a comunidade. A
evangelização da prática religiosa do consolo aponta para o sentido último da
integração, da felicidade, do gozo. Tem sempre uma relação com o irmão,
especialmente carente e necessitado.
Se existe predominantemente uma busca autocentrada na sua cura inte­
rior, mas co-existe também uma atitude teologal inicial, a evangelização
consiste em favorecê-la, ajudá-la a amadurecer. A pastoral tradicional da
Igreja conheceu algo semelhante que em termos teológicos clássicos se cha­
mava passagem da atrição à contrição, seja pela força da graça sacramental,

48. Terapia(s) in B. Franck, /Jiccionario de la nueva era, Estella, Verbo Divino. 1994, pp. 227s.

252
seja pela motivação pedagogicamente incentivada. Assim quem não estava
verdadeiramente arrependido de seu pecado grave, mas tinha medo do infer­
no - atrição - pela força da graça do sacramento da penitência ou por um
exercício espiritual chegava à contrição - arrependimento do pecado pela
sua gravidade em relação a Deus. De maneira semelhante, esse início de fé
na busca da cura interior pode amadurecer para uma atitude verdadeira criN ·
tã de abertura a Deus e aos irmãos.
A atitude neopagã manifesta-se na concentração egocêntrica da
busca de consolo, de alívio sem nenhuma outra perspectiva altruísta,
comunitária, social. Trata-se de uma preocupação exclusiva com a cura
interior. Realizada esta, termina o percurso espiritual da pessoa. Saltita de
"medicina" espiritual em medicina espiritual até encontrar aquela que cure.
Vive-se no campo espiritual a prática da medicina corporal. O médico ou a
indústria farmacêutica não têm um valor anterior à procura, mas valem pela
eficácia de seus tratamentos e remédios. Igualmente os administradores e as
práticas religiosas não herdam valor objetivo da instituição de que vêm
muitos dos fiéis nem sabem nem se interessam -, mas da fama crescente de
sua eficácia. Interfere fortemente o poder da mídia que os torna conhecidos
e mais eficazes ainda pela força sugestiva e persuasiva.
O fato de ser uma atitude neopagã não significa que seja má. Simples­
mente afirma-se a necessidade de ser evangelizada para atingir o nível cristão
da abertura ao outro. Acontece que em determinadas circunstâncias a pessoa
não consegue nenhuma sensibilidade para algo fora de sua cura, tal é o seu
sofrimento, sua penúria. Essa busca revela um instinto e desejo de vida que
começa consigo mesmo. E para realizá-lo há terapias seculares e inúmeras
ofertas religiosas, independentemente da especificidade cristã.

Cura interior
"Cura interior é a cura de nosso homem interior: da mente. emoções.
lembranças desagradáveis, sonhos. É o processo pelo qual. por meio de
oração. somos libertos de sentimentos de ressentimento. rejeição,
autopiedade, depressão. culpa, medo, tristeza, ódio, complexo de inferio­
ridade. autocondenação e senso de desvalor etc... Para que haja a cura
interior são necessários dois passos. 1) Romper o domínio de Satanás
sobre nós e tomar posse do que é nosso por direito. 2) Orar pela cura das
lembranças passadas ... A operação da cura interior não é apenas voltar ao
passado e desenterrar de lá os detalhes mais sórdidos. Não é procurar ver
qual a quantidade de lixo de que nos lembramos; mas é jogar fora todo o

253
lixo que ali encontrarmos. É deixar que Jesus faça brilhar sua luz divina em
todos os recantos escuros onde Satanás escondeu as mágoas e as lem­
branças dolorosas. É andar de mãos dadas com Jesus, em todos os
segundos de nossa vida, e deixar que ele fique bem ali conosco durante
as situações desagradáveis. " 49

A evangelização das práticas religiosas do consolo implica, em um


primeiro momento, reconhecer-lhes o valor e aceitar as críticas que
elas fazem a uma fé árida. O fato de elas revelarem um pano de fundo
antropológico pagão não significa necessariamente, repito, algo negativo. O
cristianismo nos primeiros séculos guardou uma dupla atitude diante do
paganismo. Condenou-lhe as aberrações. Haja vista o capítulo primeiro da
epístola de São Paulo aos romanos e muitas invectivas dos Padres apologetas.
Doutro lado, o mesmo S. Paulo começa sua pregação no areópago de Atenas
elogiando a piedade dos pagãos. É verdade que sentia sua alma conturbada
por ver a cidade cheia de ídolos. Num esforço evangelizador de abertura
cultural, reconhece nos atenienses pessoas religiosas demais e que dedicaram
um altar até "Ao deus desconhecido". Com esse gancho, anuncia a pessoa de
Jesus Cristo (At 17,23ss). S. Justino, no século II, estabelecera um processo
de diálogo entre o cristianismo e os filósofos pagãos, colhendo deles as "se­
mentes" do Logos. S. Jerônimo e Agostinho desenvolveram os temas da
"captiva gentilis" que deve ser purificada pelo cristianismo e da "expoliatio
aegyptorum" pela qual os cristãos se apropriam das verdades dos autores
pagãos, como os judeus expoliaram os egípcios antes da fuga para o deserto.

As verdades dos pagãos


"Se por acaso os que se chamam filósofos disseram algumas verdades
conformes à nossa fé e, de modo especial, os platônicos, não só não as
temeremos, antes as reivindicaremos deles, como de injustos possuidores,
para nosso uso. Pois, assim como os egípcios não só tinham ídolos e cargas
pesadíssimas, que o povo de Israel detestava e de que fugia, mas também
vasos, ornamentos de ouro e de prata e veste que aquele povo, fugindo do
Egito, reivindicou clandestinamente para um uso melhor, não por própria
autoridade mas por ordem de Deus, que fez que os egípcios emprestassem,
sem sabê-lo, os objetos que usavam mal, assim também todas as ciências
dos pagãos não só contêm fábulas fingidas e supersticiosas e pesadíssimas

49. B. Tapscott, Cura interior, Belo Horizonte, Betânia, 11985, pp. 16-18.

254
carg111 de exerclcios inúteis, que cada um de nós, saindo da sociedade dos
pagãos, sob a guia de Cristo. há de aborrecer e detestar, mas também
contêm as ciências liberais. mui aptas para o uso da verdade, certos precei­
tos morais utilíssimos e até se encontram algumas verdades a respeito do
culto ao único Deus. Este ouro e prata que eles não criaram, mas extraíram
de certas minas espalhadas por toda parte pela divina providência e que
também eles de modo perverso e injurioso abusaram, oferecendo-os aos
demônios, o cristão, ao separar-se espiritualmente dessa miserável compa­
nhia, deve tomá-los para o uso justo da pregação do Evangelho. " 50

Se tal processo valeu ontem, vale também hoje. Formas, expressões


neopagãs têm um valor e por isso são apropriáveis por um cristão. Na lingua­
gem rahneriana, há um cristianismo anônimo que atravessa muitas dessas
práticas religiosas. São cristãs num sentido germinal, básico, não tematizado,
nem explicitado. Todo bem participa da bondade radical da criação em Cris­
to. L. Boff fala das estruturas crísticas dessas realidades, embora não sejam
nomeadamente cristãs.
A fé cristã aceita a crítica que tais expressões neopagãs fazem ao sacra­
mentalismo rotineiro e fechado, à perda da aura de mistério de muitas de
nossas liturgias, à carência de experiência religiosa de muitos católicos for­
malistas, ao esquecimento do corpo numa ascese desencarnada, a um falar
pouco respeitoso de Deus em celebrações banalizadas, ao prurido adaptativo
exagerado do catolicismo à modernidade secularizante. Vêm recordar-lhe a
necessidade de uma fé pessoal, a importância de passar de uma religião da
obrigação para a da experiência, o valor de elementos tradicionais arcaicos
que tinham sido desprezados 51 .
Expressões neopagãs provocam nas pessoas uma reflexão salutar.
Ao estarem dissociadas das suas instituições de origem, chamam a atenção
para o fato de que uma verdade não vale pela força da autoridade institucio­
nal, mas por ela mesma. As autoridades haurem sua força moral das verda­
des que proclamam e não vice-versa. Mesmo que o neopaganismo leve ao
extremo essa dialética, cumpre função crítica benéfica diante de religiões
institucionais rígidas e autoritárias. A reflexividade, característica da pós­
modernidade 52, permite um repensar importante de formas cristãs de viver a

50. Agostinho. De doctrina christiana II e. 40 n. 60.


51. J. M. Mardones, Adónde va la religión? Cristianismo y religiosidad en nuestro tiempo, Santander,
Sal Terrae,1996, pp. 43-54.
52. A. D' Andrea, O Self perfeito e a nova era. Individualismo e reflexividade em religiosidades pós­
tradicionais, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 26s, passim.

