Você está na página 1de 30

A categoria Instrumentalidade do Serviço Social no equacionamento de “pseudos

problemas” da/na profissão

YOLANDA GUERRA*

ABSTRACT

A categoria ontológico-analítica “instrumentalidade” no dimensionamento da relação


entre as construções teóricas que orientam o Serviço Social e a prática profissional do
assistente social. Dois “falsos” problemas da/na profissão: a dicotomia entre teoria e
prática no Serviço Social e a ausência de instrumental técnico para a intervenção.

INTRODUÇÃO

A nossa profissão, ao longo da sua trajetória, vem se caracterizando pelo não


enfrentamento de algumas problemáticas, o que, no meu entendimento, tem produzido,
reproduzido e alimentado algumas insuficiências de natureza ídeo-teóricas, políticas e
prático-operativas, dentre as quais quero destacar a ausência de debates e polêmicas sobre
as diferenças e divergências existentes no interior da profissão - como se a mesma não
fosse constituída por um mosaico de visões de homem, mundo e sociedade, de projetos
políticos, de programáticas de intervenção, de racionalidades, de concepções sobre a
natureza e o significado sócio-histórico do Serviço Social, etc.

Esta ausência ou insuficiência no enfrentamento de algumas questões de fundo no


Serviço Social, a abstração das diferenças 1, a não explicitação dos conteúdos e
fundamentos teórico-políticos subjacentes nos leva, ao fim e ao cabo, a considerarmos
como problemáticas próprias da profissão tanto aqueles condicionamentos sócio-históricos
típicos da ordem burguesa madura quanto questões de natureza teórico-metodológica que
afetam as profissões sociais de caráter interventivo, como um todo. Considero que, em
ambos os casos, os assistentes sociais se debruçam sobre pseudo-problemáticas ou nas
palavras de Iamamoto, “falsos” dilemas 2, os quais, por se contraporem à realidade,
também suscitam interpretações, conclusões, requisições, encaminhamentos prático-
materiais, incorretos. Para efeito da análise que ora nos propomos, importa destacar a
repetição a-crítica de chavões, modismos, palavras de ordem, tais como “na prática a
*
Mestre em Serviço Social e Doutoranda pela PUC-SP. Autora do Livro: A Instrumentalidade do Serviço
Social (Cortez Ed., 1995).
1
Esta característica da profissão foi denunciada pela primeira vez por Netto, na apresentação do seu texto de
1990 (Cf. Netto, 1991:10).
2
A remissão que o assistente social faz à falsos dilemas é trabalhada por Iamamoto, 1982, 1991 e 1992).

1
teoria é outra” e a requisição ( a meu ver improcedente) que os assistentes sociais fazem
por modelos de intervenção, por uma pauta de instrumentos técnico-operativos: “o fetiche
dos instrumentos e técnicas ou a deificação das metodologias de ação”, ambos
sustentados pela crença em soluções imediatistas, em explicações padronizadas,
simplificadas e simplificadoras sobre a realidade social, as quais, por suprimirem as
mediações, impedem que se reflita criticamente sobre a instância de passagem entre as
teorias macrossocietárias e a intervenção profissional do assistente social e sobre o
horizonte no qual os meios e as condições para o alcance das finalidades profissionais são
escolhidos, ou melhor, sobre A Instrumentalidade do Serviço Social e suas
possibilidades no redirecionamento da racionalidade acionada na intervenção profissional.

As reflexões que se seguem buscam contribuir para o esclarecimento e equacionamento


destas questões no âmbito do Serviço Social,3, tendo em vista que ambas as problemáticas -
as relativas à relação teoria/prática e as concernentes às requisições pela criação de novos
instrumentos e técnicas de intervenção e pela recriação dos tradicionais - tem sido
recorrentes entre nós, assistentes sociais.

Em que pesem as interconexões existentes entre estas problemáticas, no intuito de


dedicar-lhes o tratamento mais esclarecedor e didático possíveis, fui conduzida em alguns
momentos a abordar cada uma das temáticas em separado, para, em seguida, priorizar o
entrelaçamento entre elas e de ambas com a Instrumentalidade do Serviço Social, esta,
aqui concebida como a base material particular na qual tais problemáticas se expressam.

NA PRATICA A TEORIA É OUTRA

O primeiro conjunto de “pseudos” problemas que esta análise pretende destacar, refere-
se à falsa concepção de que na prática a teoria é outra, ou seja, a dicotomia entre saber e
fazer, entre ser e pensamento, entre objetividade e subjetividade, e, conseqüentemente, à
visão equivocada de que o Serviço Social tem teoria demais.

Estas afirmações, que apesar da sua superficialidade tem se constituído num dos
“chavões” que tem atravessado historicamente a profissão, sugerem haver uma lacuna,
uma desarticulação ou até mesmo um divórcio entre teoria e prática e que este alcançaria
sua expressão mais desenvolvidas naquelas intervenções profissionais que intentam romper
com os substratos teórico-metodológicos positivistas. Estes substratos, histórica e
3
Contudo, entendo que tais questões não são exclusivas nem específicas do Serviço Social, mas ao contrário,
extrapolam os estreitos limites das profissões e das instituições sociais.

2
insistentemente, tem acompanhado as formas de ser, pensar e agir a/ na profissão. Ainda,
são as formas de intervenção e os profissionais que buscam romper com os limites -
teóricos, metodológicos, políticos e operativos - impostos pelas vertentes positivistas,
àqueles tidos como responsáveis pelo fosso que se abriu, segundo a opinião de um número
significativo de profissionais, a partir da incorporação da tradição marxista no Serviço
Social e, por isso, os profissionais legatários das formulações do marxismo são, ao mesmo
tempo, responsabilizados pela suposta fratura e convocados a formularem uma pauta de
instrumentos de intervenção que redunde em transformações substantivas e efetivas na
realidade social. Considera-se que “há um flagrante hiato entre a intenção de romper com o
passado conservador do Serviço Social e os indicativos práticos para consumá-la” (Netto,
1991a: 161).

Com efeito, a perspectiva marxista, com a qual pactuo, pela sua radicalidade, ortodoxia 4
e busca dos fundamentos últimos, me autoriza a afirmar que tanto a dicotomia
teoria/prática quanto a referencialidade do assistente social ao instrumental técnico
enquanto inibidor ou potencializador da intervenção profissional não passam de opiniões
equivocadas.

As formulações teórico-metodológicas de Marx, da qual no Serviço Social a vertente da


intenção de ruptura é herdeira, entende haver uma auto-implicação entre teoria social e
método. Nesta, o papel da teoria é o de iluminar as estruturas e a dinâmica dos processos
sociais, as determinações contraditórias dos fatos e fenômenos, dissolver a positividade dos
fatos pela sua negação, mas não oferece, nem se propõe a isso, uma pauta acerca dos
instrumentos de intervenção sobre a realidade social. A concepção de método, no âmbito
do referencial marxiano, como o caminho do pensamento, a direção analítica, que obedece
ao movimento do objeto, afasta-se muito daquela que toma o método como o conjunto de
procedimentos e/ou regras do conhecimento5 ou, ainda, como meio de aplicação deste
conhecimento 6.

No que toca as formas de considerar as teoria e práticas vigentes no interior do Serviço


Social, sumariamente, podemos considerar que há três tendências que acompanham a
trajetória da profissão, as quais vêm se manifestando de maneira híbrida:

1. Para os profissionais que têm a prática como o fundamento de determinação das suas
ações, as teorias não passam de construções abstratas, já que situam-se secundariamente
4
No sentido lukácsiano do termo, qual seja, ortodoxia no que se refere ao método.
5
O legado de Durkheim é exemplar.
6
Bem ao gosto do Serviço Social tradicional e seus métodos de Caso Grupo e Comunidade.

3
frente a prática, cabendo a esta, em última instância, fornecer indicativos sobre os
instrumentos operativos capazes de possibilitar uma ação efetiva nas situações concretas.
Aqui, a repetibilidade da prática autoriza a formulação de procedimentos, baseados nas
experiências anteriores e válidos para situações análogas, que são transformados em
modelos de intervenção.

Deste modo de ver a relação teoria-prática, cujo substrato localiza-se no empiricismo


positivista, de um lado (a prática fala por si mesma)e no pragmatismo, de outro, decorre
que: estas duas determinações singulares, estes modos de ser dos processos sociais - o
empírico e o pragmático - são tomados sem as devidas articulações com o particular e com
o universal, e, ainda, que as ações imediatas desencadeadas sobre a realidade são
identificadas como prática profissional. Ao considerarem o empírico e o pragmático como
prática, os assistentes sociais (mas não apenas), podem denunciar, e com toda razão, uma
total dicotomia com a teoria.

2. Para o profissionais que consideram que as construções teóricas são determinantes da


prática, a opção do profissional por uma teoria passa a se constituir na sua "camisa de
força" (ou se limita ao âmbito de mera declaração de princípios), uma vez que esta aparece
como a expressão mais formalizada e completa da realidade, dela exigindo respostas e
instrumentos capazes de colocar a "teoria em ação". O valor da teoria, neste caso, consiste
em construir um quadro explicativo do objeto que contemple um conjunto de técnicas e
instrumentos de valor operacional. Concebidas como paradigmas de explicação da
realidade social, os que desta visão compartilham, esperam que as teorias lhes forneçam as
explicações os modelos de intervenção sobre a realidade social. Aqui, essa distorção entre
teoria e prática é inevitável: se a realidade social é histórica, dinâmica, contraditória,
objetiva, possui causalidades postas pelo pôr teleológico dos homens, a utilização de
modelos estaria, no mínimo, sendo disfuncional, impertinente e improcedente à qualquer
aspiração, ainda que limitada, de aproximação do conhecimento da realidade.

No primeiro caso, o reconhecimento das possibilidades das teorias se dá, apenas, em


nível do discurso profissional, posto que o processo mesmo de construção teórica a nega.
No segundo, suas possibilidades localizam-se nas respostas produzidas pelo confronto
entre os modelos teóricos e a realidade. Aqui, se a prática não corresponde aos modelos de
ação profissional, há que ser modificada.

4
3. Há, ainda, uma terceira tendência que, no meu entendimento, difere das anteriores
quanto a concepção que tem de teoria. Esta vertente reconhece a teoria como processos de
re-construção, de re-figuração da realidade pelo pensamento, vinculada a projetos de
sociedade determinados, a visões de homem e mundo, frente aos quais o profissional
assume uma posição, e a determinados métodos de conhecimento e interpretação da
sociedade. Embora dimensione coerentemente tais influências, também reclama a ausência
de indicativos teórico-práticos que possibilitem romper com o ranço conservador que
acompanha a trajetória da profissão.

