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Copyright © 2018 Elton Sadao Tada & Vitor Chaves de Souza (Org.

)
Todos os direitos reservados.

1a. edição 2018 1a. tiragem 2018

Editor-chefe Vitor Chaves de Souza Diretor executivo João Soares de Souza


Diretor comercial Ernani Feitosa de Souza Diretor editorial Diogo Chaves de Souza

Editoração Vitor Chaves de Souza Illustrações e capa João Soares de Souza

O conselho editorial internacional de obras acadêmicas é constituído


pelos seguintes professores doutores:

Presidente Rui de Souza Josgrilberg (UMESP) Teologia e Filosofia


Presidente de honra Jean Lauand (USP) Filosofia e Educação
Editor Responsável Vitor Chaves de Souza (Kapenke) Teologia e Arte

Franklin Leopoldo e Silva (USP e São Bento) Filosofia


Etienne Alfred Higuet (UEPA) Filosofia e Teologia
Milton Schwantes [in memoriam] (UMESP) Arqueologia e Bíblia
José Carlos Bruni (UNESP e São Bento) História da Filosofia
Alan Faber do Nascimento (UFVJM) Sociologia e Educação
Luis Heleno Montoril del Castilo (UEPA) Literatura e Arte
Maria Carolina Alves dos Santos (UNESP e São Bento) Filosofia Antiga
Pere Villalba Varneda (Universidad Autònoma de Barcelona) Estudos Clássicos
Eduardo Chaves (UNICAMP) Filosofia e Teologia
Enric Mallorquí-Ruscalleda (California State University) Estudos Ibéricos e Latinoamericanos
Edson de Faria Francisco (UMESP) Línguas Antigas e Bíblia
Tommy Akira Goto (UFU) Psicologia e Fenomenologia
Paulo Ferreira da Cunha (Universidade do Porto) Direito e Filosofia
Roberto Carlos Gomes de Castro (FIAM-FAAM) Filosofia e Estudos Clássicos
Eduardo Gross (UFJF) Ciência da Religião
Cleber Baleeiro (UMESP) Filosofia da Religião
Chie Hirose (FICS) Educação e Sociologia
Sylvio R. G. Horta (USP) Estudos Orientais e China
Blanches de Paula (UMESP) Psicologia e Teologia
Aida R. Hanania (USP) Estudos Orientais e Mundo Árabe
Marcos Aurélio da Silva (UMESP) Religião e Humanidades

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira de Livro, SP, Brasil).
Tada, Elton Sadao; Souza, Souza, Vitor Chaves (Org.)
Paul Tillich e a Linguagem da Religião /
Santo André: Kapenke, 2018.
ISBN 978-85-93894-09-1
1. Cristianismo — Teologia cristã
2. Filosofia da Religião
3. Teologia Sistemática I. Título
CDD-230 Cristianismo e teologia cristã

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Kapenke
Rua Ibirapitanga, 454 Santo André SP 09195-450 Brasil
www.kapenke.com.br
PAUL TILLICH
E A LINGUAGEM DA RELIGIÃO

Etienne Alfred Higuet


Eduardo Gross
Carlos Eduardo Calvani
Rui de Souza Josgrilberg
Claudio de Oliveira Ribeiro
Cleber Baleeiro
Elton Sadao Tada
Fábio Henrique Abreu
Frederico Pieper
Jonas Roos
Thiago Rafael Englert Kelm
Vitor Chaves de Souza

2018
Esta é uma produção dos membros e participantes da
Sociedade Paul Tillich do Brasil
Todo grande pensador necessita de bons críticos e
intérpretes para que o seu trabalho cultive frutos. Quando
um professor consegue plantar a semente do conhecimento
e difundir não apenas o ideal de um autor, mas também a
motivação de uma vida orientada pelo estudo e pela
pesquisa, esse docente atingiu a mais elevada das virtudes.
Não por acaso a maioria dos autores dos textos deste livro
foram alunos do professor Dr. Etienne Alfred Higuet ou
aprenderam com ele sobre Paul Tillich em seu grupo de
pesquisa, palestras e colóquios. O seu texto O Meu
Itinerário com o Pensamento de Paul Tillich apresenta o
motivo de seu ofício acadêmico enquanto o presente livro
prestigia a importância do professor em nossas vidas
acadêmicas. É comum, na Europa, um professor, após
alcançar reconhecimento, receber homenagens como a
publicação de uma obra ou ser retratado em uma pintura
ou outra obra de arte. Pois bem, para o prof. Etienne
escolhemos todas essas homenagens na tentativa de
expressar a grandeza de seu trabalho e sua importância a
nós proporcionados durante a sua carreira.

Vitor Chaves de Souza


Editor
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Elton Tada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

O MEU ITINERÁRIO COM O PENSAMENTO DE


PAUL TILLICH
Etienne Alfred Higuet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

VIDA E OBRA DE PAUL TILLICH A PARTIR DE


SEU CONTEXTO
Carlos Eduardo Calvani . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

SER E DEUS NO PENSAMENTO DE PAUL


TILLICH
Rui de Souza Josgrilberg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

CONSIDERAÇÕES SOBRE ÉTICA NO


PENSAMENTO DE PAUL TILLICH
Eduardo Gross . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA DOS


INFERNOS EM DIÁLOGO COM O DEMONÍACO
EM PAUL TILLICH
Vitor Chaves de Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

FALAR DE DEUS NO LIMITE DOS TEMPOS: A


CONTRIBUIÇÃO DE PAUL TILLICH À
SUPERAÇÃO DO TEÍSMO NA MODERNIDADE
TARDIA
Etienne Alfred Higuet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

O DEUS PARA ALÉM DE DEUS NO BUDISMO


AMIDISTA: PAUL TILLICH E O DIÁLOGO COM
O BUDISMO AMIDISTA JAPONÊS
Elton Tada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213

FÉ E PLURALISMO RELIGIOSO: REFLEXÃO A


PARTIR DA TEOLOGIA DE PAUL TILLICH
Claudio de Oliveira Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231

TILLICH E A TEOLOGIA DO PLURALISMO


RELIGIOSO
Cleber A. S. Baleeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249

IMPLICAÇÕES DA TEORIA DA
INTENCIONALIDADE DA CONSCIÊNCIA DE
EDMUND HUSSERL PARA O
DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA DA
CULTURA EM PAUL TILLICH
Thiago Rafael Englert Kelm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265

CONTEÚDO E FORMA: KIERKEGAARD E


TILLICH EM DIÁLOGO
Jonas Roos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303

RELIGIÃO DEPOIS DA METAFÍSICA? TILLICH,


HEIDEGGER E A ONTOTEOLOGIA
Frederico Pieper . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325

SÍMBOLO COMO LINGUAGEM DA RELIGIÃO:


FUNDAMENTOS DA TEORIA DOS SÍMBOLOS
NO ÂMBITO DA TEORIA DA RELIGIÃO DE
PAUL TILLICH
Fábio Henrique Abreu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 365
PREFÁCIO

Não há dúvidas de que Paul Tillich foi um dos grandes


filósofos e teólogos do Séc. XX. Dividiu seu trabalho em
duas frentes expressivas. Por um lado fez uma Teologia da
cultura, propondo a possibilidade de correlações entre
aspectos da cultura e seus pares religiosos. Por outro lado,
fez uma filosofia da religião que tocou em elementos
delicados da ontologia, dialogando de maneira reservada
com a proposta existencialista, mas sem abandonar a
terminologia clássica. O próprio Tillich gostava de se
identificar como um homem de fronteiras, um homem que
pensava a partir de fronteiras e que se colocava
propositalmente nesse local onde tanto o diálogo quanto o
conflito encontram solo fértil.
Justamente pelo fato de Tillich ter se colocado em
tantas fronteiras e por ter conseguido conviver tão
fortuitamente com as mesmas é que seus leitores e
estudiosos podem encontrar material e curiosidade para
estuda-lo a partir de tantas frentes. A obra que aqui se
introduz possui uma gama de textos diferentes entre si,
mas que acabam dialogando dentro da lógica da amplitude
do pensamento tillichiano.
A segunda metade da vida de Paul Tillich foi vivida
nos Estados Unidos da América, país onde ele alcançou

15
muito mais do que refúgio frente à ameaça nazista, mas
também o respeito e a fama. Por isso, tanto no mundo
alemão quanto no mundo estadunidense, não existem
círculos das ciências humanas que não conheçam, mesmo
que brevemente o pensamento tillichiano. Essa é uma
realidade que não se repete no Brasil.
No Brasil, o pensamento de Paul Tillich está mais
restrito aos círculos teológicos. Por consequência, como os
círculos teológicos brasileiros são majoritariamente
conservadores, o pensamento tillichiano acaba sendo
suprimido ou simplesmente ignorado. Mas, o que pode
parecer um lamento amargurado, simplesmente não o é.
Apesar da situação hostil para a reflexão do pensamento
tillichiano no Brasil, existem algumas pessoas que fazem
uma produção significativa no cenário acadêmico
brasileiro. A reunião de parte desses autores tornou possível
a publicação da presente obra.

Elton Tada
Organizador

16
O MEU ITINERÁRIO COM O PENSAMENTO DE
PAUL TILLICH1

Etienne Alfred Higuet 2

Introdução

O título dado ao presente texto já indica que o


pensamento de Paul Tillich estará no centro da reflexão,
mas que será situado dentro de um itinerário pessoal de
vida de quase cinquenta anos. Ouvi falar em Tillich pela
primeira vez em 1965, pouco depois da morte dele, através
de um artigo na revista Informations catholiques
internationales, dedicado à sua vida e ao seu pensamento.
Estava cursando o primeiro ano de Teologia e vivíamos na
euforia da conclusão do Concílio Vaticano II, destacando a
sua dimensão ecumênica. Havia uma foto de Tillich junto
com o cardeal belga Léon-Joseph Suenens, que tinha sido
um dos líderes do Concílio. Como já era intelectualmente

1
Este texto é a versão retrabalhada da aula inaugural do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo em março de 2014.
2
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade
Católica de Louvain (Bélgica). Professor aposentado do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo. Professor visitante na Universidade do Estado do Pará.
Presidente da Associação Paul Tillich do Brasil.

17
um pouco rebelde, comecei a me interessar pela teologia
protestante, que não era sequer mencionada nas aulas de
Teologia Dogmática, a não ser para criticá-la. Contudo,
seguindo os passos do Concílio, alguns professores já
manifestavam certa abertura – embora bastante crítica –,
em particular na área bíblica, com os trabalhos de Oscar
Cullmann e Rudolf Bultmann, por exemplo. Um livro que
me marcou bastante na época foi Honest to God, do bispo
anglicano John Robinson, que apresentava Tillich, junto
com Bonhoeffer, como teólogo da secularização e
inspirador da “Teologia da Morte de Deus”. Na ocasião do
Concílio, as editoras francesas, inclusive católicas,
começaram a publicar mais traduções dos grandes teólogos
protestantes do século XX, entre outros, Paul Tillich.
Pensando em estudos teológicos futuros, comecei a
estudar alemão, junto com alguns colegas e, nas férias de
agosto de 1966, fiz o meu primeiro estágio linguístico na
cidade alemã de Marburg, sede de uma universidade
fundada na época de Lutero. Fiquei hospedado numa
espécie de “república”, onde havia alguns estudantes de
teologia protestante. Eles me indicaram alguns livros em
edição de bolso (Bultmann, Barth e Tillich), que comprei
na livraria universitária Elwert. De Tillich, adquiri três
coletâneas de textos: Auf der Grenze (Na fronteira, porque
incluía o ensaio autobiográfico de 1936) (TILLICH,
1962), Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung (sobre
o princípio e a estruturação protestantes) (TILLICH,
1966), e Für und wider den Sozialismus (Pro e contra o
socialismo) (TILLICH, 1969). De volta na Bélgica, iniciei
a leitura de alguns textos, sobretudo em vista de aprimorar
o meu conhecimento do alemão instrumental, sem pensar

18
ainda numa pesquisa específica. Em setembro de 1968,
voltei para Lovaina, onde tinha cursado parte das
graduações em filologia clássica e filosofia, para ingressar
na Schola Maior (curso superior) de teologia. Passei o
primeiro ano, que era também o meu último ano de
seminário, no Collegium pro America Latina em vista de me
preparar para uma missão na América Latina.
O primeiro ano da Schola Maior – chamado
Bacharelado – era introdutório, com muitas aulas,
contemplando praticamente todas as disciplinas do
currículo teológico. Tendo um bom conhecimento do
grego, eu me destinava aos estudos de Novo Testamento,
mas, quando se tratou de escolher uma especialização, no
início do segundo ano, mudei de ideia e escolhi a Teologia
Dogmática. Queria, sobretudo, estudar os problemas mais
atuais, numa atmosfera que incluía a persistência do clima
de maio de 1968, o movimento estudantil, as perspectivas
revolucionárias na América Latina e a presença do
marxismo.3 Parecia-me que o estudo da teologia dogmática
ou sistemática seria mais condizente com as questões
religiosas e teológicas, mas também sociais e políticas da
época. Logo em seguida chegaram a Teologia da
Esperança de Moltmann, a Teologia Política de Metz e a
Teologia da Libertação.
Fiquei logo atraído por um grande professor:
Adolphe Gesché, que renovava completamente a

3
Tive a oportunidade de participar de um grupo de estudos sobre
Marx, coordenado por Otto Maduro, que estava preparando o
doutorado em ciências sociais. Mais tarde ele se tornaria famoso por
trabalhos em sociologia da religião, em consonância com a Teologia da
Libertação.

19
linguagem teológica. 4 Ele aceitou a orientação do meu
Mémoire de Licence (que corresponderia atualmente a uma
dissertação de mestrado). Tinha retomado a leitura de
Tillich, agora sistematicamente e, em acordo com o meu
orientador, resolvi escolher o tema da utopia, muito
presente nos escritos de Tillich sobre o socialismo religioso.
Pude aproveitar a recente publicação das obras completas
em alemão (Gesammelte Werke), 14 volumes publicados
pela Evangelisches Verlagswerk, e também os recursos do
Arquivo Tillich (Göttingen, depois Marburg), graças à
diligência e aos conselhos preciosos da saudosa Frau
Gertraut Stöber, responsável pelo Arquivo. Ela me
mandou literatura primária inédita e literatura secundária,
especialmente teses, que reproduzi em fotocópias,
microfichas e microfilmes. Participei também de alguns
colóquios da Deutsche Paul Tillich Gesellschaft na
Academia evangélica de Hofgeismar, em Hessen. A
dissertação saiu como “O conceito de Utopia na teologia de
Paul Tillich”. Ela não chegou a ser publicada, mas retomei
o essencial do seu conteúdo em vários artigos publicados no
Brasil ao longo do tempo.5

4
Ele era autor de inúmeros artigos, que ele publicou tardiamente em
forma de livros, sob o título geral: “Deus para pensar”. Os livros
foram traduzidos em português e publicados pelas Edições Paulinas,
em edição organizada pelo saudoso Afonso Maria Ligório Soares. Os
textos constituem até hoje uma leitura muito valiosa. Vale assinalar
que Adolphe Gesché foi também orientador de doutorado de Clodovis
Boff, Ivone Gebara e Antonio Manzatto.
5
Esses artigos foram publicados recentemente no livro: “A teologia de
Paul Tillich. Utopia, esperança e socialismo”, em 2017, pela Fonte
Editorial de São Paulo.

20
Teologia e política

O problema da utopia se colocou para Tillich no


contexto da sua participação no movimento dos socialistas
religiosos, entre 1919 e 1933. Surgiu a partir da
contradição existente entre as utopias imanentes,
especialmente socialistas e as concepções
transcendentalistas, centradas na esperança no além, do
protestantismo luterano. Num clima de decadência da
civilização burguesa, ao sair da primeira guerra mundial, o
tempo parecia maduro para a reorganização dos valores
culturais, no sentido de uma sociedade mais justa e
igualitária. Os socialistas religiosos queriam mostrar que
havia um necessário compromisso do cristianismo com este
ideal.
A argumentação de Tillich era essencialmente
antropológica: “Ser humano significa criar utopias” (Mensch
sein heisst Utopien haben) (TILLICH, 1969, p. 136). A
aptidão à utopia resulta, em primeiro lugar, da constituição
do ser humano como liberdade finita e ser histórico. Ele é
o “ser-que-possui-a-possibilidade”, isto é, a capacidade,
ligada ao conhecimento da situação, de superar o dado de
modo ilimitado. Contudo, a existência atual do ser humano
está alienada do seu ser essencial, o que faz que toda
realização nas condições da existência seja marcada pela
ambiguidade. Há sempre uma mistura de ser e não ser, de
sentido e não sentido. É por isso que nasce no coração do
ser humano uma insatisfação fundamental, uma espera do
totalmente outro e totalmente novo, cuja expressão é a
utopia. A utopia é um signo que nos remete à verdadeira
essência do ser humano, que ela coloca frente à existência,
como julgamento do presente e norma do futuro. A utopia

21
mais poderosa na sociedade moderna é sem dúvida a ideia
que o progresso científico e técnico produzirá uma
sociedade que atenda a todas as necessidades humanas,
superando a fome e a pobreza, a doença e até a morte, num
mundo sem conflitos e sem sofrimentos.
O objetivo central do movimento socialista é
produzir essa sociedade ideal, depois de superar as
contradições do mundo presente. Mas por causa da
finitude e da alienação, o socialismo é também
profundamente ambíguo. Se, por um lado, a utopia é uma
necessidade, pois “Homens e culturas sem utopia
permanecem dependentes do presente e recaem
rapidamente no passado” (TILLICH, 1969, p. 175), por
outro lado, a utopia não está desprovida de perigos. Isso se
aplica particularmente ao socialismo: pela sua atitude de
espera, o socialismo possui um caráter profético, mas está
constantemente ameaçado de cair na objetivação da espera,
no utopismo ou na resignação. O utopismo é a
absolutização de uma possibilidade finita. A dificuldade é
de se opor ao utopismo sem perder a energia da exigência e
da paixão da espera. Foi a ideia do Kairós, do tempo
favorável, que permitiu valorizar a importância do
momento histórico em vista da produção do futuro, sem se
deixar prender pelo utopismo. O Kairós indica que a luta
por uma nova ordem social não pode levar à realização
expressa na ideia de Reino de Deus, mas que um tempo
determinado exige tarefas determinadas, que podem levar a
realização fragmentária do ideal do Reino. “O Reino de
Deus ficará sempre transcendente, mas aparecerá como
julgamento pronunciado sobre uma forma dada de

22
sociedade e como norma de uma sociedade por vir”
(TILLICH, 1965, p. 46).
Uma primeira forma de utopismo consiste em
querer tirar o ser humano da alienação, atacando apenas
um aspecto da sua insatisfação fundamental: técnica,
racional, individual, social ou espiritual. Ora, a alienação
atinge o ser humano em todas as dimensões do seu ser. Um
segundo risco consiste em acreditar na possibilidade da
realização do Incondicionado6 num ponto do espaço e do
tempo, com a ajuda da liberdade e da ação. O utopismo
espera tudo da liberdade, esquecendo o substrato natural,
irracional, inconsciente, demônico da existência humana. A
fé no progresso gradual e indefinido da modernidade
burguesa é talvez a forma mais perversa do utopismo. Mas
pensar que as tensões e contradições deixarão de existir
numa possível sociedade sem classes, anarquista e
igualitária, é também uma forma de utopismo irrealista. A
decepção metafísica, com suas consequências, o fanatismo
e o terror, o cinismo e a indiferença, pertencem
essencialmente a toda utopia, assim como a toda
divinização idolátrica de uma realidade ou de um momento
histórico particular.
O utopismo é superado pelo espírito da utopia,
identificado com o espírito profético. Fruto da inquietude

6
Para Tillich, o Incondicionado não é uma realidade nem uma
essência, não é um ente particular que poderíamos chamar de Deus,
mas é uma qualidade da experiência, que faz dela uma experiência
propriamente religiosa. Caracteriza o que no toca de modo último,
incondicionado. Seria um grande erro entender sob o conceito de
incondicionado um ser cuja existência possa ser discutida. É uma
qualidade que experimentamos no encontro com a realidade,
experiência que inclui a exigência incondicionada de reconhecer a
manifestação divina através dos símbolos produzidos pela cultura.

23
essencial do espírito divino e humano, ele é a força de
transformação histórica que nasce da utopia e a transcende.
É o elemento da utopia que dá força revolucionária e
transformadora aos objetivos sociais e políticos. A
representação ideal do futuro é necessária, ao mesmo
tempo, em vista de uma crítica operante da realidade e da
transformação da mesma. O espírito da utopia é o
elemento de fé, de ruptura da finitude, que está presente na
utopia. O espírito da utopia preserva dois elementos
indissociáveis presentes nos movimentos utópicos: o que
constitui literalmente a utopia como tal, isto é, a superação
de todas as condições da realidade espaço-temporal, a
espera de um Reino além do espaço e do tempo; e o que
faz da utopia uma força de renovação histórica: a superação
das condições da realidade espaço-temporal presente, a
espera de outro reino, mesmo se ainda não for o
Totalmente-Outro e for um reino provisório e
fragmentário.
Em setembro de 1971, iniciei o doutorado, com um
projeto mais ambicioso: desenvolver o correspondente da
utopia na teologia cristã: a escatologia, a partir da leitura da
integralidade da Teologia Sistemática. O meu orientador –
era o mesmo – me incentivava muito, pois seria a primeira
tese sobre Tillich na Faculdade de Teologia de língua
francesa. Depois do primeiro ano (1971-72), consegui uma
bolsa DAAD para pesquisar na Alemanha. Voltei então a
Marburg, trabalhando sob a supervisão do professor Karl-
Heinz Ratschow, que era na época a principal figura da
Deutsche-Paul-Tillich-Gesellschaft. Passei lá dois
semestres muito proveitosos e muito felizes. Trabalhei na
tese mais dois anos na Bélgica, paralelamente ao trabalho

24
pastoral na região industrial de Charleroi. Consegui
entregar o trabalho pronto em junho de 1975 e a defesa foi
marcada par o dia 15 de setembro. No dia 10 de outubro,
embarcava em Rotterdam rumo ao Brasil, desembarcando
em Santos no dia 03 de novembro. Com o “jeitinho
brasileiro”, o bispo de Lins, Dom Pedro Paulo Koop, me
livrou de controles mais rígidos na imigração e na
alfândega.
Nos três anos que passei em Lins (interior de São
Paulo), uma das minhas atividades foi escrever um artigo
resumindo a tese. É que o título de doutor só seria entregue
pela Faculdade de Teologia de Louvain após a publicação
desse artigo. O texto foi gentilmente traduzido pelo padre
José Oscar Beozzo, colega e superior em Lins. Foi
publicado na Revista Eclesiástica Brasileira de setembro de
1977 (HIGUET, 1977) de modo que pude receber o título
em junho de 1978.
Com o título: “Escatologia e teologia da ação.
Leitura crítica da Teologia Sistemática de Paul Tillich”, a
tese pretendia responder à questão fundamental da relação
entre a realização final do Reino de Deus e a ação humana
individual e coletiva a serviço da construção de um mundo
mais justo e mais fraterno, libertado do sofrimento e da
morte prematura. Tratava-se de mostrar que, apesar das
aparências, a Teologia Sistemática era integralmente
escatológica e que essa característica podia constituir um
dos “fundamentos” teológicos da ação dos cristãos para
superar as relações políticas de dominação no mundo. A
primeira parte esforça-se por demonstrar a presença
estrutural da dimensão escatológica em todas as seções do
sistema teológico de Tillich. A segunda parte procura

25
levantar a significação prática da escatologia teológica de
Tillich, isto é, a questão das suas incidências sobre uma
ética de transformação do mundo em vista de uma “Nova
Terra” e de “Novos Céus”.
Assim, por um lado, a escatologia de Tillich me
pareceu sustentar uma prática transformadora e libertadora,
graças à experiência do inesgotável poder do ser na criação
divina, na dialética do ser e da vida, na criatividade humana
histórica, na irrupção do Novo Ser em Cristo, superando a
alienação, e no processo de elevação da história à
eternidade. Por outro lado, cheguei à conclusão de que,
pela sua obsessão da origem, pela sua insistência na
experiência imediata do transcendente, pela insuficiência
da autonomia do ser humano em relação ao Criador, pelo
caráter transcendental da queda e do retorno, Tillich
desvalorizava profundamente a história e questionava
gravemente a potência do ser como fundamento para a
práxis. Isto deixava à mostra toda a ambiguidade dos
“fundamentos ontológicos da esperança” na Teologia
Sistemática e hipotecava pesadamente uma eventual
retomada da escatologia de Tillich para uma teologia
política, no sentido moderno do termo.
Trinta anos depois, em 2007, aproveitei um
colóquio da Associação Paul Tillich de Expressão
Francesa, para retomar a questão dos “Fundamentos da
utopia e da esperança na Teologia Sistemática de Paul
Tillich” (HIGUET, 2007ª).7 Quis fazer um novo balanço
da pertinência da teleologia ontológica como fundamento

7
A tradução portuguesa constitui o segundo capítulo do livro já
mencionado: A teologia de Paul Tillich. Utopia, esperança e
socialismo, enquanto o artigo resumindo a tese constitui o primeiro
capítulo.

26
filosófico, e da escatologia existencial ou “realizada” como
resposta. Pela teleologia – ou finalidade inerente ao próprio
ser, à vida e à história humana – e graças à sua faculdade de
superar indefinidamente o dado, o ser humano livre pode
dar um sentido e uma direção às tendências imanentes da
continuidade histórica, elevar o olhar na direção da
novidade absoluta, da plenitude universal e não ambígua
das potencialidades do ser.8 Apesar da falha originária da
alienação da liberdade, a humanidade é capaz de colocar a
pergunta da vida não ambígua, pois carrega em si uma
estrutura de recepção do Incondicionado.
A resposta vem através da experiência existencial da
presença de Deus como fundamento do ser, da ação do
Novo Ser em Jesus como Cristo, da criação da
Comunidade do Espírito e da constante elevação da
história humana até a eternidade do Reino de Deus. Os
momentos de irrupção do Incondicionado ou Kairói
permitem que a esperança se mantenha de etapa em etapa e
vise sempre a teonomia última (transparência total da
cultura à manifestação do Incondicionado). Assim, a
teleologia filosófica de Tillich e a sua escatologia teológica
desembocam numa práxis libertadora em todas as esferas
da vida humana. A experiência da “escatologia realizada” é,
antes de tudo, uma experiência de discernimento ético-
profético.
A pertinência de Tillich estaria mais, agora, no
caráter existencial e simbólico da sua ontologia e na sua
crítica radical do teísmo. O fundamento da utopia e da

8
A teleologia pode ser eventualmente reconhecida pela ciência natural
e pela filosofia, embora seja muito contestada na época atual, mas ela
se fundamenta também na teologia cristã da criação.

27
esperança situa-se mais na experiência existencial e na força
da fé, do que na análise dos movimentos históricos.9 O que
na tese era uma censura – a desvalorização da história
concreta – torna-se paradoxalmente positivo. Como
Tillich, fomos otimistas demais em relação às realizações
históricas e caímos na decepção “metafísica”.
Sabemos agora que a revolução é ilusória e que
fomos vítimas do mito do progresso. A rejeição
por Tillich de toda lei histórica e de toda linha
ascendente, que ligaria os kairói entre si, é
precisamente o que dá valor, hoje, ao seu
pensamento. O fim das utopias não deve nos
levar ao desespero nem ao cinismo, mas a
esperas históricas mais modestas e menos
espetaculares. A teologia, a partir de uma
experiência da fé e da esperança, pode sempre
ter prolongamentos práticos, com a condição de
estar articulada às ações dos mais diversos
movimentos e grupos, que ela poderá orientar e
julgar conforme os critérios do amor, do poder e
da justiça. Ela receberá também deles lições de
humildade, perante a ambiguidade sempre
presente. Em vez de imaginar grandes projetos
políticos irrealizáveis, ela poderá comprometer-
se no tecido associativo dos movimentos sociais,
culturais e ecológicos, ou ainda no diálogo inter-
religioso, como fermento de paz e de amor. Ela
poderá investir-se, enfim, na “invenção do
cotidiano”, segundo a bela expressão de Michel
de Certeau. Para tudo isso, Paul Tillich nos
deixou indicações preciosas (HIGUET, 2017,
p.108).

9
Do mesmo modo que Tillich conheceu, depois da segunda guerra
mundial, o desencanto quanto à possibilidade de realizar a utopia
socialista, estamos vivendo numa situação de fim das utopias e das
ideologias.

28
Teologia e cultura

Em 1977 e 1978, lecionei na Pós-Graduação em


Teologia da Faculdade Nossa Senhora da Assunção,
pertencente à Arquidiocese de São Paulo. A primeira
disciplina oferecida contemplava o conteúdo da minha tese
sobre Tillich. Na ocasião, tive como aluno um dos diretores
do Instituto Metodista de Ensino Superior, de São
Bernardo do Campo, o professor Luiz Boaventura. Foi ele
que possibilitou o meu ingresso no mesmo instituto em
1979. Passei a fazer parte do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião no primeiro semestre de 1981,
colaborando de modo ininterrupto até 2013. No começo,
só tinha uma disciplina de três horas semanais (com mais
três horas para a preparação), que precisava conciliar com
um grande número de aulas de graduação em diversas
instituições. Por outro lado, era o auge da Teologia da
Libertação, e me dediquei quase exclusivamente ao
pensamento latino-americano. Só voltaria a oferecer uma
disciplina sobre o pensamento de Tillich em 1992:
“História do pensamento cristão: a teologia da cultura, de
Schleiermacher a Tillich”. Em 1993, ofereci uma
“Introdução à Teologia de Paul Tillich”, a pedido da
coordenação do programa.
A minha primeira publicação significativa foi um
artigo na REB de 1994: “Atualidade da Teologia da
Cultura de Paul Tillich”. Estendia doravante a reflexão e a
pesquisa à perspectiva da Teologia da Cultura. De certo
modo, pode-se designar com esse termo a totalidade da
teologia de Tillich, inclusive a Teologia Sistemática, já que
o ponto de partida sempre se encontra numa análise e
interpretação da “situação” cultural na qual o teólogo

29
elabora o seu discurso. Contudo, a questão da política e do
socialismo não seria abandonada.10
No segundo semestre de 1993, a pedido de alguns
alunos, foi iniciado o Grupo de Pesquisa Paul Tillich, com
os professores Jaci Maraschin e Rui Josgrilberg, que tinham
também afinidades com o teólogo germano-americano. É
importante ressaltar aqui o papel decisivo de um aluno do
mestrado: Reynaldo Ferreira Leão, que foi o primeiro
secretário do grupo.11 O primeiro seminário foi organizado
no Colégio Pio XI em novembro de 1994. Foi uma
introdução à Teologia Sistemática. As conferências foram
publicadas em Estudos de Religião nº 10, número especial
dedicado ao trigésimo aniversário do falecimento de
Tillich. Escrevi o primeiro capítulo, sobre a introdução à
teologia e a revelação (HIGUET, 1995ª). Durante o
seminário, foi decidida a fundação de uma Sociedade Paul
Tillich do Brasil. Os “Seminários em diálogo com o
pensamento de Paul Tillich” se tornaram anuais, sendo
realizados até hoje.12
Eis a lista dos temas:
1994 Introdução à “Teologia Sistemática”.
1995 Mística no pensamento de Paul Tillich e nos Novos
Movimentos Religiosos.

10
Ver os textos do livro já mencionado.
11
O Reynaldo escreveu uma bela dissertação que, apesar das
promessas da instituição, não chegou a ser publicada. Fiquei até com o
texto revisado, pronto para ir para gráfica: “Espírito profético e razão
institucional. Da experiência fundante à proscrição”. O texto aplica a
Richard Shaull o referencial tillichiano do princípio
profético/protestante.
12
Carlos Eduardo Calvani publicou um pequeno histórico do grupo e
da associação no livro “Teologia da Arte” (2010), sob o título A
recepção do pensamento de Paul Tillich no Brasil, com bibliografia.

30
1996 Cultura e Religião.
1997 Demônios e Ambiguidades do Tempo presente.
1998 Psicanálise, Psicologia Profunda e Experiência
Religiosa.
1999 A Situação Religiosa da Cultura no Brasil.
2001 Religião e Religiões : Introdução ao Diálogo Inter-
religioso.
2002 As aventuras de Eros.
2003 Paul Tillich e a Filosofia da sua época: marxismo,
existencialismo, neokantismo, filosofia da vida.
2004 Espiritualidade e Vida.
2005 Religião e Arte.
2006 A substância católica.
2007 Ciência, tecnologia e religião.
2008 Religião, teologia e literatura.
2009 Paul Tillich e o pensamento pós-moderno:
possibilidades e limitações.
2010 Política globalizada na crise da civilização moderna.
2011 GT Paul Tillich no congresso da ANPTECRE.
2012 Ontologia e religião no pensamento contemporâneo,
em diálogo com Paul Tillich.
2013 A fé em Paul Tillich.
2014 Teologia das religiões e pluralismo religioso.
2015 Ética e Religião.
2016 As ambiguidades da vida e da religião.
2017 Religião e artes visuais.

A maioria dos temas está relacionada com a


Teologia da Cultura. As conferências de 1998 foram
publicadas em Estudos de Religião nº 16 (Cf. HIGUET,
1999). A partir de 2002, os textos que foram entregues

31
saíram na revista Correlatio. Uma coletânea de artigos,
organizada por Jaci Maraschin e por mim, saiu em 2006,
com o título “A forma da religião – Leituras de Paul
Tillich no Brasil” (HIGUET, 2006).
Em 2002, após diversas tentativas, iniciamos a
publicação da revista eletrônica semestral Correlatio,
hospedada no site da UMESP. O professor Maraschin
assumiu a edição até o numero 9 e eu o substituí em
seguida, até o presente número 34, com a ajuda de um
corpo editorial constituído de docentes e discentes.
Orientei um bom número de dissertações e teses dedicadas
total ou parcialmente ao pensamento de Tillich. Algumas
foram também orientadas pelos professores Rui Josgrilberg
e Claudio Ribeiro. Organizamos uma sessão temática
(depois GT) nos quatro últimos congressos da Anptecre
(2011, 2013, 2015, 2017). O nosso colaborador Vitor
Chaves de Souza colocou no ar o site
www.paultillich.com.br. Temos também uma página
Sociedade Paul Tillich no Facebook, administrada por
Elton Sadao Tada.
Participei desde 1997 dos Colóquios da Associação
Paul Tillich de expressão francesa, de dois em dois anos, e
duas vezes de um Congresso internacional em Frankfurt.
As publicações estão na bibliografia final deste artigo.
Voltando para a Teologia da Cultura, vejam a
seguir uma breve apresentação da temática, a partir de
textos meus, e um panorama das minhas principais
publicações. A Teologia da Cultura trata das relações entre
a religião e a cultura, segundo a fórmula que se tornou
famosa: “A cultura é a forma da religião e a religião é a

32
substância (ou conteúdo substancial) da cultura” (em
“Filosofia da Religião”, 1925).
Encontramos em Tillich duas principais concepções
da religião: 1. No sentido estrito da palavra, a religião é
uma vivência espiritual organizada em torno de ritos,
crenças e devoções. Enquanto tal, a religião é uma esfera
particular da cultura, entre outras, tais como a política, a
economia, a arte, a ética, a ciência etc. 2. Mas Tillich dá a
maior importância a uma concepção mais ampla da
religião, como orientação do espírito que se volta para o
Incondicionado: a religião é a experiência do
Incondicionado. É o fato de ser tomado ou possuído por
uma preocupação última ou incondicional. Por outro lado,
o religioso é também o ambíguo, o irracional, o equívoco,
marcado pela estrutura de alienação do ser humano. A
religião como esfera separada de crenças e de culto existe
por causa do pecado e da alienação, enquanto o Reino de
Deus não vem. A religião é também marcada pelas
ambiguidades da profanização e da demonização. De um
lado, a institucionalização da religião a transforma num
fenômeno cultural e moral entre outros; do outro, uma
preocupação segunda é erguida ao nível da preocupação
última, quando se identifica o portador do sagrado com o
incondicional.
Durante os anos do primeiro ensino de Tillich
(1919-1926), a teologia da cultura pretendia manifestar a
substância ou conteúdo religioso da cultura, isto é, o que
diz respeito à questão do absoluto e dos limites da
existência humana, e que transparece nas funções teóricas
(artes, ciências, filosofia) e práticas (direito, moral,
educação, política, técnica) da cultura. Esta se identifica

33
com o mundo propriamente humano do espírito, o
conjunto das atividades criadoras do ser humano. Na
Teologia Sistemática, a teologia da cultura é a “tentativa de
analisar a teologia subjacente a todas as expressões culturais
e de descobrir a preocupação última no fundamento de
uma filosofia, de um sistema político, de um estilo artístico,
de um conjunto de princípios éticos e sociais (TILLICH,
2005, p. 55).”
A chave para a compreensão teológica de uma
criação cultural é o seu estilo. “Estilo é um termo que
procede do campo das artes, mas é possível aplica-lo a
todos os domínios da cultura. [...] O estilo de uma época se
expressa em suas formas culturais, na escolha de objetos,
nas atitudes de suas personalidades criativas, em suas
instituições e costumes” (Ibid., p. 55). Além do estilo,
vários outros conceitos importantes operam na análise
religiosa da cultura. Em primeiro lugar, a noção de
teonomia, na sua dialética com as ideias de autonomia e
heteronomia. A cultura é “teônoma” quando o sentido
supremo da existência ilumina todas as formas finitas de
pensamento e ação, quando a cultura se torna transparente
e que suas criações se tornam receptáculos de conteúdo
espiritual. Ela é “heterônoma” quando a esfera religiosa
procura dominar e controlar a criatividade cultural
autônoma. Enfim, a cultura é “autônoma” quando os
vínculos religiosos da civilização são rompidos, junto com o
seu fundamento e o seu fim últimos, num completo vazio
espiritual. A partir desses conceitos, a teologia da cultura
torna-se análise teônoma da cultura, capaz de mostrar a
presença do fundamento teônomo incondicional e sagrado
em todas as épocas em todas as formas da cultura, até nas

34
culturas predominantemente autônomas (ou seculares) ou
heterônomas.
A ideia de teonomia deve ser completada pelas
noções de Kairós e de “demônico”. O Kairós é o tempo
teônomo por excelência, é um tempo qualitativo, cheio de
sentido, de tensões, de possíveis e impossíveis. Os
momentos de Kairós são manifestações extraordinárias do
eterno – aceitas, recebidas, reconhecidas – em pontos
determinados da história, a qual se abre então ao
incondicional. O “demônico” é
um princípio ambíguo, que contém um
elemento criador e um elemento destruidor. É a
face obscura do fundamento abissal, o lado
tenebroso do divino, assim como o
experimentou Lutero. Poderíamos dizer também
que é a perversão do sagrado, o sagrado com um
sinal negativo (TILLICH, apud GABUS, 1969,
p.5).
“Ao contrário do satânico, que significa uma destruição
completa da realidade, o demônico exprime um aspecto
essencialmente dialético, positivo e negativo, do processo
vital (GABUS, 1969, p. 5).”
É preciso mencionar enfim as noções de “princípio
protestante” e de Gestalt (figura, estrutura vital) de graça. O
princípio protestante é um princípio universalmente
significativo, que se concretizou historicamente no
protestantismo, mas que atua em todos os períodos
históricos, já que expressa um aspecto da relação divino-
humana. Ele contém o protesto divino e humano contra
toda pretensão absoluta apresentada por realidades
relativas, inclusive as próprias igrejas protestantes. A
Gestalt de graça é um poder de criar formas novas e

35
superiores (artísticas, litúrgicas, comunitárias, políticas etc.)
além da atitude protestante crítica em relação às formas.
Embora o princípio protestante rejeite toda identificação
da graça com a realidade visível, a Gestalt de graça pode,
contudo, ser objeto de uma “intuição imaginativa”, como
no caso da figura neotestamentária de Jesus enquanto
Cristo. Ela é transparente a uma realidade que é mais que
ela mesma. Ela pode manifestar-se através de todas as
formas seculares ou profanas, com ousadia e risco. Isso diz
respeito tanto ao conhecimento quanto à ação, tanto ao
culto religioso quanto à cultura autônoma (cf. HIGUET,
2012b, p. 90-93).
Apresento a seguir alguns exemplos de análise
religiosa da cultura presentes nas minhas produções entre
1994 e 2013.

Atualidade da teologia da cultura de Paul Tillich:

Análise da cultura da sociedade industrial


O referencial aqui é a relação entre autonomia e
teonomia. Na sociedade industrial – dominada pela razão
instrumental, produto da razão autônoma – a nossa visão
do mundo fica completamente objetivada e nós, seres
humanos, estamos ameaçados de ser absorvidos por nossos
produtos, perdendo assim a nossa dimensão pessoal e a
dimensão de profundidade da nossa existência. Os
símbolos religiosos se tornaram incapazes de evocar a
transcendência e a realidade deixou de ser transparente ao
eterno. O nosso mundo tornou-se um mundo de coisas, de
meios incapazes de satisfazer o mundo dos fins. Nessa
situação, a ação cristã, fundada na “Nova Realidade” em

36
Cristo, terá como primeiro objetivo o reconhecimento da
pessoa humano como fim. Para que isso se efetive,
deveremos exigir mais justiça e igualdade nas estruturas
sociais e econômicas, e o fim de todo exploração e
opressão.
Os processos técnicos também podem tornar-se
teônomos e abrir-se a um sentido último. Graças
à arte e ao poder sublimado de Eros, os objetos
produzidos pelo ser humano podem deixar de
ser simples coisas. Podem se humanizados,
reencontrar seu verdadeiro significado, servir
novamente como meios para um fim
transcendente, ajudar o ser humano a realizar-se
como pessoa (HIGUET, 1994, p. 55).

Análise religiosa da situação do proletariado na sociedade


capitalista
A partir do referencial do princípio protestante ou
profético, que traz o julgamento divino sobre qualquer
realidade religiosa e cultural, impedindo a sua
absolutização, Tillich completa a análise da situação do
proletariado proposta pelo movimento socialista. O
princípio protestante afirma que a situação humana está
basicamente deformada, que a natureza humana está
pervertida, em consequência de decisões destrutivas. Na
situação proletária, a perversão da natureza humana
manifesta-se enquanto perversão social e em forma de
culpa social, e a total dependência do proletário em relação
ao mercado é apenas uma consequência da perversão
originária. É essa perversão demoníaca que determina a
estrutura do capitalismo, causa imediata da situação
proletária (Cf. HIGUET, 1994, p. 55).

37
Natureza, símbolo e sacramento
Tillich critica a razão técnica a partir da concepção
da teonomia. Isto é, razão técnica ou instrumental priva a
natureza da sua capacidade de carregar o poder
transcendente e sacramental, por exemplo, através de
símbolos naturais como a água, o fogo, a luz, o vento, as
árvores, as pedras e as montanhas. Ao contrário, numa
cultura teônoma, os símbolos religiosos valem-se da
realidade finita para expressar a nossa relação com o
infinito. A partir da revalorização do simbolismo natural
do transcendente, abre-se um campo imenso para a
preservação da natureza contra os seus produtos
tecnocientíficos [...], para a superação da razão puramente
instrumental e quantitativa na linguagem científica, [...] e
para um diálogo com as religiões que privilegiam o
encontro com o Sagrado na natureza.
Entre os exemplos dados para ilustrar sua teoria,
Tillich fala do poder dos números, dos
elementos da natureza orgânica (como os quatro
elementos da filosofia grega e as pedras
“preciosas”), da luz e das cores como expressão
da transcendência, do poder da vida vegetal
(árvores) e dos animais – com o seu aspecto
trágico e demoníaco -, do sentido e do poder do
corpo humano – no qual se concentram todas as
potências da natureza, transcendendo as formas
inferiores para chegar ao nível da liberdade e da
história; enfim, de situações e configurações da
natureza (astrologia); de ritmos naturais que
adquiriram poder sagrado; e da “palavra” que é o
processo natural mais importante para a atitude
protestante em face da natureza (HIGUET,
1994, p. 58-59).

38
Saúde, cura e salvação no pensamento de Paul Tillich
A saúde e a cura, numa cultura teônoma, podem
simbolizar a salvação, entendida como cura final cósmica e
individual. A saúde corresponde à atualização
autoprodutiva e autotranscendente da vida; a doença é uma
forma de ambiguidade na alienação existencial e a cura
remete à superação das ambiguidades na presença do
Espírito divino. Trata-se de restabelecer o equilíbrio
comprometido, na unidade de todas as dimensões da vida,
inclusive na dimensão espiritual que abrange todas as
outras. Assim, poderá haver reconciliação entre a medicina
e a teologia (Cf. HIGUET, 1999ª).

Teologia da arte de Tillich


Para Tillich, as criações artísticas expressam algo
além delas, elas remetem ao fundamento incondicionado
do ser, elas revelam algo do fundamento divino de todas as
coisas, sendo assim indiretamente religiosas. Através de
uma experiência do sagrado, que vai além da experiência de
qualquer realidade cotidiana, as formas artísticas, tanto
seculares quanto religiosas, fornecem as chaves da
interpretação da existência humana. Especialmente através
do estilo expressionista, Tillich descobriu que a arte
constitui uma linguagem na qual a forma e o conteúdo
substancial podem tornar-se o lugar da revelação do
incondicionado, graças à destruição da forma e ao êxtase
criador implicado neste processo. Para Tillich, o
expressionismo é a forma na qual se dizem as rupturas na
existência e a irrupção da transcendência. Nesse sentido,
pode-se dizer que o expressionismo é uma arte

39
profundamente protestante (Cf. HIGUET, 2012b, p. 90-
96).
Em diversos textos, usei o referencial tillichiano
para analisar A crucifixão do retábulo de Issenheim, de
Matthias Grünewald, a Guernica de Pablo Picasso, uma
Crucifixão de Emil Nolde, a Via Crucis da Pampulha de
Cândido Portinari (Cf. HIGUET, Grünewald; 2012b, p.
99-103; 2014e; Portinari).

Análise da religião como parte da cultura:

Jesus Cristo, símbolo de Kairós no pensamento de Paul


Tillich e nos cultos afro-brasileiros
Jesus enquanto Cristo, como ápice e doador de
sentido da história, é uma imagem, um símbolo, que
cumpre uma função de mediação entre as três dimensões
do tempo e da história: passado, presente e futuro, e entre
o tempo e a eternidade, entre o divino e o humano. Na
vida pessoal de Jesus, manifestou-se a imagem da
humanidade essencial, sem ser apagada pelas condições da
existência. Sem assumir uma cristologia pluralista, Tillich
abre a porta ao reconhecimento de outras imagens do Novo
Ser, fora do contexto cristão, com as mesmas propriedades
de simbolização que a imagem de Jesus. A figura sincrética
de Cristo, nas religiões afro-brasileiras, desempenha
dignamente a função de simbolizar momentos existenciais
de revelação, libertação e salvação na história de sofrimento
e luta dos negros e afrodescendentes (Cf. HIGUET,
2005ª).

40
Ambiguidade das imagens religiosas no catolicismo
popular à luz da teologia de Paul Tillich: o exemplo de
Nossa Senhora Aparecida no Brasil
Entre as ambiguidades da religião, a atenção se
concentrou, neste artigo, no culto dos santos, em particular
da Virgem Maria e no lugar reconhecido às imagens
religiosas no catolicismo. A primeira parte desenvolve o
exemplo da imagem e da devoção à Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil, partindo de uma análise
histórica da devoção, para detectar suas ambiguidades : a
ambiguidade do culto autêntico e da idolatria, do
maravilhoso e do milagres ; a ambiguidade da fé popular e
da religião institucional, em particular os conflitos de
interpretação entre autoridades doutrinais e fiéis, assim
como as manipulações político-eclesiásticas e ideológicas.
A segunda parte faz uma leitura dessas ambiguidades à luz
da teologia de Paul Tillich : ambiguidade do sagrado
(divino-demônico, heteronomia-autonomia) e das suas
expressões simbólicas (idolatria-profanização, redução do
símbolo ao conceito), ambiguidade da santidade e da
devoção aos santos (Cf. HIGUET, 2017b).

Em busca dos fundamentos da teologia da cultura:

Ontologia e religião na teologia da cultura de Paul Tillich –


A contribuição da ontologia para a análise religiosa da
cultura
Este artigo tentou mostrar como a teologia da
cultura de Paul Tillich, em particular a sua teologia da arte,
está intimamente relacionada com a sua ontologia
existencial e dinâmica. A experiência do absoluto ou

41
incondicionado que irrompe nas formas da cultura,
afirmando e negando ao mesmo tempo essas formas, é
entendida por Tillich como experiência ontológica
fundamental, experiência do ser e do além-do-ser, que
suscita ao mesmo tempo angústia e coragem. Estes
conceitos são conceitos ontológicos, enraizados no poder
do ser que resiste ao não ser. Podemos dizer a mesma coisa
dos principais conceitos que estruturam a teologia da
cultura, como forma, conteúdo substancial, demônico,
teonomia, alienação, estilo religioso. Ilustrei o meu
propósito com vários exemplos tirados das artes
existenciais, nos campos da literatura e das artes plásticas
(Cf. HIGUET, 2012ª).
Fora da Teologia da Cultura, mas em relação com
ela, propus também algumas reflexões epistemológicas e
metodológicas: O método da Teologia Sistemática, O
método da filosofia da religião, O campo e o estudo da
religião à luz do pensamento de Paul Tillich. Gostaria de
terminar com algo que me atraiu desde as minhas primeiras
leituras de Tillich: a sua tentativa de pensar Deus fora das
categorias da ontoteologia, superando assim o teísmo
tradicional. Aliás, está em sintonia com a cultura da nossa
modernidade tardia.
A reflexão está no artigo “Falar de Deus no limite
dos tempos: A contribuição de Paul Tillich à superação do
teísmo na modernidade tardia”. A teologia de Paul Tillich,
através da sua superação do teísmo, da generalização da
linguagem simbólica na teologia e da superação da “onto-
teo-logia” antecipou de certo modo o abandono de formas
de linguagem e pensamento vinculadas a uma época
dominada pela leitura literal dos mitos e símbolos – isto é,

42
sua transformação em conceitos – e pela autoridade
dogmática irrecusável. Tillich contribuiu assim à
reinterpretação e re-estruturação do patrimônio simbólico
das religiões, na nova situação de conhecimento e dos
novos parâmetros de interpretação, facilitando assim o
“trânsito” inevitável em que nos encontramos.
Em Tillich, a crítica do teísmo acompanha a crítica
do supranaturalismo, que separa Deus como um ser, o ser
supremo, dos demais seres, ao lado e acima dos quais ele
tem a sua existência. Esta interpretação transforma a
infinitude de Deus em finitude dependente das categorias
de espaço, tempo, causalidade e substância. Ao contrário,
precisamos afirmar que Deus não seria Deus se não fosse o
fundamento criativo de tudo o que tem ser, que, de fato,
ele é o poder infinito e incondicional do ser. Neste sentido,
Deus não está ao lado das coisas nem “acima” delas, mas
está mais próximo das coisas do que elas de si mesmas. Ele
é o seu fundamento criativo, aqui e agora, sempre e em
todo lugar. Dizer que Deus é transcendente não significa
que se deva estabelecer um “supermundo” de objetos
divinos. A afirmação fundamental sobre Deus, que ele é o
ser-em-si ou o poder do ser, exclui que ele seja um ente.
Um Deus que é um ente ao lado de outros entes é
simplesmente um ídolo, uma coisa cósmica ao lado de
outras. O teísmo, em todas as suas formas, é superado pela
experiência da fé absoluta, ou o estado de ser possuído pelo
“Deus além de Deus” ou o “Deus acima de Deus” (Cf.
HIGUET, 2014b).

43
Considerações finais

Ao longo deste breve tempo de escuta ou de leitura,


procurei conduzir o ouvinte ou o leitor através de alguns
meandros da minha convivência com o pensamento de
Paul Tillich. Quis apresentar, não um modelo, mas um
testemunho de itinerário filosófico-teológico, conforme me
foi pedido. Deste modo, deixei de lado vários centros de
interesse e objetos de pesquisa que atraíram a minha
atenção ou me foram impostos pelas exigências do ensino
ou do momento histórico. Basta mencionar a filosofia da
religião, a teologia da libertação, a história e a teologia das
religiões e do pluralismo religioso, a epistemologia da
teologia e das ciências da religião, a hermenêutica e a
fenomenologia, a mística, modernidade e pós-modernidade
e, nos últimos anos, a cultura visual e a interpretação das
imagens religiosas. Mesmo assim, o pensamento de Tillich
sempre esteve presente como interlocutor e como porto
seguro.
Sempre tive a preocupação de atualizar e prolongar
o pensamento de Paul Tillich, fazendo dele uma
ferramenta de análise e reflexão sobre ideias e situações
políticas, culturais e religiosas do tempo presente,
especialmente no Brasil. Incentivei, na orientação de
mestrandos e doutorandos e na organização dos
“Seminários em diálogo com o pensamento de Paul
Tillich”, os encontros com a filosofia, a ciência, as artes
(pintura, literatura, música popular) e as religiões presentes
no Brasil. Do mesmo modo que Tillich se opunha ao
fundamentalismo bíblico e religioso, tentei evitar o
fundamentalismo tillichiano. Não hesitei em criticar o meu

44
teólogo predileto e em mostrar os seus limites, quando
necessário.
Alguns desses limites me foram lembrados na
discussão que seguiu a conferência, como a sua pertença a
uma tradição cultural, filosófica e teológica bem distante
das raízes culturais brasileiras e, além disso, dominadora e
destruidora das culturas do mundo colonizado. Sem contar
a distância temporal cada vez maior. É claro que não
podemos ler as obras de Tillich como livros de receitas. É
preciso ficar atento, mais do que no passado, à
complexidade, às diferenças e aos efeitos de dominação nas
relações da cultura europeia com a(s) cultura(s) latino-
americana(s) e brasileira(s). A mesma coisa vale para as
religiões, inclusive para as formas diversas de cristianismo
católico e protestante e suas teologias. Usar o pensamento
de Tillich sem cuidados pode levar à universalização
inconsciente das tradições dominantes. O próprio Tillich
reconheceu o “provincianismo” da sua formação intelectual
e do seu pensamento. Ele não poupou os esforços para
encontrar a cultura norte-americana na sua especificidade,
superando o saudosismo intelectual e cultural. Abriu-se às
ciências sociais, à história das religiões, à psicanálise e à
psicologia profunda e, nos últimos anos, às religiões
orientais, em particular ao budismo japonês. Esteve sempre
presente na mídia, a revista Time chegando a lhe dedicar a
capa de um número.
Ao ler Tillich, precisamos adotar os mesmos
cuidados que tomamos na leitura de Aristóteles, Tomás de
Aquino, Kant, Marx, e também Homero, Dante,
Shakespeare, Machado de Assis ou Guimarães Rosa.
Trata-se de praticar conscientemente a “antropofagia”,

45
como fez Macunaíma. Por outro lado, precisamos desfazer
a ilusão de poder restaurar a “pureza original” das raízes
religiosas e culturais anteriores à colonização. Todas as
culturas e religiões são híbridas e sincréticas. Podemos
lamentar, mas não apagar, o fato de que a história da
humanidade é uma história de encontros e desencontros,
que contém mais violência física e simbólica do que paz e
harmonia. Tillich nos ajuda a tomar consciência das
ambiguidades irredutíveis da vida humana, inclusive das
formas do sagrado e do próprio pensamento dele.
Outra pergunta: o estudo de Tillich cabe num
programa de Ciências da religião? O fato é que a filosofia e
a teologia estão presentes em vários Programas de pós-
graduação em Ciências da religião no Brasil. A Capes e a
Anptecre reconheceram a sua relevância nestes programas.
Tentei mostra-lo no artigo intitulado “A teologia em
programas de ciências da religião” (HIGUET, 2006ª),
usando parcialmente o pensamento tillichiano. Para
Tillich, a teologia é a parte sistemática e normativa da
ciência da religião. Como teologia da cultura, ela estuda o
teor religioso de toda cultura e de toda forma cultural.
Assim, ela estará presente como ciência hermenêutica, de
preferência não confessional e crítica das ideologias,
inclusive no seu próprio seio. Nesse sentido, percebi que,
para muitos dos meus alunos, o pensamento de Tillich foi
um caminho privilegiado na superação do
fundamentalismo.
E a vida continua. No final de 2013, chegou ao fim
um grande ciclo, quando tive que encerrar uma carreira de
trinta e quatro anos na UMESP. Estou imensamente grato
ao professor Claudio de Oliveira Ribeiro, participante da

46
primeira hora, que assumiu então a responsabilidade e a
supervisão do Grupo de pesquisa Paul Tillich de Teologia
e Cultura. Com a Associação Paul Tillich do Brasil,
participamos dos congressos da Anptecre em 2015 e 2017 e
organizamos quatro “Seminários em diálogo com
pensamento de Paul Tillich”. Organizei um dossiê sobre a
atualidade do pensamento de Paul Tillich, com
participações internacionais, na revista Estudos de
Religião. Estamos preparando o seminário de 2018. Só o
futuro nos dirá até quando haverá continuidade, mas
sabemos que, aos trancos e barrancos, conseguimos
cumprir a nossa parte.

Referências bibliográficas

Bibliografia do autor

1. Artigos completos publicados em periódicos

HIGUET, E. A. Interpretação de imagens religiosas: A


Via Sacra da Pampulha de Cândido Portinari. Plural
Pluriel, v. 7, p. 1-15, 2016a.
HIGUET, E. A. Apresentação do dossiê: Atualidade do
pensamento de Paul Tillich.
Estudos de Religião, v. 30, p. 155-164, 2016b.
HIGUET, E. A. Saúde, doença e cura no pensamento de
Paul Tillich: reflexões teológicas e pastorais. Revista Pistis
& Praxis, v. 6, p. 167-188, 2014a.
HIGUET, E. A. Além do teísmo. Falar de Deus no limite
dos tempos A partir da teologia de Paul Tillich. Voices, v.
37, p. 121-131, 2014b.

47
HIGUET, E. A. Falar de Deus no limite dos tempos: A
contribuição de Paul Tillich à superação do teísmo na
modernidade tardia. Correlatio (Online), v. 13, p. 29-50,
2014c.
HIGUET, E. A. O capitalismo não é uma religião.
Correlatio (Online), v. 13, p. 165-170, 2014d.
HIGUET, E. A. A representação do Cristo no
expressionismo alemão. Observatório da religião, v. 1, p.
76-91, 2014e.
HIGUET, E.A. Tendências Pluralistas na Teologia das
Religiões de Paul Tillich. Correlatio (Online), v. 13, p. 7-
24, 2014f.
HIGUET, E. A. Ontologia e religião na teologia da
cultura de Paul Tillich . A contribuição da ontologia para a
análise religiosa da cultura. Correlatio (Online), v. 11, p.
5-21, 2012a.
HIGUET, E. A. Os métodos da filosofia da religião de
Paul Tillich. Correlatio (Online), v. 10, p. 27-41, 2011.
HIGUET, E. A. A crucifixão de Matthias Grünewald à
luz de uma teologia protestante da imagem. Correlatio
(Online), Vol. 8, nº 16, 2009, p. 74-94.
HIGUET, E. A. As relações entre teologia e cultura no
pensamento de Paul Tillich. Correlatio (Online), v. 7, p.
123-143, 2008.
HIGUET, E. A. A teologia em programas de ciências da
religião. Correlatio (online), Vol. 5, nº 9, p. 37-51, 2006a.
HIGUET, E. A. Jesus, símbolo de kairos no pensamento
de Paul Tillich e nos cultos afro-brasileiros. Correlatio
(São Bernardo do Campo), São Bernardo do Campo - SP,
v. 4, n.7, p. 35-43, 2005a.

48
HIGUET, E. A. A teologia "apologética" da cultura de
Paul Tillich: profundidade e superfície na busca do sentido.
Correlatio (São Bernardo do Campo), v. 04, n.08, p. 80-
90, 2005b.
HIGUET, E. A. Devoção e Romaria à Santíssima
Trindade. Um olhar simpático a partir de Paul Tillich.
Correlatio (São Bernardo do Campo), v. 3, n.5, p. 01-10,
2004a.
HIGUET, E. A. Espiritualidade e política: a espera.
Correlatio (São Bernardo do Campo), v. 3, n.6, p. 104-
109, 2004b.
HIGUET, E. A. Misticismo e Sincretismo na
Espiritualidade Ecológica Brasileira; Justificação e Crítica a
partir do Pensamento de Paul Tillich. Estudos de Religião,
São Bernardo do Campo - SP, v. 15, n.20, p. 135-155,
2002a.
HIGUET, E. A. Dogmatik, por Paul Tillich (resenha).
Correlatio (São Bernardo do Campo), v. 1, n.1, 2002b.
HIGUET, E. A. Alguns aspectos do catolicismo brasileiro
atual - Considerações a partir da visão da modernidade em
Paul Tillich. Correlatio (São Bernardo do Campo), São
Bernardo do Campo - SP, v. 1, n.1, 2002c.
HIGUET, E. A. Amor divino e/ou amor humano? Amor
cristão e/ou amor pagão? O resgate do erótico no
Pensamento de Paul Tillich e na Teologia Feminista.
Estudos de Religião, São Bernardo do Campo - SP, v. 16,
n.22, p. 141-161, 2002d.
HIGUET, E. A. A força de Eros no pensamento ético e
político de Paul Tillich. Correlatio (São Bernardo do
Campo), v. 1, n.2, 2002e.

49
HIGUET, E. A. PINHEIRO, J.S. Ética e espírito
profético - Revisitando a história com Paul Tillich
(Resenha). Correlatio (São Bernardo do Campo), v. 1, n.2,
2002f.
HIGUET, E. A. La théologie de la culture en Amérique
latine. Foi et Vie (Paris), Paris, França, v. 100, n.01, p. 47-
61, 2001a.
HIGUET, E. A. Saúde, cura e salvação no pensamento de
Paul Tillich. Estudos de Religião, São Bernardo do
Campo - SP, v. 13, n.16, p. 75-85, 1999a.
HIGUET, E. A. Tillichforschung In Brasilien. Dialog –
Mittteilungsblatt der deutschen Paul Tillich Gesellschaft,
Friedberg, v. 2, n.23, p. 8-9, 1996.
HIGUET, E. A. O Método da Teologia Sistemática de
Paul Tillich - A Relação da Razão e da Revelação. Estudos
de religião, v. 10, n.10, p. 37-54, 1995a.
HIGUET, E. A. Teologia da Esperança - Primeiro
Balanço Crítico. Estudos de religião, v. 10, n.11, p. 27-52,
1995b.
HIGUET, E. A. Atualidade da Teologia da Cultura de
Paul Tillich. Revista Eclesiástica brasileira, v. 54, n.213, p.
50-61, 1994.
HIGUET, E. A. Libertação política na teologia de Paul
Tillich. Ata & Ato – Revista do Instituto Anglicano de
Estudos Teológicos. Ano 1, nº 1, 1980, p. 8-11.
HIGUET, E. A. Escatologia e Teologia da Ação. A
Teologia Sistemática de Paul Tillich. Revista eclesiástica
brasileira, v. 37, n.147, 1977, p. 525-568.

2. Livros publicados/organizados

50
HIGUET, E. A. A teologia de Paul Tillich, Utopia,
esperança e socialismo. São Paulo/Belém: Fonte
Editorial/UEPA, 2017a.
HIGUET, E. A.; MARASCHIN, J. C. (Org.). A forma
da religião - Leituras de Paul Tillich no Brasil. São
Bernardo do Campo - SP: Universidade Metodista de São
Paulo, 2006b.
HIGUET, E. A. (Org.) Teologia e Modernidade. São
Paulo: Novo Século/Fonte Editorial, 2005c.

3. Capítulos de livros

HIGUET, E. A. Ambigüité des images religieuses dans le


catholicisme populaire à la lumière de la théologie de Paul
Tillich : l’exemple de Notre-Dame « Aparecida » au Brésil.
In : Marc Dumas, Jean Richard, Bryan Wagoner (eds.).
Les ambigüités de la vie selon Paul Tillich. Trabalhos
oriundos do XXI Colóquio internacional da Associação
Paul Tillich de expressão francesa. Berlin/Boston: Walter
de Gruyter, 2017b, p. 275-290.
HIGUET, E. A. Saúde, doença e cura no pensamento de
Paul Tillich: reflexões teológicas e pastorais. In: Márcio
Luiz Fernandes; Mary Rute Gomes Esperandio; Sérgio
Rogério Azevedo Junqueira. (Org.). Espiritualidade,
Saúde e cultura. A teologia nas fronteiras. Curitiba, PR:
Juruá, 2016c, p. 113-131.
HIGUET, E. A. Communauté politique et Règne de
Dieu. Théologie et socialisme chez Tillich et Barth. In:
Mireille Hébert; Anne Marie Reijnen. (Org.). Paul Tillich
et Karl Barth: Antagonismes et accords

51
théologiques.Wien, Aústria: Lit-Verlag. Dr. W. Hopf,
2016d, p. 45-65.
HIGUET, E. A. Interprétation politique de l'histoire dans
la théologie de la libération et dans la pensée de Paul
Tillich: le rapport au marxisme. In: Marc Dumas; Martin
Leiner; Jean Richard. (Org.). Paul Tillich - Interprète de
l'histoire. Berlin: Lit-Verlag, Dr. W. Hopf, 2013, p. 75-
96.
HIGUET, E. A. Interpretação das imagens na teologia e
nas ciências da religião. In: Paulo Augusto de Souza
Nogueira. (Org.). Linguagens da religião. Desafios,
métodos e conceitos centrais. São Paulo - SP: Paulinas,
2012b, p. 69-106.
HIGUET, E. A. O campo e o estudo da religião à luz do
pensamento de Paul Tillich. In: José J. Queiroz; Maria
Luiza Guedes; Angela Maria Lucas Quintiliano. (Org.).
Religião, modernidade e pós-modernidade. Interfaces,
novos discursos e linguagens. São Paulo: Ideias e Letras,
2012c, p. 13-33.
HIGUET, E. A. Religião e Cultura na ótica de Paul
Tillich. In: Adailton Maciel Augusto. (Org.). Ainda o
sagrado selvagem - Estudos em homenagem a Antônio
Gouvêa Mendonça. São Paulo: Fonte Editorial &
Paulinas, 2010, p. 219-241.
HIGUET, E. A. Les fondements de l'utopie et de
l'espérance. In: XVIIe colloque international Paul Tillich,
2009, Fribourg (Suiça). Les peurs, la mort, l'espérance:
autour de Paul Tillich. Berlin: Lit-Verlag, 2007ª, v. 21.
p.171-182.
HIGUET, E. A. La fonction "pastorale" de la théologie
apologétique ou le temps et l'éternité dans la culture. In:

52
XVIe Colloque Internaational Paul Tillich, Montpellier
2005. Paul Tillich, prédicateur et théologien pratique.
Berlin: Lit Verlag, 2007b, v. 18. p. 131-142.
HIGUET, E. A. Amor divino ou amor humano? Amor
cristão ou amor pagão? O resgate do erótico no
pensamento de Paul Tillich e na teologia feminista. In:
Etienne Alfred Higuet, Jaci Correia Maraschin (Org.). A
forma da religião - Leituras de Paul Tillich no Brasil. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São
Paulo, 2006c, p. 135-153.
HIGUET, E. A. Jesus der Christus als Symbol des
jetzigen Kairos bei Paul Tillich und in den Religionen
Brasiliens. In: X. Internationales Paul-Tillich-Symposium,
2006d, Frankfurt/Main. Christus Jesus - Mitte der
Geschichte!? Wien / Berlin: Lit-Verlag, 2006c, v. 13. p.
328-343.
HIGUET, E. A. Teologia e Modernidade: Introdução
geral ao tema. In: HIGUET, E. A (Org.). Teologia e
Modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005d, p. 09-
31.
HIGUET, E. A. Le "socialisme religieux" de Paul Tillich
et le socialisme brésilien de "l'ère Lula". Essai de lecture
comparative. In: Éthique sociale et socialisme religieux. 15°
Colloque International Paul Tillich, 2005, Toulouse
(França). Éthique sociale et socialisme religieux. Münster
(Alemanha): Lit-Verlag, 2003,vol. 14, p. 233-249.
HIGUET, E. A. Die trinitarischen Symbole im
brasilianischen Volkskatholizismus.
Religionsgeschichtliche und theologische Interpretation in
der Perspektive Tillichs. In: IX. Internationales Paul-
Tillich-Symposium, 2004, Frankfurt/Main. Trinität

53
und/oder Quaternität - Tillichs Neuerschliessung der
trinitarischen Problematik. Münster: Lit Verlag, 2002g, p.
338-350.
HIGUET, E. A. Évolutions récentes du catholicisme au
Brésil: un rapport ambigu à la modernité. In: XIVe
Collolque International Paul Tillich, 2002, Marseille.
Mutations religieuses de la modernité tardive.
Münster/Hamburg/London: Lit-Verlag, 2001b, v. 14, p.
140-153.
HIGUET, E. A. Mystizismus und Synkretismus in der
neuen Spiritualität Brasiliens: Rechtfertigung und Kritik in
der Perspektive der Theologie Tillichs. In: Mystisches
Erbe in Tillichs philosophischer Theologie -
VIII.Internationales Paul-Tillich-Symposium, 2000,
Frankfurt/Main. Beiträge des VIII. Internationalen Paul-
Tillich-Symposiums Frankfurt/Main 2000. Münster-
Hamburg-London: Lit Verlag, 2000, v. 3. p. 438-453.
HIGUET, E. A. A Experiência Religiosa no Método
Teológico. In: ANJOS, M. F. dos (Org.) Sob o fogo do
Espírito. São Paulo: Soter/Paulinas, 1998, p. 149-163.

4. Trabalhos completos publicados em anais de congressos

HIGUET, E. A.. Heurs et Malheurs de la pensée


utopique. Quelle utopie pour surmonter la crise? Une
réflexion à partir de Tillich et de Hinkelhammert. In:
Treizième colloque international Paul Tillich - Amour,
pouvoir et justice, 1999. Lille (França): Association Paul
Tillich d'expression française, 1999b. v. 5. p. 51-64.
HIGUET, E. A.. La Méthode de La Théologie de La
Culture Au Brésil. In: XIIè Colloque International Paul

54
Tillich – La méthode de Paul Tillich. Luxembourg, 1997,
v. 12. p.157-182.

Outros autores

GABUS, J-P. Introduction à la théologie de la culture de


Paul Tillich. Paris : PUF, 1969.
TILLICH, P. Auf der Grenze. Aus dem Lebenswerk
Paul Tillichs. Taschenbuchausg. München/Hamburg:
Siebenstern, 1965.
TILLICH, P. Der Protestantismus als Kritik und
Gestaltung. Hrsg. Renate Albrecht. Taschenbuchausg.
München/Hamburg: Siebenstern, 1966.
TILLICH, P. Für und wider den Sozialismus. Hrsg.
Wolf-Dieter Marsch. München/Hamburg: Siebenstern
Taschenbuch, 1969.
TILLICH, P. Teologia sistemática. Trad. Getúlio Bertelli
e Geraldo Korndörfer. Revisão Ênio Mueller. São
Leopoldo, RS: Sinodal, 2005, 5ª ed. Revista.

55
VIDA E OBRA DE PAUL TILLICH
A PARTIR DE SEU CONTEXTO

Carlos Eduardo Calvani 13

Introdução

No último dia 22 de outubro, completaram-se 50


anos da morte de Paul Tillich e sua obra continua
chamando a atenção de pesquisadores das novas gerações
em muitos países. Há dezenas de instituições ao redor do
mundo dedicadas a explorar e aprofundar alguns tópicos
por ele levantados. Esses grupos estão espalhados por
universidades na Europa, Estados Unidos, Canadá e Japão.
Em alguns desses países os pesquisadores se aproximam e
organizam sociedades nacionais dedicadas ao estudo de
Tillich. As maiores são as da Alemanha e Estados Unidos
que organizam simpósios anuais, e a sociedade de língua
francesa que reúne pesquisadores da França, Bélgica e
Canadá.
Isso sinaliza que estamos diante de um pensador
que marcou os estudos de religião no século XX. O valor

13
Doutor em Ciências da Religião (UMESP) e professor na
Universidade Federal de Sergipe. O presente texto foi apresentado
como introdução ao pensamento de Tillich no I Ciclo do GPCOR
(Grupo de Pesquisa Correlativos) em novembro de 2015.

57
do trabalho de Tillich foi reconhecido por diversos
estudiosos que se destacaram no século XX, tais como Paul
Ricouer, Adorno, Horkheimer, Harvey Cox, Alexander
Irwin, Ninian Smart, John Hick, Mark Taylor e até
mesmo Gustavo Gutiérrez, que insistiu para que os textos
de Tillich sobre socialismo religioso (principalmente “A
decisão socialista”) fossem publicados em inglês. Aqui no
Brasil ainda não prestamos atenção às constantes
referências a Tillich nos muitos livros de Rubem Alves.
O objetivo deste texto é destacar alguns aspectos da
vida de Tillich nos respectivos contextos históricos que o
afetaram em seu período de formação e nos primeiros anos
de docência. Considero importante essa visão porque
humaniza qualquer pesquisa, pois seja no caso de Tillich ou
de qualquer outro pensador, nunca estamos diante de um
“pensamento abstrato ambulante”, mas diante de um
pensamento que surge de uma história concreta de vida,
que se envolve em problemas semelhantes aos nossos,
sejam de ordem pessoal ou de ordem política.
A maioria dos biógrafos de Tillich divide sua vida
em duas fases: a primeira referindo-se ao período na
Alemanha (o 1º Tillich), e a segunda, à sua produção nos
Estados Unidos (o 2º. Tillich), tendo como marco
divisório, o exílio em 1933. Porém, boa parte dos
comentadores do período alemão inicia com a palestra de
1919 (Sobre a ideia de uma teologia da cultura), proferida na
Sociedade Kantiana de Berlim, dando pouca atenção a
alguns textos anteriores. Meu propósito é situar Tillich a
partir de três contextos: (a) o de sua formação idealista e
romântica, com a fixação inicial em Schelling; (b) o do
rompimento com o idealismo ingênuo durante a 1ª guerra

58
e que envolveu também fatores pessoais que o abalaram
e,(c) o contexto da reconstrução com a tentativa de situar o
debate sobre o lugar da religião, e de sua importância.

Os primeiros anos e a formação universitária

Tillich nasceu em 1886, em Starzeddel, uma


pequena cidade da Prússia, que hoje é parte do território da
Polônia. Após a 2ª guerra, essa região fez parte da antiga
Alemanha oriental. Seu pai era o pastor luterano da cidade
e as informações que temos dele indicam que era um
homem muito autoritário, rígido, severo e elitista. A mãe
de Tillich, porém, era uma pessoa dócil, sensível, carinhosa
e protetora do primogênito. Tillich teve duas irmãs mais
novas do que ele.
Porém, a mãe de Tillich morreu quando ele era
adolescente, e ele se viu sozinho para ajudar o pai na
organização da casa, tendo que se submeter à autoridade
paterna, e sem a mãe para protegê-lo. Esse trauma se
refletirá mais tarde, em sua vida adulta, em seu casamento
e nos relacionamentos extraconjugais nos quais se envolveu.
Ele e Hanna viveram, consensualmente, o que os
americanos chamam “open marriage”, um “casamento
aberto”. Sobre essa relação, o próprio Tillich nunca
escreveu, mas sua esposa Hanna, sim. Em seu livro de
memórias, From time to time ela reconhece ter sido um
acordo consensual – Tillich tinha suas amantes, e Hanna
tinha os seus, e ambos permaneceram casados até que a
morte de Tillich. Hanna inclusive cita nomes e situações
muito íntimas. Recentemente, o próprio filho do casal,

59
René, escreveu um artigo sobre seu pai, comentando
também essas situações (TILLICH, René, 2001).
Nessa época, o luteranismo vivia o que ficou
conhecido como Kulturprotestantismus, um momento no
qual a teologia alemã se esforçava por moldar a sociedade
de acordo com modelos culturais da burguesia protestante.
A intelectualidade prussiana da época respirava o idealismo
com um forte tempero de romantismo alemão. Estou
falando de romantismo enquanto um movimento filosófico
e literário, e não como o senso comum entende essa
palavra. O Romantismo foi um movimento filosófico e
literário e representou, de certo modo, um questionamento
ao racionalismo da modernidade por valorizar a intuição, o
sentimento, a natureza, as artes, etc. Tratava-se, enfim, da
busca de uma pureza em meio às impurezas de uma vida já
contaminada por máquinas e indústrias. Foi nesse
ambiente que Tillich cresceu. Há um trecho de suas
reflexões autobiográficas que, embora longo, nos ajuda a
compreender a formação de Tillich:
Minha cidade natal era uma vila com o nome
eslavo Starzeddel (...).A cidade era medieval,
cercada por um muro, construída em torno de
uma antiga igreja gótica (...) dava a impressão de
um mundopequeno eprotegido. (...) Essas
impressões precoces podem em parte explicar o
que tem sido denunciada como a tendência
romântica em meu pensamento. Um lado deste
chamado romantismo é minha relação com a
natureza, que a defino como uma atitude
estético-meditativa, oposta à de quem vê a
natureza sob a ótica de uma relação tecno
científica, analítica ou controladora. Essa talvez
seja a razão para o tremendo impacto emocional
que a filosofia da natureza de Schelling teve em

60
minha vida (...)Quando me perguntam sobre o
fundo biográfico dessa chamada relação
romântica com a natureza, acho que três causas
provavelmente trabalharam juntas na mesma
direção. A primeira foi o contato diário e direto
com a natureza em meus primeiros anos e em
vários outros momentos ao longo da vida. A
segunda foi o impacto da poesia. A literatura
poética alemã está repleta de expressões de
natureza mística. Há versos de Goethe,
Hölderlin, Novalis, Eichendorff, Nietzsche,
George e Rilke que nunca deixaram de me
abalar tão profundamente como quando os ouvi
pela primeira vez. Uma terceira causa desta
atitude para com a natureza procede de minha
formação luterana. (TILLICH, 1967, p. 24ss)
O romantismo não foi um movimento
irracionalista, mas uma aproximação entre Kant e o
misticismo de Spinoza. Esse esforço de síntese é, para
Tillich, a chave de compreensão do romantismo, e sua
maior expressão foi a tentativa de Schelling de construir
uma radical filosofia da identidade entre sujeito e objeto,
finito e infinito, natureza e consciência – tudo isso
envolvido em uma atmosfera luterana de forte tendência
pietista:
Romantismo significa não só uma relação
especial com a natureza, mas também uma
relação especial com a história. Crescer em
cidades em que cada pedra é testemunha de um
período de muitos séculos passados produz uma
sensação para com a história, que nos faz vê-la
como uma realidade viva em que o passado
participa do presente. Quando vim para a
América (...) descobri a ausência de uma
identificação emocional imediata com a

61
realidade do passado. Muitos estudantes aqui
têm um excelente conhecimento de fatos
históricos, mas esses fatos não parecem
incomodá-los profundamente, de modo
existencial. Os fatos permaneceram objetos de
seu intelecto e quase nunca se tornaram
elementos de sua existência. (TILLICH, 1967,
p. 25)
Dois outros pontos de importância biográfica
devem ser mencionados em conexão com sua infância:
o primeiro é o efeito que minha infância em
uma casa paroquial teve sobre minha vida (...) É
a experiência do "sagrado", que me foi dada
naquele tempo como um bem indestrutível e
como fundamento de toda a minha obra
religiosa e teológica. Quando li pela primeira vez
“A ideia do Sagrado” de Rudolf Otto,
compreendi o texto à luz dessas primeiras
experiências (...) igualmente importante
existencial eteologicamente forama mística e as
implicações sacramentais e estéticas da idéia do
sagrado, segundo a qual os elementos éticos e
lógicos da religião foram atingidos a partir da
experiência da presença do divino e não vice-
versa. Isso tornou Schleiermacher atrativo para
mim, tal como ele foi para Otto, a ponto de nos
induzir (Otto e eu) a participar de movimentos
de renovação litúrgica e a propor uma
reavaliação de misticismo cristão e não-cristão.
(TILLICH, 1967, p. 25)
Aos 14 anos a família mudou-se novamente para
Berlim onde o adolescente Tillich cursou o Ginásio e, com
a constante cobrança do pai, dedicou-se aos estudos
humanistas da Alemanha da época. Dentre as “habilidades
e competências” exigidas a um adolescente, estava um bom

62
domínio do grego e do latim, além de um forte
embasamento filosófico. Ênio Muller observa que “um
aluno normal em tais escolas poderia falar com precisão
invejável da ética aristotélica, lida em grego, além dos
clássicos latinos” (MUELLER, 2005, p. 14).
Tillich ingressou na Universidade em 1904, com 18
anos. O sistema educacional alemão permitia aos que
tivessem condições, frequentar cursos em diferentes
universidades até concluir os créditos necessários. Desse
modo, Tillich estudou em Berlim, Tubigen e Halle.
Porém, como estava matriculado oficialmente em Berlim,
foi lá que concluiu os exames finais.. Sua classe social lhe
permitiu o privilégio de cursar Teologia e Filosofia
simultaneamente. Nos “TCCs”, apresentou, na Faculdade
de Teologia, um trabalho exegético sobre o conceito de
Logos no evangelho de João, e para a Faculdade de
Filosofia, apresentou um trabalho sobre as concepções
monistas e dualistas do mundo e sua influência no
cristianismo. Esses temas já enunciam uma tendência que
acompanhará o pensamento de Tillich em toda sua
trajetória – refletir sobre os paradoxos, atentar para as
contradições e buscar uma síntese, ou uma conciliação
entre duas posições aparentemente antagônicas. Creio que
é nesse momento que nasce o embrião do que mais tarde
será desenvolvido como “método da correlação”.
Os cursos de pós-graduação foram iniciados
imediatamente após o término das faculdades. Seu
primeiro doutorado em Filosofia foi defendido na
Universidade de Breslau, com uma tese intitulada “A
Construção da História da Religião na Filosofia Positiva de
Schelling – pressupostos e princípios” defendida com 24 anos.

63
Curiosamente, mas não intencionalmente, a reflexão sobre
a História da Religião também foi o tema de sua última
conferência dias antes de morrer. O segundo doutorado,
em Teologia, também foi sobre Schelling, defendido no
ano seguinte na Universidade de Halle. O título era:
“Mística e consciência de culpa no desenvolvimento filosófico de
Schelling”.
Vários pensadores estão constantemente presentes
nos subterrâneos da obra de Tillich – a mística alemã, por
exemplo, sobretudo Eckhart e Jacob Boehme (até porque
ambos influenciaram Schelling e as filosofias do
irracionalismo e do vitalismo que emergiram na virada do
século XIX para o XX). Outra influência constante éa
teologia de Lutero. Tillich chega a escrever muitos anos
depois, em sua autobiografia:
Sou luterano por nascimento, educação,
experiência religiosa e reflexão teológica. A
substância do meu pensamento permanece
luterana. Isso inclui a consciência da corrupção
da existência, uma desconfiança para com todo
tipo de utopia social, a consciência dos aspectos
irracionais e demônicos da natureza, a
apreciação dos elementos místicos na religião e a
rejeição de qualquer legalismo puritano na vida
privada e corporal. (TILLICH, 1936/1966, p.
74).
Não podemos esquecer também, de alguns
pensadores historicamente mais próximos e que o
influenciaram, tais como Kierkegaard (“todos nos
apaixonamos por Kierkegaard”) e Schleiermacher, que
muitos consideram o teólogo mais congenial a Tillich, de
quem ele extrai boa parte de seu conceito de religião como
sentimento e consciência de dependência absoluta.

64
Lembro, porém, que “sentimento” para Schleiermacher e
para Tillich não tinham o sentido que essa palavra ganhou
em português. Não se trata de mera emoção passageira.
Sentimento é “Gefuhl”, o que envolve a consciência
permanente de certa insuficiência ontológica perante o
mundo e o universo, de certa falta ou vazio.
Porém, insisto em voltar a Schelling. Hoje penso
que não se pode compreender o pensamento de Tillich sem
dedicar especial atenção a Schelling. Afinal, Schelling foi o
objeto de pesquisa de seus dois doutorados e é de Schelling
– ou a partir de seus escritos - que Tillich elabora muitos
conceitos como o demônico, as ambiguidades da vida, a
dinâmica dos símbolos e a importância dos mitos. Ao ler a
primeira tese de doutorado de Tillich, escrita em 1910, ali
estão muitos referenciais que o acompanharão ao longo de
sua vida acadêmica – a tese é uma reflexão sobre a história
das religiões a partir da ontologia, particularmente das
potências schellingianas: não-ser (me-on), ser (on) e nous
(mente, inteligência, logos). Estão aí, a meu ver, as raízes
dos conceitos de demônico e de ambiguidade desenvolvidas
por Tillich e do próprio método da correlação. Minha
insistência em Schelling deve-se ao fato de que, em
diferentes épocas de sua vida, o próprio Tillich faz questão
de frisar o impacto que Schelling lhe causou.
Primeiramente, vou recordar um trecho do livro
“Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e
XX”.:
Lembro-me do momento inesquecível em que,
por acaso, comprei um exemplar da raríssima
primeira edição das obras completas de
Schelling em um sebo no caminho da
Universidade de Berlim. Eu não tinha muito

65
dinheiro, mas comprei o livro mesmo assim.
Esse gasto do dinheiro que eu não tinha foi,
talvez, o mais importante de minha vida. O que
aprendi de Schelling determinou minha linha de
pensamento filosófico e teológico (TILLICH,
1986, p. 142),
O outro trecho foi escrito pelo próprio Tillich em
seu ensaio autobiográfico:
Foi a obra de Schelling, particularmente sua
última fase, que me ajudou a relacionar essas
ideias teológicas básicas com meu
desenvolvimento filosófico. A interpretação
filosófica que Schelling fez da doutrina cristã me
abriu um caminho para unificar a teologia e a
filosofia. (...) confesso que ainda hoje encontro
mais ‘filosofia teônoma’ em Schelling que em
qualquer outro idealista alemão. Mas nem
mesmo ele foi capaz de realizar a unidade entre
teologia e filosofia. A 1ª guerra foi desastrosa
para o pensamento idealista em geral. A filosofia
de Schelling foi afetada por essa catástrofe (...).
A experiência daqueles quatro anos de guerra
revelou para mim e para minha geração um
abismo na existência humana que não pode ser
ignorado. Se a reunião entre teologia e filosofia é
ainda possível, ela deve ser buscada apenas na
síntese que justifica essa experiência do abismo
em nossas vidas (TILLICH, 1936/1966, p. 51-
52).

Experiência pastoral e a crise da guerra

Outros dois momentos decisivos da vida de Tillich


dizem respeito à sua vida já adulta: a experiência pastoral e
a capelania durante a guerra de 1914 a 1918. Tilich foi

66
ordenado ao ministério luterano na Igreja Evangélica de
São Mateus, em Berlim, em agosto de 1912 e, durante dois
anos trabalhou como pastor-assistente de uma pequena
comunidade de trabalhadores em um bairro industrial. Pela
primeira vez na vida, o jovem pequeno-burguês estava em
contato direto com os pobres e com seus problemas reais.
Ali, responsável por organizar círculos de debates com os
jovens da comunidade, deu-se conta da distância entre a
sua linguagem acadêmica e a linguagem do povo. Ali ele
percebeu, na classe de confirmação, que a palavra “fé” não
tinha muito significado para sua comunidade, ou que
outros termos estavam excessivamente contaminados pelo
senso comum, tais como as palavras “pecado” e “salvação”.
Seu colega de pastorado chamava-se Richard
Wegener e ambos organizaram um ciclo de debates com
temas que já enunciavam um incipiente método da
correlação, tais como “o misticismo da arte e o misticismo
religioso”. Nessa época, Tillich conheceu Margarethe
(Greti) Wever, sua primeira esposa e após um noivado de
seis meses, casaram-se em setembro de 1914. Contudo, um
conflito bélico que aparentava ser rápido, ganhou
proporções muito maiores – era o início da chamada “1ª
guerra”, e no mês seguinte ao casamento, Tillich já estava
nas linhas de frente, atuando como capelão do exército
prussiano. Os anos da guerra foram decisivos para que
muita coisa mudasse em sua vida. Ele iniciou o ano de
1915 como um jovem idealista, conservador, pietista e com
uma tendência ética de influência puritana, acreditando no
bom e providente deus do teísmo tradicional. Ao final da
guerra ele era exatamente o oposto – pessimista, socialista,
boêmio e crítico do teísmo.

67
Logo no primeiro mês de serviço militar, ele já
estava em uma linha de frente e, no curto espaço de três
semanas, dirigiu 19 ofícios religiosos, redigindo um
diferente sermão para cada ofício, e muitos desses eram
funerais de soldados. Em fevereiro de 1915, quatro meses
após seu alistamento, escreveu a uma amiga dizendo que
estava vivendo em total tristeza e solidão e experimentando
a morte diária ao seu redor. Mais tarde, registou em My
Search for Absolutes:
Já nas primeiras semanas, meu entusiasmo
inicial desapareceu. Após alguns meses, eu
estava convencido de que a guerra representaria
a ruína total da Europa. Eu vi que a unidade era
uma ilusão, que a nação estava dividida em
classes e que o proletariado considerava a igreja
uma inquestionável aliada dos grupos
dominantes (TILLICH, 1967, p. 39)
A experiência na guerra foi decisiva para o
pensamento e a personalidade de Tillich. Ele, que crescera
admirando a disciplina militar, a aparente solidez das
estruturas da sociedade prussiana e que nunca questionara a
aristocracia, de repente viu seu mundo desabar. Há uma
frase extraída de sua autobiografia, na qual ele reconhece
que seu posicionamento político era muito alienado e que
somente no último ano da guerra, percebeu a conexão entre
capitalismo e imperialismo, a crise da sociedade burguesa e
a divisão de classes. Essa percepção não foi abrupta, mas
gradativa, pois ele conta em uma entrevista à revista Time
em março de 1959, que já no 1º ano da guerra, sua crise
pessoal já se instalara:
A transformação ocorreu durante a batalha de
Champagne, em 1915. Houve um ataque

68
noturno. Durante toda a noite não fiz outra
coisa senao caminhar entre feridos e
moribundos. Muitos eram meus amigos íntimos.
Durante aquela longa e horrível noite, caminhei
entre filas de gente que morria. Aquela noite,
grande parte de minha filosofia clássica ruiu aos
pedaços; a convicção de que o homem fosse
capaz de apossar-se da essência de seu ser, a
doutrina da identidade, tudo... lembro-me de
que sentava sob as árvores das florestas francesas
e lia Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, em
estado de exaltação. Tratava-se da libertação
definitiva da heteronomia. O niilismo europeu
desfraldava o dito profético de Nietzsche: ‘Deus
está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de
Deus estava mesmo morto. (TIMES, 6-3-59, p.
47)
Durante todo o tempo de guerra, Tillich conseguiu
apenas alguns poucos períodos de licenças curtas para
visitar a esposa. Mas a maior parte do seu tempo foi vivida
mesma entre quartéis ou nos fronts. Nesses lugares, era
responsável por breves ofícios diários de oração, visita aos
enfermos, apoio espiritual a familiares em hospitais de
guerra, cultos dominicais e muitos funerais. Era seu
costume escrever para cada diferente ofício uma meditação,
e muitas delas só agora estão sendo publicadas. Na tradição
protestante, o sermão sempre se baseia em algum texto
bíblico, e um dos mais utilizados por Tillich era o Salmo
90: “Senhor, tu tens sido o nosso refúgio de geração em geração.
Antes de formarem os montes e de formares a terra e o Universo,
de eternidade a eternidade tu és Deus”. Não tenho certeza se
todos os sermões já foram publicados, porque ao que me

69
consta, há dois arquivos – um na Universidade de Harvard,
e outro arquivo na Alemanha14.
Durante a guerra ele foi internado quatro vezes –
teve um colapso nervoso após dirigir os ofícios de Natal em
1915, e outro após a morte de um de seus amigos mais
íntimos durante a guerra. O jovem soldado foi morto no
front e Tillich, encarregado do funeral, não conseguiu
concluir a liturgia. Escreveu para a ocasião apenas algumas
notas de última hora para falar livremente baseando-se em
Romanos 8.38-39 (“Estou certo de que nem a morte, nem a
vida, nem anjos, principados ou potestades, nem as coisas do
presente ou as do futuro, nem os poderes das alturas ou os das
profundezas, nada disso pode nos separar do amor de Deus”).
Porém, não conseguiu concluir o ofício. Houve mais duas
internações durante a guerra e um breve período de licença
na cidade. Foi durante essa licença que sua sensibilidade se
moveu para o campo das artes. Ele conta que foi visitar um
museu em Berlim e se deparou com uma Madonna de
Boticelli:
Contemplando-a, fui tomado por um estado
muito próximo ao êxtase. Na beleza da pintura
havia a própria beleza-em-si. Brilhava através
das cores do quadro como a luz do dia brilha
através dos vitrais de uma igreja medieval.
Aquele momento afetou toda minha vida,
dando-me as chaves para a interpretação da
existência humana, produzindo vitalidade e
verdade espiritual. Eu o comparo com o que é

14
Ver, p. ex., WEAVER, Matthew Lon. Thrown to the Boundary:
Tillich’s World War IChaplaincy Sermons.Bulletin of the North
American Paul Tillich Society Vol. 32, number 2 Spring 2006, p. 21-
27.

70
geralmente chamado de ‘revelação’ no linguajar
teológico (TILLICH, 1987, p.235).
Curiosamente, é uma Madonna – mãe, carinhosa,
segurando nos braços um bebê indefeso perante o mundo.
Além de todo estresse dos fronts, ao final da guerra
descobriu que sua esposa Greti se apaixonara por um
amigo comum e que estava vivendo um caso extraconjugal.
Inclusive estava grávida. O amigo era aquele pastor que
trabalhava com ele na comunidade de operários, Richard
Wegener. O casamento acabou em 1918 e se divorciaram
oficialmente em 1922. No mesmo ano sua irmã Johanna
morreu no parto. Ainda em 1922 conheceu outra Johanna
que veio a ser sua esposa até a morte – Hanna Tillich.
Casaram-se em 1924 e tiveram dois filhos: Erdmuthe
Christiane foi professora de artes e patrocinadora da
Sociedade Paul Tillich dos Estados Unidos. O outro filho
René, é psicanalista no Havaí e escreveu um belíssimo
artigo sobre seu pai, no qual destaca aspectos pouco
conhecidos de um Tillich muito carinhoso e dedicado.
Em meio a todas essas tensões, ao final da guerra,
Tilich se dedicou a tentar uma cátedra universitária. Tudo
o que ele vivera, o fizera desanimar profundamente do
ministério pastoral. Um de seus textos mais preciosos foi
escrito logo após a guerra e apresentado em 1919 perante a
Sociedade kantiana de Berlim, intitulado “Sobre a ideia de
uma teologia da cultura”. É até hoje um de seus textos
seminais, no qual já se enuncia o método da correlação e
que viria a ser aprofundado no livro de 1925, Filosofia da
Religião. Nesse texto já aparecem claramente alguns
conceitos que o acompanharão ao longo da vida, tais como
a referência ao estilo de arte expressionista, a tríade forma-

71
conteúdo-substância (Form, Inhalt, Gehalt), a tríade
“heteronomia, autonomia e teonomia”, a reflexão sobre
religião como “orientação para o Incondicional”. Nesse
texto já encontramos a ideia de religião como fundamento,
substância da cultura. A famosa frase “cultura é a forma da
religião; religião é substância da cultura” nasce nesse
contexto.

Os anos vinte até o exílio em 1933

Os anos vinte foram difíceis do ponto de vista


pessoal porque em virtude do afastamento durante a
guerra, Tillich não tinha estabilidade profissional. Por isso
lecionou em diferentes universidades sempre com contratos
temporários. Mas durante esse tempo se dedicou a escrever
textos que o ajudaram a se firmar no cenário acadêmico da
Alemanha. Além do texto acima referido, há outro artigo
importante por ser sua primeira inserção no campo político
– “O socialismo como questão para a Igreja”, na qual defende
que o socialismo não é coisa de ateus, mas um pensamento
que convoca as igrejas cristãs a retomar uma agenda
profética já enunciada nos textos bíblicos. Em 1922,
novamente perante a Sociedade Kantiana em Berlim,
proferiu outra conferência intitulada “A superação do conceito
de religião na filosofia da religião”, no qual descontrói o
conceito tradicional de religião com vistas a pensar esse
fenômeno de outra maneira.
Nessa época a religião está sofrendo ataques de
diversos flancos e no centro de alguns debates. Marx já a
denunciara como “ópio do povo”; Feuerbach, falara de
religião como projeção de desejos e aspirações humanas;

72
Nietzsche proclamara a “morte de Deus”. Freud estava
escrevendo “o futuro de uma ilusão”, publicado em 1927 e,
no próprio campo da teologia, a religião recebia uma
vigorosa condenação de Karl Barth. A principal crítica de
Tillich, porém, era outra. Para ele, todas essas
considerações atingiam apenas superficialmente questão.
Ou seja, não estavam de todo errôneas, mas situavam a
religião em alguma esfera particular, seja teórica, prática,
emocional ou neurótica. Essa discussão era um
aprofundamento da reflexão que já vinha se desenvolvendo
desde o Iluminismo sobre o lugar da religião na
modernidade. Qual o lugar da religião e da teologia num
ambiente que já não a deseja? Em um mundo que se
considera “emancipado” e “iluminado”? Qual o lugar da
religião em um ambiente que apenas a suporta como
respeito aos mais velhos e deferência educada a uma velha
senhora idosa que já se sabe que dali a pouco irá morrer, de
causas naturais ou com as tripas arrancadas para enforcar o
último rei, como dizia Meslier em uma frase
constantemente atribuída a Voltaire (“o mundo só será livre
quando o último rei for enforcado nas tripas do último
padre”).
Desse modo, apesar da instabilidade, os anos vinte
foram muito produtivos academicamente, pois é durante
essa década que se solidificam os conceitos de kairos, de
demônico, a tríade autonomia-teonomia-heteronomia, e
outros livros muito importantes como “O Sistema das
Ciências” (1923)e “A situação religiosa do tempo presente”
(1926). Mas naturalmente, há uma preocupação especial
com a questão política em virtude da instabilidade da

73
República de Weimar e que culminou na ascensão do
nazismo.
Tillich morou e trabalhou em Berlim entre 1919 e
1924. Nos primeiros meses, sua situação financeira era tão
instável que ele foi sustentado por um amigo de sua antiga
Paróquia. Mas em Berlim conseguiu algumas aulas na
Universidade e ofereceu um curso sobre “Cristianismo e os
problemas sociais do tempo presente”. Completava sua renda
escrevendo pequenos artigos para jornais, fazendo palestras
em círculos socialistas e alugando um quarto de seu
apartamento para estudantes. Em 1924 assumiu uma
cátedra de Teologia em Marburg, onde lecionavam
Heidegger e Bultmann. Mais tarde ele recorda
ironicamente: “sempre me recordo do sermão ateu que
Heidegger pregou uma vez para nós, com suas categorias
pietistas” (TILLICH, 1986, p. 83). Em Marburg seu único
amigo íntimo, conforme testemunho da esposa Hanna, foi
Rudolf Otto, já famoso pela publicação de “O Sagrado”
(Das Heilige) em 1917. Mas, Tillich não era titular e, findo
seu período de contratação, mudou-se em 1926 pra
lecionar “Ciência da Religião” em Dresden. No final de
1927 acumulou também aulas na Universidade de Leipzig.
Dois anos depois, conseguiu finalmente certa estabilidade
em Frankfurt para onde se mudou em 1929 a fim de
assumir, como titular, a cátedra de Filosofia.
Em Frankfurt havia um grupo de jovens intelectuais
marxistas, formado por professores e alunos que estava
organizando um instituto que mais tarde ficou conhecido
como “Escola de Frankfurt” ou o grupo da “Teoria
Crítica”. É um período importante na filosofia do século
XX. Porém, poucos comentaristas da filosofia moderna

74
lembram a importância de Tillich para a Teoria Crítica.
Todos os biógrafos informam que, por ser o mais velho, ele
era uma espécie de mentor e incentivador do grupo. Esse
círculo começou como uma espécie de “Grupo de
Pesquisa”. Adorno era estudante, 16 anos mais novo que
Tillich, e este foi seu orientador na tese sobre a estética de
Kierkegaard. A amizade entre esse grupo era muito
intensa. Era a esquerda intelectual da época. Foi Tillich
quem mais se empenhou politicamente na burocracia
universitária para que Horkheimer, oito anos mais novo
que ele, assumisse a presidência do Instituto. Há um
elucidativo artigo escrito pelo prof. Enio Mueller sobre as
relações entre Tillich e os líderes da Escola de Frankfurt,
disponível aos interessados (MUELLER, 2003).
Além das atividades teóricas junto a esse grupo de
intelectuais socialistas, Tillich na época se envolveu muito
intensamente na crítica a Hitler e ao Partido Nacional-
Socialista. Escreveu artigos e pequenas teses contra o
nazismo e participava de reuniões clandestinas. Em
Frankfurt foi assistir pessoalmente Hitler em um auditório
e sentou-se na primeira fila. Ao voltar, comentou com
Hanna que viu nos olhos de Hitler a materialização de
tudo aquilo que ele formulara no conceito de demonico,
etc. (TILLICH, Hanna, 1973, p. 149).. Essas atividades
culminaram na publicação de um livro intitulado “A decisão
socialista” em 1933. Nessa época a Alemanha estava
pegando fogo, e o livro de Tillich foi queimado
publicamente pelos nazistas, juntamente com outros textos
da época. No mesmo ano ele foi exonerado da
Universidade.

75
Hanna conta que muitos intelectuais já
pressentindo o pior estavam se exilando e que Tillich não
pretendia chegar a esse ponto. Em 1933 ambos foram a um
culto em uma Igreja em Berlim e, no altar estava uma
suástica ao lado da cruz. Diz ela:
Paulus começou a protestar, dizendo alto ‘que
instituição diabólica, que idolatria’. Um camisa-
marrom se virou e eu ergui o braço de Paulus
conforme a saudação nazista, e saímos. Na rua
ele continuava xingando. Eu estava orgulhosa
dele. (...) Ninguém, ninguém no mundo
mudaria suas convicções espirituais e
intelectuais, nem mesmo seu pai, sua esposa,
nem todo um mundo em turbulência. Ele
deixaria o país e só retornaria depois que a
guerra acabasse. (TILLICH, Hanna, 1973, p.
156)
Na América do Norte, Tillich viveu e lecionou
inicialmente em Nova York, depois em Harvard e
finalmente em Chicago. A adaptação inicial não foi nada
agradável. Tillich era um imigrante, com 47 anos e que não
falava uma palavra em inglês, o que lhe causou enorme
depressão. Para quem tinha uma produção tão prolífica na
Alemanha, isso certamente foi um drama adicional. Nos
primeiros anos, se incomodava muito com o que
considerava falta de respeito dos alunos norte-americanos
que riam às gargalhadas em suas aulas em virtude do
sotaque, frases de duplo sentido e a incapacidade de
compreender perguntas básicas. Ele chegou a escrever a
uma amiga dizendo:
O que eu estou experimentando aqui é a
segunda morte. A primeira morte era
inimaginável mais ameaçadora; a segunda morte

76
é mais refinada e amarga. Embora eu não esteja
sofrendo em qualquer aspecto– há uma boa
receptividade aos meus cursos, os colegas são
amáveis e eu esteja aos poucos melhorando
minha fluência em inglês - o fato de estar
vivendo uma experiência de morte não pode ser
negado.(Carta para Lily Pincus, 1934, citada por
ALBRECHT, R. 1987, p. 11)
A partir do título dessa palestra -“vida e obra a
partir de seu contexto”, - também é preciso mencionar sua
morte, posto que se trata da última fronteira da vida.
Tillich morreu em 1965, com 79 anos, na semana seguinte
à sua participação em um Seminário sobre história das
religiões organizado em Chicago por seu amigo Mircea
Eliade. Hanna diz que, embora já estivesse aposentado, ele
era viciado em trabalho, e o tema o fascinava. Sua saúde já
não estava muito boa, mas ele participou ativamente do
Simpósio e, no dia seguinte começou a passar mal. Foi
internado em um hospital de Chicago:
Algum tempo depois ele pediu para ficar
sentado. O médico autorizou, mas quando
elevamos a maca ele teve uma convulsão.
Chamei a enfermeira. Ela me disse: “segure sua
mão”. Ela estava do outro lado da cama,
manuseando o tubo de oxigênio. Quando a
enfermeira percebeu que a situação era grave,
chamou o médico, e me disse: ‘é melhor você
sair agora. Será muito difícil para você’. Eu me
recusei e segurei as mãos de Paulus. Seu corpo
tremia. Sua boca estava aberta e sua face
amarelada. O médico chegou e pediu que eu me
sentasse em uma cadeira. Ele examinou seus
olhos com uma lanterna. Depois os fechou com
um gesto bastante profissional, mas gentil, e
cobriu o rosto de Paulus com um lençol. (...) Eu

77
nada trouxera para o hospital desde que ele se
internou, exceto o que ele mesmo pedira: suas
Bíblias – um pequeno Novo Testamento em
grego, a Bíblia alemã que ganhara ainda em seus
primeiros anos de vida e uma versão em inglês.
Eu esperava ler a Bíblia para ele quando se
tornasse agitado, caso ele desejasse, mas ele
apenas tocou a versão grega com suas frágeis
mãos. Não desejou ver as outras Bíblias, nem
quis que eu lesse para ele. Fiquei feliz. Ele
pertencia ao mundo, ao cosmos e não a um livro.

Conclusão

Procuramos destacar neste texto algumas situações


do “contexto” no qual Tillich viveu porque nenhum
pensador elabora seus conceitos, artigos e livros no vácuo.
Por mais que se busque um pensamento asséptico e
depurado de influências da vida pessoal ou da história,
certas situações inevitavelmente deixam marcas. O
pensamento de Tillich deve ser avaliado à luz dessa vida e
de algumas influências centrais que apenas pude enunciar -
o romantismo, o luteranismo, o vitalismo, o marxismo, o
existencialismo e o expressionismo. Qualquer observador
atento lembrará que há uma grande distância entre o
romantismo idealista alemão, o marxismo e o
existencialismo. Mas é exatamente nessas fronteiras que
Tillich tentou construir seu pensamento radicalmente
dialético, de busca de síntese, pois para ele “a fronteira é o
melhor lugar para adquirir conhecimento” (TILLICH,
1933/1986, p. 13).

78
Referências

ALBRECHT, R. Paul Tillich – his life and his


personality. Religion et Culture – Colloque du
Centenaire Paul Tillich, Québec, Les Press de
l’Université Laval, 1987.
MUELLER, Enio R. “Paul Tillich: vida e obra”.
Fronteiras e Interfaces – o pensamento de Paul
Tillich em persepectiva interdisciplinar. São
Leopoldo: Ed. Sinodal/EST, 2005.
TILLICH, Hanna. From time to time. New York: Stein
and day, 1973.
TILLICH, Paul. On the boundary. New York: Charles
Scribner’s sons, 1936/1966.
__________. My search for Absolutes (ed. by Ruth Nanda
Ansen).New York: Simon and Schuster, 1967.
__________. Perspectivas da teologia protestante nos séculos
XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1986.
_________. One moment of Beauty: On art and
architecture. (ed. John Dillenberger) New York :
Crossroad, 1987.
TILLICH, René. My father, Paul Tillich, in: NORD,
Ilona e SPIEGEL, Yorich
(orgs).Suprensuche.Lebens und Denkewege Paul
Tillich.Münster, LIT, 2001.
TIMES, 6-3-59, p. 47.
WEAVER, Matthew Lon. Thrown to the boundary:
Tillich’s World War I chaplaincy sermons. Bulletin of

79
the North American Paul Tillich Society. Vol. 32,
Number 2 Spring 2006.

80
SER E DEUS NO PENSAMENTO
DE PAUL TILLICH

Rui de Souza Josgrilberg 15

É o Deus de Abraão, Isaac e Jacó o Deus dos


filósofos e sábios? Tillich não aceita a oposição pascaliana
do Deus da Bíblia e o deus dos filósofos. Um é necessário,
como experiência, para o entendimento do outro. De fato,
ele critica a ontologia ingênua pressuposta pela maior parte
dos biblistas, tanto quanto a ontologia dogmática da
metafísica tradicional, por não compreenderem a correlação
de um com o outro na experiência concreta.16 Para Tillich a
ontologia é parte fundamental de uma teologia sistemática.

15
Professor emérito dos Programas de Mestrado e Doutorado em
Educação e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São
Paulo
16
Experiência — O método de Tillich pressupõe, como
fenomenologia, um ponto de partida experiencial. Trata-se da
experiência imediata, como mediação necessária, antes de qualquer
reflexão ou expressão. Experiência e experiencial são as condições
prévias (vivência pré-reflexiva) de qualquer inteligência da realidade.
A experiência imediata é também condição prévia da recepção e
reflexão da revelação. A experiência, nesse sentido, traz um apriori
concreto da coisa visada. A reflexão só faz explicitar a inteligência do
apriori concreto da experiência. É um conceito chave da filosofia e da
teologia de Tillich.

81
A teologia sistemática pressupõe uma ontologia para se
estruturar.
Todo o método de Tillich — a correlação, o círculo
teológico, a fenomenologia crítica, a análise — é solidário
na relação da teologia com a ontologia.
Em muitos casos, a crítica ao pensamento de Tillich
resume-se, em última análise, à não aceitação da base
ontológica ou à incompreensão dela. Especialmente aquilo
que Tillich diz sobre Deus é objeto de críticas e
argumentações infundadas, que procedem ou da recusa de
correlacionar a ontologia com a revelação, ou da
insuficiência compreensiva da sua ontologia. Mesmo
intérpretes reconhecidos de seu pensamento não se sentem
à vontade quando se trata de analisar o método e a
ontologia tillichiana.
A crítica mais intensa recai sobre a correlação Ser e
Deus. Assim J. L. Adams afirma que Tillich "trata
inadequadamente da questão e do caráter de Deus".17 V. P.
Micelli afirma que "Tillich apenas usa a linguagem para
mascarar um vácuo agnóstico"?18 W. Kaufmann diz que,
"em resumo, as proposições de Tillich sobre Deus são, de
ponta a ponta, ambíguas"'19 e R. E. Otto, corroborando
todas essas críticas, sentencia:
Tillich foi um metafísico e um humanista e,
desde que seu Deus é um nada irreal, uma mera
ideia de liberdade absoluta, derivada de

17
PT's Philosophy of Culture, Science and Religion. Harper, New
York, 1971, p. 270.
18
The Gods of Atheism, Harrison, New York, 1971, p. 360.
19
Critique of Religion and Philosophy, Princenton University Press,
Princenton, 1958, p. 196.

82
Schelling, ele pode ser bem caracterizado como
um ateísta.20
Essas críticas, em bloco, parecem-me injustificadas.
Umas não compreendem que o propósito de Tillich com
sua Teologia Sistemática não se enquadra dentro de uma
Dogmática ou Doutrina Eclesiástica. Outras têm
dificuldade em compreender a ontologia do ponto de vista
fenomenológico existencial. E outras ainda, com os
preconceitos nominalistas, não aceitam qualquer tipo de
ontologia. E há aqueles que pensam ser a ontologia, em
qualquer forma que ela apareça, uma prisão para a
linguagem "pura e livre" da revelação bíblica.
Nós vamos tentar uma compreensão do texto de
Tillich procurando ater-nos aos movimentos internos a que
se propõe o autor e à lógica que acompanha o método
utilizado. Reconhecemos que o pensamento de Tillich
realiza uma síntese de grandes tradições do pensamento
ocidental. 21 Não nos deteremos, porém, em apontar a
variedade destas tradições que o influenciam. Entretanto,
entendemos que os pontos nodais do pensamento
tillichiano que articulam as influências da filosofia grega
(especialmente Platão, Aristóteles e Platino), da filosofia
medieval (Anselmo, Aquino, Cusa, Bëlime) do
20
"The Doctrine of God in the Theology of Paul Tillich", The
Westminster Theological fournal, 1990, v. 52, p. 303-323)
21
Influências sobre Tillich: é impressionante a diversidade de autores
que influenciaram Tillich. Mas, não podemos concordar com certas
análises que reduzem um autor às influências que sofreu. Para nós, é
mais importante tentar compreender Tillich a partir dos movimentos e
articulações de seu pensar mesmo. É um erro nosso querer
compreender a correlação Ser-Deus em Tillich reduzindo-o a algumas
idéias de Plotino, Bõhme, Spinoza ou Schelling, e, a partir daí, deduzir
que Tillich é um panteísta.

83
nacionalismo cartesiano (Descartes, Spinoza) e do
idealismo alemão (especialmente Kant, Schelling e Hegel)
devem ser procurados em Schleiermacher, na
fenomenologia existencial, e há que se destacar, na ênfase e
a clareza com a qual Tillich reconhece a heteronomia da
Revelação Divina (e a inclusão da revelação e da fé no
círculo teológico). Tillich procura manter equilíbrio e igual
clareza nas condições e limites existenciais e ontológicos
tanto quanto na heteronomia e auto-manifestação de Deus
na história.

1. As condições ontológicas de recepção da


revelação e a pergunta sobre Deus

A recepção da Revelação de Deus é preparada por


fundamentos ontológicos e históricos.
A ontologia ocupa um lugar central no pensamento
de Tillich quando se trata das condições prévias de
recepção da revelação e enquanto eixo sistematizador das
questões existenciais. As questões existenciais exigem
respostas últimas que só podem ser respondidas em
correlação com a revelação. A ontologia é o centro da
filosofia que pergunta pela estrutura do ser e suas categorias
(TS, p. 27).22 A teologia procura respondê-las atendo-se à

22
Ontologia: a questão do ser como ser na ontologia de Tillich não é
uma questão metafísica. Começa com a experiência do "choque
ontológico". Tillich, para evitar confusão, descarta o termo metafísico
como ambíguo e marcado por conceitos abstratos (isolados da
experiência do todo). Ontologia para Tillich é ontologia existencial e
fenomenológica. "Ontologia é o modo pelo qual o significado radical
de todos os princípios pode ser encontrado" (sove, Power and Justice,
Oxford University Press, New York, 1954; p. 2) ou "ontologia é a

84
especificidade de suas fontes, normas e critérios que
procedem da revelação.
A ontologia pode ser compreendida como as
condições que fundam nossa experiência mais profunda (e
suas categorias) e que, previamente, condicionam todas as
nossas experiências particulares, inclusive nossa experiência
da revelação e da fé. Tillich começa a segunda parte de sua
TS, sobre o Ser e Deus, dizendo: "A questão teológica
básica é a questão de Deus. Deus é a resposta à questão
implícita no ser (TS, p. 142)". A questão do ser permanece
sempre aberta como questão. Não é possível definir que é o
ser. Mas o ser é a questão fundamental de nossa
experiência humana e de nosso pensar: "O pensamento
deve começar com o Ser (Id., ibid.)".
É uma questão existencial. Tem sua raiz na nossa
experiência enquanto relação experiencial entre nós mesmos
e o mundo. A ontologia não parte de abstrações
metafísicas. Ela está na relação experiencial do ser humano
penetrada por um a priori concreto (pelo qual a experiência
humana é, desde o início, apreensão inteligente de algo:
"Os conceitos ontológicos são a priori no sentido estrito da
palavra". Eles determinam a natureza da experiência. Eles
estão presentes toda vez que algo é experimentado: a priori

elaboração do logos'... do on en on, do ser-enquanto-ser" (id., p. 18);


"ontologia precede qualquer outra abordagem cognitiva de realidade"
(id., p. 20) e "ontologia é descritiva, não especulativa.., é [também]
analítica... buscando descobrir os elementos estruturais que faz um ser
participar no ser". (id. p. 23). Em Religion Biblique et ontologia
escreve Tillich: "A ontologia é a palavra do ser, a palavra que apreende
o ser, desvela sua natureza, e chega a divulgar seu segredo á luz do
conhecimento. A ontologia é o centro de toda filosofia" (Press Univ.
de France, Paris, 1970, p. 17).

85
não significa que os conceitos ontológicos são conhecidos
antes da experiência (TS, p. 144), e "são a priori os
conceitos pressupostos em toda experiência atual, já que
eles constituem a verdadeira estrutura da experiência
mesma" (TS, p. 144; cf. também p. 146).
Desde o início, e até o fim, estamos lidando com a
relação experiencial e suas implicações ontológicas. A
ontologia se explicita no círculo da relação experiencial
fecundada pelo a priori concreto e ontológico. A ontologia
é busca do máximo de concentricidade.23
A experiência é o ponto de partida da questão
ontológica e das condições de recepção da revelação.
Para falar de Deus, a partir ou não da revelação,
temos que dizer o que significa Deus em termos de
experiência. A verdade de Deus como ser não se limita à
experiência, mas é dada na experiência. É uma forma de
"presença" em toda experiência. Não podemos conhecer
Deus fora da experiência.24

23
Máximo de concentricidade: a ontologia procura o máximo de
concentricidade no sentido de que nada é abstraído. O máximo de
concreto é onde o particular ganha o máximo de universalidade no
conhecimento. Opõe-se à abstração onde algo é visto em isolamento ou
alienação do todo. Nesse sentido, muito do que habitualmente é tido
como concreto, como a ação ou o material podem ser apenas
abstrações alienadas do todo. O máximo de concentricidade é
atribuído, por Tillich, por exemplo, a Jesus, o Cristo e o logos feito
carne, a encarnação do universal concreto na história. Todo e parte
alcançaram perfeita integração. As ressonâncias hegelianas são óbvias.
24
Experiência de Deus: Tillich critica a teologia empírica,
especialmente norte-americana que faz da experiência "fonte" da
teologia. Tillich não concorda com a associação da teologia com a
ciência experimental ou mesmo cm ver na experiência a fonte do
absoluto. Experiência, para Tillich, incorpora o exame e a crítica
fenomenológica do século XX e significa algo mais fundamental, pré-
reflexivo e pré-científico. Tillich também não concorda, no outro

86
Tillich dirá, depois de escrever o primeiro volume de
sua TS, que
nós devemos começar com a experiência
(Erfahrung) que o homem faz de sua situação
aqui e agora, e com a pergunta que ele faz sobre
seu fundamento (Grund) e partir daí. Quando
empregamos o método de avançar de baixo para
cima (von unten nach oben), vamos em direção
a uma ideia de Deus, livre de elementos
absurdos, e à concretude que o fundamento
contém em relação à resposta que é dada à
pergunta da existência humana. Deus é, na luz
desta pergunta, o poder do Ser-em-si (Seis-
Selbst) que domina o não-ser (Nicht-Sein), que
supera a alienação que toma conta do ser
humano na an-gústia da finitude, da culpa, da
dúvida, presenteando-nos com a coragem.25
I) A estrutura básica do ser — Tillich analisa e descreve
as condições de manifestação do ser a nós. A estrutura
sujeito-objeto é fulcro da existência onde o ser é dado. O
sujeito da experiência não é só o que conhece. É também
um "self': uma estrutura centrada (Gestalt) que inclui o ego,
o inconsciente e a auto-consciência. O homem é
plenamente centrado e capaz de transcendência. Seu nível
de experiência é capaz de atingir o ser em sua constituição
a priori e ver as condições de experiência, de ação, de

extremo, com o experiencialismo pietista que transforma a experiência


com Cristo ou da revelação na fonte estruturadora da teologia. Por isso,
Tillich critica Wesley, o pietismo continental e o evangelismo por
fazerem da experiência "fonte". A Escola de Erlangen, da teologia
luterana do século passado, é nesse sentido, especialmente criticada.
25
Citado na introdução de W. Schlüssler à la edição de P. Tillich,
Dogmatik — Marburger Vorlesung von 1925, Patmos Verlag,
Düsseldorf, 1986, p. 14; cf. comentário semelhante em TS, p 133

87
direção e destino da história. Por isso, o homem é
originariamente aquele que levanta a pergunta ontológica
(p. 145). Heidegger chama o Dasein, o lugar de
manifestação do ser. Para Tillich o homem é o lugar do
"choque ontológico". No choque ontológico o ser humano
experiencia a ameaça do não-ser (p. 98). A questão do ser é
produzida pelo choque do não-ser no homem (p. 159).
Ainda na estrutura ontológica básica está incluída a
correlação Eu-mundo. "A interdependência do eu e do
mundo é a estrutura ontológica básica. Ela implica em
todas as outras." (p. 147) Fenomenologicamente o Eu é
inseparável do mundo e mundo é inconcebível sem "eu".
Como eu (self) o ser humano transcende o mundo (mundo
não é para o homem apenas habitat, mas é sua casa que ele
transforma em ambiente humano). Mundo acaba
transformando-se na experiência humana numa concepção
da vida, de liberdade, de história, de destino.
II) Os elementos do ser constituem o nível em que as
unidades experienciadas ganham seu ser. Tillich inclui
nesse nível as polaridades individualização-participação,
dinâmica-forma, liberdade-destino.
III) O terceiro nível é, segundo Tillich, o que é
específico da existência. Nesse nível, o do ser humano, as
categorias fundamentais são as de finitude (e do choque do
não-ser) e a de transcendência. A tensão entre finitude e
transcendência é a tensão existencial provocadora da
angústia e da queda. A tensão existencial entre ser e não-
ser, entre essência e existência, entre a possibilidade
essencial e a distância da realidade existencial caracteriza a
queda e a culpa.

88
IV) O quarto e o último nível é aquele que trata das
categorias gerais do conhecimento dos seres finitos. São as
categorias de tempo, espaço, causalidade e substância.
Não podemos entrar na análise da validade destes
conceitos ontológicos tillichianos. Percebe-se que se trata
de uma construção e síntese da ontologia existencial com
elementos de ontologia aristotética. Mas o que nos parece
mais importante observar, dentro daquilo a que nos
propomos, é que não temos na TS uma ontologia
plenamente desenvolvida. Esta ontologia fundamental é
correlativa com um tipo de preocupação com o ser que
alcança, além da infinitude, a pergunta sobre Deus. Essa
progressão do pensar provocou algumas críticas de alguns
filósofos, que não sintonizaram a direção e limitação
própria da ontologia tillichiana na estrutura de uma
Teologia Sistemática.
Em todos os níveis e categorias ontológicos a
pergunta pelo ser em suas características existenciais é a
pergunta por um fundamento que transcende essas
categorias e polaridades. "Categorias são as formas pelas
quais a mente percebe e configura a realidade." (p. 164) O
choque existencial do não-ser implica a pergunta pelo
fundamento do Ser. A ontologia desemboca no mistério do
ser. O ser-em-si mesmo é a pergunta ontológica central.
Todos os conceitos que implicam a pergunta por Deus são
de fundo ontológico: o Ser, o Ser-em-si (being-itself),
Fundamento do Ser (ground of being) e preocupação última
(ultimate concern) e mesmo "Deus". Todos estes conceitos
nascem e recebem conteúdo a partir da experiência
ontológica.