255
fé. E as formas religiosas pós-tradicionais neopagãs ou não recordam-nos tal
verdade.
O cristianismo ficou adulto e frio, esquecendo sua infância. Ao
trabalhar com o conceito de separação, diferenciação, dualidade perdeu res­
sonância sobre a onda monista, tão própria dessa religiosidade neopagã. Carece
de mais beleza e de menos instituição e menos razão, de mais imaginação, de
mais vida, sobretudo numa civilização do cálculo, da eficácia e da rentabili­
dade. E culturas e religiões alternativas desafiam-no nesse terreno, respon­
dendo melhor às necessidades de hoje 53 •
A evangelização tem um segundo movimento. Depois de reconhe­
cer a bondade do já existente, pede a conversão do pecado, do erro, da mal­
dade naquilo em que as práticas neopagãs estão contaminadas. As atuais
formas neopagãs pagam enorme preço à face individualista, hedonista, alie­
nada da pós-modernidade. Essas formas religiosas alimentam a ideologia
neoliberal, seja diretamente ampliando o espírito consumista no campo reli­
gioso, seja negativamente solapando os ideais sociais.
Há outro tipo de alienação que a prática do consolo encerra. Ela
priva a pessoa de lucidez, amortecendo-lhe a consciência crítica diante da
realidade. Absorve unicamente os sinais cristãos destituídos de toda força
crítica. Confunde-os com a própria seiva mesma da fé. Não lhes consegue
captar o vigor questionador.

Fé apaziguadora
• De certo que há uma fé mais alta a que propõem todas as cruzes das
aldeias. e mesmo essas que se erguem por sobre nossos mortos! Essa fé
é amor, e traz o apaziguamento. Nunca a aceitarei. Não me rebaixarei a
pedir-lhe o apaziguamento que a minha fraqueza quer" . 54

O acento do neopaganismo sobre o individualismo não significa o


robustecimento da própria identidade religiosa. Antes tem criado uma iden­
tidade fluida, panteísta, impessoal. Há tendências que conduzem o eu a perder­
se no mistério impessoal do cosmos ou encastelar-se no seu interior. A fé cristã
é ciosa da identidade pessoal religiosa. A ela ligam-se a responsabilidade, a liber­
dade. Fora daí é impossível entender a conversão, o mistério da redenção.

53. J.-L. Schlegel, Retour du religieux et christianisme. Quand de vieilles croyances redeviennent
nouvelles in Études 362 ( 1985, 1 ), p. 103s.
54. A. Malraux, cit. por L. Dantas Mota. André Malraux no caminho das tentações. São Paulo,
Brasiliense, 1982, pp. 99.1 OI.

256
Além di110, o fato de atribuir eficácia funcional, utilitária, imediata à
fisicidade das formas religiosas termina por diminuir-lhes a consistência, a
permanência, a perpetuação. Elas só conservam o valor enquanto permane­
cerem eficazes. Descartam-se logo que deixem de produzir seus efeitos sen­
síveis. A fé cristã afirma tudo ao contrário.
O neopaganismo casa bem com o traço presentista da pós-moder­
nidade. Não se interessa pelo passado. Colhe as práticas de tradições anterio­
res, não por serem tais, mas porque respondem no presente aos anseios do fid.
Elas não valem pela tradição que carregam e sim pela eficácia atual de conso­
lar, aliviar as penas. A fé cristã evangeliza essa compreensão de tempo.
Relaciona o presente com uma Palavra dita ontem na Revelação e projeta-o
para um futuro escatológico. Reconhece a importância do presente dentro das
coordenadas históricas que o explicam (passado) e dele decorrem (futuro). As
formas neopagãs refletem a morte da história, a sua atomização e fragmentação
em instantes válidos por si mesmos, sem nenhuma ligação com o passado nem
com o futuro. Alivia as pessoas da responsabilidade histórica e ética, gerando
o usufruir solitário do momento. A fé cristã carrega o compromisso com a
história e com todas as suas conseqüências éticas. Opõe uma ética da respon­
sabilidade histórica a uma ética do instante. Ele tem enorme potencial utópico
diante de formas religiosas psicologizadas, subjetivizadas numa sociedade que
declarou a morte das utopias e da esperança.

A fé cristã e a esperança transformadora


"A teologia cristã encontra sua identidade como teologia cristã na cruz de
Cristo. A existência cristã encontra sua identidade cristã no duplo proces­
so de identificação com o Crucificado. Sua cruz separa a fé da increduli­
dade e mais ainda da superstição. A identificação com o Crucificado liberta
o fiel em relação às religiões e às ideologias da alienação. à 'religião do
medo' e à ideologia da vingança. A teologia cristã encontra sua significa­
ção na esperança meditada e praticada do Reino do Crucificado, já que ela
sofre os 'sofrimentos deste tempo' e faz do grito da criatura torturada seu
próprio grito em direção a Deus e à liberdade. " 55

O cristianismo tem profunda consciência do tempo kairológico.


Sabe que há momentos de graça que carregam esperanças, expectativas do
passado e anunciam promessas de futuro. O neopaganismo reduz-se ao tem­
po cronológico com sua aceleração e atomização, sem valoração diferenciada,
J.
55. }..loltmann,Le Dieu crucifié. Lacroix du Christ, fondement et critique de la théologie chrétienne,
Paris. Cerf/Mame, 19i4, p. 33.

257
porque só vale o instante nele mesmo. Ele se dissolve cada vez para dar lugar
a outro sem nenhuma relação e valoração entre eles.
A estrutura do discernimento implica que haja momentos de graça que
delineiam a opção a ser assumida para o futuro. No neopaganismo não há
espaço para discernimento, pois nada se assume para o futuro. Vive-se a
expressão religiosa no seu momento presente e pronto. Carpe diem, goze o
instante presente!
A evangelização tem um terceiro movimento. Anuncia a novidade
que as práticas neopagãs não conhecem, enquanto pagãs, ou negaram en-
quanto neopagãs. A fé é fundamentalmente decisão, liberdade, consciência,
discernimento diante de formas culturais religiosas ambíguas. O cultural
suprime freqüentemente as tomadas pessoais de posição. Prefere-se navegar
omissamente nas correntes dominantes. A própria exacerbação do indivíduo
permite que se inverta, à luz da fé cristã, o processo na direção da valorização
da sua capacidade livre de decisão. Não como pondo o indivíduo no centro,
mas o social, comunitário.
A fé cristã não permite ser privatizada. Como a teologia da libertação
incansavelmente repete, a fé tem uma dimensão crítico-política incontornável.
Cumprindo essa função crítica, reconhece que hoje no Brasil há bancadas
evangélicas que usam a fé e a religião, como vimos no capítulo anterior, para
fins conservadores ou, pelo menos, puramente corporativos da própria igreja
e não de todo o povo.
A fé cristã, seja em nível pessoal como comunitário, é cada vez
mais um componente essencial da cena geopolítica mundial 56, desmas­
carando o lado alienante do neopaganismo. Se o cansaço do progressismo
cristão gerou por reação essa religiosidade difusa neopagã, a fé cristã está a
descobrir uma nova militância de caráter humanitário e planetário.
Humanitário, porque assume causas que tocam todos os seres humanos, como
o pacifismo e a oposição ao armamentismo, a nova ordem econômica, o
movimento feminista, os direitos inalienáveis das etnias. Planetário, porque
está envolvido nessas causas o planeta Terra. Salvar a Terra é fundamental
para toda outra causa.

Salvar a Terra
"A questão ecológica nos remete para um novo patamar da consciência
mundial: a importância da Terra como um todo, o destino comum da natureza
e do ser humano, a interdependência reinante entre todos, o risco apoca-

56. M. Clévenot, L'état des religions dans le monde, Paris, La Découverte-Paris, 198i, p. 4, cit. por
J. Martín Velasco, El malestar religioso de nuestra cultura, Madrid, Paulinas, 1993, p. 16.

258
llptlco que pesa sobre o criado. Os seres humanos podem ser homicidas e
genocidas como a história tem mostrado. e podem também ser biocidas,
ecocidas e geocidas. A nossa casa comum mostra uma profunda rachadura
que a atravessa de cima a baixo. Ela pode ruir... Há um perigo global. Impõe­
se uma salvação global. Para que ela seja possível faz-se mister uma revo­
lução global e uma libertação integral. A ecologia quer ser a resposta a esta
questão global, de vida e de morte. Como praticar um tipo de ecologia que
preserve o criado natural e cultural na justiça. na solidariedade e na paz?"�,