O que cabe considerar com relação a estas três tendências, apresentadas


esquematicamente, é que:

Em primeiro lugar há uma redução na forma de conceber as teorias, limitando suas


contribuições ao nível de dar respostas imediatas às situações concretas e, ainda, de
fornecer instrumentos para a intervenção. Neste caso, trata-se de "teorias de resultados" e o
pressuposto é o de que há uma relação direta e imediata entre teoria e prática.

Em segundo, não consideram que teoria e prática, pensamento e ação, idealidade e


materialidade, possuem naturezas diversas.

E finalmente, em terceiro lugar, não permitem a elucidação dos princípios que subjazem
às noções de teoria vigentes na profissão e esta questão remete ao outro pólo da relação,
qual seja, qual a concepção que se tem de Serviço Social (Arte, Ciência, Técnica,
Trabalho).

Porém, há mais problemas na relação teoria/prática no Serviço Social do que podemos


supor. Tentaremos captar alguns, obedecendo a ordem dos enunciados precedentes.

No que tange a requisição dos profissionais por teorias que respondam às necessidades
da intervenção profissional temos a considerar que entre teoria e prática não há
correspondência direta e imediata. A relação entre elas se processa por mediações ou
sistemas de mediações (de natureza objetiva e subjetiva) que envolvem experiências,
escolhas adequadas (dentre elas a do método e dos instrumentos), representações,
concepções de mundo, projetos de sociedade, conjunturas sócio-históricas.

Por que não há uma passagem direta da teoria à prática?

A problematização desta questão requer uma remissão à premissa (na qual nos
apoiamos) de que teorias sociais são reflexões sistemáticas que tendem a elaborar uma

5
explicação macroscópica sobre a sociedade, e neste sentido há diferentes teorias e
diferentes métodos que se aproximam mais ou menos da realidade social. A realidade
social, por sua vez, apresenta múltiplas e complexas determinações que nem sempre se
explicitam de forma concreta, o que limita as possibilidades da razão em compreendê-la na
sua totalidade. Além do mais, as teorias são sempre post festum7, ou seja, o conhecimento
só se realiza a posteriori dos fatos. Isto explica a defasagem que se explicita na relação
teoria/prática.

Conforme afirmamos, se concebermos teoria como a (re)figuração do movimento de


constituição dos fenômenos e processos sociais há que se considerar que esta apreensão da
realidade pela via do pensamento se encontra repleta de mediações de diferentes naturezas:
experiências diversas, visões de homem e mundo, projetos de sociedade, representações,
relações sociais.

Há, ainda, dois pontos que merecem ser enfatizados.

O primeiro refere à natureza dessas instâncias. Embora considerando teoria/prática,


pensamento/ação, objetividade/subjetividade como dois pólos de um mesmo movimento,
não há uma identidade entre elas. Tampouco pode haver preponderância de uma sobre a
outra.

O segundo é o de que não se extrai teoria da prática, muito menos é função das teorias
sociais oferecer respostas e procedimentos manipulatório às práticas profissionais
localizadas e particulares.

A compreensão dessas questões e sua relação com o Serviço Social exige uma reflexão
que extrapole suas fronteiras.

Nesta direção, há que se considerar que o processo de elaboração teórica exige uma
suspensão temporária com o cotidiano. Este processo constitui numa modalidade
específica de objetivação humana fundamentada em finalidades conscientes e
determinadas para a qual os sujeitos canalizam toda sua atenção e elevam sua
singularidade ao humano-genérico. Diz Lukács (na obra "Introdução a uma estética
marxistas"): "para que nasça um conceito é necessário que as percepções importantes para
a vida se tornem autônomas em relação a causa delas". Para este autor, o momento da

7
Diz Marx, “A reflexão sobre as formas de vida humana e, portanto, também sua análise científica, segue
sobretudo um caminho oposto ao desenvolvimento real. Começa post festum e, por isso, com os resultados
definitivos do processo de desenvolvimento” (1985a:73).

6
conceituação se desenvolve no curso do processo de socialização dos homens (Lukács,
1968).

A atividade prática, por sua vez, se constitui numa ação racional de sujeitos reais. Neste
sentido, as atividades práticas podem ser sistematizadas pelos sujeitos que a realizam,
porém esta sistematização, que é um passo necessário e que antecede as elaborações
teóricas propriamente ditas, não se constitui em teorias.

Se por um lado, práticas profissionais não produzem teoria, por outro, podem contribuir
para o avanço no conhecimento científico acerca de algumas questões e de determinados
objetos de intervenção.

Como se pode observar, há momentos teóricos e momentos práticos. Não pode haver o
primado de um sobre o outro, mas uma hierarquia nas determinações em situações
específicas.

A unidade teoria/prática é dada pela realidade, que é a base material de ambas.

Se compreendemos que a realidade se movimenta por contradições, não há como aceitar


nem a perspectiva de equilíbrio e homeostase que as correntes funcionalistas querem nos
fazer crer, nem os procedimentos e princípios da lógica formal, menos ainda àqueles
utilizados pelas correntes organicistas, para as quais não há distinção entre natureza e
sociedade.

É por isso que, a meu ver, as teorias que se baseiam em modelos, e até se gabam disto,
não dão conta de explicar o movimento, as transformações, as alterações sociais, ou
melhor, a realidade, e sequer podem ser pensadas como paradigmas mas como tipologias,
no sentido mais vulgar do termo.

No que se refere mais diretamente ao Serviço Social, resguardadas as devidas


diferenças, há que se considerar que a realidade social enfrentada pelo profissional, ou as
demandas das classes que a intervenção profissional polariza (e que se colocam como
objetos de intervenção profissional) são contraditórias e possuem amplas e complexas
determinações que vão além das possibilidades dos agentes profissionais de captá-las e
que, conforme afirmamos anteriormente, o conhecimento é sempre a posteriori, processual,
aproximativo e relativo.

A dificuldade em estabelecer as mediações entre as teorias sociais macroscópicas, as


práticas sociais e profissionais e as singularidades da intervenção profissional do assistente

7
social, nos leva a incorrermos à duas concepções errôneas de teoria: ou como modelo de
intervenção ou como justificação da prática, ambas estranhas à realidade social.

Por outro lado, sendo o Serviço Social um trabalho, um ramo de especialização da


divisão social e técnica do trabalho, uma profissão de caráter eminentemente operativo, o
Serviço Social não tem teoria própria. Se baseia em concepções extraídas das ciências
sociais ou da tradição marxista8 e num conjunto de procedimentos técnico-instrumentais,
muitas vezes recriados pelos profissionais para responder à sua funcionalidade.

Se aceitarmos o primado ou a autonomia da teoria frente a prática e vice versa,


incorremos na falsa concepção de que a opção do profissional por uma teoria é aleatória,
casuística, oportuna, instrumental ou contingente e eclética (depende da experiência ou
das circunstâncias). Ao contrário, há que se reconhecer que a escolha por uma teoria
encontra-se permeada por experiências pessoais, concepções de mundo, projetos
societários e, no limite, encontra-se referida tanto às necessidades de compreensão quanto
ao nível de exigência e satisfação dos profissionais pelo alcance e grau de explicação e
aproximação da realidade fornecidos pelas teorias. São as perguntas que os homens fazem
aos seus objetos que circunscrevem o alcance e o campo de visibilidade dos sujeitos. São
as respostas que os homens dão às suas necessidades que os colocam num determinado
patamar que lhes aproxima mais ou menos do conhecimento da verdade. Do mesmo modo
é a congruência entre o nível de exigência dos indivíduos e o grau de explicação de uma
teoria que determinam esta escolha (Cf. Lukács, In: Guerra, 1995).

Contudo, não se pretende negar que há um descompasso entre as análises e reflexões


macroscópicas e aquelas referentes à intervenção profissional do assistente social. Porém,
como tentei demonstrar, estou convencida de que este descompasso não é provocado pela
insuficiência ou ausência de instrumentos e técnicas (ou de metodologias de ação).

A estes “nós” referentes a relação teoria/prática, vincula-se diretamente a questão da


maneira entronizada com que os assistentes sociais encaram os instrumentos e técnicas
convencionalmente utilizados na intervenção profissional, ou a forma deificada com que
concebem e até utilizam as supostas “metodologias de ação do Serviço Social”. Estes se
constituem no segundo conjunto de pseudo-problemas que esta análise pretende
desmitificar.

8
A alternância destes conhecimentos numa mesma prática redunda no ecletismo.

8
O FETICHE DOS INSTRUMENTOS E TÉCNICAS OU A DEIFICAÇÃO DAS
METODOLOGIAS DE AÇÃO

A análise dessa problemática nos demonstra haver da parte dos assistentes social
algumas exigência para a criação de "novos" instrumentos de ação profissional, bem como
de "recriação" dos tradicionalmente utilizados na intervenção profissional. Esta exigência
tem se manifestado tanto nos eventos representativos da categoria como no interior da
academia. Com base nestas preocupações há, a partir de meados da década de 80, uma
retomada das discussões acerca do instrumental técnico-operativo. Ainda que manifestada,
muitas vezes, de maneira fluída e apartada dos viéses metodologistas que perpassam a
profissão, a requisição por instrumentos e técnicas vem persistindo no meio profissional.

Não se trata de reeditar novas fórmulas para atendimento individual, grupal ou


comunitário; tampouco de reforçar o equívoco de que há instrumentos diferentes para cada
um dos "processos" tradicionais do Serviço Social substituídos, neste momento, pelas
denominações de funcionalismo, fenomenologia e materialismo histórico. Trata-se, e isto
se constitui em consenso resultante do amadurecimento teórico da categoria profissional,
de atribuir uma nova qualidade à intervenção; de recuperar o crédito historicamente
depositado na profissão - tanto pelos usuários dos seus serviços quanto pelo segmento da
classe que a contrata - de reconhecer a natureza das demandas, os modos de vida dos
usuários, suas estratégias de sobrevivência, enfim, de deter uma competência técnica e
intelectual e manter o compromisso político com a classe trabalhadora.

Minha argumentação obedece a duas ordens de razões que se relacionam entre si.

A primeira refere-se às condições objetivas nas quais a intervenção profissional se


realiza; a segunda é relativa a proposta teórico-metodológica marxiana, que se coloca
como o substrato da perspectiva de "intenção de ruptura".