89
Antes da resposta teológica, as considerações
ontológicas levantam existencialmente a pergunta por
Deus. Não só levantam a pergunta por Deus, mas, segundo
Tillich, a própria pergunta implica a afirmação e
reconhecimento de Deus como ultimidade ontológica ou
preocupação última. Tillich retoma o argumento
ontológico 26 não como argumento, mas corno
conhecimento de que Deus é dado na experiência
ontológica mesma. A clarificação da experiência
fundamental implica a ideia de Deus. Pensar o
Fundamento do Ser é já a experiência de uma presença
ontológica que transcende as nossas categorias. É a
experiência de não estar sozinho no reconhecimento do
mundo. Elucidar a experiência ontológica implica ir em
direção à fonte, mesmo que ela seja transcendente às
categorias que possibilitam o conhecimento ontológico.27

26
Argumento Ontológico: o argumento ontológico de Anselmo a
respeito da existência de Deus pretende ser dedutivo a partir da própria
ideia de Deus, ideia do ser infinitamente perfeito, que implica sua
existência, não podendo ser deduzido do imperfeito. Anselmo fez a sua
apresentação clássica. Tillich defende não a prova, nem o aspecto
dedutivo, mas a sua presença e conexão essencial à ideia de ser. O
fundamento do Ser pode ser apontado e descrito, não provado
dedutivamente.
27
"Transcendência" de Deus: Tillich fala frequentemente da auto-
transcendência como um aspecto do ser ontologicamente perfeito e
espiritual que é o ser humano. Referindo-se a Deus, a metáfora da
transcendência significa a exterioridade da criatura e do ser das coisas
em relação a Deus. Há uma ruptura, uma exterioridade de nossa
consciência e de nosso logos em relação a Deus. Nessa perspectiva é
um erro falar de panteísmo ou panenteísmo a respeito da filosofia de
Tillich. Por outro lado, todas as coisas participam em Deus e o logos
divino é interior a toda criatura. Trata-se, porém, de algo identificado
apenas a Deus enquanto poder criador. Nesse sentido é que Tillich
afirma ser o panteísmo necessário à doutrina cristã. Tillich é dialético.
Não se trata do panteísmo naturalista, nem da imanência de Deus nas

90
A pergunta por Deus é possível porque uma
consciência de Deus está presente na pergunta
por Deus. Esta consciência precede qualquer
questão. Ela não é o resultado do argumento,
mas sua pressuposição... Ele mostra que a
consciência do infinito está incluída na
consciência da finitude do homem. (p. 175)
Após estas considerações que levantam
ontologicamente a pergunta por Deus, entramos no
movimento de pensar de Tillich que passa a considerar
diretamente a realidade de Deus, e que forma a 2ª seção da
parte de "O Ser e Deus" da TS.

2. A nossa experiência e a realidade de Deus

Após colocar os fundamentos ontológicos da questão.


Tillich propõe uma transição para a resposta propriamente
teológica e fundada na revelação. Essa transição ainda é
fenomenológica e tem a ver com a essência da religião e sua
linguagem. Assim como a ideia de revelação tem uma
prévia consideração fenomenológica, também a ideia de
Deus e de religião.28 Já vimos que

coisas, nem do mundo como necessidade divina. É preciso, neste


contexto, preservar a afirmação de Tillich de que Deus é Ser-em-si e
que qualquer categoria ontológica, mesmo a de transcendência
(metáfora espacial), é inadequada para o Ser de Deus. "
28
Fenomenologia em Tillich: Tillich conhece a fenomenologia a partir
da publicação das Investigações Lógicas e de seus colegas
existencialistas. Mas, Schelling, Schleiermacher e Otto são
fenomenólogos. Schleiermacher e Otto já mais metodologicamente. Às
vezes as críticas de Tillich à fenomenologia não levam em
consideração os seus desenvolvimentos posteriores. Quando Tillich
critica fenomenologia em sua incapacidade de levar em consideração o

91
só os que experimentam o choque da
transitoriedade, a ansiedade na qual se tornam
conscientes de sua finitude, e a ameaça do não-
ser, podem entender o que significa a palavra
Deus.
Trata-se agora de descrever esse significado
fundado na experiência que temos
existencialmente desta realidade: qual o sentido
de "Deus"? Ainda estamos no âmbito da
ontologia e da fenomenologia existencial quando
fazemos a pergunta neste contexto.
A descrição, que Tillich propõe, passa pela fórmula
que vê o sentido de Deus como aquilo que preocupa o ser
humano de forma última. "A frase 'estar preocupado de
forma última' (being ultimately concerned) aponta para uma
tensão na experiência humana." (TS p. 180)
De fato, Tillich segue de perto a Schleiermacher. No
fundamental, é a mesma fórmula de Schleiermacher.
Tillich aperfeiçoa a expressão evitando toda e qualquer
interpretação psicologista que tantos estragos fez à
compreensão do pioneiro da teologia moderna. Para
Schleiermacher Deus é a fonte de um peculiar sentimento
de dependência absoluta. Só os melhores intérpretes de
Schleiermacher, como Tillich, viram que a palavra
sentimento tinha uma conotação epistemológica e
ontológica equivalente a "consciência imediata".
Schleiermacher protestou, em algumas ocasiões, contra a

particular histórico e especialmente a "Einmaligkeit" do evento Jesus


Cristo, não considera a pluralidade dos atos intencionais e a possível
intencionalidade do único. O absoluto universal-concreto é assimilável
à fenomenologia husserliana. A fenomenologia crítica que Tillich
propõe não é estranha à fenomenologia como tal. Conforme P. Tillich,
Religionsphilosophie, W. Kohlhammer Verlag, Stuttugart, 1962.

92
interpretação psicologista quer de sua filosofia, quer de sua
teologia. O fundamental é atingir a descrição objetiva do
que é dado na experiência, e é o que fazem Tillich e
Schleiermacher. Onde Schleiermacher diz "sentimento"
(Gefühl) de dependência absoluta (schlechtin, abhängig),
Tillich fala da preocupação última do homem como
experiência ontológica.29
Os nomes ontológicos para a preocupação última,
bem como sua presença necessária na própria estrutura da
preocupação última, são temas comuns e desenvolvidos de
forma que Tillich e Schleiermacher encontram-se muito
próximos um do outro. A radical transcendência de Deus
(TS p. 181, passim) e a dificuldade categorial para falar e
conter a preocupação última no discurso descritivo e
objetivaste moveram Tillich a retomar o tema da
linguagem simbólica tão cara a Schleiermacher. Para
Schleiermacher, Deus está além de nossas relatividades do
conhecimento finito do ser. A linguagem que lhe
corresponde com propriedade é aquela que não se limita ao
conhecimento "objetivo", isto é, a linguagem simbólica.
Ele (Schleiermacher) afirma, muito mais
enfaticamente que o próprio Kant, que todas as

29
Tillich e Schleiermacher: não queremos explicar Tillich por
Schleiermacher. Queremos apenas aproximar os dois maiores teólogos
protestantes enquanto teólogos sistemáticos. Tillich deve ser
compreendido por Tillich. E em muitos pontos corrigiu e clareou
algumas más interpretações de Schleiermacher em leitores atentos,
como Barth, por exemplo. De qualquer modo, não tanto quanto K.
Hamilton, em The System and the Gospel: a Critique of P. Tillich
(1958), consideramos Schleiermacher o pensador mais congenial a
Tillich (Tillich mesmo declarou "Schleiermacher became congenial to
me"). Cf. o artigo de M. Michel, "Tillich, critique et héritier de
Schleiermacher", em Reme d'Histoire et Philosophie Religieuses, v.
LVIII, 1978, n° 1.

93
idéias que transcendem os limites da
experiência.., podem ser ditas como expressão
simbólica de uma experiência feita pelo ser
humano no mais profundo do sentimento
existencial. E estas experiências do sentimento
existencial, essa configuração interna da mente e
o sentimento profundo, que não podem nunca
encontrar plena expressão em palavras, são o que
Schleiermacher viu como a autêntica religião.30
Assim como para Schleiermacher, a linguagem
ontológica do Ser, da consciência do fundamento do Ser,
ou do Ser-em-si, só adquire para Tillich um contorno mais
ou menos preciso através da linguagem simbólica, a forma
de expressão do que é típico ou essencialmente religioso.
Isso aparece claramente em todas as religiões e também na
fé bíblica.
A fenomenologia da religião permite descrever tipos
de experiência e de formações religiosas na história.
Também permite descrever o conteúdo de sentido do que é
especificamente religioso. Nesse ponto, Tillich retoma a
obra de seu amigo R. Otto (O Sagrado).31 Otto, também
influenciado por Schleiermacher, e descreve o sagrado
como o que apresenta as qualidades numinosas do
tremendum et fascinosum. Mas, nesse nível, o sagrado
apresenta um sentido existencialmente ambíguo. O
sagrado, o Santo, é o que nos toca incondicionalmente de
forma absoluta. Mas, a santidade que aparece em coisas,
30
H. Hoffding. History of Modern Philosophv, Macmillan, London,
1924, v. 2, p. 195.
31
Cf. Rudolf Otto, O sagrado — Um estudo do elemento não-racional
na idéia do divino e a sua relação com o racional.. São Bernardo do
Campo, Ciências da Religião/Imprensa Metodista, 1985

94
lugares, pessoas, gestos não é uma santidade imanente. É
transcendente. Quando os "objetos", "pessoas" ou "lugares"
são santificados em si mesmos eles se tornam demoníacos.
A força do santo que se degenera existencialmente em
idolatria é a força que se torna, segundo Tillich, abstrata e
demoníaca.
A fenomenologia da religião chega a estabelecer as
condições de sua manifestação. Tillich acrescenta um
trabalho crítico de estabelecer critérios que garantam a
manifestação do religioso as exigências paradoxais de
concreticidade e transcendência, de particularidade e
universalidade, de existencialidade e essencialidade. Com o
adendo crítico à fenomenologia, Tillich analisa as
manifestações históricas do sagrado, não apenas fazendo a
tipologia delas mas julgando as que mais satisfazem aos
critérios ontológicos de sua manifestação. E segundo
Tillich é a manifestação do monoteísmo trinitário a que
satisfaz as condições e critérios de uma resposta teológica
mais coerente.
Na tipologia fenomenológica Tillich destaca o
monoteísmo trinitário e personalista como o que,
historicamente, responde à questão da santidade do ser-
em-si e de sua historicidade concreta, como uma
possibilidade plena e capaz de garantir a Presença e a
Transcendência divina em meio às dificuldades e
tendências idolátricas humanas! "O problema trinitário é o
problema da unidade entre ultimacidade e concreticidade
no Deus vivo. O monoteísmo trinitário é monoteísmo
concreto: a afirmação do Deus vivo" (TS p. 194).
Os outros tipos de vida religiosa (politeísmo:
universalístico, mitológico, dualístico; monoteísmo:

95
monárquico, místico e exclusivo) e de religião não
satisfazem as exigências de concreticidade, de
transcendência, de ultimidade, e de universalidade.
Apresentam concreções ou muito abaixo ou muito acima
do humano, ou representam concreções de poderes sem
universalidade, ou perdem a transcendência e a ultimidade
em formas ou pessoas que constituem poderes abstratos e
isolados. Ou manifestam uma presença numinosa sem
relação pessoal, ou se limitam demais à ontologia
existencial do pessoal. Tillich entende que a complexidade
e a dimensão paradoxal do monoteísmo trinitário cristão é,
dentro da tipologia, o que melhor satisfaz as características
fundamentais da fenomenologia do sagrado como resposta
à questão do ser.

3. A resposta teológica a partir da auto-


manifestação do Deus trinitário

Deus não é um ser. Nem um ser acima dos outros


seres. Deus não está sujeito a categorias. Como ser-em-si
só pode ser referido simbolicamente. O símbolo não é uma
categoria. É uni sentido cujas raízes vêm do mistério e se
manifesta em alguma forma finita, forma esta que participa
da realidade que a transcende absolutamente. O símbolo é
sacramental: "Se 'Pai' é empregado como símbolo para
Deus, a paternidade é vista em sua profundidade teônoma,
sacramental" (TS p. 203).
Aqui começamos a entrar no universo da revelação
bíblico-cristã. Tillich procura descrever três símbolos que
falam do Deus único e trinitário. Estes símbolos são: a)
Deus como vivente; b) Deus como criador; c) Deus como

96
relação. Por que somente três? A resposta que se impõe é
que Tillich, assim como não pressupõe uma ontologia
completa, também não desenvolve urna doutrina completa
de Deus. Essa é a limitação de urna Teologia Sistemática
em relação a uma dogmática ou urna doutrina da Igreja.
Entretanto, assim como a estruturação ontológica tem
suficiente abrangência da questão de Deus, assim também
a resposta teológica a partir de um, dois ou três símbolos,
tem suficiente abrangência para responder à questão. A
Teologia Sistemática não desenvolve uma simbólica
completa de nossas experiências com a Trindade na
história em nossa vida pessoal. Esta é uma das
incompreensões que levam alguns críticos a manifestarem
uma certa insatisfação com a TS de Tillich.

Deus como vivente


Deus é enfatizado na Bíblia como o vivente. O "Deus
Vivo" é um modo simbólico de falar de Deus (p. 204). A
vida é um modo de ser que atualiza uma potencialidade do
próprio ser. O Deus vivo não é apenas um antropologismo.
A vida tem raízes no mistério do ser e Deus se manifesta
como vivo. Vida para Deus não é uma categoria da
realidade de Deus. É um símbolo que aponta para a
atualidade de Deus em sua manifestação como vivo. A vida
aparece então como sacramento. "(...) todo símbolo
verdadeiro participa da realidade que simboliza. Deus vive
na medida em que é o fundamento da vida" (TS, p. 204)
A vida como símbolo concreto da manifestação
divina, e os antropomodismos que a acompanham como
ação, memória, zelo, alegria, relações pessoais, etc. não se
referem ã vida como realidade biológica nem mesmo em

97
nível humano e/ou superior de vida. O símbolo provém
evidentemente da experiência humana de vida em relação a
sua preocupação última (p. 205)
Mas, ao usarmos "vida" para nos referirmos à auto-
manifestação de Deus na história, não estamos ao mesmo
tempo retomando as categorias ontológicas que estruturam
o ser da vida, como individuação, dinâmica e liberdade
(lado subjetivo da estrutura ontológica) e participação,
forma e destino (lado objetivo da estrutura ontológica)? O
símbolo autêntico é um paradoxo (i. e., supera os limites da
experiência humana ordinária). Como Deus vivo, o Deus
da Bíblia se revela como indivíduo, como pessoa e como
liberdade. Deus é pessoa. Mas, não é uma individuação
finita e uma participação relativa. Deus é absoluto. Deus
não é pessoa se entendemos uma pessoa.
"Deus pessoal" não significa que Deus seja urna
pessoa. Significa que Deus é o fundamento de
tudo o que é pessoal. E que ele traz dentro de si
mesmo o poder ontológico de personalidade.
Ele não é unia pessoa, mas não é menos do que
uma pessoa. (TS p. 206-207)
Assim, o Deus vivo e pessoal da revelação histórica
aponta para Deus visto pelo vivo e pelo pessoal como parte
daquele que é revelado, mas que, corno fundamento de
toda vida e pessoa, está além do vivo e do pessoal. Assim
"vivo" e "pessoal" são símbolos que falam de Deus; como
categorias são insuficientes para conterem Deus.
O ser e a pessoa não são, então, conceitos
contraditórios. O ser inclui o ser pessoal; ele não
o nega. O fundamento do ser é o fundamento
do ser pessoal, e não sua negação. A questão
ontológica do ser não cria um conflito com a
religião bíblica. Ao contrário cria uma base

98
necessária à toda reflexão teórica sobre o
conceito bíblico cio Deus pessoal. Desde que se
comece a refletir sobre o sentido dos símbolos
bíblicos, já estamos no coração dos problemas
ontológicos... O AT e o NT possuem o poder
especial de falar da presença do divino, de tal
maneira que o caráter eu-tu da relação divino-
humana não obscurece jamais o poder e o
mistério transpessoal do divino.32
O Deus vivente não é um símbolo suficiente para
responder ao critério de concreticidade e universalidade. O
Deus vivente deve ser, também, simbolizado por "espírito".
O Deus vivente é também espírito. Como espírito Deus é
visto num símbolo de perfeição e de atualização visando a
perfeição, o telos último de si mesmo. Mas, precisamos
compreender melhor nossa experiência do espírito e o
símbolo aplicado a Deus. "Mas é impossível", escreve
Tillich, "entender o sentido de Espírito se não se entender
o sentido de espírito. Pois Espírito é a aplicação simbólica
de espírito à vida divina". (TS, p. 210)
O sentido de espírito em nossa experiência é de
natureza ontológica. Espírito é a forma mais inclusiva e
abrangente de realidade: inclui a personalidade centrada,
vitalidade auto-transcendente, liberdade. Inclui
participação universal de todas as formas e estruturas de
realidade. Como tal, espirito transcende as dualidades
corpo-mente, ou o trialismo corpo-mente-alma. O espírito
é inclusivo e não paralelo a estas realidades. "Espírito não é
uma 'parte' nem uma função especial" (TS, p. 211). A vida

32
P. Tillich. Religion Biblique et Ontologie, PUF, Paris, 1970, p. 76-
77.

99
espiritual só pode ser encontrada no ser humano: "Só nele a
estrutura do ser está completamente realizada" (TS, p.
211).
"Deus é Espírito" é "o símbolo inclusivo para a vida
divina" (TS, p. 211). Nesse sentido não podemos atingir a
universalidade de Deus somente com o símbolo "vivente".
Deus como Espírito une o poder com o sentido último.
Deus é Deus vivente porque é também Espírito. O Deus
vivo é um pólo ou um momento da presença e revelação de
Deus que só atinge plenitude quando o símbolo do
Espírito revela à nossa experiência a plenitude divina.
Entretanto, Deus-vivente e Deus-Espírito, ainda que
presenças na realidade vivida e experienciada por nós na
natureza e na história, não apresentam ainda a concreção, a
concreticidade mesma da criação atualizada. É na
concreção que Deus se revela na plena presença trinitária.
Jesus, o Cristo é o centro da afirmação Trinitária. Logos é
uma palavra grega, cujo sentido não é só de inteligência. O
logos é uma experiência que vê a estrutura ontológica da
realidade. Se o Espírito é a simbolização da plenitude de
Deus em si-mesmo, o logos é a simbolização da estrutura
do ser em Deus. No logos o mundo aparece em sua raiz
última e divina. "No logos Deus pronuncia sua palavra tanto
em si mesmo, quanto para além de si." (TS, p. 211) Se o
Espírito é a presença divina vista em sua plenitude
atualizadora do divino, o logos é a presença divina
atualizada. A concreção máxima de Deus é o logos. O logos
está presente na estruturação divina da criação, bem como
na concreticidade máxima da história: Deus aparece
encarnado numa pessoa, num tempo, como parte de um
grupo humano. "O verbo se fez carne..." A compreensão

100
deste evento é o centro mesmo da teologia e da Teologia
Sistemática.
Assim devemos concluir a abordagem de Tillich de
Deus como vivente, relacionando o vivente com o Espírito
e com o logos. Não é possível falar de Deus e da "vida
divina" sem incluir a universalidade atualizadora do
Espírito.

Deus como criador

A vida divina está relacionada à criatividade. A


criatividade é própria da "asseidade" (i. e., seu ser é
inteiramente contido em si mesmo, nada condiciona sua
liberdade; significa também que nada há em Deus que não
seja afirmado pela sua liberdade; cf. TS, p. 209).
Tillich vê a criatividade como uma relação básica
entre Deus e o mundo. Essa relação pode ser expressa
simbolicamente com a referência a Deus como criador do
mundo, seu mantenedor e seu fundamento diretivo.
O Deus criador originante é expresso classicamente
pela fórmula creatio ex nihilo. Essa fórmula cristã afirma
que: a) o mundo tem origem em Deus e só em Deus; b) o
mundo é uma relação de ser e de não-ser; ou, de outro
modo, o ser do mundo é condicionado pelo não-ser da
existência e criaturalidade que implica não-ser; c) o não-ser
da criatura não é o não-ser trágico, mas o não-ser
dependente do criador.
A fórmula creatio ex nihilo não afirma nenhum
começo mítico do mundo. Afirma o modo de relação de
Deus com o mundo. O alfa e o ômega não são

101
formalidades temporais mas eventos ontológicos. De certo
modo, a interpretação de Tillich da fórmula creatio ex nihilo
é uma relação ontológica da doutrina da criação; ou é a
visão da criação sem o quadro mítico tradicional. "A
fórmula creatio ex nihilo não é o título de uma história. É a
fórmula clássica que expressa a relação entre Deus e o
mundo". (TS p. 214)
O processo criativo "precede" às polaridades
essência-existência, sujeito-objeto, e outras. A precedência
não é temporal, mas ontológica. "O mistério do ser que
está além da essência e da existência está escondido no
mistério da criatividade da vida divina". (TS p. 215)
Neste ponto Tillich trata de uma de suas teses mais
polêmicas e mais difíceis. Trata-se da questão do "ponto no
qual criação e queda coincidem" (TS, p. 215). Tillich
mesmo o reconhece: "É o ponto mais difícil e mais
dialético da doutrina da criação" (idem). Segundo R.
Niebuhr, Tillich funde as duas narrativas da criação numa
única perspectiva ontológica.
Tillich vê a criação em dois níveis: um "dentro" e um
"fora" da vida divina. 'Dentro' e 'fora' são símbolos
espaciais. Mas o que eles dizem não é espacial. Eles se
referem a algo qualitativo e não. quantitativo" (TS, p. 215).
A criação dentro da vida divina é a queda enquanto criação
atualizada esperando plenificação na liberdade criatural.
Esta "queda" do ser não tem nenhuma implicação yloral,
enquanto não for atualizada pela liberdade da criatura. A
liberdade da criatura é atualização "fora" da vida divina.
Tillich vê a criação na união destes dois níveis de
criaturalidade: "O ponto no qual criação e queda coincidem
é tanto uma questão de destino quanto uma matéria de

102
liberdade... É a atualização da liberdade ontológica unida
ao destino ontológico" (TS, p. 215).
Tillich interpreta a criatividade humana (em relação
a si, ao mundo, ao sentido etc.) em oposição à criatividade
divina. "Deus é primária e essencialmente criativo; o
homem é secundária e existencialmente criativo. E, além
disso, em todo ato de criatividade humana, é efetivo o
elemento de separação do fundamento criativo. A criação
humana é ambígua" (TS, p. 216).
Tillich quer dizer que o homem é secundariamente
criativo a partir de um material dado. Ele "cria" novas
sínteses. "Esta criação é de fato transformação." (p. 216) O
homem ao criar coloca-se "fora" da criatividade divina. Por
isso, "a criação humana é ambígua". A vida criadora no
nível humano atinge um nível diferente de queda e de
ambiguidade. A vida é liberada dos reinos orgânicos e
inorgânicos e é interpretada dentro do sistema teológico
"em termos existenciais" (TS, p. 394). É nesse nível que a
ambiguidade da criação é experimentada(vida que se nutre
na luta e na morte, nascimento que é já começo de morte
etc.) e onde a ambigüidade atualizada na liberdade humana
se torna queda num outro nível, com sentido moral e com a
experiência da culpa. É nesse nível que a vida aspira à vida
sem ambigüidade de forma consciente. Todas as criaturas
anseiam por uma realização não-ambígua de suas
possibilidades essenciais; mas, somente no homem, como
portador do espírito, as ambiguidades da vida e a busca da
vida sem-ambigüidade se tornam conscientes. O
simbolismo bíblico fornece símbolos fundamentais de vida
sem-ambiguidade ou onde a ambiguidade é superada.

103
Quanto ao ser humano, criatura de Deus, Tillich
aborda alguns aspectos importantes. O homem possui um
eu completo: é liberdade num mundo completo. O homem
transcende a si e ao mundo como totalidade dada. O
símbolo que se refere teologicamente a Deus e a si mesmo
é o da "imagem de Deus". Essencialmente vista a expressão
simbólica é o de uma relação entre Deus e o homem que
tem sido interpretado de maneira muito diversa. Sem
necessariamente implicar a queda, ou uma bondade
original, o símbolo imagem de Deus afirma que o homem
é ontologicamente completo. Não se trata de nenhuma
função especial. A imagem de Deus aponta para o dado
ontológico que seu logos é análogo ao logos divino. Assim
Deus pode aparecer como homem sem destruir a
humanidade do homem (TS, p. 218). Isto quer dizer que o
homem não é o criador originário, mas que está ligado ao
logos da criação e em comunhão consciente com a estrutura
do ser. "O homem é a criatura na qual os elementos
ontológicos são completos" (TS, p. 218). O homem é um
"self' com transcendência. Ontologicamente completo não
quer dizer existencialmente perfeito.

Deus como relação e a linguagem simbólica

A resposta teológica à questão do ser tem na relação


seu símbolo mais abrangente. "Deus como ser-em-si
(being-itself) é o fundamento (ground) de toda relação. Em
sua vida todas as relações estão presentes, além das
diferenças entre potencialidade e atualidade. Mas não são
as relações de Deus com algo diferente. São as relações

104
internas da vida divina (...) Mas, a questão é se existem
relações externas entre Deus e a criatura (...) Se afirmamos
que Deus está em relação, esta afirmação é tão simbólica
quanto a afirmação de que Deus é um Deus vivo" (TS, p.
227).
Essa citação de Tillich é a resposta à questão
levantada pela constatação de que todas as categorias
ontológicas são modos de relação ontológica. Assim,
"relação" é a categoria ontológica básica (TS, p. 227),
subjacente a todas as outras.
Deus aparece em diferentes formas de relação,
especialmente as da revelação. Mas, não exclusivamente.
Mas, Deus é inacessível às nossas relações eu-mundo e
sujeito-objeto. Essas relações são constituídas
"externamente" às relações "internas" de Deus com a
criação. Deus não pode ser "arrastado" para dentro da
relação cognitiva sujeito-objeto (TS, p. 228).
Aqui temos um dos exemplos mais agudos da
metodologia de Tillich. Deus está em relação com o todo.
Mas o eu do ser humano constitui-se externamente a essa
relação enquanto consciência. A nossa experiência do Ser e
de Deus é uma experiência dessa constituição externa e
duplamente decaída de seu fundamento essencial, como
destino e como liberdade.
A linguagem ontológica é, nesse sentido, marcada
pela auto-alienação e exterioridade. Em certo sentido,
somos exteriores às nossas próprias relações. Conhecemos
as relações e estruturas essenciais, conhecemos essências e
categorias. Mas, nosso conhecimento sofre da
exteriorização do fundamento. (The Estrangeness of Subject
and Object, ST, p. 95; TS, p. 86)

105
Tillich oferece então uma extraordinária e importante
face de seu pensamento. A correlação da linguagem
simbólica das religiões, e muito particularmente da Bíblia,
com as categorias da experiência ontológica são duas
formas de buscar a superação do radical "estrangement" que
se ajudam mutuamente, uma a elucidar a outra. É magistral
o modo pelo qual Tillich toma os símbolos bíblicos e suas
situações originárias e os aproxima da experiência
ontológica e suas categorias. Não é o lugar de discutirmos a
concepção tillichiana de símbolo.33 Mas a correlação entre
ser e Deus é exemplar para vermos, ainda que apenas numa
pequena amostra, como a experiência do Deus da Bíblia e
sua linguagem simbólica se correlacionam com o Deus do
filósofo e sua linguagem ontológico-existencial e como
uma ilumina a outra. Especialmente a linguagem simbólica
da Bíblia é vista em sua profundidade participativa em
Deus e no Ser, mas depurada de suas aderências
supersticiosas e em alguns casos, absurdas.
Assim, por exemplo, os símbolos que falam da
transcendência divina são "majestade" e "glória". Estes
símbolos são fundamentais quando dão uma dimensão
maior do amor e poder divinos. Como expressão de louvor,
majestade e glória são atos pelos quais o ser humano
reconhece também que é parte, ainda que externa, pela sua
consciência, de Deus. Majestade e glória são símbolos que

33
Símbolo em Tillich: o conceito de símbolo é fundamental para o
pensamento teológico, segundo Tillich. Toda linguagem teológica é
simbólica. Esse conceito é tratado especialmente no capítulo 3 de
Dynamics of Faith. Para uma apresentação crítica cf. The Theology of
Paul Tillich, C. K. Kegley e R. Bretall (eds), Macmillan, New York,
1952. Outros estudos: R. F. Aldwinkle, "Tillich's Theory of Religious
Symbolism", Canadian Journal of Theology, v. X, n° 2, 1962.

106
relacionam a transcendência divina às categorias
ontológicas. O "poder de Deus" é também o conteúdo
simbólico da preocupação última como fundamento capaz
de vencer o não-ser. Como primeiro tema do credo cristão,
o "Deus Pai Todo-Poderoso" dá ao ser-em-si o poder
oniabrangente sobre todas as relações e realidades possíveis,
de sustentar o ser criativo e de resistir e vencer o não-ser
Segundo Tillich, a fé no Deus Todo-Poderoso é base da
coragem que conquista. a ansiedade e a finitude. "Coragem
última se baseia na participação no poder último de ser"
(TS, p. 229).
"Eternidade" é um símbolo eminentemente religioso
(não um conceito filosófico) (TS, p. 229). É a participação
no divino onitemporal que dá coragem para enfrentar a
ansiedade temporal. Eternidade é o poder do Deus Eterno
que supera o não-ser temporal. "Eternidade", adverte
Tillich, "não é nem ausência de tempo, nem tempo sem
fim" (TS, p, 230). Tampouco é simultaneidade. A
eternidade inclui o tempo; a temporalização é possível na
eternidade. De certo modo, o tempo contém em si a
eternidade como símbolo. O tempo participa na
eternidade. Nesse sentido, Tillich lembra que nem mesmo
Platão conseguiu excluir a temporalidade da eternidade e
que o grande filósofo grego chamou o tempo "urna
imagem móvel da eternidade" (TS, p. 230). Eternidade não
é ausência de tempo. Eternidade corno supressão do tempo
ou como infinitude do tempo é um mito que deve ser
iluminado e corrigido pela estrutura ontológica a fim de
que o seu sentido verdadeiro apareça.
A exemplo de "eternidade" outros símbolos de
transcendência última configuram o sentido de "Deus":

107
onipotência, onisciência, onipresença etc. Estes símbolos
expressam a transcendência divina em relação à auto-
transcendência humana na criação. Outros símbolos
expressam a transcendência divina em analogia com as
relações entre pessoas. São símbolos como amor, Senhor,
Pai etc. (TS, p. 239).
"Amor é um conceito ontológico" (TS, p. 234). Por
que Tillich não faz a mesma observação a respeito dos
outros símbolos que expressam a realidade divina? De fato,
todo símbolo que expressa o divino tem uma correlação
ontológica. Expressam o mistério do ser e o mistério de
Deus. Os outros símbolos têm também alcance ontológico,
mas a particularidade do símbolo "amor" deve-se à
distinção do amor enquanto conceito ontológico oposto ao
sentimento ou emoção que leva esse nome. A Bíblia
assinala a distinção semanticamente ao falar, quase que
exclusivamente, do amor divino como "ágape" em oposição
aos termos "éros" e "philia" (TS, p. 234). O "ágape" divino é
o fundamento divino de todas as manifestações amorosas
da criação.
O "ágape" inclui a justiça como um aspecto
fundamental de relacionar-se. Não é possível "ágape" sem
justiça. E justiça sem "ágape" é uma queda da justiça às
suas formas retributivas e destrutivas. Tillich trata, de
forma aguda, das relações entre poder, justiça e amor,
ontologicamente, na pequena obra-prima que leva o título
Love, Power and Justice (1953). A justificação divina das
relações com o ser humano é "a expressão final da união
entre amor e justiça em Deus" (TS, p. 238).
O amor de Deus, por iniciativa inclusiva de Deus,
voltado para o ser humano e seu destino último é

108
denominado biblicamente "a graça de Deus". A graça
divina é criadora, preveniente (preparação para a aceitação
da fé) e salvadora.
A relação entre símbolos que expressam a
transcendência divina é fundamental. Um símbolo que
acentua apenas um aspecto, usado de forma a excluir outras
expressões simbólicas, corre o risco de demonização da
relação (TS, p. 239). É o caso, por exemplo, do símbolo
Senhor (e os símbolos associados ao Senhorio, como Rei,
Juiz, Criador etc.) invocado, sem incluir os símbolos que
apontam para o amor e a misericórdia como Pai, Filho,
Irmão (Cristo) e que já apontam para a importância central
da cristologia.

109
CONSIDERAÇÕES SOBRE ÉTICA NO
PENSAMENTO DE PAUL TILLICH

Dr. Eduardo Gross 34

1. Partindo do exemplo: a reflexão política como


tema ético

Paul Tillich não é um pensador que tenha se


especializado em ética. Nem seus escritos sobre filosofia da
religião, nem seus escritos teológicos se propõem como
tarefa uma sistematização da ética. Ainda muito menos
podemos encontrar em sua obra orientações para uma vida
virtuosa. Com certeza não é nessa direção que podemos
encontrar contribuições suas para este âmbito da reflexão,
seja filosófica, seja teológica. Utilizando a terminologia
kantiana, podemos dizer que a pretensão teórica da
perspectiva tillichiana é preponderante em relação à sua
pretensão prática.
Por outro lado, é também evidente que a reflexão
teórica de Tillich não significa uma simples abstração.
Trata-se de uma reflexão teórica profunda que
simultaneamente dialoga de modo genuíno e constante

34
Doutor em Teologia pela EST-RS; professor do Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião da UFJF.

111
com as mais diversas situações de seu tempo e propõe
indicações valiosas a respeito de como uma compreensão
racionalmente fundamentada, incluindo nessa
compreensão a tradição religiosa, interage com a
necessidade humana de tomar decisões práticas em sua vida
concreta. O seu método da correlação, explicitado na Teologia
Sistemática, é a suma desta conjugação no âmbito
intrinsecamente teórico. Mas este mesmo método poderia
ser considerado um nome adequado também para a inter-
relação entre a sua reflexão teórica pura e as suas indicações
práticas.
Para exemplificar isto no âmbito desta introdução
ao tema da ética no pensamento de Tillich, demos uma
olhada na trajetória de seus escritos sobre a situação
política. Embora não se possa reduzir estes escritos a
considerações éticas, evidentemente eles também não
podem ser compreendidos simplesmente como ensaios de
filosofia ou teologia política, no sentido de reflexões
puramente teóricas e objetivas sobre a questão política. Há
uma motivação ética presente ali, uma motivação que por
sua vez impulsiona a busca por compreensão (cf.
organização das Main Works de Tillich, em que se optou
por juntar num mesmo volume os escritos sobre ética e
sobre política).
Inicialmente, no período entre a Primeira Guerra
Mundial e a Segunda, encontramos vários textos
significativos em que ele aborda o tema do socialismo
religioso. Neles se percebe uma recusa da ordem política
tradicional a partir do diagnóstico de que esta não responde
mais às necessidades da época e às exigências que
especialmente a classe proletária coloca. Por outro lado,

112
estes escritos não manifestam uma intensão meramente
propagandística. Eles ao mesmo tempo apresentam análises
críticas do movimento socialista em geral e do movimento
do socialismo religioso em particular. Tillich rejeita como
ultrapassada a ordem monárquica recém abolida na
Alemanha, mostra a insuficiência da concepção liberal
formal da democracia burguesa e aponta a carência de
valorização dos elementos simbólicos tradicionais por parte
do movimento socialista (cf. os símbolos da terra, da pátria,
do povo, da religião). Trata-se, assim, de uma reflexão de
cunho teórico, mas ao mesmo tempo de uma tomada de
posição pessoal que é ao mesmo tempo um convite a uma
orientação prática na vida do seu tempo.
Num segundo momento, em seu exílio nos Estados
Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, e também
depois de sua naturalização como cidadão estadunidense, a
reflexão teórica contra o totalitarismo político - primeiro
nazi-fascista e também stalinista - se combina com uma
atuação prática exemplificada de modo mais forte em sua
participação na propaganda anti-nazista irradiada para a
Alemanha através da rádio Voz da América. É claro que o
próprio Tillich era uma vítima do regime totalitário, e é
claro que ele sentia com dor a queda de seu próprio povo
nesse mundo obscuro representado pelo nazismo. Mas
também está presente a noção do dever de combater esta
realidade opressora, ao invés de simplesmente fugir dela. A
sua atitude pessoal se dá através da reflexão, mas trata-se de
uma reflexão que diz respeito à situação da vida e ao dever
de se contrapor à tirania para resgatar os elementos
positivos da tradição cultural civilizada que está em perigo.
De forma análoga deve-se considerar seu juízo sobre o

113
coletivismo stalinista. Ele afirma: "Em renunciando a si
próprio, pela causa do coletivo, êle [o indivíduo na
sociedade coletivista] renuncia ao que nêle não está
incluído na auto-afirmação do coletivo: e isto êle não supõe
ser digno de afirmação." (TILLICH, 1976, p. 77). Ou seja,
a acomodação ao coletivo significa a negação da própria
individualidade pessoal. Ao mesmo tempo que isto é uma
análise teórica, é também uma indicação prática. Esta
perda da individualidade é um erro que deve ser
combatido, pessoal e socialmente. E ainda de modo
semelhante se mostra a crítica de Tillich à sociedade
consumista e impessoal em que ele está inserido nos
Estados Unidos. Os três ambientes sócio-políticos são
matéria de análise que revela o vazio de sentido que neles
se manifesta e a busca vã de substituir este vazio com a
renúncia de si diante da coletividade, seja ela simbolizada
pelo povo, pela classe ou pelo consumo. Mas esta análise é
sempre simultaneamente um diálogo com a prática e um
convite a uma reorientação.
Por fim, há ainda os textos em que Tillich reflete
sobre a reconstrução alemã e sua herança cultural após a
Segunda Guerra Mundial. De novo, a análise feita
pressupõe a convivência com os demais exilados na
associação destes que Tillich inclusive chegou a presidir,
pressupõe as expectativas de rever antigos amigos separados
pela guerra e pressupõe a ideia de que a tradição cultural
alemã não deve ser perdida. Por outro lado, também
pressupõe o reconhecimento das marcas que a associação
alemã ao nazismo deixaram. Evidentemente, a tentativa de
resgate da identidade cultural alemã, em contraponto a
propostas que iam na direção da supressão da nação,

114
manifesta um desejo pessoal. Mas também manifesta a
defesa da necessidade de manutenção de uma cultura
apesar dos erros de seu povo. Por outro lado, a assunção
pessoal da culpa coletiva, mesmo tendo sido uma vítima do
nazismo, mostra como Tillich compreende a interação
indissociável entre a personalidade individual e o grupo
cultural de que faz parte. Também isto é análise teórica
feita em diálogo forte com a dimensão prática em vista de
determinado posicionamento.
Estes exemplos introdutórios visam ilustrar como a
reflexão teórica de Tillich não é uma abstração divorciada
do mundo da vida. Eles servem para indicar como, pelo
contrário, suas reflexões se dão em diálogo com a vida
prática e como elas convidam a determinada atitude. É a
partir deste entendimento de fundo que devem ser
compreendidas também as considerações sobre as
discussões teóricas que se seguem.

2. Ética, filosofia e religião

2.1. A moralidade formal universal enquanto imperativo


incondicional
A concepção de Tillich a respeito de religião - e de
fé - está baseada no conceito de incondicional. Antes de
religião ser uma realidade social ou institucional, ela é uma
qualidade de toda a realidade. Uma das metáforas mais
usadas por ele para apresentar esta qualidade do que é
incondicional é a de "profundidade", como oposta à
simples "superficialidade". Aquilo que tem caráter
incondicional, o que é profundo, remete ao fundamento e
ao abismo de tudo o que é, e, nesse sentido, manifesta

115
ultimacidade ou sacralidade. O que é penúltimo,
transitório, superficial, por mais que seja sócio-
historicamente identificado com o religioso, não é
essencialmente religioso.
Como a qualidade incondicional se encontra nos
mais diversos âmbitos da vida, ela também se encontra no
âmbito da moralidade. Princípios ou valores não são
religiosos em virtude de alguma revelação direta, mas à
medida que representam a incondicionalidade do dever.
Então, quando se discute a relação entre ética e religião não
se trata nunca de descobrir quais seriam os princípios ou as
normas de uma ética religiosa, mas se trata em primeiro
lugar de apontar para o fato de que a dimensão de
incondicionalidade que embasa a atitude moral é em si
mesma uma manifestação religiosa - por mais distante que
tal atitude possa estar de uma vivência explicitamente
religiosa. É por isso, também, que a tentativa de
relativização completa das normas morais é rejeitada por
Tillich.
Pode-se, certamente, descartar qualquer
conteúdo particular em favor de um outro, mas
não se pode descartar o próprio imperativo
moral sem a auto-destruição da natureza
essencial de si e do relacionamento eterno
consigo. Por estas razões, as tentativas de minar
o caráter incondicional do imperativo moral por
argumentos psicológicos e sociológicos estão
fadadas ao fracasso.35

35 "One can, of course, discard every particular content for the


sake of another, but one cannot discard the moral imperative itself
without the self-destruction of one's essential nature and one's eternal
relationship. For these reasons, the attempts to undercut the

116
Isto é assim porque as tentativas de explicação da
moral pelas perspectivas da psicologia ou da sociologia,
dentre outras ciências, se referem somente ao caráter
exterior da moral. Evidentemente que neste âmbito da
exterioridade, tais ciências não deixam de ter razão e de
contribuir para explicar os fatores condicionantes da
expressão da moralidade. Entretanto, tais explicações não
podem fazer jus ao caráter de incondicionalidade que a
moralidade pressupõe. Exemplificando: Explicações
sociais, históricas ou psicológicas da moral podem dizer por
que um povo ou grupo considera algo moralmente correto
enquanto outro o considera incorreto. Entretanto, tais
explicações não alcançam a dimensão da
incondicionalidade - a afirmação de que o que é correto é o
que deve ser realizado. Por isso, por mais que haja verdade
nas explicações exteriores da moralidade, não se pode
limitar sua compreensão a esta exterioridade, sob pena de
fazer naufragar a própria possibilidade da ética.
Contrapondo-se a esta noção para ele superficial,
Tillich afirma que a incondicionalidade ética manifesta o
imperativo de se realizar aquilo que é a essência humana.
Para ele, apesar da alienação em que o ser humano vive em
relação à sua essência, é justamente esta alienação que
revela o dever de se realizá-la. Trata-se de uma concepção
dramática do ser humano que tem origem na concepção
cristã expressa no mito da queda. Para Tillich, o ser
humano histórico sempre é ser humano caído, pecador, na
linguagem cristã. O mito da queda, entretanto, expressa o
fato de que este não é o estado essencial do ser humano.

unconditional character of the moral imperative by psychological and


sociological arguments must fail." (TILLICH, 1963, p. 27).

117
Assim, a realização do bem é simultaneamente uma
impossibilidade (ao menos em plenitude) e um dever. Mas
o mais importante é que a existência do mito da queda
expressa o reconhecimento de que a natureza essencial do
ser humano não é má. Essencialmente, o ser humano é
expressão da criação bondosa de Deus; historicamente é
que ele se encontra alienado desta sua essência. É por isso
que a incondicionalidade da lei moral expressa o dever de a
pessoa realizar aquilo que é sua essência, ser manifestação
desta boa criação divina.
Isto que Tillich expressa através da linguagem
simbólica da tradição teológica cristã se relaciona com a
elaboração kantiana sobre a moral, tomada como um ponto
de partida - embora não assumida em sua configuração
sistemática como suficiente. A moral não é vista como uma
lei externa, como algo que se contrapõe à pessoa, mas, pelo
contrário, é ela que mostra a realização do que é a própria
personalidade humana (TILLICH, 1963, p. 20). Isto é
assim porque a lei moral é expressão da racionalidade
humana. Fazer o que é correto é utilizar a razão de tal
modo que se descubra a lei moral em seu valor universal. É
deixar de lado os desvios que os próprios interesses
interpõem à realização do bem e se guiar pelo que pode ser
bom em si mesmo. Assim, ao afirmar que a lei moral
manifesta o caráter de incondicionalidade, Tillich está
tomando como ponto de partida, num primeiro momento,
a teoria kantiana da moral. Indicação disto é também o fato
de que ele relaciona a lei moral com o ideal da
personalidade. Ser pessoa significa assumir o fato de que é
a lei moral racional que deve ser o princípio da conduta
humana. Desviar-se da lei moral, negar a sua

118
incondicionalidade, significa antes de mais nada uma
traição a si mesmo. Quando se conduz pelo seu interesse
particular, em vez de pela norma racional universal, a
pessoa nega a sua própria racionalidade, e isso é traição a si
mesma.
Entretanto, apesar de subscrever num primeiro
momento esta concepção kantiana da moral, Tillich
também afirma constantemente a sua limitação. Para ele,
esta limitação se encontra no fato de que este princípio
formal kantiano precisa se adequar a conteúdos específicos.
A elaboração kantiana é, em princípio, irrenunciável,
justamente porque é ela que manifesta a dimensão de
incondicionalidade que é intrínseca à moralidade.
Entretanto, seu caráter formal precisa sempre se realizar
historicamente, ou seja, precisa se manifestar num
conteúdo ético. Voltando à exemplificação com a
linguagem teológico-religiosa, a lei moral expressa o que a
ética essencialmente deve ser. Mas a existência humana sob
o estado de alienação de sua essência implica igualmente
que é inevitável que haja uma mediação entre esta exigência
essencial e a realização concreta do bem. É a partir disso
que se pode compreender a proposta que ele faz no sentido
de se estabelecer princípios mediadores da justiça.
Com base em uma ontologia do amor é óbvio
que o amor é o princípio da justiça. Se a vida
enquanto a realização do ser é essencialmente o
impulso em direção à reunião do que está
separado, segue-se que a justiça do ser é a forma
que é adequada a este movimento. Os seguinte
princípios derivados do princípio básico

119
medeiam entre este e a situação concreta em que
o risco da justiça é exigido.36
São então quatro os princípios que ele propõe para a
realização desta mediação: Adequação da forma ao
conteúdo, equanimidade (a universalidade da aplicação da
lei), liberdade pessoal e comunidade (TILLICH, 1954, p.
57-62). O segundo e o terceiro princípio em nada diferem
da reflexão moral kantiana, em princípio. Entretanto, o
primeiro e o quarto representam um tipo de
complementação. Mesmo que o próprio Kant de certo
reconheceria a necessidade de aplicação da lei moral ao
caso concreto - sem o que ela não se aplicaria nunca - o
termo "adequação" possivelmente causaria a suspeita de
contaminação da pureza da lei moral pela inclinação aos
interesses individuais. Para Tillich, entretanto, a realidade
concreta do estado de alienação em relação à própria
essência humana torna inevitável este processo de
adequação. O quarto princípio mediador, o da
comunidade, também representa uma complementação à
concepção kantiana à medida que esta tinha sido formulada
primordialmente a partir de uma reflexão subjetiva ideal.
Evidentemente que também em Kant se pode dizer que ele
busca o bem universal de toda a comunidade humana, isto
é claro. Mas a questão é que Tillich ressalta o fato de que
as implicações comunitárias da aplicação da lei moral são

36 "On the basis of an ontology of love it is obvious that love is


the principle of justice. If life as the actuality of being is essentially the
drive towards the reunion of the separated, it follows that the justice of
being is the form which is adequate to this movement. The further
principles to be derived from the basic principle mediate between it
and the concrete situation in which the risk of justice is demanded."
(TILLICH, 1959, p. 57).

120
um princípio mediador necessário, uma vez que uma
aplicação cega da lei moral universal pode impedir ao invés
de promover a realização do bem.
Percebe-se, assim, na reflexão sobre ética em Tillich
uma clara kantiana, que é adaptada em pontos
fundamentais a partir de críticas que mesmo antes de
Tillich outros pensadores formularam a respeito da
elaboração original de Kant. Ao mesmo tempo, há em
Tillich uma vinculação explícita desta base com a
linguagem teológico-religiosa cristã tradicional. Esta
vinculação também não está ausente do próprio texto
kantiano: não é por acaso que é na sua filosofia prática que
se encontram os postulados da existência de Deus e da
imortalidade da alma, e que assim a religião é concebida
por ele como o lugar de expressão da esperança pela
realização completa do bem que na existência concreta não
se alcança. Mas esta presença importante e
simultaneamente enfraquecida da religião da reflexão
kantiana é reformulada por Tillich com o acento no caráter
dramático que ele percebe na existência humana a partir de
sua tradição cristã e particularmente luterana. Em Tillich,
o limite para a realização do bem em função da alienação
existencial em que se dá a vida implica em culpa que é
vivida com angústia. A superação deste estado de culpa
angustiante não está para ele nem na confiança irrestrita na
racionalidade e nem na afirmação absoluta da subjetividade
livre, mas na afirmação paradoxal de que tal superação não
depende da própria subjetividade livre individual, mas do
reconhecimento de que esta superação é uma dádiva. Em
linguagem teológica cristã, que ela é expressão de graça. Na
formulação do próprio Tillich, isto se expressa assim:

121
Pode-se dizer que a coragem de ser é a coragem
de aceitar-se como sendo aceito, a despeito de
ser inaceitável. Não se precisa lembrar aos
teólogos o fato de que êste é o genuíno
significado da doutrina paulino-luterana da
"justificação pela fé". [...] Isto, contudo, não
significa aceitação de si como si próprio. Não é
uma justificação da própria individualidade
acidental. Não é a coragem existencialista de ser
[129] como si próprio. É o ato paradoxal no
qual se é aceito por aquilo que transcende
infinitamente o próprio eu individual
(TILLICH, 1976, p. 128-129).

2.2. O fundamento ontológico do amor e do bem


A partir da base argumentativa formal da
elaboração kantiana, entretanto, a reflexão sobre a ética em
Tillich é complementada com uma estruturação ontológica.
Entre valores éticos e a realidade do ser há uma
interdependência mútua, mas, em última instância, os
valores dependem do ser. A incondicionalidade do dever
moral não se funda só na auto-contradição performativa
que ocorre quando a ação da pessoa racional não obedece a
racionalidade universal. Os próprios valores particulares -
tais como pensados numa ética tradicional, baseada em
valores - só fazem sentido se baseados na fonte de todo
valor. Assim, o ser tem de ter precedência sobre os valores
(TILLICH, 1963, p. 26; id, 1954, p. 72).
Na verdade, já a formulação anteriormente exposta,
segundo a qual há contradição entre a natureza essencial do
ser humano e seu estado de alienação histórica, pressupõe a
fundamentação ontológica da ética. Mas inicialmente esta
situação pode ser exposta somente em sua estruturação

122
formal. Assim, a exposição da natureza essencial pode ser
num primeiro momento vista somente como descrição de
um estado ideal, inatingível mas mesmo assim poderoso e
efetivo para a configuração existencial da vida humana.
Entretanto, a relação entre a ética e seu fundamento no ser
não deve ser simplesmente reduzida a um ideal regulador
para Tillich. Ao tratar da fonte religiosa da moral, ele
afirma: "A natureza humana essencial não pode ser perdida
enquanto o ser humano é ser humano. Ela pode ser
distorcida no processo de realização, mas não pode
desaparecer."37 Até aqui, ainda se poderia pensar que a
simples idealidade transcendental poderia ser considerada
expressão suficiente desta natureza humana essencial.
Entretanto, a passagem citada continua afirmando esta
fonte da moral como sendo também a fonte da própria
consciência: "A própria asserção de que o ser humano está
alienado da sua natureza criada pressupõe uma experiência
do abismo entre o que ele é essencialmente e o que ele é
existencialmente. Mesmo uma consciência fraca ou
desviada ainda é uma consciência, isto é, a voz silenciosa da
própria natureza essencial do ser humano julgando o seu
ser atual."38 Assim, parece fazer mais sentido compreender
a elaboração tillichiana como uma aplicação da simbologia
cristã da queda à estrutura ontológica do próprio ser, e não
só à estrutura da idealidade dos valores. Isto parece ficar

37 "Man's essential nature cannot be lost as long as man is man.


It can be distorted in the process of actualization, but it cannot
disappear" (TILLICH, 1963, p. 34).
38 "The very statement that man is estranged from his created
nature presupposes an experience of the abyss between what he
essentially is and what he existentially is. Even a weak or misled
conscience is still a conscience, namely, the silent voice of man's own
essential nature, judging his actual being." (TILLICH, 1963, p. 34).

123
ainda mais claro quando Tillich relaciona esta discussão da
lei moral como expressão da natureza essencial do ser
humano com o seu conceito de teonomia. Esta, enquanto
fundamento teológico do imperativo moral evita a
destrutividade da subjetividade efetuada pela moral
heterônoma e o caráter vazio da moral autônoma, ao que
Tillich acrescenta: "Mas justamente por esta razão ela se
torna ontológica."39
É também nesse sentido que Tillich faz um paralelo
entre o método da correlação que ele utiliza para a sua
reflexão sistemática sobre os símbolos cristãos e sua
reflexão sobre a ética.
O amor, quanto a isto, tem a mesma relação
com a justiça que a revelação tem com a razão. E
esta não é uma analogia acidental. Ela está
enraizada na natureza tanto da revelação quanto
do amor. Ambos transcendem a norma racional
sem destruí-la. Ambos possuem um "elemento
estático". [...---]. Ambos fornecem uma outra
dimensão à razão, a revelação à razão cognitiva,
o amor à razão prática.40
Primeiramente, é importante notar aqui que o
paralelo se dá no âmbito da racionalidade. Assim como os
símbolos que se expressam na revelação não competem
com o conhecimento racional, a ação do bem através do

39 "But just for this reason it becomes ontological." (TILLICH,


1954, p. 63).
40 "Love, in this respect, has the same relation to justice which
revelation has to reason. And this is not an accidental analogy. It is
rooted in the nature of both revelation and love. Both of them
transcend the rational norm without destroying it. Both of them have
an 'ecstatic element'. (...---) Both give another dimension to reason,
revelation to cognitive reason, love to practical reason." (TILLICH,
1954, p. 83).

124
amor não destrói, mas pressupõe a norma moral. Assim, a
racionalidade autônoma é reafirmada, tanto no âmbito do
conhecimento quanto no âmbito prático. Mas, em segundo
lugar, é necessário se perguntar se há algum tipo de
complementação, algum tipo de aporte a mais à
racionalidade, seja da parte dos símbolos revelados, seja da
ação no amor. Mirando a elaboração de Tillich como um
todo, a resposta deve ser "sim", há algo a mais que a razão
autônoma não alcança. Na passagem citada, isto é chamado
de "elemento estático" e de "outra dimensão" da razão.
Note-se que não se trata simplesmente de algo irracional, e
muito menos de algo contrário à razão. Nesse sentido,
pode-se dizer que a dimensão velada do ser, inacessível de
modo direto à percepção racional, é a fonte a partir de onde
se pode esperar um aperfeiçoamento tanto da razão
cognitiva quanto da razão prática.
Mas para que isto seja bem compreendido, é
essencial que se tenha uma compreensão do amor que
transcenda o seu aspecto meramente emocional. Esta
redução do amor à emoção é uma característica marcante
da época moderna, que exalta a subjetividade em todos os
aspectos. No âmbito do conhecimento esta exaltação se
expressa no pressuposto do conhecimento ideal de um
sujeito que se entente separado do mundo dos objetos. No
âmbito dos sentimentos, paralelamente, o amor é reduzido
a uma emoção interior ao sujeito. É nesse sentido que o
amor é estudado pelas várias ciências. Sem negar esta
dimensão emocional do amor, a apresentação tillichiana do
amor é fundamentalmente ontológica. A grande
contribuição que sua obra Amor, poder e justiça faz está

125
justamente no resgate desta dimensão ontológica. Como
ele afirma nesta obra:
Todos os problemas que dizem respeito à
relação do amor com o poder e a justiça,
individual e socialmente, se tornam insolúveis se
o amor é compreendido basicamente como
emoção. [...---] Por outro lado, se o amor é
compreendido em sua natureza ontológica, a sua
relação com a justiça e com o poder é vista numa
luz que revela a unidade básica dos três conceitos
e o caráter condicionado de seus conflitos.41
Em princípio, a noção de unificação da realidade é
uma característica fundamental da compreensão que Tillich
elabora do amor. É nesse sentido que a concepção de amor
que ele desenvolve é totalmente inseparável de sua análise
ontológica. E é também nesse sentido que se consegue
perceber a função das reapropriações de concepções de
amor alheias feitas por ele. Por exemplo, é a partir da
noção do amor como princípio de unificação da realidade
que ele pode aproximar a noção de eros grega da noção de
ágape do cristianismo, além ainda de conjugar com estas a
concepção de um fundamento trans-moral da moral
(TILLICH, 1963, p. 60-61). Esta noção do amor como
expressão da força de unificação da realidade é também
conjugada com o conceito de vida. "A vida é o ser

41 "All problems concerning the relation of love to power and


justice, individually as well as socially, become insoluble if love is
basically understood as emotion. (...---) On the other hand, if love is
understood in its ontological nature, its relation to justice and power is
seen in a light which reveals the basic unity of the three concepts and
the conditioned character of its conflicts."Error! Bookmark not
defined.(TILLICH, 1954, p. 1954, p. 24).

126
realizado, e o amor é o poder dinâmico da vida." 42 .
Encontra-se aqui um eco ao pensamento de Nietzsche, ao
mesmo tempo que se pode perceber um tipo de
apropriação que recoloca esta noção nietzscheana no
interior de uma estrutura ontológica. Porque este poder
dinâmico é compreendido como dizendo respeito ao
conjunto da realidade, e é afirmado explicitamente que esta
dinâmica pressupõe uma unidade original. Novamente, a
separação é expressão da alienação histórica. O amor
enquanto princípio dinâmico da vida pressupõe que a
superação desta alienação se dá em direção à essência
perdida, que é representada pela unidade (TILLICH,
1954, p. 25).
É por causa desta compreensão do amor como
princípio de unificação que Tillich toma muito cuidado ao
discutir as tradicionais distinções entre amor-eros, amor
cupiditas, amor-ágape e amor-filía. Para Tillich, em função
de sua compreensão, não cabe falar em tipos distintos de
amor, mas somente em qualidades distintas dele. Esta
linguagem cuidadosa de Tillich visa mostrar como não
pode haver uma concorrência entre tipos ou concepções do
amor que levariam à dissolução da unidade. Para ele, isto
seria completamente contraditório em relação à sua busca
por uma concepção de amor que deveria ela mesma
expressar a busca por unificação do conjunto da realidade.
A apresentação tillichiana dos diferentes termos gregos e
latino para o amor enquanto qualidades do amor serve
então para agregar à sua própria noção do amor como

42 "Life is being in actuality and love is the moving power of


life." (TILLICH, 1954, p. 25).

127
princípio unificador características que não devem para ele
ter uma função dispersiva.
A isso se liga também a noção de um fundamento
trans-moral da moral, que será mais detalhada abaixo. Mas
essa noção é discutida já em conexão com uma de teologia
mística que teria suas origens nos antigos gregos. A ideia
do amor como princípio da união universal permite a
Tillich se apropriar das mais distintas concepções do amor
para apresentá-las como símbolos desta unificação. A
noção platônica do eros que é impulso para a busca do
conhecimento, assim como a noção aristotélica da força
que atrai para si toda a realidade finita, seriam expressões
de tal visão trans-moral, com característica ontológica, o
que ligaria a compreensão da realização do bem com a do
ser. Para Tillich, a ligação aqui com a noção de lei moral
também não está fora de lugar, à medida que esta também
é expressão da busca pela realização do bem que significa a
reunificação em relação à alienação vivida historicamente.
Assim, as interpretações que ele propõe para estas noções
de Platão e Aristóteles não se limitam à teoria do
conhecimento ou à física, mas englobam estas, junto com a
reflexão ética, na ontologia. Para ele, é esta conjugação
entre a esfera da moralidade com as do ser e do
conhecimento que dá efetividade à moral. Entendido como
reunião do existencialmente separado, a força do amor
representa de modo imediato a motivação para a ação ética.
Não é mais necessário pensar que tal motivação tenha de
ser criada subjetivamente. Ela está dada na própria
realidade, e é pensada como dada por quem vive tal
compreensão (TILLICH, 1963, p. 60). Similarmente, esta
concepção de fundo permite a Tillich aproximar de um

128
modo aparentemente pouco problemático a noção
platônica de "eros" da noção cristã de "graça". Sendo eros,
em sua acepção, um símbolo de um princípio divino (e
simultaneamente humano, como se caracterizam tais
símbolos no ambiente helênico), ele não é redutível à
vontade humana. O amor não pode ser criado pela
vontade, ele ocorre por si. Para Tillich, esta característica
permite a aproximação entre este conceito de amor e a
concepção cristã da graça, também ela uma outorga que
independe da iniciativa humana. Comum, ainda, às duas
concepções é a compreensão fundamental que Tillich
defende: tanto "eros" quanto "graça" manifestam a força da
reunião do que está rompido na realidade existencial.
(TILLICH, 1963, p. 61).
É a partir daí, também, que se compreende a noção
cristã de agápe como uma qualidade desta noção trans-
moral e princípio unificador. Ela é apresentada como a
qualidade do amor que expressa a fonte religiosa da
exigência moral (TILLICH, 1954, p. 46). É extremamente
interessante que Tillich use aqui a expressão "fonte
religiosa". Tendo em vista o fato de que o termo agápe tem
sido reivindicado pela tradição cristã como expressão do
amor que é mais genuinamente afim à concepção cristã,
esta formulação tillichiana mostra por um lado que ele de
modo algum nega isto, mas também mostra que ele não
reduz a qualidade agápica do amor ao cristianismo. Ou
seja, aquilo que ele já fez antes, ao não distinguir tipos de
amor mas apresentar suas nuances como qualidades, ele
complementa aqui, ao não reduzir a qualidade agápica a
uma só expressão religiosa. É claro que ao fazer isso Tillich
está simplesmente sendo coerente com sua compreensão

129
básica. Entretanto, cabe-nos destacar esta coerência. Por
outro lado, esta qualidade religiosa do amor parece ser tão
importante que ao sintetizar sua compreensão dela Tillich
praticamente faz um resumo do conjunto do que a ética
representa:
Para sintetizar a tese deste capítulo: a fonte
religiosa das exigências morais é amor sob o
domínio da sua qualidade agápe, em unidade
com o imperativo da justiça para reconhecer
cada ser com potencial pessoal como uma
pessoa, sendo guiado pela sabedoria divino-
humana corporificada na lei moral do passado,
ouvindo a situação concreta e agindo
corajosamente com base nestes princípios.43
O imperativo da justiça e o reconhecimento do
valor universal da pessoa são os elementos básicos da moral
kantiana, a lei moral do passado é a moral tradicional que a
sabedoria das diversas culturas colecionou, o ouvir a
situação e a partir daí agir corajosamente são elementos de
que ainda trataremos mais adiante. Mas agápe, como
expressão religiosa do princípio unificador, é a força que
possibilita simultaneamente unir estas concepções diversas
de ética e superá-las a partir de sua fundamentação
ontológica e religiosa. Este enraizamento da qualidade
religiosa da ética na ontologia, simultaneamente, permite

43 "To summarize the thesis of this chapter: the religious source


of the moral demands is love under the domination of its agape
quality, in unity with the imperative of justice to acknowledge every
being with personal potential as a person, being guided by the divine-
human wisdom embodied in the moral laws of the past, listening to the
concrete situation, and acting courageously on the basis of these
principles." (TILLICH, 1954, p. 46).

130
compreender a função que a religião cumpre na vida. Ela é
promotora desta força unificadora da vida que é o amor.
É justamente porque expressa esta força unificadora
que a compreensão do amor não pode se reduzir a
conceitos:
O amor é a própria vida em sua unidade
concreta. As formas e as estruturas concretas do
amor são as formas e as estruturas que
possibilitam a vida, nas quais as forças
autodestrutivas são superadas. Este é o sentido
da ética: expressar as diferentes maneiras da
concretização do amor e da manutenção e
salvação da vida (TILLICH, 1992, p. 180).
Assim, novamente se percebe a complementaridade
entre o elemento unificador (aqui expresso no combate às
forças autodestrutivas) das realidades concretas que o amor
representa e da dimensão dinâmica da vida. Isto é
importante porque não se trata em Tillich simplesmente de
uma manutenção de uma estrutura estática, e nem de uma
dinâmica sem organização ou finalidade. O amor enquanto
elemento unificador dá ordem e sustentação, a vida
enquanto dinâmica impede qualquer esclerose e
engessamento na compreensão do que seja ético.
É por isso que a exposição que Tillich elabora em
sua obra Amor, poder e justiça é tão importante. Trata-se de
uma obra interessante pelo desafio que assume: a partir da
sua compreensão ontológica fundamental o autor confronta
a nossa época moderna e desafia o formalismo ético, a
moral tradicional e a desistência dos valores. O faz
aproximando estes três conceitos que dão o título à obra a
partir da análise de sua interconexão. Aproximando-se do
final da obra, ele já apresenta um balanço significativo:

131
Era nossa tarefa mostrar que essencialmente, em
sua natureza criada, amor poder e justiça estão
unidos. Isto, entretanto, não era possível sem
mostrar que na existência eles estão separados e
em conflito. Isto leva à questão: Como a sua
unidade pode ser re-estabelecida? A resposta é
óbvia. Através da manifestação do fundamento
em que eles estão unidos. Amor, poder e justiça
são um no fundamento divino, eles devem
tornar-se um na existência humana.44
Trata-se, pois, do resultado de uma análise
ontológica que leva para além dela mesma. É evidente que
tal análise já partia de elementos que caracterizam a
tradição cristã, principalmente a partir da concepção
teológica da queda expressa com o conceito filosófico de
alienação. Entretanto, ela é levada a cabo inicialmente
como uma análise filosófica, sem recurso a algum tipo de
verdade ou autoridade alheia à argumentação. É ao final
desta análise, entretanto, que o discurso se abre para a
interpretação do resultado desta análise à luz dos símbolos
religiosos, particularmente do cristianismo. É assim que o
símbolo de Deus é afirmado como a fonte dos símbolos do
amor, do poder e da justiça (TILLICH, 1954, p. 111-112),
e a relação de amor do ser humano com os demais seres e
consigo mesmo é entendido como expressão desta fonte
última do amor que é divina (TILLICH, 1954, p. 122).

44 "It was our task to show that essentially, in their created


nature, love, power, and justice are united. This, however, was not
possible without showing that in existence they are separated and
conflicting. This leads to the question: How can their essential unity be
re-established? The answer is obvious: Through the manifestation of
the ground in which they are united. Love, power, and justice are one
in the divine ground, they shall become one in human existence."
(TILLICH, 1954, p. 108).

132
2.3. O papel da religião na ética
Já a partir do exposto pode-se dizer que dois
aspectos representam de modo especial a relação entre
religião e ética: o caráter incondicional da lei moral e o
caráter transcendente da fonte da moral, identificada com a
qualidade de agápe. Conforme exposto acima, estes dois
elementos são correlatos à argumentação deontológica para
a fundamentação de uma moral universal e à análise
ontológica elaborada por Tillich. Ao invés de compreender
estes dois elementos como independentes ou até
excludentes em relação à religião, como é possível
encontrar em outros autores, o conceito de religião
tillichiano leva justamente a que nas características da
incondicionalidade e da profundidade se diagnostique a
presença da religião. O fato de que ele considera a fonte
última do amor como tendo a qualidade de agápe, porque é
a qualidade que possibilita superar as contradições internas
do próprio amor, é ilustrativa nesse sentido. Como esta é a
qualidade que une amor com justiça, pode-se pensar que
inclusive a incondicionalidade da lei moral está incluída na
afirmação ontológica (TILLICH, 1963, p. 42). Mais
adiante, ainda uma terceira forma de relação intrínseca
entre religião e ética será desenvolvida mais
profundamente: a relação entre religião, coragem e ética.
Porque como para Tillich a coragem manifesta uma
dimensão necessariamente religiosa, por ser a afirmação do
ser diante do não ser, e como a ética implica sempre
decisões que precisam ser corajosas em função das
ambiguidades da vida, segue-se que na coragem ética uma
dimensão religiosa sempre está presente (cf. TILLICH,
1976, p. 122).

133
No âmbito da vida, o amor se manifesta no
encontro com a outra pessoa. É nesse sentido que o amor
se mostra como comunhão com o outro. Percebe-se aqui
que a argumentação de Tillich, que parte do elemento
transcendental e depois segue para o fundamento
transcendente, só depois chega à análise da situação
concreta da relação interpessoal. Isso não significa que esta
situação concreta fique em segundo plano. Na verdade, ela
também já está sempre pressuposta na argumentação
formal e na análise ontológica. Mas é importante notar que
ela não é o ponto de partida argumentativo (cf. a opção
pelo procedimento inverso em Emanuel Levinas, por
exemplo). Em todo caso, para uma discussão sobre as
consequências dessa opção ou para a comparação com
outras abordagens é necessário não deixar de apontar para a
afirmação de Tillich de que é nessa relação interpessoal que
o amor se torna o princípio moral fundamental, assumindo
e transcendo a justiça (TILLICH, 1963, p. 39).
Esta relação interpessoal, por sua vez, se
complexifica na vida comunitária. A ética não se vive em
primeiro lugar sozinho, e nem só no encontro interpessoal
com o outro. A vida acontece em diversos âmbitos
simultaneamente. A consequência é uma miríade de
relações interpessoais, mais ou menos profundas, que
implicam muitas vezes em exigência de decisões complexas
e mesmo contraditórias. Esta característica complexa da
vida também tinha feito com que Kant reconhecesse a
impossibilidade de nossa vida se tornar santa, como a nossa
racionalidade o quer de nós. Por isso postulou a
imortalidade da alma e a existência de Deus como formas
de realização da santidade exigida. Em outros autores esta

134
complexidade da vida serve de argumento contra a
possibilidade de uma reflexão coerente sobre a ética.
Tillich, ao afirmar o caráter alienado da existência humana
histórica, assume esta complexidade e não capitula diante
dela. O reconhecimento dos limites humanos na história é
antes um convite à reflexão que assume também a
sabedoria das comunidades religiosas tradicionais. E é aí
que Tillich se inspira para desenvolver a noção de
"comunidade santa" (ou "comunidade espiritual" na
Teologia Sistemática, v. III). Em meio ao estado de
complexidade e de alienação existencial, o ser humano
busca uma comunhão que expresse ao menos
fragmentariamente a sua natureza essencial, em que o amor
se expresse como justiça em relação a todos.
Na comunidade santa o poder espiritual,
desistindo da compulsão, eleva o poder além das
ambiguidades da sua realização dinâmica. Na
comunidade santa a justificação pela graça eleva
a justiça além das ambiguidades da sua natureza
abstrata e calculista. Isto significa que na
comunidade santa o amor, o poder e a justiça são
afirmados em sua estrutura ontológica mas que a
sua realidade alienada e ambígua é transformada
numa manifestação da sua unidade no interior
da vida divina.45

45 "In the holy community the spiritual power, by surrendering


compulsion, elevates power beyond the ambiguities of its dynamic
realization. In the holy community justification by grace elevates
justice beyond the ambiguities of its abstract and calculating nature.
This means that in the holy community love, power, and justice in their
ontological structure are affirmed but that their estranged and
ambiguous reality is transformed into a manifestation of their unity
within the divine life." (TILLICH, 1954, p. 116)

135
Primeiro, é preciso esclarecer que por "comunidade
santa", apesar de evidentemente Tillich se referir a
comunidades de natureza religiosa, não se deve
simplesmente compreender "igreja". A partir do conjunto
do pensamento de Tillich é evidente que tais comunidades
santas vão além de igrejas e de comunidades que se
compreendem como religiosas. Além disso, também é
evidente que nem toda comunidade que reivindique ser
uma igreja ou uma religião esteja automaticamente incluída
no conceito de Tillich. O conceito se refere àquele tipo de
comunidade humana que expressa a vivência da santidade
no sentido amplo que Tillich sempre atribui ao termo
religião. E mesmo tendo em mente todas estas
clarificações, ainda assim ao olhar para esta definição de
"comunidade santa" por Tillich temos a impressão de ter
diante de nós um ideal dificilmente alcançável... E aí está o
desafio que Tillich assume: ele de fato afirma que este ideal
acontece na história, ainda que apenas fragmentariamente.
Não se trata simplesmente de um ideal abstrato, mas de
um ideal que pode ser experimentado em momentos
especiais. Pessoas religiosas ou adeptos de grupos
comunitários humanos da mais variada espécie
experimentam, segundo esta afirmação corajosa, vitórias do
amor sobre as ambiguidades existenciais e ali se encontram
no interior da própria vida divina.
Assim, é perceptível que, se na configuração de sua
reflexão sobre a ética Tillich estrutura a sua argumentação a
partir de fontes filosóficas distintas, ele por outro lado
também não deixa de lado o conceito de agápe, que se
mostra um dos termos tradicionais do cristianismo
(TILLICH, 1992, p. 177). Mas também este conceito se

136
transforma no processo reflexivo, transcendendo o seu
alcance tradicional, como se fosse um tipo de amor
exclusivo ou ao menos preferencial ao cristianismo. Fiel ao
seu método, a dimensão ontológica desta qualidade
específica do amor é o que é buscado por Tillich. É assim
que o encontro interpessoal sempre se mostra como um
momento especial, que envolve decisão em relação ao
comportamento, porque o outro é sempre um limite para a
ação do sujeito (TILLICH, 1954, p. 78).
Por outro lado, também é importante que se
visualize claramente o aporte crítico do pensamento de
Tillich em relação à vivência ética nas comunidades
religiosas. Aqui nos limitaremos a dois exemplos tomados
de interpretações unilaterais encontradas em certos círculos
do cristianismo. A primeira é a crítica a uma ética de auto-
entrega total ao outro. Por mais que o respeito ao outro
implique um tipo de auto-limitação, a simples entrega de si
pode significar uma injustiça em relação a si mesmo. No
caso deste tipo de atitude, o que ocorre é uma negação de si
mesmo que acarreta a impossibilidade de uma vivência de
amor genuína, à medida que o amor implica uma relação
mútua, e na auto-entrega absoluta, em que o sujeito se
aniquila, a possibilidade de mutualidade interpessoal deixa
de existir (TILLICH, 1954, p. 69). Este é um exemplo de
amor sem poder, e, portanto, de um amor que chega a ser
destrutivo do próprio sujeito. Não é difícil encontrar na
vida exemplos deste tipo de amor auto-destrutivo. Outra
crítica se dirige a um tipo de amor sem justiça. Também
esta é uma forma de interpretação desvirtuada do
cristianismo rejeitada por Tillich. Muitas vezes esta
interpretação se baseou, por exemplo, na recomendação

137
evangélica de oferecer a outra face àquele que bate. Esta
passagem de caráter paradoxal do assim chamado Sermão
do Monte tem sido frequentemente abusada com interesses
deliberadamente ideológicos, para pregar um tipo de não-
resistência ao mal que na prática mantém condições de
opressão e injustiça. Para Tillich, conceber uma
contradição entre o amor e a justiça representa uma atitude
errônea, carente da reflexão sobre o objetivo de integração
entre amor, poder e justiça que a sua reflexão sobre a
fundamentação ontológica da ética revela. O amor sem
justiça se torna um discurso vazio, um tipo de
sentimentalismo inefetivo, uma prática que faz degenerar a
caridade em prática justificadora de situações desumanas
(TILLICH, 1963, P. 39).

3. A coragem implicada na decisão ética

As reflexões de Tillich sobre o tema da coragem


não são reflexões especialmente sobre ética. Trata-se de
reflexões que abrangem vários âmbitos da vida, e nesse
sentido ali se encontram uma riqueza temática e uma
criatividade significativas. Mas estas reflexões têm também
um alcance importante para o tema da ética, assim como
para a percepção da interligação entre a ética e a
complexidade inerente à vida. Esta vinculação é
apresentada ao comentar o título do livro Coragem de ser.
Ali a coragem é apresentada como um tema que é
abordado tanto de um ponto de vista ético quanto de um
ponto de vista ontológico (TILLICH, 1976, p. 1-3). Ou
seja, com o tema da coragem se continua no mesmo

138
terreno da relação profunda entre ética e ontologia que já se
verificou anteriormente.
A coragem, e aquilo na fé que é coragem, afirma
a prevalência última do ser sobre o não ser. Ela
afirma a presença do infinito em todo finito. E a
teologia que está baseada em uma tal coragem
tenta mostrar que, como o não-ser é dependente
do ser que ele nega, assim a percepção da
finitude pressupõe um lugar acima da finitude a
partir do qual o finito é visto como finito. Mas o
ato em que este lugar é ocupado é a coragem, e
não o raciocínio.46
Agora, entretanto, o caráter dramático das decisões
existenciais concretas ganha o proscênio. E,
simultaneamente, a coragem manifesta origem religiosa.
Ao expressar a afirmação de si - e, assim, do ser - diante do
não ser, a coragem se expressa como resultado de um dom,
de uma graça (TILLICH, 1976, p. 64). Nesse sentido,
com a sua reflexão sobre a coragem Tillich se move sobre o
mesmo terreno já trilhado anteriormente, mas a
especificidade terminológica revela outros aspectos que
merecem ser observados com algum detalhamento.

3.1. Ética e risco


A primeira questão fundamental relacionando ética
e coragem é a existência do risco implicado em toda

46 "Courage, and that in faith which is courage, affirms the


ultimate prevalence of being over non-being. It affirms the presence of
the infinite in everything finite. And a theology which is based on such
a courage tries to show that, as non-being is dependent on the being it
negates, so the awareness of finitude presupposes a place above
finitude from which the finite is seen as finite. But the act in which this
place is occupied is courage and not reasoning." (TILLICH, 1954, p.
39).

139
decisão ética. Ao mesmo tempo que a lei moral se
apresenta como exigência incondicional, a complexidade da
vida manifesta o dilema diante do qual se encontra a pessoa
a cada momento (TILLICH, 1963, p. 23). Reconhecer
tanto a incondicionalidade quanto a complexidade
arriscada da vida é fundamental para não se eliminar de
modo simplista a profundidade e nem a concreticidade da
existência.
Nesse sentido, para Tillich, é importante
compreender esta dimensão do risco em conexão com a sua
compreensão de fé. Com isso ele busca impedir a redução
da compreensão de coragem simplesmente a uma virtude a
mais entre outras. Coragem aparece como um ato especial,
identificado com a fé e a esperança (TILLICH, 1976, p. 6-
7). Dada a importância que tem o conceito de fé em sua
obra já se percebe aqui que a compreensão proposta de
coragem não se limita ao trivial. O desenvolvimento da
obra Coragem de ser, entretanto, lança luz sobre o próprio
conceito de fé à medida que mostra a coragem como
afirmação - de si, do ser, do sentido - diante da percepção
do mais agudo vazio - de si, de ser, de sentido. Assim, para
quem está interessado em pensar a relação entre a coragem
e a ética cabe dizer que a decisão ética pressupõe antes de
tudo a coragem (e a fé, e a esperança) de afirmar que há
razão para se buscar o bem. Sem tal afirmação de base, não
há por que se decidir ou preferir uma atitude em vez de
outra. Ou, dito de outra forma: A cada momento que
alguém está se arriscando a tomar uma decisão, já está
implicitamente afirmando a coragem (e a fé, e a esperança)
de que há bem e de que há um procedimento ideal de
comportamento.

140
Assim, a reflexão ética de Tillich assume
simultaneamente o fato do relativismo na aplicação e a
incondicionalidade da lei moral. O relativismo se deve à
situação de alienação em que se dá a existência. Mas o fato
deste relativismo não contamina a lei moral em si mesma
(TILLICH, 1963, p. 34-37). E é justamente a coragem
que possibilita superar a contraposição superficial entre a
demanda incondicional e a prática relativa. É ela que
manifesta no ser humano a presença da fonte do bem - não
como um conteúdo claro, mas como uma esperança que ele
assume o risco de realizar, apesar da possibilidade de
fracasso e de erro sempre estar diante de si. Coragem,
assim, envolve a incerteza da ação e o assumir do risco do
erro. Este assumir do risco é diferente da ação
inconsequente, que não assume o risco. E é diferente da
inação, que também não o assume. A coragem implica o
reconhecimento da relatividade em que a ação humana se
dá, e a decisão de agir em meio a esta situação de
ambiguidade - única forma de, mesmo fragmentariamente,
se realizar o bem.
O fato de o amor ser considerado fonte e realização
da ética é justamente o que pressupõe a necessidade desta
coragem existencialmente perigosa.
Ao chamar o amor de fonte das normas morais
nós respondemos à primeira questão deste
capítulo, isto é, a da relatividade da ética. Pois o
amor é tanto absoluto quanto relativo por sua
própria natureza. Sendo um princípio imutável,
ele entretanto sempre se modifica em sua
aplicação concreta.47

47 "In calling love the source of moral norms we have answered


the first question of this chapter, namely, that of the relativity of ethics.

141
Evidentemente, quando Tillich fez esta afirmação
ele estava dizendo que tinha respondido à questão da
relação entre a demanda absoluta e a relatividade da ação
no plano reflexivo. É justamente esta difícil relação que
cada pessoa enfrenta a cada momento em sua vida - e isso é
o que exige coragem. O fato de que a realização do bem, a
partir da atuação corajosa, implica sempre também o
caráter fragmentário desta realização aparece quando
Tillich liga o conceito de kairós a esta noção do amor como
simultaneamente absoluto e relativo (TILLICH, 1992, p.
175-176). Kairós é um conceito também tradicional do
cristianismo, mas que em Tillich ganha a acepção especial
de uma realização ideal, fruto não simplesmente da decisão
humana mas de sua ação a partir da graça divina. Aí se
percebe na prática como, para ele, em qualquer ato de
coragem está implicada a fé. Porque implicitamente a ação,
e mesmo a ação fracassada, afirma a possibilidade de
realização da realidade ideal.
O fato de se viver constantemente sob o risco
existencial é resultado de que a vida é atualização de
potencialidades. Isto implica decisão e risco, e não há
receitas previamente preparadas.
A vida é a atualização dinâmica do ser [...---]. A
vida inclui decisões contínuas, não
necessariamente decisões conscientes, mas
decisões que ocorrem no encontro entre um
poder e outro. [...---] Estas decisões não podem
ser deduzidas a priori. A vida é feita por
tentativas. Todo mundo e todas as coisas têm

For love is both absolute and relative by its very nature. An


unchanging principle, it nevertheless always changes in its concrete
application." (TILLICH, 1963, p. 42).

142
oportunidades e tem de assumir riscos, porque o
seu poder de ser permanece velado se encontros
atuais não o revelam.48
Esta vivência da coragem na dinâmica da vida
implica a superação de uma visão ética baseada em critérios
exteriores, como a noção legalista, a de proporcionalidade
ou a de mérito. A ética baseada na coragem, por envolver o
risco, assume um caráter paradoxal. Como a realização do
bem implica a possibilidade do mal, só assumindo sobre si
a possibilidade do mais profundo fracasso é possível agir
conscientemente. Assumir esta possibilidade de fracasso,
entretanto, é entendido por Tillich como possível a partir
do paradoxo da fé, assim como ele o encontra nos textos do
apóstolo Paulo:
Portanto, a justiça divina pode aparecer como
injustiça patente. No paradoxo da "justificação
por graça através da fé", como afirmado por
Paulo, a justiça divina está manifesta no ato
divino que justifica aquele que é injusto. Isto,
como cada ato de perdão, só pode ser
compreendido através da ideia de justiça criativa.
E justiça criativa é a forma de amor que reúne.49

48 "Life is the dynamic actualization of being (...---) Life


includes continuous decisions, not necessarily conscious decisions, but
decisions which occur in the encounter between power and power. (...-
--) These decisions cannot be deduced a priori. Life is tentative.
Everybody and everything has chances and must take risks, because
his and its power of being remains hidden if actual encounters do not
reveal it." (TILLICH, 1954, p. 41).
49 "Therefore the divine justice can appear as plain injustice. In
the paradox of the 'justification by grace through faith', as stated by
Paul, the divine justice is manifest in the divine act which justifies him
who is unjust. This, like every act of forgiveness, can only be
understood through the idea of creative justice. And creative justice is
the form of reuniting love." (TILLICH, 1954, p. 66).

143
Ora, mas evidente e consequentemente, a justiça
criativa também é fonte de injustiça! (TILLICH, 1954, p.
87-88). De novo, Tillich assume a mesma consciência da
impossibilidade de uma realização plena do bem em nossa
existência alienada, mas oferece uma proposta distinta de
solução. Não se trata para ele da fé num progresso infinito
ou simplesmente num arranjo divino, mas no assumir da
coragem da fé que permite à pessoa que está sujeita ao
fracasso mesmo assim se saber aceita pela fonte de todo
bem - Deus, na linguagem da fé.
Assim, a reflexão sobre a coragem leva Tillich aos
limites da capacidade da razão em responder à angústia
humana. Esta angústia se manifesta também na ética, e se
manifesta ali como sentimento de culpa. O fato de o ser
humano ser livre, mas simultaneamente ser finito, é o que
aponta para a busca humana por uma solução para esta
situação de angústia.
O homem é essencialmente 'liberdade finita';
liberdade, não no sentido de indeterminação,
porém no sentido de ser capaz de se determinar
por meio de decisões no núcleo de seu ser. O
homem, como liberdade finita, é livre dentro das
contingências de sua finidade. Mas dentro dêstes
limites êle é requerido a fazer de si o que se
supõe êle possa tornar-se para realizar seu
destino. Em cada ato de auto-afirmação moral o
homem contribui para a realização de seu
destino, para a concretização do que êle é
potencialmente. É tarefa da ética descrever a
natureza desta realização, em têrmos filosóficos
ou teológicos. Porém, embora a norma esteja
formulada, o homem tem o poder de agir contra
ela, de contradizer seu ser essencial, de perder
seu destino.

144
[...] Uma incerteza profunda entre o bem e o
mal impregna tudo que êle faz, porque impregna
seu ser pessoal como tal. [...---] A consciência
desta incerteza é o sentimento de culpa
(TILLICH, 1976, p. 40).
A resposta que Tillich encontra para esta situação
de angústia é a da tradição que vai de Paulo a Lutero, que
ele formula como a "aceitação de ser aceito, apesar da
culpa": "No núcleo da coragem protestante da confiança
fica a coragem de aceitar a aceitação, a despeito da
consciência da culpa." (TILLICH, 1976, p. 128).

3.2. Consciência trans-moral


Para finalizar esta exposição, é importante analisar
alguns aspectos de um texto que Tillich escreve sobre
"consciência trans-moral". De um modo geral, é possível
observar que nele se unem uma discussão sobre as tradições
teológica e filosófica que embasam a reflexão sobre a ética e
a necessidade de ir além da dimensão ética na compreensão
da dinâmica da vida. Ponto de partida para tal discussão é o
fato da consciência. Este é ligado à subjetividade. No
âmbito de uma auto-compreensão moldada pela
coletividade, não há espaço para a consciência. Ou seja,
para Tillich uma auto-compreensão não individualizada
não é capaz de promover um estado que supere o
conformismo (TILLICH, 1992, p. 160).
Assim, a consciência surge a partir do confronto
entre o estado atual de alienação em relação à natureza
essencial do ser humano. Por isso, a consciência surge
como "consciência de culpa". O desenvolvimento desta
consciência de culpa desempenha um papel bastante
importante na história da igreja cristã, influenciando a

145
partir daí também a tradição filosófica que se elabora no
âmbito do ocidente. Apesar da importância deste conceito,
ao final da idade média se chega a uma situação que
ressalta a impotência moral humana a tal ponto que só
serve à dominação por parte da heteronomia eclesiástica
(TILLICH, 1992, p. 160-164).
A reação a esta corrente heterônoma Tillich
enxerga na teologia franciscana medieval, no misticismo
germânico, em Lutero e na vertente radical da Reforma,
que defendia a iluminação direta pelo Espírito Santo.
Manifestações filosóficas posteriores desta reação ele
encontra em Giordano Bruno, Nietzsche e Heidegger
(TILLICH, 1992, p. 164, 168-170). O fato é que no
conjunto do texto, a interpretação que Tillich apresenta de
Lutero a este respeito é bastante determinante:
Se, desse modo, aprofunda-se a má consciência
num estado de desespero absoluto, a superação
desse estado só pode se dar por meio da
aceitação do amor auto-sacrificial de Deus
visível na figura de Jesus, o Cristo. Deus, por
assim dizer, sujeita-se às conseqüências de sua
ira, assumindo-as, para restabelecer, assim, a
união conosco. O pecador é aceito como justo
apesar de sua pecaminosidade. A ira de Deus
não mais nos amedronta; surge uma consciência
alegre tão acima da esfera moral quão abaixo
dela estava aconsciência desesperada. A
"justificação pela fé", segundo Lutero, significa a
criação da consciência "transmoral" (TILLICH,
1992, p. 168).
Esta apresentação serve de base para a interpretação
que Tillich faz da filosofia posterior. Nietzsche é lido a
partir da superação da culpa moral proposta por Lutero, e

146
esta linha de reflexão é a responsável pela criação da
consciência trans-moral. O perigo inerente a tal forma de
pensamento é reconhecido - a relativização ética e a
possibilidade de destruição dos valores por movimentos
totalitários, como se exemplifica no nazismo (TILLICH,
1992, p. 170).
O significado desta noção está na consequência
inevitável da situação existencial humana para Tillich.
Nisso ele evoca inclusive um testemunho de Heidegger
quanto à impossibilidade de uma consciência "boa". Porque
o ser humano é obrigado a agir no mundo da complexidade
e da alienação existencial, e porque ele não pode
autenticamente se desvencilhar das suas limitações
históricas, o ser humano necessariamente experimenta a
culpa. Só assumindo a culpa com coragem se pode chegar a
uma consciência trans-moral (TILLICH, 1992, p. 170). É
importante, entretanto, ter em vista o caráter
intrinsecamente fragmentário desta situação. Ninguém
"possui" uma consciência ou um direito trans-moral de
agir. A fonte da consciência trans-moral é a dádiva da
graça, conforme a base interpretativa de Tillich acima
exposta. Nisso reside a contraposição à noção de um "além
do bem e do mal" que fosse interpretado de modo não
dramático e não paradoxal, como se este além pudesse ser
uma posse subjetiva.

Conclusão

Visualizamos aqui um elenco de temas relacionados


à ética que se apresentam dispersos na obra de Paul Tillich.
Mesmo não sendo um pensador que tome a ética como

147
tema básico de sua reflexão, pode-se perceber uma série de
consequências éticas de suas ideias a partir de alguns dos
temas fundamentais que ele trata em sua obra. O itinerário
se iniciou por suas tomadas de posição históricas em
relação a temas políticos, onde se percebe o exercício
concreto, e por isso exemplar, do tipo de posicionamento
ético que caracteriza a reflexão tillichiana. Em seguida se
averiguou algo das fontes filosóficas básicas em seu
pensamento - a filosofia prática kantiana e a importância
concedida à análise ontológica. Estas noções filosóficas
foram a seguir relacionadas com o tema específico da
religião, no sentido particular em que Tillich a
compreende. Dois elementos teológicos se mostraram
influências mais importantes para o diálogo com a tradição
filosófica: a noção de agápe, enquanto qualidade ontológica
do amor, e o paradoxo luterano da justificação pela graça.
Estes elementos chave são o que permite o
desenvolvimento final da apresentação, em que a
concepção da coragem, em sua base ontológica e em sua
realização existencial, e a noção de consciência trans-moral
permitem um diálogo frutífero do pensamento de Tillich
com a situação contemporânea. Revisando a partir do final
os exemplos introdutórios que tematizaram
posicionamentos ético-políticos se poderia verificar como
em sua atitudes éticas Tillich exercitou os procedimentos
gerais que caracterizam sua reflexão sobre a ética.

Referências bibliográficas

TILLICH, Paul. A Coragem de Ser, 3a.ed. Rio de Janeiro :


Paz e Terra, 1976.

148
TILLICH, Paul. A Era Protestante. São Paulo, Instituto
Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, 1992.
TILLICH, Paul. Love, Power, and Justice. London. Oxford,
New York, Oxford University Press, ©1954.
TILLICH, Paul. Morality and Beyond. Louisville
[Kentucky], Westminster John Know Press, ©1963.

149
UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA DOS
INFERNOS EM DIÁLOGO COM O DEMONÍACO
EM PAUL TILLICH

Vitor Chaves de Souza 50

Introdução

Apesar das diversas investigações sobre os temas do


inferno e do diabo, as questões teológicas que cercam a
discussão do céu, inferno e purgatório são antigas.
“Quantos foram condenados?”, “Existe fogo no inferno?”,
“Todos seremos salvos?”. A relação entre céu, inferno e
purgatório não é natural nos dias de hoje (uma vez que o
purgatório não faz parte do imaginário popular).
Atualmente, fala-se mais em inferno para os que não são
adeptos de uma determinada religião e céu para quem é
praticante de tal religião. A história da relação destes
mundos após-morte está presente em boa parte da era
Cristã, recebendo ressignificações e reinterpretações nos
últimos tempos, que estabeleceram novas relações com as
áreas do conhecimento. Os conteúdos deste texto
caminharão por reflexões e ideias que nortearam as práticas

50
Professor Doutor em Ciências da Religião na Pós-Graduação da
Universidade Metodista de São Paulo.

151
cristãs ao longo dos séculos, e algumas respostas e atuais
hermenêuticas sobre o inferno na modernidade. Com este
texto pretendemos pensar as crenças no céu, inferno e
purgatório, em A história dos Infernos, livro do Georges
Minois, com ênfase nas conceituações do inferno –uma vez
que ele é uma das principais saídas adotadas na história do
pensamento cristão para o dilema do mal – em relação ao
pensamento de Paul Tillich acerca do demoníaco.

I Uma história dos infernos

No princípio havia o Xeol e o Xeol abrigava os


mortos. No céu, um anjo, Satã, por orgulho51, rebelou-se
contra Deus e foi expulso do paraíso. Satã habitou o Xeol e
recebeu a incumbência de coordenar o destino das almas
más. Antes, o Xeol – ou a Velha Dama Abismo – não era
um lugar de punição, apenas o destino final dos mortos,
tanto os bons como os ruins, que residiriam o Xeol para o
todo sempre. 52 Na época de Cristo, notou Friedrich
Schleiermacher, o mundo dos mortos não possuía a
importância e a função infernal como tal conhecemos hoje
e o Diabo não tinha o papel de castigador global.53 No
Novo Testamento Satã está representado como aquele que
pune e castiga (1Coríntios 5.5), mas ele ainda era um anjo
a serviço de Deus e só depois com Orígenes e o
desenvolvimento da teologia cristã, Satã, mesmo sem

51
Cf. MILTON, John apudKELLY, Henry Ansgar. Satã: uma
biografia. São Paulo: Globo, 2008, p. 320.
52
KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia. São Paulo: Globo,
2008, p. 272
53
SCHLEIERMACHER, FriederichapudKELLY, Henry Ansgar. Satã:
uma biografia, p. 364.

152
identificarmos precisamente o momento de sua posse,
tornou-se no Lúcifer Rebelde e liderou o Abismo Infinito
como conhecemos hoje.
Foi no século IV que o inferno passou a ganhar
força e importância no cristianismo e surgiu uma doutrina
cristã acerca da visita de três dias de Cristo ao Mundo dos
Mortos.54 Nesta fase, o inferno cristão, enquanto produto
do pensamento Ocidental, começava a se tornar no inferno
mais bem elaborado que se tem registro: mescla razão e
prática em sua elaboração. O inferno, em tal possibilidade,
dá-se pelo evento da morte (evento comum para todos
seres humanos). Morte e Hades (Apocalipse 20.10-15) são
os guardiões de todos os mortos no Reino dos Mortos.55 As
profundezas, de acordo com o cristianismo, é possível para
todas pessoas.
A estrutura do inferno cristão pode ser apontada
em quatro momentos que refletem sua complexidade: (1)
dimensão negativa, onde o condenado estaria excluído de
qualquer relação com o bem, (2) dimensão positiva, onde o
condenado é “apenas” torturado, (3) dimensão temporal,
para que os sofrimentos tenham lugar no tempo, e (4)
dimensão eterna, cujos sofrimentos não terão fim. Esta
representação do inferno cristão, apesar de abrangente,
diferencia-se de outros infernos. Ela passou a ser elaborada
conforme o desenvolvimento da teologia dogmática e
alcançou seu auge na Idade Média, perfazendo e
compondo os arquétipos mitológicos do Ocidente.
Interessa-nos, para nossas aproximações, as ideias gerais do

54
Cf. o “Credo dos apóstolos”, In: BETTENSON, Henry. Documentos
da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2001, p. 60.
55
KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia, p. 273.

153
inferno para, depois, refletirmos as possibilidades das
estruturas do inferno como uma proposta de saída para o
dilema do mal.

II O inferno de Dante

No decorrer da proposta desta reflexão temos que


ter em mente que o inferno, céu e purgatório são questões
do além, do após-morte, que configuram uma forma de
viver na terra e tornam possíveis o ajuntamento,
recapitulação e totalização de um determinado grupo ou
instituição – no caso, a Igreja Católica, na Idade Média, e
as demais ramificações do cristianismo, na modernidade.
Dentre as imagens poéticas do inferno, sobretudo a
da Idade Média, encontramos em Dante a mais elaborada
representação infernal. Basicamente, o destino do
indivíduo ao inferno se corresponde ao “contrapasso” (lt.
contra pati), i.e., a pena é atribuída conforme o pecado, por
analogia ou contraste. No purgatório, a pena não tem o
mesmo fim do inferno (de castigo), mas de purificação, e
também segue a propensão ao pecado. Já o paraíso não
recebeu elaborações consideradas tão ricas como o inferno
e o purgatório, e está subentendido que a estrutura moral
paradisíaca se sustenta pela caridade que o indivíduo
prestou durante a vida na terra.
O inferno, segundo Dante, possui nove estágios. Os
cinco primeiros estão no limbo: (1) lugar das almas não
batizadas, (2) dos sensuais, (3) gulosos, (4) avarentos e
pródigos, e (5) furiosos. No Baixo Inferno estão (6) hereges
e incrédulos, (7) os que pecaram contra o próximo, contra
si mesmo e contra Deus, (8) sedutores, adulteradores,

154
simoníacos, adivinhadores, hipócritas, ladrões, maus
conselheiros e fundadores de seitas, e (9) traidores de
família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores. Ainda, no
lugar mais baixo do inferno está o Diabo. O comando do
Diabo é ambíguo: é o império do reino doloroso e, ao
mesmo tempo, o império do nada.56
A crença no inferno como saída para o mal denota
em submissão ao catolicismo e, ao mesmo tempo,
paradoxalmente, em um ódio que não se harmoniza com os
preceitos dos Evangelhos. Diante de alguns
questionamentos sobre a totalidade do inferno, surgiram,
então, alguns caminhos alternativos para a vida após-
morte.

III Purgatório e indulgências

Se, para Dante, não há esperança alguma no


inferno, como uma montanha apontada para baixo, há
esperança no purgatório, que aponta para cima. O primeiro
estágio do purgatório, configurado por dois pilares
sobrepostos que desenham o formato de uma montanha,
está o Antepurgatório, onde os soberbos são purificados.
No segundo estágio, o Purgatório propriamente dito, estão,
em estágios sucessivos esuperiores, os invejosos, os
coléricos, os preguiçosos, os avarentos, os gulosos, os
luxuriosos.57 O lugar do purgatório é uma ilha, na posição
mais remota dos oceanos, conectando o inferno e o céu.

56
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: Abril Cultural,
1981, p. 122.
57
Cf. DONATO, Hernâni In: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia,
p. 20.

155
Guardado por anjos, o purgatório é o local de cânticos,
preces, visões e exemplos virtuosos para que haja expiação
dos pecados e esperança de salvação. No entanto, esta
esperança, na história do purgatório, é acompanhada por
indulgências. São as indulgências, para os vivos, que salvam
as almas do purgatório. Segundo o bispo de Durhan, João
Cosin, em 1660, “que o poder e o uso das indulgências, tal
como agora são praticadas na Igreja de Roma, tanto a favor
dos vivos como dos mortos, devem ser aceitos e cridos por
todos sob pena de eterna perdição”.58
No Concílio de Trento, realizado em dezembro de
1563, está registrado, na sessão XXV, as seguintes
preocupações acerca do purgatório:
Visto que a Igreja Católica, instruída pelo
Espírito Santo, de acordo com as Sagradas
Escrituras e com as antigas tradições dos padres,
ensinou, em santos concílios e ultimamente
neste sínodo ecumênico, que existe um
purgatório e que as almas aí retiradas são
auxiliadas pelas intercessões dos fiéis, porém,
mais do que tudo, pelo aceitável sacrifício do
altar, este santo sínodo instrui os bispos a
encarar com a maior seriedade que a sã doutrina
a respeito do purgatório, transmitida pelos
santos padres e sagrados concílios, seja pelos
fiéis cristãos crida, mantida, ensinada e em toda
parte pregada. Mas, entre o provo iletrado,
sejam excluídas da pregação pública as questões
mais difíceis e sutis que não tendem à edificação
[1Tm 1.4] e das quais não resultará um
crescimento da piedade. E não sejam permitidas
quaisquer pregações públicas sobre matérias
incertas e sobre aquelas que só têm mesmo a

58
In: BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã, p. 397.

156
aparências de falsidade. E sejam proibidas, como
escândalos e fontes de ofensas para os fiéis,
coisas que levem à curiosidade e superstição ou
que têm o sabor de baixo lucro. O santo sínodo
impõe a todos os bispos e sobre outros os quais
foi imposto o dever e o encargo de ensinar que
diligentemente instruam os fiéis, de acordo com
o uso da católica e apostólica Igreja (recebida
desde a era antiga da religião cristã), o consenso
dos santos padres e os decretos dos sagrados
concílios, primeiramente no que concerna à
intercessão dos santos, à invocação dos santos, à
honra devida às relíquias e ao legítimo uso das
imagens; ensinando-lhes que os santos, que
reinam com Cristo, oferecem suas orações a
Deus em favor dos homens, que é bom e útil
invocá-los em súplicas e recorrer a eles em
orações, pedir seu auxílio e seu socorro para
obter benefícios de Deus através de seu Filho,
Jesus Cristo nosso senhor, o que é nosso único
Salvador e Redentor...”59
Confirmando a nota do concílio, João Cosin disse
que “existe um purgatório depois desta vida onde as almas
dos mortos são punidas e de onde são tiradas pelas orações
e ofertas dos vivos; e que não é possível haver salvação para
quem não crê nisso”60. O bispo foi enfático porque as
consequências do avanço da Reforma Protestante
começavam a tomar efeito.
A primeira reação às indulgências veio com Lutero,
em 1518, na discussão do reformador sobre as

59
Sobre o purgatório e a invocação dos santos: Sessão XXV
(dezembro de 1563), C. Tr. IX. 1077 ss. Denzinger, 983ss, In:
BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste,
2001, pp. 369-370.
60
In: BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã, p. 396.

157
indulgências. Sua teologia, sistematizada no que
denominou por Teologia da Cruz, deslocou a salvação do
dinheiro para o arrependimento pessoal; da penitência
subversiva para o conhecimento da graça divina
manifestada no Deus crucificado.61 Conforme disse Lutero
na tese 33, “deve-se ter muita cautela com aqueles que
dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável
dádiva de Deus através da qual a pessoa é conciliada com
Deus”62. A crença no inferno sempre teve força, mas a
crença no purgatório e indulgências foi questionada pelo
reformador. “Diz-se muito bem que o pecador deve ser
remetido ao purgatório ou à indulgência com a pena
restante, mas dizem ainda outras coisas sem fundamento e
prova”. 63 Ainda, “a indulgência não promove o
melhoramento de ninguém, e sim tolera e permite sua
imperfeição”64. A crítica ao purgatório e às indulgências
ganhou destaque com o Protestantismo e assegurou uma
nova interpretação para a relação do ser humano com
Deus. A ênfase no amor e na graça resgatavam a confiança
e segurança do cristão, pois, para Lutero, a perturbação na
vida viria do terror e horror causados pelas cobranças
excessivas do purgatório e do inferno.
No entanto, para salvar o católico do sola gratia e
manter créditos no purgatório, a Igreja ainda encontrou

61
LUTERO, Martim apud EBELING, Gerhard. O pensamento de
Lutero, p. 180.
62
LUTERO, Martin In: Martin Lutero – Obras Selecionadas: Volume
1 – Os Primórdios. Escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo: Editora
Sinodal, 1987, p. 25.
63
LUTERO, Martin. “Um sermão sobre a indulgência e a graça”. In:
Martin Lutero – Obras Selecionadas: Volume 1, p. 33.
64
LUTERO, Martin In: Martin Lutero – Obras Selecionadas: Volume
1 – Os Primórdios. Escritos de 1517 a 1519, p. 33.

158
outros caminhos, a saber, as instruções dadas pelo
arcebispo Alberto de Mainz para o mecanismo das
indulgências. A princípio, não se nega a graça de Deus,
mas coloca-se a graça em outros níveis de interesse.
“Qualquer pessoa que está contrita em seu coração e fez
confissão oral deve visitar pelo menos as sete igrejas
indicadas para esse fim”65. Desta forma, há taxas para o
privilégio da graça recebida:
reis e suas famílias, bispos etc., 25 florins de
ouro; abades, condes, barões etc., 10; outros
nobres e eclesiásticos e outras pessoas com
rendas de 500 florins, 6; cidadãos com renda
própria, 1; os que ganham pouco, ½; Os que
nada têm devem fazer sua contribuição por meio
de orações e jejum, porque o reino de Deus deve
estar aberto aos pobres tanto como aos ricos.66
Tais embates políticos de discursos sobre o
purgatório e indulgências retratavam outro problema
maior: quem iria deter o caminho para a salvação.

IV A questão do além: a exclusividade da salvação

A questão da salvação é fundamental para a


configuração de “infernos”. Podemos questionar se a
salvação está no discurso dominante. Não é raro um
indivíduo ou grupo configurar um céu ou inferno para
resolver problemas que estão além das capacidades do
grupo, como opressão, perseguição, maldades e morte.
Desta forma, o céu é o lugar por excelência da salvação. A

65
BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã, p. 279.
66
BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã, p. 279.

159
exclusividade da salvação coloca em jogo discursos
moralistas e formas de viver. Conforme em Dante, o céu
possui dez estágios, para os quais serão habitados por almas
que cumpriram os votos religiosos, praticaram o bem,
viveram em amor, foram doutores da igreja, combateram
em favor da fé, foram santos, e aqueles que se entregaram
ao serviço eclesiástico e viram o triunfo de Cristo.67 No
último estágio se forma a cândida rosa onde triunfam os
anjos e os bem-aventurados. A organização do céu de
Dante (de estágios planetares) reflete o sistema geocêntrico
concebido por Ptolomeu e vigente até a época da redação
da Divina Comédia. A estrutura do céu é o amor divino e,
por mais que Dante o descreva, só pode ser apreendido em
significação (e não em entendimento). Evitar o inferno,
caminhar e superar o purgatório e a contemplação da
Virgem Maria e da Santíssima Trindade no céu é o fim
último de todo ser humano.
Tal crença, representada com toque erudito e
criativo em Dante, foi possível pela questão da
exclusividade da salvação. As decisões que marcaram a
história da Igreja estão no embate da validade de outras
hermenêuticas soteriológicas – o Protestantismo, deste
modo, é uma interpretação que conflita com o passo
salvífico da Igreja Católica. Temos, evidentemente, muitos
outros exemplos que falam do próprio lado católico, como
o questionamento do jesuíta Riccardo Lombardi. 68 Até
mesmo um ateu com boas intenções, i.e., um “ateu
positivo”, não poderia se salvar. Segundo o jesuíta, um ateu

67
Cf. DONATO, Hernâni In: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia,
p. 20.
68
MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 455.

160
de boa fé (no sentido simples do termo), para se salvar do
inferno, deve, até o final de sua vida, reconhecer as limites
de sua existência e as verdades da fé cristã. O padre Yves
Congar69, em sua obra Fora da Igreja Não Há Salvação,
aprofunda as inquietações de Riccardo Lombardi e não
distinguiu a boa fé do ateu da ignorância. Para ele, há a boa
fé nos ateus porque existe no ser humano uma “intenção
para a fé”, contida em si mesma como uma moral das
coisas últimas. As qualidades da moral provém de Deus e,
para o padre, a Bíblia oferece todas as possibilidades de
sentidos de valores absolutos possíveis ao cristão e ao ateu
de boa fé (qualidades como: justiça, verdade, fraternidade,
paz etc.).
A exclusividade da salvação é um dos fatores
determinantes na configuração do imaginário do céu,
inferno e purgatório e na teologia sistemática. Teólogos
como Roger Haight e Leonardo Boff, que foram
silenciados pela igreja 70 , apresentaram propostas
cristológicas e escatológicas que ultrapassavam os muros
dogmáticos da igreja. No caso de Haight, o teólogo
levantou pressupostos para a uma salvação ética no
pluralismo religioso e sugeriu, em termos gerais, pela
revelação da “trindade a partir de baixo”, que “Jesus é
umadas mediações de Deus na história”71, “Jesus é uma
parábola de Deus”72, “Jesus assinala Deus para além de si

69
Cf. Hors de l'Église, pas de salut, y Encyclopédieducatholicisme.
París, Letouzey, tv. V. col. 948-956.
70
Cf. HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas,
2003.
71
HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus, p. 30.
72
Id. ibid., p.140.

161
mesmo”73, em suma, como indica o próprio título de seu
livro, Jesus é um símbolo de Deus. A questão da salvação
repercute diretamente à questão da teofania (que é um
pouco mais complexa) e que está diretamente relacionada à
elaboração dos imaginários de céu, inferno e purgatório.

V O lugar da Igreja antes do após-morte

Céu, inferno e purgatório são conceitos frutos do


problema da salvação e composições inteligentes das
implicações da teofania. No Concílio de Trento foi
discutida a instituição divina dos meios de salvação,
concluindo que Deus, em sua infinita misericórdia, não
salva a humanidade por necessidade intrínseca, senão
apenas para que seus efeitos salvíficos pudessem ser obtidos
através do desejo dos seres humanos.74 Aqui estamos no
início da Idade Moderna e a teologia católica acompanhou,
de certa forma, o protestantismo ao longo dos séculos.
Tanto que, em 1965, no II Concílio do Vaticano, a
constituição se abriu para a aporia “fora da igreja não há
salvação” e considerou a questão do desejo. A dimensão de
indivíduo norteou as reflexões sobre a salvação eterna,
considerando que ao indivíduo, por meio do desejo de fazer
parte da comunidade cristã, não lhe é necessário compor a
membresia de uma igreja local, mas, antes, de estar unido à
igreja por desejo – que é o desejo de Deus. Neste âmbito
foram formalmente aceitas a salvação de outras religiões

73
Id. ibid.
74
Cf. MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 454.

162
(como judeus e mulçumanos), inclusive de “ateus que
buscam a Deus com um coração sincero”75.
Desde o II Concílio do Vaticano, o tema do inferno
foi pouco discutido na Igreja Católica. João Paulo II
declarou que a Igreja Católica “crê numa pena que espera
para sempre o pecador, que será privado da visão de Deus e
repercutirá por todo o seu ser”76. Ratzinger, então cardeal,
na década de 70, escreveu um livro sobre a morte e a vida
após a morte, no qual dedicou pouco menos de quatro
páginas para o tema do inferno (num livro de 270 páginas)
e fez declarações gerais sobre o inferno:
Não é necessário apontar: a ideia de um castigo
eterno, claramente elaborada pelo judaísmo
durante os últimos séculos anteriores a era cristã,
está solidamente fundada nos ensinamentos de
Jesus e nos escritos dos apóstolos. Portanto, o
dogma possui base sólida quando fala da
existência do inferno e da eternidade dos
castigos.77
A noção de inferno da Igreja Católica se difere, por
exemplo, da noção carmelita, a qual, para São João da Cruz
e Teresa de Lisieux, interpreta o inferno como o
sofrimento pessoal da pessoa que participa da comunhão
com Cristo e vivencia a urgência da compreensão dos
Evangelhos que o mundo esquecera. O inferno até então se
tratava de um lugar físico – que habitava o imaginário
cristão. Evidentemente esta representação do inferno físico
começou a cair em desuso diante da Igreja Católica, o que

75
Lumen gentiumapud MINOIS, Georges.História de los infiernos, p.
455.
76
Cf. MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 459.
77
Cf. RATZINGER, Joseph apudMINOIS, Georges.História de los
infiernos, p. 458.

163
obrigou o cardeal Ratzinger a redigir uma nota sobre as
dificuldades da fé na Europa atual, na qual lamenta a
“redução radical” do inferno experimentada por religiosos
nos tempos atuais. Em tom irônico, criticou sermões que
reduziram o inferno à inexistência, depois extinguiram o
purgatório e, por fim, o próprio céu ficou inexistente.78
Houve, portanto, uma desconfiança generalizada acerca
dos discursos da Igreja sobre o céu, o inferno e o
purgatório.
Desde então, as lideranças e autoridades da igreja
deixaram de falar sobre o inferno. Acompanhando os
avanços das reflexões modernas, onde purgatório e limbo se
tornaram em ideias antiquadas, o papa João Paulo II
anulou a doutrina da culpa inerente e punição – referente à
ideia do pecado original. 79 Segundo Georges Minois, é
inútil procurar por palavras como inferno, julgamento,
condenados e condenação nos sumários das revistas
católicas populares ou científicas. O inferno passou por
reformas e novos imaginários foram constituídos.

VI Reformas no inferno

Poderíamos inferir que uma das grandes diferenças


do cristianismo atual para o dos séculos anteriores é a
reforma do inferno – pois ela envolve questões de
tolerância, aceitação e diálogo. A despeito do deslocamento
do inferno para as periferias do pensamento teológico,
alguns se dedicaram a repensar a habitação de Satanás para

78
Cf. MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 459.
79
Cf. a encíclica Evangelium Vitae, publicada aos 25 de março de
1995. In: KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia, p. 364.

164
resgatá-la na teologia. Na época medieval, como uma
reação à reforma de sua morada, o Diabo saiu do inferno e
passou a habitar o mundo terreno. São Tomás de Aquino
disse que o Diabo não estava mais limitado ao inferno, pois
não há necessidade para ele ficar lá até o Final dos
Tempos.80 Lutero recebia visitas do Diabo que, segundo
ele, testava sua fé. Do século XVI para a atualidade, o
Diabo teve o papel de tentador e possibilitou que o inferno
fosse repensado81 – tanto que é de William Shakespeare a
frase “o inferno está vazio e os demônios estão aqui”.
A proposta de repensar o inferno, que contraria o
monsenhor Lefebvre, segue o seguinte lema: o inferno não
está morto; está fechado para reformas. Nicolás Cortés82,
em 1956, modificou a concepção do inferno para o
instaurar novamente na discussão cristã: o inferno da vida
após a morte começa neste mundo. Segundo ele, o reino de
Satanás é o inferno, e o mundo terrestre é o reino de
Satanás. Conforme as narrativas no Novo Testamento, a
vida no mundo, os costumes e as máximas do mundo são
satânicas aos olhos de Cristo, de Paulo e de João. De forma
análoga, François Varillon, na mesma época, continua a
reflexão de Cortés, mas valoriza as antigas imagens do
inferno, que, para ele, conservam sabedorias milenares
(e.g., o fogo representa como arderia a consciência do
pecador que prefere o mal ao bem).

80
KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia, p. 290.
81
KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia, p. 363.
82
In: Encyclopédie du catholoque au XX siècle, apudMINOIS,
Georges. História de los infiernos, p. 461.

165
Inovador no conceito do inferno foi Karl Rahner.
“O inferno é uma virtualidade”83. Rahner não se preocupou
com os preceitos dogmáticos dos teólogos anteriores e não
se limitou a identificar o inferno com o real controverso.
Sua novidade está na possibilidade de fracassos da vida
humana por opção do próprio ser humano. Optar pelo mal
é uma auto-ameaça que coloca em risco o próprio ser
humano. Aos poucos o inferno recebeu reformas, direta e
indiretamente, como em Karl Rahner ou em Teilhard de
Chardin – este último foi acusado por sua doutrina do
Cristo cósmico não possuir o inferno. O inferno foi,
portanto, reformado e hoje qualquer pessoa, pelas questões
atuais, pode inferir que o inferno não é mais um lugar,
como antes, mas é um estado, uma situação.84
O sucesso de novas hermenêuticas acerca do
inferno se deu pela relação que elas têm com a vida. Da
mesma maneira que não se pode negar a existência do mal,
não se pode negar situações infernais na vida. De certo
modo, a teologia encontrou a limitação para o problema do
inferno – junto com aporias do divino: até que ponto pode
chegar a intoxicação do mal? Mesmo se abandonarmos o
Deus grego imutável e impassível, um Deus de amor
absoluto estaria em contradição com a existência do mal e
do inferno. Diante de tais questões atribui-se ao mal a
responsabilidade pela existência do inferno e ao ser
humano a responsabilidade de não tornar a terra num
inferno.

83
RAHNER, Karl apud MINOIS, Georges. História de los infiernos,
p. 462.
84
MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 463.

166
Ninguém pode afirmar que o inferno seja uma
realidade para um determinado indivíduo, seja
quem for. No entanto, não se pode concluir que
não existam condenados. Quando não se sabe
nada é impossível dizer alguma coisa: nem que
os condenados são numerosos, ou que não
existem nenhum. Conhecemos, somente, uma
coisa: se o pecado não for combatido
energeticamente, o inferno será a realidade entre
nós e por nós.85
Em suma, o inferno, após sua reforma, tornou-se
num descobrimento trágico pela persistência do ser
humano fazer o mal.

VII A crença nos infernos atuais

Após o que foi mencionado, vale notar que as


noções de condenação e de redenção, em grande parte dos
países cristãos (sobretudo os países europeus) perderam sua
credibilidade, e junto com tais crenças caiu o inferno.86 Em
uma nação de tradição cristã europeia, apenas ¼ da
população que no meio do século XX acreditava no inferno
mantém suas crenças ao final do século XX. Dentre
católicos, metade dos praticantes acreditam no inferno e ¼
dos não praticantes também acreditam. Os números, como
sugerem Georges Minois, demonstram a fragilidade do
inferno tradicional nos dias atuais. Há muito a pesquisar
sobre o inferno tradicional, sem dúvida, mas há novas
representações do inferno que nos chamam a atenção e que
85
MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 463.
86
Cf. tabela de porcentagem das crenças no inferno no meio do século
XX e ao final do século XX. In: MINOIS, Georges. História de
losinfiernos, p. 467.

167
valem a reflexão – pois estas representações acompanham o
desenvolvimento industrial, tecnológico e científico.
É de Shakespeare o dilema fundamental da
modernidade diante das estruturas eclesiásticas: o inferno
da vida ou um possível inferno na vida após a morte?
Devido os avanços tecnológicos no século XX, tanto
artísticos como científicos, o inferno tradicional perdeu
força, pois o ser humano tratou de criar infernos sociais na
Terra: guerras locais e mundiais, campos de concentração,
genocídios, atentados, armas atômicas e químicas, fome,
epidemias, ditaduras etc. Neste contexto a palavra inferno
(com conotação superficial) ainda habita o cotidiano –
afinal, estes infernos estruturais estão vinculados à condição
humana de realização do mal (que se parecem com o
inferno tradicional). Alguns pesquisadores, como Alain,
sugerem o estudo do inferno como um tema literário e
objeto da história e da investigação sociológica por haver
tal correspondência com as atitudes humanas.87
Se o inferno cristão perdeu sua credibilidade pelas
contradições internas (como um Deus bom poderia mandar
alguém para o inferno? se a criação é boa, o inferno seria o
fracasso da criação?), fornecendo dúvidas sobre sua real
existência, coube à literatura e à filosofia pensar em outras
saídas para o mal.
A análise do inferno pela literatura pode ser
dividida, brevemente, em três momentos singulares: a
fatalidade exterior (representada por Homero e o destino
do mundo), a fatalidade interior (representada por Virgílio
e o desafio do herói) e a dialética falta/arrependimento
(representada por Dante e a possibilidade do castigo,

87
Cf. MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 469.

168
purificação e salvação). A literatura abre o tema do inferno
e, no século XX, o tema do inferno é livremente pensado
(e.g., ateus mencionam mais o inferno que os próprios
cristãos).
A análise do inferno pela sociologia levou Jean
Guitton a concluir que o inferno tradicional não encontrou
correspondência com os julgamentos morais e penais do
século XX. Para Georges Minois, essa dissonância aparece
no pensamento de Albert Einstein sobre a noção de
responsabilidade e de castigo atual, representando uma
nova consciência acerca de antigos julgamentos:
Aquele que está convencido de que a lei causal
rege todo acontecimento não pode
absolutamente encarar a ideia de um ser a
intervir no processo cósmico, que lhe permita
refletir seriamente sobre a hipótese da
causalidade. Não pode encontrar um lugar para
um Deus-angústia, nem mesmo para uma
religião social ou moral: de modo algum pode
conceber um Deus que recompensa e castiga, já
que o homem age segundo leis rigorosas internas
e externas, que lhe proíbem rejeitar a
responsabilidade sobre a hipótese-Deus, do
mesmo modo que um objeto inanimado é
irresponsável por seus movimentos. Por este
motivo, a ciência foi acusada de prejudicar a
moral. Coisa absolutamente injustificável. E
como o comportamento moral do homem se
fundamenta eficazmente sobre a simpatia ou os
compromissos sociais, de modo algum implica
uma base religiosa. A condição dos homens seria
lastimável se tivessem de ser domados pelo

169
medo do castigo ou pela esperança de uma
recompensa depois da morte.88
É neste espírito de descrença num inferno depois
da morte que, a partir do século XX, o inferno passa a
habitar dentro de cada indivíduo. O inferno se tornou,
então, em objeto da literatura e foi repensado conforme as
experiências pessoais de cada sujeito. “Onde estou, lá está
minha livre vontade, e onde está minha livre vontade, lá
está em potência o inferno absoluto e eterno” 89 , disse
Marcel Jouhandeau. Para Jean-Paul Sartre, em sua célebre
formulação, “o inferno são os outros”90. Se o inferno é o
impedimento da concretização da eternidade, o outro, na
alteridade, segundo Sartre, é o impedimento das
realizações individuais. O inferno do existencialista é
trágico, pois não há saída para fora da humanidade. Na
peça de teatro Entre quatro paredes, a imagem do inferno é
reforçada pela perda da individualidade refletida nos
espelhos, de forma que o ser é confundido com o olhar dos
outros. Para Martin Heidegger, o inferno está na angústia
existencial do Dasein que é ameaçado pelo não-ser. Albert
Camus dá outros nomes para a mesma dinâmica: o inferno
é o absurdo do ser dominado pelo azar. O inferno
existencialista seria a simples consciência da existência e da
vida – em suma, consciência de um mundo que não possui
objetivo, significado e sentido, do qual não temos saídas.