A especificidade cristã deixa-se enriquecer por outras formas religiosas


como, ao mesmo tempo, as corrige. Explicita-lhes valores e verdades implí­
citas e oferece-lhes uma contribuição original e única, haurida em sua reve­
lação própria. Por brevidade, recorre-se aqui a algumas dessas verdades fun­
damentais da fé cristã, que cumprem papel de discernimento diante desse
surto religioso neopagão.
A fé cristã é trinitária. Qualquer forma religiosa que não favoreça a
vivência comunitária, um espírito social não tem a marca cristã mais profun­
da. Sob esse aspecto, o neopaganismo necessita ser convertido ao Deus trino,
ao Deus que cria as pessoas para uma vida em comunidade em todos os
níveis. E no nível religioso chama-se Igreja. A fé trinitária é eclesial. Expres­
sões religiosas unicamente feitas para o usufruto individual destoam da fé
cristã. E a fé eclesial vincula-se fundamentalmente ao mistério da Eucaristia.
Vale aqui o axioma patrístico: "A Igreja faz a Eucaristia, a Eucaristia faz a
Igreja". A comunhão significada e realizada na Eucaristia pede ser vivencia­
da na vida dos cristãos enquanto comunidade eclesial.
Quanto ao discernimento das formas religiosas neopagãs, vale o conselho de
São Paulo: "Examinai tudo e ficai com o que é bom. Abstende-vos de toda
espécie de mal" (1 Ts 5,21s). A fé trinitária é critério decisivo de discernimento.
O mistério da Encarnação ensina-nos a perceber a Transcendên­
cia nas realidades concretas históricas. O misticismo neopagão aliena-se
da história. Reduz freqüentemente as experiências religiosas à pura imanên­
cia. Valem por elas mesmas, pelo seu efeito consolador. Não remetem a ne­
nhuma instância superior. Evadem-se da história para perder-se numa esfera
sobrenatural desencarnada. O mistério da Encarnação impede que a Trans­
cendência seja colhida nela mesma e que as realidades imanentes se pensem
a totalidade da realidade religiosa. Revela a presença da Transcendência no
coração da imanência segundo a maneira expressa nos quatro advérbios do

57. L. Boff, Ecologia, mundialização e espiritualidade, São Paulo, Ática, 1993, pp. 22.25.

259
Concílio de Calcedônia: de maneira inconfundível ( inconfuse ), imutável
(immutabiliter), indivisa (indivise) e inseparável (inseparabiliter). O fato de o
Filho de Deus se fazer carne desloca o pólo do Sagrado para toda realidade
humana à medida que ela se deixa redimir de seu lado de pecado, de fecha­
mento no egoísmo e se abre ao outro, ao irmão.
O mistério da Encarnação aponta para o verdadeiro sentido das vivências
religiosas: levar ao seguimento de Jesus. Aqui entra maravilhoso campo muito
explorado pela teologia da libertação como critério de discernimento das
formas religiosas. O seguimento de Jesus concretiza-se na opção pelos po­
bres 58. A alienação do neopaganismo não é só um problema político. É tam­
bém teologal. Afasta-se do verdadeiro seguimento de Jesus na pessoa dos
pobres 59 • Conhece-se o divino, o sagrado seguindo a Jesus nos pobres. Fora
daí as expressões religiosas facilmente nos enganam.
No entanto, esse aspecto secularizador do Mistério da Encarnação não
deve desconhecer o profundo fascínio que o Sagrado exerce e sempre exer­
ceu. Um cristianismo puramente ético e militante corre o perigo de descuidar
desse gigantesco espaço religioso que se estende ao longo da história da hu­
manidade até os dias de hoje. O Sagrado mantém sempre a ambigüidade da
alienação, da superstição, da magia ao lado de um ponta voltada para a Trans­
cendência. A evangelização do Sagrado a partir da Encarnação significa pre­
cisamente esse discernimento 60 •
O mistério pascal traz outra luz para discernir as práticas religiosas.
Revela-nos a dialética cristã da morte e da vida. Vai-se à vida passando pela
morte e a morte conduz à vida. Não se tem acesso à vida sem mais na busca
do simples gozo, do consolo, da fruição. A mediação da cruz é incontornável.
Não uma cruz abstrata, nem o sofrimento masoquista, nem a glorificação da
dor. É a cruz dos crucificados deste mundo que nos toca a todos. A perspec­
tiva para compreender a luz, a vida é encontrar-se com a escuridão da morte
de milhões e milhões de pessoas que são condenadas pelo sistema dominan­
te. O primeiro, que está ao lado dos crucificados, como esteve ao lado do
Crucificado maior, é Deus. E o fez para devolver ao Filho a vida e o faz para
devolver às vitimas deste mundo a vida.
58. J. Sobrino, Seguimiento, in J. J. Tamayo - C. Floristán (org.), Conceptos fundamentales de
pastoral, Madrid, Cristiandad, 19!!3, pp. 936-943; J. Sobrino, Cristologia a partir da América Latina:
esboço a partir do seguimento de Jesus histórico, Petrópolis, Vozes, 1983; I. Bombonatto, Seguimento de
Jesus: uma abordagem a partir da cristologia de ]on Sobrino. Tese de doutorado, São Paulo, Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 2001.
59. G. Gutiérrez, Pobres y opción fundamental, in I. Ellacuria - J. Sobrino, org., Mysterium
liberationis. Conceptosfundamentales de la teologia de la liberación, I, Madri, Trotta, 1990, pp. 303-321.
60. Trabalhei algumas dessas idéias em J. B. Libanio, Fascínio do Sagrado, in Vida pastoral 41
(2000), n. 212, pp. 2-7.

260
Deus ao lado dos crucificados
"Reconstruindo logicamente o processo da fé das vítimas, o que vem em
primeiro lugar é sua inabalável fé em Deus. Em conjunto, as vítimas não
duvidam de Deus, mas agradecem e defendem a Deus, mesmo em mo­
mentos em que deveria surgir o protesto da teodicéia .... Esse Deus que
crêem libertador por ser o Deus da vida, misteriosamente, escondidamente,
pode também trazer esperança quando ele mesmo aparece sujeito ao
sofrimento, quando se mostra como um Deus crucificado... Não lhes
ocorrerá usar formulações como a de um 'Deus crucificado', mas alegram­
se em um Deus que, se sofre, está perto deles. Compreendem bem que,
se a cruz exprime proximidade, então 'algo de bom' há também na cruz. "61•

J. Sobrino dedica longa obra teológica sobre a fé em Jesus a partir das


vítimas. A ressurreição de Jesus é interpretada a partir da esperança das víti­
mas, vivendo já nas condições da existência histórica como ressuscitados r, 2• ()
neopaganismo desconhece radicalmente a dureza da história do crucificado.
Nem se alimenta da realidade histórico-escatológica da ressurreição. É o con­
solo imediato, terreno. Aí tudo termina ou entra-se num rodízio interminável
de experiências religiosas sem outro "télos" que elas mesmas enquanto causam
o gozo almejado.
A dimensão escatoló gica da fé cristã supera as cate gorias da velha
cosmo gonia teoló gica que tem alimentado o neopaganismo. Conjuga a
dupla dimensão de presente, desta vida e deste mundo, com a dimensão de
transcendência que nos impele para além. Alimenta uma práxis de esperança
que o neopaganismo desconhece. É o Deus-sempre-adiante-de-nós que nos
atrai, nos impele a caminhar e nunca ficar preso ao momento. Diverge de
todo tipo de futurologia que fez furor décadas atrás com as obras de H. Kahn
e A. Wiener com suas projeções para o ano 2000, de Mário Simonsen 1'1•
Muitas não se verificaram. A escatologia não nasce dos cálculos prolongados
dos economistas e sociólogos, mas da esperança-certeza da realização das
promessas de Deus, sempre fiel, já antecipadas na ressurreição de seu Filho
Jesus. E as promessas de Deus envolvem nosso compromisso, colaboração,
responsabilidade, atuação na história. Se há uma fuga do mundo válida, é
sempre para frente com ele e não para fora dele. Fuga que lhe nega uma auto­
suficiência que pretende dominar totalmente o presente, vivendo somente
61. J. Sobrino, A fé em jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas, Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 40.1s.
62. J. Sobrino, op. cit.
63. M. H. Simonsen, Brasil ZOOl, Rio de Janeiro, APEC, 1969.

261
dele. Fuga que não se conforma com um mundo plenamente satisfeito do
presente, crendo já completo em si, sem tensão escatológica. Fuga qu� o
impele para seu futuro. Fuga dinâmica, construtora, revolucionária, oposta à
alienação e a uma pura contemplação cósmica 64•
A religiosidade neopagã pós-moderna alimenta uma resignação diante da
realidade presente. É um viver com a única preocupação de fazer baixar a
dose de sofrimento, de coisas desagradáveis. Fecha-se toda porta para o fu­
turo e para a esperança. É então que o ato evangelizador cristão assume sua
relevância para recuperar a difícil virtude teologal da esperança. Ch. Péguy,
em belo toque poético, vê Deus reagir em face da tríplice virtude teologal. "A
fé que amo mais, diz Deus, é a esperança. A fé não me espanta ... A caridade,
diz Deus, não me espanta... Mas a esperança, diz Deus, eis o que me espan­
ta."65 Essa esperança, que espanta até o próprio Deus, exorciza esse cotidiano
religioso, desprovido de perspectivas futuras.
A perspectiva escatológica esclarece a relação morte e vida. Para o
neopaganismo a dimensão escatológica soa alienação, já que ela articula o
presente Uá) com o futuro (ainda não). Esse "ainda não" atemoriza. E o que
se procura é exatamente fugir do temor, da angústia, de um futuro misterio­
so. A fé cristã assenta-se sobre a vitória escatológica do Crucificado, anun­
ciando a dos crucificados do mundo.