No primeiro nível temos que a operacionalização de qualquer proposta passa pela


existência de condições objetivas, determinadas pelas relações de causalidade entre os
processos que, dinâmica e contraditoriamente, movimentam os fenômenos postos na
realidade. Não fosse por outras razões, o movimento que dimana a institucionalização da
profissão, a forma pela qual sua inserção na divisão social e técnica do trabalho se realiza,
a fluidez posta nas definições sobre a natureza e atribuições operacionais da intervenção
profissional, já se colocariam como problemáticas suficientes para engendrarem
constrangimentos à intervenção profissional e, conseqüentemente, constituírem-se em

9
campo de investigação. Porém, há mais: sabe-se que as condições nas quais a intervenção
profissional se processa são as mais adversas possíveis: pulverização e ausência de
recursos de toda ordem para atendimento das demandas; exigência pelo desempenho de
funções que muito se afastam do que o assistente social, ou qualquer outro profissional, se
propõe a realizar; baixos salários; alto nível de burocratização das organizações; fluidez e
descontinuidade da política econômica; e ainda que, o tratamento atribuído à questão
social, através das políticas sociais estatais e privadas, é fragmentado, casuístico, paliativo.
Deste modo, as condições objetivas colocadas à intervenção profissional não dependem,
apenas, da postura teleológica individual dos seus agentes e de seus instrumentos de
intervenção. A própria lógica que move a ordem burguesa, pelas contradições,
fragmentações e abstrações que produz e a sustentam, constrange qualquer prática que
intencione romper com o conservadorismo que nutre esta mesma sociedade, sobretudo
porque essa intervenção se opera sobre demandas absolutamente divergentes e, até
mesmo, contraditória9. Porém, há que se relevar que as atividades dos indivíduos são
teleológicas e porisso o "...fator subjetivo, resultante da reação humana a tais tendências de
movimento, conserva-se sempre, em muitos campos, como um fator por vezes modificador
e, por vezes, até mesmo decisivo" (Lukács, 1978:11) e neste sentido compete-nos atuar em
direção do estabelecimento das condições materiais necessárias a uma intervenção
profissional que supere a prática burocratizada, imediatista, reformista. Neste âmbito, a
necessidade de reconhecer as estratégias e táticas políticas de ação (o “quando e
onde”) secundariza a preocupação com o instrumental técnico10.

O segundo ponto que sustenta nossa argumentação coloca em questão a proposta


teórico-metodológica marxiana. Sabemos que Marx preocupa-se com a lógica que
movimenta um objeto determinado: a ordem burguesa. Conforme argumentamos no item
anterior, a teoria marxiana consiste em (re)produzir, ao nível do pensamento, o movimento
real do objeto, mas jamais a realidade, uma vez que esta é muito mais rica e plena de
determinações (uma totalidade inacabada, um vir a ser) que as possibilidades da razão em
apanhá-la. Mas a razão, já em Hegel, é astuciosa e segue a prática a todo momento, guia-a,
analisa suas transformações, formula conceitos de acordo com elas, enfim "...se converte
em força da história" (Gorender, In: Guerra, 1995:29), o que pressupõe uma imbricação

9
Nunca é demais relembrar que as demandas que convocam a profissão são oriundas do capital e do trabalho,
mas que se diferenciam entre aquelas oriundas dos setores organizados e não organizados dos trabalhadores.
10
A tentativa de dimensionar adequadamente a relação dialética entre causalidade postas nas condições
objetivas de trabalho e o pôr teleológico dos agentes profissionais (neste caso dos assistentes sociais),
encontra-se em Guerra, 1995:177-184).

10
necessária entre teoria, prática e método uma vez que este "...objetiva reproduzir
conceitualmente o real na totalidade inacabada dos seus elementos e processos" (Idem,
Ibidem). A história, entendida como acumulação de forças produtivas, fornece o material
para a análise da razão. As categorias extraídas da história são remetidas a ela; a razão se
historiciza e a história se racionaliza. Como vimos defendendo, entre o conhecimento e
ação há mediações de diferentes naturezas, que incorpora as determinações objetivas da
realidade e subjetivas, concernentes aos sujeitos sociais que, embora desveladas pelo
método, não são por ele solucionadas. Exigir das formulações marxianas respostas a um
nível de intervenção na realidade, referente a um ramo de especialização da divisão social
e técnica do trabalho, é transformá-las numa técnica social ou, no limite, enquadrá-las na
lógica formal.

Com estas observações não pretendemos adiar ou afastar, mais uma vez, as discussões
acerca do instrumental técnico, sequer negar a importância da discussão e equacionamento
desta questão para a profissão. O que se pretende demonstrar é que grande parte dos
problemas apontados pelos profissionais como provocados pela ausência de
sistematização do instrumental técnico, não se localiza nele.

Isto porque há algo que precede a discussão de instrumentos e técnicas para a ação
profissional, que no nosso entendimento refere-se à Instrumentalidade do Serviço Social,
ou melhor, à dimensão que o componente instrumental ocupa na constituição da profissão.
Para além das definições operacionais (o que faz, como faz), necessitamos compreender
"para que" (para quem, onde e quando fazer) e analisar quais as conseqüências que no
nível "mediato" as nossas ações profissionais produzem.

Finalmente chegamos ao que considero a base material na qual estas concepções


equivocadas se edificam: A Instrumentalidade do Serviço Social.

O que se está entendendo por “Instrumentalidade"?

A categoria Instrumentalidade, configurada no seu aspecto mais amplo e geral, como


uma condição do processo de trabalho, como uma atividade pré-idealizada e direcionada
para o alcance de finalidades, na ordem burguesa passa a ser uma mediação na relação
entre os homens. A sociedade capitalista encontra-se amparada num nível de racionalidade,
entendida como formas de ser, pensar e agir historicamente construídas, racionalidade esta
que a alimenta e, ao mesmo tempo, se expressa por ações instrumentais. Neste âmbito
cabe-nos diferenciar a dimensão universal da instrumentalidade — como condição

11
necessária à reprodução da espécie humana, momento necessário na relação entre o
homem e a natureza em resposta aos seus carecimentos (Cf. Lukács, 1978:5) — e as
particularidades que a instrumentalidade adquire como categoria própria da ordem
burguesa constituída. Aqui destacam-se a instrumentalização das relações sociais,
transformando alguns homens em meios de outros homens, as ações instrumentais —
aquelas ações que priorizam a consecução de finalidades independentemente dos
fundamentos ético-políticos que estas contenham — e, finalmente, a concepção
instrumentalista da razão, ou melhor, a subsunção da Razão Moderna - humanista,
historicista e dialética - a apenas uma de sua dimensões, qual seja, a dimensão
instrumental, sacrificando, com isso, o seu caráter emancipatório.

A hipótese que orienta este momento da minha reflexão é a de que as sociedades


capitalistas se produzem e se reproduzem à base de uma inversão: o trabalho, que tem na
instrumentalidade uma determinação fundamental, de “primeiro carecimento da vida” se
transforma em único “meio de vida” (Lukács, 1978: 16). O que daí decorre é que a
“instrumentalidade posta na relação dos homens com o objeto de trabalho no ato da
produção é transposta para a relação com outros homens”(Guerra, 1995: 104), passando a
se constituir na mediação privilegiada das formas de sociabilidade entre os homens.
Quando a perspectiva instrumental - condição ineliminável das espécies - se repete, se
padroniza, se cristaliza e invade a totalidade da existência dos sujeitos, institui uma
determinada racionalidade: a racionalidade formal-abstrata (Guerra, 1995).
Mas, se a racionalidade formal-abstrata é hegemônica no capitalismo ela não é a única,
sequer a última, forma de racionalidade. Por isso, no nosso entendimento, recuperar a
perspectiva ontológica da instrumentalidade do processo de trabalho significa reconhecer
que no “pôr consciente” dos homens, na teleologia, na qual comparecem razão e vontade,
residem as possibilidades emancipadoras do trabalho humano.
No âmbito do Serviço Social sabemos que a profissão se constitui numa prática
profissional, de caráter operativo, historicamente reconhecida e legitimada pelas ações que
desenvolve na manutenção material e ideológica do sistema capitalista, especialmente do
capitalismo na sua fase monopolista. O assistente social encontra-se inserido na divisão
social e técnica do trabalho como profissional assalariado, que ocupa um espaço nas
organizações públicas e privadas de prestação de serviços, espaço este limitado à
manipulação de variáveis do contexto social no qual as ações profissionais se inserem,

12
visando dar respostas que reduzam "disfuncionalidades", estas, como sabemos,
engendradas pelos antagonismos de interesses das classes sociais.

Nesta linha de reflexão, consideramos que a alocação sócio-institucional dos assistentes


sociais como prestadores de serviços, executores de atividades finalísticas, ao
descaracterizar a profissão como um trabalho e expulsá-la da intermediação direta da
relação capital-trabalho, obscurece a natureza política da profissão e limita sua intervenção
a ações instrumentais, incidindo sobre as representações que os profissionais têm das suas
ações e da profissão.

À medida que os profissionais se deparam com situações imediatas acabam por reduzir
suas ações à manipulação de variáveis do contexto empírico no qual atuam, por que a
expectativa das organizações (públicas e privadas) em torno da ação do assistente social se
localiza na recuperação do índice de normalidade necessário ao (re) estabelecimento da
"ordem social". No nível da empiria a ação do profissional não ultrapassa a realidade
imediata das coisas, a singularidade dos fenômenos. Ao dar respostas do tipo se-então, o
assistente social aciona um determinado nível da razão ou uma racionalidade determinada
que apanha apenas a forma de aparecer dos fatos e fenômenos, mas não alcança suas
propriedades constitutivas, tampouco a sua natureza contraditória e as possibilidades de
reversão que eles portam. Esta racionalidade permite que os assistentes sociais fixem os
fatos em padrões e procedimentos pré-determinados, cristalizados, mas impede que
avancem para além deles. A racionalidade formal-abstrata, porque abstrai, esvazia os fatos
de seus conteúdos concretos e os separa das relações que os engendraram, também não
permite que se perceba a conexão, a articulação, a vinculação entre as instâncias sócio-
econômicas, políticas, ídeo-culturais, etc.

Há diferentes racionalidades na profissão entendidas como um conjunto de tendências,


formas de agir e de pensar a/ na profissão que demonstram os níveis ou graus da razão
mobilizados nas ações profissionais. Porém, o que nos importa reafirmar é que a
racionalidade hegemônica da ordem burguesa, a racionalidade positivista tem exercido
preponderância nas teorias que inspiram a profissão e nas formas de agir dos assistentes
sociais.

Por isso entendemos que a categoria Instrumentalidade, porta amplo e profundo poder
explicativo sobre a razão de ser e de conhecer a/da profissão, autorizando as afirmações
que se seguem:

13
- O Serviço Social possui uma instrumentalidade. É por meio dela que a profissão
consolida sua natureza, realiza a sua funcionalidade. Esta dimensão, ao mesmo tempo em
que se constitui a razão de ser do Serviço Social, articula as dimensões técnica, ético-
política, teórica, pedagógica e intelectual da profissão, por isso é capaz de possibilitar tanto
que as teorias macroestruturais sejam remetidas à análise dos fenômenos, processos e
práticas sociais quanto que esta compreensão se objetive em ações competentes técnica e
politicamente.