88
EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981, p. 13.
89
JOUHANDEAU, Marcel apudMINOIS, Georges. História de
losinfiernos, p. 472.
90
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 123.

170
Devido o teor da literatura e filosofia atual,
podemos inferir que a concepção do inferno acompanha a
preocupação de cada época. Dino Buzzati, escritor italiano,
escreveu, em 1966, um relato (Viagem do século ao inferno91)
cujo inferno, que é identificado à civilização moderna,
trata-se das preocupações da sociedade industrial. Para ele,
a cidade infernal possibilita infernos individuais, de
diferentes estágios para a dor, o sofrimento, o ódio etc.,
inserido num inferno de escala planetária. Se sairmos da
literatura para as outras áreas encontraremos relações
similares às interpretações dos existencialistas e dos
escritores como Buzzati. O físico BasarabNicolescu,
professor de física em Paris, disse que o mundo gira em
torno de uma roda da angústia; a bifurcação deste giro está
entre a autodestruição e a evolução, de forma que o ser
humano optou pela autodestruição ao assimilar o progresso
de uma determinada nação à evolução de uma identidade
(permitindo totalitarismos e holocaustos, de forma que
oprime e diminui outras comunidades e países). 92
Novamente, esta realidade, para tais pensadores, é o
próprio inferno. O inferno está no aniquilamento da
humanidade. Como questiona Nicolescu, “não estaríamos
repetindo o gesto de Lúcifer, o gesto de olhar para trás?
Não estaríamos presos, para sempre, na roda da
angústia?”93

91
Cf. Il colombre (1966).
92
MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 477.
93
NICOLESCU, BasarabapudMINOIS, Georges. História de
losinfiernos, p. 477.

171
VIII Pensando existencialmente o papel do inferno

Apesar das diferentes crenças e ideias dos infernos,


uma coisa há em comum em todas representações: o caráter
hipotético da existência do inferno. Se representações sobre
o inferno podem ser feitas, isto se dá porque elas
encontram referências na vida. Se Deus é bom e mal,
questiona JacboBoehme, será que o mundo também não é
céu e inferno?94 Um dos versos de John Milton, no Paraíso
perdido, diz: “A mente é sua própria morada, e ela mesma
pode fazer um céu do inferno e um inferno do céu”.95
Desta forma, pergunta Georges Minois, não seria o céu e o
inferno faces contraditórias da mesma realidade? Duas
virtualidades do indivíduo que se realizam conforme a
disposição da pessoa? Afinal, Satanás, antes de cair, foi um
anjo (Isaías 14.12-14); e o ser humano é ao mesmo tempo
um ser condenado (Romanos 13.2) e um ser eleito (Efésios
2.8-9).
A questão do inferno, céu e purgatório, por mais
emblemático e controverso que possa parecer aos olhares
modernos, apresenta-nos uma outra realidade por parte de
quem o testemunha: é um grito das amarguras e
instrumento dos reclamos políticos, das decepções com a
hierarquia religiosa, da vingança contra os inimigos 96 –
como foi para Dante, que, de sua situação vivencial, não
perdoou os ricos, os estáveis e os inimigos ao poetizar sobre

94
MINOIS, Georges. História de los infiernos, p. 478.
95
“The mind is its own place, and in itself / Can make a Heaven of
Hell, a Hell of Heaven”. MILTON, John. Paradise Lost. New York:
Penguin Classics, 2003, p. 14.
96
DONATO, Hernâni. In: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia.
São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 23.

172
o inferno. De semelhante modo, Lutero notou na tese 16,
com efeito, que a diferença entre inferno, purgatório e céu
parece ser a mesma que há entre desespero, quase-
desespero e confiança.97 Em suma, inferno, purgatório e
céu refletem condições do ser humano que são apropriadas
por instituições e servem para compor normas de conduta e
de pensamento de pessoas que experimentam as situações
de angústia (desespero) e de coragem (confiança). Assim,
infernos são infernos para todos os mundos, todas as
pessoas que vivenciam suas profundas inquietações e
contradições – por isso o inferno nunca desapareceu e sua
transição para a superfície da Terra aconteceu
naturalmente. Castigo individual ou angústia pessoal, o
inferno é uma experiência radical e possui significados
profundos. Estes significados se abrem na relação das
responsabilidades individuais e coletivas. O inferno é uma
confrontação. Ele se torna possível quando não há
sensibilidade solidária de amor profundo para os problemas
e desafios de qualquer origem. Enquanto o inferno
tradicional é a coação de uma vida egoísta e malvada diante
dos outros, o inferno moderno (do existencialismo) é o
despertar de uma consciência desapegada das contradições
pertinentes da existência, sabendo que não se pode viver
sem tais contradições (e que optar entre ser ou não ser seria
viver o verdadeiro inferno terreno). Assim, tanto o inferno
tradicional como o inferno moderno apresentam soluções
parciais sobre a condição humana.

97
LUTERO, Martin In: Martin Lutero – Obras Selecionadas: Volume
1 – Os Primórdios. Escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo: Editora
Sinodal, 1987, p. 24.

173
A solução estaria num humanismo planetário, fruto
da consciência da oscilação entre o inferno tradicional e o
inferno moderno – e, evidentemente, da possibilidade da
aniquilação do ser pelo excesso de afirmação de uma
determina instância infernal (ou o tradicional, ou o
moderno). Para Georges Minois, a transdisciplinaridade é
um método rico para a investigação moderna do inferno.
Niels Bohr e BasarabNicolescu são exemplos que
promoveram o diálogo entre as diferentes abordagens
científicas com o intuito de descobrir novas interpretações
para o inferno e o problema do mal. A sugestão estaria
num método simples, que é a integração do individual e do
coletivo. Uma individualização total levaria ao cinismo,
indiferença, ausência de solidariedade; e uma coletividade
total levaria à utopias domesticadas, totalitarismos
coletivistas e isolamento anarquista.98 O inferno pode ser a
negação total de si pelo coletivo ou a negação do
comunitário por um indivíduo. A situação moderna navega
entre diferentes infernos, alguns individuais, outros
coletivos – e.g., o inferno homogêneo do nazismo ou o
inferno heterogêneo da democracia de falsas liberdades e
de verdades desiguais. Desta forma, não é a transformação
do mundo exterior que pode nos salvar do inferno (ou dos
infernos), mas a transformação das atitudes individuais,
internas, diante das realidades que ferem e queimam
infinitamente as pessoas.
Apesar de todas representações assustadoras do
inferno, o inferno possui um objetivo prático: eliminar o
mal (com o mal).99 O inferno cristão fruiu a perfeição, mas,

98
MINOIS, Georges. História de los infiernos, p. 485.
99
MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 480.

174
mesmo assim, contradisse-se e não respondeu os problemas
do mal. Os outros infernos além do teológico (inferno
literário, filosófico ou popular) também foram submetidos
em dúvidas. No entanto, a história do inferno deve nos
fazer pensar – pensar sobre nossas ações e relações.
Antigamente, o inferno – desde o Xeol hebraico e o Hades
grego – era um espaço físico que compunha o imaginário
da época. No entanto, a ênfase no inferno não era
primordial. Na história do pensamento cristão notamos
que a maioria dos documentos dos primeiros séculos não se
preocuparam primeiramente com palavras tais quais “céu”,
“inferno” ou “purgatório”.100 No decorrer dos séculos, e em
especial com a consolidação do cristianismo como religião
oficial na época medieval, o inferno passou a ter um papel
fundamental na organização social e nos valores morais e
modos de conduta. Hoje, o inferno tradicional perdeu sua
credibilidade. O inferno sofreu algumas reformas de
significação – uma breve busca no dicionário nos mostra a
incorporação de novos sentidos atribuídos ao inferno como,
por exemplo, “vida atribulada”, “coisa desagradável”,
“desassossego”101 – e o verbete inferno passou a integrar o
presente do dia-a-dia (em canções, poesias, interjeições,
gírias etc.). Nesta instância, o inferno é uma realidade
linguística ou metafísica de cada indivíduo e possui relação

100
Cf. em BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. Ver
também a questão da raridade de aparências do nome de Satã nos
textos de Qumram. In: KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia.
São Paulo: Globo, 2008, p. 57.
101
Cf. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO,
Francisco Manoel de Mello, Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: EditoraObjetiva, 2004.

175
com a salvação do ser, seja uma salvação social, moral ou
individual. E aqui propomos um caminho tillichiano.

IX O demoníaco em Paul Tillich em diálogo com a


história dos infernos

Por fim, até aqui apresentamos a história dos


infernos sob um viés existencial. Retomamos, para a
conclusão deste projeto, o pensamento de Paul Tillich
acerca do demoníaco – que é uma releitura de Santo Tomás
de Aquino (“a criação é boa). O inferno como solução para
o problema do mal está enraizado na questão do
demoníaco. Esta palavra é derivada do alemão das
Dämonische, que tem sua origem no grego δαιµόνιον – e
que foi elaborada em inglês, the Demonic, como
neologismo, pelos tradutores de Paul Tillich. 102 O
demoníaco não é um ente, mas, antes, é o desejo do ser
humano e de suas ações e instituições serem últimas e
supremas. Como notou Sartre, o ser humano é um ser com
a ilusão de ser Deus.103 A reflexão de Tillich acerca da
esfera do demoníaco (onde estão os imaginários de
inferno/demoníaco/mal) conclui que o mal não tem
poderes supremos, enquanto o demoníaco é uma
possibilidade ao ser humano. O demoníaco, portanto, é

102
ZUCKER, Wolfgang M. “The Demonic: from Aeschylus to
Tillich”. In: Theology Today – Vol. 26, No. 1 – Abril, 1969, p. 36.
103
SARTRE, Jean-Paul apud ZUCKER, Wolfgang M. “The Demonic:
from Aeschylus to Tillich”. In: Theology Today – Vol. 26, No. 1 –
Abril, 1969, p. 50.

176
tudo aquilo que na condição de finito reivindica ser último,
supremo e decisivo.104
Para Paul Tillich, ontologicamente o demônio não
é possível. O mal não pode ser explicado por um ser
exterior. O demoníaco (que é uma palavra mais apropriada
para o seu pensamento, ao invés de demônio) é uma
estrutura da realidade. Esta estrutura do demoníaco reflete
a ambiguidade do mal. O real, na convivência, possui uma
dimensão criadora e destruidora. Sagrado e demoníaco são
lados diferentes da mesma esfera, onde a força e energia
são semelhantes. Nesta relação, a dimensão destruidora
pode se tornar dominante, no entanto, mesmo assim, tal
força demoníaca não é um ser, algo que subsiste em si
mesmo. O demoníaco é a ambiguidade no humano e sua
capacidade para dividir, destruir, desentender, depreciar e
terminar com o ato criativo da vida.
Desta forma, Tillich propõe um caminho
ontológico para a superação do demoníaco. O critério de
Tillich é sempre favorecer a coragem de ser. Se uma
religião é repressora, atribuidora de culpas e impede ao
indivíduo de assumir sua coragem de ser como si próprio
(pela imagem do Diabo, por medo do inferno e da
aparência de supremacia que a religião aspira), então esta
religião estaria desempenhando um papel demoníaco. É na
lacuna da impossibilidade de superação da angústia (al.
Angst) que a religião aloca suas teorias infernais. A
racionalização da angústia em medo, especificamente
proposta pela linguagem do neurolinguísta Kurt

104
“The claim of anything finite to be final in its own right is
demonic.” TILLICH, Paul. Systematic Theology, Vol. 1, p. 141.

177
Goldstein 105 , da qual Tillich herda e trabalha
profundamente em sua obra A Coragem de Ser, possibilita o
enfrentamento das ações que Tillich denomina por
demoníacas. O caminho é a incorporação do medo para
que a angústia possa ser suportada, de modo que não se
renuncie uma parte das potencialidades individuais a fim
de salvar o que resta no ser. A narrativa do inferno é uma
tentativa de superar a autoafirmação do ser através dos
discursos finitos que se propõem a ser últimos e decisivos
na vida. As instituições que prezam por tal aspiração
demoníaca logo percebem aqueles que as encaram e as
superam – como no Novo Testamento, onde um
endemoniado percebe o caráter messiânico de Cristo, ao
passo que seus discípulos não perceberam tal caráter. De tal
maneira, o caminho tillichiano é o da superação do
demoníaco, da incorporação do medo e participação na
vida; pois, “a coragem de ser é possível porque ela é
participação na autoafirmação do ser-em-si”106.

Considerações

Para tal conclusão, retomamos o projeto de


Georges Minois e Paul Tillich. A sabedoria dos
Evangelhos sugere que os caminhos difíceis e estreitos são
os mais nobres para a vida. Se o inferno se faz presente e
corresponde à condição de salvação de cada indivíduo, o
caminho forte é a aceitação das aporias e das contradições
existenciais para envolver novos horizontes que não
incluam novos infernos. O reconhecimento dos mais

105
Cf. BLUMENBERG, Hans. Work on Myth, p. 5.
106
TILLICH, Paul. A Coragem de Ser, p. 18.

178
profundos paradoxos (como por exemplo, a liberdade
denota desigualdade / igualdade denota não liberdade; a
individualidade depende do coletivo / o coletivo é
composto pela individualidade) caminham para a aceitação.
A aceitação das limitações e dos conflitos pessoais é o
primeiro passo em direção à possibilidade de mudanças
(como indicou Paul Tillich, em sua filosofia sobre a
coragem de ser: “aceitar-se como sendo aceito, a despeito
de ser inaceitável”107). Segundo Georges Minois, para não
atribuirmos cinicamente o problema do mal ao inferno
(todos infernos) devemos escolher o caminho estreito – que
é a responsabilidade diante do mal. A virtude caminha de
permeio e aceita suas limitações de ser e de não ser. Não é
o culto à ambiguidade, mas a integralização das
possibilidades polares (onde a exclusão de uma delas pode
levar ao próprio inferno por não se abrir aos lados
diferentes). “O inferno”, nas palavras de Minois, “consiste
na negação de uma das duas facetas e se condena assim em
uma existência incompleta, à mutilação da metade do
próprio ser”.108 A salvação do inferno está na renúncia da
afirmação de uma das dimensões pessoais. Lembrando
Tillich, o indivíduo pode ter a coragem de ser como uma parte
ou a coragem de ser como si próprio109, i.e., pode colocar sua
força vital e motivação existencial num determinado grupo,
apenas, ou em si mesmo, somente. Uma ou outra não
resolveria os problemas sociais nem os problemas
individuais que impediria o inferno – seriam, ao separar o
ser humano de si mesmo, a ação do demoníaco. Na

107
TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976, p. 128.
108
MINOIS, Georges. História de losinfiernos, p. 486.
109
TILLICH, Paul. A coragem de ser, p. 74.

179
imagem de Pascal, o ser humano é anjo e burro ao mesmo
tempo 110 : quem desejar ser um anjo ou um burro
exclusivamente cairá no inferno, pois a salvação do inferno
está na aceitação das contradições, onde mora a verdade e a
humildade. Desta forma, precisa-se superar o demoníaco
que busca pretensões totalitárias e últimas, pois o inferno
passa a existir quando se aceita apenas um dos lados,
excluindo outras realidades sociais e individuais –
principalmente a realidade básica do ser e do não ser.
Como disse Lutero, o inferno existe, mas Deus é tão
generoso que não manda ninguém para lá. Podemos nos
salvar de qualquer inferno se incluirmos todas as dimensões
da vida nos projetos individuais e sociais e evitarmos o
elemento mais básico do inferno: a separação de alguns
julgados bons e outros julgados maus.

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110
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182
FALAR DE DEUS NO LIMITE DOS TEMPOS: A
CONTRIBUIÇÃO DE PAUL TILLICH À
SUPERAÇÃO DO TEÍSMO NA MODERNIDADE
TARDIA111

Etienne A. Highet 112

Introdução

Pensamos que a teologia de Paul Tillich, através da


sua superação do teísmo, da generalização da linguagem
simbólica na teologia e da superação parcial da “onto-teo-
logia” antecipou de certo modo o abandono de formas de
linguagem e pensamento vinculadas a uma época dominada
pela leitura literal dos mitos e símbolos – isto é, sua
transformação em conceitos – e pela autoridade dogmática
irrecusável. Tillich contribuiu assim à reinterpretação e re-
estruturação do patrimônio simbólico das religiões, na nova
situação de conhecimento e dos novos parâmetros de

111
Versão ligeiramente modificada do artigo publicado em Correlatio,
vol. 13, nº 26, dez. 2014, p. 29-50.
112
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade
Católica de Louvain (Bélgica). Professor aposentado do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo. Professor visitante na Universidade do Estado do Pará.
Presidente da Associação Paul Tillich do Brasil. E.mail:
ethiguet@uol.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5600938581821983

183
interpretação, facilitando assim o “trânsito” inevitável em
que nos encontramos (EATWOT, 2012, p. 301).
O ingresso de Tillich em uma nova linguagem
sobre Deus se fez através da “dimensão da profundidade”,
ou “dimensão religiosa”, que teria entrado no esquecimento
na situação do ser humano ocidental. Isto é, o ser humano
esqueceu a resposta às perguntas fundamentais,
particularmente as perguntas sobre o sentido da sua vida
(TILLICH, 1969, p. 48). O ser humano de hoje não tem
mais consciência de “estar tocado por uma preocupação
última e incondicionada”, por um UltimateConcern. No
mundo domesticado pela ciência e explorado por meio da
técnica, a vida humana não se realiza mais na direção da
profundidade, mas na única dimensão horizontal. Para
Tillich,
A ideia de Deus e os símbolos usados para
descrevê-lo expressam a preocupação mais
profunda do ser humano. Reduzidos ao único
plano horizontal, fazem de Deus um ser entre
outros cuja existência ou não-existência precisa
ser provada. Talvez a disputa a respeito da
existência de Deus – disputa na qual as duas
partes estão erradas – seja o sintoma mais claro
do esquecimento da dimensão da profundidade;
pois a questão é falsa e só pôde ser colocada em
razão de um singular desprezo pela dimensão de
profundidade (TILLICH, 1969, p. 55).
Num dos seus mais famosos sermões, Tillich
afirmou: “O nome da profundidade inexaurível e do
fundamento infinito de todo ser é Deus. A palavra Deus
expressa essas profundezas. (...) Quem possui alguma ideia
das profundezas possui alguma ideia de Deus (TILLICH,

184
1969, p. 81-82).” É da ideia de Deus que pretendemos
tratar.
O presente texto divide-se em quatro partes e uma
conclusão. Na primeira parte, consideramos a crítica de
Tillich ao supranaturalismo e ao teísmo e a sua superação
no “teísmo transcendido” e na “fé absoluta”, que se expressa
na metáfora do “Deus acima de Deus”. A crítica do teísmo
exige uma reinterpretação das chamadas “provas da
existência de Deus”, objeto da segunda parte. A terceira
parte pretende mostrar que só se pode falar de Deus numa
linguagem simbólica, mas que os símbolos do divino se
fundamentam no conceito não simbólico de “ser-em-si”
(beingitself). Na quarta parte, discutimos a concepção
ontológica de Deus em Tillich, as dificuldades que ela
apresenta e as possibilidades que ela oferece em vista de
uma superação da ontoteologia em que se apoiou a maior
parte da teologia cristã. Enfim, na conclusão, procuramos
mostrar a antecipação, no pensamento de Tillich, do
projeto de uma “espiritualidade leiga, sem crenças, sem
religiões, sem deuses (MariàCorbí)”.

O Deus acima do Deus do teísmo

Em Tillich, a crítica do teísmo acompanha a crítica


do supranaturalismo. O supranaturalismo é uma teologia
que afirma a existência de um mundo supranatural ao lado
ou acima do mundo natural, um mundo no qual o
incondicionado ocupa um determinado espaço – ou seja,
Deus torna-se um objeto mundano, a criação um ato no
começo do tempo e a realização definitiva uma situação
futura das coisas. Quando criticamos essa transformação do

185
incondicionado em condicionado, mesmo se a crítica tiver
consequências ateístas, somos mais religiosos que o teísmo
que confina Deus num domínio supranatural, pois
reconhecemos mais corretamente o caráter incondicionado
do divino. O ser humano de hoje, que percebe o fosso que
o separa do crente teísta piedoso, sabe mais da “potência
incondicionada” que o cristão seguro de si, que pensa que
possui Deus pela sua fé, pelo menos intelectualmente (Cf.
TILLICH, 1961, p. 106).
Para Tillich, o caminho da teologia deve levar, ao
mesmo tempo, para além do naturalismo e do
supranaturalismo. O supranaturalismo separa Deus como
um ser, o ser supremo, dos demais seres, ao lado e acima
dos quais ele tem a sua existência. Este Deus criou o
universo num determinado momento do tempo, dirige-o a
um fim, interfere em seus processos normais para superar a
resistência e cumprir seu propósito, e o conduzirá à
consumação numa catástrofe final. Esta interpretação
transforma a infinitude de Deus em finitude dependente
das categorias de espaço, tempo, causalidade e substância.
O naturalismo antigo identifica Deus com o
universo, com sua essência e com poderes especiais dentro
dele. Deus é o nome com que se designa o poder e o
sentido da realidade. Deus é um símbolo da unidade, da
harmonia e do poder de ser; ele é o centro dinâmico e
criativo da realidade. Vemos isso, por exemplo, no Deus
sive natura de Spinoza. A qualidade religiosa dessas
afirmações desapareceu no naturalismo moderno, que
entende a natureza em termos de materialismo e de
mecanismo. O naturalismo nega a distância infinita entre a
totalidade das coisas finitas e seu fundamento infinito e o

186
termo “Deus” chega a ser intercambiável com o termo
“universo”.
Um terceiro caminho afirma que Deus não seria
Deus se não fosse o fundamento criativo de tudo o que tem
ser, que, de fato, ele é o poder infinito e incondicional do
ser ou, utilizando uma abstração ainda mais radical, que ele
é o ser-em-si. Neste sentido, Deus não está ao lado das
coisas nem “acima” delas, mas está mais próximo das coisas
do que elas de si mesmas. Ele é o seu fundamento criativo,
aqui e agora, sempre e em todo lugar. Podemos chamar de
“autotranscendente” ou “extática” uma ideia de Deus que
supera o conflito entre naturalismo e supranaturalismo.
Dizer que Deus é transcendente não significa que se deva
estabelecer um “supermundo” de objetos divinos. Significa
que, em si mesmo, o mundo finito aponta para além de si
mesmo, isto é, é autotranscendente. A finitude do finito
aponta para a infinitude do infinito. Na expressão “ideia
extática de Deus”, o termo “extático” indica a experiência
do sagrado, experiência que transcende a experiência
comum sem anulá-la (Cf. TILLICH, 2005, p. 301-304).
A afirmação fundamental sobre Deus, que ele é o
ser-em-si ou o poder do ser, exclui que ele seja um ente.
Isso exclui também a idolatria. Um ídolo é um Deus que é
um ente ao lado de outros entes e não é o ser-em-si, o
poder do ser, o fundamento ou o sentido do ser. É uma
coisa cósmica ao lado de outras. Deus está além da essência
e da existência, e ambas participam dele como do seu
fundamento. Ele é também o que supera a divisão entre
essência e existência, como força do Novo Ser (Cf.
TILLICH, 1970, p. 229-230).

187
Em A Coragem de Ser, Tillich fala em “teísmo
transcendido” pela “fé absoluta”, cujo conteúdo é o “Deus
acima de Deus” (GodaboveGod). O teólogo distingue três
sentidos do termo “teísmo”. O primeiro é vago, não
especificado, típico da linguagem cotidiana, e corresponde
ao abuso retórico-político do nome de Deus. Este teísmo
não pode atingir o estado de fé, do mesmo modo que o
ateísmo que o nega não pode alcançar o estado de
desespero. Num segundo sentido, o teísmo pode significar
o encontro divino-humano, designando os elementos da
tradição judeu-cristã que focalizam a relação de pessoa a
pessoa com Deus. Representa o aspecto não místico da
religião bíblica e do cristianismo histórico. A este teísmo
opõe-se uma forma existencial de ateísmo, correspondendo
à tentativa humana de escapar do encontro divino-
humano. Enfim, o teísmo teológico procura provar a
necessidade de afirmar Deus de qualquer modo. Além de
desenvolver os pretensos argumentos a favor da existência
de Deus, procura sistematizar teoricamente o encontro
pessoal com Deus como encontro de duas pessoas que
possuem uma realidade independente uma da outra.
Precisamos superar o teísmo nos três sentidos, mas,
sobretudo, no sentido teológico, pois se trata de uma
teologia de péssima qualidade. É que o Deus do teísmo
teológico é um ser ao lado dos outros, isto é, uma parte do
conjunto da realidade, submetida à estrutura do real, por
mais que seja a parte mais importante do real. Ele é um ser,
não o ser-em-si. Submetido à estrutura sujeito-objeto, ele
se torna objeto para nós sujeitos e, enquanto sujeito, faz de
nós seus objetos. Deus aparece como o tirano invencível
que poda a nossa subjetividade e a nossa liberdade.

188
Encontramos aqui a raiz mais profunda do ateísmo, do
desespero existencialista e da angústia do absurdo. “O
teísmo, em todas as suas formas, é superado pela
experiência que chamamos de fé absoluta. Esta é o poder
do ser-em-si, que aceita e dá a coragem de ser”
(TILLICH, 1952, p. 222).
O ser-em-si absorve e transcende, ao mesmo
tempo, tanto o misticismo quanto o encontro de pessoa a
pessoa. É somente se o Deus do teísmo for superado que a
angústia da dúvida e do absurdo poderá ser integrada à
coragem de ser. O Deus acima do Deus do teísmo torna
paradoxal toda afirmação, todo perdão e toda oração. A
aceitação de Deus acima do Deus do teísmo nos faz
participar, individual e coletivamente, do fundamento da
totalidade. A igreja que se volta para este Deus sem
sacrificar seus símbolos concretos pode ser mediadora de
uma coragem que integra a dúvida e o absurdo. É a igreja
do crucificado clamando para Deus no momento em que o
Deus da confiança o deixara nas trevas da dúvida e do
absurdo.
A fé absoluta, ou o estado de ser possuído pelo
Deus além de Deus (GodbeyondGod) (...) é
sempre um movimento presente em, com e
subjacente aos outros estados do espírito. É uma
situação na fronteira das possibilidades
humanas. Ela é essa fronteira. (...) Ela é sem
nome, sem igreja, sem culto e sem teologia.
Mesmo assim, é ela que opera na profundidade
de todas estas realidades. Ela é o poder do ser,
do qual cada uma destas realidades participa e
do qual elas são expressões fragmentárias
(TILLICH, 1952, p. 229).

189
A fé absoluta diz Sim ao ser sem ter visto nenhum
elemento concreto que possa vencer o não-ser no destino e
na morte. É o que Tillich diz também na Teologia
Sistemática:
A fonte de que emana a afirmação de um
sentido dentro da ausência de sentido, de uma
certeza dentro da dúvida, não está no Deus do
teísmo tradicional, mas no “Deus acima de
Deus”, no poder de ser que atua através das
pessoas que não têm um nome para designá-lo,
nem mesmo o nome Deus (TILLICH, 2005, p.
308).

As “provas” da existência de Deus

A superação do teísmo implica na rejeição das


provas da existência de Deus enquanto “provas”. Na
Teologia Sistemática, Tillich distingue a forma
argumentativa do sentido implícito dos argumentos
tradicionais a favor da existência de Deus. É preciso rejeitar
a primeira, enquanto podemos aceitar o último. No fundo,
já os escolásticos, apesar de formulações infelizes, “não
queriam falar da ‘existência’, mas da realidade, da validez,
da verdade da ideia de Deus, uma ideia que não trazia a
conotação de algo ou alguém que poderia existir ou não
(TILLICH, 2005, p. 213)”. Para Tillich, Deus não existe,
mas é o ser-em-si para além de essência e existência.
Resulta daí que todo argumento a favor da existência de
Deus seria uma negação de Deus. Falar em existência de
Deus equivale a colocar o fundamento do ser dentro da
totalidade dos seres. Tampouco podemos encontrar Deus
na conclusão de uma argumentação lógica a partir do

190
mundo, quando Deus é deduzido do mundo. Se
derivarmos Deus a partir do mundo, ele não poderá ser
aquilo que transcende infinitamente o mundo.
Na realidade, os argumentos ou provas da existência
de Deus são expressões da pergunta por Deus que está
implícita na finitude humana. A pergunta por Deus
pressupõe uma consciência de Deus. É o caso do chamado
argumento ontológico, que aponta para a estrutura
ontológica da finitude. Para o ser humano, a consciência de
sua finitude contém a consciência de sua infinitude
potencial. “O argumento ontológico nos oferece, em suas
várias formas (Agostinho, Anselmo, Descartes, Kant), uma
descrição de como a infinitude potencial está presente na
finitude efetiva (TILLICH, 2005, p. 214)”. As diversas
elaborações do argumento mostraram a presença de algo
incondicional dentro do eu e do mundo e é este elemento
que possibilita a formulação da pergunta por Deus. Deus
não é uma ideia, mas uma realidade experiencial e acessível
a todo ser humano. Mas não se pode usar a experiência de
um elemento incondicional no encontro do ser humano
com a realidade para estabelecer um ser incondicional (uma
contradição em termos) dentro da realidade. A existência
de tal ser incondicional ou supremo não está implícita, nem
na ideia de verdade, nem na ideia de bondade. A verdade
contida no argumento ontológico é o reconhecimento do
elemento incondicional na estrutura da razão e da
realidade. É isso que o secularismo moderno deixou de ver.
Em consequência, a ideia de Deus foi imposta à mente
como um “corpo estranho”, o que produziu, primeiro, a
sujeição heterônoma e, depois, a rejeição autônoma
(TILLICH, 2005, p. 216).

191
Os chamados argumentos cosmológicos e
teleológicos a favor da existência de Deus são a forma
tradicional da questão do ser que vence o não-ser (culpa,
perda de sentido, morte) e da coragem que supera a
angústia. O argumento cosmológico no sentido restrito
demonstra a existência de um ser infinito a partir da
finitude do ser: a cadeia infinita de causas e efeitos ou a
contingência de todas as substâncias. Na realidade, a “causa
primeira” e a “substância necessária” às quais se chega são
categorias da finitude hipostasiadas, “são símbolos que
expressam a questão implícita no ser finito, a questão
daquilo que transcende a finitude e as categorias, a questão
do ser-em-si que engloba e vence o não-ser, a questão de
Deus (TILLICH, 2005, p. 217)”.
O argumento teleológico parte da estrutura
significativa e compreensível da realidade, do seu telos
interno, para chegar à conclusão de que as finalidades
finitas implicam numa causa teleológica infinita e que os
sentidos finitos e ameaçados implicam numa causa infinita
e não-ameaçada de sentido. De novo, esses argumentos só
valem enquanto formulação da questão de um fundamento
infinito, não ameaçado, de ser e de sentido.
Em todas as suas variantes, estes argumentos
(cosmológicos e teleológicos) partem das
características específicas do mundo para
desembocar na existência de um ser supremo.
Eles são válidos na medida em que
proporcionam uma análise da realidade segundo
a qual a questão cosmológica de Deus é
inevitável. Eles não são válidos na medida em
que reivindicam o fato de que a existência de um
ser supremo seja a conclusão lógica de sua
análise, o que, logicamente, é tão impossível

192
quanto é, existencialmente, derivar a coragem da
angústia (TILLICH, 2005, p. 216).
Tudo isso significa que não há uma demonstração
lógica da existência de Deus, mas uma consciência
ontológica e um conhecimento cosmológico do
incondicional. No primeiro caso, Tillich enuncia o seguinte
princípio: “Os seres humanos são imediatemente
conscientes de algo incondicional que é o priusda separação
e da interação entre sujeito e objeto, tanto teórica como
praticamente (TILLICH, 2009, p. 60).” É o ser humano
inteiro, em todas as suas funções, que tem consciência do
incondicionado. Este não é um ser, nem o mais alto, nem
mesmo Deus. Deus é incondicionado, mas o
“incondicional” não é Deus. Ao termo Deus correspondem
diversos símbolos concretos que expressam a nossa
preocupação suprema ou o fato de sermos tocados por algo
incondicional. “Mas esse ‘algo’ não é uma coisa, mas o
poder de ser no qual todos os seres participam (TILLICH,
2009, p. 62)”. Tentar provar a existência de Deus equivale
a trata-lo como um objeto.
O ateísmo é a resposta correta e teológica a essas
tentativas. (...) É extraordinária a terminologia
ateia do misticismo. Conduz-nos para além de
Deus e nos faz chegar ao incondicional,
transcendendo todas as fixações do divino em
objetos. (...) Não se pode imaginar qualquer
verdadeira religião sem algum elemento ateísta
(TILLICH, 2009, p. 63).
Contudo, o ateísmo consequente, para Tillich, é
uma posição impossível, já que a percepção do
incondicionado está presente em todo ser humano. Ao
mesmo tempo, há elementos de ateísmo em toda ação

193
religiosa, no sentido de que todos os “nomes” de Deus são
inadequados.
O segundo princípio diz respeito ao conhecimento
ontológico do incondicionado: “O incondicionado que
apreendemos imediatamente, sem inferências, pode ser
reconhecido no universo cultural e natural (TILLICH,
2009, p. 64)”. A partir da análise da finitude à luz da
consciência do incondicionado, surge um novo modo de
percepção cosmológico, por meio de conceitos como
contingência, insegurança, transitoriedade e seus correlatos
psicológicos: angústia, preocupação e falta de sentido.
Podemos também perceber o elemento incondicional na
criatividade da natureza e da cultura. Em particular, torna-
se possível uma interpretação religiosa da cultura, pois cada
criação cultural é expressão da preocupação suprema ou do
fato de ser tocado pelo incondicionado.

Linguagem simbólica e não simbólica sobre Deus

O conhecimento do Deus que é, ao mesmo tempo,


fundamento do ser e de todos os entes, e o “totalmente
outro” ou o “extaticamente transcendente”, é analógico ou
simbólico. Embora use o material da experiência cotidiana
para falar de Deus, todo símbolo religioso se nega a si
mesmo em seu sentido literal, mas se afirma em seu sentido
autotranscendente. Isto é, todo símbolo religioso é
paradoxal, pois contém, ao mesmo tempo, um elemento de
propriedade e um elemento de inadequação. O símbolo
representa o poder e sentido daquilo que simboliza através
de sua participação nele. Tudo o que a religião afirma sobre

194
Deus, inclusive suas qualidades, ações e manifestações, tem
um caráter simbólico (Cf.TILLICH, 2005, p. 304-305).
Tomemos o exemplo do símbolo do Deus pessoal: a
teologia personalista rejeita o uso do conceito de ser para
falar de Deus porque, especialmente na piedade cristã, o ser
humano vive uma relação de pessoa a pessoa com Deus.
Em relação à experiência cristã e à mensagem bíblica, a
palavra ser ressoaria de modo impessoal. Contudo, há no
Evangelho e nas palavras de Jesus uma ontologia potencial
que deve ser traduzida em ontologia real. Além disso, o
conceito de Deus como ser-em-si não é impessoal, mas
suprapessoal (TILLICH, 2005, p. 307). Uma concepção
personalista de Deus deve ser equilibrada por uma
concepção transpessoal da presença do divino.
Tillich desenvolve essa ideia numa reação a uma
palestra de Albert Einstein de 1940, publicada na Teologia
da Cultura. Einstein tinha desferido um ataque contra a
ideia do Deus pessoal com o auxílio de quatro argumentos,
aos quais Tillich vai esforçar-se de responder: “o conceito
não é essencial para a religião; resultou da criação da
superstição primitiva; é autocontraditório; contradiz a visão
científica do mundo (TILLICH, 2009, p.177-178).” Para
Tillich, o primeiro argumento resulta de redução da
religião à ética. O segundo não demonstra porque a
imaginação primitiva teria criado precisamente a ideia de
Deus, pois a ideia transcende todos os elementos da
experiência presentes na base da mitologia.
O terceiro argumento traz a contradição entre a
onipotência de Deus, que seria então criador do mal, e sua
bondade e justiça, contidas ao mesmo tempo na ideia de
Deus. Einstein entende erradamente a onipotência como

195
atividade sem limites em termos de causalidade física. Ao
contrário, “o símbolo da onipotência expressa a experiência
religiosa de que nenhuma estrutura da realidade e nenhum
evento da natureza e da história podem nos afastar da
comunhão com o fundamento infinito e inesgotável do
sentido e do ser” (TILLICH, 2009, p. 179). É isso que
Paulo afirma em Romanos 8, quando diz que nenhum
poder terrestre ou celeste pode nos separar do “Amor de
Deus”. Se a ideia for entendida como descrição de uma
forma especial de causalidade, ela não se torna apenas
autocontraditória, mas absurda e irreligiosa.
O quarto argumento é o mais importante: a ideia
do Deus Pessoal contradiz a interpretação científica da
natureza. Tillich reconhece que a ideia deformada de Deus,
que é uma mistura impura de elementos mitológicos,
precisa ser criticada, pois “o conceito do Deus Pessoal, e de
sua interferência nos eventos e seres naturais, como se fosse
mero objeto entre outros, faz de Deus um ser entre os
demais seres, talvez superior, mas, não obstante, um ser
(Ibid., p.180)”.
Para Tillich, o primeiro e básico elemento de
qualquer ideia de Deus é a manifestação multiforme do
fundamento, sentido e abismo do ser, o que a teologia
moderna chama de “experiência do ‘numinoso’ ou sagrado”
(Ibid., p.181). A religião é obrigada a expressar essas
experiências por meio de símbolos, posto que são
inacessíveis a qualquer conceito objetivo. No caso do
símbolo do Deus pessoal, a teologia sempre afirmou que o
predicado “pessoal” só pode ser dito em relação à
divindade, simbolicamente ou por analogia, afirmando e
negando ao mesmo tempo. Precisamos manter o símbolo

196
do Deus pessoal porque a profundidade do ser não pode ser
simbolizada por objetos inferiores ao pessoal ou
subpessoais. Para simbolizar o suprapessoal, que é ao
mesmo tempo acima da coisa e do ser, precisamos do
pessoal. Senão, “o elemento objetivo transforma o
suprapessoal no subpessoal, como acontece em geral no
monismo e no panteísmo (Ibid., p. 182)”. O que está
abaixo do pessoal não poderá acabar com nossa solidão,
com nossa angústia e com nosso desespero. “Apenas uma
pessoa pode curar outra pessoa” (Schelling). “O símbolo do
Deus Pessoal é um símbolo ao lado de outros, indicando
que nosso centro pessoal é apreendido pela manifestação
do fundamento e do abismo do ser, sempre inacessíveis
(Ibid.)”.
Em outras palavras, o ser humano não pode estar
ultimamente preocupado por algo que seja menos do que
ele, por algo impessoal. A relação de pessoa para pessoa –
de igual para igual – entre Deus e o ser humano é
constitutiva da experiência religiosa. Isto explica a
personificação dos poderes divinos em todas as religiões,
seja qual for o objeto que lhes serve de suporte. O caráter
pessoal de Deus indica o caráter concreto da preocupação
última do ser humano. Para satisfazer ao mesmo tempo ao
caráter concreto e ao caráter último da preocupação,
a religião imagina personalidades divinas cujas
qualidades rompem e transcendem sua forma
pessoal em todos os sentidos. São personalidades
subpessoais ou transpessoais, uma combinação
paradoxal de palavras que espelha a tensão entre
o concreto e o último na preocupação última do
ser humano e em todo tipo de ideia de Deus
(TILLICH, 2005, p. 231).

197
O uso da expressão “Deus pessoal” não remete a
Deus como a uma pessoa, mas significa que Deus é o
fundamento de tudo que é pessoal e carrega em si mesmo o
poder ontológico da personalidade. A teologia clássica
usava o termo persona para designar as hipóstases
trinitárias, e não o próprio Deus. Deus tornou-se uma
pessoa no século XIX, por influência da ideia kantiana de
personalidade moral. Compreende-se o protesto do
ateísmo contra a pessoa suprema, celeste e perfeita, que
reside acima do mundo e da humanidade, na qual o teísmo
ordinário transformou Deus.
Além do símbolo do “Deus pessoal”, Tillich analisa
também, na Teologia Sistemática, os símbolos de
onipresença, actuspurus, criação, providência, vida divina,
profundidade e espírito, entre outros. “Espírito” é o
símbolo mais abrangente, direto e irrestrito para a vida
divina. O Espírito (divino) é simbolizado pelo “espírito”,
que representa a vida humana em totalidade. O espírito é a
unidade de poder e sentido. Como poder, ele inclui
personalidade centrada, vitalidade autotranscendente e
liberdade de autodeterminação. Como sentido, abrange
participação universal, formas e estruturas da realidade e
um destino que limita e dirige. A vida como espírito
transcende a dualidade de corpo e mente. “O espírito não é
uma ‘parte’, nem uma função especial (do ser humano). É a
função oniabrangente em que participam todos os
elementos da estrutura do ser (TILLICH, 2005, p. 256)”.
Em consequência, “a afirmação de que Deus é Espírito
significa que vida como espírito é o símbolo inclusivo para
a vida divina. (...) O Espírito é o poder através do qual vive
o sentido, e é o sentido que imprime direção ao poder.

198
Deus como Espírito é a unidade última tanto do poder
quanto do sentido (Ibid.)”.
O fato de que todo conhecimento de Deus tem um
caráter simbólico leva à questão de saber se o termo “Deus”
é também um símbolo. Tillich responde pela presença
simultânea, no conceito de Deus, de uma dimensão
concreta e de uma dimensão última:
Seria completamente errado perguntar: então,
Deus é apenas um símbolo? Porque a pergunta
seguinte seria: um símbolo de que? E a resposta
seria: de Deus! Deus é um símbolo de Deus.
Isso significa que, na noção de Deus, precisamos
distinguir dois elementos: o elemento último,
que é objeto de uma experiência imediata e não
é simbólico em si mesmo, e o elemento
concreto, que é tirado da nossa experiência
cotidiana e é aplicado simbolicamente a Deus
(TILLICH, 1987, p. 252).
Surge então a questão da existência de um ponto
em que devemos fazer uma afirmação não-simbólica sobre
Deus: “Precisamos dizer que há um elemento não
simbólico na nossa imagem de Deus – isto é, que ele é a
realidade última, o ser-em-si, o fundamento do ser, e mais,
que ele é o ser mais elevado no qual cada coisa existe do
modo mais perfeito (Ibid., p. 399)”. A afirmação de que
Deus é o ser-em-si não é simbólica porque não aponta para
além de si mesma. É só nesta base que podemos produzir
todos os outros enunciados sobre Deus.
De fato, a própria afirmação “tudo o que dizemos
sobre Deus é simbólico” não é, por sua vez, simbólica.
Senão, cairíamos num círculo vicioso. Então, precisamos
designar Deus, pelo menos uma vez, de modo não
simbólico. Mas isso não contradiria o caráter extático-

199
transcendente de Deus? Não, porque, nesse ponto,
acontece uma combinação de elementos simbólicos e não-
simbólicos. “Se afirmamos que Deus é o infinito ou o
incondicional ou o ser-em-si, estamos falando ao mesmo
tempo racional e extaticamente, porque estes termos
designam precisamente a linha divisória em que coincidem
o simbólico e o não-simbólico (TILLICH, 2005, p. 305)”.
O ponto em si é, ao mesmo tempo, simbólico e não-
simbólico. “No momento em que se afirma que Deus é ou
que ele tem ser, surge a questão de como se entende sua
relação com o ser. A única resposta possível parece ser que
Deus é o ser-em-si, no sentido de que é o poder de ser ou o
poder de vencer o não-ser (TILLICH, 2005, p. 307)”.

Tillich e a concepção pós-moderna de Deus: com e


além da ontoteologia

Numa época agora considerada como pós-moderna


e até pós-secular, haveremos de condenar ao esquecimento
o esforço de Tillich de produzir teologia em diálogo com a
modernidade secular? É a pergunta colocada por John
Thatamanil no ensaio que encerra o Cambridge
Companionto Paul Tillich (2009, p. 288-303). A questão diz
respeito, antes de tudo, à concepção de Deus como ser,
rejeitada veementemente por filósofos como Heidegger,
Lévinas, Derrida e Marion. Eles caracterizam como
“ontoteologia” as pretensões da razão metafísica de pensar
sobre Deus, em toda a história do pensamento ocidental,
de Platão a Hegel. A ontoteologia determinou os limites
dentro dos quais Deus podia se manifestar, priorizando a

200
mesmidade e desprezando a alteridade, o que beira a
idolatria.
É considerado “ontoteológico” todo pensamento,
na medida em que procura estabelecer um fundamento
ontológico absolutamente seguro, ao descrever Deus como
o ser primeiro, o ser que é a causa de todos os outros seres e
causa de si mesmo (causa sui) e, enquanto tal, é o princípio
último de inteligibilidade, que torna o mundo
compreensível e sujeito ao controle da razão calculadora.
Para o autor, inspirado em Jean-Luc Marion, nem toda
tentativa de pensar a relação entre Deus e o mundo
recorrendo à ontologia é ontoteológica. Se não houver uma
aplicação unívoca do conceito de ser a Deus e às criaturas,
assim como a submissão de ambos a um princípio de
causalidade, não se poderá falar em ontoteologia. “Se, ao
contrário, o Ser permanece um inconcebível esse, sem
analogia..., então o simples fato de tratar do Ser não é
suficiente para estabelecer uma onto-teo-logia (MARION,
1999, p. 30-I).”
Como avaliar, com esses critérios, o pensamento
ontológico de Tillich, sua concepção de Deus como ser e
sua noção de Deus como o ser-em-si? Ele seria culpado de
ontoteologia? Ele preservaria um espaço para a alteridade
divina? John Thatamanil responde em duas etapas. Em
primeiro lugar, o termo não simbólico de ser-em-si usado
para se referir a Deus não carrega nenhum conteúdo
conceitual – não aumenta o nosso conhecimento de Deus –
e seu significado permanece envolto de mistério. É por esse
motivo que só a linguagem simbólica serve para falar de
Deus. A consciência que Tilich tem do problema expressa
o desejo dele de evitar cair na ontoteologia. Mas Tillich

201
sabe que, na linguagem teológica, precisamos falar de Deus
como objeto da nossa aspiração – à reunião com aquilo do
qual estamos separados, mas ao qual continuamos
pertencendo – e distinguir o que dizemos de Deus do que
falamos a respeito de outros referentes. Quando Deus se
torna referente num discurso conceitual, precisamos falar
de Deus do modo mais não-simbólico possível, por
motivos de clareza e precisão. Isso, para tornar explícito o
que está implícito na nossa experiência religiosa: que Deus
é a origem do nosso ser e do ser do mundo, a nossa fonte.
A clareza conceitual é em si mesma, uma proteção
contra a idolatria, uma barreira contra discursos que
reduziriam Deus ao status de um ser ôntico. Ao dizer que
Deus é a “estrutura do ser”, Tillich deixa claro que Deus
não está sujeitado a esta estrutura. Na realidade, a
afirmação que Deus é o ser-em-si é apenas um ponto de
partida para um discurso que vai tratar de Deus como Vida
e Espírito. Lembrando que para Tillich Deus está além de
todos os nomes, o autor cita:
Deus está além até dos mais altos nomes que a
teologia lhe deu. Ele está além do espírito, além
do bem. Deus é, como disse Dionísio,
superessencial... Ele não é o ser mais elevado,
mas está além de qualquer ser mais elevado. Ele
é supra-divindade, além de Deus, se falamos de
Deus como um ser divino... Logo, todos os
nomes devem desaparecer, depois de terem sido
atribuídos a Deus, até o santo nome “Deus”.
Talvez seja isso a fonte – inconscientemente –
do que disse no fim do meu livro A coragem de
ser, a respeito do “Deus acima de Deus”, isto é, o
Deus acima de Deus, que é o fundamento real
de tudo o que é, que está acima de qualquer

202
nome específico que possamos dar até ao ser
mais elevado (TILLICH, 1968, p. 92).
Poderíamos perguntar se a teologia precisa, afinal,
de linguagem conceitual e não poderia contentar-se com
símbolos, como na prática da igreja. Poderíamos, em outras
palavras, trocar Atenas por Jerusalém, pura e
simplesmente? Para Tillich, tal pureza não é nem possível
nem desejável. Não há revelação pura e quando o divino se
manifesta, manifesta-se na carne, e esta carne inclui o
conceito. Tillich era convencido de que, se o Evangelho
não se encarnasse em conceitos filosóficos, ele não poderia
ser recebido.
Em segundo lugar, a teologia de Tillich faz questão
de falar de Deus ao mesmo tempo como fundamento e
abisso, como Grunde Ungrund. Ele é enfático ao rejeitar
toda concepção da divindade como actuspurus: “O Deus
que é actuspurusnão é o Deus vivo (TILLICH, 2005, p.
252)”. O nosso teólogo coloca-se aqui ao lado de
pensadores como Duns Scott, Boehme e Schelling,
preocupados em preservar um elemento negativo,
potencial, dinâmico na divindade. Para Tillich, o ser-em-si
inclui o não-ser. Isso significa que Deus é tanto
Grundquanto Ungrund, profundidade rica em sentido e
abisso dinâmico. Ele não pode ser identificado com a
imutável causa sui dos filósofos.
O Deus de Tillich é, ao mesmo tempo, o fogo
de Pascal e o ser-em-si. O Deus de Tillich não é
apenas a base das estruturas racionais da
realidade, mas também Aquele que desestabiliza
e rompe ordens subsistentes à procura de riqueza
e novidade, novidade carregada pelo caminho
escatológico em vista do Reino de Deus. Desse

203
modo, o Deus de Tillich não pode, de modo
algum, ser reduzido a uma fundação
ontoteológica sobre a qual pudesse ser
construído um conhecimento absolutamente
seguro de tipo cartesiano (THATAMANIL,
2009, p. 299).
Podemos perceber que o Deus de Tillich não é
simplesmente o Deus ontoteológico rejeitado por
Heidegger. Não é um ser, não é o ser supremo, não é causa
sui, não pode ser designado univocamente como causa do
mundo, mas apenas simbolicamente, e, finalmente, o ser-
em-si não pode ser aplicado univocamente a Deus e ao
mundo.
Uma última observação: Tillich afirmou, no fim da
vida, que a sua teologia sofria de certas limitações por ter
sido elaborada em diálogo com a modernidade secular, e
que deveria entrar também em diálogo com a história das
religiões. A teologia do futuro precisará de encontros
genuínos com outras religiões do espírito concreto, assim
como foi o encontro de Tillich no Japão com tradições
orientais, especialmente o Zen Budismo. A teologia precisa
praticar outros idiomas que o grego, o hebraico e o inglês.
A pós-modernidade precisa abrir-se a um “pós-
ocidentalismo”, levando em conta a crítica pós-moderna do
Iluminismo e dos discursos coloniais que se fundam nele e,
ao mesmo tempo, construindo um espaço cultural baseado
em intuições locais e orientações vindas do mundo não
ocidental, em encarnações que não sejam nem modernistas
nem pós-modernistas. É preciso também considerar as
mudanças na política internacional, a globalização e o
diálogo inter-cultural, em vista de facilitar um
“interculturalismo” pós-colonial, em vista de pôr um fim à

204
hegemonia política, econômica e filosófica do mundo
ocidental. Tillich foi, com certeza, um pensador que
antecipou o pós-ocidentalismo, pela sua contribuição à
superação da hegemonia da reflexão iluminista.
Com estas reflexões, não pretendemos negar o
enraizamento de Tillich na tradição metafísica ocidental,
platônica (dualismo essência-existência) e aristotélica
(substância e acidentes). Tampouco queremos negar o
quadro ontoteológico do seu pensamento, isto é, a
fundamentação ontológica da sua teologia. Discutir
profundamente essa temática nos levaria a outro texto,
incluindo a propostas pós-modernas de um “Deus sem ser”
(Jean-Luc Marion), de teologia negativa (John Caputo), de
crítica dos fundamentos (Michel Foucault), de
desconstrução das metanarrativas e do logocentrismo
(Lyotard, Derrida) e de a/teologia (Taylor).
Do mesmo modo, para o pensamento pós-
moderno, a desconstrução mostrou que não há mais
sentido último – seja em Deus ou na vida – nem
profundidade, nem a busca pela manifestação daquilo que
está oculto. Para a teologia pós-moderna, é na superfície
que se encontram os inúmeros significados e intermináveis
significantes, e não na profundidade, que á apenas uma
metáfora da complexidade da superfície (Deleuze). Nas
palavras de John Caputo, o sentido último pertence à
“hermenêutica da indiscernibilidade”, que é uma
interpretação infinita (apud CARVALHÃES, 2003, p.
100).
Contudo, é também inegável que a obra de Paul
Tillich abriu muitas portas ao pensamento pós-moderno,
filosófico e teológico, especialmente nos Estados Unidos,

205
para autores como Charles Winquist, Mark Taylor e David
Tracy. É o caso, em particular, do método de correlação
como ferramenta hermenêutica, do “Deus além de Deus”
como recusa de definir Deus e da valoração da linguagem
simbólica como crítica do conceitualismo iluminista. Com
Tillich estamos a caminho de uma teologia secular e,
talvez, de uma espiritualidade leiga (Corbí):
A teologia secular no mostra um mundo onde o
amor pela vida é a paixão que mobiliza nossos
desejos e sonhos teológicos. Deus é o impossível,
o quê e o quem que eu não conheço nem nunca
conhecerei. Entretanto, o livre jogo da constante
circulação de significantes abre um enorme leque
de possibilidades para se trabalhar a ideia
impossível de Deus e para se encontrar consolo
nas construções humanas. Livres dos
engessamentos dos credos, nos movemos na
liberdade das formulações provisórias e parciais
onde o religioso sempre irá pairar
(CARVALHÃES, 2003, p. 107).

Conclusão

Tratamos, nesse artigo, da ideia de Deus na


perspectiva de Paul Tillich, isto é, como expressão da
preocupação mais profunda do ser humano ou da dimensão
de profundidade. Retomamos, a seguir, as principais
contribuições do nosso teólogo à temática proposta. Para
Tillich, o caminho da teologia deve levar, ao mesmo
tempo, para além do naturalismo e do supranaturalismo. O
supranaturalismo separa Deus como um ser, o ser supremo,
dos demais seres, ao lado e acima dos quais ele tem a sua
existência. Por sua vez, o naturalismo nega a distância

206
infinita entre a totalidade das coisas finitas e seu
fundamento infinito. Ao contrário, a afirmação
fundamental sobre Deus, que ele é o ser-em-si, exclui que
ele seja um ente ao lado de outros entes e não o poder do
ser, o fundamento ou o sentido do ser. O Deus do teísmo
teológico é um ser ao lado dos outros, isto é, uma parte do
conjunto da realidade, submetida à estrutura do real, por
mais que seja a parte mais importante do real. Ele é um ser,
não o ser-em-si. Submetido à estrutura sujeito-objeto, ele
se torna objeto para nós sujeitos e, enquanto sujeito, faz de
nós seus objetos. O teísmo é superado pela experiência que
chamamos de “fé absoluta”. A fé absoluta, ou o estado de
ser possuído pelo Deus além de Deus, é sem nome, sem
igreja, sem culto e sem teologia, mas ela é o poder do ser,
do qual estas realidades participam.
Os argumentos ou provas da existência de Deus não
provam nada, mas são expressões da pergunta por Deus
que está implícita na finitude humana. Eles mostram a
presença de algo incondicional dentro do eu e do mundo e
é este elemento que possibilita a formulação da pergunta
por Deus. Os pontos de chegada dos argumentos, como
“causa primeira” e “substância necessária” são categorias
hipostasiadas, são símbolos que expressam a questão
implícita no ser finito, a questão do ser-em-si.
O conhecimento do Deus que é, ao mesmo tempo,
fundamento do ser e de todos os entes, e o “totalmente
outro” ou o “extaticamente transcendente”, é analógico ou
simbólico. Foi mostrado por meio do símbolo de um “Deus
pessoal”, mas aplica-se também aos símbolos de
onipresença, actuspurus, criação, providência, vida divina,
profundidade e espírito. Contudo, a afirmação de que Deus

207
é o ser-em-si não é simbólica porque não aponta para além
de si mesma, mas ela é a base de todos os outros
enunciados – todos simbólicos – sobre Deus.
Perguntamos, também, se Tillich seria culpado de
ontoteologia. Chegamos à conclusão de que o Deus de
Tillich não é simplesmente o Deus ontoteológico rejeitado
por Heidegger. Não é um ser, não é o ser supremo, não é
causa sui, não pode ser designado univocamente como causa
do mundo, mas apenas simbolicamente, e, finalmente, o
ser-em-si não pode ser aplicado univocamente a Deus e ao
mundo.
Enfim, Tillich pode ter antecipado um “pós-
ocidentalismo” e um “interculturalismo” pós-colonial, pela
sua contribuição à superação da hegemonia da reflexão
iluminista. Além disso, sua obra abriu muitas portas ao
pensamento pós-moderno, pelo método de correlação
como ferramenta hermenêutica, pelo “Deus além de Deus”
como recusa de definir Deus e pela valoração da linguagem
simbólica como crítica ao conceitualismo iluminista. Com
Tillich, estamos a caminho de uma teologia secular e,
talvez, de uma espiritualidade leiga.
Nesse sentido, gostaríamos de destacar alguns
pontos de afinidade com o projeto de Mariah Corbí, em
vista de uma espiritualidade leiga, sem crenças, sem
religiões e sem deuses. Em primeiro lugar, o autor observa
que, simultaneamente ao enfraquecimento profundo das
religiões clássicas, ocorre um forte ressurgir do interesse
pela dimensão profunda e absoluta da existência – uma
dimensão que está muito ausente de nossa vida cotidiana.
Mas a dimensão de profundidade, que é o núcleo gerador
das religiões, terá doravante de ser vivida e recomposta fora

208
das religiões. Por outro lado, para nós, que vivemos em
sociedades plenamente industrializadas, as riquezas do
passado religioso da humanidade devem ser apenas formas
simbólicas que apontam para a dimensão absoluta do real,
que ultrapassa toda forma, todo sistema de interpretação e
avaliação. “A experiência espiritual é a experiência imediata
de uma presença, não de uma formulação; é a presença da
realidade absoluta, “do que é”, libertando por isso de toda
fórmula” (CORBÍ, 2010, p. 168-169). Os mitos, narrações
sagradas e símbolos do passado são agora tão somente
metáforas do Absoluto. O que eles afirmam é um
conhecimento não conhecimento e sua designação é uma
designação não designação. Eles são já apenas símbolos,
metáforas que, ao que parece, dizem muito, mas que na
realidade submergem no silêncio mais completo (Ibid., p.
199).
Como deveria caracterizar-se o nosso falar sobre a
dimensão absoluta da realidade? Mariah Corbí, inspirada
na corrente hinduísta Advaita, aproxima-se
significativamente das formulações de Tillich, afirmando
que nenhum termo que pretenda referir-se a “Isso que é”
pode efetivamente descrever sua maneira de ser. Ao usar
um termo par nos referir ao Absoluto, fazemos dele um
referente, o que é impossível, pois não é um objeto, nem
um sujeito. Notemos aqui que, de um ponto de vista
estritamente lógico e gramatical, não há como evitar usar
um referente, o qual Tillich concentra no conceito vazio de
“ser-em-si”, evitando o termo de “Absoluto”. Não sendo
objetivável, nem delimitável, ele não é ser, nem é não ser.
Outras expressões, segundo Corbí, como “Ser-
Consciência-Beatitude”, são antes símbolos do que

209
conceitos, que apenas apontam para o Absoluto, sem
querer descrevê-lo. É uma presença vazia, pois é
absolutamente incategorizável: “O Absoluto é o Vazio
radical. Mas ‘Vazio’ é uma presença apofática que diz que
toda afirmação sobre o Absoluto é falsa e toda negação
verdadeira (Ibid. p. 205).” É vazio de toda possibilidade
linguística, de toda possível conceituação e representação,
de toda imagem. Há aqui uma afinidade com o conceito
místico de abisso ou Ungrund, usado por Tillich a partir de
Jakob Boehme.
O Absoluto, como o ser-em-si, pode ser
simbolizado, porque inclui a presença de toda coisa, da
própria realidade. Ele pode ser apontado por toda
realidade, pois toda realidade é capaz de expressá-lo
simbolicamente. Inclusive, está aberto a possíveis símbolos
teístas. Será até possível manter-se no teísmo, se o símbolo
Deus for usado como puro símbolo que se utiliza e se
transcende. O Absoluto é um “não conhecimento”, porque
nele ninguém conhece nada. É um conhecimento vazio da
dualidade sujeito/objeto. “É um conhecimento certo de que
é uma ‘nuvem de não saber’. Um conhecimento ‘super-
essencial’, como dizia o Pseudo-Dionísio (CORBÍ, 2010,
p. 208)”. Como vimos acima, tudo isso já estava em
Tillich.

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212
O DEUS PARA ALÉM DE DEUS NO BUDISMO
AMIDISTA: PAUL TILLICH E O DIÁLOGO COM
O BUDISMO AMIDISTA JAPONÊS

Elton Tada 113

Introdução

Entre o legado do teólogo Paul Tillich, pode-se


encontrar seu diálogo com outras religiões. Nessa
perspectiva, Tillich deixa de exercer uma função puramente
teológica e se aproxima do que poderíamos entender hoje
como ciências da religião. Já no fim de sua vida, Tillich vai
ao Japão, e lá se encontra com estudiosos budistas com os
quais estabelece um diálogo registrado e publicado pela
Revista KyôkaKenkyû, em 1960. Nesse diálogo vários
assuntos são tratados, mas em especial são discutidas as
particularidades do budismo amidista e a função da
fórmula NAMU AMIDA BUTSU em tal religião. Fica
evidente que Tillich se aproxima do budismo amidista a
partir da aplicação de sua própria teologia da cultura,
fazendo a correlação entre pontos do cristianismo e pontos
do budismo.

113
Teólogo, Mestre e Doutor em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo. Professor da Famma –
Faculdade metropolitana de Maringá.

213
Para a presente análise precisamos primeiramente
entender as particularidades de tal diálogo para só então
notar quais são as intenções de Paul Tillich ao tentar
compreender cautelosamente a fórmula NAMU AMIDA
BUTSU e sua função no budismo.

Com qual budismo Tillich está dialogando?

O budismo é uma religião que possui diversas


ramificações, que apresentam suas particularidades de
prática e de doutrina. No caso específico desse diálogo que
estamos analisando, Paul Tillich está em contato com o
budismo amidista. O budismo amidista é aquele focado na
figura de Amida, um buda que renuncia a entrar no
Nirvana, e promete que só se permitirá o deleite de tal
estado depois que todos os demais seres também puderem,
ou seja, ele promete ajudar todos a alcançarem o Nirvana.
A existência da crença na Terra Pura e no voto do
Buda Amida foi historicamente um elemento de choque
entre as linhas budistas Theravada e Mahayana. Andrea
Tomita, fazendo referência ao trabalho de Frank Usarski,
afirma que:
Dentre as várias tensões doutrinárias das duas
correntes destaca-se a insistência do Budismo
Theravada na insuperabilidade da lei do carma e
na responsabilidade exclusiva de cada indivíduo
para com o próprio destino espiritual. Por outro
lado, no Budismo Mahayana, há a esperança
numa força salvífica externa (tariki) capaz de
transformar o adepto desde que ele estabeleça
uma relação devocional com o Buda Amida.
Quanto à ética, ambos os tipos de Budismo
consideram importantes a observância de

214
preceitos morais e o cultivo de virtudes no
sentido de acumular as qualidades necessárias
para o alcance do nirvana; o Budismo Mahayana
destaca de forma mais acentuada “a conduta
altruísta expressa por ações morais direcionadas
às necessidades de outrem” (TOMITA, 2010, p.
47).
Mesmo assim, os pensadores da Terra Pura – que
surge do budismo Mahayana – defendem que não há um
grande problema na crença de que a ajuda do Buda Amida
é essencial para que se atinja um estado de iluminação.
Primeiramente, entende-se que há uma grande diferença
entre sair do ciclo de Samsara e atingir a iluminação. A
ajuda de Buda Amida faz apenas que não seja necessária
uma nova vida no formato em que é conhecida.
To state Wang’s point another way: While it is
true that even the lowest of the low attains
rebirth, and this is indeed a cause for comfort
and assurance that all will be saved through
Amitābha’s other-power, one still has a chance
to better one’s level of rebirth in the Pure Land,
and the benefits of doing so are significant:
rapid attainment of enlightenment, instruction
by Amitābha himself, and so on. Thus, one
should make some moral efforts at self-restraint.
(JONES, 2003)
O meio do qual o buda Amida114 se utiliza para
ajudar todas as pessoas a alcançarem o Nirvana é a partir da
Terra Pura115. Funciona da seguinte maneira: aquele que
recita o NAMU AMIDA BUTSU será recebido pelo buda

114
Originário do sânscrito Amitayus (vida eterna) e Amithaba (luz
eterna).
115
Todos os budas possuem o seu Jōdo (p.6). Jōdo é a palavra japonesa
para Terra Pura. A terra Pura do buda Amida se chama Gokuraku.

215
Amida na ocasião de sua morte, para que então habite a
terra pura, local no qual terá condições para alcançar o
nirvana.
Vejamos o sutra amidista:
quem concebe o desejo do despertar,
quem escuta meu nome,
quem direciona seu coração para renascer em
minha Terra Pura, e me mantém na mente com
fé firme,
está seguro de me encontrar diante de si em
plena comitiva e glória no momento de sua
morte, assim a morte deve se dar completamente
livre de ansiedade (Sutra da vida imensurável).
Esse sutra mostra de maneira simples quais são as
condições para que haja o renascimento na Terra Pura e
como será tal acolhida feita pelo Buda Amida. É necessário
o desejo de despertar, o ouvir do nome, o direcionamento
do coração e a manutenção da fé firme. Para as diversas
linhas do budismo Terra Pura são tais atitudes que se
encontram implícitas na prática recitativa do Nembutsu.
Assim, quem pratica o Nembutsu não deve morrer em
ansiedade, mas na tranquilidade, sabendo que será bem
recebido na Terra Pura do Buda Amida.
No Japão, o budismo amidista conta com duas
grandes correntes, o Jōdo Shu e o JōdoShinShu, sendo que
a primeira é derivada dos ensinamentos do mestre Hōnen
Shonin (1133-1212)116 e a segunda segue os ensinamentos

116
Soho Machida compara o movimento de reforma de Hōnen Shonin
no budismo de sua época com o recente movimento da Teologia latino-
americana da libertação. O autor cita os nomes de Gustavo Gutierrez e
Leonardo Boff, para os comparar com o movimento de libertação do

216
do mestre Shinran Shonin (1173-1262), sendo que o
segundo fora discípulo do primeiro. Ambos apresentam
doutrinas semelhantes, baseadas no Nembutsu, que é a
prática da recitação do NAMU AMIDA BUTSU,
entretanto existe uma sutil diferença que, a grosso modo,
pode ser explicada pelo fato de que enquanto a escola Jōdo
Shu acredita que a função do Nembutsu seja a de pedir, a
escola JōdoShinShu acredita que o Nembutsu serve para
agradecer. Isso implica o entendimento de que na escola
Jōdo Shu os crentes esperam que o buda Amida os salve,
enquanto que a escola JōdoShinshu acredita que o buda já
providenciou tal salvação.
No documento acima referido sobre o diálogo de
Paul Tillich com amidistas o autor dialoga com
AtsushiNobukuni e RijianYasuda (1900-1982), ambos da
escola JōdoShinShu. Na verdade, tal diálogo ocorreu de
maneira muito mais ampla, com vários outros professores e
estudantes do budismo, entretanto, a parte do registro que
chegou até nós é essa. Tillich possuía um carinho especial
pelo budismo amidista, pois havia recebido KoshoOtani
(1911-2002) em sua casa em Nova Iorque, no período em
que o jovem monge estudou na Universidade Columbia.
KoshoOtani 117 tornou-se o 23* patriarca da
JōdoShinShuHonganji-ha, braço importante do budismo
amidista no Japão. Inclusive, parte da passagem de Paul
Tillich no Japão se deu na Universidade de Otani, em
Kyoto.

patriarca Hōnen Shonin para o Japão do séc. XIII (MACHIDA, 1999,


p.4ss).
117
KoshoOtani era primo de primeiro grau do Imperador Hiroito. A
mãe de KoshoOtani era irmã mais nova da mãe do imperador.

217
É importante que se note a diferença entre o
budismo japonês e as demais linhas do budismo para que
não se cometa um grave erro hermenêutico no processo de
leitura do diálogo entre Paul Tillich e os monges japoneses.
O Budismo que encontramos no Japão é bem
diferente do que nasceu na Índia e que cresceu na China.
Se por um lado o Budismo causou um grande impacto no
senso de valores tradicionais nipônicos, por outro lado ele
se amalgamou significativamente com os valores xintoístas,
juntamente com os confucionistas, como veremos mais
adiante. Desde então, o Budismo tem contribuído
imensamente à cultura e à sociedade japonesa e à sua
tradição religiosa (SASAKI, p.8).
Historicamente, há uma relação entre o
desenvolvimento do budismo no Japão e o próprio
desenvolvimento do estado japonês que acaba
influenciando ambos os lados. Assim, torna-se
compreensível a existência de notáveis diferenças entres as
práticas budistas no Japão e práticas de outras partes do
mundo.
Vale notar que a chegada do budismo no Japão se
dá de maneira descendente, pois o mesmo foi recebido
primeiramente pelas classes dominantes, sendo
posteriormente adaptado ao cotidiano popular do país.
A partir do período dos xogunatos (governos
militares) de Kamakura 鎌倉時代 (1185-1333)
e do período Muromachi 室 町 時 代 (1336-
1573), o Budismo começou a penetrar
profundamente nas vidas das pessoas comuns.
Sociologicamente dizendo, o movimento
começou dos estratos mais altos da sociedade
para baixo, ou do centro para a periferia. Isso se
difere do Cristianismo primitivo, por exemplo,

218
que primeiro se enraizou entre as pessoas mais
humildes e depois atingiu as pessoas de classes
mais altas. Nesse período, desenvolveram-se
várias escolas budistas no Japão, que podem ser
divididas em duas grandes linhas: as escolas
amidista que pregavam que qualquer pessoa
poderia ir ao paraíso depois da morte, recitando
ou invocando o nome de Buda, como a 浄土宗
Jodo-shu (Terra Pura), 浄土真宗 jodoshinshu e
日蓮宗 Nichiren-shu; e uma outra linha, mais
filosófica, conhecida como 禅宗 Zen-shu, que
enfatizava a liberação através da meditação e que
foi rapidamente adotada pelas classes superiores
e teve um impacto profundo na cultura japonesa,
como 臨済宗 Rinzai-shu e 曹洞宗 Soto-shu
(Pereira, 2006, p.12).
Mesmo no interior do budismo japonês existem
várias escolas que divergem entre si. Uma das formas mais
simples de notar a diferença da prática budista no Japão em
relação a outros locais de prática budista se dá na
organização dos próprios monges:
Os monges budistas japoneses normalmente não
aderem ao código tradicional de conduta para a
comunidade budista ou sangha (Vinaya).
Somente para ilustrar: enquanto o código
tradicional requer a abstenção sexual e o não-
consumo de carne ou álcool, os monges
japoneses geralmente incorporam carne e álcool
às suas dietas e se casam após o término do
treinamento monástico. O antecedente do
casamento de monges foi criado por Shinran
(1173-1262), o fundador do ramo
JôdoShinshû.(PEREIRA, 2006, p.7).
As práticas mais aparentes trazem consigo um
amplo pano de fundo doutrinário e filosófico que entende a

219
prática religiosa nas especificidades da cultura japonesa.
Uma dessas realidades menos aparentes é a forma como o
budismo japonês se relaciona com as demais religiões.
O Budismo japonês tende a ser sincrético, na
medida em que influenciou e se apropriou de
outras tradições religiosas (Xintoísmo,
Confucionismo,Taoísmo e crenças populares),
além de ter patrocinado e estimulado cultos
extremamente sincréticos como é o caso dos já
mencionados RyôbuShintô (Xintoísmo Dual) e
Shugendô (ordem dos ascetas montanheses)
(PEREIRA, 2006, p.6).
Não cabe ao presente texto a análise profunda do
sentido de sincretismo para o budismo Japonês.
Entretanto, vale notar que o mesmo pode ser entendido de
maneira mais ampla, não se retendo a uma noção de
sincretismo religioso, mas levando em conta o processo
histórico de inserção do budismo no Japão, o que torna
esse sincretismo também algo sociocultural.
A linha amidista, que está sendo analisada no
presente trabalho é diretamente responsável pela
popularização do budismo japonês.

O Deus para além de Deus

No diálogo de Paul Tillich com Nobukuni e


Yasuda são tratados os seguintes temas: a possibilidade do
amor; liberdade e destino; a responsabilidade do eu; o amor
de Amida e a dor dos seres sensíveis; do eu em direção ao
verdadeiro eu; O nome que é o Tathagata; as fórmulas
mágicas e o Nome; e o conteúdo semântico do Nome.
Dentre toda essa discussão, o que nos chama mais a

220
atenção são os três últimos pontos, que tratam a respeito
do Nome Sagrado, mas que, desde um ponto de vista dos
estudos de religião, podem expressar uma preocupação
ainda maior por parte de Paul Tillich que é a questão do
Deus para além de Deus.
Em determinado momento da conversa, Tillich faz
a seguinte pergunta: “qual seria, então, o significado
concreto do Nome de Amida, que lhe confere o poder de
despertar?” (TILLICH, 2002). E é respondido da seguinte
maneira pelo professor Yasuda:
Trata-se de um símbolo a simbolizar o que
qualquer pessoa é capaz defazer, em qualquer
tempo e qualquer lugar. É isso que é
simbolizado. O Nembutsu não é o som, é o fato
de ser possível a qualquer pessoa, em qualquer
lugar (TILLICH, 2002).
Esse já é um dos pontos de desfecho do diálogo que
estamos analisando. Entretanto, se olharmos com atenção,
veremos que em diversos momentos Paul Tillich apresenta
a preocupação de verificar se o Nome Sagrado tem função
simbólica, e o que ele simboliza.
A conversa entre Paul Tillich e os professores
Nobokuni e Yasada foi intitulada “do Nome Sagrado
(Myogo)”, e é essa a sensação que se tem quando se lê
primeiramente o texto, parece que Tillich está preocupado
com o correto entendimento do Nome Sagrado.
Entretanto, para quem conhece o sistema tillichiano, há de
se perceber que a estrutura de significação dos elementos
da fé é algo bastante trabalhado pelo autor.
Assim, conduzindo uma análise simplificada do
discurso, podemos perceber como Paul Tillich constrói sua
própria maiêutica, fazendo com que interlocutores que não

221
dominam seu sistema teológico possam mostrar a ele
pontos a partir dos quais ele pode interpretar a estrutura
simbólica de tal religião em sua própria linguagem.
Isso se torna mais compreensível à medida que
entendemos que não seria proveitoso que Tillich
simplesmente se dirigisse aos professores japoneses
perguntando quais são os correlatos a graça, salvação,
Deus, e Novo Ser em suas culturas religiosas. De
semelhante modo não adiantaria para o teólogo perguntar
se há no buda Amida algum poder salvífico semelhante ao
cristológico. Entretanto, com o desenvolvimento de suas
questões – as perguntas eram feitas por Tillich – ele
consegue entender seus dois pontos centrais: a ideia de
Deus além de Deus e o poder salvífico do Buda Amida.
Quando está falando a respeito do Karma, Tillich
diz:
Quando isso é feito, o Sr. Também torna
implícita a noção de Outro Poder. Amida deve
ser algo mais do que a soma total de todos os
Karmas. Creio que Amida seja o nome
simbólico atribuído a esse Outro Poder
(TILLICH, 2002).
Aqui Paul Tillich já apresenta a relação entre o
nome simbólico e o “outro poder” que é simbolizado. Essa
questão é bastante apropriada e está em contato direto com
os diálogos que Tillich havia estabelecido com monges e
estudiosos do Zen Budismo em momentos anteriores.
Tillich está preocupado com a noção de identidade, a
possibilidade de individualidade do sujeito.
A questão da individualidade surge em conversa
com o Dr. HisamatsuShinichi, representante do Zen
budismo que recebera Tillich em diversas vezes durante a

222
viagem ao Japão. A grande dificuldade de Tillich é a de
entender como o princípio budista da não-dualidade não
interfere na construção da identidade particular, ou seja,
como a não-dualidade não acaba destruindo a possibilidade
ontológica do sujeito. Nesse sentido, Tillich tenta
aproximar a não-dualidade do aspecto da participação,
bastante presente em sua Teologia da cultura. Assim, a
não-dualidade seria derivada do elemento participativo que
se estabelece a partir das relações. Entretanto, essa opção é
negada pelos interlocutores budistas.
Talvez, a dúvida de Tillich poderia ser sanada a
partir da compreensão cultural da sobreposição da
racionalidade sobre o pensamento mítico no pensamento
japonês. Hitoshi Oshima, filósofo japonês, explora bastante
essa noção de sobreposição entre pensamento mítico e
racionalidade. Basicamente, ele defende que não houve no
pensamento japonês um desenvolvimento que partiu da
mitologia chegando a uma modernidade racionalista.
Racionalidade e mito se sobrepõe, possibilitando a
compreensão racional de vias que só podem ser
compreendidas pela mentalidade ocidental a partir de uma
flexibilidade consciente: “creio que podemos concluir pelo
menos o seguinte: a história do pensamento japonês é
inconcebível se não levarmos em consideração a
persistência da mentalidade mítica do povo japonês.”
(OSHIMA, 1991, p. 137).
Ainda com dúvidas sobre a possibilidade de
subjetividade no budismo, Tillich questiona aos pensadores
amidistas sobre seus atos de oração, suas práticas de prece
ao invés da meditação.

223
“posso entender como é a oração para um judeu, um
cristão, ou um muçulmano, porque a oração sempre leva as
pessoas para um outro eu, um tu, e assim se dá uma relação
eu-tu. Para quem alguém ora no budismo? Eu entendo
muito bem como um budista pode meditar e acredito que a
meditação cristã é muito negligenciada porque o
simbolismo pessoal do divino tem superado o
suprapersonalismo em muitos pensamentos cristãos,
especialmente em um país como os Estados Unidos, onde a
tradição do personalismo é tão forte. Por outro lado, na
doutrina oficial e no pano de fundo teológico do budismo o
elemento personalista é quase engolido pelo elemento
suprapersonalista – existe o princípio buda, ou o princípio
Amida, mas não existe uma figura que possa ser olhada
como uma pessoa. Mesmo assim , há muita oração
acontecendo. Como isso pode se unir com os fundamentos
da teoria budista? Ou ainda, para formular melhor a
questão, para quem um budista ora se ele ora ao invés de
meditar?” (apud BOSS, p.261)
Para a questão da oração que Tillich coloca a seus
interlocutores Shin budistas118 ele recebe duas respostas. A
primeira resposta é insuficiente. Lhe é dito que a noção de
oração é negada, sendo que o que se faz em semelhança de
oração é apenas uma expressão de agradecimento. A essa
resposta Tillich afirma que mesmo um agradecimento
requer uma relação eu-tu. Então, outra resposta é
formulada, com um embasamento mais sólido. Admite-se
que orações são feitas. Na verdade, admite-se um elemento
bastante interessante do budismo da Terra Pura que muitas
vezes passa desapercebido. Os membros da Terra Pura

118
Shin Budistas são os seguidores da JōdoShinShu.

224
direcionam orações ao Buda Amida, a Bosatsus, como
Kanon, a outros Budas, a deuses xintoístas, etc. Mas, a
interpretação feita é que qualquer dessas orações e
agradecimentos só é feita porque existe a natureza búdica
no ser humano. Portanto, quando se ora no budismo, faz-
se uma oração direcionada a essa natureza, e não a outro
como uma sujeito divino autóctone. Essa explicação faz-se
mais plausível, apesar de não saciar completamente a
intriga do teólogo.
Nesse sentido, Tillich ainda está preocupado em
entender a subjetividade no budismo em contraponto a
noção básica de não-dualidade. Um elemento que deve ser
incorporado nesse momento é que existem dois conceitos
importantes para o budismo amidista que apontam no
sentido de entender essa questão, os conceitos de Tariki 他
力 e Jiriki 自力. Jiriki é o esforço próprio, o poder próprio,
enquanto que Tariki é o poder outro, a força externa.
Ambos os termos são utilizados no budismo em relação à
possibilidade de se alcançar a iluminação. Para o budismo
da Terra Pura, a noção de Tariki é muito importante, pois
é através da compaixão do Buda Amida que se consegue
sair da situação existencial atual e viver na Terra Pura.
Entretanto, esses dois elementos não são necessariamente
excludentes. Pelo contrário, eles são complementares.
Mesmo o budismo da Terra Pura aceitando a necessidade
desse poder externo, que é a compaixão do Buda Amida,
ele não admite que isso seja um deleitar-se na força do
totalmente outro.
Sobre o elemento da fé o teólogo afirma:
A fé que, através do Nome, penetra até algo que
está por trás do Nome, é diferente da fé que usa
o Nome como um instrumento. Eu quero

225
discutir a questão do Nome até esse ponto
(TILLICH, 2002).
Nesse momento, Tillich mostra de maneira mais
direta que pretende entender se há semelhança entre a
utilização do Nome Sagrado no budismo com sua ideia de
Deus para além de Deus.
No início da década de 1950 Paul Tillich apresenta
de maneira bem evidente em seu livro “A coragem de ser” a
ideia de Deus para além de Deus. Essa ideia já estava
presente em outros momentos do pensamento do autor,
mas é quando elaborada em relação à coragem de ser que
atinge seu sentido máximo. Na primeira parte de sua
teologia sistemática, chamada de “O Ser e Deus”, o teólogo
já falava a partir da noção de que o nome de Deus seria um
símbolo que participava do próprio Deus, mas que não
poderia o compreender em sua completude, ou seja, que o
nome de Deus apontava para um Deus como ser-em-si.
Em verdade, as traduções dos textos de Paul Tillich
para o português contam com duas expressões que a crítica
costuma utilizar: 1) Deus acima de Deus; 2) Deus além de
Deus. Mesmo assim, há de se compreender que os termos
utilizados por Tillich GodaboveGod e GodbeyondGod são
utilizados pelo autor na tentativa de explicar a possibilidade
de transcender o teísmo, bem como na tentativa de
propriamente transcendê-lo. Por isso, julga-se aqui
adequado utilizar a expressão “Deus para além de Deus”, a
qual expressaria melhor na língua portuguesa a direta
relação do termo com a ideia de transcendência.
Sobre o que significa factualmente a noção de Deus
para além de Deus, Paul Tillich afirma que:

226
A fonte básica da coragem de ser é o “Deus
acima de Deus”; este é o resultado de nosso
empenho em transcender o teísmo. Somente
transcendendo o teísmo pode a ansiedade da
dúvida e insignificação ser incorporada à
coragem de ser. O Deus acima de Deus é o
objeto de todo anelo místico, porém o
misticismo também deve ser transcendido a fim
de alcança-lo (TILLICH, 1976, p.143-144).
Após sua análise correlacional entre os símbolos
cristãos e os budistas, o teólogo afirma que:
Seu mito e sua doutrina nos dão a imagem
poderosa de uma pessoa que, renunciando ao
Nirvana, estabelece um juramento. Se tivermos
essa imagem poderosa como pano de fundo, se
nela estiverem implícitos todos os ensinamentos
e todos os atos dessa pessoa, eu poderia
imediatamente compreender que esse Nome do
Buda Amida contém um conteúdo semântico
suficientemente forte para despertar em alguém
a sensação de ter sido salvo e para se constituir
num poder salvífico. Se não tivermos um sistema
simbólico, o Nembutsu será, então, uma simples
magia (TILLICH, 2002).
Desse modo, Tillich entende que o Buda Amida
possui profundidade simbólica suficiente para ser a
preocupação última de uma religião, para se igualar
potencialmente com outras formas culturais de expressão
do ser-em-si, como Deus no caso cristão. Entretanto, fica
dúvida se Tillich ao chegar a tal conclusão sobre o budismo
amidista aceita ou não que existe uma não-dualidade nesse
sistema. Seria interessante entender se a ideia de Deus para
além de Deus se adequaria a um sistema não teísta.

227
No caso do budismo amidista, se o “Deus que está
para além de Deus”, ou seja, se o elemento simbolizado
pelo símbolo de fé não é propriamente um deus, mas sim
uma imanência natural e estrutural, a fé ainda teria o
mesmo significado que a fé voltada a uma divindade que se
revela através de símbolos? Ou ainda, qual seria a
necessidade de um sistema simbólico de fé sendo que
aquilo que é simbolizado não é propositalmente oculto,
como no caso das religiões teístas?

Conclusão

Feita a análise acima, resta agora ponderar em


efeito de fechamento, as particularidades compreendidas.
O diálogo de Paul Tillich serviu para que ele
próprio elucidasse questões de que já tinha conhecimento
prévio, mas de que não saberia afirmar de maneira ampla e
certeira as valorações doutrinárias e práticas para o budismo
amidista. Através da consulta aos doutores japoneses,
Tillich consegue lapidar a compreensão dos elementos de
fé do budismo amidista japonês, para então coloca-los em
correlação com elementos do cristianismo.
No que diz respeito á religião budista amidista, a
principal preocupação de Paul Tillich é entender o sentido
da recitação do Nembutsu, que é o centro doutrinário do
amidismo. A intenção com que o mantra Namu Amida
Butsu é recitada poderia diferenciar o sentido final de tal
prática religiosa.
Tillich chega à conclusão de que o Nembutsu é um
símbolo que simboliza algo para além de si próprio.
Identifica que há um poder salvífico para além do

228
Nembutsu e que os fiéis amidistas não acreditam que o
Nembutsu seja uma fórmula mágica de salvação, mas sim
que a recitação do Nome é apenas uma fórmula para
atingir o poder que está para além de si, o elemento
salvífico.
Por último, Paul Tillich afirma que o elemento
salvífico do poder que está para além do Nome, ou seja, o
próprio Buda Amida, possui características semelhantes às
cristológicas, capazes de gerar o sentimento de salvação e
de constituir um sistema salvífico.

Referências

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Religião, vol.2, n.2, 2011, p.4-25.
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Japanese Pure Land Buddhism. Berkeley:
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Escuta, 1992.
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história, modernização e transnacionalização.” Ponto
de Encontro de Ex-Fellow, a.2, nº1, p.19-28, 2006.
In: Fundação Japão de São Paulo (acessado dia
15/06/2011): www.fjsp.
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229
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Companion to Paul Tillich.Cambridge: The
University Press, 2008.
SASAKI, Elisa Massae. “Valores culturais e sociais
nipônicos.” In: Anais: IVencontro sobre Língua,
Literatura e Cultura japonesa. Associação dos
professores de língua japonesa do estado do Rio de
Janeiro: Rio de Janeiro, 2011.
TILLICH, P. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 1976.
______. “Do nome Sagrado.” Tradução de Ricardo
Gonçalves. In: Revista Correlatio. V.1, N.2. São
Bernardo do Campo: Metodista, 2002.
TOMITA, Andrea. O budismo e outras religiões
mundiais: leitura sinótica e contribuições múltiplas.
Revista Estudos de Religião, v.24, n.38, jan./jun.
2010.

230
FÉ E PLURALISMO RELIGIOSO:
REFLEXÃO A PARTIR DA TEOLOGIA DE PAUL
TILLICH

Claudio de Oliveira Ribeiro 119

Introdução

O tema "Fé e Pluralismo Religioso" vem ganhando


destaque no debate acadêmico atual. Em parte, tal ênfase
se dá como resposta à realidade sociocultural onde
encontramos nas últimas décadas maior visibilidade da
diferença religiosa, no Brasil e no mundo, maior
intensidade no debate sobre religião e democracia,
especialmente os temas ligados à laicidade do Estado, mas
também a ambiguidade de termos, ao mesmo tempo,

119
Doutor (2000) e mestre (1994) em Teologia (PUC Rio) e
bacharelado em Teologia (1985) no Seminário Metodista Cesar
Dacorso Filho, RJ. Pós-doutorado na Southern Methodist University
(SMU) (Dallas-EUA) (2015). Tem experiência docente e de pesquisa,
atuando principalmente nos seguintes temas: pluralismo religioso,
teologia e cultura, antropologia teológica, cristologia, ecumenismo,
pastoral popular, eclesiologia, pneumatologia, ciências da religião e
direitos humanos. Atua na área de assessoria à comunidades eclesiais
de base, organismos ecumênicos e movimentos inter-religiosos.
Atualmente é o vice-presidente da Associação Nacional de Pós-
Graduação em Teologia e Ciências da Religião (Anptecre)

231
situações conflitivas e busca de diálogo entre grupos
religiosos distintos em diferentes áreas da vida social.
As raízes dessa preocupação teológica ganharam
densidade ainda no século XIX quando os esforços
missionários do mundo protestante na Ásia, na África e na
América Latina, motivados pelo liberalismo teológico,
descortinaram as questões ecumênicas e, mesmo em meio
às propostas verticalistas de missão, suscitaram
oportunidades de diálogo interreligioso, processos de
aprendizagem e a fermentação de uma teologia ecumênica.
Essas perspectivas, ainda que fragmentariamente,
percorreram o século XX e desaguaram em fontes
teológicas riquíssimas, como a de Paul Tillich (1886-
1965), por exemplo. É dele o célebre texto “O significado
da história das religiões para um teólogo sistemático”,
conferência realizada dias antes de seu falecimento e
publicada em The Future of Religions (1966).
No campo católico, sob os influxos dos ventos
renovadores do Concílio Vaticano II (1962-1965), diversas
experiências de diálogo interreligioso e de reflexão
teológica sobre os temas emergentes dessa aproximação se
fortaleceram. Teólogos como Karl Rahner, Hans Küng,
Yves Congar e Edward Schillebeeckx forjaram novas
perspectivas teológicas que, décadas mais tarde, passaram a
ser aprofundadas e revisadas. Há, desde os anos de 1990,
um florescer de novas concepções teológicas oriundas das
preocupações com o encontro e o desencontro do
cristianismo com as demais religiões.
O século XXI, no tocante às questões do pluralismo
religioso, começou de forma paradigmática. As
repercussões dos conflitos políticos e econômicos entre

232
Oriente e Ocidente, simbolizados na destruição das
“Torres Gêmeas” no dia 11 de setembro de 2001, fizeram
por despertar ainda mais a consciência em relação à
importância de uma teologia das religiões ou de reflexões
em diferentes áreas sobre o pluralismo religioso. Não se
trata, aqui, de supervalorizar o papel e o lugar dos Estados
Unidos, palco do referido evento, mas, de fato, com o
ataque e os desdobramentos dele o tema das religiões
ganhou evidência. Contraditoriamente, a dimensão
ecumênica foi reforçada, uma vez que vários grupos e
lideranças islâmicas do mundo inteiro, incluindo o Brasil,
tiveram, por exemplo, espaços, tanto na mídia como em
setores acadêmicos e eclesiais, para partilhar a fé e ressaltar,
entre outros aspectos, que o islamismo é uma religião de
paz. Tais repercussões deram maior densidade e
visibilidade ao debate teológico e ecumênico.
Os desafios não pararam por aí. A perspectiva
pluralista das religiões interpela fortemente o contexto
teológico latino-americano, especialmente pela sua vocação
libertadora e pelos desafios que advém de sua composição
cultural fortemente marcada por diferenças religiosas que
se interpenetram nas mais diferentes formas. A Teologia
Latino-Americana da Libertação, dentre os seus muitos
desafios, tem elaborado uma consistente reflexão sobre os
desafios do pluralismo religioso. O marco dessas reflexões
foi a publicação da série Pelos Muitos Caminhos de Deus, de
cinco volumes, sob os auspícios da Associação dos
Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (ASETT).
Diante desses aspectos, nosso objetivo é refletir
sobre a temática sob a ótica da teologia de Paul Tillich,
consciente de que o contexto no qual esse renomado

233
teólogo refletiu é distinto do atual, mas que ele indicou
caminhos que podem ser repisados e repensados tendo em
vista o encontro entre fé e pluralismo religioso.

1. O legado de Paul Tillich

Embora Tillich não se tivesse proposto formular


uma teologia das religiões, há em sua produção teológica
demonstrações relevantes dessa preocupação. A primeira
foi a elaboração, em conjunto com MirceaEliade, de “um
tipo de teologia fundamentada na revelação universal de
Deus na história das religiões” que, todavia, é “purificada
pelo evento do Cristianismo enquanto religião particular”
(BRAATEN, 1986, p. 27). Outra, foi o desejo dele, já no
final de sua vida, de interpretar sua Teologia Sistemática a
partir da história das religiões (TILLICH, 1966). Mesmo
por ocasião da produção dessa obra, o autor já indicava que,
do ponto de vista metodológico, um sistema teológico
necessita ser elaborado e refletido sempre em confronto
com as questões advindas das críticas do pensamento
secular, por um lado, e em diálogo criativo com o
pensamento teológico de outras religiões, por outro. Além
disso, é necessário considerar a relação entre catolicismo e
protestantismo.
Nas palavras de Mircea Eliade:
Na sua Teologia Sistemática Tillich se dirigiu ao
ser humano ocidental moderno, apegado à
história e totalmente envolvido no mundo
secular da ciência e tecnologia. Ele sentiu que
uma nova teologia sistemática era necessária –
uma teologia que leve em consideração não
apenas a crise existencial e o vácuo religioso das

234
sociedades ocidentais contemporâneas, mas
também as tradições religiosas do mundo
primitivo e da Ásia, junto com suas recentes
crises e traumáticas transformações (ELIADE,
1966, p. 31).
É oportuno afirmar mais uma vez que o contexto da
produção teológica de Tillich fazia ressaltar uma
preocupação central com a crítica “atéia” da religião, em
especial a partir do existencialismo, do freudianismo e do
marxismo. No contexto atual, em especial o latino-
americano, o pensamento cristão necessita, além de
pressupor os referidos questionamentos, debruçar-se nas
questões que emergem com a explosão religiosa no mundo
inteiro. Trata-se da "difícil passagem interpretativa da
modernidade para a pós-modernidade" (GEFFRÉ, 1994,
p. 268).
Nesse aspecto, seguimos a tese de Luiz Guilherme
Kochem Mathias, "Teologia Sistemática e Religiões
Mundiais: aproximações tillichianas ao tema da pluralidade
religiosa" (2013), recentemente defendida na UFJF, que
demonstra que para a compreensão do tema pluralismo
religioso em Tillich devemos considerar não apenas o
período da década de 1960, mas que é preciso levar em
conta também os anos que antecederam à famosa viagem
de Tillich ao Japão. É fato que no referido período a
produção realizada apresenta os traços que podem ser
considerados os mais significativos em se tratando da
aproximação de Tillich à temática da pluralidade religiosa,
mas ainda assim, estaríamos desconsiderando as fontes de
onde emergiram. É comum, se focar na década de 1960, os
últimos cinco anos da vida de Tillich, como se o tema do
pluralismo religioso fosse, a partir desse período, novidade

235
no pensamento teológico dele. Todavia, a referida tese
mostrou que tal tarefa, além de incompleta, acabaria por se
apresentar como insipiente porque não levaria em conta a
produção sistemática de Tillich, ou mesmo a presença
contínua da história da religião no pensamento dele, a
preocupação com as quasi-religiões (comunismo,
nacionalismo e humanismo), o que em último
desdobramento poderia nos levar até mesmo a
contraporesta última fase de sua produção intelectual à
anterior, como se a Teologia Sistemática tivesse sido um
trabalho equivocado ou ultrapassado e que agora, em vias
de ser superada, Tillich iniciaria um trabalho de fato
significativo. O que se defende, por exemplo, é que a
viagem de Tillich ao Japão não foi o começo, mas um dos
pontos altos do crescente interesse do autor que vai se
transformar em textos e atividades acadêmicas na década
de 1960. Mas, as suas raízes podem ser rastreadas
retomando o caminho até aos anos alemães de Tillich. Essa
é, em síntese, a tese de Mathias (2013).

2. A dimensão do diálogo

Paul Tillich, como temos visto, ofereceu, com sua


teologia da cultura, um testemunho da natureza não-
totalitária do Cristianismo. Ele fez a crítica ao absolutismo
eclesiocêntrico da Igreja Católica Romana e à perspectiva
exclusivista de Karl Barth, no contexto teológico
protestante.Não obstante, questionou o modelo
inclusivista, ao indicar a necessidade de se ressaltar o
caráter absoluto do Cristianismo como uma religião
histórica. A produção teológica de Tillich poderia ser um

236
caminho para se repensar os modelos consagrados de
teologia das religiões que se assentam nas expressões do
exclusivismo, do inclusivismo e do relatismo, abrindo-se,
portanto, à visão pluralista (DUPUIS, 1993, p. 75-88).
Tillich destacou, ao mesmo tempo, a importância
do caráter normativo da cristologia para a teologia das
religiões. Dessa forma, não se pode confundir o caráter
particular do Cristianismo como uma religião histórica
com o caráter particular de Cristo como mediador do
absoluto na história (GEFFRÉ, 1994, p. 271).
Para desenvolver essas perspectivas, Tillich reflete
sobre o paradoxo do Cristianismo baseado na “Palavra que
se fez carne”. Outra dimensão, igualmente paradoxal, é o
Cristianismo como religião histórica ser também
compreendido como religião de revelação final. Para
discernir tais paradoxos, Tillich recorre à concepção
teológica da preocupação última e suprema (Ultimate
Concern) como o critério de encontro entre religiões. O
ponto culminante desses debates é a questão salvífica. Ela é
crucial para o diálogo interreligioso, assim como para uma
teologia das religiões.
Tillich, na referida conferência “O significado da
história das religiões para um teólogo sistemático” (1965),
apresenta cinco pressuposições sistemáticas para a
abordagem teológica das religiões. A primeira é que as
experiências de revelação são universalmente humanas. As
religiões são firmadas sobre algo que é dado para o ser
humano onde quer que ele viva. A ele é dada uma
revelação, um tipo particular de experiência o qual sempre
implica um poder salvífico. Revelação e salvação são

237
inseparáveis, e há poder de revelação e de salvação em
todas as religiões.
O segundo aspecto é que a revelação é recebida pelo
ser humano nas condições de caráter alienado que possui e
na situação humana finita e limitada. A revelação é sempre
recebida em uma forma distorcida, especialmente se a
religião é usada como “meio para um fim” e não como um
fim em si mesma.
Em toda a história humana, não há somente
experiências revelatórias particulares, mas há um processo
revelatório no qual os limites de adaptação e as deficiências
de distorção são sujeitos à crítica, seja mística, profética ou
secular. Esse é o terceiro pressuposto.
O quarto é que há um evento central na história das
religiões que une os resultados positivos dessa crítica e que
nele e sob ele as experiências revelatórias acontecem. Um
evento, portanto, que faz possível uma teologia concreta
com um significado universal.
O último pressuposto é que a história das religiões,
em sua natureza essencial, não existe ao lado da história da
cultura. O sagrado não está ao lado do secular, mas ele é a
sua profundidade. O sagrado é o chão criativo e ao mesmo
tempo um juízo crítico do secular.
Com esses pressupostos, Tillich oferece indicações
para uma teologia das religiões, entre as quais três estão
relatadas a seguir. A compreensão do autor é que essa
teologia reúne uma crítica e uma valorização positiva da
revelação universal. Ambas são necessárias. A teologia das
religiões, na visão de Tillich, ajuda os teólogos sistemáticos
a entenderem o presente momento e a natureza do próprio
lugar histórico do fazer teológico, tanto no caráter

238
particular do Cristianismo como na reivindicação de
universalidade deste.

2.1. O paradoxo da encarnação


O caráter paradoxal do Cristianismo origina-se no
paradoxo “a Palavra se fez carne”. Compreende-se o
significado da expressão “paradoxo” no fato de um evento
transcender todas as expectativas e possibilidades humanas.
Essa é a perspectiva de Tillich sobre a encarnação.
Tillich indicou que o caráter revelatório “em Jesus
como o Cristo” – como centro da história – confere ao
Cristianismo um progresso em relação à revelação final.
Todavia, essa noção de progresso será relativizada em
função da preocupação última já respondida nesse evento
revelatório, que rompe o poder demônico na realidade.
Nesse sentido, fica excluída a concepção de um progresso
horizontal como fim da história e ressaltada a noção de
uma interação vertical da Presença Espiritual na história.
Para as teologias de corte político como a latino-americana
tal crítica é fundamental para conter desvios idolátricos.
A função essencial de Cristo como o Novo Ser é
salvar a humanidade de sua alienação e renovar o universo.
É em Jesus, confessado como o Cristo, que o Novo Ser, o
qual é o princípio da transformação de toda a existência
histórica e da renovação da criação, é manifestado. Trata-se
de afirmar que “se alguém está em Cristo, é nova criatura;
as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (II
Coríntios 5. 17).
Ao mesmo tempo, é o Novo Ser em Jesus, como o
Cristo, que constitui a norma material da Teologia
Sistemática (TILLICH, 1951, p. 50). Nesse sentido,

239
Tillich, mais do que situar-se na perspectiva da justificação
pela fé (como fez Lutero), orienta sua teologia na
perspectiva da nova criação – o que, mais uma vez, abre
perspectivas para o diálogo com a teologia latino-
americana, uma vez que esta, desde as suas primeiras
produções, enfatiza o surgimento do novo, a transformação
social e a tematização, no campo pastoral, da visão bíblica
do “novo céu e da nova Terra”.
Com isso, o teólogo não estimula a eliminação do
paradoxo cristológico em benefício de um maior
teocentrismo ecumênico; ao contrário, é precisamente na
confissão de Jesus ser o Cristo é que há a chance de
assegurar para o Cristianismo o diálogo não autoritário. Há
uma particularidade (Jesus) conectada a uma universalidade
(Cristo) que mantém o Cristianismo como religião
singular, na medida em que atesta a revelação final. Tal
revelação é inseparável do mistério da morte e da
ressurreição; e o significado último dela, firmado na
doutrina de Cristo como o Novo Ser, é encontrado na
Cruz.
A particularidade singular e relativa do
Cristianismo é possibilitada pela Cruz. Ela é a condição da
glória. A Cruz tem um valor simbólico universal uma vez
que o Cristo ressurreto livra a pessoa de Jesus de um
particularismo o qual faria dele propriedade de um povo
particular.
A perspectiva teológica do martírio e do sofrimento
humano – ênfase constante na teologia latino-americana –
constroi bases comuns de encontro das religiões, pois são
experiências que abrangem a universalidade da dimensão
humana. Ao mesmo tempo, a Cruz e o martírio podem ser

240
elementos de discernimento das propostas religiosas. No
caso latino-americano, as experiências relacionadas às
teologia de prosperidade, como são conhecidas, tendem,
por exemplo, a omitirem ou camuflarem ideologicamente a
perspectiva da Cruz.
O Cristianismo é baseado, portanto, em uma
ausência (o túmulo vazio). E é essa consciência do vazio
que oferece condições para o relacionamento com o outro.
Nesse sentido, o diálogo com outras religiões é uma
vocação cristã (GEFFRÉ, 1994, p. 273-275).
A realidade latino-americana, por suposto, requer
um aprofundamento dessas questões, em especial pela
diversidade e pela afirmação religiosa, nas últimas décadas
do século XX, de diferentes agrupamentos, especialmente
os que valorizam as raízes africanas e indígenas.

2.2. O paradoxo do Cristianismo como a religião da


revelação final
Realização histórica alguma constitui a essência do
Cristianismo; este é essencialmente um protesto contra um
conceito histórico de essência. Isso quer dizer que a
essência do Cristianismo não coincide com qualquer de
suas realizações históricas e que ela pode ser encontrada em
outras religiões que não o Cristianismo.
As práticas religiosas exclusivistas e o
eclesiocentrismo que por vezes configuram o pensamento e
as práticas das igrejas são combatidos pela noção de que a
Comunidade Espiritual - conceito caro à Tillich - é criada
pela Presença Espiritual e não por mera iniciativa humana
e se revela na humanidade, tanto em grupos seculares como

241
em diferentes religiões, e não apenas nas formas históricas
da igrejas cristãs.
Nesse sentido, para Tillich, há historicamente uma
tensão entre a verdade do Cristianismo e a superioridade
dele. O paradoxo consiste na declaração de que o
Cristianismo como religião da revelação final nega o
clamor de incondicionalidade por parte de qualquer
religião particular, a começar pelo próprio Cristianismo.
Trata-se de uma preocupação última que possibilita a
distinção entre a essência da revelação e a forma concreta e
histórica dela.
O paradoxo da perfeita revelação consiste no fato de
que ela precisa reconciliar em seu interior os elementos de
realização concreta e o protesto perturbador que nega tal
realização. O que dificulta o diálogo interreligioso é que
cada religião quer possuir a revelação final, a revelação do
Absoluto. No caso do Cristianismo, a missão da igreja não
é converter as pessoas para a própria igreja e sim, ao
contrário, convertê-las para a natureza incondicional da
revelação final. Na superação dessa tensão encontram-se
possibilidades de aproximação e de diálogo entre as
religiões.
Tillich indica que as experiências revelatórias em
todas as religiões são participações fragmentárias na
unidade transcendente do que ele chamou de vida sem
ambiguidades (GEFFRÉ, 1994, p 277-280). Isso
encontra-se, sobretudo, nos conceitos de Comunidade
Espiritual latente e manifesta, os quais relativizam a
identificação destes com as igrejas cristãs.
As igrejas representam, ao mesmo tempo, a
atualização e a distorção da Comunidade Espiritual.

242
Atualização, porque as igrejas se autocompreendem como
efetivação do Kairose possuem a vida baseada na vida
transcendente e sem ambiguidade de Cristo. Distorção,
porque como igrejas participam na ambiguidade da religião
e da vivência humana em geral. Nesse sentido, o encontro
das temáticas eclesiológica e soteriológica representa para o
contexto latino-americano um desafio teológico e pastoral
de fundamental importância, devido à forte aceitação da
máxima "Fora da Igreja não há Salvação".

2.3. A religião como preocupação última


Tillich indicou que a base religiosa universal é a
experiência do Santo dentro do finito. O Santo, como
realidade teológica e espiritual fundamental, surge nas
coisas finitas e particulares, tanto nas concretas como nas
universais. Ele é a base sacramental de todas as religiões.
Pode ser visto e ouvido “aqui e agora”, não obstante o seu
caráter misterioso. A experiência do Santo, como vivência
do UltimateConcern, é a convergência de todas as religiões e
permite um critério comum para o diálogo interreligioso
(GEFFRÉ, 1994, p. 281-285).
Todavia, a base sacramental do que é Santo e
último está sujeita, por sua finitude – como referiu-se
Tillich – à demonização. Surge a mística, como movimento
crítico, como um “para além de”, como uma insatisfação
com as expressões concretas do Último, do Santo. Este está
além de qualquer corporificação. A concretização da
experiência última é aceitável, mas possui caráter e valor
secundários. Há uma reserva religiosa ao concreto, que
evita formas de sacramentalismos e similares. O pluralismo

243
religioso precisa ser discernido tendo como base tais
perspectivas.
Há um terceiro elemento da experiência religiosa
que é o profético. Com ele, a dimensão sacramental é
criticada em função de eventuais consequências
demoníacas, como a negação da justiça em nome da
santidade, por exemplo. Trata-se do elemento ético,
daquilo “que deve ser”, da obrigação religiosa ao concreto,
que evita o espiritualismo. No entanto, sem as dimensões
sacramental e mística, a experiência religiosa torna-se
moralismo e seculariza-se.
A relação positiva e negativa desses elementos - a
saber: o Santo, o místico e o prófético - possibilita, à
história das religiões, o caráter dinâmico; a todas as
religiões, um telos interior, uma preocupação última.
Mesmo com reservas à nomenclatura, Tillich sintetizou
essa perspectiva como a “Religião do Espírito Concreto”.
Esta não pode ser jamais identificada com qualquer
religião, nem mesmo o Cristianismo, mas está,
fragmentariamente, no centro da direção e da orientação de
todas as coisas.
O processo de concretização da experiência religiosa
pode gerar, ao fim, um secularismo, uma vez que a crítica
tende a atenuar ou mesmo eliminar o caráter sacramental e
místico. Todavia, esse processo não se sustenta por si
mesmo, uma vez que não possui um sentido maior e
último. Por isso, surge uma nova teonomia, ainda que
fragmentariamente. É nesse processo que vivem as religiões
(TILLICH, 1966, p. 86-90).

244
Últimas considerações

A vocação ecumênica, ao marcar as reflexões


teológicas e pastorais, indica que o caráter de apologia, de
sectarismo ou de exclusivismo são ou devem ser evitados.
Deus é sempre maior do que qualquer compreensão ou
realidade humana. Age livremente, em especial na ação
salvífica. Nesse sentido, não é preciso estar excessivamente
preocupado em descobrir quem é ou será salvo (para
utilizar o imaginário comum dos cristãos); mas quem é e o
que representa Jesus Cristo para a comunidade cristã. Esse
patrimônio teológico é comum aos pensamentos de Tillich
e da teologia latino-americana.
Como vimos, o debate entre fé e pluralismo
religioso não pode se isentar do tema da salvação. A
formação do sentido da salvação começa na ausência dele
na humanidade. A vida humana depende, como indicou
Paul Tillich, de “forças curadoras” que impeçam que as
estruturas autodestrutivas da existência mergulhem na
humanidade a ponto de provocar uma aniquilação
completa (TILLICH, 1957, p. 166). A revelação de Deus
encontra ressonância nessa busca humana. Daí a
compreensão de salvação como cura, pois, ao encarnar-se,
Deus reúne aquilo que está alienado e disperso. Trata-se de
superar o abismo entre Deus e o ser humano, do ser
humano consigo mesmo, com o seu próximo e com a
natureza.
A consciência religiosa, como preocupação última,
afirma sempre a transcendência incondicional ao lado da
concretude que torna possível o encontro humano-divino.
Nesse sentido, o processo de salvação só é possível com
uma mediação. No caso da fé cristã, Jesus Cristo

245
“representa Deus junto aos homens, e os homens junto a
Deus” (TILLICH, 1957, p. 169). Como o Novo
Testamento registra: “Tudo provém de Deus, que nos
reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o
ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em
Cristo reconciliando consigo o mundo...” (II Coríntios 5.
18-19).
A superação da ambiguidade humana encontra
resposta na tensão vivida por Jesus Cristo entre as forças
curadoras nele reconhecidas e as estruturas autodestrutivas
da existência humana. Por isso, para a fé cristã, desafiada
pelo diálogo decorrente do quadro de pluralismo religioso,
o critério da salvação encontra-se em Jesus, o Cristo. Isso
porque sua vida não oculta a limitação humana (objetiva)
ao revelar a possibilidade da morte a ser assumida
(objetivamente) pelos seres humanos e, ao mesmo tempo,
possibilita a estes a participação (subjetiva) no poder de
Deus ao vivenciar a superação da morte (subjetivamente)
com o sentido da salvação.
Essa perspectiva de Tillich o remete à busca de um
novo paradigma para a teologia das religiões. Trata-se da
superação dos seguintes modelos: o que considera Jesus
Cristo e a Igreja como caminho necessário para a salvação;
o que considera Jesus Cristo como caminho de salvação
para todos, ainda que implicitamente; e aquele no qual
Jesus é o caminho para os cristãos, enquanto para os outros
o caminho é a sua própria tradição. A perspectiva
pluralista, que advogamos, possui como característica
básica a noção de que cada religião tem a sua proposta
salvífica e de fé que devem ser aceitas, respeitadas e
aprimoradas a partir de um diálogo e aproximação mútuas.

246
Assim, a fé cristã, por exemplo, necessita ser reinterpretada
a partir do confronto dialógico e criativo com as demais fés.
O mesmo deve se dar com toda e qualquer tradição
religiosa. Aqui, há um ponto de novidade que coloca a
todos em constante desafio.

Referências

BRAATEN, Carl E. “Paul Tillich e a tradição cristã


clássica” (pp. 11-28). In: TILLICH, Paul.
Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e
XX. São Paulo-SP, ASTE, 1986
DUPUIS, Jacques. “O debate cristológico no contexto do
pluralismo religioso” (pp. 75-88). In: TEIXEIRA,
Faustino Luiz Couto (org.). Diálogo dos Pássaros. São
Paulo-SP, Paulinas, 1993.
ELIADE, Mircea. Paul Tillich and the History of
Religions. In: TILLICH, Paul. The Future of
Religions.New York-USA, Harper&Row, 1966
(Editadopor Jerald C. Brauer).
GEFFRÉ, Claude. “Paul Tillich and the future of
interreligious ecumenism”. In: Raymond F.
Bulman& Frederick J. Parrela (eds.). Paul Tillich: a
new catholic assessment. Collegeville, Minnesota, The
Liturgical Press, 1994.
MATHIAS, Luiz Guilherme Kochem. "Teologia
Sistemática e Religiões Mundiais: aproximações
tillichianas ao tema da pluralidade religiosa". Tese de
doutorado. Universidade Federal de Juiz de Fora,
2013.

247
TILLICH, Paul. The Future ofReligions. New York-USA,
Harper&Row, 1966 (Editadopor Jerald C. Brauer).
____ Systematic Theology. Vol. II. Chicago-USA, The
University Chicago Press, 1957.

248
TILLICH E A TEOLOGIA DO PLURALISMO
RELIGIOSO

Cleber A. S. Baleeiro120

O que é geralmente chamado de teologia do


pluralismo religioso é o esforço de reflexão teológica que
nasce no cristianismo a partir de seus encontros com outras
religiões e da constatação da pluralidade religiosa e cultural
que caracteriza muitas sociedades. Lieve Troch (2007, p.
86-87) diz que ela já vem acontecendo há algumas décadas
no Oriente e que, “no Ocidente, a recente atenção dedicada
em medida crescente a uma teologia do pluralismo
religioso é antes um resultado das mudanças na função,
forma e papel das religiões nas sociedades ocidentais ou
uma consequência da globalização e da migração”. Um
ponto importante na reflexão teológica sobre o pluralismo
religioso é a questão da salvação. Em que medida as
religiões têm suas próprias vias de salvação? E, em
consequência disso, se pergunta também: Qual o sentido
do cristianismo se se reconhece não somente um

120
Doutorando em Ciências da Religião Pela Universidade Metodista
de São Paulo, professor no curso de Teologia (EaD) na mesma
universidade, membro da Associação Paul Tillich do Brasil.

249
pluralismo religioso mas um pluralismo salvífico. Os
teólogos do pluralismo, apesar de diversas categorizações,
comumente se referem a três paradigmas salvíficos do
cristianismo em relação às outras religiões: o paradigma
exclusivista, o paradigma inclusivista e o paradigma
pluralista. O primeiro se refere à ideia de que determinada
religião é detentora exclusiva da salvação; o segundo, à
compreensão de que é possível haver salvação nas outras
religiões, mas essa possibilidade só existe por intermédio do
cristianismo; o último se refere à compreensão de que cada
religião tem sua própria via de salvação, em pé de igualdade
com o cristianismo.
Faustino Teixeira, tratando desses três paradigmas
salvíficos, afirma que “não é fácil enquadrar a reflexão de
Paul Tillich sobre as religiões entre os tradicionais
paradigmas existentes” (TEIXEIRA, 2012, p. 53).
Entretanto, por motivos didáticos – imagino – o alocou
entre os teólogos inclusivistas. Claudio Ribeiro chega a
dizer que o pensamento de Tillich no que concerne às
religiões pode ser um caminho para se repensar os modelos
consagrados de teologia das religiões (RIBEIRO, 2014, p.
46). Mas o que torna o pensamento de Tillich difícil de ser
enquadrado entre os paradigmas tradicionais e de que
maneira ele pode contribuir com essa discussão?
De início é preciso compreender que Tillich não foi
um teólogo das religiões e nunca elaborou uma teologia do
pluralismo religioso. Ele foi principalmente um teólogo
sistemático e um teólogo da cultura. Dentre seus textos que
mais se aproximam do tema quero destacar dois: a
conferência O significado da história das religiões para o
teólogo sistemático, pronunciada em 1965, alguns dias antes

250
de sua morte, e a série de quatro conferências sobre o tema
O cristianismo e o encontro das religiões mundiais 121 ,
pronunciadas em 1961, alguns meses após sua visita ao
Japão, episódio que marcou profundamente sua produção
teológica da década de 60122.

II

No primeiro texto, como o próprio título já indica,


seu objetivo era apontar algumas possíveis contribuições da
história das religiões, de maneira especial em torno do
pensamento de MirceaEliade, para a teologia sistemática.
É interessante lembrar que para Tillich a teologia
sistemática é uma teologia da igreja, além disso, “é a
interpretação metódica dos conteúdos da fé cristã”
(TILLICH, 2011, p. 32) e tem como fontes a Bíblia, a
história da igreja, a tradição e a história das religiões e da
cultura. Quando Tillich diz que a história das religiões é
fonte para a teologia sistemática está falando de uma
história teológica das religiões, elaborada “à luz do
princípio missionário de que o Novo Ser em Jesus como o
Cristo é a resposta levantada implícita e explicitamente
pelas religiões da humanidade” (TILLICH, 2011, p. 54).

121
As quatro conferências foram publicadas juntas e têm os seguintes
títulos:Panorama da situação atual: as religiões, as quase-religiões e
seus encontros, Critérios cristãos para julgar as religiões não cristãs,
Diálogo entre cristãos e budistas e O cristianismo julga a si mesmo à
luz de seus encontro com as religiões universais.
122
Além desses, Etienne Higuet (2014, p. 10) afirma que é possível
encontrar entre as obras de Tillich outros textos que estão relacionados
ao tema do encontro do cristianismo com as outras religiões, como as
transcrições de seus diálogos com budistas e as MatchetteLectures, de
1958.

251
Isso significa que a teologia sistemática é interna à religião
cristã. Nesse sentido é possível afirmar que a teologia das
religiões e, ainda mais, a teologia do pluralismo religioso,
têm objetivos muito diferentes da teologia sistemática, pelo
menos no sentido atribuído por Tillich, aproximando-se
mais da teologia da cultura.
Dessa forma, o que ele procura tratar na referida
conferência é a maneira como a reflexão teológica sobre a
fé cristã pode ser enriquecida pela história das religiões.
Para que isso aconteça é preciso evitar duas atitudes: a de
considerar uma religião como verdadeira em oposição a
todas as outras, consideradas falsas, representada no século
XX por Karl Barth; e a de desconsiderar a importância das
religiões concretas, anunciando-se como uma religião da
não-religião, representada pela teologia da morte de Deus.
Como uma maneira de evitar a primeira atitude é preciso
aceitar algumas pressuposições sistemáticas: 1. As
experiências revelatórias são universais e portadoras de
poder salvífico, o que implica no poder de revelação e
salvação em todas as religiões; 2. A revelação é sempre
recebida no âmbito da finitude, isso significa que a
experiência religiosa (inclusive cristã) é sempre distorcida,
não expressando exatamente aquilo que é experimentado;
3. As distorções próprias da experiência da revelação estão
sujeitas a críticas que podem assumir três formas: a mística,
a profética e a secular; 4. Pode haver um evento central na
história das religiões que seja ao mesmo tempo uma síntese
dos resultados positivos e um parâmetro para as críticas das
distorções (Tillich enfatiza o “pode”) (TILLICH, 1976, p.
97-98).

252
Como uma maneira de evitar a segunda atitude –
desconsiderar a importância das religiões concretas – deve-
se superar a ideia do secular sem Deus. Ou seja, o secular
não é necessariamente uma oposição ao sagrado, mas pode
ser interpretado como uma dimensão de crítica a seus
aspectos absolutistas (TILLICH, 1976, p. 99). Assim, a
secularização deve ser compreendida de maneira positiva
como aquilo que, invés de destruir a religião, tem com ela
uma relação de interdependência. A maneira como Tillich
desenvolve a relação entre religião e cultura pode nos
ajudar a compreender isso. Para ele a “religião é a essência
da cultura, e a cultura é a forma da religião” (TILLICH,
1970, p. 66). Isso significa que a religião se expressa
sempre através de formas culturais específicas e que toda
criação cultural, incluindo aquelas consideradas mais
secularizadas, expressa algo do incondicional. A implicação
disso para a relação entre o sacro e o secular é que o
primeiro está nas profundidades do segundo, é seu
elemento criativo e juízo crítico, por outro lado, o secular é
um instrumento de autocrítica da religião.
Nesse texto Tillich traz ainda algo que me parece
uma importante contribuição a uma teologia do pluralismo
religioso, que é o que ele chama de “religião do espírito
concreto”. A religião do espírito concreto é a síntese de três
elementos tipológicos: o sacramental, o místico e o ético ou
profético123. Ele afirma que esses três estão presentes em

123
Essa tipologia aparece em vários textos de Tillich com algumas
modificações. Na Dinâmica da fé, por exemplo, ele fala de dois tipos
de fé, os ontológicos e os morais aos quais estão relacionados,
respectivamente, a mística e a ética; ambos dependentes da ideia de
santidade ou sacralidade (2001, p. 39-48). Na Teologia sistemática ele
a relaciona à história da revelação, acrescentando aos elementos

253
menor ou maior grau em toda expressão religiosa. O
elemento sacro está presente em todas as religiões e é
gerado na experiência de revelação: “Toda experiência
revelatória transforma o meio de revelação em um objeto
sacramental, seja ele um objeto da natureza, um ser
humano, um evento histórico ou um texto sagrado”
(TILLICH, 2011, p. 150). Os dois outros elementos são
críticas ao elemento sacramental, pois muitas vezes pode-se
confundir o finito com o infinito, o meio com o conteúdo
da revelação. O elemento místico representa o
inconformismo com as expressões concretas da sacralidade
e daquilo para o qual ela aponta, promovendo uma
tentativa de transcendê-las com o propósito de apreender
aquilo que é mais elevado, que é último. Para Tillich
(2011, p. 150-151), “o misticismo criticou a substância
sacramental-sacerdotal demonicamente distorcida
desvalorizando todo meio de revelação e tentando unir a
alma diretamente com o fundamento do ser, fazê-la
penetrar no mistério da existência sem a ajuda de um meio
finito”. O elemento moral ou profético é o do dever-ser,
representa a crítica à negação da justiça em nome da
santidade. Diferente do elemento místico, ele não busca
superar os elementos concretos, mas submetê-los à lei de
Deus, àquilo que deveria ser.
Como disse anteriormente, a religião do espírito
concreto é a unidade desses três elementos. Mas o que isso
quer dizer e que importância tem? Aqui está em jogo o
estabelecimento de um critério para julgar as religiões,
talvez uma maneira – ainda muito presa a uma perspectiva

críticos do sacramentalismo (místico e profético) a crítica racional


(2011, p. 151).