Dimensão escatológica da fé
"O cristianismo é escatologia totalmente, e não somente como um apêndi­
ce. Ele é esperança, perspectiva e orientação para frente, portanto, ruptura
e transformação do presente. Deus já não é compreendido como o 'Deus
acima de nós' e 'na profundidade do ser', mas como o 'Deus diante de nós'
e caminhando a nossa frente na história, como o 'Deus da esperança·. A
Bíblia é lida como testemunho da história da promessa e a fé é compreen­
dida como esperança viva e recobra atualidade, contradizendo um presente
que endurece como apatia interior e como sistemas exteriores. 'A esperan­
ça é o sofrimento e a paixão que se vinculam ao Messias."' 66

64. J. B. Metz, L'Église et le monde, in P. Burke, H. de Lubac et alii, Théologie d'aujourd'hui et


de demain, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1967, pp. 139-154.
65. Ch. Peguy, Le porche du mystére de la deuxiéme vertu, in Oeuvres poétiques completes, Paris,
Gallimard, 1948, pp. 169-197 5, cit. por R. Laurentin, Nouvelles dimensions de I'espérance, Paris, Éditions
Éditions du Cerf, 19i2, p. 18.
66. J. Moltmann, Le Dieucrucifié. Lacroix du Christ, fondement etcritique de la théologiechrétienne,
Paris, Cerf/Mame, 1974, p. 296.

262
l!NI per■pcctiva cristã faz-se tanto mais importante quanto maior é o núme­
ro Ju■ crucificados, não só pessoas mas povos e até continentes. Nunca a sacie­
Jade humana na sua história conjugou, ao mesmo tempo, uma miséria crescente
com uma abundância e um desperdício enlouquecido. Só o capital investido na
indústria de armas daria para resolver o problema da fome mundial. E se somas­
se esse capital com as fortunas que giram na especulação dos megainvestidores,
na produção e venda das drogas, toda a humanidade teria com que viver decen­
temente. Enquanto isso não acontece, a fome e a miséria prosseguem sua cami­
nhada devastadora pelo mundo, ceifando milhões de vidas.
Um ressurgir religioso, que desconhece tal face de dor, de miséria, de
crucificação, não tem a marca genuína do cristianismo e é por ele questiona­
do na sua raiz, quer suas formas se encontrem fora dos arraiais da Igreja
cristã, quer dentro. E se dentro, mais doloroso ainda é desconhecer o misté­
rio pascal, epicentro da fé cristã.
Pentecostes alarga-nos o olhar para uma presença do Espírito além
de toda fronteira cristã e religiosa. Seu agir cobre a totalidade do tempo
e do espaço, não deixando de fora nenhum rincão nem fração de tempo.
Perpassa também as expressões religiosas pagãs, não para deixá-las fixadas
em si mesmas, mas para movê-las em direção ao mistério do Encarnado,
Crucificado e Ressuscitado. Fecha o círculo da Trindade, passando pela
humanidade do Filho. Mais uma vez, é o mistério de Jesus que nos convoca
a ser Igreja, a celebrar sua memória na Eucaristia, que nos aponta o compro­
misso com os pobres e as vítimas deste mundo, como verificação inequívoca
do seguimento a sua pessoa.
A fé cristã estabelece, a partir da compreensão de seus mistérios
fundamentais, o grande critério da vida para discernir as valências da
religiosidade. O termo vida cobre ampla gama de significados. Assumamos
aqui a vida humana, livre, racional, espiritual, responsável.
Cada vida humana tem valor infinito eticamente falando. E na visão de
fé, esse infinito se funda na criação e encarnação. E Jesus revela-nos o sen­
tido mais profundo da vida na doação de si aos outros, especialmente aos
mais pobres. Na perspectiva do serviço ao pobre, aparece mais uma vez o
critério decisivo para discernir e valorar as formas religiosas atuais.

Lugar dos pobres


"Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Qual é o ponto hoje mais
imperativo a partir do qual temos a vista mais certeira sobre a realidade?
Para a América Latina este ponto é constituído atualmente pelo lugar dos
pobres. Por lugar dos pobres entendemos a causa dos pobres, sua existên-

263
eia sacrificada, sua luta, seus interesses por vida, trabalho, dignidade e
prazer. Os pobres compõem as grandes maiorias; as questões que eles
suscitam afetam a todos os homens; ninguém pode ficar indiferente face
ao grito do oprimido por pão e por libertação. " 67

A religiosidade neopagã abole a alteridade, descuida a história. O cristia­


nismo, por sua vez, entende-se no encontro com o irmão no trabalho, na
alegria, no sofrimento, na morte de si. Nunca acima, nem abaixo, nem ao
lado de suas tarefas, mas dentro delas, onde existe a dialética da vida e da
morte, com riscos e perigos 68 •

CONCLUSÃO

O exército dos que sondam os terrenos da vida, da história, da sociedade


atual à procura de água pura e cristalina da religiosidade cresce. Vêm dos
mais diferentes lugares. Querem uma água fresca que lhes sacie a sede arden­
te provocada pelo sem sentido, pelo vazio, pelo tédio, pela angústia. E as
religiões, enquanto instituição, perderam muito de sua força persuasiva e
atrativa. Seduzem, porém, expressões religiosas, ritos, símbolos, celebrações,
que, mesmo quando pertencentes ao conjunto de uma instituição, são viven­
ciados por elas mesmas, pela sua capacidade de satisfazer as necessidades
imediatas - espirituais, psicológicas e materiais - das pessoas.
Nesse solo medra um neopaganismo, não só fora dos terrenos cristãos, mas
no seu interior. A ambigüidade desse fenômeno requer do cristão clarividência
maior. Nesses momentos, não são as normas jurídicas, nem as linhas institu­
cionais, nem o peso da autoridade que ajudam mais. É uma volta às fontes
maiores da fé. Estas são os mistérios centrais da Trindade, da Encarnação, da
Páscoa e de Pentecostes. Deles jorra luz brilhante que espanca as trevas e faz
ressurgir as cores positivas de todo desenho religioso presente nas formas
neopagãs. Só a partir deles é possível evangelizar o fenômeno religioso.
Evangelizar é discernir. Discernir não é aceitar em bloco um fenômeno.
Nem rejeitá-lo. Mas fazê-lo passar pelo crivo do núcleo da fé e ir separando
os grãos maduros e saborosos da palha fofa e inútil. Esta é a nossa tarefa no
momento atual diante da explosão de religiosidade cristã ou não. Só a verda-

67. L. Boff, Do lugar do pobre, Petrópolis, Vozes, 1984, p. 9.


68. J.-L. Schlegel, Retour du religieux et christianisme. Quand de vieilles croyances redeviennent
nouvelles in Études 362 (1985, 1), p. 102s.

264
de libertai E a verdade não é uma simples adequação da mente com a reali­
dade, mas a historicização do mistério de Deus.
A fé cristã equilibra-se entre os dois extremos da conformidade com o
mundo, com a sociedade, perdendo a estranheza do Crucificado, e do isola­
mento do gueto com a perda da sua condição de fermento.

BIBLIOGRAFIA

AcQUAVIVA, S. S. - Gu1zZ,\RDI, G., Religione e irreligione nell'età postindustriale, Roma,


AVE, 1971.
AMARAL, L., Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na Nova Era, Petrú
polis, Vozes, 2001.
BoFF L. - FREI BETTO, Mística e espiritualidade, Rio, Rocco, 1994.
Cadernos CERIS, Pentecostalismo, Renovação Carismática Católica e Comunidades Eclc··
siais de Base, n. 2, Rio, CERIS, 2001.
D'ANDREA, A., O Self perfeito e a nova era. Individualismo e reflexividade em religiosi­
dades pós-tradicionais, São Paulo, Loyola, 2000.
HERVIEU-LÉGER, D., Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du chris­
tianisme occidental, Paris, Éditions du Cerf, 1986.
LANDIM, L., org., Sinais dos tempos. Diversidade religiosa no Brasil. Cadernos do ISER
n. 23, Rio, ISER, 1990.
---� org., Sinais dos tempos. Igrejas e seitas. Cadernos do ISER n. 21, Rio, ISER,
1989.
---� org., Sinais dos tempos. Tradições religiosas no Brasil. Cadernos do ISER n.
22, Rio, ISER, 1989.
LECOMPTE, D., Do ateísmo ao retomo da religião: sempre Deus?, São Paulo, Loyola, 2000.
MARDONES, J. M., Adónde va la religión? Cristianismo y religiosidad en nuestro tiempo,
Santander, Sal Terrae, 1996.
MARIANO, R., Pentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo, Loyola,
1999.
MOREIRA, A. - ZICMAN, R., orgs., Misticismo e novas religiões, Petrópolis/Bragança
Paulista, Vozes/USF-IFAN, 2 1994.

Dinimica
1. Dividir o grupo em subgrupos.
2. Atribuir a cada subgrupo uma das tarefas indicadas abaixo conforme o
número dos subgrupos.
3. Tarefas para os subgrupos
a. Fazer os diversos perfis do "homo religiosus" da atualidade.
b. Fazer um levantamento das ofertas religiosas no "mercado religioso"
atual.

265
c. Deter-se no significado teológico do "neopaganismo".
d. Traçar as coordenadas religiosas principais da Nova Era.
e. Detectar qual o aspecto da Renovação Carismática corresponde
melhor ao surto de religiosidade.
4. No plenário cruzar as reflexões de tal modo que os tipos religiosos, as
ofertas religiosas e os movimentos religiosos encontrem entre si cor­
respondência. Que ofertas religiosas os movimentos apresentam para o
"homo religiosus" de hoje na sua pluralidade de perfis?