- O Serviço Social possui modos particulares de plasmar suas racionalidades que


conforma um modo de operar, o qual não se realiza sem instrumentos técnicos, políticos e
teóricos, tampouco sem uma direção finalística e pressupostos ético-políticos, que
incorporam o projeto profissional.

- Não obstante as requisições profissionais por "novos" instrumentos operativos, o que


se percebe é a necessidade de uma racionalidade, enquanto expressão e fundamento das
teorias e práticas, capaz de iluminar as finalidades a partir das quais o aparato técnico-
instrumental é mobilizado.

- Só pode haver dicotomia entre teoria e prática no Serviço Social enquanto os


profissionais utilizarem como referencial de análise da realidade as teorias paradigmáticas
(formalizadoras da realidade).

Por uma “Razão Inclusiva” para o Serviço Social

Pelas considerações aqui desenvolvidas e tendo por base as sínteses anunciadas nas
páginas anteriores, permito-me afirmar que a insistente presença da racionalidade formal-
abstrata no Serviço Social ou, a razão positivista que subjaz aos projetos conservadores, à
perspectiva de manter a ordem social nos marcos da hegemonia da classe burguesa, coloca-
se como uma das mediações da Instrumentalidade do Serviço Social. De outro modo, o
conhecimento sobre a Instrumentalidade do Serviço Social permite-nos avançar sobre as
formas de pensar e agir na/da profissão.

Se o assistente social se depara com as contradições próprias da ordem burguesa


madura, que em outro lugar chamei de condições objetivas de trabalho ou causalidades
postas pela própria realidade social (Guerra, 1995), há que se recuperar o papel do sujeito
na escolha racional sobre as alternativas possíveis e na mobilização das condições
materiais necessárias ao alcance de suas finalidades.

14
Se é verdade que a legitimidade tanto da profissão quanto do referencial teórico-
metodológico e ídeo-político marxiano encontra-se referenciada pelas respostas materiais
concretas formuladas pelos profissionais às demandas11 (tradicionais e emergentes),
respostas estas que, por sua vez, referem-se tanto à produção de conhecimento - sobre os
objetos, sobre a realidade, sobre a população, sobre a Instrumentalidade do Serviço Social,
no interior da qual se delimita e se escolhe o instrumental técnico-operativo a ser utilizado
- quanto à intervenção objetiva nas variáveis da realidade social no intuito de alterá-las, há
que se investir numa racionalidade que se não é de “novo tipo”, supere aquela que
tradicionalmente vem acompanhando a profissão. Esta “outra” racionalidade deve ser
capaz de iluminar as finalidades profissionais (o para que das ações profissionais), de
permitir a escolha dos meios e instrumentos adequados à realização do projeto, de
mobilizar as condições objetivas, enfim, que permita a concretização das finalidades
profissionais. Os assistentes sociais ao acionarem Razão e Vontade na escolha dos
procedimentos técnicos e ético-políticos, dentre eles o instrumental técnico-operativo, o
fazem no âmbito de um projeto profissional, o que permite que a profissão supere a
dimensão eminentemente instrumental (necessária, mas insuficiente), respondendo de
maneira crítica e consciente às demandas que lhes são postas, alcançando a competência
técnica e política necessárias para o avanço da profissão em suas diversas dimensões:
técnica, ético-política, intelectual e formativa.

Esta "outra" racionalidade, por ser histórica e crítica é inclusiva, deve ser guiada por
uma ontologia de base materialista que, insólita ao universo do pensamento burguês e ao
mundo da superficialidade, tende a resgatar àquilo que na realidade é indissolúvel: a
relação teoria/prática, já que é a realidade mesma que se constitui na fundamentação do
pensamento e da ação dos homens na sociedade contemporânea.

BIBLIOGRAFIA

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Isaura P. de Queiroz. 11ª.


Ed. São Paulo, Nacional, 1984.
GUERRA, Yolanda. A Instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1995.
11
Como explicita Netto ao realizar projeções sobre as tendências de desenvolvimentos possíveis da
profissão, “muito do futuro dessa vertente (da intenção de ruptura) está hipotecado ao trato que vier a dar às
demandas do mercado de trabalho”(Netto, 1996:126).

15
————————. A Ontologia do ser social: bases para a formação profissional.
Revista Serviço Social e Sociedade n. 54, Ano XVIII. São Paulo, Cortez, 1997.
IAMAMOTO, Marilda V. e CARVALHO Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no
Brasil - esboço de uma interpretação histórico metodológica. 2ª Ed. São Paulo, Cortez,
1986.
LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista: sobre a particularidade como
categoria estética. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1968.
______________ As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. IN:
Revista Temas de Ciências Humanas nº. 4. São Paulo, Ciências Humanas, 1978.
______________ Ontologia do ser social: princípios ontológicos fundamentais de Marx.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Ciências Humanas, 1979.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. IN: Os pensadores. São Paulo. Ed.
Abril, 1974.
_____________. O Capital: crítica da economia política. (Livro I, vols. 1 e 2). Trad. Regis
Barbosa e Flavio R. Kothe, 2a. Ed.São Paulo, Nova Cultural (Col. Os Economistas),
1985.
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social - uma análise do Serviço Social no Brasil
pós 64. São Paulo, Cortez, 1991
________________ Autocracia burguesa e Serviço Social (Tese de Doutorado). Vol. I São
Paulo, PUC, 1989(a).
_________________. Notas para a discussão da sistematização da prática e teoria em
Serviço Social. IN: Cadernos ABESS nº.3. São Paulo, Cortez, 1989(b).
________________.Transformações societárias e Serviço Social. IN: Revista Serviço
Social e Sociedade nº. 50, São Paulo, Cortez, 1996.
VV. AA. “A metodologia no Serviço Social”. Caderno ABESS nº.3, São Paulo, Cortez,
1989.
VV. AA. “A produção do conhecimento no Serviço Social”. Cadernos ABESS nº. 5. São
Paulo, Cortez, 1992.

16
A CRISE CONTEMPORÂNEA E OS IMPACTOS NA
INSTRUMENTALIDADE DO SERVIÇO SOCIAL
Yolanda Guerra
“Quem esquece o seu passado corre o risco de repetí-lo”
(Jorge Santayana)

INTRODUÇÃO
A presente comunicação tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre os rumos
da profissão a partir das determinações particulares do Serviço Social e das condições objetivas e
subjetivas dadas pela crise contemporânea do capitalismo.
Busca-se determinar a natureza da crise e as transformações que ela engendra no mundo
do trabalho e na subjetividade dos trabalhadores de maneira geral, e em especial, no âmbito do
Serviço Social.
A crise contemporânea implica em profundas alterações nas relações entre os países, no
mundo do trabalho, na economia, na cultura, nas práticas ídeo-políticas e profissionais. Interessa-
nos captar as particularidades que estas transformações assumem nos países periféricos dados
os traços constitutivos do tipo de capitalismo que nestes países se objetivou — dependente e


Comunicação apresentada no XVI Congreso Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social realizado em
Santiago-Chile, de 9 a 13/11 de 1998.

Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autora do livro “A
Instrumentalidade do Serviço Social”, Cortez, 1995 e de artigos publicados em revistas especializadas.

17
excludente — e a maneira pela qual estas transformações se constituem em mediações às
práticas profissionais e ao Serviço Social, em particular.
A hipótese é a de que a crise contemporânea engendra novas necessidades sociais, as
quais se traduzem em novas demandas que o capital e o trabalho colocam à intervenção
profissional. São, portanto, as transformações macrosocietárias que produzem alterações nas
demandas profissionais, nos espaços de intervenção, modificam as expressões das questões
sociais — matéria prima da intervenção do assistente social — provocam uma redefinição dos
objetos de intervenção, atribuem novas funções à profissão e novos critérios para a aquisição de
novas legitimidades. O que se está afirmando é que as alterações nas práticas ídeo-políticas das
classes sociais, no “mundo do trabalho”, na esfera do Estado, nas políticas sociais estabelecem
novas mediações que se expressam nas condições objetivas (materiais e espirituais) sobre as
quais a intervenção se realiza e condicionam as respostas dos profissionais. Frente a estas
transformações, a dimensão instrumental da profissão passa a necessitar de vínculos cada vez
mais estreitos com um projeto ético-político em defesa dos direitos sociais e da democracia.

A CRISE CONTEMPORÂNEA E SEUS IMPACTOS NA PROFISSÃO

1. Fundamentos objetivos e subjetivos da profissão


O Serviço Social, considerado como uma prática profissional que possui uma
peculiaridade operacional, donde sua natureza sincrética e instrumental, encontra-se
historicamente condicionado por determinações objetivas e subjetivas. Estas, por sua vez,
remetem a uma determinada racionalidade, um determinado modo de ser, pensar e agir sob o
capitalismo: à racionalidade hegemônica da ordem burguesa.
Para garantir a sua sobrevivência, o Serviço Social como profissão, tem que responder às
demandas. Estas não são unidirecionais; ao contrário, se constituem em necessidades sociais
atravessadas por interesses antagônicos oriundos do capital e do trabalho, daí serem as
atividades profissionais mediadas pela contradição. Porém, não basta a decisão tomada pelo
assistente social em reforçar um dos dois lados da contradição capital-trabalho. O resultado vai
depender também de que se encontre uma correlação de forças favorável.
Para ser considerado eficaz, dentro dos padrões e critérios da racionalidade burguesa, o
resultado da intervenção do assistente social tem que operar com a alteração de variáveis, daí a
instauração de uma modalidade particular de intervenção de caráter inequivocamente
manipulatório (Cf. Netto, 1992). Pretende-se chamar a atenção para um tipo de modalidade de
intervenção cuja eficácia depende das mudanças que ela seja capaz de operar tanto no âmbito da
vida material dos usuários quanto ao nível de socialização destes, integrando-os, adaptando-os às
exigências e à racionalidade do capital12.
No atendimento às demandas, sejam elas da instituição, da população usuária, dos
trabalhadores ou do capital, há que se considerar as condições objetivas vigentes nas

12 Estamos considerando que o Serviço Social nasce como uma estratégia de classe, dentro de
um projeto burguês de “reformas dentro da ordem”,
visando a integração da classe trabalhadora, dadas as possibilidades econômico-sociais postas pelo
monopólio, no momento em que o Estado assume para si o tratamento das questões sociais.