254
cristã das religiões – de estabelecer o que pode ser válido ou
não em termos de religião 124 . A experiência revelatória
necessita dos elementos místico e ético para criticar sua
tendência idolátrica de autoconservação por meio da
manipulação e da absolutização dos símbolos. Por outro
lado, sem o elemento sacro a mística cai num tipo de
emocionalismo vazio e o elemento ético ou profético num
moralismo secular. Tillich diz que ela é o telos da história
das religiões, o propósito intrínseco de todas elas. Ele
identifica na história das religiões algo que é comum a
todas elas, aquilo para qual elas apontam. Não há aqui uma
teleologia ou uma visão linear e progressiva da história,
pois a religião do espírito concreto não é uma “expectativa
meramente futurista” (TILLICH, 1976, p. 109), mas um
ideal de religião, formulado a partir de um olhar teológico
da história das religiões. Isso para o qual as religiões
apontam é o que, em termos filosóficos, Tillich chamou de
ser-em-si, mas que as religiões chamam por diversos nomes
e expressam através de símbolos próprios. Por esse motivo
a religião do espírito concreto não pode ser confundida
com nenhuma religião específica, nem mesmo com o
cristianismo de Tillich, ainda que ele identifique a doutrina
paulina do Espírito como um bom exemplo.

124
O grande problema é: Quem julga? O teólogo cristão? Uma das
conferências de 1961 sobre o encontro do cristianismo com as outras
religiões teve como título Critérios cristãos para julgar as religiões
não cristãs.

255
III

No segundo texto, sob o forte impacto de sua visita


ao Japão, conforme dito anteriormente, de maneira
especial, de seu encontro com importantes mestres
budistas, Tillich procura pensar o cristianismo diante das
outras religiões. Neste texto também não é possível
encontrar uma desenvolvida teologia do pluralismo
religioso, pois a maioria das questões colocadas ainda diz
respeito ao cristianismo, como os critérios cristãos para
julgar as outras religiões e a maneira como o cristianismo
julga a si mesmo a partir de seu encontro com as religiões
universais. De qualquer forma, alguns elementos são bem
significativos para pensar o diálogo entre as religiões.
Quero destacar inicialmente um deles, o conceito de
religião utilizado por Tillich. Para ele, religião é o estado
de estar tomado por uma preocupação suprema.
Preocupação suprema não é uma preocupação
simplesmente maior ou mais angustiante que outras, mas
aquela que se dá num nível ontológico e existencial
abarcando e tornando secundárias todas as outras
preocupações (TILLICH, 1974, p. 165). A partir disso é
possível afirmar, ainda que de maneira um pouco simplista,
que o que dá o caráter religioso às formas concretas de
religião é o fato de serem expressões de uma preocupação
suprema. Religião é, então, compreendida em sua relação
com a cultura, da qual as religiões concretas fazem parte,
bem como as artes, a ciência e a tecnologia e a política. Os
símbolos principais da preocupação suprema são os deuses,
no caso das religiões teístas, e objetos sagrados, um poder
onipresente ou princípio supremo, no caso das religiões
não-teístas. A partir desse sentido amplo de religião Tillich

256
chega a falar de quase-religiões, que são movimentos que
mantém similaridade com as religiões concretas, realçando
preocupações marcadamente seculares ao nível
incondicional. Dois exemplos extremos de quase-religiões
são o fascismo e o comunismo, neles “as preocupações
nacionais e sociais são realçadas até receberem um caráter
último e ilimitado” (TILLICH, 1974, p. 166). O conceito
tillichiano de religião ao mesmo tempo em que corre o
risco de perder de vista o específico de cada religião
concreta, aponta para algo de positivo para o diálogo entre
elas, a preocupação suprema como elemento comum e que
as coloca no mesmo nível.
Na segunda das quatro conferências Tillich discute
algo que pode contribuir com a reflexão teológica a partir
do encontro das religiões. Inicialmente ele afirma que “se
um grupo está convencido de possuir uma verdade, nega
implicitamente aquelas pretensões de verdade que entram
em conflito com a sua” (TILLICH, 1976, p. 177). Essa
afirmação num primeiro momento parece perigosa, pois
pode se tratar da possibilidade de absolutização dos
postulados de um grupo religioso e deslegitimação dos
postulados das outras religiões. Entretanto, o que Tillich
quer dizer é exatamente o contrário. A afirmação trata do
direito de todos os grupos religiosos (e sociais) de
sustentarem suas crenças e seus símbolos. Ele está
pensando aqui nas críticas ateias à religião. O cristianismo,
por exemplo, ao longo de sua história sustenta o postulado
de Jesus como o Cristo e rejeita a tudo aquilo que se opõe a
ele. Mas Tillich não vê essa atitude como negativa, antes
diz que tanto o cristianismo como as outras religiões têm o
direito de manifestar suas crenças, como os céticos têm o

257
direito de manifestar sua descrença (TILLICH, 1974, p.
178).
A negação implícita das outras pretensões de
verdade tem um sentido próprio na afirmação de Tillich.
Para ele, o problema não está na rejeição das outras
religiões, mas no caráter dessa rejeição. A relação de um
grupo religioso com outro pode se dar de três maneiras:
como rejeição total, como rejeição parcial e como uma
conjunção dialética. A rejeição total é a negação total de
determinada religião, incluindo seus símbolos, suas crenças
e seu valor enquanto comunidade moral e via de salvação.
É considerada falsa e não é possível ter com ela nenhum
tipo de comunicação. A rejeição parcial é a aceitação de
algumas afirmações e rejeição de outras de determinado
grupo religioso. Tillich diz que esse tipo é mais tolerante
que a rejeição total, pois implica em alguma aceitação,
ainda que parcial, mas é impossível julgar através dele a
complexa realidade das religiões. O que ele chama de
conjunção dialética é uma “união dialética de aceitação e
rejeição, com todas as tensões, incertezas e mudanças que
tal dialética implica” (TILLICH, 1974, p. 178). Não é
simplesmente a rejeição de algumas afirmações religiosas e
a aceitação de outras, mas um encontro crítico, onde há a
afirmação de postulados, por um lado, e sua ressignificação,
por outro. Tillich exemplifica esse processo com a história
do cristianismo. O cristianismo não somente aceitou ou
rejeitou simplesmente as outras religiões, mas as julgou
segundo seu próprio critério, o logos manifesto em Jesus
enquanto Cristo, entretanto, todas elas o modificaram de
alguma maneira. Esse julgamento parte do pressuposto de
que as outras religiões não estão excluídas do logos. O

258
encontro do cristianismo com as outras religiões é possível
somente por isso: porque, como o cristianismo, as religiões
também manifestam, de alguma forma o logos divino.

IV

Há algo comum aos dois textos de Tillich (e


também a outros textos seus) que inicialmente apresenta
certa dificuldade para, a partir deles, se pensar numa
teologia do pluralismo religioso. Ele coloca como central à
história das religiões o evento de Jesus enquanto Cristo, o
que pode nos levar a enquadrá-lo – mais uma vez
inicialmente – como um teólogo inclusivista. Precisamos
pensar, então, de maneira bastante breve, o que significa
para Tillich a centralidade desse evento especificamente
cristão na história das religiões. Em primeiro lugar, é
importante lembrar – novamente – que as preocupações de
Tillich, no que concerne a uma teologia a partir das
religiões, estão basicamente ligadas à sistemática, ou seja,
se articulam internamente ao cristianismo. Ainda que ele
tenha colocado como horizonte futuro da teologia,
inclusive da sistemática, o pressuposto da religião enquanto
algo que está para além do cristianismo, reconhece o limite
e o lugar de sua obra (TILLICH, 1976, p. 114). Mas
afirmar a centralidade de um símbolo cristão é menos
problemático se acontece numa interpretação cristã da
história das religiões.
Em segundo lugar, a afirmação de Jesus enquanto
Cristo aponta para duas direções: a do específico do
cristianismo e do universal das religiões. “Há uma relação
entre Jesus e o Cristo. Se, para Tillich, Cristo está no

259
centro da dinâmica reveladora de Deus, Jesus não é o todo
deste centro” (TEIXEIRA, 2012, p. 56-57). Enquanto
Jesus indica o caminho salvífico dentro do cristianismo,
Cristo tem um sentido simbólico universal. Isso não quer
dizer que o símbolo Cristo seja a via de salvação nas outras
religiões, mas aquilo que no cristianismo é simbolizado
pelo Cristo está presente também nas outras religiões.
Cristo é o símbolo pelo qual o cristianismo expressa a
experiência da relação entre o universal e o particular, o
espaço abissal em que se tocam o incondicional e as coisas
condicionadas. A seguinte passagem da conferência de
1965, quando Tillich fala da religião do espírito concreto,
pode nos ajudar a compreender isso:
Nosso critério, como cristãos, se encontra no
acontecimento da cruz. Aquilo que ali se
produziu de maneira simbólica, que outorga o
critério, também ocorre, de modo fragmentário,
em outros lugares, em outro momentos, e tem
acontecido e acontecerá mesmo quando estes
não estão conectados histórica ou empiricamente
com a cruz (TILLICH, 1976, p. 110).
O cristianismo só pode julgar a si mesmo e às
outras religiões a partir de seus próprios símbolos, mesmo
que esses símbolos sejam ressignificados a partir desse
julgamento. O evento de Jesus enquanto Cristo, enquanto
absolutamente universal mas que se identifica com o
absolutamente concreto, é o critério cristão para tais
julgamentos. Bernhardt (2004, p. 67) tratando da
possibilidade da utilização do pensamento tillichiano como
fundamentação para uma teologia das religiões afirma: “O
cristocentrismo ainda pressuposto aqui por Tillich não deve
ser entendido nos moldes de um Jesus-centrismo, e sim

260
como direcionamento para o Logos universal, no qual o
infinito e inapreensível fundamento divino do ser se
comunica”.
Claude Geffré (2013, p. 101-102), interpretando, a
partir do pensamento de Tillich, o tema do cristianismo
como religião da revelação final, diz que a afirmação da
verdade cristã é válida para o cristão. Essa verdade, que é
expressa na ideia de Jesus como o Cristo, se constitui a
essência do cristianismo, mas deve ser confundida com as
realizações históricas da religião cristã. A revelação última e
perfeita do cristianismo pode também ser encontrada nas
outras religiões, expressa em outros símbolos. A partir
disso ele afirma que a seguinte conclusão pode ser extraída
do pensamento de Tillich:
Dispomos, assim, de um princípio que permite
desmistificar a hybris própria de toda religião
particular, inclusive o cristianismo. Mas, ao
mesmo tempo, nos damos conta do engajamento
Absoluto e incondicional requerido pela adesão
a uma religião particular. Em outras palavras,
posso respeitar o engajamento Absoluto do
outro em relação à sua própria crença sem cair
no relativismo, porque o meu próprio
engajamento incondicional na via de salvação
concreta, que é a minha, está sob o julgamento
do incondicional.
Isso significa que os símbolos religiosos, a despeito
de suas singularidades, apontam para realidades comuns.
Mas isso não enfraquece, enquanto significativos para a
experiência religiosa, ou os relativiza, tornando-os
desnecessários. Os símbolos são aquilo por meio dos quais
as religiões expressam o incondicional universal presente
nas suas experiências revelatórias.

261
Por fim, é possível afirmar que a teologia de Tillich
não pode ser enquadrada facilmente em nenhum dos três
paradigmas salvíficos tradicionais, conforme parecem
indicar Teixeira e Ribeiro. Não é exclusivista – isso parece
ser claro. Tillich não vê no cristianismo a única via de
salvação, antes diz que a revelação é universal e que a
revelação final aparece de maneira fragmentada em todas as
religiões. Também não é estritamente inclusivista, pois o
evento de Jesus enquanto Cristo é um símbolo cristão que
aponta para algo que está presente em outras religiões. Da
mesma forma não é puramente um pluralista, pois, apesar
de compreender que a revelação e a salvação são universais,
não se reconhece como relativista, entende que as religiões
precisam ser julgadas por um critério que é expresso é
denominado no cristianismo como a manifestação de Jesus
enquanto Cristo.

Referências

BERNHARDT, R Teologia da trindade como


fundamento de uma teologia protestante das
religiões. Estudos teológicos. V. 44, n, 2, 2004.
GEFFRÉ, C. De Babel a Pentecostes: Ensaios de teologia
inter-religiosa. São Paulo: Paulus, 2013.
HIGUET, E. Tendências pluralistas na teologia das
religiões de Paul Tillich. Correlatio. V. 13, n. 25,
2014.
RIBEIRO, C. O. Pluralismo e libertação. São Paulo:
Paulinas, 2014.
TEIXEIRA, F. Teologia e pluralismo religioso. São
Bernardo do Campo: Nhanduti, 2012.

262
TILLICH, P. El futuro de las religiones. Buenos Aires: La
Aurora, 1976.
______. La dimensión perdida: Indigencia y esperanza de
nuestro tiempo. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1970.
______. Teología de la cultura y otros ensayos. Buenos
Aires: Amorrortu, 1974.
______. Teologia sistemática. 6ª ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2011.
TROCH, L. O mistério em vasos de barro: Fragmentos da
divindade no âmbito de novas experiências de
religião. In: TROCH, L (org.). Passos com paixão:
Uma teologia do dia-a-dia. São Bernardo do Campo:
Nhanduti, 2007.

263
IMPLICAÇÕES DA TEORIA DA
INTENCIONALIDADE DA CONSCIÊNCIA DE
EDMUND HUSSERL PARA O
DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA DA
CULTURA EM PAUL TILLICH

Thiago Rafael Englert Kelm 125

A máxima tillichiana “Religião é substância da


cultura e cultura é a forma da religião” é frequentemente
citada para demarcar o ponto central da teologia da cultura
de Tillich. Esta frase está entre as mais conhecidas do
teólogo e como afirma Rendtorff, “trata-se de uma melodia
de reconhecimento que, onde ressoa, permite-se
reconhecer inequivocamente: aqui fala Paul Tillich” 126
(RENDTORFF, 1989, p. 335). De acordo com
Neugebauer, a teologia da cultura baseia-se em conceitos
específicos cujos fundamentos encontram-se em seu
período inicial marcado pela filosofia de Schelling, mas que
irá consolidar-se somente durante seu período

125
Bacharel em teologia (CEUCLAR). Especialista em Filosofia
Contemporânea e História pela Universidade Metodista de São Paulo.
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São
Paulo. Membro da Sociedade Paul Tillich do Brasil.
126
Erkennungsmelodie“ handelt, „die, wo sie ertönt, unverwechselbar
zu erkennen gibt: Hier spricht Paul Tillich.

265
intermediário por conta de seu contato com a
fenomenologia de Husserl. É através de “[...] suas leituras
de Husserl durante a Primeira Guerra Mundial, que Tillich
foi capaz de estabelecer o fundamento filosófico espiritual,
no qual se constrói seu escrito programático teológico-
cultural ‘Sobre a ideia de uma teologia da cultura’ (1919)127”
(NEUGEBAUER, 2011, p. 38).
O contato de Tillich com a escola fenomenológica,
em especial a de Edmund Husserl, aconteceu durante seu
período revisionista128, do fim da primeira Guerra Mundial
até os últimos da década de 1920129. Os anos de guerra

127
[...] Husserllektüre während des Ersten Weltkriegs angeregt wurde,
hat Tillich es vermocht, das geistphilosophische Fundament zu legen,
auf dem seine kulturtheologische Programmschrift Über die Idee einer
Theologie der Kultur (1919) aufbaut.
128
O percurso acadêmico de Tillich pode ser dividido de várias
formas. A pesquisa adotou as análises que o dividem em três
momentos. A recepção entusiástica do idealismo de Fichte e Schelling
que marca profundamente seu período de formação e se estende até o
final da Primeira Guerra Mundial. Um segundo momento que vai deste
acontecimento até os últimos anos da década de vinte em que o autor
assume uma postura revisionista em relação ao seu período anterior e
passa a reformula-lo na forma de uma nova teoria do sentido, e
posteriormente um período marcado por questões ontológicas, mas que
conserva a teoria do sentido, que vai dos anos vinte até a Teologia
Sistemática nos anos de 1950 e 60 (DANZ, 2009, p. 173).
129
Sobre isso pode-se mencionar algumas passagens de cartas escritas
pelo teólogo durante a Primeira Guerra Mundial. Numa carta
endereçada a Richard Wegener em 26 de agosto de 1917 ele comenta
que havia conseguido “terminar o Husserl inteiro!” (TILLICH, 1983
[1917], p. 90), e finaliza a carta com um pedido de alguns livros, entre
eles, o livro de Husserl, embora este último Tillich diz que já havia
pedido o “terceiro volume de Husserl bem como sua fenomenologia
diretamente para Niemann” (TILLICH, 1983 [1917], p. 92). Em
dezembro de 1917, Tillich escreve para seu amigo Emanuel Hirsch
dizendo que estava lidando energicamente com a filosofia moderna e
“De forma mais energética possível me dediquei à lógica, a Husserl,
Lotze, Sigwart, Windelband e Lask” (TILLICH, 1983 [1917], p. 99). O

266
representam um momento de transformação na vida e
pensamento do autor, e, como ele mesmo descreveu, a
Primeira Guerra Mundial foi o fim do seu período de
preparação (TILLICH, 1956 [1952], p. 12). Os quatro
anos de guerra, relata o teólogo, “revelaram, como
aconteceu com toda minha geração, um abismo na
existência humana que não podia ser ignorado” 130
(TILLICH, 1967 [1936], p. 52). E comenta também que
“A Primeira Guerra Mundial teve consequências
desastrosas para o pensamento idealista em geral. Também
a filosofia de Schelling resultou afetada pela catástrofe”131

teólogo destaca ainda que estava vividamente interessado pela escola


fenomenológica fundada por Husserl e que haviam todos os motivos
para tê-la em mira (TILLICH, 1983 [1917], p. 99). Para uma análise
mais atenta sobre o conteúdo das cartas e outros textos da época que
trazem menções explícitas a Husserl e a escola fenomenológica bem
como a importância de Husserl para o pensamento de Tillich veja:
BARTH, Ulrich. Die sinntheoretischen Grundlagen des
Religionsbegriffs. Problemgeschichtliche Hintergründe zum frühen
Tillich. In: Id., Religion in der Moderne, Tübingen 2003, 89-123.
MOXTER, Michael. Kritischer Intuitionismus. Tillichs
Religionsphilosophie zwischen Neukantianismus und
Phänomenologie. In: DANZ, C.; SCHÜßLER, W. (Hrsg.). Paul
Tillichs Theologie der Kultur: Aspekte, Probleme, Perspektiven.
Berlin; Boston: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG., 2011.
NEUGEBAUER, G. Die geistphilosophischen Grundlagen der
Kulturtheologie Tillichs vor dem Hintergrund seiner Schelling- und
Husserlrezeption. In: DANZ, C.; SCHÜßLER, W. (Hrsg.). Paul
Tillichs Theologie der Kultur: Aspekte, Probleme, Perspektiven.
Berlin; Boston: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG., 2011. KELM,
Thiago Rafael Englert. Paul Tillich e o pensamento fenomenológico
crítico. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Escola de
comunicação, educação e humanidades. Universidade Metodista de
São Paulo. São Bernardo do Campo, 2017.
130
revealed to me and to my entire generation an abyss in human
existence that could not be ignored.
131
World War I was disastrous for idealistic thought in general.
Schelling’s philosophy was also affected by this catastrophe.

267
(TILLICH, 1967 [1936], p. 52). Em meio ao caos da
guerra, Tillich assume uma postura de revisão dos
fundamentos de sua teologia e filosofia e afirma que este
processo aconteceu “[...] em um diálogo crítico com o
neokantismo, a filosofia do valor e a fenomenologia”132
(TILLICH, 1967 [1936], p. 53). A presença da
fenomenologia no pensamento do autor após este período
se torna evidente.
Para Tillich (1962 [1956], p. 74) “A fenomenologia
veio a ser de importância decisiva para a filosofia do século
XX. Ela surgiu, como já indicamos anteriormente, dos
Estudos Lógicos de Husserl que apareceram na virada do
século e que representaram uma verdadeira mudança no
movimento filosófico”133. Abreu afirma que na medida em
que Tillich se apropria das principais características da
fenomenologia husserliana fica evidente que a filosofia de
Tillich “deve ser interpretada como uma construção
sistemática entre a tradição idealista neokantiana e a escola
fenomenológica-psicológica de Husserl” 134 (ABREU,
2017, p. 11).
Dessa forma, a fenomenologia de Husserl, ou mais
especificamente sua teoria da intencionalidade da
consciência, desempenha um papel importante no

132
[...] in critical dialogue with neo-Kantianism, the philosophy of
value, and phenomenology.
133
Phenomenology came to be of decisive importance for the
philosophy of the twentieth century. It arose, as we have previously
indicated, out of Husserl’s Logical Studies which appeared at the turn
of the century and which represented a real turn in the philosophical
movement.
134
is to be interpreted as a systematic building standing between the
idealist-neo-Kantian tradition and the Husserlian phenomenological-
psychological school

268
pensamento de Tillich, bem como em sua proposta de uma
teologia da cultura. Diante disso, para compreender como
se deu as implicações da teoria da intencionalidade da
consciência de Edmund Husserl para o desenvolvimento
da teologia da cultura em Paul Tillich, esta pesquisa se
propõe a analisar num primeiro momento em que consiste
a teoria da intencionalidade da consciência de Edmund
Husserl, passando pela apropriação que Tillich faz desta
teoria na fundamentação de seu conceito de religião, e
finalmente, as implicações disso para o desenvolvimento de
uma teologia da cultura.

I A teoria da intencionalidade da consciência de


Edmund Husserl

Para Husserl (2006, p. 189) a intencionalidade é


um tema fenomenológico capital, pois “Ela é uma
peculiaridade da essência da esfera dos vividos em geral,
visto que de alguma maneira todos os vividos participam da
intencionalidade”. Husserl (2006, p. 190) afirma também
que “a intencionalidade é aquilo que caracteriza a
consciência em sentido forte, e que justifica ao mesmo
tempo designar todo o fluxo de vivido como fluxo de
consciência e como unidade de uma única consciência”.
Para Husserl, toda consciência é consciência de alguma
coisa, e por conta disso, a consciência é necessariamente
intencional, ou seja, o ser humano sempre tem consciência
de alguma coisa do mundo que se apresenta a sua
consciência fenomenicamente.
Dessa forma, todo estado de consciência em
geral é, em si mesmo, consciência de alguma

269
coisa, qualquer que seja a existência real desse
objeto e seja qual for a abstenção que eu faça, na
atitude transcendental que é minha, da posição
dessa existência e de todos os atos da atitude
natural (HUSSERL, 2001, p. 50-51).
A fenomenologia se volta para a intencionalidade
da consciência como uma “visada” de sentido. O vivido,
como esta consciência dotada de sentido, de acordo com o
filósofo, pode ser tanto o percebido, sentido como
recordado, pois a intencionalidade da consciência é uma
“propriedade dos vividos de ‘ser consciência de algo’”
(HUSSERL, 2006, p. 190). Este “algo” ou alguma “coisa”
de que se possa estar consciente, de acordo com Fink pode
ser “qualquer coisa que possa ser trazido à vista, seja algo
real, um ideal, um horizonte, um sentido, uma referência-
de-sentido, o nada, etc.”135 (FINK, 1933, p. 330).
Para Husserl (2001, p. 60) a vida é um cogito
universal, que abrange sinteticamente todos os estados da
consciência que possam surgir dessa vida, e que possui o
seu cogitatum universal, que por sua vez se encontram
fundados de maneiras diferentes em múltiplos cogitata
particulares. A intencionalidade da consciência, como este
“estar direcionado para”, se refere, portanto, a esta ligação
que o ser humano tem com o mundo, com a vida, ligação
esta que é inalienável, porque o ser humano sempre está
voltado para algo, direcionado para o mundo numa relação
que é infatigavelmente posta.
O mundo nesse sentido funciona sempre como um
solo, como uma presença inalienável. O contato com o

135
alles und jedes, was an ihm selbst zu Gesicht gebracht wird, sei es
ein Reales, ein Ideales, ein Horizont, ein Sinn, eine Sinnesverweisung,
das Nichts usw.

270
mundo coloca o ser humano diante de muitas experiências
fenomênicas, ou seja, a consciência é presenteada com
aparições das mais diversas ordens, que se constituem como
fenômeno exatamente porque aparecem à consciência
numa relação intencional. Entretanto, “Deve-se observar
que não se está falando aqui de uma referência entre um evento
psicológico qualquer – chamado vivido – e uma outra
existencial real – chamada objeto, ou de um vínculo psicológico
entre um e outro que se daria na efetividade objetiva”
(HUSSERL, 2006, p. 89, grifo do autor).
Para a fenomenologia husserliana, não é possível a
existência de um pensamento que não esteja relacionado
com o objeto do qual se pensa. Não há, portanto,
consciência separada de mundo no sentido que lhe foi dado
especificamente em Descartes. Para o filósofo,
“Infelizmente, é o que acontece com Descartes, um
resultado de uma confusão, que parece pouco importante,
mas acaba sendo muito funesta, e faz do ego como uma
substantia cogitans separada, uma mens sive animus humano,
ponto de partida de raciocínios de causalidades”
(HUSSERL, 2001, p. 42). A consciência nestas
circunstâncias fica numa posição radicalmente distinta em
relação aos objetos, sendo ela também, apenas uma “coisa
que pensa”. Husserl nesse sentido vai além da dicotomia
moderna entre sujeito e objeto. Essa vinculação necessária
entre sujeito e objeto permite compreender que a
consciência e aquilo que aparece à consciência estão
estritamente inter-relacionadas por meio da vivência.
No vivido a consciência sempre se volta ao seu
objeto intencionalmente e a essência deste vivido não se
encontra nem no objeto nem na consciência, mas neste

271
“entre” vivencial. Dessa forma, para Husserl, o vivido
intencional não acontece senão nessa relação sujeito-objeto,
transcendente-transcendental. O conhecimento, tal como
concebido em grande parte pela filosofia, perde seu caráter
dualista no sentido de que a consciência que conhece e o
objeto conhecido são duas coisas que podem se dar de
maneira separada. Husserl por outro lado, ainda que
entenda que um não pode ser tomado sem o outro, afirma
que esta polarização apresenta uma distinção fundamental
para a intencionalidade, “qual seja, a distinção entre
componentes próprios dos vividos intencionais e seus
correlatos intencionais, ou os componentes destes”
(HUSSERL, 2006, p. 203, grifo do autor). Toda vivência
intencional, portanto, está constituída por dois polos
correlacionados que podem ser distinguidos entre noese e
noema.
Noese e noema estão correlacionados e compõem
uma vivência, “Pois não há momento noético algum sem um
momento noemático que pertença especificamente, é o que reza
a lei eidética que pode ser comprovada onde quer que seja”.
(HUSSERL, 2006, p. 214, grifo do autor). O componente
real do ato e seu correlato estão necessariamente
relacionados entre si pelo fato de que a vivência como tal
pode sempre guardar um sentido. Noese e noema
constituem uma estrutura paralela correlacionada que
permite conhecer tanto o objeto real como o correlato de
sentido, dessa forma, a partir da correlação destes polos é
possível descrever as sínteses de toda consciência, ou seja,
afirmar a unidade entre cogitatio e cogitatum é afirmar a
constituição de uma unidade doadora de sentido instituída
em toda intencionalidade.

272
A intencionalidade ao colocar o ser humano nessa
vinculação permanente com o mundo o coloca
necessariamente neste movimento de noese e noema. O ser
humano sempre está diante de objetos que se apresentam a
ele como desafios, como estímulos à suas experiências de
construir conhecimento, construção essa que dá aos objetos
a condição de novos sentidos. A intencionalidade se
fundamenta, portanto, na consciência que percebe alguma
coisa e o dota de sentido. “Tão-somente noutras palavras:
ter sentido ou ‘estar com o sentido voltado para’ algo é o
caráter fundamental de toda consciência, que, por isso não
é apenas vivido, mas também vivido que tem sentido,
vivido ‘noético’” (HUSSERL, 2006 p. 206-207). Toda
consciência intencional é, portanto, um “visar” algo, um
orientar-se até a coisa.
A intencionalidade é, portanto, essa ligação que faz
que o mundo seja muito mais que um lugar geográfico, ou
pura e simplesmente “coisas da natureza”. Ele é uma
organização de um sentido intuído, construído, nesta
relação dos corpos entre as pessoas, e este sentido não é um
falseamento ou distanciamento do mundo. Antes, este
sentido é a própria realidade, um jeito de ser que se
apresenta como possível, até que novos sentidos sejam
desenhados. Em outras palavras, há uma consciência que se
constitui como consciência porque está voltada ao mundo,
e o objeto é objeto porque é percebido como tal pela
consciência. Dessa forma, a consciência que é “sempre
consciência de algo”, é também um testemunho da
intencionalidade, e por consequência, dessa inevitável
ligação que se tem com o mundo.

273
II Aplicações da Intencionalidade da consciência na
fundamentação do conceito de religião

A teoria da intencionalidade do ato da consciência


será aplicada por Tillich num primeiro momento para
fundamentar seu próprio conceito de religião, entendido
desde então, não como uma esfera entre outras, mas como
um sentido incondicional, isto é, um “direcionamento
intencional ao Incondicional”136 (TILLICH, 1973 [1925], p.
59, grifo do autor). Danz (2009, p. 179) comenta que a
ideia de religião como sentido incondicional é fundamental
no pensamento de Tillich por ter sido desenvolvida como
uma solução para o problema contemporâneo sobre a
relação entre religião e cultura. A partir dessa perspectiva,
Tillich faz uma crítica as concepções transcendentais da
religião, afirmando que o lugar da religião não deve ser
procurado ao lado de outras funções como a lógica, ética,
estética, mas como algo presente em todos estes domínios.
Ao tratar sobre a essência da religião, o teólogo
começa sua reflexão fundamentando-a sobre a base de uma
teoria do sentido. De acordo com Tillich todo ato
espiritual é um ato de sentido e o espírito por sua vez “[...]
é sempre o meio para a atualização do sentido (Sinnvolzug)
e aquilo que o espírito pretende é sempre uma conexão
sistemática de sentido. O sentido é a característica comum

136
“Religion is directedness toward the Unconditional” no original em
alemão é “Religion ist Richtung auf das Unbedingte” (TILLICH,
1987b [1925], p. 134). O termo Richtung é traduzido aqui como
direcionamento ou direção, mas como Tillich provavelmente está
usando o termo no mesmo sentido que Husserl, a ideia então é de
“direcionamento intencional”. Nesse caso, o direcionamento ao
incondicional é, sobre tudo, um direcionamento intencional ao
incondicional.

274
e a unidade última da esfera teórica e prática do espírito”137
(TILLICH, 1973 [1925], p. 56-57).
A partir deste horizonte, Tillich afirma que em toda
consciência de sentido existem três elementos. Primeiro,
existe uma consciência da interconexão do sentido, em que
cada sentido subsiste e sem a qual não haveria sentido
algum. Segundo, a consciência de um sentido
incondicional que está presente em cada sentido particular.
Terceiro, a exigência sob a qual subsiste cada sentido
particular de “realizar o sentido incondicional”. O sentido
incondicional, dessa forma, perpassa todo o sentido
particular presente nas expressões do espírito assim como
também é o fundamento para todo sentido particular.
Tendo isso em conta, Tillich descreve a experiência
do incondicionado num primeiro momento como sendo
uma experiência básica sem conteúdo objetivo, isto é, “Os
seres humanos são imediatamente conscientes de algo
incondicional que é o prius da separação e interação entre sujeito
e objeto, tanto teórica como praticamente” (TILLICH, 2009,
p. 60, grifo do autor). De acordo com o autor:
[...] qualquer conhecimento simbólico pressupõe
alguma base de conhecimento não-simbólico
[...] O elemento não simbólico em todo
conhecimento religioso é a experiência do
incondicionado como limite, fundamento e
abismo de todo condicionado. Essa experiência é
experiência-limite da razão humana e, portanto,

137
[...] is always (the medium for) the actualization of meaning
(Sinnvollzug), and the thing intended by the spirit is a systematic
interconnection of meaning. Meaning is the common characteristic and
the ultimate unity of the theoretical and the practical sphere of spirit, of
scientific and aesthetic, of legal and social structures.

275
138
expressível em termos racionais-negativos
(TILLICH, 1987 [1940/1941], p. 273).
De acordo com Tillich “O termo ‘incondicionado’,
ou a substantivação ‘o incondicional’, [...] Não se trata de
um ser, mas de uma qualidade. Caracteriza nossa
preocupação suprema e, consequentemente, incondicional,
não importando se a chamarmos de ‘Deus’, de ‘ser’, do
‘bem’, da ‘verdade’, ou de qualquer outro nome.
Incorreríamos em crasso erro se entendêssemos o
incondicional como um ser cuja existência pudesse ser
discutida. Só falará a respeito da ‘existência do
incondicional’ quem não entender o sentido do termo.
Trata-se da qualidade experimentada no encontro com a
realidade, por exemplo, no caráter incondicional da voz da
consciência, tanto lógica quanto moral” (TILLICH,
1992a, p. 63).
O sentido do incondicional, portanto, participa da
consciência como um elemento constitutivo de todo
sentido particular. Embora o próprio Tillich utilize a
expressão “experiência do incondicional”, não existe tal
experiência estritamente falando como algo que suceda de
forma isolada. O incondicionado não é algo que existe fora
do sujeito e que, portanto, possa ser isoladamente buscado.
O incondicional é antes um elemento constitutivo da
experiência, a sua forma necessária, ou seja, o
incondicionado está presente na experiência espiritual do

138
[...] any symbolic knowledge presupposes some basis of non-
symbolic knowledge. [...] The non-symbolic element in all religious
knowledge is the experience of the Unconditioned as the boundary,
ground, and abyss of everything conditioned. This experience is the
boundary-experience of human reason and therefore expressible in
negative-rational terms.

276
ser humano como uma demanda, como um elemento que a
constitui.
O incondicional dessa forma não é um ser, ou um
objeto no sentido do mundo real do objeto, mas um
sentido incondicional. Como afirma Tillich “que,
absolutamente, o incondicional não é um objeto, mas um
sentido” (daß das Unbedingte überhaupt kein Gegenstand
ist, sondern ein Sinn) (TILLICH, 2001 [1920], p. 312,
grifo do autor). Este sentido incondicional, por sua vez, só
pode ser percebido pela intencionalidade do ato da
consciência. De acordo com o autor, “Ele [o sentido
incondicional] não pode ser objetivado em algo, não pode
ser dito, só pode ser visado (gemeint). Quando se o disser,
se terá que usar símbolos”139 (TILLICH, 1999a [1923], p.
337).
Importante neste momento é a presença do termo
visar (Meinen) como ato intencional da consciência. Em
1920 num curso sobre filosofia da religião ministrado em
Berlim, Tillich faz referência explícita a escola
fenomenológica, especialmente a Edmund Husserl, e
destaca o verbo Meinen, um termo fundamental na
fenomenologia de Husserl140 e que passa a ocupar um lugar

139
Er kann nicht vergegenständlicht, nicht gesagt werden; er kann nur
gemeint sein. Sagt man ihn, so muß man Symbole verwenden.
140
De acordo com Husserl “Acabamos de dizer ‘visado’. Essa palavra
se impõe aqui em geral, assim como as palavras ‘sentido’ e
‘significação’. Ao visar ou intencionar corresponde então o visado, ao
significar, o significado” (HUSSERL, 2006, p. 219). Nesse sentido, a
intencionalidade da consciência se dá através de um visar, isto é, a
consciência é intencional justamente por sempre visar, tender, para
alguma coisa. Em consequência, será necessário ampliar o conteúdo do
ego cogito transcendental, acrescentar-lhe um novo elemento e dizer
que todo estado de consciência, ‘visa’ algo, e que ele carrega em si

277
importante nas produções acadêmicas de Tillich. Nas
palavras do autor:
Mas agora o que é para encontrar
imediatamente na mente é o visar (das Meinen),
o ser direcionado a um sentido, a uma cor, a um
sentimento, a um objeto, a um conceito, a uma
ideia. Pode-se, com isso, fazer-se ainda uma
diferenciação, [estar] atento ao próprio visar e ao
que é visado. Husserl o diferencia como noesis e
noema, isto é: o ato mental e o objeto ao qual ele
se direciona. Há diferentes tipos de noeses,
positivos, negativos, questionadores, duvidosos e
assim por diante e, ao mesmo tempo, diversos
tipos de noemata, que devem ser agrupados e
representados, por exemplo: religião, moral,
biologia, mecânica e assim por diante 141
(TILLICH, 2001 [1920], p. 379).
De acordo com Heineman (2009, p. 33) o conceito
“Meinen” serviu como um termo técnico para Tillich
durante todo os anos 20. E é com base nestes elementos
oriundos da escola fenomenológica que o teólogo vai
moldando sua teoria da consciência intencional ou noética
em relação à religião na vida humana, e como bem
observou Neugebauer, nesta assimilação “Tillich avista uma

mesmo, como ‘visado’ seu cogitatum respectivo (HUSSERL, 2001, p.


50-51).
141
Was nun aber in der Seele unmittelbar zu finden ist, das ist das
Meinen, das Gerichtetsein auf einen Sinn, auf eine Farbe, ein Gefühl,
einen Gegenstand, einen Begriff, eine Idee. Man kann dabei noch eine
Unterscheidung machen, man [wird] aufmerksam auf das Meinen
selbst und auf das, was gemeint ist. Husserl unterscheidet es als noesis
und noema, das heißt: den geistigen Akt und den Gegenstand, auf den
er sich richtet. Es gibt verschiedene Arten der Noesen, positive,
negative, fragende, zweifelnde und so weiter und zugleich 'viele Arten
von Noemata, die aber doch zu gruppieren und darzustellen sind, zum
Beispiel Religion, Sittlichkeit, Biologie, Mechanik und so weiter.

278
possibilidade de reagir ao problema de objetivação e, com
isto, tomar conta do ‘problema central’ de sua reflexão”142
(NEUGEBAUER, 2011, p. 55). Da mesma forma,
Neugebauer comenta que a menção explícita que Tillich
faz da escola fenomenológica como a fonte de onde ele
retira o conceito de intencionalidade “indica
inconfundivelmente que Tillich liga o conceito de fé ou o
conceito de consciência religiosa com a teoria da
consciência intencional redigida por Husserl” 143
(NEUGEBAUER, 2011, p. 54-55).
Em seu texto Rechtfertigung und Zweifel de 1924 o
teólogo afirma que:
A atitude da fé religiosa pode ser esclarecida
pelo conceito Meinen (visar) que é utilizada pela
escola fenomenológica. Cada conceito visa algo,
tende para algo, e esse (objeto) visado é algo
totalmente diferente da representação através da
qual ele é visado. Assim, o incondicionado é
visado por meio de representações
condicionadas144 (TILLICH, 1999a [1924], p.
225).
De acordo com Neugebauer (2011, p. 56), Tillich
coloca paralelamente o ato da fé e seu conteúdo a outros

142
In dieser Verbindung erblickt Tillich eine Möglichkeit, auf das
Objektivationsproblem zu reagieren und damit dem „Zentralproblem“
seines Denkens Herr zu werden.
143
Dieser Satz zeigt unverkennbar an, dass Tillich den Glaubensbegriff
bzw. den Begriff des religiösen Bewusstseins mit der Theorie des
intentional verfassten Bewusstseins Husserls verknüpft.
144
Klärend für dieses Verhalten des Glaubens ist der von der
phänomenologischen Schule gebrauchte Begriff des Meinens. Jeder
Begriff meint etwas, zielt auf etwas hin, und dieses Gemeinte ist etwas
ganz anderes als die Vorstellung, durch die hindurch gemeint wird. So
wird das Unbedingte gemeint durch bedingte Vorstellungen hindurch.

279
atos da consciência, isto é, com a diferenciação entre Noese
e Noema. O visar (das Meinen) ou o apontar para
aproveitam o caráter intencional da consciência. Este “algo”
visado (Gemeinte) coloca-se para a substância intencional
do ato da consciência, que assim como propõe Husserl,
sempre se coloca como teor de substância de sentido
correlativo à consciência. Dessa forma, “A consciência
religiosa e o Incondicional comportam-se entre si como
Noese e Noema”145 (NEUGEBAUER, 2011, p. 56). Ou
seja, o incondicionado recebe o status de Noema “[...] o
campo fundamental da fenomenologia” (HUSSERL, 2006, p.
118, grifo do autor). Na sequência, Neugebauer afirma que
“Diante deste pano de fundo, o conceito de incondicional
não deve ser compreendido diferentemente do que sentido
incondicional, e o sentido incondicional forma, para ele,
um correlato intencional da consciência religiosa” 146
(NEUGEBAUER, 2011, p. 56).
Nessa dinâmica, o direcionamento noético é
universal, mas este universal somente se concretiza no
particular, no individual. A consciência intencional se volta
para o sentido incondicionado – que não possui nenhuma
realidade objetiva – enquanto um noema jamais alcançado,
muito embora necessário para a busca contínua pela
unidade da consciência, pois como declara o teólogo, “[...]
as funções significativas chegam a sua realização no sentido
somente ao manter a relação que lhes corresponde com o
sentido incondicionado e que, por tanto, a intenção

145
Das religiöse Bewusstsein und das Unbedingte verhalten sich
zueinander wie Noesis und Noema.
146
Der Begriff des Unbedingten ist vor diesem Hintergrund nicht
anders zu begreifen als unbedingter Sinn, und der unbedingte Sinn
bildet für ihn ein intentionales Korrelat des religiösen Bewusstseins.

280
religiosa é o pressuposto de uma satisfatória realização de
sentido em todas as funções”147 (TILLICH, 1973 [1925],
p. 73). O teólogo atribui ao sentido incondicionado o
caráter de ser intrínseco à vida consciente, e, portanto,
presente em todo o mundo da vida como um noema visado
pela consciência.
Nesse sentido, o incondicional é tanto o
fundamento da autoconsciência e de todo sentido
particular como também o “noema” ou “objeto” para o qual
a consciência se volta em sua intencionalidade por meio das
formas condicionadas em busca de unidade.
Este ato de dirigir-se ao sentido incondicional
caracteriza a experiência religiosa, nela o ser humano visa o
incondicional pela intencionalidade do ato da consciência.
O sentido incondicional não é algo que pode ser localizado,
portanto, como uma das funções do espírito, mas como
aquele sentido inerente a cada função particular e que se
constitui como o fundamento último e mais importante de
todo sentido. Este sentido, portanto, encontra-se
pressuposto em cada experiência religiosa, ou seja, a
consciência do incondicionado é apresentada por Tillich
como o elemento necessário e em virtude do qual a
experiência pode ser caracteriza como religiosa, de acordo
com o teólogo, o incondicional “refere-se ao elemento
presente em qualquer experiência religiosa responsável pelo
caráter religioso dessa experiência” (TILLICH, 1992a, p.
63).

147
[...] the meaning-functions come to the unconditioned meaning, and
that therefore the religious intention is the presupposition for
successful meaning-fulfillment in all functions.

281
A religião é, portanto, a dimensão da profundidade
em todas as outras dimensões, ela se volta para os
elementos supremos, infinitos e incondicionados, é a
preocupação suprema. Esta atitude encontra-se sempre
fundamentada numa orientação do espírito em direção ao
sentido incondicional. A religião, como afirma o autor, é
dessa forma, “intencionalidade dirigida ao sentido
incondicionado”148 (TILLICH, 1973 [1925], p. 78). Tal
experiência se caracteriza exatamente pelo ato intencional
de “visar” o sentido incondicional e fazer com que a coisa
“visada” cobre sentido no mundo da vida através do ato
reflexivo da consciência. Em Tillich, portanto, a
consciência é constituída por um visar original ou “ato puro
de direção a (reinem Akt der Richtung auf)” (TILLICH,
1989 [1923], p. 123), cujo correlato noemático intencional
é o sentido incondicional. A religião torna-se então o
pressuposto de uma satisfatória realização do sentido em
todas as funções. Em outras palavras, a religião como
sentido incondicional pode ser percebido pela
intencionalidade da consciência em toda forma cultural, e
nesse sentido a cultura atua como meio através do qual a
religião torna-se possível.

III Implicações da fenomenologia na elaboração de


uma Teologia da Cultura

Assim como religião é compreendida por Tillich


como um direcionamento intencional da consciência ao
sentido incondicional, a cultura é compreendida por ele

148
directedness toward the unconditioned meaning-import.

282
como o direcionamento para as formas condicionadas e sua
inter-relação do sentido. De acordo com o teólogo
“Definimos a cultura como a autocriatividade da vida sob a
dimensão do espírito e a dividimos em theoria, em que a
realidade é apreendida, e práxis, em que a realidade é
configurada” (TILLICH, 2011, p. 830). Higuet (2008, p.
135) comenta que na dimensão da cultura é possível
distinguir dois níveis de sentido. Por um lado, há um nível
preliminar, que se refere ao sentido direto e
conscientemente visado em que a cultura é de fato uma
direção do espírito voltada para as formas condicionadas.
Nesse sentido a cultura é uma atividade simbólica do
espírito humano que procura dar sentido ao real com ajuda
de formas lógicas, isto é, um esforço para dar uma forma
racional a um conteúdo determinado. Por outro lado, há
um nível de sentido mais profundo, um Sentido do
Sentido, no qual se fundamenta o sentido preliminar,
imanente e formal de toda cultura. “Esse sentido último
não pode ser apreendido por uma análise puramente
objetiva e científica: ele só é acessível a uma ‘percepção ou
intuição imaginativa’” (HIGUET, 2008, p. 136).
Por conseguinte, segue-se que “A religião é a
orientação intencional ao Incondicional, e a cultura é a
orientação intencional às formas condicionadas e sua unidade.
Estas são as definições mais gerais e formais que se pode
chegar em filosofia da religião e em filosofia da cultura”149
(TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor). De acordo
com Danz (2009, p. 181), Tillich assimila estes níveis de

149
Religion is directedness toward the Unconditional, and culture is
directedness toward the conditioned forms and their unity. These are
the most general and formal definitions arrived at in philosophy of
religion and philosophy of culture.

283
conhecimento reflexivo, religião e cultura, nas categorias
semânticas de forma e substância, que são
fundamentalmente constitutivos para sua explicação de
influência neokantiana da filosofia do espírito em 1920. A
categoria de substância, portanto, foi posta para representar
o conhecimento do espírito na reflexividade de sua
atividade cultural, e a categoria de forma para as atividades
autônomas do espírito relacionadas ao objeto e à ação, isto
é, as funções transcendentais do espírito. Por conta dessa
relação interna de forma e substância, ambas as categorias
coexistem tanto no religioso quanto no cultural. Em sua
conferência “Sobre a ideia de uma teologia da cultura”
realizada em 1919 para a Sociedade Kantiana de Berlim,
Tillich chama atenção para importância de esclarecer os
conceitos de forma e substância, de acordo com o autor:
O conteúdo substancial é diferente do conteúdo
objetivo. Por meio do termo “conteúdo objetivo”
entendemos algo objetivo em sua simples
existência, que através da forma será elevada até
a esfera espiritual-cultural. E com “conteúdo
substancial”, devemos entender o sentido, a
substancialidade espiritual, que é a única em
outorgar o sentido à forma. Podemos, portanto,
dizer: A substância é apreendida por meio da forma
e se expressa num objeto 150 (TILLICH, 1973
[1919], p. 165, grifo do autor).

150
Substance or import is something different from con-tent. By
content we mean something objective in its simple existence, which by
form is raised up to the intellectual-cultural sphere. By substance or
import, however, we understand the meaning, the spiritual
substantiality, which alone gives form its significance. We can
therefore say: Substance or import is grasped by means of a form and
given expression in a content.

284
A religião como experiência do incondicionado está
para a substância assim como a cultura está para a forma.
De acordo com Higuet “o Gehalt é a substância que funda
tudo, e é também o conteúdo que preenche toda forma.
[...] A forma prende-se à estrutura racional da realidade e
faz com que a obra cultural seja o que é concretamente: um
poema, uma pintura, um regime político, um sistema
filosófico etc.” (HIGUET, 2008, p. 137). A religião é
nestes termos o conteúdo vivo da cultura, ao passo que a
cultura é o meio através do qual a religião se expressa.
A aplicação que Tillich faz da teoria da
intencionalidade da consciência na fundamentação de seu
conceito de religião sugere que a consciência ao perceber o
sentido incondicional o faz sempre através de uma forma.
Isso implica no relacionamento imprescindível entre
religião e cultura ou no correlato forma e substância, pois o
sentido incondicional percebido na forma, coloca-se para
esta forma como sua substância, de tal modo, que uma não
é possível sem a outra. “A relação entre o sentido e a forma
deve interpretar-se como similar a uma linha, em que um
dos extremos representa a pura forma e o outro o puro
sentido. Entretanto, ao largo da linha forma e sentido estão
sempre misturados, ainda que em distintas proporções”151
(TILLICH, 1973 [1919], p. 164). O sentido incondicional
como fundamento da realidade permanece nas formas de
sentido como sua substância, “porque é precisamente na
substância que aparece a realidade religiosa, com seu Sim e

151
The relation of import to form must be taken as resembling a line,
one pole of which represents pure form and the other pole pure import.
Along the line itself, however, the two are always in unity.

285
seu Não frente a todas as coisas” 152 (TILLICH, 1973
[1919], p. 166). De acordo com o teólogo:
A religião é a orientação em direção ao
Incondicional. Através das realidades existentes,
[...] Não se trata de uma nova realidade que
estaria acima das outras coisas, ou junto delas,
[...] Ao contrário, é precisamente através das
coisas dessa realidade que são lançadas sobre que
é, ao mesmo tempo, o Sim e o Não de todas as
coisas. Não é um ser, nem a substância ou a
totalidade de todos os seres; é, para usar uma
formula mística, aquilo que está acima de todo
ser; é, ao mesmo tempo, o Nada absoluto e o
Algo absoluto 153 (TILLICH, 1973 [1919], p.
162).
Todo ato cultural, portanto, possui uma dimensão
religiosa quando visto à luz de sua substância, assim como,
todo ato religioso é também cultural quando visto a partir
de sua forma. A relação entre religião e cultura é, portanto,
permanente, pois na medida em que a consciência se dirige
para as formas se está diante da cultura, e na medida em
que a consciência se volta para o sentido incondicional se
está diante da religião. Neugebauer (2011, p. 60) comenta
que as características da noção de experiência incondicional
que Tillich elabora diante do pano de fundo da

152
for it is precisely in the substance that the religious reality appears
with its Yes and No to all things.
153
Religion is directedness toward the Unconditional. Through
existing realities, [...] This is not a new reality, alongside or above
other things: [...] On the contrary, it is precisely through things that
that reality is thrust upon us which is at one and the same time the No
and the Yes to every thing. It is not a being, nor is it the substance or
totality of beings; it is—to use a mystical formula—that which is
above all beings which at the same time is the absolute Nothing and
the absolute Something.

286
fenomenologia aplica-se também para a noção de
consciência religiosa substancial, isto é, a consciência que
se volta para a substância através de uma forma, ou a
consciência que se volta apenas para a forma, onde a
substância está presente, mas não diretamente visada.
Comentando sobre o assunto, Chun afirma que “A
consciência da forma, conteúdo e substância indica uma
direção dupla da consciência religiosa, aquela em direção às
formas condicionadas de sentido e sua inter-relação, e
aquela em direção ao incondicional sentido da realidade,
que é a base da substância”154 (CHUN, 2008, p. 165).
Em “A superação do conceito de religião na
filosofia da religião”, Tillich (1973 [1922], p. 138) afirma
que em todo encontro com a realidade, é possível que o
“eu” perceba sua autocerteza de tal maneira que a relação
incondicional com a realidade passe para o primeiro plano,
este é o modo religioso a priori de auto-apreensão. Por
outro lado, existe a possibilidade de que o “eu” experimente
sua autocerteza de tal modo que sua relação com seu
próprio ser seja o que ocupe o primeiro plano. Este é o
modo não religioso a priori de auto-apreensão. No primeiro
caso, o modo religioso a priori, o “eu” penetra a forma de
sua consciência e alcança o fundamento da realidade sobre
o qual está fundamentada. No segundo caso, o modo não
religioso a priori, este fundamento continua presente, já
que sem ele não haveria autocerteza nenhuma, mas o “eu”
não chega a tocá-lo, o “eu” permanece separado,
contentando-se com a forma da consciência.

154
Awareness of form, content, and import bespeaks a double-
directedness of the religious consciousness, that toward the
conditioned forms of meanings and their interrelation, and that, toward
the unconditional meaning-reality, which is the Ground of the import.

287
Esta segunda posição pode ser qualificada como
não religiosa, mas apenas no que se refere a sua
intenção e não em relação a seus resultados. Não
existe consciência não religiosa em substância,
embora sim possa existir em sua intenção. Todo
ato de auto-apreensão contém, como seu
fundamento na realidade, a relação com o
Incondicional; mas esta relação não sempre se
manifesta. É necessário, pois, diferenciar os dois
estados de consciência 155 (TILLICH, 1973
[1922], p. 139).
Tillich descreve dois estados da intencionalidade da
consciência, uma dirigida à forma e a outra à substância. “A
mesma ideia, portanto, pode ter um sentido imediato e um
sentido simbólico, um sentido religioso e um sentido
cultural; pode ser Deus e o mundo”156 (TILLICH, 1973
[1925], p. 80). O conceito de “Espírito absoluto” de Hegel
por exemplo, é de maneira imediata a síntese das formas do
mundo, mas também pode ter o sentido simbólico de
Deus. Há, portanto, dois estados da consciência, um
dirigido à substância e outro à forma, e de acordo com o
teólogo “É de decisiva importância para a filosofia da
religião e para a teologia captar esta diferença em toda sua
agudez”157 (TILLICH, 1973 [1925], p. 80).

155
One can properly call this second position unreligious, but only
with regard to its intention and not with regard to its outcome. There is
no consciousness unreligious in substance, though it can certainly be
so in intention. Every act of self-apprehension contains, as its
foundation within reality, the relation to the Unconditional, but this
relation is not in every case intended. The two states of consciousness
are differentiated accordingly.
156
The same idea can therefore have an immediate and a symbolic, a
religious and a cultural, significance; it can be God and the world.
157
It is now of decisive importance for philosophy of religion and
theology, to grasp this difference in all its sharpness.

288
Logo, pode-se dizer que o caráter especifico da
intencionalidade da consciência substancial é proposto por
Tillich para descrever os modos de relacionamento entre
forma e substância, como polos que mesmo sendo
inseparáveis, podem adquirir configurações diferentes na
consciência. Comentando sobre o assunto Abreu (2015, p.
97) afirma que a determinação do caráter religioso ou
cultural de um determinado ato depende do
direcionamento da consciência subjetiva em sua atividade
no mundo da vida. A distinção entre ambas está
relacionada à atitude de intencionalidade da consciência
que embora discerníveis, cultura e religião constituem
dimensões codependentes e não podem jamais serem
compreendidas separadamente. Nesse sentido, do ponto de
vista de sua intencionalidade, ou sob o aspecto da
consciência subjetiva, a cultura não é religiosa, mas quando
considerada a partir de sua dimensão de profundidade, a
luz de sua substância, todo ato cultural possui um elemento
religioso, uma vez que sendo um ato de sentido particular,
ele se encontra fundamentado no sentido incondicional.
Da mesma forma, todo ato religioso enquanto atividade do
espírito é uma ação cultural, ainda que do ponto de vista da
intencionalidade da consciência subjetiva ele permaneça
distinto da cultura. Sendo assim, Tillich afirma que:
No ato cultural, por tanto, o religioso é
substancial, no ato religioso, o cultural é formal.
Cultura é a soma total de todos os atos
espirituais dirigidos à plenitude das formas
particulares de sentido e de sua unidade.
Religião é a soma total de todos os atos
espirituais dirigidos à apreensão da substância de
sentido incondicionado através da realização da

289
unidade de sentido 158 (TILLICH, 1973
[1925], p. 60).
Religião e cultura estão relacionadas na dimensão
de incondicionalidade do espírito. É neste contexto que se
torna possível compreender com maior clareza a máxima
tillichiana de que “A religião, considerada preocupação
suprema, é a substância que dá sentido à cultura, e a
cultura, por sua vez, é a totalidade das formas que
expressam as preocupações básicas da religião. Em resumo:
religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da
religião” (TILLICH, 2009, p. 83). Todo ato cultural
contém um sentido incondicional pois encontra-se baseado
no fundamento de sentido e por conta disso é
substancialmente religioso. Por outro lado, todo ato
religioso só pode dirigir-se em direção ao incondicional
através da unidade das formas de sentido e por isso é
necessariamente cultural. A cultura, portanto, sempre
manifesta uma dimensão religiosa, e de acordo com o autor
estas expressões são aspectos da auto-criatividade do
espírito humano.
O condicionado é o meio no qual e através do
qual se capta o Incondicional. [...] Mas posto
que toda afirmação enquanto tal se expressa no
modo subjetivo-objetivo, e portanto, nas formas
do condicionado, as afirmações com respeito ao
Incondicional devem evidentemente utilizar
estas formas. Mas deve fazê-lo apenas de tal

158
In the cultural act, therefore, the religious is substantial; in the
religious act the cultural is formal. Culture is the sum total of all
spiritual acts directed toward the fulfillment of particular forms of
meaning and their unity. Religion is the sum total of all spiritual acts
directed toward grasping the unconditioned import of meaning through
the fulfillment of the unity of meaning.

290
maneira que se faça evidente até que ponto são
inadequadas, ou seja, devem ter a forma de um
paradoxo sistemático 159 (TILLICH, 1973
[1922], p. 137-138).
O diferencial cultural, em que se assenta todo
conhecimento, é a fonte de onde brotam as inúmeras
formas religiosas. Estas formas configuram o
conhecimento religioso em suas várias expressões, são
materiais retirados dos contextos marcados pelas
circunstâncias históricas, psicológicas, culturais e outras
situações que atuam como meio através do qual a
experiência religiosa adquire sua expressão concreta. Como
afirma o teólogo “Contanto que um ato religioso se
direciona para um conteúdo representativo e através dele,
pelo último visado, é o conhecimento religioso” 160
(TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 136). O incondicional
é para onde se dirige a consciência, mas o incondicional
não pode ser diretamente visado, de modo que o conteúdo
substitui o incondicional, mas sem com isso ocupar o seu
lugar, mas como aquilo através do qual o incondicional
pode ser visado.
A intencionalidade da religião se dirige à
essência, é a fonte incondicionada e o abismo do
sentido, e as formas culturais servem como

159
The conditioned is the medium in and through which the
Unconditional is apprehended. [...] But since every statement as such is
expressed in the subject-object mode, and hence in the forms of the
conditioned, statements about the Unconditional must, to be sure,
utilize these forms. But this must occur in such a way that their
inadequacy becomes evident, i.e., they must bear form of systematic
paradox.
160
Sofern ein religiöser Akt sich auf einen vertretenden Inhalt und
durch ihn hindurch auf das Letzt-Gemeinte richtet, ist er religiöse
Erkenntnis.

291
símbolos dessa essência. A intencionalidade da
cultura se dirige à forma, que representa o
sentido condicionado. A essência, que
representa o sentido incondicionado, apenas se
vislumbra de maneira indireta por meio da
forma autônoma proporcionada pela cultura que
atua como meio161 (TILLICH, 1967 [1936], p.
70).
O incondicional, portanto, não pode ser um objeto,
mas pode ser intuído e significado através do objeto
simbólico. Dessa forma como afirma o teólogo, “A fé é a
orientação em direção ao incondicional através dos
símbolos extraídos da ordem condicionada. Todo ato de fé,
portanto, possui um duplo significado. Se dirige de
maneira imediata ao objeto sagrado. Mas não significa,
porém, este objeto, mas o Incondicional, que expressa de
maneira simbólica”162 (TILLICH, 1973 [1925], p. 76-77).
É na relação dinâmica entre o imediatamente existente e o
espírito que atualiza o sentido no existente, bem como a
unidade perfeita entre ambos que a configuração simbólica
se torna possível. Somente em sua unidade é que se
expressa de maneira completa a relação entre o
Incondicional e o condicionado. Somente assim se

161
Religion’s intentionality is toward substance, which is the
unconditioned source and abyss of meaning, and cultural forms serve
as symbols of that substance. Culture’s intentionality is toward the
form, representing conditioned meaning. The substance, representing
unconditioned meaning, can be glimpsed only indirectly through the
medium of the autonomous form granted by culture.
162
Faith is orientation to the Unconditional through symbols drawn
from the conditioned order. Every act of faith therefore has a double
meaning. It is directed immediately toward a holy object. It does not,
however, intend this object, but rather the Unconditional which is
symbolically expressed in the object.

292
consegue um autêntico simbolismo (TILLICH, 1973
[1925], p. 105).
A tensão entre forma e substância é constante e
deve ser mantida, para Tillich, a dinâmica interna dos
sentidos se dá nessa relação, por isso como afirma o teólogo
“A forma e substância não podem se separar. Não faz
sentido postular uma sem a outra”163 (TILLICH, 1973
[1925], p. 59). Esta formulação dos modos como religião e
cultura se relacionam a partir da intencionalidade do ato da
consciência representa um aspecto fundamental da
Teologia da Cultura de Tillich que lhe permite afirmar
tanto a autonomia da religião e da cultura, bem como a
relação necessária entre elas. É tarefa da teologia, portanto,
levar a expressão o devir-reflexivo do espírito em todas as
esferas e criação da cultura (DANZ, 2009, p. 181).
A proposta de Tillich de uma teologia da cultura
dirige-se justamente nessa direção, isto é, de possibilitar
uma análise religiosa das criações culturais segundo a
substância que se realiza nelas considerando ambos os
polos dessa relação, forma e substância. De acordo com o
autor, “A tarefa da teologia da cultura é acompanhar de
perto este processo em todas as esferas da criação cultural e
dar-lhe expressão. Não do ponto de vista da forma [...] mas
tomando a significação ou substância como seu ponto de
partida”164 (TILLICH, 1973 [1919], p. 164). O teólogo
comenta também que essa proposta de uma teologia da

163
Form and import belong together; it is meaningless to posit the one
without the other.
164
The task of a theology of culture is to follow up this process in all
the spheres and creations of culture and to give it expression. Not from
the standpoint of from [...] but taking the import or substance as its
starting point.

293
cultura possui uma tríplice missão: Fazer uma análise
religiosa geral da cultura, fazer uma tipologia religiosa e
filosofia da história cultural propondo uma sistematização
religiosa concreta da cultura.
A primeira se refere à relação entre a forma e a
substância [...] a relação entre o Sim e o Não, a
relação e a força mediante a qual ambos
encontram expressão. [...] Isso nos leva a
segunda tarefa que propomos à teologia da
cultura, a tarefa tipológica e histórica-filosófica.
A limitação está dada pela imagem que
descrevemos anteriormente, a de uma linha com
dois polos, respectivamente a forma e a
substância (ou significação). Esta imagem nos
leva a três pontos decisivos, que representam três
tipos fundamentais: os dois polos e o ponto
central, onde a forma e substância mantém um
perfeito equilíbrio. [...] Si esta doutrina dos tipos
se aplica ao presente e se relaciona
sistematicamente com o passado, irá se
desenvolvendo uma classificação histórica-
filosófica, que nos leva diretamente à terceira
tarefa, que é, propriamente dita, a tarefa
sistemática da teologia da cultura165 (TILLICH,
1973 [1919], p. 166-167).

165
The first is the relation between form and substance. [...] the relation
between the Yes and the No, the relation and the force in which both
find expression. [...] But there is also a certain limitation: and this leads
us to the second task assigned to theology of culture, the typological
and historical-philosophical task. A limitation is given by the afore-
mentioned image of the line with the poles of form and substance (or
import) respectively. This image leads us to three decisive points
representing the three fundamental types: the two poles and the central
point where form and substance are in equilibrium. [...] If this doctrine
of types is applied to the present and systematically related to the past,
a historical-philosophical classification develops which then leads us

294
A reflexão de Tillich sobre a proposta de uma
teologia da cultura é bastante rica e extensa, de modo que
uma análise mais exaustiva sobre ela necessitaria ser objeto
de um estudo próprio, nesse sentido, a menção feita a este
tema teve a pretensão apenas de apontar para as
implicações do contato de Tillich com a fenomenologia de
Husserl, pois como bem frisou Neugebauer, os
fundamentos filosóficos-espirituais da teologia da cultura
de Tillich remontam ao pano de fundo de sua recepção da
fenomenologia de Husserl (NEUGEBAUER, 2011, p.
38). De modo que uma análise mais exaustiva sobre ela não
pode mais ser desenvolvida dentro dos limites dessa
pesquisa.

Considerações Finais

Para Husserl, toda consciência é consciência de


alguma coisa, e para Tillich, o sentido incondicional
também é algo de que se possa estar consciente, como um
sentido percebido na realidade do mundo da vida. O
sentido incondicional, como referido, não é um ser
absoluto ou uma realidade externa ao ser humano, mas
trata-se de um mistério percebido pela própria consciência
de uma certa inesgotabilidade do real. A presença das
categorias fenomenológicas como “direcionamento” e
“visar” no pensamento de Tillich, e que são comuns
também em Husserl, permitiram identificar os contornos
da aplicação que o teólogo fez da teoria da intencionalidade
na fundamentação do conceito de religião. Com isso, foi

directly to the third and, properly speaking, systematic task of theology


of culture.

295
possível perceber que a experiência religiosa para Tillich se
caracteriza por um ato intencional de visar o sentido
incondicional por meio de algum segmento presente na
realidade. A religião nestes termos, seria possível somente
por meio da cultura, isto é, pelas formas concretas postas
pelo espírito em sua criatividade no mundo da vida. Por
semelhança, toda forma cultural possui o poder de ser
mediadora de um sentido incondicional.
Como não se pode falar sobre o incondicional sem
transformá-lo num objeto, e como não há expressão
cultural que não possa se tornar mediadora de um sentido
incondicional, o teólogo emprega as categorias semânticas
de forma e substância que ajuda sobremaneira a
compreender a dinâmica de relação entre religião e cultura.
A religião como experiência do incondicionado está para a
substância assim como a cultura está para a forma. Nesse
sentido, toda expressão cultural é substancialmente
religiosa (possui o poder de expressar o sentido
incondicional) assim como toda expressão religiosa é
formalmente cultural (utiliza as formas concretas para
expressar o incondicional). Diante disso, quando a
intencionalidade da consciência se volta para a substância
se está diante da religião e quando a consciência se volta
para a forma se está diante da cultura. O caráter cultural ou
religioso depende do direcionamento subjetivo da
consciência intencional.
Tillich descreve, portanto, dois estados da
intencionalidade da consciência, uma dirigida à forma e a
outra à substância. Um mesmo segmento da realidade pode
ter um sentido religioso e um sentido cultural. Sendo
assim, cultura e religião constituem dimensões

296
codependentes e não podem jamais serem compreendidas
separadamente. Cabe a teologia da cultura, portanto, levar
em consideração ambos os polos dessa relação, lidando
com o conteúdo concreto das expressões culturais mas
pressupondo sua substância, isto é, o ponto da consciência
imediata do incondicional como ponto de partida. Sendo
assim, a demarcação conceitual dos modos como religião e
cultura se relacionam a partir do direcionamento da
consciência subjetiva, bem como a importância que esta
teoria teve para o desenvolvimento de sua teologia da
cultura, apresentam-se ao ver desta pesquisa como os
resultados ou implicações de um desenvolvimento de uma
teoria da consciência intencional no pensamento de Paul
Tillich que é, como foi exposto no decorrer da pesquisa,
oriunda de seu contato com a fenomenologia de Edmund
Husserl.

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Berlin/ New York: De Gruyter, 2001. p. 333-566.

302
CONTEÚDO E FORMA: KIERKEGAARD E
TILLICH EM DIÁLOGO

Jonas Roos 166

A partir do diálogo entre os pensamentos de


Kierkegaard e Tillich, procuro mostrar que não apenas o
conteúdo, mas também a forma da obra, nesses dois
autores, está relacionada com o paradoxo. É central o
argumento de que é o paradoxo que define o método, e não
o contrário; tal questão é crucial para que se compreenda a
estrutura dos pensamentos tanto de Kierkegaard quanto de
Tillich. Entendo que o diálogo entre esses dois autores
ilumina mutuamente a compreensão de seus pensamentos
em sua inter-relação conteúdo-forma. Este, portanto, é o
objetivo específico deste texto, e não tecer uma comparação
geral entre dois pensadores que, de resto, são bastante
diferentes.

166
Doutor em Teologia, professor do Departamento de Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – Brasil, na área de
Filosofia da Religião.

303
I. Kierkegaard e Tillich em diálogo – incursões na
forma

Em Tillich e em Kierkegaard há uma relação


necessária entre os conteúdos de suas obras e a forma que
as obras assumem, entre o que é dito e o como isto é dito.167
A (in)compreensão de um aspecto implica na
(in)compreensão de outro. Para Tillich, é na esteira da
preocupação pelas relações entre teologia e cultura,
cristianismo e secularização, que desenvolve, em sua
Teologia sistemática, o método de correlação, o qual
determinará justamente a forma de sua obra. A tarefa de
sua teologia será a de relacionar a mensagem cristã e a
interpretação desta mensagem para a situação temporal
onde é recebida.168 O método, que dá forma ao sistema, se
estabelece em relação intrínseca com a realidade que busca
compreender: “Um método não é uma ‘rede indiferente’
com que se prende a realidade, mas um elemento da
própria realidade.”169
Kierkegaard desenvolveu toda uma estratégia de
comunicação, muitas vezes usando linguagem e metáforas
bem locais da Copenhague do século XIX, para levantar
perguntas existenciais a partir de situações concretas

167
À primeira vista pode parecer que este ponto, à medida que centra
sua análise na forma, contradiz o argumento da inseparabilidade de
conteúdo e forma. De fato, ambos são inseparáveis na realidade.
Metodologicamente, entretanto, é necessário realizar uma distinção
que tem por finalidade mostrar justamente a interdependência no nível
da realidade. Todavia, o leitor perceberá que, mesmo a partir de uma
distinção metodológica, é impossível falar da forma sem recorrer a
questões de conteúdo.
168
Veja TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 21.
169
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 74.

304
imaginadas em seu próprio contexto. Do interior dessas
situações surgem questões que são relacionadas a seu
pensamento religioso. O propriamente religioso não é
apresentado em linguagem hermética, mas em relação a
perguntas elaboradas a partir de situações literariamente
descritas pelos pseudônimos. Eis a duplicidade da obra a
que Kierkegaard se refere em Ponto de vista.170
Tillich, em seu método de correlação, procura
elaborar as perguntas existenciais presentes na cultura e
relacioná-las à mensagem cristã, interpretando esta para o
contexto onde é recebida. Em ambos os autores a
elaboração de temas religiosos parte de perguntas
existenciais presentes em situações culturais determinadas.
Segundo Tillich, “o método de correlação explica os
conteúdos da fé cristã através de perguntas existenciais e de
respostas teológicas em interdependência mútua.”171 Nesse
sentido, se entende que o conteúdo religioso somente pode
ser significativo à medida que estiver em correlação com
questões existenciais. A teologia sistemática, ao se efetivar
em conexão com o método que a constitui,
faz uma análise da situação humana a partir da
qual surgem as perguntas existenciais e
demonstra que os símbolos usados na mensagem
cristã são as respostas a estas perguntas. A
análise da situação humana é feita em termos
que hoje chamamos de “existenciais”. Essas
análises são bem mais antigas do que o
existencialismo. Na verdade, são tão antigas
quanto a reflexão do ser humano sobre si mesmo

170
Veja KIERKEGAARD, Søren. The Point of View, p. 29.
171
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 74.

305
e foram expressas em várias formas de
conceitualização desde o começo da filosofia.172
Para Tillich tais perguntas se articulam, sob diversas
formas, na cultura. As relações entre religião e cultura são
percebidas não como dois polos opostos, mas como se
esclarecendo mutuamente. A religião dá substância e
sentido à cultura, e a cultura é a totalidade das formas pelas
quais a preocupação fundamental da religião pode se
exprimir. Esta afirmação se fundamenta no entendimento
de religião como preocupação incondicional ou última
(ultimate concern). A preocupação última se articulará
necessariamente em símbolos, desenvolvidos na cultura, de
modo que todo ato religioso é um ato cultural. A cultura,
entretanto, em suas manifestações, revela, ainda que
veladamente, a pergunta por um sentido último – mesmo
que na pergunta pela falta de sentido – e pode ser,
portanto, numa acepção ampla, religiosa.173 A partir de tal
entendimento amplo pode-se afirmar que uma religião
particular pode aplacar uma preocupação última e, nesse
sentido, perder seu potencial religioso, assim como um ato
cultural pode manifestar claramente uma preocupação
última e, nesse sentido, estar carregado de sentido
religioso. O desenvolvimento do sistema teológico de
172
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 76.
173
“Se religião é definida como um estado de ‘ser agarrado por uma
preocupação última’ – que é também minha definição de fé – então
devemos distingui-lo, como um conceito universal ou amplo, de nosso
usual conceito mais restrito de religião, o qual supõe um grupo
organizado com seu clero, escrituras e dogmas, pelos quais um
conjunto de símbolos da preocupação última é aceito e cultivado na
vida e no pensamento. Isso é religião no sentido mais estrito do termo,
ao passo que religião definida enquanto ‘preocupação última’ é
religião no sentido mais amplo do termo.” TILLICH, Paul.
UltimateConcern, p. 4.

306
Tillich deixa claro que este modo de conceber a relação não
implica uma fusão entre religião e cultura. Em seu método
de correlação o sistema reúne as perguntas presentes na
cultura a partir de uma análise filosófica e as relaciona aos
símbolos da mensagem cristã. Dessa forma, temos o
sistema estruturado em forma de espelho nas articulações a
razão e a revelação; o ser e Deus; a existência e o Cristo; a vida
e o Espírito; a história e o Reino de Deus.174
Ora, esta ênfase na cultura, por parte de Tillich,
poderia ser vista justamente como um ponto de
distanciamento entre os dois autores, já que Kierkegaard
utilizou todo o arsenal de sua ironia para polemizar
justamente com a cultura de seu contexto e, especialmente,
com a igreja dinamarquesa, o chamado “cristianismo
oficial”. Este aspecto, entretanto, não deve ser visto como
exclusão do polo cultural, mas como uma forma de relação,
mesmo que polêmica. Há sempre que se considerar que a
polêmica de Kierkegaard com a igreja dinamarquesa faz
uso da linguagem de seu contexto e a partir daquilo que
percebe como os problemas nele situados, as questões
daquela situação frequentemente referida como vorTid
(nosso tempo). Com relação a Tillich, por outro lado, a
afirmação do polo cultural não significa sua aceitação
acrítica.

174
A imagem do espelho, da qual faço uso, deve ser entendida com
cuidado. Ao mesmo tempo em que pode ser esclarecedora para o
método de Tillich, como toda imagem ela contém seus riscos. A forma
de espelho não deve ser entendida como um encaixe mecânico entre
duas partes, ela quer apenas revelar a estrutura do sistema como
correlação. Se a relação for interpretada mecanicamente, o método
perde a dinamicidade que lhe é própria. Uma leitura atenta da Teologia
Sistemática deixa este ponto bem claro.

307
Diferente de Tillich, Kierkegaard não quer escrever
sistema. No seu entendimento, o sistema relaciona os
conceitos por necessidade. A existência, entretanto, está
constantemente implicada na contingência, a qual não
encontra lugar no sistema. 175 Entretanto, embora não
constitua um sistema, deve-se perceber que a publicação de
seus livros constitui uma obra inteligentemente e
intencionalmente orquestrada. Não perceber a estrutura
desta orquestração implica em não entender em sentido
profundo também seu conteúdo.
Kierkegaard endossaria tanto a percepção de
Tillich, quanto suas implicações, de que ninguém pode
responder significativamente a uma pergunta que não
tenha formulado. As perguntas de Kierkegaard dizem
respeito ao sentido último da existência. Estas, entretanto,
não são formuladas diretamente. Kierkegaard percebe que
muitos de seus contemporâneos vivem no que entende por
concepção estética da vida, uma concepção que absolutiza a
finitude e é dirigida a partir da exterioridade. Para tal
situação mostra-se inócua a tentativa de criticar ou mesmo
desconstruir tal situação a partir de procedimentos
objetivos, externos à situação da pessoa singular. Daí o

175
Tillich tem um entendimento próprio do que seja sistema e que,
certamente, difere das noções correntes na Europa do século XIX, às
quais Kierkegaard se opõe. Segundo Tillich: “Um sistema é uma
totalidade que se compõe não de proposições deduzidas, e sim
consistentes [...]. O sistema confere sentido a um conjunto de
afirmações factuais ou racionais, mostrando suas implicações e
conseqüências. [...] O sistema se situa entre a summa e o ensaio. A
summa trata explicitamente de todos os problemas reais e de muitos
problemas potenciais. O ensaio trata explicitamente de um problema
real. O sistema trata de um grupo de problemas reais que exigem uma
solução em uma situação especial”. TILLICH, Paul. Teologia
sistemática, p. 73-74.

308
procedimento irônico de penetrar na situação falando
esteticamente, tornando-se estético para com as pessoas
que vivem esteticamente. Os pseudônimos, ao assumirem
postura estética, com sua linguagem e concepção de
existência, tentam corroer este modo de existência de
dentro para fora, deixando o leitor a sós com esta
concepção que, então, pode se mostrar vazia de sentido.176
Compreender algumas das obras pseudônimas de
Kierkegaard implica compreender o vazio de determinados
modos de existência. Tais obras, se tomadas isoladamente e
se sua elaboração é levada às últimas consequências, podem
levar à conclusão de que a vida é absurda.
É frente a esse contexto e na perspectiva dessa
relação que o conceito de edificação assume importância. Se
não se pode edificar a partir de um fundamento
inapropriado, entretanto, há que primeiramente
desconstruí-lo, com o que se ocupam as obras
pseudônimas. A duplicidade da obra, anteriormente
referida, implica em que obras pseudônimas e discursos se
correspondem. A mensagem cristã elaborada nos discursos
não é apresentada como doutrina, mas essencialmente
como a mensagem do paradoxo que envolve uma tomada
de uma atitude existencial. Sem a pergunta corretamente
colocada, entretanto, a resposta não pode ter um sentido
último.
A partir dessas incursões na forma, no método,
veremos agora como uma questão específica de conteúdo

176
Note-se que, neste ponto, tudo gira em torno da intenção do autor.
Se, de fato, entretanto, o leitor perceberá efetivamente a precariedade
de sua situação, isto é algo de que o escritor não possui qualquer
garantia. O risco de incompreensão é inerenteà ironia.

309
nos conduzirá ao paradoxo e, pela natureza da relação entre
conteúdo e forma, nos levará novamente ao método.

II. Da alienação do fundamento a sua reestruturação


a partir do paradoxo – uma questão de conteúdo

Afirmamos a correspondência entre conteúdo e


forma em Kierkegaard e Tillich e desenvolvemos paralelos
relativos à forma das obras. Se as relações se dão
efetivamente como descrito, é natural conceber que haja
um paralelo importante também com relação ao conteúdo
nesses dois autores. Em termos gerais podemos dizer que
Kierkegaard e Tillich concebem a relação entre
cristianismo e existência pensando: a) o ser humano como
inicialmente em relação com Deus; b) o ser humano
distante desta relação e suas consequências; c) a
recuperação desta relação articulada na fé.
A Teologia sistemática de Tillich é atravessada pela
concepção da relação entre ser essencial – mas que nos é
inacessível em termos de efetividade na existência – e ser
nas condições da existência, desarticulado em suas
ambiguidades porque alienado de seu ser essencial. Tal
alienação é descrita como transição da essência à existência
e está caracterizada em termos simbólicos no relato de
Gênesis 1-3.177 Para Tillich, este relato é a expressão mais

177
Neste ponto deve-se evitar o termo “processo”, dado que a transição
da essência à existência não é processo, mas salto, bem como o termo
“explicação”, dado que a queda, o problema do mal, não pode ser
explicada, mas apenas descrita. Até aqui Kierkegaard e Tillich
parecem concordar. A diferença crucial está em que para Tillich
criação e queda coincidem, entendimento que não é encontrado em
Kierkegaard. Sobre essa diferença compare-se o caput I de O conceito

310
profunda e rica da consciência que o ser humano possui de
sua alienação existencial. 178 Conceitos importantes para
Tillich nesse contexto são, por exemplo, angústia e
inocência sonhadora, sob clara influência de O conceito de
angústia. A saída do paraíso, então, representa a alienação
do ser humano de si mesmo, de Deus e do mundo/do
outro. A partir dessa situação toda a existência é
configurada por uma busca de reunião com o ser essencial,
a qual terá implicações para as três relações acima
mencionadas.
Esta busca caracteriza o elemento religioso presente
no ser humano, expresso na pergunta por algo que dê um
sentido último à existência; nos termos de Tillich, pelo
estado em que se é possuído por algo que nos toca
incondicionalmente. Esta última formulação, entretanto, é
justamente sua definição de fé. Toda a Teologia sistemática,
em suas cinco partes, deve ser lida sob a perspectiva da
busca de uma reestruturação do ser que está alienado de seu
fundamento nas condições da existência. Fé, portanto, não
pode ser aquilo que promove novas cisões e divisões, mas é
justamente o elemento de reestruturação. Trata-se de um
ato da pessoa inteira, daquele que é simultaneamente o ato
mais íntimo e mais global do ser humano.179 A fé “não
tange somente o espírito ou apenas a alma ou
exclusivamente a vitalidade, e sim ela é a orientação da
pessoa inteira em direção ao incondicional.” 180 Fé,
portanto, não pode ser mera aceitação de proposições

de angústia com a Teologia sistemática, volume 2, parte 3, I. A


existência e a pergunta por Cristo, especialmente as páginas 334-339.
178
Veja TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 326.
179
Veja TILLICH, Paul. Dinâmica da fé, p. 7.
180
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé, p. 69.

311
dogmáticas – o que ainda corresponderia a uma parte ou
faculdade isolada do ser humano. Enquanto participação
com todo o ser, fé diz respeito à certeza existencial; toda a
existência participa dessa certeza, é uma questão de “ser ou
não ser”; é o elemento onde se articula a possibilidade de
reestruturação do ser.
Na fé, o ser humano se relaciona com aquilo que o
toca incondicionalmente. Não tem acesso ao incondicional
em si, pois no instante em que isso acontecesse, o
incondicional estaria preso aos limites da condicionalidade
humana, entretanto, se relaciona com ele através do
símbolo como o elemento concreto que aponta para o
incondicional sem esgotar seu significado. 181 O
incondicional é simultaneamente fundamento e abismo de
todo sentido.
A fé, portanto, através dos símbolos, é o que remete
o ser humano novamente a seu fundamento e consequente
reestruturação. Tal reestruturação, entretanto, não significa
mero retorno à noção do ser humano essencial. As
ambiguidades da existência permanecem nessa
reestruturação, mas são vistas em nova perspectiva a partir
dos símbolos, de modo que já não significam mais o
mesmo que anteriormente. Tudo aqui gira em torno do
modo como se concebe a realidade. E tanto Kierkegaard
quanto Tillich entendem que o cristianismo pode fornecer
uma narrativa que articule sentido último para as questões
que a existência coloca.
Para Kierkegaard, é fundamental o entendimento
de que o ser humano é criado por Deus e de que está,
inicialmente, em relação com Deus. Esta relação é rompida

181
Veja TILLICH, Paul.Dinâmica da fé, p. 30-39.

312
pelo próprio ser humano, por um salto, e nunca de modo
necessário – conforme as polêmicas de Kierkegaard com a
filosofia e teologia de seu tempo sob a pena de Haufniensis
em O conceito de angústia. Na inocência o ser humano está
em relação com o criador. A imagem do paraíso é a
imagem desta relação e de suas implicações e é vista sempre
positivamente por Kierkegaard. 182 A afirmação desta
relação inicial do ser humano com Deus está claramente
estabelecida em A doença para a morte, onde o pseudônimo
kierkegaardianoAnti-Climacus afirma que a síntese que
constitui o ser humano sai originalmente das mãos de Deus
na correta relação.183

182
A este respeito veja-se a imagem que Kierkegaard constrói do
paraíso no discurso Toda boa dádiva e todo dom perfeito são do alto:
“Se isto tivesse acontecido, se o mandamento não tivesse sido
transgredido, então tudo teria permanecido como era, muito bom, e
este testemunho que Deus deu da criação teria ressoado
incessantemente na humanidade como uma abençoada repetição. [...]
então a imagem de Deus teria sido estampada em todas as coisas em
um reflexo da glória que teria acalmado tudo no encanto da perfeição
que movia todas as coisas, ele mesmo imutável. [...] Haveria verdade
em tudo; pois Adão realmente deu nome apropriado a tudo segundo a
verdade; teria havido fidedignidade; pois tudo seria como parecia ser;
justiça teria emanado da terra.” KIERKEGAARD,
Søren.EighteenUpbuildingDiscourses, p. 125-126. Uma visão
completamente diferente encontra-se em Hegel. Segundo Jon Stewart:
“Para Hegel, o Jardim do Éden não era um paraíso, mas antes uma
prisão apropriada a animais que estão ligados à necessidade natural.
Este é um lugar do qual os humanos devem definitivamente partir.”
STEWART – Kierkegaard’sRelationsto Hegel Reconsidered, 2003, p.
412.
183
Veja KIERKEGAARD, Søren. The Sickness Unto Death, p. 16.
Como se sabe, este ponto será fundamental para o entendimento do
desespero como algo pelo qual o ser humano é responsável. Faço uso
aqui de minha tradução de A doença para a morte, a partir do original
dinamarquês, a qual está em andamento. Como se trata de tradução
ainda inédita, indico a paginação da edição em língua inglesa.

313
A separação surge no salto, quando o ser humano
tenta estabelecer a si mesmo distanciando-se de seu
fundamento. Ele efetua a síntese por si mesmo, mas a
efetua mal. Note-se que, no caso de Tillich, quando fala de
queda, prefere usar o termo alienação ao invés de falar
diretamente em pecado, pois percebe os mal-entendidos
implicados nesse termo – embora reconheça a importância
do termo pecado quando liberto de seus mal-entendidos.
Kierkegaard, por razões análogas, faz Anti-Climacus
elaborar inicialmente o conceito de desespero como a má
relação que o ser humano estabelece consigo mesmo.
Quando esta relação é vista sob a perspectiva do diante de
Deus, é chamada de pecado. Mas isso somente é feito por
Anti-Climacus depois de uma depuração do conceito a
partir da análise do desespero. É esta análise, juntamente
com as elaborações anteriores de O conceito de angústia, que
possibilitará que o problema do pecado seja entendido em
uma moldura antropológica e, portanto, liberto de reduções
moralizantes. Nessa perspectiva, a separação do ser
humano com relação a seu fundamento poderá ser vista na
magnitude de seus efeitos. Estes poderão ser percebidos
não apenas nas mais diversas formas de desespero, mas
também nas criações literárias das obras pseudônimas que
retratam os efeitos do pecado tanto no estágio estético da
existência como no ético.
Tornar-se si mesmo ou tornar-se cristão – o que
não é um tema na obra de Kierkegaard, mas o motor que
impulsiona toda a obra e que norteia, ainda que
veladamente, a discussão dos diversos temas – é algo que
somente pode ser efetivado a partir de um fundamento
ontológico. E neste ponto, tendo considerado tanto o ser

314
humano em sua relação inicial com o seu fundamento
quanto o afastamento de seu fundamento, a possibilidade
de recuperação da relação se articula na fé, que se efetiva
quando “ao relacionar-se a si mesmo e ao querer ser si
mesmo o si-mesmo repousa transparentemente no poder
que o estabeleceu.”184 Em Kierkegaard, assim como vimos
em Tillich, isto não significa mero retorno à condição
inicial. A fé não elimina as dificuldades da existência. Em
certo sentido, ela as torna mais intensas, como pode-se ver
de modo paradigmático, por exemplo, em Temor e tremor.
Por outro lado, nessa mesma obra é visível que a fé altera o
olhar e, consequentemente, o sentido dos acontecimentos
da vida.185
O tornar-se si-mesmo, portanto, acontece pela fé
enquanto possibilidade de retorno ao fundamento do si-
mesmo, a possibilidade de repousar no poder que
estabeleceu a síntese. Entretanto, o ser humano está
distante de seu fundamento. Daí a relevância da discussão
do problema do pecado, presente em várias obras de
Kierkegaard. Em Migalhas, por exemplo, o pecado é
descrito como o elemento que estabelece uma diferença
absoluta entre Deus e os humanos,186 de modo que o ser
humano não pode por si só retornar ao fundamento. Tal
184
KIERKEGAARD, Søren. The Sickness Unto Death, p. 49.
185
A esse respeito compare-se a segunda das quatro possibilidades de
interpretação que Johannes de Silentio, um dos pseudônimos de
Kierkegaard, fornece para a história de Abraão na “Atmosfera” de
Temor e tremor, onde o desenlace da história aconteceria sem a
perspectiva da fé, com a interpretação fornecida na “Efusão
preliminar”, onde o mesmo desenlace aconteceria sob a perspectiva da
fé. A interpretação dos mesmos “fatos” é completamente diferente e,
portanto, também as consequências deste tanto para a vida de Abraão
quanto para o entendimento de si mesmo.
186
KIERKEGAARD, Søren. Migalhas filosóficas, p. 74.

315
reencontro com o fundamento, então, só é possível através
do paradoxo de que o fundamento mesmo entra na
história, o paradoxo do eterno no tempo, que para a razão
especulativa é absurdo e do ponto de vista da descrença é
escândalo.
Em Tillich, o paradoxo constitui o símbolo da
superação dos conflitos presentes nas condições da
existência.187 Mais do que isso, o paradoxo é o centro da
mensagem que articula os símbolos que respondem às
perguntas existenciais levantadas na cultura. Em
Kierkegaard e em Tillich o paradoxo une o que não poderia
estar unido e, nesse sentido, é a possibilidade de reunião
daqueles elementos que estão separados nas condições da
existência.

III. Paradoxo e método

Até aqui estabelecemos o paralelo entre conteúdo e


forma em Kierkegaard e Tillich. O ponto crucial deste
texto, entretanto, é mostrar que o paradoxo é o
fundamento que orienta esta forma de conceber a
realidade.
O paradoxo enquanto entrada do eterno no tempo
possibilita, então, o restabelecimento do ser em sua correta
relação. Em terminologia teológica, nesse contexto, fala-se
sobre graça; a encarnação somente pode ser entendida em
articulação como o conceito de graça. Este, entretanto, se

187
Veja TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 157s. Nesta parte o
paradoxo constitui o símbolo da superação de conflitos como aqueles
entre autonomia e heteronomia, absolutismo e relativismo, formalismo
e emocionalismo.

316
relaciona com o conceito de juízo, o juízo de Deus sobre o
pecado, a revelação da distância a que o ser humano se
colocou em relação a Deus. A percepção desta relação entre
juízo e graça articulados no paradoxo é fundamental para
herdeiros da tradição luterana, como o são Kierkegaard e
Tillich.
Kierkegaard entende que Cristo é aquele que
intensifica a lei, leva sua exigência ao extremo, de onde
surgirá o consequente juízo por seu não cumprimento. Há
uma relação direta entre intensificação da lei e juízo. O
mesmo Cristo, entretanto, oferece a graça para aquele que
é aniquilado pela lei. O paradoxo, portanto, não é
paradoxal apenas porque une em si eternidade e
temporalidade, mas também juízo e graça. Em seus diários,
já no ano de 1838, Kierkegaard afirma: “A profundidade
do cristianismo é que Cristo é tanto nosso redentor quanto
nosso juiz, não que um é nosso redentor e outro é nosso
juiz, pois assim nós certamente estaríamos julgados, mas
que o redentor e o juiz são um”.188
Em Migalhas esta relação aparece no paradoxo
como aquele que tanto revela a diferença posta pelo pecado
quanto aquele que quer abolir esta diferença: “[...] o mesmo
paradoxo tem essa dupla natureza pela qual se mostra como
o absoluto: negativa, ao colocar em descoberto a diferença
absoluta do pecado; positiva, ao querer abolir esta diferença
absoluta na igualdade absoluta.”189
Em A doença para a morte é enfatizada como central
no cristianismo a relação paradoxal e incompreensível entre

188
JP I 287 (Pap. II A 261 September 12, 1838).
189
KIERKEGAARD, Søren.Migalhas filosóficas, p. 74.

317
o estabelecimento da consciência do pecado e a eliminação
do pecado:
[...] Mas o cristianismo, que foi o primeiro a
descobrir os paradoxos, é tão paradoxal neste
ponto quanto possível; ele parece estar
trabalhando contra si mesmo ao estabelecer o
pecado de modo tão seguro como uma posição
que agora parece completamente impossível
eliminá-lo novamente – e então é esse mesmo
cristianismo que pela redenção quer eliminar o
pecado tão completamente como se ele fosse
lançado no fundo do mar.190
Em Prática no cristianismo esta relação aparece em
Jesus como o modelo apresentado em sua idealidade, de
onde surge a consequente exigência e consciência do
distanciamento em relação ao ideal. Esta idealização,
entretanto, tem por objetivo justamente o ensinar a
repousar na graça.191 À época da redação de Prática no
cristianismo Kierkegaard anota em seus diários esta mesma
articulação, nos seguintes termos: “o modelo é
simultaneamente aquele que te julga infinitamente com a
maior severidade – e também aquele que tem compaixão de
ti.”192
O importante a perceber aqui é que esta questão de
conteúdo direcionará a obra de Kierkegaard como um
todo. Quando fala da tática que perpassa toda sua obra, no
apêndice de Sobre minha obra como autor, vemos novamente
presente este modo de conceber a relação, expressa na

190
KIERKEGAARD, Søren.The Sickness Unto Death, p. 100.
191
Veja KIERKEGAARD, Søren.Practice in Christianity, p. 7.
192
KIERKEGAARD, Søren.Journals and Papers, I 692 (Pap. IX A
153 n.d., 1848).

318
simultaneidade da exigência infinita com o infinitamente
amável:
o cristianismo é tão amável quanto rigoroso, tão
amável, ou seja, infinitamente amável. Quando a
exigência infinita é escutada e afirmada, é
escutada e afirmada em toda sua infinitude,
então a graça é oferecida, ou a graça mesma se
oferece, para a qual o indivíduo singular, cada
um individualmente, pode recorrer assim como
eu faço; e então tudo funciona bem.193
Esta tática, portanto, não é casual no entendimento
de Kierkegaard, mas consonante com seu entendimento do
paradoxo. O conteúdo do paradoxo gera uma estratégia e
esta, por sua vez, terá implicações para a forma da obra
como um todo. Assim como o mesmo Cristo engloba os
dois aspectos de juízo e graça, assim também a obra de
Kierkegaard se articulará nesses dois polos, publicando
simultaneamente obras pseudônimas, e seu consequente
juízo a todas as tentativas humanas de alcançar um sentido
último para a existência, e os discursos edificantes como
possibilidade de construção de sentido a partir do
fundamento divino que é dado por graça. É precisamente
neste sentido que o paradoxo se constitui como paradigma
metodológico. O objetivo último é o tornar-se si-mesmo, o
tornar-se cristão, como tarefa (Opgave) fundada na graça.
Isso somente pode acontecer, entretanto, quando
inicialmente se toma consciência da própria situação, onde
desempenha papel fundamental o conceito de juízo. É
paradigmática, nesse sentido, a afirmação de Anti-
Climacus em A doença para a morte: “Pois um médico não

193
KIERKEGAARD, Søren.On my Work as an Author, In: The Point
of View, p. 16.

319
deve apenas prescrever remédios, mas primeiramente e
antes de tudo diagnosticar a doença.”194 Toda a obra de
Kierkegaard carrega esta duplicidade, consequência de seu
entendimento de Cristo, o paradoxo absoluto,
simultaneamente juiz e redentor.
A despeito de diferenças, encontramos em Tillich o
mesmo modo de conceber a relação entre o paradoxo como
conteúdo central do cristianismo, seu método e a
consequente forma de sua Teologia sistemática. Nesta obra o
autor afirma que o paradoxo, “deveria ser entendido no
sentido literal da palavra. É paradoxal aquilo que contradiz
a doxa, a opinião que se baseia no conjunto da experiência
humana comum, incluindo o empírico e o racional.”195
De modo semelhante a Kierkegaard, Tillich
percebe o paradoxo enquanto herdeiro da tradição luterana
destacando aí a lei e o evangelho, o juízo e a graça ou, se
quisermos, o juízo e a promessa. Segundo Tillich, o
paradoxo, “é uma ofensa à confiança inquebrantável do ser
humano em si mesmo, às suas tentativas de auto-salvação e à
sua resignação diante do desespero. Contra cada uma dessas
três atitudes a manifestação do Novo Ser em Jesus como o
Cristo é juízo e promessa.”196
Aquele que é o símbolo do Novo Ser e, portanto,
articulação de resposta, é ele mesmo aprofundamento da
pergunta à medida que é a contradição com relação às
falsas respostas:
O paradoxo cristão contradiz a opinião
derivada da condição existencial do ser

194
KIERKEGAARD, Søren.The Sickness Unto Death, p. 23.
195
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 383.
196
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 384. Grifos meus.

320
humano e todas as expectativas imagináveis à
base dessa condição. O caráter paradoxal da
mensagem cristã não é uma “ofensa” às leis do
discurso inteligível, mas à interpretação
habitual do ser humano com respeito a si
mesmo, a seu mundo e à realidade última
subjacente a ambos.197
Vimos que é fundamental para Tillich a questão da
re-união de elementos essenciais que foram separados na
existência. Nessa perspectiva, o papel de uma obra
teológica será, em primeiro lugar, revelar a dimensão e
abrangência dessa ruptura do ser para com o seu próprio
fundamento. Em segundo lugar, será o de apontar para a
possibilidade dessa reunião na existência que é oferecida na
mensagem cristã. É exatamente essa articulação que se
processa no seu método de correlação. O método,
entretanto, estrutura a própria forma do sistema como
articulação de perguntas existenciais e respostas teológicas.
Aí estão implicados juízo e graça, “juízo e promessa”,
paradigmaticamente presentes em seu entendimento do
paradoxo cristológico, como vimos. Tanto em Kierkegaard
quanto em Tillich toda a forma da obra é decorrência do
paradoxo cristológico, e não o contrário. A obra, assim, se
torna não apenas a concretização, mas também a
atualização da mensagem cristã como juízo e graça. Assim
como para o cristianismo a forma de Cristo como servo
sofredor não é ocasional com relação ao que Cristo é, mas
constitui uma relação intrínseca, assim também é intrínseca
a relação entre o paradoxo e a forma da obra nesses autores.

197
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 383-384.

321
Referências:

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simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao
problema dogmático do pecado hereditário. Trad. e
posfácio de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Bragança
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The Point of View for my Work as an Author – Armed
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______. Practice in Christianity. Ed. e trad.comintrodução
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New Jersey: Princeton University Press, 1983. (KW VI).
______. The Sickness unto Death.Ed. e trad. com introdução
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Princeton University Press, 1980. (KW XIX).
______. Diário de um Sedutor; Temor e Tremor; O Desespero
Humano. Trad. de Carlos Grifo, Maria José Marinho,

322
Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
(Os Pensadores).
______. Søren Kierkegaard’s Journals and Papers.Ed. e trad.
de Howard V. Hong e Edna H. Hong com auxílio de
GregorMalantschuk. v. 1-6, v. 7 Index. Bloomington,
London: Indiana University Press, 1967-78.
(versãoeletrônica).
STEWART, Jon. Kierkegaard´s Relations to Hegel
Reconsidered. Cambridge: Cambridge University Press,
2003.
TILLICH, Paul. TeologiaSistemática. 5 ed.
revista.Trad.deGetúlioBertelli e Geraldo Korndörfer.
Revisão de Enio Mueller.São Leopoldo: Sinodal, 2005.
______. Dinâmica da fé. Trad. de Walter O. Schlupp. 5 ed.
São Leopoldo: Sinodal, 1996.
______. Filosofia de la religión. Trad. de Marcelo Pérez
Rivas. Buenos Aires: EdicionesMegápolis, 1973.
______. Ultimate concern: Tillich in dialogue. Editadopor
BROWN, Mackenzie. New York: Harper Colophon
Books, 1965.

323
RELIGIÃO DEPOIS DA METAFÍSICA?
TILLICH, HEIDEGGER E A ONTOTEOLOGIA198

Frederico Pieper199

“Deus é o ser-em-si, não um ente”


(P. Tillich)

É bastante conhecido o escrito auto-biográfico de


Paul Tillich intitulado On the Boundary (Na fronteira).
Mais do que o título de um ensaio, esse termo resume bem
a situação biográfica e intelectual deste pensador. Para ele,
mais do que a trincheira, a fronteira era o lugar frutífero
para o pensar. Buscar o abrigo isolado é furtar-se ao risco.
Sem risco, não há criatividade. Há a fronteira do campo e
da cidade, de dois séculos (XIX e XX), do continente
europeu e do contexto norte-americano do pós-
guerra...Mas, dessas múltiplas fronteiras de Tillich, duas
me interessam nesse ensaio.
Em primeiro lugar, Tillich habitou na fronteira de
dois mundos. A demarcação dele se deu com a Primeira

198
Uma versão anterior desse texto foi publicada com o título
Ontologia e religião no pensamento de Paul Tillich em diálogo com
M. Heidegger.
199
Bacharel em Teologia (ICSP), em História (USP) e em Filosofia
(USP). Mestre e doutor em Ciências da religião (UMESP). Doutor em
Filosofia (USP). Professor no Departamento de Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato:
fredericopieper@gmail.com

325
Guerra Mundial. Todo um projeto de mundo
desmoronava-se com os conflitos e o niilismo espalhava
suas primeiras sombras. Ele mesmo faz eco ao homem
louco de Nietzsche. Em suas palavras: “O niilismo europeu
deflagra o dito poético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois
bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto”. Estas
frases foram ditas por Tillich para a revista Time
(06/03/1959) ao se recordar de uma passagem dramática de
sua biografia. Como capelão da Primeira Guerra Mundial,
compartilhou do desespero dos soldados alemães que,
diante do caos que se instaurava antes seus olhos, liam
Assim falou Zaratustra de Nietzsche. As trincheiras e os
frontes exalavam não apenas o odor da morte de inúmeros
seres humanos, mas, por meio deles, o cheiro da putrefação
de Deus também se manifestava. E Tillich se situava ali:
entre um mundo que se acabava e outro que tentava se re-
erguer dos entulhos; entre um conceito de Deus que
morreu e outro ainda por vir.
De certo modo, a trajetória de Tillich, reconhecido
por sua preocupação com a cultura, é marcada também pela
tentativa de pensar este luto da morte do conceito
tradicional de Deus. No entanto, ao contrário de muitos de
seus e de nossos contemporâneos, ele não separa Jerusalém
e Atenas. Antes, ele busca habitar também na fronteira
entre filosofa e teologia. Essa é a segunda que nos interessa
nesse ensaio. A radical separação entre o Deus dos filósofos
e o Deus da religião não se mostra como alternativa
convincente para ele. Como dois absolutos (o Deus da
religião e o Deus dos filósofos) podem conviver se, no
fundo, não disserem o mesmo? Ou um deles não é absoluto
ou eles dizem a mesma coisa de maneiras diferentes. Por

326
que ainda manter a distinção entre religião e cultura,
consequência (ou causa) imediata daquela separação entre
os deuses, se as trincheiras já se demonstraram tão
destrutivas? Para Tillich, a morte de Deus anunciada pelo
homem louco de Nietzsche não é a abertura para se afirmar
a religião dissociada da ontologia. Antes, há de se tomar o
caminho rumo à fronteira, no sentido de reconsiderar o
estrito vínculo entre religião e ontologia.
No entanto, o cenário contemporâneo, chamado
por alguns de pós-moderno, não parece favorável a este
modo de pensar. O caráter demasiado ontológico da
reflexão de Tillich sobre Deus tem levantado algumas
desconfianças sobre o seu vínculo com modo de pensar
denominado de metafísico. Sua máxima de que Deus é ser-
em-si parece fornecer todos os indícios de que estamos
diante de mais um sócio do clube dos ontoteólogosda
tradição metafísica, que por meio de diversos artifícios
tentam reanimar o moribundo conceito tradicional de
Deus200.
Todavia, se realmente a traumática experiência da
guerra lhe cria consciência de que “Deus está morto”, não
seria muita incoerência por parte de Tillich simplesmente
retomar um conceito já agonizante de Deus? A fim de
evitar soluções fáceis, que acabam por se transformar em
estereótipos injustos e reducionistas, o objetivo deste texto
é analisar em que medida pode ser imputada a Tillich a
acusação de ser mais um ontoteólogo. Rótulo, aliás, que se
tende a se tornar um tipo de xingamento pós-moderno. A
complexidade de sua filosofia se furta a etiquetas

200
Cláudio Carvalhaes mostra como elas possuem a ontologia como
eixo. Cf. CARVALAHES, 2003.

327
generalistas, que para afirmar alguma novidade tem de
promover uma imagem claramente distorcida daquilo que
veio antes.
O texto está dividido em dois momentos. Na
primeira parte, busca-se definir o que se compreende por
ontoteologia. Neste sentido, retomaremos a compreensão
de Heidegger desta expressão, tendo em vista o debate com
certas apropriações feitas a partir da recepção francesa,
principalmente expressas no livro Deus sem ser de Jean Luc
Marion. Por fim, a partir da análise do modo como Tillich
concebe a relação entre Deus e ser, pretende-se mostrar
que, apesar de empregar um linguagem e conceitos típicos
da metfísica, Tillich confere a ele sentidos distintos daquilo
que se convencionou chamar, após Heidegger, de tradição
metafísica.

1. Deus e ser

Em capítulo publicado no Cambridge Companion


toTilllich, John Thatamanil, ressalta quão intrincada é a
relação entre Tillich e a ontoteologia. Aliás, o título do
capítulo é, em si, bastante sugestivo: Tillich
andthePostmodernism(2009, p.288-302). Apesar de
empregar uma definição bem delimitada de ontoteologia,
mostra-se como ela não é facilmente associada ao
pensamento do filósofo/teólogo alemão sobre a relação
entre ser e Deus. Não obstante seus méritos,
principalmente ao complexificar essa associação entre
Tillich e a ontoteologia, o artigo acaba adotando um
desvio. Mais do que a compreensão heideggeriana de
ontoteologia (ainda que Heidegger seja utilizado como

328
epígrafe e seja referido constantemente), Thatamanil,
numa tendência amplamente seguida nos Estados Unidos e
na Inglaterra, adota a conceituação filtrada pela filosofia
francesa. O problema de aplicar esta compreensão de
ontoteologia está no estreitamento que ela promove, com
importantes consequências para a interpretação do
pensamento ontológico de Tillich.
J. Thatamanil parte da pressuposição de que o
problema central da ontoteologia é identificar Deus e ser.
Nessa direção, pondera que, “O argumento, que pode ser
remetido a Heidegger, afirma que todo pensamento de Deus que
identifica Deus e ser irá constranger e mesmo determinar as
condições sob quais a Deus é permitido aparecer” (Thatamanil,
2009, p.190)201. Assim, a questão central da ontoteologia
residiria na identificação entre Deus e ser. No entanto, em
Heidegger, a problemática é elaborada de maneira inversa:

201
Em determinado momento de seu texto, o autor define ontoteologia
como tentativa de“estabelecer uma fundamentação ontológica
absolutamente segura por meio da representação de Deus como ente
primeiro, o ente que é causa de todas as outras coisas, e, pela
nomeação de Deus como causa primeira e causa sui que chama Deus
a servir como princípio último de inteligibilidade que torna o mundo
compreensível como algo sujeito ao controle racional. A conclusão
destes movimentos é dar origem uma concepção de realidade,
empiricamente e de maneira última, como transparente para a razão
calculadora. O pensamento ontoteológico prioriza o um em relação ao
múltiplo, o eu em relação ao outro e o mesmo em relação à diferença”
(p.290-291). Esta definição de onteoteologia apresenta muitos pontos
de contato com aquilo que Heidegger compreende pelo conceito. No
entanto, na primeira frase aparece certa alteração, que traz enormes
consequências. Ontoteologia é compreendida como fundamentação
ontológica. Em decorrência disto, enfatiza-se que o problema está na
ontologia em si. O correto, em termos mais propriamente
heideggerianos, seria dizer que a ontoteologia oferece fundamentação
ôntica para um problema eminentemente ontológico (no sentido amplo
do termo).

329
o esquecimento da diferença ontológica tem por origem a
equiparação entre ser e Deus, e não entre Deus e ser. A
ordem dos termos aqui é importante e não se trata de
simples jogo de palavra. Nessa relação, o primeiro termo
acaba tendo precedência sobre o segundo.
Como isso se dá? Ao se dizer que toda identificação
entre Deus e ser é ontoteologia, o pressuposto é de que
Deus estaria além do ser e que, portanto, esta articulação
representaria restrição da noção de Deus. Se, por outro
lado, a elaboração da questão se coloca a partir do nexo
entre ser e Deus, entende-se que o ser está além de Deus.
Traduzindo em outros termos, o ser não é um ente, mesmo
que seja o mais elevado. Nesse segundo caso, o que se diz é
que ontologia é a redução do ser a um ente, ainda que o
mais elevado. Desse modo, a restrição da ontoteologia
residiria não no fato de tratar Deus a partir do ser, mas de
abordar o ser a partir de Deus (isto é, de um ente
supremo).
Essa inversão se radica na leitura que se fez da
diferença ontológica de Heidegger em terras francesas. A
fim de tornar esse ponto mais claro, tomemos um exemplo.
Vejamos como Jean-Luc Marion, filósofo francês que se
considera pós-moderno, trata dessa questão.
O texto no qual Marion mais desenvolve este tema
é Deus sem ser. O título não indica algo como a negação da
existência de Deus, mas assinala a tentativa de se pensar
Deus para além do ser, ou melhor, como ocupando lugar
mais originário do que o próprio ser. Como se pode notar
já pelo título da obra, vê-se como a noção de Deus assume
precedência em relação ao ser. Aliás, ele mesmo admite
isso ao dizer: “Sob o título Deus sem ser, estou tentando

330
apresentar a absoluta liberdade de Deus em relação a todas as
determinações, inclusive, antes de tudo, à condição básica que
faz todas as outras condições possíveis e mesmo necessárias –
para nós, humanos – o fato de ser” (Marion, 1991, p. XX).
Desse modo, em primeiro lugar, o pensamento
ontoteológico é caracterizado por pensar Deus a partir do
horizonte de conhecimento do ser humano. Nesse caso, a
manifestação divina é determinada pelas condições de
possibilidade estabelecidas pela subjetividade. Em Kant,
por exemplo, o possível não é determinado pelo objeto,
mas pelas condições formais do sujeito que constituem o
fenômeno.
Nem mesmo os reconhecidos críticos da
subjetividade moderna, como Nietzsche e Heidegger, estão
livres do veredito de Marion. No caso de Nietzsche, a
morte de Deus possui algo de positivo. É a certidão de
óbito de uma determinada concepção de Deus. No
entanto, o subjetivismo metafísico ainda estaria presente na
noção de vontade de poder que, inclusive, cria novos
deuses. No caso de Heidegger, observam-se dois
movimentos. Na primeira fase de sua produção, Deus é
tratado a partir do Dasein. Este ente, devido ao seu
primado ôntico-ontológico, é o único que pode se colocar
em questão, remetendo assim ao sentido do ser em geral.
Exagerando um pouco nos traços da filosofia da
consciência presentes em Ser e tempo, Marion entende que
Deus, em última instância, se coloca a partir do
Dasein,uma vez que ele se mostra como a porta de entrada
para as questões de ordem ontológica, percurso necessário
para se chegar ao problema de Deus (MARION, 1998, p.
77-107). Após a Kehre dos inícios dos anos 30, Heidegger

331
colocaria a ênfase no ser como condição para a
manifestação de Deus. Passagens como essa
demonstrariam a pertinência desta percepção: “É só a partir
da verdade do ser que se pode pensar a essência do sagrado. É só
a partir da essência do sagrado que se pode pensar a deidade. É
só à luz da essência da deidade que se pode pensar e dizer o que
se deve nomear na palavra ‘Deus’” (HEIDEGGER, 2008,
p.364).
Na tentativa de superar estes posicionamentos,
Marion parte da questão de Deus para chegar e ultrapassar
o ser. Assim, busca-se libertar não o ser da sua redução a
um ente, mas Deus de toda possível limitação. A
consequência desta leitura para a abordagem do
pensamento de Tillich é que sua afirmação de que Deus é
ser-em-si somente poderia soar como metafísica, visto que
o ser ocupa lugar determinante em relação a Deus.
Caso se adote como referência a noção de
ontoteologia crivada pelos franceses, o veredito está
correto. Mas, e se retornamos a Heidegger? Será que as
coisas não seriam um pouco diferentes?

2. Ser e Deus

O termo ontoteologia não foi neologismo


inventado por Heidegger. A palavra já constava na Crítica
da razão pura de Kant, referindo-se ao procedimento
adotado por vários de seus antecessores de se chegar à
noção de Deus valendo-se apenas ao recurso de conceitos,
sem recurso à experiência (Kant, 2001, A632/B660). Se
Heidegger não inventou o termo, é certo que ele conferiu
a ele um sentido bem mais amplo do que Kant. Ele

332
defende que na expressão onto-teo-logia se encontra a
unidade impensada da metafísica. “Essa essência [Wesen] da
metafísica permanece, entretanto, para o pensamento ainda
sempre o mais digno de ser pensado [Denkwürdigste],
enquanto ele não interrompe arbitrariamente e por isso de
maneira anti-historial, o diálogo com sua tradição que é
também destino [geschickhaftenÜberlieferung]”
(HEIDEGGER, 1971, p.83). A ontoteologia, dessa
maneira, é algo muito próximo da metafísica. Sendo mais
exato, a ontoteologia fornece certa estrutura para a
metafísica, este modo de pensamento guiado por
fundamentações últimas que vigorou desde os gregos até
Nietzsche. Mas, o que significa dizer que a metafísica é
essencialmente ontoteologia?
O embrião que deu origem à noção de ontoteologia
em Heidegger pode ser identificado ainda na década de
1920, momento em que desenvolvia suas interpretações
fenomenológicas dos textos de Aristóteles. Ainda que
nesse momento o eixo de sua reflexão seja a busca pela
experiência da vida fática, Heidegger não deixa de pontuar
certa tensão presente na concepção de filosofia primeira
aristotélica (de onde surgirá a noção de ontoteologia): ela é
simultaneamente ontologia e teologia. Elas possuem o
mesmo objeto: o ente na totalidade. No entanto, há
importante distinção (HEIDEGGER, 1992, p. 222)202. A
teologia aborda os entes a partir do que move sem ser
movido, isto é, aquilo que constitui o modo mais próprio e
elevado da presença destes entes. A ontologia, por sua vez,

202
Textualmente, ela afirma:“O tema da teologia é a presença mais
elevada e mais própria, e o tema da ontologia é aquilo que constitui a
presença em geral como tal”.(1992, p. 222).

333
considera o todo, mas da perspectiva de sua presença com
suas determinações.
O que, mais especificamente, compreende-se aqui
por ontologia? É importante observar que, nestes
contextos, Heidegger emprega o termo de maneira mais
restritiva. Ela não se mostra como a tarefa própria da
filosofia de considerar o ser dos entes, tarefa para a qual
Heidegger insistentemente convoca o pensamento.
Ontologia, no sentido restritivo, aborda os entes enquanto
entes valendo-se das categorias. Categoria é o interpelar
discursivamente um ente naquilo que ele é. No entanto,
para que se preserve a unidade do ser e considere o ὄν em
sua totalidade deve-se buscar, por meio da abstração,
aquilo que eles têm em comum, que se mostra como mais
universal, mas também mais determinado. Isto nos remete
para a oὐσία como entidade do ente. Assim, a ontologia
(na acepção mais restrita) se pergunta o que é um ente.
Neste modo de elaboração da questão, fica evidente como
se intenciona tratar “dos entes em relação ao ser, isto é, somente
com respeito ao que faz que um ente seja: ser” (Heidegger,
1975, p. 14). Este ser não se refere especificamente a um
ente determinado, mas ao que a totalidade dos entes possui
em comum.
A teologia, por sua vez, trata da causa do ser,
chegando a um ente que preenche mais propriamente os
requisitos do ser. No curso de 1926, Conceitos fundamentais
de filosofia antiga, Heidegger afirma que o ente mais
elevado é o ponto de chegada da reflexão que se inicia
perguntando pelas causas e princípios. Em primeiro lugar,
há a crítica Aristóteles por em nenhum momento suspeitar
da categoria de causalidade e em que medida ela é

334
apropriada para se pensar a questão do ser. Aristóteles
interpretava os filósofos precedentes a partir da busca pelo
fundamento dos entes. Neste movimento, associado à
noção de φύσις, chega ao ser como fundamento. No
entanto, não se suspeita do porquê do por quê? (Heidegger,
2004, apêndice 18). Este esquecimento se cristaliza nos
escritos aristotélicos com as noções de δύναµιςe ἐνέργεια,
que se ligam com o movimento. Mas, não se trata de
qualquer tipo de movimento, mas daquele que tem em si
mesmo seu próprio τέλοϛ (fim). O ente que se configura
desse modo é pura presença, pura ἐνέργειαe, portanto,
imutável e eterno. Seu modo de ser é a pura contemplação.
Enquanto qualquer movimento se completa quando atinge
seu τέλοϛ, a νοεῖν é movimento que não cessa, sendo
atividade perfeita em si mesma. Sendo perfeita, ela é aquilo
que de modo mais próprio e genuíno é e, claramente, ela se
dirige a si mesma. Em segundo lugar, uma vez que para o
estagirita atualidade é anterior à possibilidade, a filosofia
primeira pressupõe um ente que é ser no seu sentido mais
pleno. Isso significa dizer que o ser é tratado a partir deste
ente mais elevado, tomando-o como paradigma.
Enfim, o que é decisivo aqui? Nas palavras de
Heidegger, “a questão decisiva é como o problema do ser é
necessariamente direcionado para o ente mais próprio
[eigentlich]” (Heidegger, 2004, p.329-330). A ontologia
encontra sua meta final no ente que possui ser de modo
mais perfeito, sendo presença [Anwesenheit],
independente e contínua a partir de si mesmo. Isto é, pura
ἐνέργεια (Heidegger, 2004, p.178). A pergunta pelo ser
acaba por se transformar na abordagem do ente que tem ser
no sentido mais próprio e no grau mais elevado.

335
A noção de Deus que surge dessa investigação nada
tem a ver com a divindade religiosa (Heidegger, 2004, p.
178 e 330). Deus não entra na filosofia a partir de
determinada experiência de cunho religioso, num quadro
de referências marcado por conteúdos desta natureza. É a
atenção a este aspecto não-divino desta concepção de Deus
quer permitirá Heidegger, algumas décadas mais tarde,
afirmar que diante de deste Deus não pode o homem
dançar, celebrar, oferecer sacrifícios, etc (Heidegger, 1971,
p.99). Ele não é o Deus da religião, mas o Deus da
ontologia, sendo destituído de sua divindade.
A partir do final dos anos 20 e início da década de
30, observa-se três movimentos concomitantes na
experiência intelectual heideggeriana. Ele se dedica à
leitura de filósofos modernos, principalmente do idealismo
alemão. Neste momento, Hegel se torna exemplo
paradigmático da unidade ontoteológica da metafísica.
Esta perspectiva persiste na produção posterior de
Heidegger. Este encontro permite com que conceba não
mais a tensão entre teologia e ontologia, mas se enfatize a
unidade. É justamente esta unidade que dá origem à
reapropriação feita da expressão kantiana ontoteologia em
1930, até então ausente dos textos heideggerianos. Por fim,
a perspectiva também se altera. Não se tem em vista a
possibilidade de uma ontologia desvinculada da teologia,
mas o direcionamento para a superação da metafísica dá
seus primeiros sinais.
Ainda em 1926, no curso sobre filosofia antiga,
numa clara referência ao seu projeto de constituição de
uma ontologia fundamental, Heidegger indaga: “poderia
haver uma ontologia puramente construída, como era, sem uma

336
orientação para o ente preeminente, seja ele pensado como
primeiro movente, o primeiro céu ou alguma outra coisa?”
(Heidegger, 2004, p. 329-330). Uma vez que a tensão
entre teologia e ontologia é enfatizada neste momento,
Heidegger tenta vislumbrar a possibilidade de uma
ontologia que não recaia, necessariamente, numa teologia.
Mas, já no curso de 1930 sobre a Fenomenologia do
Espírito de Hegel, no qual a expressão ontoteologia aparece
pela primeira vez em seus escritos, a impossibilidade desta
tarefa fica evidente. Ao início, Heidegger afirma que: “Para
Hegel, teologia é inseparável da pergunta pelo Ser dos entes,
pois Teologia especulativa é a ontologia do ensrealissimum, a
mais alta atualidade como tal. Para Hegel este ente é
inseparável da questão pelo ser dos entes” (Heidegger, 1997, p.
03). Nesta passagem, pode-se notar, ainda que de modo
embrionário, como Heidegger passa a conceber a unidade
entre ontologia e teologia. A chave para se chegar ao
estabelecimento desta unidade está em se compreender
como a ontologia aponta para o fundamento do ser,
compreendido como um ente capaz de fundamentar de
modo causal o ser. Assim, a ontologia se pergunta pelo ser
dos entes, enquanto que a teologia se questionava pela
causa do ser. Observa-se movimento complementar: parte-
se dos entes, perguntado-se pelo seu ser. A resposta final a
esta questão é encontrada na afirmação do ente supremo,
tido como causa do ser. Não é objetivo deste texto,
desenvolver de maneira pormenorizada estes pontos (cf.
PIEPER, 2013). Mas, cabe dizer que Heidegger concebe
Hegel como completude positiva da ontoteologia, uma vez
que ontologia e teologia se articulam de maneira
logicamente ordenada no pensador do absoluto.