266
Conclusão

Anunciou-se a morte da religião muitas vezes. Ela teima em renascer das


cinzas. Hoje com muito vigor. Já não tanto sob a forma institucional, mas na
pluralidade estonteante de expressões religiosas avulsas que as pessoas cole­
cionam a seu bel prazer, construindo seu kit religioso.
Não contradiz o fenômeno da secularização. Antes mostra-lhe a outra
face que não consiste em destruir a religiosidade, mas em diminuir a força
normativa da religião.
O cenário brasileiro não constitui nenhuma exceção nessa explosão reli­
giosa. Pelo contrário, a criatividade, porosidade e capacidade religiosa
sincrética de nosso povo permite reviva! ainda mais pujante. Atravessa as
igrejas clássicas com ondas carismáticas e gera sempre novas expressões que
não se classificam no interior organizado de instituições anteriores. Até mesmo
no meio mais secularizado dos universitários a religiosidade marca presença
expressiva.
As diversas ciências debruçam-se para dar conta de tal realidade. A so­
ciologia do conhecimento interessa-se pelo tríplice momento da relação entre
religião e sociedade. Há uma autonomia indestrutível tanto da religião quan­
to da sociedade na sua mútua relação. Uma não é a outra. Uma não reduz a
outra a si mesma nem se deixa absorver totalmente pela outra. No entanto,
o fenômeno religioso encontra no contexto sociopolítico parte de sua inteli­
gibilidade. O vazio produzido pela queda do socialismo abriu espaço para as
ondas espiritualistas. Os grandes sistemas - capitalismo e socialismo -
cumprem, embora camufladamente, funções religiosas. Em dados momen­
tos, sobretudo de crise, as formas religiosas mostram-se em sua verdade. É
o que está a acontecer.
Outros apelam para a teoria do recalque. Quanto mais a sociedade mo­
derna com sua pressão atéia reprime a dimensão religiosa do ser humano
tanto mais esta reage com virulência. Acrescentem-se as desilusões com a
política, com o projeto neoliberal, com as derrotas dos sonhos libertários.
Refugia-se fácil e gostosamente na esfera religiosa.

267
A própria razão moderna desacredita-se. Em contraposição, surge até
mesmo um sagrado selvagem. As religiões tradicionais institucionalizaram­
se, rotinizaram-se, perderam muito de seu frescor, gerando no seu interior
muitos movimentos espiritualistas de renovação. Alguns permaneceram den­
tro e outros saltaram fora, desencadeando novos movimentos religiosos.
No fundo, está o ser humano insaciável em suas aspirações transcenden­
tes. Se D. Bonhoeffer pensou um momento que o a priori religioso não exis­
tia, eis que ele volta a ser invocado para explicar tanta busca religiosa.
Ao querer ir mais fundo na análise, obrigamo-nos a distinguir três cam­
pos semânticos parecidos. A religião, enquanto instituição, caracteriza-se pela
sua visibilidade de ritos, símbolos, templos, ministros, doutrinas. Tem, como
dimensões básicas, a tradição e a comunidade. A religiosidade aponta para o
traço pessoal, para as experiências subjetivas, para as expressões livres e es­
pontâneas, não necessariamente regidas pelos cânones da instituição. A fé,
por sua vez, relaciona-se principalmente com uma revelação, com uma Pa­
lavra transcendente que se acolhe com todas as suas exigências.
Embora distintos, os campos entremesclam-se. A religião tende a res­
ponder os reclamos da religiosidade. A fé institucionaliza-se em religião e
vincula-se também com a dimensão de religiosidade das pessoas. No entan­
to, a distinção permite entender melhor o atual fenômeno.
Ao estudar a religião no Brasil, sobretudo sob a expressão do catolicismo,
distinguimos momentos de predominância de uma forma. Não os entendemos
como se sucedessem linearmente na história. Se, de fato, houve certo percurso
em termos de predominância de uma expressão, contudo vivemos no presente
a co-existência dessas diversas formas, embora em graus diferentes.
Constatamos um período de "purificação" da identidade popular religio­
sa católica pela ação de uma primeira modernidade que chamei de eclesiás­
tica. Vários autores falam de romanização. Travou-se o embate entre um
momento anterior tradicional sincrético com a tentativa de a modernidade
clerical expurgar o catolicismo popular de suas expressões sincréticas, devo-
cionais de colorido mágico, leigo.
Uma outra modernidade, mais impiedosa, que H. Vaz chama de pós­
cristã, travou realmente feroz batalha com a religião. Mais na Europa que em
nossas plagas. Não deixamos de receber respingos fortes. Essa modernidade
destrona a religião de seu lugar de regência de valores, pensamento, idéias,
práticas, comportamentos. Desencadeia uma secularização que destradicio­
naliza a religião. Desqualifica-lhe a segurança de suas verdades, retira-lhe os
fundamentos, abala os alicerces da Transcendência. Termina produzindo
profunda privatização e subjetivação da religião.

268
Provocada por outra onda iluminista, a teologia inicia na Europa com as
teologias política e da esperança um processo de desprivatização da religião,
da fé, das Igrejas. Atribui-lhes um lugar crítico na sociedade. A teologia e a
Igreja da libertação na América Latina conduzem com mais eficiência e ai -
cance o mesmo processo de reabilitação social e crítica.
Sobrepondo-se a todas essas movências religiosas, a pós-modernidade
relança ainda mais fortemente o movimento da privatização da religião de­
pois do hiato crítico influenciado por aspirações crítico-sociais. Diante dessa
última onda, ficou claro que não há retorno da religião nos moldes tradicio­
nais. A religião responde diferentemente às provocações neoliberais. Ora se
faz ela mesma um ingrediente do neoliberalismo. Aceita ser-lhe força
motivadora, como se propõe o neoconservadorismo americano, ou insufla -
lhe o crescimento, como o faz a religião da prosperidade, assumida por algu­
mas igrejas neopentecostais. Ou ajusta-se perfeitamente à ideologia neolibe­
ral sob a forma da Nova Era. Expressão religiosa da pós-modernidade
A religião tem outras possibilidades de resposta à modernidade pós­
cristã e à pós-modernidade. Retrai-se desse mundo. Propõe uma outra vi­
são, como faz o budismo. Em vez de alimentar a mola do desejo que impele
o mercado a oferecer sempre novos produtos numa vertigem consumista,
ensina o controle do desejo até sua anulação. Em outros casos, cria "mino­
rias cognitivas", na expressão de P. Berger, para enfrentar a avalanche do­
minante. Há casos em que o fechamento leva a um combate contra a cul­
tura atual em atitude fundamentalista, sectária, proselitista. Estão aí esses
grupos hostis à modernidade que chegam às raias do fanatismo, suicídio e
terrorismo.
A religião católica, na figura do Papa João Paulo II, enfrenta intrepida­
mente o momento atual com um chamado aos valores fundamentais da re­
ligião. Faz um jogo original. Não recua ao passado. Analisa o presente como
uma busca confusa de determinados valores. Apresenta-os então como a
grande novidade cristã, superando o momento atual pós-moderno, mesmo
que tenha ido buscá-los na tradição. De maneira semelhante, a Igreja da
libertação, aparentemente alijada do cenário pelas sucessivas derrotas dos
ideais socialistas, reapresenta-se como resposta ao desarranjo atual provoca­
do pelo neoliberalismo.
A análise que fizemos quis mostrar que as religiões têm futuro, mesmo
enquanto instituição. Abrem-se-lhes horizontes amplos na adoção de causas
éticas humanitárias mundiais. Têm algo a oferecer de original nessa batalha.
Muito do seu futuro dependerá da capacidade que elas tiverem de dialoga­
rem entre si. O diálogo inter-religioso impõe-se como cenário obrigatório e