18
organizações públicas ou privadas onde o exercício profissional se realiza 13. Trata-se, da
existência de determinadas condições de trabalho sobre as quais a intervenção vai operar,
modificando-as (Cf. Guerra, 1995 e 1997).
Ainda no nível das causalidades a serem enfrentadas na intervenção profissional, temos
que a modalidade de atendimento atribuído às questões sociais pelos profissionais depende da
modalidade de atendimento dada pelo Estado. Aqui há o suposto de que o formato dos serviços
sociais e/ou das políticas sociais, a maneira como estes espaços profissionais se moldam 14,
exerce influência direta sobre a intervenção profissional (Guerra,1995). No capitalismo em seu
estágio monopolista, o Estado passa a intervir diretamente na questão social, para o que
desenvolve uma modalidade de intervenção tipificada em políticas sociais. A questão social se
converte em “questões sociais” e são tratadas como problemáticas particulares, de caráter moral.
Nos países dependentes, as políticas sociais15 são focalistas, setorizadas, fragmentadas,
autonomizadas, formalista, abstraídas de conteúdos (político-econômico) concretos. Sua natureza
compensatória e seu caráter fragmentado e abstrato expressam o seu limite: elas não visam
romper, e, de fato, não rompem com a lógica capitalista. O Serviço Social tem nas políticas sociais
a base de sustentação da sua profissionalidade, já que a intervenção do Estado nas questões
sociais institui um espaço sócio-ocupacional na divisão social e técnica do trabalho, bem como
um mercado de trabalho para o assistente social (Cf. Netto, 1992). Dado seu caráter assalariado e
considerando que a intervenção profissional só se realiza mediada por organizações públicas ou
privadas, a profissão acaba sendo condicionada pelo tipo, pela natureza, pelo formato, pela
modalidade de atendimento das questões sociais pelo Estado burguês.
Porém, Marx e Engels(1989) nos ensinam: ainda que sob condições historicamente
determinadas, que independem da sua vontade, são os homens que fazem a história. Por isso o
papel do sujeito é de fundamental importância na construção, manutenção, transformação das
causalidades em causalidade posta (Cf. Lukács, 1997). Ora, a intencionalidade dos assistentes
sociais, o seu pôr teleológico estão sempre direcionados por dois elementos: razão e vontade.
Neles localizam-se as perspectivas de liberdade dos homens e, de maneira geral, direcionam as
escolhas sobre “o que”, “como” e “para que”, “quando” e “onde” fazer. Disso decorre que os
resultados das ações dependem da existência de condições favoráveis, da adeqüabilidade das
escolhas e das intervenções aos objetivos que se pretende atingir e ao projeto societário que se
prioriza, e, ainda, da correlação de forças presentes no momento. Portanto, as tendências e
perspectivas de atuação da profissão devem ser apanhadas no contexto histórico, na realização
das suas funções e no seu nível de maturidade intelectual e ídeo-política, o que implica o resgate
13 Nesse âmbito, considera-se a existência desde objetivos claros, exeqüíveis e compatíveis com as possibilidades de serem realizados e com o projeto ético-político com o qual o assistente
social pactua, enquanto condições subjetivas, até a existência de recursos financeiros, materiais, humanos, institucionais, no contexto da condições objetivas.
s
14 Há uma confusão no Serviço Social entre espaços profissionais e demandas. Estamos entendendo que os espaços historicamente configurados para o assistente social são os serviços
sociais (Iamamoto, 1982) ou as políticas sociais (Netto, 1992) geridas pelo o Estado, pelas empresas privadas, pelas organizações patronais, pela sociedade civil organizada. O espaço que
cabe ao assistente social na divisão sócio-técnica do trabalho é o de executor terminal de serviços ou políticas sociais. Mas isso não significa que como executor ele possa se isentar de
atividades como administração e gerenciamento de recursos e/ ou de implementação de serviços. Considera-se, neste trabalho, que os espaços profissionais (campos de intervenção) se
constituem numa variável da existência de condições requisitam a existência e reafirmam a pertinência da profissão.
15 A concepção de política social aqui utilizada é a de Vieira (1992) para quem as políticas sociais são maneiras de expressar as relações sociais cujas raízes localizam-se no mundo da
produção, não podendo ser compreendidas autonomizada da política econômica. Nos países dependentes e periféricos, as políticas sociais não se constituem em políticas propriamente ditas,
mas planos, programas governamentais, resultantes de revoluções e crises econômicas e de reivindicações operárias ou da sociedade civil organizada, em decorrência dos quais se avança no
processo democrático.

19
da conjuntura sócio-econômica, política e ídeo-cultural dos últimos 30 anos porque, de um lado, há
nestes uma aceleração na dinâmica das metamorfoses sociais e, de outro, eles permitem
recuperar momentos de inflexão na trajetória da profissão 16. Vale lembrar que no pós-70 vivencia-
se uma crise global sem precedentes na história.

2. Natureza da crise contemporânea


As abordagens totalizante da crise contemporânea a consideram uma crise global com
dimensões amplas, diversificadas, que afeta tanto as formas de produção/valorização do capital
quanto as de reprodução/regulação social dos dois sistemas sociais vigentes no século XX: o
socialismo real e o Estado de Bem Estar Social (Hobsbawm, 1992 e 1995; Netto, 1993 e 1996).
Apresenta-se como uma crise do processo civilizatório, daqueles projetos societários pelos quais
este último século se consolidou, das sociedades organizadas por iniciativas de economias
planejadas, dos Estados intervencionistas, dos valores sociocêntricos, enfim, das alternativas à
barbárie social (cf. Hobsbawm, 1992 e 1995; Netto, 1993; Frederico, 1994)17.
Como considera Hobsbawm, não se trata apenas da crise de “uma forma de organizar a
sociedade, mas de todas as formas” (1995: 21), e sinaliza a necessidade de novos parâmetros,
valores, princípios, hábitos, leis, ideologias, utopias, relações sociais. Estes, entendidos como
formas de “materialização do regime de acumulação” (Lipietz in Harvey, 1994: 117) são
denominados pela escola regulacionista como “modos de regulação”..
Ao mesmo tempo em que a crise da década de 70 afeta os países socialistas, a
racionalidade do sistema produtor de mercadorias expande-se, de modo que ela ultrapassa, de
maneira “errática e contraditória” (Ianni, 1995: 114) fronteiras geográficas e históricas, donde o
que é peculiar ao Ocidente — aqui se inclui tanto o padrão de acumulação produtivista 18 quanto as
ações e comportamentos manipulatórios — acaba sendo compatível com o Oriente (cf. idem.,
ibidem.).
Para efeito desta comunicação iremos nos deter, apenas, na crise do capitalismo, a qual,
por si só, contém determinações complexas e de difícil compreensão.

3. Determinações gerais da crise do capitalismo e suas formas de enfrentamento

A processualidade e a dinâmica do capital no período da gênese, expansão e crise do


capitalismo à época do Estado de Bem-Estar Social, põe de manifesto o seu caráter: trata-se, em
primeiro lugar, de uma crise de eficácia econômico-social da ordem do capital. Em segundo lugar,
esta crise pode ser pensada como o esgotamento de um pacto político-social entre as classes: o
16 No Brasil, o Serviço Social surge na fase do Estado Novo e dentro de um projeto populista. O Estado busca tanto controlar os setores urbanos emergentes quanto ser legitimado por eles.
um espaço sócio-ocupacional para o assistente social. Mas é no pós-70 que vamos encontrar as mediações sócio-históricas que forjam um
Neste âmbito, conforma-se
novo contexto no qual a profissional se move e que atribuem particularidades à reflexão e à intervenção.
É neste contexto que desencadeia-se o processo
de renovação profissional do Serviço Social, cujo marco histórico é o movimento de reconceituação do
Serviço Social na América Latina.
17 A premissa que sustenta a aceitação de uma crise global que afeta, ainda que de maneira diferenciada, os sistemas políticos vigentes no século XX, é a de que capitalismo “democrático”
e socialismo real se determinam reciprocamente, cada um deles incide sobre a existência do outro, impondo alternadamente necessidades de auto-renovação
.
18 Consideramos que os processos produtivos: taylorismo, fordismo, manchesteriano, stakanovista, e os mais recentes, toyotismo ou ohnismo, são diferentes modalidades de racionalização
do trabalho na qual fragmentação, abstração e formalização são mecanismos comuns a todas, variando na intensidade e extensão no uso e controle da força de trabalho e, conseqüentemente,
da manipulação ideológica que exercem sobre os trabalhadores (cf. Guerra, 1998).

20
pacto fordista-keynesiano, vigente numa longa fase expansiva do capitalismo 19, que, no limite,
sustentava a crise e se sustentava dela.
Dentre as abordagens explicativas sobre as crises capitalistas temos a do economista
marxista Ernest Mandel. Diz ele que a essência do capitalismo é a realização da lei do valor. Esta,
opera em diferentes momentos históricos cuja unidade encontra-se na busca de superlucros, os
quais são extraídos do diferencial de produtividade do trabalho. Extrair o máximo de mais-valia e
de valorização do processo de trabalho e do processo de formação do valor das mercadorias,
constitui-se no traço particular das diversas fases do capitalismo. Não apenas a venda, mas a
aquisição de superlucros ou conter a queda tendencial da taxa de lucro, constituem modos de
existência do modo de produção capitalista. O movimento do capital na direção do
restabelecimento do seu “equilíbrio instável” entre a oferta e a procura, tem em vista sua
reprodução ampliada. Mas como não há uma relação imediata entre o processo de produção e a
realização do lucro, a reprodução ampliada do capital não é um resultado inevitável. Ao contrário,
é essa defasagem, que caracteriza as crises econômicas de superacumulação de valores de
troca, que movimenta o modo de produção capitalista. Neste, a contradição imanente está em que
a produtividade social engendra a tendência gradual de queda da taxa de lucro (ou a reposição da
lei do valor). Sendo as crises capitalistas fundamentalmente crises de superprodução, estas
articulam-se com outras causas20 como a superacumulação, o subconsumo, a anarquia e a
desproporcionalidade da produção, a queda da taxa de lucros e pode se iniciar em qualquer dos
departamentos da produção: no de bens de produção ou no de bens de consumo, ou até mesmo
nos dois. Entende que, no período posterior à década de 40 deste século, o capitalismo alça-se
aos superlucros por meio da redução do tempo de rotação do capital fixo, o que só pode ser
realizado tendo em vista a revolução tecnológica que põe em movimento a automação, a
regulação eletrônica da produção, que intensifica a concorrência. Com o aumento da composição
orgânica do capital e a queda na taxa de lucro, instaura-se uma crise estrutural do modo de
produção capitalista. As crises capitalistas contemplam mediações muito complexas que se situam
no âmbito da produção e da circulação, da concorrência capitalista e da luta de classes (idem.:
213). Pretendemos ressaltar que nos processos de deflagração e enfrentamento das crises, estão
implicados acumulação de capital e ação política das classes sociais.
Mais ainda, que nesse contexto o Estado administra a crise intervindo no controle dos
mercados e da força de trabalho. Para regular a tendência ao subconsumo, instrumentalizar os
mecanismos que garantam a mobilidade e alocação da força de trabalho face as necessidades
dos monopólios, o Estado tem que ser legitimado, de modo que ele se torna permeável às
demandas das classes subalternas. É da dinâmica dos monopólios, a qual exige a assunção de
novas funções por parte do Estado, que este tem o alargamento da sua base de legitimação sócio-
política, mediante a institucionalização de direitos sociais. Contudo, vale ressaltar: esta é apenas
uma possibilidade cuja concretização depende das lutas de classes.