337
Em poucas palavras, o que interessa dessa discussão
em torno da noção de ontoteologia? Ela explicita a nossa
tese, qual seja: para Heidegger, o problema central do
termo é a redução do ser a um ente. Pela argumentação
acima, isso se torna bastante claro. Desse modo, percebe-se
como a recepção francesa, aqui identificada em Marion, faz
uma inversão, ao considerar que ontoteologia é toda
reflexão ontológica sobre Deus. Enfim, por estas breves
considerações sobre a expressão ontoteologia no
pensamento de Heidegger, fica evidente que o conceito se
estrutura não em torno de Deus. O centro da crítica de
Heidegger se localiza na associação feita entre ser e Deus,
de modo que sua filosofia se organiza a partir da pergunta
pelo ser.
Essa interpretação do pensamento de Heidegger
em diálogo com Marion, entretanto, parece deixar algumas
lacunas em aberto. Como por exemplo, interpretar a
seguinte passagem de Heidegger (que inclusive serve de
epígrafe para o livro de Marion): “Se eu ainda fosse escrever
uma teologia, para o que às vezes me sinto estimulado, nela não
poderia ocorrer a palavra ‘ser’ – a fé não tem necessidade do
pensamento do ser” (Heidegger, 2005, p. 436). A leitura
isolada desta afirmação poderia dar a compreender que a
leitura de Marion é pertinente, no sentido que o problema
de Heidegger seria a conjunção entre Deus e ser. Tanto é
assim que, ao contrário de Tillich, ele não usaria a palavra
ser em sua teologia. No entanto, para que se interprete
adequadamente esta afirmação de Heidegger, é preciso
atenção a dois elementos.
Em primeiro lugar, a continuidade da leitura do
texto no qual Heidegger faz esta afirmação deixa suas

338
intenções mais claras. Na sequência, diz: “Creio que o ser
jamais poderá ser pensado como fundamento e essência de Deus,
mas que, no entanto, a experiência de Deus e de seu caráter
revelado (na medida em que encontra o homem), acontece no
âmbito do ser, o que jamais significa que o ser possa valer como
possível predicado de Deus”. Novamente, a inquisição central
de Heidegger não está no fato de vincular Deus e ser. Uma
vez que o ser se constitui como horizonte de possibilidade
da revelação de Deus, ele não pode ser reduzido ao estatuto
de predicado divino. Deste modo, ao invés de colocar nossa
interpretação em apuros, a citação acima apenas a
confirma. Se o ser é o horizonte, ele tem precedência em
relação à questão de Deus.
Em segundo lugar, é preciso estar atento às
acepções de teologia nos escritos de Heidegger. Pode-se
encontrar três sentidos. No Heidegger tardio, de modo
menos enfático, teologia é o dizer mítico-poético dos
deuses (Heidegger, 1971, p.82-83)203. Na conferência de
1927, Fenomenologia e teologia, a teologia é ciência ôntica
autônoma que busca promover o auto-esclarecimento da
existência determinada pela fé. Ao compreender a teologia
enquanto ciência ôntica, Heidegger a aproxima mais da
química ou da física do que da filosofia, reconhecendo-a
como ciência positiva. A distância em relação à filosofia
está no fato de que ela lida com a questão do ser, isto é,
move-se no âmbito ontológico (em sentido amplo),
anterior a qualquer ciência positiva. Já a teologia, como as
demais ciências, lida com certa região de entes previamente

203
“θεόλογος, θεολογία significa na Antiguidade o dizer mítico-
poético [mythisch-dichtende] dos deuses, sem referência a um
ensinamento de fé e a uma doutrina eclesial”.

339
delimitada. Esta região de entes não abrange Deus, mas a
existência na fé. A teologia, assim, trata do que significa o
existir na fé. Neste sentido, ela é ciência autônoma. No
entanto, ainda se move no horizonte aberto pela filosofia,
uma vez que ao lidar com a existência anterior à fé,
inclusive para contrapô-la à existência na fé, certa
compreensão ontológica do Dasein se faz necessária (sobre
essa acepção, cf. PIEPER, 2014).
Por fim, há a compreensão de teologia enquanto ontologia.
Neste caso, teologia não se mostra atrelada à determinada
confissão de fé. Antes, é entendida no sentido aristotélico,
que trata do ente supremo a partir de questões de ordem
ontológica. Não há, neste caso, nenhum tipo de
questionamento a partir da fé, mas o problema é
propriamente ontológico e filosófico.
No modo como Marion interpreta a afirmação de
Heidegger citada acima, não se faz a distinção entre estas
concepções de teologia, com suas abordagens específicas.
Marion não se dá conta de que, na passagem citada,
Heidegger está reafirmando o que já havia dito em 1927:
teologia, enquanto ciência positiva, move-se no horizonte
já aberto pelo ser, ocupando-se de uma região específica de
entes. Deste modo, ela não tem necessidade da filosofia ou
mesmo a palavra ser não precisa aparecer. Este sentido de
teologia é certamente distinto daquele que compreende
como teológica qualquer reflexão sobre o ser do
fundamento. Assim, para legitimar sua interpretação da
ontoteologia em Heidegger, Marion ignora esta distinção
do emprego do termo teologia.
Em suma, esta afirmação de Heidegger não dá
sustentação à interpretação de Marion. Há certo

340
deslocamento da questão. O problema para Heidegger é a
compreensão do ser como mero atributo de Deus,
destituindo-o de seu lugar, como horizonte a partir de
onde a questão de Deus é possível. Em segundo lugar,
entre os vários sentidos do termo teologia, há espaço
também para um significado mais ligado à fé e não
estritamente ontológico, o que justificaria o não-emprego
da palavra ser. No entanto, este não é o único (e talvez,
nem o mais importante) emprego do vocábulo teologia no
pensamento de Heidegger.
O que se pretendeu com essa discussão inicial? É
possível notar como a noção de ontoteologia na sua
recepção francesa promove certa inversão da compreensão
de Heidegger ao colocar a precedência e a centralidade em
Deus. Já em Heidegger, o problema central não é a
identificação entre Deus com ser, mas do ser com Deus
(um ente).
Posto isto, cabe perguntar: quais as consequências
para se avaliar a teologia de Tillich partindo de um solo
mais heideggeriano?

3. Ser e Deus em Tillich

A experiência intelectual de Tillich possui três


momentos que se refletem na sua concepção de Deus.
Inicialmente, bastante influenciado pelo idealismo alemão,
entende Deus como sinônimo de Absoluto (ALBRECHT,
SCHÜSSLER, 1993, p. 27). No entanto, diante das
críticas sofridas, inclusive por alguns de seus professores
(como Martin Kähler), Tillich acaba por abandoná-lo. A
partir do fim da primeira guerra, Tillich volta-se para a

341
elaboração de uma teoria do sentido204. O incondicionado
assume lugar do Absoluto como verbete privilegiado. Esta
fase de sua produção intelectual é importante porque nela
Tillich elabora muitos conceitos que serão retomados para
pensar sua teologia da cultura. A percepção de que a
modernidade se perdia na fragmentação em diversas esferas
autônomas e a necessidade de superação desta
fragmentação está presente no conceito de religião não
como uma esfera ao lado de outras, mas como substância
das formas finitas da cultura. Uma vez que a toda ação
espiritual do ser humano é uma ação de sentido, ela deve
remeter a um sentido último, isto é, ao incondicionado.
Este incondicionado, no entanto, ao mesmo tempo em que
oferece o fundamento de sentido a partir de onde toda ação
significativa é possível, é também abismo de sentido. Em
poucas palavras, o incondicionado é fundamento e abismo,
colocando-se de maneira próxima a toda ação cultural, mas
também preservando sua transcendência em relação a eles.
Por fim, no período em que emigra para os Estados
Unidos, estas noções assumem tons mais claramente
ontológicos205.

204
Sobre as vantagens do termo Incondicional em relação a Absoluto,
afirma Tillich: “O termo ‘absoluto’ significa literalmente ‘sem
relação’; mas quando tomado tradicionalmente, conota o princípio
idealista e autodesenvolvido. Mas esses dois sentidos são evitados no
conceito ‘Incondicional’, pois ele implica na exigência incondicional
aos que têm alguma consciência de algo incondicional, e não pode ser
interpretado como o princípio da dedução racional”. (TILLICH, 2009,
p. 62).
205
Com isso, não estou endossando uma interpretação corrente, de que
Tillich teria passado por certa viragem ontológica. A teoria do sentido
é, de certa maneira, espécie de ontologia, como observa o próprio
Tilllich. Segundo ele, “As análises de sentido são análises do ser”
(TILLICH, 1973, p.58), portanto, ontologia. No entanto, é inegável

342
No período tardio da produção de Tillich, podemos
encontrar alguns termos recorrentes para a definição de
Deus. Ele é concebido como incondicionado, Deus além
de Deus, fundamento do ser, ser-em-si e preocupação
última. Estes modos de se aludir a Deus podem nos
fornecer um quadro da compreensão tillichiana, ainda que
por vezes possam se encontradas outras referências que, no
limite, são sinônimos ou explicitação de algumas destas
definições citadas. Apesar de variadas, todas elas
compartilham de um pressuposto comum: a preservação da
auto-transcendência de Deus, sem que ele se torne
irrelevante para o ser humano. Para tanto, o ponto
fundamental de todas estas definições está em que Deus, ao
ser relacionado com o ser (i.e. do ponto de vista
ontológico), não pode ser confundido com um ente, como
é claramente atestado quando, na sua Teologia sistemática,
afirma que: “É tão ateísta afirmar a existência de Deus quanto
negá-la. Deus é o ser-em-si, não um ente” (Tillich, 2005, p.
243)206. Esta afirmação evidencia que ele se movimenta no
âmbito da diferença ontológica apontada por Heidegger.
Diferentemente de uma compreensão mais corrente da
religião, Deus não pode ser tido com um ente que, por sua
livre vontade, criou o mundo e também o governa (Tillich,

que no período americano a linguagem existencialista e as tonalidades


ontológicas assumem visibilidade mais clara.
206
Neste caso, a tradução aqui empregada foi modificada. No original,
Tillich diz: “God is a being-itself, not a being”. Em inglês não se tem a
palavra ente, mas apenas Being. Desse modo, Being (com maiúsculo)
tem sido utilizado para se referir a ser e being (grafado com
minúsculo) para ente. Neste sentido, parece-me bastante plausível que
se relativize a afirmação de Cláudio Carvalhaes de que, “A ontologia
de Tillich está alicerçada em conceitos metafísicos e teístas”
(CARVALHAES, 2003, p.03).

343
2005, p. 301-302). Ele, em sua auto-transcendência, é mais
do que isso.
Para que os paralelos entre os dois pensadores,
Heidegger e Tillich, sejam corretamente compreendidos é
preciso estar atento a importante distinção terminológica.
Nos escritos de Heidegger, quando referido à tradição,
Deus é tratado como um ente acima dos outros207. Por esta
razão, ele é insistente no sentido de dizer que a pergunta
por Deus deve se subordinar à divindade, ao sagrado e, por
fim, à questão pelo ser. É nesta direção que se deve
compreender que “o ser não é Deus” (Heidegger, 2005, p.
436)208. Em poucas palavras, Heidegger nunca identificaria
ser e Deus porque, em sua acepção, Deus somente pode ser
tido como um ente.
Já no caso de Tillich, que adota terminologia
consagrada pela tradição, Deus é tomado como sinônimo
de ser. Para ele, afirmar Deus como separado do ser
significaria assumir dois absolutos, um religioso e o outro
filosófico. Isso representa uma contradição insuperável. No
limite, a própria noção de absoluto é negada, visto que não
podem haver dois “absolutos”, mas somente um. Neste

207
É importante que se ressalte que Deus possui esta conotação em
Heidegger na sua leitura da metafísica. Uma vez, que ele mesmo nas
Beiträgeintitula a fuga VII com o título A passagem do último deus.
Este último deus, segundo nos alerta o próprio Heidegger, é totalmente
contrário ao Deus cristianismo e todos os que vieram antes. Foge aos
objetivos deste ensaio discutir este imbricado aspecto da filosofia de
Heidegger. Mas, ele é ilustrativo de outro sentido do emprego do
termo deus em seus escritos. (HEIDEGGER, 1989, p.405 – 420).
208
Em outrocontexto, afirma que “Com esta palavra, se está pensando
o que, para maior claridade, se deveria chamar o transcendente. O
transcendente é o ente supra-sensível. Esse é o ente supremo no
sentido da causa primeira de todo ente. E imagina-se que essa causa
primeira seja Deus” (HEIDEGGER, 2008, p.362).

344
sentido, “Os absolutos filosófico e religioso, Deus e esse não
podem estar separados!” (Tillich, 2009, p. 49). Uma vez que
Deus é fundamento e abismo e não pode ser reduzido a um
ente, ele promove dilatação do conceito de Deus.
Heidegger não fez este mesmo movimento por não estar
preocupado, de maneira central, com questões teológicas.
Tillich, por seu turno, é motivado por indagações deste
gênero, o que explica sua percepção de divindade.
É importante a atenção a isso para nossa
argumentação. Não se trata de um salto do ser para Deus.
O que acontece no caso de Tillich é o emprego de uma
noção mais ampla de Deus do que em Heidegger. De posse
desse pressuposto, analisemos a noção de Deus (ser) em
Tillich.

O incondicionado
Ao contrário de Heidegger que, com grande
solenidade, afirma que toda a tradição filosófica de Platão a
Nietzsche se moveu no âmbito do esquecimento da
diferença ontológica (Heidegger, 2008, p. 390), Tillich
mostra como seu posicionamento não representa nenhuma
grande novidade, mas é encontrado na tradição cristã. O
texto intitulado Dois tipos de filosofia da religião explora dois
meios de se tratar da questão de Deus, denominados de
ontológico e cosmológico. A diferença fundamental entre
ambos reside no fato de que, no primeiro caso, Deus é
colocado no início, como prius, anterior à divisão entre
sujeito e objeto, tido como pressuposto de tudo aquilo que
é. Por outro lado, o argumento cosmológico, que emerge
com Tomás de Aquino, coloca o ser humano fora do

345
absoluto, de modo que Deus é algo que deve ser alcançado
por meio da mediação do mundo através da categoria de
causalidade. Nesse caso, Deus não é pressuposto, mas é um
ente a ser alcançado.
No âmbito da filosofia da religião de cunho
ontológico, Deus não pode ser tido como mero ente
(Tillich, 2009, p. 51)209, até mesmo porque ele se posiciona
anteriormente em relação à cisão sujeito e objeto. Isto é,
todos os entes somente são porque estão no ser-em-si,
cabendo apenas explicitar como se dá esta relação entre os
entes e o ser-em-si. Este ponto é importante para a
compreensão de vários argumentos de Tillich. Segundo ele,
a pergunta do ser humano pelo incondicionado não é mero
fruto do acaso ou consequência da constatação de sua
finitude. Antes, este anseio humano de retorno ao seu
fundamento é explicado pelo fato de que o ser humano está
distante dele, mas não totalmente separado.
Tillich encontra expressões desta compreensão em
vários medievais. Agostinho, por exemplo, afirma que a
verdade é sempre pressuposta no dizer filosófico. Não se
pode negar a verdade, pois ao negá-la estaríamos ainda
afirmando-a, pois pretende-se dizer algo verdadeiro. Uma
vez que Deus é a verdade, ele está pressuposto em toda a
argumentação. Além de Agostinho, Tillich cita Alexandre
de Hales, Boaventura e Mateus de Aquasparta que
compartilham esta perspectiva. É interessante observar
alguns paralelos com a noção de ser em Heidegger, que na

209
Por isso, pode Tillich afirmar: “Este ser (que não é um ente) é pura
atualização, e, portanto, divino” (2009, p.51). A tradução foi,
novamente, modificada, uma vez que Being (ser) aqui é grafado em
maiúsculo a fim de o diferenciar de being (ente), grafado em
minúsculo.

346
juventude se dedicou ao estudo de Duns Scotus. Para
Heidegger, o ser é a luz que permite com que os entes
apareçam. E por meio dele que se dá (Esgibt) a clareira,
onde o encontro entre sujeito e objeto pode acontecer. A
partir de uma terminologia mais kantiana, Heidegger
também pontua esta anterioridade do ser em relação aos
entes (Heidegger, 1975, p. 461).
Segundo Tillich, rompendo com esta compreensão,
a filosofia da religião cosmológica situa o ser humano fora
da verdade. Então, caberia a ele, por meio de mediações,
chegar a Deus. Através da análise dos nexos causais, se é
remetido à causalidade primeira, um ente que seria a causa
incausada de tudo que tem ser. No entanto, se o
conhecimento guiado apenas pela razão é capaz de chegar a
este primeiro ente, ele não pode dizer quem ele é.
Portanto, a filosofia precisa ser suplantada pela revelação,
que deve ser reconhecida em sua autoridade. Aqui, Deus
não é o priusque se coloca na base, mas um ente que se
situa em relação de exterioridade com a consciência. Ele é
um objeto que deve ser alcançado pela razão. Não há
consciência ontológica imediata do incondicionado, mas
este objeto deve ser atingidopor meio da análise da cadeia
de razões, que conduzem a um ente supremo. Com essa
modificação, Deus é transformado num ente que deve ser
alvo de busca por parte de um sujeito. Nas palavras de
Tilllich, “Deus deixa de ser ser-em-si-mesmo e transforma-se
num ente particular que deve ser conhecido” (Tillich, 2009,
p.56).
É a partir deste segundo tipo de filosofia da
religião, que identifica Deus a um ente, que argumentos
que visem demonstrar ou negar a existência de Deus

347
podem ser elaborados. Uma vez que a consciência do
incondicionado não é assumida de início, há de se buscar
provas e demonstrações para confirmar ou negar a
existência deste ente.
Se “’o incondicionado’ (...) não significa um ente, nem o
mais alto, nem mesmo Deus” (Tillich, 2009, p. 62), mas se
mostra como aquilo que se assenta como condição de
possibilidade para qualquer conhecimento, o ateísmo perde
sua significação mais ampla. Em suas palavras, “Ateísmo
genuíno não é humanamente possível, uma vez que Deus está
mais próximo do ser humano que ele mesmo” (TILLICH,
1955, p. 130). Para compreender essa afirmação de Tillich,
é preciso considerar justamente que Deus não pode ser
reduzido a um ente. Se fosse o contrário, Deus é um ente,
o ateísmo tem razão. Mas, se Deus é tido como o
incondicionado, anterior à cisão sujeito e objeto, não pode
haver posições ateístas stricto sensu. Em outros termos,
ateísmo deve ser entendido como negação da identificação
do incondicionado com determinado ente, mas não a
negação do incondicionado como tal, uma vez que toda
relação entre sujeito e objeto já o pressupõe210, de modo
que mesmo a negação de Deus (como um ente) somente
pode ser feita a partir de Deus (como prius).
210
Neste sentido, Tillich destaca a teoria da religião como projeção de
Feuerbach. Segundo ele, a explicação da religião como projeção é
conhecida desde há muito tempo. O caráter distintivo do século XIX
está em que “Feuerbach viu muito melhor do que muita gente hoje em
dia, aparentemente educada, que se temos uma teoria da projeção,
precisamos explicar porque as imagens são projetadas precisamente
nesta tela, e por que o resultado tem de ser algo infinito, a saber, o
divino, o incondicional, o absoluto (...) só se houver certa consciência
de algo incondicional ou infinito dentro nós é que entenderemos por
que as imagens projetadas precisam ser imagens divinas ou símbolos
divinos” (TILLICH, 2004, p.155).

348
Também, por esta mesma razão, não faz sentido
dizer que Deus existe. Entes existem. Uma pedra, uma
árvore, uma mesa existem. Mas, em relação àquilo que se
coloca como anterior à distinção entre sujeito/objeto,
essência/ existência não faz sentido dizer que exista. Pode-
se, no máximo, dizer que Deus é. Penso que Tillich não
seria hesitante em utilizar termo empregado por Heidegger
para sair do impasse que esta formulação coloca. Heidegger
reconhece que ao se afirmar que “o ser é”, corre-se o risco
de se apagar a diferença ontológica (uma vez que esta
formulação já entifica o ser). Diante destas dificuldades,
Heidegger afirmar que “o ser se dá” (Heidegger, 1979,
p.81). Com isso, evita-se a possível tautologia e as más-
compreensões que a formulação “o ser é” poderiam dar
ensejo. O espírito do que Tillich diz sobre esta questão
parece-me similar. Não se trata de reduzir Deus a um ente,
mas de que ele se dá, acontece.
Enfim, o que a noção de Deus como
incondicionado nos ensina? Com ela, Tillich aponta Deus
como condição de possibilidade de tudo o que é. Isto
significa dizer que Deus não é um ente que se coloca numa
posição de objeto em relação ao sujeito, como se estivesse
condicionado por ele. Antes, é aquilo mesmo que propicia
a separação entre sujeito e objeto. Neste caso, é bastante
evidente que Tillich se aproxima da noção heideggeriana
de diferença ontológica, e avança no sentido de indicar
como ela aparece na tradição medieval, tão fortemente
criticada pelo filósofo da floresta negra. Uma das críticas de
Tillich à redução de Deus a um ente está em inseri-lo
numa relação sujeito e objeto, o que, inclusive, permite o

349
aparecimento do ateísmo, entendido como negação de
determinada compreensão ôntica de Deus.

Deus acima de Deus


Isso é ainda mais claramente reforçado na noção,
com colorações neoplatônicas e místicas, de Deus acima de
Deus. Segundo Tillich, a noção teísta de Deus o concebe
como um ente ao lado dos demais. Esse entendimento tem
seu lugar na vivência religiosa por atender à necessidade de
concretude. No entanto, para a reflexão teórica, a noção
teísta de Deus representa apenas um nome, sendo que
Deus mesmo está além de todos os entes. Em termos mais
ontológicos, Deus como ser-em-si se situa para além do
nome Deus, afinal somente um Deus que é mais do que
um ente pode responder às angústias do ser humano, que
se sente ameaçado pelo não-ser. Nas palavras de Tillich, “O
Deus do teísmo é um Deus limitado pelas concepções finitas do
homem” (Tillich, 1965, p.51). Portanto, para preservar a
divindade de Deus é preciso que ele seja reconhecido não
somente como um ente, mas como aquilo que se situa para
além de todo ente. Por isso mesmo, a expressão “Deus
acima de Deus” é amplamente empregada por Tillich em
seu texto mais existencial, A coragem de Ser211, de modo que

211
Na Teologia sistemática, afirma algo sobre o Deus acima do Deus
do teísmo. “Minhas palavras foram equivocadamente interpretadas
como uma afirmação dogmática de caráter panteísta ou místico. Antes
de tudo, não se trata de uma afirmação dogmática, mas apologética,
que leva a sério a dúvida experimentada por muita gente. Ela oferece
a coragem de auto-afirmação mesmo no estado extremo da dúvida
radical. Neste estado, desparecem tanto o Deus da linguagem
religiosa como o da linguagem teológica. Mas algo permanece, a
saber, a seriedade daquela dúvida na qual se afirma um sentido em
meio à ausência de sentido”. (TILLICH, 2005, p. 308).

350
“A fé absoluta e suas consequências, a coragem que toma sobre si
a dúvida radical, a dúvida sobre Deus, transcende a ideia teísta
de Deus” (Tillich, 2000, p.176).

Preocupação última
Deus é também o nome que designa aquilo que
preocupa o ser humano de maneira últimapor ser a resposta
à finitude. Nesse caso, insere-se certa tensão na noção de
Deus. Por um lado, ele somente pode se constituir alvo da
preocupação última do ser humano por transcender tudo
aquilo que é finito e concreto. Se Deus se constitui como
um ente ao lado ou acima dos outros, ele não é resposta
para a angústia decorrente da finitude. Como ente, Deus
seria, de algum modo, também finito e, portanto, não é
resposta plausível ao ser humano angustiado pela ameaça
do não-ser. Nesse caso, somente um Deus que é mais do
que um ente, que não se constitui como um objeto para um
sujeito, pode se revelar como resposta para a angústia que
aflige os seres humanos.
Ao mesmo tempo, entretanto, algo que se coloca de
maneira por demais abstrata corre o risco de se tornar tão
etéreo e distante, não podendo se constituir como aquilo
que preocupa de maneira última. Nesse ponto, percebe-se a
sensibilidade de Tillich ao tratar da religião. O ser humano
se preocupa com algo que lhe é próximo, que possui boa
dose de concretude. Deste modo, instaura-se uma “tensão
interna na ideia de Deus” (Tillich, 2009, p.219).
Essa tensão é considerada na descrição
fenomenológica que ele desenvolve sobre a experiência

351
humana de Deus na Teologia sistemática212. O eixo desta
descrição é justamente mostrar como a história das
religiões pode ser compreendida a partir de duas linhas de
força. Por um lado, há a tentativa de tornar a divindade
palpável para aproximá-la da realidade humana, que acaba
por desembocar no politeísmo. Em reação ao politeísmo,
ergue-se a crítica que busca resgatar a transcendência de
Deus. Na concepção de Tillich, a “síntese” do embate entre
estas duas forças é encontrada na doutrina da trindade, que
preserva o elemento de concretude do politeísmo,
salvaguardando a autotranscedência divina.
Neste ponto, Tillich consegue aproximar Atenas e
Jerusalém. A aparente tensão entre o caráter abstrato da
ontologia (Deus dos filósofos) e o personalismo do Deus
bíblico (Deus de Abraão, Isaque e Jacó) é conduzida para
uma mediação, de modo que a ambivalência entre o
concreto e o que é último na divindade é denominada de
sagrado. A concepção judaica de Deus como um ente não é
simplesmente rechaçada (até porque não cabe à teologia
rejeitar símbolos, mas os interpretar), mas deve ser tratada
como símbolo do fundamento do ser (Tillich, 2009, p.97-
112; 1996, p. 30-38; 1965, p. 66-69; 87-92; 95-99). Ao
ressaltar o caráter simbólico da linguagem religiosa, Tillich
resgata a importância dos mitos e da compreensão mais
concreta de Deus, sem cair em posições antropomórficas,
que eliminariam a autotranscendência de Deus, afinal, “O
último só pode tornar-se efetivo através do concreto, através
daquilo que é preliminar e transitório” (Tillich, 2009, p. 226).

212
Os contornos desta descrição já estavam estabelecidos na década de
20, quando Tillich contrapõe a postura sacramentalista à teocrática. Cf.
TILLICH, 1973, p.78ss.

352
De certo modo, este posicionamento de Tillich reflete a
tensão presente no texto bíblico. De um lado, o nome de
Javé não pode ser pronunciado, destacando sua completa
transcendência. Não obstante, no texto bíblico abundam
também as descrições antropomórficas da divindade.

Deus como fundamento do ser


Heidegger, corretamente, é tido como crítico de
fundamentações últimas. Como observado, o tratamento
da questão do ser a partir da busca por causas e princípios
havia conduzido Aristóteles a um ente que seria causa e,
portanto, fundamento do ser. Neste sentido, ontoteologia
envolve a crítica do emprego da noção de causalidade para
o modo de condução da questão fundamental da filosofia, a
pergunta pelo ser. Quando se pressupõe esta categoria, há
de se chegar a um ente como resposta para a questão
ontológica, o que leva Heidegger a reelaborar por diversas
vezes a questão fundamental da filosofia213. Neste ponto,
algumas afirmações de Tillich podem indicar certa recaída
ontoteológica, pois ao desenvolver o modo de relação do
ser-em-si com os entes, recorre às categorias metafísicas de
causalidade e de substância.
Como ser finito, o ser humano emprega categorias
próprias da finitude. Nessa condição, ele se vale das noções

213
Heidegger elabora o que julga a ser a questão fundamental da
filosofia de, ao menos, três modos distintos. 1) Pergunta pelo sentido
do ser; 2)A verdade do ser; 3) Por que o ser e não antes o nada?; 4)
Como o ser se essencia? (Wiewest das Seyn). Estas alterações e
abandonos de algumas maneiras de elaboração da questão apontam
para mudanças em sua filosofia, que foge ao escopo deste artigo
analisar.

353
de substância e de causalidade para explicitar a relação
entre ser-em-si e os entes finitos. Nas palavras de Tilllich,
“Podemos interpretar o termo ‘fundamento’ de ambas as formas,
como a causa dos seres finitos e como sua substância” (Tillich,
2005, p.244). No entanto, Tillich aponta certas razões para
a desconfiança do cristianismo em relação à categoria de
substância. Ela aparece em Espinosa, por exemplo, ao
apontar Deus como única substância. Mas, essa percepção
não poderia ser adotada pelo cristianismo, afinal ela acaba
por negar a liberdade dos seres finitos. Por essa razão, no
interior da tradição cristã, enfatizou-se a categoria da
causalidade. Acreditou-se que esta solução seria capaz de
preservar a dependência do mundo em relação a Deus,
mantendo a distância entre criador e criaturas.
Mas, o que se entende aqui por causalidade? Como
ela é empregada? Em primeiro lugar, Tillich inverte o
modo tradicional de consideração da causalidade. Como
categoria da finitude, a causalidade traz em seu bojo a
ambiguidade do ser e do não-ser. Positivamente, buscar a
causa é perseguir o poder de ser de uma coisa. Mas isso já
aponta para o aspecto negativo: se alguma coisa tem uma
causa, significa que ela não pode chegar à existência por si
mesma, estando na dependência de algo que lhe é anterior,
de modo que “A causalidade expressa poderosamente o abismo
do não-ser em todas as coisas” (Tillich, 2005, p. 204). Ela não
chega à presença plena de um fundamento último, mas ao
abismo.
Em segundo lugar, a pergunta pela causa nos lança
num retorno infinito, que nem mesmo o ente supremo
pode estancar, a não ser de maneira autoritária ou negando
a própria categoria de causalidade. Deus como ente não

354
poderia ser, de maneira efetiva, o ponto final da regressão
infinita, uma vez que é plenamente possível se perguntar se
este ente supremo não teria uma causa que lhe antecede.
Esta dúvida é possível porque, sendo Deus um ente ao lado
de outros, ele acaba por pertencer ao ente na totalidade.
Ele se configura apenas como mais um nexo causal na
cadeia das razões. Mesmo que seja considerado ente mais
importante e supremo, ainda não deixa de se constituir
como parte desta totalidade. Deus é, deste modo, parte da
estrutura do todo, de modo que toda afirmação acaba por
submetê-lo ao ente na totalidade. “Ele é visto como um eu
que possui um mundo, como um ego que se relaciona a um
pensamento, como uma causa que é separada de seu efeito, como
tendo um espaço definido e um tempo sem fim. Ele é um ente,
não ser-em-si” (Tillich, 2000, p. 184). Algo que é parte
constituinte da estrutura do ser não pode, por sua vez, ser
reconhecido como o fundamento dessa mesma estrutura.
Além do que, se ele fosse parte da estrutura do ser, teria de
se conformar, invariavelmente, como um ente. Nesse
sentido, a compreensão de Deus como um ente retira dele
a capacidade de fundamentação. Diante do tipo de relação
que a causalidade imprime aos entes, dependendo do
ângulo de abordagem, algo que era considerado causa em
dado momento pode se tornar em efeito quando analisado
à luz de outro nexo causal. Por este motivo, “Para libertar a
causa divina da série de causas e efeitos, ela é chamada de causa
primeira, o princípio absoluto. Isto significa que a categoria da
causalidade está sendo negada ao mesmo tempo em que é usada.
Em outras palavras, usa-se a causalidade não como uma
categoria, e sim como um símbolo” (Tillich, 2005, p. 244 –
grifo nosso).

355
Assim, a categoria da causalidade não deve ser
tomada no sentido conceitual, mas como meio de
expressão simbólica (isto é, a partir do ponto de vista do ser
finito) da relação entre ser-em-si e entes. Em outro
contexto, Tillich utiliza uma construção que parece ressoar
a descrição heideggeriana da relação entre ser e ente. No
prefácio ao segundo volume da Teologia Sistemática, afirma
que, “Deus não está ao lado das coisas, nem ‘acima’ delas, mas
está mais próximo das coisas do que elas de si mesmas. Ele é o
seu fundamento criativo, aqui e agora, sempre e em todo lugar”
(Tilllich, 2005, p. 303). No entanto, mesmo sendo o mais
próximo, ele é o mais distante, uma vez que o ser-em-si é
auto-transcendência. Em outros termos, Deus como
fundamento criativo dos entes mantém relação de
proximidade com eles, uma vez que os entes não podem ser
sem ele. Por outro lado, este fundamento não se confunde
com os entes, uma vez dotado de distanciamento
qualitativo. Esta concepção acaba por minar as mediações
que a noção de causalidade tradicional emprega.
O uso da categoria da causalidade para se tratar do
fundamento do ser, ainda que não seja tomada em sentido
conceitual tradicional, gera certa dificuldade para se
compreender o que se pretende expressar. Neste aspecto,
sem dúvidas, falta a Tillich um aparato conceitual mais
adequado para explicitar suas noções. Ele parece estar
ciente das dificuldades, ao confessar que, “Eu preferiria
dizer ‘ser-em-si’. Mas eu sei que este termo é ainda mais
rejeitado. Eu falo de fundamento do ser. Mas, eu realmente
quero dizer, com os teólogos clássicos, ser-em-si”(Tillich, 1965,
p.61). Ora, ser-em-si é aquilo que se distingue do ente. Em
suma, o que é central na afirmação de que Deus é o

356
fundamento do ser? Com ela Tillich reforça a ideia de que
Deus não é um ente dentro da totalidade dos entes, mas o
ser-em-si que se diferencia dos entes e se coloca para além
da totalidade do ente, mas, ao mesmo tempo, está mais
próximo a qualquer ente do que ele próprio.
Ser-em-si
Tillich reconhece que ser-em-si é a expressão mais
adequada para se referir a Deus. Diante da argumentação
que empreendemos aqui, fica evidente que não se pode
compreender ser-em-si como se fosse um ente ao lado ou
acima dos outros. Antes, o ser-em-si é aquilo que se aporta
numa posição de anterioridade em relação a todo ente e às
dicotomias sujeito/objeto, essência/existência, de modo que
as categorias da finitude (principalmente causalidade e
espaço) somente podem se utilizadas de maneira simbólica.
No entanto, a compreensão de Deus como ser-em-
si coloca outro problema. Para manter a auto-
transcendência de Deus, há de se reconhecer que todo
discurso sobre ele assume caráter simbólico. Tillich, em
diversos momentos de sua obra, desenvolve complexa
acepção de símbolo, resgatando sua importância para a
linguagem da religião. O símbolo possui caráter referencial,
de modo que ele não se refere a si mesmo, mas remete para
algo além dele, sendo dotado de certa transparência e
configurando-se como meio de manifestação daquilo que é
último. O modo de referência do símbolo, diferente do
signo, é a participação na realidade para a qual aponta, não
permanecendo numa relação de mera exterioridade. Assim,
o que constitui um símbolo religioso é esta remissão para e
participação em algo que está além dele. No entanto, há
somente uma afirmação que não possui caráter simbólico.

357
Nas palavras de Tillich, “A afirmação de que Deus é o ser-em-
si não é uma afirmação simbólica. Não aponta para além de si
mesma. Ela significa aquilo que diz direta e propriamente; se
falamos da realidade de Deus, afirmamos antes de mais nada
que ele não é Deus se não for o ser-em-si” (Tillich, 2005, p.
245).
Aqui, impõe-se um problema de ordem lógica. Se o
símbolo possui caráter referencial, ele deve sempre remeter
para algo que está além dele. Neste sentido, por exemplo, a
designação de Deus como criador não deve ser tomada de
maneira literal, mas como símbolo que remete para Deus
como ser-em-si. Se a afirmação de que Deus é ser-em-si
também fosse tida como expressão simbólica ela deveria se
referir a uma instância ainda mais originária, destituindo
Deus da qualidade de fundamento do ser. Caso se aceite
isso, Tillich teria de assumir uma contradição. Se Deus
como ser-em-si é símbolo, ao que ele se refere? A Deus
mesmo? Ser-em-si seria, portanto, símbolo de Deus? Neste
caso, estamos diante de um círculo vicioso. Para não entrar
nesta remissão infinita, Tillich tem de afirmar o não-
simbolismo da proposição de que Deus é ser-em-si. No
entanto, esta argumentação não livra Tillich de outra
dificuldade: em que medida a auto-transcendência de Deus
não é interpelada ao se empregar termo da realidade finita
para designá-lo? Em outros termos, com esta proposição
não-simbólica não estaria Tillich objetivando aquilo que
anterior à cisão entre sujeito e objeto?
Ele parece reconhecer o embaraço, que pode ser
dirimido quando se reconhece que a expressão ser-em-si é
carregada por certa indeterminação. Ela traz consigo a

358
noção de que este fundamento é também abismo. Nas
palavras de Tillich,
Em Duns Scotus e em toda a ontologia e
teologia influenciadas por ele – até Bergson e
Heidegger – observa-se um elemento de
indeterminação última no fundamento do ser. A
potestas absoluta de Deus constitui uma ameaça
perene a qualquer estrutura dada das coisas. Ela
mina qualquer apriorismo absoluto, mas não
elimina a ontologia nem as estruturas
relativamente a priori que interessam à ontologia
(Tillich, 2005, p.177).
Em outros termos, designar Deus como ser-em-si
não significa concebê-lo apenas como fundamento, mas
implica no reconhecimento de seu caráter abismal. Mesmo
não sendo simbólica, esta expressão busca preservar Deus
de qualquer condicionamento, mas mantém a possibilidade
da ontologia.

Conclusão

Ao se compreender que a crítica de Heidegger à


onto-teo-logia não elimina toda e qualquer ontologia,
pode-se notar quão injustas e rápidas tem sido as
caracterizações do pensamento de Tillich como
ontoteológico. De maneira bastante incisiva, Tillich não
abraça a característica central da ontoteologia, ao não
conceber ser (Deus) como um ente entre outros.
É preciso reconhecer que, por vezes, a terminologia
clássica empregada por Tillich ofusca aquilo que diz. O
emprego de termos como Incondicionado, fundamento do
ser, causalidade e substância, Deus acima de Deus e mesmo

359
ser-em-si podem conduzir a compreensões errôneas.
Porém, a análise mais cuidadosa de seus textos revela que
ele está mais próximo de Heidegger do que propriamente
da ontoteologia. Com isso, não se diz que ambos os
pensadores são similares. É ausente, por exemplo, do
pensamento de Tillich a determinação do tempo como
constituinte do horizonte a partir de onde todas as
significações são possíveis. Por outro lado, Heidegger não
se preocupa em resgatar as designações mais ônticas da
relação entre ser e Deus. A relevância deste tema em
Tillich é atestada por sua teoria do símbolo, de modo que a
ontologia não implica necessariamente na dessacralização
de Deus.
Em suma, as várias definições de Tillich para Deus,
que sempre mostram a íntima articulação com o ser,
ressaltam duas ideias fundamentais. Em primeiro lugar,
háa preocupação em se preservar a auto-transcendência de
Deus por meio da demonstração dos problemas da
proposição contrária. Se é apenas um ente entre outros,
Deus não é reconhecido como o incondicionado, não se
constitui como o fundamento do ser ou mesmo não pode
preocupar o ser humano de forma última. Do ponto de
vista existencial, a noção ôntica de Deus não pode ser
resposta para a angústia humana, que vive rodeado pela
ameaça sombria do não-ser.
Desse modo, pode mesmo ser Tillich considerado
como pertencente ao clube dos ontoteólogos?
Caso se adote a noção de ontoteologia em sua
clivagem francesa, a resposta é positiva. Afinal, ele fala de
Deus em termos ontológicos. No entanto, caso se retome a
abordagem da noção em Heidegger, parece-me que no que

360
tange ao aspecto central, da distinção entre ser e ente,
Tillich está bem ciente dos limites da noção tradicional de
Deus. Agora, é claro, ele enfrenta uma dificuldade. Ele
parece apontar para outra concepção de Deus, mas ainda
está preso à terminologia clássica. Isso além de gerar
dificuldades de compreensão, pode ser indício de resquícios
metafísicos em sua teologia. Habitar na fronteira também
tem seus perigos. Esse é um deles.

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364
SÍMBOLO COMO LINGUAGEM DA RELIGIÃO:
FUNDAMENTOS DA TEORIA DOS SÍMBOLOS
NO ÂMBITO DA TEORIA DA RELIGIÃO DE
PAUL TILLICH

Fábio Henrique Abreu214

Introdução: o símbolo como autointerpretação


(Selbstdeutung)

Em seu conciso escrito extemporâneo The Meaning


and Justification of Religious Symbols215, apresentado entre os
214
Pós-doutor em Filosofia da Religião pelo Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de
Fora (PPCIR-UFJF) e pela Evangelisch-Theologische Fakultät,
Universität Wien, 2016. Bacharel em Teologia pelo Instituto Teológico
Arquidiocesano Santo Antônio – Centro de Ensino Superior de Juiz de
Fora (2006). Mestre (2010) e Doutor em Ciência da Religião pelo
PPCIR-UFJF, 2015. Membro da Sociedade Paul Tillich do Brasil e da
Deutsche Paul-Tillich-Gesellschaft. Membro da equipe editorial do
periódico Correlatio: Revista da Sociedade Paul Tillich do Brasil.
Atualmente trabalha em sua tese de habilitação (Habilitationsschrift)
pela Evangelisch-Theologische Fakultät, Universität Wien, sob a
supervisão do Prof. Dr. habil. Christian Danz. O título provisório de
sua pesquisa em desenvolvimento é “The Religion of the Paradox: A
Historical Reconstruction of Paul Tillich’s Theory of Theology from
the Basis of His Early Academic Years”. [Todas as traduções de textos
em língua estrangeira para o português são nossas. As ênfases
presentes nas citações diretas serão mantidas, invariavelmente, em
conformidade com os textos originais.]
215
P. TILLICH. The Meaning and Justification of Religious Symbols. In:
S. HOOK. (Ed.). Religious Experience and Truth: A Symposium. New
York: New York University Press, 1961, p. 3-11. Para a reimpressão
deste artigo nas obras principais, cf.: IDEM. The Meaning and
Justification of Religious Symbols. (1961). In: J. P. CLAYTON. (Hg.).
Main Works – Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische

365
dias 21 e 22 de outubro de 1960 como uma contribuição às
discussões temáticas promovidas pelo “Fourth Annual
Meeting of the New York University Institute of
Philosophy”, Paul Tillich afirma:
O símbolo religioso não necessita de qualquer
justificação quando seu sentido é compreendido.
Isto porque seu sentido é que ele é a linguagem
da religião e a única forma em que a religião
pode se expressar diretamente. A religião
também pode encontrar expressão, de forma
indireta e reflexiva, em termos teológicos,
filosóficos e artísticos. No entanto, sua
autoexpressão direta é o símbolo e o grupo de
símbolos, que aqui chamamos de mito216.
Para Tillich, a função do símbolo está em sua
constituição performática: ele é “a linguagem da religião”.
Claro está, no entanto, que o símbolo não representa uma
entre outras linguagens possíveis da religião, mas é, ele
mesmo, sua única forma de autoexpressão direta. Em
função desta centralização da linguagem simbólica, é
evidente que Tillich imputa ao conceito de símbolo uma

Schriften. Berlin; New York: Walter de Gruyter; Evangelisches


Verlagswerk, 1987, p. 415-420. A primeira tradução germânica se
encontra em IDEM. Sinn und Recht religiöser Symbole. In: Symbol und
Wirklichkeit. Göttingen: Kleine Vandenhoeck-Reihe, 1962, p. 3-12;
para a segunda versão alemã, cf.: IDEM. Recht und Bedeutung
religiöser Symbole. In: R. ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band
V: Die Frage nach dem Unbedingten. Stuttgart: Evangelisches
Verlagswerk, 1978, p. 237-244. Utilizaremos, aqui, a reimpressão
deste artigo tal como presente no quarto volume dos Main Works –
Hauptwerke de Tillich.
216
P. TILLICH. The Meaning and Justification of Religious Symbols, p.
415.

366
função muito maior que aquela de mero apêndice217. A
teoria dos símbolos ocupa, antes, uma posição tão basilar
que sua própria teoria da religião é dela dependente218.

217
P. TILLICH. Reply to Interpretation and Criticism by Paul Tillich. In:
C. W. KEGLEY; R. W. BRETALL. (Ed.). The Theology of Paul Tillich.
New York: The Macmillan Company, 1952, p. 333-334: “The center
of my theological doctrine of knowledge is the concept of symbol, and
it is natural that for many years this part of my thought has been under
question”.
218
Sobre a relação entre teoria dos símbolos e da religião em Tillich, cf.
K.-D. NÖRENBERG. Analogia Imaginis. Der Symbolbegriff in der
Theologie Paul Tillichs. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Gerd
Mohn, 1966; M. v. KRIEGSTEIN. Paul Tillichs Methode der
Korrelation und Symbolbegriff. Hildesheim: Verlag Dr. H. A.
Gerstenberg, 1975; G. WENZ. Subjekt und Sein. Die Entwicklung der
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Laval théologique et philosophique, vol. 32, no. 1, 1976, p. 43-74;
IDEM. Symbolisme et analogie chez Paul Tillich. II. Laval théologique
et philosophique, vol. 33, no. 1, 1977, p. 39-60; IDEM. Symbolisme et
analogie chez Paul Tillich. III. Laval théologique et philosophique,
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Studien zum Problem einer Kulturtheologie. Tübingen: J. C. B. Mohr
(Paul Siebeck), 2000, p. 33-36; J. RINGLEBEN. Gott denken: Studien

367
Religião e símbolo se pertencem, na medida em que é no
símbolo que a religião põe em efetividade sua função
semântica de autorreferencialidade mais própria. À parte
do símbolo e do sistema de comunicação nele implicado, a
religião permanece não apenas abstrata, mas também, e
principalmente, desprovida de concretude e atualidade
históricas.

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Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der
frühen Symboltheorie Paul Tillichs. Tillich-Forschungen: Band 10.
Berlin; Boston: Walter de Gruyter GmbH, 2017, p. 410-549.

368
A despeito da importância central que Tillich
atribui à teoria dos símbolos, entretanto, ainda não há uma
análise exaustiva que seja capaz de produzir um consenso
sobre a natureza e função do símbolo na totalidade de seu
sistema teórico 219 . Esforços nesta direção constituem,
entretanto, condição indispensável para toda e qualquer
tentativa de reconstrução histórico-genética da reflexão

219
O recente estudo de Heinemann constitui uma exceção no âmbito da
pesquisa contemporânea. Sua obra representa, até agora, a análise mais
exaustiva da teoria dos símbolos articulada pelo jovem Tillich. A
despeito do escopo mais restrito de sua análise, cujo foco se encontra
nos escritos do período alemão da produção intelectual de Tillich,
Heinemann se encarrega de um esforço exegético que também fornece
uma base para a interpretação do período tardio do pensamento
tillichiano: isto é, também para Heinemann, os escritos tardios de
Tillich devem ser analisados em estrita conexão com seus escritos
anteriores. Neste ínterim, Heinemann apresenta uma análise que insere
a teoria de Tillich no correto contexto conformado pelos neokantismos
e pela Idealismusrenaissance da Alemanha do início do século XX.
Sobre este ponto, cf. F. W. GRAF; A. CHRISTOPHERSEN.
Neukantianismus, Fichte- und Schellingrenaissance. Paul Tillich und
sein philosophischer Lehrer Fritz Medicus. Zeitschrift für Neuere
Theologiegeschichte (Journal for the History of Modern Theology),
vol. 11, Issue 1, 2006, p. 52-78. No que diz respeito ao estatuto da
teoria dos símbolos de Tillich em suas obras tardias, Heinemann
fornece subsídios inestimáveis para a afirmação de uma continuidade,
mesmo que com alterações e flutuações conceituais, da Symboltheorie
nos pressupostos da reflexão tillichiana in toto. Sobre este ponto, cf. L.
C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische
Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 550-581.
Não obstante, mesmo com o gigantesco esforço histórico-genético de
Heinemann, a falta de consenso em relação à natureza da
Symboltheorie de Tillich permanece. Sobre este ponto, cf. J. RICHARD.
Tillich’s First and Last Lectures on Philosophy of Religion. Berlin
1920 and Harvard 1962. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.). Religion –
Kultur – Gesellschaft. Der frühe Tillich im Spiegel neuer Texte (1919-
1920). Tillich-Studien: Band 20. Wien; Berlin: LIT Verlag, 2008, p.
259-278, que continua sendo o representante por excelência das
interpretações francófonas sobre os fundamentos da filosofia da
religião e da teologia de Tillich.

369
tillichiana em sua autorreivindicada sistematicidade
interna220. A ausência de um consenso estabelecido tem a

Sobre o estado da arte da pesquisa sobre Tillich, cf.: W. TRILLHAAS.


220

Paul Tillich im Lichte seiner Wirkungsgeschichte. Zeitschrift für


Theologie und Kirche, 75, 1978, p. 82–98; C. SCHWÖBEL. Tendenzen
der Tillich-Forschung (1967–1983). Theologische Rundschau, 51,
1986, p. 166–223; G. WENZ. Tillich im Kontext.
Theologiegeschichtliche Perspektiven. Tillich-Studien: Band 2.
Münster: LIT Verlag 2000; L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol:
Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen
Symboltheorie Paul Tillichs, p. 31-53. Para a recepção, em língua
alemã, do pensamento de Tillich entre o exílio e sua morte, cf.: G.
NEUGEBAUER. Die Tillichrezeption im deutschsprachigen Raum von
1933–1965. Ein exemplarischer Überblick. In: C. DANZ; W.
SCHÜßLER. (Hg.). Paul Tillich im Exil. Tillich-Forschungen: Band 12.
Berlin; Boston: Walter de Gruyter GmbH, 2017, p. 385-408. Sobre a
recepção de Tillich na teologia estadunidense, cf.: F. J. PARRELLA.
Tillich and American Theology. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.).
Paul Tillich im Exil, p. 251-263. Sobre a recepção do pensamento de
Tillich no Brasil, cf. C. E. CALVANI. A recepção do pensamento de
Tillich no Brasil. Revista Eletrônica Correlatio, vol. 5, no. 10, 2006, p.
152-182. A despeito dos múltiplos impulsos que conformam a história
dos efeitos do pensamento de Tillich, nenhum teórico ocupa um lugar
tão central na interpretação de suas obras quanto Falk Wagner. Como é
de conhecimento no âmbito da literatura secundária contemporânea,
Wagner insere, a partir de sua Antrittsvorlesung proferida na Ludwig-
Maximilians-Universität München (11.12.1972), um ponto de guinada
no âmbito das pesquisas sobre Tillich. Seu estudo representa um
divisor de águas não em função de oferecer uma reconstrução
histórico-genética do pensamento de Tillich, mas, antes, por propor a
busca pelo Grundthema de sua reflexão. Sobre a palestra inaugural de
Wagner, cf.: F. WAGNER. Absolute Positivität. Das Grundthema der
Theologie Paul Tillichs. Neue Zeitschrift für Systematische Theologie
und Religionsphilosophie, 15, 1973, p. 172-191 – reimpresso em F.
WAGNER. Religion zwischen Positivität des Unbedingten und
bedingter Erfahrung. In: Was ist Religion? Studien zu ihrem Begriff
und Thema in Geschichte und Gegenwart. Gütersloh: Gütersloher
Verlagshaus Gerd Mohn, 1986, p. 379-385. Com efeito, a ocasião para
o surgimento de uma pesquisa sobre o tema básico dos escritos de
Tillich era propícia: Tillich faleceu em 1965, de modo que uma
historicização de seu pensamento poderia, de fato, ter início. Por outro

370
lado, a conclusão dos Gesammelte Werke de Tillich, também em 1972,
constituiu um impulso fundamental para a recepção crítica de suas
obras. Pois, embora o aspecto da aproximação pessoal e amistosa seja
uma marca particularmente forte na recepção do pensamento de Tillich
nos Estados Unidos, também a primeira geração de intérpretes
alemães, que vai de Renate Albrecht a Carl Heinz Ratschow, foi
indubitavelmente marcada pelo aspecto do encontro pessoal. Aqui,
tanto o falecimento de Tillich, quanto a crescente historicização de seu
pensamento, como bem afirma L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist –
Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen
Symboltheorie Paul Tillichs, p. 550-551, “abriram, uma vez mais, o
caminho para um acesso mais imparcial ao tema”. No estudo de
Wagner, como afirma Heinemann, “o interesse da apreciação é
combinado, inevitavelmente, com o impulso de uma reflexão
decididamente crítica, por assim dizer, com ‘Tillich para além de
Tillich’” (p. 551). Na combinação dos dois aspectos, o impulso de
Wagner deve ser considerado como inovador ainda hoje, na medida em
que ele foi capaz de conferir, precisamente na busca pelo Grundthema
do pensamento tillichiano, um ímpeto substancial à discussão ulterior
da Tillich-Forschung. Embora o próprio Wagner questione, já nas
primeiras linhas de seu estudo, o perigo evidente oriundo do foco em
um princípio único (cf., aqui, F. WAGNER. Absolute Positivität. Das
Grundthema der Theologie Paul Tillichs, p. 172-173), a abordagem
histórico-genética do pensamento tillichiano a partir da determinação
conceitual de um Grundthema tornou-se, desde então, uma tendência
necessária na literatura secundária. Como exemplos desta tendência,
citamos, aqui, apenas os seguintes trabalhos: G. WENZ. Subjekt und
Sein. Die Entwicklung der Theologie Paul Tillichs; H. JAHR. Theologie
als Gestaltmetaphysik: die Vermittlung von Gott und Welt im
Frühwerk Paul Tillichs. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1989;
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie
als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität
bei Paul Tillich. Tanto as dissertações de Wenz e Jahr quanto os
compreensivos estudos de Danz têm não apenas tomado o estudo de
Wagner como ponto de inflexão na história dos efeitos do pensamento
de Tillich, como também assumido a tarefa de reconstruir, a partir de
um tema básico, a sistematicidade interna das obras tillichianas. Neste
sentido, como afirma L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine
systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie
Paul Tillichs, p. 551, a questão do Grundprinzip da teologia de Tillich
pertence, desde Wagner, “ao firme cânone da Tillich-Forschung”. Para
uma abordagem do Prinzip da teologia de Tillich em discussão com a

371
ver, grosso modo, tanto com a natureza e função da teoria
dos símbolos propriamente dita, quanto com o estatuto
desta teoria nos escritos tardios de Tillich. Embora o
presente estudo busque oferecer uma delimitação
conceitual da natureza e função da teoria dos símbolos no
pensamento maduro de Tillich, isto é, do período que se
estende de 1919 a 1928, uma alusão ao status desta teoria
na totalidade de sua reflexão deve ser, aqui, mesmo que de
forma breve e evidentemente não exaustiva, assinalada.
Assumindo-se o risco de uma vasta simplificação,
poder-se-ia afirmar que as interpretações sobre o conceito
de símbolo no pensamento de Tillich têm basicamente
oscilado entre dois polos. De um lado, e ancorada numa
interpretação ontologizante do pensamento tardio de
Tillich, tem-se a defesa do símbolo em seu papel de
mediação entre o incondicionado e o condicionado, ou
melhor, em sua capacidade de expressar, de forma indireta,
uma realidade objetiva na qual a subjetividade participa221.
Aqui, o conceito do incondicional assume contornos de
instância de referencialidade dotada de realidade e, em
última análise, substância. Em função da assunção de uma
ontologia – na maioria das vezes, pré-kantiana – como
“filosofia primeira” dos escritos estadunidenses de

tese de Wagner, cf. S. DIENSTBECK. Transzendentale Strukturtheorie.


Stadien der Systembildung Paul Tillichs, p. 322-335. Para nossa
modesta contribuição à tarefa de reconstrução do pensamento de
Tillich a partir de um tema básico, cf. F. H. ABREU. “Richtung auf das
Unbedingte” and “Self-Transparency”: The Foundations of Paul
Tillich’s Philosophy of Spirit, Meaning, and Religion (1919-1925).
Revista Eletrônica Correlatio, vol. 16, no. 1, 2017, p. 5-97.
221
Cf., por exemplo, a posição de K.-D. NÖRENBERG. Analogia
Imaginis. Der Symbolbegriff in der Theologie Paul Tillichs, p. 129-
158.

372
Tillich 222 , esta interpretação do símbolo, enquanto
mediador de um realismo extra nos, termina por pressupor

222
O próprio Tillich, com efeito, não ajuda seus intérpretes
anglofônicos, especialmente estadunidenses, no que diz respeito à
problemática da ontologia como “filosofia primeira”. Antes o
contrário: em seu opus magnum, Tillich faz esta determinação de
forma clara: “Philosophy asks the question of being as being. It
investigates the character of everything that is in so far as it is. This is
its basic task, and the answer it provides determines the analysis of all
special forms of being. It is ‘first philosophy’, or, if the term still could
be used, ‘metaphysics’. Since the connotations of the term
‘metaphysics’ make its use precarious, the word ‘ontology’ is
preferable”. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Systematic Theology.
Volume I: Reason and Revelation, Being and God. Chicago: The
University of Chicago Press, 1951, p. 163. No entanto, há que se
considerar que Tillich faz uso da ontologia como filosofia primeira em
seus escritos tardios em função do próprio contexto intelectual
estadunidense, que é amplamente caracterizado por uma negação
arbitrária e simplista do termo “metafísica”. Ao ser interpelado por
Richard Kroner sobre o emprego do termo ontologia em seu opus
magnum, Tillich afirma de forma jocosa: “[...] the word metaphysics
cannot be used in this country. Metaphysics means looking at the
clouds: meta-above the physical world. This has nothing to do with the
real meaning of the word metaphysics, but this is the popular
understanding or misunderstanding of the word metaphysics, even in
high academic circles. For this reason of communication I avoid the
word metaphysics. Perhaps one day this is no longer necessary”. Sobre
este ponto, cf. P. TILLICH. Sin and Grace in the Theology of Reinhold
Niebuhr. In: H. R. LANDON. (Ed.). Reinhold Niebuhr: A Prophetic
Voice in Our Time. Essays in Tribute by Paul Tillich, John C. Bennett,
Hans J. Morgenthau. Greenwich: The Seabury Press, 1962, p. 45. Na
tarefa de análise do pensamento tardio de Tillich, há que se reconhecer
que, a despeito da semântica ontológico-existencial, uma filosofia do
espírito e do sentido já se encontra operando como fundamento de sua
Systematic Theology. A ontologia que Tillich desenvolve, portanto,
não constitui uma ontologia no sentido pré-kantiano ou realista, mas é,
antes, um componente de sua filosofia do espírito, isto é, uma
descrição filosófico-transcendental das estruturas da
autorrelacionalidade. Sobre este ponto, cf. C. DANZ. Paul Tillich’s
Philosophy. In: R. R. MANNING. (Ed.). The Cambridge Companion to
Paul Tillich. Cambridge; New York: Cambridge University Press,

373
uma “guinada existencialista” em sua reflexão teórica
tardia223 . De acordo com esta perspectiva, a teoria dos
símbolos de Tillich não seria mais determinada pela “teoria
da consciência ou do sentido [bewusstseins- bzw.
sinntheoretische Ansatz], mas, antes, por uma abordagem
existencial-ontológica, combinada com um caráter
antropológico de cunho argumentativo”224. Implícita nesta

2009, p. 184-186; S. DIENSTBECK. Transzendentale Strukturtheorie.


Stadien der Systembildung Paul Tillichs, p. 339-433.
223
Veja, aqui, o clássico estudo de G. WENZ. Subjekt und Sein. Die
Entwicklung der Theologie Paul Tillichs, que oferece uma análise
compreensiva do pensamento tillichiano em diálogo com a tradição
crítica schellinguiana. Em sua tarefa de reconstrução do pensamento
tillichiano, no entanto, Wenz identifica uma ruptura de Tillich com a
tradição idealista em função de uma alegada guinada existencialista
operada no período posterior à Segunda Guerra. Wenz está em
conformidade, aqui, com o estudo de Crary, cuja tese é a alegada
transição, operada no pensamento de Tillich, da tradição idealista para
uma ontologia de cunho existencialista. Evidentemente, a tese de Crary
já foi amplamente criticada na literatura secundária contemporânea.
Sobre este ponto, cf. M. BOSS. Which Kant? Whose Idealism? Paul
Tillich’s Philosophical Training Reappraised. In: R. R. MANNING; S.
SHEARN. (Ed.). Returning to Tillich: Theology and Legacy in
Transition. Tillich-Forschungen: Band 13. Berlin; Boston: Walter de
Gruyter GmbH, 2018, especialmente, p. 26-30. Para a tese de Crary,
cf. S. T. CRARY. Idealistic Elements in Tillich’s Thought. 1955.
Dissertation. (Ph.D. in Theology). Yale University, New Haven, 1955,
especialmente, p. 124. Na medida em que Wenz assume, em
conformidade com Crary, esta quebra com a tradição da filosofia
alemã clássica, seu estudo somente consegue reconstruir a teoria dos
símbolos de Tillich, como afirma com precisão L. C. HEINEMANN.
Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion
der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 53, “de forma muito
limitada”. Para a análise de Wenz da teoria dos símbolos de Tillich, cf.
G. WENZ. Subjekt und Sein. Die Entwicklung der Theologie Paul
Tillichs, p. 161-190.
224
W. SCHÜßLER. Abkehr von der Bewusstseinsphilosophie. Zur
Kulturtheologie des späten Tillichs. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.).

374
interpretação existencialista dos fundamentos do sistema
tillichiano se encontra a defesa, já devidamente criticada e
superada na literatura secundária contemporânea 225 , de
uma ontologia precrítica da substância enquanto
fundamento do último período de sua produção
intelectual 226 . Não obstante, esta perspectiva ontológica
precrítica falha em, ao menos, dois aspectos essenciais: por

Paul Tillichs Theologie der Kultur: Aspekte, Probleme, Perspektiven.


Berlin; Boston: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, 2011, p. 168.
225
Cf. C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, sobretudo, p. 13-175 para uma análise
imanente da teoria ontológica no sistema de Tillich. Nesta conexão,
veja também S. DIENSTBECK. Transzendentale Strukturtheorie. Stadien
der Systembildung Paul Tillichs, p. 339-468; IDEM. Von der
Sinntheorie zur Ontologie. Zum Verständnis des Spätwerks Paul
Tillichs. Neue Zeitschrift für Systematische Theologie und
Religionsphilosophie, vol. 57, Issue 1, 2015, p. 32-59. Muito embora a
defesa da pertença radical de Tillich ao contexto do neokantismo e
neoidealismo alemães seja uma característica do estado da arte da
pesquisa germânica contemporânea, a negação de um alegado
afastamento de Tillich das bases da filosofia transcendental kantiana
passou a constituir, por meio do minucioso estudo de Marc Boss,
também uma característica das interpretações francófonas do sistema
tillichiano. Sobre este ponto, cf. M. BOSS. Au commencement la
liberté: La religion de Kant réinventée par Fichte, Schelling et Tillich.
Genève: Labor et Fides, 2014, sobretudo, p. 325-524; IDEM. Which
Kant? Whose Idealism? Paul Tillich’s Philosophical Training
Reappraised, p. 13-30.
226
Alguns exemplos desta tendência interpretativa problemática podem
ser encontrados em O. BAYER. Wort und Sein. In: G. HUMMEL; D.
LAX. (Ed.). Being Versus Word in Paul Tillich’s Theology?
Proceedings of the VII. International Paul Tillich-Symposium held in
Frankfurt/Main 1998. Seins versus Wort in Paul Tillichs Theologie?
Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, 1999, p. 13-
23; W. SCHÜßLER. Abkehr von der Bewusstseinsphilosophie. Zur
Kulturtheologie des späten Tillichs, p. 152-168; S. G. OGDEN. The
Presence of God in the World: A Contribution to Postmodern
Christology based on the Theologies of Paul Tillich and Karl Rahner.
Bern: Peter Lang, 2007.

375
um lado, ela ignora a clara dependência permanente do
pensamento de Tillich em relação aos alicerces oriundos da
filosofia transcendental de Kant227; por outro, ela não toma
com a devida seriedade as incontornáveis implicações da
revolução copernicana imposta por Kant para o
desdobramento da tradição idealista 228 e termina por
analisar a fundação dos escritos tardios de Tillich a partir
de uma metafísica católica. Ora, são precisamente os
impulsos oriundos da filosofia transcendental de Kant e
suas consequências para o desdobramento do Idealismo
Alemão – ou, de forma mais precisa, “filosofia alemã
clássica” 229 – que conformam as bases sistemáticas

227
Veja, P. TILLICH. Autobiographical Reflections. In: C. W. KEGLEY;
R. W. BRETALL. (Ed.). The Theology of Paul Tillich, p. 3-21, em
especial, p. 10; IDEM. On the Boundary: An Autobiographical Sketch.
New York: Charles Scribner’s Sons, 1966, p. 46-58. Como afirma com
notável precisão M. BOSS. Which Kant? Whose Idealism? Paul
Tillich’s Philosophical Training Reappraised, p. 13: “Anyone who
claims to be indebted to German Idealism, as Tillich repeatedly did, is
by the same token indebted to Kant […] the fact is that almost every
German intellectual born in the nineteenth or early twentieth century
might be considered as indebted to Kant in one way or another”.
228
Cf. U. BARTH. Gott als Grenzbegriff der Vernunft. Kants
Destruktion des vorkritisch-ontologischen Theismus. In: Gott als
Projekt der Vernunft. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2005, p.
235-262; W. JAESCHKE; A. ARNDT. Die Klassische Deutsche
Philosophie nach Kant. Systeme der reinen Vernunft und ihre Kritik.
1785-1845. München: Verlag C. H. Beck oHG, 2012, sobretudo, p. 26-
58.
229
Empregamos os termos “Idealismo Alemão” e “filosofia alemã
clássica” como designações sinonímicas. Há que se reparar, entretanto,
que o termo Idealismo Alemão, como bem observou Walter Jaeschke,
é um produto tardio formulado no âmbito dos neokantismos alemães.
Por outro lado, o termo mostra-se incapaz de responder ao
autoentendimento dos filósofos que são inseridos nesta terminologia.
Neste sentido, o termo filosofia alemã clássica é mais preciso como
designação dos programas sistemáticos que buscaram superar as

376
responsáveis por sustentar a totalidade do pensamento de
Tillich230. Neste sentido, a perspectiva ontológica precrítica
falha por não perceber a correta “constelação de
problemas” 231 a partir da qual os andares do edifício
sistemático de Tillich são invariavelmente erigidos232.

alternativas entre idealismo e realismo. Sobre este ponto, cf. W.


JAESCHKE. Zur Genealogie des Deutschen Idealismus:
Konstitutionsgeschichtliche Bemerkungen in methodologischer
Absicht. In: A. ARNDT; W. JAESCHKE. (Hg.). Materialismus und
Spiritualismus. Philosophie und Wissenschaften nach 1848. Hamburg:
Felix Meiner Verlag, 2000, p. 219-234; A. ARNDT. Schleiermacher:
Dialectic and Transcendental Philosophy, Relationship to Hegel. In: B.
SOCKNESS; W. GRÄB. (Ed.). Schleiermacher, the Study of Religion,
and the Future of Theology: A Transatlantic Dialogue. Berlin; New
York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, 2010, p. 349-360, aqui, p.
352-353. O emprego dos termos em relação sinonímica justifica-se,
aqui, e a despeito do caráter mais preciso da designação “filosofia
clássica alemã” enquanto designação da filosofia pós-kantiana, tanto
no próprio emprego tillichiano da designação “Idealismo Alemão”,
quanto por não existir, no pensado maduro de Tillich, nenhum
realismo à parte da estrutura constitutiva e da função
omnideterminante da autoconsciência.
230
Cf. C. DANZ. Theologischer Neuidealismus. Zur Rezeption der
Geschichtsphilosophie Fichtes bei Friedrich Gogarten, Paul Tillich und
Emanuel Hirsch. In: J. STOLZENBERG; O.-P. RUDOLPH. (Hg.). Wissen,
Freiheit, Geschichte. Die Philosophie Fichtes im 19. und 20.
Jahrhundert. Beiträge des sechsten internationalen Kongresses der
Johann-Gottlieb-Fichte-Gesellschaft in Halle (Saale) vom 3.-7.
Oktober 2006. Band II: Sektionen 2-6. Amsterdam; New York: Rodopi
B. V., 2012, p. 199-215.
231
Sobre o conceito de “constelação de problemas” como metodologia
interpretativa para a determinação de problemas comuns e
interrelacionados em discussões teóricas concomitantes empreendidas
por diferentes autores em um determinado contexto espiritual-cultural,
cf. o já clássico estudo de D. HENRICH. Konstellationen. Probleme und
Debatten am Ursprung der idealistischen Philosophie (1789-1795).
Stuttgart: Klett-Cotta Verlag, 1991, p. 29-46.
232
Cf. M. BOSS. Au commencement la liberté: La religion de Kant
réinventée par Fichte, Schelling et Tillich, p. 30-61. Nesta conexão,
veja IDEM. Paul Tillich and the Twentieth Century Fichte Renaissance:

377
Em aberta contraposição às interpretações pré-
kantianas do pensamento de Tillich jaz a demarcação
rigorosa que, com base nos firmes alicerces de uma teoria
da consciência, reconstrói a teoria tillichiana dos símbolos,
em sua natureza e função, enquanto veículo objetivo de
autointerpretação (Selbstdeutung) da subjetividade
individual na autotransparência de sua reflexividade
interna. Neste caso, todo e qualquer realismo
compreendido enquanto dimensão ou instância de
referencialidade exógena à subjetividade em sua
autorreflexividade, com efeito, desaparece 233 . A
determinação do conceito de símbolo como Selbstdeutung
da subjetividade individual implica o reconhecimento de
que a tese de Tillich do símbolo como linguagem da
religião não intenciona oferecer qualquer conhecimento
teórico. Isto porque o símbolo religioso não possui nem
relação com um objeto em particular, por um lado, nem faz
referência a uma esfera supranatural de realidade ou
sentido, por outro. Antes, o símbolo opera estritamente
como “linguagem”, autointerpretação, isto é, como meio de
apresentação do evento contingente do tornar-se-evidente-

Neo-Idealistic Features in His Early Accounts of Freedom and


Existence. Bulletin of the North American Paul Tillich Society, vol. 36,
no. 3, 2010, p. 8-21.
233
Para a abordagem da teoria dos símbolos de Tillich a partir de uma
teoria da subjetividade, cf. C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein.
Eine Studie zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen
individueller Subjektivität bei Paul Tillich, p. 341-352; F. WITTEKIND.
Gottesdienst als Handlungsraum. Zur symboltheoretischen
Konstruktion des Kultes in Tillichs, p. 77-100; S. DIENSTBECK.
Transzendentale Strukturtheorie. Stadien der Systembildung Paul
Tillichs, p. 398-412; L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine
systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie
Paul Tillichs.

378
para-si do espírito (das Sich-Verständlich-Werden des Geistes)
na reflexividade interior de sua autorrelacionalidade
constitutiva 234 . No entendimento da presente análise, a
determinação do símbolo como instância de apresentação
da autotransparência do espírito na dinâmica de sua
autorrelacionalidade interna constitui a única interpretação,
desde um ponto de vista histórico-genético, que encontra
uma base sólida na totalidade dos escritos tillichianos. Pois,
por mais que a história dos efeitos do pensamento de
Tillich esteja repleta de interpretações que conferem ao
símbolo o papel de mediação de uma dimensão
incondicional assentida como instância exógena ao espírito,
toda análise de sua teoria dos símbolos que assuma o
incondicional enquanto uma realidade extra nos entra,
necessariamente, em desarmonia com sua teoria da
subjetividade. Além disso, uma interpretação realista do
pensamento de Tillich termina por ser incompatível com
sua tentativa de reconstruir a teologia, a partir de uma
combinação original dos impulsos idealistas oriundos dos
programas de Kant, Fichte e Schelling, sob a forma de um
sistema de liberdade que se caracteriza por justapor, no
conceito de autonomia, os princípios da autoposição e da
autocontradição235. Em outras palavras: sob o prisma de

C. DANZ. Die Religion in der Kultur. Karl Barth und Paul Tillich über
die Grundlagen einer Theologie der Kultur. In: C. DANZ; W.
SCHÜßLER. (Hg.). Paul Tillichs Theologie der Kultur: Aspekte,
Probleme, Perspektiven, p. 218.
235
M. BOSS. Au commencement la liberté: La religion de Kant
réinventée par Fichte, Schelling et Tillich, p. 9-10, por exemplo, afirma
que é, no mínimo, equivocado falar em uma “guinada existencialista”
no desenvolvimento intelectual de Tillich, uma vez que sua qualificada
perspectiva existencialista já se encontra fundamentada, em seus
contornos essenciais, ainda antes de seu encontro com Heidegger. A

379
uma análise imanente do desdobramento intelectual de

dimensão existencial do pensamento de Tillich não possui, portanto,


qualquer dependência da ontologia fundamental heideggeriana, na
medida em que esta dimensão é oriunda da integração, operada por
Tillich, das filosofias de Kant, Fichte e Schelling. Como afirma Boss:
«sous l’ifluence décisive du néofichtéisme introduit à Halle par son
mentor Fritz Medicus, Tillich structure sa philosophie de la religion
comme un système dans lequel entrent en tension deux interprétations
rivals et pourtant complémentaires de Kant: l’une conçoit la liberté
dans les termes fichtéens d’une fondamentale autoposition de la raison
(dans le prolongement des réflexions de Kant sur l’autonomie de la
volonté); l’autre la comprend dans les termes schellingiens d’un
abyssal pouvoir d’autocontradiction (dans la continuité des méditations
de Kant sur le mal radical)» (p. 9-10). Sobre a dependência de Tillich
da tradição idealista inaugurada por Kant, cf. C. L. FIRESTONE.
Tillich’s Indebtedness to Kant: Two Recently Translated Review
Essays on Rudolf Otto’s Idea of the Holy. Bulletin of the North
American Paul Tillich Society, vol. 35, no. 2, 2009, p. 3-9; M. BOSS.
Paul Tillich and the Twentieth Century Fichte Renaissance: Neo-
Idealistic Features in His Early Accounts of Freedom and Existence, p.
14-16; IDEM. Which Kant? Whose Idealism? Paul Tillich’s
Philosophical Training Reappraised, p. 26-30; G. NEUGEBAUER.
Freiheit als philosophisches Prinzip – Die Fichte-Interpretation des
frühen Tillich. In: J. STOLZENBERG; O.-P. RUDOLPH. (Hg.). Wissen,
Freiheit, Geschichte. Die Philosophie Fichtes im 19. und 20.
Jahrhundert. Beiträge des sechsten internationalen Kongresses der
Johann-Gottlieb-Fichte-Gesellschaft in Halle (Saale) vom 3.-7.
Oktober 2006. Band II: Sektionen 2-6, p. 181-196; C. DANZ.
Theologischer Neuidealismus. Zur Rezeption der
Geschichtsphilosophie Fichtes bei Friedrich Gogarten, Paul Tillich und
Emanuel Hirsch, p. 200-205; IDEM. Freedom as Autonomy:
Observations on Paul Tillich’s Reception of Fichte. Bulletin of the
North American Paul Tillich Society, vol. 41, no. 1, 2015, p. 15-19;
IDEM. Freiheit als Autonomie. Anmerkungen zur Fichte-Rezeption
Paul Tillichs im Anschluss an Fritz Medicus. In: M. HACKL; C. DANZ.
(Hg.). Die Klassische Deutsche Philosophie und ihre Folgen.
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht unipress GmbH, 2017, p. 217-
230. Sobre a recepção tillichiana de Heidegger, cf. E. STURM. Paul
Tillichs Heidegger-Rezeption. In: H.-J. LACHMANN; U. KÖSSER. (Hg.).
Kulturwissenschaftliche Studien. Leipzig: Passage-Verlag, 2001, p. 24-
37.

380
Tillich, uma interpretação que confira contornos realistas à
perspectiva filosófica e teológica por ele sustentada –
mesmo que se trate de um “realismo crítico”, “pós-
kantiano” ou “superior [höheren Realismus]” – falha por
violar a perspectiva estritamente monista conformativa da
filosofia idealista-neokantiana do sentido que fundamenta
os alicerces de seu sistema maduro236.
Em que se pesem tais disparidades, entretanto,
dificilmente seria motivo de controvérsia afirmar que
Tillich ocupa um lugar de destaque no âmbito das
discussões histórico-intelectuais sobre os contornos de uma
teoria dos símbolos rigorosamente fundamentada237. Antes
o contrário: por força da indubitável e pervasiva influência
de sua Symboltheorie no desdobramento da teologia
evangélica desde o início do século passado, a historiografia
teológica hodierna encontra-se sob o peso da tarefa
exegética de identificar os pressupostos epistemológicos

236
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, sobretudo, p. 306-311. A análise
elaborada por Moxter vai ainda além, na medida em que identifica no
pensamento de Tillich a presença de um “realismo ingênuo [naiver
Realismus]” em sua teoria da religião e dos símbolos. Esta análise,
entretanto, falha precisamente por não tomar, com o devido rigor, a
fundamentação estritamente monista que conforma a totalidade dos
escritos tillichianos maduros. Sobre este ponto, cf. M. MOXTER. Kultur
als Lebenswelt: Studien zum Problem einer Kulturtheologie, p. 30-36;
contra Moxter, cf. L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine
systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie
Paul Tillichs, p. 56-62.
237
Sobre este ponto, cf. L. C. HEINEMANN. Symboltheoretische
Anfänge. Paul Tillichs frühe Privatdozentenjahre in Berlin
(1919/1920). In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.). Religion – Kultur –
Gesellschaft. Der frühe Tillich im Spiegel neuer Texte (1919-1920), p.
233-236.

381
fundantes sustentados pelo “teórico do símbolo por
excelência do protestantismo recente” 238 . Para Tillich,

238
L. C. HEINEMANN. Symboltheoretische Anfänge. Paul Tillichs frühe
Privatdozentenjahre in Berlin (1919/1920), p. 233. Ainda no início da
segunda metade do século passado, a exposição do lugar central de
Tillich nas discussões sobre a Symboltheorie foi enfatizada por Hans
Looff em seu estudo sobre o conceito de símbolo na filosofia da
religião e teologia (até então) recentes. Sobre este ponto, cf. H. LOOFF.
Der Symbolbegriff in der neuren Religionsphilosophie und Theologie.
Kantstudien: Ergänzungsheft 69. Köln: Kölner Universität-Verlag,
1955, p. 52-64. Onde, no entanto, o símbolo consegue alcançar um
lugar de importância especial na teologia evangélica, isto é, sobretudo
na chamada Symboldidaktik, que tem logrado um relativo sucesso
desde, ao menos, a década de 1980, a concepção de Tillich é
geralmente empregada como ponto de partida estruturante. Neste
sentido, veja, sobretudo, os seguintes estudos: D. SCHWARTZ. Tillich
im Erbe. Ausblick auf eine transkulturelle Religionspädagogik.
Frankfurt am Main: Peter Lang GmbH; Internationaler Verlag der
Wissenschaften, 2007, p. 23-60; J. KUBIK. Paul Tillich und die
Religionspädagogik: Religion, Korrelation, Symbol und
protestantisches Prinzip. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht
unipress GmbH, 2011, p. 147-201. Embora Tillich possua um lugar de
destaque nas discussões histórico-genéticas e hodiernas sobre a
fundamentação de uma teoria dos símbolos no âmbito de uma
pedagogia da religião, também sua concepção sobre o lugar da
linguagem simbólica como dimensão fundamental de uma teoria da
subjetividade e da religião tem sido empregada como ponto de partida
– mesmo que como um a ser criticamente superado. L. C. HEINEMANN.
Symboltheoretische Anfänge. Paul Tillichs frühe Privatdozentenjahre
in Berlin (1919/1920), p. 233 [nota 3], por exemplo, afirma: „Den
Stellenwert von Tillichs Symboltheorie bestätigen im Grunde selbst
die Beiträge zum Thema, die ihr insgesamt kritisch gegenüberstehen.
Denn sei es, dass die paradigmatische Orientierung am Symbol als für
die Theologie ungeeignet prinzipiell abgelehnt und demgegenüber eine
Ausrichtung am Modell des Begriffs, der Metapher, des Zeichens oder
schlicht des Wortes angemahnt wird, oder sei es, dass die Vorzüge des
Symbolbegriffs zwar gesehen werden, im Ganzen jedoch nicht der
Tillichschen, sondern z.B. der von Charles Sanders Peirce oder Ernst
Cassirer entworfenen Fassung der Vorzug gegeben wird – fast
durchgängig dient Tillichs Symboltheorie als erster Ansprechpartner,
an den dann die einige Konzeption überbietend anknüpfen kann“. Para

382
conforme visto acima, a comunicação simbólica é a forma
de comunicação por meio da qual a consciência religiosa
pode tanto expressar-se a si mesma em sua forma mais
autêntica, quanto justificar-se diante do tribunal da razão
esclarecida 239 . Desta perspectiva teórica resulta que o

uma análise de diferentes posições sustentadas por representantes


típicos desta perspectiva de superação da Symboltheorie tillichiana por
uma abordagem semiótica, veja, por exemplo, os seguintes estudos: H.
DEUSER. Zeichenkonzeptionen in der Religion vom 19. Jahrhundert bis
zur Gegenwart. In: R. POSNER; K. ROBERING; T. A. SEBEOK. (Hg.).
Handbücher zur Sprach- und Kommunikationswissenschaft. Band 13.
Teilband 2: Semiotik: ein Handbuch zu den zeichentheoretischen
Grundlagen von Natur und Kultur. Berlin; New York: Walter de
Gruyter GmbH & Co., 1998, p. 1743-1760; IDEM. Gottes Poesie oder
Anschauung des Unbedingten? Semiotische Religionstheorie bei C. S.
Peirce und P. Tillich. In: Was ist Wahrheit anderes als ein Leben für
eine Idee? Kierkegaards Existenzdenken und die Inspiration des
Pragmatismus: gesammelte Aufsätze zur Theologie und
Religionsphilosophie. Herausgegeben von Niels Jørgen Cappelørn und
Markus Kleinert. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co.
KG, 2011, p. 604-625; M. MOXTER. Kultur als Lebenswelt: Studien
zum Problem einer Kulturtheologie, p. 54-86. Ao justificar a
necessidade de uma superação da Symboltheorie de Tillich a partir de
uma abordagem semiótica, Deuser afirma que esta demanda é
facilitada pela própria fundamentacao de seu programa: „Tillichs
Problembeschreibung des religiösen Symbols lässt sich deshalb
semiotisch transformieren, weil er es nicht bei den schwierigen
Konstellationen der Anschauung des Unbedingten belassen hat,
sondern immer auch die praktischen, religionswissenschaftlichen
Felder des wirklichen Symbolgebrauchs hat zugänglich machen
wollen. Tillichs frühe Differenzierung des Symbolbegriffs von 1928
kann deshalb zur weiteren Diskussion genutzt werden [...]“. H.
DEUSER. Gottes Poesie oder Anschauung des Unbedingten?
Semiotische Religionstheorie bei C. S. Peirce und P. Tillich, p. 618.
239
Sobre o vínculo entre “Modernidade e Esclarecimento”, cf. E.
TROELTSCH. Die Aufklärung. (1897). In: Gesammelte Schriften.
Vierter Band: Aufsätze zur Geistesgeschichte und Religionssoziologie.
Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1925, p. 338-374. Para uma
análise histórico-conceitual da modernidade, cf.: R. KOSELLECK.
Geschichte, Historie V. ›Die Herausbildung des modernen

383
tratamento dos símbolos constitui um aspecto decisivo da
própria consciência religiosa em sua autointerpretação
reflexiva. Posto de outra forma, a consciência religiosa
somente se revela enquanto propriamente religiosa se e
somente se for capaz de adentrar um processo de
comunicação simbólica que seja distinto das demais
funções culturais. Neste contexto, a pergunta pela estrutura
específica do conceito tillichiano de símbolo se torna

Geschichtsbegriffs‹. In: O. BRUNNER; W. CONZE; R. KOSELLECK.


(Hg.). Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur
politisch-sozialen Sprache in Deutschland. Band II. Stuttgart: Klett-
Cotta, 1975, p. 647-717; IDEM. Vergangene Zukunft: Zur Semantik
geschichtlicher Zeiten. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1989, p.
67-86, p. 300-348. Sobre a capacidade e a necessidade de
internalização da Religionskritik na fundamentação da religião, cf. F.
WAGNER. Religionsbegründung und Religionskritik. In: Was ist
Religion? Studien zu ihrem Begriff und Thema in Geschichte und
Gegenwart, p. 555-589; J. DIERKEN. Zur Modernisierungsfähigkeit der
christlichen Religion. Eine Auseinandersetzung mit der
wissenssoziologischen Religionskritik von Günter Dux. In: F.
WAGNER; M. MURRMANN-KAHL. (Hg.). Ende der Religion – Religion
ohne Ende? Zur Theorie der „Geistesgeschichte“ von Günter Dux.
Wien: Passagen Verlag, 1996, p. 125-149, e p. 292-296; IDEM. Kritik
der Religion. Reigionsbeurteilung, Götterdiskriminierung und
Kriterien religiöser Vernunft. In: Selbstbewußtsein individueller
Freiheit: Religionstheoretische Erkundungen in protestantischer
Perspektive. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2005, p. 69-90; I.
U. DALFERTH; H.-P. GROSSHANS. (Hg.). Kritik der Religion: zur
Aktualität einer unerledigten philosophischen und theologischen
Aufgabe. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2006; H.
SCHNÄDELBACH. Religion in der modernen Welt. Vorträge,
Abhandlungen, Streitschriften. Frankfurt am Main: Fischer
Taschenbuch Verlag, 2009; nesta conexão, cf. os seguintes estudos: N.
LUHMANN. Funktion der Religion. Suhrkamp Verlag, 1982, p. 182-
224; H. LÜBBE. Religion nach der Aufklärung. München: Wilhelm
Fink Verlag, 2004, p. 127-218. Sobre o tema de um protestantismo
esclarecido, cf. a introdução do estudo de U. BARTH. Aufgeklärten
Protestantismus. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2004,
sobretudo, p. 3-23.

384
inescapável, uma vez que esta estrutura deve ser capaz de
nomear a particularidade da religião, em sua distintividade
e relacionalidade, frente a outras funções transcendentais
do espírito240. Com efeito, o símbolo é a linguagem da
religião. No entanto, nenhum símbolo é, em e por si
mesmo, dotado de expressividade religiosa diante de uma
consciência que sempre já se sabe omnideterminante: a
assunção não reflexiva de símbolos em sua positividade
reificada é predicado insofismável da seclusão inerente a
uma consciência que permanece ínscia em relação ao
caráter simbólico de suas representações objetivas. Não há
religião sem símbolos, e os símbolos, em sua estrutura
genética de significância e validade mais própria,
constituem veículos singulares e exclusivos de
autoexpressão do religioso. Segue-se que o conceito de
símbolo elaborado por Tillich é, portanto, inseparável de
sua teoria da religião, e isto implica afirmar que uma
análise de sua teoria dos símbolos à parte da elucidação dos
fundamentos estruturantes de sua teoria da subjetividade
religiosa permanece, por necessidade, ininteligível241.

240
C. DANZ. Der Begriff des Symbols bei Paul Tillich und Ernst
Cassirer, p. 201: „Denn das religiöse Bewußtsein konstituiert sich
genau dann als religiöses im Unterschied zu anderen kulturellen
Funktionen, wenn es in der Lage ist, in einen symbolischen
Kommunikationsprozeß einzutreten“.
241
W. L. ROWE. Religious Symbols and God: A Philosophical Study of
Tillich’s Theology. Chicago; London: The University of Chicago
Press, 1968 é um típico exemplo de interpretações que pressupõem ser
possível interpretar o conceito de símbolo no pensamento de Tillich à
parte de uma análise imanente de sua teoria da subjetividade. Esta
tendência problemática permanece, a despeito do estado da arte da
pesquisa contemporânea sobre Tillich, influente no mundo
anglofônico. Sobre este ponto, cf. o estudo de D. H. KELSEY. The
Fabric of Paul Tillich’s Theology. Eugene: Wipf and Stock Publishers,

385
O objetivo do presente estudo é o de oferecer uma
delimitação conceitual e sistemática da teoria dos símbolos
desenvolvida por Tillich no âmbito de sua teoria da
consciência, do sentido e da religião 242 . Para este fim,
tomaremos como base os escritos maduros de Tillich,
sobretudo aqueles articulados a partir da década de vinte do
século passado, e que se caracterizam por abordar a
discussão deste conceito de forma mais propriamente
sistemática. Enquanto o grande articulador de uma teoria
dos símbolos na história da teologia evangélica recente, não
é estranho perceber que a influência da teoria de Tillich
constitui um referencial teórico que ultrapassa as fronteiras
específicas de seu campo de atuação intelectual, como é o
caso, sobretudo, embora não somente, da psicologia243. Por

2011 [1966!], p. 19-50, que ainda opera como base influente para as
interpretações da teologia de Tillich no mundo anglofônico.
242
Para breves considerações sobre a função do símbolo como solução
para a problemática das objetificações dos enunciados religiosos, cf. F.
H. ABREU. “Richtung auf das Unbedingte” and “Self-Transparency”:
The Foundations of Paul Tillich’s Philosophy of Spirit, Meaning, and
Religion (1919-1925), p. 73-84.
243
Sobre este ponto, veja, por exemplo, J. P. DOURLEY. The Psyche as
Sacrament: A Comparative Study of C. G. Jung and Paul Tillich.
Toronto: Inner City Books, 1981; A. M. SEELIG. Das Selbst als Ort der
Gotteserfahrung. Ein Vergleich zwischen Carl Gustav Jung und Paul
Tillich. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1995; R. MUGERAUER.
Symboltheorie und Religionskritik. Paul Tillich und die symbolische
Rede von Gott aus theologischer, religionsphilosophischer und
psychoanalytischer Perspektive, konkretisiert am Symbol „Vater“ für
Gott. Marburg: Tectum Verlag, 2003, especialmente, p. 26-43; T. D.
COOPER. Paul Tillich and Psychology: Historic and Contemporary
Explorations in Theology, Psychotherapy, and Ethics. Macon: Mercer
University Press, 2006; J. P. DOURLEY. Paul Tillich, Carl Jung and the
Recovery of Religion. New York: Routledge, 2008; K. GRAU. Mut zur
Teilhabe – Tillich-Impulse für die Seelsorge. In: K. GRAU; P. HAIGIS;
I. NORD. (Hg.). Tillich Preview. Band 3: Religion und Magie bei Paul
Tillich. Münster: LIT Verlag, 2010, p. 87-94. Sobre a inserção

386
profissional de Tillich nos círculos de debate sobre psicologia e
psicoterapia nos Estados Unidos, afirma Grau: „Die Hintergründe von
Tillichs Verhältnis zu Psychologie und Psychotherapie sind wenig
bekannt: Von 1941 bis 1945 versammelten sich in der New York
Psychology Group Persönlichkeiten aus Theologie und Philosophie,
aus Psychiatrie und Psychotherapie. Namen wie Ruth Benedict, Erich
Fromm, Seward Hiltner, Rollo May, David Roberts und Carl Rogers
tauchen neben dem Paul Tillichs in den bisher unveröffentlichten
Protokollen der hochkarätigen Gesprächsrunde auf, die sich
nacheinander den Themen The Psycology of Faith, The Psycology of
Love, The Psycology of Conscience und The Psycology of Helping
widmete. In der letzten Sitzung des Kreises stellte der junge Carl
Rogers die Grundzüge seines neu entwickelten klientenzentrierten
Therapiekonzepts vor“. A referência, aqui, é K. GRAU. Mut zur
Teilhabe – Tillich-Impulse für die Seelsorge, p. 87 [nota 2]. A
abordagem tillichiana de correlação é considerada uma das condições
para o surgimento tanto do movimento pastoral norte-americano,
quanto do europeu tardio, especialmente porque Seward Hiltner, um
dos pais do aconselhamento pastoral, foi diretamente influenciado por
ele. Sobre este ponto, cf.: K. WINKLER. Seelsorge. Berlin; New York:
Walter de Gruyter & Co. KG, 2000, p. 63. Para uma análise
interdisciplinar do pensamento de Tillich enquanto o representante por
excelência da perspectiva protestante sobre a teoria dos símbolos, cf. o
estudo aplicado de W. W. MÜLLER. Das Symbol in der dogmatische
Theologie: eine symboltheologische Studie anhand der Theorien bei K.
Rahner, P. Tillich, P. Ricoeur und J. Lacan. Frankfurt am Main; Bern;
New York; Paris: Peter Lang GmbH; Internationaler Verlag der
Wissenschaften, 1990, p. 119, e 198-229 (Die inhaltlichen
Abgrenzungen des Symbolbegriffs). Por outro lado, não menos
relevante é a contribuição da teoria dos símbolos de Tillich para o
campo dos debates entre as religiões mundiais, isto é, para a teologia
das religiões, desde uma perspectiva protestante. Esta contribuição
específica se tornou foco da pesquisa minuciosa desenvolvida por R.
B. JAMES. Tillich and World Religions: Encountering Other Faiths
Today. Macon: Mercer University Press, 2003. Em função de seu
entendimento da linguagem teológica enquanto estritamente simbólica,
Tillich tem possibilitado perspectivas novas para a fundamentação de
um sistema teológico rigorosamente compreendido como sistemas de
sentido e autoapresentação humanos. Sobre este ponto, cf., entre
outros, C. DANZ. Einführung in die Theologie der Religionen. Wien:
LIT Verlag, 2005, sobretudo, p. 187; cf. também IDEM. Gott und die
menschliche Freiheit: Studiem zum Gottesbegriff in der Neuzeit.

387
mais que tal influência extra muros theologiae ainda careça
de matização, não é possível, entretanto, empreender uma
tal tarefa aqui. Antes, o que aqui se intenciona demonstrar,
a partir da elucidação dos princípios que sustentam a teoria
dos símbolos de Tillich, é a posição-chave que esta teoria
ocupa no interior de seu sistema filosófico e teológico244.
Neste sentido, a importância especial de sua teoria dos
símbolos não se encontra, por mais relevante que esta
função seja, apenas em seu papel de mediação entre ou
combinação de “conhecimento filosófico e revelação
cristã”245, tal como geralmente se infere. A relevância mais
distintiva da teoria dos símbolos de Tillich se encontra,
antes, no “entrelaçamento, possibilitado pelo conceito de

Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlagsgesellschaft, 2005; IDEM.


Systematische Theologie. Tübingen: UTB; Narr Francke Attempto
Verlag GmbH Co. KG., 2016, p. 125-129; IDEM. Christianity and the
Encounter of World Religions. Considerations to a Contemporary
Theology of Religions. Revista Eletrônica Correlatio, v. 15, n. 2,
2016, p. 9-26.
244
U. REETZ. Das Sakramentale in der Theologie Paul Tillichs.
Stuttgart: Calwer Verlag, 1974, p. 7: „Was die Theologie Tillichs
betrifft, so kann mit Recht behauptet werden, daß das
Symbolverständnis ein Schlüssel für sein theologisches Denken ist“.
245
É representativo o dictum de Otto Dibelius, de acordo com o qual o
valor do conceito de símbolo de Tillich, enquanto um “link” entre
“conhecimento filosófico” e “revelação cristã”, deveria ser
considerado em tão alta estima que seria possível praticamente igualá-
lo à sua “biblioteca filosófica inteira”. Cf. O. DIBELIUS. Laudatio auf
Paul Tillich. Ansprache bei der Verleihung des Friedenpreises an Paul
Tillich. In: Friedenpreisträger Paul Tillich. Stimmen zur Verleihung
des Friedenpreises des Deutschen Buchhandels 1962 mit der Laudatio
von Bischof Dibelius und der Friedenpreisrede von Paul Tillich.
Stuttgart: Evangelisches Verlagswerk, 1963, p. 11-16, aqui, p. 14.
Dibelius acrescenta ainda que: „Hier ist nun die Tür weit aufgetan für
das, was für den Christen unabdingbar ist. Das Bindeglied, das die
philosophische Erkenntnis mit der christlichen Offenbarung verbindet,
ist Tillichs Begriff des Symbols“.

388
sentido, de filosofia do espírito e teologia da cultura,
filosofia da religião e teoria da ciência”246. Neste sentido, o
símbolo desempenha um papel programático no edifício
sistêmico maduro de Tillich: conforme afirmado acima, ele
é responsável tanto por constituir a única possibilidade de
autoexpressividade do evento de transparência da
consciência religiosa em sua historicidade e reflexividade
internas, quanto por possibilitar não apenas a
fundamentação de seu sistema das ciências, mas também a
determinação metodológica da teologia, como sua palestra
Über de Idee einer Theologie der Kultur de 1919 (ou,
Kulturvortrag) assinala, enquanto “ciência concreta e
normativa da religião”247. Esta determinação do lugar da
teologia, a despeito das críticas advindas, sobretudo, das
ciências da religião, especialmente daquelas mais

246
U. BARTH. Die sinntheoretischen Grundlagen des Religionsbegriffs.
Problemgeschichtliche Hintergründe zum frühen Tillich. In: Religion
in der Moderne. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2003, p. 93:
„Die großen Aufsätze und Monographien der Berliner, Marburger und
Dresdener Jahre fußen allesamt auf der durch den Sinnbegriff
ermöglichten Verschränkung von Geistphilosophie und
Kulturtheologie, Religionsphilosophie und Wissenschaftstheorie. Auch
die zu dieser Zeit entstandene und ins Spätwerk hinüberführende
Symboltheorie verdankt sich dieser inneren Systemvernetzung“.
247
P. TILLICH. Über die Idee einer Theologie der Kultur. (1919). In: M.
PALMER (Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 2:
Kulturphilosophische Schriften. Berlin; New York: Walter de Gruyter;
Evangelisches Verlagswerk, 1990, p. 70-72, aqui, p. 71: „Theologie ist
also konkret-normative Religionswissenschaft“. Sobre este ponto, veja,
sobretudo, o estudo histórico-genético de C. DANZ. Theologie als
normative Religionsphilosophie. Voraussetzungen und Implikationen
des Theologiebegriffs Paul Tillichs. In: C. DANZ. (Hg.). Theologie als
Religionsphilosophie: Studien zu den problemgeschichtlichen und
systematischen Voraussetzungen der Theologie Paul Tillichs. Tillich-
Studien: Band 9. Wien: LIT Verlag, 2004, p. 73-106, especialmente, as
p. 99-106.

389
empiricistas e, portanto, igualmente mais frágeis,
conquanto menos compreensivas248 – e, em alguns casos,
abertamente reducionistas 249 –, em relação ao alegado
caráter pretencioso de normatividade250 intencionado por

248
Cf. H.-J. GRESCHAT. O que é ciência da religião? São Paulo:
Paulinas, 2005, sobretudo, p. 155-165; F. USARSKI. Constituintes da
ciência da religião: cinco ensaios em prol de uma ciência autônoma.
São Paulo: Paulinas, 2006, p. 15-54, p. 125-132; contra as abordagens
de Greschat e Usarski, cf. F. STOLZ. Grundzüge der
Religionswissenschaft. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1988, p.
34-44; D. WIEBE. Religião e verdade: rumo a um paradigma
alternativo para o estudo da religião. São Leopoldo: Sinodal, 1998; K.
HOCK. Introdução à ciência da religião. São Paulo: Edições Loyola,
2010, p. 199-215. Como bem afirma F. STOLZ. Grundzüge der
Religionswissenschaft, p. 44: „auf der anderen Seite tut die
Religionswissenschaft gut daran, sich auf die Theologie einzulassen;
denn diese hat die Fragen, welche den kulturellen und religiösen
Hintergrund des hier tätigen Religionswissenschafters bilden, auf der
Ebene der Reflexion in ungeheurer Breite und Tiefe bearbeitet“. Para
uma demarcação sistemática entre teologia, ciência da religião e
filosofia da religião, cf. o exímio estudo de J. DIERKEN. Theologie,
Religionswissenschaft und Religionsphilosophie: Grenzen und
Übergänge. In: Ganzheit und Kontrafaktizität: Religion in der Sphäre
des Sozialen. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2014, p. 55-78.
249
R. A. SEGAL. In Defense of Reductionism. Journal of the American
Academy of Religion, vol. 51, no. 1, 1983, p. 97-104; para uma crítica
da metodologia reducionista no estudo da religião, cf. D. WIEBE.
Beyond the Sceptic and the Devotee: Reductionism in the Scientific
Study of Religion. Journal of the American Academy of Religion, vol.
52, no. 1, 1984, p. 157-165.
250
Neste sentido, as sentenças iniciais da programática Kulturvortrag
de Tillich, que estabelecem uma distinção fulcral entre as ciências da
experiência ou empíricas (den Erfahrungswissenschaften) e as ciências
sistemáticas da cultura (den systematischen Kulturwissenschaften),
permanecem, neste caso, mais que atuais e devem ser reafirmadas:
„Anders in den systematischen Kulturwissenschaften: In ihnen gehöhrt
der Standpunkts des Systematikers zur Sache selbst, er ist ein Moment
in der Entwicklungsgescichte der Kultur, er ist eine bestimmte,
konkret-historische Verwirklichung einer Kulturidee, er ist nicht nur
kulturerkennend, sondern auch kultuschöpferisch [...] Jeder

390
uma ciência que, quando reconhecida enquanto tal,
somente pode configurar-se, na mais benevolente das
condescendências do concerto das ciências, como uma
ciência positiva, isto é, incuravelmente atrelada ao caráter
confessional que representa, continua, mesmo hoje,
operando como resultado necessário251 de uma retomada
intrépida do valor universal e insubstituível da
subjetividade enquanto esfera de normatividade última em

kulturwissenschaftliche Allgemeinbegriff ist entweder unbrauchbar,


oder er ist ein verhüllter Normbegriff, er ist entweder Umschreibung
eines Nichts oder er ist Ausdruck eines Standpunktes; er ist eine
wertlose Hülse, oder er ist eine Schöpfung. – Der Standpunkt wird
ausgesprochen von einem einzelnen; ist er aber mehr als individuelle
Willkür, ist er Schöpfung, so ist er zugleich – in höherem oder
geringerem Maße – Schöpfung des Kreises, in dem der einzelne steht“.
P. TILLICH. Über die Idee einer Theologie der Kultur, p. 70.
251
Sobre este ponto, cf. G. PFLEIDERER. Theologie als
Wirklichkeitswissenschaft: Studiem zum Religionsbegriff bei Georg
Wobbermin, Rudolf Otto, Heinrich Scholz und Max Scheler.
Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1992, especialmente, p. 225-
244; F. W. GRAF. Theologie. In: F. KEISINGER; S. SEISCHAB. (Hg.).
Wozu Geisteswissenschaften? Kontroverse Argumente für eine
überfällige Debatte. Frankfurt: Campus, 2003, p. 109-116; IDEM. Die
Wiederkehr der Götter: Religion in der modernen Kutur. München:
Verlag C. H. Beck, 2004, p. 249-278; F. NÜSSEL. Theologie als
Kulturwissenschaft? Theologische Literaturzeitung, 130, Nr. 11, 2005,
p. 1153-1168; G. PFLEIDERER. “Theologie als
Universitätswissenschaft”. Recent Debates and What They (Could)
Learn from Schleiermacher. In: B. SOCKNESS; W. GRÄB. (Ed.).
Schleiermacher, the Study of Religion, and the Future of Theology: A
Transatlantic Dialogue, p. 81-96. Em nosso contexto, o ensaio mais
importante na direção da fundamentação da teologia a partir de uma
teoria da subjetividade é, sem dúvidas, de autoria de L. H. DREHER.
Vida, liberdade e subjetividade religiosa: mapeando um acesso
possível à questão filosófica de Deus. In: M. L. L. de O. XAVIER.
(Org.). A questão de Deus: ensaios filosóficos. Sintra: Zéfiro, 2010, p.
113-146.

391
sua autoafirmação compreensiva no mundo da vida 252 .
Neste sentido, o resgate da determinação do conceito de
símbolos de Tillich, cujas bases se encontram em sua
filosofia do espírito, do sentido e da religião, contribui,
igualmente, para uma reafirmação do caráter de
cientificidade da teologia 253 a partir dos pressupostos
fundamentais de uma teoria da subjetividade 254 que

252
Aqui, evidentemente, assumimos que uma teoria da subjetividade,
quer nos termos daquela formulada por Tillich ou por outros autores,
não constitui uma teoria entre outras. Antes, e em conformidade com
Tillich, pode-se afirmar que a subjetividade é o princípio e o
fundamento para os imprescindíveis “Letzte Gedanken” responsáveis
pela atualização da autoconsciência individual em sua dimensão
reflexiva e histórica. Sobre a relevância de uma teoria da subjetividade
como ponto de partida para as ciências do espírito, cf. D. HENRICH.
Selbstbewußtsein. Kritische Einleitung in eine Theorie. In: R. BUBNER;
K. CRAMER; R. WIEHL. (Hg.). Hermeneutik und Dialektik. Aufsätze.
Band 1. Hans-Georg Gadamer zum 70. Geburtstag am 11. Februar
1970. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), p. 257-284; IDEM. Die
Anfänge der Theorie des Subjekts (1789). In: A. HONNETH; T.
MCCARTHY; C. OFFE; A. WELLMER. (Hg.). Zwischenbetrachtungen:
Im Prozeß der Aufklärung: Jürgen Habermas zum 60. Geburtstag.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1989, p. 106-170; IDEM. Das
Selbstbewußtsein und seine Selbstdeutungen. Über Wurzeln der
Religionen im bewußten Leben. In: Fluchtilinien. Philosophische
Essays. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1982, p. 99-124; IDEM.
Subjektivität als Prinzip. In: Bewußtes Leben. Untersuchung zum
Verhältnis von Subjektivität und Metaphysik. Stuttgart: Philipp
Reclam, 1999, p. 49-73. Sobre a relevância de Henrich para a filosofia
da religião e teologia, cf. U. BARTH. Letzte Gedanken. Dieter Henrichs
Umformung der Metaphysik in Lebensdeutung. In: Gott als Projekt
der Vernunft, p. 465-489.
253
Cf., em nosso contexto, o breve, porém importante, estudo de E.
GROSS. O conceito de religião em Paul Tillich e a ciência da religião.
Revista Eletrônica Correlatio, vol. 12, no. 24, 2013, p. 59-76.
254
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 413: „Der frühe Tillich begriff [...]
Theologie als konkret-normative Religionswissenschaft. Dieses Motiv

392
rigorosamente demarca a religião nos termos de uma
“subjetividade extrapolativa ao transcendente”255 – isto é, de
uma subjetividade que se autocompreende e se
autodetermina enquanto propriamente religiosa.
Tendo-se em vista estas considerações preliminares,
as pressuposições sistemáticas do conceito de símbolo
desenvolvido por Tillich serão abordadas, num primeiro
momento, a partir da fundamentação conceitual de sua
filosofia do espírito sobre a base de uma teoria monista do
sentido. Num segundo momento, demonstrar-se-á que
esta filosofia do espírito e do sentido constitui o contexto
de explicação da teoria do absoluto – ou, mais
precisamente, do incondicional – desenvolvida por Tillich,
isto é, a estrutura teórica geral a partir da qual o conceito
de símbolo é elaborado. Por fim, sobre a base destes dois

ist auch noch fur die Systematische Theologie bestimmend, insofern


sie mit Strukturen arbeitet, welche einer philosophischen Analyse
entstammen und durch den theologischen Zirkel einer bestimmten
positiven Religion verpflichtet ist. Auf Grund dieser beiden Aspekte ist
das theologische System weder eine Wesensbestimmung der Religion,
noch eine deskriptive Beschreibung einer bestimmten Religion,
sondern eine Synthesis beider Aspekte“.
255
L. H. DREHER. Vida, liberdade e subjetividade religiosa: mapeando
um acesso possível à questão filosófica de Deus, p. 114-116, aqui, p.
115: “Mas não há religião enquanto religião se ela não entender-se ao
menos como intencionalidade extrapolativa desde a subjetividade. Em
si mesma, esta sempre já ultrapassa, abarcando-as e delas se
distanciando em busca de um saber mais fundamental de si, as
concreções [...] que acompanham sua vida [...] Não há autêntica
religião, portanto, sem transcendência. Toda religião, seja mais
estimulada ou mais espontânea, começa com a subjetividade mas nela
não permanece, ainda que se estenda o subjetivo à (real ou desejada)
infinitude quantitativa da espécie – como “matéria” antropológica
constante, possivelmente substitutiva do Absoluto [...] não há religião
rigorosamente entendida sem subjetividade e intencionalidade
extrapolativa”.

393
elementos teóricos e sistemáticos, o conceito de religião,
bem como sua posição particular dentro das demais
funções culturais, poderá ser abordado em sua
peculiaridade. Para fins de determinação histórico-
genética, no entanto, é necessário que a presente
investigação se volte, em primeiro lugar, para a história do
desdobramento da compreensão de símbolo tal como esta
aparece na totalidade do pensamento de Tillich. Este
breve, porém necessário, incurso tem por finalidade
atender, por um lado, às exigências analíticas de cunho
histórico-genético que por ora se impõem, e situar com
precisão, por outro, a centralidade que a teoria dos
símbolos elaborada por Tillich ocupa em seu pensamento
maduro – e isto a despeito das nuanças e alterações que esta
teoria sofre no desdobramento de sua produção intelectual.
No entanto, como se pretende demonstrar, há um fio
condutor que, em que se pese a flutuação conceitual na
determinação da teoria do símbolo no decorrer da
produção intelectual de Tillich, permite precisar a
continuidade fundamental da natureza e função da
comunicação simbólica na totalidade de seu pensamento –
a saber, a determinação do símbolo como meio de
autointerpretação da subjetividade individual na
autotransparência de sua reflexividade interna, isto é, como
instrumento objetivo por meio do qual o autoesclarecimento das
condições constitutivas da subjetividade individual em sua
autorrelacionalidade e finitude encontra expressão. É, pois,
para esta análise de cunho histórico-genético que a seção a
seguir se dirige.

394
1. Apontamentos histórico-genéticos sobre o
desdobramento do conceito de símbolo na obra de
Paul Tillich

A gênese histórica da compreensão do conceito de


símbolo desenvolvido por Tillich geralmente remonta à
discussão da forma madura de sua Symboltheorie. Desde a
publicação de seu texto Das religiöse Symbol, em 1928256, e
em diversos escritos elaborados durante o período
estadunidense de sua produção intelectual, incluindo os
três volumes de seu opus magnum, o conceito de símbolo
alcança reconhecida centralidade sistemática em sua teoria
da religião. No entanto, há diferenças significativas entre a
compreensão do conceito de símbolo presente nos escritos
tardios de Tillich e as primeiras considerações teóricas
provenientes dos escritos que conformam a fase madura de
seu pensamento filosófico e teológico. A principal
diferença se encontra na semântica ontológico-existencial
que caracteriza suas obras estadunidenses, que parece,
prima facie, subverter os alicerces filosófico-transcendentais
que fundamentam seus escritos do período alemão257. Com

256
P. TILLICH. Das religiöse Symbol. (1928). In: J. P. CLAYTON. (Hg.).
Main Works – Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische
Schriften, p. 213-228.
257
L. C. HEINEMANN. The Concept of the Religious Symbol in Tillich’s
Early Philosophy of Spirit: Guardian against Exclusive Claims about
the Absolute. In: K. GRAU; P. HAIGIS; I. NORD. (Hg.). Tillich Preview.
Band 2: im Auftrag der Deutschen Paul Tillich-Gesellschaft. Berlin:
LIT Verlag, 2009, p. 25-41, aqui, p. 28: “At that time [viz., o tempo
anterior à sua emigração para os Estados Unidos], Tillich’s philosophy
of spirit had more precisely the form of a theory of consciousness, a
theory that vanished almost completely after his emigration to the US”.
Heinemann, no entanto, corrige completamente esta posição disjuntiva
prévia em sua reconstrução histórico-genética do conceito de símbolo

395
efeito, Tillich fala abertamente, em sua Systematic Theology,
sobre a teoria da analogia entis enquanto fundamento único
das condições de sua teoria dos símbolos 258 . Esta
perspectiva do fundamento único da teoria dos símbolos a
partir do recurso à analogia entis, embora tenha ensejado,
sobretudo em função da forma de sua apresentação,
críticas, ao mesmo tempo, legítimas e ilegítimas259, não

no pensamento de Tillich sem, obviamente, obliterar as nuanças e


flutuações deste conceito. Sobre este ponto, cf. L. C. HEINEMANN. Sinn
– Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der
frühen Symboltheorie Paul Tillichs, especialmente, p. 455-549, e p.
573-581.
258
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 240: “The analogia entis gives us our only
justification of speaking at all about God. It is based on the fact that
God must be understood as being-itself”.
259
K.-D. NÖRENBERG. Analogia Imaginis. Der Symbolbegriff in der
Theologie Paul Tillichs, p. 129-158; M. SEILS. Glaube.
Reihe: Handbuch Systematischer Theologie. Band 13. Herausgegeben
von Carl Heinz Ratschow. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Gerd
Mohn, 1996, especialmente, p. 286. As múltiplas alegações de M.
MOXTER. Kultur als Lebenswelt: Studien zum Problem einer
Kulturtheologie, p. 30-36 em relação à presença de um “naiver
Realismus” na teoria tardia dos símbolos de Tillich, entretanto, não
resistem a uma reconstrução rigorosa. Sobre este ponto, cf. L. C.
HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische
Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, sobretudo, a p.
489, onde o caminho para a reconstrução da teoria dos símbolos em
uma perspectiva estritamente não-realista é apontado, e as p. 501-549,
onde esta perspectiva é desenvolvida. É interessante notar que, para
fins de matização de aspectos fundamentais da teoria dos símbolos de
Tillich, Heinemann recorre à teoria de Nelson Goodman, que,
entretanto, é completamente diferente da teoria de Tillich. Contudo, é
precisamente a partir da obra de Goodman que Heinemann consegue
esclarecer aspectos centrais da teoria dos símbolos de Tillich que, de
outra forma, permaneceriam obscuros. Para a obra de Goodman, cf. N.
GOODMAN. Languages of Arts: An Approach to a Theory of Symbols.
Indianapolis; New York; Kansas City: The Bobbs-Merrill Company,
Inc., 1968.

396
pode ser tomada, contudo, como expressão última da
fundamentação de sua teoria dos símbolos260. O recurso à

260
W. SCHÜßLER. Paul Tillich. München: C. H. Beck’sche
Verlagsbuchhandlung (Oscar Beck), 1997, p. 66, por exemplo, toma o
recurso de Tillich como expressão de uma reformulação de seu
pensamento sobre os fundamentos de uma metafísica pré-kantiana.
Como ele afirma: „Tillichs Symboldenken erinnert in vielen Punkten
an die ‚Negative Theologie‘, wie sie exemplarisch von dem paganen
Philosophen Plotin entwickelt wurde und durch Pseudo-Dionysius
Areopagita ins christliche Denken Eingang gefunden hat. Denn
Symboltheorie wie Negative Theologie stellen einen Mittelweg
zwischen Adäquation und Agnostizismus dar. Tillich ist sich mit Plotin
darin einig, daß Gott in Wirklichkeit kein Name zukommt, daß kein
Symbol in der Lage ist, Gott adäquat auszudrücken“. Apesar do
desenvolvimento da Tillich-Forschung, entretanto, Schüßler mantém a
mesma interpretação errônea de Tillich. Ainda em 2013, Schüßler
interpreta a problemática referência de Tillich com uma forma de
theologia naturalis que remonta, em última análise, às metafísicas de
Platão, Aristóteles e Plotino. Nas palavras de W. SCHÜßLER. „Meine
katholischen Freunde verstehen mich besser als meine
protestantischen“. Wie „katholisch“ ist Paul Tillich? In: U. BARTH; C.
DANZ; W. GRÄB; F. W. GRAF. (Hg.). Aufgeklärte Religion und ihre
Probleme. Schleiermacher – Troeltsch – Tillich. Berlin; Boston:
Walter de Gruyter GmbH, 2013, p. 317: „In diesem Kontext stellt
Tillich auch die Verbindung der analogia entis zum
Partizipationsgedanken her – und das zu Recht, denn Teilhabedenken
ist im Grunde Ähnlichkeitsdenken, und Analogiedenken ist – wie
Johannes Hirschberger gezeigt hat – seinem Wesen nach ebenfalls
Ähnlichkeitsdenken. Neben diesem weiten Gebrauch des Begriffs der
analogia entis verwendet Tillich diesen aber auch in einem engeren
Sinne. Dann bezieht er sich auf die Analogielehre des Thomas von
Aquin als einer bestimmten Ausprägung der Gottesprädikation.
Genauerhin handelt es sich hierbei um die Proportions- oder
Attributionsanalogie, die auf die Aristotelische Pros-Hen-Aussage
zurückgeht, die beide Denker mit dem bekannten Beispiel der
Gesundheit zu verdeutlichen suchen“. Para a referência ao artigo de
Hirschberger, cf. J. HIRSCHBERGER. Paronymie und Analogie bei
Aristoteles. Philosophisches Jahrbuch, vol. 68, 1960, p. 191-203; nesta
conexão, cf. C. RAPP. Ähnlichkeit, Analogie und Homonymie bei
Aristoteles. Zeitschrift für Philosophische Forschung, vol. 46, no. 4,
1992, p. 526-544. Para Schüßler, entretanto, a perspectiva metafísica

397
de Tillich necessita de precisação. A despeito de seu recurso
problemático à teoria da analogia entis, a metafísica de Tillich, para
Schüßler, não pode ser equiparada, por exemplo, à metafísica tomista.
Antes, Tillich estaria mais próximo, na opinião de Schüßler, à teoria
dos “jogos de linguagem” do Wittgenstein tardio. Nas palavras de
Schüßler: „Religiöse Symbole sind nämlich nach Tillich außerhalb der
existentiellen Situation eines ,ultimate concern‘ bedeutungslos. In
diesem Punkt weist seine Symboltheorie eine sehr große Nähe zur
religiösen Sprachspieltheorie des späten Wittgensteins auf“ – aqui, p.
318. Contra esta perspectiva de Schüßler, pesam, no entanto, inúmeros
estudos. M. SEILS. Glaube, p. 286, por exemplo, afirma que, embora
Tillich tenha tentado fundamentar a possibilidade dos símbolos a partir
da teoria da analogia entis, esta teoria não constitui uma solução
adequada. Como ele afirma: „Das reicht aber für seine Sicht der Dinge
nicht aus“. Duas razões contribuem para a interpretação de Seils contra
o recurso tillichiano ao poder persuasivo da teoria da analogia entis.
De um lado, a diferença entre o incondicionado e condicionado
estabelecida por Tillich é muito ampla; de outro, é preciso reconhecer
que antes de recorrer à teoria da analogia entis, Tillich fala em
símbolos, isto é, em elementos específicos da realidade que possuem a
capacidade de expressar o incondicionado por meio do condicionado.
Por estes motivos, a resposta de Tillich ao problema da condição de
possibilidade do discurso simbólico não é, pois, para Seils,
convincente. „Tillich hat sich in dieser Verlegenheit mit der –
umstrittenen – Auskunft beholfen, der Mensch als Mensch habe von
vornherein die Fähigkeit zu einem ,nichtsymbolischen‘ Ausdruck, und
das sei die Aussage ,Gott ist das Sein-Selbst‘“ (p. 286). Sobre este
ponto, cf., igualmente, IDEM. Zur Problematik des Verhältnisses von
Sein und Wort in der Theologie Tillichs. Theologische
Literaturzeitung, Nr. 11, 1960, p. 867-870. Cf., ainda, a discussão
elaborada por C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie
zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich p. 159-168. O ponto a ser observado,
aqui, é que o motivo central para o emprego da linguagem simbólica
por Tillich é orientado pelo conceito kantiano de símbolo. Assim como
para Kant, também em Tillich o símbolo possui um lugar genuíno na
dimensão prática. Da mesma forma, o discurso de Tillich sobre a
analogia também evoca a posição exposta por Kant na terceira crítica,
isto é, sua Kritik der Urteilskraft. Para o emprego de Tillich, cf. P.
TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 179; p. 239-240; IDEM. Systematic Theology.
Volume II: Existence and the Christ. Chicago: The University of

398
teoria da analogia entis constitui não apenas um movimento
de natureza filosófico-crítica problemática, como também
entra em desacordo com os pressupostos teóricos
fundamentais que sustentam não apenas a teoria da religião
e dos símbolos, mas também a forma própria do
relacionamento entre ambas. Neste sentido, torna-se
necessário apresentar, em primeiro lugar, o contexto a
partir do qual Tillich emprega seu conceito de símbolo.
Sem este retorno ao contexto em que seu conceito de
símbolo é empregado originariamente, tornar-se-ia
impossível afirmar que Tillich não advoga, de fato, um
“realismo ingênuo” (Moxter) em seus escritos tardios.

α. Símbolo ou intuição e conceito? Sobre as alternâncias e


flutuações na busca por uma solução teórica para o
problema do paradoxo absoluto

Uma leitura atenta das obras de Tillich demonstra


que o conceito de símbolo aparece reiteradamente em seus
escritos filosóficos e teológicos desde, ao menos, o início da
década de 20 do século passado. Em seus escritos

Chicago Press, 1957, p. 115. Sobre o sentido de símbolo em Kant, cf.


I. KANT. Kritik der Urteilskraft. In: W. WEISCHEDEL. (Hg.). Immanuel
Kant. Werke in zehn Bänden. Sonderausgabe. Band 8: Kritik der
Urteilskraft und Schriften zur Naturphilosophie. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, p. 233-620, aqui, § 59, p.
459. Sobre o conceito de símbolo em Kant, cf. C. DIERKSMEIER. Das
Noumenon Religion. Eine Untersuchung zur Stellung der Religion im
System der praktischen Philosophie Kants. Berlin; New York: Walter
de Gruyter GmbH & Co., 1998, p. 85-96, e, especialmente as p. 91-92
onde o conceito de símbolo de Kant é interpretado em diálogo – e não
em dissonância! – com o conceito de símbolo de Tillich.