269
de sobrevivência para a humanidade. Só haverá paz mundial, se houver paz
entre as religiões (H. Küng).
As ciências ontem cumpriram uma função de algoz em relação às reli­
giões. Hoje necessitam delas para ser contidas no horizonte de humanidade
e para participar com elas na criação de novo paradigma.
Finalmente a religião na atual conjuntura política não perdeu seu espaço.
Modificou sua forma de atuação. A experiência brasileira tem demonstrado
uma Igreja institucional muito presente no gestar da própria nova sociedade.
Haja vista a presença das Igrejas no Fórum Mundial Social de Porto Alegre,
onde se delineiam as linhas de uma futura possível sociedade alternativa.
A religiosidade explode em todas as partes. Procuramos tipificar de manei­
ra sumária os sujeitos religiosos em movimento no espaço atual. São pessoas
isoladas, fora de grupos institucionais estáveis. Ou indivíduos que se abeira­
ram das fontes religiosas por uma sede provocada por insatisfações existen­
ciais, por carências materiais e/ ou psíquicas ou por uma curiosidade desperta­
da pela mídia. Cansados de recorrer a mediações institucionais, outros buscam
um acesso imediato à esfera religiosa, escolhendo formas rituais que lhes res­
pondem afetivamente. Nem falta a repetição mecânica de comportamentos
consumistas que buscam mercadorias religiosas em agências especializadas nesse
produto. Religiosidade reprimida em muitos explode selvagemente. Novos
movimentos religiosos atraem antigos militantes das tendências de esquerda.
Sedentos de utopia ou de experiências complementares, remanescentes de prá­
ticas tradicionais somam sua presença nesse mundo da religiosidade.
A natureza das pessoas revela já o objeto religioso desejado. No fundo,
há uma busca de satisfação da dimensão pessoal de religiosidade, espiritua­
lidade. A existência de uma Realidade Maior, da Transcendência está a atrair
pessoas que buscam consolo, acolhida, realização da profundidade de seu
ser. Outros vão mais longe. Procuram experiências fortes, alimentadas por
estímulos externos que vão da droga à música inebriante no meio de extrema
agitação juvenil. Verdadeira volta a um irracional primário, instintivo, extático.
A demanda, sendo extremamente diversificada, pede uma oferta também ela
plural: expressões tradicionais, proféticas, apocalípticas, neomísticas, esoté­
ricas e seculares travestidas, milagres, diferentes gnoses, cenas ecológicas,
sonhos e visões, comunidades emocionais.
Para oferecer tais produtos religiosos, multiplicam-se as instâncias reli­
giosas. Para muitos adeptos do fenômeno religioso qualquer igreja ou reli­
gião serve, desde que lhes ponha à disposição o alimento religioso desejado.
Chamem-se religiões, igrejas, seitas, Nova Era, neopaganismo, Renovação
Carismática católica, pentecostalismo ou neopentecostalismo etc.

270
l)iante desse fenômeno, toca à fé cristã a tarefa de verdadeira evangeliza­
ção. Evangelizar a religião das necessidades e do milagre, como o vem fazendo
desde o início da Contra-Reforma na Europa. Hoje merece maior atenção a
religião do consolo. Tentamos mostrar no final da reflexão sobre a religiosida­
de um tríplice momento evangelizador. Em que essa situação nos acena para
uma presença questionadora do Espírito, obrigando-nos a rever a forma como
vivemos o Evangelho? Elementos que merecem ser valorizados. Mas em que
elementos a situação religiosa presente necessita ser questionada e transforma­
da pela força da fé? É a face escura do real. E finalmente que novidade o
Evangelho ainda possui para dizer um palavra criativa ao mundo atual?
Todo o esforço pastoral se resume numa palavra: lucidez. Lucidez para
discernir na ambigüidade das experiências religiosas os traços do Espírito e
as infiltrações ideológicas do sistema, as aspirações egoístas de uma cultura
individualista. Nem tudo o que brilha é ouro. No brilho religioso, há o ouro
do dom de Deus e o latão vermelho de nossa mediocridade. Que o Espírito
nos ajude nesse momento de "muitas crenças e pouca libertação!" 1

1. J. B. Libanio, Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação, Valencia, Siquem, 2001.

271
Bibliografia

ACQUAVIVA, S. S. - GUIZZARDI, G., Religione e irreligione nell'età postindustriale, Roma,


AVE, 1971.
AMARAL, L., Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na nova era, Petró­
polis, Vozes, 2001.
ANJOS, M. Fabri dos, org .. Sob o fogo do Espírito, São Paulo, Paulinas/SOTER, 1998.
ANTONIAZZI, A. - MARIZ, Cecília Loreto et alii, Nem anjos nem demônios. Interpretações
sociológicas do pentecostalismo, Petrópolis, Vozes, 1994.
BASTIDE, R., Le sacré sauvage et autres essais, Paris, Stock, 1997.
BERGER, P., O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião, São
Paulo, Paulinas, 1985.
---� The Heretical lmperative. Contemporary possibilities of religious affirmation,
New York, Anchor Press, 1980.
---� Um rumor de anjos, Petrópolis, Vozes, 1973.
---� Una gloria lejana: la búsqueda de la fe en época de credulidad, Barcelona,
Herder, 1994.
BoFF L. - FREI BETTO, Mística e espiritualidade, Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
Cadernos CERIS, Pentecostalismo, Renovação Carismática Católica e Comunidades Ecle­
siais de Base, n. 2, Rio, CERIS, 2001.
CALIMAN, CL., O desafio pentecostal: aproximação teológica, in Perspectiva teológica 28
(1996), pp. 295-309.
____, org., A sedução do Sagrado: o fenômerw religioso na virada do milênio, Petrópolis,
Vozes, 1998.
CESAR, W., - SttAULL, R., Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Promessas e desa­
fios, Petrópolis/São Leopoldo, Vozes/Sinodal, 2001.
D' ANDREA, A., O Self perfeito e a nova era. Individualismo e reflexividade em religiosi­
dades pós-tradicionais, São Paulo, Loyola, 2000.
F1LORAMO, G. - PRANDI, C., As ciências das religiões, São Paulo, Paulus, 1999.
GABRIEL, K., Christentum zwischen Tradition und Postmoderne, Friburgo de Brisgóvia,
Herder, 1992.
GALINOO, F., O fenômeno das seitas fundamentalistas, Petrópolis, Vozes, 1995.
GAUCHET, M., La Religion dans la démocratie. Parcours de la laicité, Paris, Gallimard,
1998.
___ _, Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris,
Gallimard, 1985.

273
GELABERT, M., La apertura dei hombre a Dios (y a su posible manifestación), in C.
lzquierdo, org., Teología fundamental. Temas y propuestas para el nuevo milenio,
Bilbao, DDB, 1999.
HERVIEU-LÉGER, D., La religion en mouvement: le pelerin et le converti, Paris,
Flamarion, 1999.
___, Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme
occidental, Paris, Éditions du Cerf, 1986.
INTROVIGNE, M., org., La sfida pentecostale, Torino, Elle di Ci, 1996.
JUANES, B., As formas e os frutos do louvor, São Paulo, Loyola, 2000.
KONG, H., Introdução: o debate sobre o conceito de religião, in Concilium 1986/1, n.
203, pp. 5-10.
LANDIM, L., org., Sinais dos tempos. Igrejas e seitas no Brasil. Caderno do ISER, n. 21,
Rio, ISER, 1989.
____, org., Sinais dos tempos. Diversidade religiosa no Brasil. Cadernos do ISER n.
23, Rio, ISER, 1990.
____, org., Sinais dos tempos. Tradições religiosas no Brasil. Cadernos do ISER n.
22, Rio, ISER, 1989.
LECOMPTE, D., Do ateísmo ao retomo da religião: sempre Deus?, São Paulo, Loyola, 2000.
LIMA, D. M. de, Os demônios descem do Norte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 41989.
LucKMANN, Th., La religión invisible. El problema de la religión en la sociedad moderna,
Salamanca, Sígueme, 1973.
MADURO, O., Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter­
relações na América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981.
MARDONF�'-, J. M., Adónde va la religión? Cristianismo y religiosidad en nuestro tiempo,
Santander, Sal Terrae, 1996.
____, Capitalismo y religión. La religión política neoconservadora, Santander, Sal
Terrae, 1991.
____, Para comprender las nuevas formas de la religión, Estella, Verbo Divino, 1994.
____, Postmodernidad y neoconservadurismo, Estella, Verbo Divino, 1991.
MARIANO, R., Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo,
Loyola, 1999.
MARTF.LLI, S., A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995.
MARTIN VELASCO, J., El malestar religioso de nuestra cultura, Madri, Paulinas, 1993.
MOREIRA, A. - ZICMAN, R., orgs., Misticismo e novas religiões, Petrópolis/Bragança
Paulista, Vozes/USF-IFAN, 21994.
NovAES, R. R., Os escolhidos de Deus. Pentecostais, trabalhadores e cidadania, São Paulo,
Marco Zero, 1985.
ÜLIVF.IRA, M. A., O desafio dos novos movimentos religiosos às Igrejas cristãs, in Pers­
pectiva teológica 32 (2000), pp. 221-239.
ÜRO, I. P., O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo, São Paulo,
Paulus, 1996.
RIBEIRO, CI. de O., Movimentos pentecostais, carismáticos e mística cristã: desafios
teológicos e pastorais, in Perspectiva teológica 28 (1996), pp. 339-364.
Rms, J., org., Traité d'anthropologie du sacré. Vol. 1: Les origines et le probleme de l'homo
religiosus, Paris, Desclée, 1992.