19 Estamos nos referindo aos resultados de um determinado pacto político vigente como forma de enfrentamento da crise dos anos 30, que tem na “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda de John Maynard Keynes seu substrato teórico. Ver Keynes, 1985.
20 Mandel nos adverte para a diferença entre as causas e os detonadores das crises. Esses são acontecimentos que precipitam as crises e as potencia. A esse respeito, Mandel, 1990: 211.

21
3.1. A crise do padrão taylorista-fordista
Em primeiro lugar há que se recorrer à história para compreender em que contexto a
racionalidade subjacente ao padrão taylorista-fordista de acumulação da organização do
trabalhado amplia-se para todas as esferas da vida social, a ponto de tornar-se a racionalidade
hegemônica do período pós-Guerra. Quais as condições que favorecem a hegemonia do padrão
de acumulação “rígido”?21 Dentre outras, a depressão entre guerras, o fortalecimento dos
sindicatos, a guerra fria. Porém, tem-se nos fatores econômicos — a reestruturação tecnológica,
industrial, comercial e financeira do mundo capitalista, a determinação “em última instância”.
Com efeito, a afirmação desse modelo realiza-se sob a hegemonia dos Estados Unidos
garantida pelo seu investimento no desenvolvimento do capitalismo alemão e japonês. Tal
hegemonia, somada à internacionalização da produção, possibilita a recuperação européia e
japonesa e permite a expansão de empresas multinacionais, a aceleração dos processos de
industrialização nos países atrasados, maior financeirização do capital. Das circunstâncias que
promoveram a consolidação do padrão de desenvolvimento norte-americano, derivam-se
inúmeras conseqüências, dentre elas o fato de que, nesse período, as idéias de Ford são
disseminadas para toda a Europa22.
Do ponto de vista das inovações do fordismo ressalta-se o estímulo ao consumo de
massa. Ford entendia que a produção em massa de mercadorias cria um consumo de massa,
melhor dizendo, uma demanda crescente por nova produção, que por sua vez, demanda a
produção de bens de capital, daí ser o consumo a condição essencial da acumulação capitalista.
Constrói, também, um perfil de sujeito histórico em sintonia com as necessidades do capital e com
o modelo de acumulação vigente.
Mais ainda. Como observa Harvey “a derrota dos movimentos operários radicais que
ressurgiram no período pós-guerra imediato preparou o terreno político para os tipos de controle
do trabalho e de compromisso que possibilitaram o fordismo” (1994: 125). Nos EUA, do
reconhecido direito de negociação coletiva, garantido pela Lei Wagner de 193323, que permite a
ampliação do poder dos sindicatos, estes passam a ser perseguidos e controlados, tendo em vista
os riscos de uma “infiltração comunista” (idem.: 127-8)24.. Porém,
“o extraordinário avanço capitalista ocorrido no pós-guerra com a consolidação do padrão
de desenvolvimento norte-americano, ao mesmo tempo em que produziu novos atores
econômicos25 e um intenso processo de internacionalização dos mercados, dos sistemas
produtivos e financeiros, reduziu a hegemonia norte-americana e a eficácia das políticas
econômicas dos estados nacionais, ampliou a precariedade de suas políticas sociais e

21 Há uma ampla gama de estudos que buscam relativizar o caráter eminentemente “rígido” do fordismo. Embora concordando que há matizes quanto a forma de objetivação desse padrão
de organização do trabalho, variando em termos de maior ou menor rigidez, dependendo de conjunturas e contextos históricos determinados, entendemos que, aqui, não há espaço para a
referida discussão. Restringimo-nos a utilizar a terminologia “rígido” apenas e enquanto oposição ao padrão mais flexível, tomado do modelo japonês.
22 . Dentre as inovações incrementadas por Ford estava “seu reconhecimento explicito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força
de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e
populista” (Harvey, 1994: 121).
23 Instituída como forma de solucionar o problema da demanda efetiva.
24 Del Roio, por sua vez, mostra que as formas de imposição ao movimento sindical nos EUA remetem a década de 20 quando, por meio da imposição dos sindicatos organizados por
setores e por empresas e da capitulação dos sindicatos via políticas sociais, tentam quebrar a resistência desse movimento (1996: 190).
25 No intuito de chamar a atenção do leitor para os “novos atores” e seus papéis trazemos a elucidativa colocação de Harvey: “O Estado teve que assumir novos (keynesianos) papéis, e
construir novos poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho
organizado teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de produção” (Harvey, 1994: 125).

22
colocou em xeque o compromisso social construído no pós-guerra” (Mattoso,1996: 52)
(grifos nossos).

É da relação entre os atores que deriva uma determinada forma de sociabilidade,


expressa na “administração científica de todas as facetas da atividade corporativa(...)” (Harvey,
1994: 129).
Do seu fortalecimento, o movimento operário põe no centro das lutas de classes a questão
democrática. Mas, considerando que, nesse contexto, democratização do Estado e administração
racional da economia caminham juntas, desencadeia-se uma avalanche de partidos social-
democratas que chegam ao poder na Europa.
Com a instituição do padrão de desenvolvimento norte-americano, parte do custo de
reprodução da força de trabalho desloca-se para o Estado, através de políticas sociais. Sobre isso,
mostra-nos Mattoso que o Estado, além de ocupar-se da reprodução da força de trabalho, em
conjunto com os sindicatos, busca adaptar a força de trabalho à dinâmica e à modalidade de
acumulação, de modo que salários e consumo estejam sintonizados com a produção em massa.
A crise dos países capitalistas industrializados, pós-década de 70, cuja expressão mais
evidente se localiza no índice de desemprego à nível mundial nos últimos 15 anos 26, logrou uma
reestruturação na produção com a assimilação de técnicas mais flexíveis de produção e gestão da
força de trabalho27, impõe a diminuição do número de trabalhadores sindicalizados e impulsiona
uma crise na Previdência Social. Em contraposição, o trabalho aparece subsumido às formas
adotadas pelo capital no enfrentamento da crise que o afeta. Sem iniciativa, enfrentando a ameaça
do desemprego que enfraquece suas formas de organização, a classe trabalhadora defende-se
como pode do “destino” a que o capital lhe pretende submeter.
É no contexto da Terceira Revolução Industrial e da reestruturação do capital (visando
maior competitividade) — e com ele as políticas de desregulamentação e flexibilização do
mercado desencadeadas desde o fim da década de 70 — impulsionando a globalização produtiva
e financeira, a qual também incide sobre a destruição de postos de trabalho (Chesnais, 1996), que
se expressam as condições mais desfavoráveis para o trabalho, base sobre a qual as
representações ídeo-políticas dos trabalhadores forjam-se.
No âmbito das determinações sócio-históricas mais gerais, para os trabalhadores
assalariados há uma alteração na relação contratual entre capital e trabalho, causando-lhes
perdas irrecuperáveis. Dentre as ações mais flexíveis implementadas pelos empregadores
destacam-se: alteração na legislação trabalhista, transformação do trabalho assalariado em
temporário, parcial, subcontratado, terceirizado. Neste cenário alteram-se as formas de extração
de mais-valia, mantendo-se a sua essência: a exploração da força de trabalho. Mais ainda, o
estreitamento das fronteiras entre as profissões sociais e o acirramento das disputas, devendo
prevalecer aquelas cuja funcionalidade seja adequada à ordem burguesa, a instituição de novas
profissões, a desprofissionalização e, até mesmo, a extinção de determinadas profissões. O
26 No Brasil “a taxa média de desemprego que havia ficado em torno dos 4% nos anos setenta, pelo menos se duplicou nos últimos 15 anos, atingindo uma média de 8,5% para o conjunto
de 24 países que compões a OCDE” (Meneleu Neto, in: Teixeira e Oliveira, 1996: 100). “(...) o crescimento do desemprego no Brasil teve uma distribuição desigual, tendendo a concentrar-
se nos principais centros industriais como São Paulo. Em 1985, a taxa média anual do desemprego total (...) era de 12,2% (...). Tomando por base o período de 89 e 92, o crescimento do
desemprego entre esses dois anos em São Paulo foi de 74,71%” (Idem, p.103).
27 Sobre o modo flexível de acumulação, as referências são os estudos de Harvey, 1992, Antunes, 1995 e Coriat, 1994.