399
anteriores a este período, entretanto, o conceito de símbolo
aparece apenas de forma esporádica, assistemática, confusa
e com uma carga semântica de difícil apreensão metódica
precisa261. A primeira menção do conceito de símbolo na
obra de Tillich aparece em seu artigo Rechtfertigung und
Zweifel, de 1919. Neste contexto, o símbolo é empregado
como categoria que intenciona solucionar o problema das
objetificações (Vergegenständlichungen) oriundas da
intuitividade irrefletida (unreflektierten Anschaulichkeit) face
à “vitalidade e concretude do paradoxo absoluto [die
Lebendigkeit und Konkretheit des absoluten Paradox]” 262 .
Aqui, o conceito de símbolo já se encontra operando, de
forma intuitivamente programática, em conexão com sua
filosofia do espírito e do sentido263. Não obstante, durante
a revisão desta passagem do artigo, realizada em 1924, o
conceito de símbolo não é empregado. A revisão do artigo
traz, antes, não apenas o emprego dos conceitos – cum

261
L. C. HEINEMANN. Symboltheoretische Anfänge. Paul Tillichs frühe
Privatdozentenjahre in Berlin (1919/1920), p. 237-240.
262
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919). In: E. STURM.
(Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken
von Paul Tillich. Band X: Religion, Kultur, Gesellschaft.
Unveröffentlichte Texte aus der deutschen Zeit (1908-1933). Erster
Teil. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, 1999, p.
172: „Sobald sich das Bewußtsein aber auf die Stufe des radikalen
Zweifels erhoben hat, können jene Vergegenständlichungen in ihrer
unreflektierten Anschaulichkeit nur als Symbole gelten für die
Lebendigkeit und Konkretheit des absoluten Paradox. Auf dieser Stufe
kann das Bewußtsein jene Symbole nur gebrauchen unter ständiger
Erinnerung an ihren symbolischen Charakter und den Sinn, den sie
zwar anschaulich und lebendig, aber doch inadäquat ausdrücken“.
263
Os fundamentos da filosofia do espírito de Tillich serão
apresentados mais adiante. Sobre isso, cf. o tópico 2, sobre o monismo
do sentido, e os tópicos 3 e 4 para a determinação do conceito de
religião e símbolo.

400
grano salis, hegelianos – de Anschauung e Begriff para o
problema das objetificações, como também recorre ao
conceito de revelação (Offenbarung) como solução para a
expressão da vitalidade e concretude do paradoxo
absoluto264.
A revisão operada por Tillich em seu artigo
Rechtfertigung und Zweifel é, no mínimo, desconcertante
para toda e qualquer tentativa rigorosa de apreensão do
sentido preciso de seu conceito de símbolo. De forma ainda
mais intrigante, entretanto, a primeira versão de sua
programática Kulturvortrag de 1919, bem como a revisão
deste programa elaborada em 1921, abdica completamente
do conceito de símbolo como chave para a demarcação do
modo próprio do relacionamento entre religião e cultura.
Esta ausência é ainda mais notável quando se percebe que a
Kulturvortrag de Tillich já havia fixado, em grande medida,
a terminologia oriunda dos “insights conteudísticos” 265

264
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1924). In: E. STURM.
(Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken
von Paul Tillich. Band X: Religion, Kultur, Gesellschaft.
Unveröffentlichte Texte aus der deutschen Zeit (1908-1933). Erster
Teil, p. 221: „Aber das Bewußtsein kann nicht umhin, das Unbedingte
in diesen drei Formen zu hypostasieren. Es liegt hier gewissermaßen
ein Schweben zwischen Anschauung und Begriff vor, ein
Vergegenständlichen des Sinnes zu einem Seienden durch die
Anschauung und ein Entgegenständlichen des Seienden zu einen Sinn
durch den Begriff [...] Sobald sich das Bewußtsein aber auf die Stufe
des radikalen Zweifels erhoben hat, können jene
Vergegenständlichungen nur als Offenbarungen gelten für die
Lebendigkeit und Konkretheit des absoluten Paradox“.
265
O conceito de “insights conteudísticos [inhaltlichen Einsichten]” é
tomado de empréstimo de Adorno que, por sua vez, o emprega em seus
– já clássicos – Drei Studien zu Hegel. Sobre este ponto, cf. T. W.
ADORNO. Drei Studien zu Hegel. In: R. TIEDEMANN; G. ADORNO; S.
BUCK-MORSS; K. SCHULTZ. (Hg.). Gesammelte Schriften. Band 5: Zur

401
sobre a filosofia do espírito, do sentido e da religião que se
desdobra, de forma estritamente sistemática, nos anos
subsequentes 266 . No entanto, nem o seu System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, por um
lado, nem sua Religionsphilosophie 267 , por outro, ambos
surgidos em 1923 como uma “obra dupla [Doppelwerk]”268,

Metakritik der Erkenntnistheorie. Drei Studien zu Hegel. Frankfurt am


main: Suhrkamp Verlag, 1970, p. 252.
266
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
217-218.
267
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden. (1923). In: G. WENZ. (Hg.). Main Works – Hauptwerke.
Band 1: Philosophische Schriften. Berlin; New York: Walter de
Gruyter; Evangelisches Verlagswerk, 1989, p. 113-263; IDEM.
Religionsphilosophie. (1925). In: J. P. CLAYTON. (Hg.). Main Works –
Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische Schriften, p. 117-170.
268
De acordo com Heinemann, o texto clássico sobre filosofia da
religião de Tillich, publicado em 1925 no segundo volume do
Lehrbuch der Philosophie organizado por Max Dessoir, foi finalizado
e submetido à publicação já em outubro de 1923. O próprio Tillich
chega a apontar, no periódico Blätter für Religiösen Sozialismus, a
demora em relação à publicação de seu texto em uma resposta a Carl
Mennicke sobre sua Kasseler Vortrag: „Schon die letzten Kapitel
meines System der Wissenschaften, vor allem aber meine
Religionsphilosophie, die seit Oktober bei Ullstein liegt und des
Druckes harrt, führten über ihn hinaus, ebenso meine
Auseinandersetzung mit Barth“. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH.
Antwort. Blätter für Religiösen Sozialismus, 5 Jahr, Nr. 5-6, 1924, p.
18. É neste sentido, portanto, que seu Wissenschaftssystem e sua
Religionsphilosophie devem ser analisados, de acordo com
Heinemann, como “uma obra dupla”. Sobre este ponto, cf. também o
aparato histórico presente na introdução da Religionsphilosophie de
Tillich tal como publicada no volume IV de seus Main Works –
Hauptwerke: P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 117. O ponto
importante a ser observado aqui é que, em conjunto, a obra dupla de
Tillich representa, de acordo com Heinemann, a soma intelectual que
resulta da atuação de Tillich como Privatdozent na Universidade de
Berlim. Não espanta, pois, que os dois escritos de 1923 – ou melhor, a
soma intelectual de seus “anos de Berlim” – já apresente,

402
apresentaram uma teoria do símbolo em seu sentido
estrito: isto porque, no que diz respeito ao conceito de
símbolo, “as definições dadas, os elementos teóricos que
são considerados cada qual em relação a seus próprios
propósitos, não são, aqui, sistematizados e inseridos em um
contexto de interconexão abrangente”269. Frente à ausência
de sistematicidade da teoria dos símbolos apresentada pela
obra dupla de Tillich, pode-se afirmar que, a despeito da
importância perceptível que o conceito de símbolo possui
nestes escritos, ainda não se pode identificar, todavia, a
presença de uma Symboltheorie estritamente desenvolvida e
sistematicamente integrada aos alicerces de sua filosofia do
espírito. Esta sistematização, com efeito, Tillich somente
alcança a partir do desenvolvimento de seu artigo de 1928.
Em que se pese o caráter assistemático de sua teoria
dos símbolos no âmbito de sua teoria da religião, é inegável
que o conceito de símbolo alcança crescente relevância no
processo de construção de uma perspectiva filosófica
estritamente sistemática tal como empreendida por Tillich

especialmente no que diz respeito à teoria do sentido, certa conclusão


sistemática. Sobre este ponto, cf. L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist –
Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen
Symboltheorie Paul Tillichs, p. 218. A nota de Dessoir no prefácio do
primeiro volume de seu Lehrbuch confirma a datação do texto de
Tillich. Cf. M. DESSOIR. (Hg.). Lehrbuch der Philosophie. Band 1: Die
Geschichte der Philosophie. Berlin: Ullstein, 1925, [Vorwort]: „Der
Plan dieses Lehrbuches reicht schon geraume Zeit zurück; auch die
Ausführung war schon im Herbst 1923 nahezu abgeschlossen“. Para a
referência original da obra de Tillich, cf. P. TILLICH.
Religionsphilosophie. In: M. DESSOIR. (Hg.). Lehrbuch der
Philosophie. Band 2: Die Philosophie in ihren Einzelgebieten. Berlin:
Ullstein, 1925, p. 769-835.
269
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
412.

403
a partir, sobretudo, da década de 20. Em suas palestras
proferidas na Universidade de Berlim entre os anos de
1919 e 1920, sob o título Das Christentum und die
Gesellschaftsprobleme der Gegenwart 270 ; em seu ensaio
Religiöser Stil und religiöser Stoff in der bildenden Kunst, de
1921271; bem como em seu famoso confronto com Karl
Barth e Friedrich Gogarten no periódico Theologische
Blätter durante a virada do ano de 1923-1924272; o conceito

270
P. TILLICH. Das Christentum und die Gesellschaftsprobleme der
Gegenwart. (1919). In: E. STURM. (Hg.). Ergänzungs- und
Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken von Paul Tillich. Band
XII: Berliner Vorlesungen I (1919-1920). Berlin; New York: Walter de
Gruyter GmbH & Co. KG, 2001, p. 27-258.
271
P. TILLICH. Religiöser Stil und religiöser Stoff in der bildenten
Kunst. (1921). In: M. PALMER (Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band
2: Kulturphilosophische Schriften, p. 87-99.
272
P. TILLICH. Kritisches und positives Paradoxes: Eine
Auseinandersetzung mit Karl Barth und Friedrich Gogarten. In: R.
ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band VII: Der Protestantismus
als Kritik und Gestaltung. Schriften zur Theologie I. Stuttgart:
Evangelisches Verlagswerk, 1962, p. 216-225; K. BARTH. Von der
Paradoxie des „positiven Paradoxes“: Antworten und Fragen an Paul
Tillich. In: R. ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band VII: Der
Protestantismus als Kritik und Gestaltung. Schriften zur Theologie I, p.
226-239; P. TILLICH. Antwort an Karl Barth. In: R. ALBRECHT. (Hg.).
Gesammelte Werke. Band VII: Der Protestantismus als Kritik und
Gestaltung. Schriften zur Theologie I, p. 240-243; F. GOGARTEN. Zur
Geisteslage des Theologen. Noch eine Antwort an Paul Tillich. In: R.
ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band VII: Der Protestantismus
als Kritik und Gestaltung. Schriften zur Theologie I, p. 244-246. Sobre
a discussão entre Tillich e Barth no periódico Theologische Blätter, cf.,
especialmente, os seguintes estudos: J. TRACK. Paul Tillich und die
Dialektische Theologie. In: H. FISCHER. (Hg.). Paul Tillich: Studien zu
einer Theologie der Moderne. Frankfurt am Main: Athenäum Verlag
GmbH, 1989, p. 138-166; H. FISCHER. Theologie des positiven und
kritischen Paradoxes. Paul Tillich und Karl Barth im Streit um die
Wirklichkeit. Neue Zeitschrift für Systematische Theologie und
Religionsphilosophie, vol. 31, Issue 1, 1989, p. 195-212; P. GALLUS.
Der Mensch zwischen Himmel und Erde. Der Glaubensbegriff bei Paul

404
de símbolo aparece reiteradas vezes como a forma própria de
expressão da linguagem religiosa. Com o aparecimento do
inédito esboço Das System der religiösen Erkenntnis 273 ,
escrito em duas versões entre os anos de 1927 e 1928, e,
sobretudo, do já mencionado artigo Das religiöse Symbol, o
conceito de símbolo se torna, finalmente, uma categoria
básica, central e sistemática no pensamento de Tillich.
Mesmo assim, é somente a partir desta última publicação
que a categoria “expressão [Ausdruck]”, cuja centralidade
para a Symboltheorie de Tillich é insofismável, bem como a
distinção semiótica básica entre símbolo e signo, alcança
fundamentação teórico-sistemática e passa a integrar sua
teoria dos símbolos de forma permanente274.

Tillich und Karl Barth. Leipzig: Evangelische Verlaganstalt, 2007, p.


555-564; W. SCHÜßLER. Paul Tillich und Karl Barth. Ihre erste
Begegnung in den zwanziger Jahren. In: “Was uns unbedingt angeht”.
Studien zur Theologie und Philosophie Paul Tillichs. Tillich-Studien:
Band 1. Berlin; Münster: LIT Verlag, 2015, p. 119-129; F.
WITTEKIND. Grund- und Heilsoffenbarung. Zur Ausformung der
Christologie Tillichs in der Auseinandersetzung mit Karl Barth. In: C.
DANZ; M. DUMAS; W. SCHÜßLER; M. A. STENGER; E. STURM. (Hg.).
Internationales Jahrbuch für die Tillich-Forschung. Band 6: Jesus of
Nazareth and the New Being in History. Berlin; Boston: Walter de
Gruyter GmbH, 2013, p. 89-119; C. DANZ. Die Religion in der Kultur.
Karl Barth und Paul Tillich über die Grundlagen einer Theologie der
Kultur, p. 211-227; L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine
systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie
Paul Tillichs, p. 437-453.
273
P. TILLICH. Das System der religiösen Erkenntnis. (1. und 2.
Version). In: E. STURM. (Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den
Gesammelten Werken von Paul Tillich. Band XI: Religion, Kultur,
Gesellschaft. Unveröffentlichte Texte aus der deutschen Zeit (1908-
1933). Zweiter Teil. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH &
Co. KG, 1999, p. 76-174.
274
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
412.

405
Embora o conceito de símbolo comece a se tornar
um conceito básico e central para o pensamento de Tillich
tão-somente a partir da década de 20, é preciso reconhecer,
no entanto, que seus pressupostos estruturais
fundamentais, ou melhor, as bases de sua função e
significado sistemáticos já se encontram presentes em seu
pensamento desde o período anterior à Primeira Guerra. O
símbolo surge, neste sentido, como solução conceitual para
uma fundamentação sistemática de cunho filosófico-
transcendental já posta – o que não implica afirmar,
evidentemente, que o conceito de paradoxo e o conceito de
símbolo sejam, especialmente em suas obras iniciais,
intercambiáveis, ou que o conceito de paradoxo apresente a
mesma função que o conceito de símbolo passa a exercer
após 1928275. Não há, na totalidade da produção intelectual
de Tillich, nem uma equiparação entre o conceito de
símbolo e o conceito de paradoxo, por um lado, nem uma
substituição do conceito de paradoxo pelo conceito de
símbolo, por outro. Não obstante, a fundamentação
sistemática que compele o pensamento de Tillich à
elaboração de uma categoria precisa que seja capaz de
trazer à expressão – a despeito da alternância e flutuação
entre os conceitos de símbolo-intuição-conceito (Symbol-
Anschauung-Begriff) – a vitalidade e concretude do
paradoxo absoluto, e, ao mesmo tempo, solucionar o
problema das objetificações intrínsecas aos enunciados
religiosos, já se encontra pressuposta no conceito de
paradoxo. Uma reconstrução sistemática do conceito de

L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-


275

genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.


419-454.

406
símbolo de Tillich exige, portanto, não uma conexão, em
termos estritos de semanticidade conceitual, entre o
conceito de paradoxo e o conceito de símbolo, mas o
reconhecimento de que a similaridade estrutural entre
ambos os conceitos justifica a busca pela reconstrução
histórico-genética do conceito de símbolo em conexão com
as exigências que o próprio conceito de paradoxo
apresenta276.

β. O paradoxo absoluto como pressuposto sistemático


para a formulação de uma teoria dos símbolos

A busca de um conceito que seja capaz de trazer à


expressão a vitalidade e concretude do paradoxo absoluto
sem incorrer em objetificações idolátricas se torna evidente
já a partir de uma análise imanente dos escritos iniciais de
Tillich. Estes textos, que assumem como ponto de partida
a ideia do absoluto, revelam a preocupação do jovem
teólogo em oferecer uma justificação da teologia moderna à
luz dos debates contemporâneos sobre a crise do
historicismo (Historismus) imposta à teologia, sobretudo,
por Ernst Troeltsch277. Aqui, alguns dos principais escritos

276
Esta é a posição de C. DANZ. Symbolische Form und die Erfassung
des Geistes im Gottesverhältnis. Anmerkungen zur Genese des
Symbolbegriffs von Paul Tillich. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER; E.
STURM. (Hg.). Internationales Jahrbuch für die Tillich-Forschung.
Band 2: Das Symbol als Sprache der Religion, 59-75, que, aqui,
subscrevemos a despeito das críticas de L. C. HEINEMANN. Sinn –
Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der
frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 436, nota 102.
277
E. TROELTSCH. Der Historismus und seine Probleme. Erstes Buch:
Das logische Problem der Geschichtsphilosophie. In: Gesammelte

407
de Tillich do período anterior à Primeira Guerra merecem
destaque – a saber, suas duas dissertações sobre Schelling
(1910 e 1912); as 128 teses (Der Kasseler Pfingstkonferenz)
de 1911, intituladas Die christliche Gewißheit und der
historische Jesus278; sua Systematische Theologie de 1913279; e,

Schriften. Dritter Band. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1922,


p. 1-772. IDEM. Die Absolutheit des Christentums und die
Religionsgeschichte (1902/1912): mit den Thesen von 1901 und den
handschriftlichen Zusätzen. In: T. RENDTORFF; S. PAUTLER. (Hg.).
Kritische Gesamtausgabe. Band 5. Berlin; New York: Walter de
Gruyter GmbH & Co. KG, 1998, p. 112-244; Sobre a relação de
Tillich com o Historismus de Troeltsch e a problemática do caráter
absoluto do cristianismo, cf. G. NEUGEBAUER. Tillichs frühe
Christologie. Eine Untersuchung zu Offenbarung und Geschichte bei
Tillich vor dem Hintergrund seiner Schellingrezeption, p. 158-161; F.
WITTEKIND. Absolutheit und Christologie im modernen
Protestantismus. Tillich Rezeption von Troeltschs Absolutheitsschrift
im Kontext. In: U. BARTH; C. DANZ; W. GRÄB; F. W. GRAF. (Hg.).
Aufgeklärte Religion und ihre Probleme. Schleiermacher – Troeltsch –
Tillich, p. 229-270.
278
Cf. P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in
Schellings positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien.
(1910). In: G. HUMMEL; D. LAX. (Hg.). Ergänzungs- und
Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken von Paul Tillich. Band IX:
Frühe Werke. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG,
1998, p. 154-272; IDEM. Die christliche Gewißheit und der historische
Jesus. (1911). In: R. ALBRECHT; R. TAUTMANN. (Hg.). Ergänzungs-
und Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken von Paul Tillich.
Band VI: Briefwechsel und Streitschriften. Theologische,
philosophische und politische Stellungnahmen und Gespräche, p. 31-
50; IDEM. Mystik und Schuldbewußtsein in Schellings philosophischer
Entwicklung. (1912). In: G. WENZ. (Hg.). Main Works – Hauptwerke.
Band 1: Philosophische Schriften, p. 21-112. Esses textos revelam,
precisamente por assumirem o absoluto como ponto de partida, que
Tillich, em face da crise do historicismo, retorna à tradição idealista
como uma alternativa ao programa teológico de Troeltsch. Não
estranha, pois, que o escrito de qualificação de 1910 possuía
originalmente por título “Die Konstruktion der Religionsgeschichte
und die Absolutheit des Christentums in Schellings ‚positive‘
Philosophie”, como os Tillich-Archives da Universidade de Harvard

408
finalmente, sua Habilitationsschrift apresentada à
Universidade de Halle, em 1915, sob o título Der Begriff
des Übernatürlichen, sein dialektischer Charakter und das
Prinzip der Identität – dargestellt an der supranaturalistischen

demonstram. Sobre este ponto, cf. PAUL-TILLICH-ARCHIVE. Andover-


Harvard Theological Library. Cambridge. Box 101: 001. Notebook 2
(#864), p. 1. Acesso: 5.8.2016. Nas palavras de G. NEUGEBAUER.
Tillichs frühe Christologie. Eine Untersuchung zu Offenbarung und
Geschichte bei Tillich vor dem Hintergrund seiner Schellingrezeption.
Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, 2007, p. 156:
„Das Thema der Absolutheit des Christentums unterstreicht die
theologische Ausrichtung seiner Abhandlung. Daruber hinaus greift
der Titel ein durch Ernst Troeltsch in die zeitgenossische theologische
Diskussion ins Gesprach gebrachtes Thema auf“. Sobre o contexto das
dissertações e dos escritos supracitados de Tillich, cf. as p. 146-292 do
estudo de Neugebauer. A preocupação com o tema do caráter absoluto
do cristianismo percorre, igualmente, sua pesquisa preparatória para a
dissertação filosófica sobre Schelling, também escrita em 1910. A
referência aqui é P. TILLICH. Gott und das Absolute bei Schelling.
(1910). In: E. STURM. (Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den
Gesammelten Werken von Paul Tillich. Band X: Religion, Kultur,
Gesellschaft. Unveröffentlichte Texte aus der deutschen Zeit (1908-
1933). Erster Teil. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co.
KG, 1999, p. 9-54. Estes trabalhos iniciais de Tillich, juntamente com
seus escritos sobre Fichte desenvolvidos sob a orientação de Fritz
Medicus, em Halle, constituem não apenas contribuições singulares
para a Idealismusrenaissance na Alemanha do início do século
passado, mas também atestam sua própria tentativa de articular sua
visão teológica original daquilo que o Idealismo Alemão – enquanto
tradição viva! – deveria ser. Sobre este ponto, cf.: M. BOSS. Au
commencement la liberté: La religion de Kant réinventée par Fichte,
Schelling et Tillich, p. 401-483 ; IDEM. Which Kant? Whose Idealism?
Paul Tillich’s Philosophical Training Reappraised, p. 26-30. O que
aqui se afirma, em conformidade com Boss, é que Tillich, a partir da
tradição filosófica inaugurada por Kant, intenciona, desde o início de
sua formação, oferecer sua própria proposta para a retomada do
Idealismo Alemão a partir de um ponto de vista original e, em grande
medida, autônomo.
279
P. TILLICH. Systematische Theologie von 1913. In: G. HUMMEL; D.
LAX. (Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den Gesammelten
Werken von Paul Tillich. Band IX: Frühe Werke, p. 273-434.

409
Theologie vor Schleiermacher280. Nestes textos, especialmente
a partir da tese de 1910, Tillich apresenta a fundamentação
sistemática que constitui o pressuposto teórico para a
elaboração de sua teoria dos símbolos – a saber, o conceito
de “paradoxo absoluto”281. Não obstante, como adiante se
verá, é em sua tese de habilitação que Tillich encontra o
impulso teórico mais importante tanto para a formulação
de seu conceito de símbolo, quanto para a revisão dos
pressupostos teóricos que sustentam seus escritos teológicos
iniciais.

280
P. TILLICH. Der Begriff des Übernatürlichen, sein dialektischer
Charakter und das Prinzip der Identität – dargestellt an der
supranaturalistischen Theologie vor Schleiermacher. (1915). In: G.
HUMMEL; D. LAX. (Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den
Gesammelten Werken von Paul Tillich. Band IX: Frühe Werke, p. 435-
588.
281
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien, p. 187:
„Gott, der große Ironiker, leistet diese Aufgabe in der Schöpfung und
im Weltprozeß: in der Schöpfung am vollkommensten im Menschen,
denn ‚die Wege der Schöpfung gehen nicht vom Engen ins Weite,
sondern vom Weiten ins Enge‘; im Weltprozeß durch die göttliche
Torheit, die absolute Paradoxie des Kreuzes Christi“. Cf. também a p.
252: „Der Mensch hat sich nicht unverständlichen Formeln zu
unterwerfen, sondern ‚die Enge und Kleinheit seiner Gedanken zu der
Größe der göttlichen zu erweitern‘. Er muß den Mut finden, das
‚absolut Erstaunenswerte‘, die göttliche Paradoxie zu glauben; dann
wird er in dem Glauben dieses Überschwenglichen alle Unruhe des
Geistes verlieren. Zweifel ist notwendig, solange die Möglichkeit /
eines weiteren Fortschrittes vorliegt: ‚Denn alle Möglichkeit muß
Wirklichkeit werden, damit alles klar, offenbar und entschieden sey,
kein geheimer Feind zurückbleibe, auch der letzte Feind überwunden
sey‘“. Para a afirmação do caráter problemático da presença de uma
continuidade, tal como sustentada, sobretudo, por Danz, entre o
conceito de paradoxo e o conceito de símbolo, cf. L. C. HEINEMANN.
Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion
der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 86-172, p. 436,
especialmente, nota 102.

410
No contexto de sua assim chamada
282
“Schellingerlebnis” , Tillich emprega o conceito de
paradoxo absoluto, em conexão com o conceito filosófico
de religião, para descrever o processo de autoapreensão
(Selbsterfassung) da consciência na reflexividade de sua
estrutura interna283. Ao reconstruir o conceito de Deus, tal
como formulado por Schelling, “como aquele que se põe e
aquele que é posto”284, bem como fundamento de si mesmo
e da autoconsciência, Tillich desenvolve o fundamento da
autorrelacionalidade na vida divina de um modo tal que
uma antinomia interna é assimilada na identidade da
autorrelacionalidade do espírito285. O individual-concreto,
isto é, aquele que é posto pelo próprio Deus enquanto não-
derivado, constitui, ao mesmo tempo, a representação
necessária e contraditória da autorrelacionalidade de Deus.
Para Tillich, o concreto é elevado à unidade com Deus
quando é assimilado na identidade da autorrelacionalidade

282
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
86-97.
283
Cf. C. DANZ. Symbolische Form und die Erfassung des Geistes im
Gottesverhältnis. Anmerkungen zur Genese des Symbolbegriffs von
Paul Tillich, especialmente, p. 63, p. 67. Ainda sobre este ponto veja,
igualmente, IDEM. Paul Tillich’s Philosophy, p. 157-177; IDEM. „Alle
Linien gipfeln in der Religion des Paradox“. Tillich’s
religionsgeschichtliche Konstruktion der Religionsphilosophie. In: C.
DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.). Religion – Kultur – Gesellschaft. Der
frühe Tillich im Spiegel neuer Texte (1919-1920), p. 215-231.
284
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien, p. 173-
190, aqui, p. 175.
285
C. DANZ. „Alle Linien gipfeln in der Religion des Paradox“.
Tillich’s religionsgeschichtliche Konstruktion der
Religionsphilosophie, p. 220.

411
divina286. Desta reconstrução do conceito de Deus resulta
um conceito de história que irrompe da oposição irracional
do individual contra a essência e da reação da essência
contra a oposição do individual. “A natureza divina é o
fundamento de sua existência. Para que Deus possa existir
em actu”, afirma Tillich, “ele tem que possuir um
fundamento irracional, uma natureza. Não apenas a
liberdade e espiritualidade da criatura, mas também a
liberdade de Deus é condicionada por sua natureza em
Deus”287.
Para Tillich, tudo aquilo que é definido ou
determinado “pressupõe uma contradição atual”, pois “o
processo de autoposição somente é vivo quando entra em
contradição” 288 . A história da religião constitui, neste

286
C. DANZ. „Alle Linien gipfeln in der Religion des Paradox“.
Tillich’s religionsgeschichtliche Konstruktion der
Religionsphilosophie, p. 220-221.
287
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien, p. 175:
„Das führt auf das zweite Motiv zur Statuierung einer Natur in Gott:
Seine Natur ist der Grund seiner Existenz. Damit Gott actu existieren
kann, muß er einen irrationalen Grund, eine Natur haben. Nicht allein
die Freiheit / und Geistigkeit der Kreatur, sondern auch Gottes ist
bedingt durch die Natur in Gott. Das zeigt unmittelbar eine
Betrachtung des Begriffs der Aseität Gottes. Der Satz, daß Gott nichts
ist, was er nicht durch Selbstsetzung ist, diese Formel des materiellen
Freiheitsbegriffs, führt, abstrakt betrachtet, zu einer völlig
unlebendigen Identität des Setzenden und Gesetzten, die jeden
bestimmten Inhalt ausschließt, – da alles Bestimmte aktuellen
Gegensatz voraussetzt, und die Gott in die Notwendigkeit seines
Wesens einschließt, – da er unfrei wird gegenüber seiner Freiheit.
Diese substantielle Fassung der Aseität nimmt Gott den Charakter der
geistigen Persönlichkeit“.
288
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien, p. 175:
„Nur wenn Gott als Setzender und Gott als Gesetzter reell
unterscheidbar sind, wird die Aseität zu einer aktuellen, lebendigen,

412
sentido, a história do desdobramento do próprio
absoluto 289 , isto é, o processo por meio do qual a
autoapreensão do espírito, no percurso de sua
autotransparência, se torna atual. A partir deste processo
reflexivo de integração da religião no pensamento da
história (Geschichtsgedanken), Tillich abre espaço para a
formulação sistemática de uma “filosofia do espírito que vê
na totalidade do processo cultural o caminho para a religião
do espírito”290. A religião é, por consequência, o lugar por
meio do qual o espírito apreende a si mesmo na concretude
de sua atividade cultural, ao passo que a história é o
caminho para a autoapreensão do espírito. Como a
pesquisa preparatória para a sua primeira dissertação sobre
Schelling demonstra, Tillich identifica a autoapreensão do
espírito com a entrada do cristianismo na história291. É a

wird Gott Geist und Persönlichkeit. Dies aber ist nur möglich, wenn
die Unterscheidung selbst von Gott gesetzt ist, wenn die Natur in Gott
sein Wille ist, insofern er in Widerspruch tritt, damit ein lebendiger
Prozeß der Selbstsetzung sei: ohne Selbstentgegensetzung keine
lebendige Selbstsetzung und ohne lebendige Selbstsetzung keine
vollkommene Freiheit und ohne vollkommene Freiheit keine geistige
Persönlichkeit Gottes“.
289
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien, p. 228:
„Denn das ist der Inhalt aller Geschichte, weil es das Wesen des
Geistes ist: Sich selbst zu opfern in seiner Natürlichkeit, um sich selbst
wiederzufinden in Geist / und Wahrheit“.
290
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien, p. 254.
291
P. TILLICH. Gott und das Absolute bei Schelling, p. 45: „Die
Konstruktion des Christentums ist eine Konstruktion der Geschichte“.
Tillich, partindo da Vorlesung über die Methode des akademischen
Studiums, termina por julgar a filosofia da história de Schelling como
insuficiente. Como ele afirma: „Schellings ‚historische Konstruktion
des Christentums‘ ist darin ungeschichtlich, daß sie das Wesen des
Christentums in einer Idee sieht; sie is darin geschichtlich, daß sie

413
revelação de Deus em Cristo que marca o estágio decisivo
do percurso do espírito em direção ao evento de sua
reconciliação consigo mesmo ou autotransparência292 . Já
aqui, portanto, a determinação do conceito de religião –
que se faz firmemente presente na totalidade da produção
intelectual de Tillich293 – como dimensão de profundidade e
não como uma função transcendental do espírito é
claramente assinalada. A religião é, para o jovem Tillich, o
evento em que o espírito se torna reflexivo (das Geschehen
des Reflexiv-Werdens des Geistes) por meio de sua atividade
cultural e, portanto, não constitui qualquer função cultural
ao lado de outras294.
O ponto final da história jaz na autopercepção do
espírito em sua relação consigo mesmo. A revelação, que
Tillich já descreve em 1910 por meio da metáfora “irrupção
[Durchbruch]”295, representa, por sua vez, o evento em que a

diese inhaltliche Konstruktion der Geschichte faßt: Gott offenbart sich


als Gott der Geschichte“.
292
C. DANZ. „Alle Linien gipfeln in der Religion des Paradox“.
Tillich’s religionsgeschichtliche Konstruktion der
Religionsphilosophie, p. 220-221.
293
P. TILLICH. Religion as a Dimension in Man’s Spiritual Life. In: R.
C. KIMBALL. (Ed.). Theology of Culture. London; Oxford; New York:
Oxford University Press, 1959, p. 3-9; IDEM. Systematic Theology.
Volume I: Reason and Revelation, Being and God, p. 15: “This is
especially true in religion, the all-embracing function of man’s
spiritual life”.
294
C. DANZ. „Alle Linien gipfeln in der Religion des Paradox“.
Tillich’s religionsgeschichtliche Konstruktion der
Religionsphilosophie, p. 220.
295
P. TILLICH. Gott und das Absolute bei Schelling, p. 54:
„Offenbarung ist bei ihm der Durchbruch der übergeschichtlichen
Geschichte in die irdische“. Neste sentido, seria errôneo inferir que a
metáfora Durchbruch, que, nos escritos da década de 20, se torna o
terminus technicus para a descrição do processo de revelação, provém
do contexto da teologia dialética – especialmente, de Karl Barth. Como

414
percepção da história é constituída. Na revelação, o espírito
apreende a sua forma concreta na reflexividade e
historicidade de sua autorreferencialidade interna. A
reflexividade da consciência histórica é conectada, por sua
vez, à cristologia, que é elaborada por Tillich sob a forma
de uma filosofia especulativa da história296. Ao inserir na
figura do Cristo um momento de negação de sua
personalidade concreta, que é inferido a partir de uma
interpretação metafísico-especulativa da doutrina da
κένωσις ou autorrenúncia do Cristo, Tillich, sob o impulso
de Schelling, conduz, precisamente por meio desta
negação, a universalidade da autorrelacionalidade

a citação acima confirma, a metáfora Durchbruch é oriunda de


Schelling, e não de outros autores. Isto não implica afirmar, no
entanto, que Barth não possua influencia na reformulação semântica
que a metáfora Durchbruch sofre a partir da década de 20. Como o
debate com Karl Barth no periódico Theologischen Blättern
demonstra, Tillich assimila as críticas de Barth contra o seu conceito
de incondicional a partir de sua distinção entre Grund e
Heilsoffenbarung. Esta reformulação aparece em seu já mencionado
artigo Rechtfertigung und Zweifel, de 1924. Sobre este ponto, cf. F.
WITTEKIND. Grund- und Heilsoffenbarung. Zur Ausformung der
Christologie Tillichs in der Auseinandersetzung mit Karl Barth, p.
105-114, especialmente, p. 107-108; cf. também C. DANZ. Die
Religion in der Kultur. Karl Barth und Paul Tillich über die
Grundlagen einer Theologie der Kultur, p. 225-227. Sobre o conceito
de revelação após 1913, cf. U. C. SCHARF. The Paradoxical
Breakthrough of Revelation: Interpreting the Divine-Human Interplay
in Paul Tillich’s Work 1913-1964. Berlin; New York: Walter de
Gruyter GmbH & Co. KG, 1999, especialmente as p. 77-95, onde o
debate entre Tillich e Barth é analisado. Ainda sobre este ponto, cf. C.
DANZ. Breakthrough of the Unconditional: Tillich’s Concept of
Revelation as an Answer to the Crisis of Historicism. Bulletin of the
North American Paul Tillich Society, vol. 33, no. 2, 2007, p. 2-6.
296
G. NEUGEBAUER. Tillichs frühe Christologie. Eine Untersuchung zu
Offenbarung und Geschichte bei Tillich vor dem Hintergrund seiner
Schellingrezeption, p. 141-145.

415
constitutiva do espírito individual à apresentação de si
mesma297. O individual e concreto são apreendidos como
meios simultaneamente necessários e contraditórios dos
momentos internos de incondicionalidade da autorrelação.
Esta apreensão da historicidade interna do espírito é, em si
mesma, um evento igualmente histórico. Para Tillich, a
estruturação interna desta história no paganismo, judaísmo
e cristianismo reflete os diferentes estágios do
autodesdobramento do espírito em direção à reconciliação
ou unidade quando assimilado na identidade da
autorrelacionalidade divina. A determinação filosófico-
histórica do caráter absoluto do cristianismo contém nada
menos, portanto, que esta construção delineada “do
cristianismo enquanto consciência da história [des

297
P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien,
especialmente, p. 226-229, aqui, p. 228: „In Christus und durch
Christus haben wir Gott als Geist. In Christus, weil in ihm, der
geschichtlichen Persönlichkeit, der geschichtliche, persönliche Gott
dem Menschen entgegenkommt. Durch Christus, weil durch seine
Selbstentäußerung, sein Sterben und seine Verklärung der Geist
realisiert ist“. Não obstante, o exame de Tillich sobre a cristologia de
Schelling não renuncia à pessoa histórica de Jesus, muito embora
Tillich esteja convencido de que “o conteúdo [Inhalt] da revelação não
é o fato externo, mas o supra-histórico [das übergeschichtliche]” (p.
272). Como na mitologia, aqui o objeto tem um caráter representativo.
A vida e a morte de Jesus em si não constituem revelação, mas é um
símbolo que se refere ao ato supra-histórico de autonegação do Logos
– ou, em conformidade com a taxonomia teológica técnica, à κένωσις.
A fim de expressar a natureza histórica deste ato, Tillich fala do fato de
que o Logos criou essa visão de Deus no sofrimento e morte de Jesus.
No que diz respeito à questão inicial, Tillich chega à conclusão: „Die
Notwendigkeit der tatsächlichen Menschwerdung ist auch von hier aus
nicht zu begründen“ (p. 271). Sobre este ponto, cf. G. NEUGEBAUER.
Tillichs frühe Christologie. Eine Untersuchung zu Offenbarung und
Geschichte bei Tillich vor dem Hintergrund seiner Schellingrezeption,
p. 187-189.

416
Christentums als Geschichtsbewusstsein]”298. A consciência da
história é, para Tillich, “a primeira e mais importante
forma em que o cristianismo se torna consciente da
reivindicação de seu caráter absoluto299”. O caráter absoluto
do cristianismo consiste, por sua vez, na percepção da
concretude e mutabilidade necessárias da verdade na
história. Do ponto de vista da verdadeira religião, isto é, da
religião absoluta que evade as objetificações de seu
fundamento, as formas culturais postas pelo espírito se
tornam meios de representação do absoluto, ao passo que a
esfera do condicionado representa a percepção paradoxal
do incondicionado300.

γ. A fórmula Gott über Gott e a inscrição do paradoxo


absoluto como polaridade constitutiva da estrutura
interna do espírito

Como sua primeira dissertação sobre Schelling


torna evidente, a inserção de uma antinomia na identidade
da autorrelacionalidade divina constitui uma característica
predominante no pensamento de Tillich já no período
anterior à Primeira Guerra. O conceito de paradoxo opera
na base do conceito de Deus como descrição de um
processo religioso-histórico por meio do qual o espírito é

298
C. DANZ. „Alle Linien gipfeln in der Religion des Paradox“.
Tillich’s religionsgeschichtliche Konstruktion der
Religionsphilosophie, p. 221.
P. TILLICH. Gott und das Absolute bei Schelling, p. 53.
300
C. DANZ. „Alle Linien gipfeln in der Religion des Paradox“.
Tillich’s religionsgeschichtliche Konstruktion der
Religionsphilosophie, p. 220-221.

417
reconciliado consigo mesmo na concretude de sua atividade
cultural. Não obstante, a partir de sua Habilitationsschrift
de 1915, a determinação da estrutura antinômica e
paradoxal da autorrelacionalidade começa a adquirir
contornos cada vez mais estruturantes e constitutivos da
própria subjetividade. Ao demarcar uma diferença entre o
conceito de Deus e o conceito de absoluto, Tillich não mais
inscreve a antinomia na identidade da autorrelacionalidade
espiritual por meio da assimilação da autorrelacionalidade de
Deus. Antes, a partir de sua reconstrução do conceito de
Deus, a própria antinomia passa a constituir uma
característica estruturante da vida do espírito. Desta forma,
Tillich dá início a um processo de revisão dos princípios
teóricos fundamentais de sua filosofia da religião e teologia
sistemática que culmina, posteriormente, na elaboração de
uma teoria do sentido cujas bases se encontram nos
influxos do idealismo e do neokantiano301. Em seus escritos

301
Cf. P. TILLICH. Paul Tillich – Emanuel Hirsch. Die große
religionsphilosophische Debatte. In: R. ALBRECHT; R. TAUTMANN.
(Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken
von Paul Tillich. Band VI: Briefwechsel und Streitschriften, p. 95-136.
Sobre este ponto, cf. C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine
Studie zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen
individueller Subjektivität bei Paul Tillich, p. 306-311; U. BARTH. Die
sinntheoretischen Grundlagen des Religionsbegriffs.
Problemgeschichtliche Hintergründe zum frühen Tillich, p. 89-123; C.
DANZ. Theologie als normative Religionsphilosophie.
Voraussetzungen und Implikationen des Theologiebegriffs Paul
Tillichs, p. 73-106; H.-W SCHÜTTE. Subjektivität und System. Zum
Briefwechsel Emanuel Hirsch (1888-1972) und Paul Tillich (1886-
1965). In: C. DANZ. (Hg.). Theologie als Religionsphilosophie: Studien
zu den problemgeschichtlichen und systematischen Voraussetzungen
der Theologie Paul Tillichs, p. 3-22; F. WITTEKIND. Gottesdienst als
Handlungsraum. Zur symboltheoretischen Konstruktion des Kultes in
Tillichs Religionsphilosophie, p. 77-100; IDEM. „Allein durch den
Glauben“. Tillichs sinntheoretische Umformulierung des

418
anteriores, em suas dissertações sobre Schelling e,
sobretudo, em sua Systematische Theologie, o absoluto é
compreendido por Tillich como o quadro de referência
individual mais elevado e princípio fundante do sistema
teológico, isto é, o absoluto enquanto pensamento absoluto
da verdade (der absolute Wahrheitsgedanke)302. Com efeito,
nestes escritos o conceito de paradoxo está presente, mas
seu sentido é o de representar a relação entre o absoluto e o
relativo que constitui o âmbito por excelência da religião.
“A religião carrega ambos os momentos em si, o absoluto e
o relativo, e é o lugar onde o absoluto pode condescender

Rechtfertigungsvertändnisses 1919. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.).


Religion – Kultur – Gesellschaft. Der frühe Tillich im Spiegel neuer
Texte (1919-1920), p. 39-65; S. DIENSTBECK. Transzendentale
Strukturtheorie. Stadien der Systembildung Paul Tillichs, p. 235-338.
302
P. TILLICH. Systematische Theologie von 1913, p. 273-434, § 3 Das
Denken, p. 281-282, § 4 Prinzip und System, p. 282-283, e,
especialmente, § 11 Der Gottesbeweis, p. 294-296, aqui, p. 294: „Die
wissenschaftliche Begründung des Gottesgedankens ist identisch mit
der Ableitung des religionsphilosophischen Prinzips aus dem
wissenschaftlichen Prinzip überhaupt“. Em relação à Systematische
Theologie de 1913, veja G. HUMMEL. Das früheste System Paul
Tillichs: Die „Systematische Theologie von 1913“. Neue Zeitschrift für
Systematische Theologie und Religionsphilosophie, vol. 35, Issue 2,
1993, p. 115-132; H. FISCHER. Sinn und Funktion des Begriffes Mystik
in Tillichs frühen Schriften. In: G. HUMMEL; D. LAX. (Hg.).
Mystisches Erbe in Tillichs philosophischer Theologie. Beiträge des
VIII. Internationalen Paul-Tillich-Symposiums Frankfurt/Main 2000.
Tillich-Studien: Band 3. Münster; Hamburg; Wien: LIT Verlag, 2000,
p. 33-50; F. WITTEKIND. „Sinndeutung der Geschichte.“ Zur
Entwicklung und Bedeutung von Tillichs Geschichtsphilosophie. In:
C. DANZ. (Hg.). Theologie als Religionsphilosophie: Studien zu den
problemgeschichtlichen und systematischen Voraussetzungen der
Theologie Paul Tillichs, p. 143-147; C. DANZ. Theologie als normative
Religionsphilosophie. Voraussetzungen und Implikationen des
Theologiebegriffs Paul Tillichs, especialmente, p. 74-80; L. C.
HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische
Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 110-172.

419
ou anuir [herablassen] ao relativo e onde o relativo ascende,
para além de si, ao absoluto”303. Como afirma Tillich, “a
religião concreta necessariamente contém, portanto, uma
certa esfera em que o relativo é absolutamente posto, a
esfera do sagrado ou do sacramental; mas este, contudo, é o
lugar do paradoxo”304. No dizer de Tillich, portanto, o
paradoxo representa uma esfera no interior da vida da
religião que é, no processo histórico de autodesdobramento
do espírito, suprassumido (aufgehoben) no evento da
reconciliação da autorrelacionalidade individual na unidade
da vida do absoluto.
Ora, é precisamente esta compreensão do relativo
absolutamente posto enquanto âmbito por excelência do
paradoxo que Tillich abandona a partir de sua
Habilitationsschrift de 1915. Como ele afirma de forma
autorrevisionista em uma carta enviada a Emanuel Hirsch
em 1917, esta compreensão do absoluto nada mais é senão
“um ídolo [ein Götze]” 305 . Isto não implica afirmar,

303
P. TILLICH. Systematische Theologie von 1913, § 22 Das Paradox,
p. 315: „Die Sphäre des Paradox ist die Religion; denn die Religion ist
die Rückkehr der Freiheit zur Wahrheit, des Relativen zum Absoluten
ohne Aufhebung der Freiheit und Relativität. Dadurch trägt die
Religion beide Momente in sich, das Absolute und das Relative, / und
ist der Ort, wo das Absolute sich herablassen kann zum Relativen, das
Relative sich über sich selbst erheben zum Absoluten“.
304
P. TILLICH. Systematische Theologie von 1913, § 22 Das Paradox,
p. 315: „Die konkrete Religion enthält darum notwendig eine
bestimmte Sphäre, in der Relatives absolut gesetzt ist, die Sphäre des
Heiligen oder Sakramentalen; dies aber ist der Ort des Paradox“.
305
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. XII. 1917, p. 99. „Ich
akzeptiere den Kählerschen Satz: ,das Absolute ist ein Götze’, dann
nämlich, wenn die religiöse Funktion auf die Vollendung des
theoretischen Gottesbegriffs fundiert werden soll“. A mesma posição é
reafirmada na versão de 1919 de seu texto Rechtfertigung und Zweifel:
„‚Das Absolute ist ein Götze‘, wie Kähler zu sagen pflegte – mit

420
entretanto, que a substância (Gehalt) do absoluto
desapareça de suas obras. Antes o contrário: o absoluto é
transferido, por assim dizer, para o ato religioso, e alcança,
a partir desta transferência, uma nova determinação. Neste
movimento de revisão, a estrutura paradoxal do absoluto,
que constitui a fundamentação teórica que demanda a
elaboração sistemática de seu conceito de símbolo, passa a
ser determinada a partir da estrutura paradoxal constitutiva
da própria autoconsciência individual. O caráter paradoxal
do absoluto é, neste movimento de autocrítica,
reconfigurado e redeterminado por meio da fórmula “Deus
além de Deus [Gott über Gott]”. A partir desta fórmula,
Tillich introduz, na esfera sistemática de sua nova
determinação do conceito de Deus, a ideia de uma dialética
do “Supra”. Em aberta crítica à teologia supranaturalista da
Aufklärung, ele afirma:
A quintessência de toda realidade e perfeição
deve estar, porém, tanto acima de Deus quanto
acima de outros seres. Se a lei da natureza é
Deus sob Deus (Gott unter Gott), então o
absoluto é Deus além de Deus (Gott über Gott).
O Supra (Das Supra), por um lado, leva longe

Unrecht, wenn er dem philosphischen Denken einen Vorwurf machen


wollte, mit Recht, wenn er ablehnte, die religiöse Gewißheit auf dieses
Produkt nicht evidenten Denkens zu gründen“. P. TILLICH.
Rechtfertigung und Zweifel, p. 205. Sobre os temas “fé e dúvida” e
“reflexão cética” no pensamento de Tillich, elaborado, de forma mais
sistemática, em seu artigo Rechtfertigung und Zweifel, de 1919 e 1924,
bem como em seu best-seller The Courage to Be, de 1952, veja J.
DIERKEN. Gewissheit und Zweifel. Über die religiöse Bedeutung
skeptischer Reflexion. In: C. DANZ. (Hg.). Theologie als
Religionsphilosophie. Studien zu den problemgeschichtlichen und
systematischen Voraussetzungen der Theologie Paul Tillichs, p. 107-
133.

421
demais; por outro lado, não longe o suficiente
para além do mundo306.
Deus deve ser pensado como o absoluto, mas, para
Tillich, ambos não podem ser mais concebidos como
idênticos. O absoluto transcende todo e qualquer conceito
de Deus e é, neste sentido, “o Deus além de Deus”.
Evidentemente, esta nova determinação do conceito de
Deus de Tillich não surge ex abrupto em seus escritos, mas
responde à própria reconstrução do conceito de Deus de
Schelling tal como por ele empreendida em sua theologische
Lizenziaten-Dissertation de 1912 307 . O ponto desta
reconstrução consiste no fato de que o pensamento do
absoluto deve ser executado de um modo tal que sua
inexequibilidade possa ser estabelecida no momento da
atualização deste pensamento. Por esta razão, Deus
somente deve ser pensado a partir do ponto onde o
absoluto é pensado. Caso esta percepção seja rejeitada, e se
decida pensar sobre Deus à parte do absoluto, então a
liberdade demandada pela ideia de Deus se torna, por
consequência, uma necessidade cega308. Deus e o absoluto

306
P. TILLICH. Der Begriff des Übernatürlichen, sein dialektischer
Charakter und das Prinzip der Identität – dargestellt an der
supranaturalistischen Theologie vor Schleiermacher, p. 474. Ou, ainda,
como ele afirma na p. 472: „Das Gott-Welt-Verhältnis des
Supranaturalismus macht, konsequent durchgedacht, Gott entweder zu
einem Weltwesen neben der Welt oder zu der die Welt vernichtenden
unendlichen Substanz“.
307
Cf. C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 142-152.
308
Com este argumento, Tillich reconstrói a distinção e relação entre
filosofia negativa e positiva de Schelling. A crise desta teoria em
relação à ideia de liberdade também retoma uma formulação presente
já em sua dissertação de 1910: „Aber die negative Philosophie ist

422
não são, com efeito, idênticos, mas o conceito de Deus não
pode ser concebido sem o pensamento do absoluto, uma
vez que o acesso intencionado de forma direta ao conceito
de Deus permite que ele seja entendido somente como
imediatidade 309 . A imediatidade deve sempre estar
relacionada, porém, a uma instância de mediação para que
possa se tornar predicável em qualquer sentido particular,
ao passo que a liberdade, intencionada como liberdade
imediata, termina por se transmutar em necessidade. É esta

durch die Erfassung des Autonomiebegriffs notwendige Voraussetzung


der positiven. In dem richtig gefassten Autonomiebegriff liegt schon
das Prinzip der positiven Philosophie, die Freiheit“. Sobre este ponto,
cf. P. TILLICH. Die religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings
positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien,
especialmente, p. 248, nota 369. Para a distinção e relação entre
filosofia negativa e positiva em Schelling, cf. G. WENZ. Subjekt und
Sein. Die Entwicklung der Theologie Paul Tillichs, p. 63; C. DANZ.
Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als
Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei
Paul Tillich, p. 134-141; M. BOSS. Au commencement la liberté: La
religion de Kant réinventée par Fichte, Schelling et Tillich, p. 213-260;
p. 363-378.
309
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 148. Tillich reafirma sua crítica à
imediatidade de Deus em sua Dogmatik. Cf. P. TILLICH. Dogmatik-
Vorlesung (Dresden 1925-1927). In: W. SCHÜßLER; E. STURM. (Hg.).
Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken von
Paul Tillich. Band XIV. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH
& Co. KG, 2005, p. 125: „Die Unmittelbarkeit des Seienden schließt
seine Eindeutigkeit nicht ein. Unter Eindeutigkeit verstehen wir ein
solches Verhältnis des Seienden zu dem Unbedingt-Tragenden, daß
dieses, das Tragende, durch jenes, das Getragene, schlechthin bejaht
wird. Wenn wir nun das Seiende zum Symbol machen, also etwa Gott
unbedingtes Sein zusprechen, dann ist damit zunächst dieses
Verhältnis gemeint, daß das Seiende qua Seiendes das unbedingt
Seiende bejaht. Damit ist das Seiende eindeutig in seiner Symbolkraft
dem Unbedingten zugesprochen“.

423
consequência, que seria desastrosa tanto para o conceito de
liberdade quanto para a ideia de Deus, que Tillich procura
sistematicamente evitar310.
Um fator decisivo para a reconstrução do conceito
de Deus elaborado por Schelling na dissertação teológica
de Tillich é a percepção de que uma renovada diferença
irrompe no pensamento do absoluto, que já se encontra,
enquanto absoluto, reivindicado no pensamento como
identidade. Esta percepção, que surge da limitação do
absoluto pensado em termos de uma filosofia da
identidade, deve ser compreendida como uma transição a
um segundo nível de reflexão 311 . Tal transição é

310
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 148. No que se segue, a análise de
Danz deste problema será, por meio de paráfrases e não de traduções
diretas, acompanhada de perto.
311
Esta transição a um segundo nível de reflexão, esboçada a partir da
teoria schellinguiana do “espírito absolutamente livre”, corresponde à
transição da construção hipotética à construção categórica do espírito
elaborada por Schelling. Sobre este ponto, cf. C. DANZ. Christologie
als Theorie endlicher Freiheit. Zur Rationalitätsgestalt und zum
systematischen Ort von Schellings Christologie. In: In: C. ASMUTH; A.
DENKER; M. VATER. (Hg.). Schelling: zwischen Fichte und Hegel.
Amsterdam; Philadelphia: B. R. Grüner Publishing Company, 2000, p.
265-286; T. v. ZANTWIJK. Schellings ›Transzendentale Hermeneutik‹:
Zu den methodischen Grundlagen des Ideal-Realismus. In: C.
ASMUTH; A. DENKER; M. VATER. (Hg.). Schelling: zwischen Fichte
und Hegel, p. 235-262, aqui, p. 237-238; C. DANZ. Die
Geschichtlichkeit der Offenbarung. Die Bedeutung Schellings für die
christologische Debatte der Gegenwart. In: S. DIETZSCH; G. F. FRIGO.
(Hg.). Vernunft und Glauben: Ein philosophischer Dialog der Moderne
mit dem Christentum. Berlin: Akademie Verlag GmbH, 2006, p. 107-
126, aqui, p. 121; D. KORSCH. »Das Universum als Geschichte
angeschaut«. Schellings Christentumsdeutung in der Identitäts- und
Freiheitsphilosophie. In: C. DANZ; J. JANTZEN. (Hg.). Gott, Natur,
Kunst und Geschichte: Schelling zwischen Indentitätsphilosophie und
Freiheitsschrift. Göttingen; Wien: V&R unipress GmbH; Vienna

424
caracterizada por uma versão aprofundada do conceito de
identidade e conduz à ideia da inevitabilidade de
identidade e diferença, que deve ser entendida, ao mesmo
tempo, como o conceito de Deus312. Como Tillich afirma:
É absolutamente impossível deduzir o motivo
pelo qual o absoluto coloca a si mesmo, ao
mesmo tempo, com a determinação de
identidade e contradição. Qualquer tentativa de
dedução é, na realidade, uma anulação
(Aufhebung): pois a liberdade é aquilo que se
contrapõe a toda determinação por alguma outra
coisa da qual possa derivar; e a contradição é
precisamente aquilo que contradiz a essência e,
portanto, o conhecimento da essência: o

University Press, 2011, p. 153-168. Veja também R. MOKROSCH.


Theologische Freiheitsphilosophie: Metaphysik, Freiheit und Ethik in
der philosophischen Entwicklung Schellings und in den Anfängen
Tillichs. Frankfurt am Main: Verlag Vittorio Klostermann, 1976, p.
361; A. BERNET-STRAHM. Die Vermittlung des Christlichen. Eine
theologiegeschichtliche Untersuchung zu Paul Tillichs Anfängen des
Theologisierens und seiner christologischen Auseinandersetzung mit
philosophischen Einsichten des Deutschen Idealismus. Mit
Erstpublikationen dreier früher Werke des jungen Paul Tillich. Bern;
Frankfurt am Main: Peter Lang, 1982, p. 85; C. DANZ. Religion als
Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 134-141; p. 148; G. NEUGEBAUER. Tillichs frühe Christologie. Eine
Untersuchung zu Offenbarung und Geschichte bei Tillich vor dem
Hintergrund seiner Schellingrezeption, p. 240-243.
312
P. TILLICH. Mystik und Schuldbewußtsein in Schellings
philosophischer Entwicklung, p. 28-29: „Mystik und
Schuldbewußtsein, Gefühl der Einheit mit dem Absoluten und
Bewußtsein des Gegensatzes zu Gott, Prinzip der Identität von
absolutem und individuellem Geist und Erfahrung des Widerspruchs
zwischen dem heiligen Herrn und dem sündigen Geschöpf: das ist eine
Antinomie, deren Lösung das religiöse Denken zu allen Zeiten in der
Kirche angestrebt hat und immer wieder anstreben muß“.

425
irracional é irracional precisamente porque evita
toda a necessidade racional313.
De acordo com esta citação de Tillich, é o absoluto
que se coloca, ao mesmo tempo, com as determinações de
unidade e contradição para a percepção de sua realização.
Se, de fato, é o pensamento do absoluto que conduz a esta
percepção, então o emprego de Tillich da reconstrução do
conceito de Deus de Schelling pode, desta forma, ser
precisado. O ponto a ser percebido na reconstrução do
conceito schellinguiano de Deus empreendida por Tillich é
que ele aponta para um entendimento mais profundo da
identidade – a saber, uma identidade que inclui liberdade e
contradição no próprio ato da autoposição de si314. Se o

313
P. TILLICH. Mystik und Schuldbewußtsein in Schellings
philosophischer Entwicklung, p. 79.
314
A tese de Marc Boss de que o conceito de autonomia, em conjunto
com o conceito de justificação, permanece inalterado desde as
formulações iniciais de Tillich até o fim de sua vida encontra, aqui,
uma confirmação insofismável. Sobre este ponto, cf. M. BOSS. Paul
Tillich and the Twentieth Century Fichte Renaissance: Neo-Idealistic
Features in His Early Accounts of Freedom and Existence, p. 14: “The
so-called ‘meaning theory turn’ has attracted much deserved attention
in the German Tillich studies of the last decade under the impulse of a
group of scholars including Ulrich Barth, Christian Danz, and Folkart
Wittekind. It contends that Tillich, in the course of his correspondence
with Emanuel Hirsch between November 1917 and July 1918,
profoundly reshaped his philosophy by rejecting his idealistic ‘theory
of truth’ in favour of a ‘theory of meaning’ articulated in critical
dialogue with contemporary neo-Kantianism and phenomenology.
Such a ‘meaning theory turn’ is unmistakably discernible in Tillich’s
post-war theory of knowledge. Yet, as far as I can see, it leaves
untouched his earlier theological claims about the coincidence of
autonomy and justification. The 1919 version of ‘Rechtfertigung und
Zweifel’, for instance, provides a remarkable combination of Tillich’s
new epistemological insights with his older definition of autonomy as
‘justification in the realm of thought’”. Para Boss, a posição filosófica
de Tillich, cujos fundamentos jazem em uma filosofia da identidade,

426
conceito de Deus deve ser pensado como liberdade, então
ele deve integrar, por razões lógicas, os momentos opostos
representados pela determinidade e pela atualização.
Somente assim torna-se possível contrapor o dilema
persistente de que, no conceito de Deus, a liberdade se
transforma em necessidade cega, ou que a determinidade
da liberdade é dissipada em uma construção abstrata. A
transição ao conceito de Deus, contudo, não é externa ao
pensamento, uma vez que ela é motivada pela aporia que
surge na construção do absoluto desenvolvida nos termos
de uma filosofia da identidade 315 que inclui, em si, a
contradição e a diferença316.
Sob o prisma desta reconstrução do conceito de
Schelling elaborada por Tillich a partir de sua dissertação
de 1912, pode-se entender como a fórmula “Deus além de

sobre o conceito de autonomia representa, em conexão com o conceito


teológico de justificação, uma combinação de duas interpretações
rivais e complementares de Kant. De um lado, encontra-se o conceito
fichteano de liberdade, que a entende como uma autoposição da razão
nos termos de uma extensão das reflexões kantianas sobre a autonomia
da vontade; de outro lado, encontra-se o entendimento schellinguiano
da liberdade, que a entende, em continuidade com as meditações de
Kant sobre o mal radical, como um poder abismal de autocontradição.
Na fundamentação filosófica da teologia de Tillich encontra-se,
portanto, uma combinação dos conceitos de liberdade elaborados por
Fichte e Schelling. É, pois, sob o prisma destes motivos fichteanos e
schellinguianos que o conceito de autonomia de Tillich deve ser
compreendido. Sobre este ponto, cf. M. BOSS. Au commencement la
liberté: La religion de Kant réinventée par Fichte, Schelling et Tillich,
p. 9-10; p. 325-399.
315
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 148.
316
G. NEUGEBAUER. Tillichs frühe Christologie. Eine Untersuchung zu
Offenbarung und Geschichte bei Tillich vor dem Hintergrund seiner
Schellingrezeption, p. 240-243.

427
Deus” aparece como um tema central em sua tese de
habilitação de 1915. Se o conceito de Deus não pode ser
concebido sem o pensamento do absoluto, uma vez que o
acesso intencionado de forma direta ao conceito de Deus
permite que ele seja entendido somente como
imediatidade, então o conceito de absoluto opera como
momento de imediatidade que se põe conjuntamente com
as determinações de identidade e contradição 317 . Neste
sentido, a fórmula “Deus além de Deus” intenciona
resolver conceitualmente o problema da transição a um
segundo nível de reflexão, isto é, o aprofundamento do
conceito de identidade e diferença que conduz ao conceito
de Deus, a partir da inscrição, na estrutura constitutiva da
própria autoconsciência, da equiprimordialidade de
identidade e diferença. Conforme visto, a versão
aprofundada do conceito de identidade, que conduz à ideia
da inevitabilidade de identidade e diferença, deve ser
entendida, ao mesmo tempo, como a determinação do
conceito de Deus. A fórmula “Deus além de Deus”
reelabora sobre novas bases, portanto, este aprofundamento
do conceito de identidade ao mesmo tempo em que inclui a
diferença enquanto uma polaridade necessária tanto para
que a liberdade não implique necessidade cega, por um
lado, quanto para que a imediatidade intrínseca ao absoluto
não se transmute em seu inverso, por outro.

317
S. DIENSTBECK. Transzendentale Strukturtheorie. Stadien der
Systembildung Paul Tillichs, 428; R. MOKROSCH. Warum Tillich sich
nicht auf Schelling berufen kann, aber dennoch ohne Schelling nicht
denkbar ist. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER; E. STURM. (Hg.).
Internationales Jahrbuch für die Tillich-Forschung. Band 4: Religion
und Politik. Berlin; Wien: LIT Verlag, 2008, p. 139-147, aqui, p. 142.

428
A fórmula de Tillich revela-se tanto mais necessária
na medida em que se analisa o modo por meio do qual o
problema da relação entre o conceito de absoluto e o
conceito de Deus é desenvolvido em sua dissertação de
1912. Como a reconstrução do conceito de Schelling
elaborada por Tillich deixa entrever, a transição do
absoluto ao conceito de Deus assume, com a devida
consideração, o fato de que o pensamento, por si mesmo,
não pode fazer esta transição. Ao assim proceder, porém,
Tillich reforça a ideia de que o pensamento é
paradoxalmente privado, enquanto âmbito efetivo de
atualização de síntese, de sua própria gênese. Esta
percepção, obviamente, conduz a duas consequências318.
Por um lado, deve-se assumir que um intenso momento de
irracionalidade é inserido no conceito de Deus. Esta
irracionalidade, contudo, não é exógena à racionalidade,
mas é, antes, a expressão do fato de que as condições
internas da racionalidade são para ela inapreensíveis319. A

318
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 149.
319
Na versão de 1919 do texto Rechtfertigung und Zweifel, Tillich
reafirma, com referência à dissertação Mystik und Schuldbewußtsein in
Schellings philosophischer Entwicklung, sua posição: „Es gibt nur
einen Ort, wo das Paradox gesucht werden kann, im logischen Princip
selbst. Nur wenn dem Logischen selbst ein antilogisches Moment
immanent ist, kann mit Recht von einem Paradox gesprochen werden.
Das ist nun aber der Fall. Sobald der Satz a=a verlassen und zu dem
Satz a=b übergegangen wird, ist etwas schlechthin Antilogisches in
den logischen Proceß aufgenommen. Das ,Andere‘, das doch dasselbe
sein soll, diese letzte Paradoxie der Einheit von Wesen und
Widerspruch, von Identität und Differenz, von Rationalem und
Irrationalem, die jedem logischen Akt immanent ist, ist nun die
Grundlage jeder logisch möglichen Erfassung des Paradox. Es gibt im
Grunde nur eine, nämlich diese dem Logischen wesentliche Paradoxie;

429
racionalidade é, desta forma, irracional para si mesma, ao
passo que a irracionalidade se abre apenas para a
atualização do próprio pensamento sem ser, contudo,
dogmaticamente afirmada. Como uma consequência deste
pensamento, a gênese assume o lugar da associação da
consciência com o Faktum320 de si mesma sob a forma de

alles andere sind nur konkrete Anwendungen dieser einen und müssen
von ihr ableitbar sein“. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH.
Rechtfertigung und Zweifel, p. 184-185. O método “metalógico” de
Tillich pode ser considerado uma tentativa de superar
metodologicamente a antinomia expressa pela polaridade entre o
racional e o irracional. Sobre este ponto, cf. as considerações de Tillich
em seu Doppelwerk: IDEM. Das System der Wissenschaften nach
Gegenständen und Methoden, p. 122-124, p. 215-217; IDEM.
Religionsphilosophie, p. 130-133. Para uma análise do método
metalógico, cf. J. HEINRICHS. Der Ort der Metaphysik im System der
Wissenschaften bei Paul Tillich: Die Idee einer universalen
Sinnhermeutik. Zeitschrift für katholische Theologie, vol. 92, no. 3,
1970, p. 249-286; G. WENZ. Subjekt und Sein. Die Entwicklung der
Theologie Paul Tillichs, p. 111-120; H. JAHR. Theologie als
Gestaltmetaphysik: die Vermittlung von Gott und Welt im Frühwerk
Paul Tillichs, p. 65-69; C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein.
Eine Studie zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen
individueller Subjektivität bei Paul Tillich, p. 307-308, p. 328-347; C.
PERROTTET. Au-delà du criticisme kantien. La méthode critique-
intuitive dans la première philosophie de la religion de Paul Tillich.
2008. Thèse (Doctorat en Théologie) – Université Laval (Faculté de
Théologie et de Sciences Religieuses), Québec, 2008, p. 174-217 ; M.
HARANT. Religion – Kultur – Theologie. Eine Untersuchung zu ihrer
Verhältnisbestimmung im Werke Ernst Troeltschs und Paul Tillichs im
Vergleich, p. 153-157.
320
Sobre o conceito de “fato da razão [das Faktum der Vernunft]”
cunhado por Kant, cf. I. KANT. Kritik der praktischen Vernunft. In: W.
WEISCHEDEL. (Hg.). Immanuel Kant. Werke in zehn Bänden.
Sonderausgabe. Band 6: Schriften zur Ethik und Religionsphilosophie.
Erster Teil. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, p.
103-302, aqui, p. 154-164; D. HENRICH. Der Begriff der sittlichen
Einsicht und Kants Lehre vom Faktum der Vernunft. In: G. PRAUSS.
(Hg.), Kant. Zur Deutung seiner Theorie von Erkennen und Handeln.
Köln: Kiepenheuer & Witsch, 1973, p. 223-254; O. HÖFFE. Die

430
autointerpretações no mundo da vida. A teoria se abre,
assim, para a experiência321, obviamente não no sentido de

Formen der Maximen als Bestimmungsgrund. (§§ 4-6, 27-30). In: O.


HÖFFE. (Hg.). Immanuel Kant: Kritik der praktischen Vernunft. Berlin:
Akademie Verlag Gmbh, 2002, p. 63-80; O. O’NEILL. Autonomy and
the Fact of Reason in the Kritik der praktischen Vernunft. (§§ 7-8, 30-
41). In: O. HÖFFE. (Hg.). Immanuel Kant: Kritik der praktischen
Vernunft, p. 81-97; K. AMERIKS. Interpreting Kant’s Critiques. New
York; Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 249-262. IDEM. The
Critique of Metaphysics: The Structure and Fate of Kant’s Dialectic. P.
GUYER. (Ed.). The Cambridge Companion to Kant and Modern
Philosophy. New York; Cambridge: Cambridge University Press,
2006, p. 269-302.
321
A priori, esse fundamento indecifrável é desprovido de fundamento,
incompreensível e impensável. Mas, a posteriori, ele se tornaria
compreensível para o sujeito conhecedor, embora não por especulação,
mas apenas pela experiência – isto é, através da experiência no
conceito de Deus. Schelling, em sua filosofia tardia, sempre conclui a
partir do Faktum, isto é, da estrutura do espaço lógico em que ele se
encontra pensando em sua pré-história (Vorgeschichte). Para Schelling,
a existência do espaço lógico é o fato último, mas, portanto, “um fato
da experiência [eine Thatsache der Erfahrung]”. Neste fato da
experiência Schelling vê a especificidade de sua filosofia tardia, que
ele chama de “empirismo” nesse sentido preciso – a saber, o espaço
lógico não precede a sua constituição. Portanto, sua existência é
puramente factual (rein faktisch). Não há um fundamento, a priori,
para o mundo existir enquanto o espaço lógico em que nos
encontramos sempre e invariavelmente como seres discursivos. Mas,
se este mundo, porém, existir, ele pode ser deduzido de sua pré-
história. Schelling descreve essa experiência puramente factual como
uma “consequência” da causa impensável de todo ser: „Das Prius wird
aus seiner Folge, aber es wird nicht so erkannt, daß diese Folge
vorausginge. Die Präposition a in a posteriori bedeutet hier nicht den
terminus a quo; a posteriori heißt hier per posterius, durch seine Folge
wird das Prius erkannt. Α priori erkannt werden heißt eben: von einem
Prius aus erkannt werden; a priori erkannt wird also, was ein Prius hat,
von dem aus es erkannt wird. Das absolute Prius aber ist, was kein
Prius hat, von dem aus es erkannt wird. Das absolute Prius seyn, heißt
also, nicht a priori erkannt werden. Hier, in der positiven Philosophie,
ist also eigentlicher Empirismus, insofern als das in der Erfahrung
Vorkommende selbst mit zum Elemente zum Mitwirkenden der

431
um empiricismo opaco, mas na forma de um empiricismo
avultado322, que também leva em consideração não apenas a
determinidade da experiência, mas também sua inegável
atualização323.
A partir destas considerações, pode-se dizer que o
conceito de Deus, que Tillich apresenta como resultado de
sua reconstrução do desenvolvimento filosófico de
Schelling, é conformado por dois níveis de reflexão. O
ponto de partida é a antinomia entre a razão teórica e a
razão prática, ou entre necessidade e liberdade, que toma
lugar no âmbito da subjetividade finita. Esta antinomia
representa, por sua vez, a justificação de si mesma
enquanto um problema para a razão. No percurso de sua

Philosophie wird“. Para a citação de Schelling, cf. F. W. J. SCHELLING.


Philosophie der Offenbarung. Erstes und zweites Buch. In: M.
SCHRÖTER. (Hg.). Schellings Werke. Sechster Ergänzungsband.
München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1858, p. 129-130.
Sobre o conceito de Empirismus na filosofia tardia de Schelling, cf.,
respectivamente M. GABRIEL. Der Mensch im Mythos.
Untersuchungen über Ontotheologie, Anthropologie und
Selbstbewußtseinsgeschichte in Schellings „Philosophie der
Mythologie“. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG,
2006, p. 139, especialmente nota 208; R. MOKROSCH. Warum Tillich
sich nicht auf Schelling berufen kann, aber dennoch ohne Schelling
nicht denkbar ist, p. 142.
322
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 149.
323
P. TILLICH. Mystik und Schuldbewußtsein in Schellings
philosophischer Entwicklung, p. 79: „Um zum Absoluten zu kommen,
muß sich der Mensch von der ihm inne wohnenden
Vernunftnotwendigkeit vom Prinzip der Identität leiten lassen. Um zu
sehen, daß Gott persönlich und lebendig ist, muß er Gottes
Selbstzeugnis wahrnehmen und anerkennen. Weil es Leben und
Mannigfaltigkeit ist, ist Gott Leben und Werden zuzuschreiben. Keine
Vernunft kann das erweisen, Gott aber zeigt es denen, die sehen
wollen“.

432
autojustificação pela atualização do pensamento do
absoluto enquanto fundamento necessário da razão, a
própria razão percebe, por necessidade, o fracasso deste
pensamento, uma vez que ela, a razão, já deve sempre
pressupor a si mesma na performance de sua justificação. O
pensamento do absoluto desvela, desta forma, uma nova
diferença – a saber, a diferença entre o pensamento do
fundamento necessário da razão e este próprio
fundamento. A percepção do fracasso do pensamento do
fundamento necessário forma a transição para o segundo
nível de reflexão. Este nível revela que a impraticabilidade
desta transição enseja a percepção de que Deus, enquanto
facticidade imperscrutável da atualização do pensamento, já
sempre se encontra em uma relação com o conceito.
As articulações elaboradas por Tillich, a partir de
sua reconstrução do conceito de Schelling, sobre o absoluto
que se coloca, ao mesmo tempo, com as determinações de
unidade e contradição para a percepção de sua realização,
bem como a tematização do problema da transição do
absoluto ao conceito de Deus, que revela a presença da
irracionalidade na racionalidade enquanto expressão do
fato de que as condições internas da racionalidade são para
ela inapreensíveis, conformam a base sobre a qual a fórmula
“Deus além de Deus” encontra seu prius. Enquanto
descrição reflexiva da estrutura do ato da fé, a fórmula
“Deus além de Deus” irrompe como um resultado do
fracasso do pensamento que tem de pressupor a si mesmo
no ato de justificação de sua própria performance, isto é, a
percepção da diferença entre o pensamento do fundamento
necessário da razão e este próprio fundamento. O absoluto,
tal como elaborado por Tillich em sua theologische

433
Lizenziaten-Dissertation de 1912, é sempre e
necessariamente transcendente e desprovido de
determinação. Não obstante, as determinações concretas de
Deus se revelam necessárias, por um lado, e insuficientes,
falíveis, tendo-se em vista a presença da irracionalidade na
racionalidade, por outro. A reconstrução do conceito
schellinguiano de Deus elaborada por Tillich revela,
portanto, a tentativa de determinação do pensamento do
absoluto que termina por incorrer, entretanto, em
contradição. É neste sentido, pois, que a fórmula “Deus
além de Deus”, ao retomar o pensamento do absoluto no
conceito de Deus de Schelling, é elaborada, sob uma nova
base teorética, como uma descrição reflexiva do ato da fé
que procura solucionar a contradição intrínseca ao
pensamento sobre o absoluto precisamente ao assumir a
contradição enquanto dimensão constitutiva do espírito.
Não obstante, é sobre a base da assunção do
Empirismus de Schelling, que abre o campo teórico para a
percepção da determinidade da experiência e sua inegável
atualização reflexiva no pensamento, que a fórmula “Deus
além de Deus” de Tillich encontra sua função mais
própria324. A fórmula “Deus além de Deus” – ou, como
posteriormente Tillich denomina, o incondicional 325 –

324
R. MOKROSCH. Warum Tillich sich nicht auf Schelling berufen
kann, aber dennoch ohne Schelling nicht denkbar ist, p. 142.
325
Sobre a copertença entre a fórmula “Deus além de Deus” e o
conceito de incondicional, veja S. DIENSTBECK. Transzendentale
Strukturtheorie. Stadien der Systembildung Paul Tillichs, p. 322-335.
Conceitos como “Deus além de Deus” e incondicional, nos termos
como Tillich os constrói, jamais seriam, como bem afirma Mokrosch,
aceitos por Schelling. Sobre este ponto, cf. R. MOKROSCH. Warum
Tillich sich nicht auf Schelling berufen kann, aber dennoch ohne
Schelling nicht denkbar ist, p. 142: „Begriffe wie ‚Gott über Gott‘ oder

434
representa uma descrição reflexiva do evento contingente
da autotransparência subjetiva no ato da fé, isto é, ela
descreve a dialética constitutiva da fé e é, ao mesmo tempo,
uma expressão para a reflexividade da subjetividade
religiosa326. Não obstante, a fórmula “Deus além de Deus”
possui, ainda, uma outra função distintiva. Ao tematizar a
separação e pertença entre Deus e o absoluto, bem como a
presença da irracionalidade na racionalidade, a fórmula de
Tillich também lança as bases para a construção de um
conceito de Deus que seja capaz de resistir, ao mesmo
tempo, às objeções críticas da religião impostas pela
modernidade esclarecida, por um lado, e às problemáticas,
já mencionadas, oriundas das objetificações
(Vergegenständlichungen) dos enunciados teológicos, por
outro. Enquanto fundamento da autoconsciência, o
absoluto necessariamente precede toda versão da ideia de
Deus tanto nos termos de uma determinação finita quanto
em um sentido lógico. É, pois, precisamente em função do
caráter paradoxal da fórmula tillichiana que o Supra por ele
referido não é mais passível de ser agarrado por meio do
pensamento conceitual. Isto porque a ideia da afirmação de
uma dimensão conceitual em processo de autoextrapolação,
isto é, de um Grenzbegriff 327 , que conduz à fórmula

das ‚Unbedingte‘, wie Tillich sie später konstruierte, hätte Schelling


m.E. niemals akzeptiert“.
326
C. DANZ. Absolute Faith and the “God above God”: Tillich’s New
Interpretation of God. Bulletin of the North American Paul Tillich
Society, vol. 36, no. 2, 2010, p. 19.
327
Aqui, evidentemente, o locus da concepção de verdade descende da
tradição filosófico-transcendental oriunda da revolução copernicana de
Kant. Trata-se, em outras palavras, de uma concepção de verdade nos
termos de um “projeto da razão” (U. Barth) que se volta para a
dimensão de unidade última da razão qua Vernunft. Esta unidade

435
paradoxal do “Deus além de Deus”, é, antes de tudo,
essencialmente dotada de uma dialética interna que, uma

última, contudo, permanece inalcançável. É nesta acepção que o


conceito tillichiano de verdade, especialmente a partir de sua guinada
em direção a uma filosofia idealista-neokantiana do sentido, deve ser
analisado. Sobre este ponto, cf., entre outros, os seguintes estudos: M.
FLEISCHER. Wahrheit und Wahrheitsgrund. Zum Wahrheitsproblem
und zu seiner Geschichte. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1984,
p. 4-28; M. BAUM. Wahrheit bei Kant und Hegel. In: D. HENRICH
(Hg.). Kant oder Hegel? Über Formen der Begründung in der
Philosophie. Stuttgarter Hegel-Kongress 1981. Stuttgart: Klett-Cotta,
1983, 230-249; R. BARTH. Absolute Wahrheit und endliches
Wahrheitsbewußtsein. Das Verhältnis von logischem und
theologischem Wahrheitsbegriff – Thomas von Aquin, Kant, Fichte
und Frege. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2004, p. 357-392.
Sobre o conceito de verdade em Kant e na tradição do idealismo pós-
kantiano, cf. W. JANKE. Fichte: Sein und Reflexion – Grundlagen der
kritischen Vernunft. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1970, p. 301-
417; G. PRAUSS. Zum Wahrheitsproblem bei Kant. In: G. PRAUSS.
(Hg.), Kant. Zur Deutung seiner Theorie von Erkennen und Handeln,
p. 73-89; M. FLEISCHER. Wahrheit und Wahrheitsgrund. Zum
Wahrheitsproblem und zu seiner Geschichte, p. 86-132; U. BARTH.
Gott – Die Wahrheit? Problemgeschichtliche und systematische
Anmerkungen zum Verhältnis Hirsch/Schleiermacher. In: J.
RINGLEBEN. (Hg.). Christentumsgeschichte und Wahrheitsbewußtsein.
Studien zur Theologie Emanuel Hirschs. Berlin; New York: Walter de
Gruyter & Co., 1991, p. 98-157; R. HILTSCHER. Wahrheit und
Reflexion. Eine transzendentalphilosophische Studie zum
Wahrheitsbegriff bei Kant, dem frühen Fichte und Hegel. Bonn:
Bouvier Verlag, 1998. Sobre o conceito de verdade na tradição
neokantiana, sobretudo da escola de Baden, cf. T. KUBALICA.
Wahrheit, Geltung und Wert: die Wahrheitstheorie der Badischen
Schule des Neukantianismus. Würzburg: Königshausen & Neumann,
2011; sobre o conceito de verdade em Husserl, cf. o já clássico estudo
de E. TUGENDHAT. Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger.
Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1970, p. 13-255; para um incurso na
problemática do pensamento sobre o fundamento último como unidade
absoluta já a partir da história da filosofia antiga, cf. U. BARTH.
Absolute Wahrheit oder absolute Einheit. Letztbegründungsdenken bei
Parmenides, Platon und Augustin. In: Gott als Projekt der Vernunft, p.
87-106.

436
vez enraizada na estrutura constitutiva da subjetividade,
permanece, como adiante se verá, insolúvel. Neste sentido,
o absoluto, representado pela fórmula Gott über Gott,
somente será passível de expressão a partir da linguagem
simbólica: ou, posto de outra forma, somente a linguagem
simbólica é, para Tillich, capaz de expressar a estrutura
antinômica interna que caracteriza o espírito na dinâmica
reflexiva e histórica de sua autorrelacionalidade.
Com a elaboração da fórmula “Deus além de Deus”,
portanto, a tese de habilitação de Tillich irrompe como um
primeiro movimento dentro de uma fase de mudança no
pensamento do jovem teólogo. Nos escritos anteriores à
Guerra, conforme afirmado, a base teórica do princípio do
sistema de Tillich se encontrava no princípio científico, que
foi por ele concebido, por sua vez, como um pensamento
absoluto da verdade328. Ora, é precisamente esta perspectiva
– por Tillich caracterizada como – idolátrica que, uma vez
reformulada, abre espaço para uma nova concepção do
absoluto e para a necessidade de elaboração de uma teoria
dos símbolos criticamente fundamentada. A antinomia
entre a razão teórica e a razão prática, ou entre necessidade
e liberdade, que toma lugar no âmbito da subjetividade
finita, enseja a transferência da substância (Gehalt) do

P. TILLICH. Systematische Theologie von 1913, § 3 Das Denken, p.


328

281: „Der absolute Wahrheitsgedanke ist die Aufhebung aller


Gegensätze. Zugleich soll er Prinzip aller im Denken enthaltenen
Gegensätze sein. Der Grund dazu kann aber nicht in ihm liegen, da es
sein Wesen ist, den Gegensatz auszuschließen. Der Grund muß also
außer ihm liegen; andrerseits ist nicht möglich, daß außerhalb des
absoluten Wahrheitsgedankens ein Prinzip liegt. Der absolute
Wahrheitsgedanke enthält also in sich ein Prinzip des Widerspruchs
gegen sich; er hat einen absoluten Gegensatz, mit dem er zugleich in
absoluter Identität steht. Dieser Gegensatz ist das Denken“.

437
absoluto para o ato religioso. Neste movimento, Tillich
confere ao pensamento do absoluto, a partir de impulsos
idealistas e neokantianos, uma nova determinação 329 .
Muito embora também aqui em seu escrito de habilitação o
conceito de símbolo ainda não irrompa de forma rigorosa,
a exigência para a formulação de um conceito que possa
conferir expressão à estrutura antinômica do absoluto se
torna, para Tillich, cada vez mais óbvia e urgente.
Conforme mencionado nas páginas precedentes,
uma teoria dos símbolos plenamente elaborada e
satisfatoriamente sistematizada somente se encontra no
texto Das religiöse Symbol330. Em sua tradução para o inglês,
entretanto, também este texto foi alvo de inúmeras críticas.
Desta vez, contudo, as críticas formuladas se voltaram mais
propriamente à compreensão da natureza da linguagem
simbólica eo ipso, bem como à sua função enquanto veículo
único de expressão da linguagem religiosa 331 . Para os

329
G. RAATZ. Kulturwissenschaft oder Sinnlehre? Zur Genese von Paul
Tillichs wissenschaftssystematischem Begriff der Theologie zwischen
1917-1923. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER; E. STURM. (Hg.).
Internationales Jahrbuch für die Tillich-Forschung. Band 3: Tillich
und Nietzsche. Berlin; Wien: LIT Verlag, 2007, p. 141-173.
330
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
411-412: „Denn der einschlägige Aufsatz von 1928 bietet zwar eine
ausgeführte Symboltheorie, diese steht somit gegen Ende des
Jahrzehnts in ihren wesentlichen Zügen als solche da“.
331
Cf. W. M. URBAN. A Critique of Professor Tillich’s Theory of the
Religious Symbol. The Journal of Liberal Religion, vol. 2, no. 1, 1940,
p. 34-36, reimpresso em IDEM. A Critique of Professor Tillich’s
Theory of the Religious Symbol. In: J. P. CLAYTON. (Hg.). Main
Works – Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische Schriften, p.
269-271; E. E. AUBREY. A Critique of Professor Tillich’s Theory of
the Religious Symbol. The Journal of Liberal Religion, vol. 2, no. 4,
1941, p. 201-202, reimpresso em IDEM. A Critique of Professor
Tillich’s Theory of the Religious Symbol. In: J. P. CLAYTON. (Hg.).

438
intérpretes estadunidenses de Tillich, a linguagem
simbólica, enquanto a linguagem da religião, apresenta
problemas que, em última análise, são incompatíveis com a
autoafirmação de uma fé pensada a partir de pressupostos
quase que invariavelmente teístas332. É contra este tipo de
acusação, oriunda de um contexto, em geral, privado da –
ou mesmo de revolta contra a333 – tradição de pensamento

Main Works – Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische


Schriften, p. 271-272.
332
Cf. G. M. MARSDEN. The Soul of the American University: From
Protestant Establishment to Established Nonbelief. New York: Oxford
University Press, 1994.
333
Um exemplo, aqui, é a ruptura de G. E. Moore e Bertrand Russell
com a tradição idealista. Ambos os pensadores, como se sabe, possuem
influência colossal sobre a configuração do pensamento filosófico
estadunidense. Sobre este ponto, cf. o importante ensaio de T.
BALDWIN. Moore’s Rejection of Idealism. In: R. RORTY; J. B.
SCHNEEWIND; Q. SKINNER. (Ed.). Philosophy in History: Essays on the
Historiography of Philosophy. Cambridge; New York: Cambridge
University Press, 1984, p. 357-354; P. HYLTON. The Nature of the
Proposition and the Revolt against Idealism. In: R. RORTY; J. B.
SCHNEEWIND; Q. SKINNER. (Ed.). Philosophy in History: Essays on the
Historiography of Philosophy, p. 375-397; IDEM. Russel, Idealism, and
the Emergency of Analytic Philosophy. Oxford; New York: Oxford
University Press; Clarendon Press, 1992. Para T. C. REAM.
Pragmatism and the Unlikely Influence of German Idealism on the
Academy in the United States. Educational Philosophy and Theology,
vol. 39, Issue 2, 2007, p. 150-167, ao passo que o Idealismo Alemão
jamais logrou encontrar espaço nos círculos acadêmicos
estadunidenses, ele, por sua vez, deu forma e direção ao emergente
movimento filosófico-pragmático neste país. Ainda sobre este ponto,
cf. R. RORTY. Nineteenth-Century Idealism and Twentieth-Century
Textualism. In: Consequences of Pragmatism. (Essays: 1972-1980).
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982, p. 139-159; IDEM.
Philosophy in America Today. In: Consequences of Pragmatism.
(Essays: 1972-1980), p. 211-213; IDEM. The Historiography of
Philosophy: Four Genres. In: R. RORTY; J. B. SCHNEEWIND; Q.
SKINNER. (Ed.). Philosophy in History: Essays on the Historiography
of Philosophy, p. 49-75; D. ANDERSON. Idealism in American

439
filosófico-idealista 334 , e amplamente influenciado pela
tradição analítica e pragmática na filosofia335, que Tillich
terá de defender e sustentar seu posicionamento filosófico e
teológico. Aqui, não é insignificativo assinalar que a
“constelação de problemas” que conforma o pensamento de
Tillich é considerada, sobretudo no contexto norte-
americano, uma anomalia, algo como “um pastiche de
fantasmagoria metafísica”336 . Em grande medida, é este
contexto intelectual caracterizado por uma forte oposição à
filosofia alemã clássica que obriga a reflexão tillichiana à
adoção instrumental e consciente de uma linguagem
teológica tradicional e de “termos teológicos mais
clássicos”337 como forma de tradução dos alicerces de sua
teoria dos símbolos e do sentido.
Mas, o que diz o artigo de Tillich? Quais os
pressupostos fundamentais da tradução, em 1940, de seu

Thought. In: A. T. MARSOOBIAN; J. RYDER. (Ed.). The Blackwell


Guide to American Philosophy. Malden; Oxford; Victoria: Blackwell
Publishing, 2004, p. 22-34; R. B. GOODMAN. American Philosophy
before Pragmatism. Oxford: Oxford University Press, 2015, sobretudo,
p. 234-260.
334
Cf. D. S. PACINI. Foreword: Remembrance through Disenchantment.
In: D. HENRICH. Between Kant and Hegel: Lectures on German
Idealism. Cambridge; London: Harvard University Press, 2003, p. ix-
xli.
335
S. SOAMES. Analytic Philosophy in America: and Other Historical
and Contemporary Essays. Princeton; Oxford: Princeton University
Press, 2014, p. ix-xxiv, p. 3-34.
336
A frase é tomada de empréstimo de D. S. PACINI. Foreword:
Remembrance through Disenchantment, p. x, que a aplica para
descrever a percepção geral do pensamento filosófico de Dieter
Henrich no contexto radicalmente antimetafísico estadunidense.
337
M. BOSS. Paul Tillich and the Twentieth Century Fichte
Renaissance: Neo-Idealistic Features in His Early Accounts of
Freedom and Existence, p. 13; IDEM. Which Kant? Whose Idealism?
Paul Tillich’s Philosophical Training Reappraised, p. 26-30

440
texto Das religiöse Symbol, originalmente publicado em
1928, que produz tamanho desconforto no contexto
intelectual-teológico estadunidense? É, pois, para uma
breve apresentação dos pressupostos fundamentais deste
estudo de Tillich que os parágrafos seguintes se dirigem.

δ. As características essenciais do símbolo religioso e a


integração sistemática da Intentionalitätstheorie de
Husserl

Em seu conciso e paradigmático estudo sobre os


fundamentos de sua teoria dos símbolos, Tillich sistematiza
os aspectos essenciais que conformam a totalidade de sua
compreensão madura sobre o conceito de símbolo. Por
outro lado, conforme afirmado nas páginas precedentes,
este estudo sistematiza, igualmente, a relação entre a
Symboltheorie e sua já elaborada teoria do sentido. Com
isto, a longa busca, empreendida por Tillich, de um
conceito que seja capaz, ao mesmo tempo, de trazer à
expressão a vitalidade e concretude do paradoxo absoluto
sem incorrer na problemática das objetificações idolátricas
subjacentes aos enunciados religiosos alcança, finalmente,
sistematização. Como pano de fundo da sistematização de
sua teoria dos símbolos encontra-se a compreensão básica,
esposada por Tillich, de que as formas culturais postas pelo
espírito, na relatividade e condicionalidade que lhes são
características, constituem formas indiretas, paradoxais do
absoluto. Neste contexto, ele afirma que os símbolos
religiosos unem as características do símbolo em geral com
quatro características especiais que lhes são atribuídas

441
enquanto símbolos religiosos propriamente ditos 338 . As
características apontadas por Tillich são, respectivamente,
as seguintes: inautenticidade (Uneigentlichkeit),
intuitividade (Anschaulichkeit), autopotencialidade ou
autoprofundidade (Selbstmächtigkeit), e reconhecibilidade
(Anerkanntheit)339. No parágrafo que se segue, a função
sistemática básica destas quatro características do símbolo
religioso será, brevemente, sumarizada.
A inautenticidade constitui, para Tillich, “a primeira
e fundamental característica do símbolo”. Ela significa que
o ato interno da consciência noética “que se direciona ao
símbolo não intenciona o símbolo enquanto tal, mas, antes,
aquilo que é simbolizado nele. Neste caso, o próprio
simbolizado pode se tornar símbolo para uma categoria de
status superior [höheren Ranges] que é simbolizado no
símbolo” 340 . O fundamento último de todo símbolo
religioso é, neste sentido, “a experiência do incondicional-
transcendente [die Erfahrung des Unbedingt-
Transzendenten]”. A intuitividade atesta que “um elemento
essencialmente não-intuitivo [ein wesenmäßgig
Unanschauliches], ideal ou transcendente é trazido à
intuição e, desta forma, à objetividade
341
[Gegenständlichkeit]” . A autopotencialidade ou
autoprofundidade do símbolo implica, por sua vez, que o
símbolo participa na potencialidade ou profundidade
(Mächtigkeit) daquilo que ele simboliza342. Finalmente, a
reconhecibilidade atesta que um símbolo somente pode ser

338
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 213-214.
339
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 213-214.
340
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 213.
341
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 213.
342
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 213-214.

442
aquilo que é universalmente reconhecido como símbolo.
Como Tillich afirma, “não é que uma coisa [eine Sache] se
constitui em um símbolo primeiro e, então, encontra seu
reconhecimento, mas, antes, a formação do símbolo e seu
reconhecimento se pertencem mutuamente
[Symbolwerdung und Anerkennung gehören zusammen]”. “O
ato de criação do símbolo [Symbolschaffende]”, afirma
Tillich, “é um ato social, mesmo quando ele irrompe
primeiramente em um indivíduo”343.
A consistência destas características essenciais dos
símbolos religiosos a partir da descrição de Tillich do poder
revelatório neles expressos é imediatamente perceptível. Os
símbolos enquanto meios de expressão são portadores, em
sua intuitividade concreta, do sentido incondicional-
transcendente último e infinito que neles são intencionados
de forma inautêntica. Tais como os meios de expressão, os
símbolos também se tornam indicadores da dimensão de
unidade última na medida em que participam, na
concretude daquilo que expressam, na potencialidade e
profundidade do incondicional enquanto fundamento e
abismo da autorrelacionalidade do espírito. Em última
análise, em exata correspondência com os meios de
expressão, os símbolos somente se tornam símbolos por
meio de seu reconhecimento no ato simbólico social que
primeiro irrompe na autorrepresentação da dimensão
última de sentido expressa por um indivíduo. As quatro
características apontadas por Tillich estão intrinsecamente
relacionadas entre si em uma estrutura de interconexão de

343
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 214. Cf., aqui, igualmente, C.
DIERKSMEIER. Das Noumenon Religion. Eine Untersuchung zur
Stellung der Religion im System der praktischen Philosophie Kants, p.
92.

443
sentido e representam, desta forma, aspectos essenciais e
constitutivos de sua teoria dos símbolos em conexão
sistemática com sua teoria idealista-neokantiana do
sentido. Segue-se que estas características, enquanto
conformadoras da “dialética dos símbolos”
344
(Symboldialektik) articulada por Tillich, não podem ser
resumidas em duas características essenciais sem o risco da
completa desconstrução da sistematicidade interna de sua
teoria dos símbolos345. Não obstante, o eixo central da

344
H. LOOFF. Der Symbolbegriff in der neuren Religionsphilosophie
und Theologie, p. 58. Looff, entretanto, assume, erroneamente, que as
quatro características da dialética dos símbolos de Tillich podem ser
resumidas por meio da centralização de sua Symboltheorie nas
características da inautenticidade e da autopotencialidade ou
autoprofundidade. A redução problemática operada por Looff deu
impulso a outras pesquisas que, por assumirem o mesmo movimento
equívoco, falham em reconstruir a teoria dos símbolos de Tillich em
sua dimensão propriamente sistemática.
345
Sobre este ponto, cf. K.-D. NÖRENBERG. Analogia Imaginis. Der
Symbolbegriff in der Theologie Paul Tillichs, p. 87: „Die
Wesensmerkmale des Symbols lassen sich auf die beiden
grundlegenden Merkmale der Uneigentlichkeit und Selbstmächtigkeit
reduzieren“. Em conexão com Nörenberg, afirma G. WENZ. Subjekt
und Sein. Die Entwicklung der Theologie Paul Tillichs, p. 163-164:
„Mit Selbstmächtigkeit und Uneigentlichkeit haben wir damit die
elementaren Merkmale des Symbols bestimmt [...] alle weiteren lassen
sich letztlich auf diese beiden reduzieren“. Neste sentido, cf.
igualmente O. SCHNÜBBE. Paul Tillich und seine Bedeutung für den
Protestantismus heute. Das Prinzip der Rechtfertigung im
theologischen, philosophischen und politischen Denken Paul Tillichs.
Hannover: Lutherhaus-Verlag, 1985, p. 31; W. SCHÜßLER. Der
philosophische Gottesgedanke im Frühwerk Paul Tillichs (1910 –
1933). Darstellung und Interpretation seiner Gedanken und Quellen.
Würzburg: Königshausen & Neumann, 1986, p. 105; M. KORTHAUS.
‚Was uns unbedingt angeht‘ – der Glaubensbegriff in der Theologie
Paul Tillichs. Stuttgart; Berlin; Köln: Kohlhammer, 1999, p. 116; M.
VETTER. Zeichen deuten auf Gott. Der zeichentheoretische Beitrag von
Charles S. Perice zur Theologie der Sakramente. Marburg: Elwert,
1999, p. 190; K. GLÖCKNER. Personsein als Telos: eine Darstellung

444
teoria dos símbolos de Tillich, que opera como categoria
fundamental da sistematicidade interna, encontra-se no
aspecto da inautenticidade da linguagem simbólica346. É
esta categoria, portanto, que expressa o caráter essencial
dos símbolos – a saber, que eles são meios inautênticos de
autoexpressão – e sustenta, de forma sistemática, as demais
características347.
Uma vez reconhecido o caráter sistemático que a
publicação paradigmática de Tillich possui, é importante
ressaltar que o estudo de Tillich representa, em grande
medida, um certo aprofundamento dos pressupostos gerais
já previamente expostos em seu texto Rechtfertigung und
Zweifel, de 1919. Não seria errôneo afirmar, neste sentido,
que mesmo separados por um período de quase uma
década, há um paralelismo entre o texto Rechtfertigung und

der Theologie Paul Tillichs aus der Perspektive seines Verständnisses


des Menschen als Person. Münster: LIT Verlag, 2004, p. 211-213.
Contra estas reduções que terminam por desconstruir a sistematicidade
interna da teoria dos símbolos de Tillich, cf. a crítica precisa
apresentada por L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine
systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie
Paul Tillichs, p. 54.
346
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
509: „Darüber hinaus erhellt das Uneigentlichkeitsaxiom in
paradigmatischer Weise den ursprünglich religionsphilosophischen
Zuschnitt von Tillichs Symbolbegriff. Denn die These einer
fundamentalen Gegenläufigkeit von Intention und
Darstellungsmöglichkeit ist, das bezeugen die diesbezüglichen
Überlegungen der ersten Hälfte der 1920er Jahre ausnahmslos, eben an
der Frage der dem Unbedingten geltenden Ausdrücke gebildet“.
347
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
63: „Das Zentrum von Tillichs Theorie religiösen Symbolisierens
bezeichnet jedoch der über das Merkmal der ‚Uneigentlichkeit‘
anzuvisierende Transzendenzgedanke. Hier liegt der Fluchtpunkt der
symboltheoretischen Rekonstruktion“.

445
Zweifel e o estudo Das religiöse Symbol. Conforme afirmado
anteriormente, é neste estudo de 1919 que Tillich
emprega, pela primeira vez, o conceito de símbolo
enquanto conceito-chave de sua reflexão sobre a correlação,
em linguagem teológica, entre fé e dúvida na reflexão cética
que justifica aquele que duvida348. Uma análise rigorosa
deste estudo de Tillich revela três preocupações teórico-
sistemáticas fundamentais. Em primeiro lugar, Tillich se
esforça por construir um ponto de partida para a teologia
em conformidade com as exigências da modernidade
crítica, isto é, kantiana. Por um lado, o Grundthema do
ensaio de Tillich se volta para a construção de um conceito
de Deus que não se contraponha aos princípios
fundamentais da autocompreensão da cultura moderna.
Por outro lado, o ensaio de Tillich revela uma preocupação
que permanece constante em seu pensamento – a saber, o
problema das objetivações dos enunciados religiosos. Em
segundo lugar, há que se observar que, desde suas
correspondências com Emanuel Hirsch entre os anos 1917
e 1918, Tillich desenvolve uma teoria do sentido que não
apenas põe em xeque seu conceito prévio do absoluto,
como também se torna o fundamento metodológico e
sistemático da totalidade de seus escritos posteriores sobre
filosofia da religião e teologia – incluindo, evidentemente,
seus escritos estadunidenses e seu opus magnum. Em

348
Uma boa apresentação dos contornos fundamentais do artigo de
Tillich pode ser encontrada no estudo de E. GROSS. A justificação de
quem duvida. Um exercício hermenêutico com Paul Tillich. Numen:
Revista de estudos e pesquisa da religião, vol. 4, no. 2, 2010, p. 33-56.
A abordagem de Gross carece, no entanto, de uma fundamentação
sistemática que exponha os fundamentos da discussão de Tillich no
contexto de sua guinada em direção a uma teoria idealista-neokantiana
do sentido.

446
terceiro lugar, Tillich se apropria da fenomenologia inicial
de Edmund Husserl como instrumental teórico de
fundamentação da consciência de sentido 349 . Por
conseguinte, os insights conteudísticos de Husserl, sua
Intentionalitätstheorie, são incluídos como instrumentos
teóricos para o desenvolvimento sistemático de seu
conceito de símbolo em conexão com sua teoria do sentido.
Como afirma Tillich, “o esclarecimento desta relação é o
conceito de ‘intenção’ utilizado pela escola fenomenológica.
Um conceito intenciona algo, visa alguma coisa, e aquilo
que se quer dizer é algo totalmente diferente da
representação por meio da qual ele é intencionado”. Neste
sentido, prossegue Tillich, “o incondicionado é
intencionado por meio de representações condicionadas”350.
Como esta breve citação torna clara, ao inserir o
conceito de intencionalidade em seu conceito de símbolo,
Tillich se torna capaz de oferecer uma fundamentação
precisa para a forma do relacionamento entre religião e
cultura. Este relacionamento é caracterizado, como Tillich
assinala, pela forma da relação entre o condicionado e o
incondicionado. Ao proceder desta maneira, o sentido
incondicionado se torna a intenção última e nunca

349
Sobre este ponto, cf. G. NEUGEBAUER. Die geistphilosophischen
Grundlagen der Kulturtheologie Tillichs vor dem Hintergrund seiner
Schelling- und Husserlrezeption. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.).
Paul Tillichs Theologie der Kultur: Aspekte, Probleme, Perspektiven,
p. 38-63.
350
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 176: „Klärend für
dieses Verhältnis ist der von der phänomenologischen Schule
gebrauchte Begriff des ‚Meinens‘. Ein Begriff ‚meint‘ etwas, zielt auf
etwas hin, und dieses Gemeinte ist etwas ganz anderes als die
Vorstellung, durch die hindurch gemeint wird. So wird das Unbedingte
gemeint in bedingten Vorstellungen“.

447
apreensível da consciência religiosa. A intenção do
incondicionado, entretanto, somente ocorre de forma
indireta, isto é, através das formas condicionadas concretas
postas pelo espírito em sua atividade criativa e incessante
no mundo da vida. Não obstante, a intenção última do
incondicionado simbolizada pelos enunciados religiosos não
constitui nenhuma forma de conhecimento teorético: a
consciência religiosa não se volta para a dimensão
condicionada propriamente dita, mas intenciona, através da
esfera condicionada, a dimensão de profundidade e
incondicionalidade que sustenta a atividade espiritual e sua
objetivação no mundo da vida. Por outro lado, a
consciência intencional não se volta, de acordo com Tillich,
para um objeto transcendente por meio do qual ela se torna
uma consciência propriamente religiosa. Conforme
afirmado nas páginas precedentes, a consciência simbólica
religiosa constitui um veículo objetivo de autointerpretação
da subjetividade individual na autotransparência de sua
reflexividade interna. Ela não intenciona, em outras
palavras, qualquer realismo compreendido enquanto
substância transcendente ou dimensão de referencialidade
exógena à subjetividade em sua reflexividade e
historicidade internas.
Por mais que a intenção da consciência religiosa
deva ser enfatizada, seria um equívoco não perceber que
tanto o incondicionado quanto o condicionado constituem
componentes fundantes da consciência de sentido. É, pois,
precisamente aqui que Tillich inclui as três preocupações
teórico-sistemáticas fundamentais mencionadas acima e
que conformam o escopo de seu artigo Rechtfertigung und
Zweifel, de 1919, e as sumariza em seu artigo Das religiöse

448
Symbol, de 1928. Ao fundamentar sua teoria da religião a
partir de uma teoria neokantiana do sentido, Tillich
confere sistematização à forma do relacionamento entre
religião e cultura. Em outras palavras: religião e cultura, a
despeito de sua unidade espiritual essencial, permanecem
distintas entre si, sem, contudo, do ponto de vista teórico-
ideal, entrar em conflito uma com a outra – o que não
implica afirmar que, para Tillich, o relacionamento entre
cultura e religião constitua uma “relação harmônica
inquebrada” 351 . O conceito de símbolo, tal como
desenvolvido por Tillich no período ulterior à Primeira
Guerra e, sobretudo, a partir da década de 20, opera como
base metodológica de mediação entre religião e cultura. A
cultura se torna, na experiência religiosa, o meio para a
irrupção do incondicionado: neste sentido, pode-se afirmar
que, para Tillich, a religião é a dimensão de profundidade
da cultura que possibilita a autocompreensão desta última
na autonomia de sua própria autodeterminação. Neste
movimento, Tillich não apenas supera o conflito entre
religião e cultura, como também fundamenta a percepção
de que as formas culturais condicionadas constituem, para

351
Sobre este ponto, cf. C. CORDEMANN. Religion und Kultur. Paul
Tillichs religionsphilosophische Grundlegung einer Theologie der
Kultur. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.). Paul Tillichs Theologie der
Kultur: Aspekte, Probleme, Perspektiven, p. 103: „Religion und Kultur
gehen in Tillichs Denken keine ungebrochen-harmonische Beziehung
ein. Sie stehen vielmehr in einem differenzierten Verhältnis
wechselseitiger Zuordnung, das Tillich idealtypisch unter die Begriffe
Autonomie, Heteronomie und Theonomie fasst“. Enquanto o conceito
de heteronomia e autonomia são derivados de Kant, o conceito de
teonomia, muito provavelmente, Tillich toma de empréstimo de
Troeltsch. Sobre este ponto, cf. F. W. GRAF. Theonomie. Fallstudien
zum Integrationsanspruch neuzeitlicher Theologie. Gütersloh:
Gütersloher Verlagshaus Mohn, 1989, p. 184.

449
a consciência religiosa, meios de expressão do
incondicionado.
Conforme mencionado em seu artigo Das religiöse
Symbol, Tillich faz uso de símbolos culturais e religiosos
para a descrição das características fundamentais da forma
sistemática de sua teoria dos símbolos. A diferença entre
símbolos religiosos e culturais reside apenas na autorrelação
implícita nos símbolos religiosos. “Os símbolos religiosos
são distintos dos demais na medida em que tornam
passíveis de intuição [Veranschaulichung] aquilo que
transcende incondicionalmente a esfera da intuição, o
último intencionado pelo ato religioso [des im religiösen Akt
Letztgemeinten], o incondicional-transcendente [des
Unbedingt-Transzendenten]”352. Desta forma, Tillich torna
evidente que os símbolos religiosos buscam o
esclarecimento da atividade cultural da consciência
subjetiva e diferem, assim, de toda consciência teórica. A
consciência religiosa é consciência intencional da dimensão
incondicionada de sentido, ao passo que a consciência
cultural intenciona as formas condicionadas de sentido353.
Por conseguinte, as formas culturais se tornam símbolos
para a atividade cultural da consciência na medida em que
em são expressão da autoapresentação da subjetividade em
sua autonomia. Este é o sentido preciso da famosa fórmula
“a religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da

352
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 214.
353
Cf. F. H. ABREU. “Richtung auf das Unbedingte” and “Self-
Transparency”: The Foundations of Paul Tillich’s Philosophy of Spirit,
Meaning, and Religion (1919-1925), p. 27-48 para uma exposição do
caráter intencional da consciência como chave para a demarcação do
relacionamento entre religião e cultura.

450
religião”354. Ou, como Tillich afirma já em seu artigo Kirche
und Kultur, de 1924: “a substância sustentadora da cultura
é a religião e a forma necessária da religião é a cultura”355.
Religião e cultura participam numa relação de
interdependência, e a chave para a demarcação da distinção
entre ambas jaz na direção de intencionalidade da
consciência.

ε. O emprego ilustrativo da doutrina da analogia entis e a


reafirmação dos impulsos da filosofia transcendental de
Kant

Conforme mencionado anteriormente, Tillich


publica a tradução de seu artigo Das religiöse Symbol no
periódico Journal of Liberal Religion, em 1940 356 . Seu
artigo, contudo, é criticado tanto por Wilbur M. Urban,
por um lado, quanto pelo editor do periódico, Edwin A.
Aubrey, por outro. Duas principais objeções, que
apresentam maior relevância, são levantadas por Urban. De
um lado, Urban dirige uma crítica ao pressuposto mais

354
P. TILLICH. Religion and Secular Culture. (1946). In: M. PALMER.
(Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 2: Kulturphilosophische
Schriften, p. 199: “A theonomous culture expresses in its creations an
ultimate concern and a transcending meaning not as something strange
but as its own spiritual ground. ‘Religion is the substance of culture
and culture the form of religion’. This was the most precise statement
of theonomy”.
355
P. TILLICH. Kirche und Kultur. (1924). In: M. PALMER. (Hg.). Main
Works – Hauptwerke. Band 2: Kulturphilosophische Schriften, p. 110:
„denn der tragende Gehalt der Kultur ist die Religion und die
notwendige Form der Religion ist die Kultur“.
356
Cf. nota 118 acima.

451
fundamental da Symboltheorie de Tillich no âmbito de sua
teoria da religião – a saber, o pressuposto de que todo
conhecimento de Deus possui um caráter simbólico.
Contra este aspecto da teoria dos símbolos de Tillich,
Urban dirige a crítica de “panssimbolismo”357. De outro
lado, e em estreita correlação com a primeira objeção,
Urban aponta que, em função da teoria tillichiana dos
símbolos afirmar que Deus é um nome para a dimensão
última de sentido intencionada pelo ato religioso (das
Letzt-Gemeinte), isto é, o incondicional-transcendente (des
Unbedingt-Transzendenten), Tillich se torna “uma presa
fácil de teorias puramente negativas e naturalistas”. Para
Urban, o panssimbolismo de Tillich se torna, em última
análise, “um panficcionismo”358. “A ideia de Deus”, afirma
Urban, “não pode ser, ela mesma, um símbolo”, tal como a
teoria dos símbolos de Tillich sustenta. “Em última
análise”, prossegue Urban, “pouca diferença há entre esta
posição e aquela de Feuerbach”359. Na base de ambas as
críticas de Urban encontra-se o apelo à doutrina da
analogia entis, sem a qual, conforme ele afirma, torna-se
“perfeitamente fútil falar tanto em simbolismo religioso
quanto em conhecimento religioso”360. É, portanto, sobre a

357
W. M. URBAN. A Critique of Professor Tillich’s Theory of the
Religious Symbol, p. 270.
358
W. M. URBAN. A Critique of Professor Tillich’s Theory of the
Religious Symbol, p. 270-271.
359
W. M. URBAN. A Critique of Professor Tillich’s Theory of the
Religious Symbol, p. 271.
360
W. M. URBAN. A Critique of Professor Tillich’s Theory of the
Religious Symbol, p. 270: “My own belief is that unless there is
‘analogy of being’ between ‘Creator’ and the ‘created’, between being
in itself and being for us, it is perfect futile to talk of either religious
symbolism or religious knowledge”.

452
base de um recurso, no mínimo problemático, à doutrina
da analogia entis que Urban, na tentativa ingênua,
conquanto precrítica, de oferecer uma solução para a teoria
dos símbolos de Tillich, aponta o alegado caráter
panssimbólico e panficcionista presente na formulação
sistemática de sua Symboltheorie. Na opinião de Urban, a
teoria dos símbolos de Tillich, além de se caracterizar sob a
forma funesta de um panssimbolismo, termina por
reverberar o projecionismo-ficcionista de Feuerbach.
Em sua réplica publicada sob o título Symbol and
Knowledge 361 , Tillich afirma que tanto Urban quanto
Aubrey, ao questionarem sua posição com base na sentença
“o transcendente incondicionado, a origem da existência e
do sentido que transcende tanto o ser em si quanto o ser
para nós”, apesar de apresentarem aspectos legítimos,
oferecem uma oportunidade para que ele defenda sua
“própria ideia contra ideias contrastantes”. Já no início do
artigo, no entanto, Tillich afirma: “eu não penso que
escreveria isto hoje, certamente não em inglês, que
infelizmente torna algumas ambiguidades da terminologia
filosófica alemã impossível”. Tillich, ab initio, aponta sua
intenção fundamental: “o que eu quero dizer é que o
fundamento do ser é, ao mesmo tempo, o abismo de
qualquer ser definido; e, inversamente, que o abismo do
ser, que transcende todos os seres especiais, é, ao mesmo
tempo, o fundamento criativo de todas as formas de
existência”. Todas as formas de existência são
condicionadas, de acordo com Tillich, pelo fundamento do

361
P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich.
(1940). In: J. P. CLAYTON. (Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 4:
Religionsphilosophische Schriften, p. 273-277.

453
ser, “mas ele mesmo não é condicionado por nada. Todas
elas estão contidas nele, mas ele mesmo não é exaurido em
sua infinitude”. Portanto, prossegue Tillich, o corolário
deste pressuposto teórico é que “todo conhecimento de
Deus possui caráter simbólico”. E esta sentença, afirma
Tillich, mesmo que ele precise afirmar que “o elemento
não-simbólico em todo conhecimento religioso” se
encontre na “experiência do incondicionado enquanto
fronteira, fundamento e abismo de tudo o que é
condicionado”, seria por ele sustentada, também nesta
ocasião de resposta a seus críticos, em toda sua pujança362.
Já nas primeiras linhas de sua resposta, portanto, Tillich
remete seus críticos aos pressupostos fundamentais de sua
teoria dos símbolos – a saber, a filosofia idealista-
neokantiana do sentido que fundamenta sua teoria da
subjetividade.
É a partir deste astucioso movimento de retorno às
bases de sua Symboltheorie que Tillich aceita o recurso à
doutrina da analogia entis como uma forma de contornar a
crítica de panssimbolismo atribuída a ele por Urban. Não
obstante, Tillich reafirma o punctum saliens de sua teoria
dos símbolos ao elaborar uma distinção clara e precisa entre
o incondicionado e Deus. Ao assinalar que o elemento
não-simbólico em todo conhecimento religioso é a
experiência do incondicionado enquanto fronteira,
fundamento e abismo de tudo o que é condicionado – um
movimento que, conforme visto, remonta à apropriação

P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich, p.


362

273.

454
tillichiana do Empirismus de Schelling363 –, Tillich reafirma
que esta experiência é “a experiência-fronteira da razão
humana” e, portanto, somente se torna passível de
expressão a partir de “termos racionais-negativos”364 . O
caráter da inautenticidade da linguagem simbólica, que
opera como centro gravitacional de sua teoria dos símbolos,
é por Tillich, uma vez mais, e contra as críticas pré-
kantianas de Urban, sustentado. Como afirma Tillich, “o
incondicionado não é Deus. Deus é o conceito afirmativo
que aponta para além da fronteira dos termos racionais-
negativos e, portanto, é ele mesmo um termo simbólico-
positivo”. Neste ponto, Tillich remete seus críticos aos
impulsos fundamentais oriundos da filosofia transcendental
de Kant: “a tentativa da metafísica ruim de estabelecer a
ideia de Deus em termos racionais-positivos é
363
R. MOKROSCH. Warum Tillich sich nicht auf Schelling berufen
kann, aber dennoch ohne Schelling nicht denkbar ist, p. 142: „Ja,
Erfahrung gehören konstitutiv zu dieser Selbsterschließung des
Existenzgrunds hinzu: ohne Erfahrung kein Existenzgrund und kein
Gott! Schelling nannte das einen ‚empirischen Apriorismus‘ im
Gegensatz zu einem ‚apriorischen Empirismus‘“. Aqui, Tillich, a
despeito das mudanças consideráveis em seu pensamento, segue em
conexão com sua prévia apropriação crítica e original de Schelling:
„Um den Unterschied aufs schärfste und kürzeste auszudrücken: die
negative Philosophie ist apriorischer Empirismus, sie ist der
Apriorismus des Empirischen [durchaus mit Kant: apriorische
Bedingungen der Möglichkeit von Erfahrungserkenntnis], aber eben
darum nicht selbst Empirismus; dagegen umgekehrt ist die positive
Philosophie empirischer Apriorismus, oder sie ist der Empirismus des
Apriorischen, inwiefern sie das Prius per posterius als Gott seyend
erweist. In Ansehung der Welt ist die positive Philosophie
Wissenschaft a priori, aber vom absoluten Prius abgeleitete; in
Ansehung Gottes ist sie Wissenschaft und Erkenntniß a posteriori“.
Sobre este ponto, cf. F. W. J. SCHELLING. Philosophie der
Offenbarung. Erstes und zweites Buch, p. 130.
364
P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich, p.
273.

455
irrefutavelmente rejeitada por Kant, que segue aqui a
tradição teológica predominante”. Em relativa
conformidade com Urban, Tillich afirma que “termos
simbólicos-positivos pressupõem” que “a realidade imediata
que é usada no símbolo tem algo a ver com a realidade
transcendente que é simbolizada nele”365. Neste sentido,
Tillich termina por aceitar certo emprego de uma analogia
da participação como elemento constitutivo de sua teoria
dos símbolos. No entanto, ele assim procede somente após
reafirmar não apenas a dependência de sua Symboltheorie de
sua teoria do sentido, mas também os limites cruciais e
intransponíveis que a crítica kantiana impõe ao
pensamento metafísico tradicional366. Como afirma Tillich:
“ao aceitar o método da analogia entis, eu não posso aceitar
qualquer tentativa de empregá-lo no modo da construção
racional”367. Ora, ao negar o método da analogia entis como
método empregado para a construção racional de
conhecimento teórico, já não se pode afirmar, com isso,
que Tillich, precisamente aqui, rompe com as bases
kantianas de seu pensamento sistemático. Antes o
contrário: ao aceitar um emprego qualificado da analogia
entis, Tillich reafirma a seus críticos, a partir de um retorno
a Kant, que os pressupostos fundamentais de sua filosofia
do espírito, do sentido e da religião se encontram na base
de sua teoria dos símbolos. Isto porque a filosofia

365
P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich, p.
273.
366
Aqui, uma vez mais, em conformidade com o estudo de U. BARTH.
Gott als Grenzbegriff der Vernunft. Kants Destruktion des vorkritisch-
ontologischen Theismus, p. 235-262.
367
P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich, p.
273-274.

456
transcendental de Kant “destruiu a base ontológica do
conceito metafísico e teológico de analogia ao argumentar
que a ideia racional de Deus, oriunda da relação do
condicionado com o incondicionado, não inclui a
cognoscibilidade ou possibilidade de definição do ser
intrínseco de Deus”. Neste sentido, embora “a existência de
Deus possa indubitavelmente ser pensada por meio de
analogias com os objetos da experiência, ela não pode ser
pensada como realmente dada, mas apenas como uma ideia
que é pensamento”368. É, pois, com base nesta dependência
de Tillich do pensamento de Kant que seu emprego da
doutrina analogia entis deve ser interpretado. Com efeito,
sem estes pressupostos fundamentais, não apenas a resposta
por Tillich elaborada a seus críticos permanece
ininteligível, como também seu recurso à analogia entis
perde qualquer utilidade frente sua clara menção à
dependência que seu pensamento possui em relação à
tradição filosófica kantiana e pós-kantiana.
A apropriação qualificada da doutrina da analogia
entis se torna ainda mais evidente no parágrafo que encerra
a primeira parte de sua réplica Symbol and Knowledge. Com
efeito, neste parágrafo Tillich trata de precisar a função
própria da analogia entis em sua teoria dos símbolos. Ao
negar o emprego da analogia entis nos termos de uma
construção racional, Tillich dá prosseguimento em relação
ao modo como os conceitos simbólicos devem ser
compreendidos no interior de seu sistema. Os conceitos
simbólicos, “afirmativos sobre Deus, suas qualidades e suas

368
F. WAGNER. Analogy. In: E. FAHLBUSCH; J. M. LOCHMAN; J. MBITI;
J. PELIKAN; L. VISCHER. (Ed.). The Encyclopedia of Christianity.
Volume 1: A-D. Grand Rapids; Leiden: William B. Eerdmans
Publishing Company; Koninklijke Brill, 1999, p. 48-49, aqui, p. 48.