274
I{, li.IM, 1-'. C., Dicotomias religiosas. Ensaio de sociologia da religião, Petrópolis, Vozea,
1997.
SAMUt:L, A., As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997.
ScHLESSER-GAMELIN, L., Le langage des sectes. Déjouer les pieges, Paris, Salvator, 1999.
STARK, R. - BAINBRIDGE, W., The Future of Religion. Secularization, Reviva/ and C:ull
Formation, Berkeley - Los Angeles - London, University of California Prl'1111,
1985.
SuoBRACK, J., Experiência religiosa e psique humana. Onde a religião e a psicologi11 .�I'
encontram, São Paulo, Loyola, 2001.
SUDBRACK, J., Neue Religiositãt. Herausforderung für die Christen, Mainz, MathiaN­
Grünewald-Verlag, 1987.
TEIXEIRA, F., org., Diálogo de pássaros. Nos caminhos do diálogo inter-religioso, São Pau-
lo, Paulinas, 1993.
____, Teologia das religiões, Uma visão panorâmica, São Paulo, Paulinas, 1995.
TERRIN, A. N., Nova era. A religiosidade do pós-moderno, São Paulo, Loyola, 1996.
TORRES QuEIRUGA, A., Diálogo das religiões, São Paulo, Paulus, 1997.
____, La constitución moderna de la razón religiosa, Estella, Verbo Divino, 1992.
VAZ, H. C. de Lima, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, São Paulo,
Loyola, 2000.
VAZ, H. CI. de Lima, Transcendência e Religião: o desafio das modernidades, in Escritos
de filosofia, III. Filosofia e cultura, São Paulo, Loyola, 1997, pp. 223-253.
____, A linguagem da experiência de Deus, in id., Escritos de filosofia. I. Problemas
de fronteira, São Paulo, Loyola, 1 1998, pp. 241-256.
VERGOTE, A., Modernidade e cristianismo. Interrogações e críticas recíprocas, São Paulo,
Loyola, 2002.

275
Índice de nomes

A B

Abreu,R. 106,118 Bainbridge,W. 75,103,275


Aburdene, P. 22,183 Balducci, E. 190, 194
Acquaviva,S. 78,126,220,234,235,239, Barbour, L. 198
265,273 Bardy 73
Agostinho,Santo 90,104,105,109,229, Barrios,E. 222
Barth, K. 103
255
Bartholo,R. 26
Alfaro,J. 99, 108
Bastide,R. 41,68,84,131,142,275
Altizer,Th. 19
Baudrillard,J. 246
Álvarez Bolado, A. 126 Bell 152,153,154
Amaladoss,M. 193 Bellah 220
Amaral,L. 36,38,44,84,144,155,162, Bellet,M. 45
275 Benedetti,L. R. 235
Anjos, M. Fabri dos, 273 Bennett, G. 198
Anselmo, Santo 157 Bent,Ch. 19
Anthony,D. 32 Beozzo,J. O. 247
Antoniazzi,A. 25,44,84,182,203,208- Berger,P. 19,42,84,111,127,152,154,
210,224,275 155, 165,184,194,236,275
Araújo, D. Serafim Fernandes sw Bergson,92 131
Araújo,M. A. de 171 Bertrand,G.-M. 136,161,245
Aristóteles 174,191 Bingemer,M. CI. L. 92,187,202
Blanquart, P. 170
Assmann,H. 17,29-31,53,115,157,176
Blondel,M. 79
Auclair,C. 28
Boaventura, São 120,183
Averróis 175,183
Boff, CI. 175
Avis,P. 131 Boff,L. 38,53,141,175,176,188,201,
Azevedo,M. 248 225,227-229,247,255,259,264,265,
.Azzi,R. 117,119,120,216 273

277
Bombonatto, 1. 260 Confúcio 164
Bonhoeffer, D. 268 Congregação para a Doutrina da Fé 137,
Brandão, M. 202 138
Brandão, M. L. R. 202 Costa, J. Freire
Buda 163,164,245 Cox, H. 20, 21, 183
Bultmann, R 19
Burke, P. 262
Bush, W. 24, 158
D
Dalai Lama 26
e Damen, F. 209
D'Andrea, A. 36, 67, 229, 255, 265, 273
Caliman, CI. 44, 84, 92, 248, 273 Davi 93
Calvez,Y. 142 Delumeau,J. 111,119,120,128,199,200,
Campbell, C. 101 244
Campos. A. E. M. 26 Dembowsky, S. 230
Capra, F. 38, 199, 200 Derrida, J. 58
Cardoso, F. H. 50 Descartes, R. 238
Camap, R. 128 Dias, R. Borges 179
Casali, A. 121, 122 Domenach, J.-M. 239
Castel, P. 168 Drummond de Andrade, C. 221
Castelo Branco, C. 138 Duch, LL. 167
Castiiieira, A. 131, 148 Ducrot, O. 241
Castoriadis, C. 124 Dumas, A. 238, 239
Catecismo da Igreja Católica 245 Dumont, L. 37
Cavalcanti, R. 155 Dupuis, J. 193
Cavalcanti, T. 202 Durkheim, E. 124
Ceris 119,141, 211, 212,215, 217, 224,
265,273
Cesar,W. 211, 213, 214, 273 E
Chauí, M. 139
Cherbury, Herbert von 124 Einstein, A. 201
Cícero 89, 90 Elbrick, 33 50
Clévenot, M. 11,258 Eliade, M. 41, 47-49, 92, 93, 116
CNBB 179, 223 Elias 164
Coelho, Paulo 38, 229 Ellacuría, 1. 202, 260
Colin, P. 132, 151, 200 Elliot 78
Comblin, J. 36, 73, 74,117,118, 170 Engels, F. 17, 176
Comte, A. 122 Euvé, F. 145, 201
Conche, M. 67, 241 Evans-Pritchard, E. E. 17
Concílio de Calcedônia 260
Concílio de Trento 33, 119, 168 F
Concílio Tridentino 244
Concílio Vaticano I 33, 174 Fallaci, O. 24
Concílio Vaticano II 18, 33, 94, 121, 168, Falque, E. 96, 143, 184
170, 181, 192, 200, 205 Fernandes, S. R. Alves 141

278
J,
l'1rMndei, Eduardo 54, 247 Hahn, H. 12H
l',rry, L, SI, 113 Hamilton,W. 19
fleuerblch, L. 79, 81, 83, 122, 130, 131 Hamack, A. von 129
Filoramo, G. 273
Haught,J. 198
Fiore, Jaquim de 71-73
Hayek, F. A. 56, 57, 159
Fiore, Joachim de 72-73
Fiores, S. de 95 Hebblethwaite , P. 169
Floristán, C. 260 Heelas, P. 36, 162
Foerst, A. 200, 201 Hegel, G. W. 17, 176,190,238
Forte, B. 129 Heidegger, M. 16
Franck, B. 166, 232, 252 Heine, H. 15, 16
Frei Betto 53, 227, 229, 232, 265, 273 Heitor 67, 241
Freud,S. 17,122 Hennis,W. 21
Frossard, A. 22
Heráclito 164
Fukuyama, F. 159, 226
Herrero, X. 81, 124, 127
Hervieu-Léger, D. 26,31,32, 34,44,50,
G 77,84,90,91,109,126,140,147,148,
170, 172, 173, 182, 234, 265, 274
Gabeira, F. 50, 51
Hinkelammert, F. 157, 159
Gabriel, K. 124, 126, 127, 148,149,273
Galindo, F. 167, 168, 273 Homero 67
Gauchet,M. 18,26,70,84,132,133,151, Hoornaert, E. 117, 118, 138
200,273 Hume, D. 240
Gebara, I. 202
Geffré, Cl. 87, 193, 194
I
Gelabert, M. 80, 84, 274
Gerth, H. 67, 142
Inácio,Santo 98, 107, 183
Gesché, A. 191, 192, 194
Geyer, C. F. 23 lntrovigne, M. 44, 274
Gilson, E. 178 Isaías 106, 164
Girard, R. 158 lreneu de Lião 73
Goffi, T. 95 lzquierdo, C. 80, 84, 274
Gogarten, F. 18, 19, 132
Gómez de Souza, L. A. 136,190,207
González Faus, J. 1. 66, 170 J
Greeley, A. 126, 229
Gregório XVI 66 James, e.
24, 29, 54, 55, 84, 147
Grotius, H. 124 Jaspers, K. 163, 164, 189
Guillebaud, J. Cl. 161, 245 Jean Paul 16
Guizzardi, G. 78,126,220,235,265,273 Jeremias 164
Gutiérrez, G. 53, 260 Jerônimo, São 254
João da Cruz, São 108, 229
H João Paulo II 23,135,136,172,174,178,
179, 180,181,207,208,240,247,269
Habermas, J. 58, 204, 205 João XXIII 34, 74