23
recrudescimento da classe operária, o estimulo à profissionalização de nível técnico e do
voluntariado, melhor dizendo, a polivalência e multifuncionalidade, a necessidade de desenvolver
novas competências/alternativas profissionais e novas legitimidades, são alguns dos desafios que
esta conjuntura coloca às classes que tem no trabalho seu meio de vida.
Paralelamente, nesta última década, vivencia-se uma situação na qual as alternativas de
transformação social aparentemente fracassaram (o socialismo do leste europeu e a social-
democracia na França e na Espanha, por exemplo).
O capitalismo aparece com muito dinamismo, sobretudo do ponto de vista técnico 28. A isto
acresce-se o fato de que, percebendo o fim do “socialismo real” como a derrota do projeto
socialista como um todo, um expressivo número de trabalhadores passa a crer que “agora é o
momento de cuidar da vida cotidiana, dos interesses imediatos e corporativos, daquilo que se
pode resolver aqui e agora: não se tem que pensar no amanhã e salve-se quem puder”(Antunes,
1996:82)..
Todas essas condições se acirram nos países do Terceiro Mundo. Neles, há que se
registrar que as mudanças e ajustes propostos têm estreita relação com o modo como o mundo
capitalista enfrenta o esgotamento do padrão de crescimento do segundo pós-guerra e promove
uma modificação na relação entre Estado, mercado e organização social.
Aqui, a crise global e mundial vem acompanhada de um ideário que funcional e adequado
às formas pelas quais o capitalismo enfrenta suas crises, substitui as ideologias do
“desenvolvimentismo” pela “globalização”.
A inserção imediata e a qualquer custo dos países periféricos no mercado internacional,
como passaporte para o progresso e ao mesmo tempo como passaporte da globalização, acaba
por subsumir a identidade coletiva à irracionalidade político-cultural do neoliberalismo. Tais
recomendações advindas do Consenso de Washington trazem como conseqüência a adoção de
medidas desindustrializantes (na qual o Chile é exemplar), a desnacionalização das empresas
estatais, a conversão dos países em exportadores de produtos primários. Elas estão respaldadas
no déficit fiscal que é remetido à esfera da seguridade social (assistência, previdência e saúde). O
Estado se transforma no objeto prioritário de reformas.
Considerando que em nossos países não possuímos um Welfare State, ao menos não
nos moldes dos países desenvolvidos, “a efetividade dos direitos sociais é residual e portanto não
há ‘gorduras’ nos gastos sociais (...) o projeto burguês de hegemonia não pode, incorporar
simplesmente a programática da desregulação e a flexibilização e por isso este projeto mascara-
se “com uma retórica não de individualismo mas de ‘solidariedade, não de rentabilidade mas de
competência, não de redução de coberturas mas de ‘justiça’”.(Netto, 1996)29.
Para enfrentar a crise contemporânea atual, processos de racionalização são direcionados
pelos países centrais aos países periféricos, dentre eles a reestruturação na produção, resultado
da racionalização do trabalho vivo, a intensificação do capital financeiro, que é o capital no seu
28 No Chile, por exemplo, a reestruturação do capital e as medidas neoliberais possibilitaram o controle da inflação e até certo crescimento, ainda que tenha aumentado a dependência e
exclusão. Por isso, a despeito do progresso técnico, os problemas que o capitalismo não consegue resolver são de natureza estrutural: a fome, a concentração de renda, o problema ecológico,
ampliação das desigualdades sociais.
29 Cabe chamar a atenção para a “nova” prática adotada pelas empresas privadas denominada “filantropia corporativa”, a qual consiste em desenvolver atividades filantrópicas e de cunho
assistencialista como forma não apenas de isenção fiscal, mas sobretudo de publicidade das empresas, transvestida de solidariedade.

24
maior grau de racionalização e o globalismo, que é a nova condição do imperialismo, produto de
uma divisão do trabalho com maior nível de racionalização e da maximização da exploração dos
países periféricos pelos países ricos. Esses processos vêm acompanhados de uma programática
composta de ajustes econômicos e de estratégias políticas que se consubstanciam no
neoliberalismo.
A revalorização do mercado como instrumento de regulação econômica, o controle da
inflação como ponto de partida de uma reforma fiscal que reduz gastos públicos, em especial, os
gastos sociais; a deflação, como condição para a recuperação das taxas de lucro, são apenas
algumas das programáticas adotadas pelos organismos internacionais para os países de Terceiro
Mundo, mas, o que importa-nos ressaltar é que, para recuperar as taxas de lucro fez-se
necessário, como parte dos ajustes neoliberais, se voltar contra um tipo de relação capital-trabalho
típica do pacto fordista-keynesiano, de modo que duas modalidades de ajustes diferenciados para
o mesmo objetivo foram desencadeados naqueles países nos quais vigia um Estado de Bem-Estar
desenvolvido e um Estado desenvolvimentista. Nos primeiros, deixar que os salários fossem
corroídos pela inflação foi o mecanismo encontrado para a redução da massa salarial; nos
segundos, o encaminhamento foi o de reduzir as coberturas sociais, por meio da extinção dos
chamados benefícios ou salários indiretos.
Neste contexto, verificamos que a ofensiva neoliberal, que se caracteriza como uma
estratégia para superação desta crise, se utiliza, em larga escala, de sua ideologia para construir a
ambiência cultural30 necessária a este período particular do capitalismo. Mas, a globalização e a
programática neoliberal, encontram sua unidade nas estratégias racionalizadoras que se
expressam no novo padrão de acumulação/ valorização do capital, que se constitui na base sobre
a qual estas estratégias se estruturam e adquirem uma configuração mais adequada segundo os
interesses em presença. É a teoria liberal que fornece as bases de justificação teórico-ideológicas
para a sustentação da racionalidade que é conveniente ao estágio atual do capitalismo: a defesa
do Estado “mínimo”, diminuto, racionalizado e a recorrência às práticas de individualização. Na
base desse pensamento está a concepção de direitos naturais, igualdade de possibilidades e da
liberdade individual e o princípio da autodeterminação de ser diferente. Tais princípios são
reatualizados, subsume-se o antigo ao moderno, por meio de processos racionalizadores.
De que maneira os processos e mecanismos racionalizadores de enfrentamento da crise
se sintonizam com a herança ídeo-cultural do Serviço Social, bem como a sua funcionalidade
eminentemente instrumental?31. O que se altera e quais as continuidades com a racionalidade que
alimenta o conservadorismo típico da profissão?

4. As bases postas pela crise e o Serviço Social

30 Por nova ambiência cultural entende-se a produção da subjetividade necessária ao novo período de acumulação.
31 Entende-se a instrumentalidade do Serviço Social como uma condição sócio-histórica da profissão em dois níveis: no que diz respeito à sua funcionalidade ao projeto reformista da
burguesia (reformar conservando) e no que se refere a sua peculiaridade operatória, ao aspecto manipulatório das respostas profissionais. É da dimensão instrumental da profissão que
depende a sua eficácia e eficiência dentro dos padrões da racionalidade burguesa. Concorrem para ela, além de outras condições, o referencial ídeocultural e teórico-metodológico que a
informa; a manutenção das condições da intervenção profissional e o tipo de respostas exigidas à profissão. Ao restringir-se à sua dimensão instrumental, a prática do assistente social não
alcança um nível capaz de diferenciá-la de outras práticas profissionais ou não. Daí ser ela uma condição necessária mas insuficiente da intervenção profissional.

25
Partimos do suposto de que as necessidades e tendências mais gerais da sociedade,
algumas aqui apontadas, fundem-se com as determinações particulares do Serviço Social e as
alteram em termos das demandas, dos usuários, dos valores, dos critérios, dos padrões
societários, das requisições, das condições de trabalho.
Contudo, o que pretendemos evidenciar é a metamorfose do tipo de Estado —
historicamente o maior empregador de assistentes sociais — seu redimensionamento e o
reordenamento de suas funções, do que decorre uma alteração no papel das políticas sociais,
como respostas integradoras do Estado burguês. Se é verdade que o formato das políticas sociais
(estatais e/ou privadas), adotado em períodos determinados, coloca prescrições, atribui
configurações e ordenamentos à intervenção profissional (Cf. Guerra, 1995), e que sob o
neoliberalismo vigora uma concepção de políticas sociais sem direitos sociais (Cf. Vieira, 1997),
cabe-nos refletir sobre o que se convencionou chamar de política social neoliberal e quais as
conseqüências de se adotar um padrão de políticas sociais abstraídas dos direitos sociais. Para
Vieira, tem recebido o nome de política social neoliberal “aquela política que nega os direitos
sociais, que garante o mínimo de sobrevivência aos indigentes, que exige contrapartida para o
gozo dos benefícios, que vincula diretamente o nível de vida ao mercado, transformando-o em
mercadoria” (idem: 70) e sua legitimação tem se realizado por mecanismos que operam com uma
entronização do mercado e autonomização das esferas econômica, política, cultural, ética, social;
a hipertrofia do capital financeiro, que subsume o processo produtivo e pela cronificação do
imperialismo cultural.
As demandas das classes subalternizadas são remetidas ao mercado e/ou tornadas
objeto de responsabilidade individual, submetidas à benevolência e solidariedade. O mecanismo
geral, historicamente utilizado no “tratamento” da questão social é o mesmo — já que as respostas
mantêm-se no universo do conservantismo e do reformismo integrador — qual seja: a
fragmentação dos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais, a abstração dos conteúdos
políticos, democratizantes e revolucionários que as questões sociais portam e sua formalização
em problemáticas particulares, objeto de tratamento profissional. Como o mercado não reconhece
direitos, mas tão somente o poder de compra32, só resta um espaço para atendimento das
refrações da questão social fora do mercado: nos redutos do assistencialismo, prestado por
homens ou instituições de boa vontade. O atendimento da questão social passa a ser realizado
por meio de um mecanismo denominado por alguns autores como “refilantropização”33.
Com isso, o atendimento das refrações da questão social passa a ser realizado pelas
instituições públicas não estatais: as ONG’S (estas, formas privilegiadas de objetivação do
chamado “Terceiro Setor”), e por meio do trabalho voluntário. Estabelece-se uma nova relação
entre as instituições prestadoras de serviço, os agentes e os usuários. Mais uma vez o
pensamento conservador articula as perspectivas público-privado e as refrações da questão
social, de modo que, o que se mantém no atendimento da questão social são: sua reconversão
32 É clara e límpida a concepção de Roberto Campos: “o mercado ocupa-se essencialmente dos bens que podem ser objeto de transações entre agentes econômicos, vale dizer, que tem
valor de troca; se isso coincide ou não com valores de outra ordem, culturais, humanísticos, ou o que seja, depende do que as partes queiram” (in Dreiffus, 1996: 340).
33 Cf. Serra (coord.), 1998. Entendemos que nesta perspectiva de refilantropização da questão social, donde seu atendimento pelas empresas em programas denominados filantropia

gerencial ou corporativa, tem sido uma das formas de o grande capital tirar vantagem até mesmo da barbárie
social de que é responsável e de revesti-la de uma roupagem de “solidariedade”.