457
ações, expressam a forma concreta em que o fundamento e
abismo misterioso do ser se torna manifesto a um ser
enquanto sua preocupação última em um ato que
chamamos de ‘revelação’”369. Para o leitor atento, todos os
elementos que fundamentam os escritos de Tillich desde
sua guinada em direção a uma teoria idealista-neokantiana
do sentido, como adiante se verá, são reafirmados de forma
cabal. Tillich reafirma que os símbolos religiosos, enquanto
a única linguagem em que a religião pode se expressar de
forma direta, não representam nenhum tipo de
conhecimento teórico. “Os símbolos especiais são
dependentes da situação concreta e da configuração em que
o mistério do fundamento aparece para nós”. Ora, é
precisamente este fundamento que não pode ser agarrado
através da linguagem conceitual. Isto não implica afirmar
que o símbolo religioso, isto é, o movimento de
autoapresentação da estrutura antinômica do espírito em
sua autorrelacionalidade histórica e reflexiva, não ofereça
nenhum tipo de “conhecimento”. Como afirma Tillich, “o
conhecimento sobre Deus decorrente de tal manifestação
concreta do incondicionado é verdadeiro, embora possa ser
uma verdade relativa, preliminar ou distorcida”. Não
obstante, a irrupção do incondicionado por meio das
formas condicionadas não constitui, no entanto, uma
verdade teórica. Trata-se, antes, de “uma verdade
existencial”, uma verdade que impede “a atitude de um
espectador” e demanda a rendição “para que se possa
experienciá-la”. É neste sentido, pois, que Tillich afirma
que “os símbolos não fornecem nenhum conhecimento

P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich, p.


369

273-274.

458
objetivo”, mas, antes, “uma verdadeira consciência
[awareness]” – a saber, a consciência “do mistério do
fundamento, que nunca pode se tornar um objeto para um
sujeito, mas que arrasta o sujeito para o objeto, superando,
desta forma, a clivagem entre eles”370.
A doutrina da analogia entis percorre como um roter
Faden as explicações de Tillich sobre os fundamentos de
sua teoria dos símbolos desde sua réplica a Urban até o fim
de sua vida. Por certo, esta doutrina corresponde à
reposição da ontologia como a base da teoria dos símbolos
em seu opus magnum, mas, conforme visto, sua
apropriação desta doutrina é qualificada na medida em que
ele nega precisamente seu emprego nos termos de uma
construção racional. Por meio desta apropriação,
entretanto, Tillich parece, prima facie, operar uma ruptura
com a tradição idealista que conforma seus escritos
maduros a partir da assunção de uma ontologia precrítica
como filosofia primeira. Mas, novamente, o emprego
operado por Tillich é muito qualificado. Conforme
afirmado nas páginas precedentes, Tillich afirma em sua
Systematic Theology que “a analogia entis nos dá nossa única
justificação para falar, em qualquer sentido, sobre Deus.
Ela está baseada no fato de que Deus deve ser entendido
como o ser-em-si”371. Neste sentido, Tillich emprega uma
semântica ontológico-existencial em seus últimos textos

370
P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich, p.
274. No original alemão, esta última sentença foi elaborada da seguinte
forma: „Echte Symbole sind überhaupt nich austauschbar, und richtige
Symbole geben zwar keine gegenständliche, aber eine wahre
Erkenntnis“. Sobre este ponto, cf. IDEM. Das religiöse Symbol, p. 222.
371
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 240.

459
sobre os símbolos religiosos como forma de tradução de sua
formulação prévia do conceito de Letztgemeinten. Esta
substituição de uma linguagem filosófica altamente
complexa por uma forma teológica tradicional se torna
ainda mais evidente quando ele explica o modo como o
símbolo religioso participa na realidade que ele
simboliza372. Como ele afirma em seu texto The Meaning
and Justification of Religious Symbols, “tais nomes não são
nomes de um ser, mas uma qualidade de um ser. Se os
símbolos religiosos expressam esta qualidade em nomes
divinos, a teologia clássica sempre afirmou que o referente
destes nomes transcende seu sentido não-simbólico
infinitamente” 373 . No entanto, a despeito da semântica
ontológico-existencial que caracteriza sua descrição dos
símbolos religiosos, os pressupostos fundamentais da teoria
dos símbolos tardia de Tillich são exatamente os mesmos
de seus escritos do período maduro de sua reflexão
teológica e filosófica. Isto quer dizer que a aparente
presença de um “realismo ingênuo” 374 na teoria dos

372
P. TILLICH. The Meaning and Justification of Religious Symbols, p.
415: “The second characteristic of all representative symbols is to
participate in the reality of that which they represent. The concept of
representation itself implies this relation”. Nesta conexão, cf. IDEM.
Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation, Being and
God, p. 239: “Therefore, the religious symbol, the symbol which
points to the divine, can be a true symbol only if it participates in the
power of the divine to which it points”. É neste sentido ontológico, por
exemplo, que um autor como R. C. Neville. The Truth of Broken
Symbols. New York: State University of New York Press, 1996, p. x, a
partir de uma leitura problemática da Symboltheorie de Tillich, elabora
sua própria teoria dos símbolos.
373
P. TILLICH. The Meaning and Justification of Religious Symbols, p.
418.
374
M. MOXTER. Kultur als Lebenswelt: Studien zum Problem einer
Kulturtheologie, p. 30-36.

460
símbolos tardia de Tillich não pode ser afirmada sem o
risco de sérias consequências para o entendimento da
totalidade de seus escritos. Tal assertiva revela-se, tanto do
ponto de vista epistemológico quanto semiótico,
extremamente problemática na medida em que os
símbolos, por necessidade constitutiva, não fazem
referência a uma realidade ou a uma determinada ordem de
coisas, mas apenas a outros signos. Caso se intencione
insistir numa ontologia da participação como fundamento
último da Symboltheorie de Tillich, o símbolo qua símbolo
perde sua função mais própria e é reduzido a um mero
signo. O resultado desta redução jaz ou na imputação de
uma metafísica precrítica como fundamento do
pensamento tardio de Tillich, ou na assunção de que a
teologia tillichiana constituiria uma forma inadmissível de
teologia positiva, ou melhor, de positivismo teológico, que
teria sido por ele sustentado a despeito de sua manifesta
dependência da inflexão kantiana na história da filosofia
moderna.
Por outro lado, há que se destacar que a
preocupação de Tillich com a ontologia não é resultado de
sua produção estadunidense. Com efeito, desde a década
de 20 do século passado é possível perceber uma
preocupação crescente, por parte de Tillich, com o lugar da
ontologia em sua Wissenschaftsarchitektonik. No entanto,
embora a ontologia sempre tenha constituído um momento
dentro de sua filosofia do espírito, do sentido e da religião,
ela jamais ocupou o lugar de fundamentação ou “filosofia
primeira”375 – mesmo que Tillich a tenha traduzido desta

Mesmo a designação “filosofia primeira”, que aparece na Systematic


375

Theology, já havia sido por Tillich introduzida no contexto de seu

461
forma, por motivos de determinação contextual, em sua
Systematic Theology376. Com o aparecimento de seu inédito
System der religiösen Erkenntnis, escrito em 1927 e 1928,
um aprofundamento na questão ontológica aparece como
uma correção de sua teoria do sentido tal como elaborada
em seu Wissenschaftssystem. Neste estudo, Tillich consegue
finalmente sistematizar o lugar da ontologia em sua teoria
do sentido e desenvolve uma fundamentação sistemática
que constitui, ao mesmo tempo, os princípios do ser e do
sentido 377 . A ontologia irrompe, portanto, como uma
consequência necessária da teoria do sentido que Tillich
começa a elaborar após a Primeira Guerra e não pode ser
corretamente compreendida à parte desta. De forma
evidente, a preocupação com a ontologia parece ser mais
forte no período estadunidense em função de sua adoção de
uma semântica ontológico-existencial como instrumental

esboço inédito Das System der religiösen Erkenntnis como correção a


seu Sistema das ciências. Aqui, com referência à obra de F. ÜBERWEG.
Grundriß der Geschichte der Philosophie. Erster Theil. Das
Alterthum. Neunte, mit einem Philosophen- und Litteratoren-Register
versehene Auflage, bearbeitet und herausgegeben vom Dr. Max
Heinze. Berlin: Ernst Siegfried Mittler und Sohn; Königliche
Hofbuchhandlung, 1903, p. 1, Tillich afirma: „Der name πρώτη
φιλοσοφία kommt derjenigen Wissenschaft zu, ‚welche die ersten
Principien und Ursachen erforscht; denn auch das Gute und das
Weswegen gehört zu den Ursachen‘. – Auch hier Zusamennfassung
von Seins- und Sinnprincipien“. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Das
System der religiösen Erkenntnis, p. 91, nota b.
376
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 163.
377
P. TILLICH. Das System der religiösen Erkenntnis, p. 91,
especialmente, nota c.: „Nicht nur Lehre von den Sinnprincipien, wie
ich im ‚System der Wissenschaften‘ behaupte, sondern von den Seins-
und Sinnprincipien. Darin liegt die Preisgabe der idealistischen
Voraussetzung, daß die theoretische Sphäre vom Sinn (oder gar Wert)
statt gleichzeitig vom Sein und Sinn her zu verstehen wäre“.

462
de explicação dos pressupostos fundamentais de sua
filosofia do espírito. No entanto, nem na década de 20,
nem em seus escritos estadunidenses, a ontologia elaborada
por Tillich pode ser interpretada em um sentido precrítico.
Em seu opus magnum, a ontologia opera não nos termos
de uma metafísica pré-kantiana, mas como uma teoria da
explicação da estrutura da experiência 378 a partir da
descrição da estrutura ontológica básica subjacente à
correlação “eu-mundo” – uma correlação, diga-se en
passant, em que o eu (self) é assumido, contra as leituras
historicamente sedimentadas de Tillich enquanto um
ingênuo ontoteólogo, como Urphänomen379.

378
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 13-25.
379
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 168-171. Sobre a determinação do “self” como
“fenômeno original”, Tillich afirma: “A self is not a thing that may or
may not exist; it is an original phenomenon which logically precedes
all questions of existence”. Obviamente, o self somente existe, para
Tillich, em estrita relação dialética com o “mundo”. No entanto, em
que se pese a codependência entre “self and world”, está claro, para
Tillich, que o self possui a primazia lógica neste relacionamento: “Man
experiences himself as having a world to which he belongs. The basic
ontological structure is derived from an analysis of this complex
dialectical relationship. Self-relatedness is implied in every experience.
There is something that “has” and something that is “had,” and the two
are one. The question is not whether we are aware of self-relatedness.
And this awareness can only be denied in a statement in which self-
relatedness is implicitly affirmed. For self-relatedness is experienced
in acts of negation as well as in acts of affirmation”. Este fato é tanto
mais importante de ser enfatizado quando se percebe que também a
filosofia da cultura madura de Richard Kroner confere ao self o
primado lógico em sua relação com o mundo. Sobre este ponto, cf. R.
KRONER. Culture and Faith. Chicago: The University of Chicago
Press, 1951, p. 31-42, aqui, p. 34: “Thus the contrast between world
and self is descriptive of experience, but it is the self which has the
primacy in this relation because it experiences both the world and

463
Tendo-se em vista estas considerações sobre o
desenvolvimento histórico-genético da teoria dos símbolos
de Tillich, torna-se possível precisar sua natureza e função
na totalidade dos escritos tillichianos – mesmo que seu
desenvolvimento sistemático em conexão com a teoria do
sentido de Tillich ainda esteja sob a necessidade de análise.
Ao resgatar as primeiras considerações de Tillich sobre o
conceito de símbolo desde seu artigo Rechtfertigung und
Zweifel, de 1919, sua sistematização a partir do estudo Das
religiöse Symbol, de 1928, até seus escritos tardios que
compõem a fase estadunidense de sua produção intelectual,
é possível perceber que a função de sua teoria dos símbolos

itself. Indeed, what we mean by ‘world’ is nothing but the totality of


all things in contrast to the ego”. Como se sabe, o primeiro sistema de
uma filosofia da cultura de Kroner (cf. IDEM. Die Selbstverwirklichung
des Geistes. Prolegomena zur Kulturphilosophie. Tübingen: J. C. B.
Mohr (Paul Siebeck), 1928, p. 163-191) foi criticado por Tillich,
sobretudo, por haver inserido a religião como a esfera mais elevada da
vida do espírito. Kroner, por sua vez, submetendo-se a crítica de
Tillich, reconstrói sua filosofia da cultura a partir de impulsos teóricos
tillichianos em seu livro Culture and Faith. Para a crítica de Tillich a
primeira filosofia sistemática da cultura de Kroner, cf. P. TILLICH.
Richard Kroner: Die Selbstverwirklichung des Geistes. Prolegomena
zur Kulturphilosophie In: R. ALBRECHT. (Hrsg.). Gesammelte Werke.
Band XII: Begegnungen. Paul Tillich über sich selbst und andere.
Stuttgart: Evangelisches Verlagswerk, 1971, p. 184-186. Sobre o
relacionamento entre Tillich e Kroner, veja A. CHRISTOPHERSEN; F.
W. GRAF. Selbstbehauptung des Geistes Richard Kroner und Paul
Tillich – die Korrespondenz. Zeitschrift für Neuere
Theologiegeschichte (Journal for the History of Modern Theology),
vol. 18, Issue 2, 2011, p. 281-339. Esta afirmação da primazia lógica
do self sobre o mundo – vale dizer – reforça a interpretação de Marc
Boss sobre a permanente dependência de Tillich, em todas as suas
fases e períodos específicos, incluindo seus escritos estadunidenses,
das filosofias de Kant, Fichte e Schelling. M. BOSS. Au commencement
la liberté: La religion de Kant réinventée par Fichte, Schelling et
Tillich, p. 17-61.

464
jaz no autoesclarecimento da subjetividade na concretude
de sua atividade criativa e incessante no mundo da vida. Os
símbolos religiosos constituem símbolos da
autoapresentação da atividade da consciência. Em seus
escritos tardios, porém, a explicação dos fundamentos da
teoria dos símbolos adquire contornos ontológicos que, a
despeito de sua forma, não fornecem uma nova
determinação do conceito de símbolo em contraposição aos
fundamentos da teoria do sentido elaborada por Tillich. A
ontologia de Tillich, quando analisada a partir da
perspectiva de suas obras iniciais, revela-se como uma
teoria transcendental que intenciona explicar a estrutura da
experiência, isto é, uma teoria ontológica crítico-
transcendental que opera sobre a base de sua filosofia do
espírito 380 . Neste sentido, ela não representa uma nova
fundamentação filosófica, mas encontra-se em
continuidade radical com os pressupostos idealistas-
neokantianos que determinam a totalidade da reflexão de
Tillich desde o período ulterior à Primeira Guerra. O que
se pode depreender deste incurso na gênese e no
desenvolvimento do conceito de símbolo de Tillich é que
mesmo o recurso à analogia entis não instaura uma ruptura,
mas precisa ser interpretado, antes, em conformidade com

380
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 24-25: „Tillichs ontologische Theorie,
die in vier Schichten die Struktur der Erfahrung expliziert, kann als
Strukturtheorie von endlicher Subjektivität gelesen werden. Die vier
Schichten, über die sich diese Theorie aufbaut, wären dann als
Bestimmungen dieser Struktur zu beschreiben. Da sie die Bedingungen
der Möglichkeit von Erfahrung zu analysieren hat und somit immer
schon auf Erfahrung bezogen ist, ist ihr Status der einer transzendental
kritischen Ontologie“.

465
seus escritos maduros. Posto de forma mais direta e
conclusiva: o recurso à analogia do ser não possui um caráter
constitutivo, mas tão-somente figurativo. Não é possível
conferir, portanto, uma interpretação realista à teoria dos
símbolos de Tillich. Antes, ela segue em conformidade com os
fundamentos de sua teoria da subjetividade cujo caráter
estritamente monista não pode ser olvidado. Uma vez afastado
o problema do recurso à doutrina da analogia entis, uma
análise da natureza e função da teoria dos símbolos de
Tillich pode, enfim, ser elaborada em conformidade com
os pressupostos filosófico-transcendentais que conformam
sua teoria da subjetividade. Mas, qual é, afinal, o caráter
sistemático da teoria dos símbolos de Tillich vis-à-vis sua
filosofia do espírito? Qual sua função precisa dentro do
escopo de sua teoria idealista-neokantiana do sentido? No
que se segue, uma análise dos fundamentos do monismo do
sentido de Tillich, enquanto condição de sua teoria dos
símbolos, será apresentada. Desta forma, a natureza e
função de sua Symboltheorie poderá, finalmente, ser
apreendida.

2. Der Monismus des Sinnes como ponto de partida


para a fundamentação do programa filosófico-
religioso de Tillich

A teoria dos símbolos de Tillich, que encontra sua


fundamentação sistemática e pressuposto teórico no
conceito de “paradoxo absoluto” por ele elaborado desde
seus escritos acadêmicos iniciais, somente alcança

466
sistematização a partir de seu inédito esboço Das System der
religiösen Erkenntnis (1927-1928) e, sobretudo, em seu
paradigmático estudo Das religiöse Symbol (1928). No
entanto, foi-se repetido reiteradamente no percurso deste
estudo que estes dois escritos já pressupõem a guinada de
Tillich em direção a uma teoria idealista-neokantiana do
sentido. Conforme visto, a tese de habilitação de Tillich,
apresentada à Universidade de Halle, em 1915, representa
um período de transição entre seus escritos iniciais e sua
nova determinação do espírito a partir da fundamentação
de um monismo do sentido. Com a elaboração da fórmula
paradoxal Gott über Gott, Tillich aponta um fundamento
último que não apenas transcende a própria ideia de Deus
tal como por ele formulada em seus escritos iniciais, como
também remete a subjetividade reflexiva e extrapolativa em
direção intencional à unidade última em sua própria
dimensão constitutiva. Já em sua tese de habilitação,
portanto, Deus deve ser pensado como um nome para o
absoluto, na medida em que ambos não são idênticos. Este
insight conteudístico, que demarca uma ruptura na teoria
de Tillich sobre o absoluto, encontra sua formulação
sistemática inicial a partir de seu debate com Emanuel
Hirsch entre os anos de 1917 e 1918 381 . O contexto
imediato deste debate é, como uma análise histórico-
genética de seu pensamento demonstra, a própria tese de
habilitação de Tillich382.

381
P. TILLICH. Paul Tillich – Emanuel Hirsch. Die große
religionsphilosophische Debatte, p. 95-136. Cf., igualmente, a nota 88
acima.
382
H.-W SCHÜTTE. Subjektivität und System. Zum Briefwechsel
Emanuel Hirsch (1888-1972) und Paul Tillich (1886-1965), p. 3-22; C.
DANZ. Absolute Faith and the “God above God”: Tillich’s New

467
A primeira elaboração sistemática destes insights
conteudísticos se encontra, de forma ainda titubeante, em
seu artigo Rechtfertigung und Zweifel, de 1919. A intenção
deste artigo, desenvolvido no contexto de sua reabilitação à
Faculdade de Teologia da Universidade de Berlim, em
1919, é a articulação de um princípio teológico por meio
do qual, conforme visto, a oposição entre religião e a
cultura moderna e autônoma pode ser superada383. Essa
oposição encontra sua solução sistemática no ato da fé, que
é entendido como uma afirmação do paradoxo absoluto. A
base metodológica do conceito de fé é uma versão
orientada pelo caráter intencional da consciência religiosa
cujos alicerces se encontram na fenomenologia de Husserl.
No ato religioso, conforme diz o artigo de 1919, o
incondicional é intencionado “nas representações
condicionadas”384. A religião é entendida aqui como um
evento de reflexão na consciência criadora da cultura. A
consciência é direcionada intencionalmente ao
incondicional no ato religioso, mas ela somente pode assim
proceder na medida em que assume as formas culturais
condicionadas. O incondicionado é intencionado por meios

Interpretation of God, p. 19: “As already mentioned, we can find


Tillich’s formula of God above God in his habilitation from Halle in
1915 for the first time. Here it is associated with Tillich’s criticism of
the supernatural theology before Schleiermacher. Tillich’s
considerations for reasoning a modern theology how he himself
articulates in his letter to Emanuel Hirsch of February 20, 1918, are the
immediate context of this writing”. Cf., igualmente, nota 88 acima.
Aqui, evidentemente, também a já mencionada Kulturvortrag de
Tillich desempenha um papel similar.
384
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 176: „Ein Begriff
‚meint‘ etwas, zielt auf etwas hin, und dieses Gemeinte ist etwas ganz
anderes als die Vorstellung, durch die hindurch gemeint wird. So wird
das Unbedingte gemeinte in bedingte Vorstellungen“.

468
das formas culturais. No ato da fé, a consciência humana se
torna compreensível, por um lado, em sua estrutura de
profundidade reflexiva, ao passo que as formas
condicionadas das representações operam, por outro lado,
como uma apresentação da certeza religiosa e não como
uma descrição de uma esfera transcendente atual. A
negatividade da subjetividade e a certeza da fé estão, aqui,
interconectadas. Na negatividade intrínseca à dúvida no ato
da fé, a subjetividade se atualiza e encontra, ao mesmo
tempo, na própria dúvida, a dimensão própria da
verdade 385 . Neste sentido, a justificação significa,
precisamente, o insight da subjetividade finita sobre sua
própria condição paradoxal de ser capaz de apreender a si
mesma em sua condicionalidade a despeito de sua própria
incondicionalidade. Como Tillich afirma: “resta apenas a
saída paradoxal, afirmar na fé que a dúvida não anula a
permanência na verdade, ou afirmar a verdade como
paradoxal através da dúvida”386. A própria dúvida constitui,
assim, a forma por meio da qual a certeza religiosa é
realizada na história. Tillich impulsiona, precisamente a
partir da “dialética da dúvida”, a consciência religiosa para a
intencionalidade de “um Deus além de Deus, para o Deus
daquele que duvida, mesmo do ateísta”387.
Em seus escritos da década de vinte, Tillich
apresentou esta versão de sua teoria da consciência

385
J. DIERKEN. Negativität im Selbstverhältnis. In: U. BARTH; C.
DANZ; W. GRÄB; F. W. GRAF. (Hg.). Aufgeklärte Religion und ihre
Probleme. Schleiermacher – Troeltsch – Tillich, p. 155-173.
386
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 168: „Es bleibt
nur der paradoxe Ausweg, im Glauben zu bejahen, daß der Zweifel das
Stehen in der Wahrheit nicht aufhebt, oder die Wahrheit als paradoxe
durch den Zweifel hindurch zu bejahen“.
387
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 169.

469
religiosa, de formas variadas, e descreveu sistematicamente
as implicações de sua posição, em suas consequências
culturais e religiosas, para a fundamentação de sua
incipiente filosofia do espírito. A apresentação sistemática
mais densa de sua teoria da consciência religiosa se
encontra, entretanto, em sua “obra dupla” – isto é, seu
Wissenschaftssystem, de 1923, e sua Religionsphilosophie,
publicada apenas em 1925. No entanto, conforme
mencionado, o contexto de apresentação da guinada de seu
pensamento em direção a uma teoria do sentido se
encontra em suas correspondências com Hirsch. É neste
debate que Tillich elabora sua nova determinação do
espírito a partir de um monismo do sentido, que
permanece o Leitmotiv de seu pensamento até o fim de sua
vida. As características fundamentais deste monismo serão
apontadas, de forma breve, na seção que se segue.

α. O paradoxo da “fé sem Deus” e a dialética do “Supra”


como pressuposto para a solução da contraditoriedade do
pensamento de Deus a partir do incondicionado

A primeira menção das alterações na


fundamentação sistemática do pensamento de Tillich pode
ser encontrada em uma carta por ele enviada a Emanuel
Hirsch em 12 de novembro de 1917. Já no início desta
carta, Tillich afirma:
Minha versão do conceito de justificação
conduziu-me ao paradoxo da “fé sem Deus (der
Paradoxie des „Glaubens ohne Gott“)”. Pois, se o
pensamento é um fazer (Tun), uma obra (veja o
conceito de sacrificium intellectus), e se Deus,

470
sendo concebido de alguma forma, é apenas a
colocação de um pensamento objetivo, então ele
não pode, por assim dizer, demandar a obra do
pensamento de alguém a quem ele quer
justificar388.
Tillich vai ainda além ao afirmar que mesmo “o
‘ateísta’ pode, em seu ateísmo, ser justificado por uma
ordem ou realidade ou profundidade que está além daquilo
que ele nega enquanto ‘ser de Deus’. Esta ‘ordem’ não deve
ser pensada, evidentemente, como um ser, o que seria um
círculo, mas como ‘profundidade’ ou ‘sentido’”389. Em uma
carta enviada a Maria Klein em 5 de dezembro de 1917,
Tillich reafirma sua posição: “através de consistente
reflexão sobre a ideia de justificação, eu cheguei, há muito,
ao paradoxo da ‘fé sem Deus’, cuja determinação e
desenvolvimento mais precisos formam o conteúdo [Inhalt]
de meu atual pensamento filosófico-religioso”390.
O que se encontra implícito em ambas as cartas de
Tillich é, novamente, a dialética do Supra, tal como por ele

388
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 12. XI. 1917, p. 97. Os
últimos parênteses constam no original.
389
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 115: „Es
gibt eine flachköpfige Rede, daß die menschliche Vernunft aus
architektonisch-ästhetischen Gründen monistisch sei. Sie ist es aber so
notwendig, daß ihre Existenz daran hängt. Angenommen, sie bejaht die
denkbar größte Dualität, so würde doch immer sie es sein, die bejaht,
und, da sie nicht über ihren Schatten springen kann, nach ihres Wesens
Gesetz bejaht. Das ‚Gedachtsein‘ ist das ,monistische‘ Land, das selbst
noch größere Gegensätze als die von Himmel und Erde verbinden
würde“.
390
P. TILLICH. Paul Tillich an Maria Klein: Geburtstags-, Weinachts-
und Neujahrsbrief. 5.XII.1917. In: R. ALBRECHT; M. HAHL. (Hg.).
Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den Gesammelten Werken von
Paul Tillich. Band V: Ein Lebensbild in Dokumenten: Briefe,
Tagebuch-Auszüge, Berichte. Stuttgart; Frankfurt am Main:
Evangelisches Verlagswerk, 1987, p. 121.

471
formulada em sua tese de habilitação. As objetificações da
certeza religiosa na forma de objetos conteudísticos são
produtos necessários, muito embora insuficientes, da
consciência religiosa. Tais objetificações encontram-se
sujeitas tanto à crítica da religião, por um lado, quanto à
dúvida intrínseca à certeza religiosa, por outro. Para que se
possa proteger a ideia de Deus frente às objeções oriundas
da Religionskritik, o pensamento religioso-crítico deve
entender cada enunciado sobre Deus como uma função
básica da consciência, isto é, como uma pura autoposição
da consciência frente aos pensamentos últimos (Letzte
Gedanken) que irrompem como um motivo intrínseco à e
constitutivo da subjetividade extrapolativa. O pensamento
sobre Deus representa, neste sentido, o pressuposto de
todas as autoposições conteudísticas da consciência
subjetiva. Os conceitos concretos sobre Deus possuem, por
sua vez, precisamente enquanto criações invariavelmente
humanas, o status epistêmico de interpretações da certeza
religiosa que se autoafirma na dúvida, já justificada,
daquele que crê, paradoxalmente, através da dúvida 391 .
Neste sentido, os conceitos humanos concretos sobre Deus
constituem expressões da certeza religiosa, mas não podem
jamais ser identificados com o incondicionado. Isto porque
o incondicionado transcende todas as suas determinações,
sempre e invariavelmente finitas, e, ao mesmo tempo,
somente pode ser representado por meio destas
determinações concretas e condicionadas.
De modo evidente, o incondicionado não pode ser
compreendido nos termos de uma substância ou realidade
que transcende a consciência, uma vez que tudo aquilo que

391
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 168.

472
é dotado de substância e realidade não pode evadir a
dialética do Supra, nem mesmo o conceito de Deus392. O
incondicionado é, enquanto sentido para o qual a
consciência noética se direciona em sua atividade
extrapolativa, uma descrição da função de unidade e
fundamento último da consciência humana. A
transcendência do espírito sempre constitui um ato duplo
de postulação de sua unidade última ao mesmo tempo em
que é deste fundamento último dependente. Não obstante,
o pensamento do absoluto desvela, no próprio processo de
atualização do pensamento do absoluto, uma diferença – a
saber, a diferença entre o pensamento do fundamento necessário
da razão e este próprio fundamento que já se encontra sempre
pressuposto. Este desvelamento, no entanto, é percebido
tão-somente pelo “saber” (Wissen). Além disto, como a
fórmula “Deus além de Deus” e seu diálogo com Hirsch
demonstram, Tillich transfere esta antinomia da razão para
o ato religioso, que encontra sua solução sistemática no ato
da fé. Este ato da fé é entendido como uma afirmação do
paradoxo absoluto. Como Tillich afirma a Hirsch em uma
carta datada de 20 de fevereiro de 1918:
O Supra é, em primeiro lugar, uma negação, um
não-A; se o A é a totalidade da imanência, então
o “Supra” se torna vazio de conteúdo (inhaltslos);
ele adquire conteúdo somente através de um
empréstimo do A por ele negado; assim, ele se
torna ou uma imagem empalidecida (ein
verblaßtes Abbild) do A (o mundo
transcendental), ou se torna, ao entrar nas leis da
imanência, ele mesmo, uma parte do A (milagre
– inspiração – revelação), ou ele se torna uma

392
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 12. XI. 1917, p. 97.

473
forma de juízo (eine Beurteilungsform) do A
(Deus – o mundo considerado
393
incondicionado) .
De acordo com citação de Tillich, há mais de dois
aspectos que impulsionam o Supra, ou um Deus concebido
de acordo com o Supra, a uma contradição ruinosa394. Se o
absoluto deve ser concebido, por um lado, no Supra, então
o corolário necessário desta concepção é uma negação do
não-absoluto. Como Tillich afirma, o Supra é, em primeiro
lugar, uma negação, um “não-A”. De acordo com esta
concepção, contudo, precisamente a relação que, de acordo
com o sentido do absoluto, deve ser tão-somente negada,
percebe-se constitutiva para ela mesma. Pois, se o absoluto
não é o relativo e o relativo não é o absoluto, então o
absoluto (ou o Supra) obtém sua própria determinidade
somente através de seu oposto, isto é, através do relativo ou
do condicionado. Neste sentido, o Deus concebido em
conformidade com o Supra se dissolve em uma
contradição. Por outro lado, o Deus concebido de acordo
com esta dialética pressupõe uma instância – o saber – que

393
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 12. XI. 1917, p. 97:
„Das Supra ist erstens eine Negation, ein non-Α; ist nun A die Totalität
alles Immanenten, so wird das ,Supra‘ inhaltslos; einen Inhalt gewinnt
es nur durch die Anleihe des von ihm negierten A; dadurch wird es
nun entweder ein verblaßtes Abbild von A (die transzendente Welt),
oder es wird selbst ein Teil von A durch Eingehen in die Gesetze der
Immanenz (Wunder – Inspiration – Offenbarung) oder es wird eine
Beurteilungsform von A (Gott – die Welt als Unbedingtes betrachtet)“.
394
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 110. No que se segue,
acompanharemos de perto, por meio de paráfrases e não de traduções
diretas, a discussão deste problema tal como elaborada por Christian
Danz.

474
pensa sobre este Deus e para a qual este Deus deve,
portanto, se tornar um objeto do pensamento, uma vez que
todo pensamento é determinado pela estrutura sujeito-
objeto, o que resulta necessariamente em objetificação. Não
obstante, como um resultado do Supra, esta instância é,
ipso facto, negada, de um modo tal que a própria pergunta
pelo status fundamental irrompe precisamente da instância
que pensa a partir do Supra. Não é difícil perceber, neste
sentido, que este problema é uma variação da pergunta pelo
status que conforma o não-absoluto em sua relação com o
absoluto395. Sobre a base destes dois aspectos intrínsecos à
dialética do Supra, o conceito de Deus é cada vez mais
impulsionado a uma determinação dialética. Como Tillich
afirma já em sua tese de habilitação de 1915, “o
sobrenatural [das Übernatürliche] não possui nenhum
conceito, mas uma dialética”396.
Não é difícil identificar, de acordo com esta
elaboração, a aporia sistemática em que o conceito de Deus
se encontra envolvido, uma aporia que, aliás, também
caracteriza e determina a Systematic Theology de Tillich.
Como afirma Tillich em seu opus magnum, “a teologia
deve sempre se lembrar de que, ao falar de Deus, ela torna
um objeto àquilo que precede a estrutura sujeito-objeto e
que, portanto, ela deve incluir em seu falar de Deus o
reconhecimento de que ela não pode tornar Deus um

395
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 110.
396
P. TILLICH. Der Begriff des Übernatürlichen, sein dialektischer
Charakter und das Prinzip der Identität – dargestellt an der
supranaturalistischen Theologie vor Schleiermacher, p. 464.

475
objeto”397. Esta citação de Tillich não apenas confirma a
natureza contraditória do conceito de Deus que tem sido
enfatizada no decorrer deste estudo, como também aponta
para sua própria solução madura para este problema. Esta
solução deve ser prontamente percebida, pelo leitor atento,
na afirmação de Tillich de que a teologia deve sempre se
lembrar de que Deus precede a estrutura sujeito-objeto, muito
embora ele somente possa se tornar um objeto para uma
instância que sobre ele pensa. A indicação de Tillich deve
ser compreendida, em sua substância, de um modo tal que
a contraditoriedade do conceito de Deus possa ser
neutralizada precisamente por meio da reflexão sobre o
modo por meio do qual o pensamento sobre Deus é
realizado. Para Tillich, o fundamento para a correção desta
contraditoriedade em que o conceito de Deus sempre e
invariavelmente se encontra enredado não é outro senão o
conceito de incondicionado. Em uma passagem central de
sua palestra proferida no âmbito da Kant-Gesellschaft de
Berlim no dia 25 de janeiro de 1922, Tillich torna este
estado de coisas evidente398.
Deve ser provado que o conceito de religião
contém, em si mesmo, um paradoxo. “Religião”
é o conceito de uma coisa que é destruída por
este conceito. E, ainda assim, este conceito é
inevitável; seria importante, portanto, empregá-
lo de um modo tal que ele seja subordinado a
um conceito superior que o priva de seu poder

397
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 132-133.
398
P. TILLICH. Die Überwindung des Religionsbegriffs in der
Religionsphilosophie. (1922). In: J. P. CLAYTON. (Hg.). Main Works –
Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische Schriften, p. 73-90.

476
destrutivo. Este, porém, é o conceito de
incondicionado399.
Seria completamente errôneo, no entanto,
compreender o conceito de incondicionado como um
conceito alternativo para o conceito de Deus, uma vez que
este entendimento reproduziria imediatamente as mesmas
dificuldades que o conceito de incondicionado formulado
por Tillich pretende superar 400 . Antes, o conceito de

399
P. TILLICH. Die Überwindung des Religionsbegriffs in der
Religionsphilosophie, p. 74. Cf., igualmente, IDEM. Der Begriff des
Übernatürlichen, sein dialektischer Charakter und das Prinzip der
Identität – dargestellt an der supranaturalistischen Theologie vor
Schleiermacher, p. 463: „Das ergibt nun folgende Dialektik: Das
Übernatürliche verhält sich erstens negativ zum Natürlichen, und da es
sonst keinen Gehalt bekommt, bleibt es in dieser reinen Negativität, es
wird inhaltslos und vernichtet zugleich als das ontologisch Primäre den
Inhalt des Natürlichen. Zweitens verhält es sich positiv zum
Natürlichen, insofern es durch dasselbe bestimmt wird; allen Gehalt,
den es empfängt, bekommt es vom Natürlichen, es wird ein anderes
Natürliches und bildet zusammen mit dem ersten Natürlichen eine
zusammenhängende inhaltlich bestimmte Natürlichkeit“. IDEM.
Antwort an Karl Barth, p. 240-243, especialmente, p. 241.
400
F. GOGARTEN. Zur Geisteslage des Theologen. Noch eine Antwort
an Paul Tillich, p. 244-245, por exemplo, já se equivoca precisamente
nesta distinção. Este equívoco se torna manifesto em sua resposta a
Tillich na disputa sobre o conceito de paradoxo: „Es scheint mir darum
eine Halbheit und mehr als das: ein verhängnisvoller Irrtum zu sein,
wenn Tillich meint, die Direktheit des Zugriffs und die
Selbstverständlichkeit der Aussage, die er mit allem Recht fttr den
Namen ‚Gott‘ abwehrt, dadurch entscheidend vermeiden zu können,
daß er statt von Gott vom Unbedingten redet. Hier hilft einem doch auf
keine Weise eine andere Vokabel für dieselbe Sache, sondern allein,
daß man sich resolut entschließt, von einer anderen Sache‘ zu reden.
Denn es handelt sich ja nicht darum, das Wort von der Direktheit des
Zugriffs und der Selbstverständlichkeit der Aussage zu behüten,
sondern die ‚Sache‘; sie allein ist vor der Vergegenständlichung zu
bewahren. Und dieser Entschluß, sich resolut mit einer anderen
‚Sache‘ zu befassen, schiene mir da gegeben, wo man entschlossen
aller Theologie, auch der verheimlichten einer vom Unbedingten

477
incondicionado atesta a mudança de perspectiva
fundamental operada por Tillich em seus escritos ulteriores
à Primeira Guerra, na medida em que este conceito
intenciona apresentar a ideia, intrínseca à razão (Vernunft),
de uma unidade final permanentemente intencionada pela
subjetividade extrapolativa. Somente quando se limita este
conceito a um status puramente lógico é que se torna
possível empregá-lo como uma solução efetiva para o
problema da contraditoriedade presente no conceito de
Deus. Se, contudo, um status diferente daquele de uma
ideia transcendental é conferido a este conceito, então a
eficácia sistêmica que Tillich confere ao conceito de
incondicionado como solução para o problema da
contraditoriedade presente no conceito de Deus torna-se
um placebo. Pois, enquanto uma ideia da razão, o
incondicionado aponta para a própria necessidade da
unidade última do pensamento, sendo, ele mesmo, seu
próprio pressuposto e fundamento401. Tillich expressa este

redenden Philosophie den Rücken kehrte“. Ainda sobre este equívoco,


veja A. Horstmann-Scheneider. Sein und menschliche Existenz. Zu
Tillichs philosophischer Anthropologie im Horizont von Theologie
und Humanwissenschaft. Würzburg: Königshausen & Neumann, 1995,
p. 72: „Es ist Tillich nicht gelungen, einsichtig zu machen, warum die
Bezeichnung des Unbedingten und totalen Betroffenseins für das
Unbedingte vorteilhaft gegenüber dem mit gleichem Inhalt gesetzten
Ausdruck ,Gott‘ sein soll“. Sobre este ponto, cf. ainda as afirmações de
Tillich em sua já mencionada resposta a seus críticos estadunidenses
em P. TILLICH. Symbol and Knowledge. A Response by Paul Tillich,
p. 273: “But the unconditioned is not God. God is the affirmative
concept pointing beyond the boundary of the negative-rational terms
and therefore itself a positive-symbolic term”.
401
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 112.

478
ponto de vista de forma cogente em seu fragmento Religion
und Weltpolitik, escrito entre os anos de 1938 e 1939:
Nós vimos que o incondicionado aparece como
tal, na consciência ética (sittlichen Bewußtsein),
enquanto a reivindicação incondicional do eu-
que-vem-ao-encontro de se tornar reconhecido
como eu (des begegnenden Selbst, als Selbst
anerkannt zu werden). Mas, este
“incondicionado” carece de hipostaziação
teórica. Ele é um “caráter”, não um ser. E o
teórico somente pode conferir caráter negativo à
hipostaziação enquanto conceito do
incondicionado. Onde o teórico faz uma
tentativa de conferir uma determinação
conteudística, ele deve extraí-lo do material
daqueles-que-são (Seienden), isto é, daquilo que
deve ser transcendido no teórico. Por este
motivo, todos os conceitos metafísicos do ser
possuem este caráter flutuante que se justifica no
fato de que, no princípio teórico, o sentido
mítico se torna igualmente visível ao ser
simultaneamente intencionado, uma vez que
este princípio possui, enquanto tal, a função de
uma hipótese última402.

402
P. TILLICH. Religion und Weltpolitik. (Ein Fragment). In: R.
ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band IX: Die religiöse
Substanz der Kultur. Schriften zur Theologie der Kultur. Stuttgart:
Evangelisches Verlagswerk, 1967, p. 187. Esta posição e por Tillich
reafirmada em sua Systematic Theology em conexão com Kant: “The
structure of finitude is described in the most profound and
comprehensive way in Kant’s ‘critiques’. The categories of experience
are categories of finitude. They do not enable human reason to grasp
reality-in-itself; but they do enable man to grasp his world, the totality
of the phenomena which appear to him and which constitute his actual
experience. The main category of finitude is time. Being finite means
being temporal. Reason cannot break through the limits of temporality
and reach the eternal, just as it cannot break through the limits of

479
Em conformidade com esta citação de Tillich,
pode-se afirmar que esta necessidade constitutiva do
incondicionado somente pode se encontrar, contudo, no
ato de apreensão aperceptiva. Isto porque se a razão deve
necessariamente formar a hipótese de uma unidade final,
então a unidade de seu conhecimento deve ser assegurada.
É neste sentido, pois, que a introdução do conceito de
incondicionado marca uma mudança de perspectiva,
tendo-se em vista que o incondicionado traz à reflexão a
instância que produz o pensamento do incondicionado.
Pois, enquanto pensamento necessário, o incondicionado
se encontra sujeito às condições de seu pensamento. A
dialética sob a qual o conceito de Deus inevitavelmente se
encontra enredada é, desta forma, transferida para o saber,
ou melhor, para a instância que pode fazer a distinção entre
o que é percebido no saber e o que é intencionado. Neste
processo, torna-se possível reconhecer, ao mesmo tempo,
que a necessidade do incondicionado de postular uma
unidade última do pensamento constitui uma exigência

causality, space, substance, in order to reach the first cause, absolute


space, universal substance. At this point the situation is exactly the
same as it is in Nicolaus Cusanus: by analyzing the categorical
structure of reason, man discovers finitude in which he is imprisoned.
He also discovers that his reason does not accept this bondage and tries
to grasp the infinite with the categories of finitude, the really real with
the categories of experience, and that it necessarily fails. The only
point at which the prison of finitude is open is the realm of moral
experience, because in it something unconditional breaks into the
whole of temporal and causal conditions. But this point which Kant
reaches is nothing more than a point, an unconditional command, a
mere awareness of the depth of reason”. Sobre este ponto, cf. IDEM.
Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation, Being and
God, p. 82.

480
somente para o ato de apreensão, e não para o eu403. Esta
distinção, entretanto, somente pode ser percebida: ela toma
lugar, para ser mais preciso, tão-somente no saber.

403
Para Tillich, o eu não pode ser compreendido nem com um eu
puramente transcendental nem como um eu puramente empírico. A
concepção sintética de Tillich do eu é dirigida contra um dualismo do
eu transcendental e do eu empírico, por um lado, e contra uma
eliminação naturalista da dimensão filosófico-transcendental de
justificação da unidade transcendental da autoconsciência, por outro. A
partir desta mediação entre o eu transcendental e o eu empírico no
conceito de eu (self), Tillich assume o problema da diferenciação que
irrompe da perspectiva de Kant sobre o conceito de unidade da pessoa.
Para a posição de Tillich sobre a síntese entre o eu transcendental e o
eu empírico, veja, sobretudo, P. TILLICH. Dogmatik-Vorlesung
(Dresden 1925-1927), p. 216: „Die geistige Einheit ist Voraussetzung
alles geistigen Lebens. Sie ist die Form schlechthin für den Geist: die
Ich-Synthesis“. Cf., igualmente, IDEM. Das Dämonische: Ein Beitrag
zur Sinndeutung der Geschichte. (1926). In: R. P. SCHARLEMANN.
(Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 5: Religiöse Schriften. Berlin;
New York: Walter de Gruyter; Evangelisches Verlagswerk, 1988, p.
105; IDEM. Die sozialistische Entscheidung. (1933). In: E. STURM.
(Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 3: Sozialphilosophische und
ethische Schriften. Berlin; New York: Walter de Gruyter;
Evangelisches Verlagswerk, 1998, p. 288-293. A diferença afirmada
por Kant entre “a unidade transcendental da autoconsciência” e o eu
empírico implica um dualismo na medida em que assinala uma quebra
entre um eu mundano e outro transmundano. Sobre a unidade
transcendental da autoconsciência, veja I. KANT. Kritik der reinen
Vernunft. In: W. WEISCHEDEL. (Hg.). Immanuel Kant. Werke in zehn
Bänden. Sonderausgabe. Band 3: Kritik der reinen Vernunft. Erster
Teil. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, B 132, p.
136: „Ich nenne auch die Einheit derselben die transzendentale Einheit
des Selbstbewußtseins, um die Möglichkeit der Erkenntnis a priori aus
ihr zu bezeichnen“. Kant está, justamente, preocupado com uma
determinação desqualificada da unidade da personalidade, que não
oblitera abstratamente as necessárias diferenciações. Como afirma:
„Der Mensch, der sich auf solche Weise als Intelligenz betrachtet, setzt
sich dadurch in eine andere Ordnung der Dinge und in ein Verhältnis
zu bestimmenden Gründen von ganz anderer Art, wenn er sich als
Intelligenz mit einem Willen, folglich mit Kausalität begabt, denkt, als
wenn er sich wie Phänomen in der Sinnenwelt (welches er wirklich

481
Sob o prisma destas considerações, é evidente que o
conceito de incondicionado encontra sua função sistêmica
tão-somente no fato de representar uma ideia necessária da
razão. Desta forma, a dialética que revela a falência do

auch ist) wahrnimmt, und seine Kausalität, äußerer Bestimmung nach,


Naturgesetzen unterwirft. Nun wird er bald inne, daß beides zugleich
stattfinden könne, ja sogar müsse. Denn, daß ein Ding in der
Erscheinung (das zur Sinnenwelt gehörig) gewissen Gesetzen
unterworfen ist, von welchen eben dasselbe, als Ding oder Wesen an
sich selbst, unabhängig ist, enthält nicht den mindesten Widerspruch;
daß er sich selbst aber auf diese zwiefache Art vorstellen und denken
müsse, beruht, was das erste betrifft, auf dem Bewußtsein seiner selbst
als durch Sinne affizierten Gegenstandes, was das zweite anlangt, auf
dem Bewußtsein seiner selbst als Intelligenz, d. i. als unabhängig im
Vemunftgebrauch von sinnlichen Eindrücken (mithin als zur
Verstandesweit gehörig)“. Sobre este ponto, cf. I. KANT. Grundlegung
zur Metaphysik der Sitten. In: W. WEISCHEDEL. (Hg.). Immanuel Kant.
Werke in zehn Bänden. Sonderausgabe. Band 6: Schriften zur Ethik
und Religionsphilosophie. Erster Teil, p. 7-102, aqui, A/B 117, p. 94.
Igualmente relevante para a definição de Kant da consciência dual do
ego é sua resolução da terceira antinomia tal como elaborada em sua
primeira crítica. Sobre este ponto, cf. I. KANT. Kritik der reinen
Vernunft, B 561-586, p. 488-506. Para esta tarefa que surge da
perspectiva do problema kantiano, o conceito de personalidade deve
ser concebido de um modo tal que não seja nem dissolvido de uma
maneira dualista, por um lado, nem que as diferenciações necessárias
relacionadas à problemática constitutiva da subjetividade sejam
niveladas, por outro. Sobre este ponto, cf. R. LANGTHALER.
Nachmetaphysisches Denken? Kritische Anfragen an Jürgen
Habermas. Berlin: Duncker und Humblot GmbH, 1997, p. 133-148.
Sobre o tema da unidade transcendental da autoconsciência em Kant,
veja D. HENRICH. On the Unity of Subjectivity. In: The Unity of
Reason: Essays on Kant’s Philosophy. Edited and with an Introduction
by Richard L. Velkley. Cambridge; London: Harvard University Press,
1994, p. 17-54. Para o desenvolvimento do conceito de eu tal como
elaborado por Tillich no âmbito da estrutura ontológica como teoria da
determinidade da liberdade finita, cf. C. DANZ. Religion als
Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 26-73.

482
conceito de Deus se conecta a uma instância que sabe desta
dialética e que, portanto, torna-se capaz de intuí-la como
“algo” necessário para o próprio pensamento404. A dialética
do absoluto e do relativo, que é completamente ruinosa
para o conceito de Deus, encontra, assim, uma solução, na
medida em que a reflexão sobre o pensamento de Deus
revela que esta dialética constitui um problema apenas para
o pensamento e não para o absoluto enquanto tal. Da
mesma forma, a percepção de que a objetificação lógica do
conceito de Deus constitui uma decorrência necessária do
próprio pensamento, e que ela também é válida somente
para o pensamento sobre Deus e não para o absoluto
propriamente dito, se encontra igualmente conectada a esta
reflexão405. Esta apercepção transcendental, que irrompe da

404
A objeção de W. WIESNER. Die Gottesfrage in der Theologie Paul
Tillichs. Kirche und Zeit, Jahrgang 10, Band 20, 1965, p. 292-297,
aqui, p. 296, de que o ser, na teologia de Tillich, se torna hipostaziado
numa grandeza metafísica é, desta forma, infundada. Da mesma forma,
a crítica de G. WENZ. Subjekt und Sein. Die Entwicklung der
Theologie Paul Tillichs, p. 302-318 [III. Die Gotteslehre],
especialmente, p. 314, de que a doutrina de Deus articulada por Tillich
reduz imediatamente o ser de Deus a uma “identidade idêntica” falha
por desconsiderar que, para Tillich, o incondicionado encontra sua
função sistêmica tão-somente no fato de representar uma ideia
necessária da razão. Sobre este ponto, cf., igualmente, C. DANZ.
Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als
Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei
Paul Tillich, p. 113.
405
M. REPP. Die Transzendierung des Theismus in der
Religionsphilosophie Paul Tillichs. Frankfurt am Main; Bern; New
York: Peter Lang, 1986, p. 59 desconsidera completamente a
percepção de Tillich de que a objetificação lógica do conceito de Deus
constitui uma decorrência necessária do próprio pensamento, e que ela
também é válida somente para o pensamento sobre Deus e não para o
absoluto propriamente dito. Quando Repp critica o conceito de ser-em-
si, ele não leva em consideração a explícita intenção de Tillich de
elaborar uma concepção não-objetificável do conceito de Deus. Como

483
reflexão sobre o pensamento do conceito de Deus como
algo pensado, também foi considerada por Tillich em sua
doutrina de Deus, tal como por ele elaborada na Systematic
Theology, por meio da distinção entre “objeto lógico e
ontológico”406. A distinção categorial elaborada por Tillich,
que possui um lugar único no saber do conceito de Deus
como algo que é percebido, também pode ser identificada na
parte propriamente normativa de sua doutrina de Deus.
Como ele afirma: “Deus deve ser abordado cognitivamente
através dos elementos estruturais do ser-em-si. Estes
elementos o tornam um Deus vivo, um Deus que pode ser
a preocupação última do homem. Eles nos capacitam a
empregar símbolos dos quais sabemos que apontam para o
fundamento da realidade”407.

afirma Repp: „Nicht nur das Unbedingte, auch das Sein-Selbst und
letztlich auch der ultimate concern sind und bleiben de facto
begriffliche Objektivierungen“. Contra esta perspectiva, a já
mencionada passagem central do artigo Die Überwindung des
Religionsbegriffs in der Religionsphilosophie, p. 74, entra em contraste
radical com a conclusão pouco cuidadosa de Repp.
406
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 171-174, especialmente, p. 171-172: “We have
described the world as a structured whole, and we have called its
structure ‘objective reason’. We have described the self as a structure
of centeredness, and we have called this structure ‘subjective reason’.
And we have stated that these correspond to each other, without,
however, giving any special interpretation of the correspondence.
Reason makes the self a self, namely, a centered structure; and reason
makes the world a world, namely, a structured whole. Without reason,
without the logos of being, being would be chaos, that is, it would not
be being but only the possibility of it (me on). But where there is
reason there are a self and a world in interdependence. The function of
the self in which it actualizes its rational structure is the mind, the
bearer of subjective reason. Looked at by the mind, the world is reality,
the bearer of objective reason”.
407
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 238.

484
À parte da pressuposição deste saber que sempre já
percebe que os elementos estruturais do ser-em-si não
coincidem nem podem coincidir com ele, o absoluto, tal
como concebido no conceito de Deus, seria reduzido, neste
caso, à sua absolutez. Mesmo a diferença mais estrita entre
Deus e o ser ainda se encontraria condicionada por uma
instância que sobre eles pensa. O resultado desta diferença,
mesmo quando amplificada em seu caráter mais estrito,
seria exatamente o mesmo – a saber, a redução do absoluto
a seu caráter absoluto. Não obstante, é correto inferir que,
se qualquer declaração sobre Deus é, de alguma forma,
possível, então Deus tem que possuir alguma relação com o
ser. Mas, uma vez mais, mesmo a diferença mais estrita
entre Deus e o ser ainda se encontraria condicionada por
uma instância que sobre eles pensa. Ambas as dificuldades,
que são implicações necessárias de uma análise da
afirmação “Deus é”, são, de acordo com Tillich, evitadas
pela identificação do ser de Deus com o ser-em-si. Isto
porque a determinação do ser de Deus como ser-em-si
implica não apenas uma diferença categorial entre Deus e
os seres, mas também a consequência de que ser, em seu
sentido mais eminente, pertence unicamente a Deus. O
ser-em-si deve ser considerado, portanto, como “a
expressão conceitual para a positividade absoluta cuja
negação é excluída”408. Trata-se, em outras palavras, de
uma descrição abreviada do incondicionado enquanto
equiprimordialidade de fundamento e abismo.

C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur


408

Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller


Subjektivität bei Paul Tillich, p. 116.

485
Como corolário da identificação entre o ser de
Deus e o ser-em-si tem-se, portanto, que, à parte da
determinação do ser-em-si como positividade absoluta que
exclui toda negação, o absoluto é sempre e invariavelmente
reduzido à sua absolutez. O resultado desta redução
inconsequente seria a completa ininteligibilidade da
dialética do Supra e o retorno do problema da
contraditoriedade implícita no pensamento de Deus. O
saber que esta dialética do Supra expressa e que demarca a
diferença entre o pensamento necessário do absoluto e o
absoluto propriamente dito pode, contudo, lograr seu lugar
na percepção somente na medida em que esta diferença for
apreendida não por meio de conceitos puros do
entendimento ou categorias da razão, mas pela própria
intuição da “unidade transcendental de apercepção”409, que

409
KANT. Kritik der reinen Vernunft, B 132-133, p. 136: „Das: Ich
denke, muß alle meine Vorstellungen begleiten können; denn sonst
würde etwas in mir vorgestellt werdenwas gar nicht gedacht werden
könnte, welches eben so viel heißt, als die Vorstellung würde entweder
unmöglich, oder wenigstens für mich nichts sein. Diejenige
Vorstellung, die vor allem Denken gegeben sein kann, heißt
Anschauung. Also hat alles Mannigfaltige der Anschauung eine
notwendige Beziehung auf das: Ich denke, in demselben Subjekt, darin
dieses Mannig faltige angetroffen wird. Diese Vorstellung aber ist ein
Actus der Spontaneität, d. i. sie kann nicht als zur Sinnlichkeit gehörig
angesehen werden. Ich nenne sie die reine Apperzeption, um sie von
der empirischen zu unterscheiden, oder auch die ursprüngliche
Apperzeption, weil sie das jenige Selbstbewußtsein ist, was, indem es
die Vorstellung Ich denke hervorbringt, die alle andere muß begleiten
können, und in allem Bewußtsein ein und dasselbe ist, von keiner
weiter begleitet werden kann“. Sobre este ponto, cf. O. HÖFFE. Kants
Kritik der reinen Vernunft: Die Grundlegung der Modernen
Philosophie. München: Verlag C. H. Beck oHG, 2004, p. 117-167
[Dritter Teil: Transzendentale Grammatik], especialmente as p. 139-
142. Veja também D. HENRICH. Identität und Objektivität. Eine

486
constitui a condição da apreensão da realidade qua
realidade para um sujeito. Ao retrair a dialética do conceito
de Deus no âmbito mais íntimo de um saber que está
ciente do conceito de Deus como algo que alcança
percepção, Tillich consegue evadir, precisamente por meio
desta retração, as consequências da contradição que são
ruinosas para o conceito de Deus.
Com isto, o status da instância que pensa o conceito
de Deus em sua conexão com a identificação entre o ser de Deus
e o ser-em-si ainda não está, contudo, evidente 410 . No
entanto, ao se assumir que o conceito de ser-em-si
constitui um Grenzbegriff para o pensamento de uma
necessária contradição, então a identificação operada por
Tillich entre o conceito de Deus e o ser-em-si pode
simplesmente ser compreendida como uma determinação
terminológica que introduz o status sistemático do conceito
de Deus no sentido preciso de um conceito limite
necessário à razão extrapolativa em seu processo de
atualização411. É por este motivo que Tillich afirma em sua
Systematic Theology que os “teólogos devem tornar explícito
o que se encontra implícito no pensamento e expressão
religiosos”. E, a fim de procederem desta maneira, afirma
Tillich, “eles devem começar com a afirmação mais abstrata
e completamente não-simbólica que é possível, a saber, que

Untersuchung über Kants transzendentale Deduktion. Heidelberg: C.


Winter, 1976.
410
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 113-114.
411
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 116-117.

487
Deus é o ser-em-si ou o absoluto”412. A fórmula ser-em-si
possui seu lugar sistemático, portanto, somente no âmbito
da estrutura ontológica, que é por Tillich desenvolvida
como uma metateoria da determinidade da liberdade finita.
Não obstante, a fórmula de Tillich, evidentemente, não
intenciona substituir a religião vivida por meio de uma
apropriação de uma categoria conceitual abstrata413. Tillich,
em nenhum lugar, permite que a religião seja
intelectualizada por meio de fórmulas conceituais que,
muito embora necessárias para aquele que se posta
reflexivamente no pensamento sobre a contraditoriedade
implícita em todo e qualquer discurso sobre Deus,
permanecem distantes da religião vivida em sua piedade
mais característica. Também por este motivo, Tillich
expressamente define a teoria estrutural ontológica como
uma metateoria e a distingue, desta forma, da religião
vivida: “afirmações religiosas não necessitam de uma tal
fundação para aquilo que elas dizem sobre Deus; a
fundação está implícita em todo pensamento religioso
concernente a Deus”414. Assim, o que importa perceber é
que há dois aspectos implicados no conceito de ser-em-si –

412
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 239.
413
Com a distinção operada por Tillich entre a metateoria e a religião
vivida, uma série de objeções, que são dirigidas, sobretudo, contra a
identificação entre o conceito de ser e o conceito de Deus, revela-se
como desprovidas de fundamentação. Um exemplo típico de tais
objeções infundadas pode ser encontrado nas críticas de K.-D.
NÖRENBERG. Analogia Imaginis. Der Symbolbegriff in der Theologie
Paul Tillichs, p. 185-212. Estas críticas se mostram irrelevantes na
medida em que misturam, inadvertidamente, conceitos estruturais, que
possuem lugar somente na metateoria, com a religião vivida.
414
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 239.

488
a saber, aquilo-que-é-através-de-si-mesmo (ou
autossuficiência) e a identidade absoluta (ou a absoluta
unidade interna do absoluto). A autossuficiência aponta
para a autodeterminação do absoluto, isto é, para o fato de
que o absoluto enquanto absoluto não pode ser submetido
a nenhuma necessidade interna ou externa. A identidade,
por sua vez, aponta para o caráter interno da unidade
absoluta do absoluto consigo mesmo415.
Em que se pese a solução do problema da
contraditoriedade presente no conceito de Deus a partir do
conceito de incondicionado enquanto um conceito dotado
de um status puramente lógico; bem como a identificação,
por Tillich operada, entre o ser de Deus e o ser-em-si que,
enquanto absoluta positividade, abre espaço para o saber
oriundo da unidade transcendental de apercepção; o
estatuto sistêmico do conceito de incondicionado, para
além de sua função constitutiva de indicação da hipótese de
uma unidade final que assegura a unidade do
conhecimento, ainda não se encontra completamente
elucidado em sua constitutividade mais própria. Conforme
visto nas páginas precedentes, o conceito de ser-em-si é
formulado por Tillich em seus escritos estadunidenses
como uma forma abreviada do conceito de incondicionado.
Isto porque o ser-em-si representa uma redução do
conceito de incondicionado na medida em que expressa
conceitualmente a positividade absoluta cujo momento de
negatividade encontra-se excluído. Ora, enquanto
equiprimordialidade de fundamento e abismo (Grund und

415
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 119.

489
Abgrund), o incondicionado possui um momento de
negatividade que é, ipso facto, constitutivo para a
formulação da teoria dos símbolos de Tillich. Este
conceito, de fato, encontra-se pressuposto na Systematic
Theology: a própria abreviação de seu momento de
negatividade na absoluta positividade do conceito de ser-
em-si atesta esta pressuposição. No entanto, para que se
possa perceber a constitutividade do conceito de
incondicional em toda sua pujança, não basta buscar sua
abreviação tal como por Tillich elaborada em seus escritos
tardios. Antes, torna-se premente analisar o conceito de
incondicional em sua conexão fundamental com o já
mencionado “monismo do sentido” que caracteriza a
mudança de perspectiva operada por Tillich no período do
pós-guerra. É, portanto, para uma breve apresentação do
conceito de incondicional a partir da formulação do
monismo do sentido, que a seção a seguir se direciona.

β. A negatividade da autorrelação: o “monismo do


sentido” como descrição da dupla consciência de
infinitude e valor como polaridade interna da vida do
espírito

Na já mencionada carta enviada a Emanuel Hirsch


em 20 de fevereiro de 1918, Tillich anuncia uma mudança
na determinação de seu conceito de “Deus” 416 . Esta
mudança pode ser percebida de forma mais precisa,
entretanto, como ele escreve a Hirsch em 9 de maio de

416
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 114-123.

490
1918417, em sua determinação programática do conceito de
espírito: “a vida espiritual é vida no sentido ou na doação
criativa e incessante de sentido”418. Esta nova determinação
do espírito, cuja função, conforme afirma Tillich, é a de
“preencher as grandes lacunas” 419 de seu pensamento
sistemático, é produto das grandes transformações pelas
quais sua reflexão atravessa desde a formulação da dialética

417
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 123-127.
418
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 125:
„Geistiges Leben ist Leben im Sinn oder unablässige schöpferische
Sinngebung“. Seguindo esta nova determinação do espírito, Tillich
escreve a seu amigo: „So geben wir der Welt einen logischen –
ethischen – ästhetischen, so auch einen religiösen Sinn. Diese
Sinngebung ist bei der Mehrheit der Menschen und bei allen in der
meisten Zeit unmittelbar. Bewußt wird sie nur in einzelnen Momenten,
schöpferisch nur in einzelnen Persönlichkeiten“ (p. 125). Em uma carta
de dezembro de 1917, Tillich cita um número de autores que são os
principais contribuintes, em sua perspectiva, para os debates
contemporâneos sobre as teorias do sentido. Os autores citados por ele
são: Heinrich Rickert, Edmundo Husserl, Hermann Lotze, Christoph
von Sigwart, Wilhelm Windelband, Emil Lask, Eduard von Hartmann,
Hans Lipps e Hermann Ebbinghaus. A referência aqui é IDEM. Paul
Tillich an Emanuel Hirsch. XII. 1917, p. 99. Georg Simmel também é
importante neste contexto. Sobre este ponto, cf. E. STURM.
Selbstbewußtsein zwischen Dynamik und Selbst-Transzendenz des
Lebens und unbedingter Realitätserfassung. Paul Tillichs kritische
Rezeption der Religions- und Lebensphilosophie Georg Simmels. In:
C. DANZ. (Hg.). Theologie als Religionsphilosophie: Studien zu den
problemgeschichtlichen und systematischen Voraussetzungen der
Theologie Paul Tillichs, p. 23-47. Sobre este ponto, cf. também A. J.
REIMER. The Emanuel Hirsch and Paul Tillich Debate: A Study in the
Political Ramifications of Theology. Lewiston; Queenston: The Edwin
Mellen Press, 1989, p. 34-39. Veja ainda F. H. ABREU. “Richtung auf
das Unbedingte” and “Self-Transparency”: The Foundations of Paul
Tillich’s Philosophy of Spirit, Meaning, and Religion (1919-1925),
especialmente, p. 7-12.
419
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. XII. 1917, p. 98: „So
habe ich den begonnen, meine großte Lücke auszufüllen, und habe die
moderne Philosophie energisch in Angriff genommen“.

491
do Supra que caracteriza sua tese de 1915. Tillich, a partir
da assunção do “problema central” de seu pensamento do
período do pós-guerra, abdica da tentativa de elaborar uma
“superação intelectual” da dúvida por meio da construção
de um “conceito científico de Deus”. Sua intenção é, antes,
a de estabelecer o modo metodológico-sistemático preciso
por meio do qual “a certeza pode se unir à dúvida teórica a
fim de constituir a essência da fé”420. Nesta direção, Tillich
propõe um monismo do sentido que conduz seu
pensamento a duas consequências evidentes: de um lado, o
conceito de Deus é determinado, sobre as bases de uma
teoria da subjetividade, a partir de uma “dupla experiência
[doppelte Erlebnis]”; de outro, Tillich atribui à própria vida
do espírito uma polaridade interna421. A vida do espírito é
caracterizada, a partir de então, por uma dupla consciência
de infinitude e valor, e ele inclui esta polaridade interna em
seu conceito de sentido: a vida espiritual é vida no sentido,
e ela se atualiza através do processo de doação criativa e

420
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. XII. 1917, p. 99: „Ich
will darum mit der Formulierung des Zentralproblems meinen
Denkens beginnen: Es Heißt: Wie ist mit dem theoretischen Zweifel
diejenige Gewißheit vereinbar, die das Wesen des Glaubens ausmacht?
Oder: Wie können die aus dem Denken erwachsenden Hemmnisse der
religiösen Funktion überwunden werden? Ich sehe in der Lösung von
einer den Gegensatz Subjekt-Objekt und damit den Zweifel
aufhebenden Mystik ab. Sie scheint mir auf gleicher Stufe zu stehen
mit der außerethischen Mystik der ‚Schwärmer‘, Romantiker,
ästhetischen Pantheisten etc. und ist vielfach kritisierbar, was Dir
gegenüber nicht nötig ist. Die zweite Art wäre die intellektuelle
Überwindung durch den ‚wissenschaftlichen Gottesbegriff‘. Ich
vermute, daß Du auch eine Wiederlegung dieses Weges nicht nötig
hast. Das es aber mein früherer war, so will ich zugleich als
Selbstkritik darauf eingehen“.
421
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 116;
veja, igualmente, as p. 117 e 119.

492
incessante de sentido. A fórmula monismo do sentido de
Tillich intenciona encompassar o próprio divino, nos
termos de uma alteridade do “outro-de-si-mesmo”,
enquanto expressão da polaridade do espírito. Na carta de
9 de maio de 1918, Tillich descreve o motivo central de seu
novo pensamento de um modo preciso. Como ele afirma a
Hirsch:
Também o ser, o puramente “factual”, é por
certo um conceito; por conseguinte, ele é o ser
posto pelo contexto ou interconexão lógica de
sentido (vom logischen Sinnzusammenhang), é
produto de sentido ou de valor. O sentido põe o
ser como seu “outro”, no qual ele se realiza.
Justamente por isso, o sentido põe o divino
como seu “outro”, pelo qual ele sabe que se
realiza. Do mesmo modo, o sentido se delimita
mediante o ser e o além-daquele-que-é
(Überseiende). Ambos são atos de postação ou
criação de sentido (Sinn-Setzungen). O ser não
pode novamente “ser”, e o além-daquele-que-é
tem sua essência no fato de não ser! Portanto,
ensino o monismo do sentido, que se contrapõe
ao contra-sentido, ao irracional, sob dois
aspectos: o ser e o além-do-ser (das Sein und das
Übersein)422.
A redefinição do conceito de espírito operada por
Tillich não é nada menos, por assim dizer, do que uma
resposta à interpretação de Hirsch do conceito de espírito
como o “tornar-se consciente do ‘outro’, o ‘estranho’ como
o divino”423. Em contraste com a compreensão “idealista-
teísta” de Hirsch de Deus como um criador que, em sua

422
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 126-127.
423
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 117.

493
alteridade, é separado do espírito e, de fato, “cria” o
espírito, Tillich afirma que “Deus como o estranho nada
mais é do que a expressão do paradoxo original
[Urparadoxie] da existência do espírito”424. Tillich entende
a experiência de Deus não como a experiência de uma
alteridade que está fora do espírito, mas estritamente como
parte da vida dialética do próprio espírito, uma vida que é
basicamente imanente e, ainda, relativamente
transcendente: Deus é “o outro”; no entanto, a alteridade
de Deus é, antes, uma polaridade da vida interior do
espírito425. Neste sentido, quando comparado ao idealismo
teísta de Hirsch, Tillich mostra-se “mais preocupado com a
unidade da personalidade-que-experiencia ou
426
autoconsciência” que seu Gesprächspartner, ao menos no
contexto destas correspondências, parece estar.
De acordo com a complexa descrição da polaridade
interna do espírito tal como Tillich formula em sua

424
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122:
„Aber alle Normen stammen aus dem Geist, sonst könnte er sie nich
‚anschauen‘; nur wo Subjekt und Objekt zur Identität kommen, ist
Evidenz! Das Fremde bringt also gar nichts Neues; es ist nur der
Ausdruck für die ‚Existenz‘ des Geistes; denn nur weil der Geist
‚existiert‘, gibt es Tod, Dekadence und absolutes Wertbewußtsein.Gott
als das Fremde ist nichts anderes als der Ausdruck für die Urparadoxie
der Existenz des Geistes – worüber noch vieles zu sagen wäre, z. B.
daß Existenz auch eine Kategorie des Geistes ist usw.“.
425
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 117.
426
J. REIMER. The Emanuel Hirsch and Paul Tillich Debate: A Study in
the Political Ramifications of Theology, p. 39. Sobre a unidade da
consciência na teologia filosófica de Hirsch, cf. a tese de habilitação de
U. BARTH. Die Christologie Emanuel Hirschs. Eine systematische und
problemgeschichtliche Darstellung ihrer geschichtsmethodologischen,
erkenntniskritischen und subjektivitätstheoretischen Grundlagen.
Berlin; New York: Walter de Gruyter & Co., 1992, especialmente, p.
476-546.

494
supracitada carta a Hirsch, o sentido se caracteriza na
medida em que põe o ser como o outro-de-si-mesmo
enquanto condição de autorrealização da vida do espírito.
A descrição de Tillich evidencia, por um lado, a capacidade
constitutiva do paradoxo original do espírito de ir,
enquanto liberdade, além de todas as coisas e de ser
compreendido em uma dinâmica de transcendência
permanente. Por outro lado, a descrição de Tillich implica
um prostrar-se (zu beugen) ao outro, o “estranho”,
compreendido nos termos da alteridade do outro-de-si-
mesmo 427 . A figura do prostrar-se do espírito (Sich-
Beugens), que Tillich toma de empréstimo de Hirsch,
demonstra, entretanto, uma constituição diferenciada, na
medida em que Tillich a inscreve na estrutura antinômica
do espírito428 . Conforme mencionado, para Hirsch, em
conexão com a experiência básica da dinâmica do espírito,
encontra-se, igualmente, a experiência da “percepção do
‘outro’, do ‘estranho’ como o divino”, que pertence não ao
espírito enquanto tal, mas à própria santidade do divino429.
Em contrapartida, para Tillich a percepção do outro nada
mais é senão uma expressão do autopôr-se de si como
outro do espírito. Não obstante, isto não implica afirmar
que, para Tillich, o espírito deva ser compreendido como
desprovido de alteridade430. Esta alteridade, entretanto, não

427
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119, e as
p. 121-122.
428
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119-121.
429
E. HIRSCH. Emanuel Hirsch an Paul Tillich, p. 116: „das Innewerden
des ‚Andern‘, des ‚Fremden‘ als des Göttlichen“.
430
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119:
„Ich ignoriere das doppelte Erlebnis nicht, aber ich deute es anders. Ich
sehe in ihm den Ausdruck der Polarität im Geistesleben, die ich durch

495
constitui uma instância de referencialidade externa: o
espírito, em si e por si mesmo, coloca, em sua própria
autoposição, esta alteridade. Mesmo assim, é preciso
ressaltar que a alteridade do outro é, para Tillich, a
alteridade do outro-de-si-mesmo, tal como a própria
constituição antinômica do espírito demanda. Com efeito,
Tillich não nega a alteridade, na medida em que afirma que
o espírito seria desprovido de valor à parte deste “estranho”.
Como afirma, o espírito seria, “sem este estranho, ‘fútil
[‚nichtig‘]’”. Não obstante, precisamente porque este
estranho pertence ao próprio espírito, ele não constitui,
paradoxalmente, algo estranho 431 . A alteridade de si
constitui, mais propriamente, uma expressão da existência
do espírito no sentido de uma inescrutável positividade da
existência em contraposição a seu não-ser, ou morte432.

die beiden Begriffe: Wertbewußtsein und Unendlichkeitsbewußtsein


bezeichnen möchte“.
431
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 121:
„Weil er ohne dieses Fremde ‚nichtig‘ ist, d. h. weil dieses Fremde zu
ihm gehört, nicht etwas Fremdes ist“. Sobre este ponto, veja ainda J.
DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund. In: C. DANZ. (Hg.). Paul Tillichs
‚Systematische Theologie‘. Ein werk- und problemgeschichtlicher
Kommentar. Berlin; Boston: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG,
2017, p. 125-126.
432
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119:
„Wo bekommst Du eigentilich die ethischen Normen her? Durch
Intuition! Einverstanden! Subjekt und Objekt der Intuition ist aber der
Geist, woher bekommt nun der Geist die Norm des Sich-Beugens vor
einem Frendem? Weil er ohne dieses Fremde ‚nichtig‘ ist, d. h. weil
dieses Fremde zu ihm gehört, nicht etwas Estremdes ist; und weiter: In
welchen Sinne sich beugen vor Normen, die aus dem Fremden
stammen? Aber alle Normen stammen aus dem Geist, sonst könnte er
sie nicht ‚anschauen‘; nur wo Subjekt und Objekt zur ldentität
kommen, ist Evidenz! Das Fremde bringt also gar nichts Neues; es ist
nur der Ausdruck für die ‚Existenz‘ des Geistes; denn nur weil der

496
Quando o não-ser ou morte se torna a quintessência do
outro ou do estranho, está claro que, para Tillich, há algo
de contrafactual na existência fática vis-à-vis sua
negação 433 . É justamente esta contrafacticidade,
responsável por assinalar a dimensão de negatividade
intrínseca à autorrelacionalidade, que confere ao
incondicionado seu status mais próprio. O conceito de ser-
em-si, enquanto positividade absoluta que exclui o
momento de negatividade, representa, desta forma, uma
abreviação na medida em que abdica da contrafacticidade
intrínseca ao incondicional. Neste sentido, o
incondicionado ultrapassa a constitutividade do conceito de
ser-em-si na medida em que expressa, enquanto
equiprimordialidade de fundamento e abismo, o momento
de negatividade que institui a autorrelação do espírito em
sua estrutura interna434.

Geist ‚existiert‘, gibt es Tod, Dekadence und absolutes


Wertbewußtsein“.
433
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 126.
434
J. DIERKEN. Negativität im Selbstverhältnis, p. 169-170: „Die
Reflexionsfiguren, in denen Tillich Phänomene des Subjektiven über
rückbezügliche Negationen aufzuhellen sucht, verweisen auf die
unübersteigliche Voraussetzung von Sein und Sinn, wobei das Sein
nicht anders als in der Sinnform zugänglich wird. Darin liegt die
Unbedingtheitsdimension des Sinns. Sie wird immer nur in einzelnen
Sinnelementen im Bedingten aktual, die aneinander anschließen – in
Kontinuität und Widerspruch. Wenn Tillich Letzteres in die Metapher
des ,Durchbruchs‘ kleidet, mit der er die Manifestation des
Unbedingten im Bedingten kennzeichnet, so kann die Negativitätsfigur
allerdings in abstrakte Verneinung übergehen. Ob die Gewissheit
tatsächlich den Zweifel ,durchbricht‘ und hinter sich lässt oder sich in
seinem Vollzug einstellt, mag gefragt sein“. Aqui, a possibilidade de
duas consequências levantada por Dierken não nos parece justificada.
Isto porque, por certo, a certeza se atualiza por meio da dúvida na
medida em que ambas se pertencem mutuamente: para Tillich, não há

497
A fórmula Monismus des Sinnes desenvolvida por
Tillich opera, neste sentido, como descrição da
contrafacticidade da facticidade da existência na medida
em que esta se opõe à sua negação e nela se realiza435. Esta
contrafacticidade, que alcança a alteridade do outro
enquanto produto da realização de sentido intrínseca ao
autopôr-se-de-si-mesmo, torna-se, antes, a afirmação da
existência através da negação de si, “o ponto de ancoragem
da normatividade, do valor, da validade”436. Para Tillich, o
outro-de-si-mesmo não pode ser confundido com
quaisquer realia que independem da consciência e para as
quais a consciência se volta em intencionalidade 437 .
Conforme mencionado acima, o próprio conceito do
divino é por Tillich submetido a uma rigorosa
reformulação a partir de um intenso debate com Hirsch. É
precisamente neste sentido que a vida do espírito é
determinada, a partir de seus escritos do pós-guerra e de

certeza sem dúvida. Antes, a certeza é a afirmação do paradoxo


absoluto, no qual a dúvida é parte constitutiva. Conforme visto na
elucidação de sua dialética do Supra, a irrupção do incondicionado no
condicionado não pode suprimir a dúvida. Antes, a dúvida permanece
na medida em que é um elemento constitutivo do espírito. O que a
irrupção da revelação (Durchbruch) demonstra, entretanto, é que o
momento de negatividade do incondicionado é assumido, precisamente
em sua negatividade, no ato da fé que assume o paradoxo absoluto
também em seu momento de dúvida. A fé, entretanto, já se encontra
justificada na afirmação paradoxal da dúvida daquele que através dela
crê. Sobre este ponto, veja C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein.
Eine Studie zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen
individueller Subjektivität bei Paul Tillich, p. 351-382.
435
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 126-127.
436
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 126: „Solche, jene Alterität des
Fremden einholende Kontrafaktizität wird zum Ankerpunkt für
Normativität, Wert und Geltung“.
437
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119.

498
suas correspondências com Hirsch, por uma dupla
consciência de infinitude e valor: o incondicional é pura
transcendência, de um modo tal que toda determinação
conteudística que intenciona expressá-lo é sempre e
necessariamente formulada de um modo abertamente
inautêntico e insuficiente. Por outro lado, o monismo do
sentido como descrição da contrafacticidade da facticidade
da existência nos termos de uma oposição à sua negação
encontra sua expressão mais contundente na afirmação do
divino enquanto nome para a estrutura antinômica e
paradoxal do próprio espírito. Conforme mencionado
anteriormente, “Deus, enquanto o estranho, nada mais é
que a expressão do paradoxo original da existência do
espírito”438. Para Tillich, a alteridade do divino é um nome
para o paradoxo original constitutivo do espírito, isto é, um
produto necessário à constituição antinômica e paradoxal
da autoconsciência, sendo que a existência daquele-que-é
(Seiende) propriamente dita representa, igualmente, uma
categoria do espírito439.
A experiência do estranho como o outro, enquanto
expressão do caráter irredutível da santidade do divino, tal
como demarcada por Hirsch, pode ser pensada como uma
experiência que possui, para Tillich, “uma validade ‘criativa
dos valores’ [einer kreativen ‚Geltung der Werte‘]”440. Neste
ciclo entra, na consciência do valor ou axiológica, “algo

438
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122:
„Gott als Fremde ist nichts anderes als der Ausdruck für die
Urparadoxie der Existenz des Geistes“.
439
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122:
„[...] worüber noch vieles zu sagen wäre, z. B. daß Existenz auch eine
Kategorie des Geistes ist usw.“.
440
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 126.

499
completamente novo [etwas völlig Neues]”, um “verdadeiro
transcendente [wahrhaft Transzendentes]” que se contrapõe
a cada transcendência relativa 441 . Tillich conecta o
verdadeiro transcendente ao pensamento da personalidade,
ou, mais precisamente, ao pensamento do “valor absoluto
[absoluten Wertes]”442. O verdadeiro (Wahrhafte), isto é, a
absoluta transcendência, deve ser estritamente determinada
tão-somente pelo fato de que a pura validade dos valores é
alcançada, aqui, por meio das formas concretas da
consciência axiológica. Neste sentido, a dimensão
axiológica oriunda da experiência do outro-de-si se torna,
por sua vez, a portadora da transcendência: “o portador da
transcendência é a validade dos valores, somente sua
validade, seu ‘fato’, não sua ‘determinação’ [ihr ‚daß‘, nicht
ihr ‚was‘], pois o sistema dos valores propriamente dito é
um produto intuitivo do espírito, é criação e se encontra
sob a justificação, também sob o ‘amor’” 443 . Assim,
enquanto cada objetificação concreta da consciência de

441
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 121.
442
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 121.
443
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 120-121:
„Diese aus dem Wertbewußtsein stammende Objektivierung trifft nun
zusammen mit der aus dem Unendlichkeitsbewußtsein und gibt dieser
die ‚Fremdheit‘ und ungeheure Wucht der religiösen Objektivierung.
So verbindet sich im Gottesgedanken die ontologische Objektivierung
des Unendilichkeitsbewußtsein mit der axiologischen des
Wertbewußstseins. Die Trägerin der Transzendenz ist die Geltung der
Werte, nur ihre Geltung, ihr ‚daß‘, nicht ihr ‚was‘, denn das System
der Werte selbst ist intuitives Geistesprodukt, ist ‚Schöpfung‘ und steht
unter der Rechtfertigung, auch die ‚Liebe‘“. A distinção entre “fato
(daß) e determinação (was)” referida por Tillich é derivada das
famosas “Berliner Vorlesungen” de Schelling proferida entre os anos
de 1841 e 1842. Sobre este ponto, cf. F. W. J. SCHELLING. Philosophie
der Offenbarung. Erstes und zweites Buch, especialmente Vierte e
Fünfte Vorlesungen, p. 55-73 e p. 74-93.

500
valor encontra-se, aqui, sob o domínio da dialética do
Supra444, é tão-somente a inevitabilidade da afirmação de
determinados valores como absolutos, e, desta forma, como
valores válidos por si mesmos, que Tillich considera como
a instância indicativa da dimensão de transcendência
absoluta do espírito445.
As explicações mais detalhadas sobre a forma
conteudística do pensamento sobre Deus imediatamente
conecta ambos os polos – a saber, a consciência de
infinitude e a consciência de valor – entre si. Esta conexão
torna evidente, por si só, que esta forma não pertence
exclusivamente à religião, na medida em que momentos
culturais e religiosos já se encontram sempre
interconectados aqui. Nesta dialética, a consciência de
infinitude produz, por assim dizer, a “largura” das possíveis
objetivações objetivas – num sentido amplo, para Tillich
encontram-se integradas, sob esta dialética, somente os
valores concretos – a partir das quais as partes individuais
são postas pela consciência de valor como absolutamente
válidas e, desta forma, como verdadeiramente
transcendentais. Como afirma Tillich, “assim, no
pensamento de Deus a objetivação ontológica [die
ontologische Objektivierung] da consciência de infinitude é
combinada com a objetivação axiológica da consciência de
valor”446. O tom, aqui, jaz na atuosidade da consciência,
cujo movimento entre os dois polos pode ser agora
substanciado pelo termo fichteano de “oscilação”

444
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 120.
445
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
190-191.
446
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 120-121.

501
(Schweben)447. Neste sentido, e em conformidade com o
conceito fichteano de “Schweben”, a consciência religiosa

447
Sobre o conceito de “oscilação” (Schweben) em Fichte, cf. J. G.
FICHTE. Grundlage der Gesammten Wissenschaftslehre und Grundriss
des Eigenthümlichen der Wissenschaftslehre in Rücksicht auf das
Theoretische Vermögen. Tübingen: J. G. Cotta’schen Buchhandlung,
1802, p. 178: „Jenes Schweben eben bezeichnet die Einbildungskraft
durch ihr Produkt; sie bringt dasselbe gleichsam während ihres
Schwebens, und durch ihr Schweben hervor“. Ainda sobre este
conceito, cf. W. JANKE. Vom Bilde des Absoluten: Grundzüge der
Phänomenologie Fichtes. Berlin; New York: Walter de Gruyter & Co.,
1993, p. 239, p. 308-313, p. 314-317, e as p. 324-334. Como afirma
Janke: „Schweben ist ein ortloses Hin und Her im Modus einer nicht
fixierbaren Bewegung. Es hat keine eindeutige Gerichtetheit an sich
und weist einen eindeutigen Anfang und ein bestimmtes Ziel von sich
ab. Solches Hin- und Hergehen kennzeichnet die Weise, wie die
produktive Einbildungskraft tätig ist. Das Schweben bildet den Modus
ihrer Produktion. Was sie hervorbringt, ist das Vereinigtsein von
Unvereinbarem. Mithin kann man sagen: Dazwischen schwebend,
verschwebt und vermittelt die Einbildungskraft ursprünglich das,
wozwischen sie schwebt. Nun scheint solche Rede vom verwebenden
Verschweben reichlich nebelhaft und rein metaphorisch. Indessen, sie
nennt Vertrautes in elementaren und vertrauten Sachverhalten, nämlich
bei der Konstitution der Ding-Vorstellung und der Schema-Bildung
des Anschauenden“ (p. 310). A determinação da essência da faculdade
de imaginação (Einbildungskraft) marca um ponto de virada para a
história da autoconsciência. O produto inicial do estado de flutuação da
intuição inconsciente alcança consideração como um Faktum, que é o
resultado de uma nova série de formas de reflexões, tais como o
sentimento, o autossentimento, a ânsia, e assim por diante. Aqui, o
estudo de U. CLAESGES. Geschichte des Selbstbewußtseins. Der
Ursprung des spekulativen Problems in Fichtes Wissenschaftslehre
von 1794-95. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1974, sobretudo, p. 91-184
continua uma fonte indispensável. Sobre este ponto, cf. ainda D.
HENRICH. Fichtes ursprüngliche Einsicht. In: D. HENRICH; H.
WAGNER. (Hg.). Subjektivität und Metaphysik. Festschrift für
Wolfgang Cramer. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1966, p.
188-233; W. JANKE. Fichte: Sein und Reflexion – Grundlagen der
kritischen Vernunft, p. 290-298. Sobre o pano de fundo fichteano que
suporta os pensamentos de Tillich nesta correspondência, veja a nota
explícita que aparece no fim desta carta: „Zuletzt liegt all meinen

502
oscila entre a plenitude de suas intuições objetivas das
objetivações (gegenständlich-anschaulichen Objektivationen),
por um lado, e suas abrutas negações, na medida em que
estas negações ocorrem em função da referência imediata
da consciência aos valores puros, absolutamente
transcendentais e, neste sentido, infinitos, por outro448.
Nesta conexão, dois aspectos ainda precisam ser
ressaltados. De um lado, a ideia, claramente formulada por
Tillich em sua carta à Maria Klein 449 , e assumida no
contexto das considerações sobre a consciência da
infinitude em suas correspondências com Hirsch, de

Ausführungen der Gedanke des Fichteschen Atheismusstreites zu


Grunde, daß es logisch wie religiös unmöglich ist, Gott unter die
Gegenstände einzureihen“. A referência aqui é P. TILLICH. Paul Tillich
an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122. Esta referência explícita a
Fichte é um claro atestado de que as teses de S. T. CRARY. Idealistic
Elements in Tillich’s Thought e de G. WENZ. Subjekt und Sein. Die
Entwicklung der Theologie Paul Tillichs, especialmente, p. 161-190 de
uma ruptura de Tillich com a tradição idealista não resistem a uma
análise mais profunda e histórico-genética. Por outro lado, o estudo de
M. BOSS. Au commencement la liberté: La religion de Kant réinventée
par Fichte, Schelling et Tillich, sobretudo, p. 325-399 mostra-se, com
isto, cada vez mais preciso.
448
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
191.
449
P. TILLICH. Paul Tillich an Maria Klein: Geburtstags-, Weinachts-
und Neujahrsbrief. 5.XII.1917, p. 121: „Das ‚Leben‘ als Begriff, die
‚Unendlichkeit‘ als Gegenstand sind [nicht] philosophische,
problematische Gottesbegriffe; sondern es handelt sich um die innere
Unendlichkeit des Lebens als Aktus, die unendliche Lebendigkeit, das
Transzendieren über jeden Gegenstand und alles Gegenständliche“.
Tillich intenciona demonstrar aqui, precisamente, o problema das
objetivações derivadas do movimento transcendental infinito do
espírito, como se eles fossem, por assim dizer, conceitualmente
sedimentados. Sobre este ponto, cf. L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist –
Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen
Symboltheorie Paul Tillichs, p. 189 [especialmente, nota 68].

503
acordo com a qual mesmo a ideia de infinitude deve ser
estritamente considerada como um produto da atividade de
esquematização do espírito, encontra sustentação e reforço
no entrelaçamento entre a consciência de infinitude e a
consciência de valor. Assim, o conceito de “totalidade”,
mas, acima de tudo, o conceito de “absoluto”, são
entendidos como objetivações logicamente subsequentes da
atividade de esquematização da consciência. Como afirma
Tillich a Hirsch, “uma análise exata de todos os conceitos
como absoluto, vida, natureza, desenvolvimento, cultura,
cosmos, totalidade, etc., claramente demonstra que a
consciência de valor e a consciência de infinitude são neles
objetivados”450. Desta forma, o movimento do pensamento
de seus escritos iniciais sobre Schelling, que também se
repetem, de forma ainda mais cogente, em sua
Systematische Theologie de 1913, é, finalmente, reformulado:
em lugar de uma teoria especulativa do absoluto, assume-se
uma abordagem da teoria neokantiana da consciência de
sentido – por princípio! – crítico-cognitiva. O foco se
encontra, aqui, claramente nos momentos teóricos de
absolutez e inconsciência que constituem elementos
inseparáveis do conceito de consciência, mesmo quando
este foco diz respeito ao Leitmotiv dos interesses teórico-
religiosos. Por outro lado, a terminologia que guia o
pensamento de Tillich em suas correspondências
claramente demonstra a formação incipiente de sua
reconstrução teórica. A presença marcante de categorias
como criação, criativo, doação de sentido (Sinngebung); a
firme orientação em direção à dualidade do relacionamento

450
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122.

504
entre religião e cultura 451 , assim como a dimensão
claramente sistemática dos conceitos de transcendência ou
do pensamento transcendente; constituem elementos
imprescindíveis que inserem, de forma insofismável, sua
reflexão no âmbito das teorias idealistas-neokantianas do
sentido. Da mesma forma, a terminologia triádica
“substância-forma-conteúdo” (Gehalt-Form-Inhalt) já pode
ser inferida a partir do modo como Tillich sistematiza a
consciência de sentido a partir da interface da consciência
de infinitude e da consciência de valor. Por consequência, a
dúvida necessária e constitutiva de sua dialética do Supra se
relaciona, de forma mais precisa, com a forma da
objetivação, ao passo que a substância efetiva das
objetivações, no sentido intencionado pelas considerações
em relação à validade transcendental, é lançada para além
dos conteúdos objetivados pelo pensamento 452 . Em
contrapartida, as objetivações, que irrompem no âmbito

451
Na Systematische Theologie de 1913, Tillich ainda insere a categoria
moralidade (Sittlichkeit) como um terceiro conceito interrelacionado
aos conceitos de religião e cultura. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH.
Systematische Theologie von 1913, p. 296-300. No que diz respeito à
orientação única para os termos religião e cultura, as correspondências
com Hirsch devem ser interpretadas como o pressuposto teórico para a
palestra programática Über die Idee einer Theologie der Kultur, de
1919.
452
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122: „So
kann man sagen: An Gott zu zweifeln ist unmöglich und an Gott nicht
zu zweifeln ist unmöglich. Das erste bezieht sich auf den Gehalt, das
zweite auf die Objektivationsform. Die Frömmigkeit wächst intensiv
mit der Kraft des Wertbewußtseins, extensiv mit dem Reichtum und
der Tiefe des Weltgefühls. Die Gefahr vergangener Zeiten war der
Verlust des zweiten, unsere Gefahr ist die Verlust des ersten. Das erste
treibt zu immer schärferer Personalisierung Gottes, bis zur
Christologie, das zweite zu immer stärkerer Immanenz bis zu
Nietsche“.

505
deste Spannungsfeld, conformam, como afirma com
precisão Tillich, “o conteúdo de nossa religiosidade [den
Inhalt unserer Religiosität]” 453 . A posição de Tillich
constitui, em sua estrutura fundamental, a afirmação da
relação complexa entre três conceitos interdependentes e
irredutíveis que se contrapõem, tendo-se em vista a ênfase
tillichiana no conteúdo ou substancialidade que conforma a
consciência de sentido, à suspeição de que a reflexão de
Hirsch enseja uma forma quase vazia de conteúdo454. Ora,
é precisamente a sistematização da terminologia triádica
Gehalt-Form-Inhalt que conforma a teoria dos sentidos, tal
como por Tillich desenvolvida em sua “obra dupla”, isto é,
em sua Wissenschaftsarchitektonik e em sua
455
Religionsphilosophie .

453
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122:
„Dies Schweben zwischen der Transzendenz des Wertbewußtseins mit
seiner Schroffheit, Weltabgewandtheit, Überlegenheit des personalen
Bewußtseins über Kultur, Dekadence und Tod auf der einen Seite, und
der Hingabe an den Reichtum, die Anschauung Gottes als
Lebensimmanenz macht den Inhalt unserer Religiosität aus“.
454
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918,
especialmente, p. 116-124. A referência de Tillich ao fato de que o
espírito “nunca é uma forma vazia” (p. 116), ou sua crítica à tese de
Hirsch de que seu conceito de imanência “é ‘apenas’ formal” (p. 118),
conformam sua suspeição; sobre este ponto, cf., igualmente, a p. 124.
455
Mesmo a delimitação do relacionamento entre “forma e conteúdo”
(Form-Inhalt), que não constitui uma relação de fácil precisação nos
escritos posteriores, já se encontra delineada quando Tillich conclui
que a consciência, no sentido de suas reflexões, vai além de “toda
forma especial do pensamento e experiência de Deus”. Sobre este
ponto, cf. P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p.
122. Em uma inspeção mais minuciosa, o conceito de forma não
designa, aqui – no sentido da Sinntheorie madura –, o aspecto da
forma, mas o aspecto do “conteúdo” (Inhalt) concreto agarrado pela
forma (Form). Sobre este ponto, veja L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist –
Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der frühen
Symboltheorie Paul Tillichs, p. 193 [especialmente nota 84].

506
Como corolário destas considerações torna-se
possível compreender, de forma mais precisa, que a
dimensão axiológica, intrínseca à fórmula Monismus des
Sinnes elaborada por Tillich, possui a função de inscrever o
dinamismo transcendental do espírito na inescapável
imanência de sua autorrelacionalidade antinômica456. Com
esta imagem do contrafactual conectada à existência do
factual, o terreno é colocado para a temática do axiológico
em Tillich, que, por sua vez, encontra explicação na
conceitualidade do sentido. O conceito de sentido possui,
evidentemente, múltiplos sentidos. O sentido é, para ser
mais preciso, o transcendental que é alcançado na
contextualidade. “O divino é sentido, não um ser, e ele é
um ‘outro sentido’”457. Com isto, as figuras da totalidade e
da unidade se revelam de forma mais cogente. O sentido é,
igualmente, desta forma, a funcionalidade lógica do
espírito458. Na já mencionada complexa descrição de seu
monismo do sentido citada ainda no início desta seção,
Tillich afirma que “também o ser, o puramente ‘factual’, é
por certo um conceito; por conseguinte, ele é o ser posto
pelo contexto ou interconexão lógica de sentido, é produto
de sentido ou de valor” 459 . Ora, é precisamente esta
conceitualidade que se torna capaz de agarrar, de uma só
vez, tanto a criatividade categorial do espírito, por um lado,
quanto o conceito de ser, por outro. Desta forma, uma
dimensão de incondicionalidade, garantida por Deus,
inacessível e inesgotável – ou, em conformidade com a

456
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119.
457
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 126.
458
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 126.
459
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 126.

507
terminologia mais tardia de Tillich, de “profundidade” de
sentido – é assinalada. Como afirma Tillich, “justamente
por isso, o sentido põe o divino como seu ‘outro’, pelo qual
ele sabe que se realiza. Do mesmo modo, o sentido se
delimita mediante o ser e o além-daquele-que-é. Ambos
são atos de postação ou criação de sentido”460. Pois, a vida
espiritual, enquanto criação e doação de sentido, é também
limitação de sentido, na medida em que o espírito, na
dinâmica de sua autorrelacionalidade, posta o divino como
seu outro ou outro-de-si e, assim, se limita. O outro-de-si
é a fronteira intransponível que impõe um limite ao
sentido. Quando o sentido põe o divino como a alteridade
do outro-de-si-mesmo, o sentido é duplamente limitado
pelo ser (Sein) e pelo além-daquele-que-é (Überseiende)
enquanto criação de sentido (Sinn-Setzungen) 461 . Desta
forma, uma dimensão de incondicionalidade de sentido,
intrínseca à ideia do divino como o outro-de-si, irrompe
para a consciência enquanto inatingível e inesgotável,
tendo-se em vista que no divino o sentido não apenas se
realiza, como também encontra, na própria autoposição da
alteridade de si mesmo como outro, o seu limite462.

460
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 126-127.
461
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 126.
462
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 126. O modo como a
incondicionalidade – ou, na linguagem tardia de Tillich, profundidade
– e inteireza de sentido são combinadas, numa consciência teológico-
criadora, com a ameaça e o suporte da existência é demonstrado por
M. FRITZ. Mut und Schwermut der Kreatur. ‚Schöpfung‘ nach Tillich.
In: R. BARTH; A. KUBIK; A. v. SCHELIHA. (Hg.). Erleben und Deuten.
Dogmatische Reflexionen im Amschluss an Ulrich Barth. Festschrift
zum 70. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 2015, p. 79-106.

508
É, pois, precisamente a partir da determinação da
fórmula monismo do sentido que Tillich se torna capaz de
indicar a perspectiva mais importante que fundamenta e
guia seu pensamento no período do pós-guerra463. Esta
fórmula, no entanto, por mais complexa que aparente ser,
permanece incompreensível caso se intencione interpretá-la
nos termos de um monismo abstrato. As nuanças
implícitas na fórmula já demonstram que o objetivo da
nova determinação do espírito desenvolvida por Tillich não
representa uma tentativa de excluir diferenciações já
explicitamente demarcadas. Conforme visto, o monismo
do sentido se contrapõe, em dois aspectos, ao contra-
sentido e ao irracional a partir da justaposição das
categorias ser e além-do-ser464. É neste movimento, pois,
que Tillich dá lugar à esfera axiológica do contrafactual. A
noção de sentido, enquanto uma duplicação do conceito de
ser nos termos de ser e além-do-ser, demarca a função da
dialética da negação que conduz à explicação da
subjetividade nos termos de um paralelismo que consiste
em um juízo existencial absoluto e uma consciência de
sentido absoluta465. A esfera axiológica do contrafactual
conforma a âncora lógica para a duplicidade do ser tanto
nos termos do ser e do poder de ser, quanto nos termos da
ameaça pelo não-ser ou pela morte 466 . A duplicação

463
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 306.
464
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 126-127.
465
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 126-127.
466
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119. A
continuidade dos motivos deste monismo do sentido para o
pensamento tardio de Tillich é, especialmente aqui, mais que evidente.
Como afirma J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332).

509
operada por Tillich no conceito de ser corresponde, no
conceito de sentido, a uma duplicação nos termos de
sentido e do outro-do-sentido. A força motriz para este par
de conceitos sistematicamente duplicados jaz no fato de
que Tillich explica a estrutura básica da subjetividade a
partir de pressupostos que, quando tomados em si mesmos,
não possuem quaisquer pontos de referência para a sua
negação, muito embora eles guiem a explicação
conceitual467. “Todas as normas procedem do espírito, caso
contrário o espírito não poderia intuí-las; somente onde
sujeito e objeto alcançam identidade há evidência!”468. É
neste sentido, portanto, que Tillich justifica tanto o alcance
da esfera conceitual a partir da esfera de sentido, por um
lado, e, inversamente, o alcance da esfera de sentido a
partir da esfera conceitual, por outro469. Nas palavras de
Tillich: “nada pode adentrar o espírito que não proceda
dele, pois o espírito nunca é forma vazia, mas sempre uma
realidade vida. O espírito é infinito em si mesmo e atrai
tudo para si”470. A infinitude do sentido assinala não apenas
sua transcendência, mas também sua omnideterminância.

Problem- und werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 126: „Er wird später


zum Fundament für einen ‚Mut‘ im Modus des bejahenden ‚Dennoch‘
gegenüber aller Bedrohung durch das Nichtsein, dessen Seinsmodus
freilich ungeklärt bleibt. Im Hintergrund dieses späteren Motivs steht
die frühe Gedankenfigur, dass der monistisch-unbedingte Sinn sich
‚nach zwei Seiten den Widersinn, das Irrationale entgegen[setzt], das
Sein und das Übersein‘“.
467
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 127.
468
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119.
469
J. DIERKEN. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-332). Problem- und
werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 127.
470
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 116: „In
den Geist kann nichts hinein, was nicht aus ihm kommt, denn er ist

510
γ. O “monismo do sentido” como superação metodológica
da contraposição entre os modelos idealista e realista do
conhecimento

A partir da determinação desta estrutura particular


do monismo de sentido formulado por Tillich, um
aprofundamento em seus desenvolvimentos sistemáticos
mais compreensivos se torna, deste modo, passível de
maior precisão conceitual. A importância decisiva desta
teoria monista do sentido para sua nova concepção
sistêmica, como Tillich assinala em suas cartas a Hirsch, se
torna ainda mais evidente quando se percebe que a
totalidade de sua Wissenschaftsarchitektonik e de sua
Religionsphilosophie se encontra fundamentada nesta teoria
neokantiana do sentido 471 . Deste modo, não apenas a

niemals leere Form, sondern immer lebendige Aktualität. Er ist in sich


unendlich und zieht alles in sich hinein“.
471
Relevante neste ponto é o já mencionado trabalho inicial de Tillich,
Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden,
que constitui uma obra difícil de ser desvelada em seus pressupostos
fundamentais. Sobre a discussão contemporânea desta obra, cf. F.
BÜCHSEL. Die Stellung der Theologie im System der Wissenschaften.
Eine Auseinandersetzung mit Paul Tillichs System der
Wissenschaften. Zeitschrift für Sistematische Theologie, vol. 1, 1923,
p. 399-411; A. DELL. Der Charakter der Theologie in Tillichs System
der Wissenschaften. Theologische Blätter, vol. 2, Nr. 33-34, 1923, p.
235-245; E. HIRSCH. Tillichs Religionsphilosophie. Theologische
Litereturzeitung, Nr. 51, 1926, p. 97-103; K. LEESE. Das System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden. Die Christliche
Welt, Nr. 40, 1926, p. 317-325, e p. 371-375. Entre a literatura
secundária contemporânea, veja, especialmente, P. ZICHE.
Orientierungssuche im logischen Raum der Wissenschaften. Paul
Tillichs System der Wissenschaften und die Wissenschaftssystematik

511
definição do conceito de essência da religião, como também a
frequentemente mal interpretada determinação da teologia
como ciência concreta e normativa da religião472, se torna
incompreensível à parte de um retorno ao monismo do
sentido e a uma análise das consequências desta perspectiva
para o programa sistemático maduro de Tillich473. Embora
não se possa oferecer aqui um tratamento mais exaustivo
das consequências oriundas da teoria monista do sentido de
Tillich para sua Wissenschaftssystematik e
474
Religionsphilosophie , torna-se cogente assinalar, no

um 1900. In: C. DANZ. (Hg.). Theologie als Religionsphilosophie:


Studien zu den problemgeschichtlichen und systematischen
Voraussetzungen der Theologie Paul Tillichs, p. 49-68; G. RAATZ.
Kulturwissenschaft oder Sinnlehre? Zur Genese von Paul Tillichs
wissenschaftssystematischem Begriff der Theologie zwischen 1917-
1923, p. 141-173.
472
Sobre o conceito de essência da religião, cf. P. TILLICH.
Religionsphilosophie, p. 133-157. Sobre a determinação da teologia
como ciência concreta e normativa da religião, Tillich afirma, de forma
programática, e dentro dos limites da crítica kantiana, o seguinte: „In
diesem Sinne ist nun der Begriff in unserm Zusammenhange gemeint,
und in diesem Sinne kann er meines Erachtens allein auf
wissenschaftliche Brauchbarkeit Anspruch machen. Damit ist ein
Doppeltes verneint: Theologie ist nicht Wissenschaft von einem
besonderen Gegenstand neben andern, den wir Gott nennen; einer
solchen Wissenschaft hat die Kritik der Vernunft ein Ende gemacht.
Sie hat auch die Theologie vom Himmel auf die Erde herabgeführt.
Theologie ist ein teil Religionswissenschaft, nämlich der systematisch-
normative Teil“. IDEM. Über die Idee einer Theologie der Kultur, p.
71. Sobre a ideia da teologia como “metafísica teônoma”, cf. IDEM.
Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p.
247-262.
473
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 306.
474
Uma análise detalhada dessa teoria do sentido e de seu lugar
histórico-filosófico no contexto de teorias neokantianas do sentido de
fundamentações comparáveis ainda é, a despeito do desenvolvimento

512
da literatura secundária, um desiderato na pesquisa de Tillich. Alguns
textos, no entanto, fazem parte da história dos efeitos do pensamento
de Tillich e não podem ser, aqui, ignorados. Veja, por exemplo, o já
mencionado estudo de J. HEINRICHS. Der Ort der Metaphysik im
System der Wissenschaften bei Paul Tillich: Die Idee einer universalen
Sinnhermeutik, p. 249-286; W. SCHÜßLER. Der philosophische
Gottesgedanke im Frühwerk Paul Tillichs (1910 – 1933). Darstellung
und Interpretation seiner Gedanken und Quellen, p. 16-49. Um dos
estudos mais significativos, neste contexto, ainda é o de H. JAHR.
Theologie als Gestaltmetaphysik: die Vermittlung von Gott und Welt
im Frühwerk Paul Tillichs, p. 56-246. Jahr, contudo, se esforça por
reconstruir a filosofia e teologia iniciais de Tillich sob a chave
hermenêutica do conceito de Gestalt. Embora essa perspectiva de
problema permita acessar implicitamente os problemas da teoria do
sentido, esta última, enquanto tal, não é explicitamente assumida como
foco do estudo. Com isto, o conceito de Gestalt, por maior que seja sua
relevância no pensamento de Tillich, termina por obliterar o conceito
de sentido. Esta crítica ao estudo de Jahr já foi levantada por, entre
outros, P. HAIGIS. Im Horizont der Zeit. Paul Tillichs Projekt einer
Theologie der Kultur. Marburg: N. G. Elwert Verlag, 1998, p. 47-55.
No entanto, o próprio Haigis oferece uma interpretação problemática
no que diz respeito à centralidade da teoria do sentido na obra de
Tillich. Para a interpretação de Haigis do conceito de Gestalt, cf. as p.
19-55. Para sua interpretação da teoria dos símbolos, cf. as p. 57-171.
De acordo com Haigis, o desenvolvimento intelectual de Tillich deve
ser caracterizado como um movimento de transição de uma “filosofia
geral religiosa da cultura” para uma “teoria cultural-teológica do
protestantismo” (p. 55). Este movimento representa, de acordo com
Haigis, o desenvolvimento dos problemas que a filosofia geral
religiosa da cultura inicial de Tillich inevitavelmente produz. Para
Haigis, a dificuldade está na dificuldade que esta filosofia geral da
cultura constitui na medida em que ela intenciona, em sua opinião,
“polir”, por assim dizer, o conflito entre religião e cultura de uma
forma tal que a religião positiva, enquanto tal, termina por desaparecer.
Contra esta perspectiva, cf. o tratamento preciso de C. DANZ. Religion
als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 312-352. Veja, ainda, S. DIENSTBECK. Transzendentale
Strukturtheorie. Stadien der Systembildung Paul Tillichs, p. 235-335 e
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs,
especialmente, p. 287-324.

513
entanto, que sua nova determinação do espírito possui um
propósito metodológico e sistemático bastante específico.
De acordo com Tillich, a fórmula monismo do sentido
pretende suprassumir, fundamentalmente, a contraposição
entre os modelos idealista e realista do conhecimento em
uma nova síntese metodológico-sistemática 475 . Como
aponta Tillich:
O método crítico-dialético pressupõe a
autonomia do espiritual em contraposição a todo
aquele-que-é imediatamente dado (allem
unmittelbar Seiendes). Neste sentido, ele não
precisa representar um idealismo epistemológico;
ele não deve supor que o espírito confere leis à
natureza. Não obstante, ele certamente não pode
admitir que um realismo epistemológico seja
verdadeiro. Ele não pode supor que a natureza
confere leis ao espírito. Ele deve pressupor que
os princípios de sentido aos quais a consciência
se submete no ato espiritual são, ao mesmo
tempo, os princípios de sentido aos quais o ser
está submetido. Ele deve pressupor que o
sentido do ser alcança expressão na consciência
formada pelo sentido476.

475
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 204-206; IDEM. Religionsphilosophie, p. 124-133.
476
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 125. As dissertações de Tillich
sobre Schelling demonstram o quanto ele conecta esta caracterização
problemática da relação entre “natureza e espírito” com o motivo mais
importante que fundamenta e guia a filosofia schellinguiana – assim
como guia, igualmente, como o próprio Tllich reconhece, a filosofia de
Fichte. Este motivo fichteano-schellinguiano, cabe dizer, Tillich
considera como autoritativo. Sobre este ponto, veja IDEM. Mystik und
Schuldbewußtsein in Schellings philosophischer Entwicklung, p. 53:
„Ist die Natur ebenso wie das Ich selbstsetzung, Tat, Freiheit, so
entsteht eine völlig neue Auffassung über das Verhältnis von Natur
und Geist. In der Willensmystik lag noch insofern ein scroffer

514
Nas palavras de Tillich, o método crítico-dialético
deve supor tanto que os princípios de sentido aos quais a
consciência se submete no ato espiritual são, ao mesmo
tempo, princípios de sentido aos quais o ser está

Dualismus, als die Naturbestimmtheit des Menschen in Gegensatz


stand zu seiner sittlichen Aufgabe. Nun ist aber ein wirksamer
Gegensatz stand nur da möglich, wo zugleich Identität ist; diese
Identität kann unter dem Exponenten des Natürlichen stehen, d. h. der
naturlose Geist kann als eine Natur höherer Art aufgefaßt werden.
Aber diese Möglichkeit war durch den Fichteschen Freiheitsbegriff
ausgeschlosen. So blieb nur die andere, die Natur zu einer Form des
Geistes zu machen und dann den Geist unauflöslich an die Natur, d. h.
sich selbst in seiner anderen Gestalt zu knüpfen. Es gibt keinen
naturlosen Geist, ebenso wenig wie es eine geistlose Natur gibt. Der
Begriff des aktuellen Willens fordert diese Lösung. Denn er besagt
nichts anderes als daß der Geist in sich selbst einen Gegensatz hat, in
dessen Überwindung seine Aktualität besteht. Läge der Gegensatz
außer ihm, so hätte der Geist keinen Grund zum Widerstreit. Geist und
Natur lägen als zwei fertige, in sich geschlosene Größen
nebeneinander. Nun aber ist der Geist nicht anders wirklich, als indem
er in sich selbst den Widerstreit von Natur und Geist setzt. Der Geist
ist nur darin real, daß er sich erhebt über sich selbst als Natur. Die
Natur ist nichts anderes, als der Geist in seiner Unmittelbarkeit, in
seiner unbewußten Selbstsetzung“. Nesta conexão, compare IDEM. Das
System der Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p. 260:
„Die Lehre von der schöpferischen Wissenschaft überwindet die
lebensfeindlichen Konsequenzen der rationalen Erkenntnishaltung.
Den Dingen bleibt ihr Eigenleben, ihr Gehalt. Aber das Wesen der
Wirklichkeit kommt zu Erfüllung im schöpferischen Akt. Das
Erkennen ist eine Art der Sinnerfüllung, nach der alles Wirkliche
tendiert. Erkennen ist Mitschaffen und Weiterführen der
urschöpferischen Setzung. Es vergewaltigt die Dinge nicht, sonders es
bringt sie zur Erfüllung, aber es kann nur Sinnerfüllung sein, weil es
die Eigenformen der Dinge anerkennt und sich unter die unbedingte
Form stellt“. Aqui, uma vez mais, cabe reafirmar que, para Tillich, o
espírito é omnideterminante. Sobre este ponto, cf., novamente, IDEM.
Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 116: „In den Geist
kann nichts hinein, was nicht aus ihm kommt, denn er ist niemals leere
Form, sondern immer lebendige Aktualität. Er ist in sich unendlich und
zieht alles in sich hinein“.

515
submetido477, quanto que o sentido do ser somente alcança
expressão na consciência formada pelo sentido478. A partir
de uma reflexão crítica de suas performances, ambos os
modelos apresentam fragmentariedade e necessidade de
complementação, na medida em que encontram problemas
que não podem ser elucidados com base em seus próprios
pressupostos479. Para Tillich, assim como o realismo, como
uma análise crítica de seus pressupostos epistemológicos
demonstra, é incapaz de explicar, por um lado, como a
natureza pode conferir leis ao espírito, o idealismo, por sua
vez, é incapaz de explicar como uma substância desprovida
de forma pode se tornar capaz, em qualquer sentido
particular, de aceitar leis, por outro. Tomando-se como

477
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 119.
478
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 204-205: „Das Erkenntnisziel der Geisteswissenschaften
ist der Sinnbegriff. Was in den Denkwissenschaften das Gebilde, in
den Seinswissenschaften die Gestalt ist, das ist in den
Geisteswissenschaften der Sinnzusammenhang. Jede Gestalt vollzieht
in jedem Augenblick ihrer Existenz Akte der Beziehung zu der übrigen
Wirklichkeit, Akte, in denen sie die Dinge in sich aufnimmt und Akte,
in denen sie sich in die Dinge hineinbildet. Dieser Doppelakt ist das
Leben der individuellen Gestalt. In den vorgeistigen Gestalten
vollzieht sich dieser Akt unmittelbar und ist den Strukturgesetzen
unterworfen. Bei den geisttragenden Gestalten sind sinngebende Akte.
Das ist nicht so zu verstehen, als ob eine an sich sinnlose Wirklichkeit
durch die Akte der geisttragenden Gestalten sinnvoll würde. Solche
pragmatische Auffassung ist dem Wesen des Geistes fern. Vielmehr
sind die sinngebenden Akte sinnerfüllende Akte. Der dem Seienden in
all seinen Formen innewohnende Sinn kommt in den geistigen Akten
zu sich selbst, der Sinn der Wirklichkeit verwirklicht sich im
Geistigen. Alles Sein steht unter dem Gesetz der unbedingten Form,
aber allein im Geist wird das Unbedingte als Unbedingtes, als Geltung
erfaßt. Im Geist erfüllt sich der Sinn des Seins“.
479
Cf., aqui, as considerações de P. TILLICH. Das System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p. 215-217 sobre o
“método metalógico”. Sobre este ponto, cf., igualmente,

516
ponto de partida uma teoria do sentido, ambos os modelos
provam ser abstrações do reconhecimento fundamental que
substância e forma já configuram uma unidade em cada
experiência de sentido 480 . Como corolário de tais
considerações tem-se que, para Tillich, a experiência de
sentido não pode ser adequadamente descrita nem como
doação de sentido (Sinngebung), nem como apreensão de
sentido (Sinnerfassung), mas somente como cumprimento
de sentido (Sinnerfüllung)481.
O conceito indica que as coisas permanecem em
seu direcionamento intencional à forma
incondicionada e que este direcionamento
intencional encontra seu cumprimento
(Erfüllung) nas criações espirituais. Nem normas
ideais, que jazem além do ser, nem uma
realidade de sentido formada em contraposição
ao espírito são portadoras de sentido. O sentido
não é dado, quer de forma real ou ideal, mas ele
é intencionado (intendiert), e alcança seu
cumprimento no espírito482.
O conceito de cumprimento de sentido encontra
seu objetivo no fato de que, em cada processo de
atualização da consciência, substância e forma sempre já
configuram, por necessidade, uma unidade. Como Tillich
afirma: “forma e substância se pertencem mutuamente; não
faz sentido pôr uma sem a outra”483. A mútua pertença

480
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 134.
481
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 308.
482
P. TILLICH. Zu Tillichs Systematik. Tillichs Antwort. Blätter für
Religiösen Sozialismus, Jahrgang 5, No. 5-6, 1924, p. 19.
483
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 134: „Form und Gehalt gehören
zusammen; es ist sinnlos, das eine ohne das andere zu setzen“. Sobre

517
entre forma e substância já se encontra afirmada, conforme
mencionado anteriormente, na combinação entre a
consciência de infinitude e a objetivação axiológica da
consciência de valor que opera como pressuposto da
objetivação ontológica (ontologische Objektivierung)
invariavelmente presente em todo pensamento de Deus484.
Novamente, a atuosidade da consciência encontra seu
conteúdo substantivo na “oscilação” entre os dois polos
representados pela consciência de infinitude e de valor485. A
terminologia triádica “substância-forma-conteúdo”
(Gehalt-Form-Inhalt) sistematiza, portanto, precisamente a
partir da oscilação entre a consciência de infinitude e a
consciência de valor, a própria consciência de sentido.
Também aqui, isto é, no modo de copertença entre forma e
substância, torna-se possível perceber a maneira como a
dúvida se relaciona, enquanto elemento necessário e
constitutivo da dialética do Supra, com a forma da
objetivação da consciência religiosa. Por outro lado, o
modo do relacionamento entre forma e substância revela
que a substância efetiva das objetivações, no sentido
intencionado pelas considerações em relação à validade
transcendental, é lançada para além dos conteúdos

este ponto, cf. C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie


zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 308-309 [nota 17].
484
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 120-121.
485
J. G. FICHTE. Grundlage der Gesammten Wissenschaftslehre und
Grundriss des Eigenthümlichen der Wissenschaftslehre in Rücksicht
auf das Theoretische Vermögen, p. 178. Sobre a apropriação de Tillich
do conceito de “Schweben” de Fichte, cf. P. TILLICH. Paul Tillich an
Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122.

518
objetivados pelo pensamento 486 . Os conteúdos (Inhalte)
objetivados pelo pensamento, embora sejam produtos da
união de sua substância (Gehalt) com a forma (Form) que
conceitua as funções transcendentais do espírito, não são
idênticos à substância da qual dependem. Neste sentido,
operar uma diástase entre forma e substância constitui um
grave equívoco487, na medida em que esta separação não
apenas subverte os alicerces da filosofia do sentido de
Tillich, como também torna incompreensível o modo pelo
qual a transcendência do espírito, em sua oscilação
constitutiva entre a consciência de infinitude e a
consciência de valor, torna-se capaz de agarrar sua
substância (Gehalt) e postá-la objetivamente em formas
dotadas de conteúdo (Inhalt) que, entretanto, não
coincidem nem podem coincidir com a substância
propriamente dita488. É precisamente neste sentido que os

486
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122.
Novamente, como afirma Tillich, „so kann man sagen: An Gott zu
zweifeln ist unmöglich und an Gott nicht zu zweifeln ist unmöglich.
Das erste bezieht sich auf den Gehalt, das zweite auf die
Objektivationsform“.
487
O estabelecimento de uma diástase entre Form e Gehalt resulta,
necessariamente, de toda interpretação ontologizante do pensamento
de Tillich. Um típico exemplo, aqui, é o estudo de K. HERBERGER.
Historismus und Kairos. Die Überwindung des Historismus bei Ernst
Troeltsch und Paul Tillich. Theologische Blätter, vol. 14, Nr. 18, 1935,
p. 129-141; p. 161-175; veja, igualmente, W. SCHÜßLER. Der
philosophische Gottesgedanke im Frühwerk Paul Tillichs (1910 –
1933). Darstellung und Interpretation seiner Gedanken und Quellen, p.
49-67.
488
P. TILLICH. Über die Idee einer Theologie der Kultur, p. 135: „Bei
der Kulturtheologischen Analyse ist auf ein Doppeltes zu achten;
zuerst auf das Verhältnis von Form und Gehalt. Gehalt ist etwas
anderes als Inhalt. Unter Inhalt verstehen wir das Gegenständliche in
seinem einfachen Sosein, das durch die Form in die geistig-kulturelle
Sphäre erhoben wird. Unter Gehalt aber ist zu Verstehen der Sinn, die

519
conteúdos objetivados pelo pensamento permanecem
sempre sob o juízo permanente da substância e são, desta
forma, transcendidos infinitamente na medida em que
novas Gestalten históricas irrompem como resultado de
uma crítica à inadequação do relacionamento entre forma e
substância em uma determinada configuração espiritual.
Isto porque, como Tillich afirma em seu famoso ensaio Der
Protestantismus als kritisches und gestaltendes Prinzip, de
1929489, “a história é o âmbito da essencialidade. A ideia jaz
no histórico, e não além dele” 490 . Se a integração

geistige Substanzialität, die der Form erst ihre Bedeutung gibt. Man
kann also sagen: Der Gehalt wird an einem Inhalt mittels der Form
ergriffen und zum Ausdruck gebracht. Der Inhalt ist das Zufällige, der
Gehalt das Wesentliche, die Form das Vermittelnde“.
489
P. TILLICH. Der Protestantismus als kritisches und gestaltendes
Prinzip. (1929). In: G. HUMMEL. (Hg.). Main Works – Hauptwerke.
Band 6: Theologische Schriften. Berlin; New York: Walter de Gruyter;
Evangelisches Verlagswerk, 1992, p. 127-149.
490
P. TILLICH. Der Protestantismus als kritisches und gestaltendes
Prinzip, p. 147: „Die Geschichte ist der Ort der Wesenheiten. Die Idee
steht im Historischen, nicht jenseits seiner“. O conceito de essência ou
Prinzip empregado por Tillich é oriundo de E. TROELTSCH. Was heisst
,,Wesen des Christentums“? (1903). In: Gesammelte Schriften. Zweiter
Band: Zur religiösen Lage, Religionsphilosophie und Ethik. Tübingen:
J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1913, p. 386-451. P. TILLICH. Die
sozialistische Entscheidung. In: E. STURM. (Hg.). Main Works –
Hauptwerke. Band 3: Sozialphilosophische und ethische Scriften.
Berlin; New York: Walter de Gruyter; Evangelisches Verlagswerk
GmbH, 1998, p. 295 [nota 3] faz referência explícita ao texto de
Troeltsch como base de sua interpretação do conceito de essência. Este
conceito, em contraposição a sua concepção estática, representa, antes,
um princípio que confere dinamicidade à história. A conexão entre
fórmula “protestantisches Prinzip” e conceito histórico-dinâmico de
essência como “Gestalt” é, em Tillich, evidente. Sobre este ponto, cf.
E. AMELUNG. Die Gestalt der Liebe: Paul Tillichs Theologie der
Kultur. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Gerd Mohn, 1972, p. 136-
140; K.-H. LERCH. Die Gestalt der Gnade und das sakramentale
Denken in der Theologie Paul Tillichs. Neue Zeitschrift für

520
individual-criativa entre forma e substância constitui o que
Tillich denomina “Gestalt”, então toda Gestalt nada mais é
senão a expressão objetivo-conteudística (Inhalt) de uma
substância (Gehalt) agarrada pelo espírito por meio de uma
forma (Form). Neste sentido, os conceitos de Gestalt e
Inhalt se tornam, por assim dizer, quase que
intercambiáveis491.