279
Juanes,B. 35,237,274 M
Justino,M. 212
Justino,São 254 Mac Dowell,J. A. 79,92
MacLaine,S. 97
Maduro,O. 45,46,47,84,113,216,274
K Malraux,A. 21,22,256
Mangabeira, N. Unger 38
Kahn,H. 261 Marcuse,H. 226
Keller, Evelyn Fox 202 Mardones,J. M. 26,28,41,44,84,146,
Kelly,T. 201 152-154,255,265,274
Khomeini 24 Mariano, R. 29, 44, 84, 155, 157, 171,
Kloppenburg,B. 19,120 212,265,274
Kolakowski,L. 15,64 Mariz,C. Loreto 44,84,273
Kristol 152 Martelli,S. 17,44,84,114,126,139,147,
148,172,274
Kübler-Ross, E. 249
Martin Velasco,J. 32,274
Küng, H. 91, 109, 130, 167, 180, 184-
Marx, K. 17,49,122,124,138,176,229,
187, 190,191, 195,270,274 238
McNelly 198,202
L Mello,André de 24
Melo, D. Antônio Joaquim de 121
Lactâncio 89 Melo, H. B. de 246
Ladriere, P. 170 Menininha do Gantois 108
Lagrée, M. 128,199,200 Messori,V. 34,206
Metz,J. B. 135,136,262
Lalande,A. 96
Miranda, M. de França 194,198
Landim,L. 25,26,27,31,57,58,84,106, Mirgeler,A. 118
118,169,221,233,265,274 Moeller,Ch. 22
Lao-tsé 164 Moingt,J. 167
Las Casas, B. 189 Moisés 68,107
Laurentin,R. 262 Moltmann,J. 136,206,257,262
Lecompte, D. 238,265,274 Mongin,O. 132,151,200
Lefebvre, Mons. M. 168,169 Montaigne 240
Libanio,J. B. 98,120,165,168,170,199, Montano 73
203,260,271 Moreira,A. 44,265,274
Mota,L. Dantas 22,256
Lima, D. M. 30, 57-60, 66, 67, 84, 85,
Murad,A. 103,199
94-96, 105, 109, 122, 134, 136, 173- Murphy,N. 198
175,183,207,274,275
Lipset 152
Locke,J. K. 167,168
N
Longino, Helen, E. 202 Nacon 93
Lubac,H. de 15,16,71,72,262 Naisbitt,J. 22,183
Luckmann,Th. 23,39,64,84,125,274 Natoli,S. 240
Luneau, R. 170 Neurath,O. 128

280
Nietz.die, F. 15, 26,42,43, 122, 'J..J7 Praidente Buah t 58
Nobili, R. de 189 Pri101ine, 1. 200
Novaes, R. R. 274
Novak, M. 152,154
R
o Rahner, K. 21, 79, 102, 103, 104, 17.J,
192
O. F. Lustosa 169 Rajneesh 27,106
O. Lewis 213,214 Ramalho,J. P. 212,224
Oelmuller,W. 136 Rambo, L . 77
Oliveira, A. C. de Abreu 106 Ramos Regidor, J. 175
Oliveira, M. A. 44,84,274 Ratzinger,J. 33, 34,206
Oliveira,Pedro Rubens F. 11, 119, 120, Reagan, R. 50,159
214 Regan, H. 201
Oro,A.P. 37,117,217 Reyes Mate 17,176
Oro,1. P. 167, 169,274 Ribeiro de Oliveira,P. A. 117,216,217
Otto, R. 92, 94 Ribeiro, CI. de O. 44, 84,274
Oza 93 Ribeiro,J. CI. 39-41
Ribeiro, M. B. 201
Ricard, M. 201
p
Ricci, M. 189
Padim Ciço 155 Ricoeur,P. 208
Palacio, C. 81 Ries,J. 88,100,219,274
Palau, Luiz 155 Riobaldo 81
Pannenberg,W. 65, 123,124 Robbeins, T. 32
Pannikar, R. 193 Robinson,J. A. 19, 108
Parmênides 164 Rocha,A. 136,207
Paulo VI 34,102,168,181,187,205 Rohden, C. Scarlatelli 48
Paz, Octavio 16, 20, 23, 158, 205, 208, Rolim, F. C. 170, 275
226,233 Rorty 58
Peacocke, A. R. 198 Rosa,J. G. 82
Péguy, Ch. 262 Rossi, M. 30
Peters,T. 198 Rouanet,S. P. 58
Peukert, H. 136 Rouet de Joumel 89
Pinheiro,J. E. 248 Rousseau,J. J. 168
Pinto, M. Corrêa 202 Ruiz De La Pena,J. 129
Pio IX 66,128,200 Russel, R. J. 198,202
Pio VI 65,66
Pio X 66 s
Pio XI 15
Pio XII 74,192,200 Saint-Simon 72
Plotino 96 Salem, H. 178
Podhoretz 152 Samuel, A. 25,62,85,92,109,164,165,
Prandi, C. 273 275

281
Sanchis, P. 37, 117,118,217 Teixeira,Anísio 121
Santos, B. de Sousa 4,226 Teixeira,F. 192,193,194,196,275
Sartre, J. P. 61,122 Tepedino,A. M. 202
Saussure, F. de 241 Teresa de Ávila, Santa 229
Schellling,F. von 72 Terrin,A. N. 38,97,98,275
Schillebeeckx, E. 193 Thatcher,M. 50
Schineller,J. P. 192 Thompson,W. 190,192
Schlegel,J.-L. 256,264 Thuan,T. Xuan 201
Schleiermacher,F. 130 Tierny,J. M. 202
Schlesser-Gamelin,L. 275 Tillich, P. 19,108,214
Schmidt,H. 184,185,186 Todorov,T. 241
Secretariado para os não crentes 193 Tomás,Santo 60,61,79,83,90,108,133,
Segundo,}. L. 124,137,202 173,174,183
Seiblitz,Z. 169 Torres Queiruga,A. 196,197,250,275
Servier,J. 70,71
Shaull, R. 211,214,273
Shils 152
u
Shiner, L. 126
Unamuno,M. 80
Shook,L. 136
Simonsen,M. H. 261
Smith,A. 62,63 V
Soares,L. E. 118,221,233
Sobrino,J. 202,260,261 Vahanian,G. 19
Souza,M. de Barros 91,136,190,207 Valadier,P. 1. 69,150
Spong,J. Shelby 19,20 Valle,J. Edênio dos Reis 29,212
Spranger, E. 67 Van Buren, P. 19
Stark, R. 75,85,275 Van Gerwen,J. 167
Steil,C. A. 37,117,217 Vattimo,G. 58,148
Stengers, 1. 200 Vaz,H. C. 59,60,66,67,85,94-96,105,
Stoeger,W. R. 201 109,122,133,134,136,173-175,183,
Stoetzel,J. 63,64 207,268,275
Sudbrack,J. 95,275 Velasco,J. M. 11,31,32,247,258,274
Suenens, L.-J. 237 Vergote,A. 108,117,217,275
Sung,J. Mo 55,56,157,163 Vemette,J. 22,145,239
Susin,L. C. 53,136,201 Viçoso, D. Antônio Ferreira 121
Videira, A. A. P assos 201
T
w
Taborda, F. 203
Tamayo,J. J. 260 Wach,J. 87
T ámez,E. 202 Wallis,R. 32
Tapscott, B. 254 Weber,M. 35,49,67,70,142,154,186,
Tarde,G. 56 187
Teilhard de Chardin, P. 11,232 Wegter-McNelly,K. 198, 202

282
Weil, E. 177, 178 Wright-Mills, C. 67, 142
Weiler, L. 202
Weinberg, J. 128
Weizsãcker, C. F. 17, 18
z
Welsh, W. 115 Zahrnt, H. 16, 17, 18
Wiener, A. 261 Zaranzai, P. 66
Wittgenstein, L. 129 Zicman, R. 44, 265, 274

283
Anunciou-se a morte da religião, mas ela teima em renascer das cinzas, já não sob a forma
institucional, mas na pluralidade de expressões religiosas avulsas. Em meio à variedade de
análises, destaca-se o livro de João Batista Libanio sobre a persistência do religioso em tem­
pos que pareciam tê-lo dispensado.
Em busca de uma aproximação mais didática da questão, Libanio delimita três campos se­
mânticos: religião, religiosidade e fé, movido por três propósitos: ver, explicar e evangelizar.
Seguindo sua tríplice abordagem e para dar conta de seu propósito, ele descreve no
capítulo 1 o fenômeno religioso, depois de verificar que, de dentro do anúncio da morte
da religião e da secularização em avanço, brota o rebento robusto das mais diversas
expressões religiosas.
No capítulo 2, as aproximações explicativas encontram luzes no contexto sociopolítico,
econômico, cultural e religioso, onde tudo converge para propiciar a eclosão religiosa.
No capítulo 3, o Autor analisa os universos da religião, da religiosidade e da fé em busca
da necessária clareza conceituai.
O capítulo 4 dedica-se à religião institucional. Além de breves considerações sobre a
relação religião/ sociedade, o Autor concentra a atenção sobre o percurso da religião
na realidade brasileira, para ver se, de fato, houve ou não um retorno da religião e
como ela se situa diante da cultura pós-moderna e do sistema neoliberal.
Fechando o ciclo, o capítulo 5 submete o fenômeno religioso, sob a forma de religiosidade,
à crítica da fé cristã, à qual toca a tarefa da verdadeira evangelização. Em que essa situa­
ção aponta para uma presença questionadora do Espírito e leva a rever a forma como
vivemos o Evangelho? Em que elementos a situação religiosa necessita ser questionada
e transformada pela força da fé? Que novidade o Evangelho ainda possui para dizer
uma palavra criativa ao mundo atual?

Este livro é publicado por ocasião dos 70 anos de


JoAo BATISTA L1BAN10, SJ, doutor em teologia, professor de
teologia fundamental na Faculdade de Teologia do Centro
de Estudos Superiores da Companhia de Jesus e autor de
muitas obras no campo da teologia e da pastoral.

li li l i1 1 1 111 111 1 1 u
ISBN: 85-15-02567-1

'8
788515 0256 71

Você também pode gostar