26
em problemática de natureza individual e a assunção da questão social por parte da sociedade
civil34.
A refuncionalização do Estado engendra um reordenamento no mercado formal de
trabalho dos assistentes sociais. De um lado, os três segmentos que tradicionalmente contratam
assistentes sociais, quais sejam, o setor público estatal, as empresas e as instituições sem fins
lucrativos, produzem uma modificação nas formas de contratação, com a ampliação de vínculos
de trabalho não estáveis. Com a institucionalização das organizações sociais como responsáveis
pela execução das políticas sociais estabelece-se uma multiplicidade de vínculos de trabalho,
flexibilizando os contratos, introduzindo os contratos por tempo parcial e contratação através de
terceiros, reduzindo carga horária. As conseqüências: maior rotatividade dos profissionais,
instabilidade, precarização das condições de trabalho, redução dos salários35. Tudo isso porta a
tendência a desqualificação do profissional e maior fragmentação da categoria. Também o caráter
missionário, a falsa auto-representação da profissão como vocação, a histórica tendência da
substituição da intervenção profissional por atividades voluntárias, desprofissionalizadas, são
dilemas recolocados pelas condições de trabalho resultantes da conjuntura de crise. Tais
alterações têm encontrado legitimação legal na Reforma do Estado, a qual, ao produzir novas
relações entre o público e o privado; acentua a racionalidade do mercado na formulação e gestão
das políticas sociais. A mesma lógica que tem sido empregada na organização e gestão do
Terceiro Setor.
Ainda no âmbito do mercado de trabalho tem-se a execução de práticas paralelas ao
mercado formal: assessoria e consultoria às ONG’s, aos Movimentos Sociais, aos profissionais,
via promoção de cursos de curta duração, e à voluntários e, nas empresas privadas, junto às
chefias. Vale lembrar que estes “novos” espaços profissionais, não poderão substituir os
tradicionais campos de intervenção dos assistentes sociais.
Considerando a relativa fragilidade teórica e analítica da profissão 36., decorrente da
insuficiência de pesquisa e de conhecimento sobre a realidade, sobre as demandas e usuários e
sobre as novas funções assumidas pela profissão, o que aparece é uma certa ausência de
“criatividade” e de instrumentos técnicos para intervir. Acentua-se a tendência neoconservadora,
focalista, controlista, localista, de abordagem microscópica das questões sociais, transformadas
em problemas ético-morais. Dadas estas condições efetivamente precárias, o atendimento da
demanda real ou potencial fica prejudicado, comprometendo o processo de trabalho e,
fundamentalmente, os resultados da intervenção profissional. Com isso, constata-se que o nível
de profissionalização do Serviço Social nem sempre se objetiva na prática, uma vez que as ações

34 As campanha (contra a fome, contra o frio, os mutirões para construção de casas e para cuidar do patrimônio público), os programas de gestão da pobreza administrados pelas primeiras
damasdenominados “comunidade solidária”,
vem sendo acompanhado do aparecimento de “profissionais do bem”. A este
respeito, matéria da Revista Isto É de 4/11/98. Mostra a referida matéria que o Brasil é o terceiro país em
percentual de trabalho voluntário.
35 Algumas pesquisas realizadas no Brasil sobre o mercado de trabalho do assistente social demonstram que o maior índice de rotatividade, multiplicidade de vínculos contratuais, faixas
salariais mais baixas foram encontradas nas entidades sem fins lucrativos (dados comunicados no IX Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais).
36 Este quadro tende a ser agravado com a implementação das medidas aprovadas no texto da reforma do Estado no âmbito da previdência (levando professores a antecipação de sua
aposentadoria) e com o novo texto da LDB, o qual inviabiliza atividades de pesquisa e extensão. Mais ainda, inicia-se um processo de privatização “indireta” das Universidades, na medida
em que, com a Reforma do Estado, estas são inseridas nas “atividades não exclusivas do Estado”. Não há dúvidas de que esse quadro de “sucateamento” das Universidades tende a refletir
diretamente na formação dos futuros profissionais brasileiros.

27
profissionais acabam sendo mais produto de instinto e da experiência pessoal do profissional do
que de referências teórico-metodológicas.
Três aspectos merecem ser evidenciados: com as transformações na sociedade, com o
mercado colocado no centro das relações sociais, com a entronização da razão instrumental, com
a programática neoliberal, do ponto de vista das alterações societárias comuns às diversas
profissões, há um aguçamento do conservadorismo típico da ordem burguesa, a hipertrofia da
perspectiva individualista, a expansão da racionalidade hegemônica do capitalismo. A ausência
de contraposição de expressivos projetos e perspectivas de ruptura com a ordem capitalista acaba
colocando no horizonte profissional, em sintonia com a sua tradição conservadora e reformista, a
única alternativa que lhe parece possível: a reatualização das suas perspectivas modernizante e
conservadora. Isso tem instigado a instituição Serviço Social a manter um movimento instaurado
desde a sua gênese: o de subsunção do antigo ao moderno. A tendência de refuncionalizar o
velho vem na esteira da própria racionalização e burocratização do Estado e encontra-se em
sintonia com as peculiaridades da profissão, as quais remetem às condições que a divisão social e
técnica do trabalho reserva ao fazer profissional e à modalidade específica de intervenção: o
Serviço Social como meio de manutenção da ordem37.
Na contemporaneidade tais demandas conformam-se sob novas condições e são
atravessadas por novas mediações. Atualiza-se o caráter voluntarista e volitivo, missionário e
vocacional da profissão. Atualiza-se a dimensão técnico-instrumental. Racionalizam-se suas
funções e sua intervenção nos programas que o capital implanta para enfrentar a crise: Programas
de Demissão Voluntária, Programas de Controle de Qualidade, Programadas de Preparação para
a Aposentadoria, Avaliação de Desempenho, etc.
De outro modo, temos que, se as demandas com as quais trabalhamos são saturadas de
determinações (econômicas, políticas, culturais, ideológicas), então elas exigem mais do que
ações simples, repetitivas, instrumentais, de rápida execução, de resolução imediata. Exigem mais
do que decisões tomadas em caráter de urgência, isentas de conteúdos ético-políticos. Elas
implicam em intervenções que emanem de escolhas ético-políticas, que passem pelos condutos
da razão e da vontade, que se inscrevam no campo dos valores.
Entendemos que, se não se levar em conta, para além das demandas do mercado, as
conquistas da modernidade, os projetos societários, as instituições próprias das duas modalidades
de sociedade que a Era Moderna nos legou, os valores sociocêntricos, as normas e princípios, os
direitos humanos, esta crise global acaba gerando uma tendência à “distorção sistemática da
história para fins irracionais” (idem., ibidem.)38, com o que corre-se o risco de um retrocesso da
profissão às suas origens, de operarmos uma redução psicologista do projeto profissional. Em
outras palavras, à medida que a ambiência cultural atual é bastante propícia a deixar os indivíduos
a cargo de si mesmos, a incentivar soluções individuais, a enfatizar os relacionamentos e as

37 Sabe-se que a funcionalidade do Serviço Social à ordem burguesa, o valor de troca da profissão (como uma das direções da intervenção) está em eliminar os conflitos, modificar
comportamentos
, controlar as contradições, abrandar as desigualdades, administrar recursos e/ou “benefícios
sociais”, incentivar a participação do usuário nos projetos governamentais ou no alcance das metas
empresariais.
38 Lukács (1968) já havia se pronunciado sobre os momentos de crise, nos quais a perspectiva anti-histórica tende a
negar a historicidade ou a metamorfoseá-
la em outra coisa.

28
soluções interpessoais, a criatividade, a razão subjetivista e instrumental, a concepção de
sociabilidade individualista do “salve-se quem puder”, o projeto profissional fica refém das
investidas na sua psicologização.
Mas, considerando que não há — nem pode haver — no âmbito da profissão, soluções
individuais, qualquer alternativa de enfrentamento dos dilemas atuais passa pela realização de um
projeto profissional viável, cujos valores resgatem a perspectiva de universalização dos direitos
humanos. O que está em jogo é que sem as conquistas da filosofia clássica, da solidariedade de
classes e dos valores democrático-universais, a sociedade contemporânea só pode derivar na
barbárie.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Perspectivas para a profissão


Pensar as perspectivas para a profissão frente a conjuntura de crise envolve buscar
saídas coletivas. Não se pode negar ou diluir as diversidades econômico-social, geopolítica,
cultural e histórica da profissão em contextos diferenciados. Contudo, entendemos que o que
permite uma unidade é a racionalidade subjacente ao projeto ético-político profissional. No século
XX, como síntese de elementos dados no século IX, os projetos de transformação social se
consubstanciam no movimento socialista. Daí que qualquer remissão às perspectivas de
transformação social circunscreve-se no horizonte do projeto socialista. No âmbito da profissão os
diversos projetos societários39 se refratam e se embricam nos diversos projetos profissionais que
se confrontam na luta pela hegemonia. Na América Latina, os projetos profissionais de extração
progressistas são resultantes da luta dos trabalhadores contra o imperialismo norte-americano,
contra a ditaduras e a favor da democracia, da liberdade, dos valores sociocêntricos em
contraposição aos valores individualistas e visam a redução das desigualdades sociais. Com isso
queremos reafirmar a vinculação do projeto ético-político da profissão com a luta mais ampla dos
trabalhadores e a necessidade de uma racionalidade (inclusiva, ontológica e crítica) que
desencadeie nos profissionais coragem para não retroceder, e a qualificação necessária para o
enfrentamento das reformas (neoliberais e social-democratas), para o que o estabelecimento de
alianças com os outros profissionais e trabalhadores é fundamental; que permita defender a
democracia e os direitos humanos na sua expressão mais radical e o amplo acesso aos bens e
serviços sociais, enquanto aspirações das classes trabalhadoras. Mas também uma racionalidade
que possibilite conhecer os fundamentos da ordem burguesa e suas metamorfoses; as demandas
profissionais e os objetos de intervenção (para o que a atitude investigativa é condição) e
estabelecer os meios mais adequados para intervir sobre eles; a correlação de forças do
momento, bem como evitar tanto incorrer em falsos dilemas quanto investir em falsas alternativas.
Há que se ultrapassar a racionalidade formal-abstrata das correntes tecnocráticas, a visão
tarefista-burocrática tanto quanto combater os subjetivismos dos quais as vertentes pós-modernas
são legatárias, que visam psicologizar as respostas profissionais. Ambos são produto do
pensamento conservador burguês e dele se sustentam.

39 Para Netto, projetos societários são antecipações ideais de projeções, a médio e longo prazos, de formas concretas de sociabilidade, convivência cívica, organização da economia, da
sociedade e da cultura (cf. Netto, 1998). Tais projeções, nem sempre tornados conscientes aos agentes sociais, representam interesses divergentes e portam a capacidade de modificar o real.
Eles são de natureza eminentemente política, embora nem sempre coincidam com os projetos político-partidários.

29
Para tanto a racionalidade materialista dialética (inclusiva, ontológica e crítica) tem se
constituído num vetor fecundo à revisão crítica da profissão, contribuindo para o avanço e
maturidade da mesma, revisão esta sem a qual a profissão pode se tornar extemporânea.

BIBLIOGRAFIA
GUERRA, Yolanda. A Instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1995.
GUERRA, Yolanda. “Ontologia do ser social: bases para a formação profissional” In: Revista
Serviço Social e Sociedade n. 54. São Paulo, Cortez, 1997.
GUERRA, Yolanda. A racionalidade hegemônica do capitalismo no Brasil contemporâneo — uma
análise das suas principais determinações. PUC-SP, 1998. Original Inédito.
IAMAMOTO, Marilda. V. e CARVALHO, Raul. Relações sociais e serviço social no Brasil, 2a. Ed.,
São Paulo, Cortez, 1986.
LUKÁCS Georg. “As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem” In: Cadernos de
NEAM n. 1. São Paulo, PUC, 1997.
MARX, Karl. e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
NETTO, José. Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1992.
____________. “Ética e crise dos projetos de transformação social” In: Serviço Social e
ética: convite a uma nova práxis. São Paulo, Cortez, 1996.

30

Você também pode gostar