Systematische Theologie und Religionsphilosophie, vol. 26, Issue 1,


1984, p. 71-86, especialmente, p. 72-77; F. WAGNER. Absolute
Positivität. Das Grundthema der Theologie Paul Tillichs, p. 135-137;
H. JAHR. Theologie als Gestaltmetaphysik: die Vermittlung von Gott
und Welt im Frühwerk Paul Tillichs, p. 375-380. Sobre as implicações
éticas do “princípio protestante”, cf. R. KRAMER. Die
Wiedervereinigung des Getrennten. Paul Tillichs Ethik als
„protestantische Gestaltung“. In: E. AXMACHER; K. SCHWARZWÄLLER
(Hg.). Belehrter Glaube. Festschrift für Johannes Wirsching zum 65.
Geburtstag. Frankfurt am Main: Peter Lang GmbH; Internationaler
Verlag der Wissenschaften, 1994, p. 155-174, especialmente, p. 159-
161.
491
H. JAHR. Theologie als Gestaltmetaphysik: die Vermittlung von Gott
und Welt im Frühwerk Paul Tillichs, p. 58: „Die jeweilige individuell-
schöpferische Integration von Form und Gehalt nennt Tillich ‚Gestalt‘.
Wo sie sich ihrer selbst als Einheit von Form und Gehalt erfaßt, d. h.
wo sie zum Bewußtsein ihrer selbst kommt und dadurch frei von sich
selbst und in Lage versetzt wird, ihr Werden als Gestalt selbst zu
bestimmen, spricht er von ‚geisttragenden Gestalt‘. Insofern die
Wirklichkeit immer in ‚Integration‘ ist, sind auch Form und Gehalt
selbst stets sozusagen ‚Gestaltbegriffe‘“. Sobre o conceito de “Gestalt”
em Tillich como integração individual-criativa de Form e Gehalt, cf. P.
TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 125. Sobre o conceito de “individuelle geisttragende
Gestalt”, cf. a p. 195 desta mesma obra. Ainda sobre o conceito de
“Gestalt”, cf. H. JAHR. Der Begriff der „Gestalt“ als Schlüssel zur
Metaphysik im Frühwerk Paul Tillichs. In: G. HUMMEL. (Ed.). God
and Being: The Problem of Ontology in the Philosophical Theology of
Paul Tillich. Contributions made to the II. International Paul Tillich
Symposium held in Frankfurt 1988, p. 108-125. Para uma investigação
do conceito de “Gestalt” no âmbito da teologia prática, cf. H.-G.
HEIMBROCK. Gestalten der Praxis – Praxis Gestalten. Praktische

521
Não obstante, torna-se premente aqui perceber que,
quanto mais o cumprimento de sentido aponta para uma
estrutura de atualização unitária, tanto mais este processo
de cumprimento permite designar os momentos que são
constitutivos do processo infinito e incessante de
cumprimento de sentido característico da vida do
espírito492.
A necessidade de formar conceitos
independentes está em todos os lugares em que
os elementos de uma realidade unitária provam
ser independentemente variáveis. A formação
dos conceitos, a emergência de determinados
objetos do fluxo absolutamente uniforme da
realidade, encontra sua base neste fato. Agora,
no entanto, há o fato que, tanto na ontologia
quanto na filosofia da história, a forma do
sentido e a substância do sentido permanecem,
em todas as esferas da realidade, numa relação
de tensão uma com a outra, e que nesta tensão
jaz a riqueza tanto dos objetos quanto dos
processos. Evidentemente, não há elementos
isolados. A realidade está sempre em
integração493.

Theologie nach Paul Tillich. In: C. DANZ; W. SCHÜßLER. (Hg.). Paul


Tillichs Theologie der Kultur: Aspekte, Probleme, Perspektiven, p.
349-371.
492
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 308.
493
P. TILLICH. Zu Tillichs Systematik. Tillichs Antwort, p. 19: „Aber es
gibt [...] keine vollkommene Integration, keine absolute Synthese.
Gäbe es sie, so wäre weder die Dynamik des Geschehens, noch die
Möglichkeit der Verunwesung gegeben. Alles Geschehen, alle
Lebendigkeit beruht auf der Spannung der Elemente, auf der
Variabilität ihrer Relation. Wer darum die Dynamik des Werdens

522
Em conformidade com a citação acima, a forma do
sentido (Sinnform) e a substância do sentido (Sinngehalt)
configuram os momentos estruturais que constituem o
processo de cumprimento de sentido, e não quaisquer
dados independentemente disponíveis. O relacionamento
entre a forma do sentido e a substância do sentido deve ser
entendido, consequentemente, como um de estrita
interrelação. Segue-se que, assim como a forma do sentido
jamais pode ser pensada sem a substância, por um lado,
também a substância jamais pode ser pensada sem a forma
do sentido, por outro494. Caso esta tese de Tillich receba
uma leitura mais ampla, deve-se seguramente afirmar,
então, que toda forma de percepção é já dotada de sentido,
assim como cada percepção de sentido é dependente da
mediação através de uma forma. Entre os momentos
estruturais do sentido, a saber, a forma do sentido e a
substância do sentido, não há somente uma estrita
interrelacionalidade contínua, mas uma
interrelacionalidade tal que deve ser entendida como
independentemente variável. A contrafacticidade da
facticidade da existência intrínseca ao autopôr-se do
espírito como outro-de-si-mesmo, isto é, a dimensão de
incondicionalidade descrita pela fórmula Monismus des
Sinnes, representa a condição para a interrelacionalidade
contínua, independente, e variável entre a forma do sentido
e a substância de sentido. À parte da determinação do
fundamento incondicional do espírito, a copertença
constitutiva entre a forma do sentido e a substância do

verstehen will, muß diese Elemente in abstracto herausgreifen und ihre


Spannungsverhältnisse beobachten“.
494
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 134.

523
sentido não pode ser corretamente compreendida. Não se
pode operar, portanto, sem o risco de drásticas
consequências para a sistematicidade interna do
pensamento de Tillich, nem uma identificação entre os
conceitos de incondicionado e de substância, por um lado,
nem entre os conceitos de condicionado e de forma, por
outro495. Esta identificação, além de implodir os alicerces

495
A questão do relacionamento entre o conceito de incondicionado e a
polaridade entre forma e substância ainda constitui um tema de disputa
e controvérsia nos estudos de Tillich. Conjuntamente com algumas
interpretações que determinam o incondicionado como o
relacionamento entre forma e substância, como o faz, por exemplo, T.
ULRICH. Ontologie, Theologie, gesellschaftliche Praxis. Studien zum
religiösen Sozialismus Paul Tillichs und Carl Mennickes. Zürich:
Theologischer Verlag, 1971, p. 45, inúmero autores elaboram uma
identificação entre o conceito de incondicionado e o conceito de
substância. Para a identificação entre o conceito de incondicionado e o
de substância, veja F. WAGNER. Absolute Positivität. Das Grundthema
der Theologie Paul Tillichs, p. 128 [nota 8], que se posiciona contra
Thomas Ulrich; M. REPP. Die Transzendierung des Theismus in der
Religionsphilosophie Paul Tillichs, p. 180, p. 238; W. SCHÜßLER. Der
philosophische Gottesgedanke im Frühwerk Paul Tillichs (1910 –
1933). Darstellung und Interpretation seiner Gedanken und Quellen, p.
49-67, por sua vez, torna os termos intercambiáveis; outra
identificação é operada por Michael Palmer em sua introdução ao
segundo volume dos Main Works – Hauptwerke de Tillich. Sobre este
ponto, veja M. PALMER. Paul Tillichs Theologie der Kultur. In: IDEM.
(Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 2: Kulturphilosophische
Schriften, p. 47: „‚Gehalt‘ ist der Name, der dem unbedingten Sinn
gegeben wird, der in der Religion intendiert und in jeder
Kulturschöpfung vorausgesetzt ist“. Ainda sobre esta interpretação
problemática de identificação entre o conceito de incondicionado e o
de substância, veja P. HAIGIS. Im Horizont der Zeit. Paul Tillichs
Projekt einer Theologie der Kultur, p. 65, p. 94. Em que se pesem tais
interpretações, no entanto, é preciso notar que, já em 1924, em seu já
mencionado artigo-réplica Zu Tillichs Systematik, Tillich já se
posiciona contra uma identificação entre o conceito de incondicionado
e o conceito de substância. A partir de uma ênfase na interrelação
estrita entre os conceitos de forma e substância, Tillich afirma que a

524
identificação entre incondicionado e substância implica uma fuga em
direção a “uma transcendência vazia [eine leere Transzendenz]”. Sobre
este ponto, cf. P. TILLICH. Zu Tillichs Systematik. Tillichs Antwort, p.
18. O teor desta ressalva reverbera, conforme visto, a crítica de Tillich
a Hirsch. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel
Hirsch. 20. II. 1918, especialmente, p. 116, p. 118, p. 124. Ainda sobre
a identificação problemática entre o conceito de incondicionado e o de
substância, veja H. JAHR. Theologie als Gestaltmetaphysik: die
Vermittlung von Gott und Welt im Frühwerk Paul Tillichs, p. 70-85.
Na interpretação dos escritos de Tillich da década de 20, Jahr aponta,
em contraposição à própria intenção de Tillich, que há “uma
preponderância do significado do elemento da substância em
contraposição à forma” (p. 82). Sobre a base do relacionamento estrito
entre forma e substância elaborado por Tillich, entretanto, não é
possível identificar o que Tillich chama de substância com o
incondicionado e o condicionado com a forma. Sobre este ponto, veja
P. TILLICH. „Die Kategorie des ‚Heilige‘ bei Rudolf Otto“. (1923). In:
R. ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band XII: Begegnungen.
Paul Tillich über sich selbst und andere. Stuttgart: Evangelisches
Verlagswerk, 1971, p. 184-186, aqui, p. 185: „Das Unbedingte des
Gehaltes und das Unbedingte der Form gehören wesenhaft
zusammen“. Antes, “substância e forma são simplesmente a expressão
do incondicionado, sem que, com isso, o incondicionado coincida com
a polaridade”. Sobre este ponto, veja C. DANZ. Religion als
Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 308 [nota 17]. Caso decida-se insistir nesta leitura da relação do
incondicionado com a polaridade de substância e forma enquanto
sistematicamente mais fundamental, então também a leitura daquelas
passagens em que Tillich identifica o conceito de incondicionado com
o conceito de substância resultaria em uma interpretação contrária aos
interesses do próprio Tillich. Esta identificação, de fato, ocorre, ainda
que de modo isolado. Sobre este ponto, veja P. TILLICH. Das System
der Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p. 208: „das
Sein ist der Gehalt, die Realität, der unbedingte Sinn, der jeder
Einzelform Realität und Sinn gibt. Darum trägt jeder geistige
sinnerfüllende Akt den Eros in sich nach dem unbedingten Sinn“.
Veja, igualmente, IDEM. Religiöser Stil und religiöser Stoff in der
bildenten Kunst, p. 97: „Der Mensch in seiner Beziehung auf das
Unbedingte, in seiner Nichtigkeit, wie in seiner idealen Vollendung, in
seiner Schuld und seiner Erlöstheit, in seiner tiefsten Erschütterung
und seiner seligsten Ekstase, in seiner sittlichen Freiheit und unter der

525
do pensamento de Tillich, também é realizada em aberta
contraposição à intenção fundamental de seu edifício
sistêmico. Caso esta identificação seja, de fato,
empreendida, uma reconstrução histórico-genética de sua
reflexão sistemática se torna impossível.
Se o cumprimento de sentido deve ser entendido
como unidade entre forma do sentido e substância do
sentido, então um momento, que não pode ser deduzido
nem da forma do sentido nem da substância do sentido, é
também sempre já reivindicado. Este momento é a síntese
entre forma e substância, síntese esta sempre já

Last seines Verhängnisses, in seiner weltgestaltenden Schöpferkraft


und seiner unendlichen Unzulänglichkeit und Sehnsucht, der Mensch
als Masse und als Persönlichkeit ... und das alles doch nicht um
seinetwillen, sondern um deswillen, was in ihm ist und doch größer ist
als er, nennen wir es Geist im ,Zeitalter des Geistes‘, von dem viele
reden, nennen wir es das Unbedingt-Wirkliche, vor dem alles Denken
erstarrt, nennen wir es das Heilige, nennen wir es Gott (nicht im Sinne
des Pantheismus und nicht im Sinne des Theismus, sondern jenseits
aller Formbegriffe: den reinen Gehalt), ... und weil ‚der Mensch‘ im
Sinne dessen, was mehr ist als ‚der Mensch‘, darum zugleich im
universalen, alles mittragenden Sinne“. Em que se pesem estas
contradições, os equívocos de Tillich encontram-se na elaboração da
teoria, e não no sistema teórico tomado em si mesmo. Uma
identificação do incondicionado com a substância e o condicionado
com a forma conduz a consequências imensuráveis para o conceito de
símbolo e, neste sentido, portanto, para a totalidade do pensamento
sistemático de Tillich. É precisamente este tipo de interpretação que,
partindo de uma identificação do incondicionado com a substância e
do condicionado com a forma, resulta numa desconstrução completa
da teoria dos símbolos de Tillich. Sobre este ponto, cf. J. RINGLEBEN.
Symbol und göttliches Sein, p. 165-181, aqui, sobretudo, p. 166, p.
181. Sobre a base desta identificação, o conceito de símbolo ensejaria
uma diástase abstrata entre o incondicionado e o condicionado – tal
como Ringleben acusa em Tillich – em vez de uma mediação, como
Tillich, de fato e de direito, intenciona.

526
reivindicada no processo de cumprimento de sentido496.
Em seu já mencionado Wissenschaftssystem, Tillich dedica
tanto o conceito de sentido 497 quanto o conceito de
espírito 498 à determinação da síntese entre forma e
substância. “A duplicidade de forma de sentido e
substância de sentido é elementar para cada função de
sentido. Esta duplicidade não é nenhum princípio de
sentido, mas o próprio princípio do sentido”499. Em seu já
mencionado artigo Kairos und Logos. Eine Untersuchung zur

496
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 309.
497
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 214.
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 194-201.
499
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 214: „Die wichtigsten Kategorien des wissenschaftlichen
Sinngebietes haben wir besprochen, da sie für den Aufbau des Systems
der Wissenschaften maßgebende sind. Ihnen allen übergeordnet sind
die Begriffe, die das Wesen des Sinnes selbst zum Ausdruck bringen:
Denken und Sein. Sie sind die Elemente des Sinnes und die Grundlage
für die Erfassung der Sinnfunktionen und Kategorien. Sie selbst aber
sind weder Funktionen noch Kategorien. Sie konstituieren kein
Sinngebiet und kein Sinnobjekt, sondern sie konstituieren den Sinn
selbst. Sie gelten darum für sämtliche Sinngebiete, wenn sie auch in
den einzelnen Gebieten nur durch Analyse der sinngebenden Funktion
– hier also des Erkennens – erfaßt werden können. Die Doppelheit von
Sinnform und Sinngehalt ist elementar für jede Sinnfuktion. Sie ist
kein Sinnprinzip, sondern das Prinzip des Sinnes selbst“. Também em
sua Religionsphilosophie – o que não é de se estranhar, na medida em
que a Wissenschaftsarchitektonik e a Religionsphilosophie constituem,
conforme mencionado, uma “obra dupla”, Tillich afirma: „Der
Sinngehalt ist der in allem Sinnformen vorausgesetzte Realitätsgrund,
auf dessen Immergegenwärtigkeit die letzte Sinnhaftigkeit,
Bedeutsamkeit, Wesenhaftigkeit jedes Sinnaktes beruht. Die
Formeinheit wie jede Einzelform ist schlechterdings leer ohne die
Beziehung auf den Sinngehalt“. Sobre este ponto, cf. IDEM.
Religionsphilosophie, p. 126.

527
Metaphysik der Erkenntnis, de 1926, Tillich descreve este
terceiro momento de síntese por meio dos termos
“interpretação da essência [Wesensdeutung]”, “entendimento
espiritual da realidade [geistige Verstehen der Wirklichkeit]”,
ou ainda, “decisão [Entscheidung]”500. Em aberta atitude de
oposição a teorias realistas e idealistas do conhecimento,
Tillich afirma “metalogicamente”: “uma tal doutrina do
conhecimento negligencia, no entanto, um terceiro
elemento da cognição, que não é nem formal nem material,
e que torna a cognição, desta forma, um assunto
primariamente espiritual”501.

500
P. TILLICH. Kairos und Logos. Eine Untersuchung zur Metaphysik
der Erkenntnis. (1926). In: G. WENZ. (Hg.). Main Works –
Hauptwerke. Band 1: Philosophische Schriften, p. 279: „Es handelt
sich nicht um die Anwendung der Form auf das Material, des
Evidenten auf das Wahrscheinliche, also um die ,Urteilskraft‘. Sie
kann bis zur Genialität geisteigert sein, aber sie hört darum nicht auf,
eine technische Funktion zu sein, die der Entscheidung in unserem
Sinne entzogen ist. Das dritte Element, von dem wir reden, ist die
Wesensdeutung, das geistige Verstehen der Wirklichkeit“.
501
P. TILLICH. Kairos und Logos. Eine Untersuchung zur Metaphysik
der Erkenntnis, p. 279. Sobre a apropriação de Tillich da Kritik der
Urteilskraft de Kant, cf. A. DAVIDOCH. Religion as a Province of
Meaning: The Kantian Foundations of Modern Theology.
Minneapolis: Fortress Press, 1993, p. 221-303. Veja também B. LOVE.
Tillich on Eros and the Beauty of Kant. Bulletin of the North American
Paul Tillich Society, vol. 38, no. 4, 2012, p. 10-14. Em contraposição
às interpretações de Tillich com base na terceira crítica de Kant, C.
PERROTTET. Au-delà du criticisme kantien. La méthode critique-
intuitive dans la première philosophie de la religion de Paul Tillich, p.
133 afirma o motivo de sua tese a partir de uma concentração na tarefa
de interpretação do pensamento de Tillich a partir não da terceira, mas
da primeira crítica kantiana: «j’avais annoncé dès le début de ma thèse
que l’originalité de Tillich consiste en ce qu’il a cherché – et trouvé –
le critère déterminant de la réalité religieuse dans la partie
apparemment la plus séculière de l’oeuvre kantienne, la première
Critique. La manière logique de terminer la discussion sur Kant, avant
de passer à la méthode critique-intuitive dans le prochain chapitre, est

528
donc de montrer en quoi Tillich a fait sienne la notion kantienne de
l’inconditionné à laquelle ma démarche a abouti». Contra as
interpretações de Davidoch e de Perrottet, no entanto, M. BOSS. Which
Kant? Whose Idealism? Paul Tillich’s Philosophical Training
Reappraised, p. 14 afirma: “I shall contend that both claims are partly
misguided insofar as they neglect the neo-Fichtean frame that shapes
Tillich’s early reception of Kant’s philosophical program as a doctrine
of freedom rooted in the Critique of Practical Reason. It is true that
Tillich’s affiliation with neo-Fichteanism has not yet received much
attention, but if we look at the course of his philosophical training up
to 1916, a period now well documented by the considerable amount of
archival material published in the past fifteen years, it becomes
unmistakably clear that Tillich’s early writings, including his two
doctoral dissertations on Schelling, find their impulse and purpose in
the so-called Fichte-Renaissance introduced to Halle by his
philosophical mentor Fritz Medicus”. Para o tratamento de Boss da
importância da segunda crítica kantiana para o pensamento sistemático
de Tillich, cf. as p. 23-25 deste mesmo estudo. Sobre a já mencionada
influência da interpretação de Fichte elaborada por Medicus sobre
Tillich, cf. F. W. GRAF; A. CHRISTOPHERSEN. Die Korrespondenz
zwischen Fritz Medicus und Paul Tillich. Zeitschrift für Neuere
Theologiegeschichte (Journal for the History of Modern Theology),
vol. 11, Issue 1, 2004, p. 126-147; IDEM. Neukantianismus, Fichte-
und Schellingrenaissance. Paul Tillich und sein philosophischer Lehrer
Fritz Medicus, p. 52-78; G. NEUGEBAUER. Tillichs frühe Christologie.
Eine Untersuchung zu Offenbarung und Geschichte bei Tillich vor
dem Hintergrund seiner Schellingrezeption, p. 392-422. Para uma
abordagem sistemática deste tema, cf. M. BOSS. Au commencement la
liberté: La religion de Kant réinventée par Fichte, Schelling et Tillich,
p. 34-55, p. 341-378. A despeito do caráter ainda controverso no que
diz respeito à determinação precisa da influência de Kant sobre a
totalidade do pensamento de Tillich, o valor da terceira crítica para o
esclarecimento do momento de síntese entre forma e substância a partir
de seu conceito de espírito e de sentido é insofismável. Sobre este
ponto, cf. C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 340 [especialmente nota 80]. Para o
apontamento das principais referências bibliográficas em relação tanto
à influência de Medicus sobre o jovem Fichte, quanto em relação à
dependência de Tillich do pensamento fichteano, cf. a nota 22 do
presente capítulo.

529
O conceito de sentido é, assim, erigido por Tillich
através de uma estrutura que não pode mais ser
adequadamente descrita por meio de uma relação que se
quer binária, tal como o esquema sujeito-objeto. Isto
porque foi precisamente este modelo cognitivo binário,
conformativo do esquema sujeito-objeto, que provocou, de
acordo com Tillich, a alternativa entre idealismo e
realismo 502 . Uma superação desta alternativa, tal como
Tillich a reivindica com o desenvolvimento de sua teoria do
sentido, não pode mais operar dentro dos limites de
relações binárias, mas deve se mover, por força de sua
própria intenção programática, em direção ao
estabelecimento de relações triádicas503. De outra forma, a
reivindicação de Tillich de oferecer uma superação da
alternativa teorético-cognitiva imposta pelos limites do
idealismo e do realismo permaneceria, não sem razão, uma
mera promessa. Assim, a síntese entre forma e substância
sistematiza, enquanto momento sempre já reivindicado no
processo de cumprimento de sentido, o modo como a
unidade entre a forma do sentido e a substância do sentido
é alcançada pelo espírito enquanto vida no sentido504. Pois,
na medida em que não pode ser deduzida nem da forma do
sentido nem da substância do sentido, a síntese constitui
um momento terceiro que torna o processo de cognição,
conforme afirma Tillich, um assunto primariamente

502
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 215-217; IDEM. Religionsphilosophie, p. 125.
503
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 310.
504
Veja, aqui, novamente, a descrição programática de P. TILLICH. Paul
Tillich an Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 125: „Geistiges Leben ist
Leben im Sinn oder unablässige schöpferische Sinngebung“.

530
espiritual. Isto implica afirmar que Tillich assume, com sua
teoria do sentido, a tarefa sistemática de percorrer o
caminho espiritual que parte de uma relação binária em
direção a uma relação triádica. Assim como o modo de
interrelação entre a forma do sentido e a substância do
sentido não pode ser reduzido unilateralmente à forma ou à
substância, tão pouco pode a síntese, através da qual a
forma do sentido e a substância do sentido constituem a
experiência particular do sentido, ser reduzida a um dos
polos desta relação.
O conceito de símbolo esboçado por Tillich, que
deve ser, agora, determinado a partir da tríade representada
pelas categorias forma, substância e síntese – ou melhor,
através do esquema Form-Gehalt-Synthesis –, torna
evidente o motivo pelo qual o conceito de sentido somente
pode ser pensado como um “conceito sequencial
[Reihenbegriff]”505.
O sentido individual, que se torna experienciado
e atualizado (der erfahren und vollzogen wird),
permanece sempre em relação com outros
sentidos; à parte destes, o sentido individual
seria um frívolo aforisma (sinnloser Aphorismus).
Sentido é sempre interconexão de sentido. A
quintessência de todas as estruturas de
interconexão de sentido (Sinnzusammenhänge) é
o que denominamos, de forma objetiva, mundo,
e, de forma subjetiva, cultura506.

505
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 310.
506
P. TILLICH. Kirche und Kultur, p. 103. Neste sentido, cf.,
igualmente, IDEM. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen
und Methoden, p. 205; IDEM. Religionsphilosophie, p. 133-157.

531
De acordo com a citação acima, uma determinada
experiência somente pode ser caracterizada como
significativa – isto é, como dotada de sentido – se e
somente se permanecer em uma relação de encadeamento
sequencial e de interconexão com outras experiências de
sentido507. Como afirma Tillich, “o sentido individual, que
se torna experienciado e atualizado”, tem que
necessariamente permanecer em uma estrita relação de
interconexão com outros sentidos de um modo tal que, à
parte destes, ele se torna “um frívolo aforisma”. Na lógica
do conceito de interconexão de sentido, o processo de
construção da consciência de sentido é, por princípio,
iterativo à infinitude: cada contexto mais amplo de
interconexão de sentido pode, por sua vez, ser posto em
uma interconexão ainda mais abrangente. Por meio de seus
contextos de interconexão, a consciência de sentido posta
cada sentido em um contexto referencial infinito. Como
afirma Tillich, “a Gestalt finita não pode realizar, em si
mesma, sequências infinitas de sentido, muito embora, no
sentido, cada interconexão de sentido possui relações
infinitas”508.

507
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 222: „Denn es kann in einer sinnerfüllenden Schöpfung,
in einer lebendigen Überzeugung nicht unvermittelt nebeneinander
liegende Sinnaussagen geben. Sinn steht mit Sinn in einem
Zusammenhang des Sinnes, und Überzeugung mit Überzeugung in
einem Zusammenhang der Überzeugung“.
508
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 199. A consciência de infinitude é, aqui, uma vez mais
assinalada. No entanto, Tillich acrescenta: „Jede individuelle
geisttragende Gestalt ist also dem Gesetz der Substanzerschöpfung
unterworfen. Die geistige Substanzerschöpfung deckt sich nicht mit
der Erschöpfung der organischen Substanz, dem Tode. Eins kann ohne
das andere eintreten. Doch ist die gegenseitige Unabhängigkeit nicht

532
É precisamente através do avanço em direção a um
contexto sequencial de sentido, triadicamente
esquematizado, que uma experiência pode ser qualificada
como dotada de sentido, na medida em que esta
experiência passa a ocupar uma posição determinada na
estrutura de interconexão de sentido e se torna, assim,
determinada por esta estrutura 509 . Por conseguinte, a

vollkommen. Da es dem Wesen der geisttragenden Gestalt entspricht,


Geist zu verwirklichen, so führt die geistige Erschöpfung schließlich
auch zum organischen Absterben. Das gilt für Einzelne, wie für
Sozialgestalten, wie für die ganze Menschheit und jede denkbare
geisttragende Individualgestalt. Sie alle sind in ihrer schöpferischen
Kraft begrenzt durch das Schicksal der Substanzerschöpfung“. A
referência aqui é IDEM. Das System der Wissenschaften nach
Gegenständen und Methoden, p. 200. Conquanto a infinitude do
espírito, isto é, sua transcendência infinita, seja, aqui, uma vez mais,
assinalada, Tillich insere, a partir da “lei da exaustão da substância”, a
finitude na própria consciência da infinitude. A marca constitutiva da
autorrelação da consciência em sua reflexividade e historicidade
internas é sua infinitude; no entanto, e precisamente em função disto,
segue-se que a consciência não possui nenhum conteúdo para
apreender sua própria infinitude: „Im geistigen Akt ist die Intention auf
das Allgemeine wirksam. Diese Intention müßte aber inhaltlos bleiben,
suchte sie das Allgemeine als Allgemeines zu erfassen. Denn die
unbedingte Form existiert nicht als erfaßbare Wirklichkeit“. Aqui,
novamente, a contrafacticidade da facticidade da existência ou a
negatividade da autorrelação, tal como por Tillich descrita por meio de
sua fórmula Monismus des Sinnes, revela-se em seu caráter
constitutivo. Sobre este ponto, veja J. DIERKEN. Negativität im
Selbstverhältnis, p. 168-171; IDEM. Die Wirklichkeit Gottes (I 247-
332). Problem- und werkgeschichtlicher Hintergrund, p. 123-128,
especialmente, p. 126.
509
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 115: „Erkannt ist, was als notwendiges Glied einem
Zusammenhang eingeordnet ist. Das Einzelne in seiner Vereinzelung
ist kein Gegenstand der Erkenntnis“. Através de sua teoria da Gestalt,
Tillich conceitua esta precedência da relação com o indivíduo, que não
pode se dar, no entanto, à custa da individualidade subjetiva. Sobre
este ponto, cf. ainda H. JAHR. Theologie als Gestaltmetaphysik: die

533
experiência de sentido individual deve ser compreendida,
de acordo com Tillich, como apresentação de uma relação
de determinidade e indeterminidade. Esta relação de
determinidade e indeterminidade, que é constitutiva para a
experiência do sentido, é interpretada por Tillich como
uma dialética de autoposição e autonegação 510 . A
consciência de sentido se torna consciência religiosa
somente quando o espírito sabe desta dialética. É
justamente a apreensão individual contingente desta
dialética pelo espírito que Tillich denomina fé, que ele
identifica com o pensamento da justificação 511 . Tillich,
portanto, interpreta a fé como uma consciência de sentido
que se torna transparente para si mesma: esta consciência
não apenas sabe a diferença entre sentido e o correlato
intencional da consciência, como também lida com esta
diferença. Consequentemente, a fé se torna distintiva pelo
fato de que seus correlatos intencionais são por ela
reconhecidos como formas historicamente mutáveis de
expressão de sentido. A peculiaridade específica da
consciência de fé é que ela não jaz nem meramente no
incondicionado, por um lado, nem unicamente no
condicionado, por outro. Antes, a fé “oscila” entre as duas

Vermittlung von Gott und Welt im Frühwerk Paul Tillichs, p. 85-96;


M. HARANT. Religion – Kultur – Theologie. Eine Untersuchung zu
ihrer Verhältnisbestimmung im Werke Ernst Troeltschs und Paul
Tillichs im Vergleich, p. 142-159.
510
C. DANZ. Theologie als normative Religionsphilosophie.
Voraussetzungen und Implikationen des Theologiebegriffs Paul
Tillichs, p. 89.
511
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 170: „Aber nicht
dieser logisch-analytisch aus dem Zweifel zu entwickelnde abstrakte
Begriff ist es, der die Rechtfertigung trägt, sondern der Sinn, der sich
in Bezug auf das erlebende Ich paradox offenbart, der ein unbedingtes
Ja und ein unbedingtes Nein gleichzeitig über den Zweifler bedeutet“.

534
esferas na medida em que conecta a esfera de sentido com a
esfera do condicionado512.
Somente quando for possível afirmar que cada
experiência individual de sentido representa uma instância
de indeterminidade e, deste modo, um excedente de
sentido, torna-se possível discorrer sobre a necessidade
inescapável do avanço em direção a um contexto de
encadeamento sequencial de sentido. O sentido individual
deve sempre representar uma estrutura indeterminada de
interconexão de sentido, por meio da qual uma atualização
ulterior de sentido é alcançada513. Em todas as formações,
como Tillich afirma precisamente, tanto estéticas quanto
lógicas, tanto sociais quanto legais, deve estar contida,
portanto, “a reivindicação incondicional da formação
absoluta” 514. Em cada ato de sentido já está posto um
horizonte de significância que não pode ser deduzido dos
momentos estruturais de forma e substância, mas que se
deve, antes, à síntese que Tillich descreve por meio dos
conceitos de sentido e espírito. A significância da estrutura
de interconexão de sentido, que é sempre correpresentada
em cada sentido particular, não é, contudo, representável
em si mesma.

512
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1924), p. 221: „Es liegt
hier gewissermaßen ein Schweben zwischen Anschauung und Begriff
vor, ein Vergegenständlichen des Sinnes zu einem Seienden durch die
Anschauung und ein Entgegenständlichen des Seienden zu einen Sinn
durch den Begriff“. Esta percepção da consciência de fé na atualização
de si se encontra no âmago da compreensão de símbolo de Tillich.
Sobre este ponto, cf. IDEM. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p.
172.
513
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 199.
514
P. TILLICH. Zu Tillichs Systematik. Tillichs Antwort, p. 20.

535
É importante observar agora que este aspecto
não constitui algo que poderia se tornar objeto
do conhecimento no próprio ato do
conhecimento. Onde quer que isto seja
intencionado, o terceiro elemento, que jaz além
da forma e da matéria, se tornaria, ele mesmo,
um material formado. Isso o privaria, no
entanto, de seu sentido515.
Com efeito, a significância já é reivindicada em
cada ato de sentido, mas ela somente pode ser realizada em
determinada forma e não como ela mesma. Neste caso, a
síntese a priori que é constitutiva para a própria atualização
de sentido pode ser tematizada pela consciência somente
como síntese a posteriori. Assim, portanto, a significância
não coincide com os fatores estruturais correlativos forma e
substância, embora seja reivindicada em cada realização
atual de sentido.

3. A determinação do conceito de religião a partir do


Monismus des Sinnes e a natureza da
autointerpretação simbólica

A síntese entre forma e substância, enquanto


momento sempre já reivindicado no processo de
cumprimento de sentido, sistematiza, conforme visto, o
modo como a unidade entre a forma do sentido e a
substância do sentido é agarrada pelo espírito. Através

P. TILLICH. Kairos und Logos. Eine Untersuchung zur Metaphysik


515

der Erkenntnis, p. 280.

536
deste avanço em direção a um contexto sequencial de
sentido, triadicamente esquematizado, a experiência pode
ser qualificada como dotada de sentido na medida em que
passa a ocupar uma posição determinada na estrutura de
interconexão de sentido. Por outro lado, a própria
experiência se torna, desta forma, determinada por esta
mesma estrutura. De acordo com Tillich, a experiência de
sentido individual deve ser compreendida como
apresentação de uma relação de determinidade e
indeterminidade. A dialética que irrompe desta relação é
caracterizada como uma dialética de autoposição e
autonegação. Na medida em que a consciência está ciente e
tematiza esta relação, ela, a consciência, se torna
propriamente religiosa. A significância, que já é
reivindicada em cada ato de sentido, somente pode ser
realizada, no entanto, em uma forma determinada, e não
como ela mesma. É por este motivo que a síntese a priori
que é constitutiva para a própria atualização de sentido
somente pode ser tematizada pela consciência como síntese
a posteriori 516 . Aqui, a determinação do conceito de
religião se torna apreensível: a religião constitui uma
atitude da consciência intencional. Ela se ditingue da
cultura na medida em que não apenas sabe da relação de
determinidade e indeterminidade que deve ser entendida
nos termos de uma dialética de autoposição e autonegação,
mas também porque ela lida, de forma explícita, com esta
dialética. Neste contexto, a determinação do conceito de
religião por meio da fórmula Richtung auf das Unbedingte

516
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 310-311.

537
revela o motivo pelo qual o conceito de religião e o
conceito de símbolo se pertencem mutuamente. Como
afirma Tillich em sua Religionsphilosophie:
Religião é o direcionamento intencional do
espírito ao sentido incondicional, cultura é o
direcionamento intencional do espírito às formas
condicionadas. Ambas se encontram, no
entanto, no direcionamento intencional à
unidade completa das formas de sentido. Esta
unidade é para a cultura a conclusão (Abschluß),
mas para a religião ela é um símbolo. Do ponto
de vista do incondicional, este símbolo é
afirmado e negado ao mesmo tempo: este é o
resultado geral da análise metalógica do
sentido517.

517
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 141. Veja, igualmente, IDEM.
Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p.
200-211. A tradução da fórmula “Richtung auf das Unbedingte” como
“direcionamento intencional ao incondicionado” não é, com efeito,
literal. Richtung significa direcionamento, de sorte que o termo
“intencional” se apresenta, neste contexto, como um acréscimo. Esta
tradução do termo “Richtung” como “direcionamento intencional”, no
entanto, possui uma razão conceitual evidente. Na medida em que a
determinação do conceito de religião elaborado por Tillich é inspirado
pela Intentionalitätstheorie de Husserl (sobre este ponto, cf. G.
NEUGEBAUER. Die geistphilosophischen Grundlagen der
Kulturtheologie Tillichs vor dem Hintergrund seiner Schelling- und
Husserlrezeption, p. 38-63), o acréscimo do termo intencional possui a
função de demarcar esta influência fenomenológica no
desenvolvimento da teoria idealista-neokantiana do sentido por Tillich
elaborada a partir do período pós-guerra. Por este motivo, a
determinação do conceito de religião de Tillich tem que ser analisada
sempre a partir da combinação de dois aspectos – a saber, a filosofia
idealista-neokantiana e a fenomenologia. Sobre este ponto, cf. M.
MOXTER. Kritischer Intuitionismus. Tillichs Religionsphilosophie
zwischen Neukantianismus und Phänomenologie. In: C. DANZ; W.
SCHÜßLER. (Hrsg.). Religion – Kultur – Gesellschaft. Der frühe Tillich
im Spiegel neuer Texte (1919-1920), p. 173-195; C. DANZ. Zwischen

538
Em termos programáticos e sistemáticos, a
determinação do conceito de religião e da forma do
relacionamento entre religião e cultura faz uso de uma
dupla intuição518. Em primeiro lugar, a fórmula articulada
por Tillich demarca o caráter autônomo e transcendental
da religião: ela é, como a Erkennungsmelodie conformativa
de seu pensamento maduro evidencia519, o direcionamento
intencional ou noético do espírito ao sentido
incondicionado: ou, como ele afirma em seu
Wissenschaftssystem, de 1923, “o direcionamento intencional
imediato do espírito ao incondicional [die unmittelbare
Richtung auf das Unbedingte]”520. A demarcação do caráter
transcendental da consciência religiosa atesta que, para
Tillich, a religião jamais pode ser completamente
harmonizada com a cultura sem a estrita perda de sua
unicidade distintiva. Antes, o que a fórmula de Tillich
evidencia é que a religião se atualiza extrapolativamente na

Transzendentalphilosophie und Phänomenologie. Die methodischen


Grundlagen der Religionstheorien bei Otto und Tillich. In: J. LAUSTER;
P. SCHÜZ; R. BARTH; C. DANZ. (Hrsg.). Rudolf Otto. Theologie –
Religionsphilosophie – Religionsgeschichte. Berlin; Boston: Walter de
Gruyter GmbH, 2014, p. 341-345.
518
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 133-157.
519
T. RENDTORFF. In Richtung auf das Unbedingte.
Religionsphilosophie der Postmoderne. In: H. FISCHER. (Hg.). Paul
Tillich: Studien zu einer Theologie der Moderne, p. 335: „So lautet die
Erkennungsmelodie, die, wo sie ertönt, unverwechselbar zu erkennen
gibt: Hier spricht Paul Tillich. In vielen Variationen kehrt dieser
Grundton immer wieder: Denken und Reden ‚in Richtung auf das
Unbedingte‘. Dieser Grundton hat dem Werk Tillichs sein
eingentümliches Gepräge gegeben. Im System der Wissenschaften von
1923 liest man, der ‚Wille zum Unbedingten‘ liege allem geistigen zu
Grunde“.
520
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 209.

539
tematização simbólica e imediata da dimensão
incondicional de sentido e unidade cuja gênese se encontra
em um motivo interno à razão (Vernunft).
Em segundo lugar, e em estreita correlação com a
determinação transcendental da religião, a fórmula de
Tillich impossibilita uma compreensão da religião nos
termos simplistas de uma negação abstrata da cultura. Ao
assegurar o caráter transcendental da religião enquanto
direcionamento intencional ao sentido incondicionado, a
fórmula de Tillich traz consigo, igualmente, a intuição de
que a religião possui a função de nomear a irrupção
(Durchbruch) da unidade das funções transcendentais do
espírito que se objetivam na cultura por meio da atividade
do espírito. Como Tillich assinala em sua Kulturvortrag de
1919, a religião não é uma função do espírito, mas uma
atitude (Verhalten) em todas as esferas de sentido “que
conecta elementos práticos, teoréticos e intuitivos-
emocionais [Gefühlsmäßiges] em uma unidade complexa
[komplexer Einheit]”521. Não há para Tillich, portanto, a
possibilidade da afirmação de uma diástase entre religião e
cultura: a copertença fundamental entre religião e cultura se
encontra na dimensão de incondicionalidade da consciência. Na
medida em que a religião não pode ser compreendida como

521
P. TILLICH. Über die Idee einer Theologie der Kultur, p. 73. Esta
determinação do conceito de religião como uma dimensão e não como
uma função transcendental do espírito encontra-se, a despeito das
alterações sistemáticas presentes no desenvolvimento intelectual de
Tillich, em continuidade fundamental com a intenção de seus escritos
iniciais e sua reconstrução do conceito de Deus tal como formulado
por Schelling. Sobre este ponto, cf. a seção β acima, especialmente a
nota 88.

540
uma esfera especial de sentido 522 , ou como uma entra
outras funções transcendentais do espírito, ela somente é
capaz de se atualizar por meio das formas culturais postas
pelo espírito. Em sua acepção teórico-sistemática mais
própria, a religião deve ser compreendida como um evento
que irrompe por meio das formas da cultura, muito
embora, sob nenhuma hipótese, seja ela uma função
particular de sentido entre outras 523 . Conquanto seja

522
Na determinação do conceito de religião formulado por Tillich, a
influência de Windelband sobre seu pensamento é bastante evidente.
Como afirma W. WINDELBAND. Kulturphilosophie und
transzendentaler Idealismus. Logos: Zeitschrift für systematische
Philosophie, Band. 1, Heft 2, 1910-1911, p. 193: „Ihre besonderen
Funktionen, soweit sie ihre Vernunftgründe aus den logischen,
ethischen oder ästhetischen Inhalten schöpfen, nehmen an deren
transzendentalem Wesen teil, und der einzige Vernunftgrund, der der
Religion eigen ist, besteht in dem Postulat, die Totalität aller
Vernunftwerte in einer absoluten Einheit zu erleben, die von keiner der
Formen unseres Bewußtseins erfaßt werden kann“. Para Windelband,
portanto, a religião constitui o evento contingente da autotransparência
do espírito em relação à esfera de validade transcendental em sua
dimensão de unidade e totalidade, ou, como ele mesmo aponta, como o
“postulado da consciência normal [Postulat des Normalbewußtseins]”,
que já se encontra presente nas três funções culturais apriorísticas da
consciência. Sobre este ponto, cf., igualmente, os seguintes estudos, já
clássicos, de Windelband: W. WINDELBAND. Das Heilige. Skizze zur
Religionsphilosophie. In: Präludien: Aufsätze und Reden zur
Einleitung in die Philosophie. Tübingen: Verlag von J. C. B. Mohr
(Paul Siebeck), 1907, p. 414-450; IDEM. Einleitung in die Philosophie.
Tübingen: Verlag von J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1920, § 13, p.
246-257; § 20-21, p. 392-425. Sobre o Postulat des
Normalbewußtseins em Windelband, cf. M. KEMPER. Geltung und
Problem: Theorie und Geschichte im Kontext des Bildungsgedankes
bei Wilhelm Windelband. Würzburg: Verlag Königshausen &
Neumann GmbH, 2006, p. 100-101.
523
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 209: „Voraussetzung dieser Auffassung ist die
Erkenntnis, daß Religion ist keine Sinnsphäre neben den anderen ist,
sondern eine Haltung in allen Sphären: die unmittelbare Richtung auf

541
verdadeiro afirmar que a religião se torna atual por meio
das formas culturais, é ainda mais importante perceber que
a religião irrompe para a autoconsciência de um modo
inderivável e sempre já concreto 524 . A determinação
transcendental do conceito de religião revela que a
subjetividade, em sua extrapolação religiosa, se atualiza
através de uma assimilação que somente irrompe através
das formas culturais, de um modo tal que a religião
simultaneamente usa e nega estas formas.
A intuição do relacionamento de mútua
coexistência e contraposição entre religião e cultura
constitui o contexto a partir do qual Tillich introduz seu
conceito de símbolo. Por conseguinte, a religião pode ser
entendida, desta forma, como “uma realização simbólica do
sentido incondicionado [symbolische Vergegenwärtigung

das Unbedingte. Wo die Unbedingtheit des Heiligen erfasst ist, kann


seine Nebenordnung neben die übrigen Gebiete nicht in Frage
kommen, auch nicht in Form der Überordnung“.
524
C. DANZ. Die Religion in der Kultur. Karl Barth und Paul Tillich
über die Grundlagen einer Theologie der Kultur, especialmente, p.
214-219. Para a crítica de Barth, cf. K. BARTH. Von der Paradoxie des
„positiven Paradoxes“: Antworten und Fragen an Paul Tillich, p. 226-
239, aqui, 234: „das von Tillich so großzügig geübte Generalisieren,
dieses Beziehungen-Behaupten zwischen Gott und allem und jedem
zwischen Himmel und Erde, diese breite allgemeine Glaubens- und
Offenbarungswalze, die ich, ich kann mir nicht helfen, beim Lesen von
Tillich alles und nichts ausrichtend über Häuser, Menschen und Tiere
gehen sehe, als ob es sich wiederum von selbst verstünde, daß überall,
überall Gericht und Gnade waltet, alles, einfach alles einbezogen ‚ist‘
in den Streit und Frieden des ‚positiven Paradoxes‘, das, so
gehandhabt, bei aller ‚Unanschaulichkeit‘ doch wirklich ein Paradox
mehr ist, das mit dem Gotte Luthers und Kierkegaards keine, dafür
aber mit dem Gotte Schleiermachers und Hegels eine ganz auffallende
Ähnlichkeit hat“.

542
unbedingten Sinnes]”525. No símbolo de “Deus”, a religião,
ou consciência religiosa, realiza a significância de sentido já
reivindicada em cada ato de sentido. Como já afirmado nas
páginas precedentes, “o divino”, como afirma Tillich a
Hirsch, “é sentido, não um ser, e ele é um ‘outro
sentido’” 526 . Com isto, está claro o modo pelo qual a
religião se distingue das funções culturais: na medida em
que a religião transpassa as funções culturais em seu
direcionamento intencional ou noético à dimensão de

525
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 341.
526
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 126.
Como Tillich afirma sem seu artigo Rechtfertigung und Zweifel de
1919: „Das Unbedingte ist ein Sinn, aber nicht ein einzelner Sinn, denn
jeder einzelne Sinn steht unter dem Zweifel und könnte den Zweifler
nicht rechtfertigen. Das Unbedingte ist der Sinn schlechthin, der
Ausdruck dafür, daß überhaupt ein Sinn ist, die Setzung der
Sinnsphäre. Indem das Ich das Unbedingte bejaht, bejaht es zugleich
sich selbst als sinnvoll, erhält es erst einen Sinn“. Sobre este ponto, cf.
IDEM. Über die Idee einer Theologie der Kultur, p. 74; IDEM Kirche
und Kultur, p. 103-107; Religionsphilosophie, p. 133-141. Neste
sentido, cf. ainda os insights conteudísticos de F. WAGNER. Absolute
Positivität. Das Grundthema der Theologie Paul Tillichs, p. 181 [nota
22]: „Denn der Zweifel kann sich überhaupt nur dann als Zweifel
äußern, wenn er sich schon auf den bezweifelten, damit gleichwohl
vorausgesetzten Sinn und Sinngrund bezieht. Mit dem Durchbruch der
Gewißheit von Sinn, der Grundoffenbarung, durch den Zweifel an sich
selber zweifelt“. Aqui, Tillich ainda opera uma identificação entre
sentido e valor. Como ele afirma nesta mesma carta a Hirsch, “‘valor’
e ‘sentido’ resultam, em uma análise mais profunda, como conceitos
idênticos” (p. 125). No entanto, Tillich os diferencia em seu
Wissenschaftssystem. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Das System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p. 221. A distinção
entre significado e valor é central para o chamado neokantismo de
Marburg, enquanto sua identificação é decisiva para a variante do
neokantismo de Baden, tal como representada, sobretudo, por Heinrich
Rickert.

543
profundidade ou de incondicionalidade de sentido, ela
realiza simbolicamente o sentido incondicionado ou a
significação do sentido. Em contraposição à consciência
cultural, a religião é essencialmente, portanto, consciência
simbólica. Muito embora a consciência simbólica assuma o
sentido incondicionado como uma reivindicação
evidentemente atemática, ela não simboliza o sentido
incondicionado propriamente dito, mas, antes, modela a
realidade através das funções teóricas e práticas. A
diferença entre cultura e religião jaz, neste sentido, no fato
de que a cultura opera, fundamentalmente – para dar lugar
a conceitos kantianos – como esquematização, ao passo que
a religião constitui o âmbito próprio da simbolização527.

527
O conceito de Tillich de símbolo, como foi já foi mencionado no
decorrer deste estudo, segue fundamentalmente a distinção entre
simbolização e esquematização, tal como por Kant elaborada em sua
terceira crítica. Sobre este ponto, cf. I. KANT. Kritik der Urteilskraft, §
59, p. 458-463. Para o conceito de símbolo de Kant, cf. o já citado
estudo C. DIERKSMEIER. Das Noumenon Religion. Eine Untersuchung
zur Stellung der Religion im System der praktischen Philosophie
Kants, p. 40-48, e as p. 85-96. Ainda sobre o conceito de símbolo de
Kant, cf. G. SCHÖNRICH. Kategorien und transzendentale
Argumentation. Kant und die Idee einer transzendentalen Semiotik.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1981, p. 237-242. A confusão
entre os conceitos kantianos de esquematização e simbolização na
interpretação da teoria dos símbolos de Tillich não é desconhecida na
literatura secundária. Um típico exemplo, neste caso, é K.-D.
NÖRENBERG. Analogia Imaginis. Der Symbolbegriff in der Theologie
Paul Tillichs, p 175, que interpreta a teoria dos símbolos de Tillich não
por meio do conceito kantiano de simbolização, mas, antes, pelo de
esquematização. Esta interpretação, cabe dizer, situa a Symboltheorie
tillichiana precisamente no lugar que ela quer evitar. Como afirma
Nörenberg: „Die Schematisierung soll dem reinen transzendentalen
Begriff eine empirisch fundierte Verbildlichung ermöglichen, denn wir
können uns das Obersinnlich-Transzendente und Göttliche nur durch
Analogie mit der empirischen Wirklichkeit, durch einen Schematismus
der Analogie faßlich machen“. Aqui, novamente, a imputação da

544
Esta leitura do relacionamento entre religião e cultura pode
ser considerada um resultado imediato da determinação do
conceito de religião elaborado por Tillich a partir da
fórmula Richtung auf das Unbedingte528. Isto porque cultura

doutrina da “analogia” como parte constitutiva e não ilustrativa da


teoria dos símbolos de Tillich contribui para esta confusão conceitual.
No contexto imediato de sua interpretação do conceito de símbolo de
Tillich, Nörenberg, para a surpresa de seus leitores, não expõe a
distinção, tal como elaborada por Kant em sua Kritik der Urteilskraft,
entre esquematização e simbolização. Somente na introdução de seu
estudo, que é dedicado à história do conceito de símbolo, Nörenberg
contempla o conceito de símbolo de Kant a partir da terceira crítica.
Não obstante, Nörenberg se equivoca ao tratar dos motivos da
distinção kantiana entre esquematização e simbolização – a saber, a
função do símbolo para a filosofia prática! – na medida em que avalia
a capacidade do conceito de símbolo de Kant a partir da doutrina da
analogia entis. Sobre este ponto, veja as p. 47-75 do estudo de
Nörenberg. G. WENZ. Subjekt und Sein. Die Entwicklung der
Theologie Paul Tillichs, p. 182-183 criticou corretamente a abordagem
de Nörenberg ao afirmar de forma categórica: „Die Funktion des
Rekurses auf den Kantschen Schematiesierungsgedanken ist dabei keine
andere, als diese These zu verdeutlichen. Freilich, mit Kant hat der
Nörenbergsche Schematismus genausowenig etwas zu tun, wie der Begriff
‚transzendental‘ mit einer übersinnlich-transzendenten Welt“ (p. 182). Os
pressupostos kantianos do conceito de símbolo de Tillich também são
enfatizados por W. W. MÜLLER. Das Symbol in der dogmatische
Theologie: eine symboltheologische Studie anhand der Theorien bei K.
Rahner, P. Tillich, P. Ricoeur und J. Lacan, p 119. Sobre este ponto,
cf., igualmente, C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine
Studie zur Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen
individueller Subjektivität bei Paul Tillich, p. 341-347.
528
Cf. F. H. ABREU. “Richtung auf das Unbedingte” and “Self-
Transparency”: The Foundations of Paul Tillich’s Philosophy of Spirit,
Meaning, and Religion (1919-1925), p. 27-48 para considerações mais
entretidas, muito embora evidentemente não exaustivas, sobre a
unidade essencial e a distinção atual entre religião e cultura. Sobre este
ponto, cf. ainda C. CORDEMANN. Religion und Kultur. Paul Tillichs
religionsphilosophische Grundlegung einer Theologie der Kultur, p.
94-127; C. DANZ. Die Religion in der Kultur. Karl Barth und Paul
Tillich über die Grundlagen einer Theologie der Kultur, p. 214-219.

545
e religião devem ser distintas na medida em que a cultura
constitui, conforme a passagem de sua Religionsphilosophie
citada acima demonstra529, o direcionamento intencional
do espírito às formas culturais condicionadas, ao passo que
a religião é o direcionamento intencional do espírito ao
sentido incondicionado. O sentido incondicionado,
entretanto, somente pode ser simbolicamente – e não
esquematicamente (Nörenberg) – realizado 530 . As
objetivações do sentido incondicionado por meio de formas
condicionadas sempre permanecem sob o juízo da própria
dimensão de incondicionalidade constitutiva da
autoconsciência subjetiva. A superação das objetificações
dos enunciados religiosos constitui, neste sentido, uma
característica permanente no desdobramento intelectual de
Tillich. Por conseguinte, a precisação da diferença entre
religião e cultura nos termos da distinção kantiana entre
esquematização e simbolização justifica, igualmente, a
unidade essencial presente em ambos os polos de
intencionalidade para os quais a consciência se dirige. A
religião não possui outra forma para a realização do sentido
incondicionado à parte das formas condicionadas. Segue-se
que a diferença entre religião e cultura somente pode
encontrar sua justificativa na atitude distintiva da
consciência intencional ou noética no que diz respeito às
formas culturais condicionadas. A distinção entre ambas
jaz, portanto, na qualidade da atitude de intencionalidade

529
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 141.
530
K.-D. NÖRENBERG. Analogia Imaginis. Der Symbolbegriff in der
Theologie Paul Tillichs, p 175; contra a interpretação de Nörenberg, cf.
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie
als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität
bei Paul Tillich, p. 342.

546
da consciência. Em função desta determinação do conceito
de religião, a fórmula de Tillich constitui, por assim dizer,
um verdadeiro círculo: a distinção entre religião e cultura
pressupõe sua unidade fundamental, ao passo que a
unidade fundamental pressupõe, em sua atualização, sua
distintividade. Novamente: o que determina se um ato é
religioso ou cultural é a qualidade da intencionalidade da
consciência. A religião é realizada por meio de uma atitude
intencional qualitativa do espírito, e não por derivação.
Neste movimento, Tillich não apenas preserva a mútua
pertença entre religião e cultura, como também assinala a
autonomia de ambas.
Muito embora o conceito de símbolo desenvolvido
por Tillich seja capaz de trazer à expressão o
relacionamento duplo de copertença e diferença entre
religião e cultura, a funcionalidade precisa deste conceito, a
despeito dos esforços investigativos que buscam mapear seu
caráter sistemático, parece permanecer no mínimo
obscura531. Se o pressuposto teórico para o desenvolvimento

531
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 342. Aqui, seguiremos de perto, por
meio de paráfrases e não de traduções diretas, a exposição deste
problema tal como elaborado por Danz. É preciso salientar, contudo,
que a falta de clareza do conceito de símbolo de Tillich tem sido
frequentemente enfatizada no âmbito da literatura secundária. Veja,
por exemplo, a já mencionada reconstrução crítica do conceito do
símbolo de Tillich elaborada por J. RINGLEBEN. Symbol und göttliches
Sein, p. 165-181. Sobre a complexidade da disputa sobre o caráter da
teoria dos símbolos de Tillich, cf. C. DANZ. Religion als
Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 159-175. Para uma introdução geral na história do problema, cf. L.
C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische

547
do conceito de símbolo de Tillich – a saber, o conceito de
paradoxo absoluto532 – deve ser analisado por meio de um
incurso em suas dissertações sobre Schelling e, sobretudo,
em sua tese de habilitação, então uma teoria especulativa,
sem a qual o conceito de símbolo permanece
completamente ininteligível, deve estar, em termos
histórico-genéticos e sistemáticos, igualmente pressuposta
em sua formulação madura de uma teoria dos símbolos.
Evidentemente, a assunção de uma semântica ontológico-
existencial em seu pensamento tardio – que, conforme
visto, não pode ser considerada como fundamento do
edifício sistemático estadunidense de Tillich – contribui
para que a falta de clareza de sua teoria dos símbolos seja
avultada de forma ainda mais cogente. Não obstante, a
identificação, operada por Tillich, entre o conceito de
incondicionado e o conceito de sentido em sua acepção
mais própria 533 , que já é reivindicado em cada ato do

Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 1-64. Para a


referência das principais obras sobre este tema, cf. nota 5 acima.
532
Veja, sobretudo, as seções β e γ do tópico 1 desenvolvidas acima.
533
P. TILLICH. Rechtfertigung und Zweifel. (1919), p. 169-170. Veja,
igualmente, IDEM. Religionsphilosophie (Sommersemester 1920). In:
E. STURM. (Hg.). Ergänzungs- und Nachlaßbände zu den
Gesammelten Werken von Paul Tillich. Band XII: Berliner
Vorlesungen I (1919-1920), p. 333-584, aqui, p. 554: „Geist aber ist
nicht Bewußtsein, sondern Geist ist Sinn. Freilich ist diese
Konsequenz unter dem Druck des religiösen Grunderlebens nicht
immer verstanden worden. Man [hat] in einem weltgeschichtlich
wirksamen quid pro quo den Geist zu einen geistigen Wesen, das heißt
zu einer universalem göttlichen Psyche hypostasiert“. Sobre este
ponto, compare a identificação da tensão dialética entre ser e pensar,
elaborada por Tillich, como “o sentido que cada ato da consciência,
mesmo o mais simples, carrega em si”. A referência aqui é IDEM. Das
Christentum und die Gesellschaftsprobleme der Gegenwart. (1919), p.
119. Consequentemente, a diferenciação decisiva para o conceito
plenamente desenvolvido de consciência de Tillich que ocupa a

548
espírito, jaz não somente na base de seus escritos maduros
sobre a teoria dos símbolos, como também fundamenta
seus escritos tardios. Como afirmado anteriormente,
também a conceitualização tardia de Tillich que, partindo
de uma semântica ontológico-existencial, identifica Deus
com o ser-em-si, somente pode ser compreendida nos
termos de uma abreviação do conceito de incondicional: o
ser-em-si revoga o momento de negatividade constitutivo
do incondicional ao afirmar-se como absoluta
positividade534.
Assumindo-se esta interpretação como correta,
então a falta de clareza do conceito de símbolo elaborado
por Tillich pode e deve ser superada a partir de uma análise
de uma teoria especulativa que também estrutura e
determina seu pensamento tardio. Isto implica afirmar que
todo o discurso sobre os símbolos enquanto a única forma
de realização do absoluto já pressupõe um saber que é capaz
de perceber que “o absoluto não é acessível ao

posição lógica do “ser” revela-se, desta forma, como um conceito que


ocupa a posição precisamente do sentido: a diferença entre objeto
“intencional” e “real”, entre “noema” e objeto “real” em seu sentido
estrito, é uma diferença que, por sua vez, deve ser entendida sob a
categoria de “sentido”, e não de “ser”. Sobre este ponto, G.
NEUGEBAUER. Die geistphilosophischen Grundlagen der
Kulturtheologie Tillichs vor dem Hintergrund seiner Schelling- und
Husserlrezeption, especialmente, p. 56; cf. ainda o estudo de L. C.
HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische
Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 348-366.
534
Sobre este ponto, cf. F. WAGNER. Absolute Positivität. Das
Grundthema der Theologie Paul Tillichs, p. 172-191; J. DIERKEN.
Negativität im Selbstverhältnis, p. 155-173; IDEM. Die Wirklichkeit
Gottes (I 247-332). Problem- und werkgeschichtlicher Hintergrund, p.
155-173.

549
conhecimento finito” 535 . Se esta teoria especulativa não
constitui um mero aforisma, então ela tem que possibilitar
sua inteligibilidade por meio do pensamento
argumentativo. Da mesma forma que o conceito de ser-
em-si, o conceito tillichiano de símbolo reivindica uma
instância que possa entender os símbolos enquanto tais. Esta
exigência revela, de forma singular, o momento
propriamente especulativo pressuposto em sua teoria dos
símbolos. À parte deste saber que percebe que o conceito
de símbolo constitui uma representação simbólica do
incondicionado e não o incondicionado enquanto tal, o
sentido próprio da comunicação simbólica não pode ser
corretamente apreendido. Neste sentido, o modo como
este saber se torna possível deve, igualmente, tornar-se
teoricamente perceptível. Isto porque é precisamente a
partir deste saber que Tillich se torna capaz de determinar
a natureza da consciência religiosa. A consciência religiosa
é constituída, por assim dizer, a partir de sua capacidade de
expressar uma comunicação simbólica devidamente
caracterizada. Pois, o símbolo, em conformidade com o
texto The Meaning and Justification of Religious Symbols, de
1961, citado já nas primeiras linhas deste estudo, é nada
menos que “a linguagem da religião e a única forma em que
a religião pode se expressar diretamente”. Conforme afirma
Tillich, “a religião também pode encontrar expressão, de
forma indireta e reflexiva, em termos teológicos, filosóficos
e artísticos”. No entanto, prossegue Tillich, “sua
autoexpressão direta é o símbolo e o grupo de símbolos”,

C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur


535

Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller


Subjektivität bei Paul Tillich, p. 343.

550
que Tillich caracteriza, conforme já mencionado, como
“mito”536.
A partir da descrição teórica e sistemática da
estrutura de interconexão de sentido, torna-se evidente que
é precisamente esta significância sempre já reivindicada em
cada ato de sentido que Tillich tematiza através de seu
conceito de incondicional. Se for possível assumir, com
Tillich, que a significância incondicionada já está
reivindicada em cada experiência de sentido, sem que esta
seja capaz, entretanto, de ser representada em si e por si
mesma, segue-se, por conseguinte, que esta circunstância
demanda uma forma ainda mais complexa do pensamento
do absoluto. O pensamento do absoluto deve levar em
consideração não apenas a presença imediata do sentido
incondicionado em todas as atualizações de sentido, mas
também sua transcendência reflexiva. De acordo com
Tillich, este dilema não pode evadir qualquer
autoesclarecimento ideativo da consciência de sentido. No
entanto, caso se reconheça que este dilema ocorre em cada
autoesclarecimento conceitual da consciência, então se
torna perceptível que este dilema é precisamente o
paradoxo que assinala a particularidade distintiva da
própria ideia do absoluto537.
Agora, porém, há um ponto onde o paradoxo
não se encontra fundamentado no sujeito, mas,

536
P. TILLICH. The Meaning and Justification of Religious Symbols, p.
415. Sobre o conceito de mito desenvolvido por Tillich, cf. C. DANZ.
Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als
Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei
Paul Tillich, p. 347-352.
537
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 343.

551
antes, fundamenta-se completamente no objeto,
um ponto onde o paradoxo é tão necessário à
asseveração quanto a não-contraditoriedade
(Widerspruchslosigkeit) é para cada asseveração
científico-experiencial
(erfahrungswissenschaftlichen Aussage): o ponto
em que o Incondicional se torna um objeto. O
fato que o incondicional se torna um objeto
consiste precisamente no paradoxo original
(Urparadoxie), tendo-se em vista que, enquanto
incondicionado, ele jaz, em essência, para além
da contraposição entre sujeito e objeto538.
Caso se procure dissecar conceitualmente o que se
poderia dizer com o pensamento do paradoxo original ou
“profundo” do absoluto, que Tillich indica como a única
forma conceitual adequada e possível de descrição do
absoluto, é-se conduzido, então, a uma circunstância dupla.
O que se torna evidente, com isso, é que, por um lado,
Tillich intenciona assegurar, cum grano salis, a percepção
kantiana que nega qualquer possibilidade de uma via do
condicionado ao incondicionado, e que a reflexão é – por
força dos próprios limites impostos à razão crítico-
esclarecida – sempre e necessariamente malsucedida. Por
outro lado, a presença, já sempre reivindicada do absoluto
nas performances reflexivas da consciência, deve ser, ipso
facto, validada. A ideia de Tillich em relação ao paradoxo

538
P. TILLICH. Die Überwindung des Religionsbegriffs in der
Religionsphilosophie, p. 73. Neste contexto, cf. IDEM. Paul Tillich an
Emanuel Hirsch. 9. V. 1918, p. 122. Veja também D. KORSCH. Das
doppelte Absolute. Der Geist als Medium von Reflexion und Religion.
In: Dialektische Theologie nach Karl Barth. Tübingen: J. C. B. Mohr
(Paul Siebeck), 1996, p. 242-245.

552
original 539 da existência do espírito, ou do absoluto,
demanda, assim, não apenas a atualização imediata do
absoluto, mas também o reconhecimento de que a
transcendência reflexiva do absoluto deve ser pensada como
pertencente ao próprio absoluto540.
Como pode ser prontamente percebido, a versão
dupla do absoluto que resulta desta elaboração sistemática
empreendida por Tillich é uma consequência direta da
estrutura peculiar da consciência de sentido. À parte de sua
realização concreta, bem como da sobreposição mútua e
constante entre dois movimentos opostos que caracteriza o
conceito de símbolo elaborado por Tillich, o absoluto
jamais é intencionado. No entanto, tendo-se em vista que o
espírito não possui outras formas além das formas culturais
condicionadas, ele deve empregar estas formas de uma
forma tal que os próprios conceitos científicos passam a ser
determinados simbolicamente. Como afirma Tillich, “uma
vez que a consciência não possui quaisquer outras formas
além das formas condicionadas, segue-se, então, que ela
deve empregá-las para expressar o incondicional por meio
delas, isto é, deve empregar os conceitos científicos
simbolicamente, e não literalmente”541. De acordo com as
sentenças de Tillich, pode-se inferir que o símbolo
descreve uma ratio, uma relação de apresentação em que os
conceitos científicos não são empregados em sua

539
P. TILLICH. Paul Tillich an Emanuel Hirsch. 20. II. 1918, p. 122:
„Gott als Fremde ist nichts anderes als der Ausdruck für die
Urparadoxie der Existenz des Geistes“.
540
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 344.
541
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 122. Cf. IDEM. Das System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden, p. 229-231.

553
autenticidade, mas, antes, de forma conscientemente
inautêntica. Que os conceitos são empregados de forma
inautêntica é um fato que marca, em primeiro lugar, a
diferença peculiar da construção da realidade empírica de
sentido. Por outro lado, Tillich também reafirma esta
diferença peculiar em sua demarcação sistemática sobre a
dupla intersecção e correlacionalidade entre o caráter de
expressividade e o caráter de validade de todos os conceitos
simbólicos 542 . Nas palavras de Tillich: “os conceitos
metafísicos possuem caráter de expressão
[Ausdruckscharakter] e, portanto, caráter de valor
[Geltungscharakter], muito embora eles não possuam
validade no mesmo sentido que os conceitos científicos
possuem”543.

542
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 344.
543
P. TILLICH. Das System der Wissenschaften nach Gegenständen und
Methoden, p. 230. A distinção tillichiana entre caráter de expressão e
caráter de valor ressoa a distinção elaborada por G. MISCH.
Lebensphilosophie und Phänomenologie. Eine Auseinandersetzung der
Dilthey’schen Richtung mit Heidegger und Husserl. Leipzig; Berlin:
Verlag und Druck von B.G. Teubner, 1931, p. 94-96 entre “fala
discursiva” e “fala evocativa” a partir da Lebensphilosophie de
Dilthey. Misch combina o programa de uma filosofia hermenêutica da
vida com o conceito de “distinção”, que retorna à definição de vida
desenvolvida por Dilthey nos termos de uma combinação de
inescrutabilidade e ponderação. De uma forma similar ao
procedimento de Tillich no que diz respeito ao conceito de símbolo,
Misch fixa na afirmação evocativa a relação fundamental entre
determinidade e indeterminidade. Esta relação fundamental, que, de
acordo com Misch, é constitutiva para o Logos (p. 51), torna-se não
apenas o ponto de partida fundamental para a lógica, mas também a
base para uma crítica da fenomenologia de Husserl e Heidegger. Para a
distinção entre os conceitos de fala discursiva e evocativa, e para uma
análise do caráter produtivo desta tensão, cf. F. RODI. Der Logos des
„getreuen Ausdrucks“. Georg Mischs Kritik der „Logik-Ontologie“

554
Com este conceito particular de símbolo, Tillich
busca assegurar a dificuldade de especificar as condições
precisas sob as quais se torna possível interpretar
corretamente um conceito tão complexo como o conceito
de símbolo. Posto de mais forma mais direta, se a
consciência possui somente as formas condicionadas à
disposição, então ela deve sempre já “saber” que, quando
emprega conceitos para representar o sentido
incondicionado, ela assim o faz não de uma forma literal,
mas sempre e invariavelmente simbólica. A tarefa de
explicação deste “saber”, sempre já pressuposto pela
consciência, é a função mais própria da teoria do absoluto
de Tillich. Neste sentido, a determinação da teoria dos
símbolos de Tillich remete, invariavelmente, à sua teoria
especulativa do absoluto, que se faz presente, cabe ressaltar,
na totalidade de sua obra. Assumindo-se a premissa que o
processo de sentido deve ser inquestionável para a
consciência, não pode haver qualquer possibilidade que
habilite a consciência à derivação deste saber por meio de
uma causa externa 544 . Por esta razão, Tillich, em sua
Religionsphilosophie, assume a tarefa de impulsionar a

von Husserl und Heidegger. In: Erkenntnis des Erkannten: Zur


Hermeneutik des 19. und 20. Jahrhunderts. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 1990, p. 123-146; veja também V. SCHÜRMANN.
Zur Struktur hermeneutischen Sprechens. Eine Bestimmung im
Anschluß an Josef König. Freiburg; München: Verlag Karl Alber,
1999. Para um maior aprofundamento neste ponto e uma comparação
com o pensamento simbólico de Tillich, cf. C. DANZ. Religion als
Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 344-345 [nota 85].
544
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 344.

555
análise filosófica da consciência “até o ponto em que ela
apreende a si mesma juntamente com a totalidade da
cultura enquanto expressão do religioso”545. A percepção da
indivisibilidade do condicionado corresponde à percepção
da irredutível relação de reciprocidade entre o
incondicionado e o condicionado. A construção perspicaz
da indivisibilidade do condicionado, como Tillich a
empreende em sua Religionsphilosophie, constitui
igualmente, desta forma, uma construção do condicionado
como expressão do incondicionado546. Este saber já sempre
presente do condicionado, tomado em si mesmo, como
expressão do incondicionado, representa a condição para
que a consciência possa entender signos como símbolos.
Pois, somente quando a consciência já conhece a si mesma
como expressão do incondicionado, pode ela empregar as
formas condicionadas simbolicamente547.

545
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 142.
546
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 345.
547
Em seus escritos iniciais, a passagem sistemática em que este
“saber”, que é reivindicado para o processo simbólico, deve ser
explicado é relacionado com a figura da autoaniquilação do
condicionado. De acordo com Tillich, para uma filosofia da história
ciente do Kairos, a “dupla reivindicação” irrompe da tentativa “de unir
a tensão do absoluto com o universalismo do relativo”. Sobre este
ponto, cf. P. TILLICH. Kairos. (1922). In: J. P. CLAYTON. (Hg.). Main
Works – Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische Schriften, p.
53-72, aqui, p. 63. Esta reivindicação, conforme afirma Tillich,
“contém um paradoxo: o que acontece no Kairos deveria ser absoluto
e, mesmo assim, não-absoluto. Deveria ser um ser histórico-relativo
absolutamente posto” (p. 63). Não obstante, esta reivindicação somente
se torna passível de redenção, como Tillich explica nesta mesma
página, na medida em que se reconhece que “o condicionado elimina a
si mesmo e, desta forma, faz de si mesmo um órgão para o
incondicional”. O ponto desta figura de autoaniquilação jaz

556
O símbolo se torna, pois, um conceito quando é
interpretado pela consciência como apresentação da síntese
a priori. Neste procedimento, o conceito não é mais

precisamente não no fato absurdo de uma negação do condicionado,


mas no fato de que o condicionado é agarrado pelo espírito como
órgão do incondicionado. Um entendimento desta autoaniquilação do
condicionado, que subscreve, sob qualquer perspectiva, seu
desaparecimento, resultaria numa abstração de que a autoaniquilação
pressupõe, de um lado, uma instância que a implementa, e de que a
própria autoaniquilação, de outro lado, deve constituir, ela mesma,
uma instância. A figura da autoaniquilação constitui, portanto, uma
expressão do reconhecimento da unidade e diferença entre o
incondicionado e o condicionado. Isto porque o condicionado somente
pode ser agarrado em sua condicionalidade através de uma oposição
com o incondicionado. A relação entre o condicionado e o
incondicionado é, de acordo com sua estrutura formal, uma relação de
determinidade, e é precisamente esta relação que é pressuposta quando
o condicionado é agarrado como um meio para o incondicional.
Contudo, quando o condicionado se torna ciente de si como um órgão
do incondicionado, ele adquire um saber sobre si que o posiciona, mais
especificamente, como um símbolo do incondicionado. Este saber
sobre si constitui, entretanto, a condição para que um símbolo possa
ser interpretado como símbolo. A percepção de Tillich sobre a
autoaniquilação possui um paralelo com a filosofia tardia de Fichte que
não pode ser desprezada. Também para Fichte, a figura da
autoaniquilação se faz presente na medida em que ele constata que há
um lugar sistemático onde o saber possui a forma de um saber sobre si
que não apenas não pode se autoproduzir sem cair num círculo, como
também não pode proceder de uma instância externa ao próprio
processo do saber. Sobre este ponto, cf. C. DANZ. Atheismus und
spekulative Theo-logie: Fichte und Schelling. In: K.-M KODALLE; M.
OHST; C. DANZ; C. DIERKSMEIER; C. SEYEN. (Hg.). Fichtes
Entlassung. Der Atheismusstreit in Jena vor zweihundert Jahren.
Würzburg: Königshausen & Neumann, 1999, p. 159-174,
especialmente, p. 168-173; J. STOLZENBERG. Absolutes Wissen und
Sein. Zu Fichtes Wissenschaftslehre von 1801/02. In: W. H.
SCHRADER. (Hg.). 200 Jahre Wissenschaftslehre. Amsterdam; Atlanta:
Rodopi, 1997, p. 307-322. Sobre este ponto, cf. ainda C. DANZ.
Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als
Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei
Paul Tillich, p. 126-134.

557
empregado para designar a construção da realidade de
sentido, mas é a própria significância já reivindicada neste
procedimento de construção que deve, agora, ser
apresentada. Esta diferença, que Tillich aponta como um
processo de transição do caráter de valor dos conceitos para
o seu caráter de expressão, pode ser explicada, conforme
mencionado, nos termos da distinção kantiana entre
simbolização e esquematização. Tendo-se em vista que o
sentido não é dado nem de forma ideal nem real, segue-se,
por conseguinte, que ele não pode ser esquematizado, mas
somente simbolizado. A atualização da significância que a
consciência já sempre reivindica em cada realização de
sentido não pode depender, enquanto tal, da ajuda de
quaisquer intuições. Isso porque a significância, tomada em
si mesma, não é, evidentemente, nenhuma instância
empírica. Assim, a realização do sentido incondicionado
somente pode acontecer na medida em que a estrutura da
atualização de sentido se torna, ela mesma, uma
apresentação. Para falar com Kant, trata-se de um modo
intuitivo de conhecimento, uma hipotipose, que, em
contraste com o modo discursivo, encompassa, juntamente
com a apresentação esquemática, também uma
apresentação de caráter estritamente simbólico. Enquanto
sensificação (Versinnlichung), o símbolo é um método ou
procedimento de apresentação não esquemático, “já que o
conceito é aquele que somente a razão pode pensar e ao
qual nenhuma intuição sensível pode ser adequada”. Neste
último caso, como afirma Kant,
o conceito é fornecido com uma intuição tal que
o procedimento da faculdade do juízo [das
Verfahren der Urteilskraft] é simplesmente dado
de forma analógica àquilo que ele observa na

558
esquematização, isto é, vem em acordo com ele
simplesmente em função da regra deste
procedimento, não em função da própria
intuição, e, consequentemente, apenas em
função da forma da reflexão, não do conteúdo548.
Nesta direção, e em conformidade com uma
perspectiva que poderia ser caracterizada, cum grano salis,
como semiótica, pode-se afirmar, com base na propícia
distinção kantiana entre simbolização e esquematização,
que “o símbolo é um signo no qual o próprio emprego do
signo opera como signo”549. A apresentação simbólica consiste,
desta forma, não na ilustração de uma realidade, mas na
apresentação do próprio processo da atualização de sentido. O
que Tillich busca, em outras palavras, é nada menos que a

548
KANT. Kritik der Urteilskraft, § 59, p. 459: „Alle Hypotypose
(Darstellung, subiectio sub adspectum), als Versinnlichung, ist
zwiefach: entweder schematisch, da einem Begriffe, den der Verstand
faßt, die korrespondierende Anschauung a priori gegeben wird; oder
symbolisch, da einem Begriffe, den nur die Vernunft denken, und dem
keine sinnliche Anschauung angemessen sein kann, eine solche
untergelegt wird, mit welcher das Verfahren der Urteilskraft
demjenigen, was sie im Schematisieren beobachtet, bloß analogisch,
d.i. mit ihm bloß der Regel dieses Verfahrens, nicht der Anschauung
selbst, mithin bloß der Form der Reflexion, nicht dem Inhalte nach,
übereinkommt“. Com base nesta diferença entre esquematização e
simbolização, mas também no fato de que a representação simbólica
emprega a regra da esquematização, a afirmativa de Tillich de que os
elementos ontológicos podem ser usados, ao mesmo tempo, como
conceitos e como símbolos, pode ser compreendida de forma mais
rigorosa. Para Tillich, a despeito dos problemas implicados nos
símbolos providos por conceitos ontológicos, a tarefa mais
fundamental é distinguir entre o sentido próprio dos conceitos e seus
sentidos simbólicos. A referência aqui é P. TILLICH. Systematic
Theology. Volume I: Reason and Revelation, Being and God, p. 244.
549
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 346.

559
superação da clivagem irresolúvel entre o sentido
incondicionado e o processo de cumprimento do sentido
condicionado. Por esta razão, cada sentido contém um
excedente de sentido, que Tillich descreve, aptamente,
como “significado transcendente [transzendentes
550
Bedeutung]” . “O sagrado não é inintuível [das Heilige ist
nicht unanschaulich]. Contudo, ele não é objetivo. O sagrado
é intuído de forma não-objetiva; ele é intuído como
significação transcendente” 551 . O conceito de símbolo

550
P. TILLICH. Der Protestantismus als kritisches und gestaltendes
Prinzip. (1929). In: G. HUMMEL. (Hg.). Main Works – Hauptwerke.
Band 6: Theologische Schriften. Berlin; New York: Walter de Gruyter;
Evangelisches Verlagswerk, 1992, p. 138. Veja, nesta conexão, F.
WAGNER. Absolute Positivität. Das Grundthema der Theologie Paul
Tillichs, p. 136; H. JAHR. Theologie als Gestaltmetaphysik: die
Vermittlung von Gott und Welt im Frühwerk Paul Tillichs, p. 373-375.
Ambos os autores identificam nesta concepção da forma do
significado, enquanto uma síntese dinâmica entre o momento real e o
ideal, a superação das dificuldades que irrompem dos escritos da
década de 20 de Tillich. Esta dificuldade estaria, de acordo com os
autores, no fato de que a substância incondicionada, a fim de preservar
sua incondicionalidade, deve, por necessidade, aniquilar as formas
condicionadas. Esta leitura, que acentua a negatividade do
incondicional em relação ao condicionado, termina por tergiversar
completamente não apenas a mútua pertença entre forma e substância
no pensamento de Tillich, como também a intuição fundamental de
que o incondicionado, enquanto categoria de sentido, somente encontra
expressão por meio das formas condicionadas. A própria tentativa de
Tillich de encontrar um conceito de revelação que não sugerisse uma
quebra das formas condicionadas – Durchbruch, e não Zerbruch! –
atesta, de forma insofismável, este fato. Sobre este ponto, cf. U. C.
SCHARF. The Concept of the Breakthrough of Revelation in Tillich’s
Dogmatik of 1925. In: F. J. PARRELLA. (Ed.). Paul Tillich’s
Theological Legacy: Spirit and Community. International Paul Tillich
Conference, New Harmony, 17-20 June 1993. Berlin; New York:
Walter de Gruyter & Co., 1995, p. 65-81.
551
P. TILLICH. Der Protestantismus als kritisches und gestaltendes
Prinzip, 138.

560
elaborado por Tillich descreve, assim, um estado de coisas
em que a significância reivindicada pelos sujeitos finitos em
cada ato de sentido não pode ser realizada por si mesma.
Antes, a significância encontra sua realização na própria
apresentação do processo de atualização de sentido. É,
pois, no símbolo que a consciência realiza tanto a diferença
quanto a unidade entre o incondicionado e o condicionado.

4. Religião – símbolo – mito: a “dialética interna” do


mito e a quebra da consciência mítica em sua
imediatidade

Embora apenas esboçada como resultado da


natureza particular de sua teoria do sentido, a teoria do
absoluto desenvolvida por Tillich revela, precisamente por
conduzir à ideia de um duplo absoluto552, que a função
teorética do símbolo possui um lugar de indiscutível
proeminência em sua teoria da subjetividade, na medida
em que é no símbolo que, para Tillich, ocorre o
esclarecimento de que a gênese autovelada da consciência
se encontra nela mesma. O processo de esclarecimento da
significância incondicionada, já sempre reivindicada pela
subjetividade finita em cada um de seus atos reflexivos,
somente é possível, contudo, como um processo de
interpretação ou autointerpretação (Selbstdeutung). A tarefa
de levar adiante este processo de interpretação da

552
Cf., sobre este ponto, o importante estudo de D. KORSCH. Das
doppelte Absolute. Der Geist als Medium von Reflexion und Religion,
especialmente, as p. 242-245.

561
facticidade de si, que não pode ser elucidada pela
consciência enquanto tal, constitui a função mais
característica da religião em seu sentido estreito. A
distinção entre um conceito estreito e outro amplo de
religião deriva do entendimento da religião como o evento
contingente em que o espírito se torna reflexivo em sua
autorrelacionalidade. Este entendimento da religião é
assimilado no conceito mais amplo de religião desenvolvido
por Tillich, que se expressa na determinação formal da
religião como “aquilo que nos atinge ou nos preocupa
incondicionalmente [das, was uns unbedingte angeht]”553.
Desta forma, a religião em seu sentido mais estreito pode
ser compreendida como a interpretação que é já sempre
entendida pela religião em sua acepção mais ampla. O
conceito de essência da religião, que agarra, para Tillich, o
fato de que o espírito finito não pode ser adequadamente
determinado sem uma condição que deve necessariamente

553
P. TILLICH. Dogmatik-Vorlesung. (Dresden 1925-1927), p. 15: „Das
nicht unbedingt Verborgene ist nicht das, was uns unbedingt angeht“.
Ou, como Tillich afirma em sua Systematic Theology: “The ultimate
concern is unconditional, independent of any conditions of character,
desire, or circumstance. The unconditional concern is total: no part of
ourselves or of our world is excluded from it; there is no place to ‘flee’
from it. The total concern is infinite: no moment of relaxation and rest
is possible in the face of a religious concern which is ultimate,
unconditional, total, and infinite”. A referência aqui é IDEM.
Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation, Being and
God, p. 12. A despeito das diferentes linguagens empregadas por
Tillich, a fórmula permanece a mesma em ambos os casos. Sobre este
ponto, cf. U. C. SCHARF. The Paradoxical Breakthrough of Revelation:
Interpreting the Divine-Human Interplay in Paul Tillich’s Work 1913-
1964, p. 134; C. DANZ. Breakthrough of the Unconditional: Tillich’s
Concept of Revelation as an Answer to the Crisis of Historicism, p. 2-
6; F. H. Abreu. “Richtung auf das Unbedingte” and “Self-
Transparency”: The Foundations of Paul Tillich’s Philosophy of Spirit,
Meaning, and Religion (1919-1925), p. 49-50.

562
ser pressuposta, assinala uma relação que permanece em
constante necessidade de interpretação. É aqui que, na
teoria de Tillich, o papel da religião se torna mais visível.
Posto de forma mais precisa, a execução deste processo
interpretativo da facticidade de si, que não pode ser
elucidado pela própria consciência, constitui a função mais
particular da religião.
Religião é a experiência do incondicionado, e
isso significa a presença da realidade absoluta
fundada sobre a experiência do nada absoluto;
experiencia-se o nada dos entes, o nada dos
valores, o nada da vida pessoal; onde esta
experiência é conduzida ao nada de um não
radical, absoluto, aí ela é revertida, na
experiência igualmente absoluta da realidade, em
um sim radical554.
Em conformidade com esta definição preliminar
oferecida por Tillich, a religião é o lugar onde a síntese
subjacente a todas as funções da consciência é tematizada
de forma apriorística. Por esta mesma razão, ela própria
não pode ser, como Tillich reiteradas vezes acentua, uma
função da consciência, que permaneceria, neste caso, ao
lado das outras funções transcendentais do espírito 555 .
Enquanto lugar da síntese a priori das funções

554
P. TILLICH. Über die Idee einer Theologie der Kultur. (1919). In: C.
DANZ; W. SCHÜßLER; E. STURM. (Hg.). Paul Tillich. Ausgewählte
Texte. Berlin; New York: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, 2008,
p. 41.
555
P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 141: „Die Religion ist also
keine Sinnfunktion neben den übringen. Das folgt unmittelbar aus
ihrem Charakter als Richtung auf das Unbedingte. Sie, die in allen
Sinnfunktionen grundlegend ist, kann selbst keine Sinnfunktion sein“.
Sobre este ponto, cf., igualmente, IDEM. Religion as a Dimension in
Man’s Spiritual Life, p. 3-9.

563
transcendentais do espírito, a religião representa, antes de
tudo, a significância das funções propriamente ditas da
consciência 556 . A apresentação desta “relação com o
incondicional-transcendente”557, que é constitutiva para a
própria autoconsciência, se efetiva, conforme já se pode
inferir, por meio do símbolo ou da linguagem simbólica.
Contudo, nesta determinação, uma nova categoria aparece,
na medida em que Tillich descreve este processo simbólico
de representação da relação da consciência subjetiva com o
incondicional-transcendente como “mito”. O mito é para
Tillich, “a quintessência” daqueles símbolos em que “o
incondicional-transcendente é intuído de forma direta ou
indireta” 558 . Os símbolos conformam, em um sentido
estrito, as formas religiosas de apresentação do absoluto,
uma vez que somente neles é a síntese constitutiva da
consciência religiosa propriamente dita realizada de modo a
priori559.
No conceito de símbolo desenvolvido por Tillich,
dois aspectos são de importância fulcral. Estes aspectos são
desenvolvidos, de forma mais proeminente, em seu artigo
Mythus und Mythologie, de 1930560. De um lado, Tillich

556
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 348. No que se segue, a análise de
Danz deste problema será, por meio de paráfrases e não de traduções
diretas, acompanhada de perto.
557
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 217.
558
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 220.
Isto não implica afirmar, entretanto, que Tillich não possa falar em
símbolos culturais em vez de mitos. Sobre este ponto, cf., por exemplo,
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 214.
560
P. TILLICH. Mythus und Mythologie. (1930). In: J. P. CLAYTON.
(Hg.). Main Works – Hauptwerke. Band 4: Religionsphilosophische
Schriften, p. 229-236.

564
reafirma, a partir de uma abordagem especulativa, a
presença do absoluto em cada ato da consciência. De outro,
ele demarca a diferença, como demanda a estrutura
constitutiva de seu monismo do sentido, entre o sentido
incondicionado e o cumprimento finito de sentido561. Com
base nestes dois aspectos, uma teoria dos símbolos é
articulada, e Tillich a caracteriza como “simbólico-
realista”562. A partir desta concepção do símbolo religioso –
ou mito, enquanto, como aponta Tillich, a quintessência
dos símbolos religiosos –, Tillich afirma ser capaz superar
sistematicamente a alternativa entre uma teoria metafísica e
uma teoria epistemológica do mito 563 . Contra a

561
Compare, aqui, as discussões de Tillich sobre “liberdade e finitude”
em sua Systematic Theology. A referência aqui é P. TILLICH.
Systematic Theology. Volume III: Life and the Spirit, History and the
Kingdom of God. Chicago: The University of Chicago Press, 1963, p.
86-87; cf. também as p. 406-423.
562
P. TILLICH. Mythus und Mythologie, p. 230.
563
P. TILLICH. Mythus und Mythologie, p. 230. A crítica de Tillich a
Cassirer é impossível de ser sustentada. Enquanto, na distinção de
Tillich, Schelling é chamado de o representante por excelência da
teoria metafísica do mito, Cassirer aparece como um expoente de uma
teoria epistemológica do mito. Essa interpretação não resiste a uma
análise imanente da posição de Cassirer. Não obstante, em seu artigo
Schelling und die Anfänge des existentialistischen Protestes, de 26 de
setembro de 1954 (cf. IDEM. Schelling und die Anfänge des
existentialistischen Protestes. (1955). In: G. WENZ. (Hg.). Main Works
– Hauptwerke. Band 1: Philosophische Schriften, p. 391-402), Tillich
revisa, parcialmente, sua visão de Cassirer. Sobre este ponto, veja a p.
393 do artigo supracitado. Em contraste à alternativa entre a teoria
epistemológica e teoria metafísica do mito, Cassirer situa sua teoria do
pensamento mítico a partir de uma análise da interpretação metafísica
de Schelling e da interpretação empírica de Wundt. Sobre este ponto,
cf. E. CASSIRER. Philosophie der symbolischen Formen. Zweiter Teil:
Das mythische Denken. Hamburg: Felix Meiner Verlag GmbH, 2010,
p. 1-33. Para uma comparação entre as posições de Tillich e Cassirer,
cf. o já mencionado artigo de C. DANZ. Der Begriff des Symbols bei

565
interpretação epistemológica do mito, Tillich afirma que o
símbolo não pode ser uma imagem de uma realidade
existente, mas somente um produto da consciência. Como
ele afirma, o mito “não possui a realidade da imagem; pois,
o mito vive nos símbolos, que certamente não são
arbitrários, mas estão sujeitos, de acordo com a apreensão
do incondicionado, a uma legalidade determinada – e, para
além disto, a uma legalidade universal” 564 . Conforme
mencionado nas páginas precedentes, a consciência não se
direciona para objetos que são externos a ela, mas para os
correlatos intencionais de seus atos. Não obstante, os
símbolos com os quais a consciência representa o absoluto,
que, enquanto absoluto é, para ela mesma, constitutivo,
não são nem arbitrariamente inventados, por um lado, nem
encontram sua justificativa em um “convencionalismo”565,

Paul Tillich und Ernst Cassirer, p. 201-228; veja também as exposições


de L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
14-31 sobre a teoria de Cassirer.
564
P. TILLICH. Mythus und Mythologie, p. 230.
565
A rejeição de um convencionalismo é baseada na distinção de Tillich
entre símbolo e signo. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Das religiöse
Symbol, p. 213: „Das dritte Merkmal des Symbols ist die
Selbstmächtigkeit. Sie besagt, daß das Symbol eine ihm selbst
innewohnende Macht hat, die es von dem bloßen in sich ohnmächtigen
Zeichen unterscheidet. Dieses Merkmal ist maßgebend für die
Trennung von Symbol und Zeichen“. Cassirer também rejeita uma
posição convencionalista em sua teoria do mito, do símbolo e dos
signos. Sobre este ponto, veja E. CASSIRER. Die Begriffsform im
mythischen Denken. In: Wesen und Wirkung des Symbolbegriffs.
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1990, p. 1-70, aqui, p.
21. Para uma análise do conceito de símbolo de Cassirer, veja também
M. MEYER-BLANCK. Ernst Cassirers Symbolbegriff –
zeichentheoretisch gegenlesen. In: D. KORSCH; E. RUDOLPH. (Hg.).
Die Prägnanz der Religion in der Kultur: Ernst Cassirer und die
Theologie, p. 91-99. Sobre a distinção entre símbolo e signo no

566
por outro. Antes, estes símbolos são condicionados por
uma determinada situação sociocultural e pela estrutura de
interconexão de sentido que é constitutiva para toda
consciência. Muito embora a ideia de uma correlação
contínua entre forma e substância dê lugar a uma
interpretação mais ampla, tendo-se em vista que o sentido
incondicionado permite, em princípio, ser representado por
qualquer forma, a representação fática, no entanto, na
medida em que é condicionada pelas formas culturais, é
limitada566. Aqui, novamente, a infinitude que caracteriza a
transcendência da vida do espírito implica seu inverso, isto
é, a finitude.
Não obstante, o ponto importante a ser percebido é
que a simbolização do absoluto nas formas condicionadas
da consciência, isto é, a simbolização do incondicionado
através das formas condicionadas, pressupõe tanto a
presença do absoluto na atualização imediata da
consciência, por um lado, quanto um saber deste absoluto
que irrompe a partir deste processo, por outro. À parte
deste saber, a diferença entre imagem e sentido não seria
assinalável e, portanto, a própria irrupção de um processo
de simbolização seria completamente incompreensível. De
acordo com Tillich, a percepção desta distinção, que
representa, em si mesma, um momento constitutivo do

pensamento de Tillich, a literatura secundária já tratou deste tema, com


maior ou menor precisão, exaustivamente. Aqui, remetemos o leitor
para o estudo mais recente sobre o tema, que apresenta as principais
referências bibliográficas em uma só obra: L. C. HEINEMANN. Sinn –
Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische Rekonstruktion der
frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 479-498.
566
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 348-349.

567
próprio processo simbólico, é a verdade indispensável da
teoria metafísica do mito: “o mito tem realidade, pois ele é
julgado pelo incondicionado-real”567. Não obstante, quanto
mais a interpretação epistemológica do mito se torna capaz
de explicar o fato de que os mitos são um resultado da
conquista da atividade produtiva da consciência, menos
esta interpretação consegue explicar como o processo
simbólico, de fato, se inicia. Assim, na leitura de Tillich,
esta interpretação oblitera a realidade peculiar do mito
enquanto um elemento constitutivo “do espiritual
propriamente dito”568. Em contrapartida, a interpretação
metafísica do mito corre o risco de se agarrar à substância
da realidade que no mito é apresentada. Por sua tendência
de se dirigir unilateralmente ao elemento estrutural da
substância, a interpretação metafísica do mito não faz jus
ao fato de que a substância sempre já se encontra unida
com uma forma transcendental da consciência.
Novamente, forma e substância são interdependentes e,
com isto, inseparáveis. O incondicionado somente encontra
expressão por meio da unidade entre forma e substância.
Neste sentido, teorias metafísicas e epistemológicas do
mito revelam-se, de acordo com Tillich, dissoluções
unilaterais da correlação permanente dos momentos
estruturais do sentido. A quebra desta correlação entre
forma e substância implica, por necessidade, a quebra da
própria consciência de sentido.
Como corolário destas considerações, temos que a
teoria “simbólico-realista” do mito desenvolvida por Tillich
se caracteriza fundamentalmente por conferir ao conjunto

567
P. TILLICH. Mythus und Mythologie, p. 230.
568
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 220.

568
de símbolos, ou mais precisamente, ao mito, enquanto
forma religiosa de expressão do absoluto, uma função
constitutiva para o espírito como tal. Posto de forma mais
direta, o mito é a forma em que a consciência percebe,
precisamente por meio do saber, que sua relação com o
absoluto é constitutiva para si mesma. No entanto, esta
apresentação da relação do propriamente religioso com o
incondicional-transcendente é sempre já dependente do
correlato intencional ou noético dos atos da consciência,
por virtude dos quais o mundo objetivo é
fenomenologicamente construído para a consciência. Tillich
descreve esta relação como uma de entrelaçamento entre o
religioso, o científico e o mítico569. Se a forma do mito é,
com isso, inscrita em cada consciência enquanto tal, então
a pergunta pelo modo como a interrelação entre a tríade
“religião-ciência-mito” é estruturada se torna, por seu
turno, ainda mais urgente570. Segue-se que o entendimento
de uma história da cultura que se encontra fundamentada
na ideia de que religião e ciência se desenvolvem a partir do
mito e, com isso, o superam, está excluído da concepção
teorética da consciência subjetiva desenvolvida por Tillich
ab ovo et initio. Em contraposição a uma história da cultura
de caráter e inspiração evolucionista-positivista, religião,
ciência e mito somente podem ser vistos, de acordo com
Tillich, a partir de uma relação de permanente
entrelaçamento e interação: nunca, portanto, de forma
isolada. Isto porque, no dizer de Danz571, aquilo que no

569
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 220.
570
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 219.
571
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 350.

569
mito se encontra fundamentado não pode, por motivos
lógicos, superá-lo572.
No entanto, caso se deseje manter a ideia de uma
diferenciação da consciência mítica, bem como a ideia de
que o mito possui uma função constitutiva para a
consciência eo ipso, então há que se sublinhar que tais ideias
não podem ser adequadamente desenvolvidas nos modos
de uma contraposição entre a perspectiva genética, por um
lado, e a teoria da validade573, por outro. Em vez de se
agarrar a uma oposicionalidade entre a história do
desenvolvimento e a teoria da validade do mito, Tillich
sustenta que o próprio mito é marcado por uma “dialética
interna” 574 . “A tensão se dissolve tão logo se torna
manifesto que o mito não foi encerrado, mas que apenas
sua forma foi alterada”575. A fórmula da “dialética interna”
do mito tem a finalidade básica de transformar esta
coexistência cheia de tensões, oriunda de uma
contraposição entre a perspectiva genética e a teoria da
validade, em uma unidade não idêntica, isto é, uma síntese
aberta e em permanente devir. Trata-se, portanto, de
572
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 220. Uma progressão do mito
para o logos ou ciência, tal como representada por Hegel, é assim por
Tillich rejeitada ab ovo et initio. Para a determinação de Hegel da
relação entre consciência natural e ciência (isto é, filosofia!), cf. G. W.
F. HEGEL. Phänomenologie des Geistes. Neu herausgegeben von Hans
Friedrich Wessels und Heinrich Clairmont. Hamburg: Felix Meiner
Verlag GmbH, 2011, p. 57-68.
573
Tal contraposição entre a perspectiva genética e a teoria da validade,
Tillich acredita, erroneamente, ser capaz de localizar na teoria do
símbolo e do mito de Cassirer. Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Das
religiöse Symbol, p. 218. Ainda sobre este ponto, cf. L. C.
HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-genetische
Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p. 14-31.
574
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 219.
575
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 218.

570
transformar a coexistência cheia de tensões de ambas as
perspectivas em uma unidade marcada por uma tensão
interna que permanece, entretanto, não-suprassumível.
De acordo com esta diferenciação interna, que
Tillich traz à expressão por meio da ideia de uma dialética
interna do mito, torna-se evidente que mito e religião não
podem simplesmente permanecer lado a lado. A ideia de
uma dialética interna do mito requer um entrelaçamento
tão minucioso entre mito e religião que a religião deve ser
entendida como um momento do mito e o mito como um
momento da religião576. O entrelaçamento entre mito e
religião é, assim, transposto para a dialética interna da
consciência mítico-religiosa. Para dar lugar à supracitada
formulação de Tillich uma vez mais, o mito não se encerra
simplesmente na religião; antes, ele apenas altera “sua
forma”577. Esta alteração de forma, que o elemento mítico
experiencia na consciência religiosa, é explicada por Tillich
como uma quebra (Durchbrechung) do “mito em sua
imediatidade”578. A diferença entre mito e religião não jaz,
portanto, em seus conteúdos, mas em uma alteração da
posição da consciência em relação a tais conteúdos por ela
agarrados. Isto porque a consciência somente pode
apreender uma posição alterada em relação a seus
conteúdos na medida em que ela se diferencia deles. É,

576
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 351.
577
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 218.
578
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 218. Veja ainda, IDEM. Mythus
und Mythologie, p. 230-236. Sobre este ponto, cf. C. DANZ. Religion
als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur Theologie als Theorie der
Konstitutionsbedingungen individueller Subjektivität bei Paul Tillich,
p. 351.

571
pois, neste sentido que Tillich descreve esta consciência,
que se percebe distinta de seus conteúdos, como
“consciência transcendental”579. Introduz-se na dinâmica da
consciência subjetiva, desta forma, a reflexividade, por
meio da qual um conhecimento da diferença entre símbolo
e sentido pode, enfim, emergir. Em função desta
reflexividade que aqui somente pode-se designar como
avultada, a consciência religiosa pode fazer uso “de seus
conteúdos sob a constante recordação de seu caráter
simbólico e de sentido, que ela expressa, muito embora de
forma inadequada, de forma intuitiva e vívida” 580 . Na
medida em que reconhece o caráter simbólico dos
símbolos, a consciência religiosa “quebra”, por assim dizer,
a imediatidade das representações míticas. A diferença
entre a consciência mítica quebrada e não-quebrada pode
ser elucidada, portanto, como a diferença entre uma forma
de consciência que está ciente do caráter simbólico de suas

579
P. TILLICH. Mythus und Mythologie, p. 231. H. LOOFF. Der
Symbolbegriff in der neuren Religionsphilosophie und Theologie, p. 61
afirma erroneamente, neste contexto, “que Tillich confunde o ato de fé
peculiarmente religioso com a filosofia da religião”. Não obstante, a
crítica de Looff falha precisamente por não reconhecer a reflexividade
específica que caracteriza a consciência religiosa enquanto distinta da
consciência mítica. Este erro de Looff se encontra em sua indicação de
que Tillich não enfatiza com a devida força a dialética da fé enquanto
oposta à dialética simbólica. Sobre este ponto, veja igualmente a p. 59
do estudo de Looff.
580
Novamente, na citação já mencionada de P. TILLICH. Rechtfertigung
und Zweifel. (1919), p. 172: „Sobald sich das Bewußtsein aber auf die
Stufe des radikalen Zweifels erhoben hat, können jene
Vergegenständlichungen in ihrer unreflektierten Anschaulichkeit nur
als Symbole gelten für die Lebendigkeit und Konkretheit des absoluten
Paradox. Auf dieser Stufe kann das Bewußtsein jene Symbole nur
gebrauchen unter ständiger Erinnerung an ihren symbolischen
Charakter und den Sinn, den sie zwar anschaulich und lebendig, aber
doch inadäquat ausdrücken“.

572
representações e outra que não está. A consciência mítica
não-quebrada assume os correlatos objetivos de seus atos
espirituais como coisas em si mesmas, ao passo que a
consciência mítica quebrada sabe que suas imagens
simbólicas representam o sentido incondicionado581. Além
disso, a consciência mítica quebrada sabe, a partir do
fundamento da estrutura da consciência, que somente pode
trazer o incondicional à realização por meio das formas
condicionadas da consciência. Pois, como afirma Tillich, “a
transcendência incondicional não é, enquanto tal, intuível.
Caso se torne intuível – e ela deve tornar-se tal na religião
–, ela somente pode assim se tornar através de
representações míticas”582.
Quanto mais a consciência mítica quebrada
representa um ganho em diferenciação, o que significa
sempre e invariavelmente um aumento em abstração,
menos é ela capaz de evadir-se das representações míticas.
Isto porque a religião somente pode articular-se de uma
forma tal que ela substitui os conteúdos imediatos negados
em sua diferenciação por outros conteúdos. O conceito de
“princípio protestante” elaborado por Tillich encontra sua
função teorética mais própria precisamente quando
aplicado como recurso de validade para esta unidade de
negação e posição, ou ainda, crítica e formação 583 . Na

581
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 352.
582
P. TILLICH. Das religiöse Symbol, p. 219.
583
Sobre este ponto, cf. P. TILLICH. Der Protestantismus als kritisches
und gestaltendes Prinzip, p. 127-149; IDEM. Protestantische
Gestaltung. (1929). In: R. ALBRECHT. (Hg.). Gesammelte Werke. Band
VII: Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung. Schriften zur
Theologie I, p. 54-69; IDEM. Protestantisches Prinzip und proletarische

573
medida em que o conhecimento sobre a diferença entre
símbolo e sentido caracteriza a consciência religiosa, e na
medida em que esta consciência opera através da diferença
entre um processo permanente de crítica e formação, a
religião adquire uma função decisiva para o processo
cultural em sua totalidade. A originalidade específica da
religião se baseia no fato de que ela lida com uma esfera de
sentido e significação, por natureza, não tematizável em
outras funções culturais – ainda que esta esfera também
não seja, por seu turno, tematizável à parte destas funções.
Em sua atualização de crítica e formação, a religião atesta a
unidade e diferença entre o condicionado e o
incondicionado. A religião não faz apenas uma
contribuição indispensável aos processos de formação
cultural; antes, na intenção de realizar esta tarefa, ela deve,
ipso facto, permanecer distinta da cultura. O relacionamento
entre religião e cultura se articula no conceito de símbolo.
Na medida em que o conceito de símbolo aponta para a
performance específica da religião, e na medida em que ele
tematiza a sempre já reivindicada significância de sentido
de uma forma tal que o momento do saber seja agarrado
pela consciência, o símbolo deve ser categoricamente
distinto de outras formas de apresentação584.

Situation. (1931). In: R. P. SCHARLEMANN. (Hg.). Main Works –


Hauptwerke. Band 5: Religiöse Schriften, p. 219-248. Para uma
abordagem deste tema em nosso contexto, cf. E. R. MUELLER.
“Princípio protestante e substancia católica”: subsídios para a
compreensão de uma importante fórmula de Paul Tillich. Revista
Eletrônica Correlatio, vol. 5, no. 10, 2006, p. 5-18.
584
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 352.

574
Considerações conclusivas: a autointerpretação
simbólica e o caráter da determinação da teologia
como ciência concreta e normativa da religião

Este capítulo reconstruiu a teoria dos símbolos de


Tillich desde seu primeiro emprego deste conceito no
artigo Rechtfertigung und Zweifel, de 1919, até o
desenvolvimento de uma fundamentação teórica mais
propriamente sistemática, tal como presente, sobretudo, no
artigo Das religiöse Symbol, de 1928. Os pressupostos
teóricos e sistemáticos fundamentais que conduzem a
reflexão de Tillich à elaboração de uma teoria dos símbolos
se encontram, conforme demonstrado nesta breve
reconstrução histórico-genética de sua Symboltheorie, no
conceito de “paradoxo absoluto” 585 . No contexto do

585
L. C. HEINEMANN. Sinn – Geist – Symbol: Eine systematisch-
genetische Rekonstruktion der frühen Symboltheorie Paul Tillichs, p.
436 [nota 102] afirma que, conquanto exista uma proximidade
estrutural-sistemática entre o conceito de paradoxo e o conceito de
símbolo, não é possível, entretanto, afirmar uma continuidade entre
ambos os conceitos. Heinemann afirma, não sem razão, que, em seus
escritos iniciais, Tillich possui uma lógica de mediação supostamente
superior à lógica simbólica em mente. A Systematische Theologie de
1913, de acordo com Heinemann, é particularmente importante para a
afirmação de uma descontinuidade entre a teoria dos símbolos madura
de Tillich e o conceito de paradoxo na medida em que demonstra não
apenas uma grande apreciação pelo conceito “especulativo”, como
também instaura um sistema de pensamento altamente especulativo
que guia toda a obra. Em que se pesem as ressalvas de Heinemann, no
entanto, é importante perceber que, embora o conceito de símbolo
somente alcance sistematização no artigo de 1928, os pressupostos
teóricos e sistemáticos fundamentais que conduzem a reflexão de
Tillich à elaboração de uma teoria dos símbolos se encontram
precisamente no conceito de paradoxo, e não em outro lugar. Desta
forma, a asserção de Christian Danz de que no conceito de paradoxo se

575
desenvolvimento de sua reflexão intelectual, o conceito de
símbolo é empregado como categoria que intenciona
solucionar o problema das objetificações oriundas da
intuitividade irrefletida face à vitalidade e concretude do
paradoxo absoluto. É precisamente este conceito de
paradoxo absoluto, posteriormente interiorizado em sua
dialética do Supra, que passa a determinar, num nível
crescente, o processo de inscrição de uma polaridade
interna na própria constituição do espírito.
O resultado deste processo de demarcação do
caráter paradoxal na própria estrutura constitutiva do
espírito encontra sua formulação mais importante no
“monismo do sentido” elaborado por Tillich, sobretudo, a
partir de suas correspondências com Emanuel Hirsch entre
os anos de 1917 e 1918. É esta perspectiva estritamente
monista, então substanciada por uma teoria idealista-
neokantiana do sentido, que se torna a perspectiva
fundamental responsável por guiar a totalidade da reflexão
filosófica e teológica de Tillich – e isto, desde a elaboração
da dialética do Supra e da fórmula “Deus além de Deus”
até seu opus magnum. Por outro lado, esta perspectiva
estritamente monista, que conforma o pensamento de
Tillich no período do pós-guerra, impede uma leitura de

encontra “a autorrelação do espírito como uma relação simbolicamente


mediada” (Cf. C. DANZ. Symbolische Form und die Erfassung des
Geistes im Gottesverhältnis. Anmerkungen zur Genese des
Symbolbegriffs von Paul Tillich, p. 63; veja, igualmente, a p. 67) é
justificada. Novamente, o que Danz sugere não é que o conceito de
símbolo já esteja presente nos escritos iniciais de Tillich, mas, antes,
que seus pressupostos fundamentais já se encontram firmemente
alicerçados, e são precisamente estes pressupostos que conduzirão o
pensamento de Tillich à sistematização de seu conceito de símbolo e
ao estabelecimento de uma teologia sistemática essencialmente
simbólica.

576
seu pensamento a partir da assunção de uma ontologia
precrítica enquanto fundamento de seu sistema586. Mesmo
o emprego da doutrina da analogia entis, conforme visto,
não pode, sob o prisma de seu monismo do sentido, ser
interpretado como uma dimensão constitutiva de seu
pensamento sistemático tardio. Em conformidade com a
dependência de seu pensamento em relação aos impulsos
da filosofia kantiana e pós-kantiana, o recurso de Tillich à
doutrina da analogia entis possui, antes, um caráter
meramente ilustrativo, e não constitutivo. Assim, por mais
que o percurso da reflexão intelectual de Tillich seja
marcado por alterações e novas determinações sistemáticas
e conceituais, como sua guinada em direção a uma teoria
idealista-neokantiana do sentido atesta, os alicerces
filosófico-transcendentais da filosofia alemã clássica jamais
são abandonados em seus escritos ulteriores. Não é
possível, portanto, assinalar uma guinada existencial-
ontológica em seu pensamento587 na medida em que Tillich

586
Aqui, contra as posições de W. SCHÜßLER. Abkehr von der
Bewusstseinsphilosophie. Zur Kulturtheologie des späten Tillichs, p.
164-168; J. RICHARD. Tillich’s First and Last Lectures on Philosophy
of Religion. Berlin 1920 and Harvard 1962, p. 259-278; e, em nosso
contexto, E. A. HIGUET. As relações entre religião e cultura no
pensamento de Paul Tillich. Revista Eletrônica Correlatio, no. 14,
2008, p. 123-143; IDEM. Ontologia e religião na teologia da cultura de
Paul Tillich – A contribuição da ontologia para a análise religiosa da
cultura. Revista Eletrônica Correlatio, vol. 11, no. 22, 2012, p. 5-21;
IDEM. Falar de Deus no limite dos tempos: A contribuição de Paul
Tillich à superação do teísmo na modernidade tardia. Revista
Eletrônica Correlatio, vol. 13, no. 26, 2014, p. 29-50; R.
JOSGRILBERG. Uma leitura pós-heideggeriana da onto-teologia de
Tillich. Revista Eletrônica Correlatio, vol. 11, no. 21, 2012, p. 59-76.
587
M. BOSS. Au commencement la liberté: La religion de Kant
réinventée par Fichte, Schelling et Tillich, p. 9-10; IDEM. Paul Tillich
and the Twentieth Century Fichte Renaissance: Neo-Idealistic Features

577
permanece, durante a totalidade de seu itinerário
intelectual, “um idealista, um filósofo do espírito e do
sentido e da autorrelação do incondicionado”588.
A elucidação da função determinante da linguagem
simbólica enquanto meio de autointerpretação da
subjetividade individual na autotransparência de sua
reflexividade interna, isto é, como instrumento objetivo por
meio do qual o autoesclarecimento das condições
constitutivas da subjetividade individual em sua
autorrelacionalidade e finitude encontra expressão,
constitui um motivo permanente da teoria da teologia de
Tillich. Pois, para Tillich, a teologia somente pode ser
concebida como “um sistema que compreende a totalidade
da autointerpretação do homem e do sentido de sua
vida”589. Enquanto um sistema, contudo, a teologia não
constitui, para Tillich, nenhum substituto para a religião
vivida em sua concretude histórica. Na medida em que a
teologia constitui um modo reflexivo de explicação da
substância conceitual de uma religião, ela possui como
função mais própria a tarefa de realizar a determinidade da
atualização religiosa. Esta determinação da função da
teologia atesta não somente que ela deve estar sempre
relacionada a uma religião concreta e positiva, mas também
que ela mesma se autoconstitui como uma função teórica
que opera de um modo conceitualmente discursivo. É, pois,

in His Early Accounts of Freedom and Existence, p. 14-16; IDEM.


Which Kant? Whose Idealism? Paul Tillich’s Philosophical Training
Reappraised, p. 26-30.
588
C. DANZ. Paul Tillich’s Philosophy, p. 186.
589
P. TILLICH. Morality and Beyond. (1936). In: E. STURM. (Hg.). Main
Works – Hauptwerke. Band 3: Sozialphilosophische und ethische
Scriften, p. 651-712, aqui, p. 655.

578
precisamente por esta dupla razão que Tillich determina a
teologia como ciência concreta e normativa da religião590. Este
motivo é igualmente decisivo para a Systematic Theology de
Tillich, na medida em que ela é explicitamente construída
com base em estruturas que se originam a partir de uma
análise filosófica591 e que são assumidas, desta forma, pelo
“círculo teológico”592 de uma determinada religião concreta
ou positiva. Sobre a base destes dois aspectos, o sistema
teológico não constitui nem uma determinação do conceito
de religião, por um lado, nem uma especificação descritiva
de uma religião particular, por outro. Antes, a tarefa
sistemática da teologia consiste em realizar uma síntese de
ambos os aspectos. Posto de forma mais direta, a tarefa
sistemática da teologia consiste, enquanto ciência concreta e

590
P. TILLICH. Über die Idee einer Theologie der Kultur, p. 71.
591
“So, the question is raised: henceforth, how is philosophy of religion
related to theology, and where is it to be found in the Systematic
Theology? We know that Tillich is rather evasive on that point”. J.
RICHARD. Tillich’s First and Last Lectures on Philosophy of Religion.
Berlin 1920 and Harvard 1962, p. 278. Esta pergunta de Jean Richard
revela-se, a partir de uma reconstrução histórico-genética do
pensamento de Tillich, como completamente desprovida de
fundamentação. A filosofia da religião não apenas se relaciona com a
Systematic Theology: antes, ela é a própria fundamentação já
pressuposta e devidamente articulada na totalidade de seu opus
magnum. Contra esta interpretação rudimentar, pesam as próprias
sentenças de P. TILLICH. Religionsphilosophie, p. 120-121: „Jede
Theologie ist abhängig von dem vorausgesetzten Wesensbegriff der
Religion, und jede Religionsphilosophie von dem Normbegriff der
Religion, und beide von der Erfassung des geistesgeschichtlichen
Materials. Aus diesem Grunde wollen wir die eigentliche
Religionsphilosophie, also die Lehre vom Wesen und den Kategorien
des Religiösen, ausführlich behandeln, die Geistesgeschichte dagegen
nur in kurzer Erwähnung der Hauptrichtungen und die Theologie
lediglich durch allgemeine Bestimmung des religiösen Normbegriffs“.
592
P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,
Being and God, p. 8-11.

579
normativa da religião, em integrar sinteticamente a análise
filosófica da essência da religião formal e a religião positiva
num sistema normativo593. Esta função normativa é refletida
já na própria forma da racionalidade peculiar que é
intrínseca à teologia enquanto ciência. Isto porque a forma
da racionalidade da teologia não é nem puramente
conceitual, por um lado, nem puramente simbólica, por
outro. Como Tillich afirma em sua Dogmatik de 1925, a
tarefa sistemática da teologia consiste em perceber que os
símbolos possuem o poder de unir “o caráter conceitual da
metafísica com o caráter intuitivo do mito, pois os símbolos
agarram o incondicionado como aquilo que sustenta
universalmente sobre a base do concreto que me
sustenta”594. Esta “bilateralidade característica” da teologia
sistemática, que caracteriza, de acordo com Tillich, “todos
os símbolos dogmáticos”595, assinala sua distinção tanto da
filosofia quanto da religião concretamente vivida. Neste
sentido, pode-se afirmar que a teologia sistemática
compartilha seu caráter conceitual com a filosofia, por um
lado, e o caráter intuitivo do símbolo com a religião, por
outro. Na síntese de ambos os momentos, tanto sua
independência quanto sua relação com a filosofia e a
religião vivida são, concomitantemente, fundamentadas596.
Enquanto uma apresentação normativa da
substância de uma religião determinada ou positiva, a

593
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 413.
594
P. TILLICH. Dogmatik-Vorlesung. (Dresden 1925-1927), p. 93.
595
P. TILLICH. Dogmatik-Vorlesung. (Dresden 1925-1927), p. 93.
596
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 413.

580
teologia sistemática não pode excluir a religião vivida. Pois,
enquanto uma forma de reflexão da atualização religiosa, a
teologia sistemática está ciente da duplicidade irredutível
de determinidade e atualização que caracteriza a religião
enquanto fenômeno humano. Isto porque, assim como o
sistema teológico elucida, sob a forma de doutrinas, a
determinidade de uma religião, também a doutrina possui
“um ponto supraconceitual, tendo-se em vista que ela
ambiciona a certeza imediata que é atualizada do lado
humano”597. O contraste entre a determinidade teológica e
a certeza imediata que aqui irrompe é, em si mesmo, um
indício da duplicidade irredutível de ambos os aspectos. Do
mesmo modo como a teologia, enquanto um sistema
normativo que sintetiza a análise filosófica da essência da
religião e a religião vivida em sua concretude histórica, faz
uso tanto de conceitos filosóficos quanto do caráter
intuitivo dos símbolos que são a expressão direta do
religioso, também a religião concretamente vivida, por
meio de atos de fé e doutrinas, intenciona agarrar a
universalidade que jaz na base de sua realização histórica.
Sem dúvidas, a religião vivida em sua piedade mais
característica não necessita de conceitos abstratos para
expressar a dimensão de profundidade que constitui seu
próprio fundamento. Não obstante, na medida em que esta
dimensão de profundidade que fundamenta a religião já
está sempre pressuposta de uma forma invariável e
universal, também a piedade pode ambicionar a certeza
imediata que a fundamenta de forma última e

597
C. DANZ. Religion als Freiheitsbewußtsein. Eine Studie zur
Theologie als Theorie der Konstitutionsbedingungen individueller
Subjektivität bei Paul Tillich, p. 413.

581
incondicional. Conforme visto, ao definir a teoria
estrutural ontológica como uma metateoria e, desta forma,
distingui-la da religião vivida, Tillich abre espaço,
precisamente por meio desta separação, também para uma
coincidência. Novamente em suas palavras: “afirmações
religiosas não necessitam de uma tal fundação para aquilo
que elas dizem sobre Deus; a fundação está implícita em
todo pensamento religioso concernente a Deus”598. Neste
sentido, a duplicidade irredutível entre determinidade e
atualização, que ocupa a teologia enquanto um
empreendimento sistemático-normativo, revela-se
presente, de igual forma, na religião vivida. Embora Tillich
sistematize as distinções entre filosofia, teologia e religião
vivida, não há, na totalidade da sua obra, uma separação
tão radical que seja intransponível. A própria linguagem
simbólica, enquanto a única forma de expressão direta da
religião, revela, em sua estrutura constitutiva, a interface
distintiva e a mútua interpenetração entre filosofia,
teologia, e religião vivida. Pois, na medida em que toda
teologia precisa fazer referência a uma filosofia da religião
enquanto seu momento de fundamentação; e na medida
em que a filosofia da religião precisa se voltar para a
teologia enquanto seu momento de concretude e
normatividade; o símbolo se torna, desta forma, o ponto de
convergência por excelência entre determinidade e
atualização. A religião vive nos símbolos. Mas, os símbolos
são, por sua vez, a forma direta e inautêntica de
autoexpressão da dimensão universal de incondicionalidade

P. TILLICH. Systematic Theology. Volume I: Reason and Revelation,


598

Being and God, p. 239.

582
da subjetividade na dinâmica interna de sua
autorrelacionalidade reflexiva.

583

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